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A presença da forma trágica

Ricardo Pinto de Souza

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Ciência da Literatura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Doutor
em Ciência da Literatura (Literatura Comparada)

Orientador: Professor Dr Eduardo de Faria Coutinho

Rio de Janeiro
Julho de 2010
Souza, Ricardo Pinto de.
A presença da forma trágica / Ricardo Pinto de Souza. – Rio
de Janeiro: UFRJ/ FL, 2010.
ix, 240f.: 31 cm.
Orientador: Eduardo de Faria Coutinho
Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras / Programa de
Pós-graduação em Ciência da Literatura (Literatura Comparada), 2010.
Referências Bibliográficas: f. 228-240.
1. Tragédia Grega. 2.Idealismo Alemão. 3. Filologia Clássica I.
Souza, Ricardo Pinto de II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em
Ciência da Literatura III. Título.

ii
A presença da forma trágica
Ricardo Pinto de Souza
Orientador: Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da


Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura
Comparada).

Examinada por:

Presidente, Prof. Doutor Eduardo de Faria Coutinho – UFRJ

Prof. Doutor João Camillo Barros de Oliveira Penna – UFRJ

Prof. Doutor Ary Pimentel – UFRJ

Profa. Doutora Izabela Guimarães de Guerra Leal – UFPA

Prof. Doutor José Luís Jobim de Salles Fonseca – UERJ

Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto –UFRJ, suplente

Prof. Doutor Eduardo Guerreiro Brito Loso – UFRRJ, suplente

Rio de Janeiro
Julho de 2010

iii
RESUMO

SOUZA, Ricardo Pinto de. A presença da forma trágica. Rio de Janeiro, 2010. (Doutorado
em Ciência da Literatura (Literatura Comparada). Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

Este trabalho é um estudo sobre a recepção da tragédia grega no idealismo alemão.


Há uma leitura de algumas peças dos três tragediógrafos gregos, Ésquilo, Sófocles e
Eurípides, com a apresentação de como alguns temas destes textos, como a solidão, a
relação do homem com o divino e com a comunidade, o conflito de valores, são trabalhados
no idealismo, especialmente nas obras de Hegel e de Hölderlin. O objetivo é entender como
um pensamento sobre a alteridade, conforme entendemos a dialética do idealismo, se
relaciona a uma forma de arte, a tragédia. Esta alteridade, o campo do negativo, é algo que
deve ser confrontado em um primeiro momento para que em um segundo momento haja a
possibilidade de reconciliação, de reunião do indivíduo isolado com o absoluto, com uma
unidade e uma universalidade de que ele estaria exilado. A hipótese é que a forma trágica
serviu como modelo teórico ou no mínimo como uma iluminação para que este pensamento
se formasse. O trabalho de filólogos nascidos em fins do século XIX, como Werner Jaeger,
Karl Reinhart e Bruno Snell, entre outros, que utilizam em suas obras idéias e conceitos
presentes nas obras dos pensadores idealistas é referido como uma maneira de mediação
entre a filosofia e a literatura. Tratamos também das relações entre discurso filosófico e
discurso poético, referindo o veto platônico à poesia e à mimese. Há um capítulo dedicado
a cada tragediógrafo, um capítulo dedicado à expulsão do poeta da politeia platônica e um
último capítulo dedicado à teoria da tragédia no idealismo alemão.

iv
ABSTRACT

SOUZA, Ricardo Pinto de. The presence of tragic form. Rio de Janeiro, 2010. (Doutorado
em Ciência da Literatura (Literatura Comparada). Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

This is a study of the reception of Greek tragedy in German idealism. There’s the
reading of some plays written by the three Greek tragedy writers, Aeschylus, Sophocles and
Euripedes, and the presentation of some of the themes in these texts, such as loneliness, the
relationship between man and god and man and community and the clash of moral values.
This reading follows the way tragedy has been understood in German idealism, especially
in Hegel’s and Hölderlin’s work. Our aim is to understand how a reflection upon otherness,
which is the way we understand the idealistic dialectics, is related to an art form, the
tragedy. This otherness, the realm of negativity, is something that must be confronted in a
first moment so that later there may be a possibility of reconciliation, of reunion of the
isolated individual and the absolute. The hypothesis is that the tragic form was used as a
theoretical model or at least as an inspiration for the building of this thought. We also refer
to the work of philologists born at the end of nineteenth century, such as Werner Jaeger,
Karl Reinhardt and Bruno Snell among others, who use in their work the idealist thinkers’
ideas and concepts. This is a way of mediating the literary and the philosophic discourse.
We also considered the relationship between philosophic and poetic discourse by referring
to Plato’s banishment of poetry and mimesis from his Republic. There’s a chapter dedicated
to each of the Greek tragedy writers, a chapter turned toward the study of Plato’s
banishment of the poet from his politeia, and finally a chapter on the theory of tragedy in
German idealism.

v
SINOPSE

Um estudo sobre a recepção da tragédia grega pelos idealistas alemães, especialmente em

Hegel e Hölderlin, e pelos filólogos da geração de eruditos nascidos em fins do século XIX,

que em sua leitura dialoga com a tradição idealista. O objetivo é recuperar os temas desta

recepção em paralelo a uma exposição do próprio texto trágico.

vi
Para Iza e Chloe, para meus pais e minha irmã, nisso que salva.

Para Eduardo e João Camillo, com amizade e infinito

agradecimento pelo apoio e tolerância.

Para a Biblioteca Nacional e para as outras, por existirem.

vii
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

1. SOBRE O TEXTO TRÁGICO: QUESTÕES INICIAIS

1.1. Descrição formal e substrato do texto trágico 30

1.2. Crime e castigo, destino e ethos 39

1.3. A transformação do sentimento do divino 46

2. ÉSQUILO E O DEUS NECESSÁRIO 58

3. SÓFOCLES

3.1. Após Ésquilo 82

3.2. Electras 85

3.3. O corpo de Filoctetes 91

3.4 Conhecimento trágico 113

4. EURÍPÍDES

4.1. A ambigüidade de Eurípides 125

4.2. O que se imita 129

4.3. Deuses e homens 136

4.4. O pesadelo da história 141

viii
5. PLATÃO E A EXPULSÃO DO POETA

5.1. Platonismus 155

5.2. Justiça e representação 158

5.3. O primeiro argumento contra a poesia: a ignorância do poeta 164

5.4. O segundo argumento: a prática da poesia é perniciosa 165

5.5. Terceiro argumento: a imagem poética é perniciosa 169

5.6. Ponto de fuga 173

6. TEORIAS DA TRAGÉDIA NO IDEALISMO ALEMÃO

6.1. Antecedentes da recepção da tragédia no idealismo alemão 182

6.2. O trágico em Schelling e o afastamento da teoria do efeito trágico 188

6.3. A tragédia em Hegel: a descrição formal no Curso de estética 193

6.4. O trágico em Hegel: A Fenomenologia do espírito 200

6.5. O trágico em Hölderlin 206

7. CONCLUSÃO 222

8. BIBLIOGRAFIA 228

ix
INTRODUÇÃO

A tragédia nasce em Atenas no século VI a.C (os primeiros festivais ocorrem por

volta do ano 530), como uma prática relacionada aos ritos de Dionísio durante cinco

dias do mês de março, chega a seu auge após a vitória grega sobre os Persas em 480, e,

cerca de cinqüenta anos depois, declina após a devastação da guerra do Peloponeso. A

morte de Eurípides em 406 a.C. talvez seja um marco adequado para o fim do gênero

enquanto prática festiva e pública, acima de tudo enquanto prática textual que se renova.

Temos então cerca de noventa anos entre o surgimento das primeiras peças de Ésquilo e

a morte de Eurípides.

Das centenas de obras produzidas neste período, os pósteros puderam ler trinta e

uma peças de três autores, repertório consolidado à época de Adriano. A permanência

deste corpo não é arbitrária a princípio: Ésquilo, Sófocles e Eurípides teriam sido os

autores mais populares (e o que significaria isto para a Atenas clássica?), além dos mais

respeitados pelos antigos. As peças que sobreviveram teriam também sido as preferidas

pelo público do período, e sua sobrevivência logo após a morte dos autores se deve

especialmente a sua reencenação em Atenas e outras cidades gregas após o período

áureo do século V. No entanto, é sem dúvida um destes mistérios da cultura a

preservação destas obras geração após geração por cerca de 2500 anos, e, mais que isso,

sua influência constante sobre o pensamento e o sentimento dos homens que chegaram a

conhecer o corpo trágico grego. Obviamente, o fato de o repertório trágico estar

presente como uma constante fonte de renovação espiritual, seja através de sua

representação e leitura, ou meramente através daquilo que gerou com sua sombra, o

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pensamento trágico, aponta para que o que estes três escritores gregos produziram há

tanto tempo atrás fala a alguma dimensão fundamental do ser humano. Por mais que

possamos contextualizar a recepção destas obras e atar sua leitura e discussão ao

respeito quase pânico que a Europa pensante tem em relação à cultura grega de um

modo geral, é difícil não utilizar a definitiva palavra “universal” quando nos referimos

ao alcance desta literatura. Sua centralidade na cultura ocidental só é par com a desta

outra criação do século V ateniense, a metafísica platônico-aristotélica, e talvez sua

imaginação plástica – nos três casos concepções únicas da cultura grega do período.

Dito isto, talvez não seja um mistério tão misterioso assim, nem milagre, nem

acidente, que, como a literatura de Kafka ou a música de Bach, a tragédia grega, ou ao

menos uma pequena fração extremamente representativa do conjunto desta obra, tenha

escapado à derrisão.

Mas de que derrisão a tragédia escapa? Pois ainda temos o interesse escolar por

uma boa parte da cultura grega, e ainda mantemos como uma presença fantasmal uma

certa idéia de Grécia., imagem que através de sucessivas leituras e do acúmulo de

esforços dos que vieram após o fim da antiguidade pôde ser salva e registrada. O

estatuto do texto trágico é nitidamente diferente. Ele não se esgota no interesse, nem se

estabelece simplesmente através do gosto pelo exótico e pelo distante, tampouco por

nosso amor ocidental pelas idéia da Grécia. A tragédia é, ainda, um modelo que nos

afeta de forma profunda, é ainda influência no sentido forte de Bloom, o de uma

presença que precisa ser emulada, distorcida e superada (cf BLOOM, 2002). Assim, o

texto trágico é ainda algo que a literatura e a cultura modernas tentam emular.

Estranhamente sua sombra não pesa, e por mais que a legibilidade destes textos seja

10
comprometida pelo tempo, ainda dialogamos com eles como com contemporâneos. Esta

tese tentará reconstruir a partir de uma leitura do texto trágico um momento desta

relação entre filosofia e literatura, sua recepção no idealismo alemão e na filologia do

início do século XX. É uma discussão difícil, mas que tem o mérito de ser

absolutamente essencial para a compreensão da cultura moderna. Nosso esforço será

realizar uma leitura da tragédia a partir de autores como Werner Jaeger (1888-1961),

Albin Lesky (1896-1961) , Frances Cornford (1874-1973), H.D.F. Kitto (1897-1982) ,

Karl Reinhart (1886-1958), Bruno Snell (1896-1986), Paul Friedländer (1882-1968),

Gilbert Murray (1866-1957), filólogos e scholars nascidos em fins do século XIX e que

constroem uma Grécia que dialoga com aquela que inspirou as obras de Hegel, de

Hölderlin e de Schelling, ou seja, com a imagem da Grécia e da tragédia grega

construída no campo do idealismo alemão do século XIX. Assim, neste estudo haverá

uma leitura do texto trágico em paralelo à apresentação da recepção deste texto. A

filologia é um campo de conhecimento próprio, e relacionar a imagem da Grécia deste

campo com a Grécia trágica que interessou à tradição do idealismo não é algo

automático. Mas há muitas coincidências, e necessariamente a recriação da Grécia neste

período na filologia se comunica intensamente com o leito de idéias, preconceitos e

expectativas que a filosofia deitou. Em alguns momentos do trabalho haverá uma leitura

própria, pessoal, do que está sendo analisado, necessariamente anacrônica em relação à

proposta, mas um gesto inevitável considerando a atração que a tragédia exerce sobre

qualquer leitor.

Nossa leitura do trágico seguindo os passos da tradição novecentista tenta se

concentrar principalmente em dois aspectos das peças, que parecem estruturar a leitura

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especialmente de Hegel e de Hölderlin. O primeiro é a solidão do herói trágico, a

solidão de um indivíduo separado da comunidade, do mundo e do divino, e que através

mesmo desta separação, que é ao mesmo tempo um afastamento e um confronto,

constrói sua excepcionalidade, pois nesta solidão encontra a si mesmo, um sentido

próprio para seus atos e sentimentos. A solidão humana, neste caso, se relaciona a duas

dimensões: uma cósmica, em que a solidão do homem se dá em relação a sua distância

do divino ou da natureza, e uma dimensão ética, em que este isolamento é isolamento da

comunidade, da lei positiva dos rituais e costumes. Em ambos os casos o texto trágico

questiona o estatuto tradicional do indivíduo em relação ao divino e à comunidade, e, na

leitura do idealismo, o trágico, apresentando o herói em sua solidão, pensaria na

maneira da reconciliação do homem com os campos de que se afastou. Este

entendimento da solidão se refere diretamente a uma tentativa de encontrar uma

conciência-de-si, na terminologia hegeliana, forte e intensa o bastante para se confrontar

ou unificar com o mundo objetivo (o deus, a comunidade de outros) que a cerca. O

resultado do confronto é geralmente aniquilante, mas seu sentido passa sempre pela

problematização do desejo de unidade entre o indivíduo e uma alteridade absoluta, um

outro, o campo do negativo, mediado geralmente pela presença de outros indivíduos e

valores. Nas palavras de George Steiner, em seu livro Antigones, muito maior e mais

ambicioso que nosso trabalho, mas que parte de uma proposta muito próxima:

A prescrição ética de Kant sobre o valor absoluto que um ser humano deve assinalar a
um outro, a luta epistemológica heróica de Fichte com a “contra-presença” dos outros
eus e a paradoxal necessidade desta presença para qualquer sistema inteligível de
liberdade e sociedade, a famosa dramaturgia da realização da consciência através do
encontro antagonístico com o outro, – todos são derivados do axioma da solidão e na
esperança de que possa ser, parcialmente, rescindida. (STEINER,.1984: 15)1

12
A filologia do fim do século XIX vai utilizar o pensamento idealista como um

ponto de referência, e se manter nos contornos das conclusões a que Hölderlin e Hegel,

especialmente, chegaram. Assim, estudiosos como Albin Lesky e Karl Reinhardt

descrevem o trágico em termos muito próximos daqueles utilizados por Hölderlin, como

uma tentativa dolorosa de reconciliação entre o homem e um divino que se afasta do

mundo e do homem. Autores como Cornford ou Gilbert Murray seguem de perto uma

leitura ética da tragédia, presente especialmente em Schelling, que concebe o conflito

trágico como um problema de conflito de valores. Já autores como Jaeger, Bruno Snell

ou Paul Friedländer utilizam uma teoria dialética que tem início em Hegel, e sua

descrição da cultura grega circula pelos temas de uma história do espírito (Jaeger e

Bruno Snell), ou de uma fenomenologia (Paul Friedländer, em seu caso já mais próximo

da fenomenologia de Husserl e Heidegger do que da de Hegel). O tema comum a todos

os autores é a apresentação da tragédia como um pensamento sobre o negativo, sobre

uma alteridade radical que isola o indivíduo e que tem de ser superada. Esta alteridade

pode tomar várias conformações no texto trágico, pode ser o divino, o direito, os valores

do outro, mas está sempre presente de forma tensa. Vamos nos referir a esta palavra,

tensão, muitas vezes ao longo do trabalho. O termo não deve ser entendido como tensão

narrativa, como quando um autor cria um elemento de mistério na trama para aumentar

o interesse do leitor, mas tensão de valores, confronto e oposição de campos. Outro

elemento dado na leitura da tragédia do século XIX é que o trágico é representação de

uma matriz espiritual, é comunicação sensível de uma forma, uma idéia, um conceito.

Isso, por um lado, faz com que a tradição filológica do fim do século XIX tenha como

ponto de partida algumas discussões muito complicadas e sofisticadas sobre a

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representação de valores na forma trágica, mas por outro lado produz uma cegueira

constante para aspectos ligados a questões antropológicas que formam o cerne da leitura

trágica contemporânea, ou para questões literárias mais ligadas diretamente à realidade

do palco e às necessidades de encenação.

O texto trágico vai surgir para a Alemanha do século XIX como um caminho

para criar identidade. O que autores como Lessing, ou Goethe ou Schiller buscavam em

sua leitura dos gregos era obter um atalho para a grandeza que um espaço de fala alemã

até aquele momento bastante atrasado e, de um modo geral, conservador e regressivo,

negava. A pretensão inicial, como nos tragediógrafos franceses de algumas décadas

antes, é “emprestar” um modelo de civilização e de sociabilidade que possa atualizar

aquilo que uma jovem intelectualidade alemã imagina como o potencial próprio de sua

língua e cultura. A pretensão inicialmente é encontrar uma medida para o bom-gosto, ter

um parâmetro para medir a própria cultura. O objetivo, no entanto, não é recriar uma

Grécia, como o Renascimento e talvez a cultura de corte francesa, o modelo mais

próximo a ser emulado por estes jovens autores. Como afirma Roberto Machado em O

nascimento da tragédia de Schiller a Nietzsche:

Para se formar o bom gosto na modernidade é preciso voltar aos gregos, o artista
moderno deve antes de tudo imitar as obras-primas ... A imitação dos antigos, no
entanto, não é um fim em si mesmo, é um meio de se chegar a uma reprodução do real
mais rapidamente. (MACHADO, 2006: 15.

A especificidade desta ambição é que os autores alemães conseguiriam entender

a tragédia como um modelo espiritual, mais do que propriamente um modelo formal.

Não são as unidades aristotélicas ou a mise em scène do palco grego as grandes

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preocupações, mas sim aquilo que esta forma literária legou em termos de visão da vida

humana. Acima de tudo, o trágico é um ponto de referência comum ao século XIX e

início do século XX, uma referência estável em um tempo incerto, de revolução e

transformação, e, mais que isso, um modelo da representação de um espírito e de uma

vida humana que se constroem como foco do sensível e do supra-sensível, do eu e do

outro, do indivíduo e da comunidade. Ao longo dos anos os esforços da dramaturgia

alemã se confundiriam com os da filosofia alemã. Hegel, especialmente, com sua leitura

de Antígona no capítulo VI da Fenomenologia do Espírito, é o responsável por tornar a

tragédia conforme a entendeu como um exemplo da dinâmica dialética da consciência

humana. A tragédia, pela importância que teve para o pensamento do período e,

posteriormente, a importância que este pensamento teve para nossa própria visão de

mundo, sempre circulou como um fantasma pela Europa. Esta presença trágica não pode

ser explicada simplesmente por uma genealogia do pensamento, como pretexto e

legitimação para ansiedades modernas. Há uma força literária na tragédia que a mantém

enquanto forma atual, a mantém como literatura com a qual nos identificamos, e os

problemas extraídos pelos filósofos desta forma ainda permanecem pulsantes,

desafiando e atraindo a visão.

O sintoma mais poderoso desta contemporaneidade do trágico é que o

nascimento de uma filosofia pós-kantiana, ou seja, de uma modernidade da

modernidade do pensamento, é construída a partir da influência e da presença espiritual

destes textos, primeiro na fenomenologia hegeliana, que na sua dinâmica de movimento

entre identidade e alteridade, entre consciência e outro, utiliza o trágico como um

modelo, e, em seguida em Nietzsche, que retomando o pensamento de Hölderlin e de

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Schopenhauer concebe a filosofia como exercício de transfiguração. A derrisão a que o

texto trágico escapa é a do próprio funcionamento da cultura, que se move através do

assassinato redutor de seus fantasmas. Mas, a tragédia não é redutível, nunca chega a se

tornar conteúdo assimilável que possamos simplesmente consumir em algum ritual

antropofágico. Ao contrário, diante do trágico e do seu oceano, corremos nós o risco de

sermos devorados.

Não terá sido exatamente isto que se dá com o pensamento trágico, de quando a

filosofia, reproduzindo o momento de seu nascimento e imitando o gesto de Platão,

tenta com Hegel instrumentalizar o texto trágico para incluí-lo em seu domínio e acaba,

ao contrário, se transformando? Quando temos a transição de uma filosofia do trágico

para o projeto difícil e conflituoso de uma filosofia trágica? E neste tratamento já há a

ameaça à filosofia, pois o trágico necessariamente se impõe.

Há uma presença na obra de arte, mas esta presença não é necessariamente o

sentido atribuído pela filosofia do idealismo, nem sua tarefa será possivelmente a

reconciliação de homem individual e universal, entre parte e todo. Quando Walter

Benjamin estabelece a distinção entre o funcionamento da alegoria e do símbolo em A

origem do drama barroco alemão (BENJAMIN, 1984), optando pela última como um

mecanismo de representação mais adequado aos problemas modernos, talvez seja isto

que esteja em jogo. Mesmo que ainda possamos nos referir à representação de uma idéia

ou de um todo na obra de arte, e mesmo isso é um ato de fé, o sentido da representação,

a hierarquia que estabelece que a representação se volta para fora do homem particular

em direção a um mais universal, é sempre algo que depende de uma crença na

capacidade de um absoluto, além do desejo deste absoluto. E talvez seja este o vírus que

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o trágico inocula na filosofia, a possibilidade de que no palco, nas palavras, na imagem,

seja o transitório e o finito que fique registrado, e não o infinito, que uma

transcendência feliz não é uma possibilidade, e que a tensão entre sofrimento e

felicidade, entre eu e outro deve ser mantida sem nunca ser interrompida.

Esta é uma possibilidade que se abre, no entanto, a partir do pensamento sobre a

alteridade no idealismo. Este outro pensado, que deve ser tocado para permitir a

transfiguração do mesmo, é o caminho para a construção do conhecimento. O que a

filosofia a partir de Nietzche vai conceber é que este processo não se interrompe, que

ele não é o meio para um fim, mas a própria dinâmica inesgotável de um estar no

mundo do homem, que se justifica por si, e que o pensamento deve acompanhar esta

dinâmica se quiser se manter vivo. Na dialética de Hegel isto já está previsto, embora na

crença do progresso, na crença de que há a possibilidade de melhoramento através do

conhecimento e superação do mundo sensível e da finitude, falte o salto que constrói um

pensamento mais próximo a nós. Nosso trabalho vai tratar do momento anterior a esta

passagem, mas que a prepara de uma certa maneira, se concordarmos que a base da

dialética do idealismo é o confronto com a alteridade, a retirada do conforto do mesmo

através do choque com o negativo, a alteridade. Vamos nos ater a este momento, o que

justifica a ausência, neste trabalho, da referência à teoria do trágico em Nietzsche, que

já é a fuga de uma estética simbólica. Por outro lado, a obra de Walter Benjamin, como

um meio-termo e uma ponte entre o idealismo e uma concepção mais próxima a nós do

que seja a obra de arte vai estar bastante presente.

O cerne de nossa leitura, seguindo especialmente um esquema hegeliano que

vamos aprofundar nos próximos capítulos, é que a tragédia figura uma dialética entre

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identidade e diferença, entre proximidade e distância2. Há na tragédia uma dialética

entre proximidade e distância. O sentido econômico da proximidade, do familiar, que é

a proteção e que é sagrado, é criticado e, possivelmente, profanado na tragédia. Aquilo

que permite a proximidade sociável, que são os ritos públicos de união, de funeral, de

respeito à lei, ao companheiro de armas e à comunidade da pólis, todos sagrados e,

através do sacrifício, projetados também em um plano superior à simples existência

política e concreta da cidade, são transformados em alguma outra coisa na forma

trágica, profanados para que sua função, e, especialmente o papel do homem nestes

âmbitos, seja repensado. Esta profanação é dialética, e nasce de uma leitura específica e

nova que a Grécia, ou pelo menos a Atenas do século V tem sobre a realidade e o

sentido do humano. O liame dos ritos públicos existe através da repressão daquilo que

seja ambição individual e desejo sem medida. A hybris, elemento estrutural que faz a

fábula trágica se mover, se refere então a esta energia reprimida que a existência social

organizada impõe ao homem grego. Essa repressão gera um campo negativo, o da

impossibilidade de existência de um indivíduo isolado, impedido da sociabilidade da

pólis. É este campo negativo que a tragédia põe em movimento na figuração do exílio,

do ostracismo, do afastamento da pátria e da família. Em Homero estes são momentos

pontuais de uma trajetória, após os quais ainda é possível uma religação, um regresso –

na verdade o retorno à família e à comunidade são o destino do herói. O que a tragédia

tem de distinto é entender este regresso e esta memória como elementos possíveis, mas

não necessários, do homem entregue a si longe da comunidade. O que está em jogo,

então, é o sentido da solidão humana.

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A história de Édipo ou do ciclo dos aqueus com Agamêmnon e Orestes, é

propriamente a formalização desta desconfiança em relação ao otimismo homérico. O

afastamento da comunidade – que na leitura idealista, especialmente de Hegel, é a

instância de intermediação entre o homem e o divino, o campo de ação entre a potência

e o limite humano – tem como conseqüência a catástrofe. Neste sentido, a tragédia é

uma reflexão sobre o limite da liberdade humana e sobre a possibilidade de

reconciliação desse eu com o outro do divino. Se a conclusão dos tragediógrafos é de

que a solidão humana é intrinsecamente desastrosa, é porque temos, pela primeira vez,

uma visão do mundo que deseja um homem em si em vez de um ateniense, um coríntio,

um labdácida ou um aqueu. Esta primeira tentativa, sob qualquer medida magnífica, de

conceber idéias e noções que sejam válidas para todos os homens, passa

necessariamente por uma reflexão sobre o mal e a crueldade. Na tragédia a violência

surge como uma linguagem, como a forma de comunicação do homem com o divino,

como a mediação problemática da solidão humana com os valores de que este homem

está isolado. Em Hegel esta é uma dialética entre família e pólis, entre os valores mais

exclusivos e singulares do núcleo familiar e os valores mais categóricos da lei política.

Em Hölderlin temos uma dialética entre um grande indivíduo, o herói dotado do fogo

“aórgico” do desejo, da independência, do pensamento, e o grande outro que é a

natureza. Em ambos os casos esta dialética deve gerar uma reconciliação, uma

transformação de valores que aponte para um novo estado, para um novo equilíbrio.

Assim, o que a dialética do isolamento produz é um conhecimento e uma figuração.

Conhecimento da alteridade, figuração do indivíduo transfigurado por esta alteridade. E

nesta lida com o outro há o projeto de um homem universal, de um indivíduo sensível

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que possa alcançar o universal, que possa não ser apenas um indivíduo singular e

unilateral, mas que consiga sensivelmente atingir o ideal. Pensar este homem universal

significa abandonar o exclusivismo da comunidade e da família, fazer o salto do

universo protegido do familiar e se projetar no abismo da alteridade, do estranho, do que

ainda não está. E este distanciamento do familiar, por sua vez, envolve pensar o

sofrimento e a crueldade, pois longe da família, abandonado entre o mar e o céu

profundo como o Odisseu homérico, o homem está desprotegido, sujeito à natureza, ao

estrangeiro, a, finalmente, à medida estranha e desconfortável de si mesmo.

O que a tragédia faz é dar forma à ansiedade deste abandono utilizando algumas

fábulas tradicionais. Mas, se um dos impulsos para a forma trágica é este temor diante

de um homem isolado, o resultado tem um alcance muito mais amplo do que isto. Na

figuração da solidão humana que a tragédia constrói, há como legado um homem

universal, que pode ser medida do humano e não apenas de si mesmo e de sua

comunidade.

Quando falamos em uma dialética entre proteção e abandono, entre universo

positivo da comunidade e universo natural da solidão, entre, finalmente, familiar e

estrangeiro, podemos nos referir a uma dialética propriamente: o universo da proteção

familiar gera seu negativo, na figuração do expulso e do estrangeiro. Mas esta figuração,

por sua vez, modifica as condições da proteção familiar. A paixão dos heróis trágicos

tem várias conseqüências éticas, revolve, interroga e interpreta o universo todo do

sentido do direito positivo e dos limites da comunidade. Mas, estruturalmente, sua

tendência é propor uma abertura conceitual em relação às regras de sociabilidade. Não é

que o universo familiar cesse de ser a base sagrada da existência humana, mas este

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universo se abre ao estrangeiro como elemento a ser interrogado, apropriado e,

finalmente, hospedado, também, de forma sagrada. Historicamente talvez possamos

atribuir isto ao momento específico da história grega e ateniense, em que há o esboço de

um império ateniense após a última invasão persa. Esta não é uma preocupação

exclusiva de Atenas, a política de todas as grandes cidades-estado gregas do período

passou a sofrer a influência de questões pan-helênicas, e é a partir deste momento que

podemos falar de uma “Grécia” de forma adequada.

Literariamente esta síntese que leva à aceitação do estrangeiro como um

elemento a ser levado em conta na identidade do homem público é representada na

condição dúbia dos heróis trágicos no que se refere a sua pátria. Édipo é um estrangeiro

falso e um falso conterrâneo, um tebano que se crê coríntio, um coríntio que “adota”

Tebas apesar de seu destino ditar que será expulso duas vezes desta terra. Medéia é a

esposa estrangeira de um herói estrangeiro, perdida em uma terra que deseja anular o

rito sagrado que a uniu a Jasão e exilá-la e a seus filhos. Filóctetes sofre sozinho em

uma ilha sem ter a quem chamar de irmão. Egisto, o amante de Clitemnestra, é um

aqueu que quer destruir sua própria linhagem, Orestes é o exilado que retorna e que em

vários momentos pode ser visto sob o manto de um estrangeiro, seja quando se disfarça

para matar sua mãe, seja quando, exilado e perseguido pelas Fúrias, chega ao Areópago.

Outro elemento da representação desta dialética é o papel que mensageiros e

viajantes têm na imaginação trágica. Caracteristicamente eles são os elementos

marginais à fábula que, no entanto, possibilitam seu progresso. São estrangeiros os

personagens em Édipo rei que lhe oferecerão os meios de reunir as informações

fragmentárias que lhe revelarão seu destino. Em Hécuba de Eurípides, é o aqueu

21
Agamêmnon que se apieda da rainha troiana Hécuba e contribui para que ela realize sua

vingança. Nas Eumênides de Ésquilo é o conselho ateniense do areópago que decide o

destino do argivo Orestes. Este é um bom símbolo da síntese política que nos oferece a

tragédia: Orestes, exilado em terra estrangeira, é justiçado e perdoado não por sua

comunidade, mas por estes outros a princípio não comprometidos com seu sofrimento.

E este gesto de generosidade é suficiente para transfigurar as Fúrias em Eumênides, as

Cadelas em Bondosas, e indicar a fundação de um novo direito, que se aplique para

além da comunidade restrita da pólis. Estes são termos próximos da descrição da

tragédia enquanto figuração de um conflito ético, especialmente em Schelling e Hegel,

a crença de que a tragédia representa um conflito que deve ser superado, em que os

valores éticos em oposição devem se transformar para gerar um novo momento, mais

universal.

Esta dialética entre familiar e estrangeiro, bastante concreta para a Atenas do

século V, permanecerá um tema de toda tradição após os anos do ciclo trágico grego.

Seus termos serão adequados e atualizados para cada época e lugar, mas seja em

Sêneca, seja em Shakespeare, em Racine ou Schiller, o questionamento da solidão

moral do ser humano, ou seja, a interrogação pela medida mais própria do que seja a

ação humana, sempre retornará quando nos referimos ao trágico. E é esta dialética que

permitirá, através de uma longa linha de transformações, que a forma trágica dê origem

a uma filosofia do trágico e a uma filosofia trágica, como viriam a exigir Peter Szondi,

Walter Benjamin ou Adorno. Será esta forma que nos permitirá, finalmente, falar em

um espírito trágico.

22
Mais à frente trataremos mais especificamente da leitura do idealismo sobre o

trágico; por hora gostaríamos de apontar que a dialética entre o indivíduo e o universal,

entre o absoluto e sua formalização, que a tragédia grega representa pelo confronto do

homem solitário com a divindade, é a base da filosofia de Hegel, mas também da

dinâmica entre vontade e representação, em Schopenhauer, ou entre aórgico e orgânico,

em Hölderlin, ou entre Apolíneo e Dionisíaco, em Nietzsche, ou entre sonho (e

linguagem) e o conteúdo inconsciente, em Freud. Estas todas são abstrações relativas a

estas questões concretas com que os tragediógrafos gregos se defrontaram no século V

a. C. O esforço de nosso trabalho será tentar recuperar parte das questões que o

idealismo reconheceu na tragédia em paralelo a uma leitura do próprio texto trágico.

Este é um esforço necessário, ainda que necessariamente superficial, pois é a

tragédia como forma, como prática textual, que tem o papel histórico de estabelecer um

elo entre a filosofia e a literatura criativa. Embora os problemas e as preocupações de

ambos os campos sejam essencialmente os mesmos, especialmente o sentido da

realidade e da experiência humana, a ética e a prática em que estas reflexões se dão é

estritamente distinta. A literatura tem o dever de ser linguagem pública, o que vale

dizer, linguagem que refere constantemente a uma identidade e que atende à vocação

concreta de jamais se afastar demais da vida, real ou sonhada, dos homens. Isto obriga o

literário a ser mimético (ou talvez a mimese obrigue ao literário), mas esta mimese não

é totalmente livre, é um jogo que tem suas regras. Acima de tudo, a literatura tem um

compromisso com a beleza, o que define e limita o tipo de conhecimento que chega a

produzir. Seu dever de origem, na epopéia e na tragédia, nunca foi traído

substancialmente. Isto tem uma série de conseqüências, como a liberdade formal e

23
moral do produto literário, como a impossibilidade de que o conhecimento poético

gerado pela literatura seja aceito pacificamente: ele é sempre questionável, sempre. A

maneira como o discurso literário tentou compensar esta última fragilidade foi se atar a

uma concretude emocional e sensível da vida dos homens. Aquilo que ela carece de

certeza compensa com um dom oferecido, a aposta, mais ou menos correta, de que o

vagar cego do homem pelo mundo, embora seja o lugar da incerteza, possui uma

dignidade específica que deve ser registrada e celebrada.

O discurso filosófico tem suas próprias questões e limites, mas o dom que tenta

criar é outro. Seu problema de saída é a condição de verdade daquilo que afirma, e,

enquanto o tipo de conhecimento que a literatura produz é estruturalmente questionável,

o tipo de produto do discurso filosófico tem a pretensão de ser permanente, de ser uma

verdade autônoma que possa persistir independentemente do âmbito concreto em que

foi gerado. A apresentação de suas preocupações estabelece um corte na dignidade

humana: a dignidade não está no humano em si, em todo o humano, mas naquilo que é

passível de permanecer, naquilo que é imutável. Conforme nos informa João Camillo

Penna em sua introdução a Ensaios sobre arte e filosofia, de Phillippe Lacoue-Labarthe,

Ao traduzir Ge-stell por estela (stèle, em francês), Lacoue-Labarthe delimita,


nesta imagem-palavra, o sentido da própria essência do projeto da metafísica,
enquanto história do conhecimento do que “permanece” (aei on), do estável, do
mesmo.3

Esta restrição obviamente afasta o discurso filosófico de um compromisso com a vida

concreta dos homens, em que exatamente o impermanente é um elemento constitutivo e

inescapável da identidade e da sensibilidade. Mesmo com a tentativa após Nietzsche de

se liberar da tradição metafísica, a filosofia ainda está afastada da prática mimética que

24
a literatura estabeleceu como sua forma por excelência de expressão, e que a obriga

constantemente a considerar a realidade que a cerca de uma maneira interessada.

A cisão textual entre filosofia e literatura não se dá propriamente no estatuto da

imaginação e da figura em cada uma das respectivas práticas textuais. A fabulação é

uma prática essencial na literatura, ou ao menos é uma tradição tão poderosa que se

impõe como uma natureza. No caso da filosofia, Platão baseou sua escrita na forma

narrativa do diálogo, e obras importantes da tradição filosófica ocidental, como as

confissões de Agostinho ou as meditações de Descartes utilizam a fabulação como

forma de preparar a discussão filosófica. Então, embora na filosofia esta fabulação seja

marginal, ela é ainda assim admissível. A mimese, por outro lado, é um corte entre os

dois campos. De novo, a mimese é essencial à prática discursiva da literatura e marginal

à filosofia, na verdade, uma solução e um problema em relação aos respectivos

discursos. Mas, enquanto a literatura torna a mimese sua prática mais comum, a

filosofia tem a pretensão de que esta prática seja um degrau em um recurso

argumentativo que visa chegar à verdade. A representação é admissível, desde que ela

conduz a um ponto de decisão em que aquilo que é representado aponte para o uno, para

o universal, o essencial.

No campo literário, ao contrário, o representado não é um degrau, mas antes o

próprio fim de uma prática figurativa em que a representação do humano é a meta e o

meio. Neste sentido o discurso literário é tautológico: o homem é representado, e a

representação do homem é o produto do ato de representá-lo – é um jogo de soma zero

em que o que é tirado do real é devolvido transfigurado, mas não há um produtividade

aí, talvez apenas uma revelação, já distinta da revelação metafísica, que aponta

25
constantemente para um resto, um produto da prática textual a ser sempre buscado e

perdido. A revelação literária ocorre de tal maneira que este resto possível é diluído na

própria forma. Uma rosa, por qualquer outro nome, continuaria sendo rosa. O “sentido”

da rosa é o outro nome que lhe damos, que, sim, tautologicamente aponta para a

primeira rosa.

A diluição do sentido na figuração é exatamente o que o discurso filosófico não

consegue praticar (e não deseja, é averso a). Ainda que este sentido buscado seja

necessariamente fugidio e fenomenológico, ele é o fim deste texto, é sua pretensão e

obsessão. Daí que, pelo menos até Nietzsche, o discurso metafísico é também

comprometido com o bem, o justo, a felicidade, não concebendo a presença de um

campo negativo no humano. O mal ou o sofrimento sempre foram inabordáveis por um

discurso filosófico, e o prazer bastante concreto que eles geram através de sua

representação, assim como seu lugar devido em uma possível ordem cósmica, são um

ponto cego. Para o literário, ao contrário, este campo daquilo que é o contrário do bem é

uma presença bastante concreta, inescapável, na verdade. Já que o discurso literário não

se obriga a tirar nenhuma conclusão dela, sua representação pode ser gratuita, ou seja,

pode ser realizada sem que se chegue a uma decisão sobre as conseqüências dessa

presença para a ordem do mundo e do homem. Não seria possível para um poeta chegar

ao tipo de decisão a que Descartes chega ao pensar sobre o sentido da realidade e afastar

a possibilidade de que um “gênio maligno” esteja por trás da ordem das coisas. Na

verdade, não seria nem uma questão quando ele fosse representar essa ordem, pois o

poeta não se preocupa em dizer o criador, não mais, ao menos, do que em dizer o

contrário da criação também. Isto não quer dizer que não haja ideologia ou fé a sustentar

26
uma obra, mas sim que o próprio funcionamento do literário, com seus tropos e práticas

miméticas, produz um “aplainamento” de dignidades. Dante representou o inferno e o

paraíso, um tão intenso quanto o outro. O que isto diz do universo em que os dois

lugares são possíveis fica por conta de quem lê. Mas uma das conclusões possíveis é

que o Grande Deus que os sustenta não é lá um sujeito muito legal. O sentido possível

não é algo que necessariamente leve ao justo, ao bom, ao feliz, pois na obra literária o

contrário destes valores tem a mesma intensidade. E, acima de tudo, o sentido é uma

potencialidade, sua atualização não é exigida, ou pelo menos não é exigida para que o

que está sendo representado na obra de arte exista.

A interpretação da estética sobre a natureza da obra de arte se afasta dessa

posição, no idealismo especialmente ela aparece sempre como símbolo de uma

determinada ordem ética ou cósmica, como manifestação particular de uma totalidade

que, na representação, pode ser recuperada. Neste sentido, a reflexão sobre a tragédia

durante o período em que vamos nos deter a imagina sempre como a expressão

complexa de um sentido – necessariamente e ainda bom, justo, belo – a que a cisão

entre sensível e supra-sensível no mundo concreto da ação humana impede o acesso.

Esta recuperação do sentido é extremamente complexa, e passa necessariamente pelo

sofrimento, mas cria um ponto cego para uma materialidade da obra de arte, para a

possibilidade de que haja na obra de arte um outro mecanismo que não seja a produção

de sentido e de bem. Então, é na representação do sofrimento humano que encontramos

uma outra bifurcação entre filosofia e literatura. A construção típica da filosofia é

pensar o mal e o sofrimento como desvios de um caminho natural, e sua grande

preocupação se refere ao evitamento deste campo, como ser justo, como ser bom, como

27
ser feliz. Isto significa que diante do mal o discurso filosófico se limita a dizê-lo

enquanto negatividade, enquanto ausência. O sofrimento e seu universo correlato são

sempre crises, sempre cortes no real que devem ser cauterizados, o que quer dizer,

silenciados, desviados.

Mas, e se o mal não for negatividade? Se for uma das potências que organizam a

realidade? A representação do mal na literatura parece atender a esta pergunta. Mas

devemos modalizar: a representação literária não responde a uma pergunta, não tenta

preencher um vazio de verdade à maneira da filosofia. Ela meramente representa, talvez

possamos dizer: ela apresenta resposta a uma pergunta que não foi feita. O que temos

diante de uma peça como Agamêmnon, por exemplo, em que o representado é o mal

enquanto presença bastante concreta – a mentira, o sofrimento, a violência, a paixão não

conciliável –, esta representação é acaso provocada por uma angústia diante do

sofrimento, por uma interrogação à realidade, ou por um prazer, que se confunde com

um dever de ofício, de imitar o sofrimento pura e simplesmente porque ele está lá?

Quando Platão expulsa o poeta esta é uma das coisas que está em jogo, a

inadmissibilidade na cabeça do filósofo de que as coisas são dotadas de dignidade por

sua mera existência, simplesmente por estarem lá. Isto não quer dizer que o discurso

literário não respeite uma ordem ética. Apenas esta ordem ética não adere: podemos

condenar Macbeth – e a fabulação de Shakespeare visa isto –, mas sentimos prazer com

e por Macbeth, e este prazer não atende a uma ordem moral, não atende à unidade ética

necessária entre belo, bom e conhecimento. Sentimos prazer em ver Macbeth, seus atos,

sua perversão, sua queda. Caso ao fim da peça ele se tornasse rei da Escócia,

acreditamos que nosso prazer não seria menor, não porque “gostamos” de Macbeth, mas

28
sim porque suspeitamos que haja um sentido não-óbvio diante do que vemos, e, acima

de tudo, nos satisfazemos com que esse sentido se perca na memória do que vimos, se

perca como presença em sua representação, se diluindo na forma.

O ruído de fundo em que o esforço deste trabalho se dá é pensar o divórcio entre

a realidade pensada pelos filósofos e a realidade pensada pelos poetas. Autores como

Hegel ou Schelling, ou, de resto, qualquer dos grandes nomes por que passaremos aqui,

são imensos e possuem obras francamente muito além de nossa capacidade de abarcá-

las. Mas estes mesmos gigantes que tentaram pensar a realidade de cabo a rabo se

afastaram talvez irremissivelmente daquilo que os homens concretos viveram e

sofreram. O pensamento trágico é exatamente o elo, feito e desfeito, fortalecido e quase

rompido, que aproxima suas idéias e seu discurso da prática textual literária. O trágico é

uma possível conciliação da filosofia com este homem real naquilo que ele tem de

errante e incerto. Daí sua centralidade.

1
Tradução própria do original em inglês:

Kant’s ethical prescript as to the absolute evalution which one human being must assign to another,
Fichte’s heroic epistemological struggle with the ‘counter-presence’ of the other selves and the
paradoxical necessity of this presence to any intelligible system of freedom and society, Hegel’s famous
dramaturgy of the achievement of self through antagonistic encounter with the other – all are derived
from the axiom of aloneness and the hope that this action can be, partially, rescinded.
2
A inspiração para esta leitura vem do comentário de Derrida sobre Levinas em Adeus a Emmanuel
Lévinas, especialmente uma certa dialética da hospitalidade e do outro, do rosto, como fundação do
pensamento. Nos desviamos desta leitura e não vamos retomá-la ao longo do trabalho, mas nos pareceu
justo indicar sua seminilidade. (cf DERRIDA, Jaques. Adeus a Emmanuel Lévinas. (trad Fábio e Eva
Landa) São Paulo: Perspectiva, 2004.
3
PENNA, João Camillo. Introdução – O imperativo do pensamento. In LACOUE-LABARTHE, Philippe.
Ensaios sobre arte e filosofia. (org e trad Virgínia de Araújo Figueiredo e João Camillo Penna). São
Paulo: Paz e Terra, 2000. (p.14)

29
1: Sobre o texto trágico: questões iniciais

1.1. Descrição formal e substrato do texto trágico

A tragédia enquanto forma teatral surge na Atenas do século VI derivada de

cantos públicos, os ditirambos, que através de improvisação se tornam o texto trágico.

Aristóteles vai indicar suas características formais: a imitação de um episódio heróico e

religioso (o mythos, que geralmente se traduz por “fábula”) de enredo completo, em um

palco com acompanhamento musical de instrumentos como a Cítara, a lira, o aule, a

stynx , tambores e canto coral. O espaço do palco é dividido entre coro, posto mais

próximo da platéia e no centro da estrutura do teatro, os atores que representam mortais

mais ao fundo, provavelmente sobre um estrado, e os deuses, geralmente surgindo em

uma plataforma acima dos mortais. Usam-se máscaras, para efeitos cênicos e melódicos.

Uma tragédia é espetáculo de canto, dança, literatura e cenografia, os quatro níveis de

representação apresentando elementos religiosos e profanos, mantendo uma tensão

constante entre a visão velha, religiosa, e o humanismo que surgia. Sua linguagem é

elevada e hierática, e se utiliza de um vocabulário que perpassa todo o campo da

tradição grega, mas especialmente a linguagem jurídica e religiosa (cf MALHADAS,

2003 e ROMILLY, 1998 para uma descrição breve da encenação da tragédia).

Aristóteles entende que a tragédia existe enquanto veículo para produzir catarse, a

purgação homeopática das paixões do medo e da compaixão. A Arte poética de

Aristóteles ainda é uma das melhores definições da forma trágica, porque nos indica a

materialidade do que teria sido a tragédia, sua prática enquanto espetáculo. Acima de

tudo nos obriga a entendê-la como obra de arte multidimensional, em que várias artes se

unem para o efeito estético.

30
O fato de a tragédia ser aquilo que mais tarde entenderíamos, especialmente

através do filtro do Nascimento da tragédia de Nietzsche, como obra de arte total, ou

seja, obra que fala a todos os sentidos e a todos os níveis da experiência humana, cria

necessariamente um vácuo na sua compreensão. Conseguimos entender as questões

mais estritamente literárias e culturais que chegam a nós através dos textos preservados,

sua formalização verbal e ideológica, mas aquilo que seria a forma trágica de fato supõe

uma união bastante cerrada entre a performance textual e aqueles outros três níveis, o da

música, da dança e da mise en scène. É sintomático que geralmente a descrição de um

nível exclua a dos outros. Assim, autores da estatura de Albin Lesky, Paul Vernant ou

Werner Jaeger nos oferecem uma descrição ampla do texto trágico, das questões

culturais e estéticas que ele suscita, mas não relacionam estas questões a sua

formalização no palco em conjunto com os outros níveis do espetáculo. Aqui nos

preocuparemos essencialmente com os aspectos literários e culturais da tragédia, mas é

preciso ter em mente que a compreensão de fato do trágico, do espírito trágico,

inclusive, envolve pensá-lo enquanto forma completa, enquanto campo de experiência

em que a tekhné, o artifício, a elaboração, a formalização são o caminho para o

conhecimento estético. É exatamente esta intuição que torna Nietzsche um pensador tão

poderoso do que seja o trágico, ao atribuir à música o papel central na formação do

espírito trágico. Nas palavras de Roberto Machado:

Sua originalidade foi ... valorizar a música para pensar a tragédia grega como uma arte
essencialmente musical, ou como tendo origem no espírito da música. (MACHADO,
2006: 243).

Esta é uma limitação com que teremos de lidar, em parte por limites pessoais, em parte

porque este nível de reconstrução da cultura grega não é possível. De qualquer maneira,

tentaremos envolver estas questões em nossa discussão.

31
Para nossa discussão será pertinente estabelecer um corte entre dois níveis

culturais a partir dos quais a tragédia é gerada. Ambos se relacionam e se confundem na

forma trágica, mas para apresentá-los será útil distingui-los. O primeiro nível é

religioso: a tragédia reproduz no palco os mitos e rituais com que o público ateniense

pensava sua relação com o divino, seu lugar no universo e sua identidade tanto

comunitária quanto individual. Neste nível é que importa manter sempre presente a

figura do deus Dioniso. À época de Gilbert Murray e durante os estudos clássicos

novecentistas de um modo geral, a tragédia era entendida como um evento ligado ao

culto de Dioniso. Não necessariamente uma homenagem direta ao deus, mas um

acontecimento que tomava emprestado seu espírito do das orgias e bacanais em

homenagem ao deus, e, especialmente, coincidia com as festas em sua homenagem no

mês de março. Corroborava-se esta visão com a referência à Arte poética de Aristóteles,

que localizava nos ditirambos religiosos de um coro representando sátiros a origem da

forma trágica. Durante muito tempo este início da tragédia explicava o nome do gênero

(o canto do bode como sendo o canto dos sátiros). Albin Lesky critica esta posição:

Já estamos cientes, por intermédio de Furtwängler, de que essas representações


pertencem, sem exceção, a uma época mais recente e de que o costume de dotar nossos
demônios de rabinhos, orelhas e chifres de bode só se introduziu na época helenística,
sob influência do tipo do deus Pã. O aspecto dos sátiros nos tempos mais antigos, no-lo
mostra grande número de monumentos: geralmente trata-se de figuras de vasos, que nos
apresentam esses demônios silvestres com enormes caudas e orelhas de cavalo e, nas
representações mais antigas, até mesmo com cascos de cavalo ... Tentou-se eludir por
diversos caminhos a dificuldade decorrente do fato de encontrarmos providos atributos
eqüinos os sátiro-bodes, cuja existência reconhecemos no nome da tragédia, mas
nenhum deles se mostrou praticável. (LESKY, 2006: 70)

A explicação mais viável é que o “canto do bode” do trágico se refira ao animal

sacrificado na abertura das festas. Isto não esgota o problema, no entanto.

A tragédia nasce como uma extensão do rito religioso comunitário ateniense,

mas, temos de nos perguntar, como faziam os atenienses que viveram logo após a era de

32
ouro do teatro, o que a tragédia tem a ver com Dioniso? Após a leitura de Nietzsche é

quase direto afirmarmos que o Dioniso do trágico está no espírito de transbordamento e

de informe a que o caminho apolíneo da formalização conduz. A leitura de Hegel

também, que utiliza o Édipo rei e a Antígona como modelos para seu comentário sobre

a distinção entre direito divino e direito humano, entre direito natural (relacionado à

família, ao sangue) e direito universal, categórico (relacionado ao estado) vai

estabelecer o divino como um dos pólos fundamentais para uma leitura da tragédia. Mas

isto não dá conta do problema mais estritamente ritual. O espetáculo trágico ocorreu

durante décadas relacionado ao culto de Dioniso, mas a referência ao deus é escassa nas

peças que sobreviveram, o mesmo podendo-se dizer, através dos catálogos

sobreviventes, do que se conhece sobre as peças perdidas. O aspecto religioso das peças

não se relaciona, então, especificamente a Dioniso, mas as histórias representadas são

religiosas, embora para nossa mentalidade seja difícil entender como um herói com a

história de Édipo possa ser digno de culto. E, no entanto, o aspecto religioso das

tragédias passava por aí. A explicação de Murray, é que as tragédias serviam

inicialmente para explicar a origem de certas figuras menores do culto grego (cf.

MURRAY, 1943:18-20). Assim, com o ciclo de Prometeu teríamos a explicação do

santuário ao demônio menor Prometeu em Atenas, com a tragédia de Ájax a explicação

do culto ao herói em Corinto, com a Oréstia a explicação do culto às Eumênides no

Areópago, etc.

Esta hipótese tem a vantagem de dar uma resposta coerente ao problema da

relação entre a tragédia e o ritual religioso. Mas não resolve o problema de como

Dioniso se relaciona com o ritual trágico. Lesky tem uma leitura bastante próxima à de

Murray, entendendo que o coro trágico é inicialmente desligado do culto dionisíaco:

33
A aparente contradição entre a tragédia como parte do culto dionisíaco e seu conteúdo
não dionisáico foi observado muito cedo pelos antigos e deu margem a uma expressão
proverbial: “Isto nada tem a ver com Dioniso” ... Nesta conexão, adquire máxima
importância para nós um relato de Heródoto (V, 67). Desde a mais alta antiguidade
existia em Sícion o culto do herói argivo Adrasto, e Heródoto diz expressamente que os
sicionences não veneravam a Dioniso, mas a Adrasto, e em coros trágicos cantavam
seus tormentos ... o conteúdo desses cantos eram os feitos e os sofrimentos do herói de
um dos grandes ciclos de lendas. E é neste ponto que entra a reforma do tirano
Clístenes, que dedica estes cantos a Dioniso, isto é, faz com que estes cantos sejam
entoados não no culto do herói Adrasto, mas no serviço do novo deus. ... A passagem
não diz outra coisa senão que os velhos coros “trágicos”, com seu conteúdo tirado dos
cantos heróicos, passaram a integrar o serviço religioso dionisíaco.
(LESKY, 2006: 78-79)

A hipótese é que esta transição tenha se dado também em Atenas, e que, com a ligação

dos coros em homenagem a algum herói com os coros a Dioniso, tenha havido

lentamente uma mudança de conteúdo, com estes cantos adquirindo caráter dionisíaco,

ou seja, um espírito dionisíaco mais ou menos da maneira que entende Nietzsche.

