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borda

traduções

Jacques Lacan
_________
Discurso de
Tóquio
Editorial

Recentemente, em um evento do grupo, falamos muito brevemente sobre o


problema da tradução em Lacan. Ao invés de focar nos problemas mais usuais, pontuamos
a importância de um projeto rigoroso de tradução para uma transmissão de fato
democrática da psicanálise. Contrapondo a desfaçatez da afirmação tácita “para ler Lacan
tem que saber francês” à possibilidade de pensar o campo analítico para além de seus
feudos de nobreza, propomos então o projeto “Borda Traduções” como uma frente de
nossa aposta de transmissão. Aqui, trata-se fundamentalmente de uma convocatória: o
texto está aí, para quem quiser se servir dele.
Para além do problema político – que ultrapassa as questões apresentadas acima
–, o problema teórico também se faz sentir em todas as traduções. Lacan, como já
escutamos algumas vezes, não é um autor muito simples de se traduzir... O uso deliberado
e consciente de homonímias, equívocos e duplos sentidos abundam em seu discurso. A
tradução integral e sem perdas do original para uma outra língua é impossível. Ingrata por
sua impossibilidade inerente, contudo, a tarefa da tradução – ainda que seja sempre uma
traição – não pode cair no engano de simplesmente procurar apagar o fato simples de que,
como tradução, é também uma interpretação do texto. Abandonada a miragem da
tradução integral, muitas vezes a tarefa de tradução se torna um apagamento da operação
de conversão e a busca de um efeito mítico do “é isso que Lacan disse”. Ora, o que Lacan
disse, até na língua francesa, é campo de debate. Uma tradução, portanto, deve se assumir
como tradução e, com isso, mostrar suas escolhas e suas apostas. Chamamos isso de
“honestidade intelectual” na tradução.
Isso não quer dizer, contudo, que a “interpretação de cada um” governe o campo
das traduções. De modo algum. Em muitíssimos momentos Lacan é enfático e
absolutamente inequívoco – não à toa algumas frases suas foram simplesmente retiradas...
Parte da “honestidade intelectual” consiste em não se esquivar dos momentos em que
Lacan afirma algo que se choca com uma interpretação particular – seja para salvá-lo ou
condená-lo. Rigoroso como o sistema lacaniano é, o tradutor deve estar advertido de suas
modulações e complexidades para propor uma tradução à altura do sistema que pretende
traduzir. Sua “interpretação singular” perde espaço para o edifício construído ao longo de
mais de 30 anos de ensino sistemático.
Dessa forma, o trabalho de tradução dos textos lacanianos é ingrato por duas
razões: por um lado, devemos aceitar os equívocos (especialmente na relação entre escrita

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e fala) que Lacan mesmo sempre abordou de maneira orgânica no seu discurso e
assumirmos as nossas escolhas de tradução e de interpretação; por outro lado, devemos
estar advertidos que nossa interpretação não pode se sustentar em sua singularidade
particular, mas rigorosamente no sistema lacaniano, que possui uma coerência tão alta
quanto sua complexidade e aparente ininteligibilidade. Entre a cruz e a espada, apostamos
ainda assim na importância de propormos as nossas traduções para que elas possam ser
lidas, discutidas e questionadas.

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Discurso de Tóquio
Jacques Lacan

A Escola Freudiana de Paris, da qual os Escritos não pretendem ser o programa,


resultou de duas cisões que se produziram no interior do grupo psicanalítico de Paris.
Chamo de grupo alguma coisa muito mais geral, simplesmente o fato que há psicanalistas
em Paris. Houve uma primeira cisão que desembocou na separação de duas coisas: uma
que se chamava o Instituto Psicanalítico de Paris e a outra que se chamava a Sociedade
Francesa. Quando eu vim ao Japão, há onze anos, fazia parte da Sociedade Francesa de
Psicanálise. Esses tipos de cisões na história dos grupos de Psicanálise na Europa não são
raros. Tomemos o caso da Suíça: há mais de um grupo e esses grupos estão ligados de
uma maneira muito frouxa.
Aconteceu que por razões contingentes, ligadas a coisas bastante secundárias,
como rivalidades pessoais, se produziu essa primeira cisão. Mas, por razões também
muito contingentes, um desses grupos não permaneceu no que se chama a Associação
Internacional de Psicanálise. Isso por conta das relações pessoais que uma pessoa – que,
apesar de tudo, está bastante esquecida – que se chamava Princesa Marie de Grèce
mantinha com Anna Freud. Essas relações pessoais fizeram com que, ao invés de que
essas duas Sociedades fossem reconhecidas, o que seria o caso normal, se arguiu de uma
minúcia jurídica que nós havíamos saído dando nossa demissão, o que era correto à
medida em que demos nossa demissão da sociedade precedente, mas desde o ponto de
vista formal isso nos excluía. Se a Associação Internacional tivesse jogado um jogo
normal, ela teria considerado que isso era um acidente e teria nos reconhecido como o
outro grupo. Isso teve consequências curiosas; há pessoas dentre nós que permaneceram
nostálgicas a propósito dessa separação e que fizeram tudo para entrar novamente nessa
Associação Internacional.
É daí que o que se desenvolveu desde dez anos de meu ensino tomou sua
importância, a saber, que o que eu ensinava era totalmente distinto em relação ao que
dava o tom àquilo que se fazia na esfera da psicanálise anglo-americana. Isso não é uma
coisa surpreendente, Freud o havia previsto, Freud havia previsto que a psicanálise
sofreria uma inflexão muito importante por ser tomada no sistema de pensamento da
sociedade americana. Há traços disso escritos em sua obra. Ele previu a coisa. E é da
maneira mais declarada que as coisas se passam assim. Alguém como Heinz Hartmann,
que dita a lei na Sociedade de Nova Iorque, disse nitidamente que o programa de

