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19º CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICODRAMA

“A Humanidade no século 21”

“EU SOU DEUS”: O DEUS DE MORENO, SEGUNDO AS PALAVRAS DO PAI E SUAS


IMPLICAÇÕES PARA A SOCIATRIA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

ANETE ROESE

“A Quintessência desse raio de criatividade é Deus.”


(MORENO, 1992)

Resumo

Moreno considera que para mudar uma cultura é necessário antes mudar o conceito de
Deus. Partindo desta prerrogativa do autor e da polêmica afirmação Eu-sou-Deus, o
presente texto faz um estudo da ideia de Deus desenvolvida por Moreno na obra “As
Palavras do Pai” e verifica implicações para a práxis sociátrica no século XXI.
Palavras-chave: As Palavras do Pai; Jacob Levi Moreno; Deus

Introdução

A unidade da Divindade é compatível com a unidade da natureza. A


subdivisão das ciências entre Geometria, Astronomia, Biometria,
Antropometria, Sociometria e similares é artificial e transitória. Todas
elas consolidam-se na ciência mais ampla e universal: a Teometria.
(MORENO, 1992, p. 172)

O princípio, o Gênesis, da obra de J. L. Moreno é o reconhecimento de que a


Quintessência de tudo que capacita a criatura para a criação é Deus. Esse é o pressuposto
que faz desencadear um processo de criação espontânea que se torna uma grande obra
como a de J. L. Moreno – que continua em processo de criação até os dias de hoje. Sua
primeira obra, intitulada As Palavras do Pai, revela o processo inicial da criação de uma
teoria cujo eixo central é o complexo espontaneidade-criatividade. Nessa primeira obra,
Moreno apresenta os estatutos básicos nos quais estão alicerçadas as suas teorias
posteriores contidas na sua socionomia. Curiosamente a primeira, e emblemática, obra do
autor, intitulada “As Palavras do Pai”, tem um caráter profundamente teológico, e apresenta
os fundamentos de uma teoria cujo pressuposto inicial é Deus e o problema de Deus. Em
um tempo onde a ciência ocidental confronta agressivamente Deus e toda forma de religião,
“contra tudo e todos”, Moreno lança as raízes de uma ciência humana que inclui Deus
escrevendo uma obra que mantém Deus e a ciência em um mesmo contexto e numa
mesma teoria. A obra As Palavras do Pai apresenta esta possibilidade e formula as
implicações para se pensar a ciência sem a exclusão de Deus e assim propõe os eixos
iniciais da teoria socionômica, em especial a sociatria, na qual a ideia de Deus não está
excluída.
O presente texto se ocupa, pois, de analisar esta que foi a primeira obra do autor a
fim de compreender as bases originais de sua teoria, sobretudo, no que tange ao lugar de
Deus, e de Eu-Deus e a verificação das implicações de ser-Deus. O problema e a pergunta
que se coloca é como podemos compreender, solucionar e incluir esta questão de Deus e
esta obra na sociatria moreniana e quais interessantes e promissoras consequências desta
releitura para a práxis sociátrica no século XXI onde o problema de Deus, da religião e da
crise espiritual se impõe com vigor para a humanidade como um todo e para o ser humano
individualmente.
Quando me encontrei pela primeira vez com os textos de Moreno eu estava
procurando um conhecimento, uma teoria capaz de reunir um saber dialógico, um saber
capaz de fazer dialogar distintos campos da ciência, cuja capacidade de diálogo havia sido
duramente afetada pelo racionalismo científico das academias afiliadas à ciência moderna
desde o século XVIII. A minha questão era como possibilitar que a dimensão espiritual não
fosse excluída do contexto terapêutico e psicoterapêutico – onde pessoas buscam ajuda
para viver uma vida mais criativa, íntegra e equilibrada. Eu sabia que não era possível viver
uma vida íntegra excluindo uma parte do cosmos, ou seja, uma parte do que somos e uma
parte do todo que torna a vida humana possível – seja esta parte a dimensão física,
psíquica, social, espiritual ou ambiental. Foi neste contexto que eu me encontrei com a
socionomia de Moreno e o “Eu Sou Deus” de Moreno. Posteriormente, li várias obras do
campo da sociatria e muito mais tarde o intrigante texto “As Palavras do Pai”. Após várias
leituras desta e uma profunda sensação de proximidade com o que Moreno queria dizer me
levou a ensaiar uma hermenêutica desta obra, cujo texto mais amplo foi apresentado como
monografia de conclusão da Especialização em Psicodrama do Instituto Mineiro de
Psicodrama (IMPSI), em 2013.

As Palavras do Pai, a ciência, Deus e o mundo contemporâneo

As Palavras do Pai foi publicado na Alemanha em 1922 e traduzido para o inglês em


1941 e para o português em 1992. A obra é o fundamento da teoria socionômica de J. L.
Moreno. Nela Moreno fala de si como Deus, afirmando “Eu sou Deus” (MORENO, 1992, p.
55). Trata-se de uma obra de caráter existencial, onde o autor se debate com dilemas da
existência humana.
Ao se referir aos ensaios que escreveu sobre Deus antes da primeira guerra mundial
para a Revista Daimon intitulados Deus: o Criador; Deus: o amante e Deus: o cientista
comenta como a ideia – apresentada na revista na qual parafraseia um convite de Jesus
Cristo - “vinde a mim” – o intrigava, e que ele se perguntava sobre “quem é este mim?” e
que a questão subjacente era “será que eu não sou nada ou sou um Deus?” (MORENO,
1992, p. 9). “Deus é pura espontaneidade”, diz o autor (MORENO, 2006, p. 29).
Para estudar o modo como aparece Deus na obra As Palavras do Pai, para
compreender o conceito de Deus em Moreno é importante retomar seu percurso,
acompanhar o seu processo de criação teórica e verificar como ele escreve, qual o seu
ponto de partida, seu fundamento teórico e o contexto deste o qual escreve. Neste sentido,
faremos aqui uma leitura dialógica, enfocando, para os limites do espaço deste texto, alguns
elementos centrais da obra, recorrendo para tal aos fundamentos da fenomenologia, da
teologia e da hermenêutica teológica feminista. A fenomenologia postula a importância da
volta ao “mundo da vida” (Husserl, 2008) na ciência, o que significa fazer ciência tomando
em conta a realidade, a situação, o contexto. Para Moreno tomar Deus em conta é tomar em
conta o mundo da vida, pois Deus faz parte do mundo da vida e, portanto, deve ser tomado
em conta pela ciência (BELLO, 2006). A hermenêutica teológica feminista é crítica como
Moreno e faz uma releitura da imagem de Deus na cultura patriarcal e nos ajudará a
compreender as razões do Eu-Deus de Moreno.
Ao tratar da psiquiatria do século XX e refletir sobre a função dos universais, tempo,
espaço, realidade e cosmos, Moreno propõe que é preciso

