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05/05/2020 VIII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise AMP

TEXTOS

Conferência de Jacques-Alain Miller em


Comandatuba
por Jacques-Alain Miller
IV Congresso-AMP - Comandatuba 2004

Uma fantasia
Começo por uma fantasia. Foi uma idéia que me veio ao escutar, meus
colegas, nossos colegas dizerem, ontem de manhã, em suma, a mesma
coisa: os sujeitos contemporâneos, pós-modernos e até mesmo
hipermodernos são desinibidos, neo-desinibidos, desamparados,
desbussolados. Ao escutá-los, eu me dizia: Ah! Sim, sim, sim! Quanto, como
somos desbussolados! Como isso é verdade! Ver uma seqüência de quatro
colegas concordar em um ponto, estar de acordo com eles e, em seguida,
observar que todo mundo também concorda, que há um consenso sobre
esse ponto, é algo raro de se conceber. Então, ao escutá-los, eu me
perguntava: desde quando isso acontece, desde quando estamos todos
desbussolados? E eu mesmo respondia: sem dúvida, desde que a moral
civilizada, como dizia Freud – esta é uma expressão de Freud – foi abalada,
desde que ela se dissolveu. E a psicanálise tem algo a ver com a dissolução da moral civilizada. Nós que aqui estamos -
nem todos, tampouco os mais jovens que nos ouvem fora daqui – guardamos a lembrança do que foi essa moral
civilizada. Ainda guardamos sua significação, o bastante, pelo menos, para poder compreender, ressentir nossa
civilização, o estado atual de nossa civilização como imoral, como caminhando rumo à imoralidade. Com efeito, a moral
civilizada, no sentido de Freud, dava uma bússola, um corrimão aos desamparados, sem dúvida porque ela inibia.
Podemos, contudo, nos perguntar por que essa moral civilizada, em seu apogeu- por volta do final da segunda metade
do século XIX, na época vitoriana como lembrava Lacan -, foi tão cruel? Talvez essa crueldade moral respondesse a uma
fenda, a uma brecha, que já se ampliava na civilização. Pode ser que essa moral civilizada, enquanto esteve em vigor,
nos corações, já fosse, como se diz, uma formação reativa. Reativa a um processo em marcha há muito mais tempo. E
então eu sonhei: talvez estejamos desbussolados desde que temos bússolas. Quero dizer: talvez estejamos
desbussolados desde que a prática da agricultura, que não é a nossa, que não está forçosamente no primeiro plano,
pouco a pouco cedeu seu lugar dominante, em nossas sociedades, à indústria. Não pensamos na agricultura o bastante.
Talvez todo o mal venha disto: a metáfora da agricultura pela indústria. A civilização agrícola foi um grande fato!

E, para levar isso a sério, quem sabe eu poderia considerá-los um Concílio. Não sei se Graciela mudou alguma coisa a
esse respeito, mas, no meu tempo, uma reunião da AMP não era um Concílio, enfim!

A civilização agrícola encontra suas balizas na natureza, no ciclo invariável das estações. Evidentemente, há uma
história de climas. Os bons espíritos estão reconstituindo a história dos climas. Isso não altera o ciclo invariável das
estações que ritmava essa civilização agrícola, de tal modo que era possível encontrar suas balizas, seus símbolos, nas
estações e no céu. O real agrícola é celeste, é amigo da natureza. Com a indústria, com o que chamamos "A revolução
industrial", tudo isso foi, pouco a pouco, sendo varrido. Os artifícios se multiplicaram e, no momento em que estamos,
devemos todos constatar que o real devora a natureza. Ele a substitui e prolifera. Então, eis aqui uma segunda metáfora:
a da natureza pelo real.

Pensei também que isso constitui o charme do Seminário, livro 10: a angústia, que reli mais de uma vez depois de tê-lo
estabelecido. Porque esse Seminário apresenta o objeto pequeno a em estado natural, se assim posso dizer. Um objeto
pequeno a que se desprende do corpo, que é um pedaço de corpo, quer se trate de um pedaço sensível ou insensível.
No Seminário da angústia, o objeto a está em estado natural, ele é tomado nesse nível. Quando se trata da produção
industrial do mais-de-gozar, caso tivéssemos de descrevê-la, a enfatizaríamos, com certeza, de maneira completamente
diferente.

Então, minha fantasia prosseguia com uma questão: ser sem bússola, é ser sem discurso? É ser caótico, esquizofrênico,
tal como diziam Deleuze e Guattari que foram generosamente comentados nesta tarde? E, em primeiro lugar, será que
não temos nenhuma bússola? Talvez tenhamos uma outra.

