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Agente: revista de psicanálise/Esc ola Brasileira de Psicanálise / Seção Bahia. – a.1, n.1
(jun./1994) – . – Salvador: EBP/ BA , 1994 – .
v.
CDU: 159.964
CDD: 150.195
Bibliotecária responsável: Andrea Teixeira CRB-5/1770
SUMÁRIO
7 Editorial
Marcela Antelo
11 Quando o hábito faz o eu: o corpo na psicose
Augustin Ménard
26 Nas psicoses os órgãos falam sozinhos
Gustavo Dessal
40 Maneira de uma psique sem corpo
Guillermo Belaga
50 Corpo e histeria
Fátima Sarmento
63 Leitura e construções
Bernardino Horne
68 O corpo ao final de uma análise
Reinaldo Pamponet
80 O corpo na experiência da análise
Silvia Salman
100 Em corpo, mais e mais, ainda
Carla Fernandes
113 Sobre as especificidades das estratégias no autismo
Alice Munguba Monteiro
121 O corpo se anima
Marcela Antelo
127 A dublagem e o ventríloquo: figuras da fala no último ensino de Lacan
Luiz Felipe Monteiro
Bordas
137 O corpo estranho: orgânico, demasiadamente orgânico
Paula Sibilia
145 Dramaturgia, corpo e representação
Cleise Furtado Mendes
Leituras
154 Ecos do que estou tocando amanhã
Rogério Barros
161 Colofón da FIBOL
Tânia Abreu
164 Apresentação dos Autores
Bahia
Editorial
Marcela Antelo
Augustin Ménard
Abstract: It becomes necessary to give the subject’s body its true place bringing to life
the distinction between the imaginary body, the symbolic body and the real body which
the present clinical case reveals in an exemplary way. The association between the I and
the habit which dresses it demonstrates the inadequacy of the simplistic reduction of the
body to a specular image.
Keywords: Body. Psychose. Suppléance. Image.
Eu percebi que consistir queria dizer alguma coisa que era preciso
falar de corpo, que há um corpo do imaginário, um corpo do sim-
bólico – é alíngua e um corpo do real do que não se sabe como ele
sai.
(Lacan, 1976-1977)
1 Publicado em MÉNARD, Augustin, Voyage au pays des psychoses. Ce que nous enseignent les
psychotiques et leurs inventions, Champ Social Éditions, 2008. pp-59-71. Traduzido por Célia
Salles com a amável autorização do autor.
como seu primeiro patrão ensinou a ele próprio. Nós aprendemos assim
que este último fez para ele o papel de função de Ideal do Eu, assim
como o avô fotógrafo lhe ensinou seu primeiro ofício. Ele foi marcado e
ferido em seu corpo muito cedo. Seu pai não o reconheceu, porque ele
tinha olhos azuis (o farmacêutico passou por aqui, dizia ele).
Quando criança, ele era obeso e seus colegas ‘caçoavam’ dele, der-
ramando tinta em cima dele enquanto tomava banho (em um lapso,
ele diz cinzeiro em vez de tinteiro). Tendo aprendido que o calor faz
derreter as gorduras, ele encontra a solução para vencer sua obesidade:
‘Borrifar-se de água-de-colônia (o único álcool à sua disposição) e co-
locar fogo para derreter a gordura.’ Ele não toca no tema da dor e das
queimaduras resultantes. Mais tarde ele sofrerá um acidente de moto do
qual ele conserva uma claudicação. Nesse acidente sua amiga morre. Ele
não manifesta nenhuma emoção. Sua conversa é salpicada de neologis-
mos e de lapsos não percebidos como tal.
Ele suporta muito mal a interrupção de seu discurso, em cuja cro-
nologia ele se segura. Quando intervenho uma primeira vez para pedir
uma precisão, ele a concede e continua: ‘O doutor me desvia de meu
caminho’. É o que retomo de forma irônica pouco depois: ‘Eu vou então
desviá-lo do caminho direito’, para saber mais sobre o que para ele faz
sintoma. Eu soube, então, que várias vezes ele desmoronou e foi hospita-
lizado em psiquiatria. Interrogado sobre esses episódios, ele só manifes-
ta muito pouco afeto. Nem angústia, nem tristeza ainda que o diagnós-
tico médico seja de depressão. O que ele diz: ‘O mundo desabou’.
O início, o desencadeamento, foi assim: ele era vendedor, apreciado,
ele fazia aumentar rapidamente o lucro de cada novo empregador, era
sempre o outro que vinha procurá-lo porque os outros sabiam que ele
era ‘a galinha dos ovos de ouro’, aquele que permitia ganhar dinheiro. A
cada vez, as coisas se produziam da mesma forma, quando a lua de mel
cessava e o patrão não apreciava mais seu justo valor, ele desabava em
ocasiões de críticas leves, por ocasião de uma crítica tudo se desenoda-
va, desligava-se.
Ele se diz homossexual, vive com seu ‘filhote’, ele nos diz que ele ‘o
fez’, sem poder notar em nada o que esse vocábulo evoca de filiação.
Não é necessário ser um grande clínico para afirmar a psicose. A pa-
lavra é a coisa, o calor faz derreter as gorduras, “eu me borrifo de álcool e
eu risco um fósforo”. Os neologismos, a ausência de valor metafórico das
palavras – em particular quando ele faz um lapso – testemunham-no. O
uso metonímico do tempo da narrativa confirma. O desencadeamento é
evidente. Quando sua imagem não é mais amável ao olhar do outro que
ele coloca em posição de Ideal do Eu, o próprio eu desaba. Inversamen-
te, todas as vezes que um novo patrão vem procurá-lo em razão de seu
alto valor de vendedor qualificado, ele recupera seu Eu Ideal, e isso pode
até se acompanhar de certa elação de tipo hipomania, que se manifesta
por uma hiperatividade, e não por uma euforia.
Ao contrário, o diagnóstico psiquiátrico fracassa em cernir o diag-
nóstico. Depressivo? Não se apresentam os afetos que acompanham a
depressão. Maníaco-depressivo? Ainda menos, apesar dos movimentos
de elação periódicos que eu acabo de assinalar. Paranóico? Existe a su-
perestimação do eu, pelo menos nos períodos fastos ele fica muito satis-
feito de si próprio, apesar de seu fracasso atual. Contudo ele fracassou
em construir um delírio megalomaníaco, apesar de seu lado demiurgo,
ele pode fazer de todas as peças um homem, mas lhe falta o aspecto
projetivo, a localização do gozo no Outro. Se ele não se acusa, ele não
acusa o outro, e quando ele é empurrado a dar queixa de seu último
patrão na Justiça do Trabalho, ele consente, mas não sustenta o procedi-
mento. O fracasso da solução paranóica não o faz mesmo assim cair nas
profundezas da dissociação e incoerência esquizofrênicas. A psiquiatria
clássica se sai com o diagnóstico de parafrenia que, apesar de sua per-
tinência, é frequentemente uma etiqueta usada demais para agrupar os
inclassificáveis, tendo no interior das psicoses o lugar que os borderlines
ocupam entre neurose e psicose, ou seja, aquele de nossa ignorância.
De nosso lugar, colocamos de preferência a questão: o que o segu-
ra sendo que tudo vai bem para ele? Em meu trabalho de construção,
3 N. T. A tradução para o português como despossuída perde a junção com a palavra roupa; em
francês, o verbo dérober vem de roupa (la robe).
4 N. T. Em francês, real=réel, a palavra réelize não existe em francês, para dizer realizado se diz
réalisé, entendeu-se que seria uma forma de dizer o real realizado.
