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O Nascimento Da Tragedia Nietzsche e A
O Nascimento Da Tragedia Nietzsche e A
�005
ESTÉTICAS
Coleção
Nietzsche e a polêmica sobre
direção: Roberto Machado
O nascimento da tragédia
Kallias ou Sobre a Beleza
Friedrich Schiller Textos de Rohde, Wagner e
Wilamowitz-Mollendorff
Ensaio sobre o Trágico
Peter Szondi
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NÃO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA
Jorge ZAHAR Editor
Rio de Janeiro
Introdução
• • •
Essas idéias, elaboradas sobretudo em 1870 e 1871 por um jovem
filólogo, professor da Universidade da Basiléia, mesmo não sen-
do inteiramente originais, jamais haviam sido enunciadas desta
maneira. E surpreenderam os filólogos da época.
Um dos motivos é o estilo em que são expostas. É que, pelo
menos desde 1867, ainda estudante de filologia em Leipzig, cons-
tatando que escreve sem estilo, Nietzsche busca uma maneira de
redigir seus textos que seja diferente dos escritos filológicos, inclu-
sive de seus trabalhos anteriores, sobre Teógnis e Diógenes Laércio.
Essa recusa do estilo filológico significa duas coisas: primei-
ro, em vez de escrever de maneira seca e morta, subjugada pela ló-
gica, fazer uma exposição rigorosa das provas de forma agradável
e elegante, evitando a gravidade, o pedantismo, a tradição osten-
tatória, cheia de citações, que caracteriza a filologia. Escrever co-
mo se estivesse improvisando ao piano, já diz o jovem estudante
de filologia. Segundo, significa criar wn estilo que, sem se limitar
ao exame de fragmentos isolados, seja capaz de situar os fatos em
um horizonte mais amplo, mais abrangente. Assim, opondo-se à
estreiteza científica da filologia- uma atividade cega, de toupeira,
como diz -, Nietzsche confessa que, enquanto a maior parte dos
filólogos é incapaz de ter uma visão de conjunto da Antigüidade,
por se manter muito perto do quadro, seu maior prazer é "desco-
brir um ponto de vista novo sobre wna questão, multiplicar os
pontos de vista e juntar o material com essa intenção': A filologia
o
deve abarcar um conjunto mais vasto ou produzir pontos de vis-
""..,."'
ta mais elevados do que geralmente tem feito.1
]c
Ora, Nietzsche pensa que aquilo que lhe possibilita essa crí-
tica da filologia é a filosofia; pensa que, para que a realidade in-
dividual dê lugar à unidade do todo, a atividade filológica deve 13
14 estar inserida em uma visão filosófica do mundo, Assim, se ele
gosta mais de seu trabalho filológico sobre Demócrito do que
dos dois primeiros sobre Teógnis e sobre Diógenes Laércio, é pe-
la base filosófica que ele contém,
<O Essa idéia, que desponta quando é estudante em Leipzig, de
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uma subordinação da filologia à filosofia, pela visão global que es-
u
!j"' ta possibilita, ganha ainda mais força no momento em que ele se
-z-"' torna professor dessa disciplina na Universidade da Basiléia. Isso
pode ser notado em sua aula inaugural, de 1869, "Homero e a fi-
lologia clássica'~ Essa conferência parte da falta de unidade concei-
tua! e da multiplicidade de atividades científicas da filologia para
defender que, se ela é uma disciplina estética - além de histórica
e científica - é por ver na Antigüidade clássica um mundo ideal,
um modelo eterno onde o presente deve se espelhar. Posição que
o faz observar, ainda bastante influenciado por Winckelmann,
que, se os filólogos devem contar com o apoio dos artistas, é por-
que apenas eles "podem compreender o quanto a espada da bar-
bárie ameaça todos aqueles que perdem de vista a inefável simpli-
cidade, a dignidade e a nobreza dos gregos':2 Mas também o leva,
depois de haver citado a frase de Schiller segundo a qual os filólo-
gos destroçaram a coroa de Homero, a esclarecer aos "artistas
amigos da Antigüidade, adoradores das belezas helênicas e de sua
nobre simplicidade': que toda atividade filológica- indispensável
para fazer ressurgir o mundo das obras primas imortais do espí-
rito grego que estava oculto sob uma montanha de preconceitos
- deve ser in1pregnada de uma concepção filosófica que dê conta
de uma unidade global. 3
Essas mesmas posições podem ser notadas no curso de 1871
intitulado Introdução aos estudos de filologia clássica, em que
Nietzsche chega a estabelecer que só quem é filósofo e artista es-
tá predestinado a ser filólogo. t que, segundo ele, a compreensão
histórica dada pela filologia consiste em interpretar os fatos a
partir do classicismo da Antigüidade, com suas leis eternamente
vá.lidas e sua superioridade em relação ao mundo moderno. Ora,
o dassicismo da Antigüidade é, para ele, uma pressuposição filo-
sófica, e implica que, guiado pela filosofia, o filólogo se liberte
dos detalhes, considerando as coisas com amplitude, como um
todo.• O que só se realizará se o filólogo assinúlar o ensinamen-
to dos grandes modernos, como Winckelmann, Lessing, Goethe,
Schiller, sobre o que é a Antigüidade.
Assim, o principio que possibilita a critica nietzschiana da
filologia é que esta não é uma ciência autônoma, devendo estar
em constante interação com a arte e a filosofia. Uma filologia pu-
ramente científica nos faz perder o "verdadeiro perfume" da
Antigüidade. Ao julgar que a filologia tem sido indiferente aos
verdadeiros e mais urgentes problemas da vida, e utilizar-se da
ciência da Antigüidade para pensar filosoficamente, Niet7.sche, já
nesse primeiro momento de sua reflexão, é muito mais que um
filólogo.