Há uma frase de Lacan, citada duas vezes ontem, que me serviu de bússola em meu curso com Éric Laurent sobre "O
Outro que não existe e seus comitês de ética". Ela assinala a subida do objeto a ao Zênite social. Há o Zênite, o ponto
mais alto, e o Nadir, o ponto mais baixo, balizáveis no céu. De todo modo, essa frase me servia de bússola porque ela
assinalava o fato de se ter tocado no céu. Tocou-se no céu antigo e imóvel, no céu imutável agrícola ao qual se referiam
as sociedades imóveis, ou de mudanças lentas, as sociedades frias ou tépidas. Essa frase de Lacan assinalava que um
novo astro se elevara no céu social, no "sociel". Lacan registrou esse novo astro sociel, se assim posso dizer, como
objeto a, resultado de um forçamento, de uma passagem ao mais além dos limites descobertos por Freud, à sua
maneira, precisamente em um mais além. Elemento intenso que perime toda noção de medida, indo sempre em direção
ao mais, em direção ao sem medida, seguindo um ciclo que não é o das estações, mas sim o de uma renovação
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acelerada, de uma inovação frenética. Então, de repente, eu me perguntei: será que o objeto a seria - como dizer? – a
bússola da civilização de hoje? E por que não? Tentemos ver nisso o princípio do discurso hiepermoderno da civilização.
Vejamos se podemos construir esse discurso.

Daremos a esse objeto uma denominação, dicutível para o próprio Lacan, ou seja, nomear o de que se trata como um
objeto correlativo a um sujeito e, além disso, colocá-lo entre parênteses para se estar seguro de que ele ficará em seu
lugar. É uma designação que não foi totalmente satisfatória para o próprio Lacan, se assim posso dizer. Mas, enfim,
vamos utilizar isso. Vamos dar a esse objeto, no eventual discurso da civilização, o lugar dominante.

Esse objeto - esta é nossa hipótese - impõe-se ao sujeito desbussolado, convida-o a ultrapassar as inibições. Escreverei
esse sujeito com o símbolo que nos serve usualmente: $

a -> $

Há pouco tempo, isolamos o termo "avaliação". Dizer que o isolamos é dizer muito, enfim. Na verdade, ele nos foi
imposto, fomos assolados por esse termo, assim como toda a Europa. A avaliação já passou à pratica comum, penso eu,
nos E.U.A. Na Europa, ela tomou um aspecto tirânico. Podemos dizer que o sujeito desbussolado é convidado a produzir
avaliação.

a -> $
S1

Aqui, escrevo o S1, ou seja, o um contável da avaliação a ser produzida. Parece-me que ele vem bem a calhar para,
nesse lugar, substituir o S1 do significante mestre que é votado a cair. Poderia dar ainda outras significações para esse
S1 e ver nele, por exemplo, o significante do que é chamado, nos E.U.A, self-help, auto-ajuda. Nem sei como se diz isso
em francês. Tenho a impressão de que ainda não há um termo em uso. Fala-se de desenvolvimento pessoal, mas
recuaram traduzi-lo para o francês, ainda não se ousa.

Então, creio que vocês vêem onde quero chegar em minha fantasia: quero chegar a escrever S2 no quarto lugar. Eis aqui
o que proponho como fantasia, como estrutura do discurso hipermoderno da civilização:

a -> $
--- ---
S2 S1

Na civilização dos dias de hoje, parece-me válido situar S2, o saber, no lugar da verdade/mentira. A noção de que o
saber não passa de semblante fez muitos adeptos e nos pressiona. Não se trata de um ceticismo, propriamente falando,
nem de um niilismo, mas sim, digamos, de um relativismo, ou mesmo, como dizem às vezes os filósofos, um
perspectivismo, a respeito do qual alguém me dizia o quanto a aliviara aderir a uma filosofia perspectivista. Bom!

Vemos aqui onde conduz minha fantasia. E não posso fazer outra coisa senão prosseguir, o que me leva a pensar que o
discurso da civilização hipermoderna tem a estrutura do discurso do analista! Esse é um resultado absolutamente
surpreendente. Para mim, em primeiro lugar, é um resultado que pode parecer absurdo. No fundo, trata-se de um desafio
querermos justificá-lo uma vez que ele surgiu.

Em primeiro lugar, se refletirmos tranqüilamente, sem emoção, Lacan não hesitou em formular que o discurso do mestre
era a estrutura do discurso do inconsciente, ou seja, os dois tinham a mesma estrutura. Ora, se quisermos, o discurso do
mestre é um discurso social, é o discurso de uma civilização que prevaleceu desde a Antiguidade. Portanto, não é
absurdo, a priori, que o discurso da civilização de hoje tenha a mesma estrutura que o discurso do analista, isso não é
inconcebível, sobre bases eventualmente desejantes a partir das quais trabalhamos.

Caso aceitemos isso, vemos logo a dificuldade. O discurso do analista era, anteriormente, o analisador do discurso do
inconsciente que era seu avesso, não é? O que Lacan chama o avesso da psicanálise é o discurso do mestre. O
discurso do analista podia analisar o discurso do inconsciente e sua potência interpretativa e subversiva tinha de se
exercer, a um só tempo, sobre a civilização e sobre os fenômenos das sociedades com os quais se tinha de lidar, como
tentei demonstrar, desde a mais alta Antiguidade.

