Você está na página 1de 6

1

As regras da interpretação
(Colette Soler – ligeiramente modificado por Luis Flávio Couto)

1. Antes de chegar ao meu propósito exato desta noite, preciso enquadrar um pouco a questão e
lembrar primeiramente que a interpretação não é a única função do analista. Por isso não acho inútil
reescrever a fórmula do discurso analítico:
a$
--- ---
S2 S1
pela qual Lacan formaliza o laço que é a análise, e que tem a vantagem de visualizar o que chamarei a
função desdobrada do analista.
a
---
S2
2. Desde os primórdios de seu ensino, os traços deste desdobramento, que não data dos anos setenta,
são observados em Lacan. O termo pelo qual ele comenta a posição do analista como objeto a é um
termo preciso, silêncio: isto em 1975, no seu pequeno texto intitulado Improvisação sobre o discurso
analítico [Impromptu sur le discours analytique], (Scilícet, 6/7). Evidentemente, esta é uma função,
que primeiramente se reduz a ser aí, que não é a interpretação. Mas comentá-la longamente não é meu
objetivo desta noite.
3. Poderíamos situar o analista entre dois pólos: onde? Primeiramente no seu consultório; mas o
consultório, é apenas a imagem de outra coisa. É que o analista é alguém que está estabelecido num
domicílio, por alguma coisa que vem do analisando e que se apresenta, da forma mais simples e mais
visível, como demanda. Esse ser aí (être l’a), Lacan acabou por escrevê-lo ser o a, isto é, o a
[minúsculo] – desenvolvimento que afasto, mas que é necessário para enquadrar esta intervenção
sobre a interpretação.
4. A interpretação intervém a nível desse saber (S2) escrito no lugar da verdade. Baseio-me para isto
no que diz Lacan no Avesso da psicanálise [L’envers de la psychamalyse]: “O saber enquanto verdade
define o que deve ser a estrutura de uma interpretação”. Sublinho primeiramente, para justificar meu
título, esse lado imperativo da fórmula As “regras da interpretação”, também é uma fórmula que tomei
emprestada de Lacan, já que na p. 601 dos Escritos, em A direção da cura ele observa: “não
fornecerei as regras da interpretação, não que isso seja impossível mas porque seria necessário fazer
muitas considerações prévias”. Portanto, a interpretação deve ser regulada.
5. Observem aliás, que eu abordo a questão colocando a interpretação no singular (poderíamos
certamente definir tipos, modalidades de interpretação). Aliás é isso que faz Lacan a maior parte do
tempo e, especialmente nesse grande texto sobre a interpretação que é O Aturdido (Scilicet 4: 5-52)
[L’Étourdit], ele põe a interpretação no singular e a distingue assim do que procede do analisando:
seus ditos, no plural. Ele não fala dos “ditos” do analista, mas do “dizer” da interpretação, no singular.
6. Tentarei esta noite dar destaque a algumas observações sobre esta fórmula absolutamente
essencial: “A interpretação concerne à causa do desejo”. Ele antecipou essa fórmula - ele lembra disso
no Aturdido - a partir do Seminário sobre “A identificação”, em 1961-1962; desde então sempre
voltando a ela. Como entendê-la? Esta fórmula produz confusões, do mesmo modo que aquelas que
ele adiantara, no início do seu ensino, sobre a interpretação enquanto significante: elas produziram, por
parte de alguns analistas, um uso do jogo significante na técnica analítica que não se assemelha em
nada à prática de Lacan. E esta outra fórmula: “A estrutura de uma interpretação é o saber no lugar da
verdade.” - tenho algumas razões para pensar assim – poderia bem produzir confusões idênticas –
antes, análogas.
7. Lacan, portanto, a partir de 1960, diz: “A interpretação concerne à causa do desejo”. Por outro
lado, temos a outra fórmula: “A estrutura de uma interpretação é o saber no lugar da verdade”. Aqui,
um ajuste é necessário.
2

8. Observem que todos os exemplos da interpretação que Lacan dá passam pelo jogo significante.
Tentemos primeiramente nos aproximar da idéia de que a estrutura de uma interpretação é o saber no
lugar da verdade, para desembocar no problema: em que isso tocaria ao objeto a ?

