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Grupo de pesquisa

COMO TRABALHA UM PSICANALISTA


Teoria e método

Coordenação:

Gabriel Bartolomeu

“É muito bonito dizer que teoria e técnica são a mesma coisa. Então,
aproveitemo-nos disso” (LACAN, 2009/1955, p. 265).

“A intuição é ágil, mas uma evidência deve ser-nos tão mais suspeita quanto
mais se torna uma ideia aceita” (LACAN, 1953/1998, p. XXXX).

APRESENTAÇÃO DE NOSSO PROBLEMA DE PESQUISA

“Ela [minha abordagem no livro] constitui uma popularização


injustificavelmente expurgada da obra lacaniana, envolvendo
generalizações e reducionismos grosseiros – é fatal que
alguns me façam essa acusação” (FINK, 2018, p. 8).

Em um livro publicado nos Estados Unidos em 2011 (no Brasil, em 2017), o


reconhecido psicanalista americano Bruce Fink 1 afirma ter a intenção de auxiliar os
praticantes de psicanálise em seu trabalho. Fink inicia o seu livro com a seguinte
avaliação:

1 Bruce Fink traduziu vários seminários e os Escritos de Lacan para o inglês.


[...] quanto mais tenho falado com diferentes grupos de
psicanalistas pelos Estados Unidos, mais me convenço que o
tipo de técnica que tem sido ensinada nas sociedades e
institutos atualmente não ajuda, simplesmente, naquilo que
entendo por trabalho analítico, pelo contrário (FINK, 2017, p.
09).

Fink avalia que as abordagens psicanalíticas atuais abandonaram valiosos


insights elaborados por Freud, Lacan e outros psicanalistas importantes, e adotaram
uma perspectiva psicológica de tratamento, contradizendo, assim, os princípios da
psicanálise. Em seu livro, Fink intenta abordar o problema que diagnostica no
campo psicanalítico:

Desta maneira, tomei a liberdade de preparar um material


técnico com a finalidade de manter esses princípios básico
firmemente à vista. Focalizei naquilo que me parece ser a
técnica elementar (embora não tão elementar para muitos
analistas, como pensei que fosse), sem longas explicações
teóricas a respeito dos princípios básicos. Com isto em mente,
escrevi pensando nos leitores que não têm conhecimento
prévio de Lacan, mas têm algum conhecimento da psicanálise
de forma geral. Espero que esse material seja útil para os
iniciantes e para os analistas mais experientes, se bem que por
diferentes razões (FINK, 2017, p. 10).

O resultado do material forjado por Fink (2017) é uma espécie de manual


técnico2 para o trabalho do psicanalista. Desde um viés tecnicista, o autor propõe
um conjunto de recomendações referentes ao que o praticante de psicanálise deve
ou não fazer em seu trabalho. Apesar de algumas dessas recomendações soarem
razoáveis à primeira vista, elaboradas a partir de indicações do próprio Lacan, a

2 Em todas as passagens que empregamos o termo técnica neste texto estamos nos referindo a sua
concepção moderna, que podemos definir como um meio para se obter determinado fim: faça isso,
desse jeito e obterá aquilo, de tal jeito. Pretendemos, ao longo da pesquisa, investigar o conceito de
técnica (techne) na Antiguidade, cujo sentido é inteiramente diverso do usado na modernidade
ocidental
maneira como Fink as coloca ao leitor não deixam de parecer regras de boa
conduta, algumas incrivelmente estranhas. Seguem dois exemplos.

“Se nossas tentativas de ‘entender’ nos levam a reduzir


inevitavelmente o que outra pessoa está falando àquilo que
pensamos já saber (de fato, isso poderia servir como uma
definição bastante exata de entendimento de modo geral), um
dos primeiros passos que devemos dar é parar de tentar
compreender tão rapidamente. Não é mostrando ao paciente
que entendemos o que ele está dizendo que construiremos
uma aliança com ele – especialmente pelo fato de que na
tentativa de mostrar a ele que o entendemos, muitas vezes
isso falha e demonstramos exatamente o oposto –, mas, sem
dúvida, ouvindo o paciente como ele nunca antes foi ouvido.
Tendo em vista que ‘o próprio fundamento do discurso inter-
humano é o mal-entendido” (Lacan, 1993, p. 184), não
podemos contar com o entendimento para estabelecer um
relacionamento sólido com o paciente. Em vez disso, devemos
‘apresentar um sério interesse por ele’ (Freud, 1913/1958, p.
139) através de uma escuta que mostre a ele que estamos
prestando atenção naquilo que ele diz, de uma forma até então
desconhecida por ele” (FINK, 2017, p. 23, grifo do autor).

