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e r C o l e ç ã o Tópicos Ilenri Bereon


A coleção procura reunir as obras
mais significativas nas diversas
áreas do pensamento humano a
partir de Nietzsche; não se restringe
O Pensamento
à Filosofia propriamente dita, mas
inclui a reflexão de pensadores de e o Movente
diversas áreas do conhecimento, dos
quais o pensamento moderno é
tributário. O pensamento brasileiro
estará representado na coleção pelos
autores que, por seu trabalho de
reflexão e pesquisa, ajudaram a
enriquecer esse acervo universal ou
a irradiá-lo entre nós.

O que mais faltou à


filosofia foi a precisão

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CAMPUS GUARULHOS

4.„. Henri ider SOla


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O Pensamento e o Movente
Lí 1 2 o Ensaios e conferências
©SleS1.,1?S

Tradução
BENTO PRADO NETO

Henri Bergson nasceu em Paris em 1859. Estudou na École


Normale Superieure de 1877 a 1881 e passou os dezesseis anos
seguintes como professor de filosofia. Em 1900 tornou-se pro-
I esst ir no Collège de France e, em 1927, ganhou o Prêmio Nobel
de I ,i I cri tura. Bergson morreu em 1941. Entre outros livros, escre-
veu Mis frria e memória, O riso, A evolução criadora e Cursos sobre a
filosofia cçzresa (todos publicados por esta Editora). Martins Fontes
São Pouto 2006 an.idnallellES10012E~Sa •
iranrchwiea.,

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ÍNDICE
Esta obra foi publicada origina/mente em francês com o título
LA PENSES ET LE MOUVANT por Presses Universitaires de Emace, Paris.
Copyright Presses Universitaires de France.
Copyright C: 2005, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

1, edição 2006

Tradução
BENTO PRADO NETO

Acompanhamento editorial
Maria Fernanda Alvares
Revisões gráficas
Sandra Carda Cortes
Solange Martins

1
Dinarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Nota introdutória
Paginação/Fotolitos
Studia 3 Desenvolvimento Editorial
I. Introdução (primeira parte) 3
II. Introdução (segunda parte) 27
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) III. O possível e o real 103
Bergson, Henri, 1859-1941. A intuição filosófica 123
O pensamento e o movente : ensaios e conferências / Henri
, A percepção da mudança 149
Bergaon ; tradução Bento Prado Neto. — São Paulo : Martins
Fontes, 2006. — (Tópicos) (VI. Introdução à metafísica 183
Título original: La pensei, et te mouvant
VIL A filosofia de Claude Bernard 235
ISBN 85-336-2229-5
VIII. Sobre o pragmatismo de William James
1. Bernard, Ciando, 1813-1878 2. Filosofia 3. James, William, Verdade e realidade 245
1842-1910 4. Metafísica — Discursos, ensaios, conferências
5. Ravaisson, Fax, 1813-1900 1. Titulo. II. Série.
IX. A vida e a obra de Ravaisson 259
05-8568 C D D - 1 9 4

Índices para catálogo sistemático:


1. Filosofia francesa 1 9 4

Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à


Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Rainalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11)3241.3677 Fax (11)3101.1042
e-inail: infoRmartinsfontesnmlir httplitinewmartinsfontesLointir
02 O PENSAMENTO E O MOVENTE

CAPITULO III
tos em "princípios gerais" aplicáveis ao resto das coisas.
Contra essa maneira de filosofar, toda nossa atividade fi- O POSSÍVEL E O REAL
losófica foi um protesto. Tivemos assim que deixar de Ensaio publicado na revista sueco
lado questões importantes, às quais facilmente teríamos Nordisk Tidskri ft em novembro de 19301
dado um simulacro de resposta prolongando até elas os
resultados de nossos trabalhos precedentes. Só respon-
deremos a tal ou tal dentre elas se nos for concedido o
tempo e a força para resolvê-la nela mesma, por ela mes-
ma. Senão, gratos ao nosso método por nos ter dado o
que acreditamos ser a solução precisa de alguns proble-
mas, constatando que não podemos, de nossa parte, ex-
trair mais que isso, ficaremos por aqui. Não se é nunca
obrigado a escrever um livro".
Gostaria de voltar aqui a um assunto do qual já fa-
Janeiro 1922 lei, a criação contínua de imprevisível novidade que pa-
rece desenrolar-se no universo. De minha parte, acredito
experimentá-la a todo instante. Em vão me represento o
detalhe daquilo que irá me ocorrer: como minha repre-
sentação é pobre, abstrata, esquemática, em comparação
com o acontecimento que se produz! A realização traz
consigo um imprevisível nada que muda tudo. Devo, por
exemplo, assistir a uma reunião; sei quais pessoas ali en-
contrarei, em volta de que mesa, em que ordem, para a
discussão de que problema. Mas que essas pessoas ve-
nham, sentem-se e falem corno eu esperava que fizessem,
que digam o que eu de fato pensava que diriam: o conjun-