Essa presença da filosofia é tão grande na época em que es-
creve O nascimento da tragédia que, em janeiro de 1871, Nietz-
sche propõe sua candidatura a uma das duas cátedras de filoso-
fia da Universidade, que tinha ficado vaga. A proposta é feita por
carta a seu protetor, o conselheiro Vischer-Bilfinger, filólogo,
professor e presidente do Conselho da Universidade da Basiléia,
que havia sido o principal responsável por sua nomeação como
professor, depois da consulta a seis renomados acadêmicos ale-
mães, entre os quais Ritschl, professor de Nietzsche em Bonn e
Leipzig. Ora, nessa carta, Nietzsche confidencia a Vischer que os
estudos de filologia o interessavam principalmente pelo que ti-
nham de significativo para a história da filosofia, informando-
lhe não só que durante seus estudos acadêmicos esteve em per-
manente contato com a filosofia, organizando seus interesses
principais em torno dela, como também que, ao se tornar pro-
fessor, chegou até mesmo a dar cursos sobre temas filosóficos. E
não deixa de ser curioso o argumento que utiliza para convencê-
lo da importância de sua transferência da cátedra de filologia pa-
ra a de filosofia: a causa da estafa que o afeta regularmente no
meio de cada semestre é o conflito pessoal entre sua inclinação à
meditação filosófica e suas múltiplas atividades cotidianas de
professor de filologia. Nietzsche não ganhará o cargo, provavel-
mente devido à oposição que seu nome suscitaria no outro pro-
fessor de filosofia da Universidade, que havia reagido negativa-
mente a suas conferências sobre "O drama musical grego" e
sobretudo "Sócrates e a tragédia'~ que faz a crítica da racionalida-
de socrática e de seus "efeitos antiartisticos" sobre a tragédia. 15
16 Mas, antes de saber que sua solicitação nem foi levada em consi-
deração, escreve a Rohde, em 29 de março de 1871, dizendo que
~ está terminando um pequeno trabalho intitulado "Origem e ob-
E
'"'& jetivo da tragédia" que lhe pode dar legitimidade como fllósofo.5
Esse interesse pela filosofia, que vem do tempo de estudan-
"'"' te, acompanhando seus estudos e escritos filológicos, consistiu
"'
~ em algumas leituras de filósofos e historiadores da filosofia.
z"' Schopenhauer, que lera com entusiasmo em outubro de 1865,
quando estudava filologia em Leipzig, e foi sua primeira desco-
berta da dimensão trágica da existência. A Critica da fawldade de
julgar, de Kant. Diógenes Laércio, Lange e Kuno Fischer, que lhe
deram o conhecimento da história da filosofia. Platão e os filóso-
fos "pré-platônicos'; sobre quem deu alguns cursos. Essas leituras
significaram sem dúvida pouco para que lhe fosse confiada uma
cátedra de filosofia. Elas traem, no entanto, um interesse tão
grande pelas questões filosóficas que, no momento em que deci-
de fazer carreira como professor de filologia, esta já significa pa-
ra ele mais um trabalho do que propriamente uma vocação. E se
esse interesse. como se sabe, só faz crescer. é ele que leva Nietz-
sche, logo depois de escrever O nascimento da tragédia, e ainda
como professor de filologia, a começar a abandonar a temática e
os métodos da filologia, buscando um compromisso entre sua
paixão pela filosofia e suas obrigações profissionais, como se no-
ta pelos cursos que deu em 1873 sobre os filósofos pré-platôni-
cos, sobre Platão e sobre a Retórica de Aristóteles. 6
I • •
..·e
v
violência da vontade que move todas as coisas. Mas a ilusão da
individuação o abandona, e ele é tomado de terror, ao se sentir
... engolido pelas trevas das profunde-as, onde a vida flui no movi-
....
~ mento da unidade eterna. É quando se revela a mais elevada for-
..
.c
ça salvadora da arte, e a música, arte que expressa a essência do
mundo, faz nascer o mito trágico na tragédia, a partir de elemen-
ti. tos líricos e épicos.
z
Depois de curta floração, no entanto, a tragédia é morta pe-
lo conhecimento científico, pelo otimismo teórico, manifestado
pela força demoníaca do instinto em Sócrates. A morte da tragé-
dia ocorreu porque sua força artística, capaz de expressar os mais
profundos segredos da ordem cósmica em imagens míticas,
desagregou-se diante de um conhecimento científico que preten-
deu dar conta dessa ordem cósmica em toda a sua profundidade
e amplitude.
O livro, finalmente, é animado pela esperança consoladora
de que se aprenda com os gregos não a fundamentação socrática
do mundo, como em geral tem sido feito, mas o rcnascin1ento da
arte apolíneo-dionisiaca da tragédia, inaugurando uma civiliza-
ção nova, cheia de promessas. Projeto grandioso que se deve ao
povo alemão que, através de Kant, acaba de despertar de um lon-
go sono e que traz a possibilidade de uma nova civilização artís-
tica que poderia fazer renascer a tragédia nascida da música. Pois
Nietzsche compartilha a visão wagneriana -baseada na concep-
ção de Schopenhauer- da música como idéia do mundo. E Roh-
de conclui seu elogio defendendo que o livro pode dar ao leitor
algo da consolação metafisica pela qual a tragédia liberta, ao fa-
zer o espectador entrever que, mesmo lírnitado por uma pobre
individuação, é preenchido pela onipotência da vida, pois é par-
te do uno eterno.
O que os filólogos pensariam do Nascimento da tragédia ao
lerem uma resenha como essa? Nietzsche, que deve ter notado
que os especialistas não gostaram do que escreveu,15 se preocu-
pa com isso, chegando mesmo a confidenciar a Rohde que há
desacordo entre os dois sobre a tática a adotar para dar conta do
livro, pois considera mais eficaz deixar fora da discussão o seu
aspecto metafísico. E dá, a esse respeito, o exemplo de Jacob Bur-
ckhardt, que, mesmo não se interessando por filosofia, gosta do
que o livro esclarece quanto ao conhecimento da Grécia. 16 Posi-
ção com a qual Rohde não concorda, por acreditar que, em vez
de valorizar particularmente o aspecto filológico-histórico, co-
mo havia sugerido Nietzsche, é mais indicado, na resenha, que o
livro expressa que o desejo de urna reconciliação entre nossa ci-
vilização secularizada e a mais profunda mística, a unificação do
eu e do todo no mito. 17
E é isso, na verdade, o que ele faz, ao pretender dizer aos fi -
lólogos que só com os gregos eles poderão encontrar o modelo
pelo qual se guiar e que devem aprender com O nascimento da
tragédia a se tornar os guardiães de uma educação mais nobre. 18
Pois a nova resenha escrita por Rohde também a pedido de
Nietzsche, embora mais longa, é muito parecida com a anterior.
