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Ponderações sobre o sexo dos modernos1

Glacy Gonzales Gorski

O objetivo deste texto é trazer algumas ponderações sobre o livro recentemente


publicado de Éric Marty, intitulado “O sexo dos modernos”2 – considerado uma
referência epistemológica nos estudos sobre o “Gênero”. Para comentar escolhi focar
principalmente no quarto capítulo da quarta parte, que porta o seguinte título: “Foucault,
o pós europeu, a Lei, a norma e o gênero”. Esta escolha se deve ao fato de que é nesta
parte que encontramos subsídios importantes para um avanço na conversação sobre o
sexo dos modernos, e, mais especificamente, sobre a influência de Foucault nas
elaborações do conceito de gênero em Butler – e também porque é aí que reside o
clímax da argumentação do livro.
Antes de adentrar no tema que escolhemos, gostaria de trazer uma advertência
de Lacan, a qual é muito citada e aponta para um desafio que é sempre atual para os
analistas: “Que antes renuncie [...] quem não conseguir alcançar em seu horizonte a
subjetividade de sua época. [...] Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época
na obra contínua de Babel [...]”.3 Temos, aí, uma convocatória para refletir sobre as
marcas específicas da subjetividade contemporânea.
A leitura de um texto de Giorgio Agamben nos instigou a questionar o que
significa ser contemporâneo, pois este autor, tendo como referência os estudos de
Nietzsche sobre o Zeitgeist, afirma que esta é uma condição intempestiva, que está em
uma relação de desconexão e de dissociação com o tempo presente. E, portanto,
podemos inferir que só aquele que consegue se permitir um deslocamento, uma posição
de extimidade em relação ao seu tempo, é que poderia alcançar a subjetividade de sua
época.
Quer dizer que, para poder perceber e apreender o espírito e as exigências da
atualidade, é preciso que as reflexões não coincidam “[...] perfeitamente com seu tempo,
nem estejam adequadas às suas pretensões” 4, e, neste sentido, elas são inatuais. Assim,

1
Este texto foi apresentado na reunião do Conselho da EBP, no Momento de doutrina, em 16 de outubro
de 2021.
2
MARTY, É. Le sexe des modernes: Pensé du neutre et théorie du genre. Paris: Seuil, 2021.
Ademais, a leitura da entrevista realizada por Jacques Alain Miller, publicada em
https://www.ebp.org.br>correio_express, em 14 de abril de 2021, serviu-nos de referência.
3
LACAN, J. (1966). “Função e campo da fala e da linguagem”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998, p. 322.
4
AGAMBEN, G. (2006-2007). O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, p.
59.
aqueles que “[...] coincidem muito plenamente com a época, e que em todos aspectos a
esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não
conseguem vê-la”5, pois não podem manter fixo o olhar sobre ela. Esta colagem nos
significantes que veiculam, sem se dar conta de que são semblantes, considerando-os
como verdadeiros, ou seja, esta imersão na época, não permite realizar uma
interpretação crítica. Com Agamben, concluiremos, então, que estar à altura da nossa
época significa não se deixar cegar pelas luzes do século e enxergar, nelas, o que elas
ofuscam; a parte da sombra; a sua íntima obscuridade.
Trago, a seguir, uma afirmativa contundente de Marty, que, à primeira vista,
produz um efeito de estranhamento: “O gênero é a última mensagem ideológica lançada
no Ocidente.”6 Em que sentido ela seria ideológica? Marty esclarece que Butler tem
como importante referência, em suas elaborações sobre o gênero, o texto de Foucault. E
demonstra que, tanto o pensamento de Butler quanto o de Foucault (ele se refere a um
período no qual suas ideias revelam um pensador que ele nomeia de “pós europeu”),
têm raízes numa ideologia neoliberal.
Esta é uma afirmativa forte e, de início, não parece coincidir com o ativismo
antinormativo de Foucault. Abro, aqui, um parêntese para pontuar que tanto Foucault
quanto alguns autores queer, em alguns momentos, criticam a Psicanálise, por
acreditarem que ela seria defensora de uma heteronormatividade, e que o analista seria
um operador normativo de subjugação, atuando pela via da sugestão.
Entretanto, gostaria de apontar que, no que tange a uma posição antinormativa,
há uma confluência entre Freud, Lacan e Foucault. Recordemos que, no texto freudiano,
constatamos sua preocupação de que a Psicanálise possa vir a ser deturpada em seus
princípios antinormativos, demonstrando apreensão de que, principalmente nos Estados
Unidos, ela viesse a se transformar num reduto do “exército da salvação”7. Já nos
primórdios da análise, Freud busca diferenciar a Psicanálise dos procedimentos
sugestivos e, para isso, apoiou-se em Da Vinci, quando este diferencia a pintura da
escultura, uma vez que a primeira opera per via di porre, ou seja, na tela em que não
havia nada antes, coloca as tintas. A escultura, por sua vez, opera per via di levare,
retirando os excessos da pedra “para revelar a superfície da estátua nela contida”.

