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FOLHETIM 17/18
FOLHETIM 17/18
Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro ISSN 1982-5986

A política da psicanálise e o corpo


ANO XVI – NÚMERO 17 – DEZEMBRO 2018
ANO XVII – NÚMERO 18 – JUNHO 2019
© 2020, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro

FOLHETIM Conselho Editorial


Ano XVI, n. 17, dez. 2018
Ano XVII, n. 18, jun. 2019 Antonio Quinet
ISSN 1982-5986 (UVA-RJ/ EPFCL-Brasil)
Andréa Franco Milagres
Editor Responsável (PUC-Minas Gerais / EPFCL – Brasil)
Vera Pollo David Bernard
(Université de Rennes 2 / EPFCL-França)
Editor Executivo Florencia Farías
Bela Malvina Szajdenfisz (Universidad de Buenos Aires / EPFCL – Argentina)
Gloria Patricia Peláez Jaramillo
Comissão Executiva (Universidad de Antioquia / EPFCL – Colômbia)
Felipe Grillo Luis Achilles Rodrigues Furtado
Julie Travassos (UFC-Campus de Sobral/ EPFCL-Brasil)
Leonardo Pimentel Luiz Werneck Viana
Luciene Costa (PUC- Rio de Janeiro – Brasil)
Maria Luísa Rodrigues Raul Albino Pacheco Filho
(PUC-SP /EPFCL – Brasil)
Abreviaturas utilizadas nesta revista: Sonia Alberti
A.E.: analista da Escola (UERJ-RJ / EPFCL-Brasil)
A.M.E.: analista membro da Escola Tania Cristina Rivera
IF- EPFCL Internacional dos Fóruns- (UFF-RJ/Corpo Freudiano do Rio de Janeiro – Brasil)
Escola de Psicanálise dos Fóruns
do Campo Lacaniano
FCL: Fórum do Campo Lacaniano

Ficha catalográfica

FOLHETIM / Fórum do Campo Lacaniano do


Rio de Janeiro. - Ano III, n. 0 (2001). - Rio de
Janeiro, FCL-RJ, 2001.

Semestral
ISSN 1982-5986

1. Psicanálise – Periódicos. I Fórum do Campo


Lacaniano do Rio de Janeiro

CDD 150.195

Catalogação: Luciene Costa – Bibliotecária CRB/7 – 6044

FÓRUM DO CAMPO LACANIANO – RIO DE JANEIRO


Internacional dos Fóruns - Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (IF-EPFCL)
Rua Goethe, 66/2º andar – Cep 22281-020 – Botafogo – Rio de Janeiro – Brasil
Tel/fax: (21) 2527-6624 – Site: http://www.campolacanianorj.com.br / E-mail: fcl-rio@fcclrio.org.br
E-grupos: fcl-rio@yahoogrupos.com.br (grupo restrito aos membros do Fórum do Rio de Janeiro)
secretaria@fcclrio.com.br / biblioteca@fcclrio.org.br
Sumário

Editorial
Vera Pollo ......................................................................................9

CARTEL E PASSE ....................................................................15


Testemunho do passe
Marcelo Mazzuca .......................................................................16
No more bricks on the wall! O cartel e a letra
Luis Achilles Rodrigues Furtado ...................................................37
A política do dispositivo do passe e o tempo de designação
de um passador
Joseane Garcia .............................................................................45
Ⱥ Política e a Psicanálise: de que endereçamento se trata?
Agnes Meneguelli ........................................................................57
Verdade, ou fato ou fake: Verdade, irmã de gozo e o Tractatus
Lógico-Philosophicus
Rosanne Grippi ...........................................................................65

POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E


DISPOSITIVOS PÚBLICOS .....................................................78
Lugar de fala
Carol Leão ..................................................................................79
Uma política da psicanálise dos assuntos públicos?
Dyhalma N. Ávila-López............................................................85
Política, um tonel das Danaides, uma discordância sem fim
Silvana Pessoa.............................................................................97
Narcisismo e violência contra jovens negros e pobres
no Brasil
Katia Sento Sé Mello .................................................................105
Psicanálise e atenção psicossocial: sobre instituir espaços
de escuta no Sertão
Camilla Araújo Lopes Vieira ......................................................118
O saber e a transferência na clínica psicanalítica
Luciana da Conceição Guerrão ...................................................131

CORPO E CLÍNICA ...............................................................140


O suporte é o corpo
Vera Pollo ..................................................................................141
Corpos em sacrifício
Alba Abreu Lima.......................................................................151
Corpo a corpo – Clariceando Lacan
Gonçalo Moraes Galvão .............................................................159
Ressonâncias do significante no corpo
Raquel Puga .............................................................................164

RESENHA ...............................................................................173
O Inconsciente Teatral: do divã ao palco
Cinara Santos ...........................................................................174
Contents

Editorial
Vera Pollo ......................................................................................9

CARTEL AND PASS ................................................................15


Pass testimony
Marcelo Mazzuca .......................................................................16
No more bricks on the wall! The cartel and the letter
Luis Achilles Rodrigues Furtado ...................................................37
The device policy of the pass and the designating time of
a passer
Joseane Garcia .............................................................................45
Politics and Psychoanalysis: a question of orientation?
Agnes Meneguelli ........................................................................57
Truth, either fact or fake: Truth, the sister of juissance and
the Tractatus Logico-Philosophicus
Rosanne Grippi ...........................................................................65

THE POLITICS OF PSYCHOANALYSIS IN


INSTITUITIONS AND PUBLIC REGULATIONS...................78
Speech place
Carol Leão ..................................................................................79
A politics of psychoanalysis regarding public affairs?
Dyhalma N. Ávila-López............................................................85
Política, um tonel das Danaides, uma discordância sem fim
Silvana Pessoa.............................................................................97
Narcissism and violence against poor African American
youth in Brazil
Katia Sento Sé Mello .................................................................105
Psychoanalysis and psychosocial care: on establishing
listening spaces in the Brazilian Sertão
Camilla Araújo Lopes Vieira ......................................................118
Savoir and transference in psychoanalytical praxis
Luciana da Conceição Guerrão ...................................................131

BODY AND CLINIC ..............................................................140


The support is the body
Vera Pollo ..................................................................................141
Bodies in Sacrifice
Alba Abreu Lima.......................................................................151
Body to body – Clarice-ing Lacan
Gonçalo Moraes Galvão .............................................................159
Resonances of the signifier in the body
Raquel Puga .............................................................................164

REVIEW ..................................................................................173
The Theatrical Unconscious: from the couch to the stage
Cinara Santos ...........................................................................174
EDITORIAL

Editorial

O presente número de Folhetim reúne trabalhos apresentados


em diferentes momentos e lugares em que ocorreram nos-
sas atividades de Escola no decorrer de 2019: Jornadas locais de
Fóruns do Campo Lacaniano; Encontro nacional da Escola dos
Fóruns em Aracaju, Simpósio interamericano da Internacional
dos Fóruns, em Pereira, na Colômbia. Mas, não só. Há também
alguns textos, que tiveram inicialmente outros destinos, e dentre
eles se destaca o “Testemunho do passe”, de Marcelo Mazzuca,
com o qual abrimos este volume. Ao final, a Resenha do livro “O
inconsciente teatral”, de Antonio Quinet, redigida por Cinara
Santos, fecha a revista com chave de ouro.
Ele é, por isso, um número duplo, 17-18, com um tema
bastante abrangente: A política da psicanálise e o corpo. Optamos
por dividi-lo em três seções assim nomeadas: Cartel e Passe; A
Política da Psicanálise nas Instituições e Dispositivos Públicos;
Corpo e Clínica. Em seu artigo testemunhal, o primeiro deste
volume, Mazzuca elabora principalmente sua experiência como
membro do cartel do passe e as consequências do dispositivo na
Escola como um todo. Indaga se o passe não tem justamente a
estrutura de um “ato falho”, descreve o que denominou de “empu-
xo-ao-passe no Brasil” e levanta a hipótese de que é possível cons-
truir uma “clínica do passador”, mas não uma “clínica do passante”.
Na primeira seção, Luis Achilles nos brinda – o termo é
este mesmo: um brinde – com um trabalho sobre o cartel. Não
sem passar pelo rock, uma de suas paixões. Ao final, entendemos
claramente por que seu texto foi intitulado No more bricks on the

Editorial – Vera Pollo 9


EDITORIAL

wall, pois: “Longe de colocar tijolos nas paredes, produzindo um


castelo ou fortificação militar, religiosa e/ou narcísica, o cartel
delineia o litoral que admite a faixa transitória entre a malea-
bilidade da linguagem e a dureza do real.” Desnecessário dizer
que seu texto percorre detalhadamente o conceito e a etimologia
do cartel, assim como o conceito lacaniano de letra, tão tardio
quanto difícil.
Joseane Garcia relata sua experiência de alguém que foi sor-
teado para trabalhar como passador, mas não chegou a fazê-lo, por
já ter terminado sua análise. Percorre textos de Lacan e de colegas
da nossa Escola, e acaba propondo que se volte a discutir o prazo
estipulado para alguém funcionar como passador. Ela defende a
ideia de que esse tempo poderia estender-se um pouco além do fim
da análise, e termina subscrevendo o termo cunhado por Finger-
mann, qual seja, o “passador lógico”.
Agnes Meneguelli encontra três dimensões da política na
obra de Freud, por ela nomeadas como: a dimensão psíquica na
política; a dimensão política no psiquismo; a dimensão política na
técnica psicanalítica. Em seguida, indaga ousadamente qual teria
sido o desejo de Lacan ao transitar entre a afirmação de que “o in-
consciente é político” e a de que “o bom psicanalista é o político.”
Seu texto lança questões realmente fundamentais e conclui na im-
portância de se distinguir as duas modalidades do Um, da classe e
da singularidade, ou, conforme suas palavras, Um simbólico e Um
real. Suas consequências são diversas.
Rosanne Grippi se propõe a nada mais, nada menos, do que
responder a um desafio feito por Lacan no Seminário 17: que nos
dispuséssemos a ler o “Tratado lógico-filosófico” de Wittgenstein.
Com esse intuito, ela aborda o tema da verdade e aponta diferen-
ças entre a verdade na lógica proposicional e na experiência do real
de uma análise.
A seção intitulada “A Política da Psicanálise nas Instituições
e Dispositivos Públicos” tem início com o trabalho de Carol Leão
sobre “Lugar de fala”. Partindo da observação de que se passa moe-

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EDITORIAL

bianamente, portanto, imperceptivelmente, da “psicanálise em di-


reção à política” para “a política em direção à psicanálise”, Carol
indaga sucessivamente o lugar de fala nas dimensões do imaginá-
rio, do simbólico e do real. Além de esclarecer a “sutileza da mi-
cropolítica da norma”, pela qual se explicam, entre tantas outras, a
fala do colonizado que “pensa” com a cabeça do colonizador, seu
texto salienta que as formulações sobre o lugar da fala nos levam a
indagar também se nossas elaborações teóricas não estão livres de
enquadres normativos.
“Uma política da psicanálise dos assuntos públicos?” Eis a in-
dagação de que parte Dyhalma Ávila-López para discorrer sobre
a situação histórica e política de seu país durante os últimos anos,
começando pela devastação gerada pelo furacão que assolou Porto
Rico em 2017. Seu texto relata eventos tão ou mais devastadores
ainda, ocasionados pela ganância de um governo corrupto, misó-
gino e assassino, e culminando nos movimentos de massa que, em
2019, exigiram e tiveram êxito na deposição do chefe de Estado.
Em seguida, Dyhalma menciona o ato do Fórum do Campo La-
caniano de Porto Rico de publicar um manifesto exigindo a re-
núncia do governador, em nome da clínica psicanalítica e de suas
consequências éticas. Embora tenhamos um consenso, na Escola
dos Fóruns, acerca das relações analista-analisando, o mesmo não
acontece quando se trata de pensar em que circunstâncias um psi-
canalista pode e/ou deve posicionar-se como cidadão. Seu texto
me deixou com a impressão de que Dyhalma lamentava ter cons-
tatado tal ausência de consenso, pois, em contrapartida, ao final,
ela afirma apostar no consenso de todos os psicanalistas a favor da
democracia. Para nós, que vimos acompanhando a situação políti-
ca do Brasil nestes últimos anos, com todos os atos de desconstru-
ção e desmando de um governo de extrema-direita, é assustadora
a semelhança destes com os eventos narrados por Dyhalma. Con-
tudo, se enfatizarmos os resultados obtidos pelas manifestações de
massa em Porto Rico, quiçá tal semelhança possa vir a ser trans-
missora de algum otimismo.

Editorial – Vera Pollo 11


EDITORIAL

Na continuidade dos textos que indagam a articulação en-


tre política e psicanálise, Silvana Pessoa defende o argumento de
que a política, como o tonel das Danaides, é sempre produtora de
discordâncias. Segundo ela, este teria sido um motivo importante
para que colegas do Fórum de São Paulo decidissem dar uma volta
a mais em seus estudos topológicos e indagar “o psicanalista na
política”. Estudo que, a seu ver, irá ajudar o psicanalista a lidar
com as vicissitudes da política e a apostar na “igualdade na diver-
sidade”. A intolerância à diversidade, com suas consequências de
racismo e segregação, é também o tema do artigo de Kátia Mello,
do Fórum Rio. Seu objetivo é elaborar uma possível contribuição
da psicanálise no esclarecimento da violência dirigida aos jovens
negros e pobres, moradores das favelas do Rio de Janeiro. Os da-
dos estatísticos relativos a assassinatos e homicídios desvelam uma
crueldade ímpar, devendo ser interpretados não tanto como uma
“guerra”, pois são, mais precisamente, um “genocídio”. Seu artigo
é ilustrado por algumas fotos que a levam a indagar, entre outras
coisas, a razão pela qual um policial negro pode ser tão violento
com um jovem negro. O conceito freudiano de “narcisismo da pe-
quena diferença” se mostra, nesse caso, bastante profícuo.
Camilla Lopes Vieira elabora sua experiência como supervi-
sora clínico-institucional em uma CAPS do município de Sobral,
no Ceará. Em seus termos, os textos de Lacan permitem uma re-
flexão necessária sobre o modelo de atenção à loucura que padro-
niza os sujeitos, especializa os saberes e reafirma o discurso médi-
co em que o outro é sempre aquele que precisa de cuidados, não
de autonomia. Luciana Guerrão também aborda sua experiência
prévia em ambulatório de Saúde Mental, onde ela, assim como
Camilla, aceitou o desafio de sustentar a função de psicanalista
em uma instituição pública. Sua questão é focada precisamente no
saber: que saber é desejável à prática e à sustentação da psicanálise
em extensão.
A terceira e última seção, “Corpo e Clínica”, tem início em
um texto de minha autoria, intitulado “O suporte é o corpo”. Nele,

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EDITORIAL

procuro trazer as análises políticas de alguns intelectuais contem-


porâneos, em sua maioria professores universitários das áreas da fi-
losofia e da história, cujas obras escritas e conferências já alcançam
renome mundial. Assinalo a proximidade das suas análises com
alguns conceitos e observações de Freud e de Lacan. Recorro bre-
vemente à linguística, para entender as assim chamadas Fake News
e procuro indagar o que pode um psicanalista em tempos de bar-
bárie. No texto que vem a seguir, Alba Abreu Lima aborda a cons-
tituição do corpo do falasser e se debruça sobre o filme “O caso do
cervo sagrado”. Ela o interpreta como uma versão contemporânea
da tragédia de Eurípedes “Ifigênia em Áulides”, a qual demonstra
como o gozo do pai passa de uma a outra geração, produzindo,
quando não elucidado, “corpos em sacrifício”. Gonçalo Galvão
realiza uma reflexão sobre o corpo, a partir do conto de Clarice
Lispector, intitulado justamente “O Corpo”. Um artigo, muito
bem vindo neste ano em que se comemora o centenário de nas-
cimento dessa importante jornalista e escritora brasileira, nascida
na Ucrânia, mas que emigrou na companhia dos pais ainda na pri-
meira infância. Premiada e traduzida em várias línguas, seus livros
já deram origem a belos filmes, em particular “A hora da estrela”.
Sua obra é, indubitavelmente, um rico testemunho do que Freud
e Lacan enfatizaram como “um saber fazer com o próprio incons-
ciente”, que, por vezes, prepara e antecipa o saber psicanalítico.
“A paixão segundo G H” é um livro simplesmente inesquecível.
O último texto desta seção, “Ressonâncias do significante no
corpo”, escrito por Raquel Puga, tem como eixo condutor o recorte
da análise de um menino de cinco anos e lhe permite demonstrar
de que modo a introdução de um significante - qualquer um, mas
não um qualquer, pois tem a ver com a singularidade do sujeito -
faz corte na continuidade do gozo obscuro e invasivo da criança. A
autora demonstra também uma fineza clínica que faz do texto um
verdadeiro aprendizado.
Disse que temos um brinde no início deste volume, com o
rigor e a leveza do trabalho de Achilles sobre o cartel. Ora, temos

Editorial – Vera Pollo 13


EDITORIAL

também um brinde ao final, com a Resenha de Cinara Santos do


livro recentemente lançado por Antonio Quinet, “O Inconsciente
teatral – psicanálise e teatro: homologias”. Como Cinara acentua,
ele pode ser a porta de entrada na psicanálise do leigo que se dis-
puser a lê-lo, ou o texto que faltava na biblioteca do psicanalista,
junto às obras de Freud e de Lacan. Ao articular psicanálise e tea-
tro, sua linguagem é clara e rigorosa, autobiográfica e conceitual.
Eu quase diria, seguindo a orientação da autora da Resenha, que
o livro é simultaneamente singular e universal, porque desvela as
memórias do autor, mas toca no inconsciente do leitor.
Vamos à leitura!

Vera Pollo

14 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.9-14
CARTEL E PASSE
CARTEL E PASSE

Testemunho do passe 1

Marcelo Mazzuca

G ostaria de discutir, inicialmente, algumas questões sobre o


passe. Muitas perguntas e inquietudes sobre seu funciona-
mento não são somente minhas, digamos que elas têm mais a ver
com as consequências do passe no sentido mais amplo, ou seja, no
âmbito da Escola. Trata-se de uma reflexão, uma pergunta sobre
o que acontece no nível da Escola como instituição, a partir do
passe, e não apenas sobre seu dispositivo. Uma pergunta sobre o
procedimento do passe e também sobre seus efeitos, suas conse-
quências no nível de todos os atores da Escola, e não apenas no
nível daqueles que dele participam, isto é, o secretariado do passe,
o passante, os passadores e os membros do cartel do passe.
O que eu teria para esclarecer primeiramente, algo sobre o
qual venho pensando, é minha experiência nos cartéis do passe,
cuja base está em outra experiência: a de ter passado pelo disposi-
tivo como passante, que recebeu do cartel do passe a nomeação de
Analista de Escola (AE). Isso significou um trabalho interessante,
porém bastante árduo durante os dois ou três anos como AE. Mas
definitivamente o que me faz eco hoje tem a ver com minha expe-
riência como passante, e não como AE; tem a ver com ter partici-
pado do outro lado do dispositivo. Cara a cara com os passadores
também. Mas agora, com o respaldo do dispositivo, pude realizar
minha primeira experiência no cartel do passe, a partir do que já
vivi como passante.
Antes de me por a pensar, minha primeira sensação, quase
repentina, foi a de que minha experiência como passante era mui-
to compatível ao que me acontecia como membro dos cartéis do
1 Palestra apresentada no Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro, nos dias 29 e
30 de abril de 2019.

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CARTEL E PASSE

passe. Duas vivências que são bastante diferentes, porque uma é


mais delimitada, com entrevistas junto aos passadores; já, no caso
da outra, devem saber que o Colégio Internacional da Garantia
funciona durante dois anos. E durante esses dois anos me coube
participar de dez passes aproximadamente. Curiosamente nenhum
destes terminou na nomeação de AE.
No entanto, não tomei essa experiência como algo sem inte-
resse ou sem proveito; talvez, em certo sentido, tenha sido o opos-
to. Vou falar algo sobre essa experiência pontual, porém com o
recato necessário; afinal, não nos cabe falar sobre tais casos em
questão. Pois me parece que Lacan pensou, propôs – e desejou, in-
clusive – que os cartéis não fossem simplesmente avaliadores, que
não se limitassem à função de “sim” ou “não” de nomeação, mas
que houvesse certa elaboração que permitisse pensar numa doutri-
na, termo presente na “Proposição de 9 de outubro de 1967”.
Enquanto estive no cartel do passe, recolhemos nove ou dez
passes sem nenhuma nomeação, enquanto isso, outros colegas que
participaram dos cartéis nestes dois anos, estes, sim, puderam par-
ticipar de um passe, como propõe Lacan, no qual foi possível au-
tentificar a transmissão do desejo do analista. Mas, na realidade,
isso não é algo tão estranho. Quero dizer que, se, em nove ou dez
passes, alguns dos meus colegas puderam participar de uma no-
meação, tiveram muita sorte, um vento que soprava a favor. Quem
sabe duas nomeações, não mais do que isso. O que definitivamente
já merece uma primeira reflexão.
Mas poderíamos nos perguntar por que, ao longo destes anos
– quinze, dezessete anos, não sei exatamente há quanto tempo
funciona em nossa Escola o dispositivo do passe – por que o per-
centual de nomeados a AE sempre se mantém mais ou menos
igual? Em torno de dez ou vinte por cento. Ou seja, uma ou duas
de cada dez pessoas que se apresentam para o passe são nomeadas.
Isso é por acaso? Não, não me parece.
Essa é uma ideia que me ocorre há uns dez anos, a ideia de
que há uma complexidade do dispositivo, no procedimento, que

Testemunho do passe – Marcelo Mazzuca 17


CARTEL E PASSE

faz com que a transmissão possa facilmente falhar, travar, encon-


trar obstáculos em alguns dos passos, em alguns dos tempos desse
procedimento. Isso é assim, e talvez valha a pena levar tal fato em
consideração, para ver a que se pode aspirar, o que se pode esperar.
Ouve-se às vezes em tom de queixa, reclamação e lamento,
que há poucas nomeações de analistas da Escola, considerada a
importância que supostamente lhe damos a partir da proposta de
Lacan para o funcionamento da Escola. Mas é assim. Isso tem
uma razão de ser, uma razão estrutural e lógica que impõe certo
marco, certas leis a uma experiência que depende muito do acaso,
da sorte, do encontro e do desencontro. É uma experiência de en-
contros e desencontros – e, provavelmente, é uma experiência mais
habitualmente de desencontros do que de encontros.
É preciso uma série de bons encontros para que isso passe, e
um só desencontro pode bastar para que o dispositivo não funcione
até o final. Isso que me parecia claro quando participei como
passante – isto é, que se trata de uma experiência que responde a
uma estrutura –, pude corroborar com mais clareza participando
dos cartéis do passe.
Isso quer dizer, para retomar uma expressão de Lacan de
1978, que há algo na psicanálise que é intransmissível. Lacan che-
gou a dizer que isso lhe era muito incômodo, que o afetava, que
o deixava mal. Mais especificamente, Lacan dizia que se incomo-
dava com o fato de que cada psicanalista – e eu acrescentaria tam-
bém cada analisante, cada passante, cada passador, cada AME que
forma parte do cartel do passe – tem que reinventar a psicanálise.
Existe uma dificuldade com a transmissão da psicanálise.
Trata-se disso no dispositivo do passe: se se transmite ou não
aquilo que chamamos de desejo do analista, desejo de analisar,
desejo de ocupar a posição de uma função de analista. Isso se
transmite ou não se transmite? Ou seja, em um sentido mais
amplo, a psicanálise se transmite ou não? Essa é a tela de fun-
do fundamental, parece-me. A transmissão da psicanálise não é
equivalente ao ensino da psicanálise; são duas coisas que se po-

18 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.16-36
CARTEL E PASSE

dem distinguir, mas não desenvolverei esse ponto aqui. Retomo:


é transmissível a psicanálise e, mais pontualmente, seu coração
que é o desejo do analista?
É dificilmente transmissível. E a baixa proporção de
nomeações é uma boa prova, um sinal de que estamos fazendo as
coisas mais ou menos bem. Seria de se suspeitar caso tivéssemos
uma porcentagem mais alta de nomeações.
Foi o que me passou essa experiência no dispositivo: que
tínhamos que fazer o esforço, cada um, de reinventar até mes-
mo os termos, as palavras. Podemos usar as grandes referências
convencionais como a de “inconsciente”, por exemplo, conceito
fundamental, e estamos seguros de que algo se transmite quan-
do compartilhamos esse termo freudiano. Ou poderia se passar o
mesmo a partir da mudança que Lacan propõe: em vez de dizer
“o inconsciente”, usar “a equivocação”, “uma equivocação” – pode-
mos afrancesá-lo um pouco, “une bévue” –, mas estaríamos com o
mesmo problema.
Isso se fez muito claro para mim. Precisávamos encontrar,
não nos termos da teoria nem da doutrina, a forma de pescar algo
do que se transmite. Ou mesmo no esforço estendido em uma ca-
deia entre os passantes e passadores; em cada um desses pontos, é
preciso reinventar a forma de dizê-lo. Isso me parece fundamental.
Então, o primeiro ponto, a primeira pergunta é sobre a estrutura
e o funcionamento desse dispositivo. Por que é tão complexo? Por
que tende a encontrar dificuldades?
Para respondê-lo, eu me apoio em duas grandes referências.
Digo primeiro a mais simples. O que me parece é que algo passa,
algo estranho, particular e curioso, algo passa com o tempo, nesse
dispositivo, e que merece uma reflexão. A segunda vou dizê-la com
um pouco de calma. São dois aspectos: por um lado, algo acontece
com o inconsciente, com a experiência do inconsciente. Chamá-
-lo-emos de inconsciente ou de equivocação, ou inventemos, cada
um, outro nome, outra maneira de nomear o inconsciente – esse
campo, essa experiência, como dizia Freud.

Testemunho do passe – Marcelo Mazzuca 19


CARTEL E PASSE

Nesse dispositivo existe algo da comunicação de inconsciente


a inconsciente. Isso me pareceu muito forte e notório também na
minha experiência como passante. Afinal, ao se fazer essa expe-
riência não se trata de contar uma experiência do passado, mas de
participar da experiência em si mesma, na qual o inconsciente ou
os inconscientes se introduzem de formas diferentes, respondendo
à estrutura e à lógica da experiência do inconsciente que cada um
de nós conhece como analisante.
Comecei a refletir há algum tempo – a palavra “tempo” volta...
o tempo todo, faz muito tempo, na realidade praticamente desde
que comecei minha análise. Tinha que dizê-lo, pois é um aspecto
do meu sintoma fundamental, não saber-fazer muito bem com o
tempo. E isso funciona como uma advertência, pois tendo feito e
finalizado um percurso em análise, tenho conseguido fazer alguma
coisa com o meu sintoma, inclusive com o tempo, mas algo fica.
Depois de um ano de participação nos cartéis do passe, escre-
vi essas reflexões e as publiquei na revista Sic, uma revista do Foro
Analítico del Río de la Plata, ao qual pertenço. Parte do que hoje
vou apresentar como inquietações e perguntas está um pouco mais
desenvolvido. A respeito do tempo, parece-me que há algo com o
tempo, com a temporalidade, com o tempo também no sentido do
ritmo, que se faz notar; e acredito que é muito útil pensar a partir
da referência de Lacan ao distinguir os tempos lógicos. E isso, to-
davia, é mais notável do que a experiência de uma análise porque
responde à mesma lógica.
O dispositivo do passe se ordena temporalmente em função
do instante de ver, de advertir, de dar-se conta com alguma afe-
tação – pode ser surpresa, bem-estar, mal-estar –; mas há essa
temporalidade, um instante, um ponto de partida. Há um tempo
para compreender, e me chamava atenção que Lacan usasse a
palavra “tempo” no segundo tempo dos três tempos – é quase
um trava-língua com a palavra tempo. Temos o instante de ver, o
tempo de compreender e o momento de concluir. Mas depois en-
contrei Lacan reinventando-se um pouco, ele mesmo deve ter se

20 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.16-36
CARTEL E PASSE

escutado: por que chamar de tempo o segundo, e não o primeiro


ou o terceiro?
É verdade que esse é um tempo que tem uma cronologia, que
se desdobra, que tem voltas. Mas em “O Seminário, livro 21”, La-
can o chama de “a coisa para compreender”, não de tempo: o ins-
tante de ver, a coisa para compreender e o momento de concluir.
Parece-me um pouco mais adequado à minha experiência e ao in-
tento de nomear ou descrever a experiência dessa temporalidade,
falar da coisa a ser compreendida. Evidentemente se pode tentar
compreendê-la ao prestar atenção àquilo que não se compreende.
O que é feito nesse tempo durável.
Por outro lado, temos o tempo em se busca transmitir algo
nos encontros entre os passantes e os passadores, cujo tempo cro-
nológico não está previsto. Uma entrevista, duas, três, quatro...
Quantas? Quanto dura cada entrevista? Ou seja, também pode ser
em outro momento no qual os passadores se reúnem com os car-
téis do passe. Aí a experiência costuma ser um pouco mais comum,
mais tipificável. Em geral, é feita uma entrevista, um encontro,
com cada um dos passadores. Ainda que possa acontecer de se
convocar uma segunda entrevista, por exemplo, por algum pedido
de esclarecimento.
Não desenvolvo agora isso, mas o denominador comum é que
a estrutura, a lógica do tempo, permanece a mesma que prevalece
numa análise, que transcorre pelas vias da transmissão do incons-
ciente. Mas, ao mesmo tempo, é tudo mais diminuído, mais curto,
consideravelmente. O que causa, acredito, diferentes efeitos, e isso
se nota. Assim, a forma mais simples de dizê-lo é que, quando
alguém vive essa experiência, sai dizendo que algo acontece com o
tempo, passa ou não passa.
Logo, para começar a dizer algo do que acredito ser a peça
mais sensível desse dispositivo, temos que a transmissão pode fa-
lhar em qualquer um desses pontos. Inclusive, pode falhar – estou
seguro disso – se o secretariado do passe não faz bem o trabalho
de tratamento da demanda do passe. É algo que venho salientando

Testemunho do passe – Marcelo Mazzuca 21


CARTEL E PASSE

muito desde a minha experiência como passante. Para mim, a ex-


periência do passe, quero dizer, introduzir-me nessa temporalida-
de que não era aquela de todos os dias, da minha experiência como
analisado que havia terminado a análise, isso começou quando fiz
minha entrevista com o secretariado do passe. A forma como me
perguntou, o que me perguntou, e os efeitos que isso produziu me
fizeram ingressar na experiência do dispositivo.
E posso dizer mais diretamente, sem o temor de me equivo-
car, que, em mais de um dos passes que escutei, algo já começou a
ir mal desde a entrevista com o secretariado do passe. É difícil de
argumentar a esse respeito, e muito mais difícil é transmiti-lo a vo-
cês sem poder desenvolver as variáveis de cada passe, de cada caso.
Mas tenho a intuição de que, efetivamente, algo já pode favorecer
ou não a transmissão desde esse ponto. Claro que algo também
pode falhar no encontro dos passantes com os passadores. Mas fi-
cou muito mais claro para mim, a partir da experiência dos cartéis,
que a tarefa do passador é a mais sensível de todas essas peças, a
mais delicada, e, ao mesmo tempo, a chave do processo.
Insisto para que fique claro, não é que tudo esteja nessa ins-
tância dos encontros dos passadores com os passantes e com o
cartel, algo pode falhar junto ao secretariado, como pode falhar
também com o trabalho que faz o cartel do passe. Mas hoje enten-
do, captando cada vez melhor, porque Lacan insistia em dizer que
o passador é o passe. Falava assim, com essa força, que é mais do
que dizer que o passador é uma peça fundamental, ou a chave, ou
a essência. Ele é o passe.
Trata-se, portanto, de uma experiência um pouco forte, ou
bastante forte e comovente – como acredito que seja especialmen-
te para o passador. Estou pensando e tentando elaborar isso; na
verdade, acredito que há bastante tempo a pergunta sobre a tarefa
da função do passador está no centro das nossas reflexões. E isso
efetivamente tem uma lógica, há algo que nos impulsiona a pen-
sar sobretudo na função do passador. Que é justamente o que eu
não pude fazer, porque não participei como passador, porque não

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CARTEL E PASSE

me analisei com um AME da nossa Escola. Então nunca teria


a chance de fazê-lo, a não ser que eu venha a me analisar uma
segunda ou terceira vez. Mas isso não faz falta, devido à geniali-
dade dessa coisa que Lacan inventou e que responde, em parte, a
sua experiência. Lacan disse que ele acreditou averiguar algo desse
passe, desse passo do analisante ao analista. Ele deve ter tido essa
experiência de alguma forma, talvez como analisante, talvez como
quem ensina. E, por isso, ele criou e armou algo para ver se isso
podia ampliar-se um pouquinho mais.
Mas realmente há algo de muito criativo no que Lacan in-
ventou, porque nunca se pode ter uma visão do dispositivo em
seu conjunto. A experiência e a visão são sempre parciais. Ainda
que eu fizesse análise com um AME, que me designassem e que
eu trabalhasse como passador, que eu fizesse parte do secretariado
do passe, dá no mesmo: a visão e essa experiência sempre serão
parciais.
Para concluir, gostaria de dizer que é muito presente em mi-
nha experiência com 18 ou 20 passadores o que escutei como essa
dificuldade para tratar de manejar essa experiência do tempo. E o
que se escuta reiteradamente entre os passadores – e isso tem que
corresponder a uma lógica – é uma reclamação de que há pouco
tempo, que o tempo não é suficiente. Com o passante, depende
do encontro ou desencontro. Às vezes os passadores forçam um
pouco o passante, pedem algumas entrevistas a mais, pedem mais
informações. Às vezes isso demora um bom tempo e, antes de
encontrar-se com os cartéis do passe, os passadores sentem a ne-
cessidade de marcar um novo encontro, visando esclarecimentos,
checar a informação, como fazem os jornalistas.
Efetivamente isso responde a algo da lógica de uma expe-
riência na qual o passador está exposto de cara a três instâncias
distintas: ao passante, por um lado; ao Cartel do passe, por outro;
mas também a seu analista que, como AME, designou-o sem avi-
so. Então, se há um participante desse dispositivo junto ao qual se
pode apreciar de uma maneira patética – quero dizer no sentido

Testemunho do passe – Marcelo Mazzuca 23


CARTEL E PASSE

do phatos, do sofrimento, de afetação de algo que se faz presen-


te, bem vivo, no corpo – a referência a esta loucura do tempo do
inconsciente, este é o passador. Claro que também no passante,
também no cartel do passe, mas sobretudo no passador, porque
ele é o passe.
E, assim, adianto algo sobre a segunda pergunta: há uma clí-
nica do passe ou não? Pode-se fazer uma clínica do passe? Num
sentido estrito, parece-me que não há clínica do momento do passe.
Não me refiro ao dispositivo institucional, mas a esse tempo, fase,
instante ou instantes, da experiência como analisante no qual se
passa a outra coisa. Desse passe, que tem a estrutura e a lógica de
um ato, é praticamente impossível fazer clínica, elaboração, pois as
categorias caem por terra.
Porém, do dispositivo institucional, talvez seja possível. Po-
deria ser feito de duas formas distintas: ou se pode tirar um pro-
veito para tratar de confirmar problemas clínicos ou resoluções
clínicas da psicanálise; ou se pode pensar na clínica do passe como
uma clínica do passador, daquele que efetivamente se vê afetado
em ato. Isso chamou muito minha atenção na experiência dos
cartéis do passe, o fato de que, por um lado, supõe-se que o sinto-
ma a ser interrogado, do qual espera-se saber algo no testemunho
– e, por testemunho, entendo o resultado de todo o procedimen-
to, não apenas o que diz o passante ou o AE; o testemunho se
configura por essa transmissão indireta do passante, via os dois
passadores, que se faz ressoar no cartel do passe –, o sintoma do
qual se fala, do qual se encontra a lógica, a transformação, su-
põe-se ser o do passante, mas, na realidade, em ato, o que fica
sintomatizado é o passador.
No Espaço Escola – que atualmente coordeno junto com
Julieta de Batista, atual AE da nossa Escola, no Fórum de Bue-
nos Aires –, estamos trabalhando neste ano com o título: “As
fantasias do passe”. E começamos a fazer um tipo de ditado com
nomes próprios, inventados, não sei se isso é uma clínica do pas-
se ou do passador, mas poderíamos dizer que nos encontramos

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CARTEL E PASSE

com o passador fascinado, por exemplo, com o passador inibi-


do, com o passador dividido, que acredito às vezes tem maiores
chances de funcionar bem como dividido do que como fascinado
ou inibido. E assim não poderia cada um com seus nomes, suas
categorias, tratar de descrever um certo leque clínico do que o
passador traz. Não esqueçamos que ele é o passe; ou seja, o pas-
sador é o objeto significante de um discurso do Outro incons-
ciente que é o que efetivamente traz um pouco isso do que tem
que se transmitir.
Há outra experiência muito forte, tem vezes que se encon-
tram duas línguas diferentes, ou três; e, às vezes, fala-se o mesmo
idioma, como o espanhol, mas o castelhano se fala muito diferen-
te. O espanhol da Espanha, o espanhol da Argentina e o espanhol
de Colômbia não são a mesma coisa, as categorias, as referências
culturais e os códigos são diversos. E não apenas naquilo que se
diz, mas também como se diz, na cadência, no canto; aí fica muito
mais perceptível que é preciso fazer um esforço para inventar. Por-
que toda tradução é traição, é traidora, deixa algo pelo caminho,
perde-se algo certamente; e não há solução. É um pouco incômo-
do isso. Mas quando algo desse mal-entendido, daquilo que se
entende pouco, funciona, ele ultrapassa o incômodo e se torna algo
surpreendente e gratificante.
Quanto ao tempo, concluo dizendo que tenho encontrado
uma queixa, uma reclamação muito forte dos passadores, a de que
não têm tempo, especialmente junto ao cartel do passe; reclamam
que o cartel lhes dá pouco tempo para transmitir o que têm para
transmitir. Podemos dizer que, em alguns casos, isso pode aconte-
cer com um passador que, talvez, não esteja no momento adequa-
do, não esteja à altura da tarefa que tem de cumprir, ou que não foi
bem designado pelo AME. Todas essas coisas que sabemos apenas
com a retroação do tempo, sabe-se apenas depois, pois é muito
difícil calcular antecipadamente.
Mas, se essa experiência se repete tanto, se esse discurso sobre
o tempo insiste, que dão pouco tempo, há de ter algo na lógica do

Testemunho do passe – Marcelo Mazzuca 25


CARTEL E PASSE

que está acontecendo. E quando é o segundo passador que é es-


cutado pelos cartéis do passe, essa reclamação se escuta ainda com
mais força. De fato, isso quer dizer que, no cartel do passe, não
se escuta da mesma forma o primeiro passador e o segundo. Isso
também tem sua lógica, ainda que, em alguns casos, sejam muito
diferentes as histórias. Histórias, às vezes com i, às vezes, com y,
dependendo se o fator de histeria, de histerização, põe-se em jogo
ou não. Se o passador ficou mais dividido, tocado, histerizado – ao
invés de inibido ou fascinado ao ouvir o passante –, provavelmente
algo disso funciona um pouquinho melhor, acredito. Mas a per-
gunta continua repetindo-se da mesma forma, às vezes como quei-
xa, às vezes com surpresa: Por que tão pouco tempo?
Há algo que muitas vezes os atores do passe sentem como
pressa – há que apressar-se, falta tempo porque é pouco –, mas, na
realidade, trata-se da função lógica da pressa. Isso é muito impor-
tante. Há uma a diferença entre a função pressa e o apressar-se.
Tomemos a neurose obsessiva e o tempo do Outro do neurótico
obsessivo. Ele ou está inibido ou está apressado. Nada disso serve
para concluir. Para concluir é preciso a função lógica da pressa, que
não é o incômodo.
Preciso dizer que a experiência da pressa também me afetou
no primeiro cartel do passe do qual participei, depois não mais.
Porém acredito que, no primeiro, estava um pouco desorientado a
respeito da experiência do tempo, faltou-me tempo. Talvez alguns
de meus colegas do cartel, que tinham experiência no Colégio In-
ternacional da Garantia, já o tivessem vivido de outra forma.
Então, para concluir, digo que a função fundamental da pres-
sa se replica também no cartel do passe. Geralmente, o instante de
ver para cada um dos membros do cartel já se produz ao escutar o
primeiro passador; essa é a grande diferença com relação ao segun-
do. Pode acontecer que, se o encontro com o passador vai muito
mal, esse choque do instante nem sequer se produz. Mas geral-
mente acontece em algum momento da escuta do primeiro passa-
dor. Isso aconteceu comigo: com o segundo já se está escutando

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CARTEL E PASSE

de forma um pouco diferente, já se está um pouco menos afetado


por esse primeiro golpe, já se está no momento de compreender.
Então a pressa se faz mais notória, e o segundo passador, que
é segundo por acaso, por sorte boa ou má, percebe isso, percebe
mais do que o primeiro. E, muitas vezes, ele escreveu várias coisas,
fez anotações, quer dizer tudo aquilo elaborou... e não há tempo,
porque se trata de outro tempo. Não importa tanto se a história é
necessária, esclarecer a verdade mentirosa da história, mas o que se
capta, quando há transmissão, não vem por aí. Vem de algo que,
em geral, conseguimos captar.
Passo agora ao segundo ponto, sobre a modalidade do chis-
te, que é outra referência de Lacan a partir da qual penso a ex-
periência, o procedimento do passe. Foi essa formação do in-
consciente que Lacan elegeu primeiro para dar a topologia do
desejo, a topologia do grafo do desejo e, depois, na “Proposição
de 1967”, ele a elegeu para situar efetivamente as funções da Es-
cola e do passe: o AE, o AME, o cartel do passe e os passadores.
Ele o pensava a partir desse grafo, dessa estrutura, dessa lógica
do desejo, e a formação do inconsciente que lhe corresponde se
chama chiste, Witz.
Trato de nomeá-lo aqui, e vejo que algo não se entende ou
se entende mal, e aí já se produz um pouco do efeito do chiste,
que não é necessariamente a risada ou uma grande gargalhada.
Há chistes bons e chistes ruins. Há chistes que não nos fazem rir,
mas que nos fazem chorar, ou que produzem mal-estar porque
transmitem uma verdade que não sabemos exatamente qual é. E,
no entanto, ela foi transmitida.
Acredito realmente que pude captar e confirmar essa intui-
ção, que tive como passante, de que não só o tempo, mas de que a
estrutura do inconsciente funciona no dispositivo do passe como
um chiste. Inclusive, tenho me divertido um pouco e fantasiado
um pouco, mas talvez haja uma verdade ao dizer que o passe é um
chiste de Lacan. Para alguns acho que foi uma brincadeira de mal
gosto, mais do que um chiste – às vezes isso acontece.

Testemunho do passe – Marcelo Mazzuca 27


CARTEL E PASSE

Quando o chiste tem verdadeiramente a estrutura do ato,


tanto Freud quanto Lacan insistiram que ele é uma forma de
lapso diferente dos demais. É uma formação do inconsciente
como o sintoma, como o sonho, como o lapso enquanto esqueci-
mento – ou seja, o lapso no sentido de queda, de engano –, mas
ainda assim é diferente. Por isso, Lacan definia, em seus termos,
o chiste como esse lapso que passa à frente do inconsciente, que
não fica dando voltas. O inconsciente se distrai e isso passa e se
realiza em ato.
Na maioria das vezes, não sabemos quando se produz um chis-
te. Eu poderia contar um agora: um analisado se encontra com um
não analisado e lhe pergunta: “Alguma vez foste a um labirinto?”.
O não analisado lhe responde: “Não”. Então o outro diz: “Não
tens ideia do que perdeste2”. Riem um pouco aqui, mas, quando o
conto em Buenos Aires, riem muito. Por isso, parece-me um bom
chiste para por à prova o que se perde, a dificuldade de quando se
encontram idiomas diferentes, línguas e códigos diferentes. Mas
ao mesmo tempo não é qualquer termo, a perda, a referência à
perda. Jogar com o equívoco dessa significação da perda pode ser
um bom exemplo.
Não sei quem produziu esse chiste, mas os chistes têm essa
função social, que outras formações do inconsciente não têm,
como já dizia Freud; eles tendem a se reproduzir. Logo, se isso os
afetou, como me afetou, ainda que corra o risco de que aqui não o
entendam muito bem e não riam tanto dele, aparece uma vontade
de recontá-lo.
O dispositivo do passe, como instrumento de transmissão do
desejo inconsciente, funciona como um chiste. E como um chiste
reproduzido, pois, na realidade, o chiste se produz para o analisan-
te no momento em que passa. Por isso, também soa como chiste
o fato de que Lacan chama “passe” tanto o que passa no final da
análise quanto o dispositivo institucional. E o chama passe porque
2 Em espanhol, o verbo é empregado com a partícula “se”, “se perdeste”, criando uma
equivocação com o pronome ‘se” reflexivo.

