Você está na página 1de 113

Efeitos terapêuticos

na psicanálise aplicada

f|
iim Mm h

Programa de Pós-Graduação em
Teoria Psicanalítica | UFRJ

■má
Uma dissimetria fundamental entre
a impaciência subjetiva e o tempo
necessário à escuta psicanalítica
caracteriza as práticas clínicas
contemporâneas. O homem
apressado do século XXI quer
resultados terapêuticos imediatos.
Não há tempo a perder, e a escala
mais indicada para mensurar os
benefícios obtidos nos tratamentos
a que esse homem se submete
parece ser a própria afirmação de si.
Os psicanalistas são responsabilizados
pela demora em fornecer efeitos
terapêuticos àqueles que pensam em
procurá-los ou mesmo aos que chegam
a fazê-lo. Aos olhos dos que reclamam a
sofreguidão, a psicanálise só é válida se
consegue aplicar sua suposta pureza
aos desarranjos e desatinos do mundo.
O declínio da função paterna,
o esboroamento da moral sexual
civilizada e a supremacia do discurso
da ciência são alguns dos principais
vetores de uma profunda transformação
da subjetividade. Diante dessa
transformação a clínica freudiana,
cuidadosamente formalizada por
Jacques Lacan, não parece ser suficiente
para orientar o diagnóstico e o
tratamento de uma grande quantidade
de novos sintomas. O que fazer? O que
se pode saber sobre isso? O que se
espera dessas mudanças?
Efeitos terapêuticos
na psicanálise aplicada

Tania Coelho dos Santos


[organização]

Programa de Pós-Graduaçãa em
Teoria Psicanalítica | UFRJ
COPYRIGHT © 2005, dos autores

CAPA, PROJETO GRÁFICO E PREPARAÇÃO


Contra Capa

Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


Tania Coelho dos Santos (org.)

Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2005.


112 p.; 14 X 21 cm

ISBN: 85-86011-92-4

2005
Todos os direitos desta edição reservados à
Contra Capa Livraria Ltda.
atendimento@contracapa.com.br
Rua de Santana, 198 - Loja | Centro
20230-261 | Rio de Janeiro - RJ
Tel/Fax (55 21) 2508.9517
www.contracapa.com.br
Sum ário

Apresentação 7
Tania Coelho dos Santos

Efeitos terapêuticos na clínica


psicanalítica contem porânea ( \ 1,
Serge Cottet

A aceleração dos efeitos


terapêuticos cm psicanálise ( 41')
Serge Cottet

Problemas de formação no Centro


Psicanalítico de Consultas e Tratam ento
Serge Cottet

N ota sobre as conferências


de Serge C ottet no Rio de Janeiro 59
Ana Lúcia Lutterbach Holck

A prática lacaniana
na civilização sem bússola 61
Tania Coelho dos Santos

A prática entre vários:


princípios c aplicação da psicanálise 93
Angélica Bastos
Ana Beatriz Freire
A presen tação

No Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, somos muito


sensíveis ao profundo remanejamento da teoria e da clínica psica-
nalíticas que se elabora e se deposita em torno do D epartam ento de
Psicanálise de Paris VIII, razão pela qual propusem os a seu diretor
Jacques-Alain M iller um acordo dc cooperação internacional sobre
a atualidade da psicanálise pura e da psicanálise aplicada à psicote-
rapia. O s artigos assinados por mim e por Ana Beatriz Freire e Angé­
lica Bastos testemunham parte dos resultados desse acordo.
Dirijo essa cooperação com Serge Cottet, seguramente um dos
psicanalistas mais expressivos da Escola da Causa freudiana. Entre
outros motivos, destaca-se por sua inserção privilegiada como Doutor
de Estado_e professor titular do Departamento de Psicanálise de Paris
VIII. Responsável pela formação de numerosos mestres e doutores, é
sem dúvida um dos pilares da pesquisa dc ponta que o Instituto do
Campo Freudiano desenvolve no campo da psicose. E, como encarre­
gado da Seção Clínica de Gennevilliers, realiza o que talvez seja o
grande sonho dos psicanalistas brasileiros na universidade: reunir o
ensino teórico sustentado no rigor científico à particularidade incon-
tornável do saber que advém da prática clínica.
Foi esse cnlaçamento entre universidade e form ação do psica­
nalista que nos instigou a convidá-lo para ensinar no Program a de
Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com a Escola Brasileira de Psica­
nálise (EBP). As conferências dc Serge Cottet no Rio dc Janeiro (repe­
tidas cm São Paulo) durante o mês dc novembro de 2003, nas quais
mais um a vez vimos seu estilo revelar um talento bastante raro em
aliar a robusta exatidão teórica com a delicada precisão clínica,

7
conferiram novo fôlego e atualizaram o ensino de Freud e Lacan
sobre a direção da cura psicanalítica e os princípios do seu poder.
Descortinaram um profundo movimento de transformação no terreno
da formação do psicanalista e do pesquisador de orientação lacaniana,
bem com o despertaram nossa sensibilidade para a urgência dc refor­
m ular o aforisma lacaniano “não há formação do psicanalista, somente
formações do inconsciente” . Esse axioma, pode-se reconhecê-lo hoje,
contribuiu para difundir a idéia de uma precariedade na sistematização
da formação do psicanalista que parece ter tornado mais aguda a
emulação com a pós-graduação universitária.
O s efeitos da polarização entre os cursos dc pós-graduação c
as instituições psicanalíticas são bem conhecidos no Rio de Janeiro.
O ensino não sistemático da psicanálise nas instituições psicanalíticas
conduziu grande núm ero de analistas a buscar os program as de
m estrado e doutorado cm psicanálise, cm particular o program a
de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da U F R J, que conheceu,
graças à referida polarização, sucesso m em orável. Essa polêm ica
em torno da oposição instituições versus universidades, todavia,
tem ocultado o ponto fraco da formação de analistas e pesquisadores:
o ensino baseado na clínica. Com as exposições dc Cottct, pudem os
perceber que o trabalho que se efetua tanto nas seções clínicas quanto
no recém -criado Centro Psicanalítico de Consultas e Tratam ento
(C P C T ), em Paris, deve servir de inspiração para retificar esse hiato
entre a teoria e a clínica psicanalíticas. Tal retificação, aliás, é bastante
urgente porque a clínica freudiana clássica, cuja estrutura foi cuida­
dosamente formalizada por Lacan, já não é suficiente para nos orientar
quanto ao diagnóstico e à direção da cura psicanalítica em um a
quantidade num erosa de novos sintomas.
O declínio da função paterna, a ascensão do objeto a ao zénite
da civilização, o esboroam ento da moral sexual civilizada são apenas ^
alguns dos vetores de um a profunda transform ação da subjetividade $ ^
na contemporaneidade. O sujeito, submetido aos efeitos do discurso
da ciência, aprofunda sua rejeição ao inconsciente. C om o m ostra ^

8 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


Scrge C ottct, podc-se dem arcar hoje, por exem plo, uma distinção
muito sutil entre a anorexia clássica e a o novo sintoma anorcxico.
Enquanto na prim eira a recusa da satisfação com o objeto da de­
manda serve para reavê-lo na dimensão de objeto causa do desejo,
a anorexia contemporânea se baseia no gozo com a dor provocada
pela fome, sendo sua relação com o desamparo e a omissão no exer­
cício da função paterna o fator etiológico a ser ressaltado. Além
disso, a diferença entre os sintomas clássicos e os novos sintomas,
decorrentes do enfraquecimento da organização edipiana da fam ília,,
desencadeia um a nova interrogação acerca da diferença estrutural
entre neurose c psicosc. Descontinuidade estrutural ou continuidade
pulsional? D c que parâm etro, de que ponto dc vista, devem os nos
servir para distingui-las? Essa distinção é essencial ou não à direção
do tratam ento psicanalítico?
Psicanalistas e pesquisadores em psicanálise encontrarão grande
benefício tam bém nos ensinamentos dc Scrge Cottct sobre a acele­
ração dos efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada. Um a pequena
am ostra de intervenções clínicas, reunidas durante sua conferência
de introdução aos trabalhos de preparação das Jornadas PIPO L
(Program a Internacional da Psicanálise de Orientação Lacaniana),
realizadas no fim de junho dc 2005, foi gentilmente ccdida c participa
deste livro. Sua argumentação permite compreender melhor porque,
para além da diferença entre neurose e psicose, a clinica de hoje
precisa se orientar pelo sintoma como resposta singular do sujeito
ao real. Longe de rebaixá-lo a um sim ples disfuncionam ento, é
preciso aprender a tom á-lo como solução paradoxal. O artigo inti­
tulado “ Problemas dc formação no Centro Psicanalítico dc Consultas
e Tratam ento” condensa alguns outros aspectos im portantes para a
form ação do analista. Com pleta o volum e um a nota de Ana Lúcia
Lutterbach Holck sobre a importância do C P C T na EBP-Rio, em
que é aludida a importância das soluções originais do sujeito ante o
crim c organizado c a sociedade dc consum o nas com unidades
informais do Rio de Janeiro.

Apresentação 9
Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Ensino Superior (CAPES) pelo financiamento das passagens acreas e
a estadia de nosso convidado. Ana Lúcia Lutterbach Holck e Margareth
Ferraz, diretoras, respectivamente, da Escola Brasileira de Psicanálise
do Rio dc Janeiro c de São Paulo, ofereceram-nos suporte com ple­
mentar precioso. O s integrantes do Núcleo Séphora de Pesquisa,
sobretudo R oberta Guim arães d ’Assunção, R osa Guedes Lopes,
Rachel Amin Freitas, Vera Avellar Ribeiro, Sonia Pastorino, Maria
Cristina Antunes, M arcela D ecourt, Fabio A zeredo, Ana Paula
Sartori, Márcia Zucchi, Vanda Assunção c Ondina Machado, colabo­
raram diretamente na administração, na organização, na gravação c
na transcrição das conferências. Somos gratos ainda à solidariedade
de Manoel Barros da Motta e Mirta Zbrun, bem como ao empenho,
à gentileza e à generosidade de Jorge Forbes.

Rio dc Janeiro, junho dc 2005

Tania Coelho dos Santos

10 Efeitos terapcuticos na psicanálise aplicada


Efeitos terap êu tico s na clínica
psican alítica co n tem p o rân ea1

Serge C o ttet

C om o ler hoje o texto “A direção do tratam ento e os princípios de


seu poder”2, de Jacques Lacan, mais de quarenta anos depois de sua pu- •
blicação? Quais são os im passes da clínica c da prática da psicanálise
na cultura contem porânea?
Meu propósito nesta primeira parte é extrair as conseqüências
atuais da leitura de um texto antigo. Esse texto, de 1958, tem quase
meio século e é, provavelmente, o texto mais preciso e consistente
de Lacan sobre o problem a da prática analítica, ou seja, sobre a
direção que o psicanalista dá ao tratamento: como ele se orienta c a
que visa em sua prática? ^j
No fim da década de 1950, Lacan se referia à psicanálise que era ç
praticada à sua volta, cuja orientação não era a m esm a que p ro ­
punha. Ele queria retificar essa orientação errônea, e a distinção entre
o que é a prática efetiva da psicanálise c o que ele chamava um desvio
demarca a atualidade de sua crítica. Ao ler esse texto hoje, somos

' N . do E. O texto original, revisto pelo autor, foi estabelecido com base na
transcrição de suas três conferências proferidas na Universidade Federal do
Rio de Janeiro nos dias 17, 18 e 19 de novembro de 2003. Tradução: Vera
Avellar Ribeiro. Revisão técnica: Tania Coelho dos Santos.
Jacques Lacan. “A direção do tratamento c os princípios dc seu poder”
(19S8). Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zabar Editor, 1998.

11
obrigados a perguntar se ainda c assim que os psicanalistas lacanianos
praticam a psicanálise, sobretudo devido às transformações da demanda
psicanalítica e da emergência de novos modos de sintoma.
A ssim , se naquele m om ento Lacan restringia sua crítica da
técnica analítica à técnica da sugestão, à manipulação da transferência,
ao abuso do poder, hoje podem os dizer que ele situava a psicanálise
praticada dessa maneira ainda sob o discurso do m estre. N a época,
a psicanálise estava sob a influência americana da psicologia do ego,
que visa a um reforço do eu, a uma reeducação emocional, a um
domínio do sujeito sobre seu inconscicntc. Eis, então, a primeira atua­
lização da questão: as psicotcrapias contemporâneas estão sujcitas_a
essa m esm a crítica. A relação de ob jeto, inspirada nos pós-freudianos
ligados a Karl Abraham e Melanie Klein, era a segunda corrente da
época, e nela estava em jogo o questionam ento da maturação afetiva
e o ajustam ento da libido ao O utro, para além das fixações pré-
genitais, ou seja, a redução da psicanálise a um a psicogenese, a um
desenvolvim ento da libido. Essas duas orientações têm um ponto
em com um : fundamentam-se não na interpretação do inconsciente,
e sim em um a interpretação do imaginário da relação dual.
Pois bem , esse é o tem po do retorno de Lacan a Frcud, em que
ele retom a alguns princípios do freudism o, sendo necessário com pa­
rá-lo com um outro Lacan que se tornará autônom o em relação
aos princípios freudianos. N esses term os, a atualização do texto de
1958 consiste em m ostrar alguns limites que percebem os hoje e
que eram decorrentes da rcfcrência a Frcud, necessária naquele
m om ento.
O que era necessário naquele momento? Distinguir uma psico­
logia da necessidade, ou do afetivo, da estrutura do desejo incons­
ciente; bem como orientar os tratamentos para a interpretação_desse^
desejo, contra toda tentativa de reeducação. Por isso, nesse texto,
tcm -sc a construção do binário desejo/d em anda associada a um
prim eiro princípio de orientação: não responder à demanda, funda­
mentada logicamente por Lacan na distinção conceituai entre demanda

12 E feitos tcrapcuticos na psicanálise aplicada


c desejo. Isso justificará o silêncio do analista como algo diferente dc
uma simples posição de passividade sistemática. Lacan valoriza a
interpretação silenciosa, o valor interpretativo do silêncio, bem como
os m odos pelos quais esse pode ser modificado.
Lem brem os que, na época, a abstenção do analista, o silêncio do
analista, destinava-se a frustrar o sujeito, como se dizia. N o texto deC*
Lacan, há uma crítica da frustração, que era recom endada cm razão
da sucessão de afetos que deveria engendrar, a saber, a agressão e a
regressão. Pensava-se que, quando o sujeito regressara o bastante e j
começava a bancar o bebê, tomando o analista por sua m am ãe, a
interpretação o transform aria cm uma pessoa adulta. Caricaturo
um pouco, mas não muito, pois há terapias cuja prática se exerce Ar*
conscientemente desse modo, fundamentando suas técnicas no elogio
da regressão.
De acordo com Lacan, a frustração está situada no plano da lin­
guagem . Significa frustrar o sujeito de uma resposta à sua demanda.
Em outras palavras, Lacan constrói a demanda, qualquer demanda
pulsional, sobre a base de uma demanda de amor mascarado. O psica­
nalista não deve responder à demanda —ele não responde à demanda dc
amor -- com o objetivo de fazer emergir o desejo esmagado por t o d a ji}-' ■
demanda. Ao m esm o tem p o, Lacan m ostra que a própria transfe- ô
rência, resultante da neutralidade do psicanalista, não é uma simples
cópia, uma simples reprodução de um am or infantil, e se funda­
menta no saber inconsciente, em um saber suposto ao Outro. Recons­
truo o texto de Lacan à luz de categorias p osteriores a 1958 porque,
nesse tex to , ele ainda não definira a transferência com o sujeito
suposto saber, mas apenas com o emergência de um O utro sim bó­
lico , em especial a expressão raram ente empregada por ele de O utro
da transferência3.

3 Jacqucs Lacan. “A direção tio tratamento e os princípios de seu poder” .


O b .cit., p. 597.

E feitos terapêuticos na clínica psicanalítica contem porânea 13


D cssc prim eiro principio decorrc um a direção chamada por
ele espontânea, não sendo necessário nem m esm o impô-la. N ão se
dirige o paciente. Por m eio de sua posição de abstenção, o analista
deve perm itir as m anifestações transferenciais do desejo incons­
ciente, sobre as quais destaco este enunciado: “é o desejo que mantém
a direção da análise fora dos efeitos da demanda”4. Não é o psicanalista
quem mantém a direção. Seguimos aqui o vetor do desejo incons­
ciente em sua relação com o sim bólico, cm vez de nos prestarm os
a um a “cozinha” do imaginário (transferência, contratransferência)
bastante conhecida de nossos colegas da International Psychoanalytical
Association (IP A ). Em vez de atacar as resistências do sujeito, a direção
do tratamento, privilegia a interrogação dos significantcs do desejo
inconsciente. Assim, temos inicialmente a oposição desejo/dem anda;
em seguida, a oposição desejo inconsciente/resistência do eu e, por
fim, o privilégio de um vetor, de um significante: a prevalência do
significante falo significando o desejo.
Não mc deterei no falo, mas lembro que ele foi extraído por Lacan
de um dos últimos textos de Frcud, “Análise terminável c intermi­
nável” (1 937), ou seja, do tropeço da castração. A chave fálica deve
resolver os enigmas do sonho, os impasses da sexualidade, com o o
testemunham todos os exem plos clínicos presentes nesse texto, entre
os quais o da “bela açougucira”5 e de seu caviar, bastante conhecido
dos leitores de “A interpretação dos sonhos” (1900). Lacan comenta
esse exemplo em 0 Seminário, livro 5: asjormações do inconsciente (1957-8),
c é ainda o dedo erguido dc São João que dá a boa orientação inter -
pretativa. Em outra passagem desse sem inário, Lacan m ostra que
a questão da castração feminina poderia ter orientado m elhor Ruth
Lebovici, pois um certo número de preconceitos teóricos desem boca

4 Jacques Lacan. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” .


O b .c it., p. 642.
’ Jacques Lacan. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” .
O b .cit., p. 627.

14 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


cm conseqüências clínicas enfadonhas: cia induz um a perversão
tran sitó ria em seu p acien te. N essa p assagem , ele destaca um
preconceito do psicanalista m uito com um na cpoca, a saber, a
regressão do sujeito a um fantasma arcaico, o fantasma da mãe fálica.
Ao interpretar o sonho central do tratamento desse paciente, Lacan
m ostra que o objeto fóbico não é a mãe fálica, e sim o pai simbólico,
que é convocado como remédio para a angústia experimentada pelo
sujeito diante do desejo feminino.
Esse, aliás, é um exemplo da articulação entre a questão do Nome-
do-Pai e a questão da castração que permanece confusa em Freud,
por estar compartimentada no mito edipiano. O próprio Lacan chega
a extrair da última parte da obra freudiana estes dois significantes
m aiores: o Nome-do-Pai e, correlacionado a ele, o falo como signi-
ficante.
Por fim , há algo na psicanálise, ao m enos na psicanálise da
época, mas talvez na psicanálise de sem pre, que leva o paciente à
identificação com o analista, uma prova de que a sugestão permanece
presente em nossa prática. O s próprios analistas da época já haviam
se apercebido disso: depois de terem interpretado o sonho, a sexua­
lidade, o com plexo de Édipo, restava algo. Restava ajdependência
transferencial, decorrendo desta a constatação de que o nó da
interpretação é a interpretação da própria transferência. Pode-se \r
supor ainda que a própria posição do psicanalista conferia ainda
mais inércia a essa transferência interminável.
A esse respeito Lacan evoca a teoria do conhecido Jam es Strachey,
tradutor de Freud para o inglês. Com o teórico do tratam ento,
guardam os dele o sintagma “análise das identificações”, considerado
com o algo positivo, com o uma norm a para a direção do tratam ento.
Isso sem pre pareceu um tanto bizarro, m as... é possível cogitar
que ele, sem uma forte identificação, jam ais teria chegado a isso.
D e Londres, rum ou para o divã de Freud em Viena. Conhecem os
lotos dele antes e depois de sua análise: engordou, deixou crcscer a
barba, cnvclhcccu. Vale dizer, tom ou em prestado de Freud traços

E feitos terapêuticos na clínica psicanalítica contem porânea 15


de virilidade, digamos, paterna, o que não nos deixa de surpreender,
tratando-se de um hom em jovem que, até então, considerada sua
vida sexual, não era um paradigm a de virilidade.
Strachey é o teórico do supereu auxiliar. Graças a Freud, encon­
trou um supereu, um bom supereu, que impôs uma barreira ao super­
eu arcaico que o trabalhava e que, provavelm ente, o im pedia de
trabalhar. Por isso, com esse supereu auxiliar bem encavilhado no
corpo, pode se lançai-, junto de sua mulher, na carreira de tradutor
durante trinta anos. Sob a benção do pai Freud, Alix Strachey fez
exatamente a mesma coisa que Jam es como parceiro-sintoma. Não se
pode dizer grande coisa da psicanálise de James Strachey, salvo que ela
começa e termina por uma identificação com seu analista, algo que não
garante fidelidade à sua obra.
Com o evitar isso? Lacan valoriza tanto um a tática quanto uma
estratégia do psicanalista para evitar esse tipo de final, m as deve-se
enfatizar que o próprio analista precisa estar convencido de que
receitas c direções standard não servem para nada. E preciso a cate­
goria suplem entar que Lacan acrescenta no texto que discutim os, a
saber, o desejo do psicanalista, destinada a valorizar um a vez mais
o desejo do O utro. Dito de outro m odo, tom em os as coisas quer
no plano inconsciente (o inconsciente é o desejo do O utro), quer no
plano do fantasma (Lacan constrói o fantasma valendo-se do desejo
do O utro), é preciso o desejo do psicanalista para que os efeitos do
inconsciente se manifestem. Trata-se, portanto, de uma clínica do
O utro.
Houve alguma mudança desde então? Certam ente, não estam os
mais cm 1958. M udanças significativas ocorreram , e a questão
agora é saber se estas se produziram em decorrência de uma lógica
interna, de deslocam entos conceituais, ou se aconteceram sob a
pressão de novos sintomas. Já os evoquei. O certo é que a própria
doutrina antecipa a ascensão do objeto a ao zénite da civilização
contem porânea, tomando o conceito de gozo, pouco a pouco, o
lugar e a importância do conceito de Nom e-do-Pai.

16 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


Há um ccrto núm ero dc escanções na obra lacaniana que pe­
riodizam essa prom oção da categoria de objeto a e, em seguida,
dem onstram sua função no tratam ento. Minha hipótese c que, sem
mencionar por ora os sintomas contem porâneos, há tropeços sufi-',
cientes na análise clássica e dificuldades para terminar o tratamento
de sujeitos que apresentam uma sintomatologia também clássica que
fazem valer essa necessidade interna à doutrina. Em 1958, os exemplos
são tom ados dos sintomas clássicos considerados com o sintomas
freudianos — fobia, histeria e obsessão —, mas se vêem os limites de
uma direção do tratamento orientada unicamente pela problemática
do fim de análise proposto por Freud e revalorizado por Lacan, apesar
da triplicidade real, simbólico c imaginário.
O s psicanalistas se orientam melhor no tratam ento quando dis­
tinguem imaginário, real e sim bólico, mas isso não im pede que a
castração continue sendo o tropeço e que a chave fálica abra algumas
portas sem que as feche. O sintoma persiste e nos perguntamos se o
fantasma foi verdadeiramente atravessado. Penso aqui cm um outro
Lacan, por exem plo, em qual é o destino do fantasma em um trata­
mento clássico de neurose obsessiva.
Em 1958, portanto, a questão tinha sido apenas esboçada, perm a­
necendo no plano da significação fálica dos signifícantes do inconsciente.
Lacan, todavia, enfatiza que, enquanto o psicanalista se mantivesse
como Outro da transferência, a saída seria recuada ad infinitum. Assim,
podem os considerar que as mudanças introduzidas nos dez anos se­
guintes evidenciam um resto de toda operação interpretativa, de toda
operação significante ou simbólica. A esse resto Lacan chama objeto
a, que permanece incluído no sintoma e não cede, tornando proble­
mática uma distinção muito nítida entre sintoma e fantasma. Quanto
mais ele avança em sua teorização do sintoma, mais acentua sua
dimensão de gozo. O sintoma aparece mais como solução do que
com o com prom isso de um conflito. N essa época, as inúm eras
anotações dc Lacan sobre a psicose têm , entre outras coisas, reper­
cussão sobre a concepção do sintoma na neurose. E o sintoma como

E feitos terapêuticos na clínica psicanaKtica contem porânea 17


defesa contra o gozo, suplência às carências sim bólicas, mais que_
enigma a ser decifrado.
Isso, porém , não está acentuado em “A direção do tratamento e
os princípios de seu poder” , que fala muito pouco de psicose. N o de­
cênio 1958-1968, Lacan formula um outro binário para além do
binário desejo/dem anda, o binário desejo/gozo. A categoria de gozo,
de certo m odo prom ovida pelo objeto a, surge nos anos 1964-65.
A clínica das perversões, notadamente o gozo voyeurista, perm ite
um a reconstrução pós-freudiana da pulsão de ver. Com base em
dados puram ente estéticos e sobretudo nos com entários de Maurice
M erlcau-Ponty sobre a obra de Paul Cézanne, Lacan separa o olho
do olhar, situando este com o exterior àquele. O olhar se separa do
sujeito, que é, ele próprio, olhado. Som os coisas olhadas p or esse
objeto olhar.
Tais considerações permitem introduzir a categoria de objeto a,
causa de desejo , que logo depois passa a concernir ao próprio
psicanalista. È possível, por exem plo, retom ar a leitura da página
645 de Escritos, na qual Lacan usa palavras muito duras em relação
aos psicanalistas da época, ao descrever com o abjeção psicanalítica
o fato de o analista se tom ar com o o objeto no fantasma do paciente,
com o objeto substancial. É claro que essa crítica continua válida,
mas gera um a dificuldade: como ajustar a direção do tratam ento
proposta em 1958 àquela posterior aos anos 1964-65, e que faz do
psicanalista um semblante de objeto, de um objeto que se opõe à
m ortificação do O utro sim bólico? N ão esqueçam os de que, na
doutrina lacaniana eslruturalista, o sim bólico tem efeitos m orti­
ficantes.
Tradicionalmente, acredita-se que o O utro sim bólico é m elhor
que o outro imaginário. Essa é uma leitura possível, m as isso só e
verdade dentro de certos limites. Se o analista desempenha o papel
do m orto, enfatiza excessivam ente a função mortificante do signi-
ficantc e contribui para assegurar a permanência abusiva do incons­
ciente regido pelo Nom e-do-Pai. Por essa razão, cm torno de 1968,

