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Tassilo Orpheu Spalding

DICIONÁRIO DE MITOLOGIA

INTRODUÇÃO

Quae primum es humo excitatos celssl et


erectos constituit. ut deorum cognitionem,
caelum intuentes, capere posrint. Sunt
enim in terra homines non ut incolae atque
habitatores. sed quasi spectatores
superarum rerum atque caelestium,
quarum spectaculum ad nullum aliud
genus animantium pertinet.
"A natureza, em primeiro lugar, fez de nós
seres que, em lugar de ficarem inclinados
para a terra, são altos e erectos a fim de
que possam, ao olhar o céu, tomar
conhecimento dos deuses. Pois os homens
estão na terra não como moradores ou
habitantes, mas como espectadores das
coisas supraterrestres e celestes,
espetáculo que não é para nenhuma outra
espécie animal."
(Cícero. De natura deorum, II, LVI).
I - A Mitologia não é somente um tecido de lendas mara-
vilhosas.
A par de seu carácter simbólico, tão exagerado nos fins do
século passado, acresce o factor histórico-psicológico que dá aos
mitos feição tipicamente etnográfica. De feito, às vezes, o
mesmo relato, em duas civilizações diferentes, difere de tal
modo, graças aos elementos étnicos, que, à primeira vista, não
se percebem as similitudes e o fundo comum de onde promana.
É erro grave considerar, como o fizeram distintos
mitógrafos do século passado, a Mitologia um acervo de lendas
que só podem ser estudadas e analisadas sob o critério da
comparação. Segundo meu parecer, a noção mais importante
que deriva da comparação das várias mitologias, é a identidade
de princípio em que se sustentam. Com efeito, oferecem
semelhanças tão palpáveis quanto ao fundo, que,
necessariamente se chega à conclusão de que houve,
originalmente, um tema único que serviu de base a esses mitos,
nos quais, depois, o f!.ênio próprio de cada povo imprimiu
caráter distinto..
Destarte, o método comparativo perde sua eficácia, ao
menos ],'ara o leitor comum, que pouco interesse encontra em
saber qual e a variante dó mito de Dérceto no Egipto ou em
Roma.
.As outrora famosas teorias acerca da génese e evolução
dos mitos, de Birch, Bu11sen, Deveria, Gladstone, Gubernatis,
Ménard, M:uller, Piazzi Smith e Rosenberg já hoje ninguém as
leva a sério, aInda que em muitas delas sempre haja algo de
aproveitável.
Muito mais apaixonante é o problema que se refere à
origem comum dos vários mitos. I? opinião aceita pelos mais
distintos mitógrafos que as lendas, na sua origem, se reduziam a
poucos eventos; esses, com o correr dos séculos e segundo as
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várias concepções dos diversos povos entre os quais se
difundiram, assumiram feição particular e determinada.
Outros, mais radicais, postulam uma única origem comum
para os mitos; um tema cínico, que teria se dissociado em várias
interpretações. Esses autores já caíram em descrédito. Mas o
assunto tem despertado grande controvérsia, e longe está de ser
pacífico. Basta dizer que ainda hodiernamente há autores que
seguem as opiniões de Evêmero, o assim chamado evemerismo,
para o qual os deuses nada mais eram que homens postos no rol
das divindades após sua morte.
Outros mitólogos, porém, apegados aos velhos métodos do
"simbolismo mitológico", em tudo querem ver claras alusões a
fatos que por sua própria natureza escapavam à compreensão do
homem primitivo. Para esses os Titãs que tentaram escalar o
Olimpo representariam as nuvens impelidas pelo vento; Vulcano
seria o símbolo do descobrimento do fogo; ApoIo, vencedor da
serpente Pitão, caracterizaria a luz solar destruindo os miasmas
pestilenciais acumulados pelo dilúvio e os monstros engen-
drados nas águas paIudosas; os Dioscuros, Castor e Pólux,
expressariam os dois crepúsculos, o matutino e o vespertino; os
Centauros seriam os cavalos celestes ou os raios do Sol... Nesse
andar, em pouco chegaríamos a concluir que Chapeuzinho Ver-
melho é a Aurora, e o Lobo que a quer devorar não é outro
senão o Sol; o Pequeno Polegar se apresentaria como um avatar
de Vixenu, ao passo que Afrodite, Astarte, Vênus ou lstar
teriam, em linguagem freudiana, o nome pouco estético de
libido...
Não é por menos que espíritos galhofeiros e maliciosos,
em vista dessa "obsessão pela si~nbologia", não se vexaram em
concluir que Napoleão jamais existiu. O imperador seria o Sol,
seus doze marechais representariam os doze meses do ano e a
campanha da Rússia nada mais significava que uma formosa
alegoria da eterna luta do astro da luz contra o inverno, que
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acaba por triunfar e o obriga a retirar-se.
É muito lógico e de acordo com os dados da ciência (Reli-
gião comparada, História, Arqueolof,ia, Antropologia,
Etnografia etc.), acreditar que os mitos fundamentais, de caráter
cosmogônico, ao menos, na sua origem procedam de fonte
comum. Seria, portanto, um tema comum a todos os povos
primitivos, o qual, depois, se diversificou conforme as várias
tendências especificas de cada povo.
De que inspiração nasceu esse tema originário? Terá sido
um jogo de imaginação dos primitivos rapsodos orientais? Ou,
talvez, elucubrações de filósofos anónimos? Ou, quem sabe,
fruto do naturalismo panteísta da Índia? Ou, finalmente, o
profundo simbolismo do Egipto levado à Ásia ariana através de
seus colonos? Não Q sabemos: Ignoramus et ignorabimus.
II- As várias mitologias contidas na presente obra obede-
cem a dois critérios distintos lia Slla exposição e que se com-
pleta~~l: são populares e, ao mesmo tempo, completas.
Populares nesse se~tlido de que se destinam não a especialistas,
de modo precípuo, mas a todo o público ledor, àqueles
consulentes comuns, àqueles que desejam resolver uma
dificuldade ou uma dúvida, àqueles por fim, que se sentem
atraídos pelas antigas civilizações. Não entrei em pormenores e
minúcias. Antes de enumerar as várias personagens míticas, dei
um esquema geral da respectiva mitologia, a começar pelos
elementos objectivos da localização topográfica, os temas g!?
rais, as concepções teogônicas e as grandes linhas do
pensamento filosófico, quando este existe, que informa~~l todo
o sistema mitológico.
Em alguns casos fiquei nessa primeira parte somente: não
dei, em forma dicionarizada, as diversas personagens, porque
tudo que delas tinha que dizer, foi exarado na apreciação geral
da respectiva t~Iitologia. As linhas mestras, os mitos

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fundamentais da mitologia em questão, por si sós completam o
quadro mitológico e são suficientes para dar ao leitor ou ao
consulente a informação desejada.
Em outros casos trata-se de mitologias ainda vivas e em
pleno desenvolvimento; é o caso, p. ex., da riquissima mitologia
i~ldiana. Procurei, então, sempre que possível, salientar o
carácter pragmatista dessa admirável mitologia, que, ainda hoje,
forma a concepção religiosa de muitos trilhões de almas.
Outros sistemas mitológicos, como o eslavo, ligam-se
intimamente ao folclore, e esse pormenor procurei acentuar nos
verbetes.
Nos casos discutíveis, evitei cuidadosamente reproduzir as
diversas teses que surgiram no decorrer dos séculos, ainda que
salientasse o objecto da divergência ou da discussão /I o carácter
polémico do mito ou personagem mítica; em assim procedendo,
procurei não apenas alertar o leitor mas também não o deixar na
ignorância nem o induzir em erro, já que ele poderia concluir
que o assunto fosse pacifico e incontroverso.
Tive o máximo empenho em ser completo; eliminei o
supérfluo, mas o essencial, sem dúvida, esta presente nas
páginas que se hão de ler. Se não obedecesse a tal critério, a
presente obra teria talvez o dobro do volume que ora apresenta e
fugiria ao plano de uma obra de leitura e de consulta, cuja
característica essencial é se dirigir ao leitor com~im -não aos
especialistas, para os quais há obras especializadas. E evidente
que nessa selecção do que é essencial e acessório, segui o meu
próprio critério subjectivo e. não ouso afirmar que seja ele o
melhor. Aos sabedores deixo o encargo de julgarem se tive ou
não êxito, e, convencido de erro, não me furtarei a futuras
correcções, se assim a Deus aprouver.
Para algumas mitologias não há quase obras
especializadas e completas; é o caso, entre outras, da dos hititas.
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Nesse particular, procurei dar uma visão de conjunto e expor os
fatos tais como hoje a nós se apresentam; é. evidente que a
hititologia, sendo ciência nova, apresenta-se como um
amdlgama ainda incompleto e sujeito a futuras revisões.
Destarte, alguns conceitos exarados na presente obra, a respeito
da mitologia hitita, poderão, no futuro, sofrer alterações, já que a
última palavra a respeito das concepções religiosas desse antigo
povo ainda não foi dita.
III -Quanto aos 1!Omes próprios, cingi-me ao uso mais
comum. A presente obra não é polêmica; não tenho a pretensão
de resolver um problema que perdura há tanto tempo. Limi. tei-
me, portanto, a verificar o uso mais constante; a forma que me
pareceu mais usual, a essa dei preferência. Há (llguns nomes que
já foram aportuguesados, outros não. Nesse particular considero
o uso como a única norma admissivel, senhor absoluto, legítimo
e regular -si volet usus quem penes arbitrium est et jus et norma
loquendi..; (Horácio, Ars Poetica, 71, 72). Cuidei, porém, para
que houvesse uniformidade.
IV -Quero, também, chamar a atenção do leitor para a
Bibliografia, tanto geral como particular. Ela tem caráter, preci-
puamente, normativo; servirá de guia para aqueles que desejem
aprofundar mais seu conhecimento no assunto, ou quiserem
verificar as próprias fontes.
É óbvio que a Bibliografia não é completa, mas selectiva e
pessoal; deixei fora, por exemplo, algumas obras que consultei e
que são assaz interessantes, ao passo que inclui outras, de
carácter mais geral, que por muitos, talvez, serão consideradas
inúteis. Assim é que não menciono o famoso Hitopadeça ("
Instrução Vtii"), do qual muito me servi, coletânea de fábulas e
apólogos destinada à educação das crianças indianas, obra de
difícil aquisição aqui 110 Brasil. O critério que nessa seleção
procurei seguir foi o da utilidade, considerando-se que este
Dicionário, como já foi acentuado, antes de tudo é popular e não
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especificamente para especialistas; por isto, qual razão
justificaria a inclusão na Bibliografia de obras muito
interessantes mas que são, estritamente, de polêmica? Por outro
lado, por que catalogar na Bibliografia obras que em nada
elucidam o assunto, pois tratam apenas de questões, para o
consulente, sem o mínimo interesse: como antropónimos,
questões de Direito, enumerações meramente literárias ou de
aspecto puramente histórico?
Outras obras há, de imenso valor para o especialista, que
se referem apenas a mitos locais, sem ressonância nenhuma.
Tratam outras de versões diferentes ou antagónicas de uma
mesma lenda.
Do exposto se deduz que não é fácil relacionar uma
Bibliografia que atenda aos interesses do consulente curioso ou
daquele que procura avidamente aumentar e aprofundar seus
conhecimentos mitológicos.
V - Busquei seguir, na presente obra, o método empregado
por Grimal na feitura da monumental Mythologies de la
Méditerranée au Gange e Mythologies des montagnes, des
forêts et des iles, Paris, 1963 -, admirável síntese da evolução
religiosa dos povos através de todas as idades.
Omiti apenas a sua constante preocupação em investigar a
origem dos mitos, e a tendência irresistivel liue o leva a tentar
diversas interpretações da "evolução mítica', cujas conclusões
nem sempre 1Jze atreveria a subscrever.
Finalmente, espero que o presente Dicionário das
Mitologias
Européias e Orientais atenda às finalidades para as quais
foi composto,' isto é, fazer conhecidas as inllmeras mitologias
antigas (pelas quais, hodiernamente, se observa grande
interesse), dirimir dúvidas, esclarecer dificuldades -e oferecer ao
público culto e desejoso de conhecer as antigas tradições
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religiosas, um guia seguro e prático.

T. O. S.

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MITOLOGIA EGÍPCIA

ORIGEM E EVOLUÇÃO DAS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS


NO EGIPTO

Afirmou Heródoto (11, 37), numa passagem célebre, que


os egípcios eram os homens mais religiosos do mundo. O
historiador grego tinha razão. Ainda hoje, o vale do Nilo é
testemunho eloquente de que o Egipto, acima de tudo, se
preocupava com seus deuses e com o culto dos mortos.
Até bem pouco tempo tínhamos ideias erróneas acerca de
algumas divindades egípcias; as últimas escavações e
descobertas esclareceram muitas dúvidas e rectificaram vários
erros. Alguns fatos, porém, permanecem obscuros, e isto, em
parte, se deve à natureza da mitologia egípcia. De fato, ainda
que todos os habitantes do vale do Nilo obedecessem às mesmas
concepções fundamentais e tivessem uma certa unidade
psicológica e religiosa, contudo, os teólogos egípcios jamais se
preocuparam em agrupar as numerosas crenças locais que
proliferavam ao longo do Nilo num sistema racional. Muito
menos ainda cogitaram em elaborar um corpo de doutrinas
destinado ao pãís todo. As concepções mitológicas variavam
segundo os lugares e, em certa medida, conforme as épocas. Na
realidade, a mitologia egípcia compõe-se de. várias mitologias
locais. Contudo, nesse amálgama de crenças, eXIste um
princípio de unidade e este se funda na organização unitária do
culto rendido aos deuses locais.
Segundo os egípcios, o Faraó, na qualidade de filho dos
deuses, era o encarregado de assegurar o culto regular e
tradicional do país.. Destarte, a religião egípcia se fundava não
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em dogmas que deviam ser obedecidos, mas num culto que se
devia praticar. .!'las mais remotas épocas - aceitam os
egiptólogos - aquela região que mais tarde se chamaria Egipto,
estava dividida em principados de absoluta autonomia, cada um
sob a tutela de um deus particular. Foi nessas longínquas eras
que se formaram os numerosos cultos locais que haveriam de
permanecer, não obstante as convulsões sociais e políticas e as
graves crises religiosas. As províncias ou nomes do Egipto
faraónico guardarão mais tarde a lembrança desse antigo estado
de coisas. Naquelas épocas recuadas, .&S deuses receberam a
fisionoroia particular que os egípcios as Idades posteriores
haveriam de conservar.
Alguns deuses, desde o início, receberam tipo humano. ~ o
ca~?, por exemplo, de Min, deus de Capto, de Atu~, de Helió-
rnoa~s, de Ftá (ou Ptá), de Menfis, de Osíns, Busíns e outros
qu~f' Alguns se manifestavam sob forma de plantas, fetiches ou
quer outro símbolo, como um pilar, obelisco etc. Em geral,
porém, os deuses se mostravam sob forma de animais; o animal
era considerado a alma (ba) do deus. Essa predileção pela zoola-
tria, que tanto impressionou os gregos (povo por excelência
antropomorfista) é explica da de diversas maneiras pelos
etnólogos. Os gregos a justificaram com grande simplicidade:
Quando foi da guerra dos Gigantes contra os deuses do Olimpo,
estes, atemorizados, esconderam-se no Egipto, onde assumiram
a fonua de animais, a fim de fugir à sanha dos temíveis
inimigos.
Sem dúvida a zoolatria corresponde a concepções
primitivas assaz difundidas entre os povos mais antigos; no
começo Os animais eram temidos por causa da ferocidade ou
dos danos que ocasionavam, ou amados em virtude de
qualidades extremamente úteis ao homem; esses sentimentos de
respeitoso temor e de gratidão trouxeram como conclusão
prática a veneração. Anúbis, antigo deus funerário, era
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representado como um canídeo; Sobec, deus especialmente
venerado em Faium, como crocodilo, Horo, o deus do céu, como
falcão, Tot, deus lunar e patrono da Escrita e da Ciência, ora era
figurado como Um íbis de longo bico ora como um cinocéfalo;
Hator, uma das principais personagens do panteão egípcio,
assumia a forma da vaca; Bastet ou Ubastet, a do gato. É lícito,
pois, afirmar-se que, ao menos ocasionalmente, a maior parte
dos deuses teve seu equivalente teromórfico. Aliás, essa
manifestação zoomorfa não permaneceu pura"mente teórica; é
provável que os egípcios das idades mais recuadas con-
servassem um espécime de cada variedade animal, considerada
como sagrada, em reclusão, como as serpentes, por exemplo,
que se criavam no templo de Esculápio em Epidauro. Esse
costume explicaria a existência de necrópoles de crocodilos, de
gatos e de Iois. Sabemos, outrossim, que em Mênfis, Heliópolis
e Hermôntis, numa das dependências do templo criava-se o
touro sagrado, "a alma viva" do deus local. As escavações
revelaram que no Serapeu de Mênfis alinhavam-se, ao longo de
profundas galerias, os sarcófagos dos Apis, sepultados com
honras divinas, dos quais os mais antigos remontam à XIX
dinastia.
Por outro lado, é certo que muito cedo os egípcios
começaram a antropomorfizar seus deuses, dando-lhes
comportamento e personalidade humanos. Mais comumente
adoptaram forma híbrida: Os deuses passaram a ser
representados Com corpo humano e cabeça de animal.
As divindades egípcias habitavam suntuosos templos,
como os reis os palácios; daí a característica especial desses
gigantescos templos, com dependências, oficinas, jardins etc. No
santuário propriamente dito, ficava o deus, realmente presente
sob a forma de um ídolo. O deus era tratado como personagem
de elevada posição social, como um rei ou príncipe. Diariamente
executavam-se os ritos solenes: Purificações, oferendas,
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recitação de fórmulas e de hinos etc., Nos dias festivos os ritos
diários comporiavam cerimónias mais solenes e a liturgia
salientava o carácter particular da festividade. Havia, às vezes,
procissões. Os sacerdotes transportavam a imagem do deus, das
capelas (naos) pa.ra as praças públicas, através das principais
ruas da cidade; havIa, então, festejos e grande regozijo popular.
Segundo as concepções egípcias, o rei era o sacerdote por
excelência, ou melhor, o executor nato dos ritos religiosos, já
que ele mesmo era de essência quase divina. Inúmeros relevos
descobertos no curso das escavações representam o rei no
exercício das sagradas funções de oferecer sacrifícios ou
oferendas aos deuses. Acreditam os .egiptólogos, contudo, que o
rei delegava seus poderes ao sumo-sacerdote de cada templo, o
qual tinha sob suas ordens um clero regular. A hierarquia
sacerdotal, perfeitamente organizada, parece que tomou
verdadeiro incremento no curso do Novo Império.
O rei era o protector natural dos templos. Ele os edificava,
restaurava, embelezava e assegurava aos erários sagrados gene-
rosas oferendas. O templo do deus tutelar da dinastia era sempre
o mais rico e mais sumptuoso.

FAMÍLIAS DIVINAS - MITOS


Cada deus local era concebido como o criador do mundo.
Seu nascimento situava-se no começo dos tempos; tentavam,
destarte, não somente explicar a cosmogonia mas também o
papel principal do deus.Ao lado deste, principal, evolviam
outras
divindades secundárias, que, ocasionalmente, poderiam
também se tomar principais; criava-se, então, a família divina,
ou mais exactamente, o cortejo ou a corte divina, cujos membros
interferiam na Criação e na organização do Mundo.

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Essas famílias divinas correspondiam aos agrupamentos
sociais mais simples: O deus pai, a deusa mãe e o deus filho. É a
triade. A triade de Mênfis compreendia Ftá, o deus principal,
Secmet, ,a deusa com cabeça de leoa e Nefértum o jovem deus
que trazia na cabeça a flor de lótus. A tríade tebana, por sua vez,
compunha-se de Amon, Mut e o filho, Conso.
Antes de expor os principais mitos egípcios, é conveniente
assinalar que raramente eles nos foram transmitidos sob forma
completa e coerente; para reconstituí-los se faz mister recolher
nos textos religiosos e mágicos alusões que nos permitam com-
preender não somente a génese do mito mas também sua evolu-
ção e implicação em outros mitos. Estes, como todas as narrati-
vas orais, sofrem mutações no decorrer das gerações; alguns tra-
ços, logo se percebe, datam da sua composição primitiva;
outros, porém.. parecem ter sido tirados de mitos vizinhos ou
mesmo inteiramente diferentes.
Entre as lendas do Egipto antigo, inúmeras assumiram
significação de verdadeiros sistemas cosmogónicos e teológicos;
gozaram de grande popularidade esses sistemas e os deuses que
neles representavam os principais papéis logo se tomaram
famosos e granjearam grande prestígio.
Um deus pode dever sua popularidade e seu prestígio à
essência mesma do princípio que representa. É o caso, em
particular, das divindades cósmicas. Entre todos os povos
politeístas, o Sol desempenhou, sempre, um papel importante, se
não o mais importante, por causa da sua própria natureza de
astro do dia, vivificador e alimentador da Vida.
Mas a popularidade de uma divindade poderá, também, re-
sultar de acções benfazejas em relação ao homem. Assim, todos
os deuses da Fecundidade, que são, ao mesmo tempo, deuses
agrários e deusas-mães, gozaram de excepcional favor popular.
Outras divindades, por sua vez, devem seu prestígio a acon-

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tecimentos políticos. No Egipto, onde a realeza sempre foi a
base da estrutura social, política e religiosa do país, o deus da
Residência tornou-se de imediato o deus dinástico e teve
oportunidade de ocupar a primeira plana na hierarquia divina.
Daí a observação de Drioton: "O deus do rei tem a tendência de
se tornar o rei dos deuses". Destarte Ftá (ou Ptá), honrado em
Menfis, tornou-se deus importante sob o Antigo Império e, mais
tarde, quando a capital se transferiu para Tebas, Amon elevou-se
ao grau de rei dos deuses.

O SISTEMA HELIOPOLITANO
A cidade de Heliópolis ("Cidade de Hélios", isto é, o Sol)
situa-se não longe da ponta do Delta, ao nordeste do Cairo, perto
do deserto. Seu nome egípcio era On.Muito cedo tornou-se
importante centro religioso. Nessa cidade, em época difícil de
ser precisada, mas que sem dúvida deve ser anterior à da III
dinastia, desenvolveu-se um sistema teológico no qual o deus
local, Atum, desempenhou papel primordial.
Conforme esse sistema, existia, na origem, o oceano ou
magma informe, a água primordial, o caos chamado Nun. Nesse
caos, desde toda a eternidade, existia um princípio consciente, o
deus Atum, palavra que significa "o Completo" ou "o Total".
Desse deus ia nascer uma linhagem divina, da qual cada geração
representaria um aspecto ou um elemento do Universo. Atum
recebeu a vida da sua própria essência e não recebeu nada
de ninguém; é fecundo por si só e capaz de engendrar todos os
seres. Suscitou, sem a interferência de elemento feminino, o
sémen do qual nasceu o primeiro par divino, Shu e Tefnut. Shu
personifica o ar, o vazio, mas, por outra parte, o ar vital,
enquanto sua companheira, Tefnut, parece representar a
humidade que existe na atmosfera. Desse primeiro par nasce
outro, Gebeb, o deus-Terra, e Nut, a deusa-Céu. De passagem
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assinalemos que os egípcios fazem da Terra um princípio
masculino e do céu um princípio feminino. De Gebeb e de Nut
nasceram dois pares, Osíris !sis e Set Néftis, deuses
complementares, ainda que em parte antagónicos; parece que
representam a passagem da ordem cosmológica para a ordem
terrestre. Os deuses que figura~ nesse sistema são nove e daí
provém o nome enéade (pes~dlet).
O sistema da enéade heliopolitana, invenção pueril dos
teólogos a fim de explicarem a origem do mundo, gozou de tal
prestígio que, mais tarde, foi introduzi da artificialmente em
outros centros de culto. Para o adaptar às condições locais, foi
suficiente assimilar Atum, o chefe da linhagem, ao deus
principal do lugar. Assim, sem dúvida, se apresentava a doutrina
da enéade na sua origem. Mas, tão alto quanto nos permitem os
textos r~mon~ar, encontramos o sistema heliopolitano
transformado e ennquecldo com novos elementos de origem
solar. Bem cedo Atum se associou, ao menos em parte, ao deus
cósmico Ré (ou Rá), cujo nome significa simplesmente o Sol;
associou-se, igualmente, ao deus-falcão Horo sob a forma de
Haracti, "Horo do Honzonte".
Horo é uma das figuras mais notáveis do panteão egípcio.
Como deus solar e celeste, seu papel cósmico revelou-se muito
cedo. Impressionados pelo voo poderoso do falcão, os habitantes
do vale do Nilo viram em Horo o deus que personifica o Céu e
conceberam a ave como o sol da manhã e o sol da tarde, ou,
conforme explicação mais tardia, como o Sol e a Lua.
Habituados a viajar no Nilo, imaginavam o Sol numa
barca, de dia atravessando gloriosamente o oceano celeste, de
noite vogando em rio desconhecido e misterioso, visitando o
Reino dos Mortos, o qual ele alegrava e reanimava com a sua
divina presença, voltando logo em seguida para o Oriente, para
o lugar de onde deveria renascer para o mundo superior. Havia,
portanto, uma barca do dia (mandjet), outra da noite (mesektet).
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Outra concepção afirmava que o Sol, no termo da sua car-
reira, cada dia, era engolido pela deusa do Céu, Nut, para ser
gerado novamente durante a noite e renascer às primeiras horas
da manhã.
Outras formas ainda havia para identificar o deus solar;
uma das mais. sugestivas é o escaravelho ou escarabeu. Supõe-
se que a ligação entre o coleóptero e o sol repousa numa
confusão de palavras; o termo que designa o escarabeu, khoprer,
é homófono do verbo khoper, que significa "tornar-se",
"transformar-se". Parece que os egipcios observaram o fato de o
escarabeu encerrar seu ovo numa bola de esterco e rolá-la diante
dele. Viram, nesse proceder, uma imagem das transformações
que o sol diariamente sofre. Fazendo alusão às diferentes fases
do astro do dia, um hino invoca o sol da manhã como Quépri (o
Sol Que Se Manifesta Sob Forma Renascente), o sol do meio-
dia como Ré (Astro Culminante), e o sol da tarde como Atum (O
Sol Que Acaba Sua Carreira).
O deus solar estava também em íntima relação com certos
emblemas que o caracterizavam, dos quais o mais expressivo é o
obelisco, grande agulha de pedra na qual alguns quiseram ver a
forma estilizada da pedra erguida (designada como o benben de
Heliópolis), mas que foi também interpretada como a imagem
solidificada de um raio solar.
A doutrina heliopolitana exerceu grande influência no
curso do Antigo Império. Sob a V dinastia seu prestígio cresceu;
parece que os reis dessa dinastia eram de Heliópolis e
manifestavam particular veneração pelos deuses daquela cidade.
Construíram, nas proximidades das suas pirâmides, templos
solares, réplicas reduzidas do gri;1nde santuário heliopolitano. O
deus aí era adorado sob a forma de um obelisco de imponentes
dimensões, que se erguia no meio de vasta esplanada.

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O SISTEMA HERMOPOLITANO
Hermópolis ("Cidade de Hermes", isto é, Mercúrio) era
uma cidade do Egito Médio, distante cerca de 300 km ao S. do
Cairo, perto da margem esquerda do Nilo; tem, hoje, o nome de
Achm'unein.
Nessa cidade.. nasceu um sistema original, em épocas bas-
tante recuadas; os Textos das pirâmides mais de uma vez
aludem a esse sistema. Notemos, entretanto, que a maior parte
dos textos que nos esclarecem a respeito do sistema
hermopolitano são de época na qual a doutrina primitiva já
estava eivada de elementos alienígenas..
O sistema hermopolitano se caracteriza de imediato pelo
aspecto abstracto. A cosmogonia heliopolitana pode ser relatada
como uma história, como uma série de eventos ou episódios que
mostram a formação progressiva do Universo. O sistema hermo-
politano apresenta uma teoria de quatro elementos, que são ou
aspectos ou atributos do Caos. Sobre o montículo que emerge
das Aguas Primordiais, e que os textos designam como a "Ilha
da Chama", apareceram simultaneamente quatro deuses,
acompanhado cada um de companheira feminina. Na ordem
canônica são: O Oceano Primordial, o Incomensurável, cuja
missão é elevar o Sol (Heh e Hehet), a Obscuridade, que produz
as trevas da Noite, na qual desabrochará a luz (Kek e Keket) e
por fim o Mistério, o Oculto (Amon e Amaunet), chamado,
também, o Nada (Niu e Niut), no qual se reconhece o sopro
invisível mas activo do ar carregado de força vital.
Esses elementos suscitam, combinados entre eles, a
existência do astro do dia. Elevam o Sol ao Céu, a fim de que
ele, por sua vez, faça viver todos os seres do Universo.
Os quatro deuses elementares, com suas respectivas
companheiras, formam a Ogdoade ou colégio de oito deuses; os
deuses machos são representados com cabeças de rãs, alusão à
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crença que diz nascerem as rãs, espontaneamente, da lama; as
deusas têm cabeça de serpente, ser que tem afinidade com as
profundezas da terra.
Por causa desse sistema, Hermópolis tinha o nome egípcio
de Khmun, ., A (cidade) dos Oito".
Ainda em Hermópolis surgiu um mito segundo o qual o
Sol desabrochara sobre uma flor de loto que emergira das águas
do Oceano. Esse mito gozou de grande popularidade através de
todo o Egipto. Nós o reencontraremos na mitologia menfita, que
dá ao deus assim nascido o nome de Néfer- Tum.

O SISTEMA MENFITA
Menfis é cidade muito antiga.
A este, o Nilo corre contra a montanha, a oeste, um grande
braço d'água costeia o platô; entre os dois, estende-se ampla
planície na qual se passa insensivelmente do Alto para o Baixo
Egipto. Por volta do ano 3000 a.C., perto de um burgo onde Ptá
era adorado, Menes construiu 6 forte do Muro Branco, contro-
lando, destarte, "a vida das Duas Terras". Menófer tornou-se
Menfis na boca dos gregos.
O sistema criado em Menfis tem raízes políticas. Foi
elaborado, provavelmente, no momento em que a cidade
residencial se desenvolvia. Temos uma narração a respeito que
os egiptólogos chamam de Documento da Teologia Mentita.
Esse texto famoso chegou até nós sob a forma de uma cópia que
o rei Sabaca (XXV dinastia, VIII século a.C.) mandou gravar
numa lájea de pedra, conforme o texto de um antiquíssimo rolo
de couro roído de vermes. A interpretação tornou-se difícil não
só por causa da língua arcaica, mas também em virtude das
lacunas e dos processos de estilo, inteiramente diversos dos
usuais. Mas, tal como se encontra actualmente o documento, ele

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nos permite compreender as grandes linhas da doutrina que os
teólogos formularam por volta da III dinastia.
No centro do sistema aparece Ptá, o deus de Mênfis, ao
qual é atribuído o papel de demiurgo ou artífice do Universo.
Ptá existia antes de tudo o mais, no seio do Nun, o Oceano
Primordial. D deus manifesta sua actividade criadora por meio
de oito formas que nele existem, verdadeiras hipóstases da sua
própria essência divina.
Entre essas hipóstases uma há que intervém especialmente
na obra da criação: É o deus Ur ("O Grande"), que mais ou
menos se confunde com Atum. O deus Ur universal, segundo a
teologia menfita é o mesmo Ptá. Conclui sua obra criadora por
meio de duas faculdades, o coração, órgão que é a sede da
Inteligência que concebe as coisas, e a língua, órgão que profere
o verbo criador. Os egípcios, aos quais repugna a abstracção,
personificaram estas duas partes do corpo humano e lhes atri-
buíram, como equivalentes divinos, Horo para o coração-inteli-
gência e Tot para a língua-vontade.
O deus Ur-Atum, forma local de demiurgo, deu
nascimento, pelos pensamentos de seu coração e pelas palavras
de sua boca, a todos os seres animados, começando pela Enéade
(cuja idéia foi recebida de Mênfis) e por todos os demais deuses;
a seguir criou os homens, os animais, as plantas e os minerais.
Depois de ter criado a Vida e os meios para que ela subsistisse,
criou os princípios da Justiça e do Direito.
O documento menfita nos põe em presença de uma
cosmogonia que, sob aparências mitológicas e vagamente
panteístas, encerra uma doutrina de aspecto quase filosófico e
reflete os esforços que os teólogos despenderam para dar uma
explicação racional da obra da Criação. Mostra também o
documento que os empréstimos feitos ao corpo de doutrinas
heliopolitano tinham como fito principal manifestar o primado

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de Ptá sobre as demais divindades.

