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Resumo: Neste artigo revisitamos a peça Édipo Rei, de Sófocles, baseados na visão de grandes
pensadores, a saber: Aristóteles (2008), Johann Wolfgang von Goethe (2010), Albin Lesky (1996),
Johann Christoph Friedrich von Schiller (1784) e Sigmund Freud (1900), objetivando saber mais sobre
a natureza do trágico surgido entre os gregos. Além destes autores, também nos amparamos nas ideias
de Unamuno (1996), Eagleton (2013), Bornheim (1975), Brandão (1984), Kant (1781/1788/1790)
entre outros. A presente proposta investigativa se dá inicialmente por uma análise da tragédia segundo
a ótica aristotélica, com base em sua obra Poética. Passo seguinte, avançamos sobre o conceito de
Contradição Irreconciliável, presente em Goethe, e Dupla Causalidade, sustentado por Lesky. Na
sequência, trazemos a visão de Schiller sobre a tragédia, em sua concepção moral. Após, amparados
nas percepções de Freud, apresentamos uma leitura de Édipo Rei, na perspectiva de uma jornada auto
investigativa, destacando três fases da vida do herói trágico.
1 INTRODUÇÃO
1
Trabalho Final de Curso da Graduação em Letras do Ifes, Campus Vitória.
2
Licenciando em Letras-Português, modalidade presencial, pelo Instituto Federal do Espírito Santo, campus
Vitória. E-mail: anderson.alpe@yahoo.com.br
3
Professora Orientadora; Doutora em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Professora no Ifes Campus Vitória. E-mail: adelmaschio@gmail.com
tempos vemos a crítica literária debruçar-se sobre múltiplas questões relacionadas ao drama
trágico surgido entre os gregos, que vão desde questões morais, religiosas e filosóficas até
questões relacionadas ao modo como essa forma específica de arte deve ou não ser
apresentada ao público. Em meio a essas discussões realizadas em torno da tragédia, uma
interrogação específica chama-nos à atenção: “qual é a natureza do trágico?”. Direcionados
por essa pergunta que atraiu e continua a atrair o olhar de grandes nomes da filosofia, da
dramaturgia, da literatura, da psicanálise, entre outras áreas do saber, é que conduzimos nossa
investigação.
Segundo José Carlos Koche (1997), a pesquisa bibliográfica distingue-se pela utilização de
materiais já elaborados, tais como livros, revistas, correspondências, entre outros. Oferecendo
ao pesquisador a apreensão das teorias produzidas por diversos autores dentro da área de
interesse, que servirão como instrumento de avaliação, compreensão e explicação do objeto
investigado (KOCHE, 1997, p. 122). Desta forma, entre os principais textos utilizados em
nossa abordagem, destacamos os trabalhos: Édipo Rei, de Sófocles, situada na obra A Trilogia
Tebana, tradução de Mário da Gama Kury (2001); Poética, de Aristóteles, prefácio de Maria
Helena da Rocha Pereira, tradução e notas de Ana Maria Valente (2008); Correspondência,
de Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich Schiller, tradução de Claudia Cavalcanti (2010);
A tragédia grega, de Albin Lesky (1996), tradução de J. Guinsburg, Geraldo Gerson de
Souza e Alberto Guzik; O Teatro Considerado como Instituição Moral, de Friedrich Schiller,
em Teoria da Tragédia, tradução de Flavio Meurer, introdução e notas de Anatol Rosenfeld
(1991); Escritores criativos e devaneio (1908) e A interpretação dos sonhos (1900) de
Sigmund Freud, tradução de Paulo Cesar de Souza. Com base nessa revisão teórica,
dissertaremos sobre os aspectos concernentes à tragédia e à natureza do trágico.
De acordo com Bornheim (1975), observa-se que é comum o propagar de uma compreensão
errônea de que a tragédia encontra-se fundamentada na produção poética enquanto obra de
arte:
[...] o trágico é possível na obra de arte porque ele é inerente à própria realidade
humana, pertence, de um modo precípuo, ao real. A partir dessa inerência é que a
dimensão trágica se torna possível numa determinada obra de arte (BORNHEIM,
1975, p. 72).
Logo, para Bornheim a tragicidade não surge da obra artística por si só, com efeito, o
fenômeno trágico somente existe na poesia como possibilidade, pois ele decorre de uma
realidade anterior, que é a realidade do homem, em sua face mais dramática.
Mas será que podemos conter esse instinto que leva o homem a querer conhecer e,
sobretudo, a querer conhecer o que leva a viver, e a viver sempre? A viver sempre,
não a conhecer sempre. Porque viver é uma coisa e conhecer outra e, talvez haja
entre ambas tal oposição, que não possamos dizer que tudo o que é vital é anti-
racional, e não só irracional, e tudo o que é racional, antivital. Esta é a base do
sentimento trágico da vida (UNAMUNO, 1996, p.33).
Outro importante aspecto do teatro trágico diz respeito ao seu caráter pedagógico. O poeta
trágico era reconhecido entre os gregos como um educador, que diante de uma sociedade
marcada por constantes mudanças, via-se compelido a manter acesa a chama mítica no seio da
pólis. Desta maneira, distanciando-se um pouco do caráter religioso das tragédias áticas, nos é
possível perceber, em uma perspectiva mais avançada, três importantes possibilidades: a
tragédia enquanto expressão artística, enquanto possibilidade catártica e enquanto elemento
educativo (FREITAG, 2002, p. 21).
O poeta educador, de posse da palavra, liberta-se e conduz os seus educandos por um percurso
libertador. Na medida em que os provoca a refletirem e conhecerem mais sobre si e sobre o
mundo que os rodeia, o educador coloca-se como um poderoso instrumento em prol do
processo de humanização e libertação dos indivíduos, que passam a perceber a
interdependência de conceitos como educação, política e liberdade. Posta a capacidade
humanizadora e pedagógica do texto trágico, é possível reafirmar sua ampla pertinência em
nossos dias.
De acordo com Junito de Souza Brandão (1984, p.10), uma das versões mais defendidas em
relação à origem das tragédias gregas indica que suas raízes nascem do culto oferecido a
Dioniso, deus do vinho, da agricultura e da fertilidade, filho de Zeus e da princesa tebana
Sêmele. A celebração, que primeiramente era realizado nas regiões rurais da Grécia, tempos
mais tarde é transferida para a cidade, dando origem a mais suntuosa das festas ao deus
Dioniso, as chamadas Dionisíacas Urbanas. Assim, por ocasião da vindima, celebrava-se
anualmente em toda a Ática a festa do vinho novo, onde os participantes, em referência aos
Sátiros, seres míticos que, conforme se dizia, ficaram ébrios após terem bebido do vinho que
fora produzido e servido pelo próprio deus Dioniso, personificavam as divindades, de modo
cênico e dramático. Diante desse “espetáculo” ritualístico e religioso teria nascido, segundo o
imaginário popular, a expressão “homens-bodes”. A origem do vocábulo tragédia (tragoidía)
seria, portanto, uma aglutinação das palavras trágos, que significa bode, oidé, que significa
canto mais ia, assim, gerando a expressão “canto do bode”, da qual a expressão em latim
tragoedia derivou-se a palavra tragédia.
Outra versão indica que o termo tragédia faz referência ao bode sacrificado em homenagem
ao deus Dioniso no início dos festejos, um ato cerimonial cujo animal imolado simboliza o
próprio deus do vinho, que, consoante ao mito antigo, foi uma das últimas metamorfoses de
Baco em sua fuga dos Titãs. O animal, tendo sido devorado pelos filhos de Úrano e Géia,
ressuscitou da morte como figura mítica; tragos theios (bode paciente), o pharmakós (bode
expiatório) sacrificado em favor da purificação da pólis (cidades-Estados gregas). O grito do
animal sacrificado seria então “o grito do bode”, imolado a Dioniso.