levar em conta a realidade da vida propriamente dita, das vidas


diárias, sua e minha, das pessoas comuns, no que concerne à vida
que levamos em casa, em nossos negócios, em nossas relações
mútuas, e a todas as pessoas que nos afetam – nossos maridos,
esposas, crianças, patrões, professores, funcionários – e ao mundo
como um todo. (MORENO, 2006, p. 24)
A questão ou a função da realidade é de suma importância para o tema aqui
proposto, justamente porque o lugar de Deus tem sido algo de difícil solução na ciência
moderna, em especial na psicologia e na teologia inclusive. Nesta última, no que se refere à
teologia ocidental relativa às grandes religiões Deus não raro tem sido relegado aos céus –
simbolicamente distante do mundo real. Na ciência Deus tem sido negado como
possibilidade real. Por esta razão a ideia de Moreno sobre Deus é tão inusitada – pois
parece colocar Deus de volta ao cenário, ao palco da realidade do ser humano. Agora,
podemos nós ver se lidamos com esse „fato teórico‟ ou com essa realidade. E se essa
realidade de Deus pode ser colocada, como pode ser colocada ou encontrada no processo
psicoterapêutico. A obra de Moreno é profunda e rara, pois inova no campo da ciência ao
possibilitar pensar para além da ciência positivista para a qual não é possível pensar Deus
no mundo.
No livro Psicodrama. Terapia de ação & princípios da prática (2006) Moreno se refere
ao texto Paz Universal em Nossos Tempos, apresentado em 1968, no qual reflete sobre a
realidade daquela época – final dos anos 60. Nesses tempos, diz, a humanidade se volta
para a ciência e espera dela a solução milagrosa, que antes se esperava da religião ou da
política, que traga tudo: paz e harmonia, sentido, justiça, cura para as doenças; respostas
para a superpopulação, para a escassez de alimentos, para a falta de moradia; que produza
máquinas para facilitar o trabalho e trazer conforto. No entanto, a vida humana está cada
vez mais complicada em vista das constantes mudanças, e o isolamento do indivíduo que
fica aprisionado em sua liberdade custa cada vez mais caro.
Edgard Morin, teórico francês contemporâneo, publica em 2011 o livro Rumo ao
Abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade, no qual ensaia uma interpretação sobre o
destino da humanidade segundo as manifestações e fenômenos observados na civilização
ocidental moderna e atual. A era moderna, segundo o autor, revela uma imensa capacidade
de invenção, criação e desenvolvimento, sobretudo no século XX. Isso se verifica no campo
da ciência – dimensão predominante da modernidade, no desenvolvimento da técnica, da
economia e do capitalismo. Há que se observar, no entanto, segundo Morin, que,
simultaneamente à capacidade inventiva, a modernidade também é a era de grandes
contrastes e destruições. Há um aprofundamento da miséria e um crescimento do
desenvolvimento de instrumentos que facilitam e que dinamizam a vida humana. A própria
ciência, tanto será responsável por grandes descobertas na medicina com suas tecnologias
de diagnóstico e de cura de doenças, quanto leva ao desenvolvimento de tecnologias de
morte.
Segundo Morin (2011), a ciência clássica até o século XX estava calcada em dois
princípios: o da redução e o da disjunção. O primeiro compreendia que para conhecer era
necessário reduzir o todo às suas partes. O segundo compreendia que era necessário
separar os conhecimentos entre si. Ambos os procedimentos estão esgotados, diz o autor,
pois não são capazes de apreender a complexidade, o que levou a ciência a ignorar o
contexto, a ligação entre os elementos e à incapacidade de compreender fenômenos globais
e planetários.
O desenvolvimento técnico, da mesma forma, colocou a humanidade diante de um
dilema: a técnica tanto facilitou a vida cotidiana da humanidade, quanto submeteu os
trabalhadores a lógicas produtivas padronizadas, repetitivas, que, junto com o furor do
desejo de lucro até o momento atual produzem escravidão e submissão. A técnica, a lógica
e a tecnologia levou a uma submissão da sociedade à máquina artificial. Morin entende que
estas contradições da modernidade chegaram a um “grau paroxístico”. Segundo este autor
contemporâneo, “tudo se passa como se houvesse uma agonia, no sentido original da
palavra, ou seja, uma luta entre as forças da vida e as forças da morte” (MORIN, 2011, p.
28).
Trata-se de uma situação de crise de valores na qual está imersa a humanidade
ocidental de modo crescente desde que a modernidade, com seus novos valores como a
racionalidade, a individualidade, a liberdade se instalam no ocidente. Segundo Morin (2011),
o abismo para o qual a humanidade contemporânea caminha se verifica na “fadiga, abuso
de psicotrópicos, drogas... por meio da destruição das solidariedades tradicionais, o
individualismo também gera solidão, tristeza” (MORIN, 2011, p. 27).
Para Frankl (2003) há sinais evidentes que corroboram a sua ideia da grande crise
que afeta a humanidade nesta era. Criou-se um imenso vazio existencial, uma neurose
sociogênica, coletiva, que é consequência de uma sociedade industrializada que cria
desarraigamento e alienação de tradições e valores (FRANKL, 1992). Os sintomas básicos
desta neurose coletiva, que o autor também considera a patologia do nosso tempo, são três:
depressão, agressão e adicção. Além destes Frankl também destaca o elevado índice de
suicídios e a superficialidade com que são vividas dimensões tão íntimas como a
sexualidade e a espiritualidade. Tudo isso, segundo o autor, revela o profundo desespero e
desânimo neste mundo. Frankl pergunta se seria possível “falar, à vista desses fatos, de
uma „neurotização da humanidade‟, de um processo crescente de „adoecimento‟ espiritual
da sociedade” (FRANKL, 2003, p. 10). Caracterizar a situação de sofrimento da humanidade
na contemporaneidade com estes sintomas nos parece sobremaneira interessante. Neste
contexto, de modo muito aproximado ao que diz Frankl, por sua vez, Morin aponta a “crise
da alma, do espírito. (...) Como se a civilização material criasse um vazio espiritual e um
divórcio entre corpo e espírito do qual provém a obsessão pelo emagrecimento que
assombra as populações obesificadas?” (MORIN, 2011, p. 27).
Para Moreno (2006), em épocas como esta, onde as respostas ou os “mensageiros”
não vêm mais da religião, da ciência ou de governos, temos a necessidade de avançar
numa ciência da paz – que deve contemplar procedimentos terapêuticos que tenham como
objetivo a humanidade inteira. Nesta época turbulenta precisamos, diz Moreno (2006), de
uma combinação de ciências capazes de alcançar as pessoas, sua inteligência e sua
energia não utilizadas. As novas ciências das relações humanas, diz Moreno (2006), como a
socionomia, trouxeram novas esperanças porque despertaram forças que beneficiam as
pessoas. Esta é uma visão de ciência inovadora, é uma ciência que ultrapassa o paradigma
estático, das áreas de produção de conhecimento que não dialogam com outros campos do
saber.
Na Idade média, segundo Moreno (2006), quando os verdadeiros santos, os líderes
do espírito começaram a desaparecer, quando a vida perdia o significado e a qualidade
espiritual, e a desesperança e carência espiritual começa a tomar conta, os artistas com sua
arte socorreram a religião. Cristo foi reproduzido em pinturas, Michelangelo reproduziu
Moisés, Da Vinci criou a Mona Lisa e Bach criou sua música. “Em nosso tempo (...) não há
heróis vivos com que as pessoas possam se identificar. O homem é solicitado a se voltar
sobre si mesmo” (MORENO, 2006, p. 16). Esta época exige do ser humano uma tarefa
árdua – que é a de “reconhecer o significado do seu encontro vivo” (MORENO, 2006, p. 16).
Quer dizer, o ser humano está sendo convocado a se relacionar de modo vivo, direto com
as pessoas com as quais convive e com as quais se encontra no dia-a-dia. Este encontro
com o outro, esta relação viva, implica em um valor “imortal e inquestionável” (MORENO,
2006, p. 16). O Psicodrama surge, então, como estas artes surgiram em épocas difíceis,
promovendo este encontro do ser humano consigo mesmo e com o outro. Este „outro‟
certamente inclui o „Outro‟, o divino, o Criador.
Moreno propõe ir para além da psico ou sociodinâmica da sociedade humana. Para
ele o ser humano é um ser cósmico. Em todos os tempos podemos verificar sinais da busca
ansiosa da humanidade para compreender seu lugar no universo, para compreender a
função do criador deste universo e sempre procurou controlar as forças deste universo. Os
mitos, as religiões, as fábulas e os preceitos presentes nas grandes religiões são sinais da
tentativa do ser humano de se colocar sob sistemas invisíveis de valores.
Segundo Moreno, as técnicas de realidade suplementar que compõe a socionomia
podem fazer pelo ser humano o que antes as fábulas e os mitos faziam. A função „cosmos‟
deve ter para o protagonista um valor existencial e de experiência. Propõe que os
fenômenos cósmicos podem compor o processo terapêutico por meio dos inúmeros
métodos do psicodrama. “Um método terapêutico que deixe de lado essas enormes
implicações cósmicas e o real destino do homem é incompleto e inadequado”, diz
(MORENO, 2006, p. 32). No cosmos psicodramático é possível transcender as dimensões
anatômicas, fisiológicas, biológicas. Ao tratar sobre a psicopatologia e a psicoterapia do
cosmos, Moreno diz que “Um dos maiores dilemas de nossa época é o homem ter perdido a
fé num ser supremo em muitas vezes num sistema de valores que oriente sua conduta. Será
o universo governado apenas pelo acaso e pela espontaneidade?” (MORENO, 2006, p. 33)
A religião moderna abandonou o “super-Deus cósmico” e o substituiu por um homem
simples chamado Jesus Cristo que se auto-intitulava Filho de Deus. O que era mais
admirável nele, segundo Moreno, era o fato da “incorporação” e não seu saber intelectual. E
é esta incorporação uma questão central, axiomática e universal no psicodrama. “Cada um
pode representar sua versão de Deus através de seu desempenho e desta forma comunicar
sua versão aos outros” (MORENO, 2006, p. 34).
Em As Palavras do Pai, Moreno apresenta um modo de ser de Deus, um modo de
Deus se revelar e um modo de relacionar-se com Deus e, sobretudo, o ser-Deus possível
para cada criatura. Moreno dialoga sobre a revelação de Deus e o que isto implica para o
ser humano como ser que herda de Deus a centelha divina da criação – a capacidade
criativa. A intenção de Moreno ao dizer “Este é o meu mandamento: dai ao universo um
Deus” (MORENO, 2006, p. 49) indica para uma tentativa de resgatar o divino que há na
criação, no universo, no ser humano.
As suas brincadeiras quando criança, os posteriores encontros com as crianças nos
jardins, seu trabalho com pessoas refugiadas e com mulheres prostituas, a Casa e a
Religião do Encontro levaram Moreno a acreditar profundamente numa idéia de Encontro de
transformação. De fato, numa forma de salvação da pessoa, no sentido teológico, que se dá
através do que Moreno intuía ser algo como “um encontro com a Divindade, o Criador,
durante o drama” (MORENO, 2001, p. 86), o que o levou a desenvolver a teoria
socionômica.

