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Bahia

agente Conselho Editorial


Analícea Calmon
revista de psicanálise Bernardino Horne
Célia Salles
Marcelo Veras
Ano XIV - Número 15 - Novembro 2013 Paulo Gabrielli
Publicação da Escola Brasileira de Psicanálise - Bahia Ricardo Cruz
R. Comendador José Alves Ferreira, 60, Garcia Cep: Sônia Vicente
40100-160, Salvador/BA
Telefone(s): 71 3235 9020 | 71 3235.0080 Equipe de Publicação
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Inscrição municipal ISENTA Fátima Sarmento
CNPJ 03.688.674/0001-19 Iordan Gurgel
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www.ebp.org.br
Carla Oliveira Fernandes
Wilker França
Conselho Deliberativo EBP-Ba Rogério Barros
Conselho - 2013
Iordan Gurgel – presidente Expediente
Tânia Abreu - secretária Editor: Marcela Antelo
Fátima Sarmento Divulgação: Fátima Sarmento - Iordan Gurgel
Pablo Sauce Resenhas: Carla Fernandes e
Reinaldo Pamponet Rogério Barros
Vera Lúcia Veiga Santana Traduções: Wilker França
Revisão: Maria Alves Albuquerque
Diretoria Geral EBP-Bahia Intercâmbio: Nilton Cerqueira
Fátima Sarmento (Diretora Geral) Capa: Imagem de Reinaldo Eckenberguer
Iordan Gurgel (Diretor Secretário-Tesoureiro) Design de capa: Belmiro Neto (Lado B produções)
Marcela Antelo (Diretora de Cartéis e Intercâmbio) Editoração: Bruno Senna
Nilton Cerqueira (Diretor de Biblioteca)

Ficha catalográ ca Revista Agente

Agente: revista de psicanálise/Esc ola Brasileira de Psicanálise / Seção Bahia. – a.1, n.1
(jun./1994) – . – Salvador: EBP/ BA , 1994 – .
v.

Publicação atual: a. 14, n. 15, Nov. 2013.


Anual
Continuação de: Revista Agente do Setor do Campo Freudiano.
A partir do n. (8) a revista passou a ser chamada Agente: revista de psicanálise
ISSN : 2318-6054

1. Psicanálise - Periódicos. I. Escola Brasileira de Psicanálise – Bahia

CDU: 159.964
CDD: 150.195
Bibliotecária responsável: Andrea Teixeira CRB-5/1770
SUMÁRIO
7 Editorial
Marcela Antelo
11 Quando o hábito faz o eu: o corpo na psicose
Augustin Ménard
26 Nas psicoses os órgãos falam sozinhos
Gustavo Dessal
40 Maneira de uma psique sem corpo
Guillermo Belaga
50 Corpo e histeria
Fátima Sarmento
63 Leitura e construções
Bernardino Horne
68 O corpo ao final de uma análise
Reinaldo Pamponet
80 O corpo na experiência da análise
Silvia Salman
100 Em corpo, mais e mais, ainda
Carla Fernandes
113 Sobre as especificidades das estratégias no autismo
Alice Munguba Monteiro
121 O corpo se anima
Marcela Antelo
127 A dublagem e o ventríloquo: figuras da fala no último ensino de Lacan
Luiz Felipe Monteiro
Bordas
137 O corpo estranho: orgânico, demasiadamente orgânico
Paula Sibilia
145 Dramaturgia, corpo e representação
Cleise Furtado Mendes
Leituras
154 Ecos do que estou tocando amanhã
Rogério Barros
161 Colofón da FIBOL
Tânia Abreu
164 Apresentação dos Autores
Bahia

Editorial

Estas páginas precisaram do empenho de vários corpos para produ-


zir o acontecimento de retomar a publicação da nossa Revista Agente.
Graças ao trabalho artesanal dos autores e o oficio dos tradutores, re-
visores, ilustradores e editores, Agente chega em forma até vocês. Em
suma, muita gente para fazer o Agente. As nossas XVIII Jornadas en-
carnaram o objeto causa e provocaram a elaboração deste número 15,
quase vinte anos após sua criação em 1994.
Dessa vez temos algo especial para festejar: conseguimos obter o nú-
mero de ISSN, que nos inscreve no catálogo internacional de publica-
ções seriadas e nos coloca no caminho do sério, que, segundo Lacan,
é o caminho da série. Um real do número que marca nosso desejo de
transmitir à comunidade analítica e ao vasto mundo de leitores interes-
sados na psicanálise o nó dos problemas e das soluções inventivas que
nos interpelam cotidianamente na prática analítica.
Lacan usou a expressão “acontecimento de corpo” para nomear o
lugar do sinthoma que soube inventar após recolher sua eficácia na obra
de James Joyce. No final da sua obra e somente uma vez, mas foi o sufi-
ciente para nos deixar como legado a ferramenta. Na convocatória das
XVIII Jornadas, incitávamos a usá-la para abordar o gozo que se inscre-
ve no corpo do falasser – outra invenção de Lacan – suas modalidades
e alcances, suas ocasiões e estragos, seus destinos. Podemos dizer hoje
que fomos escutados e o número 15 de Agente: revista de psicanálise/
Escola Brasileira de Psicanálise /Seção Bahia o demonstra em ato.
Três colegas de outras línguas cederam amavelmente suas reflexões
sobre o pesadelo do corpo em algumas psicoses e abrem o volume. Au-
gustin Ménard nos ensina que não podemos simplesmente reduzir o
corpo à imagem especular e que nosso olhar deve investigar o outro
lado do espelho. Trata-se de uma exemplar abordagem da famosa inver-
são de Lacan da frase, atribuída a Rabelais, l’habit ne fait pas le moine,

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“o hábito não faz o monge”. Ménard brinca com a homofonia moine
(monge), moi (eu) para através de um caso clínico exaustivo ilustrar a
suplência imaginária nas psicoses.
Os psicóticos especialmente, segundo Gustavo Dessal, testemunham
dessa estranha doença universal que parasita a espécie humana e que
chamamos lalingua em frente à qual devemos, um por um, inventar so-
luções, para “aliviar a carga que a vida impõe” como Freud dizia. Basea-
do em vinhetas clínicas, poetas e suculentos exemplos, Dessal transmite
a independência insuportável, a rebeldia das funções e a decomposição
das formas do corpo que a psicose encena.
Guillermo Belaga se debruça na referência lacaniana do sinthome
como acontecimento de corpo para demonstrar, apoiado no grande po-
eta Macedonio Fernandez, como uma dessas invenções para defender-
-se do parasitismo surge pela via do amor. O texto é paradigmático em
revelar a maneira em que o corpo faz objeção ao sujeito.
Dois autores conterrâneos apontam encarnação do significante no
corpo. Bernardino Horne faz uma ponte instigante de leitura entre o se-
minário ... Ou pior e o clássico Construções na Análise de Freud, focando
com precisão o instante da aparição da vida como gozo a partir da en-
carnação significante, de como este se faz corpo. Um analista convida-
do ao realismo, como sinthome do qual se servir. O segundo, Reinaldo
Pamponet acompanha as mudanças do estatuto do corpo ao longo de
uma análise. Debruça-se na letra, já de longas datas, para nos transmitir
de que modo o saber e gozo adquirem diferentes consistências no final
de uma análise.
Poderão também acompanhar as vicissitudes da recusa ao corpo na
histeria como defesa ao impasse da sexuação feminina na escrita de Fá-
tima Sarmento, que também sustenta uma longa investigação sobre o
tema.
Nossa convidada de outra língua para as Jornadas, Silvia Salman,
presenteia-nos com um texto precioso para o tema da revista conside-

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Bahia

rando a própria análise como uma experiência de corpo onde o gozo


muta, muda de regime, abre para novas satisfações, deixa cair outras que
perdem sua função. Deliciosa antecipação do que destrinchará para nós
nas próximas Jornadas.
Duas experiências clínicas são transmitidas por Carla Fernandes e
Alice Munguba Monteiro, para elucidar a direção do tratamento quan-
do a vertente do gozo é considerada. Em uma leitura retroativa do cor-
po em Lacan, a primeira trabalha o percurso de um caso de Hospital
psiquiátrico, da solidão à palavra, mostrando a esterilidade da etiqueta
“caso perdido”. Já a segunda, aporta sutis observações sobre as estraté-
gias autistas de sobrevivência iluminando a afirmação de Eric Laurent
sobre o acesso terrível ao real que os autistas testemunham. Apoiada em
uma vinheta clínica, ilustra a iteração do gozo do Um e a certeza e rigi-
dez estática da imagem requerida pela criança que o desejo do analista
se propõe perturbar.
Após Freud, pioneiro em afirmar que o homem é um Deus com pró-
teses, podemos entender que os efeitos da tecnociência sobre o corpo
nos concernem; Marcela Antelo aborda os recortes e condenas que sub-
metem o corpo a novas transformações que apenas ousamos pensar.
Mais uma investigação em curso sobre o estatuto da fala no ensino
de Lacan traz para nós dois objetos inusitados: A dublagem e o ventrí-
loquo, que oferecem a evidência do corpo na sua qualidade de suporte
ambíguo da qual Luiz Felipe Monteiro extrairá o valor clínico do estra-
nhamente inquietante. A perturbação da cópula entre a voz e a ima-
gem analisada se indexa nessa hora pela exibição do filme Jessica Chris-
topherry na pauta das Jornadas, centrado na dublagem de voz.
A Revista Agente interessada na reflexão que outros discursos que
se tecem ao redor do corpo têm a dizer convida duas autoras de vas-
tas publicações que muito nos acrescentam para inaugurar a rubrica
Bordas. Uma delas, ensaísta e pesquisadora no Rio de Janeiro, analisa
o insistente tratamento da “subjetividade encorpada” em certos filmes
de David Cronenberg, que torna sensível um corpo demasiadamente

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orgânico que nos estranha ao pôr em evidência o fracasso das próteses e
dos artifícios fabulosamente humanos.
Cleise Mendes Furtado, dramaturga baiana, formadora de várias ge-
rações, interpreta-nos o pai do analista foi o dramaturgo e, ao tempo
que nos ensina, diz que o drama é sempre uma experiência de corpo a
corpo, e que só com a condição de haver incorporação antropomórfica
dos afetos o drama consegue transmitir as paixões do ser.
Finalmente, compondo a rubrica Leituras, contamos com dois cole-
gas da cidade para nos transmitir o resultado das suas leituras. Rogério
Barros trata de um livro publicado em Buenos Aires, que reúne artigos
de diversos autores sobre a relação entre a psicanálise e a música. O au-
tor colhe, dentre as escritas singulares, o protagonismo dos restos acús-
ticos para revelar a conjugação da musicalidade com a prática analítica.
O último exemplar da Revista Colofón, lançado neste ano e dedicado
aos Corpos que falam, é destrinchado na sua estrutura por Tânia Abreu
de modo a suscitar o desejo do leitor, propósito da rubrica.
Aperto de mãos, então, para todos aqueles que fizeram possível esta
edição, e até a próxima experiência.

Marcela Antelo

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QUANDO O HÁBITO FAZ O EU: O CORPO NA PSICOSE
Bahia

Quando o hábito faz o eu: o corpo na


psicose1
When the habit make the I: the body in psychosis

Augustin Ménard

Resumo: A necessidade de dar o verdadeiro lugar ao corpo do sujeito anima a distinção


entre corpo imaginário, corpo real e corpo simbólico que o presente caso clínico faz
aparecer de maneira exemplar. A associação entre o eu (moi) e o hábito que o veste de-
monstra a inadequação de uma redução simplista do corpo à imagem especular.
Keywords: Corpo. Psicoses. Suplência. Imagem.

Abstract: It becomes necessary to give the subject’s body its true place bringing to life
the distinction between the imaginary body, the symbolic body and the real body which
the present clinical case reveals in an exemplary way. The association between the I and
the habit which dresses it demonstrates the inadequacy of the simplistic reduction of the
body to a specular image.
Keywords: Body. Psychose. Suppléance. Image.

Eu percebi que consistir queria dizer alguma coisa que era preciso
falar de corpo, que há um corpo do imaginário, um corpo do sim-
bólico – é alíngua e um corpo do real do que não se sabe como ele
sai.

(Lacan, 1976-1977)

“A psicose ordinária” é o termo já evocado para designar estas psico-


ses que não têm o caráter exuberante de um delírio como o de Schreber,
que a clínica psiquiátrica atual ignora ou rejeita com o termo impreciso
de borderline. A clínica psiquiátrica clássica não os ignorava, descreven-

1 Publicado em MÉNARD, Augustin, Voyage au pays des psychoses. Ce que nous enseignent les
psychotiques et leurs inventions, Champ Social Éditions, 2008. pp-59-71. Traduzido por Célia
Salles com a amável autorização do autor.

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AUGUSTIN MÉNARD

do “Os alienados sem delírio”, mas a psicanálise, sobretudo o ensino de


Lacan, permite localizar nesses casos clínicos a estrutura psicótica em
suas formas mais puras. Lacan formulou que a psicose é a estrutura,
porque é por ela que se revela o que a neurose recalca. Como prova,
basta a forma com a qual o delírio de influência no automatismo mental
desvela que o discurso é o discurso do Outro. Encontramos esse mesmo
efeito de colocar a nu a estrutura no que concerne ao corpo.
A relação do homem com seu corpo não é simples. O corpo nós o
temos, não o somos.
Para o animal se justifica identificar seu ser e seu corpo, enquanto
esta identificação do ser e do corpo não se justifica para o homem,
por mais corporal que seja, corporificado, ele é também feito su-
jeito pelo significante, quer dizer, que é feito da falta de ser. Esta
falta de ser, como efeito do significante, divide seu ser e seu corpo,
reduzindo este último ao estatuto do ter. (MILLER, 2004, p. 50).

Se acrescentarmos que é preciso ter um corpo para gozar, mas que


precisamente o fato de que o sujeito seja habitado pela linguagem desco-
la o gozo do corpo, as coisas se complicam. Abordamos em seguida um
caso clínico com as interrogações que ele suscita.
O que impressiona neste sujeito de 50 anos é a importância da apre-
sentação para ele. Ele aceitou com prazer a proposta do psiquiatra que
o trata de vir nos encontrar. Impecável em sua roupa, terno, gravata,
camisa branca, longe de se impressionar por uma assistência numerosa,
ele toma o microfone e se endereça à assistência à vontade, não levan-
do muito em conta o apresentador. Ele fala de sua vida, não hesita em
entregar seu sobrenome e até seu nome. Sua narração é feita de forma
cronológica, faz aparecer o contraste entre a criança humilhada que ele
foi e o personagem adulto de vendedor que ele se constituiu. Ele se fez a
si próprio como ele fez o seu irmão e o seu ‘filhote’, designando assim o
amigo com o qual vive.
O fazer consiste em vesti-lo bem, em ensiná-lo a se apresentar bem,

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QUANDO O HÁBITO FAZ O EU: O CORPO NA PSICOSE
Bahia

como seu primeiro patrão ensinou a ele próprio. Nós aprendemos assim
que este último fez para ele o papel de função de Ideal do Eu, assim
como o avô fotógrafo lhe ensinou seu primeiro ofício. Ele foi marcado e
ferido em seu corpo muito cedo. Seu pai não o reconheceu, porque ele
tinha olhos azuis (o farmacêutico passou por aqui, dizia ele).
Quando criança, ele era obeso e seus colegas ‘caçoavam’ dele, der-
ramando tinta em cima dele enquanto tomava banho (em um lapso,
ele diz cinzeiro em vez de tinteiro). Tendo aprendido que o calor faz
derreter as gorduras, ele encontra a solução para vencer sua obesidade:
‘Borrifar-se de água-de-colônia (o único álcool à sua disposição) e co-
locar fogo para derreter a gordura.’ Ele não toca no tema da dor e das
queimaduras resultantes. Mais tarde ele sofrerá um acidente de moto do
qual ele conserva uma claudicação. Nesse acidente sua amiga morre. Ele
não manifesta nenhuma emoção. Sua conversa é salpicada de neologis-
mos e de lapsos não percebidos como tal.
Ele suporta muito mal a interrupção de seu discurso, em cuja cro-
nologia ele se segura. Quando intervenho uma primeira vez para pedir
uma precisão, ele a concede e continua: ‘O doutor me desvia de meu
caminho’. É o que retomo de forma irônica pouco depois: ‘Eu vou então
desviá-lo do caminho direito’, para saber mais sobre o que para ele faz
sintoma. Eu soube, então, que várias vezes ele desmoronou e foi hospita-
lizado em psiquiatria. Interrogado sobre esses episódios, ele só manifes-
ta muito pouco afeto. Nem angústia, nem tristeza ainda que o diagnós-
tico médico seja de depressão. O que ele diz: ‘O mundo desabou’.
O início, o desencadeamento, foi assim: ele era vendedor, apreciado,
ele fazia aumentar rapidamente o lucro de cada novo empregador, era
sempre o outro que vinha procurá-lo porque os outros sabiam que ele
era ‘a galinha dos ovos de ouro’, aquele que permitia ganhar dinheiro. A
cada vez, as coisas se produziam da mesma forma, quando a lua de mel
cessava e o patrão não apreciava mais seu justo valor, ele desabava em
ocasiões de críticas leves, por ocasião de uma crítica tudo se desenoda-
va, desligava-se.

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AUGUSTIN MÉNARD

Ele se diz homossexual, vive com seu ‘filhote’, ele nos diz que ele ‘o
fez’, sem poder notar em nada o que esse vocábulo evoca de filiação.
Não é necessário ser um grande clínico para afirmar a psicose. A pa-
lavra é a coisa, o calor faz derreter as gorduras, “eu me borrifo de álcool e
eu risco um fósforo”. Os neologismos, a ausência de valor metafórico das
palavras – em particular quando ele faz um lapso – testemunham-no. O
uso metonímico do tempo da narrativa confirma. O desencadeamento é
evidente. Quando sua imagem não é mais amável ao olhar do outro que
ele coloca em posição de Ideal do Eu, o próprio eu desaba. Inversamen-
te, todas as vezes que um novo patrão vem procurá-lo em razão de seu
alto valor de vendedor qualificado, ele recupera seu Eu Ideal, e isso pode
até se acompanhar de certa elação de tipo hipomania, que se manifesta
por uma hiperatividade, e não por uma euforia.
Ao contrário, o diagnóstico psiquiátrico fracassa em cernir o diag-
nóstico. Depressivo? Não se apresentam os afetos que acompanham a
depressão. Maníaco-depressivo? Ainda menos, apesar dos movimentos
de elação periódicos que eu acabo de assinalar. Paranóico? Existe a su-
perestimação do eu, pelo menos nos períodos fastos ele fica muito satis-
feito de si próprio, apesar de seu fracasso atual. Contudo ele fracassou
em construir um delírio megalomaníaco, apesar de seu lado demiurgo,
ele pode fazer de todas as peças um homem, mas lhe falta o aspecto
projetivo, a localização do gozo no Outro. Se ele não se acusa, ele não
acusa o outro, e quando ele é empurrado a dar queixa de seu último
patrão na Justiça do Trabalho, ele consente, mas não sustenta o procedi-
mento. O fracasso da solução paranóica não o faz mesmo assim cair nas
profundezas da dissociação e incoerência esquizofrênicas. A psiquiatria
clássica se sai com o diagnóstico de parafrenia que, apesar de sua per-
tinência, é frequentemente uma etiqueta usada demais para agrupar os
inclassificáveis, tendo no interior das psicoses o lugar que os borderlines
ocupam entre neurose e psicose, ou seja, aquele de nossa ignorância.
De nosso lugar, colocamos de preferência a questão: o que o segu-
ra sendo que tudo vai bem para ele? Em meu trabalho de construção,

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QUANDO O HÁBITO FAZ O EU: O CORPO NA PSICOSE
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enquanto o escutava e em razão de alguns traços paranóicos observa-


dos, tinha emitido a hipótese de que sua posição subjetiva poderia re-
cordar a de Richard III, que Freud (1915-1916/1933) retoma em 1915,
no artigo Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica,
publicado em Les essais de psychanalyse appliquée. Essa lógica pode re-
sumir-se assim: eu vim ao mundo com uma deficiência, “deve-se a mim
uma reparação”. Isso me veio quando em um momento ele se endereça
à assistência dizendo: ‘‘Eu vejo que entre vocês alguns dormem, vocês
me pediram para vir, vocês devem me escutar.” Eu sou persuadido de
que essa lógica está subterraneamente operando, mas que esses apareci-
mentos breves se reduzem à veleidade, como testemunha o episódio da
justiça do trabalho. Aliás, é a suplência imaginária que prevalece. Nunca
é o cumprimento de uma reivindicação que lhe permitiu aparelhar-se,
mas o reconhecimento do outro lhe permite novamente se sustentar.
É aí que respondo à questão do que o sustenta: “É o hábito que faz o
eu.” É o que ele resume para nós na imagem do perfeito vendedor: “ter-
no, gravata, camisa branca, grande charuto...” e ele acrescenta: “humil-
dade”. A discordância desse último termo ele não a escuta. É para nós
que ela aparece inspirada pela astúcia da razão, revelando de um modo
invertido, na antifrase, sua megalomania. Talvez as coisas não sejam tão
simples assim. Se somos atentos à clínica, é lá que observamos que faze-
mos uma falsa rota etiquetando nossas categorias de eu, eu Ideal e Ideal
do eu. Esse hábito não é a imagem especular. Não é a camisa de Picas-
so que picotava a periquita evocada no Seminário XX e da qual Lacan
(1972-1973/1985, p. 14) nos diz que “o hábito faz o monge”, porque en-
tão ele faz casula2 ao que lhe dá peso e o sustenta, o objeto a. Aqui, quan-
do essa imagem desaba, não há mais nada, há um grande vazio em um
mundo desabado, sem afetos. O hábito vazio faz suplência imaginária,
não de modo especular. Faz mais bem ego, como sinthoma, no sentido
em que Lacan utiliza para Joyce. Podemos aproximar a falta de sensação
corporal quando da queimadura pelo álcool daquela de Joyce quando
de sua famosa surra. O hábito aqui tem mais o lugar que ocupa o vestido

2 N. T. Roupa de padre, veste sacerdotal usada sobre a alva e a estola.

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AUGUSTIN MÉNARD

no arrebatamento de Lol V. Stein, do qual J.-A. Miller (2004) nos diz em


seu curso inédito de 1999-2000: “Que ele condensa a imagem especular
e o objeto a com nada embaixo”. O vestido para Lacan (1965/2003, em
sua homenagem a Marguerite Duras, é: “O que os deixa quando vocês
são despidos, o que ser embaixo?”3
O quê? Senão o vazio. É o ser mesmo que se desloca no outro, em
uma travessia do corpo. Quando se trata do corpo, o especular nos em-
brulha. Trata-se, aqui, de um imaginário realizado,4 e não do corpo do
espelho.5
É uma outra abordagem do corpo, não mais em seu “inflado” espe-
cular, mas pelo furo que ele comporta e a borda que se desenha. Desse
modo ele se torna “funil de gozo”6, diz Eric Laurent em sua intervenção
de dezembro de 2000 no Curso de J.-A. Miller.
Aliás nosso falasser, vendedor, não se o descreve como “escrínio” que
valoriza a mercadoria? Para ser fiel ao preceito freudiano, colocamos
então para baixo nossa hipótese egoica em benefício do ego lacaniano.
Nós preferimos, agora, dizer aqui: “É o hábito que faz o corpo, que faz o
ego”. De fato, o corpo não se reduz à imagem especular. É o que dá valor
à citação da epígrafe. São essas três abordagens do corpo que vou tentar
desdobrar.

3 N. T. A tradução para o português como despossuída perde a junção com a palavra roupa; em
francês, o verbo dérober vem de roupa (la robe).

4 N. T. Em francês, real=réel, a palavra réelize não existe em francês, para dizer realizado se diz
réalisé, entendeu-se que seria uma forma de dizer o real realizado.

5 É o que J-A. Miller (1999-2000/2004) nos ensinou em seu curso intitulado Os usos do lapso e
que ele escreve:
i(a) e não i(a)
–––––– ––––
Vazio a

6 N. T. Nasse, em francês, originalmente funil para apanhar moluscos. Significa em sentido


figurado estar muito embaraçado. 

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QUANDO O HÁBITO FAZ O EU: O CORPO NA PSICOSE
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1 O corpo imaginário
Todo o mundo sabe que Lacan fez sua entrada na psicanálise com
seu famoso estádio do espelho. O que ele demonstra é a pregnância do
imaginário sobre o real. Ele se apoia nos trabalhos de psicologia com-
parada, em particular os de Köhler. Ele demonstra quanto a perfeição
da imagem, entre os seis e dezoito meses, vem fornecer uma imagem
do corpo vindo responder ao despedaçamento primitivo ligado a uma
insuficiente maturação biológica na criança do homem. Essa descoberta
da imagem de si no espelho se acompanha de uma jubilação intensa,
que não é outra a não ser o gozo investido no imaginário.
Em seguida, ele distingue o que é comum em certos animais, seja o
comportamento etológico (pombas e grilos peregrinos), enquanto que a
potência do que ele nomeia imago comporta efeitos sobre o organismo
vivo e, ao mesmo tempo, ele os distingue tanto que a resposta a uma
impotência vital é sob a dependência do banho de linguagem no qual é
mergulhada a criança, porque ainda é necessário que um adulto, quer
seja a mãe, quer seja outra pessoa, apresente-a diante do espelho e lhe
designe sua imagem como tal. Se Lacan insistiu tanto sobre o caráter
alienante dessa identificação que faz que a imagem de nosso corpo, que
é aquela que nos envia o outro, é para sublinhar uma falta instintual no
pequeno homem. Todas as partes do corpo são, no entanto, ligadas pelo
sistema nervoso ao córtex cerebral. Apesar disso, nenhuma síntese cere-
bral do corpo pode fazer-se por somação dessas sensações.
A imagem do corpo é um engodo pelo qual o sujeito confunde seu
eu e seu corpo com aquele do outro, mas é um engodo necessário que
permite ter-se um corpo. Embora necessária, ela é a fonte de todos os
desconhecimentos, e é por isso que Lacan distingue severamente o su-
jeito de seu eu. O que designamos como fenômeno de consciência par-
ticipa desse desconhecimento, porque “o homem é bem mais que seu
corpo sem poder saber mais sobre seu ser.” Durante todo seu ensino, ele
martela todo o prestígio narcísico fixado a esta “inflação imaginária”, o
primeiro objetivo da psicanálise sendo demonstrar a vaidade. Tratar-se-

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 17


AUGUSTIN MÉNARD

-ia, então, de se opor aos que defendem um eu forte. Não obstante, para
muitos, a palavra corpo ficou sendo sinônimo dessa imagem especular.
Evoquemos agora outro texto que encontramos nos Escritos, in-
titulado Observação sobre o relatório de Daniel Lagache (LACAN,
(1964a/1968, p. 659). Lacan insiste aí em dois pontos:
O primeiro ponto é esse tempo em que a criança apresentada ao es-
pelho por sua mãe se volta em direção àquela que a segura e a nomeia no
espelho, para autentificar essa palavra. Nós temos lá alguma coisa que é
da ordem do “Fort-da”, porque, quando a criança se volta, ela não está
mais no espelho, não tem mais sua imagem, é o nome que a substitui. O
nome designa aqui sua ausência. É o processo de simbolização, aquele
justamente onde fracassa o psicótico.
O segundo ponto, é que a unidade, a completude que sugere a ima-
gem no espelho, é um engodo bem-feito para tentar camuflar o pon-
to onde o imaginário desfalece. É o que Freud descreveu com o termo
d’Unheimlich, que traduzimos por “inquietante estranheza”, ela está lá
para provar. Eu me refiro aqui ao Seminário sobre a Angústia. Supo-
nham que eu me apresente diante de um espelho e minha imagem não
esteja lá, é a angústia. Suponham que minha imagem apareça brusca-
mente lá, onde eu não a espero, em um espelho do qual eu não conheço
a existência, ao fundo de um corredor, essa imagem me aparece como
estrangeira a mim mesmo, hostil e inquietante em um breve instante
antes que eu a reconheça como minha. Tentem também vocês se bar-
bearem diante de um espelho que seria constituído de dois vidros de
ângulo reto. No lugar da simetria invertida que vocês integraram em
vossa percepção em vossa ignorância, vossa direita é vossa direita e vos-
sa esquerda será vossa esquerda, há certos riscos de cortar o queixo. O
que aparece na deiscência do imaginário? É parte do real, é isso o que
provoca angústia. Aqui nos reportamos ao esquema dito: “do vaso in-
vertido” LACAN, 1964a/1998, p. 659).
Lacan, nas duas referências que eu acabo de dar, fornece um suporte
ilustrando ao mesmo tempo a estrutura do imaginário e suas relações

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QUANDO O HÁBITO FAZ O EU: O CORPO NA PSICOSE
Bahia

com o real e o simbólico graças à imagem do buquê, depois do vaso


invertido. Notamos, então, que as flores de um lado a outro do espelho
plano não invertem sua simetria. Podemos igualmente ver que o con-
junto dos fenômenos que se produzem nessa experiência, seja o conjun-
to dos fenômenos imaginários está inteiramente na dependência, sem
nenhuma autonomia, do simbólico e do real. Para que o fenômeno se
produza, é necessário que o adulto, desde o lugar do Ideal do eu (grande
I) designe à criança seu lugar. Se isso é necessário, não é suficiente, ele
precisa ainda do real das flores e quando se quer construir esse modelo,
percebe-se que estas duas coordenadas, real e simbólico, são indispen-
sáveis. Lacan demonstra que o imaginário do corpo nos é outorgado
pelo simbólico, mas o que o corpo encerra no ponto de deiscência que
figuram seus orifícios, com a relação que se lhes conhece com a pulsão,
um ponto de real inacessível ao espelho. As flores do espelho correspon-
dem aos objetos “a”. Se as coordenadas simbólicas a partir do grande I
não o permitirem, a imagem do corpo não virá encerrar as flores. É o
que se produz na psicose dita esquizofrênica, em que o sujeito se prova
como despedaçado sem poder fazer a síntese de seu corpo. A psiquiatria
clássica tinha localizado nesses sujeitos o que denominava o “signo do
espelho”. Esse signo correspondia à perplexidade do sujeito diante de
um espelho onde ele ficava fixado durante longos momentos.
Mas, mesmo quando o espelho especular opera, ele permanece um
ponto onde desfalece, verdadeiro umbigo do imaginário. Esse é o ponto
que designa o falo como invisível no espelho e que Lacan conota com a
letra (- φ).
2 O corpo como simbólico
O corpo imaginário é uma resposta fornecida pela cultura (sim-
bólica) a uma falta natural do homem. É a partir do defeito instintual
que Lacan constrói seu estádio do espelho. Em Radiofonia (LACAN,
1970/2003), o ponto de partida é inverso. Ele elabora uma reconstrução
quase mítica do corpo a partir da mordida do ser vivo pela linguagem
que o nomeia. A linguagem não é solução para uma falta biológica, ela

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 19


AUGUSTIN MÉNARD

é causa desta última. Ele evocará mais tarde o homem como um animal
“doente de linguagem”. Aqui, ele designa o conjunto dos significantes
como um corpo, o corpo simbólico, e ele nos diz: “o corpo, o nosso, é a
linguagem que o proporciona.” Podemos escrever isso assim:

Outro
Corpo do simbólico Organismo vivo
(S1 – S2)

Na origem, o organismo vivo do homem seria a sede do gozo en-


quanto o Outro, o corpo do simbólico, seria um deserto de gozo.
A operação mítica é assim descrita: “o primeiro corpo (simbólico)
faria o segundo se incorporar”. Isso necessita a reunião dos dois círculos
precedentes:

S1-S2
Incorporal Organismo corporificado
corpo simbolizado

Vemos aí que o organismo corpsificado incorporou S1 – S2 (identifi-


cação primordial de Freud). Ao mesmo tempo, lá onde estaria o círculo
do grande Outro, pode-se dizer que o simbólico se torna incorporal.
Do fato dessa mordida da linguagem, o organismo corpsificado vai

20 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


QUANDO O HÁBITO FAZ O EU: O CORPO NA PSICOSE
Bahia

comportar duas partes:

Refúgio do gozo fora do corpo Corpo vazio de gozo

A meia lua da direita é o corpo vazio de gozo. A intercessão é o re-


fúgio do gozo fora do corpo. Destaca-se que o organismo que sofreu
a mordida da linguagem se estende para além de seu corpo. Em Posi-
ção do inconsciente, Lacan (1964b/1998, p. 862-863) formula: “A libido
é essa lamela que desliza o ser do organismo até seu verdadeiro limite,
que vai mais longe que o do corpo”.
Resulta que se o gozo é fora do corpo, ele não é fora do organismo.
“O corpo não se confunde com o organismo.”7 Compreende-se, assim,
por que é preciso um corpo para gozar. Apesar de que o corpo seja um
deserto de gozo, sobre os orifícios do corpo se condensa esta marca
negativa, que é um apelo ao mais de gozar. É por isso que os objetos
“a” se situam aí na intercessão. Essa corpsignificação é então bem uma
mortificação do vivente, o que explica que o corpo designe tanto o vivo
quanto o cadáver. Mas uma parte do vivo escapa, é essa parte que Lacan
denomina objetos a.
Notamos que essa operação não é sem relação com o que Lacan
(1964/1985) designa no Seminário XI como a operação de alienação,
ou seja, o fato de que o sujeito se vê reduzido a se fazer representar por
um significante para outro significante. Essa operação de alienação re-
encontra-se seja qual for a estrutura. Ao contrário, a operação que vem a
completá-la, ou seja, a da separação, necessita uma retomada no discur-
so na qual o sujeito interroga a falta no Outro a partir da própria falta,
operação que necessita da metáfora paterna. É precisamente o que fez

7 Nós ilustramos o capítulo V com o caso habitado de vibrações com certa distância de seu corpo.

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 21


AUGUSTIN MÉNARD

falta para o psicótico. Mas é o discurso que permite que o órgão venha
exercer sua função pela operação de “significantização”. Por exemplo, a
operação que permite a partir do pênis obter o significante fálico e sua
negativação. É o discurso que diz como fazer aí com seus órgãos.
“O dizer esquizofrênico se especifica de ser tomado sem o suporte de
nenhum discurso estabelecido” (LACAN, 1973/2003, p. 475).
Jacques-Alain Miller fez observar que quando Deleuze e Guattari fa-
lam do psicótico como “corpo sem órgãos”, eles se enganam porque se-
ria mais um corpo sem discurso. É por isso que Lacan evoca o “suporte
do discurso estabelecido”. Essa frase parece se aplicar particularmente
a nosso caso, em que tem de haver o discurso do Outro para que ele
possa, ele próprio, tornar-se operacional, que ele seja designado como
“a galinha dos ovos de ouro” para que sua imagem pudesse tornar-se o
escrínio da mercadoria que ele tem para vender.
Essa reconstituição mítica do corpo como simbólico nos permite
compreender por que Lacan (1960/1998, p. 835) na Subversão do sujeito
formula: “O gozo é interditado a quem fala como tal”.
3. O corpo real
Na última parte de seu ensino, ou seja, a partir do Seminário XX,
Mais ainda, especialmente centrado sobre o corpo, Lacan vai efetuar
um verdadeiro reviramento em seu ensinamento dando proeminência
não mais ao imaginário ou ao simbólico, mas ao real, para em definiti-
vo, com a clínica dos nós borromeanos, homogeneizar os três registros
graças a seu enodar precisamente borromeo. Ele fez então, dos signifi-
cantes, a causa do gozo, e de sua corporização, o inverso da significan-
tização (MILLER, 2004). Na significantização, tratava-se de tomar todo
ou parte do corpo para elevá-lo ao significante, a imago é um exemplo,
o falo é outro. Na corporização, ao contrário, trata-se do significante
enquanto ele afeta o ser falante. Ele opunha, assim, o saber incorpóreo
da topologia, por exemplo, ao saber incorporado.

22 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


QUANDO O HÁBITO FAZ O EU: O CORPO NA PSICOSE
Bahia

Nessa axiomática, o saber passa no corpo e o afeta. É isso que Jac-


ques-Alain Miller sublinha como “acontecimento de corpo”. Eu cito:
o saber no corpo, seu efeito próprio, é o que Lacan chama afeto,
em um sentido sem dúvida generalizado. Ele chama afeto, a partir
do Seminário XX, o efeito corporal do significante quer dizer não
mais seu efeito semântico que é o significado, não mais seu efeito
de sujeito suposto saber, mas seus efeitos de gozo.

