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revoltas o estômago! daqui pendiam os lábios que eu beijei não sei quantas vezes.

Yorick, onde
andam agora as tuas piadas? Tuas cantigas? Teus lampejos de alegria que faziam a mesa explodir
em gargalhadas? Nem uma gracinha mais, zombando da tua própria dentadura? Que falta de
espírito! Olha, vai até o quarto da minha Dama e diz a ela que, mesmo que se pinte com dois dedos
de espessura, este é o resultado final; vê se ela ri disso! (...)" (p. 172-173). "HAMLET -Dá-me teu
perdão, senhor. Eu te ofendi. Mas me perdoarás, como um cavalheiro os presentes sabem, e tu
mesmo deves ter ouvido, que fui atacado por cruel insânia. O que eu fiz, que tenha agredido tua
natureza, teu temperamento, honra ou consciência -proclamo aqui que é loucura. Foi Hamlet que
ofendeu Laertes? Hamlet, jamais: Se Hamlet foi posto fora de si, e com Hamlet fora de si ofendeu a
Laertes, não é Hamlet quem ofende, e Hamlet o nega. Quem ofende, então? Sua loucura. E se é
assim, Hamlet está na parte ofendida. A loucura também é sua inimiga. Senhor, diante desta
audiência, que minha negativa de qualquer má intenção tire do seu generosíssimo espírito a idéia
de que atirei minha flecha sobre a casa e feri meu irmão." (p. 188).

Com Hamlet, temos a denúncia melancólica -em um misto de lucidez e loucura- das
ilusórias pretensões do eu, que se acostuma a esquecer de sua dimensão mortal. Hamlet coloca-se
numa posição alheia ao coletivo, ao que se espera de um príncipe. Ele se recusa a ocupar o papel
que lhe é reservado, prefere ser autor de si mesmo. Temos aqui ao mesmo tempo crítica e
construção do homem da Modernidade.

Questões para discussão


1. Quais são as relações entre a origem da valorização do indivíduo e o ceticismo?
2. Quais foram as principais críticas dirigidas ao "eu" já no século XVI?
3. Quais são as relações entre a civilização e o auto-controle?

