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Charles-Agustin SAINTE-BEUVE (Boulogne-sur-Mer, 1804 – Paris, 1869)

escreveu poesia, romances, novelas, além de ter tido sua vasta correspondência reunida em
livros. Destacou-se, no entanto, na crítica literária, de que se tornou um mestre amplamente
reconhecido. Embora avesso à sistematização e a teorias, desenvolveu um método de
investigação que concebe a obra como reflexo da vida do autor, razão por que compete ao
estudioso da literatura interessar-se pela biografia dos escritores. Em função de suas
preocupações com circunstâncias biográficas e históricas, concebidas como chave para a
compreensão das obras, é às vezes apontado como precursor das orientações cientificistas que
se afirmarão nos estudos literários durante as décadas finais do século XIX.

SOBRE O MEU MÉTODO ∗


(1862)

I
.......................................................................................................................................................
[...] Tenho ouvido com freqüência acusar-se a crítica moderna, em particular a minha,
de não ter qualquer teoria, de ser integralmente histórica, integralmente individual. Os que me
tratam com mais indulgência inclinaram-se a dizer que eu era um juiz muito bom, mas que
não tinha um Código. Entretanto, tenho um método, e mesmo que ele não tenha
absolutamente preexistido, e de modo algum se revele previamente como teoria, formulou-se
em mim a partir da própria prática, e uma longa série de aplicações não fez senão confirmá-lo
aos meus olhos.
Pois bem, esse método, ou antes, essa prática que cedo me foi como que natural, e que
instintivamente encontrei desde os meus primeiros ensaios de crítica, que não deixei de seguir
e de variar segundo os temas no decorrer dos anos; que, de resto, jamais sonhei transformar
em segredo ou descoberta; que sem dúvida se relaciona em alguns pontos com o método do
Sr. Taine, mas que, sob outros aspectos, dele difere; que constantemente não foi reconhecida
em meus escritos por contestadores que me tratavam como o mais cético e o mais indeciso
dos críticos, e por isso como um simples farsante; que jamais nem os Génins 1 nem os


In: Nouveaux lundis. Paris: Calman Lévy, 1892. p. 11-33.

Título atribuído pelo organizador; excerto do ensaio “Chateaubriand jugé par um ami intime en 1803”.

Tradução de Annabella Blyth, com supervisão de Maria Elizabeth Chaves de Melo.


1
François Génin (1803-1856), filólogo francês e professor de belas-letras.
1
Rigaults 2 — nem qualquer daqueles que me faziam a honra de me sacrificar ao Sr. Villemain 3
e aos outros mestres anteriores — dignaram-se conjecturar, esse conjunto de observações e de
direções positivas é que vou tentar apresentar brevemente. Chega um momento na vida em
que é preciso poupar os outros, tanto quanto possível, do embaraço de tatear a nosso respeito,
e em que é hora, ou jamais o será, de revelar-se inteiramente.

II

É pois conveniente que, por hoje, me permitam entrar em alguns detalhes relativos ao
caminho e ao método que tenho considerado o melhor a seguir no exame dos livros e dos
talentos.
A literatura, a produção literária, não é para mim de modo algum distinta ou sequer
separável do homem e da organização; posso fruir uma obra, mas para mim é difícil julgá-la
independentemente do conhecimento do próprio homem; e direi de bom grado: tal árvore, tal
fruto. O estudo literário me conduz assim muito naturalmente ao estudo moral.
Com relação aos Antigos, não se têm meios suficientes de observação. Voltar a
abordar o homem, através da sua obra, na maioria dos casos é impossível no que diz respeito
aos verdadeiros Antigos, aqueles cujas estátuas só conservamos meio mutiladas. Ficamos pois
reduzidos a comentar a obra, a admirá-la, a inventar o autor e o poeta através dela. Podemos
assim reconstituir as figuras de poetas ou de filósofos, os bustos de Platão, de Sófocles ou de
Virgílio, com um sentimento de ideal elevado; é tudo o que permite o estado dos
conhecimentos incompletos, a escassez de fontes e a falta de meios de informação e de
retorno. Um grande rio, não transponível na maioria dos casos, nos separa dos grandes
homens da Antigüidade. Saudemo-los de uma margem à outra.
Com relação aos Modernos, tudo é diferente; e a crítica, que regula seus métodos em
função dos meios, tem aqui outros deveres. Conhecer um homem e, mais do que isso,
conhecê-lo bem, sobretudo se esse homem é um indivíduo marcante e célebre, é uma grande
coisa, que não deveria ser desdenhada.
A observação moral do caráter está mais no detalhe, nos elementos, na descrição dos
indivíduos e, quando muito, de algumas espécies: Teofrasto 4 e La Bruyère 5 não vão além