Hoje, se isso for verdade, se minha fantasia conduz a algum lugar – o que ainda está para ser visto -, o discurso da
civilização não é mais o avesso da psicanálise. É seu sucesso. Bravo! Bela jogada! Mas, de saída, isso põe em questão
tanto o meio da psicanálise, isto é, a interpretação, quanto seu fim e até mesmo seu começo. Poderíamos dizer - se
partirmos do fato de que a relação entre civilização e psicanálise não é mais uma relação de um avesso com um direito –
que essa relação é, antes, da ordem da convergência. Quer dizer que cada um dos seus quatro termos permanece
disjunto dos outros na civilização. De um lado, o mais-de-gozar comanda, o sujeito trabalha, as identificações caem
substituídas pela avaliação homogênea das capacidades, enquanto o saber se ativa em mentir assim como em progredir,
sem dúvida. Poderíamos dizer que esses diferentes elementos estão dispersos na civilização e que só na psicanálise, na
psicanálise pura, esses elementos se ordenam em discurso.

[...fim do lado A – fita I]

Nesse sentido, há, sem dúvida uma chamada que nos concerne: o retorno sobre o discurso do mestre. Na França, pelo
menos, não faltam psicanalistas – e eles são mais numerosos que nós – que sonham e se ativam na idéia de reinstalar a

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ordem do discurso do mestre. Repor o mestre no lugar para poder, ainda, ser subversivo: "Franceses, ainda um esforço
se quereis ser reacionários, caso contrário, vocês não serão mais revolucionários!"

Vemos o que isso significa considerando o desconforto que seu sucesso produziu na psicanálise. Há um texto publicado,
há dois ou três meses, eu não o trouxe. Nele está escrita a noção de uma prática reacionária da psicanálise que
consistiria, doravante, em passar para os famosos sujeitos desbussolados os significantes mestres da tradição. O texto
explica que, hoje, os psicanalistas, por terem de lidar com esses desbussolados, devem de fato renunciar à sua
subversão antiga, a fim de começar a refiar, a entregar nas mãos ou a pôr na cabeça de seus pacientes, os significantes
da tradição, sem o quê nada poderia acontecer.

Estou longe de ter lido todas as coisas do domínio da psicanálise, hoje. Contudo, tenho a impressão de que isso ainda
não tomou uma forma maciça, mas se esboça. E talvez amanhã tenhamos uma psicanálise cujo objetivo será o de
reconstituir o inconsciente de papai! Em seu princípio, a reação psicanalítica não difere da ascensão dos
fundamentalismos. É a mesma noção. Veremos psicanalistas tentando reconstituir artificialmente o inconsciente de
papai, o inconsciente de ontem, assim como vemos subir à cena do mundo mudando nossa vida cotidiana, nossas
viagens, nossos momentos de descanso, enfim, os loucos por Deus. É a mesma coisa: fundamentalistas freudianos,
enfim.

Uma segunda posição encontrada na psicanálise pode ser chamada de passadista. Ela consiste em dizer: nada
acontece, nada se passou, o inconsciente é eterno, o eterno que é teu Deus, se assim posso dizer.

Há uma terceira posição sendo esboçada. Se a primeira girou rumo ao passado, se a segunda reside em um presente
eterno, a terceira posição pode ser chamada progressista. Ela foi exposta, ontem, por Agnès Aflalo e Éric Laurent que
não a assumiram para si, claro, eles evitaram ter de ler os livros que estudaram. Essa posição progressista consiste em
tentar fazer com que a psicanálise se ordene conforme ao progresso das ciências e das falsas ciências, em tentar
arregimentar a psicanálise segundo os progressos das ciências e das falsas ciências.

Estou pensando nos valentes tradutores. Agradeço-os mais ainda porque eles não têm meu texto escrito.

Então, essa tentativa não é absurda. Aliás, ela não nos foi apresentada a esse título. Ela tampouco é inédita. Toda a
metapsicologia de Freud mostrou sinais de fraqueza, por volta da metade do século XX. E se poderia dizer que Lacan
procedeu a uma tradução lógico-lingüística dessa metapsicologia. Ele próprio reconheceu ter de passar por isso a fim de
dar novamente um sopro de vida à psicanálise. Portanto, não é absurdo, a priori, tentar dar uma tradução neuro-
cognitivista à metapsicologia. Podemos dizer que isso será julgado por seus resultados.

Jorge Forbes acha que estou exagerando. É possível. Demonstro assim uma abertura de espírito..., enfim.

Quero dizer que não se deve insultar o futuro. Nós mesmos levamos tempo para nos darmos conta de que havia uma
enorme indústria reflexiva, há dez, quinze, vinte anos, conforme nos disse Agnès Aflalo. Há vinte anos existem abelhas
industriosas produzindo este mel: traduzir a metapsicologia em termos neuro-cognitivistas, e mesmo assim não vimos
nada, até o momento em que isso avançou sobre a cena e começou, aqui e ali, a fazer balbúrdia, a trazer desordem. Sou
a favor de que os que se interessam no assunto nos tragam notícias do que anda acontecendo.

Bom! Sob títulos diversos – vou agora fechar um pouco o espírito que abri -, essas três posições que realcei me parecem
dar acesso a práticas de sugestão.

A primeira, a prática reacionária da psicanálise, procederá por exaltação do simbólico veiculado pela tradição. Aliás,
assistimos a alianças sensacionais com todos os tradicionalismos, valorizando uma convergência impressionante entre
a Bíblia e a "Interpretação dos sonhos". É indiscutível.

