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DIFERENÇA SEXUAL E ONTOLOGIA –

Por Alenka Zupančič, via E-Flux, traduzido por Matheus Cornely Sayão

Alenka Zupančič propõe traçar um caminho que vai desde a diferença sexual

segundo as essencializantes ontologias e cosmologias tradicionais até, após a ruptura

da filosofia e ciência moderna com a ontologia, as possíveis afirmações ontológicas

que a psicanálise poderia oferecer. Em crítica à teoria queer, que Zupančič afirma

dessexualizar o sexo, ela pretende demonstrar como a diferença sexual, para a

psicanálise, se situa como uma falha entre o ontológico e o epistemológico, colocando

o Real da diferença sexual na posição de algo que curva o espaço do ser.

Zupančič é professora de filosofia na European Graduate School e na Universidade

de Nova Gorica, na Eslovênia. Ela é uma acadêmica proeminente na Escola de

Psicanálise de Liubliana, fundada no final da década de 1970 por Slavoj Žižek,

Mladen Dolar e outros, que reúne o marxismo, o idealismo alemão e a psicanálise

lacaniana para facilitar um modo de “ouvir” fenômenos socioculturais. Dentre os

interesses dos membros estão história, política, arte, literatura e cinema.

Sequer sugerir a discussão da diferença sexual enquanto uma questão ontológica

pode induzir – não sem justificação – forte relutância do lado da filosofia (a

guardiã das questões ontológicas) e dos estudos de gênero. Esses dois lados, se

podemos chamá-los assim, compartilham ao menos uma razão para essa

relutância, relacionados de alguma forma ao fato de que a discussão não tentaria

nada de novo. Ontologias tradicionais e cosmologias tradicionais eram

vigorosamente dependentes da diferença sexual, tomando-a como seu próprio

princípio fundamental ou estruturante. Ying-yang, água-fogo, terra-sol, matéria-

forma, ativo-passivo. Esse tipo de oposição (às vezes explicitamente sexualizada)

foi usada como o princípio organizador tanto dessas ontologias e/ou cosmologias
quanto, ao mesmo tempo das ciências – astronomia, por exemplo – baseadas nela.

E é assim que Lacan pode dizer: “a ciência primitiva é um tipo de técnica

sexual”[1]. Em certo momento da história associado, em termos gerais, com a

revolução galileana na ciência e suas consequências, a filosofia e as ciências

romperam com essa tradição. E se há uma forma simples e mais geral de dizer o

que caracteriza a ciência moderna e a filosofia moderna, ela poderia ser formulada

precisamente em termos da “dessexualização” da realidade, do abandono da

diferença sexual, de uma forma mais ou menos explícita, como princípio

organizador da realidade, fornecendo a coerência e inteligibilidade do último.

As razões pelas quais o feminismo e os estudos de gênero acham essas

ontologizações da diferença sexual altamente problemáticas são óbvias. Fortificada

no nível ontológico, a diferença sexual está fortemente ancorada no essencialismo –

ela torna-se um jogo combinatório das essências da masculinidade e da

feminilidade. De tal modo que, para colocá-lo na linguagem contemporânea de

estudos de gênero, a produção social de normas e suas subsequentes descrições

encontra uma divisão ontológica pré-fabricada e pronta para essencializar a

“masculinidade” e a “feminilidade” imediatamente. A ontologia tradicional era,

portanto, sempre também uma máquina de produzir essências “masculinas” e

“femininas”, ou, mais precisamente, de fundamentar essas essências no ser.

Quando a ciência moderna rompeu com essa ontologia, também rompeu com a

ontologia tal qual. A ciência (moderna) não é ontologia; ela não pretende fazer

afirmações ontológicas nem – de uma perspectiva crítica sobre a ciência –

reconhece que, no entanto, as está fazendo. A ciência faz o que faz e deixa que os

outros se preocupem com os pressupostos (ontológicos) e as consequências (éticas,

políticas, etc.) do que está fazendo; também deixa para que os outros coloquem o

que ela está fazendo em uso.