O DISCURSO DO MÉTODO
Acompanharemos, nesta parte, através do exemplo modelar de Descartes,
como o eu chega a seu ponto de máxima afirmação no século XVII. Ao eu
será atribuída uma posição transcendente ao mundo material; com isto,
nascerá o projeto da produção de um conhecimento objetivo, neutro,
independente da subjetividade: a ciência.
O título desta parte refere-se a uma das obras mais importantes da história da filosofia,
escrita por Descartes, no século XVII. Ela será nossa principal referência aqui. Em mais uma das
caricaturas que temos feito nesse percurso, poderíamos dizer que o século XVII tentou organizar
racionalmente a desordem do século anterior. Boa parte dos filósofos mais conhecidos hoje são
daquele século e, embora seus sistemas sejam profundamente diferentes, há algumas características
próprias do século. Quase que invariavelmente, suas obras procuram criar um método para a
compreensão do mundo em sua totalidade. Para isso, o mundo será dividido, analisado,
hierarquizado metodicamente. É comum que o primeiro capítulo de uma dessas obras trate daquilo
que o autor pensa ser a coisa mais importante do mundo (a causa de todas as demais coisas): em
geral, este lugar é ocupado por Deus. O segundo capítulo trataria da segunda coisa mais importante
do mundo: a alma, por exemplo. E assim por diante, até que todos os seres do mundo tivessem
ganho seu lugar.
Trata-se daquele mesmo esforço que já apontamos, em capítulos anteriores, para controlar a
desordem. Dada a insegurança do ceticismo, é necessário encontrar algum ponto de referência i
onfiável sobre o qual edificar a existência. A razão humana buscará encontrar a ordem das coisas
para dominá-las e, sobretudo, dominar a si mesma. O discurso do método, aliás, foi o primeiro livro
de filosofia a ser escrito não em latim, mas na língua francesa do autor, o que mostra que a
racionalidade estava no caminho de se tornar mais difundida e integrada à vida comum.
Assim como Santo Inácio, Descartes acredita que o caminho para a verdade é acessível a
qualquer um, desde que todos são livres para dirigir sua vontade ao caminho correto. A diferença é
que, em Santo Inácio, a verdade é Deus e o caminho e a meditação, enquanto que Descartes opera
um deslocamento e refere-se à verdade enquanto tal e o caminho encontra-se no correto uso das leis
matemáticas e geométricas.
Descartes é reconhecido como o filósofo mais expressivo desse movimento e um dos
fundadores da Modernidade: seu pensamento associa-se à origem do Iluminismo e, posteriormente,
da ciência. Por outro lado, não faltam aqueles que o tomam como o criador de um racionalismo
exagerado, distante da experiência. Ele seria o maior representante, juntamente com Platão, da
filosofia da representação, que exclui o corpo e seus impulsos, pretendendo que o mundo seja
totalmente racionalizável, submetido a séries de causa e efeito. Tentemos, como já fizemos com
Maquiavel, compreendê-lo em seu contexto.
Descartes nasceu em 1596, mergulhado na efervescência que já descrevemos. Com dez
anos, ingressou em um colégio de jesuítas, ou seja, sob a orientação do pensamento de Santo Inácio.
Quando lemos O Discurso do Método, publicado em 1637, encontramos exatamente o depoimento
de alguém que passou boa parte da vida em busca de uma referência confiável e não a encontrou:
cada filósofo dizia uma coisa, sem nunca entrar em acordo com outros; cada livro informava
diferentemente; cada cultura tinha suas leis próprias e algo que fosse considerado certo aqui poderia
ser considerado errado numa cidade vizinha. Enfim, para onde quer que olhasse, tudo o que via era
desordem e dúvida. É uma percepção de mundo que em nada difere da de Montaigne, por exemplo.
A solução encontrada por Descartes foi iniciar um processo de dúvida metódica, ou seja, ele
se propôs a refletir sobre cada coisa que há no mundo, procurando saber se ela lhe poderia fornecer
uma verdade segura. O método será o mais semelhante possível com o da matemática e da
geometria. Uma vez firmado um ponto de referência, tudo mais deverá vir por dedução.
A busca é por idéias claras e distintas. Para não correr riscos e ajudar a distinguir com
clareza idéias que fossem totalmente verdadeiras, ele tomou o seguinte princípio: àquilo que fosse
falso, ele consideraria falso; àquilo que fosse incerto, seria tomado igualmente como falso. Apenas
algo realmente seguro poderia passar por seu crivo.
Penso que podemos associar este procedimento com duas características da pintura barroca
do século XVII: a busca de realizar retratos altamente realistas e detalhados, e a técnica do
claro/escuro. Nas pinturas há uma alta definição de luz sobre seu objeto tema, enquanto o fundo, em
geral, é escuro. Quase não se pode duvidar de nada, não há meios tons. Vejam-se, sobretudo, as
obras de Caravaggio ou Vermeer: em todos eles, há a representação fotográfica do tema; sobre ele,
recai um foco bem definido de luz, enquanto que o fundo é indefinido e deixado na escuridão.
No procedimento de Descartes, uma a uma, as coisas iam se mostrando enganadoras. Ele
procedeu seu exame de dentro para fora e, assim, em primeiro lugar, percebeu que as opiniões das
pessoas comuns e de "especialistas" eram duvidosas; depois percebeu a variabilidade das leis e
regras morais. Já não podendo contar com certezas externas, passa a interrogar a si mesmo
(reencontra-se aqui o movimento que identificamos na passagem da Idade Média ao Renascimento).
Em primeiro lugar, averiguou se seus órgãos do sentido lhe proporcionavam informações seguras, e
chegou à conclusão de que não. Interrogou, então, seus sentimentos e viu que o que eles lhe
transmitiam não era nada objetivo. E então se perguntou se a sua sensação de ter certeza sobre algo
garantia a verdade correspondente e, ainda uma vez, concluiu que não. Este movimento de recuo
metódico, em que parece que Descartes vai ficando cada vez mais acuado, aparentemente chegaria
ao ceticismo absoluto de Montaigne. Mas então Descartes dá seu "pulo do gato".
Depois de duvidar de todas as coisas, Descartes diz que, realmente, tudo o que tomou como
objeto de seu pensamento era incerto, mas que algo lhe parecia indubitável: enquanto duvidava,
seguramente existia ao menos a atividade de duvidar e se havia esta ação, ela deveria ter um
sujeito, um "eu pensante". Esta é a conclusão de Descartes: diante de toda a dúvida do mundo, o
único ponto de segurança e referência que temos é o de um "eu", não enquanto corpo, pois sua
existência também foi colocada em dúvida, mas um eu puramente pensante, uma alma racional
capaz de produzir representações corretas do mundo. Daí a famosa frase "Je pense, donc je suis" (eu
penso, logo existo).
Teríamos, com isso, o ponto máximo do humanismo enquanto valor do homem no mundo e
sua posição enquanto centro. O homem já era reconhecido como centro do mundo; agora, ele
mesmo tem um centro, sua razão, sua autoconsciência. A partir do "eu", Descartes deduzirá a
existência do corpo e dos demais "eus". Mas, em primeiro lugar, deduzirá a própria existência de
Deus. Deus é deduzido como uma causa necessária para a existência do homem, mas, se sua
existência tem que ser deduzida do eu, qual dos dois será mais importante?
Assim, se de início os caminhos de Descartes e de Montaigne se assemelham, eles acabam
de formas radicalmente distintas: em Montaigne temos a incerteza sem fim e a necessidade de
construir continuamente um eu; em Descartes, a dúvida é superada pela suposição da existência
prévia de um eu absoluto, um sujeito que subjaz (a origem dos termos é a mesma) a tudo.
Retomemos a referência que fizemos a Santo Agostinho no primeiro capítulo. Dentre os
diversos pontos de contato entre ele e Descartes, vale dizer que ele também teria antecipado de certa
forma o debate de Descartes contra os céticos e mesmo a solução dada por este último, em uma
formulação que Taylor denomina 'proto-cogito'. Agostinho sente que precisa defender-se dos
céticos, pois as crenças cristãs seriam arrasadas se eles conseguissem provar que de fato não
sabemos nada. Daí surge a argumentação que costumamos atribuir como originária de Descartes e
ponto chave de sua argumentação em favor do cogito: mesmo o cético não pode duvidar de sua
própria existência, caso contrário não seria possível sequer que ele se enganasse. O ponto máximo
da dúvida metódica (a chamada dúvida hiperbólica) cartesiana consistia justamente na hipótese de
um Deus enganador que pudesse insuflar falsidade em nossas representações. Sto Agostinho parece
antever este ponto limite da dúvida e fornecer a mesma resposta que Descartes: tomar a certeza da
primeira pessoa como fundamento indubitável contra os céticos. O conhecedor e o conhecido são
idênticos, trata-se da evidência da auto-presença.
A semelhança com as Meditações metafísicas de Descartes vão além: a afirmação daquela
verdade inquestionável ainda não garante a verdade das coisas e de Deus. A garantia para estas
verdades é dada pela concepção de que, sendo imperfeitos, devemos ter sido originados de um ser
perfeito, em muito superior a nós. O mergulho que o homem dá dentro de si o eleva a uma verdade
acima dele. A conclusão de Taylor é a de que no universo agostiniano, a seguinte equação deve ser
feita: "Deus = a verdade existe".
É justamente neste último ponto que se pode começar a diferenciar Descartes de Agostinho,
já que, até agora, podíamos incluir o primeiro quase que totalmente na tradição do segundo. Em
Descartes, a fonte da moral -vale dizer, a verdade- é definitivamente interna. Descartes também
deduz Deus, como Agostinho, de nossa imperfeição, mas Deus já não é o fim do caminho, para
onde tudo tende, mas ele seria um passo em meu caminho, uma garantia para as idéias evidentes
que tenho em mim. E no eu que tudo se encerra.
Desde Descartes, só será considerado verdadeiro aquilo que passar pelo crivo (observação ou
experimentação) da razão humana. O lugar da verdade é o eu e não mais textos ou representantes do
sagrado. A Modernidade se ergue diante da descrença progressiva da possibilidade de acesso
imediato a qualquer transcendência.