Explicita, em primeiro lugar, como introdução, a relação entre fi-
lologia e filosofia presente no livro, caracterizando-o como um
estudo da Antigüidade helênica associado a um estudo filosófico
da arte, de tal modo que os resultados da pesquisa histórica servem
para a formulação de leis artísticas eternas e universais. O que faz
do livro, metodologicamente, uma estética filosófica que, com o
olhar dirigido para a arte grega, lembra à filologia que a eterna ar-
te helênica é o mais precioso dos bens doados à humanidade e
que ela nos foi dada para exortar os bárbaros da posteridade a
reconhecerem nela o ponto mais alto de sua própria destinação.
Em seguida, a resenha salienta, mais uma vez, a estrutura de O
nascimento da tragédia, apresentando, com objetividade e conci-
são, suas teses referentes ao nascimento, à morte c ao renasci-
mento da tragédia.
A esse respeito, a resenha de Rohdc apresenta, primeiro, a
dupla raiz da arte: o apoHnco c o dionisíaco. Mostra como pai-
xões profundas de entusiasmo panteísta se espalharam pela Gré-
cia vindas do Oriente, mas que os gregos conseguiram, graças à
arte, captar, dar forma e transfigurar o rurbilhão que ameaçava
o
atirá-los nas profunde1.as, tornando objetiva, na música, a dcHcia
·~
aterradora do êxtase místico que liga o homem ao uno da vonta-
de do mundo. Além disso, mostra, a esse respeito, que os gregos
~c
fizeram surgir da música a imagem analógica do mito trágico, fa-
zendo com que Dioniso estendesse a mão a Apolo. Esclarece, em 21
22 segundo lugar, que a sabedoria dionisíaca da tragédia se expres-
sa numa linguagem superior à da razão, mas que, com Sócrates,
.~ a compreensão mítica do mundo desaparece, quando a lógica -
E
'"'8. o otimismo lógico, a compreensão abstrata- torna-se a deusa su-
prema da ciência. Finalmente., a resenha salienta que o livro con-
"'"'
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u
vida a ter novamente esperança, pois na nobreza da arte, ou mais
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Jj
precisamente, na música alemã vive ainda hoje a capacidade de
z"' olhar o reflexo mítico dos traços secretos do mundo em sua
totalidade.
Deste modo, tanto em sua introdução metodológica quanto
na exposição do conteúdo do livro, a segunda resenha de Rohde,
repetindo o esquema da primeira, não só reafirma a influência de
Schopenhauer na concepção nietzschiana da música e do uno
originário, como alude à importância de Wagner para o renasci-
mento do trágico ao assinalar a esperança trazida pela música
alemã da época. Aliás a importância do movimento wagneriano
para Nietzsche e Rohde transparece claramente quando, em car-
ta a Nietzsche de 26 de maio de 72 - no mesmo dia em que seu
texto é publicado no jornal político Norddetttsche Allgemeine Zei-
ltmg - , referindo-se a Bayreuth como "nossa pátria" e mencio-
nando a "luta pelo bem supremo'; Rohde confessa que o objeti-
vo da resenha era ser um sinal de amizade para com o festival de
Bayreuth.
I
• •
Em 30 de maio de 1872, quatro dias depois da publicação do ar-
tigo de Rohde, aparece o prin1eiro opúsculo de Ulrich von Wi-
lamowitz-Mõllendorff, filólogo que havia sido colega de Nietz-
sche em Bonn e um dia será autor de obras importantes, como
In trodução à tragédia ática, de 1889, e alcançará grande prestígio,
mas na época é um jovem recém-doutor de vinte e quatro anos
publicando seu primeiro escrito. 19 O título, "Filologia do futuro,
réplica a O nascimento da tragédia de Fr. Nietzsche'; é un1a paró-
dia de "música do futuro", que por sua vez já era un1a paródia do
livro de Wagner, de 1850, A obra de arte do futuro. Esse texto, que
pela data em que foi publicado não podia ser un1a resposta a
Rohde, é o que dá início à polêmica.
A estratégia de Wilamowitz fica bem evidente na citação, co-
mo epígrafe, do trecho entusiasmado do final do §20 de O nasci-
mento da tragédia, onde, estabelecendo que o tempo do homem
socrático passou, Niet7-Sche convida o leitor a se coroar de hera,
tomar o tirso na mão c, ousando ser um homem trágico, acom-
panhar o cortejo de Dioniso. Com que objetivo Wilamowitz cita
essa passagem? Para acusar o tom e a orientação do livro c mos-
trar que, em vez de um filólogo, um pesquisador, Nietzsche é na
verdade um pregador que anuncia os milagres, passados e futu-
ros, de seu deus. O que o faz denunciar o pressuposto que está na
base do elogio da tragédia: a posição excepcional da música em
relação às outras artes, "dogma metafísico" proveniente de Wag-
ner e Schopenhauer que leva Nictzschc a denegrir o método
histórico-crítico da ciência da Antigüidade. Dizendo-se não se
sentir um místico, ou um trágico, reivindicando mesmo a condi-
ção de homem socrático, cujo objetivo é encontrar um funda-
mento histórico e filológico, compreendendo cada fenômeno so-
mente a partir das condições da época em que se desenvolveram,
Wilamowitz esclarece que entra em campanha contra Nietzsche
porque, além de metafísico schopenhaueriano e apóstolo wagne-
riano, ele também é professor de filologia clássica e. por isso, é
preciso mostrar que, nele, "a genialidade quimérica e a insolên-
cia das afirmações são exatamente proporcionais à ignorância e
à falta de amor à verdade':
Essa diferença que estabelece entre eles faz Wilamowitz cri-
ticar a subordinação da filologia à filosofia e à música. Em rela-
ção à filosofia são visadas sobretudo as interpretações, dadas a
partir de Schopenhauer, de Apolo, o brilhante, como deus da
aparência, e a existência de um pessimismo dos gregos. Em rela-
ção à música, os alvos principais são a influência de Wagner na
interpretação nietzschiana de Dioniso, concebido como "gênio
da música do futuro" e sua posição de "nobre precursor" que fez
renascer o mito trágico e a tragédia.