Levando-se em conta o contexto da religião dionisíaca, que trará nessa festividade anual o seu
principal exemplar de processo ritual, perceberemos que aqueles festejos eram uma ocasião na
qual se glorificava tanto a vida como a morte. Não por acaso as dionisíacas urbanas de Atenas
eram realizadas no início da primavera, um período do ano em que se tem uma passagem de
um ciclo invernal para um novo ciclo de fertilidade e de vida.
Com base nas discussões trazidas por Eagleton (2013), nos é possível compreender que esse
ato cerimonial, repleto de significados e dualidades, que nos apresenta elementos de “poder e
fragilidade, sagrado e profano, central e periférico” (EAGLETON, 2013, p. 376), refletirá-se
nas narrativas teatrais por meio dos heróis-trágicos que se tornam pharmakós (veneno e cura,
aquele que é imolado para a purificação da pólis), alcançando na figura de Édipo o seu maior
arquétipo.
As expressões religiosas oriundas da Grécia antiga convergiam, não raramente, para uma
mesma sede de pensamento, onde sentimentos e anseios compartilhados pelo povo afloravam.
A exemplo do tragos theios, ser mítico anteriormente citado, um desses anseios era o desejo
de substituição do ciclo de existência material, calcado na finitude, por um novo ciclo de vida
– renovada, revivificada, eterna (athanásia).
Não obstante aos anseios humanos, os deuses olímpicos estavam sempre prontos a punir toda
e qualquer desmedida (démesure) que os seres humanos viessem a cometer contra si ou contra
os deuses (hybris). A tragédia é, portanto, desencadeada a partir do momento em que o
hypocrités (aquele que responde em êxtase e entusiasmo) ultrapassa o Métron (a medida de
cada um). (BRANDÃO, 1984, p.11-12).
Northrop Frye, em sua obra Anatomia da Crítica (1980), definirá a hybris como um agente
precipitador natural da catástrofe.
Mais uma vez é verdade que a grande maioria dos heróis trágicos possui hybris, um
ânimo soberbo, apaixonado, cheio de obsessão ou de arrojo, que acarreta uma queda
moralmente inteligível. Tal hybris é o agente precipitador normal da catástrofe, tal
como na comédia a causa do final feliz é em geral algum ato de humildade,
praticado por um escravo ou pela heroína, pobremente disfarçada (FRYE, 1980, p.
207).
Posto isso, percebemos que a ação dos deuses, e também do Estado, reverberam o seu
sentimento de ameaça, frente a esse homo dionysiacus, que conectado em êxtase e entusiasmo
à divindade báquica, liberta-se das amarras que condicionam a ordem natural, pervertendo os
preceitos da ordem social, política e ética vigentes. Diante dessa ideia, se observava no mundo
grego, em diversos locais estratégicos, inscrições que tinham como objetivo advertir os
passantes quanto ao cuidado que se deveria ter em relação aos excessos: “meden ágan”, nada
em excesso, e o mais famoso deles situado no Pórtico de Delfos: “gnôthi sautón”, conhece-te
a ti mesmo. O som de alerta desses “avisos” ressoará inclusive séculos depois, na era cristã,
como podemos notar na semelhança da advertência contida na primeira epístola de Paulo à
igreja de Corinto, na Grécia, que diz: “Examine-se, pois, o homem a si mesmo [...]” (BÍBLIA,
1 Coríntios, 11, 28). No texto, a autoridade religiosa orienta à comunidade cristã quanto aos
princípios da sagrada ceia, momento em que os fiéis comungam o pão e o vinho, símbolos do
corpo e do sangue de Cristo. Com o passar dos tempos, o Estado se apodera completamente
da tragédia, tornando-a um instrumento em favor da nova religião política do povo.
Apesar das imprecisões quanto a suas origens, sabe-se que a encenação das tragédias ocorre
na transição do século V para o século IV a.C., na ocasião em que o povo grego vivenciava a
passagem da aristocracia para um novo sistema de governo, que os gregos irão chamar de
democracia, uma expressão que nasce da aglutinação de duas palavras demos (povo) e kratos
(força, poder), que juntas significam “o poder na mão do povo”. Em que pese esse novo
sistema de governo, que trará como princípio uma série de decisões sociais, destacamos o
regime de passagem entre ambos: a tirania, um sistema que se assemelha à monarquia,
sobretudo pela centralização de poder na mão de um único indivíduo. Contudo, diferente da
monarquia, a passagem do poder não ocorre pela sucessão familiar, e sim pela tomada do
poder por meio de um golpe de estado ou outro elemento social – o que pode ocorrer de modo
violento ou não. Em sua obra A Tragédia Grega, o conhecido especialista austríaco Albin
Lesky indica-nos que esse momento de reestruturação da política no mundo grego foi
marcado por intensas disputas:
Debilitara-se o governo aristocrata, mas sua substituição pelo governo do povo não
foi um processo fácil. Em muitos lugares do mundo grego houve fortes
personalidades da estirpe aristocrática que tomaram posições contrárias às de seus
pares e, apoiadas pelo demos, se assenhorearam do poder absoluto (LESKY, 1996,
p.75).
Entre os tiranos que ocuparam o poder na antiga Atenas, um nome se destaca: Pisístrato, que
em 532 a.C., durante seu governo, no campo das artes, dá ordens para que seja feito o registro
dos escritos de Homero, as obras Ilíada e Odisseia. Além disso, Pisístrato será o responsável
por trazer à cidade uma festividade proveniente das regiões rurais da Grécia, realizada em
homenagem ao deus Dioniso, inaugurando assim as Grandes Dionisíacas. Nos festejos, de um
lado serão encenadas comédias, e do outro, tragédias. É justamente nesse ambiente que
Sófocles apresentará ao público a sua peça teatral Édipo Rei.
Escrita no ano 427 a.C. pelo ateniense Sófocles, um dos mais renomados tragediógrafos do
mundo grego, ao lado de Ésquilo e Eurípedes, a peça teatral Édipo Rei está inserida
cronologicamente na linha temporal da chamada Trilogia Tebana, como sendo a primeira de
um conjunto total de três peças teatrais. Somam-se nessa trilogia as obras: Édipo Rei,
Antígona e Édipo em Colono.
Considerada por grande parte da crítica literária como uma das mais importantes heranças do
teatro ateniense, Édipo Rei, além de ser um modelo teatral trágico por excelência, destaca-se
por sua capacidade de conexão com as mais diversas audiências ao longo da história,
despertando-as para um universo de reflexões, paixões, dúvidas. Albin Lesky nos informa que
a cidade de Atenas foi assolada em 430 a.C. por uma cruel epidemia, que dizimou, durante 3
anos, uma parte considerável da população ateniense e de seu exército. Um ano antes, em 431
a.C., iniciou-se a Guerra do Peloponeso, um conflito entre as cidades de Atenas e Esparta, que
se estendeu até o ano 404 a.C., quando alcançou seu desfecho por meio da vitória da Liga do
Peloponeso, sob a liderança de Esparta. Quanto a uma possível associação da tragédia ao seu
contexto histórico, Lesky escreve:
A própria peça nos oferece a “análise trágica” (Schiller) por cujo intermédio o sentido
desses atos penetra destrutivamente na consciência de Édipo. No prólogo, vemo-lo no
apogeu de sua realeza, que o poeta nos mostra magnificamente não em sua plenitude do
poder, mas em seu profundo conteúdo humano. A peste está assolando Tebas e bem
podemos supor que sua descrição teve uma determinante na terrível epidemia que devastou
Atenas no começo da guerra do Peloponeso (430) (LESKY. 1996, p. 161-162).
