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2019, de http://revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/accordion-a-2/o-entredois-ou-
o-espa co-do-sujeito.
Racismo e extimidade
Jacques-Alain Miller
Vocês devem saber que Lacan fez a si mesmo essa pergunta. Ele lhe deu diversas
respostas, e a mais evidente é que o Outro do Outro é o sujeito. Nós tentamos situar a
posição do sujeito e a posição do Outro relacionando-as entre si. Porém, o que nos
impede de sustentar essa definição é que, nesse caso, o sujeito não nos dá nada de
substancial, visto que o definimos como um nada. Nós até barramos o seu significante
escrevendo-o como $. Se ele é o Outro do Outro, ele não nos oferece, contudo,
nenhuma consistência que determinaria esse Outro.
Há uma outra resposta sobre o que seria o Outro do Outro. Ela consiste em
diferenciar o Outro, em diferenciar, por exemplo, o Outro da linguagem e até mesmo
o Outro do significante e o Outro da lei. É inclusive com essa distinção que Lacan
termina seu escrito sobre a psicose.[1] Isso significa afirmar que o Outro do Outro é
um Outro que faz a lei do Outro.
Esse Outro pode ser nomeado por uma palavra da filosofia da lógica, a saber, a
metalinguagem. O Outro da metalinguagem é aquele que faz a lei do Outro da
linguagem. Ele estipula as suas regras – regras de formação da linguagem, condições
de validade de suas fórmulas, do que as torna aceitáveis ou, ao contrário, as rejeita.
Essa posição equivale a afirmar que há Outro do Outro. É o Outro da lei na medida em
que ele se diferencia do Outro da linguagem. Isso supõe que, nessa ordem, é possível
saber com justeza aquilo que se diz.
Trata-se de uma posição contra a qual Lacan se voltou após tê-la formulado. Ele a
desmentiu, ele mesmo a contestou. Isso vai de par, aliás, com a desvalorização do
Nome-do-Pai como significante do Outro da lei, desvalorização que chegou a ponto de
fazer dele um tamponamento, aquilo que recobre o fato de não haver Outro do Outro
na linguagem. Por essa mesma razão, não haveria metalinguagem, uma vez que não
se pode funcionar ou se comunicar senão na própria linguagem [...].
Que não há Outro do Outro não é, entretanto, a palavra final dessa história. Há o gozo.
Há o gozo como sendo aquilo em razão do qual o Outro é Outro, e até mesmo como
sendo aquilo por causa do qual o Outro é o Outro. Como podemos definir esse
conceito de Outro do Outro? Pode-se defini-lo como o que faz Outro o Outro. E isso da
maneira mais simples, dialeticamente, se posso dizer.
Com efeito, se o gozo pode postular esse estatuto de Outro do Outro, eu diria que é
na medida em que, tal como o colocamos em função na experiência analítica, ele
aparece como o mesmo. Ele aparece como o invariável. Eu disse o mesmo, e não o
idêntico a si. Quando falamos de identidade, de identidade a si, já alojamos a questão
no registro significante, com os paradoxos e as dificuldades que ele comporta. Mas o
gozo nos obriga a pensar um estatuto do mesmo, que não é o idêntico no registro
significante. É um caminho no qual Heidegger, uma vez mais, nos precedeu.
Não se escapa desse mesmo. Como podemos qualificá-lo, senão como o que retorna
ao mesmo lugar? É o que nos leva, aqui, a lhe atribuir o caráter de real, a opor de
modo conjugado o Outro e o real, a ponto de negar o caráter real do Outro.
Não estou serrando o galho sobre o qual estamos assentados ao colocar a questão de
que há real no Outro. De fato, e por isso mesmo, diferenciamos duas zonas nesse
Outro. A questão é saber como elas se ajustam, como se articulam, como se articulam
o Outro e seu real. É nesse ponto que a estrutura da extimidade precisa ser elaborada.
Esse humanismo universal, que é um absurdo lógico, quer que o Outro seja um igual.
Supõe-se até mesmo saber como raciocina o Bom Deus como sujeito suposto saber
que a ciência convoca. Isso é acentuar verdadeiramente que o Outro seja um igual.
