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POR ONDE COMEÇAR A

LER L ACAN?

Nessa matéria do Instituto ESPE, instituição de ensino e pesqui-


sa dedicada à transmissão da psicanálise, falaremos sobre os textos
de Jacques Lacan em uma transcrição adaptada do episódio 4 (Por
onde começar a ler lacan?) do ESPEcast, podcast de Filosofia e Psi-
canálise do Instituto ESPE, apresentado por Daniel Omar Perez. Dis-
ponível no Youtube e no Spotify.

As leituras de Jacques Lacan (1901-1981) são sempre controversas.


A aproximação à obra desse autor, inclusive, é um tema de disputa,
devido ao seu modo de ensino, à sua escrita e aos seus conteúdos.
Uma das perguntas que a gente sempre se faz é: como começar a
ler Lacan? Por onde começar a estudar os textos de Lacan?

Como começamos? Geralmente, começamos por Sigmund


Freud. Lacan, inclusive, faz um retorno a Freud, um retorno que
também é polêmico. Seja como for, há uma pressuposição de lei-
tura: para ler Lacan, é preciso ler Freud. Não é preciso passar pela
obra completa deste autor, mas, à medida em que lemos Lacan,
precisamos nos remeter à leitura de Freud. E não só! Precisamos
nos remeter também à leitura de textos filosóficos, literários, do
teatro, da linguística, da análise do discurso, da geometria, da ló-
gica, da matemática etc.

I - Textos em psiquiatria

Lacan foi um médico que fez residência em psiquiatria. Ali-


ás, os primeiros papers do médico Dr. Lacan foram feitos nessa
área e sua primeira clínica foi literalmente uma clínica psiquiátri-
ca. Em algum momento de sua formação como psiquiatra, ele se
aproximou de outros grupos e círculos culturais. Há quem diga
que ele se aproximou da psicanálise pela via da literatura, pela via
do movimento surrealista. Isso tem algo de verdadeiro sim ou, em
termos, não é absurdo.

Lacan fez uma tese de doutorado que trata de questões da


psicose: Da psicose paranoica em suas relações com a persona-
lidade (1932). Ele encaminhou essa tese para Freud, que não deu
muita importância ao seu texto. De algum modo, o Dr. Lacan já
estava imerso no campo psicanalítico em 1932, antes dos seus tex-
tos propriamente psicanalíticos. Sua tese de doutorado foi uma
contribuição ao problema do tratamento dos conflitos psíquicos.

Podemos dizer que Lacan entrou na psicanálise por um


lado que era muito polêmico, no sentido de que havia a pergun-
ta se a técnica psicanalítica tinha um alcance que ia até o limite
das neuroses de transferência. Inicialmente, Freud entendia que
a psicanálise era uma técnica para as histerias. Depois, percebeu
que casos de neurose obsessiva também poderiam ser trabalha-
dos. Avançou, então, nas perversões e no tratamento de psicoses,
esquizofrenias. Ele fez uma análise de um texto literário Memó-
rias de um doente dos nervos, do Presidente Schreber, a auto-
biografia de um membro do poder judiciário que psicotizava e
apresentava fenômenos de delírio.

Havia a questão se era possível que a psicanálise avanças-


se no tratamento de psicoses e neuroses narcísicas. Parece que
Lacan estava insistindo em entrar na psicanálise por essa via.
Naquela época, a partir dos trabalhos de Donald Winnicott, o
movimento dos winnicottianos começou a oferecer outro tipo de
dispositivo clínico e teórico e outra abordagem das psicoses. A
questão das psicoses não era, portanto, só um problema de Lacan,
mas desse momento da história da psicanálise. Vários psicanalis-
tas buscavam técnicas e dispositivos que permitissem avançar no
tratamento de conflitos psíquicos relacionados ao fenômeno e à
estrutura da psicose.

II - O ensino de Lacan

Dito isso, vemos como Lacan entrou no movimento psi-


canalítico e quais foram os elementos que ele nos ofereceu em
nome próprio. Há uma série de textos “clássicos”, que, aliás não
são textos propriamente ditos. Quer dizer, eles se transformaram
em texto, mas originalmente eram o ensino de Lacan. O seu en-
sino é composto por 26 Seminários. Alguns foram estabelecidos
por seu genro, Jacques-Alain Miller, e já se encontram publicados
em francês, português e outras línguas. Ao todo, contam-se 26
Seminários mais um, o 27, que seria a carta de dissolução.

Lacan iniciou o seu primeiro Seminário em 1953. Nota-se


que ele terminou sua tese de doutorado, fez uma análise com Ru-
dolph Loewenstein entre 1932 e 1934. Esse seria seu ingresso no
campo psicanalítico. No entanto, seu ensino propriamente dito
começou a ser contado em 1953. A partir daí, todo ano teríamos
um Seminário:

1. Os escritos técnicos de Freud (1953-1954).

2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-


1955).

