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na psicanálise aplicada
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Programa de Pós-Graduação em
Teoria Psicanalítica | UFRJ
■má
Uma dissimetria fundamental entre
a impaciência subjetiva e o tempo
necessário à escuta psicanalítica
caracteriza as práticas clínicas
contemporâneas. O homem
apressado do século XXI quer
resultados terapêuticos imediatos.
Não há tempo a perder, e a escala
mais indicada para mensurar os
benefícios obtidos nos tratamentos
a que esse homem se submete
parece ser a própria afirmação de si.
Os psicanalistas são responsabilizados
pela demora em fornecer efeitos
terapêuticos àqueles que pensam em
procurá-los ou mesmo aos que chegam
a fazê-lo. Aos olhos dos que reclamam a
sofreguidão, a psicanálise só é válida se
consegue aplicar sua suposta pureza
aos desarranjos e desatinos do mundo.
O declínio da função paterna,
o esboroamento da moral sexual
civilizada e a supremacia do discurso
da ciência são alguns dos principais
vetores de uma profunda transformação
da subjetividade. Diante dessa
transformação a clínica freudiana,
cuidadosamente formalizada por
Jacques Lacan, não parece ser suficiente
para orientar o diagnóstico e o
tratamento de uma grande quantidade
de novos sintomas. O que fazer? O que
se pode saber sobre isso? O que se
espera dessas mudanças?
Efeitos terapêuticos
na psicanálise aplicada
Programa de Pós-Graduaçãa em
Teoria Psicanalítica | UFRJ
COPYRIGHT © 2005, dos autores
ISBN: 85-86011-92-4
2005
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Sum ário
Apresentação 7
Tania Coelho dos Santos
A prática lacaniana
na civilização sem bússola 61
Tania Coelho dos Santos
7
conferiram novo fôlego e atualizaram o ensino de Freud e Lacan
sobre a direção da cura psicanalítica e os princípios do seu poder.
Descortinaram um profundo movimento de transformação no terreno
da formação do psicanalista e do pesquisador de orientação lacaniana,
bem com o despertaram nossa sensibilidade para a urgência dc refor
m ular o aforisma lacaniano “não há formação do psicanalista, somente
formações do inconsciente” . Esse axioma, pode-se reconhecê-lo hoje,
contribuiu para difundir a idéia de uma precariedade na sistematização
da formação do psicanalista que parece ter tornado mais aguda a
emulação com a pós-graduação universitária.
O s efeitos da polarização entre os cursos dc pós-graduação c
as instituições psicanalíticas são bem conhecidos no Rio de Janeiro.
O ensino não sistemático da psicanálise nas instituições psicanalíticas
conduziu grande núm ero de analistas a buscar os program as de
m estrado e doutorado cm psicanálise, cm particular o program a
de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da U F R J, que conheceu,
graças à referida polarização, sucesso m em orável. Essa polêm ica
em torno da oposição instituições versus universidades, todavia,
tem ocultado o ponto fraco da formação de analistas e pesquisadores:
o ensino baseado na clínica. Com as exposições dc Cottct, pudem os
perceber que o trabalho que se efetua tanto nas seções clínicas quanto
no recém -criado Centro Psicanalítico de Consultas e Tratam ento
(C P C T ), em Paris, deve servir de inspiração para retificar esse hiato
entre a teoria e a clínica psicanalíticas. Tal retificação, aliás, é bastante
urgente porque a clínica freudiana clássica, cuja estrutura foi cuida
dosamente formalizada por Lacan, já não é suficiente para nos orientar
quanto ao diagnóstico e à direção da cura psicanalítica em um a
quantidade num erosa de novos sintomas.