As Palavras do Pai

A chave para o conceito misterioso da Divindade que é oferecida


neste livro consiste em que Deus deve ser concebido como o
Criador, totalmente saturado de espontaneidade e criatividade.
(MORENO, 1992, p. 172)

Na apresentação do livro As Palavras do Pai Moreno se refere à escrita do texto do


livro, cujo título original era Das Testament des Vaters (O Testamento do Pai), como uma
“experiência transcendental” (MORENO, 1992, p. 9). Moreno inicia questionando se a
pergunta sobre Deus ainda seria válida na “atualidade”. Ele crê que sim, tanto é que escreve
uma obra na qual se ocupa da problemática de Deus. Em As Palavras1 do Pai2 se verifica
um fenômeno – uma voz3 fala e esta voz é a voz de Deus, Deus-Eu.

1
O autor do livro explica o que quer dizer com As Palavras, dizendo que “As „Palavras‟ deste livro são
reflexões, reverberações de uma voz presente que está falando e que é possível ser ouvida através do Universo.
(...) As palavras deste livro são as palavras do próprio Deus e o sentido delas pode ser captado e apresentado em
uma linguagem humana” (MORENO, 1992, p. 124).
2
Moreno explica porque As Palavras são Palavras do “Pai” dizendo que se trata de “uma metáfora que
representa um conceito genealógico: a cadeia de ancestrais que se diferencia do conceito de „Criador‟”
(MORENO, 1992, p. 123). Portanto, neste caso, o termo Pai não representa um humano, mas se refere a toda
cadeia de ancestrais humanos e não humanos e contém uma “co-identidade com a paternidade total” (MORENO,
1992, p. 123) de todo Universo em todos os tempos e, ademais, não quer remeter a uma identidade masculina de
Deus. Pai, neste caso é utilizado como sinônimo de Deus. É uma referência a Deus que aparece no Antigo
Testamento e no Novo Testamento, sendo que passa a ser usada com frequência por Jesus Cristo e já antes de
Cristo denotava uma nova relação com Deus, substituindo a santidade absoluta e a distância do Deus dos Céus
de Moisés por uma imagem de Deus mais afetiva e próxima. Pai será, para o autor do livro, simultaneamente
Deus Pai, Criador e o Deus de Amor.
3
A voz que é ouvida não é uma alucinação, tampouco traduz palavras humanas. É uma voz que se manifesta no
presente e é do presente, pois traduz fatos do passado (MORENO, 1992). A voz que se ouve “é vivenciada em
Moreno explica que em As Palavras do Pai o autor é apenas um veículo de Deus,
por meio do qual Deus fala de si na primeira pessoa. Moreno compara este acontecimento
da encarnação de Deus numa criatura comum com a autenticidade do próprio Deus que se
manifesta onde e como quer. A imaginação teológica autêntica, segundo Moreno, também
segue os caminhos da autenticidade, assim como a imaginação artística, quando fica livre
das implicações antropomórficas de Deus de tal forma que, sendo o dramaturgo de Deus,
consegue fazer com que Deus seja inteligível para todas as pessoas. Para Moreno, neste
texto os princípios teológicos convencionais foram invertidos, pois Deus não é Ele, mas Eu e
se presentifica no aqui-e-agora, não apenas fala, mas atua, cria, manda, julga sendo Eu. Ou
seja, é o Eu-Deus, Deus encarnado, manifesto no aqui-e-agora que realiza. Esta concepção
de Moreno é importante para entendermos que Deus não é algo, um ser, fora da criatura
que realiza, cria, faz, mas a própria criatura que como ser divino assume a sua divindade e
age responsavelmente no mundo assumindo seu papel. “Deus está presente (...) Ele é o
absoluto que nos fala” (MORENO, 1992. p. 19).

A Divindade

Moreno explica que no início da primeira guerra mundial escreveu três ensaios sobre
Deus e as perguntas que fazia a si mesmo giravam em torno do quem sou eu neste mundo.

“‟Quem é esse mim? Um nome? Um pequeno pedaço do nada que


se vai como um arco-íris no céu e não retorna jamais? Ou seria esse
mim a coisa mais real que existe, o Criador do mundo, o primeiro e o
último de todos os seres e de todas as coisas que existem? Em
outras palavras, será que eu não sou nada, ou sou um Deus?”.
(MORENO, 1992, p.9)

Segundo Moreno (1992) a busca da resposta para a questão sou eu nada ou sou eu
Deus foi o dilema que ele levou consigo para o resto da vida, e que posteriormente
descobriu que todos os seres humanos se ocupavam deste dilema, e que sofrem com a
dúvida e com o medo gerado pelas ilusões que se sucedem e que se traduzem em um mal
estar. Na busca pela resposta Moreno conta que não a encontrou e que concluiu a
inexistência da mesma. A inexistência da resposta, no entanto, não o levou a uma quietude
da alma. Ao contrário, as perguntas permaneceram e continuaram rondando, afinal, saber-
se nada certamente seria sofrido, e saber-se o centro do mundo, da criação, do cosmos
implicaria em algo.
Ser o centro do cosmos parece ter sido a conclusão de Moreno. Esta posição
realmente parece a mais cômoda, egocêntrica, excêntrica ou megalomaníaca – como viria a
ser classificada posteriormente por seus críticos. No entanto, Moreno tira sérias e profundas
consequências desta “certeza” existencial. Esta certeza de ser o centro do cosmos, o que
posteriormente ele vai afirmar como o mesmo que ser Deus ou Eu-Deus. A primeira
conclusão que Moreno aporta sobre esta constatação de ser o centro do cosmos é que esta
situação impõe uma enorme responsabilidade ao ser humano.
O que diferencia Deus do ser humano é que Deus é o “Ser portador da máxima
espontaneidade e Ele é o Ser cuja espontaneidade transformou-se totalmente em
criatividade” (MORENO, 1992, p. 137). Em Deus a espontaneidade e a criatividade
chegaram ao mais elevado nível. Ainda assim não se pode pensar em qualquer forma de
reserva de espontaneidade, como se o Ser divino fosse capaz de fazê-lo. É preciso
considerar sempre a “espontaneidade „livre‟, evocada e criada por ser, num instante, como
um produto do momento, em outras palavras, é mais valiosa que todos os tesouros do