Talvez ainda mais surpreendente seja que a filosofia moderna também quebrou

principalmente não apenas com a ontologia tradicional, mas também com a

própria ontologia. Immanuel Kant é o nome mais fortemente associado a esta

ruptura: se alguém não pode ter conhecimento sobre da coisa-em-si, a questão

ontológica clássica do “ser enquanto ser” parece perder sua base. Este não é o

lugar para discutir o que exatamente o gesto kantiano e suas implicações foram

para a filosofia moderna e pós-moderna: se eles simplesmente fecharam a porta

para a ontologia (e, como alguns argumentam, nos deixaram aprisionados por

nossas próprias construções discursivas, sem acesso ao Real) ou se estabeleceram

um novo e bastante diferente tipo de ontologia.

De qualquer forma, é um fato que o debate ontológico, depois de um tempo

considerável de afastamento do primeiro plano do palco filosófico (teórico) – e,

talvez mais importante ainda, sem atrair o interesse geral – está agora fazendo um

enorme “retorno” ao palco, sendo o motivo da expressão “novas ontologias”[2].

Esses são projetos filosóficos muito diferentes, mas é seguro dizer que, para

nenhum deles, a diferença sexual (de qualquer modo) desempenha qualquer papel

em suas considerações ontológicas. O ser não tem nada a ver com a diferença

sexual.

Uma vez que estamos debatendo a psicanálise e a diferença sexual, implicar Freud

e Lacan na discussão da dimensão ontológica da diferença sexual pode parecer o

auge de possíveis excentricidades [3]. Até porque isso parece ir na direção

contrária não apenas dos numerosos e excepcionais esforços que os defensores da

psicanálise, durante décadas, investiram em mostrar a incompatibilidade da

psicanálise com qualquer tipo de essencialismo sexual. É, também, contrário ao

que Freud e Lacan pensaram e disseram sobre a ontologia. Levando em conta a

anteriormente mencionada dessexualização da realidade, que ocorreu com a

revolução galileana da ciência, a psicanálise (ao menos sua veia freudo-lacaniana)


está longe de lamentar. Seu diagnóstico da civilização ocidental não é “o esquecer o

sexual” e não se vê enquanto algo que irá trazer a coloração sexual do universo de

volta ao foco mais uma vez. Pelo contrário, a psicanálise se percebe (e percebe seu

objeto) como estritamente coextensiva a esse movimento [4]. Daí as afirmações

enfáticas de Lacan como “o sujeito do inconsciente é o sujeito da ciência moderna”

ou “a psicanálise só é possível após a mesma ruptura que inaugura a ciência

moderna”. Não estou apontando isso, aliás, para argumentar que a psicanálise é,

na verdade, muito menos centrada no sexual como costumam assumir. Também

não faço para promover a “versão culturalizada” da psicanálise. Em vez disso, o

sexual na psicanálise é algo muito diferente de um jogo combinatório de criação de

sentido – é precisamente algo que perturba a criação de sentido e a torna possível.

O que alguém necessita para ver e compreender, a princípio, é onde a divisão Real

acontece. A psicanálise é ao mesmo tempo coextensiva com essa dessexualização,

no sentido de operar uma ruptura entre ontologia e ciência enquanto uma técnica

sexual ou uma combinação sexual, e absolutamente intransigente quando se trata

de falar sobre um Real irredutível (sem substância). Não há contradição aqui.

Como não há contradição na postura “revisionista” junguiana, que articula uma

culturalização completa do sexual (sua transcrição em arquétipos culturais) ao

mesmo tempo que mantém uma relutância em renunciar ao princípio da

combinatória ontológica (de dois princípios fundamentais). A lição e o imperativo

da psicanálise não é “vamos dedicar toda a nossa atenção para o (significado)

sexual como nosso horizonte final”; é ao invés disso disso, uma redução do sexo e

do sexual (que, de fato, sempre foram sobrecarregados de significados e

interpretações) ao ponto de sua inconsistência ontológica, que, como tal, é

irredutível.

A enfática alegação de Lacan sobre a psicanálise não ser uma nova ontologia –

uma ontologia sexual, por exemplo – não é algo que irei contestar. Mas a razão

para, no entanto, insistir em examinar o conceito psicanalítico de diferença sexual


no contexto da ontologia não é simplesmente reafirmar sua incompatibilidade ou

radical heterogeneidade nas circunstâncias desse “retorno” da ontologia. As

apostas são muito mais altas, e a relação da psicanálise com a filosofia (como

ontologia) permanece muito mais interessante e intricada. Talvez a melhor forma

de colocar isso seria dizer que a sua não-relação, implícita na afirmação de que a

psicanálise não é ontologia, é a mais íntima. Essa expressão irá, esperançosamente,

justificar-se no que se segue.