5
Ibid.
6
MARTY, É. Op. cit, p. 6.
7
FREUD, S. (1926). “A questão da análise leiga”. Obras incompletas de Sigmund Freud - Fundamentos
da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 7.
Segundo Freud, a psicoterapia sugestiva se assemelha à pintura, e a analítica, à
escultura8.
Lacan, em vários momentos de sua obra, faz uma crítica à normatização, seja em
relação à formação dos analistas, seja no que se refere ao ato analítico, uma vez que
“[...] a análise [...] só pode encontrar sua medida nas vias de uma douta ignorância.”9
É fato que, na atualidade, presenciamos a queda dos ideais, da lei, e a
emergência de uma abundância de normas no seu lugar – temos, aí, uma transição do
regime da lei para o das normas.
Trago, aqui, como referência, uma carta dirigida a Michel Certeau, como
resposta ao seu questionamento sobre o que acontece quando já não existe mais o pai a
quem se confessar. Lacan responde, afirmando que a “cicatriz da evaporação do pai” é a
segregação, cada vez mais “[...] ramificada, reforçada, que se sobrepõe em todos os
graus e não faz senão multiplicar as barreiras.”10 O capitalismo, em sua forma tardia,
que transforma tudo em mercadoria, produz uma uniformização, uma prevalência do
universal, o que implica uma anulação crescente da singularidade.
Então, seguindo Lacan, temos como consequência um aumento sem precedentes
da segregação, uma escalada do racismo e da violência. E, de outro lado, prevalece a
busca por um reconhecimento, não mais pela via da identificação a ideais, pois estes
declinaram. Em contraponto, emergiram, segundo Éric Laurent, as “[...] comunidades
de gozo que almejam a construção de uma comunidade de direitos onde cada um [...]
quer se definir a partir de um gozo próprio e protegê-lo como tal”.11 Temos, então,
como reação à universalização, uma crescente busca por nomeação dos corpos que
pedem reconhecimento via modo de gozo: LGBTQIA+; é uma série aberta à
infinitização da classificação das comunidades de gozo. Para Laurent12, a comunidade
identificatória na qual o sujeito se insere, pela via da nomeação de um modo de gozo,
“[...] pode funcionar como fundamento imaginário de uma neogarantia simbólica”.
A modernidade se caracteriza muito mais pela busca desenfreada de gozo, e não
tanto pela felicidade, como acontecia no Século das Luzes, uma vez que o que impera é
o empuxo ao gozo. Os sujeitos se subordinam ao comando superegóico: Goza! Penso
que é nesta visada que o debate sobre a sexuação se emoldura, e que a Psicanálise pode