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CARTEL E PASSE

ele teria escutado algo que ressoou durante o impasse... passe, im-
passe, passo, passa, não passa...
Há algo desse significante, que é do discurso lacaniano, que
acredito ser um chiste. Em algum momento, algum desses ter-
mos produziu um chiste. Essa é a minha fantasia, a de que Lacan,
em algum momento, escutou, afetou-se, esteve em um impasse ao
pensar o complexo de castração: Pode-se passar por isso ou não?
Por que Freud disse que não se passa daí? Essa que é uma expe-
riência de perda, de castração, depressiva, do que se perdeu; disso
não se pode passar? Isso é um obstáculo insuperável ou é um im-
passe? E se é um impasse que impassa, no entanto, passa, passou.
Acredito que Lacan produziu esse chiste, que nós o estamos
reverberando, e que essa é a estrutura da experiência do passe. Um
analisante faz esse chiste, ele se produziu enquanto ato, e não vo-
luntariamente, conscientemente. Mas o fez também ao adiantar-
-se um pouco ao inconsciente. Agora é preciso reproduzi-lo aos
dois passadores, tem que contá-lo de novo, e os dois passadores
têm que contar isso como se fossem reproduzir um chiste. Há
bons contadores de chistes e há maus contadores de chistes. Mas,
além de bom ou mau, há que se produzir o encontro para que algo
desse chiste reverbere e funcione como uma transmissão no social.
É notável que, em seus relatos, os passadores se mostrem
afetados e que produzam sonhos e lapsos; por exemplo, no
momento do relato para os cartéis do passe, sintomatizam um
pouco, como eu estava dizendo. Nisso, os passadores são o passe,
a experiência do inconsciente, são o impasse. Os passadores são
o impasse; na maioria das vezes são o impasse, e não o passe. E
isso porque a experiência se apresenta assim. E convém entender
“impasse” não apenas como obstáculo, mas na outra de suas
acepções, que é compasso de espera.
A coisa fica aí em um tempo que não encontra a pressa para
concluir, seja pelo lado do secretariado ou pelo lado do próprio
passante. Na maioria das vezes, acho que os passadores demoram
nesse tempo para compreender, e eles querem compreender, e isso

Testemunho do passe – Marcelo Mazzuca 29


CARTEL E PASSE

é compreensível. Talvez demorem no momento para concluir por-


que, às vezes, sentem-se afetados de tal forma, que a designação
mesma de seu analista, que ali funciona como AME, produz-lhe
um efeito de interpretação muito forte e ficam aturdidos.
Algo passa com o tempo, algo passa com o inconsciente, na
forma de chiste no funcionamento do dispositivo do passe. Volto
à segunda pergunta: Existe uma clínica do passe? Podemos falar
nesses termos? Acredito que há algo que temos que seguir deba-
tendo e discutindo, mas, por enquanto, penso que não há possibi-
lidade de fazer uma elaboração clínica do momento do passe.
O desejo do analista se deduz em termos lógicos, como eu
estava dizendo, no dizer que se esconde por trás dos ditos no que
se escuta ou se entende. Há uma dedução, há um tempo de tra-
balho do cartel do passe, que tem novamente a mesma estrutura.
Os membros dos cartéis do passe, às vezes, tentam fazer clínica,
tentam encontrar apoio nas referências clínicas que conhecemos:
o sintoma, a fantasia, o trauma, a história infantil etc. Às vezes
tentam apoiar-se também nas teorias, nas doutrinas, do atraves-
samento da fantasia, a identificação com o sintoma. Tentam fazer
clínica, mas isso não basta.
Então é preciso deduzir, não apenas no sentido epistémico,
mas com o que esteve em discussão entre os membros do cartel, à
medida que cada um vai vendo a maneira pela qual se afetou com
o instante de ver, onde está a coisa para compreender, e aí se pro-
duzem os efeitos de chiste também.
Na minha experiência no cartel do passe, em que nenhum
dos passes terminou em nomeação, houve três casos em que, para
mais de um dos membros do cartel, havia ocorrido o passe, algo
da ordem da transmissão de um chiste. Contudo, era preciso tra-
balhar para entrar em um acordo. E, como também não se vota
pela maioria democrática, ocorreu, em um desses casos, que três,
dos cinco membros do cartel, estavam convencidos de que havia
ocorrido o passe, mas não conseguimos convencer os outros dois.
E, sem o chiste coletivo, não havia nomeação.

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CARTEL E PASSE

Portanto, é muito difícil fazer uma clínica do momento do


passe, não o desenvolvo, mas acredito que seja possível fazer
uma clínica do passador. Também preciso mencionar um as-
pecto que me pareceu muito contundente, a respeito do que o
dispositivo do passe pode trazer para a clínica psicanalítica. Re-
firo-me à surpreendente presença da psicose, como tipo clíni-
co, como tipo de sintoma, na experiência do passe. Sobre isso,
deixo aqui algumas perguntas e inquietações. Parece-me que ou
há muito mais sintomatologia psicótica, mais psicóticos – não
gosto desse termo –, ou há mais psicóticos do que conseguimos
diagnosticar. Refiro-me aos passantes, mas poderia incluir os
passadores, os AMEs.
Talvez, entre os psicanalistas, haja mais psicóticos do que es-
tamos dispostos a admitir; ou há algo no dispositivo do passe, em
seu funcionamento, que tende ao diagnóstico de psicose quando,
talvez, não se trate disso. De fato, algo se passa com a psicose no
passe. Algo passa com o inconsciente, com o tempo e com a psi-
cose. Refiro-me a questões clínicas, que não é o mais importante,
mas que acredito servirem à experiência analítica de cada um. Ter
passado pelo dispositivo como passante deixou um saldo para mi-
nha experiência de análise, agregou algo muito útil que me serve
na prática da psicanálise, para me orientar, para sustentar melhor
este lugar. E minha experiência no cartel também me ajuda com
isso. Insisto nisso há alguns anos.
Quando dou supervisão no consultório, nas instituições, de-
paro-me com a dificuldade dos analistas lacanianos – nem se fale
daqueles que não têm essa orientação – em diagnosticar a psicose
quando ela não é clinicamente evidente. Do mesmo modo que se
recebe o testemunho do passe como um chiste, reproduzido várias
vezes, como um telefone sem fio, cheio de mal entendidos, tam-
bém se pode entender mal o tipo clínico. Não sabemos por onde,
pelo passante, pelo passador..., mas é algo que deve ser levado em
conta para orientar-se em relação à escuta do testemunho. Essa
questão fundamental pode ser fundamental para a orientação de

Testemunho do passe – Marcelo Mazzuca 31


CARTEL E PASSE

um psicanalista: É neurose, é psicose? Qual o tipo clínico do qual


estamos tratando?
É surpreendente a porcentagem de psicoses que se escuta nos
passes. Talvez haja, em certos casos, algo do dispositivo que tende
a apresentar o discurso de tal maneira que traia o tipo clínico. O
dispositivo do passe, acredito, é como um grande amplificador
daquilo que, às vezes, não se percebe na experiência de uma
análise. É um desafio, porque é difícil se desprender da ideia de
que a neurose é melhor do que a psicose, de que o tipo de sintoma
neurótico é um melhor ponto de partida para uma análise, para
a formação de um analista. Se me perguntam, eu também diria
que é um ponto de partida melhor. Mas não devemos generalizar,
existem muitos bons analistas psicóticos. Há Analistas de Escola
psicóticos, e que fizeram um ótimo trabalho. Certamente, essa é
uma apreciação pessoal minha. A psicose também passa, isso é
fundamental.
Termino com algumas reflexões sobre o que passa com o pas-
se quando a coisa se amplia para além do dispositivo. Nisso, toda a
Escola está comprometida. Definitivamente, a responsabilidade é
da Escola como um conjunto. Se há nomeação de AE, se espera-se
alguma transmissão, algum ensino, é porque supomos que algo
do dispositivo influencie a Escola. Em um sentido estrito, não há
clínica do passe porque o caso é o da Escola, Lacan assim o disse.
A Escola é o caso.
E se esse caso tem algo de clínico é pelo lado do passador,
assim penso. Logo, não devemos deixar de fora algumas dessas
reflexões clínicas, não devemos excluir a psicose, porque ela não
está fora. É delicado, é preciso pensar em como transmiti-lo, mas
isso está muito presente. Então, temos aí uma questão delicada,
uma pergunta – e se foi colocada a pergunta, é porque já existem
pessoas com a resposta –, uma pergunta sobre a necessidade de dar
lugar, institucionalmente falando, isto é, na Escola, aos passantes
não nomeados e aos passadores, para que eles deem seu testemu-
nho, já fora do dispositivo.

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CARTEL E PASSE

Lacan certamente pensou em um procedimento institucional


que termina ou não com uma nomeação. É uma responsabilidade
dos cartéis do passe, dizer sim ou não, e a Escola lega a responsa-
bilidade ao AE e espera do seu trabalho algo, que se produza algo
na Escola, e efetivamente isso passa, passa de diferentes formas.
Aproveito para dizer, porque me sinto responsável, concer-
nido, interessado, afetado, por parte do que se passa no Brasil.
Sinto-me muito concernido já que parte da minha experiência
como passante foi aqui, porque recebi muitos convites do Brasil
naqueles três anos. A essência do que pude elaborar nestes anos
como AE, eu diria, esteve mais em interlocução com os colegas
do Brasil do que com os colegas de Argentina. Talvez, um pouco
com os colegas de Colômbia também, mas, sobretudo, com os
colegas do Brasil.
Diria até que me sinto um pouco responsável pelos bons efei-
tos que pude captar... Houve maus efeitos também, é um risco que
temos que correr; afinal, o tempo tem essa lógica dos dois momen-
tos. Agora, passado certo tempo, poderia dizer, testemunhar, que
houve algo na experiência que foi contraproducente; no sentido do
que vinha dizendo sobre as vezes que se produz algo do empuxo
ao passe, um pouco de pressa, a vontade de fazer o passe. E assim
a coisa se precipita rápido demais.
Parece-me que isso precisa ser levado a sério e com respon-
sabilidade. Isto é, saber que a coisa falha, que pode falhar; que é
feito, inclusive, mais para falhar – está mais para um ato-falho
do que para o ato bem-sucedido. Então é preciso controlar essa
experiência. Ao dizer “controlar” não quero dizer supervisionar ou
definir o que se pode fazer, mas recolher os efeitos e consequên-
cias, tentar lê-los em termos clínicos e institucionais, e ver de que
forma isso pode servir para reorientar, para ir melhorando cada vez
mais a experiência.
Falo disso abertamente, porque me sinto diretamente con-
cernido. A maioria dos dez passes que escutei veio de passantes do
Brasil, por conta de um inconveniente que agora está solucionado:

Testemunho do passe – Marcelo Mazzuca 33


CARTEL E PASSE

antes só havia um membro do Brasil no Colégio Internacional da


Garantia, o qual, muitas vezes, não podia participar dos cartéis do
passe por incompatibilidade. Então, nesse momento, quem enten-
dia portunhol, com exceção de Sandra Berta do Fórum de São Pau-
lo, era eu. Eu podia escutar diretamente o português e entender.
Preciso dizer algo sobe isso. Algo vem acontecendo no Brasil
em relação ao passe e devíamos pensar de que se trata: a peste do
passe lhes afetou de tal maneira com aquilo que ele que traz de
bom, de proveitoso, de interessante, e também de dificuldades,
que me parece que, em termos de tempo da experiência do incons-
ciente, houve algum sacolejo, como o sacolejo do avião da noite
passada. Nosso voo demorou cinco horas a mais do que o previsto,
na tentativa de escapar à tempestade. Há um pouco de turbulência
e tempestade nos últimos anos. Eu o celebro e insisto que me sinto
concernido e responsável, com prazer e também afetado, com a
particularidade da experiência do Brasil.
Ademais, há algo delicado e mais amplo que está sendo dis-
cutido, uma pergunta frente à qual devemos tomar posição. Da-
mos ou não damos a palavra ao passante, aos não nomeados e aos
passadores? Em outras Escolas – por exemplo, na AMP, e não
digo que seja melhor ou pior –, os passadores não podem abrir a
boca. Os passadores são o passe, afetam-se de diversas maneiras,
cumprem sua missão e aí termina sua tarefa. Há vantagens e des-
vantagens. Mas saibamos que, se deixarmos os passadores falarem
muito, estaremos correndo um risco com o passante não nomeado.
Estamos correndo um bom risco agora, estamos tentando ater-
rissar no Rio de Janeiro, no domingo de 28 de abril de 2019, em
meio à tempestade. Termino com isso.

Transcrição e tradução:
Elena Pérez Alonso
Leonardo Pimentel

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CARTEL E PASSE

Testemunho do passe Pass testimony


Resumo: Embora tenha sido nomeado Abstract: Although appointed as AE
AE (Analista de Escola) e trabalhado (School Analyst) and having worked hard
arduamente nesta função durante o pe- in this role during the period correspond-
ríodo correspondente a tal nomeação, o ing to such appointment, the author also
autor também participou do dispositivo has participated in the device as a mem-
enquanto membro de cartel do passe, oca- ber of the pass cartel, when he has had the
sião em que teve a oportunidade de escu- opportunity to listen to many passers. In
tar muitos passadores. Em um dos cartéis, one of the cartels, he had heard the tes-
escutou o testemunho de dez passantes timony of ten Brazilian passers, of which,
brasileiros, dos quais, todavia, nenhum re- however, none resulted in nomination. For
sultou em nomeação. Por esse motivo, ele this reason, he reflects on what happens at
se dispõe a fazer uma reflexão sobre o que the School level as an institution, that is,
acontece no nível da Escola como institui- how the pass procedure can have effects
ção, ou seja, de que modo o procedimento and consequences at the level of all the
do passe pode ter efeitos e consequências actors of the School, and not only at level
no nível de todos os atores da Escola, e of those who participate in it. He ques-
não apenas no nível daqueles que dele par- tions whether the device of the pass was
ticipam. Ele questiona se o dispositivo do designed precisely to fail, that is, if it does
passe não foi concebido justamente para not have the structure of a “failed act”,
falhar, ou seja, se não tem a estrutura de such as the formation of the unconscious.
um “ato falho”, como formação do incons- Then, he seeks to elaborate and devel-
ciente. Em seguida, procura elaborar e de- op other hypotheses, especially one that
senvolver outras hipóteses, entre as quais regards the device as being favorable to
se destaca a de que o dispositivo seja favo- the identification and recognition of the
rável à identificação e ao reconhecimento structure of psychosis, given the relative-
da estrutura da psicose, dada a frequência ly high frequency with which it appears
relativamente grande com que ela aparece in the debates of the pass cartels. He also
nos debates dos cartéis do passe. Ele ainda raises the question of whether or not is
levanta a questão da possibilidade ou não possible to think clinically about the pass,
de uma clínica do passe, do passante e do the passer and the passant.
passador. Keywords: School Analyst. Pass Cartel.
Palavras-chave: Analista de Escola. School. Psychosis.
Cartel do Passe. Escola. Psicose.

Testemunho do passe – Marcelo Mazzuca 35


CARTEL E PASSE

Témoignage de la passe Testimonio del pase


Résumé: Bien que nommé AE (Analyste Resumen: Aunque tenga sido nombra-
d’école) et ayant travaillé dur dans ce rôle do AE (Analista de Escuela) y trabajado
pendant la période correspondant à cette arduamente en esta función durante el
nomination, l’auteur a également partici- período correspondiente a este nombra-
pé au dispositif en tant que membre du miento, el autor también participó en el
cartel de la passe, lorsqu’il a eu l’occasion dispositivo como miembro del cartel del
d’écouter de nombreux passants. Dans l’un pase, cuando tuvo la oportunidad de es-
des cartels, il avait entendu le témoigna- cuchar a muchos pasadores. En uno de los
ge de dix passants brésiliens, dont aucun carteles, escuchó el testimonio de diez pa-
n’a toutefois abouti à la nomination. Pour santes brasileños, de los cuales, sin embar-
cette raison, il réfléchit à ce qui se passe go, ninguno resultó en nominación. Por
au niveau de l’école en tant qu’institution, esta razón, él se dispone a reflexionar so-
c’est-à-dire comment la procédure de la bre lo que sucede en el nivel de la Escuela
passe peut avoir des effets et des consé- como institución, es decir, de qué modo el
quences au niveau de tous les acteurs de procedimiento del pase puede tener efec-
l’école, et pas seulement au niveau de ceux tos y consecuencias en todos los actores de
qui y participent. Il se demande si le dis- la Escuela, y no solo en nivel de quienes
positif de la passe a été conçu précisément participan en él. Se pregunta si el disposi-
pour échouer, c’est-à-dire s’il n’a pas la tivo del pase no fue diseñado precisamente
structure d’un “acte manqué”, comme les para fallar, es decir, si no tiene la estructura
formations de l’inconscient. Ensuite, il de un “acto fallido”, como formación del
cherche à élaborer et à développer d’au- inconsciente. En seguida, busca elaborar y
tres hypothèses, notamment celle qui desarrollar otras hipótesis, entre las cuales
considère le dispositif comme favorable à se destaca que el dispositivo sea favorable
l’identification et à la reconnaissance de la para la identificación y el reconocimien-
structure de la psychose, compte tenu de la to de la estructura de la psicosis, dada la
fréquence relativement élevée avec laquel- frecuencia relativamente grande con que
le elle apparaît dans les débats des cartels ella aparece en los debates de los carteles
de la passe. Il pose également la question del pase. También plantea la cuestión de
de savoir s’il est possible ou non de penser si es posible o no una clínica del pase, del
une clinique de la passe, du passant et du pasante y del pasador.
passeur. Palabras-clave: Analista de Escuela.
Mots-clés: Analyste d’école. Cartel de la Pase Cartel. Escuela. Psicosis.
Passe. École. Psychose.

Recebido em: 10/11/2019


Aprovado em: 20/01/2020

36 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.16-36
CARTEL E PASSE

No more bricks on the wall!


O cartel e a letra

Luis Achilles Rodrigues Furtado

H á vários anos, quando iniciava meu contato com a psicanálise,


no contexto de uma graduação em Psicologia, expressei
minha angústia diante da imensidão de temas e textos frente aos
quais não sabia para onde ir. Não sabia qual ler primeiro, qual cur-
rículo cumprir e, principalmente, não sabia se o que estava lendo e
como eu estava lendo era a forma correta. Foi, então, que tive um
diálogo com uma colega “mais experiente”, que cursava o oitavo
semestre.
Ao dividirmos nossas opiniões sobre coisas banais do dia-a-
-dia da vida de um universitário nos anos 90, queixei-me de estar
perdido quanto à forma de começar a estudar a psicanálise. Não
sabia por qual conceito iniciar a abordagem do edifício psicanalíti-
co, pois este era “um trem que já estava andando há muito tempo”.
Ela, por sua vez, me disse algo que ficou marcado: “Cara, imagina
que esse trem em movimento tem os vagões abertos entre si. Uma
vez que você entra, pode passear em todos os vagões”.
Escolhi relatar esta cena por dois motivos: o primeiro, por
sua banalidade, e o segundo, pelo que ela transmite e do que dela
pode ser desdobrado. A banalidade como critério de escolha se
justifica por sua coerência com a vida e, inclusive, com a regra do
tratamento psicanalítico.
Sabe-se que a psicanálise é subversiva em inúmeros aspec-
tos. Subverte o sujeito cartesiano, subverte a noção de cura, de
sintoma, subverte a relação do sujeito com o Outro e, por conse-
quência, é subversiva politicamente. Entendo – e é urgente dizê-
-lo nos dias de hoje – que a figura de um psicanalista conformado
é um contrassenso. Assim, ver, nas banalidades, elementos es-

No more bricks on the wall! O cartel e a letra – Luis Achilles Rodrigues Furtado 37
CARTEL E PASSE

senciais para a constituição da realidade, é algo que o psicanalista


e os artistas têm em comum e não reduzem seu ato apenas ao que
é mais importante.
Quanto ao que pode ser desdobrado do episódio relatado, des-
taco alguns pontos. Primeiramente, a situação de um sujeito que,
tal como a criança sendo banhada por lalíngua ainda não estrutu-
rada como uma linguagem, é inundado pelo Outro sem localizar
ali um ponto onde se ancorar e, a partir daí, tecer seus caminhos
e sua enunciação. Este sujeito é marcado pela angústia que é de-
rivada de sua posição no discurso. Ou seja, este antigo graduando
em psicologia, numa ameaçada universidade pública, estava preso
à ideia desenvolvimentista de que, para se aprender algo complexo,
deve-se começar pelo que é mais simples. Tal como se faz pe-
dagogicamente na sequência de disciplinas utilizada no sistema
educacional universitário.
Ora, sabemos que a estrutura de um ensino pautado nessa
organização discursiva é marcada por ter como agente o saber so-
bre como cada aluno deve proceder para atingir o objetivo último
de sua graduação. Seu corpo e seu gozo devem obedecer a regras
economicamente determinadas e, ao final, deve-se apresentar uma
conduta que se encaixe, se adeque ao que, muitas vezes, é chamado
de “perfil do egresso”.
Roger Waters, baixista, compositor e vocalista da banda de
rock progressivo Pink Floyd, ilustra muito bem sua angústia dian-
te dessa questão em sua letra, especialmente no clip da música
“Another brick on the wall” – part 2, quando crianças sem rosto
são levadas a marcharem por uma esteira até caírem em um moe-
dor de carne gigante. Lá é dito: “We don’t need education, we
don’t need thought control”. Se, para Roger Waters, a educação
busca controlar o pensamento, levar o sujeito a uma norma moe-
dora de carne, a cama de Procusto floydiana, é porque há algo que
a desorienta, a saber, o desejo.
O que vemos, nas duas cenas, é uma relação entre a encarna-
ção do saber que trata o outro como objeto para que se produza

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CARTEL E PASSE

uma subjetivação1 “adequada”. O sujeito aqui é dividido entre


a carne moída que se tornou e o resto de desejo a que teve de
abdicar para se conformar ao sistema de ensino que, como diz
Lacan (1970/2003) em sua “Alocução sobre o ensino”, nada tem
a ver com o saber. É isso que pode justificar a angústia daquele
jovem psicólogo em formação e a de Roger Waters e de todos
que cantam genuinamente o tão famoso hit que marcou o final
da década de 1970.
A resolução para o impasse que revelei à minha colega foi
dada por ela mesma ao indicar a possibilidade do desejo. Frente ao
sem-saída, diante desejo do Outro suposto total, minha colega –
uma igual, alguém com quem mantinha transferência de trabalho
– apontou para a porta do desejo: “–– Uma vez dentro do trem,
você pode escolher passear em qualquer vagão”.
Assim, inscreveu-se o vazio e destacou-se o objeto. Seria pos-
sível passear, vagar, fazer metonímia de vagão em vagão, de sig-
nificante em significante, tal como o desejo. Algo bem diferente
da estrutura metafórica, sintomática, da suposição de uma verdade
que estaria em um vagão/significante correto. Enfim, a metáfora
do trem tornou-se a metáfora de uma cadeia de significantes e
deixou de ter o peso da encarnação do Um do saber como o “trem
em movimento como um todo”. Esse trem, tomado em bloco, su-
postamente encarnado pelo edifício psicanalítico, leva, portanto, à
paralisação angustiada do sujeito e à inibição. Algo bem longe do
novo e da criatividade que implica o desejo.
O exemplo do trem pode ser uma boa forma de abordar o
tema do cartel em diferença do ensino em grupos de estudos, se-
minários, aulas de graduação e pós-graduação. Sustentar apenas a
prática do ensino com um orientador, líder, coordenador, diretor,
ou qual nome seja, reproduz e reforça a estrutura de grupo, ho-
mogeneíza o sujeito à norma do Um do saber, portador do objeto.
Por isso Lacan chegou à Venezuela tão interessado em saber como
1 Aqui usamos a palavra subjetivação no sentido foucaultiano de produção de subjetividade
por parte de uma maquinaria discursiva e disciplinar.

No more bricks on the wall! O cartel e a letra – Luis Achilles Rodrigues Furtado 39
CARTEL E PASSE

seu ensino chegava aos “Lacanoamericanos” sem sofrer os efeitos


proporcionados por “sua pessoa”. Podemos deduzir, assim, que ele
se referia ao que se transmite com a dimensão do escrito sem a
contaminação imaginária própria ao eu de cada um.
Gostaria de salientar dois aspectos importantes no que se re-
fere ao funcionamento do cartel e que se articulam com os concei-
tos de letra, escrita e número em psicanálise. Tais conceitos foram
objeto de trabalho durante dois anos em um cartel no qual nos
dedicamos à temática da letra nas diversas formas de expressão
artística.
No final da lição do dia 15 de maio de 1973, no seminário
intitulado “Mais ainda...” Lacan (1972-3/1985, p. 177) lança duas
frases que nos são muito esclarecedoras. Afirma que o escrito é o
que estabelece as condições do gozo e os resíduos do gozo é o que
é contabilizado, passível de ser contado.
É com base nestas afirmações que podemos discutir a dimensão
do escrito como produto de um cartel –– a ser compartilhado no
âmbito da Escola –– e a função do +1, dando preferência aos sinais
matemáticos a escrever por extenso, na tentativa de preservar a
dimensão da letra nos matemas e para diferenciar da equivocidade
presente na expressão “mais um”, enquanto referência a algo banal.
Os psicanalistas, quando se reúnem para estudar e trabalhar
em conjunto, de forma análoga ao conjunto matemático admitem
um elemento excedente. Tal elemento não é um membro a mais
no grupo de pessoas que se reúne, mas a responsabilidade de um
desses membros que cuida de lembrar que, tal como ele mesmo,
ali somos só mais um. Somos elementos diferentes na unicidade
do traço de nosso desejo. Desta forma, podemos contabilizar e
identificar cada pessoa pelo trabalho a que se propõe. Assim, nesta
perspectiva, somos apenas parte de um pequeno conjunto, mem-
bros, resíduos singulares de uma classe que chamamos cartel.
Sendo cada membro “só mais um”, o +1 não se constitui como
o Um a mais. Ele relembra o “a menos”, o que falta, o desejo que
move a questão de trabalho em jogo e que funda aquele tipo de

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CARTEL E PASSE

grupo. O +1 revela a dimensão ordinal do cartel tentando preser-


var a diferença de cada um e, assim, podendo sustentar a possibi-
lidade de contagem pela diferença entre os membros, tomados em
sua unicidade. Pois, quando um grupo tem três pessoas ou mais
de cinco, as diferenças se apagam, a parede do recalque é erigida
e os nomes são esquecidos ou equalizados. Lacan (1961/2003, p.
61), no seminário sobre a “Identificação”, deu o exemplo de Sade,
que marcava com um traço os diferentes orgasmos como tenta-
tiva de diferenciá-los. Assim, em ordem, na diferença dos traços
separados por um espaço vazio que encarna e produz a diferen-
ça, uma contabilidade do gozo pode ser realizada. Por outro lado,
mantém-se a amarração da unidade do Cartel pela sua nomeação
e inscrição no campo do Outro que é a Escola. Neste sentido,
passamos ao registro do cardinal, do conjunto como um todo en-
quanto nomeado.
É curioso e irônico notar que um dos sentidos etimológicos da
palavra “cartel” refere-se à associação entre poucos produtores para
evitar a superprodução que, por sua vez, tem como consequência,
a perda do valor da mercadoria e sua banalização. Assim, este
sentido original da palavra Cartel (CNRTL2, 2018) guarda o es-
forço de um pequeno grupo na busca da valorização do produto de
cada um.
Tal como no conjunto dos números naturais, o qual tem sua
fórmula matemática como N={n+1}, o excesso do vazio encarnado
pelo “+1” é constitucional. Assim, lembrando a todos os colegas
de cartel que cada um se comprometeu a partir de uma escolha
relativa à questão que lhe é própria e velando pela diferença de
cada elemento do conjunto, o “mais-um”, desta forma singular de
trabalhar, permite o surgimento de uma prática na qual o líder está
excluído. Tendo um limite de tempo de existência, esse grupo es-
pecial no qual o psicanalista trabalha e inicia sua formação em uma
Escola de Psicanálise, o cartel renova a aposta de laços possíveis
2 CNRTL – Centre National de Ressources textuelles et Lexicales. Cartel. Disponível
em: <http://www.cnrtl.fr/etymologie/cartel//1>. Acesso em 26 de maio de 2018.

No more bricks on the wall! O cartel e a letra – Luis Achilles Rodrigues Furtado 41
CARTEL E PASSE

que não estejam oprimidos pelo saber encarnado em uma pessoa


ou em qualquer forma de expressão que esteja identificada com o
totalitarismo. Por isso, cada cartel guarda o germe da continuidade
do trabalho em outros cartéis, os próximos, uma série... Enfim,
cada cartel também é só mais um...
Segundo o “Centre National de Ressources Textuelles et Le-
xicales”, podemos destacar mais dois sentidos etimológicos à pala-
vra “Cartel”. Trata-se de um diminutivo para a palavra “carta”, ou
pode referir-se a uma carta de desafio de guerra ou a uma conven-
ção escrita entre nações beligerantes para resgate ou troca de pri-
sioneiros. Enfim, temos um sentido de um escrito, de uma carta,
de uma lettre. Portanto, aqui encontramos a dimensão do escrito.
É comum, em situações de conflito jurídico, diante das
ambiguidades e polissemias do direito, recorrermos à “letra
da lei”. Lacan (1958/1998), retomando a letra de Freud, nos
orienta a seguirmos o desejo “ao pé da letra”. Entre os vários
desdobramentos dessa expressão, encontra-se a abordagem da
materialidade do escrito na busca de uma amarração que evite um
deslizamento de sentido e de gozo absolutamente desregulado. É
assim que entendo a afirmação de Lacan de que a letra estabelece
as condições de gozo. Trata-se de uma regulação da qual a letra,
em sua materialidade, vai ser a portadora, marcando sua situação
litoral entre o Real e o Simbólico.
O produto de cada um que se engaja em um cartel tem o
valor de um escrito na medida em que encarna a marca da singu-
laridade do sujeito, sua assinatura. É por isso que reconhecemos
a originalidade de um quadro de Salvador Dali ou dos timbres
inigualáveis das guitarras de David Gilmour, B. B. King ou Eric
Clapton. Jimmy Page, lendário guitarrista do Led Zeppelin, nos
explica que, por mais que tenhamos os mesmos equipamentos e
as técnicas mais perfeitamente reproduzidas, nunca atingimos o
mesmo timbre porque a estrutura do corpo de cada um, especial-
mente dos dedos, é diferente. Assim, imprimimos nossa diferença,
mesmo quando fazemos uso de notas, técnicas ou conceitos extre-

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CARTEL E PASSE

mamente abordados. Eis a marca que é transmitida na sua relação


com a psicanálise e é compartilhada no produto de um cartel. É
na letra de seu produto que se pode transmitir algo de si na sua
relação com a psicanálise.
Em resumo, o cartel tem essa dupla dimensão que Lacan en-
controu na própria etimologia da palavra: um agrupamento que
visa a valorização do produto singular (carta/letra), guardando as
diferenças individuais que são transmitidas na materialidade da
letra deste mesmo produto, enquanto resultado de um trabalho de
elaboração.
Longe de colocar tijolos nas paredes, produzindo um castelo
ou fortificação militar, religiosa e/ou narcísica, o cartel delineia
o litoral que admite a faixa transitória entre a maleabilidade da
água da linguagem e a dureza do real. Esse instrumento de base
da Escola de Lacan é uma de suas principais ferramentas na busca
da preservação do novo, do espontâneo e da elaboração. Tudo isso
não sem rigor, já que nada é mais rigoroso que o desejo.

Referências bibliográficas

LACAN, Jacques. (1957). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde


Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 496-533.
LACAN, Jacques. (1970). Alocução sobre o ensino. In: Outros Escritos. Rio de
Janeiro: Zahar, 2003, p. 302-310.
LACAN, Jacques. (1961-2). O Seminário, livro 9: a identificação. Recife: Centro
de Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003. Publicação para circulação
interna.
LACAN, Jacques. (1972-3). O Seminário, livro 20: mais ainda. 2.ed. Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar, 1985.

No more bricks on the wall! O cartel e a letra – Luis Achilles Rodrigues Furtado 43
CARTEL E PASSE

No more bricks on the wall! O No more bricks on the wall! The


cartel e a letra cartel and the letter
Resumo: O presente trabalho tem como Abstract: This paper discusses the rela-
objetivo abordar a relação entre o disposi- tion between the device named cartel and
tivo do cartel e a noção de letra a partir do the lacanian conception of letter. Using
ensino de Jacques Lacan. Utilizando-se de personal references and allusions to the
referências pessoais e alusões à história do history of rock, the author highlights the
rock, o autor destaca a questão lógica im- logical question implied in the notion of
plicada na noção de mais-um, enquanto plus-one as an element that sustains the
elemento que sustenta a diferença entre difference between the members of a car-
os membros de um cartel e presentifica tel and presents the dimension of desire.
a dimensão do desejo. Por fim, apresen- Finally, this article presents the double
ta a dupla dimensão do cartel enquanto dimension of the cartel as a grouping that
agrupamento que valoriza a singularidade values the uniqueness of each member’s
do produto de cada membro e sua rela- products and its relation to the concept
ção com a noção letra pela via do trabalho of letter.
produzido. Keywords: Cartel. Letter. Number.
Palavras-chave: Cartel. Letra. Número. Plus-one.
Mais-um.

No more bricks on the wall! Le No more bricks on the wall! El


cartel e la lettre cartel y la letra
Résumé: Cet article examine la rela- Resumen: El presente trabajo tiene como
tion entre le dispositif appelé cartel et la objetivo abordar la relación entre el dispo-
conception lacanienne de lettre. À l’aide sitivo del cártel y la noción de letra a partir
de références personnelles et d’allusions de la enseñanza de Jacques Lacan. El au-
à l’histoire du rock, l’auteur met en évi- tor subraya la cuestión lógica implicada en
dence la question logique impliquée dans la noción de más-uno como elemento que
la notion de plus-un comme élément qui sostiene la diferencia entre los miembros
entretient la différence entre les membres de un cártel y presentifica la dimensión
d’un cartel et présente la dimension du del deseo, utilizando las referencias perso-
désir. Enfin, cet article présente la double nales y las alusiones a la historia del rock.
dimension du cartel comme un regroupe- Por último, presenta la doble dimensión
ment qui valorise le caractère unique des del cártel como agrupación que valora la
produits de chaque membre et sa relation singularidad del producto de cada miem-
avec le concept de lettre. bro y su relación con la noción letra por la
Mots-clés: Cartel. Lettre. Nombre. Un vía del trabajo producido.
de plus. Palabras-clave: Cartel. Letra. Número.
Más-uno.

Recebido em: 01/09/2018


Aprovado em: 10/08/2019

44 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.37-44
CARTEL E PASSE

A política do dispositivo do passe e o


tempo de designação de um passador 1

Joseane Garcia

A o ser proibido de prosseguir formando analistas na IPA2,


Lacan funda a Escola Freudiana de Paris e propõe como
política da sua Escola o dispositivo do passe, visando interrogar
a análise didática, na passagem de analisante a analista e abrindo
a possibilidade de por à prova o fim de análise e a evidência do
desejo de analista. A elaboração deste dispositivo rompe com a
ideia de hierarquia da IPA mediante uma nova forma de acesso
ao título de analista-didata, que não dependeria de uma nomea-
ção feita de cima para baixo.
No dispositivo lacaniano do passe, o analisante, nomeado
passante, que tem a convicção de ter chegado ao fim, se oferece
para dar testemunho de sua passagem a analista. Ele o faz diante
de dois passadores. Por sua vez, o passador é designado pelo ana-
lista dele, um AME, que, em função do momento preciso dessa
análise, considera-o apto a escutar aquilo que atesta a virada a
analista no testemunho do passante. O nome deste analisante é
colocado em uma lista (na maioria das vezes sem que ele saiba) e,
no caso de existir um passante, há um sorteio dentre estes nomes
indicados por AME. O passador, depois de ter sido sorteado
e aceito pelo passante, encontra-se no centro do dispositivo no
qual ele será chamado a substituir o passante junto ao cartel do
passe; portanto, é esperado que ele autentique o testemunho do
passante.

1 Uma versão resumida deste trabalho foi apresentada na plenária “A política do passe”
no XIX Encontro Nacional da EPFCL-Brasil, em 11 de novembro de 2018, em São
Paulo.
2 International Psychoanalytical Association.

A política do dispositivo do passe e o tempo de designação de um passador – 45


Joseane Garcia
CARTEL E PASSE

O passador se encontra na horizontalidade com o passante, não


é alguém que está acima dele. Para dissolver a lógica do reconheci-
mento dos pares, Lacan estabelece uma disparidade, sugerindo que
o testemunho do passante fosse entregue não aos analistas habilita-
dos, mas aos que estivessem ainda em vias de concluir sua análise.
Mas como pode alguém testemunhar sobre o fim de sua aná-
lise não sendo o próprio sujeito que passou por ela?

Instante de ver: o tempo de designação de um passador

Lacan vai formular que somente alguém que também tenha


passado por esse momento pode ser designado passador. Assim,
ele define o passador: “Cada um deles terá sido escolhido por um
analista da Escola, aquele que pode responder pelo fato de que
eles estejam nesse passe ou que retornaram a ele, em suma, ainda
estando ligados ao desenlace de sua experiência pessoal” (Lacan,
1967/2003, p. 260-261).
Ou seja, o passador está no passe, mas ainda não chegou ao
fim. Diz Lacan que é alguém “em quem está presente nesse mo-
mento o des-ser em que seu psicanalista conserva a essência daquilo
que lhe é passado como um luto, com isso sabendo, como qualquer
outro na função de didata, que também para eles isso passará” (La-
can, 1967/2003, p. 260). O termo des-ser designa uma mudança
na relação de transferência. O analista, sustentado como sujeito
suposto saber e semblante de objeto causa do desejo do sujeito, cai
e perde sua consistência como ser. O des-ser do analista permite a
seu analisante vir a ser analista para outro sujeito.
O passador é aquele em quem está presente o des-ser, mas, ao
mesmo tempo, ainda está ligado ao desatar de sua experiência pes-
soal na análise. Ele está no processo de passagem, por isso Lacan
diz que ele é o passe!
Colette Soler (2012) escolhe o termo turbulência para falar
do tempo do passador. Ele ainda se encontra na zona de turbulên-

46 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.45-56
CARTEL E PASSE

cia, diferentemente do passante, que encontrou uma saída. Turbu-


lência para dizer desse tempo no qual se desenvolvem os afetos da
conclusão em suspenso, a saber, o tormento, o luto, ou o regozijo
inquieto da fase final ainda não terminada.
A função do passador é recolher do passante o que ele encon-
trou como solução para o real, uma solução inédita para o sintoma,
para o impossível de suportar. Se o passador está num processo de
passagem, porque ainda não terminou sua análise, seria possível a
ele escutar o que lhe foi transmitido pelo passante para além do
ponto em que o passador está na sua própria experiência analítica?
Esta questão apareceu para mim a partir do meu nome ser sortea-
do como passadora.
Recebi o telefonema do passante comunicando que meu
nome fora sorteado como passadora e a surpresa, já tanto relatada
por aqueles que já estiveram neste momento, foi tão grande que
fiquei atordoada. Quase fora de órbita, respondi sim à pessoa do
passante. Combinamos os primeiros detalhes como seria o nosso
encontro. Desligo o telefone, continuo fora de órbita por algum
tempo, quando meu inconsciente me retorna, num flashback de
minha análise, o momento de entrada na turbulência. Do dia, em
que costumo dizer, fui “atropelada” pelo real do fim:
Indo para a análise, presa no trânsito e divagando nos meus
pensamentos, sou invadida por um sentimento de total despren-
dimento de minha análise, a tal ponto de não mais saber onde era
o lugar. A sensação era de que a análise não tinha mais sentido
para mim. Cheguei ao consultório de minha analista aos pran-
tos, desesperada, sem saber o que era aquilo. Segue-se um luto
com choros sem fim, sem nenhum sentido e sonhos finais, belos.
Lembro e revivo este momento como se estivesse lá. Voltando ao
tempo atual, sorrio e penso: vou ouvir alguém que passou pelo
mesmo que eu!
Depois de me dar conta do tamanho da responsabilidade de
ser uma passadora, me pergunto como fazer essa tarefa. Leio a
“Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Es-

A política do dispositivo do passe e o tempo de designação de um passador – 47


Joseane Garcia
CARTEL E PASSE

cola” e alguns colegas falando desta função, quando me dou conta


de que meu tempo talvez já estivesse prescrito. Já fazia dois anos
do término de minha análise. Pode-se ser um passador depois do
fim de sua análise?
Faço essa pergunta a um membro da CLEAG3, que fica tam-
bém sem saber me responder, dizendo que minha analista tinha
colocado meu nome na última lista do sorteio, ou seja, menos de
um ano. Afirmo ao membro da CLEAG que minha análise já teve
seu fim há mais tempo que isso. Enquanto aguardo a resposta da
CLEAG, recebo o telefonema do passante, que me diz com pesar
que eu não poderia ser sua passadora por ter chegado ao fim de
análise. Um tempo depois, recebo mensagem da CLEAG reafir-
mando a decisão.
Esta situação poderia ter feito alguma questão sobre o fim
de minha análise, mas não foi o que ocorreu. O fim para mim era
inquestionável, mas questionei a minha analista por qual motivo
meu nome foi colocado na última lista de passadores já que eu já
tinha terminado minha análise. Sua resposta foi a seguinte: “Gos-
taria que você usasse seu trajeto em benefício de outra pessoa”.
Logo após ser convocada no lugar de passadora pela pessoa
do passante, foi impressionante como veio na memória o meu mo-
mento de passe, tão nítido e com requinte de detalhes, que me
pergunto: Por que eu não poderia recolher o testemunho de um
passante? O inconsciente é atemporal, disse Freud. O tempo do
sujeito do inconsciente é um tempo lógico e não o cronológico,
disse Lacan. O dispositivo do passe é lógico e não cronológico,
digo eu.
Se passador é a testemunha apta a ouvir o que faz a mola des-
se passe, o que o torna apto para essa tarefa de transmitir ao cartel
do passe a experiência do real em jogo no saber do passante?
Elisabete Thamer (2018) afirma, no pré-texto para o Encon-
tro Internacional de 2018, que não há final de análise sem que o

3 Comissão Local Epistêmica de Acolhimento e Garantia.

48 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.45-56
CARTEL E PASSE

analisante tenha podido provar, nos dois sentidos do termo, que


o substrato de seu inconsciente é real. Segundo Thamer, o saber
inconsciente próprio ao ICSR4 é um saber que se manifesta como
fora de sentido no tempo restrito de sua própria manifestação, ou
seja, em um lapso de tempo reduzido, como um clarão, pois não há
frequentação possível desse real. Que esse saber se manifeste, quer
dizer que ele escapa, pela primeira vez, às elucubrações interpre-
tativas hystorizantes da análise. Esse momento, segundo Thamer,
realiza, ao mesmo tempo, um corte com relação ao sentido e ao
saber suposto ao analista. Ela situa aí o fruto do discurso ana-
lítico, pois, colocando um termo às expectativas transferenciais,
esse advento do real promovido pela análise abre o caminho para a
identificação com o sintoma ou, dito de outro modo, ao que resta
a suportar. A análise vai colocar em jogo exatamente a impossi-
bilidade de tudo dizer, ou seja, coloca em jogo o real. É isso que
constitui a prova do final, e não as elucubrações que podemos fazer
sobre o que ocorreu numa análise.
Alberti (2018) assinala as dificuldades encontradas pelos
Cartéis do Passe com alguns dos passadores. Segundo a autora,
se esse passador não está à altura de sê-lo, o passe, necessaria-
mente, fica comprometido. Pergunto, a este respeito, se haveria
no período do final de análise um momento específico para fazer
a indicação para passador. Seria possível precisar esse momento?
Não estariam aí as questões discutidas sobre a qualificação de um
“mau passador”? O que seria um mau passador, um passador que
ainda não passou?

Tempo para compreender: o tempo lógico de um passe

O tempo do passe não é o mesmo do fim de análise. Para


Quinet (2010), o passe pode ser considerado como um caminho,

4 Inconsciente real.

A política do dispositivo do passe e o tempo de designação de um passador – 49


Joseane Garcia
CARTEL E PASSE

ou um túnel, cujo fim é o final da análise, ainda que o final de uma


análise não represente uma segurança de ter havido passe (Quinet,
2010, p. 16). Nesse texto, Quinet trabalha a diferença do momen-
to do passe e do fim de análise, encontrando na “Proposição....”
uma indicação sobre a trajetória em que uma análise se desenvolve
como deciframento até um momento de metamorfose do sujeito,
que seria o passe como passagem que marca a entrada no trabalho
de luto que se prolonga até seu término.