TEXTO ANEXO - René Descartes

O DISCURSO DO MÉTODO

"O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem
provido dele que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não
costumam desejar tê-lo mais do que o tem. E não é verossímil que todos se enganem a tal respeito;
mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é
propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os
homens; e, destarte, que a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais
racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não
considerarmos as mesmas coisas. Pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo
bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, e os que
só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho reto, do que
aqueles que correm e dele se distanciam." (p.29)
"E bom saber algo dos costumes de diversos povos, a fim de que julguemos os nossos mais
sãmente e não pensemos que tudo quanto é contra os nossos modos é ridículo e contrário à razão,
como soem proceder os que nada viram. Mas quando empregamos demasiado tempo em viajar,
acabamo-nos tornados estrangeiros em nossa terra; e quando somos demasiados curiosos das
coisas que se praticavam nos séculos passados, ficamos ordinariamente muito ignorantes das que
se praticam no presente." (p. 31)
"Comprazia-me sobretudo com as matemáticas, por causa da certeza e da evidência de suas
razões; mas não notava ainda seu verdadeiro emprego e, pensando que serviam apenas às artes
mecânicas, espantava-me de que, sendo seus fundamentos tão firmes e tão sólidos, não se tivesse
edificado sobre eles nada de mais elevado. (...)"
"Da Filosofia nada direi, senão que, vendo que foi cultivada pelos mais excelsos espíritos, que
viveram desde muitos séculos e que, no entanto, nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a
qual não se dispute e, por conseguinte que não seja duvidosa, eu não alimentava qualquer
presunção de acertar melhor do que os outros; e que, considerando quantas opiniões diversas,
sustentadas por homens doutos, pode haver sobre uma e mesma matéria, sem que jamais possa
existir mais de uma que seja verdadeira, reputava quase porção de coisas que, embora nos
pareçam muito extravagantes e ridículas, não deixam de ser freqüentemente acolhidas e aprovadas
por outros grandes povos, aprendi a não crer demasiado firmemente em nada do que me fora
inculcado só pelo exemplo e pelo costume; e assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos erros que
podem ofuscar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão. Mas, depois que
empreguei alguns anos em estudar assim no livro do mundo e em procurar adquirir alguma
experiência, tomei um dia a resolução de estudar também a mim próprio e de empregar todas as
forças de meu espírito na escolha dos caminhos que devia seguir. O que me deu muito mais
resultado, parece-me, do que se jamais tivesse me afastado de meu país e de meus livros." (p. 33)
"Achava-me, então, na Alemanha, para onde fora atraído pela ocorrência das guerras, que
ainda não findaram, e, quando retornava da coroação do imperador para o exército, o início do
inverno deteve-me num quartel, onde, não encontrando nenhuma frequentação que me distraísse, e
não tendo, além disso, por felicidade, quaisquer solicitudes ou paixões que me perturbassem,
permanecia o dia inteiro fechado sozinho num quarto bem aquecido onde dispunha de todo o vagar
para me entreter com os meus pensamentos. Entre eles, um dos primeiros foi que me lembrei de
considerar que, amiúde, não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças e feitas pela
mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou." (p. 34)
"O primeiro [princípio] era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não
conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção,
e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu
espírito que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida." (p. 37)
"E enfim, como não basta, antes de começar a reconstruir a casa onde se mora, derrubá-la,
ou prover-se de materiais e arquitetos, ou adestrar-se a si mesmo na arquitetura, nem além disso,
ter traçado cuidadosamente o seu projeto; mas cumpre também ter-se provido de outra qualquer
onde a gente possa alojar-se comodamente durante o tempo em que nela se trabalha; assim, a fim
de não permanecer irresoluto em minhas ações, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo, em meus
juízos, e de não deixar de viver desde então o mais felizmente possível, formei para mim mesmo
uma moral provisória, que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos
participar."
"A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo contentemente a
religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me, em
tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso, que fossem
freqüentemente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de viver."
"E, entre várias opiniões igualmente aceites, escolhia apenas as mais moderadas: tanto
porque são sempre as mais cômodas para a prática e verossimilmente as melhores, pois todo
excesso costuma ser mau, como também a fim de me desviar menos do verdadeiro caminho, caso
eu falhasse, do que, tendo escolhido um dos extremos, fosse o outro o que deveria ter seguido. E,
particularmente, colocava entre os excessos todas as promessas pelas quais se cerceia em algo a
própria liberdade." (p. 42)
"Não sei se devo falar-vos das primeiras meditações que aí realizei; pois são tão metafísicas e tão
pouco comuns que não serão, talvez, do gosto de todo mundo. E, todavia, a fim de que se possa
julgar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido a
falar-vos delas. De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes seguir
opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis, como já foi dito
acima; mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era
necessário agir exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que
pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que
fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor
que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens que
se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias de Geometria, e cometem
aí paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que estavam sujeitas a falhar como qualquer outra
todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os
mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos,
sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas
que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus
sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso,
cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade:
eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos
céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o
primeiro princípio da Filosofia que procurava." (p. 46)
"(...) compreendi por aí que [eu] era uma substância cuja essência ou natureza consiste
apenas no pensar e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa
material. De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do
corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele e, ainda que este nada fosse, ela não
deixaria de ser tudo o que é." (p. 47)
A evidência do eu como única referência estável dará origem a todo o projeto científico. O
homem passa a ter segurança quanto à sua possibilidade de alcançar um conhecimento objetivo do
mundo. A verdade já não será procurada nas escrituras sagradas ou em iluminações místicas. Só
poderá ser considerado verdadeiro algo que tenha passado pelo crivo da observação e
racionalidade humanas.