5 É o que J-A. Miller (1999-2000/2004) nos ensinou em seu curso intitulado Os usos do lapso e
que ele escreve:
i(a) e não i(a)
–––––– ––––
Vazio a
1 O corpo imaginário
Todo o mundo sabe que Lacan fez sua entrada na psicanálise com
seu famoso estádio do espelho. O que ele demonstra é a pregnância do
imaginário sobre o real. Ele se apoia nos trabalhos de psicologia com-
parada, em particular os de Köhler. Ele demonstra quanto a perfeição
da imagem, entre os seis e dezoito meses, vem fornecer uma imagem
do corpo vindo responder ao despedaçamento primitivo ligado a uma
insuficiente maturação biológica na criança do homem. Essa descoberta
da imagem de si no espelho se acompanha de uma jubilação intensa,
que não é outra a não ser o gozo investido no imaginário.
Em seguida, ele distingue o que é comum em certos animais, seja o
comportamento etológico (pombas e grilos peregrinos), enquanto que a
potência do que ele nomeia imago comporta efeitos sobre o organismo
vivo e, ao mesmo tempo, ele os distingue tanto que a resposta a uma
impotência vital é sob a dependência do banho de linguagem no qual é
mergulhada a criança, porque ainda é necessário que um adulto, quer
seja a mãe, quer seja outra pessoa, apresente-a diante do espelho e lhe
designe sua imagem como tal. Se Lacan insistiu tanto sobre o caráter
alienante dessa identificação que faz que a imagem de nosso corpo, que
é aquela que nos envia o outro, é para sublinhar uma falta instintual no
pequeno homem. Todas as partes do corpo são, no entanto, ligadas pelo
sistema nervoso ao córtex cerebral. Apesar disso, nenhuma síntese cere-
bral do corpo pode fazer-se por somação dessas sensações.
A imagem do corpo é um engodo pelo qual o sujeito confunde seu
eu e seu corpo com aquele do outro, mas é um engodo necessário que
permite ter-se um corpo. Embora necessária, ela é a fonte de todos os
desconhecimentos, e é por isso que Lacan distingue severamente o su-
jeito de seu eu. O que designamos como fenômeno de consciência par-
ticipa desse desconhecimento, porque “o homem é bem mais que seu
corpo sem poder saber mais sobre seu ser.” Durante todo seu ensino, ele
martela todo o prestígio narcísico fixado a esta “inflação imaginária”, o
primeiro objetivo da psicanálise sendo demonstrar a vaidade. Tratar-se-
-ia, então, de se opor aos que defendem um eu forte. Não obstante, para
muitos, a palavra corpo ficou sendo sinônimo dessa imagem especular.
Evoquemos agora outro texto que encontramos nos Escritos, in-
titulado Observação sobre o relatório de Daniel Lagache (LACAN,
(1964a/1968, p. 659). Lacan insiste aí em dois pontos:
O primeiro ponto é esse tempo em que a criança apresentada ao es-
pelho por sua mãe se volta em direção àquela que a segura e a nomeia no
espelho, para autentificar essa palavra. Nós temos lá alguma coisa que é
da ordem do “Fort-da”, porque, quando a criança se volta, ela não está
mais no espelho, não tem mais sua imagem, é o nome que a substitui. O
nome designa aqui sua ausência. É o processo de simbolização, aquele
justamente onde fracassa o psicótico.
O segundo ponto, é que a unidade, a completude que sugere a ima-
gem no espelho, é um engodo bem-feito para tentar camuflar o pon-
to onde o imaginário desfalece. É o que Freud descreveu com o termo
d’Unheimlich, que traduzimos por “inquietante estranheza”, ela está lá
para provar. Eu me refiro aqui ao Seminário sobre a Angústia. Supo-
nham que eu me apresente diante de um espelho e minha imagem não
esteja lá, é a angústia. Suponham que minha imagem apareça brusca-
mente lá, onde eu não a espero, em um espelho do qual eu não conheço
a existência, ao fundo de um corredor, essa imagem me aparece como
estrangeira a mim mesmo, hostil e inquietante em um breve instante
antes que eu a reconheça como minha. Tentem também vocês se bar-
bearem diante de um espelho que seria constituído de dois vidros de
ângulo reto. No lugar da simetria invertida que vocês integraram em
vossa percepção em vossa ignorância, vossa direita é vossa direita e vos-
sa esquerda será vossa esquerda, há certos riscos de cortar o queixo. O
que aparece na deiscência do imaginário? É parte do real, é isso o que
provoca angústia. Aqui nos reportamos ao esquema dito: “do vaso in-
vertido” LACAN, 1964a/1998, p. 659).
Lacan, nas duas referências que eu acabo de dar, fornece um suporte
ilustrando ao mesmo tempo a estrutura do imaginário e suas relações
é causa desta última. Ele evocará mais tarde o homem como um animal
“doente de linguagem”. Aqui, ele designa o conjunto dos significantes
como um corpo, o corpo simbólico, e ele nos diz: “o corpo, o nosso, é a
linguagem que o proporciona.” Podemos escrever isso assim:
Outro
Corpo do simbólico Organismo vivo
(S1 – S2)
S1-S2
Incorporal Organismo corporificado
corpo simbolizado
7 Nós ilustramos o capítulo V com o caso habitado de vibrações com certa distância de seu corpo.
falta para o psicótico. Mas é o discurso que permite que o órgão venha
exercer sua função pela operação de “significantização”. Por exemplo, a
operação que permite a partir do pênis obter o significante fálico e sua
negativação. É o discurso que diz como fazer aí com seus órgãos.
“O dizer esquizofrênico se especifica de ser tomado sem o suporte de
nenhum discurso estabelecido” (LACAN, 1973/2003, p. 475).
Jacques-Alain Miller fez observar que quando Deleuze e Guattari fa-
lam do psicótico como “corpo sem órgãos”, eles se enganam porque se-
ria mais um corpo sem discurso. É por isso que Lacan evoca o “suporte
do discurso estabelecido”. Essa frase parece se aplicar particularmente
a nosso caso, em que tem de haver o discurso do Outro para que ele
possa, ele próprio, tornar-se operacional, que ele seja designado como
“a galinha dos ovos de ouro” para que sua imagem pudesse tornar-se o
escrínio da mercadoria que ele tem para vender.
Essa reconstituição mítica do corpo como simbólico nos permite
compreender por que Lacan (1960/1998, p. 835) na Subversão do sujeito
formula: “O gozo é interditado a quem fala como tal”.
3. O corpo real
Na última parte de seu ensino, ou seja, a partir do Seminário XX,
Mais ainda, especialmente centrado sobre o corpo, Lacan vai efetuar
um verdadeiro reviramento em seu ensinamento dando proeminência
não mais ao imaginário ou ao simbólico, mas ao real, para em definiti-
vo, com a clínica dos nós borromeanos, homogeneizar os três registros
graças a seu enodar precisamente borromeo. Ele fez então, dos signifi-
cantes, a causa do gozo, e de sua corporização, o inverso da significan-
tização (MILLER, 2004). Na significantização, tratava-se de tomar todo
ou parte do corpo para elevá-lo ao significante, a imago é um exemplo,
o falo é outro. Na corporização, ao contrário, trata-se do significante
enquanto ele afeta o ser falante. Ele opunha, assim, o saber incorpóreo
da topologia, por exemplo, ao saber incorporado.
Schreber ilustra bem como seu Deus, que é um Outro que não existe,
que não é todo saber, necessita de seu corpo para gozar. Jacques-Alain
Miller aproxima essa função de corporização, ou seja, do saber que
entra no corpo, tanto as mutilações tradicionais quanto os fenômenos
mais recentes de piercing. É claro que estamos longe da fórmula “O gozo
é interditado a quem fala como tal” (LACAN, 1960/1998, p. 835). Aqui,
aparece a diferença com o paradigma precedente do corpo simbólico.