Um dos impasses conceituais ao enfatizar simplesmente que gênero é uma

construção inteiramente social ou cultural é que ele permanece dentro da

dicotomia natureza / cultura. Judith Butler percebeu isso muito bem, sendo o

porquê do seu projeto radicalizar essa teoria ao uní-la à teoria da

performatividade. Em oposição à expressividade, que indica a preexistência e

independência de algo que é expressado, a performatividade se refere à ações que

criam, por assim dizer, as essências que expressam. Nada aqui preexiste: práticas

sócio-simbólicas de diferentes discursos e seus antagonismos criam as próprias

essências, ou fenômenos, que regulam. O tempo e as dinâmicas de repetição que

essa criação requer abrem uma margem de liberdade (para possivelmente mudar

ou influenciar esse processo). O que diferencia esse conceito de performatividade

do clássico correspondente linguístico é precisamente o elemento do tempo: não é

que o gesto performativo cria uma nova realidade imediatamente no próprio ato

de performar (como no enunciado performativo “eu declaro esta sessão aberta”);

em vez disso, refere-se ao processo em que construções sócio-simbólicas, por meio

de sua repetição e reiteração, tornam-se natureza – “apenas natural”, é dito. O que

é referido enquanto natural é a sedimentação do discurso, e nessa visão, a dialética

entre natureza e cultura torna-se a dialética interna da cultura. Cultura tanto

produz quanto regula (o que é referido como) natureza. Não estamos mais lidando

com dois termos: a atividade sócio-simbólica e algo sobre o qual ela é realizada;

mas ao invés disso, estamos lidando com algo como uma dialética interna do Um (o
discursivo) que não apenas modela as coisas, mas também cria as coisas que ela

modela, o que abre uma certa profundidade de campo. A performatividade é,

portanto, uma espécie de onto-logia do discursivo, responsável tanto pelo logos

quanto pelo ser das coisas.

Em grande medida, a psicanálise lacaniana parece compatível com esse relato e é

frequentemente apresentada como tal. A primazia do significante e do campo do

Outro, a linguagem como constitutiva da realidade e do inconsciente (incluindo a

dialética do desejo), o aspecto criacionista do simbólico e sua dialética (com noções

como causalidade simbólica, eficiência simbólica, materialidade do significante)…

Apesar de todas essas alegações (incontestáveis), a posição de Lacan é

irredutivelmente diferente da ontologia performativa acima. De que maneira

exatamente? E qual é o status do Real que Lacan insiste quando fala de

sexualidade?

Não é simplesmente que Lacan tenha que levar em conta e dar lugar à outra parte

“vital” das noções psicanalíticas (como a libido, a pulsão, o corpo sexualizado), que

pode ser definida como “Real”, em oposição a pertencer ao simbólico. Esse tipo de

linguagem, e a perspectiva que ela implica, é muito enganadora, pois Lacan

também começa com o Um (não com dois, que ele tentaria compor e articular em

sua teoria). Ele começa com o Um do significante. Mas seu ponto é que, enquanto

este Um cria seu próprio espaço e seres que o povoam (o que corresponde

aproximadamente ao espaço de performatividade descrito acima), algo mais é

adicionado a ele. Pode-se dizer que esse algo é parasitário da produtividade

performativa, ou seja, não é produzido pelo gesto significante, mas junto e “em

cima” dele. É inseparável desse gesto, mas, diferentemente de como falamos de

criações/seres discursivos, ele não é criado por ele. Não é nem uma entidade

simbólica nem uma constituída pelo simbólico; pelo contrário, é colateral ao

simbólico. Além disso, não é um ser: é discernível apenas como um efeito

(disruptivo) dentro do campo simbólico, mas não é um efeito desse campo, um


efeito do significante. A emergência do significante não é redutível ou exaurida

pelo simbólico. O significamente não apenas produz uma nova realidade simbólica

(incluindo sua própria materialidade, causalidade e leis) como também produz ou

abre espaço para a dimensão que Lacan chama de Real. Isto é o que

irremediavelmente mancha o simbólico, estraga sua suposta pureza e explica o fato

de que o jogo simbólico da pura diferença é sempre um jogo com dados

carregados.