MÚSICA - Bach: o barroco e a fuga

Com o passar do tempo, a música vai-se tornando mais complexa e, por isso, faremos
apenas referências breves ao estilo. No século XVII, surge a música barroca, altamente
intelectualizada e estilizada. Nela, a tendência à construção de composições mais equilibradas
afirma-se. A música sacra e a ópera, recém-criada, serão suas maiores expressões.
Mas somos obrigados, neste caso, a ser menos fiéis à cronologia. A música que parece
melhor se relacionar com o movimento que descrevemos em Descartes é a de um compositor
nascido já em 1685 e que criou propriamente no século XVIII: Johann Sebastian Bach. Sem dúvida
um dos maiores compositores que já existiu, Bach possui uma espantosa quantidade e qualidade de
obras, em vários estilos. De certa forma, assim como Descartes, ele representa o início da
Modernidade, por ter sistematizado os tons musicais, tais como os conhecemos e usamos hoje.
Dentro da riqueza de sua música, destaca-se a produção de fugas. As fugas são um estilo no
qual as vozes são rígida e matematicamente dispostas. Em geral, há uma primeira Unha melódica,
chamada ponto, a qual se segue uma segunda voz em contraponto, ou seja, em imitação em outro
instrumento ou escala ou invertida, mas sempre em uma relação direta de equivalência com a
primeira. É comum que, no início da obra, seja apresentado um tema fechado; a partir daí, o restante
da composição realizará um desenvolvimento lógico das possibilidades do tema. Não aparecerá
nenhum tema que não estivesse contido enquanto possibilidade no início. Ao final, é reapresentado
o tema. Trabalha-se com tensão e distensão de forma totalmente controlada e o ouvinte jamais será
abandonado sem referências; o centro sempre reaparece20.
Bach ainda possui outro interesse, para nossas finalidades. Ele é completamente diferente do
mito romântico que temos do artista, não possuindo nada de atormentado ou louco. Ele era um
burocrata da música, um funcionário da Igreja sem afetações -o que não o impediu de criar uma
obra grandiosa, plena da retórica protestante. Se não se acredita em Deus ouvindo Bach, não se
acreditará de outra maneira21.

Questões para discussão

1. Como Descartes escapa ao ceticismo?


2. Quais são as relações entre o "eu", tal como definido por Descartes, e o
corpo?
3. Quais são as relações entre o método cartesiano e o de Santo Inácio de
Loyola?
20
Procure ouvir dois exemplos importantes de Barroco. Um é o trecho inicial de "Vespro delia
Beata Vergine" de Monteverdi, extraída do CD "Baroque. Palestrina e Monteverdi, EMI Classics,
1995". Mas ouça também o "Prelúdio e fuga em dó-menor", extraídas do CD "O cravo bem
Temperado (livro 1), J.S.Bach,ECM, 1988."
21
Um bom exemplo é a "Introdução" da Paixão Segundo São Mateus. "Mathãus-Passion, Deutsche
Grammophon, 1973".

8
O EU E O NÃO EU

A afirmação do eu dá-se às custas de uma sombra


projetada. Surge uma zona de exclusão representável
pela loucura ou pela natureza animal do homem.

