Fenomenologia da
Percepção
Tradução
CARLOS ALBERTO RIBEIRO DE MOURA
Martins Fontes
São Paulo 2006
Tllzlfoorigi..J: PHÉNOMlNOLOGlE DE LA PERCEPTION.
C'.opyrishl©ÉditfonsGiillinuud,J945.
CopyrishtCll994,L1vr11rúlMllrtinsFonttsEditor11Lt d a.,
SfloP11ulo.p«11111pmientttdiçilo.
Pttparaçiodooriginal
SilvanaCobucciUite
Revis6es griftcas
Rmatorl11Rw:lwC11rWis
MllurfâoBalthallrLud
Din11rle Zmzanelli ria Si!i.-
Produçio gdfia
CeralrloAlws
Merleau-Ponty,Maurice, 1908-1961.
Fenomenologia. da percepção / MauriceMerleau-Ponty ;
traduçãoCarlosAlbertoRlbeirodeMoura.-3'ed.-São
Paulo:MartinsFontes,2006.-(Tópicos)
1.Pertepçãol.TJtulo.U.Série.
CDD-153.7
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . .
INTRODUÇÃO
OS PREJU ÍZOS CLÁ SSICOS E O RETORNO
AOS FEN Ô M E NOS
PRIMEIRA PARTE
O CORPO
SEGUNDA PARTE
O MUNDO PERCEBIDO
l. O sentir. . . .. . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . 279
II . O espaço . . . . . . . . . . . .. . , . . . . . . . . . . . . . . . . . . 327
III . A coisa e o mundo natural . ........ 401
IV. Outrem e o mundo humano . . . 463
TERCEIRA PARTE
O SER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO
Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 1 3
Obras citadas . . . . ..... . .... . . .. . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 655
PREFÁCIO
OS PREJUÍZOS CLÁSSJCOS E O
REIDRNO AOS FENOMENOS
CAPÍTULO 1
A "SENSAÇÃO"
que ela não é nem negra nem cinza. Há ali uma visão indeter
min.ada, uma visão de não sei o quê, e, se passamos ao limite,
aquilo que está atrás de nós não deixa de ter presença visual.
Os dois segmentos de reta, na ilusão de Müller-Lyer (fig. 1 ) ,
> <
( >
Fig. 1
eia alguma outra coisa sem a conter, que exerce uma função
de conhecimento e que suas partes em conjunto compõem
uma totalidade à qual cada uma delas se liga sem abandonar
seu lugar. Doravante o vermelho não me é mais apenas pre
sente , mas ele me representa algo , e aquilo que ele represen
ta não é possuído como uma ' 'parte real ' ' de minha percep
ção, mas apenas visado como uma "parte intencional " 1 .
Meu olhar não se funde n o contorno o u n a mancha como ele
o faz no vermelho materialmente considerado: ele os percor
re ou os domina. Para receber nela mesma uma significação
que verdadeiramente a penetre, para integrar-se em um ' ' con
torno" ligado ao conjunto da "figura" e independente do
' 'fundo' ' , a sensação pontual deveria deixar de ser uma coin
cidência absoluta e , por conseguinte, deixar de ser enquanto
sensação . Se admitimos um " sentir" no sentido clássico, a
significação do sensível só pode consistir em outras sensações
presentes ou virtuais. Ver uma figura só pode ser possuir si
multaneamente as sensações pontuais que fazem parte dela.
Cada uma delas permanece sempre aquilo que ela é, um con
tato cego, uma impressão, o conjunto se faz " visão" e forma
um quadro diante de nós porque aprendemos a passar mais
rapidamente de uma impressão a outra. Um contorno é ape
nas uma soma de visões locais e a consciência de um contor
no é um ser coletivo. Os elementos sensíveis dos quais ele é
feito não podem perder a opacidade que os define como sen
síveis para abrirem-se a uma conexão intrínseca, a uma lei
de constituição comum. Sejam três pontos A, B e C, tomados
no contorno de uma figura; sua ordem no espaço é tanto sua
maneira de coexistir sob nossos olhos quanto essa própria coe
xistência; por mais próximos que eu os escolha, ela é a soma
de suas existências separadas, a posição de A, mais a posifão de
B, mais a posição de C. Pode acontecer que o empirismo aban
done esta linguagem atomista e fale de blocos de espaço ou
de blocos de duração, acrescente uma experiência das rela-
OS PREJUÍZOS CLÁSSICOS E O RETORNO A OS FENÔMENOS 37
Fig. 1 Fig. 2
uma vez por todas , e que nada poderia impedir de ter sido.