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psicanálise, pelo seu trabalho e seu ensino, deveria consistir em fazê-la [a psicanálise]
entrar novamente nos quadros, nos conceitos do que ele mesmo chama de psicologia
geral. É uma coisa que foi dita, escrita e constitui o programa da escola americana, na
medida em que ela segue o movimento de Nova Iorque – e o conjunto da escola americana
segue com um pouco mais ou menos de distância. O Estados Unidos é muito grande, e
isso oferece uma certa diversidade; de qualquer modo, algo restou dos métodos
imperativos que os imigrantes da Alemanha herdaram de um certo estilo universitário
alemão. É certo que esse grupo, que eu conheço muito bem pois os vi nos anos que
precederam a guerra entre 33 e 38 – eu vi todos eles passarem por Paris, quero dizer que
eu mesmo me ocupei deles –, deu o impulso, a partir da guerra, à psicanálise americana.
Isso que se deu em 63 de uma necessidade imperiosa que se manifestou entre
pessoas que eram meus colegas, professores da Sorbonne, de entrar novamente na
Associação Internacional, lhes fez fazer concessões sobre o que em meu ensino se
distinguia radicalmente do que ditava a lei, dava o tom na psicanálise americana, sobre a
qual podemos dizer, por exemplo, que Anna Freud, em seu modo de tratar a psicanálise
de crianças, levou as coisas a um grau que se harmoniza muito bem com o programa da
Sociedade de Nova York.
Foi nesse momento que, nessas condições, e visto o giro que tomavam as coisas,
eu mesmo disse que não continuaria mais o ensino que eu dava e que era, é necessário
dizê-lo, a verdadeira via da Sociedade Francesa de Psicanálise; é evidente que era meu
ensino que lhe dava seu peso e seu tom. Não havia ninguém além de mim para dar aí um
ensino propriamente dito. O que traziam os professores na Sorbonne, que eu não tenho
que nomear, era verdadeiramente da ordem da repetição de temas, devo dizer bastante
usados, e que não manifestavam uma grande fecundidade. Em seguida, declarei que não
tinha mais que continuar meu ensino nas condições em que as coisas se engajavam. Fiz
isso sem ter nenhuma garantia quanto ao porvir.
Acontece que nesse momento me propuseram a continuar meu ensino em uma
certa sexta seção da Escola Prática de Altos Estudos, onde sou colega de pessoas como
Lévi-Strauss. Diante do fato de que as pessoas que eram meus alunos permaneceram
comigo e não se engajaram na via do retorno à Sociedade Internacional eu me encontrei,
se posso dizer, encarregado deles e fundei o que se chama – o que eu chamei pois fui eu
que lhe dei seu nome – a Escola Freudiana de Paris. É certo que chamá-la Freudiana
nessas condições, quero dizer, ao me separar de uma associação internacional que
pretende ter o monopólio da herança freudiana, eu me ofereci a uma contestação,

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inclusive jurídica na ocasião. É notável que não houve traço disso. Quero dizer que
ninguém em Paris ousou contestar que meu ensino fosse freudiano. É isso que posso dizer
quanto à situação atual da Escola.
Há muitas pessoas, mesmo em outros grupos, que veem pouca vantagem em
estarem ligados à Associação Internacional. Eu conheço mais de um que não colocam
jamais os pés nos congressos e que têm uma certa aversão por essas manifestações. O que
é certo é que todos aqueles que, por qualquer razão que seja, gostaram do meu ensino,
mesmo quando eles faziam parte de outro grupo, porque aconteceu que, por razões de
ambição pessoal, alguns me abandonaram juridicamente, mesmo esses se encontram, por
suas próprias confissões, muito desconfortáveis nas manifestações do que domina na
Associação Internacional, isto é, onde as comunicações repousam sobre os pressupostos,
sobre os princípios, sobre o que é necessário também chamar de preconceitos, ou seja,
julgamentos fundamentais que jamais são discutidos.
As coisas que se enunciam nesses congressos os deixam muito desconfortáveis a
partir do momento em que eles se encontram regulando sua prática segundo alguns
princípios que eu enuncio, e sobre os quais é necessário que eu marque, que eu sublinhe,
que não é por nada que toda essa construção, digamos, que eu fiz ao longo desses anos,
dure já um bom tempo e mesmo em demasia para o meu gosto, enfim, estamos no décimo
oitavo ano desse ensino. O ensino tal como é, com o que pode parecer abstrato, enfim,
tudo depende do ouvido com que vocês podem ler essas coisas.
Entre vocês ninguém é psicanalista. É lamentável. Isso poderia ajudar em alguma
coisa. De qualquer forma, como esse psicanalista estaria formado segundo os princípios
que devem, – eu não sei de nada, suponho que eles devem dominar aqui – [segundo]
alguma coisa que deve emanar de uma maneira mais ou menos direta da Escola
americana, isso seria também uma dificuldade. O que torna tão penoso, para aqueles que
gostaram de meu ensino, um certo estilo de enunciação, de objetivo dado à sua prática, é
que essas coisas podem parecer altamente abstratas a vocês – é a pior palavra, não é
abstrato, são coisas muito concretas –, essas coisas que, se vocês não são analistas vocês
podem muito dificilmente imaginar, a saber o que é a experiência disso que nós
chamaremos de experiência do divã. A saber, isso que se passa quando alguém está aí, no
consultório do analista, sobre o divã e tendo entrado nesse tipo de artifício – pois é
evidentemente um artifício, a psicanálise; não é necessário imaginar isso como qualquer
coisa que seria a descoberta de não sei qual coração do ser ou da alma. Em nome de que
isso se produziria?