Além disso, para demonstrar como os pressupostos schopen-
hauerianos e wagnerianos atrapalharam as análises filológicas
de Nietzsche, Wilamowitz vai apontar os erros que teriam sido
por ele cometidos. Não analisarei essas objeções às teses pro-
priamente filológicas de O nascimento da tragédia, pois isso 23
24 obrigaria a fazer o mesmo em relação aos textos, pró e contra
Nietzsche, que se seguirão, desviando-me do mais importante: a
.~ discussão sobre o que deve ser a ftlologia. Vale a pena, no entan-
•vE to, enumerar as principais questões filológicas que foram objeto
& de polêmica.
.,"'
Grande parte delas diz respeito à música: se o canto popular
"'
]., foi introduzido na literatura por Arquíloco; se o ditirambo se
z opõe às outras formas de canto coral; se Platão defende a supe-
rioridade da música em relação à palavra; se a elegia é um gêne-
ro lirico que nasce da música; se o ditirambo era cantado por um
coro de sátiros. Outras referem-se à origem da tragédia a partir
da música: a existência de um tipo de ditirambo de luto de onde
provém a tragédia; o desenvolvimento progressivo da tragédia a
partir do canto coral ditirâmbico; a idéia de que a tragédia levou
o desenvolvimento da arte musical à perfeição. Outras também
concernem ao estudo da tragédia em geral: a comparação entre a
forma do teatro grego e um vale isolado de montanha; a associa-
ção de Apolo c Dioniso na tragédia; a posição de Nietzsche em
relação a Aristóteles; se O llllscim ellfO da rrngédia equipara o trá-
gico ao budista. Outras ainda se circunscrevem à interpretação
de cada um dos principais poetas trágicos: se a mo ira seria o cen-
tro da visão de mundo de &quilo; se o Prometeu de &quilo é
um homem ou um deus; se Sófocles teria dado o primeiro passo
para a destruição do coro; se o ~dipo de Sófodes perece por um
excesso de sabedoria dionisíaca; se Eurípides teria sido uma más-
cara de Sócrates, teria destruído os mitos, teria reali.zado em suas
peças a justiça poética.
Finalmente, depois de tomar posição contra Nietzsche ares-
peito de todos esses temas e ponderar que ele demonstrou igno-
rância e falta de amor à verdade, Wilamowitz ironiza dizendo
que teme ter sido injusto e que retiraria o que disse se Nietzsche
confirmasse que seu verdadeiro objetivo não era realizar uma
ciência histórica e crítica, mas criar urna obra de arte apolineo-
dionisíaca capaz de proporcionar uma consolação metafísica. E,
neste caso, só lhe pede que desça de sua cátedra, da qual deve dar
um ensino científico, e junte tigres e panteras e não jovens filólo-
gos, que, na ascese de um trabalho de renúncia de si mesmos, de-
vem aprender a procurar em toda a parte apenas a verdade. O
que evidencia, mais uma vez, que o leitmotiv da "Filologia do fu-
turo" é mostrar que Nietzsche não é um cientista, isto é, um ver-
dadeiro filólogo, pois enquanto a filologia é uma ciência históri-
ca e critica, o autor de O nascimento da tragédia é um místico, o
pregador de uma religião dionisíaca, e, portanto, não deveria es-
tar na universidade.
Rohde fica indignado com "a perfidia do panfleto" de Wi-
lamowitz. Vendo nele a manifestação do ciúme pelo fato de
Nictzsche ter uma cátedra, aconselha ao amigo que não se rebai-
xe respondendo, pois ele próprio liquidará o indivíduo com du-
reza, frieza e desprezo numa carta a Wagner que dará uma justi-
ficação histórico-filológica das idéias contidas em O nascimento
da tragédia.l<l Nietzsche, para quem Wilamuwitz nãu o com-
preendeu nem no todo nem nas partes, concorda que é preciso
abatê-lo, que é indispensável que ele seja castigado publicamen-
te, e alegra-se com a idéia de Rohde escrever uma carta aberta a
Wagner.21
Era preciso, portanto, responder a Wilamowitz. Mas res-
ponder filologicamente, pois é aí que reside a dificuldade de
aceitação do livro. Nietzsche vê isso claramente. O ideal seria
que um filólogo de renome se colocasse a seu lado. Mas, des-
de que Ritschl, seu antigo protetor, preferiu calar-se, ele per-
deu a esperança de que isso acontecesse. dai por que procura,
mais uma vez, convencer Rohde a se manter no âmbito da filo-
logia, mostrando para os filólogos o quanto é rigorosa a visão
que os dois têm da Antigüidade. E é interessante notar que esse
desejo de que a resposta tenha um endereço certo o leva até
mesmo a dizer o que poderia ser o texto de Rohde: "No inicio
você poderia dizer que se dirige a Wagner, e não aos filólogos,
porque falta um fórum supremo ao qual expor o resultado de
nossos estudos sobre a Antigüidade. Em seguida você poderia
evocar nossas experiências e esperanças bayreuthianas, justifi-
cando por que as ligamos à Antigüidade. Depois, chegando a
o
meu livro..."22 Sentindo o quanto é ridículo dizer a Rohde o que
""!:r
este deve escrever, Nietzsche pára.
Como Rohde demora cerca de três meses para escrever o seu
artigo, o passo seguinte- ou talvez fosse melhor dizer o golpe se-
-
"8
~
c:
..
19
z
lêmicas, pois a negação não leva a nada. E, embora notando que
seu ataque atrapalhou sua carreira de filólogo que ainda precisa
de uma posição, diz sentir-se contente porque algumas manifes-
tações de solidariedade parecem mostrar que o objetivo de rea-
bilitar a honra científica de Nietzsche teria sido atingido. 27
Mas Wilamowitz não deixa por menos, publicando em fe-
vereiro de 1873 "Filologia do futuro (segunda parte). Réplica
às tentativas de salvação de O nascimento da tragédia de Fr.