A segunda prática, a passadista, procederá pela consolidação de um refúgio imaginário.

Quanto à terceira posição, sem dúvida a mais avançada, ela se dedica, entrega-se a uma adesão, adere ao real da
ciência, assim ela o crê.

Desse modo, distribuí os três termos: simbólico, imaginário e real entre essas três práticas. O que elas têm em comum,
parece-me, é o que abreviamos quando escrevemos S1->S2, ou seja: a relação entre comando e execução, ou entre
estímulo e resposta. Nesse sentido, o que visam essas práticas, por mais diferentes que sejam, poderia, talvez, ser
enunciado nestes termos: que isso funcione, em todos os casos!

E há a prática lacaniana, ou melhor, haverá, visto que se trata de inventá-la. Certamente não se trata de inventá-la ex-
nihilo, mas sim na via traçada sobretudo pelo o último Lacan. E essa prática lacaniana se deixa pressentir naquilo que
nos anima.

Então, a primeira coisa a fazer para que esta quarta prática, a prática lacaniana do futuro, resista, se distinga das formas
que estigmatizei, é que se veja claramente o princípio das outras três práticas, isto é, o princípio do "isso funciona".

Pois bem, na prática lacaniana é preciso deixar-se conduzir, mesmo que se bufe, deixar-se conduzir pelas palavras que
se diz. E a prática lacaniana só pode ter por princípio, caso se distinga das outras: "isso rateia, falha" (ça rate). A prática
lacaniana rateia. Aliás, vocês reconhecem no rateio, na falha (ratage) um leitmotiv do último Lacan. Ele fez tudo para se
colocar na posição de fazer falhar seus nós. Evidentemente, essa falha não é contingente. Ela é a manifestação da

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relação com um impossível. E Lacan foi levado a isso, a partir da indicação de Freud, não é? A psicanálise é uma
profissão impossível. Portanto, nós, seus alunos e leitores, fomos tomados pelas noções de falha e de impossível. Ele
nos inoculou esses termos que, precisamente, nos protegeram, nos protegem, são como anticorpos em relação ao
discurso do "isso funciona" e das novas práticas da psicanálise que, todas, têm esse princípio. Chego até a dizer: a
prática lacaniana exclui a noção de sucesso!

Vejo caretas, ares infelizes...mas, de modo algum! Com certeza, a objeção seria: mas, então, a prática lacaniana é sem
valor. Observem, todavia, que Lacan não recuou diante disso. Ele chegou, inclusive, a concluir uma de suas últimas
lições de modo enigmático dizendo: "trata-se do fato de que a prática lacaniana seja uma prática sem valor".

Aliás, vocês constataram que, pelo menos na França e na Europa, em todos os ensaios terapêuticos, a psicanálise
chega com a última da fila. Então, nos psicanalistas como nós e em outros engendra-se um sentimento de culpa. Nós
também temos nossos sucessos...com certeza, com certeza. Mas talvez também não devamos ter tanto orgulho deles, já
que são de uma tal contingência que não invalidam a lei da falha. Pelo contrário, eles a demonstram. Decerto que há o
passe. Alguns são bem sucedidos. Mas, justamente, eles são tão pouco numerosos que é evidente que visam a
persuadir os que o falharam! Sem dúvida, é uma lógica um tanto especial da qual Lacan deu uma indicação que retomei
outrora. É uma lógica na qual a contingência prova, ou pelo menos atesta, o impossível. No fundo, o fato de haver
contingência implica em não se poder nem mesmo dizer que a falha seja a lei do real, segundo a fórmula enigmática de
Lacan: o real é sem lei. Se não houvesse a contingência para desmentir o impossível, teríamos uma lei no real. Não
temos nem isso.

Retornemos ao nosso discurso da civilização. Como entender o que escrevi na primeira linha: discurso da civilização
hipermoderna? Qual sentido dar a esse matema que nos é tão familiar, quando, contrariamente às aparências, não se
trata do discurso do analista, mas sim do discurso da civilização? Faço como Pierre Ménard no "Quixote", não é?.

O mais-de-gozar ascendeu ao lugar dominate. Ora, o mais-de-gozar é correlativo ao que chamarei, para falar como
Damazzio – eu me cultivo! -: um estado do corpo próprio e, como tal, o mais-de-gozar é assexuado. Ele comanda, mas o
que? Ele não comanda um "isso funciona", mas sim um "isso falha" que, precisamente, escrevemos como $. Em geral,
quando barramos uma letra é porque nos enganamos, não é? Aqui, o mais-de-gozar comanda um "isso falha", em
termos precisos, na ordem sexual. Não vejo impedimentos em considerar que $ escreve: não há relação sexual, tanto
mais que a letra inicial, S, é a mesma de "sexo". Isso nos levaria a dizer que a inexistência da relação sexual se tornou
evidente, de modo a poder ser explicitada, escrita, a partir do momento em que o objeto a ascendeu ao sociel. No regime
do discurso do mestre, todavia, esta era uma verdade recalcada pelo significante mestre. Hoje, devemos constatar que o
significante mestre, os significantes mestres já não chegam a fazer existir a relação sexual. Aliás, é o que constitui o
desespero dos religiosos, exceto os que se mantêm à distância da civilização hipermoderna e que defendem com
talento, com vigor, uma forma mais antiga, mais tradicional, diferente da de hoje. Uma resistência meritória ao
objeto a exercida pelo lado islâmico das civilizações. Se, do lado das sociedades hipermodernas, a religião se desespera
sobre esse ponto – o sexo é um desespero para ela, é a questão sexual quem freia a subida, a reascensão da religião,
como explica uma socióloga cristão, católica, eu o li -, se a religião se desespera é porque a religião se apóia em uma
noção da natureza que foi destruída pelo real e tornada obsoleta pela ascensão do objeto a.