18 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


Iiá na obra dc Lacan —e não foi por acaso que isso aconteceu cm 1968
na França —uma nova concepção do analista que contradiz essa tendên­
cia a interpretar em nome do pai e da castração.
Efetivam ente, bá algo de mortificante na língua, algo que petri-
líca o gozo e torna o sujeito servo de um objeto, de um fantasma.
Fm certa m edida, o psicanalista não deve ser exclusivamente um
escriba, tradutor ou intérprete, pois deve tam bém advertir o sujeito
acerca dessa inércia de g o zo . Desse ponto de vista, é possível refletir
com novo frescor sobre o caso freudiano da “bela açougueira” . Entre
outras coisas, podem os p ropor um diagnóstico diferencial entre a
açougueira dc Freud, que se recusa a ter boas coisas (caviar, salmão
etc.), c a anoréxica m oderna. H oje, a açougueira freudiana certa­
mente faria ginástica para falicizar ainda mais a im agem corporal,
para adequar seu corpo ao significante imaginário, à im agem fálica.
N ão há dúvida de que, na atualidade, é possível encontrar muitas
provas da estratégia da bela açougueira: privar-se daquilo que se
demanda. Permanecemos na insatisfação da demanda para continuar
a desejar. Assim como a açougueira, a histérica se esm era mais em
encarnar esse falo como significante último do desejo do que em
tê-lo ou recebê-lo.
O problem a aqui, porém , é que a chave fálica não abre todas as
portas do m istério do gozo feminino. Algumas páginas adiante,
Lacan faz alusão à anorexia mental, ao designar com esse term o a
constatação de que algumas moças não com em carne, nem frango,
nem peixe. Elas comem nada. Por que Lacan faz essa categoria de
nada aceder à dignidade de um objeto fundam ental da clínica
psicanalítica? Os praticantes que lidam com anoréxicas cm seus
consultórios ou nos hospitais têm muita dificuldade de interpretar o
sintom a apenas com a chave da dem anda e do desejo , e mais
dificuldade ainda em articulá-lo de acordo com os term os castração
e Édipo freudiano. Aqui, aparece não um desejo sob a demanda de
amor, c sim uma demanda dc amor por trás da greve dc fome. Há casos
cm que, cm razão dc um ccrto deslizamento do desejo ao gozo, o

Efeitos terapêuticos na clínica psicanalítica contem porânea 19


sujeito protege uma satisfação m ortífera tendo fome, sem que se
possa verdadeiram ente considerar que se trata de um a estratégia
am orosa. D ito de outro m odo, os sujeitos obtem um a satisfação
l m ortífera no fato de terem fom e, m as isso não leva à consideração
de um a satisfação histérica, e sim de um gozo, de um a perda que
interessa a um novo estado do corpo.
N ão se trata, portanto, de form ação/com prom isso intcrpretável
pela dialética dem anda/desejo. À vontade terapêutica de cura faltará
o essencial, pois não tocará na nova aliança do gozo com o signifi-
cante m ortal, ou seja, a questão não é fazer aparecer uma insatis­
fação com o m otor do desejo, mas antes m ostrar que a eventual
cura da anorexia não impedirá que essas m oças se suicidem.
Apresento-lhes aqui prolongam entos ou comentários do texto
de Lacan que concernem ao sentido do sintoma. E preciso acres­
centar de algum m odo um elemento de não-sentido, evidentem ente
não em beneficio de uma mecânica biológica, e sim de um fator
que Lacan ainda não enfatizava na época e que concerne às m oda­
lidades de gozo irredutíveis a toda psicogênese ou à interpretação
edipiana clássica.
Vem os que o prim ado do sim bólico não dá todas as chaves, e
que pode haver inclusive um im passe do próprio sim bólico. No
período que abordam os e sobretudo no período que se estende até
197S, Lacan fornecen ovos elementos teóricos que são favoráveis a
um a concepção do inconsciente não orientada unicam ente jpelo
significante saussureano, pelo corte significante/significado, e que
faz valer propriedades da linguagem ou do discurso inconsciente
que não se baseiam na significação fálica. Aludo aqui a “O Seminário,
livro 23: Joyce, o sinthoma” (1975-6), considerado com o o ponto
de partida de uma nova clínica lacaniana.
Indicarei apenas as prem issas que dizem respeito ao nosso tem a.
Trata-se de enfatizar a inclusão do significante no gozo e de fazer
valer as modalidades do gozo do inconsciente, chegando à justificativa
da prática de sessões curtas. Essa prática se opõe à decifração, uma

0 O P 'p / t/sí 'o~ J p A 't L Í C jC > > e A À a jM S lV v **. C X C I í- v jj Í-O n

20 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


vez que insere o corte no próprio m om ento de elaboração do
inconsciente, visando não fazer prosperar ao infinito a questão: “o que
isso quer dizer?”, bem como realçando um “isso quer gozar”, tal como
desenvolvido por Jacques-Alain Miller em seus paradigmas do gozo6.
D esse ponto de vista, os sintomas contem porâneos parecem
bastante afastados dos prim eiros princípios articulados na direção
do tratamento. O último Lacan inspira uma direção do tratamento
mais articulada com aquilo que, na sintom atologia m oderna, é
ilustrado por todas as manifestações do mais-de-gozar. Em relação a
esse gozo marcado pelo excesso, a clínica freudiana continua caracte­
rizada por uma clínica da falta. Trata-se de uma clínica do recalque.
C om isso, pode-se explicar também o enorme sucesso das psico-
terapias que acolhem sintomas indecifráveis para o sujeito: um excesso
de gozo indecifrável para ele, tal como nas perversões. Encontramos
ainda sujeitos psicóticos que, invadidos pela pulsão de m orte, buscam
construir um a nova personalidade. N a França, atualmente, alguns
deles se consultam com o analista para se construircm, apresentando
uma angústia maior ligada ao não-sentido de seu empuxo-a-gozar.
Formas de gozo aberrantes ou excessivas desencadeiam uma reivin- j
dicação significante. Essas pessoas querem que se lhes de sentido, de '
acordo com um sintagma algo jornalístico: é preciso pôr sentido ali
onde há cada vez menos sentido.
Por isso, há muitos psicoterapeutas que se oferecem para dar
sentido, explicar e compreender o sofrimento, sem ver que, por trás : ,,
desse sofrimento, há uma escolha subjetiva, ou seja, um a escolha que h-
pode revestir uma forma masoquista mascarada por uma ideologia
vitimária. De todo m odo, toda uma especulação atual sobre o stress
pós-traumático c as depressões consideradas como sintoma deficitário,

Jacqucs-Alain Miller. “O s seis paradigmas do gozo” , Opção Laccmiana, n" 26-


27, abril dc 2000, p. 87.

lEfcitos tcrapcuticos na clínica psicanalítica contem porânea 21


com o perda dc energia, desconhecem completamente essa parte
obscura de satisfação incluída inicialmente no sintoma e em seguida
na própria fala, na queixa.
N a verdade, as sessões curtas de Lacan não são m otivadas, com o
ainda o eram em 1958, pela palavra vazia. O sujeito comentava a
arte de Dostoiévski durante cinqüenta minutos e não se podia fazer
nada. O próprio Lacan nos conta como interrom peu o relato erudito
( ]de um a dissertação sobre a arte de Dostoiévski. Graças a isso, seu
paciente deixou escapar um pequeno pedaço de seu fantasma de
gravidez anal. Isso faz parte da ética analítica, do desejo do psica­
nalista dc não ser com pletam ente neutro cm relação ao blablablá
do sujeito. Essa dimensão dc gozo da fala chamou tanto a atenção
de Lacan que ele, nos anos 1970, form ulou um a doutrina da língua
destacada do conceito de cadeia significante. D e acordo com sua
nova doutrina, há uma intrusão do objeto a na própria fala que lhe
dá esse valor de gozo. No fundo, se som os sensíveis a essa dimensão
de gozo da língua, podem os dar conta das sessões curtas dc outra
m aneira: quanto tem po é preciso deixar o sujeito gozar da fala (ou
“apalavra”)?
N ão é pouco interrom per a fala vazia para fazer o sujeito com ­
preender que ele dissimula a questão, mas isso não é suficiente.
U m a clínica do real, que não é apenas uma clínica do sentido ou do
sim bólico, deve necessariamente tocar o sujeito no ponto em que
sua fala toca em sua pulsão. É isso que está em jo go no caso de um a
m oça que m e fez uma demanda de análise. Ela não tem uma trans­
ferência particular em relação à minha pessoa. D igam os que tem
transferência com o significante da análise porque isso está em voga.
j Acha que falar de seu sintoma a aliviaria, tratando-se de um a dor
que se pode dizer devastadora: foi abandonada por seu noivo.
A m oça estava verdadeiram ente aniquilada, apresentava o que,
em term os freudianos, chamaríam os uma hem orragia narcísica.
uma vez que atribuía a seu noivo qualidades superlativas que eram

22 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


exatamente aquelas que lhe faltavam. Ela acredita que isso lhe falta e
que esse homem as encarna. Por isso, não é mais nada. Está com ple­
tamente vazia. Esse é o seu vocabulário. O tipo de hom em que ela
escolhe deve com pletá-la em tudo. É um a espccie de js n xerto.
Quando este lhe falta, vê-se aos pedaços. Trata-se, portanto, de
saber se é suficiente pôr em função os efeitos do objeto perdido na
clínica do luto, pois essa paciente dá provas de uma lucidez a respeito
da qual Freud teria podido dizer que só se a obtém na hipnose. Essa
paciente articula seu sintoma em term os compatíveis com um fim
de análise, ou seja, com um a ética do bem dizer, tendo em vista a
extrem a precisão da tradução clínica que pode dar acerca de seu
sofrim ento. Por isso m esm o, na própria maneira como expressa
sua queixa, faz aparecer um outro sintoma, a saber, a relação com
a língua. Nela, apreende-se facilmente que a preocupação com o
bem dizer tem , no fim das contas, virtudes de um alívio sui generis,
chegando a sugerir uma questão diagnostica. Em certo m om ento,
não estava convencido de que se tratasse verdadeiram ente de um
luto, pois sua queixa tinha entonações de melancolia, considerando-
se a desvalorização de que é objeto toda vez que se com para com o
objeto perdido.
Assim , era inútil interpretar qualquer coisa em term os de um
ideal perdido. Seus am igos, aliás, encarregaram-se disso, acredi­
tando fazer bem ao interpretar sua dor com o algo m asoquista.
N ão há nada a acrescentar a esse respeito. Mas para que serve lhe
dizer isso? Talvez valesse mais tamponar essa certeza. Esses m esm os
amigos lhe fizeram interpretações edipianas, interpretações selvagens
sobre suas relações primitivas com sua mãe, ao passo que sua ver­
dadeira questão é a da inclusão. Efetivamente, um gozo em sua queixa
e no relato de seu próprio caso justifica que não se a escute por muito
tem po, de m odo que não sejam acrescentados à sua tristeza muitos
significantes que só alimentariam seu sintoma e satisfariam seu gozo
obscuro.

EFcitos tcrap cuticos na clínica psicanalítica contem porânea 23


O s clichês sobre a frustração c a castração ratificariam o ‘m enos
que nada’ com que a paciente se identifica. Trata-se mais de orientar-
se pelo excesso, pelo m ais-de-gozar, com o se pode ler a respeito do
gozo obscuro em 0 Seminário, livro 20: mais ainda (1972-3), de Lacan.
Com efeito, a paciente apresenta seu sintoma inteiramente na di­
m ensão do déficit, do “perdi alguma coisa” . Em nossa opinião, é
sobretudo um gozo suplem entar que não foi subjetivado pela paci­
ente, apesar das interpretações selvagens de seus amigos. Nesse sentido,
pode-se ver como ir ao encontro da doutrina lacaniana do gozo da
mulher. Há casos como esse que devem fazer oscilar os diagnósticos
muito convencionais. Resta, contudo, encontrar os significantes adequa­
dos para, cm vez de exaltar o O utro gozo, separar a pacicnte de um
tal fantasma.
Em resum o, muitas anotações de Lacan contradizem parcial -
m ente as orientações de 1958, em especial aquelas que tornam
necessário um desabonam ento do sujeito no sentido inconsciente.
È desejável que o sujeito renuncie à sua paixão pela verdade. Disso
talvez resulte hoje uma concepção mais pragmática da psicanálise
que responda melhor à questão: o que fazer ou como fazer para desatar
os nós de gozo? Utilizo aqui um vocabulário que nos faz sair do sentido
interpretativo cm que funcionam as propriedades topológicas da última
clínica de Lacan. Em vez de uma clínica da travessia do sentido incons­
ciente, trata-se sobretudo de uma clínica do estreitamento, do afrou­
xam ento e também do corte.
As mudanças na doutrina posteriores a I 958 e a prom oção da
categoria de objeto encontram um terreno de aplicação fora do
discurso analítico estrito senso. Confrontam o-nos com outros sinto­
m as, m enos freudianos, sobretudo nas instituições, nas quais não
se pensa necessariamente que esses sintomas sejam decifráveis pela
escuta classica. È mais um a exigência para a psicanálise não recuar
diante do trabalho de separação a ser feito em relação às formas"
aberrantes do gozo contem porâneo.

24 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


II

Esta segunda parte aborda um problem a que se apresenta na França


e que concerne à regulam entação da prática dos psicoterapeutas e
dos psicanalistas. Trata-se de uma regulamentação de Estado e que foi
desenvolvida sob a pressão de uma parte do corpo médico. Os psica­
nalistas representam a vanguarda de um m ovim ento de oposição a
essas disposições. Tom arei inicialmente o artigo “D a utilidade social
da escuta”7, de Jacques-Alain M iller, publicado no Le Monde, no fim
do m ês de outubro de 2003. N esse artigo, M iller assinala que a
escuta alcançou na França uma escala de massa, tendo se tornado um
fator da política, no m esm o sentido em que Saint Just, referindo-se à
R evolução Francesa, considerava a felicidade. Em seus term os,
portanto, trata-se do que está em jogo na civilização, de uma regu­
lam entação administrativa e universitária que pretende normalizar
e avaliar o ato analítico.
D ito de outro m odo, pretende-se aplicar a todas as psicote-
rapias, inclusive à psicanálise, m étodos de avaliação, principalmente
aqueles que tiveram sucesso nos domínios da cancerologia ou da
epidem iologia, com um a conseqüente padronização das condutas,
em que a avaliação dos resultados é posta em séries estatísticas.
Pode-se ver que os mais interessados nesse ajustamento são os compor -
tam entalistas, os cognitivistas, ao passo que os p sic o te ra p e u ta s^
receiam a submissão à ordem médica, temendo serem assimilados a
profissões de saúde sob a tutela da psiquiatria universitária. A psica­
nálise, considerada a mãe de todas as psicoterapias que inspiraram,
ainda que de maneira velada ou deformada, inúmeras práticas clínicas,
está diretam ente concernida. Era essa a tese de Michel Foucault
sobre as origens da psicanálise como prática da escuta, c que provinha,

7 Jacques-Alain Miller. “Da utilidade social da escuta” , Ornicar? I . Rio de


Janeiro: Jo rge Zahar Editor, 2004, p. 119. T exto originalmente publicado
no I,c Monde em 30 dc outubro de 2003.

E feitos terapêuticos na clínica psicanalítica contem porânea 25


no fim das contas, dos manuais dos confessores. Aliás, sem dúvida!
há um retorno a essa origem em certas práticas que buscam caução,
da psicanálise, alinhando-se à ordem m oral e religiosa e recon-/
duzindo a práticas de sugestão.
D e um lado, a psicanálise, em razão de seus fundamentos e prin­
cípios, é a disciplina mais bem cotada para recusar toda avaliação,
para desfazer a ilusão de uma garantia ligada à duração do sofrimento
psíquico ou à sua cura. Ao lado da psicanálise propriamente dita, que
é um a prática exigente, a demanda social originou um bom núm ero
de falsificações, razão pela qual a opinião pública luta agora, de
algum m odo, pela proteção dos consum idores. Com o a psicanálise
pode intervir nesse debate? Qual pode ser seu papel na form ação
dos psicoterapeutas? Com o existe a preocupação de assegurar sua
especificidade em relação à psiquiatria, a psicanálise permanece en­
volvida nisso; assimilada a uma disciplina da escuta, inscreve-se no
mercado do sofrimento, caso o emprego desse vocabulário seja válido.
Os lobbys farmacêuticos, médicos e uma parte da psiquiatria univer­
sitária pretendem arrancar o sofrimento psíquico do monopólio da
psicanálise, sob a alegação de que esta não corresponderia a nenhuma
avaliação científica.
A pretexto de proteger o público do charlatanismo, a lei Accoyer,
nome de um deputado da maioria, quer pôr os psicoterapeutas sob
tutela, fazendo-os subm eter seus diplomas a um a avaliação a ser reali­
zada pela psiquiatria, a disciplina mais hostil à inspiração psicanalítica.
Trata-se sobretudo da psiquiatria biológica alinhada ao DSM IV, ou
seja, a manuais estatísticos que procedem a diagnósticos de síndromes
por meio de m étodos puramente quantitativos. Todos os psicanalistas,
puristas ou não, afirmam que não se pode legislar sobre o inconsciente,
e que apenas as escolas de psicanálise podem dizer quem é e quem não
é analista, à luz da prática do divã.
De um ponto de vista epistem ológico, a psicanálise tam bém
está na vanguarda da denúncia de um a clínica m onossintom ática

26 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


que induz a protocolos terapêuticos uniformes c situa os sujeitos
em série: hiperativos, anoréxicos, transtornos obsessivos-com -
pulsivos, fobias sociais. N esses term os, tal clínica visa elaborar um
tratam ento-padrão e recusar antecipadamente a clínica do caso a
caso, um a clínica do singular com o é a psicanalítica.
Lembremos rapidamente, pois o mencionei na prim eira parte,
que é importante fazer com que os responsáveis por essa regulamentação
e os psicoterapeutas partidários da medicalização compreendam que o
sentido do sintoma não é objetivável, que há um hiato entre a causa do
distúrbio e a estrutura do sintoma. A prática psicoterápica não pode
ser avaliada cm termos de benefícios imediatos, sobretudo cm term os
de rendimento. Há, com efeito, um benefício da doença, um bene­
fício do sintoma, que não pode ser considerado como um puro déficit
quantificável. É essa a base da teoria freudiana em “Além do princípio
do prazer” (1920). Com o afirma Freud, há uma reação terapêutica
negativa, a qual traduzimos como gozo do sintoma, como núcleo de
real do sintoma que o torna não-todo passível de ser desenlaçado pela
fala e tam pouco pela interpretação. Ninguém pode dizer anteci­
padamente o que o sujeito perde ou ganha ao demandar a escuta de
um terapeuta, e isso desde o momento em que tem a intuição de que
seu sintoma pede para ser decifrado.
Além disso, há uma clínica contemporânea, uma espécie de clínica
de consum o, que se pauta em uma sociologia das identificações, ou
seja, dos tipos de comportam ento definidos sociologicamente por
identificações, por práticas sexuais, com o, por exem plo, o m odo de
gozo dos gays, dos ‘sado’ , das lésbicas, dos transexuais, e que põem
cm questão a tradicional clínica normativa. Paralelamente, as práticas
de escuta propõem uma crescente oferta para reparar o trauma, em
conformidade com a ideologia contemporânea da vítima, que deve
poder falar para adorm ecer sua dor. Foi assim que, na França,
Boris Cyrulnik renovou a categoria de reparação, esquecida depois
de Melanic Klein. A intuição fundamental da psicanálise, todavia,

E feitos terapêu ticos na clínica psicanalítica contem porânea 27


é a dc que há o irreparável, por exem plo, o traum atism o impossível
de simbolizar ou de ser significado pelas palavras.
A escuta não repara tudo, mas Cyrulnik, de acordo com seu
conceito de resiliência, acha que pode consolar todas as vítimas do
mundo. Basta uma boa escuta, uma escuta que dê sentido. O ra, a
prática da psicanálise não se confunde com uma prática que visa apenas
à escuta. Ela é uma prática que divide o sujeito no que diz respeito ao
sentido de seu sintoma, a um a certa satisfação que dele retira. Em
outros term os, a complexa relação entre inconsciente e real do trauma
im pede a definição da psicanálise com o um a prática exclusivamente
de escuta.
Dito isso, há um a caricatura que deve ser evitada, a do psico-
terapeuta selvagem com o especialista do sentido e do psicanalista
lacaniano com o especialista do não-sentido. U m a vez que o sujeito
chora ou relata os m aus-tratos sofridos, o caminho seria convencê-
lo de que ele é m asoquista ou de. que seu gozo está incluído no
sintoma dc que ele se queixa? A situação é mais com plexa do que
isso. Será que o sofrim ento pode ser escutado? Escutar o sofrim ento
humano e algo sádico, pois denota complacência com ele. N ão se
deve deixar o sujeito sofrer: ou o tratam os, ou escutam os o discurso
que resulta de seu sofrim ento. Não devem os deixar o sujeito gozar
ambiguamente do sofrimento que ele expressa em sua fala. Ao contrário,
devemos tentar elucidar alguma coisa nesse espaço esburacado que
existe entre a imputação de uma causa, a busca de uma causa que é
sempre imputada ao outro, e o próprio sintoma. A relação de causa e
efeito nem sempre é direta, há toda uma gama de afetos oujde repre­
sentações subjetivas que se interpõem entre causa e sintoma, e que
justificam o term o causalidade psíquica no que diz respeito à p ro ­
blem ática da causa material.
R etom o os princípios fundamentais da psicanálise. N ão faço a
apologia de um com prom isso vergonhoso entre psicanálise pura e
prática psicotcrápica. Mantida a ética analítica, im põe-se a questão
dc uma prática psicanalítica em um dispositivo não inteiramente

28 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


conforme ao discurso da psicanálise. É possível um ato analítico fora
do discurso psicanalítico? Aludo aqui às instituições, ou seja, hospitais,
dispensários e m esm o prisões. Hoje, não se pode mais pensar que a
psicanálise aplicada nesses campos e, em relação à psicanálise pura,
um empirismo cru e sem princípios, totalmente oposto a uma racio­
nalidade intangível e ortodoxa. Seria possível m ostrar que não há
condições ideais para o ato analítico, nem m esmo enquadre acadêmico
ou tipo clínico privilegiado. Afirmo que a psicanálise pura pode muito
liem fracassar quando o sujeito se opõe a ela, m esm o em casos extre­
mamente clássicos de sintoma, como o sintoma histérico. Em contra­
partida, vemos efeitos muito rápidos do trabalho analítico realizado
com crianças em dispensários.
Há psicoterapeutas, por exem plo, que não pensam em perguntar
às crianças qual o sentimento delas sobre a relação de seus pais. Esses
terapeutas se contentam em doutriná-las com a regressão: “Você banca
o bebê; você quer andar pra trás” . Tem os aqui um princípio simples,
evocado na primeira parte: a regressão ou o Nomc-do-Pai. N os casos
de enurese infantil, há uma espécie de standard em Lacan que diz
respeito diretamente ao fantasma da criança referido à sexualidade
de seus pais. Pode-se considerar que uma interpretação como essa
seja mais efetiva que outra, não importando se ela é proferida ou não
cm uma instituição ou em um consultório.
Aproveito para lem brar tam bém uma pequena lição de episte-
m ologia: um a prática esclarecida não se degrada, nem abandona
em nada seus princípios, ao deform ar seus conceitos para ampliar
o cam po de experiência. Refiro-m e aqui ao epistem ólogo Gaston ^
Bachelard, segundo o qual “a riqueza de um conceito científico se
m ede por sua potência de deform ação” . Apliquem os a nós m esm os
essa definição, mudando a relação entre o puro e sua aplicação.
Q uando se vai no sentido de um a extensão, isto é, da variação
entre as práticas, a aplicação não corresponde a um a degradação.
Com o advertiu Lacan, sem princípios c sem ética, a psicanálise se
degrada cm uma imensa desordem psicológica. Mas essa idéia extrema

E feitos terapêu ticos na clínica psicanalítica contem porânea


não é uma fatalidade. Quando as condições ideais para o exercício da
psicanálise não se encontram reunidas, é possível considerar várias
outras modalidades de prática, mais ou menos distantes do divã. D o
m esm o m odo, a não-observância das recom endações esperadas de
um analista pode ser encontrada no consultório ou em um quadro
ortodoxo, por exem plo, na ideologia da contratransferência. Esta
não se deve ao deslocamento do psicanalista cm outro enquadre. Conti­
nuamos no consultório, na poltrona, e o analista, em vez de escutar a
estrutura do discurso inconsciente, permanece à escuta de suas próprias
sensações. Em sua crítica das práticas desviantes nos anos 1950, Lacan
não situava a origem desses desvios em uma dem anda social ou
institucional explícita. Alexandcr, em seu texto de 1946, Psicoterapia
de inspiração psicanalítica, defende a tese da reeducação emocional do ego
e do controle da transferencia, segundo a qual a cura deveria acontecer
antes da transferência, pois não seria possível saber onde se estava
embarcando. Pode-se ver aqui uma viva ilustração da resistência do
•psicanalista, resistência ao ato que ele reivindica, c isso cm seu próprio
consultório.
Os princípios gerais da psicanálise não são, portanto, forçosamente
enfraquecidos pelas necessidades sociais das práticas psicoterápicas,
às quais Freud aludiu ao confrontar psicanálise c psicoterapia. O desvio
se produz a partir do m om ento cm que se visa a uma cura acelerada.
Utilizei a palavra enfraquecido, e se pode opor essa palavra ao term o
degradado, caso tom em os o enfraquecimento8 no sentido lógico do

8 N .do R. Optou-sc aqui por uma tradução literal, porem há um deslizamento


no em prego da palavra enfraquecido. Quando a usa pela primeira vez, Cottct
quer dizer que os princípios da psicanálise não são abandonados quando
deform am os o dispositivo analítico. Scguc-sc que a defesa de um a lógica
enfraquecida se coordena com a idéia de que bá aspectos da doutrina que
podem ser flexibilizados, justamente porque há outros que não podem sê-lo
dc m odo algum .