O declínio da função paterna, a ascensão do objeto a ao zénite
da civilização, o esboroam ento da moral sexual civilizada são apenas ^
alguns dos vetores de um a profunda transform ação da subjetividade $ ^
na contemporaneidade. O sujeito, submetido aos efeitos do discurso
da ciência, aprofunda sua rejeição ao inconsciente. C om o m ostra ^
Apresentação 9
Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Ensino Superior (CAPES) pelo financiamento das passagens acreas e
a estadia de nosso convidado. Ana Lúcia Lutterbach Holck e Margareth
Ferraz, diretoras, respectivamente, da Escola Brasileira de Psicanálise
do Rio dc Janeiro c de São Paulo, ofereceram-nos suporte com ple
mentar precioso. O s integrantes do Núcleo Séphora de Pesquisa,
sobretudo R oberta Guim arães d ’Assunção, R osa Guedes Lopes,
Rachel Amin Freitas, Vera Avellar Ribeiro, Sonia Pastorino, Maria
Cristina Antunes, M arcela D ecourt, Fabio A zeredo, Ana Paula
Sartori, Márcia Zucchi, Vanda Assunção c Ondina Machado, colabo
raram diretamente na administração, na organização, na gravação c
na transcrição das conferências. Somos gratos ainda à solidariedade
de Manoel Barros da Motta e Mirta Zbrun, bem como ao empenho,
à gentileza e à generosidade de Jorge Forbes.
Serge C o ttet
' N . do E. O texto original, revisto pelo autor, foi estabelecido com base na
transcrição de suas três conferências proferidas na Universidade Federal do
Rio de Janeiro nos dias 17, 18 e 19 de novembro de 2003. Tradução: Vera
Avellar Ribeiro. Revisão técnica: Tania Coelho dos Santos.
Jacques Lacan. “A direção do tratamento c os princípios dc seu poder”
(19S8). Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zabar Editor, 1998.
11
obrigados a perguntar se ainda c assim que os psicanalistas lacanianos
praticam a psicanálise, sobretudo devido às transformações da demanda
psicanalítica e da emergência de novos modos de sintoma.
A ssim , se naquele m om ento Lacan restringia sua crítica da
técnica analítica à técnica da sugestão, à manipulação da transferência,
ao abuso do poder, hoje podem os dizer que ele situava a psicanálise
praticada dessa maneira ainda sob o discurso do m estre. N a época,
a psicanálise estava sob a influência americana da psicologia do ego,
que visa a um reforço do eu, a uma reeducação emocional, a um
domínio do sujeito sobre seu inconscicntc. Eis, então, a primeira atua
lização da questão: as psicotcrapias contemporâneas estão sujcitas_a
essa m esm a crítica. A relação de ob jeto, inspirada nos pós-freudianos
ligados a Karl Abraham e Melanie Klein, era a segunda corrente da
época, e nela estava em jogo o questionam ento da maturação afetiva
e o ajustam ento da libido ao O utro, para além das fixações pré-
genitais, ou seja, a redução da psicanálise a um a psicogenese, a um
desenvolvim ento da libido. Essas duas orientações têm um ponto
em com um : fundamentam-se não na interpretação do inconsciente,
e sim em um a interpretação do imaginário da relação dual.
Pois bem , esse é o tem po do retorno de Lacan a Frcud, em que
ele retom a alguns princípios do freudism o, sendo necessário com pa
rá-lo com um outro Lacan que se tornará autônom o em relação
aos princípios freudianos. N esses term os, a atualização do texto de
1958 consiste em m ostrar alguns limites que percebem os hoje e
que eram decorrentes da rcfcrência a Frcud, necessária naquele
m om ento.
O que era necessário naquele momento? Distinguir uma psico
logia da necessidade, ou do afetivo, da estrutura do desejo incons
ciente; bem como orientar os tratamentos para a interpretação_desse^
desejo, contra toda tentativa de reeducação. Por isso, nesse texto,
tcm -sc a construção do binário desejo/d em anda associada a um
prim eiro princípio de orientação: não responder à demanda, funda
mentada logicamente por Lacan na distinção conceituai entre demanda
" Jacques Lacan. Televisão ( 1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 74.