No ano 427 a.C., envolto neste cenário de perdas em decorrência da peste de Atenas e da
guerra do Peloponeso, Sófocles escreve Édipo Rei. O enredo trágico da peça evoca e
aprofunda reflexões a respeito de aspectos vivenciados naqueles dias.
De modo geral, as tragédias gregas trazem à baila uma importante reflexão a respeito da
forma como os seres humanos, cada um ao seu modo, irão se comportar diante do sofrimento
e da morte. Vemos, por exemplo, Édipo, como tirano da cidade de Tebas, assustadoramente
preocupado em manter-se no poder enquanto uma terrível peste assola o seu povo. A atitude
do governante de Tebas, muito semelhante a atitudes de certos governantes em nossos dias,
nos quais somos assolados por um terrível morticínio decorrente do vírus Covid-19, destaca
não apenas como os homens, dentro e fora do microcosmos dramático, nunca estão
preparados para lidar com a tragédia premente, como também suas atitudes sempre tendem ao
agravamento do efeito trágico.
A peça Édipo Rei, de Sófocles, apresenta-nos o mito de uma família monárquica da cidade de
Tebas, isto é, trata-se de uma história que irá apresentar reis e rainhas, que serão descritos a
partir da forma política da tirania para uma audiência democrática, que irá refletir a partir
dessa democracia instituída na Grécia por volta do século V a.C., a respeito do período
anterior, governado por reis que se comportavam como tiranos.
Segundo a maldição dos labdácidas, Laio, filho de Lábdaco e pai de Édipo, em sua juventude
teria cometido um crime: esquecendo-se da sacralidade do princípio da hospitalidade, atentou
contra a segurança e o bem-estar físico do príncipe Crísipo, enquanto esteve hospedado na
corte de Pélops. Laio, ao seduzir e raptar o jovem príncipe, desrespeita o seu anfitrião, indo de
encontro a uma lei fundamental aos gregos, que é a lei da ksenía, a lei da hospitalidade.
Amaldiçoado por Pélops, após a morte de Anfião e Zeto, que haviam se apoderado do reino
de Tebas, Laio então é coroado como rei da cidade, casando-se com Jocasta, filha de
Meneceu. Algum tempo depois, Laio e Jocasta vão a Delfos e ao consultar o oráculo ouvem a
seguinte predição: se acaso tivessem um filho, este estaria destinado a matar o pai e desposar
a mãe. Contudo, com o passar dos anos, Jocasta concebe um menino. Temendo o
cumprimento da profecia, Laio e Jocasta entregam o infante a um pastor, para que ele o
matasse. Assim, o pastor leva a criança até o monte Citerão, onde o deposita em uma árvore,
com os seus tornozelos atados, para aguardar pela morte. Todavia, compadecendo-se do
menino, o pastor tebano o entrega para outro pastor da cidade de Corinto, que por sua vez
conduz o infante aos cuidados dos reis Pólibo e Mérope, que não podiam ter filhos e
receberam a criança com a condição de nunca revelarem a ninguém sobre a adoção. Em razão
dos ferimentos em seus pés, a criança recebe o nome de Édipo, que significaria algo como:
“pés inchados”, “pés feridos” ou “pés machucados”.
Em Corinto, Édipo cresce sem saber da sua condição de filho adotivo. Vinte e um anos
depois, num festim, ouve de um homem bêbado, isto é, um homem possuído por uma
experiência dionisíaca, que não é filho legítimo dos reis de Corinto. Angustiado, Édipo vai até
o oráculo de Delfos, onde ouve a mesma predição ouvida por seus pais anos antes: sua sina
era matar o pai e casar-se com sua mãe. Desejando fugir do cometimento desses dois delitos,
parricídio e incesto, Édipo foge, sem saber, para a sua cidade natal, Tebas.
Em seu percurso na direção de Tebas, ao passar por uma estrada conhecida como “A fenda”,
numa bifurcação entre as estradas, Édipo vai se deparar com um homem, que ao exigir
passagem, terá uma atitude desrespeitosa para com Édipo, desencadeando assim uma peleja
entre ambos, resultando, por fim, na morte desse homem pelas mãos de Édipo e de todos os
outros que com ele estavam. Em Tebas, Édipo depara-se com uma terrível peste, uma Esfinge
que permanecendo às portas da cidade ofertava enigmas aos que por ali passavam, não
havendo quem pudesse decifrar o enigma, o monstro descrito como tendo asas de águia, dorso
leonino e face de virgem devorava a todos. Diante da situação, instituiu-se um prêmio a quem
conseguisse derrotar o animal mítico: ao que vencesse a terrível fera seria dado o direito de
ser o novo rei da cidade. Édipo desvenda o mistério proposto pela criatura e com isso recebe o
trono de Tebas, a mão da rainha Jocasta e ainda a alcunha de decifrador de enigmas.
Observamos então a concretização do oráculo sobre a vida de Édipo, haja vista que o homem
que ele assassinou na estrada conhecida como “A fenda” era seu pai, e a mulher com quem
acabara de se unir em casamento é sua mãe.
Tempos se passam e Édipo tem quatro filhos com Jocasta: Etéocles, Polinice, Antígona e
Ismene, até que novamente a cidade é assolada por uma outra praga: as sementes haviam
parado de germinar e a terra não estava mais a produzir seus frutos. Diante da situação, os
cidadãos de Tebas vão até Édipo e novamente suplicam para que o herói os salve da terrível
aflição. É a partir desse instante que a peça trágica é encenada.
Édipo dá ordens para que seu cunhado Creonte vá até o oráculo de Delfos em busca de
respostas ao novo problema da cidade de Tebas. Ao regressar do templo de Apolo, Creonte
transmite a mensagem obtida em Delfos – aqui verificamos mais uma vez as ações da tragédia
movimentarem-se pelos preditos oraculares vindos de Delfos, onde o deus Apolo, irmão
antitético de Dioniso, era adorado. A mensagem4 trazida por Creonte assim dizia: “Teremos
de banir daqui um ser impuro ou expiar morte com morte, pois há sangue causando enormes
4 Como notação dos versos, seguiremos a versão realizada por Mário da Gama Kury (SÓFOCLES, 2001, p.23).
males à nossa cidade”. Sem entender bem o que dizia Creonte, Édipo questiona quem havia
perecido e que morte exigia expiação? Creonte então esclarece: “Laio, senhor, outrora rei
deste país, antes de seres aclamado soberano”.
A partir desse momento Édipo inicia um processo investigativo, no qual segue, semelhante a
um detetive, chamando e interrogando suspeitos, a fim de descobrir e punir o assassino de
Laio. No decorrer do inquérito, após diversas remissões ao passado, Édipo descobre ser ele o
real assassino de Laio. Ao mesmo tempo também descobre que Laio e Jocasta, rei e rainha de
Tebas, são os seus verdadeiros pais consanguíneos, caindo então num profundo e doloroso
sofrimento:
Conforme nos afirma Lesky: “o filósofo grego, embora teórico máximo da tragédia, não
chegou a elaborar propriamente uma teoria do trágico” (LESKY, 1996, p.14). Quanto à
importância dos escritos de Aristóteles, bem como suas contribuições, sobretudo no campo da
retórica e da poética, Marilena Chauí nos diz que:
Com esses dois escritos (Arte retórica e Arte poética), Aristóteles deixou fixadas
para o Ocidente as regras de argumentação persuasiva (retórica) e as regras dos
gêneros literários (poética). Tudo quanto foi escrito depois, ainda que ampliado,
renovado, adaptado a novas circunstâncias históricas e sociais, foi escrito a partir de
Aristóteles (CHAUÍ, 2018, p. 334).
Situada na passagem do século IV para o século III a.C., a Poética remonta às grandes
produções dramáticas de, pelo menos, 150 anos, do itinerário das composições dramáticas até
a época em que foi escrita.