2
Hippolyte Rigault (1821-1858), escritor francês e professor de retórica.
3
Abel-François Villemain (1790-1870), crítico francês.
4
Filósofo grego (372-288 a. C.).
5
Jean de La Bruyère (1645-1696), ensaísta e moralista francês.

2
disso. Dia virá, que creio ter entrevisto no curso das minhas observações, em que a ciência
será constituída, em que as grandes famílias de espíritos e suas principais divisões serão
determinadas e conhecidas. Então, dado o principal caráter de um espírito, dele se poderão
deduzir vários outros. 6 Para o homem, sem dúvida, não se poderá jamais fazer exatamente
como em relação aos animais ou às plantas; o homem moral é mais complexo; ele tem o que
se denomina liberdade, que, em todos os casos, supõe uma grande mobilidade de
combinações possíveis. 7 Seja lá como for, com o tempo — imagino eu —, chegaremos a
constituir mais amplamente a ciência do moralista; hoje em dia, ela se encontra no ponto em
que estava a botânica antes de Jussieu, 8 e a anatomia comparada antes de Cuvier, 9 no estado
por assim dizer anedótico. Fazemos por nossa conta simples monografias, acumulamos
observações de detalhes; mas entrevejo ligações, relações, e um espírito mais arejado, mais
luminoso, e que permaneça sensível ao detalhe, poderá um dia descobrir grandes divisões
naturais que correspondam às famílias de espíritos.
Mas quando a ciência dos espíritos estiver organizada como podemos concebê-la à
distância, ainda assim ela seria sempre tão delicada e tão movediça que não existiria senão
para aqueles que têm vocação natural e talento para observar: seria sempre uma arte que
demandaria um artista hábil, como a medicina exige o tato médico daquele que a exerce,
como a filosofia exige o tato filosófico daqueles que se pretendem filósofos, como a poesia
não se deixa envolver senão por um poeta.
Suponho assim alguém que tenha esse gênero de talento e de facilidade para entender
os grupos, as famílias literárias (pois neste momento se trata de literatura); que as distinga
quase à primeira vista; que lhes apreenda o espírito e a vida; para quem esta seja
verdadeiramente a vocação; alguém predisposto a ser um bom naturalista no vasto campo dos
espíritos.
Trata-se de estudar um homem superior, ou simplesmente distinto por suas produções,
um escritor cujas obras tenhamos lido e que é digno de um exame aprofundado? Como
assumir isto, se nada de importante e essencial a seu respeito queremos omitir, se queremos
abandonar os julgamentos da antiga retórica, ser o menos possível enganados pelas frases,

6
“Existe nos caracteres certa necessidade, certas relações que fazem com que tal traço principal conduza a tais
traços secundários.” Goethe (Conversations d'Eckermann). (Nota do autor.)
7
“Encontra-se de tudo neste mundo, e a variedade de combinações é inesgotável.” Grimm (Correspondance
littéraire). (Nota do autor.)
8
Antoine Laurent de Jussieu (1748-1836), botânico francês.
9
Georges Jean Léopold Nicolas Frédéric Dagobert Cuvier (1769-1832), biólogo francês.