A interpretação entre o enigma e a citação


9. Em 17 de dezembro de 1969, em “O avesso da psicanálise”, quando Lacan antecipa a idéia que a
estrutura da interpretação é o saber no lugar da verdade, ele próprio tenta se fazer compreender – o que
fazia freqüentemente, contrariamente ao que se imagina –, e eis o que ele disse: qual poderia ser o tipo
de enunciado que responderia a esse modelo? Pois bem, ele o situa “entre o enigma e a citação”. O
enigma consiste em colocar uma enunciação e não um enunciado. O enigma é a presença da
enunciação, de uma enunciação que não é de ninguém e que não corresponde a nenhum enunciado de
saber. Dito de outro modo, o enigma é quase a verdade sem saber - ou, se se quer, a verdade cujo saber
está latente, ou suposto. O ouvinte tem, por exemplo, como Édipo [frente ao enigma da Esfinge], de
produzir, ele próprio, o enunciado. Vemos bem no enigma o convite a produzir – [a produzir] o quê?
isto resta [permanece] a precisar [a ser tornado mais preciso] – ou seja, aquilo que se pode esperar de
uma interpretação. [O enigma nada mais é do que] um convite latente. Quanto à citação, poderia se
estranhar achá-la aqui. A citação é quase o inverso, é mais um enunciado de saber, saber afirmado,
excetuando que o enunciado que vocês citam vocês se referem ao nome de um autor. E por esta
referência, com efeito, a citação introduz a dimensão da enunciação de um enunciado latente que ela
mesma faz vir a luzi.
10. Portanto, do lado da verdade com um saber latente – está o enigma; do outro, a citação – seja uma
enunciação latente, seja o saber como verdade. Nos dois casos há semi-dizer. “Já a interpretação é com
freqüência estabelecida por um enigma. Enigma colhido, tanto quanto possível, na trama do discurso
do psicanalisante, e que você, o intérprete, de modo algum pode completar por si mesmo, nem
considerar, sem mentir, como confissão.”ii Assim, a interpretação [é estabelecida] quando “um
enunciado é colhido na trama do discurso do analisando”. Lacan não considera, portanto, que o
analista deva interpretar com seus próprios significantes esse enunciado. Qualquer que seja a técnica
empregada, se [esse enunciado] for achado, [ele] deve ser de algum modo posto entre aspas [pelo
analista] e isso leva ao enigma. Dito de outro modo, o analista faz surgir alguma coisa que é mais do
que é dito, enunciado. Ele introduz – este procedimento é aditivo – algo mais.

O equívoco
11. Vamos ao Aturdido (L’Étourdit), a essas duas páginas sobre a interpretação: Lacan escreve aí que
a interpretação joga com “o equívoco o qual se inscreve ao lado de uma enunciação”. A interpretação
procura a enunciação que se inscreve pelo equívoco. O equívoco é triplo: a homofonia, a gramática e a
lógica
- Ao nível da homofonia, o equívoco é a ambigüidade homofônica, isto é, o que a
ortografia torna impossível. O que a ortografia bordeja, a homofonia o deriva. Lacan nos
fornece exemplos: deux (dois), e d’eux (deles); faillir (falir) e fallût (devia), sembler (semear,
semelhar) e s’embler (que conduz ao verbo embler) semear-se, assenhorar-se), paraitre
(aparecer) e parêtre (parecer), etc. - onde ele joga com o “cristal” lingüístico, isto é, com o fato
que a homofonia difrata as significações e, portanto, introduz automaticamente, a partir desta
desmultiplicação, uma dimensão que chamarei de interrogativa;
- Do lado da gramática, o mínimo de intervenção interpretativa é “eu não to faço dizer”.
Em que é mínimo? Pelo duplo sentido, a ambigüidade portanto. Com “eu não to faço dizer” o
ouvinte não sabe se eu digo: “você disse”, ou: “eu não to soprei”, já que eu digo os dois;
- No plano da lógica, o equívoco do paradoxo lógico permanece sem dúvida o ponto
mais difícil de ilustrar.
12. Nos três casos, o equívoco durante um tempo - tempo de suspensão, mesmo se pontual -, faz
vacilar o indecidido, que só se precipitará em certeza pela resposta que o sujeito produzirá, e que
decidirá sobre o dito da interpretação. Isto supõe, evidentemente, a transferência. Não há interpretação
3