Ainda que Fink cite Lacan e Freud, e que possamos situar que a
recomendação técnica “parar de compreender tão rapidamente” é uma paráfrase de
uma recomendação feita por Lacan 3, não podemos deixar de lado a impressão de
que, na verdade, Fink está querendo dizer ao psicanalista qual a melhor atitude a se
tomar durante o seu trabalho. É uma recomendação com um viés negativo: não faça
isso, pare de tentar compreender tão rapidamente! Mesmo que possamos suavizar
a recomendação, como se suaviza as recomendações técnicas freudianas,
afirmando que “não são regras, são apenas indicações, mas cada psicanalista tem a
liberdade de realizar de outra forma em sua clínica”, mesmo assim, a recomendação
impacta o leitor como se o autor estivesse estabelecendo um imperativo. Esse
imperativo tem como pressuposto que, primeiro, o leitor-psicanalista compreende

3 “Quantas vezes não fiz observar àqueles que controlo, quando me dizem – Acredito ter
compreendido que ele queria dizer isto, e aquilo – uma das coisas que mais devemos evitar é
compreender muito, compreender mais do que existe no discurso do sujeito” (LACAN, 2009, p. 101,
grifo do autor).
rápido demais o que escuta da boca do paciente e, segundo, que esta suposta
compreensão é um erro, um problema. Logo, a ideia que parece reger o livro de
Fink é que o leitor-psicanalista não tem domínio sobre o seu fazer (faz errado!) e
que o leitor-psicanalista busca no livro as informações para aprender esse fazer
(pois, o autor sabe como fazer e pode te dizer!). O leitor é situado como ignorante
de seu fazer e, pior, como veremos no estranho exemplo a seguir, tratado como um
obtuso.

“O analista deve também evitar jeitos convencionais de


expressar a atenção àquilo que alguém está contando, como,
por exemplo, dizer ‘interessante’, ou ‘fascinante’, pois esses
comentários são vulgares, e geralmente sugerem uma
perspectiva distante e condescendente. Sugerem também que
a analista pense que ela entende o que o paciente disse. Ao
invés disso, ela deveria desenvolver ampla gama de ‘hums’ e
‘hãs’ (não ‘hãhãs’, que podem significar concordância, pelos
menos nas línguas inglesa e portuguesa), de diversos tons e
intensidades, que encoraje o paciente para continuar aquilo
que está dizendo, ou para explicar alguma coisa, ou
simplesmente para indicar ao paciente que ela o está
acompanhando, ou pelo menos que está acordada e querendo
que ele continue” (FINK, 2107, p. 26).

Essa passagem seria cômica se não fosse trágica! Como dissemos, Fink
assume uma posição na relação com o leitor-psicanalista na qual se sente no direito
de dizer o que este leitor-psicanalista pode ou não dizer durante o seu trabalho. A
qualificação de “jeitos convencionais de expressar a atenção” como “vulgares”
denota novamente a lógica que Fink assume em seu texto que é situar
determinadas “condutas” do psicanalista como erradas e apontar para outras
supostamente corretas.

Ainda, há que considerar que Fink supõe que há uma relação semântica a
partir da qual “jeitos convencionais de expressar a atenção” implica em uma
“perspectiva distante e condescendente” por parte do analista na situação com o
analisante. Nada mais equivocado se formos pensar desde a teoria do significante
de Lacan, na qual o significante em si mesmo não significa nada, o seu valor só
pode ser estabelecido no cerne de uma cadeia articulada a outros significantes 4.
Portanto, se formos tomar os exemplos que Fink dá, “interessante” ou “fascinante”,
considerando a teoria de Lacan, o valor ou sentido desses termos só podem ser
estabelecidos de maneira particular a depender da relação que mantém na cadeia
significante forjada na relação analista-analisante, podendo ser inclusive qualificada
pelo analisante de maneira contrária a que Fink propõe.

Como se isso não bastasse para tecermos uma severa crítica a Fink, o autor
segue com uma recomendação estranhíssima: “ela [a analista] deveria desenvolver
ampla gama de ‘hums’ e ‘hãs’” (FINK, 2017, p. 26). O caráter cômico dessa
asserção só não pode ser plenamente desfrutado pelo choque que produz quando
estamos avisados do quão problemática ela é, não só essa passagem, como todo o
livro de Fink. O problema já o situamos mais de uma vez: propor um manual de
conduta para o trabalho do psicanalista. Recomendar que o psicanalista desenvolva
uma “ampla gama de ‘hums’ e ‘hãs’ é reduzir a discussão sobre o trabalho do
psicanalista a uma pequenez que quase não encontramos palavras para qualificá-la,
pois, retira a discussão do âmbito intelectual – epistemológico, teórico,
metodológico, técnico – e a leva a uma conversa tecnicista (para não dizer de senso
comum) sobre o que o psicanalista pode ou não fazer: Fink pede para utilizar os
“hums” e “hãs” aos menos para indicar ao paciente que a analista “está acordada”!
Fica claro que Fink considera que o leitor-analista não só não sabe o que faz em
sua prática, mas também espera as piores atitudes de sua parte.