3
pelas palavras, pelos belos sentimentos convenientes, e alcançar o verdadeiro, como num
estudo natural?
É muito útil, inicialmente, começar pelo começo, e, quando se têm os meios, situar o
escritor superior ou distinto no seu país natal, na sua raça. Se conhecêssemos fisiologicamente
bem a raça, os ascendentes e ancestrais, teríamos luz sobre a qualidade secreta e essencial dos
espíritos; mas, com mais freqüência, essa raiz profunda permanece obscura e oculta. Nos
casos em que não se esconde totalmente, ganha-se muito em observá-la.
Reconhecemos, encontramos, seguramente, o homem superior, ao menos em parte, em
seus pais, sobretudo em sua mãe, cuja ligação com ele é a mais direta e certa; nas irmãs
também, nos irmãos, até mesmo nos filhos. Aqui se encontram traços essenciais que são
freqüentemente mascarados, por estarem, no grande indivíduo, muito condensados ou muito
integrados; o fundamento, nos outros de seu sangue, se encontra mais a nu e em estado
simples: a natureza sozinha ficou com o ônus da análise. Isso é muito delicado e demandaria
para ser esclarecido nomes específicos, fatos particulares; apontarei alguns.
Tomemos como exemplo as irmãs. [...] Chateaubriand [...] tinha uma irmã dotada de
uma imaginação que beirava a idiotice, como ele próprio dizia, o que devia aproximar-se da
pura extravagância; outra irmã, ao contrário, divina (Lucile, a Amélie de René 10), tinha uma
sensibilidade refinada, uma espécie de imaginação delicada, melancólica, sem nada que a
corrigisse ou a aproximasse do tipo de imaginação que caracterizava o irmão: morreu louca e
matou-se. Os elementos que Chateaubriand reunia e associava, ao menos no seu talento, e que
mantinham uma espécie de equilíbrio, estavam distinta e desproporcionalmente repartidos
entre as irmãs.
Não conheci as irmãs do Sr. Lamartine, 11 mas sempre me recordo de uma palavra
escapulida de Royer-Collard, 12 que as conheceu, e que falava delas na sua primeira juventude
como algo agradável e melodioso, como um ninho de rouxinóis. A irmã de Balzac, a Srª
Surville, cuja semelhança física com o irmão salta aos olhos, ao mesmo tempo presta-se a
suscitar uma idéia mais favorável — que os ilustre, consolide e regenere —, naqueles que,
como eu, cometem talvez a injustiça de não admirar senão incompletamente o célebre
romancista. A irmã de Beaumarchais, 13 Julie, que o Sr. de Loménie 14 nos revelou, representa
bem seu irmão por sua alegria e sarcasmo, seu humor livre e picante, seu espírito irresistível e

10
Romance de Chateaubriand, publicado em 1802.
11
Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine (1790-1869), escritor e político francês.
12
Pierre Paul Royer-Collard (1763-1845), estadista e filósofo francês.
13
Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799), dramaturgo francês.
14
Étienne Charles de Loménie de Brienne (1727-1794), clérigo, político e escritor francês.

4
impulsivo; ela o conduzia até o extremo limite da decência, quando não ia além; essa moça
amável e radiante morreu quase com uma canção nos lábios: era bem a irmã de Figaro, 15 o
mesmo broto e a mesma seiva. 16
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É suficiente indicar meu pensamento, não abusarei. Quando se está, tanto quanto
possível, informado sobre as origens, sobre o parentesco imediato e próximo de um escritor
eminente, um ponto essencial deve ser determinado, após o capítulo relativo a seus estudos e
sua educação; é o primeiro ambiente, o primeiro grupo de amigos e de contemporâneos em
que ele se encontrava no momento em que seu talento eclodiu, tomou corpo e tornou-se
adulto. O talento, com efeito, permanece marcado por isso, e, faça o que fizer em seguida, ele
sempre disso se ressente.
Entendamo-nos bem sobre esta palavra grupo, que me ocorre empregar de bom grado.
Eu defino grupo não como reunião fortuita e artificial de pessoas de espírito que se organizam
com um objetivo, mas como associação natural e como que espontânea de jovens espíritos e
de jovens talentos, não precisamente parecidos e da mesma família, mas da mesma revoada e
da mesma primavera, desabrochados sob o mesmo astro, e que se sentem nascidos, com as
variedades de gosto e vocação, para uma obra comum. Assim, a pequena sociedade de
Boileau, Racine, La Fontaine e Molière por volta de 1664, na abertura do grande século: aí
está o grupo por excelência, todos gênios! Assim, em 1802, na abertura do século XIX, a
reunião de Chateaubriand, Fontanes, 17 Joubert... 18 Esse grupo, considerando-se a qualidade
dos espíritos, não era nem muito medíocre, nem tampouco desprezível. Assim também, para
não nos restringirmos aos nossos exemplos domésticos, em Göttingen, em 1770, o grupo de
jovens estudantes e jovens poetas que publicam o Almanach des Muses, Bürger, 19 Voss,20
Hoelty, 21 Stolberg, 22 etc.; do mesmo modo, em 1800, em Edimburgo, o círculo crítico do qual
Jeffrey 23 é o líder, e do qual surge a célebre Revista presidida por ele. [...]
Deixo as aplicações para fazer no que é do nosso tempo. É bem conhecido o círculo
crítico do Globe em torno de 1827, o grupo inteiramente poético da Muse Française em 1824,
o Cénacle em 1828. Nenhum dos talentos, ainda jovens, que freqüentaram e viveram em um

