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Déspotas mirins: o poder nas

novas famílias
Marcia Neder

Versão impressa disponível – entre em contato


ISBN versão impressa: 978-85-53074-17-4

“ Naquele dia, a árvore dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci; recebeu-
me nos braços a Pascoela, insigne parteira minhota, que se gabava de ter
aberto a porta do mundo a uma geração inteira de fidalgos. Não é impossível
que meu pai lhe ouvisse tal declaração; creio, todavia, que o sentimento
paterno é que o induziu a gratificá-la com duas meias dobras. Lavado e
enfaixado, fui desde logo o herói da nossa casa (...). Se não conto os mimos,
os beijos, as admirações, as bênçãos, é porque, se os contasse, não acabaria
mais o capítulo, e é preciso acabá-lo. ”

Memórias Póstumas de Brás Cubas

A Margarida e Alfredo Neder, meus pais (in memorian).


A Julia e Adriano, meus filhos.
Apresentação à Segunda Edição
Édipo Tirano: o feminino e o poder nas novas
famílias
Marcia Neder

Há dez anos eu terminava de escrever essa pesquisa de pós-doutorado


em Psicologia Clínica, sob a supervisão de Renato Mezan, na PUC-SP. O
título, Édipo Tirano: o feminino e o poder nas novas famílias, condensa as
muitas dimensões do problema que me empenhei a pesquisar, como
explicarei a seguir. O trabalho foi publicado em 2012 com um novo título,
Déspotas mirins: o poder nas novas famílias.
Édipo, o lendário personagem grego, é, para mim, uma metáfora da
criança na história da família. Filho dos reis Laio e Jocasta, Édipo foi
rejeitado, abandonado e condenado à morte por seus pais ao nascer,
encarnando assim a criança na Antiguidade, tal como registrado pela história
da cultura. Salvo pelo escravo que não teve coragem de obedecer a ordem do
rei, o bebê foi entregue a um pastor que o levou para Políbio e Mérope, reis
de Corinto, que o adotaram. Assim, Édipo é também a criança escolhida,
amada, adotada que se tornou rei de Tebas, representando a criança que
começou a surgir no Ocidente moderno a partir do século XVIII. A presença
simultânea dessas duas dimensões nessa figura mítica faz de Édipo a melhor
imagem da criança na história ocidental, que vou contar nos primeiros
capítulos desse livro.
Édipo é também a metáfora da criança na psicanálise. Parricida (matou
o pai) e incestuoso (dormiu com a mãe), Édipo é figura central na psicanálise
porque, segundo Freud, realizou esses que seriam os nossos dois mais
profundos desejos inconscientes: parricídio e incesto. Em um período de
nossa primeira infância cada um de nós reencarnaria Édipo, amando e
odiando nossos pais e aqueles que ocupam seu lugar.
Édipo é, finalmente, filho matricida, tal como interpretado por Conrad
Stein, psicanalista dos nossos dias que descobriu no filho de Laio e Jocasta a
realização de um desejo que seria de todos nós, em nossa relação hostil com o
feminino materno – hostilidade de certo modo inconcebível aos olhos de
Freud – e nesse ódio estaria a raiz da misoginia da cultura. A ameaça, a
angústia de dissolução que atravessa nossas relações com o feminino excede
os limites dessa Apresentação, mas há muito a misoginia da cultura figura
entre os temas de meu maior interesse, e voltarei a ela nas páginas que se
seguem.
A aversão ao feminino (misoginia) é essencial para a análise que Renato
Mezan propõe das relações de Freud com a psicanálise em seu Freud,
pensador da cultura (1985). O estudo dessa obra instigante, em meados de
1980, plantou em mim a firme convicção de que só este autor poderia
orientar minha pesquisa de doutorado em Psicologia Clínica, ainda que eu só
o conhecesse através de suas obras. Seu livro anterior (Freud, a trama dos
conceitos, 1982) já havia provocado em mim um forte impacto, amenizando a
solidão e o desconforto intelectuais em minha relação crítica com a
psicanálise. Quando, já na Introdução, eu o li afirmando a novidade que a
psicanálise impunha à epistemologia, senti alívio e esperança: nessa época,
no meu mestrado em Psicologia Clínica na PUC-Rio, eu buscava a relação
entre palavras e imagens em psicoterapia sob o pano de fundo dos sonhos e
devaneios, tendo como eixo a obra de Gaston Bachelard. Este filósofo e
epistemólogo francês dedicou-se em sua obra a essas relações entre o mundo
dos conceitos, racional, teórico, experimental, e o mundo onírico das
fantasias e da imaginação criativa que nossa cultura associou ao feminino.
Filósofo e psicanalista, Renato Mezan seguiria aprofundando essa
questão, e em Freud, Pensador da Cultura encontrei, na análise da cultura e
das complexas relações de Freud com o feminino, novas dimensões da
maternidade e da paternidade que, aprofundadas e exploradas em suas
ramificações, poderiam trazer frutos para a compreensão psicanalítica da
família e de seus enfrentamentos atuais. As equivalências estabelecidas por
Freud entre a sensualidade/sensibilidade/maternidade e a
espiritualidade/intelectualidade/paternidade desempenham, nessa análise de
Renato Mezan, um papel essencial. Essa análise da cultura e sua relação com
o feminino já havia sido determinante em minha interpretação da educação,
em minha tese de doutorado e agora, enquanto escrevo essa Apresentação,
me dou conta de que ela continuou a se agitar em mim, emergindo dez anos
depois como eixo dessa pesquisa de pós-doutorado.
Nas teorias psi sobre a infância e a educação eu havia descoberto a
criança-vítima. Por diferentes que fossem as psicologias e as psicanálises
estudadas, bastava cavar o terreno de seus conceitos com a pá psicanalítica
para encontrar as fantasias inconscientes movimentando-se como minhocas
em seu subsolo. Minhocas, eu viria a concluir por um caminho que não cabe
aqui refazer, insinuantes como Salomé em sua dança e que encarnam a
dimensão erótica da educação. Erotismo recalcado pela ideia moderna da
educação como adaptação da criança ao social, cuja insuficiência me levou a
argumentar que educar, formar outro ser, é bem mais complexo do que
simplesmente “impor limites” ou “reprimir pulsões individuais”. Todo
professor, concluí em Psicanálise e Educação. Laços Refeitos (minha tese de
doutorado, concluída em 1996 e publicada em 1998), qualquer que seja o
sexo a que pertença, identifica-se em seu inconsciente com o feminino. E
com um feminino materno que está longe de ser apenas aquela figura terna e
apaixonada pelo filho, como Freud quis imaginar com seu “Édipo galante”,
eterno apaixonado “por sua dama”.
A essa criança-vítima correspondia o eclipse do adulto-educador que eu
encontrava nas abordagens psicanalíticas da educação. Abordagens que, ao
mesmo tempo, multiplicam teorias do desenvolvimento da criança, da
aprendizagem da criança, das dificuldades da criança, da transferência da
criança, desprezando a transferência do professor para a educação e seus
educadores. Além de – e isso é mesmo fundamental no que chamo de
pedocracia – ignorar ou “irreconhecer” a dimensão erótica, do prazer do
domínio exibido pelos tais “sem limites”. Mais uma vez a criança-vítima –
agora, da negligência dos pais – no centro das interpretações da educação
(familiar ou escolarizada).
A criança-vítima, o eclipse do adulto-educador nas teorias psicanalíticas
da educação continuavam a inspirar perguntas e a instigar minha curiosidade.
É certo que o apagamento do inconsciente do adulto não era radical, já que os
psicanalistas o reconheciam em sua dimensão de domínio e poder ao qual
remete a concepção da educação como repressão. Mas não é menos certo que
havia outra maneira de situar psicanaliticamente a criança diante do adulto e
seu inconsciente, como eu já argumentara com o meu doutorado. Como
também não é menos certo que os psicanalistas se esqueceram do prazer de
dominar inerente à sexualidade infantil, tanto quanto o prazer oral.
Édipo Tirano é o nome original da tragédia de Sófocles, Édipo Rei. A
palavra tirano tem um duplo significado. Além do sentido usual que
conhecemos, no contexto da tragédia grega, tirano remete ao herói de Tebas,
que chegou ao poder por seus próprio méritos, por sua sabedoria, por sua
astúcia – Édipo não usurpou o trono pela violência. Na peça de Sófocles ele é
escolhido rei de Tebas porque livrou a cidade do monstro que a ameaçava,
devorando seus cidadãos – a Esfinge, que figura o feminino...
Édipo Tirano é, para mim, a metáfora da criança que surgiu a partir do
século XX, da nossa criança no século XXI – que chamamos de “sem
limites”. A criança que, como Édipo, chegou ao poder porque foi nesse lugar
que os adultos a colocaram no mundo ocidental a partir dos séculos XVIII-
XIX, instituindo a pedocracia, esse novo regime social no qual a criança-
vítima reina e o adulto é eclipsado pelo brilho de sua majestade.

Por que uma segunda edição revisada dos Déspotas mirins. O poder nas
novas famílias? Passados quase dez anos desde que terminei de escrevê-lo,
alguma atualização poderia ser necessária. E também uma reflexão sobre a
recepção que a obra teve. Alberto Manguel disse que “o que o escritor quis
fazer com sua obra nem sempre é o que sua obra resulta”. Embora não tenha
sido esse o caso do presente livro, uma nova edição me dá a oportunidade de
sublinhar um ou outro aspecto que pode ter ficado mais ou menos ofuscado
para alguns leitores.
Um dos mais importantes é a fundamentação da concepção lacaniana
das funções materna e paterna – e, pois, da tese do “declínio da autoridade
paterna” – na misoginia da cultura. É nesse contexto cultural que surge a
pedocracia a qual, muitas vezes, desaparece sob uma leitura psicologista, que
transforma um fenômeno que é da cultura e que se dá ao longo da história em
algo exclusivamente individual.
Para tal problema complexo não há receita. A possibilidade da receita
gerar frustração e sofrimento pela impossibilidade do adulto (pai, mãe,
professor) atingir tal ideal seria imenso. Basta olhar em volta para os ideais
que nos massacram diariamente para entender os riscos da idealização.
Simplificações mutilam a realidade e insultam a criatividade, a curiosidade e
a inteligência do leitor, inibindo suas associações. Não pretendo impor mais
uma norma de conduta ou levantar a bandeira do ideal quando o que
precisamos é de reflexão e desidealização – desidealização da criança,
desidealização da mãe, desidealização do pai e da família.
Vivemos numa sociedade que cultiva valores como facilidade,
brevidade, superficialidade. Que oferece a socialização intensiva como
remédio contra a “doença” da solidão, cortando pela raiz o mal da intimidade,
que é tão cara à experiência da leitura e do cuidado de si. Dançar como um
orangotango pode ser fácil, mas eu quero é dançar conforme a música. Como
diz Alberto Manguel, a leitura não é uma atividade fácil e o prazer que se
adquire através do fácil é um prazer fácil e não nos interessa: escalar essa
mesa é um prazer fácil mas eu quero é escalar o Everest. Sabemos que os
melhores cozinheiros são os criativos, aqueles que tomam uma receita por
base, à qual misturam os seus próprios conhecimentos sobre a potência dos
alimentos e temperos, da harmonia de sua combinação e decidem o seu modo
e o seu estilo de prepará-la. Bom apetite.
Prefácio
A proposta de investigar o que subjaz às tão frequentes queixas de que “as
crianças de hoje não têm limites” se inscreve num projeto mais amplo, ao
qual a professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Marcia
Neder vem se dedicando há mais de quinze anos. Sua tese de doutorado,
Psicanálise e Educação: Laços Refeitos, buscou resgatar a dimensão erótica
da educação; o livro que escreveu depois – A Arte de Formar: o Feminino, o
Infantil e o Epistemológico – abordou o imaginário cultural em torno da
mulher e da criança no âmbito da atividade de ensinar.
Neste terceiro trabalho, ela quis voltar-se para as relações familiares e
para o que parece ser um consenso entre os psicanalistas quanto às funções
ditas paterna e materna, que já na segunda obra lhe parecia discutível. A
convergência desta temática com os objetivos e características do nosso
Programa, somada ao interesse da pesquisa para vários tipos de profissional e
para o público em geral, me fez aceitá-la no quadro do pós-doutorado, e a
acompanhar com interesse as várias etapas da pesquisa. O texto final me
satisfez plenamente. Ele começa com o levantamento de dezenas de notícias,
entrevistas e comentários acerca do tema na imprensa brasileira e estrangeira,
que fornece a base empírica para a análise. Em seguida, em busca de
subsídios que esclareçam de que modo se criou a situação amplamente
documentada na parte inicial, a professora vai aos escritos de historiadores,
antropólogos, educadores e psicanalistas.
As informações colhidas numa bibliografia extensa e atualizada (14
páginas ao final deste livro) a levam a sugerir que, ao menos no Brasil,
estamos vivendo num regime de “pedocracia”, que por vezes chama também
de “filiarcado”. Tomando ao pé da letra[1] o termo tyrannos, que figura no
título da peça Édipo Rei, ela sustenta que a criança se converteu atualmente
no tirano das famílias. Isso se deve, prossegue ela, ao temor de pais e mães de
parecer autoritários, que os leva a se demitir da sua função formadora.
Preferindo “ser amados a ser obedecidos”, ao final das contas não
conseguindo nem uma coisa nem outra. O modelo do “menino diabo” que foi
o pequeno Brás Cubas, conclui, espraiou-se pelas classes médias brasileiras, e
um dos momentos de maior relevo do texto é aquele em que analisa algumas
passagens do clássico de Machado de Assis.
Outro capítulo é dedicado à crítica da concepção lacaniana das funções
materna e paterna, que segundo a professora derivam da “feminilização da
carne” e da “virilização da razão e do espírito”. Seguindo os passos de
Monique Schneider e de Elisabeth Roudinesco, Marcia Neder recusa essa
partição taxativa, que a seu ver não pode dar conta da realidade vivida pelas
famílias atuais.
Escrito com a erudição e a contundência que caracteriza o estilo da
autora, este livro propõe conceitos inovadores, como o de pedocracia, e
termos particularmente felizes, como os de “déspotas mirins”, “filho-fardo” e
“filho-tsunami”. Mais que figuras de linguagem, essas expressões me
parecem captar dimensões cruciais da experiência de pais e de filhos,
tornando a pesquisa de grande utilidade para os que precisam lidar com essas
questões.
Em resumo, trata-se de um trabalho de grande qualidade, que enriquece
sobremaneira a produção psicanalítica brasileira, e cuja publicação assinala
um progresso na área da psicologia da família.

Renato Mezan
Psicanalista e Professor Titular da PUC-SP
Sumário
Apresentação à Segunda Edição
Prefácio
Introdução.
Os “sem limites”
1 “Eu sou o cara, o príncipe do gueto, o cara que manda.” A
supremacia masculina sitiada
O crepúsculo do poder paterno
A religião da maternidade e a infantolatria
Da infantolatria à deserção da paternidade
Se Édipo mata pai e mãe, por que culpar a mãe? No reino de
Narciso
Édipo tirano: o feminino e o poder nas novas famílias
A mãe de Édipo
O triunfo de Édipo na história da família
2 - “Cala a boca, besta!”
Brás Cubas, o menino diabo
Escravos negros, escravos índios: suas marcas na família e na
criança
Despatriarcalização com desigualdade de gêneros
Gurilândia: no reino da pedocracia
A pedocracia
3 - O feminino e o poder
Mães freudianas no boteco
O assombro do matriarcado
De filho-falo a filho-fardo
Réquiem para o patriarca
O filho-tsunami e a maternidade sagrada
4 A misoginia na concepção lacaniana das funções paterna e
materna
“Função materna”: retrato da mulher na misoginia ancestral
A mãe-crocodilo ou a encenação psicanalítica da mulher como a
eterna devoradora
Feminização da carne X virilização do espírito e da razão
A devoradora devorada e a alteridade/autoridade paterna
5 “Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor”
Referências
Introdução
Os “sem limites”

Um problema atormenta os adultos e volta à mídia a cada semana: a tirania


infantil ou infantojuvenil. De quem seria a culpa? Da falta de limites,
respondem os especialistas. E a falta de limites, de onde vem? Das mães que
hoje trabalham fora e por isso, achacadas pela culpa, enchem de mimos seu
herói, dizem eles. Também das novas famílias constituídas horizontalmente,
sem hierarquia e sem poder, num pode-tudo confuso que só poderia gerar
essa permissividade insuportável. Culpa, enfim, da dissolução da família,
essa instituição sagrada encarregada pela cultura de instituir as
subjetividades. No modelo psicanalítico em que a subjetivação se dá pela via
de um complexo de Édipo que exigiria a disjunção ou clivagem (separação)
entre uma figura ou “função paterna” e uma “função materna”, como ela seria
possível? Como um sujeito poderia constituir-se em meio a essa desordem,
em que até uma mãe sozinha pode criar seu filho? Deve ser daí que advém
essa coisa caótica, essa loucura de crianças perdidas, sem rumo e sem limites.
A família, as novas famílias, as “famílias modernas”, a “família
brasileira” está em toda parte: nos programas de TV, nos jornais, nas revistas
e nos sites da internet. Até uma universidade para pais foi criada na Espanha
a fim de ensinar adultos a educar seus filhos nesses tempos do homem
eletrodoméstico que, por defeito de fábrica, vem sem manual de instrução.
Para ajudá-lo aí está o “personal-tudo”, até mesmo em sua modalidade
televisiva estilo reality show, como a Supernanny ou certa “domadora”
também americana, apresentada em um canal como “especialista em domar
adolescentes sem limites”.
O casal estruturado sob o domínio do cabeça cede diante da
aproximação de marido e mulher, de pais e filhos, desmarcando posições e
referências identificatórias que a verticalidade demarcara com nitidez. As
novas configurações familiares embaralham nossa ideologia separatista e
abrem-se a outras modalidades de acolher e de criar uma criança. Adiante
veremos que a ideologia separatista é a essência do código patriarcal
estabelecido na Antiguidade pelo Direito Romano, exigindo a demarcação
nítida entre mãe e pai.
Famílias recompostas, estilhaçadas ou reconstituídas, com vários pais e
mães biológicos ou sociais; famílias coparentais, biparentais, multiparentais,
pluriparentais, homoparentais, monoparentais (mãe ou pai e filho) e
produções independentes bagunçariam o “quem manda em quem” (a
“autoridade paterna”), instituindo uma intimidade com estranhos e uma
estranheza com íntimos sem lugar para a obediência, o respeito e os
decantados limites. “Quem é o pai, ele que o fecundou ou eu que o criei?”.
“Quem é a mãe, ela que a carregou ou eu que a cuidei?”. “Existe ex-enteado?
O que eu sou dele(a) agora?”. Essas novas famílias transformadas, incluindo
aquelas formadas pelas novas técnicas de procriação, dispersariam a fonte do
poder abandonando a si próprios os filhos gerados e antes criados por uma
forte estrutura familiar comandada pelo chefe, na qual a mãe ocupava sua
função “natural” de educadora.
“O namorado da minha mãe, a avó do meu irmão, o filho do marido da
minha mãe, o pai da minha irmã, a mulher do meu pai, a mulher do pai do
meu irmão” são personagens cada vez mais frequentes no cotidiano das
crianças, conforme lemos em “O olhar infantil”, no caderno especial da
Folha de S.Paulo de 6 de abril de 2006, “Famílias redesenhadas”. Thaís, de 7
anos descreve sua família:
“A minha mãe casou com um homem e teve o Lucas, que é bem mais
velho que eu, tem 16 anos. Ela viveu muito tempo só com ele, o pai e a
mãe dela. Aí a irmã dela, minha tia, apresentou um cara para ela, meu
pai, e eles começaram a namorar. Mas, antes de casar com a minha mãe,
meu pai já era casado e tinha duas filhas. Ele se separou, casou com a
minha mãe, e eles me tiveram. Assim, sou filha única, mas tenho três
irmãos: um por parte de mãe e duas por parte de pai. Eu moro com meus
pais. Meu irmão vem nos fins de semana. Minhas irmãs vêm menos em
casa.”
Na mesma matéria Júlia, com 7, conta:
“Meus pais se separaram. Minha mãe mora com a mãe dela. Meu pai tá
na casa em que a minha mãe já morou. Eles não moram juntos. Eu moro
com a minha mãe, com a minha avó, com o meu avô e com a minha
bisavó. Não tenho outros irmãos. Meu pai mora sozinho, quer dizer,
com meu cachorro, para não ficar sozinho.”
Um ano antes, em 8 de março de 2005, esse jornal publicara um caderno
especial sobre a mulher, “O que elas querem”, no qual tratava da mudança do
“núcleo doméstico” que caracteriza a “família moderna”, cuja imagem já não
cabe naquele velho porta-retratos da família. A “família tradicional”,
“formada por papai, mamãe e filhos, patriarcal e aparentemente coesa, foi
implodida pela modernidade. Hoje, enteados, sogros, meio-irmãos e avós
fazem parte dos núcleos familiares”. O mesmo jornal, em sua edição de 21 de
dezembro de 2006, anuncia que a cada ano o modelo tradicional de família –
pai, mãe e filhos – perde espaço para novas formas de arranjos familiares
que, somadas, representam 50% do total. Em 2008, por exemplo, a Justiça
gaúcha começa a formar um “consenso” na jurisprudência para facilitar a
adoção por casais gays com união estável, informa a Folha de S.Paulo de 15
de junho. Lembrando ainda que a adoção homoafetiva conjunta é recente e
polêmica no Brasil, com o primeiro caso relatado no país em 2005.
Acrescenta que o consenso gaúcho não reflete a situação nacional.
Na edição de 21 de agosto de 2008 da Folha de S.Paulo Rosely, Sayão
escreve “Os desafios das novas famílias”, sobre essa que considera uma
grande novidade no mundo contemporâneo. As “novas famílias” são
“construídas principalmente a partir de separações e novos casamentos, mas
também de uniões que dão origem a famílias antes impensadas, como as que
têm como matriz a união de um casal homossexual”, posteriormente a um
casamento heterossexual com filhos. As relações entre esses vários grupos
“têm sido um grande desafio. Recebo com frequência mensagens de leitores
que falam a respeito dessas dificuldades” e ”o tema campeão” tem sido o
relacionamento com ex-maridos e ex-mulheres, assim como as relações entre
enteados e filhos. Isso sem falar de mulheres com filhos adolescentes e que se
uniram a parceiros com a idade de seus filhos.
O jornalista norte-americano Michael Kepp, morando há 25 anos no
Brasil, escreve sobre a difícil relação entre padrastos e enteados. Em “Uma
química nada cósmica”, na Folha de S.Paulo de 17 de julho de 2008, ele
conta sua experiência com seus enteados adolescentes e em especial uma
discussão, quando ele pediu sua ajuda para lavar louça:
“Meu argumento: eu cansara de ser empregado deles. Sua réplica: um
padrasto não tem o direito de mudar a divisão de trabalho em um lar
brasileiro, no qual pais ou empregados fazem tudo. Então, a mãe deles,
que rezava por uma convivência pacífica, começou a lavar a louça.
Depois que esses reizinhos entraram na faculdade, nossos diálogos
ficaram menos contenciosos.”
Waldyr Grisard Filho, mestre e doutor em direito, caracteriza como
“minifamília” a família reconstituída. Em “Famílias reconstituídas: Breve
introdução ao seu estudo”, ele escreve:
“Novas núpcias, novos filhos, novas relações, padrastos, madrastas,
enteados, enteadas, meio-irmãos”, assim como novas regras e novos
“triângulos conflitivos: o marido ou companheiro, sua nova esposa ou
companheira e a ex-esposa ou ex-companheira; o marido ou
companheiro, a nova esposa ou companheira e os filhos desta, do marido
ou companheiro, os próprios do novo casal ou da ex-esposa ou ex-
companheira. Isto evidencia a complexidade da vida cotidiana destas
famílias (...). A nova família deverá conviver com a presença real ou
virtual de um ex-esposo ou de uma ex-esposa.” (2003, p. 259-260).
A triste morte de Isabella[2] mostra que essa convivência é mesmo difícil
ou até impossível para alguns. Para Contardo Calligaris essa “tragédia nos
lembra afetos dolorosos que regram nossa maneira ‘moderna’ de casar”. Em
“Comoção pela morte de Isabella”, publicada na Folha de S.Paulo de 10 de
abril de 2008, o psicanalista tenta evitar que esta situação trivial da
constituição de uma nova família como a realizada pelo pai de Isabella, que
tem dois filhos pequenos com a mulher atual, venha a ocultar ou “disfarçar o
emaranhado de afetos dolorosos que ela produz – afetos que muitos vivem e
que todos preferimos esquecer”. Os novos casamentos unem filhos que são
frutos de uma relação anterior, fomentando a rivalidade entre irmãos e
também entre enteados e meio-irmãos. Diferentemente da rivalidade entre
irmãos, essa nova rivalidade é “silenciosa, reprimida pelo esforço geral de
compor uma nova família ideal, em que todos os integrantes se amariam”.
Para começar, seria melhor “que nossas disposições menos nobres, em vez de
silenciadas e reprimidas, fossem faladas, explicitadas. Isso, para evitar que,
de vez em quando, a trágica morte de uma menina nos lembre, por um dia ou
uma semana, que a vida das famílias ‘modernas’ é muito mais difícil do que
parece”.
Rivalidade entre enteados e meio-irmãos, mas também a insuportável
presença virtual e mesmo fantasmática da ex na vida do novo casal formado
pelo pai de Isabella que a morte sinistra da menina veio explicitar. Essas
disposições menos nobres a que Calligaris se referiu parecem estar mais
animadas do que gostaríamos, como lemos na coluna de Ruy Castro na Folha
de S.Paulo de 10 de setembro de 2008, “Terror absoluto”, referindo-se ao
trágico desfecho da vida dos irmãos Igor e João Vitor:
“Compete em barbarismo e ferocidade com o caso da menina Isabella e
o casal Nardoni. Dois garotos, Igor, 12 anos, e João Vitor, 13, foram
mortos na última sexta-feira em Ribeirão Pires, Grande São Paulo,
asfixiados com sacolas de plástico, de supermercado. Depois tiveram
seus corpos embebidos de querosene e incendiados. O que sobrou desses
corpos foi esquartejado com uma foice; os pedaços, enfiados em sacos
pretos e deixados na rua para os lixeiros, que os descobriram. Os
acusados são o pai e a madrasta das crianças. Apenas isso já seria
insuportável. Mas o que mais me abala é que os meninos sabiam que
algo lhes aconteceria”, tendo registrado boletins de ocorrência contra o
pai e a madrasta por maus-tratos três anos antes. “Depois de mais
denúncias de crueldades, os meninos foram mandados em 2007 para um
abrigo, onde ficaram nove meses, a salvo de seus algozes. No começo
deste ano, tiveram de deixar o abrigo e voltar para casa. Os maus-tratos
continuaram. No meio da semana passada, eles fugiram e, na delegacia,
pediram para ser mandados de novo para o abrigo. Estavam com muito
medo. Os responsáveis pelo conselho tutelar consideraram o apelo sem
fundamento – os meninos não tinham marcas de espancamentos e os
maus-tratos foram classificados como ‘fantasia’. A conselheira levou-os
pessoalmente para a casa do pai. Dois dias depois, Igor e João Vitor
apareceram mortos. Este é o terror absoluto – quando as pessoas a quem
imploramos ajuda nos entregam, por imperícia ou descaso, a nossos
assassinos.”
Já que o leitor vive no mesmo planeta que eu, não é preciso continuar
com esse circo de horrores para mostrar a muitas vezes difícil convivência
instalada no interior das novas famílias que se constituem.
Pela sua heterogeneidade, as novas organizações familiares interrogam
especialmente nossas estabelecidas concepções de paternidade e maternidade,
talvez oferecendo às crianças novos modos de subjetivação. Será que nossas
teorizações psicanalíticas têm acompanhado o curso dessa história?
Observo que em muitas versões psicanalíticas cristaliza-se uma tentativa
de congelar esse movimento dos tempos com teorias e conceitos mais ou
menos enfeitados, reeditados e repaginados, que tendem a ressuscitar e
atualizar a Sagrada Família. Esse espécime aparentemente em extinção é
invocado como a solução para a interminável guerra dos sexos acirrada pela
“despatriarcalização” (Göran Therborn) ocorrida de modo inexorável no
curso do século XX. Só esta (a família patriarcal também chamada de
“tradicional”), com sua hierarquia fortemente preservada pela ordem social,
que aloja cada membro em seus devidos lugares, poderia trazer de volta o
“equilíbrio” necessário ao Complexo de Édipo tal como prescrito pela
Psicanálise e que é sinônimo da introdução do sujeito na cultura. Entendida
sempre como do pai, tendo sido a mulher situada já por Freud como inimiga
da civilização, obra do homem.
Se é pelo complexo de Édipo que a criança é introduzida na cultura, e se
a figura forte dessa tragédia pessoal é o pai ou seu nome e sua metáfora,
como queria Lacan, então estamos bem longe da realidade apresentada pelas
novas famílias, que tendem cada vez mais a dissolver a separação entre pai e
mãe imposta por essa teorização e pelo código patriarcal. E assim temos um
problema grave, porque se trilhamos a realidade social e psicológica da
subjetivação contemporânea com essa teoria, na qual a clivagem entre
“função materna” e “função paterna” ocupa um lugar estruturante, somos
levados a uma versão normativa da Psicanálise, que complica sua atividade
analítica.
Nesse modelo do Édipo freudiano retomado pela leitura lacaniana que se
tornou a mais difundida e popularizada, cabe ao pai a Lei, a autoridade e o
poder – inclusive sobre a mulher. À mãe restaria a subordinação hierárquica
ao marido, que deve ser estendida também às relações dele com o filho: a
mãe deve introduzir o pai no circuito originário do qual ele foi excluído, já
que ele ou a “função paterna” só se apresenta adiante, no momento posterior
ao nascimento dessa criança então filha de Maria. Excluído da fecundação,
restará ao pai o poder de cortar o cordão, de interditar a fusão com a mãe
lançando o filho num incesto... paterno para que, a partir daí, ele viva só e
exclusivamente nas paragens do pai, com quem Lacan, como Freud,
identifica a cultura e suas obras.
No que não inovam em nada: apenas reproduzem a partilha que
atravessa a cultura ocidental desde os gregos e que consiste na feminização
da carne oposta à virilização da razão e do espírito. Antagonismo e exclusão
que atingem a educação, a prática clínica e o domínio epistemológico ou dos
conhecimentos. O patriarcado reparte assim os lugares de homens e
mulheres, fixando as mulheres na casa e na família e fazendo os homens
circularem pelo espaço público, atribuindo às mulheres a fecundidade (as
pulsões) e aos homens, o poder (o falo).
Esse modelo de Édipo implanta o bebê na mãe desde as origens e exclui
o pai de sua concepção, atribui o nascimento à partenogênese materna,
invocando uma onipotência quase apocalíptica da mãe. O que leva
psicanalistas contemporâneos a exigirem sua urgente intervenção profissional
em favor do pai, como Atena nas Eumênides.
À contracorrente da história da cultura que “erodiu” o patriarcado ao
longo do século XX, trazendo à cena formas alternativas de organizações
familiares que convivem com esta, tradicional e fortemente patriarcal, não
são poucos os psicanalistas que advertem com furor sobre o perigo de tais
transformações precisamente em nome da lei do pai e da metáfora paterna
castradora e interditora da fusão incestuosa, em nome, portanto, da sua
teorização psicanalítica. A tirania infantojuvenil teria de ser debitada na conta
do poder desmedido e “transbordante” conquistado pelas mulheres, chegando
mesmo a “denunciar” que vivemos na era de um matriarcado moderno, numa
espécie de chamado à ordem para as gerações pós-1968. Não surpreende a
ausência de diálogo da Psicanálise contemporânea com os movimentos
feministas.
A mulher do século XXI já não está fixada no espaço doméstico, tendo
conquistado também o espaço da civilização do qual fora excluída pelo
patriarcado. Além disso, reivindica que o homem venha partilhar com ela os
encargos e cuidados com a moradia, os filhos, a família. Assim como o
homem também exige um lugar próximo a seus filhos do qual não quer abrir
mão. E a criança conquista definitivamente o centro e a razão da vida
familiar.
A concepção do Édipo como um complexo paterno exigindo a clivagem
entre dois polos sexuais não parece deixar outra alternativa senão a guerra de
prestígio entre o casal parental pela criança, disputada como um troféu.
Priorizar a rivalidade entre pai e mãe eclipsa a luta travada por Édipo
parricida, mas também matricida em outra versão menos difundida, da qual
sai vitorioso acusado de exterminar a diferença entre as gerações ao fazer-se
filho e esposo de Jocasta, sua mulher-mãe.
Trazer para o intrafamiliar todo o conflito subjetivo é avalizar a ordem
patriarcal, fomentando sua ideologia separatista que mutila homens e
mulheres, impedindo que homens possam gozar dos prazeres da intimidade
com seus filhos e que as mulheres possam usufruir das conquistas
profissionais e narcisantes. O conflito entre família e profissão foi apontado
por Freud e continua a fazer suas vítimas. Não é para atenuar a angústia do
extrafamiliar que as crianças chamam de “tia” sua professora? Tratamento
esse hoje tão mal compreendido quanto duramente combatido pelos
militantes da realidade e da razão, que varrem fadas e bruxas da escola,
banindo os voos da imaginação. Esse conflito entre exigências familiares e
exigências da vida profissional atinge de maneira contundente as mulheres do
nosso século, em especial sob a forma de um conflito entre o feminino e o
poder. Se por definição o poder é fálico e a fecundidade é feminina, como
homens e mulheres poderiam partilhá-los sem fazer seu ser sexuado
estremecer?
É para refletir sobre esse conjunto de questões que nos inquietam que
convido você, leitor, a percorrer as páginas seguintes. Estaríamos ameaçados
por esse reino da mãe, um matriarcado moderno no qual as mulheres
imporiam seu poder retaliando a opressão histórica a que foram submetidas?
Perigosas, essas novas poderosas provocariam sérios danos psíquicos em
seus filhos, seja por sua ausência na maternidade, seja por sua negligência e
permissividade culposa, seja ainda por seu autoritarismo desmedido que não
se detém sequer diante da sua “natural” vocação para a coesão familiar, em
nome da qual aprenderam a abrir mão de seus desejos pessoais? Um poder
curiosamente impotente diante do fenômeno que a todo momento pipoca na
mídia, que o situa quase como o flagelo dos nossos tempos: o despotismo
infantojuvenil, a falta de limites de crianças e jovens que, sozinhos ou
organizados em grupos, tiranizariam pais, educadores, professores, mendigos,
prostitutas, índios e quem mais lhes der na telha.
Novas ou velhas famílias dividem angústias e inquietações e são
constantemente desafiadas pelas exigências que o mundo contemporâneo
impõe à educação de seus rebentos. A mulher pode dedicar-se a uma
profissão e o homem pode encerrar sua vida como Brás Cubas encerrou suas
memórias póstumas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o
legado da nossa miséria”. Ou ser convocado pela mulher a ter filhos e a
partilhar encargos e cuidados cuja exclusividade ela rejeita; ou, ao contrário,
exigir um lugar tão próximo aos filhos quanto o que ela exerce. A criança
conquista definivamente o centro e a razão da vida familiar. Movimentos
como o childless ou o childfree ajudam a lembrar que ter filhos é uma
escolha ligada à responsabilidades sem prazo de validade, e que é possível
frustrar a expectativa social e recusar a criança no comando das nossas vidas.
As explicações mencionadas por mim já na Introdução, para o problema
das crianças sem limites, supostamente resultante das novas famílias ou das
conquistas das mulheres, não se sustentam quando cotejadas com as
descobertas de historiadores, antropólogos, sociólogos, teólogos, filósofos e
todo o material oferecido pela cultura como fonte de pesquisa. A dispersão do
poder, antes concentrado na figura paterna (família patriarcal), é uma
realidade histórica e nada nessa história nos autoriza a afirmar que o poder do
pai foi usurpado ou deslocado para a mãe e essa, por negligência,
permissividade, culpa, estaria na origem das crianças sem limites. Hipótese
que, segundo penso, deriva da guerra dos sexos, tão velha quanto o medo da
mulher – ou misoginia.
Com essa guerra começo o capítulo 1, “Eu sou o cara, o príncipe do
gueto, o cara que manda. A supremacia masculina sitiada”. Recuo no tempo
até os gregos e sua mitologia para ilustrar a antiguidade de um conflito que,
dois mil anos depois, infiltra-se disfarçado em modernas concepções
psicanalíticas sobre a família. No contexto da antiga animosidade com o
feminino, o pai teria perdido o poder na família: de “patriarcal” ela teria se
tornado um “matriarcado moderno”. Esse fantasma ameaçador representado
pelo feminino esconde o fato histórico: o poder que o pai perdeu foi
deslocado não para a mulher, mas para os “sem limites”.
No capítulo 2, “Cala a boca, besta!”, com a análise de Brás Cubas,
personagem criado por Machado de Assis, seguindo em meu objetivo de
resgatar a dimensão erótica da formação humana ou educação, mostro o
prazer e a paixão de dominar experimentados pelo “menino diabo”, protótipo
do novo fenômeno a que fui conduzida por essa pesquisa e para o qual criei o
conceito de “pedocracia”. O pai, de fato, perdeu o poder, mas foi a criança
que triunfou na guerra entre as gerações: o século XX terminou com a criança
no centro do poder familiar.
Apoiada nos estudos de historiadores, sociólogos, antropólogos,
filósofos e partindo dos novos fundamentos para a psicanálise propostos por
psicanalistas contemporâneos pós-lacanianos explico, nesses dois primeiros
capítulos, minha recusa ao suposto domínio de uma família matriarcal. Ela
me leva a uma nova análise dos “sem limites”, explorando a dimensão erótica
e pulsional do exercício do poder e do domínio sobre o outro que o “menino
diabo” exibe sem pudor.
No capítulo 3, “O feminino e o poder”, retomo o contexto formado pela
escravidão e o domínio patriarcal sobre a mulher para aprofundar a análise da
inadequação da hipótese de um “matriarcado moderno” a ameaçar a saúde
psíquica das crianças com a psicose e outros males que estariam por ser
descobertos. Como afirmar tal poder das mulheres numa cultura que, como é
o caso da cultura ocidental, pelo menos há dois milênios identifica o poder ao
masculino e vê o feminino como a sexualidade encarnada? Se o adulto
encarregado de render homenagens e idolatrar a pequena divindade pertence
a um gênero – o gênero feminino – então, ao contrário do que dizem as
abordagens psicanalíticas da educação, longe de ver seu poder transbordar
ameaçando o filho na psicose, é na condição de súdito, de escrava da criança
que a mãe chega ao século XXI.
No capítulo 4, “A misoginia na teoria das funções paterna e materna”
mostro a misoginia, que é o meu leme em todo esse percurso investigativo,
atualizada na “função paterna” da psicanálise lacaniana. A teoria lacaniana da
função paterna será moldada por essa forma misógina, encarregando o pai de
proteger a criança do apetite de ogra da mulher, da ameaça de dissolução que
ela representa por seu desejo de reincorporar o seu produto. A função paterna
identificada à Lei, à autoridade, repete a história da misoginia da cultura, que
faz do poder uma prerrogativa dos homens e que também se expressa em
domínio sobre a mulher.
Finalmente no capítulo 5, “Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta
flor” volto ao “menino diabo”, agora para mostrar o orgulho e a satisfação
narcísica do pai diante de cada ato de desobediência do seu herdeiro,
argumentando que a transgressão do filho é a insígnia da nobreza do pai. O
narcisismo do pai coroa o pequeno tirano. É a dimensão erótica da educação
agora vista da perspectiva dos adultos, do prazer que a pedocracia
proporciona aos pais e adultos. Lá do outro mundo nosso defunto autor conta
sua história e comenta sua educação e é visível o orgulho que seu pai sente ao
transferir o poder para seu herdeiro, coroado imperador. O que pode ser uma
boa notícia: se nós o coroamos, se nós pusemos Édipo no seu trono
instituindo a pedocracia que nos atormenta, criando os déspotas mirins que
nos sequestram de nossa vida interior, então nós também podemos destituí-
los.
1 “Eu sou o cara, o príncipe do gueto, o cara
que manda.” A supremacia masculina sitiada
“Eu sou o cara, o príncipe do gueto, o cara que manda”, disse o
assassino de Eloá Cristina, estudante de 15 anos que havia terminado o
namoro com Lindemberg Fernandes Alves, 22 anos. Recusando-se a aceitar a
decisão da menina, em outubro de 2008 o ex-namorado entrou no
apartamento onde ela morava com a família, em São Paulo. Depois de liberar
os colegas com quem ela estudava, Lindemberg manteve Eloá sob a mira de
sua arma ao longo de quase uma semana, num episódio que mobilizou o país.
Emissoras de televisão e polícia aglomeravam-se dia e noite do lado de fora,
transformando a tragédia em um reality show acompanhado por todo o país.
Até o seu desfecho quando, atirando em Eloá, o “cara que manda” provou ser
o dono do poder. E, pois, da decisão: só ele, o homem, poderia por um fim
(ou dar início) à relação.
À época desse episódio eu escrevia esse capítulo, daí o título escolhido.
O conflito milenar entre os sexos infiltra-se disfarçadamente em nossas
teorias e concepções e está nos fundamentos do postulado de um
“matriarcado moderno” – postulado sustentado à revelia dos estudos sobre a
família e a cultura contemporânea.
A Greve do Sexo (Lisístrata) é uma comédia escrita pelo grego
Aristófanes há vinte e cinco séculos. Nela Lisístrata, a personagem-título,
lidera uma greve de sexo entre as mulheres para acabar com a guerra na
Grécia. A greve, vitoriosa, consegue fazer com que os maridos rendam-se ao
poder das mulheres e assinem, enfim, a paz. Em A Revolução das Mulheres
do mesmo autor, o mais famoso autor grego de comédias, as atenienses
resolvem tomar o poder baseadas no princípio de que quem sabe administrar
o lar também é capaz de dirigir a nação. Vitoriosas na revolução, determinam
a distribuição de todos os bens para acabar com a pobreza. Decretam que as
feias e sem atrativos devam ser satisfeitas antes das belas e que os velhos e
baixinhos têm de ser satisfeitos antes dos jovens, bonitos e fortes.
A Grécia produziu comédias e tragédias, mas nossa civilização parece
não ter levado o humor muito a sério. Dois psicanalistas, Abrão Slavutzky e
Daniel Kupermann, abordam essa questão no livro Seria Trágico... Se não
Fosse Cômico (2005). Na “Apresentação” da coletânea lembram Freud, que
tinha o humor como teimoso e rebelde, capacitando “o sujeito a rir não
apenas do outro, mas também, e sobretudo, de si mesmo, gerando potência e
alegria onde se esperava apenas dor. Seria trágico... se não fosse cômico”.
Também em Shakespeare, a comédia foi uma das formas que o conflito
entre homens e mulheres tomou: em A Megera Domada Petruchio busca
uma mulher rica para casar e se apropriar de seu dote e Batista luta para casar
a filha mais velha de modo a que a caçula, que já tem dois pretendentes que a
disputam, possa se casar. Catarina, a primogênita, é briguenta, insolente,
agressiva, indomávele e afasta todos os possíveis maridos. Bianca sabe adular
o pai, que não esconde sua preferência por ela.
O tema central dessa comédia de Shakespeare é a luta pelo domínio do
outro (luta do homem pelo domínio da mulher). Mas também são importantes
as relações familiares: a rivalidade e o ciúme entre as irmãs, e sua relação
com o pai. Boa dica no texto de Shakespeare, diz Barbara Heliodora, que
evita a leitura superficial da última cena que mostraria uma transformação da
megera em gueixa. Por exemplo, quando Catarina diz: “O mesmo dever que
prende o servo ao soberano prende, ao marido, a mulher. E quando ela é
teimosa, impertinente, azeda, desabrida, não obedecendo às suas ordens
justas, que é então senão rebelde, infame, uma traidora que não merece as
graças de seu amo e amante? Tenho vergonha de ver mulheres tão ingênuas
que pensam em fazer guerra quando deviam ajoelhar e pedir paz. Ou
procurando poder, supremacia e força, quando deviam amar, servir,
obedecer”.[3]
Mitologia, arte, filosofia, teologia, discurso científico: qualquer criação
humana tem servido como palco para essa batalha dos sexos em nossa
cultura. Na versão mais conhecida da genealogia do homem e da mulher tal
como narrada pela Bíblia, Eva, a gulosa, é incitada à desobediência pela
serpente e com isso provoca a expulsão do primeiro casal do Paraíso. A
punição de Deus prescreve ainda que a mulher parirá na dor e obedecerá a
seu marido, o qual deverá ganhar o pão com o suor do seu rosto. O mundo
grego também tem a sua mulher armadilha no mito fundador da humanidade,
o mito de Prometeu. Com raiva de Prometeu, Zeus mandou fabricar Pandora,
uma armadilha, uma mortal sedutora. Ela abre a caixa que trazia consigo bem
fechada, libertando os males e a morte.
Eva e Pandora são duas mulheres que estão na origem da humanidade
cujo maior feito foi desgraçar a civilização. Além de Jocasta, na origem da
nossa humanidade, acusada do mesmo mal. Nas origens da humanidade, e
nas origens da nossa humanidade, uma mãe-Eva oferece o fruto proibido.
Quando nascemos somos recebidos por uma mulher ávida de amor que
oferece o seio ao bebê para saciar sua fome de leite. A criança-Édipo lutará
com seus impulsos libidinosos e hostis que dirige a Laio e Jocasta.
O combate encenado há milênios infiltra-se em concepções sobre a
família (pai, mãe, filho) gerando teorias que justifiquem o establishment e o
perpetuem. Por exemplo, aquela que exclui o pai – e o homem – dos cuidados
com o bebê e a criança, considerados atributos “naturais” da mulher.
Muitos analistas de diversas tendências ou “escolas” chamam nossa
atenção para a enorme ameaça de feminização da cultura contemporânea
marcada pelos avanços das mulheres. Temem a feminização da educação, das
relações familiares e da sociedade em geral. A mesma sociedade que
responsabiliza a mulher pelos cuidados com os filhos... Esquecidos dessa
imposição que a cultura faz ao feminino, tais psicanalistas levantam a
bandeira da necessidade premente de interditar o poder da mãe – poder que
ela, a sempiterna invejosa, teria usurpado do pai. Se o feminino psicanalítico,
invejoso (do pênis) por definição, chega a ter algum poder, só pode ser
porque o roubou do seu detentor legítimo e natural.
Ora, apesar dos avanços inquestionáveis promovidos pelos movimentos
feministas, estamos muito longe de uma feminização do poder. Não é o caso
de nos perguntarmos, então, de onde viria esse pânico social? De onde
poderia surgir esse pavor da imposição de um matriarcado moderno?
Convém lembrar que essa não é a primeira vez na história que o feminino
provoca pânico e horror, como se pôde testemunhar na intensa caça às bruxas
que atravessou o mundo durante séculos.
Ressurgem aqui os temas do imaginário e da constituição dos
conhecimentos científicos, da epistemologia, do originário, do infantil,
recobertos por diferentes roupagens e articulando, todos, a questão do
feminino que constitui o meu campo de interesses. A questão do feminino e
as atitudes de inveja, defesa, aversão, ódio, admiração, celebração de que ele
é objeto, além das suas potencialidades nas diversas áreas da atividade
humana – o trabalho terapêutico, o trabalho intelectual, a cultura e as
instituições da infância – particularmente a educação escolarizada e a família.
De imediato uma questão se apresenta: as enormes limitações da
concepção do feminino como castrado e invejoso que predomina na
Psicanálise desde Freud. De que fontes inconscientes tais atributos
emergiriam? A fundação arcaica da formação de um ser talvez seja uma das
experiências que mais agudizam um conflito inerente à nossa humanidade:
não é só a castração separadora e discriminadora que nos ameaça – a tão
alardeada diferença que a insistente patrulha do “politicamente correto” tenta
marcar. A identidade, que apaga as diferenças, não carrega menores poderes
de nos destruir (NEDER BACHA, “O arcaico pagão de Renato Mezan.
Resenha de Interfaces de Psicanálise”). Talvez o narcisismo das pequenas
diferenças – que se expressa, por exemplo, na multiplicação de tribos urbanas
ao nosso redor – seja uma defesa nesse mundo contemporâneo tão marcado
pela aproximação entre as gerações e entre os sexos.
Essa proximidade conquistada mudou a face da família. Os papéis de
homens e mulheres já não se definem por oposição, digamos assim, e o pátrio
poder já não parece mais tão exclusivamente paterno. Pois bem, como será
que esses novos modos de organização familiar, que são também novos
modos de inserir a criança na estrutura social, afetam sua organização
psíquica? Se é verdade que a criança está à deriva em seus próprios impulsos,
sem os limites continentes como tantas vezes especialistas alertam, então
estamos bem perto de afirmar que estamos criando verdadeiros imperadores.
Já não era essa supremacia que perseguia o nosso “herói da casa”, o pequeno
Brás Cubas com seu “espadim de 1814, tão superior à espada de Napoleão”?
Nossa tirania infantil tupiniquim já ia bem nutrida no berço de nhonhô,
nascido numa cultura alicerçada na escravidão e num patriarcado clientelista
que fornece muita matéria para o nosso autor defunto ou defunto autor
escrever suas Memórias Póstumas.
O crepúsculo do poder paterno