30 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


Icrmo. Penso na lógica m oderna, em particular em Arend Heyting.
() que se chama lógica enfraquecida não significa falta de axiomas ou
de princípios, pois se trata de um a lógica que suspende a bivalência
do verdadeiro e do falso e multiplica as modalidades intermediárias
entre eles, sobretudo pela supressão do princípio do terceiro excluído.
Com a supressão de alguns axiomas, surgem novos teorem as. Por
analogia, reencontramos a intuição primeira do m étodo analítico,
que opera, como diz Freud, per via de levare, ou seja, retirando, extir­
pando sempre alguma coisa. Com Lacan, podem os dizer por extração,
especialmente por extração do objeto a. N o cam po das psicoses, o
gozo pulsional deve ser inteiramente reconstruído tendo por base
um parâm etro faltantc, a saber, a exclusão pelo sujeito do -(p do
«ozo fálico. A assinto ta da volúpia c substituída pelo vetor preten-
samente retilíneo da regressão9. Vejamos um outro exem plo de enfra­
quecimento, tom ado de empréstimo da estrutura da língua: quando
se enfraquece a resistência da barra saussureana, elimina-se o uso
corriqueiro do significante. Trata-se aqui do neologismo ou trans­
parência entre significante c significado característicos do dizer psicó­
tico. Acrescentemos a estes diferentes torções, deformações dos con­
ceitos, enfraquecimentos no sentido lógico e o forçamento do próprio
Ire u d , coagido a recorrer ao Edipo invertido. Essa monstruosidade
teórica vira a doutrina de cabeça para baixo, ao se chocar com o real
do caso. O caso particular do “H om em dos lobos” não pode ser
interpretado pelo Edipo clássico.
A psicanálise aplicada, tanto o tratam ento quanto os próprios
efeitos terapêuticos, inscreve-se nessa epistemologia da deform ação,

9 Trata-se do esquema I, que formaliza a estrutura do delírio do presidente


Schreber com a topologia das relações entre a alma e o corpo. Cf. Jacques
Lacan. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”
(19SS). Em: Escritos. O b. cit., p. S78.

Efeitos terapêuticos na clínica psicanalítica contem porânea 31


da topologia, da anam orfosc dos conceitos. Ela não sc confunde
com a degradação dos princípios, a saber, a definição do inconsciente
estruturado como uma linguagem e a complexa relação entre o in­
consciente e a pulsão. Formulada nesses term os, a questão não é
saber se a psicanálise se aplica à psicose. È um fato que psicóticos
queiram encontrar um analista, que já freqüentem um psi, m esm o
quando analistas não tenham se dado conta disso, por não estarem
suficientemente form ados para essa difícil tarefa.
O problem a, portanto, c saber qual rem anejam ento da técnica
é necessário, em qual disciplina da escuta se deve ser form ado para
se adequar ao laço social resultante da rejeição do inconsciente cm
algum as form as de dem anda específicas da estrutura psicótica.
Assim com o há geom etrias não euclidianas, há sintomas cuja_estru-
tura não corresponde à do inconsciente freudiano. Mas seria essa uma
razão para m edicar esses sujeitos? O s lacanianos, todavia, vêem -se
confrontados com o problem a assinalado por Lacan em seu texto
sobre o presidente Schrcbcr, “pois usar a técnica instituída que ele
[Freud] instituiu fora da experiência a que ela se aplica é tão estúpido
quanto esfalfar-se nos rem os quando o barco está encalhado na
areia” 10. N ão sc deve interpretar esse alerta contra os desvios com o
a afirmação de um a ortopraxia, no sentido em que se fala de o rto ­
doxia, ou seja, com o a versão prática da ortodoxia. Se alguns parâ­
m etros da prática standard foram excluídos devido às novas condições
da experiência, é tam bém a ocasião de um a prática inédita, m esm o
se, por exem plo, a estratégia ortodoxa visando ao fim do tratamento,
isto é, à travessia do fantasma, esteja excluída. Em algumas insti­
tuições, a duração das sessões ou do tratam ento não depende da
decisão do analista, mas nem por isso o ato analítico se torna m enos

10 Jacques Lacan. “D e um a questão prelim inar a todo tratam ento possível da


psicose”. O b. cit., p. 590.

32 E feitos terapêuticos na psicanálise aplicada


valorizado, incluindo-sc aí a interpretação, como assinalei no exemplo
sobre a enurese em crianças. Nos hospitais, há psicanalistas e psico:
terapeutas. Para estes, c a oportunidade de uma rigorosa formação em
psicanálise, ao menos para evitar o pior e avaliar não somente a peri-
culosidade do paciente, mas também a que lhes pertence. Refiro-me
aqui ao perigo que há em fazer um delírio de interpretação com um
delirante, redundando em um duplo delírio.
Há psicanalistas trabalhando nas prisões, bem com o há psicote­
rapeutas analisados que chegam ao Departam ento de Psicanálise de
Paris VIII em busca de form ação. Participam da seção clínica,
fizeram num erosos estágios c assistiram a apresentações de doentes.
Estão, nesse sentido, na toca dos leões. Foi assim que um a jovem
psicóloga latino-americana, m uito corajosa, aceitou escutar crim i­
nosos após a administração penitenciária lhe ter informado que um
deles precisava falar com alguém. N ão se trata de m ilitância, com o
nos anos 1970 no Brasil, quando alguns psicanalistas pensavam que
era preciso ir até as favelas. Trata-se de outra coisa. N ão estam os
nas favelas, m as em um a prisão francesa, onde a ideologia da escuta
é tão forte que atravessa os m uros da prisão, chegando aos ouvidos
dessa jovem terapeuta. Ela aceita. Se form os ortodoxos, a m áxim a
de Lacan cm Televisão não nos encoraja a isso: “a análise deve ser
recusada aos canalhas [...] porque os canalhas se tornam burros” 11.
M uitos pacientes, no entanto, foram se consultar com essa psicóloga
para tom á-la como testemunho de sua desgraça e do destino injusto
que lhes foi im posto. Falam de papai c de m am ãe, do traum atism o
do rom ance familiar. Em m uitos casos, podem os nos perguntar se
o sujeito é verdadeiram ente sujeito do inconsciente e se a passagem
ao ato crim inoso foi m otivada de fato por um com plexo neurótico.

" Jacques Lacan. Televisão ( 1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 74.

Efeitos terapcuticos na clínica psicanalítica contem porânea 33


Algum as vezes, a vontade de gozo se m ostra irredutível a todo
determ inism o familiar. Enfim, há m uitos psicóticos presos, e os
adolescentes delinqüentes com freqüência se consideram vítimas.
U m dos adolescentes que se acostum aram com as entrevistas
com essa jovem psicóloga, muito sim plesm ente porque ele entrara
em um a relação de sedução com ela, na qual ele era tanto o agente
quanto o objeto, contou-lhe suas muitas façanhas: venda de drogas,
roubo com arma de fogo e tc., algo não muito freqüente nos subúrbios
parisienses. Isso aconteceu em Saint-Denis, não m uito longe do
Departamento de Psicanálise. O rapaz era suficientemente feroz para
que a administração penitenciária decidisse mantê-lo preso por algumas
semanas. Escandalizado, o sujeito disse à terapeuta: “A juíza arrasou
minha escolaridade”. Aí está um efeito de vitimização produzido, de
m odo notável, pela simples oferta de escuta. O sujeito, que atirava
pelas ruas de Saint-Denis, não considerava que era ele próprio quem
arrasava sua escolaridade. De todo modo, a jovem terapeuta não perdia
as esperanças de dividi-lo. Desejamos a ela boa sorte!
Se a psicanálise selvagem resulta apenas de sua insuficiência con­
ceituai12, a extensão dos limites de sua aplicação não se confunde com
as variantes de um “tratamento-padrão” , título irônico e pleonástico.
Esse título assinala que o ato analítico se define pela pureza dos meios
e não pelo enquadre. U m a clínica do real induz práticas que extraem
conseqüências do desmoronamento da estrutura simbólica do O utro,
cspccialmentc cm algumas psicoses infantis. É possível, por exem plo,
fazer suplência a uma ameaça de perseguição, por interm édio de
uma técnica que descomplete o Outro imaginário, tal como nossos
colegas belgas exem plificam em sua “prática entre vários” . Resta
dizer, todavia, que esse real da clínica não é o de Bachelard. O real

12Jacques Lacan. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” . O b.


c it., p. 609.

34 Efeitos terapêu ticos na psicanálise aplicada


da ciência é o produto da experimentação. A ciência contribui para
desrealizar o mundo. O s psicanalistas lidam sobretudo com um real
sem lei em que o desejo do analista não entra necessariamente em
franca dialética com o sintoma do paciente. Saber esse limite deve
levá-lo a dispensar uma técnica obsoleta. Há encontros que são mais
im prováveis que ou tro s, bem com o existe o que não se pode
interpretar. Tendo falado dos detentos atendidos pela terapeuta latino-
americana, cabe dizer que a psicanálise se aplica mais aos sujeitos
encerrados na gaiola de seu narcisismo que aos prisioneiros de Fleury-
M érogis.
Há vinte anos, o psicanalista lacaniano podia acreditar que
encarnava o O utro da contestação do saber estabelecido. Pedra no
sapato da instituição, ele contestava o discurso do mestre. Era Sócrates
nos Centros M édico-Psico-Pedagógicos (CM PP). Contestação do
saber psiquiátrico, contestação do saber m édico etc. Hoje, seu lugar
talvez seja diferente. O psicanalista tem sua competência reconhe­
cida, e esta se baseia cm seu saber sobre a estrutura do sintoma,
algo que freqüentem ente falta aos jovens psiquiatras sem formação
clinica. U m a disciplina da escuta se tornou muito mais necessária
ante a atual banalização da presença do analista, algo que se deve à
fantástica regressão teórica da clínica contem porânea. A psicanálise
aplicada não sonha com uma psicoterapia que se vanglorie apenas
da eficácia de sua presença.
Concluam os esta segunda parte assinalando que a clínica psica-
nalítica não se confunde com o uso de receitas terapêuticas aplicadas
a um a zoologia humana. Permanentemente aplicada ao particular,
ela lida apenas com as exceções. E dessa forma que o terapeuta
implicado em seu ato se aplica em fazer existir o inconsciente.

E feitos terapêuticos na clínica psicanalítica contem porânea 35


III

Eu lhes falei da atualidade da regulam entação da prática analítica e


tam bém de um a reflexão dos psicanalistas sobre o tratam ento do
que se pode chamar “novas formas dos sintomas clínicos” . A Escola
da Causa freudiana, que é um a escola lacaniana de psicanálise que
se propõe a form ar psicanalistas na escuta do m al-estar contem po­
râneo, considerou que chegou o m om ento de fazer um a oferta
dirigida ao público, a oferta de seu savoir-faire, sob os term os Centro
Psicanalítico de Consultas e Tratam entos (C P C T ).
Esses term os evidenciam os efeitos terapêuticos c recobrem a
necessidade de tornar transparente uma prática que se poderia crer
oculta. N em todos os psicanalistas estão fechados em seus consul­
tórios ou nos círculos privados de seus seminários. Eles tam bém
transm item os resultados de um a prática que não está reservada à
elite e pode concernir a qualquer um. H oje, em Paris, qualquer
pessoa pode telefonar para marcar um encontro quase im ediato ou
m esm o se encontrar com um psicanalista nesse C entro, que é
gratuito 4Muitas questões podem ser formuladas sobre a existência
dessa instituição. Em que ela prolonga um a Escola de psicanálise?
O que a diferencia de outras práticas institucionais comparáveis?
Quais são seus prim eiros resultados? Q uem são os pacientes que
vêm se consultar? Q uem dá consultas?
Antes de expor esses pontos, abordo a questão que diz respeito
à psicanálise aplicada fora de seu enquadre standard. Reivindicam os
a possibilidade de um ato analítico fora do setting , ou seja, fora do
que se considera o enquadre clássico. N em todos os parâm etros
que definem esse caso são subvertidos. Esforçam o-nos para não
rebaixar esse ato institucional, reduzindo-o a uma m era psicoterapia
de inspiração psicanalítica, sobre a qual Lacan dizia que levava ao
pior. N ão tem os, portanto, a obsessão do rendim ento terapêutico.
N ão substituím os a psicanálise p or conselhos, nem tem os com o
finalidade imediata a supressão do sintoma. Essas preocupações que

36 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


definem a terapêutica comum desconhecem a estrutura subjetiva
determinada pelo inconsciente.
Vejam os, então, se o parâm etro da demanda de análise subver­
tida ou contraditória em relação à demanda endereçada ao C T C P
subverte fundamentalmente a demanda de análise. Falei de oferta
institucional direcionada ao público e lem bro que, em “A direção
do tratam ento e os princípios de seu poder” , Lacan sem pre faz a
oferta preceder à demanda. Trata-se do famoso chiste: “co m ao ferta,
criei a demanda” B .
Evidentemente, o dispositivo analítico é feito de um m odo em
que essa oferta cria a demanda sem responder a ela. U m dispositivo
significante perm ite desencadear experim entalm ente um a demanda
de am or. Em nosso caso, ela se manifesta de m odo espontâneo por
interm édio dessa oferta pública. É uma demanda de tratam ento.
Digam os, uma demanda de escuta imediata, espontânea. De um
outro ponto de vista, podem os nos perguntar se a transferência se
endereça mais a um determinado psicanalista ou à instituição. Isso
constitui uma segunda variante. N o primeiro caso, contudo, aquele
que concerne à demanda, há um ponto comum entre a psicanálise
pura e a instituição, algo a ser recusado. Lembro a esse respeito o
enunciado de Lacan sobre a dialética da demanda c da oferta cm
psicanálise, tal como articulado em 0 Seminário, livro 11: os quatro con­
ceitos fundam entais da psicanálise: “Eu te peço para recusar o que te
ofereço porque não é isso”. Pois bem , na instituição, encontramo-
nos em uma situação absolutamente conforme a essa máxima: “Não
acredite que essa oferta de escuta vai dispensá-lo de uma enunciação,
à qual você não se liga, ou que ela lhe trará o que você acredita que
lhe falta. Você de fato acredita que você quer o seu bem ?”

11Jacques Lacan. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” . O h .


cit., p. 623.

E feitos terapêuticos na clínica psicanalítica contem porânea 37


A psicanálise questiona de m odo enfático o preconceito segundo
o qual o sujeito humano quer fundamentalmente seu próprio bem .
A experiência prova que o sintoma é testemunha do fato de que o ser
falante nem sem pre trabalha em defesa de seus próprios interesses.
A psicoterapia, ao contrário, pressupõe que o sujeito quer o seu
bem e que o outro tem condições de lhe dar. N ós enfatizamos
sobretudo um conflito, um quiasma, uma contradição interna à demanda
que abordei na primeira parte deste texto, ou seja, uma tensão entre a
demanda e o desejo, entre o desejo e o gozo, entre a pulsão do sujeito
e seus ideais. Sempre há um mal-entendido quanto à suposta propor­
cionalidade entre oferta e demanda no tratamento standard. N o CPCT,
isso de certa forma se reproduz, ainda que de modo bem mais velado.
O sujeito pode acreditar que encontrará o seu bem e que este lhe será
dado por aquele que o trata por razões humanitárias.
N o C P C T , o tratamento é limitado no tem po. Seus fundadores
previram aproximadamente quatro m eses. Q uatro m eses destinados
a ver se o sujeito de fato quer realizar um certo trabalho de elucidação
da estrutura de seu desejo. Durante esse período, em contato com
o analista, ele experim entará um a divisão subjetiva que talvez o
leve a uma análise. N a verdade, o C T C P tem um papel de passa­
dor, no sentido de uma m ediação transitória, que vai da demanda
terapêutica imediata a uma autêntica demanda de análise. D e certa
forma, esses quatro m eses desempenham o papel das entrevistas pre­
liminares. A questão e saber por que essas entrevistas prelim inares
acontecem ali e não no consultório de um analista. N esse ponto,
devemos precisar com que público lidamos e quem são esses novos
demandantes, o que pode ser deduzido da própria oferta institucional.
São pessoas que não podem pagar por diferentes razões. São estudantes
ou jovens, mas nem sem pre, para os quais se trata com freqüência da
primeira demanda de análise. N ão podem pagar por um a análise e
quase sem pre um m édico, um psicólogo, por vezes um amigo, os
aconselham a buscar o C TCP para uma orientação. De acordo com
o caso, alguns podem ser diretamente orientados para um analista

38 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


fora do Çcntro. N ão é preciso que se subm etam à exigência de
lazer três ou quatro sessões semanais. N o C P C T , de todo m odo,
só os encontramos uma vez por semana. Não 6 um grande esforço
convencer alguém de que ele pode ir um a vez por semana ver um
colega na cidade, pagando alguma coisa. Por vezes, é necessário
algum tem po, mas certamente não são precisos quatro m eses para
conseguir isso. O s sujeitos não são absolutamente convencidos da
necessidade do m estre caridoso. O essencial aqui é que, se não
existíssem o s, essas pessoas continuariam a esm o ou só seriam
tratadas depois de longas listas de espera em instituições quase
sem pre mal orientadas. N em a psicoterapia, nem a psicanálise são
aconselhadas para todo m undo, mas o encontro com um analista é
a m elhor situação possível para vislumbrar as estratégias mais bem
adaptadas a seus casos.
Falei de entrevistas prelim inares porque, nessas entrevistas,
formulamos todas as questões habituais concernentes ao sofrimento,
ao sintoma c, o mais precisamente possível, à natureza do embaraço
do sujeito. Somos muito vigilantes quanto à questão da psicose. Vocês
podem imaginar que as pessoas que normalmente vêm nos ver estão
em uma situação precária. Deixaram suas famílias, estão desem ­
pregadas e quase sempre dcsconcctadas do laço social. Em sua maioria,
jamais pensaram cm se consultar com um psicanalista em um con­
sultório particular. Para elas, é uma surpresa o acolhimento humano,
sem protocolo, bem como o convite a um diálogo.
Falei da precariedade porque constituem os casos mais difíceis,
sobretudo quando esta m ascara um sintoma da psicose. Há casos
mais sim ples de sujeitos socialm ente conectados, especialm ente
psicólogos. Entre esses, um a jovem mulher sofrendo de inibição e
que não consegue terminar seus estudos de psicologia. A boa maneira
de term inar com sua inibição seria, em minha opinião, fazer uma
análise. O ra, ela veio justam ente formular para ela própria as boas
questões e elucidar as razões de sua escolha profissional. Não imagina
que, ao vir ao C P C T , está justam ente term inando algum a coisa:

E feitos terapêuticos na clínica psicanalítica contem porânea 39


a grcvc do inconsciente que até então mantinha, sendo esta um
significante interm ediário entre a demanda de ser ouvida e o sujeito
suposto saber, entre sua demanda e o amadurecimento de sua decisão
de dar mais um passo e entrar em análise. De todo m odo, a analogia
das consultas no C P C T com as entrevistas prelim inares não esgota
a questão do tratam ento, restando definir em outa ocasião quais
efeitos terapêuticos podem ser obtidos cm cjuatro m eses.

40 E feitos terapêuticos na psicanálise aplicada


A aceleração d os efeitos
terap êu tico s em p sican álise1

S crgc C o ttct

Com ecem os dissipando todo mal-entendido sobre a inovação cons­


tituída pela produção de efeitos rápidos sobre o sintoma. Isso não é
novidade no que diz respeito tanto ao tratamento analítico individual
no consultório quanto ao tratamento em instituições. A psicanálise
clássica sempre constatou esses efeitos, surpreendentes em sua espon­
taneidade, antes de tentar provocá-los por intermédio de técnicas ad
hoc, com o na análise das resistências nos anos 1920.
Com o m ostra Gilliéron, o movimento para alongar os trata­
m entos com eçou muito cedo, tendo provocado algumas confusões
no m ovim ento analítico e incitado o próprio Freud a se questionar.
Constata-se, todavia, um intervalo entre os diversos fatores que
alongam os tratam entos, resum idos pelo conhecido David Malan,
e a urgência terapêutica .2O próprio sentimento em relação à longa
duração tem variado no tem po e na história. A impaciência subjetiva
caracteriza o século X X , e o homem apressado responsabiliza o psica­
nalista por essa demora. Hoje, é comum avaliar os resultados por
m eio de um a equação entre o tem po despendido e a mensuração
segundo um a escala da afirmação de si.

1 Interlocução em “Terapia ativa ou aceleração do tem po para com preender”,


Ecole dc la Cause freudienne, 20 dc m arço de 2005.Tradução: Vera Avcllar
Ribeiro. Revisão técnica: Tania Coelho dos Santos.
2 Edmond Gilliéron. Aux confins de la psjchtmalyse. Paris: Payot, 1983, p. 24

41
Ao reagir um pouco tarde às fanfarronadas de O tto Rank, Freud
forneceu uma justificativa sociológica para a tentação de encurtar a
duração dos tratamentos, concebida “sob a tensão do contraste entre
a m iséria do pós-G uerra na Europa e a ‘prosperity’ dos Estados
Unidos” . Para ele, Rank queria “adaptar o tem po da terapia analítica
à pressa da vida americana”3. Em outros term os, as razões para
diminuir o tem po do tratamento não são, na época de Frcud, dedutíveis
do próprio conceito de análise. Embora existam contra-indicaçõcs,
a doutrina clássica, quando a análise é recom endada, é pouco explí­
cita no que diz respeito às contra-indicações à longa duração. Foi o
movimento húngaro iniciado por Sándor Ferenczi e prosseguido pela
escola de Chicago nos anos 1950 com Franz A lexander que se
preocupou em evitar o desenvolvimento da neurose de transferência,
substituindo-a por uma reeducação emocional. Disso decorre uma
focalizaçãdique rem ete “permanentemente o paciente à realidade de
suas relações objetais e sociais, a fim de evitar que ele se refugie no
passado, no fantasma, na irrealidade da transferência”4.
Razões externas prevalecem sobre as advertências de Freud.
Acrcsccntc-se a isso a incapacidade de os analistas dessa época se
sustentarem em uma ética do desejo, de tal m odo que a finalidade
do tratamento não permanecesse alienada exclusivamente nos efeitos
terapêuticos: o sintoma é a árvore que esconde a floresta do incons­
ciente. A justificação de seu ato pelos efeitos de cura rápida reflete
sua adesão aos ideais m édicos. D evem os reconhecer, aliás, que
m esm o nós cedem os de maneira semelhante a um a pressão externa
a um só tem po ideológica e social.
Em contraste com os sintomas clássicos, o m al-estar, o desbus-
solam ento, a desagregação em todas as suas facetas e a depressão

3 Sigmund Freud. “Analyse avecfin et analyse sans lin” (1930). Em: Résultatí,
iclées et problèmes II (1921 -1938). Paris: PU F, 1985, p. 232.
4 Philippe La Sagna. “Therapies breves ou therapies ‘autofocus”, Lcttre Mcnsuellc,
n ° 236, mars 2005, p. 25.

42 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


enfatizam o aspecto deficitário do sintoma, sua aptidão à mcdica-
lização. Intimam o psicoterapeuta a agir im ediatam ente. O am ál­
gam a entre precariedade simbólica e exclusão social situa o lugar
do psicoterapeuta entre o curandeiro e o m édico, espécie de xam ã
perito na eficácia simbólica, tal com o conhecido desde Lévi-Strauss.
R azões externas constituem o empuxo-ao-psi contem porâneo.
A aceleração do tem po condiciona hoje nossa iniciativa do Centro
Psicanalítico de Consultas e Tratam ento (C P C T ). Para além de
um questionamento sobre o desvio da doutrina, vemo-nos coagidos
por um confronto com a im postura das terapias cognitivo-com por-
tamentais (T C C ), que opõem a arrogância dos protocolos de boa
conduta ao aristocratism o do intelectualismo freudiano. R ecen­
tem ente, Jacques-Alain Miller situou o tema das Jornadas Pipol nesse
contexto de provocação: som os avaliados, sujeitados ao benchmarking.
U m livro recente da coleção Pratiques en psychothérapie, editado pela
Masson e dedicado aos casos clínicos em T C C , aparta as psicoterapias
de aspecto humano da imagem clássica do praticante imperturbável,
distante e freqüentemente mudo ou, pior ainda, daqueles que utilizam
um a linguagem esotérica e são acusados de tornar crônicos seus
pacientes .5Em uma inversão perversa, digna de 0 gabinete do dr.
Caligari (Robert W iene, 1919), seu autor tem a audácia de afirmar
que, nas T C C , “nada é imposto, tudo e exposto, discutido e proposto” .
Cúm ulo do cinismo, Palazzolo se refere a Orwell.

E s p e c if i c i d a d e d o C P C T

Em tal contexto, são inúmeros os motivos externos e as pressões.


O s sintomas produzidos pelo m al-estar na civilização abonam a

1Jérôm e Palazzolo. Cas cliniques en thérapies comportementales et cognitives. Paris:


Masson, 2004, p. 214.

A aceleração d o s efeitos terapêuticos cm psicanálise 43


opinião, segundo a qual a urgência só pode ser tratada por disciplinas
novas não relacionadas à psicanálise de longa duração. O peso do real
6 tão grande que o dispositivo analítico faz as vezes de um teatro
antigo, atemporal, em que dominam o semblante e a dissimulação.
Esse peso do real confunde as balizas diagnosticas habituais e
justifica o ponto de vista psicossocial sobre a exclusão, a precariedade
c os distúrbios da identidade social, que certamente dissimula tipos
clínicos e estruturas perfeitam ente localizáveis em nosso cam po.
Tais estruturas, fortemente sobredeterminadas pelos fatores de crise,
parecem ratificar os sintomas repertoriados no DSM IV, entre os
quais a fobia social, os ataque de pânico c as depressões, fazendo com
que os sujeitos afetados por eles se tornem presas fáceis das T C C , da
programação neurolingüística (PN L), do desenvolvimento pessoal e
de outras charlatanices) A esse déficit se acrescenta o das carências insti­
tucionais m uito conhecidas, as quais confirmam a “precariedade
simbólica”, segundo a expressão de Hugo Freda, com a qual somos
confrontados.
O traço de exclusão característico da m aioria dos pacientes do
C P C T é duplicado pela falência das instituições e pelo desm oro­
namento das estruturas de acolhimento, de onde, com freqüência,
esses pacientes provêm . Desagregados, quase sem pre se engancham
cm algum “psi” , com todas as suas formas de exploração contem ­
porânea da miséria psíquica. Raros são os pacientes do C P C T que
nunca se consultaram com um psiquiatra, um psicólogo, um psica­
nalista, um com portam entalista, um reflexologista ou um guru.
Assim , chegam até nós em desespero de causa, tendo percorrido
um caminho escalonado por inúmeros tratam entos.
U m real com o esse nos obriga a escutá-los visando a um a reti­
ficação das orientações, freqüentemente catastróficas, que lhes foram
dadas. Reparam os, suplem entam os as carências atuais. Impossível
esquivar-se. O C P C T introduz enfim um a ruptura, um a descon-
tinuidade com o arsenal terapêutico que reduz o sintom a a uma
pura disfunção. Sabem os que apenas dar a palavra ao sujeito produz

44 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


alívio cm razão da escuta. O C P C T pretende fazer mais que escutar:
pretende ouvir e saber do que se trata. A questão, portanto, c muito
menos saber se o sujeito c analisável do que responder de maneira
apropriada a um a demanda ainda distante do discurso analítico e
para a qual a psicoterapia comportamental evidentemente é surda.

