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SUMÅRIO

I. Da pulsäo de morte a suas formas psfqui-


cas 11

II. A pulsäo anarquista 61

111. Outras experiencias-limite 75


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DA PULSÄO DE MORTE A SUAS


FORMAS PSfQUICAS

Foi-se o tempo em que se podia partir ao en-


contro do conde Dracula pelos Cårpatos e colher
junto aos indfgenas, na Transilvånia, alguma no-
deste ser solitårio, encastelado em sua
tfcia fresca
solidäo pela imortalidade e doador de uma eter-
na näo-morte. Hoje, as agencias de turismo ven-
dem percursos organizados através destes caste-
los e os camponeses do Danübio deixam exan-
gue esta representaqäo mental lendåria forjada
pela pulsäo de morte.
Deverei rastrear esta pulsäo no terreno da ex-
periéncia analftica. "Se é preciso caminhar e er-
rar, sera porque, exclufdos da verdade, estamos
condenados exclusäo que impede toda mora- Esta mulher deveria ter um nome bfblico. Se
da? Esta erråncia näo significaria mais uma no- fosse homem, eu a nomearia Abraäo a quem o
va relacäo com o 'verdadeiro'? Näo seria tam- Eterno impös, a tftulo de fidelidade total, acei-
bém por que este movimento nömade (onde se tar o sacrificio da Vida de seu filho. A provaqäo
inscreve a idéia de divisäo e separagäo) se afir- que ela atravessa tem uma outra ressonåncia bi-
ma näo como a eterna privacäo de uma estada, blica: o julgamento do rei Salomäo. Nesta pro-
mas como uma maneira autentica de residir, de vaqäo, na verdade como toda
uma residencia ue näo nos prende determi- nultaneamente o Lugar de duas_mulhergs.
nacao de um a uma "Vieram entäo duas mulheres prostitutas ao
rei e. se puseram perante ele. Disse uma delas:
realidadedesde sempre institufda, certa, perma-
nente?"l
O vivo é meu filho e teu filho é o morto!'.
"Aqui näo hä doentes, hä apenas vivos e
A outra respondeu: '— Näo, por certo! o morto
é teu filho e o meu filho o vivo'. E disse o rei:
mortos. Eis o que queria dizer o dirigente do pa- '— Dividi em duas partes o menino vivo e dai
vilhäo, o que diziam todos". "Um camarada es- metade a uma e metade outra'.
tava muito doente e acabava de ser autorizada a Mas a mulher, que tinha certeza que o seu fi-
sua remoqäo. Se partisse, com certeza morreria lho era o vivo (sentia-o em suas entranhås), fa-
durante o trajeto. O dirigente do pavilhäo riu e lou ao rei: '— Ah! senhor meu, dai-lhe o menino
repetiu: 'Voces entäo näo sabem porque estäo vivo e de modo algum o mateis'. Porém a outra
aqui?' E acentuando cada palavra, 'É preciso que dizia: '— Nem teu, nem meu seja; dividi-o antes'.
saibam que estäo aqui para morrer E Salomäo entregou a crianqa viva a esta mulher
A narrativa clinica é um desvio, uma trajet6- que podia escolher renunciar a ela para mante-
ria obliqua. Um
levantamento geomorf016gico la viva — sem " (Primeiro Livro dos Reis,
ela.'

näo restitui uma paisagem. X


historia clinica so Ill, 22-28; I V, 1-2). Toda mäe, inconscientemen-
te, faz, de uma formaou de outra, esta escolha.
terå aqui fungäo de referencia.
Os pais de minha paciente escolheram-lhe um
I. Maurice Blanchot, "L'expérience-limite", in L 'entretien infini, nome grego, destinando a filha SophiaÄ sabede-
N.R.F., pp. 185-186. ria e razäo, traqos que na Vida deles em comum
2. Robert Antelme, L 'espece bumaine, coll. Tel. Paris, Gallimard,
p. 21.
nao eranfdominantes.

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com um marido volüvel, cujos amores o afasta-
A mäe de Sophia era de familia cat61ica, sem vam freqüentemente do seio familiar. Este, que
fénem pråtica religiosa. E seu pai havia deixado aos olhos da mäe so era pai no registro civil e
como resfduos d+ua amnésia infantil, em algum diante da sociedade, para a filha era, felizmente,
lugar da Europa Central, sgras rarzesjudaicas, seu um homem encantador que, gracas ou apesar da
patrimönio e tudco que-elehaviaapagado de sua
leviandade de caräter, possibilitava seu acesso,
primeira infåncia, para tornar-seo_costumeiro ci- através das räpidas passagens pelo domicflio fa-
dadäo frances. A atitude de Sophia foi prudente miliar, a uma dimensäo festiva da Vida, necesså-
ao reatar o fio rompidoda hjstöriapaterna, atra- ria para que crescesse e investisse o porvir. Além
vés da escolha de um marido que lhe outorgou disso, ela havia criado uma Vida e um c.aråter in-
um sobrenome condizenteconvo dosav6s pa- dependentes capazes de proteger este gosto de
ternos. Estes haviam conservado, pela cultura e viver, seus prazeres e sua intimidade da latente
sobrenome, vestfgios de sua longfnqua migracäo. Cmelancolia materna)e da'édugäo discreta de um
Na época, Sophia näo tinha consciéncia nftida dis- pai eclfptlco Seus contatos com as pessoas
so, mas com essa escolha havia tentado exorci- reveS ram-se de uma serenidade afetuosa,
zar, em parte, os efeitos da ne •gencia de umpai resguardando-a tanto da familiaridade excessiva
täo charmoso quanto indiferente a s us ascenden- como da impetuosidade emocional.
tes e descendentes. Construiu seu ideal deyida, comonuitasmo-
Mas a histöriäde uma Vida näo provém apenas gas, por oposiqäo ao modelo materno. Ela se ima-
do sobrenome de um pai e do destino que este lhe ginava conquistadora, ativa, amante, amada e con-
atribui. Nem a escolha amorosa de Sophia, nem seguia se-lo. Quando veio me ver tinha cinqüenta
uma anälise terminada alguns anos antes consegui- anos, a maturidade atraente de uma mulher de bem
ram evitar o acontecimento tragico que fez com com a Vida. Transmitia um amålgama de reserva
que ela retomasse o trabalho analftico comigo. e plenitude. Estava casada hå muito tempo com um
Sophia é filha finica de uma mäe solitåria, pou- homem que a fez compartilhar os valores negligen-
co preocupada com seu proprio destino e dedi- ciados por seu pai, uma militancia religiosa, uma
cada inteiramente educaqäo da filha, em uma tradiGäo de Vida familiar, valores morais de res-
atmosfera de solicitude austera. ponsabilidade individual e social, e o desejo e a ale-
Esta mulher havia exclufdo de sua Vida toda gria comuns dos filhos que tiveram juntos.
frivolidade e reduzido ao minimo a co-habitaqäo
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Seu gosto pelos sentimentos moderados a ha- tretanto, nada tinhad dflico e toda a familia
via conduzido escolha de_um homem s61ido, participava alegremente das brigas impetuosas
solidärio, um sentimenta taciturn , que expri- que contribufam ainda mais para a intimidade os
mia suas afeiqöes nos atos mais o que na pala- ;clu dois.
vra ou no gesto espontåneo. Este limite recipro- Esclareqo que Sophia é, dependendo do mo-
co, tacitamente estabelecido entre eles, foi trans- mento, uma mulher capaz de reconhecer seus
tornado pelo nascimento-do segundo de seus maus humores, represålias, c61eras e agressivida-
muitos filhosv o primeiro menino, David. Ela de. Mas quase nunca funciona na anulaqäo do mo-
amava esta crianqa tanto quanto as outras, mas vimento agressivo, nem no contra-investimento
de maneira diferente. Ele era o coracäo que fa- pelo amor. Näo esperou a experiéncn da trans-
Zia palpitar sua Vida. Por ere, abandonou as dis- ferencia para saber que a forga de toda ligacäo
tåncias, seu gosto pela moderaqäo, a preservagäo verdadeiramente viva véhidas contradicöes que
täo ciumenta de sua intimidade. Seu nascimento a habitam.
tornou caducas todas suas defesas, liberando-a Este lugar singular ocupado por David näo
dos distanciamentos f6bicos. David teve uma pri- criou uma relacäo eståtica, mas, ao contrårio, era
meira infåncia mais diffcil que seus outros filhos, enriquecida por todas as mudanqas provenien-
devido ao peso deste investimento materno. Ela tes da respectiva evolucäo de ambos. Apenas a
sabia ter algo a ver com isto. Sempre me dizia funcäo vital atribufda a David por Sophia perma-
que, se o mergulhava numa sensibilidade dema- neceu imutåvel, inalteråvel através desta evolu-
siado viva, complicando-lhe a tarefa de crescer, qäo da relacäo durante vinte anos. Sophia vive,
näo duvidava, no entanto, poder ajudä-lo a "se sem nenhuma consciencia, a convicqäo inabalå-
safar" disto. Ela podia lhe trazer sempre o apazi- vel que David garante para ela uma funcäo vital
guamento necessårio sem a culpabilidade e o me- primitiva: seu filho näo é sua razäo de viver. Ele

do de se parecer com sua mäe, que os epis6dios e o apego-que-cla-tem-pela,yida säosquivalentes


mais comuns da infåncia de seus outros filhos e e isto se revelarå, com toda forga, na anälrse co-
filhas lhe despertavam. Alimentavam um pelo ou-
migo. Através de sua Vida, David oculta a exis-
tro um amor incondicional, atribuindo-se reci- tencia de uma escolha sempre inconscientemente

procamente uma onipotencia benéfica absoluta. em jogo em to a experienciihümana, fora de to-


Eles se transmitiam um gosto pela Vida que, en-
da provaqäo particu ar onde esta possa se tornar

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mais ou menos consciente, a escolhg_ßfltre-.o
amor que setempela Vida e o desejo de estar investimento, preservando a conotaqäo prazer-
quite com ela. As razöes inconscientes peias quas desprazer, uma atividade fantasmätica, uma par-
elegeu este filho como objetoprivilegiado dos de- ticipaqäo das zonas er6genas, em suma, tudo que
sejos incestuosos de sua primeira infancla, como conhecemos e que oculta a possibilidade de re-
filho de seu pai, como objeto fålico essencial
conhecer a existencia deste investimento de " ri-
sua economia libidinal, eram relativamente aces- meiranecessidade" que s6sgreve a nas situagöes
sfveis. Eram mais dificeiödé captar seus investi- de extremo perigo. Este modo de investimento
mentos agressivos: o que se explica pela realida- e_primeira necessidade transparece, em sua
de em que estava submersa quando comeqamos crueza näo erotica, cada vez que as condigögs de
e que ainda näo relatei. Mas algo permanecia obs- Vida de um secbumano tornam-se excgpcional-
curo e central neste fragmento de anålise: o por- mente precärias. Estä sempre presente em certas
que, além dos investimentos inconscientes habi- anålises, mas nunca completamente exposto. O
tuais, deste filho ocupara para ela também uma
analista pode funcionar as vezes como um objeto

outra funcä eu Sö posso evocå-la em termos de


;
deste tipo, objeto material bruto, fora de qualquer
neces ligaqäo afetiva, fora de qualquer significåncia, ob-
ortador dos desejos inconscientes de jeto cuja materialidade desvendada como tal,
sua mäe, unciona além disso ara ela, como a mantém a morte diståncia. Mas este registro da
metåfora de um Jeto e necessidådé) no senti- necessidade estå sempre presente, ao mesmo tem-
po, a outros encadeamentos transferenciais e a
do quase fisi016gico o termo e na medida em
que se possa evocar o objeto de uma necessida- evocaqäo desta camada ge016gica da relacäo ana-
Iftica jä implica uma metaforizaqäo que encobre
de no universo humano e a satisfacäo que ele traz
sua aridez a-libidinal. Voltarei freqüentemente a
a uma funqäo vital, sem a conotaqäo habitualmen-
esta dimensäo da Vida psfquica onde o objeto tem
te indissociävel de prazer e erotizaqäo. Ora, esta
anålise confrontou-me com a possibilidade de um
uma valéncia mental de necessidade näo erotica.
Independente da natureza particular dos seus
tipo de investimento objetal qugfunciona como
investimentos, Sophia havia preenchido seu de-
uma necessidade- giccexcluindo toda ero-
sejo de maternidade. Perdera boa parte de seu
tizacao. outra forma de investimento do mes-
comportamento razoåvel, de sua frigidez afetiva
mo objeto se mantém e funciona como qualquer e sexual. Tivera outros encontros amorosos con-
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tinuando, porém, a amar seu marido. Elegeu-o
dos pelos medicamentos. Deve ainda enfrentar
para com ele compartilhar a perda de sua pru-
a perda das defesas imun016gicas, conseqüéncia
déncia interior; ele estä sempre presente, aman-
do tratamento, que o deixa merce da menor in-
te, fiel como uma rocha irremovfvel. Ele näo se
fecqäo.
constitui um objeto terapeutico, transformando- Minhafinalidade näo é a de relatar o desen-
se Sö em sua pr6pria direqäo. Sophia faz, entäo,
volvimento desta anälise, mas de reunir obser-
uma anälise que conta muito pafraaåÄ'1ede a coe- vagöes e reflexöesÄ•erca da acäo d'4pulsäo de
rencia de suas escolhas, ajusta-se aos limites da morte na Vida psfquica. A asäo de pros é unifi-
realidade, engaja-se numa Vida profissional on- cante, uma atividade dedfgacäo; a aeo decThaö
de consegueinvestirsuas mudanqas interiorgs. ætos?é desorganizadora, desagregadora. Näo
Trocou a seguranqa confortåvel de sua juventu- convém ocultä-la em uma apresentaqäo e desen-
de por uma espontaneidade mais viva, que näo volvimento ordenados. Trata-se de relancar a
a poupa, nem aos seus familiares, da expressäo questäo freudiana do funcionamento silencioso
direta de sentimentos violentos, como a cölera, das pulsöes de morte no inconsciente. O que a
por exemplo, que ela ignorava, ou a depressäo investigaqäo analftica conseguiu com as pulsöes
que sabia bloquear encasulando-se em si mesma. sexuais, nem sempre fez com as pulsöes de mor-
Tornou-se mais humana, dizem os seus, mais tee Enquanto as pulsöes sexuais tem um destino,
atraente, de mais diffcil convivéncia. Mas nenhu- uma hist6ria, uma evoluqäo cujas narrativas, ro-
ma de todas estas revolucöes interiores pöde mances, mitos e até teorias conhecemos, a via
isentä-la da maior provaqäo de sua Vida. analftica "fiel" a Freud deixou incultas as formas
Seu filho David, hoje com vinte anos, estä especfficas de trabalho psfquico das pulsöes de
com leucemia. Em condigöes 6timas, ele tem uma morte denegando a estas seu proprio modo de
c ance sobre quatro de sarar, isto no caso de seu figurabilidade e a lögica particular de seu funcio-
organismo suportar as sessöes de quimioterapia namento A partir destgppstulado do caräter näo
sucessivas, cuja freqüéncia dependerä da evolu- representåvel das pulsöes de morte separadas das
qäo da doenqa. Sabe-se apenas que este tratamen- pulsöes sexuais, surgiu a necessidade de um con-
to pode ser necessärio durante värios anos. Ca- ceito sobressalente: o das pulsöes destruidoras 'is
da vez que sai do hospital, fica fisicamente aca- quais se atribui os efeitos tangiveis, exteriorizi-
bado, calvo, esgotado com os vömitos provoca- veis das pulsöes de morte.