E é para morrer de rir, ou de chorar, o fato de um grande número de psicanalistas não terem outra idéia senão a de
reforçar isso. Eles lhes juram, a partir de suas experiências, que o pequeno homem necessita, em sua educação,
identificar-se com papai ou com mamãe. Considero isso um abuso. É um abuso, pois suas experiências não podem de
modo algum confirmá-lo. Já era ridículo quando os psicanalistas se faziam os guardiões da realidade coletiva. Mas,
enfim, funcionava. E tanto mais que a realidade coletiva da qual querem ser os guardiões é a de ontem. Dizer isso não
implica em nenhum entusiasmo quanto ao remanejamento em curso. Como a maioria de vocês, eu também fui educado
à maneira mais antiga, mais tradicional.

A psicanálise foi inventada para responder a um mal-estar na civilização, um mal-estar do sujeito mergulhado em uma
civilização que se poderia enunciar assim: para fazer existir a relação sexual, é preciso refrear, inibir, recalcar o gozo.

A prática freudiana abriu caminho ao que se manifestou, com todas as aspas que vocês quiserem colocar, como uma
"liberação do gozo". A prática freudiana antecipou a ascensão do objeto a ao Zênite social, ela contribuiu para instalar
essa ascensão. Não se trata de um astro, mas sim de um Sputnik, um produto artificial.

A prática lacaniana tem de lidar com as conseqüências desse sucesso sensacional. Conseqüências ressentidas como da
ordem da catástrofe. A ditadura do mais-de-gozar devasta a natureza, faz romper os casamentos, dispersa a família,
remaneja o corpo, não apenas nos aspectos da cirurgia estética, ou da dieta – um estilo de vida anoréxica, como dizia
Dominique Laurent -, ela realiza também uma intervenção muito mais profunda sobre o corpo. Nos dias de hoje, uma vez
que se decifrou o genoma, é possível produzir-se, verdadeiramente, o que alguns chamam uma "pós-humanidade".

Então, será que a prática lacaniana conduz seu jogo tendo em vista a prática da IPA e seus standards? Sem dúvida. Mas
ela o faz sobretudo em relação aos novos reais, dos quais o discurso da civilização hipermoderna dá testemunho. Ela
conduz seu jogo na dimensão de um real que falha, de tal modo que a relação dos dois sexos entre si tornar-se-á cada
vez mais impossível. Então, o um-sozinho será o standard pós-humano, o um-sozinho preenchendo questionários para
receber sua avaliação, o um-sozinho comandado por um mais-de-gozar que se apresenta em seu aspecto mais
ansiogênico.

[...fim do lado B – fita I]

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[...fita II]

A falta é o princípio de todas as substituições. É o que permite dizer, em dado momento: Bingo! A prática lacaniana, pelo
contrário, opera na dimensão da falha. Nós também dizemos: Bingo!, na prática lacaniana. É um milagre, uma graça. E
devemos reconhecer, como o próprio Lacan, que isso não é calculável. A interpretação analítica cujo procedimento
compreendemos, não é uma interpretação. Entendo, assim, o fato de Lacan nos ter levado pela mão para, afinal, nos
garantir o seguinte: só há diferentes maneiras de falhar. Entre elas, algumas satisfazem mais do que outras. Não se trata
simplesmente de chiste, de Witz. É a condição para que se resista ante o discurso da civilização hipermoderna. Então,
essa prática lacaniana seria a forma, a deformação, a transformação, no sentido topológico, que permitiria à psicanálise
sobrepujar as conseqüências reais que se produzem pela ação de seu exercício, de sua introdução, há um século, em
uma civilização, as quais, atualmente, convergem sobre a estrutura do discurso analítico. Essas conseqüências retornam
sobre ela própria. As conseqüências da psicanálise retornam sobre a psicanálise e sobre seus trajetos. E se poderia
dizer que o que era sua condição de possibilidade torna-se uma condição de impossibilidade. Digo possibilidade, mas
trata-se, antes, da contingência do acontecimento Freud. Talvez a impossibilidade já anunciada por ele e articulada por
Lacan seja a condição do próprio exercício da psicanálise. De todo modo, foi o que descobrimos, não de modo
intelectual, mas na prática, ou seja, ela existe sobre um fundo do impossível. Aliás, constatamos que perdemos o gosto
de contar, uns aos outros, nossos sucessos terapêuticos. É quando testemunhamos um tropeço que temos o sentimento
de que isso é verdade. Mauricio Mazzotti o compreendeu muito bem ao trazer, ontem, como testemunho disso, uma
interpretação lateral, uma falha de prática que lhe foi muito mais gratificante do que uma narração eufórica do tipo:
"apertei este botão, obtive este resultado e o hábito caiu".