N o v a s fo rm a s d o s in to m a

Vejamos agora por que essas novas formas do sintoma justificariam


uma terapia ativai, uma aceleração dos efeitos terapêuticos. Por que
o caráter híbrido da patologia, misto de gozo obscuro e precariedade,
adapta-se a um modo de intervenção do psicanalista na contramão de
seu papel habitual, ou seja, face a face, presença ativa, tempo limitado,
gratuidade?
T entem os esboçar o ideal-tipo do paciente, o paradigm a desse
caráter híbrido: a patologia do Outro se revela essencial c caracteriza
o traum a de hoje, seja ele social ou familiar. Um outro sem pre é
incriminado, o que dá ao discurso do paciente um tom de vítima.
A im putação das dificuldades subjetivas a um outro faltoso m obiliza C
espontaneam ente a transferência para com esse outro benevolente
e desinteressado. O simples fato de escutar restabelece um laço de
humanidade e confiança.
São inúmeros os exem plos desse m odo contem porâneo em que
tal enfraquecimento e ilustrado. Lacan listava com ironia as carências
paternas supostam ente causadoras da psicose: pai humilhado, pai
acabrunhado, pai derrisório, pai caseiro, pai passeador etc .6A esses
opunha a presença feroz de pais que pretendiam ser a lei, m uito
mais com provadora a esse respeito. Acrescentem os aqui as figuras

b Jacques Lacan. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da


psicose” (1966). Em: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. S8S.

A aceleração dos efeitos terapêuticos cm psicanálise 45


inquietantes que assinam a m odernidade do trauma: pais hom os­
sexuais, pais portadores de HIV, pais doentes mentais ou p edófilos,
pais ou m ães abandonadores. O s lutos patológicos e as rupturas
sentimentais dolorosas com pletam essas formas de abandono teste­
munhadas no C P C T , em que a incidência do real traumático atinge
seu ponto mais alto.
Constata-se, m esm o assim , que um dizer esclarecedor pode
separar o sujeito da desordem contra a qual ele se insurge, embora
? esse standard da interpretação analítica só possa ser utilizado com
alguma circunspeção. Disso resulta freqüentemente um efeito de
alívio, proporcional ao efeito de liberação de um destino que acorrenta
o sujeito à sua certeza. O mito que o próprio sujeito constrói sobre
o fundo de um infortúnio real pode ser desfeito com a ajuda de um
outro e gerar benefícios. Não é necessário dispor de um tem po inde­
finido para produzir essa retificação.'
Retom em os o caso comunicado no ano passado por um colega,
cm que se obteve um efeito fulminante cm decorrência de uma tal
retificação. Trata-se de uma mãe em conflito com o pai de seu filho
de 18 anos., e que nos procura após este ter saído de casa. A intervenção
do terapeuta desloca as responsabilidades, ao esclarecer à mãe que é
o pai de seu filho, c não ela, quem é indiferente cm relação ao sofri­
mento desse filho. A paciente, então, lembra-se de que, cm uma das
raras vezes em que esteve com seu próprio pai, este não lhe deu a
palavra.
Pensou-se em tornar esse caso um paradigm a e fazer do C P C T
um CPIF, Centro Psicanalítico de Interpretação Fulminante. N osso
objetivo, contudo, não é a restituição de um estado prim eiro. Além
disso, é possível supor que um tal efeito poderia ter sido produzido
em ou tra instituição com o m esm o terap eu ta, cabendo a ele
confirmar essa hipótese.
Q uem realiza uma tarefa difícil pode dar conta de outra mais
fácil. Se o dispositivo do C P C T torna possível a aceleração do tem po
para com preender nas patologias graves, isso pode ser verificado

46 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


com mais propriedade no questionamento neurótico. Por exem plo,
um a hom ossexual feminina, deprimida e desgostosa com sua escolha
de ohjeto, tenta com preender, por m eio de suas lembranças trau­
m áticas, a fixação de seu gozo. O analista a faz notar que a questão
é m uito mais saber por que sua avó e seu avô não dorm iam juntos.
Diante dessas palavras, a paciente se dá conta de que nunca formulara
essa questão.
O deslocam ento do sujeito (ou do sentido da palavra) produz
incontestavelmente um efeito bencfico que alivia a paciente de uma
rum inação interminável sobre a causalidade familiar de seu gozo.
Cham em os isso um acontecim ento terapêutico. O levantamento
do recalque de um a questão fundamental equivale a levar a paciente
ao trabalho, sem que se possa, é claro, prever sua duração.
Dissemos que esses efeitos podem ser obtidos em outras insti­
tuições. O problema é que esses efeitos não podem ser programados.
Então, é preciso tem po. Com o uma duração limitada acelera um
trabalho que conduz o sujeito a um remanejamento subjetivo, ou
seja, precipita o instante de ver, a retificação da relação com o real?
Adm itam os que a abreviação do tem po seleciona o material.
N ão se falará de tudo: ali onde “isso sofre” não é necessariamente
onde “isso fala” . O sujeito se queixa e não compreende; tentamos
organizar sua questão, indicando-lhe o assunto a ser tratado, o que
corresponde à acepção não médica do tratamento. Por exem plo,
antes de enviar um obsessivo para um colega do grupo B, o analista
lhe diz uma frase curta: “Você deve falar de seu relacionamento com
as m oças” .
T erem os reconhecido uma direção que favorece a focalização.
Q uanto a esse ponto, há predecessores: Balint e seus alunos. N ão
podem os, todavia, acompanhá-los em seu forçam ento terapêutico
que curto-circuita o inconsciente. Mas é possível fornecer um a justi­
ficativa nova e contem porânea a essa abreviação. A analogia do
enquadre, novo standard, deve perm anecer compatível com nossos
princípios. Aliás, pode-se traduzir em lacaniano/o dispositivo em

t íjfl »*■> t' ’ "o i*, o ei* LÃ tí, 7

A aceleração dos efeitos terapêuticos cm psicanálise


questão, com o se estivéssem os brincando de construir um perfil
com base em um a série de perguntas e respostas diretas:
a) a negligência seletiva: limita-se a associaçãojivre, a descrição
maníaca, a panóplia do fantasma. É um a form a de corte não
sem ântico, cujo eixo é a contra-experiência. A distância dessa
prática em relação ao discurso analítico deve ser formalizada.

n \ b) a focalização: isola-se o real do sintoma do saber inconsciente,


. privilegiando o laço social a ser restaurado.

c) o término fixado antecipadamente implica a ativação do tem po


para compreender c não o aditamento de um número limitado
de. sessões definidas por um protocolo. O efeito terapêutico se
produz ou não; quando se produz, é ao cabo de quatro m eses.
Com o diria La Palice, se o tem po é lim itado, o efeito é rápido,
toda vez em que houve efeito.

d) o face a face é a presença do psicanalista com o objeto e não


apenas com o sim ples escuta.

É óbvio que não podem os nos contentar de caiar com conceitos


lacanianos práticas psicoterápicas m ediocrizadas que apenas tradu­
zem o horror ao ato analítico. Trata-se de uma nova forma de psica­
nálise aplicada às atuais manifestações de desagregação do Nom e-do-
Pai. Além disso, vê-se que o dispositivo é particularm ente adaptado
à p sicose ou m ais adaptado à psicose ordinária que à neurose
ordinária. Ele favorece uma clínica da suplência por interm édio da
fala e visa essencialmente desfazer o desligamento
O do O utro social.

U m e x e m p lo

Esse cerceam ento do laço social pode ser ilustrado por um caso,
cujas coordenadas essenciais são estas: trata-se de uma jovem que
chega ao C T C P cm estado crepuscular. A paciente delira sobre o

r48 ) E feitos terapêuticos na psicanálise aplicada


fem inismo. Persegue um rapaz valendo-se do tem a da igualdade
absoluta entre os sexos. O analista focaliza o discurso da paciente
não em sua história familiar, e sim em sua teoria delirante da relação
sexual. Seu companheiro representa o homem. O homem universal.
Sobre ele se acumula a dívida de todos os homens para com as mulheres
que exploraram desde a aurora dos tempos. Ele deve pagar por todos
os outros. Aqui, a mulher encontra o homem cm uma miragem do
universal dominador. Não há vida privada. A relação sexual é um micro­
cosm o da história do m undo reduzido exclusivam ente ao binário
hom em -m ulher. Pode-se parafrasear a aula de 9 de m arço de 1976
de “O Seminário, livro 23: o sinthoma” , de Lacan: “os sexos even­
tualmente se opõem como o imaginário e o real” .
O analista rem ete o sujeito à particularidade de sua escolha.
Esse casal não se inscreve na repetição infindável da guerra dos sexos.
Ao contrário, faz exceção. Ela é convencida de que, em seu caso, a
relação entre o homem e a mulher é fora do sexo.
Diante dessas palavras, observa-se o deslocam ento de uma para­
nóia delirante para um a parafrenia pacificada. A paciente sai do
C P C T ao cabo de alguns m eses, não sem antes assegurar-se de uma
possível retom ada do diálogo. Porém jam ais se garante um efeito
tão favorável. O delírio terapêutico de alguns pacientes impulsionado
p or todas as terapias contem porâneas já evocadas os leva, no fim
de sua m aratona, ao C P C T , última etapa de um coaching que asse­
gura a gestão racional de si. O mito de um ego a ser construído ou
reconstruído com pete de m odo selvagem com nossa orientação,
pois este já foi reconstruído para corresponder a identificações servis
à ideologia do m om ento.
C om efeito, há casos em que o paciente chega até nós a fim de
se reconstruir. Reconstruir o quê? Seu corpo. Não há aqui qualquer
m etáfora psicológica. Foi esse, por exem plo, o caso de uma jovem
m ulher com um defeito físico atendida por um a outra analista.
Quase não se detecta seu handicap, pois anda c corre sem problem as.
Ela correlaciona o surgim ento desse handicap com certas idéias

A aceleração d os efeitos terapêuticos cm psicanálise 49


que a assom bravam em sua infância. Pensa que elas teriam se reali­
zado. Vem falar para “com preender, a fim de que isso pare” , ou
seja, de que cesse esse despedaçam ento, após ter tentado de tudo:
astrologia, vidência, sabe-se lá mais o quê. Ela gostaria de se sair
bem dessa dificuldade. A psicanalista, todavia, não é um a “super -
vidente” . Até o m om ento, o C P C T evitou a hospitalização, mas
tem e-se a possibilidade de uma recidiva, de um em puxo ao gozo do
corpo despedaçado.

O u tro e x e m p lo

Há um caso que nos parece paradigmático dessas suplências que, sob


certas circunstâncias, cedem. Pode o cstabclecimento de uma trans­
ferência institucional remediar situações como esta? U m homem de
65 anos, hiperativo e decidido, vê suas boas intenções desmoronarem
diante da irrupção de uma série de catástrofes, tanto econômicas
quanto afetivas. N o momento que chega ao C PCT, tem a mesma
idade que seu pai tinha quando morreu. Ativista e cavador, identificou-
se com esse pai autodidata que “se construiu sozinho”. Sua atividade
profissional está ligada aos graves dissabores econômicos da família
que ocorrem após o falecimento paterno. Chora o dia inteiro, apesar
de seu lon go p e rc u rso te ra p ê u tic o . C o n su lto u -sc com um a
psiquiatra, com um aurieuloterapeuta, com um especialista em
program ação neurolingüística. U m a fala da psiquiatra não m elhorou
as coisas: “Você é o filhinho que chora p or seu pai” . Tratam -no
com o um deprim ido. A questão, no entanto, é investigar se o luto
do pai foi feito.
Gosta de frases curtas c as pede a quem lhe escuta. Obteve uma
de Hugo Freda: “Você precisa se rebelar” . De fato, o paciente está
em uma relação de grande dependência para com as m ulheres, o
que não o im pede de reivindicar sua independência e sua vontade de
conduzir sua vida. Tal como seu pai, sem pre dirigiu tudo. Atualiza

50 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


o m ito do sujeito treinado e treinador de si m esm o, figura eminente
do ego de substituição aludido há pouco. O suporte encontrado em
um a terapeuta, que contradiz o m utism o da psiquiatra que lhe
precedeu, lhe dá a idéia de progredir, mas ele perm anece sozinho.
Há um a interpretação erotomaníaca, e a interrupção das férias de
inverno o lança em um a perplexidade angustiante. T em e-se o
suicídio. É preciso hospitalizá-lo.
Obviam ente, esse caso não testemunha um efeito de cura rápido.
Vim os os estragos causados pelas terapias realizadas por artesãos
da felicidade. Trata-se sobretudo de uma simbiose com o ego paterno
desm oronando cm uma fuga hipomaníaca. Rcstam-lhc arrimar-se
por m eio da fala e a confiança depositada em nosso colega que impede
uma passagem ao ato. A evitação do suicídio deve ser atribuída ao
trabalho no C P C T , que serve de lugar transicional antes de ele ser
eventualm ente confiado a outras m ãos de nossa comunidade de
trabalho.
Para concluir, oponho a duração relativamente curta do tempo
para com preender ao tratam ento de longa duração das psicoses
delirantes fora do CPCT. As T C C fazem exatamente o oposto. Pode-
se demonstrar que os efeitos terapêuticos obtidos rapidamente por
elas, cm 25 sessões, concernem aos sujeitos psicóticos, devendo-se
apenas às identificações sugeridas com um ego suplementar escolhido
antecipadamente pelo terapeuta. Não se corre o risco da loucura de
compreender. Não há nada para compreender, nem para saber. O su­
jeito, nesse caso, está bem adaptado à programação de sua existência.
Atualmente, o sujeito parece estar em busca de si mesm o. Não
é no C P C T que ele o encontrará, embora não façamos obstáculo à
possibilidade de que ele o invente. De todo m odo, o encontro com o
analista o inscreve em um novo laço social realizado pela comunidade
que formamos com ele, para além da própria transferência.

A aceleração d os efeitos terapêuticos cm psicanálise 51


Problem as de form ação no C entro
P sicanalítico d e C onsultas e T ratam en to1

Serge C o ttet

Gostaria de lhes apresentar neste encontro as principais diretrizes de


um projeto de formação, do qual os praticantes do Centro Psicanalítico
de Consultas e Tratamento (C P C T ), mesmo os mais antigos, devem
se beneficiar. A reflexão sobre os problemas da formação do psica­
nalista é recente na Escola da Causa freudiana, cujo programa, para
falar a verdade, não tem um dispositivo específico. Instituições foram
criadas para responder à questão “quem c analista?” , e as considerações
pragmáticas relacionadas à aprendizagem, às competências clínicas,
ao p ro fissio n a lism o e à fo rm a çã o d os jo v e n s en fatizam um
questionamento sobre a psicanálise aplicada em suas modalidades
mais claras. N o C PCT, trabalhamos cm um enquadre não standard c
não sabemos a priori como o discurso analítico se aplica. Até então,
na Escola da Causa freudiana, os lugares para o ensino clínico se
situavam mais na periferia que no centro, sobretudo a seção clínica e
os ateliês de psicanálise aplicada. D e fato, m uitos praticantes se
formaram cm outros lugares, nos próprios locais de trabalho e, muitas
vezes, em instituições do campo da saúde mental. Doravante, todavia,
a formação será confrontada com um a prática nova, de acordo com
as seguintes características: a) responsabilidade terapêutica; b) limite

1 Relatório do responsável pela formação dos analistas no Centro Psicanalítico de


Consultas eTratamcnto, na Écolc dela Canse freudienne, abril de 200S.Tradução:
Vera Avellar Ribeiro. Revisão técnica: Tania Coelho dos Santos.

53
tem poral; c) supervisão cm grupo; c d) existência de um lugar que
torna homogêneos discurso analítico e instituição.

S u p e rv is ã o

N o C P C T , instituiu-sc a supervisão dos casos clínicos com um duplo


objetivo: o efeito terapêutico e o efeito de formação. A supervisão
ocorre entre quatro praticantes mais um, ou seja, a mesm a estrutura
de um cartel. O “mais um ” pertence ao colégio dos AEs, e esse
dispositivo perm ite que os m em bros discutam os casos apresentados
por um deles. Não sc trata, na verdade, dc uma supervisão do ato,
nem do desejo do psicanalista, mas sim de um a confrontação entre
um saber clinico a priori e a surpresa decorrente do encontro. Tal
como o standard clínico, os automatismos devem recuar diante da
tyhhc constituída pelo sujeito, sempre novo. Somos permanentemente
confrontados com questões atípicas: a demanda dc análise não é
evidente, interroga-se seguidamente a duração do tratamento, o peso
dos determinantes sociais se opõe aos critérios diagnósticos habituais
e muitas vezes pressões externas precipitam o sujeito em nossa direção.
O fato de a transferência incidir a priori sobre a instituição mais
que sobre a pessoa do analista justifica uma elaboração coletiva. Uma
vez que a distribuição dos casos é aleatória, cada um dos cinco
m em bros pode se sentir implicado e dar sua opinião. O “mais uni”
orienta a discussão, pondera os diagnósticos precipitados e convida à
reflexão pragmática sobre o acompanhamento do sujeito e as possi­
bilidades de ele se m ostrar sensível ao dispositivo analítico. De m odo
geral, as instituições inibem ou adiam o ato analítico. O C P C T , ao
contrário, autoriza-o e m esm o antecipa-o. Desse m odo, a prática
analítica é simultânea à sua formalização, à definição de suas finalidades
e, por fim, à sua transmissão ao conjunto da instituição durante as
comunicações mensais. Em outros term os, a informação tem valor
dc formação para todo o grupo.

54 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


T e o ria e p r á tic a

N o que diz respeito à form ação, os resultados obtidos tanto por


nossos colegas quanto pelos jovens praticantes são, no dizer destes,
inigualáveis. O C P C T é um laboratório em que as preocupações
epistemológicas encontram terreno muito favorável à sua articulação
com a pragmática mais evidente. Um saber se elabora, outro se desfaz.
Sintagm as congelados, senhas usadas em n osso m eio, vêem -se
esmaecidos ou subvertidos pelo real com que cada um de nós é con­
frontado. Em compensação, as formas de renovação da clínica analí­
tica, sua elucidação à luz do último ensino dc Lacan, evidenciadas cm
inúmeros colóquios na Escola, encontram matéria inédita para sua
aplicação. O ensino de Jacques-Alain Miller e suas apresentações de
doentes no Vai de Grace constituem o enquadre que fornece a orien­
tação coerente para essa renovação. O C PC T, portanto, revela-se
como a encruzilhada viva em que se verifica a incidência de todas
essas elaborações, bem como sua convergência a esse respeito.

R e fo rm a d o e n te n d im e n to c lín ic o

Voltem os à clínica espontânea do jovem praticante. Surpreende.


Nenhum caso parece se encaixar nos quadros prefigurados de sua
form ação anterior. No novo contexto, os cânones do discurso analí­
tico são subm etidos a duras provas. Problemas dc diagnóstico: há
os inclassificáveis. Entre estes, m uitos psicóticos que não perm item
um a direção padronizada. Haveria aí um a demanda, um a trans­
ferência desses extraviados, m arginais, in term iten tes, com o a
daquele jovem de 17 anos que vimos chegar ao C T C P , enviado por
sua namorada cm razão do abuso dc propostas racistas?
E verdade que dificuldades como essa constituem o cotidiano
do terapeuta nas instituições, nos hospitais. N esses lugares, contudo,
há respostas baseadas em standards, a duração do tratamento perma-

P roblem as de form ação no C P C T 55


nccc indefinida e o terapeuta tem sua responsabilidade m inorada
pela hierarquia das com petências. No C P C T , de outro m odo, a
livre discussão que constitui a alm a da supervisão entre vários
confronta o praticante com um perm anente “o que fazer?” . Há um
vazio que nem as receitas institucionais, nem os clichês da apren­
dizagem comum preenchem. A preponderância do discurso clínico
entre nós contribui para abalar os semblantes constituídos por tipos
clínicos bem definidos. M esm o que a utilidade desses tipos clínicos
não esteja em questão, seu em prego c confrontado por um a clínica
do particular, cujos efeitos diluem diagnósticos prêt-à-porter. Disso
resultam discordâncias entre a particularidade do caso c a integração
imediata deste cm tipos clínicos preestabelecidos. Por interm édio
dos traços de exceção freqüentem ente apresentados nesses casos, a
tendência a reduzir a clínica a quadros prefigurados, a um jardim
das espécies ou a um a nosografia de tipo astrológico é abalada.
D e um lado, buscam os formalizar os princípios da form ação
psicanalítica; de outro, deparam o-nos com um contra-m odclo ou
contraste constituído pelas terapias cognitivo-com portam entais
(T C C ). O pom os a clínica do detalhe do caso a uma clínica funda­
mentada na estatística, na comparação, na generalização. Com o m os­
trou Jacqucs-Alain M illcr nas Jornadas dc D clfos, essa clínica do
detalhe não se fundamenta na observação c na com paração, e sim
na argumentação. N ão m edim os. O s cartéis de formação têm com o
objetivo ajudar no desenvolvimento dessa argum entação, limitando
■a incessante tentação de rotular o real do caso com um determ inado
tipo clínico. Em outros term os, visamos destacar o que o sujeito
tem dc incom parável. N ós o com param os com ele próprio ou,
para citar novam ente M iller, “um incom parável ensina sobre o
incom parável” .
N a construção do caso, portanto, pedim os aos praticantes que
se esforcem em fazer valer essa dimensão exem plar e, se possível,
torná-la um paradigm a. O trabalho dc form alização se opõe à
aplicação c busca extrair a lógica, a ciência do real cm que o sujeito

56 E feitos terapêuticos na psicanálise aplicada


está preso, isto é, sua equação pessoal, resolvendo-se desse m odo a
tensão entre paradigm a e m atem a2.

E s tr u tu r a e s in to m a

Ao retom ar a questão dos standcirds, Hugo Frcda observou que, no


C T C P , as m odalidades do tratam ento im põem um m ínim o de
padronização, principalmente no que diz respeito à duração e ao
pagamento. Disso resultam algumas conseqüências tanto para a clínica
quanto para a orientação pragmática. O fato de o tratam ento do j
sintoma preponderar sobre as considerações a respeito da estrutura
evidencia as orientações da última clínica de Lacan. O debate atual
sobre essa questão, todavia, autoriza apenas conclusões preliminares.
Esthela Solano, por exem plo, relatou a constatação de que a maioria
dos casos conhecidos tem relação com a psicose ordinária, e não com
o sintoma decifrávcl. Essa clínica acolheria os sujeitos desabonados
do inconsciente, razão pela qual o limite da duração do tratamento
nesses casos é algo muito positivo. Dentro de pouco tem po, certa­
m ente terem os relatos de tratamentos breves no CPCT.
A h etero gen eid ad e das dem andas e a variedade de casos,
contudo, confrontam essa prática com os efeitos neuróticos carac­
terísticos do m al-estar da civilização. Isso equivale a dizer que é
preciso um saber clínico muito amplo por parte de cada um dos
praticantes. M esmo assim, não se deve ter uma resposta a priori
para a duração do tratam ento, pois o problem a consiste em saber
se o sujeito estará em condições de continuá-lo em outro lugar.
Tam bém aqui as considcraçõcs pragm áticas prevalecem sobre a

2 O laboratório atualmente dirigido por Maric-Hélène Broussc e Pierre-Gillcs


Gucgucn fornece dados interessantes sobre esse tema.

P roblem as de form ação no C P C T 57


d e tf^ ^ c i fração d a estrutura. A experiência m ostra que a prática e a
corfiVr>'tm unicação da experiência se concentram nesse ponto, para o
q u íJ^ H al o “m ais um ” deve chamar a atenção dos demais.

58 85? ^ Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


N ota sob re as conferên cias de
Serge C ottet n o R io de Jan eiro

Ana Lúcia Lutterbach H olck

As conferências proferidas pelo psicanalista Sergc C ottet no Rio de


Janeiro em novem bro de 2003 fazem parte da série de debates
inaugurada por jacques-Alain Miller a respeito do m om ento atual
da psicanálise. Esses debates tentam fazer prevalecer a psicanálise
cm um mundo globalizado sob o domínio do discurso da ciência,
cuja ênfase recai sobre avaliações, estatísticas, regulam entações e
generalizações do sofrim ento em séries quantificáveis e dom es­
ticáveis. Sendo a clínica psicanalítica um a clínica do sintoma, do
caso a caso, da singularidade, trata-se de saber com o a psicanálise
pode se inserir nesse contexto em que se verificam sintomas que
não têm a estrutura do inconsciente freudiano, em especial o manejo
da técnica psicanalítica na psicose e nessas novas formas de sintomas
clínicos.
Serge C ottet parte da leitura do texto “A direção do tratamento
e os princípios de seu poder” (1958), de Jacques Lacan, para examinar
o problem a levantado por Miller no artigo “D a utilidade social da
escuta” , que bavia sido recém -publicado no Le Monde, e no qual ele
observa que a escuta hoje atingiu uma escala de massa e se tornou
um fator de política. Ao dem onstrar a diferença entre psicanálise
pura e psicanálise aplicada e entre psicanálise e psicoterapia, C ottet
discute com o essas novas condições da experiência decorrentes da
dissem inação da escuta na contemporaneidade exigem uma tática
inédita. Em seguida, aborda a criação do Centro Psicanalítico de

59
Consultas e Tratamento (CPCT) cm Paris. Em um contexto cm que
os atendimentos são gratuitos e ocorrem por tem po determinado, o
C P C T busca responder ao atual momento da clínica, reivindicando a
possibilidade de o ato analítico ocorrer fora do “setting” clássico e
dos serviços de atendimento público.
A contribuição de Cottet aqui reunida coincidiu com o momento
em que a Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), inspirada pela experiência
francesa, começava a pensar na criação de uma clínica de atendimento.
N o Rio de Janeiro, o primeiro desafio foi situar as dificuldades específicas
que seriam enfrentadas no estabelecim ento de um projeto que
respondesse a esse contexto. Não foi difícil concluir que o maior
problema seriam as conseqüências deis diversas formas de manifestação
da violência urbana, ou seja, da violência gerada pelo mercado e pelo
crime organizado. As comunidades informais da periferia da cidade,
embora sejam as que mais sofrem os efeitos dessa violência, têm sido
também aquelas em que têm surgido as soluções mais originais para
atravessá-la.
Com o lembra Cottet, não se trata mais de, como nos anos 1970,
ir até as favelas para oferecer bens tanto de consum o quanto id eo­
lógicos. O projeto em questão deve partir, acima de tudo, do enten­
dimento de com o a psicanálise pode se pôr a serviço de um a pop u­
lação que busca soluções para seus problemas. Quais__os efeitos do
encontro com um analista? Com o inventar novas táticas clínicas sem
com prom eter os princípios da psicanálise?
Foi no bojo dessa discussão que recebem os Serge C ottet, a quem
novamente agradecem os por uma contribuição que faz da teoria e
de sua aplicação duas faces de um a m esm a página.