Na certeza do presente, há uma intenção que ultrapassa a pre
sença, que antecipadamente o põe como um " antigo presen
te" indubitável na série das rememorações, e a percepção en
quanto conhecimento do presente é o fenômeno central que
torna possível a unidade do eu e, com ela, a idéia da objetivi
dade e da verdade. Mas ela é apresentada no texto somente
como uma dessas evidências irresistíveis apenas de fato , que
permanecem sujeitas à dúvida39. A solução cartesiana não é
portanto considerar o pensamento humano em sua condição
de fato como garantia de si mesmo, mas apoiá-lo em um pen
samento que se possui absolutamente. A conexão entre a es
sência e a existência não é encontrada na experiência mas na
idéia do infinito. Portanto, no final das contas é verdade que
a análise reflexiva repousa inteira em uma idéia dogmática
do ser, e que nesse sentido ela não é uma tomada de cons
ciência acabada40. Quando o intelectualismo retomava a no
ção naturalista de sensação, neste passo estava implicada uma
filosofia. Reciprocamente, quando a psicologia elimina defi
nitivamente essa noção , podemos esperar encontrar nessa re
forma o esboço de um novo tipo de reflexão. N o plano da
psicologia, a crítica da ' ' hipótese de constância' ' significa ape
nas que se abandona o juízo como fator explicativo na teoria
da percepção. Como pretender que a percepção da distância
seja concluída a partir da grandeza aparente dos objetos, da
disparidade das imagens retinianas, da acomodação do cris
talino, da convergência dos olhos, que a percepção do relevo
seja concluída a partir da diferença entre a imagem forneci
da pelo olho direito e a imagem fornecida pelo olho esquer
do, já que, se nós nos atemos aos fenômenos , nenhum desses
" sign Õ s" é claramente dado à consciência, e j á que não po
deria haver raciocínio ali onde faltam as premissas? Mas es
sa critica ao intelectualismo só atinge a sua vulgarização en
tre os psicólogos. E, assim como o próprio intelectualismo,
OS PREJUÍZOS CLÁSSICOS E O RETORNO A OS FENÔMENOS 77
' ' querem dizer' ' uma distância maior. Não se trata, todavia,
de uma das conexões que a lógica objetiva, a lógic ã da ver
dade constituída, conhece: pois não há nenhuma razão para que
um campanário me pareça menor e mais distante a partir do
momento em que posso ver melhor em seu detalhe os decli
ves e os campos que dele me separam. Não há razão, mas
há um motivo . Foi justamente a Gestaluheorie que nos fez to
mar consciência dessas tensões que, como linhas de força, atra
vessam o campo visual e o sistema corpo próprio/mundo, e
que os animam com uma vida surda e mágica, impondo aqui
e ali torções, contrações, dilatações. A disparidade entre as
imagens retinianas, o número de objetos interpostos não agem
nem como simples causas objetivas que produziriam do ex·
terior a minha percepção da distância, nem como razões que
a demonstrariam. Eles são tacitamente conhecidos por ela sob
formas veladas, eles a justificam por uma lógica sem pala·
vra. Mas, para exprimir suficientemente essas relações per·
ceptivas , falta à Gestalttheorie uma renovação das categorias:
ela admitiu seu princípio, aplicou·o a alguns casos particula·
res, mas não percebeu que toda uma reforma do entendimento
é necessária se queremos traduzir exatamente os fenômenos,
e que é preciso, para chegar a isso, recolocar em questão o
pensamento objetivo da lógica e da filosofia clássicas, pôr em
suspenso as categorias do mundo , pôr em dúvida, no sentido
cartesiano, as pretensas evidências do realismo, e proceder
a uma verdadeira ' ' redução fenomenológica' ' . O pensamen·
to objetivo, aquele que se aplica ao universo e não aos fenô·
menos, só conhece noções alternativas; a partir da experiên·
eia efetiva, ele define conceitos puros que se excluem: a no·
ção da extensão, que é a de uma exterioridade absoluta entre
as partes, e a noção do pensamento , que é a de um ser reco·
lhido em si mesmo, a noção do signo vocal como fenômeno
físico arbitrariamente ligado a certos pensamentos, e a da sig·
nifUação como pensamento para si inteiramente claro, a no·
OS PREJUÍZOS CLÁSSICOS E 0 RETORNO AOS FENÓMENOS 81
bre ' ' as duas imagens' ' , pois elas não são numericamente dis
tintas, mas do fenômeno do " movido " , das forças que habi
tam esse esboço , que procuram o equilíbrio e que o levam
ao mais determinado. Para uma doutrina cartesiana, essas
descrições nunca terão importância filosófica: das serão tra
tadas como a1usões ao irrefletido que, por princípio , nunca
podem tornar-se enunciados e que, como toda psicologia, são
sem verdade diante do entendimento. Para legitimá-las in
teiramente , seria preciso mostrar que em caso algum a cons
ciência pode deixar inteiramente de ser aquilo que ela é na
percepção, quer dizer, um fato, nem tomar inteira posse de
suas operações. Portanto, o reconhecimento dos fenômenos
implica enfim uma teoria da reflexão e um novo cogito 45 •
CAPÍTULO IV
O CAMPO FENOMENAL
O CORPO
Nossa percepção chega a objetos , e o objeto, uma vez
constituído, aparece como a razão de todas as experiências
que dele tivemos ou que dele poderíamos ter. Por exemplo,
vejo a casa vizinha sob um certo ângulo, ela seria vista de
outra maneira da margem direita do Sena, de outra maneira
do interior, de outra maneira ainda de um avião ; a casa ela
mesma não é nenhuma dessas aparições, ela é, como dizia Leib
niz, o geometral dessas perspectivas e de todas as perspecti
vas possíVeis, quer dizer, o termo sem perspectivas do qual
se podem derivá-las todas, ela é a casa vista de lugar algum .