Como forma de destacar a importância que passa a ter a afirmação do eu como único ponto
de referência para a existência humana desde o século XVII, vale a pena fazermos uma breve
referência à loucura. A referência chave nesse tema é a obra fundamental de Michel Foucault, dos
anos 60 de nosso século: A historia da loucura.
De forma muito simplificada, poderíamos dizer que foi apenas no século XVH que surgiu
nossa forma atual de relação com a loucura; num certo sentido, a loucura surgiu nesse século. Isso
não quer dizer que, antes disso, não houvessem pessoas que alucinavam ou que fossem
descontroladamente violentas, etc. A questão é que antes do século XVII ou em culturas não
ocidentais, a forma de se compreender o que se passava com essas pessoas era diferente. Não havia
o medo que temos hoje do louco, a idéia de que isso fosse uma doença e, sobretudo, não existia a
idéia de que ele devesse ser afastado do convívio social e isolado num hospício. Em determinadas
culturas, o louco pode ter sido tomado como um visionário: como aquele que transcende a
experiência imediata, entra em contato com outra dimensão da verdade que, ao regressar, a
comunica aos demais. Ele pode ainda ter sido tomado como um possesso pelo demônio ou
simplesmente como um bobo. O principal é observar que, até o século XVH, a perda da razão por
um homem não produzia o efeito de medo que passou então a gerar. Por que surgiu o medo da
loucura?
A idéia parece ser a seguinte: no mundo medieval, a garantia sobre a ordem do mundo e
todas as suas certezas era dada por algo externo ao próprio homem, ou seja, por Deus. Se um
homem perdia a razão, via coisas que ninguém mais via ou pensava o que ninguém mais pensava;
isso era um problema dele que não afetava aos demais. Ele deveria estar tomado pelo demônio. As
pessoas podiam até ter medo de serem tomadas também, mas a loucura não ameaçava a crença em
Deus e, assim, as verdades aceitas. Depois do processo que descrevemos, desde o fim da Idade
Média e sobretudo depois de Descartes, a situação mudou totalmente. Desde então, a única garantia
e ponto de referência do homem é a sua crença em um eu pensante" objetivo e consciente. A partir
desse momento, qualquer coisa que pudesse pôr em questão a lucidez e a estabilidade do eu, seria
tomada como altamente ameaçadora. Agora é toda a estabilidade do mundo que está em jogo na
identidade do eu. E preciso criar mecanismos para afirmá-lo e defendê-lo.
O afastamento do louco do convívio social parece servir mais aos outros do que a ele. No
século XVII, não há qualquer perspectiva de tratamento, trata-se simplesmente de um isolamento
por medo do contágio. Foucault mostra-nos que os primeiros hospícios foram os antigos leprosários
remanescentes da Idade Média, o que acaba sendo altamente expressivo da associação feita com
aquele mal terrível e contagioso. O louco será tratado como um animal, como alguém que perdeu a
alma, pois esta identifica-se com o eu e sua racionalidade. Não se pode pensar em um eu louco; se
há loucura, o eu submergiu. Lembremo-nos do último trecho de Hamlet no texto anexo, em que ele
antecipa esta noção: se ele fez algo estando louco, é o próprio eu que foi ofendido e não pode ser
responsabilizado. Desenha-se novamente aquela referência à pintura barroca com o estilo do claro/
escuro: não há razão relativa, ou se é são e dono de seu eu, ou se e louco e alienado absolutamente.
Pelo lugar de exclusão que assume, não há música que represente a loucura no século XVII. Como
ja dissemos, ela é dominada pela racionalidade matemática.
Concluindo, o nascimento de nossa representação moderna da loucura é contemporâneo e
correlato ao momento de maior afirmação do eu, enquanto sujeito consciente e livre para conhecer a
verdade.

TEXTO ANEXO - Thomas Hobbes

Outra referência essencial sobre o que habita o espaço excluído ao eu é a obra do filósofo
inglês Thomas Hobbes. Num certo sentido, ele tem um projeto semelhante ao de Descartes: em sua
obra mais importante, Leviathan (1651), tentou sistematizar idéias a respeito da natureza humana e
do Estado. Assim, como Descartes, ele acredita que o homem deve seguir o caminho da
racionalidade. O eu social justamente impõe-se sobre a natureza humana, que deve ser dominada
totalmente. Mas o que caracteriza e diferencia Hobbes de seus contemporâneos é a visão
"naturalista" e assustadora que ele nos dá da natureza humana. A seguir, apresento algumas das
principais idéias de Hobbes, referindo-me a outro de seus livros, chamado Do cidadão {"De eive"):
"(...) Pois todo homem é desejoso do que é bom para ele, e foge do que é mau, mas, acima
de tudo, do maior entre os males naturais, que é a morte e isso ele faz por um certo impulso da
natureza, com tanta certeza como uma pedra cai." (p. 10)