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Esperonostrar, no decorrer deste texto, que sessöes em que a doenqa é mencionada, o que
as pulsöes de morte possuem uma historia in- é raro. Esqueqo até seqüelas fisicas visfveis que
consciente, uma historia mental que näo é ape- o proprio aspecto do paciente poderia me lem-
brar. Por si so, geralmente o paciente näo asso-
nas a da agressividade; que ela se exerce no mun-
cia um contexto mental, hist6rico, ocasional, ao
do exterior ou se volta contra o sujeito em sua
Vida psfquica e fisica. Que esta hist6ria mental
aparecimento de sua doenqa, nem is suas etapas
evolutivas, nem mesmo antes da constituiqäo de
tem vårios destinos que näo säo_apenasgqueles
com finalidade mortffera e que certas evolucöes um laudo médico que torna-se em seguida res-
guardo opaco e encobridor. Um
f6bico näo es-
dypulsäwdemortesäo muito üteis_ayida.
pera que o interroguemos para evocar as circuns-
Duas séries de observaqöes visam tornar sen-
tåncias particulares em que apareceu seu sinto-
sfvel a atividade direta e especffica das pulsöes
de morte na Vida inconsciente.
ma e estas näo säo acidentais. Um doente atingi-
do por uma doenqa evolutiva grave, raramente
A primeira diz respeito aos casos em que pre- consultarå um analista. Mas se o fizer, vai falar
valece a expressäo "realista" exteriorizada da ati-
pouco da doenqa, por causa dela ou apesar dela.
vidade de Thanatos, ao menos num primeiro mo-
Geralmente, é o analista que irå encontrå-lo
mento, sob as formas de expressöes mentais. Re-
no hospital ou centros "especializados", e o dii-
parei que em algumas anälises, sobretudo de neu-
logo sera diferente. Mas se o doente vem ao ana-
r6ticos, näo tenho nenhuma dificuldade em me
lista. näo visa uma reconsgugaepsides_uado
brag dos episödios somåticos, mesmo que
$_4, cujas causas para ele pode ser
an6dinos — surgidos na hist6ria do paciente an-
dizermsem determinaqäo inconscjente_direta. A
es e durante a anålise. No entanto, recalco esta
reconstruqäo psi da histöria de uma doenqa or-
informacäo quando a anälise se processa sob um
gånica me parece o cruzamento hfbrido dos pres-
fundo de doepqa grave, anterior ou atual, com supostos teöricos psi e a maior ou menor boa
prognöstico de morte explicitado pelos médicos. vontade que um doente terä em dividir as opqöes
Fyqueqo literal e concretamente o nome da doen-
patentes ou latentes de seu interlocutor. Um pes-
ensuas alteraqöes no decorrer do tempo e mes-
quisador pode ser conduzido, por isto, a interpre-
mo seus sintomas. Algo que retenho é a localiza- tar a ausencia efetiva de conexöesdiretas entre
Gäo no corpo, 6rgäo ou funcöes atingidas, mas a histöria da doenqagayida inconsciente do su-
muito pouco e apenas fugidiamente em algumas
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ieito como uma falha no funcionamento psfqui- tos, configuracöes favoräveis, receptåculos capa-
co do doente, ao Invésde questionar todas as im- zes de acolher seu impulso constante. Minha ma-
pl!caqöes de seu modelo te6rico e suas eventuais neira de levarem conta a doenqa é estar engaja-
lacunas concernindo concepqäo da pulsäode dcmentalmente — mas sem exp iClta- o em
morte. nunca recusar uma sessäo de emergéncia, quais-
Arriscando escandalizar os analistas médicos, quer que sejam as razöes, mesmo que pareqa ou
considero minha ignoråncia médica como uma que eu possa prever que seja uma histerizacäo
vantagem terapeutica, porque ela facilita este es- passageira de um sintoma com ou sem relacäo
quecimento e preserva a autonomia respectiva com a tal doenca. Devo acrescentar que estes pa-
das competencias: médica e analftica. Penso que cientes nunca abusam do telefone nem de uma
minhas tendéncias amnésicas e o colocar entie correspondéncia invasiva, nem de uma consulta
parenteses a oenqa (näo na realldade, mas na de emergencia, ainda que possam recorrer a isso
anälise) säo uma condicäo necessaria do traba- de um momento para outro, como se o risco de
lho analitico, onde a doenqa fisica virä se inscre- recafda fosse precedido — uma vez instaurada a
ver, por sua vez, se näo anteciparmos sua entra- transferencia — por uma angüstia que funciona
da em anälise através da pressuposiqäo de certas como um Sinal de alarme premonitörio.
relaqöes. É como se eu substitufsse a representaqäo mais
Outros analistas médicos que ouvi funciona- ou menos permanente da doenca pela represen-
vam numa amnésia parecida. Mas a formaqäo mé- taqäo continua de minha disponibilidade näo ape-
dica prescreve uma atencäo prioritäria ao prog- nas mentalL mas ffsica e temporalmente utilizä-
n6stico bi016gico, perturbando a aceitaqäo des- Vel.pelo outro. Ora, a maior parte das anälises
te "esquecimento" necessärio, o que impede a näo decorre sobre fundo de disponibilidade tem-
exigenciado trabalho analitico. poral incondicional do analista. Esta disponibi-
Näo atribuo ao funcionamento da pulsäo de Iidade tornaria a pröpria anålise impraticävel.
morte o poder de criar diretamente uma doen- Näo atribuo disponibilidade fisica nenhuma
ca. Atribuo-lhe, sim, uma apetencia como qual- virtude terapeutica. Este dispositivo instaurado
quer pulsäo por tudo que favorece sua descarga no protocolo analitico permite a retomada, na
direta. Esta apetencia a conduzirä a pontos com- anålise, de um componente da problematica des-

placentes onde encontrarå objetos, acontecimen- tes sujeitos que vivem em um estado de proxi-

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importantes, mas que nada tem a ver com o que
midade particular com suas emoqöes pulsionais,
se passa em seu corpo. O que fazer desta veemen-
ditas de morte. Como mencionei no caso de So-
cia fisica quando näo é indicada através das idéias
phia, hä uma propensäo a acrescentar ao regis-
tumultuosas que me transmite? Se o questiono so-
tro da valencia libidinal de um objeto, o registro
que pertence ao funcionamento do objeto de ne- bre o que se passa em seu corpo, espanta-se com
minha indiferenca por sua fala. Se intervenho
cessidade, o que pode provocar deslizamentos,
apenas no que ele diz, firo-o na eloqüéncia de sua
equivalencias, substituiqöes e entrecruzamentos.
agitaqäo ffsica. Como amparar a disjuncäo apa-
É preciso que o analista näo exclua do qua-
rente quando se é reeenviado da esfera escolhi-
dro da experiencia analftica esta dimensäo par-
ticular da Vida psfquica na qual uma valencia li-
da negligenciada, sempre renovando uma frus-
traqäo aguda?
bidinal é momentaneamente eclipsadipor uma
Fico presa na imposiqäo de um pedido duplo
valencia bruta, sob a forma de uma dimensäo
e contrariado. No momento em que a disjuncäo
"material".
deixa de funcionar, o corpo de afobar-se e a fala
Darei um exemplo banal que empresto da nar- de afastar-se do corpo, o paciente descobre-se li-
rativa de um paciente e que permaneceu muito
vre de mim, livre de näo amar, livre de näo ser
tempo obscuro. O paciente acamado deseja de- amado, sem morrerpor isto. A atividade disjun
sesperadamente que lhe ofereqam uma xfcara de tora da pulsäo de morte liberou momentaneamen-
chi. Esta torna-se, ao mesmo tempo, testemunho te o que o encarcera em uma obrigaqäo de amore-
de afeiqäo — assisténciaffsica— e, mais acen-
A xfcara de chi pedida com tanta veemencia, Ofe-
tuadamente, materializada pela beberagem. A Ofe- recida com toda ternura, é recusada como uma
renda do chi como Sinal de ternura pode levan- ofensa. Ä sede que ele demonstra em sair da soli-
tar um conflito inesperado, incompreensfvel se däo de sua luta mortal, responde uma oferenda
näo captarmos o protesto doloroso contra o que de amor que amordaqa e ofende sua miséria.
neste gesto de afeiqäo pode estar ocultando a di- A amnésia parcial da doenqa centra a atenqäo
mensäo da pobreza fisica, o apelo vital pelo re- dada ao trabalho da pulsäo de morte sobre o ma-
conhecimento de uma carencia mortal. As vezes, terial das sessöes; a forga pulsional na transferen-
instaura-se entre este paciente e eu, um equivo- cia e elaboraqäo de representantes psfquicos
co anålogo. Seu corpo estala, enerva-se, afoba- volta-se menos ao relance de processos organi-
se. Enquanto isso, ele me fala de coisas muito
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t-r/Ø

cos. Em termos econömicos, o esquecimento mo- is outras sem ligacäo, despropositadas, imprevi-
difica a repartiqäo dos investimentos respectivos sfveis, inevitäveis, cömicas quando sua sucessäo
da realidade mental e da realidade extra-psfquica. atinge um certo limiar. É a resistencia inerte e
Se insisto sobre a observaqäo e a observancia des- idiota dos objetos inanimados, o copo inquebrä-
ete compromisso amnésico é porque ele é um vel que explode no fundo do armärio de uma sa-
exemplo tangfvel de uma forma de trabalho pro- la onde ninguém entrou, a cortina que se des-
priamente psfquica da pulsäo de morte, que näo prende sem um sopro de vento, o re16gio que
se acompanha nem de destruiqäo, nem de efei- apesar de consertado sempre desanda...
tos mortfferos. O
acontecimento "realista" da Habituamo-nos a näo reparar em toda esta ativi-
doenca consome uma certa quantidade pulsional, dade do mundo inanimado, a deixar por conta
do acaso ou de uma sensibilidade particularmente
ao mesmo tempo que fornece uma figura pron-
persecut6ria, por näo admitir seu determinismo
ta, emprestada realidade exterior e autoriza a
inconsciente, por ele näo funcionar sob o mo-
ficqäo de uma atividade pulsional sem figuraqäo
delo do determinismo inconsciente conhééido,
pr6pria. O esquecimento e um exemplo in vivo
(ido desejo. As superstiqöes, os exorcismos, os
a contribuiqäo da pulsäo de morte ao recalque.
rituais mägicos coletivos respondem a uma intui-
enhuma decisäo consciente me permitiria es- Gäo mais acertada quanto as origens destes acon-
quecer realmente a urgencia fisica. Sö a mobili- tecimentos cotidianos.
zaqäo de processos inconscientes pode faze-10. Lembram-se da insistencia de Wolfson ao fa-
Uma segunda série de notacöes ilustra a pos- lar do timbre da voz de sua mäe? Seria preciso
sibilidade do trabalho psfquico de Thanatos, sem ser esquizo para reconhecer que um timbre de
observacöes tem igual-
efeitos mortfferos. Estas voz pode ser portador de uma violencia assassi-
mente uma incidencia técnica. Toda psicopato- na anönima? A emanaqäo persistente de um mau
logia da Vida cotidian svendå-a atividade in- cheiro näo é forgosamente uma alucinaqäo olfa-
tiva, nem uma fixaqäo na fase anal. A lufada de
cessante pulsäodeanorte,ma sua insipidez,
sempathos, nem tragédia. É o cansaco brutalque odor putrefato pode ser o produto consciente de
nos abate, sem causa imediata e mortal como o um representante inconsciente da pulsäo de mor-
tédio que nos apanha em meio a uma noitada eu- te. A publicidade de aeross6is para apartamen-

f6rica. É a acumulacäo, certos dias, de uma série


tos näo manipula representaqöes de decomposi-

de pequenas catåstrofes que encadeiam-se umas Gäo corporal para vender a aqäo regenera-

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dora do pinho marftimo? Estes incidentes coti-
dianos menores näo entram nos esquemas cläs-
As pulsöes de morte näo vem, pois, acompa-
nhadas por um cortejo de acontecimentos tragi-
sicos de auto ou hetero-agressividade, de auto ou
cos. A prova consiste em que a maioria das pes-
heterodestruiqäo por onde se cinge habitualmen-
soas convivemcomelasdurante toda a Vida sem
te as pulsöes de morte. Sua atividade circula sem
ao menosxeconhece-las em-funcionamento.
cessar sobre a cena psfquica e sobre a cena do Mas quando um homem ou uma mulher vern
mundo. E esta circulacäo näo fornece necessa- ao analista, testemunhando um sofrimento ou as
riamente os caminhos de uma relacäo entre um voltas com um temätica particular da morte em
sujeito e um outro. O
modelo da relaqäo de ob- sua Vida, quanto maior for a urgencia, menos de-
jeto construfdo para dar conta das organizaqöes vemos nos precipitan Neste momento, a cena de
psfquicas de origem sexual é ultrapassado pelo caca pulsäo de morte jä esti montada e freqüen-
modo de funcionamento e as formas resultantes temente täo carregada, que por contaminacäo o
das pulsöes de morte. Quanto mais a mitologia analista pode ser atingido, o que incorre num pe-
humana é antiga, pré-cientffica, menos ela igno- rigo maiorpara o.pacient
ra o caräter impessoal e anobjetal destas forma- Uma das idéias-chave da série e representa'
Göes. Dos espfritos malfeitores aos deuses da mor- Wes mentaiSda&bü1Säo.denor e é a de s6 poder
te,dos fantasmas aos vampiros, as representaqöes .10 eståbelecer um Iago duradouro sob o signo de

figuradas destas pulsöes encontraram seu lugar


uma ruptura iminente. É preciso, pois, criar uma
situaqäo que näo exija do sujeito o abandono des-
nos mitos, nas religiöes, nas superstiföes, nas ma-
ta idéia enquanto esta lhe for necessåria; se o pri-
Bias, nas bruxarias, nos
varmos desta idéia recorrente so lhe restarå Pö-
horror. as, e no pensamento analftico?3
la em
prätica e desaparecer.