O livro de Fink nos parece um bom representante do viés que marca as


produções brasileiras sobre o trabalho do psicanalista. Apesar das ideias que o livro
veicula terem sido gestadas no contexto da cultura estadunidense, com sua
característica face tecnicista, já denunciada por Lacan 5, o que, ao menos em parte,
explicaria o tom do texto, chama-nos a atenção o quão elas encontram no contexto
brasileiro solo fértil para se desenvolverem. Fink é um autor muito lido não apenas
entre os psicanalistas brasileiros que estão iniciando a sua formação, mas por
aqueles que já têm um percurso teórico e clínico considerável.

4 Ver: Seminário 3, capítulo “O significante como tal não significa nada”. (LACAN, 1988)
5 Ver: “Função e campo...”, p. 246. (LACAN, 1998).
O livro do qual tiramos as passagens apresentadas é o segundo material de
Fink publicado no Brasil sobre o tema. Em 2018 (publicado nos Estados Unidos em
1997), a editora Zahar (a mesma que publica a obra de Lacan) publicou o livro
“Introdução clínica à psicanálise lacaniana”, o qual Fink inicia com um diagnóstico:

Apesar da grande complexidade dos escritos de Lacan, muitas


de suas ideias e inovações clínicas podem ser formuladas de
maneira simples e clara. No entanto, poucos ou nenhum dos
livros sobre Lacan hoje disponíveis falam de como praticar a
psicanálise lacaniana, do que ela realmente envolve e, por
conseguinte, do que a distingue de outras formas de terapia,
tenham elas ou não uma orientação psicanalítica” (FINK, 2018,
p. 07).

Podemos perceber que Fink acredita que as ideias de Lacan podem ser
simplificadas, talvez por isso elabore um material excessivamente técnico, próximo
a um código de conduta. Material que acreditamos ser muito popular no contexto
brasileiro, pois, os estudantes de psicanálise o acham mais acessível que os textos
de Lacan. No Brasil, no qual a educação média e universitária não prepara o
estudante para a leitura metódica de textos complexos (por exemplo, científicos e
filosóficos)6, entendemos que recorrer aos textos psicanalíticos mais “simples e
claros”, como os do Fink, torna-se uma escolha forçada à qual os estudantes de
psicanálise são levados. Ainda que não seja o objetivo de nosso grupo de pesquisa,
parece-nos urgente o debate sobre métodos de leitura de textos nas instituições de
psicanálise para habilitar os estudantes à apreensão crítica dos textos de Lacan,
bem como ao desenvolvimento da independência intelectual.

Na mesma passagem, Fink faz um diagnóstico que me parece válido:


“poucos ou nenhum dos livros sobre Lacan hoje disponíveis falam de como praticar
a psicanálise lacaniana, do que ela realmente envolve e, por conseguinte, do que a
distingue de outras formas de terapia, tenham elas ou não uma orientação
psicanalítica” (FINK, 2018, p. 07). Estamos de acordo com a avaliação de Fink no
que se refere ao escasso material sobre a prática psicanalítica numa perspectiva

6 [1] Ver: “Leitura e escrita de textos argumentativos”, de Marcus Sacrini (SACRINI, 2020).
lacaniana, inclusive é esse gap que motiva a realização da presente pesquisa
acerca do trabalho do psicanalista. Porém, não estamos de acordo com a forma
como Fink aborda o problema e lhe propõe soluções.

HIPÓTESE DE PESQUISA

“Os conceitos têm sua ordem de realidade original. Não surgem da


experiência humana – senão seriam bem feitos. As primeiras denominações
surgem das próprias palavras, são instrumentos para delinear as coisas” (LACAN,
S1, p. 10).

Como fica claro, a maneira como Fink pensa o trabalho do psicanalista é pela
via da técnica, caracterizando a prática analítica como uma série de “boas condutas”
a serem adotadas pelo praticante em sua relação com o analisante. Fink adverte o
leitor acerca de sua proposta desde o início do livro:

Desta maneira, tomei a liberdade de preparar um material


técnico com a finalidade de manter esses princípios básicos
firmemente à vista. Focalizei naquilo que me parece ser a
técnica elementar (embora não tão elementar para muitos
analistas, como pensei que fosse), sem longas explicações
teóricas a respeito dos princípios básicos” (FINK, 2017, p. 10).

