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Conferências de Bernard Nominé1

Resumo
Este texto é resultado do trabalho de duas conferências ditadas no Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza,
em fevereiro de 2019, durante a abertura dos seminários sobre topologia. No início, Bernard Nominé nos fala
sobre o encontro de Lacan com o nó borromeano e as repercussões decadeias disso em relação à psicanálise,
enfatizando questões teóricas até então mal compreendidas e que poderiam ser re-entrelaçadas ao longo de
sua prática. A seguir, o autor examina a ligação entre o nó borromeano e a escrita clínica, lembrando-nos que
nossas categorias de neurose, psicose e perversão muitas vezes não são suficientes para extrair a lógica de
certos casos. Conseqüentemente, é preciso saber como manejar a cadeia borromeana, suas principais falhas,
suas sequências e seus eventuais reparações. Para fazer isso, devemos ir mais longe no que o autor chama de
"solfejo dos nós".

Palavras-chave :
Jacques Lacan; Nó borromeano; Inconsciente.

Conderências de Bernard Nominé


Resumo
Este texto é resultado do trabalho de duas conferências proferidas no Fórum do Campo Lacaniano de
Fortaleza, em fevereiro de 2019, por ocasião da abertura dos seminários sobre topologia. No primeiro
momento, Bernard Nominated falou sobre o encontro de Lacan com o nó borromeano e suas repercussões na
psicanálise, apontando questões teóricas antes de mal-ouvir que puderam ser reenlaçadas ao longo de sua
prática. Depois, o autor se deteve na relação do nó borromeano com a escrita da clínica, lembrando-nos de
que nossas categorias de neurose, psicose e perversão muitas vezes não são suficientes para extrair a lógica
de casos. Assim, apresenta-se a necessidade de conhecer o manejo da cadeia borromeana, suas principais
falhas, consequências e reparações possíveis. Para tanto, é preciso ir adiante naquilo que o autor denomina
“solfejo dos nós”.
Palavras-chave:
Jacques Lacan; Nó borromeano; Inconsciente.

O encontro de Lacan com o nó borromeano


(16/02/2019)

É bastante surpreendente notar que, muito cedo em seu ensino, em 1953, Lacan distinguiu com maestria três
dimensões com as quais o ser falante se situa: o Simbólico, o Imaginário e o Real. Quando você reflete sobre
isso e relê seus seminários, a posteriori, percebe que ele tentou articular esses três registros de maneiras
diferentes. A primeira é para mim o esquema óptico onde ele nos mostra que o que do real é invisível é
substituído por uma imagem real no espelho esférico e que então essa imagem é traduzida pelo espelho plano
que representa o Outro, portanto o simbólico.
Outra articulação é o esquema R que figura a articulação do ternário imaginário e do ternário simbólico por
meio de um espaço central que representa o real. Uma terceira articulação é o grafo, este percurso
complicado onde tenta descobrir como o sujeito se vira com o real com a ferramenta da fala que se articula
em demanda, depois, para além da demanda, o espaço do desejo e tudo o que escapa como real, quer dizer, o
resto de voz, o resto de olhar ... etc.

1Este texto é resultado da combinação de duas conferências de Bernard Nominé em Fortaleza, nos dias 16 e
17 de fevereiro de 2019, por ocasião da abertura dos Seminários 2019 do Fórum Lacaniano do Campo de
Fortaleza. Parte da palestra foi excluída, a pedido do autor, a parte referente a vinhetas clínicas. (N.R.)
Mas foi preciso esperar 1972 para que Lacan (1971-1972) encontrasse uma maneira de amarrar esses três
registros da maneira mais simples possível. Foi na época do seminário Ou pior ... que Lacan nos deu uma
fórmula própria que ele considerou ser a fórmula da carta de amor, mais exatamente a lettre d' (a) mur. Uma
carta que 'sublinha que entre o homem e a mulher existe o muro do amor. A fórmula é a seguinte: “Demando-
lhe que me recuse o que lhe ofereço porque não é isso". Ele está muito ocupado tentando escrever em um
grafo complexo a improvável conjunção desses três verbos, quando lhe dizem que um certo Guilbaud, um
matemático de referência para Lacan, acaba de dar um curso sobre a cadeia que compõe o emblema das
escudos da família Borromeo.
Lacan imediatamente agarra o que lhe parece um anel no dedo e o nó borromeano não o deixará nunca mais.
Então o que ele entreviu? Ele entreviu que os três verbos que não se articulam naturalmente em sua fórmula
um tanto especial, mas que descreve bem a clínica da vida amorosa, esses três verbos só podem se articular
com a condição de colocar que o que eu te demando, não é isso que eu quero , o que eu te ofereço, não é isso
também o que você quer, e é, portanto, a título daquilo que não é isso, que você tem todas as razões de me
recusá-lo. Se fazemos figurar cada um dos três verbos em uma rodela de barbante, veremos que a frase só faz
sentido para articular os três verbos em torno de um não é isso central que os mantém unidos. O famoso não
é isso figura o lugar do objeto a no centro do nó. “É de um nó de sentido que surge o objeto a” (Lacan,
1971-1972, p. 64).