O segundo nível cultural se refere à evolução política ateniense, com o

espetáculo trágico sendo um elemento de promoção do estado ático. A tragédia se une à

promoção da democracia grega, sendo o rito por excelência que une aqueles homens

importantes e respeitáveis, responsáveis pela condução dos assuntos da cidade, a outra

parte da população livre ateniense. Os autores, atores, e, especialmente, os “produtores”

do espetáculo pertenciam àquela camada mais elevada da população, que, dentro do

palco, representava sua estirpe e a si mesmos para o público de artesãos, camponeses

livres e mercadores que deveriam liderar. Ésquilo, autor e ator de suas peças, teve

tragédias produzidas por Péricles, o estratego maior de Atenas. O fato objetivo dos

príncepes desta democracia estarem diretamente ligados ao palco, representando a

história de heróis e de deuses, relaciona a grandeza de uns à de outros, e faz com que

seja impossível não pensar o espetáculo trágico em algum nível como também um rito

de classe. Mas pensá-lo exclusivamente deste modo não daria conta da riqueza da forma

trágica. No mínimo, porque esta grandeza representada no palco era sempre manchada

pelo crime e pela impureza. Este é um elemento importante das relações de classe e

34
poder que se tornam presentes na tragédia: elas não são simples propaganda de um

poder, de uma estirpe ou de uma classe, mas sim a contradição e problematização deste

poder, desta estirpe, desta classe. Uma maneira de entendermos esta estranha

“propaganda” é relacioná-la aos rituais jocosos do rei-mendigo e do phármakon, em que

o rei é transformado ritualmente em homo sacer, em entidade sagrada que deve ser

adorada e execrada simultaneamente, ou, no mínimo, ser tornado objeto de troça. Todas

as sociedades pré-modernas conhecem este ritual, e esta será uma das bases de René

Girard para relacionar a tragédia aos rituais de bode expiatório que ele entende como

manifestações de uma lógica de controle da violência que permite a existência da

cultura. A vantagem desta leitura do fenômeno é que ela liga a tragédia a rituais muito

antigos e bem documentados que estão sempre presentes na descrição da visão de

mundo de sociedades primitivas.

O problema é que a sociedade ateniense do século V já não era tão primitiva, em

nenhum termo de comparação válido. No auge do império marítimo que se formou após

a guerra contra os persas temos uma cidade de cerca de 300.000 habitantes, com rotas

fixas de comércio se entendendo do Egito à Itália, abarcando todo o mediterrâneo. O

fato de a democracia ateniense ter podido sustentar uma guerra de trinta anos contra

todo o resto da Grécia dá a medida de seu poder. Uma boa parte das instituições

culturais a que estamos acostumados tem sua origem na Atenas desta época. Era uma

sociedade necessariamente complexa por qualquer medida, e, embora necessariamente

os antigos rituais comunitários de controle ainda estejam presentes, devemos nos

perguntar a força que eles ainda possuem em uma sociedade que prepara o surgimento

da filosofia. Preferimos entender esta ambígua representação do poder na tragédia,

seguindo a leitura ética de Hegel na Fenomenologia do espírito, como um esforço

consciente de pensar a natureza do poder político, da cidadania, do estado. Como em

35
outros momentos, como na era barroca ou no século XIX burguês, a tragédia põe em

cena e reflete sobre os vícios do poder e do cidadão, e isto não de forma restrita e

privada, mas de forma pública. Não temos então propaganda, mas um momento de

excepcional riqueza espiritual em que existe liberdade crítica, mais que isso, em que a

crítica faz parte da própria dinâmica do poder do Estado.

O cidadão é o termo mais importante da democracia ateniense. É a ele que a

tragédia se volta, e é da relação entre a liderança política e os outros cidadãos que se

constrói o tipo específico de lógica de representação da tragédia ática. Todos os

problemas de estatuto de verdade que o texto trágico suscita – a contradição entre

daímon e caráter, entre destino e vontade, entre o que é dito aparentemente e o que é

dito de fato – podem ter suas raízes apontadas para a necessidade de incluir o cidadão na

construção do sentido da cidade. Não é uma crítica válida a afirmação de que a

democracia ateniense era restritiva, pois não é a quantidade de cidadãos que define a

dinâmica deste poder, e sim a maneira como os vários interesses que o compõem são

organizados na cidade. Assim, a tragédia representa a cidade, torna-a parte do ciclo

heróico-religioso que é um dos fundamentos da identidade coletiva grega. Mas a

inclusão do público na construção do sentido da peça trágica vai além disso. Pois, ao

contrário das outras formas tradicionais da literatura grega, como os ciclos épicos, a

literatura religiosa e a lírica, a tragédia tem a contradição como parte constituinte de seu

texto. E por ser irônico e contraditório, o texto trágico exige um processo ativo de

decifração do signo. Exige um leitor como o entendemos, alguém que possa ler nas

entrelinhas, antecipando e refletindo sobre o apresentado e reorganizando-o, adquirindo

o sentido do dito e estabelecendo os níveis distintos de significação. Quando, por

exemplo, Clitemnestra recebe Agamêmnon em Agamêmnon, de Ésquilo, seu discurso é

doce e subalterno, cumprindo o papel de boa esposa. O público todo já sabe de antemão

36
que ela assassinará o marido, e o sentido real de seu discurso, a ironia antecipatória do

assassinato, só é construída fora da própria peça, no público que a assiste. Esta é já a co-

existência do estético, que, embora possamos referir em qualquer texto – o texto (e a

obra de arte) só existe enquanto atualização cumprida por um leitor, enquanto discurso

concreto que se cumpre simultaneamente a sua decifração no ato de leitura, diante do

próprio texto ou na memória do leitor – é estrutural ao texto trágico. Não há um cartaz

no palco dizendo “olha, isso é mentira!”, “olha, isso não é necessariamente assim”. É a

mente do espectador que traça estas relações, e, portanto, é a mente do espectador que

torna o mito conforme é apresentado no texto trágico em algo que exista. A

conseqüência política desta característica do texto trágico é que é o público de cidadãos

que mantém vivo o mito identitário da pólis. Este ente coletivo que é a comunidade de

cidadãos é que confere coerência à realidade conforme apresentada no palco trágico. O

corte entre dois planos de sentido, um que se dá no palco, insuficiente, e outro que se

completa na mente do espectador, traz o público para dentro do palco, torna-o parte

ativa do espetáculo. Acima de tudo, faz com que a arte trágica seja já uma reflexão

sobre a linguagem, a verdade e o sentido. Na tragédia temos a construção de um dos

primeiros signos complexos da literatura, ou seja, de um discurso que se constrói

enquanto sobreposição de outros discursos, e que não refere nunca a um sentido

unívoco, mas antes à suspensão tensa do significar, ao múltiplo, ao variável, à

fulguração intensa e transitória da obra de arte que Platão não pôde mais que condenar

(cf Capítulo 5). A tragédia é linguagem já posta em crise. Obviamente, o sentido é

recuperado na apresentação da peça, mas a natureza transitória e frágil da linguagem já

é trazida à baila.

Estes dois níveis da experiência grega estão presentes na tragédia, sendo

responsáveis pelos temas que vai abordar. As questões de sucessão, a hybris, a natureza

37
da justiça, o destino do homem e da comunidade, a relação do homem com o divino e os

limites entre os dois reinos, estas todas são preocupações que o século XIX vai projetar

sobre o texto trágico, articuladas entre si no herói trágico e no deus-destino que o

assalta, e que referem diretamente os universos religioso e político dos gregos. A

singularidade da tragédia estaria em que os valores tradicionais serão transformados em

uma nova visão que culmina em um indivíduo consciente de si e de sua independência

espiritual, um novo herói consciente que Platão pensará como o seu modelo de ser

humano. Esta transfiguração do herói trágico – e dos valores tradicionais da pólis

ateniense – em um novo personagem, que usa sua própria humanidade como medida de

sua presença no mundo, é um dos grandes legados da arte trágica. O nosso esforço a

partir de agora será de entender como os valores tradicionais da cultura grega conforme

interpretados pela tradição filológica e filosófica do período a que estamos nos atando

puderam paulatinamente gerar esta nova visão. Como, a partir da representação do

conflito entre o divino e o homem individual, e entre ele e a comunidade, chega-se a

Platão e à idéia de liberdade e de universalidade. Esta é uma linha de exposição que

duplica a leitura do século XIX sobre a tragédia através especialmente da teoria de

história hegeliana, que o Paidéia de Jaeger parece acompanhar. Em Jaeger isto se daria

em três momentos, naquilo que se refere ao Estado ateniense: um primeiro momento

aristocrático, ligado aos valores da épica e que a partir da influência das idéias e da

legislação de Sólon permite o fortalecimento da instituição estatal e o surgimento da

democracia no século V. Um segundo momento de promoção e de expansão deste

estado, a que a instituição dos concursos trágicos estaria ligada, e um terceiro momento,

após a queda de Atenas na Guerra do Peloponeso, em que uma certa consciência ética

construída pela tragédia culminaria na obra platônica. Jaeger conta a história espiritual

deste processo, como ele se constrói em termos de valores e de construção de uma

38
autoconsciência humana, na transição da épica para a visão trágica e da visão trágica

para a visão platônica. Segundo Jaeger, esta transição está ligada especialmente á idéia

de responsabilidade pessoal e de justiça que se manifesta inicialmente no pensamento de

Sólon:

Na concepção épica, a cegueira, a Ate, engloba numa unidade a causalidade divina e


humana em relação com a desventura: os erros que arrastam o Homem para a ruína são
efeito de uma força daimônica à qual ninguém pode resistir. É ela que induz Helena a
abandonar a casa do marido para fugir com Páris, e é ela que endurece o coração de
Aquiles perante a embaixada que o exército lhe envia para dar explicações para
reparação da sua honra ultrajada, e perante admoestações do seu velho preceptor. O
desenvolvimento da autoconsciência humana realiza-se no sentido da progressiva
autodeterminação do conhecimento e da vontade em face dos poderes superiores. Daí a
participação do homem no seu próprio destino e a sua responsabilidade perante ele.
(JAEGER, 1995: 302)

1.2. Crime e castigo, destino e ethos

Um dos efeitos de a tragédia ter surgido tendo como horizonte os substratos

religioso e político da cultura grega é que o problema da justiça está sempre presente. A

maneira justa de viver, mas também a tentativa de compreensão da justiça divina, da

justiça dos homens, do erro (a hamartía) e perdão. Talvez a maneira mais produtiva de

iniciarmos a discussão seja entendendo a idéia de erro trágico, tão sublinhada por

Aristóteles, e sua função na estrutura da fábula trágica. O herói trágico é hamarton, o

homem impuro, devido a seu desvio, voluntário ou involuntário, do sagrado. A noção de

hamartía-hamarton se afasta bastante da idéia de culpa cristã conforme presente na

teologia. Em primeiro lugar, a hamartía não se refere à relação entre arbítrio e pecado

que marca a visão cristã de mundo. O hamarton não é aquele que peca, mas aquele que

concretamente comete o ato impuro que o afasta do deus. Enquanto no conceito de

pecado o afastamento do divino é marcado pelo desejo consciente de afastamento – o

39
pecador é aquele que se afasta de deus –, a hamartía ocorre sem que haja a necessidade

de decisão do indivíduo: o afastamento do divino é passivo, não é algo procurado pelo

herói, mas antes sofrido por ele, ou ainda: ocorre pela própria natureza da relação entre

o homem e o divino. Este afastamento do divino será o grande tema da descrição da

tragédia por Hölderlin, e comentadores como Lesky e Reinhardt vão aderir plenamente

a este modelo interpretativo. Autores mais próximos a um modelo ético hegeliano, que

percebe este divino como nada mais que um nome para a consciência, vão atribui a este

deus a identidade com valores éticos e políticos tradicionais, identidade com uma idéia

de justiça, especialmente, como no caso de Murray, Cornford ou Jaeger. Neste caso o

afastamento do deus significa a perda de um referencial para julgar o valor da ação,

momento em que a consciência humana ganha força porque é obrigada a agir de acordo

com seu próprio julgamento. Outra maneira de entender este deus, e neste caso é uma

discussão constante em todo século XIX, é como destino, como uma alteridade radical

em relação à liberdade humana, que estabelece os limites tanto da ação quanto da

felicidade do indivíduo. Neste caso, o deus-destino se contrapõe ao homem, é seu outro,

só que infinitamente mais poderoso que o próprio homem. Para que haja a hamartía é

necessário um segundo momento após esta contraposição, em que o herói, já exilado da

graça divina, cometa um ato que o torne impuro. Assim, Édipo não é hamarton porque o

deus vira as costas para ele, mas sim porque, simultâneo a este abandono, há o

assassinato e o incesto. Para que haja o erro, é necessário o abandono pelo deus,

havendo o abandono pelo deus, o erro é inevitável. É importante marcarmos esta

distinção entre o pecado cristão e a hamartía trágica porque para a discussão ética do

século XIX isto funciona como uma iluminação. Na maneira como a hamartía é

percebida há a possibilidade de conjugar o castigo a um desvio necessário, a um

movimento inevitável da consciência na obtenção de conhecimento, como na leitura de

40
Hegel sobre Antígona. É este tornar complexo o circuito do crime e castigo que faz da

falta trágica, a leitura da falta trágica neste momento, como um momento de afirmação

do homem e da consciência humana em busca de si mesma muito mais do que um

problema moral. É o que talvez possa permitir a afirmação de Hegel logo no início da

Fenomenologia:

[seção 39] O verdadeiro e o falso pertencem aos pensamentos determinados que,


carentes-de-movimento, valem como essências próprias, as quais, sem ter nada em
comum, permanecem isoladas, uma em cima, outra embaixo. Contra tal posição deve-se
afirmar que a verdade não é uma moeda cunhada, pronta para ser entregue e embolsada
sem mais. Nem há um falso, como tampouco há um mal. O mal e o falso, na certa, não
são malignos tanto como o demônio, pois deles se fazem sujeitos particulares (como
aliás também do demônio). Como mal e falso, são apenas universais; não obstante têm
sua própria essencialidade, um em contraste com o outro (HEGEL, 2002: 43).

O crime trágico obedece a uma lógica distante do simples condenatório, mas é antes

uma figuração do encontro da ação humana com sua alteridade no destino. Quando

Hegel afirma que não existe mal, esta é a preparação para afirmar a necessidade da

comunicação entre um eu isolado, sempre certo pois unilateral, com um outro,

relacionalmente sempre errado por não ser o eu. É no confronto e na interpenetração dos

dois pólos, no abandono de sua unilateralidade, que se chega ao conhecimento possível.

Este eu que isolado age sobre o mundo sempre de forma coerente (e necessária) consigo

mesmo, sempre se confronta com uma alteridade, e deste confronto surge a

possibilidade de reconhecimento e de consciência. E o modelo desta consciência infeliz,

destinada a se chocar com uma alteridade, é o herói trágico, marcado ao mesmo tempo

por seu próprio ethos e por um destino exterior.

Por outro lado, como na visão grega a hamartía é essencialmente uma impureza,

uma polução, é possível que o hamarton seja livre do sofrimento que a mancha traz

através do ritual de purificação. Para tanto é necessário, obviamente, que o deus esteja

disposto a devolver sua graça, a reverter o abandono do herói. Tanto quanto a hamartía,

41
o perdão ritual é um tema que circunda a tragédia. É o que torna possível, por exemplo,

a reconciliação em Édipo em Colono ou As Eumênides. A fala de Medéia logo após o

assassinato de seus filhos não é absurda em uma visão tradicional grega:

JA Deixa que eu enterre os mortos e os pranteie!


ME De modo algum, que eu mesma irei fazê-lo
No templo de Hera Acraia. Assim evito
Que algum dos inimigos lhes profane
A tumba. Aos dois dedico festa e rito
Nas paragens de Sísifo – sublimes! –,
Forma de compensar o triste crime.
Vigoram no futuro. Com Egeu,
Passo a viver na terra de Erecteu.
(EURÍPIDES, 2010: vv 1377-1385 (tradução de Trajano Vieira)

Medéia não supõe sua vida terminada com o assassinato dos filhos, e sua liberação da

maldição que a hamartía traz se dá através do rito a ser celebrado, e significa livrá-la

dos efeitos práticos do crime – o impuro traz a maldição do deus, portanto não pode

partilhar da sociedade –, assim como dos efeitos espirituais: cumprindo-se o ritual de

purificação, o criminoso pode fazer parte de novo da ordem divina e humana. A catarse

aristotélica se relaciona diretamente a este universo de crime-polução-purificação, e em

algum nível a purgação do excesso sentimental de “piedade e horror/temor” que a

catarse trágica provoca reflete a purgação religiosa que o texto trágico tematiza.

Mas é preciso entender este texto trágico enquanto forma que problematiza a

visão de mundo tradicional dos gregos. O herói trágico é ainda hamarton, mas a relação

entre divino e humano já não é tão passiva quanto na religião tradicional grega. O que a

tragédia faz, na leitura do idealismo, é tencionar o conceito tradicional de hamartía

enquanto impureza: se o hamarton tradicional, o presente na épica e no mito religioso, é

aquele que comete o ato impuro devido ao deus, ao destino, à “força daimônica à qual

ninguém pode resistir” nas palavras de Jaeger, o herói trágico é aquele que torna este

afastamento um problema, que questiona tanto a natureza da paixão humana quanto a

42
natureza – a justiça e o sentido – do divino, e que adiciona à equação a sua própria

responsabilidade soberana sobre sua ação. Isto é representado pela confusão no texto

trágico, entre o daímon e o ethos, os dois pólos que conformam a ação humana. O

daímon é inicialmente a manifestação do deus-destino, a manifestação não propriamente

da vontade, mas da presença do deus em um destino humano. Em Ésquilo ele é o poder

do deus que se manifesta no universo sublunar da ação dos homens. Em Sófocles e

Eurípides esta presença se torna cada vez mais um elemento imanente, confundindo-se

no último com a paixão humana, em que o deus influi muito pouco. Mas o daímon não é

completamente arbitrário: o deus se manifesta de forma específica em um determinado

ethos, um determinado caráter humano, uma determinada conformação existencial ou

essência específica do herói. A questão de precedência aqui é bastante confusa: em

Ájax, o herói é tocado por Atena para matar os rebanhos dos gregos pensando eliminar,

na verdade, seus aliados a quem agora devota ódio. A traição de Ájax aos outros gregos

é uma Ate, uma cegueira, uma ação incontrolável que foge a seu poder de decisão. Mas

a traição de Ájax só é possível por seu ethos, por ser o maior dos guerreiros, que deseja

justamente as armas de Aquiles, por ser orgulhoso, e assim a cegueira que leva Ájax a

tentar assassinar Ulisses e Agamêmnon só é possível porque Ájax é Ájax e não outro.

A ambigüidade da relação entre daímon e ethos é que, ao mesmo tempo que o

daímon apaga a identidade ao obrigar a ação do herói além de seu controle, contra seu

próprio interesse e contra, na verdade, aquilo que o define – seu lugar privilegiado na

ordem cósmica, que o torna um homem superior aos outros, o que só ocorre por

determinação divina– ele só é manifestável em uma determinada personalidade, ou seja,

é o próprio caráter do herói que torna seu daímon necessário. Em Destino e caráter,

Walter Benjamin se refere a esta ambigüidade entre os dois campos. Segundo

Benjamin:

43
Nas fronteiras do conceito do homem a ponto de exercer uma ação, não se saberia
definir o conceito de um mundo exterior. Antes, entre o homem que exerce uma ação e
o mundo exterior tudo é ação recíproca, seus campos de ação se interpenetram; por mais
distintas que possam ser as representações, seus conceitos não são separáveis. Não
somente, e em nenhum caso, pode-se indicar aquilo que, em última análise, vale como
função do destino (isto não significaria nada aqui se, por exemplo, ocorresse isto na
pura experiência, houvesse passagem recíproca de um ao outro), mas o exterior que
reencontra o homem a ponto de agir pode sempre, por princípio, e na medida em que se
quiser , se reduzir a seu próprio exterior, digamos mais: ser visado a princípio como
sendo este exterior mesmo. Nesta perspectiva, longe de ser teoricamente golpes um do
outro, caráter e destino coincidem. (BENJAMIN, 1971a: 153)1

No mesmo texto mais abaixo Benjamin utilize esta lógica para tentar entender a

culpabilidade do criminoso legal em relação à justiça: um homem é miserável, comete

um crime e vai contra a justiça, mas a justiça é exatamente construída para que o

criminoso se torne criminoso, para que da miséria chegue ao crime, já que não pode

aceitar a alteridade da miséria.

Podemos talvez pensar esta relação entre destino e caráter, ou ao menos o

momento em que o herói rompe com o direito divino e afirma sua própria consciência,

como uma loucura (sagrada). Pois ao mesmo tempo que a loucura é sempre impessoal, é

o afastamento de um indivíduo do reino familiar a que pertencia, tornando-o estranho

para si e para os outros e impedindo seu retorno, ela é também afirmação de uma

personalidade: na diferença do louco em relação ao resto da humanidade só podem

estar, simultaneamente, sua loucura e o louco mesmo. A solidão do louco e a solidão do

herói são parelhas, e é nela que isto que se constrói, uma consciência, um espírito

individual, brilha mais forte. Quando Ájax reclama de seu destino, é isto que está em

jogo: como eu pude me tornar outro, como o que eu sempre fui me conduziu a ser isto?

Ah! Trevas, toda a minha luz! Ah! Érebo


Esplendoroso para mim! Levai-me
Para viver convosco! Sim! Levai-me!
Já não sou digno de elevar os olhos
À procura da ajuda dos bons deuses
A até dos homens!... Veio atormentar-me

44
E mata-me a filha de Zeus supremo,
Deusa dotada de grande poder.
Que terra ainda me receberá?
Onde procurarei refugiar-me
Se minha boa fama, amigos meus,
Morreu com as vítimas mortas por mim,
E se sou condenado a um triunfo
Cuja conquista me leva à loucura?
...
... Nunca mais
vereis o homem que fui até ontem,
homem tão bravo que Tróia arrogante
– direi aqui palavras presunçosas –
até há pouco não vira outro igual
no exército vindo da terra grega!
Mas vede agora a grande humilhação
Que o reduziu praticamente a nada!...
(SÓFOCLES, In ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPIDES, 1993: vv. 545-582 (tradução
de Mário da Gama Kury)

Destino e caráter são os dois níveis de articulação da ação trágica. Um refere o deus, o

outro a condição humana. No texto trágico estes dois campos se confundem cada vez

mais para aos poucos haver a construção de uma consciência cada vez mais complexa.

O tipo de entendimento tenso da condição humana que a tragédia traz fica bem claro se

pensarmos que é exatamente na instância do negativo, da alteridade, que esta ampliação

do alcance da consciência humana se dá. Pois no trágico o antigo conceito de hamartía,

de erro trágico, começa paulatinamente a se tornar uma culpa trágica. Como afirma

Jean-Pierre Vernant:

Como a personagem trágica se constitui na distância que separa daímon e ethos, a


culpabilidade trágica se estabelece entre a antiga concepção religiosa de erro-polução,
de hamartía, doença do espírito, delírio enviado pelos deuses que necessariamente
engendra o crime, e a concepção nova em que o culpado, o hamarton, ... é definido
como aquele que, sem ser coagido, deliberadamente decidiu cometer um delito.
(VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999: 15)

Jaeger afirma algo muito próximo a isto em seu comentário a Ésquilo (cf JAEGER,

1995: 305-6). Especificamente no caso do alemão há a afirmação de uma

autoconsciência individual que se sobrepõe à influência divina. Na leitura de Jaeger,

como nos referimos anteriormente, esta lenta construção da consciência através do

45
complexo do erro e da dor é um momento da construção de um homem grego em

oposição tanto ao momento anterior da comunidade aristocrática, quanto do posterior,

em que já se pode falar em um indivíduo que tem condições de mediar a realidade com

sua própria razão. Vamos tentar entender este processo utilizando a imagem da sentença

do oráculo de Delfos, Conhece-te a ti mesmo.

1.3. A transformação do sentimento do divino

A interpretação do conhece-te a ti mesmo do oráculo será utilizado aqui como

uma ilustração para pensar a maneira como a relação com o divino foi entendida na

tragédia conforme lida pelo período que estamos tratando. A inscrição no templo de

Apolo, de autoria incerta e surgida provavelmente no século VI ou VII a.C., é uma

espécie de síntese da religiosidade grega. Seu significado básico é: sabe que és mortal e

que não estás à altura dos deuses. No universo pré-clássico de Homero e Hesíodo o

sentido da sentença é bastante direto: conhece que és um homem, que não estás à altura

dos deuses, aceita teus limites humanos. É o “Nunca a estirpe humana se assemelhará à

dos deuses imortais” (Ilíada 5, 440) na luta de Diomedes contra Apolo disfarçado de

Enéias. Neste caso, o “conhecer” que a sentença parece propor é da mediação entre

homem e divino, o do ritual, da sociabilidade ritualizada. Conhece-te a ti mesmo, aqui, é

uma advertência contra a hybris e aponta para o sentido sagrado. Já na literatura

homérica há a ambigüidade entre proximidade e distância do divino. O deus é aquele

que interfere diretamente nos assuntos dos homens, e seu jogo de preferências e

caprichos traça o caminho de glória ou o desastre para o herói. Mas o deus é também o

limite inalcançável que o homem não pode tocar e não deve almejar. O deus – o rito ao

46
deus – é a lei em que se constroem as ambições humanas, e o deus é naturalmente o

destino: sua vontade anula os planos e desejos humanos. Ele estabelece os limites do

justo, ele os extrapola segundo seu capricho. E é esta ambigüidade que prepara o

advento da tragédia séculos depois das epopéias. Nas palavras de Albin Lesky:

O pólo oposto à proximidade familiar é a insuperável distância, para a qual a cada


instante os deuses estão dispostos a repelir o homem. O deus ... com o “conhece-te a ti
mesmo”, assinalou os limites inalteráveis da existência humana ... esta natureza
diferente que os deuses possuem, que ninguém expressou de maneira mais grega que
Hölderlin na canção do destino de Hipéron, aparece repetidas vezes na Ilíada, de tal
maneira que coloca sob um signo trágico toda existência humana, esta existência que,
apesar de toda a sua riqueza e variedade, não pode escapar à aniquilação.
(LESKY, 1995, p.87)

O que em Homero e Hesíodo é uma noção religiosa e cósmica, o destino final do

homem como a morte, é problematizado na tragédia, tornado angústia. O corte essencial

entre homens e deuses é a morte, é aquilo que estabelece uma distância entre o homem

mortal e o deus imortal. Nesta visão é necessário que o homem seja inapelavelmente

mortal para que a distinção entre humano e divino seja mantida. Para a visão do trágico

do século XIX, este corte se torna problemático, pois o homem, concebendo sua

autonomia e independência ôntica, se angustia diante da perspectiva da finitude, e, mais

que isso, de sua solidão existencial, de sua separação com o todo. É esta angústia que

alimenta o pensamento de todo século XIX, esta solidão inescapável do homem

separado do divino, do mundo, da totalidade. Obviamente, podemos nos referir a esta

angústia em qualquer momento da cultura humana, e o rito fúnebre, exatamente uma

das bases da cultura, é a maneira de separar o reino dos mortos e dos vivos. A angústia

que autores como Hölderlin e Hegel localizam na tragédia é de outra ordem, pois, a

princípio, não é exorcizável pelo rito. Os vivos e os mortos não se separam

completamente, estes ainda assombram aqueles, e, assim, a fundação do ritual fica

trincada. O desejo de continuidade de uma cultura tão pujante quanto a ateniense tem

47
como reflexo o ataque à própria identidade estabelecida pelo rito, que veta em cláusula

pétrea esta possibilidade.

A fábula de Alceste, de Eurípides, é uma boa fantasia para ilustrar esta angústia.

O herói, Ádmeto, rei de Feras, recebe como favor de Apolo estender sua vida caso

consiga convencer alguém a acompanhar a morte em seu lugar. Primeiro, pede que um

de seus velhos pais morra em seu lugar, mas é sua esposa, Alceste, quem acaba

aceitando substituí-lo. Uma Morte, que já não é uma força distante e impessoal,

inapelável, da natureza, mas um personagem alegórico que reclama e discute com

Apolo, vem para levar Alceste ao Hades. O próximo passo da tragédia é o surgimento

de Hércules durante o luto por Alceste. Ádmeto se recusa a dizer que está de luto por

alguém próximo, e oferece hospedagem a Hércules. Mais tarde, ao saber que o luto é

pela rainha de Feras, Hércules se retira. Ao fim da peça o herói ressurge com uma

mulher velada. É Alceste, que Hércules devolve a Ádmeto após louvar o rito da

hospedagem.

O final feliz torna Alceste uma obra estranha em meio ao corpo trágico, e em

termos de estruturação narrativa é de fato um recurso pobre resolver a fábula com um

Hércules superpoderoso. Mas essa peça tem como grande virtude tornar explícito o jogo

entre vida e morte que toda tragédia dramatiza. A Morte alegórica já é um indício de

que as tensões culturais que foram responsáveis pelo surgimento do gênero estavam

tomando outra forma na Atenas dos sofistas e de Platão, mas vamos encontrar poucos

exemplos dentro do gênero de uma profanação tão grande do ritual quanto a morte

revertida. Nesta reversão há a presença de um ser humano que pede igualdade com o

divino: aquilo que Apolo não pôde, impedir a Morte de levar Alceste, é alcançado pelo

herói Hércules, que desce ao inferno para resgatar a mulher.

48
O confronto e as acusações mútuas entre Ádmeto e seu pai, Feres, pela morte de

Alceste, são essencialmente exageros: um acusa o outro de não querer morrer, e aí

talvez haja uma crítica ao estilo dos heróis de coragem abismal de Sófocles e Ésquilo,

pouco humanos na sua aceitação da dor e do sofrimento. Mas as falas de Ádmeto e de

Feres são essencialmente uma reflexão ética em linguagem elevada do que seja a

felicidade humana. Diz Ádmeto, acusando seu pai:

E nós dois viveríamos, Alceste e eu,


Os anos prefixados para nossa vida,
E eu – pobre de mim! – não ficaria só
Gemendo por meu mal enorme. Tu, porém,
Gozaste tudo o que faz a felicidade
De qualquer homem. Ainda na flor da idade
Já detinhas a posse do poder supremo.
Vias em mim um filho para ser herdeiro
Deste palácio; em tempo algum correste o risco
De morrer sem deixar um descendente digno
E abandonar a casa deserta de filhos
A mãos estranhas que por certo a pilhariam
...
Procria sem demora,
Feres, filhos que te nutrirão na velhice,
E quando fores fulminado pela morte
Cobrirão com um lençol ritual teu corpo
Antes de expô-lo, pois não te sepultarei
Com estas mãos que vês;
(EURÍPEDES In ÉSQUILO; EURÍPIDES; SÓFOCLES, 1993: 800-822 (tradução de
Mário da Gama Kury)2

O interessante da fala é confrontar dois sentidos de felicidade, em uma tensão típica do

período. A felicidade de Feres, pública e voltada para isto que os gregos

tradicionalmente consideravam a realidade, a vida comunitária na pólis. Já a

infelicidade de Ádmeto é privada, baseada em ter de ficar só, mas aí já uma solidão

diferente da de Édipo e de Orestes, não a solidão do exílio, do exilado, mas a solidão

emocional de se ver sem um objeto de desejo. O primado deste homem privado, que

possui sua vida interior tão rica quanto a dos ritos da comunidade, só é possível na

presença de uma individualidade forte, que a tragédia desde Ésquilo prepara.

49
Mas a fala de Ádmeto tem mais riqueza. Neste trecho ele repassa os ritos

comunitários – cidadania, casamento, sucessão, funeral – a que a felicidade está atada, e

a platéia por certo não deixará de notar que o sucesso destes ritos não é exclusivo de seu

pai: a fala de Ádmeto poderia perfeitamente referir a si próprio. René Girard identifica

nisto, no problema do duplo, na duplicação do desejo e de sua potencialidade que

ameaça destruir a identidade, a essência da tragédia e da própria cultura. Vamo-nos

deter em Girard mais à frente, mas gostaríamos de propor que a duplicação trágica,

presente também na relação de Édipo e Orestes com Laio e Agamêmnon, ou entre

Medéia e Glauce, a futura esposa de Jasão, é uma maneira de abordar o limite entre vida

e morte, ou a distância entre lei humana e lei divina, nos termos que Hegel utiliza na

Fenomenologia do espírito, ou entre aórgico e orgânico, os termos de Hölderlin. E isto

de uma maneira bastante rica, porque estabelece que este jogo de manutenção e de

dissolução de limite se dá em pelo menos dois níveis, o primeiro político –e todos os

exemplos que demos acima são primariamente problemas de sucessão, de quem detém o

poder– , e um segundo nível ôntico, em que a condição humana é interrogada.

A duplicação enquanto problema político é prevista pela teoria da cultura de

Girard: a crise sacrificial só pode ser resolvida pelo restabelecimento dos limites

identitários através do rito do phármakon, que a tragédia dramatizaria. Mas há uma

segunda conseqüência do duplo, relacionada à crise comunitária que sua eliminação

deve sanar, que é a confusão entre mundo dos vivos e dos mortos, da dissolução do

limite entre mortais e imortais. Laio morto ainda tem presença ativa na realidade de

Édipo, Agamêmnon na de Orestes, a morta-viva Medéia ameaça a felicidade de Glauce,

o moribundo Filoctetes que ameaça a honra e a glória de Neoptolemo. Ou seja, o mundo

dos mortos ainda parece agir sobre o dos vivos, e isto é um sinal não só da força do

destino e da divindade, como também do poder de um homem que dessacraliza o

50
divino, que se pretende independente do divino. Os dois níveis, o ritual e o político, são

indissolúveis, mistura que alimenta a nova visão grega, uma expressão utilizada por

Jaeger para referir ao individualismo e ao sentimento de liberdade e autoconsciência que

prepara a filosofia platônica. Girard considera as tragédias cautionary tales, sua teoria

supõe que a história de Édipo ou de Orestes tinha um caráter exclusivamente terrível

para os gregos. Mas, e se não for assim? E se o anti-herói Édipo, como um veneno-

remédio em um outro sentido além do farmacológico, trouxesse aos gregos algo além do

terror, algo como uma admiração velada por aquela potência, distinta do divino, que

estava surgindo, como se um dragão fosse liberado? Que tipo de sentimento terá

despertado a fala de Ádmeto “pois não te sepultarei/ Com estas mãos que vês”, uma

heresia imensa, ou o desafio ambíguo de Creonte aos deuses em Antígona:

Chafurdai no dinheiro, se quiserdes,


Negociai o âmbar sardo, o ouro indiano,
Mas ninguém nunca enterrará o corpo,
Mesmo que as águias do Cronida almejem
Agarrar a carniça, trono acima,
Nem nesse caso, por temor ao miasma,
Aceito que o sepultem. Não há homem
Com força para macular um nume.
(SÓFOCLES, 2009: vv1037-1044 (tradução de Trajano Vieira)

Horror, certamente, mas não poderíamos dizer também que este novo homem ateniense

que se está construindo sentiria um certo arrepio herético?

Retornemos ao oráculo, e observemos como a sentença tem um sentido distinto

do Homérico na tragédia de Édipo, que, aliás, pode muito bem ser entendida como a

dramatização do oráculo. A ação na peça é motivada por três oráculos:o primeiro leva

Laio a abandonar seu filho, que viria a ser Édipo. O segundo, que anuncia o destino de

Édipo, provocaria seu abandono de Corinto e, enquanto vagava, se confrontar e

assassinar Laio. O terceiro, já como rei de Tebas, o motiva a procurar o assassino do

pai, si mesmo. Na relação do herói com Apolo temos a criatura que é representação do

51
poder divino. Édipo, como toda a vida humana, é o livro que o divino escreve, talvez

não um deus olímpico, mas certamente o destino. O conhece-te a ti mesmo do oráculo,

é, aqui, transfigurado: não é o sentido direto do limite entre homem e divino, mas uma

elaboração mais complexa desta relação. O conhecer aí se refere especialmente a um re-

conhecimento, ao saber de uma identidade, enquanto um campo (de ação, de sentidos)

sobre o qual a divindade está interessada. Conhece-te a ti mesmo significa descobre a

tua origem e teu destino, estas coisas impessoais, bem acima e mais poderosas que o

indivíduo. Mas, em Édipo, tanto origem quanto destino são um elo entre destino e

indivíduo. Este elo pode marcar tanto uma distância infinita e superável apenas na

aniquilação, como em Hölderlin, quanto uma distância tão tênue que a ação humana

ameaça a própria substância da realidade, a ordem ética, como em Hegel. E a solidão de

Édipo, seu abandono solitário pela divindade, é, paradoxalmente, a marca da presença

do divino. Édipo só pode ser abandonado porque os deuses decidem se retrair de sua

relação com o humano. E esta retração, embora desastrosa, permite o surgimento de um

traço de permanência no humano que seja distinto daquele que uma criatura possui. O

conhecer homérico parece concordar com aquela expressão da cabala que Borges sentia

prazer em citar – “se Deus apenas tirar o olhar de tua mão ela cairá sem vida”. O

conhecer trágico, este que Édipo dramatiza, prepara o campo para uma nova visão, em

que, mesmo sem o olhar do deus, tua mão permanece agindo, ainda que seja para

confrontar amorosamente o deus. Este confronto entre dois pólos igualmente válidos,

entre humano e divino, é o que caracteriza uma primeira leitura da tragédia no

romantismo, a partir de Goethe, especialmente em Hegel e Hölderlin. Hegel põe o

confronto em termos de sua própria obra, como uma figuração do conflito entre família

e estado, ou entre lei divina, natural (familiar) e a lei humana, da comunidade. A

suposição é que através do confronto dialético entre os dois pólos se chegue à

52
transfiguração da consciência, através do reconhecimento da alteridade e do retorno a si

mesmo. É, no entanto, em Hölderlin que este afastamento do divino ganha a dimensão

mais problemática, pois não é algo conciliável. Talvez um bom vislumbre deste

pensamento seja o comentário de Karl Reinhardt sobre o espírito trágico em seu

Sófocles. Sua leitura segue essencialmente a visão de Hölderlin sobre a tragédia.

Segundo Reinhardt:

Os deuses de Sófocles não trazem nenhum consolo ao homem, e quando eles dirigem
seu destino para que ele se conheça, ele se apreende como homem apenas em seu
entregar-se e abandonar-se. Somente no despedaçamento sua essência parece sair de sua
dissonância, tornando-se pura para ganhar o estado de uma harmonia com a ordem
divina. (REINHARDT , 2007: 11)

O momento final desta transformação do papel da divindade em âmbito grego,

sua passagem de uma religião e de um ritual sagrado para algo muito próximo de uma

mitologia é a maneira com que o Sócrates platônico interpreta o conhece-te a ti mesmo.

O conhecer, aqui, é conhecer a própria alma, a própria essência, já dotada de razão e

autonomia. É uma equação em que o divino, desde sempre retraído, está agora

completamente ausente. O deus ausente é a divindade olímpica, necessariamente, mas

possivelmente também qualquer divino – teríamos de definir até que ponto uma

metafísica platônica prepara uma teologia.

Precisamos, no entanto, repensar nosso argumento sobre a natureza da relação

entre deuses e homens na tragédia em termos da especificidade de cada um dos três

tragediógrafos. A dialética de afastamento e de proximidade, do homem com o deus, do

homem com a comunidade, do destino individual com a volição, é representada de

maneira diferente em cada tragediógrafo. A ordem representada nas peças não é

necessariamente a mesma, nem a relação do homem com o divino. Werner Jaeger em

53
seu Paideia nos dá a medida da dificuldade de se falar em uma “tragédia” para além da

forma técnica do espetáculo:

Se nos interrogássemos sobre o que é o trágico na tragédia, descobriríamos que em cada


um dos grandes trágicos teríamos uma resposta diferente. Uma definição geral apenas
serviria para gerar confusões ... A representação clara e viva do sofrimento nos êxtases
do coro, expressos por meio do canto e da dança, e que pela introdução de vários
locutores se convertia na representação integral de um destino humano, encarnava de
modo mais vivo o problema religioso há muito tempo candente, do mistério da dor
enviada pelos deuses aos homens. (JAEGER, 2003, P.297)

O conhece-te a ti mesmo de Édipo supõe um afastamento dos deuses em relação

ao homem, em relação à felicidade humana, ao menos, mas supõe também uma ordem

cósmica em que o divino ainda participa nos assuntos humanos, ao menos na forma de

uma proposital provocação à falsa leitura (e é esta hamartía de Édipo para Hölderlin, ter

interpretado de forma excessiva, como uma exigência religiosa e não política, a

exigência do oráculo), desastrosa e que põe a fábula em movimento. Retornaremos a

este tema mais adiante.

O estar e não-estar do deus, que na ordem homérica significa simplesmente a

inferioridade do homem em relação ao céu, assim como seu dever de piedade, no século

V ateniense é complicado ao abismo. Édipo e os outros heróis de Sófocles reconhecem

em seu abandono a fragilidade do homem, mas também a força ética que os obriga a

agir apesar de tudo, em nome do dever, da honra, ou simplesmente de uma vaga idéia de

dignidade humana. É especialmente esta perspectiva que vai informar a filosofia do

trágico no século XIX, através da leitura de Schiller e mais tarde de Schelling (cf cap.

6). O abandono divino aniquila e violenta o homem, mas, ato contínuo, eleva o humano.

O que a cultura alemã encontrou de vibrante na forma trágica foi exatamente a

dimensão de coragem ética que os heróis trágicos demonstravam, em que a violência,

do deus ou da comunidade, não produzia uma individualidade menor, mas maior do que

antes da situação trágica. Este grande eu que surge no trágico pode ser forte o bastante

54
para reavivar o laço quebrado entre o homem enquanto ser racional e sua natureza

sensível, entre a imensidão física da natureza e a imensidão moral do homem. Mas o

caminho para esta reconciliação passa necessariamente pela violência, porque é na

situação limite do trágico em que esta dimensão ética do homem, sua humanidade, é

negada, e na resistência a esta negação é que o humano brilha mais forte. Nesta

resistência à alteridade radical do destino, da natureza ou da lei, há a possibilidade do

fogo humano, seu demônio da liberdade, elevar o homem e liberá-lo do sensível.

Segundo Schiller em Teoria da tragédia:

O que caracteriza o homem é a vontade, e a própria razão nada mais é do que a perene
regra do mesmo. Sua prerrogativa, dado que toda natureza age racionalmente, reside
apenas em que ele, cônscia e voluntariamente, o faz segundo a razão. Todas as outras
coisas são obrigadas; o homem é o ser que quer. Por essa mesma razão, nada há de mais
indigno do homem que sofrer violência, pois a violência o nega. Quem a exerce sobre
nós, não faz nada menos que contestar-nos a humanidade. (SCHILLER, 1992: 49)

A leitura de Schiller segue de perto uma ética kantiana, e a violência a que ele se refere

no caso é não só a violência política, mas também a violência do homem diante do

sublime, diante de tudo aquilo que foge da escala humana e torna sua razão inútil. A

resposta de Schiller ao sublime, que ele entendia como um problema a um eu que se

pretende infinito, é a arte, e das artes, especialmente a apaixonada forma trágica. Na

formalização artística os eventos infinitos que violentam o homem são postos de novo

em uma escala humana, permitindo sua fruição estética e a reconciliação entre a

grandeza humana e a grandeza alterna da natureza. Segundo Schiller:

Sem o belo, haveria sempre um litígio ininterrupto entre a nossa destinação natural e
racional. Ante o empenho de satisfazer nossa missão espiritual, iríamos perder nossa
humanidade. ... Sem o sublime, o belo nos faria esquecer nossa dignidade. ... Só quando
o sublime se conjuga com o belo é que somos perfeitos cidadãos da natureza, sem, por
isso, sermos seus escravos e sem perdermos os nossos direitos de cidadãos no mundo
inteligível. (SCHILLER, 1992: 69)

55
O trágico seria a forma que conjuga de forma mais intensa violência e resistência à

violência, o universo humano e o divino, aquilo que a razão dá conta e aquilo que lhe

escapa, e nesta conjugação há a possibilidade de apontar para a conciliação destes

opostos, cujo resultado é a catarse, no idealismo alemão entendido como o sentimento

paradoxal de alívio pelo aniquilamento do herói. É que há o entendimento de que neste

aniquilamento está representada a unificação do homem com as forças imensas que lhe

negam.

Isto é válido para Sófocles, Ésquilo e Eurípides, mas a maneira como o

movimento duplo de aniquilação e elevação se processa é diferente em cada um, e,

acima de tudo, supõe uma divindade e um humano um pouco distintos.

56
1
Versão própria da tradução francesa:

Aux frontières du concept d’homme en train d’exercer une action, on ne saurait definir le concept d’un
monde extéurieur. Bien plutôt, entre l’homme qui exerce une action et le monde extérieur, tout est action
réciproque, leurs champs d’action s’interpénetrent; si différentes que puissant en être les representations,
leurs concepts ne sont pas séparables. Non seulement, en aucun cas on ne peut indiquer ce qui, en
dernière analyse, vaut comme function du destin …, mais l’extérieur que r’encontre l’homme en train
d’agir peut toujours, par principe, et dans la mesure que l’on veut, se réduire a son proper extérieur, dison
plus: être envisage par principe comme étant cet extérieur meme. Dans cette perspective, loin d’être
théoriquement coupes l’un de l’autre, caractère et destin coincident.
2
Na versão de David Kovacs (EURÍPIDES, Alcestis, 1994: vv. 650-665)

[And she and I would have lived for the rest of our time, and I would not be grieving for my trouble,
bereft of her.]
What is more, all that is required for a man to be happy has already befallen you: you spent the prime of
your life as a king, and you had me as son and successor to your house, so that you were not going to die
childless and leave your house behind without heirs for others to plunder. Surely you cannot say that you
abandoned me to death because I dishonored you in your old age, for I have always shown you [660]
every respect. And now this is the repayment you and my mother have made to me. You had better hurry,
therefore, and beget other children to take care of you in old age and, when you have died, to dress you
and lay you out for burial. I for my part shall never bury you myself.

57
2: Ésquilo e o deus necessário

De um modo geral é Ésquilo que dá o tom para a leitura do trágico no século

XIX. Embora o Sófocles do ciclo tebano seja o autor mais comentado, especialmente

por nele estar presente com mais força aquilo que o idealismo reconheceria como o

fulcro da tragédia, a colisão ética entre valores igualmente válidos, ou a colisão entre

divino e humano, é em Ésquilo que se busca a semente desta estrutura. Nele são

identificados três elementos fundamentais à recepção da tragédia no século XIX: o

conflito ético (como por exemplo na oposição entre Prometeu e a lei de Zeus em

Prometeu acorrentado); o problema da decisão, através da reflexão sobre o problema

moral de como resolver uma aporia (que a decisão de Orestes sobre matar ou não matar

sua mãe em Coéforas seria o primeiro exemplo); a possibilidade de reconciliação, de

reintegração de um eu em conflito a uma realidade harmonizada após o conflito trágico

(que as Eumênides, quando Orestes é libertado da maldição das Fúrias, serviria para

ilustrar). Prometeu, especialmente, é um personagem que tem um significado imenso

para a tematização da liberdade humana, e os poemas de Goethe e de Shelley sobre o

herói são apenas a parte mais visível de sua ressonância. E, no entanto, o Ésquilo na

imaginação do idealismo e da geração de filólogos nascida ao fim do século XIX é um

escritor profundamente religioso. Nele, a profanação do rito que propusemos na

introdução ainda supõe no autor a possibilidade de conciliação e uma ordem supra-

humana, essencialmente justa. Isto não quer dizer que os deuses de Ésquilo tenham

qualquer traço da santidade que o cristianismo viria a identificar com o sagrado – ao

contrário, poucos personagens da grande literatura são tão cruéis quanto o Zeus que

58
aprisiona Prometeu em Prometeu acorrentado. Nos termos apresentados por Albin

Lesky:

O problema mais difícil de compreender prende-se com a imagem de Zeus desta peça.
Em que relação se encontra o novo senhor do Olimpo, que governa pela violência e
causa sofrimentos como os de Io, com o justo condutor do mundo, a quem nas piedosas
preces do Agamémnon mal se ousa invocar com o nome de Zeus?
(LESKY, 1995: 284)

Esta crueldade divina, e a maneira como o homem pode reagir diante dela, é o

grande tema para a leitura de Ésquilo no período, e se identifica com o pensamento

sobre a necessidade e sobre o lugar da natureza nas ações humanas. A crueldade do deus

é idêntica à da natureza, e essencialmente impessoal. Porém, por trás desta

impessoalidade dura há uma ordem, justa porque se preocupa, como a natureza dotada

de razão a que Schiller se refere em seu comentário sobre o sublime em Teoria da

tragédia, com a construção da harmonia no viver humano, ou ao menos da ordem

comunitária e política da cidade. Esta ordem política será um dos nortes para o

comentário sobre Ésquilo, seguindo especialmente os passos da leitura de Hegel sobre o

trágico, entendendo o fortalecimento desta harmonia ética com o fortalecimento do

estado, e do entendimento de que a ordem religiosa se manifesta na ordem política.

Jaeger lê a obra de Ésquilo como a representação dos ideais políticos do legislador ático

Sólon. Segundo Jaeger, o que motiva e informa a forma trágica, é, mais do que os

termos religiosos da hybris e da moira, a desmesura contra o divino e o lugar devido de

cada um no cosmos, o termo político Ate. A palavra, “cegueira”, se refere em Sólon ao

mau-destino, à força impessoal e destrutiva de um fado. Mas em Sólon, a Ate não libera

o ser humano de responsabilidade, ao contrário, ela se liga ao arbítrio humano. Na

leitura soloniana, há a injunção de mau-destino e má-ação, de fado impessoal e volição

pessoal. O termo já seria previsto por Homero na Odisséia. Nas palavras de Jaeger

59
Ali [na Odisséia] se faz clara distinção entre uma Ate, no sentido de um destino
prepotente, imprevisível e divino, e a culpabilidade da ação humana, que aumenta as
desventuras do homem em uma medida superior às pressões do destino. Para a segunda
é essencial à previsão da ação injusta conscientemente desejada.
(JAEGER, 2003: 181)

O que Sólon faz, segundo Jaeger, é reler a tradição religiosa grega de tal

maneira que o destino e a hybris, referentes à relação homem-deuses, e que se ata a um

rosto, a um indivíduo, torna-se um problema coletivo. O que desperta o mecanismo de

castigo não é a ação individual, mas sim a desmesura da comunidade ao permitir más

leis e más práticas. Citando Jaeger:

Se considerarmos, porém, a idéia que Sólon forma do castigo, descobriremos até que
ponto ela se afasta do realismo religioso em que se apóia a fé de Hesíodo na Justiça. O
castigo divino não consiste em peste ou más colheitas, como em Hesíodo, mas se realiza
de forma imanente pela desordem que toda a violação do direito gera no organismo
social. (JAEGER, 2003: 179).

Sólon concebe a base da democracia ateniense dentro desta visão, de que a hybris é

originada e deve ser resolvida dentro da comunidade. A maneira de evitá-la, e portanto

evitar a ruína que a injustiça das leis necessariamente projeta sobre a comunidade, é ter

instituições políticas fortes, ou seja, um estado justo, que vá além do arbítrio tanto dos

interesses pessoais de uma nobreza egoísta quanto dos interesses de um tirano. Ésquilo

teria esta justa medida política como um pano de fundo para sua obra. Jaeger considera

que o ponto de partida de Ésquilo é a crítica à Ate política. O Zeus de Ésquilo em

Prometeu acorrentado é um modelo da tirania contra a qual Sólon fala, assim como seu

Prometeu é representante do exclusivismo aristocrático que condena a pólis à ruína,

nenhum dos dois defensáveis diante do ideário da democracia ateniense. Mas estes

personagens são mais que isso, e há uma reflexão sobre uma ordem cósmica

transcendente tanto quanto sobre a justeza política de uma ordem imanente.

60
Não acreditamos que estas instâncias possam ser separadas, e se confundem na

forma trágica. Talvez o que nos ajude a pensar isto seja a maneira como a exigência

divina é representada nas peças. A exigência de obediência genocida de Zeus a

Prometeu, a exigência de Apolo a Orestes, o assassinato da própria mãe, que

necessariamente vai despertar a ação das Fúrias e levar ao sofrimento do herói podem

parecer descabidas, mas é exigência, de fato. O crime de Clitemnestra ameaça a

disposição do mundo, e, permanecendo impune, põe a ordem social em risco de

dissolução. Será o mesmo tema de Sófocles em Édipo rei, mas o deus de Ésquilo

dificilmente é o mesmo de Sófocles. Seu deus está distante do panteão mítico, e se

relaciona melhor com o deus dos primeiros pensadores, já representando a imensa

transformação espiritual por que passava Atenas no século V. O Zeus de Ésquilo é

menos o deus que seduz Io e Leda, e mais o deus filosófico de Xenófanes, uno, todo-

poderoso, onisciente. Na apresentação de Lesky em História da literatura grega:

Estes deuses homéricos são obra do homem, e se os bois e os leões tivessem mãos,
fabricariam deuses à sua imagem e semelhança ... Mas, na verdade, um só é o deus
supremo, todo ele olhos, todo ele ouvidos. Sem esforço, tudo abala com a força do seu
espírito, permanecendo firme em si mesmo, sem movimento que não convenha à sua
grandeza (B 25-26). Já aqui se anuncia o motor imóvel de Aristóteles.
(LESKY, 1995: 239).

Mas este “Zeus” que é celebrado no início de Coéforas (vv. 243-260), identificado

plenamente com a justiça, ao contrário do deus filosófico de Xenófanes não está

completamente fora do mundo. Sua ação é violenta, especialmente violência contra o

herói trágico, mas ele é ainda a força que impede o retorno ao caos. Em Ésquilo, o

abandono do homem pelo deus não significa abandono do deus da ordem cósmica, mas

passa por uma concepção desta ordem como sustentada por sacrifício e dever. É

possível traçar um paralelo entre a visão esquiliana e o momento que viveu,

61
especialmente a batalha de Salamina, em que a vitória sobre os persas teve por custo a

destruição de Atenas.

O Zeus de Ésquilo exige o sacrifício, não dá nada livremente, sempre cobrando

um preço pela ordem que impõe. Tanto preço quanto ordem são essencialmente justos.

Diante da tragédia, no entanto, estas questões sempre se abismam. Como justificar o

Zeus de Prometeu, como se interroga Lesky, diante desta piedade fundamental?

É nesta interrogação que penetramos no território por excelência do trágico, a

dissolução dos limites. Nós vamos agora nos referir ao pensamento de René Girard

como um contraponto para o pensamento trágico, como uma espécie de compreensão

antitrágica da relação entre eu e outro e assim, em negativo, tentar entender a raiz do

trágico –tanto do conflito trágico quanto de sua conseqüência, a reconciliação – no

pensamento de Hegel. Girard vai considerar tão central a questão do limite entre eu e

outro que vai atribuir aos rituais responsáveis pelo restabelecimento dos limites a

fundação secreta da cultura humana. Para Girard, o rito político que a tragédia

dramatiza tenta dar conta de uma crise sacrificial. A reflexão de Girard é essencialmente

sobre o desejo humano, como se o mediador inicial das relações humanas fosse o

desejo. A referência a seu pensamento serve especialmente para iluminar o quanto isto

que é a base de toda dialética, o reconhecimento e a superação da alteridade, seja ela um

outro indivíduo, a comunidade ou o deus, e que é entendido pelo idealismo como um

processo contínuo da condição humana, pode ser lido de forma bastante destrutiva.