Fink faz uma distinção entre teoria e técnica nessa passagem, pois, afirma
que irá apresentar a “técnica elementar” sem “longas explicações teóricas”. A
verdade é que ao longo do livro fica claro que não há nenhuma teorização rigorosa
sobre o emprego das técnicas recomendadas. Mas, o que gostaríamos de destacar
é que Fink parece considerar que é possível realizar uma discussão sobre o
trabalho do psicanalista separando técnica e teoria, de tal maneira que ele poderia
apresentar um texto cujo conteúdo aborda exclusivamente a dimensão técnica. A
nosso ver, trata-se de uma posição epistêmica criticável e que não está alinhada à
posição de Lacan. Para Lacan, teoria e técnica são inseparáveis – como
demonstraremos adiante. Portanto, Fink parece se distanciar do espírito da
pesquisa lacaniana. Ainda, tal como na obra de outros autores sobre o trabalho do
psicanalista, a discussão sobre os pressupostos epistemológicos que sustentam a
teoria e a técnica não são evidenciados e debatidos. O que empobrece a discussão
e alimenta mais ainda um viés tecnicista sobre o tema. Em nossa pesquisa,
incluiremos também os pressupostos epistemológicos que sustentam tanto a teoria
de Lacan quanto a nossa.

Em uma direção diferente da proposta por Fink, buscaremos evidenciar as


dimensões conceitual e epistemológica sobre a temática. Nossa hipótese de
pesquisa inicial é que o trabalho do psicanalista consiste em pensar com conceitos,
e não, como propõe Fink, estabelecer um conjunto de técnicas de como o
psicanalista deve ou não agir em sua prática. Cremos que nossa hipótese está
alinhada tanto à teoria de Lacan quanto à epistemologia que a sustenta. É o que
tentaremos demonstrar a seguir.

A posição epistemológica de Lacan poderia ser resumida na seguinte


afirmação: a teoria antecipa a clínica. Posição que está alinhada à concepção mais
comumente aceita na Filosofia da Ciência 7, qual seja: as elaborações teóricas
antecipam a experiência. Em outras palavras, a teoria não é uma descrição da
natureza, pelo contrário, a teoria cria a própria natureza 8.

Como expõe em vários momentos de seu ensino, para Lacan o conceito não
é um representante da coisa, mas, sim, o conceito é o gerador da coisa (LACAN,
1998). E se o conceito gera a coisa, então, não temos a possibilidade de pensar que
mantemos uma relação de neutralidade com os objetos do mundo. Os objetos do
mundo são sempre o reflexo de nossas ideias, a realidade é o que pensamos que a
realidade é.

“[...] o conceito resguardando a permanência do que é


passageiro, gera a coisa.

7 Alexandre Koyré, Thomas S. Kuhn, Imre Lakatos, entre outros.


8 Pretendemos ao longo do percurso desenvolver melhor essa ideia a partir de filósofos da ciência.
Pois ainda não é bastante dizer que o conceito é a própria
coisa, o que uma criança pode demonstrar contrariando a
escola. É o mundo das palavras que cria o mundo das coisas,
inicialmente confundidas no hic et nunc do todo em devir,
dando um ser concreto à essência delas e dando lugar, por
toda parte, àquilo que é desde sempre: Kthéma es aei.
O homem fala, pois, mas porque o símbolo o fez homem”
(LACAN, 1998, p. 278).

Outra forma de elaborar a posição epistemológica de Lacan seria


desenvolver a ideia presente na última frase da citação acima: “o homem fala, pois,
mas porque o símbolo o fez homem”. Em articulação com a primeira ideia de que o
conceito gera a coisa, aqui poderíamos dizer que Lacan está propondo que o
símbolo gera o homem. Ou seja, não somos nós que criamos o símbolo, ou a
linguagem, mas é o símbolo que nos cria.