15
Personagem da peça de Beaumarchais Le mariage de Figaro (1784).
16
Beaumarchais et son temps, Sr. de Loménie (ver tomo 1º, p. 36-52). (Nota do autor.)
17
Louis-Marcelin, marquês de Fontanes (1757-1821), político e poeta francês.
18
Joseph Joubert (1754-1824), moralista e ensaísta francês.
19
Gottfried August Bürger (1747-1794), poeta alemão.
20
Johann Heinrich Voss (1751-1826), poeta alemão.
21
Ludwig Christoph Heinrich Hoelty (1748-1776), poeta alemão.
22
Friedrich Leopold Graf zu Stolberg-Stolberg (1750-1819), poeta alemão.
23
Francis Jeffrey (1773-1850), crítico escocês.
5
desses grupos o fizeram impunemente. Digo, pois, que, para bem conhecer um talento,
convém determinar o primeiro centro poético ou crítico no seio do qual ele se formou, o grupo
natural literário ao qual pertence, bem como estabelecer exatamente suas relações com o
grupo. É a verdadeira data original dele.
Os indivíduos muito grandes passam sem grupos: são autocentrados, e reunimo-nos
em torno deles. Mas é o grupo, a associação, a aliança e a troca ativa de idéias, uma emulação
perpétua com seus iguais e pares, que dá ao homem de talento toda a sua projeção, todo o seu
desenvolvimento e todo o seu valor. Existem talentos que participam de vários grupos ao
mesmo tempo, e que não cessam de viajar através de meios sucessivos, aperfeiçoando-se,
transformando-se ou deformando-se. Importa então notar, até nessas variações e nessas
conversões lentas ou bruscas, a mola oculta e sempre igual, o impulso persistente.
Cada obra de um autor, vista, examinada desse modo, no seu contexto, após a
recolocarmos na sua moldura e a cercarmos de todas as circunstâncias que a viram nascer,
adquire todo o seu sentido — seu sentido histórico, seu sentido literário —, retoma seu justo
grau de originalidade, de novidade ou de imitação, e não se corre o risco, ao julgá-la, de
inventar falsas belezas e de admirar à distância, como é inevitável quando nos apoiamos na
pura retórica.
Sob esse nome de retórica, que não implica, a meu ver, um descrédito absoluto, estou
bem longe aliás de culpar e excluir os julgamentos de gosto, as impressões imediatas e vivas;
não renuncio a Quintiliano, 24 eu o circunscrevo. 25 Ser um discípulo de Bacon em história
literária e em crítica parece-me uma necessidade dos tempos, bem como uma excelente
condição primeira para julgar e fruir em seguida com mais segurança.
Um papel importante pertencerá sempre à crítica de primeira leitura e de primeira
vista, à crítica mundana, às formas demonstrativas, acadêmicas. Que ninguém se alarme
demais com esse ardor de conhecer a fundo e penetrar: há lugar e momento para empregá-lo e
também para suspendê-lo. Não iremos aplicar os procedimentos de laboratório nas
solenidades e diante de todos os públicos. As academias, as cátedras oratórias são
primordialmente destinadas a mostrar a sociedade e a literatura em seus aspectos especiosos e
pelo lado direito; não é indispensável, nem talvez mesmo muito útil, que aqueles que têm por
função mostrar e valorizar eloqüentemente os belos estofos e tapeçarias olhem-nos e os
conheçam demasiadamente pelo lado oculto e pelo avesso: isso os perturbaria.