A TEOLOGIA TEBANA
Se o prestígio de Ptá é devido à elevação de Menfis a
capital, sob o Antigo Império, com mais razão podemos
acreditar que a rápida ascensão do deus tebano Amon sob o
Império Médio é o resultado de conjunturas políticas.
Na origem, Amon era um dos elementos da Ogdoade
hermopolitana, representando o Sopro que vivifica o Universo.
Por razões que ignoramos, os príncipes da XI dinastia, depois de
haverem restabelecido a unidade do país, adoptaram Amon
como deus da sua residência.
Instalado na cidade de Tebas, ao lado do antigo deus local
Montu, foi logo assimilado a Min, deus da Fecundidade, igual-
mente adorado na região, e não tardou em se tornar o rei dos
deuses ao mesmo tempo que o deus do Império.
Amon não tinha mitologia própria. Criaram-lhe, então,
uma tríade: Mut ("Mãe") tornou-se sua esposa e como filho lhe
deram o deus Consu (ou Conso), que comumente é apresentado
como deus lunar.
Associaram-lhe, também, o deus Ré, o que explica o nome
Amon-Ré; chegaram até a atribuir-lhe uma Enéade de treze
membros, à imitação de Heliópolis. Finalmente, sua afinidade
com Hermópolis facilitou a introdução em Tebas da Ogdoade.
Bem se pode imaginar as complicações e confusões que
essas assimilações trouxeram ao panteão tebano. Parece-nos,
porém, que os teólogos não curavam de tais minúcias,
acostumados que estavam a admitir combinações mitológicas
comumente híbridas. Tanto isto é exacto que a doutrina oficial
designava o deus dinástico com a apelação "Amon-Ré Rei dos
Deuses, Senhor de Tebas". Isto equivale à confirmação de que o
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deus era o chefe indiscutido do panteão e o deus do Império.
Esse primado permaneceu até o fim do paganismo. Os gregos
em Amon reconheceram o seu deus supremo, Zeus, e deram a
Tebas o nome de Dióspolis, "Cidade de Zeus".

O MITO DE OSÍRIS
Ao lado de mitos que investigam ou procuram explicar os
enigmas do Universo, outros há que pretendem resolver certos
problemas essencialmente humanos. Nada preocupava mais os
egípcios que a Morte e a Vida além-túmulo. Que era a Morte?
Qual o destino do homem depois da Morte?
Sabemos com certeza que os egípcios sempre creram
numa vida além-túmulo. Dessa vida fizeram uma imagem
concreta, que variou no decorrer das idades e segundo as
circunstâncias. As gentes do povo, no início, esperavam, apenas,
que a outra vida fosse igual a que neste mundo tinham levado.
Os reis, porém, ambicionavam destino bem mais sublime, como
o mostram os Textos das pirâmides. O rei tinha direito a uma
outra vida "celeste": Purificado nas águas de uma lagoa mítica,
tomava lugar na barca solar e acompanhava r(é na sua rota diária
através do Oceano do céu. Intimamente associado ao deus solar,
recebia as homenagens dos deuses e dos gênios que povoavam
aquelas regiões.
Mas o faraó poderia ter outro destino depois da morte:
Ficar sob a dependência de Osíris, considerado desde as mais
longínquas eras como o protótipo dos reis defuntos e elevado ao
posto de soberano do país dos Bem-aventurados.
O papel funerário de Osíris é certamente muito antigo;
entretanto, sua popularidade como deus dos defuntos acentuou-
se no decorrer das eras, ao mesmo tempo que se desenvolveu o
mito que melhor manifesta essa sua característica.

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A lenda de Osíris tomou corpo no Império Antigo, como o
provam os Textos das pirâmides e os hinos de todas as épocas.
Contudo, pouco sabemos acerca das origens de Osíris. O nome
parece significar "a Sede do Olho" e deve conter uma alusão
mitológica que constitui para nós verdadeiro enigma.
Admite-se, f!;Cralmente, que o culto de Osíris nasceu,
como tantos outros cultos antigos, no Delta. Em Busíris, cidade
que guarda a lembrança de Osíris, assimilaram este deus a uma
divindade local, Anedjti, que aparece sob ~s traços de um deus-
rei com os atributos da soberania.
Sob o Antigo Império, o culto de Osíris, popular no Alto
Egito, implantou-se em Abidos, cidade onde se encontrava uma
velhíssima necrópole real que tinha como protetor o deus
Quenti-I mentiu, "O Chefe dos Ocidentais" (isto é, o deus que
presidia aos destinos dos falecidos). Pouco a pouco a
personalidade de Osíris se confundiu com a do deus local;
Abidos tornou-se o centro do culto de Osíris, considerado
doravante como o deus funerário por excelência. Ampliou-se o
mito e novos elementos vieram enriquecê-lo; surgiu, assim, a
tocante lenda da qual Plutarco nos deixou uma versão
romanceada.
Com elementos fornecidos pelos documentos egípcios e
pela narrativa de Plutarco, assim podemos reconstituir o mito
sob sua forma mais completa e primitiva.
O deus Gebeb, que aparece comumente como o
representante mais típico da instituição real fundada por Atum,
transmitiu seus poderes ao filho, Osíris. .Assistido de sua irmã e
esposa, Ísis, inaugurou um reino onde todos os mortais seriam
felizes. Divulgou entre os homens a agricultura, a viticultura e
as artes. Mas seu irmão Set (Tífon ou Tifão), que havia
desposado Néftis, começou a invejar o sucesso e o poder do
jovem irmão; no fundo do coração resolveu eliminá-lo. Durante

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um banquete conseguiu fechá-lo num cofre que lançou ao rio.
Ísis sai imediatamente à procura do esposo e o encontra em
Biblos, na Fenícia, encaixado num grosso tronco de tamarindo,
que o rei da região havia utilizado na construção do seu palácio.
Ísis obtém a restituição do cofre e o transporta de volta para o
Egipto. Mas Set consegue apoderar-se do corpo de Osíris; corta-
o em catorze pedaços e os espalha através do país. Ísis não
descansa enquanto não consegue reaver os membros dispersos
do marido; encontra todos, menos o falo. Com a ajuda de
Anúbis, de Néftis e de outras divindades aliadas, faz a primeira
múmia, a de Osíris. Pouco tempo depois da morte do marido,
1sis, refugiada nos marnéis do Delta, deu à luz um filho, Horo,
que criou com infinitas cautelas, temendo sempre a ira de Set.
Horo, quando atingiu a idade adulta, empreendeu a tarefa de
vingar o assassínio do pai. Trava com Set uma luta corpo a
corpo no curso do qual consegue arrancar o pênis do adversário,
enquanto este lhe arrebata um olho. Tot então intervém para
pepsar as chagas do deus caolho e do deus emasculado. Cura a
ambos. Decidem os deuses pôr cobro à luta fratricida e citam os
adversários ante um tribunal. A corte divina admite o bom
direito de Horo e condena Set a restituir 'a Horo o olho
arrancado. Este o dá ao pai, Osíris, e o substitui pelo uraeus (em
grego oGpalGt;; , do egípcio aaret) ou serpente divina, que
doravante seria um dos emblemas da realeza. Quanto a Osíris,
transmite seus poderes ao filho e se retira definitivamente para o
reino dos Bem-aventurados.
Na verdade, os documentos que possuímos não
referem :om tanta precisão e tão completamente a história de
Osíris.
A análise da lenda osinaca nos permite distinguir vários
temas, dos quais, os mais importantes são: a morte do deus-rei
Osíris e sua substituição pelo filho Horo; a luta cósmica entre
Horo, o deus do Céu e da Luz com Set, o deus dos Elementos
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desencadeados, por essa razão assimilado por Plutarco a Tífon
ou Tifão; finalmente o Olho de Horo, que, depois de ter sido
arrebatado ao seu proprietário, lhe é restituído para se transfor-
mar em uraeus, a Serpente divina que permanece em frente ao
rei.
Além disso o mito explica satisfatoriamente as múltiplas
virtudes e qualidades que os egípcios atribuíam a Osíris. Inicial-
mente ele aparece com Horo como o representante de um dos
aspectos da realeza e explica a continuidade hereditária da
constituição monárquica. Osíris é o protótipo do rei defunto,
que, depois de concluir sua tarefa terrestre, em morrendo
transmite, a dignidade real ao filho, legítimo sucessor dos
direitos paternos; finalmente, ressuscita sob forma beatificada e
na região dos Bem-aventurados descansa para todo o sempre.
Todos os reis que se sucederam no trono do Egipto,
passaram por essas duas fases: Investidos da dignidade real de
Horo enquanto durasse o reinado, se transformaram em Osíris
no termo da sua carreira, quando transmitiam ao filho e sucessor
o direito real, e como tal eram honrados pelos filhos e súditos.
Osíris era também, desde o início, considerado como um
dos grandes deuses da Vegetação. Pela sua morte e imersão nas
águas do Nilo, seguidas pela gloriosa ressurreição, evoca, no
plano mítico, as fases da vida da natureza, com o periódico
renovamento do grão que morre para depois germinar em planta,
cheia de vida e vigor. Comemorando esse fato, os egípcios, no
fim da estação da Inundação (no mês de Khoiakh), realizavam
uma cerimónia à qual atribuíam virtudes vitais. Depois de
traçarem sobre uma tela ou um estofo a silhueta de Osíris,
cobriam-na com leve camada de limo no qual semeavam alguns
grãos. Logo estes terminavam e a figura se tornava assim "o
Osíris Vegetal", símbolo da renovação da natureza e estímulo
para que os homens se dedicassem à agricultura. Esse rito
deveria ser realizado nos templos, mas fazia parte da liturgia
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fúnebre, como o prova a presença de "Osíris Vegetal" em
inúmeras tumbas do Novo Império.
Levando em conta as peripécias que precederam a morte
de Osíris e se seguiram a ela, os egípcios o fizeram deus
protector dos mortos. Os ritos fúnebres dos reis, que tinham
significado próprio, foram postos em relação com os principais
traços do mito da morte e da ressurreição do deus. As fórmulas
dos ritos fúnebres, que nos foram conservadas através dos
Textos das pirâmides acentuam essa assimilação do rei morto
com o deus Osíris. Quando, no fim do Império Antigo, correntes
políticas e sociais abalaram o prestígio da realeza, os ritos
fúnebres osinacos, considerados até então como prerrogativas
dos reis tão somente, foram usados, em medida sempre
crescente, pelos mortais comuns. No Império Médio, apreciável
número de funcionários ou egípcios ricos se faziam mumificar e
sepultar se~n~o os ritos osinacos. A partir do Novo Império, a
democratização dos ritos fúnebres generalizou-se de tal sorte
que todo e qualquer defunto pôde se beneficiar dessas
vantagens; era, então, chamado "Osíris UnteI". Para que um
mortal pudesse atingir a sobrevivência osiríaca, bastava que seu
corpo fosse submetido aos ritos que haviam revivificado Osíris e
que se recitasse sobre o defunto as preces usadas para a
ressurreição do deus. O famoso Livro dos mortos, que
comumente era posto ao lado da múmia, continha, além de outra
fórmulas igualmente benéficas, uma selecção de hinos e de
preces mediante os quais o proprietário do túmulo assegurava
para a sua sobrevivência o favor de Osíris e das divindades do
seu ciclo.

O MITO DO OLHO CELESTE


O Olho que aparece na narração do mito de Osíris e Horo
é um episódio mitológico que na sua origem oferece dois temas

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diferentes: o tema do Olho solar e o tema do Olho de Horo; no,
correr dos séculos as duas tradições se interpenetraram.
Na lenda osiríaca o Olho de Horo é arrancado e depois
restituído, para se transformar numa nova forma, o uraeus real.
Mas o deus de Heliópolis, identificado com o Sol, possuía,
também, um Olho, o "Olho de Ré". Este, que primitivamente era
a Estrela da Manhã, foi, a seguir, posto ao lado de Osíris
regenerado pelo filho. Mais tarde quiseram ver no Olho ora o
Sol, ora a Lua. O Olho de Horo, arrancado e depois restituído,
simbolizaria as fases da Lua; quanto ao Olho de Ré,
freqüentemente foi assimilado ao culto de Maat, filha de Ré.
A deusa Maat representa a personificação de um dos con-
ceitos fundamentais do pensamento filosófico egípcio. Ela
encarna o princípio de ordem que rege o Cosmos e garante seu
equilíbrio; encarna também a garantia da ordem social e moral,
isto é, a conformidade das leis humanas com as divinas. Em
outras palavras, é a deusa da Justiça e da Verdade. Nessa quali-
dade Maat assiste à pesagem da alma do defunto, diante do tri-
bunal de Osíris, onde o coração, considerado como sede da
consciência, deverá contrabalançar exactamente com a Justiça,
incorporada na imagem da deusa.
Há, ainda, uma interpretação a respeito do Olho solar que
gozou de larga difusão. Tis, cidade do Médio Egipto, da qual
seria originária a I dinastia, era a residência de um deus conhe-
cido sob o nome de Onúris (propriamente Ini-herit, "Aquele que
reconduz a Lon~ínqua"). Esse nome alude a um mito do qual
possuímos somente versões tardias, mas cujo tema se fixou, cer-
tamente, no Império Médio.
O Olho do deus solar, que aqui às vezes assume a forma
da leoa Tefnut, encoleriza-se violentamente com seu senhor. O
Olho-deusa (em egípcio "olho" é do género feminino) se retira
para o fundo da Núbia e lá pretende permanecer para sempre.

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Finalmente Onúris a vai procurar e, após havê-la acalmado com
promessas, a conduz triunfalmente para Tis, onde o Olho retoma
seu lugar na face do deus. Esta lenda, não raro, aparece sob a
forma de conto popular. Ilustra, perfeitamente, a alternância das
fases lunares. Como na lenda de Horo, o Olho celeste, após
desaparecer, retoma ao seu estado primitivo.
Alguns mitógrafos fazem menção do Olho São, Udjat,
com referência a esse tema; o Udjat, geralmente, é considerado
como o Olho de Horo restabelecido pelos cuidados de Tot.
Outra versão, porém, refere que se trata do segundo olho de
Horo, aquele que não foi mutilado.
O tema do Olho de Horo foi abundantemente explorado no
ritual; as fórmulas tradicionais, que acompanhavam as
oferendas, o assimilavam ao 01110 celeste, que foi restituído ao
seu senhor. Cria.se que tal assimilação aumentava a eficácia do
rito.

O MITO DE APÓFIS
Inicialmente Apófis ou Apópis era o génio das trevas, que,
a todo instante, ameaçava o deus solar e procurava impedir que
ele navegasse com tranquilidade na barca do Céu. Sua extrema
ousadia levou.o a tentar pôr o Nilo a seco, o Nilo celeste, é
claro, onde vogava a barca de Ré. Cada manhã e cada noite, o
deus solar, ajudado da sua divina equipagem, conseguia
sobrepujar as manobras malévolas de Apófis e serenamente
prosseguir sua derrota. Da luta perpétua entre esses dois poderes
adversos, resulta o perfeito equilíbrio do Universo.

O MITO DO NOME SECRETO DE RÉ


Um tratado de mágica do Novo Império nos refere como
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Ísis procedeu para conhecer o nome misterioso e Todo-Poderoso
de Ré. Ísis, que era mágica extraordinária, uma espécie de Circe
egípcia, tinha conhecimento de tudo que vivia sobre a terra e de
tudo que o céu continha. Uma coisa somente havia que ela
ignorava: o nome secreto de Ré, cujo conhecimento permitiria à
deusa apropriar-se de grande parte do poder do senhor do
Universo. Para conseguir seu objectivo, Ísis usou de um estrata-
gema. Recolheu um pouco de saliva da boca do rei, que estava
muito velho e que a deixara cair, pois se babava
lamentavelmente, e, misturando-a com terra, formou uma
serpente. Depois a colocou no caminho que Ré costumava
percorrer quando passeava pelos Dois Países. Como era de se
prever, o deus pisou na serpente e esta o feriu no pé. Ré
começou a sentir dores atrozes. Os membros da sua comitiva, ao
ouvirem os gritos desesperados, acocreram em massa; entre eles
achava-se Ísis. Fingindo que muito se admirava com o sucedido,
perguntou a Ré a natureza do seu mal, e lhe declara que para
tornar realmente eficaz o encantamento que pretendia fazer, era
mister que o nome secreto, que o deus a ninguém queria revelar,
fizesse parte da prática mágica. Ísis tanto insiste, a dor é
tamanha que, por fim, o nome secreto é revelado. Logo Ré fica
curado; mas Ísis dispõe doravante duma força tal que poderá até
ofuscar a do próprio deus solar.

O MITO DA VACA
Ré envelhecera. Seus membros eram de prata, a carne de
ouro, as articulações de lápis-lazúli. Percebeu, então, que os
homens que habitavam o vale e os desertos se tornavam
arrogantes e insolentes e meditavam, mesmo, revoltarem.se
contra ele. Ré reuniu seu conselho: Su, Tefnu, Gebeb, Nut, Nun
e o Olho de Ré. ..Perlnanece no teu posto — dizem.lhe os
demais deuses — pois grande é o temor que inspiras aos
homens; basta que o teu olhar se volte contra eles para que todos
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pereçam." Os homens, porém, pressentindo o perigo, fugiram
para as montanhas. E os deuses disseram a Ré: "Deixa que o teu
Olho vásozinho; que ele desça sob a forma de Hator.Secmet". O
Olho transforlnou.se na deusa Hator-Secmet; esta desceu para as
montanhas, onde estavam os homens, e, durante muitas noites e
muitos dias, fez terrível carnificina. Ré assustou-se com a fúria
sanguinária de Hator-Secmet; já que a justiça fora cumprida,
cumpria-lhe, agora, salvar o resto da humanidade. Como, porém,
deter o braço feroz da cruel guerreira? Como apaziguar a sede
de sangue que abrasava a deusa que já conhecia o sabor do
sangue humano? Mandou Ré que se preparassem sete mil bilhas
de licor inebriante, de cor vermelha, e que estas fossem
derramadas no vale que ficou cheio até quatro palmos de altura.
O artifício deu resultado. A deusa bebeu do líquido, e em tal
quantidade que não distinguia nem os homens que junto dela se
achavam. Então Ré chamou: "Vem em paz, graciosa deusa,
vem!" E ela tornou a entrar no palácio dos deuses.
Entretanto Ré se desgostara com a humanidade e desejava
abandonar as plagas terrestres. O deus Nun convenceu-o a se
instalar perto da vaca Nut. Quando chegou a manhã, os homens
novamente começaram a murmurar; a vaca, então, com o deus
sobre o dorso, transformou-se no Céu. Ré manifestou sua satis-
fação por se ver localizado tão alto; mas, percebendo que a vaca
tremia de medo, encarregou os génios de lhe servirem de supor-
tes, pondo um ao lado de cada uma das suas patas. Além disso
ordenou que Su, o deus da Atmosfera, se colocasse sob o ventre
da vaca e lhe segurasse o corpo com seus braços estendidos.
Este mito é uma variante do que explica a formação e a
estrutura do Universo.
O mito da destruição da humanidade apresenta Hator sob
aspecto pouco simpático; é a deusa assassina e sedenta de san-
gue; neste particular está associada com a feroz Secmet com
cabeça de leoa.
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Mas a deusa Hator, que ocupa lugar de destaque no
panteão egípcio, apresenta, comumente, instintos menos
sangüinários; o nome Hator significa" A Casa de Horo".
Apresenta.se como uma vaca ou sob os traços de uma mulher
com chifres de vaca. Provavelmente, na origem, Hator era uma
divindade local; muito cedo ascendeu ao posto de divindade
cósmica; confunde-se, pois, com Nut, que também aparece sob a
forlna de vaca. Na qualidade de deusa do Céu, naturalmente se
transforma em mãe e carregadora do Sol, cujo disco, quase
sempre, se ergue entre os cornos da vaca. Foi em virtude do seu
carácter cósmico ou da sua associação com a lenda do Olho
solar, que ela se transformou em "Senhora Dos Países
Estrangeiros"? Não o sabemos com segurança. Certo é, porém,
que seu patrocínio se estende sobre longínquas regiões, para
onde o faraó mandava suas expedições, como Biblos, na costa
da Fenícia, ou nas minas de turquesa da península do Sinai ou
mesmo no misterioso país de Punto, situado, talvez, não longe
da região dos somalis. Mas era no Egito Que Hator tinha seus
principais santuários. Em Denderah, onde seu templo ainda
existe, ela estava Intimamente associada a Horo. Anualmente,
por ocasião da grande festa de Edfu, Horo unia-se a Hator. Em
Tebas consideravam-na principalmente como protectora das
necrópoles; do fundo da sua morada rupestre acolhia os defuntos
e lhes assegurava feliz porvir. Pois Hator, antes de tudo, era
deusa amigável e prestativa.
Presidia à música e à dança, assim como ao amor, fato que
fez com que os gregos a identificassem com Afrodite. Auxiliava,
igualmente, às parturientes, e tinha sob suas ordens um grupo de
sete deusas feitas à sua imagem; estas a secundavam nas suas
atividades de ama e desempenhavam junto do berço dos recém-
nascidos o papel que atribuímos às nossas fadas. Sob este
aspecto veremos Hator e seu séquito intervir no nascimento divi-
no do faraó.
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O MITO DO NASCIMENTO DIVINO DO REI
Já na mais remota antiguidade criam os egípcios que o rei
era de essência superior a dos simples mortais. O faraó era a
encarnação terrestre do Horo celeste, o deus-rei; admitiam, da
mesma forma, que o faraó tinha a protecção especial dos deuses
tutelares dos dois reinos primitivos: Necabit ou Necbet, a deusa-
abutre do Alto Egito e Uadjit (Edjo), a deusa-serpente do Baixo
Egipto.
A partir da V dinastia, certamente sob influência da
doutrina heliopolitana, os reis insistiram especialmente sobre
sua origem solar. Ainda que conservassem os antigos títulos,
proclamavam-se "Filhos de Ré", isto é, Filhos do Deus Sol.
O conto de Quéops e dos mágicos, narração que parece
remontar ao Império Médio, refere-nos, sob forma de lenda, o
modo pelo qual os reis da V dinastia vieram ao mundo. Esses
príncipes, destinados a inaugurar nova linhagem real, teriam
nascido por obra e graça do deus solar e de uma mulher, esposa
de um sacerdote de Ré, senhor de Saquebu (localidade próxima
de Heliópolis); teriam nascido graças ao auxílio das deusas
hábeis na arte de parturejar e que eram conduzi das pelo deus
Cnum, o deus-oleiro. A medida que as deusas obstetras recebem
os trigémeos, dão-lhes nomes que relembram as circunstâncias
particulares em que o parto se produziu. Parece que a narração
popular tem por fito evidenciar que o príncipe herdeiro nasce da
união do deus solar, incorporado ou encarnado no rei reinante,
com a rainha sua esposa; destarte, realmente, ele é o filho carnal
de Ré. Há duas versões a respeito desse assunto, ambas datando
da XVIII dinastia, onde os quadros que representam o episódio
vêm acompanhados de textos assaz explicativos e reproduzem
um verdadeiro diálogo entre os atores dessa espécie de drama
sagrado. Uma das versões, Que se vê sob o pórtico central do

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templo de Deir el-Bahari, refere-se ao nascimento da rainha
Hatxepsut; a outra, esculpida num dos compartimentos do
templo c;ie Luxor, ilustra a vinda ao mundo de Amenófis III;
mas, conforme um fragmento de inscrição da XII dinastia, a
composição do texto deve remontar ao Império Médio.
Nos relevos da XVIII dinastia, na verdade não é Ré que
desempenha o papel de procriador, mas sim Amon. Tal substi-
tuição nada tem de estranho, pois na teologia tebana evoluída,
Amon havia assumido a maior parte das atribuições e funções
do deus solar, entre outras a de pai do rei. Na descrição que se
segue, portanto, basta substituir o nome de Amon pelo de Ré
para restabelecer o estado de coisas inicial. Na primeira cena,
Amon participa ao colégio divino sua intenção de engendrar um
príncipe destinado a ocupar, um dia, o trono do Egipto. Tot
desempenha o papel de mensageiro das ordens divinas, e
introduz na câmara nupcial a rainha que espera o divino esposo
que a fecundará. No correr da entrevista teogámica, Amon mani-
festa seu desejo à rainha e fixa de antemão o nome e o destino
do príncipe que irá nascer. A seguir Amon se dirige para junto
de Cnum, o deus-carneiro, o qual, entre suas variadas atribui-
ções, tem aquela de modelar os corpos e infundir a vida; insiste
junto ao deus para que dê ao filho que irá procriar um corpo de
beleza ultradivina. O deus logo se põe ao trabalho; sentado
diante do tomo de oleiro, fabrica o corpo do menino, ao mesmo
tempo que lhe atribui o ca (ka), isto é, a alma material, que,
aparentemente, não é senão uma réplica do corpo carnal. O
momento do nascimento se aproxima; o deus Tot vem felicitar a
rainha pela sublime missão que lhe foi confiada e que ela,
segundo tudo indica, levará a bom termo; a seguir, conduzida
por Cnum e por Hecat, a deusa com cabeça de rã, a Qual facilita
os partos, dirige-se para a câmara dos partos, onde o feliz
acontecimento não tarda a se realizar.
A rainha, sentada num grande e magnífico leito, segura o
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menino com gesto afectuoso. Ao seu redor desvelam-se deusas e
gênios encarregados de lhe prestar auxílio e de lhe valer em
qualquer emergência; das atitudes ressalta o caráter mágico da
missão que as deusas e os génios cumprem.
Bes e Tuéris, protectores titulados das mulheres em
trabalho de parto, exercem suas funções com desvelo.
A deusa Hator, deusa-mãe por excelência, faz, então, sua
entrada solene na sala de parto; toma o recém-nado nos braços e
o apresenta a Amon, o pai, que o contempla com complacência e
bondade, augurando-lhe glorioso e próspero porvir.
A seguir o menino é conduzido para a sala que lhe foi des-
tinada, os seus compartimentos privados, onde a mãe o esper;)
E logo ele é confiado, assim como as catorze hipóstases do
seu ca (isto é, suas faculdades personificadas), aos bons
cuidados das amas, que são as "Hators". Entretanto, Amon
continua a velar pelo destino do filho. No decorrer de nova
entrevista com Tot, à qual assistem o menino e seu inseparáve1
ca, ele lhe dá novas instruções. Sem dúvida, essas instruções ao
deus da Escrita e da Ciência se referem à educação e ao futuro
daquele menino que será o senhor dos Dois Países.
Na cena final participam Anúbis, Cnum e a deusa dos
Anais. Parece que o fim dessa entrevista é fixar o destino
glorioso do futuro rei.
Do exposto deduz-se com toda clareza que os egípcios,
sabendo que o nascimento de um faraó era igual ao de outro
qualquer me~ino, desejavam, conscientes da natureza supra-hu-
mana do príncipe real, dar ao evento um carácter mais sublime,
divino mesmo, a fim de que permanecessem bem nítidas as dife-
renças existentes entre um simples mortal e o filho de um faraó.
Nos outros mitos, comumente, emprestava-se aos deuses com-
portamento inspirado nas atitudes humanas; aqui, ao contrário,
apresentavam um episódio bem humano da carreira real sobre
33
um plano quase teológico.

O MITO DA GUERRA DE HORO CONTRA OS


ADVERSÁRIOS DE RE
São poucas as narrações acompanhadas de mitos e lendas
divinas que possuímos, e isto se deve, naturalmente, ao fato de
serem elas orais; quando eram escritas, de preferência figuravam
em rolos de papiro, os quais, cuidadosamente enrolados, fica-
vam guardados nas bibliotecas dos templos. Somente em épocas
mais recentes é que começaram a gravar os textos desse gênero
nos muros dos templos, a fim de lhes assegurar conservação
indefinida c, sem dúvida, para permitir aos fiéis que tomassem
conhecimento das façanhas do deus local.
Existe um naos (palavra grega que significa "templo" ou
"capela"), proveniente de um templo do Baixo Egipto
(encontrado em El-Arish), cujas paredes relatam os
acontecimentos que assinalaram os reinados dos deuses Su e
Geb. Esse texto refere, entre outras, as lutas desses deuses contra
Apófis e seus asseclas, demorando-s~ especialmente nos
episódios que se des~nrolaram na região onde se erguia o
templo ao qual o naos era destinado.
O exemplo mais típico de um relato mitológico nos é
fornecido por um texto ptolemaico de Edfu. Sobre a face interior
do recinto que cerca o santuário, está gravada a narração das
guerras que o Horo Behedti, o deus local, deveu sustentar contra
os adversários do deus solar; a narrativa é ilustrada, de distância
a distância, com magníficos relevos, onde são evocados os
principais episódios da luta. O texto, que se estende por toda a
parede, de cima até embaixo, conta, minuciosamente, no estilo
empolado e redundante que os letrados da época gostavam de
usar, as peripécias dessa guerra divina. Para dar a esse texto
aparências de um documento histórico, o redactor colocou sua
34
narrativa num quadro que bem poderia convir aos anais.
Considera.se que os aconteciml::ptos se desenrolaram no
ano 363 do reinado de Ré-Haracti. Enquanto o deus-rei fazia no
seu navio uma viagem de inspecção pela Núbia, soube que seus
inimigos levantaram contra ele o estandarte da revolta. Os
conjUrados, naturalmente, estão aliados com o~ esbirros de
Apófis; o grupo, por todos os meios, quer s~ opor à ação de Ré,
o deus-sol, que preside à boa marcha do Universo.
Ré, posto a par da conjura, por seu filho Horo Behedti, isto
é, o Horo de Edfu, o encarrega, da missão de desbaratar os ini-
migos. De feito, Horo logo consegue uma primeira vitória na
Núbia; este fato alegra muitíssimo o coração de Ré. Mas os
revoltosos se agrupam no Egipto, e Horo se vê obrigado a perse-
gui-los por todo o vale do Nilo, através de mil dificuldades.
Sucedem-se, então, as vitórias de Horo. Após cada derrota, o
inimig»reaparece sob forma diferente; ora é Set, ora é Apófis,
ora um ser monstruoso como o hipopótamo ou o crocodilo. Por
onde quer que passe, Horo realiza façanhas de vulto; Tot, logo
em se~ida, leva a boa nova a Ré. Mas Horo prossegue na sua
campanha vitoriosa através do Baixo Egito, e por fim expulsa o
inimigo para além do Mar Vermelho, acabando por fazê-lo fugir
para a Asia. O Egito, finalmente, está livre das forças do mal; os
deuses, então, retomam novamente a barca solar a fim de
continuarem a derrota; Ré-Haracti retorna para a Núbia; Horo
volta a ocupar seu lugar no templo de Edfu.
Essa narrativa, para nós monótona e sem maior interesse,
deveria encantar o clero do templo de Edfu e sem dúvida edifi-
cava os adoradores do deus; ao mesmo tempo, as alusões mito-
lógicas instruíam o povo acerca da verdadeira natureza do deus
local: além disso, acentuava o carácter pacificador da divindade
que adoravam; por último, explicava grande número de
topónimos. Com efeito, qualquer façanha de Horo ou dos seus
súditos, deu margem a um jogo de palavras que explicava não só
35
o nome do local ou do santuário, mas também a própria natureza
da região. Esses quebra-cabeças, expostos de maneira pouco
natural, se sucedem com tanta frequência que tornam a leitura
do mito de Horo bem mais fastidiosa que as demais do mesmo
género.
Finalmente, não podemos olvidar que a narração procura
explicar alguns emblemas que faziam parte da temática sagrada,
como o símbolo do disco alado. É ele uma das formas do
deus. .falcão "com plumagem variegada"; essa personagem
aparece inúmeras vezes no decurso da narrativa; quando, após a
vitória final, sob aquela aparência, ele entra em Edfu, Ré decide
que doravante esse motivo será colocado, como imagem
protectora e apotropaica, em todos os lugares onde ele se
detiver. Essa é a razão pela qual, em todos os templos do Egipto,
o motivo do disco alado orna a cornija que encima os portais.
É bem possível Que o fundo desse mito seja mais antigo
do que a versão que nos foi conservada em Edfu. Já quiseram
ver nele a interpretação mitológica do tema da vitória do rei
sobre os povos bárbaros; os asiáticos, destarte, seriam aí repre-
sentados por génios tifónios, inimigos do deus solar.
Na versão ptolemaica, alguns quiseram ver alusão velada
aos sentimentos de xenofobia que os egípcios experimentavam
com relação aos persas e aos gregos que, sucessivamente,
tinham ocupado o país; sob aparências mitológicas, os egípcios
queriam deixar bem claro que os deuses, um dia, os haveriam de
expulsar do país.