Mas o que significam estas palavras? Ver não é sempre ver
de algum lugar? Dizer que a casa ela mesma é vista de lugar
algum não seria dizer que ela é invisível? Entretanto, quan
do digo que vejo a casa com meus olhos, certamente não di
go nada de contestável : não entendo que minha retina e meu
cristalino, que meus olhos enquanto órgãos materiais funcio
nam e fazem com que eu a veja; interrogando apenas a mim
mesmo, não sei nada disso. Eu quero exprimir com isso uma
certa maneira de ter acesso ao objeto, o " olhar " , que é tão
indubitável quanto meu próprio pensamento, tão diretamente
104 FENOMENOLOGIA D A PERCEPÇÃO
dos objetos. Foi isso que levou a supor centros gnósticos es
pecializados na loca1ização e na interpretação das qualida
des . Na realidade, as pesquisas modernas mostram que as
lesões centrais agem sobretudo elevando as cronaxias que ,
no doente , são duas ou três vezes decuplicadas. A excitação
produz seus efeitos mais lentamente , eles subsistem por mais
tempo, e a percepção tátil do áspero, por exemplo, encontra
se comprometida, pois supõe uma seqüência de impressões
circunscritas ou uma consciência precisa das diferentes posi
ções da mão 4 • A localização confusa do excitante não se ex
plica pela destruição de um centro loca1izador, mas pelo ni
velamento das excitações que não mais conseguem organizar
se em um conjunto estável em que cada uma delas receberia
um valor unívoco e só se traduziria para a consciência por
uma mudança circunscrita5 • Assim, as excitações de um
mesmo sentido diferem menos pelo instrumento material do
qual se servem do que pela maneira pela qual os estímulos
elementares se organizam espontaneamente entre si, e essa
organização é o fator decisivo no plano das ' ' qualidades' ' sen
síveis, assim como no plano da percepção. É ela ainda, e não
a energia específica do aparelho interrogado, que faz com que
um excitante dê lugar a uma sensação tátil ou a uma sensa
ção térmica. Se por diversas vezes se excita com um cabelo
uma dada região da pele, têm-se primeiramente sensações
pontuais, claramente distinguidas e a cada vez localizadas no
mesmo ponto . À medida que a excitação se repete, a locali
zação se torna menos precisa, a percepção se desdobra no
espaço, ao mesmo tempo em que a sensação deixa de ser es
pecífica: não é mais um contato, é uma queimadura, ora pe
lo frio, ora pelo calor. Mais tarde ainda, o paciente acredita
que o excitante se move e traça um círculo em sua pele . Fi
nalmente , nada mais é sentido6. Isso significa que a " quali
dade sensível " , as determinações espaciais do percebido e até
mesmo a presença ou a ausência de uma percepção não são
114 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO
animal existe, que ele tem um mundo ou que ele é para um mun
do, não se quer dizer que ele tenha percepção ou consciência
objetiva desse mundo. A situação que desencadeia as opera
ções instintivas não está inteiramente articulada e determi
nada, o sentido total não é possuído, como o mostram muito
bem os erros e a cegueira do instinto. Ela só oferece uma sig
nificação prática, só convida a um reconhecimento corporal,
ela é vivida como situação ' ' aberta' ' , e pede os movimentos
do animal assim como as pi-imeiras notas da melodia pedem
um certo modo de resolução sem que ele seja conhecido por
si mesmo, e é justamente isso que permite aos membros
substituírem-se um ao outro, serem equivalentes diante da evi
dência da tarefa. Se ele ancora o sujeito em um certo ' ' meio ' ' ,
o " ser n o mundo" seria algo como a " atenção à vida" de
Bergson ou como a " função do real " de P . Janet? A atenção
à vida é a consciência que tomamos de ' ' movimentos nascen
tes" e m nosso corpo. Ora, movimentos reflexos, esboçados
ou realizados, ainda são apenas processos objetivos dos quais
a consciência pode constatar o tjesenrolar e os resultados, mas
nos quais ela não está engajada19 , Na realidade, os próprios
reflexos nunca são processos cegos: eles se ajustam a um " sen
tido ' ' da situação, exprimem nossa orientação para um ' ' meio
de comportamento" tanto quanto a ação do " meio geográfi
co ' ' sobre nós. Eles desenham , à distância, a estrutura do ob
jeto, sem esperar suas estimulações pontuais. É essa presença
global da situação que dá um sentido aos estímulos parciais
e que os faz contar, valer ou existir para o organismo. O re
flexo não resulta de estímulos objetivos, ele se volta para eles,
investe-os de um sentido que eles não receberam um a um
e como agentes físicos, que eles têm apenas enquanto situa
ção. Ele os faz ser como situação, está com eles em uma rela
ção de " conhecimento " , quer dizer, indica-os como aquilo
que ele está destinado a afrontar. O reflexo, enquanto se abre
ao sentido de uma situação , e a percepção, enquanto não põe
O CORPO 1 19
A EXPERIÊNCIA DO CORPO
E A PSICOLOGIA CLÁS S ICA
A E S PACIALIDADE DO CORPO
PRÓPRIO E A MOTRICIDADE
trar. Mas como isso é possível? S e sei onde está meu nariz
quando se trata de pegá-lo, como não saberia onde ele está
quando se trata de mostrá-lo? Sem dúvida, é porque o saber
de um lugar se entende em vários sentidos. A psicologia clás
sica não dispõe de nenhum conceito para exprimir essas va
riedades da consciência de lugar porque para ela a consciên
cia de lugar é sempre consciência posicional , representação,
Vor-stellung, porque a este título ela nos dá o lugar como de
terminação do mundo objetivo, e porque uma tal represen
tação é ou não é , mas, se ela é, ela nos entrega seu objeto
sem nenhuma ambigüidade e como um termo identificável
através de todas as suas aparições . Ao contrário, aqui preci
samos forjar os conceitos necessários para exprimir que o es
paço me pode ser dado em uma intenção de apreensão sem
me ser dado em uma intenção de conhecimento. O doente
tem consciência do espaço corporal como local de sua ação
habitual , mas não como ambiente objetivo, seu corpo está à
sua disposição como ineio de inserção em uma circunvizinhan
ça familiar, mas não como meio de expressão de um pensa
mento espacial gratuito e livre . Quando lhe ordenam que exe
cute um movimento concreto, primeiramente ele repete a or
dem com um acento interrogativo, depois seu corpo se insta
la na posição de conjunto que é exigida pela tarefa; enfim ele
executa o movimento. Observa-se que todo o corpo colabora
para isso e que o doente nunca reduz o movimento, como
o faria o sujeito normal, aos traços estritamente indispensá
veis. A saudação militar é acompanhada de outros sinais ex
teriores de respeito. Com o gesto da mão direita que finge
pentear os cabelos, vem o da mão esquerda que segura o es
pelho; com o gesto da mão direita que crava um prego, vem
o da mão esquerda que o segura. Isso ocorre porque a ordem
é levada a sério e porque o doente só consegue realizar os mo
vimentos concretos sob comando à condição de situar-se em
espírito na situação efetiva a que eles correspondem. O su-
1 52 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO
vez por u m certo "lado " , que e m cada caso certos sintomas
sejam predominantes no quadro clínico da doença, e enfim
que a consciência seja vulnerável e que possa receber a doen
ça em si mesma. Acometendo a " esfera visual " , a doença
não se limita a destruir certos conteúdos de consciência, as
"representações visuais " ou a visão no sentido próprio; ela
atinge uma visão no sentido figurado, da qual a primeira é
o modelo ou o emblema - o poder de "dominar" (überscha.uen)
as multiplicidades simultâneas92, uma certa maneira de pôr
o objeto ou de ter consciência. Mas como esse tipo de cons
ciência é apenas a sublimação da visão sensível, como a cada
momento ele se esquematiza nas dimensões do campo visual,
sobrecarregando-as, é certo, com um sentido novo, compre
ende-se que essa função geral tenha suas raízes psicológicas.