Figura 1

Portanto, retenho desta história da invenção da teoria borromeana de Lacan, três coisas essenciais:
1) Lacan escolheu a cadeia borromeana para figurar um dizer, não qualquer um, um dizer que faz
acontecimento, o dizer do amor. O nó figura este dizer.
2) Neste dizer que tem a estrutura da cadeia borromeana, três rodelas se articulam de tal forma que se
retirarmos uma, as outras duas se desprendem.
3) Mas não esqueçamos que as três rodelas giram em torno de um objeto que não é isso, mas que diz respeito
às três.
Agora vou compartilhar com vocês o que encontrei enquanto trabalhava nesta questão da teoria borromeana
em Lacan. É uma série de surpresas, vislumbres de equívocos, em suma, coisas que eu acreditava
asseguradas se desfaziam para se enodar novamente. Acredito que isso se deva à dificuldade de elaboração
de uma lógica ternária. Isso não retira em nada o interesse deste momento apaixonante do ensino de Lacan.
Ele nos lega uma ferramenta para apoiar nosso pensamento sobre a psicanálise. É uma ferramenta genial,
mas não é a calçadeira que colocaria todos os tornozelos nos pequenos buracos. Restará sempre algo que
"não é isso" que nos empurra mais longe. É nisso que nos é indispensável para pensarmos a psicanálise.
Primeiro ponto: O que apresentei em Medellín, o nó olímpico que é o contraponto ao nó borromeu e do qual
Lacan nos diz em Les non-dupes ... que é o nó da neurose. Uma dos rodelas lhes falta e vocês se viram com
isso porque as outras duas estão enodados. Em consequência, os neuróticos são “infatigáveis". Lacan afirma
isso com muita veemência, mas não voltará a isso para negá-lo ou para confirmá-lo. No entanto, a meu ver,
isso tem consequências fundamentais para considerar a dinâmica da transferência e para o ato analítico.
É a partir desse nó olímpico que Lacan considera a fobia do pequeno Hans. E se vocês tiveram a
oportunidade de estudar o erro do nó em que consiste a realidade psíquica de Joyce, verão que o Real e o
Simbólico aí estão enodados, deixando o imaginário à deriva. Isso contradiz a tese segundo a qual na psicose
as três rodelas estão livres entre elas, a menos que não seja considerado certo que Joyce é louco.
Segundo ponto: quando evocamos a cadeia borromeana, localizamos o Real como um de seus elementos ao
lado do Simbólico e do Imaginário. Mas o que Lacan precisa à medida em que avança em sua elaboração é
que o Real se localiza pela necessidade do três. Em outras palavras, o Real não é apenas a rodela do Real, o
Real é o nó e precisamente o nó de três. Isso é algo que Lacan afirma em Les non-dupes e é algo que não
mudará. Ele dirá, por exemplo no seminário Le Sinthome: “Ao Imaginário e ao Simbólico, isto é, às coisas
que são muito estranhas, o Real traz o elemento que pode mantê-los juntos. É algo que considero como não
sendo nada mais que meu sintoma ”(Lacan, 1975-1976, p. 81). E ele precisa que esse sintoma é uma resposta
à invenção do inconsciente freudiano. Aqui tocamos um ponto essencial da invenção lacaniana. Em resposta
à invenção freudiana, Lacan isola a categoria do Real que se define por restar fora do Imaginário e fora do
Simbólico, mas por ser também o que os une e que, portanto, os faz participar de seu caráter de real, uma vez
que fazem parte da cadeia.
O nó de quatro
Quando Lacan nos leva a distinguir a rodela do Real e o Real do nó, ele introduz uma espécie de quarto
implícito. Pois para nós é mais cômodo imaginar que a rodela do Real e o Real do nó são duas entidades
diferentes. Lá, teríamos que voltar à lógica de Ricardo de São Vitor em seu De Trinitate para ver como os
teólogos saíram dessa aporia, mas creio que me lembro bem que São Victor rejeita o quatro e se apega
firmemente ao três.
Não é o fruto do acaso nem o fio de minhas associações livres que, ao passar de três para quatro, eu acabo
por fazer referência à função de Deus-o-pai.
Lacan nos conduziu aí forçosamente quando observa em seu seminário RSI que em Freud as três
consistências não estão enodadas, ele deve inventar um quarto termo: a realidade psíquica que nada mais é
do que o complexo de Édipo. E para Lacan (1974-1975, p. 78) esse Édipo não é tão complexo assim, é o que
ele prefere chamar de Nome-do-Pai, "o que não quer dizer nada senão o Pai como Nome, o Pai como
nomeante. “E Lacan (1974-1975, p. 79) precisa:“ Quando digo o Nome-do-Pai, isso significa que pode haver
aí dele, como no nó borromeano, um número indefinido ”.
Na verdade, suponha três rodelas vermelha, amarela e verde não enodadas, podemos fazer uma cadeia delas
com a condição de usar uma quarta rodela, que não terá nada de particular se não for esta função de uni-las
em cadeia. “Tudo repousa sobre um quem, como furo, comunica a todas as outras sua
consistência” (1974-1975, p. 79). No final do RSI Lacan fala do quarto como uma nomeação.
Na conferência da Universidade de Columbia em dezembro de 1975, Lacan (1975, p. 6) disse o seguinte:
“Seria preciso maravilhar-se com a terceira dimensão antes de fazer mais uma. Não há nada mais fácil do
que fazer uma a mais. Quando os três rodelas vão à deriva, basta fazer uma quarta. "
A particularidade do nó do Sinthome
Este enodamento aparece sob a pluma de Lacan em 13 de maio de 75, na última parte de seu seminário RSI.