As AVENTURAS DE HORO E DE SET


Da narração acima referida, deduz-se, com bastante
clareza, que mesmo os maiores deuses estavam sujeitos a
fraquezas e imperfeições características dos mortais; as
aventuras nas quais se envolviam, não eram de molde a elevar
36
seu prestígio. Contudo, essas narrativas faziam parte dos mitos
canónicos. Com mais frequência e com mais realismo elas
aparecem nas lendas que se formaram, no decurso dos séculos, à
margem da mitologia oficial.
Os egípcios cultivavam um género narrativo que mesclava
a mitologia ortodoxa a relatos populares, onde os deuses
aparecem de maneira inesperada e insólita:
Há um conto, que data da época do Novo Império, onde o
humor popular se expandiu com notável liberdade; trata-se das
aventuras do bravo Horo e do perverso Set, os deuses antagó-
nicos da mitologia canónica.
Tanto a língua vulgar do Novo Império, o neo-egípcio,
como o estilo, provam à saciedade que o conto é de origem
popular; mas o caráter não-canônico se evidencia com mais
nitidez por causa da mistura de elementos tirados dos mitos
oficiais e episódios que têm origem no folclore. Nesse conto,
além disso, encontram-se temas mitológicos de origem assaz
diversa, o que dificulta, não raro, a compreensão e lhe empresta
um certo tom ilógico, próprio das composições populares
formadas no decurso dos séculos e que se transmitiram por via
oral.
No resumo que se segue será fácil verificar a verdade
dessas asserções.
Quando Osíris abandonou as plagas terrestres a fim de ir
habitar o país dos Bem-aventurados, dois deuses reivindicaram o
trono do Egipto, Set, deus pérfido e violento, que assassinara o
irmão, e Horo, filho póstumo de Osíris, bom e justiceiro. Ísis,
mãe de Horo, o criara num recanto isolado do Delta, na doce
esperança de que, quando crescesse, vingaria o pai e reinaria por
sobre todo o Egipto.
A contenda foi levada ao tribunal dos deuses aos quais
competia decidir quem reinaria sobre o trono. O juiz supremo
37
desse tribunal era o Senhor Universal, forma divina que tanto
pode corresponder a Atum como a Ré-Haracti, ou a ambos ao
mesmo tempo; esses dois deuses formavam a base do sistema
heliopolitano.
Quando se inicia a narração, o processo já está sub judice
há mais de oitenta anos; Hor0 e Set continuam argumentando,
na esperança de convencer os juizes da equidade de suas res-
pectivas pretensões. A maioria dos deuses está inclinada a reco-
nhecer a validade dos títulos de Horo e a iniqüidade de Set. Mas
o Senhor do Universo, personagem que nesse conto surge como
ser risível e de imparcialidade duvidosa, hesita proferir a
sentença com receio de atrair as iras do rancoroso Set. Um dos
juizes sugere, então, que se consulte Neit, a deusa de Sais, cuja
reputação de sábia é universalmente reconhecida. Tot escreve-
lhe uma carta dizendo da causa e explicando-lhe as dificuldades
em que os deuses se encontram para dar um veredicto justo e
honesto; Neit responde declarando que o direito está com Horo:
A ele, somente a ele, deve ser atribuído o trono; propõe, mais,
que se dê a Set uma indemnização sob a forma de duas deusas
asiáticas, Anat e Astarte, que ele poderá desposar. Concordam
todos os deuses, mas o Senhor do Universo pondera que Horo é
ainda muito jovem e muito fraco para assumir encargo tão
pesado e difícil como é o trono. Surge, então, outra personagem,
Baba, deus maroto e, segundo tudo indica, aliado de Set; cheio
de ira, Baba injuria o presidente do tribunal; tumulto geral na
assembleia. O Senhor Universal, profundamente ofendido,
retira-se do recinto. Nesse momento intervém a deusa Hator,
que, com gracejos e facécias não só acalma o juiz supremo do
tribunal, mas até consegue restituir-lhe o bom humor. Reco-
meça, novamente, a sessão; os dois contendores, Horo e Set,
voltam a reivindicar seus direitos. Grande parte dos deuses arvo-
rados em juizes defendem a causa de Horo; Ísis propõe que se
"levem as palavras para diante de Atum, o príncipe poderoso
38
que assiste em Heliópolis, e para diante de Quépri, que reside na
sua barca". Essa intervenção da mãe de Horo tem como
resultado excitar em Set tal furor que ele recusa prosseguir na
demanda enquanto 1sis estiver com a sua presença
influenciando os juízes, e, com suas palavras insinuantes,
fazendo com que o tribunal dos deuses se torne parcial. O
Senhor Universal aceita as objurgatórias de Set, e declara que os
debates continuarão numa ilha bem protegida, onde não será
permitida a presença de Ísis. A seguir dá severas ordens a Anti,
o deus-barqueiro, espécie de Caronte egípcio, para que não
deixe Ísis se aproximar da ilha, pois sua pessoa é considerada
indesejável. A deusa, astuciosamente, pensa logo num artifício
que lhe permita atingir a ilha não obstante as severas proibições
do Senhor Universal. Transforma-se numa velha e começa a
negociar com Anti; finalmente, com a ajuda de um anel de ouro,
consegue que o deus-barqueiro a conduza para a ilha onde estão
reunidos os juízes. Lá chegada, muda-se numa virgem de beleza
deslumbrante e consegue atrair a atenção de Set, que, sem saber
quem fosse aquela formosa donzela, se deixa prender pelos seus
encantos e chega a propor-lhe um encontro amoroso. Ísis,
aproveitando-se das disposições ardorosas de Set, conduz a
conversação para a causa que estava sendo julgada, e, com suma
habilidade, consegue fazer com que Set reconheça que os
direitos à sucessão de um descendente directo são mais
legítimos do que quaisquer outros. Feliz pelo êxito alcançado,
Ísis evola-se sob a forma de milhafre e deixa seu interlocutor
não somente desapontado mas furioso e humilhado. Em
desespero de causa, corre a queixar-se da duplicidade da deusa
ao Senhor Universal; este, porém, reconhece que Set se
condenou a si mesmo.
Em outra sessão, convoca da já na margem ocidental, o
Mestre Universal relata aos seus pares as declarações impru-
dentes de Set, e atribui a coroa a Horo, como legítimo sucessor
39
ao trono. Mas Set não se conforma com a derrota; jamais
permitirá que Horo reine. Propõe, portanto, uma competição,
onde esperava vencer o adversário. Ambos se transformariam
em hipopótamos e ganharia a causa aquele que conseguisse per-
manecer mais tempo embaixo d'água. Aceito o alvitre, ambos
mergulham. Ísis, porém, teme pela sorte do filho. Resolve ajudá-
lo. Lança n'água um arpão com o fito de ferir Set; mas, em lugar
de atingir a este, infelizmente fere seu próprio filho, que se
debate sob a água. Finalmente reconhece seu erro e mais que
depressa atinge Set. A seguir, numa dessas inconsequências que
recheiam o conto, apiada-se do concorrente ferido e lhe retira o
arpão das costas. Inesperadamente, Horo indigna-se com a
atitude materna, e, num súbito impulso de ira, degola a mãe;
depois transporta o corpo mutilado para a montanha, onde ele se
transforma numa estátua de sílex.
O Senhor Universal, furioso com a série de disparates,
ordena que Set vá buscar Horo. Aquele, em lugar de cumprir as
ordens recebidas, trava luta com Horo e arranca-lhe os olhos,
que logo se transformam no astro do dia. Hator, que encontrou o
infeliz Horo naquele deplorável estado, derrama-lhe leite de
gazela nas cavidades oculares e crescem-lhe novos olhos.
Entretanto Set não abandonara seus sinistros projectos.
Simulando sincera reconciliação com o adversário, convida-o
para um banquete, no qual a paz seria selada e o passado
esquecido. Na verdade, aproveita a ocasião para agir de maneira
infame, desonrando seu hóspede. Horo, com o auxílio materno,
vinga-se do rival usando o mesmo processo. Na sessão imediata
do tribunal, na presença de todos os deuses-juízes, cobre Set de
confusão.
Ainda que a decisão judicial fosse favorável a Horo, Set
tenta um último recurso. Recorre, novamente, às competições.
Subiriam ambos em barcos de pedra e quem ganhasse a regata
seria o rei e ganharia o trono. Horo construiu uma barca de
40
madeira e deu-lhe aspecto de pedra, iludindo o concorrente.
Naturalmente que sua barca chegou à meta, enquanto a de Set
logo imergiu. Este, imediatamente, se transforma num hipopó-
tamo, vira a embarcação de Horo e quase o consegue matar.
Horo queixa-se a Neit. A decisão que ela emitira fora confir-
mada reiteradas vezes pelos deuses, e, contudo, restava sem
efeito. Set continuava a exigir seus direitos e não se submetia à
decisão judicial. Como se o tribunal não estivesse
satisfatoriamente esclarecido a respeito dos direitos dos
litigantes, o Senhor Universal manda uma consulta, por escrito,
a Osíris, pai de Horo. Aquele logo responde admirando-se de
que a decisão judicial tardasse tanto a ser cumprida; admirava-se
de que demorassem em investir Horo do poder real, visto que
seus direitos eram incontestáveis. Continuando a carta, salienta
que, na qualidade de deus da Vegetação, estava na iminência de
deixar o país sem víveres; como deus dos Defuntos, via-se
compelido a enviar para a terra alguns emissários da Morte, que
de imediato reprimiriam a Injustiça e a Mentira. Tremem os
deuses; a carta produziu seus efeitos. Temendo as palavras
ameaçadoras de Osíris, os juizes correm a proferir o veredicto
solene: o trono pertence a Horo.Set, agrilhoado, comparece
diante do Senhor Universal,
e é constrangido a reconhecer os direitos do rival. Isto
feito, Horo, solenemente, ascende ao trono paterno; regozijo
universal; lsis exulta; os deuses o aclamam; a felicidade é total.
Quanto a Set, deixam-lhe o consolo de urrar no céu como
deus ou génio das Tempestades. Como se vê, o conto, às vezes,
tem afinidade com as fábulas milésias. Já quiseram ver, nessa
produção da época dos Ramsés, um testemunho do
enfraquecimento da fé; mas esse conto, criado para divertir o
povo, dirigia-se a um público muito diferente do que
actualmente estamos habituados a estudar. Não sabemos,
exatamente, como eles encaravam essas brincadeiras.
41
AS DIVINDADES E OS CULTOS POPULARES
Até agora mencionámos, em geral, as grandes divindades,
com culto reconhecido e que ornavam os grandes e sumptuosos
templos. Ao lado desses deuses "oficiais" havia os deuses meno-
res, mais populares, cujos cultos vicejavam entre gente humilde,
mas que contavam, também, adoradores entre as classes mais
abastadas. Esses cultos tomaram incremento durante o Novo
Império e nas épocas subsequentes. Assinalemos, aqui, algumas
dessas divindades populares.
O deus Bes, que era representado, geralmente, sob a forma
de anão disforme, com traços caricaturais e com a cabeça ornada
com uma espécie de "cocar" de grande plumas, tinha o papel de
afastar as influências perigosas. Era o protector das mulheres
que se achavam em trabalho de parto; presidia à música e à
dança; cuidava do sono e de tudo aquilo que dissesse respeito ao
cuidado corporal.
A deusa Tuéris, cujo nome significa" A Grande", era figu-
rada sob a forma de hipopótamo fêmea; seu papel apotropaico
era posto em evidência através do atributo que sempre a acom-
panha: o emblema que simboliza a protecção mágica; assistia as
parturientes e presidia aos cuidados da toilette. Às vezes era
assimilada à deusa Hator, como protectora das mulheres e das
mães.
A serpente Renenutet (Termútis). tinha como principal
função garantir colheitas abundantes; era especialmente adorada
pelos agricultores. que colocavam sua imagem na orla dos cam-
pos ou na entrada dos celeiros. Era, também, uma espécie de
Parca egípcia; no momento do nascimento da criança, fixava-lhe
o destino e assegurava sua completa realização.

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MAGIA E ORÁCULOS
No antigo Egipto o ofício de mágico era lucrativo e trazia
muitas honrarias para quem o cultivasse com esperteza. O faraó
tinha sempre a seu lado um feiticeiro, como se verifica da
Bíblia, no passo célebre em que os "sábios, encantadores e
mágicos" do faraó disputaram com Aarão a arte de transformar
os bastões em serpentes (Exodo, VII, 10, 11).
Já nos Textos das pirâmides se lêem fórmulas mágicas
contra serpentes e génios maléficos. No Império Médio os
mágicos trabalhavam com varinhas recurvas, em geral de
marfim, que, às vezes, terminavam em cabeça de animal (chacal,
leão etc.); nos lados, em geral, tinham figuras fantásticas de
serpentes e génios.
Os amuletos e fórmulas mágicas estavam ao alcance de
todos. Parece que a prática da magia atingiu o ponto mais alto
no tempo do império romano.
Os mais antigos oráculos de que temos notícia são
atribuídos não a um deus, mas ao faraó Amenófis, muito tempo
depois da sua morte, quando, na qualidade de semideus, era o
protector da necrópole de Tebas. Os sacerdotes de Amon, em
Carnaque, governavam em nome dos deuses, proferindo
oráculos que eram religiosamente observados. Durante a XX
dinastia o Egipto tornou-se teocrático. O sumo sacerdote
empunhava o poder e ditava sentenças pela boca de Amon. Às
vezes, para fazer mais efeito, uma estátua articulada proferia os
oráculos, e inclua o povo de terror.
Resef, "Senhor do Vigor", era representado com cabeleira
que lembrava a coroa do Alto Egipto, mas ornada com cabeça
de gazela; na sua qualidade de deus belicoso, numa mão segu-
rava a maça d'armas, na outra o escudo.

43
Astarte era especialmente adorada no quarteirão habitado
pelos fenicios, em Mênfis. Deusa dos Combates, freqüentemente
era figurada a cavalo e armada de ponto em branco. Esses atri.
butos bélicos, não impediam, entretanto, que fosse, ao mesmo
tempo, considerada como a deusa do Amor, e se confundia, por-
tanto, com Hator, às vezes com Ísis.

OS HOMENS DIVINIZADOS
Somente em épocas mais recentes os egípcios começaram
a atribuir honras divinas a criaturas humanas. Imotep, ministro
do rei Zeser ou Djeser, da III dinastia (cerca de 2 600 a.C.)
mereceu ser endeusado em virtude de seus extraordinários dotes;
a lembrança dessa personagem permaneceu viva na memória
dos egípcios. Sabemos, graças a descobertas recentes, que
Imotep, realmente, desempenhou importante papel ao lado do
soberano, na qualidade de Ministro dos Trabalhos.Com o correr
dos anos, a imaginação popular aureolou essa figura histórica
com atributos excepcionais; sua sabedoria e ciência médico-
mágica fez com que, na época greco-romana, o elevassem ao
número dos deuses. Construíram.Ihe santuários e foi assimilado
ao Asclépio grego.
Amenófis, filho de Hapu, foi valido do faraó Amenófis III
(XIV século a.C.), e teve destino semelhante ao de Imotep.
Tinha, também, o nome de Amenotepe; era arquitecto de
Amenófis III. Tornou-se deus-curador e instalou seu sanatório
em uma capela de Deir el-Bahari.
Amenófis I e sua mãe, Ames-Nefertári, gozaram de honras
divinas na necrópole de Tebas. Esnefru era adorado no Sinai; foi
o primeiro rei da IV dinastia (cerca de 2700 a.C.).
Sesóstris 11 era venerado na Núbia e Amenemes III no
Faium.

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É curioso constatar que o culto do rei tornado deus era,
sempre, limitado a uma comunidade de homens, que tinham,
profissional ou sentimentalmente, razões de honrar um
longínquo fundador.
Outros Que mereceram culto particular, ainda que não
totalmente popular: Ca$!,emni, Isi, príncipe de Edfu, e HecaIo,
cuja capela, na ilha Elefantina, foi há pouco encontrada,
juntamente com seu túmulo, em Assuão.
Como se vê, ainda que Heródoto observasse "que os
heróis no Egipto não eram objecto de nenhum culto", muitos
homens reis e plebeus - mereceram a honra de culto e
homenagem divinas.

AS PERSONIFICAÇÕES E OS GÉNIOS
Os egípcios gostavam de personificar o que para nós seria
pura abstracção. Essa tendência é responsável pelo grande
número de personificações, para nós extravagantes, que enchem
as narrativas mitológicas e os contos populares.
Maat, a ordem fundamental do Universo era uma personi-
ficação que gozou sempre de grande prestígio. A Vontade
Criadora foi personalizada em Hu; a Percepção, em Sia. Outros
conceitos, como a Magia, o Poder, a Vista, o Ouvido, foram
igualmente personificados. Toda a entidade geográfica era
susceptível de se personificar. Assumia a forma de génio.
Convém citar aqui, especialmente, os "Nilos", entidades
bochechudas, que carregavam produtos alimentícios e vasos;
personificavam ora o rio alimentador, fonte de vida e segurança,
ora as partes do Egito (o Alto e o Baixo Egipto), ora as
províncias do país. Distinguiam-se uns dos outros pela planta ou
45
símbolo ou emblema que traziam na cabeça. Vêm representados,
muitas vezes, nos plintos dos templos; são longas filas de Nilos
que trazem ao deus local os produtos das diferentes
circunscrições do país.

DIVINDADES ALIENÍGENAS
Quando os faraós da XVIII dinastia recuaram as fronteiras
do império até os confins da Mesopotâmia, os egípcios entraram
em contacto mais íntimo com populações indígenas de cultura
mais diversa.
Pela primeira vez conviveram com homens que adoravam
outras divindades que não as suas. Conheceram, então, os cos-
tumes e as crenças dos cananeus e dos sírios e chegaram, até, a
adotar alguns deuses do seu panteão.
A propagação de cultos asiáticos no vale do Nilo foi favo-
recida pela entrada no país de inúmeros estrangeiros, ora na
qualidade de prisioneiros de guerra, ora como artífices ou
mercenários a soldo do faraó.
No Egipto jamais os deuses cananeus foram objecto de
culto oficial. Seus adoradores recrutavam-se entre as camadas
mais pobres e mais humildes da população.
A partir do meio da XVIII dinastia, alguns deuses asiáticos
obtiveram direito de cidadania em Tebas e Menfis.
Não é raro deparar-se-nos o nome de Baal, Astarte ou
Anat nos textos da época; a popularidade dessas divindades, por
outro lado, é atestada por certo número de estelas votivas ou
mágicas nas quais eles aparecem.

O SINCRETISMO RELIGIOSO

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Para simplificar o exposto de um problema assaz
complexo, diremos que o sincretismo egípcio nasceu de dois
grandes factores: de um lado a centralização política do Estado
(nascido em vir. tude da justaposição de multidões de clãs tendo
cada um sua vida religiosa e seus cultos particulares); de outro
lado, a evolução da idéia de Deus.
A vida histórica do Egipto pôs em contacto, num mesmo
Estado, submetido a contingências económicas, a crenças gerais,
a um regime político comum, agrupamentos humanos cujos cul-
tos, desde tempos imemoriais, tiveram, sempre, forma indepen-
dente. A esse mosaico de concepções e de formas divinas sobre-
puseram, conforme a evolução da vida política do país ou das
crenças populares, cultos que se poderiam chamar "nacionais": o
de Ré, o Sol, desde a V dinastia; o de Osíris, a partir do Primeiro
Período Intermediário; o de Amon, a partir do Império Médio.
Ora, no Egito, é fato sabido, nada se substitui, tudo se justapõe.
Em todos os lugares onde os cultos mais gerais se introduziram,
não ocuparam os lugares dos antigos deuses: sobrepuseram-se a
eles; os deuses assim conquistados, enriqueceram-se com novos
aspectos; os deuses conquistadores, por seu turno, modificaram-
se, guardando, para ulteriores conquistas, um pouco dos
aspectos das divindades que acabavam de recobrir.
 esse primeiro aspecto, histórico e político, se deve ligar
a sorte de Osíris, assimilando sucessivamente Andjti, Socáris,
Quentamentiu; a de Ré, ajuntando-se a uma longa série de deu-
ses: Amon-Ré, Sobec-Ré, Cnum-Ré...
Da multidão de "deuses únicos" da pré-história, nasceu, no
Estado egípcio, multidões de cultos paralelos. Progressivamente,
então, desenvolveu-se a distinção entre o deus e a sua manifes-
tação sensível: A estátua, ou a imagem do culto, não é senão um
aspecto que fixa, em algum ponto do território, a presença
divina e universal. A partir desse momento, tornou-se

47
possível crer numa omnipresença real do deus, cujas formas
locais eram apenas aspectos que se completavam.
O sincretismo não é mais, nesses condições, que a tomada
de consciência de um transbordamento, fora das formas nas
quais o queriam cerrar, da força divina; justapondo, em figuras
"pânteas", os nomes e as formas físicas de várias divindades,
não se fez mais que exprimir, sob forma perceptível, a
convicção da omnipresença da divindade -de uma mesma e
única divindade incognoscível - em todas as suas manifestações
terrestres, por mais diversas que fossem.
Esse sincretismo tornou-se, na Baixa Época, muito geral;
deve-se a ele a surpreendente mistura de atributos e de epítetos
que "unifica" a maioria das deusas egípcias, que faz de todos os
deuses-meninos réplicas de Harpócrates, e agrupa, nas figu-
rinhas mágico-protetoras, os atributos de uma dezena ou de. uma
dúzia de deuses inicialmente distintos. Dele procedem, Igual-
mente, as litanias que enumeram os múltiplos aspectos indivi-
duais sob os quais um mesmo deus, que está presente em todas
essas formas, mas as transcende, igualmente, a todas, se mani-
festa através do país.
O sincretismo se exerceu, principalmente, em favor das
divindades que representam as forças da natureza ou as
principais funções da vida. Pelo fato mesmo da sua
universalidade, elas foram reconhecidas desde todas as idades
pelos habitantes de todas as partes do país, sob formas que,
embora diversas, se prestavam admiravelmente para formar um
todo. O amálgama produzir-se-á naturalmente entre os deuses da
Vegetação e os da Fecundidade e as deusa-mãe. A deusa tsis,
mãe de Horo, poderá ser assimilada a Hator, a deusa-vaca, a
Necabit, a deusa tutelar de EI-Cab.. e também a Mut, a deusa
tebana, cujo nome, aliás, 'significa a "Mãe".
Mas, sem dúvida, os que mais sofreram o sincretismo

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foram Ré, o deus solar, e Osíris, o deus fúnebre ou funerário.
O deus-Sol, revestido, mais que nenhum, de atributos
universais, logo será assimilado a todos os deuses que aspiram
ao primado. Já em Heliópolis se tinha operado a ligação entre
Ré e Atum de um lado, entre Ré e Horo-do-Horizonte de outro.
Em virtude do mesmo princípio, o deus-crocodilo de Faium se
chamou Sebec-Ré, o deus-falcão Montu, do nome tebano,
Montu-Ré, o deus-carneiro Cnum, de Elefantina, Cnum-Ré, e
assim por diante. Osíris, logo que foi elevado ao posto de rei e
deus dos Mortos, atraiu na sua esteira uma infinidade de deuses
funéreos. Em Abidos suplantara o deus Quenti-Imentiu, o
"Chefe dos Ocidentais"; em Mênfis assimilou-se com Socáris, o
antigo deus da necrópole local.
Às vezes é suficiente que as divindades tenham a mesma
aparência para que logo sejam confundidas. O exemplo mais
característico é fornecido pelos deuses-falcões, quase todos
susceptíveis de se transformarem em Horo. Da mesma maneira,
as deusas-vacas logo serão assimiladas a Hator.
Essas fusões convinham perfeitamente ao espírito egípcio,
para o qual, a associação de imagens ocupava o lugar do
laço .lógico; tratava-se, segundo as concepções egípcias, de
aspectos diferentes da mesma realidade.
Na verdade, o sincretismo serviu para misturar, de maneira
inextricável, concepções que nada tinham em comum. Daí o fato
de a mitologia egípcia parecer, às vezes, disparatada e incoe-
rente.

A DOUTRINA DE ATON
Para expressar por meio de palavras a imensa força vital
do sol, os egípcios diziam Ré; pronunciavam os diversos nomes
49
do deus de Heliópolis, rezavam a Amon-Ré e a outras
personagens nas quais se manifestava o Senhor da Luz, mas que
assumiam corpo humano e se ornavam com atributos individuais
para se oferecerem em adoração aos homens. Mas diziam Áton
quando se falava do astro como de um dado positivo da
experiência.
Por volta do século XV a.C. manifestou-se no seio da
religião egípcia uma forte tendência a favor do culto solar.
Dessa época restam-nos inúmeros hinos dedicados a Amon, o
deus do Império, mas que, na realidade, se dirigem ao deus solar
Ré-Haracti, cuja obra criadora exaltam em hipérboles
magníficas. Nessas composições, nas quais se manifesta robusto
amor à natureza, as alusões mitológicas cedem lugar a figuras
que referem a acção providencial do deus-Sol: É ele que cria e
vivifica tudo que existe, sua solicitude se estende a todos os
viventes; é ele que assegura a conservação e o bem-estar não só
aos homens, mas também aos animais e às plantas. Essas
concepções, que respondiam tão bem às aspirações da época,
criaram ambiente favorável para a expansão de uma nova
doutrina, a qual ficará sempre ligada ao nome do seu fundador.
Assim nasceu, por volta de 1450 a.C. o deus Aton ao qual
Amenófis III votava particular afeição. O filho deste rei, brusca-
mente, repudiou o patrocínio de Amon-Ré, rei dos deuses,
senhor do Império, pai da dinastia e, também, força é confessar,
o primeiro capitalista do reino. Com efeito, Amenófis IV se
recusou a pactuar, como seus antepassados habilmente o haviam
feito, com um clero insolente e cúpido; negou-se a cultuar
Amon. Seu próprio nome o ofuscava: Amenófis quer dizer"
Amon está satisfeito". Transformando em Akhenaton o seu
nome, isto é, "Aquele Em Que O Disco Põe Suas
Complacências", resolveu fazer de Amarna, cidade do Alto
Egipto, o centro da sua religião pessoal. Uma heresia é uma
escolha, dizem os entendidos. Jamais escolha foi mais exclusiva
50
nem mais contrária ao espírito do bom paganismo egípcio. Os
templos milenários, em tomo dos quais gravitava a alma do
povo, foram abandonados; apagaram da face da terra toda e
qualquer menção de Amon. "O belo filho de Aton" e Nefertíti, a
formosa rainha, não pensam senão em multiplicar as oferendas
em honra do Sol visível, fonte de toda providência. Por toda a
parte erguem-se seus altares. Hierofania obcecante, uma imagem
sóbria domina tudo: O sol derramando o sinal da vida através
dos seus infinitos raios brilhantes. O rei canta num "grande
hino" o seu entusiasmo maravilhado, texto embriagador que
todos conhecem de inúmeras traduções: "Ergues-te esplêndido
ao cimo celestial da luzi Etemo Sol, fonte vital!/ Quando o teu
brilho vence o céu oriental,/ Inebria-se o mundo com a tua
beleza./ Teus raios beijam toda a tua criação./ És vencedor!
Abraça-nos a todos,/ Une-nos todos com teu amor!" Esse hino
inspirou indirectamente um dos Psalmos.
Amenófis encontrou grande oposição no meio conservador
da aristocracia local; combateram-no, ferozmente, o alto clero
do deus Amon e todos aqueles que dependiam do antigo deus.
Os sacerdotes não se conformavam em ver, diariamente, crescer
o prestígio e a opulência do novo deus, ao passo que Amon
empobrecia e definhava. Em circunstâncias mal conhecidas,
Amenófis IV rompeu definitivamente com o clero tebano.
Fechou os templos de Amon e ordenou que quebrassem ou
mutilassem todas as estátuas do deus; mandou, também, que se
apagassem as inscrições que traziam seu nome. A fim de
consumar a ruptura com o antigo culto, decidiu transportar a
corte e seus adeptos para a nova capital que fundara e à qual
dera o nome de "Horizonte de Aton". As ruínas dessa cidade
foram encontradas no sítio de Tell-el-Amarna.
Lá o rei visionário viveu alguns anos na ilusão de que
instituíra uma nova ordem sob a égide do Disco solar. Ainda que
revolucionária, a doutrina Hatoniana" valeu-se de elementos da
51
teologia heliopolitana. O deus que lhe forma a base é o deus-Sol,
ao qual se atribuem os traços característicos do deus
heliopolitano e ao qual, durante certo tempo, continuam a dar o
nome de Ré-Haracti, ainda que designando Aton, o Disco. Mas a
nova doutrina representa uma forma depurada e racionalizada do
sistema que a inspirou.
Rejeitando o politeísmo com a sua complicada mitologia,
Amenófis reconhece apenas um só deus, que se confunde com o
disco solar, o Disco. Aton é a fonte de toda a luz e de toda a
vida; é, sobretudo, o detentor do Maat, conceito assaz vasto e
equívoco, que compreende, ao mesmo tempo, implicações de
ordem cósmica, de justiça e de verdade.
Conforme as concepções que nasceram sob as gerações
precedentes, Aton tomou-se realmente o deus-Providência que
assegurava o bem-estar ao povo assim como aos estrangeiros; a
todos unia no seu amor. Por meio da sua luz, diariamente
renovada, e unido à força do Nilo, assegurava aos homens e aos
animais a subsistência e a felicidade.
Trata-se, como logo se percebe, de doutrina impregnada
de amor à natureza; o deus se comunicava diretamente a suas
criaturas, sem intermediários. Tal ideal deveria, por força, dar
margem a largos vôos líricos; de feito, os hinos que nos restam
dessa fase de vida religiosa do Egito, são magníficos e cheios de
entusiasmo e vigor.
Acnáton ou Akhenaton ("Aquele Que F. Devotado A
Aton") se considerava o confidente e o profeta de seu deus.
Vivendo em íntima comunhão com Aton, recebeu deste a
revelação de uma nova ordem e o encarregou de espalhar seus
preceitos por entre os homens. Nas inscrições tumulares dessa
época há muitas alusões aos ensinamentos ministrados pelo rei e
que foram extremamente úteis aos felizes defuntos que lá jazem.
Mas uma doutrina tão sublime, fundada sobre o princípio
52
do monoteísmo, e que proclamava o amor entre os homens, e
que não conhecia barreiras entre as raças, não teve tempo para
firmar suas raízes. Durou tanto quanto o reinado de Akhenaton,
que foi relativamente curto.
Acredita-se que jamais a nova doutrina tenha sido sincera-
mente aceita, salvo por poucos adeptos que mais intimamente
viviam com o rei e sofriam sua directa influência. O povo, e
principalmente os meios tradicionalistas, secretamente permane-
ceram fiéis às crenças antigas.
Logo que Akhenaton morreu, Amon voltou a ocupar o
antigo lugar; os fracos sucessores do reformador foram
obrigados a restabelecer não só Amon mas também os demais
deuses proscritos e lesados nos seus direitos. O usurpador
Horemheb empreendeu a contra-reforma e encarniçou-se em
apagar no país o nome e os vestígios do novo deus. Aton, daí
por diante, estava votado à execração.
O deus Aton era representado sob a forma de um disco,
cujos raios, dirigidos para a terra num vasto leque, terminavam
por mãos abertas, isto é, .espalhavam os benefícios do deus
sobre todas as criaturas.

SERÁPIS
No fim do Novo Império, entra em decadência a grandeza
do Egipto. Esmaecem os cultos, desagregam-se os costumes em
contato com os estrangeiros. Durante a XXVI dinastia, por
algum tempo, alguns faraós restabeleceram a unidade política;
foi um período de renascimento nas artes e na religião; grupos
de sacerdotes tentaram restaurar as primitivas instituições. Mas
o nível das idéias baixara consideravelmente, e o ardor primitivo
da alma egípcia decaiu para a zoolatria.
Nos tempos dos Ptolomeus precipita-se a decadência,

53
ainda que exteriormente o culto brilhasse com inusitado vigor.
Nos centros cosmopolitas, em Alexandria principalmente, as
pessoas cultas se desprendiam insensivelmente das antigas
crenças, ou então pretendiam modernizá-las, dando-lhes cunho
helenístico. Os gregos, então, representavam a ciência, a
filosofia, a civilização mais requintada. Os deuses do Olimpo
participam do panteão egípcio. Zeus-Amon domina.
Em Alexandria Osíris cede o lugar a Serápis, cuja origem
ainda não se logrou explicar. Segundo tradição duvidosa, teria
sido trazido por Ptolomeu lI, em virtude dum sonho; o novo
deus foi ricamente instalado num templo e logo se tornou o
favorito dos alexandrinos. Deus híbrido, parece que o nome
deriva de um anagrama de Osíris e Apis.
Mas a religião egípcia deveria sucumbir somente sob o
impacto tremendo do Cristianismo; até a aurora do IV século,
em alguns recantos distantes do Egipto, certas divindades
particularmente populares serão ainda objecto do culto
tradicional. Faraós e a mãe de seus filhos, eram, ao mesmo
tempo, as "Esposas do Deus Amon". Mas, nos períodos
posteriores, a partir do tempo dos Reis-Sacerdotes, uso de
origem incerta queria que uma filha do faraó fosse
especialmente consagrada como "Esposa do Deus", e que esta
Adoradora permanecesse virgem. Essa tardia instituição de
teogamia à moda babilónica, permaneceu largo tempo
desconhecida, a despeito do testemunho de Heródoto. Casada ao
deus Amon, a Adoradora rendia-lhe um culto de discreto
erotismo, encantava o deus com a sua beleza e com a música do
sistro; assentava-se em seus joelhos e passava-lhe os braços ao
redor do pescoço. Dispunha de moradia particular, dotada de
terras e serviçais, e possuía todos os atributos formais do faraó;
mas seu poder era mais espiritual que político. Normalmente,
como filho, tinha uma princesa, que ela adoptava. Junto dela
havia um harém de concubinas de Amon, formado de virgens
54
como ela e mães adoptivas de sua substituta.