Hobbes traça, ao longo de Do cidadão, um perfil do que seria o homem fora da sociedade,
em um virtual estado de natureza. Em um estado de natureza, ou seja, na ausência de um poder
constituído ou de compromissos entre os homens que determinassem o que pertence a quem, todo
homem teria o direito de fazer e ter tudo o que quisesse, pois a natureza "deu a cada um o direito a
tudo". E o que o homem naturalmente buscaria? Como vimos na citação acima, o homem procura o
que é bom para ele, evitando o que é mau.
A idéia chave aqui é a da busca de um bem para si. O que está em jogo é o seguinte: desde
sempre, se disse que o homem busca o bem ou a felicidade, não há nenhuma novidade nisso. A
questão é que, como temos visto, a idéia de uma referência externa que servia como padrão e
definição do bem está desaparecendo. A busca do bem já não toma a forma de busca de um bem
comum. Sem essa referência externa e com a progressiva importância atribuída ao eu, a busca agora
é a do bem para si. Em Hobbes, o homem é visto como um ser egoísta, movido pela busca do prazer
e pela fuga dos perigos de morte. Isto freqüentemente o levará a ser violento e a entrar em guerra,
impondo-se sobre os demais. Hobbes é ainda mais específico na seguinte passagem:
"(...) Assim cheguei a duas máximas da natureza humana - uma que provém de sua parte
concupiscente, que deseja apropriar-se do uso daquelas coisas nas quais todos os outros têm comum
interesse -outra, procedendo da parte racional, que ensina todo homem a fugir de uma dissolução
antinatural, como sendo este o maior dano que possa ocorrer à natureza." (p.6)
Alguns homens se contentariam em ter apenas o que lhes fosse necessário, permitindo aos
outros o mesmo. Outros, porém, movidos pela vangloria, procurariam sobrepor-se aos demais,
surgindo assim inevitavelmente o conflito e a vontade de ferir. O homem teria uma eterna
inclinação para ampliar seu poder: no primeiro homem, esta inclinação serviria à sua auto-defesa, à
qual tem todo o direito; no segundo, ela serviria à sua vangloria.
Hobbes conclui que, desse estado de coisas, resultaria uma eterna guerra de todos contra
todos. Nenhum homem poderia se sentir seguro em poder manter seu bem maior; sua vida. Há,
assim, um paradoxo fundamental entre as duas máximas da natureza humana; sobreviver e o desejo
de apropriar-se de tudo por vangloria.
Referi-me acima ao estado de natureza como "virtual", pois Hobbes não se refere e,
aparentemente, não pensa que um tal estado tenha existido ou possa existir, trata-se de uma natureza
vislumbrada a partir de seus contemporâneos. Lemos em Do cidadão uma série de referências ao
homem vulgar que é imprudente, procura sempre tirar proveito dos outros, admira sistemas
filosóficos apenas pelo prazer que extrai de suas retoriquices, etc. Enfim, Hobbes convida-nos (de
fato, convida-nos: há um apelo feito ao leitor) a encarar de frente os motivos que levam os homens
ao convívio social. A primeira conclusão fundamental é que a sociabilidade não faz parte da
natureza humana:
"Pois aqueles que perserutarem com maior precisão as causas pelas quais os homens se
reúnem e se deleitam uns na companhia dos outros facilmente hão de notar que isto não acontece
porque naturalmente não poderia suceder de outro modo, mas por acidente. Isto porque, se um
homem devesse amar outro por natureza -isto é, enquanto homem-, não poderíamos encontrar
razão para que todo homem não ame igualmente todo homem, por ser tão homem quanto qualquer
outro, ou para que freqüente mais aqueles cuja companhia lhe confere honra e proveito." (p. 3)
Em seguida, investigando com grande ironia o que os homens fazem quando se reúnem,
Hobbes nos apresenta quais acredita serem os fundamentos desta união:
"Assim esclarece a experiência a todos aqueles que tenham considerado com alguma
precisão maior que a usual os negócios humanos, que toda reunião, por mais livre que seja, deriva
quer da miséria recíproca, quer da vã gloria, de modo que as partes reunidas se empenham em
conseguir algum benefício, ou aquele mesmo eudokimein que alguns estimam e honram junto
àqueles com quem conviveram." (p. 5)
E, mais adiante:
"(...) Devemos portanto concluir que a origem de todas as grandes e duradouras sociedades
não provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns para com os outros, mas do
medo recíproco que uns tinham dos outros, (p. 6)
Antes de prosseguirmos na exposição de como Hobbes entende a construção da sociedade,
gostaria de acrescentar algo ainda sobre a natureza do homem. No Capitulo 5 de Do cidadão,
Hobbes discute os motivos pelos quais os governos de certos animais, considerados políticos por
Aristóteles, são bem fundados numa concórdia ausente no governo humano. As conclusões são as
seguintes: nos homens, há disputa por honra e precedência, vale dizer vangloria, gerando ódio e
inveja; nos animais, o bem-comum não se diferencia do particular, enquanto no homem alguma
proeminência é condição para seu gozo; o uso da razão leva alguns homens a querer inovar,
trazendo a discórdia; os homens possuem a arte da palavra, condição para os movimentos da mente,
que, contudo, pode levar os homens à guerra em seus maus usos; os animais não sabem distinguir
dano ou injúria, não censurando assim aos seus semelhantes; e, por fim, o pacto entre os homens
não é natural como entre os animais. Esta análise de Hobbes é surpreendente, pois não só nos leva à
conclusão de que o homem distingue-se fundamentalmente dos demais uni mais políticos, não tendo
contato com as leis naturais como aqueles, < omo sugere que aquilo que caracteriza a natureza