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A psicanálise não é uma ascese, é uma técnica, um artefato muito preciso que está
destinado a entrar em alguma coisa sobre a qual se trata justamente de conceber a
verdadeira natureza. Para que isso possa andar nas condições em que anda, quer dizer que
se está em uma situação que é essa: as pessoas vêm demandar alguma coisa da qual eles
mesmos não têm nenhum tipo de ideia; o que eles demandam é alguma coisa vaga que
tem, ao menos em alguns, o apoio de certos sintomas pelos quais sofrem e dos quais
gostariam de se desembaraçar. O psicanalista é, a partir daí, considerado uma espécie de
potência obscura que deve possuir os meios para fazer maravilhas. Evidentemente, isso
não é algo com o que jogamos. Quero dizer com isso, de qualquer forma, que é necessário
fazer justiça à psicanálise, que não tenta jogar sobre essa dimensão da sugestão, da crença
e da confiança; da tomada pela mão, da condução do que chamamos de paciente. Se fosse
isso, há muito tempo a psicanálise teria desaparecido desse mundo, como aconteceu com
algumas técnicas que jogavam com essa relação humana.
A psicanálise é uma técnica muito precisa que joga sobre essa regra que damos ao
paciente de dizer o que lhe ocorre dizer. Naturalmente, o orientamos um pouco em direção
ao que poderia ser interessante, o ensinamos a ir um pouco mais longe do que as relações
ditas de confissão comportam. Dizemos a eles que é melhor não se deter em nada,
inclusive em coisas que podem parecer-lhes indiferentes ou malcriadas, que eles as digam
como elas vêm à mente. Que, a partir dessa prática, se estabeleça alguma coisa que é
infinitamente mais rica e mais complicada, isso imediatamente surpreendeu as pessoas
que se colocaram a operar com essa prática: é o que se chama transferência.
A transferência é, então, alguma coisa totalmente diferente desse enganche de
confiança e fé no analista, na medida em que, precisamente, se a analisa. Há uma coisa
certa, é que a realidade da transferência é alguma coisa muito obscura; e valeria mais
saber o que se faz e que se coloque ênfase sobre o que é a análise da transferência. É bem
certo que, ao falar dela [da transferência] de uma determinada maneira e fazer sua teoria
de determinada maneira, chegamos a coisas muito obscuras e sistemáticas que
desembocam em impasses. Isso é perfeitamente localizado desde sempre. Se falamos da
neurose de transferência é porque vimos justamente que a transferência não se manejava
tão facilmente quanto se pensava. Ao manejá-la de uma determina maneira, a
eternizamos. Estabelecemos algo que de algum modo é uma nova forma de neurose, que
se torna o tecido mesmo das relações daquele que é analisado com aquele que o analisa.
O que eu ensinei mesmo assim tem esse efeito: permite escutar o que o paciente
diz de uma maneira totalmente diferente. Para não complicar as coisas, nos limitemos a

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chamá-lo de paciente; o que é uma péssima fórmula, e vocês devem saber que eu o chamo
de psicanalisante, o que não é feito para surpreender um ouvido acostumado à língua
inglesa; apesar de haver aí um gerúndio, que quer dizer “aquele que deve ser
psicanalisado”, isso tem de qualquer forma uma vantagem sobre a palavra francesa até
aqui usual, a saber, chamá-lo de psicanalisado; porque, na verdade, seria um grande erro
chamá-lo de psicanalisado enquanto ele ainda não o é, e só pode sê-lo, talvez, ao fim.
Enquanto ele não é [psicanalisado], o chamemos de psicanalisante [psychanalysant] em
francês, isso colocará um pouco mais de ênfase sobre alguma coisa ativa, porque é bem
certo que um psicanalisante não é simplesmente um paciente, mas que ele tem um
trabalho a fornecer mas, esse trabalho, trata-se de não deixá-lo se perder, a saber, de
reconhecer o que se passa. É totalmente chocante para as pessoas que seguem meu ensino
quantas vezes acontece que as pessoas que seguem os pacientes – retornemos à nossa
antiga denominação – ou os têm em análise trazem-me o testemunho que o que eu acabei
de dizer em meu último seminário lhes foi dito, mas textualmente, como por milagre, por
um doente quarenta e oito horas antes. É provável que, se não houvesse meu seminário,
eles literalmente não teriam escutado o que o paciente dizia. Isso acontece com todos nós,
há uma maneira de escutar que faz com que não entendamos jamais senão aquilo que já
estamos habituados a entender. Quando alguma coisa diferente é dita, a regra do jogo da
fala [parole] faz com que nós simplesmente a censuremos. A censura é uma coisa muito
banal, não se produz simplesmente no nível de nossa experiência pessoal, mas se produz
em todos os níveis do que nós chamamos de nossas relações com nossos semelhantes, a
saber, que o que nós ainda não aprendemos a escutar, não escutamos. Não nos damos
conta que todo um pedaço, todo um parágrafo do que acaba de ser dito, todo seu peso
particular, quer dizer alguma coisa que não é, evidentemente, o texto. É aí que nós
entramos nisso que é importante no que ensino: ele quer dizer, mas não basta querer. Se
quer dizer, mas o que se quer dizer é geralmente falho. É aí que o ouvido do psicanalista
intervém, a saber, ele se dá conta do que o outro verdadeiramente queria dizer. E o que
ele queria dizer, em geral, não é o que está no texto.
Eu não sei o que é a linguística no Japão, sobre quais registros vocês trabalham.
Em meu ensino, a linguística só tem um valor de referência iniciadora. É necessário dizer
que se eu não tivesse tido o público que tinha, a saber, médicos ou psicólogos, isto é,
pessoas absolutamente incultas – não digo apenas incultas linguisticamente, digo
simplesmente incultas; eles não sabem nada –. Foi necessário que eu partisse daí. Foi
necessário que eu partisse daí porque é isso o que em minha linguagem significa o retorno