válida sem transferência. A interpretação não opera sem o saber suposto. Acontece que analistas ou
analisandos, por entusiasmo sem dúvida, tentam levar a interpretação para um campo onde não há
saber suposto; então, evidentemente, ela falha em todos os lances e cai no ridículo.
13. Portanto, não há interpretação sem saber suposto, mas é preciso acrescentar imediatamente que a
interpretação nunca é o enunciado de um saber. O saber fica aí em reserva. O melhor termo é talvez
alusão. Lacan o emprega no fim de “A direção da cura”: “a virtude alusiva da interpretação” (p. 648),
e ele a figura pelo dedo levantado de São João, de Leonardo, que apenas indica. Esta idéia no ensino
de Lacan, que a interpretação joga com o equívoco, foi facilmente transmitida; talvez não quanto ao
seu manejo, mas quanto à tese. Permanece entretanto a pergunta: o que é que regula este uso? Já que
com este tipo de exemplo poder-se-ia imaginar um analista impetuoso que fizesse jogos de palavras
sobre jogos de palavras, que jogasse com a homofonia, com a gramática, introduzindo deste modo
uma confusão completa numa cura.

Não interpretar em nome do saber


14. Citemos aqui uma observação de Lacan, página 48 do Aturdido (L’Étourdit): “Sustento que todos
os lances são permi6dos” -quando se trata de jogar com o equívoco, pelo fato de que qualquer um que
esteja ao seu alcance (ao alcance dos lances do equívoco significante) sem poder se reconhecer aí, são
eles que nos jogam, salvo os poetas que fazem cálculo, e que o psicanalista se serve aí onde lhe
convém - e Lacan precisa - “onde é conveniente para seu fim”. Esta é a questão: onde lhe convém,
quando lhe convém, se servir do equívoco significante? Lacan nos deu um exemplo de má
interpretação, de uma interpretação que precisamente não é uma - no sentido do equívoco - pelo que
ela opera em nome do saber - já que intervir a nível do saber suposto, não é intervir em nome do saber.
O exemplo desta interpretação que seria um enunciado de saber a que ele considera falha, se acha no
Discurso à E. F. P” (Discours à E.F.P), página 14 de Scilicet:2/3. Ela manifesta o que ele chama “a
incapacidade do psicanalista”. Trata-se de uma interpretação onde justamente o objeto parece
concernido, tão concernido que ele é o objeto de um saber. Ele diz, para qualificar esta incapacidade.
“ela se manifesta por exemplo frente ao assédio do obsessivo de ceder à sua demanda de falo, ao
interpretá-lo em termos de um coprófago e deste modo fixá-lo ao seu excremento, a isso que faz,
enfim, falta ao seu desejo”. É uma interpretação que, frente a insistência da demanda, responde por um
saber sobre o objeto: nomeando aqui o objeto. A interpretação em termos de “coprofagia” é falha, já
que é uma forma de dizer ao obsessivo: você se empanturra com sua merda. Não que isto seja falso.
Na oportunidade, podemos mesmo escrevê-la com a fórmula da fantasia ($ <> a). Mas, ao nomear
deste modo o objeto, só se faz consolidar a fantasia sobre a vertente onde ela não é sustentáculo mas,
limite do desejo. Dito de outro modo, ratifica-se como solução do desejo isto que chamarei seu
casamento com um objeto de demanda, o que, justamente, não convém para o fim da análise. É faltar
ao objeto causa, causa do desejo, que antes quer dizer, para ficar na mesma metáfora, divórcio. É faltar
ao desejo do paciente e à tarefa do analista. A psicanálise não opera como ciência do objeto. É, pois,
de outro modo que o objeto está presente na interpretação enquanto equívoco.
15. No Avesso da psicanálise (L’envers de la psychanalyse), falando do discurso universitário, Lacan
faz uma espécie de amálgama entre a criança educada e o estudante padecendo suas “humanidades”,
como se dizia antigamente. Podemos acrescentar: uma certa posição do analisando. Ele faz esta
observação divertida: se é a partir do saber que vocês visam o objeto, que é que resta a fazer a ele, a
esse infeliz que é apanhado aí nesse lugar? E responde lindamente: ele late. Quer dizer que não lhe
resta mais que se produzir como protesto do sujeito dividido. Esta interpretação equívoca incide sobre
o objeto causa, mas não fala dele, não faz nenhuma pregação a seu respeito. Ela leva luz ao ser-que-
falta ao sujeito-suposto-saber. Neste sentido, toda interpretação atinge o sujeito-suposto-saber. Eu
disse: não há interpretação sem sujeito-suposto-saber, mas a interpretação também lhe atinge.
16. Primeiramente, ela enceta a suposição de que haveria um sujeito do saber, no sentido de um
sujeito sabendo esse saber. Ela procura o sujeito aí onde há saber, certamente, mas não há um sujeito
para saber esse saber. Dito de outro modo, ela acentua a separação, a distância, a oposição entre a
posição do sujeito e a posição do saber. A interpretação - operando com a sobredeterminação que faz
surpresa - não leva o sujeito a juntar saber, ela provoca o sujeito a medir sua separação do saber. Mas,
4