3. J. Favret Saada, Les mots, la mort, les sorts, Gallimard. A bruxa-


Comeqando a anålise, ele poderå também
laps simb61icos capazes de acompanhar a circulacäo da
ria estabelece
expor-se a umacidente, a uma doenqa. co- Um
pulsäo de morte onde as referencias psicanalfticas fracassam. A autora meco de anålise, sem precauqäo nem
cuidado,
mostra como sua pesquisa a possuiu chegando a prejudica-la e a conduzi-la pode desencadear seis meses de hospitalizaqäo
por sua vez a uma curandeira. O circuito da bruxaria é mais adequado
para captar o caråter de propagaqäo impessoal de destino (representante
por uma tuberculose, por exemplo, sem nenhum
de uma producäo da pulsäo de morte) que a psicanålise quando se trata
antecedente médico. Pode ainda provocar uma
de justificar as formas de Vida da dita pulsäo. série de amolaqöes no ambiente pr6ximo, cujas

30 31
relacöes com o paciente de repente se desequili- a tonalidadedominante da Vida destes pacientes
bram, ou mobilizar um oceano de angüstia em re-
e a natureza dos fenömenos sobre os quais me
laqäo ao qual as interpretaqöes precärias que pu- baseio para atribuir-lhes na economia de sua vi-
dermos fornecer no comeqo seriam uma protecäo
da psfquica uma predominåncia da pulsäo de
muito frägil. Deixo, igualmente ao paciente, o cui-
morte. Suas vidas lembram estas regiöes da terra
dado de fixar o ritmo das sessöes, o intervalo en-
que interessam aos ge610gos. Estas regiöes apre-
tre elas e toda liberdade de mudanqa. Para a maio-
ria das pessoas este tipo de acordo seria muito in-
sentam perturbacöes telüricas, deslocamentos,
transformaqöes ge016gicas, desabamentos. O an-
quietante, ou interpretado como um descaso. Mas
damento da Vida destes destinos desordenados
para estes paciences quetém contasaajustarcom
traza marca yiya dos movimentos de Thanatos.
a morte, este ritmo por eles determinado consti-
Estas pessoas näo possuem estes antolhos ele-
tui uma garantra de seguranca/Sustentar uma po-
Sicäo analftica sem querer dominä-la inteiramen-
mentares que permitem aos mortais comuns ig-
norar que cada dia pode se apostar na cara ou
te é uma exigéncia para qualquer anålise. Esta exi-
na coroa, na Vida e na morte. Suas vidas säo pon-
gencia encontra uma intuiqäo excepcional por par-
te do analisando.Qualquer modo de apropriaqäo tuadas por mudanqas de identidade, de cultura,
variaqöes extremas de status socio-econömico,
e poder, mesmo e sobretudo quando repleto de
boas intenqöes, deve ser radicalmente eliminado como se eles dispusessem de muitas vidas, mar-
das preocupaqöes do analista.
cadas por rupturas, lances teatrais, encontros ful-
Encontra-se nisto, como na incidéncia técni-
minantes e determinantes, com um apetite sem-
ca das consultas de emergencia, a mesma dimen- pre renovado por situaqöes dramåticas e trauma-
ticas. Nenhuma Vida estä ilesa de mudanqas bru-
säo de disponibilidade material do analista, e seu
correlato: a ausencia de uma organizaqäo mate- tais, acontecimentos diffceis, lutos, separagöes.

rial "administrativa" fixa e paralisante. Um tergo da populacäo mundial vive atualmen-


Cada paciente encontra, em um tempo mais te em outros pafses que näo os de origem, mu-
ou menos räpido, o ritmo que lhe convém. De- dou de Ifngua e de cultura. Os acontecimentos
pois de um periodo variävel as sessöes adquirem näo denotam tanto esta apetencia particular por
ritmo regular, o que näo exclui a interrupcäo ul- tudo que assinala e lembra a natureza mortal da
terior da anålise, quase infalfvel, mas possibilita sempre suspensa. O que
Vida, a sua interrupqäo
uma retomada. Seria ainda necessärio precisar marca Thanatos é a carga afetiva ue in uz ou

32 33
"O nomadismo responde a uma relacäo que
acompanha o gosto pela mudanqa, pela erråncia, a posse näo contenta". Estas duas citaqöes, ex-
pela marginalidadé•, é o valor da luta que estas
trafdas do texto maior de Blanchot, A experién-
mudanqas tem contra organizaqöes de Vida apri- cia-limite, mostram que se os analistas negligen-
ciam as formas vivas da pulsäo de morte, outros,
É preciso acrescentar que estas pessoas tem por outras via$, reconhecem sua existencia.
uma espécie de faro para catåstrofes, mfnimas ou Uma outra fonte de dificuldade de viver, para
importantes; entregam-se a elas ou as criam. Em
estes que chamei@redutiveis, é o componente per-
suma, aconteqa ou näo algo realmente grave, sua
secutörio de suas relaqöes com os outros, o que
Vida soa sempre como uma aventura repleta¯de
aliås é amplamente justificado: a falta de conside-
riscos.
racäo pelas convenqöes sociais incomoda a ordem
Mas ao abrigo desta visäo quase épica de seu
destino, desfilam um sentimento de desdém, uma estabelecida que deles se vinga.O gosto pelas idéias
solidäo que näo pode nem ser dividida, nem alivia- e causas, que näo estäo na moda, inquieta e mobi-
liza as formas de censura: social, intelectual, mun-
da, um desencantamento ou forma de lucidez que
fazem com que eles näo encontrem nenhum re- dana. Mas eles säo fundamentalmente perturbados
pouso nos lagos estabelecidos, em suas atividades, por sua proximidade com a morte. Eles a conhe-
nas posses espirituais ou materiais de que nos cer- cem, a representam, lembram-lhe seu lugar ativo
camos para nos confortar da solidäo e da morte. .na Vida, näo somente na deles, mas também na d
"Se é preciso caminhar e errar, sera porque, cada um. Isto é de fato escandaloso. Eles falam de-
exclufdos da verdade, estamos condenados ex- mais a verdadevcomenta-se em torno deles. Säo
clusäo que impede toda morada? Esta erråncia %ucos. Eles dizem obstinadamente a verdade a
näo mais significaria uma nova relaqäo com o quem näo quer ouvir. Assim, com eles duas formas
'verdadeiro'? Näo seria também que este movi- de relaqöes contrastantes coexistem: é verdadeiro
mento nömade (onde se inscreve a idéia de divi- — é louco. Seu verbo, pois eles tem o dom da pa-
säo e separaqäo) se afirma näo como a eterna pri- lavra que impede e prejudica, atrai uma irritabili-
vaqäo de uma estada, mas como uma maneira au- dade contundente e mesquinha. Para preservar a
tentica de residir, de uma residéncia que näo nos cegueira necessåria, todos os golpes säo bons: mas
prende determinacäo de um lugar nem fixa- também todas as fascinagöes, pelas quais näo säo
qäo face a uma realidade desde sempre institui- perdoados.
da, certa, permanente?"
35
As mudancas, os transtornos, os entusiasmos, de prova, jornalistas enviados especiais a todos
as rupturas säo apenas formas de se agitar pro- osfronts do globo, poetas-aventureiros, merce-
cura de umapaziguamento interior, impossfvel, nårios que alugam suas vidas ao servico das cau-
pois fundamentalmente oposto ao que os inte- sas mais baixas ou se tornam defensores de cau-
ressa acimade tudo: verificar até que ponto eles sas idealistas que os destinaräo repressäo. Mo-
näo se apegam a ninguém e a nada, até que pon- ral ou amoral, o que estä em •o o é exorcizar a
to permanecem livres para abandonar tudo, es- morte arriscanC0@yi4a.
tragar tudo, ... dar tudo. Näo estäo preocupados Vida d%Elisée Recluy, de nome duplamen-
A
em proteger as razöes que os prendem Vida; o te predesti9ado, é uma ilystracäo comovente des-
que os ocupa é verificar se estäo livres de qual- te tipo de destino em sua fecundidade intelectual,
quer amarra. Por näo se exilarem de si mesmos, sua generosidade humanitaria e sua sede de des-
expatriam-se em todas suas vidas. "Hä uma ver- pojamento. O anarquismo e a exploracäo geogrä-
dade do exilio, hä uma vocaqäo do exilio, e se fica satisfazemsua vocacäo de proscrito, sua re-
ser judeu é estar destinado dispersäo, é que a cusa de conforto e posse. "Estou cansado de co-
dispersäo, assim como convoca a uma estada sem mer e beber, de dormir numa cama e de andar
lugar, assim como arruina toda relaqäo fixa do com o bolso bem cheio. Preciso morrer umpou-
poder com um individuo, um grupo ou um Es- co defome, dormir sobre os cascalhos Ele
tado, ela resgata também, face
exigencia do To- foi um dos grandes exploradores de sua época
do, uma outra exigencia e finalmente impede a e realizou uma obra excepcional, em que consta
tentacäo da Unidade-ldentidade". Sempre Blan- uma Nova Geografia Universal, em 19 volumes,
chot, em A experiéncia-limite. A verdadedo exf- de 800 a 900 päginas cada um, 1000 gravuras,
lio, a ruina de toda relacäo fixa nao säo privilé- 4000 mapas. Conheceu, por suas atividades po-
gio de "ser judeu' mas a marca fecunda da pul
,
Ifticas, värios anos de prisäo. Chegou a ser con-

säo de morte no destino humano. denado deportaqäo na Nova Caledönia, mas re-
Proponho chamar este tipo de destino parti- dimiram sua pena a dez anos de exflio. Conhe-
ceu migraqöes infligidas e escolheu suas pröprias
cular:edestino da experiéncia-limite.
Os analistas nunca tem ocasiäo de encontrar partidas. Obteve as honras da Sociedade de Geo-
grafia de Paris, mas teve de demitir-se da Univer-
e conhecer estes irredutfveis. Eles faräo sobretu-
do uma carreira mais ou menos perigosa, pilotos sidade de Bruxelas por razöes politicas antes mes-

36
mo de nela comeqar a exercer seu ensino. Foi um
homem livre, exposto a toda forma de risco. relaqöes com mais ninguém, por esta mulher ter
Podemos qualificar estes destinos, mais ex- a intuiqäo e a necessidade desta separaqäo, que
postos a riscos que outros, de organizaqöes pa- compreende sem compreender, ela decide
tolögicas? Afinal de contas, as pessoas que so sen- ajudar-se e ajudå-lo, retomando comigo um
tra-
tem gosto pela Vida ao arriscä-la säo também as balho analitico.
que realizam facanhas incompatfveis com a tra- Esta separaqäo instaurada pelo filho através da
jet6ria razoåvel das vidas que se poupam. doenqa, as condigöes de ausencia que ele impöe
Mas dentre eles, os que procuram um analis- sua mäe para sarar, que ele o diga textualmente
nestes termos, ou que ela interprete assim o que ele
ta säo os que, expondo sua Vida realidade da
lhe comunica, esta forma de ruptura-privaqäo-libe-
morte, näo conseguem ou näo conseguem mais
ragäo dela como condiqäo para a sobrevivencia de
exorcizar numa cena exterior o perigo inscrlto
David me é transmitida tal e qual e como razäo de
em sua realidade subjetiva. O perigo interior de
sua procura pela anälise.
morte torna-se maior do que o poder de fazer de-
Ela surpreende-se pensando coisas estranhas
le uma forma de vida. Nos riscos reais, a pulsäo
que fazem eco a esta separaqäo•. é preciso que ele
de morte pode encontrarum alimento suficien-
saiba o nome de sua doenga e seu progn6stico
temente substancial para realizar suas finalidades para poder sarar. Por que esta necessidade e es-
através de atalhos e formas de Vida inventadas
ta associaqäo entre o conhecimento da doenqa
sob seu signo- Mas o equilibrio é sempre preca- e sua cura lhe vern cabeqa com tal insistencia?
rio e pode pender para o lado de uma ameaqa de Por que ela tem tanto medo que ele a ignore? É
morte cada vez menos indireta. inverossfmel. Os médicos estäo atentos, respon-
Voltemos agora a Sophia. dem as questöes de David antes que as fava; nem
Por ter este filho querido— para afrontar sua os familiares, nem os enfermeiros procuram
doenqa e seu tratamento, para recuperar suas for- omiti-la. O proprio tratamento é täo diffcil que
gas, desde o internamento — proibido a mäe de Sö se justifica por sérias razöes. Sophia se pergun-
vir ve-lo, cortada qualquer comunicaqäo direta ta angustiada porque lhe parece täo vital que Da-
ou indireta com ela, por ter se privado dela para vid saiba o nome da doenqa que o atingiu e a que
se cuidar, por ao sair do hospital, näo querer pas- ponto estå em perigo. E ela tem razäo. A onipo-
sar nem uma noite em casa, sendo que näo rompe tencia reciproca urdida por seus laws de afeiqäo

38 39
excluiu a dimensäo da morte. A pulsäo de morte recusa, täo compreensfvel, de nomeå-la. Nesta re-
trabalha em cada um deles para revogar a denega- cusa se interpenetram a denegaqäo da morte real
qäo da morte, denegaqäo mortffera por excelén- e a denegaqäo das figuras mentais, das represen-
Cia. Ela utiliza, para isto, tudo que estiver ao seu al- taqöes psfquicas da pulsäo de morte. Aqui, näo
cance, inclusive a doenqa para que esta ocupe o lu- hå sintoma e entretanto hå um compromisso,
gar das representaqöes da mortalidade na econo- constitufdo como sintoma, entre uma defesa (via
mia psfquica. Manter a denegaqäo da ameaqa de denegaqäo) e a emergencia de produtos das re-
presentaqöes inconscientes sob a forma de pen-
morte Sö bode aumentar a pressäo internadapul-
säo de morte que, aprisionada, recorrerå as ünicas samentos associados num primeiro tempo
vias livres de que dispöe. Se os recursos psfquicos
doenqa, depois afastando-se do presente em di-
permanecerem barrados, utilizarä os exteriores. A reqäo a um passado cada vez mais longfnquo. A
atividade representativa barrada das mocöes pul-
düvida de Sophia quanto äpresumida ignoråncia
sionais de morte encontrou uma via de acesso
de seu filho é reflexo do combate entre a organi-
substitutiva, ancorando sua retomada no que res-
zaqäo dominante precedente, ou seja, a uniäo de
seus destinos onde um era a garantia de Vida do ou- I tou para se fazer representar: o corpo doente.•
tro, e a emergencia de uma nova organizaqäo, aber-
Podemos nos perguntar o que houve na pri-
meira infåncia de Sophia, para que a investiga-
ta pela irrupqäo da morte na realidade.
säo infantil acerca do animado e do inanimado,
e recrprocamente assegurada
que contém potencialmente aaquisicäo näo so-
näo é em si um modo de relaqäo excepcional. To-
mente da diferenqa dos sexos, mas também da
da ligagäo afetiva duråvel é uma forma de enrai-
diferenqa entre mortalidadeyiya e.imoctalidade
zamento na Vida, que mantém a morte afastada.
inanimada, tenha permanecido para Sophia
E näo se diz de um casal unido que a morte de
aquém da elaboraqäo possfvel das teorias infan-
um acarretarä a do outro? Näo observamos duas tis sobre a morte.
safdas, imprevisfveis? Ou a morte de um acarre-
Na historia do pequeno Hans, lembramo-nos
ta rapidamente a do outro, ou o sobrevivente
que a pesquisa da crianqa a respeito da diferenqa
"ressuscita" milagrosamente de seu trabalho de sexual passa por uma investigaqäo sobre a dife-
luto e comeqa uma Vida nova. renqa entre o animado e o inanimado. A diferen-
Através do desejo de que David saiba o no- ciaqäo entre o animado e o inanimado näo é
me de sua doenqa, Sophia luta contra sua pr6pria
41
40
somente uma etapa da diferenciaqäo sexual. É, nadamente sobre as provas em que se apoiavam
além disso, uma etapa da diferenciaqäo entre o para dizer de um morto que ele estava mesmo
inanimado que näo é nem mortal, nem imortal, morto e de como poderiam estar certos que ele
e o vivo que de imortal torna-se suscetfvel de näo retornaria Vida, expediram a questäo atra-
mortalidade. vés de uma historinha de crianqas. Esta histori-
A investigaqäo epistemofilica presta-se perfei- nha, segundo soube, teve sobre o pequeno adep-
tamente bem aos investimentos conjuntos de Eros to de Säo Tomé, que queria apoiar suas teorias
e Thanatos4. A pesquisa infantil concerne tanto em provas, um efeito apaziguador: uma av6 mui-
morte quanto ao destino dos mortos e, as ve- to crente fala de Nosso Senhor Jesus Cristo a seu
zes mais acentuadamente, diferenqa dos sexos. netinho. Conta-lhe a passagem da Crucificaqäo
A realidade de um nascimento näo é necessi- e do triunfo de sua Ressureigäo. O netinho reto-
ria para que uma crianqa procure respostas a uma ma afirmativamente sua av6, dizendo que näo de-
questäo primordial: de onde vém as crianqas? O veriam ter utilizado pregos para a crucificaqäo e
acontecimento real de uma morte também näo é sim parafusos. Eis um menino que näo queria se
necessårio para que ela comece produzir suas teo- deixar confundir por hist6rias de adultos em suas
rias sobre a morte através da questäo: para onde convicqöes sobre a irreversibilidade da morte.
väo os mortos? Esta procura passa despercebida — Na infåncia de Sophia ocorreu efetivamente
para näo dizer recalcada em bloco pelos adul- — um episödio particular relativo morte. Seus pais
tos, assim como a investigacäo sexual antes da des- se divorciaram quando ela era um bebe. Depois,
coberta de Freud. A busca ressurge sob uma forma a mäe ficou muito doente e logo em seguida os
aparentemente mais tolerävel jä que hå muito re- pais se casam novamente, desta vez oficialmen-
conhecida na 'crise' metafisica da adolescencia.
' ' te, para que o pai provesse a existencia material