3. As psicoses (1955-1956).

4. A relação de objeto (1956-1957).


5. As formações do inconsciente (1957-1958).

6. O desejo e sua interpretação (1958-1959).

7. A ética da psicanálise (1959-1960).

8. A transferência (1960-1961).

9. A identificação (1961-1962).

10. A angústia (1962-1963).

11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964).

12. Problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965).

13. O objeto da psicanálise (1965-1966).

14. A lógica do fantasma (1966-1967).

15. O ato psicanalítico (1967-1968).

16. De um Outro ao outro (1968-1969).

17. O avesso da psicanálise (1969-1970).

18. De um discurso que não seria semblante (1971).

19a ...ou pior (1971-1972).

19b O saber do psicanalista (conferências em Sainte-Anne)


(1971-1972).

20. Mais, ainda (1972-1973).

21. Les non-dupes errent [Os não-tolos erram] (1973-1974).

22. RSI (1974-1975).

23. O sinthoma (1975-1976).


24. L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977).

25. Momento de concluir (1977-1978).

26. A topologia e o tempo (1978-1979).

27. Dissolução (1980).

É possível achar esses Seminários muito facilmente. Alguns de-


les já foram traduzidos e se encontram nas livrarias. As traduções
oficiais foram publicadas, no Brasil, pela Jorge Zahar, editora que,
atualmente, faz parte do Grupo Companhia das Letras. Os outros
podem ser encontrados na internet no formato PDF. Há um site
chamado http://staferla.free.fr/, que tem as versões taquigrafadas
(em francês) dos Seminários de Lacan.

Quando comparamos as traduções em português com a


versão do site Staferla, percebemos diferenças notáveis. Em um
trabalho minucioso, técnico e preciso de leitura dos textos laca-
nianos, é recomendável trabalhar com as traduções estabeleci-
das, porque foram realizadas por psicanalistas brasileiros muito
bem formados e com grande experiência; mas também é bom
manter a referência à versão francesa.

Esses Seminários eram aulas orais. No momento de lê-los,


devemos lembrar que não se trata de um texto escrito, mas de
um texto que apela para a voz, de uma experiência de transmis-
são em sala de aula. Lacan se reunia uma vez por semana durante
um período, geralmente o inverno, em Paris, e passava de um ano
para o outro dando seus Seminários.

Há uma versão em castelhano que circula na internet com os


textos do ensino de Lacan. É interessante que essa versão começa
com o Seminário 1 e termina com o Seminário 26 (mais o 27), mas
ela também inclui um “Seminário 0”: O mito individual do neuró-
tico (1952). Lacan teria dado esse Seminário anterior ao 1, colocado
aqui de um modo brincalhão como “Seminário 0”. Ele aparece,
de fato, em uma tradução em português publicada como mito
individual do neurótico ou poesia e verdade na neurose. Junta-
mente com ele, temos Do símbolo e de sua função religiosa (1954)
e Intervenção depois de uma exposição de Claude Lévi-Strauss na
Sociedade Francesa de Filosofia, “Sobre as relações entre a mi-
tologia e o ritual”, com uma resposta dele (1956). A intervenção
sobre Claude Lévi-Strauss é muito respeitosa e reverencial, coisa
rara quando Lacan se dirigia a outra pessoa. Isso também deno-
ta o trabalho de estudo que Lacan dedicava nessas épocas à et-
nologia, especialmente, aos trabalhos de Lévi-Strauss. Lacan era,
então, um psiquiatra que entraria na psicanálise a partir do surre-
alismo – um movimento artístico e literário que tenta elaborar as
questões do inconsciente pela via da arte. Contudo, ele também
entraria em uma interlocução com perspectivas filosóficas e com
uma profunda preocupação em torno de temas da linguística e
da etnologia, da antropologia estrutural, que Lévi-Strauss tinha
inventado aqui no Brasil fazendo seu trabalho de campo e traba-
lhando na USP. Este autor, depois, voltaria para Paris e acabaria
desenvolvendo sua teoria lá...

A transmissão oral de Lacan não termina por aí. Existem outros


textos que também são materiais dessa transmissão. Isso é algo
que devemos sempre levar em conta quando estamos lendo tex-
tos do ensino de Lacan. Eram falas que foram pensadas e realiza-
das como uma transmissão oral. A passagem da oralidade para o
texto escrito não ocorre sem confusão. Não é uma passagem sem
distorções. Falta a inflexão de voz, o tempo, o ritmo... a pontuação
é complicada. Portanto, devemos ter certa precaução naquilo que
entendemos como uso e apropriação do seu ensino, inclusive em
relação ao juízo que podemos fazer sobre tal ensino.

III - Escritos e Outros Escritos

Ao longo de seu ensino, Lacan também produziu diversos


escritos. Parte significativa dessa obra já foi compilada. Alguns
deles foram feitos intencionalmente para serem publicados em
revistas, livros, prefácios etc. Outros eram conferências. Há uma
primeira publicação muito importante: os Escritos (1966).