A consciência desenvolve livremente os dados visuais para
além de seu sentido próprio, ela se serve deles para exprimir
seus atos de espontaneidade, como o mostra suficientemente
a evolução semântica que atribui um sentido cada vez mais
rico aos termos intuição, evidência ou luz natural. Mas, re
ciprocamente, não há um só desses termos, no sentido final
que a história lhes atribuiu, que se compreenda sem referên
cia às estruturas da percepção visual. Dessa forma não se po
de dizer que o homem vê porq1:1e é Espírito, nem tampouco
que é Espírito porque vê: ver como um homem vê e ser Espí
rito são sinônimos. Na medida em que a consciência s6 é cons
ciência de algo arrastando atrás de si seu rasto, e em que,
para pensar um objeto, é preciso apoiar-se em um ' ' mundo
de pensamento' ' precedentemente construído, há sempre uma
despersonalização no interior da consciência; por aqui está
dado o princípio de uma intervenção alheia: a consciência po
de ficar doente, o mundo de seus pensamentos pode desmo
ronar em fragmentos - ou antes, como os ' ' conteúdos' ' dis
sociados pela doença não figuravam na consciência normal
a título de partes, e só serviam de apoios a significações que
192 FENOMENOLOGIA. DA PERCEPÇÃO
nesse advento de um ' ' ponto de vista da cor' ' , nessa análise
intelectual que subsume os dados a uma categoria? Mas, pa
ra que a criança possa perceber o azul e o vermelho sob a
categoria de cor, é preciso que esta se enraíze nos dados , sem
o que nenhuma subsunção poderia reconhecê-la neles - pri
meiramente é preciso que, nos painéis " azuis" e "vermelhos"
que lhe apresentam , se manifeste esta maneira particular de
vibrar e de atingir o olhar que chamamos de azul e de ver
melho. Com o olhar, dispomos de um instrumento natural
comparável à bengala do cego . O olhar obtém mais ou me
nos das coisas segundo a maneira pela qual ele as interroga,
pela qual ele desliza ou se apóia nelas . Aprender a ver as co
res é adquirir um certo estilo de visão, um novo uso do corpo
próprio, é enriquecer e reorganizar o esquema corporal. Sis
tema de potências motoras ou de potências perceptivas, nos
so corpo não é objeto para um "eu penso " : ele é um conjun
to de significações vividas que caminha para seu equilíbrio.
Por vezes forma-se um novo n6 de significações : nossos mo
vimentos antigos integram-se a uma nova entidade motora,
os primeiros dados da visão a uma nova entidade sensorial,
repentinamente nossos poderes naturais vão ao encontro de
uma significação mais rica que até então estava apenas indi
cada em nosso campo perceptivo ou prático, só se anunciava
em nossa experiência por uma certa falta, e cujo advento reor
ganiza subitamente nosso equilíbrio e preenche nossa expec
tativa cega.