60 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


A p rática lacan ian a
na civilização sem bússola

Tania Coelho dos Santos

Qual a última lição de Laean sobre a prática do psicanalista? Retornar


ao dado prim eiro, ao sintoma. Se ele o rebatizou sinthoma, ao injetar
o grego cm nossa escrita latina, foi para rclativizar o laço entre este
c o inconsciente. Essa nova escrita repercute a diferença entre lin­
guagem e alingua, bem com o indica que o sinthoma não e um a
formação do inconsciente, não sendo possível decifrá-lo, dizer sua
verdade. A questão, portanto, é como fazer um uso lógico dessa
diferença que nos conduza ao real do sinthoma. Por intermédio desse
conceito, Lacan circunscreve o problem a instalado no centro da vida:
não há relação sexual para a espécie humana. A clínica do sinthoma
implica o esforço de circunscrever a pequena parcela de real a que
nós visamos quando o definimos por meio dessa fórmula, cujo sentido
se renova hoje, após term os sido surpreendidos pela eleição dc um
papa ultraconservador. O retorno da fé e da moralidade como reve­
lação contraria o movimento da cicncia contemporânea que reduz toda
verdade ao semblante, ao acordo, ao contrato, à convenção. O retorno
à verdade com o revelação se contrapõe às verdades negociadas nos
C om itês dc Ética. A clínica do sinthoma não é a via da religião c
m enos ainda a da moralidade convencionada entre pares1. As confe­
rências de Serge C ottet na Universidade Federal do Rio de Janeiro
incidiram sobre a atualidade dessa outra via.

1 Cf. Jacques-Alain Miller. “Pièces détachés” . Curso do Departamento de


Psicanálise, aula de 17 de novembro de 2004.
N ossa é p o c a , a c o n te m p o r a n e id a d e

O sonho de nossa época é contabilizar o gozo e maximizar sua utilidade.


Somos bombardeados cotidianamente por uma quantidade inassimi-
lável de informações que prometem orientar o consumidor para alcançar
o m áxim o de proveito com o m enor gasto possível. O gosto pela
mensuração generalizada da relação entre custo c benefício avança,
produzindo como efeito uma inversão na relação entre oferta e demanda.
Para aproveitar sempre a melhor oferta, consumimos, compramos,
adquirimos coisas que não precisamos, nem queremos. O esforço de
medir, regulamentar, distribuir, homogeneizar o campo da satisfação
termina por nos encharcar sob uma chuva de objetos. Assegurar o
prazer seguro e dissolver todo mal-estar nos leva a acumular recursos
para evitar a escassez, anular a falta, esmagar a demanda e obturar a
causa do desejo. O gozo com o que é inútil se deslocou do universo da
produção literária e poética. Hoje, está aparelhado pelo capitalismo
globalizado para a aquisição de novas invenções tecnológicas, que
rapidamente se tornam obsoletas. A mentalidade dominante nos engaja
na busca de uma felicidade fortemente equipada, formatada, empa­
cotada, readj made, para que nada nos falte nunca. Quando a falta, causa
do desejo inconsciente, falta, a angústia, contraditoriamente, toma-sc
avassaladora e sobrevêm como ataque de pânico. A rejeição da falta
redunda na exclusão do inconsciente. Por essa razão, os sintomas
tam bém são novos, m ostrando-se muito pouco sensíveis à inter­
pretação. A satisfação que o sujeito obtém por meio deles é muito
menos cifrada e confina mais abertamente com diferentes modalidades
de automutilação c dor. São novos tempos que aprofundam os efeitos
do discurso da ciência e nos desafiam a assepurar
O a sobrevivência do
real da psicanálise. Essa surpreendente reviravolta pode ser entendida
como conseqüência do declínio da organização fálica e da função paterna.
O renascimento do fundamentalismo religioso anuncia o retom o de
sujeitos que não se contentam com o atual estado de impotência do
poder e o rebaixamento da verdade a um puro semblante.

™ ^ NAjfcs \l f a a *p 5
62 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada
Scrge C ottet nos apresentou o fruto de seu trabalho de atuali­
zação dos princípios que norteiam a direção da cura psicanalítica.
M ostrou-nos a pertinência de um a profunda revisão de um dos
mais im portantes artigos de Jacques Lacan: “A direção do trata­
m ento e os princípios de seu poder”2. Esse texto, conhecido pelo tom
apologético com que nos conclama a perseverar na via aberta por
Freud, recorda os princípios do poder da cura pela palavra. Em suas
conferências, Cottet destacou que a cultura em que vivemos hoje não
é mais a m esm a, e que o último ensino de Lacan enfatiza a exigência
de renovar os usos da palavra e da interpretação em psicanálise.
Quarenta e quatro anos depois da publicação desse vigoroso texto
lacaniano, que serviu de eixo na formação de muitos analistas, é preciso
retificá-lo em consonância com os avanços que marcaram a produção
lacaniana após os anos 1970.
Penso que esses avanços foram precipitados pela nova aliança
entre o discurso do m estre e o saber que resultou em profundas
mudanças nos laços sociais depois dos m ovim entos de maio de 1968.
A luta pela liberação da sexualidade, pela emancipação feminina c
contra toda autoridade fundada na tradição revolucionou nossos
hábitos e, em poucos anos, apresentou-nos um m undo adm ira­
velm ente novo. A descoberta do inconsciente pelo pensam ento
freudiano revelara a im portância ccntral da função do pai, suporte
da transm issão das identificações constitutivas do sujeito e do laço
social. O pai, no discurso do inconsciente, é o agente da castração.
Prom ove o recalque da relação prim ordial com a mãe e propicia a
identificação com o ideal do eu. N os dias de hoje, nada é mais
incerto que a eficácia dessa função do pai. A verdade do poder é a
im potência. As famílias se form am e se dissolvem ao sabor dos
investim entos pulsionais. O sujeito contem porâneo não renuncia à

2 Jacques Lacan. “La dircction dc la cure analytiquc ct les príncipes de son


pouvoir” (1 958). Em: Écrits. Paris: Scuil, 1966.

A prática lacaniana na civilização sem bússola 63


satisfação de seus impulsos cm benefício dos mais velhos (o passado)
nem da sucessão geracional (o futuro). O discurso do mestre (S] —» S2),
a autoridade da tradição, perdeu sua legitimidade em benefício do
discurso universitário (S 2 —> a). Em agrecem os a m estria. Em sua
versão light, o poder recua diante da coerção, esvazia-sc do objeto
e se apresenta travestido por meio de formas persuasivas. Um saber/
poder que proporciona o planejamento de um a felicidade côm oda c
previsível. Podem os adquiri-la por m eio de um pacote turístico cm
um a agência de viagens, um a prom oção oferecida pela loja de
conveniências, um a refeição readj made em uma cadeia d e ja s tjo o d .
O prazer deve ser acessível a todos, dem ocratizado e form atado.
Vem regulado, higienizado, autorizado pelo M inistério da Saúde,
recom endado com o benefício à prevenção de doenças. Tudo de que
gostávam os deve ser consumido em sua versão light ou diet. A guerra
ao imprevisível e ao excesso tom a corpo na cultura do “tudo com
30% m enos de gordura, de açúcar, de álcool, de colesterol”. N osso
ideal é viver cm um paraíso planejado com o a Disncylândia, cm
que a quantidade de susto ou surp resa deve ser prev iam en te
calculada. O discurso da ciência, lugar de enunciações su rp re­
endentes e criadoras, serve hoje à administração das populações de
corpos e almas nivelados, equalizados, hom ogeneizados e dispostos
cm série. Ao m estre light não opom os mais que 30% de subversão3.
Um texto com o “A direção da cura psicanalítica e os princípios do
seu poder” precisa, portanto, ser atualizado segundo as regras da
época do m estre light. Em sua rigorosa exposição sobre a experiência
do Centro Psicanalítico de Consultas e Tratam ento (C P C T ), Serge
Cottet m ostra que, na prática, se enfatizarmos os poderes da palavra
e da interpretação na cura psicanalítica, exibirem os toda nossa
im potência. Em seu últim o ensino, Lacan relativiza o valor de
abordar o real pela via do sentido inconsciente, ao ressaltar que essa

3Jacques-Alain Miller. “Piéces détachés”. Ob. rit., aula de 19 de janeiro de 2005.

64 E feitos terapêuticos na psicanálise aplicada


Or
n
Y ■

estratégia privilegia a vontade terapêutica. Com ela, pagamos o preço


da emergência da reação terapêutica negativa.
Trata-se, assim, de abordar do Real pela via do sinthoma, confe­
rindo positividade à reação terapêutica negativa. Para com preendê- q |
la, precisam os entender que a hom eostase própria ao principio do
prazer não exclui o excesso que a desarranja. Isso significa dizer
que, do ponto de vista da pulsão, o sujeito é sem pre feliz. Em todos
os incidentes da vida, o sinthoma concorre para que —em seu mal-
estar ou sem bem -estar —o sujeito persevere na vida4. A clínica do
sintom a reabilita o excesso em vez de se render à civilização light
ou resvalar na religião. - O < ^ ajl S 1c w . jy / j rjk^'
J jO '(■'»->'<*> iZ i. rj Ci /iqCA
o ., r p ç .t 'p f !

U m a o u tra é p o c a , a m o d e rn id a d e fre u d ia n a

O sonho freudiano p rom etia um horizonte inteiram ente outro


quanto às virtudes do excesso no século X X . O desejo inconsciente,
a outra cena e a censura são nom es de um real até então desconhecido
pela ciência. Cabe sublinhar o laço entre a criação de um saber
novo e um excedente, a enunciação de um sujeito singular. H oje,
tendem os a dissolver o valor da enunciação criadora, que não tem
fundam ento na razão, nos enunciados consensuais dos com itês de
avaliação científica. N a contcm porancidadc, a ciência não tem nome
p ró p rio : não associam os as invenções científicas ao nom e do
inventor, à enunciação de um grande hom em.
Contudo, à diferença de outras tantas descobertas científicas
contem porâneas, o laço entre a psicanálise e o desejo de seu criador
não pode ser desfeito. Podem os colhê-lo in statu nascendi, entre as
imagens de seu “sonho da injeção cm Irma” . Frcud relata que Irma
lhe m ostra sua garganta infectada pela difteria. “Tivem os tam bém

4 Jacques-Alain Miller. “Piéces détachés”. Ob. d t ., aula de 19 de janeiro de 2005.

A prática lacaniana na civilização sem bússola 65


pronta consciênciada origem da infecção [...] m eu amigo O tto lhe
aplicara um a injeção de um preparado de propil, propilos... ácido
propiônico... trimetilamina (e eu via diante de m im a fórmula desse
preparado, im pressa em grossos caracteres)”5. N este trecho muito
curto, podem ser constatadas duas coisas. D e um lado, a tentativa
de se desem baraçar de seu desejo, atribuindo a um outro, seu colega
O tto, a responsabilidade pelas conseqüências. D e outro, o destaque
do significante trimetilamina, que, tal como assinalou Lacan cm 0
Seminário, livro 2: o eu na teoria e na técnica da psicanálise6, é a resposta
Real à pergunta freudiana sobre a causa da neurose. Esse significante
designa o poder da sexualidade como a verdadeira causa da neurose.
Para Lacan, o sonho de Irmã interpreta o desejo de Freud, é um a
interpretação idêntica à criação da psicanálise, que é o saber sobre
a causa sexual da neurose. O sonho, portanto, realiza, faz um a
passagem da suposição de saber feita à medicina em direção à ex-
sistência de um novo saber. Efetua no Real o que Freud prom etera
a si m esm o na casa em que teve esse sonho: “N esta casa, em 24 de
julho de 18 9 S , o segredo dos sonhos foi revelado a Sigmund Freud”7.
O nascimento da psicanálise, podem os dizê-lo, é um m om ento de
triunfo da criação sobre o cientificismo anônimo e sem sujeito que
im pera hoje entre nós.

s Sigmund Freud. “A interpretação dos sonhos” (1900). Em: Obras completas,


vol. IV. Rio dc Janeiro: Imago, 1972, p. 129.
h Jacques Lacan. 0 Seminário, livro 2: o eu na teoria e na técnica da psicanálise
(19S4-S). Rio de Janeiro: Jo rge Zahar Editor, 198S, p .206-7.
7 “Você supõe [escreve Freud a Flicss] que algum dia uma plaqueta de mármore
será colocada na casa, inscrita com essas palavras.. Cf. Carta a Fliess de 12
de junho de 1900, número 137. Cf. J. M. Masson (org.). A correspondência
completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1887-1904). Imago: Rio dc
Janeiro, 1986.

66 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


L acan: f r e u d ia n o e la c a n ia n o

O escrito intitulado “A direção da cura e os princípios do seu poder”


laz parte do prim eiro tem po do retorno de Jacques Lacan a Freud,
de acordo com a periodização estabelecida por Jacques-Alain M iller,
seu genro e responsável pela publicação de seus sem inários. Foi
Miller quem destacou que, no ponto de partida, Lacan adere ao
sonho freudiano. Formaliza a prática psicanalítica ressaltando que os
princípios de seu poder, bem como sua finalidade, dependem da
primazia que nela é concedida ao significante, ao Nome-do-Pai. Seu
ensino posterior, contudo, destaca que o sonho, a realidade psíquica,
o inconsciente e o com plexo de Edipo relevam do laço entre o “sonho
freudiano ”8c a religião. O complexo de Edipo, nesse novo contexto,
teria sido um dispositivo interpretativo para reabilitar o pai c m f í
tem pos de declínio da função paterna, ou seja, a nostalgia do pai
dera fôlego ao m ito, à m etáfora paterna, em detrim ento da verdade
de estrutura que é a m etoním ia do desejo.
O ra, esse novo ponto de vista só se im põe depois das mudanças
no cam po do sujeito e do laço social que se seguem à revolução
sexual, à emancipação das mulheres e à poderosa máquina de guerra
anti-repressiva que foi o discurso freudo- m arxista9. Esse c um para­
doxo notável. De um lado, o freudism o engendrou o retorno laca­
niano a Freud com sua profunda veneração pela função paterna. De
outro, o freudo-m arxism o, interpretação reichiana da teoria c da
prática psicanalíticas, contribuiu decisivamente para a produção de
uma racionalidade profundamente anti-paternalista. Neurose e psicose
foram definidas por Lacan como efeitos da carência do Nome-do-

8 Jacques Lacan. “Le Séminaire, Livre XXII: RSI” (1974-5). Inédito, aulas de
10 de dezembro de 1974, 1 4 d e ja n e iro e 11 de fevereiro de 1975.
5 Tania Coelho dos Santos. Quem precisa de análise hojei Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2001.

A prática lacaniana na civilização sem bússola 67


Pai, ao passo que para Rcich é a onipresença ostensiva dessa iden­
tificação com o pai que engendra a profunda deformação do caráter —
a neurose obsessiva servindo à perpetuação da dominação do homem
pelo hom em. Em sua análise do caráter patriarcal, Reich sublinha a
afinidade de estrutura entre o capitalismo e a função repressiva do
pai na sexualidade.
O ensino de Lacan foi muito afetado pelos acontecim entos de
maio de 1968. 0 Seminário, livro 1 1: o avesso da psicanálise 10deixa ver
toda sua indignação contra o declínio da vergonha e da honra. A medida
que declinam a tradição e a autoridade simbólica, surge um novo
mundo acintosamente despudorado, em que circulam sujeitos à deriva
das pulsões e à caça da satisfação eventual sem o ônus das exigências
éticas do ideal do eu. À nova aliança entre o mestre e o saber ele
prefere um discurso sem palavras, capaz de guardar o poder de causar
um acontecim ento. Penso que essa nova interpretação do desejo
freudiano, apresentada acima, testemunha que Lacan despertou do
sonho freudiano. Foi preciso devolver à palavra o poder de nomear o
real cm um mundo cm que a função paterna já não gozaria do prestígio
de conferir peso sexual às palavras. Os anos 1970, de fato, provaram
ser um tem po fecundo para o ensino de Lacan. Entrevê-se um desejo
propriamente lacaniano que quer defender os princípios da prática
psicanalítica, ainda que ao preço do abandono de verdades solidamente
consolidadas. Lacan prefere o real da pulsão ao m ito edipiano, o
fracasso pulsional que im pulsiona a repetição às realizações do
inconsciente que perpetuam a m esm ice do fantasma.
Foi preciso, assim, repensar o tratamento do sintoma na prática
da psicanálise valendo-se de um outro m odo de regulação que pres­
cindisse da função edipiana de agente da castração. É isso o que se

10Jacques Lacan. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise ( 1969-70). Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

68 E feitos terapcuticos na psicanálise aplicada


verifica na tese por excelência de seu ensino: “não há relação sexual” .
Em minha opinião, essa tese prom ove a ex-sistência do ensino de
Lacan e dem arca uma separação em relação à transferência com
Freud. Esse corte, aliás, foi anunciado no segundo tempo de seu ensino,
por ocasião da ruptura com a International Psychoanalytical A sso­
ciation (IPA) e a introdução do conceito de objeto a, uma primeira
mudança de posição com respeito ao inventor da psicanálise que nos
legou uma clínica do atravessamento do fantasma e uma concepção
do fim da análise como destacamento do objeto a.
Recentem ente, Miller elaborou a tese de que haveria um “último
ensino de Lacan” , posterior aos acontecim entos de maio de 1968.
O essencial, segundo sua leitura, é a resposta lacaniana à questão:
“o que quer uma mulher?”11. Essa resposta é a ocasião de um a notável
inversão de perspectiva 12cm suas construções sobre a clínica. Após
formalizar o com plexo de Edipo freudiano e construir as relações
entre o objeto do fantasma e o significante, ele nos ensina, em um
salto surpreendente, que a mulher não se reduz ao objeto a do
fantasma sexual. O enigma freudiano da feminilidade —esse habitante
anônimo de um “continente negro” —alcança formalização inédita.
A feminilidade, em sua versão lacaniana, é um a posição na sexua­
lidade que obedece à lógica do não-todo, situando-se “mais além da
m etáfora edipiana” . Para designá-la, Lacan se serve, de m odo
inédito, do m atcm a S (fi.), distinguindo-o do materna do fantasma
m asculino: $ 0 a.
A introdução das fórmulas da sexuação perm ite a Lacan propor
duas maneiras de fazer suplcncia à desproporção entre as palavras e

" Jacques Lacan. Le Séminaire, Livre XX: Encore (1972-3). Paris: Seuil, 1975, p.
75.
Jacques-Alain Miller. “Le dernier enseignement de Lacan”, La Cause Freudienne,
n° 51, 2002, p. 7-34.

A prática lacaniana na civilização sem bússola 69


as coisas, isto é , à inexistência da relação sexual. Do lado m asculino,
o parceiro do hom em é o fantasma, $ 0 a, ou seja, é com o incons­
ciente que ele faz amor. Do lado feminino, não e o sujeito quem c
barrado, pois é o O utro barrado ( j o parceiro da m ulher. Do
lado da m ulher, o gozo se divide em gozo da fala e gozo do corpo.
Seu parceiro, o hom em que p orta o falo, o significante do seu
desejo, pode scr elevado por ela à dignidade de Deus e amado
I ilim itadam ente. D o lado m asculino, a castração é a condição da
,, identificação de cada um com a exceção, com o Nome-do-Pai. A iden­
tificação organiza a classe segundo um a lógica “para todos” , em que
a posse de um atributo real (um pênis) é condição para o perten-
cimento a um a comunidade baseada no desejo inconsciente. O real
em excesso se apresenta sob a forma do hom em excepcional. Do
lado feminino, não existe a exceção à castração que fundaria a classe.
N ão há esse atributo (x), o pênis, o falo, que ancora no corpo o
traço unário (S ). O real, nesse caso, não depende da castração,
isto é, da sujeição de cada indivíduo particular à condição de possuir
esse único e m esm o atributo. O real é sem lei. A mulher é não-
toda. D izer que a mulher não existe significa afirmar que ela não se
constitui na dependência de um a identificação com o m odelo. As
m ulheres se contam um a a um a, não form am um conjunto ou
série, tam pouco algo que dependa de um a regra de form ação.
A vertente feminina da sexuação, portanto, é a via para com pre­
ender a passagem de uma clínica do sintoma à clinica do sinthoma.
Enquanto a primeira visa decifrar a verdade do enigma, a interpretação
do sentido inconsciente do sintoma, a segunda prom ove o sinthoma
como o afeto irredutível ao efeito de sentido, rebelde ao inconsciente.
O indivíduo afetado pela alíngua tem um corpo que não nos perm ite
reduzi-lo ao sujeito do significante. O afeto é indecifrável e é preciso
saber/fazer com isso alguma coisa, tal como fazem os artistas.

70 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


A a tu a liz a ç ã o d a d ire ç ã o d a c u ra
p s i c a n a l ít i c a e d o s p r i n c í p i o s d o s e u p o d e r

As conferencias de Serge Cottet em novembro de 2003 apresentaram


uma releitura da direção do tratamento que nos perm item destacar
dois eixos essenciais. Em prim eiro lugar, a absoluta atualidade dos
princípios do poder da cura psicanalítica, tal com o retom ados por
Lacan há mais de quarenta anos. Esse foi tam bém o tem a do último
Congresso da Associação Mundial de Psicanálise: “A prática lacaniana
sem standards, mas não sem princípios” . O segundo eixo se refere
ao fato de que, se a prática lacaniana é sem standards, isso exige
atualizar c reinventar o dispositivo analítico para enfrentar os novos
sintom as, aqueles que resultam dos avanços do discurso da ciência
e aprofundam a rejeição ao inconsciente. Com o Serge Cottet recorda,
as mudanças que sobrevêm à teorização lacaniana, em particular no
que concerne à introdução do objeto a, antecipam “a ascensão do
objeto a ao zénite na civilização contemporânea, tomando o conceito
de gozo, pouco a pouco, o lugar c a importância do conceito de
Nom e-do-Pai”13.
Em bora C ottet reconheça que o texto de 19S8 exibe um bom
núm ero de sintomas clássicos que fazem obstáculos à cura analítica,
não deixa de sublinhar enfaticamente que os sintomas contem po­
râneos apresentam novas dificuldades. A im portância concedida
por Lacan cm sua teorização à psicose, ainda de acordo com Cottet,
é absolutamente crucial para responder aos obstáculos tanto clássicos
quanto novos. Ao pôr toda a ênfase na dimensão de gozo do sintoma,
apresenta-nos uma nova idéia, a do sintoma com o solução e não
apenas compromisso diante de um conflito. Em suas próprias palavras,
“as inúmeras anotações de Lacan sobre a psicose têm , entre outras
coisas, repercussão sobre a concepção do sintoma na neurose. E o

13 Cf. a página 16 deste volume.

A prática lacaniana na civilização sem bússola 71


sintoma como defesa contra o gozo, suplência às carências simbólicas,
mais que enigma a ser decifrado” . Com grande acuidade clínica,
adverte-nos de que o texto sobre a direção do tratamento ensina
ainda a interpretar à luz da chave fálica, isto é, da diferença entre
demanda e desejo. Nessa época, o m odelo da abordagem de um caso
de anorexia ainda é o da “bela açougueira”. Com o Lacan ensina, ela
se priva daquilo que demanda (o falo) para poder continuar a desejar
e encarnar o falo em lugar de recebê-lo. Assim , de acordo com
Cottet, uma outra concepção do que seja o sintoma é absolutamente
essen cial n os dias de h oje para abo rd ar as an o rexias. O que
encontramos sob a greve de fome não é um desejo disfarçado sob a
recusa do objeto da demanda, mas sim o gozo com a sensação de
fome. Esse gozo sintomático é puro desperdício e implica um novo
estatuto do corpo que não é histérico e m obiliza, em toda sua
intensidade, a pulsão de m orte. Não se trata, nesses casos, de um
sintoma como compromisso interpretável, porém de uma vontade
gozo que se manifesta de forma absolutamente antinômica a todo
esforço terapêutico. N os novos sintomas de anorexia, quando se
consegue que essas m oças com am , torna-se possível que elas se
suicidem .
Com a autoridade de quem foi orientado cm sua tese de douto­
rado pelo p róp rio Lacan, C o ttet não hesita em afirm ar que a
definição de sintom a freudiano provém da clínica da neu rose,
enquanto a definição lacaniana se aperfeiçoa tendo com o base a
psicose. É justam ente essa afirmação que tom arei com o orientação
de m eu raciocínio. Penso que se pode apreender seu alcance por
m eio da tese de que a psicose redim ensiona toda a direção da cura
na clínica lacaniana. Em particular, penso que as teorias da fem i­
nilidade e do fim da análise de Lacan devem à psicose sua profunda
origin alid ad e em relação à teo rização freudian a. E sse p a sso ,
acrescento, é uma resposta necessária às transform ações do sujeito
c da cultura que conduziram ao declínio da autoridade dos ideais e
ao culto dos ob jeto s de satisfação na civilização do consum o.

72 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


Tratava-se de abordar a clínica prescindindo do significante, do
Nom e-do-Pai, do objeto a. Tratava-se de extrair da universalidade
o fato cle que o ser falante, habitado pela letra, sofre em seu corpo
os efeitos da língua. O sinthoma, tanto na neurose quanto na psicose,
sem pre é uma suplência à carência da função paterna. A clínica do
sinthoma, portanto, interessa-se mais pelo que os reúne do que
pelo que os diferencia. Vejam os um pouco mais, então, o que as
novas proposições lacanianas sobre o gozo na fem inilidade e na
psicose trazem para a direção da cura psicanalítica e para o fim da
análise na civilização contemporânea.