A Família – texto-síntese da situação da família ocidental publicado por


Lacan em 1938 – caracteriza a família por sua estrutura hierárquica e sua
condição de “órgão privilegiado” de “coação do adulto sobre a criança”
(1981, p. 14). O psicanalista chama a atenção para os inúmeros efeitos
psicológicos que relevam do “declínio social da imago paterna”,
particularmente “a grande neurose contemporânea” provocada pela
“personalidade do pai, sempre faltando”, ausente, humilhada (p. 72-73).
Roudinesco lembra que para Lacan “a família é organizada segundo
imagos, um conjunto de representações marcadas pelos dois polos do paterno
e do materno”, e é a condição necessária e indispensável da humanização do
indivíduo (ROUDINESCO, 2003, p. 110). Muitos anos depois Laplanche
(psicanalista francês morto em 2012) problematizará esse familiarismo
psicanalítico, que condiciona a humanização ou constituição da subjetividade
ao triângulo familiar. No lugar de pai-mãe-filho Laplanche formulará sua
teoria da sedução generalizada que postula como verdadeiramente
necessário e universal na condição humana a relação entre a criança e o
adulto, uma vez que todo bebê ao nascer é necessariamente acolhido por um
adulto, em cuja cultura deverá ser introduzido.
M. Marini retoma o texto de Lacan supracitado, no verbete “Complexo
de Édipo”, que redigiu para o Dicionário Enciclopédico de Psicanálise. O
legado de Freud e Lacan. Escreve que desde essa época (1938) Lacan já
chamava a atenção para “a degradação do papel do pai e de sua imagem na
família e na sociedade; após a guerra, reavaliar a função do pai tornou-se para
ele uma ‘ardente obrigação’; foi nessa perspectiva que operou seu ‘retorno a
Freud’. Era preciso refundar sobre o complexo paterno uma Psicanálise que
fora abastardada, a seus olhos, pela invasão do materno e, de modo mais
geral, do pulsional” (p. 141).
Lacan prosseguiu com o empreendimento freudiano de revalorização da
figura paterna, escreve Elisabeth Roudinesco em A Família em Desordem, e
lutou contra a “maternalização” da família nuclear – ameaça vivida
intensamente por toda a sociedade até o final do século passado. A sociedade
teria sido invadida pelo “terror de um fim do pai, de um naufrágio da
autoridade ou de um poder ilimitado do materno” derivado do pânico pela
abolição da diferença. O final do século XIX debate acaloradamente o
declínio da autoridade paterna e da escalada do “poder das mulheres”. O
“reino do matriarcado” ora é identificado como fonte de caos, de anarquia e
de desordem, em oposição ao patriarcado, sinônimo de razão e de cultura; ora
como um paraíso original e natural destruído pelo patriarcado para instaurar
seu despotismo autoritário. Um consenso atravessa o debate: o patriarcado é
uma forma tardia de organização social e que sucedeu a um estado primitivo
matriarcal, irracional, selvagem.
O Mutterrecht de Bachofen (1861) expressa claramente esse horror da
feminização do corpo social, continua Roudinesco. O reinado do patriarcado
triunfa sobre os malefícios da ordem materna, sendo o único a permitir uma
civilização do espírito. O pai separa o filho da mãe para garantir sua
independência. Mas esse necessário regime patriarcal, apesar de solidamente
estabelecido há séculos, continua a ser ameaçado por “reminiscências”.
Porque sempre subsiste nele “a lembrança recalcada do matriarcado”,
“através dos mitos e das lendas”. “É preciso portanto defendê-lo e protegê-lo
contra a irrupção do feminino” (p. 44).
No alvorecer do século XX o patriarcado teria sido ainda mais -
ameaçado, já que um matriarcado moderno vai se instalando na família. A
emancipação das mulheres ameaça porque favorece a feminização da
sociedade “através da abolição da diferença dos sexos e da generalização da
androginia” (ROUDINESCO, p. 44-45).
Assim como para Bachofen, também para Freud o logos é de essência
masculina e seu triunfo sobre o mundo sensível – triunfo do patriarcado sobre
o matriarcado, triunfo do pai sobre a mãe – corresponde a um “progresso”.
A maternalização da vida familiar levou os psicanalistas a abandonarem
o freudismo clássico em prol das teorias de Melanie Klein, escreve
Roudinesco. De modo crescente, a mãe foi privilegiada no universo da
criança em detrimento do pai e de sua função separadora. Freud foi o porta-
voz desse “patriarca abatido”, “mutilado” e durante todo o século XX a
Psicanálise fará a emancipação sexual dos filhos e das mulheres derivar do
assassinato do pai.
Em Feminilidade e Função Materna, Maria Cristina Ocariz comenta “o
problema do poder excessivo exercido pela mãe”. Embora a mulher possa
continuar “sendo, em algumas circunstâncias, vítima dos abusos de poder”,
esse assunto exige uma revisão cuidadosa. As mudanças do século XX
tornam “inevitável encarar qual é o poder” que as mulheres exercem.
“Nós, psicanalistas, sabemos que feminilidade e função materna
estiveram sempre muito relacionadas. Na criação dos filhos o lugar da
mulher é poderoso.” (OCARIZ, 2002, p. 284)
Apoiando-se em outros analistas, Ocariz adverte contra o
“transbordamento do poder da mãe” e afirma a necessidade premente de
interditá-lo. Cita Julien em A Feminilidade Velada para quem hoje a mulher
teria sobre a criança um poder médico (é ela quem decide sobre o nascimento
de uma criança – e não o pai); um poder judiciário (é ela que fica com a
guarda das crianças nas separações, graças à valorização que a Psicologia
atribui à díade mãe-criança); e é ela que detém o poder de ensinar e educar.
Daí a psicanalista concluir que nós, “psicanalistas brasileiros”, estamos em
uma encruzilhada que não é simples porque este “poder crescente e não
interditado das mães brasileiras sobre seus filhos” provocam consequências
que aparecerão no sofrimento dos pacientes que nos procuram (2002, p. 286).
O tom admoestador evoca a reação de analistas franceses ao
reconhecimento legal da vida em comum obtido pelos casais homossexuais
em 1999, conforme relato de Roudinesco:
“A propósito, Simone Korf-Sausse comparou os homossexuais a clones
incapazes de enfrentar qualquer coisa a não ser a ‘lógica do mesmo’ e
Charles Melman declarou num programa de televisão que os ‘filhos dos
casais homossexuais seriam brinquedos de pelúcia destinados a
satisfazer o narcisismo de seus pais’.” (2003, p. 193)
O mesmo Charles Melman sublinhou, em O Matriarcado, os riscos
psicológicos desse crescente poder das mães. Depois de ressaltar “a presença
ativa em nossa cultura” do matriarcado, “mesmo que não seja
manifestamente nomeada como tal”, escreve:
“E acho bastante humorístico que, por razões diversas – entre as quais
algumas certamente pertencem ao próprio Freud a respeito do que direi
uma palavrinha –, não seja identificada e nomeada como tal na produção
de um certo número de sintomas, especialmente sexuais, tanto nos
meninos, quanto nas meninas, a presença, no meio de nós,
eminentemente ativa, formadora, do matriarcado.” (MELMAN, 2001,
p. 15)
Os avanços das técnicas de contracepção e de procriação adensaram
ainda mais a sombra ameaçadora das mulheres, conforme lemos em
Roudinesco – uma voz entre tantas – já que teriam reservado a ordem
procriadora inteiramente “ao poder das mães, detentoras atualmente da
responsabilidade exorbitante ora de designar o pai, ora de o excluir (...). Com
a conquista definitiva de todos os processos da procriação pelas mulheres, um
temível poder lhes foi reservado no final do século XX” (2003, p. 167 e 118).
Diferentes momentos da evolução feminina, de Lucía Barbero Fuks, é
mais um texto a tratar do triunfo materno sobre o pai. Essa “crise do
patriarcado” “provém, também, de um deslocamento de poderes do pai para
a mãe, e esse é o ponto que nos interessa mais profundamente nesta análise”
(2002, p. 111, grifos meus). Apoiando-se igualmente em P. Julien (1997) a
autora observa que foi só no final do século XX que tal deslocamento pôde
aparecer de forma clara.
Em A Feminilidade Velada. Aliança conjugal e modernidade, Philippe
Julien de fato escreveu: “O declínio [do pai] vem do deslocamento do poder
do pai para a mãe” (1997, p. 19). Como outros psicanalistas aqui citados,
Philippe Julien está em plena conflagração: é um soldado na guerra dos
sexos. “É esta, portanto, a situação dos meninos, nos dias de hoje: escutar, e
seguir a palavra enunciada pelas mulheres.” É curioso que, mesmo tendo
citado o deão Carbonnier – “o direito da família se tornou pedocêntrico” –,
Julien não recue dessa posição muito difundida por não poucos psicanalistas
contemporâneos e que consiste em tomar o conflito entre os sexos como
conflito primordial, desprezando o conflito entre gerações que, ao contrário,
sempre esteve presente na formulação freudiana do complexo de Édipo.
Héritier, segundo Márcia Arán, também observa uma “expulsão do
masculino” na família que hoje estaria centrada na figura da mãe.
Para Françoise Hurstel, em As Novas Fronteiras da Paternidade, as
novas representações do pai pós-1968 fazem dele “o espelho-da-mãe” e rival
das mulheres. “Estas são apresentadas como as ‘donas do jogo’”; jogo que
poderia ser reduzido à pergunta: “Quem tem o poder sobre o filho?” (1999, p.
30).
Em De la Paternité Triomphante à la Paternité Negociée (2000), G.
Delaisi de Parseval pergunta se um pai que “paterna” (troca as fraldas de seu
bebê, embala-o, caminha com ele) conforme o modelo materno pode ser um
verdadeiro pai. Um pai que permanece em casa enquanto sua companheira
trabalha fora é um “pai suficientemente bom”, como diria Winnicott?
Jean-Pierre Lebrun, autor de Um Mundo sem Limite. Ensaio para uma
Clínica Psicanalítica do Social, também aponta e critica “a invasão da figura
materna” na família. “Sem entrar agora nos detalhes dessa evolução,
devemos, com efeito, constatar – com Evelyne Sullerot – que não podemos
colocar como suspeita demais de machismo, que ‘como a pedra angular sobre
a qual se edificou o sistema patriarcal se quebrou, a mulher se tornou aquela
que decide e aquela que põe no mundo. É ela quem escolhe o homem com o
qual fará seu filho. É ela quem escolhe o momento que considera mais
favorável para seu projeto. Ela se tornou, de alguma forma, simultaneamente
pai e mãe na origem da criança’” (apud LEBRUN, 2004, p. 15).
“A Crise do Macho” na Folha de S.Paulo de 18 de março de 2009
anuncia a estreia de Contardo Calligaris como dramaturgo com “O Homem
da Tarja Preta”. Trata-se de um monólogo que discorre sobre a crise atual dos
grandes estereótipos em torno dos quais a masculinidade se estruturou, como
o papel de provedor, levando-o a perguntar: “Por quais características o
homem contemporâneo se reconhece?”. Completando: “A feminilidade se
reconhece por dar à luz. Já a posição do homem é mais trágica e perigosa.
Talvez matar seja sua particularidade, aquilo de que se vale para ser levado a
sério”, e cita os atiradores das chacinas em escolas/universidades, sempre do
sexo masculino.
De fato, nem é preciso ir longe no tempo para descobrir a distribuição
imposta pela cultura: as guerras são assunto de homens. Porque nessa mesma
cultura a agressividade é viril como a razão que a sublima. Tratei disso com
Sophie de Mijolla-Mellor e Renato Mezan no meu livro Psicanálise e
Educação. Laços Refeitos. A crítica freudiana da cultura, explorada pelo
autor de Freud, Pensador da Cultura, abala essas identidades estabelecidas
entre pai e agressividade e mãe e ternura. A solidez dessas identidades
culturais chega a ser impressionante. Talvez o ventre seja menos paradisíaco
e aconchegante que o sugerido pela mãe suficientemente boa, conforme
escrevi no outro livro, A Arte de Formar: o Feminino, o Infantil e o
Epistemológico.
A polarização ou clivagem entre homem e mulher se prolonga nas
inúmeras tentativas contemporâneas para definir o pai, afinal, “o que é ser
pai?”. Essa pergunta hoje recorrente está sempre em busca de algo próprio,
específico da paternidade e apenas da paternidade. A questão é a de saber o
que “é propriamente paterno, e não materno?”. Na definição buscada por
esses analistas o pai não pode ter ou ser em nada semelhante a uma mãe.
Quando essa semelhança aparece é desprezada como “maternalização da
paternidade”, como quando se define o pai pela intimidade corporal com a
criança (nursing). E que não se sabe se deve ser chamada de paternagem ou
maternagem.
“Há hesitação. Para uns, é uma feliz maternagem, com o homem enfim
reconhecendo nele uma dimensão feminina, não viril, com seus valores
de doçura e de ternura; (...). Para outros, inversamente, trata-se de
paternagem, e não, em absoluto, de imitação da mãe; uma voz de
macho, gestos, uma masculinidade se revelam neste corpo a corpo
específico.” (JULIEN, 1997, p. 25-26)
Daí a conclusão do autor: o pai não pode ser designado como tal pela via
do nursing porque ele jamais terá com a criança a mesma intimidade da mãe,
capaz de gestar, parir e amamentar lembrando, justamente, do caráter
transformador para a mulher que sofre essas experiências. Essa experiência
da maternidade não pode ser comparada com a experiência do nursing
masculino. Definir a paternidade por essa função maternalizante é “reduzi-la
a uma pálida imitação da maternidade”.
Como nas demais análises das famílias contemporâneas aqui citadas,
esta também privilegia a olimpíada dos sexos, atribuindo o declínio do poder
paterno ao seu “deslocamento do poder do pai para a mãe”. Em todas elas
permanece implícita a tese freudiana do filho-falo, correlata a esse “imenso”
poder da mãe, um “poder secreto e escondido da mãe” de que fala Julien,
entre tantos.
A diferença sexual seria trágica... se não fosse cômica. Homem ou
mulher, qual dos dois reinaria, do Olimpo, sobre os mortais? Piadas que
circulam pela internet talvez expressem esse mesmo narcisismo das pequenas
diferenças, só que agora “atiradas” por “elas” ou a seu favor. “Eu penso –
logo, sou solteira”. “Nunca me casei porque nunca houve necessidade. Eu
tenho três animais em casa que equivalem a ter um marido: um cachorro que
rosna todas as manhãs, um papagaio que xinga todas as tardes e um gato que
volta para casa tarde todas as noites”. E, finalmente: “Por trás de todo homem
de sucesso tem uma mulher surpreendida”.
Tais contra-ataques nada ficam devendo a tantos ataques fulminantes,
como o de O. Mirbeau, em Rumo à Felicidade (1887): “Notem que não tenho
nada, absolutamente nada, de que me queixar da minha mulher, exceto pelo
fato de ser mulher”. Ou Weininger, que ainda no século XIX propõe a
erradicação do feminino para a mulher, “com grande reforço do itálico”,
conforme escreveu Dottin-Orsini: “Se qualquer feminilidade é imoralidade, a
mulher deve deixar de ser mulher... A mulher não precisa negar sua
feminilidade, assim como não precisa afirmá-la. Tudo quanto tem que fazer é
suprimi-la em si mesma (...) ou seja, a mulher deve desaparecer como
mulher” (DOTTIN-ORSINI, 1996, p. 334).
Roudinesco escreve que no século XVIII a “irrupção do feminino” veio
desafiar a soberania divina do pai, que até então e durante séculos fora a base
da família ocidental. A família passou a conceder um lugar central à
maternidade. Freud foi testemunha e principal teórico do declínio do antigo
poder patriarcal. A valorização da igualdade difundida pela filosofia das
Luzes desfechou os primeiros golpes na autoridade paterna, beneficiando a
criança e a mãe.
Por essa época a maternidade será exaltada como a atividade mais
invejável para uma mulher, da qual se diz que amamentará o filho por seu
próprio prazer. No Contrato Social Rousseau imaginou um hipotético estado
de natureza no qual, de início, a mãe amamentava os filhos por necessidade
própria: aliviar-se das dores provocadas pela subida do leite; com isso ela se
afeiçoava a eles e por hábito passava a amamentá-los pela necessidade deles.
Fiando-se inteiramente no manifesto desse discurso, Badinter seguirá
Rousseau e atribuirá à necessidade a oferta materna do aleitamento:
“É a necessidade, e não o amor, que a leva primeiro a dar o seio, e que é
portanto a primeira causa da maternagem. Todos os que discorreram
sobre o amor materno e a dedicação espontânea da mãe falaram sobre
esse aspecto das coisas. Esqueceu-se que o aleitamento era em primeiro
lugar mais o efeito do egoísmo materno, do que do seu altruísmo.”
(BADINTER, 1985, p. 165)
Tivemos de esperar até meados do século XX, quando Laplanche viria a
formular a sua teoria da sedução generalizada, para tirar da obscuridade o
prazer da mãe que oferece o seio ao bebê que necessita do seu leite,
explicitando em termos psicanalíticos esse “egoísmo” referido por Badinter.
A religião da maternidade e a infantolatria
A valorização da maternidade a partir do século XVIII resultou da
valorização da criança até então considerada um ser naturalmente maligno,
como veremos adiante. Daí que o traço característico dessa mãe moderna é o
de ser um súdito de sua majestade, o bebê. A criança começa um reinado que
a transformará no déspota mirim do século XX. Agora santificada pelo filho,
a mãe exerce o sacerdócio da maternidade que, como todo sacerdócio,
implica sofrimento, renúncia, imolação. A maternidade torna-se uma religião
e dela se fala com um vocabulário religioso: “vocação”, “sacrifício”,
“devoção”.
O Emílio de Rousseau é emblemático dessa nova concepção. A
hostilidade que a criança despertou até aqui é recalcada sob a imagem da
pureza e da inocência infantis. A mãe amaldiçoada da Criação dá lugar à
religiosa: “A verdadeira mãe de família, longe de ser uma mulher de
sociedade, não será menos reclusa em sua casa do que a religiosa em seu
claustro”, conforme Sophie.
Michelet é um militante dessa maternidade santificada. Em A Mulher
(1859) ele escreve que a mãe gera um Deus, o filho é seu fruto divino e a
relação dos dois é um culto. A mãe idolatra e diviniza o filho achando “doce
e desejável” imolar-se por ele. A mãe adora a criança e a vê “como ideal,
como absoluto de beleza e de bondade, o auge da perfeição”.
Cada vez mais o adulto-satélite girará em torno da criança-Sol, ofuscado
pelo brilho de Sua Majestade, o bebê. O astro Rei provoca um verdadeiro
eclipse do adulto e do seu inconsciente, eclipse que acabou sendo prescrito
pelas teorias e práticas da infância e da educação: o psicanalista, igualmente
ofuscado pela luminosidade da criança-Sol, seguirá incansável em busca da
“sua” transferência, da “sua” dificuldade e da “sua” motivação para aprender
– desprezando o inconsciente e os conflitos do adulto formador (NEDER
BACHA, 2005).
Ao mesmo tempo, as responsabilidades da mãe foram ampliadas para
além da função de nutrição: como já assinalado, nos séculos XIX e XX ela
será também a responsável pela educação dos filhos. Essa ideia da mãe
educadora era “quase obsessiva no século XIX”: amar verdadeiramente o
filho não é só amamentá-lo, mas também educá-lo. Só “a mãe pode pretender
o título de educadora, conceito feminino por excelência”. O único ofício
permitido a uma mulher era o de professora, “mãe espiritual”, o que lembrava
de novo “à mulher que a maternidade não consiste apenas em dar à luz os
filhos. A função de mestra acrescenta-se à de procriadora, lactante e
educadora”. Exigindo-se a presença da mãe na condição de indispensável na
procriação, na criação e na educação, no mínimo dez anos de sua vida seriam
consumidos para exercer essas novas funções (BADINTER, p. 257 e 262).
As mães eram então consideradas “professoras natas” e as palavras
“mãe de família e professora” eram sinônimas. Tanto a mãe deveria ser a
primeira professora dos filhos, continua Badinter, quanto a “ambição mais
nobre” da professora deveria ser a de mãe para seus alunos. A função da
escola materna, criada em 1848, era “remediar a maternidade deficiente das
mulheres obrigadas a trabalhar” (BADINTER, p. 263-264).
No século XIX a mãe tem o dever absoluto de amar o filho. A falta de
amor é considerada um crime imperdoável e a mãe que não ama seu filho é
excluída da humanidade, pois perdeu sua especificidade feminina.
As mulheres sentiram-se cada vez mais responsáveis pelos filhos e,
quando não podiam assumir seu dever, sentiam-se culpadas. “Auxiliar do
médico no século XVIII, colaboradora do padre e do professor no século
XIX, a mãe do século XX arcará com uma última responsabilidade: o
inconsciente e os desejos do filho.” A Psicanálise aumentou muito a
importância da mãe, contribuindo para promovê-la a “grande responsável”
pela felicidade e equilíbrio psíquico de seu filho (BADINTER, p. 237).
A raiz do problema, diz Badinter, está na concepção psicanalítica da
feminilidade, que desenha a imagem da mulher e da mãe normais com os
traços da passividade, do masoquismo e do narcisismo. Isso fortaleceu a
concepção da maternidade como sacerdócio. O movimento feminista da
década de 1960 questionou os fundamentos e implicações da concepção
freudiana da feminilidade, destruindo o mito de Freud da mulher normal,
passiva e masoquista e colocando em grandes dificuldades os teóricos da
Psicanálise, acrescenta ela.
Se todos esses novos encargos levaram a uma promoção da imagem da
mãe, com a exaltação da grandeza e nobreza dessas tarefas, ao mesmo tempo
eles condenavam todas as mães que não sabiam ou não podiam realizá-las à
perfeição. “Da responsabilidade à culpa, foi apenas um passo, rapidamente
dado ao aparecimento da menor dificuldade infantil. É à mãe, doravante, que
se adquire o hábito de pedir contas...” (BADINTER, p. 238).
Acusadas de egoísmo, maldade, desequilíbrio, anormalidade, a mulher e
a mãe que se insurgissem contra seu destino natural eram obrigadas a assumir
a maternidade sem desejá-la, vivendo sob o signo da culpa e frustração, diz
Badinter. Pode ser que tenham feito todos os esforços no sentido de “imitar a
boa mãe, mas, não encontrando nisso a própria satisfação, estragaram sua
vida e a de seus filhos. Aí está, provavelmente, a origem comum da
infelicidade, e mais tarde da neurose, de muitas crianças e de suas mães”
(BADINTER, p. 255).
Se a mãe trabalha, o filho é vítima, o sacrificado e pouco amado. Ainda
mais culpadas são as intelectuais, porque não têm a justificativa econômica
das operárias para transgredir a linha doméstica do seu universo.
No entanto, como toda moeda tem dois lados, esse aumento em grande
escala das responsabilidades maternas desde o fim do século XVIII também
trouxe consigo uma grande ameaça, já que intensificou o terror da
feminização da sociedade, o medo do transbordamento feminino e do eclipse
da imagem do pai. É nesta tradição que se inserem os analistas que veem
surgir um matriarcado moderno na metade do século XIX, com o
fortalecimento do feminismo e da emancipação das mulheres. A sociedade se
movimenta para reafirmar o poder paterno, buscando tirar a família das mãos
das mulheres e das crianças
É fundamental ressaltar que para Badinter as mulheres não foram as
únicas responsáveis pela diminuição das funções, do poder e do prestígio do
pai: o Estado, que antes se colocara ao lado do pai, tomará o seu lugar no
século XIX. Esta seria a origem da transformação sofrida por sua imagem em
dois séculos (embora a autora seja ambígua em relação a isto: ora creditará às
mulheres a responsabilidade pelo declínio paterno, ora creditará a ambos,
mulheres e Estado). O Estado restringe e usurpa a autoridade do pai,
substituindo-o pela criação de novas instituições, fazendo um “patriarcado de
Estado” substituir o “patriarcado familiar”. A escola pública obrigatória
ocupou um importante lugar nesse patriarcado de Estado, tendo sido uma
das instituições que diminuíram consideravelmente o prestígio do pai.
Badinter se pergunta que papel resta ao pai, entre a mãe e o Estado que
usurparam o essencial de suas funções paternas e o despojaram da
paternidade atribuindo-lhe “apenas” a função econômica de provedor da
família. O que me leva a perguntar: “apenas?” O lugar de provedor não
colocava o pai no centro do poder da família, conquistador do mundo,
limitando o reino da mulher à casa, numa rígida e hierarquizada divisão de
papéis? Hoje um e outro territórios já não são mais exclusivos de cada sexo,
restando-lhes partilhar, negociar ou disputar o poder em cada um deles.
Como escreveu Joel Birman em Gramáticas do erotismo. A feminilidade
e suas formas de subjetivação em Psicanálise, “essa circunscrição espacial
teve como correlato uma distribuição de poderes entre os polos masculino e
feminino”. As mulheres ficaram com o espaço privado e os homens com o
público. Assim a família tornou-se o espaço feminino sobre o qual a mulher
exercia seu poder legítimo (BIRMAN, 2001, p. 56-57).
A cultura atribui aos homens o poder e às mulheres a fecundidade e os
trata como se fossem antinômicos e excludentes. Se a mulher ocupa um
espaço de poder torna-se “fálica”, mulher-homem; se o homem se aproxima
do bebê, torna-se “maternal”. Como escreveu Márcia Arán: “Mas há que se
admitir que a maior dificuldade, porque revela um paradoxo, é como uma
mulher poderia ocupar o espaço público (o que significa muitas vezes um
espaço de poder) sem ser chamada de fálica ou sem se tornar um homem?”
(ARÁN, 2006, p. 38).
A função paterna declinou em favor de uma autoridade parental
dividida. Em 1970 a noção de poder paterno seria eliminada da lei francesa,
com a supressão da expressão “chefe de família” . Roudinesco então se
pergunta “o que será do pai?”. Estaria ele condenado a ser apenas uma função
simbólica? Ou “a lutar para ser o patriarca de outrora?”. Ou ainda “a deixar-
se dominar pela onipotência do materno?” (ROUDINESCO, 2003, p. 11-12).
Chegados a esse momento convém introduzir uma questão que nos
acompanhará até o final deste livro: presos da lógica binária, fálica e
excludente do “ou eu ou você” – ou o pai/homem tem o poder, ou a
mãe/mulher o terá – somos levados a consolidar sempre com mais
intensidade a barreira social que separa a maternidade da paternidade,
anexando o bebê e a criança em território feminino, com todas as
consequências que daí advirão. Essa barreira social receberá sua formulação
psicanalítica mais difundida (e aceita no cenário da Psicanálise) no modelo
lacaniano do Édipo, que prolonga a clivagem cultural, separando uma função
paterna e uma função materna. Essa separação entre o que é do pai e o que é
da mãe promove a anexação do filho à mãe e, portanto, a “maternalização”
ameaçadora. Excluir o homem, o pai do convívio doméstico e cotidiano com
o filho desde o nascimento (para dar lugar à “maternagem”, que seria própria
e específica da mulher) é também promover o “transbordamento do poder
materno” que se pretende denunciar como uma usurpação indevida do poder
pela mulher.
Priorizar a rivalidade sexual é alojar inteiramente na família o conflito
subjetivo, ignorando a batalha maior entre a vida familiar e a vida
profissional travada pela mulher contemporânea em escala proporcional ao
seu avanço para o extradoméstico. Batalha onipresente em qualquer pesquisa
ou matéria sobre a família e que tem incidência direta no universo feminino.
Se a mulher ganha em “poder” e “domínio” junto aos filhos, é ao preço do
abandono ou de precarização da sua vida extra-familiar. E muito mais do que
isso, como argumentei em Os Filhos da Mãe, do abandono de si, de sua vida
interior, sequestrada por esse novo ser de quem se tornará refém. Não por
acaso a maternidade foi e continua sendo um tema espinhoso para os
movimentos feministas.
Em “Mulheres Básicas”, reportagem comemorativa ao dia Internacional
das Mulheres do Caderno Mais! da Folha de S.Paulo (de 8 de março de
2009), Euclides Santos Mendes pergunta a Bila Sorj, socióloga e professora
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sobre as dificuldades que as
mulheres enfrentam na sua inserção no mercado de trabalho em função das
tensões entre vida profissional e vida familiar. A professora responde que o
conflito entre trabalho e família “provoca a precarização das atividades das
mulheres, que acabam se orientando para atividades informais, como
jornadas de trabalho mais reduzidas e com reflexos reduzidos sobre seus
salários.”
Em 17 de maio de 2008 uma manchete no mesmo jornal “gritava”:
“Mulher trabalha quase o triplo do homem em casa”. Na matéria a repórter
Claudia Rolli relatava pesquisa do Ibmec-SP para avaliar as desigualdades
entre homens e mulheres quanto à participação no trabalho dentro e fora de
casa. O estudo mostrava que 85% dos homens tinham jornada no mercado de
trabalho de 40 horas ou mais por semana; entre as mulheres, o índice era de
56%. Estas “trabalham quase três vezes mais em serviços domésticos do que
homens que cumprem a mesma jornada de trabalho. Enquanto eles
trabalham, em média, 5 horas semanais fazendo serviços em casa, elas
dedicam 18 horas por semana às mesmas tarefas”.
Um ano antes, na edição de 4 de março de 2007, o Caderno Mais! da
Folha de S.Paulo publicava uma entrevista concedida ao Le Monde pela
historiadora do feminismo Yvonne Knibiehler, “Quem cuida das crianças?”,
que acabara de publicar um novo livro com esse nome, Qui Gardera Les
Enfants?[4] chamando a atenção para a maternidade e acusando o movimento
de negligenciar esse tema. Para ela, que foi contestada pelo feminismo, “a
maternidade continuaria a ser um elemento central da identidade feminina”. E
reivindica: “O feminismo precisa antes de mais nada repensar a maternidade.
Todo o resto lhe será dado como acréscimo.”
O jornal francês pergunta-lhe sobre o conflito entre família e profissão
vivido pelas mulheres: “Ainda hoje, a maioria esmagadora das mães que
trabalham fora de casa enfrenta dificuldades grandes para conciliar suas
responsabilidades profissionais e maternas. A novidade é que hoje elas falam
do assunto”.
Knibiehler chama esse conflito entre maternidade e profissão de
“quadratura do círculo” da qual padecem todos, tanto pais quanto filhos.
Estaria esta “quadratura do círculo” na origem da “resistência” dos homens
atuais a desejarem filhos?
Da infantolatria à deserção da paternidade
Em “Mulheres buscam homem disposto a ser pai” a edição de 10 de
agosto de 2008 da Folha de São Paulo comenta o desinteresse crescente dos
homens em ter filhos. A repórter Cláudia Collucci conta o caso pitoresco de
uma engenheira de 33 anos – pós-graduada e com independência financeira –
que publicou o seguinte anúncio em um classificado de Porto Alegre (RS):
“Mulher solteira procura homem interessado em ser pai”. Embora bizarro, diz
a repórter, “o assunto já virou uma das principais queixas nos consultórios
ginecológicos: mulheres na faixa dos 30 anos têm encontrado dificuldade de
encontrar parceiros dispostos a constituir uma família (...). A resistência
também aparece entre os homens casados”, angustiando as mulheres que
sentem seu relógio biológico trabalhando.
Os homens, por sua vez, reclamam de pressões de mulheres que
apresentam urgência em serem mães, enquanto eles não têm pressa para
paternidade. Um deles, advogado de 32 anos, diz que “parece que depois dos
30 anos as mulheres andam meio neuróticas com essa ideia de filho” e que
suas duas últimas namoradas só falavam disso. “É uma chatice e esfria o
namoro. Não tenho vontade de ter filhos agora e nem sei se terei um dia.”
Sentados a seu lado em uma mesa de bar três amigos concordam: “A gente se
sente um reprodutor. A menina te vê duas, três vezes e já está pensando em
casar e ter filhos. São todas umas loucas. Tô fora”, diz um deles, de 31 anos.
Esse impasse também é enfrentado por homens casados, como um
professor universitário de 33 anos e casado há cinco que não pretende ter
filhos e se diz pressionado pela mulher, por familiares, por amigos e colegas
de trabalho a mudar de opinião.
Não tive nenhum problema com meus pais na infância ou adolescência.
“É apenas uma opção de querer viver a minha vida ao lado de minha mulher
sem mais obrigações. Às vezes penso que estou sendo egoísta. Mas não
consigo conceber a ideia de nós dois não formarmos uma sólida e feliz
família. Quero namorar, viajar com minha mulher. Não preciso de mais essa
‘responsabilidade’. Sinto que a exigência dela em ter um filho vai tornar tudo
insuportável. Toda vez que ela toma a iniciativa (não de conversar, mas de
exigir) acabamos brigando. Só me resta fazer com que cada dia nosso seja o
último e me preparar para o momento... até que o filho nos separe”.
Caminhamos do “declínio do poder paterno” para a deserção da
paternidade?
Jurandir Freire Costa (em entrevista concedida ao psicólogo Sergio
Gomes da Silva, em 2003, editor do site do autor onde foi veiculada) quando
perguntado sobre A família em desordem de Elisabeth Roudinesco respondeu:
“É o que eles (os psicanalistas) vêm criticando o tempo todo... ‘ah... o nome
do pai!’, o tempo todo. Acabou o nome do pai. Eu não sou de chorar o que se
passou. Eu acho que a gente tem de encontrar uma outra coisa, porque aquele
nome do pai que se pede tanto, não se enganem com ele.”
De fato, com o declínio do “nome do pai” o que se fragilizou foi a linha
de separação entre “função paterna” e “função materna”, entre homem e
mulher aproximados no curso do século XX. Se essa separação entre pai e
mãe, homem e mulher, “função materna” e “função paterna” diminui no
correr do século XX, por que e para que manter e incentivar uma polarização
que se tornaria cada vez mais obsoleta?
A aproximação entre homens e mulheres no século XXI passou a exigir
mais do pai do que o papel do provedor, da mesma maneira que os homens
abriram-se para uma maior intimidade com a prole. Quem cuida das crianças?
De uma maneira consciente ou não estes homens que estariam desertando da
paternidade muito provavelmente já estão se fazendo essa pergunta antes de
decidir se querem ou não ter filhos. Sabedores dessas mudanças, eles não as
contestam e se sentem no direito de, também eles, fazerem a sua escolha.
Quantos problemas decorrentes do nascimento de um filho poderiam ser
evitados se os pais tivessem consciência das transformações provocadas em
suas vidas, despojando-se da visão romantizada da maternidade? Não são
poucas as pequisas mostrando que o casamento se desfez depois que os filhos
nasceram. Segundo Julien (1997, p. 26) 65% dos conflitos conjugais ocorrem
no ano que se segue ao casamento do primeiro filho. Um leitor de Os Filhos
da Mãe, o livro que publiquei depois da primeira edição desse (Déspotas
Mirins) comentou que todos os seus casamentos terminaram com o
nascimento dos filhos. “Quantas vezes você se casou?”, perguntei. “Três,
foram três casamentos e os três terminaram depois que o filho nasceu. Eu
casei com uma mulher e, depois que o filho nasceu ela era outra”.
O Caderno Mais! de 4 de maio de 2008 faz uma edição comemorativa
aos 40 anos do Maio de 1968, propondo-se a analisar sua repercussão no
mundo em que vivemos hoje. Entrevista Alain Finkielkraut, ensaísta nascido
em Paris em 1949 que, em coautoria com Pascal Bruckner, escreveu em 1977
A Nova Desordem Amorosa, na qual denunciavam que havíamos passado de
uma era de “repressão sexual” para uma espécie de imperativo categórico de
gozar, igualmente coercitivo. A Folha quer saber como ele vê a acusação
dirigida às mulheres, que seriam as responsáveis pelas desordens da
sociedade ocidental. Finkielkraut responde que não é freudiano, isto é, não vê
a sexualidade como “a instância última de todos os nossos comportamentos”.
Assim, não pensa que “a crise atual da transmissão em nossas sociedades
proceda mecanicamente de um desaparecimento da função ‘viril’” ou “de
uma conspiração feminina”. Ele observa
“que se perdeu uma certa ideia do pai. E o problema não se reduz à
questão de saber se os pais estão certos ou errados em trocar as fraldas
de seus filhos – a meu ver, estão certos. A família tornou-se lugar de
uma negociação perpétua. Hoje tudo acontece num registro puramente
afetivo, e não mais simbólico.”
E esse lugar de uma negociação perpétua que se tornou a família inclui o
ter ou não filhos e, portanto, quem cuida das crianças? E, fundamentalmente,
quem cuidará da criança com a devoção religiosa à criança que passamos a
exigir a partir do século XVIII, exigindo crescentemente da mãe a posição de
idólatra da pequena divindade a quem deve sacrificar a sua vida? Não parece
meio que óbvio que o homem, cuja educação, desde a mais tenra idade,
cuidou de afastá-lo de qualquer impulso cuidador (começando por proibir ao
menino a brincadeira de boneca), sinta-se inseguro sobre sua potencialidade,
em conflito consigo mesmo sobre tamanha capacidade de doação exigida
pela criança do século XXI? E sem disposição para uma doação absoluta, a
devoção religiosa ao filho supostamente “natural” e “instintiva” que a cultura
atribui à mulher – e dela cobra - ainda hoje? Ou você acha que é casual que
seja sempre a mulher aquela que desempenha o papel de cuidadora – seja dos
filhos, seja dos pais doentes ou velhos, dos maridos?
Se Édipo mata pai e mãe, por que culpar a mãe? No
reino de Narciso