8
FREUD, S. (1905). “Sobre Psicoterapia”. Op. cit., p. 67.
9
LACAN, J. (1955). “Variantes do tratamento padrão”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.
364.
10
LACAN, J. “Nota sobre o pai”. Opção lacaniana n. 71, nov. 2015, São Paulo pp. 7-8.
11
LAURENT, É. “El goce sin rostro”. Buenos Aires: Tres haches, 2010, p. 85
12
Ibid.
contribuir na conversa com os estudiosos sobre o conceito de gênero, e com os
movimentos sociais.
Passemos, agora, a refletir sobre a afirmativa de Marty de que a teoria do gênero,
em Butler – a qual tem em Foucault uma importante referência –, seria a última
mensagem ideológica lançada no Ocidente, mensagem que surgiu no cenário americano
e que se espalhou pelo mundo, impondo-se como um significante com um grande poder
de adesão. Marty esclarece que Butler, como professora de retórica, tem um grande
poder de introduzir figuras de retórica, o que, segundo ele, em parte, explica a grande
abrangência de suas ideias. Ele explicita que tanto Foucault quanto Butler estariam
apoiados em uma ideologia neoliberal. É uma dura crítica, mas que merece ser
considerada.
Em Butler, as palavras que ela lança mão em defesa da liberdade do sujeito são:
empoderamento, agency (que tem origem no discurso gerencial), a idealização do self
made man. Elas se constituíram em importantes bandeiras para as lutas reivindicativas
no campo político, porém, é preciso reconhecer que suas raízes estão fincadas numa
visão ideológica neoliberal.
Para Marty, Foucault, o “pós europeu”, o californiano, passou a aderir ao
pensamento neoliberal americano, defendendo que a lei seria menor e que a norma seria
tudo e, no lugar da lei, coloca a exaltação da vida.
Marty destaca ainda que o sujeito e o desejo, implicando falta e castração, teriam
desaparecido do mundo das normas regulatórias. Trata-se do biopoder, de normas
afirmativas do viver. Tanto em Foucault quanto em Butler, o que prevalece, então, é
uma bodypolitic, uma defesa do pressuposto de que a orientação sexual é resultado de
uma escolha, a qual tem a ver com a construção de si, criação, devir, plasticidade da
identidade. Temos, então, um jogo estratégico entre liberdades e a veiculação de uma
ideologia onde o prazer prevalece. Podemos reconhecer, nesta narrativa, as marcas do
pensamento liberal e pragmático.
Acrescentamos, ainda, que Foucault, ao pensar a sexualidade, defende a
concepção de monossexualidade. Esta é circunscrita como um espaço onde a diferença
sexual pode ser suspensa, e este seria exatamente o dispositivo da sexualidade dos
modernos. Marty sublinha que o sexo dos modernos, que é tratado por Deleuze,
Barthes, Foucault e Derrida de forma diferenciada, é um programa que visa eliminar a
diferença sexual.
O que existe é, então, uma passagem da díade homem/mulher ao múltiplo, do
fálico ao ilimitado, do fixo ao fluido. Ou seja, temos, então, a virada de um mundo
centrado, hierarquizado, fechado e congelado na diferença sexual, a um mundo
descentrado, estendido, ilimitado e fluido do gênero. Aí, concretiza-se uma ruptura com
o velho paradigma e se evidencia uma passagem de um mundo fechado, circunscrito a
um universo infinito.
O que pode se constatar é uma crise do real no século XXI. À evaporação do pai
e do seu papel na regulação entre os sexos, segue, então, a crise do binarismo e do
simbólico. O significante regulador entre sujeito e corpo, sujeito e civilização, entrou
em colapso. Temos um Outro inconsistente, um mundo esfacelado do Outro.
Entretanto, nesse momento, gostaria de assinalar que Butler se diferencia de
muitos autores queer, que têm uma visão crítica da Psicanálise e que compõem as
comunidades de gozo, pois apresenta uma relação afável em relação à Psicanálise.
Contudo, é importante destacar que ela toma como referência, em Freud, o texto sobre
as teorias sexuais, realizando uma leitura distorcida, defendendo uma sexualidade
perversa polimorfa e uma idealização do pré-edipico13. Butler visa eliminar a nomeação
“mulher” como identidade sexual e tem como proposta que o adulto reconquiste o
domínio do pré- edípico. Essa leitura equivocada do texto freudiano, aquém do falo,