Precedentemente, o significante esvaziava o corpo de gozo; lá, todo pelo
contrário, o significante vem introduzir gozo no corpo. O paradoxo só é
aparente. Com efeito, Lacan distingue duas abordagens do significante.
Aquele com o qual nós estamos perfeitamente acostumados, o signifi-
cante que representa o sujeito para outro significante em uma articu-
lação simbólica. É o significante cujo efeito é o sujeito como falta a ser.
Mas o significante, quando não está articulado, quando ele não entra no
sistema simbólico, vira signo S1 desconectado de S2. Lá, não há efeito
sujeito, mas marca, memorial de gozo, comemoração do que é caído
da cadeia significante, ou seja o objeto “a”. É o que está no lugar onde
desfalece toda representação. Nós poderíamos dizer que se trata aí do
umbigo do simbólico.
Lacan vai mais longe em seus últimos Seminários, com a clínica Bor-
romeana e a representação do sujeito por um toro. Eric Laurent, em sua
intervenção no Seminário de J-A. Miller de 2001, colocou o acento so-
bre o esforço de Lacan para romper com a representação imaginária do
corpo, para tentar livrar-nos dessa imagem do corpo como uma bolha,
como uma esfera, até como um vaso que ele tinha, contudo, contribuí-
do para nos inculcar. Com a topologia sustentada pela imagem do toro
Gustavo Dessal
Resumo: Embora o corpo dos seres vivos, incluindo o mais insignificante, seja uma
máquina assombrosa, o corpo humano sofre dessa estranha doença universal de sua
espécie que chamamos alíngua. Alíngua o atravessa, remodela-o, perverte-o e o emba-
ralha. O neurótico se organiza com seu corpo da melhor maneira possível, mas para
muitos psicóticos, o corpo converte-se em um autêntico pesadelo. Este texto explica,
em linguagem acessível ao leigo em psicanálise, algumas características que o corpo
representa para o sujeito que fala, em particular no campo da psicose.
Palavras-chave: Corpo. Foraclusão. Linguagem de órgão. Gozo do corpo. Parafrenia.
Abstract: Although even the most insignificant living body of beings is an amazing
machine, the human body undergoes this strange universal disease we call lalangue.
Lalangue crosses the body, redesigns, perverts and confuses it. The neurotic is organized
with his body in the best way, but for many psychotics the body becomes a genuine
nightmare. In an accessible language for lay people in psychoanalysis this text explains
some features that the body represents for the subject who speaks, in particular in the
field of psychosis.
Keywords: Body. Foreclosure. Jouissance of the body. Organ language. Paraphrenia.
“Quão pouco sabemos sobre nós mesmos [...] Quão pouco sobre
nosso corpo!”2 (Sandor Marai, La gaviota)
2 Na versão em espanhol: ¡Qué poco sabemos de nosotros mismos! ¡Qué poco de nuestro cuerpo!
(MARAI, 2011).
ramente em algo estranho. Levou muitos anos, sem dúvida, para que
eu pudesse compreender do que se tratava aquilo. É óbvio que naquela
época não podia saber que, por meio desse simples jogo, conseguia fazer
surgir o que estava oculto atrás da visão do mundo, quer dizer, atrás da
representação: o fato de que o objeto olhava para mim, que na realidade
era eu o objeto de um olhar, só que graças à circunstância de ser um
neurótico podia ignorá-lo, e não viver com a sensação apavorante de
ser observado, analisado, atravessado pelo olhar do Outro, como ocorre
com muitos psicóticos.
“Esquecemos”, graças a esse mecanismo de defesa primária e essen-
cial que a psicanálise conceituou com o termo repressão, que na origem
de nossa existência, antes de tomar a palavra e converter-nos em espec-
tadores do mundo, somos falados e observados desde todas as partes.
Rimbaud, com apenas 15 anos de idade, escreve a seu professor: “Eu
percebi que sou poeta. Não é de modo algum culpa minha. É falso dizer:
Eu penso; deveríamos dizer: pensam-me.”
O hipocondríaco “pensa o corpo”. Pensa-o todo o tempo, não pode
esquecê-lo, e desse modo tenta, sem sucesso, proteger-se da angústia.
Na psicose, a questão do corpo é muito mais difícil, e a defesa muito
mais fracassada. Miguelito é um maníaco-depressivo que organiza sua
vida em torno da função excrementícia. A essência da vida para ele é a
constante vigilância do trânsito intestinal. A constipação deve ser evita-
da a todo custo, já que a acumulação fecal obstrui o fluxo do pensamen-
to, provoca tonturas e decomposição dos fluidos corporais, altera seu
estado de humor e exerce uma influência nociva na capacidade erétil
de seu pênis. Passa suas sessões informando cuidadosamente sobre o
estado diário de seu intestino, a frequência de suas evacuações, a amar-
gura que lhe produz a estagnação, a alegria beatífica que resulta da de-
posição generosa e frequente, e os alimentos que ingere para incentivar
o movimento interno. Durante o transcurso do tratamento, consegue
dar um passo sublimatório importante: começa a conceber o projeto
(que, naturalmente, jamais chegará a realizar) de uma fazenda orgânica
que lhe dará extraordinários dividendos econômicos, e esse exercício
Referências
DE CLÉRAMBAULT, G. G. (1995) Automatismo mental: paranoia. Bue-
nos Aires: Polemos.
FREUD, S. (1911/1996) Notas psicanalíticas sobre um relato autobio-
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(Campo Freudiano no Brasil).
______. (1955-1956/1992) O seminário, livro 3: as psicoses. Tradução de
Aluísio Menezes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
MARAI, S. (2011) La gaviota. Barcelona: Salamandra.
Guillermo A. Belaga
Resumo: Este trabalho levanta uma investigação a partir da referência lacaniana do sin-
thome como acontecimento de corpo. O autor suscita o poeta portenho, Macedônio Fer-
nandez, para discutir as soluções psicóticas, assim como Lacan o fez a partir de Joyce.
Diante do parasitismo da linguagem, o sujeito precisa inventar, uma dessas invenções
surge pela via do amor, como demonstra a invenção macedoniana.
Palavras chave: Arte. Sinthoma. Acontecimento de corpo. Amor
Abstract: The present work sets up an investigation departing from the Lacanian ref-
erence to the sinthome as a body event. It focuses on the Argentinean poet Macedo-
nio Fernandez to discuss psychotic solutions as Lacan did with Joyce. Facing language
parasitism, the subject needs to invent and one of those inventions arises from love, as
Macedonian invention demonstrate.
Keywords: Art. Sinthome. Body event. Love
uma última vez para seu amor, escrevo este libro que não necessitamos”.
Também dirá: “O desejo que me animou para a construção de meu ro-
mance foi criar um lar, fazê-lo um lugar para a inexistência, para a não-
-existência em que necessita encontrar-se Deunamor”.
É aqui onde aparece Deunamor, uma criação que se inspira em seus
“devaneios”, e como explica a partir da “morte de sua esposa, a quem
apareceu amando imensamente, [...] pouco a pouco, Deunamor foi per-
dendo sua sensibilidade, até ficar reduzido a um corpo sem consciência”.