Schreber ilustra bem como seu Deus, que é um Outro que não existe,
que não é todo saber, necessita de seu corpo para gozar. Jacques-Alain
Miller aproxima essa função de corporização, ou seja, do saber que
entra no corpo, tanto as mutilações tradicionais quanto os fenômenos
mais recentes de piercing. É claro que estamos longe da fórmula “O gozo
é interditado a quem fala como tal” (LACAN, 1960/1998, p. 835). Aqui,
aparece a diferença com o paradigma precedente do corpo simbólico.
Precedentemente, o significante esvaziava o corpo de gozo; lá, todo pelo
contrário, o significante vem introduzir gozo no corpo. O paradoxo só é
aparente. Com efeito, Lacan distingue duas abordagens do significante.
Aquele com o qual nós estamos perfeitamente acostumados, o signifi-
cante que representa o sujeito para outro significante em uma articu-
lação simbólica. É o significante cujo efeito é o sujeito como falta a ser.
Mas o significante, quando não está articulado, quando ele não entra no
sistema simbólico, vira signo S1 desconectado de S2. Lá, não há efeito
sujeito, mas marca, memorial de gozo, comemoração do que é caído
da cadeia significante, ou seja o objeto “a”. É o que está no lugar onde
desfalece toda representação. Nós poderíamos dizer que se trata aí do
umbigo do simbólico.
Lacan vai mais longe em seus últimos Seminários, com a clínica Bor-
romeana e a representação do sujeito por um toro. Eric Laurent, em sua
intervenção no Seminário de J-A. Miller de 2001, colocou o acento so-
bre o esforço de Lacan para romper com a representação imaginária do
corpo, para tentar livrar-nos dessa imagem do corpo como uma bolha,
como uma esfera, até como um vaso que ele tinha, contudo, contribuí-
do para nos inculcar. Com a topologia sustentada pela imagem do toro

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 23


AUGUSTIN MÉNARD

revirado, o corpo é evocado como um aparelho furado cuja função seria


ser um captador não mais de gozo, mas de falta a gozar. O gozo nunca
é isso, no máximo, esse aparelho pode captar os objetos mais-de-gozar,
ou seja, os objetos a.
Para voltar a nosso doente, é mais pertinente sublinhar quanto o dis-
curso do Outro lhe permite situar seus objetos “a” que não foram sepa-
rados no sentido da operação de separação de seu corpo próprio. Para
retomar a metáfora do vaso invertido, o Outro coloca as flores no lugar,
a partir do qual ele pode acomodar sobre a imagem especular. Mas essa
imagem recuperada não é simbolizada, ela está ou presente, ou ausen-
te. Quando ela está presente, ela não contém nenhuma ausência como
para o neurótico,8 ela se une ao objeto a que lhe vem dar escoramento,
realizá-lo, deixando o abismo subjacente no qual o sujeito é sempre sus-
cetível de cair.9
No caso do “Senhor Hábito”, no final da entrevista, quando eu evoco
com ele seu futuro, ele me diz: “me falta para recomeçar um átomo, uma
gota d’água”, o que eu tinha lhe desejado encontrar. De fato, o efeito
dessa palavra foi fazê-lo encontrar “esse átomo”. Ele se ofereceu de novo
a ser o escrínio do objeto proposto ao outro. Esse sujeito nos demonstra
de uma forma que parece exemplar que é necessário livrar-se da identi-
ficação simplista do corpo e da imagem especular, se nos queremos dar
seu verdadeiro lugar ao corpo em tais casos.
Referências
FREUD, S. (1915-1916/1933) “Quelques types de caractères dégagés par
le travail psychanalytique”, in ______. Essais de psychanalyse appliquée.
Paris: Gallimard.
8 Podemos escrever: (i (a) )
––––––
a  (- φ)

9 Que escrevemos: i(a) –a


––––––
vazio

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QUANDO O HÁBITO FAZ O EU: O CORPO NA PSICOSE
Bahia

LACAN, J. (1960/1998). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no


inconsciente freudiano”, in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 807-
842.
LACAN, J. (1964/1985). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fun-
damentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1964a/1998) “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache:
psicanálise e estrutura da personalidade”, in ______. Escritos. Tradução
de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 653-691.
______. (1964b/1998) “Posição do inconsciente”, in ______. Escritos.
Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar p. 843-864.
______. (1965/2003) “Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebata-
mento de Lol V. Stein”, in ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar. pp. 198-205.
______. (1970/2003) “Radiofonia”, in ______. Outros escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar. p. 400-447.
______. (1972-1973/1985) O seminário, livro 20: mais, ainda. Tradução
de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1973/2003) “O aturdito”, in ______.
­­­­ Outros escritos. Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar. pp. 448-497.
______. (1976-1977) Le séminaire, libre 24: l’insu que sait de l’une bévue
s’aile à mourre. Leçon 1, 16 décembre 1976. Inédit.
MILLER, J.-A. (1999-2000/2004) Los usos del lapso. Buenos Aires: Pai-
dós.
______. (2004, dezembro) “Biologia lacaniana e acontecimentos de cor-
po”. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 41, p. 7-67.

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GUSTAVO DESSAL

Quando na psicose os órgãos falam


sozinhos1
When in psychosis the organs speak on their own

Gustavo Dessal

Resumo: Embora o corpo dos seres vivos, incluindo o mais insignificante, seja uma
máquina assombrosa, o corpo humano sofre dessa estranha doença universal de sua
espécie que chamamos alíngua. Alíngua o atravessa, remodela-o, perverte-o e o emba-
ralha. O neurótico se organiza com seu corpo da melhor maneira possível, mas para
muitos psicóticos, o corpo converte-se em um autêntico pesadelo. Este texto explica,
em linguagem acessível ao leigo em psicanálise, algumas características que o corpo
representa para o sujeito que fala, em particular no campo da psicose.
Palavras-chave: Corpo. Foraclusão. Linguagem de órgão. Gozo do corpo. Parafrenia.

Abstract: Although even the most insignificant living body of beings is an amazing
machine, the human body undergoes this strange universal disease we call lalangue.
Lalangue crosses the body, redesigns, perverts and confuses it. The neurotic is organized
with his body in the best way, but for many psychotics the body becomes a genuine
nightmare. In an accessible language for lay people in psychoanalysis this text explains
some features that the body represents for the subject who speaks, in particular in the
field of psychosis.
Keywords: Body. Foreclosure. Jouissance of the body. Organ language. Paraphrenia.

“Quão pouco sabemos sobre nós mesmos [...] Quão pouco sobre
nosso corpo!”2 (Sandor Marai, La gaviota)

Na semana passada, em sua conferência sobre a histeria, Rosa López


nos aproximou do modo como o corpo fala nessa estrutura. O sintoma
de conversão, que é a modalidade específica do sintoma corporal da his-

1 Publicado em: Letras nº 4, Revista de Psicoanálisis de la Comunidad de Madrid-ELP, Madrid,


2012. Traduzido por Tainã Rocha com a amável autorização do autor.

2 Na versão em espanhol: ¡Qué poco sabemos de nosotros mismos! ¡Qué poco de nuestro cuerpo!
(MARAI, 2011).

26 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


NAS PSICOSES OS ÓRGÃOS FALAM SOZINHOS
Bahia

térica, não se localiza ao acaso, mas envolve uma parte significada do


corpo que Freud denominou zona histerógena, e que serve, ao mesmo
tempo, para cifrar uma metáfora, uma mensagem inconsciente e secre-
ta, e para alojar uma satisfação disfarçada de dor ou inibição. Ainda
quando a integridade imaginária do corpo se vê afetada pelo sintoma, e
inclusive apesar de que a histérica experimente o sentimento de imper-
feição, incompletude ou deslocamento, o certo é que seu ego encontra o
modo de subsistir valendo-se de certas identificações para sustentá-lo.
Tem a vantagem, assim como o restante dos neuróticos, da estruturação
subjetiva ter realizado a incorporação de um símbolo que a psicanálise
descobriu como fundamental: o falo.
Não é fácil transmitir para um público leigo o significado desse con-
ceito, cujo nome é o suficiente para que sobre a psicanálise recaia a sus-
peita de promover uma ideologia questionável. Mas se eu posso usar
uma imagem simples, eu direi que o falo é o símbolo que, de alguma
maneira, resulta decisivo para introduzir o ser falante na dimensão da
humanidade. Para o homem, o falo representa a castração, pois repre-
senta um ideal que jamais poderá ser alcançado, e que o obrigará a expe-
rimentar a insuficiência e a vaidade do ter. Para a mulher, o falo é aquilo
que para sempre a recordará de sua privação, convidando-a a buscar no
gozo sexual ou em suas formas substitutivas uma satisfação limitada e
parcial. O símbolo faz distinções, sem dúvida, mas somente para distri-
buir de maneira singular a cada sexo o peso irreversível de uma perda
que os constitui como seres enredados no desejo e na palavra.
Hoje nos toca referir-nos a uma problemática diferente, a daque-
les sujeitos que sofrem a palavra de outra maneira. Se o neurótico tem
sido marcado pela linguagem, não é excessivo dizer que a linguagem na
psicose tem deixado a pegada de uma devastação. O psicótico, a quem
Lacan (1955-1956/1992, p. 153) denominou “mártir do inconsciente”,
por sofrer como ninguém a erosão da língua, é para o clínico uma fon-
te inesgotável de saber, um saber rigoroso, que em ocasiões se eleva a
genialidade, mas que em todos os casos nos mostra os extraordinários
esforços de um sujeito para sobreviver à loucura.

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 27


GUSTAVO DESSAL

Há muitos anos, eu li pela primeira vez o Seminário 1 de Lacan (1953-


1954/1986), dedicado aos escritos técnicos de Freud, e fui surpreendido
pela simplicidade de uma reflexão que, desde então, não tem deixado de
prestar-me uma extraordinária utilidade para compreender uma série
de fenômenos clínicos. Aí, referindo-se ao modo como a transferência
se manifesta na experiência de uma análise, Lacan propõe uma fórmula
sintética. O indicador da transferência, diz ele, é quando o analisando
nos transmite que, de repente, se tornou consciente de nossa presença.
E ele acrescenta: a presença é um sentimento que temos a tendência de
excluir de nossa vida.
O que significa isso? Significa que a vida é suportável na medida em
que a dimensão da presença esteja oculta, dissimulada, filtrada pelo que
chamamos o mundo das representações, isto é, o conjunto das ficções
que nos permitem orientar-nos na existência. E de que presença se tra-
ta? O que é isso que deve permanecer oculto atrás das ficções, mais além
da repetição cotidiana dos atos, rotinas e todas aquelas mecanizações da
vida que são fonte constante de queixa, mas que também nos protegem?
Digamos, por enquanto, que se trata da Outra Coisa, escrita com mai-
úscula, para destacar o fato de que, agachada, emboscada, escondida nas
sombras do mundo, há sempre a possibilidade, a contingência de um
encontro com o Outro, com aquilo que poderia mudar tudo.
Certa ignorância é condição necessária na vida cotidiana dos seres
humanos, daí que procurem a psicanálise somente quando essa igno-
rância se tornou insustentável como resultado de um sintoma, ou do
tropeço imprevisto com algo que perfurou a barreira do desconheci-
mento.
Recordo que, quando eu era pequeno, gostava de um jogo que con-
sistia em olhar fixamente um objeto qualquer. Havia descoberto que se
fosse capaz de fazê-lo durante uns minutos sem piscar acontecia algo
muito curioso: o objeto em questão começava a transformar-se, a per-
der seu sentido e parecia cobrar uma presença mais intensa, ao mesmo
tempo em que ia perdendo seu caráter familiar, transformando-se ligei-

28 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


NAS PSICOSES OS ÓRGÃOS FALAM SOZINHOS
Bahia

ramente em algo estranho. Levou muitos anos, sem dúvida, para que
eu pudesse compreender do que se tratava aquilo. É óbvio que naquela
época não podia saber que, por meio desse simples jogo, conseguia fazer
surgir o que estava oculto atrás da visão do mundo, quer dizer, atrás da
representação: o fato de que o objeto olhava para mim, que na realidade
era eu o objeto de um olhar, só que graças à circunstância de ser um
neurótico podia ignorá-lo, e não viver com a sensação apavorante de
ser observado, analisado, atravessado pelo olhar do Outro, como ocorre
com muitos psicóticos.
“Esquecemos”, graças a esse mecanismo de defesa primária e essen-
cial que a psicanálise conceituou com o termo repressão, que na origem
de nossa existência, antes de tomar a palavra e converter-nos em espec-
tadores do mundo, somos falados e observados desde todas as partes.
Rimbaud, com apenas 15 anos de idade, escreve a seu professor: “Eu
percebi que sou poeta. Não é de modo algum culpa minha. É falso dizer:
Eu penso; deveríamos dizer: pensam-me.”
O hipocondríaco “pensa o corpo”. Pensa-o todo o tempo, não pode
esquecê-lo, e desse modo tenta, sem sucesso, proteger-se da angústia.
Na psicose, a questão do corpo é muito mais difícil, e a defesa muito
mais fracassada. Miguelito é um maníaco-depressivo que organiza sua
vida em torno da função excrementícia. A essência da vida para ele é a
constante vigilância do trânsito intestinal. A constipação deve ser evita-
da a todo custo, já que a acumulação fecal obstrui o fluxo do pensamen-
to, provoca tonturas e decomposição dos fluidos corporais, altera seu
estado de humor e exerce uma influência nociva na capacidade erétil
de seu pênis. Passa suas sessões informando cuidadosamente sobre o
estado diário de seu intestino, a frequência de suas evacuações, a amar-
gura que lhe produz a estagnação, a alegria beatífica que resulta da de-
posição generosa e frequente, e os alimentos que ingere para incentivar
o movimento interno. Durante o transcurso do tratamento, consegue
dar um passo sublimatório importante: começa a conceber o projeto
(que, naturalmente, jamais chegará a realizar) de uma fazenda orgânica
que lhe dará extraordinários dividendos econômicos, e esse exercício

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 29


GUSTAVO DESSAL

imaginário coloca um limite a seus padecimentos corporais. Trata-se de


um circuito engenhoso pelo qual os excrementos das vacas e dos cava-
los, misturados com determinados produtos, servem de alimento para
as galinhas. Por sua vez, as deposições dos frangos são apanhadas por
dispositivos mecânicos que as distribuem no campo a fim de promover
a fertilidade do solo.
Ao longo dessas conferências, que começaram já faz alguns anos,
tem-se insistido de diferentes maneiras no fato determinante da lin-
guagem na estruturação da subjetividade humana. A psicose é para
nós uma fonte inesgotável de aprendizagem, uma vez que nos ensina
de maneira magnífica a composição, os mecanismos e as linhas de força
disso que Freud chamava “o aparelho psíquico”. Vou dar outro exemplo:
existe uma coisa chamada “síndrome de Cotard”, uma extraordinária
e impactante perturbação delirante da experiência do corpo. O sujeito
está convencido de estar morto, ou de que está faltando alguma parte do
seu corpo. Pode assegurar que não tem pulmões, ou que seu estômago
desapareceu. Para além de pertencer ao regime indiscutível da biologia,
a vida, no caso dos seres falantes, não parece ser compatível com o es-
tar vivo, a vida biológica não é suficiente para traduzir-se como tal no
plano subjetivo. É necessário algo mais, algo que deve operar para que à
vida biológica se acrescente o sentimento de viver. Não me refiro a um
sentimento que deve manifestar-se de forma consciente e permanente,
como promovem certas práticas filosóficas e meditativas, mas ao fato de
que a conduta do sujeito, seu proceder na existência, seu discurso, seu
modo de gozar, inclusive seus sintomas, reflitam o desejo de viver, ou
pelo contrário, expressem de forma direta ou velada a inércia daquilo
que Freud chamou de pulsão de morte.
A psicanálise não se propõe a fazer com que o sujeito encontre uma
harmonização plena com seu corpo, por considerar que toda ideia de
unidade, equilíbrio natural, de acomodação orgânica é uma fantasia
destinada a ignorar a profunda incompatibilidade do sujeito consigo
mesmo, a divisão incurável a que o trauma da linguagem o condena.
O fato, destacado por Lacan (1975/2007), de que “temos um corpo”, em

30 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


NAS PSICOSES OS ÓRGÃOS FALAM SOZINHOS
Bahia

lugar de “ser um corpo”, dá a medida de que o corpo é algo que nunca se


identifica completamente com o ego. O que o estudo da psicose oferece
é a possibilidade de captar a condição do homem em toda sua crueza,
despida das defesas das que o neurótico comum dispõe.
O fenômeno do duplo, que caracteriza certas formas de esquizofre-
nia, e que, aliás, tem ocupado um interesse central na literatura românti-
ca, é a prova fidedigna de que até mesmo nossa própria imagem não nos
pertence inteiramente, ao contrário, é um elemento estranho e alheio
introduzido em nossa vida em determinado momento do desenvolvi-
mento, e com a qual devemos familiarizar-nos para experimentar uma
apropriação identificatória. Na vida cotidiana, temos inúmeros exem-
plos que atestam que nossa imagem pode retroceder ocasionalmente até
sua alteridade primitiva. Voltando a Rimbaud, o célebre “Eu é um outro”
de seu poema é assumido pela psicanálise como uma verdade primeira.
Há algumas semanas, em visita a Buenos Aires, eu observava discre-
tamente a conduta de minha idosa mãe diante do espelho. Olhava-se
com desgosto, incapaz de resignar-se à erosão que o tempo infligiu à sua
imagem. Então, depois de uma última inspeção em frente do espelho,
deu língua a si mesma, em um engraçado gesto de repúdio a essa outra
mulher inaceitável que se encontrava diante dela. Na psicose, onde a
decomposição subjetiva é máxima, a imagem pode tornar-se indepen-
dente por completo, e espalhar-se de maneira alucinatória pelo mundo.
Levamos nosso corpo, às vezes o arrastamos, outras nos sentimos
elevados por ele. O amor que pode fazê-lo voar, enquanto a tristeza e
a melancolia lhe devolve toda a força da gravidade, a tal ponto que não
há mais solução a não ser render-se à queda. Alguns psicóticos, como o
famoso Schreber estudado por Freud, sentem que seu corpo é um “ca-
dáver leproso”, enquanto outros não podem suportar o excesso de vida
que o anima, e que os dirige a um movimento constante que pode levar
à exaustão e ao suicídio.
Do mesmo modo que na psicose comprovamos que a estrutura da
linguagem se desprendeu de seus enganches, e as palavras se põem em

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 31


GUSTAVO DESSAL

movimento por si mesmo de forma autônoma e incontrolável, o corpo


também cobra uma independência insuportável, as funções se rebelam,
os órgãos fazem sua aparição descompondo a forma e a representação
do corpo, assumem a liderança. Freud fala também de uma “linguagem
do órgão”, referindo-se ao fenômeno clínico observável na esquizofre-
nia, em que as palavras já não permitem estabelecer uma regulação do
gozo corporal, mas que se tornam equivalentes a esse gozo desagregado.
A psiquiatria comprovou a existência de uma “síndrome de automatis-
mo mental”, que é a forma na qual De Clérambault (1995) denominou
a irrupção selvagem da língua no sujeito psicótico, mas também a “sín-
drome do automatismo motor”, que descreve a experiência cenestésica
de que o corpo se retorce, agita-se, sacode-se, move-se por si mesmo,
desobedecendo às ordens de seu dono, e rompendo os laços de proprie-
dade e pertencimento.
Ainda que não tenha tempo de desenvolver, parece-me importante
assinalar que Freud começou concebendo o corpo na perspectiva ana-
lítica a partir do conceito de pulsão, ou seja, que se interessou primeiro
pela dimensão parcial, autoerótica e fragmentada do corpo. Vários anos
mais tarde, com a introdução do conceito de narcisismo, acrescentou
o registro da imagem como um engodo unificador. Por sua vez, Lacan
(1949/1998) partiu do narcisismo, com seu conceito do estádio do espe-
lho, e chegou muito mais tarde a interessar-se pela dinâmica das pulsões
parciais. De qualquer forma, e acima dessa distinção metodológica, o
fato é que ambos compartilhavam uma mesma preocupação: a neces-
sidade, à que a clínica nos obriga pelos fenômenos que são oferecidos
à nossa escuta, de encontrar elementos teóricos que permitam articular
o corpo e a palavra, sendo o corpo uma subjetivação do organismo, ou
seja, a suposição psíquica da experiência orgânica. O organismo huma-
no, perturbado pela língua, deve encontrar no martírio do significante
o elemento que o resgate. Muito sinteticamente, Lacan denominou No-
me-do-Pai o símbolo que deve ser introjetado pelo sujeito para obter
uma acomodação mínima do sentido e do gozo. Se essa propriedade foi
outorgada à figura paterna, é porque a paternidade encarna necessaria-
mente a dimensão simbólica, mais além da função genitora, enquanto

32 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


NAS PSICOSES OS ÓRGÃOS FALAM SOZINHOS
Bahia

representa na vida humana o índice de uma transcendência sobre a na-


tureza animal.
Independentemente de que ao longo de seu ensino Lacan tenha in-
troduzindo variantes substanciais à sua teoria do Nome-do-Pai, a ver-
dade é que manteve a ideia de que a ausência dessa simbolização está na
origem da psicose, e que essa ausência se traduz nas duas grandes ordens
de fenômenos que encontramos na loucura: as que afetam a linguagem e
as que atestam uma grave perturbação na experiência do corpo.
A imagem do corpo (e nossa época, caracterizada pela desintegração
progressiva de todas as certezas, exemplifica absurdamente) é objeto de
adoração porque ela é eterna e imortal, e esconde esse mundo secreto
e invisível, o Outro corpo, o corpo onde palpita o espantoso mistério
da vida e seu ciclo mortal, esse corpo que existe fora da representação,
feito de partes separadas, de buracos, de borda, de superfícies que res-
pondem a leis geométricas completamente alheias à figuração clássica
da forma. O cubismo, o surrealismo e outras correntes artísticas foram
caracterizados por expor essas mudanças e decomposições da imagem,
esses fantasmas de transmutação e despedaçamento que os psicóticos
nos referem.
Do mesmo modo que a relação do sujeito com a linguagem, em que
o parasita requer uma função estabilizadora, o corpo e seus gozos são
suportáveis na medida em que a castração imponha alguma ordem na
dinâmica das pulsões parciais, as quais deixadas à sua inércia demons-
tram trabalhar a serviço da morte. Em outras palavras, a condição da
imagem do corpo depende de uma operação de esvaziamento, isto é,
de remoção de parte do gozo que por ele circula. Os rituais castrativos
de muitas culturas (a circuncisão, a escarificação) expressam a necessi-
dade de que uma lei simbólica imponha sua marca no corpo e produza
um corte, uma limitação, uma regulação do gozo que, de outra forma,
se torna incontrolável e mortífero, demasiadamente presente, excessi-
vamente real. Se tivéssemos de retratar as consequências da psicose no
corpo, poderíamos dizer, seguindo o modelo que inspirou Lacan na sua

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 33


GUSTAVO DESSAL

elaboração do estádio do espelho, que na loucura observamos o vaso


quebrado e as flores espalhados por toda parte.
Quando Freud (1911/1996) postulou que na psicose o delírio é uma
tentativa de cura, é porque ele serve ao propósito de restabelecer o senti-
do. Depois do momento inicial em que irrompe a psicose, e o significan-
te e o significado perdem sua aparente conexão, o sentimento de per-
plexidade se apropria do doente, testemunha de que tudo ao seu redor
parece haver-se desprendido de seu lugar, o sentido se desestabiliza, e
nada é o que parecia. Às vezes, essa experiência começa com um peque-
no sinal que aumenta progressivamente. Uma sensação, uma cenestesia
do corpo, uma voz, um olhar. Em um segundo momento, o trabalho do
delírio vai começar a tentar suturar esse infortúnio e restabelecer, me-
diante uma estrutura narrativa, a fragmentação do universo.
É fundamentalmente nas formas paranoicas em que o trabalho do
delírio se mostra mais eficaz, já que consegue também manter certa in-
tegridade da estrutura corporal. Ao contrário, a esquizofrenia caracte-
riza-se por uma inibição das propriedades ressignificativas do delírio, o
qual entrega o sujeito não somente à maior e mais profunda desestru-
turação alucinatória da linguagem, mas também à dissolução da iden-
tidade corporal.
Em um caso de parafrenia cujo histórico eu publiquei há algum
tempo, pude apreciar com imensa clareza a forma como a linguagem
e o corpo se articulam, de tal modo que um acidente na amarração do
sujeito à primeira conduz a um deslocamento irrefreável na experiên-
cia do segundo. Era uma mulher que sofria uma atividade alucinatória
crônica e constante. A mortificação das vozes exercia simultaneamente
um tormento em seu corpo, sistematicamente chicoteado, penetrado e
despedaçado pela invasão das mensagens do Outro.
A despeito da espetacular magnitude dos fenômenos patológicos, o
caso foi extremamente benigno em termos de sua evolução, já que o
engenhoso e perseverante trabalho do delírio alcançou uma estabiliza-
ção e um apaziguamento do martírio corporal, restaurando-lhe sua vida

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NAS PSICOSES OS ÓRGÃOS FALAM SOZINHOS
Bahia

sexual, até então violentamente interrompida. Um aspecto a destacar


nesse caso foi o fato de que a paciente se defendia da intrusão da língua
mediante a obstrução de todos os orifícios do corpo. À noite colocava
tampões nos ouvidos, vendava os olhos, colocava pedaços de fita plásti-
ca na boca e usava tampões na vagina e no ânus.
O verdadeiro teste, o real desafio no trabalho com esse sujeito, foi o
fato de que sua melhora também resultou no desejo de ter um filho, o
que desde logo supõe uma implicação máxima do corpo. Como pode-
ria essa mulher, que dedicou vários anos de sua vida à penosa tarefa de
proteger seu corpo da invasão do Outro, experimentar a presença da
vida em seu interior? O acontecimento tornou-se realidade, e pelo que
soube posteriormente (já que depois de dar à luz, e seguindo o curso
habitual nas análises de muitas mulheres, a paciente interrompeu suas
sessões declarando-se aliviada de seus sintomas), foi capaz de assumir a
maternidade sem maiores problemas.
Não direi mais nada sobre esse caso nem sobre sua curiosa evolução
já que desconheço seus avatares atuais, mas quero destacar a questão do
corpo nos desencadeamentos das chamadas psicoses puerperais, uma
vez que constituem um exemplo que permite apreciar alguns mecanis-
mos essenciais da loucura, e, portanto, a condição estrutural do sujeito,
já que em todo momento nosso esforço como analistas é o de sustentar
a premissa de que a normalidade é um mito moderno, enquanto o pato-
lógico não é mais que um declínio do infortúnio universal da condição
humana.
Como desenvolveu Rosa López em sua última conferência, a mul-
tiplicidade de saberes que na era moderna patrocina a questão da ma-
ternidade fala claramente que de modo algum a gravidez, o parto e o
cuidado da prole podem ser deixados nas diligentes mãos dos instintos,
que, apesar dos esforços do cientificismo e do psicologismo feroz, não
parecem muito dispostos a comparecer quando mais se necessita deles.
Mesmo o fato de que certas correntes incentivem a prática de dar à luz
seguindo os imemoráveis conselhos da mãe natureza, não deixa de ser

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 35


GUSTAVO DESSAL

um discurso a mais, ou seja, uma modalidade que é adicionada a tantas


outras palavras que norteiam o sujeito em uma experiência para a qual
se encontra simbolicamente desprotegido e carente.
Como a mulher pode significar a ideia inaudita e impossível de que
um ser seja formado em seu interior, desenvolver-se, crescer e um belo
dia sair de dentro daí por caminhos ainda mais inimagináveis que os
mistérios de Deus? Sem dúvida, esse sentimento que nos embarga dian-
te do recém-nascido, esse maravilhado assombro com o que contem-
plamos o incessante e renovado enigma da vida, e cuja eterna repetição
não esgota nunca nossa capacidade de surpreender-nos, é o inverso da
escura inquietante percepção de algo que, no fundo, não compreende-
mos em detalhes, e que desafia nosso entendimento com sua radical
estranheza.
Inter faeces et urinam nascimur (nós nascemos entre urina e fezes),
disse Santo Agostinho em sua infinita sabedoria, o que significa que es-
tamos tão perto da imundícia, que convém não esquecê-la nunca, por-
que não é impossível voltar a ela. E o que nos diz, entretanto, Freud?
Que uma das teorias sexuais infantis mais comuns é a do parto fecal,
ou seja, que dada à dificuldade para compreender o mecanismo do nas-
cimento, a criança elabora a teoria de que os bebês nascem pelo ânus
(FREUD, 1905/1996). Como é sutil a barreira que separa o precioso do
impuro, o bem mais amado do dejeto! A mãe, endeusada pelos mitos do
cristianismo, o discurso social e os fantasmas do neurótico, é qualificada
de “desnaturada” quando, em vez de entregar-se aos cuidados protetores
próprios de seu ofício, assusta nossa consciência com a notícia de ter
afogado seu filho ou o jogado ao lixo.
Como psicanalista não necessitamos apelar à ideia de uma degenera-
ção aberrante, mas suspeitamos que essa mulher não poderia investir a
criança com as envolturas do desejo, ou seja, significá-lo com o símbolo
fálico, o símbolo do grande Eros universal. Como assumir a existên-
cia desse ser que saiu dela mesma, emergindo do horror informe de
sua própria existência? Desprendendo-se dele, não fez mais que tentar

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NAS PSICOSES OS ÓRGÃOS FALAM SOZINHOS
Bahia

em vão arrancar de si mesma, da experiência dolorosa de seu despe-


daçamento vital, a experiência aniquilante de uma coisa que não pode
alojar-se no marco pacificador do amor e do sentido. O desejo da mãe
concede ao filho o valor de um brinquedo erótico, símbolo imaginário
com o que remediar sua privação, sempre e quando em seu inconscien-
te se tenha estabelecido essa equação que faz do filho o equivalente do
dom que a ela tem sido negado, e que constitui um ponto decisivo no
Édipo da mulher.
A psicanálise veio a revelar que na origem da psicose está envolvido
um mecanismo que altera profundamente a estabilização da palavra e
do corpo, entregando o sujeito à hemorragia do sentido e à despersona-
lização de sua imagem, e o condena a uma errância no fluxo implacável
da linguagem. Entre o sujeito e seu semelhante, já não existe nem dis-
tância, nem diferença, nem empatia, nem compaixão, a agressividade
torna-se dominante, e o desejo do Outro, em seu duplo sentido, con-
verte-se no signo de um gozo sinistro e perverso, quer se manifeste no
mundo exterior, quer no interior de seu corpo cujo gozo mortal tornou-
-se desmedido. Assim, o crime passional do paranoico, ou o filicídio,
são, em última análise, variantes dessa automutilação por meio da qual
o psicótico busca desprender de seu corpo o horror de um gozo que, nos
casos mais desesperados, pode conduzi-lo ao suicídio.
A questão que hoje nos ocupa, como tantas outras em psicanálise,
transborda-nos com sua extraordinária riqueza e variedade. No entan-
to, não queria concluir sem mencionar aqueles casos de psicose em que
o corpo, longe de converter-se no cenário do colapso subjetivo, é o que,
pelo contrário, funciona como ponto de fixação, o “ponto de acolchoa-
mento”, como diz Lacan, servindo aos propósitos de manter a estabilida-
de que pode ser precária, ou, pelo contrário, bastante eficiente. Alguns
sintomas psicossomáticos, muitos deles, particularmente, graves, conse-
guem cumprir uma função de “amarração”, como se a lesão permitisse
localizar e fixar no corpo o gozo desenfreado. Assim, por exemplo, uma
grave insuficiência tireoidiana possibilita a mulher construir um delírio
hipocondríaco que organiza seu mundo, os cuidados de seu corpo e os

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GUSTAVO DESSAL

laços sociais. A medição e monitoramento dos seus níveis hormonais vão


assegurar a prevenção das crises de angústia e as descompensações do
humor. Sua vida profissional, sentimental, amorosa, sexual, tudo vai ser
“explicado” mediante as alterações das curvas hormonais. Ela pode, ainda,
“perceber” o nível hormonal de qualquer pessoa, como se fosse um có-
digo que lhe parece transparente e desse modo regular as próprias atitu-
des e expectativas em relação aos outros.
Alguns anos atrás, um senhor veio-me ver interessado em iniciar
uma análise. Tratava-se de um homem de meia-idade, com uma trajetó-
ria de êxito profissional no campo da economia, e que, aparentemente,
desfrutava um feliz matrimonio e filhos saudáveis e excelentes. Diante
de um estado de bem-estar tão invejável, não pude deixar de perguntar-
-lhe o motivo de sua consulta, ao que ele respondeu que, movido por
sua constante curiosidade e ambição intelectual, havia feito um mes-
trado em Psicanálise na Universidade. Como o estudo dessa disciplina
lhe parecia fascinante, considerou que era hora de complementar a for-
mação teórica com - nas próprias palavras - “experiência da transferên-
cia”. Não satisfeito com essa explicação razoável, insisti em questioná-lo
longa e cuidadosamente, até conseguir que, quase em um sussurro, ele
confessasse o extraordinário projeto que o mantinha absorvido: uma
tese de doutorado que refletia a revelação que o havia transformado.
Depois de um breve silêncio que nos manteve em suspense, acres-
centou que estava a ponto de comunicar ao mundo que o inconsciente
tem sua localização anatômica no estômago. Passada uma hora, despe-
dimo-nos em um clima de grande cordialidade. Pareceu-lhe muito sábia
minha observação de que, de modo algum, necessitava uma análise. Mi-
nha pergunta, você acredita que a humanidade está preparada para uma
verdade como essa? o comovera a ponto de concluir que o melhor seria
manter sua descoberta em segredo, para o qual confiava plenamente em
mim. Eu não sei o que aconteceu com ele, e espero que seu estômago, ou
seu inconsciente, ou ambos, ainda sigam em seu lugar.

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NAS PSICOSES OS ÓRGÃOS FALAM SOZINHOS
Bahia

Referências
DE CLÉRAMBAULT, G. G. (1995) Automatismo mental: paranoia. Bue-
nos Aires: Polemos.
FREUD, S. (1911/1996) Notas psicanalíticas sobre um relato autobio-
gráfico de um caso de paranoia (dementia paranóides). Rio de Janeiro:
Imago. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund
Freud, v. 12).
______. (1905/1996) Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio
de Janeiro: Imago. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, v. 7).
LACAN, J. (1949/1998) “O estádio do espelho como formador da fun-
ção do eu tal como nos é revelada na experiência analítica”, in ______.
Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. pp. 96-
103.
______. (1975/2007) “Joyce, o sinthoma”, in, O seminário, livro 23: o
sinthoma (1975-1976). Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2007.
______. (1953-1954/1986) O seminário, livro 1: os escritos técnicos de
Freud. Tradução de Betty Milan. y4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
(Campo Freudiano no Brasil).
______. (1955-1956/1992) O seminário, livro 3: as psicoses. Tradução de
Aluísio Menezes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
MARAI, S. (2011) La gaviota. Barcelona: Salamandra.

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GUILLERMO BELAGA

Manera de una psique sin cuerpo1


Mode of a disembodied psyche

Guillermo A. Belaga

Resumo: Este trabalho levanta uma investigação a partir da referência lacaniana do sin-
thome como acontecimento de corpo. O autor suscita o poeta portenho, Macedônio Fer-
nandez, para discutir as soluções psicóticas, assim como Lacan o fez a partir de Joyce.
Diante do parasitismo da linguagem, o sujeito precisa inventar, uma dessas invenções
surge pela via do amor, como demonstra a invenção macedoniana.
Palavras chave: Arte. Sinthoma. Acontecimento de corpo. Amor

Abstract: The present work sets up an investigation departing from the Lacanian ref-
erence to the sinthome as a body event. It focuses on the Argentinean poet Macedo-
nio Fernandez to discuss psychotic solutions as Lacan did with Joyce. Facing language
parasitism, the subject needs to invent and one of those inventions arises from love, as
Macedonian invention demonstrate.
Keywords: Art. Sinthome. Body event. Love

O presente trabalho tentará levantar uma investigação tomando as


seguintes definições de Jacques Lacan; em uma ele diz: “Relacionar-se
com o próprio corpo como algo alheio é certamente uma possibilidade
que expressa o uso do verbo ter. Um tem seu corpo, não o é em qual-
quer grau” (LACAN, 1975-1976/2005a, p. 150).2 Em conexão, com o
conceito de sinthome como “acontecimento corporal”.
Algum tempo atrás, começamos a perceber que havia outra leitura
da clínica, quando orientados por um trabalho de J.-A. Miller, apare-
ciam como uma surpresa, as doenças da mentalidade.
Assim, a paciente Mlle. B., apresentada por J. Lacan na época deste
1 Publicado em Coloquio - Seminario sobre el seminario 23 de J. Lacan El sinthome. Buenos Aires:
Grama Ediciones, 2007. Traduzido por Wilker França com a amável autorização do autor
2 No original: “Avoir rapport à son propre corps comme étranger est certes une pos­sibilité,
qu’exprime le fait de l’usage du verbe avoir. Son corps, on l’a, on nel’est à aucun degree”.

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MANEIRA DE UMA PSIQUE SEM CORPO
Bahia

seminário, permitiu-lhe afirmar que ela não tinha “a menor ideia do


corpo que tinha que colocar embaixo de seu vestido”, que “não havia
ninguem para habitar a vestimenta”, e que suas identificações não se
haviam precipitado em um “eu”. Assim, o caso demonstrava um “ima-
ginário extraviado sem eu (moi), espelho enganchado em todas as par-
tes, mas captado por nada, pura mentalidade desavergonhada. Não há
significante mestre, e ao mesmo tempo, nada que venha a dar-lhe o las-
tro de alguma substância, não há objeto a que preencha seu parêntese”.
(MILLER, 1996, pp. 147-148).
A partir desse ensino, instaura-se um estudo das psicoses mais cen-
trado na clínica da alucinação, em que se fazem evidentes esses pacien-
tes que não padeciam de uma “enfermidade mental séria”, e que teste-
munhavam do parasitismo da linguagem. Entretanto, simultaneamente
apareceram, ao contrário do caso Schreber, aqueles enfermos que ensi-
navam, sobretudo por seus embaraços com a língua, por seus fenôme-
nos clínicos; não tanto pelas soluções encontradas.
Questão pela qual Lacan (1975-1976/2005a, p. 150) recorreu a outras
referências: a forma em Joyce de abandonar a relação com o próprio cor-
po, diz no seminário, “resulta completamente suspeita para um analista,
porque a ideia de si mesmo como corpo tem um peso”;3 solução que
caracteriza o ego joyciano. E que justamente é o que contrasta com os
casos que apresenta, em que verifica a disfunção entre o parasitismo da
linguagem e o corpo, e o insuficiente da consistência do próprio corpo.
Dessa forma, seguindo a operação de Lacan, tomarei como refe-
rência Macedonio Fernández, que mostra que a linguagem: não existe
como estrutura, que pode ser desfeita pelo empuxo da língua. E também
de que maneira o corpo é aquilo que faz objeção ao sujeito.
2 Macedonio Fernández: mestre do paradoxo
Jean-Claude Masson – conhecido poeta e tradutor de autores lati-
nos-americanos –, em sua apresentação da edição francesa de Museo
3 No original: “est tout à fait suspecte pour un analyste, car l’idée de soi comme corps a un poids”.

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GUILLERMO BELAGA

de la Novela de la Eterna, compara Macedonio com Joyce (1975/1993).