Este é o próprio espaço, ou dimensão, que sustenta os fenômenos “vitais”

anteriormente mencionados (a libido ou o gozo, o impulso, o corpo sexualizado) na

sua desarticulação com o simbólico [5]. De forma mais simples, ele também age

como a desarticulação simbólico. É aqui onde é situada a sexualidade da qual a

psicanálise fala. Para Lacan, a sexualidade inconsciente não é relacionada (como

para Jung) a algum resto arquetípico que permanece conosco após a

dessexualização (“desencantamento”) do mundo; é o novo que acompanha esse

desencantamento, o Real que é iluminado com isso. Não é nem os restos da

combinatória sexual nem algum aspecto do sexo que está inteiramente fora de

qualquer combinatória – é o que as operações significantes produzem além do que

produzem (no nível do ser e sua regulação).

Sexualidade (enquanto Real) não é algum ser que existe além do simbólico; ela

“existe” apenas como o encurvamento do espaço simbólico que ocorre por causa

do algo adicional produzido com o gesto significante. Isso e nada mais é como a

sexualidade é o Real. Não é que – através de sua experiência – a psicanálise

encontrou e estabeleceu a sexualidade como seu Real supremo, pois isso

significaria que a psicanálise colocaria a sexualidade, tomada como um fato

irredutível, no lugar conceitual do Real, concebido independentemente. Em outras

palavras, a sexualidade corresponderia ao que é mais Real. Mas o que está em jogo

é algo muito diferente: a partir de contradições inerentes à sexualidade – de seu

status ontológico paradoxal, que precisamente nos impede de tomá-la como


qualquer tipo de fato simples – a psicanálise chegou a articular seu próprio

conceito de Real como algo novo. O Real não se baseia na sexualidade; não é que

“a sexualidade é (o) Real” no sentido de que esta última define o status ontológico

da primeira. Ao contrário, as descobertas psicanalíticas sobre a natureza da

sexualidade (e de seu cúmplice, o inconsciente) levaram à descoberta e

conceituação de um espaço topológico singularmente curvo, que ele chamou de

Real.

O algo produzido pelo significante, além do que ele produz como seu campo, curva

ou magnetiza esse campo de uma determinada maneira. É responsável pelo fato de

que o campo simbólico, ou o campo do Outro, nunca é neutro (ou estruturado por

pura discrepância), mas conflituoso, assimétrico, “não todo”, montado por um

antagonismo fundamental. Em outras palavras, o antagonismo do campo

discursivo não se deve ao fato de que esse campo é sempre “composto” de

múltiplos elementos, ou múltiplos múltiplos, competindo entre si e não

propriamente unificados; refere-se ao próprio espaço em que esses múltiplos

diferentes existem. Da mesma forma que para Marx o “antagonismo de classe” não

é simplesmente o conflito entre diferentes classes, mas o próprio princípio da

constituição da sociedade de classes, o antagonismo como tal nunca existe

simplesmente entre partidos conflitantes; ele é o próprio princípio estruturante

desse conflito e dos elementos envolvidos nele.

O antagonismo conceituado pela psicanálise não está relacionado a nenhum duplo

original ou múltiplo original, mas ao fato de que um introduzido pelo significante é

sempre um “um mais algo” – é esse fator não atribuível que não é outro nem um

nem nada que cause a assimetria básica e divisão do próprio campo do Um. O

nome mais geral, e ao mesmo tempo preciso, lacaniano para esse “mais algo“ é o

gozo, definido por seu caráter de excesso. Uma pessoa está rachada pelo que

produz em cima do que produz – e é precisamente isso que incita Lacan a nomear

esse campo fraturado, ou “barrado”, do simbólico Um o Outro. O Outro não é o


Outro do Um; é o nome lacaniano para o “Um plus”, isto é, para aquele em que

este plus é incluído e para o qual, portanto, tem consequências consideráveis. A

propósito, também é por isso que o Outro referido por Lacan é tanto o Outro

simbólico (o tesouro dos significantes) como o Outro do gozo, da sexualidade. A

primeira e talvez mais notável consequência disso é que a sexualidade humana não

é sexual simplesmente por incluir seus órgãos sexuais (ou órgãos de reprodução).