Acima de tudo o pensamento de Girard aponta para o quanto o desejo é o motor da

dialética, o quanto o desejo de autoafirmação é a energia por trás da construção da

consciência. E o quanto este grande eu que o idealismo percebe no herói trágico é

marcado, em sua autoafirmação, pela violência. O desejo, então, media a presença do eu

no mundo. Mas é um desejo não exatamente do outro ou do que o outro possui, e sim o

62
desejo da própria identidade do outro. Isto cria um duplo fantasmal: o outro sou eu

mesmo, o outro é um eu que me ameaça de dissolução. A linguagem desta mediação é a

violência: desejar o outro, desejar o desejo do outro, nos termos próprios de Girard,

significa o desejo de destruir o outro e assim calar a indistinção angustiante entre o

sujeito e o outro. Em termos comunitários, permitir a existência do duplo indistinto

significa permitir o ódio universal, pois, segundo Girard em Violence and the sacred:

Se a violência é a grande niveladora dos homens, e todos se tornam o duplo, ou


“gêmeo”, de seu antagonista, parece conseqüência que todos os duplos são idênticos e
que qualquer um pode, a qualquer momento, tornar-se o duplo de todos os outros; ou
seja, o único objeto de ódio e obsessão universais. (GIRARD, 1977: 79)1

Isto significa, por um lado, que a base formal da justiça, a distinção entre arbítrio

e direito, entre o desejado e o permitido, é impossível, pois todos são um outro a quem

o ódio é devido, portanto sem possibilidade de limite ao desejo, pois é justa a destruição

do inimigo que ameaça minha própria identidade; por outro lado, isto significa também

que é justa a destruição de qualquer um, pois em um sistema de duplicação infinita de

identidades, todos são culpados. É esta última característica que permite o controle do

desejo/violência universal, pois dela vem o instituto do bode expiatório. A linguagem

violenta do desejo deve ser reprimida para que haja a possibilidade da comunidade

humana. Esta repressão é o ritual do bode expiatório, do phármakon ateniense, o objeto

sobre o qual o desejo pelo outro pode ser posto, e, com sua expulsão, exorcizado, e

assim exorcizada a indistinção destrutiva entre os sujeitos que ameaçavam a

comunidade. O ritual do bode expiatório é um remédio precário, que precisa ser

utilizado ad infinitum para controlar a possível explosão da violência recíproca na

comunidade, para manter o limite de identidades. A tragédia seria a representação

estética desta lógica cultural, essencialmente uma cautionary tale sobre o perigo do

63
duplo. Toda a teoria de Girard parte do princípio de que a indistinção é um convite à

violência, tão perniciosa que o sentido do ritual tem de permanecer oculto do espírito

sob o risco de interromper o processo de sanitarização. Seu pensamento não prevê um

indivíduo que consiga lidar com a indistinção de forma consciente, talvez desejá-la

como um jogo com o limite de identidade. O limite entre eu e outro é condição da

cultura, e permitir sua dissolução é convidar ao desastre. Apenas em um momento

posterior, em que com o esclarecimento os mitos são abandonados, é que o espírito

humano pode dar conta da violência do desejo que o estrutura, e que o mecanismo

oculto que garante a existência social pode finalmente ser desvelado. O mecanismo que

Girard identifica com a base da cultura é essencialmente um mecanismo de catarse, em

que o impossível gozo sobre o outro pode retornar a ser gozo sobre si através do ritual

de expulsão de um outro genérico, um outro categórico, pensamos. O mais próximo em

Hegel desta estrutura é a dialética entre o senhor e o escravo, em que uma primeira

consciência (o “senhor”) utiliza uma segunda consciência alienada (o “escravo”) para

mediar sua relação com o mundo objetivo. A consciência do escravo reflete o mundo

para o senhor, a media de forma incompleta, embora satisfatória porque aquilo que o

escravo reflete é apenas aquilo que o senhor permite que reflita, o que garante que a

primeira consciência permaneça no gozo de si, sem ter de se confrontar com a

alteridade. Mas em Hegel esta é uma dialética que precisa ser superada através da

renúncia ao desejo de dominação sobre o escravo e sobre o mundo. Apenas nesta

renúncia a consciência consegue sair de seu gozo tranqüilo de si e penetrar no ciclo de

confronto e transformação que leva ao universal. Apenas na renúncia a um agir

unilateral é que existe a possibilidade de conhecimento pleno de si mesmo, e a catarse

tem sentido então apenas dentro deste movimento de renúncia, ao próprio desejo, à

própria decisão: aquilo que forma o herói trágico, a hybris de sua decisão, de sua

64
afirmação de si, é o que precisa ser superado para que este grande eu possa ganhar um

novo sentido e se reconciliar com os valores com que entrou em conflito na tragédia.

Sobre a necessidade de renúncia ao desejo para que se possa construir conhecimento,

Hegel afirma em a Fenomenologia do espírito que:

[seção 229] Através destes momentos – do renunciar à própria decisão, e depois à


propriedade e ao gozo, e, enfim, através do movimento positivo em que a consciência se
põe a fazer algo que não compreende – ela se priva, em verdade e cabalmente, da
consciência da liberdade interior e exterior, e da efetividade como seu ser-parea-si. Tem
a certeza de ter se extrusado verdadeiramente de seu Eu, e de ter feito de sua
conciência-de-si imediata uma coisa, um ser objetivo.
Só mediante este sacrifício efetivo a consciência podia dar provas de sua renúncia a si
mesma: porque só assim desvanece a fraude que se aloja no reconhecimento interior da
ação de graças por meio do coração, da intenção e da boca – um reconhecimento que
afasta de si toda a potência do ser-para-si e a atribui a um dom do alto. Mas até nesse
afastar conserva para si a particularidade exterior na posse, que não abandona, e a
particularidade interior na consciência da decisão que ela mesma toma, e na consciência
do conteúdo dessa decisão determinada por ela; conteúdo que não trocou por outro
conteúdo alheio que a preenchesse sem a menor significação. (HEGEL, 2002: 170)

Ao renunciar a si, a sua ação efetiva sobre a realidade de forma isolada e parcial, a

consciência torna-se, literalmente, um outro. Um outro que pode perceber a si mesmo,

sua decisão, seu desejo e seu gozo em um momento anterior, à distância, e assim

recuperar seu próprio sentido. Este se tornar outro retomando o sentido de si e daquilo a

que este si se opunha, que é o aufhebung, é também a dialética que Hegel vai perceber

como o conteúdo que a tragédia, e a arte de um modo geral, dramatiza.

No trágico, então, não se trata de manter os limites, nem de propriamente

exorcizar sua dissolução, mas antes de tencioná-los para obter conhecimento estético,

para obter a alegria do naufrágio da catarse trágica, o Dioniso apolíneo de Nietzsche.

Aceitar o pensamento de Girard significa abdicar de uma consciência que possa encarar

o abismo e retornar, abdicar de um sentido heróico do ser humano. E é isto que não é

possível na tragédia. É verdade que o otimismo homérico já não é possível, que a luta

contra a natureza e as paixões não parece solúvel, pois temos um homem que não

consegue se render incondicionalmente a este poder, e um homem que não se concebe

65
já capaz de ser livre destas forças, como a filosofia platônica irá crer possível. Mas é

verdade também que o pessimismo trágico não abdicou de tentar tirar nacos cada vez

maiores de consciência do caos. A relação entre homem e deus, o lugar por excelência

em que se dá a reflexão sobre o limite do humano, é o âmbito privilegiado pela tragédia

para entender estes limites. E nesta reflexão, a natureza do deus é uma questão

fundamental.

O Zeus de Prometeu é o mesmo Zeus de Orestes, ostensivamente injusto por

qualquer medida em relação a Prometeu, mas ainda assim necessário, e de necessária

autoridade. O Zeus de Prometeu é acima de tudo o deus de um poder fundador, absoluto

e a quem a rendição é devida. Mas o Zeus de Prometeu é também a duplicação do herói.

Entre Zeus e Prometeu temos uma relação de duplo, tão característica da tragédia. Pois,

se a natureza de Zeus é o poder, o absoluto da decisão sobre o que pode e não pode

ocorrer no mundo, Prometeu é aquele que contraria esta decisão, que foge ao absoluto

do Zeus-lei-destino, e assim se põe como igual a Zeus. Prometeu acorrentado é uma

tragédia excepcionalmente produtiva para pensar como o jogo de duplos da identidade –

que é também uma maneira de pensar o limite entre vida e morte – como o campo da

morte influi sobre os viventes e assim desfaz o limite tradicional entre o reino dos

mortais e dos imortais. Prometeu, como Medéia, como as mulheres troianas, como

Édipo, como Ádmeto de Alceste, é um morto-vivo, um ser que ainda existe enquanto

criatura dotada de vida biológica, mas que não participa da vida enquanto um estar no

mundo ativo, que mantém laços com a comunidade e com os deuses. A morte em vida

de Prometeu é a punição por sua hybris, por sua duplicação da natureza de Zeus. Temos

o trágico quando, em vez deste duplo profano ser eliminado e exorcizado, o que

acabaria com a crise sacrificial, nos termos de Girard, ele é mantido enquanto campo de

discurso, enquanto ser que tem voz e vida ativa, projetando sua sombra sobre a distinção

66
entre vivos e mortos, entre eu e outro, e assim confundindo os limites dos dois campos.

Prometeu é o herói que desafia o poder soberano de Zeus e por isso é punido. Mas, cabe

perguntar, por que este poder soberano não dá fim a Prometeu? Pois se seu sofrimento é

contínuo, ele não impede que o herói se manifeste ainda enquanto ser dotado de

dignidade, dotado de fala e acima de tudo de um destino na ordem do mundo. Prometeu

ainda fala para outros, ainda representa sua própria presença. Na fala de Prometeu:

Notai os males que eu, um deus, suporto,


Mandados contra mim por outros deuses!
Vede as injúrias que hoje me aniquilam
E me farão sofrer de agora em diante
Durante longos, incontáveis dias!
Eis os laços de infâmia, imaginados
Para prender-me pelo novo rei
Dos Bem-aventurados! Ai de mim!
Os sofrimentos que me esmagam hoje
E os muitos ainda por vir constrangem-me
A soluçar. Depois das provações
Verei brilhar enfim a liberdade?
Reanimado, depois de alguns minutos de silêncio
Mas que digo? Não sei antecipadamente
Todo o futuro? Dor nenhuma, ou desventura
Cairá sobre mim sem que eu tenha previsto.
Temos de suportar com o coração impávido
A sorte que nos é imposta e admitir
A impossibilidade de fazermos frente
À força irresistível da fatalidade.
(ÉSQUILO In ÉSQUILO, SÓFOCLES, EURÍPEDES, 1993: vv 116-138 (tradução de
Mário da Gama Kury)

Em termos cênicos esta fala forte tem a função essencialmente de iniciar o páthos de

Prometeu, de estabelecê-lo enquanto ser que sofre e construir a solidariedade

compassionada da platéia. No chamamento de Prometeu, é a exigência da continuidade

de uma presença. O personagem trágico é aquele que se faz notar, que chama a atenção

para si: notai este sujeito, notai este discurso, notai esta presença que apesar de impura e

abandonada ainda assim se apresenta diante de vós. Notai, finalmente, que o exilado

ainda está presente.

E a presença do exilado é um problema de representação da arte trágica grega.

Como dar presença àquilo que deveria estar morto, a esta morte que retorna para

67
assombrar os vivos e a ordem? É aqui que uma arte essencialmente cênica vem construir

a tragédia. Música, cênica, dança e discurso se articulam para fazer com que a presença

dos personagens seja mais intensa. O sentido do espetáculo é esta intensificação do

sensível que torna a tragédia algo muito além da lembrança do mito. Aqui também há

um jogo de proximidade e distância, de esquecimento e lembrança: a máscara, a música,

o próprio círculo de jogo fechado lançam o apresentado em uma dimensão sobre-

humana e pela inacessibilidade do mito, sua a-historicidade e seu tempo negativo,

gratuita e distinta do que seja o sério2 da conseqüência e da vida ativa. Mas o discurso

aproxima a representação do horizonte do sério, ata-a, através do verbal, ao universo

ético e religioso da pólis. A linguagem dos personagens, a altiva linguagem do discurso

público, do universo jurídico, político e religioso, faz com que o público esteja entre o

mito e as questões sérias do destino da cidade.

A articulação entre dois tempos, duas representações, finalmente, entre duas

formas de viver, uma relacionada ao deus e ao universo dos mortos, e outra relacionada

à vida ativa dos viventes, forma um campo de significados que confundem o limite e o

horizonte de sentidos. São talvez dois modos de ser que na tragédia ganham igual

dignidade, um impessoal, o da natureza do deus e do destino, e um subjetivo, das razões

e desejos justos ou não do herói. No caso de Ésquilo esta reconstrução de limites se

refere à justiça, que em seu modo de sentir a realidade é necessariamente justiça do

deus. Na leitura de autores como Jaeger ou Bruno Snell, a relação do herói trágico com

o absoluto do divino aponta para a construção de um sentido de liberdade humana, de

uma ampliação do campo de ação do indivíduo. Segundo Snell, em A cultura grega e a

origem do pensamento europeu, o que Ésquilo põe em cena é a representação, pela

primeira vez, de um indivíduo moralmente livre, que é obrigado a tomar uma posição

68
ética diante de uma aporia. E nesta tomada de posição surge seu afastamento em relação

ao divino, reestruturando os dois campos. Afirma Snell:

Só com Ésquilo é que o homem tem consciência de chegar, através de sua própria
reflexão, a um agir responsável, e só assim surge a idéia de liberdade humana e da
autonomia do agir. Ésquilo representou esta nova situação colocando um homem diante
de duas instâncias divinas contraditórias: seu Orestes, por exemplo, deve obedecer à
ordem de Apolo de vingar a morte do pai, isto é, de matar a mãe – e assim transgride o
mandamento divino de honrar a mãe. É, portanto, obrigado, visto que os imperativos
divinos se elidem reciprocamente e falham em sua tarefa, a decidir sozinho. (SNELL,
2009: 253)

Esta consciência da liberdade é apenas um primeiro momento do trágico. Ele significa a

transição de um momento de isolamento do herói na normalidade – no não agir, na não

consciência da alteridade, na aceitação não conflituosa de si próprio e da ordem do

mundo – para um segundo momento em que o herói percebe a alteridade e é obrigado a

agir de acordo com sua consciência. A fala conformista de Prometeu (“Temos de

suportar com o coração impávido a sorte que nos é imposta e admitir a impossibilidade

de fazermos frente à força irresistível da fatalidade”) tem um contraponto mais à frente,

uma fala herética, representação de sua hybris, mas que precisa ser também notada:

Fica sabendo ainda: nunca eu trocaria


Minha desdita pela tua submissão.
Acho melhor ficar preso a este rochedo
Que me ver transformado em fiel mensageiro
De Zeus, senhor dos deuses! Assim mostrarei
Aos orgulhosos quão vazio é o seu orgulho!
(ÉSQUILO In ÉSQUILO, EURÍPEDES, SÓFOCLES, 1993: vv vv. 1283-1288
(tradução de Mário da Gama Kury)

Um roteiro possível de leitura da tragédia passa exatamente pelo registro da

heresia em seu texto, da heresia e do seu contrário, o respeito cego à vontade do deus.

Estes momentos são de horror religioso, mas supomos também de um certo prazer

herético em perceber um sujeito que se contrapõe ao divino é que prepara a filosofia.

Como nos referimos anteriormente, o herói trágico tem um traço específico, que o

define e à tragédia enquanto gênero, que é o fato de que, ao contrário do phármakon e

69
das vítimas sagradas, a presença e o discurso do morto-vivo tem de ser ouvido. O herói

trágico é aquele que não pode ser tirado facilmente da percepção, é aquela impureza que

não pode ser expurgada, que permanece, que diz. O herói trágico, apesar da tragédia ser

uma espécie de escrita da morte, de escrita de uma morte que amplia seus limites sobre

os vivos, é aquele que não pode ser morto. Ele mantém viva sua memória, às vezes ele

próprio se mantém enquanto criatura viva, indestrutível. É este o sentido do desafio de

Prometeu a Zeus, de uma grandiosidade que tem poucos pares na história da literatura:

Não há ultraje nem astúcia pelos quais


Zeus possa convencer-me ainda a revelar
O que ele quer saber, antes de me livrar
Destes grilhões adamantinos humilhantes!
Já que ele quis assim, deixe sobre meu corpo
As labaredas deste sol destruidor!
Confunda Zeus o universo e o transtorne
Cobrindo-o todo com a neve de asas brancas
O som de trovões e de estrondos subterrâneos!
Nada, força nenhuma pode constranger-me
A revelar-lhe o nome de quem deverá
Destituí-lo de seus poderes tirânicos!
ÉSQUILO In ÉSQUILO, EURÍPEDES, SÓFOCLES, 1993: vv. 1314-1325
(tradução de Mário da Gama Kury)

A indestrutibilidade do herói trágico será por muitos séculos a medida da

dignidade humana. Ela é possível em termos estruturais, de arte formal de um discurso,

porque a tragédia confunde os reinos dos mortos e dos viventes. Esta é uma questão

religiosa, política e ideológica entre os gregos do século V, mas a figuração do herói

desta maneira específica informa toda a literatura posterior. Os pósteros guardarão a

indestrutibilidade como valor da dignidade humana, ainda que de uma forma deslocada.

A fábula de Jó da Bíblia, os personagens shakespeareanos, O Dom Quixote, o Satã de

Milton, a Nina de Crime e castigo, Joseph K. de o Processo, estes todos são

personagens que, respeitando os valores específicos da cultura e da visão de mundo em

que se deu sua gênese, reproduzem ainda a indestrutibilidade trágica. Gilbert Murray se

70
refere a este valor trágico enquanto afirmação ética do ser humano sobre o cosmos

impessoal que o acossa. Nas palavras de Murray:

Em sua forma primitiva, esta vitória sobre a morte exige a ressurreição ou renascimento
do herói: em sua forma mais elevada, no sentimento que encontra tão magnífica
expressão em O rival de Sanção [Samson agonistes], de Milton, de que, mesmo que o
herói esteja ou não morto, venceu realmente em algum sentido mais profundo o mal
ante o qual sucumbiu seu corpo, e que “nada resta à lágrimas”. (MURRAY, 1943:. 23)3

A leitura de Murray segue a leitura ética que se torna canônica a partir de Hegel

e de Schelling de considerar a tragédia como uma representação das tensões políticas e

sociais da Atenas do século V, o que é obviamente um estágio inevitável em qualquer

leitura do trágico. E estas tensões são presentes através da oposição do herói aos outros

com que se confronta. É o turno do discurso que constrói a presença do herói, é esta

presença que, impedindo o esquecimento, confere permanência àquilo que a figura

trágica é.

Talvez seja a esta irredutibilidade que Walter Benjamin se refere ao dizer que o

herói trágico é mudo em sua crítica ao Oedipe rex de Gide (O ensaio “Édipo, ou o mito

razoável” In BENJAMIN, 1971a). Ele é mudo porque não nos concede um sentido,

porque na forma trágica há um conteúdo não exprimível, uma potencialidade que não se

atualiza, e que precisa retornar ao silêncio – retornar à interrogação sem resposta do

herói sobre si e seus atos, sobre o sentido daquilo que fez. Quando Benjamin diz em

“Édipo ou o mito razoável”:

E como Édipo não seria golpeado de mutez, como o pensamento poderia alguma vez se
livrar das redes que lhe interditam saber o que constitui sua perda, o crime mesmo, o
oráculo de Apolo, ou sua própria maldição contra o assassino de Laio? Esta mutez,
entretanto, não caracteriza apenas a Édipo, mas a todos heróis da tragédia grega. E é ela
que sublinha sempre de novo as críticas recentes: “O herói trágico não possui uma
linguagem inteiramente à sua medida que não seja o silêncio”. (BENJAMIN, 1971:
178)4

71
A mudez do herói trágico é paradoxalmente construída por seu próprio discurso, por sua

mera presença indestrutível que exige permanência contra aquilo que deseja sua

destruição. Esta exigência pode ser chamada como uma mudez apenas se entendermos

que o dizer necessita legar um sentido final, o que a tragédia não apenas recusa, mas se

revela incapaz, pois destrói as fronteiras que permitiriam julgamento e decisão, que

permitiriam, finalmente, um conhecimento positivo sobre o acontecido. Este possível

sentido fica projetado em uma outra dimensão que não seja apenas a da palavra

presente: a dimensão de uma alteridade radical em relação ao ponto de partida das

peças, um futuro, um outro lugar, uma outra moral, em que herói e deus possam estar

reconciliados. Mas esta outra dimensão é oferecida apenas à mente coletiva da platéia

como um dom marginal à própria ação: é nos espectadores que este campo negativo se

torna efetivo e tem alguma presença. Quanto ao próprio herói, o sentido de seus atos é

sua própria morte, sua aceitação da morte como o sacrifício necessário à reconciliação

entre os valores que se batem no conflito trágico. Nós podemos pensar nesta aceitação

da morte, neste abandono à aniquilação, naquilo que Benjamin descreve como o vazio

da alma do herói trágico (cf. abaixo), como uma das figurações daquela renúncia a si

mesmo que Hegel aponta como necessária para a construção do espírito. Em Hölderlin,

este silêncio é o “signo=0” (cf. Capítulo 6) que a tragédia deve construir para que se

chegue a uma linguagem do absoluto que seja comum a humano e divino, e esta

linguagem é o silêncio.

A renúncia do herói a um sentido final é aquilo que cria o espaço adequado para

o surgimento de novos valores. Sua mudez é ao mesmo tempo a marca de sua

individualidade, pois chegou ao paroxismo através de sua própria cadeia de decisões, de

sua responsabilidade e erro consciente, e a marca de algo que seja além deste grande eu

inicial, um outro conjunto de valores que através de sua liberdade, e, após o conflito

72
com o grande outro que é o deus ou a comunidade, através de sua renúncia à liberdade,

o herói consegue pôr em movimento. Segundo Benjamin em A origem do drama

barroco alemão:

Não assim o herói trágico [referindo-se à atitude de Sócrates diante da morte], que teme
a morte como algo que lhe é familiar, pessoal e imanente. No fundo, sua vida se
desdobra a partir da morte, que não é seu fim, mas sua forma. Pois a existência trágica
só pode assumir sua tarefa porque seus limites, tanto os da vida lingüística quanto os da
vida física, lhe são dados desde o início, e lhe são inerentes. Essa idéia foi formulada
das mais diferentes maneiras, das quais a mais adequada talvez seja a contida no
comentário casual de “a morte trágica é apenas o sinal extremo de que a alma já
morreu”. Com efeito, pode-se dizer que o herói trágico não tem alma. Do seu interior
incomensuravelmente vazio ressoam, ao longe, os novos mandamentos divinos, e nesse
eco as gerações futuras aprendem sua linguagem. (BENJAMIN, 1984: 137)

Este “ser-para-a-morte” do herói é o seu sentido, e esta morte necessária que ele carrega

em suas ações surge mais forte em oposição ao desejo de escapar dela (que constrói sua

mudez: o herói aceita seus limites após tê-los recusado, e sua aceitação é tão paradoxal

que não pode ser dita). E na oposição que o herói figura entre desejo e renúncia, entre

eu e outro, surge a possibilidade do novo.

É interessante notar como essa mutez trágica, que gostaríamos de entender como

indecidibilidade, será um elemento importante para os outros ensaios “trágicos” de

Benjamin, como Destino e caráter, Fragmento teológico-político, Dois poemas de

Friedrich Hölderlin e, finalmente, seu célebre Crítica da violência5. Neste último,

Walter Benjamin discute a impossibilidade de encontrar o sentido da justiça dentro das

categorias kantianas tradicionais, como se a distinção entre direito natural, o campo da

volição, do desejo e do interesse, e direito positivo, o campo do dever, do devido, mais

especificamente, da ação pelo que é certo e não por interesse, formassem uma aporia

inescapável. A resposta de Benjamin para o problema é propor que a Justiça pode ser

encontrada tão só no absoluto de um poder divino – a que fenomenologicamente não

temos acesso, segundo o pensamento kantiano. Em Kant a possibilidade de justiça

depende da identidade entre ação e desinteresse, em que o gesto ético pode ser motivado

73
exclusivamente por um julgamento supra-sensível, ou seja, quando o entendimento se

libera de suas afecções e determina a ação em termos daquilo que é racionalmente

(universalmente) válido, o que exclui como justo qualquer gesto que atenda a uma

vocação pessoal e subjetiva. Age-se em nome do que é correto, esta correção pode ou

não gerar felicidade pessoal, mas o bonum, o prazer, não deve orientar o gesto ético. Em

Kant, em última instância a decisão moral é sempre determinada por um absoluto, por

um “é assim porque é assim”, já que a razão tem limites em sua capacidade de

compreender o universal. Este é o ponto de partida de Benjamin, mas sua conclusão, em

uma espécie de detournement do vocabulário kantiano, é que o conceito kantiano de

justo é insuficiente, e que a justiça pode ser encontrada apenas na instância imanente da

vida sensível e histórica dos homens entre outros homens. Introduzindo a questão,

Benjamin diz que:

Afinal, quem decide sobre a legitimidade dos meios e a justiça dos fins não é jamais a
razão, mas o poder do destino, e quem decide sobre este é Deus. É uma maneira de ver
incomum, mas apenas porque existe o hábito arraigado de pensar os fins justos como
fins de um direito possível, ou seja, não apenas universalmente válidos (o que seria uma
conseqüência analítica do elemento justiça), mas passíveis de universalização – o que
está em contradição com esse elemento, como se poderia demonstrar. Pois, fins que são
justos, universalmente reconhecíveis, universalmente válidos para uma determinada
situação, não o são para nenhuma outra, por parecida que seja sob outros aspectos. Uma
função não mediata da violência, tal como está sendo discutida aqui, aparece na
experiência de vida cotidiana. Quanto ao ser humano, a ira, por exemplo, o leva às mais
patentes explosões de violência, uma violência que não se refere como meio a um fim
proposto. Ela não é meio, e sim manifestação. É verdade que esse tipo de violência tem
suas manifestações objetivas, onde ela é sujeita à crítica. Elas se encontram, antes de
mais nada e de maneira altamente significativa, no mito.6

O que está em jogo em Benjamin é uma justificação da violência revolucionária, a

princípio moralmente injustificável, já que rompe com o direito positivo. A única

maneira de justificá-la é entender que o justo não passa por uma identidade monolítica

entre fins e ação, mas se estabelece quando a ação ética responde a uma vocação, a um

daímon inescapável, o que torna a única violência justa aquela que é necessária, não

racionalmente necessária, mas necessária de acordo com uma visão trágica da vida, que

74
diz que as paixões humanas não são mediatizáveis pela razão. Ou ao menos, que o

momento de mediação crítica é sempre posterior à própria ação. A violência operária é

necessária não porque corresponda a alguma decisão pragmática sobre um agir visando

uma meta histórica, mas sim porque na vida cotidiana os operários sentem a necessidade

absoluta, como um daímon impingido pelo deus, de se revoltarem. E apenas nesta

instância ela é justificável, não podendo se perpetuar como violência mantenedora da

ordem. Este texto se insere em um projeto crítico mais amplo de Benjamin, o de pensar

uma ética que escape ao mesmo tempo daquilo que ele reconhece como as restrições

kantianas, que, se não são necessariamente conservadoras, têm como conseqüência uma

prática política e filosófica conservadora, e o laissez-faire meio automatizado do

hegelianismo, que parece entender o indivíduo como um elemento pequeno demais para

ser levado em consideração no grande plano do Espírito. Esta necessidade,

condicionada historicamente, é aquilo que Benjamin identifica como o poder divino.

Mais exatamente: este condicionante histórico que forma a necessidade é lido pela

antiguidade ainda religiosa como poder divino. Segundo em Benjamin em Crítica da

violência:

O poder mítico em sua forma arquetípica é mera manifestação dos deuses. Não meio
para seus fins, quase não manifestação de sua vontade, antes manifestação de sua
existência. Disso, a lenda de Níobe oferece um excelente exemplo. É verdade que ação
de Apolo e Ártemis pode parecer uma mera punição da transgressão de um direito
existente. A hybris de Níobe conjura a fatalidade, não por transgredir a lei, mas por
desafiar o destino – para uma luta na qual o destino terá de ser o vencedor, podendo
engendrar, na vitória, um direito. Até que ponto o poder divino, no sentido da
Antigüidade, não era o poder mantenedor da punição, fica patente nas lendas, onde o
herói, por exemplo Prometeu, desafia o destino com digna coragem, luta contra ele, com
ou sem sorte, e acaba tendo a esperança de um dia levar aos homens um novo direito. É,
no fundo, esse herói e o poder jurídico do mito incorporado por ele que o povo tenta
tornar presente, ainda nos dias de hoje, quando admira o grande bandido. A violência
portanto desaba sobre Níobe a partir da esfera incerta e ambígua do destino. (cf nota 6)

Este poder divino é o ponto de partida de Ésquilo. O destino e suas manifestações, o

daímon trágico e o campo de mudez, de indecidibilidade, são a matéria-prima da forma

75
trágica. Daí sua importância no idealismo e em seu legado do trágico como modelo para

pensar o limite da liberdade humana. Mas não temos ainda o trágico na mera

manifestação do divino. Ser tocado pelo deus, expressão ambígua que em algumas

sociedades significa sofrer uma desgraça, não é ainda um evento trágico, ou ao menos

não é ainda o que a tragédia representa. É preciso que esta necessidade, justa na piedade

esquiliana, seja obrigada a reconhecer a contradição, é necessário, para o trágico, que o

herói tocado pelo deus tenha a chance de manifestar sua oposição. Uma leitura

estrutural do mito de Prometeu o incluiria entre os tricksters clássicos, como Locki ou a

raposa das fábulas, aquele que burla o poder e o relativiza, que vence porque escapa ao

confronto e usa da violência menor do engano contra o poder concreto do soberano. Em

Hesíodo (Teogonia, 535-540) é ele, por exemplo, que enganando Zeus faz com que os

deuses tenham de aceitar no sacrifício a pior parte dos animais, os ossos e a gordura.

Mas o Prometeu trágico já não é um trickster. Ele, para ser trágico, precisa mimetizar,

ao se lhe opor abertamente, o poder divino. Isto cria um campo de tensão entre a

necessidade e a possibilidade, entre o poder soberano divino e a possibilidade de um

outro poder. Esta tensão é parte fundamental da identidade do herói trágico, e, se

considerarmos que este herói é um modelo identitário para a pólis, com aquilo que

comporta de horror e excitação, liberdade e aniquilamento, o que os tragediógrafos

estão construindo é uma alternativa ao mito e à ontologia tradicionais. É preciso deixar

claro que este homem proposto pelo trágico, embora anteceda e, na verdade, prepare o

herói platônico, é distinto deste. Os campos de tensão com que o herói trágico se

identifica – vida e morte, necessidade e liberdade, humano e divino, comunidade e

solidão, etc – não podem ser resolvidos de maneira simples, são geralmente aporísticos.

A resposta da filosofia será geralmente excluir um dos termos da equação como

inválido, mas o herói trágico é aquele que mantém esta tensão. E é este tensionamento

76
constante que é responsável pela dimensão mais-que-humana destes personagens.

Michael Abott, ao comentar o Crítica da violência, de Benjamin, vai se referir a esta

identidade tencionada como pertencente àquilo que Benjamin chama de criatura. Diz

Abott em seu artigo The creature before the law:

…, Santner aponta que a palavra criatura deriva do latim creatura, que significa um ser
passando por um processo de criação. É, Santner diz, não tanto o nome de um
determinado estado de ser como o significante de uma exposição que se processa, de ser
apanhado no processo de se tornar criatura através do ditame da alteridade divina. A
dimensão teológica do termo é crucial: a criatura é primeiro e antes de mais nada um ser
criado, um ser que vive sujeita a um soberano (o termo alemão Kreatur tem as mesmas
conotações). À medida que a história do termo progrediu, no entanto, tornou-se
sinônimo com não simplesmente as criações de Deus, mas antes com as linhagens
particularmente monstruosas destas criações. Neste uso, pode evocar compaixão, pena
ou mesmo horror; significa um ser marcado por uma intermediação que põe as
fronteiras entre formas de vida particulares em questão. A criatura torna-se assim um ser
que vive nas brechas entre espécies, uma ameaça ao próprio sistema de classificação. E
é precisamente com este duplo sentido que Santner trabalha, desenvolvendo o conceito
de criatura de Benjamin como um ser liminar [a referência específica é ao Odradek do
texto de Benjamin sobre Kafka] (e de fato como um ser que emerge em situações
liminares, excepcionais) que acha a si mesmo atada biologicamente a um poder
soberano. (ABOTT, In FITZGERALD; SALZANI, 2008: 86)7

Há um senão em fecharmos a relação entre esta criatura benjaminiana e o herói trágico.

O pensamento de Walter Benjamin visa exatamente uma maneira de manter esta tensão

de forma produtiva, melhor ainda, de pensar as maneiras que a possível superação

destas tensões não seja catastrófica, como geralmente é. O horizonte da felicidade, que

esteticamente é desnecessário à tragédia, ainda é importante para Benjamin. Sua

descrição do poder divino, do sentido da relação do poder divino com a criatura, parece

ser aplicável ao Zeus de Ésquilo. A forma trágica dilui a decisão diante da oposição

entre necessidade e possibilidade, como das outras oposições que se sobrepõem na

forma trágica. No entanto, por uma questão narrativa, o conflito tem de ser fechado, e

não porque o mito não poderia se manter em aberto, mas porque o efeito estético surge

através do fechamento – é dele que vem a catarse. E, então, é o divino necessariamente

que ganha. A tragédia apresenta o outro possível, mas não se preocupa em atualizá-lo (a

não ser talvez em Eurípides, mas ainda chegaremos lá). O pensamento de Benjamin, no

77
entanto, é exatamente a reflexão revolucionária (no sentido político, inclusive) de por

que esta alteridade nunca foi cumprida no Ocidente.

Não se conhece a continuação de Prometeu, o Prometeu liberado, que

possivelmente daria conta do problema da violência fundadora presente em Prometeu

acorrentado. Em algumas versões do mito Prometeu é rendido por Hércules, que mata a

águia de Zeus e o liberta. Outras referem que teria convencido o centauro Chiron a ficar

em seu lugar. Ainda é necessário, no entanto, um segundo movimento para superar a

violência fundadora, que é a conciliação propiciatória com Zeus. Prometeu revelará o

oráculo relacionado à queda de Zeus, salvando assim o tirano do casamento com Tétis,

que geraria o filho que o iria destronar. A versão de Ésquilo provavelmente deveria

incluir este detalhe, dado que ele se combina com a idéia de piedade de sua literatura. A

conciliação é um dos caminhos do trágico, e na verdade um problema considerando o

conceito que se formou no século XIX. Nas palavras de Lesky, referindo Goethe:

A moderna pretensão de indagar a natureza do trágico parte freqüentemente das


palavras proferidas por Goethe a seis de junho de 1824 ao chanceler Von Müller:Todo o
trágico se baseia numa oposição irreconciliável. Logo que se dá ou que se torna
possível um reconciliação, desaparece o trágico. ... E, no entanto, no final da Orestéia,
dá-se aquele equilíbrio, que, segundo Goethe, anularia o trágico! (LESKY, 1995: 293)

É interessante notar que a leitura do idealismo sobre a tragédia é uma espécie de

extrapolação da catarse aristotélica, da relação entre forma e efeito estético que

Aristóteles entende como o “sentido de ser”, mais que propriamente função, da tragédia

grega. Considerando a admiração de Goethe por Shakespeare, sua leitura do trágico

possivelmente tem como referência mais as peças do inglês do que o teatro grego. Uma

segunda questão é que Goethe fala de tragédia a partir das reflexões de Lessing sobre a

catarse e o estético em Dramaturgia de Hamburgo e Laocoonte. Lessing entende a

purgação catártica como um efeito necessário para que a obra de arte possua um sentido

78
moral e didático, uma descarga emocional que ao mesmo tempo libere o espírito para o

julgamento racional do apresentado e construa a solidariedade entre o público e o

conteúdo humano do que foi apresentado. Mais à frente (Capítulo 6) nos deteremos no

comentário de Lessing, mas a posição de Goethe é distinta do didatismo de Lessing. Em

Goethe já temos a defesa de uma obra de arte autônoma, de um estético como forma de

conhecimento alternativo a uma razão pura, como uma forma válida do homem se pôr

no mundo. O mesmo, supomos, em Nietzche. Em ambos a catarse trágica é o próprio

fim do trágico, e já reflete um movimento profundo do espírito, como se a relação entre

forma e catarse já fosse a representação da natureza do pensamento.

Em Hegel, esta leitura está subordinada a sua própria filosofia, e talvez já

possamos nos referir à obra hegeliana como uma filosofia trágica, no sentido de que a

destruição e o sofrimento são estágios necessários a uma fenomenologia. A forma

trágica em seus momentos mais característicos, nas obras “de horror” de Ésquilo e

Sófocles, supõe o aniquilamento, mas prevê também um tipo de conciliação, política e

religiosa – e nisto a obra de Hegel se mantém fiel ao trágico – em que as forças e

personagens em conflito permaneçam. Aniquilamento e permanência são duas faces da

mesma moeda, ambos se referem à vocação trágica de representar a totalidade dos

valores humanos, a manter a tensão indecidível entre valores éticos e religiosos. É a isto

que havíamos nos referido na introdução quando dissemos que a forma trágica “dilui o

sentido”: não é necessário obter nenhuma conclusão sobre o representado, esta, em

última instância, pertence aos deuses, ao destino, ao incognoscível que se limita com a

experiência humana. O espectador não precisa se prender ao que vê ali, não existe

verdade ofertada, mas, antes, o dom de se liberar da verdade, de percebê-la enquanto

potencialidade. A catarse é a marca deste desligamento, embora este não seja o sentido

que Aristóteles dê ao termo em sua poética. Catarse em Aristóteles se refere à tradição

79
clínica grega, a uma homeopatia, especialmente, em que o excesso emocional, ao ser

despertado e excitado na peça trágica, é purgado do sensível, o que talvez a aproxime

daquilo que propõe Lessing em primeiro lugar. A maneira mais simples de resolver o

problema de um trágico que não é “tão trágico assim” é fazer a distinção, conforme

propõe Albin Lesky, entre uma visão cerradamente trágica da realidade e outra em que

o trágico é parte integrante de uma cosmovisão, mas não sua forma exclusiva.

Continuando a discussão sobre Goethe e a visão trágica, Lesky diz:

Separamos uma perspectiva do mundo essencialmente trágica, na qual se acaba com o


aniquilamento, de outra que reconhece uma esfera de reconciliação e desfecho, mas que
nem por isso exclui, no mínimo, a situação trágica, até nas suas manifestações mais
acentuadas. (LESKY, 1995: 293)

O problema central desta posição é que ela tende a diminuir a tensão entre formalização

e espírito, como se a o trágico da estética novecentista pudesse se livrar da referência à

tragédia enquanto forma, como se o termo “trágico” fosse apenas emprestado e pudesse

ser substituído por algum outro, como fatalismo ou pessimismo, e que a tragédia (o tipo

de intuição da vida formalizada no discurso extremamente complexo da tragédia) fosse

uma ilustração mais que o objeto próprio a ser definido. Em outros termos, como se

aquilo que a estética busca definir como trágico pudesse prescindir da forma concreta da

tragédia, se libertar de sua influência. Pois há um trágico também nas tragédias

conciliatórias, que assombra a tentativa de definição, mas que tem de ser levado em

conta na descrição tanto da forma trágica quanto do espírito trágico.

1
If violence is the great leveler of men and everybody becomes the double, or “twin”, of his antagonist, it
seems to follow that all the doubles are identical and that anyone can at any given moment become the
double of all others; that is, the sole object of universal obsession and hatred.

80
2
Utilizamos aqui termos de Huizinga na descrição do jogo enquanto fundamento da cultura. Cf
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2004.
3
En su forma primitiva, esta victoria sobre la muerte exige la resurrección o renacimiento del héroe: en su
forma más elevada, en el sentimiento que encuentra tan magnífica expresión en EL rival de Sansón, de
Milton, de que, ya sea que el héroe esté o no muerto, ha vencido realmente en algun sentido más profundo
el mal ante el cual ha sucumbido su cuerpo, y que “nada queda para las lágrimas”.
4
Versão própria da tadução francesa de Walter Benjamin:

Et comment Oedipe ne serait-il frappé de mutité, comment la pensée se pourrait-elle jamais déprendre du
rets qui lui interdit de savoir ce qui fait sa perte, le crime même, l’oracle d’Apollon, ou sa propre
malédiction contre le meurtrier de Laïos? Cette mutité, au demurant,ne caractérise pas le seul Oedipe,
mais tous les héros de la tragédide grecque. Et c’est elle que soulignent toujours a nouveau les critiques
récentes: “Le herós tragique n’a q’un langage entièrement à sa mesure, c’est le silence”.
5
Nossa leitura destes textos se deu a partir da tradução de Gandillac para a Denoël.BENJAMIN, Walter.
Oeuvres I: myth e violence.(trad. De Maurice de Gandillac) Paris: Denoël, 1971.
6
Vamos utilizar aqui e na outra citação de Crítica da violência a tradução de Willi Bolle ao texto, Critica
da violência – crítica do poder. In BENJAMIN, Walter.. Documentos de cultura, documentos de
barbárie: escritos escolhidos, (trad. de Celeste H. M. Ribeiro de Souza et al) São Paulo:
Cultrix/EDUSP, 1986. Os trechos citados são de uma reprodução parcial do texto disponível no endereço
http://www.espacoacademico.com.br/021/21tc_benjamin.htm
7
Tadução própria do original em inglês:

…, Santner points out that the word creature derives from the Latin creatura, which signifies a being
undergoing a process of creation. It is, Santner says, .not so much the name of a determinate state of being
as the signifier of an ongoing exposure, of being caught up in the process of becoming creature through
the dictates of divine alterity. The theological dimension of the term is crucial: a creature is first and
foremost a created being, a being that lives in thrall to a sovereign (the German term Kreatur has the same
connotations). As the history of the term progressed, however, it came to be synonymous with not simply
God’s creations but rather with particularly monstrous strains of those creations: in this usage, it can
evoke compassion, pity or even horror; it signifies a being marked by an indeterminacy that puts the
borders between particular life forms in question. The creature thus becomes a being that dwells in the
gaps between species, a threat to the very system of classification. And it is precisely this double meaning
that Santner works with, developing a Benjaminian concept of the creature as a liminal being [a referência
específica é ao Odradek no texto de Benjamin sobre Kafka] (and indeed as a being that emerges in
liminal, exceptional situations) that finds itself biologically tied to sovereign power.

81
3: SÓFOCLES

3.1 Após Ésquilo

Uma diferença central entre a arte de Ésquilo e a de Sófocles é como o conflito se

constrói, como a oposição trágica entre dois campos igualmente poderosos é representada.

Se Prometeu confronta Zeus, se Orestes confronta Clitemnestra, se as razões e a oposição

são coisas claras, em Sófocles estas razões se tornam dúbias, o argumento, multifacetado,

perde o ponto de inflexão. Mesmo que Clitemnestra ou Orestes cometam suas vinganças

através de ardis, há um momento no drama em que, ao se confrontarem, suas razões, e

desejos, e poderes são postos sobre a mesa. Sabemos o que motiva cada personagem, pois

estas causas são representadas no discurso, e é este o limite de Sófocles na apresentação de

uma interioridade. Sabemos com certeza o que motiva Orestes e Clitemnestra, não temos

razão para duvidar do que declaram. Este universo interior, tão exíguo e indistinto do que é

ação e exteriorização em Ésquilo, é diferente em Sófocles: sempre deve uma parte de si ao

silêncio, uma parte de si é sempre indizível. O que faz com que Jocasta tente impedir Édipo

de chegar à verdade, quando, na iminência de descobrir toda a verdade sobre si, o herói

convoca o antigo servo de Laio que testemunhou o crime:

ED Esposa, quem há pouco procurávamos


é o mesmo que ele agora nos menciona?
JO Que te importa saber de quem se fala?
ÉD Esquece! É vão rememorar palavras.
Quem é? Tu podes identificá-lo?
]O Pelos deuses! Se tem valor tua vida,
imploro, pára! Basta o meu sofrer.
ED Tem brio! Mesmo se eu for escravo ao triplo
– de mãe da mãe da mãe –, o mal é meu.

82
JO Mas eu, contudo, insisto: encerra a busca!
ED Só encerro quando tudo esclarecer.
JO Desejo-te o melhor, quando te falo.
ED Há muito esse melhor só me angustia.
JO Pudesses ignorar tua identidade!
(SÓFOCLES, 2001: vv 1054-1068 (tradução de Trajano Vieira)

É horror, certamente, de estar envolvida em uma história tão terrível. Mas no silêncio de

Jocasta, no seu pedido de silêncio, em seu calar sobre porque quer que Édipo não descubra

a verdade, estão projetadas outras razões em potência – o afeto erótico por seu marido/filho,

o apego a um papel social, a uma dignidade, a um destino, enfim, na comunidade e no

mundo, do qual terá de abdicar caso a calamidade que sofre se confirme. Mais que isso, a

inversão do destino que imaginava próprio de si e que se revela falso, isto informa de um

deus perverso, de um homem perverso, de uma ordem diabólica. Mas estas são

possibilidades não ditas, que se sobrepõem e se tornam presentes apenas como leitura, e

não como elemento de ação.

É o mesmo com Antígona, que a cada passo de seus argumentos confirma e nega

suas razões. O amor excessivo a Polinices ou à linhagem, o orgulho de sua posição que não

quer abandonar, o sentimento religioso, estas todas são possíveis motivações para seu

desafio a Creonte. Mas a razão de fato, esta escapa à linguagem. Antígona, obviamente, se

justifica: o deus, o amor à família, o puro dever são seus argumentos. Mas nas acusações de

Ismene de Creonte, que não chegam a ser refutadas e colam à heroína, constrói-se uma

ambigüidade inescapável. Este silêncio da motivação e do universo interior é a marca de

que o personagem – e o ser humano heróico, ideal problemático de uma visão e um modelo

de decifração do humano – torna-se alguma coisa mais profunda do que era em Ésquilo.

Pois, esta riqueza interior só é silenciada porque é complexa demais para ser representada

83
de forma distinta, porque escapa à representação enquanto coisa que, embora possa ser

percebida, não pode ser dita. Não é que faltem palavras para Antígona declarar suas razões,

nem que ela as desconheça. Antígona pode dizer o que sente, e, provavelmente, sabe o que

sente, como qualquer outro personagem trágico. O problema é que suas motivações são

algo tão complexo que o dizê-las as esvaziaria de sentido. Elas se sobrepõem de forma algo

mórbida, como em sua idéia de fidelidade aos deuses infernais. Quando no diálogo com

Ismene Antígona declara sua motivação,

Nada te impinjo, mas rejeito o auxílio


Que porventura me pretendas dar.
Age como quiseres, que eu me empenho
No enterro! Serei grata se morrer
Amando quem me amou, concluindo ao lado
Dele o rito. Mais vale o tempo no ínfero
Do que na companhia de quem vive:
O eterno circunscreve o meu repouso.
Desestima o que os deuses sobrestimam!
(SÓFOCLES, 2009: VV 69-77 (tradução de Trajano Vieira)1

podemos perceber um esboço desta interioridade em convulsão de Antígona, sua confusão,

sua ambigüidade, sua riqueza. Mas isto se constrói não através de um porquê – a não ser

que admitamos que a única coisa que está em jogo para Antígona é a piedade religiosa, o

dever para com os deuses infernais, o que seria insatisfatório. A única justificativa na

sentença é “serei grata se morrer”, mas, se perguntará algum espectador tradicional na

platéia, o que raios isso significa? E no silêncio surge a arte de Sófocles, em que a máscara

do personagem já não manifesta apenas – sua aparência não diz tudo, as palavras não

bastam, e um continente de sentido – a alma, talvez – resta sem ser dito. Seria fácil e

inadequado pensar isto como uma espécie de formalização da alétheia filosófica, embora

84
necessariamente estas questões estejam na ordem do dia para o teatro de Sófocles. Melhor,

talvez, pensar o silêncio representado por Sófocles como uma técnica de representação,

uma estratégia para representar a “alma profunda cheia de logos” de Heráclito, como talvez

milênios mais tarde Tchekov fará.

As palavras não bastam. Não bastam porque a complexidade que Ésquilo projetava

no enredo, nas ações concretas e discursos dos personagens – os disfarces de Clitemnestra e

Orestes, os vários níveis de significado que a derrota dos persas ou a luta entre os irmãos

possuem – ações e palavras que evocavam significados religiosos, culturais, afetivos,

familiares, políticos, os vários níveis de referência, os vários planos de discurso que se

manifestavam na ação dos personagens são agora projetados para dentro do próprio

indivíduo. Isto é possível porque este grande eu, dotado de uma alma e de um mundo

interior ao qual nos referimos tantas vezes está a ponto de surgir em sua forma acabada,

com a filosofia e os sofistas.

3.2. Electras

Mas, esta mirada no homem interior é possível também porque formalmente

Ésquilo havia preparado o caminho para que a multiplicidade da ação trágica fosse

internalizada. Possivelmente o momento em que a semente seja lançada nos textos que

chegaram até nós é no reconhecimento entre Electra e Orestes nas Coéforas. Porque aí o

que está em jogo não é simplesmente uma peripécia a mais dentro do enredo, não é

simplesmente mais um estágio na economia da ação. O reconhecimento, ou o possível

85
efeito da leitura do reconhecimento em um público, não serve apenas para marcar uma

aliança entre Orestes e Electra, meio que tornando o exilado em um conterrâneo

novamente. O efeito possível é o do páthos ente dois irmãos que se amam e que se revêm

após muitos anos de separação e sofrimento. Exatamente este sentido, o mais direto e

universal, é o que é contornado em Ésquilo em Coéforas (o reconhecimento ocorre nos

versos 210-234), quando se evita o contato entre os irmãos. Orestes se apresenta a Electra, e

logo em seguida pede que a irmã controle sua alegria, para evitar suspeitas sobre seus

planos. O gesto que confirmaria o reconhecimento, presente mais tarde tanto na versão de

Sófocles quanto na de Eurípides, não está lá. Em vez disso um substituto do corpo do outro

é utilizado: as mechas de cabelo, o tecido que envolve Orestes, a imagem da armadilha, que

refere também o cadáver de Agamêmnon em Agamêmnon. Mas a realização do reencontro,

o toque que confirmaria a aliança, é evitado. Em seguida há o silêncio sobre os dois, outro

tema reutilizado nos outros dois tragediógrafos. A suspensão da emoção do reconhecimento

– o abraço que não se cumpre, a troca de experiências que é vetada – não impede, no

entanto, que ele percorra a cena. Mas não é representado, nem verbalmente, nem

cenicamente. Isto não quer dizer que o páthos não esteja lá, significa sim que ainda não há

maneira devida de representá-lo, seja por pudor, seja por ainda não haver um modelo de

representação que o autor possa utilizar como ponto de partida. De novo, este não dizer não

se deve a uma falta de palavras, mas sim ao fato de que o lugar da representação da

intensidade entre os gregos sempre foi a objetiva exterioridade da ação. A medida da dor da

perda de Pátroclo é a devastação que Aquiles provoca entre os troianos, a marca de sua

humilhação quando perde Briseida é retirar sua espada contra Agamêmnon. Mas, qual a

marca do reencontro entre Electra e Orestes? Quase nenhuma em Ésquilo, senão a

86
confirmação da identidade. Na Electra de Sófocles temos um abraço, que traduz a alegria

do encontro, mas, no momento em que Electra começa a se expandir muito, há em Sófcoles

a voz de Orestes pedindo que ela silencie. Em Eurípides o abraço se repete, mais longo, já

não a marca do páthos do reencontro, mas algo como uma gratuidade do afeto. A distância

de Ésquilo para Eurípides e Sófocles é aquela de algo que não pode ser dito de maneira

simples – em Ésquilo este universo afetivo não é representado, nos outros dois

tragediógrafos é representado através de um abraço, este gesto tão raro nas tragédias, como

qualquer outra espécie de contato entre corpos. É Sófocles que torna o toque uma

linguagem, uma forma de representar o grande afeto, como uma consciência de que a

linguagem verbal não é bastante para dizer a emoção. Dizer a emoção, como Shakespeare

fez, ou como Eurípides ensaiou fazer em algumas peças, exige um certo tipo de consciência

psicológica ainda não formalizada àquela altura – o tipo de olho para o detalhe que

reproduza o universo interno de Orestes e de Electra, os passos de seu sentir, a riqueza

pessoal e intransferível do milagre do reencontro. Este “olho” para o detalhe só viria mais

tarde, mas é interessante notar como, por uma falta de técnica discursiva que obriga

Sófocles a representar esta ambígua riqueza psicológica através de um campo de silêncio

que envolve o personagem, algo mais poderoso é atingido, ou de uma intensidade distinta,

ao menos, que a técnica dramatúrgica posterior permitiria.

O silêncio é concreto na Electra de Sófocles: Orestes pede que a irmã se cale após o

reencontro. Estranha passagem da literatura, em que uma limitação técnica, em que a

incapacidade de representar a interioridade do personagem é tornada um elemento da

própria trama: após se abraçarem, Orestes pede que a irmã se cale para que não haja o risco

de os dois serem desmascarados. Formalmente é a imitação da cena apresentada por

87
Ésquilo, mas o abraço que antecede o diálogo dos dois estabelece que o silêncio, que o veto

à troca de experiências entre os dois, é algo distintamente diferente de Ésquilo. Há a

preparação da cena por Sófocles: Orestes dá uma urna com as falsas cinzas de si mesmo à

irmã, que ainda não o reconhece. Electra se desfaz em prantos, fala com a urna como se

falasse com o irmão, a aperta contra o corpo, e, assim, materializa seu desespero. A cena

vai se tornando cada vez mais emocional:

OR São a mesma pessoa quem vejo e Electra?