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a Freud. Isso não quer dizer de modo algum que é necessário recuar, regressar a não sei
que tipo de imaginação ou pureza primitiva.
Se houve desde Freud – e houve – coisas verdadeiramente novas, é certo que eu
não apenas não vejo aí nenhum obstáculo, como também estou muito interessado. Por
exemplo, é claro que o que Melanie Klein trouxe, apesar de ser expresso de maneira
absolutamente selvagem é, de qualquer maneira, alguma coisa tomada na experiência que
é absolutamente impressionante e que é necessário tentar compreender de uma maneira
conceitualmente apreensível e não a partir da obscuridade tal qual ela apresenta. Apesar
de tudo, isso porta a marca de uma experiência, de uma experiência viva, de uma coisa
que ela ousou com as crianças. Pode-se discuti-lo do ponto de vista terapêutico, enfim, o
certo é que isso deu resultados e não teve os efeitos que às vezes, quando ouvimos de fora
a maneira como ela maneja essas crianças, pode-se acreditar que isso poderia ter
consequências temíveis, certamente não é o caso. Essa análise é muito bem tolerada e
extremamente fecunda.
Portanto, não é um retorno a Freud em si mesmo. É simplesmente porque penso
que Freud, de início, foi lido da maneira pela qual se pode ler qualquer coisa que se
apresente como nova, ou seja, colocando-a completamente ao lado de noções já recebidas.
Tratava-se de algo absolutamente subversivo. Foi necessário, a qualquer preço, que se
construísse pequenos esquemas mentais que permitiam, no final das contas, não sair do
lugar, permanecer nos mesmos pensamentos do homem que antes; que se poderia ter
sobre o que é o homem. Era necessário a qualquer custo permanecer aí. De modo que se
leu Freud lendo nele o que se queria ler, sem entender absolutamente o que, entretanto,
estava ali claramente escrito. Há ainda assim três livros iniciais que são: A interpretação
dos sonhos, a Psicopatologia da vida cotidiana e O chiste.
Apesar de tudo, o leitor, ao menos o leitor ocidental, e eu acho que também o
extremo-oriental, precisa da alma. A alma é algo que deve existir, que é destacável do
corpo e que deve ter suas regras próprias. Sei bem que para vocês a tradição é diferente e
que lhes foi necessário ter os ocidentais por cima, se ouso dizer assim, para começar a
falar de psicologia; não há ensino de psicologia propriamente dito, há o ensino de um
certo número de práticas diversas de meditação. Mas na Universidade no ocidente desde
que ela existe, ou seja, ao final da Alta Idade Média, a psicologia tomou seu lugar junto
a uma série de outras coisas e o resultado foi alguns pressupostos que passaram à
consciência comum e se tornaram algo absolutamente essencial.

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Se vocês não entrarem na leitura de Freud com os preconceitos psicológicos – e
talvez vocês tenham mais chance que os ocidentais de fazê-lo – não pode deixar de lhes
surpreender que só se fala de coisas que são palavras. Quando falamos da Interpretação
dos sonhos, o que é que Freud diz sobre eles? Desde o começo ele diz: “o sonho é um
rébus”. Quando eu digo retorno a Freud, eu digo: leiam o que verdadeiramente está escrito
sem começar imediatamente a tentar ver o que é essa bola de algodão que se chama o
inconsciente e do qual se irradiam algumas penas que seriam então o consciente. Não
façam esquemas que repousam sempre sobre a ideia de que há uma substância chamada
alma que tem sua vida autônoma, porque é isso que não se pode impedir que as pessoas
pensem, que a alma tem sua vida distinta e estamos totalmente próximos da ideia que ela
é simplesmente a vida, que é ela que dá vida ao corpo. Leu-se Freud assim, a saber, que
o inconsciente é uma substância.
No começo do que foi meu ensino – e me meti nessas coisas tomando meu tempo,
comecei em 51 – eu tinha atrás de mim doze ou treze anos de prática, eu não vejo por que
teria ensinado as coisas prematuramente, foi depois que tive uma certa experiência de
analista e que isso estivera acompanhado de uma leitura de Freud bastante desprovida de
preconceitos. Foi depois disso que escolhi, dado o público de médicos que eu tinha, para
quem isso é ainda mais forte do que para os outros, justamente porque eles são médicos
e se ocupam dos corpos, como esses corpos, afinal, são algo sobre os quais eles não sabem
nada: um médico sabe menos que um massagista, afinal, ele está encantado quando lhe
falam de alma. Quando lhe explicam que as doenças são a alma, a relação médico-doente,
eles ficam em júbilo: eles acharam alguma coisa que vai justificar sua existência. O
lamentável é que isso é ainda pior do que poderia ser desde sempre. Tudo isso se arranja
muito bem com o sistema religioso geral, não havendo nada, afinal, que seja mais
organicista, que deseje mais que as histórias do corpo se resolvam por pequenas
mecânicas, que seja mais dada às explicações somáticas, que a Igreja católica.
Infelizmente, está claro que à medida em que a biologia avança as coisas são mais
complicadas do que as pequenas ideias sumárias que constituem a tradição médica.
Quando se coloca simplesmente no horizonte que a alma, por exemplo, é a relação
médico-doente, eles [os médicos] se encontram um pouco justificados.
A psicanálise não é feita, de modo algum, para encorajar essa tendência e ela
mostra inteiramente outra coisa que não tem nada a ver com uma psicologia qualquer. Eis
o que é necessário saber. E, para sabê-lo – já que não se pode brigar com as sombras – eu
não tenho que brigar com os médicos para dizer-lhes que seu remédio é imbecil, eu