Eis o exemplo de uma teoria infantil concernin- da mäe e da crianga. A razäo deste novo casamen-
do morte. Os pais de um garotinho de quatro to permanecia para Sophia um
fato inquestionå-
vel, que näo considerava fantasmåtico, até esta
anos, atrapalhados e exaustos, apos terem esgota-
do seu estoque de respostas culturais, cientfficas
anålise. No entanto, um
detalhe mostra sintoma-

religiosas, quando este lhes questionava obsti-


ticamente que o caråter de sua interpretagäo —
fatual — estava carregado de significaqöes incons-
4. Seminårio€ de P. Aulagnier. 1978-1979. cientes. Quando sua mäe morreu, ela so conser-

42 43
vou a certidäo do segundo casamento. Ora, era
libidinal e näo däo conta do que pertence esfera
na certidäo do primeiro casamento que estava
mental da pulsäo de morte. Entäo, por que ela ima-
inscrito seu nascimento. Perdendo a primeira cer-
gina a continuaqäo possfvel de sua Vida, sem des-
tidäo, ela suprime a inscriqäo da relacäo entre o
moronamento ap6s a morte de David, se ele näo
casamento de seus pais e seu nascimento. O lap-
viver o tempo suficiente para engendrar um filho?
so administrativo através do qual ela se omite da
De onde ela tira esta convicqäo que se o neto jå
organizacäo social é altamente sobredetermina- existisse a Vida de David seria poupada? Neste fan-
do por sua historia infantil e por sua pré-histöria, tasma, ela delega ao neto a funqäo de mante-la vi-
como mostrarä em seguida sua anålise. É, entre va, e seu filho David, liberado desta missäo, näo
outras coisas, a supressäo substitutiva de uma ou- precisariamaisyparadesembaracar-se dela, recor-
tra supressäo, na linhagem paterna, a supressäo rer a morte, assegurar pela doenqa seu direito
transmitida de geraqäo em geraqäo, por vårios mortalidade. Bem entendido, este encadeamento
sintomas que permaneceram obscuros. Esta per- ausente na equivalencianascimento do neto-cura
da de um documento administrativo, como po- do filho, que é o deslocamento da funqäo vital de
demos imaginar, origina tamanhas complicacöes um para o outro, foi uma aquisigäo do trabalho
em nossa sociedade burocrätica, é também a re- analftico. Este encadeamento näo es ota outros
presentaqäo de uma cena primitiva "apagada", •9 (conteüdoslatentes desta equivaléncia aliås sem-
materialmente suprimida e substitufda por um ca- pre ligados ao que ocupa completamente a anili-
samento sob o signo de uma doenqa mortal. A se de Sophia e que gira em torno do tributo men-
maneira pela qual Sophia insiste em conservar es- tal a pagar existencia da morte para que a Vida
ta perda como tal é notävel, pois as circunstån- aconteqa, e do trabalho necessårio para que este
cias que teriam podido corrigi-la näo lhe falta- tributo näo precise ser pago na realidade.
ram, ao menos no plano administrativo. Sophia também imagina que se seu filho mor-
Sophia tem também outras idéias supreenden- rer, ela deixarå de perder seus documentos de

tes, considerando como corpos estranhos os sin- identidade e toda papelada administrativa. Que
tomas ou os sonhos que resistem a todas inter- desproporqäo entre o resultado fatal de uma
pretaqöes que ela procura dar, com a ajuda de
doenqa de um lado, e a cura deste sintoma me-
modelos elaborados em sua anälise precedente.
nor de outro lado! Um outro sintoma sobreviveu
sua anålise precedente: uma verdadeira inva-
Estes modelos pertencem essencialmente esfera

45
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lidez para escrever, mesmo a carta m4is anödinaö da aquisiqäo mentalmente compartilhada do des-
tino mortal de todo organismo vivo.
mesmo a menos subjetivamente comprometedö-
ra. Aqui, também, ela imagina que a morte de seu
Nem a ausencia eventual do objeto de amor
filho a liberaria desta inibicäo. Imagmem a culpa- que alimenta o desejo de vrver, nem seu desapa-
bilidade desta mulher ao reconhecer estes pensa- recimento excluem a possibilidade de sobreviver
mentos; a coragem que lhe é necessaria para näo sua erda.JStkfé4erdRd@+aGåGdarelaqäo li-
agarrar-se ao modelo pré-fabricado de desejos de bl 10 mas deixa de se-lo quando se passa para
morte que teriam causado a doenga de seu filho, o registro da necessr ade, da necessidade fisio-
sua vontade de lucidez ao reconhecer o conteüdo logrca, quan o, aparur de um certQJimiar, a au-
sencia real do objeto da necessidadedeixa de ser
das associaqöes estranhas entre os sintomas fami-
compativelsom a sobrevivencia e torna-se amea-
liares e antigos e uma ameaqa de morte atual.
qa demortee em seguida causa de morte real.
A duraqäo de nosso contrato encontrava-se es-
O trabalho psfquico atinge entäo o limite, salvo
tabelecida antecipadamente por circunståncias
se puder levar em conta — e ele näo pode dei-
exteriores. Certamente, poderfamos ter evocado
a possibilidade de suspender este prazo por cau-
xar de faze-lo — esta realidade dos limites.
Cada vez que Thanatos ocupa o primeiropla-
sa, prioritariamente, da evoluqäo imprevisfvel da
no na cena psiqurca, o objeto libidinal se impöe co-
doenqa de David e para näo hipotecar adianta-
damente a duraqäo necessaria a nosso empreen-
mo um objeto de necessidade. Jä evoquei os cru-
zamentos reciprocos que sossobraram entre uma
dimento. Mas, assim como Sophia tinha a intui-
xfcara de chå— objeto de necessidade, e uma xi-
qäo que era vital para seu filho poder nomear sua
doenqa e portanto admitir a idéia de um fim pos-
cara de chå — gesto de carinho. Certas formas de
entrecruzamento, de substituiqäo ou de confusäo
sivel, pensei que sobretudo näo cabia a mim al-
entre o registro libidinal e o que toma forma deum
terar o prazo fixado para nossa relaqäo, como se registrO da necessidade, mas pertence esfera
do respeito destes limites materialmente fixados mental das pulsöes de morte, conduzem o sujeito,
e mentalmente sempre presentes, limites de tem- pelo entrecruzamento ou pela disjuncäo, a uma
po, limites separat6rios, limites presenqa, ins- resposta inadequada beira daagoniamental.
tauradores da possibilidade de ausencia, limites Enquanto as respostas permanecem ao nivel
fixados pela condigäo mortal do ser humano, de- libidinal, enquanto o apelo näo é reconhecido co-
pendesse a continuaqäo possfvel da Vida a partir
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mo pcrtcnccnte ao rcgistro da necessidadc que sua resisténcia ao esforqo, de sua provacäo por
conota a proximidadc de uma ameaqa de mortc, todos os tipos de excessos (excesso de privacäo,
enquanto tenta-se domar a csfera pulsional da de consumo). Säo as pulsöes de morte que dcJE
morte pela libido (o que Freud recomendava im g€ggyipcansayelmente os territ6rios dos fantas-
plicitamente), so se estå impelindo o sujeito a mas do corpo e seus limites bi016gicos, intrans-
uma exacerbaqäo do trabalho de morte, promessa ponfveis. É por esta razäo que o registro da ne-
redobrada que so pode ser interrompida se ces- cessidade e o que ele impöe como trabalho ao
sar a recusa da origem. aparelho psiquico pertence esfera de Thanatos.
A domesticaqäo libidinal das pulsöes de mor- Näo hå caso de anålise em que transpareqa a
te é um equivoco que explica o fato de que uma sem que se ou-
anålise possa agravar consideravelmente o sofri- qa falar de jejum, de anorexia, de bulimia, de fa-
mento de um analisando a ponto dele so encontrar qanhas fisicas procura dos limites de esgotamen-
sobrevivencia, ja comprometida na passagem pe- to, de ascese, de excesso, de fascinaqäo irrepreen-
10 divä, na interrupqäo desta, que trabalhava a con- sfvel por todas as maneiras de se
trasenso. É preciso sublinhar rapidamente que as diversos e medir os limites da resistencia fistca
pulsöes de morte, longe de surgirem do nada, sem be da reststencia mental através da provaqäo fisica.
nenhum apoio de funcöes vitais, estäo, ao contra- A 'crise metafisica" da adolescencia, que é um
'

rio, numa relacäo ainda mais estreita, mais ligada reaparecimento deformadÖdåQéorias e investi-
ao apoio corporal que as pulsöes libidinais. gagöes infantis sobre os limites entre a Vida e a mor-
As pulsöeslibidinais designam uma geografia te, é acompanhada destas proezas, destas prova-

dos prazeres erögenos do corpo. As pulsöesde Göes ffsicas e morais que, mais uma vez, testemu-
morte tem uma missäo corporal diferente: uma nham a atividade mental especifica das pulsöes de
funcäo de individuagäo. Elas ggem semalarde, in- morte. Quando a Vida fantasmätica inconscrente
visivel eincessantemente. esti totalmente saturada por um trabalho de ela-

Quando Thanatos aparece desprovido de seu boracäo em torno da morte, a morte em sua atua-
habitual ornamento libidinal, ele se revela ocu- Iidade fatual é inimaginävel. O que explica que cer-
tas pessoas vivam como se a morte real näo exis-
pado ininterruptamente com o percurso de ou-
tisse. Näo é uma falha de auto-conservaqäo. É uma
tros relevos geogråficos do corpo, aquele dos li-
miares e dos graus de toleråncia privacäo, de exacerbaqäo da atividade pulsionaL Ocupadas pe-

48 49
laurgencia de uma pressäo de morte, elas a en-
frentam de todos os modos, incluindo o de re- reintroduz na cena psfquica esta atividade men-
presentar o perigo como exterior a elas pröprias tal täo necessaria Vida quanto a atividade men-
para melhor afrontä-la. Mas este perigo exterio- tal libidinal, mesmo se o preco for o risco de mor-

rizado permanece preso a um


combate mental, te real. Inicialmente, esta medicäo dos limiares
uma elaboraqäo fantasmätica, onde a morte ex- de resistencia estä ao serviqo da autoconserva-
trapsfquica näo tem vez. Gäo e da individuaqäo. Quando esta acäo pulsio-
Porém, e ao mesmo tempo, a pulsäo de morte nal, este experimentar da permanéncia em Vida,
é o apelo de uma realidadebiolögica. O corpo näo através da exposiqäo ao perigo, torna-se para o
é apenas um fantasma; possui limites pr6prios, in- sujeito em certas condigöes uma necessidade vi-
transponiveis, que se furtam ascendéncia men- tal interior, quando Sö a prova de forga, a prova