momentos de extraordinária lucidez e com lampejos de intuição. Mais que em qualquer outro momento, ela se
faz sentir em momentos de uma atrevida criatividade, em atos criativos que parecem transcender a qualquer
origem pessoal e humana e em momentos de amor” (MORENO, 1992, p. 125).
passado, dos „momentos‟ passados” (MORENO, 1992, p. 137). Um processo de
conservação da criatividade espontânea levaria a espontaneidade à inércia, ela já não
produziria mais nenhum efeito, já não seria manifestação do momento, já teria perdido o
passo da “sincronicidade temporal com o Universo” (MORENO, 1992, p. 137). Ou seja, a
espontaneidade é uma manifestação da perfeita sintonia do ser com o Ser e o Universo.
Não há conserva de espontaneidade e criatividade na Divindade. Não é possível pensar que
Deus só criou no início dos tempos e agora vive da reserva de espontaneidade. A Divindade
está em constante status nascendi, em contínuo estado de nascimento (MORENO, 1992).
A Divindade é a referência para que possamos marcar em uma escala axiológica os
níveis de espontaneidade e criatividade, pois é Ela que alcança o grau mais elevado se
pensarmos em dois extremos de espontaneidade – o mais elevado grau de espontaneidade
em uma ponta e a espontaneidade nula na outra ponta, ou seja, a conserva cultural.
O texto sagrado judaico-cristão „Gênesis‟, sobre a criação do mundo, é central para a
teoria de Moreno. É seguindo a premissa da Divindade Criadora e da criatura cocriadora –
que carrega a centelha do divino, agregado à vivência religiosa e espiritual do próprio
Moreno, que o autor postulará a noção de que “a essência da nossa existência é a fome de
criar, não no sentido intelectual, mas como uma força dinâmica, uma corrente de
criatividade” (MORENO, 1992, p. 23). E Deus é a “quintessência desse raio de criatividade”
(MORENO, 1992, p. 23). A presença de Deus significa uma coexistência de Deus no
cotidiano do ser humano, nas suas alegrias e tristezas.

A poesia religiosa e espiritual4 de Moreno

Na sequência analisaremos poesias de As Palavras do Pai verificando os temas que


nelas aparecem a fim de investigar os referenciais que o autor ensaia nestes textos. Para a
finalidade do espaço deste texto será possível analisar apenas algumas poesias, mas que
indicam para questões centrais do pensamento de Moreno.

A poesia de Moreno e seu conteúdo

Moreno, no seu papel de porta voz de Deus, escreve várias poesias nas quais Deus
fala por meio dele. Este é o entendimento que o autor de As Palavras do Pai dá ao que está
escrito no livro. A primeira sequência de poesias do livro As Palavras do Pai é intitulada de A
Proclamação.
No trecho I o autor introduz a afirmação “Eu sou Deus, o Pai, o criador do Universo”
(MORENO, 1992, p. 37). Nesta o autor reafirma que quem escreve é Deus, quem se
manifesta ou se proclama por meio destas palavras é Deus. Na parte II afirma que essas
palavras “pertencem a todos” (MORENO, 1992, p. 37), por meio do que diz que Deus pode
se manifestar em qualquer ser e que qualquer ser pode ser portador das palavras de Deus.
O princípio deste entendimento mostra o que Moreno evidenciará sempre em sua trajetória,
que é a fé em cada criatura humana, que mesmo adoecida psiquicamente, poderá
manifestar ou voltar a manifestar a sua centelha divina porque toda criatura é portadora do
divino e de sua criatividade.
Na parte VIII, está dito: “Eu sou um Deus do presente. Minhas palavras são palavras
de poder. Pertencem ao presente” (MORENO, 1992, p. 34). Nesta “proclamação” o autor
busca atualizar a imagem de Deus, afirmando que Deus não é apenas um Deus do passado
e que suas palavras continuam válidas e atuais. Palavras, aliás, não só palavras no sentido

4
O espiritual, aqui, não se refere a um sentimento religioso (BOFF, 2006). Trata-se da dimensão que constitui o
ser humano e é uma potencialidade e capacidade de transcendência – que permite ao ser humano ver além das
coisas, compreender o sentido mais profundo das coisas, é a capacidade de ir além, de se implicar com as coisas
e no mundo. É também a sua capacidade racional, ética e valorativa – que é única da criatura humana diante das
outras criaturas. Espiritualidade, neste contexto de compreensão, é um “modo-de-ser” onde todas estas
potencialidades de transcendência estão presentes (BOFF, 2012).
restrito do termo. Palavra é símbolo, conforme a parte IX (MORENO, 1992, p. 40). O
sentido dela não é ela em si, a função dela é mostrar um caminho em direção a Deus, em
direção à substância, ao substancial, a Deus.
A poesia de As Palavras do Pai não se restringe a um conteúdo proveniente de uma
única religião. Seu conteúdo ultrapassa uma religião específica, ultrapassa o próprio
conteúdo religioso e ultrapassa a imagem de Deus das grandes religiões. Quando Moreno
se refere ao Pai, trata-se de um judeu que recorre à imagem cristã de Deus, cuja referência
a Deus como Pai é inovadora a partir de Jesus, que aproxima Deus da casa, do humano,
referindo-se a Deus como um Pai amoroso e tirando Deus do alto dos céus. Por outro lado,
Moreno recupera as imagens não antropomórficas de Deus presentes no judaísmo e no
texto sagrado da comunidade judaica, a Torá, quando permanece com a imagem de Deus
como Criador do Universo, e recupera a imagem de um Deus criativo. Ao mesmo tempo,
parece que podemos encontrar em Moreno uma forma de Deus que vai além daquelas e
remete a uma imagem mais oriental de Deus. O Deus que está em tudo, quando diz:

Eu sou o arqueado
que se curva ao te levar.
Eu sou a mesa posta
Para te alimentar.
Eu sou a semente que cresce
Para te multiplicar.
Eu sou o seresteiro
que canta para te alegrar.
Eu sou o passarinho
que voa a te inspirar.
Eu sou a estrela
que brilha ao te coroar. (MORENO, 1992, p. 42).

A imagem de Deus que aparece nas poesias de Moreno ultrapassa ainda aquela que
o próprio Moreno descreve analiticamente. Na poesia XIV Deus é quem “necessita mais de
ajuda”, o “Eu” necessita de ajuda e é quem deve ser “completado por todos” (MORENO,
1992, p. 43). Ou seja, não há Deus sem Eu, não há Deus sem criatura. Deus pede que suas
criaturas se aproximem do Eu quando diz “Cheguem mais perto de Mim, circulem em volta
de Mim: o Criador” (MORENO, 1992, p. 44). Ou seja, aproximar-se de Deus, do Mim e do
Eu é o mesmo que aproximar-se do si-mesmo, de si-mesmo, é Ser ou ser, tornar-se o que
se é, é realizar o divino em mim, revelar o divino que existe, o Criador (TILLICH, 1967). E
mesmo sentido prossegue dizendo na poesia XVIII e XIX:

Esta é a minha oração:


Que todos os seres possam me encontrar. (...)
Oxalá que todos os seres nasçam pelo menos uma vez! (MORENO,
1992, p. 45).
Este é o meu mandamento:
Não deixes de nascer,
e não Me deixes sem nascer. (MORENO, 1992, p. 46).

A oração XX tem um conteúdo social e é uma reinterpretação das bem-aventuranças


apresentadas no principal discurso ético de Jesus, no Evangelho de Mateus. E na sequência
há um chamado para que a criatura se volte ao Criador, ao dizer: “Oh! Formai vossos
círculos mais próximos a Mim. O enigma do mundo não se resolve com soluções”
(MORENO, 1992, p. 49). E prossegue proclamando que este universo precisa de um Deus.
“Este é o meu mandamento: Dai ao Universo um Deus. Entregai o Universo ao criador, a
Mim” (MORENO, 1992, p. 49). Certamente de um Deus que responde às questões
existenciais atuais e que se apresenta de modo absolutamente criativo, que recria as
situações antigas. Isto dito poeticamente na poesia onde o Eu fala diz que ficar de joelhos
não é a única forma de adoração. Adorar também se pode ficando na ponta dos pés,
flutuando ou voando, segundo a poesia XXIII (MORENO, 1992). Este Deus que se
apresenta nas Palavras do Pai com “Eu” ultrapassa limites de nome, raça, credo... e orienta:
se alguém pergunta a ti sobre o teu nome, a tua raça, o teu credo “olha profundamente
dentro de tua alma e diz com voz forte: Não há nenhum nome em minha alma” (MORENO,
1992, p. 50), nenhum credo, nenhuma raça, pois o que vive na minha alma é somente o Pai.
O que Deus-Eu diz ou solicita à criatura é que ela permaneça na cercania de Si, do Eu, para
que não se perca da sua proximidade com Deus o Eu e que não se afaste da palavra
original que dá vida.