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escolhi ver o que poderia ser feito a partir do que Freud, de uma forma completamente
genial, tinha sabido escutar. Escutar de quem? De ninguém mais que de suas histéricas.
Ao nível das histéricas se produz algo totalmente excepcional, é que o que se revela é um
certo número de fenômenos, quero dizer, os mecanismos desses fenômenos localizados
em muitos outros, mas que são obscurecidos por todo tipo de coisas, das quais a psicologia
mesma é a primeira. O que é mais psicólogo que um obsessivo? Ele faz psicologia o dia
inteiro. É uma das formas de sua doença.
A histérica revela o fundo disso. O fundo consiste muito precisamente nessa coisa
surpreendente: que há no homem um certo número de fenômenos que só podemos
explicar por meio de tradução. No sentido literal, não se trata de transposição, se trata de
tradução, uma tradução só pode existir a partir da linguagem. Já que o sonho é um rébus,
o que isso pode querer dizer senão que, sob as figuras dos sonhos, há palavras? Ou Freud
não sabia o que dizia ou isso deve ter um sentido que só pode estar sob as figuras do
sonho, no final devemos encontrar uma frase. Poderia ser que estivéssemos em um desses
delírios que existem há séculos, porque sempre se operou com os sonhos assim. Cometeu-
se apenas um erro, isto é, crer que o rébus era sempre feito com os mesmos elementos: é
necessário saber que quando se sonhava com um forte vento ou com uma cólica, isso
queria dizer felicidade no amor etc., isso já era um rébus, mas traduzido de uma maneira
idiota; não se sabe de onde vêm essas coisas. Isso é exemplar à medida em que permite
ilustrar o que merece ser chamado de saber. Na história da humanidade um saber é sempre
algo que foi tratado, afinal, de uma maneira muito obscurantista. É isso que distingue,
falando propriamente, um saber. Em todo saber, há o saber-fazer, que sabemos bem não
ser tão evidente.
Nós temos com Freud uma chance, um pequeno vislumbre de alguma coisa que,
no que concerne a alguns fenômenos, poderia chegar a um certo rigor científico. Isso é o
que me parece interessante. É, aliás, a única coisa que justifica a manutenção desses
quadros no interior dos quais funciona a psicanálise. Há aí uma chance de uma
aproximação científica de algo que não se trata de definir prematuramente como um
domínio. Não estou dizendo que é o começo de uma psicologia científica. O que há de
científico aí dentro é que podemos nos apoiar em alguma coisa cujo conhecimento está
suficientemente esclarecido para descolar do próprio termo de conhecimento. É outra
coisa. Há um mundo entre o que é uma articulação científica e o que desde sempre
colocamos sob o termo, no final das contas naturalista, de conhecimento.

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Que a linguística tenha atualmente esse caráter de campo em fusão é algo que deve
ser levado em conta como é, mas se tem mesmo assim o sentimento de que ali se obtém
alguns resultados sobre certos pontos. Quando Jakobson chega a colocar em ordem o
sistema fonemático do francês, é um resultado incontestável. Isso não esclarece os fundos
da alma, a natureza humana, mas é perfeitamente operatório. É isso que é possível
articular fonematicamente em francês. É uma outra espécie de saber que não este, que é
também um saber, o de todo falante de francês.
Qual é a natureza do saber que existe ao falar sua língua? Basta formular essa
questão para ela abrir todas as perguntas. O que significa saber japonês? É algo que
contém em si um mundo de coisas que não podemos dizer que conhecemos se não
conseguimos articulá-lo.
Essa ambiguidade do saber, chegar a tocá-la tão bem no nível da operação da fala
[parole], é algo que é necessário sempre colocar à prova para se dar conta da relação
estreita que isso tem com o que acontece em uma análise. Porque é com isso que vocês
lidam em uma análise: é uma pessoa que conta coisas e vocês percebem até que ponto é
ambíguo o que ele sabe, o que, do que ele sabe, está implicado no que ele disse, e sobre
o que, no final das contas, ele não tem a mínima ideia, porque por uma certa maneira de
escutá-lo vocês percebem que escutam uma coisa completamente diferente.
Seria uma operação totalmente obscura se Freud não tivesse feito, nesses três
livros de que falo, a análise totalmente precisa de um certo número de fatos; falei há pouco
do sonho mas há também todos os tipos de tropeços que parecem um fato ocasional, por
exemplo, o fato de que vocês não encontram suas chaves em seu bolso quando se trata de
entrar em casa ou que, ao contrário, vocês tirem a chave de seu bolso para entrar na casa
de outra pessoa; Freud nos mostra que, por detrás desses atos que parecem ser atos de
fadiga ou distração, há uma declaração. Ela dirá, por exemplo, “se indo na casa de fulano
eu pego minha chave, isso irá querer dizer que estou em casa”. E isso só pode ser
compreendido se quiser dizer isso. Mas o mais importante é a sequência. O “estou em
casa” não é qualquer “estou em casa”; há mais de uma maneira de estar em sua casa em
qualquer lugar, que porta justamente a marca de algo que dá a verdadeira posição de
alguma coisa que chamaremos de pensamento... no momento digamos “x”. Esse “x”, tive
a audácia de chamá-lo de sujeito.
Evidentemente, esse sujeito tem uma história que parece ter a maior contradição
com o que estou dizendo. Mas é claro que é necessário escolher, ou então o sujeito é o