Figura 1 Passe e final de análise5

O passe se inicia no clarão a que Thamer se referiu e, seguindo


na turbulência de Soler, começa no início da travessia da fantasia
e se conclui, no final do luto do analista, como objeto causa de
desejo, o que corresponde à resolução da transferência. A duração
do luto é o tempo em que o analista continua a causar o desejo
do analisante, mesmo se já houver caído o sujeito suposto saber.
No passe, há solução do enigma do desejo, mas a relação com o
analista pode não ter terminado. Contudo, o fim de análise deve
ser marcado pelo próprio paciente, através do seu ato analítico por
excelência, o de autorizar-se analista.
Quinet coloca que o período de indicação do passador inicia
com o clarão, ou a queda da transferência, e vai até antes do fim da
análise. Mas, a partir da minha experiência de ser designada como
5 Esquema baseado nos dois desenhos de Quinet, 2010, p. 16.

50 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.45-56
CARTEL E PASSE

passadora, num tempo depois do fim de minha análise, coloco a


possibilidade de se estender o período de indicação do passador,
passando do fim de análise. Não acho que possa ser indeterminado
esse tempo, pois toda travessia tem um fim. Lacan aposta no fres-
cor do passador, de ser um novato. Quem sabe um ou dois anos
depois do término de sua análise, porque o mais importante para a
função do passador seria esse encontro com o momento do passe
e não o fim. O tempo de que estou tratando aqui seria o tempo
lógico e não cronológico.
Desde as descobertas freudianas, entendemos que o incons-
ciente rompe com a noção de linearidade e cronologia. Segundo
Freud (1915/1996), os processos do sistema Ics6 são atemporais,
ou seja, não são ordenados temporalmente e não se alteram
com a passagem do tempo. A referência ao tempo vincula-se ao
trabalho do sistema Cs7. Além disso, para Freud (1896/1996), os
acontecimentos psíquicos só são passíveis de sentido a posteriori,
nachträglichkeit, no que isso implica de permanência e passagem
do tempo.
O efeito nachträglich nos põe diante de um paradoxo do
tempo. Fingermann, tratando do tempo da experiência da psi-
canálise, diz:

O futuro também marca o passado, validando seus acontecimentos –


nachträglich – como presentes e atuais. Constatemos como, dessa for-
ma, o ser humano encontra-se estruturalmente tomado numa tempo-
ralidade de antecipação-retroação (Fingermann, 2009, p. 61).

Lacan ressuscita o termo nachträglich em sua versão francesa:


après-coup. Essa expressão apareceu pela primeira vez em seu Re-
latório de Roma, no texto intitulado “Função e Campo da Fala e
da Linguagem em Psicanálise”. Nesse texto, Lacan (1953/1998)
explora o sentido de nachträglich no contexto de uma teoria do
6 Inconsciente.
7 Consciente.

A política do dispositivo do passe e o tempo de designação de um passador – 51


Joseane Garcia
CARTEL E PASSE

significante que ressalta o tempo para compreender de cada sujei-


to. Para Lacan, a duração de cada uma das sessões diz respeito ao
tempo de trabalho, que não possui um padrão fixo. O tempo que
se estabelece na análise está a serviço do inconsciente.
Desde que introduziu a questão do tempo na psicanálise, La-
can mostrou que não se tratava de uma propriedade linear. No-
meou de tempo lógico o que não pode ser medido pelo relógio e
não se reduz ao seu ponto de conclusão.
No texto “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipa-
da”, Lacan (1945/1998) traz, com base em um problema de lógica,
uma reflexão sobre o tempo. No famoso sofisma dos três prisionei-
ros, o diretor de uma prisão apresenta um desafio: diz a três prisio-
neiros que um deles pode ganhar a liberdade, mas para tanto ele
deve ser o primeiro a conseguir resolver um jogo de adivinhação.
O diretor possui três discos brancos e dois discos pretos para serem
colocados às costas dos prisioneiros, sem que cada sujeito veja a cor
do disco que lhe coube. Somente um disco é afixado nas costas de
cada sujeito, sendo os três discos brancos. Os dois discos pretos
ficam sem utilização. Não é permitido nenhum meio para que os
detentos possam ver a cor do disco que portam e eles precisam
inferir a cor do seu disco em motivos de pura lógica, para serem
libertados. Depois de certo tempo, os três prisioneiros, simulta-
neamente saem e apresentam sua conclusão, conforme segue:

Sou branco, e eis como sei disso. Dado que meus companheiros eram
brancos, achei que, se eu fosse preto, o outro, devendo reconhecer ime-
diatamente que era branco, teria saído na mesma hora, logo, não sou
preto. E os dois teriam saído juntos, convencidos de ser brancos. Se não
estava fazendo nada, é que eu era branco como eles. Ao que saí porta
afora, para dar a conhecer minha conclusão (Lacan, 1945/1998, p.198).

A solução do sofisma indica dimensões do tempo que Lacan


circunscreveu em três: instante de ver, tempo para compreender e
momento de concluir. A solução implica uma certeza antecipada

52 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.45-56
CARTEL E PASSE

e não numa certeza objetiva, calcada na objetividade dos fatos. O


valor de verdade da conclusão do tempo lógico depende dos outros
dois tempos. É uma certeza antecipada por um ato que se funda
em instâncias temporais.
Então, se a marcação de tempo para a psicanálise é sempre a
partir da lógica, o tempo da designação de um passador também
deve ser lógico. E sua lógica consiste na possibilidade de capturar
a experiência do real em jogo no saber do passante.
O tempo do passador decorre da sua experiência do passe,
mas acredito também na possibilidade de retroação em que o in-
consciente pode se colocar em ato novamente.
Na “Nota sobre a designação de passadores” (1974), Lacan
pontua que para recolher o testemunho de outrem não é suficiente
ter concluído uma análise e se autorizado como analista. O final de
análise produz praticantes de análise que podem operar sem que
isso implique que tenham esclarecido o discurso que os condicio-
na. Um esclarecimento de tal ordem é o que o passante se propõe
a transmitir e para isso é preciso que quem o escute esteja animado
por ele. Lacan assinala que é necessária outra dit-mension, acerca
da qual Pascale Leray faz o seguinte comentário:

Tratar-se-ia, para que o passador seja receptivo ao que possa fazer o


ponto de báscula desse passe, de que esteja agindo nele uma outra di-
t-mension [diz-mensão] diferente daquela que o faria funcionar como
simples receptáculo da narração do testemunho do passante. Esta ou-
tra dit-mension é aquela que o passador deve poder discernir em fun-
cionamento no passante, é “aquela que comporta saber que, da queixa,
a análise não faz senão utilizar a verdade” (Leray, 2011, p. 19).

Momento de concluir: o passador lógico

A maneira pela qual Lacan concebeu o passe na Escola con-


fere ao passador um lugar determinante no dispositivo do passe.

A política do dispositivo do passe e o tempo de designação de um passador – 53


Joseane Garcia
CARTEL E PASSE

É preciso distinguir bem os dois tempos, do passe e do fim. Isso


equivale a perguntar se há um tempo mais favorável que outro para
que o passador possa recolher o testemunho do passante.
O que o passador precisa ouvir no testemunho do passante
não é a verdade do sujeito sustentada pela fantasia ou a de seu
sintoma, mas sim algo da relação com o saber do inconsciente real.
Por isso o passador deve pelo menos ter entrevisto algo da ordem
das armadilhas do sentido, no limiar em que não há mais nada a
des-cobrir. O que prova um passador é sua relação com o saber do
ICSR.
Fingermann (2011), falando da função do passador, nomeia
de passador lógico aquele que não está simplesmente sob efeito da
experiência da transferência, mas aquele que tem experiência de
sua travessia da verdade:

O passador lógico deve, portanto, ter uma certa experiência de sua


própria travessia da verdade, e não simplesmente estar sob efeito da
experiência da transferência vivenciada para poder estar sensível à hys-
torização do passante e dar conta de seu testemunho (Fingermann,
2011, p. 16).

Passador lógico é um nome que cai bem para a proposta apre-


sentada aqui de não se restringir o tempo do passador ao tempo
do fim de análise.
Concordo com Quinet (2010) em que o dispositivo do passe
deve conservar seu traço experimental para que não se transfor-
me em modelo a ser idealizado ou superegoicamente imposto pela
Escola. Como nos diz Iaconelli (2018), quando ela questiona o
tempo do testemunho do AE e propõe a auto desautorização da
sua posição: “Que o singular nos faça trabalhar, como sempre”.

54 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.45-56
CARTEL E PASSE

Referências Bibliográficas

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THAMER, Elisabete. Pretexto 9 – Do real advindo pela análise. X Encontro da
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dos Fóruns do Campo Lacaniano (IF-EPFCL), Barcelona, 13/16 de setem-
bro de 2018. Disponível em: <https://www.champlacanien.net/public/docu/4/
rdv2018pre9.pdf>. Acesso em: 13/10/2018.

A política do dispositivo do passe e o tempo de designação de um passador – 55


Joseane Garcia
CARTEL E PASSE

A política do dispositivo do pas- The device policy of the Pass and


se e o tempo de designação de the designating time of a passer
um passador
Abstract: The article discusses the device
Resumo: O artigo discute a política do policy of the pass, questioning the time of
dispositivo do passe, colocando em ques- the passer’s assignment and its function.
tão o tempo de designação do passador e It refers to the time of the pass and the
sua função. Trabalha o tempo do passe e end of analysis as distinct times, where
o fim de análise como tempos distintos, the pass can be considered as a tunnel
onde o passe pode ser considerado como for the end of an analysis. To gather the
um túnel para o fim de análise. Para re- passant’s testimony, Lacan states that the
colher o testemunho do passante, Lacan passer must still be in the pass. The author
estabelece que o passador deve estar ainda proposes to think about the designation
no passe. A autora propõe pensar a desig- of the passer from a logical time, a time
nação do passador a partir do tempo lógi- that may be after the end of analysis, since
co, um tempo que pode ser depois do fim time in psychoanalysis is not chronologi-
de análise, já que o tempo em psicanálise cal, but logical, and its effect is retroactive.
não é cronológico, e sim lógico, e seu efei- Keywords: Psychoanalysis. Pass. Passer.
to é de retroação. Logical time.
Palavras-chave: Psicanálise. Dispositivo
do passe. Passador. Tempo lógico.

La politique du dispositif de la La política del dispositivo del


passe et le temps de désignation pase y el tiempo de designación
d’un passeur de un pasador
Résumé: L’article traite de la politique Resumen: El artículo discute la política
du dispositif de la passe, interrogeant le del dispositivo del pase, cuestionando el
temps de désignation du passeur et sa tiempo de la designación del pasador y su
fonction. Il travaille le temps de passage función. Aborda el tiempo del pase y el
et la fin de l’analyse comme des temps final del análisis como tiempos distintos,
distincts, où le passage peut être considéré donde el pase puede considerarse como un
comme un tunnel pour la fin de l’analyse. túnel para el final del análisis. Para recoger
Pour recueillir le témoignage du passager, el testimonio del pasante, Lacan afirma
Lacan déclare que le passeur doit toujours que el pasador todavía debe estar en el
être dans la passe. L’auteur propose de ré- pase. La autora propone pensar en la de-
fléchir à la désignation du passeur à partir signación del pasador a partir del tiempo
du moment logique, délai qui peut être lógico, un tiempo que puede ser posterior
postérieur à la fin de l’analyse, car le temps al final del análisis, ya que el tiempo en el
en psychanalyse n’est pas chronologique, psicoanálisis no es cronológico, sino lógi-
mais logique, et son effet est rétroactif. co, y su efecto es retroactivo.
Mots-clés: Psychanalyse. Le dispositif de Palabras-clave: Psicoanálisis. Dispositi-
passe. Passeur. Temps logique. vo del pase. Pasador. Tiempo lógico.

Recebido em: 07/11/2019


Aprovado em: 04/01/2020

56 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.45-56
CARTEL E PASSE

Ⱥ Política e a Psicanálise: de que


endereçamento se trata?

Agnes Meneguelli

É na hiância do Outro, entre os significantes do par S1-S2, que


surge o a separador, o qual serve de causa de desejo para a
psicanálise, para o sujeito do inconsciente, cuja formação inclui
o Outro barrado, aqui representado pela política que se espera,
aquela à qual a psicanálise deseja fazer seu endereçamento.
“Em se tratando da posição do analista (...) é o próprio objeto
a que vem no lugar do mandamento” (Lacan, 1969-70/1992, p.
112). Lacan endereça ao analista, Lacan endereça ao analista o im-
perativo e o ato analítico, corte que provoca a alteração no estatuto
do mais de gozar, desarticulando assim o elemento de dominação,
de mestria.
O discurso do analista, ao colocar o a no lugar de agente, leva
o sujeito a ocupar o lugar do outro com o qual o agente faz laço.
Portanto, o psicanalista não se dirige ao mestre, ao Um ou ao eu,
mas ao sujeito do inconsciente. A política do psicanalista é a polí-
tica do objeto a, da separação entre o significante mestre e o objeto
a. E é desse lugar que teremos acesso ao paciente e sua queixa,
sua submissão às inibições, ao sintoma e à angústia, conflitos que
o levam a impasses e a crises, mas também à demanda de se livrar
de tal sofrimento. A demanda parte de uma suposição, localizada
no analista, de um saber que lhe dará o poder de cura. É o que o
caso do Homem dos Lobos exemplifica, por ser aquele que, se-
gundo Freud, “permaneceu por muito tempo entrincheirado por
trás de uma atitude de amável apatia” (Freud, 1918/1976, p. 23),
assumindo uma posição de resistência. Submissão e conformismo
que vemos o próprio Freud tentar romper, com estratégias como
as que são usadas em um campo de guerra. No fragmento deste

Ⱥ Política e a Psicanálise: de que endereçamento se trata? – Agnes Meneguelli 57


CARTEL E PASSE

caso, a resistência do analisando é comparada metaforicamente à


situação do exército inimigo, o qual, para abrir caminho e ter livre
acesso à determinada região, precisa de um tempo maior do que
aquele dos tempos de paz. Daí a necessidade de desenvolver uma
tática para demovê-lo dessa posição.
A experiência analítica encontra-se às voltas com um vocabu-
lário próprio ao campo da política e da guerra em relação ao neu-
rótico com sua própria política: a de não querer saber. A política
do recalque é um dos modus operandi do neurótico, como vemos
em o “Mal-estar na civilização”, texto no qual Freud vai avaliar as
relações dos homens e a forma como são reguladas na civilização.
Podemos observar três dimensões da política na obra de
Freud: a dimensão psíquica na política, a dimensão política no
psíquico e a dimensão política na técnica psicanalítica. Quanto à
primeira, a dimensão psíquica na política, temos acesso a ela em
muitos de seus textos nos quais ele busca relacionar os conceitos
psicanalíticos à vida em sociedade. Refiro-me a “Moral sexual ci-
vilizada”, “Totem e tabu” e “Psicologia das massas e análise do eu”.
Neste, ele afirma que “apenas raramente e sob condições excepcio-
nais a psicologia individual se acha em condições de desprezar as
relações desses indivíduos com os outros” (Freud, 1921/1974, p.
81). Em “O futuro de uma ilusão” e no “Mal-estar na civilização”,
ele mesmo afirma que a política é o cerne da sua reflexão.
Freud deixa claro que, para além de qualquer forma de ilu-
são, desvela-se o sentimento de culpa engendrado pelo supereu na
base do funcionamento de toda sociedade, na medida em que ele
vigia, controla e, por meio da culpa, incita ao gozo. São textos que
trazem aspectos subjetivos presentes em certos fenômenos sociais
e políticos.
Quanto à dimensão política no psíquico, vemos nos textos
de Freud a subjetivação do poder, tanto na primeira tópica, no
conflito entre o consciente e o inconsciente, quanto na segunda
tópica em relação aos poderes próprios de cada instância. Em “O
Eu e o Isso”, ele faz uma metáfora, na qual compara o eu ao polí-

58 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.57-64
CARTEL E PASSE

tico. Como intermediário entre o Isso e a realidade, o eu “se rende


à tentação de tornar-se servil, oportunista e mentiroso, tal como
um político que percebe a verdade, mas deseja manter seu lugar no
favor do povo” (Freud, 1923/1976, p. 73).
E ainda nos textos sobre o Complexo de Édipo, quando trata
a interiorização do pai e suas implicações nas relações do sujeito
com o outro. Poder que é interiorizado a partir da implementação
de uma dominação exterior, resultado da luta da criança em se
render ao poder do pai.
Por fim, a terceira dimensão política põe em discussão a téc-
nica psicanalítica, o que nos permite uma abordagem sobre o es-
tatuto do poder e da política na experiência analítica e nos leva a
uma maior compreensão da posição de Lacan quanto às articula-
ções entre a técnica e a política, entre a prática terapêutica com a
visada da cura e a prática política, visando governar.
Lacan, tal como Freud, não faz da política o tema de suas ela-
borações como o fez com a ética, o ato, o discurso, mas traz articu-
lações sobre a posição do político e a do psicanalista. Diferente de
Freud, que compara o eu ao político, Lacan segue com Sócrates,
e observa que “no fim das contas, para Sócrates, ... se Temístocles
e Péricles foram grandes homens é que eram bons psicanalistas”
(Lacan, 1954-5/1987, p. 31).
Responder a partir do registro simbólico, segundo Lacan, já
pode ser considerado uma boa interpretação. Caso interpretação
ecloda num momento necessário e produza efeitos, há de ser bom
psicanalista. “Não estou querendo dizer que o político seja o psi-
canalista (...). Mas para Sócrates o bom político é o psicanalista.
(...) Não é por serem psicanalistas de nascença, sem terem sido
psicanalisados, que deixavam de ser bons psicanalistas” (Lacan,
1954-5/1987, p. 32). É Lacan quem aí se introduz, é ele quem põe
na conta de Sócrates tal enunciação, já que a psicanálise não estava
em pauta naquela época. Mas o que Lacan quer ao transitar entre
a afirmação de que o “inconsciente é político” e a de que “o bom
psicanalista é o político”?

Ⱥ Política e a Psicanálise: de que endereçamento se trata? – Agnes Meneguelli 59


CARTEL E PASSE

Partindo de Freud, temos o supereu, instância psíquica cru-


cial para a vida em sociedade, que deriva da subjetivação do pai e,
com ele, um dos fundamentos da política: a obediência. Seguindo
com Lacan na teoria da constituição subjetiva, quando ele desloca
os complexos edípico e de castração para o campo da linguagem,
temos um avanço quanto à instituição subjetiva da lei.
Com o Complexo de Édipo, definido como os três tempos
lógicos de inscrição da falta para o sujeito, permite-se elevar o pai à
categoria de significante e fazer dele função de falo para o sujeito. É
o pai quem tem o falo, aquilo que é desejado pela mãe, o que favorece
a sua identificação com esse pai que passa a ser autoridade para ele.
Obediência, lei, autoridade, o pai, aquele que tem o falo, o poder.
Trata-se, portanto, da importância do Um, de que haja Um
que faça função de lei, não no sentido jurídico, mas da linguagem,
a lei da linguagem, ou seja, que haja um significante que represente
o desejo para o sujeito, para que a neurose se institua. Este signifi-
cante é o falo. Sabemos que o pai da realidade não é nem possui o
falo, mas a criança precisa crer nisso para que se realize a metáfora
e o sujeito passe a desejar. O falo é o significante que institui o Um
e pode ser representado por outros significantes, sendo ele próprio
inapreensível. Estamos então na lógica do Um, estabelecida a par-
tir da elaboração freudiana dos complexos de castração e de Édipo.
A partir de “Subversão do sujeito e a dialética do desejo”, veri-
ficamos que “O Outro, como sítio prévio do puro sujeito do signi-
ficante, ocupa posição mestra, de dominação, antes mesmo de ter
acesso à existência” (Lacan, 1960/1998, p. 821). É por anteceder
ao sujeito que ele ocupa posição privilegiada, posição do Um para
o sujeito. É a potência do simbólico, da autoridade que institui um
sujeito desejante.
Ao ser governado pelos significantes do Outro, instaura-se
um conflito entre o sujeito e o Outro, marcado pelos movimentos
de alienação e separação. Embora o Outro apareça imaginaria-
mente para o sujeito como Um, ele é castrado, tendo também uma
causa que o move, o que remete o sujeito a um efeito de perda. Se

60 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.57-64
CARTEL E PASSE

por um lado há o Um, por outro há o a que o leva a tentar recu-


perar essa perda da castração do Outro e da sua própria castração.
A partir da lógica do Um, tomada por Lacan da teoria freu-
diana dos complexos, vemo-nos confrontados com suas possíveis
relações com a política. Lacan analisa o primado do falo na cultura
e, baseado em Lévi-Strauss, afirma que o poder político é andro-
cêntrico, pois, mesmo nas comunidades matriarcais, ele é exercido
por homens (Lacan, 1956-7/1995). É a política vinculada à teoria
do poder do significante a partir de sua fusão com o significante
falo, o significante Um. A política, portanto, é da lógica do Um,
articulada à noção de poder, na qual há os que comandam e outros
que obedecem. O Um está presente quer sejamos contra ou a fa-
vor, ele é elemento estrutural da política.
Concluímos que o Um, tanto no nível da política quanto da
subjetividade, é instaurado pelo significante. Retomando os dis-
cursos, o discurso do mestre, tal como Lacan o pontuou, é tão pró-
prio à política quanto à constituição psíquica: S1 o lugar de agente
define a essência do Senhor e a do Pai simbólico, remetendo à
posição de autoridade para o sujeito, apontando a íntima relação
entre o inconsciente e a política.
Por outro lado, Lacan (1969-70/1992) afirma que a psicaná-
lise é o avesso da política. Apesar do inconsciente ser instituído
pelo Um, como resultado do que se produz numa relação, já que
qualquer formação do inconsciente implica o Outro, ele também,
de certa forma, resiste à servidão a esse poder.
O neurótico se submete à lei do pai, mas é incansável na busca
desse significante do desejo que ele nunca alcança, a não ser em
suas formas imaginárias, que o levam a viver em conflito com esta
mesma lei, com esse significante Um do desejo. É para negar a
sua castração e obter algum poder que o neurótico se alia ao seu
eu, imagem de uma potência, ilusão da posse do falo, tomando a
castração como uma impotência.
Daí a posição de Freud em relação ao eu político e servil, na
visada de ser aceito pelo Outro, ser o Um do Outro, e a de Lacan,

Ⱥ Política e a Psicanálise: de que endereçamento se trata? – Agnes Meneguelli 61


CARTEL E PASSE

quando diz que o inconsciente é a política, pois, apesar de ter sido


instituído pela crença no Um, ele é palco de conflito por ser contra
o Um esperado pelo eu do sujeito. O eu se defende desse afeto
através da ilusão da existência do Um, enquanto o inconsciente
remete o neurótico à castração, à falta, à causa de desejo.
Lacan prossegue dizendo que, pelo próprio discurso da políti-
ca, não há subversão do Um porque, a cada tentativa de se derrubar
o Um, há sempre outro para ocupar o seu lugar. E, no inconscien-
te, o movimento é o mesmo: instituição e tentativa de destituição
do Um, operações de alienação e separação.
Mas é exatamente aí que Lacan nos apresenta uma potência
subversiva, pois, nesse duplo movimento de instituição e tentativa
de destituição, se revela um núcleo do real através do qual circulam
os S1, uma dimensão real do inconsciente e da política que o leva
a contrapor o Um simbólico ao Um real, do vazio, da falta, e é a
partir dele que se pode contar os elementos do conjunto (Lacan,
1971-2/2012).
Há um mais além do Um e que é da ordem do vazio da exis-
tência: Um da exceção da regra e que, por isso mesmo, fecha o
conjunto e faz o todo. Na teoria dos conjuntos, o conjunto vazio
é o elemento um. A partir dele, conta-se a série dos elementos do
conjunto, portanto, o vazio é o Um que surge justamente porque
há Um que falta. E é nesse sentido que podemos dizer que Há Um
(Il y a de l’Un). Não há um significante que representa o sujeito,
mas há o Um real que é constitutivo da série dos S1. Podemos
dizer que isso é subversivo e é em torno desse Um real que se
estruturam simbolicamente o inconsciente e a política, por serem
efeitos desse vazio que inaugura a cadeia dos S1.
Trata-se desse real que estrutura a política não tradicional, di-
ferente daquela que visa capturar o sujeito e fixá-lo a determinados
significantes mestres. Queremos dizer com isso que não há uma
subversão da política, a menos que se institua num ato político e
se inscreva na estrutura do discurso psicanalítico. O inconsciente
se inscreve na política, mas a política não se vale necessariamente

62 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.57-64
CARTEL E PASSE

do inconsciente, da causa de desejo. Daí seguirmos dizendo que


o inconsciente é a política, mas a política não é o inconsciente. A
política da psicanálise apoia-se na potência subversiva do incons-
ciente, avessa à política tradicional.

Referências bibliográficas

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Ⱥ Política e a Psicanálise: de que endereçamento se trata? – Agnes Meneguelli 63


CARTEL E PASSE

Ⱥ Política e a Psicanálise: de que Politics and Psychoanalysis: a


endereçamento se trata? question of orientation?
Resumo: O presente artigo visa uma Abstract: The present article aims to re-
reflexão da dimensão política da clínica flect upon the political dimension of the
psicanalítica a partir do caráter subversivo psychoanalytical work, based on the sub-
do ato analítico. O analista, na função de versive character of the analytical act. The
objeto a, causa de desejo, não se endereça analyst, in the function of object a, cause
ao eu, ao mestre, ao Um, mas ao sujeito do of desire, does not address the imaginary
inconsciente. Ao analisando cabe a for- self, the master, the One, but the subject
malização da demanda a partir da supo- of the unconscious. The subject who un-
sição de saber no analista que dará a este dergoes an analysis starts to formalize a
o poder de cura que, num primeiro mo- demand from the assumption that the an-
mento, delegamos ao mestre, a ilusão da alyst knows, conceding the healing power
existência do Um, mas que se contrapõe a that, at first, we delegate to the master, the
dimensão real do inconsciente, o Um real. illusion of the existence of the One, but
Il y a de l’Un. which opposes the real dimension of the
Palavras-chave: Política. Psicanálise. unconscious, the real One. Il y a de l’Un.
Lógica. Um. Keywords: Politics. Psychoanalysis.
Logics. One.

La Politique et la Psychanalyse: Ⱥ Política y a Psicoanálisis: ¿de


une question d’orientation? qué dirección se trata?

Résumé: Le présent article vise à reflé- Resumen: El presente artículo tiene como
ter la dimension politique de la clinique objetivo reflejar la dimensión política de
psychanalytique à partir du caractère la clínica psicoanalítica desde el carácter
subversif de l’acte analytique. L’analyste, subversivo del acto analítico. El analista,
dans la fonction de l’objet a, cause du dé- en función del objeto a, causa del deseo,
sir, ne s’adresse pas au moi, au maître, à no se dirige al yo, al amo, al Uno, sino al
l’Un, mas au sujet de l’inconscient. Pour sujeto del inconsciente. Depende del ana-
l’analysant, c’est la formalisation d’une de- lizante la formalización de una demanda
manda basée sur une supposition de savoir desde la suposición de saber al analista,
dans l’analyste qui lui donnera le pouvoir qué le dará al analista el poder de cura,
de guérison que l’on délègue d’abord le que, en un primer momento, delegamos
maître, à l’illusion de l’existence de l’Un, al amo, la ilusión de la existencia del Uno,
mais qui contraste avec la dimension réelle pero que se opone a la dimensión real del
de l’inconscient, l’Un royal. Il y a de l’Un. inconsciente, el Uno real. “Il y a de l’Un”.
Mots-clés: Politique. Psychanalyse. Lo- Palabras-clave: Política. Psicoanálisis.
gique. Un. Logica. Uno.

Recebido em: 23/12/2019


Aprovado em: 11/02/2020

64 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.57-64
CARTEL E PASSE

Verdade, ou fato ou fake: Verdade, irmã de


gozo e o Tractatus Lógico-Philosophicus

Rosanne Grippi

F azer parte de uma Escola de psicanálise lacaniana é estar em


um lugar de formação de analistas, uma formação que se visa
permanente, pois, nos lembra Lacan, a razão de ser de sua Escola
“é constituir a psicanálise como uma experiência original, levá-la
ao ponto em que nela figura a finitude, para permitir o a poste-
riori, efeito de tempo que, como sabemos, lhe é radical” (Lacan,
1968/2003, p. 251). Na Escola de Lacan, somos uma “’comuni-
dade de experiência’, lá onde se exercem diversas atividades de
ensino e transmissão” (Quinet, 2009, p. 188). A orientação de
Lacan é de que na comunidade de seus pares o analista dê provas
de sua competência e de sua relação com a causa analítica (Quinet,
2009, p. 61).
A relação do psicanalista com a causa analítica é particular.
O estilo de cada analista faz barra à normatização, “é tributário
daquilo que ele tem de mais particular: o objeto a.” (Quinet, 2009,
p. 94). Lacan colocou no centro de sua Escola o furo, e é em torno
dele que a formação de seus membros se organiza: “a ausência do
conceito preestabelecido do analista” (Quinet, 2009, p. 91).
Podemos afirmar que a Escola é um lugar de trabalho. Lacan
foi taxativo em seu Ato: “Não preciso de uma lista numerosa (de
membros), mas de trabalhadores decididos” (Lacan, 1964/2003,
p. 239).
Lacan, quando fundou a Escola Francesa de Psicanálise, em
1964, propôs que o trabalho de formação do analista fosse feito
por meio do “princípio de uma elaboração apoiada num pequeno
grupo” (Lacan, 1964/2003, p. 238). A esse grupo, Lacan chamou
de Cartel, seu órgão de base, pois seria a forma de adesão à Escola.

Verdade, ou fato ou fake: Verdade, irmã de gozo e o Tractatus Lógico-Philosophicus – 65


Rosanne Grippi
CARTEL E PASSE

Em “D’Écolage”, seminário que proferiu em março de 1980, após


a dissolução da EFP, Lacan propõe a “fórmula afinada do Cartel”,
da qual, “quando da montagem de um cartel, deve ser tomada por
referência” (Quinet, 2009, p. 85).
Neste trabalho, pretendo mostrar um produto, resultante de
um cartel do qual faço parte: a leitura do “Seminário, livro 17, o
avesso da psicanálise”, conduzido por Lacan nos anos 1969-70.
Esse estudo me levou a pesquisar a obra de Wittgenstein, pois em
uma passagem do capítulo IV desse seminário, “Verdade, irmã de
gozo”, Lacan provoca, ao dizer que tal filósofo “é fácil de ler. Cer-
tamente. Tentem só” (Lacan, 1969-70/1992, p. 55).
Lacan se debruça sobre o laço social e propõe a teoria dos
quatro discursos, os quais são nomeados como Discurso do Mes-
tre, Discurso da Histérica, Discurso do Universitário e Discurso
do Analista. Conforme observa Quinet (2009, p. 34):

Nos quatro discursos não encontramos a identidade entre a causa e a


verdade, mas uma forma de articulação que contém união e disjunção
(causa ◊ verdade). Para cada causa há uma verdade que a sustenta. Lá
onde está o agente, encontramos a causa do discurso.

Lacan matematiza os discursos, nomeando os lugares como:

agente outro
--------- ---------
verdade produção

E vai preenchê-los pelos elementos: S1 (Poder), S2 (Saber), $


(Sujeito) e a (objeto mais-de-gozar). No capítulo IV desse eminá-
rio, Lacan trabalha a verdade — que é um dos lugares do matema,
e afirma: “verdade não é uma palavra a ser manipulada fora da
lógica proposicional” (Lacan, 1969-70/1992, p. 52).
No capítulo citado, intitulado “Verdade, irmã de gozo”, La-
can (1969-70/1992) começa dizendo que o discurso que o interes-

66 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.65-77
CARTEL E PASSE

sa aqui “em alto grau” (p. 51) é o Discurso Universitário, e “que


será objeto de uma abordagem essencial, a fim de demonstrar o
que é um avesso” (p. 52). Segundo Quinet (2009, p. 35):

No discurso universitário, a causa é o saber, e a verdade é o poder. O


saber como causa escamoteia o poder que se encontra em seu fun-
damento, tal como o testemunhamos nas pelejas acadêmicas. Militar
pela causa do saber está do lado da universitás, da universalidade do
saber que não leva em consideração o furo do saber, a particulari-
dade do que causa o sujeito. Isso faz retornar essa particularidade
do sujeito do desejo (S/ ) como sintoma na falha do saber do Outro.
Eis o produto desse discurso: o revoltado, o reivindicador que é, por
excelência, o estudante.

Portanto, podemos aferir que para passarmos para o avesso


dos discursos, o Discurso do Analista, é fundamental estudar so-
bre a verdade, que no Discurso do Universitário é ocupado pelo
significante mestre, S1 (o poder), que está sob a barra do agente, o
S2, o saber.
Em seguida, Lacan interroga: “o que é verdadeiro?”, e afir-
ma: “é aquilo que é dito. E o que é dito? É a frase” (Lacan,
1969-70/1992, p. 53). E mais à frente vai nos lembrar que “o
essencial do método freudiano para abordar o que corresponde
às formações do inconsciente é confiar no relato. A ênfase foi
dada a esse fato de linguagem, de onde tudo poderia, na verdade,
ter partido” (Lacan, 1969-70/1992, p. 60) Ainda no início desse
capítulo, propõe que:

(...) “verdade não é uma palavra a ser manipulada fora da lógica


proposicional, onde se dá um valor reduzido à inscrição, ao manejo
do símbolo, que em geral é um V maiúsculo, sua inicial. Tal uso (...) é
particularmente desprovido de esperança. E é justamente isso o que ele
tem de sadio” (Lacan, 1969-70/1992, p. 52).

Verdade, ou fato ou fake: Verdade, irmã de gozo e o Tractatus Lógico-Philosophicus – 67


Rosanne Grippi
CARTEL E PASSE

A verdade não pode ser investigada sem a lógica proposicio-


nal, entretanto não pode ser reduzida a ela. A verdade não pode
ser reduzida, pois “mesmo no mundo dos discursos, nada é tudo,
ou melhor, o tudo como tal se refuta, e mesmo se baseia, em ter
que ser reduzido em seu emprego” (Lacan, 1969-70/1992, p. 51).
Na parte 2 desse capítulo, Lacan diz que vai dar um pequeno
salto e se dirigir a Wittgenstein, que postulou:

(...) que não há verdade que não esteja inscrita em alguma proposição
e de articular o que, do saber como tal — sendo o saber constituído
por um fundamento da proposição —, pode funcionar rigorosamente
como verdade. (...) A estrutura gramatical constitui, para esse autor, o
que ele identifica com o mundo (Lacan, 1969-70/1992, p. 55-6).

É desse ponto que parto para trazer a filosofia de Wittgenstein,


mas não sem a orientação de Lacan que diz “que nada poderão
extrair dali exceto a afirmação de que nada pode ser chamado de
verdadeiro além da adequação a uma estrutura que não situarei
como lógica, (...) mas como — o autor o afirma propriamente
— gramatical” (Lacan, 1969-70/1992, p. 56) Lacan aponta as
proposições 6.51, 2, 3 e 4 do Tractatus Logico-Philosophicus como
sendo a conclusão do que ele trabalha no capítulo IV, ou seja, na
lógica das proposições desse filósofo “não há qualquer outra coisa
dizível, mas tudo que se possa dizer não passa de não-senso” (La-
can, 1969-70/1992, p. 56).

A lógica das proposições de Wittgenstein

Muitos matemáticos consideram que a história da lógica co-


meça há mais de trezentos anos a.C., com Aristóteles, apesar de
alguns historiadores dizerem que foi Sócrates o preconizador da
lógica com seu método dedutivo — ilustrado nos Diálogos Platô-
nicos, como no Crátilo ou no Fédon.

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CARTEL E PASSE

Aristóteles é quem realiza o primeiro estudo sistemático de


conhecimento e que vai permanecer como referência para as fi-
losofias Escolástica e Moderna. A lógica aristotélica consiste em
obter uma conclusão a partir da combinação de duas afirmações
— Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é
mortal.
O professor de história de lógica formal, Fábio Pestana Ra-
mos, nos conta que:

Em 1882, o alemão Friedrich Frege originou a lógica formal, também


chamada de lógica de predicados, adaptando o raciocínio abstrato hu-
mano à rigidez matemática para investigar a validade e verdade das
cadeias de pensamento, transformando argumentos lingüísticos em
expressões da álgebra. Um trabalho complementado, no inicio do sé-
culo XX, pelo matemático inglês George Boole, o qual criou as chama-
das tabelas de verdade e regras de inferência para analisar as fórmulas
adaptadas a partir da língua corrente. Uma complementação que fez
a lógica formal ficar conhecida como linguagem booleana, permitin-
do analisar proposições tautológicas e não tautológicas. Entretanto, foi
Frege que criou o vocabulário que permite traduzir a língua dominante
para a matemática, inserindo-se este dentro do âmbito das regras e
conceitos básicos da lógica aristotélica. A lógica formal ou de predi-
cados representou um enorme avanço para a área, apesar de também
possuir defeitos e não ser perfeita. Embora seja atribuída a Boole a
criação das tabelas de verdade, elas são fruto do trabalho desenvolvido
também por Frege, Charles Pierce e Ludwig Josef Johann Wittgens-
tein. As tabelas de verdade são usadas para determinar se uma fórmula
não tautológica é falsa ou verdadeira, portanto, o seu chamado valor
de verdade. Cada tabela condiciona o resultado conforme o conectivo
utilizado ou o uso do quantificador de negação (Ramos, 2011).

Ludwig Josef Johann Wittgenstein (1889-1951), nascido em


Viena, estudou engenharia em Berlim e em Manchester, o que o
levou a se interessar pelos fundamentos da matemática e da lógica.

Verdade, ou fato ou fake: Verdade, irmã de gozo e o Tractatus Lógico-Philosophicus – 69


Rosanne Grippi
CARTEL E PASSE

“Estudou com Bertrand Russel, então um dos maiores filósofos a


trabalhar essas questões” (Marcondes, 1998, p. 268). Russell conta
que, em 1913, Wittgenstein lhe fez uma insólita pergunta: “Sou
um completo idiota? Caso seja, entro para aeronáutica, se negativa
a resposta, serei filósofo”. Russell lhe pediu um pequeno ensaio fi-
losófico para poder dar uma resposta, o que o fez, lhe dizendo que
abandonasse por completo a ideia da aeronáutica.
Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, Wittgenstein
alistou-se no exército austríaco como voluntário, trabalhando
intensamente e redigindo o Tractatus Logico-Philosophicus, “que
deve ser entendido a partir do contexto filosófico das obras de
Gottlob Frege (1848-1925) e Bertrand Russel (1872-1970)”
(Marcondes, 1998, p. 268). Em 1918, terminou de redigi-lo e
dois meses depois foi aprisionado pelas tropas italianas, segundo
um de seus principais biógrafos, Norman Malcom. Publicou o
Tractatus em 1921, após retornar à vida civil, nos “Anais de Filo-
sofia Natural”. No ano seguinte, a obra foi traduzida para o inglês,
recebendo o título em latim, tendo sido reconhecida e consagrada
como uma das mais importantes na história da filosofia (Witt-
genstein, 1936/1984).
Wittgenstein foi um dos maiores filósofos do século XX. O
conjunto de sua obra é dividido em duas fases bem distintas: a pri-
meira é a do “Tractatus Lógico-Philosophicus” (1921) e “Investiga-
ções Lógicas” (1922), e a segunda, constituída pelas demais obras,
“Observações Filosóficas”, “Cadernos Azul e Marrom” (redigidos
entre 1933 e 1935) e “Conferências e Discussões sobre Estética,
Psicologia e Crença Religiosa” (série de notas recolhidas por al-
guns de seus amigos em conversas ocasionais e apontamentos de
aula) (Wittgenstein, 1936/1984).
Seria demasiado para este trabalho percorrer todo caminho
feito por Wittgenstein, que vai de Frege a Russell, para escre-
ver seu tratado. Mas fica aqui a advertência feita por José Arthur
Giannotti, que faz a tradução e apresentação da edição em portu-
guês do Tractatus, quando diz que:

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CARTEL E PASSE

Wittgenstein elege o cálculo das proposições como padrão de in-


teligibilidade de todos os sistemas formais, postulando, em conse-
quência, uma unidade entre eles que mais tarde se revelou ilusória.
Além do mais, essa unidade lhe permite conceber a lógica como um
sistema total, ao contrário da dispersão dos sistemas particulares pre-
dominantes na lógica contemporânea. É evidente que nessas condi-
ções os problemas da semântica, os problemas que dizem respeito
às relações do sistema com o mundo, haveriam de ser propostos de
uma forma muito mais ambiciosa do que hoje estamos acostuma-
dos a propor. Daí a riqueza do Tractatus, daí em compensação seu
dogmatismo, que por certo desnorteará aquele que não o abordar de
uma perspectiva crítica que só a história pode oferecer (Wittgens-
tein, 1921/1968, p. 2).

Os temas do Tractatus estão agrupados em proposições que


vão de 1 a 7, segundo o nível crescente de complexidade existen-
te na argumentação. Essas proposições básicas são como teses de
que as proposições subsequentes, numeradas decimalmente, cons-
tituem um comentário ou esclarecimento. “Todo meu trabalho
consiste em explicar a natureza das sentenças”, diz Wittgenstein.
No Tractatus, desenvolve pormenorizadamente as condições lógi-
cas da significação. Dessas dezenas de argumentações vamos re-
produzir aqui as indicadas por Lacan (6.51, 2, 3, 4) para recortar
o que ele articulou com a verdade, o não sentido. “Tudo é Unsinn,
quer dizer, anula o sentido”, diz Lacan ao afirmar que tudo que
havia dito até o momento na lição deste seu seminário estava nas
proposições citadas acima (Lacan, 1969/70, p. 56).
A ideia da existência de proposições elementares, para Wit-
tgenstein, “decorre diretamente de suas preocupações da relação
entre pensamento e a linguagem, de um lado, e a realidade, de
outro. Sua teoria baseia-se na ideia de que a realidade é afigurada
pela linguagem” (Wittgenstein, 1936/1984, p. 12). Sendo assim,
torna-se necessária a existência de proposições, “cujo sentido evi-
dencia-se imediatamente.” (Wittgenstein, 1936/1984, p. 12) Mas

Verdade, ou fato ou fake: Verdade, irmã de gozo e o Tractatus Lógico-Philosophicus – 71


Rosanne Grippi
CARTEL E PASSE

não se deve concluir daí que a verdade seja “auto-evidente” nas


proposições. As proposições não evidenciam a verdade. A verdade
não é o sentido.

Assim, das proposições elementares dependeriam todas as outras


proposições. Em outras palavras, as proposições (cujo sentido é ime-
diatamente evidente) não-elementares seriam funções de verdade de
proposições elementares; não fosse assim, nenhuma sentença poderia
dizer alguma coisa e ser entendida (Wittgenstein, 1936/1984, p. 12).

Desse modo, diz Lacan (1969-70/1992, p. 53), a frase é sus-


tentada pelo significante, “que não concerne ao objeto, mas ao
sentido.” A dialética que interessa a Lacan é a do pas-de-sens, sen-
tido-algum e passo-de-sentido: “o que concerne ao ser depende do
sentido, é aquilo que mais ser tem” (1969-70/1992, p. 53). Desse
modo Lacan “transpôs o passo-de-sentido, o sentido-algum que
é pensar que aquilo que mais ser tem não pode deixar de exis-
tir” (1969-70/1992, p. 53). “O não-senso tem peso” (p. (1969-
70/1992, p. 54).
Para melhor entendermos essa relação entre a verdade de uma
proposição e a função de verdade das proposições não-elementa-
res, destacamos:

A função de verdade de uma única proposição p é uma proposição


cuja verdade ou falsidade é determinada, exclusivamente, pela verdade
ou falsidade de p; por exemplo, não-p (se p é falso) é uma função de
verdade de p. Uma função de verdade de duas proposições p e q é uma
proposição cuja verdade ou falsidade é unicamente determinada pela
verdade ou falsidade de p e q; por exemplo, “p, q são ambas verdadeiras”
é uma função de verdade de p, q. Se duas proposições não-elementares
r e s são funções de verdade de proposições elementares, então r e s
estão relacionadas internamente: por exemplo, uma delas pode decor-
rer logicamente da outra, ou podem ser contraditórias (Wittgenstein,
1936/1984, p. 12).