1. Esse artigo era o desenvolvimento de algumas concepções apre-


sentadas na abertura do "meeting filosófico" de Oxford, no dia 24 de se-
12. Esse ensaio foi concluído em 1922. Simplesmente lhe acrescen- tembro de 1920. Ao escrevê-lo para a revista sueca Nordisk Tidskrift, que-
tamos algumas páginas relativas às teorias físicas atuais. Naquela épo- ríamos testemunhar o pesar que experimentávamos por não poder dar
ca, ainda não estávamos de posse completa dos resultados que expuse- uma conferência em Estocolmo, conforme o costume, por ocasião do Prê-
mos em nossa obra recente: Les deux sources de Ia Inornie et de Ia religion, mio Nobel. O artigo só havia sido publicado, até o presente momento,
Paris, 1932. O que explica as últimas linhas do presente ensaio. em língua sueca.
104 O PENSAMENTO E O MOVENTE O POSSÍVEL E O REAL 1 0 5

to dá-me uma impressão única e nova, como se fosse ago- compreende os seres vivos, conscientes, que estão enqua-
ra desenhado num único traço original por uma mão de drados pela matéria inorgânica. Digo vivos e conscien-
artista. Adeus, imagem que eu me havia formado dessa tes, pois considero que o vivo seja de direito consciente;
reunião, simples justaposição, antecipadamente figurá- torna-se inconsciente de fato ali onde a consciência ador-
vel, de coisas já conhecidas! Concedo que o quadro não mece, mas, mesmo nas regiões nas quais a consciência
tenha o valor artístico de um Rembrandt ou de umVelás- dormita, no vegetal, por exemplo, há evolução regrada,
quez: ele é igualmente inesperado e, nesse sentido, igual- progresso definido, envelhecimento, enfim, todos os sig-
mente original. Alegar-se-á que eu ignorava o detalhe nos exteriores da duração que caracteriza a consciência.
das circunstâncias, que eu não dispunha dos persona- Por que, aliás, falar de uma matéria inerte na qual a vida
gens, de seus gestos, de suas atitudes, e que, se o conjun- e a consciência se inseririam corno num quadro? Com
to me traz algo novo, é porque me fornece um acréscimo que direito pomos o inerte primeiro? Os antigos haviam
de elementos. Mas tenho a mesma impressão de novida- imaginado uma Alma do Mundo que asseguraria a con-
de diante do desenrolamento de minha vida interior. Ex- tinuidade de existência do universo material. Despojan-
perimento essa mesma impressão, mais viva do que nun- do essa concepção daquilo que ela tem de mítico, eu di-
ca, diante da ação desejada por mim e da qual eu era o ria que o mundo inorgânico é uma série de repetições ou
único senhor. Se delibero antes de agir, os momentos da de quase-repetições infinitamente rápidas que se somam
deliberação oferecem-se à minha consciência como os em mudanças visíveis e previsíveis. Eu as compararia às
esboços sucessivos, cada um deles único em seu gênero, oscilações do pêndulo do relógio: estas estão emparelha-
que um pintor faria de seu quadro; e o próprio ato, ao se das à distensão contínua de uma mola que as liga entre
realizar, por mais que realize algo desejado e, por conse- si e da qual escandem o progresso; aquelas ritmam a vida
guinte, previsto, nem por isso deixa de ter sua forma ori- dos seres conscientes e medem sua duração. Assim, o ser
ginal. — Seja, dirão; talvez haja algo de original e de úni- vivo dura essencialmente; ele dura, justamente porque
co num estado de alma; mas a matéria é repetição; o elabora incessantemente algo novo e porque não há ela-
mundo exterior obedece a leis matemáticas; uma inteli- boração sem procura, nem procura sem tateio. O tempo
gência sobre-humana, que conhecesse a posição, a dire- é essa hesitação mesma, ou não é absolutamente nada.
ção e a velocidade de todos os átomos e elétrons do uni- Suprimam o consciente e o vivo (e só poderão fazê-lo
verso material num dado momento, calcularia todo e qual- por um esforço artificial de abstração, pois, mais uma vez,
quer estado futuro desse universo, como o fazemos com o mundo material talvez implique a presença necessária
relação a um eclipse do sol ou da lua. — Concedo-o, a ri- da consciência e da vida), vocês obterão de fato um uni-
gor, caso se trate apenas do mundo inerte, muito embo- verso cujos estados sucessivos em teoria são antecipada-
ra a questão comece a se tornar controversa, pelo menos mente calculáveis, como as imagens, anteriores ao desen-
no que diz respeito aos fenômenos elementares. Mas esse rolamento, que estão justapostas no filme cinematográ-
mundo é apenas uma abstração. A realidade concreta fico. Mas, então, para que o desenrolamento? Por que a
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1
O POSSÍVEL E O REAL