As artes não são únicas, suas expressões são muitas. Suas origens provêm de uma atitude
naturalmente humana, que é a atitude de imitar, isto é, a origem primeira das artes está em
nossa tendência a imitar. Assim Aristóteles nos diz que:
Parece ter havido para a poesia em geral duas causas, causas essas naturais. Uma é
que imitar é natural nos homens desde a infância e nisto diferem dos outros animais,
pois o homem é o que tem mais capacidade de imitar e é pela imitação que adquire
os seus primeiros conhecimentos; a outra é que todos sentem prazer nas imitações.
(ARISTÓTELES, 2008, p. 42).
Logo, as artes originam-se dessas duas causas. Imita-se mediante: versos, encenações,
músicas, danças e outras formas mais. A Imitação (mímesis) é definida por Aristóteles na
Poética, no capítulo XXV, mas, sobretudo, conjuntamente à definição de tragédia, no capítulo
VI:
Como podemos notar, Aristóteles traz consigo uma concepção positiva a respeito da mímeses.
Nesse sentido a arte teria, segundo a percepção do filósofo, um caráter benéfico, sobretudo
por sua utilidade na vida da pólis.
Os estudos sobre a tragédia ocupam a maior parte da Poética, permeando todo o escrito,
sobretudo a extensão compreendida entre os capítulos VI e XXIII. A tragédia Édipo Rei, de
Sófocles, é, conforme se observa, a principal referência do filósofo no que concerne à
elaboração do trágico. Sua composição, sob vários aspectos, corresponde aos critérios de
enredo, estrutura e efeitos emocionais.
Outra importante questão levantada por Aristóteles é a composição do enredo trágico, que
segundo o filósofo deve, necessariamente, ser complexa, ao passo que também deve imitar
fatos que suscitam sentimento de temor e compaixão (ARISTÓTELES, 2008, p.60), para
tanto, assim como ocorre em Édipo Rei, o herói trágico deve passar da prosperidade para a
desgraça, não em razão da perversidade, mas pelo cometimento de um erro (hamartia).
É, pois, forçoso que um enredo, para ser bem elaborado, seja simples de preferência
a duplo, como pretendem alguns, e que a mudança se verifique, não da infelicidade
para a ventura, mas, pelo contrário, da prosperidade para a desgraça, e não por efeito
da perversidade, mas de um erro grave, cometido por alguém dotado das
características que defini, ou de outras melhores, de preferência a piores
(ARISTÓTELES, 2008, p. 61).
Peripécia é, como foi dito, a mudança dos acontecimentos para o seu reverso, mas
isto, como costumamos dizer, de acordo com o princípio da verosimilhança e da
necessidade. Assim, no Édipo, o mensageiro que chega com a intenção de alegrar
Édipo e de o libertar dos seus receios em relação à mãe, depois de revelar quem ele
era, produziu o efeito contrário (ARISTÓTELES, 2008, p.57).
Édipo, aqui sintetizado como figura singular representativa da concepção de herói trágico,
durante sua jornada de vida passa por algumas fases que representam, segundo o nosso ponto
de vista, fases em que as ações do herói irão orbitar certas condicionantes que, por sua vez,
trarão à narrativa complexidades e significados interpretativos de grande profundidade. Com
relação a essas fases e ao modo como elas se relacionam à tragicidade da peça sofocliana em
questão, buscaremos tratar de forma mais pormenorizada adiante.
O poeta romântico alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), é, notadamente, uma
das mais brilhantes mentes de seu tempo. Seu conjunto de ideias e de descobertas
contribuíram para múltiplas áreas do saber. No campo das artes literárias, o poeta destaca-se
por uma vasta produção, da qual destacamos Os Sofrimentos do Jovem Werther e sua peça
teatral Fausto – esta última considerada sua magnum opus. Em que pese a grande importância
da literatura goethiana, o grande autor alemão também nos legou uma importante produção
crítica a respeito do drama trágico. De suas correspondências trocadas com Johann Christoph
Friedrich Schiller, Goethe publicou, após a morte de seu amigo e correspondente, em um
jornal de crítica artística e político-cultural, sob o título Kunst und Altertum, que pode ser
traduzido por Arte e Antiguidade, uma série de cartas selecionadas, cuja temática
predominante era a poesia épica e dramática. Concernente às contribuições de Goethe, em sua
obra A tragédia grega, Albin Lesky considera a importância do poeta e crítico alemão no que
diz respeito às tentativas de se compreender a essência do trágico. Lesky lembra-nos que o
trágico na visão goethiana tem como base o conceito de contradição inconciliável:
Eu não nasci para ser um poeta trágico porque minha natureza é conciliadora. Por
isso um caso somente trágico não me interessa porque aquele tem que ser por sua
natureza de origem inconciliável (GOETHE, 2010, p.458).
Além das contribuições teóricas a respeito dos fundamentos da tragicidade grega, Goethe
declara em uma de suas cartas a Schiller que, para ele, compor uma tragédia seria equivalente
à sua autodestruição:
Não me conheço com certeza suficientemente bem para saber se poderia escrever
uma verdadeira tragédia; porém me assusto só em pensar em tal empresa, e estou
quase convencido de que a simples tentativa poderia destruir-me (GOETHE, apud
LESKY, 1996, p. 35).
Não obstante ao juízo externado pelo poeta alemão, observamos o fato de que Goethe é o
escritor de grandiosas tragédias, a exemplo disso destacamos suas obras “Fausto” e “Ifigênia”
– Textos dramáticos de valor inquestionável.
A concepção nutrida por Goethe a respeito da “verdadeira tragédia” não lhe era trivial; tal
ideia o afetava intimamente, desaguando nos campos teórico e prático de sua vida e poesia,
um limite nem sempre bem delineado quando olhamos para o poeta alemão. Lembramos, pois
da composição de sua grande obra dramática Fausto e de todo seu processo de escrita, que
abrangeu grande parte de sua vida. Quanto ao projeto artístico de produção do Fausto, Walter
Benjamin informa-nos que: “Segundo seu próprio testemunho, Goethe trabalhou nas duas
partes da obra por mais de sessenta anos”. (BENJAMIN, 2009, p.170).
[...] o fato de Goethe situar o trágico no mundo das antinomias radicais nos dá o
acesso necessário ao nosso problema, não nos exime, porém, da necessidade de
formular um número considerável de outras perguntas (LESKY, 1996, p.31).
Nesse sentido, Lesky desenvolve um pensamento no qual demonstra que a contradição trágica
fundamenta-se não em uma situação irreconciliável, conforme a concepção de Goethe, mas
em uma dupla causalidade que surge do embate entre dois pólos antagônicos, um situado na
esfera divina e outro situado na esfera humana:
[...] a contradição trágica pode situar-se no mundo dos deuses, e seus pólos opostos
podem chamar-se Deus e homem, ou pode tratar-se de adversários que se levantem
um contra o outro no próprio peito do homem (LESKY, 1996, p. 25).
Desta forma, compreendemos que o trágico, na visão do historiador da cultura grega, decorre
de uma tensão entre dois pólos adversários. As ações e desdobramentos decorrentes dessa
oposição de forças emparelhadas produzem uma situação trágica de caráter mais relevante
para a tragicidade da peça, que o seu próprio desfecho. Deste modo, no contexto de uma
tragédia ática, o final nem sempre redundará, segundo Lesky, em um acontecimento
irreconciliável ou infeliz:
Queremos dizer que a ação trágica não precisa redundar necessariamente na morte
do herói, embora a morte possa causar um impacto trágico maior. Mas de modo
algum é lícito considerar o happy end como incompatível com a tragédia; se assim
fosse, uma boa parte das tragédias gregas não deveria ser classificada como tragédia.
O mais importante, longe de ser a morte do herói, é a reconciliação dos dois pólos ou
a suspensão do conflito, embora a reconciliação possa acontecer através da morte
(BORNHEIM, 1975, p.74).