Nietzsche". Seu ataque também é bastante virulento. Só que o
alvo agora não é mais diretamente Nietzsche, e sim seu defen -
sor; não mais o "apelo encantador do pássaro dionisíaco"; e
sim a erudição filológica, o "filólogo ainda sem renome cientí-
fi co que tomou a li berdade de mostrar ao mundo que os fun-
damentos do livro são tão pouco sólidos que qualquer doutor
em filologia pode derrubá-los'~
Wilamowitz atira, na verdade, nesse texto, em várias di-
reções. Seja insinuando que o conselho que havia dado a Nietz-
sche de abandonar a universidade também se encontra na carta
de Wagner, que pergunta: "Ao que pode servir ainda trabalhar
no campo da filologia?". Seja mostrando que, por mais que
Rohde queira defender Nictzsche, não pode concordar com o
que ele disse sobre vários pontos filológicos importantes. Seja
cedendo em críticas secundárias, para afirmar sua posição, cien-
tificamente correta, sobre o que considera fundamental. Seja
criticando a estratégia de Rohde contra ele como sendo contra-
ditória: "Se defendo um ponto de vista comumente aceito con-
tra as 'maravilhosas experiências', repito os manuais; se tenho a
audácia de propor uma opinião própria, ... ele me opõe os
manuais." O objetivo central da resenha, no entanto, é desqua-
lificar a defesa feita por Rohde em relação às questões filológi-
cas principais da polêmica, a que já me referi.
Em suma, para Wilamowitz, o que Nietzsche e Rohde defen-
dem são tolices de cérebros degenerados, e se os combateu foi
porque, havendo um abismo intransponível entre eles, sua orien-
tação, sua concepção da arte, ~eu método cientifico o obrigaram
a rejeitar tais empreitadas. Pois, enquanto para ele o mundo se
desenvolve segundo leis racionais, os dois amigos negan1 o pro-
gresso que se realiza há milênios. Foi, então, porque revelações da
filosofia e da religião se viram sufocadas em nome do pessimis-
mo e a imagem dos deuses destruída para dar lugar a uma ora-
ção ao ídolo Richard Wagner que às vezes ultrapassou em seus
textos os lin1ites do aceitável. Foi o dever de defender a bandeira
pela qual ele se bate que o fez ter começado e continuado um de-
bate que não poderia Lhe trazer glória, vantagem ou prazer.
E assim termina a polêmica. Pois, considerando que se trata
apenas de sofismas e invectivas que não os podem tocar, Rohde
não tem a intenção de responder a Wilamowitz, e Nietzsche, ven-
do na crítica apenas injúrias e sutilezas de linguagem que acabam
em generalidades, também pensa que ela não merece resposta. 28
• • •
Como se pode ver, o centro do debate suscitado pelo Nascimell -
to da tragédia é a relação entre ciência, arte e filosofia ou, mais
precisamente, entre filologia, música e filosofia. Efetivamente, a
grande dificuldade dos filólogos em aceitar o livro de Nietzsche
- expUcita nos casos de Ritschl c Wilamowitz - foi sua crítica da
ciência, em geral, e mais especificamente, da filologia, ciência
da Antigüidade, que, na própria maneira como o livro foi con-
cebido, aparecia subordinada à filosofia de Schopcnhaucr c à
música de Wagner. Não que os filólogos não tenham compreen-
dido O 1WScime11to da tragédia, ou não tenham sido capazes de
perceber a novidade metodológica do livro, c por isso protes-
taram. O que, a meu ver, aconteceu foi que os filólogos não pu-
deram suportar que sua ciência fosse submetida a objetivos filo- ,.,o
~
sóficos, reduzida a um instrumento para a exposição de um
pensamento filosófico sobre a vida.
~c:
~ possível que a polêmica tenha sido desencadeada porque
Wilamowitz, discípulo de Otto Jahn, visse Nietzsche como discí- 31
32 pulo de Ritschl, que Lhe conseguiu o doutorado honoris causa e o
fez ser nomeado professor na Universidade da Basiléia. E efetiva-
mente, ao relembrar, em suas memórias, a polêmica a que deu
início, Wilamowitz diz que Nietzsche já o havia deixado com rai-
va por sua afronta a Otto jahn, ao seguir Ritschl de Bonn a Leip-
zig, pois ninguém da escola de Pforta, como Niet1.schc, que aí ti-
nha estudado, tinha o direito de insultá-lo desta maneira. 29 E
continua lembrando que, ao ler O nascime11to da tragédia, ficou
tão revoltado com a violação da realidade histórica c do método
filológico que isso o levou a defender sua ciência ameaçada.
Mas, conclui ele, "no fundo cu era um ingênuo, pois Nietzsche
não tinha nenhum objetivo científico, e o que ele escrevera não
tratava nem mesmo da tragédia ática, mas do drama musical
wagneriano'~30 Neste sentido, a polêmica sobre O nascimento da
tragédia seria em parte conseqüência da disputa filológica ocor-
rida entre Ritschl e )ahn, em Bonn, no ano de 1864, conhecida
como Philologenkrieg, guerra dos filólogos.
Mas o que atestam os documentos é que, mais do que um
debate interno no campo da filologia. ou mesmo o afrontamen-
to de duas escolas rivais institucional e teoricamente, a polêmica
diz respeito essencialmente a um tipo de relação com a Grécia
em que o determinante é a ciência filológica ou a estética. É que,
seguindo uma tradição que remonta a Winckelmann, Nietzsche
vê a Grécia como o modelo, a ser imitado, da verdadeira huma-
nidade, enquanto Wilamowitz é o representante de uma ciência
da Antigüidade, criada por Wolf, no final do século XVIII, que
funda cientí.fica e sistematicamente os estudos clássicos em uma
explicação gramatical exata dos textos, deixando totalmente fora
de consideração a estética ou a poética.