Sabe-se que Macedonio “passou a vida escrevendo”, mas, por sua
vez, publicou em pequenas doses, com relutância ou distraidamente.
Por exemplo, uma parte substancial do Museo foi composta entre os
anos 1920-1930, ele continuou escrevendo até que, finalmente, pouco
antes de sua morte (em 1952), espalha diante do filho a enorme pilha
de folhas que formava o romance, mistura as folhas e as empilha outra
vez, como em um jogo de cartas. Depois desse episódio, teve de esperar
quinze anos para a publicação (FERNÁNDEZ, 1967); foi o tempo que
Adolfo de Obieta levou para reconstituir e ordenar esse quebra-cabeças,
seguindo o que foi presumivelmente o plano de seu pai.
Em relação ao seu trabalho, Masson confessa que, em alguns mo-
mentos, teve de se conter para não desmentir, amansar a prosa de Mace-
donio: sua floresta conceitual, sua lógica alucinatória e sua selva de jogo
de palavras, e nesse sentido, recorda que o propósito de Joyce era nada
menos que o de acabar com o inglês “tal como o falamos”. Minando o
anglicismo em seus próprios fundamentos, ao questionar o que está por
trás da ordem linguística, por trás da arbitrariedade da língua. Assim,
segundo Masson, o que Joyce fez com o idioma inglês o argentino reali-
zou com o castelhano. Por último, comenta que os textos de Macedonio
se encontram cheios de alusões à filosofia, logo à psicologia com sua
adesão às ideias de William James. E por último, a paixão pela política
em sentido amplo.
Finalmente, em sua biografia, destaca um fato fundamental: a pre-
matura morte de Elena –sua companheira–, onde aparece uma quebra
em sua vida.
3 Macedonio Fernández e o sonho americano
Assim, intitula seu artigo o filósofo Rubén Ríos (2005), publicado em
um número recente de La Biblioteca, revista da Biblioteca Nacional, em
que aborda o intercâmbio epistolar entre Macedonio e William James
levando em conta duas cartas: em uma, comunica a J. L. Borges que sua

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MANEIRA DE UMA PSIQUE SEM CORPO
Bahia

preocupação “é a metafísica, isto é, arredondar William James”. E mais


tarde, por volta de 1942, para Eduardo González Lanuza, quando lhe
diz: “eu mantenho a pretensão de completar James que soube tudo, salvo
um quase que eu acreditaria poder preencher; você conhecerá minha
[...] única adição, não síntese, ao que faltou minimamente a W. James”.
A esse respeito, essas comunicações expressam a recepção de James
por Macedonio, a quem chama “o maior psicólogo de todo tempo e filó-
sofo da emoção, do pluralismo e do pragmatismo” (1929), “meu mestre
total” (1944). Referendando que: “encontro em seu exemplo estímulo
para seguir meu gosto igual ao seu”.
Em resumo, achamos por um lado o gosto de Macedonio, que en-
contra e elogia os textos de James, e por outro, o “completar”, adicionar-
-lhe um “quase” que lhe falta impulsionando um suplemento mínimo à
psicologia e ao pragmatismo de William James.
Resumidamente, W. James (1842-1910) foi o autor de importan-
tes obras – ainda citadas – como Princípios da Psicologia (1890) e suas
conferências de 1906, sobre “Pragmatismo”, que influenciaram de for-
ma determinante o campo da psicologia e da filosofia. A partir de seus
“Princípios”, será considerado o precursor da psicologia funcionalista
americana, e muitos de seus capítulos serão parafraseados, recriados e
ecoarão nos escritos de Macedonio. Nesse sentido, refere que William
James se interessou por: “minha teoria psicológica da Especificidade,
original minha, que, parece, particularmente o impressionou. Contesta-
-a, mas se detém em fazer observações ad hoc [...], pois eu negava a pura
especificidade considerando-a aperceptiva”.
Dessa maneira, deixa-se transluzir uma primeira diferença: a tese
que Macedonio tem da sensibilidade. Segundo a qual não existe o es-
pecífico na ordem dos sentidos, fazendo uma objeção a W. James com
respeito à concepção do Eu, à subjetividade e à consciência. A esse res-
peito dirá, “as páginas em que expus minha tese negando a especificida-
de sensorial nasceram de um devaneio do que eu não soube, ao acordar
se estava tecido com imagens visuais (passagem de um romance ou cena

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 43


GUILLERMO BELAGA

visual da vigília) ou auditivas”.


Sua leitura das sensações que questiona o sujeito clássico recorda o
escrito por Lacan (1958/1998) em De uma questão preliminar a partir da
clínica das psicoses. Lá, seu enfoque crítico consiste em partir do percep-
tum, admitindo sua primariedade na percepção, “onde o sujeito mostra
todos os paradoxos dos que é paciente nessa percepção singular”. Em
suma, salienta que o significante isolado, ao impor-se como voz áfona,
não tem nada a ver com a modulação sonora, e portanto não se deve
confundir com nenhum sensorium.
Mais tarde, recorda Miller, essa autonomia do perceptum se conecta-
rá com a linguisteria, isto é, outra forma do uso da língua.
Em Macedonio, encontramos ressonâncias com isso, quando afirma
um “almismo ayoico” que tem como única realidade o Psíquico. Psyche
sem substância, a partir de que as sensações “nos são impostas sem que
saibamos de onde vêm” e onde também questiona James porque remete
o corpo ao sensível.
Interrogante, que estabelece outro contato com este, mas dessa vez
com o “Pragmatismo”. Recordemos que foi este autor que estabeleceu
o grande princípio pragmático: “um significado que não seja prático é,
para o pragmatismo, como se não existisse”. Assim, Macedonio diz ser
um “empirista radical”, e que sua teoria atua “diretamente sobre certa
parte da Matéria, do Mundo, pouquíssima; é nosso corpo, e desse corpo
uma pequena parte…”.
Nesse sentido, G. García (1975) comenta que, para Macedonio, é seu
corpo o que o separa de Elena e não a morte, o que a Elena, a separa
dele. Ainda sustentava que “morrer para ele era tirar o sobretudo”.
Na obra de Macedonio, há um vaivém entre os devaneios (compa-
ráveis às epifanias joyceanas) e a escrita. Então, entre suas soluções se
interceptam a escrita como um meio para procurar-se uma identidade
e o amor como modo de enlaçar um corpo: “e só porque ela quer sorrir

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MANEIRA DE UMA PSIQUE SEM CORPO
Bahia

uma última vez para seu amor, escrevo este libro que não necessitamos”.
Também dirá: “O desejo que me animou para a construção de meu ro-
mance foi criar um lar, fazê-lo um lugar para a inexistência, para a não-
-existência em que necessita encontrar-se Deunamor”.
É aqui onde aparece Deunamor, uma criação que se inspira em seus
“devaneios”, e como explica a partir da “morte de sua esposa, a quem
apareceu amando imensamente, [...] pouco a pouco, Deunamor foi per-
dendo sua sensibilidade, até ficar reduzido a um corpo sem consciência”.
Por seu lado, Rubén Ríos, também coincide que essa ação que lhe
permite materializar esse “pouquíssimo” de corpo é uma instrumentali-
zação pragmática orientada mais além do útil. Como insinua Macedo-
nio: “tudo é possível”, dado que a psyche “não responde a nenhuma lei”,
é unicamente a práxis da linguagem nomeando ou descrevendo o acon-
tecer errático do mundo. Com o que o “homem” tem de assumir a tarefa
– que lhe seria imposta – de “fazer” o mundo descrevendo o que ainda
não tem nome. Essa tarefa Ríos a formula como o “nominalismo da sen-
sibilidade” de Macedonio Fernández, e talvez, levando em consideração
um Poema de poesía del pensar, dedicado a Jorge Luis Borges, denomina
sua lógica como pragmatismo poiético (de poíesis: “invenção”, criação”)
ou pragmatismo mito poético do acontecimento.
4 O “acontecimento de corpo”
Maneira de uma psique sem corpo é o título de um texto – que inspira
esta intervenção – em que Macedonio (1953, p. 22) enfatiza:
Mantenha-se no mistério, leitor. Para a Psique não há o ‘em’, não
está no corpo. E em um corpo podem manifestar-se e receber es-
tímulos duas Psiques tão estranhas uma a outra como as que se
manifestam mediante dois corpos. E essa experiência é suficiente
para iluminar a não dependência: a transparência da Psique nos
Corpos.4

4 No original: “Mantente en el Misterio, lector. Para la Psique no hay el ‘en’, no está en el Cuerpo.
Y en un cuerpo pueden manifestarse y recibir estímulos dos Psiques tan extrañas una a otra
como las que se manifiestan mediante dos cuerpos. Y esta experiencia es suficiente para iluminar

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GUILLERMO BELAGA

A noção de sintoma “no que é: acontecimento de corpo, ligado ao


que se tem”, foi sublinhada por J. A. Miller da intervenção que J. Lacan
(1975-1976/2005b) fez em 16 de junho de 1975 na seção inaugural do
Quinto Simpósio Internacional James Joyce.
O fato de que “o sintoma não está no corpo”, senão que está situado
como “acontecimento de corpo”, pontua Laurent, é o modo em que J.
Lacan o vincula aos “incorpóreos”. Intervindo no que tinha indicado
anos antes, G. Deleuze sobre o pensamento dos estóicos e sua distinção
entre corpo e incorpóreo; em que se opôs à espessura dos corpos, os
acontecimentos corporais que tinham lugar unicamente na superfície.
Assim, os “incorpóreos”, não são qualidades e propriedades físicas, se-
não atributos lógicos ou dialéticos (relacionados essencialmente com a
linguagem). Não são coisas ou estado de coisas, substantivos nem adje-
tivos, senão verbos, acontecimentos: resultados de ações e paixões.
Em síntese, o acontecimento é expresso sempre por um verbo, não é
um ser, senão uma maneira de ser, e Deleuze o exemplifica distinguindo
que uma árvore pode ser verde, mas diferente é quando o acontecimen-
to incorpóreo na superfície provoca que uma árvore fique verde.
5 Uma lógica de bolsa e cordas
No final do Seminário, Lacan vai propor ante a disjunção, “uma lógi-
ca de bolsas e cordas” para enodar a linguagem ao corpo.
Em sua “Nota passo a passo”, J.-A. Miller (2007) retoma essa aula e
formula o alcance da articulação de Lacan do corpo sem órgãos, o corpo
conjunto vazio, o corpo bolsa, sua ex-sistência, a respeito das cordas da
linguagem que o atravessam em torno de um furo.
Desse modo, poderíamos estudar na clínica cotidiana seguindo a
tese de que viemos ao mundo com um parasita, certos fenômenos clíni-
cos que dão conta da categoria do real e que surgem na borda do sistema
da linguagem. E dessa premissa, verificar como as cordas (o elemento
significante, o traço unário, o S1) estão ali para anodar a bolsa, para
la no-dependencia: la transparencia de la Psique en los Cuerpos.”

46 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


MANEIRA DE UMA PSIQUE SEM CORPO
Bahia

articulá-la com o furo.


Assim, podemos situar que no trauma em geral, ou no “ataque de
pânico”, com seu “medo súbito de morrer”, apresentações que dão conta
de um furo no interior do simbólico, onde o corpo se apresenta como
o impossível de suportar, um primeiro gesto terapêutico consiste em
orientar o sujeito em seus ditos para conseguir uma “legibilidade” do S1,
para que produza o S1 que ordene sua palavra e sua ex-sistência.
Por outro lado, na alucinação, ante as “palavras impostas”, diante do
“eco do pensamento”, o sujeito dramaticamente experimenta que não
se pode sair mais da linguagem, que algo infecta sem uma ordem, sem
uma lei.
A esse respeito, diante destes “uns” separados em disjunção, a psi-
cose ensina com suas soluções a clínica das neuroses. Uma delas surge
pela via do amor, como demonstra Deunamor, a invenção macedonia-
na. Esta está próxima do que J.-A. Miller define na perspectiva do sin-
thome: que o amor, é o que pode fazer mediação entre os uns sozinhos,
é uma maneira de fabricar sentido a partir de um gozo que é sempre
parasitário.
Para concluir, em uma entrevista, Borges (1984/2006) relata que o
amor foi um tema de conversação com Macedonio:

Eu tive uma discussão com Macedonio Fernández, já que Mace-


donio negava o eu, ele colocava o amor como supremo, e eu lhe
dizia, bem, então quem se enamora se não existe o eu? Ele dizia
‘o eu não existe’ [...] Mas então, por que tanta importância para o
amor? Macedonio pensava que a paixão é formosa, mais além de
que existam pessoas. Não entendi bem isso [finaliza Borges] não
sei se Macedonio o entendia.

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 47


GUILLERMO BELAGA

Referências
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septiembre de 1984 invitado por el Profesor Titular de Filosofía Tomás
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Marí, en el Aula Magna de la Facultad de Psicología de la UBA”. La Caja
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Gleizer. (Colección Índice). p. 13-17.
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48 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


MANEIRA DE UMA PSIQUE SEM CORPO
Bahia

Paris: Seuil. pp. 161-169. Disponível em  : http://ttyemupt.unblog.fr/


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______. Matemas I. Tradução de Sergio Laia. Rio de Janeiro: Jorge
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nível em: http://www.bn.gov.ar/imagenes/revistas/anx7.pdf

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 49


FÁTIMA SARMENTO

Corpo e histeria
Body and hysteria

Fátima Sarmento

Resumo: A histeria é, desde Freud, um exemplo da relação entre o corpo e a lingua-


gem. Este texto objetiva refletir sobre dois pontos: o primeiro examina a constituição
imaginária do corpo na histeria, para mostrar que as dificuldades da histérica com sua
imagem corporal passam pelo fato de não existir no Outro um significante que defina o
seu ser sexuado de mulher. O segundo ponto analisa que na histeria o corpo feminino
fica em suspenso porque o sujeito histérico, ao recusar o significante-mestre, recusa o
próprio corpo.
Palavras-chave: Constituição imaginária do corpo. Histeria. Recusa do corpo.

Abstract: Since Freud hysteria has been an example of the relation between body and
language. This text aims to argue over two points: the first examines the imaginary con-
stitution of the body in hysteria to show that the difficulties of the hysteric with her
body image are related to the fact that there is not a signifier in the Other that defines
her sexual woman being. The second point examines that in hysteria the female body “is
put in suspense” because the hysterical subject, in refusing the master signifier rejects
its own body.
Keywords: Imaginary constitution of the body. Hysteria. Body refusal.

Há efeitos da ciência sobre o corpo. Segundo Lacan (1975-1976/2007,


p. 130), há ciência porque o Outro é barrado, porque há um furo que se
localiza onde se revela que “não há Outro do Outro”. É pelo mesmo
furo de onde a ciência nasce que o gozo do Outro atravessa em direção
ao infinito. Um pouco antes, Lacan (1974/2011, pp. 31-33) já havia vis-
lumbrado a ideia de que a ciência ocuparia o lugar do gozo do Outro,
situando-a na interseção entre o real e o imaginário, a partir do corpo.
Ele ressalta que o gozo do Outro é fora da linguagem e, na condição de
parassexuado, não existe, não saberia existir, a não ser por intermédio
da fala. Assim, Lacan admite que a ciência parte da letra.
A noção de progresso científico, conforme Campos (2013), advém

50 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


CORPO E HISTERIA
Bahia

da suposição de que a ciência estaria destinada a gozar infinitamente do


corpo. Ocorre aí um paradoxo: se, por um lado, a ciência é fruto do furo
no real, por outro, sua resposta, por meio da produção de objetos, vem
cobrir o mesmo furo que lhe deu a luz. As invenções das tecnociências,
os gadgets são uma espécie de resto da ciência, resultado do gozo do
Outro.
Neste século ocorre um verdadeiro empuxo às modificações do
corpo, através das demandas feitas às tecnociências. Hoje assistimos às
procriações que rompem com a filiação biológica, às intervenções para
mudança dos sexos, a possibilidade de antecipação do futuro, garantida
pela medicina preditiva, ou ainda a submissão às técnicas sofisticadas
para modelar o corpo, ou para reconstituir com partes do mesmo corpo
um órgão afetado por doença ou acidente.
Lacan (1973/2003, p. 522) se interroga sobre a distinção entre o dis-
curso científico e o discurso histérico, concluindo que esses dois discur-
sos têm quase a mesma estrutura. Como pensar essa afinidade entre o
discurso científico e o discurso histérico? O cientista questiona os sig-
nificantes-mestres da ciência para produzir um saber. No discurso da
histérica, o sujeito dividido ocupa o lugar do mestre, ou seja, do coman-
do, dirigindo-se ao S1, situado no lugar do outro, para dominá-lo, com
o objetivo de fazê-lo produzir um saber sobre o gozo. Diferentemente
do discurso científico, o valor desse discurso é colocar o inconsciente
em exercício. Ao questionar os seus próprios significantes- mestres a
histérica pode produzir um saber novo.
Podemos pensar que há na atualidade uma nova forma de histeria,
marcada pelos efeitos da ciência sobre o corpo?
Lacan (1977/1981, p. 5, tradução nossa), em uma conferência em
Bruxelas, interroga:
Aonde foram parar as histéricas de antigamente, [...] como Anna
O., Emmy Von N [...] que permitiram o nascimento da psicanálise?
[...] O que aconteceu com os antigos sintomas? A histeria não se

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 51


FÁTIMA SARMENTO

terá deslocado no campo social, sendo substituída pela maluquice


psicanalítica?1

Lacan admite nessa conferência que foi escutando as histéricas que


Freud inventou um modo inteiramente novo de relação humana. Con-
sidera também que o inconsciente é um sedimento de linguagem do que
diz a histérica, e o real, objeto da ciência, estaria no extremo oposto de
nossa prática, como aquilo que não tem sentido. Ressalta ainda que é
pelo sentido que operamos na nossa prática, através da interpretação. O
real é esse ponto de fuga como o objeto da ciência.
O real da ciência não se confunde com o da psicanálise. Se para a
psicanálise há uma impossibilidade do simbólico tratar o real, é nessa
brecha que entra a ciência, tentando operar sobre o real pelo simbólico.
A ciência opera com a ilusão de que o simbólico pode dar conta do real
sem deixar resto.
Segundo Ansermet (2011), a ciência intervém de maneira inédita so-
bre a realidade, que pode encontrar-se revirada: com as biotecnologias
contemporâneas, pode-se ir até o ponto de fazer a realidade delirar, ou,
pelo menos, tudo se passa como se houvesse os meios de fazer a fanta-
sia penetrar na realidade. Conforme esse autor, querer apreender o real
pelo simbólico, como é o caso da ciência, leva a produzir o real de que se
trata na psicanálise. Há aí um paradoxo: a ciência participa da produção
do real que lhe escapa. Se o gozo é o resto, é o produto da operação da
ciência, é a partir desse ponto que se pode, segundo Ansermet, fazer
uma demanda à psicanálise. Nesse sentido, cabe ao analista receber a
miséria do gozo produzido pelos efeitos da ciência. Isso evidencia que
a psicanálise deve sua existência à emergência do discurso da ciência.
Um exemplo desse gozo como produto da operação da ciência é ilus-

1 No original: “Ou sont-elles passées les hystériques de jadis”, [...] les Anna 0., les Emmy von N
[…] qui permirent la naissance de la psychanalyse. [...] Qu’est-ce qui remplace ces symptômes
hystériques d’autrefois? L’hystérie ne s’est-elle pas déplacée dans le champ social? La loufoquerie
psychanalytique ne l’aurait-elle pas remplacée?”

52 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


CORPO E HISTERIA
Bahia

trado por Brousse (2012), por meio de um comentário de um artigo


na imprensa americana, após o atentado de 11 de setembro. Existem
rumores sobre as remessas terroristas de vírus do carvão, que atingiram
jovens, principalmente moças, teenagers de colégios nos EUA, causando
coceira e vermelhidão, sem causa biológica evidenciada. Esse comen-
tário leva Brousse a considerar que a histérica, como sujeito recalcado
pela política dominante da saúde mental, retorna sob a forma das mais
variadas epidemias – entre essas, certas perturbações da alimentação
em voga.
Assim, para Brousse a histérica, mais do que nunca, por essa forma
epidêmica, manifesta o papel fundamental da identificação, que, des-
de Freud, define o modo de seu funcionamento. Trata-se de sintomas
corporais que só vêm assinalar um pouco mais a localização própria à
histeria do retorno do recalcado. Diante desse quadro, Brousse enfatiza
que, longe de estar morta, a histeria está muito mais viva.
A constituição imaginária do corpo na histeria
A histeria é, desde Freud, o maior exemplo da relação entre o corpo e
a linguagem. A clínica psicanalítica, desde sua origem, teve como prin-
cipal protagonista a histérica com seu cartão de visita – o padecimento
do corpo. Esse sofrimento que se apresentava sob a forma de conver-
sões corporais denunciava que o saber médico era impotente para dar
conta desse corpo que se apresentava doente da verdade. Freud, na sua
genialidade, reconheceu o limite do discurso médico ao ler no sintoma
histérico a possibilidade de uma palavra, uma ideia, um pensamento ser
convertido em resposta corporal.
Logo cedo Freud identifica que o pai é o parceiro da histérica. Isso
leva Lacan, no seu último ensino (1975-1976/2007, p. 102), a admitir
que a histeria, desde Freud, é percebida como Dois: o sujeito histérico
mais seu interpretante, que não é outro senão o nome-do-pai. O caso
Elizabeth Von R ilustra bem isso. O pai dá a Elizabeth a herança do
falo ao tomá-la como amiga e confidente. Do lado de Elizabeth, a re-
lação partilhada com o pai era o seu bem mais precioso. A função de

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 53


FÁTIMA SARMENTO

enfermeira do pai, quando este adoece, e após sua morte passar a ser a
enfermeira da mãe, revela que o sintoma histérico se expressa nesse caso
como sintoma de outro sintoma. Elizabeth permaneceu no sintoma his-
térico que tem como função fazer um pai. Freud comenta no final de sua
obra (1937/1996, p. 253) que, em razão de um “destino infeliz”, ocorre
nesse caso, uma repetição – algo surgiu e se deslocou para um cirurgião.
Elizabeth se apaixona por um médico, o qual vai dar um golpe de graça
em sua feminilidade, submetendo-a a uma histerectomia completa.
No Seminário 24, Lacan (1976-1977, p. 8) enuncia: “[...] a histé-
rica é sustentada em sua forma de bastão por uma armadura, distinta
de seu consciente e que é seu amor por seu pai.”2 A histérica utiliza-se
da armadura do amor ao pai para defender-se do real, pois esse amor
esconde, vela o gozo do sintoma. Se no inconsciente da histérica o que
existe é o amor ao pai, fica claro que há uma relação íntima entre neu-
rose (inconsciente) e pai. É nessa direção que podemos compreender os
argumentos: a neurose é produtora do pai, a neurose convoca o analista
a ocupar o lugar do pai.
É comum na clínica a evidência de dificuldades por parte da his-
térica com sua imagem corporal. Para saber como se dá na histeria a
constituição imaginária de um corpo dito feminino, utilizaremos as
considerações feitas por Bessa (2012) a esse respeito. Embora o trabalho
dessa autora vá mais longe, pois tem como objetivo situar a incidência
do narcisismo na esquizofrenia e na histeria, aqui nos interessa apenas
tecer os comentários relativos à histeria. A autora identifica na constru-
ção da fase do espelho a interpretação lacaniana sobre as considerações
de Freud (1914/1974) a respeito do narcisismo. O autoerotismo é nesse
texto freudiano o primeiro modo de satisfação encontrado pelas pul-
sões sexuais, o que denomina de prazer do órgão. A pulsão encontra
satisfação no próprio corpo sem recorrer a nenhum objeto, uma vez
que não existe nenhuma unidade que se possa denominar de eu. Freud

2 No original: “[...] l’hystérique est soutenue, dans sa forme de trique, [...] par une armature, [...]
distincte de son conscient, [...] c’est son amour pour son père.”

54 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


CORPO E HISTERIA
Bahia

considera que é necessário algo ser adicionado ao autoerotismo – uma


nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo.
Em Lacan (1949/1998), o estádio do espelho especifica que o eu se
constitui como forma alienada na imagem do outro. Em frente à pró-
pria imagem no espelho, a criança a toma, inicialmente, como se fosse
a de um outro. Para que a criança chegue a identificar-se, é necessário
o consentimento de um adulto que venha confirmar que ela é essa ima-
gem refletida no espelho. Isso vai garantir um investimento por parte do
outro, reconhecendo a criança como um objeto real de um desejo sin-
gularizado. É dessa maneira que é possível entender que a criança, que
ainda não tem domínio sobre seu corpo em razão de sua imaturidade
neurológica, pode vivenciar diante do espelho seu corpo por meio de
uma Gestalt, tendo um domínio imaginário sobre ele. A criança se cris-
taliza nessa imagem, que não passa de uma imagem virtual, carregando
em si algo ilusório.
O valor do estádio do espelho destacado por Lacan e examinado por
Bessa é que ele não está plenamente no imaginário, inclusive, ele opera
a partir do simbólico, representado pela presença do Outro. Esse Outro,
que será o Ideal do eu, I(A) vai libertar a criança da alienação dessa ima-
gem. Assim, o estádio do espelho comporta um duplo movimento. De
um lado, está o elemento ilusório e enganador contido na assunção de
uma imagem como sua; por outro lado, ele cria a possibilidade de uma
criança iniciar suas identificações significantes, favorecendo a entrada
no simbólico.
A constituição da imagem i(a) é que vai organizando as pulsões, mas
essa imagem só será assumida como sua se estiver sustentada pelo olhar
e pelo desejo do Outro. Nesse sentido, o corpo real só é vestido por uma
imagem se houver a constituição de uma identificação simbólica I(A)
que se apoia em uma insígnia fornecida pelo Outro.
A autora parte para examinar as consequências dessas elaborações
na clínica da histeria, considerando que as histéricas apresentam des-
conforto com sua imagem corporal, que se revela sempre vacilante. Isso

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 55


FÁTIMA SARMENTO

resulta do fato de não existir, no Outro, o significante que especifique a


condição feminina de uma mulher, fazendo com que a sua imagem cor-
poral não capsule e torne erótico completamente o real do corpo. Uma
saída para isso é fazer-se “toda fálica”, ou seja, abordar a sexualidade à
maneira do homem, pela via da ostentação fálica, sem, contudo, assu-
mir uma aparência masculina. Em termos freudianos, é justamente por
não ter um falo que a mulher cuida e zela pela sua imagem corporal a
ponto de fazê-la adquirir o valor de falo.
Bessa lembra que, com a leitura lacaniana do narcisismo, se pode res-
saltar que a identificação imaginária do corpo feminino em uma mulher
– justamente por não existir o significante que defina seu ser sexuado de
mulher – é frágil e precária. Ainda assim, com toda essa problemática
na histeria, há um corpo sexualizado e uma imagem corporal erotizada.
Por se tratar de uma neurose, o processo do recalque teve sucesso, e seu
efeito é determinar no corpo os lugares que servirão de ancoragem para
a satisfação da pulsão sexual.
Finalmente, a autora afirma que há na histeria uma prevalência da
função imaginária. Na constituição imaginária de um corpo dito femi-
nino algo fica fora da articulação significante que possa responder sobre
a diferença anatômica. Esse ponto não simbolizável sobre o ser femini-
no, que é denunciado no ponto de falha na constituição de i(a), fica evi-
dente na histeria. O sintoma de conversão tenta reparar essa falha que
se dá no campo da imagem, tenta revestir esse real do corpo, impossível
de simbolizar.
A histeria como recusa do corpo
Como pensar em corpo feminino se a histérica não designa necessa-
riamente uma mulher?
Lacan acompanhou Freud no que se refere ao saber sobre os misté-
rios que envolvem a feminilidade. Em Intervenção sobre a transferência
(1951/1998), ao referir-se ao caso Dora, salienta que o mistério de sua
feminilidade corporal aparece no seu segundo sonho, trazido a Freud

56 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


CORPO E HISTERIA
Bahia

que faz um mapeamento de uma geografia sexual, a geografia do corpo


de mulher que Dora recusa. Lacan vai considerar que Dora não tem
acesso ao reconhecimento de sua feminilidade pela falta de assunção
corporal e que essa falta permanece aberta à fragmentação corporal.
A não simbolização do sexo da mulher no inconsciente leva Freud a
considerar que há do lado das mulheres um menos corporal e isso tem
consequências na sua subjetividade, uma vez que o sujeito feminino vai
tentar encontrar um complemento, suprindo essa falta fálica, seja por
meio de um filho, seja pela importância dada ao próprio corpo.
No texto A significação do falo, Lacan (1958/1998) substitui o “não
ter o falo” do lado das mulheres por “ser o falo”. Ao fazer-se falo para um
homem, ocorre a falicização do corpo de uma mulher, que é a solução
pela via da mascarada. Por trás da máscara, não há nada, daí se conclui
que a mascarada é o feminino.
Fica evidente que no seu primeiro ensino Lacan é concordante com
Freud ao fazer corresponder à mulher um déficit simbólico. No semi-
nário As psicoses, Lacan (1955-1956/1988) enfatiza que o sexo feminino
tem uma característica de ausência, de vazio, de buraco, e isso faz com
que seja menos desejável que o sexo masculino no que ele tem de pro-
vocante. Admite nesse período que a estrutura de uma neurose é essen-
cialmente uma questão. O sujeito histérico localiza no Outro a pergunta
sobre seu ser.
A questão que se coloca tanto para a histeria masculina quanto para
a feminina é o que é ser uma mulher. Considera que o motivo de existi-
rem mais histéricas-mulheres que histéricos-homens é porque o cami-
nho da realização simbólica da mulher é mais complicado. Tornar-se
uma mulher e interrogar-se sobre o que é uma mulher são duas coisas
essencialmente diferentes. Interrogar-se remete à histeria enquanto tor-
nar-se diz respeito ao feminino. A histérica, diante da questão, faz um
desvio, utiliza-se da identificação com o pai para desvendar sua questão.
O pênis lhe serve de instrumento imaginário para apreender o que ela
não consegue simbolizar.

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 57


FÁTIMA SARMENTO

Ainda a propósito da não simbolização do corpo na histeria, Lacan


(1957/1998), no texto A psicanálise e seu ensino, comenta que a histérica
parte de uma falta de identificação narcisista: como não pode tomar o
corpo pela imagem especular, faz a pergunta utilizando-se do outro
imaginário masculino, remetendo-se a um outro real, do seu sexo, que
encarna para ela o mistério da feminilidade. Como a histérica padece
de uma falta de identificação narcísica, ela não consegue se reconhecer
na imagem do próprio corpo, daí fazer um apelo ao corpo de uma outra
mulher. Aliás, mais adiante, Lacan (1968-1969/2008) afirma que, para
a histérica, o SsS é a mulher. Ele se reporta a Dora, que fica interessada,
cativada pela mulher na medida em que acredita que esta é quem sabe o
que é preciso para o gozo do homem. Segundo Lacan, a histérica banca
o homem que suporia que a mulher sabe, reconhecendo que é por isso
mesmo que ela é introduzida nesse jogo por um viés em que a morte do
homem está sempre implicada. Ele lembra que a introdução de Anna O.
no campo de sua histeria girava em torno da morte de seu pai, e os dois
sonhos de Dora também evidenciam isso.
Segundo Freud, todo sintoma histérico exige a contribuição de duas
partes, não se produz sem certa complacência somática. Lacan, no se-
minário O avesso da psicanálise (1969-1970/1992, p. 88), sugere trocar
o termo de Freud por “recusa ao corpo”. A histérica recusa o significan-
te-mestre do qual ela não é escrava. Miller (2003), ao retomar essa ideia
de Lacan, acrescenta que o corpo histérico, ao não se deixar reduzir ao
significante-mestre, testemunha o desajuste que há entre as palavras e
o corpo. Nessa direção, ele admite existir uma dupla recusa: primeira-
mente, o corpo histérico recusa obedecer à alma, o saber natural, recusa
servir à finalidade de sua autoconservação e, em segundo lugar, o sujeito
desse corpo recusa o corpo do outro como parceiro, daí a relação sexual
resultar problemática em seu corpo, inclusive com a reprodução.
No final do seu ensino, em uma conferência intitulada Joyce, o sintho-
ma, Lacan (1975/2003) estabelece a distinção entre o sintoma histérico
e o sintoma na mulher. Nessa oportunidade salienta que os indivíduos
que Aristóteles toma por corpos podem ser somente sintomas de outros

58 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


CORPO E HISTERIA
Bahia

corpos; reafirma que uma mulher é sintoma de um outro corpo e, quan-


do isso não acontece, ela permanece com o chamado sintoma histérico,
ou seja, só lhe interessa um outro sintoma, conforme ilustramos no caso
Elizabeth. Dizer que à histérica só interessa outro sintoma é o mesmo
que dizer que ela recusa o corpo a corpo. Isso pressupõe que na histeria
fica em suspenso a construção de um corpo feminino.
Segundo Alvarenga (2013), a posição feminina se define contraria-
mente à histeria, por um sujeito que consente que seu corpo se aliene ao
S1 fálico. Lacan (1969-1970/1992) define a posição feminina, no Semi-
nário 17, pela aposta que uma mulher faz no gozo fálico, que comporta
uma perda de início, a castração. Ela aceita uma perda de gozo para
apostar em um gozo no encontro com o homem. Nesse sentido, ela tem
a chance de atingir o gozo feminino além do falo. Isso se relaciona com
o que Lacan (1960/1998, p. 741) enuncia: “o homem serve de conector
para que a mulher se torne esse Outro para ela mesma, como o é para
ele.” A mediação do homem vai possibilitar à mulher alcançar a alteri-
dade radical que representa sua feminilidade. O problema da histérica é
que, ao invés de usar o homem como “conector” para abordar o Outro
gozo, ela interroga com o Um fálico a outra mulher.
Há uma afinidade entre o gozo feminino e o final de análise. Nos
depoimentos de final de análise, fica evidente por parte dos passantes
um consentimento que surge de uma satisfação corporal impossível de
dizer, que se refere ao gozo feminino. Silvia Salman (2011) ressalta a
afinidade que há entre gozo feminino e final da experiência analítica. A
fórmula “desenho animado do pai” dava consistência à fantasia de “ser
agarrada pelo Outro” e ao sintoma como enunciado pelo significante
“fugidia”, já que ela estava sempre escapulindo. O significante “desenho
animado” era um nome masculino que deixava em suspenso a constru-
ção de um corpo de mulher, uma vez que havia ali um corpo que não se
deixava agarrar.
Após a intervenção do analista, que consistiu em segurá-la firme-
mente, sem nada dizer, foi possível vir à cena um significante novo –

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 59


FÁTIMA SARMENTO

“encarnada” –, que vai permitir ao corpo tomar outra dimensão. Tra-


ta-se agora de um corpo que pode ser agarrado, um corpo em que há
a presença de três dimensões ligadas a uma satisfação. No significante
“encarnada”, está a carne, o “nada” da anorexia, o feminino, e a carnada
da histeria. Esse caso ensina que, por meio de uma experiência analítica,
é possível a construção de um corpo de mulher.
Conclusão
Lacan, no seu último ensino, situa a psicanálise no campo dos acon-
tecimentos de corpo, o que tem consequências na clínica, uma vez que o
analista deve voltar sua escuta para o que afeta o corpo. Não se trata aqui
do corpo imaginário, que é o corpo do estádio do espelho. Não se trata
também do corpo simbólico. Trata-se do corpo como acontecimento –
o corpo vivo no qual o gozo se aloja pelo efeito do significante Um no
corpo. O gozo como Um prescinde do Outro. Daí, o Outro no último
ensino de Lacan tornar-se simplesmente a relação com o corpo.
A histérica ensinou a Freud que o sintoma histérico se apresenta vin-
culado ao sentido, uma vez que ele é ligado a um intérprete que não é
outro senão o pai da histérica. No entanto, no seu último ensino, La-
can depara com um sintoma histérico mais reduzido, desaparelhado do
sentido e desvinculado do seu interpretante, que é o nome-do-pai. La-
can (1975-1976/2007) denomina essa histeria de histeria rígida – uma
histeria considerada incompleta, reduzida a um estado material. Nesse
sentido, ele admite uma passagem, do corpo histérico marcado pelo
significante, ao corpo tórico sustentado pelas três rodinhas, do real, do
simbólico e do imaginário.
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CORPO E HISTERIA
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ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 61


FÁTIMA SARMENTO

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62 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


LEITURA E CONSTRUÇÕES
Bahia

Leitura e construções
Reading and constructions

Bernardino Horne

Resumo: O comum entre Leitura e Construções é que ambos apontam para o real e se
realizam desde fragmentos, disse Freud, do real, da pré-história do Sujeito. Comento o
instante da encarnação do Significante no corpo e a aparição da vida como gozo.
Palavras-chave: Encarnacão. Leitura. Construções. Real. Gozo.

Abstract: Lecture and Constructions have in common that both of them point to the real
and as Freud says, they realize themselves from fragments of the real or from pieces of
the Subject’s prehistory. There is a comment about the moment in which the significant
incarnates the body and life appears as Jouissance.
Keywords: Incarnation. Reading. Constructions. Real. Jouissance.