AF-RE. - Nome da forma de deus que Ré-Osíris assumiu


durante a sua jornada através das regiões dos Infernos chamadas
Tuat.
Igualmente dava-se tal nome ao monstruoso COI-pO da serpente
chamada Anc-Neteru, de onde ele emergirá como Quépera (ou
Quéfera).
AFTAS - Nome de uma divindade que foi identificada ao
Hefestos grego (Vulcano em latim). ALOGOS -Sobrenome que
os egípcios davam a Tífon (ou Tifão), como representando as
paixões inimigas da razão. AMEN -O mesmo que Amon.
AMENT -Mulher companheira de Amon (ou Amen), anterior a
Mut, a esposa de Amen-Ré na origem da tríade de Tebas; ambas
eram chamadas as "Senhoras dos Deuses". Ament algumas
vezes era representada com cabeça de carneiro.
AMIT -Monstruoso crocodilo híbrido que devorou os corações
que depois faltaram para equilibrar os pratos da balança no
julgamento de Osíris.
AMON -"O Deus dos Deuses" ou "O Rei dos Deuses" faz a sua
aparição solene no começo do Império Médio; aparece na região
tebana. De onde veio? Não se sabe com certeza. Alguns sábios
egiptólogos, constatando que um dos deuses da ogdoade
hermopolitana tinha o nome de Amon ("O Deus Escondido"),
concluíram que esse obscuro génio da velha cidade teológica
tinha sido emprestado pelos tebanos para servir de núcleo a uma
nova família divina. E. mais provável, porém, que Amon, na
época, fosse apenas um obscuro deus local da Tebaida, implan-
tado em Carnaque há muito tempo. E. verdade que a sua
55
teologia, que nele vê um deus do ar, ou ainda um deus da
fecundidade, se constituiu de empréstimos feitos às grandes
doutrinas de Heliópolis, de Hermópolis e de Mênfis, às vezes de
cultos menos célebres, como o de Min de Copto.
Representavam Amon como um ser humano, às vezes dotado de
cabeça de carneiro; Mut, deusa local de um burgo vizinho a
Carnaque, e Consu (ou Conso), deus lunar, tornaram-se,
respectivamente, sua esposa e seu filho.

Dicionário da Mitologia Egípcia

A - Entre os egípcios era o hieróglifo que representava a íbis,


ave sagrada.
AALU - O Céu. Designava, também, os "Campos de paz" na
abóbada terrestre, onde Ré tinha seu trono; era, portanto, a
morada dos deuses e das deusas, assim como das almas de todos
os egípcios respeitáveis.
As terras férteis, que populações felizes habitavam, mereciam,
igualmente, o nome de Aalu. Finalmente, dava-se essa
denominação àquela parte do Céu, espécie de Campos Elísios,
onde se desenrolou o reinado de Osíris.
AARU - V. Aalu.
ADORADORAS DE AMON - Entre as tocantes imagens
que o Egipto antigo nos deixou, destacam-se aquelas que
representam Caromana, Amenárdis e Sapenupet. Essas altas
personagens não foram rainhas comuns. Eram, no tempo dos
reis líbios, etíopes e saí tas, as "Divinas Adoradoras de Amon",
as verdadeiras esposas do deus. Na época do Novo Império, as

56
rainhas esposas dos

Foi a política que assegurou o sucesso histórico de Amon.


Deus dos reis tebanos que expulsaram os hicsos, tomou-se o
deus supremo do Estado libertado, e logo a seguir o protetor do
Império que então se constituiu. Sob as dinastias do Novo
Império podemos ver com mais precisão a sua vertiginosa
carreira. Os templos, as riquezas fabulosas que possuía, o clero
poderoso que o servia, clero esse que desempenhou em
inúmeras ocasiões papel importantíssimo, mostram à evidência
que seu prestígio e poder cresceram desmesuradamente no
espaço de poucos anos, deixando para trás todas as demais
divindades do país. A decadência de Amon nasceu desse
excesso mesmo de poder: muitos cultos tinham sido lesados e os
sacerdotes de Amon, excessivamente poderosos, não raro
representavam temível ameaça para os faraós. O episódio de
Amarna - v. ,{ton - não foi senão um caso isolado, um brado de
alerta; sob as dinastias seguintes vemos a continua ascensão dos
cultos que Amon eclipsara. Sem dúvida, o grande deus te bano,
durante muito séculos, conservará.. ainda seu poder; durante
muito tempo será o deus nacional; os seus sumos-sacerdotes
encontrarão, até, a possibilidade de instituir reis e de governar o
país através de oráculos; seu culto espalhar-se-á até aos oásis
líbios, e os soberanos etíopes o adoptarão como deus supremo.
Mas a destruição de Tebas (664 a.C.) pelos assírios deu o
golpe de misericórdia no culto de Amon. Os deuses das provín-
cias, libertadas do jugo económico de Tebas, ergueram a cabeça
e retomaram antigos direitos e privilégios; Osíris, pouco a
pouco, começa a ocupar o lugar que fora de Amon; em Tebas,
arruinada e sem prestígio, Amon contava, ainda, com alguns
57
adoradores. AMULETOS - Por virtude de participação natural, a
imagem é um tão verdadeiro receptáculo de forças activas, que o
homem mumificado, para defender a sua vida eterna, abarrota-se
de figurinhas, enfiadas em forma de colar. ou dispostas sob as
faixas. Esses amuletos, conforme a situação económica do
defunto, eram de ouro, de bronze, de pedra ou de faiança. Todo
o imenso e confuso panteão egípcio, deuses e animais sagrados,
é reproduzido por esses minúsculos ídolos, alguns de graça
encantadora, que velarão com segurança sobre os corpos
mumificados.
Emblemas reais conferem a força supra-humana dos
faraós; hieróglifos petrificados concedem" a vida" ou "O
verdor"; outros, a consciência (literalmente "o coração").
Os mais poderosos, e também os mais comuns, são os
talismãs ou amuletos que representam o escarabeu, o djed, o nó
de Ísis e o udjat, isto é, o olho arrebicado ou pintado com tintas
escuras, como exactamente hoje em dia costumam fazer as
moças elegantes, que enegrecem as pálpebras e escurecem os
olhos; é o olho do deus celeste, sublinhado com estranha
mancha, a qual matiza a cabeça do falcão que tudo vê e
simboliza a plenitude física e a fecundidade universal.
Também os vivos usavam amuletos. O "cartucho" do rei, a
face de uma divindade emergindo de largo colar, caurins, búzios
e conchas do Mar Vermelho, e, para as damas, especialmente, as
efígies de Bes e de Tuéris, eram bons encantamentos protetores.
Udjat, escarabeus, coração etc... não eram amuletos
exclusivamente funerários.
Para curar uma enfermidade prescrevia-se trazer no
pescoço ou um nó de caniços ou hastes de cebola trançadas;
havia receitas mais custosas: "40 pérolas ordinárias, 7
esmaragditas, 7 pérolas de ouro, 7 fios de linho", asseguravam
brilhante porvir ao nenê nascido antes do termo.
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AMUN -O mesmo que Amon.
ANAQUIS -Um dos quatro deuses Lares (divindades
domésticas), adorados pelos egípcios. Os outros três eram:
Dímon, Tíquis e Heros:
ANC-NETERU -Serpente através de cujo corpo
gigantesco o bote de Af-Ré, carregado de almas, foi arrastado,
sem perigo, por doze deuses; foi essa a barreira final na jornada
para o Paraíso.
ANIMAIS SAGRADOS - A zoolatria egípcia provocou o
espanto dos gregos, as crueldades dos persas, os sarcasmos dos
romanos e as zombarias indignadas dos Padres da Igreja, no
albor do Cristianismo.
Essa zoolatria incompreendida teve seu início bem antes
do ano 3000 a.C. Ela via nos animais algo mais que emblemas
ou símbolos: os animais mereciam ser cuidados e adorados
porque eram os receptáculos das formas boas ou temíveis do
poder divino.
Em cada cidade, o deus tribal, desde toda a eternidade, se
encarnava numa espécie protegida pelo tabu: bovinos, carneiro,
cão, gato, macaco, leão, hipopótamo, crocodilo, serpentes,
falcão, íbis, icnêumon etc.
Às vezes era um animal particular, reconhecível por
determinados sinais, que reinava noS templos: assim o famoso
boi Apis, que era um touro. Heródoto: "Esse jovem touro, que se
chama Apis, apresenta os seguintes sinais: é negro e traz sobre o
dorso a imagem duma águia, os pêlos da cauda são bifurcados, e
sob a língua tem a imagem dum escarabeu".
O touro Apis tinha outros companheiros, o Mnévis de
Heliópolis e o Búquis de Hermôntis. Muitas vezes vários
representantes da raça eram alimentados no templo: crocodilos,
macacos, íbis etc. O cuidado de tais parques, garantia

59
sobrenatural da vida local, era regra durante a Baixa ~poca, na
qual a zoolatria prosperou com tanto mais intensidade, quanto
mais virulento era o desprezo dos bárbaros. Era o tempo, refere-
nos Heródoto, em que um egípcio deixava arder seus móveis,
mas expunha a vida para arrebatar um gato do fogo. Era o tempo
em que um cidadão romano se via linchado por ter matado um
gato. Heródoto: "'Quando, numa casa, um gato morre de morte
natural, todos seus habitantes raspam as sobrancelhas, as
sobrancelhas somente; lá onde morre um cão, raspam o pêlo de
todo o corpo, da cabeça aos pés. Os gatos mortos são levados
para locais sagrados onde recebem sepultura depois de terem
sido embalsamados. Aos cães, cada um lhe dá a sepultura na sua
cidade, em féretros sagrados",
Especialmente desse período nos vêm as inumeráveis
múmias de animais de toda espécie. Eram agrupados por raça ou
misturados, em fossos ou hipogeus; comumente guardavam-nas
em relicários de bronze, feitos à imagem do animal cuja múmia
ele continha. Cuidar da sepultura dum animal, fosse sagrado,
familiar ou desconhecido, era dever que todos procuravam
cumprir. A respeito, temos um texto: "Dei pão ao homem
faminto; ao sedento, água, roupas ao que estava nu. Cuidei das
íbis, falcões, gatos e cães divinos; inumei-os ritualmente,
ungidos com óleo e recobertos com estofos".
ANüBIS - O deus Anúbis, ordinariamente, era honrado
com quatro epítetos: "Aquele que é a faixinha ", "Presidente do
divino pavilhão", "Senhor da necrópole" e "Aquele que está
empoleirado sobre a sua montanha".
O primeiro epíteto não sabemos o que significa;
"Presidente do divino pavilhão" significa que ele era venerado
no lugar onde se procediam as mumificações, pois Anúbis
embalsamara Osíris e se tornara o protector dos
embalsamadores; "Senhor da necrópole" e "Aquele que está
empoleirado sobre a sua montanha", porque esse deus introduzia
60
os mortos no outro mundo (psicopompo) e velava sobre as
sepulturas, tendo se encarnado no cão selvagem - ou chacal -
que ronda os cemitérios.
Antes de Osíris consideravam-no o grande deus funerário;
a ele dirigem-se os votos de uma vida além-túmulo gravados nas
mais antigas mastabas.
Seus santuários eram assaz numerosos; o mais célebre de
seus templos se encontrava no Médio Egipto, na cidade que os
gregos chamavam de Cinópolis, "A Cidade dos Cães".
APED - V. apel.
APIS -Os touros sagrados encontrados por Mariette nas
catacumbas de Sacara possuem longa história, tão velha como a
civilização egípcia, e que só findaria com o triunfo do Cristia-
nismo.
No curso dos séculos, a imagem inicial do animal
procriador, símbolo da fecundidade, o touro, enriqueceu-se com
inúmeros outros aspectos. Apis era adorado em Mênfis, cujo
padroeiro era Ptá; não tardou em se lhe associar e se tornou a
manifestação do deus, "Sua Alma Magnífica". De Ré lhe veio o
disco solar que carrega entre os cornos.
A seguir Apis funde-se com Osíris e o amálgama dá
origem a uma divindade funerária. Desde então a morte do touro
toma importância capital; as autoridades celebram suas
obséquias no meio de grande concurso de fiéis, que lhe trazem
seus dons de todas as partes do país. Mas apenas Apis
desaparece, renasce em outro envoltório mortal. Os sacerdotes
percorrem as campinas e os pastios e examinam os rebanhos a
fim de identificarem o deus, reconhecível por marcas
particulares. Encontrado o animal, ao pranto e às lamentações
sucede-se o regozijo universal. O novel touro é entronizado no
seu estábulo sagrado de Menfis, junto de sua mãe, onde viverá
cercado de um harém mugi dor.
61
Não se sabe, ao certo, se o touro Apis era branco com
manchas pretas, ou negro com manchas brancas; a iconografia, a
respeito, é duvidosa. Conta-nos Heródoto que Cambises, o con-
quistador do Egipto, cruelmente feriu o touro sagrado; logo a
seguir enlouqueceu.
APóFIS -V. Apópis.
APóPIS -Apópis era um demónio-serpente, de tamanho
gigantesco, que ameaçava, de manhã e de tarde, a ordem
cósmica, em atacando a barca do Sol. Sempre vencido, mas
sempre renascido, era indestrutível e constituía um elemento
fixo da harmonia universal: era o equilíbrio do Mundo. Quase
todos os textos religiosos mencionam os ataques de Apópis e a
sua derrota; os rituais mágicos, compostos para os templos,
evocam as técnicas operatórias de feitiçaria ou de execração pOr
meio das quais oS oficiantes, no momento crítico, podiam
paralisar os ataques do monstro.
A interpretação progressiva dos diversos sistemas
teológicos levou, finalmente, a identificar Apópis com Set, que
outrora fora seu pior inimigo, e que se tornou, ele também, o
símbolo das forças hostis e das revoltas contra os deuses do céu.
APUAT -Personificação do solstício de inverno. Foi
associado com Anúbis como Upuaut, "Aquele Que Abre Os
Caminhos" para Osíris.
ARFAS E -Outro nome de Osíris.
ARUI::RIS -Filho, segundo a tradição, de Ísis e Osíris. Às
vezes era confundido com Horo e Anúbis. Tinha uma estátua na
Fenícia. Seu templo, portátil, era conduzido por bois.
ASO - V. Ason.
ASON - Rainha da Etiópia e concubina de Set (Tífon ou
Tifão). Ajudou-o a tramar ciladas contra Osíris, quando este
regressou de suas viagens.
62
ATIR -"A Noite" ou "As Trevas", divindade egípcia.
ATON - Divindade solar representada pelo disco do Sol,
criada por Akhenaton, o faraó herege.. Não é certo afirmar,
como o querem alguns, que a doutrina de Aton representasse
puro mÇ)noteísmo; ela o foi tanto quanto outras que a
precederam; também a exaltação das mil bondades do "Senhor
Universal" não era ideia original de Akhenaton. A única coisa
inédita trazida com a criação de Aton, foi o confisco dos bens de
Amon; esse fato, provavelmente, determinou a rápida queda do
culto, que morreu com o seu criador. A originalidade religiosa
do culto de Aton residia, isso sim, no seu lirismo sensual e na
íntima união da criatura com o Criador, onde se afirmou
fortemente a personalidade assaz mística de Acnáton. Aton era
representado pelo Disco solar.
ATOR -Deusa do Amor. Confunde-se com a Afrodite
grega e com a Vénus romana.
ATUM - Uma das grandes divindades egípcias. De manhã,
aparecendo como o falcão de olhos faiscantes, é o "Horo do
Horizonte"; de dia é Ré, simplesmente, com corpo humano e
cabeça de falcão encimada pelÇ) uraeus e pelo disco; de noite é
Atum ou Atum-Ré, sempre com forma humana, tendo em si o
princípio de vida, quando tudo são trevas ou nada. Antes de
renascer à luz é Ré-Cóprer,isto é, o Escaravelho; vêmo-Io,
então, de cócoras com cabeça de escaravelho.
As adorações dos mortos dizem-lhe: "Atum, deus que é
deus por si mesmo, o Antigo que existe desde o começo.
Aclamação a ti, autor dos deuses”
AVES -V. Pássaros.

B
BA - Quando os egípcios modernos e cristãos (os coptas)
63
falam da alma, usam o termo grego psique; isto indica clara-
mente que nenhuma palavra da antiga língua correspondia
exactamente à noção cristã de alma, elemento espiritual, imortal
e individual. Contudo, são inúmeros os termos egípcios que
designam o composto do ser humano; mas, infelizmente, jamais
se preocupam em definir claramente e5sas noções.
Enquanto vivo, as forças espirituais de um egípcio
compreendiam ao menos dois princípios distintos: o ca (ka) e o
akh. Figurado pela imagem hieroglífica da íbis com penacho, o
akh éum princípio imortal; dizem-nos os textos que "se o corpo
pertence à terra, o akh pertence ao céu".
À mesma raiz correspondem as palavras que significam
"brilhar", mas também "ser eficaz", e parece que é preciso ver
no akh um poder invisível, que pode prestar sua eficácia aos
homens, mas aos deuses igualmente. Em alglills contextos akh
se aplica aos "Génios" ou "Espíritos", formas intermediárias
entre os deuses e os humanos; designa, não raro, os moI:tos
privilegiados ou, ainda, os que retomam.
Entre os coptas, os akhu, outrora tão prestigiados, hoje são
demônios. O bd (ou ba) é um aspecto mais definido da alma
humana; é a parte espiritual do indivíduo, que, após a morte,
encontra sua individualidade e pode errar à vontade, por toda
parte.
Os papiros religiosos figuram o bd sob a forma de um pás-
saro com cabeça humana, que pode permanecer na vizinhança
do corpo defunto, na câmara fúnebre, mas prefere, comumente,
voar ao ar livre, reencontrar aqueles lugares que foram gratos ao
morto quando a vida lhe corria nas veias. O bd, pois, é elemento
espiritual que pode aparecer independentemente do seu fulcro
físico, agir por própria conta, "representar," de certa maneira, o
patrono.
Fala-se, também, de animais que são o bd de um deus, sua
64
manifestação física, e de deuses que são o bd de outros deuses,
praticamente suas hipóstases.
No plural, os bau são agentes de acção exterior àquele Que
os detém; designam manifestações longínquas de um ser vivo ou
de um deus, esta parte destacável dele mesmo e que age à
distância; é costume traduzir bau por "poder"; mas é necessário
precisar que se trata duma potência ou poder que escapa às
contingências espaciais e se estende bem além do lugar onde o
portador dos batI se encontra.
O ba seria, numa forma mais inteligível, a alma itinerante
de um ser vivo, capaz de ação material.
Ao lado desses princípios, o ca, o akh e o bd, que se uniam
para formar um ser completo (corpo e alma com faculdades), a
personalidade de um egípcio contava, ainda com inúmeros ele-
mentos, tais como a sombra e o nome, que traduziam a sua
essência íntima.
BAAL- TSÉFON -Ídolo que os mágicos egípcios
colocaram no deserto, como uma barreira, a fim de deter os
hebreus e impedi-los de fugir.
BABU1NO -O deus Tot ou Baba. - V. Macaco.
BACA -Touro sagrado de Hermôntis, encamação de
Mentu. Esta figura mitológica às vezes aparece com o nome de
Búquis. -V. Animais Sagrados. BARCAS SOLARES -O Sol
tinha duas barcas ou naves celestes, que vogavam nas amplidões
do Céu. A imagem cosmográfica concebida pelos egípcios era
inspirada no aspecto geográfico do vale do Nilo. O mundo era
uma plataforma de terra cortada ao meio pelo rio Nilo e cercada
de água por todos os lados. Por cima desse mundo tabular havia
um céu, que era também uma plataforma, separada do solo pelo
Shu, o deus dos espaços aéreos. Nos quatro cantos do mundo
havia os quatro esteios que mantinham o céu em equilíbrio.
Neste céu vogavam as barcas do deus Sol, Ré.
65
Nos cemitérios que datam da mais alta antiguidade, encon-
traram-se, flanqueando certas sepulturas, provavelmente princi-
pescas, escavações naviformes e que comumente conservavam
destroços de embarcações.
Em 1954, ao pé da inclinação sul da Grande Pirâmide,
duas fossas cobertas com lajes ciclópicas foram inopinadamente
descobertas. No fundo de uma delas estava um navio com popa
papiriforme, desmontado com ordem, completo, desde a quilha
atéo toldo que cobria o convés. Os especialistas do Museu
Egípcio montaram esse navio, peça por peça, feita de
pedacinhos de cedro, minuciosamente ajustados; tem quase 40
metros de comprimento. Os sábios aventaram a hipótese de que
as barcas assim enterradas na necrópole permitiriam ao defunto
identificar-se com Ré; falava-se, pois, comum ente, nas "barcas
solares de Gizé".
Mas outras conjecturas são plausíveis: as barcas serviriam
para passeios no outro mundo; seriam verdadeiras barcas-cata-
falcos, perpetuando, com a sua presença, a virtude dos ritos de
sepultamento; poderiam ser, também, barcas místicas, que con-
duziriam peregrinos para se revivificarem nos longínquos
lugares sagrados...
Todos esses gêneros de barcos, com efeito, são conhecidos
através dos ritos funerários. Sugerem, pois os egiptólogos, que,
de momento, se fale apenas, na "barca de Quéope".
BASTET -Deusa-gata que, na origem, era deusa-leoa.
Adorada principalmente em Bubástis, no Baixo Egipto, o seu
templo contava centenas de efígies de bronze; algumas dessas
estatuetas emprestavam ao corpo feminino da divindade uma
gentil cabeça de gata; outras mostravam Bastet como gata-mãe
aleitando os filhotes; outras, finalmente, a figuravam como gata-
rainha, ricamente trajada e enfeitada.
Segundo outra interpretação, nastet, depois de ter personi-
66
ficado o calor fecundante do Sol, foi a deusa da Alegria, que
protegia o homem contra as doenças.
BES - Génio familiar, disforme, hirsuto e careteiro,
emplumado, vestido com pele de leão. Tinha por ofício proteger
os homens contra as influências nefastas ou malignas, contra os
répteis peçonhentos e contra os seres malfazejos.
Seu aspecto ridículo excitava o bom humor e a hilaridade.
Figuravam-no ora sobre estelas, vasos ou amuletos, ora em luga-
res sérios e sagrados, como os templos.
Fazia parte do cortejo de demÓnios benéficos que
protegiam a mulher em trabalho de parto de todo contacto
pernicioso.
BÉTILO - O sentido primitivo do bétilo, que diz, respeito
à litolatria e que define a pedra sobrenaturalizada (pedra-divin-
dade ou pedra que contém a sede ou os poderes da divindade,
por oposição à imagem da divindade), ampliou-se mais tarde;
aplic~ndo-se, igualmente, ao marco de pedra e à pedra talhada
em geral, por oposição às pedras brutas.
/O bétilo era adorado pelos sírios e fenícios; não se sabe,
precisamente, qual era a sua situação entre os egípcios. Bétilo é
de origem semita: beith-el, "Habitação Divina" (Gênese,
XXVIII, 10-22). Daí o nome do lugar de que fala a Bíblia, Betel,
que traduzem vulgarmente por "Casa de Deus". Às vezes bétilo
é confundido com abadir, que significa "Pai Venerável",
também termo semita. BEZA -Divindade adorada na cidade do
mesmo nome, no Alto Egito. Tinha um oráculo que proferia as
respostas por meio de bilhetes selados. BUS1RIS -1) Rei de
Tebas, que ele fortificou com poderosas muralhas, a fim de
repelir os ataques dos etíopes. Diziam os gregos que era filho de
Júpiter (Zeus) e da Líbia, ou de Netuno (Poseidon) e da Líbia,
ou, ainda, de Anipa. Refere a lenda que, pelo fato de imolar
vítimas humanas, para fazer cessar a peste que grassava em
67
Tebas, foi morto por Hércules, que aboliu o execrável ritual.
Seu nome, P-Usiri, significa, literalmente, "Morada de
Osíris". 2) Nome de várias cidades do Egito, que ainda hoje
trazem o nome ligeirament alterado: Abusir. A mais célebre
dessas cidades situava-se no Baixo Egipto, nas vizinhanças
imediatas de Mendes.
BUTO -1) Divindade egípcia.
O sânscrito bhuta deu origem ao termo bulo, "demónio"
ou "espírito maligno". 2) Capital do reino do Norte do Egipto
pré-histórico.
Mais tarde, Amon, o obscuro deus local de Tebas, tomou o
carneiro por animal sagrado; a partír da XVIII dinastia, seus
objetos litúrgicos, barcas, vasos e bastões rituais, foram ornados
com o carneiro, não mais o paleo-egípcio, mas a espécie nova, o
ovis platyra, pequeno, de cauda curta e grossà, com espessos
cornos recurvados ao redor das orelhas. Longas filas de estátuas
deste carneiro ~ardam o templo de Carnaque. Depois, mais e
mais, Amon foi figurado como homem criocéfalo e é sob esse
aspecto bestial que aparecerá no mundo grego para proferir seus
oráculos no oásis de Siuah, o "Oásis de Amon".
E consagramos, ainda, a lembrança do deus tebano quando
chamamos amonites esses grandes fósseis cuja forma evoca os
cornos de Amon.

C
CA -Entre os egípcios há poucas palavras tão difíceis de
definir como esta. Nossas concepções modernas nada têm de
semelhante ao ca, daí a dificuldade em definir essa palavra. O ca
é, praticamente, manifestação de energias vitais, tanto na sua
função criadora, como na sua função conservadora.
68
O ca, pois, pode designar o poder da criação que a
divindade possui, mas também as forças de manutenção que
anima Maat, a ordem universal. Na ordem individual faz-se
grande uso do termo ca a respeito dos mortos: "Passar a seu caro
significa "morrer"; as estátuas do defunto que são fechadas nos
túmulos, são "estátuas de caro; as fórmulas funerárias se dirigem
"ao caro de um determinado morto. Mesmo vivo, um egípcio
pode ver o seu ca aumentado pelo rei.
T um reservatório de forças vitais, do qual provém toda
vida, e graças ao qual toda vida subsiste (alimentos, enrique-
cimento, bens materiais, aumento de poder".), e para o qual toda
vida retorna depois da morte. t, pois, uma espécie de "força
vital", que desempenha papel tão importante nas múltiplas
civilizações da África negra; o muniu dos bantus e o menes dos
ules.
CAMtFIS - Nome comum às três mais antigas divindades
egípcias.
CARNEIRO - Entre os egípcios o carneiro era designado
por uma onomatopéia: bé; tinha, também, o nome de quenum,
originário de uma velha palavra semita, de onde veio o árabe,
ghanam.
Os criadores egípcios conheceram duas espécies de
carneiros: a mais antiga, era caracterizada por corpo volumoso,
longa cauda e chifres espiralados que se afastavam
horizontalmente; esse tipo, comumente, é visto nas antigas
representações iconográficas.
Os carneiros serviam para os egípcios como máquinas
agrícolas: eram eles que afundavam na terra úmida e rica o grão
semeado pelo agricultor. Quanto à lã, considerada elemento
impuro (os egípcios vestiam-se com linho, mais fresco e mais
higiénico), eles a desprezavam, assim como a carne. É verdade
que as populações pré-faraônicas a comiam, os papiros médicos
69
a prescreviam, juntamente com a gordura, mas as longas
ementas rituais compostas para os deuses e para os defuntos, não
fazem menção da carne ovina.
Portanto, o carneiro não representava nenhum papel
importante na economia faraónica. Entretanto, é singular
observar que os egípcios embalsamaram gerações e gerações de
carneiros. A mais antiga imagem de um carneiro mumificado
que se conhece, data da I dinastia.
Mas na mitologia o carneiro. ocupa lugar de destaque. Os
deuses ovinos eram assaz numerosos e variados: Herishef (em
grego Arsafe -V. essa palavra) de Heracleópolis ("Cidade de
Héracles", isto é, Hércules); o famoso Carneiro de Menctçs, cuja
colossal capela de granito ainda se ergue sobre a coliriá deso-
lada; enfim o deus-carneiro por excelência, que era venerado em
vários lugares, Cnum, "Aquele Que Tem A Forma Do Carneiro"
etc. Todas essas personagens divinas se encarnavam no ca~eiro
paleo-egípcio, ovis longipes palroaegyptiaca, de chifres
honzontais. Seus cornos entravam na composição de várias
coroas mágicas, próprias aos deuses e reis; eram elas o símbolo
do temor que causa o sobrenatural; a cabeça servia para exprimir
hieroglificamente o poder e o prestígio.
CASA DA VIDA -Dá-se o nome de "Casa da Vida" a
várias instituições culturais: oficinas de escribas contíguas aos
grandes templos, no interior das quais se r~digiam ou se
copiavam os textos litúrgicos, assim como as inscrições
mitológicas; colégios de médicos e, possivelmente, "sanatórios",
onde se acolhiam os enfermos, lugares que, na Baixa Epoca,
faziam parte do templo; colégio de professores e oficiantes do
templo; colégios de artistas e decoradores.
É muito provável que fossem os escribas das Casas da
Vid:a que copiaram, em múltiplas edições, os Livros dos
Mortos, fabricados em série, e dos quais os defuntos, a partir do

70
Novo Império, se muniam para a última viagem.
CEB -V. Ceio.
CEDO -V. Ceio.
CECROPE -Cécrope ou Cécrops, personagem mítica natu-
ral de Sais, no Egipto. Foi chefe de uma colônia egipcia que se
estabeleceu na Atica. Fundou Atenas e foi seu primeiro rei.
Submeteu os povos vizinhos mais pela doçura e pelo encanto
pessoal que pelas armas; a religião foi objecto de seus 1?
rincipais cuidados. Representavam-no com torso de homem
terminado em cauda de dragão.
Cécrope, propriamente, não pertence à mitologia egípcia.
E
criação helênica.
CECROPS -V. Cécrope.
CEFO -Monstro que era adorado em Menfis.
aspecto de macaco.
CEPO -V. Ceio.
CERCOPITECO -Nome grego que designa o macaco ao
qual os egípcios tributavam honras divinas (de kerkos, "cauda" e
pithekos, "macaco"). -V. Macaco. CHACAL -Quando se fala em
chacal ocorre-nos logo à lembrança a figura estranha de Anúbis,
homem com cabeça de canídeo. O verdadeiro chacal não existia
no Egito. Havia, isto sim, cães selvagens ou errantes,
semelhantes a lobos, com grandes orelhas pontudas e focinho
afilado (Canis lupaster). Com essa forma era representado o
deus Assiut, Upuaut (ou Apuat -v. essa palavra), "Aquele Que
Abre Os Caminhos"; o próprio Anúbis, embalsamador e guia
dos defuntos, era comum ente revestido da figura de um desses
cães.
As imagens do "chacal" de Anúbis e de outros cães

71
fúnebres foram enfeitadas pelos pintores com mantos
inteiramente negros e com um colar de renascimento, ainda que,
na realidade, apenas excepcionalmente os cães que erravam pelo
Egipto fossem negros. Destarte, para que se pudesse entronizar
nos templos os animais sagrados de Anúbis e de Upuaut, o ritual
definia a forma e o tom das manchas que deviam ter os canídeos
dignos de representar os deuses ladradores. Mas o povo, que não
olhava o ritual, chorava piedosamente todo e qualquer ammal
que semelhasse o chacal, sem olhar-lhe o pêlo, e o embalsamava
com cuidados. As necrópoles de Assiut e de Cinópolis ("Cidade
dos Cães") estavam cheias de canídeos embalsamados.
CINOCI?-FALO -O mesmo que Anúbis. -V. Macaco.
CNEF -Nome sob o qual os egípcios adoravam o Criador
do Mundo.
CNÜFIS -O mesmo que Cnef.
CNUM -Esta divindade é figurada sob a forma de homem
com cabeça de carneiro provido de cornos duplos. Deus criador
da vida, gerador das espécies viventes, recebeu, segundo os
lugares do Egito onde seu culto se arraigou, as funções
suplementares de guardião das fontes do Nilo (em Elefantina,
onde reina ao lado das deusas Sátis e Anúquis), ou oleiro
modelando no seu torno o ovo do qual toda vida deverá provir.
Deus muito antigo, é conhecido, sobretudo, pelos textos do
templo de Esna que, paradoxalmente, pertencem aos primeiros
séculos da nossa era. Seu culto era muito espalhado e difundido;
dezenas de cidades o cultuavam sob formas e atributos variados.
CON -Nome que os egípcios davam a Hércules.
CANSO -Conso ou Consu, deus lunar, que foi muito cedo
integrado na teologia tebana e considerado filho de Amon e de
Mut. Possui em Carnaque um templo admiravelmente bem con-
servado.