Já disse aqui que esta não é a primeira vez na história que o feminino
provoca pânico e horror. Mas enquanto as bruxas foram acusadas de servas
do Diabo, essas bruxas modernas que são as mulheres pós-feminismo são
cada vez mais acuadas e acusadas de arrancar o poder do cetro viril para
exercê-lo em seu próprio nome.
O que chama a atenção nas análises apresentadas acima é o recalque de
um fato histórico fundamental: o século XVIII foi o tempo da rebelião do
filho contra o pai, o tempo do filho contestar a autoridade paterna e proclamar
a decadência do pai. Até então toda a sociedade repousava no princípio da
autoridade. Essa contestação se arrastou até nossos dias, num ataque à
autoridade sob todas as suas formas: à pátria, na recusa organizada à
participação nas guerras da Argélia e do Vietnã; à família (pai e mãe) e à
escola (professores) – sendo estas duas últimas as instituições da infância por
mim estudadas.
Em Adão e sua Costela: Busca da Felicidade e Crise Atual no
Casamento Renato Mezan atribui a desmontagem das hierarquias
característica da subjetividade moderna a essa onda revolucionária e seus
ideais libertários. Durante todo o século XIX e até bem avançado o XX, diz
ele, vigorou a “ideia de uma hierarquia natural que sobrepunha o marido à
mulher, hierarquia tida por legítima, como tantas outras em diferentes
relações”, fossem elas relações familiares, econômicas, políticas ou entre as
nações. O que prevaleceu de fato durante boa parte da modernidade foi a
corrente contrária aos interesses libertários – tanto no âmbito familiar, quanto
nessas outras esferas da vida social. Foi depois da Segunda Guerra Mundial
que a “corrente ‘pró-indivíduo’ tomou largo impulso.” (MEZAN, 2003, p.
164)
No âmbito familiar essas mudanças culminaram na possibilidade de a
mulher exercitar sua sexualidade sem temer a gravidez, motivo pelo qual
Mezan situa na invenção da pílula anticoncepcional o marco divisório
fundamental. “A simples possibilidade de exercer” essa liberdade
reorganizou profundamente as relações conjugais porque, aliadas à
contestação da autoridade e da hierarquia que tomou conta da sociedade,
igualou os dois membros do casal.
A subjetividade moderna, inaugurada pelo século XIX, caracteriza-se
por um anseio pela felicidade individual, intimamente associada à liberdade
para dirigir a própria vida. E a “crise” do casamento é justamente
“a crise da autoridade do marido/pai e das funções sobre as quais ela se
assentava, essencialmente a de provedor único do sustento da família. É
a crise do papel subalterno da mulher, confinada às tarefas caseiras e à
educação dos filhos, destinada a proporcionar ao marido um ambiente
doméstico de paz e felicidade, o ‘repouso do guerreiro’, necessário para
que ele pudesse enfrentar, fora de casa, a competição e os conflitos
inerentes ao mundo do trabalho. É evidente que a mulher pagou caro por
esse arranjo, como mostra toda a Psicanálise desde que Freud se pôs a
ouvir as histéricas.” (MEZAN, 2003, p. 164-165)
Os efeitos dessas transformações sociais ultrapassam os limites da esfera
familiar, sendo o mais significativo deles a mudança nas subjetividades:
“A experiência de si passou a ser essencialmente fragmentária, e – aí
sim, traço distintivo do que vemos ocorrer nas duas últimas décadas – as
soluções imaginárias que permitiam uma unificação igualmente
imaginária desses fragmentos estão perdendo a eficácia.” (MEZAN,
2003, p. 165).
A essa fragmentação atual da experiência de si vem juntar-se a
“descrença quanto à legitimidade da hierarquia” seja no sentido social, seja
no sentido da ordenação, da priorização dos ideais. O regime da hierarquia
produz estabilidade e, com ela:
“Rivalidade e conflito, recalque e retorno do recalcado: em suma, o que
Freud descobriu como Édipo e castração. Já a desorientação advinda da
desconfiança na própria existência de pontos cardeais, de valores acima
ou além da contestação individual, produz dissociação, projeção e
confusão: o universo descrito por Melanie Klein, que não por acaso
criou suas teorias contra o pano de fundo do surrealismo, do
expressionismo e da débâcle da civilização nos anos 30.” (MEZAN,
2003, p. 167)
No que se refere à questão que nos propusemos a investigar, esse abalo
do princípio hierárquico atingiu a relação entre o infantil e o adulto a um
ponto tal que levou essa pretensão à igualdade a extrapolar os limites do casal
e atingir suas relações com as crianças. Trata-se de uma curiosa via de mão
dupla, como vemos na síndrome dos kidults – fusão em inglês das palavras
kid (criança) e adult (adulto), significando “quero ser criança” –, uma vez que
seus traços não surgem só da contestação dos menores, mas
fundamentalmente, da oferta do adulto como alguém muito mais interessado
em ser amado pelos filhos do que obedecido. Se na época de Freud era
evidente o desejo intenso da criança em se tornar um adulto como papai e
mamãe, os nossos tempos parecem acalentar mais ardentemente o desejo
inverso, no qual o mercado das últimas décadas acabou descobrindo um
grande potencial para investir.
Cláudio Rossi chama a atenção para esse desejo invertido, que considera
um novo fenômeno surgido no século XX. Embora fosse usual os mais
jovens questionarem os valores das gerações antecedentes, “na modernidade
foram os mais velhos” que idealizaram as novas gerações como sábios
criadores de novas soluções para os problemas humanos. “Foi abolido o
princípio de que quando um adulto fala as crianças calam, para aprender” e a
juventude foi transformada no principal valor (ROSSI, 2003, p. 85)
Talvez seja interessante observar, com Renato Janine Ribeiro, que o
poder pode ser um meio para infantilizar os homens. Foi o que ele escreveu
em “O poder que infantiliza” no Caderno Mais! de 24 de julho de 1994
dedicado à infância, “Adeus, Meninos”. Mesmo não sendo minha intenção
trilhar esse caminho de uma análise do poder, talvez aí esteja mais uma fonte
dos nossos kidults, especialmente num país com sólida tradição autoritária
como o Brasil. Segundo Janine, um dos modos pelos quais nasce a nossa
época é com a aparição de “um forte afeto pela criança” no século XVIII. Ao
mesmo tempo se reforça, vindo da Idade Média, o “paternalismo do
governante” ou “puerilização dos adultos, enquanto seus subordinados ou
súditos”. “Dizendo de outro modo: desde o século XXVII, a criança começa
a existir como objeto próprio de conhecimento e afeto. Mas nem por isso sai
de cena a velha redução dos adultos a crianças, na relação com o
governante.”
A crescente infantilização da cultura contemporânea foi analisada pelo
sociólogo inglês Frank Furedi em artigo publicado no Caderno Mais! da
Folha de S.Paulo de 25 de julho de 2004. Ele ficou impressionado com essa
onda que se alastra pelo mundo, constituída pelo fascínio dos jovens adultos
(faixa que vai aproximadamente até os 40 anos) pelos produtos fabricados
para a criança, como bolinhos coloridos, coleções de bonecas e bichos de
pelúcia, programas de televisão e videogames, aparentemente cultuando e
cultivando uma nostalgia da infância e uma desvalorização da vida adulta. Os
sociólogos da década de 1990 falavam em “adultescência”; desse culto à
adolescência teríamos regredido para o culto à infância.
Glória Kalil comentou essa matéria em seu site na internet[5] chamando a
atenção para os efeitos que essa síndrome de Peter Pan há anos vem
provocando nas passarelas nacionais e internacionais. Segundo ela, o nível de
infantilização da moda proposta por esses desfiles era tão absurdo que
“mereciam estar no Salão da Criança”.
“Estilistas com mais de 25 anos desenhando (e usando) roupas que
poderiam vestir crianças de escola maternal: laços por todos os cantos,
bichinhos de pelúcia enfeitando os moletons, estampas de heróis de
mangá ou personagens dos contos de fada. Tudo isso sem ironia, levado
a sério, como se fosse a coisa mais normal do mundo.”
Becky Ebenkamp e Jeff Odiorne, dois publicitários americanos citados
no Caderno Mais!, descrevem essa tendência como “Peterpandemônio”.
Segundo eles, essas pessoas estariam buscando “produtos que lhes deem a
sensação de ser reconfortadas. Elas querem experiências sensórias que lhes
tragam de volta uma fase da vida mais inocente e mais feliz: a infância.”
Seriam os kidults um libelo da cultura do narcisismo, essa cultura
horizontal que desconfia da hierarquia, das referências e dos valores sociais,
produzindo a desorientação a que se referiu Renato Mezan e, com ela, a
dissociação, a projeção e a confusão características dos estratos mais arcaicos
da nossa vida psíquica?
É bom lembrar que essa “fase da vida mais inocente e mais feliz” é feita
também de birras e exigências desmedidas ao outro que, no adulto,
corresponderão àquilo que Otto Kernberg chamou de “personalidades
narcisistas”. Renato Mezan chama a atenção para a frequência com que essas
personalidades se encontram na sociedade contemporânea. Sem entrar nas
minúcias da teoria de Kernberg e nas diferenciações sutis que propõe, Mezan
quer apenas destacar
“que os aspectos mais destrutivos da criança onipotente, angustiada e
enraivecida que todos trazemos em nós são mais evidentes nesses tipos
de funcionamento, dificultando sobremaneira o estabelecimento de
relações ‘maduras’, isto é, com um equilíbrio de base relativamente
estável.” (MEZAN, 2003, p. 169)
Ao que tudo indica, Édipo execrado foi vencido por um Narciso
triunfante. Ou Édipo seria um belo Narciso? Qualquer que seja a resposta,
permanece a vitória do narcisismo que, de instância patológica temida
converteu-se em um ideal social, como escreveu Dalmiro Manuel Bustos
(“Narcisismo e Relação Objetal”, 2003, p. 134).
Narcisismo é o “amor que se tem pela imagem de si mesmo”, conforme
o Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis (1979). Os autores
esclarecem que a descoberta do narcisismo levou Freud a propor uma fase
narcísica entre o autoerotismo e o amor de objeto, na qual o indivíduo se
toma a si mesmo, a seu próprio corpo, como objeto de amor, o que permitiria
uma primeira unificação das pulsões sexuais. O narcisismo já era um
conceito usado por Freud antes de tê-lo introduzido na teoria psicanalítica por
um estudo específico: Sobre o Narcisismo: uma Introdução (1914).
É importante lembrar as divergências ainda vigentes na literatura
psicanalítica desde a distinção estabelecida por Freud entre um “narcisismo
primário”, anobjetal, caracterizado por uma ausência total de relações com o
meio, e um “narcisismo secundário”, contemporâneo da formação do ego por
identificação com outrem. Uma vez que essa distinção acaba por dissolver a
diferença entre narcisismo e autoerotismo e a contradizer a própria
experiência, como observam Laplanche e Pontalis (1979).
Nesse aspecto, Lacan foi fundamental na história da Psicanálise, dentre
tantas outras contribuições. Com sua “fase do espelho” (inspirada na “prova
do espelho” formulada, em 1931, por Henri Wallon) enfatizou a
predominância do outro na formação do eu e da imagem de si, definindo o
narcisismo como a captação amorosa do infans pela imagem do outro com a
qual ele se identifica especularmente. Essa identificação narcísica seria
constitutiva do eu (moi). Nessa perspectiva, o ego se define por uma
identificação com a imagem de outrem e não há lugar para a postulação de
qualquer ausência do outro, ou da relação inter-subjetiva na constituição do
psiquismo, ou da subjetividade (Cf. NEDER BACHA, 2008).
Em resumo, há duas interpretações possíveis para o narcisismo em
Psicanálise: de um lado, segundo Laplanche, um estado hipotético, anobjetal
e monádico, de um sujeito fechado em si mesmo e sem relação com o mundo
exterior. De outro e mais próximo da origem da noção, como escreveu Silvia
Bleichmar, o narcisismo se definiria como uma relação de si consigo mesmo
por intermédio de uma imagem de si, que é precisamente o que indica o mito
de Narciso olhando-se na água.
Isso implica dizer também que qualquer coisa que venha romper a forma
completa desse envoltório, dessa integridade (que é a imagem de uma
totalidade, de uma unidade: o ego) é sentida como ameaça a provocar
angústias arcaicas de desestruturação ou de aniquilamento por perda de
limites. É a essa angústia de fragmentação que Mezan se refere quando
chama a atenção para as subjetividades narcisistas.
Além disso, o narcisismo alude a um jogo de espelhos, como explicitado
pelo estádio do espelho formulado por Lacan, o que significa também que o
bebê aprende a se amar porque seus pais o amam e que seus pais o amam
porque revivem seu próprio narcisismo infantil. Então o narcisismo é, ele
próprio, uma via de mão dupla, na qual eu me amo como meus pais me
amaram e em troca eu os faço me amar, fazendo o que eles gostariam que eu
fizesse (identificando-me com a imagem que eles projetam sobre mim). Daí o
narcisismo ser também definido como esse desejo de ser amado e admirado
por outrem.
A frequência dessas subjetividades ou personalidades narcisistas (com
seus traços de infantilidade psíquica), que expõem com facilidade sua
“criança onipotente, angustiada e enraivecida” na cultura contemporânea –
que não por acaso vem sendo cunhada como cultura do narcisismo –, obriga-
nos a concluir que, finalmente, his majesty, the baby tornou-se o detentor do
poder e da autoridade triunfando sobre os adultos. Essa é a hipótese
fundamental que este livro visa examinar e que encontrou ressonância em
autores das mais variadas procedências, do campo acadêmico ao campo
jurídico, como veremos adiante. Nem mães derrotadas por maridos
autoritários, nem autoridade paterna exterminada pelo poder e amor
maternos, mas uma cultura de adultos que produz em massa personalidades
narcisistas e assiste estarrecida à multiplicação de Peter Pans com seu pó de
pirlimpimpim – em nome do qual roubam, matam e esfolam: os sem limites.
A morte bárbara de João Hélio Vieietes por um adolescente e sua
gangue começava a chamar nossa atenção para a frequência crescente da
violência perpetrada por jovens. Em 7 de fevereiro de 2007 o menino de 6
anos foi arrastado por 7 km preso do lado de fora de um carro no Rio de
Janeiro. No dia 7 de abril de 2011 Wellington Menezes de Oliveira, de 23
anos, invadiu armado a escola na qual havia estudado no bairro do Realengo,
no Rio de Janeiro, e assassinou mais de dez crianças, ferindo gravemente
outras tantas no que ficou conhecido como Massacre de Realengo.
Dois anos depois (2009) Ruy Castro comentaria a briga entre cinco
gangues marcada por adolescentes pelo Orkut em Diadema (SP) com o
objetivo de “demarcar” territórios. “Os argumentos da negociação”, escreveu
o jornalista em “Terror juvenil”, “eram porretes, tacos de beisebol e
correntes”. A briga envolveu “mais de cem jovens” apoiados por adultos e
estava longe de ser um fato isolado, já que acontecia todo dia em todo o país.
Depois de citar os assassinatos nas escolas americanas que começavam a
entrar no noticiário, Ruy Castro chama a atenção para uma diferença:
enquanto nos Estados Unidos ou na Alemanha o atirador é um indivíduo
solitário, “cujo caso seria resolvido por um psiquiatra, dentro ou fora do
Pinel”, no Brasil “nossos garotos estão se organizando em quadrilhas para
exercer o terror. E as armas já começam a aparecer”. Registranto esse
momento em que casos como esse começavam a nos chocar pela repetição, o
colunista da Folha de São Paulo voltaria ao tema em “Fim da aura” (1º de
abril de 2009), registrando os novos casos de violência ocorridos em nossas
salas de aula, com meninos de 14 anos armados dentro de escolas.
Talvez devêssemos pensar e repensar o que Olgária Mattos observou em
“Antinomias do Brasil” na Folha de S.Paulo de 25 de fevereiro de 2007:
“Afinal, é só no Brasil que delinquentes são tratados não por seus nomes
próprios, mas por diminutivos e com linguagem afetiva. É cedo que se
adquire consciência do que é assassinar, do que é permitido e do que é
interdito, sem o que uma sociedade não é uma sociedade.”
Isso significa que o Brasil oferece delinquentes – carinhosamente
acolhidos como “inhos” – como referências identificatórias às crianças e
jovens no processo de subjetivação.
“Rapaz de 17 anos confessa ter matado o pai a facada” é a manchete no
caderno Cotidiano da Folha de S.Paulo de 10 de março de 2005. Trata-se de
um adolescente de classe média alta de Ribeirão Preto, cidade do Estado de
São Paulo, que “assassinou o próprio pai, um empresário de 53 anos, com
uma facada no pescoço e ainda feriu a mãe, uma dona de casa de 46 anos. O
crime ocorreu dentro da casa da família”. Em seu depoimento “o menor disse
que matou o pai porque há três meses o empresário o havia impedido de
receber a namorada no quarto. Isso teria sido um castigo porque a mãe do
rapaz o surpreendeu aplicando anabolizantes”.
Suzane von Richthofen assassinou os pais porque se opunham ao seu
namoro. Contardo Calligaris analisa o crime em sua coluna no caderno
Ilustrada da Folha de S.Paulo de 14 de novembro de 2002, sob o título
“Suzane, pano de fundo”. Diz que não é nenhuma novidade que a
cumplicidade com namorados e amigos prevaleça sobre a aliança entre pais e
filhos. Observando adolescentes ele se pergunta: o que meninos de oito ou
nove anos “estão fazendo de noite, num shopping, sozinhos?” Calligaris
analisa a importância crescente dos próprios pares como referência
identificatória em substituição aos pais e lembra que Judith Rich Harris
provocou um “pequeno tumulto” com seu livro “Diga-me com Quem
Anda...”, no qual afirmava que o grupo de amigos era mais determinante da
conduta dos jovens que os cuidados recebidos na primeira infância. O
psicanalista acrescenta que “essa mudança não se deu contra ou apesar dos
adultos. Os pais de hoje preferem ser bem-vistos e amados por seus filhos a
serem respeitados e obedecidos. Em suma, a subjetividade dos pais também
mudou com a modernidade, e a família torna-se, aos poucos, uma parceria
horizontal”. Esse é o pano de fundo do crime de Suzane: ela é mais membro
do grupo do que filha de seus pais.
Com limpidez cristalina, a análise de Calligaris acentua a via de mão
dupla a que me referi anteriormente: o narcisismo dos adultos revela-se
determinante na síndrome dos kidults e na constituição das personalidades
narcísicas. Sou aquele que meus pares aprovam. Mas meus pais hoje também
se incluem entre meus pares realizando o sonho de Peter Pan e é por essa via,
da aprovação desse amigão e dessa amigona que pai e mãe exerceriam sua
influência na formação da subjetividade. Quando eles me explicam porque eu
não posso fazer isso ou aquilo – os “limites” –, além de mostrarem sua
preocupação, seu cuidado comigo e sua maioridade (ocupando, portanto, ao
mesmo tempo o lugar de pares e de pais), tornam-me mais propenso a
obedecer suas ordens do que se tentarem impô-las autoritariamente como se
só estivessem acima de mim. No século XXI as gerações e os sexos – estão
muito mais próximos do que outrora. É isso que o kidult nos faz ver: ele é um
adulto permitindo-se funcionar e desejar como criança. Adulto não por acaso
definido como sedutor pela teoria da sedução generalizada.
A propósito, o Reino Unido publicou uma pesquisa reproduzida pela
Folha de S.Paulo, em 22 de março de 2009, sobre “as ameaças à infância” do
“Relatório da Boa Infância”. A pesquisa foi coordenada por Judith Dunn,
professora do Instituto de Psiquiatria de Londres e ouviu 35 mil crianças,
pais, educadores e especialistas nos últimos três anos, segundo o repórter
Pedro Dias Leite: “Os países com as notas mais altas para o bem-estar das
crianças, Dinamarca, Suécia e Holanda, são aqueles em que os adultos estão
mais inclinados a concordar que a pessoa não tem o dever de respeitar pais
que não conquistaram isso por seu comportamento e atitude, mostra a
pesquisa.”
Comentando os assassinatos de moradores de rua em São Paulo no
Caderno Mais! de 29 de agosto de 2004, Alba Zaluar escreveu que eles
“destroem o argumento economicista” que oculta “a dimensão do poder, do
simbólico e da paixão destrutivos: o triunfo sobre o outro, o prazer de ser o
senhor da vida e da morte, o gozo no excesso da liberdade dos massacres
arbitrários” (“O espaço público como ódio”). Poucos psicanalistas
destruiriam, numa frase tão precisa, o “argumento ecomicista” que esconde o
erotismo da destruição e do poder – e, portanto, da violência nossa de cada
dia.
Em “Leituras narcisistas”, coluna de 30 de setembro de 1999 na Folha
de S.Paulo, Contardo Calligaris descreve a personalidade narcisista como
“cronicamente insegura (será que me amam?) e aparentemente vazia (farei e
serei o que preciso para ser amado). Essa figura fraca e complacente é o ícone
de nossa época” e “filha da liberdade: somos inseguros e vazios porque
abandonamos as definições intrínsecas de nós mesmos, de nossa posição ou
função social. Com isso, ficamos sedentos de qualquer coisa que nos defina,
nos assegurando que não somos invisíveis.”
Reunidos nas torcidas organizadas, nas incursões de skinheads, nos
ataques pirotécnicos a índios e mendigos adormecidos, ou então solitários,
metralhando colegas e professores na escola, espectadores nas salas de
cinema e os próprios pais, seria cansativo prolongar a lista de crianças e
adolescentes plenipotenciários que nos cercam. Semanalmente a mídia
nacional e internacional nos oferece um cardápio recheado com pratos
fortemente temperados pela soberania do Menino-Rei, déspota que
sobreviveu à queda da Monarquia para reinar ainda sob os céus da República.
Ou ainda do Império: conforme matéria publicada numa revista
feminina cuja manchete é “Por que as mães estão perdendo a autoridade e
criando pequenos imperadores”, de Regina Valadares e Sibelle Pedral
(Revista Claudia de março de 2006). Um psicanalista, Lebovici, o diz a seu
modo: “Graças ao narcisismo primário, a criança se torna o ‘imperador’ ao
olhar de sua mãe, que também o observa.” (2004, p. 22). Seja a revista
feminina, seja o psicanalista falando sobre “ser pai, ser mãe”, é a mãe a
responsável pela criaçaão dos pequenos imperadores.
Crianças tão superpoderosas no século XXI que conseguiram ampliar
em 400% o mercado americano dirigido a elas, conforme livro publicado nos
EUA – Born to Buy – The commercialized child and the new consumer
culture.[6] Sua autora, a economista Juliet Schor, alerta para “o poder dos
pestinhas”, crianças superpoderosas que são cada vez mais visadas pelos
marqueteiros e empresas, e consideradas a camada mais vulnerável das
classes consumidoras. Em seu estudo veiculado pelo Caderno Mais! De 15 de
maio de 2005, Schor ataca a indústria, a publicidade e os próprios pais por
esse aumento alarmante do consumismo infantil em seu país, que apenas
entre os anos 1989 e 2002 cresceu 400%.
De onde vem tal poder dos pestinhas? Seria possível que, por si só, um
bebê ou uma criança tivesse tal poder sobre um adulto do qual depende
inteiramente? Não seria esse um poder consentido e concedido? De fato,
somos nós, os adultos, que damos aos pequenos tiranos o seu poder, que os
constituímos imperadores. Poder de nos subjugar, poder de nos fazer comprar
e de nos render e nos colocar de quatro sob seu domínio.
Édipo tirano: o feminino e o poder nas novas famílias