tal. A maior parte das pessoas näo precisa verificar da morte pode assegurar que ele estä vivo pot
isto na repetiqäo. Se estes limites säo psiquicamen- sua pröpria vontade e näo pela vontade de um
te melhor alcanqados por eles que por outros, é
outro arbiträrio que pode também abandonä-lo,
que neles as pulsöes de morte lograram sua tarefa a fungäo vital de autoconservagäov necessaria-
mente repetida, pode pender em direcäo a efei-
melhor que para aqueles que devem sempre per-
tos mortiferos, contrårios sua intenqäo. A di-
correr novamente o tragado de seu corpo.
O recurso aos limites do corpo é, as vezes, o mensäo psfquica de sobrevivénciay pois é ela que
e visada e näo a morte, a urg cia nademons-
ünico que resta a um sujeito para se subtrair ao
tracäo de que se estå vivo, através do ato de expö-
excesso de ascendencia mental de um outro, a
la morte, tomou o lugar na dimensäo do res-
uma ascendéncia mental potencialmente mortf-
peito pela realidade bi016gica,Æstæurgenciac
fera, porque exclusiva de uma escolha ou de uma
titui o que chamo de a experiéncia-limite.
recusa da Vida apropriada por um outro que näo
Volto ao caso de Sophia. Sua hist6ria é leito
o sujeito.
de uma correnteza caprichosa. O
caminho atra-
A anorexia é um modo de evasäo da coerqäo vessa encruzilhadas onde convergem trechos de
mental dos pais. O alimento-amor torna a crian-
outras observaqöes. Segui-lo assim, entrecortado
qa farta de sua fome, doente dos recursos men-
por consideraqöes divergentes, onde se refinem
tais auto-conservadores de suas pulsöes de mor-
reflexöes ligadas a outras anälises, proporciona
te. O perigo reinstaurado pela anorexia, reanima,
um aspecto fragmentado. Seria pela pulsäo d
BE-DE s
50 o
51 BIBLIOTEC-A
MADRE Z
CRIST NA
morte trabalhar com a introducäo da desordem ameacasse faze-10. No hospital, queriam que
contra as unidades totalizantes e sintetizantes de transpusesse a barreira instaurada por seu filho.
Ela continuava a viver "normalmente". Talvez
Eros as quais me esforqo em acompanhar, eman-
seja em parte justificada a repressäo social que
cipados de ordem? Seja como for, parece-me que
se exerce sobre as representacöes insconscientes
um procedimento disciplinado seria contrario ao
assunto. Sophia e eu näo sabfamos, portanto, até
da morte, quando estas näo adquirem formas cul-
turais organizadas. Considerä-las é sempre arris-
onde poderfamos avanqar, mas pusemo-nos a ca-
minho com toda a vontade. cado. Aprisionä-las representa, para o individuo,
Se um trabalho propriamente analftico foi um risco ainda maior. E Sophia me pedla para
abrir o cerco para, como dizia, •epoder fazer al-
possfvel em um clima de urgencia, especffico des-
te tipo de anålise onde existe um perigo de Vida,
guma coisa com tudo isto"
A doenqa de seu filho removia a base de sua
foi gracas as qualidades particulares de Sophia.
existencia. O solo de sua Vida se furtava e se vul-
Seria preciso dizer o quanto a separaqäo exigida
canizava, como se um deserto desde hä muito
por seu filho constituiu para ela uma dor inten-
aplainado, mineralizado, abandonado, se puses-
sa? Mas ela nunca confundiu os momentos de fra-
se a engendrar uma rocha efusiva. Eu näo devia
queza mais graves com a idéia de que ela estives-
procurar Pör as coisas no lugar ou introduzir or-
se "doente". Näo se abrigou na criaqäo de uma
dem e sentido. A desordem e o abalo davam vi-
sintomatologia mental ou ffsica. Näo me pediu da a estas bases abandonadas.
para sanar sua dor. Näo procurou transformå-la
Ela näo esperava da anälise o desenlace mä-
em trabalho de luto antecipado para economizar gico para a ameaqa de morte inscrita na doenqa
a dor de esperar o veredito sempre em suspen- real de seu filho, mesmo que tenha chegado a es-
so. Se obtinha das sessöes um reconforto, näo era
perar que uma mudanqa pessoal, conseguida atra-
o que tinha vindo buscar prioritariamente. Que- vés deste trabalho, aumentasse as chances de cu-
ria de mim outra coisa, aquilo que é legitimo es- ra. Eu jä disse e repito por achar admirävel: ela
perar de um analista antes de todo trabalho de näo desenvolveu nenhum epis6dio "pat016gico"
interpretaqäo: o direito de ser escutado e que seus Continuava a enfrentar a Vida cotidiana e tornava-
pensamentos e sentimentos mais dificeis e social- se cada vez mais atenta e disponfvel a tudo o que
mente mais reprimidos fossem respeitados. A so- lhe ocorresse de sua proximidade subjetiva das
ciedade esperava que ela se descompusesse ou
53
52
temäticas da morte. O sadismo involuntärio
de O que surge em sua Vida existe sob outras formas
certos amigos, que transtornados por sua calma no destino de todo ser humano. A banalidade de
näo podiam deixar de lembrar a gravidade da sua neurose näo a poupou da necessidade de reto-
doenqa do filho, testemunha sua coragem. Pen- mar comigo os acidentes de percurso e as falhas do
so que ela pöde suportå-lo gracas aptidäo em trabalho psfquico inconsciente exigido pelas pul-
reconhecer para além de sua angüstia o caräter söes de morte. Esta mulher näo tinha nenhuma ra-
liberatörio, apaziguador da materializaqäo da zäo para deparar-se com esta tragédia. Ao mesmo
morte em sua Vida, via de abertura a seu acesso tempo, ela as tinha todas. Näo se deve procurar es-
ä mente. Gracas ao trabalho analftico, represen- tas razöes através de sua hist6ria libidinal, ainda
taqöes psfquicas substitufam a materialidade da que esta também esteja evidentemente envolvida.
Deve-se procurä-las na economia do trabalho das
morte e realizavam nela o que David tentava ins-
taurar de seu lado: um
desenlace para o estran-
0 pulsöes de morte que realizara ao atribuir a seu fi-
gulamento reciprocöde suas vidas sob o signo lho o papel de fiador de sua vida. As pulsöes de
do amor totalitärio. morte remobilizadas funcionam contra o assujei-
Poder-se-ia pensar que a anålise deste Iago no tamento recfproco de um pelo outro. Tudo acon-
registrodo incesto seria suficiente para servir a tecera como se ela houvesse aplicado risca a parte
esta liberaqäo. Parece que na anålise precedentg da teoria freudiana segundo a qual a domesticaqäo
da pulsäo de morte cabe libido. Seu amor por seu
ela se ocupara bastante disto, mas que este regis-
filho tinha por missäo cuidar, ligar, tornar "ino-
tro de interpretasäo edipiana, privilegiando ex-
fensivas" as pulsöes de morte.
clusivamente a dimensäo libidinaVignorando os
produtos da pulsäo de morte, contribuira sobre-
"A libido encontra nos seres vivos (plurice-
lulares)a pulsäo de morte ou de destruigäo que
tudo para impedir a liberacäo destas para o com-
neles é dominante e que tende a decompor este
puto de sua pr6pria histöria. Dou a esta obser-
ser celular... Cabe-lhe, portanto, a tarefa de tor-
vaqäo um valor exemplar, pois a temåtica da mor-
nar inofensiva esta pulsäo destruidora, e ela se
te na Vida dos dois protagonistas, Sophia e seu
desobriga orientando-se em direqäo aos objetos
filho, näo é atribufvel a uma organizagäo mental
do exterior. Ela, entäo, se chamaria pulsäo de des-
altamente patolögica. Se for absolutamente pre-
truiqäo, pulsäo de dominaqäo, vontade de poder"
ciso evocar uma referencia nosogråfica, conside-
(S. Freud, O problema econömico do masoquis-
ro esta senhora como uma "neurötica-normal".
55
54
mo, P.U.F., p. 291). "A esta uniäo das pulsöes Até agora tentei mostrar que as pulsöes de mor-
corresponderå, sob certas influencias, uma desu- te tem um destino mental distinto da inclinagäo di-
niäo destas. Ainda näo sabemos qual a importan- reta para a morte. Evoquei sua psicopatologia co-
cia dos elementos daspulsöes de morte e que es- tidiana e banal; mostrei que estas pulsöes traba-
capam a este dominio realizado pela ligaqäo aos Iham produzindo fronteiras entre o mundo dos
aportes libidinais". (ibid. p. 292) mortos e o dos vivos, fronteiras vacilantes e per-
Deve haver nesta visäo da domesticacäo li- meåveis aos mortos que continuam a tirar sua vi-
bidinal apaziguante alguma coisa que conten- da fantasmätica dos vivos, ou fronteiras fechadas
ta a todos e que permite transformar a pulsäo de que devolvem os mortos sua morte. Esboqei a
morte numa teoria de luxo. Näo conviria existencia de teorias infantis da morte e seus pro-
interrogar-se sobre o perigo potencial de uma do- dutos nos tormentos metafisicos na adolescencia.
mesticaqäo täo vitoriosa que privasse as pulsöes Procurei mostrar como um "esquecimento" ali-
de morte de suas pr6prias vias de elaboraqäo? mentado pelas pulsöes de morte contribui para o
O amor de Sophia por seu filho funciona exa- deslocamento da realidade exterior mortffera em
direqäo a uma realidade de representaqöes men-
tamente como uma mordaca contra as mocöes
tais. Ilustrei um aspecto da missäo autoconserva-
pulsionais de morte. Aliås, ele traz a marca dis-
dora das pulsöes de morte, mostrando que säo elas
to, mas näo da forma que se atribui em geral is
que inscrevem no aparelho psfquico os 'extratos'
' '

pulsöes de morte: desejos de morte inconscien- de um corpo definitivamente resistente aos fantas-
tes, 6dio, destrutividade, que teriam contribuf-
mas de desejo. Quis mostrar que a denegacäo de
do para a doenqa de seu filho. A morte näo per- sua atividade especifica impede que elas sejam re-
corre Sö o trajeto edipiano. A presenqa deste tra- conhecidas em suas formas psfquicas, particular-
go se revela na associacäo do duplo registro: o mente pelas resistencias do analista que quer tornå-
do objeto-necessidade e o do objeto-desejo. A las econömicas, e de uma domesticaqäo libidinal
presenqa desta dimensäo de objeto-necessidade, demasiadamente bem realizada, enfim de todos es-
cuja ausencia colocaria realmente alguém ä bei- tes fatores que Sö podem acuar as pulsöes de mor-
ra da morte, a promiscuidade necessidade-desejo, te a se satisfazerem através de formas de represen-
då a esta relacäo um peso, um caråter "obrigat6- taqöes näo psfquicas, onde a morte denegada de
rio", que assinalam a presenca da atividade da
seu estatuto inconsciente atua como materialida-
de bruta.
pulsäo de morte./

56 57
Falar de uma pulsäo de morte ünica, cega,
A historia de Sophia, ou mais exatamente es-
mortffera, ligada exclusivamente ao destino edi-
ta relaqäo singular com seu filho travou-se sob
pianamente datado ou antidatado das pulsöes li-
o signo de uma dupla denegaqäo. Denegaqäo da
morte potencialmente inscrita na Vida através da
bidinais, Sö funcionando numa direqäo —
con-
tra a Vida —, me parece trair a importancia des-
imortalidade reciprocamente assegurada da mäe
te conceito e a expansäo do funcionamento des-
e do filho, que näo deixava margem a uma repre- ta categoria pulsional. Aolado do que se enten-
sentaqäo de sua condigäo mortal. Denegaqäo das
de habitualmente por este termo, ou seja, um flu-
pulsöes de morte involuntariamente operada na
xo de energia livre realizando por descarga dire-
anålise precedente, ocupada essencialmente pela ta a supressäo de toda tensäo e instaurando as-
historia libidinal, redobrando a denegaqäo por sim, ao menos momentaneamente, uma suspen-
falta de consideraqäo pela atividade das pulsöes säo de Vida, ou sob a forma de energia ligada, rea-
de morte irredutiveis as relacöes libidinais. A rea- lizando por fluxos agressivos e auto-agressivos
Iidade concreta de uma ameaqa de morte veio re- sua missäo de destruiqäo, é preciso reconhecer
lanqar os processos de elaboraqäo psfquica das outras formas "demonfacas" que se afastam das
pulsöes de morte demasiadamente amarradas por vias banalizadas e contribuem Vida psfquica e
sua ligaqäo com seu filho. Para ilustrar as formas näo destruiqäo. A retomada na anålise de So-
mentais da pulsöes de morte, seria preferfvel es- phia, de seus pensamentos estranhos, frutos de
colher um caso totalmente desprovido da presen-
uma historia inconsciente da esfera "de morte" ,

qa de morte real. Mas enquanto analistas, n6s näo mostra um funcionamento de despreendimento,
de liberaqäo, de inclusäo da mortalidade na vi-
temos razäo para encontrar analisandos cuja es-
da, que também constituem condiqöes necessä-
fera pulsional jä näo tenha produzido formas di-
rias evoluqäo possfvel, e näo mais perigosamen-
ficilmente disfarcadas de satisfacöes contunden-
te congelada, de sua Vida inconsciente.
tes. Os näo mortificados, os que se desembara-
Talvez a pesquisa que realizo aqui de um ou-
gam de suas pulsöes de morte com sucesso, näo tro tipo depulsäo de morte e de um outro des-
recorrem ao analista. Quando se quer abordar o
tino destapulsäopara que näo seja mortifero,
destino malogrado das pulsöes de morte, é diff-
o seu funcionamen-
traga outras indicaqöes sobre
cil encontrar um fragmento clinico indene de
to geral.
morte, sob uma forma mais ou menos direta.
59
58
11

A PUISÄO ANARQUISTA

"A dispersäo, assim como convoca uma mo-


rada sem lugar, assim como arruina toda relacäo
fixa do poder com um indivfduo, um grupo ou
um Estado, resgata também diante da exigencia
do Todo, uma outra exigencia e finalmente prof-
be a tentaqäo da Unidade-ldentidade".
A ruina de toda relaqäo fixa a uma identida-
de unificante estå no fundamento da experiencia-
limite, A exigencia destruidora que
é sua angüstia.
arruina toda relaqäo fixa é obra de uma catego-
ria de pulsäo de morte: a pulsäo anarquista: Esta
tem como objetivo abrir uma saida vital onde
61
uma situaqäo critica fecha-se sobre um sujeito e
o destina morte. V Todo Iago libidinal, por mais respeitoso que
"O homem é o indestrutfvel que pode ser des- seja, comporta uma intencäo de posse, que anu-
truido. ... Que o homem possa ser
destrufdo, is- la a alteridade. A intenqäo de Eros é de anexa-
to certamente näo é tranquilizador, mas que, ape- qäo, incluindo até o direito do outro viver a seu
sar e por causa disto, neste mesmo movimento, modo.
o homem permaneqa indestrutfvel, eis o que é Toda evasäo libidinal
experiéncia-limite, por
verdadeiramente inquietante. deslocamento dos investimentos ou recuo nar-
Como se, para o homem fosse mais terrfvel cfsico,ou é bastante irrealizävel, ou bastante ino-
que o desastre universal, a sua inexorävel afir- perante, ou contribui ainda mais para fragilizar
macäo que sempre o mantém de pé. Mas por que o estado critico e expor ainda mais o individuo
o indestrutivel? Por que ele pode ser destruido? destrutividade da situaqäo.
Qual a relagäo destas duas palavras?" O individuo tomado por esta situaqäo näo tem
Esta citaqäo foi extrafda de uma diffcil e lon- meios de libertar-se, näo temo poder de
ga meditaqäo de M. Blanchot sobre A experién- modificä-la,inäo quer sucumbir a ela A proximi-
cia-limite, inspirada no livro de Robert Antelme, dade da morte ou a precariedade da Vida exacer-
A espécie humana. bam sua vontade de sobreviver.
A relaqäo entre o indestrutfvel e o perecfvel A experiencia-limite pode provir de um am-
é pr6pria do que se enfrenta na experiéncia-li- biente fisico natural extremo, por exemplo, o das
mite, no sentido analftico que se pode atribuir regiöes hiperböreas para os esquim6s, como em
a este termo. Os ültimos reis de Thulé (Jean Malaurie, Coll. Ter-
Na experiéncia-limite o sujeito encontra-se re Humaine). Pode nascer de um ambiente poli-
beira de uma situaqäo mental urgente que ele näo tico e social, num totalitarismo destruidor,cujo
pode atravessar ou afrontar sem prejufzo mortal. exemplo extremo é o do campo de concentra-
A experiencia-limite se instaura num embargo qäo e extermfnio. Pode ser o fato de uma rela-
Vida mental e ffsica de um ser humano, que o qäo mental individual.
expropria de um direito impessoal Vida, o pri- As situaqöes-limite existem. Alguns seres hu-
va de suas defesas e o expöe a uma possibilidade manos as afrontam, as vivem ou as transpöem,
constante da morte.
enquanto outros a elas sucumbem, desagregam-se
62
na psicose, na apatia, submissos fatalidade de 'Näo parece que se possa conduzir o homem,
'

seu exterminio. Como resistem os que as vivem? por quaisquer meios que sejam, a trocar sua na-
A partir de que fonte de energia? tureza por aquela de uma térmita, ele se inclina-
O ambiente mental individual, politico-social rä sempre defesa de seu direito liberdade in-
ou fisico-natural estabelecem com uma pessoa ou dividual contra a da massa" (Mal-estar na civili-
uma comunidade uma relacäo de forgas em que zacäo, p. 45).
a Vida de cada um, anulada em sua alteridade A vontade da massa repousa sobre a ativida-
ünica, torna-se puro refém de uma potencia ar- de gregåria, aglutinante, de Eros. A térmita näo
bitråria.
tem existencia individual dissociävel do organis-
O refém vive na fronteira entre sua morte e mo pluricelular ao qual ela pertence, o organi-
zacäo social da termiteira. O homem, sim. As
sua sobrevivencia. Na experiencia-limite, ele Sö
massas humanas unem-se libidinalmente entre
pode apostrofar a morte: "Onde estä, 6 morte,
elas. "Mas a pulsäo agressiva... a hostilidade de
tua vitöria? Onde estå, 6 morte, teu aguilhäo?"
um so contra todos e de todos contra um so, se
O aguilhäo da morte refine as forgas da pul- opöe ao programa de civilizaqäo. Esta ulsäo
säo de morte. Numa relacäo de forgas sem safda, agressiva é descendente, e a principavrepresen-
Sö uma resisténcia nascida das pr6prias fontes tante, do instinto demorte'
pulsionais de morte pode afrontar a ameaqa de A luta entre Eros e o instinto de morte orga-
perigo mortal. Chamo este fluxo da pulsäo de niza as relagöes entre o individuo e a sociedade.
morte mais individualista, mais libertårio, depul- As vezes, a vit6ria de Eros se volta para a auto-
säo anarquista. conservaqäo da civilizaqäo, com risco d usura
pulsäo anarquista\guarda uma condigäo fun- as vezes, a pulsäo de morte trabalha em pro do
damental da manutenqäo em Vida do ser huma- mais individual levante libertårio contras as for-
no: a manutengäo para ele da possibilidade de mas sociais.