A afirmação Yad’lun, Há um, que Lacan faz no Seminário ... Ou pior,


produz amplas consequências e ajustes de intenção na teoria e na clínica
psicanalítica. Uma delas é a mudança da língua falada à escrita, da fala
à letra, o que significa em nossa prática passar de interpretar o sintoma
para ler o sintoma.
Tentando tirar as consequências clínicas da posição de leitura rela-
ciono a leitura com Construções na Análise, que Freud (1937/1996b)
escreveu em 1937.
Da palavra à letra
Pôr em jogo o escrito e sua leitura envolve diretamente cuestionar a
concepção de corpo, de ser e de existir.
O ponto de partida é a explosão da ordem do big-bang, como é para
Sigmund Freud (1950[1895]/1996c) a Experiência de Satisfação no Pro-
jeto, ou seja, explosão de gozo no corpo. É a vida: Substância gozosa em
movimento. Nesse momento, que Jacques-Alain Miller chama “Encar-

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 63


BERNARDINO HORNE

nação”, o significante deixa de ser, desaparece. Existe como gozo, mas


não é Significante. Lacan (1971-1972/2012, p. 131) diz isso muito bem
em ... O pior: “O que só existe ao não ser.” O significante permanece UR,
foracluído, e a vida como gozo começa, existe desde o corpo Um. Miller
disse que a consequência forte que percebeu no Há Um foi que não há
(A) Outro. “Todo mundo é louco”, como afirma Lacan (1978/2010) em
Transferência para Saint-Denis, significa que, se somos capazes de dizer
que todos deliramos, que todo mundo é louco, isso é consequência des-
se giro inaugural que orienta Lacan do (A) Outro para o Um.
Só depois é que haverá um significante Amo, que, ao entrar, realizará
uma substituição de Gozo por Significante: Significante/G. O gozo não
permanece oculto ou reprimido agindo nas sombras, há uma metáfora
de gozo que não barra ou tenta apagar o gozo, mas, ao contrário, ten-
ta circulá-lo, escoá-lo, satisfazer-lhe mediante uma mutação de Gozo
(MILLER, 1998). Adquire novas formas. Com efeito, ao aceitar o signi-
ficante no corpo, o falasser abre-se para outras formas de gozo.
Inicia-se a era do Gozo do Significante 1, o Gozo do Significante Um
sozinho, Sem S2. Ë o momento do S1, S1, S1 ... onde começa alíngua.
Gozo de sinal positivo que implica vida, ressonâncias, movimento. Ao
mesmo tempo, desenvolve-se um movimento contrário, negativo, que
tende a retornar ao anterior, à quietude e ao silêncio. Morte. O Gozo de
alíngua é anterior à metáfora e, portanto, ao Nome do Pai e ao sentido.
Um gozo sem lei. Esse período escreve marcas sem sentido, sem relação
com o significante.
Assim acompanhamos a frase de Miller que há uma escrita que per-
manece associada ao sentido, articulada com a fala e outra pura, onde
Lacan desenvolve o nó, que é capaz de valer para o real (MILLER, 2013).
Em outras palavras, um acontecimento de corpo é uma primera marca
escrita no corpo. O significante se encarna. Corporiza-se, faz-se corpo
e assim deixa sua parte no singular da marca, a qual também recebe
sua parte do corpo, efetuando-se assim uma marca de origem dupla,
Significante e Corpo, que é singular, contingente e própria desse Sujeito

64 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


LEITURA E CONSTRUÇÕES
Bahia

de gozo (Miquel Bassols postula um Sujeito do Gozo). Quando chega o


momento seguinte, de alíngua, escrevem-se letras no corpo. A primeira
marca corporal, o acontecimento de corpo inaugural do ser humano,
forma também a primeira raiz do Sintoma, algo que é de cada um, de
cada um como ponto fixo no redemohínho do “trumatisme”, em torno
do qual se vão interpretando os discursos futuros e será sempre um tra-
ço do mais singular desse ser. Algo próprio dele, um toque único que o
faz diferente de todos. O Sinthome é o mais singular do falasser (MIL-
LER, 2008, aula de 17.12.2008).
Ler um sintoma
Ler um Sinthoma foi tratado por J.-A. Miller (2011) em um texto
com esse título como argumento para um Encontro da Escola em Israel,
tomando a disciplina do Talmud em que se vão escrevendo as diversas
leituras, uma sobre as outras sem apagar.
Retomo as palavras de Lacan (1975/2003) em Joyce, ou Sintoma, que
classifica o Sintoma como Acontecimento de corpo. Esse acontecimento
é o que põe em movimento a vida como substância gozante, assim como
é também o ponto fixo, que permite apertar as cordas de real, simbólico
e imaginário, que começaram a se encadear desde esse ponto fixo, raiz
do Sinthome.
Os registros começam a enlaçar-se criando caminhos fixos, enca-
deamentos. O Sinthome enoda borromeanamente os três registros nas
neuroses e se sustém nestes primeiros cortes, nós, fixações e interdições
ao curso irremediável da satisfação.
Como pode um analista ler um sintoma?
Miller (2013, p. 23) levanta a contradição do analista que pede ao
sujeito para contar histórias e, ao mesmo tempo, na medida em que
as histórias são feitas de sentido, o analista é convidado ao realismo,
ou seja, disse Miller, a “ser tolo do real”. Não se deter em histórias mas
notar qué fragmentos de real presidem, em nossa leitura, o tema dessa e

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 65


BERNARDINO HORNE

muitas histórias. Ao se orientar a esse Um, procura-se a diferença abso-


luta, que é o singular desse falasser e é o que causa o desejo do analista,
Essa posição estabelece, ao par, condições de transferência ao real.
Por não ficar nas histórias, o analista se alinha na perspectiva de alcan-
çar uma leitura das marcas definidoras ou talvez as chamar de organi-
zadoras dos temas de suas histórias e dos modos e a linguagem para
contá-las. Essa leitura leva o futuro analisando a se saber diante de um
analista a quem crê poder investir como SSS. Assim, o analista como
Sinthoma permitirá ao analisante se servir dele para poder saber fazer e
prescindir depois no final de sua análise.
Construções
Em 1937, Freud (1937/1996a, 1996b) escreveu dois grandes textos
clínicos, Análise terminável e interminável e Construções em análise.
Neste último, ele confessa que vai escutando e construindo por meio
de fragmentos da pré-história esquecida do $ujeito; fragmentos de real,
diríamos hoje. Construir é para Freud uma tarefa mais ampla que a da
interpretação e se baseia na existência de fragmentos vivos que permi-
tirão, mediante a tarefa analítica, formar um quadro da vida infantil re-
primida do $ujeito. Essa leitura que Freud faz de seus pacientes o orien-
ta em suas intervenções e sua leitura da vida infantil dos analisantes
adultos. O Homem dos lobos é um exemplo disso.
Não pretendo dizer que Construções são o mesmo que leitura, mas
apontam ao mesmo: há uma raiz singular, própria para cada $ujeito, que
é, ao mesmo tempo, o estilo com o que vai escrever sua vida no mundo,
seu quadro ou seu poema que ele é. A leitura, ou como disse Freud, o
quadro que nós temos do paciente nos orienta ao real na experiência
analítica.

66 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


LEITURA E CONSTRUÇÕES
Bahia

Referências
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neiro: Imago. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Com-
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Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 1).
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ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 67


REINALDO PAMPONET

O corpo ao final de uma análise: “Em


direção a um dizer novo”
The body at the end of an analysis: “Towards a new sayin

Reinaldo Pamponet

Resumo: Considerando que a psicanálise lacaniana é um tratamento do impossível pelo


contingente, ousamos, neste texto, abordar o corpo vivo, no qual o gozo se aloja pelo
efeito do significante Um, extraindo as consequências da letra que em sua materialidade
escreve, para além das formações do inconsciente, a radical diferença de consistência
entre saber e gozo.
Palavras-chave: Consistência real. Corpo. Letra. Nome-do-Pai. Dizer.

Abstract: Considering that Lacanian psychoanalysis is a treatment of the impossible by


contingency, in this paper we dare to address the living body, in which jouissance is
lodged by the effect of the significant One, extracting the consequences of the letter
which writes in its materiality, beyond the formations of the unconscious, the radical
difference of consistency between knowledge and jouissance.
Keywords: Real consistency. Body. Letter. Name of the Father. Saying.

Neste trabalho, vamos abordar o corpo ao final de uma análise, sem,


contudo, deixar de considerar que devemos refletir e buscar responder,
em que medida, na prática psicanalítica, os novos sintomas corporais
testemunham os limites do simbólico na contemporaneidade.
Um detalhe semântico no título do trabalho, indica, por antecipação,
que, ao final de uma análise, após cernir o que há de mais vivo e singular
no corpo que fala, seu estatuto não é o mesmo do início da análise.
A presença viva do analista, operando na análise, por meio do desejo
do analista, possibilita ao analisante fazer uma mutação, substituindo a
consistência corporal imaginária do começo da análise pela consistên-
cia do real ao final de uma análise.

68 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


O CORPO AO FINAL DE UMA ANÁLISE
Bahia

J.-A. Miller (citado por LAURENT, 2008, p. 120) diz que “o corpo é o
que sobrevive ao naufrágio do simbólico”. Contudo, apesar desse “nau-
frágio”, a construção do conceito de corpo na psicanálise é impossível
sem a condição do simbólico.
O simbólico está em declínio e o mais de gozar foi elevado ao zênite
social, constituindo-se, assim, o impasse ético pela promoção do supe-
reu como ordenador de um excesso de gozo que não é equivalente ao
sintoma como modo de gozar.
A nova ordem simbólica tem-se revelado inoperante para falar da
desordem do real, por isso, no momento atual, o falasser caracteriza-se
por falar com o corpo das mais variadas formas sintomáticas.
Assim, perguntamos: se as defesas sintomáticas evidenciam os limi-
tes do simbólico e uma nova forma do falasser lidar com seu corpo,
nesse contexto, como o ato analítico pode incidir para desmontar as
novas defesas contra o real, a fim de proporcionar o advento de corpos
habitados pelo desejo e sua possibilidade de criação e invenção?
O falasser da modernidade sonha com o Um, todavia, é um Ser múl-
tiplo pelos significantes que representam junto de outros significantes.
As identificações que o apoiam são frágeis e inseguras, tendo em vista
o declínio da função paterna. Por isso, ver-se coagido a organizar seu
texto inconsciente por si mesmo, lançando mão das suas identificações
como verdadeiras armaduras egoicas e apegando-se às oportunidades
de gozo.
Nos dias atuais, pensar que a liberação sexual e a exposição corporal
a todo tipo de inscrições, cortes e recortes tornam a imagem viril e orga-
nizadora da sexualidade, é desconhecer que a subjetividade desafia esse
suposto poder da imagem sobre o corpo, é pensar que as identificações
imaginárias podem fazer existir a relação sexual.
O valor fetichista conferido aos gadgets, ofertados pelo mercado de
consumo, conduz a uma “bulimia” do supereu e a uma “anorexia” pelo

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 69


REINALDO PAMPONET

saber sobre o verdadeiro objeto causa de desejo.


Ao abrigo do silêncio próprio àqueles que só se dedicam a teclar, o
falasser anula o desejo do Outro, investindo apenas nas relações virtuais
capazes de manter a distância o fator contingencial do encontro com
um outro corpo, refugiando-se, assim, na jaula do gozo fálico. Resta-lhe,
então, a solidão e a angústia que afetam o corpo e atestam a falta de mar-
cas simbólicas consistentes.
O simbólico tornou-se um aparelho de semblantes, ameaçando ex-
cluir o discurso analítico e, por consequência, facilitando os desvios
mais diversos da prática analítica. No momento atual, os psicanalistas
lacanianos, buscam, cada vez mais, avançar no sentido de encontrar a
melhor forma de lidar com o modus operandi do falasser contemporâ-
neo.
Sustentado nos poderes sombrios do supereu, no discurso capitalista
e no discurso da ciência, seus atos, ao contrário de levá-lo a encontrar a
sonhada autonomia, geram modalidades de sintomas e denunciam sua
maneira perversa de fazer uso do simbólico para se defender daquilo
que habita o âmago do seu sintoma.
A clínica psicanalítica, hoje, é uma clínica orientada para o intratável
de cada um, não prioriza a decifração do sintoma, tampouco tenta dis-
solvê-lo por meio da interpretação.
Perguntamos, então: que ferramentas devemos utilizar na clínica
para tratar as diversidades corporais sintomáticas que nos demandam a
fim de não apagar o estatuto real do inconsciente?
Nesse sentido, o último Lacan promoveu um giro fundamental para
abordar, na clínica do um por um, essa diversidade sintomática nova e
inclassificável, ao introduzir a separação entre inconsciente transferen-
cial e inconsciente real.

70 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


O CORPO AO FINAL DE UMA ANÁLISE
Bahia

A vida, o corpo e o gozo


Seguindo J.-A. Miller (2004) no seu texto Biologia lacaniana e acon-
tecimentos de corpo, podemos dizer que a vida, na experiência analítica,
apresenta-se sob a forma do corpo vivo, de corpo que se goza. O gozo
interessa à psicanálise porque está ligado à vida sob a forma do corpo. O
corpo vivo, o corpo sexuado é condição do gozo.
Daí, na sua última clínica, Lacan modificar a condição de sujeito
dividido, de sujeito mortificado, sujeito como falta-a-ser e passar à con-
dição de falasser, parlêtre, condição que, na análise, conjuga o sujeito do
significante e seu corpo vivo.
Miller comenta, nesse texto, que costumamos identificar, de modo
imaginário, o corpo como ser do vivo, e que, na impossibilidade dessa
identificação, o significante divide o sujeito entre o ser e o corpo, e o leva
a estabelecer uma relação de “ter” com seu corpo.
Segundo Lacan, o significante não tem somente efeito de significado,
mas também efeito de afetar o corpo. Afetar inclui efeitos como sujeito,
angústia, sintoma e gozo.
No seu primeiro ensino, o significante afeta o corpo e o gozo é sig-
nificantizado. O gozo é incorporal, está separado do corpo pelo signi-
ficante e só retorna ao corpo por meio do objeto a e do falo. No seu
último ensino, Lacan corporiza a função significante. O gozo é incorpo-
rado pelo significante, inscreve-se no corpo (en-corps). E é incorporado
que o significante produz os afetos, enlaçando-se à pulsão e produzindo
ressonâncias no corpo.
Após a construção do edifício da clínica estrutural, Lacan faz entrar
em cena o real. O corpo do edifício lacaniano, na sua última clínica, não
está mais sustentado nos semblantes, mas no real do gozo. Trata-se de
um corpo pulsional, de um corpo separado do inconsciente transferen-
cial e enlaçado ao inconsciente real, ou seja, corpo referido ao sintoma
como acontecimento de corpo.

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 71


REINALDO PAMPONET

As diversidades de formas apresentadas pela economia do gozo na


atualidade revelam modos de corporificação dos sintomas que escapam
à decifração do inconsciente. Os corpos tatuados, recortados, intoxica-
dos e medicados conferem um novo estatuto ao corpo e novas identi-
dades ao falasser.
A confluência do discurso da ciência e do discurso capitalista pro-
move uma rejeição do laço social, uma proliferação das etiquetas e das
marcas, privilegiando o mais de gozar e influindo de forma direta sobre
os corpos e no modo do falasser viver a pulsão.
Contudo, o analista lacaniano, engajado no movimento da moderni-
dade, está advertido do caráter artificial do laço social, das crenças e da
pluralidade das significações da nossa época.
Falar com o corpo convoca o analista para verificar, na sua prática
clínica, como a desordem do real suscita a inquietação da época atual,
visando sustentar a eficácia do discurso analítico diante da forclusão do
sujeito do inconsciente pelo discurso da ciência.
Ao analista lacaniano cabe, nos dias atuais, interrogar como a psica-
nálise de orientação lacaniana pode responder, como pode contribuir
para elucidar as questões que encontramos na clínica, relativas ao real
recoberto pelas demandas, ao real das urgências subjetivas, ao real si-
lencioso dos sintomas inclassificáveis, ao real da inibição, da passagem
ao ato, da angústia, da anorexia-bulimia, das drogas, do alcoolismo e
outros.
Constatamos, na atualidade, novas modalidades sintomáticas que
não passam pelo inconsciente transferencial e que silenciam o sintoma
como modo de gozar, como ocorre desde as novas formas de violência
e de agressividade, que portam a marca de atos sem sentido, até as va-
riantes do consumo excessivo de drogas medicamentosas e das toxico-
manias.
Diante de tudo isso, devemos interrogar qual é a eficácia do discurso

72 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


O CORPO AO FINAL DE UMA ANÁLISE
Bahia

analítico, na época do Outro que não existe, pois se trata agora de um


novo conceito de inconsciente, do inconsciente que não se decifra, do
inconsciente real.
Em uma época em que prevalecia nas sociedades o mal-estar causa-
do pelo recalque, pela censura e pela inibição, Freud foi o pioneiro em
promover a liberação do gozo e apontar uma desordem na sexualidade
infantil, que denominou de perversão polimorfa, articulando, assim, o
inconsciente à insistência repetitiva da pulsão. Contudo, embora não
fale mais a linguagem do tempo de Freud, o corpo ocupa um lugar cada
vez maior e mais prevalente na clínica psicanalítica de hoje.
Lacan (1975-1976/2007, p. 18) retomou e definiu a gramática das
pulsões freudianas, como “no corpo, o eco do fato de que há um dizer”,
que só se revela por meio do escrito. Na clínica lacaniana da atualidade,
interessa ao analista lacaniano saber como se dá a inscrição do corpo do
falasser no discurso analítico. Miller esclarece-nos dizendo que a iden-
tificação do ser e do corpo não se justifica para o homem, pois, por mais
corporal que seja, ele é também, falta-a-ser.
Assim, só resta ao falasser identificar-se com o irredutível do sin-
thoma, com seu núcleo de gozo, porque, na entrada da linguagem, o
corpo é afetado por traços significantes de lalíngua que se fixaram como
marcas incuráveis de um gozo Um e que vão constituir sua identidade.
A partir daí, o corpo torna-se, definitivamente, parasitado pelos tra-
ços significantes de lalíngua, quer dizer – o falasser é made in lalíngua.
Daí, Lacan (1972-1973/1985, p. 190) dizer que “lalíngua nos afeta, pri-
meiro, por tudo que ela representa como efeitos que são os afetos”.
O corpo do falasser é, portanto, um corpo que fala. Dizendo melhor,
o corpo do falasser é um corpo falado por certas contingências de um
dizer que produziu acontecimento.
Esse dizer não é qualquer um, mas um-dizer material, um dizer da
ordem do escrito, um S1 que, ao final da análise, sofre uma transmu-

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 73


REINALDO PAMPONET

tação em letra e vivifica o corpo mortificado. Por isso, a afirmação de


Lacan (1974/2011, p. 32): “a letra é o que há de mais vivo na estrutura
de linguagem.”
E do lado do analista? Como o corpo do analista vem fazer parte
do tratamento analítico? Sabemos que o Sujeito-suposto-Saber é uma
função que se desprende de uma articulação significante. A parte sim-
bolizada, a parte semântica do SsS se ocupa de si mesma, isto é, o S1 se
articula com o S2 e continua até o Sn. Trata-se do “autômaton” da cadeia
significante.
O analista, porém, está aí como semblante do objeto a para encarnar
a parte libidinal, a parte não simbolizada do gozo. Por isso, então, faz-se
necessária a presença do analista com seu corpo vivo, para o analisante
deslocar para ele o seu excesso de gozo.
Acontecimento de corpo: evento traumático da língua materna
Lacan (1961-1962/2003, aula de 22.11.1961) diz que “todo signifi-
cante é, antes, constituído pelo traço e tem o traço como suporte”. É o
traço, que confere ao significante todo o seu poder, seu peso, seu meca-
nismo e seu ato.
O primeiro encontro com o real de lalíngua que se produz no corpo
do falasser é contingente e traumático. Trata-se do choque no corpo
provocado pelo traço significante primário, do encontro do corpo com
um S1 mal-entendido, causa do troumatisme da entrada na linguagem.
Daí, Lacan (1980/1981, p. 12) afirmar: “o homem nasce mal-entendido.”
O traço significante primário é um S1 que, ao tempo em que su-
cumbe ao recalque primordial, ao mesmo tempo, o constitui como furo,
como traço permanente e faltante, como o Um.
O sintoma como acontecimento de corpo é um acontecimento con-
tingente provocado por um S1 isolado que repercute o Um originário. É
acontecimento de um discurso sem palavras, que deixa efeitos perma-
nentes na vida subsequente do falasser, efeitos de gozo, por isso, Lacan

74 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


O CORPO AO FINAL DE UMA ANÁLISE
Bahia

(1972-1973/1985, p. 36) diz que “o significante é a causa do gozo”.


“Falo com o meu corpo, e isto, sem saber. Digo, portanto, sempre
mais do que sei”, acrescenta Lacan (1972-1973/1985, p. 161). Quer dizer,
o corpo é um corpo que fala, e enquanto fala, goza pela incorporação
do dizer silencioso da pulsão. Portanto, é a pulsão que fala com o corpo
sem que o sujeito o saiba.
Em uma análise trata-se do sujeito saber ler, decifrar esses efeitos,
reduzir os acontecimentos que traçaram seus sintomas. “Aprendemos a
falar”, diz Lacan (1977-1978, tradução nossa), “isso deixa marcas, tem
consequências. Aliás, é a essas consequências que chamamos sinthoma.
Há a análise para tentar fazer com que o ‘troumatisme’ saiba como se
comportar com o sinthoma, quer dizer, com a inadequação do simbó-
lico ao real.”
Do sintoma ao sinthoma: um percurso
O percurso do ensino de Lacan passou do sintoma como metáfora
ao sinthoma como gozo, ou seja, passou do significante à letra, da pa-
lavra ao escrito, da escuta à leitura. É um percurso que demonstra que
para se cingir o real da psicanálise não precisamos sair da linguagem.
No seu primeiro ensino, Lacan considerava o real a partir do signi-
ficante e no seu último ensino passa a considerar o significante a partir
do real. Há, portanto, um para-aquém da estrutura de linguagem, uma
primariedade do real, há primeiro o real do gozo que ex-siste à lingua-
gem e se acrescenta em seguida, o Outro do significante.
Falar de uma primariedade do real, na psicanálise lacaniana, é di-
zer da ex-sistência do Um originário, do significante da falta do Outro
– S(Ⱥ), de um real inconsistente que se constitui como furo no saber.
O real do último ensino de Lacan é um real sem sentido, que vem de-
sorganizar, promover uma desordem na pretensa harmonia, até então,
estabelecida pelo simbólico.

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 75


REINALDO PAMPONET

A finalidade da psicanálise é trabalhar permanentemente pelo real


que a atravessa. Por isso, contrapondo-se ao declínio da ordem simbó-
lica, o último ensino de Lacan faz avançar a experiência analítica ao
apostar na ex-sistência Um.
Diante da impossibilidade de transformar a inadequação entre o
simbólico e o real, um tratamento analítico na direção da ex-sistência
do Um, não é outra coisa, senão, conduzir o analisante a “saber fazer aí”
(savoir y faire) com seu sinthoma, apontar para o analisante o horizonte
do saber inventar e nomear a letra de gozo do sinthoma.
A psicanálise não é, portanto, uma prática casual e calculada de
enunciados corretos, mas uma experiência em ato que visa, na tem-
poralidade lógica, que um dizer material, um dizer sem sentido possa
emergir como letra de gozo.
A experiência analítica, hoje, não se sustenta mais na crença no sem-
blante, mas na função do escrito, que nesse caso não constitui o guia até
o final de análise, mas, sim, o próprio caminho dessa longa estrada.
Dizendo de outra maneira, no último ensino de Lacan, trata-se da
leitura da ressonância da escrita primária – a escrita do Um, escrita essa
que restabelece a ex-sistência do sinthoma como causalidade real, resta-
belece a conjunção do Um e do gozo.
Consistência do real, dizer material e final de análise
No seu último ensino, Lacan (1971-1972/2012, p. 12) dá ao imaginá-
rio uma consistência equivalente ao simbólico e diz que “me dei conta
que consistir queria dizer que era necessário falar do corpo”. Portanto,
falar de consistência real é falar do corpo como algo que consiste.
Lacan (1971-1972/2012, p. 25) diz, também, que “o verbo que é cha-
mado a ocupar o lugar vazio, substituído pelos três pontos do Seminário
... ou pior, não é o dizer, mas um dizer que se exprime numa proposição
– não existe relação sexual”. E acrescenta: “é preciso haver uma espécie
de transmutação que se opera do significante à letra, quando o signifi-

76 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


O CORPO AO FINAL DE UMA ANÁLISE
Bahia

cante não está presente.”


Se o inconsciente real apoia-se nos traços de lalíngua para fazer res-
soar o dizer no discurso analisante, entendemos que a experiência analí-
tica consiste em levar o analisante a encontrar “um dizer novo”, um dizer
material e sem sentido, um dizer que está separado de todos os outros
que estão no campo da linguagem e que dê suporte ao real do sexo. Ou
seja, encontrar um S1-letra que se articula com o silêncio da pulsão par-
cial e se inscreve, ao final de uma análise, como argumento da função do
sinthoma: Σ:f (S1-letra).
O dizer material é um S1 indizível que habita o sinthoma desde a
entrada na análise, mas só se revela no final. O encontro contingente
com esse S1 da entrada, ao final da análise, vai sofrer uma transmutação
em letra.
Trata-se de “um-dizer” articulado com o furo do simbólico, de onde
nasce o amor, “um-dizer” singular que vai permitir ao falasser enlaçar o
corpo à pulsão e encontrar seu lugar como agente do discurso analítico,
identificado com o sinthoma – é o analista sinthoma.
O final de uma análise lacaniana visa algo que “já estava escrito”, visa
o acontecimento surpresa que irá permitir ao falasser “ir ao pé da letra”.
A letra é marca singular do primeiro signo de lalíngua no corpo. Dizen-
do de outro modo, o final de análise visa permitir a irrupção inesperada
de um S1 recalcado que aloja a letra do sinthoma.
Portanto, o acontecimento fundador é a incidência de lalíngua sobre
o corpo e uma análise conduzirá a encontrar este ponto de gozo original
que será o gozo Um.
A abordagem lacaniana do sinthoma dá conta da positividade irre-
dutível do gozo da letra, como testemunha o falo investido na sua “fun-
ção de fonação”, diz Lacan no Seminário 23.
Assim, podemos referir-nos ao corpo vivo, ao final de uma análise,
como um corpo identificado com a letra de gozo do sinthoma: Um–cor-

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 77


REINALDO PAMPONET

po tórico.
Miller (2010-2011, tradução nossa) diz que “uma representação in-
consciente bem distinta e especial do falasser, teria a propriedade excep-
cional de determinar a confluência da representação e do real”.
Trata-se do encontro com “um-dizer novo”, com uma representação
inconsciente e especial do falasser, separada de qualquer significação do
Outro, que se enlaça ao real para constituir e dar consistência ao corpo
do vivo.
Assim, esse novo S1, invenção do analisante, vai sofrer uma trans-
mutação em letra de gozo do sinthoma e constituir sua nova identidade.

Referências
LACAN, J. (1961-1962/2003) “A identificação: seminário 1961-1962”.
Lição de 22 novembro 1961. Tradução de Ivan Corrêa e Marcos Bagno.
Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, publicação para circu-
lação interna.
______. (1971-1972/2012). O seminário, livro 19: ... ou pior. Tradução
de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1972-1973/1985). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1974/2011, dezembro) “A terceira”. Opção Lacaniana: Revista
Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Eólia, n. 62, pp. 31-33.
______. (1975-1976/2007) O seminário, livro 23: o sinthoma. Tradução
de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1977-1978) Le séminaire, livre 25: le moment de conclure. Iné-
dit.
______. (1980/1981). Le séminaire, livre 27: la dissolution, le malen-

78 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


O CORPO AO FINAL DE UMA ANÁLISE
Bahia

tendu. Leçon de 10 juin 1980. Prononcé à l’Institut Océanographique.


Ornicar?, Paris, Seuil, n. 22-23, pp. 11-14.
LAURENT, E. (2008, abril) “A classificação”. Opção Lacaniana, , São
Paulo, n. 51, pp. 120-130.
MILLER, J.-A. (2004, dezembro) “Biologia lacaniana e acontecimentos
de corpo”. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 41, pp. 7-67.
______. (2010-2011) “L’être et l’un”. Cours de Orientation Lacanienne,
III,13, leçon de 26 janvier 2011. Inédit.

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 79


SILVIA SALMAN

O corpo na experiência da análise1


The body in the analytic experience

Silvia Salman

Resumen: Considerar uma análise como uma experiência de corpo põe em destaque as
mutações do gozo que se obtêm em um trajeto analítico. Passar do regime do padeci-
mento ao de uma nova satisfação reconfigura os modos de ter um corpo. A posição do
analista e sua operação se encontram no centro dessa transformação.
Palabras llave: Corpo. Palavra. Pulsão. Satisfação.
 
Abstract: Considering psychoanalysis as a bodily experience highlights the jouissance
mutations obtained through the analytical haul. To pass from a regime of suffering to
one of a new satisfaction reconfigures the modalities of having a body. The analyst’s
position and operation are at the core of this transformation.
Keywords: Body. Word. Drive. Satisfaction.

Uma experiência analítica pode ser lida em distintas perspectivas.


Em relação ao analisado, a análise é uma experiência de convicção
na existência do inconsciente. Em relação à transferência, é uma expe-
riência de amor. Em relação aos limites do simbólico, a análise é fazer
a experiência da inconsistência do Outro. Finalmente, em relação ao
gozo, a experiência da análise pode ser lida como uma experiência de
corpo.
Contra todas as críticas que desde sempre e até hoje foram feitas à
psicanálise, referindo-se a ela como uma terapêutica que opera com a
palavra e não se ocupa do corpo, coloquemos no centro de nosso traba-
lho a noção de que a psicanálise é uma experiência de corpo.

1 Publicado em Colofón n° 33, Boletim da FIBOL – Federação Internacional das Bibliotecas de


Orientação Lacaniana, “Cuerpos que hablan”, Buenos Aires: Grama Ediciones, 2013. Traduzido
por Tainã Rocha com a amável autorização da autora.

80 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A EXPERIÊNCIA DO CORPO NUMA ANÁLISE
Bahia

As palavras e o corpo
Efetivamente, a psicanálise opera com a palavra, por isso começare-
mos por revisar a articulação, as relações possíveis da palavra e o corpo.
Sabemos do lugar privilegiado que tem a palavra em uma cura. No
entanto, sua função não se encontra articulada somente com a estrutura
de linguagem, que foi o foco do ensino de Lacan em sua fase inicial.
Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise e A instância
da letra são textos-chave para capturar essa perspectiva. Neles questiona
especialmente o modo como certos autores imaginariam a palavra e a
rebaixam de seu aspecto simbólico.
A dimensão da palavra que me interessa destacar neste recorrido é
aquela na qual ela está especialmente enganchada ao corpo, que, seguin-
do o ensino de Lacan, aprendemos a considerar como a sede do gozo.
Na escritura que Lacan nos propõe no Seminário Mais, ainda: a do
parlêtre que falando goza e que podemos expressar com a fórmula: as
palavras fazem corpo.
Como veremos, não se trata do inconsciente freudiano que está feito
de representações inconscientes, que, segundo Lacan (1977/1981, p. 3),
é uma ideia totalmente vazia: “Não se pode sugerir a ideia de represen-
tação mais que quitando ao real todo seu peso concreto.”2
Segundo Lacan, trata-se das palavras que se enodam ao corpo e que
representam o inconsciente de um modo diferente de Freud, ou seja,
com o peso do real. Então, Lacan propõe dar outro corpo ao incons-
ciente.
Aqueles que atravessam uma experiência de análise conhecem os
efeitos impressionantes que as palavras provocam no corpo.
Elas nos emocionam, comovem-nos e capturam o corpo de tal modo

2 No original: «On ne peut suggérer l’idée de représentation qu’en ôtant au réel


tout son poids concret.»

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 81


SILVIA SALMAN

que é impossível não sair perturbado, se não de todas, ao menos de al-


gumas das sessões de análise.
O sujeito que vai à análise é um sujeito que sofre de coisas que lhe
foram ditas. É um sujeito que está doente das palavras do Outro, de
certos enunciados. Esses encontros originais com as palavras escrevem
marcas no corpo e instalam um modo de gozar que deixam o sujeito
enganchado, a partir daí, em uma repetição.
Dessa maneira, Lacan (1972-1973/1985) propõe uma orientação na
qual o corpo goza, mas a condição de corporizá-lo de maneira signifi-
cante.
Uma análise permite isolar esses encontros iniciais que fazem escri-
tura. É o que em outras palavras chamamos significante amo, um S1 a
partir do qual se ordena a neurose e torna legível o programa de gozo
que prevalece para um sujeito.
Essa escritura vem no lugar da escritura que não há, ou seja, escre-
ve-se sobre o fundo do que é impossível de escrever, a relação sexual.
“Fazer legível a escritura desse programa dá a possibilidade ao sujei-
to de ganhar certo grau de liberdade com respeito a isso e pelo menos
inscrever-se nele com o menor mal-estar possível” (MILLER , 2008).
Não parece que tenhamos muita chance de sairmos do programa do
gozo, mas sim de amarrar os termos de outro modo. Uma nova amarra-
ção que escreva outro modo de viver a pulsão.
Esse programa põe em funcionamento uma montagem pulsional
que terá de decifrar nas cadeias de gozo-sentido que o analisante expres-
sará, e que também deverá perturbar para poder dar lugar à desarticula-
ção do dito circuito. Aqui está o programa de gozo que a análise terá de
reduzir em sua leitura do inconsciente e do que o analista formará parte
na aventura transferencial.
Então, a pulsão é um dos conceitos fundamentais para pensar a rela-

82 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A EXPERIÊNCIA DO CORPO NUMA ANÁLISE
Bahia

ção da palavra e o corpo.


O trajeto pulsional
A pulsão sempre se encontra articulada com um trajeto, um cami-
nho traçado a partir de seus elementos. Deles me interessa salientar es-
pecialmente o objeto, que é aquilo pelo qual a pulsão pode alcançar a
satisfação e que é o mais variável, já que não está preso originalmente
com ela.
Em Pulsões e seus destinos, Freud (1915/1986, p. 118) dirá que: “Uma
ligação particularmente íntima da pulsão com o objeto é salientada
como fixação dela.” Então, é o mais variável, mas também o mais fixo,
uma vez que o programa de gozo foi escrito.
Desse modo podemos ler a experiência de uma análise por meio de
uma lógica abordada em termos libidinais.
Em primeiro lugar, podemos situar uma fixação libidinal que se pro-
duz a partir de um encontro contingente e que condiciona uma repeti-
ção. O contingente torna-se necessário.
Depois da análise e da interpretação do analista, produz-se uma per-
turbação da defesa que tem como consequência uma comoção libidinal
desses circuitos fixos que percorriam a pulsão. Se for alcançada a dita
comoção libidinal, obtém-se uma disponibilidade da libido que permi-
te uma abertura ao campo da contingência dando lugar finalmente às
vicissitudes da libido. Então, o necessário pode voltar a transformar-se
em contingente.
O que em uma análise implicará fazer o trajeto que vai da contingên-
cia do primeiro encontro traumático com lalangue, contingência que
fixa um S1 e que por isso se transforma em necessidade de repetição, à
produção do sinthome ao final da análise que surge como o produto de
uma nova contingência, dessa vez sustentada pelo ato analítico.
Essa montagem pulsional que acabamos de situar se constrói sem-

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 83


SILVIA SALMAN

pre por meio de referências gramaticais. É um nível da pulsão no qual


podem articular-se a dimensão real e a dimensão da linguagem que se
apoia nas três vozes: ativa, passiva e reflexiva (ver – ser visto – fazer-se
ver). De qualquer forma, Lacan (1964/1986, p. 185) nos adverte que essa
inversão significante nada mais é do que o que recobre. “O fundamental
de cada pulsão é o vaivém com que se estrutura.” Com vaivém, refere-se
ao caráter circular, de inversão fundamental em que o laço se abraça a si
mesmo, a palavra se enrola sobre si, em que falamos sozinhos e sempre
dizemos a mesma coisa.
Entretanto, o esclarecimento da gramática pulsional forma parte da
análise, e o que esperamos obter do trabalho analítico é essa trajetória
pulsional que se expressa em formas gramaticais. Cada um a sua.
A satisfação
Outro dos termos que nos permite captar a relação das palavras e o
corpo é a satisfação, que é também um dos elementos da pulsão.
Lacan se detém especialmente no termo satisfação, que nos interessa
de modo particular, já que em seu último ensino, e é o que J. A.-Miller
destaca nos últimos cursos a respeito do final de análise e do passe, a
satisfação será o índice da conclusão da experiência analítica. Trata-se
de testemunhar a satisfação alcançada ao final do trabalho analítico.
De que satisfação se trata?
Evidentemente nossos pacientes nos consultam porque não estão sa-
tisfeitos com o que são: ou não estou no lugar que quero, ou não tenho o
amor que esperava, ou não recebo o reconhecimento que mereço... Diz
Lacan (1964/1986, p. 173-174):
Entretanto, sabemos que tudo o que eles são, o que vivem, ainda
seus sintomas, têm a ver com a satisfação [...] Digamos que para
uma satisfação desse tipo, sofrem demasiadamente. Até certo pon-
to, esse excesso de sofrimento é a única justificativa para a nossa
intervenção.