O que você vê desenhado ali é um rodela que de certa forma dobra o rodela do real. Lacan se propõe a
considerar isso como uma nomeação do Real, ou seja, a angústia. A angústia faz o nó nomeando o Real.
Mas com a mesma facilidade vocês podem redobrar o rodela do Imaginário e vocês chegarão à nomeação do
Imaginário que Lacan considera como inibição. A inibição faz o nó nomeando o Imaginário.
E, finalmente, vocês podes redobrar a rodela do simbólico, então vocês obtêm a nomeação do simbólico que
Lacan considera como o sintoma. O sintoma faz o nó nomeando o simbólico.
Por que Lacan considera que a quarta rodela equivale a uma nomeação?
A nomeação implica o nome do pai
Note-se que houve uma mudança de perspectiva em relação ao nome do pai no ensino de Lacan.
Inicialmente, o nome do pai é o nome dado pela mãe para responder ao enigma de seu desejo, é o pai
nomeado. Enquanto que nos últimos seminários, principalmente no RSI, o nome do pai é o nome dado pelo
pai ao fruto de sua união com a mãe, é o pai que nomeia e é também, ao mesmo tempo, o pai que diz não.
Lacan nos convida a considerar que a quarta rodela, que une as outras três disjuntas, assegura essa função de
nomeação.
Pode-se perguntar por quê? Na verdade, Lacan parte do princípio de que na cadeia borromeana de três, as
três rodelas são completamente equivalentes a tal ponto que se não usarmos um artifício como a cor, por
exemplo, podemos confundi-los completamente. Este não é mais o caso na cadeia de quatro. A quarta rodela
se amarra forçosamente a uma das outras três e, por esse fato, ela a particulariza. É nisso que se pode dizer
que ela a designa, logo que a nomeia.
Se a quarta rodela vem suprir a rodela simbólica, se ela vem corrigir um erro de escrita do nó neste nível,
Lacan fala do sintoma.
Então, no que se refere ao sintoma, que ele seja o nome do pai ou outra coisa, ele assegura então a função de
nomeação.
A esse respeito, falarei a vocês do caso de uma paciente que conheci no quadro de uma apresentação clínica.
Trata-se de uma mulher que não se consola pelo suicídio de seu companheiro ocorrido há nove anos. Algo
quebrou seu élan vital desde aquela data. Ela não fez o luto deste suicídio pelo qual se sente culpada. Apesar
de tudo, ela não é puramente melancólica, porque sabe enganar: "Eu uso uma máscara". Ela se sente culpada,
esta é sua maneira de responder ao enigma do gesto do companheiro. "Por que ele fez isso ? "
Ela falava ao telefone com a cunhada, queixando-se do alcoolismo do marido, ela teria dito algo como: "ele
sempre fala que vai embora mas não o faz" então ela ouve um barulho inabitual, não se inquieta mais com
isso, mas, algum tempo depois, ao procurar seu marido, ela o encontra enforcado. Este instante está fixado
para sempre em sua memória, ela revê a imagem repetidamente. Curiosamente, com as poucas explicações
que ela nos dá, não fica claro como esse homem conseguiu se enforcar, mas tive o cuidado de não pedir
detalhes. O que quero dizer é que ela vê a cena, embora não consiga descrevê-la, ela não para de vê-la no
presente.
O que soubemos é que ela havia escolhido este homem, 7º filho de uma família de emigrantes, porque era
amável e sem dúvida também porque representava um traço de exotismo. Mas soubemos que ele foi criado
por uma mãe solteira, e pode-se supor que o álcool serviu para afogar mas também para prolongar sua dor de
existir.
Durante a entrevista, constatamos que esse luto impossível se referia a um outro luto impossível por parte de
seus pais e mais especialmente por parte de seu pai. Os pais tinham perdido sua filha mais velha em
consequência de uma doença grave e quando a paciente nasceu após a morte da mais velha, o pai quis dar à
esta segunda filha o nome da mais velha falecida. Em sua própria família, o próprio pai havia passado por
isso, disse ela, como para desculpá-lo. Em sua infância, ela se descreveu como sábia como uma imagem.
Mas na adolescência tudo muda, ela se rebela contra a autoridade paterna e passa a querer escrever seu nome
de forma diferente, mudando uma única letra, substituindo um Y por um I. Com essa pequena mudança de
letra que só se localiza pela passagem à escrita, ela conseguiu se distinguir da irmã morta e, portanto, corrigir
a falta de simbolização da morte que seu pai havia lhe dado.
Mas com a melancolia de seu companheiro e seu suicídio, ela é assaltada por essa pergunta que ela havia
sutilmente evitado. "Desde que ele morreu, sinto que me tornei ele, sou uma morta-viva."
Ela que sem dúvida feita sintoma, que acreditava então representar o objeto, causa do desejo deste homem
que tinha dificuldade de viver, de repente essa certeza se desfaz, o suicídio do companheiro arruina essa ideia
e a devolve a uma pergunta sem resposta: "O que eu era então para ele?" "
No restante desta entrevista, surgiu a questão do diagnóstico desse estado depressivo, desse luto prolongado.