uma escolha, mesmo quando a experiencia-limite Na experiencia-limite, relacäo entre afragili-


anula ou parece anular toda escolha possivel. dade das razöes de sua indestrutibili-
viver, e

Preciso justificar as razöes pelas quais atribuo dade, a vontade individual de viverva extirpaqäo
pulsäo de morte; E minhas
estatresisténcia ativa da destruigäo, encontram sua forga na ameaqa de
morte. Sö a energia dissociativa da pulsä0Ug mor-
razöes para chamå-la ulsäo anarquista.

65
tepode propulsar o impeto libertårio. A revolta
contra a pressäo da civilizaqäo, a revolta contra
A historia do anarquismo testemunha na rea-
Iidade exterior e social formas concretas da pul-
a ordem que protege a primazia do bem comum
a todos em detrimento do interesse individual de säo anarquista, mais dificeis de captar na Vida in-
cada um, ou assim justifica sua razäo de ser, a des- dividual. Ohistoriador Daniel Guérin escreve, a
truiqäo de uma organizaqäo social existente, respeito do anarquismo, que suas caracterfsticas
opressiva e injusta, podem se alistar sob os ba- säo diffceis de apreender, que seus mestres nun-
luartes do amor pela humanidade, mas näoédesz ca condensaram seus pensamentos em tratados
te amor ideolögico que elas extraem suas forgas. sistemäticos, que existem muitos tipos de anar-
Éda atividade desobrigante de uma pulsäo de quismos e inümeras diferencas nas idéias de cada
morte liberadora. um dos grandes libertärios. Mas o anarquismo näo
O impeto libertårio é uma atividade anti- é precisamente esta recusa da autoridade, esta
social, comoé anti-social a atividade da pulsäo prioridade dada ao julgamento individual, esta
de morte. É de sua a-sociabilidade que ela detém, afirmaqäo antidogmåtica? Assim, a hist6ria do
mesmo no pensamento analftico, seu halo demo- anarquismo é um movimento filosöfico, politico,
niaco, trägico, terrorista. É nela e somente ela econömico e moral, fiel a seus destinos e a seus
que, no entanto, possui sempre a ültima forga de doutrinårios, a seu principio de base, sua voca-
resisténcia contra o dominio unificador, ilus6ria- Gäo essencial: o livre arbftrio individualista se
mente idflico dulcificante e nivelante do amor opöe is correntes autoritårias da sociedade.
ide016gico. Urn por todos, todos por um. O fu- Em Palavras de um revoltado, o texto inti-
turo radiante bate em nossas portas ou estå ao tulado A ordem, Kropotkin conta que no inicio
nosso alcance. da primeira Internacional, os anarquistas estavam
Por que chamar este fluxo da pulsäo de mor- prontos para mudar o nome de seu movimento
te, pulsäo anarquista? para o de federalismo, de anti-estatismo. Mas pa-
A pulsäo de morte trabalha contra as formas ra criar confusäo, seus adversärios divertiram-
de Vida estabelecidas e contribui para renovä-las. se reeviando-lhes este termo, atribuindo ao anar-
O movimento anarquista surge quando toda for- quismo a ambiqäo finica de criar a desordem e
ma possfvel de Vida desmorona, ele extrai sua for- o caos. O movimento anarquista apressou-se em
qa da pulsäo de morte e a remete contra ela e sua retomar sua denominaqäo. Ele insistiu primeira-
destruiqäo. mente no pequeno hffen entre an-/privativo, e
66 67
arqui-/autoridade; o anarquismo significando,
A historia do grito "Viva la muerte" é a me-
portanto, sem poder. Mas logo suprimiu-se o hf- tåfora exemplar dos dois destinos possiveis da
fen, deixando, diz Kropotkin, de dar um
traba- pulsäo de morte. "Viva la muerte" foi o toque
lho inütil aos revisores e uma liqäo de grego aos de reunir do levante nacional dos espanh6is con-
leitores. O anarquismo segue sua vocaqäo: a luta tra Napoleäo (maio de 1808). Apesar de uma des-
contra a autoridade, por todos os meios, incluin- proporqäo formidävel entre os "resistentes" au-
do desordem e violen poder so pode tra- t6ctones e as tropas imperiais, este movimento
balhar para se conserva se ar, aumentabiü näo pöde ser dominado pelo ocupante, durou
A pulsäo anarquista trabalha para fazer tudo isto cinco anos e acabou por expulsar os franceses da
voar pelos ares. Espanha. Era jä um grito libertärio.
Foi retoma-
Max Stirner, autor de "O tinico e suaproprie- do pelos anarquistas espanh6is, meio século mais
dade' é o teörico anarquista mais extremado de-
' , , tarde, como o grito revolucionärio contra uma
fensor do indivfduo em sua integridade ünica. Os Vida de injusticas. E devolvido pelos franquistas
individualistas anarquistas, ' 'estes vagabundos da contra os anarquistas, desta vez como o outro
inteligencia", "estes maus-caräter" "em vez de destino da pulsäo de morte, seu destino de pul-
considerar como verdades intangfveis o que då a säo destruidora mortffera.
milhares de homens consolo e repouso, saltam por Estudar, exclusivamente no campo da prati-
Cima das barreiras do tradicionalismo abando- ca analftica, as condigöes e os fatores de uma
nam-se sem restriqäo as fantasias de suas criticas experiéncia-limite, descrever a obra da pulsäo
impudentes". O Estado, as leis, os tabus, as reli- anarquista, é um empreendimento cercado de
giöes, a moral, o respeito famflia, a honra, o amor obstäculos.
patria, o amor ao povo, ou mesmo o amor espon-
Os fatores indutores ou apenas ligados
tåneo a seu pr6ximo säo "fantasmas sagrados" que
experiencia-limite näo se prestam a interpreta-
é preciso varrer para que liberado de sua tutela o
Göes univocas. Nestas histörias analiticas que de-
individuo "ünico" se emancipe.
correm sob o signo da urgencia do trabalho da
A bandeira negra do anarquismo, sfmbolo da
"pulsäo anarquista", estamos longe da monoto-
morte, miséria e luta, societåria sem dfivida, anti-
nia, da auséncia de fantasia, da repetiqäo pura
autoritåria antes de tudo, é em sua austeridade uto-
atribuida por Freud pulsäo de morte.
pica apelo a defender a Vida acossada pela morte.

68
69
jeto-necessidade e um objeto-desejo. A resposta es-
Assinalei a presencade uma relaqäo de for- tereotipada do alimento-amor obrigat6rio inter-
gas modelada sobre a dominaqäo totalitaria mu- rompe a emergencia de uma apetencia pessoal pela
tiladora. Mas a dominaqäo totalitåria é a forma Vida. A resistencia a esta anulaqäo de si se exerce
mais simples desta relaqäo de forgas. Ela pode pela greve de uma fungäo vital, afome, e.greve
adotar formas infinitamente mais insidiosas e ve- mental do apetite de viver. O anoréxico engole e
vomita esta versäo finica dele mesmo, engole e vo-
Ladas.
Posso tentar compreender como funciona mita ou deixa de engolir, até mesmo arriscando sua
uma experiencia-limite. Sou incapaz de justificar pr6pria Vida. Por este risco, esta greve mental, que
oporqué da experiencia-limite, e näo de uma psi- dificilmente se pode atribuir a uma mogäo libidi-
cose delirante ou de uma neurose de caråter. A nal, e que é preciso reconhecer como uma dasfor-
reconstituiqäo dos fatores, que se presume indu- (!mqöes da pulsäo anarquista, o anoréxico preser-
tores, é uma fase da anålise como a reconstru- va suas razöes de viver, procura superar a experien-
qäo historica e o levante dos fantasmas incons- cia-limite na qual se impeliu ou é impclido.
cientes. Estas reconstrucöes säo üteis. Näo säo im- Vemos por este exemplo o quanto a determi-
A partir de um certo
pulsos decisivos da anålise. nagäo dos fatores indutores hist6ricos é aleatö-
ponto, pouco importa que a mäe de uma anoré- ria e finalmente secundåria.
xica tenha Sido demasiadaou insuficientemente Como se situa a anålise de Sophia em relacäo
amante, ou alternativamente ansiosa e indiferen- experiencia-limite definidacomo uma luta até
te. O que importa é que a anålise permite a ma- a morte contra a morte? No momento em que ela
nifestaqäo da€forqas antagönicas condensadas me procurou, a doenqa de seu filho estabelecia
numa apreensao im6vel, organizada e sustenta- em sua Vida um estado critico. Ela näo podia
da pelo anoréxico que, para se defender de um
evitå-lo, nem modificå-lo. Ela näo queria sucum-
perigo vital, corre o risco de morrer.
procurava superå-lo mentalmente. Mas
bir a ele,
Tomei intencionalmente como exemplo a
a verdadeira experiencia-limite era a que David
anorexia numa estrutura neur6tica; pois nesta or-
atravessava. Ele corria perigo de morte. Vimos
ganizaqäo encontram-se os elementos familiares
a uma experiencia-limite. O alimento-amor do
como utilizou sua doenqa para separar-se de sua
mäe. Como disse, tivera uma infåncia dificil. Na
qual o anoréxico procura se desfazer é o produ
verdade, jå havia utilizado nesta época outras for-
tede uma amålgama muito densa entre um ob-
Sophia e tomado para mim, transferencialmente,
maqöes de pulsäo de morte, outros recursos pa-
as fungbes atribuidasæl)ayid, Aliås, Sophia
ra afastar de si sua mäe e afastar-se dela. Primei-
apresentou-me poucas tentacöes de proceder a
ro, uma anorexia;depois, perturbaqöes caracte-
uma 'domesticaqäo libidinal". Ela se ocupava qua-
'

riais, que testemunhavam seu vigoroso desejo de


se que exclusivamente em permitir que se desen-
emancipaqäo, seus esforqos para salvar seu direito
volvesse o trabalho de desligamento entre ela e seu
de viver a partir de si e por si pröprio. Mas, co- filho e em desfazer a forma de ligaqäo entre eles,
mo dizia Sophia, ela o colocara em dificuldades modificando-a. A anålise passou ou repassou por
e o retirara delas. Assim, os esforos de David
toda uma reorganizaqäo de lutos antigos, de seus
eram neutralizados.
fantasmas de cena primitiva, organizados inteira-
A anålise de Sophia marca de uma luta
traz a
mente em torno das razöes de morte e näo de amor;
anåloga. Foi breve e tensa. Ocupamo-nos sobretu-
de sonhos especfficos, sem conteüdo imagético ou
do de suas relaqöes com seu filho. Näo analisei a palavras, puros movimentos de cores, que se mis-
onipotencia mantida reciprocamente pelos dois turavam depois se desfaziam uns dos outros.
parceiros em termos de narcisismo megalömano A aquisiqäo da anälise precedente e o tempo
e de evitaqäo da castraqäo. Sobresua posiqäo fili- limitado contribufram para condensar o material
ca, sua inveja do penis e seu filho-falo, ela jä sabia em torno da morte e da mortalidade. Era tam-
bastante, até demais. Quero dizer que ela utiliza- bém uma decisäo minha seguir esta linha em fun-
va este tipo de auto-interpretaqäo como defesa ao Gäo da experiencia adquirida em outras anålises
trabalho em andamento. Näo privilegiei a dimen- marcadas pela mesma urgencia de elaboracäo das
säo incestuosa desse amor; cheguei mesmo a representaqöes da morte.
negligenciä-la. Neste caso, havia também toda uma Analisar um material inconsciente com pre-
aquisiqäo da anålise precedente que tornava cadu- dominåncia anarquista de luta vital contra a mor-
ca esta forma de interpretagäo. Se eu tivesse me te no registro libidinal edipiano é um despropö-
ocupado da esfera libidinal em vez de me demo- sito que apresenta riscos para o destino de um
rar sistematicamente em todas as referencias im- analisando. E como é tentadora a förmula freu-
plfcitas e explicitas morte e mortalidade, diana que equipara a angüstia de morte angüs-
parece-me que teria apenas reforqado simultanea-
, tia de castraqäo nas fases mais dificeis de uma anä-
mente o encarceramento desta atividade da pulsäo lise. Nas experiéncias-limite, quando hä entrecru-
de morte e sua exclusäo da economia psfquica de
¯3
72
zamentos possfveis entre Eros e Thanatos, é vi-
talnäo escorregar pelos caminhos de Eros, näo
camuflar as representaqöes da esfera de Thana-
tos com a libido, mesmo que narcfsica.
Onde impera a pulsäo de morte, onde ela lu-
ta para que o paciente viva e possa se desfazer
das obrigaqöes de amor que o destroem, a anåli-
111
se deveriapoder sustentar este trabalho de libe-
ragäo, ao invés de dissimulå-lo em novas asso-
OUTRAS EXPERIÉNCIAS-LIMITE
ciaqöey.

Seria interessante verificar em outros campos


a existencia e o funcionamento de experiencias-
presenqa ou a ausencia de um trabalho
limite, a
anålogo da pulsäo anarquista e sua fungäo vital
ou mortffera.