humana -sua razão, sua fala e sua ânsia por glória- é justamente o que o torna inapto para a vida
social. Uma paz duradoura só poderia ser i nnquistada por um esforço metódico da reta razão
-vencendo as l >aixões- para apreender as leis naturais e a constituição de um poder i cntralizado e
coercitivo que subjugasse as inclinações individuais, i omo veremos a seguir.
Retornando à linha que desenvolvíamos, o estado de natureza ícarreta a guerra de todos
contra todos, pondo em perigo a obrevivencia. Hobbes conclui então que é racional -e é, por isso, a
Iuimeira lei fundamental da natureza: procurarmos a paz, se ela for possível. Caso contrário,
devemos nos preparar para a guerra.
A lei seguinte é clara: é preciso que os homens renunciem i >u transfiram seu direito a todas
as coisas para que se possa chegar a paz. Mesmo que não haja um Estado constituído, é possível a
realização de acordos entre indivíduos. Transferir significa declarar a outro que não se vai mais
resistir a ele naquilo de que se trate. Aqui surge a idéia, essencial em Hobbes, de contrato:
"O ato de dois, ou mais, que mutuamente se transferem direitos chama-se contrato." (Cap.
2, p. 7)
Um contrato nestes moldes pode estabelecer a paz entre algumas pessoas, mas certamente é
insuficiente para a garantia de uma paz generalizada. Para tanto, será necessária a constituição de
um estado civil. É importante dizer também que esta transferência e contrato tem um limite; todo
homem preserva o direito à sua sobrevivência e proteção de seu corpo. Esta idéia é essencial, pois
deixa claro que não se trata de pensar que o homem pode deixar de ser egoísta, mas de reafirmar
que, se ele cede seu direito a tudo, isso se deve à sua preocupação, ainda egoísta, em sobreviver. Se
ocorrer qualquer ameaça neste sentido ele terá o direito (ou a obrigação?) de quebrar o contrato,
retornando ao estado de guerra.
Ainda sobre o contrato, Hobbes diz:
"(...) Mas em primeiro lugar, é evidente que o consentimento de dois ou três não pode tornar
suficiente uma tal segurança; porquebastará somar do outro lado um único ou alguns poucos, para
se alcançar uma garantia indubitável de vitória, o que animará o inimigo a nos atacar. Por isso é
necessário, a fim de que se possa obter a segurança almejada, que o número daqueles que
cooperam em assistência mútua seja tão grande que o acréscimo de uns poucos do lado do inimigo
não venha a constituir tópico suficiente para assegurar-lhe a vitória." (Cap. 5, p. 2)
Assim, para que haja a instituição do Estado, é necessário que uma significativa maioria ou
mesmo que todos os homens transfiram I seu direito natural a tudo a um soberano ou a uma
assembléia, a quem caberá a função de juiz e legislador, de definir o que é bom e o que é mau e o
que cabe a cada homem. Note-se que este soberano está de certa forma excluído do contrato social,
pois ele não abre mão de nada e, a rigor, como j á tinha direito a tudo, também não ganha nada.
Aqueles que realizaram a transferência, por sua vez, submetem-se igual e irrestritamente a este
poder centralizado. Ao comentar a extensão do poder do soberano, Hobbes nos assinala:
"É muito evidente, por tudo que já dissemos, que em toda cidade perfeita (isto é naquela em
que nenhum cidadão tem o direito de utilizar suas faculdades, a seu arbítrio, para sua própria
conservação -ou seja, onde está abolido o direito ao gládio privado) reside um poder supremo em
alguém, o maior que os homens tenham direito a conferir: tão grande que nenhum mortal pode ter
sobre si mesmo um maior. Este é o que chamamos de absoluto, o maior que homens possam
transferir a um homem. (Cap. 6, p. 10)
Com a instituição deste poder, todas as inclinações individuais estão canalizadas e
direcionadas. Numa definição de lei, que Hobbes dá em Leviathan, podemos compreender a idéia
que ele faz da função do Estado:
"Pois o uso das leis (que não são senão regras autorizadas), não é atar a pessoas de todas as
ações voluntárias; mas dirigi-las e mantê-las em tal movimento, em que elas não se machuquem por
seus próprios desejos impetuosos ou indiscrições, assim como balizas são colocadas não para deter
os viajantes, mas para mantê-los em seu caminho." (Leviathan, p. 388)
Numa síntese: o homem, para Hobbes, é um ser de certa forma (lesconectado com as leis
naturais, aquilo que mais o caracteriza. Sua razão, fala e desejo de poder é o que mais o afasta desta
natureza, em especial quando há um mau uso, um excesso no exercício destas faculdades. Este
excesso é expresso de forma privilegiada pela busca da vangloria, sempre definida como um abuso,
como um excesso referente à busca de glória. Trata-se de uma falta de medida na busca de algo a
princípio legítimo, um prazer supérfluo e nocivo. Este ser, assim, claramente inapto para o convívio
social (pois viveria em eterno estado de guerra), é compelido, acima de tudo pelo medo de ser
morto a unir-se a outros homens. Para isto, abre mão de suas aspirações de sobrepor-se aos demais
com a condição de que estes façam o mesmo, submetendo-se a um poder central que regulará suas
ações. Em um Estado assim constituído, não há lugar para vontades (no sentido em que Hobbes usa
o termo, quase sinônimo de ações) particulares. O Estado contém as vontades como as margens de
um rio contém suas águas, evitando que elas se dispersem.
O eu será, assim, o dique construído para conter a natureza humana, que busca a afirmação
de algo que escapa ao próprio eu: uma busca de prazer sem firr^. Assim, embora Hobbes tenha
pontos em comum com Descartes, sobretudo a crença na possibilidade de um autodomínio
completo pela razão, seu princípio é justamente não desprezar a animalidade do homem.22