Como vemos, as concepções mais modernas sobre o trágico, aqui referenciadas nos textos de
Lesky (1996) e Bornheim (1975), evidenciam que esse elemento encontra-se profundamente
vinculado às tensões decorrentes do conflito e da busca por sua suspensão, que pode inclusive
se dar por intermédio da morte, entretanto, a exemplo de outras tragédias gregas, essa não é
uma condição sine qua non para se atribuir autenticidade a uma tragédia grega. Um grande
exemplo trazido por Lesky, em que podemos observar com boa nitidez os fenômenos da dupla
causalidade e do final conciliador, em contraste ao pensamento de Goethe, encontramos na
trilogia de Ésquilo:
Na trilogia citada por Lesky, a qual também conhecemos como Oréstia, vemos um conflito
surgido no seio da família de Agamenon e Clitemnestra, rei e rainha da cidade de Micenas, na
Grécia. A trama desenvolvida em três grandes peças: Agamenon, As Coéforas e As
Eumênides, apresenta-nos, inicialmente, Agamenon, em seu regresso após dez anos da grande
guerra de Tróia. No início da referida batalha, ainda a caminho de Tróia, Agamenon teve que
entregar sua própria filha Ifigênia em um sacrifício exigido pela deusa Ártemis, por tê-la
ofendido ao matar acidentalmente um de seus veados sagrados. Diante da terrível atitude,
Clitemnestra, juntamente com seu amante Egisto, planejam e executam o plano de assassinato
do rei Agamenon. Ao saber do crime, Orestes, príncipe de Micenas, por ordenança de Apolo,
regressa a sua cidade e vinga a morte do pai, assassinando primeiramente Egisto e
posteriormente sua própria mãe, a rainha Clitemnestra, derramando, assim, sangue familiar. A
partir do cometimento desses crimes, temos a terceira e última peça, As Eumênides, em que
vemos Orestes sendo perseguido pelas Fúrias, por causa do matricídio cometido.
A peça se encerra no Areópago, com o julgamento do crime de Orestes, presidido pela própria
Palas Atena, com a participação de Apolo, as Erínias e mais um grupo de doze cidadãos
atenienses. Finalizado o julgamento, verifica-se um empate dos votos e Atena decide a
questão em favor de Orestes, determinando que o príncipe não seja morto. Diante da decisão,
as Fúrias se desagradam, contudo Atena as convence a aceitar o veredito, tornando-as uma
força de vigilância em Atenas e modificando seus nomes. Agora, não mais seriam conhecidas
como Erínias, e sim como Eumênides, que quer dizer “as graciosas” ou “as bondosas”.
Lesky reafirma sua compreensão de que a Oréstia, de Ésquilo, representa, sem dúvida
alguma, uma das maiores criações trágicas da Grécia clássica, abarcando todos os elementos
componentes constituintes de um grande texto dramático. Não obstante sua constatação,
Lesky também enfatiza que a Oréstia não se encerra de forma cruenta e irreconciliável, visto
que o herói trágico, o pharmakós, alcança da parte dos deuses o perdão quanto ao sangue
materno derramado pelo herói trágico.
Diante do exposto, no qual observamos o apaziguar entre os polos divino e humano, Lesky
esclarece que não deseja incorrer no paradoxo de dizer que a Oréstia, de Ésquilo, não é uma
tragédia, tampouco busca refutar Goethe em seu campo. Assim sendo, suas colocações
contribuem para o desenredar do tumulto das definições existentes e toleradas de modo tácito,
as quais o próprio Lesky define pelo emprego do termo “barafunda”, isto é, uma situação em
que não há controle ou ordem (LESKY, 1996).
Não obstante sua concepção de que a tragédia pode ter um final feliz, referenciando-se na
Poética de Aristóteles, Lesky chama à atenção para um importante fato: no referido trabalho,
o tragediógrafo Eurípides é qualificado como sendo “o mais trágico” dentre os áticos, em
razão dos finais catastróficos de suas tragédias.
Portanto, estão igualmente errados aqueles que censuram Eurípides por fazer isto nas
suas tragédias, muitas das quais terminam na infelicidade. Isto é, como se disse,
correcto. A melhor prova disso é que, nos concursos dramáticos, as tragédias deste
género, se forem bem feitas, revelam-se as mais trágicas e Eurípides, se é certo que
não estrutura bem outros aspectos, mostra ser, no entanto, o mais trágico dos poetas
(ARISTÓTELES, 2008, p. 62).
Lesky, ao apresentar essa consideração de Aristóteles sobre Eurípedes, paralelamente busca
demonstrar que na Antiguidade esboçava-se um pensamento de que as peças trágicas seriam
em geral lendas heróicas repletas de sofrimentos. O ato de reproduzir acontecimentos
familiares imbuídos de dor é, inclusive, reconhecido por Aristóteles como um elemento
liberador de determinados afetos (ARISTÓTELES, 2008). Assim, o sofrimento foi
reproduzido em intensidade cada vez maior, chegando a ser compreendido como aquilo que
de fato caracterizava a tragédia. Logo, não é estranho notar, segundo a compreensão de alguns
teóricos, uma concepção de trágico como algo irremediavelmente irreconciliável (LESKY,
1996).
Outra importante definição a ser trazida à memória neste contexto de abordagem diz respeito
ao desenlace dos acontecimentos no decorrer da peça, no sentido da produção do efeito
trágico, que segundo Aristóteles, nos capítulos XIII e XIV de sua Poética, se estabelece não
pela pura e simples representação de homens que passam de um estado de felicidade para a
infelicidade. Segundo o filósofo, o poeta deve imitar ações que possibilitem o despertar de
sentimentos tais como temor e compaixão. Nesse sentido, uma obra que representasse homens
bons, que vão da felicidade ao infortúnio sem que haja uma identificação pelo despertamento
de tais sentimentos, suscitaria ao final um indesejado efeito de repulsa (ARISTÓTELES,
2008).
As questões levantadas por Lesky confirmam que o fator de tragicidade das peças gregas
decorre de um conflito entre forças que, de um lado, expressa o poder absoluto dos deuses e,
do outro, a finitude humana. A tensão entre esses polos suscita uma diferença, uma
inconformidade a ser apaziguada no mundo dos deuses e dos homens. O trágico, ergue-se
poderosamente desse conflito. Para Lesky, a natureza do trágico, em sua expressão mais
genuína, encontra-se na tragédia Édipo Rei, de Sófocles:
Embora o elemento morte seja algo fortemente marcante em Édipo Rei, de Sófocles, sua
tragicidade não se encontra fundamentada em tal fato. O herói trágico, Édipo, permanece vivo
até o fim da história, podendo inclusive, ao fim, contemplar, em sentido simbólico, a
reconciliação do conflito existente nos dois polos, "homem/finitude" ou "homem/destino",
que marcou a maior parte de sua vida.
6 SCHILLER E O TEATRO COMO INSTITUIÇÃO MORAL
Envolvido desde sua juventude com o universo do teatro, Johann Christoph Friedrich von
Schiller (1759 – 1805) é tido como um dos mais amados literatos da Alemanha do século
XVIII, tendo participado, ao lado de Goethe, do movimento literário romântico Sturm und
Drang (Tempestade e Ímpeto). Entre as principais obras teatrais de Schiller, estão: Os
Bandoleiros (1781), Don Carlos (1788), Wallenstein (1799) e Guilherm Tell (1803), peças
que expressam, além de um grande talento para a dramaturgia, o processo de amadurecimento
técnico do escritor e dramaturgo alemão. No campo da poesia, destacamos o seu mais
conhecido poema lírico Ode à Alegria (1785), inspirada nos sentimentos de amizade e
companheirismo vivenciados num momento de grande dificuldade financeira, e Xénias
(1797), poesia composta em parceria com seu grande amigo e companheiro na arte Johann
Wolfgang von Goethe.