Trata-se de uma melancolia? Acho que não, algo a preserva desse colapso, talvez essa invenção da pequena
letra que a arrancou desse destino funesto transmitido pelo pai.
Essa situação clínica um tanto particular foi comentada por Lacan (1960-1961, p. 215), no seminário da
transferência, ele evoca esse tipo de situação como
(...) um ponto de confluência entre o luto e a melancolia. Trata-se de um certo tipo de
desenodamento que ele diz ser da ordem do suicídio do objeto. Trata-se de remorsos a propósito de
um objeto que de alguma forma entrou no campo do desejo e que, por este fato, desapareceu.
Analise esses casos, sonde estes remorsos dramáticos nos casos em que eles surgirem. Você
encontrarão disso a fonte nisso que este objeto, se chegou a ponto de se destruir, então não valeu a
pena haver tomar tantas precauções. Então, não não valeu a pena ter me desviado por ele de meu
verdadeiro desejo.
Vemos que é tênue a fronteira entre o valor agalmático do filho morto - ser aquele que falta, é se assegurar
um valor fálico - e a aniquilação do objeto que ela foi, que o suicídio de seu companheiro se reenvia.
Podemos pensar que se foi preciso que ela mesma se renomeasse mudando uma letra do nome dado pelo pai,
é justamente porque ter sido assim nomeada pelo pai não lhe assegurava seu valor fálico, mas a reenviava já
a esta posição do objeto reduzido a nada.
Poder-se-ia dizer que seu pai lhe transmitiu um erro no nível do simbólico: a morte não foi simbolizada
corretamente nesta família.
Seu pai a nomeou com o nome de sua filha mais velha morta. Isso poderia ter dado à nossa paciente um valor
fálico inalterável. Mas, na hipótese em que haveria, pelo menos do lado paterno, a foraclusão da morte como
símbolo, então a nomeação do pai não terá tido nenhum outro valor senão o de dar à sua segunda filha o
estatuto de uma morta viva. . É sem dúvida porque ela percebeu que essa nomeação não valia nada que lhe
foi preciso se auto-nomear para fazer o nó, assim ela redobrou a nomeação simbólica falhada. Poderíamos
acrescentar a esse registro do sintoma como nomeação o fato de essa paciente nos ter confiado que pouco
tempo após o suicídio de seu companheiro, ela adotou uma cadelinha a quem deu um nome feminino cujas
duas primeiras letras são as de seu nome. . Esta pequena cadela tem uma função importante, pois este animal
a mantém em um laço social, já que ela trabalha com toalete e educação de cães..
Esta paciente que herdou uma foraclusão poderia ter desencadeado uma psicose. Ela não fez isso. Toda a
discussão do caso girou em torno da questão de saber se esse luto impossível deveria ser considerado como
uma melancolia ou não. Eu não acredito. E acho que a solução que ela encontrou para suprir a nomeação
faltosa do pai deve ser considerada como seu sinthoma.
Terminarei com o caso de Joyce, de que Lacan se serviu para examinar as diferentes formas de estabilizar um
erro do nó.
Lacan elabora duas hipóteses a respeito do caso Joyce.
Quando olhamos de perto o que Lacan disse sobre Joyce, percebemos que ele elaborou duas hipóteses
diferentes. Mas não tenho certeza se ele mesmo percebeu.
A primeira hipótese é localizar na estrutura de Joyce um erro do nó que faz com que o real e o simbólico se
enodem, deixando o imaginário à deriva. Lacan situa o episódio da surra descrita no retrato do artista quando
jovem como um testemunho da relação de Joyce com seu corpo, não afetado pelos golpes, mas deslizando
sobre ele como uma casca.
Quanto ao nó entre o real e o simbólico, Lacan dele situa a consequência nas famosas epifanias de Joyce.
Vocês sabem que são significantes articulados de maneira bizarra que lembram a Joyce momentos de
perplexidade que ele viveu e que se assemelham muito ao que chamamos de "fenômenos elementares" e que
são, para a nosografia psiquiátrica clássica, os pródromos do desencadeamento da psicose. Essas epifanias
ligam o encontro com o real indizível a certos significantes. Essas epifanias não têm sentido algum para o
leitor. Joyce se esforçou ao longo de sua carreira de escritor para tentar inserir esses pedaços de frases em seu
texto para amarrá-los a um sentido. Podemos, portanto, considerar que se trata de um enodamento particular
do real com o simbólico.
Nesta hipótese podemos observar que Joyce herdou um enodamento antes olímpico, nó esse vizinho daquele
que Lacan atribui ao pequeno Hans em que, o real está enodado com o imaginário, deixando o simbólico à
deriva. A fobia viria amarrá-lo aos outros dois.
Antes de examinar a segunda hipótese relativa ao nó em Joyce, é preciso que lhes apresente o nó de trevo.
Este é o primeiro dos nós principais. Existem nós primeiros, assim como há números primeiros.
Para transformar a cadeia borromeana em nó de trevo é necessário submetê-la a um pequeno tratamento que
consiste em cortar as rodelas em D, E e F,
A cadeia borromeana de três responde ao mesmo princípio matemático do nó de trevo.