realidade se desdobra? Como se dá que não esteja des- gem, com a matéria que nos é fornecida pelo passado e
dobrada? Para que serve o tempo? (Falo do tempo real, pelo presente, pela hereditariedade e pelas circunstân-
concreto, e não desse tempo abstrato que não é mais que cias, de uma figura única, nova, original, imprevisível como
urna quarta dimensão do espaço2.) Tal fora, outrora, o a forma dada à argila pelo escultor. Desse trabalho e da-
ponto de partida de minhas reflexões. Há cerca de cin- quilo que ele tem de único somos advertidos, sem dúvi-
qüenta anos, eu estava fortemente ligado à filosofia de da, enquanto ele se faz, mas o essencial é que nós o fa-
Spencer. Percebi, um belo dia, que nessa filosofia o tem- çamos. Não temos que investigá-lo a fundo; não é se-
po de nada servia, que ele nada fazia. Ora, o que não faz quer necessário que dele tenhamos plena consciência,
nada não é nada. No entanto, eu me dizia, o tempo é como tampouco o artista precisa analisar seu poder cria-
algo. Então ele age. O que poderia ele fazer? O simples dor; ele deixa esse cuidado para o filósofo e contenta-se
bom senso respondia: o tempo é aquilo que impede que com criar. Em compensação, é preciso que o escultor co-
tudo seja dado de um só golpe. Ele retarda ou, melhor,
nheça a técnica de sua arte e saiba tudo o que se pode
ele é retardamento. Ele deve portanto ser elaboração. aprender acerca dela: essa técnica concerne sobretudo
Não seria ele então veículo de criação e de escolha? A aquilo que sua obra terá em comum com outras; é co-
existência do tempo não provaria que há indeterminação
mandada pelas exigências da matéria sobre a qual ele
nas coisas? O tempo não seria exatamente essa indeter-
opera e que se impõe a ele corno a todos os artistas; re-
minação? Se tal não é a opinião da maior parte dos filó-
mete, na arte, àquilo que é repetição ou fabricação, e não
sofos, é porque a inteligência humana é feita justamente
mais à própria criação. Sobre ela se concentra a atenção
para tomar as coisas pela outra ponta. Digo a inteligên- do artista, o que eu chamaria sua intelectualidade. Do
cia, não digo o pensamento, não digo o espírito. Ao lado
mesmo modo, na criação de nosso caráter, sabemos mui-
da inteligência, com efeito, há a percepção imediata, por
cada um de nós, de sua própria atividade e das condições to pouco acerca de nosso poder criador: para aprendê-lo,
precisaríamos nos voltar sobre nós mesmos, filosofar e
nas quais esta se exerce. Chamem-na como quiserem; é
o sentimento que temos de sermos criadores de nossas escalar de volta a inclinação da natureza, pois a nature-
intenções, de nossas decisões, de nossos atos e, por isso za quis a ação, ela não pensou muito na especulação. Tão
mesmo, de nossos hábitos, de nosso caráter, de nós mes- logo não mais se trate simplesmente de sentir em nós
mos. Artesãos de nossa vida, até mesmo artistas quando um clã e de nos assegurarmos de que podemos agir, mas
o queremos, trabalhamos continuamente na modela- de voltar o pensamento sobre ele mesmo para que apreen-
da esse poder e capte esse clã, a dificuldade toma-se
considerável, como se fosse necessário inverter a direção
2. Com efeito, mostramos, em nosso Essa! sur d o n n é e s immédia-
normal do conhecimento. Pelo contrário, temos um inte-
tes de Ia conscience, Paris, 1889, p. 82, que o Tempo mensurável poderia
ser considerado como "urna quarta dimensão do Espaço". Tratava-se, é resse capital em nos familiarizar com a técnica de nossa
claro, do Espaço puro e não da amálgama Espaço-Tempo da Teoria da ação, isto é, em extrair das condições nas quais esta se
Relatividade, que é algo inteiramente diferente,
exerce tudo o que pode nos fornecer receitas e regras ge-