É precisamente por não compreendermos como isso funciona – porque não funciona apertando botões, seja qual for a
perfeição diagnóstica, a experiência clínica, etc. -, que passamos nosso tempo explicando, tentando explicar o que
acontece, uns aos outros, e testemunhando sobre isso.

A psicanálise, que fez tremer todos os semblantes sobre os quais repousavam os discursos e as práticas, a psicanálise
que assim desvelou o que Lacan chamava economia de gozo, a psicanálise que é um socratismo mesclado de cinismo,
se assim posso dizer, pois bem, atualmente, a derrisão e o cinismo passaram para o social com algo de humanitário, o
mínimo necessário para velar o de que se trata. E essa propagação do derrisório não poupou a própria psicanálise. Hoje,
a psicanálise constata que ela é vítima da psicanálise. Até mesmo os psicanalistas, eventualmente, são vítimas da
psicanálise. Vítimas da suspeita instilada e destilada pela psicanálise quando eles não acreditam no inconsciente. E os
semblantes produzidos pela própria psicanálise: o pai, o Édipo, a castração, a pulsão, etc., também se puseram a tremer,
razão pela qual assistimos, há vinte anos, a recorrência ao discurso da ciência, esperando que ele nos dê seja o real de
que se trata, seja o mais-de-gozar, isto é, a possibilidade de ultrapassar a barreira que separa S2 de a no discurso da
histeria.

Aqui, cabe lembrar a condição de contingência sob a qual a psicanálise apareceu, ou seja, a descoberta do sintoma
histérico, por Freud, descoberta que se fez no contexto do discurso da ciência e que incidia sobre um real no sentido
científico, um real de tipo galileano, alojando, incluindo um saber. A descoberta de Freud se deu em um contexto,
digamos, de um materialismo psico-fisiológico, do final do século XIX e, nesse contexto, Freud descobriu que há sentido
no real. É preciso dizer que isso escandalizou. A psicanálise surgiu como uma corrupção do saber científico, uma vez
que o saber científico pode estar no real, mas para nada dizer. Então, dizer que há sentido no real implica em que isso
queira dizer algo, que haja uma intenção. Para a psicanálise, o fato de haver sentido no real foi sua condição de
possibilidade. O sentido no real é o suporte do ser do sintoma, no sentido analítico. No entanto, em relação a Freud,
houve um laisser-faire. Podemos nos perguntar por que? Houve um laisser-faire quanto a Freud e seus discípulos, que
proliferaram. Deixaram que traficassem o sintoma com o sintoma mental, com o sentido. Deixou-se até mesmo a
psiquiatria ser ganha por isso. Sem dúvida porque não se tinha o saber no real que pudesse responder a sintomas desse
tipo, a não ser grosso modo: havia a lobotomia, a sonoterapia, enfim. Houve um laisser-faire quanto a Freud e sua
intenção de sentido no real. Deixou-se o tratamento do sintoma à manipulação do sentido. Aliás, desde Pinel se usava o
sentido imperativo, o S1, para tratar o sintoma, era tradicional. No fundo, aceitou-se o S2 freudiano, ou seja, o sentido
associativo ao lado do sentido imperativo, até o momento atual. Nos dias de hoje, acrescentando-se ao mal-estar da
psicanálise, produziu-se uma cisão do ser do sintoma. Em termos exatos, uma cisão entre o real e o sentido que, afinal,
era esperada, logicamente esperada. Disso resulta a pulverização do sintoma, da qual as sucessivas edições do DSM –
depois da primeira que era psico-dinâmica - dão testemunho. O que mantinha o sintoma coeso era o dizer. O sintoma
tinha algo a dizer. Era definitivamente a intencionalidade inconsciente que fazia consistir o sintoma. Pois bem, na palavra
sintoma, o ‘sin’ se foi e só restou o ‘toma’. Doravante, o sintoma foi reduzido a distúrbio. Os ingleses dizem isso de um
modo melhor: disorder, palavra cuja referência é da ordem do real.