24
Orador e retórico latino (35 – 95 d. C.).
25
“O conhecimento dos espíritos é o encanto da crítica; a manutenção das boas regras não é senão sua função e
utilidade última.” Joubert. (Nota do autor.)

6
No entanto, a análise tem seu tipo de emoção também, e poderia reivindicar sua
poesia, se não sua eloqüência. Quem não conheceu um talento senão tardiamente, e não o
apreciou senão na plenitude ou nas suas últimas obras; quem não o viu jovem, no seu
primeiro momento de brilho e de vôo, jamais fará dele uma idéia perfeita e natural, a única
viva. Vauvenargues, 26 desejando exprimir o encanto que tem para o talento um primeiro
sucesso e uma estréia feliz na juventude, disse com muita graça: “Os fogos da aurora não são
tão doces quanto os primeiros olhares da glória.” Da mesma forma, para o crítico que estuda
um talento, não há nada como surpreendê-lo no seu primeiro fogo, no seu primeiro impulso,
respirá-lo na sua hora matinal, na sua flor de alma e de juventude. O retrato visto na primeira
prova tem para o amador e para o homem de bom gosto um preço que nada, posteriormente,
pode produzir. Não sei de prazer mais doce para o crítico do que compreender e descrever um
jovem talento, no seu frescor, no que ele tem de franco e primitivo, antes de tudo o que poderá
nele misturar-se de adquirido e talvez de fabricado.
Hora primeira e fecunda da qual tudo data! Momento inefável! É entre os homens da
mesma idade e da mesma hora, ou de idade e hora aproximadas, que o talento de bom grado
escolhe, para o resto da sua carreira ou para o período mais longo, os companheiros, as
testemunhas, os êmulos, e também os rivais e os adversários. Cada um faz do outro o seu vis-
à-vis e o seu ponto de mira. Há dessas rivalidades, desafios e animosidades, entre iguais ou
quase iguais, que duram toda a vida. Mas, ainda que tivéssemos algum primado, não
desejaremos jamais que um homem da nossa geração caia e desapareça, mesmo que fosse um
rival e se passasse por inimigo: pois, se temos um valor verdadeiro, é ainda ele que, segundo a
necessidade e a ocasião, advertirá as novas gerações ignorantes e os jovens insolentes para
que vejam em nós um velho atleta que não se deve menosprezar e nem de modo algum tratar
com ligeireza; seu amor-próprio está interessado nisso: ele se mediu conosco nos bons
tempos, conheceu-nos em nossos melhores dias. Revestirei meu pensamento de nomes
ilustres. É ainda Cícero quem presta as mais nobres homenagens a Hortênsio. 27 Uma palavra
de Esquines 28 permaneceu como o mais belo elogio de Demóstenes. 29 E o herói grego
Diomedes, 30 falando de Enéias 31 em Virgílio, e desejando dar dele uma idéia elevada, diz:
“Creiam naquele que se mediu com ele!”

26
Luc de Clapiers, marquês de Vauvenargues (1715-1747), ensaísta e moralista francês.
27
Orador latino (114-50 a. C.).
28
Orador ateniense (390-314 a. C.).
29
Orador ateniense (384-322 a. C.).
30
Herói mitológico, feito personagem da Eneida, de Virgílio (70-19 a. C.).
31
Herói mitológico, feito personagem da Eneida, de Virgílio (70-19 a. C.).