É verdade que, em Leipzig - marcado por Ritschl, que de-
preciava tudo o que não fosse absoluta redução ao texto, crítica
textual, controle rigoroso das hipóteses -. Nietzsche escreve sob
sua influência seus trabalhos filológicos. Mas já vimos o estra-
nhamento que, desde então, a filologia começa a lhe causar. E
que o levará a subordinar a filologia, concebida como o estudo
científico sistemático e crítico dos textos clássicos, a uma estética
que vê no conhecimento da Antigüidade o estabelecimento do
modelo de existência humana perfeita. O que explica por que, na
Introdução aos estudos de filologia clássica, Nietzsche diz que um
dos meios mais importantes de fomentar o conhecimento filoló-
gico é ser um homem moderno que esteja em re.lação com os
grandes modernos, como Winckelmann, Lessing, Goethe, Schil-
ler, "de modo a sentir com eles e a partir deles o que é a Antigüi-
dade para o homem moderno'~ 3 '
A reflexão sobre o valor da Grécia para a Alemanha, que
motiva O nascimento da tragédia, insere o primeiro livro de
Nietzsche no projeto de poUtica cultural iniciado por Winckel-
mann, pensador que teve um papel fundamental na maneira de
pensar os gregos e a importância que teriam para a constituição
da Alemanha, ao defender, nas Reflexões sobre a imitação das
obras gregas na pintura e na escultura, não só que o caráter geral
das obras-primas gregas é "uma nobre simplicidade e uma sere-
na grandeza':n mas também que o caminho para os alemães
tornarem-se inimitáveis seria a imitação dos gregos. E, na verda-
de, O nascimento da tragédia, além de reconhecer que foi com
Winckelmann, Goethe e Schiller que o espirito alemão entrou na
escola dos gregos, chega a lamentar o enfraquecimento desse
projeto de imitação da cultura grega para a constituição da cul-
tura alemã.
Mas Nietzsche vai além desse movimento estético, ao for-
mular em seu primeiro livro uma concepção ontológica da arte,
ou mais especificamente uma metaflsica da tragédia, que recebe
principalmente de Schopenhauer e que está em continuidade
com as interpretações de ScheUing, Hegel e Hõlderlin do fenô-
meno trágico. Ora, uma das particularidades dessa concepção
metaflsica do jovem Nietzsche é, em vez de caracterizar a Grécia
pela serenidade, relacionar a serenidade com um aspecto mais
profundo: o dionislaco. O que o fará inclusive criticar Winckel-
mann e Goethe pela maneira como pensaram os gregos. Neste
sentido, se a descoberta - ou a invenção - do trágico metafTsico
não vem de Nietzsche, mas de Schelling, Hegel e Hõlderlin, cou- o
·~
be a Nietzsche, apropriando-se de estudos filológicos para pen-
~c
sar filosoficamente, ligar o dionislaco ao trágico, explicando o -
nascimento do trágico a partir do dionisíaco. Posição que o leva
a estabelecer que a imitação dos gregos significa fundamental- 33
34 mente o renascimento da arte apolíneo-dionisíaca da tragédia,
que teria sido invalidada pelo racionalismo socrático.
Ora, essa introdução do dionisíaco na interpretação metafí-
sica da tragédia só acontece porque Nietzsche incorpora dois sa-
beres extra-filológicos em sua interpretação da Grécia: a música
de Wagner e a ftlosofia de Schopenhauer. A originalidade de
Nietzsche em O nascimento da tragédia foi, inspirado na idéia
wagneriana de drama musical, valorizar a música para pensar a
tragédia grega como sendo uma arte fundamentalmente musi-
cal, ou como tendo origem no espírito da música, concebida co-
mo única força capaz de expressar o dionisíaco. Mas também ar-
ticular a filosofia de Schopenhauer com o movin1ento cultural de
utilização da Grécia como modelo para pensar a cultura alemã,
através de um renascimento do espírito trágico, idéia que não
existe em Schopenhauer. E o elo que possibilitou isso foi certa-
mente Wagner.
Assim, dois fatores explicam, em última análise, a polêmica
que a leitura de O nascimento da tragédia suscitou nos colegas de
especialidade de Niet7..sche: primeiro, a crítica da ciência em no-
me da arte; segundo, a subordinação da filologia à filosofia. O
que me leva a pensar que a melhor forma de ler esses documen-
tos é levar em conta que, ao unir a filologia à música e à filosofia
c assim conceber o seu centauro/' Nictzsche não quer mais se li-
mitar a ser um especialista. Pois se, para além do ataque de Wi-
lamowitz e da defesa de Rohde, O nascimento da tragédia é um li-
vro desconcertante para a filologia, é principalmente porque seu
autor é, nesse momento, um filólogo que ousa pensar filosofica-
mente, como um modo de dar vida a sua especialidade ou de
torná-la um instrumento a serviço da vida. Um filólogo que, co-
mo enunciará o final do prefácio de seu escrito "Da utilidade c
desvantagem da história para a vida': atua em seu tempo de uma
maneira intempestiva, isto é, contra o tempo, em favor de um
tempo por vir.
Erwin Rohde
da essência eterna da vontade e das faculdades humanas. Com abandona, o homem é engolido pelas trevas púrpuras das pro
isso, poderemos ter esperança de apontar o sentido do que diz o fundezas, onde o Uno abarca a correnteza da vida eternamente
autor se, com? pretendemos fazer a seguir, caracterizarmos de movimentada. A superfície cintilante de tal movimento, com
1
o.éti
forma geral ����ci�- d<tJª<:':I:!<:iél�-t!_p� ana ��ue ele suas ondas que crescem e decrescem rapidamente, tinha sido
identificou e apresentou no desenvolvimento histórico do gênio tomada pelo homem como o que existia de real. Agora ele se dá
artístico grego. conta, horrorizado, de que esses milhões de ondas não são
O homem, posto em um mundo de tormentos e movido nada, o não-ser eterno, e um pavor terrível se apodera dele
pelo fluxo de uma ânsia infinita, está desamparadamente aban quando faz essa descoberta sobre-humana. No entanto, ele é
donado ao sofrimento eterno. Quanto mais profundos forem o tocado de 4iversas maneiras por um ardente encantamento:
sofrimento e a compaixão experimentados por sua frágil alma pois, como Prometeu libertado de suas correntes, tem a sensa
�!.
humaií quanto mais resoluto seu desprezo pela situação instá ção de estar livre de todas as amarras que confinam sua estreita
vel desse mundo, mais desamparado ele se encontrará. o {N individualidade, de ser movido por uma poderosa e ilimitada
entanto, existe uma força salvadora que se encontra em seu pró liberdade, de ser carregado pela agitação tempestuosa de uma
prio íntimo, aquela força prodigiosa que o impele a criar, como alegria e de uma dor nunca antes experimentadas. Então, essa
por magia, a partir do material confuso das sensações, uma série , excitação ab�urdamente intensificada abre_ caminh�ara o
de imagens que se desenvolvem continuamente fora dele, no exterior, todo júbilo e todo tormento do universo ganham voz
�
espaço e no tempo, segundo a lei da causalidade . Na contempla- em seu íntimo e se propagam em melodias terrivelmente subli
ção dessas imagens, ele se sente imediatamente feliz, ou melhor, mes. Agora, a música se agita como uma força elementar desen
totalmente arrebatado pelo domínio em que a felicidade e a freada, um mar de fogo nos envolve, e que fogo! "Será amor?