Por seu lado, Rubén Ríos, também coincide que essa ação que lhe
permite materializar esse “pouquíssimo” de corpo é uma instrumentali-
zação pragmática orientada mais além do útil. Como insinua Macedo-
nio: “tudo é possível”, dado que a psyche “não responde a nenhuma lei”,
é unicamente a práxis da linguagem nomeando ou descrevendo o acon-
tecer errático do mundo. Com o que o “homem” tem de assumir a tarefa
– que lhe seria imposta – de “fazer” o mundo descrevendo o que ainda
não tem nome. Essa tarefa Ríos a formula como o “nominalismo da sen-
sibilidade” de Macedonio Fernández, e talvez, levando em consideração
um Poema de poesía del pensar, dedicado a Jorge Luis Borges, denomina
sua lógica como pragmatismo poiético (de poíesis: “invenção”, criação”)
ou pragmatismo mito poético do acontecimento.
4 O “acontecimento de corpo”
Maneira de uma psique sem corpo é o título de um texto – que inspira
esta intervenção – em que Macedonio (1953, p. 22) enfatiza:
Mantenha-se no mistério, leitor. Para a Psique não há o ‘em’, não
está no corpo. E em um corpo podem manifestar-se e receber es-
tímulos duas Psiques tão estranhas uma a outra como as que se
manifestam mediante dois corpos. E essa experiência é suficiente
para iluminar a não dependência: a transparência da Psique nos
Corpos.4
4 No original: “Mantente en el Misterio, lector. Para la Psique no hay el ‘en’, no está en el Cuerpo.
Y en un cuerpo pueden manifestarse y recibir estímulos dos Psiques tan extrañas una a otra
como las que se manifiestan mediante dos cuerpos. Y esta experiencia es suficiente para iluminar
Referências
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septiembre de 1984 invitado por el Profesor Titular de Filosofía Tomás
Abraham y los profesores asociados Alejandro Rússovich y Enrique
Marí, en el Aula Magna de la Facultad de Psicología de la UBA”. La Caja
Digital: Revista del Ensayo Negro. Disponível em: http://www.tomasa-
braham.com.ar/cajadig/caja17-1.htm
FERNÁNDEZ, M. (1928) “Extractos de correspondencias espiritualis-
tas”, in ______. No toda es vigilia la de los ojos aberto. Buenos Aires: M.
Gleizer. (Colección Índice). p. 13-17.
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Prólogo de Natalicio González. México: Guarania.
______. (1967) Museo de la novela de la eterna. Advertência de Adolfo
de Obieta. Buenos Aires: CEAL.
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______. (1975-1976/2005b) “Joyce, le symptôme”, in ______. Le sé-
minaire, livre 23: le sinthome. Texte établi par Jacques-Alain Miller.
Corpo e histeria
Body and hysteria
Fátima Sarmento
Abstract: Since Freud hysteria has been an example of the relation between body and
language. This text aims to argue over two points: the first examines the imaginary con-
stitution of the body in hysteria to show that the difficulties of the hysteric with her
body image are related to the fact that there is not a signifier in the Other that defines
her sexual woman being. The second point examines that in hysteria the female body “is
put in suspense” because the hysterical subject, in refusing the master signifier rejects
its own body.
Keywords: Imaginary constitution of the body. Hysteria. Body refusal.
1 No original: “Ou sont-elles passées les hystériques de jadis”, [...] les Anna 0., les Emmy von N
[…] qui permirent la naissance de la psychanalyse. [...] Qu’est-ce qui remplace ces symptômes
hystériques d’autrefois? L’hystérie ne s’est-elle pas déplacée dans le champ social? La loufoquerie
psychanalytique ne l’aurait-elle pas remplacée?”
enfermeira do pai, quando este adoece, e após sua morte passar a ser a
enfermeira da mãe, revela que o sintoma histérico se expressa nesse caso
como sintoma de outro sintoma. Elizabeth permaneceu no sintoma his-
térico que tem como função fazer um pai. Freud comenta no final de sua
obra (1937/1996, p. 253) que, em razão de um “destino infeliz”, ocorre
nesse caso, uma repetição – algo surgiu e se deslocou para um cirurgião.
Elizabeth se apaixona por um médico, o qual vai dar um golpe de graça
em sua feminilidade, submetendo-a a uma histerectomia completa.
No Seminário 24, Lacan (1976-1977, p. 8) enuncia: “[...] a histé-
rica é sustentada em sua forma de bastão por uma armadura, distinta
de seu consciente e que é seu amor por seu pai.”2 A histérica utiliza-se
da armadura do amor ao pai para defender-se do real, pois esse amor
esconde, vela o gozo do sintoma. Se no inconsciente da histérica o que
existe é o amor ao pai, fica claro que há uma relação íntima entre neu-
rose (inconsciente) e pai. É nessa direção que podemos compreender os
argumentos: a neurose é produtora do pai, a neurose convoca o analista
a ocupar o lugar do pai.
É comum na clínica a evidência de dificuldades por parte da his-
térica com sua imagem corporal. Para saber como se dá na histeria a
constituição imaginária de um corpo dito feminino, utilizaremos as
considerações feitas por Bessa (2012) a esse respeito. Embora o trabalho
dessa autora vá mais longe, pois tem como objetivo situar a incidência
do narcisismo na esquizofrenia e na histeria, aqui nos interessa apenas
tecer os comentários relativos à histeria. A autora identifica na constru-
ção da fase do espelho a interpretação lacaniana sobre as considerações
de Freud (1914/1974) a respeito do narcisismo. O autoerotismo é nesse
texto freudiano o primeiro modo de satisfação encontrado pelas pul-
sões sexuais, o que denomina de prazer do órgão. A pulsão encontra
satisfação no próprio corpo sem recorrer a nenhum objeto, uma vez
que não existe nenhuma unidade que se possa denominar de eu. Freud
2 No original: “[...] l’hystérique est soutenue, dans sa forme de trique, [...] par une armature, [...]
distincte de son conscient, [...] c’est son amour pour son père.”
Leitura e construções
Reading and constructions
Bernardino Horne
Resumo: O comum entre Leitura e Construções é que ambos apontam para o real e se
realizam desde fragmentos, disse Freud, do real, da pré-história do Sujeito. Comento o
instante da encarnação do Significante no corpo e a aparição da vida como gozo.
Palavras-chave: Encarnacão. Leitura. Construções. Real. Gozo.
Abstract: Lecture and Constructions have in common that both of them point to the real
and as Freud says, they realize themselves from fragments of the real or from pieces of
the Subject’s prehistory. There is a comment about the moment in which the significant
incarnates the body and life appears as Jouissance.
Keywords: Incarnation. Reading. Constructions. Real. Jouissance.
Referências
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neiro: Imago. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Com-
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discurso analítico, 19., 2012, Salvador. Opção Lacaniana: Revista Brasi-
leira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Eólia, n. 65.
Reinaldo Pamponet
J.-A. Miller (citado por LAURENT, 2008, p. 120) diz que “o corpo é o
que sobrevive ao naufrágio do simbólico”. Contudo, apesar desse “nau-
frágio”, a construção do conceito de corpo na psicanálise é impossível
sem a condição do simbólico.
O simbólico está em declínio e o mais de gozar foi elevado ao zênite
social, constituindo-se, assim, o impasse ético pela promoção do supe-
reu como ordenador de um excesso de gozo que não é equivalente ao
sintoma como modo de gozar.
A nova ordem simbólica tem-se revelado inoperante para falar da
desordem do real, por isso, no momento atual, o falasser caracteriza-se
por falar com o corpo das mais variadas formas sintomáticas.
Assim, perguntamos: se as defesas sintomáticas evidenciam os limi-
tes do simbólico e uma nova forma do falasser lidar com seu corpo,
nesse contexto, como o ato analítico pode incidir para desmontar as
novas defesas contra o real, a fim de proporcionar o advento de corpos
habitados pelo desejo e sua possibilidade de criação e invenção?