72
E correntemente figurado sob o aspecto de um homem
com cabeça de falcão encimada pelo disco lunar; mas aparece,
também, como personagem mop1iforme, ou como criança.
Conhecem-se várias de suas manifestações: Conso o
magnânimo, que é seu título tebano por excelência; Conso o
conselheiro, em Tebas, "0 Deus Que Afasta Os Espíritos
malignos".
CONSU -V. Canso.
CRABO -Um dos deuses egípcios.
CRENÇAS FUNERARIAS -Num país onde as crenças
variam de uma cidade para outra, seria difícil encontrar uma
doutrina comum no que tange à morte e suas manifestações. De
feito, o assunto é muito complexo e passível de várias interpre-
tações, pois as idéias se interpenetram e vários ritos se
sobrepõem, ao passo que um cede ao outro algumas de suas
propriedades particulares.
Tinha o a ideia mais antiga - referente ao outro mundo e à
sorte que aguarda os homens depois da morte é não só a
primitiva mas também a mais simples e que teve maior
autoridade. O defunto era colocado no túmulo, nas areias do
deserto ou no rochedo inóspito - naquela zona exterior ao vale,
às verdes pradarias dos vivos -que os textos chamam "O-Lado-
Escondido-Do-Deus"; é lá, pois, que o corpo inanimado
reencontrará a Vida. O defunto, na stta sepultura, conhecerá
nova existência, com desejos e necessidades iguais aos que na
terra tinha, e com faculdades aparentemente idênticas.
Logicamente, portanto, o corpo deverá ter alimentos, os quais
serão colocados ao lado em grandes jarras; o culto funerário
assegurará a renovação desses alimentos, de modo que não
venham a faltar totalmente. Essas são as mais antigas crenças,
atestadas pelas tumbas arcaicas, cavadas no deserto, onde o
morto assumia a posição embrionária, voltado sobre si mesmo. ~

73
óbvio que muitas outras praxes se perderam no correr dos
séculos. Mesmo o sentido exacto dessa posição curvada nos
escapa; que significará, também, o costume de orientar o corpo
no túmulo?
Mais tarde outras concepções se ajuntaram às primitivas;
mas estas permanecerão sempre. Por exemplo, a decoração dos
túmulos e a questão dos alimentos. Há de tudo nos baixos-
:relevos e nas pinturas das tumbas: cenas da vida quotidiana,
Imagem de funerais, actividades campestres, cenas da vida
doméstica e familiar, lembrança de episódios históricos,
cerimónias religiosas. ..A escolha varia de uma para outra
tumba. mas a refeição do morto e a mesa carregada de oferendas
per~anece em todas, idêntica, imutável. No Império Antigo, o
morto levava com ele um cardápio dos mais generosos; mais
tarde contentaram-se com a representação dos alimentos de toda
espécie; a magia da imagem pode, à vontade, renovar-lhe as
provisões, dando vida às cenas de vindima ou colheita de frutas
ou episódios de caça que figuram sobre os muros. A antiga
ideia, pois, da vida além-túmulo, não se perdeu; tudo se previu
para que essa segunda vida decorra na abundância; a alma que
fugiu, no momento do desenlace, foi reintegrada no corpo pelos
ritos da Abertura da Boca, de modo que o falecido, reconstituído
em seus elementos vitais e provido de tudo que é necessário para
a vida, tinha diante dele uma eternidade que deveria ser passada
no túmulo.
Duas crenças se sobrepuseram a esses velhos ritos, a de
Osíris e a de Ré, o Sol. O Além de Osíris estava ligado a várias
ideias. Inicialmente, Osíris, transformado em deus dos mortos
pela extensão histórica do seu culto, trouxe na sua esteira tudo
aquilo que dizia respeito aos espaços subterrâneos; o
embalsamamento, actividade conservadora de Anúbis, a imagem
da necrópole do Ocidente, constituem os aspectos da morte
osírica. A seguir, o corpo, preservado pelo embalsamamento, irá
74
viajar muito pelo outro mundo; o Livro dos Mortos descreve as
várias etapas desse périplo ctônio, os perigos dos quais deverá
triunfar, as fórmulas que deverá usar, as divindades que o
sustentarão. O galardão final da vida osírica, o que espera o
defunto no fim da sua longa jornada, depois do julgamento e
consequente libertação, isto é, a psicostasia, é um trato de terra
nos domínios de Osíris; lá o defunto reencontrará suas
actividades terrestres, aquelas que tinha deixado na terra. Esse
Paraíso está situado no "Campo das Oferendas e no Campo das
Junças" (Campo de Ialu); vinhetas do Livro dos Mortos
mostram o morto trabalhando, semeando, colhendo,
atravessando os brejos no seu batel.
O uso das estatuetas de substituição -para aqueles que não
amavam o trabalho - os famosos sauábtis, simplificava as coisas,
já que as imagens trabalhavam por eles.
Quanto às crenças solares, que foram as dos reis da V
dinastia, elas compreendiam os ritos da "tenda de purificação",
no limite do deserto, e a "lustração solar", numa jarra; esses dois
ritos levavam o defunto ao Paraíso solar, onde reinava o Grande
Juiz (inicialmente Ré); o morto, na escolta do barco do deus,
acompanhava Ré no seu périplo celeste. Essas diversas doutri-
nas, que não tinham quase nada em comum, e outras ainda,
como, por exemplo a sobrevivência estelar na constelação de
Orion, se soprepuseram de tal modo que não é fácil encontrar
um quadro inteiramente lógico das ideias acerca da vida além-
túmulo. Resumindo, poderíamos dizer que o morto está, ao
mesmo tempo, no céu, isto é, na barca do deus, sob a terra,
trabalhando os campos de junça, e na sua sepultura, devorando
as provisões. quando for ocasião, retornará à terra, a fim de
rever os lugares que amou ou para atormentar os vivos. A vida
além-túmulo, destarte, oferece três aspectos diferentes quanto ao
tempo: o dia será reservado para o descanso na sepultura, com
um ou outro eventual passeio pela terra; à noite, numa viagem
75
subterrânea, o morto acompanhará o Sol no outro mundo,
rebocani:lo a sua barca e detendo-se de passagem nos campos de
Osíris; ao raiar da madrugada, a alma errante voará novamente
para a sepultura a fim de gozar da frescura e do silêncio que ela
lhe oferece. Mas todas essas idéias, parece, perdiam seu valor
junto daquela que o egípcio considerava positiva e certa: não há
nada que valha um túmulo bem construído e bem alimentado.
CR~PITO -Divindade que era- representada sob a figura de um
menino acocorado.
CROCODILO -Os egípcios conheciam inúmeros
processos mágicos capazes de imunizar a agressividade do
crocodilo, que chamavam "o agressor". Os adora dores de Osíris
e de Horo consideravam o crocodilo aliado de Set.
Mas, por estranho que pareça, o crocodilo não é um devo-
rador de homens e só chega a essa condição levado por causas
fortuitas. "O animal de goela terrificante" gosta é de peixes.
O crocodilo é um ser saído das águas, como o Sol; os
peixes eram os obscuros inimigos do Sol. É lógico, pois, que os
egípcios, na sua visão total e harmoniosa do Universo, tenham
feito dele uma divindade, Sobec ou Suco. Desde os pantanais do
Delta até os bancos arenosos de Silsileh, de Ombos e de
Gebelein, havia infinidade de templos dedicados a esse deus.
Em Crocodilópolis ("Cidade dos Crocodilos") de Faium e ao
redor do lago Carun, ele era o Senhor Absoluto. Uma metade do
belo templo de Com Ombo lhe era consagrada.
Sobec, tanto como Amon, ganhou inúmeros atributos:
"Saúde a ti, Sobec o crocodilopolita, Ré, Horo, deus p~eroso I
Saúde a ti, Sobec o crocodilopolita, saúde a ti que te ergueste
das Aguas Primordiais, Horo chefe do Egito, touro dos touros,
grande ser macho, senhor das ilhas flutuantes. .." Assim
cantavam cotidianamente os sacerdotes da Cidade dos
Crocodilos, pedindo a salvação do Egito ao grande deus solar,

76
ctônio e aquático ao mesmo tempo.
Nessa cidade, como em outras consagradas a Sobec, cria-
vam-se crocodilos sagrados, bem como afirmava Heródoto. "O
crocodilo foi trazido, foi domesticado; põem-lhe nas orelhas pin-
gentes de pedras artificiais ou de ouro, braceletes nas patas dian-
teiras: dão-lhe a comer alimentos determinados e vítimas; cui-
dam dele, enquanto vive, do melhor modo possível; logo que
morrem, são sepultados, embalsamados em féretros sagrados.
Ao contrário, os habitantes de Elefantina não consideram os
crocodilos sagrados, pois comem-lhes as carnes."
CULTO DOS ANIMAIS -V. Animais Sagrados.
CULTO FUNERÁRIO - Nenhum outro povo da
Antiguidade
tanto se preocupou com os problemas do além-mundo
como os egípcios; a prova dessa assertiva é o número imenso de
túmulos ricamente decorados e a abundância de textos relativos
aos funerais.
Entre outros povos, geralmente, os vivos temiam os
mortos; no Egipto, porém, os mortos dependiam dos vivos e
estavam à sua mercê. O egípcio não temia a morte nem o que
depois dela vinha; temia, isto sim, que os vivos (parentes,
amigos, dependentes) dele se esquecessem e comprometessem
definitivamente a sua vida além-túmulo.
A morte terrestre era, apenas, uma etapa que conduzia a
uma forma diferente de vida, seguramente mais frágil que a
deste mundo, mas efectiva e real: a do corpo na sepultura; mas
nada havia mais temível que uma segunda morte, pois esta seria
definitiva. Ora, o destino do corpo sepultado está nas mãos dos
vivos e são eles os Únicos que podem entreter este pouco de
vida que lhe resta.
Daí a importância do culto funerário. Esse culto implica,

77
além dos funerais, o renovamento periódico dos alimentos e
bebidas. Os túmulos pré-históricos mostram já que o defunto
levava com ele um rico sortimento de víveres; cumpria aos
herdeiros, de modo especial ao filho mais velho do defunto,
renovar as provisões e bebidas; na falta desses, qualquer pessoa
podia cumprir essa meritória e piedosa função.
Mas, à medida que as gerações se sucediam, esses
encargos se tomavam cada vez mais difíceis, pois em pouco
havia muito mais defuntos a alimentar que vivos a trabalhar.
Nasceram, então, as fundações fúnebres. Essas práticas
consistiam em reservar para o culto de um defunto um domínio
cujos rendimentos eram suficientes, ao mesmo tempo, para a
alimentação do defunto e, por transferência, para a do sacerdote
encarregado de cuida! do túmulo. Primitivamente esse sistema
de fundação foi instituído para uso do rei morto e do seu templo
fúnebre. Mas como o rei era o Único proprietário do solo do
E~to e dos seus recursos, e podia, a esse título, conceder por
favor a um dos seus próximos o direito de construir uma
mastaba à sombra da pirâmide, assim, por extensão, os defuntos
podiam se beneficiar com as oferendas alimentares previstas
para o culto real. Assim como quando o rei vivo alimentava seus
fiéis, assim continuava a fazê-lo depois de morto. Daí as
inscrições: "Oferenda que o rei concede..." Tal sistema só
poderia subsistir com riquezas fantasticamente imensas e
número relativamente limitado de beneficiados. Ora, essas duas
condições não existiam e os egípcios logo se viram obrigados a
encontrar algum meio de assegurar a efetividade do culto
funerário: com o rei é que não podiam contar.
Assim, a partir da IV dinastia, os egípcios criaram "funda-
ções" antes de morrerem: um sacerdote do ca, cujas funções
eram assegurar o culto e as oferendas ao defunto, vivia dos
rendimentos que o pequeno trato de terra lhe oferecia. Destarte,
vemos grandes grupos de pessoas viverem exclusivamente a
78
custa de um morto.
Mais tarde, com o sistema de herança, acontecia que o
culto do morto era abandonado; criaram, então, no Império
Médio, outro sistema: a fundação permanecia indivisa e só podia
ser transmitida a um dos filhos do sacerdote primitivamente
instituído. Essas disposições faziam parte do contrato lavrado
entre o proprietário do túmulo e o seu futuro curador fúnebre.
Além desses cuidados, deduz-se, através dos textos, que os
defuntos procuravam conseguir, junto dos deuses, os benefícios
alimentares que outrora encontravam junto dos templos reais.
Sabemos que Hapidjefa, de Assiut, diariamente tomava sua
parte das oferendas depostas no tempo de Upuaut; essa prática,
no Império Médio, assumiu foros de exclusividade.
Sabemos a importância que os vivos ligavam ao fato de
terem a sua estátua, por privilégio, erguida no pátio do templo,
pois assim podiam participar, junto com o deus, das ofertas que
o culto diário propiciava. O número prodigioso de estátuas parti-
culares encontradas em Camaque testemunham o uso irrestrito
que desse privilégio se fazia. Entretanto, a despeito de todas
essas medidas, o abandono dos mortos por parte dos vivos era
um facto evidente e o egípcio não tinha esperanças muito
brilhantes quanto ao futuro Que o aguardava. Cito, a propósito,
as palavras do '!Canto do Harpista": "Os divinos reis que outrora
viveram, repousam em suas pirâmides, assim como os nobres
glorificados. ..Construíram capelas cujo local não mais existe.
Quem fez isto?.. Imotep, Hordjedef, cujas palavras estão em
todos os lábios, onde agora repousam? Os muros foram destruí-
dos, seus túmulos desapareceram como se jamais tivessem exis-
tido... "
Surge, então, uma desesperada tentativa de remediar todos
esses males: a magia. Mandavam figurar nos túmulos relações
detalhadas de alimentos, com cenas quotidianas da vida domés-

79
tica, campestre ou profissional; sucedem-se, nos túmulos, as
representações de colheitas, de vindimas, da fabricação do pão,
da cerveja. ..Julgavam, assim, em virtude de um preceito muito
caro à magia, a substituição, assegurar o futuro do corpo do
defunto.Paralelamente, sempre segundo a ideia de que a
aparência do rito é suficiente para recriar a realidade dos objetos
evocados, procuram reter a atenção de eventuais visitantes das
necrópoles e deles obter a simples enunciação da fórmula de
oferendas, cujo enunciado será suficiente para fazer "sair" todos
os alimentos requeridos: "ó vivos que estais sobre a terra, seme-
lhantes a mim; logo estarão com o deus aqueles que disserem:
milhares de pães, de potes de cerveja; bois, aves etc., para o
amigo único...
Com o tempo, as últimas ilusões dos egípcios desvanece-
ram-se. Já não criam, e a realidade diária disso os convencia,
que os vivos tivessem tempo ou quisessem se importar com os
mortos. Os rituais das últimas épocas mostram que os mortos se
contentavam com libações de água simbólica, derramada todos
os dez dias, enquanto que o rito que tinha o título "Que Meu
Nome Subsista", reduziu o serviço que os mortos imploravam
dos vivos à simples recitação do nome, suficiente para lhe dar,
na tristeza do além, alguns momentos de pálida sobrevivência.

"Feliz aquele que caminha nos caminhos de Deus"... Esse


modo de falar, que se poderia crer próprio dos livros de
sabedoria, aparece também nas inscrições: "Contentei Deus
naquilo que ele amava, pois estava lembrado de que chegaria a
Deus quando morresse".
Acnáton quis fazer triunfar a idéia de uma divindade única
e coletiva, o que não era, em si, crença nova nem subversiva;
80
mas ele fez do novo deus um ser visível e dotado de um nome,
Aton. Isto era substituir os deuses por um Deus, era romper com
o passado, com todas as convicções centenárias e entronizar um
recém-chegado tirânico e exclusivista.
A religião egípcia, nos seus últimos anos, evoluía para a
idéia de um deus universal, único, espécie de "alma colectiva".
O povo, insatisfeito com esse deus abstrato, apegava-se mais e
mais aos seus símbolos terrestres, seus animais sagrados, aos
gênios secundários, às divindades folclóricas. Daí a idéia que os
autores faziam dos sacerdotes: eram grandes sábios que con-
sagravam a vida a sublimes mistérios, ao passo que o povo,
turba ignorante, adorava os animais nos campos e as hortaliças
nos canteiros.
D1MON -Um dos quatro deuses Lares dos egípcios. -V.
Anáquis.
DJED (COLUNA) - Espécie de fetiche pré-histórico de
natureza ainda mal definida. Figurava, talvez, uma árvore arran-
cada ou uma estaca trabalhada; provavelmente desempenhava
algum papel nos ritos agrícolas. A "erecção da coluna (ou pilar)
Djed", feita pelo rei, a favor do deus Ptá, era um rito milenário
que ainda subsistia na Baixa e.poca. Homófono do termo "esta-
bilidade" ou "duração", o pilar (ou coluna) Djed servia de
modelo para inúmeros amuletos e talismãs.
DUAT - Outro nome para Tuat.
DEUS - Seria inútil acentuar o caráter politeísta da
religiãtJ egípcia: tudo aquilo que o velho Egito nos deixou
proclama eloqüentemente esta verdade. Milhares de deuses e de
deusas, gênios, demónios...
Mas é preciso distinguir os deuses elementares, elaborados
pelos teólogos, e que não tiveram muito sucesso nas crenças
correntes e populares, dos gênios e deuses familiares da mito-
logia popular, que não deixaram nem templos nem monumentos.
81
Essa diversidade de divindades é mais fruto do desenvolvimento
do Estado unificado que uma tendência politeista, pois o Egito
não era mais que uma porção de tribos independentes
justapostas em virtude de condições históricas. Convém não
esquecer que o egípcio jamais suprimia algo que pertencesse ao
passado; ele apenas justapunha o que existia ao que a evolução
consigo trazia.
Ao lado desse politeísmo histórico, mas não inato, vê-se a
tendência que tinha o povo em atribuir a um só deus várias ou
mesmo todas as funções. Não é isto sintoma de que o egípcio
era, por natureza, inclinado ao monoteísmo? O Netjer, ideia
abstrata que poderíamos traduzir por "divindade" e que era
representada por uma estaca encimada por um enfeite, servia
como termo comum para designar cada um dos deuses, fosse
qual fosse seu nome ou atributos; era a soma daquilo que todos
tinham em comum. O emprego dessa palavra indica a crença
numa força divina, independente de qualquer deus, indetermi-
nada, impessoal. e. assim que encontramos nos textos a menção
de Deus sem outro qualquer atributo: "Não são as disposições do
homem que se realizam, mas os desígnios de Deus"; "Deus
coi1;hece aquele que por ele age"; Deus glorificará aquele que
assIm age"; "O homem é limo e palha, Deus é seu construtor'!;

E
EGIPTO - A atual república do nordeste da Africa, entre o
Mar Vermelho e a Líbia, ainda tem o nome de Egito e
compreende, sobretudo, o vale do Nilo, do Sudão ao
Mediterrâneo. A parte habitada é o pequeno vale, estreito e
longo, pelo qual corre o rio Nilo, que com suas inundações
periódicas fertiliza a região: O Egipto é um presente do Nilo,
disse Heródoto, e sua afirmação ainda hoje é válida. A
etimologia do nome Egipto, que nos veio do grego através do

82
latim, se perde na noite dos tempos pré-helênicos. Sabe-se que a
cidade de Mênfis era chamada, pelos nativos, de Hikuptah,
"Castelo-Do-Ca-De-Ptá."; segundo hipótese plausível, dessa voz
os gregos tiraram a palavra Aegyptos (ou Aigyptos, como
aparece nos poemas homéricos). Os povos da Asia designavam
o Egito por um termo semita que serve ainda para nomear este
país em língua árabe: Misr.
Para os antigos egípcios o país era "O Negro e o
Vermelho" ; o vermelho seria o quadro saariano cujo clima reina
no Egito, seriam as extensas planícies ardentes do deserto, de
este e do oeste, onde a verdura se manifesta apenas nos oásis
líbicos; o negro seria o vale, anualmente enriquecido com o limo
novo perpetuamente renovado; a fauna e a flora, tipicamente
africanas, abundavam nas vertentes áridas; mas desabrochavam
com exuberância nos pântanos e marnéis que marginavam o rio,
imensas extensões de terra negra, coberta de papiros, de lótus,
de junça; as irrigações artificiais levavam o benefício da água a
distâncias imensas, isto já nas mais recuadas eras.
O povo egípcio sempre viveu do solo negro; e o nome
deste tornou-se muito cedo o nome da região: Kemi.
Nas inscrições, porém, onde domina o estilo enfático e
pomposo, o Egito é mencionado pela justaposição de um junco
florido, símbolo da região meridional, e um tufo de papiros,
insígnia do Baixo Egito. Pois, geográfica e politicamente, o
reino do faraó, "Senhor das Duas Terras", é duplo, compreende
o País do Norte e o País do Sul.
Desde as origens, a raça, a flora, a fauna, as técnicas e as
crenças que dominaram no Egito procedem de quatro mundos
distintos que ele une: o Saara, a Africa negra, o Oriente Próximo
e o Mediterrâneo. Nessa região privilegiada, antes do ano 3000
a.C., o povo que lá vivia soube elaborar uma civilização -única
no mundo -que foi própria, mistura, contudo, de tradições arcai-

83
cas e de criações da vanguarda. Essa civilização conferiu, no
curso das idades copta e muçulmana, originalidade prestigiosa
ao país que forma hoje a parte capital da República Arabe
Unida. ELURO --' Divindade egípcia, o gato.
EMBALSAMAMENTO -A mumificação dos mortos é
um desses mistérios inquietantes que faz o prestígio do antigo
Egito. Por que esse esforço, prolongado durante milênios, para
subtrair à corrupção os corpos que a vida abandonou?
A morte, para os egípcios, não era um fim, mas uma pas-
sagem perigosa, no curso da qual os diversos elementos que
constituem o corpo humano se dispersavam, mas conservando,
individualmente, a sua integridade. Quando esses elementos se
reuniam e se introduziam novamente no corpo, era possível a
existência de nova vida, semelhante à que os vivos aqui
gozavam. Mas para obter esse resultado era mister preservar o
corpo, o mais frágil, o mais corruptível desses elementos
compostos que formavam o ser vivo; deixar que ele se
decompusesse, era perder para sempre e inapelavelmente a
possibilidade da reunião das forças vitais.
Heródoto, impressionado com essa idéia, descreveu
minuciosamente o processo de embalsamamento. Inicialmente,
com um gancho de ferro extraíam o cérebro pelas narinas; os
resíduos que permaneciam no interior da cabeça, eram
dissolvidos com certas drogas ("lavagem encefálica"); a seguir,
com uma pedra afiada, praticavam uma incisão ao longo do
flanco e esvaziavam o corpo de todas as vísceras
("evisceração"); então o interior do corpo era lavado com vinho
de palmeira e polvilhado com plantas aromáticas; enchiam, a
seguir, o ventre com mirra moída, cássia e outros arômatas,
exceto incenso; finalmente cosiam a abertura. Começava, então,
outra fase da embalsamação. A fim de desidratar a pel~, os
ossos e as cartilagens, impregnavam o corpo com sal e o
mergulhavam no natro durante setenta dias. Esse banho se
84
operava no natro seco, capaz de absorver toda a umidade.
Passados os setenta dias, retiravam a múmia do natro, lavavam-
na cuidadosamente e enrolavam-na com faixas de gaze muito
fina, endurecidas COln' certa goma. O comprimento desses
faixas ou tiras é considerável; as múmias mais bem preparadas
tinham faixas que contavam algumas centenas de metros de
estofo finamente tecido e cuidadosamente enrolado; os dedos, as
mãos e os pés eram cobertos com faixas finíssimas; depois, o
corpo todo era envolto em tiras mais largas, o envoltório
externo. Todos esses tecidos eram t:;mpregados não a seco, mas
umedecidos com óleos cosméticos, a fim de aderirem firme-
mente aO corpo e impregná-lo de suave perfume. No interior
dessas camadas de faixa, à medida que se processava o enfai-
xamento, colocavam, nos lugares prescritos, amuIetos de pedras
semi-preciosas para assegurar a conservação da múmia; algumas
faixas eram decoradas com desenhos feitos a tinta (figuras de
divindades etc.).
O embalsamamento era caro; muitas classes não possuíam
posses suficientes para arcarem com o Ónus de tão custosa ope-
ração.
A palavra múmia, que os egípcios não conheciam, veio do
árabe mumya, "cadáver embalsamado..
ENÉADE -Uma enéade (palavra grega que significa "no-
ve"), em egípcio pesedjet, era, inicialmente, a reunião de nove
divindades, hierarquizadas ou complementares, cuja soma repre-
sentava todas as forças elementares do Universo.
A enéade mais conhecida é a de Heliópolis. Atum, o
criador solitário, e depois os pares (seus filhos) Shu-Tefnu; seus
netos, Geb-Nut; finalmente os dois pares: Osíris-1sis e Set-
Néftis.
Às vezes o número de nove era insuficiente para nomear
todos os deuses; criava-se, então, uma enéade complementar.
85
Não raro o colégio divino não alcançava o número nove
ou o ultrapassava de pouco; assim, com o tempo, o termo perdeu
seu sentido etimológico inicial, para designar, simplesmente, o
"colégio dvino" de uma teologia qualquer.
A "grande enéade" de Abidos, por exemplo, compunha-se
de apenas sete divindades; a enéade tebana, por sua vez, contava
quinze nomes diferentes. A teologia de Hermópolis, porém, con-
servou o seu colégio divino num grupo fixo de oito deuses, a
Ogdoade.
ESCARABEU -Coleóptero coprófago e da cor de antra-
cito, tinha o escarabeu ou escaravelho, entre os egípcios, o nome
de quéprer. Quando surgiu a linguagem escrita, o escarabeu ser-
viu para notar um termo assaz vago e complexo, o verbo quéper,
que pode si,gnificar "surgir para a vida tomando determinada
forma", "ser" ou "tornar-se".
Provavelmente a homofonia com o verbo fez do
escaravelho um dos símbolos da renovação e em Heliópolis
consideraram-no manifestação do demiurgo "Que Traz A
Existência de Si Mesmo", o deus Quépri, o sol levante.
Entre outras fiKUras igualmente estranhas, o Vale dos
Reis nos apresenta um escaravelho negro que sai da areia
caminhando para trás, impulsionando urna esfera ruborescente.
A explicação de Plutarco parece referir-se a essa extravagante
figura: "Quanto ao escaravelho, pretendiam que sua espécie não
possui animais fêmeos, todos são machos e eles depositam o
sémen em UInfi
matéria que juntam em forma de esfera e a rolam diante
deles com as patas trazeiras, imitando, nisto, o curso do sol, que
se dirige do oriente para o ocidente e parece seguir direção
contrária à do céu..;"
Os escaravelhos serviam corno sinetes e como amuletos.
Encontraram-se aos milhares, de pedra dura, de esteatite, de
86
calcário ou de faiança. De tamanho variam entre 1 a 10 cm. Os
formatos divergem, desde o tipo naturalista até o escarabóide
com élitros, énfeitado com gravuras, e o com cabeça de carneiro.
Em geral, no ventre, se encontra urna inscrição ou desenho
referente à finalidade que se espera ele alcance; outros, como
sinetes, trazem o nome do funcionário ou votos de felicidades.
Escarabeus históricos eram emitidos à maneira das nossas
medalhas comemorativas; havia duas séries principais, grande e
pequena.
Não raro os escaravelhos eram ornados com sinais profilá-
ticos e escondiam criptogramas; comumente, alguns
escaravelhos permitiram datar todo um estrato arqueológico e a
"escarabeologia" é capaz de dizer tanto quanto a numismática.
Os grandes "escaravelhos de 'coração", geralmente
talhados na pedra dura, ou feitos de faiança, flanqueados de asas
de falcão, eram talismãs funerários especiais.
ESCORPIÃO -A imagem característica desse perigoso
aracnídeo é um dos mais antigos hieróglifos, usados para
designar um soberano pré-dinástico, o "Rei Escorpião".
O escorpião ainda hoje pulula no Egipto.
A fêmea do escorpião era a deusa Selquet ou Selquit, no
fundo divindade benfazeja, pois atribuía poder às manifestações
dos "encantadores de Selquet", velha corporação de feiticeiros-
curadores. Mas nas inscrições a efígie da deusa e toda manifes-
tação do escorpião amarelo eram substituídas prudentemente
pelo "escorpião d'água", desprovido de cauda; esse substituto
~ráfico não feriria o defunto, se o hieróglifo se revelasse por
meio de magia.
As numerosas conjurações contra os répteis venenosos
aludem especialmente ao escorpião.
Conta o mito que a ~ata sagrada, filha de Ré, fora picada
87
por um escorpião; o pai lo~o a cura. A recitação dessa história
curava todo aquele que tivesse sido ferido por um escorpião,
pois o paciente se identificava com a deusa salva pelo deus seu
pai. Quando Isis fugia do perverso Set, estava escoltada por sete
escorpiões.Certa vez, urna mulher, apavorada, fechou-lhe a
porta no nariz. Os escorpiões foram tornados de furor;
reuniram-se e deliberaram corno deveriam proceder; por fim
acertaram que todos injetariam o veneno num só, chamado
Téfen, e que este deslizaria sob a porta e feriria a filha da
mulher. De feito, tudo aconteceu corno tinham planejado. Mas a
deusa Isis, preocupada em salvar uma inocente, inventou, então,
as fórmulas que se recitam junto a urna criança atacada por um
escorpião: "Veneno de Téfen, vai-te embora, corre pelo solo,
sem circular nem entrar..."
ESFINGE -Monstro fabuloso que se encontra na Grécia e
no Egito.
No Egito a Esfinge era uma estátua colossal representa?
do, em geral, um leão agachado, com cabeça de homem; a
Esfinge fêmea é mais rara. A Esfinge era, propriamente, urna
forma do Sol, Harmacuti, Harmaquis, Horo nos dois horizontes.
As ruínas dos templos egípcios da Tebaida oferecem longas
avenidas de esfinges monólitas.
A Esfinge grega é um monstro cruel, leoa com cabeça de
mulher, enigmática, segundo se vê no mito de Édipo. Os famo-
sos leões divinos do Egito foram chamados pelos gregos de
"esfinges", mas na verdade são feras com a cabeça de faraó,
esfinges masculinas, "androesfinges" corno diz Heródoto.
A palavra grega sphinx e a voz egípcia shespankh
("Estátua Viva"), que os e~ípcios usavam notadamente para
designar os leões androcéfalos, não correspondem. São termos
analógicos; a partir dessa analogia, alguns sábios acreditam que
o nome e o aspecto da esfinge grega seja urna longínqua herança
88
vinda do Egito através da Síria. Restaria, apenas, explicar, a
mudança de caracteres, pois a Esfinge bondosa do Egito tomou-
se perversa nas terras helênicas. No vale do Nilo, com efeito,
mesmo nos raros casos em que ela é fêmea (Esfinges de
Rainhas), mesmo quando assume a forma de pantera com asas
de falcão e se lança sobre os chefes bárbaros, a Esfinge,
moralmente, nada tem de monstro perverso. É, sempre, um
poder soberano, implacável para com os rebeldes, mas protetora
dos bons.
A Esfinge de Gizé goza da mais merecida fama; é a maior
e uma das mais anti~as Esfinges. Consiste numa colina calcária,
de 200 m de comprimento, que Quéfren mandou esculpir; a
pedra bruta transformou-se num gigantesco leão, guarda das
~alerias ocidentais, por onde vão o Sol e os mortos. Em o
Novo Império, dessa Esfinge fizeram o deus Harmaquis, o
"Horo do Horizonte"; os reis que iam caçar por aqueles lados
dedicaram-lhe estelas. Urna colônia de cativos cananeus viu nela
o deus palestinense Hurun.
Várias vezes (notadamente sob Tutmósis IV) foram
obrigados a libertá-Ia das dunas de areia que o vento lançava
sobre o seu corpo; seu rosto teria ainda aquele misterioso e
suave encanto se um vizir da Idade Média não lhe tivesse
mutilado os traços.