El Eu sou aquela em condição de espectro.
OR É insuportável! Que revés duríssimo!
EL Tens certeza de que é por mim que sofres?
OR Sem nume e sem renome, o corpo sofre!
EL A quem, senão a mim, cabe o lamento?
OR Ai! Moiramarga de um viver sem núpcias!
EL Por que me pões sob escrutínio e choras?
OR Só agora me apercebo dos meus males.
EL Tua conclusão, tiraste-a do que eu disse?
OR De ver a expressão do sofrimento.
(SÓFOCLES In EURÍPIDES; SÓFOCLES, 2009: 62 (tradução de Trajano Vieira) [sem
indicação de versos, vv 1176-1187 na edição de Jebb, SÓFOCLES, 1894a] 2

O que Sófocles faz é criar a antecipação pelo reconhecimento dos irmãos. É um artesanato

tão sutil e ao mesmo tempo tão poderoso que só podemos compará-lo à técnica teatral de

nosso próprio tempo. Pois o que prepara a emoção é o não dito, o vetado, o silenciado, e, no

entanto, nestes silêncios é que a emoção se concentra, e, finalmente, nesta apaixonada

concentração podemos vislumbrar algo como um si por trás das máscaras, uma alma no

palco, já não a fantasmal entidade dos filósofos, mas uma presença. Karl Reinhardt

descreve esta passagem como uma pequena metabole, não uma virada dramática, mas uma

que ocorre no invisível dos sentimentos e que se materializa em ação:

88
... Pois como Electra pode revelar a profundidade do seu amor fraternal apenas sob a pressão
causada pelo embuste, também Orestes, crescendo por causa da mesma pressão, pode passar
de ânimo renovado, da felicidade da vitória para a percepção dolorosa e compadecida, a fim
de que a alma da irmã, ao tocar o que é igual a ela, incendeie-se. (REINHARDT, 2007: 184)

Esta alma que se incendeia é mais presente, e sua presença é poderosa o bastante para que

Orestes mude seus planos e revele sua identidade à irmã. Isto é já um atestado da

concretude deste espírito que está sendo construído pela cultura grega, pesado o bastante

para afetar o mundo objetivo dos corpos, das palavras e das ações. Outra maneira de

dizermos isto é que, antes que haja o reconhecimento físico e formal entre os irmãos, o que

ocorre no nível do discurso, da ação, do concreto visível do palco, há o reconhecimento

invisível na sensibilidade. Orestes se apieda, e sua compaixão o iguala em um nível muito

profundo à irmã. Após o compadecimento de Orestes, ele se sente obrigado a se revelar:

EL Mas onde o infeliz foi sepultado?


OR Não foi: quem vive não possui jazigo.
EL Como disseste, jovem?
OR Nenhuma inverdade.
EL Então ele está vivo?
OR Se houver alento que me anime a ânima!
EL Estou na frente dele?
OR Repara neste anel
de nosso pai e diz se estou brincando.
EL Ó luz que mais seduz!
OR Sim: Ó luz!
EL Ó voz que afagas, retornaste?
OR Não indagues por outro!
EL Enlaço-te me meus braços?
OR Enquanto ambos vivermos!
EL Caríssimas amigas! Ó micênias!
Olhai – é ele! – Orestes! Um ardil
O matou, um ardil o traz de volta!
CO Estamos vendo, filha! Brotam do olho
Lágrimas de prazer por teu destino!
EL Ó filho,
Filho do corpo mais benquisto,
Tornaste enfim,
Surgiste, vieste, viste quem querias.
OR Estou aqui, mas silencia, aguarda!

89
EL Não entendi.
OR Melhor calar: não quero que outros me ouçam.
(SÓFOCLES In EURÍPIDES; SÓFOCLES, 2009: 64-65 (tradução de Trajano Vieira)3

É finalmente no abraço que toda a concentração de emoção que Sófocles criou é liberada. E

neste gesto corporal, o silêncio exigido por Orestes ganha um segundo plano, já não apenas

o silêncio devido à fabulação da peça, o silêncio de Ésquilo, mas uma nova dimensão em

que o silenciar se refere também à contenção da emoção que ameaça transbordar e tomar o

palco inteiro. A dimensão do afeto, do transbordante, esta que torna a alma concreta e

permite sua representação, apenas em Eurípides será tornada sinônimo de trágico. Em

Sófocles há contenção, em parte porque o autor não adere totalmente aos novos valores de

Atenas, dos quais Eurípides será um entusiasta, em parte porque há em Sófocles a intuição

de que esta alma profunda e difícil se representa através de algum nível de silêncio

fundamental. É interessante como na Electra de Eurípides não há o veto ao dizer. Orestes

não proíbe a irmã de se expressar, mas projeta a expansão do afeto para mais tarde.

VElho E hesitas em cair nos braços dele?


EL Não mais, pois me convencem os sinais
que apresentas. Já me tornara cética,
tanto tempo depois...
OR Tempo... após...
EL Parecia que nunca…
OR Não pensava…
EL És ele?
OR Teu único aliado!
Possa eu trazer a rede que lancei…
Mantenho a fé! Se o injusto prevalece
Sobre o justo, não haveria deuses!
CO...
OR Retribuirei, querida, teus afagos
Em outra oportunidade.
(EURÍPIDES In EURÍPIDES; SÓFOCLES, 2009: 102-3 (tradução de Trajano Vieira)4

90
Eurípides parte do princípio de que o efeito trágico passa necessariamente pela

representação do afeto, e que o silêncio constituinte da alma se dá em um outro nível, que

não é teológico, como ainda é em Ésquilo e Sófocles, mas psicológico, de fato, do abismo

entre a alma e o corpo. Este silêncio da alma passa necessariamente por uma relação com o

corpo, e se constrói ao mesmo tempo contra e a partir da expressão do corpo no palco. A

seguir trataremos da representação deste corpo trágico em Sófocles.

3.3. O corpo de Filoctetes

A dor de Filoctetes, em sua confusão entre corpo e espírito – dor de ter sido traído

pelos companheiros de armas, dor por estar agonizando com uma ferida incurável – é a

marca de uma espécie de fantasma sobre a construção do eu que se processa na tragédia.

Pois Filoctetes é, em sua representação, na constante declaração do êxtase da sua ferida, da

dor que o faz olhar a terra procurando a morte e ao mesmo tempo o céu em alguma

identidade com o sagrado, a figura de um ser humano corporal, do mortal distante do divino

e que, no entanto, à sua revelia, ainda precisa desempenhar um papel no drama cósmico.

Este homem que se faz humano no corpo ferido e devastado é um modelo possível para

entendermos a distância que ainda existe entre Sófocles e o platonismo. Filoctetes

representa acima de tudo seu corpo, sua dor corporal, um ser humano enquanto ser

corporal, de carne e nervos.

A dor que sente não é superável, e tão poderosa que faz com que o herói a

demonstre mesmo publicamente, para sua vergonha e humilhação. E este ser humano frágil

91
é o humano de Sófocles. Como o velho Édipo, como o Hércules agonizante de As

Traquínias, o páthos de Filoctetes vem da maneira como o conhecimento sobre o humano

se constrói. Conhecimento através da dor física, do limite do corpo, do entendimento que a

grandeza moral humana ainda é um nada em comparação com estas forças devastadoras e

absolutas que agem sobre o homem, um daímon que se manifesta no próprio corpo, um

destino que manifesta sua presença no envelhecimento, na dor, na fome, no desejo. Os

gregos tinham gênios para estas potências, exteriores ao homem, como forças invisíveis ou

humores, tanto quanto qualquer outro daímon e loucura. A grandeza e diferença de

Sófocles está em entender que estas forças devastadoras são a própria humanidade, e aqui

pela primeira vez nós podemos pensar de fato em uma condição humana para além da

mortalidade e da rendição ao divino. Pois tanto destino quanto morte, dor e decadência, são,

na visão grega tradicional, limites humanos, pontos em que o humano toca o divino, seu

non plus ultra. Este limite trágico, o da inferioridade física do humano em relação ao divino

e à natureza, é um dos dados do pensamento idealista sobre o trágico. O ser humano é

necessariamente um ser de finitude, e ainda que sua mente possa aproximá-lo do infinito,

este infinito será sempre inicialmente lugar do sublime, do abalo diante de algo muito

maior que a razão dá conta. O que o pensamento faz deste sublime e da finitude humana é

que caracteriza as diferentes teorias do trágico. Em Schiller, há o otimismo de que através

da formalização na obra de arte este sublime possa receber uma mediada humana e retornar

a ser um elemento compreensível. No idealismo esta diferença entre a medida humana e a

divina não é superável: apenas através de uma série de mediações muito complexas, que

tendem sempre ao aniquilamento ou ao salto no abismo de se tornar um outro (gesto de que

a morte é a figura mais poderosa) é que o ser humano pode contar se aproximar da medida

92
imensa da natureza. O primeiro passo para isso é obter a consciência desta distância,

perceber que há um espaço vazio de significado separando a vivência sensível do homem

daquilo que é o universo imutável do categórico. Em Hegel, esta é a condição para a

superação desta distância: primeiro percebê-la, depois confrontá-la. Segundo Gérard Bras

em Hegel e a arte, é na percepção da finitude humana através da sensibilidade que surge a

possibilidade de entendimento do outro que é o categórico. Segundo Bras:

Ao captar um lampejo num corpo, um sorriso de mulher etc, essa arte tende a nos mostrar
não o imutável, o divino – que Hegel chama de o substancial – mas, ao contrário, o efêmero
da substância sensível, a manifestação fenomênica. Com isto, esta arte nos abre para uma
reflexão filosófica sobre o real, não por nos introduzir num mundo verdadeiro para além da
existência natural, mas, ao contrário, por nos levar a pensar que a verdade é a união do ser e
do devir, da essência e das aparências. (BRAS, 1990: 35)

Em Hölderlin esta cisão entre sensível e categórico é pensada em termos de possibilidade

de produzir a reunião do todo com as partes. O momento da fissura expõe a necessidade

mútua do todo e das partes se religarem na conciliação trágica. A seguir vamos tentar

demonstrar como em Sófocles se processa este momento de cisão entre finitude e infinito

que, em um segundo momento, através do conflito trágico, pode revelar e conciliar homem

e deus. Vamos realizar a seguir uma leitura mais pessoal e especulativa do processo, menos

mediada pela tradição do idealismo, mas haverá concordância no entendimento de que o

que é característico da tragédia é a representação da distância entre sensível e categórico, e

que desta distância dolorosa é que surge a possibilidade de conhecimento do categórico.

Assim, há uma condição humana que determina que o homem é ser finito. Esta é a

humana condição em um sentido bastante antigo – a da dignidade, da moira humana, do

lugar do homem na ordem das coisas, em oposição aos animais, aos deuses, aos rios e

93
bosques. O que Sófocles está pondo no palco é algo distinto disto, o sofrimento de

Filoctetes, a velhice de Édipo, o shakespeareano abraço de Hêmon a Antígona, desejo e

dor, decadência e agonia, mas, acima de tudo, uma segunda natureza humana, a

experiência. O sofrimento é aprendizado, o sofrimento é o grande professor, o sofrimento é

a condição humana, já não um deus ou um gênio, mas a própria essência complicada do que

é ser humano.

Se o morto-vivo que é o herói trágico em Ésquilo é algo que surge para ressuscitar

seu discurso e seu direito, como quem dissesse “eu que estou morto agora vos digo o que

sou, minhas razões e motivos”, em Sófocles temos uma complicação disto. Pois diferente

de Dario, Orestes ou Prometeu, não basta a este morto-vivo, a este estrangeiro conterrâneo

ou qualquer outra tensa conformação criatural que o herói assuma, não basta dar conta da

sua presença. É preciso que ela seja concreta para além de um discurso e uma narrativa, que

adquira e refira um segundo plano, que não é o inacessível do destino, este sempre presente

em toda tragédia, mas o inacessível da alma humana. O herói trágico em Sófocles é aquele

que se diz, diz sua história e direito, como em Ésquilo, mas, mais que isso, diz sua alma, o

rumor estranho e profundo de sua alma. E, na falta de uma técnica consolidada para

apresentar este segundo plano do herói, é no sofrimento do corpo que ele é representado,

como um espírito que se faz carne. Talvez aí, nesta alma-corpo que sofre de Sófocles,

tenhamos um dos momentos fundamentais da história da cultura, pois é nesta técnica de

representação de Sófocles, tão distinta da dor moral característica de Ésquilo e Eurípides,

que temos o germe do “espírito se fez carne”. Não se trata apenas de uma extensibilidade

da alma, das metáforas que comparam corpo e espírito, como “meu coração se enche de

luz”, ou “minha cabeça está pesada”, isto tudo já previsto em Parmênides e Heráclito, e

94
formando o mosaico da longa transição da visão antiga para a visão nova. Em Sófocles

temos uma alma que é corpo, que está em consonância com o corpo, com a carne humana:

quando uma sofre outra sofre, o sentido e o destino de uma é o destino de outra. Os heróis

agonizantes de Sófocles se referem àquilo que Nancy escreve em Corpus sobre o substrato

da teologia e do pensamento a partir do cristianismo:

... A outra [versão], a mesma, indiscerníveis e distintas, emparelhadas como no amor. “O”
corpo terá sempre estado no limite destas duas versões, lá onde elas se tocam e
simultaneamente se repelem. O corpo – a sua verdade – terá sido sempre o intervalo de dois
sentidos – cujos intervalos da direita e da esquerda, do alto e do baixo ... não fazem mais do
que se exprimir entre si reciprocamente.
A outra versão da vinda chama-se encarnação. Se digo verbum caro factum est (logos sarx
egeneto) estou num certo sentido afirmar que caro constitui a glória e a verdadeira vinda de
verbum. Mas estou igualmente a afirmar, num sentido completamente diferente, que verbum
(logos) constitui a verdadeira presença e o sentido de caro (sarx). E se, num certo sentido
(uma vez mais), estas duas versões se pertencem mutuamente, e se “encarnação” nomeia
ambas e em conjunto, num outro sentido ainda, no entanto, elas excluem-se. (NANCY,
2000: 64)

A alma é representada na corporeidade, e a corporeidade-alma no sofrimento. O que vamos

explorar agora é a maneira como esta iluminação foi possível a Sófocles, pois, este tipo de

representação, embora já antecipado pela cultura grega, especialmente através da idéia de

extensibilidade da alma, é bastante específico de Sófocles. Nossa hipótese é que um corpo

que representa a alma e um sofrimento que torna este corpo concreto surgem de problemas

específicos do palco grego, por um lado da relação do texto trágico com a tradição épica e,

por outro, de certos limites físicos do palco grego.

É Bruno Snell que tenta dar conta do problema principal de leitura da épica grega: a

sensibilidade e a visão de mundo grega é radicalmente diferente da nossa. Não é que não

haja um princípio de individuação ou um sentimento de corporalidade, mas ainda não se

concebe um corpo como todo orgânico conforme entendemos. O corpo é acima de tudo a

95
ação específica do corpo sobre a realidade. O corpo é a perna que corre, a pele que recebe a

armadura ou a que é rompida pela lança, não há um “olhar”, mas antes uma expressão dos

olhos que tem certa intensidade ou mansidão. E a alma, cuja figuração é sempre construída

em relação a um corpo, acompanha este corpo grego composto de partes atuantes que se

sobrepõem mais do que se conformam. Nas palavras de Snell:

Se quisermos com os conceitos de “órgão” e de “função” determinar a concepção que


Homero tem da alma, iremos de encontro a dificuldades terminológicas, contra as quais se
chocam todos aqueles que querem definir as particularidades de uma língua estrangeira com
os termos da sua própria. Se digo: o thymós é um órgão da alma, é o órgão do movimento da
alma, recorro a frase que contêm uma contradictio in adiecto, visto que, segundo nossas
concepções, as idéias de alma e de órgão não podem combinar. Se quisesse falar com maior
precisão, eu teria de dizer: o que chamamos de alma, é, na concepção do homem homérico,
um conjunto de três entidades que ele interpreta por analogia com os órgãos físicos.
(SNELL, 2009: 16)

Poderíamos, utilizando uma imagem de Snell, dizer que a alma está lá, mas não foi ainda

descoberta, e isto de uma maneira bem complicada: esta alma não pode ser descoberta

como uma ilha é descoberta, ela ainda não está presente. Por outro lado, não podemos supor

(ou ao menos não podemos conceber) uma diferença tão radical em relação a outros

humanos que faça com que algo como uma consciência corporal, como a sensação de um

corpo que limita minha identidade em relação ao resto do mundo esteja completamente

ausente. Assim, é através de analogias que este corpo e esta alma são primeiro

representados. No progresso da literatura grega aos poucos vai se desenhando um corpo

orgânico – não os seios de Helena de Homero, mas a Helena simulacro de Eurípides –, em

seguida uma alma análoga a um corpo, uma identidade que é também um todo orgânico e

não a manifestação dos “órgãos” do espírito, e, finalmente, uma essência autônoma. Então,

este é um plano contra o qual a literatura trágica se põe: a materialidade e ao mesmo tempo

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a limitação do corpo e da alma homéricos, pois, embora o texto trágico tenha antecedendo-

o vários séculos de literatura que prepararam tanto o corpo quanto a alma, o modelo básico

de seu discurso é a épica, por conta da dependência da tragédia em relação ao mito. Esta

dependência é específica da tragédia, e vem da necessidade de concentrar seu discurso e a

ação representada em um pequeno espaço de tempo. Enquanto Homero pode desenvolver

sua narrativa ao longo de muitos versos e horas, iluminando e ressaltando certas passagens,

construindo os antecedentes do que narra, o texto trágico depende das duas horas em que a

peça individual da tetralogia deve ser apresentada. O único tema é o mito não tanto por uma

obrigação religiosa, mas porque no mito há a possibilidade de concentrar a narrativa em um

momento mais intenso. Os antecedentes biográficos são dados fora do próprio texto trágico,

o que permite que ele concentre sua fabulação naqueles momentos mais intensos de uma

biografia, quando a vida do herói, ou os valores contra os quais o herói está se

confrontando, surjam sob uma luz mais intensa. Isto, no entanto, se é uma solução, por

permitir à tragédia ser arte de intensidade e de tensão, é também um problema, pois o texto

que serve de modelo à tragédia é contrário ao tensionamento. Auerbach entende isto como

um problema de sobreposição de planos: a épica representa a fábula em um único plano,

faltando a ela aquilo que é essencial à tragédia, um segundo plano, psicológico, em que a

ação dos personagens ganha um outro sentido. Mas para o surgimento deste segundo plano

é necessária uma lacuna, um silêncio, um não-dito, a que a épica é avessa. Auerbach se

refere a esta necessidade de Homero preencher todas a lacunas através de digressões, de

idas e voltas narrativas, como “efeito retardador”, seguindo uma discussão de Goethe e

Schiller:

97
Goethe e Schiller, que em fins de abril de 1797 se correspondiam, não especificamente
sobre o episódio aqui em pauta [o da cicatriz de Ulisses na Odisséia], mas sobre o
“elemento retardador” na poesia homérica em geral, opunham-no diretamente ao princípio
da “tensão” – termo esse não propriamente utilizado, mas claramente aludido, quando o
processo retardador é posto, como processo épico propriamente dito, ao trágico (cartas de
19, 21 e 22 de abril). O elemento retardador, o “avançar e retroceder” mediante
interpolações, também a mim, parece estar, na poesia homérica, em contraposição ao
impulso tenso para uma meta. ... Mas a verdadeira causa de impressão de retardamento
parece-me residir em outra coisa; precisamente, na necessidade do estilo homérico de não
deixar nada do que é mencionado na penumbra ou inacabado. (AUERBACH, 1998: 3).

É esta característica da literatura homérica, a compulsão em dizer tudo, mais do que uma

ausência de tensão, descartada por Auerbach, que impede a existência de um segundo plano

psicológico. Em Homero tudo é dito, nele “há um desfile ininterrupto, ritmicamente

movimentado, dos fenômenos, sem que se mostre, em parte alguma, uma forma

fragmentária ou só parcialmente iluminada, uma lacuna, uma fenda, um vislumbre de

profundezas inexploradas”. (AUERBACH, 19998: 4) Mas é nestas profundezas que há a

possibilidade de uma alma, e é do silêncio parcial sobre elas que surge um segundo plano,

explorado pela literatura trágica. Este é o silêncio do deus, mas é também, e cada vez mais,

o silêncio da alma do personagem trágico.

Então o texto trágico tem como ponto de partida uma épica em cuja escrita uma de

suas características fundamentais, a tensão entre dois planos de significado, está ausente. A

tarefa do tragediógrafo é tornar presente este segundo plano, especialmente após Ésquilo,

quando esta profundidade da alma humana não era ainda uma questão tão direta quanto

para Sófocles e Eurípides. Como então representar este segundo plano? A resposta mais

direta é através do discurso. E pensemos que a descrição, para um público que é formado

pela audição da épica, não será um recurso pobre. Obviamente no teatro não temos a

possibilidade de um narrador, que daria conta da construção deste plano de fundo

98
psicológico em outras modalidades de narrativa. Ele surge às vezes na figura do

mensageiro, que torna presente a ação que ocorreu fora do palco, e os personagens podem

expressar aquilo que sentem, como muitas vezes o fazem. Mas, insistimos, a representação

das emoções diretamente através do discurso não dá conta da riqueza e da profundidade da

alma, do homem interior que está presente no trágico. Em um teatro moderno, a expressão

dos atores dá conta disso: as sutis contrações do corpo e da face do ator, o micro-gestual

que tenta tornar presente o movimento da alma. Mas em um teatro de máscaras, que precisa

de gestos largos porque se dá diante de um público de milhares de pessoas, esta é uma

impossibilidade.

Outro complicador é a estrutura do palco trágico. O logeiôn, o estrado de madeira

sobre o qual ficavam os atores, separando-os tanto do coro quanto do fundo da cena, era um

espaço longo e estreito. Ele permitia que uma carroça ou um pequeno cortejo ficasse

disposto, como na entrada de Agamêmnon e Cassandra em Agamêmnon, ou no enterro de

Astiânax em As Troianas. Isto também permite a hipótese de que o Prometeu de Ésquilo

fosse um grande boneco, imitando o porte do titã. Mas impediria a ação em dois planos

físicos ou qualquer movimentação mais dinâmica. E esta movimentação, o passeio pelo

palco do ator, é um elemento importante na representação de qualquer personagem no

teatro moderno. Provavelmente os gregos utilizavam, como no teatro No e no Kabuki

japoneses, uma gramática gestual, utilizando o movimento dos membros e os adereços

cênicos como uma figuração daquilo que se passava dentro do personagem. Esta seria uma

maneira possível de representar as emoções no palco para além do discurso. Como

representar algumas emoções sutis, como melancolia, preocupação ou mesmo dúvida de

uma maneira que fosse perceptível para os possíveis quinze mil espectadores do teatro de

99
Dioniso? Não com um franzir de sobrancelhas. Possivelmente havia um gesto que

correspondesse a preocupação, alguma posição das mãos ou alguma postura que a platéia

interpretasse como preocupação. Peter Arnott em seu livro Public and performance in

greek theatre relaciona o gestual do teatro grego com o da oratória. Seu argumento é que

atores e oradores partilhavam algumas técnicas, o que permitia que a profissão dos

primeiros fosse um bom preparatório para a dos segundos. Em ambos os casos, a arte

gestual está ligada à idéia de hypokrisis, a performance ou a ação de tornar as idéias mais

intensas ao ouvinte. De fato, a oratória e o teatro são inseparáveis no teatro grego, e parece

bastante provável que a arte de um campo tenha alimentado a de outro. Segundo Arnott

Podemos deduzir algo dos gestos utilizados pelos oradores gregos. De novo, Ésquines é
valioso. Seus discursos, repletos de acusações pessoais, descreve o comportamento de seus
oponentes. Conta que era um gesto típico de Demóstenes colocar suas mãos sobre a testa.
Este era também um gesto comum do palco. Em outro ponto, Ésquines descreve seu rival
como “girando”. Isto sugere uma atuação [hypocrisis] animada, e vívido acompanhamento
físico. Do discurso de Demóstenes contra Teócrines, parece que era perfeitamente aceitável
para o defensor se jogar sobre os pés de seus oponentes, um toque teatral ainda admissível
nas cortes de justiça. . (ARNOTT, 1989:54)5

O problema de entender que o sentimento para além do discurso é representado por um

gestual tão vivo é tornar o teatro trágico grego como uma arte expressionista.

Necessariamente não havia a sofisticação gestual do teatro No, voltado para um público

extremamente cultivado e representado de forma intimista. Mas imaginar um

expressionismo cênico grego, com gestos fortes como nos filmes alemães do início do

século XX, é criar um contraste grande demais entre esta ostensividade e a sutileza do texto

de Sófocles, por exemplo, ou a grandeza do discurso de Ésquilo. No entanto, combinaria

bem com o teatro de Eurípides, o que talvez nos diga que esta era uma possibilidade para o

100
palco da época. Mas uma possibilidade plena, pensamos, para o texto de Eurípides, não

para o de Sófocles.

Um outro caminho encontrado por Sófocles foi representar a alma pelo corpo, tornar

a alma presente através daquilo que nela toca o corpo, ou seja, a dor. Os abraços de

Sófocles – Orestes e Electra que se abraçam no reencontro, Édipo que abraça Antígona e

Ismene em Colono, o abraço relatado pelo mensageiro entre Antígona morta e Hêmon,

Neoptolemo carregando Filoctetes – são uma das dimensões da importância do corpo para a

arte de Sófocles. O toque traduz uma intensidade do encontro de corpos que o verbo não

daria conta. O toque é uma maneira de estabelecer uma igualdade e uma aliança em um

nível mais profundo do que o discurso, pois se as palavras em Sófocles podem ser vãs e

terem às vezes o sentido contrário do que dizem, o toque é o gesto certo que restabelece

uma certa ordem em um mundo confuso. Toca-se o igual, através do toque minha

identidade se confunde com a do outro. E nessa confusão o corpo projeta uma sombra que é

o espírito. Através do corpo chega-se à alma e ao sentido de uma determinada experiência,

como na recusa de Édipo em tocar Teseu após o herói ter salvado suas filhas em Édipo em

Colono:

Não estranhes, senhor, se fui prolixo,


Pois o retorno delas surpeendeu-me.
O júbilo da reaparição,
Eu sei que o devo a ti e a mais ninguém.
Nenhum mortal, além de ti, salvou-as.
Os deuses correspondam ao que peço
A ti e ao teu país! Respeito aos numes
Somente aqui me foi dado encontrar
E a tolerância e o linguajar não-pseudo.
Aceita o meu discurso de tributo,
Graças a mais ninguém tenho o que tenho.
Me estende a mão direita, ó rei, pois quero
Tocá-la e te afagar o rosto. Posso?

101
Mas o que falo? Como a mim, sem sorte,
Alguém, livre da nódoa da desgraça,
Permitirá que o toque? Eu mesmo não
Posso aceitar: só quem provou ruína
Igual a minha dela participa.
Saudações, à distância! No futuro,
Zela por mim, coo hoje o fazes, justo!
(SÓFOCLES, 2005: vv 1119-1138 (tradução de Trajano Vieira)6

A outra maneira, mais rica e de grande importância para a cultura mais tarde, é

tornar o corpo como aquilo que é indizível, e tornando-o indizível, impedindo que o

discurso tome posse totalmente da dor que é tornada presente, apontar para um outro

silêncio, o da alma. O sofrimento da ferida de Filoctetes é muito mais concreto que a dor

moral que sente por ter sido traído, ao menos é mais representável. Mas na sua

representação é também aquela dor moral que está presente. Da mesma maneira, a velhice

de Édipo é simples de ser tornada presente, e em seu corpo alquebrado e cego, muito mais

fácil e intenso em sua mera presença no palco do que um comentário de Édipo. O corpo

devastado é a maneira de se obter dois efeitos. Primeiro, obter um corpo mais presente, de

maior intensidade, do que o corpo saudável. O contraste lógico em Filoctetes é entre o

corpo do efebo Néoptolemo, saudável e cheio de vigor, e o corpo devastado do arqueiro.

Mas é o corpo de Filoctetes que fica mais presente em sua devastação, não porque a doença

seja algo mais atraente que a saúde, nem mesmo em termos de fabulação, mas porque

cenicamente ela é mais representável.

É assim que o silêncio da interioridade de Electra, sua alegria silenciada no

reencontro com Orestes, se relaciona ao despudor do sofrimento corporal de Filoctetes.

Talvez em Sófocles tenhamos esta estranha modernidade de um sensível dotado de poder,

de um corpo que é ele mesmo alma. Há um passo além em Sófocles, aquilo que marca seu

102
tradicionalismo e, ao mesmo tempo, sua diferença em relação a Ésquilo e Eurípides. Pois,

se é verdade que Eurípides é de longe o mais “legível” dos tragediógrafos, no sentido de

sua sensibilidade, apesar de ser contemporâneo de Sófocles, ser mais próxima da nossa, e

se Ésquilo é titânico, é o autor que ainda nitidamente mantém traços de uma grandeza épica

em seus heróis, Sófocles é aquele que mais nos faz pensar na palavra gênio. Gênio porque

cada um de seus personagens é irredutível, porque não parece seguir esquemas na

representação de seus heróis, porque é um autor fundamental, séculos mais tarde, para

nossa própria concepção do que seja o humano, através de seu Édipo e sua Antígona. E esta

genialidade, ou a impressão de genialidade que sua exígua obra nos causa, advém

exatamente disto que para nós é uma inversão de atributos, de haver em suas peças um

corpo que fala e uma alma que silencia.

Isto não é sem conseqüência, pois esta alma silenciosa em Sófocles, mesmo que

surgida de uma necessidade cênica, por uma espécie de incapacidade de representar uma

alma, torna-se um campo vazio de sentido a ser invadido pelo discurso do corpo. Filoctetes,

Édipo, Antígona, Ájax, todos eles são dotados de um ethos, de um núcleo duro que os

motiva e os obriga a agir da maneira que agem. Mas este ethos não permite, ao contrário de

em Eurípides, a descrição, não permite o registro de seu movimento e sutil transfiguração.

Seu caráter está acima de sua capacidade de decisão. E, no entanto, se move... Pois ainda

que Sófocles não possa, ou não queira, representar o drama interior, ele ocorre – ocorre

para a sensibilidade do público, que cada vez mais se afasta da visão monolítica e sagrada

da vida, ocorre para a ação trágica – já não o campo amplo do ódio, da maldição, da revolta

e da necessidade divina, de uma ordem tirânica e tetânica, como em Ésquilo. As fábulas de

Sófocles que nos restaram são desgraças individuais, sofrimentos de indivíduos que se vêm

103
diante do horror de si próprios, dos pequenos gestos que cometeram e que tiveram

conseqüências catastróficas. Pensemos no que Édipo fez de fato – matou um homem,

deitou com uma mulher, engendrou filhos – como isso produz um miasma? Pensemos em

Dejanira, que simplesmente planeja recuperar o marido e mata o próprio Hércules, em

Odisseu, que simplesmente quer um prêmio interessante, as armas de Aquiles, e em uma

cadeia de eventos que não planeja nem deseja produz o fim de Ájax.

O que produz esta mais valia monstruosa, que torna o gesto cotidiano de um vivente

em algo horrível, é o deus – é na distância entre o divino e o humano que há espaço para a

desproporção entre um gesto mínimo e uma catástrofe, como uma borboleta que cause um

furacão do outro lado do mundo. Mas além do deus há o homem, a consciência humana. O

que faz com que um gesto menor torne-se cataclísmico é o conjunto de ações coordenado

pelo deus, mas a medida do cataclisma, aquilo que o torna sublime, digamos, é a

consciência do homem que o sofre. Esta consciência que em Sófocles silencia, que não sabe

ou não pode dizer, seja porque a medida humana é pequena demais para o que ocorre, seja

porque o autor não sabe ainda representar esta consciência que pode abarcar a infinita

profundidade do mal sofrido, seja porque, e é aqui que há uma possível grandeza

incomparável do Sófocles autor, do nome Sófocles, porque neste silêncio que não deve ser

preenchido indevidamente por qualquer coisa, por gestos ou palavras, é que está a única

representação adequada da grandeza do sofrimento. Representação inadequada, incerta,

que falseia a descrição – pois aquilo que preenche o discurso devido da alma é o lamento

concreto do corpo. E eis que a alma se torna concreta, torna-se, ela também, corpo.

O problema da possibilidade de representação é constante em qualquer arte de

teatro, e segue a uma lógica própria, relacionada tanto aos recursos cênicos de uma cultura

104
quanto às suas idiossincrasias. A lógica que torna o corpo de Filoctetes mais presente que o

corpo de Neoptolemo, uma lógica cênica, de presença de palco, é a mesma que obriga que

os momentos mais vigorosos da tragédia ocorram fora de cena. Vemos o cadáver de

Agamêmnon, ouvimos os gritos de morte de Clitemnestra, somos informados que Ájax se

suicidou ou que Astiânax foi sacrificado, mas não vemos os assassinatos e suicídios. Talvez

devamos nos deter um pouco mais sobre o sentido da ação exterior ao palco na tragédia.

Podemos conceber uma razão prática para isso: a representação de um assassinato

ou de uma luta corporal poderia ter efeitos devastadores sobre uma platéia tão numerosa

quanto a do teatro ateniense, e as conseqüências de milhares de pessoas excitadas a este

ponto seria difícil de prever. Outra possibilidade se refere a um pudor diante da morte em

um ritual religioso, como era a tragédia. As mortes e vinganças na tragédia têm uma

dimensão sacrificial para além da simples peripécia do drama, e esta dimensão obrigaria a

um certo recolhimento em sua representação. Isto não vetaria a presença do cadáver ou do

sangue dentro do palco, mas impediria a representação do próprio sacrifício. Outra hipótese

é que os limites do palco grego não dariam conta de representar a fuga e o movimento

vigoroso que uma luta pressupõe.

A possibilidade mais interessante para nosso trabalho é pensar que o interdito à

representação do sacrifício vem de uma certa lógica espacial e antropológica do mundo

grego. Mike Wiles, se referindo à organização do palco grego, aponta para o quanto a

skênê, a parede ou tela que dividia o palco entre o que a platéia via e o invisível, meio que

delimita o espaço da ilusão. Segundo Wiles em Tragedy in Athens: performance stage and

theatrical meaning

105
Na relação interna entre a área de atuação e o auditório podemos discernir uma mudança
histórica com a introdução do skênê ou fachada. Inicialmente não havia a parede do palco, e
a audiência se reunia ao redor de um espaço de dança que de forma alguma pretendia
espelhar a realidade. Uma performance assim seria definida por Uberfeld antes como ludus
(uma apresentação festiva) do que como mimesis (imitação da realidade) dentro de um
espaço de atuação que se aproximava de seu modelo “plataforma”. O skênê criava um área
fora do palco oculta e a conseqüente ilusão de que a ação se extendia para onde a audiência
não podia vê-la . (WYLES, 1997: 15-16)7

A separação entre o palco e o bastidor da skênê servia essencialmente para dar aos atores

um espaço para se trocarem, além de abrigar os mecanismos como guindastes, escadas e

cordas que seriam utilizados nos momentos mais cênicos do espetáculo. Mas para além de

sua função direta, ele acabava provocando a extensão do palco. Com a skênê a ação podia

se estender para espaços internos, geralmente os palácios, ou uma gruta, no caso de

Filoctetes, que fugiam à visão do público. Neste espaço fechado o silêncio da representação

ganhava uma dimensão nova, já não era um silêncio sem conseqüências, silêncio da

ausência de conteúdo, de algo que não interessa ao drama, mas, ao contrário, era uma não-

representação que se estendia ao espaço circunscrito do propriamente representado no

palco. Era por trás da fachada dos bastidores que ocorriam os assassinatos e suicídios,

roubando da platéia o momento mais intenso da representação. Arnott relaciona isto a um

traço da cultura grega, a extrema publicidade de vida, em que o espaço privado estava

relacionado às emoções negativas. Segundo Arnott em Public and performance in greek

theatre:

Na variante grega desta combinação, certas associações locais e sociais surgem. A sociedade
grega era, primeiramente, uma sociedade ao ar livre. Encontros, assembléias, tribunais,
negócios e cerimônias religiosas normalmente se davam fora de casa, à luz do sol. O grego
dormia sobre seu telhado (como ainda têm tendência de fazer) e realizava uma boa parte de
sua vida privada nas ruas. Ao contrário, o espaço reservado é muitas vezes manchado com
furtividade e suspeição. O que não pode ser abertamente visto é potencialmente perigoso.
Este sentimento transborda das peças. O que é bom, honesto e aberto tem a tendência de
ocorrer do lado de fora; o que é enganoso, furtivo e malicioso, do lado de dentro. Em

106
Agamémnon, o palácio é um lugar de mal corruptor em que o rei entra para encontrar seu
fim. Em Antígona, a heroína, buscando uma conversa com sua irmã, conduz Ismene para
fora do paço, em vez de, como faríamos, para algum lugar privado e protegido do lado de
dentro. Em Medéia, a casa é um lugar demoníaco de onde a voz de Medéia é ouvida pela
primeira vez através de ameaças e que finalmente suga seus filhos para dentro para sua
destruição. (ARNOTT, 1989: 133)8

O silêncio cênico é o que prepara a representação deste outro silêncio, o da alma, e nos

dois casos o não representado serve mais como uma caixa amplificadora do que como um

abafador.

Os lamentos de Filoctetes ao longo da peça, seus ais e seu corpo devastado, sua

fome, seu cansaço, sua agonia, são aquilo que torna seu corpo mais presente. Mas este

corpo sofrido, como o do Édipo velho e como o do Hércules de As traquínias, é também

corpo de êxtase. É nele que tanto a razão do espírito humano, sua profundidade afetiva e,

finalmente, a relação do homem com o deus podem ser representados. É em um momento

de lucidez durante sua agonia que Hércules ata o destino de seu filho Hilo, ao exigir que se

case com Iole e incendeie seu corpo para destruí-lo. No sofrimento do corpo, na

manifestação do poder divino sobre o corpo, é que aparece de forma clara, por contraste, a

natureza do divino, sua essência negativa em relação ao homem, que sofre por sua

impermanência, e na dor encontra o índice desta impermanência. É uma linguagem da

crueldade, talvez não propriamente da crueldade do deus contra o homem, mas a crueldade

da distância entre as duas naturezas. E esta crueldade deve ser ouvida, deve ser vista e

aceita. É este talvez o sentido da fala final de Hilo, quando faz o comentário sobre as

desgraças que ocorreram em sua casa:

E que vós sabeis de toda a inclemência dos deuses no decorrer destes fatos. Eles, que
geraram e são chamados, pois assistem impassíveis a tamanhos sofrimentos. Os do futuro,

107
ninguém consegue os divisar, os do presente, deploráveis são para nós, e vergonhosos
quanto aos deuses. Mas os mais penosos são os que se apresentam ao homem que esta
desgraça suporta. (SÓFOCLES, 1996: vv. 1265-1278 (tradução de Maria do céu Fialho)9

O fechamento da peça “mas, em tudo isto, nada que não seja obra de Zeus” (vv1277-78),

não é simplesmente a afirmação conformada de um fato da vida por Hilo. Como em

Electra, o que está presente nesta afirmação da natureza do deus, é o problema da

esperança de felicidade humana.

O que pode nos iluminar para pensarmos as conseqüências da representação da dor

corporal no palco é pensarmos o estatuto desta dor. A obra clássica de Elaine Scary, The

body in pain, talvez seja uma boa referência para liderar nosso questionamento. A tese

central de Scarry é de que no sofrimento corporal há uma dialética identitária em que o

mundo (a cultura, a alma, a experiência), através da dor, é separado e destruído do corpo

que sofre. O corpo que sofre é meu corpo, mas não sou eu, esta dor que abrigo é exterior a

mim, e mesmo assim faz com que aquilo que sou, todo o arcabouço de experiência que

forma minha identidade, se confunda com a dor. Nos termos de Scarry, a voz do corpo, no

grito de dor, no gemido, no pulsar da dor, cala a voz do espírito. Sua preocupação principal

é entender o estatuto da tortura e da guerra, de que forma a relação de poder entre vítima e

algoz, que se dá sobre o corpo mas também sobre a linguagem, cria o mecanismo de

subjugação da vítima. Assim, a dor não existe em uma dimensão puramente física, mas

projeta sobre a identidade primeiro a separação entre corpo e alma e, em seguida, a

destruição desta alma, a destruição do mundo a que ela se liga. É daí que a experiência da

dor física é essencialmente uma experiência de solidão absoluta, em que o espírito é

desligado de todo seu referencial. Solidão que se constrói através da linguagem: a dor é

108
incomunicável, ela torna a linguagem insuficiente. Mas, ao mesmo tempo, é na dor que a

linguagem brilha e pode surgir com mais força. Nas palavras de Scarry

Testemunhar o momento em que a dor provoca a reversão para a pré-linguagem de gritos e


gemidos é testemunhar a destruição da linguagem, mas inversamente estar presente quando
uma pessoa se ergue para acima daquela prelinguagem e projeta os fatos de consciência no
discurso é quase como ter obtido a permissão para estar presente no nascimento da própria
linguagem. (SCARRY, 1985: 6)10

Filoctetes junto de Gritos e sussurros de Bergman são apresentados como os dois maiores

modelos de representação da dor, representando esta dialética entre corpo e alma que

Scarry está pensando. Os vários ais de Filoctetes, que ele intercala com imprecações e

momentos de lucidez, são exatamente a medida desta dor corporal que comunica ao mesmo

tempo que destrói a alma. O mundo roubado de quem sofre põe a vítima em uma solidão

absoluta, e nesta solidão está a condição humana. Por outro lado, é a solidão da dor que

obriga a vítima a transcender sua experiência normal e ganhar uma nova perspectiva, a

compreensão da dimensão divina. Na passagem em que Filoctetes é carregado por

Neoptolemo após obrigar o jovem a jurar que não o deixaria sozinho, vemos esta solidão e

ao mesmo tempo esta transcendência da dor:

FI Aonde... afora... me... onde?


NE Aonde? O que dizes?
FI Acima.
NE Surtas? Por que mirar o círculo celeste?
FI Deixa-me, deixa-me!
NE Deixar-te onde?
FI Apenas deixa-me!
NE Afirmo que é impossível.
FI Um simples toque teu me arruína.
NE Se estás mais lúcido, te soltarei.
FI Ó Géia-Terra, engole quem morreu!
A chaga tira o chão do pé! Vertigem!
(SÓFOCLES, 2009a: vv. 812-20 (tradução de Trajano Vieira)11

109
A agonia do herói faz com que ele procure o deus, faz com que o perceba, na verdade. Mas

perceber o deus é perceber sua distância e a crueldade da relação, e na compreensão desta

natureza, ser jogado em uma solidão ainda mais absoluta do que a anterior. Pois aquilo que

o deus fala não é a linguagem do mundo, da cultura e da experiência, mas a silenciosa

linguagem do corpo, do sofrimento e da impossibilidade de tocar os outros. Karl Reinhardt,

seguindo o pensamento de Hölderlin, explica isso por uma espécie de lucidez tetânica de

Sófocles, que consegue aceitar o deus mesmo que seu sentido seja o sofrimento, mesmo

que o papel que esta divindade reserve ao homem seja o lugar do sofrimento e da injustiça.

Segundo Reinhardt:

Também a conclusão de Filoctetes é um ecce, mas não um ecce da coincidência devastadora


do homem com a vontade dos deuses, tal como em Édipo rei, porém um ecce de separação
absurda do andamento do mundo. O conflito entre a verdade divina e a aparência humana,
aletheia e doxa – expresso de modo filosófico segundo Parmênides – do qual estava
saturado o Édipo rei, dá lugar no Filoctetes à relação dolorosa entre a “parte” e o “todo”, no
sentido conferido por Heráclito. Pois de modo diverso de Eurípides e Shakespeare, o poeta
aqui não está do lado do que se liberta, mas do lado dos deuses que regem o mundo.
(REINHARDT, 2007: 216)

A leitura que Reinhardt faz de Sófocles é baseada nos temas de Hölderlin do afastamento

do deus e da estrutura excêntrica, como centros de gravidade que de uma distância infinita

se repelem e atraem, da relação entre o homem e divino. Assim, embora possamos aceitar

que devido à tradição e à visão de mundo grega este deus seja aceito e respeitado, não

conseguimos ver em Sófocles uma adesão tão imediata ao sentido deste deus. É verdade

que em Filoctetes e Édipo em Colono há uma espécie de recompensa pelo sofrimento do

herói, no caso de Filoctetes a recuperação de sua honra e de seu corpo, prometida pelos

110
olímpicos através de Hércules, no caso de Édipo sua ascensão no final da peça, quando

desaparece “tragado” pelo deus em vez de simplesmente morrer. Mas o sofrimento já foi

dado, ele não se apaga na ascensão. Desta perspectiva, o deus ex machina da aparição de

Héracles não apaga os sofrimentos nem o abandono de Filoctetes. E o absoluto em que ele

parece querer se dissipar, seu retorno ao centro, ao círculo celeste, é impossível sem a

consciência do mal sofrido. Esta consciência é o dom que o trágico deixa à platéia.

Esta consciência do mal em Ésquilo é aceitação da soberania divina, mas em

Sófocles acreditamos que se dê algo distinto, talvez pelo estatuto do corpo em suas peças.

A manifestação do deus sobre o homem é através das forças devastadoras do corpo: o

tempo, a fome, o desejo, a dor. O deus em Sófocles é aquele que tortura o homem, que o

castiga (ou que está tão distante que recusa até mesmo o castigo, como na leitura de

Hölderlin sobre Édipo rei) por um crime que foi necessário – no momento em que o herói

decide agir e seu ethos se manifesta, cada um de seus atos é inevitável para que o sentido de

si se mantenha. Então, o que é castigado é a própria existência do herói, sua própria

humanidade. E esta relação, em que há uma violência essencial, não simplesmente uma

violência contra um ato específico em um sentido policial, mas uma violência de um poder

fundador que se volta contra aquilo tudo que é o herói, é o elo entre deus e homem. A

linguagem do deus é a violência, é pelo sofrimento que ele dá sua presença, e nesta

conjugação entre conhecimento e violência temos a possibilidade de um ser humano mais

plenamente livre do que sem o confronto. A condição para que a relação violenta entre deus

e homem produza conhecimento é que o homem possa renunciar ao universo sensível, por

um lado, e que o deus aceite a presença do homem, de sua liberdade e grandeza, como parte

da ordem do mundo. Caso contrário, temos a falsificação do processo, um falso

111
conhecimento em que a relação entre homem e deus toma a forma perversa da tortura, de

simplesmente um poder essencialmente cruel tentando manter seu domínio sobre o herói.

Segundo Elaine Scarry:

Tortura, então, para retornar por um momento para o ponto de início, consiste de um ato
físico primário, a inflição de dor, e de um ato verbal primário, a interrogação. O ato verbal,
por seu turno, consiste de duas partes, “ a pergunta” e “a resposta”, cada uma com
conotações convencionais que a falsificam completamente. “A pergunta” é enganosamente
entendida como “o motivo”; “a resposta” é enganosamente entendida como traição ... Uma é
absolvição de responsabilidade, a outra é uma confissão de responsabilidade, as duas juntas
viram de cabeça para baixo a realidade moral da tortura. (SCARRY, 1985: 35)12

Quando Scarry diz que a resposta do torturado é uma traição, ela se refere tanto ao fato do

torturado estar “traindo” um companheiro quando fornece uma resposta ao interrogatório –

daí a idéia de culpabilidade do interrogado – quanto ao fato de, ao atender à exigência do

interrogador de uma confissão, a vítima reconhecer a justiça de sua pergunta. A lógica da

tortura é uma falsificação da verdade da situação, mas está longe de ser algo leviano. Há

uma dimensão teológica neste tipo de relação entre verdade e sofrimento, que é

representada nas peças de Sófocles, e isto por uma coincidência de necessidade cênica e das

transformações espirituais de sua época. Apenas no trágico esta relação entre um

sofrimento infligido e uma linguagem que deve surgir do sofrimento é mais franca, sem as

falsas premissas do processo de tortura, sem a falsificação de um poder que seja

simplesmente mantenedor de uma ordem. Mas para que este processo de obtenção de

conhecimento através do sofrimento seja verdadeiro, para que ele revele um poder

fundador, um poder permanente e universal, é necessário o gesto de renúncia. É em

Schelling, em sua X carta de Cartas sobre dogmatismo e criticismo, que podemos ler esta

condição. Segundo Schelling:

112
A potência divina é demasiado sublime para ser corrompida por lisonjas, seus heróis são
demasiado nobres para poderem ser salvos pela covardia. Aqui nada mais resta do que –
lutar e sucumbir
Mas tal luta também só é pensável através da arte trágica: não poderia tornar-se um sistema
de agir [e podemos identificar aqui uma das raízes da restrição de Benjamin ao poder
policial mantenedor da ordem,], já porque um tal sistema pressuporia uma raça de titãs e,
sem essa pressuposição, redundaria, sem dúvida, na maior ruína para a humanidade. Se
nossa espécie fosse destinada a ser torturada pelos terrores de um mundo invisível, não seria
mais fácil ser covarde diante da potência superior desse mundo, estremecer diante do menor
pensamento de liberdade, do que sucumbir lutando? Mas, de fato, se assim fosse, nos
atormentariam mais os pavores do mundo presente do que os terrores do mundo futuro. O
mesmo homem que mendigou sua existência no mundo supra-sensível torna-se, neste
mundo, um espírito de flagelo da humanidade, que se enfurece contra si mesmo e contra os
outros. Das humilhações daquele mundo, o domínio deste mundo deve desagravá-lo. Ao
despertar das beatitudes daquele mundo, ele retorna a este para fazer dele um inferno. E é
uma sorte se ele se embala nos braços daquele mundo para tornar-se, neste, uma criança
moral. (SCHELLING in FICHTE; SCHELLING, 1973: 209)

Para que haja substância ética, para que haja uma moralidade categórica, é necessário que o

sofrimento humano (no pensamento idealista causado e sempre referente à distância entre o

mundo finito do ser humano sensível e o infinito que ele anseia), seja uma expressão de sua

disposição em se entregar à alteridade, e abandonar este mundo sensível. A coincidência

entre aceitação do limite e, nesta aceitação, ainda assim manter o impulso em direção à

alteridade divina, é o que permite que o deus surja. Assim, o que esta coincidência produz é

aquilo que poderíamos chamar de conhecimento trágico.

3.4. Conhecimento trágico

A confissão de Édipo em Édipo em Colono, quando o herói conta sua história e

chega à conclusão de que foi mais vítima da necessidade que um agente consciente de seus

113
atos, e assim reconhece a grandeza divina, é uma destas instâncias de renúncia. Édipo trai

sua liberdade, mas nesta traição há o abandono da unilateralidade de sua posição e o

reconhecimento da alteridade do deus. O outro lado da moeda é que o deus é obrigado a

aceitar Édipo em seu seio, traindo-se também, ao se manifestar e quebrar a distância entre

deus e homem. Mas a base da reconciliação, assim como a base do conflito contra o deus,

está no homem, no ato da confissão, já não a admissão de uma culpa ontológica, como num

processo de tortura, mas a admissão da medida devida do ocorrido. Há uma dimensão de

traição no ato de confessar – a dor do Édipo velho o obriga a confessar aos anciãos sua

história, e nisso se desarma e se trai. A história de si, que tão ciosamente protege, é

guardada por uma razão concreta: o temor de que sua impureza motive sua morte ou

expulsão por outros. Quando Édipo confessa se abandona a uma solidão absoluta, em que

mesmo o último umbral, a possibilidade de uma aparência mínima de normalidade, foi

rompido. Mas é esta ruptura que permite sua redenção: é reconstruindo lucidamente sua

história – afirmando o conhecimento de sua experiência, a de um indivíduo que sobrevive

ao horror – que Édipo adquire de novo presença entre os homens. Sua fábula continua

terrível, mas após o sofrimento de uma vida, o velho pode dizer “cheguei aonde cheguei

nada sabendo”:

Para que seve a fama e o belo nome,


Se o que resulta é vão? Atenas (dizem)
É uma pólis divino-devotíssima.
Só ela abriga o forasteiro aflito,
Só ela sabe como defendê-lo.
Não sou merecedor do benefício?
Desalojado, agora me banis?
Meu nome atemoriza? Nem meus atos
Remotos amedrontam, nem meu corpo.
Os atos padeci, não cometi,

114
Se posso mencionar meus genitores,
que fomentam o atual pavor. Bem sei.
Nada macula minha natureza:
Reagi ao que sofri. Acaso fui
Agente ciente? Quem me diz que errei?
Cheguei aonde cheguei nada sabendo;
Sofri por quem, sabendo, me arruinou.
(SÓFOCLES, 2005: vv. 258-274 (tradução de Trajano Vieira)13

Édipo se declara inocente, imputa a culpa a seus agressores. No caso, a referência é ao

episódio do encontro com Laio, quando o cortejo do pai o ataca. Mas, considerando a

ambigüidade do discurso de Sófocles, estes agressores podem ser também os deuses, a

quem, como o pai, trata de confrontar agora.

O mundo se desfaz, o mundo se refaz – o sofrimento é uma das maneiras do

conhecimento. Daí o poder de sugestão que a catarse tem sobre a mente ocidental, tão

grande que obscurece seu sentido original, médico e religioso, de expurgo. O sentido

aristotélico da catarse é quase esquecido em nome daquilo que é o conhecimento trágico.

Para que as emoções excessivas sejam expurgadas é preciso que sejam primeiro animadas,

para que se possa superar o sofrimento – e, na tragédia, mais que isso, a própria morte – é

preciso sofrer. E devemos entender este aprendizado pela dor não da maneira pragmática

que a civilização moderna se acostumou a pensar: a experiência do sofrimento não se

constrói como um acúmulo, como em alguma espécie de relação econômica com a vida,

como se tanto trabalho/sofrimento gerasse tanto dinheiro/experiência. O conhecimento

trágico se refere a algo mais essencial, a intuição de que, ao sofrer – e em Sófocles estamos

falando de sofrimento concreto, corporal – tocamos o limite do negativo da morte, e assim

conseguimos vislumbrar alguma coisa nova, talvez a outra metade inacessível da condição

115
humana, a que diz respeito apenas aos deuses. É assim também que lemos a fala de

Filoctetes, buscando a terra e o céu ao mesmo tempo.