Como já disse na Apresentação a essa segunda edição, o nome original


da pesquisa que deu origem a esse livro é Édipo Tirano: o feminino e o poder
nas novas famílias. Trata-se de minha pesquisa de pós-doutorado e escolhi
esse título porque ele condensava as muitas dimensões abertas por minhas
perguntas.
Édipo Tirano é o nome original da tragédia do grego Sófocles com a
qual Freud formula o seu complexo de Édipo, Édipo Rei. Tyrannos em grego
remete à própria história do herói de Tebas, significando “aquele que chegou
ao poder por seus próprios méritos” e não porque o usurpou violentamente.
Na peça de Sófocles Édipo foi escolhido para ser o rei de Tebas porque livrou
a cidade do monstro que a ameaçava, devorando seus cidadãos – a Esfinge.
Só depois é que a palavra adquiriu também o significado de ditador. Da
mesma maneira, o bebê e a criança não se apossaram do poder que só um
adulto poderia tê-lo concedido.
Sob tal império do filho tirano, é impossível concordar com a tese do
matriarcado moderno sustentada pelas teorias psicanalíticas aqui
examinadas. A história da família, bem como a realidade contemporânea
veiculada pela mídia, apontam para o duplo declínio da autoridade do pai e
da mãe. Vivemos sob o jugo do Menino-Rei coroado pela modernidade,
produtora de uma subjetividade narcisista e, portanto, tirânica.
Como, então, avaliar a suspeita de Philippe Ariès segundo a qual talvez
tivéssemos chegado ao fim do reinado da criança?
“Tudo se passa como se nossa sociedade deixasse de ser child-oriented,
como o fora apenas desde o século XVIII. Isso significa que a criança
está perdendo um monopólio tardio e talvez exorbitante, que ela retorna
a um lugar menos privilegiado, melhor ou pior. Os séculos XVIII-XIX
terminam sob nossos olhos.” (Entrevista de J.-Pontalis com P. Ariès, em
1979, publicada por BADINTER, 1985, p. 360.)
Num pós-escrito ele evocou a notícia da absolvição de uma infanticida
publicada no Le Monde (03/1979) interpretando-a como indicativa das novas
mentalidades, onde os jurados identificaram-se com o assassino (a mãe) e não
com a vítima (o filho dela).
Philippe Ariès parece ter razão se considerarmos apenas setores isolados
da nossa sociedade, como o universo de que trata a chamativa matéria da
Folha de S.Paulo no Dia das Mães (8 de maio de 2005) no Caderno
Cotidiano: “Mães colocam marido em primeiro lugar”. Trata-se de mulheres
que “afirmam amar mais o parceiro do que os filhos”. No entanto, elas
também dizem que sofrem preconceito por expressarem o que sentem.
“Eu gosto mais do meu marido do que dos meus filhos”, começa a
reportagem. Ao depoimento da mãe segue-se o comentário das jornalistas: “A
assertiva pode chocar ouvidos mais sensíveis, regidos pela lógica que
determina ser a maternidade o auge da vida de uma mulher, e seus filhos,
objetos de amor absoluto.” A entrevistada sabe que são poucos que pensam
como ela porque, segundo as autoras, “muita coisa pode ter mudado, mas a
idealização do amor materno, registrada a partir do século XVIII (...),
continua firme e forte, carimbando a maternidade com chavões do gênero
‘mãe é mãe’ ou ‘ter filhos é padecer no paraíso’.” A matéria prossegue
observando que essas mulheres constituem exceções “não exatamente pelo
que sentem, mas porque não têm problemas em assumir a dissidência do
modelo materno tradicional. O que não falta, no entanto, é incompreensão
por parte da sociedade”. Algumas sentem culpa, outras dizem que não têm o
menor problema por se recusarem ao tal padecimento no paraíso, preferindo
se “divertir com o pai deles”. “Os maridos, claro, não têm motivo para
reclamar”, continuam as jornalistas, colhendo o depoimento de um deles: “Os
filhos estão de passagem. Com 20 e poucos anos, eles vão seguir a vida deles.
E quem sobra? Minha mulher e eu.”
A idealização da maternidade começou lentamente no século XIII com o
culto da mãe do Menino Jesus, mas só a partir do século XVIII é que a
santidade da Virgem Maria viria estender-se às mães e transformar
radicalmente a imagem da família. O filho redime a mãe e santifica a
maternidade. Essas mulheres que hoje recusam esse script podem sentir culpa
ou dizer, como algumas das entrevistadas, que se recusaram a tal
padecimento no paraíso para se divertir com os maridos. No entanto essa
posição é atacada pelo marketing da santa mãe (ou pelos ideólogos da santa
mãezinha) e pelas feministas, para quem substituir os filhos pelo marido no
centro do universo é trocar seis por meia dúzia. Nos dois casos a mulher teria
abandonado a sua individualidade.
Para Joel Birman, entrevistado pelas duas jornalistas, a preferência pelo
marido “é a metáfora do que será a sociedade do futuro”. “Preferir o marido
não é problema, diz ele. ‘A lógica é a do individualismo contemporâneo’.”
Individualismo cultuado na mesma página pela escritora Ayelet
Waldman numa adaptação do seu livro (Because I Said So[7]) publicada no
New York Times, “Culpada, mas satisfeita”. Com o indisfarçável orgulho
narcísico da exceção ela diz ser a única mulher no grupo Mommy and Me
cuja libido não mudou de foco com o nascimento dos filhos e que “está
fazendo algo na cama”. Com as outras não ocorre o mesmo: sua paixão muda
de foco quando surge esse novo sol “em cuja órbita ela gira em volta. A
libido, como um dia a conheceu, foi embora, e no seu lugar apareceu um
poderoso instinto maternal. Existe unanimidade sobre esse assunto. A
exceção sou eu.”
Ayelet confessa sua culpa por não ser apaixonada por nenhum de seus
quatro filhos e reafirma: “Sou apaixonada pelo meu marido. Se uma boa mãe
ama seu filho mais do que qualquer outra pessoa, então sou uma mãe ruim.”
Seus filhos não são o sol, em cuja órbita ela giraria em volta; devem se
conformar com a ideia de serem apenas suas luas.
“Costumo aderir a um passatempo que chamo de Deus perdoe. E se,
Deus perdoe, alguém roubasse um dos meus filhos? Deus perdoe.
Imagino como seria perder um ou talvez todos eles, me imagino
consumida, destruída pela dor. Mas ainda assim, nessas imaginações,
sempre existe um futuro além da morte dos filhos. Porque se eu fosse
perder um dos meus filhos, Deus perdoe, mesmo se eu perdesse todos,
Deus perdoe, ainda teria o meu marido. Mas a minha imaginação
simplesmente falha quando tento ver um futuro além da morte do meu
marido.”
Quanto ao marido, “ama os filhos do jeito que uma mãe deve amar”,
mas por ser homem “ele possui uma libido forte” e esse amor pelos filhos não
o impede de querer “fazer amor” com ela.
“Eu gostaria que algum sociólogo conhecido publicasse um estudo
definitivo sobre casamentos em que os pais se amam mais do que aos
filhos. Seria maravilhoso se estabelecessem que seus filhos são mais
felizes e têm vidas mais saudáveis que os filhos de mães que focam
todos os seus desejos e paixões neles. Mas, mesmo que esse estudo não
venha, mesmo que um dia eu encare o fato de que meus filhos, Deus
perdoe, se tornaram viciados em heroína ou, Deus perdoe, são incapazes
de estabelecer laços decentes e fiquem pulando de um relacionamento
sem graça para outro ou, Deus perdoe, que aconteçam outras coisas tão
horríveis a eles que é melhor nem pensar nelas, não me arrependerei do
fato de que, quando olho meu marido, ainda sinto o mesmo desejo louco
que sentia há 12 anos, quando o vi pela primeira vez, parado no saguão,
com um buquê de flores lilás nas mãos.”
Na edição da véspera, o mesmo jornal publicou matéria afirmando que o
número de mães em nosso país aumentou, embora o número de filhos tenha
diminuído entre os anos de 1970 e 2000, conforme pesquisa da Fundação
Getúlio Vargas que traçou o perfil das mães brasileiras. “Apesar de o número
de filhos por mães ter diminuído em todo o país, a única faixa etária em que o
índice cresceu é a das adolescentes (entre 15 e 19 anos)”. A maternidade
tardia – de mulheres que estão próximas do final do período fértil, entre 40 e
49 anos – é uma tendência crescente nos grandes centros urbanos brasileiros.
Poucos dias antes, o Caderno Mundo da Folha de S.Paulo (27 de março
de 2005) publicava matéria do Le Monde com a manchete: “Partos em baixa
questionam família alemã”, sobre a baixíssima taxa de fecundidade entre as
alemãs, que está entre as menores da Europa. “Essa tendência está levando ao
questionamento, na Alemanha, do velho modelo familiar que ainda perdura”
e que exige a presença absoluta da mãe junto à criança até avançada idade, já
que nas escolas as aulas terminam ao final da manhã, levando as crianças de
volta para casa na hora do almoço. “A Alemanha inventou termos terríveis
para designar” as mulheres que rejeitam esse modelo – por desejo ou por
necessidade: são “mães corvos” com seus ‘filhos-chaves’, que têm a chave de
casa para poderem voltar sozinhos após as aulas”.
No seu A Filosofia da Alcova, Sade (1740-1814) propõe a alcova como
modelo de uma sociedade futura, cujo fundamento seria a abolição radical da
instituição do pai em prol da coletividade dos irmãos, anunciando a
horizontalidade e a ruína da hierarquização como princípios organizadores
das relações familiares contemporâneas.
Sade não foi o único a colocar a autoridade na mão dos filhos. A
soberania de Deus pai começou a se extinguir lentamente a partir do século
XVIII, embora a dominação do pai tenha permanecido constante até o final
do século XIX. Dessa época até meados do século XX a família ocidental
sofrerá três modificações fundamentais: associará o casamento com o amor;
concederá ao filho um lugar preponderante – o que, segundo Roudinesco,
terá “como efeito ‘maternalizar’ a célula familiar” –, e desvinculará a
sexualidade da procriação com a invenção da pílula anticoncepcional.
Ariès situa essa transformação, no que diz respeito aos filhos, um pouco
mais para trás, identificando já nos séculos XVI e XVII profundas mudanças
na atitude da família para com a criança e, portanto, na própria instituição
familiar. “A família concentrou-se em torno da criança”, num “clima
sentimental” muito mais próximo do nosso (1978, p. 232, grifos meus). A
principal característica que surgiu com o fim do século XVII foi a
importância inédita que dada à criança, o “amor obsessivo” pela criança que
substituiu a antiga indiferença.
Essa valorização da criança foi um fato marcante que viria distinguir
essa nova família, que irá fazer da criança o pivô de todo o sistema. A nova
família que vai surgindo é a família moderna, uma instituição social que tem
na criança o seu sustentáculo, a sua base, o seu suporte e o foco de suas
atenções.
Entretanto, os séculos XVII e XVIII ainda não atribuíam à criança essa
supremacia que nós lhe conferimos no século XX. Ainda em Um Amor
Conquistado. O Mito do Amor Materno, Elisabeth Badinter conta que a
educação das crianças burguesas ou aristocráticas seguia o mesmo roteiro:
mal saído das entranhas maternas, o recém-nascido era entregue à ama. Entre
5% e 15% dos bebês morriam durante o transporte ou simplesmente
desapareciam conforme a estação do ano. Em geral as amas eram
paupérrimas e só no século XVIII dariam ao bebê leite de vaca em pequenos
chifres furados, precursores das mamadeiras. Quando a alimentação não era
fatal ao bebê, ainda havia outro mal temível a vencer: a absoluta falta de
higiene. Badinter diz não exagerar ao falar de “abandono materno”, porque
desde que a criança era entregue à ama os pais não tinham o menor interesse
por sua sorte. Depois de cerca de quatro ou cinco anos na casa da ama, a
criança voltava ao lar paterno “frequentemente estropiada, malformada,
raquítica, enfermiça ou mesmo gravemente doente” (1985, p. 127). Só então
conhecia os pais, sendo imediatamente confiada a uma governanta ou a um
preceptor até os 7 anos.
Uma ideia-diretriz presidiria esses “três atos da educação” que são a
entrega à ama, à governanta (ou preceptor) e a posterior partida para o
colégio: “como livrar-se dos filhos mantendo a cabeça erguida”. Essa seria,
segundo a autora, a principal preocupação das mães e dos pais, tanto é que –
conclui – é inútil falar em amor materno naquela época.
No final do século XVIII tem início uma verdadeira revolução, quando
as famílias ascendentes começam a celebrar de modo faustoso o reinado do
Menino-Rei, que modificará radicalmente a imagem da mãe, de seu papel e
de sua importância, conforme já vimos. Em 1762, Rousseau publica Émile
inaugurando uma supremacia da criança na família e na sociedade que
chegará incólume até o século XXI. Ele é o primeiro a convocar a mãe ao
amor materno, sobre o qual pretende fundar a nova família, e a ele muitos
outros seguirão na luta para instituir essa mãe moderna, recomendando às
mães cuidarem de seus filhos, ordenando-lhes amamentá-los e impondo-lhes
a obrigação de serem mães antes de tudo.
Isso não significa afirmar que o amor materno não teria existido em
todos os tempos. Basta lembrar que o teólogo J. L. Vivès se queixava da
ternura excessiva das mães no século XVI. “Mas o que é novo, em relação
aos dois séculos precedentes, é a exaltação do amor materno como um valor
ao mesmo tempo natural e social, favorável à espécie e à sociedade”. Como
também é nova a associação dessas duas palavras: “amor” e “materno”, que
dignifica o amor e a mulher enquanto mãe. “Deslocando-se insensivelmente
da autoridade para o amor, o foco ideológico ilumina cada vez mais a mãe,
em detrimento do pai, que entrará progressivamente na obscuridade.”
(BADINTER, 1985, p. 145-146).
Evidentemente que a história não é linear e Ariès conta que ainda no
século XVII a vizinha de um relator tranquiliza uma “mãe de cinco ‘pestes’ e
que acabara de dar à luz: ‘Antes que eles te possam causar muitos problemas,
tu terás perdido a metade, e quem sabe todos’” (p. 57). Ariès não vê a
aversão à criança manifesta nessas palavras e justifica isso que considera
uma falta de apego às crianças pelos adultos como uma reação à elevada taxa
de mortalidade infantil.
No entanto, no Prefácio (p. 17) confessou que se tivesse que escrever tal
livro hoje “chamaria a atenção para um fenômeno muito importante”: a
persistência do infanticídio tolerado, “abafado no silêncio”, “secretamente
admitido” até o fim do século XVII. O infanticídio era uma prática
considerada crime severamente punido que continuava a ser realizada de
modo corrente em segredo, “talvez, camuflada, sob a forma de um acidente:
as crianças morriam asfixiadas naturalmente na cama dos pais onde dormiam.
Não se fazia nada para conservá-las ou para salvá-las”. Fílon Judeu, filósofo
contemporâneo de Cristo (cerca de 20 a.C. a 50 d.C.) já recriminava o
assassinato dos filhos pelos pais, aos quais se refere como “um crime
costumeiro em muitos povos em decorrência de sua desumanidade inata”
(apud RANKE~HEINEMANN, 1996, p. 79).
Infanticídio, é bom que se lembre, atribuído especificamente às
mulheres pelas fontes jurídicas da época medieval, conforme Opitz em O
Quotidiano da Mulher no Final da Idade Média. Cerca de 30% das crianças
abaixo dos quatro anos eram vítimas de acidentes fatais, e no século XV
aumentaram as acusações e julgamentos de mulheres infanticidas.
É justamente nesse final do século XVII que começa a se impor como
essencial a ideia da inocência infantil, que ainda levaria um século para se
tornar comum. No século XVIII a infância se torna “a idade da inocência”, “a
idade de ouro da vida humana”.
Ariès caracteriza a família moderna pelo “amor obsessivo” por essa
criança que reinará no espaço doméstico. E argumenta que a escola viria
preservar a pureza infantil recém-descoberta pelo amor que os adultos agora
lhe dedicam, no lugar da antiga “indiferença”.
Para Roudinesco essa transformação radical da família, então alicerçada
em torno da criança, corresponde à “passagem do filho objeto para o filho
sujeito”: o filho era visto:
“Como a coisa dos pais, como um objeto inteiramente submisso à
vontade deles. Por isso era preciso condená-lo à morte, como o foi
Édipo ao nascer, quando ameaçava pôr a família em perigo. Embora
tenha reprovado tais atitudes, a Igreja não contribui em nada para
impedi-las.” (ROUDINESCO, 2003, p. 99).
Badinter chega a captar o medo que a criança inspira, embora, como
Ariès, valorize mais a indiferença. Diz que até o século XVII a criança não
tem importância na família e muitas vezes constitui-se mesmo num
transtorno, um “estorvo” e uma “desgraça” – às vezes mais do que o mal ou o
pecado, lembrando que as imagens negativas da infância antecedem as
imagens da sua insignificância. Na melhor das hipóteses a criança “tem uma
posição insignificante. Na pior, amedronta (...). Ainda em pleno século XVII,
a filosofia e a teologia manifestam um verdadeiro medo da infância. Velhas
reminiscências, mas também novas teorias corroboram essa representação
terrível”. Mas adiante voltará a insistir na insignificância, explicando a
indiferença materna pela criança pelo fato de ela ser um “quase nada”,
invertendo “a proposição corrente: não é porque as crianças morriam como
moscas que as mães se interessavam pouco por elas. Mas é em grande parte
porque elas não se interessavam que as crianças morriam em tão grande
número.” (BADINTER, 1985, p. 54 e 87)
A historiadora avança, abrindo ao psicanalista uma pista inexplorada:
“Por motivos diferentes e até opostos, a criança, e particularmente o lactente,
parece constituir um fardo insuportável para o pai, a quem toma a mulher e,
indiretamente, para a mãe” (BADINTER, 1985, p. 64). A esse fardo
respondem com o infanticídio ou a indiferença.
Ora, conforme ela mesma assinalou, durante séculos a teologia cristã
desenhou a imagem de uma criança diabólica que amedronta. Santo
Agostinho não poupa sua tinta nessa elaboração, incitando à luta contra o
infantil. Seu pensamento reinou na história da educação até o fim do século
XVII. Os educadores e mestres em teologia não se cansavam de recomendar
a frieza dos pais em relação aos filhos lembrando-lhes sua malignidade
natural. E condenavam a ternura e o amor maternos.
Atentando para o latente das teorias e práticas educacionais fui levada a
interrogar “quem o adulto combate na guerra que trava com o infantil?”.
Questão por mim problematizada em Édipo de Quarentena. Escolarização da
infância: a humanidade X (o ódio de) Édipo e retomada em A Arte de
Formar: o Feminino, o Infantil e o Epistemológico. Em 1913 Freud chamou
a atenção para essa guerra ao observar que “nossa amnésia infantil prova que
nos tornamos estranhos à nossa infância” (1913). Um educador, para sê-lo,
deve transpor esse abismo e reconciliar-se com sua infância, recomenda.
A criança é vítima de um recalcamento universal, escreve Nicolas
Abraham: “Recalca-se a criança como se respira. Mal começamos, graças a
Freud, a despertar para essa ideia. Aí reside o verdadeiro mal-estar da
civilização.” (1995, p. 304)
No mundo antigo a procriação é coisa do diabo. Pelo menos para os
maniqueístas – seita fundada pelo persa Mani (nascido em 216 d.C.), que
pregava o aborto e a contracepção. Santo Agostinho a ela pertenceu, seduzido
pelas convicções de Fausto, o bispo dos maniqueístas, e jamais pôde se
perdoar por esse seu cativeiro juvenil. Agostinho, Ambrósio, Tertuliano e
tantos outros grandes nomes dos primeiros tempos do cristianismo veem na
criança, a mãe. Têm aversão à maternidade e não se preocupam em ocultar a
repulsa que ela evoca.
Por longos séculos e até o início dos tempos modernos a civilização
ocidental entoará o mesmo refrão: a infância é algo de que devemos nos
livrar como um mal. A criança é perigosa e provoca medo, raiva e
desconfiança, afastando de si os cuidados maternos e convidando ao
infanticídio. “O estado infantil é o estado mais vil e mais abjeto da natureza
humana depois da morte”, dirá Bérulle, chefe de um dos dois grandes
movimentos pedagógicos do século XVII, que foram o Oratório e Port-
Royal. E Jacqueline Pascal recomenda, no regulamento deste último: “Que se
isole a criança pequena e que se desconfie de sua espontaneidade” (apud
BADINTER, 1985, p. 60-61).
Essa é uma das pistas históricas que tenho explorado com o método
psicanalítico: “isolar” a criança pequena em sua “quarentena escolar”, da qual
deverá sair curada do mal que porta. A infância é um mal do qual todo
homem deve ser curado e esse é um mote, quase uma divisa da nossa
civilização. Não serão poucos a conjurar o perigo da infância, e talvez não
seja outro o desígnio da educação escolarizada. A ela caberá o expurgo da
criança em cada um. Do infantil exorcizado deverá emergir a criança pura
razão.
O que estou querendo ressaltar é que essa hostilidade despertada pela
criança, manifesta na Antiguidade, foi recalcada no mundo contemporâneo
sob a imagem da pureza infantil. No início do século XVIII sua inocência foi
“descoberta”, ou sua malignidade encoberta. Quaisquer que tenham sido os
motivos, o fato é que, por essa época, uma máscara de inocência virá jogar
uma pá de cal sobre qualquer resquício manifesto da antiga hostilidade dos
adultos para com his majesty. O diabólico será exorcizado, a criança
inocentada e a mãe santificada (NEDER BACHA, “Um Édipo Tupiniquim?
O inconsciente na Cultura”, 2000).
O pai, centro absoluto da família até o século XIX, é deslocado por sua
majestade o bebê, e pulverizado em inúmeras instituições encarregadas de
representá-lo. Dentre elas a escola leiga e obrigatória. Vencido pelo parricida,
o tirano agressivo revela sua face afetuosa.[8]
Édipo tirano parricida e matricida triunfa na história da família e da
cultura e se torna o foco do investimento familiar e o dono do poder,
instaurando um novo regime social.
A mãe de Édipo

O complexo de Édipo formulado por Freud é o conjunto de desejos


amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais, como na lenda
grega em que Édipo mata o pai em uma encruzilhada porque não o
reconhece. Édipo é, pois, para Freud, parricida e incestuoso (dormiu com sua
mãe sem saber) e esses seriam os dois desejos inconscientes e universais.
Conrad Stein, psicanalista contemporâneo com contribuições originais,
promoveu uma importante reformulação do feminino materno. Em As Erínias
de uma Mãe ele analisa a cegueira de Freud em relação à feminilidade que o
levou a restringir Édipo a um complexo paterno e assim dirigir a um pai os
desejos hostis, os desejos de morte presentes no complexo.
Entretanto, a Esfinge enfrentada e vencida por Édipo às portas de Tebas
não é de modo algum uma figura de pai; ela encarna a feminilidade
monstruosa. Freud descobriu em si mesmo impulsos parricidas e incestuosos
como aqueles que determinram o destino de Édipo. Mas “jamais se colocou a
menor questão a respeito de um aspecto bastante perturbador do texto de
Édipo-Rei”, continua Stein: a causa da morte de Jocasta é o desvelamento de
sua maternidade e Édipo tem uma responsabilidade ativa nesse desvelamento
(STEIN, 1988, p. 26).
Retomando a interpretação de Marie Delcourt publicada em 1959, Stein
vê na lenda de Édipo e Jocasta um matricídio censurado. Diferentemente de
Orestes, que é um matricídio completamente sem censura. A leitura que Stein
propõe da tragédia de Sófocles é a da história de um matricídio impossível:
impossível matar as Erínias de uma mãe. Essas não podem ser atingidas de
modo algum: são deusas e, portanto, imortais.
Recusando-se a interpretar o Édipo como um complexo paterno, Stein
inova radicalmente as bases do problema que estamos investigando. Um
Édipo que é, simultaneamente, parricida e matricida modifica de modo
substancial aquela versão da família contemporânea que seria calcada no
triunfo da autoridade materna sobre o pai, em nome de quem seria necessário
fazer a psicanálise e os psicanalistas intercederem. “Matou a Família e Foi ao
Cinema”[9] seria uma boa condensação da hipótese desta obra.
Alinhando-se em fileira diferente daquela de Freud e Lacan, Stein torna
ainda mais intricado o complexo incitando-nos a explorar sob perspectivas
novas a questão bem mais repetida do que refletida, do declínio da
autoridade paterna, supostamente deslocada pela mãe.
Hegemônica, essa versão da diferença sexual na família aponta
inexoravelmente para uma divergência entre pai e mãe, eclipsando a luta
maior que o parricida e matricida trava e da qual sai vitorioso, acusado de
exterminar a diferença entre as gerações (como vemos nos kidults). Bem
como a inveja e o ciúme que o pai pode nutrir pela díade apaixonada da qual
foi excluído pela leitura cultural da diferença sexual, que anexa o bebê em um
território exclusivamente materno.
Peleja tão antiga entre pais e filhos que já havia sido narrada por
Homero antes de ser retomada por Sófocles e também pelos primeiros tempos
do cristianismo. Elisabeth Badinter a menciona em Um Amor Conquistado. O
mito do amor materno, para justificar a imposição do quarto dos Dez
Mandamentos: “Pai e Mãe honrarás, para que vivas longamente”. A lei divina
silencia sobre o dever de amor dos pais para com os filhos. Da mesma forma,
multiplicam-se as referências da época ao tema da ingratidão e da maldade
dos filhos, sem que se observe o inverso. A autora acrescenta ainda que os
Doutores da Igreja conheciam muito bem as relações entre pais e filhos: os
manuais do sacramento da Confissão levantam um grande número de
questões relacionadas ao ódio e ao desejo de morte entre pais e filhos.
O triunfo de Édipo na história da família

Se é o filho que mata o pai, por que culpar a mãe? Se Édipo, filho
parricida, triunfa sobre a autoridade paterna, por que deslocar para a mãe o
gesto assassino? Enfim, se Édipo tirano é filho parricida e matricida, por que
disfarçar o assassinato numa mãe supostamente triunfante?
A tese segundo a qual o declínio do poder paterno teria sido provocado
pela ascensão do poder materno, ou por uma feminização da sociedade deriva
da lógica fálica, segundo a qual se o feminino chega a desfrutar de algum
poder só pode ser porque, invejoso do pênis por definição, arrebatou-o de seu
detentor natural. Em outros termos, a análise partindo do declínio do poder
paterno decorrente do aumento do poder materno fundamenta-se na lógica
fálica segundo a qual se um não tem é porque a outra lhe tirou. A tão
propalada ausência do pai na família moderna, o decantado declínio da
autoridade paterna supostamente causada por usurpação materna é um juízo
formulado a partir dessa lógica falha que resulta no ataque à mãe e a seu
poder. Falha essencialmente porque encobre a origem dos sem limites e não
interroga a equação freudiana do filho falo. Filho falo que é também o filho
que fala – que grita, que ordena, que esperneia, que tiraniza. Um déspota,
enfim.
Não é outro o motivo pelo qual a Psicanálise atribui ao pai a função de
interdição do incesto: o logos separador protege de uma terrível mãe ogra
devoradora. Lacan acentua ainda mais os traços freudianos fazendo o pai
libertar a criança presa no mundo materno sufocante. Proibindo a mãe à
criança, o pai separa a díade original pela relação triangular, supostamente a
única capaz de humanizar a criança e permitir-lhe experimentar-se como
sujeito.
Essa separação taxativa entre funções paterna e materna realizada por
Lacan foi comentada por Renato Mezan com Monique Schneider em
Psicanálise e Cultura, Psicanálise na Cultura:
“Todos sabem que Lacan coloca o pai – a função paterna – como aquele
que separa a mãe do seu filho, castrando-a da posse onipotente e louca
dele. Essa ideia do que é a função paterna tem o seu correlato na figura
da mãe como uma espécie de ogro devorador e envolvente, que, se não
tiver um pai por perto, fatalmente transformará seu filho num
esquizofrênico ou num autista. O correlato da potência vertical-
separadora encarnada no pai só pode ser uma potência horizontal-
engolidora que se opõe à separação, representada pela figura da mãe.”
(MEZAN, 2002, p. 324)
Essa dupla representação do feminino e do masculino (mãe devoradora,
pai separador) não foi criada pela Psicanálise. Ao contrário, já está presente
na cultura pelo menos desde gregos e cristãos (NEDER BACHA: “Um Édipo
Invejoso? As ‘tetas da sapiência’ ”). O feminino é a sede do apetite das
paixões que consomem como o fogo; é cruel, como na lenda das bacantes,
mulheres de Tebas enlouquecidas por Dioniso; é devorador dos frutos do seu
próprio ventre, como alardeado em De planctu ecclesiae, o documento maior
(um em um milhão) da hostilidade clerical à mulher, segundo Delumeau,
subsidiando tudo o que o Malleus contém de mais misógino. Não surpreende
a necessidade vital da intervenção do pai, logos separador, interditando a
união, arrancando a criança da fusão com essa mãe canibal.
A humanidade identificou feminino e antropofagia: a boca do útero é tão
insaciável quanto o apetite do selvagem canibal, conforme argumentei em
“Um Édipo Tupiniquim? O inconsciente na cultura” (NEDER BACHA,
2000). Fundindo-se com o outro numa devoração incestuosa a “criança”
americana acordava esse fantasma arcaico do ser humano. Do mesmo modo
como o faziam as bruxas. Daí a exportação para a terra brasilis da
diabolização do feminino, que assimilava as velhas e gulosas índias
devoradoras de carne humana às feiticeiras engolidas pelo fogo da Inquisição.
Foi pela inferioridade das mulheres que Deus quis evitar a inveja do
feminino. É o que explica Louise Bourgeois, parteira de Maria de Médicis: é
necessário que as mulheres sejam inferiores porque se elas fossem saudáveis
de corpo e de espírito como os homens, eles as invejariam. “Deus quis que
elas fossem inferiores nisso, para obviar à inveja que um sexo poderia sentir
em relação ao outro.” (apud ÉVELYNE BERNIOT-SALVADORE, p. 423.)
Deve ser por isso que, além de impotentes para gerar, tudo o que remete
à vida que elas não podem criar é sujo e não tem o menor valor. “Nascemos
no meio da urina e das fezes”, atira Santo Agostinho. Com a mesma repulsa,
Tertuliano evoca “as náuseas das mulheres grávidas, os seios caídos e as
crianças que berram” e Santo Ambrósio observa que a maternidade só traz
dores e aborrecimentos. Tanta sujeira exige uma purificação pós-parto, além
da proibição da comunhão às mulheres grávidas e menstruadas. Será por
acaso que a punição divina escolhe como alvo, justamente, a natureza
criadora de Eva e suas imitadoras, amaldiçoadas com as dores do parto? “Eu
multiplicarei os sofrimentos das tuas gravidezes, no sofrimento darás à luz os
teus filhos”. Sofrimento, é bom lembrar, execrado já por Medeia: “Eu
preferiria tomar parte em três combates a dar à luz uma só vez.”
Do tiroteio disparado contra a vida fértil da mulher, claro que seu fruto
não sairia incólume. Por sua filiação, nossa criança originária nasce culpada,
destinada pelos adultos à crucifixão.
Criatura diabólica, será perseguida às claras até o início dos tempos
modernos, quando a escolarização da infância virá purificá-la, colocando
Édipo de quarentena para isolar o mal que portaria. Desde então o sacerdócio
pedagógico será encarregado de transmitir a palavra sagrada de Logos, ou do
conhecimento desencarnado - a Ciência (NEDER BACHA, “Escola
Moderna, purgatório das paixões”).
A associação do feminino com a criação – ou, com a procriação,
conforme preferem algumas feministas, que viram nessa associação o germe
da “dominação sexual” – faz o feminino surgir como algo invejável, para
além do invejoso e da castração. A diferença sexual mobiliza a inveja em
ambos os sexos.
Renato Mezan formula uma metapsicologia da inveja na qual ela está
ligada ao narcisismo (idealização, olhar, agressividade), sendo desdobrada
numa vertente de impulso e noutra de defesa e situada como uma reação à
percepção da diferença, da alteridade, da finitude. E, portanto, da nossa
imperfeição humana.
Longe de ser monopólio do feminino a inveja revela-se assim
democraticamente distribuída entre os sexos, podendo ser mobilizada pela
diferença sexual. A inveja é, na definição de Mezan, simultaneamente
impulso e defesa: diante de algo que é do outro percebo a falta em mim que
faz surgir o desejo de plenitude, de onipotência ou fusão narcísica, seguido
do impulso contrário. Para ele a inveja é uma formação de compromisso entre
o desejo incestuoso e o horror do incesto e por isso o olhar é tão importante
na sua economia.
Cego de inveja, o rei sábio fechou os seus olhos justamente para essa
visão da alteridade que lhe impunha Jocasta, apontando para a diferença de
gerações e para a diferença sexual, como o invejável canto da Esfinge. Édipo
com sua lógica fálica, lógica da exclusão que não reconhece a existência da
feminilidade, mas tão somente o fálico e o castrado, redobra seu triunfo sobre
pai e mãe quando faz a teoria psicanalítica deduzir que a autoridade paterna
foi roubada pela mãe invejosa. Mas a mesma lógica falha que desloca a
autoridade do pequeno tirano para um suposto matriarcado moderno é a
lógica que triunfa ao prolongar a rivalidade, afastando o polo materno do
paterno, separando mãe e pai, animando a guerra entre os sexos e trazendo
novo disfarce para a velha misoginia.
2 - “Cala a boca, besta!”
Brás Cubas, o menino diabo

O pequeno déspota nos remete ao autor defunto de Machado de Assis, o qual,


no capítulo XI de suas Memórias Póstumas (“O menino é pai do homem”),
retorna a sua infância a fim de mostrar o homem que se tornaria. Se é verdade
que “o menino é o pai do homem”, como dizia o poeta, “vejamos alguns
lineamentos do menino”.
Remontando longe no tempo de sua meninice, Brás Cubas evoca com
escárnio e soberba sua crueldade e tirania infantis:
“Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de ‘menino diabo’; e
verdadeiramente não era outra cousa; fui dos mais malignos do meu
tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia
quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce
de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um
punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à
minha mãe que a escrava é que estragara o doce ‘por pirraça’; e eu tinha
apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de
todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à
guisa de freio; eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão,
fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia – algumas
vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito,
um – ‘ai, nhonhô!’ – ao que eu retorquia: – ‘Cala a boca, besta!’”
(ASSIS, 1881, Capítulo XI: “O menino é pai do homem”, p. 526).
Exibindo sem pudor sua supremacia e seu desprezo pelos homens, desde
cedo nhonhô afronta, provoca e tiraniza, gabando-se do orgulho que desperta
em seu pai por seus modos de sinhozinho.
“Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves,
puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das
matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio
indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito
robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes
me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em
particular dava-me beijos. Não se conclua daqui que eu levasse todo o
resto da minha vida a quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes
os chapéus; mas opiniático, egoísta e algo contemptor dos homens, isso
fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéus, alguma vez lhes
puxei pelo rabicho das cabeleiras.” (ASSIS, 1881, p. 527)
O déspota mirim vangloria-se por fazer o mal e receber os aplausos de
Nhô Cubas, que não economiza sua aprovação à iniquidade do filho:
“De manhã, antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus
que me perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas
entre a manhã e a noite fazia uma grande maldade, e meu pai, passado o
alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: ‘Ah!
brejeiro! ah! brejeiro!’. Sim, meu pai adorava-me.” (ASSIS, 1881, p.
527)
Iaiá, subordinada ao marido, ratificava a coroação do pequeno
imperador:
“Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração,
assaz crédula, sinceramente piedosa, – caseira, apesar de bonita, e
modesta, apesar de abastada; temente às trovoadas e ao marido. O
marido era na Terra o seu deus. Da colaboração dessas duas criaturas
nasceu a minha educação, que, se tinha alguma cousa boa, era no geral
viciosa, incompleta, e, em partes, negativa.” (p. 527)
O irmão do pai era o único a criticar a educação de nhonhô:
“Meu tio cônego fazia às vezes alguns reparos ao irmão; dizia-lhe que
ele me dava mais liberdade do que ensino, e mais afeição do que
emenda; mas meu pai respondia que aplicava na minha educação um
sistema inteiramente superior ao sistema usado; e por este modo, sem
confundir o irmão, iludia-se a si próprio.” (p. 527)
Brás Cubas assim encerra o edificante capítulo sobre sua infância, sua
família, sua educação:
“O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica
indicada, – vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do
arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa
terra e desse estrume é que nasceu esta flor.” (p. 528).
E daí, perguntará você leitor, já não terá passado mais de um século
desde o tempo em que nosso pequeno senhor de escravos podia usufruir
desse poder? Ou Prudêncio teria deixado herdeiros e substitutos nos lares
brasileiros?
Escravos negros, escravos índios: suas marcas na
família e na criança

Ao analisar as famílias e a vida doméstica no Brasil português, Leila


Mezan Algranti observa que é impossível tratar dos costumes domésticos na
Colônia ignorando a importância dos criados negros e índios. Longe de se
restringir apenas ao trabalho, “a escravidão marcou profundamente a
sociedade brasileira, quer na esfera doméstica, quer nas relações sociais e
pessoais”. As crianças escravas misturavam-se no espaço doméstico aos
filhos dos senhores, e pajens e mucamas participavam do cotidiano de seus
donos (1997, p. 131).
Indo da História da Vida Privada no Brasil para a História das
Crianças no Brasil, lemos no texto de José Roberto de Góes e Manolo
Florentino, “Crianças escravas, crianças dos escravos” que:
“Se Gilberto Freyre tiver razão uma outra vez, como tudo indica, e for
verdade que os meninos livres eram educados aquém de toda
contrariedade, era muito difícil a vida das crianças escravas mais
próximas à família do senhor. O nhonhô, afinal, matriculado na mesma
escola da escravidão, estava a aprender sobre a utilidade de bofetadas e
humilhações.” (1999, p. 186)
Esse relacionamento entre senhores e escravos surpreendia os norte-
americanos e ingleses que aqui vinham ou viviam. Em Retratos de Mulher. O
cotidiano feminino no Brasil sob o olhar dos viageiros no século XIX, Tania
Quintaneiro escreve que a miscigenação produzia um sistema peculiar de
relações familiares, marcado por uma convivência doméstica entre crianças e
criados. As numerosas crianças paridas por iaiá eram entregues a uma ama de
leite para serem amamentadas e criadas, sendo elas as mães por excelência,
“uma conveniente substituta, em geral, afetuosa, ainda que reduzida à
condição de inferioridade (...)” (1996, p. 125).
E é essa “condição de inferioridade”, ainda presente no Brasil livre,
republicano, que faz toda a diferença ainda hoje entre nós, tanto nos lares
quanto nas escolas em que os professores vem sendo cada vez mais
recrutados nas camadas econômica e culturalmente situadas naquela fatia
“dos que obedecem”, para usar uma categorização do Brasil sugerida por
Renato Mezan em Interfaces da Psicanálise. O Caderno Cotidiano da Folha
de S.Paulo de 1o de maio de 2006 traz na capa a manchete: “Metade dos
docentes já foi xingada por alunos”, conforme pesquisa da UNESCO, MEC e
Observatório de Violência nas Escolas envolvendo seis capitais do país.
Reproduz-se assim com os adultos na escola a mesma relação de
subordinação vivida nos lares em que, encarregado dos cuidados das
crianças, o adulto – melhor seria dizer, a mulher – continua, como Prudêncio,
a receber ordens diretamente de nhonhô com o beneplácito dos pais.
Graham, um comerciante inglês estabelecido no Rio de Janeiro no
século XIX, comenta essa enorme diferença com a experiência da Inglaterra.
Conforme narra o estrangeiro, a governanta ou camareira inglesa responsável
pelas moças era “bem educada, de bom caráter e de boa moral”,
suplementando as funções maternas e servindo “de freio para o
comportamento”. Bem diferente do Brasil já que os serviçais são os escravos:
escravos e seus donos sendo inimigos, por que aqueles teriam outro desejo
senão o de decepcionar seus senhores e estragar suas famílias? E
fundamentalmente, o escravo o era da família, o que incluía o sinhozinho – a
criança. Estabelecendo-se, portanto, uma relação de poder entre adulto e
criança na qual essa é que mandava naquele. Não é essa a mesma situação
que vai se espalhar pelas classes médias do século seguinte (XX), com as
babás e as empregadas domésticas? E também com os professores, na escola
do século XXI?
Essa convivência entre crianças e criados era percebida, segundo
Graham, como “prejuízos da intimidade” até mesmo pelas famílias ricas que
lamentavam ter de separar-se dos filhos para que fossem educados “longe da
influência perniciosa dos escravos domésticos”. É interessante acompanhar o
diálogo travado entre o inglês e uma senhora durante um baile ao qual
compareceram crianças pequenas. O inglês advertiu-a de que, sob todos os
pontos de vista, isso seria considerado maléfico para elas na Inglaterra.
Indagado por sua interlocutora sobre o que eles fariam de seus filhos em
ocasiões como essas o inglês respondeu: “Alguns estariam na cama e outros
com as amas e governantas”. A senhora então retrucou-lhe que os ingleses
eram “felizes nesse ponto; mas no Brasil não havia tais pessoas e as crianças
ficariam entregues ao cuidado e exemplo dos escravos”, com seus hábitos
depravados e práticas imorais. Por isso, argumentava a senhora, “aqueles que
amam seus filhos precisam tê-los debaixo da vista onde, se é verdade que
podem correr o perigo de haver excesso nesse sentido, ao menos não podem
aprender nenhum mal” (QUINTANEIRO, 1996, p. 138).
Nossos pequenos tiranos, nossos imperadores mirins são entregues aos
cuidados de escravos ou da mulher: escravidão negra, escravidão feminina,
os subalternos no patriarcado em quem desde cedo a criança aprende a
mandar. A trama da tirania infantil no Brasil parece bem mais complexa,
enraizada e articulada em nossa história, para ser considerada só como um
efeito – ou defeito – do excesso de amor ou de culpa dos pais. À cultura
brasileira veio somar-se o movimento da história desde o século XVIII para
chegarmos ao pedocentrismo no século XX.
Ouçamos ainda uma vez Tania Quintaneiro e os registros dos nossos
costumes realizados por viajantes estrangeiros. A socióloga não parece
seduzida pela facilidade das explicações para a falta de autoridade dos pais:
“As relações de poder refletiam-se também na tirania exercida pela
criança sobre sua babá negra. Um observador sensível conclui: a ama ‘é
uma inferior, e a criança sabe disso’, mas, como consequência, a mãe
também ‘é uma inferior, pelo seu status social, e não se aventura a
frustrar a criança. O pai, em quem a autoridade descansa, esquiva-se
sobre os irresponsáveis, que não se atrevem a deitar mãos sacrílegas
sobre o herdeiro do poder. O resultado disso é que o treinamento de uma
criança aqui consiste em deixá-la tomar seu próprio caminho tanto
quanto possível, e as pequenas travessuras e orgulhos transformam-se
em aniquiladora vaidade e arrogância. A escravidão tem a culpa disso, a
escravidão negra e a escravidão da mulher, que não dá à mãe qualquer
autoridade’.” (SMITH apud QUINTANEIRO, p. 139)
Continuando a descrever o cotidiano brasileiro do século XIX a autora
mostra a peculiaridade da tirania infantil tupiniquim, entranhada nessa cultura
patriarcal e escravista, aliando subjugação do negro e subjugação da mulher:
“Se por um lado, o poder concentrado nas mãos do pai ajudava a retirar da
mãe toda a autoridade, por outro, aquele tampouco desempenhava o papel de
educador e, a cada geração, ‘novos adultos arrogantes’ vinham ocupar o lugar
dos primeiros, perpetuando assim o ciclo da dominação sobre os negros e as
mulheres”. Quintaneiro cita Frances, uma cronista, para quem essa educação
produzia crianças “muito mimadas, e cada uma delas um enfant terrible”. O
irmão de Frances tentou convencer as mães dessas crianças “que eles
poderiam ser recuperados por uma boa sova, e descrevia para elas o sistema
britânico de nurseries – aposentos onde os pequenos ficam para nunca
incomodar os adultos. O horror e desprezo que elas exibiam eram divertidos”
(FRANCES apud QUINTANEIRO, p. 139).
Os ingleses achavam as casas brasileiras extremamente incômodas: eram
populosas e todos os seus espaços eram receptivos às crianças. Além de não
haver áreas interditadas a essas pestinhas, elas permaneciam todo o dia
acordadas porque para os pais seria “uma crueldade”, escreve o viajante,
interromper o prazer de sua companhia. Daí Luccock escrever que as crianças
brancas eram “piores do que os mosquitos”, essa “praga tropical das mais
desesperadoras”. Elas usavam a sala de refeições como seu “território de
caça”. Ali, quando não estão devorando “tudo o que podem agarrar, apostam
corrida em volta da mesa e criticam os inglesi”. Durante um jantar em que
quatro crianças estavam presentes, duas babás tentavam dar de comer à
menor (dezoito meses) que gritava a cada colherada enquanto as outras três
lutavam com facas e socos. Meninos de sete e oito anos fumavam sem
qualquer desaprovação. Diante desse quadro o observador conclui: “Crianças
no sentido inglês não existem no Brasil...” (LUCCOCK apud
QUINTANEIRO, p. 140-141).
Desesperados com os costumes dos nossos mosquitos, os forasteiros
deixaram descrições pouco animadoras das crianças, reproduzidas por Tânia
Quintaneiro. A autora segue descrevendo o cotidiano brasileiro do século
XIX aos olhos dos forasteiros desesperados com os costumes dos nossos
mosquitos, deixando descrições pouco animadoras das crianças brancas:
“Andavam por toda parte total ou parcialmente despidos, infestados de
piolhos, amarelados, com as mãos pegajosas e malcheirosas, o rosto
revelando camadas de sujeira, ‘onde a cada hora um caminho de
lágrimas lava o solo em sulcos sucessivos’. Um engenheiro que teve a
roupa manchada por um desses pirralhos desejava que agarrassem o
infeliz culpado com um apropriado par de pinças e o jogassem num
agradável chiqueiro. Mas por vezes não havia saída a não ser beijar,
como mostra de simpatia, ‘quelle horreur! a uma filhinha de cara suja’
do anfitrião. Mimados pela mãe branca e pela mãe preta, eles resultavam
ser, em geral, terrivelmente mal educados: ‘Gritam à menor provocação,
mordem, arranham e ainda insultam as pacientes negras que cuidam
deles’. Às lamúrias da mãe do tipo: ‘Ai! Meo Deos’... Não faça isto,
meu bem. Não chora benzinho. Ah! Meo Deos!’, o pequeno redobrava a
gritaria e era levado chutando e mordendo’.” (WELLS apud
QUINTANEIRO, p. 141)
As crianças de classe média inglesa de meados do século XIX tinham
hábitos opostos aos nossos. Ocupavam espaços separados do mundo dos
adultos no qual não podiam interferir impunemente, escreve a autora: “Diante
de tais regras de comportamento, a criança brasileira parecia selvagem e sua
mãe branca, educada ela própria com tanta parcimônia, pouco podia
contribuir no sentido de civilizá-la.” (p. 142)
Um outro viajante, citado por Mary Del Priore em O cotidiano da
criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império registra:
“O carinho dos pais pelos filhos, enquanto pequenos, chega a não ter
limites, e é principalmente o pai quem se ocupa com eles, quando tem
um minuto livre. Ama-os até a fraqueza e, até certa idade, atura suas
más criações. Não há nada que mais o moleste do que ver alguém
corrigir seu filho. Quando marido e mulher saem de casa, seja para
visitarem uma família, seja para irem a alguma festa, levam consigo
todos os filhos, com suas respectivas amas, e é ainda o pai quem carrega
com todo o trabalho, agarrando-se-lhe os pequenos ao pescoço, às mãos,
às abas do casaco.” (PRIORE, 1999, p. 95)
Em A Vida das Crianças de Elite durante o Império, Ana Maria Mauad
narra uma cena do final do século XIX em que a jovem professora alemã
entra na classe e encontra as meninas fazendo a maior bagunça e na maior
falação:
“Na confusão de sua pouca experiência recorre ao método Bormann, de
disciplina alemã, ordenando-as a levantar e a sentar repetidamente, até o
número de cinco vezes. Pensando estar aplicando um castigo que, em
sua terra seria no mínimo vergonhoso, a jovem professora só consegue
exaltar o ânimo das alunas que, ao tomarem o castigo por uma boa
brincadeira, ‘pulavam perpendicularmente [...] divertindo-se
regiamente’. A professora desconcertada conclui que ‘as crianças
brasileiras, em absoluto, não devem ser educadas por alemães; é
trabalho perdido, pois enxerto de planta estrangeira que se faz na
juventude daqui não pegará’.” (1999, p. 137)
Os mosquitos hostis infernizam a vida dos forasteiros e distribuem
ordens e gritos a seus escravos. “Na sociedade escravista, ao contrário do que
supunha a professora alemã, a criança mandava e o adulto escravo obedecia.”
(PRIORE, 1999, p. 12)
Como Tania Quintaneiro, Ana Maria Mauad retoma aquela mesma
descrição do nosso cotidiano feita pelo viajante inglês, Luccock, para quem
nossas crianças eram verdadeiros selvagens, enfant terribles, enfim, “uma
criança brasileira é pior do que um mosquito hostil [...] crianças no sentido
inglês não existem no Brasil”, e então a historiadora conclui:
“Toda essa avaliação negativa está relacionada, em boa parte, à
incompreensão dos estrangeiros em relação aos hábitos tropicais, uma
adaptação dos códigos de comportamento portugueses à rotina da
sociedade colonial e à forte influência da cultura negra. Para os viajantes
estrangeiros, a vida doméstica no Brasil oitocentista era um verdadeiro
caos.” (MAUAD, 1999, p. 138)
“Forte influência da cultura negra” e da escravidão, que no Brasil
patriarcal e clientelista marcava a educação do filho e conferia ao pequeno
herdeiro o permanente direito de transgredir as normas como um sinal de sua
distinção e supremacia, como observado por Roberto Schwarz (2008) a
respeito de Brás Cubas. “Eu sou o cara, sou o príncipe do gueto, o cara que
manda no local”.
Despatriarcalização com desigualdade de gêneros