Tão importante quanto à produção poética e literária de Schiller, evidenciamos sua produção
crítico-filosófica, através da qual o poeta nos apresenta sua tese em relação à estética e suas
ligações com o processo de educação e aperfeiçoamento ético dos indivíduos. É justamente
nesse contexto de ideias que, em 1784, Schiller lança O Teatro Considerado como Instituição
Moral, texto no qual argumenta sobre a possibilidade de conciliação entre o sentido e a razão,
identificando o teatro trágico como meio artístico ideal para o alcance de tal interesse.
Segundo Schiller, a arte exerce um poder benéfico sobre os indivíduos, pois ela os influencia
moralmente, através do seu efeito máximo.
Só cumprindo o seu efeito estético máximo é que ela [a arte] irá exercer uma
benéfica influência sobre a moral; mas só ao praticar a sua inteira liberdade é que
pode cumprir o seu supremo efeito (SCHILLER, 1992, p. 15).
Conforme exposto, o efeito moral da arte, presente no pensamento de Schiller, não está
baseado em imposições que se fazem do alto do palco sobre a plateia, pelo contrário, tal efeito
decorre de um exercício completo da liberdade.
Schiller distancia-se das proposições de Kant, apontando para uma nova perspectiva sobre a
estética, na qual defenderá uma harmonização entre as ideias de moral e estética,
anteriormente divididas dentro da ótica kantiana. A “chave resposta” para esse dilema,
segundo a visão de Schiller, encontra-se justamente no ato de fruição da arte, pois é nesse ato
que os homens, de maneira geral, se deparam com seus impulsos vitais.
Não obstante a sua sustentação em favor da plena autonomia da arte, segundo os preceitos da
estética kantiana, Schiller reserva para esta uma importante finalidade pedagógica: guiar
coletivamente o espírito de uma nação, tal qual acontecera entre os gregos em seu período
Clássico.
Se chegássemos a ter um palco nacional, teríamos também uma nação. Que trouxe
vínculos tão firmemente, na Grécia, um outro? Que atraía o povo tão
irresistivelmente para o seu palco? Nada mais que o conteúdo patriótico das peças, o
espírito grego, o grande e dominante interesse do Estado e da elevada essência
humana, que nelas se manifestava (SCHILLER, 1991, p.45).
Partindo da concepção de que a culpabilidade moral de toda uma geração estaria vinculada a
uma mesma fonte, e que as gerações posteriores seguem palmilhando pelo mesmo caminho de
degradação social, Schiller indica a arte teatral como meio eficaz para a proteção do povo
contra suas fraquezas morais (SCHILLER, 1991), identificando o palco teatral como um
aliado indispensável ao sábio legislador que deseja bem conservar sua república,
especialmente quando o povo, sobretudo os poderosos, já não possuem mais respeito pelas
leis, dando lugar ao escárnio e ao cometimento de delitos de toda espécie.
A jurisdição do palco começa onde finda o domínio das leis profanas. Quando a
justiça cega, a peso de ouro, e vive na fortuna, a soldo do vício, quando os crimes
dos poderosos escarnecem de sua imponência o temor humano tolhe o braço da
autoridade, o teatro assenhora-se da espada e da balança e arrasta os vícios para
diante de um terrível tribunal (SCHILLER, 1992, p. 35).
Para que a arte pudesse despertar o sublime efeito da justiça entre os indivíduos, Schiller
acreditava na necessidade de uma educação estética. Sua defesa de homens preparados para
esta apreciação ia, inclusive, ao encontro do momento histórico tão elogiado por Schiller, a
Revolução Francesa. Para ele, a política encontra-se profundamente vinculada a arte e para
que a sociedade pudesse ser beneficiada politicamente por ela, caberia ao sábio governante o
estabelecimento de tal ensino. Neste ponto, mais uma vez observamos o espirito de Schiller
unir-se ao dos gregos, em seu período Clássico, onde o teatro exercia um papel fundamental
no processo de formação educativa da pólis. Schiller encontrará na junção entre o sublime e o
belo, interligados ao trágico, a equação ideal de sua proposta de educação estética
(SCHILLER, 1991).
Como observamos, e mais uma vez temos a oportunidade de enfatizar, em Schiller a visão de
arte, sobretudo o drama trágico, não tem por finalidade aplicar lições de virtude, seu objetivo
está em fazer com que o público perceba de forma lúcida e livre a sua existência moral em
todas as suas possibilidades, sejam elas negativas ou positivas. Pela visão schilleriana, a
poesia trágica retrata artisticamente, o conflito moral e o sofrimento de indivíduos que se
insurgem contra os poderes brutais do universo e da história. O observador da tragédia tem a
oportunidade de conhecer elementos constituintes do universo, até então não percebidos, os
quais Schiller chamou de: ordem universal transcendente e harmonia absoluta, que só podem
ser alcançadas pela superação do abismo, onde, de um lado estão postos a necessidade natural
e o dever, e do outro, a liberdade moral e as inclinações dos impulsos (SCHILLER, 1991).
Assim, enquanto o belo mostra-nos o ideal absoluto dessa harmonia, o sublime, manifesto
primordialmente na tragédia, mostra-nos o homem imerso no mundo das tensões antagônicas,
reafirmando sua liberdade e nos fazendo vislumbrar essa harmonia absoluta.
O teatro trágico nos conduz artificiosamente às aflições alheias e nos retribui, ainda que por
meio de lágrimas e sofrimentos, um significativo acréscimo de experiência e bravura. Ao
contemplarmos o homem trágico e seu coração enrijecido para o golpe, lembramo-nos de nós
mesmos, lembramo-nos por meio da experiência sublime da tragédia o quão humanos também
somos.
As abordagens desenvolvidas no campo da crítica literária, com base nas tragédias gregas e,
sobretudo, no mito de Édipo, se direcionam no itinerário histórico por múltiplos campos do
saber, entretanto, um fato incontornável é que a retomada das discussões a partir do século
XX se deve, em grande medida, ao trabalho do médico austríaco e pai da psicanalise Sigmund
Freud, especialmente pelo lançamento de seu livro A interpretação dos sonhos, em 1900.
Em 1908, partindo da dúvida: “de onde o poeta extrai os elementos básicos de sua arte?”,
Freud escreve um artigo, intitulado: Escritores criativos e devaneios, no qual se dedica à
compreensão do processo de criação literária. Para Freud, tal processo encontra-se
relacionado ao ato de brincar, praticado pela criança, e ao sonho diurno, que também pode ser
compreendido como devaneio. Nesse sentido, a argumentação de Freud passa pela ideia de
que todo ser humano, em seu íntimo, possui uma capacidade poética e que o comportamento
de toda criança é semelhante ao do escritor criativo, visto que a criança reajusta ou
reinterpreta o mundo exterior conforme o seu querer, transformando-o para melhor, por meio
do ato de brincar. O jogo literário realizado pelo escritor surge como substituição dessas
reinterpretações que são feitas pelos indivíduos durante o período da infância, e ao longo
tempo, por meio das imposições sociais vão sendo gradativamente reprimidas.
Tendo em mente que o fantasiar, que gradativamente se sobrepõe ao ato de brincar, encontra-
se diretamente vinculado aos processos oníricos, Freud busca refletir como se dão as relações
entre as fantasias e os sonhos. Além disso, também busca refletir sobre o modo como os
desejos ocultos de nós mesmos em nosso subconsciente se manifestam durante esse processo:
Não posso ignorar a relação entre as fantasias e os sonhos. Nossos sonhos noturnos
nada mais são do que fantasias dessa espécie, como podemos demonstrar pela
interpretação de sonhos. A linguagem, com sua inigualável sabedoria, há muito
lançou luz sobre a natureza básica dos sonhos, denominando de ‘devaneios’ as
etéreas criações da fantasia. Se, apesar desse indício, geralmente permanece obscuro
o significado de nossos sonhos, isto é por causa da circunstância de que à noite
também surgem em nós desejos de que nos envergonhamos; têm de ser ocultos de
nós mesmos, e foram conseqüentemente reprimidos, empurrados para o inconsciente
(FREUD, 1908, p. 139).