O falasser da modernidade sonha com o Um, todavia, é um Ser múl-
tiplo pelos significantes que representam junto de outros significantes.
As identificações que o apoiam são frágeis e inseguras, tendo em vista
o declínio da função paterna. Por isso, ver-se coagido a organizar seu
texto inconsciente por si mesmo, lançando mão das suas identificações
como verdadeiras armaduras egoicas e apegando-se às oportunidades
de gozo.
Nos dias atuais, pensar que a liberação sexual e a exposição corporal
a todo tipo de inscrições, cortes e recortes tornam a imagem viril e orga-
nizadora da sexualidade, é desconhecer que a subjetividade desafia esse
suposto poder da imagem sobre o corpo, é pensar que as identificações
imaginárias podem fazer existir a relação sexual.
O valor fetichista conferido aos gadgets, ofertados pelo mercado de
consumo, conduz a uma “bulimia” do supereu e a uma “anorexia” pelo
po tórico.
Miller (2010-2011, tradução nossa) diz que “uma representação in-
consciente bem distinta e especial do falasser, teria a propriedade excep-
cional de determinar a confluência da representação e do real”.
Trata-se do encontro com “um-dizer novo”, com uma representação
inconsciente e especial do falasser, separada de qualquer significação do
Outro, que se enlaça ao real para constituir e dar consistência ao corpo
do vivo.
Assim, esse novo S1, invenção do analisante, vai sofrer uma trans-
mutação em letra de gozo do sinthoma e constituir sua nova identidade.
Referências
LACAN, J. (1961-1962/2003) “A identificação: seminário 1961-1962”.
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dit.
______. (1980/1981). Le séminaire, livre 27: la dissolution, le malen-
Silvia Salman
Resumen: Considerar uma análise como uma experiência de corpo põe em destaque as
mutações do gozo que se obtêm em um trajeto analítico. Passar do regime do padeci-
mento ao de uma nova satisfação reconfigura os modos de ter um corpo. A posição do
analista e sua operação se encontram no centro dessa transformação.
Palabras llave: Corpo. Palavra. Pulsão. Satisfação.
Abstract: Considering psychoanalysis as a bodily experience highlights the jouissance
mutations obtained through the analytical haul. To pass from a regime of suffering to
one of a new satisfaction reconfigures the modalities of having a body. The analyst’s
position and operation are at the core of this transformation.
Keywords: Body. Word. Drive. Satisfaction.
As palavras e o corpo
Efetivamente, a psicanálise opera com a palavra, por isso começare-
mos por revisar a articulação, as relações possíveis da palavra e o corpo.
Sabemos do lugar privilegiado que tem a palavra em uma cura. No
entanto, sua função não se encontra articulada somente com a estrutura
de linguagem, que foi o foco do ensino de Lacan em sua fase inicial.
Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise e A instância
da letra são textos-chave para capturar essa perspectiva. Neles questiona
especialmente o modo como certos autores imaginariam a palavra e a
rebaixam de seu aspecto simbólico.
A dimensão da palavra que me interessa destacar neste recorrido é
aquela na qual ela está especialmente enganchada ao corpo, que, seguin-
do o ensino de Lacan, aprendemos a considerar como a sede do gozo.
Na escritura que Lacan nos propõe no Seminário Mais, ainda: a do
parlêtre que falando goza e que podemos expressar com a fórmula: as
palavras fazem corpo.
Como veremos, não se trata do inconsciente freudiano que está feito
de representações inconscientes, que, segundo Lacan (1977/1981, p. 3),
é uma ideia totalmente vazia: “Não se pode sugerir a ideia de represen-
tação mais que quitando ao real todo seu peso concreto.”2
Segundo Lacan, trata-se das palavras que se enodam ao corpo e que
representam o inconsciente de um modo diferente de Freud, ou seja,
com o peso do real. Então, Lacan propõe dar outro corpo ao incons-
ciente.
Aqueles que atravessam uma experiência de análise conhecem os
efeitos impressionantes que as palavras provocam no corpo.
Elas nos emocionam, comovem-nos e capturam o corpo de tal modo
sintoma que Lacan entregou nos últimos anos de seu ensino. É uma
formulação que aparece uma só vez em uma de suas conferências sobre
Joyce, que J.A.-Miller soube destacar para colocar em evidência o corpo
na experiência analítica.
No caminho que nos leva desde Freud a Lacan, podemos perceber
diferentes definições do sintoma; segundo nos situemos na primeira ou
na segunda tópica de Freud, e segundo nos situemos na primeira ou no
último ensino em Lacan.
Sem entrar em detalhes sobre o sintoma, mas o suficiente para captar
como Lacan chega a essa formulação, podemos dizer que o sintoma na
primeira tópica freudiana, a do consciente, pré-consciente e inconscien-
te, é um retorno do reprimido.
Trata-se, então, de uma formulação substitutiva, uma formação de
compromisso entre uma representação inconciliável, que por isso se
torna inconsciente e uma representação substitutiva que, por estar lon-
ge da representação patológica, pode emergir no campo da consciência
na forma de um sintoma, seja no plano dos pensamentos, na neurose
obsessiva, seja no plano do corpo, na histeria.
Nessa concepção, trata-se do sintoma na perspectiva do advento de
uma nova significação. Lacan extrai dessa concepção do sintoma a ideia
de que o sintoma quer dizer algo e a interpretação pela decifração é a
ferramenta fundamental para resolver o sintoma.
Com a segunda tópica, a do ego, id e superego, a concepção do sin-
toma torna-se mais complexa, e além de apresentar-se como uma for-
mação substitutiva, Freud o apresenta como uma satisfação substitutiva.
Estamos no texto freudiano de Inibição, sintoma e angústia.
Nessa nova concepção do sintoma, o termo satisfação é a chave para
pensar a relação com o corpo, já que a satisfação faz referência à satis-
fação pulsional que sempre se produz na dimensão do corpo, e não no
plano das representações. Ou seja, que de uma tópica a outra, passamos
Carla Fernandes
Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar um olhar sobre o conceito de cor-
po na psicanálise de orientação lacaniana, através de um recorte partindo do último ao
primeiro ensino de Lacan. Trabalhamos aqui em torno da relevância de considerar o
corpo na direção do tratamento, pela via da vertente do gozo, já que Lacan indica que só
há gozo no corpo vivo que fala. Abordamos um caso clínico de uma paciente atendida
pela autora em um hospital psiquiátrico, para discutir as possibilidades de intervenção
nessa perspectiva.
Palavras-chave: Corpo. Clínica psicanalítica. Direção do tratamento. Gozo. Lacan.
Abstract: This study aims to examine the concept of the body in Lacanian psychoanaly-
sis, reviewing Lacan’s teaching in reverse chronological order. Our work focuses on the
importance of considering the body in the context of treatment, by means of the slope
of jouissance, as Lacan indicates that there can only be jouissance in a living body that
speaks. We report on a case of a patient attended by the authoress in a psychiatric hos-
pital, to discuss possibilities of intervention in this perspective.
Keywords: Body. Psychoanalytic. Direction of treatment. Jouissance. Lacan.
é possível inferir que foi pelos enigmas do corpo na histeria que as por-
tas se abriram a essa possibilidade.