84 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A EXPERIÊNCIA DO CORPO NUMA ANÁLISE
Bahia

Constatamos, assim, que o analisante obtém uma satisfação que,


evidentemente, neste sofrer em excesso, não é sentida como tal. E esse
modo de obter satisfação, que também podemos chamar de modalida-
de de gozo, entra na análise mesmo a partir da transferência. Assim,
na análise também se obtém uma satisfação e a transferência será o lu-
gar privilegiado para tratá-la, por isso Lacan (1964/1986, p. 174) agrega
posteriormente que “o estado de satisfação deve ser corrigido em nível
da pulsão”.
A retificação, o que muda, situa-se no nível da satisfação. Eviden-
temente se trata de uma transformação, de uma mudança no regime
da satisfação. A fórmula freudiana da satisfação paradoxal o expressa
muito bem: uma satisfação que não é sentida como tal e que ao final da
análise poderá ser experimentada como uma satisfação de outra ordem.
R S I, três dimensões do corpo
No seminário de Caracas proferido por Lacan em 1980, refere-se a
“meus três”: o Real, o Simbólico e o Imaginário. Seus três que o acom-
panham desde o início de seu ensino e que, ao final, os situa em uma
topologia, a do nó, chamado Borromeano.
Aí se dirige ao auditório dizendo-lhes: “Eu dei isto aos meus. Dei
para que se orientem na prática” (LACAN, 1980-1981/1987, p. 264).
Quer dizer que, para encontrar-se na prática lacaniana da psicaná-
lise, há de operar com R S I. Com os nos e os buracos que eles circuns-
crevem. Com os enlaces e amarrações que eles promovem. Assim Lacan
nos convida a operar com suturas, com juntas e com outras operações
analíticas que vão muito além da operação da interpretação e que final-
mente impactam o corpo.
Então, seguindo o último ensino de Lacan, podemos delimitar três
dimensões do corpo que não se anulam entre si e que se podem des-
prender do trabalho analítico que por sua vez permite construí-las. A do
corpo imaginário do espelho, um corpo sustentado no falo e reduzido à

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 85


SILVIA SALMAN

sua forma, à sua boa forma. É o corpo no registro do imaginário, o cor-


po visual, o corpo do espelho. A do corpo significantizado que a neuro-
se pode efetuar, aquele no qual o gozo fica contornado pelo significante
e reduzido a uma significação tanto no sintoma como no fantasma; é o
corpo no registro do simbólico e no campo da significação. E a dimen-
são do acontecimento de corpo, em que se pode capturar um gozo que
não está localizado a partir de um significante e que, por conseguinte,
obtém uma satisfação fora do sentido. Essa modalidade do gozo traça
certo funcionamento e permite capturar o corpo no registro do real.
Um trabalho analítico convida a não se deixar fascinar pela imagem
nem adormecer pelo significante. O esclarecimento que se vai produzin-
do na cura, do objeto em torno do qual se obtém a satisfação pulsional,
implica um trabalho progressivo de decomposição do nível especular
que sustenta o estádio do espelho.
À proporção que se constrói o objeto a na cura, desarticula-se a di-
mensão especular que o velava, é a percepção i (a) que mostra como a
imagem recobre o objeto.
Analisar-se implica, então, iniciar uma crítica às identificações fáli-
cas que é, em última instância, uma crítica ao imaginário; mas como di-
tas identificações se sustentam em significantes: sou o desenho anima-
do, sou o sopro, sou engenheiro..., então se trata também de uma crítica
aos limites do simbólico, limites que o Nome do Pai especialmente fixa.
Quando enfatizamos que a experiência analítica é uma experiência
de corpo, não nos referimos nem ao corpo em sua dimensão imaginária,
a do espelho, nem ao corpo em sua dimensão simbólica, a das signifi-
cações. Referimo-nos especialmente ao corpo em sua dimensão real, o
corpo como sede de um gozo, como substância gozante (MILLER, 2011,
aula de 9.3.2011).
O sintoma como acontecimento de corpo
O sintoma como acontecimento de corpo é uma nova definição do

86 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A EXPERIÊNCIA DO CORPO NUMA ANÁLISE
Bahia

sintoma que Lacan entregou nos últimos anos de seu ensino. É uma
formulação que aparece uma só vez em uma de suas conferências sobre
Joyce, que J.A.-Miller soube destacar para colocar em evidência o corpo
na experiência analítica.
No caminho que nos leva desde Freud a Lacan, podemos perceber
diferentes definições do sintoma; segundo nos situemos na primeira ou
na segunda tópica de Freud, e segundo nos situemos na primeira ou no
último ensino em Lacan.
Sem entrar em detalhes sobre o sintoma, mas o suficiente para captar
como Lacan chega a essa formulação, podemos dizer que o sintoma na
primeira tópica freudiana, a do consciente, pré-consciente e inconscien-
te, é um retorno do reprimido.
Trata-se, então, de uma formulação substitutiva, uma formação de
compromisso entre uma representação inconciliável, que por isso se
torna inconsciente e uma representação substitutiva que, por estar lon-
ge da representação patológica, pode emergir no campo da consciência
na forma de um sintoma, seja no plano dos pensamentos, na neurose
obsessiva, seja no plano do corpo, na histeria.
Nessa concepção, trata-se do sintoma na perspectiva do advento de
uma nova significação. Lacan extrai dessa concepção do sintoma a ideia
de que o sintoma quer dizer algo e a interpretação pela decifração é a
ferramenta fundamental para resolver o sintoma.
Com a segunda tópica, a do ego, id e superego, a concepção do sin-
toma torna-se mais complexa, e além de apresentar-se como uma for-
mação substitutiva, Freud o apresenta como uma satisfação substitutiva.
Estamos no texto freudiano de Inibição, sintoma e angústia.
Nessa nova concepção do sintoma, o termo satisfação é a chave para
pensar a relação com o corpo, já que a satisfação faz referência à satis-
fação pulsional que sempre se produz na dimensão do corpo, e não no
plano das representações. Ou seja, que de uma tópica a outra, passamos

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 87


SILVIA SALMAN

do plano das representações que têm uma significação, um sentido e


quer dizer algo. À dimensão do corpo e a satisfação, onde id não quer
dizer, senão onde id se satisfaz, onde id goza. Então, do sentido ao gozo,
ou seja, ao fora de sentido.
Agora bem, o que permanece invariável é o termo substituição. Efe-
tivamente, trata-se de uma substituição, seja jogando no plano das re-
presentações, seja na dimensão do gozo.
Substituição
O valor da substituição é crucial. Entretanto, não devemos pen-
sar que a substituição vem no lugar de algo que em algum momento
havia estado e agora não está. A substituição vem do lugar vazio. Tal
como o formulava Freud (1914/1996) em Recordar, repetir e elaborar:
“[...] como pode ser que se recorde algo que nunca foi esquecido.” Na
Conferência 18, A fixação em traumas, o inconsciente, quando Freud
(1916-1917/1996) se refere ao sintoma como o substituto de outra coisa
que não ocorreu. No axioma lacaniano: “não há relação sexual”, encon-
tramos os ecos desse valor de substituição. Tudo o que vem no lugar do
que não há é da ordem da substituição, e a inexistência da relação sexual
desenha uma economia de gozo que é completamente substitutiva, sem
original (MILLER, 2012b).
Então, de entrada, trata-se de um gozo substitutivo inicial, tal como
o afirma Lacan (1972-1973/1985, p. 121) no seminário Mais, ainda e
que extrai de Freud.
Com o termo satisfação substitutiva, Freud nos indica que, por obra
da repressão, a satisfação esperada se converte em desprazer. Trata-se
então de uma satisfação que não é sentida como tal, já que por ação da
repressão e para ser admitida pelo ego, transforma-se em desprazer.
Essa é a chave do sofrimento, do pathos que acarreta o sintoma antes
da entrada em análise, inclusive o que a desencadeia. E não é por ser
uma satisfação substitutiva que devemos pensar que é uma satisfação

88 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A EXPERIÊNCIA DO CORPO NUMA ANÁLISE
Bahia

menor, muito pelo contrário, o padecer demais ou o padecem demasia-


damente se refere a esse tipo de satisfação.
Em que contexto Lacan produz essa formulação sobre o sintoma
como acontecimento de corpo?
Trata-se de uma conferência proferida na Sorbonne em 1975 por
ocasião do Simpósio Internacional James Joyce realizado em Paris
no mês de junho desse ano, convidado por Jacques Aubert (LACAN,
1975/1997). Alguns meses depois, começará a proferir seu Seminário
23 O sinthoma, no qual se deixará levar da mão de Joyce para explorar,
entre outros termos, o corpo.
Ter um corpo
Nessa conferência Lacan põe em relevo o corpo em relação ao ter.
O homem tem um corpo é a proposição que enquadra toda a confe-
rência e que desemboca na formulação do sintoma como acontecimen-
to de corpo.
O ponto-chave para compreender esse movimento é que temos um
corpo, mas não somos ele. Não se é um corpo, tem-se um corpo. É nesse
contexto que propõe o termo parlêtre (ser falante) para designar o que
até então era chamado sujeito do inconsciente.
Entretanto, ao concluir o Seminário 23 o sinthoma, Lacan (1975-
1976/2006, p. 151) se dirige ao seu auditório dizendo:
Antes de me despedir de vocês, vou apontar algumas coisinhas que
me parecem notáveis. Vocês precisam perceber que o que eu lhes
disse sobre as relações do homem com o seu corpo atém-se inteira-
mente ao fato de o homem dizer que o corpo, seu corpo, ele o tem.
Dizer ‘seu’ já é dizer que ele o possui, como se fosse, naturalmente,
um móvel. Isso nada tem a ver com qualquer coisa que permita de-
finir estritamente o sujeito, que, por sua vez, só se define de modo
correto na medida em que é representado por um significante junto
a outro significante.

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 89


SILVIA SALMAN

Distingue-se, assim, duas dimensões nas quais entra em jogo a di-


ferença, mas também a articulação entre o sujeito do inconsciente, que
está suspenso da cadeia significante, e o parlêtre que se apoia em sua
relação com o corpo.
Interessa-me especialmente trabalhar o alcance da fórmula ter um
corpo, que pude experimentar em meu próprio trabalho analítico.
Em princípio, podemos captar uma disjunção que se joga entre o ter
um corpo, e o ser um corpo, fundamentalmente no momento de estabe-
lecer um diagnóstico diferencial entre psicose e neurose, entre histeria
e psicose ordinária, já que é nessa falha de identificação entre o ser e o
corpo que o psicanalista encontra seu lugar para poder operar sobre os
diferentes modos de ter um corpo.
Por isso Lacan (1975-1976/2006, p. 151), nessa mesma aula do Semi-
nário 23, afirma que se relacionar com o próprio corpo como algo alheio
é certamente uma possibilidade que expressa o uso do verbo ter: “você
tem um corpo, não o é de maneira alguma.”
Modos de ter um corpo
O sujeito, a partir do momento em que é sujeito do significante, não
pode identificar-se com seu corpo, justamente porque se identifica com
um significante, o S1 amo de sua existência. Esse defeito de identifica-
ção corporal se traduz no sentimento de estranheza e alheamento que
se tem do corpo. Especialmente na histeria, onde o corpo faz a própria
vontade, mas também no obsessivo que se irrita com as rugas na testa.
Além disso, recordarão a leitura que fez Lacan (1975/1998) na Confe-
rência em Genebra sobre o sintoma do gozo hetero em Juanito, ligado ao
órgão que o amedronta.
No texto Efeito do retorno à psicose ordinária, Miller (2010) explora a
distinção entre a histeria e a psicose ordinária na relação com o corpo e
se pergunta pela desordem, pelo desajuste que existe nessa relação para
uma e outra categoria clínica.

90 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A EXPERIÊNCIA DO CORPO NUMA ANÁLISE
Bahia

Destaca, então, os diferentes recursos que a psicose ordinária tem


para recuperar e se reapropriar do corpo. Diante do corpo que se de-
compõe, que se fragmenta, que se desorganiza, o sujeito é levado a in-
ventar laços artificiais para agarrar-se ao seu corpo, para manter o pró-
prio corpo.
O que aponta Miller, no momento de fazer um diagnóstico diferen-
cial, é que a dificuldade reside no fato de que todos esses meios artifi-
ciais que pareciam anormais há anos hoje são banalizados. Os piercings
estão na moda, as tatuagens também. De toda forma, certo uso das ta-
tuagens e dos piercings, e também de outros artifícios, são uma maneira
de ligar-se ao próprio corpo.
Como o caso de uma jovem para quem as lentes de contato, a ma-
quiagem e uma franja que funciona como uma cortina em seu rosto são
os artifícios que lhes servem para manter um laço possível com os ou-
tros. Elementos suplementares que oficiam o Nome do Pai e promovem
uma amarração.
Então, como distingui-lo da histeria?
Finalmente, Miller conclui que se trata de uma questão de tonali-
dades e excessos. Na histeria, esses desajustes no corpo se encontram
limitados pelo (- φ) da castração e enquadrado na neurose. Enquanto
na psicose ordinária, percebe-se o infinito da falha do limite.
Efetivamente, uma tatuagem em uma parte do corpo não é o mesmo
que todo um corpo tatuado, tampouco um piercing em uma parte do
corpo é igual a um corpo todo esburacado pelos piercings.
Em outro texto precioso, A invenção psicótica, Miller (2003) aborda
as diferentes estruturas clínicas da psicose, as diferentes maneiras que
tem o psicótico de enlaçar o corpo e de inventar um discurso estabeleci-
do quando não conta com esse apoio.
De um paciente esquizofrênico, pontua o sentimento de estar fora de

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 91


SILVIA SALMAN

seu corpo e de como lhe é necessário inventar os recursos para ligar-se


a seu corpo. Nos dedos põe anéis que têm o valor de amarrar o corpo.
Sobre a cabeça, põe uma venda, para ligá-la ao corpo. São seus recursos,
seus meios simbólicos de reunificar o corpo e de sustentá-lo. Essa é sua
pequena invenção.
Então, há toda uma clínica a pensar em relação aos modos de ter o
corpo, nas psicoses e nas neuroses, e especialmente no que na atualida-
de se apresenta como as psicoses ordinárias.
Acontecimento
A definição conceitual do termo acontecimento indica que se tra-
ta de um fato que sucede em um dado momento. Que se caracteriza
por uma ruptura ou transição no curso dos eventos e por seu caráter
relativamente efêmero, ainda que tenha repercussões no futuro. O que
podemos dizer: “um antes e um depois”. Em um sentido geral, aconte-
cimento é tudo o que sucede e tem um caráter pouco comum, inclusive
excepcional.
No Seminário 21 Les non-dupes errent, Lacan (1973-1974)  destaca
que não há mais acontecimento que o dizer de cada um. Essa é uma
nova concepção do acontecimento que coloca ênfase sobre o aconteci-
mento como signo do real, como o que se escreve além da decifração.
Recordemos que o signo é sempre signo de uma presença. Então um
acontecimento é correlativo e índice de uma presença do real, a diferen-
ça do significante que sempre indica uma ausência.
Por isso o acontecimento de corpo com o qual Lacan designa o sin-
toma é um acontecimento de corpo substancial, aquele que tem consis-
tência de gozo.
Miller (1998-1999/2003) retoma essa perspectiva em A experiência
do real para destacar que, no acontecimento de corpo, se trata sempre
de acontecimentos discursivos que deixaram rastros no corpo, que o
perturbam e produzem sintoma nele, mas, “somente na medida em que

92 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A EXPERIÊNCIA DO CORPO NUMA ANÁLISE
Bahia

o sujeito em questão seja apto para ler e decifrar essas marcas”.


Efetivamente, isto desemboca em que o sujeito encontre na experi-
ência da análise os acontecimentos com os quais se traçam seus sinto-
mas.
Quais são esses materiais existentes com base nos quais se traçaram
os sintomas?
No seminário Mais, ainda Lacan (1972-1973/1985, p. 180) vai pro-
por uma mudança de perspectiva a respeito dessa matéria prima, intro-
duzindo a diferença entre a linguagem e lalangue, para captar de que se
trata aquilo que preexiste ao sujeito: “Lalangue nos afeta primeiramente
por tudo o que ela comporta de efeitos que são afetos.” Assim, se pode
perceber que os efeitos de lalangue vão muito além de tudo o que o par-
lêtre é capaz de enunciar. Capta-se também sua distinção a respeito da
linguagem que Lacan vai postular aqui como uma elucubração de saber
sobre lalangue e que opera pela metáfora e metonímia produzindo efei-
to de significação. Enquanto lalangue opera no nível dos afetos, ou seja,
no nível do corpo, produzindo afetos que constituem acontecimentos
próprios do corpo de cada um, ou seja, mais letra que significante. Por
isso Lacan também dirá nesse Seminário que lalangue serve para outras
coisas muito diferentes que a comunicação. Ou seja, que tem um uso
que não está a serviço da relação com o Outro. Encontrar esse ponto
inicial no gozo confirma que o gozo é fundamentalmente Uno.
Lalangue é algo que se recebe, não é algo que se aprende. Desse en-
contro entre lalangue recebida e o corpo, nascem marcas, inscrições no
corpo. No curso Peças avulsas, Miller (2006) argumentava que o sin-
thoma é a consistência dessas marcas e que é por aí que se pode reduzir
o sinthoma a ser um acontecimento de corpo, algo que aconteceu ao
corpo em termos de lalengua.
O analista corpo
Se falo com meu corpo, tal como o assinalou Lacan no Seminário

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 93


SILVIA SALMAN

Mais, ainda, en-corps, no que destaca justamente a presença do corpo na


análise, que lugar vai ocupar o analista nesse modo de conceber a cura?
Enquanto opera com seu dizer, ele também oferece seu corpo, e sua
presença en-cuerpo é a condição necessária para todo tratamento possí-
vel do gozo na análise.
A posição do analista no ensino de Lacan desenha um arco que vai
desde o analista na posição de morto à presença do analista vivo, ao
que Lacan chamará analista sinthoma. Um arco que tem como ponto
de inflexão o conceito operatório de desejo do analista a partir do qual
Lacan introduziu a dimensão libidinal da transferência, de que o gozo e
o corpo são seu fundamento.
Quais são as figuras do analista que se desprendem do ensino de
Lacan e que assinalam o horizonte de um analista corpo, de um analista
que excede a representação?
O morto, o semblante de objeto, o santo, o sinthoma, o trauma são
diferentes figuras do analista lacaniano que nomeiam de algum modo
o analista vazio que se encontra no horizonte de nossa experiência.
Um analista, diria Laurent (2011), que pratica “uma ascese. Tão grande
como a de fazer o morto, ou a de não ter nenhuma lembrança, interesse
ou memória”.
Entretanto, veremos que não se trata somente da dimensão do vazio,
do não há ou da ausência, no analista, também se trata do que há nele,
de sua marca, de seu gozo, de seu estilo. Isso é o que estivemos explo-
rando no último congresso da AMP na mesa sobre o Desejo do analista,
que vou retomar porque nos interessa especialmente para situar as co-
ordenadas do que seria o analista corpo, o qual convida provavelmente
a uma redefinição do desejo do analista, tal como propôs J.A.-Miller em
sua conferência sobre o real.
O analista trauma
Assim como Lacan nos anos 1960 convidou o analista a ocupar o

94 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A EXPERIÊNCIA DO CORPO NUMA ANÁLISE
Bahia

lugar de semblante de objeto, nos anos 1970, convida-o a ocupar o lugar


de trauma.
O analista traumático é uma figura da posição do analista correlativa
ao último ensino de Lacan. É o analista que está mais do lado do gozo
que do saber, mais do lado do ato que da interpretação, mais do lado do
vazio que do objeto a.
Oriento-me com uma referência de Lacan das Conversas em Sainte-
-Anne, que nos permite retomar o que trabalhamos no começo sobre o
encontro entre as palavras e o corpo. Se na neurose pode organizar-se
a partir de um significante que marcou o corpo pela ação dos pais, e a
posição do analista por sua orientação, converge para a produção desse
significante na cura, então disse Lacan: “Todo pai traumático está defi-
nitivamente na mesma posição que o psicanalista. A diferença está em
que o psicanalista, por sua posição, reproduz a neurose, enquanto o pai
traumático, inocentemente a produz” (LACAN, 1971-1972, p. 106).
Esse redobramento, que promove o discurso analítico, a diferença
do pai e de outros discursos que eclipsam o sujeito, aponta direto ao
corpo, subtraindo gozo e introduzindo o novo na repetição, que até esse
momento era repetição vã por ser sempre a mesma.
O analista corpo agrega com sua interpretação a dimensão libidinal
que se necessita para encarná-lo. Desse modo, pode-se captar o ponto
no qual convergem o significante paterno e o analista, mas também o
ponto no que divergem e que é o que em psicanálise dará lugar a in-
venção. Efetivamente, um significante novo será o produto final dessa
operação analítica, um significante que já não é do pai, do Outro, senão
que é produto de análise.
O gozo no desejo do analista
Na conferência sobre O real no século XXI apresentando o próxi-
mo congresso da AMP, Miller propõe algumas perguntas que se abri-
rão para nós nestes dois anos que teremos adiante. Entre elas, refere-se

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 95


SILVIA SALMAN

à redefinição do desejo do analista, que “não é um desejo puro, como


disse Lacan, nem uma metonímia infinita, mas que nos aparece como
um desejo de chegar ao real, de reduzir o outro ao seu real e liberá-lo do
sentido” (MILLER, 2012a, p. 436).
Todos os AE, que fomos convocados a participar da mesa sobre o
Desejo do analista, percebemos, de um modo ou de outro, como em
cada um surgiu o desejo do analista como produto de nossa experiência
de análise. Dessa maneira nos encontramos testemunhando aquilo que
obtivemos ao final da análise, desse resto de gozo que é impossível ser
negativado, que, de diferentes modos, o nomeamos como sinthoma.
E como ficávamos atentos para que esse resto não fizesse obstáculo
em nossa prática, mas também como esse resto forma parte do analista
que cada um de nós somos. Um resto não eliminável também para a
posição de analistas.
Nesse testemunho diferenciei o desejo do analista desde a perspec-
tiva do objeto, na qual Lacan acentua a dimensão do vazio do analista
disposto a encarnar o objeto que mais convenha para cada analisante. O
analista corpo feito de objeto.
Da perspectiva do sinthoma, desse gozo que restou a análise, e que
mais que vazio é gozo.
A pergunta que reivindicou relevância ao menos para mim é a que
formulou Leonardo Gorostina (2012a, p. 292): “Poderíamos dizer que
o gozo impossível de ser negativado é o que encarna a causa do desejo
para o analisante? Ou o que encarna a causa do desejo é a dimensão do
vazio?”
Depois de voltar a ler os textos, posso dizer que penso que um não
funciona sem o outro, que o vazio do analista não funciona sem o corpo
e que o corpo do analista não opera sem o vazio. Porque o vazio também
tem seu lugar no corpo e isso faz ao estilo de cada analista, à maneira
como cada um conseguiu ajustar-se e que é exatamente o que torna im-

96 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A EXPERIÊNCIA DO CORPO NUMA ANÁLISE
Bahia

puro o desejo do analista.


Para concluir, retomo a pergunta de J. A.-Miller que Anne Lysy
(2012a, p. 299) formula em seu texto: “Vacilaremos em dizer que nosso
modo de gozar está incluso em nossa relação com a psicanálise?” Ao
que acrescentaria: vacilaremos em dizer que nosso corpo está incluso
em nossa relação com a psicanálise?
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ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 99


CARLA FERNANDES

Em corpo, mais e mais, ainda


In body, yet more and more

Carla Fernandes

Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar um olhar sobre o conceito de cor-
po na psicanálise de orientação lacaniana, através de um recorte partindo do último ao
primeiro ensino de Lacan. Trabalhamos aqui em torno da relevância de considerar o
corpo na direção do tratamento, pela via da vertente do gozo, já que Lacan indica que só
há gozo no corpo vivo que fala. Abordamos um caso clínico de uma paciente atendida
pela autora em um hospital psiquiátrico, para discutir as possibilidades de intervenção
nessa perspectiva.
Palavras-chave: Corpo. Clínica psicanalítica. Direção do tratamento. Gozo. Lacan.

Abstract: This study aims to examine the concept of the body in Lacanian psychoanaly-
sis, reviewing Lacan’s teaching in reverse chronological order. Our work focuses on the
importance of considering the body in the context of treatment, by means of the slope
of jouissance, as Lacan indicates that there can only be jouissance in a living body that
speaks. We report on a case of a patient attended by the authoress in a psychiatric hos-
pital, to discuss possibilities of intervention in this perspective.
Keywords: Body. Psychoanalytic. Direction of treatment. Jouissance. Lacan.

“É sem dúvida a existência do nosso corpo, semelhante para nós


a um vaso em que estaria encerrada a nossa espiritualidade, que
nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, as alegrias
passadas, todas as nossas dores, estão perpetuamente em nossa
possessão”.

(Marcel Proust, 1922-1923/2008)

Qual a importância do corpo para a psicanálise? Na contramão de


críticas a esse campo teórico, que indicam a exclusão da problemática
do corpo, percebemos, ao retornar aos fundamentos de Freud (1893-
1895/2006) e Lacan, que o corpo esteve em questão desde o princípio. Se
na origem da psicanálise foi o amor entre Ana O. e Breuer que favoreceu
o fundamento da clínica psicanalítica, como afirma Lacan (1964/1998),

100 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


EM CORPO, MAIS E MAIS, AINDA
Bahia

é possível inferir que foi pelos enigmas do corpo na histeria que as por-
tas se abriram a essa possibilidade.
Mas o que é o corpo para a psicanálise de orientação lacaniana? Par-
tindo de um recorte em uma perspectiva do último ao primeiro ensino
de Lacan, propomo-nos inicialmente a elucidar alguns aspectos acerca
desse enigmático conceito. Enigmático, porque se realizarmos uma in-
cursão panorâmica, tanto pelo ensino lacaniano como pelo ensino freu-
diano, revelam-se apenas pedaços e dizeres pontuais sobre o corpo que
não nos esclarece a complexidade que envolve a questão. Talvez não sem
um motivo, uma vez que o corpo é despedaçado desde sua origem. É a
experiência humana da entrada na linguagem que permite a construção
de uma unidade corporal. De acordo com Brousse (2009), a constitui-
ção da imagem corporal é o que vela a angústia que advém do corpo
fragmentado. O que a imagem corporal tenta recobrir é justamente a
relação problemática do homem com seu corpo. Brousse sugere o se-
guinte esquema para representar esse ponto:
Imagem corporal
Corpo fragmentado
Esse aspecto também foi observado por Freud (1930/2006). Em El
malestar en la cultura, ele considera que a vida na civilização nos coloca
diante de um mal-estar que advém das exigências em abdicar da satis-
fação pulsional e inclui o corpo na série das três formas de sofrimento
que ameaçam o homem, ao lado das catástrofes do mundo externo e
das relações com os outros homens. O corpo, condenado à deterioração
com o passar do tempo, sinaliza por meio da angústia a sua fragilidade.
Nessa direção, Lacan (1974/2011) refere que nossa relação com o corpo
contribui para o mal-estar no mundo. Ele prossegue com a pergunta: do
que temos medo? E responde que tememos nosso corpo. A angústia é
justamente o sentimento que se manifesta diante da “suspeita que nos
vem de nos reduzir a nosso corpo” (LACAN, 1974/2011, p. 29).
Em seu último ensino, Lacan (1974/2011) situa a ligação existente

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 101


CARLA FERNANDES

entre corpo e gozo ao destacar que o gozo é propriedade do corpo vivo


que fala. Temos aqui três termos relacionados com os três registros, que
assumem a mesma relevância, devendo ser considerados em equivalên-
cia: real (gozo), corpo (imaginário) e simbólico (fala). Entendendo a
importância de abordar as questões do corpo na clínica, ele substituiu o
termo falta-a-ser por falasser para se referir ao homem. Essa mudança
sugere que há uma passagem de uma definição centrada na articulação
significante, que implica o sujeito no registro da falta, do desejo, com
uma outra centrada no gozo (MILLER, 1998). O conceito de falasser
implica o sujeito mais o corpo, a substância gozante. Se de certa forma,
no seu primeiro ensino, Lacan se absteve de destacar o corpo, apesar de
não deixá-lo de lado, posteriormente percebeu que só é possível fazer
referência ao gozo incluindo o corpo.
No princípio, Lacan (1949/1998) situa o corpo na ordem imaginária
ao abordar o estádio do espelho. Nesse momento está em jogo a defini-
ção de imaginário real, pois Lacan se utiliza da etologia para entender as
implicações do imaginário no real do corpo. Como exemplo, a pomba,
quando vê a imagem de seu semelhante, produz alterações fisiológicas
que ativam os mecanismos biológicos para a reprodução. Ou seja, a
imagem que tem um efeito real no organismo (BROUSSE, 2009).
Segundo Lacan (1949/1998), no caso do animal humano, o estádio
do espelho, nessa época relacionado intimamente com o registro ima-
ginário, é o momento fundamental para a constituição do eu, de uma
imagem unificada do corpo. Quando o infans se vê no olhar do Outro1 e
se aliena a essa imagem, isso permite a construção de uma unidade cor-
poral que fornece uma estabilidade diante do caos do despedaçamento
vivenciado anteriormente. Quanto à importância dessa travessia, ele
diz: “basta compreender o estádio do espelho como uma identificação,
no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja: a transfor-
mação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (LACAN,
1949/1998, p. 97, grifos do autor).

1 Lacan define o como o tesouro dos significantes. É inicialmente encarnado pela mãe ou seu
substituto, responsáveis por “traduzir” as primeiras necessidades da criança.

102 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


EM CORPO, MAIS E MAIS, AINDA
Bahia

Posteriormente, em um segundo momento de seu ensino caracteri-


zado por um destaque do registro simbólico, Lacan (1953/1998) passou
a considerar a linguagem como a ferramenta fundamental da psicaná-
lise delegando o que é da ordem do imaginário ao campo da ilusão. Ele
faz uma releitura do estádio do espelho, por meio do esquema óptico
utilizando-se da ilusão de ótica produzida pelos espelhos côncavo e con-
vexo como metáfora de uma ilusão produzida pela linguagem. Aqui o
corpo é situado em referência ao simbólico, pois só é possível se consti-
tuir porque o homem é um ser de fala.
Ao avançar na teoria, quando aborda o objeto a e fala dos objetos
parciais da pulsão, Lacan (1962-1963/2005) apresenta o corpo em ou-
tra perspectiva, enfatizando a problemática a ele relacionada. O objeto
a, extraído do campo do Outro e com a operação de separação, é mo-
mento definido como objeto causa de desejo.2 Esse objeto, que não é
permanente, caracteriza-se por comportar um vazio, que de forma me-
tonímica permite que haja uma substituição por objetos distintos. É isso
que move o sujeito e permite que prossiga elegendo causas distintas para
ocupar esse lugar vazio.
Incluindo a pulsão como um dos quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, Lacan (1964/1998) explica que seu circuito se constitui em
torno do objeto e retorna ao próprio corpo. O corpo é situado em refe-
rência às “hiâncias”, que são as zonas erógenas, os buracos que o com-
põem. Com a avançar da teoria, Lacan vai cada vez mais enfatizando a
importância do corpo na prática psicanalítica.
Miller (2000) situa o Seminário 20, Encore, como o momento de vi-
rada que põe o corpo em relevo no ensino lacaniano. Ele remete o título
do seminário, do francês encore, a en-corps, quer dizer, “em corpo”, ou
ainda, a “Um corpo”. Além disso, Lacan volta a sinalizar a importância
do registro imaginário e nos diz que o ponto de partida do imaginá-
rio “é a referência ao corpo e ao fato de que sua representação – digo,
tudo aquilo que por ele se representa – nada mais é do que o reflexo de
2 A partir do seminário 17, O avesso da psicanálise, Lacan (1969-1970/1992) conceitua o objeto
a também como objeto mais-de-gozar.

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 103


CARLA FERNANDES

seu organismo” (LACAN, 1974-1975, aula 1 de 10.12.1974, p. 2-3).3 É


nessa ocasião que Lacan (1972-1973/1985, p. 34) introduz a noção de
Um através da frase “Há Um”. Trata-se do gozo Uno, que prevalece em
detrimento do Outro.
Miller (2000) localiza quatro versões do gozo Uno na teoria lacania-
na: o gozo do corpo próprio, o gozo centrado na parte fálica do corpo
ou o gozo masturbatório, o gozo da palavra4, que significa que quando
se fala se goza; e a sublimação. O corpo é uma substância que fala e goza
de maneiras distintas: “o lugar do gozo é sempre o mesmo, o corpo. Ele
pode gozar masturbando-se ou simplesmente falando. Pelo simples fato
de falar, esse corpo não está ligado ao Outro. Ele está ligado apenas a seu
próprio gozo, ao gozo Uno” (p. 104).
Por outro lado, mesmo indicando a prevalência do Um, Lacan (1972-
1973/1985) não exclui a problemática do Outro em seu último ensino.
Vejamos este trecho: “nós não sabemos o que é estar vivo, senão apenas
isto, que um corpo, isso se goza. O corpo de um goza de uma parte do
corpo do Outro” (LACAN, 1972-1973/1985, p. 35). Ao fazer referência
ao fato de que se goza de uma parte do corpo do Outro, ele situa que go-
zar de Um corpo é gozar de um corpo que o Outro simboliza. É preciso
fazer essa ressalva, porque na clínica é necessário levar em consideração
tanto o campo do Um, tendo no horizonte a vertente do gozo, como
o campo do Outro, considerando a vertente do significante na análise.
Se antes havia um destaque conferido ao registro simbólico, Lacan vai
percebendo que não é possível abordar o conceito de corpo sem consi-
derar os registros imaginário e real na perspectiva de que os três estão
em equivalência.
Para falar da importância também dos registros real e imaginário e
entender a complexidade em torno do corpo, Lacan (1974/2011; 1976-

3 Versão em espanhol: “es la referencia al cuerpo y al hecho de que sua representación – quiero
decir todo que para él se representa – no es sino el reflejo de su organismo.”
4 Destacamos o conceito de alíngua, que, segundo Miller, se refere à “fala antes do seu
ordenamento gramatical e lexográfico” (MILLER, 2000. p. 101). Trata-se da palavra concebida
como gozo, disjunta da estrutura de linguagem ou da comunicação.

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EM CORPO, MAIS E MAIS, AINDA
Bahia

1977/1978) se utiliza da noção de consistência. Esse termo, do francês


corps-sistant, remete a um jogo de palavras que indica a consistência
a partir do corpo. Em seu último ensino, o corpo passa a ter outro es-
tatuto, é um elemento primordial na clínica e está relacionado com a
consistência que remete à topologia dos nós, já que cada elemento do
nó – real, simbólico e imaginário – é consistente. Podemos escrever a
mudança do primeiro ao último ensino de Lacan da seguinte maneira:
Falta-a-ser Outro Significante discurso
Falasser Um gozo corpo
Essa mudança de perspectiva gera implicações na direção do trata-
mento, visto que se trata de tocar o real do gozo na análise, o que só
é possível pela via do fora sentido (sens juis). Segundo Solano-Suarez
(2003, p. 4), é preciso fazer um esforço para ir mais além do inconscien-
te, é necessário se opor à articulação de saber e “degradar a linguagem”.
É pelo equívoco que uma saída é possível. Lacan então nos fala da po-
ética herética, que joga com o duplo sentido do significante, com o que
ressoa e desse modo produz efeitos no corpo. Trata-se de ler no dizer
do falasser os significantes que, de alguma maneira, ressoam no corpo.
Essa é uma questão extremamente relevante para a clínica de nos-
sa época, caracterizada por distintos modos de adoecimento no corpo
que não se oferecem à interpretação, conforme sinalizado por Besset
et al. (2009). São casos em que, ao invés de produzirem uma inibição,
um sintoma ou angústia, os pacientes respondem diretamente no corpo,
sem possibilidade de contar com qualquer anteparo psíquico diante do
trauma5. Porém, ainda é um enigma para a psicanálise sobre como con-
duzir o tratamento de pacientes que respondem principalmente com
essas formas de adoecimento, que não são assimiladas pelo campo da
fala e da linguagem, a exemplo das patologias de passagem ao ato. Lacan
nos deixou algumas pistas ao se aprofundar sobre o conceito de gozo
5 As particularidades em torno desses modos de adoecimento, especialmente na clínica com
pacientes com dores crônicas, são fruto de discussão do Núcleo de Pesquisa Clínica Psicanalítica
(CLINP), do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IP-UFRJ),
coordenado pela Profa. Dra. Vera Lopes Besset. A autora é membro do Núcleo.

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 105


CARLA FERNANDES

em seu último ensino e a importância de considerar o corpo na prática


analítica.
É preciso, então, retomar o fundamento que remete à origem da psi-
canálise com Freud, ao considerar como condição sine qua non a singu-
laridade do caso na direção do tratamento. Vejamos o caso de uma pa-
ciente atendida pela praticante em um hospital psiquiátrico, que ilustra
as possibilidades da psicanálise diante desses modos de adoecimento
que dificilmente são tocados pela palavra.
Da solidão à palavra
Aos 34 anos, Malu, internada em um hospital psiquiátrico, apresen-
tava um histórico de internações recorrentes e era considerada “um caso
perdido” por toda a equipe. Situava-se no mundo por meio de uma lou-
cura desvairada, destruindo-se ao se expor a situações de risco. Além
disso, era extremamente hostil com a família e as demais pessoas do seu
ciclo social; ao mesmo tempo, dizia que precisava ser cuidada.
Mas como poderia ser cuidada, se no hospital insultava e fazia ame-
aças aos técnicos? A esse questionamento, responde que era esquizofrê-
nica, maluca, por isso agia daquela forma. Entretanto, mesmo medica-
da com antipsicóticos, não apresentava nenhum resultado satisfatório.
Quando frustrada, ficava agressiva e tentava impor sua vontade, ofen-
dendo verbalmente os profissionais que a atendiam, o que mobilizava a
equipe, gerando uma antipatia generalizada contra ela. Sua entrada no
hospital fazia ressoar a frase: “essa paciente novamente...”, o que era uma
ressonância da frase: “meu problema é crônico, eu tenho esquizofrenia,
eu sou maluca”, nomeações dadas pelo Outro às quais a paciente se iden-
tificava. A identificação com o S1 “maluca” permitia a ela um “poder
fazer tudo” e assim gozar sem limites.
Se, por um lado, a equipe a recusava, o hospital era o único lugar que
a aceitava, permitindo sua entrada apesar de sua condição. Sempre que
tinha alta, fazia de tudo para retornar. Na primeira ocasião em que foi
atendida, falava como se estivesse delirando, dizendo-se “Malu Mulher”

106 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


EM CORPO, MAIS E MAIS, AINDA
Bahia

e outras personagens de novelas brasileiras. Falou pouco sobre sua his-


tória, apenas que sua mãe “não prestava”, não a ajudava, assim como os
demais familiares. A equipe tinha conhecimento de que sua mãe, que já
havia falecido, tinha transtorno mental e era internada constantemente.
Esta teve outros filhos, mas criou apenas Malu, que, desde a infância, a
auxiliava em suas crises. Aos 14 anos, começou a construir a carreira de
internação em hospitais psiquiátricos, ficava internada com a mãe.
Seus familiares tentaram ajudá-la, porém ela os maltratava, passan-
do ao ato de agredir com frequência, o que acabou afastando-os. Malu
não conheceu o pai, não foi registrada por ele, e quando se investigava
a esse respeito, ela recuava. No início, não falava sobre si diretamente,
remetia-se sempre a um outro. Chamou atenção o fato de ela parecer ter
noção de seus atos, apesar dos “delírios” registrados em prontuário, que
mais pareciam devaneios. Disse que não sabia o que fazer e que, nesses
momentos em que “não pensa e sente um vazio”, lhe vinha um impulso
a agredir, usar drogas e ter vários parceiros sexuais. Assim, sua família
se afastava cada vez mais.
Dentro e fora da instituição, a paciente era regida por suas atuações
– na instituição tentava destituir o saber dos profissionais, agredia na
tentativa de fazer valer sua vontade quando alguém da equipe tenta-
va “impor limites” a ela. Fora da instituição, brigava com os familia-
res, referindo que eles tinham “obrigação” de cuidar dela pelo fato de
“ser doente”. Estes contratavam cuidadores para auxiliá-la, porém ela os
maltratava. Defecava no chão e “ordenava” que limpassem sua merda,
seu resto.
Com a oferta de um lugar para falar do seu sofrimento, aceitando-a
em sua condição, Malu começou a pensar em diferentes soluções para
sua situação, dizendo, por exemplo, que já tinha onde morar, que ia dar
continuidade ao tratamento em um Centro de Atenção Psicossocial, en-
trar em contato com seus familiares, morar na casa de outra paciente, ou
que ia estudar para realizar um curso de graduação. Falava das possibili-
dades como se estivesse para adquirir objetos de consumo.