Destacamos os seguintes títulos encontrados nessa compila-


ção:

- O estádio do espelho como formador da função do eu: tal


como nos é revelada na experiência psicanalítica ([1936] 1949).

- O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada: um novo


sofisma (1945).

- Formulações sobre a causalidade psíquica (1946).

- Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953).

- O seminário sobre “A carta roubada” (1955).

- A coisa freudiana: ou Sentido do retorno a Freud em psicaná-


lise ([1955] 1956).

- Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956


(1956).

- A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud


(1957).

- A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958).


- A significação do falo (1958).

- De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psi-


cose (1959).

- Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente


freudiano (1960).

- Kant com Sade (1962).

Lacan deixou textos escritos desde antes do começo de seu


ensino. Em outros termos, ele era um transmissor da psicanálise
muito antes da publicação dos Escritos, em 1966. Ele se preocu-
pava em transmitir seu ensino, se preocupava em publicar pon-
tualmente em algumas revistas psicanalíticas e livros. Contudo,
podemos afirmar que a sua obra começa nos Escritos.

Há uma segunda compilação, que são os Outros escritos


(2001), coletânea publicada postumamente, na ocasião do cente-
nário de seu nascimento. Quase todos os textos que compõem
essa segunda coletânea foram publicados quando Lacan ainda
era vivo. Entre eles, destacamos :

- Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de


análise de uma função em psicologia (1938).

- Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol


V. Stein (1965).

- Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da


Escola (1967).

- O engano do sujeito suposto saber (1967).


- Radiofonia: resposta a sete perguntas formuladas pelo Sr. Ro-
bert Georgin para a radiodifusão belga (1970).

- Ato de fundação (1971).

- Lituraterra (1971).

- O aturdito (1972).

- Televisão (1974).

IV – Textos avulsos

Em resumo, temos os Seminários, os Escritos, os Outros es-


critos e uma série de textos que não ficaram em nenhum deles
como:

- O simbólico, o imaginário e o real (1953) e Introdução aos no-


mes do pai (1963).

- O triunfo da religião (1974) precedido de Discurso aos católicos


(1960).

- Meu ensino (1967/1968).

- Estou falando com as paredes (1971-1972) é uma entrevista,


uma conversa... nesse livro, está incluído também Saber, ignorân-
cia, verdade e gozo e Da incompreensão e outros temas.

Muitos desses textos foram ou estão sendo traduzidos para


o português. Ultimamente, temos notícias de que alguns serão
dados a público, quando Jacques-Alain Miller, herdeiro do espó-
lio de Lacan, considerar adequado... Esses textos inéditos depen-
dem da sua decisão para serem divulgados. Encontramos alguns
outros em pequenas publicações quase “clandestinas” ou “secre-
tas”. A Escola Letra Freudiana publicou, por exemplo, a tradução
de uma intervenção de Lacan chamada A terceira (1974).

Se procurarmos, encontraremos outros textos que não são exa-


tamente aqueles que vimos na obra estabelecida. A obra estabe-
lecida seria, então, os textos em psiquiatria, o ensino, os Escritos
e os Outros Escritos e os textos avulsos. A partir daí, podemos
encontrar diferentes publicações mais ou menos “secretas”, po-
deríamos dizer, parafraseando Jorge Luis Borges.

V – Por onde começar a ler Lacan?

Por onde começar a ler Lacan? Talvez a melhor forma seja


a mesma que nos temos em relação a “Por onde começar a ler
Freud”. Isto é, começar por aquilo que mais dói. Começar por
aquilo que faz sintoma. Começar por aquilo que nos preocupa e
nos interessa. Se alguém está interessado em questões de ética,
por exemplo, é melhor recorrer ao Seminário 7: a ética da psica-
nálise. Se alguém está interessado na angústia, é melhor recorrer
ao Seminário 10: a angústia, e por aí vai. Existem vários modos de
entrada em sua obra.

Frequentemente, esses textos podem ser complicados para


alguém que não tem uma forma de trabalho ou um “treino” para
ler Lacan. Às vezes, sugerimos certos textos como “iniciais”, sobre-
tudo aqueles que indicam a relação de Lacan com a linguagem,
pois é justamente aí que ele pensou a psicanálise e reformulou
seus elementos, dando maior destaque à questão da linguagem.
O texto a que me refiro e que muitas vezes se coloca como um
texto inicial é “Função e campo da fala e da linguagem em psi-
canálise”. Existe também o Seminário sobre “A carta roubada”,
que é a abertura dos Escritos de Lacan. Devo confessar que o pri-
meiro texto com o qual comecei foi a “Direção do tratamento e os
princípios de seu poder”. Esse foi o texto com o qual comecei a ler
Lacan há muitos anos.

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