,,
infelicidade são as estrelas-guias. Essas imagens consoladoras o Será ódio? que nos envolvem com ardor, alternando dores e ale
acompanham por toda parte, ele as repete em sonho e, com grias prodigiosas?"
pletamente tomado por seu esplendor, sente-se capaz de captar, Tal desmesura de chamas ameaça destruir o indivíduo,
na clareza poética da epopéia, �sse mundo maravilh9so da apa: como faria um mundo incandescente; no entanto, revela-se ao
rência, a fim de obter com ele um prazer duradouro. A obra de mesmo tempo a mais elevada força salvadora de criação da
�pica exerce, no grau mais elevado, o poder dé libertar da arte. Assim como a música dos artistas ex:pressa analogicamen
violência daquela vontade que move todas as coisas: vemos des te a essência mais profunda do mundo,_ e_m prod_ig!Qs� _gel).era
_
filar à nossa frente, em longas séries de imagens, tudo o que há lidade, irradia-se a partir do mar revolto da arte musical uma
para amar e temer neste mundo, mas com isso não sentimos segunda analogia[que repete em um processo da vida indivi
nem alegria nem terror, nem desejo nem medo; vemos com dual do homem a grandeza avassaladora da música, como que
olhos bem atentos_as formas que se movem esplendidamente e rejuvenescida milhões de vezes, tornando-a suportável para a
nada mais cobiçamos. co preensão humana. Em uma luta aterradora, a música dá à
�
Mas, quando o homem está inteiramente perdido nessa luz� mito, uma imagem analógica das forças universais onipo
contemplação profunda das ricas imagens da vida individual, J
tentes O conhecimento conceitual jamais possibilitará que se
apodera-se dele repentinamente, em meio à contemplação acompanhe a ação das forças por meio das quais a potência
mais absorta, uma iluminação fulgurante de um tipo totalmen universal, que se encontra fora do tempo e do espaço, vem a se ClJ
"O
..r::.
te diferente. Se, até então, sentia-se protegido, na posse do que manifestar na obra do artista, tornando-se reconhecível pri {i
-�· ·
há de mais real, isto é, desse mundo seguro daif.:_� �e�tudo meiro na forma do tempo, e depois erigindo a partir da músi
se desfaz como um véu de névoa, a ilusão da individuação o ca a imagem analógica que se move simultaneamente no tempo 37
e no espaço. Quem fosse capaz de entender esse processo teria tifica o que tinha dado a tais tentativas ao menos o impulso cor
resolvido o enigma do mundo. Mas a obra de arte superior, tal reto, mas com uma profundidade e uma força de compreensão
como se apresenta a nós na tragédia mitica nascida da música, totalmente diferentes.
nos dá a certeza incandescente da existência dessas capacidades TQdavia, o autor avança da consideração histórica da Anti
demoníacas. güidade distante, através da vastidão dos tempos, até o nosso
Em suma, o processo artístico esclarecido no livro não foi �
momento presente. Ele descreve a mor da tragédia grega, ocor
apresentado pelo autor como uma experiência imediata; foi con rida depois de seu breve florescimento{_§ ua força artística, capaz
quistado historicamente a partir do desenvolvimento da capaci de expressar os derradeiros segredos do ordenamento cósmico
dade artística helênica. Os próprios gregos tinham distinguido em imagens míticas, desagregou-se diante do esforço de um
muito bem os dois impulsos artísticos, inteiramente diversos, da conhecimento científico desse ordenamento cósmico em toda a
contemplação épica e da interioridade dramática, sentindo-se sua profundidade e amplitude, um conhecimento que fosse ime
entusiasmados com a primeira por intermédio de Febo Apolo, o diatamente compreensível. Trata-se de algo que se impôs pela
amigo da beleza, e com a segunda por intermédio do deus das primeira vez, com a violência demoníaca do instinto, a Sócrates,
mais violentas forças naturais, Dioniso. Se o impulso apolíneo se e a parti� de então manteve em atividade todas as forças do longo
manifestou do modo mais esplêndido na epopéia de Homero, outono e do longo inverno da cultura helênica. Quando, na
em seguida um entusiasmo dionisíaco irrompeu poderosamente época do renascimento de uma formação cultural mais livre, a
e agitou toda a Hélade. Na música dionisíaca, esse entusiasmo Europa se voltou para os únicos mestres dignos, os gregos, ela se
expressava artisticamente sua vida ardente; na poesia lírica, ele baseou imediatamente nesse impulso socrático-alexandrino de
refletia a essência da música, que era elevada muito acima de fundamentação do mundo, e desde então os nossos melhores
toda paixão individual, como que em imagens particulares da esforços se enraízam em um alexandrinismo intensamente acen
situação; finalmente, na tragédia, era capaz de expor vivamente tuado. Mas o autor demonstra como essa direção dominante e
para a compreensão intuitiva, em imagens analógicas, o signifi exclusiva, embora nobre se considerada em si mesma, sufocou
cado mais profundo da música e da vida por meio do mito, nas- inteiramente as mais profundas capacidades da criatividade h'l;l
,
cido por sua vez da música. mana; demonstra também como o caminho tomado nos conduz
Esta resenha tem a intenção de convidar o leitor a deixar que sempre em círculos, a partir da noção profunda e delirante de
o autor explique como tudo isso se dá, em sua exposição que se que todos os abismos poderiam ser medidos com o metro da
mostra imediatamente convincente, graças à profundidade e cla lógica; demonstra, finalmente, como o otimismo teórico herda
reza. Deve interessar tanto aos filólogos quanto aos estetas ver do de Sócrates se transforma, dominando toda a nossa cultura,
resolvidos aqui, em virtude de uma feliz associação das conside em um eudemonismo prático, que por sua vez tornou-se uma
rações estéticas e históricas, problemas tão surpreendentes exigência exaltada e ameaça desencadear gradativamente sobre
com <{? �
desenvolv mento da tragédia a partir do canto de dança essa cultura deteriorada um inferno de poderes destrutivos.