72 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.65-77
CARTEL E PASSE

Ao introduzir no conjunto o elemento de negação que permi-


te articular a lógica das proposições, o conjunto, diz Wittgenstein,
“é tautológico, quer dizer, (...) o que quer que enunciem, ou bem é
verdadeiro, ou bem é falso. Enunciar que isto ou bem é verdadei-
ro, ou bem é falso, é obrigatoriamente verdadeiro — mas também
anula o sentido” (Lacan, 1969-70/1992, p. 56).
Conforme afirma Lacan: “Wittgenstein sustenta o mundo
apenas com fatos. Coisa alguma existe se não for sustentada por
uma trama de fatos. Coisa alguma existe, aliás, que não seja ina-
cessível. Só o fato é articulável. Este fato, que faça bom tempo, é
feito apenas disso — que seja dito” (Lacan, 1969-70/1992, p. 57).
Relaciono, então, as proposições não-elementares citadas por
Lacan (6.51, 2, 3 e 4):

6.51 O cepticismo não é irrefutável, mas patentemente ab-


surdo, quando pretende duvidar onde não cabe perguntar. A
dúvida, pois, só existe onde existe uma questão, uma questão
apenas onde existe uma resposta, e esta somente onde algo
pode ser dito.
6.52 Sentimos que, mesmo que todas as possíveis questões
científicas fossem respondidas, nossos problemas vitais não
teriam sido tocados. Sem dúvida, não cabe mais pergunta
alguma, e esta é precisamente a resposta.
6.53 O método correto em filosofia seria propriamente: nada
dizer a não ser o que pode ser dito, isto é, proposições das
ciências naturais — algo, portanto, que nada tem a haver
com a filosofia; e sempre que alguém quisesse dizer algo
a respeito da metafísica, demonstrar-lhe que não conferiu
denotação a certos signos de suas proposições. Para outrem
esse método não seria satisfatório — ele não teria o sen-
timento de que lhe estaríamos ensinando filosofia — mas
seria o único método estritamente correto.
6.54 Minhas proposições se elucidam do seguinte modo:
quem me entende, por fim as reconhecerá como absurdas,

Verdade, ou fato ou fake: Verdade, irmã de gozo e o Tractatus Lógico-Philosophicus – 73


Rosanne Grippi
CARTEL E PASSE

quando graças a elas — por elas — tiver escalado para além


delas. (É preciso por assim dizer jogar fora a escada depois
de ter subido por ela.) Deve-se vencer essas proposições para
ver o mundo corretamente.

Para concluir, coloco algumas questões: a parte do capítulo


do Seminário: “o avesso da psicanálise” que estuda o Tractatus é
intitulada “A psicose de Wittgenstein”. Lacan, ao diagnosticar o
filósofo, estaria ratificando o inconsciente estruturado como uma
linguagem? Ou melhor: uma vez que Wittgenstein está na psi-
cose, será que ele nos dá a ver a estrutura gramatical do incons-
ciente a céu aberto em seu Tractatus? Lacan se refere ao discurso
de Wittgenstein com a expressão “uma ferocidade psicótica”, da
qual a operação analítica se distingue por avançar nesse campo da
lógica de maneira diferente da enunciada pelo filósofo, que diz
que “não devemos admitir qualquer noção lógica a não ser como
necessária”. Lacan afirma: “isso é uma ninharia” (Lacan, 1969-
70/1992, p. 58).
Com Lacan, podemos pensar a hipótese de o filósofo ter fei-
to uma saída pela lógica, colocando a céu aberto uma construção
paranoica? Com as sequências lógicas das sentenças, Wittgenstein
quer fazer consistir o Todo, o Um?
Fato ou falso? “O falso também comporta o verdadeiro, o que
também quer dizer que o verdadeiro é verdadeiro sobre o que quer
que seja”, afirma Lacan. A verdade que interessa ao Discurso do
Analista é o passo dado por Freud. A verdade escapa, na falta de
sentido a verdade “volta a galope. E em tal galope, (...) ela já partiu
de novo pelo outro lado” (Lacan, 1969-70/1992, p. 58).
Por que Lacan toma o Discurso Universitário para pensar
a verdade, a qual tem um lugar fixo nos matemas dos discursos,
sempre abaixo da barra que sustenta seu agente? Podemos res-
ponder que se o S2 é o agente no Discurso Universitário, em seu
avesso, no giro dos matemas, no Discurso do Analista, ele está
no lugar da verdade. O S2 não se produz sem o S1, é o saber fazer.

74 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.65-77
CARTEL E PASSE

No Discurso Universitário, S1 está sob S2, o saber. Entretanto,


nos diz Lacan:

O avesso não explica nenhum direito. Trata-se de uma relação de tra-


ma, de texto — de tecido, se quiserem. Só que o tecido tem algum
relevo, ele pega alguma coisa. Claro, não tudo, pois a linguagem mostra
precisamente o limite dessa palavra que só tem existência de lingua-
gem (Lacan, 1969-70/1992, p. 51).

Nesse capítulo do “Seminário 17”, Lacan coloca o Discurso


da Histérica entre o Discurso Universitário e o Discurso do Mes-
tre, como uma “histerização do discurso necessária à entrada em
análise”, conforme indica Quinet (2009, p. 35). No Discurso do
Analista, S1 é o que o sujeito vai produzir para saber-fazer com seu
sintoma.
Dos quatro discursos, o Discurso do Analista é o único
que não utiliza uma linguagem como arma de imposição sobre
o outro, pois seu agente é ocupado pelo objeto mais-de-gozar, e
“o significante não concerne ao objeto, mas ao sentido” (Lacan,
1969-70, p. 53). O S2 no lugar da verdade sustenta o Discurso do
Analista, e a verdade desse discurso é a obra freudiana (S2). Ela dá
o tom. É por ser atravessado pela psicanálise que o analista pode
estar no lugar de objeto para que um sujeito, de sua análise, pro-
duza seus próprios significantes. Saber-fazer com seu sintoma é o
que se espera de uma psicanálise.
O que se pode extrair depois de ter lido o “Wittgenstein”, diz
Lacan, é que: “Não há sentido que não seja do desejo. (...) Não há
verdade senão daquilo que esconde esse desejo de sua falta, fin-
gindo que não quer nada diante do que encontra” (Lacan, 1969-
70/1992, p. 58).

Verdade, ou fato ou fake: Verdade, irmã de gozo e o Tractatus Lógico-Philosophicus – 75


Rosanne Grippi
CARTEL E PASSE

Referências bibliográficas

LACAN, Jacques. (1960-70). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio


de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a
Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
QUINET, Antonio. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analis-
tas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
RAMOS, Fábio Pestana Ramos. Introdução à lógica formal. Para entender a his-
tória, São Paulo, Ano 2, Volume out., Série 10/10, 2011, p. 01-06. Disponível
em: <http://fabiopestanaramos.blogspot.com/2011/10/introducao-logica-for-
mal.html>. Acesso em: 4 nov. 2019.
WITTGENSTEIN, Ludwig. (1921). Tractatus Lógico-Philosophicus. Tradução
de José Arthur Giannotti. São Paulo: Cia Editora Nacional/Edusp, 1968.
______ (1936). Investigações filosóficas. Tradução José Carlos Bruno. 3. ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os Pensadores).

76 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.65-77
CARTEL E PASSE

Verdade, ou fato ou fake: Verda- Truth, either fact or fake: Truth,


de, irmã de gozo e o Tractatus the sister of juissance and the
Logico-Philosophicus Tractatus Logico-Philosophicus
Resumo: Este trabalho é o produto de Abstract: This work is the product of a
um cartel, no qual lê-se O Seminário, li- cartel along which its members have read
vro 17: o avesso da psicanálise, de Jacques The Seminar, book 17: the reverse of psy-
Lacan. No capítulo IV desse seminário, choanalysis, by Jacques Lacan. This pa-
a autora sentiu-se provocada, quando, ao per is mostly based on chapter IV of this
trabalhar o tema da verdade, Lacan toma seminar, as I felt especially provoked by
a obra do filósofo Ludwig Wittgenstein, it while working on the theme of truth.
Tractatus Lógico-Philosophicus, e afir- To tackle this issue, I also read the work
ma: “É fácil de ler. Certamente. Tentem of the philosopher Ludwig Wittgenstein,
só.”. Desse modo, a autora debruçou-se Tractatus Logico-Philosophicus, in which
nesse estudo e apresentou-o, em formato he states: “It is easy to read. Certainly.
menor, no XX Encontro Nacional da EP- Just try it.”. Although the present paper
FCL, em Aracajú-SE, em 2019. is based on a long and thorough study of
Palavras-chave: Discursos. Verdade. Lacan’s work on the theme of the truth,
Lógica proposicional. it was presented in a very small format, at
the XX National Meeting of the EPFCL,
in Aracajú-SE, in 2019.
Keywords: Discourse. Truth. Proposi-
tional logic.

Vérité, soit fait soit fausse: Vé- Verdade, ou fato ou fake: Verda-
rité, sœur de la jouissance et le de, irmã de gozo e o Tractatus
Tractatus Logico-Philosophicus Lógico-Philosophicus
Résumé: Ce travail est le produit d’un Resumen: Este trabajo es producto de un
cartel qui lit Le Séminaire, livre 17: l’envers cartel, que lee El Seminario, libro 17: el
de la psychanalyse, par Jacques Lacan. reverso del psicoanálisis, de Jacques La-
Dans le chapitre IV de ce séminaire, can. En el capítulo IV de este seminario,
l’auteur s’est senti provoquée lorsque, la autora se sintió provocada cuando, al
en travaillant sur le thème de la vérité, trabajar sobre el tema de la verdad, La-
Lacan reprend les travaux du philosophe can toma la obra del filósofo Ludwig
Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico- Wittgenstein, Tractatus Logico-Philoso-
Philosophicus, et déclare: «C’est facile phicus, y afirma: “es fácil de leer. Cierta-
à lire. Certainement. Essayez. » Ainsi, mente. Apenas inténtalo”. Por lo tanto, la
l’auteur s’est penchée sur cette étude et l’a autora se dedicó a este estudio y lo pre-
présentée, dans un format plus petit, à la sentó, en un formato más pequeño, en la
XX réunion nationale de l’EPFCL, à Ara- XX Reunión Nacional de la EPFCL, en
cajú-SE, en 2019. Aracajú-SE, en 2019.
Mot-clé: Discours. Vérité. Logique Palabras-clave: Discursos. Verdad. Ló-
propositionnelle. gica proposicional.

Recebido em: 27/01/2020


Aprovado em: 18/02/2020

Verdade, ou fato ou fake: Verdade, irmã de gozo e o Tractatus Lógico-Philosophicus – 77


Rosanne Grippi
POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM
INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Lugar de fala

Carol Leão

A ideia de trabalhar com o tema do lugar de fala se insere


nos esforços por articular psicanálise e política em uma úni-
ca superfície, indissociavelmente. Numa face, temos o discurso
analítico contribuindo ao debate das questões sociais do nosso
tempo; na outra, há convocações políticas feitas à psicanálise,
pelos mais variados setores da sociedade. Começo, então, pela
primeira face, da psicanálise em direção à política, investigando
o estatuto do lugar responsável por ‘abrigar’ e constituir os cor-
pos falantes: as dimensões do simbólico, do imaginário e do real.
Quando menos se espera, atravessaremos o ponto de ‘virada’, ou
de torção, relançando-nos moebianamente na outra face, da po-
lítica em direção à psicanálise.
Que os nossos corpos disponham de um aparelho fonador,
que emitam sons, nada disso garante a existência da fala. Para
que ela exista, há uma condição anterior, primeira, que Lacan
chamou de ‘campo da linguagem’, dimensão simbólica e comum
a todos os falantes. O ‘chão’ universal da linguagem tanto será
responsável por reconhecer e autenticar cada fala, singularmente,
como também dará ensejo à estruturação do inconsciente, no que
ele se apresenta enquanto ‘discurso do Outro’. Essa formulação
de partida já nos desvia de uma concepção fechada e totalizante
da fala, própria à lógica neoliberal, lançando-nos em uma arti-
culação situada mais além do indivíduo, no inconsciente em sua
estrutura de linguagem.
Mas, postular a linguagem como universal em nada esclarece
o porquê de algumas falas encontrarem maior facilidade de serem
acolhidas, reconhecidas. A autenticação simbólica não costuma ser
a mesma para todos, e alguns corpos certamente são mais ‘falantes’

Lugar de fala – Carol Leão 79


A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

do que outros. Aqui se introduz uma segunda dimensão do lugar, o


‘enquadramento imaginário’, lá onde se aloja o ‘Eu falo’.
No lugar do Eu, veremos emergir toda sorte de hesitações,
disputas, em níveis maiores ou menores de embaraço, convergindo
para uma importante pergunta: em que Eu estou autorizado/a a
falar? O recurso à identidade aí se mostra estratégico, ‘forçando’ a
autorização, inscrevendo o lugar do Eu falo em contextos marca-
dos pelo silenciamento e pela desqualificação. Se digo ‘Eu falo na
condição de mulher’, trata-se de um enunciado performativo, que
imediatamente desencadeia uma perturbação na rede simbólica,
reorientando seu sistema de autenticação. Mas, aqui, há também
um risco: será que o Eu falo necessariamente desaloja o lugar de
outro Eu, desautorizando-o? A pergunta nos faz refletir sobre a
mobilização d’A Mulher enquanto ideal representativo (essa que
não existe), o que inevitavelmente desaloja outras mulheres, sin-
gulares e bem existentes, de seus lugares de enunciação. Debate
em jogo no protagonismo político e amplamente retomado pelas
feministas negras: “comece a se perguntar: quantas vezes fiz um
discurso lindo sobre racismo, mas silenciei uma mulher negra que
tinha mais legitimidade para falar sobre um tema que a atinge?”
(Ribeiro, 2018, p. 84).
Tal modo de colocar a questão gera reações, embates, fazendo
com que alguns acusem a temática do lugar de fala de produzir
coerção, autoritarismo, ou incentivar o ‘narcisismo das pequenas
diferenças’. É o que explicita o recente manifesto contra a ameaça
decolonial, assinado por mais de oitenta psicanalistas franceses, e
publicado em setembro de 2019, no jornal Le Monde: “essas deri-
vações sectárias e comunitaristas ameaçam os valores democráticos
e republicanos, essencializando os indivíduos” (2019). Proponho
deixar em suspenso as controvérsias relacionadas às disputas nar-
rativas identitárias, que tal manifesto acentua e radicaliza, para nos
remeter a outra estrutura, muito mais complexa: trata-se da delica-
da posição do ‘falar pelo outro’, problema que não é sem ressonân-
cia para o psicanalista.

80 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.79-84
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

O ‘Eu falo pelo outro’ permite investigar os efeitos de uni-


versalização do enquadre imaginário, ou melhor, de produção da
norma, em que o Eu se torna o crivo interpretativo da alteridade.
Essa é uma ideia que pode ser remetida a Freud (1925/2007), em
sua concepção de um Eu-prazer originário, o qual faz coincidir a
interioridade com o atributo do bom, e a exterioridade com o mau.
Assim, na gênese da norma, o Eu-corpo se constitui como proje-
ção de superfície, mas sob a condição de instituir o outro-corpo,
em um espaço de ejeção da superfície, o ‘fora’ do enquadre especu-
lar, que assume a forma do desvio.
Há aqui, pelo menos, dois momentos de produção da nor-
mativa: o primeiro, apontado por Freud (1925/2007), pode ser re-
sumido pela frase “não se fala do outro”, típica dos processos de
segregação, em que o outro encarna a origem do mal, sendo assim
ejetado da superfície especular egóica. O “Eu falo pelo outro” se-
ria, então, uma estratégia secundária, de reintegração do desvio ao
campo da norma, com o intuito de conservar a unidade egóica. E
poderíamos acrescentar também um terceiro tempo, mais comple-
xo, em que a normativa se prolonga por sobre o campo da alterida-
de, subjetivando-a: “o Eu fala no outro”, sutileza micropolítica da
norma, que nos permite vislumbrar o porquê de algumas mulheres
sustentarem discursos machistas, pobres votarem em candidatos
neoliberais, negros assumirem posturas racistas, etc. São os pseu-
dópodes da norma que produzem a tão familiar situação do colo-
nizado que “pensa” com a cabeça do colonizador.
Mas quem exatamente seria o Eu que fala?
A pergunta nos remete à produção do sujeito do ocidente, ou
do ocidente enquanto sujeito, como aponta Spivak (2018), mar-
cado pela centralidade discursiva do Eu branco/masculino, do co-
lonialismo e do patriarcalismo. Nessa perspectiva, alguns corpos,
ditos subalternos, tendem a permanecer ‘outrificados’, silenciados,
na impossibilidade de se dizerem na posição de sujeitos do dis-
curso: as negritudes são faladas sob a perspectiva do branco, as
feminilidades são capturadas pela normativa masculina, etc. Resta

Lugar de fala – Carol Leão 81


A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

investigar o que acontece quando aquilo que é periférico e mar-


ginal assume um lugar de centralidade. É no instante em que um
corpo outrificado enfim consegue se dizer que vemos ressurgir a
dimensão mais real e subversiva do discurso analítico, agenciado
pelo dispositivo de ‘fazer falar’.
Se a produção da normativa se refere ao ‘centramento’, a psica-
nálise, desde sua origem, é um discurso interessado no ‘descentra-
mento’, nisso que rompe com a coerência e a unidade do Eu falo: “o
Eu não é o senhor da sua própria casa”, afirma Freud (1917/1996,
p. 153). Falamos, portanto, muito mais do que determinam as nos-
sas intenções egóicas, excesso próprio à fala, impossível de ser nor-
matizado. A terceira dimensão do lugar de fala, sua vertente real,
remete-nos agora a um resíduo próprio ao Eu falo, resto que não
se deixa reintegrar ao enquadre imaginário. ‘Isso fala’ à revelia do
Eu, estrutura que bem demonstra o quanto algo da ordem do não
especular movimenta o desejo, insistentemente impulsionando a
fala. Lacan (1963-64/2005, p. 36) deu nome ao resto, chamou-o
de objeto causa de desejo, “a prova e garantia única da alteridade
do Outro”. Ele convocava os analistas a situarem seus atos no lócus
do objeto causa, e não do Eu, única forma de escutar a diferença,
autorizando e instituindo múltiplos lugares de fala.
Concluo com uma pergunta: pode um psicanalista falar pelo
outro? Essa questão toca de perto o dispositivo da supervisão, a
construção do caso clínico e também interroga o alcance do nos-
so arcabouço teórico em dizer das subjetividades do nosso tem-
po. Costuma-se mencionar que um analista não tem sexo, raça ou
classe, que se trata de uma função sem atributos, e com isso se
esquece de que uma coisa é fazer falar um analisando, operando
com a função, e outra é falar sobre o nosso feito, operando com o
discurso. As formulações sobre o lugar de fala assim nos convidam
a refletir sobre o nosso lugar de elaboração teórica, que não está
livre de enquadres normativos. Será, por exemplo, que algumas ela-
borações psicanalíticas sobre o feminino não reiteram justamente a
lógica patriarcal? Será que as dificuldades em debater os efeitos do

82 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.79-84
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

racismo sobre os corpos negros não se referem justo à incidência


do colonialismo em nossas elaborações teóricas? Fanon (2008. p.
134) há muito manifestava esse desconforto, dizendo que “a cada
vez que lemos uma obra de psicanálise ficamos impressionados
com a inadequação dos esquemas correspondentes diante da reali-
dade que oferece o preto”.
Portanto, não é suficiente fazer falar a diferença apenas no
eixo clínico: há de se produzir condições para que a diferença pros-
pere em extensão, nos mais variados espaços, nas instituições de
psicanálise e além. A sustentação do discurso analítico na pólis de-
pende dessa multiplicidade, e, dela, retirará a força necessária para
fazer frente a qualquer imposição normativa, unificante, regula-
mentadora.
Mais do que falar pelo outro, o dispositivo analítico nos re-
mete incessantemente à alteridade que fala em nós, essa diferença
radical, o inconsciente.

Referências bibliográficas

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: UDUFBA, 2008.


Freud, Sigmund. (1925). A negativa. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud,
(Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente, vol. 3). Rio de Janeiro, RJ: Imago. 2007.
______. (1917). Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In: Edição Stan-
dart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 17. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, Jacques. (1963-64). O Seminário: livro 10: a Angústia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2005.
O pensamento “descolonial” reforça o narcisismo de pequenas diferenças. Le
Monde. Paris, 25 set. 2019. Disponível em: <https://www.lemonde.fr/idees/arti-
cle/2019/09/25/la-pensee-decoloniale-renforce-le-narcissisme-des-petites-di-
fferences_6012925_3232.html>. Acesso em: 19/12/2019.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia
das letras, 2018.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2018.

Lugar de fala – Carol Leão 83


A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Lugar de Fala Speech place


Resumo: Tratarei do ‘lugar de fala’ Abstract: This paper will treat the
a partir das dimensões do simbólico, “speech place” concept by its symbolic,
do imaginário e do real, situando a imaginary, and real dimensions, regarding
estrutura do “Eu falo pelo outro”. Na the structure of the phrase “I speak for the
política, corpos subalternos são falados other.” In politics, subaltern bodies are
pelos que ocupam lugar de centralidade spoken by those who occupy the place of
discursiva. Na clínica, é a elaboração discursive centrality. In psychoanalytical
teórica que se torna alvo de reflexão: praxis, it’s the theoretical elaboration that
Pode um psicanalista falar pelo outro? Se becomes our aim for reflection: Can the
o enquadre do Eu falo produz a norma, psychoanalyst speak for the other? If the
recuperaremos a potência subversiva framing of “I speak” produces the norm,
do ato analítico, sua vertente real, que we will restore the subversive potential
autoriza/institui múltiplos lugares de fala. of the analytical act, its real source, that
Mais do que falar pelo outro, o dispositivo authorizes/settles multiples places from
analítico nos remete à alteridade que fala where to speak. Beyond speaking for an-
em nós: o inconsciente. other, the analytical dispositive reminds
Palavras-chave: Psicanálise. Política. us of the otherness that speaks through
Lugar de fala. us: the unconscious.
Keywords: Psychoanalysis. Politics.
Speech place.

La place de la parole Lugar de hablar


Résumé: Cet article traitera le concept Resumen: Trataré del “lugar de hablar”
de « place de la parole » par ses dimen- a partir de las dimensiones del simbólico,
sions symbolique, imaginaire et réelle, en imaginario y real, emplazando la estructu-
ce qui concerne la structure de l’expression ra de “Yo hablo por el otro”. En la política,
« je parle pour l’autre ». En politique, les los cuerpos subalternos son hablados por
corps subalternes sont parlés par ceux qui aquellos que ocupan el lugar de la centra-
occupent la place de centralité discursive. lidad discursiva. En la clínica, es la elabo-
Dans la pratique psychanalytique, c’est ración teórica que se convierte en la meta
l’élaboration théorique qui devient notre de la reflexión: ¿puede un psicoanalista
objectif de réflexion : le psychanalyste hablar por el otro? Si el encuadre del “Yo
peut-il parler pour l’autre ? Si le cadre du hablo” es lo que produce la norma, recu-
« je parle » produit la norme, nous réta- peraremos la potencia subversiva del acto
blirons le potentiel subversif de l’acte ana- analítico, su vertiente real, lo que autoriza/
lytique, sa véritable source, qui autorise establece múltiplos lugares de hablar. Más
/ installe de multiples place de la parole. que hablar por el otro, el dispositivo analí-
Au-delà de parler pour un autre, le dispo- tico nos recuerda de la alteridad que habla
sitif analytique nous rappelle l’altérité qui en nosotros: el inconsciente.
parle à travers nous : l’inconscient. Palabras-clave: Psicoanálisis. Política.
Mots-clés: Psychanalyse. Politique. Place Lugar de hablar.
de la parole.
Recebido em: 20/12/2019
Aprovado em: 03/02/2020

84 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.79-84
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Uma política da psicanálise dos


assuntos públicos?

Dyhalma N. Ávila-López

A s definições de “política” incluem tanto a atividade de quem


rege os assuntos públicos, como a do cidadão que neles inter-
vém, por exemplo, com a sua opinião e o seu voto; incluem também
as orientações e diretrizes que regem a atuação de uma pessoa ou
de uma instituição em um assunto determinado (Real Academia
Española, 2001). Os tempos atuais, particularmente complexos e
convulsivos, tornaram inevitável indagar se um cidadão cujo ofício
é a psicanálise, ao assumir uma postura política, somente pode fa-
zê-lo como cidadão. Abordarei este importante debate tomando
como preâmbulo a situação do meu país, onde os extraordinários
eventos recentes têm requerido passar subitamente da reflexão so-
bre esta pergunta para a colocação em ato de uma resposta.
Muitos desconhecem que Porto Rico é uma possessão colo-
nial dos EE.UU. da América. Por meio de uma invasão militar, em
1898, a ilha ficou reduzida a um abono de guerra, deixou de ser
uma colônia espanhola para ser colônia do império estadunidense.
Ironicamente, a nação que se proclama paladina da democracia
logo nos transformaria em cidadãos, mas sem ter direito ao voto.
Durante um longo período, prevaleceu na ilha uma ilusória identi-
ficação ao lugar de país próspero e a idealização do Outro imperial,
e nos advertiam que, sem o seu amparo, estaríamos condenados ir-
remediavelmente ao totalitarismo ou à miséria de algumas nações
vizinhas. Mas, como já sabemos, o colapso das identificações e dos
ideais resulta inevitável. A eliminação, no princípio do novo século,
do regime tributário federal de isenções a empresas estadunidenses
que, durante décadas, pretendeu-se estarem sustentando a econo-
mia, e a flagrante malversação dos fundos públicos por uma polí-

Uma política da psicanálise dos assuntos públicos? – Dyhalma N. Ávila-López 85


A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

tica que governa a favor dos seus doadores de campanha, outor-


gando-lhe contratos milionários e postos de diretoria nas agências
governamentais, deixou o país quebrado e à mercê de uma Junta de
Controle Fiscal, imposta pelo congresso dos EE.UU, com o único
fim de garantir o pagamento da dívida aos vorazes acionistas da
Wall Street.
A implantação subsequente da medida de austeridade, tradu-
zida em cortes impiedosos dos serviços públicos essenciais (saú-
de, educação, moradia, segurança, pensões, cultura) e agressivas
gestões de privatização para beneficiar as pessoas ligadas aos di-
rigentes políticos, adquiriu um matiz ainda mais perverso logo em
seguida à fúria, no inesquecível mês de setembro de 2017, de dois
ferozes furacões que causaram uma devastação sem precedentes,
cujas sequelas principais pouco coincidem com essa fonte irrefutá-
vel de mal-estar que, segundo Freud (1930/2001), são as forças da
natureza . Acerca da sequela mais grave, a prefeita da cidade capital
afirmaria: “Três mil de nós morreram porque alguém decidiu brin-
car com a política, e não fizeram o que tinham que fazer” (Delgado,
30 mar. 2019).
A enorme destruição, deixada pela passagem dos furacões,
provocou o desencadear imediato do chamado “capitalismo de
desastre” (Klein, 2008), com a cumplicidade evidente dos gover-
nantes. Valendo-se dos termos da moda (tirados do inglês), como
“resiliência” e “possessão”, para exaltar os laços de solidariedade e
as iniciativas comunitárias que surgiam de forma espontânea entre
os que foram denominados de “os mais vulneráveis”, os encarrega-
dos daquelas mesmas instituições, que deveriam garantir os servi-
ços básicos aos cidadãos, pretenderam esconder, descaradamente,
a insensibilidade e o cinismo com que os deixavam no mais cruel
desamparo.
Também chegaram ao auge os termos “crises” e “trauma” —
apropriando-se igualmente de todos os afetados pela catástrofe —
reavivando-se a discussão pública sobre a urgência de promover e
fortalecer a “saúde mental” da população. É vergonhoso que nem

86 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.85-96
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

sequer este âmbito escaparia ao cinismo e à insensibilidade, como


foi demonstrado no anúncio (Parés Arroyo, 28 fev. 2019) de que
“o governo implementaria um sistema de vigilância de tentativas
de suicídio”, mediante uma “iniciativa” que utilizaria como lema,
insolitamente, uma frase trivial copiada da publicidade de uma
marca de roupa: “La vida es chula” (A vida é engraçada).
A experiência permite supor que um projeto tão insensato,
que pretende animar quem sofre da mais profunda dor de existir,
proclamando que a vida é bonita e engraçada, tem como principal
objetivo o lucro daqueles que recebem os fundos públicos para as-
segurar os empregados das organizações religiosas e comunitárias,
sem fins lucrativos, agências do governo, comunicadores e várias
universidades com o modelo “Applied Suicide Interventions Skills
Trauming”1. Cito esta lista, que inclui as organizações religiosas,
pois o fundamentalismo cristão converteu-se em um dos setores
de que dependem os governantes para se elegerem, o que se tra-
duz em constantes tentativas de limitar os direitos cidadãos, com
o pretexto de defender “valores”. Por exemplo, isto viria a acarretar
recentemente fortes lutas entre o governador e os legisladores, em
torno de propostas relacionadas com importantes temas, como as
“perspectivas de gênero” na educação, os direitos de reprodução das
mulheres e as chamadas “terapias de conversão” para os homosse-
xuais (Cortés Chico, 28 mar. 2019).
Certamente, com exceção da anacrônica condição colonial
e da trágica perda de vidas vinculadas aos furacões - que não se
restringe às mortes, pois abrange também mais de 150.000 pes-
soas que, encontrando-se sem lar e sem emprego, foram forçadas a
emigrar - os inquietantes assuntos que aqui exponho transcendem
as fronteiras da minha pequena ilha do Caribe, na medida em que
respondem às brutais políticas neoliberais da nossa época. Por esta
razão, pareceu-me pertinente apresentá-los como marco do que foi

1 Em espanhol foi traduzido por: Treinamento em primeiros cuidados de pessoas com


risco de suicídio.

Uma política da psicanálise dos assuntos públicos? – Dyhalma N. Ávila-López 87


A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

a primeira aproximação formal à pergunta sobre a posição da psi-


canálise frente aos assuntos de política pública, em consequência
da minha participação no debate que culminaria no último Sim-
pósio Interamericano da IF2. Até aquele momento3, eu me tinha
indagado o seguinte:
Diante da pergunta de que, somente na qualidade de cidadão
que um analista pode assumir posturas políticas, a “ética da psica-
nálise” que nos propôs Lacan (1959-60/1979) parece apontar para
uma resposta bastante clara. A partir dessa proposta, a premissa do
“Bem Supremo” é totalmente descartada pelo analista, para quem
fica vedado fazer juízo sobre as modalidades de gozo do analisan-
te. Teria, não obstante, outra pergunta para formular: quando, aos
excessos em questão não são os de um sujeito em análise, mas os
daqueles sujeitos com cargos de responsabilidade nas instituições
sociais, lhes está igualmente vedado, como a um analista, ou a uma
comunidade de analistas, estabelecer julgamentos e pronunciar-se?
Será que a ética da psicanálise implica que, no que tange à “política
da psicanálise”, ... não se pode dizer nada sobre o público? Trata-
-se, como pretendem algumas intransigentes políticas territoriais,
de uma fronteira infranqueável? Se sua aposta é a de que o sujeito
tenha a opção de mover-se para escolher segundo o desejo que
o habita, assumindo a responsabilidade por sua escolha, pode a
psicanálise, sem fazer-se cúmplice, manter-se alheia às violências
institucionais que atentam, direta ou indiretamente, contra essas
possibilidades de escolha?
A conclusão à qual minha reflexão tinha conseguido chegar,
até esse ponto, não era na realidade nada conclusiva. Não pude ir
mais além de afirmar que o debate iniciado na nossa Escola, durante
o último Encontro Internacional, dando origem à proposta de um
Laboratório de Orientação Política e a diversos espaços de debate

2 Terceiro Simpósio Interamericano da IF-EPFCL, realizado em Pereira, Colômbia, de


19 a 20 de julho de 2019.
3 X Encontro Internacional da IF-EPFCL, realizado em Barcelona, Espanha, de 13 a
16 de setembro de 2018.

88 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.85-96
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

sobre o tema, sugeria que, para estas perguntas em particular, as


respostas que o analista encontra não são tão claras como quando
se trata da pergunta pela posição do analista frente ao analisante.
Chegaram, então — tomando de surpresa, não somente a
comunidade internacional como também a de Porto Rico —, os
eventos do mês que passará à história como ainda mais devastador
do que o furacão de 2017: julho de 2019. Eventos sem preceden-
tes que, como mencionei no início e retomarei adiante, tornaram
inevitável dar um passo além da mera reflexão, na discussão sobre
o tema da política da psicanálise e os assuntos públicos.
O paralelo entre o que aconteceu nos dois momentos é su-
mamente significativo, e tem-se analisado muito o quanto os efei-
tos gerados pelo golpe que enfrentamos, dois anos atrás, foram a
condição de possibilidade dos efeitos desencadeados pelo golpe
que teríamos que enfrentar, apenas dois anos depois. Refiro-me
ao que foi descoberto - dias antes da prisão por corrupção de im-
portantes funcionários e consultores do governo - do conteúdo
de uma conversa (Valentín Hortiz; Minet, 13 jul. 2019) entre o
governador e seus colaboradores mais próximos, incluindo mem-
bros do seu gabinete, em que: por um lado, tramavam atos de cor-
rupção de diferentes índoles, e por outro, proferiam todo tipo de
mentiras, deboches e insultos, da forma mais torpe e ofensiva, não
somente contra adversários políticos e membros da imprensa que
ousaram questionar sua gestão, mas, basicamente, contra todos os
que não fossem considerados dignos de fazer parte da sua “banda
azul” — apelido com o qual seriam batizados, em alusão à cor que
identifica seu partido político, e ao nome de outro vídeo notório
(Rincón, 26 jun. 2019), em que um grupo de jovens espanhóis
compartilhavam orgulhosamente as imagens do estupro que ha-
viam feito a uma jovem mulher.
Os integrantes desta “banda” caribenha compartilham o mes-
mo perfil: homens brancos, relativamente jovens, de classe social
privilegiada e em posição de poder. Seus vergonhosos impropérios
também compunham um mesmo perfil: misóginos homofóbicos,

Uma política da psicanálise dos assuntos públicos? – Dyhalma N. Ávila-López 89


A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

racistas, classistas, elitistas, prepotentes. Eram, além disso, expres-


sos em um vocabulário surpreendentemente grosseiro e pérfido,
incompatível com o semblante que pretendiam sustentar de res-
peitáveis “homens de estado”. Se, como diz o ditado, “de amostra,
um botão já é suficiente”, o botão que bastou, para demonstrar o
limite do que um povo pode tolerar dos seus governantes, foram
estas palavras, referentes à crise no Instituto de Ciências Forenses,
pelo acúmulo de cadáveres devido às três mil mortes associadas ao
furacão Maria: “Já que o tema é este, será que não temos um cadá-
ver para dar de alimento aos nossos corvos?” Outros dois “botões”,
que tiveram um efeito semelhante, foram: uma expressão do go-
vernador desprezando os membros de seu próprio partido político:
“Há idiotas até entre os nossos”; e outra, em inglês, realizada pela
sua propaganda: “I saw the future...is woooooonderful... there are no
puertorricans” (“Vi o futuro … é maravilhooooso … não há porto-
-riquenhos”) (Valentín Ortiz; Minet, 13 jul. 2019).
Poderia dizer-se que o desvelamento desta infâmia provocou,
em um povo que, em muitos aspectos, ainda luta para recuperar-
-se das sequelas dos furacões — por exemplo, aproximadamente
30.000 casas ainda permanecem sem teto (Cortés Chico, 11 maio
2019) — o ressurgimento, com força redobrada, do que havia sido
gerado pelas calamidades desencadeadas pelos eventos atmosfé-
ricos: no sentido de estarem sendo duramente atacados enquanto
coletividade e, considerando-se a deplorável incapacidade das ins-
tituições governamentais para assumir sua responsabilidade, terem
que criar uma resposta a partir da unidade e da solidariedade, entre
os mais diversos setores da cidadania. Também se poderia afirmar
que a indignação foi o motor que serviu para redobrar essas forças.
Que se produzisse entre os cidadãos uma profunda indigna-
ção era, sem dúvida, previsível. Mas a virulência dos atos em que
esta indignação se traduziria era totalmente imprevisível: quase
duas semanas de protestos multitudinários exigindo a demissão do
governador, em um país profundamente dividido entre “tribos po-
líticas” — cujas ideologias respondem às posições de permanência

90 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.85-96
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

ou de ruptura do vínculo com o amo colonial — onde, tradicional-


mente, aqueles que se lançam nas ruas com suas reclamações são os
estudantes da universidade pública, os sindicalistas e os partidários
da independência de EE.UU., identificados como a “esquerda libe-
ral” e chamados de “comunistas” e “revoltados”, ou seja, perigosos,
pela “direita conservadora” majoritária, que continua presa ao dis-
curso maniqueísta dos tempos da Guerra Fria.
O que aconteceu foi algo realmente inédito no país, pela pri-
meira vez, se conseguiu fazer uma “causa comum” em grande es-
cala. Setores que, por medo de que fossem identificados como os
“revoltados”, nunca tinham se atrevido a levantar suas vozes pu-
blicamente e a “expor-se” para reclamar, agora uniam-se com os
outros, ao som da ordem “Somos mais e não temos medo”. Dia
após dia, as ruas ficaram inundadas de milhares de cidadãos, sem
distinção de idade, sexo, identidade de gênero, raça, classe social,
religião ou ideologia político-partidária, que já não estavam dis-
postos a tolerar mais abusos e injustiças. Como costuma acontecer,
o desencadeamento desmedido da força policial não demorou a
agir. Porém, embora a polícia tenha enfrentado os manifestantes
várias vezes, armada como se fosse para a guerra, lançando ga-
ses lacrimogêneos à menor provocação, prevaleceu o chamado dos
próprios manifestantes para que os protestos continuassem de for-
ma pacífica, mas não com menos firmeza.
Cada dia, aumentava o número de vozes que se uniam incansa-
velmente em coro: “Ricky, renuncia”, contra um governante que não
merecia ser chamado pelo seu nome, Ricardo, e sim pelo seu apeli-
do, em diminutivo. A principal figura encarregada das instituições
estatais, cujas normas têm como função velar pela sobrevivência e
pela convivência dos cidadãos, de quem, com esses fins, requerer-se
uma “renúncia das pulsões” — como propõe Freud (1930/2001) —
ou uma proibição do gozo — como assinala Lacan (1969-70/1992)
—; quer dizer, o principal agente de um discurso que, embora seja
fonte de mal-estar para o sujeito na sua singularidade, é indispen-
sável para que possa sustentar-se o laço social; enfim, o principal

Uma política da psicanálise dos assuntos públicos? – Dyhalma N. Ávila-López 91


A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

representante da lei, perante o conjunto de sujeitos dos quais se exi-


ge assumir a castração, não estava disposto, ele mesmo, a assumi-la.
Consequentemente, os lugares foram invertidos: seriam os cidadãos
que teriam de exigir a “renúncia” do seu governante.
Foi esta a conjuntura que requereu dos membros do Fórum
Psicanalítico de Porto Rico que passassem, em somente alguns
dias, da pergunta teórica sobre a possibilidade de assumir uma
postura política através da psicanálise diante de uma situação es-
pecífica relativa ao âmbito do público, para o debate em torno da
forma mais prudente de colocar em ato uma resposta, mais além
da assumida, por cada um, a partir do seu lugar de cidadãos. Uma
vez constatada a existência de um consenso entre os membros do
Fórum, a colocação em ato tomaria a forma da publicação de um
comunicado “exigindo a renúncia” do governador.
No comunicado (Fórum Psicanalítico de Porto Rico, 20 jul.
2019), esta exigência foi fundamentada, em termos gerais, na ne-
cessidade de “denunciar como inaceitável” a conduta de um man-
datário cujos atos “demonstram uma carência de ética”, “uma ina-
ceitável postura contrária ao bem-estar de todos” e “um declarado
menosprezo” por aqueles a quem “juramentou servir”: “desdém
pelo povo”, “comentários homofóbicos e misóginos”, “apatia em
relação aos setores populares e às instituições democráticas”, “tra-
paça em relação aos nossos mortos”. Mas, decidiu-se fundamentar,
além disso, a pertinência de exigir “não somente como cidadãos
— comprometidos com o nosso país, se não pelo compromisso éti-
co que implica sustentar uma clínica a partir da psicanálise”. Por
outro lado, enfatizou-se o fato de que, “no espaço da clínica, tem
sido possível dar conta dos efeitos (...) na vida dos sujeitos (...) das
devastações que eles têm atravessado a partir da crise”, provocada
por assuntos como a grave deterioração dos serviços públicos. Por
outro lado, destacou-se e declarou-se o seguinte:

A psicanálise implica uma ética que reconhece os limites necessários


para a existência dos sujeitos como também para sua convivência.

92 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.85-96
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Além do mais, requer que cada um esteja à altura dos seus atos, e assu-
ma responsabilidade pelos mesmos. Neste sentido, o Fórum Psicanalí-
tico de Porto Rico reafirma que a prática da psicanálise ressoa com os
fundamentos da democracia. Com esta postura, não há espaço para o
desdobramento obsceno de excessos nas posições de poder, o menos-
prezo pela vida, pelo padecimento dos sujeitos, nem para a trincheira
narcísica (Fórum Psicanalítico de Porto Rico, 20 jul. 2019).

Cinco dias depois da publicação do Comunicado do Fórum, e


doze depois de publicar-se o vergonhoso chat da “banda azul” e do
início da jornada ininterrupta de protestos cidadãos, o governador
de Porto Rico — depois de aferrar-se ao máximo ao poder, deno-
minando seus atos de simples “erros” e pretendendo ser desculpa-
do com um simples pronunciamento de “um pedido de desculpas”
(Cortés Chico, 12 jul. 2019) — anunciaria a renúncia do seu cargo
público, um cargo do qual ele nunca foi capaz de estar à altura.
À guisa de conclusão, retomo uma vez mais a pergunta
proposta no título deste texto: sim, pode haver uma política da
psicanálise sobre os assuntos públicos, pois a passagem “da teoria
à prática” que se combinou fazer, no exemplo muito particular que
apresentei, certamente não implica no resultado de que a resposta
agora está clara. A pergunta permanece aberta, e intuo que, assim
como se dá na clínica, as respostas só podem ser formuladas caso
a caso. Não obstante, eu proporia que se tomasse como lema a
ordem que esteve presente nas manifestações de Porto Rico:
“Respeita minha existência, ou espera resistência”. Ela permite
reiterar a premissa, indiscutível para a psicanálise lacaniana, de que
cada sujeito, na sua singularidade, é responsável por suas escolhas
com respeito a sua “existência”, responsável por “respeitá-la” ou
não, e em que medida o faz, pois não há um “Bem Supremo”. Mas,
também poderia permitir propor que, quando o sujeito em questão
tem a seu encargo, não apenas a sua própria existência, mas a de
toda uma coletividade de sujeitos, já não se trata de que, para este
ou estes, um a um, não haja um “Bem Supremo”. Trata-se de que

Uma política da psicanálise dos assuntos públicos? – Dyhalma N. Ávila-López 93


A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

o “bem comum” — as possibilidades de convivência —, exigem de


cada um e, sobretudo, daquele que está no cargo político, respeitar
as condições de existência do outro.
Poderia haver, então, uma política da psicanálise no que tan-
ge ao “bem comum? Quer dizer, às possibilidades de convivência
e à renúncia que se exige de cada um para sustentá-las? Poderia
haver, pelo menos, uma política da psicanálise acerca do respeito
à existência do outro com quem se há de coexistir? Provavelmen-
te, a pergunta pelo bem comum, como a pergunta pelos assuntos
públicos que lhe é inerente, embora possa ser considerada sob
este enfoque geral, tampouco pode ser respondida sem o caso a
caso. A pergunta com respeito à existência é, sem dúvida, uma
pergunta em relação à qual eu gostaria de apostar que seria pos-
sível um consenso.

Tradução: Elena P. Alonso


Revisão: Vera Pollo

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KLEIN, Naomi. The Shock Doctrine: The Rise of Disarter Capitalism. New York:
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94 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.85-96
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

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em: <http://periodismoinvestigativo.com/2019/07/las-889-paginas-de-tele-
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Uma política da psicanálise dos assuntos públicos? – Dyhalma N. Ávila-López 95


A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Uma política da psicanálise dos A politics of the psychoanalysis


assuntos públicos? regarding public affairs?
Resumo: Quando perguntado se, só Abstract: Regarding the question if, only
como cidadão, um analista pode assumir as a citizen, an analyst can assume political
posições políticas, a “ética da psicanálise” positions, the “ethics of psychoanalysis”
aponta para uma resposta clara. O analista points to a clear answer. The analyst
descarta a premissa do “Bem Soberano”; dismisses the premise of the “Sovereign
portanto, é proibido o julgamento das Good”; therefore, the judgment on the
modalidades de gozo dos analisantes. Mas modes of jouissance of the analysand is
um julgamento sobre os excessos nas ins- forbidden. But is a judgment on the
tituições é proibido a uma comunidade excesses in the institutions forbidden to a
de analistas? Isso implica que nada pode community of analysts? Does this imply
ser dito, de uma “política da psicanálise”, that nothing can be said, from a “politics
sobre o público? Abordarei este debate to- of psychoanalysis”, about public affairs? I
mando como preâmbulo os eventos que, will address this debate taking as a pre-
em Porto Rico, exigiram a implementação amble the events that, in Puerto Rico, re-
de uma resposta a essas perguntas. quired the implementation of an answer
Palavras-chave: Políticas Públicas. Éti- to these questions.
ca. Psicanálise. Keywords: Public affairs. Ethics.
Psychoanalysis.