inversamente, ela designa, mobiliza, a falha do saber na medida em que deixa ao sujeito sua parte na
elaboração do saber.

A resistência à interpretação
17. Este é um ponto que mereceria desenvolvimento mas, antes eu queria introduzir a noção de
resistência á interpretação. Ela se manifesta quando o sujeito está particularmente agarrado a uma
convicção de saber.
18. Eu encontro o exemplo num texto do qual já tive a ocasião de falar e que Éric Laurent me havia
indicado, aquele onde Guntrip dá conta de sua análise com Ferdem e Winnicott, a que se encontra na
Revista Internacional de Psicanálise (Revue Internationale de Psychanalyse) de 1975, no. 2. Aí se vê
Guntrip chegar à análise com uma certeza concernente ao traumatismo que causou sua doença e não
abandoná-la do início até o fim. Ele chegou com um saber que diz que a causa de suas desgraças é sua
malvada mãe, e todo o seu trabalho consiste em fazer avalisar esta certeza por seus dois analistas. Ao
tempo em que ele os usou, ambos, justo no momento da morte de Winnicott ele faz dois sonhos, que
supõe, provarem, que lhe permitem a publicação deste artigo cujo título poderia ser “C.Q.D”. Quer
dizer que, trinta anos depois ele mantém o saber fixado, não suposto mas perfeitamente enunciado. A
resposta do sujeito - categórica - ao enigma de sua doença não mudou. Eis aí um tipo de resistência
que certamente cria problemas técnicos. Jean Jacques Gorog, na época de sua conferência na IRMA,
em 28 de novembro, evocava a carta de um analista a uma paciente onde dizia: por que você precisa
crer que sua mãe não lhe amou? Pode-se supor que o analista tentava aí, desastradamente por certo,
abalar uma fixação de saber do mesmo tipo.

Suspender a resposta
19. A interpretação, justamente, atinge a identificação do saber e tem, de preferência, por efeito, que
o sujeito não se reconheça aí. Quando o sujeito se reconhece no que vocês lhe dizem, podem estar
seguros que isto não é uma interpretação. A interpretação divide: quer a reação seja o riso, o estupor, a
indignação ou outra coisa Ela não firma as identificações. Ela faz surgir um: que é que isto quer dizer?
Que também pode-se bem modular em: que é que eu queria dizer dizendo isto? ou: que é que ele quer
me dizer? Ela presentifica o “Che vuoi?” mas o “Che voui?” sob sua forma de x, sob sua forma de
desconhecido. O efeito obtido é pois o inverso do primeiro exemplo que tomei, que consiste em dar a
resposta: você quer sua merda A interpretação é uma resposta cujo efeito é mais [o] de suspender a
resposta Dito de outro modo, o objeto aí está concernido certamente, mas enquanto esvaziado. Assim,
ao encetar o sujeito-suposto-saber, a interpretação atinge também a fantasia, a sutura que ela constitui.
“Esvaziamento” é um termo que Lacan utiliza precisamente para situar esta questão do objeto no
discurso analítico. Esvaziamento, e não produção.
20. Nesse momento, pode-se dizer que em relação a este desejo como x, a interpretação, que
certamente visa a solução, opera contudo por um efeito de suspensão. Suspensão de que ? Da solução;
e isso pelo tempo que for preciso, e repetitivamente, para que o analisante elabore a última resposta
Ela se inscreve portanto em falso contra tudo o que deveria preencher o lugar do objeto causa, bem
longe de nomeá-lo ou de dizer o que ele é. Mas, como eu disse no início, isso não é tudo que o analista
tem a fazer. Uma última observação: a interpretação não é para manejar em qualquer momento. Freud
sem dificuldade antecipou - e Lacan o retoma, especialmente no seminário XI - que a interpretação é
correlativa da resistência Isto é bem coerente com o que eu sublinhava ao dizer que o analista joga
com a interpretação cada vez que isso resiste ao efeito de divisão, cada vez que a fenda do sujeito
acharia meio de se colmatariii. Nesses momentos precisos a interpretação empenha-se em operar,
digamos como colofãoiv da enunciação.
Fim do texto As regras da interpretação
5