De fato, para a ciência, o real funciona É para isso que serve o saber no real. Razão pela qual pode-se dizer que a
ciência tem afinidades com o discurso do mestre. Aliás, Lacan o assinalou mil vezes. Mas é preciso dizer que não mais
se acredita na civilização. Hoje, pelo contrário, na civilização hipermoderna, tem-se, antes, a idéia de que o saber
científico no real falha, vai falhar. Os organismos geneticamente modificados, o nuclear, não geram mais confiança no
bom funcionamento do saber no real, a partir do momento em que somos nós que começamos a traficá-lo. O sintoma,
que hoje não passa de um distúrbio, doravante está dividido em dois, desdobrado. Do lado do real, ele é tratado fora do
sentido pela bioquímica, pelos medicamentos, cujos alvos são cada vez mais precisos; do lado do sentido, ele continua
existindo a título de resíduo. O lado sentido é objeto de um tipo de tratamento complementar, que pode tomar
essencialmente duas formas: por um lado, uma escuta de puro semblante – "venha, eu o escuto"-, cujo valor é o de um
acompanhamento e, com freqüência, até mesmo de controle da operação realizada no real através dos medicamentos.
Com efeito, os bioquímicos são os primeiros a dizer: " mas, sem dúvida, é preciso que nossos pacientes sejam
escutados também".
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A segunda forma tomada pela escuta de puro semblante é a prática da fala autoritária e protocolar das terapias cognitivo-
comportamentais. Desse modo, o sintoma se vê repartido, dividido em dois. Do lado do real visa-se à supressão mais ou
menos aproximativa do distúrbio; do lado do sentido há uma acolhida, um fluir do sentido e, ao mesmo tempo, seu
nivelamento. Cabe dizer que é especialmente do lado das terapias cognitivo-comportamentais que se assiste a uma
recusa ou a uma refutação do sintoma. Na psicanálise, o sintoma tinha valor de verdade, representava a verdade,
apresentava-a sempre sob uma máscara, portanto, como uma mentira. E era preciso levar tempo para verificar o
sintoma, no sentido de torná-lo verdade.

Hoje, na França, vemos que esse tempo necessário não é mais evidente. Como responder a isso?

Em primeiro lugar, temos um protesto psicanalítico que é simpático, mas vão. Ele consiste em recusar o saber no real.
Em segundo, temos o que chamei uma adesão ao saber no real. Em terceiro lugar, temos a tentativa de renovar o
sentido do sintoma, ao que Lacan se dedicou. Foi o que ele introduziu - modificando a ortografia da palavra -
como sinthoma. Aqui, devemos retomar Freud e seu mal-estar na civilização que não era simplesmente um diagnóstico,
mas o suporte da psicanálise, sua promessa de sucesso. Tomo como referência seu esboço de 1908, intitulado "A moral
sexual "civilizada" e a doença nervosa moderna". É um texto divertido de se reler, não é longo. Todos os observadores da
época, na virada do século XIX para o século XX, Freud os cita, notaram os novos sintomas que marcaram essa virada.
O mais célebre foi o que permaneceu como neurastenia de Beard. Todos os observadores notaram o crescimento e a
propagação da doença nervosa, foi um fenômeno social. Eu trouxe o texto, mas não o lerei. É uma passagem
muito divertida, de boa verve, ela dá uma descrição da vida moderna, das fatigas que ela implica, da super-estimulação.
Daria até para acreditar que se trata de hoje. O surpreendente é que Freud cita tudo isso no começo para, depois, pôr
tudo de lado e extrair um fator único, uma determinação essencial: a monogamia, a exigência monogâmica. Assim, com
suas fantasias e em duas colheradas, ele esboça uma teoria do gozo sexual na civilização. E não temos nada a perder
com suas fantasias!

Primeiro estádio: acesso livre ao gozo, exatamente como dizia Jean-Jacques Rousseau – "Comecemos por afastar todos
os fatos". Segundo: restrição ao gozo, permitido apenas com a finalidade de reprodução. Terceiro, nos dias de hoje, o
gozo só é permitido no quadro do casamento monogâmico. É divertido acompanhar os detalhes! E assim Freud isolou o
que neurotiza, o que é neurotizante: o esforço para fazer existir a relação sexual e o sacrifício de gozo que isso
comporta. Podemos dizer que encontramos, aqui, o índice apontado para o que Lacan trará e que não consiste de modo
algum em recusar o real científico e o saber no real. Porque recusar o real científico, recusar o discurso da ciência é uma
via de perdição que abre para todas as manigâncias psis. Manigância não é um termo injurioso. Não recusar esse saber,
admitir que há saber no real, mas, ao mesmo tempo, formular que nesse saber há um furo, que a sexualidade faz furo
nesse saber. É uma transformação de Freud, sem dúvida. Aconteceu, então, uma nova aliança entre psicanálise e
ciência, se ouso dizer, que repousa sobre a não-relação. A não-relação sexual dá o site da prática lacaniana. Isso deve
ser entendido da seguinte maneira: olha-se a partir do enunciado que afirma : "há saber no real" e o "não há relação
sexual" é o que faz contrapeso com o enunciado que afirma "há saber no real". É a relação sexual que faz objeção à
onipotência do discurso da ciência. Aliás, atualmente, as agências matrimoniais são deixadas nas mãos de um certo
número de comadres experientes no assunto. Ainda não instalaram avaliadores nas agências matrimoniais. Isso não
deve demorar!

Por ora, isso faz furo no real e no saber no real. É surpreendente! Podemos representá-lo simplesmente como: neste
ponto, o programa do computador falha. É o princípio de uma prática, ou de uma clínica, na qual os sintomas não são
distúrbios. Não são desordens porque, nesse ponto, não há ordem, ou seja, o saber no real não dita sua lei. Não se pode
intervir nesse ponto a partir do saber no real. É um enunciado negativo que chama por enunciados positivos. Preciso
escolhê-los, pois estou chegando ao final.