O q u e p o d e m o s sa b e r, fa z e r e
e s p e r a r d e p o i s d e u m a a n á lis e ?

A presidência da lógica do não-todo desloca a primazia da inter­


pretação do sentido inconsciente. As novas form ulações sobre a
feminilidade renovam os princípios do poder da direção da cura
analítica. R ecordo a reflexão lacaniana sobre a ética, para repensar
o poder da prática psicanalítica para além dos standards na civilização
utilitária, contábil e contratual. E o analista quem dirige essa prática
limitada à função e ao cam po da palavra e da linguagem . Nas palavras
de Lacan, “eis por que o analista é m enos livre em sua estratégia do
que cm sua tática. Vamos adiante. O analista é ainda menos livre
naquilo que domina a estratégia e a tática, ou seja, cm sua política,
onde ele faria melhor em sua falta-a-ser que em seu ser” 14.
É im portante frisar que, nesse m om ento de seu ensino, Lacan
retom ava as questões kantianas essenciaisIS. Que posso saber? Que
devo fazer? O que me é perm itido esperar? Em sua resposta, recorda

14 Jacqucs Lacan. “La dircction dc la curc analytiquc ct les príncipcs dc son


pouvoir” . O b. cit., p. 589.
11 Jacqucs Lacan. “Télóvision” (1973). Em: Autres écrits. Paris: Scuil, 2002.

A prática lacaniana na civilização sem bússola 73


que o saber é suposto como sujeito do inconsciente . Trata-se, portanto,
de um a questão lógica: não posso saber nada que não tenha estrutura
de linguagem. Sua resposta não repete a resposta kantiana, nem
pretende que o hom em tenha o tipo de liberdade própria ao celi­
batário, pois este aspira a uma liberdade absoluta e se recusa a sujeitar-se
à particularidade do objeto de seu interesse. A razão para Kant implica
um a ética a priori, dependente da experiência abstrata, racional,
universal, científica. Seu referente é negativo, e por isso o acesso
ao objeto de um a ética com valor universal não pode tom ar o
caminho da diversidade e da particularidade dos bens, do prazer e
da felicidade individuais. O caminho da razão prática em Kant, ao
contrário do que se poderia pensar, não redunda em uma hipótese
delirante sobre o bem , pois no cam po m oral nada se funda por
m eio da “razão pura” . Só se chega ao universal por m eio do exam e
dos objetos particulares da afeição individual, realizando-se então a
disjunção entre o que é particular e o que é universal, lógico,
estrutural. A lei moral deve ser extraída ao término de uma profunda
ascese como “pura voz na consciência”, aspecto a que voltaremos em
seguida. Segundo Kant, como os interesses particulares e afetivos
não podem regrar o interesse universal, o julgamento moral deve se
dissociar perfeitamente do juízo afetivo.
Para Lacan, psicanalista, à diferença do que advoga a moral
kantiana, o real no discurso em que se articula o inconsciente não
pode se reduzir à universalidade16, pois o real, considerado nessa
vertente17, apenas apaga o objeto causa desse discurso que é sem pre
singular. Segue-se disso que um analista ,«5 pode fa z e r aquilo que fa z :
extrair de sua prática uma ética do bem dizer. Considerando-se que o
sujeito que fala não é, livre em suas relações com o objeto de seu

115 Com o demonstram os acima, o real, quando reduzido à universalidade da


lei, confundc-sc com o lugar de exceção do pai m orto.
17 Jacques Lacan. “Télévision” (1973). Oh>. cit., p. S 4 1 .

74 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


desejo, trata-se de não deixá-lo abrir mão dele. E como toda ética é
relativa ao discurso que a sustenta, é obrigatório concluir que “saber
o que fazer” é algo próprio ao discurso analítico. D o m esm o m odo,
perguntar o que se pode esperar de uma análise é de certo modo
tautológico. Só espera algo de uma análise quem já está engajado na
tranferência, em uma relação com o sujeito suposto saber. Ao dizer
isso, Lacan conclui que a análise não é recomendada aos canalhas, aos
non-dupes'* , aos que não supõem saber ao Outro. U m aspecto muito
importante da civilização contemporânea é a promoção de um discurso
da autopiedade, da vitimi/ação, com efeitos de não responsabilização
devastadores. Com o recorda Cottet, oferecer análise aos delinqüentes <
significa lhes oferecer um recurso para alimentar as auto justificativas.
Depois de Lacan19, já não se ignora que a moral kantiana e sua
aspiração universalizante (o imperativo categórico) dependem de um
objeto patológico: a “voz na consciência”. Recentemente, Miller20
sugeriu uma hipótese esclarecedora acerca das quatro palavras em
latim que encerram o com entário kantiano sobre o im perativo
categórico no fim do primeiro capítulo de Crítica da razão prática: sic
volo, sic jubeo2' . Em sua hipótese, esclarece que encontrou essas
palavras no sexto capítulo de Sátiras, de Juvenal, escritor satírico
rom ano, no trecho em que ele aborda as razões pelas quais um
hom em deve ou não se casar. Caso a caso, ele dem onstra que não
se deve casar com mulher alguma. As palavras hoc volo, hoc jubeo
aparecem no m om ento cm que ele advoga um a ética do celibatário,
justificada com base nos prejuízos que um a m ulher causa a um

ls Aqueles que não acreditam nos semblantes, isto é, nos significantes-mestre


que ancoram as identificações. A palavra semblante tem sido usada também
para designar o objeto a, mas não é disso que se trata aqui.
19 Jacques Lacan. “Kant avec Sade” (1 963). Em: Ecrits. Ob. cit., p. 765-92.
20 Jacques-Alain Miller. “Une incroyable éxaltacion” . Em: Lakant. Collection
Huysman, Dif. N avarin/Seuil, Paris: , p. 27-42.
21 Assim desejo, assim ordeno.

A prática lacaniana na civilização sem bússola 75


hom em . A tirania do capricho feminino é a fonte cm que se inspira
a voz do dever na consciência, provando que a m oral universalizante
masculina, que subm ete todos os hom ens à castração, alimenta a
sujeição ao supereu e incita ao gozo na transgressão. A voz c o
objeto patológico, resto da Coisa (das Ding) que ressurge parcializada
sob as espécies do gozo não-todo, o objeto a. Por isso, o discurso
analítico prom ove o objeto a voz no lugar de agente, extraindo o
ser falante da sujeição à voz do supereu, como se pode ver na fórmula
do discurso analítico

a -»

Quando Lacan lança uma nova resposta ao enigma da fem ini­


lidade e postula um outro gozo, o gozo do ser falante, redefine o
cam po do patológico. O sujeito determinado pelo sim bólico, que
“um significante representa para um outro significante” , é sujeitado
à voz. O serja la n te , S (/í.), que não encontra no cam po do O utro
um significante que lhe corresponda, é o agente da voz. Ele é igual a
S sozinho, ímpar, sem Outro. Ele ex-siste ao inconsciente e à cadeia
dos significantes. A voz é um objeto incluído no significante e é causa
do gozo: vivifica o corpo falante. Logo, lá onde isso fala, isso goza
d ’alíngua. A palavra aparelha o gozo c, cm princípio, não se dirige
ao outro, nem enseja um diálogo. É preciso, todavia, distinguir, no
que diz respeito a essa nova patologia, os gozos que ela aparelha: o
blablablá e o ato de nomeação.
O blablablá reforça a tendência contem porânea ao relativism o,
ao subjetivism o, ao psicologism o. Explico-m c. O declínio da função
paterna se faz acompanhar do avanço das reivindicações a um iguali-
tarism o dem ocrático. O valor da palavra que nom eia e funda uma
verdade sem garantia na tradição se esvazia em proveito seja do
consenso, seja do direito de cada um à sua opinião. Quando todo

76 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


mundo tem razão, toda razão se reduz à opinião. Em vez de se
pautar pela palavra assim étrica com valor oracular, a sociedade
busca o consenso entre pares, isto é, a verdade com o contrato inter-
subjetivo. M esmo a experiência analítica se arrisca a reduzir-se a
uma experiência auto-expressiva, estética e puram ente narrativa.
Tal vertente democratizante da prática analítica vem encontrando
adeptos, por exem plo, entre psicanalistas da IPA que compartilham
com seus pacientes o pensamento, a associação livre e a comunicação
de sentim entos. Essa prática cognitivista resulta em um a espécie
de experiência analítica a dois, estando o lugar do analista sob o risco
de ser rebaixado ao dc um avalista benevolente que se limita a sancionar:
“Assim é se lhe parece”. Esse gesto releva menos da ironia socrática,
que se fazia guardiã da coerência do Outro, que da debilidade mental
generalizada, própria à doença da mentalidade que assola a contabi­
lidade do gozo útil na cultura pós-modema. O valor oracular do signi-
ficante, reduzido à banalidade do blablablá, esvazia-se, contribuindo
para aprofundar o desencanto na civilização.

A c l ín ic a d o s i n t h o m a e o q u e
e n s in a a e x p e riê n c ia d o p asse

C om o nos servir de S (A), de sua afinidade com a lógica do não-


todo e com a experiência em análise da inexistência do O utro, sem
despencar no abismo das práticas democráticas c intersubjetivas,
nas reivindicações igualitárias ou no gozo do individualismo autista?
Refaçam os a pergunta nos seguintes term os: com o a lógica do não-
todo afeta os princípios do poder da cura analítica, quais sejam , a
ética, a tática, a estratégia e a política do analista? N ossa bússola na
resposta a essa pergunta são as proposições dc Millcr sobre uma
clínica continuísta ou clínica do real, cm contraste com um a clínica
descontinuísta ou estrutural. Para evitar dificuldades posteriores,
advirto que uma clínica não substitui a outra, pois se trata de ir

\>o V to \. 4' ^ 'J '\: >Âxn\(x}

A prática lacaniana na civilização sem bússola 77


alem dos limites da perspectiva estruturalista para m elhor responder
aos sintomas do avanço do discurso da ciência na civilização. Esse
avanço pode ser traduzido formalm ente como se segue:
1) O advento da ciência m oderna desloca o significante oracular
(Sj) do lugar de agente, o m esm o que o seu no saber antigo.

2) A ciência m oderna prom ove no lugar do m estre o sujeito


($) separado da verdade (S ^ . Trata-se da em ergência do sujeito
da ciência, um sujeito dividido.

3) O discurso da ciência contem porânea situa o saber (S 2),


separado do sujeito ($), em posição de agente. Trata-se do que
foi referido acima: um a nova aliança entre o m estre e o saber.

D IS C U R S O D O M E ST R E A A
$ a

D IS C U R S O DA C IÊN C IA M O D E R N A
$ —> s,
a
s2

D IS C U R S O DA C IÊN C IA C O N T E M P O R A N E A A —> a

s, T
As fórm ulas da sexuação m ostram que o gozo não é apenas
mortificado pelo significante, tal como se verifica no eixo de um a
lógica masculina que nos sujeita à castração. Em sua vertente femi­
nina, não-toda, o gozo é vivificante. A inversão de perspectiva22
quanto aos efeitos do significante sobre o gozo (de mortificador à
vivificante) soluciona o ponto que Freud não conseguiu ultrapassar: o
impasse do rochedo da castração referido ao término de uma análise.

22 Cf. o sexto paradigma do gozo em Jacqucs-AIain Miller. “Les six paradigmes


de la jouissance”, La Cause Freudienne, n“ 43, 1999, p. 24.

78 E feitos terapêuticos na psicanálise aplicada


Penso que, nesse ponto, podemos extrair as conseqüências da afirmação
de Serge Cottet sobre a teoria do sintoma em Freud e em Lacan. O im­
passe freudiano é a conseqüência de que sua teoria do sintoma depende
da estrutura da neurose. Já a solução lacaniana se liga a seu ponto de
partida na teoria da psicose. Após 0 Seminário, livro XX: mais, ainda
(1972-3), o famoso rochedo da castração deve ser interpretado como a
identificação com o falo que limita a palavra à comunicação, à relação
entre significantes. Em “Análise terminável e interminável” (1937),
Freud afirma que o falo e a castração funcionam como um rochedo
intransponível no fim de uma análise, definindo-o como obstáculo para
o acesso à feminilidade. Resolver o enigma da feminilidade, responder
à questão do “que quer uma mulher”, foi a via que ele nos legou para
avançar no que concerne ao fim da análise, justamente o que a lógica
do não-todo permite fazer, ao contrapor à identificação fálica o gozo
autista sem Outro. Em uma análise, a solução do enigma da feminilidade
equivale à descoberta da universalidade da castração. Não há exceção à
castração. Dizer que o Outro não existe, que ele é um Outro barrado
($ ), significa apostar no desastre do Outro, ou seja, equivale a postular
que, no termino de uma análise, haverá necessariamente uma vacilação
do falo como significante da identificação, bem como das posições
sexuais masculina e feminina que lhe são correlatas: a ameaça de
castração e o Penisneid. O corpo falante é o significante (S^ ímpar de
um a verdade que é sem Outro (A), isto é, sem S . Dito de outro
m odo, a tese de que o “inconsciente se estrutura como linguagem” cede
lugar a uma formulação mais precisa, pois Lacan passa a sustentar que
seu inconsciente não é o da lingüística, e sim o da lingüisteria, quer
dizer, de alíngua ,
Pois bem , esse ponto pode nos servir de introdução à clínica
continuísta que Miller formalizou com o uma clínica universal do
delírio, isto é, a clínica da foraclusão generalizada. O eixo dessa
clínica é a tese de que todo mundo delira. Mas, então, com o term i­
naria um a análise? N a produção de um sujeito desidentficado, que
verificou que todas as verdades são relativas e, finalmente, concluiu

A prática lacaniana na civilização sem bússola 79


que não há nada nesse m undo que não se reduza à pura ficção? Em
um sujeito que atravessou os véus de seu fantasma e agora sabe o
que quer e com que se satisfaz?
O m atem a (Jji) —> S, eis a tese de M iller23, escreve o que subsiste
ao desastre do O u tro, do encontro com fli, com a inexistência
sexual, com o O utro que não existe: “ Eu inscrevo com esse signi-
ficantc a tese, a posição, a afirmação daquilo que se coloca fora do
que acaba de desabar, daquilo que se coloca com o resultado do que
se anula e se apaga”24. O significante que se situa fora desse O utro
que acaba de desabar e o significante da ex-sistencia, um significante
absoluto que não é relativo à cadeia de onde se destacou. Esse signi­
ficante designa a posição do real e é correlato ao “O utro que não
existe”. N esse contexto, o esforço de Lacan cm fundar uma cx-
sistência, se consideramos o ensino recente de Miller, renova-se justa­
mente em 0 Seminário, livro 20. O saber na cadeia significante é tão-
somente suposto, sendo o sujeito que nela emerge um sujeito suposto
saber. Nenhum analista se preocupa cm verificar sua adequação à
realidade externa. Com o Miller recorda, Lacan recom enda no início
do seu ensino que a análise deve se fixar ao sujeito com o suposto
daquilo que ele diz. E precisa: “essa suposição não é um a existência” ,
seu sím bolo é $. Ainda segundo M iller, Lacan pensou de várias
maneiras ao longo do seu ensino com o, partindo da suposição de
saber, seria possível alcançar um a realização do sujeito, uma ex-
sistência, algo de real.
Isso m e leva à conclusão de que as diferentes formulações sobre o
fim de análise que encontramos em Lacan foram diferentes maneiras
de conceber o saldo real da experiência analítica. A assunção da cas­
tração c a destituição subjetiva, a lógica do fantasma c a invenção do
objeto a foram, cada uma delas cm seu tem po, maneiras de pensar a

2i Jacques-Alain Miller. “L ’ex-sistence”, La Cause Freudienne, n "5 0 , 2002, p. 1 1.


’4 Jacques-Alain Miller. “L ’ex-sistence”, La Cause Freudienne, n "5 0 , 2002, p. 1 1.

80 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


passagem da suposição à existência. Em seu último ensino, o Real
sem lei e fora do sentido é um a maneira de pensar o fim de análise e
a ex-sistência. N o percurso de uma análise, a destituição do sentido
produz como efeito do significante um Real que se sustenta por si
m esm o. Fora do O utro, o serjalante, na condição de significante, é
sem lei, é Real. Assim, a interpretação do analista não é apenas a
palavra que revela a verdade. O esscndal é que a contingência de seu ato
seja um savoirjaire que participe da criação. Em suma, após 0 Seminário,
livro 20, o ato do analista não visa decifrar o sentido, mas sim nomear o
Real.

A p o s iç ã o p s ic ó tic a e a e s tr u tu r a p s ic ó tic a

As conferências de Serge C ottet no Brasil tam bém renovaram a


necessidade de pensar a clínica psicanalítica na civilização pós-edi-
piana, na qual os sujeitos, desprovidos dessa bússola, são levados a
absolutizar o valor do seu sintoma como suplência ao declínio da
função paterna. Colhem os a alienação do sujeito nos sentidos colcti-
vizados quando o saber ocupa a posição de agente do discurso,
apagando a enunciação do ser falante. Serge C ottet se pronuncia
assim sobre os m otivos externos e as num erosas pressões que nos
chegam do contexto social, exigindo de nós o abandono da ética do
d esejo cm proveito de intervenções que sirvam à redução dos
problem as sociais. O trabalho nas instituições nos confronta com
casos que parecem justificar a prevalência do ponto de vista psicos­
social sobre o psican alítico. O peso real da exclusão social, da
m arginalidade e das perturbações da identidade social dissim ula
estruturas e tipos clínicos encontrados tam bém na prática privada.
Em m uitos casos, encontram os o sujeito cm um a posição psicótica,
tornando-se um grande desafio restabelecer a diferença entre um a
psicose ordinária e um a doença da mentalidade. U m a clínica do
detalhe, do caso a caso, vem se opor à tendência dom inante na

• L?
A prática lacaniana na civilização sem bússola
ciência em tem pos de D SM IV . No lugar de nos servirmos de com pa­
rações e generalizações estatísticas, procuramos destacar o aspecto
mais singular do sujeito, o que ele tem de incom parável. N ós o
com param os consigo m esm o ou, com o propõe M iller, “um incom ­
parável ensina sobre o incom parável” .
As condições éticas tanto da demanda quanto do exercício da
psicanálise no mundo globalizado exigem de nós a aposta na potência
de tom ar o ser falante como ex-sistência, como real. Dito de outro
m odo, é preciso restaurar a ex-sistência do ser falante ante a consta­
tação de que o aprofundamento da inconsistência do Outro com seus
comitês de ética25 e o esvaziamento de toda palavra oracular26 ameaçam
mergulhar a experiência da fala na reciprocidade do diálogo e na simetria
da relação intersubjetiva. O laço analítico precisa restaurar o princípio
dessa prática, o valor da dissimetria entre sim bólico e real. O ato
do analista se contrapõe ao avanço do discurso da ciência e de seus
aparelhos de gestão da saúde mental e do m al-estar27, que parecem
prometer um estado generalizado de não responsabilização do ser falante.
Assistimos hoje a um a banalização maciça da palavra, que renova a
exigência dc fidelidade aos princípios do seu poder. C om o bem
form ulou Lacan: “que a isso renuncie, principalmente, aquele que
não consegue incluir em seu horizonte a subjetividade de sua
época”2S. Sustentam os, portanto, uma prática da fala cada vez mais
conflitante com os valores da cultura.

25 Erie Laurent & Jacques-Alain Miller. “L ’Autre qui n'existe pas et ses comités
d ’éthique” (1 996-7). Inédito, aula I.
26 Jacqucs-Alain Miller. “Un éffort dc poésie” (2002-3). Curso do D epar­
tamento de Psicanálise dc Paris VIII, seções I c II.
27 Jacques-Alain Miller & Jean-Claude Milner. Evaluation: entretiens sur une
machine d ’imposture. Paris: Agalma, 2004, p. 7-30.
28 Jacques Lacan. “Fonction et champ dc la parole et du langage” (19S3). Em:
Écrits. O b. cit., p. 321.

82 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


D ito isso, passo a descrever de que m odo utilizo o que desenvolvi
até aqui no que concerne à posição do sujeito em nossa civilização.
Em prim eiro lugar, explicarei por que julgo proveitoso distinguir
a psicose como condição universal, em que o sujeito reduzido ao
significante ímpar não tem O utro, da psicose resultante da foraclusão
do N om e-do-Pai. É preciso ainda distinguir ambas de um a terceira
condição, a do sujeito cuja posição é psicótica cm conseqüência de
sua posição discursiva, haja vista que, no discurso que o determ ina,
o lugar do agente não é ocupado por $, o sujeito dividido, nem por
Sj, o significante m estre, e sim por S2, o saber.
A m odernidade é filha do advento da ciência. A universalização
dos direitos do hom em convida ao declínio da função do pai de
humanizar o desejo. Os princípios de igualdade, fraternidade e liber­
dade liberaram a força de trabalho das relações de submissão feudal
ao pátrio poder, levando o homem m oderno a uma nova servidão:
seu direito e sua liberdade são limitados pela exigência de igualdade
co m o u tr o h o m e m . O c re sc im e n to do in d iv id u alism o e o
investimento progressivo na im agem narcísica, no eu, caminham
ao lado dos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. N esse
contexto, vida e m orte como experiências intoleráveis, traumáticas,
únicas, tendem a ser apropriadas pela administração pública dos
direitos coletivos ou pelas em presas de segurança privada.
Em nossa pesquisa, acompanhamos a tese milleriana de que
“não há clínica do sujeito sem clínica da civilização”29. Essa orientação
é uma conseqüência do axiom a “o sujeito sobre o qual a psicanálise
opera é o sujeito da ciência”30, em que a ciência é uma das m odali­
dades do discurso do m estre. O discurso do m estre é aquele que
tem um significante, isto é, um nome próprio na posição do agente
que comanda o processo identificatório (S | —>S2). Esse significante-

29 Jacqucs-AIain Miller & Jcan-Claude Milncr. Évaluation: entretiens sur une


machine d’imposture. Ob. cit., p. 46.
30 Jacques Lacan “La science et la vérité” (1 966). Em: Écrits. O b. cit., p. 858.

A prática lacaniana na civilização sem bússola 83


m estre é o significante em nom e de quem eu falo. Para nós, Freud,
o fundador desse campo de investigação que é o nosso, é o significante
em nom e do qual nos autorizamos psicanalistas.
Chamamos de discurso da ciência uma variante do discurso do
mestre contemporâneo que ignora a dívida do significante com a origem,
com o ato de fundação de um campo de conhecimento. Em nome da
ciência atual, sustentamos um saber que se pretende autônomo cm
relação ao desejo de seu criador. Esse anonimato do lugar da enunciação,
todavia, engendra uma posição discursiva sem sujeito: um discurso
que não deve nada e nada quer saber sobre as origens. Assim com pre­
endemos por que Lacan insistiu cm dizer que o discurso da ciência
foraclui o sujeito, o nome próprio, o índice da dívida com o fundador.
O discurso da ciência, que em sua versão m oderna prom oveu a
histericização do sujeito, tem se mostrado, em sua versão contem­
porânea, solidário à demissão do pai na civilização.
Entendemos por função paterna a relação de um sujeito com um
significante cm nome do qual ele fala. A esse significante ele deve o
dom simbólico, isto é, a transmissão da causa do seu desejo. Sem o
apoio nesse significante-mestre, a causa do sujeito, sua angústia, sua
divisão subjetiva ficam à deriva, isto é, não alcançam uma simbolização
estabilizante, a identificação com o Nome-do-Pai. O gozo deslocali-
zado é um cxccsso traumático. A posição do sujeito, sem o apoio no
significante-mestre, e uma posição discursiva psicótica, sendo essa a
deslocalização que uma análise se propõe a retificar. N os term os de
Lacan, a “psicanálise visa reintegrar na consideração científica o Nome-
do-Pai”31.
A clínica psicanalítica enfrenta hoje uma nova questão preli­
minar a todo tratam ento possível da psicose32. O s novos sintomas

J Jacques Lacan “Lascience et la vérité” (1966). Em: Ecrits. O b. cit., p. 874-5.


12 Sobre essa perspectiva, recom endo a leitura do artigo de Cario Viganò.
“Line nouvelle question préliminaire: l’exem ple de la toxicomanie” , Mental,
n° 9, 2003.

84 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


<lc nossa civilização são muitas vezes sintomas típicos, assemelhando-
se de tal maneira, que parecem ter sido produzidos em um a cadeia
d e f a s t fo o d . Acredito inclusive que a emergência desse fenômeno
está correlacionada ao declínio da enunciação singular do sujeito,
além de muitas vezes dificultar o diagnóstico diferencial entre um
sujeito cuja posição discursiva é psicótica, anônima, desidentificada,
c a psicosc com o estrutura, haja vista que aprendem os a correla­
cionar a última com a presença do delírio.
Para prosseguir na investigação inaugurada por Lacan sobre os
efeitos da foraclusão generalizada no mundo globalizado, produzida
pelo declínio progressivo da função paterna na civilização, precisamos
repensar tanto as demandas quanto o exercício da psicanálise. À medida
que a lei simbólica declina, proliferam os contratos intersubjetivos que
se esforçam para dar estatuto simbólico ao estádio do espelho. O de­
clínio da organização edipiana do laço social, o avanço do discurso da
ciência e de seus aparelhos de gestão da saúde mental e do mal-estar, o
aprofundamento da inconsistência do Outro com seus comitês de pares
e o esvaziamento progressivo de toda palavra oracular em benefício
de verdades estatísticas aumentam a dificuldade de tratar o real trau­
mático pela neurose ou m esm o pela psicose clássica. Um a questão
preliminar sc im põe cada vez mais freqüentemente a todos aqueles
que praticam a psicanálise: o que é isso que sc apresenta na clínica em
tem pos de declínio da lei e da expansão da lógica do não-todo? Serão
doenças da mentalidade, novos sintomas ou novas modalidades de
psicose?
O afrouxam ento da organização edípica modifica o regim e das
relações entre a cxpcriência do gozo c a lei, ou entre o perm itido c
o proibido. H oje, Estado e Sociedade se equivalem. O novo regim e
dem ocrático rebaixa a lei a um contrato intersubjetivo, esvaziando-
a de seu valor incondicional. N esse novo regim e, o Nom e-do-Pai
está foracluído do sim bólico, não funciona com o tal. O Estado é
precário, m anco, corrupto, endividado c inoperante. O descrédito
afeta as relações dissim étricas, que não são mais percebidas com o

A prática lacaniana na civilização sem bússola 85


legítim as. Trata-se dos efeitos de uma nova m áxim a que ganhou
sua força nos m ovim entos de maio de 1968: é proibido proibir! Na
falta da lei que proíbe, os contratos sociais tentam regulam entar o
gozo por m eio de suplencias imaginárias. Quando a foraclusão do
Nom e-do-Pai se generaliza e representa um m odo de funcionamento
da cultura, torna-se m uito mais difícil distinguir as neuroses das
psicoses. N a clínica, as doenças da mentalidade sc m ostram mais
freqüentes que as doenças do O utro, isto é, as neuroses e as psicoses
clássicas33, tanto aquelas organizadas em torno do com plexo de
Édipo, da causa sexual e da afiliação, quanto as psicoses desencade­
adas pelo encontro com Um Pai. Nas doenças do O utro, o simbólico
é o lugar eletivo das perturbações típicas; o sintoma e o delírio, as
respostas dos sujeitos, neuróticos ou psicóticos, a esse O utro con­
sistente. Por sua vez, chamamos doenças da mentalidade as neuroses
e psicoses em que o O utro dominante na cultura é inconsistente,
não-todo, sendo o corpo e sua im agem , e não a linguagem, o cam po
prcfcrcncial dc eclosão das perturbações. O gozo hiperloealizado c
o gozo dcslocalizado são os m odos dc apresentação do real nos
novos sintomas neuróticos e nos novosjenômenos psicóticos. Distingui-
los é um a tarefa nova e freqüentem ente bastante difícil, pois para
isso não podem os contar com o saber herdado de Freud.
Em uma cultura em que o O utro tende a se apresentar como
inconsistente, com o não-todo, uma clínica continuísta34responde à
pergunta sobre o que fazer quando o sintoma é cada vez mais anônimo
c cada vez menos orientado pela m etáfora paterna. A clínica do

” Segundo Miller, as neuroses e psicoses clássicas são doenças do O utro, pois


a classificação estruturalista as distingue pela presença ou ausência do Nom e-
do-Pai, levando-o a concluir que as neom odalidades de psicose, m ais
ordinárias que extraordinárias, são um a resposta psicótica à rarefação dos
representantes paternos.
34 IRMA (org.) I.a psychose ordinaire. i a cnnvention d’Antibes. Paris: Agalma,
1 9 9 9 , p. 1 0 1 -1 4 3 .