Enigma e citação
(Lacan, Seminário 17, lição 17/12/69
a$
--- ---
S2 S1
1. O que nos ensina a posição de S2 no lugar da verdade?
2. O que é a verdade como saber? Seria o caso de dize-lo: - Como saber sem saber?
3. É um enigma. Esta é a resposta - é um enigma -, entre outros exemplos. E vou dar-lhes um
segundo.
4. Os dois têm a mesma característica, que é o próprio da verdade -a verdade, nunca se pode dizê-la
a não ser pela metade. A nossa querida verdade da imaginária de Épinal (cerâmica ingênua que
representa “A Beleza”, “A Verdade”, etc), que surge do poço, é sempre um corpo.
5. Na Itália, numa das conferências que não sei por que tinham me pedido, e que enfrentei
mediocremente, bem sei, fiz menção à Quimera, onde se encarna precisamente o caráter original do
discurso da histérica. E a Quimera propõe um enigma ao homem Édipo [Lacan se equivoca, pois trata-
se da Esfinge], que talvez já tivesse um complexo, mas não certamente aquele ao qual haveria de dar
seu nome. Ele lhe responde de uma certa maneira, e é assim que se torna Édipo.
6. À pergunta da Quimera, poderia ter dado muitas outras respostas. Por exemplo, poderia ter dito: -
Duas patas, três patas, quatro patas, é o esquema de Lacan. Isto teria dado um resultado
completamente diferente. Também poderia ter dito: - É um homem, um homem quando criança de
peito. Aí, começou com quatro patas. Prossegue com duas, retoma uma terceira e, no mesmo
movimento, sai correndo como uma bala, direto para o ventre de sua mãe. Isto é o que de fato se
chama, com bons motivos, complexo de Édipo.
7. Creio que vocês vêem o que aqui quer dizer a função do enigma é um semi-dizer, como a
Quimera faz aparecer um meio-corpo, pronto a desaparecer completamente quando se deu a solução.
8. Um saber como verdade - isto define o que deve ser a estrutura do que se chama uma
interpretação.
9. Se insisti longamente na diferença de nível entre a enunciação e o enunciado, foi justamente para
que a função do enigma ganhe sentido. O enigma é provavelmente isso, uma enunciação. Encarrego
vocês de convertê-lo em enunciado. Virem-se como puderem - como fez Édipo -, vocês sofrerão suas
conseqüências. Eis do que se trata no enigma.
10. Mas há outra coisa, na qual não se pensa, em que toquei, de raspão, uma vez ou outra, mas que,
para dizer a verdade, me concernia o bastante para que não me fosse fácil falar dela tranqüilamente.
Chama-se a citação.
11. Em que consiste a citação? No decorrer de um texto em que você avança mais ou menos bem, se
você está, digamos, nos pontos certos da luta social, de repente e cita Marx, e acrescenta - disse Marx.
Se você é analista, cita Freud a mete: - disse Freud. Isto é capital.
12. O enigma é a enunciação - e virem-se com o enunciado. A citação é - eu exponho - o enunciado e,
quanto ao restante, trata-se do sólido apoio que encontram no nome do autor, que deixo ao encargo de
vocês. Assim está muito bem, e isto nada tem a ver com o status mais ou menos vacilante da função do
autor.
13. Quando se cita Marx ou Freud - não foi por acaso que escolhi estes dois nomes -, isto se dá em
função da participação em um discurso pelo leitor suposto. À sua maneira, a citação é também um
semi-dizer. É um enunciado sobre o qual se lhes indica que só é válido na medida em que vocês já
participam de certo discurso, estruturado, no nível das estruturas fundamentais que estão lá no quadro.
Eis o único ponto que faz com que a citação - podia eu explicá-lo até agora? -, o fato de que se cite ou
6