Em Sexo e Poder: a Família no Mundo – 1900-2000, Göran Therborn


(2006) acompanha a instituição da família através de um século,
aproximadamente de 1900 até 2000. Até 1900, mudanças consideráveis já
haviam ocorrido no patriarcado, que ele considera o grande perdedor do
século XX. Sua derrocada começou nos países escandinavos com importantes
direitos concedidos às mulheres e crianças ainda nos anos 1910.
Em 1900 a opinião dominante sobre a família entre os detentores do
poder foi expressa pelo então ministro da Justiça, Cort van der Linden. Esse
holandês liberal esclarecido e aristocrático declarou no Parlamento: “Em
minha opinião, o caráter de casamento, todavia, é incompatível com uma
igualdade por princípio entre homem e mulher” (apud THERBORN, p. 33).
E Le Play, anos antes (1866) havia dito: “A autoridade paterna é o mais
necessário e o mais legítimo de todos os poderes sociais.” (p. 29)
Therborn destaca que poder e sexo são mundos entrelaçados e que “a
família é um espaço cercado nos campos de batalha abertos pelo sexo e pelo
poder” (p. 11). As relações de poder determinam os direitos e deveres dos
membros da família; numa família patriarcal o poder é do pai e do marido, o
“chefe de família”, que o exerce sobre os filhos e sobre a mulher. Por volta de
1900 o mundo era patriarcal. Os direitos do pai e do marido governavam o
mundo dos filhos e das esposas.
Já por volta de 1900 três grandes mudanças institucionais e econômicas
impuseram-se sobre o patriarcado europeu: a proletarização, que afetou o
patriarcado porque o pai proletário não tinha patrimônio nem poder absoluto
(seu poder de pai estava subordinado ao poder superior dos proprietários da
terra ou do capital); a urbanização, que desafiou o patriarcado por dificultar o
controle social, e a industrialização, que separou o lugar de trabalho e a
residência, enfraquecendo o controle paterno. Therborn acrescenta ainda um
quarto, representado principalmente pela escolarização pública obrigatória no
final do século XIX e que retirou as crianças do domínio do pai.
Contrariando o forte consenso estabelecido na literatura francesa, o
sociólogo sueco inova ao afirmar que a Revolução Francesa não desafiou o
patriarcado: “Pelo contrário, a tradição napoleônica deixou como legado um
patriarcado militante, por meio do notório parágrafo 213 do Código Civil de
1804, estabelecendo a ‘obediência’ da mulher ao marido”, e um abrangente
poder paterno (p. 44).
Não é o que pensa Jean Delumeau, organizador com Daniel Roche de
Histoire des Pères et de la Paternité. No Prefácio ele escreve que a
Revolução Francesa impôs uma crise à identidade do pai que, a partir de
1760, deixou de ser um personagem acima de qualquer suspeita começando
aí o tempo de sua “humilhação”. Mais tarde ainda Freud afirmará que o pai
engendra seu próprio assassino. Como hoje as respostas já não são evidentes
tornou-se impossível não perguntar: “O que é um pai?”, “O que é a função
paterna?”, “O que funda a filiação?”
Vale a pena abrir um rápido parêntese para ressaltar esse caráter de
“evidência” afirmado por Delumeau. Monique Schneider observa em
Généalogie du Masculin que Freud não se colocou a questão do que é o
masculino, tomando-o simplesmente como o contrário, o negativo do
feminino. O masculino é fundado pela negação e Conrad Stein lembra que
essa negação fundadora do masculino permaneceu oculta na investigação
analítica. Embora possa ser vista na Sociologia, diz Schneider, como em Da
Identidade Masculina, onde Elisabeth Badinter insiste na prescrição dirigida
ao homem e que impõe menos um modelo do que uma evitação sistemática:
os machos aprendem geralmente o que eles não devem ser para serem
masculinos antes de aprenderem o que eles podem ser. Muitos meninos
definem de imediato a masculinidade: o que não é feminino. Não é
exatamente isso que vemos na indagação reiterada sobre a paternidade?
Voltando à Histoire des Pères et de la Paternité, em “De la paternité
triomphante à la paternité négociée” G. Delaisi de Parseval diz o mesmo que
Delumeau: o regicídio foi o passo inaugural para o enfraquecimento
progressivo do poder do pai nas sociedades modernas, depois do
paterfamilias do direito romano. Balzac escreveu: “Cortando a cabeça de
Luiz XVI, a República cortou a cabeça de todos os pais de família.” Morte do
rei, morte do pai. O século XIX marcou o declínio progressivo da onipotência
do pai. Depois da morte do rei foi o direito das mulheres que restringiu o
direito do pai: com o fim da potência marital, a noção de igualdade entre os
esposos apareceu no direito. Finalmente nos anos 1970 a noção de interesse
da criança transformou os direitos dos pais em deveres para com a criança.
Para a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco em A
Família em Desordem, a abolição da monarquia não provocou o crepúsculo
da paternidade, mas uma nova organização da soberania patriarcal. O pai da
sociedade burguesa já não era mais semelhante a um Deus soberano e
reconquistou “sua dignidade perdida, tornando-se, para começar, o patriarca
do empreendimento industrial” (p. 37).
Talvez parte dessas divergências na análise dos movimentos do
patriarcado possa ser atribuída às diferentes fontes utilizadas. Afinal, essa é a
marca do medievalista D. Lett em “Tendres souverains” no livro organizado
por Delumeau. Lett questiona a existência desses pais “antigos” e “infalíveis”
sobre os quais se apoiam os conceitos empregados por sociólogos, psicólogos
e psicanalistas, tais como os “novos pais” e a “falência do pai”, observando
que nossa imagem da paternidade na história funda-se em fontes jurídicas,
normativas, que oferecem uma visão parcial dos pais. O pai medieval
conhecido pelo Direito esquece o pai medieval terno e amoroso. Os juristas
mostram uma forte autoridade paterna, pois seu objetivo é propor uma
imagem da sociedade tal como ela deveria ser e não como ela é. O que nos
impede de perceber outra imagem do pai. Pelo menos até as duas últimas
décadas do século XX o pai medieval foi ignorado; o interesse dos
medievalistas pela história dos pais e da paternidade é um fenômeno muito
recente e é esse pai da Idade Média (do século V ao XV) que o autor
apresenta, partindo de outras fontes que não as jurídicas.
Essa imagem de um pai terno também foi mostrada pela historiadora
Daniele Alexandre-Bidon na obra coletiva Être Père à la Fin du Moyen
Age[10] citada por G. Delaisi de Parseval. Os pais medievais “maternavam”
(“maternaient”) suas crianças; cuidavam dos bebês, davam-lhes mamadeira e
muitas dessas atitudes atribuídas aos “novos pais” difundidas nos anos 1980.
Mas voltemos à Therborn que pretende contar a história do patriarcado
no mundo, para além da França e apenas nas proximidades do século XX.
Além das mudanças impostas à família europeia pela proletarização, pela
urbanização, pela industrialização e pela escolarização, o patriarcado europeu
foi ainda desafiado ideologicamente no final do século XIX por influentes
(embora minoritários) textos antipatriarcais, como o de John Stuart Mill,
Sobre a Sujeição das Mulheres (1869), Casa de Boneca, peça de Henrik
Ibsen (1879), que faz Nora abandonar seu casamento, e O Socialismo e a
Mulher, no qual August Bebel (1879) combatia a dependência da mulher em
relação aos homens e à propriedade.
O papa, o “sagrado guardião do patriarcado europeu”, contra-atacou
com “o mais poderoso tratado patriarcal” que foi a encíclica de 1891 de Leão
XIII, Rerum Novarum,[11] pretendendo inculcar nos fiéis “a base sagrada do
poder paterno”. O historiador protestante prussiano Heirich von Treitschke
também expressou a opinião predominante: “A verdadeira vocação da mulher
será sempre a casa e o casamento. Ela deve ter e educar crianças.” (apud
THERBORN, 2006, p. 46)
No Novo Mundo, na segunda metade do século XIX, o patriarcado era
ainda mais atacado do que no Velho. Nos Estados Unidos a ascensão de um
movimento de massa de mulheres e o reconhecimento dos interesses das
crianças pelos juízes já limitavam claramente o patriarcado no final do século
XIX. Quanto ao Brasil, que faz parte do que Therborn chama de América
crioula, desenvolveu um padrão particular de família caracterizado pela
informalidade e instabilidade dos chamados crioulos (pretos, mulatos,
mestiços, índios desenraizados), em contraste com a família branca, patriarcal
e patrilinear, ritualmente formal da classe dominante que, curiosamente, era
mais fortemente patriarcal do que o de sua origem, o europeu ocidental. Na
população crioula o poder masculino era mais falocrático que patriarcal.
Outro dado interessante que Therborn revela é que a América crioula
dos séculos XVI e XVII pode reivindicar a vanguarda e o pioneirismo na
moderna mudança familiar no mundo. Nessas culturas crioulas das Américas
os vínculos entre casamento e maternidade ou paternidade eram mais
exceções do que regras. O que é outra maneira de dizer que a finalidade do
casamento, ou melhor, das uniões, não era a procriação e, talvez, que filhos
não eram necessariamente criados pela “família”.
O Brasil do século XIX era avesso ao casamento formal. Esse legado
colonial da informalidade conjugal foi superado na primeira metade do século
XX, quando o casamento legal estabeleceu-se como instituição dominante
das relações sexuais em nosso país. Por volta de 1960 o Brasil teve a ordem
marital mais forte da América Latina, junto com o Uruguai e o Chile. E hoje
em dia há mais casamento e mais vida familiar marital no Brasil do que há
cento e cinquenta anos. Na metade do século XX o Brasil reduziu o número
de uniões informais e de nascimentos fora do casamento, mas nas últimas
décadas a coabitação informal, que caracterizava o antigo sistema de família
crioula, voltou com toda força.
O grande perdedor do século XX foi o patriarcado, o poder do pai,
segundo Therborn, para quem esta foi a instituição social mais recuada nesse
período, culminando num
“processo que nem mesmo conseguiu ainda uma designação apropriada.
Podemos nomeá-lo despatriarcalização. Mas o século XX foi mais do
que um século de mudança no longo reinado do patriarcado. Sua
segunda metade, particularmente seu último quartel, foi o período da
mudança global mais rápida e radical da história do gênero humano e
das relações geracionais.” (2006, p. 114)
Therborn destaca os três atos da queda do reino patriarcal ao longo desse
século XX. O primeiro, por volta da Primeira Guerra Mundial, que produziu
“a primeira quebra real do domínio patriarcal no mundo moderno”, entre
1910 e 1920, com uma reforma escandinava do Direito de Família atacando a
tradição patriarcal e encarando como obsoleta a autoridade do marido sobre a
mulher e a família. Mas a investida mais poderosa e revolucionária ao
patriarcado veio da Revolução Russa e da União Soviética, que o tornaram
“fora-da-lei em 1918”. A partir daí outras “brechas na fortaleza do
patriarcado” apareceriam em vários lugares.
O segundo momento da despatriarcalização foi logo após a Segunda
Guerra Mundial, com as reformas das leis japonesas, da China comunista e
também na Europa Oriental sob controle comunista. A Declaração dos
Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948 inclui artigos avançados sobre
gênero e família, igualando os direitos de homens e mulheres durante o
casamento e em sua dissolução. Mesmo que muitas dessas cláusulas ficassem
restritas ao papel, elas fortaleceram o ataque ao “antigo governo de pais e
maridos”.
“O terceiro ato do drama do século XX, do desmonte do patriarcado” foi
‘1968’ e a onda feminista internacional, cujo clímax foi 1975, declarado pela
ONU o Ano Internacional da Mulher, atacando poderes e privilégios de pais e
maridos. O Brasil, como outros países da América do Sul, só começou a
abolir ou mudar suas leis patriarcais depois da queda da ditadura. A
Constituição Brasileira de 1988 pôs fim à chefia masculina do código de
família. Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, advogado especializado em
Direito de Família, Presidente nacional do IBDFAM e autor de Pai, por que
me abandonaste?, essa Constituição deslanchou:
“uma grande reforma no Direito de Família a partir da mudança de três
eixos básicos: homens e mulheres são iguais perante a lei; o Estado
passou a reconhecer outras formas de família além daquela constituída
pelo casamento; e alterou o sistema de filiação, igualizando os filhos
havidos no casamento e fora dele (...).” (2003, p. 222)
A despatriarcalização prosseguiu com o reconhecimento dos direitos da
criança pela ONU a partir de 1989.
Para nossos propósitos nesse percurso pela história é importante
observar, com Therborn, o papel decisivo do comunismo nos três momentos
da despatriarcalização. Por onde o comunismo avançava espalhava consigo o
seu modelo de gênero e de família. A revolução é um marco na história do
patriarcado e é assim que ela tem sido considerada “por seus inimigos
contemporâneos, que a consideram destruidora das sagradas instituições do
casamento e da família”. Embora suas realizações reais tenham sido “muito
mais modestas do que aquelas alardeadas por seus protagonistas e
recriminadas por seus antagonistas” (THERBORN, p. 127). Desde cedo o
feminismo foi um princípio do marxismo e do comunismo. Até que, nos anos
1930, Stalin fez baixar a bandeira feminista e antipatriarcal, “exaltando a
estabilidade familiar e a maternidade”. Em entrevista a Marcos Strecker da
Folha de S.Paulo (Caderno Mais! de 19 de fevereiro de 2006) Therborn
repete: “o desmantelamento do patriarcado, ainda que incompleto, foi
provavelmente a realização mais positiva e mais duradoura do comunismo.”
No século XXI o patriarcado não desapareceu da face da terra; ele
permanece entrincheirado em várias partes do mundo; em outras, o poder dos
pais e maridos foi abalado, mas não se dissolveu totalmente. Além disso,
surgiram movimentos neopatriarcais com argumentação religiosa.
“Em suma, a despeito das tremendas e marcantes mudanças, é pesada a
carga de dominação paterna e marital trazida para o século XXI. A longa
noite patriarcal da humanidade está chegando ao fim. Está alvorecendo,
mas o sol é visível apenas para uma minoria.” (THERBORN, p. 195)
A Europa e as Américas são consideradas pós-patriarcais: autonomia
com relação “aos pais e direitos de família iguais para homens e mulheres.
Essa é a principal mudança histórica”. As diferenças entre homens e mulheres
(diferenças de gênero) permanecem muito grandes. “Uma sociedade pós-
patriarcal dá a homens e mulheres direitos iguais de ação, mas sua renda
relativa drena sua capacidade de ação.” (THERBORN, p. 190)
Finalmente, a grande vencedora do século é a criança: o século XX foi o
“século da criança”. “No decorrer do século XX, as crianças tornaram-se
mais caras, mais escassas, mais valiosas, mais indisciplinadas e mais
poderosas.” (THERBORN, p. 334)
Édipo enfim sagrou-se vencedor; his majesty, the baby tornou-se o
detentor do poder e da autoridade triunfando sobre os adultos e mudando a
face da família, que hoje está muito mais para uma Gurilândia do que para
um “matriarcado”.
Gurilândia: no reino da pedocracia

Não é curioso que nossos dicionários – do porte de um Aurélio ou um


Houaiss – não registrem as palavras “pedocracia”, “pedocêntrico” ou
“filiarcado”? Em nossa língua oficial um reinado da criança parece assim
absolutamente improvável. Bem ao contrário do que alguns observadores
registram e do testemunho do nosso “menino diabo”.
Em sua edição de março de 2006 a Revista Claudia publicou “A
construção da autoridade: Por que as mães estão perdendo a autoridade e
criando pequenos imperadores”, assinada por Regina Valadares e Sibelle
Pedral. No começo da matéria uma chamada: “Dizer não à criança é uma
forma de amor. Se ela nunca é contrariada, vira uma ditadora”. E abaixo o
texto: “Nunca se falou tanto na necessidade de pôr limites e nunca se praticou
tão pouco. Que feitiço é esse que deixa mães e pais inertes diante de crianças
tiranas? Desvendá-lo e virar o jogo exige estratégia e empenho.”
A seguir as jornalistas contam a história de Luzia que, com 25 anos de
idade e num período de um ano já está na terceira empregada, pois ninguém
aguenta o imperador da casa, Rodrigo. Ricardo, o pai, sabia desde o princípio
que estavam “mimando demais o filho, porém não queria correr o risco de ser
autoritário como seu pai”. Segundo a matéria, essa “multidão de ditadores
mirins” que encontramos aos montes no shopping, no supermercado e nas
festas infantis deve-se à falta de limites. As mães não dizem não às crianças
que, dessa maneira, não aprendem a lidar com as frustrações.
Talvez a explicação esteja “numa equação que é velha conhecida das
mulheres – é nas nossas costas, ainda, que pesa a maior parte da
responsabilidade pela educação dos filhos”, continua a matéria com o
depoimento de uma psicoterapeuta de São Paulo, Valéria Meirelles, para
quem as mulheres estão muito cansadas e sobrecarregadas de exigências das
mais variadas e por isso acabam descuidando da educação dos filhos. A
questão é que “educar dá muito, muito trabalho” e as mães já não têm energia
para dizer não quando chegam à noite esgotadas em casa. Dizer não para uma
criança exige ainda explicar por que e discutir muito. Culpados, os pais
tentam compensar o abandono com permissividade.
É também nesses termos que Magdalena Ramos, psicanalista e
coordenadora do núcleo de Casal e Família da PUC-SP examina o problema.
Em Modificações da instituição família: famílias uniparentais – produção
independente ela afirma que a culpa e a sedução maternas criam nossos
ditadores mirins:
“A mulher negligencia seu verdadeiro papel de educadora. Com pouco
tempo para o convívio com o filho, não quer ‘aborrecê-lo’ pondo limites
ou brigando com ele. Este desajuste na educação, onde os filhos não
podem ser frustrados e os pais não ocupam seu verdadeiro lugar”, altera
a hierarquia familiar, “onde o filho tem o poder e se transforma num
pequeno ‘tirano’, que pode fazer o que bem entende e ‘dominar’ os
pais.” (RAMOS, 2003, p. 289.)
As “crianças passaram de reis a ditadores”, escreve Mary Del Priore na
Apresentação da História das Crianças no Brasil. Os vínculos “de
obediência, de respeito e de dependência do mundo adulto” foram
substituídos “por uma barulhenta autonomia” produzindo, talvez, “uma brutal
delinquência juvenil (1999, p. 7-8). Os viajantes estrangeiros descreveram
incansavelmente “o demasiado zelo com que, numa sociedade pobre e
escravista, os adultos tratavam as crianças”. E hoje:
“Educadores e psicólogos perguntam-se, atônitos, de onde vem o
excesso de mimos e a ‘falta de limites’ da criança brasileira já definida,
segundo os resmungos de um europeu de passagem pelo Brasil em 1886,
como ‘pior do que um mosquito hostil’.” (PRIORE, 1999, p. 11)
“Filhos tiranos, pais perdidos” é a capa da Revista Veja de 18 de
fevereiro de 2004 (edição 1841). Abaixo do título traz o conselho: “Não
tenha receio de ser visto como repressor ao impor limites ao adolescente que
atazana sua vida. Educadores e psicólogos dizem que isso faz bem – a ele e a
você.”
A matéria intitulada “A tirania adolescente” lembra que há algumas
décadas “criança não tinha direito a querer”, mas o dever de obedecer. Essa
mudança teria ocorrido pela “revolução comportamental dos anos 1960”, pela
“difusão dos métodos pedagógicos modernos” e pela “popularização da
Psicologia”, tudo isso levando à permissividade nas relações entre pais e
filhos.
Vira e mexe o assunto volta às manchetes e programas de televisão. “A
importância de dizer não” (na Folha de S.Paulo de 1o de junho de 2006),
escrito por Rosely Sayão, que aponta como é difícil que os pais o façam, é
um exemplo entre muitos. Poucos meses depois ela voltaria ao tema (Folha
de S.Paulo de 5 de outubro de 2006) em “Pequenos imperadores”. Refere-se
à maneira como são tratadas as crianças na China em função do “fenômeno
do filho único” gerado pela política rigorosa de controle da natalidade do
Estado, que obriga as famílias a reduzirem a prole a apenas um filho,
multando as que geram mais.
“Na China, o fenômeno do filho único transformou o comportamento
dos pais em relação ao filho. O exagero de apego, de proteção e de
mimos colaborou na construção de uma geração de crianças com
enorme dificuldade em obedecer e grande talento para mandar. Lá, eles
são chamados de ‘os pequenos imperadores’. No Brasil, a cultura da
juventude eterna e a do consumo exagerado têm provocado efeitos
semelhantes nas crianças. Os pais, bastante ocupados com a própria
vida, têm tido pouca energia, paciência e disponibilidade para a árdua
tarefa educativa. Consideram mais fácil e amoroso acatar os pedidos –
que logo se transformam em exigências – destas do que levá-las, pouco
a pouco, a aprender a obedecer e a ver a vida como ela é. Não temos
ainda uma expressão nossa para nomear essa geração, mas falamos
muito em ‘crianças sem limites’, ‘pequenos tiranos sem controle’,
‘crianças-problema’, ‘filhos mandões’ e ‘alunos indisciplinados’.”
Poucos meses depois (Folha de S.Paulo de 17 de dezembro de 2006)
será a vez de Bia Abramo voltar ao tema em “A TV e o pé-de-guerra entre
pais e filhos”. Deslocando o foco dos pais culpados, cansados ou negligentes,
a colunista aponta para o estrago produzido por uma cultura que atiça
sofregamente o consumismo de crianças e jovens pela publicidade na TV,
detonando o poder dos pais. A vida no Natal a partir da televisão vira um
inferno, escreve ela: “mensagens edificantes, ‘musiquinhas’ a propósito do
espírito natalino (?!) e, claro, todos os tipos de apelo de consumo”. As
crianças “pedem, exigem, choram, gritam, imploram, tentam negociar, se
recusam a comer... (Cada pai e mãe sabe como essa sequência pode
prosseguir, em crescendos de sofrimentos para ambas as partes)”. Para a
colunista “esse embate tem se tornado cada vez mais central” nas relações
familiares e a ele está ligado o sucesso da Supernanny, o reality no qual “uma
‘especialista’ cheia de fórmula mágica tenta pôr alguma ordem no pé de
guerra entre pais e filhos”. Bia Abramo denuncia que é muito conveniente
atribuir aos pais “a culpa pelos excessos das crianças mimadas”,
desprezando-se assim o fato de o poder dos pais ser “minado noite e dia,
anúncio após anúncio”.
Apontando diretamente a publicidade como uma das fontes da tirania
infantil, a colunista recusa-se a culpar ou responsabilizar os pais (ou apenas
os pais) por uma derrota da qual eles são tão vítimas quanto agentes. De fato,
como temos visto até aqui, o regime pedocêntrico começa a instituir-se na
cultura desde o século XVIII e ao longo do século XX nós vimos Édipo
tirano sair vitorioso na disputa pelo poder com os adultos educadores – pai e
mãe. O “declínio do poder paterno”, a derrota do patriarca não levou à
ascensão do poder materno mas à supremacia infantil, criando esses déspotas
mirins ou pequenos imperadores lembrados a todo momento pela mídia.
Nesse regime pedocêntrico em que vivemos, o ideal valorizado é o da
“eterna juventude”, antigo sonho da humanidade do qual a biotecnologia hoje
nos aproxima como nunca. Mas “eterna juventude” não apenas do ponto de
vista estético e físico: o pacote do “seja jovem” inclui também o aspecto
psicológico, o estilo da subjetividade moderna. É assim que o adulto hoje se
apresenta, animando a síndrome dos kidults (“quero ser criança”), quero fazer
parte da turma. Nosso moderno estilo de viver é calcado na idealização dos
mais jovens invertendo a mão da história, quando os velhos eram respeitados
e admirados como sábios.
Em sua coluna na Folha de S.Paulo de 12 de fevereiro de 2009, o
psicanalista Contardo Calligaris também escreve sobre a “Tirania infantil”,
ou seja, sobre as crianças que controlam seus pais ao invés de serem por eles
controlados. O fato de mais de 30 mil famílias se candidatarem para o reality
show Supernanny mostra o desespero dos pais que não conseguem controlar
suas crianças, diz ele. O que é consequência “de traços culturais específicos
de nossa época”: há 200 anos vivemos sob o regime da tirania infantil
porque, a partir do fim do século XVIII nós encarregamos os filhos “de
encenar a continuação feliz de nossas vidas” após a morte. Isso nos impediu
de educar as crianças porque passamos a querer que elas fossem ou
parecessem sempre “felizes”.
A pedocracia

Em Le Pardessus du Soupçon, F. Hurstel e G. Delaisi de Parseval


escrevem que a legislação (francesa) restringiu oficialmente a potência do pai
em nome do “interesse da criança”. Para S. Deniniolle, o interesse da criança
desfaz o da família e se torna prioritário, resumindo: “Segundo a expressão
do decano Carbonnier, esse direito (da família) tornou-se pedocêntrico.”[12]
Os juristas afirmam que os “deveres” para com a criança dominam os direitos
do pai, que tem menos direitos do que deveres para com a criança. Depois os
direitos das mulheres vieram limitar o poder do pai. Em outro trabalho já
comentado aqui, As Novas Fronteiras da Paternidade, Françoise Hurstel
conclui que toda lei que visa proteger a criança tira poder dos pais.
A criança do século XX foi colocada no centro da família. A psicanalista
Giselle Groeninga coordenou, com Rodrigo da Cunha Pereira, o livro Direito
de Família e Psicanálise. No capítulo Família: um caleidoscópio de relações
ela escreveu que antes “a família estava acima do invidíduo”; atualmente o
adulto parece dever sacrificar-se em nome da criança. Muitas vezes a criança
ocupa na família e nas demandas judiciais “o lugar de projeto, projétil e
projeção” (2003, p. 140).
Lamentar o “declínio do poder paterno” pelo deslocamento do poder do
pai para a mãe e continuar olhando para a criança como “vítima” - da família,
da mãe, do adulto – exclusivamente “projeto, projétil e projeção” – é a tônica
das teorias psicanalíticas da infância e da maternidade, com repercussões
nada desprezíveis sobre a educação – a familiar e a escolarizada. Prolongando
a misoginia da cultura, essas teorias avalizam a infantolatria e a crescente
culpabilização materna.
Desde Psicanálise e Educação. Laços Refeitos, quando descobri essa
criança-vítima do adulto nas teorias psicanalíticas, explicitei suas raízes e
determinações, tenho insistido que um de seus efeitos é o eclipse do
inconsciente do adulto que educa. Assim, multiplicam-se teorias sobre o
desenvolvimento da criança, sobre a aprendizagem da criança, sobre a
transferência da criança sobre o professor, por exemplo, ao mesmo tempo
que se despreza a transferência do professor em relação à própria educação e
aos (seus) educadores. [13]
Que a criança seja uma projeção dos pais, isso Freud deixou lapidado
em seus aforismos clássicos. Desde então quase dois séculos já se passaram,
ao longo dos quais a família (maternidade, paternidade, infância,
adolescência) e a educação sofreram importantes transformações. Da
criança-vítima da psicanálise para a pedocracia não há mais que um pulo.
É assim, como sem limites, que a criança chega poderosa ao século XXI.
Soberania talvez inflacionada pela culpa dos adultos por negligenciarem os
filhos e que, por isso, tornam-se permissivos, conforme outros aqui já o
disseram. Inflacionada também por adultos que parecem ter deixado esse
reino edípico da culpa, onde viviam nos velhos tempos de Freud, para habitar
as sufocantes miragens de Narciso apaixonado por si próprio. Enamorados de
si, os adultos não parecem muito disponíveis para o trabalho de formar outro
ser e que é bem mais intricado e complicado que simplesmente “impor
limites” e restrições. É preciso também “pôr” alguma coisa, introduzir o filho
no tesouro cultural, convidá-lo a sentar-se à mesa do banquete que lhe
oferece o patrimônio da humanidade para além do seu umbigo. Voltados para
o culto a si próprios, fascinados por si mesmos – nem que seja para lamber
suas feridas –, muitos adultos revelam-se pouco dispostos ao trabalho de
educar os filhos que fizeram nascer.
É no solo dessa cultura individualista e narcisista, enraizada na
escravidão e no domínio patriarcal e clientelista sobre o outro (o escravo, a
mulher) que germinam nossos pequenos nhonhôs. Vale lembrar que o Brasil
foi o último país a abolir a escravidão e ainda enfrenta sua reincidência.
Indo além da cultura brasileira temos a cultura ocidental, que será
caracterizada pela aversão ao feminino, conforme Renato Mezan em Freud,
Pensador da Cultura (1985). E como o paroxismo do masculino por
Monique Schneider em Généalogie du Masculin.
Entre nós a misoginia às vezes explode de modo espetacular, como no
caso da menina Eloá com o qual comecei o capítulo 1 (sequestrada com uma
amiga pelo ex-namorado). Às vezes, ou muitas vezes, já que o promotor de
Justiça do Distrito Federal, Fausto Rodrigues de Lima, e a advogada Karina
Alves Silva refletem sobre o episódio em texto publicado na Folha de
S.Paulo de 5 de novembro de 2008: “Femicídio”. Esses assassinos que “não
admitem que podem ser dispensados” são um “resquício de quando as
mulheres eram consideradas propriedades do macho”, trazendo à tona uma
importante dimensão do patriarcado – ou poder do homem. “A imagem das
meninas pedindo socorro pela televisão desvelou uma realidade nacional que
sempre ficou escondida debaixo do tapete.” Os autores citam inúmeros casos
argumentando que esse tipo de tragédia ocorre diariamente, e as estatísticas
que apresentam impressionam. O que os leva a concluir que esse costume no
Brasil deve ser incluído no conceito de “femicídio”, um termo cunhado para
denominar a eliminação sistemática de mulheres, e que está muito associado
com a tentativa de separação, fazendo desta “uma situação dramática para o
gênero feminino (...). A antropóloga Rita Segato esclarece que, tal como o
genocídio, o femicídio não atinge o indivíduo, mas a categoria a que ele
pertence”. Crimes como esses são de ódio ou, conforme a definição das
sociólogas Ana Liési e Lourdes Bandeira “são crimes de poder” que mostram
“a força do patriarcado como uma instituição que propõe e sustenta a
autoridade masculina para controlar, com poder punitivo.”
Tais expressões de repúdio pipocaram nos jornais e TVs; sites da
internet lamentaram a “tragédia anunciada” e o jornalista Chico Pinheiro
comentou, no SPTV de 20 de outubro: “Tenho a impressão que Lindemberg
sentia-se proprietário de Eloá. Até que ponto esse é o reflexo do machismo
mesmo?”
“Machismo” ou condição inferior da mulher – o gênero que,
precisamente, nós encarregamos de educar nossos filhos e jovens.
Em sua coluna da Folha de 22 de outubro de 2008, “Ou cede ou leva
bala”, Ruy Castro conclui, depois de comentar o caso:
“É impressionante como, há tempos, no Brasil, os jovens não admitem
ser contrariados. Quando querem alguma coisa não enxergam o lado da
outra parte e não lhe dão escolha: ou esta cede ou leva bala, quase
sempre na cabeça, para não haver dúvida. Algo o país tem feito para
disseminar tanto egoísmo e insensibilidade em seus filhos. Impressiona
também como qualquer pessoa parece ter sempre uma arma carregada à
mão.”
Como se vê, com o desenvolvimento da análise o despotismo infantil vai
se revelando como um despotismo mais generalizado, que avança para além
do território da criança, atingindo adolescentes como os aqui já referidos,
bem como os adultos criando os seus pequenos imperadores. É o que vemos,
por exemplo, nas exigências de concessões especiais e privilégios para seus
filhos que os pais impõem às creches e escolas. Os déspotas mirins crescem
e, como nhônhô, continuarão a buscar sua supremacia. Alguns serão detidos
nessa busca por forças externas ou negociarão internamente onde e quando
ceder, outros buscarão meios para seguir com sua formação pessoal através
de uma terapia, por exemplo.
Por outro lado, convém ressaltar que esses jovens com armas na mão
estão atingindo outros tantos jovens e crianças sem armas, de modo que se
trata de apontar uma tendência e sua concretização sem cair nas facilidades
da generalização indiscriminada. É importante lembrar a imensa parcela da
juventude envolvida na criação da cultura e sua participação fecundante na
vida social. A esse respeito considero exemplar a criação do site de buscas
Google por Larry Page e Sergey Brin, já aos 25 anos de idade, que se tornou
o serviço de busca mais utilizado no mundo, o Facebook por Mark
Zuckerberg ou ainda o império da Apple por um Steve Jobs aos 21 anos com
seus amigos.
A criança é a grande vitoriosa do século XX – de fato e de direito
adquirido. Talvez esse poder infantil possa ter liquidado o poder do pai, mas
não exterminou o poder do homem. E se o pêndulo oscila entre pedocracia e
patriarcado, volto a perguntar o que fundamenta aquela tese psicanalítica
segundo a qual o declínio do poder paterno teria sido provocado pela
ascensão do poder materno ou pela vitória do matriarcado? Se Édipo
tirano[14] (no texto original de Sófocles) triunfa, o que leva psicanalistas a
acusarem as mães de usurpação do poder do pai?
É fundamental na pedocracia essa dimensão erótica do poder infantil
que ressaltei em minha análise de Brás Cubas, o prazer e a paixão de dominar
experimentados pelo “menino diabo”. “Cala a boca, besta!” é uma ordem que
transborda o desejo de domínio da criança cuja realização Nhô Cubas
consente e incentiva. É fundamental essa dimensão erótica da pedocracia, do
desejo infantil – dimensão erótica neutralizada nas abordagens dos “sem
limites” para a qual busco chamar a atenção, enfatizando o escárnio e a
soberba com os quais Brás Cubas evoca sua tirania infantil. A supremacia
sobre o outro dá prazer tanto quanto o desprezo exibido por Brás Cubas desde
menino.
Como Freud escreveu em O Mal-Estar na Cultura – e aqui na tradução
de Renato Mezan em Freud, pensador da cultura:
“A verdade oculta em tudo isso, e que negaríamos de bom grado, é que
o homem não é uma criatura terna e necessitada de afeto, que só ousaria se
defender caso fosse atacado, mas um ser entre cujas disposições pulsionais se
deve contar uma boa dose de agressividade. Por conseguinte, o próximo não
representa para ele unicamente um possível colaborador e objeto sexual, mas
também um motivo de tentação para satisfazer sobre ele sua agressividade,
para explorar sua capacidade de trabalho sem retribuí-la, aproveitar-se
sexualmente dele sem seu consentimento, apoderar-se de seus bens,
ocasionar-lhe sofrimentos, martirizá-lo e matá-lo.” (p. 506).
3 - O feminino e o poder

Mães freudianas no boteco

A imagem da mãe como responsável por todas as mazelas do filho foi


apropriada pela cultura onde ganhou variadas adaptações. O complexo de
Édipo inspirou e continua inspirando a dramaturgia e a caricatura, a
interpretação dos fatos históricos e as atuais “D.R.”(discussões de
relacionamento). A mãe freudiana foi parar no boteco e ninguém mais precisa
ter lido uma página de psicanálise para acusar a mulher de “castradora”,
“fálica” e outros atributos que circundam o complexo.
“Basta!”, escreveu Luís Fernando Veríssimo em sua crônica (1991) [15]
que “comemorava” a fundação pelas mães do “CUMÉ, a Central Única de
Mães Exploradas e Exaustas”. “Mães unidas jamais serão vencidas. Uma por
todas, todas por uma” inauguravam um novo tempo para a vida das famílias.
Chega de “mães martirizadas por maridos insensíveis e filhos malcriados”: o
“sindicato das mães” as protegerá e seus algozes vão aprender “que não estão
afrontando uma pobre mulher, estão afrontando uma categoria”. Bebês que se
recusam “a abrir a boca para receber a colher de papinha mesmo quando a
mãe faz aviãozinho” e que atiram “papinha na parede”; que fazem “cocô em
escala industrial, em horários desencontrados, sem qualquer planejamento ou
padronização” não serão mais tolerados: o bebê que o fizer vai responder a
uma comissão e, em caso de reincidência, enfretará um “piquete”.
Além de fiscalizar as filhas que não arrumam seus quartos, os maridos
que não limpam seus cinzeiros, os filhos que não guardam seus brinquedos, a
CUMÉ vai zelar pela “imagem da categoria”. E o primeiro lugar a ser
verificado pela fiscalização, campeão na prática de enxovalhar a imagem da
mãe é, não por acaso, o consultório do psicanalista.
Duas mulheres interrompem bruscamente a sessão de um paciente em
análise porque receberam uma denúncia de que ali fala-se muito em mãe:
“Ele estava falando na mãe. Confesse”. O analista pergunta se a mulher é a
mãe do paciente; este levanta-se indignado reclamando que seu analista não
prestara atenção alguma ao que ele estava falando pois sua mãe já tinha
morrido. Furiosas, as inspetoras do sindicato repreendem o filho por sua
ingratidão: como ousa falar com um estranho sobre sua mãe morta! O
psicanalista intervém dizendo não ser um estranho e as mulheres atacam:
“Nós sabemos. Conhecemos a sua laia. Para vocês é tudo culpa da mãe.
Aposto que você é daqueles que quando vê um complexo de Édipo quer logo
curar”. Diante da concordância do psicanalista elas questionam: “O que há de
mal com um filho ser amarrado na mãe? Até querer tirar uma casquinha? É
errado isso?”. O paciente a interrompe dizendo que ela só está falando isso
porque não conheceu a mãe dele e, com isso, as leva ao limite:
“- Você cale a boca! Devia ter vergonha de ficar aí falando de uma santa
mulher que lhe deu a vida, que trocou suas fraldas, que lhe deu de mamar...
- Era uma mãe castradora!
- Castradora, é? Vou lhe mostratr mãe castradora. Mercedes, a tesoura”.
E por aí a revanche das mães criada por Veríssimo se encaminha para o
final. Não faltam exemplos dessas mães ameaçadoras (“castradoras”) na
literatura, no cinema, na cultura popular. Woody Allen quase sempre volta ao
tema em seus filmes. Em Contos de Nova York, uma trilogia realizada com a
colaboração de três dos maiores diretores contemporâneos, Martin Scorsese,
Francis Coppola e Woody Allen, Allen é Oedipus Wrecks, um Édipo
Arrasado pela mãe que o atormenta hilariamente.
A primeira cena do filme é, claro, o consultório do psicanalista onde
Édipo-Allen fala para seu analista: “Tenho cinquenta anos de idade, sou sócio
de um escritório de advocacia de sucesso e ainda não resolvi meu
relacionamento com minha mãe. A noite passada sonhei que ela morreu”.
Homens com kipá carregam o esquife da sua mãe até o carro fúnebre dirigido
pelo filho. No trajeto a voz da mãe dentro do caixão continua dando as
ordens: “vire à esquerda na próxima esquina. Você está pegando o caminho
longo”. “Mãe, eu sei dirigir até o cemitério”. A discussão continua, a mãe
ameaça não ir se ele não obedecer a suas ordens e o cenário do sonho dá
lugar, novamente, à sessão com o analista. Em outra cena ele está com a mãe
e a noiva no espetáculo de um mágico. O mágico escolhe sua mãe para subir
ao palco de modo a exibir um de seus truques. O truque falha e a mãe
dominadora desaparece deixando atrás de si perplexidade, angústia e, claro,
aquela alegria imobilizada num leve sorriso de canto dos lábios do filho. É a
imagem da ambivalência de sentimentos que constitui o complexo de Édipo
freudiando – que, por isso mesmo, é chamado de “complexo”: um conjunto
de sentimentos de amor e ódio pelos pais.
No filme, a mãe castradora que o mágico fez sumir reaparecerá no céu
sob a forma de um rosto gigantesco pairando onipresente sobre Nova York.
De lá continua falando com o filho e do filho, contando para todos lá
embaixo as intimidades do seu bebê, expondo-o e envergonhando-o. Tortura
que nos leva a uma identificação com o filho que, de modo sutil, não esconde
o prazer que sente com o desaparecimento da mãe.
Um outro exemplo hoje muito popular no Brasil é a Dona Hermínia,
criada por Paulo Gustavo a partir de sua mãe. Vivida no teatro, na televisão e
no cinema, Dona Hermínia fala sobre Freud, a análise e o complexo de Édipo
(há um vídeo de menos de 3 minutos disponível no youtube).[16] Numa cena
indescritível já que inseparável da interpretação singular do ator/autor que dá
vida à personagem, dona Hermínia está furiosa com Freud e essa sua “mania
de botar tudo culpa na mãe, que isso é culpa da mãe, aquilo é culpa da mãe.
Ridículo”. Ela pôs sua filha Marcelina na psicóloga e explica: “A primeira
coisa quando você chega na análise, você acha que a psicóloga faz o que?
Primeira coisa que ela pergunta é isso: como é que é sua mãe? Aí você acha
que eles fazem o que? Que eles falam que a gente dá amor, que a gente leva
na escola, que a gente paga as contas? Não. Eles detonam a gente”.
Nossa cultura identifica o poder com o masculino, figurando o feminino
como a encarnação da sexualidade, com um poder insidioso para o mal. O
imaginário cultural persistentemente atribuiu à mulher uma sexualidade
insaciável, devoradora: não foi Eva a causa da nossa expulsão do Paraíso?
Pandora, a primeira mulher entre os gregos, a mulher-armadilha, não foi a
origem de todos os males dos humanos que ela trazia em sua caixa? A galeria
das figuras femininas eróticas povoa o imaginário cultural há milênios. A
esse feminino encarnação do sexo corresponde a idealização do masculino
como espírito desencarnado, imaterial, racional, intelectual, e com o poder de
dominar a matéria, inferior. O imaginário do Ocidente assimilou a
feminilidade à sexualidade/fecundidade e identificou a virilidade à razão, à
agressividade, ao poder.
O assombro do matriarcado