S crgc C o ttct
41
Ao reagir um pouco tarde às fanfarronadas de O tto Rank, Freud
forneceu uma justificativa sociológica para a tentação de encurtar a
duração dos tratamentos, concebida “sob a tensão do contraste entre
a m iséria do pós-G uerra na Europa e a ‘prosperity’ dos Estados
Unidos” . Para ele, Rank queria “adaptar o tem po da terapia analítica
à pressa da vida americana”3. Em outros term os, as razões para
diminuir o tem po do tratamento não são, na época de Frcud, dedutíveis
do próprio conceito de análise. Embora existam contra-indicaçõcs,
a doutrina clássica, quando a análise é recom endada, é pouco explí
cita no que diz respeito às contra-indicações à longa duração. Foi o
movimento húngaro iniciado por Sándor Ferenczi e prosseguido pela
escola de Chicago nos anos 1950 com Franz A lexander que se
preocupou em evitar o desenvolvimento da neurose de transferência,
substituindo-a por uma reeducação emocional. Disso decorre uma
focalizaçãdique rem ete “permanentemente o paciente à realidade de
suas relações objetais e sociais, a fim de evitar que ele se refugie no
passado, no fantasma, na irrealidade da transferência”4.
Razões externas prevalecem sobre as advertências de Freud.
Acrcsccntc-se a isso a incapacidade de os analistas dessa época se
sustentarem em uma ética do desejo, de tal m odo que a finalidade
do tratamento não permanecesse alienada exclusivamente nos efeitos
terapêuticos: o sintoma é a árvore que esconde a floresta do incons
ciente. A justificação de seu ato pelos efeitos de cura rápida reflete
sua adesão aos ideais m édicos. D evem os reconhecer, aliás, que
m esm o nós cedem os de maneira semelhante a um a pressão externa
a um só tem po ideológica e social.
Em contraste com os sintomas clássicos, o m al-estar, o desbus-
solam ento, a desagregação em todas as suas facetas e a depressão
3 Sigmund Freud. “Analyse avecfin et analyse sans lin” (1930). Em: Résultatí,
iclées et problèmes II (1921 -1938). Paris: PU F, 1985, p. 232.
4 Philippe La Sagna. “Therapies breves ou therapies ‘autofocus”, Lcttre Mcnsuellc,
n ° 236, mars 2005, p. 25.
E s p e c if i c i d a d e d o C P C T
N o v a s fo rm a s d o s in to m a
U m e x e m p lo
Esse cerceam ento do laço social pode ser ilustrado por um caso,
cujas coordenadas essenciais são estas: trata-se de uma jovem que
chega ao C T C P cm estado crepuscular. A paciente delira sobre o
O u tro e x e m p lo
Serge C o ttet
53
tem poral; c) supervisão cm grupo; c d) existência de um lugar que
torna homogêneos discurso analítico e instituição.
S u p e rv is ã o
R e fo rm a d o e n te n d im e n to c lín ic o
E s tr u tu r a e s in to m a
59
Consultas e Tratamento (CPCT) cm Paris. Em um contexto cm que
os atendimentos são gratuitos e ocorrem por tem po determinado, o
C P C T busca responder ao atual momento da clínica, reivindicando a
possibilidade de o ato analítico ocorrer fora do “setting” clássico e
dos serviços de atendimento público.
A contribuição de Cottet aqui reunida coincidiu com o momento
em que a Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), inspirada pela experiência
francesa, começava a pensar na criação de uma clínica de atendimento.
N o Rio de Janeiro, o primeiro desafio foi situar as dificuldades específicas
que seriam enfrentadas no estabelecim ento de um projeto que
respondesse a esse contexto. Não foi difícil concluir que o maior
problema seriam as conseqüências deis diversas formas de manifestação
da violência urbana, ou seja, da violência gerada pelo mercado e pelo
crime organizado. As comunidades informais da periferia da cidade,
embora sejam as que mais sofrem os efeitos dessa violência, têm sido
também aquelas em que têm surgido as soluções mais originais para
atravessá-la.