Se o conceito gera a coisa, se o símbolo faz o homem, seguindo a mesma


lógica, não é errado afirmarmos que a teoria gera, cria o que chamamos de clínica.
Como Eidelsztein (2017) aponta, se nos alinhamos à perspectiva epistemológica de
Lacan, trata-se de um equívoco pensar que a teoria psicanalítica é extraída da
experiência clínica. Estaríamos enganados em defender que, por exemplo, Freud
inventou a psicanálise a partir da escuta de pacientes histéricos. Segundo
Eidelsztein (2017), Freud forja a teoria psicanalítica a partir de outras teorias
disponíveis à época, sendo a clínica o seu campo de experimentação dos conceitos
elaborados. Para ilustrar a ideia, vejamos o que Lacan diz sobre isso no texto
“Função e campo”:

“[...] nossa física é apenas uma fabricação mental cujo


instrumento é o símbolo matemático.
Pois a ciência experimental não se define tanto pela
quantidade a que efetivamente se aplica, mas pela medida que
introduz no real.
Como se vê pela medida do tempo, sem a qual ela seria
impossível. O relógio de Huyghens, o único a lhe conferir sua
precisão, é apenas o órgão realizador da hipótese de Galileu
sobre equigravidade dos corpos, ou seja, sobre a aceleração
uniforme, que confere sua lei, por ser a mesma, a toda queda.
Ora, é divertido salientar que o aparelho foi concluído antes
que a hipótese pudesse ser confirmada pela observação, e
que, em vista disso, ele a tornou inútil no exato momento em
que lhe ofereceu o instrumento de seu rigor” (LACAN, 1998, p.
287).

Trata-se de uma passagem bastante ilustrativa do que chamamos de posição


epistemológica de Lacan sobre o conceito e sua qualidade de gerar a coisa. Aqui
Lacan primeiro situa a física (que podemos considerar como o conhecimento que
temos sobre os objetos da natureza e suas qualidades como massa, dimensão,
velocidade, etc.) como uma fabricação mental forjada a partir do símbolo
matemático. Isto é, para Lacan é a linguagem matemática, enquanto um
“pensamento conceitual”9, que cria o que chamamos de física. A física – o
conhecimento sobre os objetos – não é uma descrição do mundo natural, mas uma
fabricação do pensamento matemático humano. É nesse sentido que Lacan irá em
seguida afirmar que a ciência experimental se define mais pela medida (massa,
distância, tempo, por exemplo) que introduz no real (na realidade tal como a
conhecemos). Em outras palavras, a massa, a distância e o tempo só passam a
fazer parte da natureza a partir do momento em que conceitualizamos o que é
massa, distância e tempo.

A hipótese de Galileu sobre a equigravidade dos corpos já existia antes da


criação do aparelho de Huyghens, o qual permitiu a confirmação dessa hipótese
pela via da experimentação. Seguimos aqui a mesma lógica: o conceito/teoria é
anterior à coisa/objeto/experiência. A hipótese de Galileu não é uma descrição da
realidade temporal, pelo contrário, já tinha vida própria antes dessa realidade ser
verificada. E o que acontece no momento em que a hipótese é confirmada pela
experimentação realizada com o auxílio do aparelho de Huyghens? É como se a
hipótese nunca tivesse existido, e os créditos vão todos para a conta do aparelho,
como se o aparelho tivesse descoberto a equigravidade dos corpos – e não Galileu
antes mesmo da existência do aparelho. Esquece-se que o próprio aparelho de

9 A expressão “pensamento conceitual” referida ao pensamento matemático não é precisa, mas, por
hora, nos servirá para ilustrar nosso ponto.
Huyghens não fora gerado ao acaso, mas, sim, a partir da teoria proposta por
Galileu e, ainda, visando a confirmação da hipótese de Galileu. Além disso, a
interpretação dos dados observados através do aparelho, que foram considerados
confirmativos da hipótese em questão, só foi possível pela existência anterior da
proposição teórica de Galileu. Sem a teoria da equigravidade não seria possível
reconhecer a sua existência no mundo. Em poucas palavras: por haver uma teoria
da equigravidade é que foi possível “descobrir” a sua existência na natureza. Trata-
se de um belo exemplo da inexistência de uma verdadeira divisão entre teoria e
experimentação, conceito e objeto.

Nesse sentido, no campo psicanalítico, teoria e técnica são uma única e


mesma coisa, tendo a teoria uma anterioridade lógica e um valor elevado para o
trabalho do psicanalista. Antes de mais nada, o trabalho do psicanalista é um
trabalho com os conceitos, sendo que, a depender dos conceitos que ele trabalha,
isto é, pensa a psicanálise, teremos a criação de um tipo diferente de clínica,
portanto, de tratamento. Os conceitos que constituem o pensamento do psicanalista
em seu trabalho serão o seu instrumento para realizar a leitura e reescritura do texto
do analisante. Inclusive, o psicanalista terá uma compreensão específica do que são
leitura, reescritura e texto, ou, ainda, poderá nem sequer trabalhar com tais noções.