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que foi muito bem delimitado por determinada tradição ocidental, algo ligado ao fato de
que parece que não se pode pensar sem saber, ao mesmo tempo, que se pensa.
O que Freud nos traz? Que há todo um mundo que se trata de saber qualificar e
saber manejar com grande precaução, pois disse a vocês que é necessário começar
rejeitando tudo que é do aparelho mental implicado por conceitos substanciais como alma,
etc. Andemos então prudentemente: digamos o que são os pensamentos; é difícil não
qualificar como pensamento algo que toma um sentido tão claro a partir do momento em
que se sabe lê-lo.
O próprio do inconsciente é isto: testemunhar um saber e mesmo um querer dizer,
uma necessidade de reconhecimento, pois cada um desses sintomas é algo que quer dizer
alguma coisa: mas a quem? É claro que, à primeira vista, um sonho não se endereça a
ninguém; isso não é verdadeiro, aliás, porque é totalmente evidente, na experiência
analítica, que no começo de uma análise há sonhos que literalmente são sonhados em
direção ao psicanalista. Eles têm esse valor único de ser o equivalente do primeiro
discurso ao analista. Há alguma coisa que começa a querer se dizer sobre esse plano.
O que quero assinalar está, então, no interior do fato de que a experiência analítica
se manifesta como se situando em um viés tecido de linguagem, é o que chamo “é
estruturada como uma linguagem”. A partir daí, é certo que a distinção significante-
significado deve ser manejada de uma certa maneira, e é benéfica para apreender alguns
dos registros que eu trato de fazer-lhes sentir. O que é necessário evitar é querer separar
– e é por isso que a tarefa de vocês é tão difícil – esse aparato do que é a experiência
analítica, do que marca seus limites.
Que a experiência analítica seja ela mesma essencialmente de natureza linguística,
esse é o fato massivo.
A maneira pela qual eu opero com os termos de Saussure – que, aliás, não são de
Saussure; os estóicos já haviam sentido a necessidade do signans e do signatum na lógica
– tem essencialmente o interesse de mostrar que na linguagem há um aparelho definível
de uma forma material que é irredutível: a saber, que o fato que a linguagem seja
articulada, proceda por combinações que são por natureza diferenças, é a única definição
que se pode dar ao que é da ordem dos signos, que isso se coloca como diferente de todo
o resto – é nesse sentido que o aparelho fonemático é exemplar. É bem evidente que isso
não basta.
Que o aparelho gramatical seja algo essencial é uma coisa igualmente sobre a qual
é necessário dar ênfase. Tenho a necessidade de lembrar a vocês que, definindo os termos

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como Verdrängung (o recalque), Verneinung (isto é, o uso da negação), Verwerfung (a
exclusão, o fato de nem mesmo articular algo que é certamente situável na estrutura da
linguagem), articulando isso, Freud nos dá a chave de um certo tipo de gramática. Trata-
se de saber se isso tem verdadeiramente o caráter completo de gramática.
É precisamente isso que, com um certo número de pequenas coisas, tento
construir: é algo de que eles, os linguistas, deveriam se servir. Digo a vocês que não me
sinto de modo algum na dependência do linguista. Com o que o linguista me traz faço o
que quero, isto é, o que pode me servir. No significante e no significado, é totalmente
claro que Jakobson pode muito legitimamente perceber que a maneira que ele tem de
tratar o termo de metáfora e de metonímia, eu os uso de uma maneira ligeiramente distinta
da sua. Em relação ao que é da ordem da negação, os linguistas teriam tudo a ganhar se
colocando ao passo da experiência analítica.
O significante e o significado: é totalmente capital. Tudo o que é da ordem do
aparelho da linguagem está, no final das contas, incluído nessa distinção. O significado,
é necessário dizê-lo, é sempre diferente do que o significante parece indicar. O lado índice
do significante é justamente aquilo que toda primeira abordagem da língua consiste em
ultrapassar.
Caso se creia que “mesa” [table] quer dizer “mesa” não se pode mais falar, é muito
simples. Há um uso da palavra “mesa” que se aplica a qualquer outra coisa que não seja
essa tábua com quatro pés, e é isso que é essencial. Não há sequer uma palavra da língua
que escape a essa regra – isso que ela parece indicar –, que é justamente o que convém
destacar para compreender o que é o uso da língua. O surpreendente é que o que faz
sentido em uma palavra é estreitamente ligado, pode-se demonstrar a conexão do que faz
sentido com o fato característico da linguagem de que ela jamais é um decalque de coisas.
É por isso que ela faz sentido. Se “mesa” tem um sentido, é justamente por jamais
designar pura e simplesmente a mesa. Tudo o que vocês significam com esse significante,
é bem certo que está ligado a duas dimensões: a metáfora, por exemplo quando digo que
coloco tudo em cima da mesa, – que não sirvo mesa nenhuma [aucune table que je vais
balayer]; essa metáfora é colocada no lugar de algo que seria necessário que eu articulasse
de maneira diferente –; e depois há a outra dimensão: se coloco a palavra “mesa” em uma
frase, ela tomará, por conta da minha frase, uma cor e uma dimensão em que, ela, está ao
mesmo tempo individualizada se recortamos a frase e o menos individualizada possível
se consideramos o conjunto do meu discurso. A palavra “mesa” pode ter para mim uma
qualidade e uma função que lhe dão um lugar sensível, que é uma constante de minha