Com o lembra Cottet, não se trata mais de, como nos anos 1970,
ir até as favelas para oferecer bens tanto de consum o quanto id eo
lógicos. O projeto em questão deve partir, acima de tudo, do enten
dimento de com o a psicanálise pode se pôr a serviço de um a pop u
lação que busca soluções para seus problemas. Quais__os efeitos do
encontro com um analista? Com o inventar novas táticas clínicas sem
com prom eter os princípios da psicanálise?
Foi no bojo dessa discussão que recebem os Serge C ottet, a quem
novamente agradecem os por uma contribuição que faz da teoria e
de sua aplicação duas faces de um a m esm a página.
™ ^ NAjfcs \l f a a *p 5
62 Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada
Scrge C ottet nos apresentou o fruto de seu trabalho de atuali
zação dos princípios que norteiam a direção da cura psicanalítica.
M ostrou-nos a pertinência de um a profunda revisão de um dos
mais im portantes artigos de Jacques Lacan: “A direção do trata
m ento e os princípios de seu poder”2. Esse texto, conhecido pelo tom
apologético com que nos conclama a perseverar na via aberta por
Freud, recorda os princípios do poder da cura pela palavra. Em suas
conferências, Cottet destacou que a cultura em que vivemos hoje não
é mais a m esm a, e que o último ensino de Lacan enfatiza a exigência
de renovar os usos da palavra e da interpretação em psicanálise.
Quarenta e quatro anos depois da publicação desse vigoroso texto
lacaniano, que serviu de eixo na formação de muitos analistas, é preciso
retificá-lo em consonância com os avanços que marcaram a produção
lacaniana após os anos 1970.
Penso que esses avanços foram precipitados pela nova aliança
entre o discurso do m estre e o saber que resultou em profundas
mudanças nos laços sociais depois dos m ovim entos de maio de 1968.
A luta pela liberação da sexualidade, pela emancipação feminina c
contra toda autoridade fundada na tradição revolucionou nossos
hábitos e, em poucos anos, apresentou-nos um m undo adm ira
velm ente novo. A descoberta do inconsciente pelo pensam ento
freudiano revelara a im portância ccntral da função do pai, suporte
da transm issão das identificações constitutivas do sujeito e do laço
social. O pai, no discurso do inconsciente, é o agente da castração.
Prom ove o recalque da relação prim ordial com a mãe e propicia a
identificação com o ideal do eu. N os dias de hoje, nada é mais
incerto que a eficácia dessa função do pai. A verdade do poder é a
im potência. As famílias se form am e se dissolvem ao sabor dos
investim entos pulsionais. O sujeito contem porâneo não renuncia à
U m a o u tra é p o c a , a m o d e rn id a d e fre u d ia n a
8 Jacques Lacan. “Le Séminaire, Livre XXII: RSI” (1974-5). Inédito, aulas de
10 de dezembro de 1974, 1 4 d e ja n e iro e 11 de fevereiro de 1975.
5 Tania Coelho dos Santos. Quem precisa de análise hojei Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2001.
" Jacques Lacan. Le Séminaire, Livre XX: Encore (1972-3). Paris: Seuil, 1975, p.
75.
Jacques-Alain Miller. “Le dernier enseignement de Lacan”, La Cause Freudienne,
n° 51, 2002, p. 7-34.
O q u e p o d e m o s sa b e r, fa z e r e
e s p e r a r d e p o i s d e u m a a n á lis e ?
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A c l ín ic a d o s i n t h o m a e o q u e
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D IS C U R S O DA C IÊN C IA C O N T E M P O R A N E A A —> a
s, T
As fórm ulas da sexuação m ostram que o gozo não é apenas
mortificado pelo significante, tal como se verifica no eixo de um a
lógica masculina que nos sujeita à castração. Em sua vertente femi
nina, não-toda, o gozo é vivificante. A inversão de perspectiva22
quanto aos efeitos do significante sobre o gozo (de mortificador à
vivificante) soluciona o ponto que Freud não conseguiu ultrapassar: o
impasse do rochedo da castração referido ao término de uma análise.