Mas o que é o corpo para a psicanálise de orientação lacaniana? Par-
tindo de um recorte em uma perspectiva do último ao primeiro ensino
de Lacan, propomo-nos inicialmente a elucidar alguns aspectos acerca
desse enigmático conceito. Enigmático, porque se realizarmos uma in-
cursão panorâmica, tanto pelo ensino lacaniano como pelo ensino freu-
diano, revelam-se apenas pedaços e dizeres pontuais sobre o corpo que
não nos esclarece a complexidade que envolve a questão. Talvez não sem
um motivo, uma vez que o corpo é despedaçado desde sua origem. É a
experiência humana da entrada na linguagem que permite a construção
de uma unidade corporal. De acordo com Brousse (2009), a constitui-
ção da imagem corporal é o que vela a angústia que advém do corpo
fragmentado. O que a imagem corporal tenta recobrir é justamente a
relação problemática do homem com seu corpo. Brousse sugere o se-
guinte esquema para representar esse ponto:
Imagem corporal
Corpo fragmentado
Esse aspecto também foi observado por Freud (1930/2006). Em El
malestar en la cultura, ele considera que a vida na civilização nos coloca
diante de um mal-estar que advém das exigências em abdicar da satis-
fação pulsional e inclui o corpo na série das três formas de sofrimento
que ameaçam o homem, ao lado das catástrofes do mundo externo e
das relações com os outros homens. O corpo, condenado à deterioração
com o passar do tempo, sinaliza por meio da angústia a sua fragilidade.
Nessa direção, Lacan (1974/2011) refere que nossa relação com o corpo
contribui para o mal-estar no mundo. Ele prossegue com a pergunta: do
que temos medo? E responde que tememos nosso corpo. A angústia é
justamente o sentimento que se manifesta diante da “suspeita que nos
vem de nos reduzir a nosso corpo” (LACAN, 1974/2011, p. 29).
Em seu último ensino, Lacan (1974/2011) situa a ligação existente
1 Lacan define o como o tesouro dos significantes. É inicialmente encarnado pela mãe ou seu
substituto, responsáveis por “traduzir” as primeiras necessidades da criança.
3 Versão em espanhol: “es la referencia al cuerpo y al hecho de que sua representación – quiero
decir todo que para él se representa – no es sino el reflejo de su organismo.”
4 Destacamos o conceito de alíngua, que, segundo Miller, se refere à “fala antes do seu
ordenamento gramatical e lexográfico” (MILLER, 2000. p. 101). Trata-se da palavra concebida
como gozo, disjunta da estrutura de linguagem ou da comunicação.
Abstract: The distance in relation to the Other is highlighted as a starting point for re-
search on autism in the paths it takes to move towards the Other. The article seeks to
identify autism’s strategies such as the particular use of the image of the sign and catego-
rization (as a way of organizing the external world), through a joint theoretical-clinical
from a case of the author’s experience.
Keywords: Autism. Distance. Image. Sign.
O termo autismo foi criado por Eugene Bleuler em 1911 para designar
uma característica descrita como “fuga da realidade” percebida em
crianças, que nesse período eram diagnosticadas como esquizofrênicas.
Os médicos Leo Kanner e Hans Asperger usaram também a palavra
autismo em 1943, para dar nome ao que passou a ser uma síndrome
específica distinta da esquizofrenia. As crianças pesquisadas por
Kanner apresentavam características como não usar a linguagem
para comunicar ou reproduzir frases de maneira ecolálica, não tolerar
barulho e mudanças de local dos objetos, dificuldades de criar atividades
espontâneas, com o comportamento focado em manter as coisas a seu
modo, sem a intervenção de alguém. Todas se dirigiam primeiro aos
objetos sem prestar atenção às pessoas presentes e todas mostravam
1 No original: «Si un ami me dit qu’il se sent triste ou déprimé, je m’imagine assis au creux
de la cavité noire d’un 6, et cela m’aide à faire l’expérience d’un sentiment similaire et à le
comprendre. Quand je lis dans un article qu’une personne a été intimidée par quelque chose ou
quelqu’un, je m’imagine debout a côté du nombre 9.»
que isso fosse. A minha pergunta parece que foi tomada como uma
expressão única, colada, e assim ele me responde dizendo que não quer
o que vem em seguida, esse pode ser: “não quer pode ser”. Diante disso
leio que ele não quer a dialética da dúvida, não quer a incerteza do que
escolher diante de muitas possibilidades e não quer a multiplicidade do
significante; ele quer a garantia do signo. Ele quer a certeza e a rigidez
estática da imagem.
Seu modo de funcionar é regido pela iteração do gozo do Um.
Segundo Laurent, (2012, p. 27) no autismo ocorre a “repetição de
um Um, separado de um outro, que não reenvia a um outro, e que ao
mesmo tempo produz efeito de gozo”. Desta forma, ele permanece com
o mesmo saber (mesma imagem, mesmo interesse) que não se articula
com outra imagem e outro interesse. Portanto, ele trata de defender esse
funcionamento, que é o seu modo de pensar e se organizar, a fim de
garantir que sua ilha de previsibilidade não seja abalada pela demanda
externa de algo diferente disso.
Sigo na direção de apreender algo da lógica, que, no encontro com
cada criança com autismo, me deparo. Saber sobre ela me desafia e
produz respeito, por reconhecer que, mesmo com mínimas ferramentas,
é possível se produzir algo próprio, algo que organiza e que pode
comunicar para quem se atreve a ler.
Referências
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a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa.
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LAURENT, E. (2012) “O que nos ensinam os autistas”, in MURTA, A.;
CALMON, A.; ROSA, M. (org.) Autismo(s) e atualidade: uma leitura
O corpo se anima
The body animates
Marcela Antelo
Abstract: Technoscience effects over the body annunciate the imminence of a theore-
tical revolution in the way of thinking the ‘God with Prosthesis’ who, following Freud,
man is. The consequences allow us to verify that the symbolic turns even more and
more real.
Keywords: Animation. Cybernetics. Body. Cut. Object.
Saber e corpo
Que o homem se saiba como corpo, esse “objeto através do qual o
homem se sabe é o corpo” (LACAN, 1953-1954/1986, p. 197),1 é o ponto
de partida que antecipa no Seminário 1 a articulação entre corpo e gozo
através de um mediador, o saber. O saber-se como gozo do corpo con-
sagra o saber como meio de gozo e o corpo como causa de saber, paixão
da ciência médica.
Lembremos a primeira tentação de Descartes: “Poderia fingir não ter
corpo...”. Não é por acaso que é no campo da Medicina em que a Rea-
lidade Virtual dá seus mais ousados passos. Eric Laurent (1998, p. 58)
falando sobre a atribuição real do corpo, entre ciência e psicanálise, em
uma mesa redonda, parece concluir “[...] o corpo não existe para a medi-
cina da ciência [...]”. Presença do corpo ausente.
A ciência e sua curiosidade idiossincrática nasceram com vontade
dissecadora e, conforme Lacan (1962-1963/2005, p. 232) nos mostra
durante o ano em que aborda a angústia: “[...] direi que a objetalidade é
correlata de um pathos de corte [...]”. Toda função de causa se suporta em
um “[...] pedaço carnal, arrancado de nós mesmos, tomada na máquina
formal”. A fórmula:
É teu coração o que eu quero e nada mais” lhe serve para marte-
lar “que não somos objetais – quer dizer objetos de desejo – senão
como corpos. Ponto essencial a recordar, posto que um dos campos
criadores da negação é apelar a algo distinto, a algum substituto
(LACAN, 1962-1963/2005, p. 233).
1 “O homem se sabe como corpo, quando não há afinal de contas nenhuma razão para que se
saiba, porque ele está dentro.”
2 “É totalmente estranho estar localizado num corpo, e não se pode minimizar esta estranheza, a
pesar de a gente andar o tempo todo agitando as assas a se gabar de ter reinventado a unidade
humana, que esse idiota de Descartes havia recortado.” (LACAN, 1954-1955/1995, aula de
12.1.1955, p. 97).