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 107


CARLA FERNANDES

Havia momentos em que solicitava alta e pedia que não deixassem


que ela retornasse, “mesmo que pedisse”; em outros, após a alta, retor-
nava, solicitando que “mesmo que exigisse alta” não lhe concedesse,
pois não tinha para onde ir, retornava no mesmo dia da alta ou no dia
seguinte. Tinha noção de que acabava afastando as pessoas por conta
de suas “crises”. A equipe buscava encontrar uma forma de “resolver o
problema” da paciente, que era visto como “social” porque sua família
não a aceitava mais.
Retomando o momento de virada do Seminário 20: mais ainda,
quando Lacan (1972-1973/1985) diz que só há gozo enquanto proprie-
dade de um corpo vivo e indica a prevalência do Um que goza, perce-
bemos que é isso que está em jogo no caso de Malu. Ela gozava de se
degradar – ficava gozando do corpo próprio, o que remete a uma das
vertentes do gozo do Um, como já mencionado.
A falta de suportes identificatórios do pai e a inconsistência na cons-
trução da fantasia ($ <> a) que viabilizasse colocar-se enquanto sujeito
desejante repercutia na inviabilidade do estabelecimento de uma barrei-
ra ao gozo mortífero. A transgressão e as passagens ao ato incessantes
evidenciavam que para ela “tudo era possível”, não havia limites ou nor-
mas a serem seguidos. O que não podia ser dito era atuado.
Como modo de tamponar o vazio, Malu realizava atos em que se
colocava nesse lugar de degradada. Sem a possibilidade de encontrar
recursos simbólicos para dar conta do insuportável, atuava. Soldada a
um gozo mortífero, não tinha capacidade de emergir enquanto sujei-
to, demandando objetos de satisfação imediatos, ao solicitar objetos de
consumo e agredir quando estes não lhes eram oferecidos. O imperativo
era gozar a qualquer preço, até mesmo com o risco de ter de pagar com
sua vida nas situações às quais se expunha. Tudo o que era oferecido
não tinha como servir para ela, deixava-a insatisfeita. No entanto, ficava
claro no decorrer dos atendimentos que realmente o que ela demandava
era amor.
No caso em questão, a fragilidade da operação paterna campo da

108 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


EM CORPO, MAIS E MAIS, AINDA
Bahia

neurose repercute em passagens ao ato incessantes. Na direção do trata-


mento, a praticante apostou na possibilidade da emergência do amor de
transferência para dar o suporte a Malu para fazer signo diante da falta,
e assim, ser possível emergir o sujeito desejante. O que é capaz de dar
suporte, fazer signo, é o amor.
Nesse sentido, a possibilidade de bem dizer o desejo era a via neces-
sária. Mas como fazê-lo se, na relação transferencial, manifestava agres-
sividade ao afirmar: “você não entende, meu problema não tem solução,
é crônico, sou doente, nada pode ser feito”. Nessa ocasião a praticante
disse: “Tem solução sim e alguma coisa pode ser feita”. Em outra situ-
ação, após ter tido alta e retornar para a emergência do hospital muito
agressiva, precisando ficar contida, a equipe solicita apoio à praticante.
Nessa ocasião a paciente diz: “Saia daqui, você não pode fazer nada por
mim, eu não gosto de você, não quero sua ajuda”, o que a praticante
marca firmemente que, ainda assim, iria ajudá-la e que não iria desistir
dela como todos fizeram.
A tentativa da paciente em tentar mostrar-se de modo a não ser rece-
bida requeria uma abordagem mais apropriada, que não seria no sentido
de implicá-la em uma normatização, como nos moldes estandardizados,
mas apresentando-se na impotência, como castrado imaginariamente.
Percebe-se que, intervindo de outro lugar, aceitando-a com o degradar
de seus atos, o início do tratamento tornou-se viável. A intervenção nos
moldes clássicos não funcionava e causava horror à equipe. A partir das
intervenções enquanto semblante de sujeito na transferência, conforme
sinalizado por Horne (2006), no lugar de Outro barrado, foi possível
abrir a possibilidade da incidência da falta e da inserção do sujeito na
cadeia do discurso, fazer uma passagem da solidão do Um à palavra.
A cadeia significante que se instaura a partir da entrada da demanda
dá a possibilidade do surgimento do desejo. A partir desse momento
de virada, Malu fez uma passagem em busca do resgate de sua identi-
dade, tentando adquirir sua documentação e “deixar de ser indigente”.
Começou a se ocupar com os cuidados com sua aparência, tingindo os

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 109


CARLA FERNANDES

cabelos, utilizando acessórios e maquiagem, buscando roupas que a dei-


xassem “mais bonita”, se abrindo aos poucos a possibilidade de fazer uso
do semblante feminino. A psicanálise desde seu fundamento nos ensina
que não importa o diagnóstico do ponto de vista fenomenológico, o im-
portante é a transferência e a intervenção a partir daí.
Diante dos excessos que agitam o corpo, a clínica da nossa época não
deve ser standard. É preciso que a prática, que demanda o saber-fazer
diante das variadas manifestações do gozo no corpo (no caso de Malu
o gozo se corporifica na passagem ao ato), seja discutida sem perder de
vista os princípios teóricos, orientados em direção à palavra, principal
ferramenta da psicanálise.
Referências
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110 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


EM CORPO, MAIS E MAIS, AINDA
Bahia

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CARLA FERNANDES

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112 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


SOBRE AS ESPECIFICIDADES DAS ESTRATÉGIAS NO AUTISMO
Bahia

Sobre as especificidades das


estratégias no autismo
On the specificities of the strategies in autism

Alice Munguba Monteiro

Resumo: O afastamento em relação ao Outro é destacado como ponto de partida para


a investigação sobre os caminhos percorridos no autismo para se movimentar frente
ao Outro. O artigo busca identificar as estratégias diversificadas do autismo, tais como
o uso particular da imagem, do signo e da categorização (como via de organização do
mundo externo), por meio de uma articulação teórico-clínica desde um caso clínico da
experiência da autora.
Palavras-chave: Autismo. Afastamento. Imagem. Signo.

Abstract: The distance in relation to the Other is highlighted as a starting point for re-
search on autism in the paths it takes to move towards the Other. The article seeks to
identify autism’s strategies such as the particular use of the image of the sign and catego-
rization (as a way of organizing the external world), through a joint theoretical-clinical
from a case of the author’s experience.
Keywords: Autism. Distance. Image. Sign.

O termo autismo foi criado por Eugene Bleuler em 1911 para designar
uma característica descrita como “fuga da realidade” percebida em
crianças, que nesse período eram diagnosticadas como esquizofrênicas.
Os médicos Leo Kanner e Hans Asperger usaram também a palavra
autismo em 1943, para dar nome ao que passou a ser uma síndrome
específica distinta da esquizofrenia. As crianças pesquisadas por
Kanner apresentavam características como não usar a linguagem
para comunicar ou reproduzir frases de maneira ecolálica, não tolerar
barulho e mudanças de local dos objetos, dificuldades de criar atividades
espontâneas, com o comportamento focado em manter as coisas a seu
modo, sem a intervenção de alguém. Todas se dirigiam primeiro aos
objetos sem prestar atenção às pessoas presentes e todas mostravam

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 113


ALICE MUNGUBA MONTEIRO

um extremo isolamento desde o início da vida, não respondendo aos


estímulos que vinham de fora. Atualmente, crianças são nomeadas
como autistas, apresentando grandes variações de comportamento,
configurando um espectro de autismo, que inclui, desde crianças com
graves acometimentos, na linguagem, no corpo e no comportamento a
crianças que consideradas de “alto rendimento”.
Dentre as muitas características que podem ser identificadas em
crianças com autismo, destaco o afastamento. O afastamento em relação
ao Outro e aos objetos que dele provêm: voz, olhar, assim como sob
seus significantes e demandas. Maleval (2012, p. 46) diz que “a criança
autista recusa a entrada dos objetos pulsionais na troca: não somente
os distúrbios de alimentação e de excreção são frequentes, como as
disfunções de sua percepção sonora e visual são regulares”.
Só é possível falar de uma recusa ao Outro para quem o Outro existe.
Temos aprendido, por meio das convocações de Maleval (2012), no
livro Escutem os autistas!, e Laurent em seu texto O que nos ensinam os
autistas, a ir além das suposições desde a perspectiva da neurose sobre
os autistas e levar em conta o que eles dizem sobre seu funcionamento.
Com essa base, nota-se que o Outro existe para o autista, porém esse
Outro é do estatuto do real, não barrado, por isso percebido como
maciço, completo, sem inscrição da falta. Laurent (2012, p. 28) conclui
que “[...] as crianças autistas nos ensinam o que é o real. Elas têm um
acesso terrível a essa dimensão e nos ensinam que, no real, não falta
nada”.
A forma com que o autista se coloca em relação ao Outro produz
consequências marcantes e singulares. Por não ter o Outro como ponto
de partida para iniciar uma relação de troca, o autista não entra na lógica
da neurose, desde o início de sua constituição. Momentos fundantes
para a formação do sujeito (tomando a neurose como parâmetro) -
como o circuito pulsional (FREUD, 1915/2004), o estádio do espelho,
construção de um enigma em torno da pergunta “que queres de mim?”,
fundação do simbólico (em consequência da castração), fundação do

114 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


SOBRE AS ESPECIFICIDADES DAS ESTRATÉGIAS NO AUTISMO
Bahia

imaginário (consequência da alienação) - ficam difíceis de equiparar ao


percurso do autista. Ele fica fora desse parâmetro. Por não se assujeitar
ao Outro, não se curvar à operação do discurso do Outro, à operação
do significante que marca o corpo (dando contorno e significado a este),
o autista segue um percurso com especificidades próprias. Ansermet
(2003, p. 81) diz que “podemos situar o autista como um ser na fronteira
do nascimento subjetivo”.
O caminho de chegada ao estudo do autismo costuma ser o de
comparação com o que este não alcança em relação à neurose. O
propósito aqui é identificar o caminho pelo qual ele percorre e as
ferramentas de que dispõe para se movimentar diante do Outro e da
vida.
Pela falta da marca do significante no corpo do autista, nota-se que
as ferramentas do simbólico (metáfora, substituição, suposição) e do
imaginário (identificação) estão longe de serem usadas por eles. Mas
que recurso então será possível utilizar? É possível identificar que as
ferramentas da imagem, do signo e da categorização (como vias de
organização do mundo externo) são formas utilizadas para suportar
o inesperado vindo do mundo externo, a princípio percebido por eles
como caótico e imprevisível. A esse respeito, Maleval (2012, p. 51)
pontua:
O caos os faz sofrer, de modo que são particularmente
atraídos pela ordem das coisas. Para entender o autismo, é
essencial apreender o quanto sua busca das regularidades
é importante: [...] Pela incapacidade de atribuir, sozinhos,
com facilidade, o sentido ao sonoro e ao visual, apegam-
se, de bom grado, ao que descobrem acerca de uma ordem
preexistente. Tudo o que serve para estruturar o escópico:
os ícones, os desenhos, o pareamento dos objetos, etc., retém
facilmente a sua atenção. Assim como o que coloca em ordem
no sonoro: ritmos, batidas, música, canções, etc.
Aponto alguns recursos básicos que o autista dispõe em seu favor, para

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 115


ALICE MUNGUBA MONTEIRO

se virar diante de seus desafios, porém as estratégias que cada um deles


cria são inúmeras. Para lidar com a linguagem, algumas se repetem com
mais frequência, e Maleval (2012) as nomeia como o mutismo, a ecolalia
(repetição da fala do Outro com ausência da inversão pronominal), as
canções, as verbiagens (solilóquios incompreensíveis e não endereçados
ao Outro) e as falas funcionais (com intenção de comunicar, porém sem
afeto).
Ouvindo o que os autistas têm a dizer sobre suas estratégias, destaco
aqui dois relatos sobre o modo de pensar. O primeiro de Temple Grandin,
uma autista tida como de “alto rendimento”, conhecida por sua história
de vida. Ela declarou em suas palestras que seu pensamento funciona por
meio de imagens. Por exemplo: ao ouvir a palavra cachorro, ela pensa
nos cachorros que já viu na vida, não em um animal de quatro patas,
como deve ser um cachorro. Ela também menciona quanto é difícil se
apropriar de conceitos abstratos, por exemplo, o da paz. Para que possa
ter algum entendimento do que se trata, ela diz: “eu pensava em uma
pomba, em um cachimbo ou nas fotos de assinatura de um acordo de
paz” (GRANDIN apud MALEVAL, 2012, p. 62). Ou seja, associa ao
signo e a algo que pode ser visto, que ela já conhece, para que possa
ser compreendido por ela. O segundo relato vem de Daniel Tammet
(2007, p. 16), também um autista de alto rendimento, que descreve em
seu livro a maneira como pensa:
Se um amigo me diz que se sente triste ou deprimido, eu
me imagino sentado na cavidade negra de um 6, e isto me
ajuda a sentir e a lhe compreender. Quando leio um artigo
no qual uma pessoa foi intimidada por algo ou alguém, eu
me imagino em pé ao lado número 9.1

1 No original: «Si un ami me dit qu’il se sent triste ou déprimé, je m’imagine assis au creux
de la cavité noire d’un 6, et cela m’aide à faire l’expérience d’un sentiment similaire et à le
comprendre. Quand je lis dans un article qu’une personne a été intimidée par quelque chose ou
quelqu’un, je m’imagine debout a côté du nombre 9.»

116 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


SOBRE AS ESPECIFICIDADES DAS ESTRATÉGIAS NO AUTISMO
Bahia

Ciente do uso desse artifício de pensamento por meio da imagem


captada, como referência de um signo, separado do corpo utilizado
para comunicar e entender o mundo externo, Maleval (2012, p. 61) nos
alerta:
[...] é abusivo afirmar que os autistas não têm acesso à
abstração: se suas capacidades de simbolização passam
essencialmente pelo índice e mesmo pelo ícone, são mais
rudimentares do que aquelas do sujeito do significante,
mesmo assim eles colocam em obra um processo de
substituição que permite levar a coisa à linguagem.
A palavra como a coisa em si, carrega o peso da imagem que está
colado na sua representação. O uso dos signos é a forma possível de
compreensão pela via da linguagem, uma vez que eles “não se inscrevem
no corpo” como diz Maleval (2012, p. 62). Portanto, o que se ouve são
emissões em cadeia, não o dito da fala do Outro. É possível que se faça
uso da linguagem, mas por não se apresentarem divididos pelo enigma
de um sintoma, o mais difícil para os autistas é fazer uso da enunciação
de um discurso próprio. A condição para fazer uso da linguagem
comunicativa é fugir do equívoco da língua. Detém-se à técnica, ao
cálculo existente nela, como se lessem um sistema. Utilizam-na como
coisa, e não como recurso para a metáfora. Buscam a certeza na língua,
para assim não se equivocarem por meio dela.
Nessas tentativas de reduzir a língua a um cálculo ou à
repetição de letras, vemos maneiras de fazer silenciar os
equívocos da língua, ou se posso dizer assim, silenciar o
ruído da língua enquanto equivoca sem parar. Nesse espectro
de sujeitos autistas, vemos então um cálculo da língua
completamente separado do corpo e que, nesse sentido,
não funciona como um delírio psicótico, já que este sempre
implica algo imaginário do corpo. (LAURENT 2012, p. 23).
Portanto, se o uso da palavra é calculado para ser usado com
exatidão e sem falhas, nos casos em que a linguagem aparece de forma

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 117


ALICE MUNGUBA MONTEIRO

ecolálica, nota-se a repetição do discurso do Outro com exatidão e sem


inversão pronominal. Por exemplo: uma criança autista entra na sala
de atendimento e diz para a praticante: “Qué papel?” Ele se comunica
com o outro, utilizando uma pergunta já ouvida por ele e, portanto
“copiada” e que passa a ser “colada” no momento em que ele quer usar o
papel. Essa forma de linguagem demonstra que não houve inscrição no
discurso do Outro, embora seja capaz de usá-la em situações específicas.
Essa mesma criança costuma apresentar esse recurso “recorta e cola”
nos desenhos que faz. A reprodução no papel é idêntica às imagens que
vê nos filmes, nos desenhos, nos livros, etc. Ele apenas desenha o que já
viu e exatamente como viu, sem tirar nem acrescentar nenhum detalhe.
Seus impressionantes desenhos, inclusive, já o levaram a ganhar um
concurso de desenho promovido na sua escola infantil. Caso comece
um desenho e algum traço lhe pareça irregular, descarta o papel e
começa outro desde o início (sem aceitar nenhuma intervenção quanto
a isso). Dar espaço à falha seria deixar-se ver o buraco e dar lugar à
falta. A reprodução exata do desenho só é possível, porque não houve a
contaminação de um imaginário e também não foi articulado com uma
cadeia significante.
Houve uma sessão em que essa criança se detinha a criar com massa
de modelar a reprodução idêntica de um personagem de filme infantil.
Essa cena já se repetira por muitas vezes em sessões anteriores, e nesse
dia propus a ele: Que tal a gente fazer alguma coisa diferente nele hoje?
pode ser? Imediatamente, ele me respondeu (o que é raro acontecer),
“Não qué pode ser!”.
Essa frase me fez ver quanto o “pode ser?”, jargão neurótico, que
carrega um leque de possibilidades (a propaganda da Pepsi que o
diga), soou como ameaça ao que já estava garantido e apaziguado para
ele através da reprodução do mesmo. Minha proposta de incluir um
diferente, um novo, um furo na perfeição da sua reprodução foi um
imprevisto não calculado por ele. Com isso, ele logo tratou de me fazer
ver que ele não queria essa minha proposta de “pode ser?”, seja lá o

118 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


SOBRE AS ESPECIFICIDADES DAS ESTRATÉGIAS NO AUTISMO
Bahia

que isso fosse. A minha pergunta parece que foi tomada como uma
expressão única, colada, e assim ele me responde dizendo que não quer
o que vem em seguida, esse pode ser: “não quer pode ser”. Diante disso
leio que ele não quer a dialética da dúvida, não quer a incerteza do que
escolher diante de muitas possibilidades e não quer a multiplicidade do
significante; ele quer a garantia do signo. Ele quer a certeza e a rigidez
estática da imagem.
Seu modo de funcionar é regido pela iteração do gozo do Um.
Segundo Laurent, (2012, p. 27) no autismo ocorre a “repetição de
um Um, separado de um outro, que não reenvia a um outro, e que ao
mesmo tempo produz efeito de gozo”. Desta forma, ele permanece com
o mesmo saber (mesma imagem, mesmo interesse) que não se articula
com outra imagem e outro interesse. Portanto, ele trata de defender esse
funcionamento, que é o seu modo de pensar e se organizar, a fim de
garantir que sua ilha de previsibilidade não seja abalada pela demanda
externa de algo diferente disso.
Sigo na direção de apreender algo da lógica, que, no encontro com
cada criança com autismo, me deparo. Saber sobre ela me desafia e
produz respeito, por reconhecer que, mesmo com mínimas ferramentas,
é possível se produzir algo próprio, algo que organiza e que pode
comunicar para quem se atreve a ler.
Referências
ANSERMET, F. (2003) Autismo e resposta do sujeito: a clínica da origem:
a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa.
FREUD, S. (1915/2004) “Pulsões e destinos da pulsão”, in ______. Es-
critos sobre a psicologia do inconsciente. Coord. de tradução Luiz Alber-
to Hanns. Rio de Janeiro: Imago. v. 1. (Obras Psicológicas de Sigmund
Freud)
LAURENT, E. (2012) “O que nos ensinam os autistas”, in MURTA, A.;
CALMON, A.; ROSA, M. (org.) Autismo(s) e atualidade: uma leitura

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 119


ALICE MUNGUBA MONTEIRO

lacaniana. Belo Horizonte: Scriptum Livros.


MALEVAL, J.-C. (2012a) “Língua verbosa, língua factual e frases espon-
tâneas nos autistas”, in MURTA, A.; CALMON, A.; ROSA, M. (org.) Au-
tismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana. Belo Horizonte: Scriptum
Livros.
MALEVAL, J.-C. (2012b) “Escuchen a los autistas!”. Buenos Aires: Gra-
ma Ediciones.
TAMMET, D. (2007) Je suis né un jour bleu. Traducion de Nils C. Ahl.
Paris: Les Arènes.

120 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


O CORPO SE ANIMA
Bahia

O corpo se anima
The body animates

Marcela Antelo

Resumo: Os efeitos da tecnociência sobre o corpo anunciam a iminência de uma revo-


lução teórica no modo de pensar o ‘Deus com próteses’ que, segundo Freud, o homem
é. As consequências nos permitem verificar que o simbólico se torna cada vez mais e
mais real.
Palavras-chave: Animação. Cibernética. Corpo. Corte. Objeto.

Abstract: Technoscience effects over the body annunciate the imminence of a theore-
tical revolution in the way of thinking the ‘God with Prosthesis’ who, following Freud,
man is. The consequences allow us to verify that the symbolic turns even more and
more real.
Keywords: Animation. Cybernetics. Body. Cut. Object.

Vinte anos atrás, poucos antes de a tecnologia da realidade virtual


tornar-se real, Jacques-Alain Miller escrevia em Algoritmos da psicaná-
lise sobre a utilidade das ciências da informação. Não sem esforço, con-
segue arrancar ao menos uma:
Estamos sempre ali: os prodigiosos gadgets microeletrônicos que
amanhã choverão sobre nosso mundo, vêm de uma revolução tec-
nológica, não teórica. Não dá para negar que estas pastilhas de
saber que estão na ponta dos dedos são bem mais objetos a do que
os enormes computadores de 1955, e nos fazem ver bem que o sim-
bólico devém mais e mais real (MILLER, 1978, p. 17).

Um cartel reunido sobre As palavras e os corpos não pode deixar de


reconhecer que vinte anos de chuva tecnológica põem algo na ponta
dos dedos. As pastilhas de saber, por obra da nanotecnologia do mi-
núsculo, podem ser engolidas ou implantadas para mapear as partes do
corpo outrora inacessíveis. A pele como fronteira do corpo já tinha sido
virtualmente violada desde a invenção dos raios X e a observação mi-
croscópica, mas que microrrobôs possam invadir a circulação e detec-

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 121


MARCELA ANTELO

tar o entupimento de artérias, alertar aneurismas, acusar a presença de


pedras na vesícula, ou excesso de serotonina, faz das pastilhas de saber
a promessa de um gozo de um saber, a gozar sem medida. As extrações
de objetos de valor protético ou poder de clonagem, células, tecidos e
órgãos, somam-se à série.
A visibilidade tecnológica se multiplica, e cabe nos perguntar sobre
a iminência de uma revolução teórica, consequência que nos permite
verificar ainda mais que o simbólico se torna cada vez mais e mais real.
O tratamento digital do real ilustra a materialidade estúpida do
significante, a mecânica dos sucintos 0 e 1, simbólico vazio e cego que
marcou o interesse de Lacan pela cibernética e a obra de Norbert Wie-
ner. Cyber deriva do grego kybernetes, que significa steersman, timoneiro.
Diz respeito, então, a governo; e Wiener, em 1947, definia a cibernética
como a particularidade de sistemas em que a retroalimentação é funda-
mental, o feedback. O Cyborg, ou organismo cibernético, e suas varian-
tes: cyberbody, cyberbeing implica um governo do corpo em que tanto o
governante como o governado são parte fundamental do sistema.
Miller (1978, p. 17) afirma que Lacan no seu tempo serviu-se desse
“simbólico descarnado para desenferrujar a simbólica delirante que engo-
lia a descoberta freudiana”. Hoje, parece possível servir-se das consequ-
ências teóricas da revolução tecnológica para desenferrujar um objeto,
ou melhor, a própria objetalidade, engolida pelo significante que tudo
calcula. A assim chamada por Lacan grande Verwefung de Descartes,
que rechaça o corpo fora do pensamento arrojando-o na extensão, con-
denando-o assim a reaparecer no real.
O simbólico descarnado penetrando na carne inaugura essa zona
complexa entre o virtual e o real, morada do cyberg. “O cyber não é atu-
al nem virtual simplesmente; reside em um entre-dois, em espaços que
não são nem aqui nem ali, nem presente nem ausente, nem material nem
imaterial, nem ‘como’ nem como si” (McHOUL, 1997, tradução nossa),
nem real nem semblante, acrescentemos à descrição de McHoul, heide-
ggeriano contemporâneo.

122 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


O CORPO SE ANIMA
Bahia

Saber e corpo
Que o homem se saiba como corpo, esse “objeto através do qual o
homem se sabe é o corpo” (LACAN, 1953-1954/1986, p. 197),1 é o ponto
de partida que antecipa no Seminário 1 a articulação entre corpo e gozo
através de um mediador, o saber. O saber-se como gozo do corpo con-
sagra o saber como meio de gozo e o corpo como causa de saber, paixão
da ciência médica.
Lembremos a primeira tentação de Descartes: “Poderia fingir não ter
corpo...”. Não é por acaso que é no campo da Medicina em que a Rea-
lidade Virtual dá seus mais ousados passos. Eric Laurent (1998, p. 58)
falando sobre a atribuição real do corpo, entre ciência e psicanálise, em
uma mesa redonda, parece concluir “[...] o corpo não existe para a medi-
cina da ciência [...]”. Presença do corpo ausente.
A ciência e sua curiosidade idiossincrática nasceram com vontade
dissecadora e, conforme Lacan (1962-1963/2005, p. 232) nos mostra
durante o ano em que aborda a angústia: “[...] direi que a objetalidade é
correlata de um pathos de corte [...]”. Toda função de causa se suporta em
um “[...] pedaço carnal, arrancado de nós mesmos, tomada na máquina
formal”. A fórmula:
É teu coração o que eu quero e nada mais” lhe serve para marte-
lar “que não somos objetais – quer dizer objetos de desejo – senão
como corpos. Ponto essencial a recordar, posto que um dos campos
criadores da negação é apelar a algo distinto, a algum substituto
(LACAN, 1962-1963/2005, p. 233).

As partes do corpo produzidas pelo corte, objetos perdidos e irre-


cuperáveis suportarão a função da causa sempre referida a uma experi-
ência corporal. Até onde me pertence meu braço se eu posso me trans-
formar no braço direito ou esquerdo de algum outro, Lacan se pergunta
ao introduzir a questão do controle e do corpo como instrumento, a

1 “O homem se sabe como corpo, quando não há afinal de contas nenhuma razão para que se
saiba, porque ele está dentro.”

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 123


MARCELA ANTELO

questão da instrumentalização do sujeito.


A atualidade da programação e os algoritmos foram a base da re-
configuração da cultura provocada pela conversação inexorável entre
as matemáticas, a física, a biologia e cibernética, com a teoria da comu-
nicação e a genética nos últimos anos. A biotecnologia, a endofísica,
a medicina falam de drama em uma conversação em curso chamada
de Body Works (LENOIR; MOLDOVAN; BENDER, 1997). Não se trata
só de ver, mas de imaginar, controlar, intervir, redesenhar, até escolher
novas formas corporais.
 No Editorial da Ornicar? digital 70, Eric Laurent se refere aos objetos
extraídos do corpo: “não nos fazem crer na alma porém na lamelle.” A
lamelle que nos anima.
O corpo obsoleto
O infobody ou corpo cibernético é paixão de vanguardas artísticas
que tornam evidente a relação desarranjada do homem com seu corpo,
o corpo como partenaire sintomático do sujeito. Stelarc (1995) artista
e performer australiano, inventor do corpo expandido, diz que o corpo
carece de design modular e por isso é “obsoleto”, significante performa-
tivo segundo Lacan. Cai na tentação de Descartes e dá um passo a mais,
aparelho biologicamente inadequado que demanda uma suplência tec-
nologia para savoir-y-faire com essa inadequação fundamental. É a tec-
nologia que nos define como humanos, e não a estrutura obsoleta da
carne incompatível com a era da informação/ação. A primeira medida é
liquidar a pele como barreira; antiga interface do corpo. Stelarc sabe das
consequências de apagar a zona erógena mais extensa do corpo, caso
sigamos Freud, a mais profunda, caso sigamos Paul Valéry.
Nada novo aparecerá no pensamento até redesenharmos o corpo,
diz Stelarc. Nossa tendência ao Um, a vocação de unificar, provém da
incompletude de nossos sistemas sensoriais. Stelarc propõe superar o
dualismo cartesiano e pensar em um “corpo plugado” a um novo terre-
no tecnológico.

124 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


O CORPO SE ANIMA
Bahia

Trata-se, portanto, do contrário do que sustenta Lacan (1954-


1955/1995) ao situar a divisão2 como já feita, sem remédio. Tal divisão
comporta uma atitude radical, da qual partiu Freud: frente ao corpo, o
médico tem a atitude do senhor que desmonta uma máquina.
R. U. Sirius, editor de Mondo 2000, cabeça da vanguarda do cyber-
discurso, vaticina que nos estamos tornando incorpóreos, porém e dan-
do mostras da seriedade que seu nome promete, conclui: “O sexo é o
único bom pretexto para ser corpóreo e seria bom aproveitar o máximo
antes que passe de moda”. (http://www.mondo2000.net/)
Os pretextos para sermos corpóreos inauguram uma lista na qual a
psicanálise não pode não se contar.
Referências
LACAN, J. (1953-1954/1986) O seminário, livro 1: os escritos técnicos
de Freud. Aula de 5 de maio de 1954. Tradução de Betty Millan. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
______. (1954-1955/1995) O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud
e na técnica da psicanálise. Aula de 12 de janeiro de 1955. Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar.
______. (1962-1963/2005) O seminário, livro 10: a angústia. Aula 17 de 8
de maio de 1963. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LAURENT, E. (1998) “L’attribution rélle du corps, entre science et psy-
chanalyse”. Men-tal, Bruxelles, n. 5, juil.
LENOIR, T; MOLDOVAN, G.; BENDER, J. Body works medicine, tech-
nology and the body in the late 20th century. Body Works, 1997. Dispo-
nível em: http://www.stanford. edu/dept/HPS/153-253.html

2 “É totalmente estranho estar localizado num corpo, e não se pode minimizar esta estranheza, a
pesar de a gente andar o tempo todo agitando as assas a se gabar de ter reinventado a unidade
humana, que esse idiota de Descartes havia recortado.” (LACAN, 1954-1955/1995, aula de
12.1.1955, p. 97).

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 125


MARCELA ANTELO

MCHOUL, A. (1997) Cyberbeing and space. In Postmodern Culture Vo-


lume 8, Num¬ber 1, September 1997 Murdock University, 1997. Aces-
sado em 29/10/2013 http://
McHOUL, A. (1997) “Cyberbeing and space”. Postmodern Culture, v. 8,
n. 1, September. Disponível em: http:// muse.jhu.edu/login?auth=0&-
type=summary&url=/journals/postmodern_culture/v008/8.1mchoul.
html
MILLER, J.-A. (1978) “Algorithmes de psychanalyse”. Ornicar?: Bulletin
Périodique du Champ Freudien, n. 16, 1978.
STELARC. (1995) Extended-body. Stanford: Stanford University. In-
terview. Disponível em: http://www.stanford.edu/dept/HPS//stelarc/
a29-extended_body.html

126 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A DUBLAGEM E O VENTRÍLOQUO: FIGURAS DA
FALA NO ÚLTIMO ENSINO Bahia

A dublagem e o ventríloquo: figuras


da fala no último ensino de Lacan
Dubbing and the ventriloquist: figures of speech in the last
teaching of Lacan

Luiz Felipe Monteiro

Resumo: A dublagem e o ventríloquo são tomados como figuras para uma investigação
sobre o estatuto da fala no último ensino de Lacan. O aforismo lacaniano “aonde isso
fala, isso goza” é explorado a partir da interseção entre as noções de significante, corpo
e voz. O artigo interroga sobre as razões pelas quais a pulsão faz uso dos significantes do
Outro para cumprir seu circuito de gozo.
Palavras-chave: Corpo. Fala. Significante. Voz.

Abstract: Dubbing and ventriloquist dummies are considered in an investigation into


the status of speaking in Lacan’s last teachings. The Lacanian aphorism “where it speaks,
it enjoys” is explored from the intersection between the notions of signifier, body and
voice. The article questions the reasons why the drive makes use of the signifiers of the
Other to meet one’s jouissance circuit.
Keywords: Body. Speak. Signifier. Voice.

No discurso cinematográfico, encontram-se técnicas, recursos e


conceitos que, de modo curioso, podem servir como prisma para uma
reflexão e um novo olhar sobre temas e questões da psicanálise. Dentre
os variados elementos tomados nessa perspectiva, destaco a dublagem.
Entre os apreciadores da Sétima Arte, é comum encontrar a seguinte
opinião sobre a dublagem de filmes: “a voz da dublagem tira algo da
autenticidade da interpretação dos atores”; “o som fica pasteurizado”.
Curiosamente, não existe o mesmo estranhamento para as produções
de animação, onde, classicamente, não podemos pensar no Mickey ou
no Homer Simpson sem a costumeira dublagem de nossa língua de ori-
gem. Nosso afeto pelo personagem é em larga medida fruto de nosso
encontro com sua voz. Um dublador é um dublê sonoro de um deter-

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 127


LUIZ FELIPE MONTEIRO

minado ator ou atriz enquanto ambos existirem, nossa identificação de-


pende dessa parceria.
Certamente essa ambiguidade no estranhamento com a voz dublada
relaciona-se com o corpo e sua imagem; afinal, somente nos filmes não
animados, ouvimos uma voz emitida por um corpo genuinamente hu-
mano. Há no espectador a expectativa da voz coincidir com o movimen-
to do corpo do ator – este é o trabalho da mixagem sonora e do editor
de som – fazer as vozes e os sons ser identificados com os personagens
e objetos da cena.
Com a dublagem, a cópula entre a voz e imagem é perturbada. A
articulação da boca, dos lábios e da língua nunca coincide exatamente
com o que ouvimos nas versões dubladas. Há sempre uma espécie de
balbucio no corpo dos atores quando sua fala é traduzida e enunciada
em outra língua. O balbucio mudo dos corpos é índice de algo não tra-
duzido, não decodificado pela língua. É nesse ponto onde a dublagem
torna-se um vetor interessante para pensar sobre o estatuto voz em psi-
canálise.
Contudo, se seguirmos um pouco mais na investigação sobre a du-
blagem, deparamos com uma experiência cinematográfica muito mais
instigante: existem filmes dublados que não estão de todo submetidos
à dublagem. Os musicais. É muito interessante perceber quais são os
momentos dos musicais em que os personagens deixam de falar e pas-
sam a cantar. A canção sempre surge como um acting-out, quando o
personagem se depara diante de algum impasse na trama. O que não se
pode dizer em diálogo se diz em canção; e então, a dublagem encontra
seu limite. Precisamente nesse ponto, na maioria dos filmes, é que ou-
vimos a “verdadeira” voz do ator. O impasse na trama é um impasse de
tradução, por isso os filmes, precisam valer-se do escrito. No momento
da canção, apaga-se a voz dublada (a voz do Outro), surge a voz do cor-
po (antes muda e desarticulada) e aparece a legenda (último recurso de
tradução – o escrito na fala).
Desse modo, temos elementos importantes para uma articulação

128 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A DUBLAGEM E O VENTRÍLOQUO: FIGURAS DA
FALA NO ÚLTIMO ENSINO Bahia

com a teoria psicanalítica: o desencontro entre a voz e o corpo e os im-


passes de tradução, e seus efeitos. Em sua conferência, La ponencia del
ventrílocuo, Jacques-Alain Miller (1996/ 2006) argumenta sobre as no-
vas modalidades de interpretação na clínica de orientação ao real. Em
sua apresentação, traz a figura do ventríloquo para pensar a articulação
entre a fala e o gozo.
Somos todos ventrílocuos. El sujeto no le habla al outro. El sujeto se
habla a sí mismo. Se habla a sí mismo a través del outro. Se habla
a través de la marioneta del outro. [...] As veces eso nos produce
placer, a veces nos produce displacer, pero siempre es nuestra ma-
rioneta. [...] El sujeto queda condenado al monólogo, al monólogo
autista de su goce, a la homeostasis de la pulsión que, por definici-
ón, siempre logra su efecto de satisfacción (MILLER, 1996/2006,
p. 443).1

Há um caráter de dublê no ventríloquo, tal como vimos na dubla-


gem. A ventriloquia (fala desde o ventre) é a capacidade de falar moven-
do muito pouco os lábios, conferindo a ilusão de que a voz vem de outra
pessoa ou de um boneco, e não do falante. Costumeiramente, em uma
apresentação, o ventríloquo costuma conversar com seu boneco, que, ao
responder em um tom de voz diferente e com gestos labiais, parece ga-
nhar vida. Contudo, o aparente diálogo é, em si mesmo, um monólogo.
Não há Outro com quem o ventríloquo fala. Há um corpo que fala
consigo mesmo por meio de uma modulação de voz. No show do ven-
tríloquo, vemos, em ato, o circuito de a pulsão satisfazer-se no corpo
por meio do boneco. O boneco é puro semblante, pois ao fim, ele vela
o vazio. É um artifício, como é o significante usado pela pulsão para
percorrer seu circuito e retornar a seu ponto de origem. “El significante
1 “Somos todos ventríloquos. O sujeito não fala pelo Outro. O sujeito fala por si. Ele fala para si
mesmo através do Outro. Ele fala através do fantoche do Outro. [...] Às vezes, isso nos dá prazer,
às vezes nos dá descontentamento, mas sempre é nosso fantoche. [...] O sujeito está fadado ao
monólogo, ao monólogo autista de seu gozo, à homeostase da pulsão, que, por definição, sempre
atinge seu efeito de satisfação”. (Tradução nossa)

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 129


LUIZ FELIPE MONTEIRO

trabaja primeiro para el goce y tiene la misma trayectoria que la pulsión”


(MILLER, 1996/2006, p. 450).2
Se o destino da pulsão sempre se cumpre, por que ela precisa fazer
um circuito que passe pelo Outro? Por que não existe apenas o gozo do
Um? Por que o ventríloquo, que somos todos nós, precisa falar?
São perguntas que ressoam à postulada por Gustavo Stiglitz em seu
verbete Autismo para o Scilicet Os objetos a na experiência psicanalítica:
“por que não somos todos autistas?”
É necessário que, entre a língua – presença sonora – e o vivente,
produza-se um vazio decorrente da extração do objeto voz como
pura sonoridade invasiva. A pulsão vocativa contornará esse vazio
em seu circuito pelo campo do Outro. [...] A queda do objeto faz
com que o sujeito suporte tanto a sua própria voz quanto a do
Outro, e isso faz com que possa falar e ser falado, já que a voz fica
enlaçada ao dizer, à linguagem que produz sentido. O objeto dá
lugar ao sentido [...] A linguagem é portadora de um vazio que
não existe no âmbito da língua. (STIGLITZ, 2008, p. 42).