O cerne da questão é que os conceitos definem a experiência clínica, tanto


do lado do analista quanto do analisante, personagens que estão inclusive
emaranhados em uma imisção de Outridade (APOLa, 2019). Os conceitos não só
determinam como o psicanalista irá abordar o texto do paciente, mas, isso é ainda
mais importante para nós aqui, determinará se o que vai se efetivar é um tratamento
do sofrimento ou não, pois, como afirma Lacan, “[...] a técnica não pode ser
compreendida nem corretamente aplicada, portanto, quando se desconhecem os
conceitos que a fundamentam” (LACAN, 1998, p 247).

Por exemplo, pensar conceitualmente o texto do analisante a partir da noção


de responsabilidade subjetiva do sujeito é inteiramente diferente do que negar a
utilização dessa noção e utilizar, por exemplo, a noção de interpretação do sujeito. A
partir da primeira noção, parte-se do pressuposto de que o sujeito é um agente de
seu discurso que pode ser responsabilizado pelo conteúdo que ali surge, ainda que
esse conteúdo seja inconsciente. De acordo com a segunda noção, o sujeito é
considerado como um tema a ser interpretado em um texto estabelecido durante a
análise. A responsabilização do sujeito implica em atribuir a ele a escolha por
determinada posição assumida na relação com o Outro, inclusive pelo sofrimento
daí decorrente, recaindo numa culpabilização do paciente. A interpretação do
sujeito consiste em um trabalho de formalização do texto do paciente, visando
extrair daí a lógica significante que estabelece a relação do sujeito com o Outro[10].

Em resumo, entendemos que o trabalho do psicanalista é pensar com


conceitos, os quais não só irão engendrar uma modalidade de tratamento específica
como condicionarão os resultados desse tratamento.

OBJETIVO GERAL

Como apresentamos anteriormente, os conceitos são os geradores dos


objetos no mundo, portanto, em nosso campo de estudo, os conceitos são os
criadores da clínica. A nosso ver, importa menos elaborar tecnicamente o que o
psicanalista diz ou deixa de dizer ao paciente, se pronuncia as palavras
“interessante” ou “fascinante”, ou se emite “hums”, “hãhs” ou “hãhãs”, e mais que o
psicanalista seja capaz de pensar com conceitos o material que o paciente traz para
a análise. As intervenções faladas produzidas pelo analista serão decorrentes desse
pensamento conceitual. Então, o debate que nos interessa é prioritariamente acerca
dos conceitos e não sobre o que o psicanalista deve ou não falar durante os
atendimentos. Em resumo, concebendo o trabalho do psicanalista como um trabalho
de pensar com conceitos, nosso objetivo é investigar como este pode ser realizado.

FUNCIONAMENTO DO GRUPO DE PESQUISA


O grupo de pesquisa é uma modalidade de estudo que se orienta por um
problema de investigação e visa elaborar respostas possíveis a esse problema.
Segue-se que tanto a proposição do problema quanto sua solução resultam em uma
produção material – oral ou escrita – que pretende contribuir para o progresso do
conhecimento em determinada área do saber – em nosso caso, a Psicanálise. É
uma forma de estudo ativa, justamente por ter como intenção a construção de saber
e não só o aprendizado passivo do conhecimento que que extraímos dos textos.
Diferentemente de um curso no qual o coordenador apresenta um conteúdo
baseado numa pesquisa já realizada, em nosso grupo o conteúdo estará em um
processo de elaboração. Portanto, será um espaço caracterizado pelo levantamento
e teste de hipóteses teóricas e metodológicas.

Os encontros serão divididos em dois momentos. Em um primeiro momento,


com duração de aproximadamente 40 minutos, o apresentador fará a exposição dos
resultados parciais de sua pesquisa sobre o tema e, em seguida, será aberto um
debate para que os outros participantes possam tecer comentários, críticas e
levantar questões. Todo encontro teremos um texto-base. Neste semestre, vamos
utilizar incialmente o Programa de Investigação Científica (PIC) de APOLa e, em
seguida, o texto “Função e campo fala e da linguagem” de Jacques Lacan.

Parte da proposta do grupo de pesquisa inclui o envolvimento ativo dos


participantes, assim, teremos encontros nos quais quem tiver interesse (não é
obrigatório) poderá apresentar sua análise de um texto cujo conteúdo esteja
articulado a temática. Com isso, intentamos incentivar que os participantes
desenvolvam o hábito da pesquisa e da apresentação de seus resultados. A
princípio, divulgaremos um formulário em nosso grupo de WhatsApp com a
divulgação de duas datas e dois temas para serem apresentados neste semestre. A
partir do semestre que vem, pretendemos ampliar o número de encontros livres para
que os participantes realizem apresentações.