86 E feitos tcrapcuticos na psicanálise aplicada


sinthoma se contrapõe à tendência da cultura em prom over sintomas
anônim os, ou seja, o princípio da prática analítica valoriza o que é
com um à neurose e à psicose: a resposta singular do sujeito. Sem
desprezar, m as tam bém sem nos servirm os exclusivam ente da
diferença entre neurose e psicose, privilegiam os seu esforço, o ato
de nom eação e a defesa contra o real traum ático invasor.

A t e o r i a d a p s ic o s e e m F r e u d e e m L a c a n

N o últim o ensino de Lacan, o con ceito de N om e-do-P ai e a


teorização dos efeitos de sua foraclusão se m odificam , em estreita
relação com a avaliação que realiza acerca dos efeitos dos avanços
da ciência, do capitalismo c das transform ações da cultura na subje­
tividade contemporânea. Seguindo a via sugerida por Serge Cottet,
acreditamos que o objeto a assume, no segundo ensino de Lacan, a
importância concedida inicialmente ao Nome-do-Pai. A relação que o
psicótico m antém com o real propicia, contudo, um ponto de vista
mais abrangente sobre o sinthoma na neurose c na psicose. Esse
ponto de vista as reúne, enfatizando o que têm em comum: a função
de tratamento do real. Tal abordagem, portanto, não parte do Nome-
do-Pai, nem do objeto a: a clínica do sinthoma pressupõe que a
foraclusão é generalizada e não se limita à foraclusão do N om e-do-
Pai, que é tão-somente uma estrutura particular.
Sabem os que a investigação lacaniana sobre a questão da psicose
se inicia na teoria do estádio do espelho, que fundamenta a concepção
de paranóia como confusão m ortífera entre o eu e o sujeito. Em
Freud, dois conceitos, Verleugnung e Verwerjung, procuram distinguir
a neurose da psicose. N ão há, contudo, tese sólida sobre a psicose.
Freud se limita a precisar a defesa e seu fracasso, isto é, a formação
de sin tom as, delírios ou fetiches na n eu rose, na psicose e na
perversão. Em nenhum outro lugar, como no relato do caso do
H om em dos lobos, Freud ofereceu definição mais contrastante com

A prática lacaniana na civilização sem bússola 87


o recalque: “U m a Verdrängung é outra coisa que um a Verwerfung”.
Ele, todavia, não o associa ao recalque originário. M esmo Lacan ate
o seminário sobre as psicoses35 não sabe distinguir o recalque prim or­
dial da Verwerfung do Nome-do-Pai.
Graças ao texto freudiano “N eurose c psicose”36, Lacan deduz
que o recalque originário, ao expulsar um prim eiro corpo de signi-
ficantes, constitui o sujeito, separando o eu da realidade. N a psicose,
há uma falha, falta um significante a esse corpo prim eiro, o que o
leva a introduzir o term o foraclusão para distinguir o m ecanism o
específico da p sico se.'7N essa época, sua teoria da psicose se limita
a descrever o “desmentido” que recai sobre um significante em par­
ticular, o significante do Nome-do-Pai, cuja função designa, no sim ­
bólico, aquele que encarna a lei. N a psicose, como não está arti­
culado no simbólico, retorna no real. A função paterna é essencial
para assegurar um elemento exterior que dá consistência aos limites
do mundo de linguagem em que o sujeito tem assento. Assim, inicial­
mente, o Nomc-do-Pai é identificado com uma imago do complexo
edipiano, tendo Lacan sublinhado que a ausência do pai na família
constituía o terreno favorável para a eclosão de uma psicose. O pri­
m ado da linguagem, porém , leva-o a reconsiderar a função paterna e
enfatizar o aspecto dc que, sob a imagem, está a presença do signifi­
cante, ou seja, de que é na função do significante que se forja o
essencial do conceito renovado de Nom e-do-Pai.
A partir dessa nova inspiração, Lacan formaliza o Edipo freu­
diano, estabelecendo-o em três tem pos. N o prim eiro, “a mãe funda
o pai com o m ediador dc algo que está para além da lei de seu

ia Jacques Lacan. 0 Seminário, livro 3: as psicoses (1 9 S S -6). Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Editor, 1980.
36 Sigmund Freud. “N eurose e psicose” (1924). Em: Obras completas, vol. XIX.
O b. cit.
37 Em francês contem porâneo, o term o significa a perda de um direito não
exercido no intervalo prescrito.

88 E feitos terapêuticos na psicanálise aplicada


capricho e que é pura c sim plesm ente a lei com o tal, o pai, portanto,
enquanto N om e-do-Pai”38. E ela quem transmite o N om e-do-Pai
com o significante de sua falta, de seu desejo. “È enquanto signi-
licante, capaz de dar um sentido ao desejo da m ãe, que a justo
título eu podia situar o Nome-do-Pai”39. N o segundo tem po, graças
a esse ponto de referência no simbólico, a criança pode se identificar
com o objeto mctonímico do desejo da mãe, o falo imaginário. Desse
m odo, a mãe se priva da criança, que encontrará na imagem de um
outro onipotente, interditor, aquele que faz a lei do desejo da mãe.
N o terceiro tem po, o pai transmite a castração. Ele pode ser dito pai
graças à coragem de afrontar a causa de seu desejo, situando um a
mulher cm posição de objeto a causa dc seu desejo. Ele é não apenas
aquele que tem, mas também aquele que dá. E o Pai do Nom e, aquele
que n ’homeia e confere peso sexual às relações significantes.
O ra, essa passagem perm ite redim ensionar toda a teoria da
psicose. A psicose estava relacionada à rejeição ( Verwerfung) do signi-
ficantc fora do sim bólico, e agora a função paterna passa a se sus­
tentar na foraclusão norm al, correlata à do sujeito da enunciação,
que aprendem os a escrever com o m atema S ($ ). N essa ótica, a
foraclusão psicótica é a não função do significante excluído. A nova
idéia, portanto, sustenta que um a ruptura do nó entre a cadeia
significante c aquilo que defora sustenta sua ordenação leva à psicose
e não a pura e simples rejeição do significante prim ordial. O sujeito
da enunciação im põe e regula o gozo, localizando-o por m eio da
fala. O Nom e-do-Pai está em conformidade com a pluralidade dos
objetos a, evocadores de um princípio que só se instaura por m eio
do sacrifício, da castração. Inumeráveis serão, portanto, as modali-

38 Jacques Lacan. Le Séminaire, Livre V: Lesjormations de l ’inconscient (1957-8).


Paris: Seuil, 1998, p. 191.
39 Jacques Lacan. “Le Séminaire, Livre XVIII: D ’un discours qui ne serait pas
du semblant” ( 1970 - 1). Inédito, aula de 16 dc junho de 19 7 1.

A prática lacaniana na civilização sem bússola 89


dades da função paterna que, no silêncio da estrutura, equivalem
ao poinçon que articula o $ 0 a do fantasma fundamental, ou seja, a
m ontagem do fantasma substitui o real traum ático da castração,
do gozo perdido, dirigindo-se para as vias da sublimação.
Em 0 Seminário, livro 22: R .S .I.40, Nom e-do-Pai e sinthoma se
tornam m odos de cscrever a incom pletude do O utro. Falta a este
ao m enos um significante, em bora o objeto a possa tom ar o lugar
desse significante que falta. A idéia de que o O utro é universal,
para todos, dá lugar à idéia de que o “O utro não existe” , havendo
um a diversidade de nom es-do-pai. D essa pluralização do O utro
resulta um a perspectiva continuísta na clínica, que julgo poder
esclarecer com o que se segue. Lacan, nesse sem inário, pluraliza os
nom es-do-pai. Ele apresenta a inibição como a patologia do fazer
ou do laço social, nom eação do imaginário, e a angústia com o a
patologia da esperança, nom eação do real. Esse passo im plica situar
os três registros cm igualdade de condições, fazendo com que o sintoma
e o delírio , patologias da crença ou do saber, não sejam mais os critérios
p o r excelência do diagnóstico de neurose ou psicose. E preciso
considerar também que a inibição e a angústia podem ser defesas
psicóticas.
Eis, enfim, nossa questão preliminar: um sujeito cuja posição é
psicótica é necessariamente um psicótico de estrutura? O desata-
m ento do nó com aquilo que de fora sustenta a ordenação da cadeia
significante —o objeto a, o sinthoma ou o Nome-do-Pai —é suficiente
para descarrilar o sujeito do laço social sem necessariamente oca­
sionai- um delírio? Construir essa orientação é essencial para o trabalho
do analista diante das doenças da mentalidade e das psicoses ordi­
nárias. H oje, a clínica da neurose é habitada por im pulsões, com ­
pulsões, depressões inespecíficas, astenias, conversões histéricas ou

40 Jacques Lacan. “Le Seminairc, Livre XXII: RSI” (1974-5). Ob. cit., aulas de
10 de dezembro de 1974, 14 de janeiro e l i d e fevereiro de 1975.

90 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


psicóticas, além dc fenôm enos psicossom áticos m uito parecidos
uns com os outros. São novos sintomas anônimos, cujo tratamento
costum a conduzir à form ação de conjuntos igualmente anônimos:
os alcoólicos anônimos, os narcodependentes anônimos, os com pul­
sivos sexuais anônimos e m uitos outros. Muitas vezes, não sabemos
distinguir esses quadros de um a psicose não desencadeada. Com o
separar os eventos dc corpo dos fenômenos dc corpo?41 Com o saber
quando um novo sintoma é uma inibição neurótica ou uma suplência
à psicose?
Essa dificuldade em conseguir distinguir uma coisa de outra é
incrementada pela constatação de que atualmente as psicoses são
menos delirantes. O corpo, em suas vertentes real ou imaginária,
vem muitas vezes suprir a carência do simbólico, produzindo uma
nomeação. É esse o caso das neoconversões42 c dos fenômenos psicos­
somáticos, com base nos quais devemos pensar os neodesencadeamentos.
Em geral, estes parecem muito mais com desenlaces ou novos enlaces
c o m o d isc u rso c o m u m , co m o laço so c ia l, q u e g ra n d e s
desencadeam entos, à m aneira das psicoses extraordinárias. Em
outros term os, o corpo em sua vertente real (lesões psicossomáticas)
ou imaginária (neoconversões) é o terreno em que se dão os fenômenos
de encadeamento e desencadeamento das neopsicoses ou psicoses
ordinárias. Por isso, de acordo com uma perspectiva continuísta,
valorizamos não mais o déficit — presença ou ausência da metáfora
paterna — ou a distinção entre sintoma c suplência, e sim a solução
singular que um determinado ser falante arranja para se defender do
real. Tratamos o mal pelo mal. A doença é o próprio remédio43.

41 Jacques-Alain Miller. “Conversation sur les embrouilles clu corps”, Ornicar?,


n° 50, 2003.
42 IRMA (org.) I.apsjchose ordinaire. I.aconrentiond’Antibes. Ob. d t .,p . 101-43.
4i Tania Coelho dos Santos. “ O que não tem remédio remediado está!” , Revista
de Vsicopatologia Fundamental, vol VII, n” 1, 2004.

A prática lacaniana na civilização sem bússola 91


Mas o que faz um analista? O analista, muitas vezes, é o parceiro
de um a neotransferência44, em que o analisando é o agente (a) e ele,
analista, o ($). O papel que lhe cabe e o de aprendiz de um a m oda­
lidade de laço social proposta pelo analisando. Som ente após um
árduo aprendizado é que nos arriscam os a agir, algo que nos desen­
coraja a sonhar com um ideal de fim de análise. O s analistas de
uma clínica continuísta não sonham com a dissolução do gozo, do
real traum ático, nem com a saúde mental! N ão devem os recuar
diante da psicose precisam ente porque, ao aplicar a psicanálise ao
tratam ento do real incurável, ressaltam os o valor do sinthom a
com o solução.

14 I R M A ( o r g .) La psychose ordinaire. La convention d ’Antibes. O b . c i t . , p . 1 4 7 - 9 .

92 E feitos terapêuticos na psicanálise aplicada


A p rá tica entre vários:
p rin cíp io s e ap licação d a psican álise

A ngélica Bastos
Ana Beatriz Freire

A psicanálise se encontra hoje diante de novas tarefas e desafios,


entre os quais se destaca o chamado que é feito ao analista para
sustentar a clínica em hospitais e instituições de saúde. Com o e com
que recursos responder a esse apelo? Surgida na clínica das neuroses,
em particular das denominadas neuroses de transferência, a psicanálise
possui um a genealogia que im põe uma série de exigências à ampliação
de sua experiência para o campo das psicoses. N ão se pode, por
exem plo, transportar o conceito de transferência de um campo para
outro, sem verificar as incidências do funcionamento da estrutura
psicótica em seu estabelecimento e em seu manejo.
Alargar o conceito de transferência e ajustar seu m anejo clínico
a quadros distintos da neurose, bem como a dispositivos distantes
do tradicional, requer, por isso, uma discussão acerca da psicanálise
pura e da psicanálise aplicada, levando-nos à consideração dos prin­
cípios da prática analítica, vale dizer, das condições nas quais a psica­
nálise pode ser aplicada. São essas condições que dem arcam as co or­
denadas para as m anobras, adequações e invenções a serem em pre­
endidas no tratamento com psicóticos e autistas.
Em “A direção do tratam ento e os princípios de seu poder” 1, ao
distinguir política, estratégia e tática do analista, Lacan situou a

' Jacqucs Lacan. “A direção do tratamento c os princípios de seu poder”


(19S8). Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jo rge Zahar Editor, 1988.

93

L
transferência no nível da estratégia, no qual a liberdade é maior que
na política e m enor que na tática. Examinemos inicialmente, então,
as exigências que a psicose e o autismo exercem sobre a tática, a
estratégia e a política do analista ou, em outros term os, sobre sua
ética.
Nessa m etáfora de Lacan tom ada de em préstim o do vocabulário
da guerra c do jo go, há a sinalização dc que a política diz respeito a
algo incontornável, a um ponto em relação ao qual não se pode ceder.
Segundo Lacan, no que concerne à política, ou seja, à direção e às
m edidas que visam aos fins analíticos, o analista deveria situar-se
antes cm sua falta-a-ser que cm seu ser, a fim de realizar um a
operação que toca o “cerne do ser”2. N essa prim eira form ulação, o
vetor que vai da falta-a-ser ao coração do scr já configura h etero­
geneidade e dissim etria entre as partes ou parceiros envolvidos,
não devendo, portanto, ser negligenciado na clínica com psicóticos
e autistas.
O nível da estratégia, no qual se encontra a transferência, com ­
porta m argem para variações sem pre determinadas pelo que o ana-
lisante põe em ato na transferência. Nesse nível, a liberdade é restrita
porque o analista, ao se situar como suporte da transferência, paga
com sua pessoa, emprestando-se aos semblantes. N o tratamento com
psicóticos, a liberdade não é maior; ao contrário, sofre os constran­
gimentos im postos pelo gozo situado no lugar do Outro.
N o nível da tática, que corrcspondc ao da interpretação, o ana­
lista paga com suas palavras. N esse nível, a variabilidade é m aior,
autorizando-nos a antecipar que ela pode mobilizar um ato que não
adquire o estatuto de interpretação, um a vez que não se trata de
decifrar, e sim de cifrar o gozo e escrever o inconsciente. Dito de
outro m odo, não se trata tanto de determ inar sc a psicose c o

2Jacqucs Lacan. “A direção do tratamento c os princípios de seu pod er”. O b .


cit., p. 593.

94 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


autismo são receptívcis à interpretação, mas antes de saber se o ato
analítico é possível na ausência do discurso analítico.
N o texto lacaniano de 1958, os term os ‘política’ , ‘falta-a-ser’
e ‘ser’ estão situados em um referencial que privilegia a relação da
falta com o desejo. Ao pensar a psicanálise em term os éticos, entram
em jo go tanto o desejo quanto o gozo no coração do ser, podendo
nossa questão ser formulada da seguinte forma: com o tocar o gozo
na psicose e no autismo m antendo os princípios da prática analítica
ou com o tratar o real do gozo pelo significante em crianças cuja
im ersão na linguagem não assegura sua inserção em um discurso,
sobretudo o do analista?
As considerações de Lacan se nivelam entre o paradigm a de
gozo situado no eixo imaginário e o paradigma em que o gozo será
“significantizado”3. As significações consensuais e cristalizadas, as
relações recíprocas de ego a ego, constituem o registro em que o
gozo se instala. O analista, para atingir esse registro regido pela
dualidade, precisa situar-se para além dele. Sua ‘falta-a-ser’ invoca
uma posição de neutralidade, cm contraste com seus sentimentos,
assimiláveis às relações eróticas e agressivas em que a libido se satisfaz
no eixo imaginário. Em outros term os, a ‘falta-a-ser’ do analista
pode ser lida como posição esvaziada de gozo, condição indispensável
ao tratamento, e de maior exigência ainda com crianças autistas e
psicóticas, pois a m era presença do outro é vivida como invasão
insuportável e desencadeia uma irrupção dc gozo.
N este artigo, procuramos sustentar a hipótese segundo a qual o
dispositivo da ‘prática entre vários’4na clinica com crianças autistas

3 Jacques-Alain Miller. “Les six paradigmes de la jouissance”, La Cause Freudienne,


n" 4-3, 1999.
4 A expressão “prática entre vários” (pratique à plusieurs) foi criada por Jacques
Alain-Miller por ocasião das duas jomadas do Réseau International d ’institutions
Infantiles (R B ) do Campo freudiano. Cf. Antonio Di Ciacda. “De la fondation
par Un à la pratique à plusiers”, Préliminaire, n ° 9-10, 1988, p. 17-22.

A prática entre vários: princípios e aplicação da psicanálise 95


c psicóticas cm instituições se inspira nos princípios da psicanálise e
prom ove condições para o tratamento do gozo. Essa prática, apesar
das alterações e deformações que representa em relação ao dispositivo
freudiano tradicional, perm ite um trabalho sobre o gozo, mantendo
a heterogeneidade e a dissimetria entre os participantes, isto é, os
vários profissionais e crianças nela reunidos.
A diferença entre esse dispositivo c o setting analítico, especial­
m ente quando este assume uni standard, sem dúvida é enorm e. Um
princípio, porem , não é um padrão de conduta no tratam ento.
Entre um princípio e um standard pode haver m aior ou m enor p roxi­
m idade, mas não coincidência. Trata-se antes de verificar se “ [...]
uma m odalidade prática — ou, para chamá-la por seu nom e, um
dispositivo — é ou não coerente com o principio que a inspira, ou
capaz de relançar ou mobilizar esse princípio”5.
Quais e o que são os princípios da psicanálise? Se em Lacan os
situamos inicialmente na política do analista e em seguida em sua
ética, em Freud eles se enumeram explicitamente no plano dos prin­
cípios que regem o aparato psíquico. O utros princípios, todavia,
enunciam-se nas condições do tratamento que devem ser observadas
por analista e analisante, estando vinculados a acepções distintas do
term o ‘princípio’ . A primeira delas, relacionada aos princípios do
funcionamento psíquico, diz respeito ao ponto de vista econômico da
metapsicologia, que se resume na defasagem entre a homeostase do
princípio dc constância c o além do princípio do prazer, a partir do
qual se define o gozo com o satisfação paradoxal. A segunda se refere
ao que Freud denominava técnica psicanalítica, isto c, ao modus operandi
na psicanálise. Em síntese, estão em jogo dois planos: o da rede
conceituai c, conform e se expressou Lacan cm 1958, o da “ação
analítica” , dc início, c o do “ato analítico” , em definitivo.

s Rom ildo do Rêgo Barros. “Sem standard, mas não sem princípio” . E m : Os usos
da psicanálise. Primeiro encontro americano do Campo Freudiano. Rio dc Janeiro:
C ontra Capa, 2003, p. 40.

96 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


N o recenseam ento que faz dos usos do vocábulo ‘princípio’ ,
Brodsky destaca: a) causa primeira ou fundamento; b) axiom a ou
postulado em sentido lógico-dedutivo; c) lei geral; e d) norma de
ação6. O s trcs prim eiros usos do term o ‘princípio’ equivalem ao
plano teórico aqui mencionado. O quarto corresponde ao sentido
m oral e ético, referindo-se ao plano “técnico” em Freud e à política e
à ética em Lacan. N a clínica, os vários sentidos do term o ‘princípio’
se apresentam sob a forma dc tensões c choques, com o, por exem plo,
a ‘regra fundamental’ na condição de princípio ético contra o princípio
de prazer: a fala em associação livre, o tudo dizer, encontra resistência
e dor.
Assim , nos desenvolvimentos do ensino dc Lacan, podem ser
relacionados alguns princípios da clínica psicanalítica: dissimetria,
imprevisibilidade, convergência e redução. Ao nomeá-los, Brodsky
extrai como denominador comum “a orientação do real”7. A condição
para que um trabalho clínico participe da psicanálise é que ele admita o
real como causa, ou seja, aplica-se a psicanálise valendo-se da orientação
do real.
Entre os princípios m encionados, destacam-se o princípio dc
redução e o princípio de dissimetria, que remonta à concepção freu­
diana de transferência. O princípio de dissimetria supõe a hetero­
geneidade entre a posição do analista e do analisando, já que se trata
de um a “relação” não-complementar. De acordo com ele, a relação
intersubjetiva entre analisando e analista seria impedida pela presença,
entre um e outro, de um terceiro elemento, a saber, a linguagem ou
o O utro8.

6 Graciela Brodsky. Short Story: os princípios do ato analítico. Rio de Janeiro:


Contra Capa, 2004.
7 Graciela Brodsky. Short Story: os princípios do ato analítico. Ob. cit. p. 198.
8 Jacques Lacan. 0 Seminário, livro 8: a transferência (1960-1). Rio de Janeiro:
Jo rge Zahar Editor, 1985.

A p rática entre vários: princípios e aplicação da psicanálise 97


N ão foram poucas, sobretudo nos artigos sobre a técnica, as
advertências de Freud aos primeiros praticantes da análise quanto ao
risco envolvido nas relações recíprocas. Em “Recom endações aos
médicos que exercem a psicanálise” , por exem plo, ele afirma: “nas
re la ç õ e s p sican alíticas as co isas am iúde aco n tecem de m o d o
diferente do que a psicologia da consciência poderia levar-nos a
esperar. A experiência não fala em favor de uma técnica afetiva deste
tipo”9. A experiência do inconsciente implica sem pre alteridade,
razão pela qual a transferência deve ser manobrada na referência a
um terceiro que quebra a simetria.
As ditas recom endações, todavia, não correspondem a regras
fixas, e sim a conselhos (Ratschlage) , indicações provenientes da
experiência. D o lado do analista, a atenção flutuante, a neutralidade
e a abstinência (contra a ambição terapêutica) visam criar “um a
contrapartida à ‘regra fundamental da psicanálise’ estabelecida para
o paciente” 10. A condição que o analista deve preencher para se pôr
a serviço do inconsciente é esta: sua própria análise e, por conse­
guinte, seu desejo com o analista.
Para Freud, cm term os bem am plos, a psicose não seria anali-
sável p or sua técnica porque dificilmente apresentaria fenôm enos
de transferência e, nos casos em que esses ocorressem , não seriam
manobráveis pelo analista pela via da interpretação. Nessa linha, em
“Sobre a psicoterapia” , lê-se que “psicoses, estados de confusão c
depressão profundamente arraigados [...] não se prestam , portanto,
à psicanálise” " . Freud, entretanto, atenua esse enunciado, ao afirmar
logo em seguida: “não considero de m odo algum im possível que,

9 Sigm und Freud. “Recom endações aos m édicos que exercem a psicanálise”
(1912). Em: Obras completas, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1 9 8 0 ,p. 1S6.
10 Sigmund Freud. “Recom endações aos m édicos que exercem a psicanálise” .
O b. cit., p. 154.
" Sigmund Frtud. “Sobre a psicoterapia” (1905). Em : Obras completas, vol. VII.
O b. cit., p. 274.