Une politique de la psychanalyse ¿Una política del psicoanálisis


des affaires publiques? de los asuntos publicos?
Rèsumé: À la question de savoir si, Resumen: Ante la pregunta de si, sólo
seulement en tant que citoyen, peut como ciudadano, puede un analista asumir
un analyste assumer des positions posturas políticas, la “ética del psicoanáli-
politiques, “l’éthique de la psychanalyse” sis” apunta a una respuesta clara. El ana-
renvoie à une réponse claire. L’analyste lista descarta la premisa del “Soberano
rejette la prémisse du “Souverain Bien” Bien”; por ende, le está vedado el juicio so-
; par conséquent, le jugement sur les bre las modalidades de goce del analizan-
modalités de jouissance de l’analysant te. Pero ¿le está vedado, a una comunidad
est interdit. Mais un jugement sur les de analistas, el juicio sobre los excesos en
excès des institutions, est-il interdit à une las instituciones? ¿Implica esto que nada
communauté d’analystes ? Cela implique- pueda decirse, desde una “política del psi-
t-il que rien ne puisse être dit, à partir coanálisis”, acerca de lo público? Abordaré
d’une “politique de la psychanalyse”, sur este debate tomando como preámbulo los
les affaires publiques ? Je vais aborder ce eventos que, en Puerto Rico, demandaron
débat en prenant comme préambule les una respuesta a estas preguntas.
événements qui, à Porto Rico, ont exigé la Palabras-clave: Asuntos públicos. Pos-
mise en acte d’une réponse à ces questions. turas políticas. Psicoanalistas.
Mots-clés: Affaires publiques. Éthique.
Psychanalyse. Recebido em: 29/08/2019
Aceito em: 28/12/2019

96 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.85-96
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Política, um tonel das Danaides, uma


discordância sem fim 1

Silvana Pessoa

P rofecias e mitos sempre foram usados para explicar os mean-


dros da condição humana, sabemos disso. Neste ensaio, to-
marei como exemplo “O castigo das Danaides” para sustentar o
argumento de que a política será sempre uma discordância sem
fim e para tentar responder como a psicanálise pode lidar com essa
vicissitude, a partir da ética que a orienta.
Esse mito parte da disputa de terras entre irmãos que, além
de gêmeos e muito semelhantes, tiveram um igual número de des-
cendentes: cinquenta meninas para um e cinquenta meninas para
o outro. Veremos que, mesmo com tamanha paridade, eles não es-
tavam imunes à rivalidade, à vingança, à inveja, aos ciúmes e à rea-
lização das profecias, embora tentando fugir delas. Qual narrativa
é passada adiante?
Um jogo político de disputas por território e poder, entre es-
sas duas famílias, resultou na morte de quarenta e nove dos cin-
quenta filhos. As assassinas foram as quarenta e nove mulheres,
suas primas, que desde o nascimento estavam prometidas a eles
em casamento. Os homicídios aconteceram na noite de núpcias.
Condenadas ao exílio pelo único sobrevivente - aquele que, por
amor, evitou ser morto por uma delas - tiveram como castigo en-
cher com água um tonel furado, ato repetido, inútil, sem sentido, a
ser executado perpetuamente.
Caso essa história fosse um conto de fadas, ela poderia ter um
happy end para os sobreviventes, mas não. Até nos mitos a felici-
1 Apresentado no Encontro de Membros do FCL-SP em 01/04/2019, cujo tema do ano
nestes encontros é: A política da psicanálise e o psicanalista na política e no Fórum do
Campo Lacaniano-Salvador em 18/10/2019 pelo Laboratório de Psicanálise e Política.

Política, um tonel das Danaides, uma discordância sem fim – Silvana Pessoa 97
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

dade é não-toda. Aquele que foi responsável pela condenação das


primas-cunhadas, apesar de ter sido poupado pelo amor, padecia
um augúrio: em algum dia, ele seria assassinado por seu neto.
Para evitar esse presságio, ele aprisionou sua filha numa torre
para que ela nunca engravidasse. Todavia, a condenação fora em
vão, pois ela foi “fortuitamente” fecundada por Zeus quando este se
tornou uma “chuva de ouro”. Grávida, foi enviada para bem longe
no intuito de afastar o vaticínio que cairia sobre o único sobrevi-
vente. Este, semelhantemente a Édipo, quanto mais evitava o des-
tino, mais se aproximava dele e mais realizava a profecia.
Não há escapatória para a rivalidade e a disputa por territórios
entre povos distintos ao longo da história, nem para a psicanálise,
nem mesmo para os analisados. Autores como Luccione (1971) e
Calvino (1971) apontam para esta função do mito considerando-o
como o que permite dizer o indizível e, assim, fornecer-lhe um
pouco de organização. “Podemos dizer que o mito fala de uma
verdade impossível de ser dita de outra maneira que não por esta
alusão: como estrutura simbólica, ele permite vestir o real com o
imaginário” (Carreira, 2001). É disso que gostaria de tratar aqui
com esta analogia mítica. Vejamos:
Os primeiros imigrantes reconhecidos legalmente nos Esta-
dos Unidos são os mesmos que “cortam a escada” e são favoráveis
à construção dos muros para que outros não possam também se
beneficiar. Primeiro eu, depois “eu” também, e, por fim, os meus
mais próximos. Vemos isso cotidianamente no atual governo: a re-
lação de um pai, presidente, que deveria governar para todos, mas
que privilegia os seus filhos numericamente nomeados e os seus
amigos, desde que estes “rezem a cartilha” da sua “autoverdade”2.
Os brasileiros - sempre pacíficos e acolhedores com os imi-
grantes no início da construção do país, posto que eram necessários
para os mesmos - hoje já não se mostram mais tão tolerantes com
os imigrantes venezuelanos ou haitianos que trazem uma realidade
2 Termo cunhado por Eliane Brum no artigo “Doente de Brasil”, disponível em: <https://
brasil.elpais.com/brasil/2019/08/01/opinion/1564661044_448590.html>.

98 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.97-104
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

de excesso e pobreza que lhes incomoda. Menos receptivos ainda


estão alguns médicos cubanos que podem, segundo o imaginário
de alguns governantes, “subverter a população mais simples com a
ideologia comunista”.
Diante deste e de muitos outros cenários, ainda piores, de
agressividade e destruição de semelhantes, como o massacre acon-
tecido na escola Raul Brasil, no início deste ano, em Suzano São
Paulo,3 nós, da atual CG do FCL-SP (2019-20)4, decidimos dar
mais uma volta pela topologia, tema trabalhado em 2018 e apro-
fundar as questões do social.
As datas dos artigos de Freud e Lacan mostram que o tema
do social e da política não é novo para a psicanálise. Menos ainda,
ele o é no Campo Lacaniano. Em 2010, a comunidade estudou
a “Política do Sintoma” e duas Revistas Stylus foram publicados
sobre esse tema no ano seguinte. Nelas estão contidos artigos ex-
pressivos de autores da nossa comunidade e um Thesaurus sobre o
termo “política” nos textos de Lacan. Trabalho de construção im-
portante que pode ampliar a percepção da política de forma geral
e a política da psicanálise de forma específica, no que tange ao
sintoma e aos afetos que enganam, mencionados no início deste
ensaio: a rivalidade, a vingança, a inveja e o ciúmes.
Vejamos o que pôde ser articulado, na ocasião, e mantido
como questão central, servindo de orientação para o presente tra-
balho. Todo sujeito se define por uma ficção de gozo, uma ficção
que lhe é própria, por um sintoma, que não pode mais ser pensa-
do como uma anomalia, uma perturbação da boa ordem. Ponto
da mais alta relevância para a psicanálise, tantos sintomas quantos
forem os sujeitos. O que se pode fazer com isso? A resposta encon-
tra-se na política da psicanálise.

3 Reportagem da emissora Record sobre o incidente: <https://www.youtube.com/wat-


ch?v=9aAV2CbRd0I>.
4 Silvana Pessoa (diretora), Leonardo Lopes (secretário), Lola Andrade (tesoureira),
Ivan Estevão (coordenador de FFCL) e Rodrigo Pacheco (coordenador da comissão
de cartéis).

Política, um tonel das Danaides, uma discordância sem fim – Silvana Pessoa 99
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Tratem de não perder o fio da meada concernente ao que somos como


efeito do saber. Como efeitos do saber, somos cindidos. Na fantasia,
somos, por mais estranho que isso pareça, causa de nós mesmos. Só
que não existe um si mesmo. Há, antes, um “si” dividido. Entrar neste
caminho é daí que pode decorrer a única verdadeira revolução política
(Lacan, 1968-9/2008, p. 377, grifos meus).

Tratar desta forma a política da psicanálise é coisa séria, pois,


orientada pela ética legada por Freud e Lacan, tem enorme poder.
Tratar o sintoma como regra, que toma na contramão o projeto
exitoso e de sucesso, pode parecer estranho ao discurso corrente,
principalmente quando o estado democrático toma por políticas
públicas a promessa de felicidade para todos e o discurso capitalis-
ta oferece os meios de tampar o buraco, o furo, o fracasso, a falta.
Lidar com o que falha, com o “si dividido” é o ofício do psicana-
lista. Só existe a análise do particular. Um obsessivo não pode dar
o menor sentido ao discurso de outro obsessivo. “É daí, aliás, que
partem as guerras religiosas” (Lacan, 1973/2003, p. 555).
Apesar de apostar na democracia e defender o estado de direi-
to como justo e necessário, aposto mais ainda no desejo de “igual-
dade na diversidade” na política, sabendo que, justamente por este
motivo, haverá sempre uma discordância sem fim. Para defender
essa premissa, retomo as premissas postuladas desde o início do
ensino de Lacan, desde o primeiro seminário de 1953, quando ele
traz o De Magistro de Santo Agostinho, na parte, Disputatio de
Locucionis significatione.
Fazer esse percurso foi importante para verificar que, vinte
anos depois, ele ainda valoriza a palavra, “the meaning of the
meaning” (o sentido do sentido), na “Introdução à edição alemã
de um primeiro volume dos Escritos” (1973), tomando como re-
ferência o tonel das Danaides. Ele diz na ocasião: “O sentido do
sentido, em minha prática, se capta por escapar: a ser entendido
como um tonel e não como uma debandada. É por escapar (no
sentido do tonel) que um discurso adquire seu sentido, ou seja,

100 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.97-104
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

pelo fato de seus efeitos serem difíceis de calcular” (p. 550). Mas,
apesar disso...

É claro que entre os seres sexuados existem encontros. Existe o feliz


acaso. Aliás só existe isso: felicidade do acaso! Os “seres” falantes
são felizes, felizes por natureza, é desta mesma, tudo que lhes resta.
Será que com a experiência analítica, isso não poderia tornar-se um
pouquinho mais? (...) uma análise revela ao analisante o sentido de
seus sintomas (Lacan, 1973, p. 552).

Para, no fim, poder ter essa revelação e uma identificação pos-


terior ao sintoma, há que se dar conta de que a fala no homem vai
bem além da palavra, para penetrar nos seus sonhos, seu ser, seu
próprio organismo (Lacan, 1953-4/1986, p. 296); há que se ter um
gaio saber que leve em conta o erro, a equivocação e a ambiguidade
da palavra – três polos nos quais gira a dialética de Santo Agos-
tinho – e saber que, por ser enganadora, a palavra se afirma como
verdadeira (Lacan, 1953-4/1986, p. 299).
Esta constatação ajudaria o psicanalista a lidar melhor com as
vicissitudes da fala entre os seres falantes, posição possível do psi-
canalista na política. O “psicanalista na política”, tema de pesquisa
deste ano, deveria poder contar com o erro, o engano e o equívoco,
considerando a ambiguidade da palavra.

E no entanto, o recurso é o inconsciente, a descoberta de Freud de


que o inconsciente trabalha sem pensar, nem calcular, nem tampouco
julgar, e que, ainda assim, o fruto está ai: um saber que se trata apenas
de decifrar, já que ele consiste num ciframento. (...) no ciframento está
o gozo, sexual decerto (...) que não se pode escrever a relação sexual
e que por isso a linguagem jamais deixará de ser uma chicana infinita
(Lacan, 1973, p. 552).

Os analistas não deveriam se desesperar tanto. Quanto à po-


lítica da psicanálise, entendo, a partir do trabalho que realizo nos

Política, um tonel das Danaides, uma discordância sem fim – Silvana Pessoa 101
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Fóruns e para-além deles, que ela depende da formação do psi-


canalista, que deve ser permanente, não sem a garantia fornecida
por uma Escola, mas não qualquer uma – problema crucial que
vivemos na nossa política.
Essa situação pode ser demonstrada pela fala de alguém, for-
mado em psicologia, que faz análise, e que se interroga preocupado
com os efeitos da multiplicação dos analistas, cursos de formação,
grupos de estudo oferecidos por diversos deles, sem que pertençam
a uma comunidade na qual possam dar as suas provas:

Quem chega ao consultório de um psicanalista, sem saber algo de


Psicanálise, fica sem entender o que acontece ali, qual o objetivo do
processo; se o analista não fizer um bom trabalho, a pessoa vai ficar 10
anos lá e não vai mudar nada! Tudo é muito solto e dá margem para
atrair maus profissionais.

Sabemos que campos e territórios pouco regulados têm chan-


ce de atrair um maior número de canalhas e cínicos. Vemos o que
se tornou o Congresso Brasileiro com a multiplicação de partidos e
com o uso da política para interesses privados. Se a Carta de Prin-
cípios da nossa comunidade pressupõe uma crítica assídua, vale in-
terrogar: estamos também perdendo o rigor da nossa prática com
a multiplicação de escolas e cursos de especialização em psicanálise
com interesses semelhantes?
Perguntas, inquietações, que em nada se assemelham a um
desejo de retorno a um status quo ante aos moldes da IPA ou do
discurso moralista que vemos surgir nos diversos cantos do mundo,
mas visam ao retorno a certo equilíbrio, uma invenção de novos
limites, quando a sociedade fica um pouco mais desbussolada e me-
nos submetida à lei fálica.

Será que deveríamos levar a intervenção analítica até diálogos funda-


mentais sobre a justiça e a coragem na grande tradição dialética? E
uma questão. Não é fácil resolver porque o homem contemporâneo

102 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.97-104
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

se tornou inábil para abordar estes grandes temas. Prefere resolver as


coisas em termos de conduta, de adaptação, de moral de grupo e outras
banalidades. Donde a gravidade de problema que coloca a formação
humana do analista (Lacan, 1953-4/1986, p. 230).

Por todas estas situações e inquietações, apoiei com satisfação


que fosse discutido “O psicanalista na política, a política do psica-
nalista” no Encontro de Membros do FCL-SP, espaço fechado,
e no espaço aberto do Fórum Salvador, para promovermos, por
dentro, a crítica assídua da nossa política. E também, para podermos
avançar e ex-sistir para além dos “muros das escolas”, para melhor
enfrentarmos as constantes vicissitudes e discordâncias políticas
e históricas do nosso país, com os efeitos e reações a um mundo
globalizado, e com uma psicanálise que se espalhou e que está com-
pletamente fora dos limites de Viena ou da França.

Referências bibliográficas

CARREIRA, ALESSANDRA. O mito individual como estrutura subjetiva


básica. Psicol. cienc. prof. [online], vol.21, n.3, p. 58-69, 2001. Disponível em:
http://ref.scielo.org/m35x48. Acesso em: 29 set. 2019.
CALVINO, Ítalo. (1971). A combinatória e o mito na arte da narrativa. Tra-
dução C. A. R. do Nascimento. In: Atualidade do Mito. São Paulo: Livraria
Duas Cidades, 1977. p. 75-80.
LACAN, Jacques. (1953-4). O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986.
______. (1968-9). O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2008.
______. (1973). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escri-
tos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
LUCCIONI, Gean. (1971). Introdução. Tradução C. A. R. do Nascimento.
In: Atualidade do Mito. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977. p. 7-10.

Política, um tonel das Danaides, uma discordância sem fim – Silvana Pessoa 103
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Política, um tonel das Danaides, Politics, a Danaid’s barrel, an en-


uma discordância sem fim dless disagreement
Resumo: Profecias e mitos sempre foram Abstract: Prophecies and myths have
usados para explicar os meandros da con- always been used to explain the intrica-
dição humana, sabemos disso. A autora cies of the human condition, it is well
toma como exemplo “O castigo das Da- known. The author takes “The Punish-
naides” para sustentar o argumento de que ment of the Danaids” as an example to
a política será sempre uma discordância support the argument that politics will
sem fim e para tentar responder como a always be an endless disagreement and
psicanálise pode lidar com essa vicissitude to try to answer how psychoanalysis can
a partir da ética que lhe orienta. handle this circumstance based on the
Palavras-chave: Mito. Política. Ética. ethics that guide it.
Sintoma. Real. Keywords: Myth. Politics. Ethics. Symp-
tom. Real.

La politique, un tonneau de Da- Política, un montón de Danaides,


naïdes, un désaccord sans fin desacuerdo interminable
Résumé: Les prophéties et les mythes Resumen: Las profecías y los mitos
ont toujours été utilisés pour expliquer les siempre se han utilizado para explicar las
subtilités de la condition humaine, nous le complejidades de la condición humana,
savons. L’auteur prend l’exemple de «La eso lo sabemos. El autor toma un ejemplo
punition des Danaïdes» pour soutenir l’ar- en este ensayo “El castigo de los Danai-
gument selon lequel la politique sera tou- des” para apoyar el argumento de que la
jours un désaccord sans fin et pour tenter política siempre será un desacuerdo inter-
de répondre à la question de savoir com- minable y tratar de responder cómo el psi-
ment la psychanalyse peut se charger de coanálisis puede lidiar con esta vicisitud
cette vicissitude avec l’éthique qui la guide. con la ética que lo guía.
Mots-clés: Mythe. Politique. Éthique. Palabras-clave: Mito. Política. Ética.
Symptôme. Réel. Síntoma. Real.

Recebido em: 18/10/2019


Aprovado em: 25/01/2020

104 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.97-104
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Narcisismo e violência contra jovens


negros e pobres no Brasil 1

Katia Sento Sé Mello

Introdução

Tenho dois filhos que nasceram na Bélgica, dois no Congo e meu caçula
é brasileiro. Quantas vezes, quando estavam sozinhos na rua, sem defesa,
se depararam com a polícia? Meus filhos estudaram em escola particular,
Colégio Equipe, onde estudavam filhos de alguns colegas professores.
Eu não ia buscá-los na escola, e quando saíam para tomar ônibus e vol-
tar para casa com alguns colegas que eram brancos, eles eram os únicos
a ser revistados. No entanto, a condição social era a mesma e estudavam
no mesmo colégio. Por que só eles podiam ser suspeitos e revistados
pela polícia? Lembro que meu filho mais velho, que hoje é ator, quando
comprou o primeiro carro dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela
polícia. Sempre apontando a arma para ele para mostrar o documento.
Ele foi instruído para não discutir e dizer que os documentos estão no
porta-luvas, senão podem pensar que ele vai sacar uma arma. Na reali-
dade, era suspeito de ser ladrão do próprio carro que ele comprou com
o trabalho dele. Meus filhos até hoje não saem de casa para atravessar a
rua sem documento, são adultos e criaram esse hábito, porque até você
provar que não é ladrão… A geografia do seu corpo não indica isso2.

1 Esta proposta resulta do diálogo no âmbito do Curso de Extensão Fundamentos e atu-


alidades da clínica psicanalítica/2018, em particular com Adriana Bastos, uma de suas
coordenadoras; e com Bárbara Zenicola. Do mesmo modo, senti-me convocada a partir
das indagações apresentadas no Seminário de Escola: adventos do real e o psicanalista,
coordenado por Antonio Quinet; e da proposta temática da XX Jornada de Formações
Clínicas do Campo Lacaniano/Rio e VI Jornada do Fórum do Campo Lacaniano/RJ.
Tais indagações dizem respeito à política da Psicanálise no mundo social e de como
pensar os impasses de nossa civilização atual.
2 Ramos, Camila Souza; Faria, Glauco. Kabengele Munanga: Nosso racismo é um crime
perfeito. Revista Fórum. Disponível em: <https://revistaforum.com.br/blogs/mariafro/
bmariafro-kabengele-munanga-nosso-racismo-e-um-crime-perfeito/>. Acesso em: 20,
nov. 2011.

Narcisismo e violência contra jovens negros e pobres no Brasil – Katia Sento Sé Mello 105
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

N a Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan nos adverte


sobre as relações da Psicanálise com o exterior, precisamente
com o que denominou “nossa extraterritorialidade”. No Seminário
de adventos do real e o de Escola: adventos do real e o psicanalista3,
assim como na proposta temática da XX Jornada de Formações
Clínicas e da VI Jornada do Fórum do Campo Lacaniano/RJ, tam-
bém em 2018, senti-me convocada a refletir sobre as implicações da
política da Psicanálise no mundo social. Como pensar os “impasses
de nossa civilização atual”? “Como se define a agência da Psicaná-
lise no mundo contemporâneo”? Em ”Mal-Estar na Civilização”,
Freud (1930) acentuou que o maior mal-estar na nossa civilização
reside nas relações sociais. Considerando esta afirmação, parece-
-me que nosso mal-estar atual está dolorosamente centrado nas
violências. Que possíveis respostas a Psicanálise pode nos oferecer?
Meu diálogo com a Psicanálise se dá por meio de duas di-
mensões da minha experiência enquanto sujeito: como analisante
há muitos anos na linha lacaniana, bem como antropóloga, que
busca compreender as formas como o Estado administra conflitos,
e também como alguém que atua em políticas públicas de justiça
criminal e segurança pública4.
Tomo esta convocação como um desafio inicial de reflexão
psicanalítica sobre o social e como parte do desejo de ampliar mi-
nha formação. Creio ser, por meio da proposição da extraterrito-
rialidade da Psicanálise, que debruço meu olhar sobre a dimensão
da violência praticada contra determinado segmento da nossa po-
pulação.
Por que, mais do que nunca, nossa contemporaneidade está
marcada pela intolerância contra determinados grupos sociais? Por
que os homicídios e o encarceramento praticados contra jovens,
negros, pobres moradores de favelas? O que os dados estatísticos,
3 Seminário realizado nos Espaços da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo La-
caniano – RJ, ao longo do segundo semestre de 2018, coordenado por Antonio Quinet.
4 A atuação da autora está pautada em políticas públicas de formação em Ciências
Humanas para operadores da Segurança Pública, e também na mediação judicial de
conflitos no âmbito do judiciário do Estado do Rio de Janeiro.

106 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.105-117
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

os relatos e as fotografias veiculadas sobre este inominável fenôme-


no revelam da nossa civilização?

Diálogo entre a Psicanálise e as Ciências Sociais: uma proposição

Em 1932, Einstein é estimulado pela proposta da Liga das


Nações e do Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual,
a convidar um interlocutor de sua escolha para um intercâmbio de
ideias sobre o problema que a civilização deveria enfrentar com
urgência, qual seja, se existia alguma forma de livrar a humanidade
da ameaça da guerra.
Surpreendido pela proposta, que acreditava ser de ordem prá-
tica e responsabilidade de estadistas, mas considerando a natureza
filantrópica de sua questão, Freud aceita a convocação de Einstein.
No entanto, parece frustrar expectativas de que a psicanálise pode-
ria fornecer alguma chave para proteger os seres humanos da guer-
ra (Einstein e Freud, 1932). Diz Freud, ao contrário, que a agressi-
vidade é constitutiva de todas as relações de afeto e de amor entre
os indivíduos. Acrescenta, ainda, que esta sempre reinou entre os
homens desde tempos primitivos, antes mesmo da instituição da
propriedade privada (Freud, 1927/1997).
Esta questão é fundamental na virada da teoria psicanalítica
das pulsões, desde que, pela experiência dos traumas decorrentes
da Primeira Grande Guerra, trazidos por seus pacientes, Freud, em
“Mais além do princípio do prazer” (1920), diz que nosso aparelho
psíquico não é constituído somente pela pulsão de vida, mas fun-
damentalmente pela pulsão de morte. Lacan (1998) radicaliza esta
constatação ao afirmar que todo ser humano, sendo sujeito da lin-
guagem, é um ser pulsional e que é a pulsão de morte que constitui
todas as práticas que realizamos na cultura.
Bastos e Alberti (2018), ao analisarem o que há de mortífero
no uso de drogas e toxicomanias na atualidade, chamam a atenção
que não é por decreto que se acaba com a pulsão de morte, e acres-

Narcisismo e violência contra jovens negros e pobres no Brasil – Katia Sento Sé Mello 107
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

centam que ela não é a vilã dos nossos males. Ela está na base da
compulsão humana pela repetição em direção ao gozo e à morte.
As autoras renovam a importante lição de Freud e Lacan de que
pulsão de morte e pulsões de vida são amalgamadas. Desconsiderar
este fato, portanto, nos conduz a uma “desfusão” e à “desintrica-
ção das pulsões” (Freud, 1923/2004 apud Bastos e Alberti, 2018).
Isto parece nos trazer de novo à emergência da preocupação de
Einstein, que se atualiza quase um século depois nas práticas de
intolerâncias, nos sentimentos de medos, ódios e na negação da di-
versidade, que levam à transformação de determinados sujeitos em
objetos de segregação e, mesmo, ao seu extermínio. Em particular,
homens jovens pobres, pretos e favelados.
A epígrafe de abertura deste artigo relata experiências coti-
dianas do que é denominado racismo institucional praticado pela
polícia contra jovens negros pobres. Mas, antes mesmo do racismo
institucional, toda nossa sociedade parece atravessada pela ideolo-
gia racista que decorre de um traço significante da nossa história,
que foi a escravidão, com toda sua estrutura hierárquica, escravo-
crata, aristocrática, punitivista. Compreender como isto é operado
na atualidade naquilo que denominamos violência é um dos ob-
jetivos de diversas pesquisas no âmbito das Ciências Humanas e
Sociais. A literatura sociológica tem explicado as violências a partir
das desigualdades sociais. No entanto, continuamos a nos indagar
sobre o porquê de determinados grupos sociais serem mais vulne-
ráveis devido a sua condição de sujeitos subalternizados. Exem-
plo disto são as violências praticadas contra mulheres, a população
LGBTIQ e a população negra, entre outros grupos. Mais do que
nunca, há uma dificuldade de convivermos com a diversidade so-
cial, que chega a números extremos de homicídios e encarcera-
mento em massa, por exemplo, do segmento específico de jovens,
pobres, negros, moradores de favelas.
Neste trabalho pretendemos analisar a violência do racismo
contra este segmento da população a partir da teoria do narcisismo
das pequenas diferenças (Freud, 1921/2011), em que um grupo

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A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

hegemônico socialmente nega a condição de sujeito a outro grupo


e o rebaixa à condição de objeto dejeto.

Homicídio e encarceramento no Brasil: genocídio de homens


jovens pobres pretos?

Jorge da Silva (2003), em seu livro “Violência e Racismo”,


argumenta que a violência criminal no Estado do Rio de Janeiro é
afetada por um forte recorte racial, nunca admitido em nossa so-
ciedade. Entre 1998, quando realizou sua pesquisa, e a edição mais
recente do levantamento nacional de Informações Penitenciárias
(INFOPEN) de junho de 2016, o padrão racial da violência crimi-
nal parece persistir.
Em 2016, a população brasileira totalizou 207,7 milhões de
habitantes. Deste universo, o número absoluto de homicídios no
Brasil chegou a 62.517, representando a taxa de 30,3 por cem mil
habitantes, um aumento de 5,8% em relação a 2015. No Rio de Ja-
neiro a população somou 6,32 milhões e o número de homicídios
foi da ordem de 6.053, ou seja, uma taxa de 36,45.
Ao desagregarmos as variáveis cor/raça, faixa etária e condi-
ção social, os números do mapa da violência de 20186 demonstram
que, considerando ainda o ano de 2016, 65,5 % é a taxa de homi-
cídios do total de jovens no Brasil. A desigualdade racial aparece
na taxa de 40,2 % da população jovem e negra que sofreu homicí-
dio naquele ano. Ao fazermos o cruzamento entre gênero, raça e
violência letal, constatamos que nos últimos dez anos, houve um
aumento de 15,4% da taxa de homicídio de mulheres negras.
Quanto aos dados do Infopen, a população carcerária conta
com 726,712 presos em um universo de 368.049 vagas, o que con-
5 Dados do MS/SVS/CGIAE – Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM. O
número de homicídios na UF de residência foi obtido pela soma das seguintes CIDs
10: X85-Y09 e Y35-Y36, que são os óbitos causados por agressão mais intervenção legal
da polícia. Elaboração Diest/Ipea e FBSP.
6 Publicação conjunta entre Ipea e FBSP.

Narcisismo e violência contra jovens negros e pobres no Brasil – Katia Sento Sé Mello 109
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

tribui para um déficit de 358.663 de vagas e uma taxa de ocupação


de 197,4%. Estes dados parecem demonstrar que as políticas do
nosso sistema de justiça criminal encaminham na direção do en-
carceramento em massa7.
O Infopen ainda demonstra que 64% da população encarce-
rada é constituída por pessoas negras, em flagrante contraste com
35% de brancos. Quanto à escolaridade, 75% não chegou ao ensino
médio e menos de 1% possui nível de graduação. Mais da metade
desta população encontra-se na faixa etária entre 18 e 34 anos. Da
população total de presos, 40% são provisórios, ou seja, aqueles
que ainda aguardam julgamento. Em sua maioria relacionados ao
tráfico de drogas (28%) seguidos por roubos e furtos, que somados
chegam a 37%. Os homicídios representaram cerca de 11% dos
casos que levaram alguém à prisão.
Estes dados apontam algumas questões. Em primeiro lugar, o
aumento do encarceramento. Em segundo lugar, o perfil dos pre-
sos, majoritariamente homens, jovens, negros, de baixa escolarida-
de. Em terceiro lugar, os dados demonstram que, em sua maioria,
as pessoas são presas por tráfico de drogas, seguido por roubo e
furto. O homicídio contribuiu com a menor taxa para o encarcera-
mento, ou seja, 11 % das incidências que levaram pessoas à prisão
no período considerado. O que estes dados revelam sobre o siste-
ma prisional brasileiro e, afinal, qual é o seu papel?
Os estudos clássicos sobre criminalidade e punição nas so-
ciedades modernas, têm privilegiado os contextos europeu e nor-
te-americanos. Estes estudos demonstram que as transformações
ocorridas na política criminal, passaram pela substituição de penas
corporais e a morte que Foucault denominou de políticas disci-

7 Por “encarceramento em massa” compreendemos “... mais do que o mero acumular de


corpos atrás das grades, implica a estruturação de um amplo dispositivo de governo
de populações, que envolve diversos atores, especialmente as agências do sistema de
justiça. Melhor compreender as dinâmicas e circunstâncias que sustentam tal padrão
de encarceramento, apreender o papel do direito e de seus operadores na conformação
desse quadro e repensar o lugar social da própria prisão constituem desafios teóricos e
analíticos prementes na atualidade...” (Godoi, 2018, p. 2).

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A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

plinares (Foucault, 1987). Perguntas sobre que penas ou sanções


devem ser imputadas a que tipos de crimes cometidos integram
o arcabouço teórico e empírico destes estudos. O criminoso é al-
guém que traz consigo estruturas malignas, destruidoras e antisso-
ciais? Ou é ele fruto de uma sociedade desigual, hierárquica, que
segrega determinados grupos sociais? Há relação entre pobreza e
criminalidade? No Reino Unido, muitas políticas públicas – so-
ciais e de seguridade – caminharam junto com políticas criminais
para “controlar a classe trabalhadora” (Garland, 2014). É, afinal, a
prisão, um dispositivo transformador que permite ao preso sua (re)
inserção social? É, afinal, a prisão, um dispositivo direcionado ao
sujeito criminoso e não ao ato considerado criminoso? Ou, pode-
mos afirmar que o sistema criminal brasileiro se consolidou como
expressão estrutural que tem na hierarquia racial e de gênero seus
pilares de sustentação?
Os dados apresentados não falam por si só. Fotografias, even-
tos e vídeos da “desfusão” pulsional de que falam Bastos e Alberti
(2018) parecem colocar, a céu aberto, aquilo que Silva (2003) havia
observado, o racismo8 estrutural que recorta a violência criminal
no Brasil.
A foto um9 apresenta meninas e meninos em uma favela do
Rio de Janeiro em convívio com balas de arma de fogo. A foto 2 re-
trata um jovem negro, descalço, que traja short preto surrado pelo
tempo, preso pelo pescoço entre as pernas de um policial militar.
Este, também negro, está sentado na carroceria de um automóvel
da Polícia Militar e empunha uma metralhadora. O que diz esta
foto? Qual o significado de um negro que subjuga outro negro?

8 Adoto aqui o sentido sociopolítico conforme Jorge da Silva (2003), quando emprega
raça, racial e racismo. O sentido biológico que sustentou por muito tempo a categoria
racismo e suas variantes é arbitrário e já foi contestado pelas Ciências Sociais, em especial
a Antropologia; e mesmo pela genética com o mapeamento do genoma humano.
9 As fotos utilizadas neste artigo foram trabalhadas para manterem a privacidade das
pessoas retratadas.

Narcisismo e violência contra jovens negros e pobres no Brasil – Katia Sento Sé Mello 111
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Foto 1

Foto 2

112 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.105-117
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Evento relatado por diversos meios de comunicação – redes


sociais, mídias impressa e televisiva, radiofônica – foi a notícia de
mortes praticadas pelas forças militares de intervenção na cidade
do Rio de Janeiro em territórios conhecidos como favelas, bairros
pobres. Era segunda feira, dia 20 de agosto de 2018. Tratava-se da
intervenção nos Complexos da Penha, de Manguinhos e do Ale-
mão. Imediatamente em meus grupos de Whatsapp – de amigos,
intelectuais e coletivos por direitos – começam a saltar na tela do
celular fotos de corpos mortos e ensanguentados.
Porque tantos jovens negros, pobres e favelados estão sendo
mortos na atualidade? As fotos mostram o que os dados estatísti-
cos e pesquisas têm demonstrado: A dura realidade em que jovens
pobres e negros matam outros igualmente jovens pobres e negros.
A experiência da morte e da dor como temos assistido na
contemporaneidade, vem como algo inscrito na impossibilidade
de vivência dessa camada da população. Parece tratar-se da recusa
de reconhecimento da diferença. Que estrutura psíquica é esta que
se manifesta na nossa cultura, que destina a morte, o genocídio10 a
determinadas pessoas?

10 Utilizo a palavra Genocídio como categoria expressa pelas pessoas que têm sido
vitimadas pelo massacre realizado pelo Estado por intermédio de seus agentes da
manutenção da ordem social e da Segurança Pública. Ela parece se opor a ideia de
que vivemos uma “guerra”, que supostamente tem sido utilizada pelas autoridades do
Estado para justificar as intervenções militares em espaços moralmente considerados
perigosos e violentos. Segundo relato de uma pessoa por mim entrevistada, a palavra
“genocídio” no lugar de guerra é uma forma política que chama atenção para o fato
de que as mortes provocadas pela polícia fazem parte de uma estrutura de Estado que
se baseia na seletividade racial para “eliminar” pessoas. Tem a ver com a segurança
pública, mas também com a precariedade ou falta de acesso à saúde, à educação. É um
processo que, por exemplo, quando um jovem morre, a mãe adoece, às vezes os filhos
perdem o sustento, a família toda sofre, as pessoas do entorno. Dependendo de como
foi a morte a comunidade é afetada de certa maneira. É para além daquele corpo.
Por isso é genocida, disputando mesmo o conceito internacionalmente reconhecido
(Mestranda em Serviço Social, ativista e pesquisadora em ONG de Direitos Humanos,
residente em favela no Rio de Janeiro – setembro de 2018).

Narcisismo e violência contra jovens negros e pobres no Brasil – Katia Sento Sé Mello 113
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Narcisismo das pequenas diferenças

Os conceitos de Narcisismo (Freud, 1914/2010) e de Nar-


cisismo das pequenas diferenças (1921/2011) não são sinônimos.
No entanto, eles estão articulados. O narcisismo das pequenas di-
ferenças é um conceito que diz respeito ao que poderíamos cha-
mar de clamor à unidade de grupo para que este possa acreditar
que há o um e que nada fique de fora do grupo. Ele diz respeito
ao sentimento que nega o furo, que nega a falta. Diz respeito à
intolerância, à exclusão e à estigmatização daqueles que, apesar de
semelhantes, presentificam diferenças muito sutis, que são perce-
bidas como ameaçadoras da imagem do grupo. Em “A Psicologia
das Massas e análise do Eu”, Freud (1921/2011) por meio do con-
ceito de “narcisismo das pequenas diferenças”, nos ensina que não
é a diferença, mas a semelhança que está na base da agressividade
humana e do sentimento de ódio. Ressalta que ao longo da histó-
ria os indivíduos, grupos ou comunidades travaram intensas lutas
entre semelhantes. Diz Freud que o nosso eu rechaça discordâncias
entre pares mais do que quando somos criticados por quem nos é
diferente. Isto acontece porque tendemos a projetar nos semelhan-
tes aquilo que nós somos ou que gostaríamos de ser.
Aqui talvez possamos fazer a articulação com o conceito de
narcisismo. Estamos em uma das dimensões da atitude narcísica,
que diz respeito ao amor pela própria imagem, quando a libido
está voltada para o próprio eu. É um ato psíquico que permite ao
sujeito perceber seu corpo como um e se relacionar com os outros.
As diferenças sutis que aparecem, portanto, no interior do grupo,
podem remeter àquele estádio original da constituição do eu da
experiência do autoerotismo, quando o corpo é percebido como
despedaçado e fragmentado.
Entre as fotos registradas acima, uma retrata um jovem negro,
descalço, que traja short preto surrado pelo tempo, preso pelo pes-
coço entre as pernas de um policial militar. Este, também negro,
está sentado na carroceria de um automóvel da Polícia Militar e

114 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.105-117
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

empunha uma metralhadora. O que diz esta foto? Qual o signifi-


cado de um negro que subjuga outro negro? Minha hipótese diz
respeito ao conceito de repetição de Freud em “Além do Princípio
do Prazer” (1920). A partir dos sonhos de angústia e de castigo
apresentados por analisantes com traumas da guerra, e da brinca-
deira do For-da, Freud argumenta que

quando a criança passa da passividade da experiência para a atividade


do jogo, transfere a experiência desagradável para um de seus com-
panheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se num substituto
(Freud, 1920/1998, p. 29).

Não seria esta uma hipótese explicativa daquela relação da


foto que prende o jovem pelo pescoço entre suas pernas?
Por fim, tomo o psiquiatra e filósofo francês da Martinica,
Fanon (2008), que diz que o narcisismo opera em muitos níveis
dos quais o racismo é uma das expressões. Acrescenta que o racis-
mo obriga um grupo de sujeitos a sair da relação dialética entre o
Eu e o Outro, de onde decorre que tudo se torna permitido con-
tra tais sujeitos. O autor complexifica ainda a questão do racismo
anti-negro no interior do próprio grupo de semelhantes porque,
para ele, o contexto da afirmação do negro é a experiência na qual
“os negros buscam a ilusão dos espelhos que oferecem um reflexo
branco” (Fanon, 2008, p. 15). Como sair dessa? Abraçar a propo-
sição de Fanon (2008) de que a luta contra este tipo de racismo é
uma luta para o sujeito negro entrar na própria dialética do Eu e
do Outro? Como?
E ainda, tomando a questão pulsional colocada por Freud em
“Além do Princípio do Prazer” (1920) e suas inquietações com o
porquê da guerra na comunicação epistolar com Einstein, como
relacioná-la com a questão do narcisismo das pequenas diferenças?

Narcisismo e violência contra jovens negros e pobres no Brasil – Katia Sento Sé Mello 115
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Referências Bibliográficas

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www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_
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GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade con-
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tais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
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(Coleção Antropologia e Ciência Política, 14).

116 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.105-117
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Narcisismo e violência contra jo- Narcissism and violence against


vens negros e pobres no Brasil poor African American youth in
Brazil
Resumo: Neste trabalho pretendemos
analisar a violência racista contra jovens Abstract: In this work, we intend to
negros e pobres a partir da teoria freudiana analyze racist violence against poor Afri-
do narcisismo das pequenas diferenças, can American young people, based on the
segundo a qual um grupo hegemônico Freudian theory of narcissism of small
socialmente nega a condição de sujeito differences. This concept is related to
a outro grupo e o rebaixa à condição de the way in which one socially hegemo-
objeto dejeto. Como pensar os “impasses nic group denies the condition of being
de nossa civilização atual”? “Se a to another group and reduces it to the
Psicanálise almeja bem dizer o mal-estar condition of object-waste. How can we
contemporâneo, como se define então sua think about the “impasses of our present
agência neste mundo”? Parece-me que civilization”? “If Psychoanalysis desires
nosso mal-estar atual está dolorosamente to speak well contemporary malaise, how
centrado nas violências. Que possíveis does it define its agency in this world”? It
respostas a Psicanálise pode nos oferecer? seems to me that our present malaise fo-
Palavras-chave: População negra. Nar- cuses painfully on violence. What possible
cisismo. Psicanálise. answers Psychoanalysis can offer us?
Keywords: African Americans. Narcis-
sism. Psychoanalysis.