7
Nada julga melhor um espírito por sua grandeza e grau de elevação do que ver que
antagonista e que rival ele escolheu desde o início. Um é a medida do outro. Calpe é igual a
Ábila. 32
Não importa somente compreender bem um talento no momento da tentativa e do
primeiro brilho, quando ele aparece totalmente formado e mais que adolescente, quando se faz
adulto; há um segundo tempo a ser observado, não menos decisivo, se queremos abrangê-lo
como um todo: é o momento em que ele se deteriora, se corrompe, decai, se desvia. Ainda que
se tomem as palavras menos chocantes, as mais doces que se queira, a coisa acontece com
quase todos. Suprimo os exemplos; mas existe, na maioria das vidas literárias que nos são
submetidas, um determinado momento em que falta a maturidade que se esperava, ou então,
se alcançada, ela se ultrapassa, e em que o próprio excesso de qualidade torna-se o defeito;
quando uns se enrijecem e secam, outros relaxam e se entregam, outros se tornam insensíveis,
ficam pesados, alguns se tornam amargos; quando o sorriso se transforma numa ruga. Após o
primeiro momento em que o talento, no seu florescer brilhante, se faz homem e jovem radioso
e soberbo, é necessário assinalar bem esse segundo e triste momento, quando ele se deforma e
se transforma em outro, ao envelhecer.
Uma das maneiras mais comuns de se elogiar, em nosso tempo, é dizer a quem
envelhece: “Nunca seu talento foi tão jovem.” Não se escutem demais esses bajuladores;
sempre chega um momento em que a idade interior se trai no exterior. No entanto, a propósito
disso — é preciso reconhecer — existe grande diversidade entre os talentos e segundo os
gêneros. Em poesia, no teatro, exatamente como na guerra, uns não têm senão um dia, uma
hora brilhante, uma vitória que permanece ligada ao seu nome, ao qual o resto não
corresponde: é como Augereau, 33 que melhor teria feito se tivesse morrido na noite de
Castiglione. 34 Outros têm bastante sucesso, que varia e se renova com as estações do ano.
Quinze anos em geral fazem uma carreira; a alguns é dado dobrarem-na, recomeçarem ou
mesmo completarem uma segunda. Há gêneros moderados para os quais a velhice é
especialmente própria, as memórias, as lembranças, a crítica, uma poesia que resvala a prosa;
se a velhice é sábia, ela se apegará a isso. Sem tomar muito ao pé da letra o preceito Solve

32
Calpe e Ábila: nomes antigos respectivamente de Gibraltar (hoje, enclave colonial britânico, situado no
extremo sul da Espanha) e Ceuta (hoje, enclave espanhol, localizado no extremo norte do Marrocos), cidades
fronteiras separadas pelo estreito de Gibraltar, limite entre o Atlântico e o Mediterrâneo.
33
Soldado de Napoleão que se distinguiu na batalha de Castiglione; de volta a Paris, participou do golpe de
Estado do Diretório, e mais tarde, em 1814, foi um dos primeiros a aliar-se a Luís XVIII.
34
Povoado da Itália onde Napoleão venceu os austríacos, numa batalha travada em 1796.