108 O PENSAMENTO E O MOVENTE
O POSSÍVEL E O REAL 1 0 9

rais sobre as quais se apoiará nossa conduta. É só por Estimo que os grandes problemas metafísicos são
obra e graça da repetição que tivermos encontrado nas geralmente malpostos, que eles freqüentemente se re-
coisas que haverá novidade em nossos atos. Nossa facul- solvem por si mesmos quando lhes retificamos o enun-
dade de conhecer é portanto essencialmente uma po- ciado, ou ainda que são problemas formulados em ter-
tência de extrair o que há de estabilidade e de regulari- mos de ilusão, que se desvanecem assim que olhamos de
dade no fluxo do real. Trata-se de perceber? A percepção perto os termos da fórmula. Nascem, com efeito, do fato
apodera-se de abalos infinitamente repetidos que são de transpormos em fabricação aquilo que é criação. A
luz ou calor, por exemplo, e contrai-os em sensações re- realidade é crescimento global e indiviso, invenção gra-
lativamente invariáveis: são bilhões de oscilações exte- dual, duração: como um balão elástico que se dilatasse
riores que são condensadas aos nossos olhos, numa fra- pouco a pouco assumindo a cada instante formas inespe-
ção de segundo, pela visão de urna cor. Trata-se de con- radas. Mas nossa inteligência representa-se a origem e a
ceber? Formar uma idéia geral é abstrair das coisas di- evolução da realidade como um arranjo e um rearranjo de
versas e cambiantes um aspecto comum que não muda partes que não fariam mais que mudar de lugar; teorica-
ou que pelo menos oferece para nossa ação um flanco mente, portanto, ela poderia prever qualquer estado de
invariável. A constância de nossa atitude, a identidade de conjunto: pondo um número definido de elementos es-
nossa reação possível ou virtual à multiplicidade e à va- táveis, brindamo-nos implicitamente, antecipadamente,
riabilidade dos objetos representados, eis aquilo que a com todas as combinações possíveis. Isso não é tudo. A
generalidade da idéia marca e desenha em primeiro lu- realidade, tal como a percebemos diretamente, é um ple-
gar. Trata-se, por fim, de compreender? É simplesmente no que não cessa de se inflar e que ignora o vazio. Tem
encontrar nexos, estabelecer relações estáveis entre fatos extensão, assim corno tem duração; mas essa extensão
que passam, desentranhar leis: operação tanto mais per- concreta não é o espaço infinito e infinitamente divisível
feita quanto mais precisa é a relação e mais matemática com que a inteligência se brinda corno um terreno no
a lei. Todas essas funções são constitutivas da inteligên- qual construir. O espaço concreto foi extraído das coisas.
cia. E a inteligência não se afasta da verdade enquanto se Estas não estão nele, é ele quem está nelas. Só que, assim
prende, ela amiga da regularidade e da estabilidade, àqui- que nosso pensamento raciocina sobre a realidade, faz do
lo que há de estável e de regular no real, à materialidade. espaço um receptáculo. Como tem o costume de juntar
Ela toca então num dos lados do absoluto, como nossa partes num vazio relativo, imagina que a realidade col-
consciência toca no outro quando apreende em nós uma mate não sei que vazio absoluto. Ora, se o desconheci-
perpétua eflorescência de novidade ou quando, alargan- mento da novidade radical está na origem dos problemas
do-se, simpatiza com o esforço indefinidamente renovador metafísicos malpostos, o hábito de ir do vazio para o ple-
da natureza. O erro começa quando a inteligência preten- no é a fonte dos problemas inexistentes. Aliás, é fácil ver
de pensar um dos aspectos corno pensou o outro e apli- que o segundo erro já está implicado no primeiro. Mas eu
car-se a um uso para o qual não foi feita. queria primeiro defini-lo com maior precisão.
110
O PENSAMENTO E O MOVENTE
O POSSÍVEL E O REAL 1 1 1

Digo que há pseudoproblemas e que são os proble-


mas angustiantes da metafísica, Reduzo-os a dois. Um substituição, ou antes, uma de suas duas faces, aquela
engendrou as teorias do ser, o outro as teorias do conhe- que nos interessa; assinalamos assim que queremos di-
cimento. rigir nossa atenção para o objeto que se foi e desviá-la da-
quele que o substituiu. Dizemos então que não há mais
O primeiro consiste em se perguntar por que há ser,
nada, entendendo com isso que aquilo que é não nos in-
por que algo ou alguém existe. Pouco importa a nature-
teressa, que nos interessamos por aquilo que não está
za daquilo que é: digam que é matéria, ou espírito, ou mais aí, ou por aquilo que poderia ter estado aí. A idéia
ambos, ou que matéria e espírito não se bastam e mani-
de ausência, ou de nada, ou de nulidade, está portanto
festam uma Causa transcendente: de qualquer forma,
quando consideramos existências, e causas, e causas des- inseparavelmente ligada à de supressão, real ou possível,
sas causas, sentimo-nos arrastados cru uma corrida sem e a própria idéia de supressão não é mais que um aspec-
to da idéia de substituição. Temos aí maneiras de pensar
fim. Se nos detemos, é para escapar da vertigem. Sempre
das quais nos servimos na vida prática; importa particu-
constatamos, sempre cremos constatar que a dificuldade
subsiste, que o problema ainda se põe e não será nunca larmente à nossa indústria que nosso pensamento saiba
resolvido. Não o será nunca, de fato, mas não deveria ser atrasar-se com relação à realidade e permanecer preso,
posto. Põe-se apenas quando nos figuramos um nada quando necessário, àquilo que era ou àquilo que poderia
que precederia o ser. Dizemo-nos: "poderia não haver ser, ao invés de ser acaparado por aquilo que é. Mas
quando nos transportamos do domínio da fabricação
nada" e espantamo-nos então de que haja algo — ou Al-
guém. Mas analisem essa frase: "poderia não haver nada". para o da criação, quando nos perguntamos por que há
ser, por que há alguma coisa ou alguém, por que o mun-
Verão que se defrontam com palavras, de modo algum
do ou Deus existe e por que não o nada, quando nos po-
corri idéias, e que "nada" não tem aqui significação algu- mos, enfim, o mais angustiante dos problemas metafísi-
ma. "Nada" é um termo da linguagem usual que só pode
cos, aceitamos virtualmente um absurdo; pois se toda
ter sentido se permanecemos no terreno, próprio ao ho-
supressão é uma substituição, se a idéia de uma supres-
mem, da ação e da fabricação. "Nada" designa a ausên-
são não é mais que a idéia trunca& de uma substituição,
cia daquilo que procuramos, daquilo que desejamos, da-
então, falar de uma supressão de tudo é pôr urna substi-
quilo que esperamos, Com efeito, supondo que a expe- tuição que não seria urna substituição, é contradizer-se a
riência nos apresentasse alguma vez um vazio absoluto,
si mesmo. Ou a idéia de uma supressão de tudo tem exa-
este seria limitado, teria contornos, seria portanto ainda
tarnente tanta existência quanto a de um quadrado re-
algo. Mas na verdade não há vazio. Somente percebe-
dondo — a existência de um som, flatus voeis — ou então,
mos e, mesmo, somente concebemos o pleno. Uma coi-
caso represente algo, traduz um movimento da inteligên-
sa só desaparece porque outra a substituiu. Supressão
cia que vai de um objeto para o outro, que prefere aque-
significa assim substituição. Ocorre que dizemos "supres- le que acaba de deixar àquele que encontra diante de si
são" quando consideramos apenas uma das metades da
e designa por "ausência do primeiro" a presença do se-