Pensemos que o torturado mais célebre do ciclo trágico grego, o Prometeu de

Ésquilo, em momento nenhum chega a conhecer algo novo, talvez porque possua

presciência, mas também porque, ao contrário de Édipo, não se entrega totalmente ao

negativo em que foi capturado. Prometeu não confessa, apenas relata o que aconteceu

consigo. E relatar não é confessar: a confissão implica em uma internalização da rendição a

um destino que Prometeu recusa. Embora sua experiência de sofrimento já aponte para

aquilo que estamos chamando de conhecimento trágico, será apenas com Sófocles e

Eurípides que teremos isto bem elaborado. Pois ao deus de Ésquilo é devida apenas

obediência. Qualquer outra relação, que permitisse experimentar o divino como algo

palpável, como um campo a ser conquistado, é vetada. Quando Sófocles representa a alma

pelo corpo uma forma é encontrada, e esta forma, embora acreditemos que tenha surgido de

razões práticas cênicas, tem como conseqüência uma nova visão. Para representar a parte

divina do humano foi necessário utilizar o corpo, e para representar um corpo de forma

mais intensa foi necessário atá-lo ao sofrimento. Alma é igual a corpo, que é igual a

sofrimento, ergo, alma é igual a sofrimento. Isto projeta a experiência humana em um

campo infernal, em que o sentido da vida, tanto do lado da experiência imanente e concreta

da vida quanto do lado da intuição do divino é marcado pela dor.

O deus de Ésquilo é a dura justiça necessária. Em Sófocles, no entanto, temos uma

leitura notadamente distinta da relação do homem com o deus. Os personagens de Sófocles

são essencialmente torturados pelo destino. Ele parece dramatizar o jogo de poder que se

constrói entre torturado e vítima: a voz do corpo aponta para o silêncio do sentido, tanto o

116
sentido cósmico do papel do homem na ordem das coisas quanto do sentido moral da razão

do sofrimento. Se a manifestação do deus, mais que a soberania divina esquiliana, é o

personalíssimo infligir sofrimento a um indivíduo, então estamos em um universo em que o

mal faz parte de uma certa ordem de manutenção da vida. Ao contrário de Jó, personagem

quase trágico, o herói de Sófocles não aceita pacificamente a manifestação divina. O deus

existe e exerce seu poder, mas este poder sem que o deus se aproxime do homem é vazio: é

necessária a reconciliação para que o poder soberano do divino readquira significado.

Quando em Colono Édipo declara sua inocência, quando diz que “Os atos padeci, não

cometi”, este perdão é obtido mais através da própria consciência, de uma avaliação lúcida

de seus atos, e não de um dom divino, de uma epifania ou de uma purificação – é Édipo que

se autopurifica e declara inocente, não o ritual, não o deus. Sua “inocência” é uma afronta

ao deus, em parte porque ela é parcial – Édipo continua sendo culpado de hybris, de ter

suposto que sua razão pode se igualar à do deus – em parte porque esta liberação do erro é

autoimputada. Nesta reafirmação da liberdade de si que é também traição de si, que

reconhece o poder do deus mas exige que o deus, como Édipo, se torne outro e supere a

distância, há o caminho para a reconciliação. A fronteira da mortalidade ainda vige, mas o

conhecimento trágico é exatamente o processo espiritual pelo qual esta fronteira começa a

ser devassada. A nova fronteira, baseada não simplesmente no reconhecimento do divino,

mas no desejo de conhecer sua natureza, está sendo desenhada na tragédia. E esta natureza

em seu efeito sobre o homem, o mal divino que é a força do tempo, da biologia, do frágil

tecido do homem, não é plena e não corresponde à dignidade desta alma e pensamento.

Assim podemos entender como a representação da alma pelo corpo é simultaneamente

processo de encarnação e de espiritualização: ele dá uma forma corporal à alma e a liga

117
indissoluvelmente a um corpo, mas paralelamente estabelece a diferença abismal entre alma

e corpo, pois no mais agudo da dor ainda há algo que resiste à dissolução, e este algo brilha

com mais força exatamente quando a voz do corpo agonizante obriga a voz da alma a se

calar. Nas palavras de Scarry:

Pois o que o processo de tortura faz é dividir o ser humano em dois, para tornar enfática
aquela distinção sempre presente, mas, a não ser no caso extremo de doença e morte,
apenas latente entre uma consciência e um corpo, entre um “eu” e “meu corpo” ... [tortura é
como a morte] pois na morte o corpo está empaticamente presente enquanto aquela outra
parte elusiva representada pela voz está ausente de maneira tão alarmante que até céus são
criados para explicar aonde foi. (SCARRY, 1985: 49)14

É como se os personagens de Sófocles tivessem, através do sofrimento, um

vislumbre da estrutura “mitológica” em que o poder da tortura (e do divino sobre o homem)

se baseia: o castigo é motivado, o sofrimento é merecido/ o interrogador é inocente, quem

confessa é culpado. Neste vislumbre o herói trágico percebe o limite de realidade da

relação entre homem e deus. A conclusão possível, que só se manifesta no vazio absoluto

do divino em Eurípides, é que a relação entre homem e divino enquanto mantida na

distância inconciliada é uma falsificação. A verdade desta relação só pode surgir na

reconciliação, na renúncia mútua à distância. Os personagens de Sófocles são aqueles que

se confrontam com a distância e exigem sua superação. Seu prêmio é conquistado por conta

própria: o conhecimento de que o ser humano é frágil, mas que nesta fragilidade existe

grandeza heróica, a grandeza de retornar a um lugar onde a agonia não seja o sentido

unívoco do sofrido, enfim, uma consciência de si – de sua indestrutibilidade, digamos, e

nisto Ésquilo já contribui. Este ir ao inferno e retornar, tocar o mal e a morte e ainda assim

permanecer, é um tema constante de toda a cultura grega, em Hércules, Orfeu, Odisseu. A

118
novidade trágica é imaginar que mesmo o corpo humano devastado, ou seja, o corpo do

homem real em oposição ao corpo do mito arcaico, é capaz deste feito. E aqui temos a

semente espiritual da liberdade de pensamento e da ambição ilimitada da razão humana que

levará à filosofia. Talvez este seja o sentido das máscaras de Górgonas que decoravam os

teatros: conhece-te a ti mesmo: conhece-nos. E retorna.

1
Na tradução de Kury (SÓFOCLES , 2002: vv 7885)

Procede como te aprouver; de qualquer modo/ Hei de enterrá-lo e será belo para mim / morrer cumprindo
esse dever: repousarei/ ao lado dele, amada por quem tanto amei/ e santo é o meu delito, pois terei de amar /
aos mortos muito, muito tempo mais que aos vivos./ Eu jazerei eternamente sob a terra
E tu, se queres, foge à lei mais cara aos deuses.
2
Na tradução de Kury (SÓFOCLES In ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPIDES, 2007: vv 1175-1186)
OR Ah! Dize-me senhora: teu nome é Electra?
El Este é o nome muito infeliz que sou...
OR Lamento imensamente tanta desventura!...
EL Será mesmo de mim que te condóis, senhor?
OR Devem ser grandes tuas penas. Sinto muito...
EL Tuas palavras cabem-me como a ninguém.
OR Destino amargo!... Sem esposo... Desditosa...
EL Por que te mostras comovido, forasteiro?
OR Não tinha consciência de meus próprios males...
EL E como percebeste isto neste instante?
OR Vendo teus sofrimentos, tantos e tão grandes

Na tradução de Jebb (SÓFOCLES, 1894a)

Or Is this the illustrious form of Electra?


El It is, though in a very wretched state.
Or What pity, then, for this miserable fortune!
El Surely, stranger, you are not saddened like this on my account?
Or O frame dishonorably, godlessly wasted!
El Those ills of which you speak, stranger, are none other's than mine.
Or Ah, pity for your unwed, ill-fated life!
El Why, stranger, do you stare and grieve in this way?
Or How I knew nothing, it seems, of my own sorrows!
El What that has been said made you realize this?
Or It was the sight of you conspicuous in your many sufferings.

3
Na tradução de Kury (SÓFOCLES In ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPIDES, 2007: vv 1218-36)

119
(Orestes tira gentilmente a urna das mãos de Electra)
EL Então onde é a tumba do infeliz Orestes?
OR Em parte alguma; os vivos não têm sepultura.
OR Que me dizes, menino?
OR Digo-te a verdade.
EL Então ele ainda vive?
OR Não pareço vivo?
EL És ele?
OR Sou. Observa bem este sinete,
Outrora de meu pai, e dize que não sou!
EL Bendito dia!
OR Mais ainda para mim!
EL É esta tua voz?
OR Só esta escutarás!
EL (abraçando Orestes) Tenho-te então nos braços?
OR Terás para sempre!
EL Amigas minhas! Eis Orestes! Contemplai-o!
Fingindo-se de morto, ei-lo afinal de volta,
vivo e saudável, graças a seu fingimento
CO Estamos vendo, filha, e por esta ventura
Choramos incontidas lágrimas de júbilo!
EL Filho de um pai extremamente amado,
Chegaste aqui de volta finalmente!
Vieste, achaste e viste quem querias!
OR Este era o meu desejo, mas guarda silêncio
EL Por quê?
OR Calemos ambos; alguém pode ouvir-nos

Na tradução de Jebb (SÓFOCLES, 1894: 1218-36)

EL And where is that sufferer's tomb?


OR There is none; the living have no tomb.
EL What are you saying, boy?
OR Nothing that is untrue.
EL The man is alive?
OR If there is life in me.
EL What? Are you he?
OR Look at this signet, once our father's, and know if I speak the truth.
EL O blissful day!
OR Blissful, I am your witness!
EL Is this your voice?
OR Hear it from no other.
EL Do I hold you in my arms?
OR May you hold me so always hereafter!
EL Ah, dear friends and fellow-citizens, see Orestes here, who was dead by design, and now by design
has come safely home!
CH We see him, daughter, and for this happy turn of fortune a tear of joy trickles from our eyes.
EL O seed, seed of the person to me most dear, you have just now come, you have come, and have found
and seen her whom your heart desired!
OR I am with you; but keep silence and wait.
EL What do you mean?
OR It is better to be silent so that no one inside may hear.

120
4
Na tradução de E. P. Coleridge (EURÍPIDES, 1938: vv 576-598)

VElho Then do you hesitate to embrace your dearest one?


EL Not any longer, old man; for my heart is persuaded by your tokens. O you who have appeared at last,
I hold you, beyond all hope.
OR And you are held by me at last.
EL I never expected it.
OR or did I hope.
EL Are you that one?
OR Yes, your one ally. If I draw back the cast of the net I am aiming for—but I have confidence; or else
we must no longer believe in gods, if wrong is to be victorious over right.
OR Well; I have the loving pleasures of your greeting and later I will give them back in turn.

5
Tradução própria do original em inglês:

We can deduce something of the actual gestures used by Greek orators. Once again, Aeschines is valuable.
His speeches, crammed with personal invective, describe the behaviour of his opponents. He tells us that it
was a typical gesture of Demosthenes to put his hand to his forehead. This was also a common gesture of the
stage. Elsewhere, Aeschines describes his rival as ‘twirling around’. This suggests an animated delivery
[hypokrisis], and lively physical accompaniment. From Demosthenes speech against Theokrines, it appears
that it was perfectly in order for de defendant to throw himself at his opponents feet, a theatrical touch still
permissible in the lawcourts

6
Na tradução de Kury (SÓFOCLES, 2002, Édipo em Colono: vv 1300-1324)

Não deves admirar-te se estou abusando


E se prolongo esta conversa na presença
Destas meninas que reencontrei agora,
Quando já não tinha esperança de revê-las.
Sei que minha alegria em relação a elas
Me vem de ti, de mais ninguém, pois as salvaste,
Apenas tu entre os mortais; suplico aos deuses
Que te protejam e ao teu povo como quero,
Pois entre vós, acima de todos os homens,
Encontrei piedade, retidão, e lábios
Avessos à mentira; sei bem o que digo
Quando te recompenso, embora com palavras,
Pois recebi de ti, Teseu, tudo que tenho,
E de nenhum outro mortal. Peço-te, rei,
Que me estendas agora a tua mão direita;
Quero apertá-la, e se for lícito desejo
Beijar-te a fronte... Mas me excedo na ousadia!
Como, sendo o infeliz que sou, posso atrever-me
A impor-te contacto com um homem cujo corpo
Abriga a mácula de todos os pecados?
Não vou tocar-te, nem permito que me toques,
Somente quem passou por provações iguais

121
Pode participar das minhas; cumprimento-te
De onde me encontro e peço-te que no futuro
Me ajudes lealmente como até agora.

Na tradução de Jebb (SÓFOCLES, 1889b: vv. 1119-1138)

Stranger, do not be amazed at my persistence, if I prolong my words to my children, found again beyond my
hope. I well know that my present joy in them has come to me from you, and you alone, for you—and not any
other mortal—have rescued them. May the gods grant to you my wish, both to you yourself and to this land;
for among you, above all mankind, I have found piety, the spirit of decency, and lips that tell no lie. I know
these things, and I repay them with these words; for what I have, I have through you, and no one else. Stretch
out to me your right hand, lord, that I may touch it; and if it is right, let me kiss your cheek. But what am I
saying? Wretched as I have become, how could I wish you to touch a man in whom every stain of evils has
made its dwelling? I will not touch you—nor will I allow it, if you do consent. They alone, who know them,
can share these burdens. Receive my greeting where you stand, and in the future too give me your righteous
care, as you have given it up to this hour.
7
Tradução própria do original em inglês:

In the internal relationship of acting area to auditorium, we can discern a historical shift upon the introduction
of the skênê or façade. Initially there was no stage wall, and the audience gathered around a dancing space
which did not in any way purpot to mirror reality. Such a performance would be termed by Ubersfeld as ludus
(festive enactement) rather than mimesis (imitation of reality) within an acting space which approximates to
her ‘platform’ model. The skênê created a hidden off-stage area and the consequent illusion that the visible
action extended where the audience could not see it.
8
Tradução própria do original em inglês:

In the Greek variant of this combination, certain local societal associations appear. Greek society was,
primarily, an open-air society. Meetings, assemblies, courts, tribunals, business dealings, and religious
ceremonies commonly took place outdoors, in the full light of the sun. Greek slept on their roofs (as they still
tend to do) and carried on a good deal of their private life in the streets. Conversely, indoors is often tainted
with furtiveness and suspicion. What cannot be openly seen is potentially dangerous.
This feeling washes over the plays. What is good, honest, and open tends to happen outside; what is sly,
furtive, and malicious, inside. In Agamemnon the palace is a place of festering evil, that the king enters to
meet his doom. In Antigone the heroine, seeking conversation with her sister, leads Ismene ‘outside the
courtyard’, rather then, as we would, to some private and protected place indoors. In Medea, the house is a
demonic place from which Medea’s voice is first heard threatening and which ultimately sucks her children
inside to their destruction

9
Na versão de Jebb (SÓFOCLES, 1892: vv. 1275-1278)

And you, maiden, do not be left at the house. You have seen immense, shocking death, with sorrows great in
number and strange. And in all of them there is nothing that is not Zeus.
10
To witness the moment when pain causes a reversion to the pre-language of cries and groans is to witness
the destruction of language, but conversely, to be present when a person moves up out of that pre-language
and projects the facts of sentiense into speech is almost to have been permited to be present at the birth of
language itself.
11
Na versão de Jebb (SÓFOCLES, 1898: vv 812-820)

122
FI Up there!
NE What is this new delirium? Why do you gaze at the dome above us?
FI Let me go, let me go!
NE Where will you go, if I do so?
FI Let me go, I say!
NE I will not.
FI You will kill me, if you touch me further.
NE There, then, I release you—if in fact you believe it is for the better.
FI Wide Earth, embrace me now on the verge of death!
This pain no longer lets me stand up.

12
Tradução própria do original em inglês:

Torture, then, to return for a moment to the starting point, consist of a primary physical act, the infliction of
pain, and a primary verbal act, the interrogation. The verbal act, in turn, consists of two parts, “the question”
and “the answer”, each with conventional connotations that wholly falsify it. “The question” is mistakenly
understood to be “the motive”; “the answer” is mistakenly understood to be betrayal … The one is absolution
of responsibility,; the other is a confessing of responsibility, the two together turn the moral reality of torture
upside down.
13
Na tradução de Kury (SÓFOCLES, 2002, Édipo em Colono: vv. 264-286)

Que bem, então, resulta da reputação


E glória, se tudo termina em vãs palavras?
Disseram-nos que Atenas era uma cidade
Temente aos deuses mais que todas, a única
Pronta a salvar um forasteiro ameaçado,
A única também capaz de protegê-lo.
Onde estará agora esta disposição
Quando se trata de mim, se pouco depois
De me haveres persuadido a abandonar
O assento, me expulsais assim, apavorados
Apenas por ouvir meu nome? Não agistes
Por causa de minha pessoa e de meus atos.
Se eu pude falar agora de meu pai
E minha mãe, perceberíeis que meus atos
Foram de fato muito mais sofridos
Que cometidos, e apenas por causa deles
Me escorraçais agora cheios de terror
Para longe de vós (sei disso muito bem).
Seria eu, então, um criminoso nato,
Eu, que somente reagi a uma ofensa?
Ainda que tivesse agido a sangue frio
Não poderíeis chamar-me de criminoso.
Mas, no meu caso, cheguei até onde fui
Sem perceber; meus agressores, ao contrário,
Queriam destruir-me conscientemente.

Na tradução de Jebb (SÓFOCLES, 1894b: vv. 258-274)

123
What help comes, then, of repute or fair fame, if it ends in idle breath; seeing that Athens, as men say, is god-
fearing beyond all, and alone has the power to shelter the outraged stranger, and alone the power to help him?
And where are these things for me, when, after making me rise up from this rocky seat, you then drive me
from the land, afraid of my name alone? Not, surely, afraid of my person or of my acts; since my acts, at least,
have been in suffering rather than doing—if I must mention the tale of my mother and my father, because of
which you fear me. That know I full well. And yet how was I innately evil? I, who was merely requiting a
wrong, so that, had I been acting with knowledge, even then I could not be accounted evil. But, as it was, all
unknowing I went where I went—while they who wronged me knowingly sought my ruin.

14
Tradução própria do original em inglês:

For what the process of torture does is to split the human being into two, to make emphatic the ever present,
but, except in the extremity of sickness and death, only latent distinction between a self and a body, between a
“me” and “my body” … [torture is like death] for in death the body is emphatically present while that more
elusive part represented by the voice is so alarmingly absent that heavens are created to explain its
whereabouts.

124
4: EURÍPIDES

4.1. A ambigüidade Eurípides

A imagem de Eurípides ficou marcada para nós como a do autor ambíguo que ao

mesmo tempo mantém e destrói a tragédia. A leitura moderna passa muito pela posição de

Nietzsche, que considera a tragédia de Eurípides como o fim da era trágica dos gregos: já

não a grandeza da tensão trágica, mas um tipo de arte que estaria tão próxima do espírito da

filosofia platônica que já não poderíamos falar de um espírito trágico. A contra-face desta

leitura é a posição de Eurípides na antiguidade e mesmo nos ciclos trágicos modernos: foi o

autor mais popular entre os pósteros da Atenas clássica, e através de Sêneca influenciou a

tragédia de Shakespeare. Racine tem uma Fedra, e a mente presa em um pesadelo dos anti-

heróis shakespeareanos típicos, como Macbeth, Hamlet ou Lear, está muito mais próxima

de Medéia e de Hércules do que de Édipo ou Orestes. Então nesta imagem se confundem ao

mesmo tempo o traidor do espírito trágico e o autor cuja leitura foi responsável pela

renovação do trágico. Talvez aqui nós possamos nos referir à distinção entre uma leitura

colada a um projeto filosófico e uma outra que se cola a um projeto estético. Aquela

percebe a obra de Eurípides como deletéria, um vacilo que quase escapa da espécie, da

idéia de trágico, e que ajuda a fundar a metafísica, este grande pecado do Ocidente. A

leitura estética, a dos próprios autores, e, provavelmente, a do público, percebe em vez

disso paixão e êxtase, acima de tudo uma imagem do homem transfigurada pela emoção, e

utiliza o legado desta imagem para construir a tragédia moderna.

125
Esta é a imagem de Eurípides entre os que vieram depois, entre os próprios gregos a

ambigüidade do autor não é muito distinta. Aristóteles chama-o de “o mais trágico”,

provavelmente por entender que na obra de Eurípides o efeito catártico é atingido de forma

mais direta e intensa. Isto aponta para o fato de que, provavelmente para a Atenas que

estava construindo a filosofia e passando pela experiência limite da guerra do Peloponeso,

os valores representados em Ésquilo e Sófocles já não diziam tanto quanto há alguns anos.

É óbvio para Aristóteles que as peças de Eurípides são imperfeitas, no sentido de que o tipo

de artesanato sutil que vemos em Sófocles e o peso orgânico das obras de Ésquilo estão

completamente ausentes do corpo da obra de Eurípides. Suas peças são compostas de

episódios fragmentários, sem muita preocupação com a concatenação entre causas e efeitos

que é um dos encantos até hoje na obra dos dois outros tragediógrafos. Eurípides, por outro

lado, se preocupa muito mais em representar aquilo que poderíamos chamar

anacronicamente de dimensão psicológica dos personagens, suas motivações e paixões.

O outro comentador autorizado da obra de Eurípides é Aristófanes. O retrato

pintado pelo comediógrafo, um Eurípides que representa a fraqueza de mulheres e de

mendigos em vez da grandeza heróica que marca a obra de Ésquilo, é o índice de como a

obra de Eurípides era percebida por uma parte mais conservadora da sociedade ateniense.

Eurípides teria ensinado o povo a falar em suas peças, mas, ao custo de ter enfraquecido sua

têmpera. Se Os sete chefes contra Tebas de Ésquilo é uma peça cheia de Ares, cheia de

emoção marcial e celebração de um páthos guerreiro, As fenícias, que trata do mesmo tema,

ou As troianas, que representa a situação das mulheres troianas escravizadas após a queda

da cidade, são peças antibélicas, e, como Aristófanes acusa Eurípides, peças femininas, de

lamento feminino pela guerra. Assim, em Aristóteles e Aristófanes podemos encontrar o

126
desenho essencial daquilo que incomodava aos contemporâneos do autor trágico. No

filósofo, há a reclamação de que Eurípides parece abdicar de uma espécie de ilusão cênica –

pois a sua fabulação, por ser às vezes incoerente e mal concatenada, obriga o espectador

todo instante a se lembrar de que está diante de uma obra de artifício, que nada daquilo é

verdade, ou então, o que é pior, que qualquer coisa é possível, que o milagre e o acaso

fazem parte da experiência representada. Quando Aristóteles acusa a inverossimilhança da

aparição de Egito em Medéia, é isto que está em jogo, a exigência do filósofo de que o

círculo mágico da representação teatral seja mimético de uma maneira conseqüente, que os

mecanismos de causa e efeito que constroem a realidade concreta da vida estejam presentes

também nas peças. A acusação de Aristófanes, da “feminilidade” e da miséria humana dos

personagens de Eurípides, estranhamente tem um sentido quase inverso da reclamação de

Aristóteles. O protesto de Aristófanes contra o tragediógrafo é de que os personagens de

Eurípedes são excessivamente banais, que suas questões são questões menores, ou ao

menos pouco adequadas a um certo pudor heróico. A “garrafinha” que o personagem de

Ésquilo põe na conclusão de todas as falas do personagem de Eurípides é exatamente a

medida desta banalidade

EU “Egito, segundo a tradição comum, alçando as velas para ir a Argos com seus
cinqüenta filhos...”
ES ... perdeu sua garrafinha.
EU Que significa esta garrafinha? Você se arrependerá por isto!
DIÔNISO Recite para ele outro prólogo, Eurípides, queremos ouvir mais.
EU “Diôniso que, armado com o tirso e coberto de peles de veadinhos, dança no cume
do Parnaso à luz das tochas...”
ES ... e perdeu sua garrafinha.
EU Para o golpe, eis aqui um prólogo ao qual ele não o poderá aplicar: “Não existe
homem algum feliz em tudo; um oriundo de uma ilustre origem, não tem fortuna;
outro de nascimento obscuro...”
ES ... perdeu sua garrafinha.
DI Eurípides!

127
ARISTÓFANES, As rãs, 2004: pp 258-259 (trad. Mário da Gama Kury)1

Mas a banalidade algo burguesa dos personagens de Eurípides está relacionada ao

desejo de representar homens, mulheres e paixões reais. Miséria humana, medo, estupidez,

são sentimentos bastante comuns nas peças de Eurípides, e marcam a diferença deste autor

em relação aos outros dois tragediógrafos. A prescrição aristotélica, de que o personagem

trágico não deve ser nem muito superior nem muito inferior ao homem normal, serve muito

bem para caracterizar as peças de Eurípides, mas nem tanto a têmpera heróica de Prometeu,

Ájax ou Orestes, ou a crueldade absoluta de Clitemnestra, ou a firmeza moral de Filoctetes

e Antígona, ou a coragem espiritual de Édipo. Seus personagens são mais verossímeis, são

homens conforme são de verdade, como Aristóteles ressalta na Arte poética:

A seguir, supondo que a acusação seja “Isto não é verdade”, pode-se respondê-la dizendo
“Mas talvez pudesse ser”, como Sófocles, que disse que retratava as pessoas como deveriam
ser e Eurípides como elas eram. (Poetica, XX, 1460b; ARISTÓTELES, 1932, v. 23)2

Quando Eurípides abdica desta figuração, ao abandonar a representação de um caráter

maior que a vida, e, ao contrário, insiste em almas excessivamente cheias de problemas e

fraquezas, ambíguas e demasiadamente humanas, Aristófanes enxerga um sinal de

decadência, de um poeta que recusa seu papel de pedagogo e investe em uma mimese

distinta da que vinha sendo feita até então. Os personagens de Eurípides são mais

verossímeis em um sentido realista (e é deste realismo excessivo que Aristófanes reclama),

mas são menos se pensarmos na missão tradicional da tragédia ática, o fortalecimento do

espírito e a construção da virtude. Eurípides passa a representar homens e não homens e

deuses, como Ésquilo e Sófocles, e nisto há a ruptura com uma tradição religiosa e ética

128
que Aristófanes não consegue perdoar. Acima de tudo, há a recusa do poeta de um papel de

vate, de voz do invisível e antena do deus, como Platão caracteriza o poeta no Íon, mas

recusa também em declarar que este invisível na verdade é cognoscível, como faria a

filosofia. Eurípedes não é mais um vate e não é ainda um filósofo, e esta recusa dupla é que

define seu lugar na ordem trágica. Jaeger vai descrevê-lo como um autor entre dois

mundos, que nem concorda com os valores tradicionais em que a tragédia se formou nem

adere plenamente ao racionalismo de que a filosofia platônica seria o grande furto. Segundo

Jaeger:

Eurípides é o último grande poeta grego no sentido antigo da palavra. Mas também ele tem
um pé distante daquele em que a tragédia grega nasceu. A antiguidade o chamou de filósofo
do palco. Na verdade pertence a dois mundos. Nós o situamos ainda no mundo antigo, que
estava destinado a derrubar, mas que brilha mais uma vez na sua obra com o mais alto
esplendor. A poesia conserva ainda para ele o antigo papel de guia. Mas abre o caminho ao
novo espírito que a arredaria da sua posição tradicional. É um daqueles grandes paradoxos
nos quais a história se compraz. (JAEGER, 1995: 396)

É um homem da crítica do humano, mas não um homem que proponha um novo humano. É

assim que tentaremos ler a sua obra a seguir.

4.2. O que se imita

O que é representado nas obras de Eurípides? A resposta imediata é a paixão

humana. As paixões humanas, já não ligadas a uma força exterior ao homem, como na

visão tradicional que ao menos Ésquilo adota plenamente, é o que move e brilha mais forte

nas tragédias de Eurípides. Nós vamos retornar a isso mais à frente, mas por enquanto

129
vamos concordar que a mimese euripidiana tem a pretensão de representar o mundo

sentimental e psicológico dos personagens. Este é o plano principal da ação trágica, é nos

sentimentos dos personagens, em suas decisões e medos, que encontramos a base de suas

ações. Tentamos até aqui demonstrar que na tragédia há paulatinamente a possibilidade

formal de representar este homem interior, primeiro na indestrutibilidade esquiliana e em

seguida na maneira como esta indestrutibilidade se torna presença agônica de uma alma e

de um corpo em Sófocles. Nos dois casos, este homem interior que vai surgindo se põe

necessariamente em relação a uma força violenta, a manifestação do deus, que limita e

destrói os esforços humanos. Nos dois tragediógrafos há também a pretensão de um

absoluto moral nesta manifestação, e temos já o indício de uma autonomia moral humana.

O que Eurípides vai fazer é utilizar estes temas, mas estabelecendo uma mudança

fundamental: em sua literatura o lugar do deus é um lugar vazio. E neste vazio do divino,

que não é simplesmente o retraimento de Ésquilo e Sófocles, mas de fato uma ausência de

presença divina atuando sobre o mundo. Não é que em Eurípedes os deuses sejam cruéis

com os homens, eles simplesmente não existem ou não se importam. Nesta ausência existe

a possibilidade do humano surgir como motor da ação, mas sempre de uma forma

destrutiva e problemática. Pois se a razão divina é unívoca, a razão humana é múltipla, e se

a justiça dos deuses, embora cruel, é um fundo de sentido que impede o absurdo, esta

garantia não é dada em um mundo totalmente imanente.

Abandonada a si mesma, a alma humana, já de saída solitária, torna-se um lugar de

pesadelo. Se o deus nos outros tragediógrafos é uma maneira de se aproximar do mal da

existência e de pensar o lugar do negativo em uma economia da vida, quando o deus deixa

de existir como um pressuposto ético e religioso para a ação humana, este mal é

130
internalizado para o círculo dos homens e seus desejos e razões. É preciso deixar claro que

o que estamos dizendo não implica necessariamente em um ateísmo de Eurípides. Em suas

peças há a presença formal de deuses, e em uma obra como Hipólito ou As Bacantes as

divindades são ainda os motores por trás da destruição humana. Em As troianas o grande

plano da ação é também definido pelo diálogo entre Posidon e Atena, e em As fenícias é o

elemento mágico da maldição paterna que justifica a ruína dos labdácidas. Mas em todos

estes casos, o que é representado não é a relação dos homens com estas potências, mas sim

a relação dos homens entre si: o que importa para Eurípides não é mostrar a imposição do

deus sobre o homem, como no caso de Édipo ou do Orestes da Orestéia, não a relação deste

homem com o absoluto devastador da divindade, mas sim como funciona a alma humana

em certas situações limites, como o homem se move, e discute, e age quando está diante de

coisas terríveis. Ou seja, quando Eurípides representa o mal, suas peças não procuram tocar

o humano sob o jugo da divindade, mas sim tocar o humano sob o jugo de si mesmo. Isto

significa que suas peças são geralmente estudos de situações: como um certo homem ou

mulher agem em tal situação, o que passa pela cabeça de tal personagem se perde um filho

ou é ameaçado de morte, até que ponto um herói é realmente heróico se confrontado com o

medo e a dor, o que passa pela mente de um homem em uma situação difícil. Estas

situações, que em Ésquilo e Sófocles são maneiras de projetar o divino no homem, se

tornam em Eurípides o puro jogo de possibilidades morais e afetivas. Vem daí o aspecto

fragmentário e episódico de suas obras, em que a ação surge destes “comos”, e não do

império de uma força inumana encarnada em uma causalidade cega. A exceção a este

comentário seria As bacantes, em que o divino tem de fato uma importância excepcional,

131
mas fora este caso, suas peças representam som e fúria para que o homem, exclusivamente,

e não o deus, surja com mais força.

Uma das conseqüências deste “humanismo” euripidiana é a baixa estima com que o

autor foi considerado durante o idealismo. A tragédia de Hegel e de Hölderlin é a de

Ésquilo e Sófocles, e Eurípides entra como um termo estranho, ligado em praticamente toda

a tradição filosófica do século XIX, de Schelling a Nietzsche, como o autor que personifica

a decadência do espírito clássico grego. Isto se liga especialmente ao quanto o absoluto da

decisão trágica, que leva ao conflito do herói com a divindade, é tornado uma coisa

multifacetada, já não mediado pelo outro absoluto da divindade mas sim pelos vários

pontos de vista das paixões dos personagens que se confrontam. Talvez a maneira de

apresentarmos isto adequadamente seja pensar que o silêncio divino que Ésquilo e Sófocles

utilizam para se contrapor à ação humana, o incognoscível e inumano que constrói a

alteridade do homem, é preenchido por Eurípides. Seus deuses cessam de ser aquilo que

está distante e que serve de campo negativo ao homem e se tornam seres humanos, ao

menos em termos de motivação, e na sua maneira de agir, deixam de ser um outro em

relação ao humano. O sentido desta decadência varia de autor para autor, mas de um modo

geral ela se relaciona ao surgimento da metafísica como uma perda de espontaneidade,

quando o vigor de uma substância ética, para usar o termo de Hegel, que se manifestava na

vida concreta e na arte, passa a se manifestar na filosofia. Em Hegel isto significa um amor

vazio do pensamento pelo pensamento, quando os conflitos são retirados de seu solo vital, a

vida concreta da ação, e se tornam abstrações. Se identificamos os valores de Eurípides

com aqueles dos sofistas, o comentário de Hegel em sua Filosofia da história sobre a

sofística se aplica também à arte de Eurípides:

132
Paralelamente ao progresso no desenvolvimento da arte religiosa e da situação política,
progride o fortalecimento do inimigo destruidor: o pensamento. E na época da Guerra do
Peloponeso a ciência já estava bastante desenvolvida. Com os sofistas, teve início a reflexão
sobre o existente e o raciocínio. Exatamente essa atividade e ocupação, que vimos entre os
gregos na vida prática e no exercício da arte, mostra-se também, entre eles, nas oscilações
das representações. Assim como as coisas sensíveis da atividade humana são alteradas,
processadas e deturpadas, também o conteúdo do espírito, o significado, o sabido, oscila,
tornando-se objeto de atividade, esta se transforma em um interesse em si. A reviravolta do
pensamento e o prazer interior nele contido, esse jogo sem interesses, tornam-se o próprio
interesse. ... Mas essa formação do pensamento tornou-se o meio de impor intenções e
interesses ao povo. O sofista experiente sabia como manipular um conceito para este ou
aquele fim; assim, estavam abertas todas as portas para as paixões. Um dos princípios
supremos dos sofistas era: “O homem é a medida de todas as coisas”. Também aqui, como
em todos os aforismos deste gênero, existe ambigüidade, ou seja, o homem pode ser o
espírito em sua profundidade e veracidade, ou também em suas arbitrariedades e interesses
especiais. Os sofistas referiam-se apenas aos homens como subjetivos; com isso,
explicavam a arbitrariedade pelo princípio daquilo que era justo e apontavam o que era útil
ao sujeito como a última razão determinante. (HEGEL, 1999: 227)

Paradoxalmente, é na obra em que o deus está ausente que o milagre acontece com

mais facilidade. Se pensamos na maneira como Sófocles e Ésquilo encadeiam a ação de

suas peças, percebemos que todo seu esforço se volta para construir situações em que a

ação humana se misture com a direção divina. É preciso para que os deuses se manifestem

que sua influência tenha um reflexo imanente: em Ájax, Atena pune Ájax, mas sua hybris é

provocada pela decisão dos gregos em entregar as armas de Aquiles a Ulisses, a morte de

Clitemnestra em As coéforas é uma exigência do oráculo, mas é justificada no plano

mundano pelo muito humano desejo de vingança de Orestes, o Édipo de Édipo rei é o

homem tocado pelo deus, mas é sua reação soberana a uma situação adversa, a praga de

Tebas, que põe a ação em andamento, a derrota dos persas em Os persas é um decreto

divino, mas é a ambição de Xerxes que leva seu exército a ser destruído. Em todos estes

casos há um reflexo entre o plano divino e aquele da decisão humana. Frances Cornford,

em seu livro que desenha um Tucídides trágico, se refere a este processo como uma

evolução natural do pensamento religioso grego: primeiro os gregos representam este

133
homem interior como tomado por demônios, os sentimentos divinizados como o medo, o

amor, o orgulho, etc (que são deuses de fato e não alegorias), para, no início da era trágica

termos estas forças sobrenaturais em um equilíbrio delicado com o universo imanente de

causa, efeito e volição. Nas palavras de Cornford, em seu Thucydides mythistoricus:

A teoria envolve um equilíbrio tão delicado entre natural e sobrehumano, um


comprometimento tão fino entre fé e conhecimento, que não pode ser mantido por muito
tempo. A balança precisa se inclinar, e não há dúvida de qual prato vai cair. O sobrenatural
precisa se dissolver e retroceder. Os deuses precisam render de novo ao homem a vida com
que, como ele lentamente aprende, ele a seu próprio custo profusamente lhes doou. A
natureza humana entra de novo em seu domínio alienado, consciente de si, e de nada mais
que um mundo material que está centrado ao seu redor. Desejo e esperança precisam
resignar de sua forma-sonho, e tudo que restará dele [o sobrenatural] é um movimento
acalorado do sangue, a excitação de um nervo que pulsa (CORNFORD, 1907: 236-37).3

A referência a “forma-sonho” é uma ressonância do apolíneo nietzscheano, e aponta para a

justificativa da ojeriza do alemão por Eurípedes: nele o brilho gratuito dos olímpicos estaria

completamente apagado em benefício do mundo da seriedade histórica. Pois o reflexo do

divino no humano já não é uma cadeia necessária como em Sófocles e Ésquilo, mas um

elemento formal que Eurípides mantém da forma trágica, sem que tenha muitas

conseqüências para a ação. Ou ainda: aquilo que os personagens fazem nas peças de

Eurípides se refere apenas ao mundo dos homens, e muito pouco ao mundo dos deuses. É

Afrodite que motiva a paixão de Fedra em Hipólito, mas sua morte e a de Hipólito nascem

de um mecanismo concreto de vergonha e ciúmes, e as deusas ali já não são a força cega

que destrói Édipo e Filoctetes ou o poder puro de Zeus. Suas motivações são tão

cognoscíveis e sua ação tão direta quanto as de Iago de Otelo. Nas palavras de Lesky:

134
Tanto na cena final que acabamos de esboçar, como no prólogo pronunciado por Afrodite,
encontramos passos que fazem aparecer todo o conflito como uma disputa entre as duas
deusas, pela categoria e pela honra. Como podemos explicar isto precisamente neste drama,
que nos parece modelado a partir do espaço humano? Eurípides não acreditava na existência
dessas divindades, e as cenas em que aparecem estão separadas por um abismo (chamado
sofística) das cenas dos deuses na Orestéia ou da cena inicial de Ájax, com Atena. (LESKY,
1995: 398)

O deus humanizado, no sentido de ser figurado como um personagem de motivações

compreensíveis do universo de valores dos homens, está ausente nos outros tragediógrafos,

e é um traço específico de Eurípides. É nestes termos que devemos entender, então, o vazio

do deus em sua obra, não como a ausência formal da presença divina – aliás, os deuses

olímpicos são muito mais figurados em Eurípides do que em Ésquilo e Sófocles – , mas sim

pelos fato de que esta presença é limitada a uma razão humana, o que, na verdade, esvazia

de sentido o deus. Este espaço da divindade como um espaço vazio tem suas conseqüências

na obra de Eurípides, tanto em sua recepção, e os ataques de Aristófanes são uma boa

medida de como um público culto tradicionalista enxergava a obra do poeta, quanto na

lógica interna de sua literatura. A presença meramente tradicional da divindade, como um

traço de estilo a que não se pode fugir, teria também a vantagem de estabelecer uma

comunicação mais direta com seu público. Através da figuração deste ou daquele deus,

Eurípides conseguia estabelecer de maneira imediata um campo de interpretação para sua

obra. Mas dificilmente esta presença formal pode ser interpretada como uma religiosidade

de fato. A figura é a mesma, mas apenas na religião tradicional podemos falar em um deus

não humano, que é, na verdade, o único deus possível.

135
4.3. Deuses e homens

Em termos de fabulação, a conseqüência do deus humanizado é que o milagre se

torna algo fácil. O carro do sol que serve para Medéia fugir, o resgate de Alceste do

inferno, a Helena simulacro de Helena, estes todos são elementos estranhos a uma

mentalidade que tenha de levar a divindade a sério. Os deuses nas outras tragédias têm uma

atuação muito mais discreta, e mesmo a Atena de Ájax e de As Eumênides, que interage

com os atores de uma forma mais ativa, é ainda uma força do desconhecido, realizando

milagres menores como causar um delírio e organizar um tribunal. Apenas uma divindade

decaída faz milagres, pois o pensamento ainda religioso só suporta um contato tão direto

com o deus no passado mítico. No pensamento ainda mítico, em que o deus é o limite do

humano, sua manifestação é necessariamente através dos mecanismos cósmicos de causa e

efeito, dor, destino. É um pensamento racionalizante que concebe a divindade como algo

que dobra a realidade de forma espetacular, porque neste pensamento este é o único lugar

da divindade na imaginação. Épocas e sociedades de fato religiosas precisam do

distanciamento do deus em seu cotidiano, e sua comunicação se estabelece através do ritual

e do respeito à tradição mítica, não através do milagre, da presença concreta do deus. Isto

só chega a ser um problema para a forma trágica porque, ao contrário do discurso épico ou

religioso, em que fica estabelecido um corte definitivo entre passado mítico e presente

histórico, o tempo da narrativa trágica é simultaneamente o tempo mítico e o tempo

histórico, com referências tanto a um quanto a outro universo. Nas palavras de Easterling

em seu ensaio Myth into muthos: the shaping of tragic plot:

136
O que é crucial é a mistura de passado e presente: a ambientação em tempos heróicos de
maneira nenhuma interdita referências ao mundo contemporâneo, e de fato depende de uma
multidão de lembretes irônicos à audiência de que eles estão no presente, assistindo a
eventos que pretendem estar acontecendo em um outro tempo e lugar. Quanto mais esta
tensão pode ser explorada, mais poderosamente a peça deve ser capaz de capturar sua
audiência. (EASTERLING In EASTERLING, 1997: 167)4

Embora em Eurípides o paradoxo de que menos religião signifique mais milagre esteja

muito presente, em todo o corpo trágico há este jogo entre visível e invisível, entre razão e

mito, em que o primeiro termo paulatinamente anula o segundo. O distinto em Eurípides é

que esta tensão, que nunca chega a ser resolvida nos outros tragediógrafos, oscila entre uma

presença tão forte do mito que este se concretiza em cenas absurdas, inverossímeis em

relação ao resto da tradição trágica que nos restou e à tradição religiosa como um todo, ou a

pura ausência do divino como motivo da ação. O modelo mais usual da representação dos

deuses é aquele que Sófocles usa em Ájax durante o diálogo entre Atena e Ulisses. Atena

está presente como um elemento da fabulação, é ela que provoca a loucura de Ájax. Mas

sua atuação de fato se dá em outro campo, como uma maneira de avisar que o que ocorre

com Ájax é uma marca do divino, que os deuses são cruéis e suas razões pertencem apenas

a si mesmos, e que, finalmente, o lugar do homem é se calar diante disso. Quando lemos

em seu diálogo:

AT Viste, Odisseu, como é grande o poder dos deuses?


Quem mostraria em tempo algum maior prudência
E também mais bravura na hora de agir?
OD Até onde posso saber, ninguém, Atena.
Compadeço-me dele [Ájax] em seu infortúnio
Embora seja o pior dos meus inimigos,
Pois está atado a um destino horrível.
Medito ao mesmo tempo sobre a minha sorte
E sobre a deste herói, pois vejo claramente
Que somos sombras ou efêmeros fantasmas
Vivendo a nossa vida como os deuses querem.

137
SÓFOCLES In ÉSQUILO, SÓFOCLES, EURÍPIDES, 1993: vv. 156-167. (trad.
Mário da Gama Kury)

Estamos diante de uma das muitas indicações do texto trágico à platéia de como interpretar

o que ocorrerá adiante, ou seja, que a história de Ájax é um exemplo da força do destino

divino sobre o homem, a que todos estão sujeitos e todos devem temer. Atena sai de cena

em seguida, e a tragédia humana ocorre, com a dor e o suicídio de Ájax. Assim, o plano de

atuação do divino não é sua figuração, sua ação direta no palco, mas está em outra ordem,

que se relaciona ao funcionamento do cosmos, ao encadeamento de causa e efeito. O

quanto esta sensibilidade está distante da salvação de Ifigênia em Ifigênia em Áulis,

quando, após a heroína aceitar ser sacrificada pela pátria, é salva por uma intervenção

divina. Nas palavras do mensageiro que conta a Clitemnestra o ocorrido:

Depois o sacerdote
Tirou o gládio da bacia feita de ouro,
Pronunciando a invocação para escolher
O lugar onde iria desferir o golpe.
Meu coração se contraiu angustiado
e baixei a cabeça. Repentinamente
manifestou-se a todos nós, estupefactos,
um acontecimento sobrenatural,
sem dúvida um prodígio: todos ouvimos
distintamente o ruído de um golpe rápido
de gládio, mas a virgem desaparecera,
sugada pela terra, sem que se pudesse
ver ou conjecturar onde ocorrera o fato.
O sacerdote deu um grito e nosso exército,
Uníssono, iniciou suas aclamações
Diante daquele milagre, obra, sem dúvida,
De algum dos deuses, muito além da expectativa,
Inexplicável mesmo para quem o viu.
De fato, jazia imóvel, recém-morta,
Uma corça descomunal e muito bela,
Cujo sangue inda fresco manchava o altar.
(EURÍPIDES, Ifigênia em Áulis, 1993: vv. 2196- 2214)5

138
Esta intervenção, que lembra tanto o episódio do sacrifício de Isaac, é bastante rara tanto na

tradição religiosa grega quanto nas tragédias dos outros autores. Uma opção para explicá-la

é interpretarmos esta passagem, como as várias outras na obra de Eurípides em que

prodígios acontecem, como uma referência a um sentimento religioso pré-clássico, pois

apenas nas teogonias encontramos este tipo de milagre, com o deus subvertendo a realidade

e as regras físicas de funcionamento do mundo. É interessante notar que algo muito

próximo ocorre em Édipo em Colono, quando ao fim da peça Édipo desaparece no ar após

ouvir a invocação do deus. Mas, neste caso, temos uma meditação sobre a vida humana e a

ordem do divino. Não é o caso de Ifigênia em Áulis, em que a ação toda se dá em torno do

sofrimento e da decisão da família em torno do sacrifício de Ifigênia. De qualquer maneira,

um episódio desses na peça final de Sófocles, um autor que de resto sempre tratou o divino

com bastante pudor, indica que talvez em algum momento das experiências limite que os

atenienses passaram durante a guerra do Peloponeso o respeito à religião tradicional se

perdeu. A religião grega nunca adotou o lema do “creia porque absurdo”, mas nos

momentos finais de convulsão do século V esta poderia ser perfeitamente uma

possibilidade aberta.

Outra possibilidade de explicação do episódio do sacrifício, que nos parece mais

provável, é entendê-lo como uma figuração não religiosa, como uma fantasia intelectual. É

este o espírito da comédia, em que temos cidades construídas nas nuvens e disputas de

tragediógrafos no inferno, mas no caso da comédia estes episódios estão completamente

desprovidos de um fundo religioso. Mas esta é uma liberdade da comédia, em que homens

puros são representados. A tragédia deveria representar a divindade, e Eurípides o faz, mas

de uma maneira tão alienada que esta divindade passa por um exercício fantasioso.

139
A outra maneira de Eurípides resolver a tensão entre mítico e histórico é esvaziar

totalmente o conteúdo religioso de suas peças. É o que encontramos em Medéia, em As

Fenícias ou em As troianas. Nestes casos temos a presença formal dos deuses, o carro do

sol em que Medéia foge, a maldição paterna sobre Etéocles e Polinices, o diálogo entre

Atena e Posídon. Mas estes são elementos completamente marginais à trama, que se move

exclusivamente no universo das paixões humanas, das razões e motores de indivíduos

enraizados no mundo e na vida. E este motor humano da trama acaba se sobrepondo à

apresentação do divino. Segundo Jaeger em seu comentário sobre Eurípides:

Nada caracteriza com tanta exatidão a tendência naturalista dos novos tempos [os anos
durante a Guerra do Peloponeso] como o esforço realizado pela arte no sentido de retirar o
mito do seu alheamento e da sua vacuidade, corrigindo-lhe a exemplaridade por meio do
contato com a realidade vivida e desprovida de ilusões. Foi Eurípides quem empreendeu
esta tarefa ingente, não a sangue-frio, mas com o ânimo apaixonado de uma forte
personalidade artística e com tenaz perseverança contra longos anos de fracassos e
desenganos, pois a maior parte do povo tardou muito em apoiar seu esforço. (JAEGER,
1995: 398)

Então, em Eurípides temos a ordem do divino esvaziada. Os deuses não modelam as

coisas que acontecem no palco, nem são o campo negativo que atrai o homem para o

absoluto e a aniquilação como nos outros tragediógrafos. E, no entanto, este campo

negativo existe, e é tão destrutivo e anti-humano quanto o deus de Sófocles. Sua

identificação imediata é com o próprio universo humano das paixões e da história, do que

vamos tratar a seguir.

140
4.4. O pesadelo da história

O período de apogeu da tragédia grega se localiza entre três experiências limite de

Atenas. A primeira, a guerra contra a invasão persa, é uma experiência de glória. As duas

outras, a guerra do Peloponeso e a praga de Atenas, são experiências de ruína. Se no

primeiro caso a improvável vitória sobre o exército persa lega aos atenienses um sentido de

missão histórica, como um destino manifesto que é confirmado pela vitória, nos dois outros

esta confiança otimista na própria potência e nos próprios valores fica abalada. Se a obra de

Ésquilo e Sófocles nascem do espírito de liberdade e autonomia que os cinqüenta anos de

expansão após a primeira guerra construiu nos atenienses, a obra de Eurípides é realizada

principalmente durante a guerra do Peloponeso. A palavra, neste caso, já não é liberdade ou

autonomia, mas sim aquele sentido de estranho relativismo moral que as guerras severas

sabem provocar. Isto vem especialmente de um endurecimento da sensibilidade, que

permite tanto que os valores tradicionais sejam menos respeitados e respeitáveis, quanto

uma franqueza quase brutal na consideração do que seja o homem, suas paixões e motivos.

O grande porta-voz deste período é Tucídides, e é nele mais que em Eurípides que podemos

mapear a mudança de espírito que levaria ao fim da era trágica e ao início da filosofia. No

historiador o relativismo moral da vida durante a guerra se traduz em uma teoria do poder

que confunde justiça com força, e que, apesar de conceber a derrota ateniense segundo um

modelo trágico, como um caso de hybris de uma nação heróica, não consegue lamentar

totalmente sua queda. A simpatia de Tucídides, ou, se aceitarmos que sua história segue de

fato um modelo trágico, a compaixão presente em sua narrativa é mais em relação ao

sofrimento inútil da guerra do que a este ou aquele partido. Mesmo isto é um sentimento

141
ambíguo, pois se existe de fato o sentimento de piedade diante dos massacres e sacrifícios

que espartanos e atenienses causam em seu conflito, existe também a defesa direta do

direito do leão, a idéia de que o mais forte pode justamente dominar o mais fraco, e que a

força, mais que qualquer outra categoria de justiça, divina ou não, é a legitimadora da ação

humana.

Eurípides se relaciona a estas questões de uma forma bastante particular. Em

algumas peças, como Andrômaca, em que os espartanos são vilões de clichê, e Ifigênia em

Áulis, em que a heroína aceita o sacrifício “pela pátria”, estamos, parece, diante de formas

sofisticadas de propaganda. Já em peças como As troianas e Hécuba, em que são retratados

os vencidos da guerra, parece haver uma reflexão um pouco mais cuidadosa e franca sobre

a natureza da guerra e da história. O interesse das duas últimas peças passa principalmente

em perceber o quanto um incipiente sentido de história está se manifestando, substituindo

pouco a pouco as idéias tradicionais de destino e de singularidade individual com que eram

caracterizadas as guerras e conflitos. No caso do espírito grego do período isto se traduz na

crença em Tucídides de que o ser humano e suas paixões são sempre iguais, que existe uma

constante nos atos coletivos humanos que pode ser pensada e tornada conhecimento. No

caso do tragediógrafo, isto significa o pensamento nada confortável de uma certa dignidade

dos vencidos e daqueles que sofreram com os desastres da guerra, um tema novo para a

tragédia. No caso da tragédia temos Os persas, de Ésquilo, mas aí a descrição dos

derrotados segue um esquema contrário ao que se vê nas peças de Eurípides. Os persas não

é uma peça de compaixão, e a catarse, se podemos falar de catarse neste caso, passava

muito mais por um júbilo público de registrar de uma forma tão íntima a ate do agressor.

142
Não é o caso das peças de Eurípides, em que o sofrimento das troianas é de fato

comovedor, e visa exatamente medo e terror.

Tanto no caso de Tucídides quanto de Eurípides a palavra chave para entendermos a

maneira como esta nova matéria histórica era processada pela mente do período é

perspectivismo. De um modo geral a palavra se confunde com relativismo e está muito

ligada à sofística. Gostaríamos de especificar um pouco mais. Perspectivismo é sim aquilo

que os mestres sofistas ensinavam, a maneira de enxergar uma situação por vários ângulos

e defender de maneira adequada cada um dos lados da situação. Esta prática, que a filosofia

platônica entendia por má-fé, se relacionava a um espírito que a própria tragédia cultivava,

de manutenção da tensão entre pólos. Na sofística a meta do discurso não era a solução de

um conflito ou interrogação, mas sim a possibilidade de construir discursivamente

complexidade, de chamar a atenção para a complexidade estrutural da vida e do discurso

humano, o que no caso dos mestres itinerantes era algo mais ligado à performance que à

verdade de um conteúdo, no que a crítica platônica é justa, mas de qualquer maneira tinha

conseqüências morais. E neste caso, perspectivismo quer dizer empatia, a capacidade de

conceder dignidade igual aos valores em conflito, capacidade de se pôr na pele do outro.