Ao olharmos para as palavras de Freud, passamos a perceber que nenhum indivíduo humano,
sobretudo os que se dedicam a criação literária, estão “livres” das influências do seu
inconsciente. Junto do temor que sentimos quanto a exposição dos nossos sonhos e desejos,
também sofremos pela brutal necessidade de externá-los.
Quanto às obras que não são fruto da mente de um único autor, mas de uma construção
psicológica de todo um povo, como é o caso dos mitos, lendas e contos de fadas, Freud aponta
que tais produções podem ser a expressão de fantasias plenas de desejos de nações inteiras.
Ainda assim, as marcas de personalidade do escritor são percebidas por meio dos materiais
que escolhe, ou das modificações que realiza:
Não devemos esquecer, entretanto, de examinar aquele outro gênero de obras
imaginativas, que não são uma criação original do autor, mas uma reformulação de
material preexistente e conhecido [pág. 139]. Mesmo nessas obras o escritor
conserva uma certa independência que se manifesta na escolha do material e nas
alterações do mesmo, às vezes muito amplas. Embora esse material não seja novo,
procede do tesouro popular dos mitos, lendas e contos de fadas. Ainda está
incompleto o estudo de tais construções da psicologia dos povos, mas é muito
provável que os mitos, por exemplo, sejam vestígios distorcidos de fantasias plenas
de desejos de nações inteiras, os sonhos seculares da humanidade jovem (FREUD,
1908, p.141-142).
Essa descoberta é confirmada por uma lenda da Antiguidade clássica que chegou até
nós: uma lenda cujo poder profundo e universal de comover só pode ser
compreendido se a hipótese que propus com respeito à psicologia infantil tiver
validade igualmente universal. O que tenho em mente é a lenda do Rei Édipo e a
tragédia de Sófocles que traz o seu nome (FREUD, 2010, p.223).
Ainda que a abordagem desenvolvida por Freud a respeito da tragédia de Édipo Rei, de
Sófocles, seja desenvolvida por meio de uma ótica que tem como principal mote avançar
sobre a compreensão dos mistérios da psique humana, o pai da Psicanálise também apresenta
sua perspectiva quanto ao efeito trágico presente nessa narrativa sofocliana. Assim, Freud
relata que: “Oedipus Rex é o que se conhece como uma tragédia do destino. Diz-se que seu
efeito trágico reside no contraste entre a suprema vontade dos deuses e as vãs tentativas da
humanidade de escapar ao mal que a ameaça.” (FREUD, 1900, p.224). Contudo, em que pese
essa definição, o psicanalista também expressa sua percepção particular concernente ao efeito
trágico, apontando que:
Se Oedipus Rex comove tanto uma platéia moderna quanto fazia com a platéia grega
da época, a explicação só pode ser que seu efeito não está no contraste entre o
destino e a vontade humana, mas deve ser procurado na natureza específica do
material com que esse contraste é exemplificado. Deve haver algo que faz uma voz
dentro de nós ficar pronta a reconhecer a força compulsiva do destino no Oedipus,
ao passo que podemos descartar como meramente arbitrários os desígnios do tipo
formulado em die Ahnfrau [de Grillparzer] ou em outras modernas tragédias do
destino. E há realmente um fator dessa natureza envolvido na história do Rei Édipo
(FREUD, 1900, p.224).
Conforme vemos, segundo a perspectiva de Freud, o efeito trágico de Édipo é comunicado e
reconhecido dentro de nós, levando-nos a compartilhar das dores e dos sofrimentos
vivenciados durante o sofrido percurso de vida do herói. A natureza do trágico expresso no
mito de Édipo, na perspectiva freudiana, fundamenta-se no compadecimento que sentimos ao
ver os infortúnios ocorridos com o herói trágico, mas que também poderiam ter ocorrido
conosco, haja vista que seus delitos também poderiam ser os nossos.
Seu destino comove-nos apenas porque poderia ter sido o nosso — porque o oráculo
lançou sobre nós, antes de nascermos, a mesma maldição que caiu sobre ele. É
destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro impulso sexual para nossa mãe, e
nosso primeiro ódio e primeiro desejo assassino, para nosso pai (FREUD, 1900, p.
224).
Os aspectos do trágico, consolidados no palco da vida de Édipo, pela força da arte, seriam
capazes de trazer à plateia o despertamento de sonhos, desejos e outros tantos sentimentos há
muito guardados nos escaninhos mais secretos do subconsciente de homens e mulheres de
todo mundo.
A jornada edipiana é marcada por infortúnios terríveis, situações graves que afetariam
profundamente qualquer ser humano. Observamos a condução de Édipo através de fases que
trazem à tona toda a tragicidade de sua existência, as quais podemos triplamente compreender
da seguinte forma: a fase da inocência (que compreenderia a infância de Édipo), a fase da
dúvida (associada à sua vida adulta) e a fase do reconhecimento (relacionada à velhice do
herói, iniciando-se no momento em que Édipo comete o seu autoflagelo). Essas fases podem
ser situadas e delimitadas com base na descrição da Esfinge, posicionada às portas da cidade
de Tebas, na ocasião em que o animal mítico desafia Édipo a solucionar o seguinte enigma:
“que animal anda com quatro pernas de manhã, duas ao meio-dia e três à tarde?”
(SÓFOCLES, 2001, p. 98). Diante da questão, Édipo entende tratar-se das fases da vida
humana e responde que o animal aludido no enigma é o “homem”, pois na infância (manhã da
vida) usava as mãos e os pés para engatinhar; depois (meio-dia), usava os pés, e na velhice
(tarde) tinha de recorrer a um bordão para poder caminhar.
A primeira fase da vida de Édipo é fortemente marcada por sua inocência. Sendo ainda de
tenra idade, nada fez para merecer os infortúnios que lhe foram oferecidos. Vemos a pequena
criança sendo rejeitada e castigada por crimes futuros, portanto, crimes sequer cometidos. A
terrível pena impetrada foi a de morte, seus algozes foram ninguém menos que seus próprios
pais: Laio e Jocasta, que numa tentativa desastrosa de evitar o mal agravaram ainda mais a
tragédia. O infante, ainda sem nome e sem identidade, jamais poderia imaginar o funesto
destino que os deuses lhe reservaram. Vemos um ser em estado de vulnerabilidade e
fragilidade pura, sendo brutalmente submetido a experiências cruéis e traumáticas que irão
marcá-lo por toda sua vida. Seus pais, que num primeiro momento o desejaram, agora o
querem destruir, visto que, para eles, o meigo olhar do menino transfigurou-se num olhar
ameaçador, lembrando-os a todo instante que sua sina era matar o pai e relacionar-se
incestuosamente com a mãe. Enquanto o inocente menino é ferido, abandonado e
desconsiderado por aqueles que o deveriam proteger, seu inconsciente é formado.
Uma vez frustrados os planos de assassínio da criança, ela então é conduzida aos cuidados de
Políbio e Mérope, rei e rainha da cidade de Corinto, que segundo a história não podiam ter
filhos, e assim adotaram para si a criança que os deuses lhe enviaram, dando-lhe finalmente o
nome Édipo, que quer dizer “aquele de pés inchados”, “pés perfurados” ou “pés feridos”, com
o compromisso de jamais revelar a ninguém sobre a origem da criança. Observamos, pois,
paradoxalmente, Édipo recebendo uma identidade da parte de seus pais adotivos e, ao mesmo
tempo, sendo suprimido de sua verdadeira origem. Ser adotado pelos reis de Corinto constitui
uma grande reviravolta na vida de Édipo, uma vez que passou de um estado de rejeição para
um estado de acolhimento.