CAPÍTULO V
rem apenas ' ' agora ' ' sempre semelhantes, a vida reflui sobre
si mesma e a história se dissolve no tempo natural . Mesmo
normal , mesmo envolvido em situações inter-humanas, o su
jeito, enquanto tem um corpo, conserva a cada instante o po
der de esquivar-se disso. No próprio instante em que vivo no
mundo, em que me dedico aos meus projetos , a minhas ocu
pações, a meus amigos, a minhas recordações, posso fechar
os oJhos, estirar-me, escutar meu sangue que pulsa em meus
228 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃ O
Mas o nome não lhe serve mais para nada, não lhe diz mais
nada, ele é estranho e absurdo, assim como são para nós os
nomes que repetimos durante muito tempo31 . Os doentes pa
ra os quais as palavras perderam seu sentido conservam por
vezes, no mais alto grau , o poder de associar as idéias32 , Por
tanto , o nome não se destacou das " associações " antigas, ele
se alterou como um corpo inanimado. O elo entre a palavra
e seu sentido vivo não é u m do exterior de associação ; o sen
tido habita a palavra, e a linguagem " não é um acompanha
mento exterior dos processos intelectuais " 3 3 . Somos condu
zidos então a reconhecer, como dizíamos mais acima, uma
significação gestual ou existencial da fala. A linguagem tem
um interior, mas esse interior não é um pensamento fechado
sobre si e consciente de si. O que então exprime a lingua
gem , se ela não exprime pensamentos? Ela apresenta, ou an
tes ela é tomada de posição do sujeito no mundo de suas sig
nificações. O termo " mundo" não é aqui uma maneira de
falar: ele significa que a vida " mental " ou cultural toma de
empréstimo à vida natural as suas estruturas , e que o sujeito
pensante deve ser fundado no sujeito encarnado . O gesto fo
nético realiza, para o sujeito falante e para aqueles que o es
cutam , uma certa estrutura da experiência, uma certa mo
dulação da existência, exatamente como um comportamento
de meu corpo investe os objetos que me circundam, para mim
e para o outro, de uma certa significação. O sentido do gesto
não está contido no gesto enquanto fenômeno físico ou fisio
lógico . O sentido da palavra não está contido na palavra en
quanto som. Mas é a definição do corpo humano apropriar
se, em uma série indefinida de atos descontínuos, de núcleos
significativos que ultrapassam e transfiguram seus poderes na
turais. Esse ato de transcendência encontra-se primeiramen
te na aquisição de um comportamento, depois na comunica
ção muda do gesto : é pela mesma potência que o corpo se
abre a uma conduta nova e faz com que testemunhos exte-
O CORPO 263
alcançar-se e é por isso que ela cria a fala como apoio empíri
co de seu próprio não-ser. A fala é o excesso de nossa exis
tência por sobre o ser natural . Mas o ato de expressão consti
tui u m mundo lingü ístico e um mundo cultural , ele faz vol
tar a cair no ser aquilo que tendia para além. Daí a fala fala
da que desfruta as significações disponíveis como a uma for
tuna obtida. A partir dessas aquisições, tomam-se impossíveis
outros atos de expressão autêntica - aqueles do escritor, do
artista ou do filósofo. Essa abertura sempre recriada na ple
nitude do ser é o que condiciona a primeira fala da criança,
assim como a fala do escritor, a construção da palavra, assim
como a dos conceitos. É essa função que adivinhamos atra
vés da linguagem, que se reitera, apóia-se em si mesma ou
que, assim como uma onda, ajunta-se e retoma-se para
projetar-se para além de si mesma.
Melhor ainda do que nossas observações sobre a espa
cialidade e a unidade corporais, a análise da fala e da expres
são nos faz reconhecer a natureza enigmática do corpo pró
prio . Ele não é uma reunião de partículas das quais cada uma
permaneceria em si, ou ainda um entrelaçamento de proces
sos definidos de uma vez por todas - ele não está ali onde
está, ele não é aquilo que é - já que o vemos secretar em
si mesmo u m " sentido" que não lhe vem de parte alguma,
projetá-lo em sua circunvizinhança material e comunicá-lo
aos outros sujeitos encarnados. Sempre observaram que o ges
to ou a fala transfiguravam o corpo, mas contentavam-se em
dizer que eles desenvolviam ou manifestavam uma outra po
tência, pensamento ou alma . Não se via que, para poder
exprimi-lo, em última análise o corpo precisa tomar-se o pen
samento ou a intenção que ele nos significa. É ele que mos
tra, ele que fala, eis o que aprendemos neste capítulo. Cé
zanne dizia de um retrato: "Se pinto todos os pequenos azuis
e todos os pequenos marrons, eu o faço olhar como ele olha . . .
A o diabo s e eles desconfiam como, casando u m verde mati-
268 FENOMENOLOGTA DA PERCEPÇÃO
dade " , " sexualidade " - percebo que essas " funções " não
podem estar ligadas entre si e ao mundo exterior por rela
ções de causalidade, todas elas estão confusamente retoma
das e implicadas em um drama único. Portanto, o corpo não
é um objeto. Pela mesma razão , a consciência que tenho dele
não é um pensamento, quer dizer, não posso decompô-lo e
recompô-lo para formar dele uma idéia clara. Sua unidade
é sempre implícita e confusa. Ele é sempre outra coisa que
aquilo que ele é, sempre sexualidade ao mesmo tempo que
liberdade, enraizado na natureza no próprio momento em que
se transforma pela cultura, nunca fechado em si mesmo e nun
ca ultrapassado . Quer se trate do corpo do outro ou de meu
próprio corpo , não tenho outro meio de conhecer o corpo hu
mano senão vivê-lo, quer dizer, retomar por minha conta o
drama que o transpassa e confundir-me com ele. Portanto,
sou meu corpo, exatamente na medida em que tenho um sa
ber adquirido e , reciprocamente, meu corpo é como um su
jeito natural, como u m esboço provisório de meu ser total .