Tanto o aspecto performático quanto o aspecto moral do perspectivismo sofístico estão

presentes em Eurípides. A prática discursiva e as conseqüências éticas desta prática são

inseparáveis, mas é preciso notar que enquanto a pura performance tornou Eurípides uma

espécie de representante da sofística na poesia trágica, a capacidade que o autor teve de

perceber a transitoriedade das paixões e razões humanas deu universalidade a sua obra e a

projetou no futuro. Quando falamos de psicologismo euripidiana, estamos falando mais

desta capacidade de perspectiva, de projetar a alma humana em vários planos e construir

143
uma situação complexa, do que propriamente a preocupação com uma alma profunda à

maneira de Dostoiévski ou Shakespeare. É verdade que Eurípides é, entre os três grandes,

aquele que põe o irracional como um elemento estruturante de suas tramas, o irracional

erótico, especialmente, mas esta irracionalidade de personagens como Medéia ou a Helena

de As troianas, absolutamente imanente, está muito longe ainda da nossa idéia de amor e

sentimentos. O amor moderno está relacionado através de Dante e dos românticos a uma

experiência de fortalecimento da interioridade, de uma verdade íntima que se sobrepõe à

vivência pública. Não é esta paixão exatamente que está presente em Eurípides, mas sim a

crença muito grega de que o sentido da realidade está no mundo público, da cidade e da

comunidade. O irracionalismo que chega a ser figurado no tragediógrafo não é aquele de

Werther, de um naufrágio no mundo que revela a verdade de uma individualidade, mas sim

da perda concreta e catastrófica dos laços com o dever e a comunidade. Esta paixão

amorosa, como a ambição política e o ódio partidário, outros temas recorrentes em

Eurípides, deve ser entendida como o lugar da negatividade que a ausência do deus deixa

vago. Em As troianas, no diálogo entre Hécuba e Helena, vemos esta dinâmica bem

desenhada. Após a queda de Tróia ambas são escravas, e Hécuba acusa Helena pelos males

troianos. Esta se defende, atribuindo sua fuga com Páris à influência de Afrodite. A

resposta de Hécuba é quase o resumo de uma poética euripidiana:

Primeiro me tornarei aliada das deusas


E mostrarei que essa aí não fala o justo.
Pois Hera e a virgem Palas, eu não
Creio terem chegado a tal estupidez,
Que uma vendeu Argos aos bárbaros,
E Palas, Atenas aos frígios, em servidão.
Não com jogos e langor em trono da aparência
Vieram ao Ida: por causa do que a divina

144
Hera teria tanto desejo pela beleza?
Receberá esposo melhor que Zeus?
Ou Atenas está caçando bodas com um dos deuses,
A que do pai reivindicou a virgindade,
Fugindo do leito? Não tornes as deusas estúpidas
Ao enfeitar teu ato vil; não persuadirás os argutos.
Cípris disseste (isto é muito engraçado)
Ter vindo com meu filho ao lar de Menelau.
Permanecendo, plácida, no céu, a ti não
Levaria a Ílion, com Amiclas e tudo?
Meu filho era o mais notável em beleza,
E teu espírito, vendo-o, tornou-se Cípris:
Sim, toda loucura é Afrodite aos mortais,
E é correto que o nome da deusa reja a afronesia.
Vislumbrando-o, com trajes bárbaros
E com ouro luzindo, teu espírito desvairou-se.
Pois em Argos circulavas tendo pouco,
Mas afastada de Esparta, a cidade frígia
Onde escorre outro esperaste inundar
Com gastos: não te era o bastante a casa
De Menelau para te esbaldares em luxúria.
(EURÍPIDES, As troianas, 2004: vv. 914-997 (tradução Christian Werner)6

Hécuba inicia desclassificando o argumento de Helena: a fábula sobre o concurso das três

deusas é somente uma invenção. Não há aí nada de excepcional, no sentido que

dificilmente seria chocante para uma platéia do século V ouvir que um mito homérico é só

uma lenda, e isto não tem nenhuma conseqüência religiosa. Mas se pensarmos que toda a

tragédia parte exatamente destes mitos, há sim algo de estranho na fala da heroína Hécuba.

O excurso de Hécuba sobre as deusas – que Atena não teria por que ser a mais bela, que

Hera já possuía um bom esposo – é obviamente uma racionalização burguesa sobre o

divino, tão diferente do mistério sagrado em Ésquilo e Sófocles que soa algo humorístico, e

quase nos faz concordar com a garrafinha de Aristófanes. Mas nesta racionalização, na

humanização do divino a que tínhamos nos referido anteriormente, está também a

possibilidade do próximo trecho da argumentação de Hécuba, de que a paixão que dominou

Helena partiu de seu próprio desejo e interesse, e não de um daímon mandado por Afrodite.

É o abaixamento do divino que permite a presença do humano, ao menos deste humano

145
psicológico de um sujeito que age contra o dever e a comunidade em nome de si mesmo. É

importante notar que os personagens de Eurípides são apaixonados, mas esta paixão é

distintamente diferente da possessão trágica de um Ájax, de Clitemnestra ou de Xerxes.

Neste caso temos a conformação de uma ate, um destino-cegueira que faz o herói agir

contra si mesmo, de forma autodestrutiva ainda que muitas vezes inconsciente das

conseqüências de seus atos. As motivações de Helena conforme apresentadas por Hécuba

seguem uma lógica de desejo e de interesse, demoníaca apenas na medida em que estas

paixões desconsideram o bem-estar da comunidade, mas não são objetivamente

autodestrutivas. O mal, que nos outros dois grandes é um confronto heróico do homem com

os deuses, em Eurípides se torna um problema de justiça do agir, um reflexo sobre o limite

da ação humana motivada puramente em interesse e desejo, mas interesses imanentes,

baseados na vida concreta e nos valores dos homens concretos. Enquanto em Tucídides a

mediação deste interesse é a força, o mais forte tem o direito de tomar aquilo que sua força

permitir, em Eurípides são os valores mais escorregadios do dever e do bem que constroem

o conflito trágico. Dever para a comunidade, bem comum, que são problematizados na obra

de Eurípides, pois a base destes valores não é a presença do absoluto divino, mas sim a

complexidade de pesadelo da vida humana.

O perspectivismo euripidiana é só possível em tempos de endurecimento da

sensibilidade que a guerra traz, que torna mesmo os atos mais terríveis passíveis de defesa.

Isto não significa cinismo, mas sim a compreensão bastante lúcida de que, já que a ação

humana é baseada na incerteza da paixão, é muito difícil chegar a uma decisão final sobre a

moralidade de cada situação. Quando as paixões, sejam elas eróticas ou políticas, estão em

jogo, quando o universo interior do homem tão incerto e variável está por trás dos atos,

146
tudo se cobre de uma névoa de indefinição tão intensa quanto o silêncio divino. Medéia

talvez seja a peça em que temos este princípio representado da maneira mais perfeita. A

bruxa é uma vilã, certamente, mas nos movimentos de sua alma, na oscilação do amor aos

filhos e do ódio ao marido se constrói a tragédia de um indivíduo que perde o compasso

moral, uma pessoa cuja medida externa para a ação está perdida e tem de sofrer a presença

simultânea e confusa de sentimentos opostos, seus únicos guias possíveis. Na cena que

antecede o assassinato dos filhos, vemos Medéia se debatendo sobre como agir:

Mulheres, titubeio! Os planos pe-


riclitam! Vou-me, mas com meus dois filhos!
Prejudicar crianças em prejuízo
Do pai não dobre o mal? Fará sentido?
Comigo não: adeus, projetos árduos!
O que se passa em mim? Aceitarei
O escárnio de inimigos impunidos?
Que infâmia ouvir de mim reclamos típicos
De gente frouxa! Ao rasgo de ousadia!
Para dentro, meninos! Se a lei veta
A presença de alguém no sacrifício,
Não é problema meu. O pulso agita-se,
Ai!
Deixa de agir assim, ó coração!
Não queirais, infeliz, puir os filhos!
No exílio, o bem se aloja em nosso espírito.
Ó vingadores do ínfero, alástores!
Está para nascer alguém que agrida
Um filho meu! Se ananke, o necessário,
Impõe sua lei indesviável, nós
Daremos fim em quem geramos.
(EURÍPEDES, 2010: 1044-1103 (tradução de Trajano Vieira)7

Existe um problema na divisão de Medéia, pois diferentemente dos personagens trágicos

tradicionais, que ligam seus atos a uma razão divina e política, e que visam

indubitavelmente o bem nos crimes que estão para cometer, e que indubitavelmente são

seres morais, atados ao dever, Medéia age em nome apenas daquilo que sente, seja o amor

aos filhos seja o ódio ao marido. E neste caso como no de muitos outros personagens, como

147
podemos falar em erro trágico? Pois o que quer que Medéia faça está atendendo a um

chamado interior muito poderoso, não distinto de qualquer outro homem ou instituição

humana, mas que tem apenas em si mesmo a medida de sua moralidade. Kitto, em seu

comentário sobre Eurípides em Tragédia grega, aponta para como esta entidade abstrata

que chamaremos de alma humana complica todo o problema da moralidade trágica:

Considerou [Eurípides] a hamartía trágica, bem como a ação trágica, não como partes do
carácter do indivíduo que levam à sua queda, mas de uma maneira mais abstracta, como
elementos do desastre que, na nossa natureza humana comum, conduzem ao sofrimento, no
que as pessoas culpadas podem participar ou não. (KITTO, 1990: 115)

A hamartía está ligada à idéia de impureza, de ato impuro diante dos deuses. Mas, em um

mundo desprovido de deuses, qual é a medida desta impureza? Em outros termos, se a

medida dos atos humanos é o próprio homem interior, pois é a alma o motor destes atos,

como julgar? É neste tipo de interrogação que temos uma pista pra o “humanismo” de

Eurípides, já que, na falta de um absoluto moral, que permite a Eurípides pôr em cena

personagens como Medéia, personagens que carecem dos valores positivos que um herói

deveria ter, é um sentimento mais abstrato de empatia ao humano que pode levar à catarse.

A empatia pelo herói passa pelo reconhecimento na audiência de que aquilo representado é

um ser humano em geral, qualquer pessoa, e que devido a alguma dignidade categórica que

as pessoas possuem deve-se sofrer por elas. Bruno Snell reconhece em Medéia o primeiro

personagem em que a justiça já não está ligada a uma ordem divina, mas sim a valores

puramente humanos de dignidade básica. Segundo Snell em A cultura grega e o

pensamento europeu:

148
Eurípides é o primeiro a representar, na sua Medéia, um ser humano que não tem outro meio
de despertar a compaixão exceto o de ser uma criatura atormentada: essa bárbara fora-da-lei
tem a seu favor apenas o direito humano universal. Essa Medéia também é, porém, ao
mesmo tempo, a primeira pessoa cujos sentimentos e cujos pensamentos são explicados sob
um ângulo puramente psicológico e humano e que, embora sendo bárbara, é superior aos
demais pela cultura espiritual e pela eloqüência. Quando o homem pela primeira vez se
mostra independente dos deuses, prontamente se revela a potência do espírito humano
autônomo e a intangibilidade do humano direito à justiça. (SNELL, 2009: 261)

Mais que qualquer outro tragediógrafo, em Eurípides a crítica ao poder é

inflamatória, pondo em xeque tanto a visão tradicional de justiça quanto a possibilidade em

abstrato de justiça em um universo em que a realidade é construída pela vontade e pelo

desejo. Sua capacidade de se colocar na mente do oposto, de manter o discurso da

alteridade como coisa intensa e apaixonada, rendeu-lhe a posteridade mais próspera, mas

também as críticas mais cruéis. Quando pensamos em uma peça como As troianas, que fala

de uma cidade devastada em um momento que a própria Atenas está sob risco bastante

concreto de ser conquistada e subjugada, tendo ela própria arrasado outras cidades durante

a guerra, percebemos a dimensão de sua coragem intelectual e, por outro lado, da franqueza

com que os próprios atenienses tratavam sua realidade. Nas palavras de Easterling

Esta peça lida com o pior que pode acontecer a uma cidade, Adrian Poole propriamente a
chamou de “fim-de-jogo de Eurípedes”. Ela usa os eventos da Guerra de Tróia,
particularmente as últimas horas antes do incêndio final das ruínas, quando os homens já
estão mortos, as mulheres esperando ser distribuídas a seus novos mestres, e os vitoriosos
prontos para velejar para casa. A peça foi encenada em 415 a. C., quando a possibilidade de
que uma cidade grega pudesse ser aniquilada não era de maneira alguma remota para a
audiência. Platea, uma cidade aliada, dificilmente mais que quarenta milhas de Atenas, fora
completamente destruída o ano após sua captulação para os peloponesos em 427, e em
Cione e Calcídice em 421 e em Melos em 416 os próprios atenienses mataram todos os
homens aptos a servir e escravizaram o resto da comunidade. (EASTERLING, 1997: 173)8

149
A invocação dos mortos ao fim da peça, quando Hécuba bate as mãos no chão invocando

seus compatriotas mortos na guerra, é uma daquelas cenas universais que a tragédia grega

nos legou e que dificilmente serão esquecidas.

HE Ió terra nutriz de meus filhos.


CO É.
HE Crianças, escutai, apreendei a fala da mãe.
CO Com ululos chamas os mortos.
HE Velha, ponho no chão os membros meus
E ressôo a terra com duplas mãos.
CO Seguindo-te, o joelho ponho na terra,
Chamando das profundas os meus
Afligidos maridos.
HE Escortadas, levas... / CO Agonia, agonia gritas.
HE Para baixo de teto escravo. / CO Da minha pátria.
HE Ió, Ió, Príamo, Príamo,
Tu, destruído, insepulto, desamparado,
Desconheces minhas desgraças.
...
HE A cinza, igual a fumo, asa rumo ao céu,
Desconhecedora de meu lar me torna.
CO O nome da terra desaparecerá: lá
E cá, tudo partiu, não mais é
A pobre Tróia
(EURÍPIDES, 2004: 1302-1324 (tradução de Christian Werner)9

Este lamento pelos mortos, que são os mortos inimigos e os próprios, é talvez um bom

símbolo do que ocorre na literatura de Eurípides. Após ele, não teremos mais tragédias a

serem lembradas. Após Eurípides teremos um novo tipo de crítica, corajosa também, mas

que entenderá a suspensão trágica como uma celebração do erro e do mal. Mas o momento

brilhante da cultura grega em que os três grandes atuaram permanece ainda como um ponto

fulcral da história da cultura, fornecendo um caminho único para a interpretação do homem

e da vida. Como Tróia, seu nome não desaparece apesar de tudo. Esta vitória contra o

tempo, contra a derrisão de ser reduzido a uma outra natureza, esta intensidade e

150
integridade que nunca se rendeu, estes são indícios da grandeza da tragédia. Esta eternidade

possível da arte tira e dá na mesma medida o sentido do homem. Como nos diz Easterling:

Os velhos provérbios sobre a mutabilidade da fortuna tomam uma nova dimensão sinistra
quando são tomados no contexto da destruição de uma comunidade inteira e sua cultura,
mas o de Hécuba tem de ser levado em conta ao fim da peça, quando ela lidera as mulheres
em um ritual de despedida para os mortos troianos, batendo no chão e clamando por filhos e
maridos. A ênfase é toda sobre perda e aniquilamento, mas ao menos um elemento pode ser
entendido de maneira diferente por uma audiência educada na poesia épica. Quando o coro
canta que o “nome da cidade vai desaparecer” e “Tróia não mais existe” (1322-24) [1678-80
na tradução de Mário da Gama Kury] eles estão cantando para uma audiência para quem o
nome de Tróia sobreviveu. (EASTERLING In EASTERLING, 1997: 177) 10

1
Na versão de Mathew Arnold (ARISTÓFANES: ll. 1206-1224)

EU “Aegyptus, so the widespread rumor runs,


With fifty children in a long-oared boat,
Landing near Argos”—
ES Lost his little oil flask!
DI What was this “oil flask”? You'll be sorry!
Recite for him another prologue, so I can see once more.
EU “Dionysus, who with thyrsus wands and fawnskins
bedecked amidst the pines on Mt. Parnassus
bounds dancing...”
ES Lost his little oil flask!
DI Alas, again we have been stricken by that flask.
EU It won't be a problem. For to this
prologue he won't be able to attach that flask.
“No man exists, who's altogether blest,
Either nobly sired he has no livelihood
Or else base-born he ...”
ES Lost his little oil flask!
DI Euripides!

2
Next, supposing the charge is "That is not true," one can meet it by saying "But perhaps it ought to be," just
as Sophocles said that he portrayed people as they ought to be and Euripides portrayed them as they are.
3
Tradução própria do original em inglês:

The theory involves so delicate an equilibrium between natural and superhuman, so nice a compromise of
faith and knowledge, that it cannot be maintened for long. The balance must turn, and there is no doubt wich
scale will sink. The supernatural must fade and recede. The gods must surrender again to man the life with
which, as he slowly learns, himself at his own cost has lavishily endowed them. Human nature re-enters upon
its alienated domain, conscious of itself, and of nothing else but a material world which centers round it.
Desire and Hope must resign their dream shape, and all of that will be left of them is a hot movement of the
blood, the thrill of a quickening nerve.

151
4
What is crucial is the mixture of past and present: the setting in heroic times in no way precludes reference
to the contemporary world, and indeed depends on a multitude of ironic reminders to the audience that they
are in the present, watching events that purport to be happening in another time and place. The more this
tension can be exploited, the more powerfully should the play be able to enthrall its audience.
5
Na versão de E. P. Coleridge (EURÍPIDES, 1891: vv. 1578-1590)

But the priest, seizing his knife, offered up a prayer and was closely scanning the maiden's throat to see where
he should strike. It was no slight sorrow filled my heart, as I stood by with bowed head; when there was a
sudden miracle! Each one of us distinctly heard the sound of a blow, but none saw the spot where the maiden
vanished. The priest cried out, and all the army took up the cry at the sight of a marvel all unlooked for, due to
some god's agency, and passing all belief, although it was seen; for there upon the ground lay a deer of
immense size, magnificent to see, gasping out her life, with whose blood the altar of the goddess was
thoroughly bedewed.
6
Na versão de Kury ( EURÍPIDES, As troianas, 2001: vv. 1230- 1267)

Alio-me primeiro às deusas. Vou mostrar / Quanta injustiça existe nas palavras dela. / Ninguém de boa-fé
creria que Hera e Palas / Pudessem comportar-se com baixeza tal / A ponto de em conluio Hera prometer /
Que venderia aos bárbaros a terra argiva, / E Palas que daria Atenas aos troianos, / Sbmissa ao jugo frígio.
Essa competição / Das deusas junto ao Ida certamente foi / Uma frivolidade ou entretenimento. / Por que
razão Hera divina nutriria / Desejo tão insano de ser a mais bela? / Seria para conquistar melhor esposo / que
Zeus onipotente? Quereria Palas / credenciar-se a esposa de qualquer dos deuses, / ela, que obteve de seu pai
o privilégio / de ser eternamente virgem, pois as núpcias / lhe repugnavam? Não procures disfarçar / a tua
perversão atribuindo às deusas / tamanha insensatez. Pessoas ponderadas / jamais irão acreditar em tua
história. / E quanto a Cípris, tu nos fazes rir, e muito, / Dizendo que ela foi com Páris ao palácio / De
Menelau, como se adeusa, mesmo estando / Tranqüilamente em seu celestial assento, / Não tivesse poder para
levar-te a Ílion / Com toda a cidade de Amiclas facilmente! / Meu filho era dotado de beleza rara / E foi teu
próprio espírito que ao contemplá-lo / Criou a impressão de Cípris. As loucuras / De amor, que os homens
consideram diferentes / E imputam a Afrodite, são iguais às outras. / A imagem de meu filho em sua roupa
exótica, / Bordada de ouro fulgurante, transtornou-te / A alma; em Argos tua vida era medíocre; / Trocando
Esparta pela rica terra frígia, / Por onde corre um rio de ouro, imaginavas / Que aqui teria bens em
superabundância. / O palácio de Menelau / Já não bastava às tuas exigências de excessivo luxo

7
Na versão de Kury (EURÍPIDES, Medéia, 2001: vv. 1190-1208)

Será que apenas para amargurar o pai


Vou desgraçá-los, duplicando a minha dor?
Isso não vou fazer! Adeus, meus planos... Não!
Mas que sentimentos são estes? Vou tornar-me
Alvo de escárnio, deixando meus inimigos
Impunes? Não! Tenho de ousar! A covardia
Abre-me a alma a pensamentos vacilantes.
Ide para dentro de casa, filhos meus!
Saem os filhos
Quem não quiser presenciar o sacrifício ,
Mova-se! As minhas mãos terão bastante força!
Ai!Ai! Nunca meu coração! Não faças isso!
Deves deixá-los, infeliz! Poupa as crianças!
Mesmo distantes serão a tua alegria.
Não, pelos deuses da vingança dos infernos!

152
Jamais dirão de mim que eu entreguei meus filhos
À sanha dos inimigos! Seja como for,
Perecerão! Ora: se a morte é inevitável,
Eu mesma, que lhes dei a vida, os matarei!

8
Tradução do original em inglês:

This play deals with the worst that can happen to a city; Adrian Poole aptly called it “Euripides' Endgame”. It
uses the events of the Trojan War, particularly the last hours before the ultimate firing of the ruins, when the
men are already dead, the women waiting to be allocated to their new masters, and the victors preparing to
sail home. The play was put on in 415 BC, when the possibility that a Greek city might be annihilated was not
at all a remote one for the audience. Plataea, an allied city, hardly more than forty miles from Athens, had
been utterly destroyed the year after it capitulated to the Peloponnesians in 427, and at Scione in Chalcidice in
421 and at Melos in 416 the Athenians themselves had put to death all the males of military age and enslaved
the rest of the community.
9
Na versão de Kury (EURÍPEDES, As troianas, 2001, vv. 1647-680)

HE Terra-mãe que nutriste meus filhos!


CO Ai de nós!
HE Ai! Meus filhos! Ouvi vossa mãe!
Escutai o chamado, meus filhos!
CO Teu lamento soturno os invoca
Lá no mundo remoto dos mortos!
HE aproximo do chão meus joelhos
Doloridos e golpeio a terra
Com as mãos antes fortes fechadas!
2° SC Nós também, de joelhos no chão
evocamos o fundo da terra
os esposos que a guerra matou!
HE Já nos levam...
1° SC Quanta dor! Quantos gritos de dor!
HE Seremos escravas...
1° SC ... muito longe de nosso país!
HE Meu rei Príamo, agora finado
Sem sepulcro e sem um amigo
Para perpetuar-te a memória,
Não percebes a minha desgraça?
...
HE Logo as cinzas que seguem as chamas
Cobrirão inda quente as ruínas
Do palácio inda ontem tão belo
CO Mesmo o nome de nossa cidade
Deixará de existir. Há destroços
Crepitando por todos os lados!

10
Tradução do original em inglês:
The old proverbial sayings about the mutability of fortune take on new grimness when they are seen in the
context of the destruction of a whole community and its culture, but Hecuba's have to be taken into account at
the very end of the play, when she leads the women in a farewell ritual for the Trojan dead, beating the
ground and calling out to children and husbands. The emphasis is all on loss and annihilation, but at least one

153
statement can be understood differently by an audience brought up on epic poetry. When the Chorus sing that
the “name of the land will vanish” and “Troy no longer exists” (1322- 24) they are singing for an audience for
whom Troy's name has survived.

154
5: PLATÃO E A EXPULSÃO DO POETA

5.1. Platonismus

Nosso comentário sobre Platão vai seguir de forma bastante próxima o comentário de

dois autores, o Jaeger de Paidéia e Paul Friedländer em Platon. Não existe concordância

exata entre os autores: o imenso livro de Jaeger tem Platão como centro, e sua leitura parte

do princípio de que toda cultura grega é manifestação do ideal de educação cujo maior

representante seria exatamente Platão. Nesta leitura, a condenação de Platão à poesia se dá

dentro de um espírito de agón, de uma competição pela primazia espiritual do mundo

grego, em que o tipo específico de conhecimento filosófico afirma sua superioridade em

relação ao conhecimento poético, trágico, especialmente. Segundo Jaeger

As forças ordenadoras e normativas da alma, personificadas na filosofia, enfrentam o


elemento pós-vivencial e imitativo que nela existe e do qual brota a poesia, como sendo-lhe
simplesmente superiores, e exigem-lhe que abdique ou se submeta aos preceitos do logos.
Do ponto de vista “moderno”, que encara a poesia como simples literatura, é difícil de
compreender esta exigência, que parece uma ordem tirânica, uma usurpação de direitos
alheios. Mas à luz da concepção grega da poesia como representante principal de toda
paidéia, o debate entre a Filosofia e a poesia tem necessariamente de recrudescer no
momento em que a Filosofia ganha consciência de si própria como paidéia e por sua vez
reivindica para si o primado da educação. (JAEGER, 19995: 980)

Deve-se notar que a referência ao “elemento pós-vivencial e imitativo” da poesia tem em

mente o ambiente grego após a arte de Eurípides e Tucídides, autores que tornaram o

comentário trágico sobre o homem a representação de um homem real, em que o caráter

heróico e o pólo divino da arte trágica são bastante enfraquecidos em nome de uma busca

por um homem imanente, aprisionado às forças das paixões e dos acontecimentos mais do

155
que às exigências do deus e do destino. Outra coisa que deveremos ter em mente também é

que a afirmação de que o estatuto da poesia grega é distinto da moderna, como se aquela

fosse infinitamente mais presente na cultura grega do que esta, é um argumento

antropológico e quantitativo, e não qualitativo. Jaeger parte do princípio de que a poesia,

tanto o texto poético quanto o recital, é a principal instituição educacional do mundo grego,

e que este estatuto é distinto do que a poesia possui no mundo moderno. A percepção desta

distinção está por trás, por exemplo, da leitura do jovem George Steiner sobre a tragédia,

em A morte da tragédia (STEINER, 2006), mas não procura dar conta de que esta “simples

literatura” alimentou todo o pensamento do século XIX, e que nesta perspectiva a exigência

platônica tem de parecer necessariamente tirânica.

O Platão de Paul Friedländer tem a mesma centralidade que o de Jaeger, mas a maneira

como a relação da obra platônica com a mimese poética é construída é bem menos

agonística. Em Friedländer a condenação platônica à poesia, uma questão de estatuto do

conhecimento, de maneiras distintas de conhecer, é mediada pelo daímon erótico e pelo

mito platônico. É uma condenação construída por várias mediações, mais do que

condenação pura e simples. A imagem que Friedländer utiliza para entender este processo é

a do olhar: na base da filosofia platônica estaria o esforço para superação do sensível, de

enxergar com os olhos da alma e não com os do corpo. Referindo-se à República, que

entende como o cumprimento do longo processo de construção da nova visão platônica,

Friedländer diz que:

Assim transcorre durante longo tempo a preparação, com o objetivo final nesta
interdependência, a pura metafísica e a contemplação das idéias, enlaçando por fim a
imagem acabada: a alma, pensada segundo o modelo do corpo, tem olhos como ele para ver,
só que esses olhos estão enfocados nas formas eternas. (FRIEDLÄNDER, 1989, v. 1: 31)1

156
Ainda há a condenação à mimese poética, mas ela é entendida em um contexto em boa

medida também poético, com esta condenação sendo entendida como a re-elaboração de

um discurso sobre a realidade. Só que a realidade que os poetas vêm é o negativo da

realidade do filósofo.

A importância de Platão (e Sócrates) em um estudo sobre o estatuto do trágico no

século XIX passa por compreender como o veto à poesia como forma válida de

conhecimento foi construído por Platão, e como este veto foi entendido e trabalhado na

filosofia e na filologia do período. Os textos básicos para isso são os capítulos II, III e X da

República2, em que há a discussão da mimese como a maneira primordial de aprendizado

da virtude, da “bondade” (areté), e a condenação da mimese específica da arte, com a

equalização de pintura e poesia épica e trágica. Os diálogos Íon e Fedro serão também

referências constantes para essa discussão. Naquele, há a primeira expressão da condenação

platônica ao conhecimento obtido através da performance poética. É uma distinção que

vamos ter de aprofundar, entre a poesia enquanto forma simbólica, enquanto conteúdo a ser

apreendido através da recitação ou do texto, e a performance, a maneira como o conteúdo

simbólico é “absorvido” pelo leitor/espectador. A condenação platônica à poesia conforme

é entendida pelo momento em que nos detemos, passa pela crítica de ambos os estatutos, e

por uma tentativa de separação entre a verdade possível e parcial (misturada com ilusões e

mentiras em Platão) do conteúdo poético, e a maneira como este conteúdo é transmitido na

performance e no texto do ator/recitador. O Fedro será o terceiro texto de referência para

nossa discussão, porque marca o lugar complicado que a escrita possui na transmissão do

conhecimento dentro da filosofia platônica.

157
5.2. Justiça e representação

Antes de iniciarmos, seria interessante estabelecer alguns pressupostos da discussão

platônica. A República trata da construção da politeia ideal, do governo melhor para a

felicidade humana. Esta é uma discussão política, mas em sua base está a definição do

significado da realidade: a cidade mais justa é aquela que promover a areté do cidadão, a

virtude, ou a excelência, ou a bondade, ou seja, o melhor governo é aquele que consegue

fazer com que seu cidadão viva mais de acordo com uma idéia de justiça e de verdade. Em

Platão, isto significa necessariamente criar uma sociedade que constantemente dê meios a

seus cidadãos de distinguirem o justo do injusto, a verdade da mentira. Na base da politeia

está, então, o conhecimento da verdade. Toda instituição desta cidade deverá se estruturar

ao redor das disciplinas necessárias para a obtenção desta verdade, ou seja, ao redor da

disciplina filosófica. Uma cidade que se organize desta forma será necessariamente feliz,

não em um sentido exterior, de prosperidade ou abundância, mas será feliz em um sentido

mais próprio, de ação de acordo com a realidade profunda do mundo, para além da

aparência e do engano. O que é apresentado e elencado na República, então, é o conjunto

de ações que um governo deve realizar para que a areté se cumpra. Estas ações são a

construção de instituições coerentes, devidamente justificadas filosoficamente: a melhor

forma de governo, a melhor economia, as melhores ferramentas na educação, a melhor

religião etc. Estas ações são também negativas: a proibição de certas práticas, de certos

governos, de certos hábitos. É neste panorama que se insere a condenação de Platão à

poesia: esta estaria em desacordo com a melhor politeia, e seria um dos maus-hábitos que

poderia levá-la à ruína.

158
Uma das conclusões de Platão é da melhor forma de economia política da cidade, ou

seja, a melhor forma de organizar a ação pública dos cidadãos, a função de cada parte da

cidade na manutenção da areté. Na eutopia platônica, cada indivíduo ocupa uma

determinada posição em cada um dos três estamentos da polis, sendo trabalhadores,

guerreiros ou guardiões. A posição em cada estamento depende não de nascimento, hábito

ou favor, mas da afinidade de cada um em relação ao valor essencial que guia cada nível, a

temperança, a coragem e a sabedoria, que em conjunto formam a possibilidade de justiça.

Cada indivíduo obedece às regras e aos limites de cada nível, o que impede a decadência e

mantém a força da cidade. Como diz Sócrates:

– Vamos! disse eu. Ouve-me e vê se faz sentido o que estou dizendo! Aquilo que, desde o
início, quando fundávamos a cidade, estabelecemos que devíamos fazer o tempo todo é,
parece-me, a justiça ou uma forma de justiça. Se estás bem lembrado, estabelecemos e
muitas vezes dissemos que cada um devia ocupar-se com uma das tarefas relativas à cidade,
aquela para a qual sua natureza é mais bem dotada.
– Dissemos, sim.
– E que cumprir a tarefa que é sua sem meter-se em muitas atividades é justiça, isso
ouvimos de muitos outros e, e nós mesmos dissemos muitas vezes.
–Dissemos, sim.
– Pois bem! Disse eu. Eis, meu amigo, o que, de certa maneira, pode ser o que é a
justiça:cada um cumprir a tarefa que é sua. (PLATÃO, 2006: IV, 433a,b)3

É importante recuperarmos esta divisão, porque, embora aparentemente ela não diga

respeito a nossa discussão principal, na divisão dos estamentos da politeia há o desenho de

como a ação pública é concebida por Platão. A função de cada indivíduo não é nunca

arbitrária, e corresponde à verdade da alma de cada um. Fazer móveis não é simplesmente o

trabalho de um carpinteiro, não é apenas a maneira como este trabalhador obtém seu

sustento, nem é algo exterior a si. Ao contrário, o ser carpinteiro é a expressão da alma

159
deste indivíduo, ou da parte da alma na divisão entre apetite, razão e espírito, que nele é

mais forte, sendo algo que se relaciona ontologicamente a sua identidade. Em uma

sociedade sem distinções como a eutopia platônica, em que riqueza pessoal, laço familiar e

agremiação política ou de qualquer outro tipo devem ser abolidas, toda identidade é

sustentada pela função pública deste indivíduo na sociedade. Da mesma forma, o fabricar

móveis não é apenas um gesto ou uma prática, mas é a maneira privilegiada deste sujeito

lidar com o conhecimento, é sua maneira de construir a realidade, mais que isso, é o índice

de a quanta realidade este indivíduo tem capacidade de ter acesso. Quando Platão

estabelece que a prática mimética é conhecimento em terceiro grau, que a pintura da

cadeira está mais distante que a própria cadeira, e esta mais distante que a imagem

conceitual da cadeira em relação à forma primordial que serve de arquétipo para todas as

cadeiras, uma das conseqüências é que o afastamento do poeta em relação à verdade não é

algo superável, mas corresponde a sua própria natureza. Se o filósofo vê a realidade

conforme ela é, e o artesão e o soldado a vêm parcialmente, o poeta a vê falsamente, e da

mesma maneira que o ver do filósofo, do soldado e do artesão são eles próprios, o vício da

visão do poeta torna-o também um elemento falso em uma sociedade que deve celebrar e

promover a verdade. A mentira do poeta tem assim uma dimensão ética, e se este conta

mentiras é porque sua alma não consegue mais que isso. A prática pública é o homem,

porque a prática é a maneira de conhecer, e a maneira de conhecer é a única medida ética

válida para uma sociedade fundada sobre a obtenção da verdade. A poesia não é apenas

uma técnica, não é apenas um “dizer bonito”, mas é uma substância ética negativa em

relação à filosofia, e o poeta o negativo do filósofo.

160
Esta diferença não é marcada de forma tão nítida de início. Ao fim do livro II temos

a primeira condenação à poesia em bases práticas: certas passagens de Homero e dos

trágicos representariam não a verdade do deus (que Platão identifica plenamente com uma

divindade boa, plenamente “virtuosa”), mas sim uma divindade misturada a vícios de

covardia e descontrole de si que pertencem à parte inferior da alma do homem, ligada aos

apetites físicos, e não à divindade:

– Ah! disse eu. O deus, já que é bom, não seria responsável por tudo, como muitos dizem,
mas por poucas coisas em relação aos homens e por muitas não... É que temos menos bens
que males e não devemos ter nenhum outro como causa; e, quanto aos males, devemos
procurar outras causas, mas não o deus
– Parece-me que é bem verdade o que está dizendo, disse.
– Ah! Não podemos aceitar nem de Homero nem de outro poeta esse erro que cometem em
relação aos deuses quando dizem que:
duas grandes jarras jazem no limiar de Zeus
cheias de sortes, uma de boas, a outra de más.
(PLATÃO, 2006: II, 379d, e)4

O argumento avança de modo a identificar a mimese poética como uma forma de

representação que privilegia exatamente esta parte inferior do ser humano, e, repetindo a

argumentação já contida em Íon e no Fedro, afirmando que a mimese poética não oferece

conhecimento da verdade, mas apenas de uma sombra de verdade, de um fantasma e

aparência, não sendo um conhecimento distinto de que homens inferiores possuem,

conforme ele desenvolve melhor no livro VII com a alegoria da caverna. Outro elemento

importante do argumento de Platão contra a poesia neste livro é que o deus é uno e

verdadeiro, que não falseia sua natureza ou age de forma a enganar os mortais, e que os

poetas ao representarem-no como algo que engana o homem ou que assume outras formas

161
que não a sua própria, estariam novamente mentindo, por ignorância e necessária falsidade,

sobre a natureza do divino:

Ah! O deus é completamente simples em seus atos e palavras, ele próprio não se transforma
e não engana aos outros, nem com aparições, nem com palavras, nem com envio de sinais,
quer em vigília, quer sonhando.
– É assim que também me parece, disse ele, quando tu falas.
– Ah! Tu me concedes, disse que há uma segunda norma que se deve seguir ao falar a
respeito dos deuses em narrativas e poemas? Que não se diga que, sendo magos, eles se
transformam e nos seduzem com mentiras expressas em palavras ou em obras!
– Concedo.
– Ah! Embora louvemos muitas coisas em Homero, não elogiamos o sonho enviado por
Zeus a Agamenão... [Ilíada 2, 1-34, em que Zeus envia um falso sonho a Agamemnon
incentivando-o a entrar em combate para que os gregos corram perigo e percebam a
necessidade de Aquiles] (PLATÃO, 2006: II, 383a)5

É importante marcar que inicialmente a condenação platônica à poesia não se refere à

forma poética em si, e nem à maneira típica de transmissão destes conteúdos no mundo

grego, através da recitação e do drama, mas sim a determinados conteúdos representados

especialmente pela tragédia. Outros tipos de poesia e de arte, que representem conteúdos

desejáveis pela politéia, seriam mantidos. Ou seja, o que é expulso da politéia platônica é

um certo tipo de performer e um certo tipo de poesia, e não toda poesia e todo rapsodo.

Como afirma Sócrates em República:

– Será que devemos somente vigiar os poetas, obrigando-os a criar, no interior de seus
poemas, a imagem do bom caráter, ou impedir que os componham em nossa cidade? Ou
também aos outros artífices devemos vigiar e proibir que, em suas obras, criem esse mau
hábito, intemperança, baixeza, indecência, quer nas imagens de seres vivos, quer nos
edifícios, quer em outra obra de arte? Ou a quem não for capaz disso não devemos permitir
que exerça sua arte em nossa cidade, para que nossos guardiões, nutridos no meio das
imagens do vício, como numa pastagem má, a cada dia e de bocado em bocado, façam uma
grande ceifa e dela se apascentando não acumulem, sem que o percebam, um grande mal em
suas almas? (PLATÃO, 2006: III, 401,b)6

162
… e conceder que Homero é o melhor poeta e o primeiro entre os trágicos, mas saber que
somente hinos aos deuses e encômios aos homens de bem devem ser admitidos na cidade.
Se, porém, acolheres a sedutora musa na lírica ou na métrica, o prazer e a dor reinarão na
cidade em vez da lei e do princípio que, entre nós, sempre foi tido como o melhor.
(PLATÃO, 2006: X, 607a)7

Esta admissão de certos tipos de poesia e de certos conteúdos, devidamente vigiados e

censurados pela administração da pólis, apontaria para uma gradação no argumento

platônico, de que certa poesia seria boa e certa poesia má, que uma seria admissível, outra

não. O que estaria em jogo, então, seria a condenação da poesia que não representa nem

promove a areté. Esta condenação parcial corresponderia a um momento inicial do

pensamento platônico, em que o mito poético ainda é um problema muito presente em sua

obra. É nesta perspectiva que Paul Friedländer se refere a uma relação mais amistosa de

Platão com a poesia:

Para Platão, como intérprete do mundo, estas lendas haviam dado um fragmento de
explicação do mundo – ho filomythos filósofos pós esti – el amigo de los mitos (filomythos)
de algun modo es amigo de la sabiduria (filósofos) –, fragmentos de un gran mito medido ,
perdido e despedaçado através das voltas do tempo, que se trata de purificar, de enlaçar e de
dar-lhe forma de novo. (FRIEDLÄNDER, 1989: 171)8

A mentira poética seria, nessa perspectiva, parcial, no sentido de que não representa toda a

realidade. Mas seguindo o argumento platônico da necessidade da unidade e da

simplicidade do Bem, esta gradação não se sustenta. Uma verdade parcial ou manchada por

mentiras e inverdades já não é verdade, e a mentira parcial é mentira inteira, pois promove

a variedade, a contradição, desfaz a unidade.

163
Após estabelecer, com a alegoria da caverna, a distinção entre o conhecer filosófico

em relação aos outros conheceres, o cerne do caso de Platão contra a poesia é apresentado

no livro X, quando estabelece a prática essencial da poesia, a representação e a

concretização através da música e do verbo daquilo que vê, como um negativo da prática sã

da filosofia. Esta condenação se dá em três bases.

5.3. O primeiro argumento contra a poesia: a ignorância do poeta

O primeiro argumento se refere ao fundamento daquilo que é afirmado pelo artista

mimético, isto é, o fato de que o poeta não possui o conhecimento da verdade; é

simplesmente, ao contrário do homem que passou pela disciplina da filosofia, um dos

habitantes da caverna, e que portanto aquilo que representa será necessariamente falso,

apenas um fantasma da virtude e unidade cósmica que o filósofo consegue perceber e

afirmar. Isto a princípio permitira a possibilidade de um poeta-filósofo, de um homem que,

tendo possuído treinamento filosófico, poderia representar poeticamente a verdade. Esta

possibilidade parece estar prevista quando mais adiante em seu argumento contra a poesia,

Platão, na voz de Sócrates, indica a possibilidade de reconciliação e diz que:

– Então, será justo que a façamos regressar do exílio depois de defender-se com um canto
lírico ou com outro metro qualquer?
– Sem dúvida.
– Concederíamos também a quantos, entre todos os seus patronos, não são poetas, mas
amantes da poesia, que digam em sua defesa, com um discurso sem métrica, que ela não só
é agradável mas também útil em relação à cidade e à vida humana, e com boa vontade os
ouviremos. É que o lucro será nosso, caso pareça não só agradável, mas útil também.
(PLATÃO, 2006: X, 607d)9

164
Mas tal reconciliação ocorrerá sob a condição de que a poesia possa provar seu valor para a

politéia, e não em seus próprios termos, mas a partir de uma crítica. Caso contrário:

Enquanto, porém, não for capaz de defender-se, nós escutaremos o que ela diz, repetindo
para nós mesmos, como numa cantilena, essa argumentação que apresentamos, tomando
cuidado para não reincidir naquele amor infantil e vulgar. Sentimos, então, que não se deve
ter verdadeiro interesse por tal poesia, como se ela atingisse a verdade e devesse ser levada a
sério, mas, ao contrário, deve quem a ouve tomar cuidado e temer pela constituição que traz
dentro de si e também acatar a respeito da poesia as normas que enunciamos.
– Concordo em tudo, disse ele.
– Grande, disse, é a peleja, meu caro Gláucon, grande e não do porte que se espera, a peleja
cokm que se busca ser bom ou mau. Sendo assim, levado nem pelas honras, nem pelo
dinheiro, nem por nenhum comando, nem pela poesia, vale a pena descuidar da justiça e das
outras virtudes. (PLATÃO, 2006: X, 308a, b)10

O problema é que esta prova em retrospecto é impossível, pois, e aí vem a segunda causa

de condenação de Platão à poesia, a parte boa da alma humana, a razão, aquela parte que

permite ver e compreender a unidade e a verdade, cuja manutenção e proteção é a razão de

existir da politeia, não interessam ao poeta enquanto poeta.

5.4. O segundo argumento: a prática da poesia é perniciosa

Aqui a distinção entre poeta e filósofo ganha uma nova distância, em uma espécie

de argumento circular. A visão poética, a do artista mimético, é distinta da do filósofo, pois

enquanto este vê a verdade, o outro vê (e reproduz) ilusões, inverdades e fantasmas. Esta

diferença não é solúvel por um ajuste, porque uma conformação do poeta à visão filosófica

165
o tornaria um filósofo, e não um poeta, o que mudaria também sua prática. A prática do

poeta – o recital público visando o prazer da multidão, a representação sentimental do

homem – é a própria natureza do poeta, e ao contrário do filósofo, que conforma sua

performance verbal ao fim da filosofia, à descoberta, expressão e manutenção da areté, a

performance do poeta é seu próprio fim enquanto poeta. Da mesma maneira que a natureza

do sapateiro na economia da cidade é fazer sapatos, que a do carpinteiro é fazer móveis, a

do poeta é despertar exatamente o universo sentimental do homem, relacionado a uma

doença do espírito. Sócrates diz:

– E a parte que se refere às recordações do sofrimento leva às lamentações e é incapaz de


saciar-se delas? Não afirmaremos que ela é irracional, indolente e chegada à covardia?
– Sim, afirmaremos.
– Então, uma parte, a irascível, admite muitas e variadas imitações, mas a outra, o caráter
sábio e sereno, o que é sempre semelhante a si mesmo, nem é fácil de imitar, nem se dá a
conhecer rapidamente, sobretudo quando é imitado para uma multidão em festa e para gente
de origem diversa, reunida num teatro. È que para eles se trata de uma imitação de uma
experiência que lhes é estranha.
– Seguramente.
– É evidente que o poeta imitador não tem pendor para tal parte da alma, nem está de acordo
com o feitio de sua sabedoria ser agradável a ela, se quer ter bom nome junto da maioria do
povo, mas para o caráter irascível e volúvel que é mais fácil de imitar. (....)
– ... Do mesmo modo, diremos que o poeta imitador cria uma constituição má dentro da
alma de cada um, porque favorece o que ela tem de irracional e não discerne nem o maior
nem o menor, mas, ora julga grandes, ora pequenas as mesmas coisas, criando imagens
vazias, mantendo-se, porém, bem afastado da verdade. (PLATÃO, 2006: X, 604d,e-605a)11

A leitura específica de Jaeger desta passagem é bastante elucidativa de quanto seu Platão

está ligado a uma espécie de dialética grega do espírito. O autor se refere que a base para a

compreensão da República é o conceito de Estado em cada um (“a constituição que cada

um traz dentro de si”). As práticas da politeia são essencialmente a maneira de se construir

uma identidade entre o corpo espiritual, as três partes da alma platônica, e o corpo social,

de tal modo que a excelência de espírito e de Estado se retro-construam: em um Estado

justo, a arete política leva à arete espiritual, mas para que haja a primeira é necessário que

166
haja também a segunda. As leis são a mediação que permite a esta identidade ser mantida

em bases sãs, sem falseamento ou engano, e um bom Estado será aquele em que as

instituições sejam expressão do bom Espírito. E o bom Estado da alma é aquele em que a

parte superior do espírito, a razão, comande e dirija a parte inferior, onde estão os apetites,

através da mediação do ânimo. O poeta é um elemento de desordem nesta mediação, pois

sua ação falseia a realidade, impede que o ciclo de consciência e de manifestação do

conteúdo da consciência se dê em bons termos. Ele excita os apetites sensíveis e faz com

que o ânimo os acompanhe, invertendo a relação de domínio de razão sobre as outras

partes. Sua presença é tão insidiosa que arrisca a destruição tanto do Estado político quanto

do Estado interior. Segundo Jaeger:

O que ele censura ao poeta imitativo é evocar um Estado mau na alma de cada indivíduo, ao
discursar ao gosto daquilo que nele há de irracional. Esta imagem é tirada da tão impugnada
prática dos demagogos que adulam a multidão. O poeta torna a alma incapaz de distinguir o
importante do não importante, pois as mesmas coisas representa-as às vezes como grandes,
e, outras vezes, como pequenas, conforme o fim que tem em vista em cada caso. E é
precisamente esta relatividade que prova que o poeta cria ídolos e não reconhece a verdade.
(JAEGER, 1995: 986)

Este seria o cerne da condenação de Platão aos poetas. É importante notar que o grande

modelo de poesia à época de Platão é Eurípides, não só o mais popular, mas cada vez mais

respeitado por uma Atenas cosmopolita. Embora os exemplos de mentiras poéticas que

Platão elenca no livro II pertençam basicamente a Homero e Ésquilo, é provavelmente o

fantasma de Eurípides que assombra sua República. É o espírito do perspectivismo patético

de Eurípides que tem de ser exorcizado. É Paul Friedländer que pensa esta relação com a

poesia em termos de uma influência. Segundo Freidländer, referindo-se à relação de Platão

com a poesia tradicional através do mito:

167
Na última década de Eurípides – que na qualidade de criador e destruidor de mitos ao
mesmo tempo inseriu as forças de dissolução nas raízes do mesmo mito – , trancorre a
juvnetude de Platão. É bom lembrar-se que seu tio e modelo admirado foi Crítias, e dos
seguidores de Eurípides é o próprio Crítias o que, no palco ateniense, mostra o mundo dos
deuses como a descoberta venturosa de um homem astuto [referência ao fragmento de uma
peça, o fragmento de Sísifo, atribuído a Crítias]. (FRIEDLÄNDER, 1989: 170)12

O centro da condenação do artista mimético passa em Platão pela figura específica

que este membro da comunidade tem em sua experiência. Homero, considerado também

como trágico, como o primeiro dos trágicos, é necessariamente o Homero dos recitais, em

que a virtude guerreira é misturada ao páthos do sofrimento “infantil” e “feminino”. É o

Homero do rapsodo Íon no diálogo de mesmo nome:

Ìon: A prova que tu me dás é flagrande, Sócrates. Falar-te-ei sem subterfúgios. Com efeito,
quando recito um passo patético, os meus olhos enchem-se de lágrimas; se é assustador e
terrível, os cabelos eriçam-se-me e o coração bate-me mais depressa. (...)
Sócrates: Sabes que vocês fazem que a maior parte dos espectadores experimente os
mesmos sentimentos?
Íon: Sei-o muito bem! Vejo-os do alto do estrado, cada vez que choram ou lançam olhares
terríveis ou tremem com as minhas palavras. É necessário, com efeito, que os observe bem:
se os fizer chorar, eu rirei quando receber o dinheiro, enquanto que, se rirem, chorarei eu ao
perder o meu salário. . (Íon, 534c-e)13

Este é um diálogo anterior à República, mas que já contém o cerne do caso platônico contra

a arte mimética: o poeta não conhece de fato, apenas representa inadequadamente aquilo

que vê, para que outros também vejam o que o poeta criador deixou registrado. É preciso

frisar que a esta altura da obra platônica ainda não há uma condenação categórica da arte

mimética: esta só virá em um segundo momento, nos diálogos maduros de Platão. O

interesse de Íon é apontar para a posição específica da poesia na obra platônica em um

momento inicial, que irá se transformar na visão da República. O rapsodo é condenável,

168
assim como a pretensão propedêutica da poesia: esta não ensina, ao contrário do que se

pensa tradicionalmente no mundo grego. Ninguém aprende a dirigir carruagens

ouvindo/lendo Homero. Mas há em Íon a afirmação de que a performance do rapsodo,

assim como o poeta criador, são inspirados pelo deus. Sua ação é comparável à de

coribantes e àqueles dominados pelo êxtase dionisíaco.

5.5. Terceiro argumento: a imagem poética é perniciosa

Este detalhe é importante, porque aponta para uma teoria do daimônico, que seria

desenvolvida melhor em o Banquete. Se há ainda algo que Platão deva a uma visão trágica

e poética é a concepção de que a mediação entre a aparência e a verdade, ou entre a zona de

engano humana e o deus, se dá em termos daimônicos, através de uma intermediação

daimônica que, comunicando forma e aparência, envolve a ambas e permite a visão clara.

Segundo Freidländer, referendo a Banquete:

É o pensamento ou a imagem do “demônico” como uma zona “entre” a superfície humana e


a divina que, por sua situação intermédia, “enlaça o todo conjuntamente consigo mesma”.
Diotima situa esse reino, no começo de seu mito de Eros, e o constrói como lugar de todo
tráfico entre deuses e homens, para onde se situa toda arte da adivinhação e do sacerdotal,
toda bruxaria e a magia...” (FRIEDLÄNDER, 1989: 56)14

A poesia, que em Íon ainda pertence possivelmente a esta zona intermediária, na altura dos

textos maduros de Platão é excluída. Não é difícil entender o porque da expulsão da poesia

desta zona de intermediação entre aparência e verdade, o porque de sua desqualificação

como caminho para o conhecimento das formas. Seu germe está na teoria poética de Platão

169
em Íon: a ação do poeta é semelhante à de um ímã, ele transmite o entusiasmo do texto a

sua platéia. Nesta projeção, o que está presente é a afirmação do sensível: são os

sentimentos, e não o conhecimento, que o poeta transmite. Mas, em termos funcionais, da

maneira de funcionar da ação do poeta, há a ausência de intermediação. A transmissão é

feita como uma presença, ela “toma” o poeta e a platéia, não permitindo que um termo de

afastamento entre no jogo. A imediatez da ação do poeta cria um problema sério em termos

de visão das formas, de percepção das idéias, porque a falsidade do que é transmitido (e

mesmo em Íon o conteúdo da poesia que o rapsodo transmite já é dotado de um tom de

inverdade) não pode ser percebida. A platéia que é tomada pela presença poética não tem

instrumentos para se defender, e se afasta da possibilidade de metaxy, de mediação racional

entre idéia e aparência. Nós estamos acostumados a pensar sobre este processo como

afastamento crítico, mas na filosofia platônica conforme foi pensada especialmente por

Friedländer a partir do romantismo alemão, isto se relaciona a uma teoria da imagem mais

do que a uma teoria do conceito. Neste panorama a idéia platônica não é simplesmente a

espécie, o conceito que abarca todos os indivíduos; ela possui uma concretude imagística,

um peso de presença que não é simplesmente lógico, mas também, através da mediação

daimônica, sensível, e é mais monádica que conceitual. O exemplo dado por Friedländer

para explicar a imagem/idéia platônica é da Urpflantz de Goethe, a planta arquetípica que

serviria de forma essencial para todas as plantas. Em Goethe este arquétipo não é uma

taxonomia, não é apenas um conjunto abstrato de características morfológicas, mas sim

uma planta concreta, uma imagem de planta que o poeta teria encontrado em sua viagem à

Itália. É o conceito “visto” concretamente, tornado presença, mas para que esta visão seja

170
verdadeira, para que o conceito visto seja de fato a forma e não a aparência, é preciso a

mediação do elemento racional. Segundo Friedländer:

E com efeito, para Platão, surge o mundo sucessivamente como idéia e aparência de forma
completamente mais sutil, um laço mais forte devia transformar de novo esta oposição em
unidade. Para ele a alma humana é um intermediário (metaxy) entre idéia e aparência, assim
também a “doxa” como terceiro nível do mundo do conhecimento, um intermediário entre
não-ser e ser, conduzida deste a aquele. Pois novamente a “dianoia”, a zona da ciência
individual, está no meio, entre o puro conhecimento que se dirige ao reino das idéias e a
mera opinião que o dirige à flutuante aparência. Sem a proporção dos elementos, sem a o
harmônico sistema das formas de ser e conhecer, sem a “metaxy” da alma, sem a zona do
“demônico”, se partem céu e terra entre si. (FRIEDLÄNDER, 1989: 58)15

O problema e a virulência da poesia para Platão está na maneira como ela complica a

metaxy. Pois a idéia platônica, assim como a presença poéitca, é também um tipo de

imagem, tem concretude, é referenciável. Só que é imagem que se revela através da

mediação da parte superior da alma, a razão. A imagem poética, ao contrário, é presença

não mediada, e por sua imediatez sensível não permite o discernimento entre aparência e

idéia. Este é o cerne da terceira e principal crítica de Platão à poesia, e aqui se marca

definitivamente o território e direito de cada zona, pois a terceira crítica de Platão ao

poético não se refere apenas à performance, mas também à poesia enquanto processo

criativo e enquanto forma simbólica. Segundo Platão na voz de Sócrates:

– Não é essa, porém, a maior acusação que temos contra ela. Ser capaz de causar dano
mesmo às pessoas de bem, com exceção de bem poucos, nisso é que está o maior perigo...
– Como não, se isso é que ela faz?
– Ouve e presta atenção! Os melhores entre nós, ao ouvir Homero ou outro poeta trágico
imitando um herói que, tomado pela dor do luto, dispara uma grande tirada entremeada por
gemidos ou canta e bate no peito, disso sabes muito bem, sentimos prazer e, esquecendo-nos
de nós próprios, vamos atrás deles compartilhando de seus sentimentos e ainda, com muito
empenho, louvamos como bom poeta principalmente que nos emociona a tal ponto.
– Sei disso… como poderia deixar de saber? ...
– Se considerasses que a parte da alma que estava sendo contida naquela ocasião, no
momento dos infortúnios familiares, e sentia uma necessidade imperiosa de chorar e

171
lamentar-se até saciar-se, porque por sua natureza é afeita a esses desejos, é a que, naquele
momento, os poetas satisfazem e alegram. O que em nós, porém, por natureza é o melhor, já
que não recebeu, nem da razão nem do hábito, formação suficiente, diminui a vigilância
sobre essa parte lamurienta, porque é apenas espectadora de sofrimentos alheios, e para ela,
quando um outro que se diz homem de bem, inoportunamente dá vazão a seu luto, nada há
de vergonhoso em aplaudi-lo e compadecer-se dele. Ao contrário, ela julga que terá um
lucro, o prazer, e não admitiria ser privada dele, por desprezar o poema em seu todo. São
muito poucos, penso eu, os que cuidam dos sofrimentos alheios necessariamente resulta
num ganho para nós próprios. É que, para alguém que nutre sua compaixão com o
sofrimento de outrem de modo que a torne forte, não será fácil contê-la nos seus.
(PLATÃO, 2006: X, 605c-606b)16

O grande pecado da poesia seria que, por criar uma imagem que tem a aparência de

realidade, esta impede que o processo racional de medida e avaliação possa perceber a

falsidade ética daquilo que está sendo dito. Jaeger tem uma leitura bastante direta deste

trecho da República: o veto final da filosofia à poesia se dá em termos éticos. Segundo

Jaeger:

... o nosso ideal moral do Homem está em franca oposição com nossos sentimentos poéticos.
A natural necessidade de chorarmos e de nos lamentarmos, que na vida sufocamos pela
violência, é satisfeita pelo poeta e sentimo-la nele como um prazer. A parte verdadeiramente
melhor de nosso ser, se estiver mal educada pela razão e pelo hábito, cede neste caso e
abandona sua vigilante resistência para dar rédea solta à necessidade de se lamentar... A
simpatia é na poesia trágica o que o sentimento do ridículo é na poesia cômica: a fonte da
ação exercida no ânimo de quem ouve. Todos nos rendemos a este encanto, embora sejam
poucos os que advertem a mudança que no seu próprio ser se opera em virtude do
fortalecimento destes impulsos pela poesia. (JAEGER, 1995: 987-88)

Algo que fica suposto no comentário de Jaeger é a diferença da visão platônica para a

aristotélica, pois o mecanismo que Platão identifica como pernicioso, a capacidade que a

poesia tem de afetar o sensível e nublar a razão, é muito próximo da catarse aristotélica.