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personalidade. Se colocamos a palavra mesa na expressão “colocar-se à mesa” [se mettre
à table1]: isto é, falar diante da polícia, vemos até que ponto é dominante o efeito de
significação na frase. O significado é algo que demanda ser olhado duas vezes antes de
falar sobre ele.
Torna-se ainda mais difícil falar sobre ele porque só podemos fazê-lo com
palavras, ou seja, não podemos escapar disso. Se vocês não pegarem no início a noção de
que não há metalinguagem – é o que eu ensino – vocês cairão em todas as armadilhas.
Não há metalinguagem, isto é, quanto mais falam da linguagem, mais vocês se afundam
no que poderia ser chamado de falhas ou impasses. Dou aí apenas o fragmento do que um
certo uso dos termos linguísticos implica: uso no qual eu não me sinto de modo algum na
dependência do linguista. Eu faço com isso o que me convém e, até certo ponto, se escrevo
como escrevo, é por partir disso que não esqueço jamais, a saber, que não há
metalinguagem. Ao mesmo tempo em que enuncio algumas coisas sobre os discursos, é
necessário que eu saiba que de uma certa maneira isso é impossível de dizer. É justamente
por isso que é real.
É por isso que esses Escritos representam algo que é da ordem do real. Quero dizer
que é inevitável que eles estejam escritos assim; não quero dizer com isso que eles sejam
inspirados, é o contrário, é justamente porque cada um foi o produto de uma conjuntura
singular, pois me foi demandado algo para uma certa revista e tentei condensar aí seis
meses de meu discurso. Esse escrito não é, evidentemente, o que eu disse; é algo que, de
fato, coloca toda a questão das relações entre o que é falado e o que aparece na escritura.
O que é certo é que eu não pude escrevê-lo de outra forma e que isso certamente não foi
feito para vir a se inscrever em um livro; é por isso que coloquei Escritos no plural. Cada
um é a emergência de algo que tem, ele também, uma certa relação com a linguagem.
Para usar metáforas, cada um desses escritos parece com as pequenas pedras que
se veem nos jardins Zen. Aquilo representa isso. Eu arei ao redor e depois aconteceu que
isso se apresentava como uma pedra. Uma pedra muito heteróclita, mas cuja principal
coisa é que tive que lidar com uma enorme quantidade de imbecilidade e de inércia. É a
definição do ser humano, é uma couve-flor de imbecilidade. Mas é apenas um aspecto da
questão. O outro aspecto é que é também uma certa rocha que tem muitas coisas a ver
com o discurso. Algo que o discurso, arando, pode chegar a cernir. O que chamava há
pouco o impossível de dizer é, no final das contas, o que nós procuramos sempre dizer.

1
se mettre à table é uma expressão idiomática francesa que significa “confessar” (N.T).
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Trata-se de não se enganar. Há uma armadilha aí: é crer que essa rocha se endereça a
alguém. É a armadilha na qual se cai há séculos. Não é porque essa rocha só se situa com
a aragem do discurso que ela se endereça a quem quer que seja. É precisamente isso que
constitui a beleza desses jardins, é precisamente porque eles não se endereçam a ninguém.
Mas ninguém parece ter se dado conta disso, pelo menos até agora. Pelo contrário, a
aragem, isto é, o discurso, se endereça a alguém que chamo de grande Outro.
Quando há pouco dizia a vocês a quem se endereçavam os sintomas, é bem
evidente que isso se endereça a um lugar onde, evidentemente, não há ninguém. O grande
Outro não existe. Mas tudo o que se inscreve na linguagem só pode ser pensado pela
referência ao grande Outro. É o que distingue radicalmente o que é da ordem do
imaginário do que é da ordem do simbólico.
No que diz respeito ao imaginário vocês têm exemplos: basta ver operar dois
lutadores, dois personagens que brigam em duelo. No que é da ordem dessa captura, de
uma ação de uma imagem por outra, não há nenhum meio de distinguir o que é fingimento
do que é verdadeiro. O fingimento é a própria ação. Fingir é o que se faz quando se briga
em um duelo; fingir não é mentir. Fingir é fazer o que se deve fazer nessa chave de braço.
Tudo isso está regulado por essa coisa fundamental, tão verdadeira para os animais quanto
para os homens: que, nessa espécie de real tão misterioso que se chama vida, o
funcionamento imaginário é absolutamente essencial. A tomada, a captura pela imagem
é uma coisa radical. Nenhuma via é pensável sem essa dimensão.
Mas no discurso é inteiramente outra coisa, porque o discurso só tem função caso
se situe em algum lugar, em um lugar terceiro, em que ele se afirma como verdade. Não
há possibilidade de mentir sem supor essa dimensão da verdade, então não há nenhum
traço de mentira no fingimento. É a própria captura do corpo a corpo. O pensamento do
que representa o grande Outro em relação a tudo o que pode ser dual – e, seguramente,
não há apenas relações duais –, eu apenas o tomo como caso particular porque é o mais
simples. Se nós colocamos três isso se torna como para a gravitação, isso se torna uma
complicação extrema que mesmo sobre o terreno da gravitação não se chegou ainda a
resolver.
Em relação ao que é da ordem da pretensa comunicação, não há nada que pareça
desviar mais do que isto que, entretanto, parece evidente: que é impossível dar um
esquema correto do que se chama comunicação e que começa com o bê-á-bá da
cibernética, isto é, limitando as coisas ao emissor e receptor. É evidente que mesmo nesse
nível, quando as pessoas se exprimem, quando elas falam de comunicação, há esse