desconhece, nega totalmente o papel das fixações apontadas por Freud como
fundamentais na construção do sintoma, o que se evidencia, por exemplo, na seguinte
citação: “[...] é pelo caminho indireto, via inconsciente e antigas fixações, [que] a libido
finalmente consegue achar sua saída até uma satisfação”14.
Entretanto é importante assinalar que, segundo Fajnwaks15, entre os escritores
queer, há dissidência, e ele assinala que as argumentações de Tim Dean chamam nossa
atenção, pois elas apontam para o cerne da questão16. Tim Dean critica Butler,
afirmando que seu erro reside no desconhecimento ou na negligência dos últimos
escritos de Lacan, que se referem ao gozo.
Retornando a Foucault, Marty aponta que ele desconhece o além do princípio do
prazer. Trata-se de uma visão utópica do bem gozar, desconhecendo a pulsão de morte.
13
Cf. LAURENT, É. “Un nuevo amor por el padre”. El goce sin rostro, op. cit.
14
FREUD, S. (1916-1917). “Os caminhos da formação do sintoma” – Conferência XXIII. In:
Conferências introdutórias sobre psicanálise – Edição Standard Brasileira, vol. XVI. Rio de Janeiro:
Imago, 1976, p.421.
15
FAJNWAKS, F. “A escolha do sexo – a experiência enigmática da sexuação”. EBP - I Jornadas da
Seção Nordeste, Madri. (2021). Disponível em: https://ebp.org.br/nordeste/jornadas/2021/a-escolha-do-
sexo-a-experiencia-enigmatica-da-sexuacao1/ . Acesso em: 30.10.2021.
16
DEAN, T. “Lacan et les théories queer”. Cliniques Méditérranéennes. 2006/2, n°74, pp. 61-78.
De maneira que, para ele, as normas deixaram de ser disciplinares; elas são regulatórias
e afirmativas da vida. Elas apregoam os prazeres como “técnicas de vida”. Nessa
perspectiva, a vida “não conhece o não”17 e não é atormentada pela morte.
Para o ultimíssimo Lacan, é inegável a presença da pulsão de morte e o corpo
do falasser; segundo a afirmação de Miller, a novidade do último ensino é a “substância
gozante”18 e a consideração de que o corpo do falasser está afetado por ela. Cito Miller:
“O gozo, ou os gozos do corpo, porém, é aquilo que não mente”.19
Portanto, neste debate sobre a sexuação, e na conversa que considero
fundamental com os movimentos trans, queer, feministas, enfim, também com os
teóricos do gênero, o que a Psicanálise, com Freud, Lacan e Miller, pode trazer como
contribuição específica é a constatação, embasada na experiência analítica, de que não é
possível pensar a sexualidade sem considerar o gozo como acontecimento de corpo, e a
experiência deste gozo traumático que se escreve, no corpo, de forma singular em cada
um. Então, se em Foucault, encontramos uma reflexão para além da ordem simbólica,
exaltando um regime de normas como produtoras de vida, o que Freud e Lacan nos
ensinam é que, aquém do simbólico, temos o regime da letra como traço da violência
feita à língua pelo gozo. Concluindo, a vida é atormentada pela pulsão.
Segundo Clotilde Leguil20, Lacan passou do regime da lei para o regime do real
sem lei, focando nos efeitos da lalangue em cada sujeito, que acontece de forma única,
singular. De maneira que podemos dizer que cada falasser tem que se orientar e se virar
com o que lhe traz embaraços: o sexo e a morte. Cada um tem de lidar com o fato de
que não há relação sexual. O que há é um gozo, sem o Outro. E este gozo é sempre
singular. E cada um, sem apoio em normas, ou padrões que o orientem, tem de se haver
com isso.
Concluo com uma precisa citação de Laurent presente no seu livro, cujo título já
assinala, de forma clara, a especificidade da Psicanálise, o ponto crucial neste debate: O
avesso da biopolítica, com o subtítulo Uma escrita para o gozo: “O corpo, esquartejado
entre gozos privados autorizados e imperativos que o pressionam, sempre mais, a fazer-
se o auto empreendedor disso, não se conforma.”21

17
MARTY, É. Op. cit. 376.
18
MILLER, J.-A. “O inconsciente e o corpo falante”. Scilicet: O corpo falante. Rio de Janeiro: EBP,
2016, p. 30.
19
Ibid., p. 32.
20
LEGUIL, C. “La norme a cessé d´étre disciplinaire”. Boletim LOM 10, ECF, 1 de julho de 2021.
21
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p.
13.

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