Em sua apreciação, Stiglitz aponta para o vazio como o elemento


fundamental para existir um circuito pulsional, em torno do qual a pul-
são vai satisfazer-se. A pregnância do sentido no uso dos sons que emiti-
mos quando falamos é sinal de que o gozo amorfo da voz deixou-se con-
formar pela regra linguística de uma língua em particular. Houve uma
metamorfose do gozo, um aparelhamento de gozo operado por meio da
submissão – não de todo – à lógica do significante. A alucinação verbal
na esquizofrenia e a presença sonora maciça e indiscernível no autismo
dão testemunho da não extração do objeto pulsional (voz) – nesses ca-
sos a fronteira e a borda entre um e outro, dentro e fora, não estão postas
do mesmo modo como na neurose.
Essa é uma notação importante para tocar nas especificidades da
voz. Ela é decisiva para trilhar uma investigação sobre o imbricamento
2 “O significante trabalha primeiro para o gozo e tem a mesma trajetória da pulsão”. (Tradução
nossa)

130 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A DUBLAGEM E O VENTRÍLOQUO: FIGURAS DA
FALA NO ÚLTIMO ENSINO Bahia

entre gozo e significante. Nesse percurso tomo em companhia o livro


de Mladen Dolar (2007), Una voz y nada más, e a conferência de Miller
(1988/2013), Jacques Lacan e a voz.
O primeiro ponto a destacar é o caráter ambíguo da voz: apesar de
ser o suporte material para o significante,3 não há sentido algum na voz
como tal. Conforme Miller (1988/2013, p. 7), “podemos inscrever no
registro da voz o que constitui o resíduo, resto da subtração da signi-
ficação ao significante [...] podemos definir a voz como tudo que, do
significante, não concorre para o efeito de significação”.
Essa é razão por que a voz como objeto a não é a voz ouvida quando
se fala, é uma voz afônica. O objeto voz não comunica, é muda como
toda pulsão – um pedaço de gozo não traduzido pela lógica do signi-
ficante. Dolar (2007, p. 32) contribui para esclarecer esse ponto: “Para
hablar, es preciso emitir los sonidos de una lengua de modo tal de satis-
facer su matriz diferencial; el fonema es la voz capturada en la matriz.
[...] La matriz silencia a voz, pero no del todo”. 4
Tal como visto anteriormente, a extração do objeto a do corpo é fru-
to de um assujeitamento do gozo à estrutura da linguagem com seus
fonemas e letras. Essa operação de aparelhar gozo em sons específicos
e assim produzir sentido, contud, não apaga de todo esse gozo. O bal-
bucio silencioso dos corpos dos atores cujas vozes foram traduzidas e
dubladas é uma fotografia desse desencontro estrutural de qualquer tra-
dução – há sempre um resto não simbolizado que, em outros termos, é
um gozo não assumido pela cadeia de significantes do sujeito e atribuí-
do ao campo do Outro.
Na medida em que um pedaço da cadeia significante, quebrado
por aquilo que por enquanto chamamos de carga libidinal, não
pode ser assumido pelo sujeito, ele passa para o real e é atribuído
3 A imagem acústica que define o significante é, em última instância, uma materialidade sonora
– certa vibração de som fruto do choque do ar com as entranhas do corpo.
4 “Para falar, é preciso fazer os sons de uma língua, de forma a satisfazer sua matriz diferencial;
o fonema é a voz captada na matriz. [...] A matriz silencia a voz, mas não do todo”. (Tradução
nossa)

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 131


LUIZ FELIPE MONTEIRO

ao Outro [...] Neste sentido a voz é a parte da cadeia significante


que não pode ser assumida pelo sujeito como “eu” (je), e que é sub-
jetivamente atribuída ao Outro (MILLER, 1988/2013, p. 11-12).

Nessa atribuição ao Outro, situamos como exemplo as vozes do


supereu.5 Nelas o sujeito obedece cego e surdo aos imperativos de seu
gozo, mas em sua experiência, atribui ao Outro as sentenças sob as quais
se vê compelido a cumprir.
Mas por que existe esse movimento de atribuição ao Outro dessa voz
não articulada com a cadeia de significantes? Por que o gozo precisa ser
atribuído a um agente externo? Mais uma vez, há em jogo um ponto de
interseção entre um e outro, dentro e fora. A voz aparece sempre nos
fenômenos em que essa fronteira não é discernível.
Um modo de investigar essa questão é tomar a atribuição ao Outro
como uma consequência de seu inverso – a atribuição do Outro. Afinal,
é por meio da atribuição de significação aos sons emitidos pelo sujeito
que a própria cadeia significante é estabelecida.
Isso é particularmente relevante quando pensamos nos balbucios e
nos gritos do infans, e na interpretação conferida pelo Outro a esses
sons inarticulados. Apesar dos bebês não dirigirem seu balbucio ou gri-
to a alguém específico, esses sons passam a pertencer a uma estrutura
simbólica precisamente porque podem ser escutados e interpelados por
um discurso que lhe confiram significação. Nessa atribuição do Outro, a
dor, fome, angústia, prazer, excitação passam a ser aparelhados pela rede
de significantes. Desde esse aparelhamento da estrutura, caso o sujeito
capture esses significantes do Outro, a pulsão passa a percorrer o circui-
to em torno do vazio constituído pelo uso da linguagem.
con el balbuceo y con el grito, parecería que estuviéramos tratando
con una voz externa a la estructura, y sin embargo esta aparente
exterioridad toca al centro de la estructura: es epítome del gesto de
significación precisamente por no significar nada em particular.
[...] La voz no estructurada es el comienzo milagroso de la repre-
5 O significante da transferência e a injúria são outros exemplos desse modo de atribuição.

132 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A DUBLAGEM E O VENTRÍLOQUO: FIGURAS DA
FALA NO ÚLTIMO ENSINO Bahia

sentación de la estructura como tal, del significante em geral. (DO-


LAR, 2007, p. 41).6

Nessa citação, Mladen Dolar precisa o acontecimento da estrutural


como tal do significante. O que chamamos de choque do significante no
corpo ou entrada do significante na carne não parece ser um simples
movimento de um S1 externo adentrando o corpo. Parece tratar-se do
contrário; o gozo inarticulado do corpo é que captura um significante –
um encontro sempre contingente.
Por isso, o S1 êxtimo à cadeia significante não é um significante do
Outro, é o significante do Um, precisamente por ser um significante fa-
gocitado pelo gozo amorfo da voz. A série de fagocitações de S1s consti-
tui o enxame tal como postulado por Lacan no Seminário XX.
S1, esse um, o enxame, significante-mestre, é o que garante a uni-
dade, a unidade de copulação do sujeito com o saber. [...] O signifi-
cante Um não é um significante qualquer. Ele é a ordem significan-
te, no que ela instaura pelo envolvimento pelo qual toda a cadeia
subsiste. [...] O Um encarnado na alíngua é algo que resta indeciso
entre o fonema, a palavra, a frase, mesmo todo o pensamento (LA-
CAN, 1972-1973/1985, p. 196).

Um acontecimento de corpo por excelência, haja vista esta captura


do significante – a encarnação – estabelecer um ponto de ruptura desde
onde um corpo com furos e bordas possa constituir-se (HORNE, no
prelo). Sem esse acontecimento, o gozo não é metabolizado pelo signifi-
cante, portanto, restringe-se a um puro real sem lei; contudo, é o acon-
tecimento que possibilita a própria experiência do gozo cernido pelos
objetos a.
Não seria estranho propor desde essa visada o acontecimento de cor-
po – raiz do sinthoma – como o acontecimento do Um. Nas palavras de
6 “com o balbuciar e com o grito, parece que estávamos lidando com uma voz externa à estrutura,
no entanto, essa exterioridade aparente toca o centro da estrutura: é epítome do gesto de
significação precisamente por não significar nada em particular. [...] A voz não estruturadada é
o início milagroso da representação da estrutura como tal, do significante em geral”. (Tradução
nossa)

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 133


LUIZ FELIPE MONTEIRO

Lacan (1972-1973/1985, p. 195): “o corpo, o que ele é então? É ou não é


o saber do Um?”
Deixar-se assujeitar aos significantes do Outro é, em primeira ins-
tância, capturar os significantes para, por meio deles, poder gozar como
tal. Retomando o tema das atribuições, vê-se como a atribuição ao Ou-
tro da voz como objeto a (não assumida pela cadeia significante do su-
jeito) só é possível porque há uma atribuição do Outro à materialidade
sonora da voz inarticulada. Há um nó de atribuições.
Vejo nesse entrelaçamento a razão para conceber o objeto voz para
além da divisão, sempre significante, entre eu e outro, dentro e fora. O
objeto voz é indiscernível.
A voz está tanto dentro quanto fora. É uma experiência que se dá
dentro e fora, sem separação. Quando ouço minha própria voz ela
está dentro e fora ao mesmo tempo. Isso metaforiza o fato de que
a experiência vocal é situada em um espaço em que mais se apre-
senta uma indiferenciação entre eu e Outro (VIEIRA, 2009, p. 7).

Quando entramos no terreno do indiscernível, voltamos ao impasse


do ventríloquo. Se somos todos ventríloquos, conforme postula Miller,
não é somente porque o Outro não existe e falamos em um solilóquio
autístico. A ventriloquia de nossas falas é também índice dessa indi-
ferenciação da voz que, ao fim, nada quer dizer. O querer-dizer está a
serviço de um querer-gozar. As palavras são meras marionetes para o
gozo brincar consigo mesmo.
O desencontro do corpo com a voz dublada e a ventriloquia vazia
de nossas falas testemunha o aforismo lacaniano “aonde isso fala, isso
goza” (LACAN, 1972-1973/ 1985, p. 156). O monólogo da aparola é ex-
pressão conferida por Miller (1996/2012) para qualificar a fala a serviço
da pulsão. Se a fala não garante a comunicação, certamente garante o
gozo.
No nível da pulsão, no nível em que sujeito é feliz, no nível em que
isso fala isso goza, há satisfação, tudo vai bem. Nesse regime, não

134 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


A DUBLAGEM E O VENTRÍLOQUO: FIGURAS DA
FALA NO ÚLTIMO ENSINO Bahia

se pode assegurar nenhum real como impossível. Nesse nível, a re-


alidade só é abordada pelos aparelhos de gozo, ou seja, a realidade
fantasística. Há a significação fantasística e mesmo a interpreta-
ção sem limite da aparola, mas não há real assegurado (MILLER,
1996/ 2012, p. 22).

Essa perspectiva sobre a fala posta em cena por Lacan a partir do


Seminário XX tem implicações relevantes para a direção do tratamen-
to, especialmente em relação ao lugar da interpretação. Classicamente,
a interpretação remete ao “isso quer dizer outra coisa”, porém quando
a fala – a associação-livre – é tomada como um monólogo de aparola,
qual o lugar que resta à interpretação?
A citação acima deixa entrever o horizonte da interpretação na clí-
nica orientada ao real. De acordo com Miller, a interpretação é o ins-
trumento pelo qual um real pode ser assegurado, cernido. No gozo da
fala, não há limite, está-se submetido indefinidamente ao princípio de
prazer. A interpretação pode introduzir um limite, um impossível no
dizer. Nesse sentido, “la interpretación analítica debería tener un valor
de formalización, implicando un: ‘Eso no quiere decir nada’.” (MILLER,
1996/2006, p. 451).7
O analista advertido do balbucio infinito implicado nas falas dos
analisantes pode não se deixar tomar, de todo, pelo artifício linguareiro
e assim marcar, por meio de seu ato, o impossível da própria linguagem.
Desde a referência inicial ao cinema, pode-se tomar a interpretação
como o limite da dublagem, aquele instante em que não é possível con-
tinuar com o regozijo da tradução; não por acaso, o mesmo instante em
que aparece um escrito na fala.

7 “A interpretação analítica deveria ter um valor de formalização, implicando um: ‘Isso não quer
dizer nada’.” (Tradução nossa)

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 135


LUIZ FELIPE MONTEIRO

Referências
DOLAR, M. (2007) Una voz y nada más. Buenos Aires: Bordes Manan-
tial.
HORNE, B. “Acontecimento”. Scilicet: Um real para o século XXI. No
prelo.
LACAN, J. (1972-1973/1985) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
MILLER, J.-A. (1988/2013, julho) “Jacques Lacan e a voz”. Tradução de
Lourenço Astua de Moraes e Renata Ceccheti. Opção Lacaniana onli-
ne nova série, ano 4, n. 10. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.
com.br/pdf/numero_11/voz.pdf
______. (1996/2006) “La ponencia del ventrilocuo”, in ______. Intro-
ducción a la clínica lacaniana. Barcelona: RBA.
______. (1996/2012, novembro) “O monólogo da aparola”. Opção Laca-
niana online nova série, ano 3, n. 9. Disponível em: http://opcaolacania-
na.com.br/pdf/
numero_9/O_monologo_da_aparola.pdf>.
STIGLITZ, G. (2008) “Autismo”, in Scilicet. Os objetos a na experiência
psicanalítica. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa.
VIEIRA, M. A. (2009) A presença do outro: curso livre do ICP RJ reali-
zado no primeiro semestre de 2009 na Seção-Rio da Escola Brasileira de
Psicanálise. Disponível em: < http://www.litura.com.br/curso_reposi-
torio/a_presenca_do_outro__vozes__i___alterida_1.pdf >.

136 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


O CORPO ESTRANHO: ORGÂNICO, DEMASIADAMENTE ORGÂNICO
Bahia

O corpo estranho: orgânico,


demasiadamente orgânico
The uncanny body: organic, too organic

Paula Sibilia

Resumo: Este artigo examina o tratamento da “subjetividade encorpada” em certos fil-


mes do diretor canadense David Cronenberg, privilegiando aquelas obras de sua fil-
mografia que se afiliam à ficção científica e ao terror. A análise focaliza certas opções
estéticas e temáticas que têm o corpo humano como seu alvo principal, e que consti-
tuem uma das marcas mais originais do trabalho desse cineasta. Driblando alguns dos
clichês característicos desses gêneros cinematográficos, Cronenberg coloca em cena um
corpo insistentemente limitado em suas imperfeições terrenas, apesar das próteses e das
fusões com os mais diversos artifícios técnicos. Isso não impede, porém, que tal corpo
esteja habitado por certas estranhezas e por uma infinidade de potências, cuja natureza
é fabulosamente humana.
Palavras-chave: Corpo. David Cronenberg. Subjetividade. Tecnologia.

Abstract: This article examines the treatment of “embodied subjectivity” in certain films
by Canadian director David Cronenberg, favoring those works of his filmography which
take the form of science fiction and horror. The analysis focuses on certain thematic and
aesthetic choices which make the human body its main target, constituting one of this
filmmaker’s most original contributions. Avoiding some of the clichés typical of those
film genres, Cronenberg directs a body that is insistently limited in its earthly imper-
fections, despite prostheses and merging with the most diverse technical artifices. This,
however does not prevent this body from being inhabited by certain oddities and by a
plethora of potentials, whose nature is fabulously human.
Keywords: Body. David Cronenberg. Subjectivity. Technology.

Tanto aqueles filmes de David Cronenberg que se inscrevem sob os


rótulos da ficção científica como os que se afiliam ao terror, revelam
certas opções estéticas e temáticas qu, ao mesmo tempo, flertam e fo-
gem dos clichês característicos desses gêneros. O corpo humano cos-
tuma ser o palco principal dessas estranhezas. Desdenhando recursos
habitualmente utilizados nesse tipo de obras cinematográficas, como as

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 137


PAULA SIBILIA

peles plastificadas de silhuetas tão etéreas que parecem feitas de luz ou


as próteses informáticas excessivamente limpas e eficazes – ou, então,
o imaginário “gosmento” dos monstros e alienígenas–, nas realizações
desse cineasta se trata, sempre, de um corpo demasiadamente humano.
Um corpo cheio de órgãos e, portanto, limitado em suas imperfeições
terrenas.
É precisamente por isso que o corpo exposto na tela grande torna-se
estranho: por ser carnal, biológico, humano. Não pela artificialização
ostensiva ou sua comunhão perfeita com a técnica, nem pela interven-
ção de algum misterioso agente extramundano, mas é justamente por
ser de carne e osso que ele se torna medonho; porque é um conjunto de
vísceras que incrivelmente vivem, pensam e sentem.
Por isso, os filmes de Cronenberg vão na contramão daqueles am-
bientes assépticos e da pureza minimalista dos corpos que costumam
protagonizar os relatos de ficção científica, sobretudo em seu formato
audiovisual e nas suas versões mais recentes. Bem mais alinhados na
tradição de um Frankenstein oitocentista do que, por exemplo, na estei-
ra da reluzente saga de Matrix, os corpos cronenbergianos são entidades
que suam, sangram, suturam, transam, expelem, sugam, cospem, pene-
tram e lambem. Corpos que são até mesmo capazes de mutar, seguindo
a lógica implacável – e, no fundo, também inexplicável – da natureza.
Porque a anatomia não é uma ciência exata.
Nas primeiras cenas de The brood, por exemplo, o olhar do especta-
dor é surpreendido pela visão de pequenas feridas e erupções nos om-
bros de um homem e, logo em seguida, observa-se uma reação bioquí-
mica semelhante nas costas de uma criança que está sendo ensaboada
em sua banheira. Apesar da estranheza, em princípio, não se trata de
nada sobrenatural ou extra-humano nem de algo excessivamente vis-
coso ou com aparência de irreal. São apenas uma série de feridas, cistos
e espinhos, do tipo que os corpos humanos – em toda sua estranheza
orgânica e vital – costumam supurar. É tudo trivialmente carnal: cicatri-
zes, raspagens, tumores, dilacerações, coitos, partos.

138 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


O CORPO ESTRANHO: ORGÂNICO, DEMASIADAMENTE ORGÂNICO
Bahia

Algo semelhante pode ser constatado em filmes como Videodrome,


Crash, Scanners e eXistenZ, nos quais a junção entre a matéria orgânica
do corpo humano e os dispositivos tecnológicos nunca é perfeita e in-
dolor – seja um tradicional revólver, um automóvel, seja então um com-
putador, um videocassete, seja o plug de um avançadíssimo videogame.
Nesses casos, ao contrário do que costumam mostrar outros filmes do
gênero, o acoplamento homem-máquina é sempre problemático no ní-
vel mais básico e supostamente banal: a carne que é violentada pelos
objetos técnicos reage com infecções, supurações e sofrimentos que não
podem ser anestesiados.
O instrumental cirúrgico do qual se utiliza o médico de Gêmeos, por
outro lado, não difere muito dos aparelhos normalmente empregados
pelos ginecologistas, e é logo nessa semelhança que reside sua capaci-
dade de perturbar o corpo do espectador. Afinal, em que pese toda a
aflição que eriça a pele de quem estiver olhando as inquietantes cenas
desse filme, os rituais praticados pelos personagens no consultório mé-
dico são estranhamente familiares. Qualquer um teve a experiência de
vivenciá-los em seu cotidiano de paciente eventualmente doente, pelo
mero fato de sermos corpos contemporâneos cuja matéria-prima é (in)
compatível com tais artefatos e cerimônias. Isso, por si só, deveria servir
para provocar um sentimento de estranheza com relação ao que somos:
uma desnaturalização da nossa corporeidade em sua brutal condição
anatômica, pateticamente finita e incompreensível.
De alguma maneira, é como se David Cronenberg zombasse das te-
orias do “pós-humano” e do “pós-biológico”, tão em voga nos últimos
tempos, afirmando a prioridade – ou até mesmo a exclusividade – do
orgânico na definição do que somos. Contudo, não se trata nem de fes-
tejar nem de lamentar tal constatação. Apenas e tão somente, é assim
como as coisas são: de carne somos. “São as tripas que nos constituem”,
parece vociferar o cineasta nos ouvidos, nos olhos e no estômago do
espectador, sem a ajuda de analgésicos ou anestesias de nenhum tipo.
Somos um conjunto de vísceras entremeadas em uma estrutura transi-
toriamente viva e relativamente estável. Frágil e forte ao mesmo tempo,

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 139


PAULA SIBILIA

delicada e bestial, tosca e cheia de mistérios. De nada serve, portanto,


embarcar em tresloucados relatos de superação técnica dessa condição
humana, tão animalescamente humana, como os que abundam tanto
nos discursos acadêmicos quanto nos produtos midiáticos e nas cria-
ções artísticas, e muito peculiarmente na tradição cinematográfica mais
recente.
Segundo tais narrativas, o corpo humano seria uma carcaça antiqua-
da, “suscetível a panes, doenças e envelhecimento” porque foi criada há
milhões de anos pelos vetustos mecanismos da seleção natural e já não
consegue dar conta das exigências do complexo mundo atual. Portan-
to, para se adaptar ao hiperestimulante meio ambiente dos alvores do
século XXI, esse corpo estaria requerendo uma “reengenharia funda-
mental”. O sujeito realmente contemporâneo não pode mais depender
desse equipamento biológico que tem ficado obsoleto; em vez disso, de-
veria comungar com as próteses e os aperfeiçoamentos fornecidos pela
tecnologia mais avançada. Assim, como explicam alguns profetas desse
apocalipse às avessas, o ser humano 1.0 deve ser – e, de fato, já estaria
sendo – substituído por uma reluzente versão 2.0.
De acordo com essa perspectiva e graças aos espetaculares avanços
da teleinformática e das novas “ciências da vida”, estaríamos diante de
um tipo de evolução não mais meramente biológica e natural, porém
artificial e pós-orgânica. Se hoje ainda nos encontramos “limitados a
meras centenas de trilhões de conexões entre neurônios”, por exem-
plo, o futuro próximo anuncia várias possibilidades de aumentar essa
aparelhagem biológica básica. Tais como a instalação de pequenos dis-
positivos no cérebro que interagiriam com os neurônios, por exemplo,
a fim de “expandir nossas memórias e a capacidade de pensar de um
modo geral”, como explica um desses autores, o norte-americano Ray
Kurtzweil (2003). O mesmo pesquisador sugere receituários semelhan-
tes para turbinar todos os outros componentes do enferrujado corpo
humano, substituindo os velhos mecanismos biológicos por novíssimos
dispositivos técnicos que evitariam as incômodas necessidades de inge-
rir, beber, urinar e defecar, por exemplo.

140 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


O CORPO ESTRANHO: ORGÂNICO, DEMASIADAMENTE ORGÂNICO
Bahia

“O sexo já está bastante desvinculado de sua função biológica”, exem-


plifica Kurtzweil (2003), visto que habitualmente recorremos a essas
práticas “para nos aproximarmos intimamente e para obtermos prazer
sensual”, ou seja, motivos alheios à sacrossanta reprodução. “Da mesma
forma, possuímos diversos métodos para gerar bebês sem o ato físico do
sexo”, explica o autor. Se essa gradativa dissociação entre a sexualidade
a sua função biológica foi tão facilmente adotada pela nossa sociedade,
apesar das resistências iniciais de alguns setores mais conservadores,
“por que não separar o propósito da biologia em outra atividade que
também proporciona tanta intimidade social quanto o prazer sensual, a
saber, o ato de comer?”, pergunta o pesquisador.
Mas ele não é o único a pronunciar esse tipo de questionamentos ou a
procurar soluções técnicas capazes de implementá-las, e muito menos é
o único que se atreveu a plasmar tais inquietações nos mais diversos for-
matos artísticos e midiáticos contemporâneos. “É hora de se perguntar
se um corpo bípede, que respira, com visão binocular e um cérebro de
1.400 cm3 é uma forma biológica adequada”, afirma outro representante
dessa vertente de pensamento, o artista australiano Stelarc (1997, p. 54).
“Ele não pode dar conta da quantidade, complexidade e qualidade de
informações que acumulou; é intimado pela precisão, pela velocidade
e pelo poder da tecnologia e está biologicamente mal-equipado para se
defrontar com seu novo ambiente.” O corpo humano, tal como ele ainda
teima em ser, “é uma estrutura nem muito eficiente, nem muito durável;
com freqüência, ele funciona mal”, prossegue Stelarc, para concluir da
seguinte forma: “agora é o momento de reprojetar os humanos, torná-
-los mais compatíveis com suas máquinas.” (STELARC, 1997, p. 59).
Nada disso, porém, parece seduzir o olhar aguçado desse contador
de histórias, que é David Cronenberg, um astuto observador desses cor-
pos humanos que a maioria de nós (ainda?) somos. Uma pequena his-
tória real pode vir à tona para ilustrar essa posição, que é tanto estética
quanto política e, por tal motivo, derrama uma multidão de implicações
éticas. Seu filme lançado em 1979, The brood: os filhos do medo, chegou
a ser censurado na Grã-Bretanha por causa de uma cena emblemática:

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 141


PAULA SIBILIA

aquela na qual a protagonista dava à luz um bebê mutante. Logo após o


parto, a personagem realiza um ato que integra o cardápio dos “instintos
maternais” e que, portanto, costuma ser replicado na vastidão do plane-
ta Terra por boa parte dos mamíferos que nele habitam. Diante das câ-
meras do diretor canadense, a mulher lambe amorosamente o filho que
acabou de nascer, na tentativa de limpá-lo de sangue, placenta e outras
substâncias emanadas das próprias entranhas para, ao mesmo tempo,
fornecer-lhe calor e afeto. Mas a impressão que se teve do outro lado
da tela – e que levou a censurar tal sequência, por ter ido longe demais
na sua ousadia – foi que a mulher estava devorando a criatura recém-
-nascida. Algo que poderia até fazer um monstro inumano em um filme
qualquer de terror, porém que jamais faria um animal demasiadamente
humano como esses que ainda – e tão atavicamente – obstinamo-nos
em ser.
Por isso, não é de qualquer modo que no cinema de Cronenberg
abundam as malformações, as próteses, as mutações, as aberrações e
anomalias, e até mesmo os travestimos que reconfiguram os corpos (Gê-
meos, eXistenz, A mosca, M. Butterfly), em uma estética do abjeto, da
repulsão e do grotesco que, não raro, explode em insólita beleza. De
modo semelhante, capacidades extrassensoriais, transes e dons telepá-
ticos são capazes de afetar as manifestações materiais da subjetividade
e podem até mesmo fazer implodir os corpos ou criar configurações
insólitas (The brood, Scanners, A hora da zona morta). Tampouco fal-
tam alusões ao uso de produtos químicos e tecnológicos que alteram os
limites físicos dos personagens (Naked Lunch, eXistenz, Videodrome), e
proliferam as doenças e os acidentes que os dilaceram, paralisam ou os
transformam em seres mais complexos; e em certas ocasiões, até mais
interessantes (Crash, Gêmeos, The brood, A hora da zona morta).
Entretanto, apesar dessa fixação nas potências e impotências da ma-
terialidade carnal, em vários filmes de Cronenberg as características fí-
sicas que costumam definir as capacidades “normais” do corpo humano
são, de fato, ultrapassadas. Nesses casos, para o espanto e o deleite do
espectador, esses limites são transbordados produzindo ações e gerando

142 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


O CORPO ESTRANHO: ORGÂNICO, DEMASIADAMENTE ORGÂNICO
Bahia

materialidades inesperadas. Mas o responsável por tais proezas costuma


ser o próprio corpo humano; ou, mais exatamente, uma de suas peças
mais monstruosas e perigosas: a mente. Expulsando da tela todo ves-
tígio dos envelhecidos dualismos que reivindicavam a prioridade dos
componentes “imateriais” da condição humana, a mente cronenbergia-
na ora encarna no sistema nervoso central, nos interstícios do cérebro,
no complexo jogo dos neurônios, nas veias e artérias de um tórax a pon-
to de arrebentar, ora até mesmo nos mistérios do psiquismo.
E sua surpreendente erupção na superfície corporal pode derivar
do desenvolvimento de capacidades mentais usualmente adormecidas
(The brood, Scanners, A hora da zona morta), do uso de narcóticos e
outras substâncias ou recursos capazes de produzir estados alterados
da consciência (Naked Lunch, eXistenZ, Videodrome) ou, inclusive, das
diversas manifestações de uma companheira ancestral da humanidade:
a velha loucura (Gêmeos, Spider). Em todos esses casos, porém, não se
trata de poderes considerados sobrenaturais, mágicos ou sequer “pós-
-orgânicos”: a curiosa afetação corporal não se deve nem às proezas da
tecnociência nem a inexplicáveis agentes supostamente externos à enig-
mática condição humana. Ao contrário, são sempre as travessuras da-
quela “louca da casa” que habita nosso corpo desde épocas imemoriais,
como uma sorte de espectro que impregna essa velha maquinaria feita
de células e moléculas de carbono.
Uma mente fatalmente encarnada e que, dependendo de diversos fa-
tores – ou mesmo do acaso, esse onipresente imponderável que tece a
filigrana de toda humana existência –, ora pode operar como uma pri-
são do corpo, ora, ao contrário, como sua válvula descompressora capaz
de projetá-lo para fora do seu próprio além. Ou, então – como, aliás,
acontece de forma mais habitual e corriqueira –, o componente mais
desvairado dessa estrutura biológica que alicerça os corpos vivos pode
vir a exercer, simultaneamente, essas duas modalidades do nosso jeito
psicossomático de sermos humanos, demasiadamente orgânicos: cár-
cere e pesadelo das pulsões carnais, e também sua cúmplice libertadora
mais deliciosa e refinada. Para suportar tamanho despropósito e extrair

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 143


PAULA SIBILIA

dele a maior riqueza possível, poucas receitas são mais eficazes que ir ao
cinema – ou, então, melhor ainda, por que não: fazer cinema.

Referências
KURTZWEIL, R. (2003, março 23) “Ser humano versão 2.0”. Tradução
de Victor Aiello Tsu. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, pp. 4-9.
SIBILIA, P. (2002) O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecno-
logias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
STELARC. (1997) “Das estratégias psicológicas às ciberestratégias: a
protética, a robótica e a existência remota”, in: DOMINGUES, D. (org.).
A arte no século XXI: A humanização das tecnologias. São Paulo: Unesp.
pp. 52-62.

144 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


DRAMATURGIA, CORPO E REPRESENTAÇÃO
Bahia

Dramaturgia, corpo e representação


Playwriting, body and representation

Cleise Furtado Mendes

Resumo: Traçando os começos do modo dramático de figuração do mundo se sublinha


a necessária incorporação antropomórfica dos afetos. O trânsito pela corporeidade evi-
dencia que o drama é sempre uma experiência de corpo a corpo. A nítida atração do
analista para a dramaturgia revela que o pai do analista foi o dramaturgo.
Palavras-chave: Dramaturgia. Representação .Corporeidade.

Abstract: In his old job of giving body to the passions, through the figuration of human
conflicts, the drama offers a collection of subjects and procedures, of characters and
situations that move the reflection in other areas of knowledge. History of the drama is
not only the history of representation of our passions, but also the history of the various
modes of production of these passions, by transit through the body and pacts with the
receiver, thanks to concrete images with which the playwright seeks to configure the
clash of passions in every age and social environment.
Keywords: Playwriting. Representation. Embodiment.

Uma das bem conhecidas brincadeiras sérias do crítico Harold


Bloom (1995) é sua afirmação de que Shakespeare foi o verdadeiro in-
ventor da psicanálise, e Freud fez apenas sistematizar, “explicar” aquele
desfile de paixões encarnadas em figuras cênicas que compõem uma
espécie de mosaico da alma humana.1 Como toda frase espirituosa,
esta exibe uma reflexão travestida em jogo de palavras. Algo que mere-
ce nossa atenção brilha à tona desse gracejo. Ele nos faz lembrar que a
dramaturgia – não apenas a de Shakespeare, é claro –, em seu trabalho
de produzir imagens de ações humanas, foi talvez a primeira prática
de objetivação dos nossos medos e desejos. Ao criar um repertório de
personagens que se debatem com as ansiedades de seu próprio espaço

1 “A menos que se seja um religioso freudiano, essa é a antiga história da influência literária e
suas ansiedades. Shakespeare é o inventor da psicanálise; Freud, seu codificador.” (BLOOM,
1995, p. 361).

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 145


CLEISE MENDES

e tempo, cada autor dramático ofereceu valioso material para o estudo


desses comportamentos em outras áreas de saber – não só a psicanálise.
Se quisermos fantasiar uma origem, podemos imaginar que a dra-
maturgia surgiu no momento em que os humanos criaram seus pri-
meiros deuses e demônios, pois a partir daí engendra-se uma podero-
sa matriz para a contínua recriação de um sem-número de histórias,
e mais importante: de um sem-número de combates, de situações de
enfrentamento entre forças rivais, empenhadas em uma luta de dimen-
sões cósmicas. Quando criamos os deuses e demônios, à nossa imagem
e semelhança, passamos a contar com protagonistas e antagonistas de
grande poder e largo fôlego; imortais, e portanto, envolvidos em um
conflito eterno. Ora, com uma construção simbólica tão potente, não é
de admirar que em várias tradições teatrais os primeiros textos dramáti-
cos de que temos notícia surjam como recriações desse painel de figuras
míticas. Os mais antigos poemas dramáticos já descobertos são textos
egípcios que falam de combates entre divindades do bem e do mal. E
alguns datam de 1.500 anos a. C.!
Porém, em um determinado ponto dessa história, os dramaturgos
deixaram o palco cósmico e começaram a projetar nossas angústias em
cenários bem terrenos. Passaram das titânicas batalhas pelo poder no
Universo para guerras fratricidas, para chacinas em nome da fé, para
dilemas racionalistas entre o amor e o dever, para indagações filosóficas,
para os segredos e escândalos da casa burguesa, para a militância políti-
ca, para os momentos lacrimosos de reencontro entre pais e filhos, e daí
para as pequenas lutas diárias pela sobrevivência.
Mas, tendo como cenário o céu ou a terra, o que persiste no modo
dramático de figuração do mundo é a incorporação das ânsias e temores
de cada época em recortes precisos, antropomórficos. Aquilo que Niet-
zsche chamou de “princípio de individuação”: as paixões desordenadas
que brotam da lava dionisíaca precisam das formas apolíneas para se-
rem moldadas, contempladas, vivenciadas e... talvez, talvez... compre-
endidas. Precisamos do corpo forte e negro do guerreiro Otelo para vi-

146 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


DRAMATURGIA, CORPO E REPRESENTAÇÃO
Bahia

venciar sua destruição pela picada da pequena vespa do Ciúme; ciúme


que surge não como ideia abstrata, mas encarnado num corpo branco de
mulher e nas palavras tão concretas quanto gotas de veneno que Iago
pinga em seu ouvido. Precisamos do corpo magro, ágil e amarelo de João
Grilo para encarnar a esperteza, esperteza sem a qual o seu sangue “de
pouca tinta”, como o do Severino de João Cabral, não conseguiria man-
tê-lo vivo por mais um dia.
Por isso vejo esse trabalho milenar do dramaturgo como um esforço
constante para dar corpo às paixões, para torná-las visíveis e tangíveis,
por meio da figuração de conflitos humanos. A história do drama é não
apenas a história da representação de nossas paixões, mas também a his-
tória da produção de diferentes modos de perceber e vivenciar esses afe-
tos, investidos em imagens corporais que portam, carregam, significam
os embates passionais em cada época e ambiente social. Por isso a via
dramática é também uma via erótica: qualquer ideia, qualquer conceito,
qualquer questão a ser debatida exige o trânsito pela corporeidade, exi-
ge que nossa imaginação seja projetada em seres que agem e padecem,
ou seja, são animados pelo pathos em todos os seus movimentos. De Só-
focles a Shakespeare, de Brecht às rapsódias contemporâneas, o drama é
sempre uma experiência de corpo a corpo, de choque de sensibilidades.
Em seu livro Gilberto Gil: a poética e a política do corpo, Cássia Lopes
chama a atenção para o fato de que “Se o corpo pode ser lido como uma
metonímia do social, isso se deve ao fato de abrigar uma carga elevada
de tensão, de conflito, conforme diferentes perspectivas críticas diante
da lei, do éthos, sem os quais não se sustenta o desejo” (LOPES, 2012,
p. 19). No espaço do drama, esse efeito de condensação atinge um grau
máximo, pois acessamos as significações sociais e éticas por meio da
corporeidade, e os movimentos do desejo têm olhos e bocas, pernas e
braços.
A piada do crítico que citei há pouco revela também uma disputa
insistente que passa pela reivindicação da origem: qual o primeiro fa-
rol que iluminou a base submersa de nossa personalidade? Seriam os

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CLEISE MENDES

mitos gregos levados ao palco, há dois mil e quinhentos anos, ou a ex-


plicação freudiana? A querela existe, por mais engraçada que pareça,
uma espécie de disputa pela paternidade do Édipo. Mas para explorar
também o caminho do humor, eu arriscaria dizer que o pai do analista
foi o dramaturgo. E pode-se dizer que é o próprio Freud quem autoriza
essa filiação, ao analisar sonhos de personagens como sonhos de pes-
soas reais, justificando a análise de uma obra de ficção pelo fato de o
escritor trabalhar com o mesmo material do comportamento humano
observável, auxiliado por sua imaginação e pela intuição dos profundos
impulsos que movem suas ações. “A descrição da mente humana é, na
realidade, seu campo mais legítimo; desde tempos imemoriais ele tem
sido o precursor da ciência e, portanto, também da psicologia científi-
ca.” (FREUD, 1906-1908/1997, p. 48).
Ciente de que a percepção de motivações inconscientes sempre ali-
mentou o prazer oferecido pela ficção, Freud dedicou-se à análise das
obras de muitos dramaturgos modernos, como Ibsen e Schnitzler. Não
só das tragédias gregas, de onde parte o grande insight para o Édipo;
Shakespeare é citado, a todo instante, para mostrar, por exemplo, como
o dramaturgo faz seus personagens cometerem atos falhos, e de que
modo esse recurso contribui para revelar as motivações do seu agir. Mas
o que importa, aqui, nessa nítida atração do analista para a dramaturgia
e para o teatro em geral, é observar como isso pode lançar luz sobre
a representação das paixões por meio dos corpos em cena. Com tais
exemplos, não pretendo (apenas) ressaltar a dramaturgia como modo
de apresentação de vários níveis conflituais, desde os que podem ser
objetivados na ação até os mais subjetivos, ou que traçam mais sutis mo-
tivações de comportamento. Trata-se de ver como o drama se constituiu
como “arena das paixões”, e como a proliferação da ficção dramática em
novas mídias só fez adensar essa questão, hoje bem mais do que na épo-
ca de Freud. É do embate das paixões, diversamente corporificadas, que
se alimenta não só o teatro, também a televisão e o cinema, assim como
a crescente produção de jogos interativos em ambiente digital.
Como se sabe, o desejo de compreender as paixões humanas ocu-

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DRAMATURGIA, CORPO E REPRESENTAÇÃO
Bahia

pou boa parte do pensamento ocidental, muito antes da psicanálise. E


as explicações produzidas são elas próprias muito apaixonadas! Daí que
acompanhar a história de nossas paixões não é tarefa simples. Em cada
época, as paixões se expressam de modo diferente e são também dife-
rentemente percebidas e qualificadas; no interior de um mesmo sistema
de ideias, sua descrição é confusa e até contraditória. A impressão que
se tem é que as paixões são regidas por deuses polimorfos. Há paixões
para tudo, para o bem e para o mal: as que conduzem à ação e as paixões
paralisantes, as que movem a criação e as que geram destruição; há pai-
xões da solidão e do convívio, paixões antigas e modernas. O resultado
disso é que nossa razão, que se pensava única, absoluta, ao tratar com as
paixões, acaba também se multiplicando. A Razão faz-se plural: razões.
Nesse caminho, aquele que queira encontrar uma base estável de
oposição entre razões e paixões, vê-se diante de um quadro complicado.
Por isso é possível dizer, sem exagero, que, apesar da preciosa contribui-
ção dos filósofos, foi no espaço do drama, ao longo de séculos, que as
paixões, ao serem objetivadas em personagens e situações, puderam atrair
a atenção e a reflexão não só de filósofos e analistas, mas do público em
geral. E isso vai da tragédia grega à telenovela brasileira.
Como tópico dos estudos filosóficos, as paixões já foram conside-
radas como “afecções da alma”, por seu poder de contaminar os nossos
julgamentos. De Platão parte uma certa linha de pensamento, chegando
até ao cristianismo, que considera a paixão uma afecção a ser curada,
para se atingir a sabedoria, ou a santidade. É contra o pano de fundo
desse quadro ascético – a-pático – que se torna importante a vizinhança
das paixões com a Retórica e a Poética em Aristóteles (2000). Ao invés
de condenar as paixões, como Platão, o filósofo se dedica a um reconhe-
cimento exaustivo de sua importância, por constatar que as opiniões
oscilam de acordo com os afetos. Na Ética a Nicômaco (ARISTÓTELES,
1987), encontramos o exame de onze paixões; no livro II da Retórica,
são analisadas quatorze paixões. Isso porque a retórica não pode ser me-
ramente demonstrativa. Ela tem de ser também patética, para colocar a
audiência em certa “disposição de ânimo”. Mas o que chama a atenção

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CLEISE MENDES

é que os conselhos do filósofo ao orador e ao tragediógrafo são muito


parecidos. Conhecer as paixões e contar com elas deve ser o primeiro
cuidado de ambos.
Ora, outra coisa não fez a dramaturgia, desde então, seja na tragédia,
seja na comédia, como tentei mostrar em estudo anterior (MENDES,
2008). Mas com uma diferença, com a sua diferença. Em vez de con-
fiar apenas no efeito patético de sua fala, como o orador, os primeiros
autores de tragédias e comédias inventaram um modo de lidar com as
paixões criando um circuito que vai de um sujeito a outro sujeito, de
um desejo a outro desejo. Nesse processo, cabe à personagem, em sua
inscrição corporal, em sua persona, estabelecer o jogo de proximidade
e distância que permite ao espectador a experiência de conhecer seu
próprio desejo.
Na ficção dramática, argumenta-se com o corpo, ou com o choque
entre corpos que não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Senti-
mos prazer ao participar do modo como as personagens “portam” suas
paixões, como agentes de um querer, um querer que coloca em movi-
mento o mundo ao seu redor. Quando não existe alguém que deseje
algo tanto a ponto de transformar o seu impulso em ações, ações que
transformam situações... então, é a própria possibilidade do drama que
entra em colapso, e disso temos abundantes exemplos na dramaturgia
contemporânea. Se outro alguém deseja o mesmo que eu, nossos esfor-
ços entram em colisão, e os obstáculos podem ser materializados. Mas
a partir do drama moderno, contemporâneo do advento da psicanálise,
as coisas se complicam. Começamos a encontrar personagens a-páticas,
que não conhecem o próprio desejo, e com isso perdem autonomia dra-
mática e se desintegram como unidade psicofísica. Ou seja: se as paixões
saem de cena, os corpos se despedaçam, até se tornarem fragmentos,
vestígios, farrapos, como vemos nas últimas peças de Samuel Beckett.
A paixão que se dá a conhecer é fatalmente representação, astúcias
de mímese, jogo de espelhos; a paixão que se comunica é linguagem,
retórica, com todo seu poder de mover os afetos da audiência. Mas é no

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DRAMATURGIA, CORPO E REPRESENTAÇÃO
Bahia

trânsito pelo corpo que a ficção dramática exerce sua força. A paixão que
se encena está ancorada em imagens corpóreas que são inseparáveis das
marcas históricas ou psicológicas. E isso se torna ainda mais concreto
na passagem do dramático ao cênico. A atriz que está diante de Branca
Dias – personagem da peça O Santo Inquérito, de Dias Gomes – só pode
acessar sua ingenuidade, sua alegria, através do belo corpo de uma jo-
vem e de uma voz que afirma sentir a presença de Deus nas coisas que
lhe dão prazer.
“No vento que me fustiga os cabelos quando ando a cavalo, na
água do rio que me acaricia o corpo quando vou me banhar. No
corpo de Augusto, quando roça no meu, como sem querer. Ou num
bom prato de carne-seca, bem apimentada, com muita farofa, des-
ses que fazem a gente chorar de gosto.” (GOMES, 1979, p. 30).