Atribuindo as mudanças da família no final do século XX à liberação da


mulher e à rivalidade que “ela” assim instaura no seio familiar, Durval
Checchinato alerta:
“Com a liberação da mulher, sua independência civil e profissional, a
situação familiar caminha para uma transformação radical. Nos países
europeus, sobretudo nos países nórdicos e, em especial, na Alemanha e
na França, a família cada vez mais toma uma forma imposta mais pela
mulher do que pelo homem. A mulher escolhe seu companheiro, decide
se ele vai ou não ser pai de seu filho, como decide se o quer na
convivência familiar. A meu ver, trata-se de um desequilíbrio perigoso.
Penso que se trata de um momento de transição na história da
humanidade (...). Se ontem pesava mais ou demais a autoridade do
marido e do pai, hoje a balança pende do outro lado, a mulher pega a
dianteira e dita as iniciativas. De toda forma, desequilíbrio.” (1999, p.
11-12)
As consequências desse “abrandamento (se não apagamento) da função
paterna” são perigosamente nefastas. A Psicanálise, em especial Lacan,
“demonstra” o papel “absolutamente central” da função paterna “na saúde
psíquica do sujeito. Sua ausência, seu exagero, sua ambivalência produzem
devastações diferentes no indivíduo”. Todas as patologias psíquicas para a
Psicanálise fundam-se “na maneira como a mãe se coloca perante a criança
em relação à função paterna” e o desequilíbrio dessa função “gera os vários
tipos de neurose, de perversões, de homossexualidade ou transexualidade. A
maneira como se vive o efeito da função paterna é determinante do tipo de
patologia de cada sujeito.” Trágica situação só poderia ser de mau agouro:
“Diante desse hodierno enfraquecimento da função paterna, de que tipo
de patologias sofrerão as gerações futuras? Que força terão esses seres
humanos gerados sem a ordenação da Lei do pai para se constituir
homens ou para constituir família?” (CHECCHINATO, 1999, p. 12).
Na época em que Durval Checchinato fazia no Brasil esse alerta em
defesa do patriarcado, “o grande derrotado do século XX” (THERBORN),
psicanalistas na França saíam no contra-ataque à constituição de famílias
homoparentais. Em 1999, conforme relato de Elisabeth Roudinesco em A
Família em Desordem, quando a união homossexual foi legalmente
reconhecida pela legislação francesa, ao levante de sarcasmos e injúrias da
direita parlamentar vieram somar-se “certos psicanalistas lacanianos [que]
adotaram, assim como seus colegas da IPA, uma posição de especialistas”
lançando-se numa furiosa cruzada contra aqueles que seriam “responsáveis
por uma nova tentativa de supressão da diferença sexual”. Em nota ela remete
a Gilbert Diatkine, Simone Korf-Sausse – que “comparou os homossexuais a
clones incapazes de enfrentar qualquer coisa a não ser a ‘lógica do mesmo’ ”
e Charles Melman, dentre outros. Este último declarou em 2001 na televisão
que os “filhos dos casais homossexuais seriam brinquedos de pelúcia
destinados a satisfazer o narcisismo de seus pais” (Melman). Continua
Roudinesco: “Os cruzados eram portanto eles próprios psicanalistas, e era em
nome de Freud e de sua doutrina que atribuíam aos homossexuais a intenção
mortífera outrora atribuída às mulheres,” (2003, p.193). Adiante ela vai direto
ao ponto que me interessa aqui:
“Como não ver nessa fúria psicanalítica do fim do segundo milênio,
quando não o anúncio de sua agonia conceitual, pelo menos o sinal da
incapacidade de seus representantes em pensar o movimento da
história?” (p. 195)
De fato, conceitos amplamente difundidos e empregados por
psicanalistas como os de “função paterna” e “função materna”, feminino e
masculino revelam-se muito mais normativos do que analíticos. Longe de
nos ajudarem a pensar sobre a cultura e sua animação, tais conceitos prestam-
se mais, como se vê aqui, a tentativas de imobilizar essas transformações e
recuar dessas conquistas. Você já terá notado que não ocorre a esses
psicanalistas interrogar a separação, que se torna oposição e
complementaridade entre mãe e pai, maternidade e paternidade, função
materna e função paterna, homem e mulher. Essa separação tem uma força
normativa, anexando “naturalmente” o filho à mãe. E, portanto, trazendo o
fôlego psicanalítico para os estertores do patriarcado.
Durval Checchinato faz eco a Françoise Hurstel e a tantos outros já
citados aqui. Hurstel (1999) afirma que a reforma do direito acabou com o
paterfamilias privilegiando o poder legal das mães e enfraquecendo o
estatuto legal do pai. Do outro lado da Psicanálise ou em outra de suas
“escolas”, Lebovici diz o mesmo quando perguntado sobre a função dos pais
nas novas famílias. Antes, diz ele, as famílias eram muito diferentes,
“marcadas pelo poder do pai. Agora, o pai não tem mais o poder absoluto de
antigamente”; ao contrário, o homem “tem um papel de procriador, segue as
ordens, faz um filho seguindo as ordens da sua mulher”. A perda do poder
frequentemente é a origem dos problemas de fecundidade (2004, p. 26).
Em outro texto já citado por mim, Le Pardessus du Soupçon, F. Hurstel
e G. Delaisi de Parseval escrevem que depois de 1970 a autoridade parental
pertence exclusivamente à mãe e perguntam: “Caminhamos para um
matriarcado?” (p. 384). Dizem que Lacan, em 1938, ressaltou o “declínio
social da imagem do pai” e que os manuais dos especialistas da infância e da
família excluem os pais da educação das crianças designando as mães como
únicas educadoras. Privilegiam a gravidez, o aleitamento e as relações mãe-
criança nos primeiros anos, que são momentos essenciais e sobretudo
femininos, para reivindicar uma onipresença da figura materna, tornando o
pai um eterno intruso no par mãe-bebê. Desde o início ele é excluído da
relação com a criança. Quer-se fazer o pai acreditar que o direito, a
competência, o saber-fazer, a doçura e a paciência são o apanágio das mães.
A partir de 1972 as mídias começam a disseminar a imagem dos “novos pais”
que, segundo as autoras, caracterizam-se por uma falta de especificidade
(paterna) e por um excesso de semelhança com a mãe. É o pai-mamadeira, o
pai-mãe, pai-sensual, pai na família, como são denominados.
Essa crítica, a meu ver bastante pertinente, de F. Hurstel e G. Delaisi de
Parseval, da fabricação da díade mítica mãe-bebê com suas implicações
expulsivas para a figura do pai, culmina, entretanto, num certo narcisismo das
pequenas diferenças: a busca de alguma coisa que seja só do pai. Concluem
que é imperativo fixar uma diferença entre pai e mãe – função paterna,
função materna –, que logo será transformada em oposição e rivalidade: o
casal se torna adversário e rival no amor do filho e na ligação (incestuosa)
que disputaria desesperadamente entre si.
Mesmo vislumbrando a exclusão imposta ao pai do par mãe-bebê pela
sociedade e o emergente poder da criança, essas duas psicanalistas ainda
assim revelam-se mais assombradas pelo fantasma do matriarcado, pelo
fantasma do poder da mãe. No artigo seguinte da coletânea Mon fils, ma
bataille, escrevem que a paternidade esbarra na potência da mãe e no direito
da criança, que é uma noção cada vez mais importante. Diante das
recomposições familiares uma criança pode escolher entre dois maridos
sucessivos de sua mãe e as técnicas de procriação artificial dariam à mulher o
direito absoluto a uma criança. Alguns juristas ainda evocam o espectro do
matriarcado e as autoras terminam por concluir que a paternidade atravessa
hoje uma “fase negra”.
É curiosa essa satanização das técnicas artificiais de procriação uma vez
que pelo instituto da “mãe solteira” esta já teria podido ter acesso, se o
desejasse ou se fosse livre para desejá-lo, a esse “direito absoluto a uma
criança”... Ou pugna-se aqui pela volta da exclusividade do poder do pai? Só
a ele caberia a decisão de fazer de uma mulher uma “mãe solteira” ou de
impor ao filho a condição de “filho da mãe”?
Esse raciocínio atribui implícita e necessariamente a fecundidade à mãe
e o poder ao pai, como se este não fosse necessário à concepção da criança –
mesmo que artificial. Sendo o mesmo que dizer que a partilha atravessa a
cultura ocidental desde os gregos, prolongando-se nos primeiros Padres da
Igreja, chega incólume e acriticamente ao território da Psicanálise. O
psicanalista contemporâneo que assim pensa esqueceu-se ou não percebeu
que a crítica freudiana da cultura, conforme mostra Renato Mezan em Freud,
Pensador da Cultura, abala as identidades culturais estabelecidas entre pai e
agressividade e mãe e ternura. Não são as mulheres que se atribuem tal poder
absoluto sobre as crianças. A feminização da carne (tudo que é matéria,
sensível, sexual, é colocado pela cultura como atributo do feminino) que se
completa com a virilização do espírito e da razão (o intelectual, incorpóreo,
racional, é colocado pela cultura como atributo do masculino) impõe a
dissociação necessária entre o feminino e o poder e o masculino e a
fecundidade. Daí o horror provocado pela aproximação desses polos supostos
“naturalmente” excludentes. Juntos, o feminino e o poder só poderiam evocar
um feminino fálico e castrado, da mesma maneira que o masculino e a
fertilidade expressariam a feminização do homem.
Para F. Granet em Le Pére au regard du droit no mesmo Histoire des
Pères e de la Paternité, a história da paternidade na Europa é marcada por
um movimento de báscula: à dominação do paterfamilias ancorada na
tradição sucedeu a dominação da mãe na segunda metade do século XX.
Tem-se a impressão, escreve o professor, de que depois de ter sido submetida
durante séculos à vontade do homem (maternidades múltiplas, potência
marital e paternal), a mulher agora goza de um poder primordial na
constituição da família, posto que é a criança que faz a família e a vida da
família. O autor aponta uma inversão: antes a mulher era prejudicada, hoje é
o homem.
Em A Família em Desordem, Elisabeth Roudinesco se pergunta se o pai
estará
“condenado a não ser mais que uma função simbólica? Deve ele se
obstinar a vestir novamente os ouropéis do patriarca de outrora, como
queriam os conservadores? Deve ele, ao contrário, se transformar em
educador benevolente, como desejavam os modernistas? Se o pai não é
mais o pai, se as mulheres dominam inteiramente a procriação e se os
homossexuais têm o poder de assumir um lugar no processo da filiação,
se a liberdade sexual é ao mesmo tempo ilimitada e codificada,
transgressiva e normalizada, pode-se dizer por isso que a existência da
família está ameaçada? Estaremos assistindo ao nascimento de uma
onipotência do ‘materno’ que viria definitivamente aniquilar o antigo
poder do masculino e do ‘paterno’ em benefício de uma sociedade
comunitarista ameaçada por dois grandes espectros: o culto de si próprio
e a clonagem?” (2003, p. 11-12)
É também no clima de uma guerra dos sexos que Fátima Quintas
escreve, em A Mulher e a Família no Final do Século XX: a família se
feminizou com a emancipação da mulher e esta mulher chefe de família
habita hoje o lugar que sempre foi seu, só que com maiores chances de vitória
porque agora ela tem poderes que antes não tinha. A “feminização da
família” dá às mulheres “as rédeas do novo contexto”. “Que o homem não
queira ceder tão facilmente os seus poderes é fato indiscutível e até
explicável”. Para essa antropóloga e seguindo Willems, “o androcentrismo da
família brasileira (...), dá lugar a um ginocentrismo” crescente, levando a
mulher a levantar-se “de um estado de abulia para a exaltação de um poder
que também é seu.” (p. 218)
Se Édipo, tirano triunfa, se o poder da criança é o grande vitorioso do
século XX, o que fundamenta essa afirmação repetida, de que vivemos sob
um matriarcado moderno e perigoso, e até esperançoso (como aqui em
Fátima Quintas)?
Não é demais observar a facilidade com que germina na literatura
psicanalítica o pai sacrificado cujos porta-vozes aqui não nos cansamos de
ouvir. Convém lembrar com Renato Mezan que é o próprio texto freudiano a
origem dessa fantasia que nos persegue. Em Freud, Pensador da Cultura
Mezan afirma que “(...) na mitologia freudiana, o pai ocupa necessariamente
o lugar de vítima do sacrifício: Totem e Tabu não demonstra outra coisa.” (p.
539)
Essa imolação do pai se esbalda mais ainda quando o assunto é a
procriação artificial, que não seria nem mais nem menos que o apogeu do
poder das mães. Segundo Roudinesco, a ciência entregou a família e a ordem
procriadora inteiramente a esse poder jurídico-biológico das mães
contemporâneas, sendo elas atualmente as detentoras “da responsabilidade
exorbitante ora de designar o pai, ora de o excluir”. A mulher pode “roubar”
o sêmem de um homem durante o ato sexual sem que ele “tenha qualquer
direito sobre o filho assim concebido à sua revelia”. Se os homens tentam
evitar tais situações usando um preservativo e este falhar, é à mulher que
pertence exclusivamente a decisão de abortar (p. 167-168).
Apropriando-se do feminino tal como tecido pelo imaginário cultural, a
Psicanálise situa o pai-homem como vítima da sempiterna mãe-mulher
megera, invejosa e mal-amada como Medeia, mãe ogra e feiticeira assassina
dos próprios filhos. Dentre as três Fúrias ou Erínias vingadoras, que são as
terríveis divindades gregas relacionadas ao ódio da mãe, Megera é “a que
inveja”.
Esquecendo-se que um filho é obrigatoriamente gerado por dois sexos,
Françoise Hurstel repete a mesma inquietação de Roudinesco: “Seria hora de
lembrar aqui que a mulher tem o domínio da procriação: a contracepção
depende apenas dela, da mesma forma que a interrupção voluntária da
gravidez.” (HURSTEL, 1999, p. 136)
Mais uma vez: a fecundidade à mulher pertence, a ela, que o século XIX
designava simplesmente como “o sexo”.
É também nesses termos que Colette Soler escreve em O que Lacan
Dizia das Mulheres:
“Evitar os homens é possível para as mulheres, e cada vez mais. De fato,
o desenvolvimento da ciência lhes fornece meios inéditos, pois, ao
permitir que se desvincule a procriação do ato carnal, abre caminho para
maternidades sem homens. Lacan o atesta – é uma questão de gosto e,
nessa matéria, é possível ser liberal –, mas nem por isso elas se aliviarão
da problemática fálica.” (2005, p. 31)
Essa maternidade sem homens, possível em múltiplas e variadas
configurações concretas, diz Soler, geralmente se apresenta como formada
por uma mãe com seu(s) filho(s), “acrescida, vez por outra, de um homem –
ou uma série de homens que se sucedem –, ao qual se dá o nome de
‘companheiro da mamãe’.” Esse peso da mãe para a criança é ’novo na
história’ e provoca consequências subjetivas” (p. 88).
Referindo-se à mudança do estatuto da família em velocidade
surpreendente, Soler diz ser evidente nos interrogarmos:
“Sobre as repercussões disso, a longo prazo, nos filhos. Não é que a
estrutura da família tradicional seja a condição necessária da metáfora
paterna, mas, quando o efeito de ‘fragmentação dos laços sociais’ afeta a
célula elementar, a ponto de produzir o que é hoje chamado de famílias
homoparentais, devemos necessariamente antecipar algumas
consequências, mesmo que elas sejam impossíveis de prever.” (p. 129)
Em resumo: a família transformada com a dissolução crescente do
patriarcado provoca repercussões nos filhos, na subjetivação das crianças.
Conforme alguns psicanalistas, essas repercussões estariam resumidas no
poderio da mãe (matriarcado). Conclusão que atropela a história da família,
em cujo movimento pudemos ver que quem emerge no lugar do poder do pai
é a criança poderosa. É o “novo” regime da pedocracia ou do despotismo
infantil, cuja dimensão infernal tem sido milimetricamente explorada pela
mídia como uma época de “crianças sem limites”.
Se, como afirmou Lacan, fora da família nenhuma humanização do
indivíduo é possível (ROUDINESCO, 2003, p. 10), então, para este
psicanalista, a família é condição sine qua non da subjetivação: a constituição
da subjetividade exige o triângulo familiar. Essa pretensão de eternizar a
família é questionada pela teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche
e na esteira de Ferenczi.
Para Laplanche, o que é necessário e universal na subjetivação
(constituição de uma subjetividade) é a relação entre a criança e o adulto,
uma vez que todo bebê ao nascer é necessariamente acolhido por um adulto –
o social sexual – em cuja cultura deverá ser introduzido. Se é assim, a
afirmação de que a humanização só é possível no seio de um triângulo
familiar formado pelo filho e por uma “função paterna” separada do seu polo
antagônico, a “função materna” revela-se uma prescrição, uma normatização.
Postular que a criança só pode se constituir como sujeito no seio de uma
família, e de uma família formada por uma “função paterna” e uma “função
materna” não é o mesmo que prescrever, estabelecer como norma a família
tradicional – ainda que sob nova roupagem?
De filho-falo a filho-fardo

“Era uma vez” uma mulher que, invejando o pênis-falo, apoderou-se do


atributo viril do homem-pai e finalmente conseguiu, ela própria, o seu falo.
Agora poderosa, investida da potência invejada, conseguiu vencer seu rival e
adversário e fundou o seu reino, o matriarcado. Além dessa fantasia de
vingança e retaliação, o imaginário social que a Psicanálise repercute bem
desenha a mulher por natureza defeituosa, que tem no filho-falo o seu
salvador.
A ideologia separatista afasta mulher e homem, mãe e pai, atribuindo o
doméstico ao feminino e o extrafamiliar ao masculino. “Pertence à mulher a
preservação, enquanto mãe e esposa, do ‘ninho afetivo’ que engloba marido e
crianças, protegendo-os de intrusos e invasores, sempre perigosos.”
(QUINTAS, p. 53)
Segundo Marilyn Yalom, graduada no Institute for Women and Gender
da Universidade de Stanford, no início dos anos de 1950 o psicanalista inglês
John Bowlby “discutia que as mães das crianças pequenas deviam dedicar-se
exclusivamente à maternidade”, desaconselhando o emprego nessa etapa da
vida. Para esse psicanalista “a mãe de filhos pequenos não é livre – ou, no
mínimo, não devia ser – para trabalhar.” (BOWLBY, apud YALOM, 2002, p.
395). As mulheres que queriam trabalhar eram acusadas de “sérios problemas
de ‘inveja do pênis’”, querendo competir com seus maridos e com os
homens, em vez de educar os filhos.
Esta é a concepção psicanalítica dominante do feminino, que o define
pela inveja do pênis. As críticas atemorizadas diante do crescimento do poder
das mães enraízam-se numa concepção que Freud caracteriza como própria à
“organização genital infantil”, dominada por um primado do falo e da lógica
fálica. Isso significa que a diferença sexual é lida apenas pelas alternativas
excludentes: ou é fálico ou é castrado – isto é, feminino. Mas o acesso adulto
ao genital ou, a “organização genital adulta”, implicará reconhecer um
feminino outro, não reduzido à castração e que segundo Monique Schneider
em Le Paradigme Féminin é o “espaço oco” (Hohlraum) materno que
explicarei no capítulo 4.
Trocando em miúdos, essa concepção fálica do feminino significou
atribuir as lutas femininas pela emancipação e pelo direito ao trabalho a uma
competição castradora com os homens. Essa acusação pesou sobre as
mulheres no século XX, paralisando-as interna e externamente. A lógica
separatista e patriarcal, que associa a mulher ao doméstico e o homem ao
social, fundamenta esse argumento.
A tese segundo a qual o declínio do poder paterno teria sido provocado
por um suposto matriarcado moderno resulta da lógica fálica que julga que o
feminino castrado só pode desfrutar de algum poder porque, invejoso do
pênis por definição, arrebatou-o de seu detentor legítimo. O decantado
declínio da autoridade paterna supostamente causado por usurpação materna
é um juízo formulado a partir dessa lógica falha segundo a qual se um não
tem é porque a outra lhe tirou.
Lógica fálica nascida da diferença sexual e da inveja que essa diferença
mobiliza – em ambos os sexos – emprestando à Psicanálise uma
normatividade alheia a seu projeto. E faz do psicanalista não alguém que
analisa, mas uma espécie de legislador buscando colocar as pessoas nos
trilhos de uma cultura patriarcal que a história luta para extinguir ou limitar.
Já havíamos ressaltado com Elisabeth Badinter que a criança pode
constituir um “fardo insuportável” para o pai e para a mãe. Essa dimensão é
completamente escondida pela imagem feliz e idealizada da maternidade
imposta pela cultura e também pela Psicanálise. Veremos adiante com
Monique Schneider o quanto Freud em seus primeiros escritos privilegiou
essa dimensão de fardo da criança e se fez de advogado da “mulher
criminosa”: aquela cujos sonhos infanticidas ele soube ouvir e analisar.
Dimensão, ainda, abertamente exposta no acirramento contemporâneo do
conflito entre maternidade/família e profissão. Como também no fenômeno
social dos sem limites, que a negligência do adulto hoje corrobora, da mesma
maneira que outrora ele respondeu com o infanticídio e a indiferença. Criança
fardo, criança “estorvo”, criança “abjeta” com sua “malignidade natural”: foi
como um mal que a criança foi vista até avançado o século XVII. Já disse
aqui que os primeiros Padres da Igreja viam na criança a mãe e não se
preocupavam em ocultar a aversão e repulsa que a maternidade lhes
provocava. Desde então e até início dos tempos modernos a civilização
ocidental fará soar o mesmo estribilho: a infância é um mal do qual devemos
nos livrar. A criança é perigosa e provoca medo, raiva e desconfiança,
afastando de si os cuidados dos adultos e convidando ao infanticídio no
mundo adulto de antanho e à negligência e abandono no narcísico mundo
contemporâneo.
“O estado infantil é o estado mais vil e mais abjeto da natureza humana
depois da morte”, Bérulle afirma. Assim como observamos o argumento de
Coustel em 1687, nas Règles de l’Éducation des Enfants, sobre a necessidade
de se amar as crianças e vencer a “repugnância” que elas inspiram ao
“homem racional”. Também já ouvimos os ecos da santa voz de Agostinho,
acusando seu ser infantil durante longos séculos no coro entoado pela
civilização ocidental até o início dos tempos modernos com esse refrão
invariável. Teólogos e pregadores multiplicaram incansavelmente tenebrosas
imagens de Eva e seus filhos para advertir os homens do perigo que
encarnam.
A modernidade encobriu essa hostilidade manifesta com uma imagem
de pureza e inocência infantil Mas o recalque não foi capaz de exterminar a
ambivalência de uma cultura que nasceu da crucifixão – e adoração – do
filho.
Exorcizado, o diabólico na criança permanece no adulto em quem
acorda a sua “criança sempre viva com seus impulsos”, habitante de uma
civilização que não foi extinta. Ele está em guerra com a criança e nessa
encruzilhada se traça o destino da educação, conforme escrevi em A Arte de
Formar: o Feminino, o Infantil e o Epistemológico. Em que condições sua
reconciliação seria possível? Já que, com muita frequência “o adulto odeia
essa criança que traz dentro de si, procura massacrá-la com exigências
estapafúrdias, e no fundo a teme porque sabe que ela continua a desejar o que
sempre desejou?”, escreveu Renato Mezan em Tempo de Muda (1998, p. 58-
59).
A criança não passa incólume pela ambiguidade do adulto. Projetada,
essa ambiguidade é determinante das concepções ou imagens que ele esboça
da infância e com as quais pretende que ela se identifique em seu processo de
formação.
Ao concluir o seu livro Sexo e Poder. A Família no Mundo – 1900-2000,
Göran Therborn diz que a queda do patriarcado fez surgir uma complexidade
transpassada por contradições e conflitos “contra as quais as pessoas estão
brigando e para as quais não há soluções fáceis à mão”. Dentre eles, o autor
destaca o conflito entre família e profissão:
“Todas as pesquisas apontam para a existência de forte desejo tanto de
abraçar uma carreira quanto de formar uma família, incluindo-se o ter
filhos. Como combiná-los, porém, é uma tarefa difícil, que muitos não
foram ainda capazes de resolver satisfatoriamente. Uma implicação
disso é que nos anos 1990 nasceram menos crianças do que as que eram
desejadas.” (THERBORN, p. 456)
O fim da hierarquia legal e cultural entre homem e mulher abre uma
inesgotável frente de conflito e possíveis negociações. Como escreveu a
antropóloga Cynthia A. Sarti em Família e Individualidade: um Problema
Moderno, as “duas áreas em que as mudanças incidiram de forma
significativa, alterando a ordem familiar tradicional” foram: “a autoridade
patriarcal e a divisão de papéis familiares, modificando substancialmente as
relações entre o homem e a mulher e aquelas entre os pais e os filhos no
interior da família”. Incorporando ainda a marca individualista da nossa
cultura ao seu argumento ela acrescenta:
“Os papéis sexuais e as obrigações entre pais e filhos não estão mais
claramente preestabelecidos. Os sujeitos não estão mais subsumidos no
todo. Com isso, a divisão sexual das funções, o exercício da autoridade e
todas as questões dos direitos e deveres na família, antes
predeterminadas, hoje são objeto de constantes negociações, sendo
passíveis de serem revistas à luz destas negociações.” (SARTI, 2003, p.
43-44)
Em Autoridade e Poder na Família o cientista social e doutor em
Antropologia Geraldo Romanelli escreve que autoridade e poder ordenam a
família “definindo para marido e esposa, para pais e filhos posições
hierárquicas, direitos e deveres específicos, porém desiguais”. A família da
qual o autor fala é a patriarcal, hoje uma família nuclear que tem como
atributos básicos:
“Uma estrutura hierarquizada, no interior da qual o marido/pai exerce
autoridade e poder sobre a esposa e os filhos; a divisão sexual do
trabalho bastante rígida, que separa tarefas e atribuições masculinas e
femininas; o tipo de vínculo afetivo existente entre os cônjuges e entre
esses e a prole, sendo que neste último caso há maior proximidade entre
mães e filhos; o controle da sexualidade feminina e a dupla moral
sexual.” (ROMANELLI, 2003, p. 74-75)
Entretanto, continua o autor, a crescente participação do sexo feminino
na força de trabalho mudou significativamente a vida doméstica impondo
mudanças na dinâmica familiar. Isso altera os vínculos das mulheres com
seus maridos e filhos e “contribui para o redimensionamento sexual do
trabalho. Nessas circunstâncias, parte dos afazeres domésticos são
redistribuídos entre esposa e marido, cabendo a este dividir com a mulher
tarefas que eram realizadas exclusivamente por ela.” (p. 77). Divisão que se
revela exceção à regra.
Mesmo quando os rendimentos da mulher se equiparam aos do parceiro,
diz Romanelli, a autoridade do marido não é reduzida porque a crença na
supremacia masculina ainda permanece viva em ambos. A mulher tem medo
das reações do marido diante dos desafios à sua autoridade e também receio
de romper a coesão da família e, dessa maneira, os conflitos permanecem
encobertos mas presentes, “realimentando os focos de dissensões na vida
doméstica”. Como a mulher é a responsável pela manutenção da família, ela
fica impedida de encarar situações que possam gerar rupturas domésticas
esquivando-se de confrontos diretos.
“Pais dentro de casa” foi o nome de uma matéria publicada pelo New
York Times de 2 de janeiro de 2000. Três dias depois, em 5 de janeiro, o
jornal publicou em página de destaque a carta de um pai “dono de casa” em
resposta ao artigo. O pai dizia “que a educação das crianças era o mais difícil
e ingrato trabalho de todos os tempos” e concluiu: “Depois de comandar a
casa por três anos e meio, posso confirmar a veracidade do provérbio: ‘o
trabalho da mulher dentro de casa nunca tem fim’.” (apud YALOM, p. 417-
418).
Em Quando o executivo é uma “dama”: a mulher, a carreira e as
relações familiares, Maria Lúcia Rocha-Coutinho apresenta sua pesquisa
com mulheres executivas sobre a identidade de mulheres de classe média
residentes no Rio de Janeiro e suas relações com a família e o trabalho.
Conclui que a mulher carioca hoje ainda oscila muito entre a “ ‘boa’ mãe, que
sobrepõe a família a qualquer outra atividade (...) – e a profissional,
competente e independente, que pode e deve fazer ‘escolhas’, inclusive se
quer ou não ter filhos, e que deve dividir com o homem todas as
responsabilidades e tarefas nos espaços público e privado” (p. 57).
Para a maioria das mulheres entrevistadas a prioridade ainda é a família,
mesmo que ao preço da realização profissional. Apesar da posição central em
seus depoimentos do discurso modernizante, que privilegia o trabalho
extrafamiliar da mulher. Privilégio que aparece como importância unânime
concedida à profissão e também na “desvalorização da dedicação exclusiva
ao trabalho doméstico, vista como algo que limita os horizontes femininos e
impede a realização plena da mulher” (p. 57-58).
A Folha de S.Paulo de 7 de outubro de 2007 publicou os resultados da
pesquisa realizada pelo Datafolha sobre “A família brasileira”, que revela que
esta é a instituição mais valorizada no Brasil. Dentre outros dados destaco:
33% dos entrevistados acham que as mulheres devem deixar de trabalhar fora
para cuidar dos filhos e outros 49% dos brasileiros aceitam que a mulher
trabalhe, desde que o salário dela seja realmente necessário para o orçamento
familiar. Para a assistente social Sonia Coelho, militante da Sempreviva
Organização Feminista (SOF), “é necessária uma mudança na atuação do
Estado”. As mulheres dificilmente poderão concorrer em pé de igualdade
com os homens no mercado de trabalho enquanto tiverem de se desdobrar
para conciliar profissão e maternidade, conclui.
Em seu livro O mito do amor materno publicado (1981) Elisabeth
Badinter reuniu depoimentos das mulheres da segunda metade do século XX
sobre os sacrifícios impostos pela maternidade. No século XXI o conflito
permanece a “quadratura do círculo” a que se referiu acima a historiadora do
feminismo, Yvonne Knibiehler, incitando o feminismo a debruçar-se sobre
sobre a maternidade, considerando as dificuldades imensas vividas até hoje
pelas mulheres que trabalham e são mães.
No Brasil do “toma que o filho é teu” o conflito não poderia ser menor.
Até onde é mesmo possível tentar resolvê-lo hoje pela convocação do homem
a participar do time doméstico? De modo geral é ela que continua a ter que
fazer arranjos entre seu trabalho doméstico e seu trabalho profissional,
limitando suas possibilidades.
No Reino Unido, terra da Rainha (Elizabeth), acabamos de ver que o
que está sendo chamado de “escândalo”: a descoberta de que a atriz que
representa Sua Majestade na série de TV sobre a monarquia britânica, The
Crown, recebeu remuneração inferior a do ator que representa seu marido.
Em março deste ano (2018) os produtores da série publicaram uma nota se
desculpando por pagarem menos a Claire Foy do que a Matt Smith, que viveu
o príncipe Philip sem, no entanto, anunciar qualquer reparo da situação. Esse
exemplo mais recente da disparidade salarial na milionária indústria de
entretenimento que, sabemos, repete-se igualmente em Hollywood, dá uma
ideia da dimensão do problema. Goste-se ou não, “só sei que foi assim”,
como diria Xicó, o personagem de Ariano Suassuna no Auto da
Compadecida.
Se foi assim e se é assim, não seria o caso de relativizar a tese do troféu
que o filho representaria para a mulher? Podemos concordar com a tese do
filho-falo sem, no entanto, desprezar o filho-fardo para o qual apontam as
primeiras teorias freudianas. Formulando o filho como o falo da mulher
Freud abandonava suas primeiras teorias, nas quais a gestação e a
maternidade mostravam sua dimensão sísmica que algumas feministas já
assinalavam. Adiante veremos com Monique Schneider, essa e outras
primeiras descobertas que Freud foi deixando pelo caminho.
Réquiem para o patriarca

Em Pai, por que me abandonaste, o advogado Rodrigo da Cunha Pereira


escreve que:
“Os varões não assumem ou reconhecem para si o direito/dever de
participar da formação, convivência afetiva e desenvolvimento de seus
filhos. Por exemplo: o pai solteiro, ou separado, que só é pai em fins de
semana, ou nem isso; o pai, mesmo casado, que não tem tempo para
seus filhos; o pai que não paga, ou boicota pensão alimentícia e nem se
preocupa ou deseja ocupar-se com isto; o pai que não reconhece seu
filho e não lhe dá o seu sobrenome na certidão de nascimento. Enfim, a
ausência do pai, e dessa imago paterna, em decorrência de um abandono
material e/ou psíquico, tem gerado graves consequências na estruturação
psíquica dos filhos e que repercute, obviamente, nas relações sociais.”
(p. 224-225)
Diferentemente do advogado, ao psicanalista cabe analisar e não
prescrever normas de conduta ou julgar.
A nostalgia do patriarcado leva ao apelo a um papel “absolutamente
central” da função paterna na “saúde psíquica do sujeito”. Se o patriarcado
não morreu, sua história não deixa dúvidas de que chegou morimbundo aos
nossos dias. Ele foi o grande derrotado do século XX e a criança a grande
vitoriosa. Vamos debitar na conta da criança o nosso desejo de restaurar o
pai? Tal como o amor materno não é um instinto, também a paternidade é
uma instituição e, como tal, cultural e historicamente determinada. Por que e
para que postular a “autoridade” como um atributo do pai? Por que e para que
postular o poder como um atributo do homem sob a forma de uma “função
paterna”?
A exigência legal não se confunde com a exigência psíquica. O pai que
não paga ou boicota a pensão alimentícia é um cidadão que está infringindo a
lei do país onde ela existe. Daí a derivar uma carência fundamental ou
“graves consequências na estruturação psíquica” da criança há uma grande
diferença. Se era assim em plena florescência da família patriarcal,
certamente já não o é nesse tempo do seu ocaso, e se hoje vivemos o
“declínio da figura paterna” é porque o patriarcado está se pondo e, como o
sol poente, o pai dessa família também vai perdendo o brilho.
Por outro lado, não estaríamos exigindo um patriarcado ampliado, ou
mais abrangente, se postulamos o caráter imperioso do pai assumir
psicologicamente o seu filho como condição de sua saúde mental?
Fardo que, no Brasil, outra mulher, a empregada doméstica, ajuda a
carregar. Fátima Quintas refere-se a ela como o sustentáculo da família; é
dela que depende a circulação dos seus membros na vida pública. A profissão
afasta homens e mulheres de seus papéis respectivos de pais e mães. Maria
Rosa, uma das entrevistadas de sua pesquisa acha “incrível” que uma família,
hoje, dependa “da empregada doméstica para sobreviver”. Esta é essencial na
vida familiar e, sem ela, a mulher não poderia “equilibrar as tarefas de casa e
as da rua”. Além das dificuldades de deixar o cuidado dos filhos com uma
estranha, diz ela, é com o coração na mão que a mulher sai de casa.
Talvez Prudêncio já alforriado ainda permita a nhonhô exercitar sua
supremacia diante dessa outra mulher que o atende desde bebê, um adulto em
quem desde muito cedo a criança aprende a mandar.
O que me faz lembrar novamente da análise de Renato Mezan em
Subjetividades Contemporâneas, chamando nossa atenção para “a
determinação social da subjetividade”, em especial no Brasil:
“Disse há pouco que ela tem a ver com a luta de classes e a inserção de
cada indivíduo neste ou naquele lado do processo. Isso significa que, por
razões históricas que dizem respeito à nossa formação social, o Brasil
produz brasileiros ‘programados’ para mandar e outros brasileiros – a
maioria – programados para obedecer.” (MEZAN, 2002b, p. 270)
Mais uma vez, despatriarcalização com desigualdade de gêneros que a
maternidade torna evidente. Se o cuidado do outro é algo que estaria na
“natureza” da mulher, é ela que paga o preço pela pedocracia - instituída às
custas dela e, simultaneamente, graças a ela, a essa devoção ao filho que a
instituição da família moderna ocidental passou a exigir. Se a criança é um
anexo do feminino e, se as raízes escravocratas da nossa formação social
continuam gerando frutos e estabelecendo a classe dos que mandam e a
classe dos que obedecem, como afirmou Mezan e, ainda, se estamos longe de
poder negar a “superioridade” que nossa sociedade atribui ao homem, a
mulher – seja a esposa, seja a empregada doméstica, seja a professora – são
ainda os Prudêncios do século XXI, colocando-se e colocadas sob o jugo de
nhonhô, a criança que educamos.
Mas é na realidade crescente das novas famílias que melhor podemos
avaliar o peso do filho fardo, o mala que vem na bagagem dos novos
parceiros e que sempre lembrará o(a) ex, conforme observei na Introdução
deste livro. Já sabemos disso desde nossa infância quando convivemos com a
Gata Borralheira (Cinderela), Branca de Neve, Joãozinho e Maria. No novo
contexto familiar o filho disputará também com os novos irmãos amor,
atenção, cuidados e dinheiro.
“Os meus, os seus, os nossos conflitos familiares” é o nome da matéria
de O Globo de 27 de abril de 2008:
“O ‘casa-descasa’ vem formando um mosaico de novas famílias no
Brasil. Ao ampliar seu leque de laços de parentesco, a convivência entre
pais e filhos postiços nesses novos arranjos familiares gera também
conflitos, em muitos casos dramáticos. O alerta mais nítido surgiu com a
tragédia que envolveu a menina Isabella de Oliveira Nardoni, de 5 anos,
jogada do sexto andar do prédio do pai e da madrasta, quando passava o
fim de semana com o casal.”
Uma advogada entrevistada por Tatiana Farah e Maia Menezes, autoras
da reportagem, diz ter ficado sempre muito perturbada pela existência da ex
do seu marido com quem ele havia tido uma filha. E conclui: “Muita
madrasta se engana e pensa que marido com filhos significa apenas que ele
vai pagar pensão.”
As jornalistas visitam fóruns de bate-papo que, por serem “protegidos
pelo anonimato da internet”, conseguem mostrar “que o lar pode virar um
campo de batalhas, em que cada centavo e cada afeto são motivo de disputa
entre pais, filhos, padrastos, madrastas e enteados. ‘Meu pai casou não tem
nem cinco anos. Agora eles tiveram um bebê, que já fez um aninho’, diz uma
adolescente, que reclama de falta de dinheiro e atenção em um fórum virtual.
‘Para completar, ela diz que quer ter outro filho daqui a um ano, ou seja, para
meu pai me esquecer de vez. Ela ´tá guardando o ‘dindin’ dela num banco
para a filha deles e fica gastando todo o dinheiro do meu pai; e ele não pode
me dar nada’.” Outro caso encontrado nos fóruns virtuais foi “o de uma
madrasta que não aceitou sequer a foto do enteado em sua casa, para não
lembrar do passado do marido”.
Poucos dias antes Roberto da Matta escrevera também no O Globo
“Sobre mães e madrastas”, transcrevendo a mensagem que recebeu do
“famoso brasilianista Richard Moneygrand” comentando “a tragédia da
menina Isabella” que se tornou comoção nacional. Além do valor intrínseco
da análise realizada pelo americano, ela também interessa pela procedência
do olhar estrangeiro sobre a cultura brasileira.
Moneygrand começa dizendo que fomos “um país patriarcal,
escravocrata, controlado pelo pai-marido-irmão-senhor” e que hoje somos
“uma sociedade de casais divorciados, compelidos a conviver com filhos de
outros casamentos”. Esses “descendentes” de outras uniões “devem ser
tratados como iguais aos outros filhos do casal. Filhos de pessoas separadas
implicitamente denunciam a história conjugal dos pais” no contexto da nova
união. Continua ele:
“Enteados, madrasta e padrasto são palavras estranhas ao ideário do
núcleo familiar brasileiro, cuja fundação deve ser preferencialmente
realizada por pessoas sem história conjugal (...). O folclore situa a
‘madrasta’ como uma mulher má e incapaz de afeto. A vida é, muitas
vezes, madrasta, diz-se. Vocês, brasileiros, têm um elo muito forte com
a mãe, de quem se espera, além do amor, todos os sacrifícios. Da
madrasta, esperam-se maquinações que, como mostra a história de
Branca de Neve, visam à destruição da enteada. Como antropólogo você
sabe que a família brasileira valoriza os elos de descendência, inibindo
os laços de afinidade – o vínculo entre pais e filhos é mais importante do
que a relação entre marido e mulher. Mas me parece claro que esses
sinais começam a ser trocados e que há uma ênfase nos elos conjugais,
como é o caso da sociedade americana. Se o elo entre um homem e uma
mulher, como consortes, é mais básico ou começa a competir com a
filiação, há mudança.”
Sem entrar nos detalhes da análise do brasilianista, pulo direto para a
conclusão, onde ele destaca “o papel ambíguo de ‘madrasta’ como a mulher
do pai obrigada, porém, a ser mãe de todos os seus filhos”. Isso é “complexo
justamente pela possibilidade de ser contaminado pelo ciúme do marido,
projetando-o na enteada que entrou no grupo como um hóspede não
convidado”. No ciúme “contrabandeado para o interior dos laços mais
íntimos, estaria a virtualidade de tratamento madrasto e de uma discriminação
inconcebível dos enteados dentro da família”. Na sociedade brasileira a
família deve ser um grupo marcado “pela harmonia das velhas e boas
hierarquias baseadas em afinidades ‘naturais’”. É óbvio que essas
observações não explicam o crime, continua ele, “mas ajudam a compreender
a estupefação diante dele”. O fato do “crudelíssimo assassinato” “ter
acontecido no interior de uma família de classe média é algo impensável. E o
impensável engendra a revolta que nada mais é que o retorno do recalcado –
dos sentimentos mal resolvidos ou ignorados quando casamos inovação com
tradição”. O brasilianista termina chamando a atenção para “a força da
tradição familística brasileira!” que levou o presidente a apresentar a ministra
da Casa Civil como a “mãe, tia e avó” do PAC[17]. Restando à oposição ser a
madrasta do Brasil.
A dimensão de fardo jogado pela janela está longe de abarcar
completamente a perturbação no sentimento de si que uma gestação pode
provocar na mulher e que veremos a seguir com Monique Schneider. Já que,
no caso em pauta, a criança teria sido um peso não para sua mãe, mas para o
novo casal formado e no qual ela teria de ser encaixada. E ela o foi – embora
não do modo como gostaria.
O filho-tsunami e a maternidade sagrada