Apenas em Aristóteles há a suposição de que este mecanismo tenha um sentido médico e

filosófico. Enquanto a “catarse” platônica funciona de maneira a nublar a razão

fortalecendo o sensível, Aristóteles, partindo de um ponto de vista posterior ao platônico,

172
concebe a catarse como um mecanismo são, que, na verdade, ajuda a prática filosófica pois

permite a purgação dos sentimentos excessivos, levando à medida e harmonizando razão e

sensibilidade. Seguindo a trilha de Friedländer, o problema da maneira como a poesia afeta

o homem não é apenas ético, nem se refere puramente a uma prática orgânica de

purificação. Não é apenas que a poesia defenda coisas falsas e leve a falsas conclusões,

nem que ela fortaleça a parte errada do organismo psíquico, mas há também um problema

epistemológico: a poesia cria uma imagem que compete com a imagem filosófica, mas, ao

contrário desta, que se constrói através da mediação racional, da ciência das medidas: a

imagem poética não é mediável. É isto que ela possui de vicioso: o fato de não permitir a

defesa do filósofo contra a imagem que se sobrepõe à sua, o perigo de ser mais efetiva que

a imagem filosófica e de ser uma mentira com mais presença que a verdade conforme

Platão a enxerga.

5.6. Ponto de fuga

O último argumento de Platão contra a poesia estabelece ao mesmo tempo a

continuidade e a cisão da literatura filosófica em relação à literatura criativa. É

continuidade porque nasce de uma sensibilidade poética, de uma percepção da intensidade

de uma presença poética, e é cisão, porque esta sensibilidade é negada em nome de uma

outra forma de relação com o conhecimento e com a realidade. A seguir vamos tratar

brevemente de como este cuidado platônico em relação à mimese está no centro de uma

interpretação mais atual da obra do filósofo.

173
O problema central desta discussão é o estatuto do texto (e portanto da

representação) na obra de Platão. No ponto mais extremo temos a teoria das doutrinas não-

escritas que chega até nós através de Giovanni Reale17. O argumento fundamental de

Reale, baseado em um trecho do Fedro que alerta para que a escrita não tem a capacidade

de manter o pensamento vivo e que destrói a memória, é que é necessário que se leia a

filosofia platônica através da prática concreta de ensino na Academia. A obra escrita de

Platão seria uma espécie de recurso mnemônico, um instrumento para avivar a memória e

recuperar a raiz da discussão, mas aquilo que seria o conteúdo mesmo da doutrina

platônica, possivelmente um conteúdo ligado à mística e à matemática pitagórica, não

estaria presente nos textos, embora eles apontem para este conteúdo profundo. Este sentido

mais complexo da obra platônica passa necessariamente por uma revisão da literatura

platônica tendo em vista esta dimensão da oralidade.

Um texto que parte de uma preocupação próxima é o Farmácia de Platão

(DERRIDA, 1981), de Derrida. O mesmo texto, o Fedro, serve de base para o comentário

de Derrida sobre a escrita em Platão. O que está em jogo em Derrida é relacionar este

estatuto ao campo semântico do pharmacon, o veneno remédio, e tentar desvelar uma

leitura possível de Platão que retrabalhe o sentido de sua obra. A hipótese básica é que a

escrita em Platão (e o arcabouço retórico e poético que a escrita carrega consigo,

especialmente a ironia) tem um lugar bastante problemático, não sendo encarada como

plenamente adequada à disciplina filosófica. Por trás disto estaria uma identificação da

escrita com aspectos femininos da ação discursiva, quando o discurso se obriga a atender a

necessidades outras, estéticas e sensíveis, para além daquelas do direto discurso filosófico.

174
A complexidade da discussão não vai ser resgatada aqui, mas gostaríamos de

apontar para um ponto intermediário na consideração de oralidade e escrita em Platão, que

liga a leitura da condenação platônica à poesia assim como do estatuto da retórica e da

parte da obra platônica que se refere a uma performance poética, às imagens, mitos, ironia,

e outras estratégias discursivas que aproximam o texto platônico talvez não da poesia, que

tem um lugar muito específico na cultura grega de sua época, mas da literatura em um

sentido mais amplo, no sentido de uma ação discursiva criativa, de algo mediado pela

imaginação. Este não era um problema menor para filólogos da geração de Friedländer e

Jaeger, que vêm de um panorama cultural muito marcado pela referência ao pensamento

filosófico alemão do século XIX. A prática comum de Friedländer, de tentar iluminar certas

passagens do pensamento platônico com exemplos retirados de Goethe ou Schlegel, por

exemplo – sua teoria da ironia socrática é uma teoria também da ironia em Schlegel, sua

teoria da imagem/idéia platônica é uma forma de ler a imagem em Goethe, etc– aponta para

a dificuldade de lidar com a condenação platônica à poesia. Nenhum autor dessa geração

teve capacidade para efetuar um rompimento total com a filosofia platônica como vamos

ver em Nietzsche, mas permanece sempre uma contradição quase insuperável conciliar uma

leitura textual de Platão com a apresentação de sua filosofia. O texto platônico parece ser

abordável por uma teoria literária, e na verdade não haver a possibilidade de propor

plenamente que sua obra não seja em algum nível literatura conforme a de Goethe, Schiller

ou Schlegel. Mas seu pensamento é contrário a isso. Neste panorama, o trabalho de Eric

Havenlock (1903-1988), Preface to Plato, funciona como uma espécie de elo comunicativo

entre a geração de Friedländer e as tentativas posteriores de entender o rompimento

platônico com a poesia, como em Derrida ou Lacoue-Labarthe. A hipótese central de

175
Havelock, que vai alimentar toda sua obra e pesquisa, é que a literatura platônica representa

uma mudança de paradigma entre uma cultura tradicional oral e uma cultura baseada na

escrita. A introdução de seu livro resgata o problema da literariedade em Platão e o quanto

ela contradiz seu veto à poesia:

Em resumo: o alvo de Platão é precisamente aquelas qualidades que aplaudimos nele. Seu
alcance, sua catolicidade, seu comando do registro emocional humano, sua intensidade e
sinceridade, e seu poder de dizer coisas em nós mesmos que apenas ele pode revelar. E
ainda assim para Platão tudo isso é um tipo de doença, e precisamos perguntar por quê. .
(HAVENLOCK, 1963: 6)18

A discussão continua, estabelecendo que aquilo que Platão entendia por poesia é algo

essencialmente distinto de nossa poesia, e isto em um sentido mais profundo do que aquele

que Jaeger propõe. Não é apenas que a poesia do ator e do rapsodo tenham uma presença

prática mais intensa, mas, mais que isso, elas são instituições de um tipo antigo de

percepção, de uma cultura baseada na oralidade e na presença física daquele que discursa,

uma cultura de audição e de espacialidade, e não da visão. A condenação de Platão se daria

contra esta cultura oral. Nossa incompreensão da condenação platônica, especialmente

quando o filósofo afirma do perigo que a presença poética tem sobre a alma, o que na

verdade nós não conseguimos entender é uma experiência radicalmente distinta de

conhecimento. A experiência de conhecimento oralizada exige um nível de identificação

entre audiência e recitador que nos é estranho. O mecanismo é bastante simples, na

descrição de Havenlock: o “texto” oral, para que seja a instituição educativa que é na

Grécia, tem de ser referenciável, tem de estar vivo na memória, por assim dizer. Sem a

possibilidade de um mapa de referência como é a escrita, a única possibilidade de retomar o

texto é tê-lo internalizado, sabê-lo de cor. E a instituição que permite este grau de

176
conhecimento é exatamente o recital público, com a recriação do que está sendo descrito

não apenas para o entendimento, mas para todos os sentidos. Uma récita de Homero como é

descrita por Íon, em que a audiência chora junto do Rapsodo e este junto dos personagens, é

necessária em uma cultura oral para que o texto seja fixado. Não basta apenas uma

experiência mais intensa na relação com o texto para fixá-lo, mas deve ser mais presente

também, pois é através da repetição constante que o texto é fixado. Neste sentido, o texto

possui a vida, o corpo e a alma de quem o recebe, em termos de tempo, de presença e de

identidade. No momento da récita não existe distanciamento entre rapsodo/ator e audiência:

todos são a própria história contada. Segundo Havenlock sobre a apresentação poética:

Ela se foca inicialmente não sobre o ato do artista, mas sobre seu poder de fazer sua
audiência se identificar quase patologicamente com o conteúdo do que está dizendo. E assim
quando Platão parece confundir o gênero épico com o dramático, o que ele está dizendo é
que qualquer sentença poetizada precisa ser planejada e recitada de maneira a torná-la um
tipo de drama dentro da alma de tanto o recitador quanto da audiência. (HAVENLOCK,
1963: 45)19

Neste panorama, a cultura oral dos recitais impede o afastamento necessário à liberdade por

que Platão está lutando. Não é apenas que a cultura poética seja falsa, mas o problema

básico é que ela é excessivamente presente, ela deixa muito pouco espaço para a

individualidade. E é contra esta presença excessiva que Platão construiria seu caso. A obra

platônica marcaria a passagem de uma cultura literária para uma cultura oral, e neste

aspecto sua condenação à poesia é na verdade condenação à oralidade enquanto forma de

transmissão e criação de conhecimento. O que Havenlock concebe é uma espécie de

inversão de paradigma: Platão não seria o detrator da poesia, mas o defensor da nova forma

de cultura, o primeiro defensor forte da literatura. Sua condenação à poesia não é

177
condenação à arte poética, nem à técnica literária, nem propriamente ao conteúdo e à forma

de conhecimento poético, mediado pela imaginação e pela criatividade, mas antes uma

defesa destes campos contra a força da cultura oral tradicional. Aqui temos uma espécie de

quadratura do círculo, e a enésima reinvenção do conflito antigo entre literatura e filosofia.

1
Versão da tradução do original para o espanhol:

Así transcurre durante longo tiempo la preparación, con el objetivo final en esta interdependencia, la pura
metafísica y la contemplación de las ideas, enlazando internamente por fin la imagen acabada: el alma,
pensada según el modelo del cuerpo, tiene ojos como él para ver, sólo que esos ojos están enfocados hacia las
formas eternas.
2
Utilizamos a tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado pela Martins Fontes (PLATÃO, 2006) para as
citações em português, com a versão de Paul Shorey em inglês para cotização (PLATÃO, 1969, v5 e 6)
3
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):

For what we laid down in the beginning as a universal requirement when we were founding our city, this I
think, or some form of this, is justice. And what we did lay down, and often said, you recall, was that each
one man must perform one social service in the state for which his nature is best adapted.” “Yes, we said
that.” “And again that to do one's own business and not to be a busybody is justice, is a saying that we have
heard from many and have often repeated ourselves.” “We have.” “This, then,” I said, “my friend, if taken in
a certain sense appears to be justice, this principle of doing one's own business.
4
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):

Neither, then, could God,” said I, “since he is good, be, as the multitude say, the cause of all things, but for
mankind he is the cause of few things, but of many things not the cause. For good things are far fewer with us
than evil, and for the good we must assume no other cause than God, but the cause of evil we must look for in
other things and not in God.” “What you say seems to me most true,” he replied. “Then,” said I, “we must not
accept from Homer or any other poet the folly of such error as this about the gods when he says“ Two urns
stand on the floor of the palace of Zeus and are filled with Dooms he allots, one of blessings, the other of gifts
that are evil
5
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):

“From every point of view the divine and the divinity are free from falsehood.” “By all means.” “Then God is
altogether simple and true in deed and word, and neither changes himself nor deceives others by visions or
words or the sending of signs in waking or in dreams.” “I myself think so,” he said, “when I hear you say it.”
“You concur then,” I said, “this as our second norm or canon for speech and poetry about the gods,—that they
are neither wizards in shape-shifting nor do they mislead us by falsehoods in words or deed?” “I concur.”
“Then, though there are many other things that we praise in Homer, this we will not applaud, the sending of
the dream by Zeus on Agamemnon…
6
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):

Is it, then, only the poets that we must supervise and compel to embody in their poems the semblance of the
good character or else not write poetry among us, or must we keep watch over the other craftsmen, and forbid

178
them to represent the evil disposition, the licentious, the illiberal, the graceless, either in the likeness of living
creatures or in buildings or in any other product of their art, on penalty, if unable to obey, of being forbidden
to practice their art among us, that our guardians may not be bred among symbols of evil…
7
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):

… and concede to them that Homer is the most poetic of poets and the first of tragedians, but we must know
the truth, that we can admit no poetry into our city save only hymns to the gods and the praises of good
men. For if you grant admission to the honeyed muse in lyric or epic, pleasure and pain will be lords of your
city instead of law and that which shall from time to time have approved itself to the general reason as the
best.”
8
Versão da tradução do original para o espanhol

Para Platón, como intérprete del mundo, había sido dado en esas leyendas un fragmento de explicación del
mundo – ho filomythos filósofos pós esti – el amigo de los mitos (filomythos) de alguna manera es amigo de
la sabiduría (filósofos)–, fragmentos de un gran mito medido, perdido y troceado a través de las vueltas del
teimpo, que se trata de purificar, de enlazar y de darle forma de nuevo.
9
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):

“Then may she not justly return from this exile after she has pleaded her defence, whether in lyric or other
measure?” “By all means.” “And we would allow her advocates who are not poets but lovers of poetry to
plead her cause in prose without metre, and show that she is not only delightful but beneficial to orderly
government and all the life of man.
10
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):

“… so long as she is unable to make good her defence we shall chant over to ourselves as we listen the
reasons that we have given as a counter-charm to her spell, to preserve us from slipping back into the childish
loves of the multitude; for we have come to see that we must not take such poetry seriously as a serious
thing that lays hold on truth, but that he who lends an ear to it must be on his guard fearing for the polity in
his soul and must believe what we have said about poetry.” “By all means,” he said, “I concur.” “Yes, for
great is the struggle,” I said, “dear Glaucon, a far greater contest than we think it, that determines whether a
man prove good or bad, so that not the lure of honor or wealth or any office, no, nor of poetry either, should
incite us to be careless of righteousness and all excellence.”
11
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):

“And shall we not say that the part of us that leads us to dwell in memory on our suffering and impels us to
lamentation, and cannot get enough of that sort of thing, is the irrational and idle part of us, the associate of
cowardice?” “Yes, we will say that.” “And does not the fretful part of us present many and varied occasions
for imitation, while the intelligent and temperate disposition, always remaining approximately the same, is
neither easy to imitate nor to be understood when imitated, especially by a nondescript mob assembled in the
theater? For the representation imitates a type that is alien to them.” “By all means.” “And is it not obvious
that the nature of the mimetic poet is not related to this better part of the soul and his cunning is not framed to
please it, if he is to win favor with the multitude, but is devoted to the fretful and complicated type of
character because it is easy to imitate?” … we shall say that the mimetic poet sets up in each individual soul a
vicious constitution by fashioning phantoms far removed from reality, and by currying favor with the
senseless element hat cannot distinguish the greater from the less, but calls the same thing now one, now the
other.”

179
12
Versão da tradução do original para o espanhol

En la última década de Eurípides – que en calidad de creador y detruidor de mitos al mismo tiempo insertó las
fuerzas de disolución en las raíces del mismo mito –, transcurre la juventud de Platón. Es bueno acordarse que
su tío y admirado molde fue Crítias, y de que entre los seguidores de Eurípides es el proprio Crítias el que,
desde la escena ateniense, muestra el mundo de los dioses como el venturoso hallazgo de un hombre astuto.
13
Utilizamos para a citação em português a tradução de Victor Jabouille (PLATÃO, 1988). Para o cotejo
abaixo a tradução de W. R. M. Lamb (PLATÃO, 1925, v9). Disponível em
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/ .

Ion: How vivid to me, Socrates, is this part of your proof! For I will tell you without reserve: when I relate a
tale of woe, my eyes are filled with tears; and when it is of fear or awe, my hair stands on end with terror, and
my heart leaps. (…)
Socrates: And are you aware that you rhapsodes produce these same effects on most of the spectators also?
Ion: Yes, very fully aware: for I look down upon them from the platform and see them at such moments
crying and turning awestruck eyes upon me and yielding to the amazement of my tale. For I have to pay the
closest attention to them; since, if I set them crying, I shall laugh myself because of the money I take, but if
they laugh, I myself shall cry because of the money I lose.

14
Versão da tradução do original para o espanhol

Es el pensamiento o la imagen de lo “demónico” como una zona “entre” la superficie humana y la divina que,
por su situación intermedia, “enlaza el todo conjuntamente consigo mismo”. Diotima situa ese reino, al
comiezo de su mito de Eros, y lo hace como lugar de todo tráfico entre dioses y hombres, para lo que está
toda arte de la mántica y el sacerdotal, toda brujería y la magia...”
15
Versão da tradução do original para o espanhol

Y en efecto, para Platón sale el mundo sucesivamente en idea y aparencia de forma completamente más sutil,
un lazo tan fuerte debía cambiar de nuevo esta oposición en unidad. Así es para el un intermedio (metaxy)
entre idea y aprencia es el alma humana, así la “doxa” como tercer grado del mundo del conocimiento, un
intermedio entre no-ser y ser, conducida de éste a aquél. Pues de nuevo la “dianoia”, la zona de la ciencia
individual, está en el medio, entre el puro conocimiento que se dirige a el reino de las ideas y la mera opinión
que le dirige a la fluctuante aparencia. Sin la proporción de los elementos, sin el armónico sistema de las
formas de ser y conocer, sin la “metaxy” del alma, sin la zona de lo “demónico”, se rompen cielo y tierra
entre sí.
16
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):

“But we have not yet brought our chief accusation against it. Its power to corrupt, with rare exceptions, even
the better sort is surely the chief cause for alarm.” “How could it be otherwise, if it really does that?” “ Listen
and reflect. I think you know that the very best of us, when we hear Homer or some other of the makers of
tragedy imitating one of the heroes who is in grief, and is delivering a long tirade in his lamentations or
chanting and beating his breast, feel pleasure, and abandon ourselves and accompany the representation with
sympathy and eagerness, and we praise as an excellent poet the one who most strongly affects us in this way.”
“O yes,” said I, “if you would consider it in this way.” …
“If you would reflect that the part of the soul that in the former case, in our own misfortunes, was forcibly
restrained, and that has hungered for tears and a good cry and satisfaction, because it is its nature to desire
these things, is the element in us that the poets satisfy and delight, and that the best element in our nature,
since it has never been properly educated by reason or even by habit, then relaxes its guard over the plaintive

180
part, inasmuch as this is contemplating the woes of others and it is no shame to it to praise and pity another
who, claiming to be a good man, abandons himself to excess in his grief; but it thinks this vicarious pleasure
is so much clear gain, and would not consent to forfeit it by disdaining the poem altogether. That is, I think,
because few are capable of reflecting that what we enjoy in others will inevitably react upon ourselves. For
after feeding fat the emotion of pity there, it is not easy to restrain it in our own sufferings.”
17
cf. O segundo volume de REALE, Giovanni. História da filosofia antiga (6v). (trad Marcelo Perine). São
Paulo: edições Loyola, 1993.
18
Tradução própria do original em inglês:

In short, Plato’s target in the poet is precisely those qualities we appalud in him; his range, his catholicity, his
command of the human emotional register, his intensity and sincerity, and his power to say things in ourselves
that only he can say and only he can reveal. Yet to Plato all this is a kind of disease, and we have to ask why.
19
Tradução própria do original em inglês:

It focuses initially not on the artist’s act but on his power to make his audience identify almost pathologically
and certainly sympathetically with the content of what he is saying. And hence also when Plato seems to
confuse the epic and the dramatic genres, what he is saying is that any poetized statement must be designed
and recited in such a way as to make it a kind of drama within the soul both of the reciter and hence of the
audience.

181
6: teorias da tragédia no idealismo alemão

6.1. Antecedentes da recepção da tragédia no idealismo alemão

Neste capítulo tentaremos apresentar a recepção da tragédia pelo idealismo alemão.

Isto significa estabelecer os termos da discussão, tentar perceber, por exemplo, como a

teoria da tragédia que em Lessing ainda é um comentário à Arte poética de Aristóteles se

torna em Hegel e em Hölderlin algo bastante distinto, já não uma teoria do efeito estético,

mas uma ontologia. A discussão sobre o trágico é também um dos parâmetros que delimita

uma filosofia do esclarecimento, em Lessing e Kant, para o idealismo que se afirma a partir

da geração de Iena, com a décima carta de Cartas sobre dogmatismo e criticismo, de

Schelling, sendo uma espécie de manifesto fundador da estética do idealismo. A seguir

discutiremos a tragédia em Hegel. É preciso notar que há duas teorias fortes do trágico em

Hegel, uma primeira nos capítulos V e VI da Fenomenologia do espírito, em que Édipo rei

e Antígona são entendidos como manifestação do espírito no universo ético (e neste caso a

discussão sobre o trágico está atada à discussão ética, é uma teoria de como o espírito surge

no Estado antigo, na pólis grega), e um segundo momento, dez anos mais tarde, em que ao

fim da quarta parte de seu Curso de estética Hegel estabelece uma teoria geral da tragédia.

Neste caso, embora a discussão central ainda seja ética (como tudo o mais na obra de

Hegel), já não se trata de entender a manifestação do espírito na polis, mas sim de teorizar a

própria forma trágica, de entendê-la e de caracterizá-la de uma maneira mais específica.

Não há propriamente discordância entre os dois momentos teóricos, mas a tragédia na

182
Fenomenologia do espírito é alguma coisa tão central que Hegel não se preocupa nem em

tratá-la como uma forma artística, nem relacioná-la a uma teoria da catarse, o parâmetro

para toda discussão sobre o trágico. Ao fim deste capítulos trataremos brevemente da

tragédia em Hölderlin, especialmente de sua teoria do trágico, que é mais uma ontologia e

uma teoria da linguagem que propriamente uma teoria da forma artística.

A discussão sobre o trágico em Lessing no conjunto de reflexões que formam sua

Dramaturgia de Hamburgo ainda é delimitada pela obra de Aristóteles, e é essencialmente

um leitura sobre o sentido de compaixão e terror que a catarse trágica deve purificar. Este é

um momento excepcional da formação de um pensamento (sobre o) trágico. Seu argumento

é que o “terror” com que se traduz o phobos na Arte poética de Aristóteles deveria ser

traduzido mais propriamente por “temor”, “medo”. Para Lessing, a possível confusão

tradutória seria responsável pelos teatros modernos que tentaram reproduzir o teatro trágico

terem cometido excessos, com obras que se afastaram do espírito original da tragédia. O

que está em jogo em Lessing é qual a dívida dos contemporâneos para com a tragédia

clássica, se uma fidelidade formal ou uma fidelidade espiritual. Esta é uma primeira

aparição da distinção entre uma filosofia do trágico e o trágico enquanto forma literária,

fundamental para o idealismo do século XIX em seu esforço sobre o pensamento estético.

Lessing não renega completamente as regras de composição aristotélicas e suas

conseqüências. No entanto, chama a atenção que estas regras nasceram de problemas

práticos do palco e da sociedade grega, e que sua reprodução pura e simples em um palco

moderno – ou, mais precisamente, em um palco alemão moderno – não poderia jamais

apresentar a unidade orgânica entre o interesse do público e o representado. Esta crítica,

183
voltada especialmente ao classicismo francês que tenta emular o teatro trágico grego, tem

um alcance mais amplo do que a problematização entre público e obra. O tema central da

crítica de Lessing é a inadequação de traduzir o phobos aristotélico como “terror”, sendo

mais adequado o termo “temor”. Para Lessing, compaixão e temor não seriam apenas

sentimentos instrumentais, efeitos de uma performance cujo objetivo final seria a sua

autodissolução na catarse para que o espectador, o sujeito afetado pela obra, pudesse atingir

um meio-termo emocional, um reequilíbrio de sentimentos e paixões. Mais que isso, esse

temor e compaixão, que Lessing liga ao termo filantropia correlato em Aristóteles (76ª

jornada, carta de 22 de janeiro de 1768), seriam a própria essência do trágico. Esta

“filantropia”, que Lessing estabelece como uma forma específica de sentimento, distinto da

compaixão, na medida em que não é motivado pelo sensível, mas é sim amor ao humano

em geral, sentimento moral de dever para com o próximo mais que o afeto pelo personagem

que sofre, e que faz com que o espectador sinta piedade mesmo pelos vilões que estão para

morrer, pelo criminoso e pelo celerado. Esta filantropia projeta a obra em uma dimensão

que vai um pouco além da reflexão de Platão e Aristóteles sobre a tragédia clássica. Em

ambos a poesia é entendida como essencialmente uma prática performática, mas de modo

algum, especialmente em Platão, algo que corresponda a uma verdade ontológica do ser

humano. O caráter “filantrópico” que Lessing atribui à forma trágica a tornaria um caminho

para irmos além da preocupação específica com os personagens e fábulas representados em

cena, e passarmos à preocupação com o próprio humano, indo do particular para o

universal, do exemplo para o conceito. É também a maneira de relacionar o estético ao

conhecimento, pois no filantrópico, na compaixão que a forma trágica desperta pelo herói

que sofre, culpado ou não, surge o amor pelo humano. Segundo Lessing:

184
É exatamente esse amor, digo eu, que em nenhuma circunstância podemos perder
inteiramente para com o nosso próximo, que, sob a cinza ... continua a sopitar inextinguível
e como se esperasse uma lufada propícia de infortúnio, dor e perdição, para irromper numa
labareda de compaixão, exatamente esse amor é que Aristóteles denomina sob o nome de
filantropia. (LESSING, 1991: 64)

Este amor não é essencialmente distinto do Eros platônico conforme apresentado em

Banquete, é ainda a força daimônica que media a relação entre o universo ético e o homem

singular, a ponte entre a razão do indivíduo e as idéias. Apenas este eros é filtrado pela

visão sentimental e política do século XVIII, que o torna não uma força de espanto, um

desejo de conhecimento e de bem, conforme Platão pensa, mas um desejo de afirmação de

certos valores morais positivos que Lessing concebe como a base ética da tragédia. Nós

retornaremos a este amor que é um dos termos fundamentais da discussão trágica em Hegel

e Hölderlin, mas gostaríamos de indicar que na leitura de Lessing da filantropia aristotélica

já há a tentativa de estabelecer a forma trágica não como um problema de recepção, não

como uma obra que diga respeito apenas ao sensível, mas como uma forma que consegue

penetrar no universo ético e dar acesso a uma realidade profunda, representar um bem

moral, mesmo quando trata de vilões e celerados. Isto ainda não é a centralidade que a

geração posterior a Lessing dará ao trágico, pois a construção do sentido do trágico em

Lessing ainda estabelece que a obra de arte precisa se justificar moralmente, ela ainda está

subordinada a uma função didática e moralizante, mesmo que esta função seja uma espécie

de plano de fundo.

Lessing ainda não chega à visão de Schiller de que a obra de arte é gratuita, é lugar

do puro jogo entre sensibilidade e entendimento, na terminologia empregada por Kant em

185
sua Crítica da faculdade de juízo. Em sua concepção, a obra de arte ainda é funcional,

ainda atende a um apelo didático, especificamente a defesa de um nacionalismo alemão,

burguês e ilustrado, contra o modelo do absolutismo esclarecido francês. De novo, não

estamos ainda diante da questão da liberdade humana, como em Schiller, e mais tarde no

idealismo, mas apenas de uma liberdade política, circunscrita a uma determinada situação

histórica concreta.

Em Kant a beleza é gratuita, não se relaciona ao que o filósofo chama de perfeição,

à justeza a algum fim que a tornaria apreensível pelo entendimento dentro do âmbito de

uma razão prática. A beleza é gratuita e não pode construir entendimento. Uma das

diferenças entre Lessing e Kant é que o último não supõe a catarse como um momento

necessário para a apreensão do estético – e aqui estamos extrapolando a discussão de

Lessing sobre o trágico para o belo e a obra de arte em geral, o que talvez seja autorizado

por seu Laocoonte. A maneira de Kant pensar o belo estabelece que sua apreensão, de

saída, é desinteressada, puramente contemplativa. O belo em Kant é o jogo livre entre

gosto, afeto, e entendimento, sem que esta relação consiga em momento algum chegar ao

conceito, portanto não tendo a potência de construir conhecimento. Esta neutralidade do

belo afasta-o da tragédia, já que esta passa necessariamente pela discussão do interesse

moral e da necessidade. Só pode ser belo aquilo que não tem uma finalidade, que não

concerne ao julgamento, mas apenas ao campo relativo do afeto. O que a geração de Iena

vai realizar contra Kant é o restabelecimento do sentimento do belo como um parâmetro

legítimo para o conhecimento, como algo que diz respeito a uma manifestação legítima da

verdade (do divino, do absoluto, da idéia) no mundo. De Kant é mantida a noção de que a

186
arte se relaciona de alguma maneira ao entendimento, de que no sentimento do belo o

entendimento participa, e não apenas o gosto individual, mas contra Kant o idealismo supõe

que haja uma substância apreensível por trás do sentimento do belo, que este possa através

do parcial e do singular que lhe são específicos estabelecer o acesso ao universal. Segundo

Gérard Bras em Hegel e a arte:

As definições kantianas a esse respeito [sobre o belo] são bastantes conhecidas: o belo é o
que agrada universalmente e sem conceito. Trata-se então menos de saber em que ele
consiste do que de estudar o juízo pelo qual é enunciado, a maneira pela qual é dito. Seu
mérito é, para Hegel, enunciar a co-penetração do espiritual e do sensível, do universal e do
particular. Sabe-se que o juízo de gosto é, em Kant, nada menos que pessoal e relativo. Mas
justamente Kant não chega, segundo Hegel, a pensar objetivamente essa co-penetração, uma
vez que ela só existe fundada no juízo, isto é, no subjetivo. (BRAS, 1990: 19)

O belo em Kant não tem uma dimensão ética necessária, e para uma filosofia idealista que

identifica a substância ética, o que está por trás da ação concreta do homem quando este

obedece a uma necessidade racional, será contra isto. Esta liberdade moral do belo será um

dos pontos de divergência mais importantes entre o idealismo e a geração precedente. Não

é que a obra de arte para os de Iena tenha de ser moralizadora em um sentido positivo, da

lei e dos valores estabelecidos, já dados, mas sim que o sentimento do belo surge da

percepção de uma substância ética (Hegel) ou ontológica (Schelling, Hölderlin) por trás da

obra de arte.

Lessing talvez concorde com a liberdade moral do belo, ou pelo menos supõe que

um personagem bom esteticamente não tem de ser bom também moralmente, mas não

conceberia a liberdade entre obra de arte e finalidade moral. Lessing possui a humana

sabedoria de entender que aquilo que chamamos de belo não é desinteressado: não

187
independe, como pensa Kant, de seu entorno, nem é necessariamente uma questão de gosto

individual, portanto indecidível para o entendimento, portanto incapaz de gerar

conhecimento. Em Lessing o belo, ou pelo menos a obra de arte, parte privilegiada de seu

universo, está articulado com condições e circunstâncias que o formam. Não tem uma

origem, mas um nascimento, e sua apreensão não é uma constante, mas se transforma de

acordo com a história e a sociedade, e, acima de tudo, as paixões humanas são um estágio

necessário tanto na apreensão do próprio belo quanto na de seu “resto”, o conhecimento

que aponta. O belo deve ser moral, deve atender a e dialogar com o entendimento. Daí a

importância da tragédia e da catarse: liberar o entendimento da paixão, não para

clinicamente purgar um desequilíbrio, como propõe Aristóteles, mas antes para permitir

que a partir do novo equilíbrio atingido algum conhecimento possa ser obtido. Em Kant o

jogo entre entendimento e sensibilidade, mediado pela imaginação, pela apresentação de

objetos à contemplação, não consegue jamais fazer com que as intuições estéticas formem

conceitos universalmente válidos.

6.2. O trágico em Schelling e o afastamento da teoria do efeito trágico

Mas estes conceitos (im)possíveis serão a própria essência do trágico conforme a

geração de Iena, a geração de Schelling, Hölderlin e Hegel, vai entendê-lo. A essência de

188
toda atividade humana também, de que a arte é o principal exemplo. O que há no idealismo

é a valorização da obra de arte como instância mais importante para a manifestação do

espírito humano. Já não apenas o jogo livre que prepara o advento da liberdade, como na

leitura de Schiller, baseada em Kant, da obra de arte em A educação estética do homem. A

obra de arte é para esta geração a manifestação já acabada do espírito, é na obra de arte e

naquilo que ela suscita, a sensação estética de beleza, que o ser humano reconhece a

grandeza de seu espírito, é através dela que supera a amnésia de sua grandeza moral e

espiritual. Em termos teóricos isto significa um afastamento da teoria do efeito estético, da

catarse aristotélica, favorecendo uma teoria do conflito trágico. A tragédia cessa de ser

interpretada como uma questão de performance e de representação, e passa a ser pensada

em termos de manifestação de um conteúdo ético, de uma verdade, de um conflito entre

partes, acima de tudo como uma maneira de se pensar o espírito humano diante daquilo que

lhe é estranho. Schelling, Hegel e Hölderlin trilham este caminho, possivelmente

caracterizado de maneira mais direta em Hegel. Em seu caso, a estrutura trágica é a própria

estrutura da dialética, do espírito encontrando sua alteridade negativa e sendo obrigado a

suprassumi-la. Segundo Mark W. Roche:

Muitos intérpretes da tragédia, começando já com Aristóteles, focam seu comentário sobre o
efeito da tragédia, sobre sua recepção. Hegel, junto com Friedrich Hölderlin (1770-1843),
Friedrich Schelling (1775-1854), e Peter Szondi (1929-1979), é um dos poucos na tradição a
tomar um caminho diferente. Hegel foca na estrutura fulcral da tragédia. E assim o foco de
Hegel sobre a estrutura da colisão trágica lhe dá um novo ângulo dos motivos tradicionais
de medo e compaixão. Para Hegel, a audiência não deve temer o destino exterior, como com
Aristóteles, mas a substância ética que, se violada, se voltará contra o herói. (ROCHE, 2006:
4, In DUNCAN, 2006)1

189
É Schelling que primeiro reconhece no estético esta dimensão ontológica. Em sua Filosofia

da arte a teoria estética se afasta definitivamente das categorias aristotélicas de efeito e de

representação para se tornar uma das partes mais importantes do pensamento filosófico.

Não é só que a obra de arte possa representar uma verdade e ser algo mais que um exercício

sensível, contra Platão e Aristóteles, nem que a sensibilidade tenha a capacidade de um

entendimento tão válido quanto a razão, contra Kant. A obra de arte na verdade é a

manifestação mais própria da idéia, é nela que as aporias e os limites do conhecimento

humano se resolvem. Segundo Roberto Machado, comentando a idéia de beleza na obra de

Schelling:

A beleza consiste na manifestação de uma harmonia que dá a quem a contempla o


sentimento de uma satisfação infinita. Mais ainda: é a solução de um antagonismo. O
sentimento do belo é a expressão da satisfação de ver apreendido o infinito no âmago do
finito. (MACHADO, 2006: 91)

Esta cisão entre a visão kantiana e o idealismo que surge logo após o criticismo talvez

tenha nas Cartas sobre dogmatismo e criticismo de Schelling seu melhor documento. É ao

mesmo tempo a delimitação do afastamento em relação ao dogmatismo, à metafísica de

Descartes e Spinoza, e ao criticismo, a filosofia de Kant. A preocupação de Schelling é

discutir a necessidade de um Deus dotado de moralidade positiva, ou seja, de um Deus

moralmente bom, e ao mesmo tempo afirmar a possibilidade de um eu que conheça a idéia,

e não apenas seu fenômeno. A décima carta oferece, segundo Peter Szondi em Poesia e

poética do idealismo alemão (SZONDI, 1975: 10-11), a primeira definição moderna de

tragédia, o que vale dizer, a primeira vez em que uma teoria do trágico é algo além da

reflexão sobre o efeito da catarse. A definição de Schelling nesta carta é importante porque

190
ao mesmo tempo que constrói a transição entre o racionalismo da ilustração e o sistema

kantiano e o idealismo, estabelece os termos da discussão sobre o trágico no idealismo

alemão. Segundo Schelling na última carta, a carta X:

Muitas vezes se perguntou como a razão grega podia suportar as contradições de sua
tragédia. Um mortal, destinado pela fatalidade a ser um criminoso, lutando ele mesmo
contra a fatalidade, e contudo terrivelmente castigado pelo crime que era obra do destino! O
fundamento dessa contradição, aquilo que a tornava suportável, estava em um nível mais
profundo do que onde a procuraram, estava no conflito da liberdade humana com a potência
do mundo objetivo, no qual o mortal, se aquela potência é uma potência superior (um
fatum), tinha de necessariamente ser derrotado, e, contudo, porque não foi derrotado sem
luta, tinha de ser punido por sua própria derrota. Que o criminoso, que apenas sucumbiu à
potência superior do destino, fosse punido, era um reconhecimento da liberdade humana,
uma honra que se prestava à liberdade. (SCHELLING, 1973: 208)

Os termos de Schelling para definir o trágico (conflito entre eu e natureza, destino,

liberdade), assim como a conclusão de Schelling, de que a derrota do ser humano no trágico

era a afirmação de sua liberdade e portanto manifestação do espírito e do ideal, estão por

trás tanto da dialética de Hegel, a expressão do conflito entre Espírito e alteridade, entre

humanidade e Natureza, quanto da idéia do trágico em Hölderlin (que é na verdade uma

ontologia) de que a única solução para a reconciliação com uma natureza e um divino que

estão em uma distância infinita em relação ao homem é o conflito com esta natureza e este

divino. A conclusão de Schelling sobre o sentido da tragédia na carta X, de que

Liberdade e submissão, mesmo a tragédia grega não podia harmonizar. Somente um ser que
fosse despojado da liberdade podia sucumbir ao destino. – Era um grande pensamento
suportar voluntariamente mesmo a punição por um crime inevitável, para, desse modo, pela
própria perda de sua liberdade, provar essa mesma liberdade e sucumbir fazendo ainda uma
declaração de vontade livre. (SCHELLING, 1973: 208)

191
é uma daquelas afirmações que ressoam pelos pósteros, que exige ser pensada e emulada e

que estabelece um ponto de referência para se discutir. O trágico representa o conflito de

um eu livre e infinito (e que em Hegel vai se identificar com o absoluto) que se vê

aniquilado, mas que na simples resistência a este aniquilamento, na afirmação de seus

valores em relação ao mundo natural que tenta destruí-lo, ganha dignidade e amplia seu

alcance, se iguala a este outro infinito, a natureza. A crença de Hegel de que a natureza,

através do trabalho do Espírito, em uma longa trajetória de conflito e destruição, pode ser

suprassumida na obra humana (na ação através do trabalho, da história, da arte, da religião),

e que ela é na verdade a alteridade fundamental na busca do espírito pelo absoluto de si, e

que no conflito entre Espírito e Natureza está a fundação do processo dialético que leva ao

Espírito, se identifica com a leitura do trágico de Schelling. Segundo Peter Szondi em

Poesia e poética do idealismo alemão:

Na interpretação de Schelling o herói trágico sucumbe diante da “potência superior” do


objetivo, é punido por ter sucumbido, e mesmo por ter aceitado o combate, e daí o valor
positivo de sua atitude – esta vontade de liberdade que constitui a “essência do Eu” – se
volta contra ele mesmo. A este processo pode-se chamar, com Hegel, dialético. Schelling, é
verdade, tinha em vista a afirmação de uma liberdade adquirida com o anulamento, a
possibilidade de uma ação puramente trágica lhe permaneceu estrangeira. (SZONDI, 1975:
11)2

Da mesma forma, o antitheos de Hölderlin, o combate entre o herói trágico e a divindade

em que este sujeito necessariamente perece, mas, assim, através deste gesto simbólico,

consegue atingir uma nova linguagem e representar o infinito, está relacionado a esta

passagem de Schelling.

192
6.3. A tragédia em Hegel: a descrição formal no Curso de estética

Ainda que já em Schelling a discussão sobre o efeito estético vá ser enfraquecida, o

problema da catarse e do caráter mimético da obra de arte vai ainda acompanhar o

pensamento do idealismo sobre a arte. É também o índice de uma cisão do pensamento

idealista com a tradição de teoria estética desde Aristóteles, pois, na geração de Hegel, e

especialmente nele, temos a exigência de um conceito de arte que não respeite nem as

exigências moralizadoras e didáticas tradicionais, nem a exigência de identidade entre

natureza e belo. No Curso de estética Hegel estabelece logo de início sua posição em

relação à tradição aristotélica: o fim da arte, ou ao menos sua missão , não seria representar

a natureza, mas sim manifestar o espírito. É importante chamarmos a atenção para uma

questão conceitual, tentar entender que a arte, assim como, na verdade, os outros aspectos

do pensamento humano, não são simplesmente uma maneira de representação em Hegel. A

representação no pensamento hegeliano, ao menos a representação forte da obra de arte, da

religião ou da filosofia, é algo mais que formalização: representar é manifestar um ideal, é

exteriorizar a verdade de um processo e a verdade de uma idéia, é, finalmente, tornar o

absoluto presente no mundo, atado à história e ação dos homens, e ao mesmo tempo dotar

esta história de um conteúdo universal, de um sentido que vá além das circunstâncias

particulares e singulares que uma obra qualquer tem presente. Assim, a substância da obra

está sempre em si mesma, em sua forma e especificidade, mas está também fora de si

mesma, no conteúdo conceitual que ela personifica. Não há a possibilidade em Hegel de

193
fazer a disjunção entre o sensível e o ideal, eles estão atados, um diz o outro. Segundo

Gérard Bras em Hegel e a arte:

Partir da Idéia para refletir sobre a arte, dizer que o Belo é Idéia, é portanto estabelecer a
unidade conceitual do conjunto histórico das obras de arte e, ao mesmo tempo, conferir-lhe
um sentido. É reconhecer que uma obra desprovida de significação é também desprovida de
razão de ser e, em conseqüência, não existe efetivamente: nem idéia separada do mundo
material, nem simples figura redutível a uma utilidade qualquer, a obra de arte é a unidade
significante de uma forma sensível e de um conteúdo espiritual sob a dominância do
conteúdo. (BRAS, 1990: 58)

A visão hegeliana sobre a tragédia segue a mesma lógica da arte e de qualquer outra

manifestação do espírito. No caso específico da tragédia, vamos abordar o comentário de

Hegel a partir da perspectiva da catarse aristotélica, o parâmetro constante em todo

comentário sobre o trágico. A leitura formal de Hegel sobre o trágico, em seu Curso de

estética, é ao mesmo tempo um reforço e um afastamento do conceito de mimese

tradicional. A representação da obra se afasta do conceito antigo porque não é a natureza, o

mundo exterior, visual, do homem, que se representa, conforme é a representação em

Aristóteles e Platão, e que fundamentou toda teoria estética até o idealismo. O que a arte

representa é o Espírito, a Idéia, a matéria espiritual do ser humano em relação à ação do

homem no mundo, ou seja, a maneira como a ação concreta do homem revela o absoluto do

espírito, a força da individualidade se em harmonia com uma absoluto. É isto que é a

substância ética, o grande mote da filosofia de Hegel. Segundo Hegel na primeira parte de

seu Curso de estética:

Pretendendo que a imitação constitua o fim da arte, que a arte consista, por conseguinte,
numa fiel imitação do que já existe, coloca-se a lembrança na base da produção artística.
Priva-se, assim, a arte da liberdade, do poder de exprimir o belo. O homem pode, decerto,

194
ter interesse em produzir aparências como a natureza produz formas. Mas não pode se tratar
de um interesse puramente subjetivo em que o homem se limita a querer mostrar destreza e
habilidade sem considerar o valor objetivo daquilo que é sua intenção de produzir. Ora, o
valor de um produto provém do conteúdo, na medida em que este participa do espírito.
Como imitador, o homem não ultrapassa os limites do natural, ao passo que o conteúdo deve
ser de natureza espiritual. (HEGEL, 1996: 28-9)

A referência à lembrança é importante, porque a arte em Hegel tem um lugar muito

próximo da anamnese filosófica: ela é uma das instâncias em que é figurado, junto da

religião e da filosofia, o conflito do espírito com a natureza, e assim o processo de

aquisição de liberdade espiritual. Uma arte que seja mimética conforme a definição de

Aristóteles, que represente apenas o sensível, se afasta de sua missão, que é o contrário

disto, representar o conflito e a superação da natureza pelo homem, representar o

supersensível através do sensível, o infinito através do finito, e assim permitir o acesso do

homem ao absoluto, ao campo espiritual que é o conteúdo da obra humana. No pensamento

hegeliano este campo espiritual se manifesta necessariamente através do sensível: da ação

histórica, das paixões, dos desejos, é sempre figuração, mas uma figuração que possui a

mesma matéria do que representa, é a própria matéria do que representa. Uma obra de arte

aí não é algo que diz outra coisa e nisto se afasta do dito, como no pensamento platônico,

mas é sim a própria voz do que diz, é a própria coisa se expressando. Isto não significa que

não haja mediação entre a figuração e a idéia, mas sim que a figuração é a própria

mediação. Segundo Hegel na quarta parte de seu Curso de estética:

Por isso, podemos dizer, de modo geral, que o tema propriamente dito da tragédia originária
é o divino; mas não o divino do modo como constitui o conteúdo da consciência religiosa
como tal, e sim tal como penetra no mundo, no agir individual, mas que nesta efetividade
não perde nem seu caráter substancial nem se vê dirigido ao que é oposto a si mesmo. Nesta
Forma, a substância espiritual do querer e do realizar é o ético. Pois o ético, caso o
apreendamos em sua consistência imediata e não apenas do ponto de vista da reflexão

195
subjetiva como o formalmente moral, é o divino em sua realidade mundana, o substancial,
cujos lados, tanto particulares quanto essenciais, fornecem o conteúdo motor da ação
verdadeiramente humana e no agir mesmo explicitam esta sua essência e a tornam efetiva.
(HEGEL, 2004, v. 4:231)

Entre as maneiras de figurar o espírito, entre as maneiras da idéia se manifestar, a obra de

arte tem um lugar específico, distante da filosofia e da religião, mas não tem uma dignidade

inferior a ambas. Antes de mais nada a obra de arte tem a capacidade de explicitar

sensivelmente o espírito, de manifestar presença do infinito no finito, do Espírito na

Natureza, da liberdade na necessidade. Este é um tema comum a todo pensamento do

idealismo alemão, aquilo que indica a proximidade de Hegel em relação a Hölderlin e

Schelling, por exemplo, a crença de que esta missão de representação do artístico, sempre

tensa e paradoxal, é plenamente cumprida. Há em Hegel o otimismo típico de sua geração e

transmitido a todo pensamento estético posterior, que acredita que a linguagem artística

pode dar conta de representar o infinito, ainda que o mecanismo de representação seja

imensamente complexo, marcado por vários processos de contradição. Ao contrário do

pensamento alemão do período, e aqui está a marca da especificidade do pensamento de

Hegel em relação a seus contemporâneos, a Natureza não é vista como identidade, o natural

não é aquilo a que o homem deve retornar, mas antes aquilo que deve superar para que

possa haver a manifestação do Espírito. Em termos hegelianos, a finalidade da arte, que é a

manifestação do ideal, só pode ser cumprida através da superação (aufhebung) da natureza,

de sua suprassunção na forma artística. A Natureza em Hegel é o elemento de contradição,

de alteridade, que o pensamento formal deve suprassumir para retornar a si mesmo em

novos termos e manifestar o ideal.