Agarra-te, tenazmente, à canção


que eu cantei dentro da tua alma,
agarra-te forte para sempre àquilo
que Eu cantei dentro da tua alma.
Sê sincero com a tua alma
e sê, para sempre, o Meu filho. (MORENO, 1992, p. 50).

Em outro trecho intitulado Teologia da Divindade: um comentário, Moreno aprofunda


a ideia de Deus sem credo. Explica que a Teologia é fundamentalmente a ciência da
Divindade, e que é a isso que a obra se atém, pois não se ocupa outros fenômenos
religiosos dos quais muitas vezes também se encarrega. Em As Palavras do Pai Deus está
sem religião, pois “aqui está Deus em si mesmo” (MORENO, 1992, p. 131). Segundo
Moreno (1992), Deus está para além das religiões, das igrejas e dos que estão fora destas e
Deus está em todas e com todos. Assim, a organização das instituições religiosas e a
história das religiões não tem relação com a manifestação de Deus. “As experiências que a
Divindade tem de si mesma, seus pensamentos e fatos devem ser separados de todos os
outros seres e de suas formas de existência” (MORENO, 1992, p. 132).
A segunda sessão de poesias de As Palavras do Pai é intitulada A Criação do
Universo. Ela inicia da mesma forma que a primeira sessão, com a afirmação “Eu sou Deus,
O Pai, O Criador do Universo” (MORENO, 1992, p. 55). E na sequência temos uma
reinterpretação do texto da criação do Universo segundo o texto sagrado judaico cristão,
Gênesis, que relata a criação do mundo. O primeiro aporte, na poesia XXVI, se introduz o
conceito de que no início Deus e Eu éramos o mesmo: “No princípio, já existia Deus. Deus
era Eu e Eu era Deus” (MORENO, 1992, p. 55). No mais tudo era vazio e “Então Eu disse:
Façamos um criador, e um criador apareceu. Eu disse: Que Ele crie um universo, um grande
vaso de ser, e o Universo começou a tomar forma” (MORENO, 1992, p. 56). Nesta recriação
do texto judaico-cristão original da criação um Criador existia e um criador é criado e passa
a criar junto com o Criador. Há, portanto, um Criador, na maiúscula, e um criador, na
minúscula? Podemos pensar nesta hipótese tendo em vista a parceria Criador-criador, na
ideia moreniana de uma cocriação, onde o ser humano é participante e cocriador
responsável pelo Universo.
Depois de tudo criado há o descanso da divindade. Mas este descanso, em As
Palavras do Pai, ao contrário do texto de Gênesis, é interrompido com uma voz que grita,
vibra e chora, segundo a poesia XXXIII, e que chama para que a divindade desperte. Era o
próprio Universo com nostalgia do divino, chamando. E o Eu levanta e percorre o Universo
criado passando pela essência de cada coisa, segundo a poesia XXXIV. Quase ao final
desta viagem pelo Universo criado um frio foi sentido “entre Mim e as coisas que Eu tinha
criado” e este frio era o prenúncio de uma distância entre o Eu e a criação. Um terror invadiu
o Eu, e a fome e o temor ameaçavam tudo o que havia sido criado (MORENO, 1992). Havia
um desespero profundo no universo que foi sentido no profundo da alma da divindade, mas
que era também o “o começo de uma coisa nova. Era um sentimento novo” (MORENO,
1992, p. 60). A criação chamava o Eu de volta à criação e a resposta foi “uma suprema e
silenciosa essência” (MORENO, 1992, p. 61) nomeada amor.
O que se apresenta nestas poesias mencionadas por último é, de fato, algo de uma
profundidade que alcança um caráter sagrado pela substância que as suas palavras
contemplam. Há, pois, um universo que clama, que está em desespero, pois tem nostalgia
do Criador porque dele se distanciou. Que sente o frio da distância entre Criador e criatura e
o temor e a fome que assolam a criação toda. Um desespero e terror se manifestam na
alma da própria divindade, que responde com amor. E então o amor emana, exala, se
declara por tudo, por toda a criação, Esta descrição é a subjetividade do fenômeno da
distância entre a criatura e seu EU nos tempos atuais. Se Moreno busca atualizar Deus, o
autor o faz assim de modo poético, sublime, subliminar também e há que se capturar isso.
Esta sutileza é fundamental que seja capturada também nos processos de sujeitos e grupos
que estão em busca do Eu. Onde se pode alcançar o Eu? Segundo Moreno e Zerka, na
realidade suplementar criada para esta finalidade, no contexto da sociatria.
Em seguida, segue uma sessão intitulada O Criador. O autor inicia a sessão da
mesma forma como as outras declarando “Eu sou Deus, o Pai, o Criador do Universo”
(MORENO, 1992, p. 65). No poema XXXVI todas as criaturas reconhecem o Criador, o ser
humano, os bois, os cavalos, os pássaros, os que já estão na sepultura, os anjos, os sóis,
as luas, as estrelas. Qual é a origem do Criador? O Criador responde no poema XXXVIII “O
primeiro criou o último e o fim criou o começo. Eu criei o mundo, e, portanto, Eu devo ter
criado a Mim mesmo” (MORENO, 1992, p. 68). Aparece neste poema uma resposta do
autor a uma questão existencial da criatura em todos os tempos: se eu vim de Deus e se
Deus criou tudo, de onde veio Deus? Depois, no XXXIX, afirma que ninguém O criou: “Eu
sou o Criador e ninguém é Meu criador” (MORENO, 1992, p. 69). No poema, XXXVII, e nos
subsequentes, o Criador se apresenta, se explica, se dá a conhecer, se iguala à criatura e
se diferencia dela. Diz: “Eu sou o Pai da Minha mãe e do Meu pai” (MORENO, 1992, p. 67).
No XL, contrapõe: Eu, dizendo “Eu sou Deus. Eu não sou o Deus desta classe ou daquela
classe, Eu sou Deus” (MORENO, 1992, p. 69), e no XLLIX diz: “Eu não sou um homem. Eu
não sou uma mulher. Eu sou Deus” (MORENO, 1992, p. 71). Aqui o Criador se apresenta, e
não é possível que a criatura o defina. Deus é. A criatura fala por si, e “Somente Eu falo por
todo o universo” (MORENO, 1992, p. 70). A melhor forma de entendimento desta divindade
talvez seja o que ela diz no poema XLVIII: “Eu sou. Eu estou Me tornando” (MORENO,
1992, p. 71). Trata-se de que Deus está em processo, a divindade mesma está em criação.
Ela cria e se cria a sim mesma: “com o fim de criar-me a Mim mesmo, eu tive que criar todo
o universo também” (MORENO, 1992, p. 95).
Esta é uma forma importante para compreender a sociatria de Moreno e pensar a
realidade suplementar, pois ela é espaço de onde Deus/Eu está se tornando. Ela é lugar
onde Deus está sendo. “Onde Eu estou, ali, está o meu trono. Onde Eu estou, ali, está o
céu” (MORENO, 1992, p. 70). Desta maneira o autor de As Palavras do Pai vai dando forma
à sua teoria, criando a sua Religião do Encontro, o seu Teatro, o Psicodrama, sem excluir
Deus, mas, também, sem silenciar Deus. Repensar a teoria moreniana a partir dessa obra
parece que implica em incluir Deus. Há aí uma responsabilidade, cuja tarefa é árdua.
Se nos colocássemos como cocriadoras de Moreno talvez poderíamos hoje pensar
que Moreno sempre estava, até o fim de sua vida, criando na presença de Deus e
consciente desta presença cocriadora e parceira. O poema LII remete a isso, quando diz “Eu
venho, sem ser convidado e sou uma inesperada ajuda. Eu sou toda a constância”
(MORENO, 1992, p. 72). Criador e criatura co-existem, não há um sem o outro: “O que seria
de ti, se Eu não existisse? O que seria de Mim, se tu não existisses?” (MORENO, 1992, p.
92); “Eu preciso de companhia, companhias” (MORENO, 1992, p.93), diz o Criador. “Cada
homem é um pensamento de Deus. Aquele que mata um homem mata um dos Meus
pensamentos” (MORENO, 1992, p. 102).
Se Deus não está no céu, mas o céu é onde está Deus, um novo problema se
coloca. Pois, então no céu não há apenas felicidade. Há uma nova inversão de valores aqui.
Deus sofre. O poema LXI atesta que “O Pai não pode voltar para o Céu, porque a terra está
coberta de tristeza” (MORENO, 1992, p. 76). O poema LXII complementa: “Aquele que
pensa que o céu é cheio de alegrias, não conhece o céu” (MORENO, 1992, p. 77). Há dor
de pai e de Pai. “Oh! Qual seria a dor do Pai? Qual seria a dor do céu? (...) Cada uma das
dores é a Minha dor” (MORENO, 1992, p. 78). A subjetividade de Deus é atravessada por
sentimentos e, então, também sofrimentos. Se Deus sofre. E o sofrimento não é imposto por
Deus e não afasta a criatura de Deus. Há uma cumplicidade plena e necessária, que ao não
se realizar causa sofrimento no Criador e na criatura. Os poemas LX até LXXVII são
grandes lamentos de Deus diante do sofrimento, da dor, da distância criada entre criatura e
do Criador. Por isso o Criador insiste: “Ninguém voltará a rir de novo na terra ou nas
estrelas, se Eu já não rio” (MORENO, 1992, p. 79); “Noite e dia Eu ouço gritos por ajuda. (...)
Eu julgo, apoio, curo ao enfermo, sem descanso, noite e dia” (MORENO, 1992, p. 80). E o
tema da responsabilidade vem à tona neste contexto, e a criatura é interrogada:

Vê o que tens feito tu a Mim!


Acaso Eu vim ao mundo para enterrar-te?
Sou Eu o portador da tua felicidade?
És assim tão anônimo que Me responsabilizas por tua felicidade?
(MORENO, 1992, p. 81).

A decepção de Deus diante da sua criatura é patente. A irresponsabilidade desta é flagrante


e a divindade está frustrada:

Em vão, a Minha dor tem me arrastado


para fora do céu.
Em vão, tenho ficado contigo,
no perigo.
Em vão, Me tenho descido
para encontrar-te a ti. (MORENO, 1992, p. 81).

Há, portanto, uma divindade que tem compaixão, que não é alheia à dor da criatura.
Ou seja, a Divindade se implica no sofrimento do outro, se responsabiliza pela dor. Esta é
uma nova imagem de Deus que deve afetar a criatura.
“O princípio do Universo é a criatividade” (MORENO, 1992, p. 28). Há valores que
jamais funcionariam se fossem impostos pela força, tais como a caridade, a autoridade, a
sabedoria. Eles só emanam por meio da espontaneidade. Ora, se “Deus é pura
espontaneidade” (MORENO, 1992, p. 29), a manifestação espontânea revela Deus. Por
isso, o mandamento, segundo Moreno é “‟Seja espontâneo!‟” (MORENO, 1992, p. 29). Aqui
temos uma importante forma do divino, segundo o que podemos depreender de Moreno.
Esta ideia nos ajuda a compreender que o divino na concepção moreniana tem sua
revelação ou manifestação na espontaneidade. Encontramos, no entanto, grandes
empecilhos, especialmente na cultura ocidental para emplacar uma nova ideia de Deus cuja
centralidade seja reconhecida como espontaneidade. Moreno acusa o “atraso teológico”
desta cultura, incapaz de adaptar o conceito de Deus às necessidades deste tempo de
grandes mudanças no mundo, como o responsável pelo grande “mal-estar de todo o nosso
sistema atual” (MORENO, 1992, p. 30). A imutabilidade do conceito de Deus, que prende
consigo valores não ajustados à época é a razão de muitas guerras, conflitos e discórdias
entre nações e povos. Por esta razão, o conceito de Deus é a questão central a ser
enfrentada em qualquer sociedade que almeja uma profunda mudança no sistema de
valores (MORENO, 1992).
Moreno desenvolve sua teoria da criatividade analisando o processo de criatividade
da Divindade e o conceito do Criador. A criatura e o Criador encontram-se em diferente
situação enquanto criadores. A divindade não é afetada pela ansiedade de criar ou de
conservar, ela não repete criação alguma, não há sequer planejamento de repetição de uma
criação anterior que fosse perfeita e em sua “cadeia de atos criativos” não há modelo que
seja copiado de forma idêntica. Não há montanha, não há pedra, não há réptil, não há ser
humano que se repita. Ainda que crie vários seres da mesma espécie não há nenhum ser
que seja igual ao anterior. Cada nova criatura é, pois, criada seguindo um novo ato
espontâneo. Deus é Deus e “não permite interferência em seus atos criativos” (MORENO,
1992, p. 158). Em cada ato criativo a Divindade exerce a sua liberdade de criar, e cada
criatura é, portanto, livre, pois é criada por um ato de liberdade. Espontaneidade e
criatividade são, para Moreno, valores sociais, biológicos e “são, aqui também,
transformadas em supremos valores teológicos” (MORENO, 1992, p. 182).
O processo de criatividade divina se manifesta no mundo humano, pois a Divindade
coexiste nos atos criativos do ser humano e, mais que isso, “na verdade, Ela é a verdadeira
essência deles” (MORENO, 1992, p. 158). Portanto, devemos observar que, para Moreno, a
Divindade está presente em todos os momentos de criação da criatura e “em todos os atos
criativos do Universo em seu surgimento e desenvolvimento, a Divindade penetra em
momentos pessoais inumeráveis, preenchendo cada um deles com a intensidade
necessária” (MORENO, 1992, p. 158). Com isso, alerta Moreno, não devemos pensar que a
Divindade interfira na liberdade da criatura em seu processo de criação ou em sua
existência. O papel da Divindade é muito mais o de estar presente no momento a fim de que
se “produza uma nova dimensão existencial – uma espécie de supramomento” (MORENO,
1992, p. 159).
O conceito de Deus em Moreno está intimamente vinculado ao conceito de momento
e o conceito de momento está intimamente vinculado com a o conceito de Deus. As
Palavras do Pai é uma “filosofia da Divindade no tempo presente” (MORENO, 1992, p. 160).
“A Divindade é um fenômeno” (MORENO, 1992, p. 160). E o que caracteriza este fenômeno
é a sua presença contínua, constante no Universo como um todo e em cada partícula e em
cada experiência. O fato de Deus estar presente de forma tão perene não exclui a sua
imperceptibilidade. “Sua visibilidade esmagadora torna-O invisível. Se apenas existisse a luz
e não as trevas, seria impossível descrever a luz. Posto que a Divindade é única, Ela não
pode ser definida por efeito de contraste com qualquer coisa” (MORENO, 1992, p. 160).
Ora, para Moreno, a Divindade coexiste, ela se manifesta em cada ato criativo da criatura,
portanto ela não se diferencia, Ela é em e esta além de si, daí a sua invisibilidade. Esta é
uma questão complexa, pois, segundo Moreno não podemos tampouco correr o risco de
que a Divindade perca a sua característica. É um problema a ser resolvido tendo em vista a
questão da existência de Deus como única e a existência do ser humano também como
única e diferente ao mesmo tempo da coexistência. Moreno (1992) tenta resolver a questão
da presença da Divindade no momento sem que isso acarrete a perda do que é a essência
de Deus. Moreno deixa claro que “o eixo da existência do homem, a base da realidade, é o
momento. A base do momento é, por sua vez, a Divindade” (MORENO, 1992, p. 160).
O esforço de Moreno no sentido de uma religação da ideia de momento com a
Divindade se trata de um esforço no sentido de encontrar um conceito e uma experiência
por meio dos quais a sintonia humano-divino possa ser demonstrada. A histórica construção
da imagem de Deus como onipotente, onisciente, onipresente, que se tornou hegemônica,
mas não única, levou a um distanciamento abissal entre Criador e criatura. Esta ideia de
Deus, segundo Moreno (1992), abalou a dinâmica da Divindade e impediu o aparecimento
da subjetividade real. Para Moreno, falando em termos teológicos, a questão chave que se
coloca gira em torno da essência da subjetividade e o que deve ser perguntado é se “isso
pode ser descrito em seu „status nascendi‟ (em seu estado de nascimento) e segundo seus
atos” (MORENO, 1992, p. 161). Tanto o Deus Todo Poderoso do Antigo Testamento, quanto
o Deus Todo Caridade e Amor do Novo Testamento – apesar dos elementos subjetivos e do
avanço criativo deste último em relação ao anterior, são qualidades que se tornaram
dogmas e conservas culturais. Há outra questão problemática ainda, segundo Moreno
(1992), que consiste no fato de que o ser humano se acomodou em sua identificação com
estas qualidades da Divindade passando a crer que poderia ser caridoso como Deus sem
que isso levasse a uma responsabilidade e criatividade espontânea e constantemente
renovada. Moreno inverte a lógica mais uma vez dizendo que apenas o inverso é possível,
que haja uma identificação espontânea da Divindade com a criatura. A inversão consiste
mais uma vez em que é a Divindade que tem a liberdade e a autonomia máxima para ditar
os rumos, é Ela que irrompe, rompe, desconstrói, cria e o ser humano deve seguir a lógica
da Divindade e não o contrário. Por isso, diz Moreno, “o resultado foi que Deus – como
norma suprema de referência para todos os valores – perdeu campo no domínio crucial da
subjetividade, da estabilidade e da segurança da existência do homem” (MORENO, 1992, p.
162).
Qual é a implicação real da afirmação de que a Divindade tem uma subjetividade? A
subjetividade da Divindade é uma contribuição muito importante em Moreno, pois ela
significa a reafirmação da autonomia da Divindade e sua presença atual no Universo, para
além dos sinais objetivos de sua presença no Universo já aceitos. A primeira hipótese de
Moreno é, pois, afirmação da existência subjetiva da Divindade – o que significa que “Ela
está viva e criativa no presente” (MORENO, 1992, p. 162). O segundo discernimento em
relação à subjetividade consiste na diferenciação da subjetividade Divina e humana. Moreno
suspeita que “uma vez que essas duas categorias de subjetividade são discernidas e
qualificadas, a relação entre Deus e o homem poderá ser tentada outra vez e poderá
restabelecer-se a vida de família entre a Divindade e o homem” (MORENO, 1992, p. 162).
Um exemplo descrito por Moreno (1992) sobre diferença da subjetividade de Deus e da
subjetividade do ser humano se refere ao fato de que o ser humano é capaz de
experimentar apenas um momento de cada vez, enquanto a Divindade pode somar milhões
de momentos simultaneamente no presente de Deus.
A meticulosa análise de Moreno sobre a relação da categoria momento com a
Divindade diz respeito a esta preocupação. Incluir no conceito de Deus o presente, tirando-
O do passado, de um futuro distante cujo „Reino‟ nunca chega e superar a ideia vaga de
eternidade – que remete a uma atemporalidade, abre a possibilidade para a inclusão do
conceito momento e da ideia de que Deus atua no momento, que Ele está presente no ato,
no acontecimento específico no agui-e-agora. Aqui implica em que seja tomado em conta a
ação e presença de Deus em diversos momentos simultâneos no Universo e de que a
universalidade não exclui a presença em cada situação e contexto. Isto faz parte da
presença dinâmica da Divindade, assim como se pode pensar a ausência de Deus a partir
de sua “oculta onipresença” (MORENO, 1992).