A p o s iç ã o p s ic ó tic a e a e s tr u tu r a p s ic ó tic a
• L?
A prática lacaniana na civilização sem bússola
ciência em tem pos de D SM IV . No lugar de nos servirmos de com pa
rações e generalizações estatísticas, procuramos destacar o aspecto
mais singular do sujeito, o que ele tem de incom parável. N ós o
com param os consigo m esm o ou, com o propõe M iller, “um incom
parável ensina sobre o incom parável” .
As condições éticas tanto da demanda quanto do exercício da
psicanálise no mundo globalizado exigem de nós a aposta na potência
de tom ar o ser falante como ex-sistência, como real. Dito de outro
m odo, é preciso restaurar a ex-sistência do ser falante ante a consta
tação de que o aprofundamento da inconsistência do Outro com seus
comitês de ética25 e o esvaziamento de toda palavra oracular26 ameaçam
mergulhar a experiência da fala na reciprocidade do diálogo e na simetria
da relação intersubjetiva. O laço analítico precisa restaurar o princípio
dessa prática, o valor da dissimetria entre sim bólico e real. O ato
do analista se contrapõe ao avanço do discurso da ciência e de seus
aparelhos de gestão da saúde mental e do m al-estar27, que parecem
prometer um estado generalizado de não responsabilização do ser falante.
Assistimos hoje a um a banalização maciça da palavra, que renova a
exigência dc fidelidade aos princípios do seu poder. C om o bem
form ulou Lacan: “que a isso renuncie, principalmente, aquele que
não consegue incluir em seu horizonte a subjetividade de sua
época”2S. Sustentam os, portanto, uma prática da fala cada vez mais
conflitante com os valores da cultura.
25 Erie Laurent & Jacques-Alain Miller. “L ’Autre qui n'existe pas et ses comités
d ’éthique” (1 996-7). Inédito, aula I.
26 Jacqucs-Alain Miller. “Un éffort dc poésie” (2002-3). Curso do D epar
tamento de Psicanálise dc Paris VIII, seções I c II.
27 Jacques-Alain Miller & Jean-Claude Milner. Evaluation: entretiens sur une
machine d ’imposture. Paris: Agalma, 2004, p. 7-30.
28 Jacques Lacan. “Fonction et champ dc la parole et du langage” (19S3). Em:
Écrits. O b. cit., p. 321.
A t e o r i a d a p s ic o s e e m F r e u d e e m L a c a n
40 Jacques Lacan. “Le Seminairc, Livre XXII: RSI” (1974-5). Ob. cit., aulas de
10 de dezembro de 1974, 14 de janeiro e l i d e fevereiro de 1975.
A ngélica Bastos
Ana Beatriz Freire
93
L
transferência no nível da estratégia, no qual a liberdade é maior que
na política e m enor que na tática. Examinemos inicialmente, então,
as exigências que a psicose e o autismo exercem sobre a tática, a
estratégia e a política do analista ou, em outros term os, sobre sua
ética.
Nessa m etáfora de Lacan tom ada de em préstim o do vocabulário
da guerra c do jo go, há a sinalização dc que a política diz respeito a
algo incontornável, a um ponto em relação ao qual não se pode ceder.
Segundo Lacan, no que concerne à política, ou seja, à direção e às
m edidas que visam aos fins analíticos, o analista deveria situar-se
antes cm sua falta-a-ser que cm seu ser, a fim de realizar um a
operação que toca o “cerne do ser”2. N essa prim eira form ulação, o
vetor que vai da falta-a-ser ao coração do scr já configura h etero
geneidade e dissim etria entre as partes ou parceiros envolvidos,
não devendo, portanto, ser negligenciado na clínica com psicóticos
e autistas.