Pelo contrário, o excesso (causado pela significação) do gozo é o que sexualiza a

própria atividade sexual, dotando-a de um excedente de investimento (pode-se

dizer também que ela sexualiza a atividade de reprodução). Esse ponto pode

parecer paradoxal, mas se pensarmos no que distingue a sexualidade humana de,

digamos, sexualidades animais ou vegetais, não é precisamente pelo fato da

sexualidade humana ser sexualizada no sentido forte da palavra (que também

poderia ser colocado em um slogan como “sexo é sexy”)? Nunca é “apenas sexo”.

Ou, talvez mais precisamente, quanto mais próximo chegamos de ser “apenas

sexo”, mais longe ficamos de qualquer espécie de “animalidade” (os animais não

praticam sexo recreativo). Esse redobramento constitutivo da sexualidade é o que

faz com que ela não apenas sempre se desloque em relação ao seu propósito

reprodutivo, mas também, e acima de tudo, em relação a si mesma. No momento

em que tentamos fornecer uma definição clara do que é atividade sexual, nos

metemos em apuros. Entramos em apuros porque a sexualidade humana é

dominada por esse paradoxo: quanto mais o sexo se afasta do movimento

copulativo “puro” (ou seja, quanto maior o leque de elementos que ele inclui em

sua atividade), mais “sexual” ele pode se tornar. A sexualidade se sexualiza

precisamente nesse intervalo constitutivo que a separa de si mesma.

Até aqui nós discutimos a questão do Real em relação à noção psicanalítica de

sexualidade (ou sexual) em seu peculiar status ontológico. Mas como a diferença

sexual entra nesse debate? Qual é a relação entre diferença sexual e sexualidade tal

qual? É acidental ou essencial? Qual vem primeiro? A sexualidade é algo que


ocorre porque há diferença sexual? A resposta de Freud é inequívoca e talvez

surpreendente. Em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), ele insiste

na inexistência original de qualquer germe de dois sexos (ou duas sexualidades) na

época pré-adolescente.

“A atividade auto-erótica das zonas erógenas é, no entanto, a mesma em ambos os

sexos e, devido a essa uniformidade, não há possibilidade de distinção entre os dois

sexos, como surge após a puberdade. De fato, se pudéssemos dar uma conotação

mais definida dos conceitos de “masculino” e “feminino”, seria até possível

sustentar que a libido é invariável e necessária à natureza masculina, seja nos

homens ou nas mulheres e independentemente de seu objeto ser um homem ou

uma mulher.” [6]

Em outras palavras, no nível da libido não há dois sexos. E se pudéssemos dizer

exatamente o que é “masculino” e “feminino”, nós o descreveríamos como

“masculino” – mas não somos precisamente capazes de fazer isso, como enfatiza

Freud na nota de rodapé anexada à passagem citada [7].

Assim, quando confrontada com a questão da diferença sexual, a primeira resposta

da psicanálise é: do ponto de vista estritamente analítico, há de fato apenas um

sexo ou sexualidade. Além disso, a sexualidade não é algo que brota da diferença

(entre os sexos); ela não é impulsionada por qualquer anseio pela nossa outra

metade perdida, mas é originalmente autopropulsora (e “autoerótica”). Freud

escreve: “O impulso sexual é, em primeira instância, independente de seu objeto;

nem é provável que sua origem seja devido às atrações do objeto.” [8]

Isso significa que a diferença sexual é apenas e puramente uma construção

simbólica? Aqui espera a outra surpresa (não relacionada à primeira, é claro) da

postura psicanalítica: a diferença sexual também não existe no simbólico, ou, mais

precisamente, não há descrição simbólica dessa diferença como sexual. “Na psique,
não há nada pelo qual o sujeito possa se situar como ser masculino ou feminino.”