Se você fizer esta operação em três rodelas que não estão encadeadas de forma borromeana, você obterá um
falso nó de trevo, em outras palavras, um nó trivial que é reduzido a uma rodela.
Na segunda hipótese do nó de Joyce que podemos deduzir de um esquema que Lacan dá do falso nó de trevo,
podemos supor que se o centro da cadeia borromeana que caracteriza Joyce é um falso nó de trevo, então, é
que nele as três rodelas estão desarticulados e não é exatamente a mesma coisa.
Lacan então considera várias maneiras de reparar o erro do falso nó de trevo, seja corrigindo o erro onde ele
ocorreu ou em outro lugar. Não se obtém o mesmo resultado.
O nó borromeano e a escrita da clínica psicanalítica
(17/02/2019)

O que se escreve da experiência analítica? Não muito coisa de interessante, nada que possa fazer literatura,
mas mesmo assim algo deveria poder se escrever dela e é isso que nos esforçamos para fazer quando
construímos um caso, quando refletimos sobre uma apresentação clínica. Muitas vezes algo acontece em
algum momento do debate entre nós, algo que, depois de ser construído aos poucos, de repente assume a
aparência de evidência. É isso ! Pois bem, este "é isso!” testemunha que algo acaba de ser escrito da lógica
que localizamos, a lógica do percurso particular de um sujeito.
É preciso dizer que os casos que nos são submetidos nas construções ou durante apresentações clínicas são
casos difíceis. Nossas categorias clássicas de neurose, psicose ou perversão não bastam para extrair a lógica
do caso. Por outro lado, noto que uso a lógica borromeana cada vez com mais frequência para me orientar e,
portanto, proponho que vocês reflitam comigo sobre essa experiência de uma possível escrita borromeana da
clínica.
Lacan (1977, p. 7) dizia que "a clínica é o real enquanto ele é impossível de suportar". Por isso é legítimo
querer escrever, esboçar esse real. E a ferramenta borromeana parece adequada para esta tarefa que se
mantém no limite do possível já que se trata do real.
Várias vezes em seu seminário sobre Les non-dupes ... Lacan evoca uma escrita que não é para ser lida, uma
escrita do real que seria a escrita do nó borromeano.
O nó borromeano escreve a articulação entre as três dit-mensions do espaço habitado pelo ser falante. Falar
sobre dit-mension implica o dizer e, portanto, tempo e evento.
O que o nó opera e o que ele escreve é uma fixação. A lógica do enodamento faz que se duas dimensões
deslizam uma sobre a outra sem se deter, é preciso uma terceira colocada da boa maneira para fixar esse
deslizamento infinito ou eterno. O nó dá um fim a esta eternidade. Algo cessa de não se escrever e faz
acontecimento.
O nó, como escrita do acontecimento, envolve o tempo. Lacan nos sugere que o nó mostra os
“dilaceramentos” do tempo. Dilaceramento entre o simbólico em que se inscreve o passado, entre o futuro
que imaginamos e a realidade do presente que nos escapa entre os dedos. Este nó sutil permite a cada um se
virar com o presente, escrevê-lo como história e então esquecê-lo. Alguns fenômenos clínicos, como
memória traumática, poderiam ser considerados do ângulo de um defeito neste nó do tempo.
Memória traumática
Há dois anos, em São Paulo, dei uma conferência sobre a escrita do tempo com a cadeia borromeana,
comentando a meu modo uma frase tirada do Livro XI das Confissões de Santo Agostinho. Toda a sua
argumentação repousa sobre o fato de que o passado e o futuro existem apenas como representações no
discurso do presente. Isso o leva a esta formulação: “Há três tempos: o presente do passado, o presente do
presente, o presente do futuro. O presente do passado é a memória; o presente do presente é a intuição direta;
o presente do futuro é a espera ”.
Essa sutil estruturação ternária do tempo em Agostinho combinada com as três ek-stases da temporalidade
em Heidegger levou-me a inscrever essa estruturação da temporalidade segundo os três registros com os
quais nos orientamos na realidade: o simbólico, o imaginário e o real. Propus assimilar o passado à categoria
do Simbólico, uma vez que é feito de representações que se organizam em história. O futuro, na medida em
que só tem existência por ser imaginado, é claro que deve ser assimilado ao imaginário. Resta-nos admitir
que o presente é assimilável ao real. Isso é admissível, porque ele foge constantemente, ele não é senão
cessando de ser, como diria Agostinho.
Então, se o presente pode ser assimilado ao real, compreende-se que o neurótico procure fugir dele. Porém,
estar aberto ao presente tem algumas virtudes, é saber aproveitar da contingência, é saber aproveitar da
realidade. Estar na realidade é o melhor que se pode desejar ao ser falante. É poder abordar o presente do
real, com o presente do passado simbólico, ou seja, nossas representações, nossas memórias, e o presente do
futuro imaginário, ou seja, nossas expectativas, nossos desejos. Categorizar assim o presente real, o passado
simbólico e o futuro imaginário me leva a inscrever essa construção ternária do tempo subjetivo com a ajuda
de três círculos de Euler que representam as três categorias de presente, passado e futuro.
Na intersecção do presente e do passado, você pode inscrever o presente do passado, isto é, a memória, as
lembranças.
Na intersecção do presente e do futuro, Agostinho nos aconselha a inscrever a espera, e aí podemos colocar
também o desejo, quando esperamos coisas boas, e também a angústia quando imaginamos o pior.
Resta ver o que se poderia inscrever na intersecção entre o passado e o futuro. A priori, não vemos, além do
fato de que o passado e o futuro se articulam em parte graças ao presente do presente.
Mas há sim uma articulação que existe entre o passado e o futuro, fora do presente, é a hipótese do futuro
anterior, que te faz dizer "terá sido". É uma fixação de tempo particularmente importante pois é ele que
determina a significação, a posteriori, de um evento. A noção de a posteriori sublinhada por Freud mostra
que o discurso pode produzir efeitos de significações que podem modificar as representações do passado,
reorganizar as lembranças e até mesmo criar traumatismos a posteriori.
Recentemente ouvi Boris Cyrulnik, quando interrogado sobre a memória traumática, dizer uma coisa
simples: a pessoa traumatizada sofre duas vezes, sofre com o golpe e com a representação do golpe. Em
última análise, a memória traumática dá testemunho de um passado que não passa, ou seja, que não é
esquecido, que permanece nesta condição particularmente real do presente do presente agostiniano.