Assim, a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimen
to reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do ob
jeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo
em idéia, e não a experiência do corpo ou o corpo em reali
dade . Descartes o sabia muito bem, já que uma célebre carta
a Elisabeth distingue o corpo tal como ele é concebido pelo
uso da vida do corpo tal como ele é concebido pelo entendi
mento""°. Mas em Descartes esse singular saber que temos de
nosso corpo apenas pelo fato de que somos um corpo perma
nece subordinado ao conhecimento por idéias porque, atrás
do homem tal como de fato ele é, encontra-se Deus enquanto
autor racional de nossa situação de fato. Apoiado nessa ga
rantia transcendente, Descartes pode aceitar calmamente nos
sa condição irracional : não cabe a nós sustentar a razão e ,
u m a vez q u e a reconhecemos n o fundo das coisas, resta-nos
apenas agir e pensar no mundo 4 1 . Mas, se nossa união com
270 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO
O MUNDO PERCEBIDO
O corpo próprio está no mundo assim como o coração
no organismo; ele mantém o espetáculo visível continuamente
em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele
um sistema. Quando caminho em meu apartamento, os di
ferentes aspectos sob os quais ele se apresenta a mim não po
deriam aparecer-me como os perfis de uma mesma coisa se
eu não soubesse que cada um deles representa o apartamen
to visto daqui ou visto dal i , se eu não tivesse consciência de
meu próprio movimento e de meu corpo como idêntico atra
vés das fases desse movimento. Evidentemente , posso sobre
voar o apartamento em pensamento, imaginá-lo ou desenhar
sua planta no papel, mas mesmo então eu não poderia apreen
der a unidade do objeto sem a mediação da experiência cor
poral , pois aquilo que chamo de uma planta é apenas uma
perspectiva mais ampla: é o apartamento "visto de cima" ,
e , s e posso resumir nela todas as perspectivas costumeiras,
é sob a condição de saber que um mesmo sujeito encarna
do pode ver alternadamente de diferentes posições. Respon
der-se-á talvez que, recolocando o objeto na experiência cor
poral como um dos pólos dessa experiência, nós lhe retira
mos justamente aquilo que faz sua objetividade. Do ponto
2 74 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO
O SENTIR
nas ser visível mas ainda ser tangível ou apreensível pela au
dição, e não apenas ser sensível mas ainda uma profundida
de do objeto que nenhuma antecipação sensorial esgotará.
Correlativamente, não estou por inteiro nessas operações, elas
permanecem marginais, produzem-se adiante de mim, o eu
que vê ou o eu que ouve são de alguma maneira um eu espe
cializado, familiares a um único setor do ser, e é justamente
a esse preço que o olhar e a mão são capazes de adivinhar
o movimento que vai tornar a percepção precisa e podem dar
provas desta presciência que lhes dá a aparência do automa
tismo. Podemos resumir essas duas idéias dizendo que toda
sensação pertence a um certo campo. Dizer que tenho um cam
po visual é dizer que, por posição, tenho acesso e abertura
a um sistema de seres, os seres visuais, que eles estão à dis
posição de meu olhar em virtude de uma espécie de contrato
primordial e por um dom da natureza, sem nenhum esforço
de minha parte; é dizer portanto que a visão é pré-pessoal ;
e é dizer ao mesmo tempo que ela é sempre limitada, que
existe sempre em torno de minha visão atual um horizonte
de coisas não-vistas ou mesmo não-visíveis. A visão é um pen
samento sujeito a um certo campo e é isso que chamamos de um
sentido. Quando digo que tenho sentidos e que eles me fazem
ter acesso ao mundo, não sou vítima de uma confusão, não
misturo o pensamento causal e a reflexão, apenas exprimo
esta verdade que se impõe a uma reflexão integral : que sou
capaz , por conaturalidade, de encontrar um sentido para cer
tos aspectos do ser, sem que eu mesmo o tenha dado a eles
por uma operação constituinte .
a Com a distinção entre os sentidos e a intelecção, encon
O ESPAÇO
que Stratton descreveu sem contudo dar conta deles. Se o ' 'en
direitamento" do campo resultasse de uma série de associa
ções entre as posições novas e as antigas , corno a operação
poderia ter um andamento sistemático e como faces inteiras
do horizonte perceptivo viriam juntar-se de um só golpe aos
objetos já " endireitados " ? Se , ao contrário, a nova orienta
ção resultasse de uma operação do pensamento e consistisse
em uma mudança de coordenadas, como o campo auditivo
ou tátil poderia resistir à transposição? Seria preciso que , por
uma circunstância improvável, o sujeito constituinte estives
se apartado de si mesmo e fosse capaz de ignorar aqui aquilo
que ele faz alhures1 6 • Se a transposição é sistemática, e to
davia parcial e progressiva, é porque vou de um sistema de
posições ao outro sem ter a chave de cada um deles, assim
como um homem sem nenhum conhecimento musical canta
em um outro tom uma ária que ouviu . A posse de um corpo
traz consigo o poder de mudar de nível e de " compreender"
o espaço, assim como a posse da voz traz consigo o poder de
mudar de tom . O campo perceptivo se apruma e, no final
da experiência, eu o identifico sem conceito, porque me trans
porto inteiro para o novo espetáculo e porque coloco ali , por
assim dizer, o meu centro de gravidade1 7 . No início da ex
periência, o campo visual parece ao mesmo tempo invertido
e i"eal porque o sujeito não vive nele e não está às voltas com
ele. No decorrer da experiência, constata-se uma fase inter
mediária em que o corpo tátil parece invertido e a paisagem
direita porque, já vivendo na paisage m , eu a percebo por is
so mesmo como direita, e porque a perturbação experimen
tal é atribuída ao corpo próprio que é, assim, não uma mas
sa de sensações
. efetivas, mas o corpo que é preciso ter para
percebe e um espetáculo dado . Tudo nos reenvia às relações
orgânicas entre o sujeito e o espaço , a esse poder do sujeito
sobre seu mundo que é a origem do espaço .