Eu-Deus e suas implicações

A existência implica responsabilidade. E esta deve ultrapassar o plano da existência


pessoal. A responsabilidade “deve ser uma responsabilidade com o Todo!”. (MORENO,
1992, p. 11) Se eu tenho responsabilidade com o todo, necessito cumprir a minha
capacidade criadora no mundo, sendo parceiro, como ser humano, parceiro na função
criadora. Moreno conclui: se crio, logo existo. Ou seja, a minha existência se realiza de fato
à medida que cumpro a minha potencialidade criadora.
Moreno compara o Deus dos antigos hebreus com o Deus de Jesus Cristo. Aquele –
que foi um Deus fundamental na vida daquele povo pois salvou o povo em diversas
situações com na libertação da escravidão do Egito, era, no entanto, um Deus-Ele, que
estava no alto dos céu, longe do mundo. Enquanto o Deus que Jesus Cristo apresentou era
um Abba, ou seja, um paizinho, um Deus próximo e pessoal, um Deus-Tu, “não apenas de
poder, mas como uma enorme sabedoria e inteligência, um Deus-de-amor, de doçura e de
recolhimento” (MORENO, 1992, p. 12).
A reflexão que Moreno desenvolve segue um processo. Ele compreende que a
compreensão de Deus muda de tempos em tempos, assim como mudou o conceito de Deus
em Jesus Cristo há dois mil anos. O que muda, segundo Moreno, não é Deus, mas a
imagem que as pessoas fazem dele. Depois de Jesus Cristo e o tempo que se passou, é
necessário que novamente aconteça uma “readequação do conceito de Deus aos dias
atuais e ao mundo que vivemos hoje.” (MORENO, 1992, p. 12) A imagem do Deus de Jesus
também se esgotou e perdeu o sentido no mundo de hoje. Moreno compreende que
estamos no momento no qual Deus não está nem mais no alto dos céus, tampouco vem do
Tu como na era de Jesus Cristo. Atualmente reconhecemos, segundo Moreno, que Deus
“vem de dentro de nós mesmos, através do Eu, através de mim”. (MORENO, 1992, p. 12) A
voz de Deus agora viria de milhões de “Eus”. Se trata de um novo sentido de Deus, um
Deus que vem do Eu, uma nova forma de comunicar-se com Deus. E se Deus vem do eu
podemos ter tantos deuses quanto seres, ou seja, cada um pode criar a sua ideia de Deus e
criar o seu Deus. A ideia de Deus aparece em Moreno como a ideia da criatividade. Estas
duas formas ou forças parecem proceder da mesma fonte.
Aqui Moreno entende que criou um problema, para o qual em seguida encontra uma
solução, pois como poderíamos sintetizar a ideia do divino de modo a não termos um
universo de deuses cada um por si sem comunhão. Então Moreno faz o seguinte caminho
de integração. Sustenta que primeiro veio o Deus-cósmico – dos hebreus, depois o Deus-
de-amor – de Jesus Cristo, que acomodou e acolheu em si o Deus-cósmico, e no atual
momento temos o Deus Eu que integra os dois anteriores. Em as Palavras do Pai, Moreno
seguidamente pára para descrever o processo de desenvolvimento da sua descoberta.
Neste caso aqui, quando fala do processo de mudança da imagem de Deus na história da
humanidade e de como ela aconteceu e acontece simultaneamente às mudanças pelas
quais o mundo e a humanidade passam e que são o culminar de “milhões e milhões de
forças cósmicas” (MORENO, 1992, p. 13), ele pára e conta que esta questão ficou clara
para ele ao ler o livro de bíblico de Gênesis.

De repente, eu senti todas as coisas renascendo. Eu comecei a ouvir


vozes, não como aconteceria a um doente mental, mas como
acontece a uma criatura que começa a ouvir uma voz que atinge a
todos os seres com uma única linguagem, que é entendida por todos
os homens. Uma linguagem que traz esperança, que dá uma direção
para a nossa vida, que dá sentido para o nosso cosmos, que nos
ajuda a acreditar que este mundo não é apenas um pântano ou uma
avalanche de energias selvagens, mas que é basicamente um
processo infinito de criação. (MORENO, 1992, p. 13)