F
FAGRE -Peixe vermelho do qual os egípcios fizeram uma
divindade. FALCAO -O falcão de bela plumagem, rapace
e atrevido, era comum no Egito. Dizia-se que "o inimigo se
sentia paralisado diante do Faraó, corno as aves diante do
falcão". O deus Horo ("O Mastado", talvez alusão aos longos e
ele

89
vados giros que a ave faz na imensidão dos céus) assumia
a forma do falcão ou o aspecto de um homem hieracocéfalo.
Mas não se creia que toda divindade assim representada seja
Horo. Efetivamente, vários deuses se tinham encarnado no
falcão. Ré, por exemplo, com o disco solar sobre a cabeça,
Mutu, com dois altos remígios, Socáris, falcão mumificado etc.I
FARAO -A palavra "faraó" só começou a ser divulgada no
primeiro milenário a.C. Transmitida pela Bíblia, a palavra vem
do egípcio pir-ó, "casa grande"; primeiro designava o palácio,
mais tarde serviu para identificar o senhor do palácio.
Em nenhuma época da história egípcia o nome faraó, sozi.
n?°' era o título oficial do rei; o protocolo oficial compreendia
CillCO nomes.
A aparência do faraó era magnífica. Suas insígnias o iden-
tificavam com os deuses; como eles, trazia na cintura uma cauda
de animal, que caía para trás; usava uma barbicha postiça que já
era, em si mesma, uma divindade; na mão sustentava o cetro
com a cabeça setiana (de Set); os fiéis cantavam hinos a suas
coroas animadas de vida sobrenatural; no meio da fronte osten-
tava o uraeus.
O faraó, era, em suma, o filho carnal do deus supremo.
F~NIX -Ave maravilhosa, célebre nas tradições da Grécia e do
Egipto. O nome parece provir da palavra boinu (ou bonu ou
vonu), donde os gregos fizeram phenix; a palavra egípcia servia
para designar o pavãozinho de Osíris. O protótipo da fênix mís-
tica é, provavelmente, o belo gavião do Egito, ou talvez, a garça
cendrada (ardea cinerea), de bico longo e com a cabeça ornada
de duplo penacho. O gavião do Egito era adorado em Heliópolis,
assim como nas cidades onde havia um culto regular do deus
Sol; era, pois, a encarnação dos deuses solares. Os gregos
fizeram da fênix um animal fantástico, do tamanho de uma
águia, com topete na cabeça, dourada no pescoço, cauda branca

90
matizada de penas vermelhas; seus olhos brilhavam. Vivia 500
anos (outros falam de 1000 ou de 5000); quando sentia que seu
fim se aproximava, fazia no deserto um ninl;1o com plantas
odoríferas; iriflamava-se aos raios do sol e das suas cinzas
nascia um ovo ou uma outra fê1}ix. O primeiro cuidado do
recém-nascido era levar os restos mortais do pai ao templo de
Heliópolis. Era o símbolo da imortalidade da alma, ou do ano
que renasce após haver perecido, ou, enfim, de um grande ciclo
astronómico, diferente do ciclo sotíaco.
FESTAS -O ano egípcio comportava grande número de
dias feriados: o Primeiro do Ano, festas bimensais, começo de
estações, começo das sementeiras, das colheitas, da cheia anual
etc. Ao lado desses, mais ou menos fixos, havia outros
eventuais, como o coroamento do faraó, jubileu ou algum
aniversário particularmente caro ao povo ou à casa real. Mas as
festas mais significativas eram as dos mortos. As famílias,
então, dirigiam-se para as necrópoles a fim de levarem
alimentos aos seus defuntos; mas eram festas privadas. Ao
contrário, às panegírias anuais das grandes divindades,
interrompiam por muitos dias as ativi. dades do país, atraíam
milhares de peregrinos, convulsionavam a vida social de uma ou
mais cidades. Heródoto nos fala das festas de Bubástis, que
atraíam 700 000 peregrinos, homens e mulheres, todos dispostos
a rir, comer bem, beber melhor e divertir-se a valer.
Em Tebas realizavam-se anualmente a festa de Opet e a
festa do Vale.
Outra festa célebre era aquela no curso da qual Hator de
Dendera ia anualmente passar alguns dias em Edfu, com seu
divino esposo Horo. Ao lado dessas festas regionais, cada cidade
religiosa tinh~ seu próprio calendário; havia procissões, mimos
e representaçoes.
No quarto mês do ano egípcio (Khoiak), o país inteiro, em
91
devoto recolhimento, aguardava a ressurreição de Osíris.
FRASIO -Adivinho de Chipre, que Busíris -v. essa palavra -
imolou sobre seus altares.
FTA -V. Ptá.
FUNERAIS -O sepultamento de um cadáver comportava
quatro fases. Primeiro o luto na família do defunto, ao redor do
leito mortuário, dominado por uivos, gritos e lamentações das
carpideiras profissionais, que batiam no peito, arrancavam os
cabelos e cobriam-se de pó; o céu era testemunha da dor que
experimentavam; como em Roma, quanto mais rico fosse o de-
funto, maior era o berreiro e as vocifera~ões.
Depois organizava-se o cortejo até o Nilo; o defunto
passava o rio no catafalco, sobre uma barcaça; duas mulheres
representavam 1sis e Néftis; os lamentos prosseguiam durante a
travessia. Na margem ocidental o féretro (ou sarcófago de
madeira) era colocado num carro tirado por vacas e organizava-
se nova procissão; os parentes choravam, as carpideiras
uivavam, os sacerdotes incensavam o defunto. Chegavam, então
à necrópole; começam os ritos finais, oficiados pelos sacerdotes:
Abertura da Boca, adeus ao morto, pronunciado pela viúva e
descida do féretro ao túmulo, com seu mobiliário; logo a seguir
os presentes participavam de um festim fúnebre em comunhão
com o morto.
Nas cidades onde a necrópole se encontrava na mesma
margem, as cerimônias eram mais rápidas, pois não tinham a
navegação; os demais ritos eram idênticos.

G
GATO -Nos tempos pré-históricos do Egito, havia na
região uma espécie de gato selvagem, que errava pelas bordas
do deserto. Davam-lhe o nome de chaus. Tinha a cauda curta,

92
era peludo e agressivo e infatigável caçador. Os gatos selvagens
que ainda hoje enxameiam no Egito são descendentes desses
primitivos chaus.
Sem dúvida foi este felino selvagem e não o seu confrade
domesticado, o protótipo inicial do "Grande Gato Que Está Em
Heliópolis", do qual fala o Livro dos Mortos, ente solar muito
antigo, que protegia o homem e dilacerava a serpente do mal
postada ao lado da árvore sagrada. O gato doméstico, muito
gracioso, manifestou-se mui tardiamente; sua primeira manifes-
tação ocorre em 2100 a.C.: a mãe de um funcionário do rei
Mentuhotep I se chamava "A Gata". A partir do Império Médio
as representações do gato domesticado são mui numerosas; os
egípcios o chamavam por meio de uma onomatopéia: myéu.
O Olho do Sol, filha de Ré (Olho em egípcio é do gênero
feminino), encolerizara-se e fugira para o deserto da Núbia;
conseguiram apaziguá-la; a leoa de fogo tomou, então, o aspecto
de uma graciosa gata, Bastet, a deusa-felino.
GEB -Ser divino, masculino, que personifica a Terra,
esposo da deusa Nut, o Céu (Terra em egípcio é do gênero
masculino e céu feminino); ambos estavam separados por Shu, a
Atmosfera. '
Segundo as lendas de Heliópolis, Geb participava da
enéade. Segundo tz:adição mais recente, Geb teria arrebatado à
força o reino de seu pai, Shu, que se tornara muito velho.
Antigamente Geb era representado sem nenhum atributo; a
iconografia mais recente empresta-lhe uma coroa.
GEBEB -O deus-Terra. -V. Geb.
GÉNIOS - Menos rica do que a civilização mesopotâmica,
contudo, a demonologia egípcia contava grande número de
génios malfazejos; eram forças do Caos, seres híbridos, homens
sem cabeça, animais monstruosos, toda uma fauna misteriosa
que causava pavor. As paredes do Vale dos Reis estão cobertas
93
com as figuras dessas estranhas figuras.
Havia legiões de demônios que eram causa das
enfermidades e que invejavam a sorte dos felizes; não tinha
número o cortejo de maus espíritos, masculinos e femininos,
íncubos, sonâmbulos, epilépticos, afogados que gostavam de
atormentar os vivos e arrebatar as criancinhas dos berços.
Havia, por fim, os emissários de Secmet, que, por parte da
divindade, traziam a doença e a morte àqueles que negligen-
ciavam seu culto.
A todos esses seres inquietantes opunham-se os "bons
Gênios", protetores de Osíris, guardiães dos templos e das
sepulturas.
H

HARACTI - O deus-falcão Horo.


HARIDI - Serpente adorada no Egipto.
HARMAQUIS - O Horo do Horizonte, o Sol. Era
representado pela Esfinge de Gizé.
HATOR - Hator era a deusa de importantes cidades:
Gebelein, Cusa, Atfih, Imau, Mênfis. ..Os gregos a identificaram
com Afrodite, e todas as cidades que a cultuavam passaram a
cha'mar-se "Afroditópolis". Senhora do céu, alma viva das
árvores, deusa com forma de vaca, alimentadora do soberano do
Egito, mãe de Horo (como 1sis), deusa do ouro, deusa em figura
de leoa (e confunde-se, então, com Tefnut), Hator era a
personalidade múltipla de várias divindades. Existe, até, um
grupo de "Sete Hators", espécies de fadas, que atribuíam aos
recém-nascidos ou os males ou os bens.
Os egípcios, ainda, faziam dela a Senhora dos países
longínquos: Punto, Biblos, Sinal...

94
Sobre a mar,gem esquerda, em Tebas como em Menfis,
Hator tornou-se a padroeira da montanha dos mortos e é nesse
papel cósmico e familiar que a representa a vaca encontrada na
sua cápela de Deir el-Bahari. Mas é no grande templo de
Dendera que ela aparece com seus aspectos mais clássicos: ao
mesmo tempo deusa universal, jovem amável, sorridente e bela,
e deusa da Alegria, da Dança e da Música.
HEMFTA -Divindade que corresponde ao Zeus grego.
HEROS -Um dos quatro deuses Lares dos egípcios. - V.
Anáquis.
HIDRIA - Vaso de todos os lados furados e que
representava o deus das águas. A palavra é de origem grega.
HIERABOSCOI - Sacerdotes que estavam encarregados
de alimentar os gaviões sagrados. Do grego hiérax, "gavião" ou
"falcão" e bósko, "eu alimento".
HIPOPÓTAMO - Os egípcios serviam-se da sua figura
para escrever a palavra "pesado". O hipopótamo era sobretudo
odiado por causa dos seus imensos e continuados grunhidos e
por causa do dano que causava aos agricultores: "Da colheita, os
répteis tomaram uma metade, os hipopótamos comeram a
outra". De feito, esse imenso herbívoro não era uma criatura
perversa; não atacava os homens nem os animais domésticos;
mas, numa sociedade essencialmente agrícola, era temível
inimigo.
Destarte, consideraram o animal como manifestação de
forças negativas; votaram-no, pois, a Set, o perverso, e em Edfu,
cidade do bom Horo, havia harpoadores sagrados, cujo ofício
consistia em caçar os pesados hipopótamos.
Mas o ,grande paquiderme não foi sempre e em toda parte
considerado um ser nefasto. O hipopótamo fêmea.. com largos
flancos gordos, com imensos seios pendentes, simbolizava a
fecundidade. Foi identificada, portanto, com a deusa Tuéris.
95
Representavam-na sob a forma de um hipopótamo, erguido
sobre as patas trazeiras, com os seios pendentes e apoiada no nó
mágico, símbolo da proteção.
HORO - Os deuses-falcões foram muito numerosos no
Egipto. O mais célebre é Horo.
Inicialmente Horo foi um grande deus do céu, assim como
o falcão é o rei dos ares. Deus dos espaços aéreos, cujos olhos
eram o sol e a lua, transformou-se logo no próprio Sol, em parti-
cular com o nome de Ré-Haracti. Mas continuava a ser o deus
que reinava sobre o céu e os astros. A partir da I dinastia, Horo
tornou-se o deus-falcão protetor do rei, e, em certo sentido, o
próprio Faraó.
Feito filho de Osíris e de 1sis, sobrinho de Set, Horo lutou
para reaver seus direitos. HUPE -Pássaro que era reverenciado
em todo o Egito.

I
IBIS - Ave sagrada. Era crime capital matar uma, mesmo
por acaso. Segundo a tradição, protegia o vale do Nilo contra as
invasões das serpentes aladas.
A "íbis sagrada", de plumagem branca, com cabeça e
cauda pretas, era a encarnação de Tot. Chamava-se vulgarmente
hib. ICN~UMON -"Rato do Faraó", mangusto. Era adorado
pelos egípcios; constava que comia os ovos dos crocodilos.
Encontrou-se p,rande quantidade de icnêumons de bronze; os
ani. maizinhos estão sentados sobre as patas trazeiras, com as
dianteiras erguidas em sinal de adoração. Representava uma
divmdade solar cujos caracteres especiais ainda não estão bem
determmados.
IMOTEP -O Sábio divinizado. Sua vida e obra nos são
mal conhecidas; foi conselheiro do rei Djeser (III dinastia, 2900
96
a.C.); atribuem-lhe o início dessa admirável arquitetura de pedra
que veio, subitamente, substituir, sobre o platô de Sacara,
as antigas construções de tijolos; era o padroeiro dos pedreiros.
Mas não se tornou deus em virtude das suas habilidades
como arquiteto; tampouco as suas obras literárias lhe mereceram
tal graça: perderam-se todas (se é verdade que escreveu
alguma). Na Baixa Epoca votaram-lhe culto como curador; a sua
capela, em Sacara (chamada Asklepieion pelos gregos), tornou-
se um sanatório para o qual afluíram os coxos de todo o Egito.
Gozava de grande prestígio entre os gregos que o chamavam
Imuthes.
1SIS -Através das lendas osíricas, 1sis tornou-se a figura
mais popular do panteão egípcio; irmã e esposa do deus Osíris,
recolheu-lhe o corpo defunto, depois que Set o matou; com a
ajuda de Néftis e de Tot conseguiu, com o vento das suas asas,
restituir-lhe o sopro vital, a vida; por fim, quando Osíris, nascido
para uma vida nova, mas restrita ao além, partiu para sempre,
criou com cuidado o filho Horo, nos brejos do Delta; figura
popular, é o tipo da esposa e mãe.
Não se sabe de quem é filha nem em que cidade nasceu.
Segundo uma tradição extravagante, teria se casado com Osíris
no seio da sua mãe, de sorte que quando nasceu já estava ~ávida
de um filho. 1sis e Osíris reinaram muito tempo no EgltO, no
meio da felicidade geral de todos; mas Osíris, que resolvera
conquistar a tndia, partiu com um exército de homens e mulhe-
res; à sua volta Set, seu irmão, conspirou contra ele e o matou;
mas Set não gozou por muito tempo do fruto do crime; 1sis for-
mou um exército e deu o comando a Horo; este venceu Set em
duas batalhas.
Depois da morte de 1sis os egípcios a adoraram
juntamente com seu marido e irmão; como, durante a vida,
tinham ambos se esforçado para desenvolver a agricultura no
97
país, o boi e a vaca tornaram-se seus símbolos; a seguir
publicou-se que a alma de 1sis fora habitar a Lua, ao passo que a
de Osíris se dirigira para o Sol.
Os egípcios criam que as cheias periódicas do Nilo eram
produzidas pelas lágrimas de 1sis, derramadas por causa da
morte de Osíris e era por isso que celebravam a festa da deusa
quando as águas começavam a subir.
Ísis passou, também, por ser a Natureza ou Mãe de todas
as coisas. Davam-lhe diferentes nomes, segundo seus atributos;
veneravam-na em todas as cidades do Egito, de modo especial
em Bubástis, Copto e Alexandria. Seu culto passou para Roma e
chegou até às Gálias.
Representavam 1sis ora sob os traços de mulher, com
cornos de vaca, símbolo das fases da lua, ora com um sistro na
mão direita e um vaso na esquerda, ora com a cabeça coroada de
torres, como Cibele, tendo a seus pés o globo da terra; às vezes
davam-lhe asas, um carcás ao ombro e nas mãos o Corno da
Abundância ("CornucópiaN).
Era considerada, também, como grande feiticeira, mas boa
e caridosa. Seu poder mágico velava, principalmente, sobre as
crianças.
Sabe-se que 1sis, por esperteza, surpreendeu o nome
mágico do deus supremo, o que lhe conferiu poderes
extraordinários. 1SIS (FESTA DO NAVIO DE) -Festa anual
que os egípcios celebravam em honra de 1sis como rainha do
mar. Essa festa se realizava no mês de março. Conduziam num
navio, ri{;amente adornado, cestas com perfumes e tudo aquilo
que era necessário ao sacrifício; depois lançavam ao mar uma
composição feita com leite e outras matérias; fingiam, então,
que o navio vogava à mercê dos ventos. Essa festa passou para
os gregos e romanos; estes últimos faziam despesas imensas
para que a festa de 1sis fosse magnificentíssima.
98
1SIAS -Sumo-sacerdote ou príncipe dos sacerdotes
egípcios. Fez uma estátua do deus Anúbis, que o tempo.poupou.

L
LEÃO -Atualmente não há leões no Egito; na pré-história,
porém, eram assaz numerosos. Consideravam-no o animal real
por excelência. A mitologia conhece o leão sob os mais diversos
aspectos; dele deriva a Esfinge.
Os egípcios domesticavam os leões; os Ramsés faziam
guerra acompanhados de leões.
O país estava cheio de templos dedicados à deusa-leoa,
que era venerada com diversos nomes: Bastet em Bubástis,
Páquet em Beni Hassan, Hator em Gebelein, Secmet em Mênfis
e na maior parte dos santuários leonmos.
A génese heliopolitana narrava que os primeiros deuses
nascidos do demiurgo solar se tinham manifestado como um
casal de leõezinhos, no tempo em que Atum engendrou Shu e
Tefnut, em Heliópolis, quando era Uno e quando se transformou
em Tr6is.
A leoa emprestou seus caracteres ao Olho de Ré para que
este aniquilasse a humanidade. Sobre os telhados dos templos, o
leão é a divindade que afugenta Set e seus perversos
companheiros. L1NGUA -A velha língua faraónica conta mais
de 5000 anos; os primeiros textos aparecem por volta de 3 lDO
a.C.; o copta, último aspecto dessa língua milenar, não se
apagou inteiramente diante do árabe senão por volta do XVII
século; serve, ainda, como lín~a litúrgica nas igrejas coptas do
Egito.
A língua egípcia pertence à família camito-semítica; é das
mais simples: o feminino em t, o plural em u, ui; não possui
casos; na oração, em geral, o verbo ocupa o primeiro lugar,
99
seguido do sujeito, do objeto direto, do objeto indireto e do
advérbio: Escrever eu carta a ti amanhã.
LIVRO DOS MORTOS - A partir do Novo Império,
depunham um livro (papiro ou couro) junto do corpo do
defunto,. no sepulcro. Esses manuscritos, encontrados às
centenas, escntos em hieróglifos, em hierático e em demótico,
são textos funerários; praticamente revelam a idéia que tinham
os sacerdotes-mágicos do Universo e refletem as mil crenças
funerárias. Mas não reproduzem, como às vezes se imagina,
uma Bíblia egípcia, um manual de iniciação filosófica ou
mesmo um livro que tratasse metodicamente dos destinos
póstumos. São compilações de encantações (completadas com
desenhos destinados a aumentar o poder operatório), cuja leitura
ou presença é suficiente para assegurar àalma um destino feliz e
triunfante, divino e humano ao mesmo tempo.Todas as
compilações desse gênero trazem o título:
"Fórmulas para sair à luz", ou "Livro do vir à luz", em
egípcio Per-em-hru; entretanto, como os depredadores árabes
das catacumbas davam o nome de Kitábul máit o maitín, isto é,
"Livro do Morto" ou "Livro dos Mortos", a todo rolo de papiro
que encontravam com as múmias, foi adotado modernamente
este nome para aquela célebre compilação.
LOTO -Crescia aquela planta que os gregos e os romanos
chamavam loto em todos os marnéis e sítios palustres do Egito.
Dava uma bela flor. Conheciam os egípcios dois tipos (atestados
pelos desenhos e relevos, pois não há quase uma única
manifestação gráfica, pictórica ou iconográfica que não repre-
sente o loto, "0 brasão floral do Egito"), o Nymphaea lotus e o
Nymphaea caerulea. Bem mais tarde, foi introduzida uma ter-
ceira espécie, vinda da lndia, o Nymphaea nelumbo, que foi des-
crito por Heródoto e que é comumente figurado nos
monumentos helenísticos. Os rizomas feculosos do loto
entravam na alimentação do egípcio. De todas as ninfáceas do
100
antigo Egito, sem dúvida o loto azul foi o mais sagrado.
Enquanto o loto branco exalava um perfume forte e agressivo, o
aroma do loto azul era suave e doce: cheirava a vida divina.. Foi,
também, o emblema primitivo do jovem deus de Mênfis,
Nefértum, senhor dos perfumes. Era para os egípcios o que são
as rosas para nós: as mais belas flores, a rainha das flores. Eles
chamam o lo to de nanufar, em o Novo Império, e o termo
chegou até nós, o nenúfar. Entrava, também, o loto nas formas
arquiteturais, nos capitéis das colunas, nos arabescos das volutas
que encimavam as cornijas.
LOTUS - V. Loto.

M
MAAT -Filha de Ré. Era a encarnação da Verdade e da
Justiça, assim como representava o equilíbrio do Universo, a
relação harmoniosa dos elementos entre si, a coesão de todas as
partes que formam a manutenção do todo. É, por conseguinte, a
Ordem Universal; mas como influi também nas pessoas,
torna-se, então, a Ordem Ética, que determina como agir e como
proceder, não só consigo mesmo mas também com os demais.
MACACO -Dois tipos de macacos aparecem desenhados
ou esculpidos nos antigos monumentos egípcios, o
Cercopithecus aethiops e o Papio Hamadryas, isto é, o
cercopiteco e o babuíno.
O macaco era um deus no Egito. Não era animal original
do país, mas importado. Não obstante, eram numerosos e bem
conhecidos dos egípcios. Os animalistas tini tas os esculpiam
com predileção; os senhores das mastabas mênfitas costumavam
reunir num grupo seus anões, cães e macacos. No outro mundo a
alma precisava ter muita sorte para escapar aos macacos que
pescavam com redes; mas havia, também, macacos bons,

101
amigos do Sol e dos homens. Os cinocéfalos costumavam, ao
raiar do sol, gritar agudamente; acreditavam, então, que os
macacos ajudavam o astro-rei a sair das trevas e o saudavam
com grandes guinchos quando viam que o astro vencera. No
Egito, assim como na Babilônia, o babuíno era a imagem do Sol.
Mas o macaco supremo que o Egito inteiro adorava, era Tot, o
deus de Hermópolis Magna ("Hermópolis a Grande", Tuna em
egípcio). Quando seu culto se implantou nessa cidade, o Tot do
Delta, sem renunciar à sua figura de íbis, assumiu também o
aspecto de babuíno. Destarte passaram a figurar a divindade
como um velho cinocéfalo sentado, mãos nos joelhos, pesada
juba, o sexo arrogante e erecto e ar pensativo; em cima, o disco
lunar. Quando o Olho de Ré se tornou gata, o macaco tentou
convencê-Ia a voltar, pois Tot era o padroeiro dos sábios e dos
letrados.
MACÉDON - Filho de Osíris.
MASTABA -Tumbas particulares no Antigo Império, que
se agrupavam em quarteirões regulares, tanto em Gizé, como em
Sacara e em outras localidades. Em geral dispunham-se ao redor
da pirâmide real. Existem vários tipos, conforme sejam feitas de
tijolos, de pedra ou de calçáreo; distinguem-se, também, pela
disposição interior.
Em geral a mastaba se compõe' de duas partes
independentes: a sepultura e a capela; a sepultura, disposta no
fundo de um poço, contém o sarcófago de pedra e o material
funerário indispensável à vida da alma no outro mundo; essa
sepultura era murada depois do enterramento; o poço,
entulhavam-no com pedras e cascalho; a parte construída da
mastaba, visível acima do solo, consistia num pequeno outeiro
feito com materiais grosseiros, coberto ou cercado por um muro
de pedras; o plano era geralmente retangular e os muros
ligeiramente inclinados. Daí o nome: mastaba, em árabe, quer
dizer "banco" ou "banque ta". No exterior dessa massa erguia-se
102
uma pequena capela, onde se realizava o culto funerário. A
capela era acessível aos visitantes. Nela depunham os vivos as
oferendas e queimavam incenso em honra do defunto.
M!!.MNON (COLOSSOS DE) - As duas estátuas
colossais
do rei Amenófis 111, sentado, que tradição milenar diz ser
as "estátuas de Mêmnon", fazem parte da paisagem tebana.
Os antigos consideravam esses dois simulacros como
participando das Maravilhas do Mundo. Atualmente estão
isoladas as duas estátuas, no meio de campos cultivados. São
monólitos de grés e medem 15 metros de altura; contudo, a fama
desses colossos não provém da sua grandeza nem da
originalidade. Em 27 a.C. um terremoto ou convulsão telúrica
abalou a campina tebana; o colosso mais ao norte fendeu-se e
partiu-se em dois, na altura da cintura. A partir desse fato,
segundo um fenômeno físico que foi constatado recentemente
nos templos de Edfu e Carnaque, a pedra se põe a vibrar quando
se processam os bruscos movimentos de umidade e calor que
acompanham o nascer do dia. A estátua produzia um som nítido,
firme, sonoro. Esse fenômeno intrigou profundamente não só os
egípcios mas também os viajantes que por lá passavam e por fim
pessoas que se dirigiam ao local a fim de assistirem ao prodígio.
Estrabão, que provavelmente ouviu o "canto da estátua", não
acreditou em poderes miraculosos.
Mas quem era Mêmnon? Por que lhe puseram tal nome? O
mito diz o seguinte: "Mêmnon era filho da Aurora e de Titono,
neto de Laomedonte. Segundo alguns, era rei da Pérsia,
conforme outros, da Etiópia ou do Egito. No décimo ano do
assédio de Tróia, correu em socorro de Priamo, com vários
carros de combate, e distinguiu-se pela sua bravura. Foi morto
por Aquileso Aurora, desesperada, lançou-se aos pés de Júpiter
pedindo-Ihe que concedesse ao filho algum privilégio que o

103
distinguisse dos demais mortais. Júpiter acedeu aos rogos da
mãe desolada; logo que a fogueira fúnebre foi acesa, viu-se sair
dela uma infinidade de pássaros, que se separaram em dois
bandos e começaram a lutar ferozmente, ao redor da pira
funerária, até que todos tombaram mortos. Foram chamados
Memnômidas. Tão insigne honra não acalmou o espírito da mãe.
Diariamente continuou a chorar, e o seu pranto é o orvalho que
cai ao amanhecer. Em Tebas, no Egito, a estátua de Mêmnon
vibrava em acordes harmoniosos logo que as primeiras luzes da
Aurora a atingiam. Era a resposta do filho aos doces chamados
da mãe."
Sétimo Severo, animado das melhores intenções, resolveu
consertar a estátua mutilada; escultores reconstituíram o colosso.
Mas esse fato trouxe como conseqüência que Mêmnon se tornou
um colosso igual aos outros e perdeu a voz.
Somente o nome, agora, evoca essa longínqua e
maravilhosa história. MENDES -Divindade que era adorada
principalmente na cidade que tinha o mesmo nome. Os
habitantes de Mendes a contavam entre os oito principais
deuses. Mendes era, também, o nome do bode consagrado a um
deus que foi pelos gregos identificado a Pã; outros crêem que
Mendes era o próprio deus. MENES -Legislador e primeiro rei
do Egito, segundo a lenda. Ensinou aos seus súditos o culto dos
deuses, no número dos quais mais tarde foi colocado. Menes é
forma grecizada de Menei.
MENFIS -1) Filho de Júpiter e de Protogenia; desposou a
Libia.
2) Filha de Ucoreu. Foi amada do Nilo, que se
transformou em touro, e teve dela um filho, chamado Egito, de
força e virtude maravilhosas. Fazem-na, também, esposa de P-
pafo e mãe da Libia. Deu seu nome a uma cidade do Egito.
3) Cidade do Nilo, muito antiga, construída às margens do
104
Nilo. Foi capital do pais. No seu lugar existe, hodiernamente,
uma pequena aldeia, Mit-Rahined.
MENÚTIS -Divindade que era adorada num burgo do
mesmo nome, perto da cidade de Canopo.
METEMPSICOSE -Heródoto escreveu o seguinte: "Os
egípcios foram os primeiros que afirmaram ser a alma humana
imortal; pela morte do corpo ela passa sucessivamente a outras
formas vivas, e após haver habitado alternadamente todos os
corpos dos animais da terra, do mar e do ar, penetra novamente
no corpo dum homem; é necessário 3 000 anos para que ela
conclua todas essas migrações." O Livro dos Mortos e outras
inscrições parecem confirmar o que disse Heródoto;
encontramos inúmeras fórmulas para o defunto se transformar
em fênix, em falcão, em lótus, em andorinha... Malgrado as
aparência, não se pode falar em metem psicose a respeito dos
egípcios. As fórmulas do Livro dos Mortos e outras inscrições
permitem a alma ba não se tornar prisioneira do sepulcro, onde o
corpo jaz para sempre; permitem que a alma se evole sob formas
diferentes e erre sobre a terra. Mas são transmigrações
passageiras; a alma não percorre, sucessivamente, ciclos de
reencarnação; ela permanece, definitivamente, ligada ao corpo
embalsamado na sua tumba; pode, apenas, fazer pequenos
passeios cá fora.
Os casos de real reencarnação dum morto numa nova exis-
tência pertencem à literatura popular e fazem parte dos "contos
fantásticos".
MIN - Deus itifálico que foi identificado pelos gregos ao
grande Pão Era o santo protetor de Akhmim e de Copto e guar-
dião das rotas e estradas da antigüidade.
Impressiona, nessa divindade, o tranqüilo impudor com
que exibe o seu monstruoso falo erecto, com uma mão levantada
para trás, a direita, em forma de esquadro; sobre sua cabeça
105
flutua o chicote real, símbolo do terror salutar; o outro braço
desliza sob as vestes e segura a raiz do falo divino; é a imagem
do touro que cobre as fêmeas, senhor da geração, cuja procissão
abria o tempo das colheitas e ao qual se oferecia, solenemente,
alface que estava impregnada, dizia-se, de virtudes afrodisíacas.
O corpo é negro, pois o rito queria que as estátuas de Min
fossem ungidas com uma substância vivificante, feita de betume
e ingredientes carbonizados. Na cabeça trazia duas enormes
plumas, o que ainda mais elevava seu talhe esbelto e esguio.
MNP-VIS - Touro consagrado ao Sol na cidade sagrada de
Heliópolis; tributavam-lhe o mesmo culto que ao touro Apis.
MOM~NFIS - Cidade do Egipto cujos habitantes
adoravam uma divindade identificada a Vênus ou a Mrodite,
com culto particular. Os habitantes dessa cidade tinham uma
novilha sa. grada, como os de Menfis possuíam o touro Apis.
MONTU -Deus-falcão da Tebaida, padroeiro de vários
soberanos da XI dinastia. Parece que Montu, na origem, foi uma
divindade guerreira.
Eclipsado por Amon, reconquistou seu prestígio quando o
clero tebaI1o começou a decair. Vários templos foram erguidos
em sua honra, em Tebas, Medamud, Tod e Ermant.
Seu animal sagrado era o touro Búquis, que era enterrado
nos corredores do Buqueum de Ermant.
MORTE -Não há nenhuma nação que tenha consagrado à
Morte e à esperança de sobreviver a ela tantos esforços como os
egípcios. É óbvio que eles nela não encontravam nenhum encan-
to. "A morte é penosa -dizem os textos -fonte de lágrimas e de
pesar." Todos almejavam ter um belo enterro, mas esperavam
que esse ocorresse somente na mais avançada idade. Cento e dez
anos era a idade ideal que todos esperavam alcançar.
Os mensageiros de Secmet e de Bastet, portadores da

106
morte, eram particularmente temidos. Não havia, entre os
egípcios, um deus particular que personificasse a Morte, e isto
porque a morte, para eles, não era um fim, mas sim o começo de
outra situação, a vida além-túmulo.
MÚMIAS - V. Embalsamamento.
MUT - Deusa-mãe do Céu, mulher de Amen-Ré, em
Tebas.
Com cabeça de abutre, simbolizava a maternidade.
Quensu, seu filho, completava a trindade tebana.