MÉTODO DE LEITURA DO TEXTO DE LACAN E SEU PRESSUPOSTO


Ao longo de seu ensino, Lacan fara alusão a mais de um método de leitura de
textos, indicando como ele realizava a sua abordagem da obra freudiana. Os
métodos de leitura de textos incluem pressupostos teóricos que direcionam a
abordagem do texto e a extração de seu sentido. A partir do pressuposto de que o
conceito gera o objeto, podemos afirmar que o método de leitura elegido cria a
interpretação que o pesquisador estabelece do texto. Deste modo, a explicitação do
método de leitura empregado na abordagem de um texto tomado como um objeto
de pesquisa é indispensável.

O método de leitura de texto que pretendemos utilizar é indicado por Lacan


no seminário 2, em um momento que estava às voltas com a obra freudiana.
Vejamos a passagem na qual fica claro os autores a partir dos quais ele recupera o
seu método e os pressupostos em jogo:

“Aplicar a uma obra os próprios princípios que ela fornece


para sua construção é uma lei fundamental de toda crítica
sadia. Tratem, por exemplo, de entender Espinosa segundo os
princípios que ele próprio fornece como os mais válidos para a
conduta do pensamento, para a reforma do entendimento.
Outro exemplo – Maimônides, personagem que também nos
fornece certas chaves para o mundo. Há dentro de sua obra
advertências expressas quanto à maneira de conduzir a
pesquisa. Aplicá-los à própria obra de Maimônides permite-nos
entender o que ele quis dizer.
Logo, trata-se de uma lei de aplicação absolutamente geral
que nos impele a ler Freud procurando aplicar à sua própria
obra as regras de compreensão e de entendimento que ela
explicita” (LACAN, 2010/1955, p. 158, grifo nosso).

A proposta de Lacan é ler Freud a partir das regras de compreensão e


entendimento extraídos do próprio texto freudiano, ou seja, trata-se de recuperar a
estrutura e a lógica interna do pensamento do autor e empregá-la na apreensão da
obra. Segundo os autores que Lacan cita – Espinosa e Maimônides – é possível
extrair os princípios que o autor utilizou para elaborar a sua obra, seu pensamento,
sendo eles os melhores orientadores para a compreensão do sentido do material.
Buscaremos trabalhar com o texto de Lacan no mesmo molde proposto por Lacan.
Isto é, partiremos da premissa de que o conceito gera a coisa ou que a teoria é
anterior a experiência. Os conceitos de inconsciente, fala, linguagem, história,
transferência, entre outros, que iremos abordar durante a leitura do texto “Função e
campo da fala e da linguagem”, não serão entendidos como conceitos que surgem
da realidade ou da experiência, pelo contrário, serão abordados como conceitos
forjados a partir de outros conceitos (de autores como Freud, Saussure, Lévi-
Strauss, Kojéve) e que condicionam a existência do que compreendemos como
inconsciente, fala, linguagem etc. Assim, a própria teorização que Lacan realiza
durante o texto será tomada como uma teoria que antecede a prática clínica,
forjando-a nos mesmos termos que essa mesma teoria a concebe. Como o método
de leitura proposto por Lacan inclui uma dimensão crítica do texto freudiano, nós
também teremos a incumbência de avaliar criticamente se os conceitos tais como
Lacan apresenta seguem ainda hoje como operadores que consideramos
interessantes para a realização do trabalho do psicanalista.

CRONOGRAMA

Abril

12 – Programação de Investigação Científica (PIC) de APOLa.


19 – Função e campo da fala e linguagem. Prefácio e introdução (p. 238-
248).

26 – Função e campo Função e campo da fala e linguagem. Fala vazia e fala


plena na realização psicanalítica do sujeito (p. 248-266).

Maio

03 – Função e campo Função e campo da fala e linguagem. Fala vazia e fala


plena na realização psicanalítica do sujeito (p. 248-266).

10 – Crítica a noção de responsabilidade subjetiva em psicanálise. Textos: A


‘responsabilidade subjetiva’ em psicanálise, de Alfredo Eidelsztein; Sujeito e
responsabilidade, de Flavia Dutra. Mediação: participante a ser escolhido.

17 – Função e campo Função e campo da fala e linguagem. Símbolo e


linguagem como estrutura e limite do campo psicanalítico (p. 267-290).

24 – Função e campo Função e campo da fala e linguagem. Símbolo e


linguagem como estrutura e limite do campo psicanalítico (p. 267-290).