Esta descrição de Moreno é o relato de uma vivência integradora – no sentido de


uma união profunda com o todo, um dar-se conta, intuição e percepção no aqui-e-agora da
participação individual no infinito, uma fé irremediável, incondicional que acontece e que se
revela por meio da linguagem que se traduz em direção, sentido, esperança e em um crer
profundo. A imagem descrita por Moreno parece traduzir esta incondicionalidade, pois
remete a uma gratuidade humana muito original e incondicional também. Moreno entenderá
que cada uma de nós, cada pessoa é um elemento desta força cósmica, que junto com
outra pessoa são forças que se ajudam. Em suma, tudo isto nos faz entender, segundo
Moreno, o mundo como um caos ou um acaso, pântano ou avalanche, mas um processo em
constante criação e de infinita criatividade que se revela em todas as instâncias da
existência, e que esta criatividade é o que, tudo une e une os seres humanos.
Neste momento, Moreno reúne a criatividade e a responsabilidade. Pois ao mesmo
tempo em que diz que a criatividade é o elo que nos une, ele afirma, em seguida, que
“somos todos unidos pela responsabilidade” (MORENO, 1992, p. 13). E que esta nos faz
criadores do Universo. O “Eu sou responsável” de Moreno nos leva a depreender que o que
define a nossa existência é a responsabilidade. A responsabilidade é o elo e a aliança que
nos liga ao mundo inteiro. Trata-se de um elo de pertencimento e de compromisso por onde
eu sou responsável por tudo o que acontece, o que aconteceu e o que acontecerá, bem
como, por todas as pessoas e inclusive pelo universo. “A responsabilidade é o elo que nos
une e nos liga ao cosmos”. (MORENO, 1992, p. 14)
No auge da sua visão diante da estátua de Chemnitz Moreno escreve um poema que
traduz a sua ideia de responsabilidade pelo todo, pelo cosmos, que implica em ter
responsabilidade pelos outros seres humanos, pela natureza, pela intimidade, pelo que vem
antes de mim e pelo que virá depois de mim. Por isso faz sentido dizer “Eu sou o Pai do
meu pai”...

Eu sou o Pai.
Eu sou o Pai do meu filho.
Eu sou o Pai
da minha mãe e do meu pai. (...)
Eu sou o Pai do s relâmpagos (...)
Eu sou o Pai dos passarinhos(...)
Eu sou o Pai das montanhas(...)
Eu sou o Pai da tua língua
e dos teus olhos
dos teus seios e dos teus pés.
Eu sou o Pai do pó
De onde tu vens
E do silêncio em que te escondes. (MORENO, 1992, p. 15)

A visão de Moreno é uma autopercepção da implicação do eu na responsabilidade e


no cosmos. É um cair em si numa manifestação transcendente sobre o papel do eu no
mundo, o eu que não é tu, nem ele e que implica uma responsabilidade consigo mesmo,
mas que transcende o cuidado de si para a implicação do eu com o outro e o mundo. A
implicação do eu no mundo alcança as três regiões do mundo da existência do ser humano:
o seu mundo próprio – ou seja, o seu ser-si-próprio, seu autoconhecimento, sua consciência
de si – que levam à autotranscendência ou à crise de sentido; o mundo humano – o âmbito
do encontro e convivência com os semelhantes. Existir é, afinal, ser-com-o-outro/ser com; e
simultaneamente o mundo circundante – o seu contato com o mundo, seu relacionamento
com o ambiente (FORGHIERI, 1993).
Segundo Moreno, o ser humano é um ser cósmico e na interioridade de cada ser
permanece sua capacidade cósmica original, que é a centelha divina da divindade criativa.
Moreno pergunta pela existência de “uma forma cósmica de compreensão” (MORENO,
1993, p. 16). O ser humano é um “ser cósmico; é mais do que um ser psicológico, biológico
e natural” (MORENO, 1993, p. 15). No entanto, “pela limitação da responsabilidade do
homem aos domínios psicológicos, sociais ou biológicos da vida, faz-se dele um banido”
(MORENO, 1993, p. 15). O fato de ser um ser cósmico tem implicações. E uma implicação
fundamental é que o ser humano é um ser responsável. E, para Moreno, “ou ele é também
responsável por todo o universo, por todas as formas do ser e por todos os valores, ou sua
responsabilidade não significa absolutamente nada”. (MORENO, 1993, p. 15)

Considerações finais

Moreno recupera em As Palavras do Pai a ideia de Deus como Criador, pois


considera que esta “é a única categoria capaz de colocar ordem no caos dos sistemas de
valores” (MORENO, 1992, p. 271). Para Moreno, “a Divindade na função de Criador é não
somente uma extensão de cada ser na forma de sua existência, mas também uma extensão
de cada papel que cada ser pode representar em qualquer momento” (MORENO, 1992, p.
271). Deus é a imagem da transcendentalidade. A Divindade ultrapassa as religiões.
A escrita, a prática e a arte de Moreno é profunda e bela porque toca no que há de
mais sagrado no ser humano – a sua capacidade de ser/Ser e de criar. Quando estas
potencialidades não estão adequadas o ser humano será incapaz de ser o ser em
movimento de criação e de vida. A intenção de Moreno, neste sentido, é a de reabilitar na
sua capacidade de criação e sua capacidade de amar. Por esta razão, sua obra sempre
aponta para a dimensão da cura, que é o resgate da capacidade de criar.
Moreno é um grande pensador da Divindade. Ele é um teólogo – não só um teólogo
– à medida que ele assume o papel de pensar o lugar da Divindade no mundo. Desta forma
ele ocupa o lugar de um cientista do divino e pensa, problematiza o lugar de Deus no mundo
e sua relação com a criatura e a relação da criatura com o Criador. Em As Palavras do Pai
ele é radical ao dizer: “Ou retiramos totalmente a idéia (sic) da Divindade de todos os
nossos sistemas conceituais, ou, sendo totalmente sinceros, tratemos de pensar a idéia da
Divindade em todos os seus „nuances‟ lógicos” (MORENO, 1992, p. 159).
Moreno pensa este processo de exclusão da Divindade da vida cotidiana e avalia as
suas consequências. Tendo em vista a responsabilidade que a Divindade imputa à criatura,
a vigilância da Divindade com a sua criação, não é fácil para a criatura suportar a ideia de
que tenha que assumir compromissos reais nesta vida. Uma liberdade ilimitada, sem
reponsabilidades, é sempre o sonho da criatura. A consciência da existência de um Criador
impõe um limite a este sonho de liberdade irrestrita. Por estas razões, segundo Moreno
(1992), “Deus foi colocado no „começo‟ e no „fim‟ dos tempos. Converteu-se num „logos‟,
num juiz imparcial, algo que põe sempre, em relevo, a sua não-presença” (MORENO, 1992,
p. 159). A não-presença de Deus, o distanciamento de Deus, sentado lá no alto dos céus,
fora do mundo é uma ideologia que convém bem a uma lógica que não pode suportar a
interferência de uma imagem de Deus e uma Divindade que cria constantemente.
Portanto, deixar um lugar para a Divindade tem, segundo a teoria moreniana pelo
menos duas implicações fundamentais. A primeira trata de que é necessário uma
desconstrução e uma desalienação da imagem de Deus construída dentro do enquadre da
conserva cultural que fez tirar de Deus a potencialidade criativa. Ou seja, a máxima de
Moreno é que Deus é Criador, e isso tem implicações para a criatura criada com a centelha
da divindade. A segunda implicação é que a Divindade está ativa desde o princípio da
criação, e está presente no aqui-e-agora da vida cotidiana, está ativa no momento e na
existência concreta. Segundo Moreno, há que se “fazer um esforço para integrar o conceito
da Divindade ao do momento com todo o momento real da existência” (MORENO, 1992, p.
159). Em suma, trata-se de construir um “conceito tal que Deus apareça como o centro de
cada momento, um Deus cuja magnificência não dependa de suas proezas do passado,
mas do que ele estiver fazendo num momento específico” (MORENO, 1992, p. 160).
Tomando em conta todas estas considerações, penso que a teoria de Moreno vai
além de uma abordagem ou propósito sócio ou psicodinâmico. Seria estreito se assim fosse,
pois a teoria de Moreno é dialógica em sua postura diante das outras ciências e saberes –
como o religioso e teológico, é holística porque inclui o todo – inclui a verdade do louco, do
espiritual, do religioso, do drama e do teatro, além de tantas outras que compõe as ciências
modernas, como a medicina, a sociologia, a economia, etc.. Segundo Moreno, só assim
avançaremos numa ciência da paz, que só se constrói por meio da combinação de ciências,
que juntas formarão um grande corpo teórico, mais bem preparado para alcançar as
pessoas e compreender as necessidades da humanidade. Por esta razão, creio, devemos
retomar a profundidade da implicação da teoria moreniana que supera a psico ou
sociodinâmica e que propõe a cosmodinâmica. A cosmodinâmica inclui Deus, uma
Divindade livre das conservas culturais, uma Divindade Criadora, e inclui seres espontâneos
e criadores.

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