Dizer que o passado passa é dizer que no momento presente ele não está mais lá, ele é naturalmente
esquecido mesmo que ele se inscreva em algum lugar, e é justamente porque está inscrito em algum lugar em
termos de traços mnêmicos. que ganharam sentido, que estão inscritos em uma história que o passado passa e
permanece em seu lugar.
Em suma, esta escrita do nó do tempo que lhes proponho é uma escrita que enoda o real do presente, ao
simbolismo do passado e ao imaginário do futuro. É preciso poder fazer este nó para se construir uma
história e poder se acomodar à realidade presente.
Vocês devem ter notado que quando tudo vai bem, quando temos um projeto, quando sabemos para onde
vamos, quando o passado fica no seu lugar e não nos obriga a pensar nele, pois bem, não vemos o tempo
passar . Ou seja, esquecemos que ele passa. Já se vocês perguntarem a um melancólico, ele lhes dirá que para
ele o tempo se eterniza, ele não passa, ele não pode esquecer; o melancólico não pode esquecer seu ser para a
morte, ou seja, ele não pensa senão em morrer. Cioran dizia, com toda a razão, que para ele, no auge de seus
momentos de melancolia, “o tempo não se rebaixa ao evento“. Inscrevendo-se no evento, o tempo como
objeto real se esquece, passa sem que o percebamos, sem que nos preocupemos muito com ele.
Voltando à questão da memória traumática, poder-se-ia dizer que ela testemunha algo que não passa à escrita
do evento. Ou seja, é a repetição de algo que permanece real, atrozmente presente.
Esta é uma página que não se vira e se se pensar bem nisto, esta é uma página sobre a qual nada pôde se
escrever.
Freud não dizia outra coisa quando tentava compreender a significação dos sonhos traumáticos. Se esse
gênero de sonhos se produzem e se repetem, é para reproduzir o trauma e tentar dominá-lo, ou seja, fazê-lo
passar a uma escrita simbólica. Poderíamos conceber a memória-repetição, ou seja, a memória traumática
como um enodamento particular do real do presente ao simbólico do passado, ou para ser mais preciso, é
como se o real do presente e o simbólico do o passado estivessem em continuidade, como se passássemos de
um para o outro sem cortes nem nós.
Essa hipótese se enquadraria bem com o que era chamado na era do Quattrocento: arte dell’oblio. Assim, se
descrevia um remédio contra a invasão dessa memória repetitiva. Prescrevia-se ao paciente traduzir em
imagem a lembrança inoportuna, traçar a imagem sobre um papel que se amassava, que se rasgava, que se
queimava ou que se jogava na água corrente. Tratava-se, portanto, de reintroduzir o imaginário para permitir
outra ligação entre o real e o simbólico, uma passagem pela escrita para extinguir esse fenômeno repetitivo.
Há muito tempo pratico, sem saber, essa arte do esquecimento na cura com crianças. Quando elas me contam
pesadelos repetitivos, convido-as a tentar desenhá-los; geralmente isso faz surgir elementos significantes
cujo valor ambíguo tento fazê-las entender, o que muitas vezes as faz rir e desloca o acento terrorífico. Na
maioria das vezes, é muito eficaz, a repetição do pesadelo cessa. Hoje entendo o porquê: é que proponho a
passagem pela imagem para ligar de outra forma o real ao simbólico. Algo se escreve e pode então ser
esquecido. Cessa porque enfim está escrito. Lacan definia assim a categoria modal do possível: o que cessa
de se escrever. É isso que se distingue do necessário que não cessa de se escrever e é o que se opõe
radicalmente ao impossível que não cessa de não se escrever.
Na literatura psiquiátrica pode-se ler o caso de um paciente do neuropsiquiatra russo, o Dr. Alexander
Romanovich Luria, um paciente acometido por hipertrofia de memória que se beneficiava substancialmente
disso se apresentando em público como um mnemonista profissional. Ele, que se apresentava várias vezes
por noite, tinha necessidade de se proporcionar alguns momentos de esquecimento. Ele desenvolveu uma
estratégia: ele anotava por escrito o que queria esquecer. Quando esse truque falhou em apagar a lembrança
inoportuna, ele rasgou o papel, queimou-o ou jogou-o na água. Você notará que este paciente usa o mesmo
estratagema que a arte dell'oblio propôs. Mas, ao mesmo tempo, vemos que o estratagema usa a escrita que
normalmente serve para não esquecer. Todos os que buscam reforçar sua memória também usam
estratagemas desse tipo. Pessoas com síndrome de Asperger que estão condenadas a nada esquecer podem
testemunhar isso facilmente: trata-se sempre de associar um número a uma cor, a uma imagem. O que chama
a atenção é constatar que o esforço feito para memorizar um significante, que consiste em ligá-lo a uma
imagem, é da mesma ordem do truque preconizado pela arte dell'oblio para se livrar de um significante
inoportuno. O que nos leva a considerar que memória e esquecimento são sem dúvida as duas faces de um
mesmo processo que põe em jogo a escrita, ou seja, uma forma de ligar os significantes em uma rede
segundo as três coordenadas essenciais da estrutura: o Real, o Simbólico e o Imaginário, o que realiza a
escrita de uma história e faz a triagem entre o que se passa, o que se passou e o que vai passar.
O inconsciente freudiano faz precisamente a junção entre memória e esquecimento. O que é recalcado está
bem escrito em algum lugar. E é até porque há um nó de escrita, porque um significante está preso em uma
cadeia, que é mantido cativo e não pode ser mobilizado para a rememoração.
O recalque não consiste num apagamento do traço. Freud (1901/1991) consagrou grande parte de sua
Psicopatologia da Vida Cotidiana ao esquecimento. No caso célebre do esquecimento do nome Signorelli,
por exemplo, ele mostra como o nome fica preso em uma cadeia de significantes que o associa a
pensamentos que Freud queria esquecer, notadamente questões relativas à sexualidade e à morte. É por uma
elação metonímica que o nome de Signorelli é retido fora do alcance das rememoração. Ele é retido em um
nó de representações proibidas.
Eu uso esse significante retido propositalmente, porque ele se presta ao equívoco; ao mesmo tempo, diz que
esse significante não está disponível e, ao mesmo tempo, dizer que está retido indica que não está apagado
por tudo isso, que está preso em uma memória que nada mais é do que o inconsciente. A maioria dos
exemplos que Freud nos dá em Psicopatologia da vida cotidiana, sobre essas omissões de nomes, mostra que
um nome é esquecido porque está retido em um nó de associações. Às vezes, ele nos mostra que no lugar do