É pela mediação desse corpo tão devoto e tão desejante que se torna
palpável também a crueldade dos senhores da Igreja que precisam des-
truí-lo para acalmar seus próprios medos.
Quando escrevi minha peça teatral Joana D’Arc – uma das muitas
construções possíveis dessa figura que oscila entre a história e o mito –,
percebi que tão importante quanto os acontecimentos que tecem essa
incrível biografia era o fato de que foram vividos por uma camponesa
saudável, robusta, em um corpo de 17 anos. Um corpo intocado pela ex-
periência sexual e que conhece seu êxtase no furor das batalhas. Um dos
seus maiores inimigos, o Conde de Warwick, representante da Coroa
Inglesa e advogado ferrenho de sua condenação à fogueira, não acredita
que, depois de libertar Orléans e coroar o rei Carlos, Joana queira deixar
os combates e voltar à sua vida pacata. Diz Warwick:
Ir embora? Longe disso! Claro que o rei Carlos já tem a sua coroa,
e agora daria tudo para que essa donzela fosse embora! É uma
garota muito incômoda, sempre com a mesma conversa de vozes
e batalhas. Sempre a mesma ladainha de ‘Deus salve a França, e
extermine nossos inimigos’. Sempre insaciável, pedindo homens,
armas, provisões. Sim, o rei adoraria ter um pouco de sossego, coi-
tado, de poder voltar aos seus jantares, às suas caçadas... e que

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CLEISE MENDES

ela voltasse para sua aldeiazinha, para sua vidinha, para rezar na
sua igrejinha... Mas, ela? A Donzela guerreira? Ir embora? Não
conte com isso! Agora a virgenzinha sentiu o gosto do sangue, a
excitação da luta, o prazer de comandar homens e de rolar no chão
roçando com a morte! Agora o seu corpo intocado sentiu o fogo
das batalhas! A castidade dessa moça se alimenta da guerra, está
viciada em guerra! Não, acredite! Ela não vai embora de boa von-
tade! Nós temos que providenciar isso!2

O que permite que a saga de Joana seja uma história do século XV e


também do século XXI está cifrado nesse corpo de mulher que usa rou-
pas masculinas como proteção, como armadura, e isso vai da comédia
shakespeareana ao sertão rosiano de Diadorim. A cada vez que entra
em cena, no tablado da História, o corpo produz um desconcerto, exibe
o seu poder de escândalo: seja exposto e multiplicado em vitrines, seja
queimado até as cinzas.
Em As formações do inconsciente, tratando das fantasias do sujeito
obsessivo, Lacan (1957-1958/1983, p. 421) nos oferece esta observação
preciosa: “Toda vez que falamos de fantasia, não convém desconhecer-
mos o aspecto de roteiro ou de história, que constitui uma de suas di-
mensões essenciais. [...] Ela é algo que não apenas o sujeito articula num
roteiro, como no qual ele próprio se coloca em cena”. Em nossos muitos
palcos, internos e externos, o desejo é posto em movimento em coreo-
grafias complexas, gerando novas e novas cenas, que são variações in-
cessantes da cena de um querer que nos antecede, e que sobrevive a nós;
mas esses quereres não surgem diante de nós idealizados, apenas como
“movimentos da alma” ou como conflitos psíquicos; eles estão materia-
lizados na corcunda de Ricardo III, nos grunhidos grotescos de Calibã,
no nariz de Cyrano de Bergerac, nos pés arrastados de Mãe Coragem,
nos pés inchados dos vagabundos de Beckett, na pele sem manchas da
Dorotéia de Nelson Rodrigues.
É isso que me faz ver a arte do dramaturgo como um ofício de dar

2 Joana D’Arc estreou em novembro de 2010, na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, sob a direção
de Elisa Mendes.

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DRAMATURGIA, CORPO E REPRESENTAÇÃO
Bahia

corpo às paixões. Dar-lhes um corpo e uma voz. Uma persona. Personi-


ficá-las. Presentificá-las, produzi-las em nossa presença, como realidade
física, material, sonora, visual; compartilhá-las no banquete entre palco
e plateia. Pois se elas, as paixões, não tiverem um corpo e uma voz, o que
será de nós? Como vamos reconhecê-las?
Referências
ARISTÓTELES. (1987) Ética a Nicômaco: poética. São Paulo: Nova Cul-
tural.
______. (2000) Retórica das paixões. Prefácio de Michel Meyer. São
Paulo: Martins Fontes.
BLOOM, H. (1995) O cânone ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva.
FREUD, S. (1906-1908/1997) Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen.
Tradução de Maria Aparecida Moraes Rego. Rio de Janeiro: Imago. (Edi-
ção Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v. 9).
GOMES, Dias. (1979) O Santo Inquérito. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
LACAN, J. (1957-1958/1983) O seminário, livro 5: as formações do in-
consciente. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LOPES, C. (2012) Gilberto Gil: a poética e a política do corpo. São Paulo:
Perspectiva.
MENDES, C. F. (2008) A gargalhada de Ulisses: a catarse na comédia.
São Paulo: Perspectiva. (Estudos, 258).

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ROGÉRIO BARROS

Ecos do que estou tocando amanhã


Echoes of what I’m playing tomorrow

Rogério Barros

Resumo: O artigo apresenta uma resenha do livro Esto lo estoy tocando mañana: mú-
sica y psicoanálisis, instigante compilação de trabalhos, organizada por Pablo Fridman,
que traz contribuições relevantes acerca da pouco estudada relação entre a psicanálise
e a música. Ao tocar os ritmos, estilos, silêncios e ressonâncias dos diversos autores que
compõem esse livro, essa publicação abre caminho para uma reflexão sobre a estrutura
da linguagem desde os restos acústicos, substrato do significante, onde musicalidade e
prática analítica apresentam uma conjugação.
Palavras-chave: Psicanálise. Produção Artística. Música. Linguagem. Constituição Pré-
-Verbal.

Abstract: The article presents a review of the book Esto lo estoy tocando mañana: músi-
ca y psicoanálisis, an intriguing compilation of works edited by Pablo Fridman, which
gathers significant contributions about the understudied relationship between psycho-
analysis and music. By tapping the rhythms, styles, silences and resonances of various
authors of this book, this publication gives way to a reflection on the structure of langua-
ge from the acoustic remains, a significant substrate, in which musicality and analytical
practice come together.
Keywords: Psychoanalysis. Artistic Production. Music. Language. Pre-Verbal Constitu-
tion.

Recebi em mãos, já no final de 2011, o livro Esto lo estoy tocando


mañana: música e psicoanálisis, publicação de Buenos Aires, da Grama
Edições, organizado por Pablo Fridman. Intrigado pelo novo – até então
não tinha conhecimento de nenhuma compilação que houvesse tocado
essa temática, além de alguns poucos textos avulsos –, fui ao encontro
do inesperado para ver o que ocorria.
Para minha surpresa, um ponto uníssono ressoou na introdução de
cada um dos textos: a música, como produção artística, é um terreno
até o momento pouco explorado pela teorização psicanalítica. Distante
de ter sido preferência artística do inventor da psicanálise, para o qual a

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ECOS DO QUE ESTOU TOCANDO AMANHA
Bahia

música era incapaz de despertar nele qualquer gozo, ela também passou
por Lacan de forma sorrateira. Entretanto, há de se destacar que a expe-
riência musical, como sua produção sublimatória, ao ligar-se a voz/som,
não pôde nunca estar muito distante de nós, merecendo – e a isto se
propõe esse livro! – tornar mais claras algumas das suas aproximações,
apropriações e questionamentos de sua utilização na prática clínica psi-
canalítica, favorecendo uma construção de saber que possa servir-nos.
Psicanálise e música: ressonâncias
Toda produção artística deve ser compreendida como um modo de
lidar com o vazio. Essa é a afirmação primordial que está proposta desde
o prólogo desse livro. Como fazer artístico, a música deve ser pensada
também como um processo falho – nenhuma produção humana é capaz
de pôr fim ao real. O que há de tão singular na música, então, que fez
com que uma série de autores se debruçasse sobre esse tema e produ-
zisse esse livro?
Desde antes do nascimento, o sujeito já é envolvido por significantes.
Além de nomeado, desejado, o sujeito é sonorizado/cantado. Ao pro-
por que anterior à palavra está a percepção acústica, Fridman (2011)
observa que é por meio das reservas musicais/sonoras que adquiriu na
sua constituição pré-verbal que o sujeito pode presentificar-se diante do
Outro. Sustentado nessas marcas inomináveis de som, alheias ao senti-
do, o sujeito pode buscar reconhecer-se. A musicalidade, aí, é entendida
como resto acústico ouvido, que é o substrato a partir da qual a palavra
vai advir.
Pensada desde a estrutura de linguagem, a música é concebida como
o suporte material primordial do significante, alçando o patamar de im-
prescindível para a formação da cadeia que será instaurada. Trata-se de
uma forma primária de inscrição da pulsão no campo simbólico – o
primeiro tempo instituinte da estrutura (BERARDOZZI, 2011). Alheia
à palavra e rechaçando a significação, a música é o registro real da lin-
guagem.

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ROGÉRIO BARROS

Sustentado por lalíngua, o fenômeno musical/sonoro instaura, em


frente ao silêncio da ex-sistência, um novo tempo e configura outro es-
paço. Música, enquanto possibilidade artística, com suas variações de
tons ora lentos e ora velozes, marcam a invenção da vida pulsional nos
sujeitos. Ritmada, surge, aí, a subjetividade. Como marca Antmann, em
o Ritornelo exterioridad (2011), é através da percepção do buraco, que a
voz pode exteriorizar-se com a invenção sonora, criando o espaço, mar-
cado pela diferença diante do silêncio absoluto do Outro tempo.
Estrutura discursiva, relação com o real e criação de tempo e espa-
ço – além desses elementos que aproximam a música da psicanálise, é
possível destacar outro: o corte.
O ritmo diz respeito à sucessão de sons que dão a dimensão de du-
ração de uma música. É a partir de um novo som, de outra nota, que
fica marcada a mudança de um tempo a outro. Analogamente, o corte
analítico não é senão uma nota produzida ou acentuada sobre a debili-
dade do tempo que gera no ouvinte a sensação de surpresa (GALANTE;
ZENAROLA, 2011). O corte faz aparecer o que não se espera, tal qual a
mudança de tom, que abre um novo ritmo.
Mais distante da palavra que outras formas de arte, a música faz a
convocação àquele que a escuta tal qual a experiência analítica convi-
da: a nos esforçarmos para tratar do inominável, impossível de dizer, e
disso, ainda assim, obter alguma satisfação desligada do sentido (GA-
LANTE, 2011).
O silêncio, o ritmo e o tratamento
Se a música é uma forma de arte em que o privilégio é do som e
do ouvir, desvencilhado do sentido decifrável, de que modo ela produz
efeitos no tratamento de casos de psicose? Sob esse enigma, três textos
se seguem.
O primeiro deles, La música que (no) amansa las fieras (SOTELO,
2011), versa sobre uma análise fílmica do personagem David Helfgott,

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ECOS DO QUE ESTOU TOCANDO AMANHA
Bahia

pianista que desencadeia uma psicose ao executar a música que corres-


pondia ao desejo tirano do seu pai, para quem ele correspondia apenas
a um objeto de gozo. Desestabilizadora do enodamento dos registros
que mantinham David sob bengalas imaginárias, surpreendentemente,
é pelo exercício musical que algo de uma nova estabilização torna-se
possível.
Elabora-se que, se para o neurótico a inexistência da relação sexu-
al é um lapso reparado pelo Nome do Pai (NP), nos casos de psicose,
a música pode cumprir essa função de suplência, operando como um
sinthoma que mantém amarrados os três registros, ali onde a função
paterna se apresenta inoperante. Dessa breve análise, interroga-se se, a
partir da música, é possível realizar regulação de gozo, como forma de
tratamento a esses sujeitos.
A música pode ser uma via privilegiada para o tratamento da psi-
cose, responde Ideart (2011) no seu texto La música como discurso sin
palabras y sus consecuencias en la clínica de las psicosis. Por se tratar de
uma estrutura de linguagem que não tem o propósito da comunicação,
propõe que a música, como discurso, diferentemente do discurso fa-
lado, traduz seu sentido não por meio do significado, mas de lalíngua,
sem sentido.
É possível pensar, a partir dessas formulações iniciais, que se os su-
jeitos psicóticos estão à mercê da língua materna em razão da foraclu-
são do NP, o tratamento psicanalítico mediado pela música pode ser
promissor. Ao se distanciar da dialética da palavra, pode fazer consistir
o simbólico livre da lógica da significação, obtendo, pela materialidade
sonora, efeitos organizadores de báscula, favorecendo o comparecimen-
to dos sujeitos ali onde eles se encontravam mortificados.
Zabalza (2011) formula, pois, que nos pacientes psicóticos, não há
ritmo. Essa afirmação soa destoante, haja vista a quantidade de psicóti-
cos que apresentam grandiosas produções musicais. Ele justifica que a
proeza de ter um ritmo está intrinsecamente vinculada a poder destacar
um som diante da imersão sonora e caótica em que estamos mergulha-

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ROGÉRIO BARROS

dos cotidianamente: consentir a um ritmo próprio requer uma extração.


Em outras palavras, torna-se necessário que o sujeito pratique, com os
recursos que tem disponíveis, um distanciamento. Nos casos de psicose,
percebe-se que o Outro é onipresente e, distante de convocá-lo, fixa-o
como objeto imutável.
O tratamento para esses casos opera-se na tentativa de fazer esses
pacientes compreenderem os tons de uma música, seus espaços silen-
ciados e a forma como os sons vão apresentando-se ritmicamente. A
condução do tratamento pode ser pensada, enfim, como a introdução
de um ritmo, que significa operar sobre o ruído eterno ou o vazio abso-
luto. Trata-se de um saber fazer com o som, propiciado pelo corte, pelos
silêncios entre tons, que fazem advir a percepção sonora, operação de
extração.
O estilo do artista e o saber fazer com o som
Os textos finais que compõem essa coletânea são marcados pelo inte-
resse em articular a experiência musical e o saber-fazer sonoro aos seus
protagonistas. Nesse ponto da leitura, ressoam os temas sobre o artista e
sua criação, e o estilo de gozo de cada um.
Causado pela autobiografia do trompetista, compositor e bandlea-
der, Pablo Fridman (2011) inicia o texto Miles Davis, o estilo ressaltando
que há uma forma de satisfação que se utiliza do inconsciente para sus-
tentar-se, mas prescinde do deciframento do sentido. A isso, dá o nome
de estilo: uma manobra que excede ao simbólico; um modo de sintoma
que é um saber fazer com a pulsão. Servindo-se da ontologia desse mito
do jazz, pontua que Miles cria sons, reinventa-se, subverte a até então
consagrada conivência do jazz americano, destacando-se mundialmen-
te como inventor de um modo único de fazer música.
Por sua vez, Proust tenta, por meio de suas obras como escritor, en-
contrar aquilo que o torna quem ele é (BARRAL, 2011). Marcada por
um fragmento sonoro, a “pequena frase”, inicia sua criação por esse efei-
to obtido da música, sob a premissa de que essa forma de arte é capaz

158 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


ECOS DO QUE ESTOU TOCANDO AMANHA
Bahia

de suprimir o tempo. Com base nessa ideia, Elizabeth Barral procura-


rá formular seu trabalho. Inicialmente, aborda o pressuposto de que as
coordenadas temporais do eu podem ser abolidas mediante a música,
se compreendermos essa experiência como puro gozo, sem nenhuma
mediação. Elabora, então, que uma experiência sonora sem sentido ou-
torga ao ouvido a independência da palavra, podendo dispensar, assim,
seu significado. Entretanto, é essa marca/som que se repete e convoca
Proust a questionar-se o que ele é essencialmente.
Na repetição é que se realiza a verdade do sujeito: uma nota, ouvida
entre muitas variações, faz presenciar o Um na diversidade. A geniali-
dade de um artista é, pois, medida naquilo que ele é capaz de criar para
fazer ressoar a insistência de si mesmo. Aquilo que perdura incansavel-
mente pode ser compreendido, logo, como a marca do artista, grifo que
evidencia seu modo de encontro com o real; dá a ver, sem saber, sua
forma de ter satisfação em viver.
Referências
ANTMANN, M. (2011) “Ritornelo exterioridad”, in FRIDMAN, P.
(org.). Esto lo estoy tocando mañana: música y psicoanálisis. Buenos Ai-
res: Grama
BARRAL, E. (2011) “En busca del tiempo perdido: una experiencia mu-
sical”, in FRIDMAN, P. (org.). Esto lo estoy tocando mañana: música y
psicoanálisis. Buenos Aires: Grama.
BERARDOZZI, J. (2011) “Música en la estrutura”, in FRIDMAN, P.
(org.). Esto lo estoy tocando mañana: música y psicoanálisis. Buenos Ai-
res: Grama.
FRIDMAN, P. (org.). Esto lo estoy tocando mañana: música y psicoaná-
lisis. Buenos Aires: Grama.
______. (2011) “Miles Davis, el estilo”, in FRIDMAN, P. (org.). Esto lo
estoy tocando mañana: música y psicoanálisis. Buenos Aires: Grama.

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ROGÉRIO BARROS

FRIDMAN, P. (2011) “Psicoanálisis y música”, in FRIDMAN, P. (org.).


Esto lo estoy tocando mañana: música y psicoanálisis. Buenos Aires:
Grama.
GALANTE, D. (2011) “Sin música la vida sería un error”, in FRIDMAN,
P. (org.). Esto lo estoy tocando mañana: música y psicoanálisis. Buenos
Aires: Grama.
______; ZENAROLA, M. (2011) “La síncopa en la experiencia analí-
tica”, in FRIDMAN, P. (org.). Esto lo estoy tocando mañana: música y
psicoanálisis. Buenos Aires: Grama.
IDEART, G. (2011) “La música como discurso sin palabras y sus con-
secuencias en la clínica de las psicoses”, in FRIDMAN, P. (org.). Esto
lo estoy tocando mañana: música y psicoanálisis. Buenos Aires: Grama.
SOTELO, I. (2011) “La música que (no) amansa a las fieras”, in FRID-
MAN, P. (org.). Esto lo estoy tocando mañana: música y psicoanálisis.
Buenos Aires: Grama.
ZABALZA, S. (2011) “La síncopa: entre la murga y el rap”, in FRID-
MAN, P. (org.). Esto lo estoy tocando mañana: música y psicoanálisis.
Buenos Aires: Grama.

160 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


COLOFÓN DA FIBOL
Bahia

Resenha de Colofón n.º 33


Revista da Federação Internacional das Bibliotecas
de Orientação Lacaniana (FIBOL).
Buenos Aires, Grama Ediciones, 2013.

Tânia Abreu

Caros leitores da Revista Agente,


É com prazer que lhes apresento a Revista da Federação Interna-
cional das Bibliotecas de Orientação Lacaniana (FIBOL), denominada
COLOFÓN, em sua trigésima terceira edição, lançada em maio de 2013.
Segundo Judith Miller, o tema da revista, Corpos que falam, é de autoria
de Jacques-Alain Miller e fora sugerido na conferência de encerramento
do PIPOL n.º 5. O objetivo central deste número é cernir o que profis-
sionais de outras áreas, a arte, as análises pessoais e experiências clínicas
têm a ensinar aos psicanalistas sobre o nosso tema de interesse atual: o
corpo.
Tomaremos como eixos de nossa resenha as derivações do objetivo
central esboçado por Judith Miller visto que as rubricas da revista se-
guem esta indicação.
Da contribuição advinda das análises pessoais, destacamos o traba-
lho de Silvia Salman, AE da EOL, em exercício, intitulado El cuerpo en
la experiência del análisis.1 Este trabalho abre uma série de outros que se
inscrevem sobre a rubrica Peso do corpo.
A questão central da produção da autora é demonstrar, ao contrário
do que pensa o senso comum, que a psicanálise é uma experiência de
corpo, e não apenas de palavras.

1 O corpo na experiência da análise publicado no presente volume (Tradução nossa).

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TÂNIA ABREU

O texto é construído a partir das relações possíveis entre corpo e


palavras, sobretudo quando elas estão enganchadas ao corpo, sede do
gozo. O corpo goza, mas enquanto corporizado de maneira significan-
te. É a escritura do programa de gozo, do qual não nos livramos, mas
modificamos nossa relação e o sofrimento advindo dele. Uma análise
busca encontrar um novo modo de viver a pulsão, elemento crucial para
pensar a relação das palavras com os corpos. Além da noção de pulsão,
a autora nos traz dois outros conceitos fundamentais para pensar esta
relação do corpo com as palavras: a noção da satisfação e de aconteci-
mento de corpo aqui tomado como signo do real.
O texto de Salman é instigante e merece ser conferido, sobretudo
pelo desfecho que a autora dá às funções do analista enquanto corpo e
trauma.
Os textos dos colegas ordenados nesta rubrica irão articular o acon-
tecimento de corpo com o encontro de Lalingua com o corpo, derivan-
do daí o sinthome, marcas desse encontro deixadas no corpo e despro-
vidas de sentido, o Há Um que se repete de modo iterativo, como nos
casos de anorexia ou nas adicções. De modo geral, podemos dizer que
os textos desta rubrica tratam do corpo vivo como substância gozante e
seus efeitos: adicções, anorexias, psicoses...
A segunda rubrica coloca a psicanálise em diálogo com a arte atra-
vés do trabalho de ORLAN, lembrando que é com maiúsculas que seu
nome deve ser escrito. É uma entrevista riquíssima, porque nos leva a
um uso do corpo que tangencia o real por meio da sensibilidade de uma
artista. ORLAN é bem conhecida de nós, brasileiros, podendo várias de
suas produções ser conferidas no nosso site. Como nos adverte Cristina
Giraldo, a riqueza da sua produção reside em não aceitar os ditames
que o Outro social nos quer impor na modernidade, diferenciando-se e
reinventando através do corpo. Sua presença em Medellin, no Museu de
Antioquia, atraiu muitos jovens e seus corpos marcados por signos da
reinvenção corporal da hipermodernidade como piercings, tatuagens,
orifícios, etc.

162 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


COLOFÓN DA FIBOL
Bahia

Essa exposição elevou o Museu de Antioquia ao estatuto de parceiro-


-sinthoma de uma das bibliotecas do Campo Freudiano, a de Medellin,
solidificando o diálogo da orientação lacaniana com outros saberes.
Na sequência da entrevista com ORLAN, vários colegas escreveram
sobre o uso contemporâneo do corpo, destacando o predomínio da ima-
gem no nosso século ou a natureza dos corpos prêt-à-porter, verdadei-
ras máscaras que escondem a relação entre poder e saber. Cito Antelo:
“Medusa como figuração do feminino, da libido não castrada como diz
Miller, nos ensina o segredo da imagem e a profanação da visibilidade”.
Os textos desta rubrica atestam, de modo unânime, que, por detrás dos
espetáculos fascinantes, está sempre a castração.
A rubrica que trata da Política o faz de modo surpreendente, pois os
textos que ali se encontram articulam esse tema com o horror do ho-
mem ao abjeto, ao (i) mundo. O embalsamento do corpo de Evita Perón,
assim como questões higienistas enriquecem esse bloco de textos.
A definição de acontecimento tão em voga nos tempos atuais inclui,
sobretudo, a dimensão de um antes e um depois caracterizada pela rup-
tura dos fatos em curso e por seu caráter de efemeridade. A aparição dos
Outros Escritos em espanhol no início deste ano adquiriu o estatuto de
um acontecimento, o que pode ser conferido no depoimento dos cole-
gas hispanohablantes envolvidos neste trabalho.
Para a FIBOL, as bibliotecas não são depósito de livros armazenados
e sem vida, ao contrário, devem funcionar como seres pulsantes e parti-
cipantes da realidade de sua cidade. Nesse sentido a riqueza da coluna A
Psicanálise na cidade dever ser visitada, pois ali se confere o diálogo vivo
dos psicanalistas com o horizonte de sua época.
Os livros escolhidos para compor as “leituras críticas” articulam com
requinte a escrita com nosso tema de pesquisa atual: o corpo.
Espero que este breve passeio pelo conteúdo desta revista estimule os
leitores de Agente a também conferirem a COLOFÓN 33!
Boa leitura!

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 163


Apresentação dos Autores

Alice Munguba Monteiro


Psicóloga, especialista em Teoria e Técnica da Clínica Psicanalítica
Infantil pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). Es-
pecializanda em Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana pelo Ins-
tituto de Psicanálise da Bahia (IPB-BA) com chancela da Escola Bahiana
de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). Praticante no Centro de Estudos
e a Atenção ao Desenvolvimento Infantil (Ceadi) e em consultório parti-
cular na cidade de Salvador.
Endereço eletrônico: alicemcmonteiro@hotmail.com

Augustin Ménard
Psiquiatra, psicanalista em Nîmes (França), membro da Ecole de
la Cause Freudienne (ECF) e da Associação Mundial de Psicanálise
(AMP). Professor no Collège clinique de Montpellier.
Endereço eletrônico: augmenar@wanadoo.fr

Bernardino Horne
Analista Membro da Escola (AME) da Associação Mundial de Psi-
canálise (AMP) e da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). Membro da
Escola Europeia de Psicanálise. Presidente da EBP no momento de sua
fundação. Analista da Escola (AE) no período de 1996 a 1998. Diretor
de Ensino do Instituto de Psicanálise Bahia (IPB-BA). Consultor Perma-
nente do IPB-BA em relação ao Instituto do Campo Freudiano-Paris.
Professor do Curso de Especialização do IPB-BA com chancela da Esco-
la Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP).
Endereço eletrônico: horneba@terra.com.br

164 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


Bahia

Carla Fernandes
Psicóloga, Associada ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB-BA).
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto
de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui
Especialização em formato de Residência em Psicologia Clínica e Saúde
Mental pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Te-
oria da Psicanálise de Orientação Lacaniana pelo IPB-BA com chancela
da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP).
Endereço eletrônico: fernandesocarla@gmail.com

Cleise Mendes
Dramaturga e ensaísta, possui doutorado em Letras e Lingüística
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Associado IV da
UFBA, Membro da Academia de Letras da Bahia. Autora de As Estra-
tégias do Drama (EDUFBA,1995), Senhora Dona Bahia – Poesia Satíri-
ca de Gregório de Matos (EDUFBA, 1996) , A Terceira Manhã (contos)
(Imago, 2003), A gargalhada de Ulisses – a catarse na comédia (Perspec-
tiva, 2008), O Cruel Aprendiz (poemas) (Caramurê, 2009), Gabriel e o
Anjo da Bagunça (Caramurê, 2012), além de inúmeros textos para teatro
já encenados.

Endereço eletrônico: cleise.mendes@gmail.com

Fátima Sarmento
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da
Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Especialista em Teoria da
Clínica Psicanalítica pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Co-
ordenadora do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Criança-Carrossel.
Endereço eletrônico: fatima.asarmento@gmail.com

Guillermo Belaga

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 165


Psicanalista em Buenos Aires. Analista Membro da Escola de Orien-
tação Lacaniana (EOL) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP).
Analista da Escola (AE) no período de 1999 a 2002. Coordenador do
Serviço de Saúde Mental do Hospital Central de San Isidro. Professor e
investigador das Faculdade de Psicologia e Faculdade de Medicina /Uni-
versidade de Buenos Aires (UBA).
Endereço eletrônico: gbelaga@gmail.com

Gustavo Dessal
Psicanalista e escritor. Formado em Buenos Aires e Paris. Analista
Membro da Escola (AME) da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
e da Escola Europeia de Psicanálise- Madrid, membro do Comitê de Ação
da Escola Uma. Seus artigos são traduzidos em várias línguas. Autor dos
livros de ficção Operación Afrodita, Más líbranos del bien, Principio de
incertidumbre, Clandestinidad e Demasiado rojo.
Endereço eletrônico: g.dess.esp@cop.es

Luiz Felipe Monteiro


Psicólogo, Associado ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB-BA).
Especialista em Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana pelo
IPB-BA com chancela da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública
(EBMSP). Praticante em Salvador-BA.
Endereço eletrônico: luizfelipemonteiro@gmail.com

Marcela Antelo
Psicanalista, membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
e da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). Psicóloga pela Universidade
de Buenos Aires (UBA) e Mestre em Filosofia pela Uiversidad Nacional
de Mar Del Plata (UBMDP-Argentina) e Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Professora de Epistemologia no Curso de Especialização do

166 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


Bahia

Instituto de Psicanálise Bahia (IPB) com chancela da Escola Bahiana de


Medicina e Saúde Pública (EBMSP).
Endereço eletrônico: marcela.antelo@gmail.com

Paula Sibilia
Ensaísta e pesquisadora argentina residente no Rio de Janeiro, de-
dica-se ao estudo de diversos temas culturais contemporâneos sob a
perspectiva genealógica, contemplando as relações entre corpos, subje-
tividades, tecnologias e manifestações midiáticas ou artísticas. Fez gra-
duação em Comunicação e em Antropologia na Universidade de Buenos
Aires (UBA), Mestrado em Comunicação pela Universidade Federal Flu-
minense (UFF), Doutorado em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medici-
na Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS-UERJ) e em
Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ). É professora do Departamen-
to de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação (PPGCOM) da UFF, que atualmente coordena, além de
bolsista do CNPq e da FAPERJ.
Endereço eletrônico: www.paulasibilia.com.

Reinaldo Pamponet
Médico, psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise
(EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Professor no Cur-
so de Especialização do Instituto de Psicanálise Bahia (IPB) com chance-
la da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP).
Endereço eletrônico: rp88@terra.com.br

Rogério Barros
Psicólogo, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA), na área de concentração Psicologia do Desenvolvimento. Es-

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 167


pecialista em Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana pelo Insti-
tuto de Psicanálise da Bahia (IPB-BA), com chancela da Escola Bahiana
de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). Associado ao IPB-BA. Atua no
Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas Gregório de Matos
e em consultório particular na cidade de Salvador.
Endereço eletrônico: contaterogerio@gmail.com

Silvia Salman
Psicanalista. Membro da Escola de Orientação Lacaniana (EOL) e da
Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Analista da Escola (AE) no
período de 2009 a 2012. Membro do Conselho Estatutario da EOL, do
Secretariado de passe da EOL e do Comitê de Ação da Escola Una. Do-
cente do Instituto Clínico de Buenos Aires (ICdeBA) e da Universidade
de Buenos Aires (UBA).
Endereço eletrônico: silviasalman@fibertel.com.ar

Tânia Abreu
Psicanalista. Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e
da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). Mestre em Literatura e Psica-
nálise pelo Instituto de Letras - Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Coordenadora das Bibliotecas da EBP.
Endereço eletrônico: taniaabreu.ta@gmail.com

168 AGENTE REVISTA DE PSICANÁLISE


Bahia

NORMAS DE PUBLICAÇÃO
1. A Agente é uma publicação da Escola Brasileira de Psicanálise
– Bahia, com periodicidade anual, que tem por finalidade publicar tra-
balhos de interesse da psicanálise, suas conexões e desconexões.
2. Cabe aos editores e ao Conselho Editorial o exame e aprovação
dos trabalhos enviados, reservando-se o direito de não publicar aqueles
que estiverem em desacordo com sua orientação.
3. Os pontos de vista e opiniões emitidos pelos autores são de in-
teira responsabilidade dos mesmos.
4. A apresentação dos trabalhos deve conter título, seguido de
nome do(s) autor(es). Pede-se a filiação científica do(s) mesmo(s) e o
endereço para correspondência. O título também.
5. Os trabalhos devem ser acrescidos de um resumo sucinto em
português e inglês (abstract). É obrigatória a indicação de três a cinco
palavras-chave que descrevam o assunto do trabalho. As palavras-chave
também devem ser fornecidas em inglês (keywords).
6. Os trabalhos devem ser encaminhados em arquivo de progra-
ma Word for Windows, versão 6.0 ou superior, em fonte Times New
Roman, corpo 11, digitados em espaço 1 , entre parágrafos de 3mm,
com margens de 25 mm, limitando-se a no mínimo 4 e no máximo 15
laudas. Texto justificado com recuo de 0,5 cm.
7. Os artigos serão submetidos a uma revisão, podendo resultar
em alterações na forma do texto. No caso de modificações substanciais,
o texto será devolvido ao autor para que ele próprio proceda às modifi-
cações.
8. As referências bibliográficas devem obedecer às normas da As-
sociação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
9. Nos relatos de casos clínicos publicados, o anonimato do pa-

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE 169


ciente deve ser preservado.
10. Os artigos aceitos serão publicados conforme a programação da
revista.
11. Os trabalhos devem ser enviados para ebpbahia@terra.com.br,
assunto Agente.

Rua Comendador José Alves Ferreira, nº 60 – Garcia


CEP: 40.100-160
Salvador – Bahia
Tel.: 71-3235.9020 / 3235.0080 / 3247.8147 / 8175.5222

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