Esse humanismo se desorienta completamente quando o real do Outro se manifesta
como não sendo de forma alguma um igual. Há, então, insurgência e escândalo. Não
há outro recurso senão invocar uma irracionalidade qualquer, o que leva a ultrapassar
singularmente o conceito do Outro asséptico.
Tive, certa vez, a ocasião de dizer uma palavra sobre o racismo. O que me pareceu
convir totalmente ao tema da extimidade. Isso lhe deu inclusive uma espécie de
amplitude patética que nos faz suportar a dimensão dessa questão do racismo. [...].
A ciência não é, de forma alguma, algo que nos exonera do racismo, ainda que possa
existir um bando de sábios para explicar a que ponto a ciência é antirracista. Pode-se,
claro, desconsiderar as elucubrações pseudocientíficas do racismo moderno, mas o
que deve nos reter é o racismo como moderno. Isso não tem nada a ver com o
racismo antigo. Não adianta apelar para os gregos ou para os bárbaros. Isso não tem
nada a ver com a densidade que a questão adquiriu para nós. Trata-se de um racismo
moderno, ou seja, de um racismo da época da ciência e, também, da época da
psicanálise.
É preciso admitir que esse desenvolvimento do discurso da ciência tem como efeito
bem conhecido desfazer as solidariedades comunitárias e familiares. O discurso da
ciência tem um efeito dispersivo, desagregador. Podemos chamar isso de liberação –
por que não? É uma liberação, mas uma liberação que é estritamente contemporânea
da globalização do mercado e das trocas.
É preciso ver bem o resultado que Lacan aponta quanto à intenção daqueles que só
são sensíveis à vocação de universalidade da ciência e que às vezes torcem o nariz
para algumas de suas consequências econômicas e até mesmo culturais. Uma coisa
vai, aliás, junto com a outra. É impressionante essa cegueira que não quer ver em que
o discurso da ciência e a segregação cultural fazem sistema.
Lacan observa que aquilo que responde a essa desagregação é a promoção de
segregações renovadas, que são, no conjunto, muito mais severas do que jamais se
concebeu. Ele o disse em uma frase profética que todos compreendem: “Nosso futuro
de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura
dos processos de segregação”.[3]
Então, por que um psicanalista pode dizer essas coisas – e não somente no nível do
bom senso, embora seja preciso bom senso nessa questão? Não é somente enquanto
conhecedor do mundo contemporâneo que um analista pode formular tais coisas. Há
algo que faz com que isso possa ser percebido mais lucidamente a partir do discurso
psicanalítico, a saber, o modo universal – que é o modo próprio com o qual a ciência
elabora o real –, que parece não ter limites, na verdade tem limites.
Estive com um biólogo encantador que estava empenhado em afirmar que do ponto
de vista dos genes não há raças. É preciso admitir que isso é completamente
inoperante. Mesmo que não existam raças no nível dos genes, isso não deixa de nos
perturbar. Pode-se repetir o quanto se queira “nós, os homens”; é preciso constatar
que isso não tem efeitos. Isso não tem efeitos porque o modo universal, que é aquele
da ciência, encontra seus limites no que é estritamente particular. Encontra seus
limites no que não é nem universal, nem universalizável e que nós podemos chamar,
com Lacan, o modo de gozo.
É próprio a toda utopia social, da qual o século XIX foi pródigo, sonhar com uma
universalização do modo de gozo. É preciso diferenciar o gozo particular de cada um
do gozo que, enquanto modo, se elabora, se constrói e se sustenta em um grupo. Em
geral, não é um grupo muito extenso. Estamos aí no nível de cada um – não
simplesmente de cada um, mas de cada um em seu próprio canto. Quanto às
consequências dessa resposta, que é o imperativo de gozo do qual cada um é escravo,
o discurso científico não tem nada a dizer, se considerarmos o universal no qual ele se
desenvolve.
Sabemos que o discurso da ciência não tem resposta nem mesmo quando tentamos
fazê-lo responder. Faz-se, por exemplo, educação sexual. É uma tentativa para fazer
de modo que o discurso científico responda. Supõe-se que ele tenha resposta para
tudo, mas pode-se verificar que ele fracassa. É porque ele fracassa que a psicanálise
tem seu lugar, na medida em que ela procede de um esforço de racionalidade sobre
os efeitos desse fracasso.