não um autor, possa ter em segundo grau uma importância. Vou explicar-lhes isto, a espero que não
levem a mal, porque é um exemplo familiar.
14. Suponham que num segundo tempo alguém cite uma frase indicando onde ela está, o nome do
autor, por exemplo o sr. Ricoeur. Suponham que se cite a mesma frase, colocando-a sob o meu nome.
Isto não pode absolutamente ter o mesmo sentido nos dois casos. Espero que entendam com isto o que
está em questão no que chamo de citação.
15. Pois bem, esses dois registros, na medida em que participam do semi-dizer, eis o que dá o meio -
e, por assim dizer, o título - sob o qual a interpretação intervém.
16. A interpretação - aqueles que a usam se dão conta - é com freqüência estabelecida por um
enigma. Enigma colhido, tanto quanto possível, na trama do discurso do psicanalisante, e que você, o
intérprete, de modo algum pode completar por si mesmo, nem considerar, sem mentir, como confissão.
Citação, por outro lado, às vezes tirada do mesmo texto, tal como foi enunciado. Que é aquele que
pode ser considerado uma confissão, desde que o ajuntem a todo o contexto. Mas estão recorrendo,
então, àquele que é seu autor.
17. O que impressiona, com efeito, nessa instituição do discurso analítico que é a mola-mestra da
transferência, não é, como alguns pensaram ter escutado de mim, que o analista, seja ele colocado na
função do sujeito suposto saber. Se a palavra é tão livremente dada ao psicanalisante - é justamente
assim que recebe essa liberdade -, é porque se reconhece que ele pode falar como um mestre, isto é,
como um estouvado, mas isto não dará resultados tão bons quanto no caso de um verdadeiro mestre,
de quem se supõe que conduz a um saber - um saber do qual se torna penhor, refém, aquele que aceitar
de antemão ser produto das cogitações do psicanalisante, ou seja, o psicanalista - posto que, como tal
produto, está ao final destinado à perda, à eliminação do processo.
18. O que significa que ele possa assumir esse lugar que, no nível do discurso do senhor, é o do
senhor? Já no simples funcionamento das relações entre o senhor e o escravo, fica claro que o desejo
do senhor é o desejo do Outro, pois é o desejo que o escravo predispõe.
19. É uma outra questão saber de que o analista toma o lugar para desencadear o movimento de
investimento do sujeito suposto saber - sujeito que, por ser reconhecido como tal, é fértil de antemão,
em seu recanto, daquilo que chamamos transferência.
20. Seguramente é muito fácil ver passar por aqui a sombra da satisfação de ser reconhecido. O
essencial não está aí, supor, o sujeito, saber o que faz ainda mais do que a histérica, o que é a verdade
da conduta, mas não o próprio ser.
21. Ele, o analista. se faz de causa do desejo do analisante. O que quer dizer essa coisa estranha?
Devemos considerá-la um acidente, uma emergência histórica, que teria surgido no mundo pela
primeira vez?
22. Antecipando a tomada de uma via que nos arrastará, talvez, por um longo desvio, vou apenas
assinalar que essa função já apareceu, e que não é por nada que Freud recorria de preferência a tantos
pré-socráticos, Empédocles entre outros.
17 DE DEZEMBRO DE 1969

i
Nesta frase, no original ao invés de enunciado, encontra-se enunciação, o que me parece um equívoco da
transcrição da conferência (N.T.).
ii
Lacan (17/12/69:35) O Seminário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992 (v. 17).
iii
Colmatar: preencher lacunas ou brechas.
iv
Colofão: inscrição no fim de manuscritos ou de livros impresso, com indicação sobre a feitura do volume e o
nome do copista ou do leitor, a data do acabamento, etc.

Você também pode gostar