8
senescentem, 35 sem propriamente recolher o cavalo à cocheira, o que só deve fazer o mais
tarde possível, a velhice o conduzirá suavemente pelo cabresto na descida: isso não deixa de
ser digno. Vimos, como exceção, espíritos, talentos por muito tempo incompletos ou
desorientados que parecem valer mais na velhice e que jamais estiveram tão bem, como
aquele amável Voltaire suíço, Bonstetten, 36 como Ducis, 37 aquela fração de gênio. Esses
exemplos, porém, não constituem a regra.
Não saberíamos lidar com muitos meios e com muitos elementos de modo a conhecer
um homem, isto é, algo distinto de um puro espírito. Enquanto não recorremos sobre um autor
a certas perguntas, e enquanto não as temos respondidas, ainda que só para nós mesmos e em
surdina, não estamos seguros de apreendê-lo por inteiro, mesmo que tais perguntas pareçam
as mais estranhas à natureza de seus escritos: — O que pensava ele sobre religião? — Como
se sentia afetado pelo espetáculo da natureza? — Como se comportava com relação a
mulheres? Com relação a dinheiro? — Era rico, ou era pobre? — Qual era seu sistema, qual
era sua maneira cotidiana de viver? — Enfim, qual era seu vício ou seu fraco? Todo homem
tem um. Nenhuma das respostas a essas perguntas é impertinente para julgar o autor de um
livro e o próprio livro, se esse livro não é um tratado de geometria pura, se é sobretudo uma
obra literária, onde o autor entra plenamente.
Com muita freqüência, um autor, ao escrever, se lança no excesso ou na afetação
oposta ao seu vício, à sua inclinação secreta, para a dissimular ou a encobrir; mas isso é ainda
um efeito sensível e reconhecível, embora indireto e mascarado. É muito fácil tomar o avesso
em tudo; não se faz mais do que revirar o próprio defeito. Nada se parece mais com uma
depressão do que uma eminência.
O que há de mais comum em público do que professar e ostentar todos os sentimentos
nobres, generosos, elevados, desinteressados, cristãos, filantrópicos? Quer dizer que vou
tomar ao pé da letra e louvar por sua generosidade, como vejo que se faz todos os dias, as
plumas de cisne ou as línguas douradas que me prodigalizam e me tributam essas maravilhas
morais e sonoras? Escuto, e não me emociono. Não sei que fasto ou que frieza me adverte; a
sinceridade não se faz sentir. Eles têm talentos de reis, concordo; mas lá em cima, em vez
daquelas almas plenas e inteiras, como queria Montaigne, será minha culpa se ouço raciocinar

35
Passagem de Horácio (65-8 a. C.) (Epístolas, 1, 1, 8-9); literalmente, tendo em conta a continuação da frase,
“desatrele o cavalo que envelhece.” Tomado como preceito, exorta o indivíduo a renunciar a ofício para o qual
se sinta velho, a fim de que possa assumir outro compatível com sua condição.
36
Karl Victor Von Bonstetten, ou Charles Victor de Bonstetten (1745-1832), escritor suíço.
37
Jean-François Ducis (1733-1816), dramaturgo francês.

9
almas vãs? — Vocês bem o sabem, vocês que, ao escreverem, dizem polidamente o contrário;
e quando falamos deles entre nós, vocês pensam exatamente como eu.
Não evitamos certas palavras numa definição exata dos espíritos e dos talentos;
mesmo dando voltas, querendo contornar, perifrasear, as palavras que eliminamos e que os
nomeiam retornam sempre. Este, ainda que seja excelente ou especioso em diversos gêneros,
é e permanecerá sempre um retórico. Aquele, ainda que queira arrebatar ou pintar, guardará
sempre algo da cátedra, da escola e do professor. Aquele outro, poeta, historiador, orador, seja
qual for a forma brilhante ou encantada de que se revista, nunca será mais do que aquilo que a
natureza o fez ao criá-lo, um improvisador de gênio. Essas designações verdadeiras e
necessárias, essas qualificações decisivas não são, entretanto, sempre fáceis de se encontrar, e
muito freqüentemente não se apresentam senão em um momento avançado do estudo.
Chateaubriand definiu-se um dia aos meus olhos como “um epicurista que tinha a imaginação
católica”, e não creio ter-me enganado. Esforcemo-nos por encontrar esse nome característico
de cada autor, e que ele traz gravado metade na fronte, metade no coração, mas não nos
apressemos em atribuir-lhe tal designação.
Assim como podemos mudar de opinião várias vezes na vida, embora mantendo o
mesmo caráter, também podemos mudar de gênero sem modificar essencialmente o processo.
A maior parte dos talentos não têm senão um único e mesmo procedimento, que não fazem
senão transpor, ao mudarem de tema e mesmo de gênero. Os espíritos superiores têm em geral
um selo que assinala os outros, como um molde que se aplica indiferentemente e se repete.
Pode-se até certo ponto estudar os talentos na sua posteridade moral, nos seus
discípulos e admiradores naturais. É um derradeiro meio de observação fácil e cômodo. As
afinidades se declaram livremente ou se traem. O gênio é um rei que cria seu povo. Aplique
isso a Lamartine, a Hugo, a Michelet, 38 a Balzac, a Musset. Os admiradores entusiastas são
um pouco cúmplices: adoram-se a si mesmos, com suas próprias qualidades e defeitos, no seu
grande representante. Diga-me quem te admira e quem te ama, e te direi quem és. Mas
importa discernir para cada autor célebre o seu verdadeiro público natural, e separar esse
núcleo original, que leva a marca do mestre, do público banal e da multidão de admiradores
vulgares que vão repetindo o que diz o vizinho.
É sempre curioso acompanhar os discípulos que ao escreverem imitam o gênero e o
gosto do seu modelo, e que, a seu modo e por sua vez, projetam luz sobre ele. O discípulo, em
geral, caricatura ou parodia o mestre sem desconfiar disso: nas escolas elegantes, ele o