98 E feitos terapêuticos na psicanálise aplicada


mediante m odificações adequadas do m étodo, possam os ser bem-
sucedidos em superar essas contra-indicações — e assim poderm os
iniciar um a psicoterapia das psicoses”12.
Sem pre atento aos princípios da prática, Freud afirm ava ser
possível manter, nas demais formas de psicoterapia, o essencial da
psicanálise estrito senso: qualquer que seja a form a que essa
psicoterapia [aplicada em larga escala] para o povo possa assumir,
quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha, os seus
ingredientes mais efetivos e mais im portantes continuarão a ser,
certamente, aqueles tomados àpsicanálise estrita e não tendenciosa” 13.
Ao longo do tem po, esses princípios foram rem anejados para
que a psicanálise se aplicasse a sujeitos que não se enquadravam no
m odelo estritam ente freudiano. As adaptações e aplicações cons­
tituem , desde os tem pos de Freud, um a conseqüência de sua intro­
dução nas instituições psiquiátricas ou de saúde m ental, bem com o
de seu uso no tratam ento de quadros de neurose diferentes daqueles
cm que se baseou a experiência inaugural do inconsciente.
Lacan, por exem plo, propôs os term os ‘intensão’ e ‘exten são’
para, no âmbito da transm issão, distinguir, de um lado, a psicanálise
propriam ente dita, form adora do analista, e, de outro, sua presen-
tiflcação na Escola e, a partir dela, no corpo social14. A articulação
entre psicanálise em intensão e extensão envolve um a reflexão sobre
o lugar do analista diante dos diversos cam pos de saber e práticas
autorizadas a operar sobre a loucura. N o âmbito das instituições
voltadas para o tratam ento de psicóticos e autistas, o analista não
apenas se defronta com diferentes discursos e práticas, tais com o a
psiquiatria, a fonoaudiologia e a terapia ocupacional, com o tam bém

12 Sigmund Freud. “Sobre a psicoterapia” . O b. cit., p. 274.


1J Sigmund Freud. “Linhas de progresso na terapia psicanalítica” (1918). Em:
Obras completas, vol.XVII. O b. cit., p. 211.
14 Jacques Lacan. “Proposition du 9 de octobre 1967 sur le psychanalyste de
l”École” (1967), Scilicet, n ° l , 1 9 6 8 ,p .l4 - 3 0 .

A prática entre vários: princípios e aplicação da psicanálise 99


é convocado a renovar a psicanálise e construir novos dispositivos
clínicos.
Assim como o conceito de transferência teve de ser singularizado
para incluir o psicótico em tratam ento, surgem na atualidade de­
mandas que muitas vezes não se definem como demandas de análise
ou m esm o de tratamento, bem como m odos de sintoma que não se
enquadram nos recortes das estruturas clínicas, nem nas técnicas dos
primórdios da psicanálise freudiana. E com os princípios da psicanálise,
no entanto, que se pode responder à especificidade de algumas dessas
tarefas no campo mais extenso da psicose.
A distinção entre psicanálise pura c psicanálise aplicada diz
respeito a seu exercício nos tratam entos cm que não se verificam,
do lado do analisante, ou m elhor, do sujeito, as condições para a
psicanálise em intensão. N o caso em questão, a psicanálise aplicada
está em jo go no duplo sentido de aplicação ao tratam ento em insti­
tuições e de aplicação ao tratam ento de crianças que não ingressam
no laço social, isto é, no discurso.
C om o, então, ela pode ser aplicada ao tratam ento de crianças
autistas e psicóticas sem resvalar para um a prática psicoterápica
qualquer? Q ue a criança autista esteja na linguagem é um a condição
necessária, porém insuficiente para falarmos em psicanálise aplicada.
C om o lem bra Di Ciaccia, “ela não está na linguagem a um só
tem po representada e barrada pelo significante, mas sim com o um
con den sador de gozo” 13. Por essa razão, é im próprio falar em

1S Antonio Di Ciaccia. “Inventar a psicanálise na instituição” . Em : Os usos da


Psicanálise. Primeiro encontro americano do Campo Freudiano. O b. cit., p. 34.
Q ue o autista seja um ser verboso testemunha sua presença na linguagem.
Q ue tape os ouvidos para se proteger do verbo atesta que a função da fala não
está instituída com o m ediadora, daí seu caráter traumático e intrusivo,
capaz de desencadear o rechaço do O utro. C f., respectivam ente, Jacques
Lacan. “ Conférence à Genève sur le symptôme”, Le Bloc-Note da la Psychanalyse,
n °5 , 198S, p. 17, e “Allocution sur les psychoses de l’enfant” (1967). Em :
Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 367.

100 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


.iplicação dos princípios da psicanálise ao autista, pois há um a etapa
preliminar a ser franqueada pela criança: trocar o lugar exclusivo
<le sujeito de gozo pelo lugar de sujeito do significante. O sujeito
do significante, p or sua vez, perm anece na dependência de que o
O utro não se reduza a um a fonte de gozo am eaçador e se torne
cam po da linguagem.
Essa passagem, ao nosso ver, pode ser propiciada pelo desejo do
analista conjugado ao dispositivo da prática entre vários, um a via
para o estabelecimento e o manejo da transferência. Dito de outro
m odo, a experiência com o autismo e a psicose m ostra o quanto a
demanda do O utro é vivida como imperativo de gozo. Diante das
demandas mais corriqueiras, a criança autista envereda pelo rechaço,
enclausurando-se, ou se cristaliza na posição de objeto reduzido a um
prolongam ento do O utro real. O mais freqüente é que ela própria
não demande. Se nós admitimos como princípio não deixá-la entregue
a seu gozo m ortífero, com o responder a sua retração? O desejo do
analista parece ser, se não o único elemento, ao menos o essencial
desse trabalho, uma vez que sustenta a aposta do encontro com o
sujeito.
Quando o O utro não está constituído como campo da linguagem
e a fala não comporta mensagem c endereçamento, o estabelecimento
da transferência segue um curso bem diferente da instalação do sujeito
suposto saber. Sem O utro da linguagem e da fala, o lugar do analista
nessa clínica não é o de semblante de objeto a , nem o de suporte da
transferência articulada com o suposição de saber. Por vezes, nem
m esm o o lugar de outro semelhante lhe é facultado. Nesses casos,
portanto, a dissimetria visa menos remediar a reciprocidade que convidar
a criança a admitir a presença da alteridade. Se a dissimetria remete a
criança a um Outro insuportável, real, pleno de gozo, a estratégia
passa por tratar esse O utro, reduzindo o gozo em prol do significante
em sua função de nomeação.
Trata-se, antes de tudo, de levar a criança a tolerar a presença
de outrem . É nesse ponto que intervém o desejo do analista, indepen­

A p rática entre vários: princípios e aplicação da psicanálise 101


dentem ente da existência do discurso do analista com o laço social.
Sua estratégia é associar-se ao trabalho sem endereçam ento que o
autista já realiza, e sua tática consiste, em vez de interpretar, em
notificar a recepção de um a m ensagem , testemunhando, com seu
ato, o trabalho da criança em seu esforço de produzir-se com o
sujeito. A prática entre vários, ao m ultiplicar os parceiros, deslo-
caliza o saber por m eio do qual o O utro do gozo se afigura avassa­
lador para a criança.
Essa prática, portanto, é, se não um a resposta, ao m enos um a
via para o tratam ento com crianças autistas e tam bém psicóticas.
Mas para quem e a que serve o dispositivo da prática entre vários?
Ao tratam ento do gozo e à criança em vias de produzir-se com o
sujeito. O ponto de sustentação na clinica com crianças autistas e psi­
cóticas, conform e dito acima, é o desejo do analista, condição neces­
sária, mas não suficiente. Por isso, a saída passa pela form ulação de
um a estratégia de aplicação da psicanálise que contem ple tam bém
esses sujeitos para os quais a regra fundamental não faz sentido,
um a vez que não estão representados na cadeia significante.
Em relação ao tratamento em instituições, o interesse da aplicação
da psicanálise já estava presente nas palavras do próprio Freud: “N a
prática, é verdade, nada se pode dizer contra um psicoterapeuta que
combine um a certa quantidade de análise com algum a influência
sugestiva, a fim de chegar a um resultado perceptível em tem po
mais curto —tal com o é necessário, por exem plo, nas instituições.
Mas é lícito insistir em que ele próprio não se ache em dúvida
quanto ao que está fazendo e saiba que o seu m étodo não é a verdadeira
psicanálise” 16.
A questão, portanto, é interrogar a psicanálise na instituição para
que um a “verdadeira psicanálise” seja exercida, vale dizer, para que
ela não se desvie de seus princípios. Faz-se n ecessário, assim ,

16 Sigm und Freud. “Recom endações aos m édicos que exercem a psicanálise”
(1912). O b. cit., p. 157.

102 E feitos terapêu ticos na psicanálise aplicada


inventar um a estratégia para flexibilizar, confirm ar e rem anejar
princípios que possam nortear os analistas no real dessa clínica. N o
cam po da psicanálise dita aplicada, a expressão de Baio “saber não
saber” (savoir ne pas savoir) designa para nós um a tentativa de exercer
o princípio de dissim etria e atualizar, no âmbito da instituição, os
princípios em questão17. Com o observa Stevens, essa form ulação
não se confunde com os três m odos de não saber: a incom petência,
a ignorância c a ingenuidade18. Em outros term os, acreditam os
que Baio evita aproxim ar a psicanálise tanto de um saber a priori
quanto de um a práxis destituída de saber, sem direção, ou seja, ela
deve exigir com petência no trato com o real do gozo, recusar a
ignorância que, por natureza, oscila entre a paixão e a im potência,
bem com o situar, no lugar da ingenuidade, a posição desejante pela
qual cada um entre os vários precisa responder.
Esse “saber não saber” é um “saber a m ais” , no sentido que
inclui na estrutura da linguagem o objeto a, objeto m ais-gozar,
isto é, algo de real que aponta para um furo no saber que se quer
douto e com pleto. Tendo com o direção clínica o despojam ento
estratégico do saber que o dispersa entre vários, atribui-se à criança
a construção de seu próprio saber, seu sintoma. Ao seguir e trans­
form ar o princípio freudiano da dissim etria, o “saber não saber”
dem arca o lugar do analista menos com o detentor de um a suposição
de saber e mais com o analisante ou com o aquele que, com o expressa
Stevens, interroga-se sobre o seu próprio saber que a fantasia não
recobre: “Eu não sei o que você sabe, não sei o que você quer dizer,
não com preendo depressa dem ais, quer dizer, não com a segurança
que minha própria fantasia m e dá” 19. Posição própria do analista

l7Virginio Baio. “Qui interprète dans l ’autisme?” , La Lettre Mensuelle, n ° 148,


abril de 1996, p. 70.
18 Alexandre Stevens. “Le sujet inventif’, Préliminaire, n °l 2, 2000, p. 50.
19 Alexandre Stevens. “Le sujet inventif’. O b. c it., p. 51.

A p rática entre vários: princípios e aplicação da psicanálise 103


que se subm ete a um a análise com o condição da própria profissão:
“o sacrifício que implica revelar-se a outra pessoa, sem ser levado a
isso pela doença, é amplamente recompensado. Não apenas o objetivo
de aprender a saber o que se acha oculto na própria mente é muito
mais rapidamente atingido, e com menos dispêndio de afeto, mas obter-
se-ão, em relação a si próprio, impressões e convicções que em vão
seriam buscadas no estudo de livros e na assistência a palestras”20.
Voltando à lógica dos princípios da psicanálise lacaniana, exa­
m inem os agora o princípio de redução, que contradiz o próprio
funcionam ento do aparelho psíquico e do inconsciente com o enca­
deam ento de representantes com produção de sentido21. O incons­
ciente com o discurso do m estre, isto é, com o aquele que instaura
um traço identificatório perm itindo que os outros significantes se
associem , tende à proliferação22. Assim, o princípio de redução vai
de encontro tam bém à regra fundam ental da psicanálise, já que
tenta reduzir ou m esm o abolir o sentido, as m etoním ias suscitadas
pela própria experiência da associação livre, guiando-se pelo não-
sentido c pelo próprio corte da repetição.
Em relação à psicose e, mais particularmente, ao autismo, pode­
m os indagar se, na repetição que as crianças apresentam diante de
alguns objetos e por meio de seus atos ditos estereotipados, existe
alguma possibilidade de operar analiticamente na via de redução. De
três maneiras de obter a redução —repetição, evitação e convergência23 —,

20 Sigmund Freud. “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”


(1912). Ob. cit., p. 1SS.
21 Cf. Jacques-Alain Miller, “O sso da análise” . Seminário proferido no VIII
Encontro Brasileiro do Campo Freudiano e II Congresso da Escola Brasileira
de Psicanálise, Salvador, 17 a 21 de abril de 1998; G radeia Brodsky. Short
Story: os princípios do ato analítico. Ob. cit.
22 Cf. Jacques Lacan. 0 Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70). Rio
de Janeiro: JorgèZ ah ar Editor, 198S.
23 Jacques-Alain Miller, “ Osso da análise” . O b. cit.

104 Efeitos terapêu ticos na psicanálise aplicada


continuemos com a repetição. Nessa direção, constata-se a dupla
vertente do próprio conceito de repetição: tanto se refere à cadeia de
significantes que tendem ao infinito por intermédio dos deslocamentos
entre si, quanto é o que delimita e reduz o encadeamento e a propagação
destes. Assim, a repetição é uma redução, pois já consiste em um pro­
cesso de tratar a proliferação significante. N a busca de uma satisfação
impossível, a repetição contorna o vazio e circunscreve nesse limite
a impossibilidade de a linguagem tudo representar.
O ra, se a repetição é um m odo de contornar o vazio criado pela
própria busca de satisfação, será que, no autismo, pode-se considerar
a repetição um trabalhq, uma tentativa de delimitar o que se apresenta
com o um a satisfação paradoxal, a saber, o gozo? Pode-se considerar,
na recusa do autista em face da demanda e da presença do outro, uma
tentativa de circunscrever o gozo com o satisfação excessiva, uma
satisfação para além do princípio do prazer?
Ao passo que na neurose há, além da repetição dos significantes,
autom aton2A, um a repetição que toca o real e reduz a própria proli­
feração significante, no autism o, ao que nos parece, não se pode
falar propriam ente de redução. Nas crianças autistas, o O utro com o
propiciador de fala e de discurso ainda está para ser constituído e,
portanto, longe de ser reduzido. Podem os considerar a hipótese de
que o autista, em seus atos repetitivos, tenta circunscrever o cam po
do O utro, tornando-o m enos am eaçador e m ortífero. N o trata­
m ento com alguém que autentica esses atos como trabalho, a repe­
tição chega a alguma inscrição, deslocando-se para novos atos em
um a série de objetos que se substituem uns aos outros. Assim , em
vez de um a redução com o princípio que se aplica à relação diacrítica
p róp ria do significante25, a repetição no autism o operaria um a

24Jacques Lacan. 0 Seminário, livro 11: os quatros conceitosjundamentais da psicanálise


(1964). Rio de Janeiro, Jo rge Zahar Editor, 1979.
í! Ferdinand de Sausurre. Curso de lingüística geral (1916). São Paulo: Cultrix , s/d .

A prática entre vários: princípios e aplicação da psicanálise 105


redução sobre o gozo desencadeado, ou seja, a ancoragem do gozo
na palavra propicia as condições para a em ergência do sujeito do
significante no trabalho de escrever o inconsciente.
E, então, para que serve uma instituição com crianças autistas e
psicóticas fundada nos princípios da psicanálise freudiana e lacaniana,
e qual o papel do psicanalista na produção de um sujeito? A psicanálise
na instituição viabiliza o surgimento do sujeito quando o analista que
o acompanha, tendo com o referência o “saber não saber”, segue-o
com o um notário na direção de um a enunciação. Nessa clínica, trata-
se, com o afirma Di Ciaccia, de um trabalho que, “se ele se inspira na
estrutura que a psicanálise dem onstrou ser função para todo ser
falante”-, qual seja, de responder como sujeito em face do O utro,
“não é um a aplicação do funcionamento do dispositivo analítico como
tal”26.
A prática entre vários está situada no extrem o oposto do standard.
Em relação aos princípios, o standard não “consegue, por m aior
esforço que se faça, exprim ir um a parte, talvez a essencial, do
princípio. Algo lhe escapa”27. A relação entre o princípio e o dispo­
sitivo da prática entre vários se caracteriza pela inspiração desta no
prim eiro, que perm anece no horizonte, m esm o quando não se
atualiza.
Quando a clínica nos incita a introduzir na instituição dispo­
sitivos que divergem do standard, as conseqüências desse ato se
inscrevem tanto na presença da própria psicanálise no corpo social
qu an to no e x e rc íc io da clín ica p riv ad a. C o n stata m o s q u e a
psicanálise aplicada à instituição muitas vezes ultrapassa os lim ites
da instituição de saúde, envolvendo outras instituições e p rofis­
sionais. Adicionalm ente, o dispositivo da prática entre vários em

M Antonio D i Ciaccia. “U ne institution et son atm osphère” , Préliminaire,


n °l 2, 2000, p .25.
11 R om ild od o Rêgo Barros. “Sem standard, mas não sem princípio”. O b. cit.,
p. 40.

106 Efeitos terapêu ticos na psicanálise aplicada


instituições tam bém ensina algo ao psicanalista que trabalha em
seu consultório. Vejam os, por fim, essas cluas incidências da prática
entre vários.
Em um fragmento clínico já relatado por nós, o tratamento de
um menino em uma instituição que adotara o dispositivo da prática
entre vários nos levou a trabalhar com a mãe no contexto de uma inter­
venção do Conselho Tutelar28. Com o intuito de apontar os efeitos
dessa prática em instâncias que ultrapassam o quadro da instituição
de saúde mental, não focalizaremos aqui as produções do menino ao
longo do tratam ento, mas sim a interação entre a instituição e a
analista que sua transferência elegeu, de um lado, e instâncias sociais
que concerniam diretamente à posição da criança, de outro.
Certo dia, a analista recebeu um telefonem a do Conselho em
que o menino, que havia sido encontrado na rua, aparentemente aban­
donado, encontrava-se. Segundo a m ãe, isso fez com que a assistente
social do Conselho questionasse a guarda da criança. De fato, logo
em seguida o C on selh o T u telar in terrogo u a analista so b re o
tratamento do menino na instituição, sobre os cuidados da m ãe para
com ele, sobre a freqüência com que era levado ao atendimento clínico,
à escola etc. Foi decisivo para a continuidade do tratam ento o
testemunho da analista acerca do cuidado que a mãe dispensava ao
m enino, ratificando seu lugar de mãe.
Em decorrência de um a autorização conjunta, pelo depoim ento
da analista e pela resolução do Conselho, a transferência da mãe
em relação ao tratamento de seu filho pôde se definir. A seguir, veri­
ficou-se um a mudança subjetiva quanto ao lugar de objeto que o
filho ocupava para ela. A partir desse ato de autorização, na transferência

28 Caso relatado no V Colóquio do Laboratório de Estudos e Pesquisas


Psicanalíticas e Educacionais sobre a infância (LEPSI, IP /FE -U S). Cf. Ana
Beatriz Freire e Angélica Bastos. “Paradoxos em tom o da clínica com crianças
autistas e psicóticas: um a experiência com a ‘prática entre vários” , Estilos da
Clinica. Revista sobre a Injância com Problemas, ano IX, n ° 17, 2004.

A p rática entre vários: princípios e aplicação da psicanálise 107


com a analista, a mãe tom ou decisões importantes, como dispor de
um dinheiro guardado que até então se abstinha de usar sob a alegação
de que pertencia ao menino. Com o a intervenção do Conselho Tutelar
exigira um a mudança de moradia em prol do bem-estar da criança,
essa mulher precisou se reposicionar em relação à renda que a criança
recebia em função de seu estatuto de doente mental, e isso foi feito na
transferência com a analista que se ocupava de seu filho.
A prática entre vários, vale dizer, a dispersão do saber, guiou a
participação da analista p or ocasião da intervenção do Conselho
Tutelar, quando foi preciso interagir com a assistente social e trabalhar
com a m ãe, que por sua vez estava às voltas com sua patroa e advo­
gados, entre outros. Com o nesse dispositivo o caso é construído em
equipe, evita-se que as crianças se convertam em caso de um profis­
sional. Conform e elaborado em supervisão com a equipe, ao se negar
a utilizar o dinheiro, a mãe procurava proteção contra o usufruto
extraído do filho. Relutava a reduzi-lo em definitivo à condição de
objeto de gozo. A mediação do Conselho Tutelar entre ela e o filho,
com a participação da analista e da instituição, permitiu que fizesse
uso do dinheiro e minimizasse o risco de gozar caprichosa e arbitra­
riamente dos direitos e do sofrimento do menino.
N esse caso, pode-se observar que a prática entre vários repercute
além dos lim ites do serviço de saúde m ental e norteia o contato
com outros profissionais. Ela envolve os vários profissionais que
trabalham na instituição com a criança e se encaminha para o O utro
em sentido mais am plo, tornando possível o tratam ento do gozo.
Trata-se, assim , do gozo de que a criança é objeto na fantasia da
m ãe, o gozo suscetível de se instalar em um a instância de decisão e
saber jurídicos, e que difere do gozo que a própria criança passa a
tem perar com a palavra e a demanda.
Paralelam ente, algo dessa experiência se deposita para aqueles
que exercem a clínica privada com autistas e psicóticos. Virginio
Baio, p or exem plo, relata que povoou seu consultório com figuras
extraídas do delírio de seu paciente, rem etendo-o a outros profissio­

108 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada


nais e exercendo o que denom inou de “prática entre vários genera­
lizada”29. Em outros term os, o dispositivo da prática entre vários
pode orientar o psicanalista em consultórios do serviço público ou
na clínica particular em tratamentos que compreendem o trabalho
conjunto com profissionais e pessoas que se ocupam da criança. Guiado
pelos remanejamentos que os princípios da psicanálise sofrem nesse
dispositivo, o analista recolhe indicações para, nas contingências e
percalços de cada tratamento, dispersar o saber entre vários e, conse­
qüentemente, deslocalizar o gozo que se alimenta do saber situado
no locus do O utro. Isso ocorre, por exem plo, quando ele se depara
co m m é d ic o s, p r o fe s so r e s , fo n o a u d ió lo g o s, acom p an h an tes
terapêuticos, além de babás e parentes.
Essa conduta clínica tem com o objetivo transpor o saber para
o lado da criança, de m odo a produzir efeitos sobre o real do gozo
que a invade. As incidências do dispositivo se reúnem às palavras
de Di Ciaccia: “a prática feita por muitos é [...] uma das m odalidades
da psicanálise aplicada, o que não quer dizer que esta se reduza à
prática institucional ou a prática feita p or m uitos”30.
N a clínica com crianças autistas e psicóticas, não se detecta a
aplicação dos princípios relacionados com base na psicanálise em
intensão. A prática entre vários não remediaria essa dificuldade, pois
os princípios não se aplicariam como se aplica um conjunto de p ro ­
cedimentos técnicos. Eles antes inspiram a prática, permanecem no
horizonte, vigoram parcialmente. Esse dispositivo, por estar bem
longe do standard, conta com a vantagem de não se fixar em um
m odo de funcionamento, sendo, por isso m esm o, suscetível de acolher
as contingências c o que não pode ser antecipado, situação propícia
ao trabalho de escrever o inconsciente.

29BAIO, Virginio. “U n epratique àplusieurs generalisée” , Préliminaire, n” 11 .


1999, p. 143-51.
30 Antonio D i Ciaccia. “Inventar a psicanálise na instituição”. O b. d t . , p. 37.

A prática entre vários: princípios c aplicação da psicanálise 109


Sob re os au tores

A na Beatriz Freire
P rofessora do P rogram a de Pós-G raduação em T eo ria Psicana-
lítica (U F R J). Psicanalista. Pesquisadora do C N P q e coorden a­
d o ra da p esq u isa “A d ireção do tratam e n to na in stitu ição : a
prática entre vários na clínica da p sico se infantil” — convênio
U F R J/N A IC A P — Instituto Philippe Pinei. A utora de Por que os
planetas não fa la m (Rio de Janeiro, Revinter, 1997).

A na Lúcia Lutterbach Holck


D o u to ra pelo Program a de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica
(U FR J). Psicanalista. D iretora da Escola Brasileira de Psicanálise —
R io dc Jan eiro de m aio de 2003 a abril dc 20 05.

A ngélica Bastos
Professora do Program a de Pós-G raduação em T eoria Psicana­
lítica (U F R J). Psicanalista.

Serge Cottet
Psicanalista. M em bro da Ecole de la Cause freudienne e da Escola
Brasileira de Psicanálise. D o u tor de Estado e P rofessor T itular
do D epartam ento de Psicanálise de Paris VIII. A utor de Freud e o
desejo do psicanalista (Rio de Janeiro, Jo rg e Zahar Editor, 1989).

Fania Coelho dos Santos


Professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica
(U FR J). Psicanalista. M em bro da Escola Brasileira de Psicanálise —
Associação Mundial de Psicanálise. Autora de Quem precisa de análise
hoje? (R io de Janeiro, Bertrand, 2002).
Esta obra foi impressa na

cidade do Rio dc Janeiro

pela Gráfica E d il para a

Contra Capa Livraria

em junho de 2005.
Os textos que compõem este livro
ajudam a compreender melhor porque,
para além da diferença entre neurose e
psicose, a clínica de hoje precisa se
orientar pelo sintoma como resposta
singular do sujeito ao real. Trata-se
sobretudo de fazer avançar um ensino
baseado na clínica, em que a
aceleração dos efeitos terapêuticos de
uma psicanálise aplicada ao mundo
contemporâneo tenta responder à
crescente demanda de um imediatismo
confinado com desdobramentos
imprevistos dos destinos pulsionais.

LEIA TAMBÉM

Sobre a psicose
Joel Birman [org.]

A psicanálise e o pensamento moderno


Regina Herzog [org.]

Formações teóricas da clínica


Anna Carolina Lo Bianco [org.]

Psicanálise, pesquisa e universidade


Waldir Beividas [org.]

O estranho na clínica psicanalítica


Juan Carlos Cosentino [org.]

Psicanálise e formas de
subjetivação contemporâneas
Teresa Pinheiro [org.]
"Em contraste com os sintomas clássicos, o mai-estar, o
desbussolamento, a desagregação em todas as suas facetas e a
depressão enfatizam o aspecto deficitário do sintoma, sua
aptidão à medicalização. Intimam o psicoterapeuta a agir
imediatamente. O amálgama entre precariedade simbólica e
exclusão social situa o lugar do psicoterapeuta entre o
curandeiro e o médico, espécie de xamã perito na eficácia
simbólica, tal como conhecido desde Lévi-Strauss".

Serge Cottet

Você também pode gostar