do coro dionisíac<j; a ligação, muitas vezes assinalada, entre os Nesse ponto, contudo, o autor é animado por uma esperan
elementos épicos e líricos na tragédia; a capacidade que todo lei ça consoladora: a de que, superando o alexandrinismo, possamos
tor tem de perceber a profundidade insondável de significação enfim aprender com os gregos o que há de mais elevado e des-
da tragédia, mesmo que ela seja a representação de uma ação ? pertemos novamente a arte apolíneo-dionisíaca da tragédia, a
muito clara. Se, em regra geral, até agora se rebaixou a tragédia fim de inaugurar urna cultura nova e promissora. Mas é ao nosso
ao nível de uma colossal fábula de Esopo, procurando as pistas povo alemão, recentemente despertado de um longo sono, que
de um assim chamado "pensamento fundamental': aqui se jus- parece reservado esse desenvolvimento esplêndido em direção a 39
uma formação cultural que corresponda dignamente a suas pos síaca concedia aos seus prlmeiros espectadores. Em um arroubo
sibilidades mais próprias. Pois, em nosso povo, aquela onipotên afortunado, isso nos faz entrever como nós, que estamos preaoa
cia arrogante do conhecimento lógico teve sua esfera de poder a esta pobre individuação, ao mesmo tempo somos cumulados
vitoriosamente limitada ao fenômeno, pelo criticismo kantiano, e pela onipotência da vida; como nós somos o uno eterno, levado a
a partir desse grande feito do auto-conhecimento científico des se manifestar no jogo infinito das ondas do mundo; e como toda
pontou o florescimento dolorosamente breve dos mais nobres dor desse delírio universal é compensada pela enorme delícia do
esforços para se alcançar uma verdadeira cultura artística. jogo, cujo prazer doloroso a arte trágica, sua imagem transfigurada,
Ainda mais promissor é o fato, impossível de esclarecer a pretende fazer o espectador estético sentir.
partir de nossa formação atual, de os sons poderosos da música Gostaríamos de convocar todas as pessoas realmente sérias
alemã ressoarem como a revelação de um outro mundo, _@ para Sf to�narem leitores estéticos àesse livro sério. Para a classe
· meio a toda a balbúrdia de nossa época selvage� e agitada. ? ' (irifel�mente numerosa) dps homens inteligentes que estão acos
nossa única arte autêntica não deveria possuir a capacidade d-e tumados a tratar com lamentável gravidade o que é irisignifican
nos proporcionar uma formação autêntica, assim como o desen te e efêmero, não tendo nenhuma devoção para o que é verdadei
volvimento da arte propiciou aos romanos uma cultura adequa ramente nobre e profundo, podemos esperar que o livro seja ape
da ao seu povo? A essa formação cultural aprofundada corres nas repulsivo. Sem dúvida, eles terão o direito de afirmar que, em ·
ponderia, então, como o mais esplêndido dos florescimentos, a relação a tudo o que o nosso autor ouviu e viu, não "sentiram
mais sublime das obras de arte: a tragédia nascida da música nada junto com ele"; então só nos resta pedir para acreditarem
alemã. Sim, já pode sentir os mais elevados encantamentos da que existe algo de esplêndido, algo que não deixa de existir só por
mais nobre das artes quem foi capaz de acolher, com a mesma que eles não são capazes de compreender e tocar. 1
devoção do autor, as criações artísticas do grande mestre a quem
esse escrito é dedicado: Richard Wagner. O autor não só compar p.
tilha todas as convicções mais puras e íntimas desse seu amigo,
como também sua visão fundamental da música como idéia
(platônica) do mundo, conforme defende Richard Wagner em
seu escrito de homenagem a Beethoven- obra que nem de longe
encontrou o acolhimento merecido por uma manifestação da
mais misteriosa das artes revelada por um artista genial. E, assim,
o autor está ligado à única interpretação satisfatória da música,
aquela que Arthur Schopenhauer elaborou a partir das profun
dezas de seu conhecimento do mundo.
A esses dois mestres, Wagner e Schopenhauer, o autor reco
nhece estar ligado com uma fidelidade amistosa. Eis por que se
espera o efeito mais puro deste livro entre os leitores que, abala
dos pela veracidade áspera de Schopenhauer, não conseguem
encontrar um instante de consolo e satisfação em qualquer teo
ria superficial do prazer. Para eles, verdadeiros nostálgicos, esse
livro se mostrará como uma mensagem cheia de alegria, que lhes
poderá trazer algo da consolação metafísica que a tragédia dioni- 41
'
Erwin Rohde
viam os mesmos mitos configurados de modos tão diversos por fenômeno, um significado análogo ao que a própria obra
poetas de dons divinos, segundo as suas intenções, e até por um prima de Schopenhauer tem para a fundamentação da essên
mesmo poeta em épocas diferentes? Seria preciso que, na cons cia das coisas que se faz sentir por trás de todos os fenômenos.
ciência dos gregos mais nobres, a lembrança da natureza analó Em todo caso, gostaria de exortar todos aqueles que têm inten
gica dos mitos (longe de ter uma solução no conhecimento con ções séria a estudar com dedicação esse livro, preparando-se
ceitual por meio de uma interpretação alegórica) fosse unida à para sentir o prazer profundo de uma concentração completa
convicção venturosa da capacidade que as naturezas geniais têm de seus pensamentos, tão facilmente dispersos e espalhados
de compreender a essência oculta do mundo, em tais revelações pelos ventos do curso incessante da vida de hoje. Talvez isso os
por imagens, e de explicá-la aos ouvintes de um modo mais pro deixe livres, como pode fazê-lo por exemplo uma galeria com
fundo e completo que o de toda reflexão conceitual. as obras mais sublimes da escultura antiga, para refletir sobre
A arte também nos fala através dessas revelações, certamente o verdadeiro significado de uma vida entregue aos mil demô
não aquela arte brincalhona que se satisfaz em dar uma imagem nios da sorte e do humor. 53
Desse modo, podemos esperar que a obra tenha repercussão
junto ao povo alemão, e que sua repercussão cresça junto com a
grande influência do mais nobre entusiasmo artístico que, justa
mente nestes dias, estabelece em Bayreuth o fundamento seguro
para um templo em honra da nação alemã.2