Resumo: A dublagem e o ventríloquo são tomados como figuras para uma investigação
sobre o estatuto da fala no último ensino de Lacan. O aforismo lacaniano “aonde isso
fala, isso goza” é explorado a partir da interseção entre as noções de significante, corpo
e voz. O artigo interroga sobre as razões pelas quais a pulsão faz uso dos significantes do
Outro para cumprir seu circuito de gozo.
Palavras-chave: Corpo. Fala. Significante. Voz.
7 “A interpretação analítica deveria ter um valor de formalização, implicando um: ‘Isso não quer
dizer nada’.” (Tradução nossa)
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Psicanálise. Disponível em: < http://www.litura.com.br/curso_reposi-
torio/a_presenca_do_outro__vozes__i___alterida_1.pdf >.
Paula Sibilia
Abstract: This article examines the treatment of “embodied subjectivity” in certain films
by Canadian director David Cronenberg, favoring those works of his filmography which
take the form of science fiction and horror. The analysis focuses on certain thematic and
aesthetic choices which make the human body its main target, constituting one of this
filmmaker’s most original contributions. Avoiding some of the clichés typical of those
film genres, Cronenberg directs a body that is insistently limited in its earthly imper-
fections, despite prostheses and merging with the most diverse technical artifices. This,
however does not prevent this body from being inhabited by certain oddities and by a
plethora of potentials, whose nature is fabulously human.
Keywords: Body. David Cronenberg. Subjectivity. Technology.
dele a maior riqueza possível, poucas receitas são mais eficazes que ir ao
cinema – ou, então, melhor ainda, por que não: fazer cinema.
Referências
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protética, a robótica e a existência remota”, in: DOMINGUES, D. (org.).
A arte no século XXI: A humanização das tecnologias. São Paulo: Unesp.
pp. 52-62.
Abstract: In his old job of giving body to the passions, through the figuration of human
conflicts, the drama offers a collection of subjects and procedures, of characters and
situations that move the reflection in other areas of knowledge. History of the drama is
not only the history of representation of our passions, but also the history of the various
modes of production of these passions, by transit through the body and pacts with the
receiver, thanks to concrete images with which the playwright seeks to configure the
clash of passions in every age and social environment.
Keywords: Playwriting. Representation. Embodiment.
1 “A menos que se seja um religioso freudiano, essa é a antiga história da influência literária e
suas ansiedades. Shakespeare é o inventor da psicanálise; Freud, seu codificador.” (BLOOM,
1995, p. 361).
trânsito pelo corpo que a ficção dramática exerce sua força. A paixão que
se encena está ancorada em imagens corpóreas que são inseparáveis das
marcas históricas ou psicológicas. E isso se torna ainda mais concreto
na passagem do dramático ao cênico. A atriz que está diante de Branca
Dias – personagem da peça O Santo Inquérito, de Dias Gomes – só pode
acessar sua ingenuidade, sua alegria, através do belo corpo de uma jo-
vem e de uma voz que afirma sentir a presença de Deus nas coisas que
lhe dão prazer.
“No vento que me fustiga os cabelos quando ando a cavalo, na
água do rio que me acaricia o corpo quando vou me banhar. No
corpo de Augusto, quando roça no meu, como sem querer. Ou num
bom prato de carne-seca, bem apimentada, com muita farofa, des-
ses que fazem a gente chorar de gosto.” (GOMES, 1979, p. 30).
É pela mediação desse corpo tão devoto e tão desejante que se torna
palpável também a crueldade dos senhores da Igreja que precisam des-
truí-lo para acalmar seus próprios medos.
Quando escrevi minha peça teatral Joana D’Arc – uma das muitas
construções possíveis dessa figura que oscila entre a história e o mito –,
percebi que tão importante quanto os acontecimentos que tecem essa
incrível biografia era o fato de que foram vividos por uma camponesa
saudável, robusta, em um corpo de 17 anos. Um corpo intocado pela ex-
periência sexual e que conhece seu êxtase no furor das batalhas. Um dos
seus maiores inimigos, o Conde de Warwick, representante da Coroa
Inglesa e advogado ferrenho de sua condenação à fogueira, não acredita
que, depois de libertar Orléans e coroar o rei Carlos, Joana queira deixar
os combates e voltar à sua vida pacata. Diz Warwick:
Ir embora? Longe disso! Claro que o rei Carlos já tem a sua coroa,
e agora daria tudo para que essa donzela fosse embora! É uma
garota muito incômoda, sempre com a mesma conversa de vozes
e batalhas. Sempre a mesma ladainha de ‘Deus salve a França, e
extermine nossos inimigos’. Sempre insaciável, pedindo homens,
armas, provisões. Sim, o rei adoraria ter um pouco de sossego, coi-
tado, de poder voltar aos seus jantares, às suas caçadas... e que
ela voltasse para sua aldeiazinha, para sua vidinha, para rezar na
sua igrejinha... Mas, ela? A Donzela guerreira? Ir embora? Não
conte com isso! Agora a virgenzinha sentiu o gosto do sangue, a
excitação da luta, o prazer de comandar homens e de rolar no chão
roçando com a morte! Agora o seu corpo intocado sentiu o fogo
das batalhas! A castidade dessa moça se alimenta da guerra, está
viciada em guerra! Não, acredite! Ela não vai embora de boa von-
tade! Nós temos que providenciar isso!2
2 Joana D’Arc estreou em novembro de 2010, na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, sob a direção
de Elisa Mendes.
Rogério Barros
Resumo: O artigo apresenta uma resenha do livro Esto lo estoy tocando mañana: mú-
sica y psicoanálisis, instigante compilação de trabalhos, organizada por Pablo Fridman,
que traz contribuições relevantes acerca da pouco estudada relação entre a psicanálise
e a música. Ao tocar os ritmos, estilos, silêncios e ressonâncias dos diversos autores que
compõem esse livro, essa publicação abre caminho para uma reflexão sobre a estrutura
da linguagem desde os restos acústicos, substrato do significante, onde musicalidade e
prática analítica apresentam uma conjugação.
Palavras-chave: Psicanálise. Produção Artística. Música. Linguagem. Constituição Pré-
-Verbal.
Abstract: The article presents a review of the book Esto lo estoy tocando mañana: músi-
ca y psicoanálisis, an intriguing compilation of works edited by Pablo Fridman, which
gathers significant contributions about the understudied relationship between psycho-
analysis and music. By tapping the rhythms, styles, silences and resonances of various
authors of this book, this publication gives way to a reflection on the structure of langua-
ge from the acoustic remains, a significant substrate, in which musicality and analytical
practice come together.
Keywords: Psychoanalysis. Artistic Production. Music. Language. Pre-Verbal Constitu-
tion.
música era incapaz de despertar nele qualquer gozo, ela também passou
por Lacan de forma sorrateira. Entretanto, há de se destacar que a expe-
riência musical, como sua produção sublimatória, ao ligar-se a voz/som,
não pôde nunca estar muito distante de nós, merecendo – e a isto se
propõe esse livro! – tornar mais claras algumas das suas aproximações,
apropriações e questionamentos de sua utilização na prática clínica psi-
canalítica, favorecendo uma construção de saber que possa servir-nos.
Psicanálise e música: ressonâncias
Toda produção artística deve ser compreendida como um modo de
lidar com o vazio. Essa é a afirmação primordial que está proposta desde
o prólogo desse livro. Como fazer artístico, a música deve ser pensada
também como um processo falho – nenhuma produção humana é capaz
de pôr fim ao real. O que há de tão singular na música, então, que fez
com que uma série de autores se debruçasse sobre esse tema e produ-
zisse esse livro?