Para a imensa parcela do movimento feminista, desde o século XIX a


maternidade é uma armadilha e o filho uma desvantagem, um “obstáculo”
para a mulher, como escreveu Françoise Thébaud em O Medo no Ventre. A
doutora Madeleine Pelletier (1874-1939) o expressa enfaticamente em Le
Droit à l’Avortement: “Um obstáculo, tanto mais poderoso já que não é de
ordem social mas de ordem natural, ergue-se diante da mulher que quer
satisfazer sem entraves sua sexualidade: a criança.” A maternidade começa
com a gravidez e coloca a mulher numa condição de servidão, num “estado
de inferioridade tanto do ponto de vista físico quanto do ponto de vista
intelectual”. Segue-se o parto “com suas dores terríveis” e depois o encargo
das crianças e do casamento, obrigações da mulher e que lhe impedem “o
desenvolvimento completo de sua individualidade” (apud THÉBAUD, p.
249-250).
Simone de Beauvoir é “mais moderada”, diz Thébaud no mesmo lugar.
Em 1949 Beauvoir escreveu que “é uma mistificação sustentar que a mulher
se torna, com a maternidade, concretamente igual ao homem”. E algumas
mulheres, embora não a desprezem, “são muito absorvidas por sua vida
amorosa ou pela carreira para lhe dar um lugar em sua existência”.
Esta feminista responde a um Freud inspirado em Napoleão – “a
anatomia é o destino”: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. A anatomia
não é o destino. Beauvoir dissociava a feminilidade da maternidade e
considerava a procriação como embargo da mulher imposto pela espécie
necessitada de reprodução. Segundo Monique Schneider, em Le Paradigme
Féminin (2004), o feminismo inicial via a maternidade como um entrave a
toda tentativa de emancipação, associando-a com a submissão. E seria tão
inadequado rir dessa associação quanto ver a chegada da criança como o fim
de uma mutilação originária, como o faz a Psicanálise. O corpo grávido pode
ser experimentado como desafiando toda tentativa de reconhecimento de si.
Os textos psicanalíticos silenciam o temor provocado por uma gestação,
continua Schneider, embora esse temor esteja no centro da atenção freudiana
no início. Daí a frequência do desejo infanticida no universo onírico da
mulher grávida; desejo cuja confissão é proibida porque transgride o tabu da
maternidade sagrada. A futura mãe pode viver o nascimento de outro ser
como uma desaparição de si e da livre disposição de si mesma, um luto de
sua liberdade, um “fardo”.
Essa primeira versão de Freud sobre o que a chegada de uma criança
pode representar para uma mulher traz uma visão subtrativa da criança,
entrevista como um vampiro cujo corpo só se edifica sobre a ruína do corpo
materno. Um organismo se faz, o outro se desfaz, fazendo do nascimento a
outra face de um luto. É uma versão mais sombria da maternidade, na qual
um corpo estranho toma o ser como refém. Em Freud o parto é uma comoção
que convulsiona a identidade e os primeiros textos sublinham essencialmente
a dimensão de sismo, de terremoto da chegada da criança, que produz
desorientação e risco de clivagem, de dissociação, de cisão.
Essa primeira versão difere totalmente da sequência da obra, que só
permite ver a criança como o que vem reparar a falta primordial na mulher, o
salvador que traz o membro faltante à amputada que é toda mulher – o pênis.
E, portanto, um desejo inconsciente de criança em toda gestação. Essa
interpretação imposta neutraliza o temor que a gravidez provoca, descoberto
por Freud nos seus passos iniciais e que dificilmente pode ser visto pelo leitor
atual, que conhece essa teoria ulterior.
A fecundidade pode ser fantasiada como intrusiva, alheia. A
fecundidade feminina não é uma simples adição reparadora, um complemento
pelo qual o bebê simplesmente viria acrescentar-se ao corpo feminino e não
substituí-lo: o bebê advém no lugar do corpo feminino. Trata-se de um dom e
de uma substituição; de um “ausentar-se” e de uma dimensão de abertura –
paradigmática do feminino.
Analisando o famoso livro de Saint-Exupéry a autora de Le Paradigme
Féminin diz que a trajetória do Pequeno Príncipe mostra que a presença da
criança significa a violência pulsional e que a maioria dos leitores não nota
que a história termina por um suicídio da criança. Esta é representada como
agente penetrante que porta todas as ameaças ligadas ao “corpo estranho”. E,
questão fundamental, o Pequeno Príncipe se sustenta sobre um fantasma que
é o oposto do fantasma da mãe devoradora: quem está em perigo por acolher
(recepção) o grão (semente do baobá) é o feminino, o lugar feminino –
metaforizado pelo planeta, pela rosa ou pela garganta. Essa ameaça de
destruição do feminino paira sobre toda a obra, diz Monique Schneider.
Com a maternidade a mulher acede a um estatuto diferente; o
crescimento corporal não é só a passagem para uma outra escala de grandeza,
mas a um outro “estatuto”, que condena a mulher a se eclipsar de si mesma e
a ser vista apenas como um ventre.
A autora cita o obstetra Bernard Fonty, para quem a sociedade suprime a
maternidade que idealiza ao impor modelos de mulher que excluem o corpo
grávido. O modelo de mulher reproduzido pelas revistas femininas é o
contrário de uma mulher grávida e uma verdadeira provocação diante do seu
corpo, escreve Fonty.
Esse modelo da mulher esbelta é animado por uma intenção matricida de
purgar a mulher de todo sinal de matriz, de esvaziar a mulher de toda
potencialidade maternal, continua Schneider. E a Psicanálise participa desse
trabalho de supressão quando impõe uma clivagem entre a mulher e a mãe,
excluindo a mãe de toda participação no feminino e esvaziando-a da
sexualidade. Por essa via triunfa a maternidade sagrada, a maternidade
santuário, que incidirá diretamente na vida dos casais.
Separar assim o feminino do materno foi um objetivo perseguido por
Lacan, diz Roudinesco (2003). Este psicanalista viu um hiato entre a mãe e a
mulher que, segundo Soler, é muito sensível na experiência (2005).
Dissociar a mulher e a mãe corresponde a uma tentativa de dessexualizar
a maternidade, concebendo-a como uma função biológica de reprodução
desligada do erotismo e das fantasias – o que nos devolve a uma concepção
pré-psicanalítica da sexualidade. Esse hiato ou separação entre maternidade e
erotismo resulta do recalque da (insuportável) sexualidade da mãe, fazendo
da mãe uma Virgem Maria e do filho aquele Deus que Michelet desenhou em
A Mulher.
A beatificação da mãe destitui a mulher de seu corpo e de seus atributos
femininos para alojá-los na criança. A Psicanálise reflete a cultura – ao invés
de refletir sobre a cultura – quando repete em suas teorizações mais esse
clichê cultural. Não foi para essa descoberta terrível que a investigação de
Édipo o conduziu, ou seja, a saber que Jocasta, mulher e mãe, era sua mãe e
esposa? Jocasta, mulher armadilha, é a mulher que oculta mãe.
Leila Diniz confrontou esse clichê. Não, como se diz, porque escolheu
ter um filho fora do casamento na sociedade brasileira da década de 1960.
Sua fotografia grávida de biquíni em Ipanema estampava a primeira mulher a
exibir simultaneamente sua gravidez-maternidade e sua sensualidade, unindo
a mãe e a sexualidade que o recalque dissocia.
Em De l’Exorcisme à la Psychanalyse. Le Féminin Expurgé (1979)
Monique Schneider descobre a mutilação do feminino na história da cultura,
na passagem da bruxa dos inquisidores à possuída dos médicos no século
XVII, pelo esvaziamento da sua potência feminina. Renato Mezan retoma
essa passagem histórica em sua análise das relações de Freud com o feminino
e descobre, na diferença de tratamento dado por Freud ao feminino quando
dos textos explicitamente voltados para a sexualidade feminina e aqueles em
que analisa a cultura, uma concepção da verdade que se relaciona com seu
projeto de fazer da Psicanálise uma ciência. Destaco, a seguir, apenas as
passagens da leitura que ele faz dessa obra de Monique Scnheider que estou
comentando.
A feiticeira dos inquisidores põe em cena a sexualidade e o objetivo
visado pelas torturas seria o de levar a mulher a renunciar à sexualidade. A
sexualidade seria privilégio da fêma, “razão pela qual o Belzebu, que não é
homossexual jamais seduz um homem”. A feiticeira é “uma mulher que se
apresenta como forte – e forte a partir de um princípio inacessível ao macho”
e o inquisidor busca provar que esta força da mulher não tem origem nela
mesma, mas no Diabo masculino (1985, p. 183 e p. 528). O poder que a
feiticeira encarna (um poder perigoso e benéfico) não vem dela, mas do
Diabo por meio de um pacto. “Na figura da feiticeira, estudada por Monique
Scnheider”, diz Mezan, acompanhamos o surgimento do “feminino não mais,
ou não somente, sob a luz da ‘falta’ – falta de pênis, entende-se – como nos
artigos freudianos dedicados explicitamente ao tema da sexualidade feminina,
mas sobretudo”, ao que é sentido como incontrolável, ao que irrompe dentro
de si como vindo de um poder estranho.
No curso da história, a feiticeira dos inquisidores será substituída pela
figura da “possuída pelo demônio”. A diferença essencial entre a feiticeira e a
possuída é que a bruxa faz o pacto com o Maligno e a possuída é vítima
indefesa desse pacto: o Diabo se instala em seu corpo à sua revelia e a mulher
sentirá a presença da força diabólica como um abuso, uma irrupção, contra a
qual ela se defende com todas as suas forças. Monique Schneider nota um
desdobramento da possuída numa parte inocente e em outra obscena e esse
desdobramento contribuirá para fazer surgir “uma imagem da feminilidade
como puro receptáculo passivo, no qual vem se introduzir um poder estranho
e representado como masculino. A possessão demoníaca é na verdade uma
despossessão, despossessão do feminino como ativo e ao mesmo tempo
diferente do masculino como fonte e sede de movimentos próprios e sem
correspondente no corpo e na psique do homem” (Mezan, p. 529).
A possuída é a bruxa esvaziada da sua sexualidade. Na história da
cultura esse esvaziamento da sexualidade da feiticeira significa a mutilação
do feminino. Mutilação que instaurou uma diferença radical entre a feiticeira
e a possuída no plano do poder. A bruxa é dotada de poderes (maléficos
também) – poder de transformação, poder de metamorfose inerente ao
imaginário e ao reino onírico, poder dos “sortilégios” advindos da sua
sexualidade. A possuída é a bruxa esvaziada de seus poderes, é o feminino
despojado de sua potência, anunciando a nova imagem da feminilidade: um
receptáculo que sofre passivamente a invasão (ocupação) por um corpo
estranho, sendo meio vítima, meio irresponsável. Monique Schneider diz que,
apesar dos momentos de exceção, o feminino na Psicanálise é mutilado pela
lógica subtrativa que o define pela falta. E, diz ela, num sentido as religiosas
estão longe dessa passividade que lhes é atribuída, sendo infinitamente mais
ativas e mais temíveis que as bruxas, porque sua atividade conduzirá o
suposto bruxo sedutor à morte. A passividade seria uma máscara a esconder
um temível poder de vingança, perseguição e extermínio que visa um homem
cuja falta foi provocar-lhes um movimento de desejo que elas experimentam
com culpa.
Essa divisão aparece para Freud que, mesmo em suas investigações mais
abstratas e mais afastadas de uma reflexão explícita sobre a feminilidade,
pressente um feminino como uma potência difusa e oculta, temível e
envolvente. Totalmente separado do feminino inofensivo e impotente ao qual
ele se refere em suas análises da sexualidade feminina.
A possuída dará lugar a uma outra figura feminina: a histérica. Na
possuída, a força diabólica está situada no exterior; na histérica, a força
diabólica será situada no próprio organismo da mulher. Mas esse retorno da
força diabólica para a própria mulher “será já marcado pelo selo da
impotência e da fragilidade” (Mezan, p. 529).
Bruxa mutilada, sem poder nem mobilidade, enclausurada e sem a
vassoura que lhe dá poderes para realizar deslocamentos instantâneos, a
“pobre criatura” dos médicos (a histérica) é vítima da possessão e de suas
contorções por causa dos “males da mãe”, ou da matriz (útero). A
intervenção da Medicina – o advento da cientificidade – no campo das
doenças mentais consistiria assim essencialmente, em imputar à “mãe” e seus
componentes mórbidos (como na concepção platônica) o que antes a
explicação teológica havia atribuído ao Diabo.
4 A misoginia na concepção lacaniana das
funções paterna e materna
“Lá vem nossa comida pulando.”
Hans Städen

O “espaço oco” (creux), paradigma feminino


Nos seus textos iniciais Freud prolonga a tradição, dando muita atenção
ao “espaço oco” (espace creux) materno. Mas, observa Monique Schneider,
subitamente essa matriz culpada durante séculos, esse útero visto desde a
Antiguidade como um lugar que comanda as reações femininas, desaparece
da Psicanálise. Freud o excluirá do rol dos atributos femininos para
considerar as mulheres como desprovidas de pênis. Assim e para usar a
expressão da autora de Le Paradigme Féminin, Freud pesquisa a
especificidade feminina de olho na anatomia masculina e no que falta à
mulher, esquecendo-se do seu ponto de partida.
Essa operação imaginária vem “eviscerar” (desventrar, desentranhar) a
imagem da mulher, amputá-la daquela região sombria vista como lugar
infernal, destruindo simbolicamente o seu desejo, a sua sexualidade. A
mutilação produz uma clivagem, uma divisão na figura feminina gerando
uma imagem assexuada da mãe.
Monique Schneider define o paradigma feminino como o “espaço oco”
(espace creux, o Herberge materno, o Hohlraum), onde o outro, o “corpo
estranho” é incluído no interior de si. Então o oco, a cavidade oferece uma
imagem da feminilidade que corresponde a aceitar a entrada de outro ser no
interior de si que se torna habitante do próprio corpo. O paradigma feminino
é essa abertura, “espaço oco” onde se recebe algo que vem do outro (uma
metáfora da oralidade e genitalidade femininas). Recepção, aceitação,
acolhimento, admissão (Aufnahme) do outro que não significa a passividade
com a qual a feminilidade tem sido identificada – pela cultura e pela teoria
psicanalítica. Mas que considera a diferença estabelecida por Freud entre a
organização genital infantil – na qual há um primado do falo – e a
organização genital adulta, que exige o reconhecimento de um feminino que
não é o castrado, mas o “espaço oco” (creux).
A “recusa da feminilidade” para Monique Schneider é a recusa a
“aceitar” (annehmen) uma invasão (efração), um dom, uma contribuição
vinda do outro, fechando sua cavidade íntima, defendendo seu território do
corpo estranho.
Além da cavidade, também os seios desaparecerão do corpo da mulher
na Psicanálise, ajudando a desenhar essa imagem do feminino “amputado”,
esvaziado de sua potência. A falta feminina, a representação ablativa e
mutilada do feminino (como castrado) é construída por essa supressão dos
seus traços, por esse apagamento das marcas femininas.
A autora de Le Paradigme Féminin observa o destino curioso que a
Psicanálise dá ao seio, que só brota em sua literatura quando colocado na
boca da criança. O seio não é incluído em nenhum desenvolvimento sobre a
feminilidade (há apenas uma exceção num texto em que Freud trata da
adolescente), mesmo ocupando uma função central no Esboço de Psicanálise,
onde Freud diz que ele faz da mãe, para os dois sexos, o objeto do primeiro e
mais poderoso dos amores. Na esquisita anatomia teórica desenhada pela
cartografia analítica, diz Monique Schneider, este seio poderoso parece
totalmente estranho ao corpo feminino, sendo encontrado repetida e
exclusivamente no território da criança. Então o seio de que trata a teoria
psicanalítica não está situado no corpo da mulher, mas encaixado na boca da
criança; é um seio expatriado, ou melhor, “exmatriado”.
Dessa maneira, continua ela, a Psicanálise obedece inteiramente ao
imperativo cultural que determina que o seio seja um bem da criança, sua
identidade primeira. E esquece que o que permite a todo ser proclamar “Eu
sou o seio” é a doação de uma mulher, que ela tenha feito do seu corpo uma
doação, aceitando não pertencer a si. Sobre os seios sepultados da mulher a
Psicanálise pode perpetuar a assimilação cultural do feminino com a
antropofagia e atribuir apenas a ela uma boca canibal.
Na história da cultura foi assim pelo menos desde os gregos. De um
século a outro a mulher é temida como devoradora, sedutora, esfomeada de
amor, ávida de sangue e sexo como a Esfinge, ávida de carne como a Cuca no
Brasil, esse bolo que as crianças comem e que é também a bruxa que come
criancinhas.
“Função materna”: retrato da mulher na misoginia
ancestral
A imagem do feminino no Ocidente confunde-se com a história da
cultura e com a história da misoginia. No imaginário cultural, a identificação
do feminino com o apetite insaciável do canibal (que remete às pulsões orais
e, pois, à sexualidade), seu poder de absorção, sua potência sombria,
sedutora, pode ser vista tanto na Antiguidade pagã quanto na cultura
inaugurada pelos Padres da Igreja. Nós a vimos no caso exemplar da
feiticeria e da tortura do inquisidor visando, precisamente, a renúncia da
mulher a sua sexualidade.
Não foi Jocasta (a mãe de Édipo), com sua avidez incestuosa,
alimentando-se do amor de seu filho Édipo, que provocou nossa tragédia
psíquica? A Esfinge encurrala o herói com a ameaça: “Decifra-me ou te
devoro”. Nas versões antigas da lenda, a Esfinge não é esse monstro
examinador que conhecemos; é um monstro fêmea ávida de amor e de sangue
que canta seus enigmas. Uma figura musical erótica e sedutora como as
Sereias, cujo canto enlouquece e mata os homens como Salomé, a princesa
dançarina. A tragédia termina com Édipo em Colona, também de Sófocles,
engolido pela Terra-mãe.
Na Odisseia de Homero, às Sereias com sua voz sedutoramente
mortífera arrastando os homens para a morte, vêm juntar-se Cila e Caríbdis,
os dois monstros fêmeas que devoram os companheiros de Ulisses enquanto
eles urram de angústia. As Amazonas devoradoras de humanos temidas pelos
gregos são outros dentre tantos símbolos do pavor pelo feminino canibal,
devorador, absorvente. Como as Lâmias (do grego laimos, “garganta”) ou
Estriges da Antiguidade, que são os modelos longínquos do vampiro e eram
seres femininos que devoravam recém-nascidos.
Com insistência impressionante e curiosa, o imaginário da cultura
atribui à mulher uma sexualidade insaciável, devoradora, maléfica,
destruidora: não foi Eva a causa da nossa expulsão do Paraíso? Entre os
gregos não foi Pandora, a primeira mulher, mulher-armadilha, a origem de
todos os males dos humanos, que ela trazia em sua caixa? A galeria das
figuras femininas eróticas povoa o imaginário cultural há milênios.
A esse feminino imaginado como a sexualidade encarnada corresponde
a idealização do masculino como espírito desencarnado, imaterial, racional,
espiritual e com o poder de dominar a matéria, inferior. O imaginário do
Ocidente assimilou a feminilidade à sexualidade/fecundidade e identificou a
virilidade à razão, à agressividade, ao poder.
A Esfinge, as Sereias, Eva ou Salomé, a nossa imagem da mulher é
sempre essa da esfomeada de amor que, por sua luxúria, seduz o homem e o
arrasta à ruína – e leva junto a humanidade. A filosofia grega separou o
sensível/corpo/matéria da alma/espírito e afirmou a superioridade do espírito
sobre a matéria. A patrística articulará a diferença sexual pela assimilação do
imaterial com o masculino e do sensível com o feminino e essa articulação
legitimárá o domínio masculino sobre o feminino, ser inferior por definição.
R. Howard Bloch escreveu Misoginia Medieval. E a Invenção do Amor
Romântico Ocidental no qual afirma que essa ideia tem raízes profundas na
tradição platônica e, desde Fílon, contemporâneo dos primeiros cristãos,
passando pelos primeiros Padres da Igreja, o dualismo masculino-feminino é
incorporado na distinção entre a inteligência – mens, ratio – e o corpo, os
sentidos, o apetite, sensus – o pecado. Com os Padres da Igreja, “nos
primeiros séculos do cristianismo, a carne se torna sexualizada como
especificamente feminina (...)” (BLOCH, p. 64).
A mulher é o corpo do homem e a ele subordinada. Na Epístola aos
Efésios (5, 21) Paulo ordenou às mulheres que “submetam-se a seus maridos,
como ao Senhor. Porque o marido é a cabeça da mulher, assim como Cristo é
a cabeça da Igreja; e ele é o salvador do corpo”. Agostinho repetirá a mesma
ideia: “a submissão da mulher está na ordem das coisas: ela deve ser
dominada e governada pelo homem assim como a alma deveria regular o
corpo e a razão viril dominar a parte animal do ser. Se uma mulher domina o
homem, e a parte animal, a razão, a casa fica de pernas para o ar”
(AGOSTINHO apud BLOCH, p. 39).
Bloch, professor de literatura francesa da Universidade da Califórnia,
em Berkeley, e considerado um dos mais importantes medievalistas norte-
americanos da atualidade, diz que em quase dois mil anos pouco variou o que
os misóginos têm a dizer sobre a mulher, numa monotonia repetitiva dos
primeiros padres em diante. “Nossas ações são femininas ou masculinas.
Sendo femininas, são corpóreas ou carnais”, escreveu Orígenes. “Todos os
que são trazidos diante de Deus, apresentados aos olhos do Criador, são
homens, não mulheres. Pois Deus não se digna a olhar para o que é feminino
e corpóreo.” (ORÍGENES apud BLOCH, p. 53)
Essa feminização da carne, repetida à exaustão pelos escritos dos santos
Padres entre os séculos I e IV, “é uma ideia que fez muitos herdeiros e que
ainda permanece entre nós”. Pelo menos desde Agostinho, “um dos grandes
topoi do Ocidente sobre o sexo” é que o homem é assexual e puro de espírito,
partilhando com Deus sua divindade, enquanto a mulher é a carne e o sexo
que exige ser dominado. Não é preciso lembrar que a castidade é uma
verdadeira obsessão dos primeiros Padres da Igreja. Essa obsessão patrística
pela castidade, pela disseminação do ódio e da vergonha de possuir um corpo
e da hostilidade ao corpo impregnou o cristianismo.
A aversão pelas mulheres (misoginia) é virulenta e povoa os escritos
teológicos desde o cristianismo primitivo. Atinge seu ápice no manual do
inquisidor escrito por dois monges alemães no século XV, o Malleus
maleficarum, popularmente conhecido como O Martelo das Feiticeiras. Não
foi a voracidade de Eva que perdeu toda a humanidade?
De fato, sempre se soube que a “boca do útero” é insaciável, motivo
pelo qual, precisamente, existem mais feiticeiras do que feiticeiros. Pelo
menos é essa a conclusão a que chegam os autores do Malleus ao
examinarem na Questão VI por que é maior o contingente de mulheres que se
entregam à bruxaria. Como o apetite da carne é insaciável nas mulheres, elas
copulam até mesmo com demônios para saciar sua lascívia, e cozinham e
comem os próprios filhos pequenos. “E abençoado seja o Altíssimo, que até
agora tem preservado o sexo masculino de crime tão hediondo: como Ele
veio ao mundo e sofreu por nós, deu-nos, a nós homens, esse privilégio.”
(KRAMER & SPRENGER, 1997, Questão VI, p. 121).
Um monge do século XII já advertia os incautos:
“A mulher boa é coisa má, e quase não há nenhuma boa... Ela arranca
seus próprios rebentos do ventre... Ela é assassina da criança e, bem
mais, da sua em primeiro lugar... Mulher pérfida, mulher fétida, mulher
infecta... foge dela, leitor.” (DELUMEAU, 1996, p. 325-326)
Por causa de seu péssimo hábito de devorar recém-nascidos, milhares de
bruxas foram mandadas à fogueira. Inclusive pelas crianças nas estórias que
os adultos contam, como no caso de Joãozinho e Maria, engordados na
floresta pela feiticeira que alimentava planos de banqueteá-los. Do século XV
ao XVII o Ocidente sai à caça da “filha mais velha de Satã”.
O imaginário dos séculos XIX e XX não será menos misógino que o do
tempo dos primeiros padres. Sorvedouro insaciável, “nunca uma mulher dirá:
basta!”, repetirão os irmãos Goncourt no século XIX. Acrescentando: “As
mulheres jamais fizeram coisa alguma de notável, exceto dormir com muitos
homens e sugar-lhes o tutano intelectual.” Conforme lemos em A mulher que
Eles Chamavam Fatal, Edmond de Goncourt anotará em seu Journal um
caso contado pelo doutor Blanche, de uma senhora que parecia ser
“perfeitamente sã de espírito” e que se queixava de ter 35 mil homens em seu
ventre, dentre os quais um tagarela...
Vampiresas e messalinas devorando homenzinhos, escreve Mireille
Dottin-Orsini sobre a misoginia no século XIX, é frequente a associação do
feminino com o devorador. Esse discurso misógino não inova nada: apenas
repete o que já “estava nos textos bíblicos, nos comentários dos Pais da
Igreja, no discurso medieval ou nos manuais de caça às bruxas”, conforme
mostrou Jean Delumeau em História do Medo no Ocidente. “Constatamos
uma notável perenidade do discurso misógino, mais evidente ainda porque
nossos autores gostam de citar seus predecessores e de situar-se assim numa
tradição que os conforta e os justifica (...)” (DOTTIN-ORSINI, p. 20).
A vampiresa de 1900 perpetua o horror à mulher devoradora de
crianças. No final do século XIX o vampirismo se tornou “uma especialidade
eminentemente feminina”; “a vampiresa toma lugar entre as figuras da
misoginia e da guerra dos sexos. A fórmula seria: a mulher é vampiro, e o
homem é sua vítima” (DOTTIN-ORSINI, p. 276).
Em Mangeuses d’Hommes (1878) Pierre Verón fez um “capítulo
divertido”, intitulado “Os miolos do ponto de vista da alimentação feminina”.
Ele propõe três receitas principais para essa espécie de “livro de culinária”:
“Miolos ao molho de Vênus, dos namorados traídos (‘são sempre os
miolos que pagam para que sejam comidos’); miolos ao molho literário
(escritores, devorados por suas mulheres), miolos ao molho financeiro
(‘especuladores desonestos’ e ‘banqueiros suspeitos’). ‘Bom apetite,
senhoras!’.” (apud DOTTIN-ORSINI, p. 279)
E Strindberg, sem rodeios, conjuga no feminino o verbo vampirizar
quando define o beijo: “Beijo – fusão de dois seres, dos quais o menor, com
forma de carpa, parece prestes a engolir o maior, um hábito dos vermes, dos
micróbios, dos vampiros e das mulheres.” (STRINDBERG, apud DOTTIN-
ORSINI, p. 282)
No século XIX é costume usar também a carniça como metáfora do
corpo da mulher e, em especial, a imagem do ventre podre, expressando o
horror à fecundidade e a repulsa à feminilidade. Dottin-Orsini considera um
marco o poema de Baudelaire em Flores do Mal, “Uma Carniça”. E em “La
Métamorphose du Vampire” novamente o ventre, que na época representava
a essência da feminilidade, revela-se objeto de pavor. A fecundidade é
representada como putrefata. “O horror à mulher simplesmente tomou a
forma do horror à geração – espontânea ou não” (p. 56). O que leva os
Goncourt a afirmarem em seu Journal: “Nada falta às mulheres senão uma
chave no umbigo, uma chave de aquecedor que poderíamos girar e impediria
a gestação, quando não quiséssemos ter filhos com elas.” (p. 94)
Filho fruto de um ventre putrefato: não é essa a criança funesta e
maléfica recalcada pela Modernidade? Por ser expressão da carne – o que é o
mesmo que dizer: fruto do feminino – o bebê será amaldiçoado, para Santo
Agostinho. Para esse que foi o maior dos Padres da Igreja, cujo pensamento
dominou o Ocidente desde o começo da era cristã até o século XVII, o
marido ama o fato de a esposa ser humana, “e odeia o fato de ser mulher”.
A arte do final do século XIX não se cansa de repercutir essa antiga
misoginia: a feminilidade é maléfica, malvada, maligna, vampiresca. As
imagens de Salomé agora se multiplicam; ela encarna o feminino sedutor e
canibal que oferece à sua mãe a cabeça cortada de São João Batista que ela
carrega num prato. A maçã de Eva e a cabeça cortada do homem são a
insígnia do feminino. No Journal os irmãos Goncourt escrevem sobre seu
canibalismo: “As mulheres não fizeram algo notável senão após terem
dormido com muitos homens, sugando-lhes a medula moral: Madame Sand,
Madame de Staël (...). Jamais uma virgem produziu coisa alguma.” (apud
DOTTIN-ORSINI, p. 145)
Paradoxo curioso: na cultura não há lugar para a potência criadora do
feminino. Na galeria dos grandes, daqueles que, de um modo ou de outro
fecundaram a humanidade, a mulher é figura difícil. Em 1662 o Padre Du
Bosc perguntava no seu L’Honneste Femme: “Pensando bem no que fazem as
mulheres, não se poderia afirmar que metade do gênero humano é paralítica e
que apenas uma parte da nossa espécie desenvolve uma atividade?”
O mundo antigo já sabia que a mulher é um ser débil, marcado pela
imbecillitas de sua natureza. A Idade Média também o repetiu à exaustão. O
motivo da debilidade intelectual das imitadoras de Eva é o mesmo da
existência de mais bruxas do que bruxos, explicam os autores do Malleus.
Quando eles examinam a Questão VI, Por que principalmente as mulheres se
entregam às superstições diabólicas, escrevem que isso ocorre porque:
“A mulher é mais carnal do que o homem (...). E convém observar que
houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada
a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja
curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em
virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona a
mente. Pois diz Cato: ‘Quando uma mulher chora, está a urdir uma
cilada’. E prossegue: ‘Quando uma mulher chora, trabalha para enganar
um homem’.” (Questão VI, p. 116)
Além de estragar seu intelecto, a costela torta que deu origem à mulher
também causou uma “falha secundária em seus afetos e paixões”: por isso ela
é sempre vingativa, “seja por bruxaria, seja por outros meios. Pelo que não
surpreende que tantas bruxas sejam desse sexo.”
Muito tempo depois Proudhon, o fundador do anarquismo francês, diria:
“O que distingue a mulher é a fraqueza, ou melhor, a inércia do seu
intelecto.” (GAY, 1995, p. 307) E Nietzsche esclarece: “Quando uma mulher
exibe interesses científicos, alguma coisa está desarranjada em sua
sexualidade.” (GAY, 1990, p. 79) Desnecessário multiplicar testemunhos
para o que nunca escapou a homens e mulheres: “A mulher não tem cérebro;
ela é um sexo, nada mais. Tem apenas um papel no universo: fazer amor.”
(O. MIRBEAU apud DOTTIN-ORSINI, p. 154)
A mulher é um corpo ou, mais precisamente, “o sexo”, e assim foi
designada. Sempre se atribuiu à mulher uma sexualidade desmesurada,
devoradora, mortífera; sempre se fez de Messalina a própria imagem da
feminilidade. A outra face desse fantasma é o “homem como espírito e
dominação da matéria”.
Dançando como Salomé, rainha das bruxas e organizadora de sabás, a
paralítica adquire algum movimento. Talvez nenhum outro mito condense,
com tamanha eficácia simbólica, o gabarito oficial pelo qual a cultura mede a
diferença sexual, cujo inventário dos bens inconscientes Freud começou a
fazer. Decapitado por natureza, é só mediante o roubo e a sedução que o
feminino (sanguinário) conquista uma cabeça (beatificada) (NEDER
BACHA, “Um Édipo Invejoso? As ‘tetas da sapiência’ ”).
A autora de A Mulher que Eles Chamavam Fatal diz que nesse mito a
mulher é um corpo que dança e o homem a cabeça, sede do intelecto, do
pensamento e do gênio.
O feminino engole a razão, sendo um obstáculo ao pensamento. Os dois
domínios da carne e da razão serão opostos e excludentes e assim
permanecerão até nossos dias, como o masculino e o feminino. A
feminização da carne se completa com a virilização da razão ou do espírito.
Essa partilha marca profundamente a cultura e ela está no fundamento do
código doméstico: a mulher é o corpo do homem e este o cabeça do casal.
Projetar a sexualidade na mulher e excluir o homem dessa região
sombria por sua identificação com a luz da Razão e do espírito não é uma
operação nascida da psicanálise. A teoria lacaniana das funções paterna e
materna apenas retoma da cultura uma divisão entre masculino e feminino
muito antiga e recorrente na sua história. E suas nada desprezíveis derivações
ou consequências.
Atribuir a sexualidade/fecundidade à mulher e imaginar o homem como
desencarnado é também imaginá-lo imune à irrupção das pulsões. Isso
corresponde a um ideal de autonomia absoluta pois quem diz pulsão, paixão,
desejo, diz sujeição, submissão, limitação.
Em seguida, essa idealização do feminino e do masculino implica
excluir o pai da fecundação e imaginar a mãe como a virgem: é o modelo que
servirá à teoria de uma “função paterna” que só intervém na subjetivação da
criança mais adiante, sob a forma de uma proibição de sua fusão com a mãe,
que seria o momento originário.
Finalmente, essa idealização do masculino com o poder e a
agressividade proíbem a agressividade e o poder à mulher, tal como a cultura
também as interdita, considerando fálica, não feminina, a mulher no exercício
de sua agressividade. E, como o trabalho intelectual é o exercício da
agressividade sublimada e transformada em destruição do enigma (do aspecto
enigmático do objeto), interditar o poder e a agressividade à mulher é
duplicar a repressão da agressividade imposta pela cultura ao feminino.
Interditar a agressividade ao feminino é situar as mulheres nesse lugar nesse
lugar milenar a qual foram delegadas pela civilização e que é o lugar
marginal à Razão, cuja essência é, há mais de dois mil anos, masculina.
A mãe-crocodilo ou a encenação psicanalítica da
mulher como a eterna devoradora

Este antigo imaginário cultural infiltra-se na Psicanálise e é ele que salta


aos olhos no modelo lacaniano do Édipo (cf. NEDER BACHA, “A Cruel
Cantora”).
Em seu Seminário XVIII, L’Envers de la Psychanalyse (1991), Lacan
identifica a mãe à boca de um crocodilo do qual temos de escapar, segundo
René Major em Do Paradigma Freudiano ao Paradigma Lacaniano (2003).
É a interdição paterna que virá salvar a criança da antropofagia materna, do
seu verdadeiro apetite de ogra.
Referindo-se a esse seminário de Lacan, Jean-Pierre Lebrun escreve que
a função do pai é a de dar
“à criança o que lhe permite pôr obstáculo à devoração da mãe; era
exatamente isso que Lacan dizia quando precisava: ‘O papel da mãe é o
desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe não é algo que se possa
aguentar assim, que lhes seja indiferente. Isso acarreta todos os estragos.
Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão – é isso a mãe. Não se
sabe o que lhe pode acontecer, num golpe ele pode fechar a boca. É isso
o desejo da mãe’.” (LACAN, 1991, apud LEBRUN, p. 33)
Monique Schneider observa que atribuindo à mulher e à mãe esse apetite
de devoração nós garantimos nossa posição de objeto de um desejo
irreprimível. Sendo irresistivelmente apetitosos, ninguém precisa angustiar-se
por não ter sido desejado. Também por isso será preciso chamar um terceiro
elemento, o pai, para afastar da avidez materna essa guloseima deliciosa. A
teoria fecha a boca materna afixando sobre ela uma mensagem sem equívoco.
Essa psicanalista destaca o caráter consolador da encenação lacaniana quando
nos lembramos que, para Freud, a mulher pode proteger sua integridade
corporal e psíquica contra a efração que consistiria a penetração masculina e
a chegada da criança.
Em Généalogie du Masculin (2000), Schneider afirma que o modelo
lacaniano do Édipo conquistou uma audiência considerável precisamente
porque reproduz as mesmas clivagens estereotipadas do campo cultural,
opondo a uma força de engolição do lado materno, uma força de liberação do
lado paterno. O pai será a estaca na boca do crocodilo prestes a devorar sua
cria.
Em Freud o pai enuncia uma proibição: “não deitarás com tua mãe”. Em
Lacan essa proibição se desdobra, dirigindo-se não apenas à criança, mas
também à mãe: “Não reintegrarás teu produto” (Lacan, Seminário sobre as
Formações do Inconsciente). Essa versão se apoia sobre uma suspeição
fundamental em relação ao desejo materno, sobre a representação de uma
mãe movida pela paixão de devoração (da criança e do órgão masculino).
Nesse Seminário, Lacan define a mãe como uma mulher chegada à plenitude
de sua voracidade feminina. Assim a aproxima da avidez mítica atribuída à
Eva.
A subjetivação em Lacan se dá pelo abandono da mãe e pela entrada no
reino do pai – a cultura (patriarcado) – com a imposição da lei (interdição do
incesto). É a ameaça de incesto que especifica o pai e a mãe, diz Monique
Schneider. O materno é incestuoso e essa ameaça já está inscrita em seu
corpo, já que a criança viria ocupar o lugar da falta. Logo, a recusa em se
separar se situaria, exclusivamente, do lado da mãe. Entretanto, diz ela,
embora a autoridade da etnografia seja invocada para caucionar tal partilha, o
texto de Lévi-Strauss propõe outro esclarecimento, como veremos adiante.
Identificado à função de corte e separação, o pai só o é depois do
nascimento; uma espécie de “parteiro simbólico”, diz a autora de Généalogie
du Masculin. O que é o mesmo que afirmar que ele é expulso da origem, do
nascimento, da sexualidade, da fecundidade, e identificado apenas ao falo-
símbolo-do-poder (excluída sua dimensão fecundante, presente, entretanto,
na etapa inicial do percurso lacaniano). E também o mesmo que atribuir ao
materno uma onipotência, um poder desmedido que a torna “a origem de
tudo”. Restringir o pai à função de doador de nome eliminando a penetração
fecundante é, ainda, conceber uma origem virginal para a criança.
Lévi-Strauss distingue sociedades antropofágicas e antropoêmicas. As
sociedades que praticam a antropofagia veem na absorção dos indivíduos
detentores de forças temíveis o único meio de neutralizá-las e aproveitá-las.
As que praticam a antropoemia (do grego emein, vomitar), como é o caso da
cultura ocidental, caracterizam-se por expulsar esses indivíduos do corpo
social. Para Monique Schneider pai e mãe lacanianos são fundados por essa
dicotomia: a mãe antropofágica é definida como aquela que chegou “à
plenitude de suas capacidades de voracidade feminina”, e o pai antropoêmico
é encarregado do movimento contrário, separador.
O mundo ocidental, que para Schneider é o apogeu do masculino, impõe
uma clivagem entre um masculino elevado e vertical e um feminino
desvalorizado e associado à falta, à carne, à natureza, à sexualidade, à
fertilidade e à abertura – muito embora também façam parte da experiência
dos homens, não menos encarnados que as mulheres.
Em “Prazer de criança: sobre sublimação e identificação”[18], Renato
Mezan escreve que Monique Schneider recusa o princípio dessa separação,
entre uma mãe situada como objeto do desejo e o pai como potência
castradora e separadora:
“As funções de dom e de interdito se trançam reciprocamente, podendo
a palavra do analista ser recebida como alimento que nutre (proveniente
de um seio, atributo materno) ou como substância que fecunda o ventre
(proveniente de um pênis, atributo paterno). O dom da palavra, em
minha maneira de entender seu argumento [o autor refere-se aqui a
Monique Schneider], pode assim ser atributo de uma figura mista, nem
pai nem mãe, ou talvez distribuída por duas imagos.” (MEZAN, 2004, p.
8)
Referindo-se ao dom musical em sua relação com seus filhos, Mezan
completa:
“(...) para meus filhos, sou um pai-mãe no sentido sugerido por
Schneider, que lhes oferece nutrientes para a alma, ao mesmo tempo em
que os fecunda com a substância da cultura, ao fazer com que tomem
conhecimento dos (e possam gozar com os) tesouros musicais da nossa
tradição (...)” (p. 9).
Sinuoso caminho percorre a Psicanálise quando assimila a mãe com a
ameaça antropofágica: não é na canibalização dessa “sedutora perversa” que
se enraíza nossa origem? Não é para essa mãe comestível que aponta a fase
“canibal”? Sobre o sepultamento dos seios da mulher a Psicanálise pôde
perpetuar essa assimilação cultural do feminino com a antropofagia e atribuir
exclusivamente a ela uma boca canibal. Como o imaginário misógino pelo
qual passeamos.
Se é assim, então esse modelo do Édipo que buscava analisar o processo
de subjetivação ou a estrutura na qual se constitui o sujeito revela-se uma
prescrição, uma injunção normativa: “mãe, afaste-se de seu produto” para que
ele possa ser arremessado nas paragens do pai, na sua cultura, não por acaso
chamada de “patriarcal”. Interdição do incesto materno e imposição do
incesto com o pai por um mergulho na sua cultura?
Daí a pertinência da observação de Márcia Arán em O Avesso do
Avesso. A Feminilidade e Novas Formas de Subjetivação:
“A obra de Monique Schneider pode ser considerada uma crítica
minuciosa à herança patriarcal da Psicanálise, mais precisamente à ideia
de função paterna, que se fundamenta na clivagem entre masculino-
espírito-cultura e feminino-natureza-sensorialidade.” (2006, p. 143)
Feminização da carne X virilização do espírito e da
razão

Nasci sem ter passado por ventre materno...