38
Jules Michelet (1798-1874), filósofo e historiador francês.

10
enfraquece; nas escolas pitorescas e rústicas, ele o força, acusa-lhe os excesso e o exagera: é
um espelho que aumenta. Há dias em que, estando o discípulo caloroso e sincero, nos
enganaríamos de verdade, e seríamos tentados a gritar, parodiando o antigo epigrama: “Ó,
Chateaubriand! Ó, Salvandy! 39 Qual dos dois imitou o outro?” Mude os nomes, e coloque
outros mais modernos, se quiser: o epigrama é eterno.
Quando o mestre negligencia e quando o discípulo se cuida e se endominga, eles se
parecem; os dias em que Chateaubriand se sai mal, e em que Marchangy 40 dá o melhor de si,
um apresenta um falso ar do outro; à distância, por trás, e à luz do luar, isso induz a enganos.
Nem todos os discípulos são necessariamente cópias e contrafações; nem todos são
comprometedores: há aqueles que, ao contrário, consolidam e parecem feitos deliberadamente
para caucionar o mestre. Não foi assim que o Sr. Littré 41 elucidou e aperfeiçoou Auguste
Comte? Conheço, mesmo na literatura propriamente dita, admiradores e discípulos de tal ou
qual talento temerário que me advertem a seu respeito, e que me ensinam a respeitar aquele
que, sem eles, eu teria talvez tratado com mais superficialidade.
Se é justo julgar um talento através de seus amigos e seguidores naturais, não é menos
legítimo julgá-lo e contra-julgá-lo (pois isso, com efeito, constitui bem uma contra-prova)
através dos inimigos que ele suscita e atrai sem o querer, por seus contrários e aqueles que lhe
são antipáticos, por aqueles que não o podem instintivamente tolerar. Nada serve melhor para
marcar os limites de um talento, para circunscrever-lhe a esfera e o domínio, do que saber os
pontos exatos onde a revolta contra ele começa. Mesmo isso, no detalhe, torna-se instigante
observar; às vezes, nas letras, detestamo-nos durante toda a vida sem jamais nos termos visto.
O antagonismo das famílias de espíritos acaba assim por desenhar-se. O que vocês querem?
Está no sangue, no temperamento, nos primeiros pressupostos que freqüentemente não
dependiam de vocês. Quando não é a baixa inveja, são os ódios de raça. Como querem vocês
obrigar Boileau a aprovar Quinault? 42 E Fontenelle 43 a estimar enormemente Boileau? E
Joseph de Maistre 44 ou Montalembert 45 a amar Voltaire?
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39
Narcisse Achille de Salvandy (1795-1856), político e escritor francês.
40
Louis-Antoine-François de Marchangy (1782-1826), escritor francês.
41
Émile Maximilien Paul Littré (1801-1881), lexicógrafo e filósofo francês.
42
Philippe Quinault (1635-1688), poeta e dramaturgo francês.
43
Bernard Le Bouyer (ou Le Bovier) de Fontenelle (1657-1757), escritor francês.
44
Joseph-Marie de Maistre (1753-1821), político, filósofo e escritor nascido na Savóia, Reino da Sardenha,
nacionalizado francês por outorga de Napoleão.
45
Charles Forbes René, conde de Montalembert (1810-1870), jornalista, historiador e político francês.

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