nome esquecido se impõe uma imagem. É o caso aliás do esquecimento do nome Signorelli. Freud observa
que quanto menos consegue se lembrar do nome, mais a figura do pintor se impõe em sua lembrança. Ele vê
o autorretrato do pintor que se representou em um de seus famosos afrescos. Quando seu companheiro de
viagem lhe sopra o nome do pintor que lhe faltava, Freud observa que a imagem do autorretrato se atenua.
Poder-se-ia deduzir daí que a imagem servia para ocultar o nome a ser esquecido. Freud observa, além disso,
que suas memórias de infância sempre têm um caráter visual. Isso o levará a estudar a questão da lembrança
encobridora, questão particularmente interessante, já que ela combina um significante esquecido e uma
imagem. Observemos simplesmente a função da imagem neste nó feito pelo inconsciente para reter no
esquecimento uma representação censurada pela consciência.
Para esquecer, o inconsciente retém certos significantes em sua escrita. O inconsciente escreve para que o
sujeito possa esquecer.
Mas há o inesquecível, é toda a questão do traumatismo. Como fazer passar isso para o inconsciente?
A esse respeito,eu poderia evocar uma lembrança, inesquecível para mim, a de uma menina de 5 ou 6 anos
que me foi apresentada em Medellín, Colômbia. Sua psicóloga queria meu conselho sobre a conduta a
manter face a esta garotinha que havia sido expulsa da escola por problemas de comportamento. É preciso
dizer que seu comportamento era particularmente inadaptado, já que ela propunha aos meninos de lhes fazer
felações. Ela era tão incontrolável que a escola não tinha encontrado outras soluções senão excluí-la. É
preciso dizer que essa menina foi criada por uma mãe solteira que se prostituía em sua casa.
Não me lembro exatamente o que essa menina me disse. Ela tinha sobretudo questões a me fazer sobre coisas
simples da vida cotidiana que traíam o fato de sua falta de pontos de referência. O que eu lembro
perfeitamente, ao contrário, é da frase com a qual nossa entrevista terminou: "Eu gostaria que você me
ensinasse a escrever."
Nós também devemos aprender a escrever a partir do real da clínica e agora tentarei mostrar a vocês a
ferramenta da qual me sirvo para aprender a escrever.
Para poder se servir corretamente da escrita borromeana, é necessário extrair os princípios.
O princípio essencial é que cada dit-mension - que Lacan também chama de consistência - pode servir de
meio para enodar as outras duas. Nenhuma consistência tem privilégio a esse respeito. Quanto à corrente
borromeana de três, é porque duas não estão enodadas que uma terceira, seja ela qual for, pode fazer o nó.
Em relação à cadeia de quatro, é porque três não estão enodadas que uma quarta pode fazer o nó.
O problema é que, dado que existem apenas três consistências, a quarta rodela será então forçosamente uma
duplicação de uma das outras três. Lacan resolve essa dificuldade designando o quarto seja como nomeação -
simbólica, imaginária ou real - ou como sintoma.
Em seu livro Symptom Letters, Erik Porge extrai um teorema eficaz dizendo que cada cadeia com n
consistências pode ser considerada como uma reparação de um nó defeituoso com n-1 consistências. Assim,
a cadeia de três compensa o fato de que duas não estão enodadas, a cadeia de quatro compensa o fato de que
três não estão enodadas e assim por diante. Este ponto parece-me importante pois nos permite ver que o
borromeano começa nos três e que o nó de quatro é apenas uma versão, obedece à mesma lógica.
Um segundo princípio é que se as três consistências são equivalentes em termos de sua função de
enodamento, o fato de se servir dos três anéis do brasão dos Borromeu para designar, distinguindo-as, as três
consistências simbólica imaginária e real, nos obriga a nos localizarmos ali o mais justamente possível na
experiência clínica sobre o que é da ordem simbólica, sobre o que é do imaginário e sobre o que resta da
ordem do real.
No caso de numa localização clínica tradicional procuramos situar, ao nível das relações de cada sujeito com
a cadeia significante que o constitui, a metáfora paterna ou a sua foraclusão, a função fálica, os pontos de
basta, a metonímia. Aqui, para podermos escrever em termos borromeanos os elementos da história de cada
um e os momentos cruciais de seu trajeto em um tratamento analítico, devemos saber categorizá-los, sem
qualquer preconceito, nas três ordens simbólica, imaginária ou real.
Um terceiro e último princípio que lhes proponho é que é preciso conhecer o manejo da cadeia borromeana.
Conhecer suas principais falhas, medir as consequências destas e conhecer as reparações possíveis. Entra-se
aí, um pouco, no que chamo: o solfejo do nó.
A cadeia borromeana de três comporta 6 pontos de cruzamento. Mas para cada rodela há 4 pontos de
cruzamento com as outras duas. Cada um desses cruzamentos responde a uma alternância de cima a baixo e
para respeitar a lógica borromeana cada uma das rodelas deve cruzar as outras duas da mesma forma - seja
sempre acima, seja sempre abaixo - senão duas rodelas vão se enodar entre elas, o que é excluído.
Já que queremos favorecer o trabalho do atelier, vou submeter a vocês um pequeno exercício ao qual me
entreguei para me situar aí nas principais falhas do nó e medir suas consequências.
Observem que existem pontos de cruzamento centrais - vou chamá-los de A, B, C - e cruzamentos periféricos
- vamos chamá-los de D, E, F.
Vamos começar estudando os erros da periferia.
Erro no ponto F: O círculo vermelho após passar por baixo do amarelo, passa por baixo do azul em vez de
passar por cima respeitando a sucessão abaixo acima. Se você olhar de perto, esse erro libera o círculo
amarelo. Outra consequência é que o vermelho e o azul se interpenetram.
O mesmo vale para os pontos E e D: um erro no ponto E libera o círculo azul e conecta o vermelho e o
amarelo. Um erro no ponto D libera o círculo vermelho e as correntes de azul para amarelo.
Agora, vamos examinar os erros no centro. É mais fácil de ver.
Erro no ponto A: O círculo vermelho depois de passar sob o amarelo, passa novamente sob o azul. Este erro
libera o círculo amarelo e vermelho e azul se interpenetram. Este é o erro que Lacan atribui ao caso Joyce, é
pelo menos uma versão dele, pois se você ler atentamente o seminário sobre o sinthoma, verá que Lacan dá,
sem forçosamente se dar conta, duas versões distintas do nó defeituoso em Joyce.
Não detalho os erros em B ou C, eles respondem à mesma lógica: liberação de um círculo, encadeamento dos
outros dois.