Narcissisme et violence contre Narcisismo y violencia contra jó-


les jeunes noirs et pauvres au venes negros y pobres en Brasil
Brésil
Resumen: En este trabajo pretendemos
Résumé: Dans ce travail, nous avons analizar la violencia del racismo contra jó-
l’intention d’analyser la violence raciste venes negros y pobres a partir de la teoría
contre des jeunes noirs et pauvres à partir del narcisismo de las pequeñas diferencias
de la théorie freudienne du narcissisme (Freud, 1921/2011), en que un grupo he-
des petites différences, selon laquelle un gemónico socialmente niega la condición
groupe socialement hégémonique nie la de sujeto a otro grupo y lo rebaja a la con-
condition de sujet à un autre groupe et dición de objeto desecho ¿Cómo pensar los
la réduit à la condition d’objet-déchets. “impases de nuestra civilización actual”? “Si
Comment penser aux “impasses de notre el psicoanálisis anhela bien decir el malestar
civilisation actuelle”? “Si la psychanalyse contemporáneo, ¿cómo se define entonces
veut bien dire le malaise contemporain, su agencia en este mundo”? Me parece que
comment alors définit-elle son agence nuestro malestar actual se centra dolorosa-
dans ce monde”? Il me semble que notre mente en las violencias. ¿Qué posibles res-
malaise actuel porte douloureusement sur puestas el psicoanálisis nos puede ofrecer?
la violence. Quelles réponses possibles la Palabras-clave: Jóvenes Negros. Narci-
psychanalyse peuvent nous offrir? sismo de las pequeñas diferencias. Psicoa-
Mots-clés: Jeunesse noire. Narcissisme. nálisis.
Psychanalyse.
Recebido em: 08/09/2019
Aprovado em: 11/12/2019

Narcisismo e violência contra jovens negros e pobres no Brasil – Katia Sento Sé Mello 117
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Psicanálise e atenção psicossocial: sobre


instituir espaços de escuta no Sertão

Camilla Araújo Lopes Vieira

P artiremos das articulações entre a Psicanálise e as Políticas de


Atenção Psicossocial, exercidas no trabalho de supervisão clí-
nico-institucional no CAPS, e no acompanhamento das equipes
no trabalho de ação matricial em saúde mental na Rede de Aten-
ção Básica do município de Sobral no Ceará. Desejamos apontar
questões sobre o lugar da experiência psicanalítica e o desejo do
analista em sua inserção nas instituições saúde mental, ou seja, so-
bre a direção clínica na medida em que sustenta a escuta do sujeito
do desejo, e opera com a ética do desejo através de um saber que
“não se sabe todo”. Compreendemos e apostamos que tais articu-
lações viabilizam o deslocamento do tratamento-padrão, pautado
no modelo de saber especializado e que toma os sujeitos como
objetos de intervenção, para a emergência da direção do trabalho
indicada pela posição do sujeito do desejo. Neste sentido, os textos
de Lacan: “A direção do tratamento e os Princípios de seu po-
der” (1958), “Intervenção sobre a transferência” (1951), “Variantes
do Tratamento padrão” (1955), “O tempo lógico e a asserção de
certeza antecipada” (1945), componentes do campo sobre o lugar
da experiência psicanalítica e o desejo do analista, são de extrema
atualidade. Eles nos servem de reflexão para questionar o modelo
de atenção à loucura que tende sempre a padronizar os sujeitos, a
especializar o saber e a reafirmar o discurso do mestre, no qual o
médico detém o saber e transforma o outro que precisa de cuida-
dos em objeto de suas intervenções.
Na condição de nordestina-lacano-americana venho apon-
tando questões sobre as quais me debruço há algum tempo, desde
uma estada no Centro de Atenção Psicossocial em Sobral, no in-

118 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.118-130
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

terior do Ceará, entre os anos de 2007 e 2008. Contudo, só soube


disso escrevendo este trabalho, e retornando agora ao mesmo es-
paço, que não é mais o mesmo lugar, nem o mesmo espaço físico,
e onde não atuam mais as mesmas pessoas, mas, certamente, com
as questões que se mantiveram de lá pra cá, e com a proposta de
ouvir na condição de analista supervisora os sujeitos trabalhadores
da Rede de Atenção Integral à Saúde Mental. Durante os noves
anos que se transcorreram, estive sempre por perto, pois também
diálogo com os trabalhadores da saúde mental na condição de do-
cente do curso de Psicologia em uma Universidade pública.
As considerações de contexto são importantes aqui, para que
os leitores tenham alguma de compreensão de onde parto e para
onde vou, ou seja, do meu desejo de pesquisar, considerando que “a
pesquisa é uma dimensão essencial da praxis analítica, em função
de sua articulação intrínseca, e não circunstancial, com o incons-
ciente” (Elia, 2000). Em 1913, no texto das “Recomendações aos
médicos que praticam a psicanálise”, Freud é a favor da psicanálise
que se reivindica, que faz coincidirem tratamento, investigação e
execução. Qualquer pesquisa em psicanalise é, portanto, clínica.
Seu campo é o inconsciente, lugar do sujeito, e pressupõe tanto o
desejo do analista quanto o ato analítico.
Ora, mas o que fazem analistas nos dispositivos substituti-
vos da Reforma, como o CAPS, por exemplo? Eles devem, sem
recuar, exercer uma psicanálise. É isso que se espera de um ana-
lista, como nos diz Lacan em “Variantes do tratamento padrão”.
Em uma das perguntas que lhe foram feitas em um programa de
TV francesa, cujo texto ficou conhecido como “Televisão” (1974),
Lacan observa que o lugar que o analista ocupa em Saúde mental
é o de trabalhadores que “aguentam toda a miséria do mundo”.
A psicanálise se distancia das terapias, por estar longe do sentido
que levaria ao bom senso e ao bem comum, portanto, ao pior. A
extravagância de sentido em que se baseiam as psicoterapias, des-
pejando-o “aos borbotões para o barco sexual” (Lacan, 2001/2003,
p. 512), é o pior, como considera Elia (2006, p.53), resultante do

Psicanálise e atenção psicossocial: sobre instituir espaços de escuta no Sertão – 119


Camilla Araújo Lopes Vieira
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

fato de o Outro responder à demanda, impedindo que o sujeito se


depare com a castração. Nessa posição de supervisora-pesquisa-
dor, o que vai garantir a “pesquisa”? Ou, em outros termos, o que
permite que um “pesquisador” pesquise em Psicanálise? A transfe-
rência. Ela rubrica que não há pesquisa de campo, mas um campo
de pesquisa, o inconsciente. Qualquer que seja a metodologia de
pesquisa em psicanálise, ela deve incluir a transferência.
Em “A transferência na pesquisa em Psicanálise: lugar ou ex-
cesso?” Elia (1999) diz que, se a transferência é condição de tra-
tamento, ela o é também de pesquisa. Assim, temos dois tempos:
da transferência do sujeito ao analista pesquisador, no ato da pes-
quisa - mas também no nível da transmissão que se efetua entre o
analista-pesquisador e os que para ele encarnam o saber, na con-
dição de Sujeito suposto Saber) - e a transferência do analista com
os ditos e escritos, que não coincide com os conceitos, mas com
os significantes de Freud e Lacan, na reinvenção do caso-a-caso.
Eis o meu lugar! Postas tais questões, consideramos que é possível
ocupar esse lugar discursivo – em posição de causa do desejo, ob-
jeto dito “mais-de-gozar”.
A Reforma Psiquiátrica Brasileira em curso - com visíveis
avanços e retrocessos, a depender do momento histórico político
em que vivemos; hoje, em condições que precisaríamos discutir
para aprofundar este aposto – tem nos dispositivos substitutivos
equipamentos de extrema relevância para a população e para os
trabalhadores da Saúde Mental, na medida em que rompem com o
modelo hospitalocêntrico. Esses dispositivos pretendem ultrapas-
sar a dimensão do cuidado em “saúde” mental, para além do viés
sanitário, aos processos de adoecimento, denominados “atenção
psicossocial”. O termo é considerado por Elia (2015) um “binômio
interessante”, pois está e não está inserido no campo da saúde.
Está, na medida em que o termo ‘atenção’ indica um dos níveis
nos quais o campo da saúde se organiza; não está, quando o ‘psi-
cossocial’ sugere um extravasamento para outros campos. Estamos
cada vez mais escoando, lamentavelmente, para um sanitarismo

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A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

que tem submetido a atenção psicossocial à promoção e à preven-


ção. Exemplo disso é o matriciamento, tema para outros debates.
No dia a dia, o que vemos, de modo geral, é o favorecimento de
uma saúde pública formal, cansada, estéril e mantenedora de mo-
dos viciados, nada auto reflexivos, onde se perde a capacidade de
se perguntar o que se faz, para quem se faz, de se interrogar, como
prática cotidiana. É a rotina. Lacan (1955/1998, p. 332) denuncia:
“ao se entregar à má-fé da prática instituída, ele – o trabalhador - a
faz cair no nível das rotinas das quais os peritos fornecem os segre-
dos, (…) que eles se reservam discernir”. O que Lacan denuncia
como prática instituída, implica num modelo padrão, adotado nos
cuidados em saúde mental, como norteador dos processos.
Em “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”, La-
can nos faz pensar sobre o lugar em que tendem a nos colocar os
que estão sob efeito de supervisão. Muitas vezes carentes de um
mestre que os diga por onde ir e o que fazer, resistem a mudar
de posição e assumir seus desejos e seus percalços. No texto la-
caniano, que inicia com um sofisma a ser analisado, há um teste
proposto pelo diretor de um presídio para três encarcerados, na
visada de que o ajudem a decidir qual deles será libertado. Para
tanto, o diretor dispõe de 5 discos, dos quais três brancos e dois
pretos. Cada presidiário terá em suas costas um disco, cuja cor ele
desconhece. Cada um poderá ver a cor dos demais, mas não haverá
possibilidade de ver seu próprio disco e nem de comunicar com os
outros presidiários.
Diante do desafio do trabalho de supervisão e da causação
operada pelo texto lacaniano, o sofisma nos chega da seguinte for-
ma: o sujeito é sempre convocado a se dizer, a dizer de seu desejo,
mas ele não sabe o que é, posto que os significantes que o com-
põem partem do Outro. A cor que carrega foi dada pelo chefe do
presídio – outro – e, quanto a isso, não há o que fazer. Contudo,
é possível ir em busca da liberdade. Num primeiro momento tudo
está fora de si – instante de ver - depois, há uma elaboração vaci-
lante, duvidosa, já que é no outro que ele busca se certificar de si

Psicanálise e atenção psicossocial: sobre instituir espaços de escuta no Sertão – 121


Camilla Araújo Lopes Vieira
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

– tempo de compreender – e, só depois, ele se lança num posicio-


namento de seu desejo, mesmo que sem garantias e de forma pro-
visória e temporária – eis o tempo de concluir. O sujeito incom-
pleto é um ser de falta, inacabado. A supervisão tem possibilitado
constatá-lo, diante do sofrimento que os trabalhadores da Saúde
mental têm vivido. Recentemente, de forma extremada, demissões
inexplicáveis têm gerando o esgarçamento dos laços entre os pares,
em um movimento quase paranoico de desconfiança daquele que,
junto dele, compõe a equipe.
Ainda que nas condições de extrema fragilidade vividas pe-
los trabalhadores - ou talvez por isso mesmo - nunca elaboradas
com antecipação e sempre “dando com os burros n’agua” quanto
ao que vai ser discutido no próximo encontro, as supervisões têm
sido o espaço fecundo para que aconteçam os tempos lógicos em
cada um, na heterogeneidade que os distancia da idealização de
um líder na figura dos supervisores, mas que garante a sustentação
da transferência de trabalho. Justamente por isso, vale ressaltar o
que Lacan afirma em Intervenções sobre a transferência (1951),
que a psicanálise é uma experiência dialética e essa noção deve ser
mantida na formulação da natureza da transferência. Essa expe-
riência dialética - explicitada por Lacan, ao reler com Freud o caso
Dora - nos aparece aqui, quando interrogamos os trabalhadores
da Rede sobre o fracasso e o sofrimento do qual se queixam e
que, certamente, tem muito de uma ordem político institucional
de desmantelamento da Rede. Mas também nos incita a interro-
gá-los sobre a “parte que lhes cabe nesse latifúndio”, a queixa em
que o sujeito está implicado, mas ainda não se dá conta disso. Nas
palavras de Freud: “Veja qual é a sua própria parte na desordem de
que você se queixa”.
A partir de uma suposta igualdade que deve ser garantida
no nível político econômico – suposta, pois as políticas de saúde
se baseiam no quantificador “para todo X”, como nos exemplos:
para todo aquele que “tem diabetes”, para todo aquele que sofre de
“desnutrição”. É importante lembrar que o inconsciente se insere

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A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

na lógica do público em sua relação com o “para todos”, logo, essa


igualdade não faz mais que radicalizar a diferença. A diferença
absoluta que, a partir dessa igualdade personalizará cada um dos
sujeitos, é obra do significante. Está aí uma possibilidade de enlace
da Psicanálise aos dispositivos públicos.
A estrutura da Reforma Psiquiátrica e o modelo estatal que
se apropriou de tocar o projeto psicossocial nunca compreenderam
que as mudanças devem ser radicais no sentido de romper com as
estruturas. Contudo, é justamente aquilo que insiste em se repetir:

• no discurso do mestre, na posição de comando de alguns


saberes, como poder de verdade interventiva e de sentença
sobre a loucura;
• no discurso universitário, cujo saber vem no lugar da or-
dem, do mandamento, e que tem como dominante, nas
palavras de Jorge (2002), o saber que é acionado sobre o
outro, tomado na condição de objeto.
• no discurso da histérica, ao colocar em questão o campo
da saúde como o que não se realiza, o que não vinga, tra-
zendo à baila a interrogação sobre o saber e, consequente-
mente, o campo do sujeito.

Quando há analista, há possibilidade de circulação do saber,


justamente porque a figura do analista não encarna o saber. A po-
sição de objeto causa do desejo evidencia um saber que se articula
com a verdade. O saber verdadeiro está do lado do sujeito. Em
Variantes do Tratamento Padrão, Lacan (1955) critica os analistas
que extraviavam a psicanálise numa versão adaptativa do indivíduo
à sociedade, na psicologia do ego. Ele nos aponta o que garante à
psicanálise resistir à sua deformação: o trabalho sob transferência,
para que o sujeito advenha a partir de uma suposição de saber. Em
uma prática em que a “manutenção das normas cai cada vez mais
na órbita dos interesses do grupo” (p. 329), a realidade atual no
campo da Saúde mental, priorizam-se os protocolos executados

Psicanálise e atenção psicossocial: sobre instituir espaços de escuta no Sertão – 123


Camilla Araújo Lopes Vieira
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

pelo grupo dos “especialistas sabidos”, que levam à simplificação


do cuidado e à esterilidade da escuta. Esterilidade, tanto sentido
de “livre de germes”, ou seja, do que atrapalha, do que excede e
transborda o campo da saúde, portanto, da anamnese e da lista de
perguntas que interessam ao agente sanitário, quanto no sentido
de tornar a escuta infértil, tendo em vista que o sujeito, enquanto
objeto do saber sanitário, não existe sob a condição de desejan-
te. Isso não pode dar certo, uma vez que sabemos que “trata-se
menos de um padrão que de uma postura” (p. 329). Dizer que
se trata menos de um padrão e mais de uma postura é sustentar
que essa postura implica um posicionamento quanto ao desejo. O
único critério exigível é sustentar a pureza dos meios e dos fins na
transferência de trabalho, na possibilidade de escuta do sujeito do
desejo que ali se apresenta com as mais variadas queixas, a serem
ditas pela associação livre. Que esse discurso se efetue e se efetive,
sem interrupção e sem contenção!
Lacan nos possibilita ainda indicar que aos analistas que
atuam na Saúde mental precisam se haver com outros, que não
partem desse campo ou não chegam a ele, e revelam certo limite
de compreensão do que vem a ser psicanálise pura e aplicada, em
intensão e em extensão. Estes consideram que se trataria de uma
psicanálise menor, adaptativa. Aí então teríamos “variantes” de um
padrão possível, reforçando a ideia de que a psicanálise teria uma
suposição de “para quem” ou de “exatamente onde” ela deve ser
exercida. Alguns enunciados ideológicos, apontados por Santos e
Elia (2005), alegam tratar-se de uma prática “menos analítica”,
quando exercida nos dispositivos de Saúde mental. O espaço físico
não ideal comprometeria o rigor da praxis; casos tais como os de
psicose e autismo implicariam adaptações técnicas; o serviço ao
público mais carente requereria outro tempo de escuta. Ora, nada
impede que a psicanálise aconteça, desde que haja “um determina-
do espaço discursivo se estabeleça” (p.113) em que alguém ocupe
o lugar e a função de analista, para outro, como sujeito da palavra
e do inconsciente a partir de uma relação transferencial. Como nos

124 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.118-130
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

tempos em que Lacan inaugurava suas críticas à IPA, evidencia-


-se que esse conjunto de argumentos só faz confundir rigor com
rigidez. A questão-morcego, trazida por Lacan, sobre o rigor éti-
co necessário e imprescindível “fora do qual qualquer tratamento,
mesmo recheado de conhecimentos psicanalíticos, não pode ser
senão psicoterapia” (Lacan, 1955, p. 326), não diz de um lugar
ou de um público, no qual ou para o qual a psicanálise seria mais
psicanálise. A psicanálise não é uma terapêutica como as outras.
“Variantes” não diz “adaptação” à variedade dos casos. A entrada
e permanência, enquanto aposta dos analistas nos dispositivos da
Reforma, gera uma riqueza, tanto ao pôr em cena o discurso do
analista no tratamento dos que procuram tais dispositivos, quanto
ao permitir circular em outros lugares e, às vezes, circundar com o
discurso do analista os demais discursos presentes.
Elia, Costa e Pinto (2005) consideram que a ética não recai
sobre a ordenação, nem numa lógica idealista e humanitária. Ten-
do em vista que se trata de um saber “insabido” que cinde o sujeito
entre o saber e a verdade, as especialidades tipo “especialismos”
precisam ser superadas. Nosso desejo e nossas intervenções em
supervisão seguem esse rumo. Uma política que se volta, acirrada-
mente, para a “garantia de direitos” - o que Lacan, no Seminário
7, denomina de “serviços do bem” -, certa do que deve exercer nas
práticas do dia a dia no Caps, bloqueada para a surpresa e para o
que não se sabe, favorece que o formalismo se sobreponha como
tratamento-padrão.
Os analistas e profissionais com orientação psicanalítica têm
ocupado cada vez mais espaço nos serviços de Saúde mental do
país, implicando em modificações na direção do tratamento e na
condução dos trabalhos, na medida em que se opera uma torção,
quando se dá o deslocamento da lógica idealista e humanitária,
centrada nos direitos dos usuários pelo exercício da cidadania –
que, todavia, consideramos importante - para as intervenções que
interrogam o saber em sua colagem com o conhecimento, e colo-
cam o sujeito como vetor na direção do tratamento.

Psicanálise e atenção psicossocial: sobre instituir espaços de escuta no Sertão – 125


Camilla Araújo Lopes Vieira
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Ao propor “um entre muitos”, as equipes de Saúde mental


na prática da psicanálise em extensão, o analista sabe da perda de
gozo que se opera no deslocamento da clínica privada para clínica
pública. Ele sabe que, ao “desprivatizar” o consultório, pode se dar
uma perda de gozo, por exemplo, pela perda de controle sobre o
pagamento em dinheiro.

É preciso ir além desse obstáculo para fazer valer o trabalho do psica-


nalista, que não se confunde com filantropia, e localizar a cada caso o
modo como cada um paga para levar adiante seu tratamento. Assim,
pode ser desde uma perda concreta de tempo e dinheiro, até a perda de
gozo do sintoma inicial que se desestabiliza no processo e se submete
à regra fundamental do trabalho analítico: da ‘paixão da ignorância’
– não querer saber de nada sobre seu sintoma, ou um querer saber
dissociado de sua verdade – ao ‘desejo de saber’ como efeito da análise,
um saber que toca a verdade, mas não tem como dizer tudo. Cabe ao
analista não recuar diante deste desafio (Figueiredo, 2010).

Outro aspecto que não pode ser ignorado sob o risco de escor-
regar na casca de banana das “variantes”, como um “especialismo”
à realidade institucional, é o fato de que os casos são compartilha-
dos em equipe. Isso ocorre na supervisão. Pode levar a compreen-
der que a perda de gozo está no fato de que se perdeu o controle
sobre o paciente, mas esse tal controle nunca houve. Portanto, o
ponto central está no fato de que é preciso tomar o caso sem exper-
tises, mas enquanto “aprendizes da clínica”, em que a construção
dos casos se dá pelo que o sujeito disponibiliza, por seu estilo, nas
produções de seus sintomas e não nos saberes que “sabem” sobre o
sujeito. Eis aí mais um desafio diante do qual cabe não recuar. Em
nossa experiência, o trabalho de supervisão tem possibilitado que o
sintoma não seja eliminado ou extirpado, mas que seja dito. Como
nos ensinam Santos e Elia (2005), que ele seja “bem dito” não tem
nada a ver com a intenção de fazer o bem, mas visando mudar a
posição do sujeito no sintoma. Assim, “a ética da psicanálise não

126 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.118-130
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

é a de um Bem a ser feito ou atingido pela ação humana, mas a de


um Bem que deve dar forma ao ato de dizer” (p. 108), inclusive na
dimensão do impossível, pois não se pode dizer completamente o
inconsciente.
Tornar a psicanálise presente no mundo é poder dizer cada
vez melhor seus conceitos. A psicanálise não se perde ou se torna
menos psicanálise na instituição, ela não se especializa – como per-
fis de atendimento, clientela, público alvo - e nem se generaliza.
Em sua crítica incisiva aos analistas “adaptacionistas” e doutriná-
rios do eu - uma elite preocupada com a qualidade dos praticantes,
a partir dos critérios terapêuticos da análise – Lacan dá a entender
que não é a quantidade de analistas que confere a qualidade do
grupo. Figueiredo (2010) considera que a única condição exigível
para que os efeitos de sujeito advenham, e que os casos não sejam
tomados como um conjunto de saberes especializados, é que

deve haver ao menos um psicanalista sustentando entre tantos outros


essa qualidade da experiência a partir do sujeito, a cada caso. Que seja
um entre os demais profissionais, ou que exerça a função de supervisão
ou matriciamento, que é um modo de transmissão desse ‘saber fazer no
ato’, em um fazer – junto (Figueiredo, p. 8).

Se não for assim, nós nos enredaremos, como os pós-freu-


dianos, em elencar garantias de execução da prática, buscando ga-
rantir o que se convencionou denominar “setting analítico”; em
enquadramentos que se definem pelo tempo, pelo público, pelo
número de sessões, pelas regras em geral, como inúmeras terapias
e pedagogias, que visam regular, normatizar, e controlar. Tudo
que Lacan enunciou e denunciou tantas e tantas vezes!

Psicanálise e atenção psicossocial: sobre instituir espaços de escuta no Sertão – 127


Camilla Araújo Lopes Vieira
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Referências bibliográficas

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teoria lacaniana dos quatro discursos. In: RINALDI, D.; COUTINHO JOR-
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Psicol. Reflex. Crit. [online]. v. 12, n. 3, 1999.
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Curitiba: Editora CRV, 2010.
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out.1997 e publicado em Papéis – Revista do Corpo Freudiano, n. 7, dez. 1997.

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A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Psicanálise e Atenção Psicosso- Psychoanalysis and Psychosocial


cial: Sobre instituir espaços de Care: On establishing listening
escuta no Sertão spaces in the Brazilian Sertão
Resumo: Partindo das articulações entre Abstract: Based on the connection be-
a psicanálise e as políticas de atenção psi- tween psychoanalysis and psychosocial
cossocial, exercidas em supervisão clíni- care policies, exercised in clinical-institu-
co-institucional no CAPS do município tional supervision at the CAPS in the mu-
de Sobral, a questão que se coloca é: Qual nicipality of Sobral, the question that aris-
o lugar da experiência psicanalítica nas es is: What is the place of psychoanalytic
instituições de saúde mental? Compreen- experience in mental health institutions?
demos que tais articulações viabilizam We understand that such articulations
o deslocamento do tratamento-padrão, make possible the displacement of the
pautado no modelo de saber especializa- standard treatment, based on the model
do e que toma os sujeitos como objetos of specialized knowledge that consid-
de intervenção. Nesse artigo, os textos de ers subjects as objects of intervention. In
Lacan nos servem de reflexão para ques- this article, Lacan’s texts helps us debate
tionarmos o modelo de atenção à loucura questions about the model of attention
que tende sempre a padronizar os sujei- to madness, which always tends to stan-
tos, a especializar o saber e a reafirmar dardize subjects, to specialize knowledge
o discurso do mestre, no qual o médico and to reaffirm the master’s discourse, in
detém o saber e transforma o outro, que which the doctor holds the knowledge
precisa de cuidados, em objeto de suas and transforms the other, which needs
intervenções. care, into an object of interventions.
Palavras-chave: Psicanálise. Atenção Keywords: Psychoanalysis. Psychosocial
psicossocial. Supervisão. Discurso do care. Supervision. Master’s speech.
mestre.

Psicanálise e atenção psicossocial: sobre instituir espaços de escuta no Sertão – 129


Camilla Araújo Lopes Vieira
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Psychanalyse et soins psychoso- Psicoanálisis y atención psicoso-


ciaux: sur la création d’espaces cial: sobre establecer espacios
d’écoute dans le Sertão brésilien de escucha en el Sertão
Résumé: Basées sur les liens entre la Resumen: A partir de los vínculos entre
psychanalyse et les politiques de soins el psicoanálisis y las políticas de aten-
psychosociaux, exercées en supervision ción psicosocial, ejercidas en la super-
clinique-institutionnelle au CAPS dans visión clínico-institucional en el CAPS
la commune de Sobral, la question qui se del municipio de Sobral, la pregunta que
pose est: Quelle est la place de l’expérience surge es: ¿Cuál es el lugar de la experien-
psychanalytique dans les institutions de cia psicoanalítica en las instituciones de
santé mentale? On comprend que telles salud mental? Comprendemos que tales
articulations permettent le déplacement articulaciones permiten el desplazamien-
de la cure-type, basé sur le modèle de to del tratamiento estándar, basado en el
connaissances spécialisées et qui prend modelo de saber especializado y que toma
les sujets comme objets d’intervention. a los sujetos como objetos de interven-
Dans cet article, les textes de Lacan nous ción. En este artículo, los textos de Lacan
servent de réflexion pour questionner nos sirven como una reflexión para que
le modèle d’attention à la folie qui tend cuestionemos el modelo de atención a la
toujours à standardiser les sujets, à spé- locura que siempre tiende a estandarizar
cialiser les connaissances et à réaffirmer le los sujetos, a especializar el conocimiento
discours du maître, dans lequel le médecin y a reafirmar el discurso del amo, en el que
détient la connaissance et transforme l’au- el médico retiene el saber y transforma al
tre, qui a besoin de soins, en objet de ses otro, que necesita cuidados, como objeto
interventions. de sus intervenciones.
Mots-clés: Psychanalyse. Soins psycho- Palabras-clave: Psicoanálisis. Cuidados
sociaux. Supervision. Discours du Maître. psicosociales. Supervisión. Discurso del
amo.

Recebido em: 07/11/2018


Aprovado em: 08/10/2019

130 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.118-130
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

O saber e a transferência na clínica


psicanalítica

Luciana da Conceição Guerrão

A partir da leitura do texto “Psicanálise e Saúde Mental: o “e”


da questão”, de Musso Greco, somada à minha experiência
clínica no ambulatório de Saúde Mental do Instituto de Psiquia-
tria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, algumas questões
foram sendo suscitadas, cujos efeitos sobre a minha formação têm
sido fundamentais.
Neste texto pretendo realizar um ensaio, na tentativa de dar
continuidade à elaboração de um mote que a mim está colocado
pela experiência desafiadora, instigante e inspiradora da psicaná-
lise em extensão. Reconheço a potencialidade, a vitalidade, a fer-
tilidade e o rigor, elaborados por Lacan no que se refere à articu-
lação da psicanálise em intensão com a psicanálise em extensão,
como sendo particularmente importante para a prática política do
analista, tanto no divã, a prática da psicanálise propriamente dita,
quanto do divã à pólis, a cidade dos discursos constituída pelos
laços sociais. Ao que me interrogo: o que eu preciso saber e de que
ordem é este saber, inerente à psicanálise em extensão, desejável à
sua prática e sustentação?
A psicanálise em intensão é uma das formas de laço social en-
tre vários outros e sua permanência no mundo depende dos demais
discursos, mas, e aqui salientamos o rigor, a psicanálise deve cuidar
para não ser invadida pelos demais discursos, pois há uma hiância
na psicanálise em extensão que é a própria psicanálise em intensão.
Há um desafio, para mim instigante, e que convoca uma in-
ventividade, um saber fazer com a presença do analista nos dis-
cursos, nas instituições, não como mestre, como especialista, mas
como parceiro, na possibilidade de uma parceria efetiva e fértil da

O saber e a transferência na clínica psicanalítica – Luciana da Conceição Guerrão 131


A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

psicanálise com a Saúde Mental. Mantém-se as particularidades,


como uma continuidade, a moebiana, à qual o analista deve se
submeter, pois é fundamental para a permanência da psicanálise
no mundo e para que operem a potência e a vitalidade do discurso
analítico. Assim, reconheço a pertinência da psicanálise em ex-
tensão no sentido de garantir a transmissão da psicanálise, e como
uma prática que interpreta o mal-estar na civilização, no sentido
de remediá-lo com o seu rigor próprio da causalidade psíquica.
Minha relação com a causa analítica, para além do divã, arti-
cula-se ao dito de Lacan, na “Proposição de 9 de outubro de 1967”,
sobre o potencial que o discurso analítico tem em se contrapor aos
discursos dominantes e hegemônicos. O discurso analítico se opõe
ao discurso do Mestre de nosso tempo, o discurso capitalista, em
um dever ético articulado ao desejo de analista, para que, através
das ferramentas que a psicanálise oferece, um sujeito tenha lugar
no mundo, uma diferença possa ser escrita.
O fragmento em que se lê que “no começo da psicanálise está
a transferência” (Lacan, 1967/2003, p. 252) faz atentar para uma
particularidade da clínica psicanalítica: o manejo da transferência,
“que só está ali graças ao psicanalisante, e está ali, no começo” (La-
can, 1967/2003, p. 252), como sendo a estratégia do psicanalista
na direção do tratamento clínico, um traço que pertence ao campo
da psicanálise.
Nesse mesmo texto, ao discorrer sobre a prática da psicanáli-
se, Lacan aponta para a falha, a hiância que há entre a psicanálise
em intensão e a psicanálise em extensão, registrando que a psica-
nálise em extensão é como o horizonte, é a presença da psicanálise
no mundo, no laço social, e a psicanálise em intensão, o divã,
a marca do psicanalista na pólis, nas diversas linhas de comba-
te de facticidades na civilização. Segundo ele, se não atentarmos
para os efeitos do saber psicanalítico, essas facticidades podem
comprometer a própria prática do psicanalista. É justamente essa
falta, essa hiância, causa do desejo, que possibilita a articulação
entre as duas.

132 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.131-139
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

Sobre essa hiância, Lacan enuncia de modo provocativo: “só


faz confirmar que não basta a evidência de um dever para que ele
seja cumprido. É por intermédio de sua hiância, que ele pode ser
posto em ação” (Lacan, 1967/2003, p. 251).
A transferência, em relação à intersubjetividade, no dito de
Lacan, “por si só cria uma objeção, ela a refuta, é seu obstáculo”
(Lacan, 1967/2003, p. 252). E cabe ao analista operar, manejar
a transferência, que tem consequências éticas, permitindo que o
analisando se aproprie do saber inconsciente que se insinua em
sua fala, e também para que seja possibilitada uma transferência
de trabalho.
E o que eu preciso saber para fazer essa operação?
Fingermann (2015), psicanalista francesa e membro da Esco-
la de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, faz uma arti-
culação precisa entre a experiência analítica e o laço social. Sobre
a operação da transferência, coloca o acento na singularidade da
psicanálise como condição para a sua clínica, a do sujeito, em suas
duas formas, em intensão e em extensão. A experiência analítica
constitui, segundo Fingermann, uma ocasião excepcional, por fa-
zer laço com aquilo que se apresenta como desenlace fundamental:
o sintoma singular da existência de cada sujeito particularmente
tocado e enlaçado pela lei do significante. Destacando a transfe-
rência como um falso laço necessário à exploração do sintoma, e a
intervenção sobre a transferência como um radical Dizer-que-não
aos ditos da demanda, mas como o que permite uma ressonância
do Um-Dizer do sinthoma, possibilidade única de enodamento
com a estrutura RSI.
Essa operação, da qual temos a responsabilidade, é o que vem
garantir e sustentar nossa aposta, a de que há um sujeito e que este
pode vir a dizer, a partir de um “saber não sabido” que se faz no
trabalho de análise. E, assim, orientar-se na estrutura para bem-
-dizer sobre o seu desejo e modo de gozo.
E como bem diz Fingermann, a passagem de um desenlace
fundamental para um laço transferencial não acontece sem a pre-

O saber e a transferência na clínica psicanalítica – Luciana da Conceição Guerrão 133


A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

sença de um analista, mesmo que não aconteça uma análise, pois


o laço analítico opera e tem efeitos que possibilitam o enlace do
Um com o Outro, o que constitui a importância da nossa clínica
articulada à teoria psicanalítica.
Segundo Greco, sustentar a posição de analista, em parceria e
coexistindo com os outros discursos, requer um trabalho contínuo
que implica um “saber não saber” que, articulado ao desejo de ana-
lista, à ética e à política da psicanálise, orienta táticas e estratégias.
Esse “e”, que Greco diz tornar possível uma parceria entre a
psicanálise e a saúde mental, atua como presença do não-todo na
concretude de letra, marcando um laço transferencial de trabalho
que expressa uma escolha: do sem sentido ao significante a ser
decifrado, do litoral à terra firme, da pergunta à resposta, do enig-
ma à mensagem a ser decifrada, da borda à essência. E apresenta,
como um ponto de sustentação desta parceria, o reconhecimento
pelo campo da saúde mental do mal-estar na cultura a que estão
destinados os seres de linguagem, característico do campo da psi-
canálise.
Assim, a saúde mental, enquanto um campo de ações espe-
cíficas no âmbito da saúde pública, não suprimiria os aspectos so-
ciais e subjetivos na análise e tratamento das diversas formas de
o sujeito responder à angústia, opondo-se ao reducionismo das
formas sintomáticas a um viés biologizante, patologizante e me-
dicalizante.
Assim, a Saúde mental, enquanto um campo de ações espe-
cíficas no âmbito da Saúde pública, não suprimiria os aspectos so-
ciais e subjetivos na análise e tratamento das diversas formas de o
sujeito responder à angústia, opondo-se ao reducionismo biologi-
zante, patologizante e medicalizante das formas sintomáticas.
Articulo a esse “e” a questão da ética da psicanálise, o “e”
como um escrito, um produto não acabado elaborado por cada
um, signo do não-todo, uma conjunção que não é aditiva, mas
atópica, que não significa impotência e nem suficiência, mas pos-
sibilidades, inerentes à própria ética da psicanálise. Podendo vir a

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A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

subverter a lógica da tutela no trabalho e na clínica, ao introduzir


o sujeito, dividindo sintoma e patologia.
A psicanálise, no laço transferencial com o sintoma do sujei-
to, com sua política do sintoma, articula, na teoria e na prática, o
corpo, o social e o psíquico, enfrentando assim o desafio epistemo-
lógico da Saúde Mental.
O analista é responsável pela presença do discurso analítico
no laço social, aí trabalha com o simbólico, com a linguagem, com
a lógica discursiva, com a posição subjetiva do sujeito, ou seja, com
a estrutura que sustenta as formas sintomáticas e as formações
imaginárias.
Arrisco aqui uma contribuição a esse escrito, “Psicanálise ‘e’
Saúde Mental”, numa elaboração do “e” como uma continuidade,
a moebiana, a do entrecruzamento dos discursos, sem a substitui-
ção ou a sobreposição de uma à outra. Ela se faz possível, ao impli-
car uma subversão que faz aparecer o sujeito na divisão que produz
sintoma. Trata-se de um trabalho sustentado e viabilizado pelo
desejo de psicanálise, um desejo de que o sujeito advenha num
dizer que toca o real. Eis o que interessa à clínica psicanalítica.
Para sustentar essa posição, o que eu preciso saber e de que
ordem é este saber?
A partir das questões clínicas que me têm sido colocadas na
experiência no ambulatório do IPUB e a necessidade de articular
com a teoria psicanalítica, concomitante ao saber que vem sendo
elaborado junto ao cuidado partilhado com residentes médicos,
interrogo-me sobre o que eu preciso saber e de onde vem o ensino
de que sou efeito, para além do ensino de um eu propositivo.
O dito de Lacan, “um ensino não significa que dele resulte
um saber” (Lacan, 1970/2003, p. 303), evoca a questão da trans-
missão, cujo horizonte é a relação entre quem ensina e o ensina-
do. O que se transmite em psicanálise passa também por um laço
transferencial, de trabalho, para que o ensinado possa elaborar um
saber por apreensão e não por preposição. Este passa pelo efeito
de um percurso e requer tempo, de querer ver, de apreender, de

O saber e a transferência na clínica psicanalítica – Luciana da Conceição Guerrão 135


A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

elaborar, uma vez que a formação é permanente e cujo produto é


sempre um saber parcial, mas que toca o desejo de saber marcado
pela falta no saber. Não se trata de tudo querer saber, este é o mote
do discurso universitário. Lacan nomeia essa relação de “roda-vi-
va-desse-carrossel”, o ativo e o passivo, o amante e o amado, há
algo que precisa circular, fazendo-se necessário um espaço onde
possa ser inscrito o desejo. Ele chega a afirmar que o ensino pode
inclusive barrar o saber, pois só se é ensinado à medida de seu
próprio saber.
De que saber Lacan fala? E isso se ensina? O que se ensina
se produz no nível do sujeito, que pode estar em quatro posições:
no discurso do mestre, simplesmente sustenta a lei, que é o pró-
prio mestre, e nada sabe, já que o saber está do lado do escravo,
do Outro; no discurso universitário, onde o saber está no lugar
de agente, pois o ensino é o saber da universidade, são os signifi-
cantes-mestres que estão no lugar da verdade, não possibilitando
ao sujeito produzir seus próprios significantes (aqui o saber é um
saber de mestre); no discurso histérico, contestador dos discur-
sos dominantes, hegemônicos, onde um saber é produzido pelos
próprios significantes-mestres, numa posição de poder que inter-
roga o sujeito, o qual é elevado à posição de agente; e no discurso
do analista, na medida em que o saber ocupa o lugar da verdade
e adquire verdade a partir do que é produzido pelos significantes
do sujeito.
Mas, de onde vem esse saber? Trata-se de um saber que é
produzido no discurso analítico sobre o próprio inconsciente, im-
portantíssimo para a prática da psicanálise e sua transmissão, e
para o manejo da transferência, pois é o que possibilita ocupar a
posição de analista e a emergência do desejo de analista, sustenta-
ção do trabalho.
Se o ensino, característico do discurso universitário, pode
chegar a barrar o saber, segundo Lacan, é o ato que salva do en-
sino, que transmite. Lacan enfatiza o antagonismo entre ensino e
saber, sendo este último um ato que cria caminho para o sujeito

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A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

produzir e elaborar um saber entrelaçado aos seus significantes. A


verdade, portanto, é estendida à estrutura da linguagem. Para La-
can, o discurso universitário esvazia o ato ali onde é o que ordena
que o desejo seja o agente do discurso.
E isso se ensina? Lacan responde: o saber passa em ato!
Retomo aqui um ponto fundamental enunciado por Musso
Greco acerca do trabalho clínico em Saúde Mental, o da complexi-
dade presente nos dispositivos substitutivos ao manicômio na rede
de atenção psicossocial, implicando na necessidade de reconhecer
que o trabalho clínico não é exclusividade dos profissionais psis,
analistas, mas que isso não implica que cada profissional tenha
que abrir mão de sua posição no tratamento e das particularidades
de seu discurso. Mas há um ponto, evidenciado pela clínica, o da
construção do caso clínico, o caso a caso, que possibilita o trabalho
clínico em uma equipe multiprofissional definido por Greco como
o “e da questão”, conjunção que liga a psicanálise à Saúde Mental,
“letrinha insubmissa à totalidade e à finitude do saber”, o que se
aplica, impreterivelmente, aos limites da psicanálise pura e da psi-
canálise aplicada.
Lacan nos faz atentar para a junção desses dois momentos,
da psicanálise em extensão, que faz a psicanálise estar presente no
mundo, e da psicanálise em intensão, que prepara operadores para
ela, levando em conta que sua presença no mundo depende de
que não esqueçamos de que a razão disso é constituir a psicanálise
como uma experiência original. Isto no sentido de que ela permite
o a posteriori do tempo lógico, o efeito de tempo, tão radical em
sua clínica (Lacan, 1967/2003, p. 251).
Concluo, por enquanto, voltando à relação entre transferên-
cia e saber que faz ver que, tratando-se de psicanálise, de clínica
psicanalítica, há que se abrir mão, mais que isso, deve-se repu-
diar o que implica a ideia de conhecimento, deixando o conheci-
mento do mundo ao filósofo, ao cientista, ao sociólogo, inclusive
ao psicólogo. Esse “saber não sabido”, não quer dizer se dar por
satisfeito com um saber que nada sabe, mas que ele tem algo a

O saber e a transferência na clínica psicanalítica – Luciana da Conceição Guerrão 137


A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

saber, essa deve ser a prevalência, segundo Lacan, tanto na psi-


canálise em intensão quanto na psicanálise em extensão (Lacan,
1967/2003, p. 254).

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138 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.131-139
A POLÍTICA DA PSICANÁLISE EM INSTITUIÇÕES E DISPOSITIVOS PÚBLICOS

O saber e a transferência na clí- Savoir and transference in psy-


nica psicanalítica choanalytical praxis
Resumo: O presente texto, em forma de Abstract: This text, in essay form, will
ensaio, tem como objetivo dar continui- continue the elaboration of questions
dade à elaboração de questões suscitadas raised during my clinical experience in
durante a minha experiência clínica no the mental health clinic of the Institute
ambulatório de saúde mental do Instituto of Psychiatry, in the Federal University of
de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, during the Specialization
Rio de Janeiro, durante a Especialização in Clinical Psychoanalysis. These ques-
em Clínica Psicanalítica. Questões estas tions face the challenge of sustaining the
que tangem o desafio de sustentar a fun- psychoanalyst function in a public insti-
ção de psicanalista em uma instituição pú- tution, the effects of which led me to the
blica, cujos efeitos me levaram à seguinte following question: “What I need to know
interrogação: “O que eu preciso saber e de and what order is this knowledge, inher-
que ordem é este saber, inerente à psica- ent in psychoanalysis in extension, desir-
nálise em extensão, desejável à sua prática able to its practice and support?” Question
e sustentação?” Questão que procurarei that I’II should develop in this paper.
desenvolver neste trabalho. Keyword: Savoir. Transference. Transm-
Palavras-chave: Saber. Transferência. ission. Praxis. Psychoanalysis.
Transmissão. Clínica. Psicanálise.

Le savoir e le transfert dans la El saber y la transferência en la


clinique psychanalytique clínica psicoanalítica
Résumé: Cet texte, présenté sous la forme Resumen: El presente texto, en forma de
d´un essai, vise à poursuivre l’élaboration ensayo, tiene el objetivo de dar continua-
des questions soulevées pendant mon ex- ción de la elaboración de cuestiones susci-
périence clinique à la clinique externe de tadas durante mi experiencia clínica en un
santé mentale de l’Institut de Psychiatrie ambulatorio de salud mental del Instituto
de l’Université Fédérale de Rio de Janeiro, de Psiquiatría de la Universidad Federal
pendant la Spécialisation en Clinique Psy- de Rio de Janeiro, durante la especializa-
chanalytique. Ces questions sont confron- ción en la Clínica Psicoanalítica. Cuestio-
tées au défi de soutenir la fonction de psy- nes estas que tocan el desafío de sostener
chanalyste dans un établissement public, la función psicoanalista en una institución
dont les effets m’ont amené à la question pública. Cuyos efectos me llevaron a in-
suivante: «Que dois-je savoir et quel est terrogar: ¿que necesito saber y cuál es el
ordre de ce savoir, inhérente à la psychana- orden de este saber, inherente al sicoaná-
lyse en extension, qui est souhaitable pour lisis en extensión deseable en su práctica y
sa pratique et son soutien?» Question que sustentación? Cuestión que busqué desar-
je vais essayer de développer dans ce travail. rollar en este trabajo.
Mots-clés: Savoir. Transfert. Trans- Palabras clave: Saber. Transferencia.
mission. Clinique. Psychanalyse. Transmisión. Clínica. Psicoanálisis.

Recebido em: 26/07/2019


Aprovado em: 15/01/2020

O saber e a transferência na clínica psicanalítica – Luciana da Conceição Guerrão 139


CORPO E CLÍNICA
CORPO E CLÍNICA

O suporte é o corpo

Vera Pollo

“Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”


(Chico Buarque, Caravana)

“Descobrimos, para nosso espanto, que o


progresso aliou-se à barbárie”
(Freud, 1938)

Duas classes de corpos = duas categorias de vidas

V ivemos tempos sombrios. Historiadores, sociólogos e filóso-


fos1, todos da melhor estirpe, têm reconhecido em suas análi-
ses que estamos em um estado ou tempo permanente de exceção.
Este se caracteriza pelo fato de que os governantes se outorgam o
direito de decidir quem tem e quem não tem direito à vida, crian-
do, assim, a nova classe dos que são portadores de “corpos matá-
veis”, também chamados de “vidas nuas”, precárias ou destrutíveis.
E, ainda: não passíveis de luto.
Tendo identificado a distinção entre “vidas precárias”, de um
lado, e “vidas passíveis de luto”, de outro, Judith Butler2 (2009/2016,
p.15), herdeira de Foucault, declara “que a apreensão da precarie-
dade conduz a uma potencialização da violência, a uma percepção
da vulnerabilidade física de certo grupo de pessoas que incita o
desejo de destruí-las.” Segundo Butler:
1 Adiante mencionaremos os autores a que estamos nos referindo.
2 Doutora em Filosofia pela Universidade de Yale; professora de Retórica e Literatura
Comparada na Universidade de Califória, em Berkeley. Autora de diversos livros, entre
os quais se destacam “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade” e “O
clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte”.

O suporte é o corpo –Vera Pollo 141


CORPO E CLÍNICA

a condição compartilhada da precariedade significa que o corpo é


constitutivamente social e interdependente [...]. Todavia, precisamen-
te porque cada corpo se encontra potencialmente ameaçado por outros
corpos que são, por definição, igualmente precários, produzem-se for-
mas de dominação (2009/2016, p. 53).

Dizer que uma vida não é passível de luto significa que, quem
quer que seja que a destrua, não poderá ser julgado, tampouco
poderá ser condenado. No estado permanente de exceção, há quem
diga, a meu ver com razão, que não vivemos mais na “sociedade
disciplinar” descrita por Foucault, pois já demos um passo adiante
daquele modo de governo que consistia apenas em produzir “corpos
dóceis”. Refiro-me, sobretudo, às análises de Achille Mbembe
(2003/2018)3, e de Giogio Agamben (1995/2010)4.
Não por acaso, em seus esforços por analisar a contempora-
neidade, Mbembe e Agamben forjaram, quase à mesma época,
termos bastante semelhantes. Enquanto o primeiro mencionou a
existência de um “necropoder” e uma “necropolítica”, o segundo
lançou o vocábulo “tanatopolítica”. Para um, como para o outro,
não se trata propriamente de uma sociedade sem lei, porém - o que
certamente é ainda mais grave -, é que a lei, embora reconhecida
válida, não tem vigência.
Mbembe concorda com Foucault em que o direito soberano
de matar (droit de glave) é um elemento constitutivo do poder em
todos os Estados modernos, mas acredita que a noção de biopoder
é insuficiente para explicar as formas contemporâneas de subjuga-
ção da vida ao poder da morte, pois esta subjugação – justamente
o que ele chama de necropolítica – reconfigura profundamente as
relações entre resistência, sacrifício e poder: “Às execuções a céu
aberto, somam-se matanças invisíveis” (2018, p. 49). Entre os fe-
3 Professor de história e ciências políticas e pesquisador sênior do Instituto de Investigação
Ecconõmica e Social na Universidade de Witwastersrand, Joanesburgo, África do Sul.
4 Filósofo e ensaísta italiano, autor de inúmeras obras cujos temas vão da estética à
política, em sua maior parte já traduzidas em português, entre elas, “O homem sem
conteúdo” (1970) “Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I” (1995), “O que resta
de Auschwitz” (1998) e outras.