Atena nas Eumênides

Essa identificação do feminino com a carne e do masculino com o


espírito e a razão será o eixo das reflexões freudianas sobre a maternidade e a
paternidade em Moisés e o Monoteísmo. Renato Mezan em Freud, Pensador
da Cultura atribui o valor dessa obra ao fato de ela vir revelar o final do
grande debate de Freud com a questão do pai. Aí ele saúda o domínio paterno
ou o poder do pai – o patriarcado – como um progresso da civilização. “Mais
do que uma passagem contínua da mãe ao pai, há uma ruptura frente a um
certo modo de ser, vinculado à sensibilidade/sensualidade/maternidade (...).”
(MEZAN, 1985, p. 538)
Tal dissociação secular entre masculino-espírito-cultura e feminino-
sensibilidade-natureza forma a herança patriarcal da Psicanálise. Nessa
clivagem hierarquizante a primeira série tem supremacia sobre a segunda.
Essa dissociação entre uma maternidade ancorada na sensibilidade que deve
ser ultrapassada pelo acesso a um “reino” centrado na espiritualidade do pai,
diz Monique Schneider em Généalogie du Masculin, aparece muito cedo em
Freud (1889) até ocupar um lugar central nessa obra quase testamentária que
seria o Moisés e o Monoteísmo.
Freud se inscreve na tradição patriarcal e prolonga a cultura ocidental
que, desde suas origens gregas e cristãs separa o sensorial para a mãe e o
espírito para o pai, diz Monique Schneider. A Psicanálise é cativa dessa
herança, especialmente na definição da função paterna como esse pai
idealizado e sem qualquer laço sensível. A esse masculino mutilado e
desencarnado opõe-se o feminino que, sozinho, seria o portador de vida. Essa
lógica separatista que é a lógica da tradição patriarcal dissocia e antagoniza
paterno e materno: a intelectualidade deve separar-se do sensível-sexual da
mesma maneira que a paternidade se separa e se opõe à maternidade.
Para o criador da Psicanálise, o pai é o patriarca e a família é patriarcal.
Com ele estamos às voltas com uma dualidade homem-mulher comandada
por um princípio hierárquico, continua Schneider (2000). O casal é possível
com a condição de que haja apenas uma cabeça, conforme o “corpo
monárquico”, que reabsorve e neutraliza o parceiro – a mulher – no interior
do casal. A lógica fálica preside essa concepção centralizadora e é ela que
está em ação na “decisão” que em Moisés e o Monoteísmo estabelece que “a
paternidade [...] é mais importante que a maternidade”.
Essa preferência necessária do filho pelo pai instaura uma competição
entre os poderes materno e paterno. O pai freudiano, observa Monique
Schneider, é rival do filho pela mãe. Mas em Lacan essa rivalidade se
completa com outra: pai e mãe são rivais disputando o amor do filho que,
obrigatoriamente, deverá preferir um preterindo a outra. Então a família
lacaniana está limitada pela disputa fálica entre os pais no amor dos filhos. A
“passagem” ou substituição da mãe pelo pai se dá pela metáfora do Nome-
do-Pai, sendo próprio da metáfora – em Lacan – operar uma substituição. É
assim que o pai se torna um objeto preferível à mãe.
Entretanto, em sua origem grega “metáfora” significa transporte. Essa
pista nos levaria a caminhos diferentes que não o de uma “substituição” da
mãe pelo pai implicando uma “preferência”.
Atena, deusa da guerra e da razão, é a única entre os Olímpicos que não
possui mãe, observa Mircea Eliade em História das Crenças e das Idéias
Religiosas. Hesíodo narra na Teogonia que Zeus engoliu sua mulher grávida,
Métis, deusa da inteligência, e uma forte dor de cabeça pôs fim ao período de
gestação-digestão. Auxiliado por Hefesto, o deus-ferreiro que lhe abriu uma
fenda na cabeça, Zeus pariu Atena assim viril, conforme suas palavras nas
Eumênides, fazendo eco à lição de Apolo: “Nasci sem ter passado por ventre
materno e estou totalmente do lado do Pai”. Não há mãe a quem devo a vida.
Nasci de um deus, nada devo à feminilidade.
Orestes apela ao tribunal para que seja reconhecida a importância maior
da paternidade – o que relativiza o seu crime (matricídio). Apolo é o porta-
voz da teoria que retira à mãe o poder de gestação; ele diz que o filho não é
gerado pela mãe, mas pelo homem que a fecunda; este é o criador do ser que
ela apenas guarda como uma estranha. Atena é a prova de que não é a mãe
que engendra sua criança, mas o homem. A mãe a conserva como uma
estrangeira.
Para Freud essa figura de Atena sem mãe que nasce da cabeça de Zeus
mostra a função do pai na concepção: ela seria a maior representante da
descendência paterna, e do feminino como prolongamento imediato do
cérebro paterno. O nascimento cerebral de Atena atestaria que o pai é o
instaurador do “grande progresso da civilização” e por isso o filho decidirá
preferi-lo.
Atribuir um poder parturiente ao cérebro-ventre do pai é uma violência
simbólica que nega ao feminino o poder de gestação, diz Monique Schneider.
É uma apropriação masculina do poder feminino de parir. Esse poder de dar à
luz falta ao homem, conforme Freud o confessa indiretamente em A
Organização Genital Infantil, em que trata da descoberta tardia feita pela
criança de que só as mulheres podem parir. Freud e o texto trágico calam o
que o mito fala: a gravidez cerebral de Zeus só foi possível porque antes ele
engoliu Métis, a mãe grávida de Atena.
Monique Schneider sugere que em Moisés e o Monoteísmo Freud estaria
preocupado em legitimar uma instituição – o patriarcado ou a família
patriarcal. Por isso ele refere o “grande progresso da civilização” à passagem
da mãe ao pai e não do feminino ao masculino. Como em diversas outras
leituras culturais da diferença sexual, diz ela, Freud faz do espírito o
paradigma do masculino, que é imóvel e sem vida pulsional. Essa visão
ascética do masculino resultante da oposição binária vida-espírito aprisiona o
pai no espírito, para além da vida e da carne (da fecundidade e da
sexualidade), caracterizando-o essencialmente pela operação simbólica de
reconhecimento por meio da inscrição do nome.
Schneider vai ainda mais longe afirmando um conluio entre essa
definição da paternidade espiritual e o campo político, uma vez que situar o
pai para além ou acima do sensível e do humano é destiná-lo a uma posição
de poder. É preciso afastar o pai de qualquer promiscuidade com a esfera da
materialidade, atribuída à maternidade, para legitimar sua posição elevada, de
representante do poder. A tragédia edipiana seria, inteira, sustentada por uma
busca de soberania absoluta.
Ora, se o pai é espírito puro, exterior às pulsões então, como São José,
ele não poderia conceber o filho, que seria apenas e tão somente filho da
Virgem Maria. A Psicanálise prolonga a separação entre natureza e cultura e
radicaliza a dicotomia que situa a participação corporal como o apanágio das
mulheres, escreve a autora de Généalogie du Masculin, excluindo o
masculino do fenômeno do nascimento, da origem sensível do vivo, para
limitar a função paterna ao registro do simbólico como o marido de Maria.
Dessa maneira realiza a fantasia de uma partenogênese feminina, que
não se deve ao imaginário religioso, mas a uma das “teorias sexuais infantis”:
é assim, recusando a participação do “seu” pai, que os meninos reagem à
informação sobre a sexualidade em relação ao nascimento.
É também o que observa G. Delaisi de Parseval em De la paternité
triomphante à la paternité négociée[19]: há uns trinta anos a teoria lacaniana
do “nome-do-pai” tem ocultado a questão do pai real, carnal, das origens.
“Parece-nos que há muito de simbólico e pouco de carne nessa abordagem.”
(2000, p. 469)
Monique Schneider recusa-se a resumir a obra freudiana no veredicto
enunciado por Moisés e o Monoteísmo. Para ela, mesmo que Freud
reivindique a herança do patriarcado, que ele vê como um progresso decisivo
na evolução da civilização, seus primeiros textos questionam a divisão
patriarcal dos papéis sexuados. Ele protesta vigorosamente contra o lugar que
a sociedade atribui à mulher. É um defensor da feminilidade oprimida,
embora seu protesto se limite a denunciar os estereótipos sociais que definem
o feminino, sem questionar os critérios que definem o modelo masculino,
como se este fosse soberano.
Schneider observa também que o critério da anatomia acaba por revelar-
se inadequado para fundar a diferenciação sexual, já que em Moisés e o
Monoteísmo Freud atribui essa diferença ao progresso histórico pelo
surgimento dessa nova legislação – do patriarcado, centrada sobre a
espiritualidade, enquanto a do matriarcado centrava-se na sensibilidade. O
espírito é superior ao sensível, o pai é superior à mãe, não por causa da
anatomia e sim por uma decisão.
Finalmente, a análise da intelectualidade em Moisés e o Monoteísmo
pende para o idealismo, apoiando a busca do pai pela criança inteiramente
sobre uma operação de espiritualização. Ao contrário de As Teorias Sexuais
Infantis, que apoiam essa pesquisa no corpo da criança e em suas excitações,
abalando os critérios separadores do campo filosófico. O mesmo caminho
conduz para a descendência paterna e para o campo da intelectualidade: ir
além do sensível, da sensibilidade/sensualidade identificada como lugar do
materno, que deve ser ultrapassado pelo acesso a um reino centrado na
espiritualidade-intelectualidade e no pai.
A devoradora devorada e a alteridade/autoridade
paterna

Em As Estruturas Elementares do Parentesco Lévi-Strauss argumenta


que as famílias se constituem como uma aliança entre grupos. Natureza e
cultura seriam separadas pela lei universal da proibição do incesto, que o
etnólogo interpreta como uma maneira de sair do isolamento da
consanguinidade. Ele funda o sistema de trocas mais sobre a “aliança” do que
sobre o interdito: a regra da exogamia empurra o indivíduo para o universo da
troca, tornando-o um ser da cultura. A regra substitui os laços da
consanguinidade pelos laços sociais da aliança.
A regra da exogamia é ambígua enunciando um “não” (“não tomarás
como mulher tua mãe, filha, irmã”) e um imperativo, uma ordem: “Troque”
(“tu me darás as mulheres do teu sangue que eu trocarei pelas minhas”). A
regra proíbe o incesto e ordena a troca de mulheres: sua aparência negativa
(interdição do incesto) recobre uma prescrição (fazer uma aliança com o
extrafamiliar, com outrem, o estranho à família de origem). Esse “outro
homem” com quem poderá advir a aliança é uma entidade suspeita no
Ocidente antropoêmico.
Em Lévi-Strauss a interdição do incesto introduz uma face positiva da
alteridade: é preciso dar algo a essa alteridade, mas ela também dá um bem
em troca. Mas os “sábios ocidentais”, diz Monique Schneider (2000), só
veem a proibição na regra da exogamia. Ela também chama a atenção para o
interdito do incesto em Lévi-Strauss, que não se dirige ao feminino e sim a
um homem. Pois para ele o pai participa da origem com a mãe.
No Prefácio da segunda edição de Estruturas Elementares do
Parentesco (1966) Lévi-Strauss recusará a separação natureza-cultura
identificando-a como uma imposição própria ao pensamento ocidental,
repetindo aí o que já havia escrito em 1962 em O pensamento Selvagem e em
O totemismo Hoje: a tal oposição entre natureza e cultura seria uma “criação
artificial da cultura”, sua obra defensiva. Em Minhas Palavras ele também
dirá que a etnologia deve recusar essa separação radical entre a ordem da
natureza e a da cultura.
Essa recusa será considerada por Lacan um “recuo” de Lévi-Strauss
diante de uma distinção de grande “valor criativo” (Roustang).
Monique Schneider chama a atenção para a mudança significativa
operada por Lacan na teorização de Lévi-Strauss que, ao fazer do pai o
representante da lei do incesto, transforma-o no outro homem de Lévi-
Strauss.
O trio analisado por Lévi-Strauss é constituído por uma mulher e dois
homens – sem a criança, portanto, que será um quarto elemento. A aliança
une dois homens entre os quais vai se estabelecer uma relação de
camaradagem. Esse trio conjugal é totalmente diferente daquele que estrutura
a triangulação edipiana. No trio edipiano desaparece esse outro homem com
o qual se entra numa relação de aliança na qual a mulher é só o alimento
(objeto a ser comido e consumido). E o pai se torna Ego e o outro, ou seja,
conforme o sistema patriarcal, o pai se torna também o representante da
cultura e encarnação do extrafamiliar.
No patriarcado a vontade do chefe de família tem a força de lei. É a ele
que Lacan encarrega de representar a alteridade, expelindo (antropoemia) o
“outro homem” que, em Lévi-Strauss, é o estranho à família com a qual se
faz a aliança. Sai o estrangeiro com Lacan e entra o pai do sistema patriarcal,
que é o pai que está, ao mesmo tempo, no espaço familiar e fora dele, que
representa o extrafamiliar e o familiar com seu nome, que é o princípio de um
sistema de filiação, de uma linhagem – da qual a mãe está excluída.
Curiosamente, observa Monique Schneider (2000), quando Lacan
retoma o triângulo de Lévi-Strauss ele transforma a lei do incesto – que é a
lei que deve criar uma ponte entre o intra e o extrafamiliar – em um
dispositivo normativo que repatria todos os termos para dentro do espaço
familiar. Fazendo o familiar engolir o social e o pai se tornar a lei, a
Psicanálise mergulha no familismo. Dessa maneira e surpreendentemente,
para Monique Schneider, a estrutura de Lévi-Strauss conduz à ideologia da
Santa Família ao invés de estremecê-la.
A troca é centrada no homem ou androcentrada, continua a psicanalista,
chamando a atenção para esse ponto em Lévi-Strauss: são os homens que
trocam as mulheres, não o contrário. O que significa atribuir às mulheres o
estatuto do bem trocado, como o alimento. Nessa análise a mulher “é” o
alimento da aliança. E o homem também tem uma boca, essa abertura
corporal que a cultura faz um paradigma exclusivamente feminino e que
parece incompatível com a essência da masculinidade. O homem também
deseja comer e é essa avidez masculina que o antropólogo situa no
fundamento da dinâmica social da troca. Em outros termos, em Lévi-Strauss
encontramos essa representação do masculino consumidor, de um pai
incestuoso habitado pelo desejo de “comer” seu produto e que é objeto de
uma forclusão.
É essa imagem de um masculino guloso, de um pai habitado pelo desejo
de “comer” seu produto que Michèle Ménard vê no Saturno de Rubens
(1636-1638) quando escreve seu capítulo em Histoire des Pères e de la
Paternité, “Unique em ses images”, no qual considera essa tela o exemplo
mais famoso de uma representação do medo da criança diante do pai
devorador.
A análise de Lévi-Strauss, e agora voltando à Monique Schneider, atinge
a representação da mãe devoradora, já que na troca que estrutura a sociedade
a mulher ocupa a posição de objeto oferecido à devoração. Dessa maneira o
etnólogo desorganiza alguns temas psicanalíticos, já que se pretenderam
fundamentados em sua teoria, como é o caso da mãe devoradora e
naturalmente incestuosa na teoria de Lacan.
Reconhecer o poder de avidez e de consumação do ser masculino
permite esclarecer essa representação capital (a mãe devoradora). A estrutura
de troca assim analisada mostra-se imensamente consumidora de mulheres.
Monique Schneider se pergunta se não é para explicar essa dívida
fundamental que será necessário, por projeção, edificar o fantasma que
atribuirá à mãe um poder ilimitado de engolição. E diz que em Totem e Tabu
Freud encontrou um modo de conjurar a culpabilidade pela devoração
primitiva do seio, atribuindo ao pai o lugar da mãe: no mito final da refeição
totêmica o pai se torna ele próprio nutridor e comestível.
A mãe antropofágica é construída sobre a supressão dos seios da mulher
e, pois, dessa canibalização da qual a mãe é objeto para a espécie humana.
Canibalização da mãe que está nos fundamentos da teoria da sedução
generalizada. A “sedutora perversa” de Laplanche está presente nas origens
da nossa humanidade oferecendo aos filhos de Eva o leite como alimento e
infiltrando-lhes o prazer de contrabando:
E atormentando-os com a culpa pelo pecado cometido – “o pecado da
infância” –, como revela Santo Agostinho em suas Confissões, escritas nos
anos 397 e 398 da nossa era:
“Nada mais fazia senão sugar os peitos, saborear o prazer e chorar as
dores da minha carne (...). Quem me poderá recordar o pecado da
infância, já que ninguém há que diante de Vós esteja limpo, nem mesmo
o recém-nascido, cuja vida sobre a terra é apenas um dia? (...) Em que
podia pecar, nesse tempo? Em desejar ardentemente, chorando, os peitos
de minha mãe? Se agora suspirasse com a mesma avidez não pelos seios
maternos, mas pelo alimento que é o próprio da minha idade, seria
escarnecido e justamente censurado.” (Confissões, I)
Entre o leite e o bebê, a mãe (o adulto) introduz o seio (a mamadeira)
embalado em suas paixões e fantasias. E assim desvia a criança do biológico,
sendo o mesmo que dizer que o adulto seduz o bebê, desperta nele um prazer
que ele vai buscar repetir, sugando seu dedo. Este é o protótipo do prazer e do
nascimento do prazer em Freud, porque, evidentemente, do dedo não sai leite.
Mas essa fantasia oferece prazer.
Deletada essa mãe nutridora e comestível das origens da nossa vida
psíquica, recalcada a mãe que alimenta o bebê com seu próprio corpo,
edifica-se a associação secular do feminino com a antropofagia correlata ao
masculino espiritual.
Uma coisa é conceber a subjetivação (a constituição do sujeito) pela
“travessia” de um Complexo de Édipo que abre um fosso entre pai e mãe,
homem e mulher. Se as “funções” materna e paterna podem ser exercidas até
por uma mesma pessoa não seria o caso de perguntar: qual o sentido de sua
separação? Com o declínio do “nome do pai” o que se fragilizou foi
exatamente esta linha de separação que a leitura lacaniana do Édipo tenta
restaurar. Nessa perspectiva, o sujeito só seria introduzido na cultura em um
contexto formado pelo triângulo: pai, mãe, filho. A aproximação entre pai e
mãe, uma espécie de hibridação, para usar um termo de Monique Schneider,
não seria a maior mudança ocorrida no processo de subjetivação?
Outra coisa é conceber o processo de subjetivação ou a introdução da
criança na cultura com a teoria da sedução generalizada de Laplanche. Esta
confronta um adulto sedutor e uma criança. É por essa via da sedução
originária que a criança incorpora o social sexual e no qual ela se introduz.
Dessa maneira, Laplanche problematiza o familismo psicanalítico, que
condiciona a subjetivação ou aculturação do humano ao triângulo familiar e
mesmo à ordem patriarcal. A teoria da sedução generalizada postula como
verdadeiramente necessária e universal na condição humana a relação entre a
criança e o adulto. Tal como Édipo diante da Esfinge, numa relação mediada
pelo enigma.
A Mãe-Eva introduz o seio-maçã entre o leite e o bebê, despertando sua
voracidade e sensualidade, mas também animando na mulher o medo e a
angústia de ser devorada pela criança. Como aquela que pode ser provocada
pela gestação: angústia de eclipsar-se, de desaparecer para se tornar o outro.
Uma das inúmeras manifestações dessa angústia talvez se expresse
naquele conflito da mulher com a vida profissional. Quando ela recusa sua
“natureza” incestuosa e se lança numa profissão, não faltam dispositivos
sociais para fazê-la voltar ao caminho reto, como o sentimento de culpa por
transgredir uma barreira social. É assim que um médico consegue ser
facilmente convincente quando exige que a mãe se dedique de modo
exclusivo ao filho febril. E que uma médica seja bem-sucedida ao fazer da
virose da criança uma suposta acusação que a filha dirige contra o
“abandono” da mãe que trabalha (NEDER BACHA, “Atena e a gestação
paterna” e “A cruel cantora”).
Ainda quando o pai está presente e mostra-se disponível para cuidar do
filho, ele não encontra lugar nesse mundo mítico da mãe com o bebê. Embora
essa oferta do pai, assim como novos dispositivos jurídicos como o da guarda
compartilhada e a criação de formas de conjugalidade diferentes da hierarquia
verticalizante da família patriarcal que cada vez mais contestam essa
disposição naturalmente incestuosa da mãe, venham revelar o caráter cultural
dessa anexação até ontem inquestionável.
5 “Dessa terra e desse estrume é que nasceu
esta flor”

Unamos agora os pés e demos um salto até a infância de Brás Cubas quando
descreve seu amigo soberano como ele:
“Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a
minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a
flor, e não já da escola, senão de toda a cidade. A mãe, viúva, com
alguma cousa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado, asseado,
enfeitado, com um vistoso pajem atrás, um pajem que nos deixava
gazear a escola, ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir lagartixas nos
morros do Livramento e da Conceição, ou simplesmente arruar à toa,
como dous peraltas sem emprego. E de imperador! Era um gosto ver o
Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espírito Santo. De resto,
nos nossos jogos pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro,
general, uma supremacia, qualquer que fosse. Tinha garbo o traquinas, e
gravidade, certa magnificência nas atitudes, nos meneios.” (Capítulo
XIII: “Um salto”, p. 532)
Quincas Borba e Brás Cubas, “pequenos imperadores”, projetos dos
nossos déspotas mirins de hoje e réplicas de Édipo tirano de outrora
conforme o título original da peça de Sófocles, traduzida por Édipo Rei.
O solo no qual nasceu essa flor é formado pelo pai, um ricaço
permissivo que, extasiado e enlevado por si mesmo, deixava o filho e
herdeiro fazer o que bem quisesse, tanto pela “cegueira do amor”, quanto por
ver nos seus abusos e malfeitos uma “extensão graciosa” da sua própria
impunidade. Vivendo acima da lei, o pai era a lei. A mãe, tal como descrita
pelo autor defunto, era “uma senhora de pouco cérebro e muito coração,
assaz crédula, sinceramente piedosa – caseira apesar de bonita, e modesta
apesar de abastada; temente às trovoadas do marido”. Rodeado pela
escravaria, objeto dos seus malefícios e da sexualidade do tio João, o menino
diabo crescia sob os olhos não menos complacentes dos amigos da família:
“– É muito esperto o seu menino! exclamavam os ouvintes. – Muito esperto,
concordava meu pai; e os olhos babavam-se-lhe de orgulho, e ele espalmava
a mão sobre a minha cabeça, fitava-me longo tempo, namorado, cheio de si.”
(Capítulo X: “Naquele dia”, p. 526).
A supremacia do filho, atestada por seu constante desrespeito às normas,
por suas transgressões intermináveis e por seu “capricho despótico”, diz
Roberto Schwarz em Um Mestre na Periferia do Capitalismo. Machado de
Assis (2008), é “o documento” da supremacia ou poder do pai. Brás Cubas
pode mandar e desmandar porque é seu herdeiro, seu nome, sua linhagem. O
narcisismo dos pais coroa seu pequeno tirano.
Nascido numa família patriarcal brasileira do século XIX, nhonhô já
exerce a hegemonia infantil que a modernidade começou a instituir a partir do
século XVIII quando o adulto torna-se cativo de Vossa Alteza e a coloca no
centro da família. Descobre-a apaixonante como Narciso e destinada à
soberania (mas também à rejeição e à adoção) como Édipo tirano. E é assim,
coroada, que a criança chega finalmente ao século XX, quando avança o
regime da pedocracia. A proliferação de déspotas mirins seria um modo de
subjetivação enraizado na modernidade, criado pelo narcisismo dos adultos
modernos e pela despatriarcalização, que foi justamente a derrota do patriarca
e a ascensão do pequeno ditador?
O império do filho tirano faz ruir a tese do matriarcado, que desloca para
as mães um poder que de fato e de direito hoje está nas crianças.
Contrariando a realidade histórica, essa tese se sustenta na concepção
tradicional do “feminino castrado”: se “ela” tem poder, é porque o usurpou.
Num misto de retaliação e conquista as castradas, digo, as mulheres agora
fálicas superpoderosas andariam por aí dispensando homens até mesmo para
a procriação afirmando uma onipotência apocalíptica. Mas os sem limites
hoje gritam a sua vitória sobre pai e mãe.
Dificuldade imposta pelo narcisismo, culpa e negligência do adulto
manifestos no abandono da criança a si, numa espécie de apropriação
tupiniquim do ideal de “autonomia” que se tornou a meta e o sentido da
educação entre nós até hoje. Não teria sido imprescindível problematizar
como conciliar a autonomia com sua rival, a obediência, num país com as
nossas características?
Em As Idéias Fora do Lugar, Roberto Schwarz escreveu que nós nos
reconhecemos em um “torcicolo cultural”: um Brasil que era o bastião da
escravidão, envergonhado diante das ideias liberais europeias que não podia
praticar ou descartar. Embora impraticáveis por aqui, tais ideias eram
adotadas “com orgulho, de forma ornamental, como prova de modernidade e
distinção” (2000, p. 26). O transplante da cultura europeia para cá resultava
num cotidiano que Schwarz chama de “paternalismo esclarecido” e “uma
modernização conservadora cuja história ainda hoje não acabou”, conciliando
escravidão, clientelismo, favor e ideologia liberal.
Esse “torcicolo cultural” ou nosso “desejo de ser estrangeiros” (Antonio
Candido) importou tal e qual o cardápio da autonomia infantil preparado por
tradições culturais remotas e diferentes da nossa formação social, resultando
no abandono e na permissividade sob a capa da autonomia. Algo parecido
com a educação de Brás Cubas, como ele a resume no capítulo XXIV de suas
Memórias:
“Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma
[filosofia]; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o
esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio,
dous de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as
despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a
jurisprudência. Colhi de todas as cousas a fraseologia, a casca, a
ornamentação...” (Capítulo XXIV: “Curto, mas alegre”, p. 545)
Além disso os sem limites reeditam a antiga infância execrada. À criança
“estorvo”, “transtorno”, “desgraça”, criança maligna, diabólica e perigosa, o
adulto de outrora respondeu com hostilidade, infanticídio, indiferença e
desconfiança. Ao filho fardo impossível ou difícil de carregar no século XX o
adulto responde com sua ausência hoje muito presente entre nós.
A propósito, em sua coluna “Sem mãe para deletar” na Folha de São
Paulo de 4 de agoso de 2007, Ruy Castro descreve um caso emblemático
desse abandono. De seu terraço ele observa um garoto de uns dez anos de
idade que passa o dia em seu quarto com seu computador apesar de morar na
quadra da praia. E compara o que vê com um comercial de televisão no qual
um outro garoto sentado ao computador é interrompido pela ordem da mãe
para sair da internet. O menino do comercial “faz todas as caras de
aporrinhação e tédio” ao ouvir a voz da mãe e, de repente, perde a paciência e
“deleta” a mãe, diz o jornalista. “Era o que faltava para a sua felicidade:
livrar-se daquela chata. A internet agora é só dele – ou ele, dela. Meu jovem
vizinho aqui no Leblon é mais feliz: não precisa deletar a mãe. Nunca vi um
adulto no dito apartamento. E, se houver, nunca foi a seu quarto mandá-lo
largar o teclado para is fazer alguma outra coisa. Mas tanto faz se há ou não
esse adulto. O guri mora sozinho”.
Contudo, seria um equívoco incomensurável terminar este livro
desprezando os tantos pais, mães, professores, adultos, enfim, que se
divertem e desfrutam do prazer de formar suas crianças. As generalizações
bloqueiam o pensamento e Bachelard nos convida a desconfiar de suas
facilidades, alinhando-as entre os obstáculos epistemológicos. Sem apego às
obviedades das evidências é possível ver quantas crianças não vestem esse
modelo e se tornam os nossos jovens produtores de cultura e de laços sociais
bem ao alcance das nossas mãos. Eu o aprendi e continuo aprendendo na
convivência com meus filhos e com sua galeria de amigos já por mais de
duas décadas.
Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt chamaram nossa atenção para a
ambivalência da qual os jovens foram objeto em todas as sociedades,
provocando ao mesmo tempo medo e expectativa, atração e desconfiança. Em
todas as épocas, dizem na “Introdução” os organizadores de História dos
Jovens, as sociedades criam imagens ambivalentes para a figura juvenil, e nós
o vemos hoje nos cartazes publicitários que “exaltam e exploram os valores
da juventude (beleza, energia, liberdade)” enquanto na vida social e
simultaneamente “o medo dos jovens perturba os bem-pensantes, os
defensores das convenções ou da ordem” (p. 16). A sociedade exalta a
juventude como baluarte da nação, mas também manifesta uma “difusa
hostilidade” em relação a eles, vendo-os como “a fonte de todo gênero de
desordem e desvio”.
Nesse percurso foi possível encontrar essa mesma ambivalência no
tratamento social da criança. O que me leva a repetir: quanto mais nos
sentimos ameaçados pela semelhança com o outro, mais exasperada parece
ser nossa vontade de afirmar sua diferença. Tal ambivalência já está presente
nas fundações dessa cultura que nasce da imolação e da adoração do filho.
Presente também no destino de Édipo tirano, criança condenada à morte e à
rejeição, mas também à adoção e à coroação.
Chamamos de “autoritarismo” essa tirania quando se apresenta nos
adultos. Ela não nos autoriza a generalizá-la para “os adultos”,
indiscriminadamente. Eles também se organizam em “tribos”, às quais damos
nomes diferentes dependendo dos critérios de agrupamento: preferências
sexuais, escolhas de objetos e bens de consumo, “escolas” ou orientações
psicanalíticas, dentre muitos outros. Analistas de diferentes orientações
utilizam também suas próprias “gírias” que compõem seu dialeto cotidiano:
“mãe suficientemente boa”, “seio bom, seio mau”, “função alfa”, “nome-do-
pai”, “metáfora paterna”, “sedutora perversa”. São palavras de adesão, senhas
de acesso e pertinência a um grupo com o qual nos identificamos.
Tantas semelhanças nos obrigam a relativizar o abismo que se tenta
impor entre a criança e o adulto. Assim como o século XXI atenuou a linha
separadora entre homens e mulheres, pais e mães, também aproximou as
gerações, e os kidults expressam essa aproximação que com um pouco menos
de rabugice nós deixaríamos de censurar. Esse abismo-escudo entre o adulto
e o mosquito hostil é suavizado pela metáfora criada por Brás Cubas para
definir o homem e com a qual eu me despeço de você deixando-o, contudo,
em muito boa companhia: “Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço
pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma
edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição
definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.”
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pequenos imperadores? Revista Claudia. São Paulo: Ed. Abril, n. 3, ano 45,
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“A crise do macho”. Folha de S.Paulo de 18 de março de 2009.
“A família brasileira”. Folha de S.Paulo de 7 de outubro de 2007.
“A grande mudança no Brasil”. Revista Veja. São Paulo: Ed. Abril, ed. 1351,
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“Brasil tem 46 milhões de mães”. Folha de S.Paulo de 7 de maio de 2005.
Caderno Mais! Folha de S.Paulo de 25 de julho de 2004.
Caderno Mais! Folha de S.Paulo de 15 de maio de 2005.
Caderno Mais! Folha de S.Paulo de 19 de fevereiro de 2006.
Caderno Mais! Folha de S.Paulo de 4 de março de 2007.
“Famílias redesenhadas”. Caderno especial da Folha de S.Paulo de 6 de abril
de 2006.
“Garoto liderava gangue que assaltou dez ônibus!” Campo Grande, Jornal
Correio do Estado, 9 de março de 2005.
“Mães colocam marido em primeiro lugar”. Caderno Cotidiano. Folha de
S.Paulo de 8 de maio de 2005.
“Maio despedaçado”. Caderno Mais! Folha de S.Paulo de 4 de maio de 2008.
“Metade dos docentes já foi xingada por alunos”. Folha de S.Paulo de 1.º de
maio de 2006.
“Mulher trabalha quase o triplo do homem em casa”. Folha de S.Paulo de 17
de maio de 2008.
“Mulheres buscam homem disposto a ser pai”. Folha de S.Paulo de 10 de
agosto de 2008.
“Mulheres básicas”. Caderno Mais! Folha de S.Paulo do dia 8 de março de
2009.
“O que elas querem”. Caderno especial da Folha de S.Paulo de 8 de março
de 2005.
“Partos em baixa questionam família alemã”. Folha de S.Paulo de 27 de
março de 2005, Caderno Mundo.
“Quem cuida das crianças?”, Caderno Mais! da Folha de S.Paulo de 4 de
março de 2007.
“Rapaz de 17 anos confessa ter matado o pai a facada”. Caderno Cotidiano da
Folha de S.Paulo de 10 de março de 2005.
“Relatório da boa infância”. Folha de S.Paulo de 22 de março de 2009.

[1]
A palavra grega não tem a conotação de “ditador” que adquiriu posteriormente. Significa
“aquele que chegou ao poder por conta própria”, não necessariamente de modo violento (Édipo foi
escolhido para o cargo por ter livrado Tebas da Esfinge), em oposição ao rei que descende de outro
(basileus). Isso, porém, não invalida o uso que a autora faz dela – ao contrário, ao ressaltar o lado
despótico do pedocrata, joga com os sentidos literal e derivado, e cria uma metáfora das mais felizes.

[2]
Famoso caso dos Nardoni em que Isabella, de 5 anos de idade, foi morta ao ser atirada do 6o
andar, na cidade de São Paulo, em 29 de março de 2008.

[3]
Shakespeare, William, A Megera Domada, Ato V, Cena II – L&PM
Editores, trad. Millôr Fernandes. Edição do Kindle, local do Kindle – 2015.
Tradução da Nova Aguilar, em outra edição: “Causa-me vergonha ver as
mulheres declararem, ingênuas, a guerra, quando deveriam implorar a paz;
pretenderem o mando, a supremacia e o domínio, estando destinadas a servir,
amar e obedecer” (Ato Quinto – Cena II, p. 627). William Shakespeare, Obra
Completa, vol. II, RJ: Editora Nova Aguilar S/A, 1988
[4]
Quem Cuidará das Crianças?

[5]
“Os kidults e a moda”, publicado em www.chic.ig.com.br.

[6]
Nascida para comprar – A criança comercializada e a nova cultura de consumo.

[7]
Porque eu disse isso.

[8]
Badinter assinala que, nessa época, houve uma “nova abordagem da paternidade”, que
sensibilizou muitos pais. Trata-se da aproximação afetiva entre pai e filho que, no entanto, não foi
generalizada ou obrigatória.
[9]
Filme brasileiro de 1991, do gênero drama, dirigido por Neville de Almeida.

[10]
Ser Pai no Fim da Idade Média.

[11]
Das Coisas Novas.

[12]
“Selon l’expression du doyen Carbonnier, ce droit (de la famille) est devenu pédocentrique”, S.
Deniniolle apud F. Hurstel, G. Delaisi de Parseval, “Le pardessus du soupçon”. In: Histoire des pères
et de la paternité, p. 383.
[13]
Psicanálise e Educação. Laços Refeitos.
[14]
“Tirano” como hoje entendemos a palavra e, num certo sentido, talvez também como os gregos a
entendiam. Conforme Renato Mezan em “A Vingança da Esfinge” “o tyrannos, na Grécia, não é o
conquistador que destrói a liberdade dos cidadãos, mas aquele que acede à realeza por seus próprios
feitos, sem descender do governante anterior.” (MEZAN, 2002b, p. 165-166)

[15]
Revista de Domingo do Jornal do Brasil, 12 de maio de 1991
[16]
https://www.youtube.com/watch?v=F8JNoCb5x-E
[17]
Referia-se ao ex-presidente Lula e a sua então ministra Dilma.
[18]
O ensaio foi publicado agora no Brasil em 2017, em “Prazer de criança:
sobre o vínculo entre sublimação e identificação”, in Sociedade, Cultura e
Psicanálise, SP: Blucher, 2017.
[19]
Da paternidade triunfante à paternidade negociada.

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