O MUNDO PERCEBIDO 339
ele não é nem menor, aliás nem igual em grandeza: ele está
aquém do igual e do desigual , ele é o mesmo lwmem visto de mais
longe. Pode-se dizer apenas que o homem a duzentos passos
é uma figura muito menos articulada, que ele oferece ao meu
olhar pontos de apoio menos numerosos e menos precisos,
que ele está menos estritamente engrenado ao meu poder ex
plorador. Pode-se dizer ainda que ele ocupa menos comple
tamente o meu campo visual , sob a condição de nos lembrar
mos de que o campo visual não é ele mesmo uma área men
surável. Dizer que um objeto ocupa pouco lugar no campo
visual é dizer, em última análise, que ele não apresenta uma
configuração suficientemente rica para esgotar minha potên
cia de visão nítida. Meu campo visual não tem nenhuma ca
pacidade definida e pode conter mais ou menos coisas, justa
mente, segundo as vejo " de longe" ou " de perto " . Portan
to, a grandeza aparente não é definível à parte da distância:
ela é implicada por esta, assim como a implica. Convergên
cia, grandeza aparente e distância se lêem umas nas outras ,
se simbolizam ou se significam naturalmente umas às outras ,
são os elementos abstratos de uma situação e, nesta, são si
nônimas umas das outras, não que o sujeito da percepção po
nha relações objetivas entre elas , mas ao contrário porque ele
não as põe à parte e portanto não precisa ligá-las expressa
mente . Sejam as diferentes ' ' grandezas aparente s ' ' do objeto
que se distancia: não é necessário ligá-las por uma síntese se
nenhuma delas é objeto de uma tese . Nós " temos" o objeto
que se distancia, não deixamos de " possuí-lo" e de ter poder
sobre ele, e a distância crescente não é , como a largura pare
ce sê-lo, uma exterioridade que cresce : ela exprime apenas
que a coisa começa a escorregar sob a apreensão de nosso
olhar, e que ele a esposa menos estritamente. A distância é
aquilo que distingue essa apreensão esboçada da apreensão
completa ou proximidade. Nós a definiremos então do roes-
O MUNDO PERCEBIDO 353
mo modo que definimos acima o ' ' direito ' ' e o ' ' oblíquo ' ' :
pela situação d o objeto e m relação à potência d e apreensão .
Foram sobretudo as ilusões referentes à profundidade que
nos habituaram a considerá-la como uma construção do en
tendimehto. Pode-se provocá-las impondo aos olhos um cer
to grau de convergência, como no estereoscópio, ou apresen
tando ao sujeito um desenho perspectiva. Visto que aqui acre
dito ver a profundidade quando ela não existe, não seria por
que os signos enganadores foram a ocasião de uma hipótese,
e porque em geral a pretensa visão da distância é sempre uma
interpretação de signos? Mas o postulado é manifesto; supõe
se que não é possível ver aquilo que não é , define-se então
a visão pela impressão sensorial , perde-se a relação original
de motivação, substituída por uma relação de significação.
Vimos que a disparidade das imagens retinianas que o movi
mento de convergência suscita não existe em si; só existe dis
paridade para um sujeito que procura fundir os fenômenos
monoculares de mesma estrutura e que tende à sinergia. A
unidade da visão binocular, e com esta a profundidade sem
a qual ela não é realizável, está ali então desde o momento
em que as imagens monoculares se apresentam como " dis
parates" . Quando me ponho no estereoscópio , propõe-se um
conjunto em que a ordem possível já se desenha e a situação
se esboça. Minha resposta motora assume essa situação . Cé
zanne dizia que o pintor, diante de seu " motivo " , vai "en
contrar-se com as mãos errantes da natureza' ' 26 . O próprio
movimento de fixação no estereoscópio é uma resposta à ques
tão posta pelos dados, e essa resposta está envolvida na ques
tão. É o próprio campo que se orienta em direção a uma si
metria tão perfeita quanto possível, e a profundidade é ape
nas um momento da fé perceptiva em uma coisa única. O
desenho perspectiva não é percebido primeiramente coroo de
senho em um plano, depois organizado em profundidade. As
linhas que fogem para o horizonte não são dadas em primei-
354 FENOMENOLOGIA D A PERCEPÇÃO
E� E4=ri
l6±7º H G
�o H
G
Fig. 1 Fig. 2 Fig. 3
ço' ' , mas uma pura ' ' passagem ' ' . Se se opera com um ta
quistoscópio, freqüentemente o sujeito percebe um movimento
sem poder dizer de que existe movimento. Quando se trata
de movimentos reais, a situação não é diferente : se observo
operários que descarregam um caminhão lançando tijolos um
para o outro, vejo o braço do operário em sua posição inicial
e em sua posição final, não o vejo em nenhuma posição in
termediária, e todavia tenho uma percepção viva de seu mo
vimento . Se passo rapidamente um lápis diante de uma fo
lha de papel na qual marquei um ponto de referência, em
nenhum momento tenho consciência de que o lápis se encon
tra acima do ponto de referência, não vejo nenhuma das po
sições intermediárias e todavia tenho a experiência do movi
mento. Reciprocamente, se diminuo o movimento e consigo
não perder o lápis de vista, neste momento mesmo a impres
são de movimento desaparece:i�. O movimento desaparece
no momento mesmo em que é o mais conforme à definição
que dele dá o pensamento objetivo. Assim, podem-se obter
fenômenos em que o móbil só aparece apreendido no movi
mento. Para ele, mover-se não é passar alternadamente por
uma série indefinida de posições, ele só é dado começando,
prosseguindo ou terminando seu movimento. Conseqüente
mente , mesmo nos casos em que o móbil é visíve1 , o movi
mento não é a seu respeito uma denominação extrínseca, uma
relação entre ele e o exterior, e poderemos ter movimentos
sem referencial. De fato, se projetamos a imagem consecuti
va de um movimento em um campo homogêneo, sem nenhum
objeto e sem nenhum contorno, o movimento toma posse de
todo o espaço, é todo o campo visual que se move, como na
feira em Casa Mal-Assombrada. Se projetamos na tela a pós
imagem de uma espiral girando em torno de seu centro , na
ausência de qualquer quadro fixo, é o próprio espaço que vi
bra e se dilata do centro à periferia36 . Enfim, como o movi
mento não é mais um sistema de relações exteriores ao pró-
O MlT/'../DO PERCEBIDO 365
Mesmo se não pode ser definida por isto, uma coisa tem
"caracteres" ou " propriedades" estáveis , e nós nos aproxi
maremos do fenômeno de realidade estudando as constantes
perceptivas . Em primeiro lugar, uma coisa tem sua grandeza
e sua forma pr6prias sob as variações perspectivas que são ape
nas aparentes. Nós não lançamos estas aparências na conta
do objeto, elas são um acidente de nossas relações com ele,
não concernem a ele mesmo. O que queremos dizer por isso
e a panir de que julgamos então que uma forma ou uma gran
deza são a forma e a grandeza do objeto?