112 O PENSAMENTO E O MOVENTE O POSSÍVEL E O REAL 1 1 3

gundo. Pusemos o todo, depois fizemos desaparecer, urna duas coisas: fora de nós, uma ordem; em nós, a repre-
por urna, cada uma de suas partes, sem consentir em ver sentação de uma ordem diferente, que é a única que nos
aquilo que a substituía: é, portanto, a totalidade das pre- interessa. Supressão, portanto, significa sempre substi-
senças, simplesmente dispostas em urna nova ordem, tuição. E a idéia de uma supressão de toda e qualquer or-
que temos diante de nós quando queremos totalizar as dem, isto é, a idéia de uma desordem absoluta envolve
ausências. Em outros termos, essa pretensa representa- então uma contradição verdadeira, uma vez que consis-
ção do vazio absoluto é, na realidade, a representação do te em já não deixar senão apenas uma única face para a
pleno universal por um espírito que salta indefinidamen- operação que, por hipótese, compreendia duas faces. Ou
te de urna parte para outra, com a resolução tomada de a idéia de desordem absoluta não representa mais que
sempre considerar apenas o vazio de sua insatisfação ao uma combinação de sons,flafits vocis, ou, caso responda a
invés do pleno das coisas. O que equivale a dizer que a algo, traduz um movimento do espírito que salta do me-
idéia de Nada, quando não é a idéia de uma mera pala- canismo para a finalidade, da finalidade para o mecanis-
vra, implica tanta matéria quanto a de Tudo, com, em mo, e que, para marcar o lugar onde está, prefere indicar
acréscimo, urna operação do pensamento. a cada vez o ponto onde não está. Portanto, querendo su-
Diria o mesmo acerca da idéia de desordem. Por que primir a ordem, brindamo-nos com duas ou mais ordens.
o universo é ordenado? Como se impõe a regra ao irre- O que equivale a dizer que a concepção de uma ordem
gular, a forma à matéria? De onde vem que nosso pen- que viria acrescentar-se a urna "ausência de ordem" im-
samento se reencontre nas coisas? Esse problema, que se plica um absurdo e que o problema se desvanece.
tornou, nos modernos, o problema do conhecimento após As duas ilusões que acabo de assinalar são na reali-
ter sido, nos antigos, o problema do ser, nasceu de urna dade urna só e mesma ilusão. Consistem em acreditar que
ilusão de mesmo tipo. Desvanece-se caso consideremos há menos na idéia do vazio do que na do pleno, menos no
que a idéia de desordem tem um sentido definido no do- conceito de desordem do que no de ordem. Na realidade,
mínio da indústria humana ou, corno dizemos, da fabri- há mais conteúdo intelectual nas idéias de desordem e de
cação, mas não no da criação. A desordem é simplesmen- nada, quando estas representam algo, do que nas de or-
te a ordem que não procuramos. Não podemos suprimir dem e de existência, uma vez que implicam várias ordens,
uma ordem, nem mesmo pelo pensamento, sem fazer várias existências e, além disso, um jogo do espírito que
surgir outra. Se não há finalidade ou vontade, é porque inconscientemente faz malabarismos com elas.
há mecanismo; se o mecanismo fraqueja, é em proveito Pois bem, reencontro a mesma ilusão no caso que
da vontade, do capricho, da finalidade. Mas, quando es- nos ocupa. No fundo das doutrinas que desconhecem a
peramos urna dessas duas ordens e encontramos a ou- novidade radical de cada momento da evolução, há mui-
tra, dizemos que há desordem, formulando o que é em tos mal-entendidos, muitos erros. Mas há, sobretudo, a
termos daquilo que poderia ou deveria ser, e objetivan- idéia de que o possível é menos que o real e de que, por
do o nosso pesar. Toda desordem compreende assim essa razão, a possibilidade das coisas precede sua exis-