A dúvida foi a maior marca da segunda fase da vida de Édipo, o jovem príncipe fora criado
para ser o Tirano de Corinto, todo seu caráter foi forjado com este objetivo. Subitamente,
porém, as certezas do Herói se dissolvem quando um homem em estado ébrio o alerta sobre
algo do seu passado:
Foi numa festa; um homem que bebeu demais embriagou-se e logo, sem qualquer
motivo, pôs-se a insultar-me e me lançou o vitupério de ser filho adotivo. Depois
revoltei-me; a custo me contive até findar o dia. Bem cedo, na manhã seguinte,
procurei meu pai e minha mãe e quis interrogá-los. Ambos mostraram-se sentidos
com o ultraje, mas ainda assim o insulto sempre me doía; gravara-se profundamente
em meu espírito (SÓFOCLES, 2001, p.58).
Apesar de Édipo não ter forçado uma resposta de seus “pais”, não se conteve, encaminhou-se
para o oráculo de Delfos a fim de buscar respostas que pudessem devolver a tranquilidade ao
seu espírito conturbado, contudo não obteve sucesso. Ficou ainda mais abalado e sua dúvida
se tornou em confusão, pois, segundo a profecia, sua sina era cometer dois horrores: matar o
pai e ter um relacionamento incestuoso com a mãe. O impetuoso Édipo, temendo causar
tamanha desgraça a sua família, foge. Na estrada conhecida como “A Fenda”, entre Tebas e
Corinto, desentende-se com uma comitiva e comete dois assassinatos, entre os mortos está
Laio, o desconhecido pai biológico de Édipo. Chegando a Tebas, Édipo decifra o enigma da
Esfinge, terrível monstro mitológico, parte mulher parte animal, que assolava a cidade, e por
este feito recebe a mão da viúva, a Rainha Jocasta, tornando-se assim o novo Rei da cidade.
Édipo não sabia, mas sua união com Jocasta foi a concretização da última parte da profecia
que ele e seus pais receberam do oráculo de Delfos. O incestuoso casamento lança a cidade
em uma nova e terrível maldição, obrigando Édipo a procurar um profeta cego chamado
Tirésias, para que lhe esclarecesse sobre o motivo da maldição. Como se vê, novamente a
dúvida recai sobre Édipo, movendo-o em sua jornada investigativa.
Ao passo que Édipo avança em sua busca pelo assassino de Laio, novos questionamentos são
agregados a sua mente: Quem matou Laio? Em seguida: Serei eu o assassino de Laio? E
finalmente, a principal pergunta: Quem sou eu? Como percebemos, essa jornada, que
originalmente se destinava a uma investigação externa, em seu decurso tornar-se em uma
jornada auto investigativa. A busca incessante por respostas nesta fase da vida de Édipo
configura-se como o motor principal que o conduz ao momento da kátharsis, isto é, a
purificação ou a purgação das emoções de horror e piedade suscitadas no público pela
contemplação do trágico.
Ao tomarem consciência da verdade dos fatos, Édipo e sua família são lançados no mais
absoluto desespero. Jocasta, diante da revelação, dirige-se aos seus aposentos e, numa cena
fortíssima e ao mesmo tempo repleta de beleza e significados, concluindo que não suportaria
conviver com a culpa que sentia pela desgraça que recaiu sobre si e sobre sua família, tira sua
própria vida diante do leito onde Édipo foi concebido como filho e, tempos depois, acolhido
como esposo. Reconhecendo que não adiantava lutar contra os desígnios dos deuses, Édipo
fura os próprios olhos e condena-se ao exílio, levando consigo sua filha Antígona. Entre os
quatro filhos que teve com Jocasta, foi a única que o acompanhou.
No que concerne à passagem do estágio de ignorância para o reconhecimento, Aristóteles
considera que:
Édipo já não era mais o mesmo, visto que de juiz tornou-se réu, e, de inocente, tornou-se
culpado, concluiu e reconheceu que na verdade era ele, e não Tirésias, o verdadeiro cego, e
que sua visão limitada e temporal o conduziu ao seu fatídico destino. Tendo Édipo conduzido
sua investigação até as últimas consequências, agora finalmente compreende que não se pode
fugir aos desígnios dos deuses, e que homem algum pode se considerar feliz até que se chegue
ao final do dia.
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através de nossa exposição da peça Édipo Rei, de Sófocles, e com base nas principais ideias
vindas do pensamento de renomados estudiosos da tragédia grega, buscamos investigar a
natureza do trágico, que opera dentro das obras dramáticas produzidas na Grécia por volta do
século V para o século IV. Conforme ressaltamos introdutoriamente, quando nos propomos a
compreender mais sobre as tragédias e suas relações com o trágico, uma questão em
específico chama à atenção: “qual é a natureza do trágico?”. Movidos primordialmente por
essa demanda, é que demos início a nossa investigação, em que buscamos, através de uma
revisão bibliográfica específica, refletir com maior profundidade sobre essa problemática.
O primeiro teórico revisitado em nossa pesquisa foi o renomado filósofo ateniense Aristóteles,
que em sua obra Poética, faz referência à peça teatral Édipo Rei, de Sófocles, apresentando-
nos, em linguagem pedagógica, um detalhamento dos aspectos teóricos concernentes à
elaboração da “verdadeira” tragédia grega. Desta forma, o Estagirita não nos oferece
propriamente uma crítica literária sobre o problema do trágico.
Após nossa análise das definições trazidas por Goethe e Lesky, fomos em direção as ideias de
outro importante pensador do século XVIII, Johann Christoph Friedrich von Schiller, que em
seu O Teatro Considerado como Instituição Moral, nos fala sobre o teatro trágico e sua
aplicação moral na sociedade. Schiller encontra na filosofia kantiana as bases para o
desenvolvimento de seu pensamento filosófico, no qual propõe uma junção entre os conceitos
de belo, sublime e trágico para demonstrar como os indivíduos são afetados em sua moral por
meio da fruição que ocorre no teatro trágico.
Já no século XX, destacamos as ideias do psicanalista austríaco Sigmund Freud, que em seus
estudos, que trazem consigo um profundo exame das tragédias gregas, desenvolve toda uma
ciência a respeito do pensamento humano. Ressaltamos em especial suas obras Escritores
criativos e devaneio (1908) e A interpretação dos sonhos (1900), textos em que o conhecido
pai da psicanálise reflete sobre o processo de desenvolvimento mental dos indivíduos, desde a
sua infância, e como esse processo está diretamente vinculado as artes, especialmente a
tragédia.
Por fim, podemos dizer que, diante dos materiais teóricos examinados, desejando conhecer
mais sobre a natureza do trágico, com base na peça Édipo Rei, de Sófocles, concluímos que as
discussões em torno dessa temática jamais estarão concluídas no campo da crítica literária,
tendo em vista os infindáveis caminhos que a busca pelo seu esclarecimento nos conduz. Não
obstante essa impossibilidade, reafirmamos nosso encantamento pelas tragédias gregas e por
esse misterioso sentimento que delas magnificamente emana.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Ensaios reunidos: estudos sobre Goethe. Tradução de Mônica Krausz
Bornebusch, Irene Aron e Sidney Camargo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2009.
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego: Tragédia e Comédia. Petrópolis: Vozes, 1984.
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LESKY, Albin. A Tragédia Grega. 3. Edição. São Paulo. Editora Perspectiva, 1996.
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COMISSÃO EXAMINADORA