31 – Função e campo Função e campo da fala e linguagem. As ressonâncias


da interpretação e o tempo do sujeito na técnica psicanalítica (p. 290-324).

Junho

07 – Função e campo Função e campo da fala e linguagem. As ressonâncias


da interpretação e o tempo do sujeito na técnica psicanalítica (p. 290-324).

14 – O trabalho do psicanalista: diferenças entre Freud e Lacan. Cómo


trabaja um psicoanalista?, de Alfredo Eidelsztein. Apresentação: participante a ser
escolhido.

21 – Resultados da pesquisa do semestre. Planejamento para o segundo


semestre.

28 – Apresentação de um pesquisador de APOLa convidado.

REFERÊNCIAS

APOLa. Programa de Investigação Científica (PIC) em Psicanálise. 2019.


Disponível em: http://apola.online/pdfs/PicPort2022.pdf. Acessado em: 10 abr. 2023.
DUTRA, Flavia. Sujeito e responsabilidade. Revista El rey está desnudo, n. 08,
2015. Disponível em:
https://www.elreyestadesnudo.com.ar/wp-content/uploads/2015/09/Sujeito-e-
responsabilidade.pdf. Acessado em: 10 abr. 2023.

EIDELSZTEIN, A. A “responsabilidade subjetiva” em psicanálise. Fractal: Revista


de Psicologia, v. 33, n. 1, p. 41-46, 17 mar. 2021. Disponível em:
https://periodicos.uff.br/fractal/article/view/36050. Acessado em: 10 abr. 2023.

EIDELSZTIEN, Alfredo. Cómo trabaja un psicoanalista? Seminário Internacional


apresentado em 02 de setembro de 2017 no Centro Psicanalítico do Chile, Santiago
de Chile. Disponível em: https://www.eidelszteinalfredo.com.ar/?p=2125. Acessado
em: 10 abr. 2023.

FINK, Bruce. Fundamentos da técnica psicanalítica: uma abordagem lacaniana


para praticantes. São Paulo: Blucher, 2017.

FINK, Bruce. Introdução clínica à psicanálise lacaniana. Rio de Janeiro: Zahar,


2018.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 3: as psicoses, 1955-1956. Rio de Janeiro:


Zahar, 1988.

LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem (1953). In: Escritos. Rio
de Janeiro: Zahar, 1998. p. 238-324.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954.


Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da


psicanálise (1954-1955). Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: Editora


da Universidade de São Paulo, 2020.

BIBLIOGRAFIA INICIAL

(em construção)

(1) Jacques Lacan – seminários e escritos

LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In:______.


Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 238-324.

(2) Sigmund Freud – textos sobre a técnica psicanalítica


(3) Pesquisadores de APOLa – textos sobre o tema

APOLa. Programa de Investigação Científica em Psicanálise (PIC). 2019.

DUTRA, Flavia. Sujeito e responsabilidade. Revista El rey está desnudo, n. 08,


2015. Disponível em:
https://www.elreyestadesnudo.com.ar/wp-content/uploads/2015/09/Sujeito-e-
responsabilidade.pdf. Acessado em: 10 abr. 2023.

EIDELSZTEIN, A. A “responsabilidade subjetiva” em psicanálise. Fractal: Revista


de Psicologia, v. 33, n. 1, p. 41-46, 17 mar. 2021. Disponível em:
https://periodicos.uff.br/fractal/article/view/36050. Acessado em: 10 abr. 2023.

EIDELSZTIEN, Alfredo. Cómo trabaja un psicoanalista? Seminário Internacional


apresentado em 02 de setembro de 2017 no Centro Psicanalítico do Chile, Santiago
de Chile. Disponível em: https://www.eidelszteinalfredo.com.ar/?p=2125. Acessado
em: 10 abr. 2023.

(4) Psicanalistas lacanianos – livros e artigos sobre a temática

FINK, Bruce. Fundamentos da técnica psicanalítica: uma abordagem lacaniana


para praticantes. São Paulo: Blucher, 2017.

FINK, Bruce. Introdução clínica à psicanálise lacaniana. Rio de Janeiro: Zahar,


2018.

(5) Método de leitura de textos – autores e obras do campo da filosofia, teologia e


hermenêutica

SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: Editora


da Universidade de São Paulo, 2020.

SEVERINO, J. A. Como ler um texto de filosofia. São Paulo: Paulus, 2008.

FAGUET, E (1912). Ler devagar. In: A arte de ler. Campinas: Kírion, 2021.

(6) Epistemologia e Filosofia da Ciência – obras que debatam problemas


epistemológicos científicos.

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