Os ültimos reis de Thulé

Deste ponto de vista, o célebre livro de Jean


Malaurie, Os ültimos reis de Thulé, é de uma ri-
queza excepcional. As paisagens hiperböreas, in-

74 75
teiras de gelo e rochas, um solo sempre gelado, sem Em 1950, por ocasiäo da primeira estada de
jamais conhecer a ternura de uma terra friävel e de Malaurie em Thulé, que durou um ano, a regiäo,
uma chuva morna, uma neve, repetidamente im- centro de suas gxpediqöes contava com trezen-
pelida pelos ventos, que deixa descobertas arestas tos inuis. Thule, no mundo esquim6, é uma das
e aberturas, estas paisagens minerais, austeras, ari- raras regiöes que dispöe de um consideråvel cré-
das e de uma crueldade constante para a Vida hu- dito junto ao caixa dinamarques, comprador de
mana, säo o quadro natural de uma Vida inteira- peles. Thulé deve isto a seu regime econömico,
mente dedicada a uma so causa: ela pr6pria. recusa de dependencia dos brancos no que se
A Vida dos esquim6s é totalmente subordina- refere alimentaqäo. Esta riqueza, consecutiva
da a uma so finalidade: sua sobrevivencia. austeridade de Vida dos inuis, subvencionou,
Estes indfgenasde ascendencia asiätica e fn- sob a direcäo de Knud Rasmussen, sete expedi-
dia vieram do centro da América e do Baikal Göes cientfficas. Antes da tutela exercida pelo Es-
conquista dos mares gelados. Portanto, conhe- tado dinamarques, esta pequena tribo proviu as
ceram outrora regiöes mais clementes. Nada obri- necessidades dos servicos sanitärios e da nave-
ga estes nömades a viverem beira do Årtico. Po- gagäo de todo o seu territ6rio. Os esquim6s de
deriam, como os lapöes, um
dos povos årticos Thulé asseguravam o mecenato do estudo con-
primitivamente cacadores como eles, proceder temporåneo de sua cultura, do Alaska costa es-
a uma mudanqa, abandonando o mar gelado pe- te da Groenlandia. "Näo conheqo outro caso de
la criaqäo de renas domésticas. A fidelidade, o sociedade arcaica", escreve Malaurie, "que tenha
orgulho pelo seu modo de Vida estariam ligados realizado materialmente, apesar do nümero re-
a uma falha na autoconservaqäo, ou mesmo a uma duzido de participantes, um programa de estu-
tendéncia suicida? Näo. Sua escolha dirige-se dos continuos e plurianuais de sua pr6pria his-
Vida, näo morte. Ela repousa, escreve Malau- t6ria num raio consideråvel de 15.000 km.
rie, sobre "o orgulho de vencer e dominar o O estudo demogråfico e etn016gico desta tri-
meio, mesmo o implacåvel deserto de gelo". Ra- bo, a mais proxima do p610 norte que existe, uma
cionalizaqäo de um ocidental? Talvez, o que näo das populacöes mais reduzidas e isoladas do mun-
minimiza em nada a demonstraqäo, na realidade do, revela a supremacia do principio de sobrevi-
cotidiana, de sua vontade de viver, onde a Vida vencia desta populaqäo. O coeficiente médio de
humana é um desafio constante morte. consangüinidade é absolutamente surpreendente:

76
situa-se entre (),0002 e0,0003. A tftulo de compa- te. Säo violentos e impiedosos como as pr6prias
racäo com os vizinhos suecos, este coeficiente condigöes de Vida. Pode-se dizer que na conti-
situava-se acima de 8% entre 1890 e 1896. Um se- nua experiéncia-limite que constitui essa Vida, é
vero sistema de planificaqäo e tabus é responsivel a pulsäo anarquista que, ao apropriar-se da pul-
por isto. O cålculo demonstra que toda uniäo en- säo de morte a servico da Vida, fornece a ener-
tre primos até o sexto grau devia ser proibida pa- gia necessaria luta. "Esta sociedade boreal vi-
ra justificar uma taxa assim täo baixa. E, entretan- ve sob o registro do precårio, do concreto (re-
to,... um bom caqador, viüvo, pai de uma familia gistro da primazia da necessidade), da violéncia,
numerosa, procura casamento nos grupos vizi- de uma individualidade mais afirmada e de leis
nhos. Em väo. Um periodo de fome entre 1930 e grupais mais comunistas", escreve o etn610go.
i; 1940 havia requerido o infanticidio de meninas. Estas leis grupais comunistas, onde nada perten-
Resolve dormir com sua filha, garantindo dessa ce ao individuo, nem mesmo sua casa, unem-se
forma uma companheira, indispensåvel ativida- necessidade de despossuir-se, de tornar-se li-
de de cagador e, portanto, alimentaqäo da fami- vre de todo constrangimento material, que cons-
lia e continuaqäo da Vida. Esta soluqäo, cito Ma- tituem as posses destas personalidades especffi-
laurie, "suscita um silencio reprovador dos vizi- cas descritas no comeqo desse texto.
nhos e uma grande tristeza para a filha mais velha, As relacöes afetivas säo breves. O esquim6 an-
que fora escolhida". Mas a sobrevivencia é prio- tecipa, provoca, aprisiona e, assim, domina a pre-
ritåria, mesmo numa comunidade täo rigorosa em senqa do constantemente precärio. Atesta-se que
suas regras exogåmicas. a pulsäo anarquista individualista é a fonte de
O cacador do Grande Norte, para quem o me- energia principal que domina esta precariedade
do e a coragem estäo associados, sorriria se al- por vårias formas de antecipaqäo. Todo cacador,
guém lhe falasse de herofsmo. Esta palavra näo sem outra razäo a näo ser seu desejo de liberda-
existe em esquimö. Mas através de inümeros de, afasta-se de repente da comunidade, parte
exemplos, Malaurie mostra como os Inuis tiram apenas por uma necessidade interior, para uma
sua forga de viver de um desafio cotidiano ao pe- cacada solitåria. Nesta cacada, mais do que em
rigo, da vit6ria obtida no confronto com a mor- qualquer outra atividade, arrisca sua Vida, pela
te. Esta energia näo provém da agressividade, solidäo, pela duraqäo da expediqäo, pelo tipo de
nem da pulsäo de morte como a que atrai a mor- caca escolhida, neste caso a mais perigosa, o urso.

78 79
Os outros membros do grupo, as mulheres, os ado- invés de reconhecer na revolta, na contra-ordem
lescentes e os cäes, parceiros integrantes da tribo, e no sofrimento: um protesto vital. Os inuis dizem:
näo tem a resistencia corporal necessaria para é preciso que esta forga saia. É preciso que ela seja
afrontar o perigo de morte, provocando-o e domi- liberada, que o indivfduo chegue até o esgotamen-
nando-o. Säo possuidos, entäo, pelo perdléror- to de suas forqas sem, no entanto, morrer por is-
poq. Operdlérorpoq é a explosäo de uma violen- so, para estar certo de poder continuar a viver.
cia extrema, um arrebatamento solitårio. A pessoa Certos brancos que se expöem a estas condi-
possufda por esta crise rasga suas roupas, nunca qöes extremas de Vida, quando näo experimen-
ataca o seu meio, mas arroja-se, expondo-se ao frio tam o gosto da solidäo, do confronto desmedi-
extremo, lanqando-se natureza, galga os destro- do entre a natureza assassina e a precariedade de
gos das geleiras ou corre sobre blocos de gelo sol- seus meios, quando näo dispöem desta pulsäo
tos entre terra e mar. A seu modo, enfrenta a mor- anarquista, tombam na pulsäo de morte pela mor-
te, para exorcizar sua presenqa. 'É estar doente da
' te, suicidam-se ou deixam-se perecer.
Vida' dizem os inuis. Para acalmar a exaltaqäo que
', Veremos como uma sociedade primitiva, do-
o assusta, um missionårio quer administrar brome- minada por uma natureza implacåvel, persiste em
to a uma mulher em estado deperdlérorpoq. Os viver, prescrevendo-se planejamentos demogra-
nativos explicam que ela näo estä doente, que ela ficos de um modo ainda mais draconiano que o
possui forga demais e que esse estado de paroxis- da natureza. Ela antecipa a morte, ligada ao agra-
mo é redentor. Os membros da tribo velam pelo vamento das condigöes climäticas e a conseqüen-
desenrolar da crise até seu fim, näo a detem, so pro- te diminuiqäo da caca, pela execuqäo de um cer-
tegem a pessoa de um acidente fatal. Este estado to nümero de regras, preconizando a morte vo-
paroxistico se desenvolve como a experiéncia- luntäria. O planejamento demogräfico dos esqui-
limite que um paciente procura transpor, desafian- m6s é uma ilustraqäo simples e exemplar das re-
do a morte de täo perto quanto possfvel para laqöes entre o indestrutfvel e o que pode ou de-
desatar-se de seu aperto, exorcizar sua dominaqäo. ve ser destrufdo para que a Vida se mantenha.
Todos esses pacientes conheceram em sua infin- Neste grupo jä restrito, o planejamento demogrå-
cia o contra-senso do missionärio, o brometo e fico é mais delicado, pois deve ser feito a longo
seus equivalentes, a suspeita da loucura, o desejo prazo. Calculam-se os ajustamentos na planifica-
dos médicos e do meio familiar de acalmä-los, ao Gäo com vinte e oito meses de antecedéncia, con-

80 81
forme o prazo médio que separa os nascimentos.
incesto e da consangüinidade mais severamente
As previsöes climäticas apöiam-se sobre um pe-
controlada. Ele transcende a interdiqäo do ho-
rfodo de mais de dois anos para ditar o ritmo dos
micfdio e através de homicfdios voluntärios an-
nascimentos. Podemos imaginar a acuidade das
observagöes, das anålises, dos recortes de todas
tecipa a extinqäo inevitävel de uma tribo que, ten-

as indicaqöes que o esquimö dispöe e sabe utili-


tando manter viva a totalidade de um grupo exce-
zar para modular as variaqöes demogråficas da dente em relaqäo a seus recursos, em tempos de
tribo. Se as previsöes climåticas säo favoräveis, fome, dedica-se inexoravelmente morte. Uma
a sociedade adota uma politica de natalidade, re- anedota admirävel ilustra a forga do individua-
vogando tabus alimentares, cinegéticos e sexuais. lismo e do gosto pela Vida formados na escola
Se o movimento dos gelos, dos mares, dos ven- da longa familiaridade com a morte. Ao fim de
tos, dos animais migradores indicam frios excep- sua mais longa expediqäo longe de Thulé, Jean
cionais para os pröximos anos, a sociedade torna- Malaurie reencontra sua base expedicionäria to-
se malthusiana, pelos infanticfdios ao nascer, pela talmente alterada pela construqäo de uma base
supressäo dos enfermos e dos indesejados. O efe- atömica americana. Estabelecem-se trocas comer-
tivo é constantemente equilibrado, seguindo os ciais entre os americanos e os esquim6s.
recursos do meio. O homicfdio antecipado é a
' 'Assiste-se a cenas divertidas. Um jovem ame-
chave da sobrevivencia.
ricano pede-me que diga a um esquim6 que aca-
A clinica psicanalitica das experiéncias-limite ba de fabricar uma figura de marfim: "Please, tell
obedece is mesmas defesas, a uma 16gica identi-
the Eskimo para raspar muitos assim para mim.
ca. Pode-se observar este mesmo desenvolvimen-

to de uma inteligencia antecipadora de riscos


More! Que elas sejam iguaizinhas. Mas diga-lhe
mortiferos.A vigilåncia mobiliza a resistencia que deve diminuir o preco medida que aumen-
morte, serve ao combate com armas igualmente tar a quantidade. Dareifive dollars por cada um,

homicidas. A 16gica da defesa, como para o inui,


ao invés de ten.
pode conduzir antecipaqäo da morte. Traduzo. O esquim6 assusta-se.
Onde a ameaqa de morte estå extraordinaria- — Näo é possfvel! Diga a ele, a este Qraslou-
mente presente, o principio de sobrevivencia faz naq mau que quanto mais parecidas houver mais
a mais alta lei. Ele transcende a interdicäo do caro sera, pois sera mais desagradävel refaze-las!"

82 83
Do civilizado com instinto de Vida enfraque- As modulaqöes muito familiares do tema da
cido, ou do nömade com instinto de morte agu- intrincaqäo pulsional tornam a escuta preguiqo-
gado,quem escolhe a repetiqäo compulsiva e mo- sa,transformando-se em resistencia em reconhe-
n6tona? E quem escolhe a ligaqäo com a Vida, cer a originalidade das formas de trabalho psfqui-
seus riscos, privacöes e invenqöes? co das pulsöes de morte.
Este modo de Vida ärido, esta provaqäo con-
tfnuada resistencia humana morte, que nada
nunca vem suspender ou atenuar, que nada per-
O universo concentracionärio
mite converter em desesperos romånticos, desig-
na uma forma exemplar de experiencia-limite. A
relaqäo de forgas näo se dä entre o homem e seu
Os campos de extermfnio, os campos da mor-
te exigem que se tente ao menos compreender
meio; o confronto desenvolve-se na cena psfqui-
as origens psfquicas que os tornaram possfveis.
ca, entre duas formas de uma mesma fonte pul-
Eles impedem que se continue a escapar deste
sional, entre os dois destinos de Thanatos sem
"fenömeno da vida", impedem que se continue
a mediacäo de Eros.
a desconhecer a ubiquidade da destruiqäo näo
A hostilidade da natureza é apenas um suporte erotizada, näo erotizävel.
"realista" para as forgas hostis no
inconsciente, "O universo de que se fala aqui, escreve Da-
mas este suporte exterior mortffero, vazio de in- vid Rousset em Os dias de nossa morte —é sin-
tencöes homicidas, sem 6dio, sem aspiraqöes de gularmente desproporcional as reagöes cotidia-
morte, obriga a conceber, a reconhecer a exis- nas dos homens comuns e no entanto pr6ximo
tencia possfvel de uma relacäo de forgas inter- e fntimo". Pröximo e intimo...
na, sem mediaqäo libinal. Do mesmo modo como os inuis modelam sua
.Näo compreendo que possamos permane-
.. Vida impiedosa segundo as condicöes impiedo-
cer cegos ubiquidade da agressividade e da des- sas de seu meio, os deportados modelam a orga-
truiqäo näo erotizadas e negligenciar a atribui- nizaqäo de sua sobrevivencia segundo as Yorgas
Gäo do lugar que elas merecem na interpretaqäo de destruiqäo que organizam o universo concen-
dos fenömenos da vida" (S. Freud, Mal-estar na tracionärio. Pois o sistema concentracionårio ins-

civilizacäo, p. 75; grifo nosso). taura uma relacäo de forgas desproporcional vi-