[9]

Quer dizer, embora a produção de significado do que é ser um “homem” ou uma

“mulher” seja certamente simbólica – e massiva – não equivale a produzir

diferença sexual como significando diferença. Em outras palavras, a diferença

sexual é um tipo diferente de diferença; não segue a lógica diferencial. Como

Mladen Dolar coloca de maneira mais concisa:

“Há uma crítica generalizada por aí que aponta para as oposições binárias como o

locus da sexualidade imposta, sua degeneração, seu molde imposto, sua restrição

compulsória. Pela imposição do código binário de dois sexos, estamos sujeitos à

restrição social básica. Mas o problema talvez seja exatamente o oposto: a

diferença sexual coloca o problema do dois precisamente porque não pode ser

reduzido à oposição binária ou explicado em termos do número binário dois. Não é

uma diferença significante, de tal forma que define os elementos da estrutura. Não

deve ser descrita em termos de características opostas, ou como uma relação de

entidades dadas que preexistem a diferença. Pode-se dizer: os corpos podem ser

contados, os sexos não podem. O sexo apresenta um limite para a contagem de

corpos; corta-os de dentro em vez de agrupá-los sob títulos comuns.” [10]

E o sexo não funciona como uma pedra através da qual tropeço no significado

porque é considerado moralmente atrevido. É considerado moralmente atrevido

porque é um obstáculo ao significado. É por isso que a descriminalização moral e

legal da sexualidade não deve tomar o caminho de sua naturalização (“o que quer

que façamos sexualmente é apenas um comportamento natural”). Ao invés disso,

deveríamos partir da afirmação de que nada sobre sexualidade (humana) é

natural, muito menos a atividade sexual com o objetivo exclusivo de reprodução.

Não há “natureza sexual” do homem (e de nenhum “ser sexual”). O problema com

a sexualidade não é que ela é um remanescente [remainder] da natureza que


resiste a qualquer domesticação definitiva; antes, não há natureza aqui – tudo

começa com um excedente de significação.

Se voltarmos agora à questão do que isso implica em relação à ontologia em geral

e, mais especificamente, à ontologia performativa dos estudos de gênero

contemporâneos, devemos partir da seguinte implicação crucial: Lacan é levado a

estabelecer uma diferença entre ser e o Real. O Real não é um ser ou uma

substância, mas seu impasse. É inseparável de ser, mas não é ser. Pode-se dizer

que, para a psicanálise, não há ser independente da linguagem (ou discurso) – e é

por isso que ela parece compatível com as formas contemporâneas de

nominalismo. Todo ser é simbólico; é estar no Outro. Mas com um acréscimo

crucial, que poderia ser formulado da seguinte maneira: existe apenas o simbólico

– exceto que existe o Real. “Há” Real, mas este Real não é ser. No entanto, não é

simplesmente o exterior do ser; não é algo além de ser. O Real é – como eu disse

antes – a própria curvatura do espaço do ser. Ela existe apenas como a inerente

contradição do ser. É precisamente por isso que, para Lacan, o Real é o osso na

garganta de toda ontologia: para falar de “ser enquanto ser”, é preciso amputar

algo no ser que não é ser. Isso significa dizer que o Real é aquilo que a ontologia

tradicional teve que amputar para poder falar de “ser enquanto ser”. Nós só

chegamos ao ser enquanto ser subtraindo algo dele – e esse algo é precisamente

aquilo que, enquanto incluído no ser, impede que ele seja totalmente constituído

como ser. O Real, como algo adicional que magnetiza e curva o espaço (simbólico)

do ser, introduz nele outra dinâmica que infecta a dinâmica do simbólico,

tornando-o “não todo”.

Agora, uma maneira muito boa de se aproximar da relação entre a sexualidade

como tal (seu Real) e a diferença sexual é através de um trecho de uma palestra de

Joan Copjec, na qual ela fez a seguinte observação crucial:


“A categoria psicanalítica da diferença sexual foi a partir desta data [meados da

década de 1980] considerada suspeita e abandonada em grande parte em favor da

categoria castrada de gênero. Sim, castrada. Eu insisto nisso porque é

especificamente o sexo da diferença sexual que caiu quando esse termo foi

substituído por gênero. A teoria do gênero realizou um grande feito: removeu o

sexo do sexo. Pois enquanto os teóricos de gênero continuavam a falar de práticas

sexuais, eles deixavam de questionar o que é sexo ou sexualidade; Em suma, o sexo

não era mais o objeto de uma investigação ontológica e, ao invés disso, tornou-se o

que era para a linguagem comum: algum tipo de distinção vaga, mas basicamente

uma característica secundária (quando aplicada ao assunto), um qualificador

adicionado dentre outros. Ou, quando aplicado à um ato, algo um pouco atrevido”.