UNWESP
gh1:1110TECA CNAPUS 6 nr,i1 tios
114 O PENSAMENTO E O MOVENTE
O POSSfrEL E O REAL

tência. Estas seriam, assim, antecipadamente represen-


táveis; poderiam ser pensadas antes de serem realizadas. nhor fala ainda não é possível." — "Mas é preciso que ela
Mas é o inverso que é verdade. Se deixamos de lado os o seja, uma vez que se realizará." — "Não, ela não o é.
sistemas fechados, submetidos a leis puramente mate- Concedo-lhe, no máximo, que ela o terá sido." — "O que
máticas, que são isoláveis pelo fato de a duração não os o senhor entende com isso?" — "É muito simples. Que um
atingir, se consideramos o conjunto da realidade concre- homem de talento ou de gênio surja, que ele crie uma
ta ou muito simplesmente o mundo da vida e, com mais obra: ei-la real e, por isso mesmo, ela torna-se retrospec-
forte razão, o da consciência, descobrimos que há mais, tivamente ou retroativamente possível. Ela não o seria,
e não menos, na possibilidade de cada um dos estados não o teria sido, caso esse homem não tivesse surgido. É
sucessivos do que em sua realidade. Pois o possível é por isso que lhe digo que ela terá sido possível hoje, mas
que ainda não o é." — "Essa é boa! O senhor não vai sus-
apenas o real com, em acréscimo, um ato do espírito que
repele sua imagem para o passado assim que ele se pro- tentar que o porvir influencia o presente, que o presente
duziu. Mas é isso que nossos hábitos intelectuais nos im- introduz algo no passado, que a ação nada à contracor-
pedem de perceber. rente do tempo e vai imprimir sua marca lá atrás?" — De-
Durante a grande guerra, jornais e revistas desvia- pende. Que possamos inserir algo real no passado e tra-
vam-se por vezes das terríveis inquietudes do presente balhar assim de marcha a ré no tempo, nunca o preten-
para pensar naquilo que ocorreria mais tarde, uma vez di, Mas que possamos ali alojar o possível, ou antes, que
a paz restabelecida. O futuro da literatura, em particular, o possível vá ali se alojar por si mesmo a todo instante,
preocupava-os.Vieram um dia me perguntar como eu me isto não é de se duvidar. Ao mesmo passo que a realida-
o representava. Declarei, um pouco confuso, que não me o de se cria, imprevisível e nova, sua imagem reflete-se
representava. "O senhor não percebe pelo menos, me atrás dela no passado indefinido; descobre-se assim ter
disseram, certas direções possíveis? Admitamos que não sido, desde sempre, possível; mas é nesse momento pre-
se possa prever o detalhe; o senhor terá pelo menos, o ciso que começa a tê-lo sido sempre, e eis por que eu di-
senhor, filósofo, uma idéia do conjunto. Como o senhor zia que sua possibilidade, que não precede sua realidade,
concebe, por exemplo, a g-rande obra dramática de ama- a terá precedido uma vez que a realidade tiver apareci-
nhã?" Sempre me lembrarei da surpresa de meu interlo- do. O possível é portanto a miragem do presente no pas-
cutor quando lhe respondi: "Se eu soubesse o que será sado; e, como sabemos que o porvir acabará por ser pre-
sente, corno o efeito de miragem continua sem descanso
a grande obra dramática de amanhã, eu a faria." Vi per-
feitamente que ele concebia a obra futura como encer- a se produzir, dizemo-nos que, em nosso presente atual,
rada, desde aquele momento, em não sei que armário de que será o passado de amanhã, a imagem de amanhã já
possíveis; eu devia, em consideração às minhas relações está contida ainda que não a consigamos apreender. Pre-
já antigas com a filosofia, ter conseguido junto a ela a cha- cisamente aí está a ilusão. É como se nos figurássemos,
ve do armário. "Mas, disse-lhe eu, a obra da qual o se- percebendo nossa imagem no espelho diante do qual
acabamos de nos postar, que a poderíamos ter tocado
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caso tivéssemos permanecido atrás do espelho. Aliás, preendido não é em nenhuma medida o virtual, o ideal-
julgando assim que o possível não pressupõe o real, ad- mente preexistente. Fechem a barreira, vocês sabem que
mitimos que a realização acrescenta algo à mera possibi- ninguém atravessará a via: não se segue daí que vocês
lidade: o possível teria estado aí desde sempre, fantasma possam predizer quem a atravessará quando vocês a
que espera sua hora; ter-se-ia portanto tornado realida- abrirem. No entanto, do sentido inteiramente negativo
de pela adição de algo, através de não sei que transfusão do termo "possível" vocês passam sub-repticiamente, in-
de sangue ou de vida. Não se vê que é exatamente o conscientemente, para o sentido positivo. Possibilidade