Questões para discussão


1. Em que sentido Foucault diz que a loucura foi criada no século XVII?
2. Qual é a função do medo no interesse do homem em viver em comunidade,
desencantado; a idéia de suicídio lhe ocorre, mas é afastada com a justificativa de que ele tinha uma
obra a realizar. O sofrimento do eu é menos importante do que a realização desse dom maior que se
lhe perpassa.

Questões para discussão


1. Qual é a crítica do Romantismo ao Iluminismo?
2. Qual é a diferença entre a definição de Romatismo do fim do século XVIII e a forma
como o definimos hoje, no sentido comum?
3. Como a noção de "gênio" contribuiu para o desenvolvimento do individualismo?

12

A AUTO-CRÍTICA DA RAZÃO
No interior do próprio iluminismo, surge um
movimento de auto-crítica às possibilidades da razão
alcançar o conhecimento pleno.

Quando dizemos que, no século XVIII, se inicia um processo de crise da noção de


subjetividade afirmada até o século anterior, não nos referimos apenas a ataques externos ou à
valorização daquilo que escapa ao eu. No interior da própria racionalidade iluminista, a razão será
tomada como objeto de investigação e suas pretensões quanto à possibilidade de alcançar a verdade
plena será posta em cheque..
Descartes havia debruçado sua razão sobre os objetos do mundo e tinha chegado à conclusão
de que todos eram incertos, restando como único ponto fixo e absoluto o próprio eu, enquanto ser
pensante. Com Immanuel Kant, um dos autores mais da história da filosofia, o próprio pensamento
será tomado como objeto de investigação. Neste movimento reflexivo (a razão pensa sobre si
própria), trata-se de investigar as possibilidades, os limites da razão, impostos por sua própria
constituição.
Sua principal obra a este respeito é a Crítica da razão pura, à qual faremos apenas uma
referência extremamente simplificada. Kant chega à conclusão de que o pensar é organizado por
categorias, estruturas que organizam tudo o que nos chega do mundo. Por exemplo, a categoria da
relação "causa e efeito", leva o pensamento a crer que, quando um evento segue-se a outro, o
primeiro é causa do segundo, mesmo que eles sejam independentes.
Neste sentido, todo o nosso conhecimento sobre o mundo seria condicionado e "formatado"
por nossas estruturas cognitivas, Assim, chega-se à conclusão de que nunca temos acesso a coisas
em si, mas apenas à fenômenos. Ou seja, ao mundo tal como somos capazes de apreendê-lo, como
se dá para nós. Kant não duvida da existência das coisas em si exteriores ao homem, mas o eu
pensante jamais poderia ter acesso a elas.
Isto não significa que a razão é inútil ou que devesse deixar de procurar compreender o
mundo. Ela deve aprender a manter-se em seus limites, dentro dos quais poderá produzir um
conhecimento confiável. A razão deve abster-se de questões transcendentais, que ultrapassam em
muito seu alcance, tais como a existência de Deus, da alma ou da liberdade. Sobre tais assuntos,
podemos discutir interminavelmente acumulando razões a favor e contra cada uma sem nunca
chegarmos a uma conclusão.
Sua área de ação deverá manter-se no limite dos fenômenos, àquilo de que temos uma
apreensão direta. Sua tarefa já será mais humilde, ao invés de chegar à verdade absoluta, ela deve
procurar produzir hipóteses, modelos teóricos através dos quais seja possível organizar e dar sentido
aos fenômenos. Toda teoria, assim, é necessariamente uma criação humana provisória, que a
qualquer momento pode ser superada por outra que a abarque e dê conta de um maior número de
fenômenos; este movimento é infinito. Não a qualquer perspectiva de que se chegue a uma teoria
que coincida com o mundo.
O pensamento de Kant, na seqüência das idéias de Descartes, será uma das principais
influências no modo de se produzir ciência no século XIX. Vejamos como um autor do século XX,
Cassirer, descreve o procedimento da razão no século XVIII:
"Ele consiste em partir de fatos solidamente estabelecidos pela observação, mas não basta
que os fatos estejam 'ao lado' uns dos outros, é preciso que eles se encaixem uns 'nos' outros, que a
simples convivência se revele, bem considerada, como dependência, que da forma de agregado se
passe à forma de sistema. Esta forma sistemática não pode evidentemente ser imposta o exterior aos
fatos; é preciso que ela sobressaia. Os 'princípios' que nós precisamos procurar em toda parte, e sem
os quais nenhum domínio de um conhecimento seguro é possível, não são tais ou tais ponto de
partida escolhidos arbitrariamente pelo pensamento e aplicados a força à experiência concreta para
modelar".29
Ainda segundo Cassirer, o trabalho do pensamento deve seguir do particular para o
universal, supondo-se que o primeiro está já submetido a um princípio universal. Os princípios a
que se chega não possuem, no entanto, o caráter de absolutos. Eles são relativos, ou melhor,
provisórios, e apontam para um limite circunstancial da razão, que poderão ser abandonados e
ultrapassados. Eles são de fato "princípios" para novos avanços da razão em seu progresso
incessante.
O eu encontra-se aqui com uma visão positiva de suas possibilidades, mas já não onipotente.

Questões para discussão


1. Quais são os limites que Kant vê no projeto de conhecimento de Descartes?
2. O que significa o trabalho de produzir teorias no pensamento de Kant?
3. Segundo Kant, é possível obtermos um conhecimento objetivo do mundo?
» Cassirer, p. 62. Este tipo de colocação é freqüentemente encontrado em Freud, por exemplo.

13
O POSITIVISMO
No inicio do século XIX, nasce o modelo científico para a
produção de conhecimento com bases seguras.

A partir da crítica de Kant, se irá desenhar no século XIX um modelo para a produção de
conhecimento a um só tempo racional e empírico. O senso comum ainda hoje o toma como
sinônimo de verdade: a ciência nos moldes positivistas. Dizer que algo é científico significa dizer
que é reconhecido pelas autoridades no assunto como certo e indubitável. Não se trata de opinião ou
crença, mas de algo provado.
O que hoje chamamos com freqüência de ciência teve seu modelo formulado por Auguste
Comte, filósofo francês. Assim como Kant, Comte acredita na possibilidade de a razão conhecer o
mundo e, como ele, pensa que isto será possível desde que o homem se mantenha dentro do
universo dos objetos tais como lhe são acessíveis. Comte não fala em termos de fenômenos, mas de
algo semelhante, os objetos positivos. Por positivo, devemos entender aqueles que se apresentam
diretamente aos nossos órgãos do sentido.
Quando Comte denomina seu pensamento com o nome de positivismo, ele quer com isto
enfatizar seu caráter de concreto, verdadeiro ou útil, por oposição às abstrações metafísicas da
tradição filosófica. Com o positivismo, afirma-se a concepção de que cada ciência deve
inicialmente definir seu objeto, que deve ser necessariamente positivo, localizado no tempo e
espaço, observável, em última instância. Uma vez definido o objeto, toda ciência tem os mesmos
métodos: a observação e a experimentação. Inspirado pela tradição humanista de que os coisas do
mundo deveriam ser pensadas em termos de sua utilidade para o homem, assim com pelo
distanciamento entre o sujeito do conhecimento e o objeto, prescrito por Descartes, a ciência
positivista visa sempre a previsão e o controle sobre seu objeto. A ciência deve gerar tecnologia.
É curioso observar que, segundo este modelo, seria impossível a realização de uma
Psicologia científica, na medida em que a mente não se apresenta como um objeto positivo. A

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