NECABIT - V. Necbet.
NECBET -Deusa-abutre da cidade de EI-Kab, no Alto
Egito. Necbet tornou-se rapidamente a deusa tutelar do Sul,
como Uadjyt, a serpente de Buto, evocava os marnéis do Delta.
Sob esse título era representada como assegurando a proteção ao
rei, enquanto o abutre entrava simbólicamente no penteado dos
soberanos. Senhora dos desertos, Necbet foi, com a evolução
gradual das teologias, comparada a outras deusas, tais como
Hator, e logo integrada no ciclo solar.
A crença popular fez de Necbet a deusa protetora dos
nascimentos e dos partos, razão pela qual os gregos a
identificaram com Ilithyia.
NEFÉRTUM -Nefértum ou Nefértem, uma das divindades
da tríade 'de Mênfis. Era filho de Ptá e Sequet, deus do ardor do
sol nascente, representado com uma chama em forma de lótus
sobre a cabeça, como símbolo da força geradora. Figurava, tam-
bém, como assessor do morto diante do tribunal de Osíris.
NÉFTIS - Irmã de fsis. Participou dos ritos relativos à

107
proteção e ao renascimento do deus morto, Osíris.
Algumas tradições fazem dela a esposa de Set ou a mãe de
Anúbis. Parece que jamais Néftis foi adorada particularmente;
essa a razão pela qual é associada a outras deusas, como Anú-
quis; sob essa forma era adorada em Kom Mer, no Alto Egito,
em época tardia.

NEIT - Deusa muito antiga da cidade de Sais. Seus aspec-


tos e funções eram múltiplos: criadora assexuada, água primor-
dial que, por primeiro, ganhou a vida e da qual procedem todas
as criaturas, mãe do Sol; às vezes é confundida com Nut, a abó-
bada celeste: outras tradições a representam como deusa arquei-
ra, repelindo com flechas os maus. gênios; outras, ainda, fazem
dela a protetora do sono, a criadora da arte de tecer, a padroeira
das unções com óleo e uma das quatro deusas que velavam
sobre os sarcófagos e os vasos canopos.
Conforme os lugares do culto, associa-se ao crocodilo
Sobec e às vezes a Osíris. Seu prestígio cresceu a partir da
XXVI dinastia. Os gregos a identificaram com Atena. NEITME
-Divindade egípcia que foi assimilada à Atena
grega; é provável que seja a mesma Neit. NEOMf!.NIAS -
Festas da lua nova, que eram celebradas na Síria, no Egito e na
Grécia. ApoIo era honrado com o epíteto de Neomênio,
principalmente na época da lua nova.
NILO -1) Neto de Atlas. Deu seu nome ao rio Nilo.
2) Deus dos egípcios, que era venerado sob a forma do
deus Nilo. 3) Rio do Egipto, o mais longo do mundo (6500 km),
intimamente ligado à história dos egípcios. A etimologia é
duvidosa; herdamos a palavra dos gregos, Neilos; há muita
fantasia a respeito da origem desse nome. Lê-se, às vezes, que o
Nilo era um deus chamado Hapi. Não é bem exato; o Nilo, como

108
entidade topográfica, era chamado pelos egípcios de Ioteru, "O
Rio"; Hapi não é o rio divinizado, mas antes o espírito do Nilo,
sua essência dinâmica; por isso diziam: ..A vinda de Hapi", isto
é, a cheia se aproximava.
Representavam o Nilo sob a figura de um andrógcno pan-
çudo com peito de velha ama, verde e azul como as ondas, cabe-
ludo e desnudo como um pescador dos paludes.
NO DE ÍSIS - Amuleto que tem vagamente a forma de
uma cruz ansada; vulgarmente chamam-no de "cruz egípcia"; os
dois braços caem.
Sua significação inicial é incerta; o emprego corrente, na
decoração, em colunas djed, fez com que o referissem a fsis. O
nó da cintura das divindades apresenta, por vezes, essa forma.
NUN -É o "Espírito de deus movendo-se sobre a superfície das
águas". Era o nome que davam ao princípio criador da vida na
primeira massa d'água da criação. Era personificado como um
deus macho e fêmea autogerado, capaz de produzir prole.
Representavam-no como divindade masculina solar,
casado com Mut; era chamado "O pai dos deuses" cósmicos em
Hermópolis.
NUT -Filha de Shu e de Tefnut, casou-se com Geb, o
deus-Terra. Personifíca a abóbada celeste. Os baixos-relevos a
representam como uma mulher cujos pés atingem o horizonte
oriental, enquanto seu corpo se curva por cima da terra e seus
braços atingem as fronteiras do poente; outras tradições fazem
dela uma grande vaca levantada por cima do mundo; ao longo
do seu corpo navegam os astros; transformada em mãe do Sol-
Ré, acreditavam que ela, todas as tardes, engolia o disco solar e
o vomitava todas as manhãs.
Em Heliópolis consideravam-na a mãe de Osíris, 1sis,
Néftis e Set. Uma lenda referida por Plutarco, explica como Nut,
que seu pai havia tornado estéril, por ter ficado extremamente
109
encolerizado com ela, ganhou no jogo de dados cinco dias, do
seu parceiro Tot, o deus que regia o tempo; Nut aproveitou-se
desses cinco dias (que foram acrescidos aos 360 do ano comum)
que ganhara para pôr no mundo, clandestinamente, cinco filhos.

OGDOADE - “Grupo de oito". A palavra designa os


quatro pares de forças elementares que, segundo os teólogos de
Hermópolis, precederam à criação do mundo. Eram os
seguintes: Nun e Naunet, a água primitiva; Heh e Henet, o
infinito espacial; Kek e Keket, as trevas; Amon e Amaunet,
aqueles que não podem descobrir. Este último par, segundo as
tradições, trazia outros nomes que evocavam o Nada e o Vazio
ou a indeterminação espacial.
Não são, pois, divindades do universo organizado, mas
personificações de elementos do caos, antes da criação. Forças
obscuras de um mundo ainda não organizado, esses oito deuses
tinham o aspecto de rãs e de 8erpentes, criaturas espontâneas das
águas primordiais. Por obra e ~raça dessas divindades surgiu o
primeiro outeiro, onde, então, de um lótus, nasceu o Sol. A
cidade de Hermópolis, em honra da ogdoade, recebeu o nome de
Quemenou ou Quemenu, "A Cidade dos Oito"; dessa palavra
derivou o copta Shmun e o árabe moderno Ashmunein. O
admirável destino histórico do deus Amon, divindade tebana,
homófono de um dos deuses da ogdoade, explica a importância
que nos documentos ~reco-romanos se deu ao colégio her-
mopolitano dos oito deuses iniciais.' Acreditavam que sob a
colina de Djeme (Medinet Habu) descansavam esses oito deu-
ses; aí eles recebiam, nos últimos tempos da civilização egípcia,
a libação funerária que os deuses vivos seus sucessores, vinham,
de década em década, lhes derramar.
110
ON - O Sol.
ONFIS -O mesmo que Osíris.
ONÚFIS -Touro consagrado a Osíris.
ONÚRIS - Literalmente a palavra significa: Aquele que
reconduziu a 10n!!;Ínqua". O Olho do Sol, uma deusa, ficara
irritada e fugira para os desertos da Libia onde se transformou
numa leoa.Onúris conseguiu fazer com que voltasse,
inteiramente apaziguada. Deus guerreiro, figurado com altas
plumas e puxando uma corda que descia do céu, tinha dois
grandes santuários, Tis e Sebenitcs.
Sua célebre lenda foi objecto de adaptações locais.
Admitia-se, também, que Onúris era o deus Tot, a divindade
sábia; a deusa furiosa que fugira para a Líbia era Hator; o
perseguidor era Shu, filho de Ré e a leoa, Tefnut.
OPAS - Nome de uma divindade que foi identificada ao
Hefestos ~rego (Vulcano em latim).
OPET -Deusa adorada especialmente em Tebas e
representada com corpo de hipopótamo, erguido sobre as patas
traseiras, com ~randes seios pendentes. Era o símbolo da
maternidade e lactação. Davam-lhe o nome de "A Branca" e "0
Harém". -V. Tuéris.
ORAS -Divindade que foi assimilada ao Febo grego
(ApoIo). OS1RIS -Osíris é o mais conhecido dos deuses
egípcios. Os gregos o faziam filho de Zeus e de Níobe ou de
Cronos e de Réia.
Conforme o mito ori~inal, Osiris reinou com 1sis sobre o
Egito numa fase particularmente feliz; todos viviam satisfeitos,
não havia pobreza, nem doenças, nem ódios. O casal real ensi-
nava aos súditos as normas fundamentais da civilização, a agri-
cultura e muitas outras artes extremamente úteis à vida. Depois
Osiris empreendeu longínquas viagens; fez memoráveis
111
conquistas e pereceu quando regressou graças às emboscadas de
Set (Tifon ou Tifão), seu irmão. Os egípcios, a fim de
conservarem a memória dos benefícios que desse principe
haviam recebido, outorgaram-lhe honras divinas sob o nome de
Serápis, sua grande divindade; e, como Osíris havia ensinado
aos homens a agricultura, lhe deram o boi por símbolo.
Representavam Osíris com uma mitra ou um globo sobre a
cabeça, um bastão na mão esquerda e o chicote na direita. Às
vezes, em lugar da cabeça humana lhe emprestavam cabeça de
gavião. A hera lhe estava consagrada.
Segundo outro mito, Osíris havia encerrado num ovo doze
figuras piramidais brancas, a fim de caracterizar os infinitos
benefícios que ele desejava atribuir aos homens; mas Tífon (ou
Set) abriu o ovo e nele introduziu, secretamente, doze outras
pirâmides negras e por esse meio o mal sempre se encontra mis-
turado ao bem.
Essencialmente Osíris era o deus da ressurreição humana;
no fim da V dinastia, o faraó morto era um Osíris; no começo do
Império Médio, todos os mortos são Osíris.
Plutarco deixou-nos uma narrativa acerca de Osíris:
Nascido durante os cinco dias complementares -v. Nut -do ano,
Osíris tornou-se rei do Egito; casou-se com 1sis, sua irmã; logo
arrancou o povo à vida de privações e de animais selvagens,
fazendo com que conhecessem os frutos da terra e os deuses do
céu; a seguir percorre a terra para a civilizar. Mas o irmão de
Osíris, Set (que Plutarco chama de Tífon ou Tifão), enche-se de
inveja ao ver que Osíris é amado por todos. A ele se ligam 72
cúmplices; toma as medidas, secretamente, da estatura de Osíris,
e constrói um cofre soberbo, admiravelmente decorado e ordena
que o conduzam para a sala onde se realiza um banquete. À vista
do cofre todos se admiram; Set (ou Tífon), rindo, promete fazer
presente do cofre àquele que nele couber perfeitamen~e; todos o
experimentam mas não serve a ninguém; enfim Osms entra no
112
cofre e seu corpo cabe perfeitamente nele; no mesmo instante os
conjurados se lançam sobre o cofre e o fecham com pregos,
cravos e chumbo derretido. A seguir lançam-no no mar (ou no
Nilo). Começa, então, a busca de Osíris. Segundo a versão
egípcia, 1sis e Néftis encontram o cadáver do deus na margem
de Nedit, o local da sua morte. Mas, paralelamente ao
desenvolvimento tardio do culto das relíquias (cada cidade reli-
giosa se gabava de possuir um pedaço do corpo divino), uma
lenda mais complexa refere o desmembramento de Osíris por
Set: 1sis teria encontrado o corpo de seu marido no porto de
Biblos e o reconduzira para o Egipto, depois de muitas
aventuras. Mas Set, que descobrira o esconderijo onde 1sis
depositara o corpo do marido, o teria cortado em pedaços e os
disseminara por todo o país; recomeçou a busca; cada pedaço
encontrado era sepultado no próprio local onde 1sis o achara; a
ressurreição do deus ora era atribuída a sua mãe Nut, ora à
piedade de Ré, que mandara em socorro o deus Tot e seus
infalíveis sortilégios, ora a Anúbis. Lendas posteriores referem
as lamentações de 1sis e de Néftis, os apelos dilaceradores que
dirigem ao deus para que retornasse à terra. 1sis, por fim,
concebe de seu esposo, já defunto, um filho; durante muito
tempo esconde este fruto póstumo dos seus amores nos pântanos
de Quêmis, a fim de subtraí-lo aos furores de Set; por fim Hora,
atingida a idade viril, vinga o pai.
Alguns episódios da lenda osiríaca eram representados
anualmente em Abidos: a saída do deus, sua barca, guiada pelo
cão Upuaut, sua morte, enterramento e vingança. Paralelamente
a essas evocações dramáticas que se realizavam no meio de
grande concurso de povo, havia outras cerimônias secretas, os
mistérios, que se efetuavam em salas retiradas dos templos.
Essas festividades eram realizadas no quarto mês do ano
egípcio, quando as águas da inundação se retiravam; faziam,
então, pequenas estátuas de barro de Osíris e misturavam limo
113
por cima; a seguir, semeavam grãos que logo germinavam e
conservavam a figura da estátua: era o Osíris que vegetava. e.
interessante observar que ainda hoje os egípcios fazem lentilhas
germinar em algodão impregnado d'água, em certas festas
religiosas.
OZOCOR - Divindade que os egípcios assimilaram ao
Héracles grego (Hércules).

P
PAAMILA - Mulher da Tebaida, a quem uma voz
sobrenatural anunciou o nascimento de um herói que um dia
deveria fazer a felicidade do Egito. Tratava-se de Os íris, de
quem Paamila foi ama.
PAAMILES - Epíteto de Osíris.
PAAM1LIAS - Festas que se celebravam em honra de
Osíris, instituídas em memória da sua ama Paamila.
PACT - Esposa de Ptá no grupo de Mênfis. Era uma divin-
dade fellna, com cabeça de leão ou de gato, similar de Bast;
usualmente era portadora de males. Algumas vezes era incluída
na companhia de Set ou funcionava como seu equivalente na
triade.
PALM1CIO - Divindade egípcia também chamada
Palmites. PALMITES -Divindade egípcia.
P ANMELES - Nome grego que se dava a Osíris e que
significa UAquele Que Vela Sobre Tudo".
P ASSAROS - Os próprios hieróglifos nos dão conta da
alta estima que os egípcios dedicavam aos pássaros e aves. Mais
de vinte espécies figuram nos signos hieroglíficos; um túmulo
do Império Médio, numa frisa, ostenta 29 voláteis, incluindo

114
dois morcegos.
PEIXES - Os peixes eram comuns no Egito; abundavam
no Nilo, nos canais, nos profundos paludes e nos lagos costeiros
do mar de Faium.
Nas tumbas antigas ou nos quadros de pesca, os peixes
aparecem desenhados ou esculpidos com rara perfeição, e são de
vários tipos: enguias, carpas, percas, mormiros, oxirrincos, silu-
ros, o perverso fagre de grandes dentes, Uo cão do Nilo", como
diz o felá, e outras variedades mais. Mas um tabu, de origem e
data incertas, mas evidentemente milenário, interditava a todo
ser sacralizado, rei, sacerdote, morto glorioso, comer peixes; o
povo profano, porém, não se privava desse prato, fosse fresco,
seco ou salgado. Em determinadas épocas não se podia comer
peixe; noutras era mister comê-los assados; uma cidade consi-
derava tal peixe tabu, ao passo que outra dele fazia uso regalado.
Sabe-se que o mormiro tinha a sua cidade sagrada, Oxirrinco,
onde era grandemente venerado; pois um dia houve guerra entre
Oxirrinco e a cidade fronteira porque esta comera o seu deu~, o
mormiro sagrado. A perca estava consagrada a Neit, a enguia ao
deus de Heliópolis. Havia a deusa urainha dos peixes", o golfi-
nho fêmea, protetor de Mendes. Outrora, dizem as lendas, o
barbo, o fagre e o oxirrinco partilharam seu sexo com Osíris que
fora emasculado pelo cruel Set.
Os adoradores do crocodilo afirmavam que os peixes eram
rebeldes, votados à morte..
PERINA -Divindade confundida com a Atena grega (Mi-
nerva em latim). Essa divindade achava-se sentada. Esse epíteto
lhe foi dado em virtude de Perina, bordadora, tê-Ia, pela
primeira vez, representado nessa atitude.
PSICOSTASIA - Upesagem da alma", palavra grega que
se aplica ao ato que é reproduzido em múltiplos exemplares e de
maneira às vezes um pouco diversa, no Livro dos Mortos.
115
Conforme a concepção egípcia, o deus justiceiro está
entronizado sob um dos seI (em geral é Osíris), cercado de 1sis e
de Néftis; não raro Ré, o grande juiz, acha-se presente. Diante
dele assentam-se os 42 assessores. O morto é introduzido por
Anúbis; seu coração é colocado num dos pratos da balança;
Maat em outro; Tot fiscaliza a pesagem e anota o resultado
numa tabuinha. Durante essa operação que irá decidir da sua
sorte, o morto pronuncia a dupla "confissão negativa"; a
primeira é geral: "Não cometi injustiças... não maltratei os
animais... não blasfemei... não fiz ninguém chorar... M; a
segunda, em 42 artigos, dirige-se, sucessivamente, a cada um
dos juízes-assessores: "O juiz tal, não cometi injustiças...; ó juiz
tal, não matei ninp;uém. ..; ó juiz tal, não permaneci surdo às
palavras da verdade...M Junto da balança, uma personagem de
pesadelo, "A Devoradora", aguarda o resultado da pesagem para
se lançar sobre ele se o julgamento for desfavorável; caso
contrário o defunto será admitido na região do além. Como se
vê, a psicostasia egípcia é original; os $!;regos não a
conheceram.
PTA - Deus da cidade de Mênfis, figurado sob forma
humana, estreitamente encerrado num estojo, como uma múmia
no seu féretro.
A teologia local o considera criador do mundo; foi ele
quem pôs na terra as formas visíveis, por meio da língua (o
verbo criador) e por meio do coração (o pensamento).
O destino histórico de Mênfis fez dele o padroeiro da rea-
leza e o regente das festas jubilares.
Tradição muito anti~a o considera inventor das técnicas, e
os artífices o adoram como seu padroeiro; o sumo-sacerdote de
Ptá tinha o título de "Decano dos mestres-artífices". Os gregos o
identificaram com Hefestos.
Com o correr dos séculos, assimilou-se ao deus funerário
116
Socáris, depois, por intermédio deste, com Osíris; constituiu,
então, uma familia divina com a deusa Secmet; o filho desse
casal era
Nefértum, "O Lótus Perfumado".

Q
QUEB - A Terra. O mesmo que Seb ou Geb. -V. Sebo
QUEBSNAUF - Um dos espíritos de Amentet. Era a
divindade cabeça-de-falcão que zelava o fígado, a bílis e a
bexiga.
QUÉFERA - Nome do deus Sol-Nascente da primeira
massa d'áp;ua da criação; diariamente renasce no este, depois da
viagem noturna ao inferno. Consideram-no o "Pai dos deuses",
criador universal, que simboliza o nascimento e a ressurreição.
O escaravelho era o seu emblema.
QUENSU - Filho de Amon-Ré e de Mut na trindade de
Tebas. Era o deus da cura, identificado com a Lua.
QUÉPRI - Q Sol-Levante, representado pelo escaravelho.
— V. Quéfera e Escarabeu.

RA -V. Ré.
RAMSEION - V. Ramseum.
RAMSEUM -"O Castelo de Milhões de Anos do Rei Usi-
maré-Eleito-De-Ré Que se Uniu Em Tebas, no Domínio De
Amon À Oeste De Tebas", foi simplificado, pelos sábios, com o
nome de Ramseum.
117
O historiador grego Diodoro, inexatamente, o chamou de
ttímulo de Osimt1ndias; Osimândias é deformação grega do
nome egípcio Usimaré, prenome de Ramsés II.
Esse belo templo funerário, construido por Ramsés para
Amon e para ele mesmo, ainda hoje pode ser visto, ao nordeste
dos Colossos de Mêmnon.
RÉ -O deus Ré (Rá nas antigas obras e nas palavras cru-
zadas) é o mesmo Sol, realidade visível.
Sem dúvida foi adorado desde os tempos mais antigos em
todo o Egito. Mas sua metrópole foi Heliópolis ("Cidade do
Sol", Hélios, em grego); nessa cidade tinha o nome de Atum e
presidia à grande Enéade.
No domínio funerário era o chefe do reino do além, o
Grande Juiz dos antigos tempos; mas cedeu, ao menos em parte,
seu lugar a Osíris.
Os mitos que se referem a Ré são todos inspirados na sua
viagem diurna pelo céu do Egito; quando ele surge, nas
longínquas costas orientais, um coro de cinocéfalos o acolhe
com alegria; Ré, então, sobe na Barca do Dia e navega até a
tarde; nesse momento muda de condução e se acolhe na Barca
da Noite que o conduzirá às regiões do mundo inferior. Essa
diária navegação de Ré era assim sintetizada: Ao surgir, criança,
Quéfri ou Quépri; homem maduro ao meio-dia, Ré; ancião à
tarde, Atum.
REIS-SACERDOTES - Sob Ramsés XI, no fim do Novo
Império, o general Herihor tornou-se "o primeiro profeta de
Amon" o senhor dos bens do todo-poderoso deus de Tebas.
Por volta de 1 080 a.C. a dinastia ramésida se extingue e
Esmêndis de Tânis funda, no Delta, a XXI dinastia. Mas os
descendentes de Herihor fizeram da Tebaida um principado
praticamente independente; três desses reis-sacerdotes

118
mandaram escrever seus nomes no cartucho, à moda do faraó.
Esses pontífices militares exerceram uma ditadura teocrática;
toda decisão, relativa a vivos ou a mortos, era formulada como
um oráculo de Amon.

SAUABTIS - Pequenas estatuetas feitas de madeira, de


pedra, de bronze e de faiança. Eram amuletos mágicos, por sua
forma de múmia real; eram de caráter agrícola, pois traziam o
alvião ou enxadão.
No Médio Império, quando aparece o uso das estatuetas
Sauábtis, era de praxe colocar-se uma no túmulo do
falecido. No curso do Novo Império chegavam a empilhar 700
numa única sepultura; não eram, então, substitutos da pessoa,
mas escravos. SEB -Seb ou Geb ou Queb, era o primeiro deus
do mundo, consorte de Nut. Pai de Osíris e de Set, de 1sis e de
Néftis, conforme a teologia heliopolitana.
Acredita-se que tenha sido o autor do Ovo Celeste.
SECMET - Secmet significa, literalmente, "A Poderosa".
Era a deusa-leoa que teve santuários em todos os lugares
onde o leão costumava beber; mas seu centro principal foi
Mênfis, onde a consideravam e.sposa de Ptá e mãe de Nefértum,
o deus-Ioto. Representava a manifestação do Olho de Ré cheio
de fúria e a destruidora dos inimigos do Sol.
Por meio do rito de "Apaziguar Secmet", os homens alcan-
çavam tomar propícia essa deusa sanguinária, senhora dos men-
sageiros da Morte, responsável por todas as epidemias e panzoo-
tias. Mas os sacerdotes de Secmet formavam uma das mais
antigas corporações de médicos e de veterinários, o que vem
comprovar a verdade de que "quem sabe matar, sabe também
119
curar".
Amenófis 111 multiplicou as imagens da deusa, assentada,
no templo de Mut (Carnaque) e no seu santuário funerário.
SEQUET -Divindade da Tríade de Mênfis, encabeçada por Ptá.
Consideravam os seus filhos Nefértum e Imotep.
Era a deusa do calor ardente ou do fogo.
SERAPEU - O Serapeu de Mênfis continha nas galerias
subterrâneas as sepulturas dos touros Apis. Mariette aí encon-
trou, em l85G-5l, 24 sarcófagos de basalto ou granito, dos quais
os mais pesados atingem 70 toneladas. Uma câmara, murada no
ano 30 do reinado de Ramsés li, estava intacta, e via-se, ainda, o
sinal dos pés do último egípcio que havia deixado o lugar antes
de ser ele definitivamente selado.
Sob Ptolomeu I, o velho Serapeu conheceu nova fase e
nova atividade; o deus recém-introduzido, Serápis, não só deu
seu nome ao ántigo monumento, mas o transformou numa
espécie de sanatório, onde os enfermos vinham em busca de
curas milagrosas; /tinha pessoal recluso, voluntariamente, os
catoques. O acesso do Serapeu foi ornado com longos dromos
de esfinges, e estátuas de poetas e filósofos gregos foram
dispostas em hemiciclo na sua vizinhança.
SERAPIS - Deus introduzido no Egito sob o reinado de
Ptolomeu I e destinado, sem dúvida, por seu criador, a ser
divindade comum a gregos e egípcios. Tomou alguns caracteres
de Osíris, mas o essencial dos seus atributos é grego; assemelha-
se ora a Zeus ora a Asclépios ora a Dioniso. Seu culto espalhou-
se de Alexandria (onde o Serapeu era considerado uma das
Maravilhas do Mundo) para os países mediterrâneos. O prestígio
extraordinário do culto de lsis eclipsou, parcialmente, o brilho
do de Serápis.
Representavam-no com a cabeça coberta por um alqueire,
120
para figurar a abundância, da qual esse deus, considerado como
o Sol, era o pai. Freqüentes vezes era assimilado ao deus Plutão
(o Hades grego). Conforme a teologia alexandrina, em Serápis
estavam contidos todos os deuses.
SERPENTE - Os nilotas sempre temeram as serpentes, as
dos pântanos, as dos campos, as dos desertos. O homem pré-
histórico das margens pantanosas do Nilo temia uma serpente
que não picava, mas sufocava a vítima, a temível serpente Pitão
(ou Píton).
Nos velhos mitos aparece a serpente de ferro nascida do
lótus primordial. As serpentes podiam ser benéficas ou nocivas.
Todas, mais ou menos divinas. As serpentes das areias, da terra
e da lama eram fundamentalmente benfazejas; mas havia aquela
longa serpente que deslizava pelos campos úmidos ou pelos
brejos' e que, estando colérica, tomava a forma dilatada da
uraeus, a ainda hoje famosa naja; perigosas eram as víboras, que
emergiam silenciosamente das areias ardentes: a víbora
carenada, a víbora de cauda negra e a famosa cerasta cornuda (o
hieróglifo te). Todos os curadores conheciam de cor o repertório
das fórmulas conjuratórias relativas ao "veneno de toda
serpente, macho ou fêmea.. de todo escorpião, de todo réptil
capaz de picar..." A boa senhora-cobra, Renutet, padroeira do
celeiro, recebe do felá as primícias do campo, pois vigia o
crescimento das plantas. Com o advento do Cristianismo,
Renutet transforma-se em santa Termútis, ama presumida de
Moisés.
Nas rochas tebanas, Merseger, ..A Amiga do Silêncio",
amada do bom povo de Deir el-Medinet, protege a necrópole.
O Destino era uma serpente, fosse ele bom ou mau.
O folclore egipcio está cheio de avatares ofídicos.
SET -Set foi identificado com Tífon pelos gregos.

121
O porco, o asno, o hipopótamo e o órix do deserto
procedem
de Set. O próprio deus encarnou-se numa espécie animal
fantástica, misto de porco, asno, girafa, cão e ocápi.
Lendo-se Plutarco chega-se à conclusão de que Set era o.
Mal. De feito, o deus "vermelho" jamais foi uma criatura bon-
dosa e cheia de carinhos; mas é ele, não obstante, que com a
lança fere o horrível Apópis.Os reis hicsos, estabelecidos em
Aváris, cidade de Set, o tomaram por Baal; os Tutmósidas
guerreiros comparavam-se a Set.
Houve urna época em que Set patrocinava a produção dos
oásis. Mas o crescente favor popular em relação a Osíris pôs fim
a essa honorável carreira; ele se transformou, e para sempre,
num feroz demônio.
SHU - Shu e Tefnu, filhos do demiurgo, constituem o pri-
meiro par da Enéade heliopolitana. Representa a Atmosfera.
Sustenta, com o braço erguido a cúpula celeste acima da terra,
separando Geb (a Terra) da sua esposa (Nut, o Céu); é a perso-
nificação teológica do sopro luminoso que anima as criaturas
terrestres.
O sincretismo religioso o confunde com Consu, Tot,
Onúris e Cnum.
SIGALION - Divindade egípcia que foi confundida com o
Harpócrates grego, deus do silêncio.
Harpócrates é de origem egípcia, filho de 1sis e de Osíris.
Alguns o confundem com Horo.
SOBEC - Divindade-crocodilo. — V. Crocodilo.
SOCARIS - Divindade egípcia.
SUCO - Crocodilo domesticado que era honrado com
culto religioso em Arsínoe, cidade do Egipto.

122
T
TALAMOS - Nome de dois templos que o touro Apis
tinha em Mênfis.
TEFNUT - Deusa-leoa, irmã e esposa de Shu. Era mãe de
Seb (a Terra) e de Nut (o Céu).
TEIR - Divindade egípcia que foi assimilada ao Hermes
(Mercúrio) grego.
TELETAS - Ritos solenes que se celebravam em honra de
Ísis.
TERMúTIS -1sis considerada como a deusa vingadora dos
crimes.
TEUTATES - Divindade confundida com Anúbis.
Davam-lhe, também, o nome de Tuis. - V. Tot.
TIQUES - Segundo deus doméstico dos egípcios.
T1QUIS - O mesmo que Tiques, um dos quatro Lares dos
egípcios.
TITRAMBO -Divindade egípcia que foi confundida com
Hécate. O nome significa" Aquela Que Inspira Furor". Convém
não esquecer que o culto de Hécate, a deusa triforme, originou-
se no Egito, e, conforme a tradição, foi levado à Grécia por
Orfeu. TOT -Deus-lunar com forma de íbis. Era adorado em
todo o Egipto, mas em Hermópolis recebia culto especial.
Contudo, quando fez sua aparição nessa cidade, já ela contava
com uma bela fauna divina: a lebre sagrada, oito deuses-rãs,
serpentes e um babuíno. Mas Tot rapidamente se instalou e mais
rapidamente ainda se livrou dos incômodos vizinhos: a lebre
permaneceu apenas no nome do nomo; as oito divindades-rãs
transformaram-se na Ogdoade dos primeiros tempos; as
serpentes dispersaram-se; o babuíno foi obrigado a conviver
com aíbis para poder encarnar a forma material de Tot. Parece
123
que Tot reinava sobre tudo que comportasse operação
intelectual: a criação da linguagem escrita, separação das
linguas, confecção de anais e de leis; era o padroeiro dos
escribas. Era o deus que contava, media e calculava, não só o
tempo e as divisões temporais, mas também os números como
entidades científicas; era, portanto, o padroeiro dos
matemáticos. Nos mitos aparece, sempre, como o diligente
secretáriQ dos deuses, o assessor indispensável a toda ação
divina. Por conta das suas habilidades em hieróglifos e em
números, tornou-se o mais reputado mágico do Egito; não é por
menos que os teólogos de Mênfis o consideravam a língua de
Ptá, isto é, a expressão verbal pela qual o deus dá existência ao
Universo. Em outros textos aparece como o coração de Ré, isto
é, a essência do pensamento criador.
A biblioteca de Hermópolis, sua cidade, era célebre: dizia-
se que lá havia criptas secretas onde estavam guardados rolos
escritos pela própria mão do deus.
Os gregos o assimilaram a Hermes (Mercúrio); sob o
nome de Trismegisto teve papel importantíssimo na chamada
"literatura hermética"; na verdade, as idéias expendidas através
desses livros são mediterrâneas, e resultam mais do sincretismo
religioso alexandrino que das velhas crenças egípcias; Tot
apenas emprestou-lhes o nome.
TR1ADE -Agrupamento secundário de um esquema inva-
riável (pai, m~e e filho) de uma divindade de determinada
cidade; os elementos da Trfade, em ~eral, anteriormente,
existiam separados. Em Tebas havia a Trfade composta de
Amon, Mut e Consu, em Mênfis a de Ptá, Secmet e Nefértum, e
em Edfu a de Horo, Hator e Harsomtus...
TRISMEGISTO - Nome do Hermes (Mercúrio) grego
confundido com Tot. A palavra grega significa "Aquele Que É
Três Vezes Grande". Trismegisto era o conselheiro de Osíris.