Em seguida, senti-me no dever de estudar as consequências da combinação de dois erros no centro e na


periferia.
Erro em A e F: vocês vêm imediatamente que os três círculos estão livres.
Erro em E e C ou em B e D: É a mesma coisa, os três círculos se liberam. A única diferença é a ordem de
sobreposição dos três círculos, mas ela é estritamente sem consequência.
Pode-se concluir que um círculo permanece preso desde que os dois cruzamentos nos quais ele não está
diretamente implicado não sejam defeituosos: por exemplo, cruzamento A&F para o círculo amarelo,
cruzamento B&D para o círculo vermelho e cruzamento C&E para o círculo azul. Este é um ponto
interessante pois esses pontos nevrálgicos são aqueles que definem os três espaços que Lacan nomeia: gozo
fálico - concernente a A&F, sentido, concernente a C&E e gozo do Outro - concernente a B&D. É a fixação
resultante do entrelaçamento desses três gozos que assegura o enodamento borromeano.
Há outras combinações de erros possíveis, elas levam a nós complexos que não são borromeanos nem
verdadeiramente olímpicos. Existe um quadro de nós primeiros ao qual seria preciso se referir para poder
definir esses nós, mas é um trabalho muito grande que eu não tive tempo de fazer.
O que retenho é que a escrita de um nó borromeano não se falha tão facilmente assim. Tive que fazer
esforços para inscrever essas falhas. É interessante como experiência porque parece contradizer o que Lacan
nos diz sobre ela, pois ele, em seus primeiros passos na lógica do nó, passava muito tempo cometendo erros
na sua escrita. Não sei o que posso tirar dessa observação, mas é assim.
Seja como for, um nó borromeano, pode-se errar. E isso não é forçosamente um drama, pode dar ao sujeito a
quem foi transmitida a escrita desta falha a oportunidade de encontrar uma solução para ela.
Se evoco uma transmissão possível do rateio do nó, é porque Lacan (1973/1974, p. 69) a sugere em uma
pequena observação sobre a sucessão. Ele desliza da escrita da sucessão dos por cima por baixo na cadeia
borromeana, para obter a boa forma, aquela que os notários tratam em matéria de sucessão, isto é, herança. E
é aqui que fala do “título de nobreza, da antiguidade da família, que para o genealogista é sempre localizável,
para qualquer imbecil e, portanto, também para qualquer imbecilidade”.
É certo que se herda um título de nobreza que vale como reconhecimento puramente simbólico, mas não há
necessidade de se aprofundar na história para demonstrar que a transmissão de um título de nobreza não
garante que essa herança não esteja acompanhada pela transmissão de uma falha do nó. Os exemplos em que
o título de nobreza cobre o rateio do nó não são raros.
Desde que Lacan descobriu a cadeia borromeana, a matemática dos nós evoluiu. Agora se sabe como
escrever um nó com uma fórmula matemática.
Para abordar este sistema de escrita, pode-se partir do primeiro dos nós, ou seja, o nó de trevo.
É sobre esse nó que podemos começar a imaginar um solfejo do nó, ou seja, uma escrita matemática da
sucessão de cruzamentos encontrados quando se imagina percorrer o nó. Escolhe-se um ponto de partida e
vê-se que se encontra primeiro um túnel 1, depois uma ponte, um segundo túnel 2, depois uma ponte e
finalmente um terceiro túnel 3, uma última ponte e se chegou. Então se encontra 6 cruzamentos: 3 túneis e 3
pontes. Caracteriza-se cada túnel pela ponte que o pende e o sentido do trajeto sobre esta ponte segundo que
sobre esta ponte passe-se da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda. Obtém-se assim a matriz
do nó que servirá de base para a escrita de um polinômio, ou seja, uma escrita lógica que dá conta da
natureza do nó. E como o nó é real, tem-se então uma escrita do real. Compreende-se por que Lacan estava
determinado a extrair a lógica do nó. É esse ponto do horizonte que ele visava ao buscar elaborar uma escrita
que dê conta da clínica psicanalítica.
O que é importante para nós nesse nó de trevo que está no coração da cadeia borromeana é que ele
corresponde ao entrelaçamento dos três tipos de gozo que Lacan situa no coração da cadeia borromeana.
Cada princípio de gozo puxando para o seu lado, o nó se fixa em torno do objeto a que está no centro e essa
fixação evita que um princípio de gozo prevaleça sobre os outros dois.
Références bibliographiques
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