Em primeiro lugar, os sintomas são sintomas da não-relação sexual, o que quer dizer, sem dúvida, que eles são
articulados em significantes, mas isso é secundário. Eles não são essencialmente mensagens. São articulados em
significantes, mas isso é o blablablá dos sintomas. Eles são, antes de tudo, signos da não-relação sexual.
Eventualmente, signos de pontuação. Lacan falava dos sintomas como pontos de interrogação na não-relação sexual.
Ontem, eu escutei uma paciente dizer que o que resta para ela de angústia se liga ao corpo, como uma vírgula, uma
pausa de respiração. Os sintomas são signos. Essa é uma abordagem diferente de sua abordagem como mensagem.

Por outro lado, os sintomas são necessários. Eles não cessam de se escrever. É o que os torna equivalentes ao etc. Eles
são reais, a tal ponto que podem perfeitamente confundir-se com o real que funciona. Este é o paradoxo. Por essa razão,
ao mesmo tempo que Lacan diz que o sintoma é real, ele diz: é preciso crer nele. Eles são tão reais que é arbitrário
separá-los como tal. Para tanto, é preciso que alguém o queira. Querem um exemplo? Tomem a homossexualidade. Ela
é tida como distúrbio na ordem natural. Mas quando imputam a um distúrbio ser distúrbio de ordem natural, hoje, só há
uma coisa a fazer: um lobby. Se vocês fizerem um lobby, vocês conseguem que ele cesse de ser um distúrbio de ordem
natural. Como vocês sabem, foi depois de uma pressão, de uma relação de forças políticas que a homossexualidade
cessou de ser uma disorder, ela não é mais classificada como disorder.

Enfim, podemos ver aqui até que ponto vai-se ao encontro dos resultados da psicanálise, de uma psicanálise: o gozo
perverso é permitido. Resta saber o que se faz com isso.

Um outro enunciado positivo: os sintomas são sintomas-gozo, se assim posso dizer. Eles exprimem que o gozo não está
no seu devido lugar, pensava-se, ou seja, na relação sexual, da qual Freud nos dá as imitações grosseiras sob a forma
da monogamia. O gozo nunca é o bom gozo. A partir daí, acedemos a um certo número de pontos nodais dessa clínica,
pontos em questão que não abordarei hoje. Questões do tipo: o inconsciente é corporal?

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[...fim do lado A – fita II]

A poética da interpretação não é para ser bela, não é kitch. Ela é um materialismo da interpretação. Ontem ou
anteontem, alguém em supervisão me contava sobre o tratamento de uma paciente, há nove anos, e sobre o efeito
inédito obtido dizendo-lhe simplesmente: "basta!", em um tom cuja virulência contrastava com a voz suave usualmente
mantida por ela. É preciso pôr o corpo para elevar a interpretação à potência do sintoma.

Estou buscando um ponto para interromper, não para concluir.

Mas preciso ainda de um tempo para explicar que, com o último Lacan, nos vemos às voltas com três inconscientes, três
modalidades diferentes do inconsciente. O inconsciente freudiano trabalha desmesuradamente. Aliás, Marco Focchi
trouxe uma lista de referências na qual se vê o inconsciente freudiano esfalfar-se no trabalho. O ser falante lacaniano,
não. Lacan queria que o ser falante lacaniano substituísse o inconsciente freudiano. Ele queria essa substituição a fim de
poder responder à questão que escrevi no quadro: é preciso deslocar a psicanálise em quarta velocidade. O ser falante
lacaniano não trabalha, ele, antes, formiga, fervilha, infecta. É mais do estilo parasita.

As considerações que tive de saltar conduziam a uma inversão quanto ao fato de dizermos tradicionalmente que o sujeito
suposto saber é o pivô da transferência. Parece-me, todavia, que o último Lacan diz outra coisa. Diz ele: a transferência
é o pivô do sujeito suposto saber. Para dizê-lo de outro modo, segundo ele, o que faz existir o inconsciente como saber é
o amor. A partir do Seminário, livro 20: mais, ainda, a questão do amor conhece uma promoção absolutamente especial.
O amor é o que poderia fazer mediação entre os um-sozinho. Dizer que é imaginário, dificulta. Quer dizer que o
inconsciente não existe. O inconsciente primário não existe como saber. E para que se torne um saber, para fazê-lo
existir como saber, é preciso o amor. Por essa razão, ao final de seu Seminário: les Noms du Père, Lacan pôde dizer:
uma psicanálise demanda amar seu inconsciente. É o único meio de estabelecer uma relação entre S1 e S2, porque no
estado primário tem-se uns disjuntos, dispersos. Então, uma psicanálise demanda amar seu inconsciente para fazer
existir não a relação sexual, mas a relação simbólica. Todavia, não é demandado a um psicanalista amar o inconsciente,
não lhe é demandado amar os efeitos de verdade do inconsciente. Isso é difícil porque um psicanalista é também um
analisante, ou um antigo analisante. No entanto, para o que poderia ser a prática lacaniana, não se deve amar o
verdadeiro, mais que o belo ou o bom.

É isso, obrigado!

(Aplausos).

Tradução e estabelecimento de texto: Vera Avellar Ribeiro.

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