O que nos é dado para cada objeto, dirá o psicólogo, são
grandezas e formas sempre variáveis segundo a perspectiva,
e nós convimos em considerar como verdadeiras a grandeza
que obtemos à distância de tocar ou a forma que o objeto as
sume quando está em um plano paralelo ao plano frontal. Elas
não são mais verdadeiras do que outras, mas essa distância
e essa orientação típica, sendo definidas com o auxilio de nosso
corpo, referencial sempre dado, nós sempre temos o meio de
reconhecê-las, e elas mesmas nos fornecem um referencial em
relação ao qual podemos fixar enfim as aparências fugidias,
distingui-las umas das outras e , em uma palavra, construir
402 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇA O
ra nós a tal ponto natural, que não é mais nem mesmo perce
bida como penumbra. A iluminação elétrica, que nos parece
amarela no momento em que saímos da luz diurna, logo dei
xa de ter para n6s alguma cor definida e, se um resto de luz
diurna penetra no cômodo, é esta luz ' ' objetivamente neu
tra" que nos pai-ece tingida de azul 26 . Não se deve dizer que,
a iluminação amarela da eletricidade sendo percebida como
amarela, nós levamos isso em conta na apreciação das apa
rências e reencontramos assim , idealmente , a cor própria dos
objetos. Não se deve dizer que a luz amarela, na medida em
que se generaliza, é vista sob o aspecto da luz diurna e que
assim a cor dos outros objetos permanece realmente constan
te. É preciso dizer que a luz amarela, assumindo a função
de iluminação, tende a situar-se aquém de qualquer cor, tende
para o zero de cor e que, correlativamente, os objetos distri
buem-se as cores do espectro segundo o grau e o modo de
sua resistência a essa nova atmosfera. Portanto, toda cor-quale
é mediada por uma cor-função, determina-se em relação a
um nível que é variável . O nível se estabelece e, com ele ,
todos os valores coloridos que dele dependem, quando co
meçamos a viver na atmosfera dominante e , em função des
sa convenção fundamental , redistribuímos sobre os objetos
as cores do espectro. Nossa instalação em um certo ambiente
colorido, com a transposição de todas as relações de cores que
ela acarreta, é uma operação corporal; só posso realizá-la en
trando na nova atmosfera, porque meu corpo é meu poder ge
ral de habitar todos os ambientes do mundo , a chave de to
das as transposições e de todas as equivalências que o man
têm constante. Assim, a iluminação é apenas um momento
em uma estrutura complexa cujos outros momentos são a or
ganização do campo, tal como nosso corpo a realiza, e a coi
sa iluminada em sua constância. As correlações funcionais
que se podem descobrir entre esses três fenômenos são uma
manifestação de sua ' ' coexistência essencial ' ' 27 •
418 FENOMENOLOGIA D A PERCEPÇÃO
ção inteira é animada por uma lógica que atribui a cada ob
jeto todas as suas determinações em função daquelas dos ou
tros e que "barra" como irreal todo dado aberrante, ela é
inteira subtendida pela certeza do mundo. Deste ponto de vis
ta, percebe-se enfim a verdadeira significação das constân
cias perceptivas . A constância da cor é apenas um momento
abstrato da constância das coisas, e a constância das coisas
está fundada na consciência primordial do mundo enquanto
horizonte de todas as nossas experiências. Portanto, não é por
que percebo cores constantes sob a variedade das ilumina
ções que creio em coisas , e a coisa não será uma soma de ca
racteres constantes, ao contrário, é na m,edida em que mi
nha percepção é em si aberta a um mundo e a coisas que re
conheço cores constante s .
O fenômeno d e constância é geral. Pôde-se falar de u m a
constância d o s sons34 , d a s temperaturas, d o s pesos35 e enfim
dos dados táteis no sentido estrito, mediada ela também por
certas estruturas , certos " modos de aparição" dos fenôme
nos em cada um desses campos sensoriais . A percepção dos
pesos permanece a mesma quaisquer que sejam os músculos
que nela concorram e qualquer que seja a posição inicial des
ses músculos . Quando se levanta um objeto com os olhos fe
chados, seu peso não é diferente, e ele também não é diferen
te quer a mão esteja ou não carregada com um peso suple
mentar (e quer este peso aja ele mesmo por pressão sobre as
costas da mão ou por tração na palma da mão) ; quer a· mão
aja livremente ou, ao contrário , esteja amarrada de tal for
ma que apenas os dedos trabalhem ; quer um dedo ou vários
executem a tarefa; quer se levante o objeto com a mão ou
com a cabeça, com o pé ou com os dentes ; e enfim quer se
levante o objeto no ar ou na água. Assim, a impressão tátil
é " interpretada" levando em conta a natureza e o número
dos aparelhos postos em jogo e mesmo as circunstâncias físi
cas nas quais ela- aparece; e é assim que impressões em si mes-
O MUNDO PERCEBIDO 421