84 85
da comum, o que nele acontece näo tem compa- com eles (estes conceitos caducos) seria eliminar-
ragäo com nossas habituais "interpretaqöes dos se a pr6prio da existencia,
si um suicfdio". (D.
fenömenos da vida". Rousset, p. 418)
As categorias psicanalfticas conhecidas näo Poder resistir morte é antes de mais nada
däo conta destas materializaqöes das pulsöes de reconhecer sua presenqa e renunciar aos subter-
morte, como näo däo conta os julgamentos, os fügios. O espfrito humano empresta as pulsöes
atos, os valores, os tipos de inteligencia, os la- anarquistas a forga para näo se refugiar na recu-
gos de afeiqäo que regem a Vida social "ordinä- sa, na ilusäo, na denegaqäo. Esta forma de luci-
ria" e tornam-se perigosamente ultrapassados nos dez é o trago comum a toda experiencia-limite.
campos de concentraqäo. Os habituais pares: car- A autoconservaqäo depende da rapidez pela qual
rasco/vftima, mestre/escravo, agressor/identifica- um ser humano, submetido ao risco da destrui-
do-com-o-agressor säo täo derris6rios na capta- qäo, é capaz de captar que esta destruiqäo obe-
qäo da natureza das relacöes entre as forgas des- dece a leis pr6prias, que somente a ela perten-
trutivas e a luta contra essas forgas, como säo der- cem. O pensamento obsessivo de Sophia: "é pre-
risörias nesse universo as categorias morais de ciso que meu filho saiba que sua doenqa é fatal
uma sociedade ordinåria. para que viva"; a exortaqäo de Kapo: "é preciso
"Voce näo pode raciocinar como se se encon- que voces saibam que estäo aqui para morrer",
trasse no mundo ordinårio. Voce estå na socie- "aqui näo hå doentes: Sö hå vivos ou mortos",
dade concentracionäria". (D. Rousset, p. 128) "é preciso que seu camarada (moribundo) par-
"Aqui nos campos de concentracäo, o mundo do ta. Os S.S. näo devem ocupar-se de nossas coisa

constrangimento mais totalitärio, onde cada porque entäo as coisas seriam diferentes" (An-
acontecimento traz uma resposta definitiva, on- telme, A
espécie humana, p. 21); a ladainha re-
de cinqüenta gramas de päo, um litro de sopa a petitiva de Blockältester em Os dias de nossa
mais ou a menos, o deslocamento ou a perma- morte: "Voces näo estäo em um sanat6rio, mas
nencia numa funcäo precisa colocam inteiramen- num campo de concentragäo... Aqui é um cam-
te a questäo da Vida ou da morte. Em um tal mun- po de concentraqäo... Os que näo obedecerem
do, usar tais conceitos (os de outro mundo) é fa- iräo depressa para o crematörio... Voces devem
lar uma lingua morta que näo corresponde mais acabar com todos os seus häbitos" (pp. 59/62).
ao comportamento real dos seres. Agir de acordo E ainda: "É preciso que voce compreenda bem

86 87
isso... Os S.S. nos puseram num certo meio for- cila, so repousando sobre a dimensäo do desejo
ca. Seria loucura querer nos desviarmos dele sob e desconhecendo o fato das pulsöes de morte in-
pretexto de ser abominävel. Esta lucidez é o pre- troduzirem uma outra forma de Vida inconscien-
go de nossa vida". (p. 128) "Para ter alguma chan- te, diferente do desejo, e de outros objetos.
ce de sobreviver, era preciso aceitar unicamente A honra estå na sobrevivencia, näo somente
o universo concentracionårio. Nada mais existia da espécie, como escrevia Freud, mas também do
Que afirmaqäo contra a morte, calma e nua, com indivfduo pelo indivfduo, dos restos pelos res-
a forga somente de uma consciencia Clara, de uma tos. Fazer a morte malograr é confundir a vonta-
inteligencia lücida do acontecimento" (p. 207). de de morte, é salvar sua consciencia de homem.
No universo concentracionårio onde foram "Colocar em questäo a qualidade de homem pro-
inventadas todas as formas de assassfnio e esta,
voca uma reivindicaqäo quase bi016gica da per-
a mais extrema que consiste em privar um ser vi-
tinencia espécie". "Diante da coalisäo (homi-
vo de toda razäo de viver, a forqä-lo a so se re-
cida) toda poderosa, nosso objetivo tornava-se
conhecer na inståncia da morte, a ser e somente
o mais humilde. Era apenas sobreviver. Nosso
ser o objeto de exterminio pertencente a uma es-
combate, os melhores dentre n6s Sö puderam
pécie diferente, a desumanizä-lo fazendo dele um
conduzi-lo individualmente. Mesmo a solidarie-
puro objeto de necessidade, a resisténcia a de-
sumanizaqäo é a sobrevivéncia e o investimen- dade tornara-se questäo individual" (R. Antelme,
to prioritårio do registro das necessidades.
A espécie humana, pp. 10-11) Antelme testemu-
nha um campo onde o poder de Kapos estava nas
"Mas a experiéncia daquele que come restos
é uma das situacöes ültimas de resistencia. .. Mui-
mäos dos prisioneiros de direito comum, excluin-
tos comeram restos. Eles certamente, e com fre- do os prisioneiros politicos que, em outro lugar,
qiiéncia, näo estavam conscientes da grandeza
instauravam razöes de viver e de lutar menos ra-
que é possfvel encontrar neste ato. Mas näo era dicalmente solitårias. Sua narrativa mostra, mais
possivel decair, catando restos... As perspectivas claramente que qualquer outro testemunho, que,
de liberaqäo da humanidade passam por essa "de- quando faltam todas as outras razöes, a resisten-
cia morte pode tornar-se razäo de viver. Sobre-
gradaqäo" (Antelme, A espécie humana, p. 101).
A honra da condigäo humana oscila em dire- viver, sem qualquer ideologia, torna-se ato poli-
qäo prioridade do registro da necessidade so- tico, ato de restauragäo da condigäo humana. "E

bre o dos desejos. A pråtica analftica também os- era precisamente o sentido de sua resistencia pro-

88 89
funda, este recuo sobre si mesmos e seus meios ''Manifestar que a morte näo pode mais ser afas-
restritos". (D. Rousset, p. 207) tada, é querer atribuir-lhe um sentido, agir além
A sobrevivéncia modela modos de funciona- da morte. Para que um gesto se realize é preciso
mento mental especfficos, comuns a todas as que tenha uma significaqäo social. Quando näo
experiencias-limite. A autoconservaqäo repousa hä mais testemunhas, nenhum testemunho é pos-
na rapidez do espfrito em
destruir suas ilusöes. sfvel" (D. Rousset, p. 463).0 proprio suicidio,
Repousa na lucidez. Repousa na assimilaqäo do como revolta ültima, jå näo tem sentido.
funcionamento da vontade de morte e suas re- "A simpatia, a amizade que toleravam uma
gras. Repousa na transformaqäo da vontade de certa intimidade de relacöes so podiam ser con-
morte S.S. em obstinacäo de Vida. sideradas como atuaqöes irresponsäveis e crimi-
A obstinaqäo em sobreviver obedece is pr6- nosas. A intriga, a esperteza, a prontidäo para a
prias leis do universo concentracionårio. prio-
violéncia tornam-se armas nobres: säo efetiva-
ridade ao registro da necessidade sobre o regis- mente os ünicos instrumentos eficazes" (D.
tro do desejo. Rousset, p. 419). "Quase ninguém entre n6s po-
"Nosso sistema de defesa inscreve-se na es- dia evocar ternuras profundas sem que elas des-
trufssem a potencia de vida"
trutura S.S. dos campos. Enquanto ficamos no in-
terior desta estrutura, temos chances de poder
"Que mundo singular o nosso, onde a mor-
te, para ser mais certeira, mascara-se em afeicöes
agir" (D. Rousset, p. 644).' 'Para viver é preciso
profundas... Arruinar tudQ no esquecimento. Sö
prevenir e disparar primeiro' A organizaqäo po-
conhecer este inferno para viver'l (D. Rousset,
Iftica clandestina dos deportados modela-se so-
p. 479)
bre a organizaqäo concentracionäria, obedece a
regras identicas as que governam a destruiqäo S.S.
As forqas assassinas Sö podem se opor forgas täo Na experiencia analftica é preciso compreen-
radicalmente impiedosas. der o risco fatal que constitui para certos sujeitos
A sobrevivéncia comanda a solidäo. Repudia um projeto de engajamento e respeitar a dimen-
as nostalgias.Bloqueia a lembranqa das ternuras. säo da ruptura, näo como uma resistencia, uma
As confianqas so se engajam sob o signo de rup- inaptidäo anålise, mas como uma medida de
turas iminentes. No universo concentracionärio, proteqäo vital que se inscreve no projeto de so-
o outro deixa de ser uma testemunha possivel. brevivencia. Cabe ao analista tornar-se a teste-

90 91
munha possfvel desse projeto, com todas as ativi- tente dos estraga-festas da higiene mental e dos
dades cunhadas pela atividade desobrigante das fracassados da prätica analftica protocolar: os fu-
pulsöes anarquistas: a lucidez, a antecipaqäo, a gitivos, os toxicömanos, os caracteriais, os "psi-
transformaqäo da vontade de destruiqäo em resis- cossomåticos" e todos os outros...
tencia morte, a solidäo, a intensidade fragil dos Devolver as pulsöes de morte suas formas de
Vida psfquica, deixar de reduzi-las a um negati-
laws afetivos, a primazia do objeto-restol, a sobre-
vivencia como triunfo sobre a destruiqäo, como ül-
vo das pulsöes libidinais, sexuais e narcisicas, pos-
sibilita a abertura de impasses terapeuticos. Ig-
tima garantia de pertinencia espécie humana.
norar essa narrativa, continuar a abafar a parte
A narrativa das pulsöes de morte no incons- analftica no conforto de Eros, é reforgar a soli-
ciente divide suas figuras com o registro libidi- däo mortffera e fragilmente salvadora daquele
nal, ordena diferentemente. As organiza-
mas as que näo espera que o analista se recuse para
qöes de desejo deixam transparecer, além do recuså-lo antecipadamente como testemunha de
principio de prazer, a ossatura descarnada das or- sua luta anarquista. "Quando o homem é redu-
ganizaqöes de necessidade. A exploraqäo desse zido ao extremo despojamento da necessidade,
ordenamento diferente torna analisäveis: a "rea- quando se torna aquele que come restos, perce-
qäo terapeutica negativa", o "masoquismo pri- bemos que estä reduzido a si mesmo, e o homem
märio", a "compulsäo repetiqäo" para além do se descobre como aquele que näo precisa de na-
principio do prazer; em suma, torna possfvel a da mais que a necessidade para 'negando o que
anålise de todos esses fenömenos que, precisa-
o nega', (grifo nosso) manter a relacäo humana
mente, conduziram Freud ao discernimento do
em sua primazia. É preciso acrescentar que a ne-
cessidade muda, que se radicaliza no sentido pr6-
dominio das pulsöes de morte sobre o psiquis- prio, que se torna apenas uma necessidade iri-
mo. Reconhecer a atividade anarquista das pul- da, sem desfrute, sem conteüdo, que ela é a rela-
söes de morte, sua dimensäo de protesto vital, qäo nua e que o päo que comemos responde ime-
é interromper a catalogaqäo duvidosa e impo- diatamente exigencia da necessidade, assim co-
mo a necessidade é imediatamente necessida-
O lugar do objeto-resto numa economia psfquica de sobreviven-
1.
de de viver" (M. Blanchot, A experiéncia-limite,
cia foi em crianqas submetidas a um
reconhecido pela psiquiatria infantil
a propösito do livro de Robert Antelme, A espé-
ambiente destruidor. "Pica" designa um tipo de aberraۊo alimentar que
consiste em engolir terra, vermes todo tipo de Jixo.
cie humana.)

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Neste trabalho, de todas as referencias que o além, ou melhor aquém, do principio do prazer.
apoiaram, o avanqo te6rico representado por P. Proponho-me abordä-lo independentemente de
Aulagnier ocupa um tal lugar, que eu näo sabe- qualquer referéncia inicial ao instinto de mor-
ria traqar uma linha de demarcaqäo nftida entre te, e unicamente a partir do ponto de vista da
os meus empréstimos involuntärios e os explici- oposiqäo entre o mesmo e o idéntico" (Galli-
tos. Suas reflexöes sobre a economia do prazer mard, N.R.F., p. 87, grifo nosso). Este ponto de
necessårio e do prazer suficiente foram particu- partida explfcito de Sö recorrer ao conceito de
larmente importantes para mim, assim como os pulsäo de morte depois do esgotamento de to-
seminårios dedicados aos investimentos de ob- dos os outros recursos da metapsicologia freu-
jeto que podem privilegiar o dominio de Thana- diana tem o interesse considerävel de ser formu-
tos sobre Eros (a episteme, a relacäo passional lado como tal, argumentado e sustentado atra-
com os jogos de sorte, as toxicomanias, a rela- vés de todos os artigos, até as ültimas conseqüén-
Gäo transferencial passional) e a evidenciaqäo, a cias, até o ültimo texto: O trabalho dofalecimen-
exploracäo de um processo singular: o desliza- to, onde as pulsöes de morte e a anälise de seus
mento da relaqäo de objeto do registro do pra- efeitos säo desenvolvidas de maneira notävel.
zer para o registro da necessidade. Teoricamente, deixei de lado a articulacäo do
Por razöes diferentes, o livro de M. de narcisismo primärio e da pulsäo de morte. En-
M'Uzan, Da arte morte, constitui também den- tretanto, a citagäo de Blanchot sobre a ruina de
tre minhas referencias bibliogräficas uma fonte toda relacäo fixa com o um e o que profbe a exi-
de inspiraqäo parte. Ainda que eu näo possa, gencia da Unidade-ldentidade, condensa alusiva,
em poucas palavras, resumir a influencia deste mas fielmente, o que devo ao livro de S. Leclai-
livro, ele me deu um apoio decisivo. "Lembro, re, Mata-se uma crianca. A pulsäo anarquista é
portanto, que no campo da clinica o dominio do precisamente o que leva morte a representaqäo
que se situaria margem do principio de pra- narcfsica primåria, o que arruina a fixidez de qual-
zer (o autor se refere compulsäo repetiqäo re- quer relacäo com um poder mortffero, o que des-
lacionada com a pulsäo de morte) deve ser, em tröi a tentacäo da identidade ünica, o que, en-
principio, reduzido tanto quanto possivel, ou fim, possibilita a travessia da experiencia-limite.
melhor, deslocado. ...existe de fato um domi-
nio parte, uma ordem da repetiqäo situada

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Kropotkin, P. Paroles d'un révolté, Champs/Flammarion.
Laplanche, J. Vie et mort en psychanalyse, Flammarion.
M. de Uzan, De I'art a la mort, Gallimard, N.R.F.
Malaurie, J. Les derniers rois de Thulé, Terre humaine,
Plon.
Marty, P. Les mouvements individuels de vie et de mort,
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McDougall, J. Plaidoyer pour une certaine anormalité,
Gallimard, N.R.F.
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Antelme, R. L'espéce lumaine, Tel, Gallimard.


Aulagnier, P. Séminaires Sainte-Anne, marqo 78-maio 79;
Les destins duplaisir, P.U.F., 1979
Blanchot, M. L 'entretien infini, Gallimard.
Blond, G. La grande armée du drapeau noir, Presses de
la Cite.
Dorey, R. "Réalité de la perte, réalité de la mort en psycha-
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Gallimard.
Freud, S. As pulsöes e seu destino; Além do principio do
prazer; O problema econömico do masoquismo; Mal-
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Guerin, D. L'anarcbisme, Idées/Gallimard.

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