contrário, que o possível implica a realidade correspon- significava, há pouco, "ausência de impedimento"; vocês
dente com, além disso, algo que a ela se acrescenta, já fazem dela agora uma "preexistência sob forma de idéia",
que o possível é o efeito combinado da realidade, uma o que é algo inteiramente diferente. No primeiro sentido
vez surgida, e de um dispositivo que a repele para trás. A da palavra, era um truísmo dizer que a possibilidade de
idéia, imanente à maior parte das filosofias e natural ao uma coisa preexiste à sua realidade: vocês entendiam sim-
espírito humano, de possíveis que se realizariam por plesmente com isso que os obstáculos, tendo sido trans-
uma aquisição de existência é, portanto, pura ilusão. Se- postos, eram transponíveis3. Mas, no segundo sentido, é
ria o mesmo que pretender que o homem em carne e um absurdo, pois é claro que um espírito no qual o Ham-
osso provém da materialização de sua imagem percebi- let de Shakespeare se tivesse desenhado sob forma de
da no espelho, sob o pretexto de que há nesse homem possível ter-lhe-ia por isso mesmo criado a realidade: te-
real tudo aquilo que encontramos nessa imagem virtual ria sido então, por definição mesmo, o próprio Shakes-
com, em acréscimo, a solidez que faz com que se a pos- peare. Em vão vocês começarão por imaginar que esse
sa tocar. Mas a verdade é que é preciso mais, aqui, para espírito poderia ter surgido antes de Shakespeare: é que
obter o virtual do que para obter o real, mais para a ima- vocês não pensam então em todos os detalhes do drama.
gem do homem do que para o próprio homem, pois a À medida que vocês os completam, o predecessor de
imagem do homem não se desenhará se não começar- Shakespeare se vê pensar tudo o que Shakespeare pen-
mos por nos brindar com o homem e será preciso, além sará, sentir tudo o que ele sentirá, saber tudo o que ele
disso, um espelho. saberá, perceber portanto tudo o que ele perceberá, ocupar,
É isso que meu interlocutor esquecia quando me por conseguinte, o mesmo ponto do espaço e do tempo,
questionava acerca do teatro de amanhã. Talvez também ter o mesmo corpo e a mesma alma: é Shakespeare ele
brincasse inconscientemente com o sentido da palavra próprio.
"possível". Hamlet era sem dúvida possível antes de ser
realizada, se entendermos com isso que não havia obs- 3. E ainda cabe perguntar-se em certos casos se os obstáculos não
táculo intransponível à sua realização. Nesse sentido par- se tornaram transponívels graças à ação criadora que os transpôs: a ação,
ticular, chamamos possível o que não é impossível; e é em si mesma imprevisível, teria então criado a "transponibilidade", An-
claro por si que essa não-impossibilidade de uma coisa é tes dela, os obstáculos eram intransponíveis e, sem ela, assim teriam
a condição de sua realização. Mas o possível assim com- permanecido.
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Mas insisto em demasia sobre aquilo que é claro por dos — que digo eu? pelos mesmos antecedentes diferen-
si. Todas essas considerações se impõem quando se trata temente recortados, diferentemente distribuídos, enfim,
de uma obra de arte. Acredito que acabaremos por achar diferentemente percebidos pela atenção retrospectiva? De
evidente que o artista cria o possível ao mesmo tempo trás para frente, desenvolve-se uma remodelagem cons-
que o real quando executa sua obra, De onde vem en- tante do passado pelo presente, da causa pelo efeito.
tão que provavelmente hesitaremos em dizer o mesmo Não o vemos, novamente pela mesma razão, nova-
da natureza? Não é o mundo igualmente urna obra de mente por sermos vítimas da mesma ilusão, novamente
arte, incomparavelmente mais rica do que a do maior ar- porque tratamos como algo a mais aquilo que é algo a
tista? E não é igualmente absurdo, senão mais, supor menos, como algo a menos aquilo que é algo a mais. De-
aqui que o porvir se desenhe antecipadamente, que a pos- volvamos o possível ao seu lugar: a evolução torna-se
sibilidade preexista à realidade? Concedo, mais uma vez, algo inteiramente diferente da realização de um progra-
que os estados futuros de um sistema fechado de pontos ma; as portas do porvir abrem-se de par em par; um
materiais sejam calculáveis e, por conseguinte, sejam vi- campo ilimitado oferece-se para a liberdade. O erro das
síveis em seu estado presente. Mas, repito, esse sistema doutrinas — bem raras na história da filosofia — que sou-
é extraído ou abstraído de um todo que compreende, beram abrir espaço para a indeterminação e para a liber-
além da matéria inerte e inorganizada, a organização.To- dade no mundo foi o de não terem visto aquilo que sua