O nível da estratégia, no qual se encontra a transferência, com
porta m argem para variações sem pre determinadas pelo que o ana-
lisante põe em ato na transferência. Nesse nível, a liberdade é restrita
porque o analista, ao se situar como suporte da transferência, paga
com sua pessoa, emprestando-se aos semblantes. N o tratamento com
psicóticos, a liberdade não é maior; ao contrário, sofre os constran
gimentos im postos pelo gozo situado no lugar do Outro.
N o nível da tática, que corrcspondc ao da interpretação, o ana
lista paga com suas palavras. N esse nível, a variabilidade é m aior,
autorizando-nos a antecipar que ela pode mobilizar um ato que não
adquire o estatuto de interpretação, um a vez que não se trata de
decifrar, e sim de cifrar o gozo e escrever o inconsciente. Dito de
outro m odo, não se trata tanto de determ inar sc a psicose c o
s Rom ildo do Rêgo Barros. “Sem standard, mas não sem princípio” . E m : Os usos
da psicanálise. Primeiro encontro americano do Campo Freudiano. Rio dc Janeiro:
C ontra Capa, 2003, p. 40.
9 Sigm und Freud. “Recom endações aos m édicos que exercem a psicanálise”
(1912). Em: Obras completas, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1 9 8 0 ,p. 1S6.
10 Sigmund Freud. “Recom endações aos m édicos que exercem a psicanálise” .
O b. cit., p. 154.
" Sigmund Frtud. “Sobre a psicoterapia” (1905). Em : Obras completas, vol. VII.
O b. cit., p. 274.
16 Sigm und Freud. “Recom endações aos m édicos que exercem a psicanálise”
(1912). O b. cit., p. 157.
A na Beatriz Freire
P rofessora do P rogram a de Pós-G raduação em T eo ria Psicana-
lítica (U F R J). Psicanalista. Pesquisadora do C N P q e coorden a
d o ra da p esq u isa “A d ireção do tratam e n to na in stitu ição : a
prática entre vários na clínica da p sico se infantil” — convênio
U F R J/N A IC A P — Instituto Philippe Pinei. A utora de Por que os
planetas não fa la m (Rio de Janeiro, Revinter, 1997).
A ngélica Bastos
Professora do Program a de Pós-G raduação em T eoria Psicana
lítica (U F R J). Psicanalista.
Serge Cottet
Psicanalista. M em bro da Ecole de la Cause freudienne e da Escola
Brasileira de Psicanálise. D o u tor de Estado e P rofessor T itular
do D epartam ento de Psicanálise de Paris VIII. A utor de Freud e o
desejo do psicanalista (Rio de Janeiro, Jo rg e Zahar Editor, 1989).
em junho de 2005.
Os textos que compõem este livro
ajudam a compreender melhor porque,
para além da diferença entre neurose e
psicose, a clínica de hoje precisa se
orientar pelo sintoma como resposta
singular do sujeito ao real. Trata-se
sobretudo de fazer avançar um ensino
baseado na clínica, em que a
aceleração dos efeitos terapêuticos de
uma psicanálise aplicada ao mundo
contemporâneo tenta responder à
crescente demanda de um imediatismo
confinado com desdobramentos
imprevistos dos destinos pulsionais.
LEIA TAMBÉM
Sobre a psicose
Joel Birman [org.]
Psicanálise e formas de
subjetivação contemporâneas
Teresa Pinheiro [org.]
"Em contraste com os sintomas clássicos, o mai-estar, o
desbussolamento, a desagregação em todas as suas facetas e a
depressão enfatizam o aspecto deficitário do sintoma, sua
aptidão à medicalização. Intimam o psicoterapeuta a agir
imediatamente. O amálgama entre precariedade simbólica e
exclusão social situa o lugar do psicoterapeuta entre o
curandeiro e o médico, espécie de xamã perito na eficácia
simbólica, tal como conhecido desde Lévi-Strauss".
Serge Cottet