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terceiro elemento que é o código. Então de onde vem o código? É aí que começam as
dificuldades. Esse código não é sem valor indicativo para o que chamei de grande Outro.
Só que, é claro, em um domínio como o da psicanálise não podemos nos contentar com
isso, pois se demonstra aí, precisamente, que operamos com um código que lhe é
totalmente inassimilável. Essas coisas que são, primeiramente, os sintomas, são
estruturadas como linguagem, mas o código, nessa coisa que, entretanto, opera como uma
linguagem, nós somos incapazes de pôr as mãos nele.
Nós somos capazes de pôr as mãos em uma estrutura que se define de uma maneira
tal que ela determina uma certa função de sujeito que tem propriedades, ligações
particulares com o saber, e o coloca em questão. Está claro que é aí que entra em jogo
essa trama que se chama o inconsciente freudiano, é aí que podemos perceber sua relação
com a coisa menos conhecida de todas, a saber, o que chamamos de sexualidade. O que
a experiência analítica demonstra, senão que nós somos levados pelo texto mesmo a nos
darmos conta de que na constituição desse código, tão ambíguo em relação ao saber, há
uma função que tem a ver com as relações sexuais?
Isso demonstra que é uma relação bastante complicada, pois ela tem essa estrutura
ternária que, como acabo de dizer, é essencial à linguagem. Aí ainda é necessário
desconfiar, porque é uma estrutura ternária que não se pode chamar assim porque nenhum
desses termos está no mesmo nível. Não há nenhuma relação entre emissor e receptor,
suposto seu semelhante – suposto seu semelhante no imaginário – no nível simbólico,
pela simples razão de que, contrariamente à aparência, é dele [nível simbólico] que parte
a mensagem: receber sua própria mensagem sob forma invertida.
O que chamei de grande Outro, esse lugar indispensável para pensar o que é da
ordem do simbólico, sua principal característica é que ele não existe. É por isso que
escrevi o significante do grande A barrado. É um significante da não existência do grande
Outro como tal. É um significante indispensável para que funcione todo o aparelho. É
certo que é necessário jamais esquecer que, já que não há metalinguagem, mesmo dizendo
isso, dizemos algo que deve inevitavelmente escapar, não ser manejável.
Não é porque é articulado que seja articulável. E é por isso que não o articulo, mas
o escrevo. É diferente escrever ou articular com a voz. Isso contrasta com alguns, que
pegaram seu material no que eu ensino e que estão articulando de uma maneira
verdadeiramente imbecilizante que a linguagem escrita é primeira em relação à
linguagem falada. É absurdo. É óbvio que há uma linguagem falada e uma linguagem
escrita e basta, para distingui-las, apontar que a linguagem escrita muito provavelmente

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não é linguagem. Isso não quer dizer que ela não tenha uma grande influência sobre a
linguagem. É exatamente por isso que ela tem uma influência tão grande sobre a
linguagem falada. É como o resto daquilo com que lida a linguagem, é outra coisa. A
importância do Kanji [ideograma] é que ele é como uma coisa, o que não quer dizer que
a linguagem o alcance mais do que qualquer coisa. A linguagem gira ao redor disso. Isso
não é contraditório com o fato de eu dizer que não há metalinguagem: escrevemos ,
isto é, significante do A barrado – é absolutamente necessário escrever A e a barra em
seguida para que isso constitua um significante. Sem esse significante, tudo o que é da
ordem da comunicação é impensável, particularmente a experiência analítica.
A experiência analítica mostra que a relação sexual não é pensável sem algo de
terceiro que não é, certamente, o grande Outro nesse caso, mas uma certa entidade ao
redor da qual gira a função da castração, e que noto também unicamente, de uma maneira
escrita, pelo Φ maiúsculo para designar a função terceira, na relação sexual, do falo. É aí
que estamos, isto é, nós não avançamos muito.
Não há nenhuma chance de que a psicanálise chegue ao que quer que seja, avance
na sua construção – é com esse termo que Freud conclui seus escritos –, que ela saia
dessa espécie de amolação que as publicações analíticas constituem – basta ter a
experiência de ler simplesmente a International Journal of Psychoanalysis, que é
publicada ao mesmo tempo em Londres e em Nova Iorque, para se dar conta – diz-se
sempre a mesma coisa e nos mesmo termos que têm, antes, o efeito de tornar as coisas
mais opacas. Não há nenhuma chance de progredir se não for pela via de cernir mais
detidamente o que é da ordem da experiência, de ver de que é feito o material que está
operando aí e do qual a análise depende inteiramente.
Pois é certo que o analista está implicado em toda análise. E é por isso que os
analistas estão tão decididos a que as coisas não avancem, porque sua situação já é
suficientemente desagradável, na situação atual, para que eles tenham qualquer vontade
de agravá-la. Quando se trata de tornar-se a rocha em si mesma, isso coloca muitos outros
problemas e é disso que se trata para o analista, mas ele não quer de jeito nenhum tornar-
se essa rocha.
A grande ambiguidade está na relação dual e, se há alguma chance de avançarmos
no que é da ordem de nossa relação com nosso semelhante, é o psicanalista que pode nos
mostrá-la. É na medida em que é muito mais que nosso semelhante que nós temos diante
de nós, é nosso próximo, isto é, o que temos no mais íntimo de nós mesmos. Perceberam

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isso muito antes da psicanálise, mas o viram sobre um plano que não é o que nos interessa,
pois é sobre um plano científico que se trata de vê-lo.
Isso não quer dizer que o saber não científico não foi capaz de atingir coisas que
têm relação estreita com o gozo. Na psicanálise, pode-se visar o que se trata no gozo, e é
muito provavelmente nisso que ela tem uma função iniciadora. A ciência, que procede
por uma colocação fora de jogo, uma colocação fora de jogo do gozo, pode encontrar na
psicanálise seu nó, sua ligação, seu pedículo, sua articulação.
É isso que constitui o interesse na psicanálise, o que permite que se faça ao redor
essa acumulação de nuvens chamada ciências humanas. Eu quero que a psicanálise tenha
alguma relação com as ciências humanas com uma condição: que as ciências humanas
desapareçam, que se perceba que a psicanálise é apenas o fio, o pico, que permite a essa
acumulação ter um semblante de existência. Mas, desde que algo funcione em seu centro,
não pode mais restar nada do que se chama atualmente Ciência Humanas.
Por agora, é necessário que a psicanálise sobreviva, o que é um problema grave.
Sobreviverá quando eu morrer?

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