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CORPO E CLÍNICA

nômenos promovidos pelo necropoder, encontra-se a implantação


de armas de fogo no interesse da destruição do maior número pos-
sível de pessoas e da criação de “mundos de morte”, formas novas
e únicas de existência social no status de “mortos-vivos” (Mbembe,
2016, p. 146).
Em sua obra “Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua
I”, Agamben (1997/2010) também cita ensinamentos de Foucault,
segundo os quais, o que caracteriza o homem moderno é que “sua
vida de ser vivente” está posta em questão pela política. Na história
do ocidente, a vida biológica e a saúde só ganham importância
quando o poder soberano se transforma em “governo dos homens”
(Foucault apud Agamben, 2010, p.11). O desenvolvimento e o
triunfo do capitalismo não teriam sido possíveis sem que o contro-
le disciplinar, efetuado pelo biopoder, ou seja, sem que as novidades
tecnológicas houvessem criado os necessários “corpos dóceis” (Fou-
cault apud Agamben, 2010, p.11). E, quando a lei e a vida tornam-
-se indiscerníveis, o que acontece é “o estado de exceção transmu-
dado em regra” (Foucault apud Agamben, 2010, p.11, 2010, p. 59).

Interpretações coincidentes

Impossível não salientarmos, de imediato, algumas coinci-


dências entre as observações dos autores acima mencionados, e
algumas elaborações de Freud e de Lacan. Butler, por exemplo,
parece estar de acordo com Lacan, que, aliás, ela cita na afirmação
de que a sepultura é a primeira marca do humano, ao observar
que a personagem de Antígona é tão mais trágica quanto mais
ela se mostra inflexível em sua assertiva de que a lei simbólica é
superior à lei da pólis. Em ambos é bastante claro que nenhum ca-
dáver deve permanecer insepulto, o corpo humano não é carniça.
Tampouco, qualquer um desses autores duvidaria da observação
de Freud de que só produzimos leis jurídicas, porque nos incli-
namos naturalmente à violência e à inércia. Se nossos impulsos
mais arcaicos precisam ser “amansados pela libido” (Freud, 1929),

O suporte é o corpo –Vera Pollo 143


CORPO E CLÍNICA

é porque nos inclinamos à heterodestruição, quando não à autodes-


truição. Citemos as palavras com que Freud inicia seu artigo sobre
“Dostoievski e o parricídio”:

Um homem que alternadamente peca e depois, em seu remorso, erige


altos padrões morais, fica exposto à censura de tornar as coisas fáceis
demais para si. [...] Faz-nos lembrar dos bárbaros das grandes migra-
ções, que matavam e faziam penitência por matarem, até que a peni-
tência se transformou na técnica real para permitir que o homicídio
fosse cometido (Freud, 1928/1974, p. 205).

Bem cedo em sua obra, Lacan identifica a tese segundo a qual


“a agressividade é a tendência correlativa a um modo de identifi-
cação a que chamamos de ‘narcísico’, e que determina a estrutura
formal do eu do homem e do registro de entidades característico
do seu mundo” (Lacan, 1948/1998, p. 112).

Indagar a verdade e o tempo

Acrescente-se, então, ao “permanente estado de exceção” de


nossa sociedade, o fato de que vivemos também a assim chamada
“era da pós verdade” (Lyotard, 1986, p. 93). Em todos os discursos,
com exceção do analítico, a indagação “Será que isto é verdadeiro?”
foi substituída por “Para que serve isto?”. Não deixa de ser interes-
sante notar que é o filósofo quem o assevera. Pois, indagar a verda-
de pressupõe indagar a enunciação por trás dos enunciados, o dizer
que se imiscui nos ditos ou, se preferirmos, indagar o desejo de
nosso interlocutor: “Você me diz isso, mas o que é que você quer?”.
Filósofos, historiadores e psicanalistas, aprendemos com os
filósofos da linguagem, Austin5, em particular, que o performativo

5 J. L. Austin, filósofo britânico. Segundo Austin, a linguagem não apenas representa,


mas também se transforma em ação, performatiza, faz as coisas serem realizadas. Há
dois tipos de atos ou enunciados performativos: atos ilocucionários (illocutionary act)

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instaura o ato que ele mesmo enuncia, gerando, assim, uma verda-
de puramente factual. Na lógica proposicional, é suficiente que o
encadeamento entre as proposições se mostre coerente, para que o
enunciado conclusivo seja considerado verdadeiro. Disto se conclui
que uma proposição verdadeira pode ser bem diferente do semi-
-dizer da verdade, esta que é, como ensinou Lacan (1969), irmã do
gozo e, portanto, do real.
Tal conclusão nos remete à proliferação de fake news que vie-
mos presenciando nestes últimos tempos. É o retorno no real desta
paixão não inscrita no simbólico, em tudo semelhante à propa-
ganda fascista, tal como a descreveu Adorno (1951) em “A teoria
freudiana e o padrão da propaganda fascista”, uma leitura do texto
freudiano da “Psicologia das massas”.
No XIX Encontro da EPFCL-Brasil, realizado em São Pau-
lo, em 2018, Raul Pacheco recordava a lógica coletiva proposta por
Lacan (1945/1998, p. 212) em seu ensaio sobre “O tempo lógico e
a asserção de certeza antecipada”, no qual se afirma que, “se é so-
zinho que se atinge o verdadeiro, todavia, ninguém pode atingi-lo
a não ser através dos outros”, o que traz como consequência que “a
verdade depende, para todos, do rigor de cada um”.
Assim como Lacan em seu escrito sobre “O tempo lógico”,
Mészaros (2001/2003)6 também enfatiza o laço inevitável entre a
verdade e o tempo. Ele afirma que o capital, “estruturalmente in-
capaz”7 de solucionar as suas próprias contradições, adia8 o “mo-
mento de verdade” e tende à “representação equivocada do tempo
histórico, tanto em direção ao passado quanto ao futuro, no inte-
resse da eternização do presente.” (Mészaros, 2001/2003, p. 75).
que correspondem ao que um sujeito faz quando diz algo (como quando alguém diz
olá!, ele está saudando uma outra pessoa); e os atos perlocutórios (perlocutionary
act) que envolvem as consequências da fala (como quando se assusta alguém,
amedrontando, persuadindo ou surpreendendo, o que implica numa outra ação que
será realizada).
6 István Mészáros, graduado em filosofia, é Professor Emérito na Universidade de Sussez,
Inglaterra; considerado um dos mais importantes intelectuais marxistas da atualidade.
7 Grifo do autor.
8 Grifo do autor.

O suporte é o corpo –Vera Pollo 145


CORPO E CLÍNICA

Há perversos interesses na raiz da relação do capital com o tempo


que o tornam “incapaz de uma perspectiva de longo prazo, e de um
senso de urgência mesmo na iminência de uma explosão” (Mésza-
ros, 2001/2003, p.76).
Ao retomar as palavras dramáticas com que Rosa Luxem-
burgo expressou o dilema que teremos de enfrentar: “socialismo
ou barbárie”9, Mészaros afirma não acreditar em uma “terceira
via”, proposta por aqueles que afirmam não haver espaço para a
revitalização de um movimento radical de massa. Em suas pa-
lavras, se não houver futuro para um movimento de massa, não
haverá futuro para a humanidade. Neste caso, às palavras de Rosa
Luxemburgo10 se poderá acrescentar apenas: “barbárie, se tiver-
mos sorte.”

O psicanalista em tempos de barbárie

Deixemos omentaneamente de lado as análises histórico-filo-


sóficas e sociológicas, pois, embora elas tenham nossa inteira con-
cordância, queremos abordar aquilo que nos questiona ainda mais
de perto: o que pode o psicanalista em tempos de barbárie? Creio
que uma primeira resposta, de forma imediata, baseada no diálogo
de Freud com Einstein, seria dizer que o psicanalista se posiciona
inevitavelmente junto à minoria pacifista, a menos que abandone
o discurso analítico.
Mas indaguemos também o que pode ter levado Lacan
(1967/2003, p. 263) a previsões tão trágicas quanto atuais, e cuja
justeza não podemos deixar de assinalar, acerca de “nosso futuro de
mercados comuns [que] encontrará seu equilíbrio numa ampliação
cada vez mais dura dos processos de segregação”. Em suas palavras,
os campos de concentração nazistas foram apenas os “precursores”

9 Por isso mesmo ele intitulou sua obra de “Século XXI: socialismo ou barbárie”.
10 Filósofa marxista polaco-alemã, tornou-se mundialmente reconhecida por sua mili-
tância revolucionária no Partido Socialista.

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do que a universalização, operada pela ciência, irá produzir nos


grupos sociais, remanejando-os: racismo e segregação.
Ao buscar o avesso da psicanálise, ou seja, o que poderia im-
perceptivelmente sustentá-la, em seu décimo sétimo seminário,
Lacan (1969-1970) inicia a construção da sua teoria dos gozos,
não apenas por ter descoberto que o outro nome da causa de de-
sejo é de objeto mais-de-gozar, como por ter verificado que ele, o
objeto a, é o “núcleo pré-ideológico” (Zizek11, 1988/1991) presente
em todo e qualquer laço social. Modalidade de gozo que funciona
como causa e que pode se manifestar sob a forma de paixão pela
ignorância. Esta pode estar presente até mesmo no laço analítico,
caso não se sustente a questão do passe, “O que faz um analista?”,
no duplo sentido: como se produz um analista e em que consiste
o ato analítico?
Por consistir no legado mais direto do automatismo do signi-
ficante, o discurso do mestre encontra sempre formas novas para
subsistir. O objeto a é resultado de seu funcionamento, mas so-
mente no discurso da histeria ele se transformará em sintoma a
ser interpretado. No discurso da universidade, diferentemente, este
objeto se encarnará naqueles que chamamos de estudantes. So-
mente no discurso da histeria, o mais-de-gozar terá a principal
característica de “forçar a matéria significante a confessar”, con-
fessar que o sintoma é o que muitos sujeitos têm de mais real, a tal
ponto que se poderia dizer: o imaginário, o simbólico e o sintoma
(Lacan, 1975).
Alguns anos antes, em seu “Seminário livro 10: a angústia”,
Lacan (1962-3) estabelecera um esquema gráfico para mostrar que
a angústia é justamente o tempo intermediário pelo qual se passa
do gozo ao desejo, porque se passa ao ato como forma de extrair a
certeza da angústia. Precedido pela angústia, o desejo é, então, este
significante/fato novo que instaura um antes e um depois, impon-

11 Slavoj Zizek, professor do Departamento de Filosofia e pesquisador do Instituto de


Sociologia da Universidade da Liubliana, Yugoslávia, onde também fundou a Sociedade
de Psicanálise Teórica.

O suporte é o corpo –Vera Pollo 147


CORPO E CLÍNICA

do um limite ao gozo. É corte que se opera na substância gozosa.


Aqui não estamos mais envoltos no desejo como metonímia da
falta-a-ser, mas na irrupção do ato. O desejo é correlato à falta-a-
-gozar que a civilização impõe, e pode fracassar.
Nas linhas finais do “Seminário, livro 19: ...ou pior” (1971-
2/2012), Lacan observa primeiramente o quanto os discursos apri-
sionam os corpos, porque nada se articula em discurso sem a pre-
sença do corpo. Ele enuncia: “o suporte é o corpo. Mas é preciso
prestar atenção quando se diz que é o corpo. Não é forçosamente
um corpo. A partir do momento em que partimos do gozo, isso quer
dizer que o corpo não é inteiramente só, que há um outro”(Lacan,
2012, p. 217). O gozo sexual é o gozo do corpo a corpo, mas desde
que haja dois corpos, ou mais, não se pode dizer qual deles goza.
“É isso que faz com que possa haver nessa história vários corpos
aprisionados, e até série de corpos” (Lacan, 2012, p. 217).
Se nos dizemos irmãos dos nossos pacientes, prossegue Lacan
nessa ocasião, é apenas na medida em que somos, como eles, “filhos
do discurso”, em que também dependemos, para nossa sobrevivên-
cia, de pôr freio ao gozo. Pois a fraternidade é a raiz da segregação
e do racismo. E nossos afetos de amor e ódio – paixões do ser no
dizer de Espinoza12 e mais alguns filósofos – nada mais são que
linguagem incorporada. Lembremos com Freud que só se pode
amar porque também se pode ser indiferente, assim como se pode
assumir passivamente a posição de “ser amado”, sobretudo porque
se pode igualmente odiar. Sem esquecer também que, se o amor
é demanda de ser, o ódio não demanda nada. Unindo-se à paixão
da ignorância, transformando-se assim em ignoródio, como propôs
Quinet (2018), visa-se nada mais, nada menos, que a destruição
do ser.
12 Baruch de Espinosa, um dos grandes racionalistas e filósofos do século XVII dentro
da chamada Filosofia Moderna, ao lado de René Descartes e Gottfried Leibniz. Sofreu
um processo de excomunhão da Comunidade Judaico Portuguesa de Amsterdã, em
1656. Lacan se refere à excomunhão de Espinosa na primeira lição do Seminário 11,
e com quem ele se compara, no momento em que a IPA decide excluí-lo da lista de
analistas didatas.

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CORPO E CLÍNICA

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ZIZEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. Tradução Vera
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O suporte é o corpo –Vera Pollo 149


CORPO E CLÍNICA

O suporte é o corpo The support is the body


Resumo: O presente texto assinala ini- Abstract: This text initially points out
cialmente a existência de duas classes de the existence of two classes of bodies to
corpos às quais correspondem duas ca- which two categories of life correspond,
tegorias de vida, seguindo as análises da following the analyzes of Judith Butler,
Judith Butler, Achille Mbembe e Giorgio Achille Mbembe and Giorgio Agamben.
Agamben. Ressalta em seguida alguns It then highlights some points of coinci-
pontos de coincidência entre as análises dence between the analyzes of these au-
desses autores e algumas ideias psicana- thors and some psychoanalytical ideas of
líticas de Freud e de Lacan. Aborda bre- Freud and Lacan. Briefly it addresses the
vemente a questão das fake news, articu- issue of fake news, articulating it with the
lando-a com a relação da verdade com o relationship between truth and time. It
tempo. Indaga o que pode o psicanalista brings into question what the psychoana-
em tempos de barbárie, trabalhando com lyst can do in times of barbarism, working
a teoria lacaniana dos gozos, e concluin- with the Lacanian theory of jouissance,
do na paixão pela ignorância, e na objeção and concluding with the passion for ig-
que lhe é feita pelo discurso do analista. norance, and with the objection made to
Palavras-chave: Corpo. Fake News. it by the analyst’s discourse.
Gozo. Ignorância. Keywords: Body. Fake news. Jouissance.
Ignorance.

Le support est le corps El soporte es el cuerpo

Résumé: Ce texte rappelle initialement Resumen: Este texto inicialmente señala


l’existence de deux classes de corps aux- la existencia de dos clases de cuerpos a los
quelles correspondent deux catégories de que corresponden dos categorías de vida,
vie, suite aux analyses de Judith Butler, siguiendo los análisis de Judith Butler,
Achille Mbembe et Giorgio Agamben. Il Achille Mbembe y Giorgio Agamben.
met ensuite en évidence quelques points A continuación, destaca algunos puntos
de coïncidence entre les analyses de ces de coincidencia entre los análisis de es-
auteurs et quelques idées psychanalytiques tos autores y algunas ideas psicoanalíticas
de Freud et Lacan. Aborde brièvement la de Freud y Lacan. Aborda brevemente el
question des fake news, en l’articulant avec tema de las noticias falsas, articulándolas
la relation entre la vérité et le temps. Il de- con la relación entre la verdad y el tiempo.
mande ce que le psychanalyste peut faire en Pregunta qué puede hacer el psicoanalista
temps de barbarie, travaillant avec la théo- en tiempos de barbarie, trabajando con la
rie lacanienne des jouissances, et concluant teoría lacaniana de los goces y concluyendo
par la passion de l’ignorance, et par l’ob- en la pasión por la ignorancia y en la ob-
jection que lui fait le discours de l’analyste. jeción que le hace el discurso del analista.
Mots-clés: Corps. Fake news. Jouissance. Palabras-clave: Cuerpo. Noticias falsas.
Ignorance. Disfrute. Ignorancia.

Recebido em: 10/12/2019


Aprovado em: 09/03/2020

150 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.141-150
CORPO E CLÍNICA

Corpos em sacrifício 1

Alba Abreu Lima

“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para possuí-lo”.


(Goethe)

A linguagem, fundadora da civilização humana, surge para


cada sujeito a partir de sua causa traumática em que estará
marcada para ele, doravante de maneira infalível, a fronteira de
seu gozo. O corpo diz respeito à resposta do sujeito ao desejo:
“que objeto sou no desejo do Outro?” O Outro emprenha o su-
jeito com significantes que se imiscuem no corpo, ainda que seja
para produzir o silêncio dos órgãos. A linguagem embrenha-se
no corpo e leva o sujeito a esquecer-se dele, apenas relembrado
no recorte de certas zonas que adquirem um estatuto particular:
zonas erógenas.
Lacan aborda inicialmente o corpo como uma imagem cria-
dora da identidade, pois a prematuridade biológica do ser humano
poderia ser compensada no apoio da imagem do corpo do outro.
Ou seja, quando Lacan diz que o falasser adora seu corpo e crê que
o tem, é porque, quando o corpo estava despedaçado, o imaginário
agenciou uma resolução para essa fragmentação que é própria do
animal homem dando-lhe consistência. Mas é pela palavra – pre-
sença feita de ausência – capturada por Freud na brincadeira do
Fort/Da que é regulada a função simbólica e a trama da lei atrelada
ao desejo. O Nome-do-Pai é o suporte dessa relação simbólica e
possibilita, na dissolução do complexo de castração em cada sujei-
to, não sem ‘danos acidentais’, a dramaturgia do seu destino.
1 Trabalho apresentado no XX Encontro de Psicanálise da EPFCL em Aracaju, outubro,
2019.

Corpos em sacrifício – Alba Abreu Lima 151


CORPO E CLÍNICA

Freud, em um de seus textos mais importantes sobre a fan-


tasia, “Bate-se numa criança”, situa a criança na fase em que está
enredada em seu complexo parental, e, acerca do amor edípico, ele
diz que:

chega o tempo em que essa florada prematura é prejudicada pela ge-


ada; nenhum desses enamoramentos incestuosos pode escapar da fa-
talidade do recalcamento. Ou sucumbem a ele pela comprovação de
eventos externos (...) ou a partir de dentro, talvez apenas devido à não
realização tão longamente almejada (Freud, 1919/2018, p. 134).

A fantasia é inconsciente e brota do complexo de Édipo. Com


a dissolução desse complexo, a fantasia é conservada como resíduo,
indicando a posição do sujeito em relação ao gozo. A passagem
pelo Édipo produz um efeito de condensar as fantasias numa única
fantasia, que Lacan pontua como a particularidade que ordena o
modo do sujeito estar no mundo.
Lacan aborda o Édipo freudiano com a metáfora paterna,
em 1958, em “De uma questão preliminar a todo tratamento
possível da psicose”, articulando o Nome-do-Pai como a inter-
venção que insere o sujeito na cultura, no mundo simbólico, pois
se trata da inscrição no lugar do Outro do significante. Desse
modo, o Nome-do-Pai torna-se civilizatório e uma garantia do
sujeito percorrer a autoestrada sem se perder nas vicinais. O se-
minário “As formações do inconsciente” (1957-8) é dedicado
à metáfora paterna; somente mais tarde, no seminário “De um
Outro ao outro” (1968-9), ele assegura que a função do Nome-
-do-Pai pode ser sustentada por outras pessoas que não o pai
de família. O pai perde a característica de herói, de ideal, e sua
virtude consiste justamente em não se identificar com a função,
embora conseguindo sustentá-la.
Freud adverte em “A perda da realidade na neurose e na psi-
cose”, de 1924, que a neurose é resultado de um recalcamento fra-
cassado, o que significa que o recalque e a metáfora paterna são

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CORPO E CLÍNICA

sempre falíveis. No seminário “O Avesso da psicanálise” (1969-


70), Lacan acrescenta o lugar do pai não mais apenas em sua di-
mensão significante, mas como alguém encarcerado em sua causa
sexual, colocando o real em jogo, assim como a falha da operação
significante. Para tal, retoma o sonho de Dora, no qual ela substi-
tui o pai morto por um livro, o dicionário, em que se aprende sobre
o sexo. Assim, marca com nitidez que lhe importa, para além da
morte de seu pai, o que ele produz de saber. Não qualquer saber –
um saber sobre a verdade.
No seminário “RSI”, em 21 de janeiro de 1975, ele diz que:
um pai só tem direito ao respeito, para não dizer ao amor, se o dito
amor, o dito respeito estiver père-versamente orientado, isto é, se
tiver feito de uma mulher o objeto “que causa o seu desejo. Ora,
se nos anos 1950, o universal da função paterna dizia respeito ao
pai simbólico, o pai morto, na versão paterna (père-version), Lacan
resguarda o singular, ou seja, o modo como o sujeito se arranja
com o modelo de gozo do pai. A palavra ‘versão’, etimologicamen-
te derivada de vertere, signfica: virar no sentido de manobra obs-
tétrica (VCE) ou de curso de um astro em sua órbita, revolução,
assim como traduzir de uma língua para outra.
Em 1976, no seminário “O sinthoma”, Lacan continua eluci-
dando a pai-versão, enlaçando-a com a transmissão da castração:

A imaginação de ser o redentor, pelo menos na nossa tradição, é o


protótipo da pai-versão2. Na medida em que há relação de filho com
pai, surge essa ideia tresloucada de redentor, e isso há muito tempo.
O sadismo é para o pai, o masoquismo é para o filho (...). A castração
é que o falo é transmitido de pai para filho, e isso inclusive comporta
alguma coisa que anula o falo do pai antes que o filho tenha direito de
portá-lo (...) a castração é uma transmissão manifestadamente simbó-
lica (Lacan, 1975-6/2007, p. 82-83).

2 No original, père-version (pai-versão), homófono de perversion (perversão).

Corpos em sacrifício – Alba Abreu Lima 153


CORPO E CLÍNICA

O caso do cervo sagrado – o filme

Desde sempre, a literatura, a mitologia, as artes em geral nos


auxiliam na apreensão da clínica psicanalítica e na possibilidade de
sua transmissão. A versão contemporânea de “Ifigênia em Áuli-
des”, criada pelo diretor Yorgos Lanthimos no filme “O Sacrifício
do Cervo Sagrado”, encontra, no elemento fantástico, uma manei-
ra de arrazoar o pai, a família e as construções sociais contemporâ-
neas com suas manifestações de violência ou de estagnação, prestes
a explodir no fora-de-sentido.
A peça de Eurípedes, na qual o filme se baseia se passa antes
da Guerra de Troia, quando o exército dos aqueus é impedido
de avançar no mar pela falta de ventos. O comandante das forças
gregas, Agamenon, consulta o oráculo Calchas, que profetiza que
tudo correrá bem, se Ifigênia, a filha mais velha e virgem de Aga-
menon, for sacrificada à deusa Artemis. Para convencê-la, mente
que seria para casar com Aquiles. O guerreiro. Aquiles não sabe
absolutamente nada sobre o assunto, mas um mensageiro ouve
a conversa e relata os planos de Agamenon para Aquiles e para
Clytemnestra. Esta, revoltada, implora para que Aquiles a ajude a
salvar Ifigênia do sacrifício. O guerreiro concorda. Mas Agame-
non sabe que o sacrifício é inevitável: diz que Ifigênia morrerá pela
Grécia, uma causa que é maior do que todos eles. Ifigênia, como
uma heroína da tragédia, escolhe ir para o sacrifício por respeito
a seu pai e pede que sua mãe não ponha luto e nem chore por ela.
Segue para a morte no templo de Artemis. No momento do sacri-
fício, Ifigênia é transformada num cervo, salvando-se do destino
por meio da deusa. Os navios são colocados em marcha e Troia é
invadida pelo glorioso exército grego.
Desde o primeiro frame, um close-up de um coração batendo,
o filme de Yorgos Lanthimos mostra a vida sendo salva pelas “be-
las mãos” do cirurgião, Steven, protagonista cuja vida obedece a
regras rígidas e sofre de uma tediosa apatia. Sua mulher se oferece
na relação sexual como anestesiada, quase desfalecida, encenando

154 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.151-158
CORPO E CLÍNICA

a fantasia do marido; seus filhos obedecem ao ritual monótono de


afazeres domésticos, quase estáticos em suas atitudes. Nesse mal-
-estar, entra em cena Martin, filho de um paciente que veio a óbito
na mesa de cirurgia. Steven o acolhe em meio às relações familia-
res. A partir de então, Steven para de beber motivado pela culpa,
pois, supostamente, teria bebido no dia anterior ao da cirurgia. Os
dois começam a se encontrar com regularidade, mas as conversas
soam fora de sentido. Quando Steven convida Martin para jantar
com sua família, explode todo o clímax do filme. Martin fica mui-
to pegajoso e, ao perceber que a relação saiu do controle, Steven
evita o adolescente, gerando sua ira. Esta irá desembocar na mal-
dição sobre a família que, segundo Martin, consiste em etapas de
sacrifício dos corpos: 1) em primeiro lugar, ficarão paralíticos; 2)
em seguida, se recusarão a comer; 3) depois, os olhos começarão a
sangrar; 4) por fim: a morte.
Como na peça de Ifigênia, o pai deve escolher entre um dos
filhos ou a mulher, para que seja morto, caso contrário todos mor-
rerão. A maldição começa a se manifestar no caçula, que acorda
sem conseguir mexer as pernas. A paralisia avança, e nenhuma
explicação médica é encontrada, apesar da mulher pedir para que
ele seja examinado em sua subjetividade, por acreditar tratar-se
de um distúrbio psicológico. Mas nenhum psi é consultado, o que
demonstra bem o poder das máquinas e da ciência moderna, que
foraclui o sujeito. O hospital é completo em termos de aparelha-
gem e os médicos consultados são os mais renomados dos Estados
Unidos. Segue-se a vez da filha perder os movimentos e ficar in-
ternada no hospital, sem que qualquer exame detecte causas fisio-
lógicas para os sintomas do corpo. Eles param de comer e respiram
com dificuldade. A confirmação do ‘poder’ de Martin aparece no
momento em que a menina volta a andar momentaneamente, en-
quanto conversa com ele por telefone. É o momento em que a mãe
vê que realmente não se trata de uma doença orgânica, mas, mes-
mo assim, não consegue convencer o marido a pensar em uma cau-
sa subjetiva. Nada mais condizente com o que Lacan diz a respeito

Corpos em sacrifício – Alba Abreu Lima 155


CORPO E CLÍNICA

da ciência foracluir a verdade do sujeito e visar um saber no real,


sem considerar as causas subjetivas que são próprias a cada um.
Bob, filho mais novo, em um momento de desespero paterno,
diante da progressão dos sintomas, é depositário da confissão do
gozo do pai. Steven descreve uma cena em que ele tem a mesma
idade do filho e está, na cama, masturbando o seu próprio pai que
está bêbado; ele sai quando o pai ejacula abundantemente. Esta-
belece com o filho uma relação de excesso de gozo, sem a lei do
desejo, na qual o filho poderia construir uma barreira, sem ter co-
nhecimento dessa revelação paterna. Bob, então, se coloca aí como
o “cervo sagrado”, puro e sem segredos. Tal qual a virgem Ifigênia,
Bob morre para salvar a família da desgraça.

Concluindo

Em termos freudianos, o impossível é a castração na qual o


pai estaria submetido à lei do desejo. Steven não sustenta, pois não
encontra a causa de seu desejo fora dele, nesta mulher em que ele
repete a cena de gozo com o pai: ela tem de se fingir anestesiada na
relação sexual e o sintoma dos filhos atualiza essa anestesia.
Única garantia da père-version paterna (que, em momento al-
gum, derruba a função do pai) é a posição de um homem que faça
de uma mulher a causa de seu desejo, sem procurar estabelecer
com os filhos uma relação de gozo. Daí decorre a maneira pela
qual o dizer do pai pode enlaçar os registros RSI, dando nome às
coisas da vida, pela qual o Nome-do-Pai verte-se em pai do nome.
É a relação entre as três dimensões nas quais o falasser se estrutura,
e com o que o sujeito tem de se virar para além da função paterna
de amarração, para instituir um enodamento que mantenha o bor-
romeano da cadeia.
A psicanálise não se propõe a curar as mais variadas formas
de violência e o modo como os corpos são tratados enquanto su-
portes de sacrifício ou dejetos, mesmo se existe um caráter dito

156 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.151-158
CORPO E CLÍNICA

humanitário para tal. Contudo, na experiência analítica, o sujeito


tem a possibilidade de modificar a sua própria relação com o gozo.
A análise permite um modo de desvelar a natureza do artifício e
propiciar algo novo na amarração sinthomática.

Referencias bibliográficas

FREUD, Sigmund. (1919). Neurose, psicose, perversão. In: Obras incompletas de


Sigmund Freud, vol. 5. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
LACAN, Jacques. (1955-6). O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1988.
______. (1957-8). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
______. (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo. In: Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
______. (1957-8). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
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ro: Jorge Zahar, 1991.
______. (1972-3). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge
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Zahar, 2007.
VARGAS, Terezinha da Cunha; POLLO, Vera. Ifigênia em Áulis: a guerra, as
núpcias e a morte (Contribuições psicanalíticas para uma leitura da tragédia).
Trivium – Estudos Interdisciplinares, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 232-245, jul./
dez. 2017.

Corpos em sacrifício – Alba Abreu Lima 157


CORPO E CLÍNICA

Corpos em sacrifício Bodies in Sacrifice


Resumo: No presente texto, a autora Abstract: In the present text, the author
aborda inicialmente a constituição do initially addresses the constitution of the
corpo do falasser, em sua relação com a speaking being’s body, in its relationship
linguagem, o desejo do Outro e a função with language, the Other’s desire and
do pai de transmitir a Lei. Percorre alguns the father’s role in transmitting the Law.
seminários de Lacan, até chegar ao livro She goes through some of Lacan’s sem-
23, que lhe permite esclarecer a função da inars, until she reaches book 23, which
père-version (pai-versão), ou seja, o modo allows Lacan to clarify the function of
como cada sujeito se vira com o modelo the père-version (father-version), that is,
de gozo do pai. Em seguida, se debruça the way in which each subject deal with
sobre o filme “O caso do cervo sagrado”, the father’s model of jouissance. Then,
do diretor Yorgos Lanthimos, versão she addresses the film “The case of the
contemporânea da tragédia “Ifigênia em sacred deer”, by director Yorgos Lanthi-
Áulides”, de Eurípedes, para demonstrar mos, a contemporary version of the trag-
como o gozo do pai passa de uma a outra edy “Iphigenia in Aulide”, by Euripides, to
geração, podendo produzir, quando não demonstrate how the father’s jouissance
elucidado, corpos em sacrifício. passes from one generation to another, be-
Palavras-chave: Linguagem. Corpo. ing able to produce, when not elucidated,
Nome-do-Pai. Gozo. bodies in sacrifice.
Keywords: Language. Body. Father’s
name. Jouissance.

Corps en sacrifice Cuerpos en sacrifício


Résumé: Dans le présent texte, l’auteur Resumen: En el presente texto, la autor
aborde la constitution du corps du par- a aborda inicialmente la constitución del
lêtre, dans sa relation avec la langue, le cuerpo del hablante, en relación con el
désir de l’Autre et le rôle du père dans lenguaje, el deseo del Otro y la función del
la transmission de la Loi. Elle passe par padre de transmitir la Ley. Revisa algunos
certains séminaires de Lacan, jusqu’à ce de los seminarios de Lacan, hasta llegar al
qu’elle atteigne le livre 23, qui permet à libro 23, que permite aclarar la función de
Lacan de clarifier la fonction de la père- la père-version (padre-versión), es decir, la
version, c’est-à-dire la façon dont chaque forma como cada sujeto se las arregla con
sujet traite le modèle de jouissance du el modelo de goce del padre. Luego, abor-
père. Ensuite, elle aborde le film «Le cas da la película “El sacrificio de un ciervo
du cerf sacré», du réalisateur Yorgos Lan- sagrado”, del director Yorgos Lanthimos,
thimos, une version contemporaine de la una versión contemporánea de la tragedia
tragédie «Iphigénie à Aulide», d’Euripide, “Ifigênia en Áulides”, de Eurípides, para
pour montrer comment la jouissance du demostrar cómo el goce del padre pasa de
père passe d’une génération à l’autre, en una generación a otra, pudiendo producir ,
pouvant produire, lorsqu’ils ne sont pas cuando no elucidado, cuerpos en sacrificio.
élucidés, des corps en sacrifice. Palavras-chave: Lenguaje. Cuerpo.
Mots-clés: langue. Corps. Le nom du Nombre-del- Padre. Goce.
père. Jouissance.
Recebido em: 16/10/2019
Aprovado em: 06/02/2020

158 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.151-158
CORPO E CLÍNICA

Corpo a corpo – Clariceando Lacan

Gonçalo Moraes Galvão

A “Via Crucis do Corpo”, de Clarice Lispector, é uma obra que


tem como personagem principal o corpo, cuja aparição se dá
numa multiplicidade vertiginosa: do corpo gordo ao magro, do ve-
lho ao novo, do que não goza ao corpo de gozo. Assim, delineia-se
um corpo como aquilo que o humano carrega inevitavelmente na
vida, e com o que há de se virar, pois não é possível estar sem ele.
Nesta compilação, Clarice remete diretamente a um efeito especu-
lar que nos captura em um jogo de imagens, no qual fica evidente
que os reflexos encontrados em cada trama permitem vislumbrar e
reconhecer algo de si mesmo. Desta compilação, há de se destacar
o conto ‘O corpo’, que se transformou no filme de J. A. Garcia, de
1991, o qual parece fidelizar-se com pontos do conto em muitos
eixos, tentando estabelecer algo do cômico, do erótico, do sexo, da
morte e da vida. Obra simples: um homem que sustenta, aberta e
declaradamente, uma relação amorosa com duas mulheres, ou seja,
um bígamo.
Xavier, um pacato e caricato dono de farmácia, um corpo que
necessita de corpos femininos sexualizados para se fazer com pra-
zeres muito diretos e sem complicações, a que dá vazão como bem
pode e quer, pois seu corpo pede. Ele não questiona suas próprias
formas de extração de prazer, simplesmente goza, seja com a co-
mida ou com o sexo, pois “(...) enquanto os outros fazem escondi-
do, eu faço às claras!” (Garcia, 1991).
Mas o corpo faz questão, o corpo é uma questão, pois somen-
te se é a partir dele, e Lacan sabe tão bem disso que esta pedra
angular está presente desde os primórdios de seu ensino pela via
do imaginário, pela importância da imagem do corpo próprio na
conformação do eu. Herança freudiana, sustentando a qualidade

Corpo a corpo – Clariceando Lacan – Gonçalo Moraes Galvão 159


CORPO E CLÍNICA

deste corpo como libidinal, marcado pelo significante e investido


pela libido, algo que se coloca num além do biológico, onde resi-
dirá sua singularidade. Há de se notar que o autor aponta para a
ideia de que o eu é produto da relação com o outro, motivo pelo
qual o desconhecimento e a alienação já estariam como pontos
demarcatórios deste mesmo eu (Roudinesco, 1998). É assim que
pensar o corpo, a partir do imaginário, implica em retroceder aos
primeiros momentos da teoria lacaniana e extrair o quanto a cons-
tituição subjetiva e a imagem de si são marcadas pela imagem do
corpo próprio, devolvida a partir do outro:

Procurando formular o surgimento do eu, (...) por meio da elaboração


do registro do imaginário e do esquema conceitual proposto pelo está-
dio do espelho, Lacan (...) estabelece uma íntima relação entre o eu e o
corpo na constituição do sujeito (Cukiert, 2002).

É perceptível o esforço de Lacan para colocar o estádio do


espelho como paradigma do imaginário. A imagem do corpo
próprio advém do outro, que desempenha um papel fundamental
na formação do eu e na imagem com a qual o sujeito se relacionará,
a partir de então, como sendo a sua:

O estádio do espelho (...) não é simplesmente um momento de desen-


volvimento. Tem também uma função exemplar, porque revela certas
relações do sujeito à sua imagem, enquanto Urbild do eu (Lacan, 1953-
4/86, p. 91).

Nesta função, aparece outro elemento que possibilita mais


uma volta sobre o conto de Clarice, para salientar o quanto reside
no imaginário algo da ordem do engodo, já que as principais vias
constitutivas deste registro se estabelecem na conta da imagem e
da identificação. No jogo especular, sempre fica algo de fora. Há
um desconhecimento e o narcisismo coloca em cena não apenas as
marcas da identificação, mas também um jogo de tensões. “Todo

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CORPO E CLÍNICA

equilíbrio puramente imaginário com o outro está sempre conde-


nado por uma instabilidade fundamental” (Lacan, 1955-6/1988,
p. 111). Isto insiste no conto de Clarice por ordem das repetições
nas múltiplas relações que ali se travam. Os personagens carregam
suas características num jogo de forças, oposição e complementa-
ridade: 1)“Xavier era um homem truculento e sanguíneo. Muito
forte esse homem. (...) sua força de touro acresceu-se. (...) Xavier
comia com maus modos: barulho para mastigar, além de comer
com a boca aberta.” 2) “Beatriz comia que não era vida. Era gorda
e enxundiosa. (...) Beatriz com suas banhas escolhia biquini e um
sutiã mínimo para os enormes seios que tinha.” 3)“Já Carmem era
alta e magra. (...) era uma pobre desgraçada” (Lispector, 1974).
Dos três personagens construídos por Clarice, é possível des-
tacar um efeito imaginário que permeia as relações, qual seja: ‘vida
boa’, complementaridade, onde as tensões e conflitos ‘não compa-
recem’. A incidência do recalque se faz presente e será elemento
norteador que propiciará o grande final. Mas, enquanto isso não
chega, o que se tem são os índices especulares das trocas relacio-
nais: Carmen era magra, esguia; Beatriz era gorda, enxundiosa.
Oposições que se complementam, como se houvesse apenas uma:
“Cada noite era uma. Às vezes, duas vezes por noite. A que sobra-
va ficava assistindo. Uma não tinha ciúme da outra. (...) As duas
comeram o outro frango. (...) Às vezes, as duas se deitavam na
cama. E, apesar de não serem homossexuais, se excitavam uma à
outra e faziam amor. Amor triste” (Lispector, 1974).
Tais passagens permitem escutar a fragilidade estabelecida
pela via do imaginário, que necessita do reforço e da continuidade
pela via do outro que se faz presente. Carmem escrevia e Beatriz
lia, como se fossem pares complementares e indissociáveis, que
tinham em Xavier um terceiro, que, incluído neste processo, re-
forçava a unicidade permanente e inquestionável, segundo a qual
de três se faz um. A quebra desta monumental construção se dará
a partir do momento que se descobre que não são três, mas quatro.
“Um dia Xavier só chegou de noite bem tarde, as duas desespera-

Corpo a corpo – Clariceando Lacan – Gonçalo Moraes Galvão 161


CORPO E CLÍNICA

das. Mal sabiam que ele estava com a sua prostituta. Os três eram
na verdade quatro, assim como os três mosqueteiros” (Lispector,
1974).
Pode-se então pensar que a instituição de um corpo somente
pode se dar pelo atravessamento do imaginário, o qual, na posteri-
dade, suportará fenômenos intersubjetivos regidos por este mesmo
registro, bastante comuns nas relações amorosas. Mas, além disso,
há de se pensar em uma condição simbólica, em formas de repre-
sentar e de poder falar deste corpo, pois não há acesso possível a
ele, a não ser pela referência à estrutura da linguagem. Desta for-
ma, imaginário e simbólico se apresentam como recobrimento de
um real que se faz corpo no próprio corpo.

Referências bibliográficas

CUKIERT, Michele; PRISZKULNIK, Léia. Considerações sobre o eu e o corpo


em Lacan – uma contribuição à questão do corpo em psicanálise: Freud, Reich
e Lacan. Estudos de psicologia, Natal, vol.7, n.1, p.143-149, 2002. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-294X2002000100014&script=s-
ci_abstract&tlng=pt>. Acesso em 2019.
GARCIA, José Antônio de Barros. O Corpo (Filme). São Paulo: Cineart Pro-
duções, 1991.
LACAN, Jacques. (1986). O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, Jacques. (1988). O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar.
LISPECTOR, Clarice. (1974). A Via Crucis do Corpo. Rio de Janeiro: Rocco,
1974.
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michael. Dicionário de psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

162 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.159-163
CORPO E CLÍNICA

Corpo a corpo – Clariceando Lacan Body to body – Clarice-ing Lacan


Resumo: Este texto propõe-se a realizar Abstract: This text proposes to reflect
uma reflexão sobre o corpo, a partir de um on the body from the perspective of a
conto de Clarice Lispector que se encon- Clarice Lispector’s short story, present in
tra numa coletânea denominada “A Via the anthology ‘Soulstorm: Stories’, entitled
Crucis do Corpo” e se intitula ‘O Corpo’. ‘The Body’. Considering the text’s twists
Partindo das voltas que o texto perfaz, e and what springs from each character, it is
daquilo que faz brotar de cada persona- possible to visualize a possible opening to
gem, visualiza-se uma abertura possível de think the body from the incidence of the
se pensar o corpo a partir da incidência do imaginary and how this can unfold in a
imaginário e como isto pode desdobrar-se reflection that can consider some lacanian
numa reflexão que possa considerar alguns references, mainly ‘The Mirror Stadium’:
referenciais lacanianos, principalmente no “If Narcissus thinks what is not his mirror
que tange ao estádio do espelho: “Se Nar- to be ugly, then with what body am I go-
ciso acha feio o que não é espelho, então ing to the party you invited me to?”
com que corpo que eu vou pra festa que Keywords: Body. Clarice Lispector.
você me convidou?” Lacan. Imaginary.
Palavras-chave: Corpo. Clarice
Lispector. Lacan. Imaginário.

Corps à corps – Clariceand Lacan Cuerpo a cuerpo – Clariceando


Lacan
Résumé: Ce texte propose de faire
une réflexion sur le corps à partir d’une Resumen: Este texto se propone hacer
nouvelle de Clarice Lispector qui fait una reflexión sobre el cuerpo a partir de
partie d’un recueil intitulé ‘La Via Crucis una historia de Clarice Lispector que se
du Corps’ intitulée ‘Le Corps’. À partir encuentra en una colección llamada ‘A Via
des tournants que fait le texte et de chaque Crucis do Corpo’ y se titula ‘O Corpo’. A
caractère, il est possible de visualiser une partir de los giros que da el texto y lo que
ouverture possible pour penser le corps surge de cada personaje se visualiza una
de l’incidence de l’imaginaire et comment apertura posible para pensar el cuerpo a
cela peut se dérouler dans une réflexion partir de la incidencia del imaginario y
prenant en compte certaines références como esto puede desarrollarse en una re-
lacaniennes, principalement concernant flexión que pueda considerar algunas refe-
‘Le Stade du Miroir: “Si Narcisse pense rencias lacanianas, principalmente acerca
que ce qui n’est pas son miroir est laid, del estadio del espejo: “Si a Narciso le
alors avec quel corps vais-je à la fête à parece feo lo que no es espejo, ¿con qué
laquelle tu m’as invité?” cuerpo iré a la fiesta que me invitaste?”
Mots-clés: Corps. Clarice Lispector. La- Palavras clave: Cuerpo. Lispector. La-
can. Imaginaire. can. Imaginario.

Recebido em: 01/12/2019


Aceito em: 02/01/2020

Corpo a corpo – Clariceando Lacan – Gonçalo Moraes Galvão 163


CORPO E CLÍNICA

Ressonâncias do significante no corpo

Raquel Puga

O presente artigo1 aborda a questão do corpo na psicanálise na


vertente do corpo como marcado e profundamente modi-
ficado pelo significante. Proponho discutir a relevância dos ecos
do dizer do Outro na conformação das bordas corporais e a inci-
dência disso no laço social. Trago, para tal, fragmentos da análise
de uma criança de 5 anos (a quem, de maneira fictícia, chamarei
de Pablo) que acompanhei no Serviço de Saúde Mental de um
Hospital Geral do conurbano bonaerense2. O recorte clínico será
lido à luz de diferentes estatutos do significante que encontramos
ao longo do ensino de Lacan e em relação aos conceitos de corpo
e laço social, cujas bordas são indissociáveis enquanto fruto de
nossa relação com a linguagem.

Um universo significante no meio do caminho

Sabemos, com Lacan (1975a), que o corpo do sujeito é sen-


sível ao dizer do Outro pelo fato de o corpo ter orifícios – como a
orelha - que não podem fechar-se. A essência falante do ser hu-
mano faz da ressonância da palavra algo constitucional (Lacan,
1975b). Foi, de fato, através da fala dos outros que aconteceu mi-
nha primeira aproximação ao universo de Pablo:

1 Este texto surge da reelaboração do trabalho apresentado nas XXI Jornadas de Forma-
ções Clínicas do Campo Lacaniano (FCCL-Rio) / VII Jornadas do Fórum do Campo
Lacaniano do Rio de Janeiro (FCL-RJ) / I Jornadas do Fórum do Campo Lacaniano
Região dos Lagos (FCLLAGOS), sob o mesmo título.
2 Franja de território que rodeia a Capital Federal da Argentina, também chamado Gran
Buenos Aires.