O biólogo, devido à sua profissão, acredita na relação sexual, uma vez que ele pode
fundá-la cientificamente. Mas é em um nível que não implica que a relação sexual
esteja fundada no inconsciente. Mesmo que o biólogo verifique que os sexos se
relacionem um com o outro, é em um nível em que isso não fala.
Essa tentativa de fazer a ciência responder pelos paradoxos do gozo é uma tentativa
cujo final ainda não vimos. Estamos apenas no começo. É uma indústria nascente. Mas
é possível que já possamos saber que será em vão. O discurso universal não tem nem
mesmo a eficiência que tiveram os discursos da tradição de uma sabedoria
sedimentada, que permitiam enquadrar o modo de gozo nos agrupamentos sociais de
outrora.
É preciso observar que o discurso da ciência – e aquilo que vem junto com ele, o
discurso dos direitos do homem – teve como efeito contestar, arruinar esses discursos
da tradição. É o que faz a verdade do pensamento contrarrevolucionário. É um
pensamento vão, mas que foi muito bem-visto desde o momento da revolução
francesa por alguém como Joseph de Maistre.[4] Vimos na sequência as
consequências nefastas da soberania popular.
Não basta questionar o ódio do Outro, pois isso colocaria justamente a questão de
saber por que esse Outro é Outro. No ódio do Outro há, certamente, algo mais do que
a agressividade. Há uma constante dessa agressividade, que merece o nome de ódio,
e que visa o real no Outro. O que faz com que esse Outro seja Outro para que se
possa odiá-lo, para que se possa odiá-lo em seu ser? Pois bem, é o ódio do gozo do
Outro. É exatamente essa a forma mais geral que se pode dar a esse racismo
moderno tal como o verificamos. É o ódio da maneira particular segundo a qual o
Outro goza.
Acontece que o vizinho te incomoda porque ele não se diverte como você. Se ele não
se diverte como você, isso quer dizer que ele goza de uma forma diferente da sua. É
isso que você não tolera. Bem que gostaríamos de reconhecer o Outro como nosso
próximo, mas com a condição de que não seja nosso vizinho. Gostaríamos de amá-lo
como a nós mesmos, mas sobretudo quando ele está longe, quando ele está
separado. E quando esse Outro se aproxima, é preciso ser verdadeiramente otimista
como um geneticista para acreditar que isso produz um efeito de solidariedade, para
crer que isso leva imediatamente a se reconhecer nesse Outro.
Com efeito, de vinte anos para cá, como por milagre, há uma afluência de
contribuições, muito apaixonantes, aliás, sobre as matemáticas árabes. Mas é preciso
observar que, se começamos a nos precipitar para saber quais diferentes etnias ou
populações contribuíram mais para o discurso da ciência, a coisa pode acabar muito
mal. Haverá sempre alguém para dizer “os árabes, sim; mas os africanos, não”. Não há,
aliás, entre árabes e africanos uma grande solidariedade. É muito perigoso reunir as
etnias em torno do que seria sua contribuição ao discurso da ciência. Além do mais,
isso não serve para nada.
A questão não é que não se possa se reconhecer no Outro como sujeito da ciência; a
questão é de se reconhecer no Outro como sujeito do gozo. Quando o Outro se
aproxima demasiado, há novos fantasmas que incidem especialmente sobre o excesso
de gozo do Outro. Poderia ser o caso, por exemplo, do Outro que encontrasse no
dinheiro um gozo que ultrapassaria todos os limites. Sabe-se bem que esse excesso de
gozo pode nos levar a atribuir ao Outro uma atividade incansável, um grande gosto
pelo trabalho ou, então, imputar-lhe uma excessiva preguiça e uma recusa de
trabalhar. O que não é senão a outra face do excesso em questão.
É fácil constatar a velocidade com que se passou, na ordem das imputações, das
reprovações feitas em nome da recusa ao trabalho àquelas de excesso de trabalho. De
todo modo, o essencial nessa questão é que o Outro rouba de nós uma parte de gozo.
Isso é constante. A questão da tolerância ou da intolerância não visa de forma alguma
o sujeito da ciência. Isso se dá em outro nível, que é aquele da tolerância ou
intolerância ao gozo do Outro – do Outro na medida em que ele é fundamentalmente
aquele que rouba o meu gozo.