Desde antes do nascimento, o sujeito já é envolvido por significantes.
Além de nomeado, desejado, o sujeito é sonorizado/cantado. Ao pro-
por que anterior à palavra está a percepção acústica, Fridman (2011)
observa que é por meio das reservas musicais/sonoras que adquiriu na
sua constituição pré-verbal que o sujeito pode presentificar-se diante do
Outro. Sustentado nessas marcas inomináveis de som, alheias ao senti-
do, o sujeito pode buscar reconhecer-se. A musicalidade, aí, é entendida
como resto acústico ouvido, que é o substrato a partir da qual a palavra
vai advir.
Pensada desde a estrutura de linguagem, a música é concebida como
o suporte material primordial do significante, alçando o patamar de im-
prescindível para a formação da cadeia que será instaurada. Trata-se de
uma forma primária de inscrição da pulsão no campo simbólico – o
primeiro tempo instituinte da estrutura (BERARDOZZI, 2011). Alheia
à palavra e rechaçando a significação, a música é o registro real da lin-
guagem.
Tânia Abreu
Augustin Ménard
Psiquiatra, psicanalista em Nîmes (França), membro da Ecole de
la Cause Freudienne (ECF) e da Associação Mundial de Psicanálise
(AMP). Professor no Collège clinique de Montpellier.
Endereço eletrônico: augmenar@wanadoo.fr
Bernardino Horne
Analista Membro da Escola (AME) da Associação Mundial de Psi-
canálise (AMP) e da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). Membro da
Escola Europeia de Psicanálise. Presidente da EBP no momento de sua
fundação. Analista da Escola (AE) no período de 1996 a 1998. Diretor
de Ensino do Instituto de Psicanálise Bahia (IPB-BA). Consultor Perma-
nente do IPB-BA em relação ao Instituto do Campo Freudiano-Paris.
Professor do Curso de Especialização do IPB-BA com chancela da Esco-
la Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP).
Endereço eletrônico: horneba@terra.com.br
Carla Fernandes
Psicóloga, Associada ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB-BA).
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto
de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui
Especialização em formato de Residência em Psicologia Clínica e Saúde
Mental pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Te-
oria da Psicanálise de Orientação Lacaniana pelo IPB-BA com chancela
da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP).
Endereço eletrônico: fernandesocarla@gmail.com
Cleise Mendes
Dramaturga e ensaísta, possui doutorado em Letras e Lingüística
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Associado IV da
UFBA, Membro da Academia de Letras da Bahia. Autora de As Estra-
tégias do Drama (EDUFBA,1995), Senhora Dona Bahia – Poesia Satíri-
ca de Gregório de Matos (EDUFBA, 1996) , A Terceira Manhã (contos)
(Imago, 2003), A gargalhada de Ulisses – a catarse na comédia (Perspec-
tiva, 2008), O Cruel Aprendiz (poemas) (Caramurê, 2009), Gabriel e o
Anjo da Bagunça (Caramurê, 2012), além de inúmeros textos para teatro
já encenados.
Fátima Sarmento
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da
Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Especialista em Teoria da
Clínica Psicanalítica pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Co-
ordenadora do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Criança-Carrossel.
Endereço eletrônico: fatima.asarmento@gmail.com
Guillermo Belaga
Gustavo Dessal
Psicanalista e escritor. Formado em Buenos Aires e Paris. Analista
Membro da Escola (AME) da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
e da Escola Europeia de Psicanálise- Madrid, membro do Comitê de Ação
da Escola Uma. Seus artigos são traduzidos em várias línguas. Autor dos
livros de ficção Operación Afrodita, Más líbranos del bien, Principio de
incertidumbre, Clandestinidad e Demasiado rojo.
Endereço eletrônico: g.dess.esp@cop.es
Marcela Antelo
Psicanalista, membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
e da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). Psicóloga pela Universidade
de Buenos Aires (UBA) e Mestre em Filosofia pela Uiversidad Nacional
de Mar Del Plata (UBMDP-Argentina) e Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Professora de Epistemologia no Curso de Especialização do
Paula Sibilia
Ensaísta e pesquisadora argentina residente no Rio de Janeiro, de-
dica-se ao estudo de diversos temas culturais contemporâneos sob a
perspectiva genealógica, contemplando as relações entre corpos, subje-
tividades, tecnologias e manifestações midiáticas ou artísticas. Fez gra-
duação em Comunicação e em Antropologia na Universidade de Buenos
Aires (UBA), Mestrado em Comunicação pela Universidade Federal Flu-
minense (UFF), Doutorado em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medici-
na Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS-UERJ) e em
Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ). É professora do Departamen-
to de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação (PPGCOM) da UFF, que atualmente coordena, além de
bolsista do CNPq e da FAPERJ.
Endereço eletrônico: www.paulasibilia.com.
Reinaldo Pamponet
Médico, psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise
(EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Professor no Cur-
so de Especialização do Instituto de Psicanálise Bahia (IPB) com chance-
la da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP).
Endereço eletrônico: rp88@terra.com.br
Rogério Barros
Psicólogo, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA), na área de concentração Psicologia do Desenvolvimento. Es-
Silvia Salman
Psicanalista. Membro da Escola de Orientação Lacaniana (EOL) e da
Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Analista da Escola (AE) no
período de 2009 a 2012. Membro do Conselho Estatutario da EOL, do
Secretariado de passe da EOL e do Comitê de Ação da Escola Una. Do-
cente do Instituto Clínico de Buenos Aires (ICdeBA) e da Universidade
de Buenos Aires (UBA).
Endereço eletrônico: silviasalman@fibertel.com.ar
Tânia Abreu
Psicanalista. Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e
da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). Mestre em Literatura e Psica-
nálise pelo Instituto de Letras - Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Coordenadora das Bibliotecas da EBP.
Endereço eletrônico: taniaabreu.ta@gmail.com
NORMAS DE PUBLICAÇÃO
1. A Agente é uma publicação da Escola Brasileira de Psicanálise
– Bahia, com periodicidade anual, que tem por finalidade publicar tra-
balhos de interesse da psicanálise, suas conexões e desconexões.
2. Cabe aos editores e ao Conselho Editorial o exame e aprovação
dos trabalhos enviados, reservando-se o direito de não publicar aqueles
que estiverem em desacordo com sua orientação.
3. Os pontos de vista e opiniões emitidos pelos autores são de in-
teira responsabilidade dos mesmos.
4. A apresentação dos trabalhos deve conter título, seguido de
nome do(s) autor(es). Pede-se a filiação científica do(s) mesmo(s) e o
endereço para correspondência. O título também.
5. Os trabalhos devem ser acrescidos de um resumo sucinto em
português e inglês (abstract). É obrigatória a indicação de três a cinco
palavras-chave que descrevam o assunto do trabalho. As palavras-chave
também devem ser fornecidas em inglês (keywords).
6. Os trabalhos devem ser encaminhados em arquivo de progra-
ma Word for Windows, versão 6.0 ou superior, em fonte Times New
Roman, corpo 11, digitados em espaço 1 , entre parágrafos de 3mm,
com margens de 25 mm, limitando-se a no mínimo 4 e no máximo 15
laudas. Texto justificado com recuo de 0,5 cm.
7. Os artigos serão submetidos a uma revisão, podendo resultar
em alterações na forma do texto. No caso de modificações substanciais,
o texto será devolvido ao autor para que ele próprio proceda às modifi-
cações.
8. As referências bibliográficas devem obedecer às normas da As-
sociação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
9. Nos relatos de casos clínicos publicados, o anonimato do pa-