164 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.164-172
CORPO E CLÍNICA

Um neném de 5 anos a quem lhe custa falar por causa do freio


da língua, que não quer escrever nem pintar e vive em seu mundo;
brinca sozinho e até se criou sozinho porque em casa são todos
adultos e na creche os colegas o rejeitam. A este neném lhe falta
acordar: não está à altura das outras crianças que são mais vivas
e os primos se afastam dele porque o veem como bobo. Puxou a
família paterna, meio burro. Filho temporão, ele chegou tarde e
tudo estava bem enquanto era um bebê.
A delimitação dos espaços é confusa e os corpos se misturam
na hora de dormir: ora me dizem que Pablo dorme com as irmãs
(20 anos mais velhas do que ele), ora que dorme sozinho, ora que
dorme no quarto dos pais. O pai se auto define como a galinha com
os pintinhos, tal qual sua própria mãe, quer todos os filhos juntos.
Em diálogo com a creche que Pablo frequentava, falaram-me
usando termos que pouco diziam dele e muito repetiam os crité-
rios que, à época, o DSM-IV (A.P.A. 1994) considerava como
descritivos do “indivíduo autista”. As últimas palavras da profes-
sora foram contundentes: “Eu não poderia afirmá-lo, mas há até
quem o viu fazendo aqueles movimentos chamados rocking”. Era
uma lista esquisita que, de tão cheia, ressoava vazia de sujeito, pois,
nessa comprida listagem de critérios, Pablo e as particularidades
de sua história brilhavam por sua ausência.
Aos olhos das tias da creche, além de ser o atrasado, Pablo era
o menino que tinha vindo bagunçar a turma e espantar a institui-
ção. Antes da chegada dele, a sala era tranquila, mas depois todos
agrediam uns aos outros. A sua professora se considerava exaurida
e decidiram reduzir o tempo de permanência de Pablo na escola.
Perante tamanha balbúrdia, ouve-se nas demandas dos outros
(pais, escola, colegas do serviço) a urgência que busca normatizar,
ordenar esse corpo, velando o parlêtre; não importa o que Pablo
tem a dizer, mas sim que pare: de crescer, de correr, de gritar, de se
separar. O modo singular em que Pablo se apresenta ao outro foge
do socialmente estabelecido e ele recebe da comunidade humana o
contragolpe que, com Lacan (1964), podemos chamar de “rebote

Ressonâncias do significante no corpo – Raquel Puga 165


CORPO E CLÍNICA

social”. A singularidade do sujeito passa a ser tomada como “desa-


daptação” a partir da qual os outros se autorizam a exercer a “rea-
daptação”, habilitando a violência como recurso: Pablo ganhou um
selvagem diagnóstico de autismo, indicação de colégio especial e
redução do horário escolar. Cabe mencionar que causava à criança
grande angústia cada vez que era retirado da creche enquanto seus
coleguinhas continuavam lá.
Entre tantos atributos mortíferos ouço dizer que Pablo só se
empolga com a música e a dança.

Mundo Pablo

Pablo comparece a nosso primeiro encontro fantasiado de


Zorro; um corpo contido numa fantasia que o cobre por completo
e só deixa ver o rosto e as mãos da criança. Os pais explicam, en-
vergonhados, que tentaram por todos os meios vesti-lo com rou-
pas, mas tinha sido impossível. Pablo entra na sala e perambula
tocando todos os brinquedos que aparecem no seu caminho sem
parar em nenhum deles. Poucos minutos depois, fica perplexo e
percebo uma lágrima rolando por sua bochecha. Diz, em um bal-
bucio quase imperceptível, que tinha feito cocô nas calças e pede
pelo banheiro para limpar-se. Um pedaço do sujeito que se des-
prende e uma angústia que o paralisa; chorando, pede pela mãe e
pelo apagamento dessa perda.
Na sessão seguinte, inicia uma sequência que se repetirá ao
longo de vários encontros. Num impulso à descarga motora, corre
enlouquecidamente dentro e fora da sala jogando no chão tudo que
encontra pela frente. Outras vezes, mete-se embaixo da escrivani-
nha e golpeia a madeira com força. Seus movimentos são acom-
panhados por gritos repetidos uma e outra vez: Hola (Oi), Pablo,
culo (cu), caca (cocô). Gritos e golpes ensurdecedores acompa-
nham corridas desvairadas que incomodam os colegas do serviço
que nos olham com reprovação. No enxame de significantes que

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CORPO E CLÍNICA

lhe vêm do Outro, Pablo cifra algo do gozo em uma literalidade


quase total: os “cus” não falam e só fazem “cagadas”.
No seu primeiro seminário, Lacan (1953-4) discute o caso de
Rosine Lefort, “o menino lobo” e interpreta seu grito como uma
palavra reduzida a seu caroço, a seu estado nodal; diz que o meni-
no é ele próprio “O lobo!” na medida em que diz essa palavra. “O
eu é aqui completamente caótico, a palavra interrompida. Mas é a
partir de O lobo! que ele poderá encontrar o seu lugar e se cons-
truir” (Lacan, 1953-4, p. 142).
Pablo endereça à analista significantes que marcam uma pri-
meira alienação. Contudo, grita significantes desarticulados; S1
soltos, sem sentido, radicais, esvaziados de seu efeito de significa-
do, mas com os efeitos de afeto próprios do significante como cau-
sa de gozo. Gritos que testemunham o traumatismo do encontro
com lalangue, que ancora no corpo da criança em “detritos da fala
do Outro primordial” (Bastos; Freire, 2006). São marcas do gozo
como experiência de corpo que prescinde do laço simbólico com a
máquina significante; é o corpo Real, gozável, diferente do corpo
imaginário. Um corpo que não sofre o mapeamento necessário à
ordenação do circuito de satisfação pulsional com a consequente
desordem em relação ao gozo.
Apesar do laço social afetado, Pablo está ligado à comunidade
humana; as palavras que pode dizer fazem a mediação entre ele e
o Outro e abrem à possibilidade de instaurar um diálogo. Na me-
diação – que faz parte da essência da palavra – o outro do entorno
se realiza e isso nos une a ele. Na fala de Pablo, que não é mero ato
cognitivo, mas algo da ordem de uma extração no Real, revela-se
- revelar é outra face da palavra – a céu aberto que algo pode ser
nomeado (Lacan, 1953/1954).
A clínica psicanalítica convida a restaurar o valor de repre-
sentação dos comportamentos repetitivos e aparentemente fora de
sentido – escutar o que Pablo tem a dizer é diferente de querer que
“pare” – como meio para adentrar-se no mundo do sujeito, no in-
tuito de que algum sentido venha a se produzir. Uma via possível é

Ressonâncias do significante no corpo – Raquel Puga 167


CORPO E CLÍNICA

dar nome a esses comportamentos, oferecendo um encadeamento


do qual esperar a produção de uma posição subjetiva qualquer, ao
emprestar à criança significantes que a habilitem para a produção
do saber que lhe supomos.
Em uma sessão na qual Pablo está embaixo da mesa gritando
e batendo, pergunto se aquilo que estávamos ouvindo era um tam-
bor. Ato seguido, Pablo sai de debaixo da escrivaninha; jubiloso,
olha-me e sorri. Parado na minha frente continua batendo na tam-
pa da mesa, mas, dessa vez, dando início a uma série descontínua:
ele bate, para, eu bato, olhamo-nos e sorrimos, começando uma
sequência bem diferente do puro e bruto ruído.
O gozo se aventura na palavra sancionando a interpretação
quando a analista se oferece como Outro que aloja a pulsão na
transferência, a partir de uma intervenção. O tambor funcionaria
como um S2 com o qual o Um estaria em correlato, mas isso não
é mais que um suposto, uma elucubração, uma aposta da analista
que “o interpretador é o analisando” (Lacan, 1971-2, p. 224).
Consentir ao tambor marca outro momento lógico no qual
os significantes (soltos no primeiro momento – lalangue) se or-
ganizam e articulam em cadeias: o simbólico toma corpo (Lacan,
1970). Momento de mergulho na linguagem, onde o significante
copula com outro para dar significação, ilustrando uma das fun-
ções do significante, a função de corte, que promove uma sepa-
ração e resulta numa perda na economia de gozo. Ao denotar a
musicalidade nos sons rudes e gestos bruscos de Pablo, algo vai
para fora e seu corpo já é outro: as corridas loucas entre uma e
outra sala diminuem e o desborde se transforma em apelo. Agora,
quando Pablo se esconde embaixo da mesa, diz: “Olha para lá!” ou
“Pablo se foi”. Também pede: “Ajuda! Busca!”
A partir daí, dedicamos várias sessões à conformação de uma
banda de rock, que Pablo chama Elochoynueve (Ooitoenove).
Ainda que holofraseada (S1S2), trata-se de uma articulação signi-
ficante que possibilita cindir espaços, o que nas sessões se esboça
na organização da banda. Pablo escolhe as funções que cada um de

168 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.164-172
CORPO E CLÍNICA

nós terá dentro da mesma: ele será guitarrista e cantor, eu estarei


a cargo da percussão. Como faltam instrumentos, nós os construí-
mos com papelão; ele inventa uma letra de Hip-Hop e ensaiamos
nosso show. Pablo parou de gritar nas sessões e sua voz se faz ouvir
quando canta (foi muito importante para ele construir um micro-
fone), contando-se como um na série: um que não é bebê, nem
cocô, e sim, cantor.
A musicalidade comparece como um elemento particular ao
sujeito, um quarto artifício que amarra os três registros (Real, Sim-
bólico, Imaginário) e possibilita incluir o pulsional no sinthomal.
Esta invenção implica duas operações: uma tentativa de descom-
pletar o Outro e a incorporação de um traço do Outro; o sinthoma
funciona como saber mínimo, atravessado por uma significação
particular, signo da singularidade do sujeito, “é o modo dele saber
fazer com o real do gozo” (Baio, 2006, p. 29).
Quando Pablo perde o interesse pela banda de rock, outros
jogos e trocas advêm. Começa a fazer algumas escolhas em relação
a sua aparência, relacionadas também com a música. Deixa crescer
seu cabelo e usa uma franja na testa, pois segue a moda dos flog-
gers. Além disso, participa dos ensaios da murga do bairro e me
mostra as danças que está aprendendo. Com um corpo habitado
por letras, música e baile, Pablo se deixa representar por outros
significantes diferentes daqueles mortíferos com que se apresentou
no início de seu percurso de análise.
Podemos pensar nesse ponto em outra função do significante:
a função de traço que diferenciamos da função de corte. Como
traço, o significante promove uma operação de identificação que
parte da alteridade. O sinthoma, como modo de gozar de cada par-
lêtre, veste-se com diferentes semblantes, tramas que bordejam o
buraco do Real e viabilizam o laço social.
Ganho pela musicalidade, o corpo de Pablo parece também
ganho pelo brincar. O percurso da análise evidencia um trabalho
de extração de algo mortífero do corpo e a construção de ficções.
Pablo propõe em sessão diferentes versões do que ele chama “jogo

Ressonâncias do significante no corpo – Raquel Puga 169


CORPO E CLÍNICA

dos monstros”. Ele representa cucos (seres imaginários que as-


sombram as crianças), figuras que sempre são más: “Me atacam e
me assustam”. O deslizamento significante entre cu (culo) e cuco
abre mais uma via para o laço. À proposta paterna de continui-
dade – todos os filhos juntos, comigo – Pablo pode trazer uma
descontinuidade entre os personagens, entrelaçando o significan-
te a diferentes cenas de jogo. A brincadeira alterna com algumas
conversas, nas quais Pablo fala sobre a creche e o quanto gosta de
brincar de cuco com seu colega, Sebi.

Para concluir

“[O sujeito] somente é responsável na medida de seu saber


fazer. O que é o saber fazer? É a arte, o artifício, o que dá à arte da
qual se é capaz um valor notável, porque não há Outro do Outro
que leve ao fim o juízo final” (Lacan, 1975b, p.59).
O saber fazer com lalangue é uma exigência para todos; cor-
responde a um trabalho de escrever o inconsciente, ao extrair do
enxame um significante que fixe esse gozo e habilite o produzir-se
sujeito, o trabalho necessário para extrair-se do real indiferenciado.
Pablo se apresenta com um corpo desbordado que tenta conter
dentro de uma fantasia, um corpo afetado pelos detritos da fala do
Outro que se ancoram nele de modo tal que o gozo aparece des-
regulado, manifestando-se em uma agitação inarticulada; corpos
misturados onde a perda não está prevista.
A música abre uma brecha para que algo do gozo se localize
fora do corpo, transformando-o em um corpo habitável. Valendo-
-se de seu arranjo pessoal, de seu saber fazer com lalangue, Pablo
consegue separar um corpo entre outros; seja como flogger, mur-
guero ou cuco, Pablo marca presença no corpo do social fazendo
do laço algo possível.

170 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.164-172
CORPO E CLÍNICA

Referências bibliográficas

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Manual of Mental Disorders - (DSM-IV). Fourth Edition. Washington: Ameri-
can Psychiatric Association - (APA)., 1994.
BAIO, Virginio. Autismo. AMP - Scilicet de los nombres del padre. Textos pre-
paratórios para o Congresso de Roma, 13 a 17 de julho de 2006.
BASTOS, Angélica; FREIRE, Ana Beatriz. Sobre o conceito de alíngua: elemen-
tos para a psicanálise aplicada ao autismo e às psicoses. In: BASTOS, A. (org.).
Psicanálise hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006.
LACAN, Jacques. (1953-4). O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud.
Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
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psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 1993.
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______. (1975a). Conferencia en Ginebra sobre el síntoma. In: Intervenciones y
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______. (1975b): El Seminario, libro 23: el sinthome. Buenos Aires: Paidós,
2019.
ŽIŽEK, Slavoj. Violência. Seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo Editorial.
2014.

Ressonâncias do significante no corpo – Raquel Puga 171


CORPO E CLÍNICA

Ressonâncias do significante no Resonances of the signifier in


corpo the body
Resumo: O corpo do qual falamos na psi- Abstract: The body of which we speak
canálise é um corpo marcado pelo signifi- in psychoanalysis is a body marked by the
cante. Ao longo do ensino de Lacan en- signifier. Throughout Lacan’s teaching, we
contramos diferentes teorizações em torno find different theorizations around the
da noção de significante: S1...S2, S1S2, S1 notion of signifier: S1...S2, S1S2, S1 loose,
solto, causa de gozo, efeito mortificante. cause of jouissance, mortifying effect. This
O artigo versará sobre estas noções e sua article will deal with these notions and
incidência tanto na conformação das bor- their impact both on the conformation of
das corporais como nas particularidades the body borders and on the particulari-
do laço social. Nosso eixo condutor será ties of the social bond. Our guiding axis
um recorte da análise de Pablo, que aos 5 will be an excerpt from Pablo’s analysis,
anos se apresenta no consultório fazendo- who at the age of 5 shows up at the office
-se representar por palavras (oi, Pablo, cu, making himself represented by screamed
cocô) que grita enquanto corre desvaira- words (hi, Pablo, anus, poop) while run-
do. A introdução do significante “tambor” ning wild. The introduction of the signifi-
permite um corte na continuidade gozosa er “drum” allows a cut in the continuity of
cujos desdobramentos serão discutidos ao jouissance, creating consequences that will
longo do texto. be discussed throughout the text.
Palavras-chave: Significante. Corpo. Keywords: Signifier. Body. Social bond.
Laço social.

Résonances du signifiant dans Resonancias del significante en


le corps el cuerpo
Résumé: Le corps dont nous parlons en Resumen: El cuerpo del cual hablamos
psychanalyse est un corps marqué par le en psicoanálisis es un cuerpo marcado por
signifiant. Tout au long de l’enseignement el significante. A lo largo de la enseñanza
de Lacan, on retrouve différentes théori- de Lacan encontramos diferentes teoriza-
sations autour de la notion de signifiant: ciones sobre la noción de significante: S1...
S1...S2, S1S2, S1 lâche, cause de jouissance, S2, S1S2, S1 suelto, causa de goce, efecto
effet mortifiant. Cet article traitera de ces mortificante. Este artículo versará sobre
notions et de leur impact à la fois sur la estas nociones y su incidencia tanto en
conformation des frontières corporelles et la conformación de los bordes corporales
sur les particularités du lien social. Notre como en las particularidades del lazo so-
axe directeur sera un extrait de l’analyse de cial. Nuestro eje conductor será un recorte
Pablo qui, à l’âge de 5 ans, se présente au del análisis de Pablo, que a los 5 años se
bureau se faisant représenter par des mots presenta en el consultorio haciéndose re-
criés (salut, Pablo, anus, merde) en courant. presentar por palabras (hola, Pablo, culo,
L’introduction du signifiant « tambour » caca) que grita en cuanto corre desorien-
permet une coupure dans la continuité de tado. La introducción del significante
la jouissance, créant des conséquences qui tambor permite un corte en la continui-
seront discutées tout au long du texte. dad de goce cuyos desdoblamientos serán
Mots-clés: Signifiant. Corps. Lien social. discutidos a lo largo del texto.
Palabras-clave: Significante. Cuerpo.
Lazo social.
Recebido em: 13/02/2020
Aprovado em: 26/02/2020

172 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.164-172
RESENHA
RESENHA

O Inconsciente Teatral: do divã ao palco

Cinara Santos

Resenha de:
QUINET, Antonio. O Inconsciente Teatral – psicanálise e teatro: homo-
logias. Rio de Janeiro: Atos e Divãs Edições, 2019.

C omo jornalista, costumo recorrer a depoimentos para en-


tender ou demonstrar algum acontecimento. Por isso, achei
que falar sobre O Inconsciente Teatral, do psicanalista e drama-
turgo Antonio Quinet, somente sobre as abordagens conceituais
psicanalíticas, seria reduzir esta obra que trata de duas áreas tão
caras para nós, psicanalistas – Arte e Psicanálise – a um arcabou-
ço teórico.
Assim, utilizo-me das palavras da psiquiatra Katia Mecler:
“Eu não entendo nada de Lacan, mas Lacan e Quinet entendem
muito de mim”, relatando os efeitos do livro para um auditório
repleto de médicos. Conta que repensou questões como a trans-
ferência em sua própria clínica, reviveu os afetos em relação a sua
escolha pela psiquiatria, revelou as angústias que surgiram e a se-
quência de sonhos que passou a ter durante a leitura. E percebeu o
seu desejo de fazer análise.
A obra é isso: ela causa. O leitor é tomado pela narrativa das
experiências do autor, como a sua participação no centenário da
criação da cátedra de clínica, da qual Jean-Martin Charcot foi o
primeiro professor. Quinet relata a sua emoção ao assistir a um es-
petáculo no famoso hospital La Salpêtrière, onde Sigmund Freud
assistiu ao teatro da histeria de Charcot e percebeu o inconsciente
em cena.

174 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.174-179
RESENHA

Chego na capela da Salpêtrière. Arquibancadas e palco. O espetácu-


lo começa. “Hystérie – opéra-collage; concert dramatique”, criação do
Theater-am-Turm de Frankfurt, encenado pelo Grupo de Ação Ins-
trumental de Buenos Aires. Árias de ópera, cantoras líricas, um dança-
rino contorcionista, uma atriz, uma clarineta. E a histeria surge. Lírica
patética, convulsiva, deslumbrante. A voz e o olhar; música e luz. Não
há texto. Só o corpo e suas emanações. Todo o espaço é dado à histeria
de hospital e à histeria de salão no palco onde ela se desgarrou de sua
origem uterina para aparecer em todo o seu esplendor subjetivo de
sintomas e mise-en-scéne (Quinet, 2019, p. 244).

Tomado pelo gozo estético que a obra o havia provocado,


Quinet percebeu o poder de transmissão cênica. Trinta anos de-
pois estava ele próprio no Salpêtrière encenando “A lição de Char-
cot”, transformada no espetáculo chamado “Abram-se os histéri-
cos”, em sua versão em francês.
O autor sustenta que o teatro provoca a produção do saber,
insight e questionamentos ao unir o artístico e o epistêmico, e tra-
balha os conceitos por meio da homologia entre psicanálise e tea-
tro, inaugurada por Freud. A obra retrata a definição que Quinet
faz de si: “um psicanalista no teatro com a sua Cia Inconsciente
em Cena” dando a sua contribuição teórica à psicanálise, a partir
do teatro. “Todos nós, seres humanos, somos atores de um dra-
ma cujo enredo nos escapa e cujo autor desconhecemos” (p. 17).
Roteiros estão escritos e representados na Outra Cena, primeiro
nome que Freud deu ao Inconsciente.
O viés autobiográfico do livro é percebido logo na introdu-
ção. O autor fala de suas dificuldades ao inovar na transmissão da
psicanálise e apresenta um Antonio Quinet pouco conhecido do
meio analítico. É a primeira vez que ele escreve um pouco sobre a
sua relação pessoal com o teatro e o seu ativismo político juvenil.
Na segunda parte, intitulada “Memorial Teatral - Um ensaio
Autobiográfico”, o leitor se depara com Quinet ainda universitá-
rio, militante de esquerda, seduzido pelo teatro político de Bertolt

O Inconsciente Teatral: do divã ao palco – Cinara Santos 175


RESENHA

Brecht. Na época das prisões políticas, tortura, desaparecimentos


e censura, o estudante de Medicina da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) pertencia a grupos de estudos clandestinos.
“Ler Marx, Lênin e Althusser tinha que ser às escondidas, pois
tudo era suspeito, subversivo”, conta (p. 241).
De um modo muito particular, teatro e psicanálise traçaram
caminhos convergentes na vida do autor. Ao longo de sua forma-
ção como médico, psiquiatra e psicanalista, o teatro sempre esteve
à sua espreita. A experiência com as artes cênicas começou aos seus
20 anos quando criou com os colegas da UFRJ o Teatro Experi-
mental Universitário (TEU) para denunciar a ditadura militar.
O clima de medo não impediu que o grupo de teatro esco-
lhesse nada menos que “Terror e miséria no terceiro Reich” para
a estreia em um auditório com cerca de 400 pessoas. A peça foi
escolhida pelas semelhanças entre a situação da Alemanha nazista
com o Brasil militar. A curta - e curtida, ressalta o autor, - carreira
na dramaturgia foi abandonada para seguir a formação como mé-
dico e psiquiatra na França.
Se os estudos em outro país o haviam afastado do teatro,
foi em Paris que Quinet reencontrou seu encantamento pelas
artes cênicas com a vivência teatral no Salpêtrière. Já no Brasil,
anos mais tarde, em 2003, escreveu a sua primeira peça, “A lição
de Charcot”. Depois vieram “X,Y e S” e “ArTorquato”, quando
então já era psiquiatra, psicanalista, doutor em Filosofia, dra-
maturgo, professor universitário e diretor da Cia Inconsciente
em Cena e o convite do Freud Museum para encenar Hilda e
Freud. Sim, Quinet interpretou Freud na casa em que o criador
da psicanálise morou e atendeu, em Londres, após deixar Viena
ocupada pelos nazistas.
Entretanto, justamente por unir psicanálise e teatro, Quinet
foi tido como herege tanto pelo meio psicanalítico quanto pelo
meio teatral. O autor avalia que não foi fácil aceitarem a perspec-
tiva inédita de transmissão da psicanálise pela via de teatro, que
sempre foi o seu propósito. “Para mim, além de trabalhar a psica-

176 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.174-179
RESENHA

nálise implicada pelo teatro, trata-se de levar o que a psicanálise


ensina para o teatro – do divã ao palco” (p. 235).
Narra as críticas recebidas e como elas influenciaram, ou não,
a continuidade do seu trabalho nos palcos. Elas estão lá registradas
nas páginas em que o autor apresenta suas peças, com reflexões
próprias e de comentadores sobre o seu conteúdo, encenação e
articulação com a psicanálise. Como, por exemplo, a resposta da
psicanalista Maria Anita Carneiro Ribeiro às críticas publicadas
em dois jornais do Rio de Janeiro sobre a peça X,Y e S (p. 279):
“(...) Não porque seja ‘psicanálise demais e teatro de menos’, como
diz um dos críticos. Mas sim porque ousa pôr em cena a lógica do
inconsciente.” Ou o elogio de um crítico de teatro em sua coluna
no Jornal do Brasil chamando a atenção para a articulação entre a
pesquisa acadêmica e a arte tanto no texto quanto na encenação:

(...) A transcriação do texto e a direção de Quinet deixam evidentes


que a cena foi construída a partir de análises teóricas e projeções inter-
culturais que traduzissem, com recursos teatrais, a proposta de investi-
gação (Quinet, 2019, p. 313).

As articulações desenvolvidas no livro são resultado das ela-


borações da prática do autor tanto na psicanálise quanto no tea-
tro, onde desenvolve há mais de 15 anos funções de dramaturgo,
diretor teatral e, por vezes, ator. “Minha experiência como ana-
lista e ‘homem de teatro’ me fez perceber que o inconsciente é
teatral: composto por um texto, por cenas (sonhos e fantasias)
e se manifesta no corpo falante e performático com sintomas e
atuações. O teatro é o lugar do inconsciente em cena cujo espe-
táculo se acende no fulgor de um momento como um sonho, um
lapso ou um chiste, para o gozo do espectador”, disse em recente
declaração para a imprensa.
Quinet demonstra como Freud e Lacan utilizaram o teatro,
respectivamente, para criar e renovar a psicanálise, com os concei-
tos de conflito, cena, catarse, tragédia (Édipo Rei e Antígona) e o

O Inconsciente Teatral: do divã ao palco – Cinara Santos 177


RESENHA

ato do analista como uma representação teatral (semblante laca-


niano). Lembra que a relação entre psicanálise e teatro se encontra
desde o início da descoberta freudiana com o tratamento analítico
como catarse das paixões nas tragédias:

(...) Essa relação nunca foi abandonada nem por Freud nem por Lacan,
que não só se serviram das peças de teatro como utilizaram concei-
tos e termos dos vocabulários teatrais para elaborarem suas teorias e
abordarem a clínica psicanalítica”. Freud deixou-se ensinar por “Édipo
Rei, Hamlet”, “O mercador de Veneza”, “Macbeth”, “Rei Lear”, as-
sim como pelas peças de Ibsen e Schnitzler, entre outras. E Lacan
por Antígona e Édipo em Colona de Sófocles, por Hamlet em seu
longo estudo no Seminário VI e por diversas peças de Moliére como
“O avarento”, “O misantropo, Anfitrião”, além da trilogia de Claudel,
“O balão de Jean Genet” e “O despertar da primavera” de Wedekind
(Quinet, 2019, p. 19).

Na abordagem lacaniana, Quinet desenvolve a tese do teatro


a partir dos discursos como laços sociais. Mostra que todo laço so-
cial é um laço teatral a partir do conceito do semblante, sendo este
melhor entendido como uma representação teatral. E, para que
algo do teatro possa ser transmitido e fazer laço com o espectador,
é preciso ter “verdade”, como funciona também nos laços sociais.
Associa o uso dos semblantes ao uso da máscara no teatro grego e
o conceito de distanciamento ou estranhamento de Bertolt Brecht.
Em vinte capítulos, a tese do autor é um tratado inédito que
estava faltando na teoria e na prática da psicanálise. Para os psi-
canalistas, inova ao mostrar que o teatro e a psicanálise tratam o
real através do simbólico, utilizando-se do imaginário, tendo por
fundamento o Inconsciente. Diferentes em suas práticas, o autor
sustenta que uma esclarece a outra a partir da abordagem bor-
romeana das três dimensões do espaço psíquico: o Simbólico do
texto, o Imaginário do espetáculo e o Real pulsional da presença
do gozo em cena.

178 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.174-179
RESENHA

Para os leigos, amantes e estudiosos das artes cênicas este li-


vro é uma porta de entrada na psicanálise – com seus conceitos,
sua clínica e implicação nas artes – a partir do espetáculo teatral.
Com linguagem leve e precisa, a obra pode ser lida na sequência
ou de forma salteada, pois cada capítulo tem um enfoque que pode
ser interpretado isoladamente. Fica claro ao leitor a articulação do
processo analítico como uma dramaturgia, o drama na cena analí-
tica. A psicanálise permitindo encenar no divã o “teatro privado”
de cada um.
E, para ambos os públicos, no final do livro (p. 399), o autor
relacionou um “índice de conceitos”, funcionando como um “bus-
cador”. Há a relação das páginas na qual o leitor pode acompanhar
o desenvolvimento daquele tema. As fotografias dos espetáculos
recebem o mesmo tratamento primoroso do texto, resultando em
um material artístico com projeto gráfico da designer Caroline
Gischewki.
Cada um recebe a obra de arte de uma forma, tentarei descre-
ver a minha experiência de leitura parafraseando o autor ao brindar
o lançamento do livro no Rio de Janeiro: “foi um momento mági-
co que, como o desejo, há de brilhar forever”.

A importância da arte para a psicanálise está não apenas em sua men-


sagem, como conteúdo transmissível, mas também e principalmente
em seu poder de nos tocar, causar, emocionar, ou seja, de mobilizar algo
do desejo em nós, espectadores (Quinet, 2019, p. 21).

Recebido em: 09/10/2019


Aprovado em: 10/12/2019

O Inconsciente Teatral: do divã ao palco – Cinara Santos 179


SOBRE AUTORES E TRADUTORES

Sobre autores e tradutores

Alba Abreu
AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil. Psicóloga – Es-
pecialista em Psicologia Jurídica.
E-mail: albabreulima@hotmail.com

Agnes Meneguelli
Psicanalista. Psicóloga com especialização em psicanálise. Membro da Internacional dos
Fóruns - Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-IF-EPFCL e membro
do Fórum do Campo Lacaniano de Juiz de Fora.
E-mail: agnesmeneguelli@hotmail.com

Camilla Araújo Lopes Vieira


Membro do Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza e do Fórum do Campo Lacania-
no Sobral – em formação.
E-mail: tgd.camilla@gmail.com

Carol Leão
Psicanalista. Doutora pelo Programa de Pós graduação em Teoria Psicanalítica (UFRJ).
Professora adjunta da graduação em Psicologia (UFC) – Sobral. Professora do Mestrado
Profissional em Psicologia e Políticas Públicas (UFC).
E-mail: carolinablmartins@gmail.com

Cinara Santos
Jornalista graduada pela (PUC-RS). Especialista em Marketing pela Fundação Getúlio
Vargas (FVG). Psicanalista. Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universi-
dade Veiga de Almeida (UVA). Participante de Formações Clínicas do Fórum do Cam-
po Lacaniano do Rio de Janeiro (FCCL-RIO).
E-mail: gmcinara@gmail.com

Dyhalma N. Ávila-López
Psicanalista. Membro do Forum Psicanalítico de Porto Rico (FP-PR). Doutora em
Filosofia pela Universidad de Puerto Rico. Práctica privada como psicóloga clínica e
psicoanalista. Supervisora clínica de internado de estudiantes doctorales de psicología
de la UPR. Enseñante del Colegio Clínico del FP-PR. Representante ALN al CRIF
2018-2020.
E-mail: dnavila@psicoa.com

180 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.180-182
SOBRE AUTORES E TRADUTORES

Elena Pérez Alonso


Psicóloga. Pós-graduação em Psicologia Clínica PUC- RJ. Mestrado em Ciências pelo
Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da UFRJ. Participante de
Formações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro. Membro do Fórum Rio
e da IF.
E-mail: elenapalonso48@gmail.com

Gonçalo Moraes Galvão


Filósofo. Pós Graduado em Ciência Política. Mestre em Psicologia. Membro da IF-EP-
FCL-Brasil do Fórum e Campo Lacaniano de São Paulo.
E-mail: gmggalvao@gmail.com

Joseane Garcia
Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro. Doutora e
mestre em Psicanálise pela UERJ. Professora, supervisora e pesquisadora do curso de
Psicologia e coordenadora geral do curso de Pós-graduação Lato Sensu em Teoria e
Clínica em Psicanálise da Universidade Católica de Petrópolis.
E-mail: josie.garcia2@gmail.com

Kátia Sento Sé Mello


Antropóloga. Prof. Programa de Pós-graduação em Serviço Social/PPGSS/UFRJ, líder
Grupo de Pesquisa sobre Sociabilidades Urbanas, Espaço Público e Mediação de Con-
flitos/PPGSS/UFRJ; INCT- Instituto Nacional de Estudos Comparados em Admi-
nistração Institucional de Conflitos/UFF e Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito
e Violência Urbana/IFCS/UFRJ. Participante de Formações Clínicas do Campo Laca-
niano do Rio de Janeiro.
E-mail: ksemello@gmail.com

Leonardo Pimentel
Psicanalista. Doutor em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Membro de Escola e membro do Fórum Rio.
E-mail: leonardoptl@icloud.com

Luciana da Conceição Guerrão


Psicanalista. Especializanda em Clínica Psicanalítica (IPUB/UFRJ). Membro do Fórum
do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro (FCL-RJ). Psicóloga (Unesa/RJ). Psicóloga
Clínica no IPUB/UFRJ e no Serviço de Acolhimento da Fundação Leão XIII – CSU
Santa Margarida.
E-mail: lucianaguerrao@yahoo.com.br

Sobre autores e tradutores 181


SOBRE AUTORES E TRADUTORES

Luis Achilles Rodrigues Furtado


Membro da Internacional dos Fóruns - Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo
Lacaniano-IF-EPFCL, membro do Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza. Pós-
-doutor em Psicanálise (UERJ), Professor de Psicanálise da Universidade Federal do
Ceará – Campus de Sobral.
E-mail: luis_achilles@yahoo.com.br

Marcelo Mazzuca
AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Doutor em Psicologia.
Licenciado em Psicologia (UBA). Membro do Foro Analítico del Río de La Plata -
(Farp) e professor do Colégio Clínico.
E-mail: memazzuca@gmail.com

Raquel Puga
Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicanálise pelo Programa de Pós-graduação em Psi-
canálise (UERJ). Especializações em Psicologia Clínico Institucional modalidade Resi-
dência Hospitalar (HUPE/UERJ). Bacharel em Psicologia na Universidad de Buenos
Aires (UBA).
E-mail: raquel_puga@hotmail.com

Rosanne Grippi
Psicóloga. Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano Região dos Lagos.
Psicóloga na Policlínica Municipal da Prefeitura de Saquarema-RJ.
E-mail: rogrippi@yahoo.com.br

Silvana Pessoa
Psicanalista. Mestre em Educação (USP). AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns
do Campo Lacaniano–Brasil. Membro e atual diretora da sua Comissão de Gestão do
Fórum do Campo Lacaniano-SP. Coordenadora da Rede de Pesquisa Psicanalise, Edu-
cação e Cultura e Participante do Projeto Abracadabra.
E-mail: silvanapessoa@uol.com.br

Vera Pollo
Psicanalista. Professora titular dos programas de Mestrado e de Doutorado em Psica-
nálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida- campus Tijuca. AME da
Internacional dos Fóruns e da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
(IF-EPFCL-Brasil).
E-mail: verapollo8@gmail.com

182 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.180-182
INSTRUÇÕES AOS AUTORES

Instruções aos autores

Objetivo da revista

A revista Folhetim é uma publicação semestral do Fórum do


Campo Lacaniano do Rio de Janeiro. Tem por objetivo divulgar
conferências, palestras, artigos, pesquisas, casos clínicos e resenhas
de membros e/ou participantes do Campo Lacaniano no Brasil e
no exterior.

Normas de publicação

Serão aceitos apenas artigos inéditos que estejam dentro das


normas de publicação abaixo discriminadas e que obedeçam à se-
guinte formatação:

1. Formato: o artigo deve ser digitado na cor preta, no for-


mato A-4 (21 cm x 29,7 cm), posição vertical. Todo o
artigo deve ser digitado em fonte Times New Roman, ta-
manho 12, alinhamento justificado, espaçamento 1,5 cm
entre linhas, parágrafo de 1,25 cm. O texto deve conter no
máximo 15 laudas, contando com as referências biblio-
gráficas. As exceções são as citações com mais de 3 linhas,
as referências bibliográficas, notas de fim e a legenda das
ilustrações, cujas normas estão dispostas abaixo.
2. Margens: esquerda – 3 cm; superior – 3 cm; direita – 2
cm; inferior – 2 cm.
3. Espaçamento: as partes pré-textual e textual devem ser
digitadas em espaço de 1,5 entre linhas, porém devem ser
digitadas em espaço simples: as citações de mais de 3 li-
nhas, as notas de fim e as referências.

Instruções aos Autores 183


INSTRUÇÕES AOS AUTORES

4. Paginação: todas as folhas devem ser contadas sequen-


cialmente, numeradas com algarismos arábicos, no canto
superior direito da folha, a 2 cm da borda superior.
5. Notas de rodapé: as notas devem ser digitadas em fonte
Times New Roman, tamanho 10, alinhamento justifica-
do, espaçamento simples entre linhas, dentro das margens.
6. Ilustrações, tabelas, gráficos, grafos, matemas, figuras,
quadros: qualquer que seja o tipo, sua identificação deve
aparecer na parte inferior, constando os seguintes itens:
nome do autor, título designativo e/ou da legenda expli-
cativa de forma breve e clara (em negrito), ano e número
de página da obra consultada.
Exemplo: LACAN, Jacques. Superfície mínima do cross-
-cap. 1962-63/2005, p. 149.
7. Palavras em destaque: o recurso itálico é utilizado apenas
para destacar palavras estrangeiras e neologismos. Recur-
sos como negrito ou sublinhado não devem ser utilizados
ao longo do texto.
8. Citações: é de total responsabilidade do(s) autor(es) a
apresentação correta e fidedigna das citações em seu texto.
Estas fontes devem estar contidas obrigatoriamente nas
referências bibliográficas ao final do texto. Os títulos das
obras citadas ao longo do texto devem vir entre aspas.

• Citações indiretas: ideia e/ou conceito de um autor citados de


forma indireta.
Exemplo: Todo desejo é marcado pela falta, isto é, apenas
onde há falta pode emergir o desejo. Então, à medida que a
mãe interpreta o choro do bebê, permite que se insira um furo,
uma falta de significante (LACAN, 1966/1998).

• Citações diretas de até 3 linhas, devem estar entre aspas du-


plas e conter entre parêntesis o nome do autor, a data da pu-
blicação e o número de páginas.

184 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.183-187
INSTRUÇÕES AOS AUTORES

Exemplo: “A chave que lhes forneço lhes permitirá ver o ver-


dadeiro sentido a ser dado, na pluma dele, à expressão ‘perda
de objeto’” (LACAN, 1962-63/2005, p. 52).

• Citações diretas com mais de 3 linhas, devem estar sem aspas,


com recuo de 4 cm, espaçamento simples, tamanho 10.
Exemplo:
O registro do significante institui-se pelo fato de um signi-
ficante representar um sujeito para outro significante. Essa é
a estrutura, sonho, lapso e chiste, de todas as formações do
inconsciente. E é também a que explica a divisão originária do
sujeito. Produzindo-se o significante no lugar do Outro ainda
não discernido, ele faz surgir ali o sujeito do ser que ainda não
possui fala, mas ao preço de cristalizá-lo. O que ali havia de
pronto para falar..., o que lá havia desaparece, por não ser mais
que um significante (LACAN, 1966/1998, p. 854).

9. Folha de rosto: deve conter o título do trabalho em cai-


xa alta, negrito, centralizado, fonte Times New Roman,
tamanho 12 (máximo de 10 palavras), alinhamento cen-
tralizado, em português, inglês, francês e espanhol; acres-
cido do resumo (máximo de 100 palavras) em português,
inglês, francês e espanhol. Também deve conter as pala-
vras-chave (máximo de 5 palavras) em português, inglês,
francês e espanhol.
10. Folha de identificação: deve conter os dados de identi-
ficação do(s) autor(es), como: nome completo, titulação,
endereço postal, telefone, e-mail, Fórum ao qual pertence
e uma breve descrição do currículo (máximo de 3 linhas).
Este item deve ser digitado em fonte Times New Roman,
tamanho 12, alinhamento justificado, espaçamento 1,5
cm entre linhas.
11. Referências: devem ser apresentadas ao final do texto
em ordem alfabética, sob as normas da ABNT. No caso

Instruções aos Autores 185


INSTRUÇÕES AOS AUTORES

de mais de uma obra do mesmo autor, organizá-las por


ordem cronológica. As referências bibliográficas devem
ser digitadas em espaço simples entre linhas, com espaça-
mento automático antes e depois de cada referência, sem
parágrafo.
Observação: Nos textos citados de Freud e Lacan, a data
da publicação original deve constar logo depois do nome
do autor, entre parênteses.
Exemplos:

- Livros:
SOBRENOME do autor, Prenomes sem Abreviatura. Título do livro: subtítulo.
Local de publicação: Editora, ano de publicação.

- Capítulo de livros:
SOBRENOME do autor, Prenomes sem Abreviatura. Título do capítulo: sub-
título. In: SOBRENOME do autor, Pronomes sem Abreviatura. Título do livro.
Local de publicação: Editora, ano de publicação. Páginas inicial e final.

- Periódicos:
SOBRENOME do autor, Prenomes sem Abreviatura. Título do artigo: sub-
título. Título do periódico, Local de publicação, Instituição, número do volume,
número do fascículo, páginas inicial e final do artigo, mês e ano de publicação.

- Teses e dissertações:
SOBRENOME do autor, Prenomes sem Abreviatura. Título. Local: Programa
de Pós-Graduação/Universidade, ano de publicação. Dissertação (Mestrado em
x) ou Tese (Doutorado em x).

- Documento eletrônico:
SOBRENOME do autor, Prenomes sem Abreviatura. Título. Edição. Local:
ano, número de páginas ou volume (série) (se houver). Disponível em: <http://
www....>. Acesso em: dia mês (abreviados) ano.

186 FOLHETIM, Rio de Janeiro, ano XVI/XVII, n. 17/18, dez. 2018/jun. 2019, p.183-187
INSTRUÇÕES AOS AUTORES

Processo de avaliação dos artigos

Os artigos enviados para a revista Folhetim devem obedecer


às normas de publicação estipuladas pelo Editor e pela Comissão
Executiva, explicitadas nas Instruções aos autores, e devem ser
originais, destinados apenas à publicação nesta revista. Os artigos
que falharem em cumprir estas recomendações serão devolvidos.
A Comissão Editorial receberá cada artigo e distribuirá para
dois pareceristas que avaliarão se o mesmo obedece às recomen-
dações editoriais e às normas de publicação da revista. Em caso de
discordância entre os dois pareceristas, será solicitada a avaliação
de um terceiro. A autoria do artigo será mantida em sigilo à medi-
da que os pareceristas receberem os textos. Ao fim desse processo,
o artigo pode ser classificado como: aceito, aceito mediante modi-
ficação ou recusado.
Os artigos aceitos mediante modificação serão enviados ao(s)
autor(es) com as recomendações dos pareceristas e devem ser res-
submetidos no prazo estipulado, podendo o artigo ser aceito ou
recusado. Cabe ao Editor e à Comissão Executiva a decisão final
sobre a publicação, e a estes fica reservado o direito de fazer modi-
ficações de formatação que se mostrem necessárias.

Direitos autorais

Os direitos autorais de todos os artigos publicados pertencem à re-


vista Folhetim. A reprodução total ou parcial destes artigos em ou-
tras publicações deve conter as referências da Folhetim consultada.
Preferencialmente, as propostas de publicação devem ser enviadas
via internet, como anexo, para o e-mailbiblioteca@fcclrio.org.br

Instruções aos Autores 187


Números anteriores

n. 0 | Ano III
n. 1 | Ano III
n. 1 | Ano IV – A supervisão
n. 2 | Ano V – Formação e Garantia, Sessão Clínica e Campo Lacaniano
n. 3 | Ano VI – Formação e Garantia, Sessão Clínica e Campo Lacaniano
n. 4 | Ano VII – Conceitos, Clínica, Escola e Conexões
n. 5 | Ano VIII – Freud – 150 anos
n. 6 | Ano IX – “40 anos da Proposição sobre o psicanalista da Escola”
n. 7 | Ano X – 10 Anos do Campo Lacaniano
n. 8 | Ano XI – Escola, passe, cartel, arte e clínica
n. 9 | Ano XII – Escola, passe, cartel, arte e clínica
n. 10 | Ano XIII – Escola, passe, cartel, arte e clínica
n. 11 | Ano XIII – Desafios da Escola e laço social
n. 12 | Ano XIV – O amor, signo de que trocamos de discurso
n. 13| Ano XIV – Da infância ao infantil
n. 14 | Ano XV – Sexualidade e Sexuação
n. 15 | Ano XV – Sexualidades contemporâneas
n. 16 | Ano XVI – O real e o psicanalista

Todas as revistas podem ser adquiridas na secretaria da EPF-


CL-RJ, localizada em Botafogo, na Rua Goethe, 66, ou encomenda-
das via Correio. Tel/Fax: (21) 2537-1786 / 2286-9552. E-mail para
contato: secretaria@fcclrio.org.br / biblioteca@fcclrio.org.br
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