mem o mundo concreto e completo, com a vida e a cons- afirmação implicava. Quando falavam de indetermina-
ciência que ele enquadra; considerem a natureza inteira, ção, de liberdade, entendiam por incleterminação uma
geradora de espécies novas de formas tão originais e tão competição entre possíveis, por liberdade urna escolha
novas quanto o desenho de qualquer artista; prendam- entre os possíveis — corno se a possibilidade não fosse
se, nessas espécies, aos indivíduos, plantas ou animais, criada pela própria liberdade! Como se toda outra hipó-
cada um dos quais tem seu caráter próprio — eu ia dizer tese, pondo uma ideal preexistência do possível ao real,
sua personalidade (pois uma folha de grama não se as- não reduzisse o novo a ser apenas um rearranjo de ele-
semelha mais a outra folha de grama do que um Rafael mentos antigos! Como se não devesse ser levada assim,
a um Rembrandt); ergam-se, acima do homem indivi- cedo ou tarde, a tomá-lo por calculável e previsível! Acei-
dual, até às sociedades, que desenrolam ações e situa- tando o postulado da teoria adversa, introduzia o inimi-
ções comparáveis às de qualquer drama: como falar ain- go no reduto. É preciso aceitá-lo: é o real que se faz pos-
da de possíveis que precederiam sua própria realização? sível e não o possível que se torna real.
Como não ver que, embora o acontecimento se explique Mas a verdade é que a filosofia nunca admitiu fran-
sempre, post factum, por tais ou tais acontecimentos an- camente essa criação contínua de imprevisível novidade.
tecedentes, um acontecimento inteiramente diferente se Os antigos já a repugnavam, pelo fato de que, mais ou me-
teria explicado com igual propriedade, nas mesmas cir- nos platônicos, se figuravam que o Ser era dado de uma
cunstâncias, por antecedentes diferentemente escolhi- vez por todas, completo e perfeito, no imutável sistema
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das Idéias: o mundo que se desenrola diante de nossos nia percebidas de início por nossos sentidos hipnotiza-
olhos, portanto, nada lhe podia acrescentar; pelo contrá- dos pela constância de nossas necessidades, a novidade
rio, era apenas diminuição ou degradação; seus estados incessantemente renascente, a movente originalidade das
sucessivos mediriam o afastamento crescente ou decres-
coisas. Mas sobretudo seremos mais fortes, pois da gran-
cente entre aquilo que ele é, sombra projetada no tem- de obra. d.e criação que está na origem e que se desenvolve
po, e aquilo que ele deveria ser, Idéia sediada na eterni- diante de nossos olhos nos sentiremos participar, criado-
dade; desenhariam as variações de um déficit, a forma res de nós mesmos. Nossa faculdade de agir, ao recobrar-
cambiante de um vazio. Seria o Tempo que teria estraga- se, intensificar-se-á. Humilhados até então numa atitude
do tudo, Os modernos colocam-se, é verdade, de um de obediência, escravos de não sei que necessidades na-
ponto de vista inteiramente diferente. Não tratam mais o turais, nós nos reergueremos, senhores associados a um
Tempo como um intruso, perturbador da eternidade; maior Senhor. Tal será a conclusão de nosso estudo. Guar-
mas de bom grado o reduziriam a urna simples aparên- demo-nos de ver uma simples brincadeira numa espe-
cia. O temporal, então, não é mais que a forma confusa culação sobre as relações entre o possível e o real. Pode se
do racional. O que é percebido por nós como urna suces- tratar de uma preparação para bem viver.
são de estados é concebido por nossa inteligência, assim
que a neblina se dissipou, como um sistema de relações.
O real torna-se mais urna vez o eterno, com esta única
diferença de que é a eternidade das Leis nas quais os fe-
nômenos se resolvem, ao invés de ser a eternidade das
Idéias que lhe servem de modelo. Mas, num caso como
no outro, lidamos com teorias. Atenhamo- nos aos fatos.
O Tempo é imediatamente dado. Isso nos basta e, na es-
pera de que nos demonstrem sua inexistência ou sua
perversidade, simplesmente constataremos que há jorro
efetivo de novidade imprevisível.
A filosofia, com isso, lucrará em encontrar algum ab-
soluto no mundo movente dos fenômenos. Mas nós lu-
craremos também por nos sentirmos mais alegres e mais
fortes. Mais alegres, uma vez que a realidade que se in-
venta diante de nossos olhos dará a cada um de nós, in-
cessantemente, algumas das satisfações com as quais a
arte brinda, de longe em longe, os privilegiados pela fortu-
na; irá nos descortinar, para além da fixidez e da. monoto-

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