196
Aquilo que a filosofia da arte de Hegel confirma na visão estética tradicional é a

importância da estrutura catártica para a apreensão da beleza. O prazer não estaria na

representação em si, como em Aristóteles, nem em simplesmente ter a sensibilidade

excitada, mas sim na maneira como esta representação consegue desvelar as razões por trás

da ação representada. A definição do trágico em Hegel passa por uma releitura eticizante da

catarse aristotélica. Em Hegel a catarse que surge da resolução do conflito trágico diz

respeito à percepção do universal no particular, à confirmação da substância ética na

reformulação da unilateralidade de cada pólo do conflito trágico. Se o conflito trágico se dá

devido à impossibilidade de cada pólo do conflito perceber a alteridade e se transformar, a

catarse surge como o momento de reconciliação entre estes dois pólos, entre uma lei divina

e uma lei humana, mesmo que esta reconciliação seja mediada pela morte. Aqui Hegel se

aproxima de Hölderlin, que vai encarar também a reconciliação entre divino e humano

como o fim da tragédia. Se esta reconciliação é catastrófica, se ela envolve morte e

dissolução, é porque o isolamento de cada pólo é aquilo que impede o reconhecimento da

alteridade, portanto o gesto mais deletério em relação ao trabalho do espírito. O primeiro

momento para a existência do trágico –e, no processo trágico, o trabalho do espírito– é a

“descida” do divino ao mundano (movimento que em determinadas passagens da

Fenomenologia é bastante próximo de uma queda teológica). A arte é um momento de

tornar efetiva a presença do espírito, ou seja, de perceber este espírito não como um valor

distante e cego, mas como algo a ser mediado pela experiência concreta da vida, um

abandono da certeza cega para o teste da experiência e da oposição. A base do trágico é

quando estes valores éticos absolutos, lei da cidade e lei da família, na Fenomenologia, são

obrigados a se confrontarem e se reconhecerem. A falha no reconhecimento de sua

197
alteridade, seu isolamento unilateral em si mesmos e a impossibilidade de reconhecer a

diversidade, é o que provoca o conflito trágico. Segundo Hegel no quarto volume de Curso

de estética:

Eu já mencionei anteriormente o fundamento universal da necessidade destes conflitos. A


substância ética, como unidade concreta, é uma unidade de relações e potências
diferenciadas, as quais, todavia, apenas em estado destituído de atividade, como deuses
felizes, realizam a obra do espírito no gozo de uma vida imperturbada. Inversamente,
porém, no conceito desta totalidade mesma reside igualmente a transformação de sua
idealidade inicialmente ainda abstrata em efetividade real e aparição mundana. É por meio
da natureza deste elemento que a mera diversidade, apreendida por caracteres individuais
sobre o terreno de circunstâncias determinadas, deve transformar-se em oposição e colisão.
Somente assim há seriedade verídica com aqueles deuses, que apenas no Olimpo e no céu da
fantasia e da representação religiosa persistem em seu repouso e unidade pacíficos; mas se
eles chegam efetivamente à vida, como pathos determinado de uma individualidade
humana, [524] eles levam à culpa e à inocência, independentemente de toda legitimidade,
por meio de sua particularidade determinada e oposição desta contra algo outro. (HEGEL,
2004, v. 4:237)

A tragédia ocorre porque existe uma falha de reconhecimento, porque o trabalho do

espírito, o aufhebung, é impossibilitado de se realizar. A catarse em Hegel corresponde ao

segundo momento do processo trágico, quando os pólos isolados são obrigados a se

enfrentarem e reconhecer que cada um tem substância ética. Deste reconhecimento surge a

possibilidade de reconciliação e da retomada do trabalho do espírito. Nesta chave de leitura,

a catarse é uma metáfora para o aufhebung, e vale talvez imaginar a hipótese de que a

relação de precedência não é da filosofia hegeliana para a catarse, com a catarse como uma

forma de aufhebung, mas sim com a catarse, a leitura de Hegel sobre a catarse e a tragédia

desde muito cedo em sua trajetória, como inspiração para o aufhebung. É na retomada da

catarse aristotélica que Hegel fornece sua definição mais acabada da forma trágica como

reconciliação das polaridade éticas isoladas. Segundo Hegel, no quarto volume de seu

Curso de estética:

198
O que por conseguinte é suprimido [aufgehoben] no desenlace trágico é apenas a
particularidade unilateral, que não conseguiu se adaptar a esta harmonia e que na tragédia de
seu agir, quando não pode abandonar a si mesma e seu propósito, se vê entregue, segundo
toda sua totalidade, ao declínio ou pelo menos se vê forçada a resignar, quando disso é
capaz, diante da realização de sua finalidade. A este respeito, Aristóteles, como é sabido,
situou o efeito verídico da tragédia no fato de que ela deve suscitar e purificar o temor e a
compaixão. (HEGEL, 2004, v. 4:237-8)

Hegel continua, seguindo um percurso bastante próximo às anotações de janeiro de 1768 de

Lessing em sua Dramaturgia de Hamburgo, estabelecendo os limites para o que deve ser

entendido como temor e compaixão na tragédia. Não se trataria de purificar paixões puras,

não é propriamente a miséria e o sofrimento que levam à catarse, mas sim este sofrimento

como forma de representar o conflito e sua superação. A tragédia dramatizaria o

afastamento do espírito de sua verdade e seu retorno, na resolução do conflito, à verdade do

espírito, aos valores éticos absolutos que são sua natureza. Isto exige que em sua ação os

personagens trágicos sejam plenamente responsáveis por aquilo que fazem. Não é trágico o

acaso cego nem o simples arbítrio do divino, mas apenas o conflito consciente do herói

contra os valores éticos que manifestam o absoluto. Apenas nesta responsabilização há a

possibilidade de que a reconciliação que Hegel reconhece como o fim da tragédia tenha um

sentido profundo, possa representar a vitória do absoluto sobre o particular. Esta posição de

Hegel, bastante próxima ao antitheos de Hölderlin, ao combate passional do herói contra o

divino, é o que o afasta também de Schelling. Se neste está em jogo a afirmação de um Eu

absoluto sobre o destino e a contingência, em Hegel está em jogo a possibilidade de este Eu

cumprir o trabalho do espírito, a aproximação e harmonização dos valores do indivíduo ao

universal. Segundo Hegel, o efeito trágico não passa pelo pathos puro, mas sim por este

pathos como confirmação e superação da substância ética de uma individualidade:

199
Um sofrimento verdadeiramente trágico, ao contrário, é apenas sentenciado, por sobre os
indivíduos agentes, como conseqüência de seu próprio feito, tanto legitimado quanto cheio
de culpa por meio de sua colisão, pelo qual eles também têm de responder como todo o seu
eu [Selbst].
Acima de mero temor e da simpatia trágica está, por isso, o sentimento da reconciliação,
que a tragédia garante por meio da visão da eterna justiça, que em seu imperar absoluto
perpassa a legitimidade relativa dos fins e das paixões unilaterais, porque ela não pode
tolerar que o conflito e a contradição das potências éticas, unas segundo o seu conceito, se
impunham vitoriosas na efetividade e conquistem consistência. (HEGEL, 2004, v. 4:239)

6.4. O trágico em Hegel: A Fenomenologia do espírito

O Curso de estética de Hegel fornece então uma definição da tragédia à luz de sua

própria filosofia. A seguir vamos nos deter na presença de Édipo rei e Antígona na

Fenomenologia do espírito, no modo como estas peças foram entendidas por Hegel como

figurações do trabalho do espírito e que questões da filosofia hegeliana foram abordadas em

relação a estas peças. A Fenomenologia do espírito é a obra fundamental do pensamento de

Hegel, já que é neste livro que são introduzidas as visões centrais de Hegel. O aufhebung, a

dialética do senhor e do escravo, o entendimento de que o absoluto se manifesta no mundo

da imanência das ações e paixões humanas, estes todos são temas característicos de Hegel

que são apresentados no livro. A Fenomenologia é publicada em 1807, cerca de dez anos

antes dos cursos de estética ministrados por Hegel, e a presença da tragédia na obra tem

uma chave distinta dos cursos. Se neste trabalho Hegel apresenta a reflexão sobre a tragédia

como um momento da discussão sobre o estético, na Fenomenologia as duas peças de

Sófocles são lidas no capítulo VI como uma maneira de ilustrar o próprio pensamento de

Hegel. O sexto capítulo da Fenomenologia é possivelmente a discussão central da obra,

200
porque refere o surgimento do trabalho do espírito dentro da realidade coletiva e histórica,

ou seja, como o espírito consegue manifestar sua essência absoluta em um ambiente em que

o absoluto não é possível. Toda manifestação do espírito é a mediação entre absoluto e

parcial, entre particular e universal, entre sensibilidade finita e razão infinita. Os dois

termos nunca se separam, porque o pólo espiritual da relação só pode se manifestar no

fenômeno, nos limites históricos e concretos da atividade humana. Mas, ato contínuo, na

atividade humana há a possibilidade de recuperar pouco a pouco o universal. Apenas esta

atividade humana deve ter a capacidade de surgir de uma harmonização de várias

consciências. O eu em Hegel é a base do conhecimento apenas se consegue superar o

próprio conforto e plenitude de ser uma consciência isolada e dar-se ao confronto com

outras consciências, valores e ações, ou seja, de reconhecer que o sentido unilateral em que

se dá seu gozo não é suficiente para garantir a verdade de sua ação. Esta talvez seja a

grande contribuição de Hegel para a filosofia, o entendimento de que a verdade é adquirível

apenas coletivamente. Em Hegel, seguindo a idéia romântica de que o povo é algo

orgânico, como uma imensa mente que se manifesta em indivíduos singulares, o espírito é

sempre a consciência de um povo. Através de um movimento contínuo de superação das

contradições dentro desta mente coletiva que é o povo, há a possibilidade do singular ter

compreensão cada vez mais profunda da substância ética absoluta que ele manifesta. Nas

palavras de Hegel no capítulo VI das Fenomenologia do espírito:

[parágrafo 441] O espírito é a vida ética de um povo, enquanto é a verdade imediata: o


indivíduo que é um mundo. O espírito deve avançar até a consciência do que ele é
imediatamente; deve suprassumir a bela vida ética, e atingir, através de uma série de figuras,
o saber de si mesmo. São figuras, porém, que diferem das anteriores por serem os espíritos
reais, efetividades propriamente ditas; e [serem] em vez de figuras apenas da consciência,
figuras de um mundo. (HEGEL, 2002: 306)

201
Esta necessidade do indivíduo transcender o singular tem diferentes leituras na tradição

filosófica que descende de Hegel. A tradição canônica entende a natureza relacional da

consciência como um problema epistemológico, como uma questão da natureza e da

possibilidade do conhecimento sobre a realidade. É o que está presente, por exemplo, no

comentário de Jean Hyppolite sobre o caráter coletivo do conhecimento em Hegel. Segundo

Hyppolite, em Gênesis e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel:

Portanto, o espírito aparece aqui como a experiência do cogitamus e não mais apenas do
cogito. Supõe a superação das consciências singulares e, simultaneamente, a conservação de
sua diversidade no seio da substância. É no coração da consciência singular que
descobrimos sua relação com outras consciências singulares. Cada uma é para-si e ao
mesmo tempo para outrem, cada uma exige o reconhecimento da outra para ser ela mesma e
deve igualmente reconhecer a outra. (HYPPOLITE, 2003: 343)

Esta necessidade da verdade ser uma construção coletiva é também o que estabelece a

afinidade das teorias revolucionárias comunistas com o pensamento de Hegel, e que torna

sua teoria uma teoria da história humana. De qualquer maneira, em Hegel a possibilidade

de conhecimento tem dois pressupostos. O primeiro é a necessidade de confronto com a

alteridade, do ser em si, alienado em seu gozo isolado, com os objetos exteriores a si

mesmo, sua negatividade. O segundo pressuposto é que este processo é contínuo e se

manifesta na história coletiva das obras humanas. É na história que se dá a construção do

conhecimento, e é na instituição histórica que consegue manter de uma maneira harmoniosa

o conflito entre consciências que se encontra a figura superior do pensamento de Hegel, o

Estado de direito. É no Estado de direito que os indivíduos conseguem transcender sua

própria sensibilidade e se confrontar com outros valores de uma forma construtiva. É neste

202
âmbito que Hegel utiliza as figuras de Édipo e de Antígona, como uma maneira de

apresentar o surgimento do espírito na Grécia clássica, no Estado Ático. A utilização de

Sófocles como ilustração visa a fornecer o esquema de construção, conflito e dissolução

deste Estado.

A cidade-estado grega é concebida por Hegel como a sobreposição entre lei divina e

humana. O divino não tem nesta parte do trabalho o sentido específico do ideal, nem é uma

lei necessariamente superior ao direito positivo da cidade. Na Fenomenologia a lei divina

se refere à instância da família, que em Hegel tem a função específica de conceder sentido

universal ao acontecimento da morte. A morte do indivíduo, em si desprovida de sentido

universal, nos termos de Hegel um acontecimento vazio e que ameaça esvaziar o sentido da

obra daquele que viveu porque retira este morto do ciclo de alteridade, torna-o um ser puro,

fora da ação relacional, e, portanto pura passividade, que nem age sobre os outros nem pode

impedir a ação dos outros sobre si, que é resgatado deste destino ao ser afastado da

comunidade dos vivos através do ritual funerário. Quando a família enterra seu morto

estabelece o afastamento do indivíduo morto em relação aos viventes, e protege-o da ação

daqueles que ficam, preservando o sentido daquilo que o morto viveu. Segundo Hegel:

[parágrafo 452] Acontece por isso que também o ser morto, o ser universal, se torne um
[ser] retornado a si, um ser-para-si ou que a pura singularidade singular, carente de forças,
seja elevada à individualidade universal. O morto, por ter liberado o seu ser do seu agir, ou
do Uno negativo – é a singularidade vazia, apenas um passivo ser para Outro, abandonado a
toda individualidade irracional inferior e às forças da matéria abstrata. Agora elas são mais
poderosas que o morto: a primeira, em razão da vida que possui, e as outras, por causa de
sua natureza negativa.
A família afasta o morto desse agir que o profana, [o agir] dos desejos inconscientes e das
essências abstratas; põe o seu agir no lugar [do agir deles] e faz o parente desposar o seio da
terra, a individualidade elementar imperecível. Desse modo, torna-o sócio de uma
comunidade que, antes, mantém subjugadas e prisioneiras as forças das matérias singulares
e as vitalidades inferiores, que queriam desencadear-se contra o morto e destruí-lo.
(HEGEL, 2002: 312-3)

203
O dever de enterro permite que o singular, que o indivíduo se proteja de ser tornado objeto

vazio e puramente passivo. Nas palavras de Hegel, constitui “a lei divina perfeita, ou a ação

ética positiva para com o Singular” (HEGEL, 2002: 313). O dever de enterro também

insere o morto no universal, faz com que sua morte, que poderia se confundida com um

sem sentido, torne-se uma última ação do morto, seu pulo limiar do singular para o

universal. Acima de tudo a família resgata o morto da natureza, faz com que sua morte seja

um trabalho do espírito e não uma contingência. Nas palavras de Jean Hyppolite:

Sua morte é o trabalho de sua vida, seu vir-a-ser universal, mas tal morte aparece, no
entanto, como uma contingência, um fato da natureza cuja significação espiritual não é
aparente: é o papel da família, da lei divina, retirar a morte à natureza e dela fazer
essencialmente uma “operação do espírito”. A função ética da família, tal como Hegel a
considera aqui, é a de tornar a morte a seu encargo. (HYPPOLITE, 2003: 365)

O conflito entre Creonte e Antígona se dá neste âmbito. Quando Antígona fala de um

direito superior ao da cidade, é a este direito familiar que se refere, de enterrar o próprio

morto, de dotar esta morte de um último sentido sem o qual o ser de Polinices se esvazia,

torna-se não mais a matéria espiritual do humano, mas algo que pertence de novo à

natureza, em um aniquilamento puro. Hegel reconhece a motivação de Antígona no amor

fraternal, que em seu entender pertence a um tipo mais espiritualizado de amor, pois não

está atado ao dever natural e biológico, como o amor entre pais e filhos ou o amor entre

homem e mulher, que tem na procriação e no desejo formas de interesse. O amor fraternal é

puro porque se aproxima da liberdade de escolha e para a confirmação de um eu que é livre.

Antígona se reconhece em Polinices, este nela, sem a nota conflituosa que produz a

204
maturidade do eu com o mundo. E para este amor, que Hölderlin vai identificar como o

fogo aórgico que domina o personagem trágico e o obriga agir respeitando este fogo e nada

mais, a dimensão do agir de Polinices, sua traição a Tebas que motiva o veto a seu

sepultamento, é irrelevante. Antígona não consegue aceitar a justiça do decreto de Creonte,

nem este a justiça da exigência amorosa de Antígona. Há aqui a contradição impossível de

ser superada no puro agir, porque estamos diante da oposição entre dois absolutos, ambos

justos. Mas este conflito é também obra do espírito, é a conciliação do individual com o

universal, pois no aniquilamento de Antígona há o restabelecimento da justiça da cidade ao

mesmo tempo que a obrigação da cidade reconhecer sua alteridade, seu outro na lei divina

da família. Mas esta conciliação só ocorre caso o agir da cidade e o agir de Antígona se

efetivem plenamente: Antígona tem de se revoltar e ir contra Creonte, porque apenas em

sua revolta se manifesta o direito divino do funeral; Antígona tem de ser punida e tem de

ser culpada, porque sua culpa e punição manifestam a lei da comunidade. Nas palavras de

George Steiner em seu Antigones:

Inocência é irreconciliável com a ação humana, mas apenas na ação há identidade moral.
Antígona é culpada. O edito de Creonte é uma punição política, para Antígona é um crime
ontológico. A culpa de Polinices para com Tebas é totalmente irrelevante para o sentido
existencial que nela tem seu singular, insubstituível ser. O Sein de seu irmão não pode, de
maneira nenhuma, ser qualificado por seu Tun. A morte é precisamente o retorno da ação
para o ser. Ao tomar sobre si a inevitável culpa da ação ao opor o feminino ontológico ao
masculino-político, Antígona se coloca acima de Édipo: seu “crime” é plenamente
consciente. (STEINER, 1984: 35)3

A morte de Antígona permite que ambos os sentidos, o da lei humana e o da lei divina, as

duas instâncias que estruturam a cidade clássica, fiquem claros, e nesta efetivação chega-se

a um novo equilíbrio, em que a lei humana suprassume a lei divina embora ainda mantenha

205
sua memória. A continuação do capítulo VI da Fenomenologia trata de como esta lei divina

retorna com outras figuras e produz o declínio do Estado ático. A ilustração aqui já não é o

momento trágico de Antígona, mas a corrupção e o interesse familiar que acabam

solapando o direito humano e destroem a cidade.

6.5. O trágico em Hölderlin

Nosso comentário sobre o trágico em Hölderlin se baseará na reflexão do autor

sobre a forma trágica mais do que propriamente em sua obra poética. O objetivo será

comparar a posição de Hölderlin com a de Hegel, buscando um campo de discussão comum

para estabelecer os pontos de identidade e de distinção entre os dois autores. A reflexão

sobre a tragédia em Hölderlin tem algumas especificidades que a tornam uma espécie de

fulcro para todo pensamento trágico, pois ao mesmo tempo que a referência para aquilo que

é dito pelo autor é todo o pensamento idealista, suas conclusões preparam o surgimento de

um novo entendimento sobre o trágico. Aquilo que em Hölderlin é identidade com o

comentário de Hegel (e Schelling), por exemplo a preocupação ética e a radical alteridade

da natureza em relação ao homem, ilumina a obra de Hegel de modo a revelar problemas

não tão óbvios imediatamente. Aquilo que se afasta, por exemplo, o desejo de Hölderlin de

pensar a tragédia e a poesia de um modo geral como um problema de linguagem, um

problema dos limites e possibilidades da linguagem para representar o absoluto, ressoa em

todo o pensamento posterior, em autores como Nietzsche e Heidegger, ou no pensamento

de Walter Benjamin sobre a linguagem e a representação.

206
Talvez a melhor maneira de iniciar a discussão seja apresentando a concepção de

Hölderlin sobre a linguagem poética, o que vai nos preparar para entender como a tragédia

é vista em sua obra. Segundo Hölderlin, no pequeno texto O modo de proceder do espírito

poético, a linguagem poética surge do confronto apaixonado da interioridade do homem

com a natureza, de sua reflexão sobre aquilo que é e seus limites de ação e de

representação. Hölderlin afirma que:

O produto dessa reflexão é a linguagem. Na medida em que o poeta se sente, de fato, em


toda a sua vida interior e exterior, concebido pelo tom puro de sua sensação originária e que
conquista uma circunvisão de seu mundo, que agora aparece tão cheio de novidade, tão
desconhecido, a soma de todas as suas experiências, de seu saber, de sua intuição, de seu
pensamento, arte e natureza, como se apresentam nele e fora dele, tudo lhe aparece como
numa primeira vez e, por isso mesmo, de maneira inconcebida, indeterminada, diluída em
vida e sonoridade da matéria. Nesse instante, é sobremaneira importante que ele não assuma
nada como dado, que não parta de nada positivo, que arte e natureza, como ele
anteriormente aprendeu a ver e conhecer, não falem antes que, para ele, se apresente uma
linguagem. Ou seja, antes que o desconhecido e sem nome em seu mundo se torne
conhecido e se deixe nomear quando ajustado à sua disposição e com ela considerado
consonante. (HÖLDERLIN, 1994: 51)

O que é descrito por Hölderlin é um tipo de relação não muito distinta da dialética

hegeliana, com a mesma importância processual dada à alteridade e ao trabalho do

negativo. É na oposição do espírito do indivíduo, em Hölderlin o universo infinito da

interioridade, do pensamento e da sensibilidade, em relação à harmonia formal da natureza,

que nasce a possibilidade de uma linguagem poética. O que vai distinguir Hölderlin de

Hegel não é propriamente a dialética e o trabalho do negativo, em ambos o fundamento da

possibilidade da verdade. Mas enquanto Hegel pensa que o aufhebung dá conta de

reconciliar as oposições que estruturam o espírito, projetando a existência plena do espírito

na matéria coletiva da história, Hölderlin ainda exige que esta reconciliação se dê de forma

individual e marcada pela permanência simultânea dos opostos. É acima de tudo a

207
experiência de um indivíduo livre, cuja sensibilidade não é, como em Hegel, posta em uma

relação de subjeção à necessidade, à matéria bruta dos acontecimentos. Ambas as dialéticas

são libertárias, mas enquanto em Hegel a necessidade é uma espécie de professor tirânico

do espírito em seu caminho em direção à liberdade humana, um professor que em sua ação

sobre a comunidade dos homens os obriga a se repensarem e reconhecê-lo, em Hölderlin há

a exigência de que o espírito possa se manifestar em uma individualidade liberada da

contingência. Nisto Hölderlin concorda com a tradição idealista do indivíduo como núcleo

da liberdade e do conhecimento. Esta distinção específica entre o pensamento dos dois, que

estabelece, por exemplo, que Hegel enxergue a instância de cumprimento da liberdade

humana na história e Hölderlin na arte, fica bastante clara no comentário de Hölderlin sobre

o sentido da religião em Sobre a religião:

Não é apenas por si mesmo e nem pelos objetos que o homem pode fazer a experiência de
que, no mundo, há mais do que um curso mecânico, de que há um espírito, um deus. Essa
experiência dá-se apenas numa relação mais viva com o que o cerca, para além das
necessidades imediatas.
Cada um teria, portanto, o seu próprio deus na medida em que possui a sua própria esfera de
ação e de experiência, só havendo uma divindade comunitária na medida em que os demais
possuem uma esfera comunitária em que agem e sofrem humanamente, isto é, para além das
necessidades imediatas. (HÖLDERLIN, 1994: 68)

Esta afirmação do valor da diferença, da necessidade de se manter o distinto da

individualidade como a condição para uma história é uma posição nitidamente distante de

como Hegel concebe o conhecimento humano. Lembremos que o aufhebung hegeliano

promove a reconciliação de pólos negativos, entre individualidades, coletividades e grupos,

através da destruição de uma parte da diferença entre os pólos ao mesmo tempo que

mantém uma parte do contraditório ainda vivo na figuração nova que surge do processo.

208
Assim, no confronto entre Antígona e Creonte o elemento contraditório (a indiferença de

Antígona em relação à substância ética, em relação à moralidade do agir que condenou seu

irmão) é destruído na morte de Antígona. Mas a nova forma de lei que surge do confronto

será obrigada a levar em consideração em sua moralidade parte da exigência daquilo que

foi aniquilado, ou seja, será obrigada a pensar a letra da nova lei em relação ao direito

familiar de retirar o morto da comunidade ética dos viventes e assim preservá-lo. A forma

nova que surge do confronto é aufhebt em relação ao momento do próprio confronto, ela

absorve em sua substância parte daquilo que foi obrigada a destruir, e assim se modifica. A

consciência é exatamente o reconhecimento da parcialidade da primeira posição, seu

repensar-se e modificar-se, tornando-se cada vez mais categórica, mais universal.

Esta consciência é sempre retrospectiva, é sempre uma reflexão sobre aquilo que

ocorreu, e apenas nesta instância temporal é que é possível uma linguagem para descrever a

verdade. A melancolia de Walter Benjamin, por exemplo, se refere a esta impossibilidade

de consciência presente. Assim, a linguagem em Hegel é uma maneira de recuperar o

sentido do vivido, e a percepção atual é necessariamente pobre para dar conta do presente.

O famoso exemplo do aqui e agora com que Hegel explica no início da Fenomenologia do

espírito a incapacidade humana de dar conta da categoria através da linguagem se refere a

este limite: dizemos sempre o que já passou, o que já não é, e apenas aceitando esta

parcialidade de nosso saber podemos lenta e dolorosamente construí-lo verdadeiramente.

Segundo Hegel:

[parágrafo 95] Portanto a própria certeza sensível deve ser indagada: Que é o isto? Se o
tomamos no duplo aspecto de seu ser, como agora e como aqui, a dialética que tem nele vai
tomar uma forma tão inteligível quanto ele mesmo. À pergunta: que é o agora?

209
respondemos, por exemplo: o agora é a noite. Para tirar a prova da verdade dessa certeza
sensível basta uma experiência simples. Anotamos por escrito essa verdade; uma verdade
nada perde por ser anotada, nem tampouco porque a guardamos. Vejamos de novo, agora,
neste meio-dia, a verdade anotada; devemos dizer, então, que se tornou vazia. (HEGEL,
2002: 87)

O que Hölderlin exige da linguagem poética é a capacidade de superar o limite lógico da

linguagem, que, de alguma maneira, ao dizer que “agora é noite” estejamos dizendo

simultaneamente que “agora é meio-dia”, e que o elemento sensível da categoria, que ata o

absoluto conceitual do agora à realidade sensível, à noite e ao meio-dia concretos, possa

recuperar o absoluto do próprio agora. O que Hölderlin exige é uma linguagem –e um

conhecimento– baseada não no que passou, no que se perdeu, no que se diluiu, mas sim

fundamentada na manutenção da tensão da experiência. A linguagem em Hegel é sempre

uma forma de tradução e registro desse trabalho do negativo, mas a instância em que se dá

a mediação entre universal e sensível, entre o “agora “e o “agora é meio-dia” é a ação

humana. É na ação que absoluto e particular se reconciliam, é na ação que sua oposição se

manifesta e se resolve, cabendo à linguagem, à poesia e à arte, especialmente, registrar

posteriormente e de forma parcial o vivido. Sempre há uma perda de integridade neste

registro, pois ele ocorre após o aufhebung, após o instante em que o momento pleno da

contradição fazia brilhar de maneira integral o sentido próprio de cada campo em conflito,

após a conciliação.

O que Hölderlin vai exigir da poesia e da linguagem é que elas possam não apenas

registrar, mas mediar o conflito. Uma poesia que possa dizer o homem e dizer a natureza

em seus próprios termos, dizer o momento em que sua alteridade, para Hölderlin uma

alteridade entre dois absolutos, esteja presente de maneira simultânea e integral. Isto torna a

210
linguagem poética, e a poesia trágica como forma maior desta linguagem, essencialmente

um exercício do paradoxo. Na linguagem artística o sentido pleno do vivido, sua tensão e

grandeza, sua plenitude, são mantidos: a linguagem não dilui o sentido do evento – e o

evento de fato é sempre negatividade entre homem e natureza, entre o homem e o divino.

Este sentido que em Hegel se perde no registro, pois o registro do sentido ocorre após sua

consumação na intensidade da ação, em Hölderlin pode ser mantido e referido de maneira

direta pela poesia. Há aqui entre esses dois amigos a repetição do conflito entre poesia e

filosofia, entre o veto da filosofia à possibilidade de conhecimento imediato que a poesia

pretende. É claro que em Hegel este veto se estende a todo o saber humano, e não apenas à

poesia, mas é esta possibilidade que Hölderlin exige.

O desejo de Hölderlin por uma linguagem que cumpra plenamente a mediação, a

conciliação dos absolutos do homem e da natureza precisa dar conta dos limites lógicos do

simbólico, dar conta de que o agora será sempre um agora específico, por exemplo. A teoria

da tragédia de Hölderlin é pensada para responder ao problema de que mecanismo

simbólico pode permitir a expressão plena de dois absolutos no momento de seu conflito.

Sua resposta é promover uma espécie de inversão de valores, em que o absoluto de uma

presença, o absoluto do sentimento do divino, que não é representável pela linguagem por

seus limites lógicos, possa ser figurado através da transformação da linguagem em um

outro absoluto, por uma ausência, por uma falta de significação, pelo absoluto de um

silêncio, de uma falha em comunicar, por uma traição do homem e do divino em dizerem

um ao outro e promoverem sua comunhão. Nesta falha que produz o abismo infinito entre

os dois pode ser representado outro infinito, o da reconciliação entre os dois, sua união

211
renovada. É assim que Hölderlin explica a tragédia no pequeno parágrafo O significado da

tragédia:

O significado das tragédias se deixa conceber mais facilmente no paradoxo. Na medida em


que toda capacidade é justa e igualmente partilhada, tudo o que é originário manifesta-se
não na força originária, mas, sobretudo, em sua fraqueza, de forma que a luz da vida e o
aparecimento pertencem, própria e oportunamente, à fraqueza de cada todo. No trágico, o
signo é, em si mesmo, insignificante, ineficaz, ao passo que o originário surge
imediatamente. Em sentido próprio, o originário pode apenas aparecer em sua fraqueza. É
quando o signo se coloca em sua insignificância = 0 que o originário, o fundo velado de toda
natureza, pode se apresentar. Quando em sua doação mais fraca, a natureza se apresenta
com propriedade, então o signo é = 0 quando se apresenta em sua doação mais fraca.
(HÖLDERLIN, 1994: 63)

Quando Hölderlin estabelece que a maneira de significar “o fundo velado de toda natureza”

é o enfraquecimento do próprio signo, está propondo uma linguagem que de sua

incapacidade estrutural e lógica de dizer o universal, da própria explicitação desta

incapacidade, seja obrigada a se transcender. A linguagem consegue dizer de fato quando,

obrigada a silenciar por não dar conta mais de dizer, é obrigada a um gesto extremo, seu

próprio silêncio, a suspensão de sua ação, quando se torna alguma coisa além de linguagem

e assim, paradoxalmente, significa. Este “além da linguagem”, “além do signo” na tragédia,

cujo signo e linguagem é a ação do herói, é o momento limite do sacrifício. Peter Szondi

interpeta assim esta passagem em Poesia e poética do idealismo alemão:

Esta dialética segundo a qual o que é forte não pode aparecer a não ser como falho e
necessitando de qualquer coisa falha para que sua força apareça, funda a necessidade da
arte. Nele [Hölderlin] a natureza aparece não mais propriamente, mas mediada por um
signo. Este signo, na tragédia, é o herói. Incapaz de fazer frente à potência da natureza, e
anulado por ela, ele é “insignificante” e “ineficaz”. Mas, no momento da morte do herói
trágico, quando o signo é igual a zero, a natureza se apresenta triunfante em seu dom mais
forte e o originário é francamente desvelado. Hölderlin interpreta assim a tragédia como o
sacrifício oferecido pelo homem à natureza para a conduzir a aparecer de maneira adequada.
(SZONDI, 1976: 14)4

212
Estruturalmente a teoria do trágico de Hölderlin se aproxima da afirmação de Schelling de

que na morte do herói trágico há a afirmação da liberdade de uma individualidade sobre o

destino, a afirmação e ascensão do eu sobre o mundo. O mecanismo é muito próximo, mas

o sentido do sacrifício trágico é distinto nos dois. O fato de este sacrifício ser na verdade

uma maneira de promover a reconciliação do eu com o divino, de, na morte, promover o

ressurgimento da natureza no mundo da cultura, do divino no mundano, aproxima também

sua posição da de Hegel. Mas, ao contrário de Hegel, em que o mundo da natureza é que

deve ser silenciado – o direito familiar, próximo do direito natural, que deve ser suprimido

em nome do direito humano da polis –, o sacrifício trágico tem em Hölderlin a função de

aproximar de novo o divino do humano, fazer com que o sentido pleno da natureza se

revele. O silêncio da morte do herói é na verdade a concentração de sua linguagem, é a

construção do signo do absoluto.

Ao partir da significação para a insignificância, do dizer para o não dizer, Hölderlin

concebe a superação do veto lógico à capacidade da linguagem de significar o absoluto. É

um processo dialético em que o herói, enquanto signo, passa da ação e da presença concreta

para a morte e a ausência, e ao se tornar esta grande alteridade que é o morto toca nesta

outra grande alteridade que é o divino. O que sua teoria da tragédia também tem de

dialético é conceber a relação do herói com a divindade como uma relação conflituosa, de

luta agressiva entre duas potências de dignidade igual. A significação através do silêncio é

o que Hölderlin chamou de infidelidade entre deus e homem. É este silêncio, esta

infidelidade, que trai o destino comum de divino e humano de se reconciliarem, que é

paradoxalmente o caminho de sua reconciliação. Nos termos de Hölderlin, o silêncio de

deus e a traição do homem, a infidelidade mútua que faz com que o deus se retraia para

213
longe do mundo e que o homem o confronte exigindo sua presença, sua reunificação

consigo, é a maneira específica com que as duas potências se relacionam. É segundo esta

teoria que se dá tanto a escrita de seu Empédocles quanto sua tradução de Antígona, e é

também a maneira como Hölderlin se situa na interpretação da Arte poética de Aristóteles.

A seguir vamos tentar situar a maneira como Hölderlin lê a teoria aristotélica.

A tragédia em Hölderlin seria o confronto de duas forças, o divino e o humano, o

princípio de formalização e harmonia orgânico, presente na natureza, e o princípio de

transbordamento da forma presente no homem, o aórgico5. Estes princípios, que no

sacrifício trágico se reúnem e reconciliam, estão separados pelo abismo dos limites

humanos: a linguagem, a vida concreta, os limites sensíveis. Enquanto o herói permanece

dentro destes limites, que são a aceitação do retraimento do divino, mas que são também a

alienação de sua natureza mais profunda, semelhante ao divino, há estabilidade. No

momento em que o fogo aórgico se acende e o homem começa a desejar transcender estes

limites, é que se dá a situação trágica. Esta pretensão de se igualar ao deus, o tema de sua

tragédia Empédocles, é a maneira de Hölderlin interpretar a hybris, o crime da desmesura

trágica. Segundo Hölderlin em seu Fundamento para Empédocles:

A ode trágica tem início no fogo mais elevado. O espírito puro, a pura interioridade
ultrapassou os seus limites. Não sustentou de maneira suficientemente comedida as ligações
da vida, essas que em virtude de sua disposição interior tendem, necessária e
inexoravelmente, ao contato, só que de forma desmesurada, como a consciência, a reflexão
e a sensibilidade física. Da desmesura da interioridade surge, portanto, a discórdia que a ode
trágica simula, desde o começo, a fim de apresentar o puro. Por um ato natural, ela então
prossegue do extremo da diferença e da indigência até o extremo da indistinção, do puro, do
supra-sensível, que parece não admitir nenhuma indigência. (HÖLDERLIN, 1994: 79)

214
É uma interioridade excepcionalmente poderosa que faz com que o herói trágico deseje

encarar o deus. Só que este ato é vetado pela lei religiosa, é necessariamente desejo nefasto,

sacrílego, em dois sentidos. É formalmente sacrílego porque vai contra a separação estrita

entre homem e divino formalizada pela religião. É espiritualmente sacrílego porque o

transbordamento aórgico é contrário à natureza do deus, à medida orgânica de harmonia.

Mas, paradoxalmente, é no aórgico que o homem consegue acessar o universal, o

categórico que o divino e a natureza representam. Há uma chave mística nesta construção

de Hölderlin, uma espécie de gnosticismo, em que a queda do homem no mundo sensível

só pode ser redimida através de seu mergulho no pecado, na desmesura. O crime em

Hölderlin tem um sentido moral muito fraco, se referindo mais especificamente à traição do

limite entre deus e homem. O pecado é a pretensão do homem ao divino, que em sua leitura

passa pelo abandono do universo sensível, do afastamento do ritual religioso, por exemplo,

ou o abandono do herói à comunidade dos homens. Segundo Hölderlin em Fundamento

para Empédocles:

Quanto mais infinita a interioridade, mais inexprimível, mais próxima ela se torna do nefas,
tanto mais fria e rigorosamente a imagem deve distinguir o homem e o elemento por ele
sentido a fim de manter a sensação em seus limites. Assim, quanto menos a imagem
exprime, de forma imediata, a sensação, mais ela deve negar a forma e a matéria.
(HÖLDERLIN, 1994: 81)

O paradoxo é que este abandono do universo ético, da convivência com outros homens e a

conformação a limites humanos devido à desmesura, à pretensão do herói de que sua

humanidade não está nestes gestos sensíveis, mas em outra comunidade, junto ao divino, é

aquilo que dá ao herói trágico o vislumbre da natureza do divino. Françoise Dastur em seu

215
comentário a Hölderlin em Hölderlin: tragédia e modernidade, identifica neste paradoxo,

definitivamente longe da ética hegeliana, a maneira de Hölderlin pensar o problema moral

da decisão trágica, pensar em como o herói age erradamente, e convicto em seu errar,

apesar de ser um indivíduo elevado. Só que o erro trágico, a hamartía, seria um desvio

apenas aparente: na verdade ele estabelece que a ação a que o herói responde dentro da

tragédia é motivada por um sentido moral já categórico, já dentro do supra-sensível e do

espírito absoluto. O herói desafia o divino e tenta subverter seu lugar na ordem do mundo

porque sua ação não se dá dentro de uma lógica de recompensa e temor, de sujeição, mas

sim dentro da lógica de liberdade absoluta que seu fogo aórgico exige. Segundo Dastur,

Hölderlin, ao propor uma hamartía que seja erro apenas aparente, estaria pensando em

termos de uma moralidade absoluta, supra-ética, que teria o imperativo categórico de Kant

como referência:

Em Kant, o imperativo é dito “categórico” porque incondicional, o que quer dizer,


precisamente, que ele ordena, de forma imediata e absoluta, uma ação representada como
boa em si e não boa como um meio para outra coisa. O imperativo só pode ser categórico
porque não tem a forma de um contrato firmado com Deus, que garantiria uma recompensa
à moralidade. (HÖLDERLIN, 1994: 186)

É neste sentido que Hölderlin se refere a uma “retirada categórica” do divino, que exigiria

do homem o confronto com o deus para seu retorno categórico. O afastamento do divino é

necessário, porque esta é a maneira de significar sua presença, assim como o confronto do

herói aórgico contra o deus também é necessário, porque é isto que exige sua essência

semelhante à divina. Neste sentido, o herói aórgico participa mais da essência divina do que

os sacerdotes, que podem na melhor das hipóteses reproduzir o desejo divino, a verdade do

216
deus, que é e não é a verdade do herói. É a verdade do herói porque seu fogo o eleva à

altura do deus, ao universo supra-sensível daquilo que já não pertence ao fenômeno, mas ao

universal, e não é a verdade do herói porque a distância entre homem e divino é

intransponível. Eis, então, o conflito trágico. Neste âmbito, o herói se coloca

necessariamente como antagonista do divino, como elemento que vai contra aquilo que é a

natureza divina, o afastamento, mas que é obrigado a reconhecer que sua distância em

relação ao deus é tão grande que mesmo este antagonismo não será considerado. O deus

está ausente de fato, ele não se manifesta nem quando provocado. Segundo Dastur:

Em Édipo rei e Antígona, Sófocles expõe a relação do homem com a retirada categórica do
deus. Édipo é atheos – é o que diz o verso 661 da tragédia –, o que não quer dizer, de modo
algum, ateu no sentido moderno dessa palavra, mas sim abandonado pelo deus que dele se
retira e nem mesmo se dá ao trabalho de castigá-lo quando seu crime é descoberto.
(HÖLDERLIN, 1994: 187)

E, no entanto, a reconciliação entre as duas forças, entre o orgânico e o aórgico, é uma

necessidade tão premente quanto o afastamento do divino e o combate do herói com o deus

que se retira. O cerne do trágico estaria então na revelação da linguagem que permite esta

conciliação, na maneira como deus e homem, cada um atendendo ao princípio que lhes

cabe, conseguem encontrar uma linguagem que os religue e permita sua união. Este

momento de revelação ocorre quando o conflito é mais intenso, quando deus e homem

põem em xeque o lugar de cada um. Hölderlin localiza no surgimento do adivinho Tirésias

nas tragédias de Édipo rei e Antígona. Tirésias surge para revelar que a pretensão humana

não está de acordo com a verdade divina, que o lugar ético e político da existência humana

não pode ser transcendido para um lugar teológico, de conhecimento do divino. Na leitura

217
de Hölderlin, a grande hamartía de Édipo não é seu parricídio e incesto, mas sim ter

interpretado de forma desmesurada a sentença do oráculo que inicia a peça. O oráculo exige

que o crime cometido contra Laio seja purificado, o que, segundo o lugar devido do homem

na ordem do mundo, significaria cumprir os rituais e agir com justiça para com o povo da

cidade. Mas Édipo interpreta a sentença, segundo sua natureza aórgica, como uma licença

para seu desejo espiritual de saber mais e afirmar a capacidade de seu espírito em dominar

o tempo e o passado, manifestar a verdade. O surgimento de Tirésias, que vem advertir o

herói de que ele não deve desejar penetrar mais no mistério, não deve tentar descobrir a

verdade para além daquilo que seja seu lugar como homem atado à comunidade dos

viventes, faz com que surja o dissenso entre a dignidade que o deus reserva ao homem e

aquela que o herói exige para si em sua desmesura, e que caso continue insistindo seu

destino será o aniquilamento. A intervenção de Tirésias deixa clara para além de qualquer

dúvida a distância entre a pretensão humana e a natureza divina, e nesta fissura criada na

ordem do conhecimento surge o silêncio que separa deus e homem, a distância entre a

linguagem de um e de outro. Surge também o momento de decisão trágica, quando o herói

aórgico recusa acatar o desejo divino de que apague o fogo que o consome, a recusa do não

saber, a recusa de sair do lugar de liberdade que seu espírito conquistou através do desejo

de identidade com o divino. Diante da explicitação da distância e da descoberta pelo

homem da verdade de si, é possível proceder à reconciliação. Esta reconciliação é a

aniquilação que o próprio homem elege, seu abandono da comunidade dos vivos para entrar

no ser puro dos mortos. Esta reconciliação é também aquilo que Hölderlin vai entender

como catarse: da mesma forma que em Aristóteles compaixão e medo são purgados da

alma através do despertar destas mesmas paixões, a separação infinita e a

218
incomunicabilidade entre humano e divino é purgada, é superada, através de sua

explicitação. Deus e homem se unem na morte porque sua separação já é morte, esta é a

linguagem que os une. E na imensidão de coragem e de liberdade que a decisão de se anular

exige do eu ainda sensível, há o caminho para a união com o divino. Segundo Philippe

Lacoue-Labarthe em seu ensaio A cesura do especulativo:

A apresentação do trágico repousa, principalmente, sobre o fato de que o monstruoso, como


o deus-e-homem se acasalam, e como, ilimitadamente, a potência da natureza e o recôndito
do homem se tornam Um na fúria, se concebe por isso que o devir-um ilimitado se purifique
por uma separação ilimitada. (LACOUE-LABARTHE, 2000: 204)

Após a descoberta de que existe um absoluto de silêncio que os separa, deus e homem

podem utilizar este silêncio como uma linguagem comum a ambos e se reconciliar. A

representação desta reconciliação é a decisão de morte do herói após a descoberta do

silêncio como a linguagem que liga deus e homem: na infidelidade mútua, na confirmação

apaixonada da distância entre os dois pólos e na confirmação da verdade simultânea de

cada pretensão, na aceitação da traição de deus ao homem quando se retira da realidade e

do homem ao deus quando recusa o lugar que o deus lhe reservou na ordem do mundo.

E esta descoberta é dita através do aniquilamento do herói, que confirma a ausência

de deus (que não se manifesta na tragédia para punir) e de homem (que é obrigado a

abandonar a comunidade dos homens e penetrar na comunidade dos mortos, e assim se

afastar do sensível). Hölderlin, em suas Observações sobre Édipo, se refere a esta catarse

como a forma de preservar a memória dos deuses:

O drama semelhante a um processo de heresia, [tudo isso] em linguagem para um mundo


em que, em meio à peste e à confusão de sentido e um espírito divinatório inflamado por

219
toda parte, ... o deus e o homem – para que o curso do mundo não tenha lacuna e não
desapareça a memória dos celestiais – se comunicam na forma da infidelidade esquecedora
de tudo, pois a infidelidade divina é o que há de melhor para lembrar. (HÖLDERLIN, 2008:
79)

Esta catarse é também, e tão importante quanto isto, a retirada do homem da comunidade

dos viventes, sua penetração no categórico quando aceita a morte. Segundo Hölderlin em

seu Observações sobre Édipo:

Nesse momento, o homem esquece de si e de deus, e se afasta, certamente de modo sagrado,


como um traidor. No limite extremo do sofrimento só restam, de fato, as condições do
tempo ou do espaço. (HÖLDERLIN, 2008: 79)

1
Tradução própria do original em inglês:

Most interpreters of tragedy, beginning already with Aristotle, focus their accounts of tragedy on the effect of
tragedy, on its reception. Hegel, along with Friedrich Hölderlin (1770-1843), Friedrich Schelling (1775-
1854), and Peter Szondi (1929-1979), is one of the few figures in the tradition to take a different path. Hegel
focuses on the core structure of tragedy. And yet Hegel’s focus on the structure of tragic collision gives him a
new angle on the traditional motifs of fear and pity. For Hegel the audience is to fear not external fate, as with
Aristotle, but the ethical substance which, if violated, will turn against the hero.
2
Versão própria da tradução ao francês:

Dans l’interpretation de Schelling, le héros tragique cuccombe seulemant devant la “puissance supéurieure”
de l’objèctif, il est puni pour avoir succombé, et meme pous avoir engage le combat, el ainsi le valeur positive
dans son attitude – cette volonté de liberté que constitue “l’essence de Moi” – se retourne contre lui même. Ce
processus, on peut, avec Hegel, l’appeler “dialectique”. Schelling, il est vrais, avait en vue l’affirmation d’une
liberté acquire aux prix de l’anéantissement, la possibilité d’une action purement tragique que lui demeurant
étrangère.
3
Tradução própria do original em inglês:

Innocence is irreconciliable with human action, but only in action is there moral identity. Antigone is guilty.
Creon’s edict is a political punishment, to Antigone it is an ontological crime. Polyneice’s guilt towards
Thebes is totally irrelevant to her existencial sense of his singular, irreplaceable being. The Sein of her brother
cannot, in any way, be qualified by his Tun. Death is precisely, the return from action into being. In taking
upon herself the inevitable guilt of action, in opposing the feminine-ontological to the masculine-political,
Antigone stands above Oedipus: her “crime” is fully conscious.
4
Versão própria da tradução ao francês:

220
Cette dialectique selon l’aquelle ce qui est fort ne peut de lui-même apparaître que comme faible et au besoin
de quelque chose de faible pour que ça force apparaisse, fonde la necessité de l’art. En luis la nature apparaît
non plus proprement, mais mediatisé par un signe. Ce signe, dans la tragédie, c’est l’héros. Incappable de
faire échec à la puissance de la nature, et anéanti par elle, il est “insignifiant” et “sans effet”. Mais, au moment
de la mort du héros tragique, lorsque le signe est égal à zero, la nature se présente triomphatrice dans son dons
le plus fort et l’originel est franchement découvert. Hölderlin inteprète ainsi la tragédie comme le sacrifice
offert par l’homme a la nature pour la conduire à apparaître de façon adequate.
5
Estes temos têm sinal invertido em relação aos princípios do apolíneo e do dionisíaco no Nascimento da
tragédia de Nietzsche. Em Hölderlin a natureza manifesta o princípio formal apolíneo (orgânico em sua
nomenclatura), e o homem o princípio informal dionisíaco (aórgico em Hölderlin). A discussão se dá também
em outros termos, pois o juviniano e a natureza são espiritualizados, possuem um fundo metafísico que não
está presente em Nietzsche.

221
CONCLUSÃO

Ao longo deste trabalho tentamos demonstrar como um pensamento sobre a

alteridade, que identificamos como a grande contribuição do pensamento idealista, se

referiu constantemente à tragédia grega em sua formação. Autores como Schelling, Hegel e

Hölderlin enxergaram na tragédia uma espécie de modelo, ou, mais exatamente, uma

figuração, daquilo que eles identificaram como as questões mais urgentes do ser humano: a

solidão de um eu que, embora reconheça em si grandeza, está isolado em si mesmo, em sua

finitude e singularidade. Toda dialética é então este movimento em direção à alteridade, e

seu alvo, seu fim, é que neste reconhecimento daquilo que está fora de si o indivíduo possa

resolver seu anseio por comunhão e por superação de sua finitude. É da relação com o

outro, da maneira como esta alteridade é reconhecida e processada, que surge a relevância

da forma trágica para o idealismo. Porque reconhecer a alteridade geralmente passa por

conflito e sofrimento, no mínimo porque o resultado deste reconhecimento é

necessariamente a difícil transformação do mesmo em um outro. Segundo a fé do período

este é um outro mais universal, que está mais próximo de sua própria individualidade e do

absoluto que ele anseia. Aquilo que o idealismo percebeu no trágico foi a promessa de que

no sofrimento haja sentido, de que no páthos haja a possibilidade de surgir um

conhecimento mais puro sobre o indivíduo e aquilo que lhe é exterior, e que, de posse deste

conhecimento seja possível se chegar ao absoluto, de que através da finitude seja possível

tocar o infinito.

222
Em autores como Ésquilo, Sófocles e Eurípides a geração de Hegel reconheceu que

este projeto havia sido cumprido, e que aquele conhecimento ansiado que levaria à

reconciliação do homem particular com o universal, mesmo que através do sofrimento, já

havia sido figurado na tragédia. Como uma hipótese impossível de ser comprovada, talvez

possamos propor que a leitura intensiva do texto trágico, que levou a uma certa idéia do

trágico, foi responsável por identificar de uma maneira tão direta a relação com a alteridade

como uma relação de sofrimento e de colisão. Por outro lado, a tragédia para o idealismo é

necessariamente um símbolo, a figuração particular de um universal, o que faz com que

este pensamento em sua recepção se afaste da tradição aristotélica de entender a obra de

arte trágica como uma obra que visa o efeito sensível e a torne uma outra coisa: a

representação sensível de um drama espiritual. É deste lugar, em que Aristóteles é lido de

uma maneira nova e em boa medida ignorado na teoria estética do idealismo, que surge a

novidade da leitura idealista sobre o trágico. O entendimento do trágico como drama da

reconciliação, a crença de que o herói trágico é culpado eticamente, mas que nesta culpa

reside um dom redentor, a crença de que o herói trágico é uma figuração de um humano

eterno, um personagem universal que representa um homem categórico, são conclusões a

que o idealismo chega sobre o trágico. Se para Aristóteles o sofrimento do herói tem o

sentido muito direto de purgar homeopaticamente as emoções da platéia, para o idealismo

este sofrimento surge já entendido como uma forma autônoma em que a recepção pelo

auditório é pouco importante, e como a linguagem dura que comunica indivíduo e absoluto.

O aparato filológico de que nos utilizamos serve como uma maneira de mediar este

discurso estritamente filosófico, de uma filosofia da arte, com as questões literárias mais

concretas que interessam a um trabalho do campo da ciência da literatura. Os autores que

223
citamos com mais freqüência, como Jaeger, Lesky ou Bruno Snell, têm uma sensibilidade e

um entendimento da obra de arte muito próximos ao do idealismo alemão, mas são

historiadores da arte e da cultura e não filósofos, o que significa que seu discurso aponta

para as questões mais estritamente literárias de realização e contextualização que devem

estar presentes em um trabalho de crítica literária. A referência a estes autores serve para

iluminar e mediar as conclusões da filosofia da arte do idealismo, tentando dar mais

presença ao texto trágico propriamente dentro do universo de pensamento do idealismo.

Nossa intenção e estratégia de leitura foi fazer com que este texto surgisse em paralelo ao

texto filosófico, e assim permitir uma relação mais intensa entre os dois discursos, com a

pretensão de que assim o diálogo ocorresse de uma maneira mais equilibrada, iluminando

ao mesmo tempo as idéias e conceitos dos filósofos e a diferença e independência que a

forma trágica possa manter diante deste discurso teórico, repetindo em um outro nível,

menos urgente, digamos, a dialética que nos preocupamos em descrever. Mesmo que o

plano deste estudo tenha sido a apresentação de uma leitura específica do trágico, na

medida em que o próprio texto literário é resgatado enquanto texto literário há a

possibilidade de perceber sua diferença.

Nesta diferença reside talvez o motivo deste trabalho, que não chega a ser

explicitado nem realizado, mas que foi um dos entornos de sua escrita, o divórcio entre

discurso filosófico e discurso literário. Aquela afirmação no início da Teogonia de Hesíodo,

quando a musa afirma que a poesia diz muitas mentiras disfarçadas de verdade, mas que às

vezes diz verdades, é um credo tranqüilo para a prática da arte, uma espécie de reserva que

permite ao discurso criativo ser menos responsável, e a partir desta irresponsabilidade legar,

para além do prazer, algumas formas novas ao mundo. Esta capacidade, que

224
necessariamente lembra da transitoriedade dos valores e esforços do homem, é exatamente

o que um discurso filosófico preocupado com aquilo que é permanente não pode aceitar.

Este mundo aberto da poesia e da arte, em que a fantasia traz para dentro de um sistema de

valores imagens novas, que com o tempo e a sorte podem adquirir permanência e modificar

a realidade que as cerca, como uma ilusão que ganhe concretude qual os objetos de Tlöm

no conto de Borges, sempre alerta para o quanto a existência do homem é cercada de

incerteza e mutabilidade. O veto platônico passa, como nos referimos no capítulo cinco, por

esta incapacidade de aceitar este jogo com os limites entre permanente e impermanente. A

confusão que o literário causa entre verdade e aparência, entre valor e insignificância, não

nos parece algo que possa ser plenamente processado por um discurso filosófico, mesmo

após Nietzsche. Talvez se trate não de aceitar uma conciliação, que sempre estaria marcada

por certos desenganos mútuos de ambas as partes, mas de permitir que o conflito se

processe de uma forma produtiva. Quando o idealismo entende a arte concreta como algo a

ser tratado por uma filosofia da arte, quando supõe que na grande obra de arte haja apenas

verdades, e não verdades e mentiras, realiza um movimento no sentido contrário a isto. E

nisto prepara sua própria crise, porque as mentiras da obra de arte têm um poder e uma

vigência específica dentro de uma economia do desejo humano. E, no entanto, a promessa

que o idealismo identificou na arte, a possibilidade de um conhecimento legítimo sobre o

homem e, mais que isso, a possibilidade de liberdade e de contato com o infinito,

modificaram a própria arte, inseriram em seu sistema o peso de uma responsabilidade que

talvez ela teria recusado em um momento anterior.

Para finalizar gostaríamos de refletir de uma forma mais livre sobre os limites do

pensamento sobre o trágico no século XIX. Isto significa, talvez, pensar em como a base

225
deste pensamento, o desejo de superar a finitude e a solidão, se tornou um projeto

praticamente irrealizável na modernidade. E isto poderá ser um bem, porque nos permite,

através de uma longa corrente de idéias, pensar a liberdade humana e a possível conciliação

do homem com seus demônios em termos mais modestos, mais próximos a uma realidade

tão pouco espiritual como é a nossa, em que aquelas potências negativas no próprio

idealismo, o corpo, a natureza, as vozes menores daquilo que não exige o infinito mas

apenas algum tipo de presença, e que estão fadadas àquilo que é esquecimento e

desaparição, possam ser ouvidas de uma maneira mais adequada. É o projeto de Walter

Benjamin, provavelmente, e de Freud também, se pensarmos que a promessa da psicanálise

não é nunca a felicidade, mas apenas uma lenta aceitação de um eu cheio de limites. E há

uma certa consolação em poder deitar ao chão o fardo da eternidade, do infinito, da força

luciferina que em um momento da modernidade incendiou o pensamento. Mas como aceitar

de boa fé o abandono da promessa antiga, de que a potência do ser humano pode aproximá-

lo de deuses, que sua solidão pode ser recompensada por êxtase e que o sofrimento, ao

menos por um instante, conceda um sentido maior àquilo que é a vida? E eis o problema,

pois, embora ao longo de muito tempo tenhamos tentado nos disciplinar a aceitar que os

limites humanos não são conciliáveis, que todo conhecimento e toda experiência são

parciais e que não há remédio para isto, ainda uma parte de nós busca a promessa.

Tínhamos nos referido na introdução que a tragédia havia incutido um vírus no

pensamento, a possibilidade de a linguagem não poder dizer o infinito, de que o

representado seja sempre a parte fraca, transitória e fugaz do homem. Mas há um anticorpo

no idealismo, a promessa de absoluto, que não consegue ser expurgada deste novo corpo do

conhecimento. Diante desta promessa, do fascínio que ela exerce, da esperança que ela

226
produz, a consciência do limite acaba se tornando uma coisa fraca, no mínimo uma

conquista sem brilho. Em momentos em que a lucidez é difícil, nos momentos duros em

que os limites parecem ser pesados demais, o desejo pelo absoluto pode muito bem gerar

monstros, que dificilmente podem ser contidos racionalmente.

Daí a necessidade de integrar de novo a promessa do absoluto na consciência do

limite. De tornar esta promessa algo que seja um elemento de tensão dentro de um

pensamento que se acostumou demais a ficar preso em seu horizonte. Os frutos dessa

possibilidade ainda não vieram, mas se são possíveis autores como Guimarães Rosa ou

Bataille, que experimentaram com o infinito, cada um a seu modo, em um mundo sem

espírito, há a indicação de que este é um projeto possível na arte, para além da arte, talvez.

227
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