[11]

Eu gostaria de usar esta citação como pano de fundo contra o qual a seguinte tese

pode ressoar: é porque a diferença sexual está implicada na sexualidade que ela

falha ao se registrar como diferença simbólica. De fato, a psicanálise não tenta des-

essencializar a diferença sexual. O que a des-essencializa de maneira mais eficiente

(e no Real) é sua implicação na sexualidade como definido acima. Ou seja, como o

fora-de-ser do ser. E é isso que a psicanálise revela e insiste – em oposição às

diferenças de gênero, que são diferenças como qualquer outra, e que perdem o

ponto por terem muito êxito, caindo na armadilha de fornecer bases para a

consistência ontológica. Pode parecer paradoxal, mas diferenças como a forma-

matéria, o yin-yang e o ativo-passivo pertencem à mesma onto-logia que as

diferenças de “gênero”. Mesmo quando estes abandonam o princípio da

complementaridade e adotam a multiplicidade de gênero, isso não afeta de forma

alguma o status ontológico de entidades chamadas de gêneros. Dizem, de forma

enfática, que eles são ou existem. Isso “enfaticamente” parece aumentar com os

números: O Um é geralmente tímido ao suportar a existência do Dois, mas ao

passar para uma multitude [de gêneros], essa timidez desaparece, e sua existência é
afirmada com firmeza. Se a diferença sexual é considerada em termos de gênero,

ela se torna – ao menos em princípio – compatível com os mecanismos de sua

ontologização. Isso nos traz de volta ao ponto anterior, e ao qual podemos agora

acrescentar um ponto suplementar: a dessexualização da ontologia – não sendo

mais concebida como uma combinação de dois princípios, “masculino” e

“feminino” – coincide com o sexual aparecendo como o ponto Real/disruptivo do

ser. E amputar o sexual (como algo que não tem consequências para o nível

ontológico) abre novamente o caminho do simbolismo ontológico da diferença

sexual.

É por isso que, no caso de alguém remover “o sexo do sexo”, também será

removida a própria condição para que possamos trazer à luz o caráter singular e

problemático da diferença sexual. Não se elimina o problema, mas o meio de vê-lo

e eventualmente enfrentá-lo. [12]

O fato de que a diferença sexual não é uma diferença diferenciada – o que pode

explicar porque Lacan nunca usa o termo “diferença sexual” – torna claro o

porquê das famosas fórmulas lacanianas da sexuação não se diferenciarem, como

em qualquer senso comum: elas não implicam em uma diferença entre dois tipos

de ser, não havendo qualquer contradição (ou antagonismo) entre a posição

masculina e a posição feminina. Pelo contrário, a contradição ou o antagonismo é o

que ambas as posições têm em comum. É aquilo que elas compartilham, o próprio

elo que existe entre elas. É exatamente o ponto em que podemos falar sobre

“homens” e “mulheres” sob um mesmo título. De maneira sucinta, o indivisível

que os une, sua semelhança irredutível, não é o de ser, mas o da contradição ou da

falta-de-ser. Isto também é o que significa que “não há relação sexual”: não

significa, como na visão popular, que “os homens são de Marte e mulheres de

Vênus” e, como tal, nunca poderão formar um casal harmônico. Não é algo que

visa explicar a guerra entre os sexos, “a guerra das Rosas”, a alegada


incompatibilidade entre os sexos. Até porque essas explicações estão sempre

repletas de afirmações sobre o que é “feminino” e o que é “masculino” – algo de

que a psicanálise nega saber, como já vimos.

A afirmação psicanalítica é ao mesmo tempo muito mais modesta e radical: os

sexos não são dois de maneira significativa. A sexualidade não se divide em duas

partes; não constitui Um. Ela está presa entre “não mais um” e “ainda não dois (ou

mais)”; gira em torno do fato de que “o outro sexo não existe” (o que significa

dizer que a diferença não é ontologizável), mas há mais de um (o que significa,

também, “mais do que múltiplos uns”).

A psicanálise não é a ciência da sexualidade. Não nos diz o que é realmente o sexo;

nos diz que não há um “realmente” do sexo. Mas essa inexistência não é a mesma

que a inexistência do unicórnio. É uma inexistência no Real que, paradoxalmente,

deixa vestígios no Real. É um vazio que se registra no Real. É um nada, ou

negatividade, com consequências. O que nos leva à lógica implícita na seguinte

piada:

Um cara entra em um restaurante e diz ao garçom: “Café sem creme, por favor.”