Sabemos que o estatuto fundamental do objeto é o de sempre ter sido roubado pelo
Outro. Esse roubo de gozo é o que escrevemos como menos fi (-ϕ) que, como se sabe,
é o matema da castração. Se o problema tem o ar de insolúvel, é porque o Outro é
Outro dentro de mim mesmo. A raiz do racismo é o ódio de meu próprio gozo. Não há
outra raiz a não ser essa. Se o Outro está no interior de mim mesmo em posição de
extimidade, trata-se igualmente de meu próprio ódio. [...].
Tudo isso nos leva a admitir que se quer bem ao Outro com a condição de que ele se
torne o mesmo. Quando se fazem cálculos para saber se ele abandonará a sua língua,
as suas crenças, as suas vestimentas, a sua forma de falar, o que se trata de fato de
saber é em que medida ele abandonará seu Outro gozo. É a única coisa que está em
questão.
É nesse nível que o racismo tem uma validade, ou seja, no sentido em que homem e
mulher são duas raças. Essa é a posição de Lacan. Duas raças, não biológicas, mas no
sentido da relação inconsciente ao gozo. A diferença anatômica, sobretudo quando é
verificada biologicamente, nos leva a falar, de preferência, em complementariedade;
mas no nível da relação inconsciente ao gozo, há sexuação. Na sexuação, nós
distinguimos dois. No nível da sexuação, isso faz dois. Dois modos de gozo.
Sabemos, aliás, que sempre foi uma preocupação refrear o gozo feminino. A educação
das jovens foi durante séculos assunto filosófico. Há, aliás, um efeito bem interessante
em vermos progredir as tentativas de uniformização do discurso da ciência nesse
nível, a saber, a promoção do unissex, e isso em níveis que podem parecer muito
fúteis. Quer se trate da língua, da crença, da vestimenta, vemos progredir esse efeito
de uniformização. Podemos nos alegrar ao ver as mulheres à frente de sociedades
multinacionais americanas. Elas agora estão no nível da tesouraria geral – o que é bem
conforme à tradição da dita burguesa nos cuidados do lar. O efeito uniformizante se
manifesta até mesmo nesse nível.
Isso não deixa de trazer problemas para os antirracistas. Se é preciso deixar o Outro
com o seu modo de gozo, isso coloca questões espinhosas. Por exemplo, a prática da
excisão em certa tradição africana. O que seria, nesse caso, deixar o Outro com o seu
modo de gozo? Seria permitir essa tradição, que tem toda uma validade enquanto tal,
ou impedir essa tradição em nome dos direitos do gozo feminino? Eis um exemplo. Eis
um caso moral para o antirracista. É bastante problemático. Isso pode alimentar
legitimamente os debates.
Acredito, no entanto, ser inoperante afirmar que não há raças. Para que não houvesse
raças, seria preciso que existisse o Outro do homem. Em geral, para aceder a esse
lugar, se faz apelo ao animal, que não pode ocupá-lo nem dizer o que pensa disso.
Essa é toda a questão. Eventualmente, é o animal que se toma como emblemático de
um Outro gozo, aquele que valeria a pena. Dizer que o animal é o Outro do homem
não é convincente. Seria preciso haver seres falantes de outro planeta para que se
pudesse, finalmente, dizer “nós, os homens”. É o que faz o caráter, no final das contas
tão otimista, da ficção científica. Isso dá uma forma de existência fantasmática a esse
“nós, os homens”.
Portanto, há raças. Há raças que não são físicas. Há raças que respondem à definição
de Jacques Lacan: “uma raça se constitui pelo modo como se transmite, na ordem de
um discurso, os lugares simbólicos”.[5] O que significa que as raças são efeitos de
discurso. Isso não quer dizer simplesmente efeitos de blá-blá-blá. O que não significa,
por outro lado – como gostaria um gentil professor de medicina –, que se deva tomar
as crianças desde o maternal para lhes explicar que o Outro é o mesmo.
Evidentemente, é mais simpático dizer isso do que dizer que o Outro é o Outro. Mas
seria talvez melhor tornar esse Outro mais dócil do que negá-lo. Quando se diz que
uma raça é um efeito de discurso, isso não quer dizer que é um efeito de discurso que
se sustente na escola maternal. Isso quer dizer que esses discursos estão aí. Eles estão
aí como estruturas. Não basta soprá-los para que voem. [...].
Notas
Referências