O garçom responde: “Sinto muito, senhor, mas estamos sem creme. Poderia ser

sem leite?”. Sexualidade é aquele creme cujo não-ser não o reduz a um mero nada.

É um nada que anda por aí e cria problemas.

A lição fundamental da psicanálise é precisamente a da piada acima: se a

psicanálise não pode nos “servir” nada sem sexualidade, é porque não há

sexualidade que possa nos servir. E é precisamente esse “não há”, esse não-ser que,

no entanto, tem consequências reais que são perdidas na tradução de quando

passamos do sexo para o gênero.


Esse artigo foi originalmente apresentado durante a conferência “Um se divide em

Dois: Negatividade, Dialética e Clinâmen”, que ocorreu em Março de 2011 no Berlin

Institute for Cultural Inquiry. A versão escolhida para a tradução vem do jornal E-

Flux e pode ser consultada em em “E-flux“. (ZUPANČIČ, Alenka. Sexual difference

and ontology. E-flux Journal, v. 32, 2012).

Referências:

[1] Jacques Lacan, The Four Fundamental Concepts of Psychoanalysis, trans. Alan

Sheridan, ed. Jacques-Alan Miller (Harmondsworth: Penguin Books Ltd., 1987

[1979]), 151.

[2] Para citar alguns dos pensadores mais proeminentes neste campo: Gilles

Deleuze, por sua ontologia do virtual; Alain Badiou, por sua ontologia matemática;

Giorgio Agamben, por sua ontologia da potencialidade.

[3] Lacan e Freud são, na minha opinião, sinônimos de “psicanálise”.

[4] “[A psicanálise] procede do mesmo status que a própria Ciência. Ela está

envolvida na falta central através da qual o sujeito se experimenta enquanto

desejo. Não tem nada a esquecer [uma referência, sem dúvida, ao “esquecimento

do Ser” heideggeriano], pois não implica o reconhecimento de qualquer substância

sobre a qual ele alega para operar, até mesmo da sexualidade. ” Lacan, The Four

Fundamental Concepts of Psychoanalysis, 266.

[5] Slavoj Žižek está muito certo em substituir o termo “vital” pelo termo “morto-

vivo”: O que está em jogo aqui não é qualquer tipo de simples oposição entre vida

e morte, ou forças vitais e o automatismo “morto” do simbólico, mas é, em vez

disso, uma entidade paradoxal que atravessa essa divisão.

[6] Sigmund Freud, “Three Essays on the Theory of Sexuality,” in On Sexuality,

Vol. 7, The Pelican Freud Library (Harmondsworth: Penguin Books, 1977), p. 141.
[7] “É essencial entender claramente que os conceitos masculino e feminino, cujo

significado parece tão claro para as pessoas comuns, estão entre os mais confusos

que ocorrem na ciência.” Ibid, 83.

[8] É por isso que, “do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual exclusivo

dos homens para as mulheres também é um problema que precisa ser elucidado e

não é um fato autoevidente baseado em uma atração que é, em última análise, de

natureza química”. Ibid., p. 57.

[9] Lacan, The Four Fundamental Concepts of Psychoanalysis, p. 204.

[10] Mladen Dolar, “One Splits into Two,” in Die Figur der Zwei/The Figure of

Two, Das Magazin des Instituts für Theorie, No. 14/15 (December 2010) 88.

[11] A palestra, intitulada “O Pacto Sexual”, só foi publicada em espanhol até

agora, em uma coletânea de ensaios de Joan Copect intitulada El Compacto Sexual

(Paradiso editores e 17, Instituto de Estudios Criticos, 2011). A versão em inglês

aparecerá nesta primavera em uma edição especial de Angelaki sobre vitalismo e

diferença sexual.

[12] E, para ser dito de passagem, algo muito semelhante aconteceu no espaço

conceitual da teoria política de esquerda quando abandonou toda referência à

economia política e focou inteiramente no “cultural” (isto é, política de identidade),

ou “evental” (Badiou ), dimensão da emancipação. Žižek desenvolveu este

argumento de forma muito convincente no capítulo 3 de Living in the End Times

(London and New York: Verso, 2010).

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