124
Atribui-se-Ihe a invenção de infinidade de coisas úteis à vida.
Um outro Hermes traduziu as obras do acima referido
sobre medicina, astrologia e teologia egípcias.
TUAT - As doze regiões do reino dos mortos, através das
quais a "barca de um milhão de anos" de Ré todas as noites
navegava; eram gargantas ou muros guardados por serp-entes.
Cada uma dessas regiões correspondia a uma hora das 12 que
formavam a noite; em cada uma dessas horas (ou regiões) pro-
cessavam-se provas especiais com julgamento e os demônios
eram impedidos de passar. Às vezes tem o nome de Duat.
TUÉRIS - A grande deusa-hipopótamo. Era adorada sob a
designação de "A Grande"; assistia às mães em trabalho de
parto, quer fossem de deuses, de reis ou de simples mortais.
Figuravam-na ergui da sobre as patas trazeiras, com longos seios
pendentes, um chapéu redondo na cabeça e apoiada no nÓ
mágico.

U
UATCHET -Deusa-padroeira do Baixo Egito e do Delta.
Era irmã de Necbet. Enquanto 1sis buscava Osíris, ela tomou
conta do pequeno Horo e dele cuidou com carinho.
UBASTET -V. Bastet.
UCOREU -Rei do Egito, pai de Mênfis.
URAEUS -Uraeus é forma grecizada do termo egípcio
uraios, que significa "basilisco", através do latim. Designa a
deusa de diversos nomes que, personificando o Olho ardente de
Ré e simbolizando a natureza ígnea das coroas, tomava o
aspecto de uma serpente fêmea ardendo de furor.
A uraeus, com o pescoço dilatado, figurava na fronte do
faraó; aparecia nos frisos dos templos, e nos hipogeus reais
cuspia fogo contra os inimigos.
125
V
VACA - Se o boi ou o touro gozava de grande prestígio no
Egipto antigo, maior ainda era o da vaca. Imolavam-se bois,
jamais uma vaca leiteira. Era, com efeito, como vaca leiteira e
como mãe, mãe celeste do Sol, "Jovem bezerro de boca pura", e
também como esposa do Sol, "O touro de sua própria mãe", que
os egípcios a adoravam.
Fosse Hator ou qualquer outra divindade, era sempre a
vaca-céu, guarda do mundo dos mortos e alimentadora do faraó.
Os deuses que tomavam forma de touro (Montu, Min,
Amon etc.) e os touros nos quais os deuses se encarnavam
(Apis, Mnévis, Búquis etc.), tinham também suas vacas
sagradas, sobre as quais afirmavam o caráter de procriado~s
universais.
VESTES - O egípcio jamais se vestia de lã, já porque era
considerada desprezível, já por causa do clima. Vestiam-se
todos de linho. Os homens do povo costumavam usar apenas
uma tanga.
As mulheres variavam muito no trajar; as deusas, porém,
apareciam sempre trajadas da mesma maneira: vestido justo
mantido sob o peito por duas fitas ou correias, muito largas.
Em geral os deuses masculinos aparecem muito sumaria-
mente vestidos, bem como o homem do povo, que se contentava
com um calção ou com uma tanga.
VINHO - A videira sempre foi objecto de cultura
particular no Egipto. A vinha, em egípcio era krm; o vinho, erpi.
Segundo o mito, os bagos de uva nasceram dos olhos de Horo.
No Egipto todos bebiam vinho, desde o mais humilde
lavrador até o faraó e os deuses.

126
MITOLOGIA SUMERIANA

O PAÍS

Sumer, Sumere ou Suméria era a longa faixa de terra da


Mesopotâmia (palavra grega que significa "Entre rios", isto é, o
Tigre e o Eufrates) que terminava no Golfo Pérsico. Muito
menos isolada que o Egipto, essa planície era a passagem entre o
Mediterrâneo e o Oriente. A Mesopotâmia antiga permaneceu
desconhecida, praticamente, até o fim do século XIX; as esca-
vações arqueológicas a redescobriram.
Toda a terra que medeia entre os rios, Mesopotâmia em
sentido estrito, é formada pelas aluviões do Tigre e Eufrates, e
sua parte meridional, muito baixa, é aberta sobre o mar. Os dois
rios não desempenham a mesma função que o Nilo no Egipto:
suas cheias são brutais, desiguais, e quando transbordam causam
verdadeiras catástrofes.
A zona mais próxima ao Golfo Pérsico foi habitada por
povos de origem ainda desconhecida, que se estabeleceram no
vale do Eufrates, provavelmente no início do V milenário a.C.
Esse povo criou uma das mais antigas civilizações históricas. A
sua história prolonga-se até todo o 111 milenário e só
desapareceu quando Sumet foi conquistada pelos elamitas e
semitas amorreus. À grande região da Mesopotâmia a Bíblia
dava o nome de Aram-Nacharam, "Síria entre rios"; hoje
compreende o Iraque, e Bagdade é sua capital. Confina ao N.
com a Turquia, a O. com a Síria francesa e a Transjordânia, ao
S. com a Arábia Saudita e a L. com a Pérsia, atuallrã. Os rios
Tigre e Eufrates, que banham toda essa região, correm do
noroeste para sueste; reúnem-se pouco acima da actual Basra, e
127
deságuam no Golfo Pérsico. A Assíria, velho país de Assur,
estendia-se ao N., ao longo do Tigre; Babilónia, a antiga Sumer,
e Acádia, corriam para o S., entre o Eufrates e o Tigre, descendo
até o Golfo Pérsico.

A MITOLOGIA SUMERIANA
Os mitos de Suméria são cosmológicos e procuram
investigar a origem do povo, da raça, da sociedade. P- mitologia
subjectiva: representa aquele estágio em que a reflexão humana,
pela primeira vez, tomou conhecimento dos fenómenos
psíquicos, internos, e do mundo exterior em função do Homem
como ser racional; é, sem dúvida, a mais antiga "reflexão
humana" que conhecemos. Os elementos Que a mitologia de
Suméria utiliza são terrenos e familiais; o mito, sob plano
cosmológico, quer, apenas, pôr em evidência os caracteres que
formaram a base da sociedade sumeriana. Procura explicar a
diversidade entre o estável e o instável, entre o que é
duradouro .ao lado do que é fugaz ou efémero, entre o que é
seco (os desertos) e o que é húmido (as terras férteis e os grande
terrenos paludosos, vestígios, ainda, do dilúvio, paisagem
intimamente ligada às concepções do povo), entre a terra firme e
os grandes rios selvagens que correm eternamente; depois vem o
mar, último, talvez, em ordem cronológica, mas o primeiro
elemento de espanto para o povo sumeriano, o mar, figura
misteriosa e temível; ele representa a eterna luta entre a água
(doce ou salgada) e a terra firme. Por essa razão, como não
poderia deixar de ser, os mitos da Suméria preocupavam-se com
os vegetais, ao passo que ignoram a descoberta e o uso dos
metais.
O panteão sumeriano é, portanto, o reflexo das famílias
organizadas em grupo social. Era imenso; é verdade que a
maioria representava pequenos deuses locais que foram, ou

128
assimilados ou esquecidos; os grandes deuses, porém, eram
adorados em todas as cidades, ou em quase todas; muitos
chegaram até a figurar no panteão babilónio. As grandes cidades
da Suméria eram independentes, não havia governo central que
as unificasse, mas cada uma tinha o seu rei e os seus deuses
próprios; estes, em outra cidade, eram os mesmos, mas às vezes
com nome diverso ou com atributos diferentes.
Segundo a concepção comum a todos os mesopotâmios, os
deuses haviam criado os homens para o seu serviço; além de
construir templos e oferecer sacrifícios, o homem deveria respei-
tar as leis, das quais as divindades eram as protectoras e as
guardiãs; os deuses, por seu turno, nada deviam ao homem; com
a criação haviam esgotado o elemento providencial; não eram
obrigados a recompensar o bem; tudo que acontecesse de
catastrófico, de mau, ou simplesmente de desagradável, era sinal
de que os deuses não estavam satisfeitos com o homem. Usavam
os deuses dos demônios para atormentar os homens; contavam-
se por legiões: "fantasmas", "homens da noite", "os
arrebatadores", "os devora dores de crianças" etc. Não se sabe
precisamente qual o papel representado pelos "génios bons". Os
mesopotâmios, em geral, viviam em perpétuo temor; não
conheceram aquela doçura e optimismo que a civilização
egípcia cultivou com tanto empenho; e depois da morte,
nenhuma esperança lhes sorria. A sua ideia sobre a morte
confirma o aspecto severo e terrível da concepção religiosa que
aceitavam. Morto o homem, restava-lhe, apenas, uma espécie de
espectro, um espírito muito vago, que teria de partir para regiões
misteriosas, onde viveria uma vida diminuída, numa eterna
penumbra. "Quando os deuses criaram a Humanidade, aos
homens atribuíram a morte, mas a vida guardaram para eles
mesmos." Que resta, então, ao homem senão desejar a vida mais
longa possível? Uma idade avançada era particular favor dos
deuses.
129
O PANTEÃO SUMERIANO
O panteão sumeriano é encabeçado por An, o deus-céu,
Enlil, o Senhor-Vento, e uma deusa, Nin-ur-sag, "A Senhora da
Monta. nha", conhecida, também, sob outros nomes. Enlil
passou para o culto da Babilônia; seu nome sernita é Bel, que
significa "senhor". Seu domínio era a terra; em Sumer, o
principal local de culto de Enlil era Nipur, grande e antiga
cidade; já na época arcaica, os reis de Lagash (outra importante
cidade de Sumer) o chamavam de "rei dos deuses"; tinha os
epítetos de "Sábio" e "Ajuizado". Enqui, talvez o Senhor-da-
Terra, aparece às vezes como filho de Enlil; tinha o domínio das
águas, exceto do mar (as águas doces eram chamadas, no seu
conjunto, apsu). Nin-tu, Nin-mah ou Aruru eram outros nomes
para Nin-ur-sag. Namu era a deusa do mar (pelo menos seu
nome se escrevia com o ideograma utilizado para designar "o
mar"); Nintura, Utu e Eresquigal completavam o quadro dos
"Grandes deuses", chamados Anunáqui. Os mitos relatam o
nome de Ninsiquila, filha de Enqui.

O MITO DA "ARVORE CÓSMICA".


O mito da "árvore" que unia a terra ao céu é, sem dúvida,
um dos mais antigos; parece, porém, que desapareceu muito
cedo da mitologia sumeriana. A árvore gish-gana do apsu ("O
Abismo Primordial") erguia-se acima de todos os países; é o
símbolo do mastro ou viga que une as duas regiões visíveis:
Céu-Terra. Se o templo era o símbolo da árvore cósmica, à porta
desse erguia-se outro símbolo, uma estaca ou um mastro "que
tocava o céu". O rei de Isin, Ishme-Dágan, chamará o templo de
Lagash "O Grande Mastro do País de Sumer". A expressão e o
símbolo desaparecerão com o correr dos séculos, mas perdurará
a concepção mitológica de um local sagrado, alhures, em Sumer,
130
que seria o ponto de união entre o Céu (região dos deuses) e a
Terra (região dos homens). Em Nipur a cidade santa de Sumer,
onde reside Enlil, a grande torre de degraus se chamava Dur-an-
qui, "Laço Que Une o Céu à Terra", isto é, o lugar que faz
comunicar a Terra com o Céu. Na Bíblia nós temos um evidente
reflexo dessa concepção; é o trecho'onde Jacó sonha com uma
escada que, apoiando-se na terra, tocava com o cimo o céu e os
anjos de Deus subiam e desciam pela escada (Gên., XXVIII, 10-
22).

NASCIMENTO DO MAR, TERRA E CÉU


A deusa Namu é chamada ., A mãe que deu nascimento ao
Céu e à Terra"; aliás, ela é designada freqüentes vezes como a
"Mãe de todos os deuses" e mais especificamente "A mãe de
Enqui", o deus responsável pelo mundo no qual vivem os
homens. A criação do cosmos se fez por emanações sucessivas;
do Mar primordial nasceram a Terra e os Céus. Os dois
elementos, Terra e Céu, "os gêmeos", no início ainda estavam
unidos e se interpenetravam.Enlil os separou, talvez com um
sopro, já que seu nome significa "Senhor Vento".
Há um poema sumeriano que relata como a Enxada (ou
Enxadão) foi criada; nesse texto se alude à sucessiva criação do
mundo: "O senhor Enlil decidiu produzir o que era útil,/ O
senhor, cujas decisões são imutáveis,/ Enlil, que fez germinar da
terra a semente do país,/ Imaginou separar o Céu da Terra,/
Imaginou separar a Terra do Céu..."
Outro poema vê nessa separação inicial dos elementos a
obra de duas divindades, An e Enlil: "Quando o Céu foi sepa-
rado da Terra,/ Quando a Terra foi separada do Céu,/ Quando o
nome do Homem foi determinado,/ Quando An arrancou o Céu,/
Quando Enlil arrancou a Terra..."
Há outra tradição que atribui a separação dos elementos
131
primordiais a uma divindade ou Demiurgo.

O PARAÍSO
Um longo texto sumeriano, conhecido sob o nome de Mito
do Paraíso ou Mito de Dilmum, refere o início dos tempos,
quando o deus Enqui e sua esposa, "A Virgem Pura", viviam
sozinhos num mundo virgem e cheio de delícias, que se situava
em Dilmum, região mítica. Nada existia além do par divino; em
Dilmum nascerá não só a água doce e o Sol, mas também a vida.
Esse mito parece ter afinidade com o Paraíso bíblico onde o
primeiro casal, Adão e Eva, também vivia no meio de delícias,
antes da desobediência.

O CASAMENTO DIVINO
Enqui, no Paraíso, depois que a água doce tornou férteis as
terras, fecundou "A Virgem", que assumiu, então, o nome de
"Senhora do País". Essa deusa era Nintu; logo que ficou grávida
e o parto se aproximou, tomou o nome de Nin-hur-sag. O
primeiro filho do casal divino era uma deusa, Ninmu; Enlil une-
se à Ninmu e gera outra filha, a deusa Nin-curra, da qual teráem
seguida outra filha, Utu; e as uniões entre o deus-pai e as filhas
prosseguiriam se Nin-hur-sag não aconselhasse a Utu recusar as
solicitações do pai, a não ser que dele recebesse, antes, os
presentes nupciais, pepinos, maçãs e uvas. Enqui consegue os
pepinos, as maçãs e as uvas e Utu deve entregar-se aos ardores
amorosos do deus; mas o ato não se consuma. Nin-hur-sag
utiliza o sêmen de Enqui para criar oito plantas diferentes que o
deus vê crescer nos pântanos, sem saber o que significam e para
que servem. Contudo, come-as. Nin-hur-sag, então, amaldiçoa
Enqui e desaparece. A desaparição de Nin-hur-sag consterna os
grandes deuses, os Anunáqui, que não sabem como proceder.
Apresenta-se, nessa conjuntura, a Raposa, que se oferece para ir
132
buscar Nin-hur-sag, se a recompensa for compensadora. Enlil
promete dar-lhe como paga árvores frutíferas e grande glória:
todos se referirão à Raposa com grandes elogios. Há muitas
lacunas nesse texto mítico; não sabemos, portanto, qual o meio
que a Raposa usou para reconduzir a deusa. Sabemos, porém,
que Enqui, moribundo. tinha ao seu lado a solícita Nin. -hur-sag.
O deus indica oito partes do seu corpo; a deusa confessa que,
para curá-lo, deu à luz algumas divindades. Enqui determina a
sorte dessas divindades; a última delas, En-shag, será o protetor
da cidade mítica de Dilmum.

O DILÚVIO
A tradição do dilúvio, comum a muitos povos, também o é
à civilização sumeriana. Essa narrativa, em forma de epopeia,
chegou até nós muito mutilada; mas o mito, na sua essência, é o
seguinte: Por razões desconhecidas, pois falta essa parte do
poema, a Assembléia dos deuses delibera destruir a Humanidade
por meio de um dilúvio. Mas o rei de Shurupac, Zi-u-sudra, foi
escolhido para servir de pai às futuras gerações de homens; um
deus, então, o adverte da decisão da Assembléia divina. Zi-u-
sudra constrói a arca na qual conservará "o sémen da
Humanidade"; fecha-se na arca e começa a chover; a chuva dura
sete dias e sete noites; morreram todos os homens, menos o rei
Zi-u-sudra, que, após o dilúvio, começa a participar da vida
divina; dão-lhe como residência a cidade de Dilmum.

A CRIAÇÃO DO HOMEM
Os deuses criaram os Homens, já afirmamos, para que eles
fizessem o trabalho e desempenhassem as funções que, de outra
maneira, teriam de ser executadas pelas próprias divindades. A
criação do homem, destarte, é algo de necessário. Encontramos,
aqui, outra notável semelhança com o relato bíblico, onde o tra-
133
balho é uma maldição: "Comerás teu pão com o suor do teu
rosto". Para os sumerianos, os deuses não trabalhavam: os ho-
mens trabalhavam por eles; esse dolce tar niente fazia com que
gozassem plenamente a vida divina, sem trabalhos, o que os
distinguia dos humanos.
Diz o mito que os grandes deuses Anunáqui sentiam fome
e não podiam comer, sentiam sede e não podiam beber, pois o
Homem ainda não fora criado. O deus An criara os Anunáqui
"sobre a montanha do Céu e da Terra", mas nenhum desses era
capaz de prover, já não se diz a subsistência de todos, mas a sua
mesma. Ashnam (a deusa do Grão) ainda não fora criada, Utu
(deusa da Tecelagem) tampouco fora formada, assim como
Lahar, o deus do ~ado. Eles não tinham, ainda, nome. Isto é o
que se chama "Doutrina do nome", comum também em Babi-
lônia. Resume-se no seguinte princípio fundamental: a coisa
sóexiste quando tiver nome; essa "Doutrina" parece ser também
da Bíblia: Quando Deus criou os animais fez que viessem diante
de Adão para que este lhes impusesse, um nome (Gên., lI, 19).
Criaram, então, os deuses, Ashnam e Lahar: o grão e o gado
crescerão juntos, mas os deuses permanecem insatisfeitos, pois
não há quem cuide do gado e recolha o grão. Então o Homem
recebe o sopro vital. Concluiu-se o Cosmos. A obra da Criação
está completa. Deduz-se desse mito, que a única função do
Homem é trabalhar para os deuses.

134
MITOLOGIA BABILÓNICA
O PAÍS
Babilónia, a mais importante e a maior cidade da
antiguidade, situava-se a 32° 30' lato N. e 42° lO' longo E., à
margem esquerda do Eufrates. Nos idiomas não-semitas da
Caldéia, era chamada Ka-Dingirra, "A Porta dos Deuses", nome
que os semitas traduziram para Babilu, Babili, donde a voz
hebréia Babel. A tradição judia ligava esta última forma à raiz
balal, "confundir", em lembrança da Confusão das línguas, que
se teria operado depois do dilúvio, no local onde mais tarde se
teria erguido a cidade. Conforme a tradição local, porém,
Babilónia já existia quando ocorreu o dilúvio; o primeiro rei
humano, Aloros, nasceu em Babilónia.
Inicialmente sede de um principado da Caldeia
setentrional, Babilónia tomou-se a principal cidade do pais e
centro de dinastias que sem cessar lutaram contra Elam e
Assíria. Por volta do VII século a.C. tomou-se, sob
Nabucodonosor e seus sucessores, a capital de um imenso
império, que, mais tarde, seria destruido pelos persas. Na época
do seu maior esplendor, Babilónia cobria área considerável; era,
dizia Aristóteles, mais um pais que cidade; o recinto exterior,
chamado Imgur-Bel, "Bel abençoou", formava um quadrado de
mais de 520 km2; abrangia campos cultivados; a parte central da
cidade tinha o nome de Niviti-Bel, "Morada de Bel" e estendia-
se por mais de 69 km2; a cidade, propriamente dita, onde se
situava o palácio real e onde se agrupavam os principais
templos, ficava no lugar da atual HilIah-el-Feiha, pequena
cidade sem maior expressão. A cidade era cortada pelo Eufrates.

A RELIGIÃO

135
A religião babilónica parece depender estreitamente dos
sumerianos. Os babilónios pertenciam ao grupo semita, mas
contavam com importantes elementos estrangeiros,
representados, principalmente, por aquele povo que se
convencionou chamar "asiânicos"; estes, se não foram
autóctones, em todo o caso são os primeiros que conhecemos na
Asia Anterior; caracterizavam-se pela língua, pela religião e
pelo tipo físico.
Os babilónios falavam uma língua acadiana (dos
acadianos, povo da Babilónia antes da invasão assiria; a região
primitiva desse povo chamava-seAcad), que, com pequenas
diferenças (principalmente na prosódia), era a língua falada na
Mesopotâmia do Norte; na época sargânida essa língua foi
suplantada pela dos arameus; havia, portanto, duas línguas que
vicejavam lado a lado: o arameu, empregado mais comumente, e
o assírio-babilônico, tradicional, reservado para atas oficiais e
escrito sobre tabuinhas de argila (o arameu era escrito com tinta,
em materiais perecíveis: daí a sua raridade); o acadiano era
escrito em caracteres cuneiformes, ao passo que o arameu usava
sinais alfabéticos.
A religião babilónica era naturista, isto é, adorava as
forças vitais. O homem era a medida das coisas; as forças vitais,
portanto, eram representadas sob formas de espíritos de ferti-
lidade e de fecundidade, encarnados num casal, bem como nas
famílias humanas. Um jovem deus, que tinha os atributos e
poderes do pai, representava papel não bem definido, pois ora
era filho da deusa, ora seu amante, ora as duas coisas ao mesmo
tempo. Essa religião é, propriamente, asiânica e pouco dista das
primitivas religiões indo-europeias; havia, a seguir, deuses
especializados: o do Grão, o da Floresta, o da Vinha, o da Fonte
etc., e espíritos inferiores, demónios, para explicar o mal que
atingia a Humanidade.

136
O POEMA DA CRIAÇÃO
A narração da Criação é a obra-prima da literatura
babilónica: dão-lhe o nome de Enuma elish, que são as duas
primeiras palavras da tabuinha (o poema está contido em sete
tabuinhas) que o inicia e que significam "Quando no alto.. .";
esse poema chegou até nós mais ou menos completo, através de
cópias que remontam ao IX século a.C.
O poema da Criação tem por tema essencial a glorificação
do deus da Babilônia, Marduc, que se tornou, ao menos teorica-
mente, o chefe do panteão babilônio. No início, diz a narração,
havia somente o Caos, aquoso, com Apsu e Tiamat, que repre-
sentavam, respectivamente, as águas doces e salgadas; "então o
céu ainda não tinha nome e a terra ainda não tinha nome..." ~
então que esses príncipes começam a se organízar e, do casal
primitivo, nascem Lahmu e sua companheira, Lahamu, dos
quais nada se sabe, mas que constituem, apenas, uma das etapas
da Criação. Desse casal, um pouco mais tarde, nascem Mumu,
depois Anshar e Quísar, isto é, a totalidade do céu e da terra;
deles, enfim, nasce a tríade que forma a cabeça do panteão
babilônio, Anu, o deus dos céus, Enlil. o senhor do ar (que não
tarda em se tornar também da terra) e Ea, o deus das águas, do
abismo que cerca o mundo. Sem que se saiba por que e de que
maneira, o poema refere que os deuses da tríade e aqueles que
dela tinham nascido, se tornam insuportáveis a Apsu e a Tiamat,
talvez porque eles representem a ordem, antítese do Caos inicial;
talvez Apsu e Tiamat tivessem o desejo de ficar livres da própria
descendência. Os jovens deuses, advertidos, reagem; Ea, graças
a seu poder mágico, se torna senhor de Apsu, que ele condena à
morte, e de Mumu, que aprisiona. O furor de Tiamat não
conhece limites; dá à luz onze monstros terríveis que enfrentam

137
seu inimigos; um desses monstros é Quingu, que se torna seu
esposo; entretanto o tempo passa e nasce um filho a Ea, Marduc
(a tradição assíria atribuirá ao seu deus Assur tudo que a tra-
dição babilônica refere a Marduc); desde o nascimento, este
deus é um prodígio: "O sábio dos sábios, o mais sábio dos deu-
ses; no seio do abismo nasceu Marduc; sua estatura era esplên-
dida, brilhante o fulgor dos seus olhos; seu nascimento foi o de
um macho, ele fecundou desde o início... Tem quatro olhos e
quatro orelhas. .." Durante os preparativos de Tiamat, Marduc
cresceu; os deuses declaram-se impotentes para dominar Tiamat,
inclusive Anu e Ea, cujos sortilégios haviam dominado Apsu.
Todos os deuses, então, salvo Tiamat e o exército de Quingu,
investem contra Tiamat; reúnem-se, para organizar a defesa,
num banquete, onde bebem para ganhar coragem. "O vinho
suculento dissipa seus temores, seu coração se dilata, falam em
altas vozes..." Propõem, finalmente, que Marduc se apresente
como campeão dos deuses; ele consente, mas, tão prudente
como o pai, estabelece condições; terá autoridade sobre os
demais deuses e ninguém poderá ir ao encontro das suas
decisões; os deuses consentem e cada um lhe dá a arma que
fazia a sua força e, para lhe provar o poder, surge a prova da
veste: "Então os deuses puseram uma veste no meio deles/ E a
Marduc, o primeiro nascido, dizem:/ "Ordena que seja destruído
ou criado, e assim será feito./ Abre a boca: a veste será
destruída;/ Dá nova ordem e a veste se encontrará intacta."/
Marduc, então, falou, e a veste foi destruída./ Falou de novo, e a
veste se reformou." A seguir Marduc prepara suas armas, os
quatro ventos, o raio, o furacão, e o combate começa; as armas
mágicas de Tiamat não funcionam a contento e Marduc lança
sobre ela uma rede; Tiamat abre a boca para vomitar chamas e
Marduc se aproveita para nela precipitar um dos quatro ventos e
fura o corpo estufado do monstro; sobre o cadáver Marduc canta
um hino de vitória; corta o corpo em duas partes, como o do

138
peixe fechado (isto é, a ostra), e de uma faz o firmamento e de
outra a terra; no firmamento estabelece o domínio dos deuses da
primeira tríade. Quingu, que fora preso, cede as tabuinhas do
destino, que estavam com ele.
A parte seguinte está mutilada; sob pretexto de descrever a
organização de Marduc, o poema refere os conhecimentos astro-
nômicos da época. Depois a narrativa segue seu curso e Marduc
propõe criar um ser que se chamará "homem"; ele lhe imporá o
serviço dos deuses "enquanto estes repousam"; mas a criação do
homem exige sangue, e Quingu é sacrificado; depois Marduc
separa os deuses em dois colégios, os deuses do céu e os do
mundo subterrâneo. Reconhecidos, os deuses lhe oferecem o
Esagil, templo da Babilónia e cada um, em lhe dando seu nome,
lhe outorga um título.
Esse poema era recitado na festa mais importante de
Babilónia, o Dia do Ano Novo.

O DILÚVIO
A tradição do dilúvio tinha curso na Mesopotâmia, mas
não se referia a Marduc mas sim a Um-napisti; a narração foi
inserida no poema de Gilgamés, e este a escuta da boca de
Um.napisti; a narração mais completa constitui a tabuinha XI da
epopeia: Há muito existia a cidade Shurupak (hoje Fara), sobre o
Eufrates, quando os deuses resolveram submergir a terra por
meio de um dilúvio. Ea, que assistia no conselho dos deuses,
advertiu Um-napisti; aproximou-se da sua cabana feita de ramos
e de Iodo seco e diz à meia voz: "Muro, muro, escuta I Homem
de Shurupak, constrói um barco, abandona tuas riquezas para
salvar tua vida; faze com que a semente de vida suba num barco
de dimensões calculadas". Ea dá as medidas do barco, mas,
antes de se pôr a trabalho, Um-napisti pergunta ao deus: "Que
139
direi aos que me interrogarem sobre o trabalho que pretendo
fazer?" A resposta que deverá dar é que Enlil está zangado com
ele e irá, então, habitar os domínios de Ea; dividida em
compartimentos, a barca está em condições de navegar; celebra-
se uma festa para recompensar os trabalhadores; depois Um-
napisti põe na barca sua família e seus bens. E logo começa a
chover; relâmpagos, trovões e chuva torrencial; as nuvens
escurecem tudo; então, "nos céus, os deuses atemorizam-se com
o dilúvio, fogem, sobem ao céu de Anu; agacharam-se como
cães temerosos, deitaram-se no solo. A deusa Istar grita como
mulher grávida: "Que se transforme em lama aquele dia no qual
proferi más palavras na Assembléia dos deuses!... Por que
decretei a perda de minha gente? Criei-os para que como
pequeninos peixes encham o mar?" Seis dias e seis noites o
vento soprou e o furacão desencadeado roncou sem cessar;
quando ele se calou, Um-napisti abriu a janela e percebeu uma
ilha; era o monte Nisir, sobre o qual a barca se deteve; ao cabo
de seis dias de imobilidade, ele soltou uma pomba que logo
retomou, depois uma andorinha que fez o mesmo, enfim um
corvo que não regressou; então fez que os animais saíssem do
barco e ofereceu um sacrifício. "Os deuses sentiram o bom odor
do sacrifício, e como moscas se agruparam ao redor do
sacrificador." Istar se interpõe e afirma que os deuses querem a
sua parte do sacrifício, menos Enlil, que, sem refletir, havia
desencadeado o dilúvio. Chega Enlil, vê a barca e lamenta que
alguém tenha escapado; Ninurta sugere: "Quem senão Ea
poderia ter prevenido esses que escaparam?" Ea responde: "Não
lhe, revelei a decisão dos grandes deuses, apenas o favoreci com
um sonho; o resto foi iniciativa dele mesmo, Um-napisti". Então
Enlil decidiu que Um-napisti e sua mulher seriam imortais e
habitariam bem longe, na embocadura dos rios.

140
OS MITOS DE ZU E DO DRAGÃO LABU
Ao ciclo de Nipur pertencem os dois mitos seguintes, o do
homem-pássaro, lu, com instintos de ladrão, e o do dragão Labu.
Zu aproveita-se do instante em que Enlil se entregava a cuidados
corporais, "enquanto se lava com água pura e abandonou o trono
e depôs sua tiara", insígnia do poder, para apoderar-se das
tabuinhas do destino; os deuses reúnem-se e decidem perseguir
o ladrão; como no Enuma alish, os deuses acovardam-se diante
de Zu e seus acólitos; entretanto um deus (que deve ser um rei-
divinizado), Lugal-banda, decide capturar Zu no curso de um
banquete para o qual o convida com esposa ,e filho. A mesma
situação se encontrará no mito hitita da grande serpente Iluian-
ka; sem coragem de atacar o inimigo de frente, convida-o para
um banquete e o embriaga.
Uma versão babilónica mais recente faz de Marduc o ven-
cedor de lu, e o deus, na ocasião, recebe o nome de "quebrador
do crânio do pássaro Zu".
O mito do dragão Labu expõe como o deus Enlil desenhou
no céu a imagem de um dragão; a imagem se animou e os
deuses foram tomados de pavor; somente um ousa medir-se com
o temível animal; mata-o e o sangue do dragão goteja durante
anos e dias.

O POEMA DA QUEDA
A lenda da queda pertence ao ciclo de Enlil. O nome não
se adapta bem ao assunto; propriamente, não se refere à "queda
do homem" assim como o refere a Bíblia. O primeiro que tra-
duziu essa lenda e lhe deu o nome de "O poema da queda" foi S.
Langdon. Em resumo, o mito diz o seguinte (ele é tremenda-
mente obscuro, mas as ideias gerais podem ser bem

141
apreendidas): "Enlil teve relações com Ninlil e uma outra deusa;
desse comércio nasceu grande descendência; essa descendência,
sobre a terra, teve consequências diversas, mas todas benéficas:
provocaram a chuva, a cheia, a fertilidade do solo, a fecundidade
das famílias e dos rebanhos".

A LENDA DE NINURTA
Ninurta, filho de Enlil, travou longa e encamiçada luta
contra várias pedras; outras, porém, eram partidárias do deus.
Naquela época as pedras ainda não tinham nome; logo que
Ninurta se viu vencedor, preocupou-se em dar nome às pedras,
isto é, quis logo assegurar-lhes existência própria, pois, segundo
as concepções mesopotâmicas, todo ser destituído de nome não
existia. Como recompensa dos serviços que recebera das pedras,
fez delas pedras nobres, que serviriam, doravante, para ornar os
palácios e os templos dos deuses: os mármores, o lápis-lazúli, o
alabastro, o cristal de rocha etc. As pedras, porém, que se tinham
encarniçado contra ele, transformaram-se em pedras vulgares,
sem importância alguma. A EXALTAÇÃO DE ISTAR A
realeza de Anu foi talvez a mais longa; corresponde à aurora da
civilização e sem dúvida aos tempos proto-históricos; daí a
circunstância de não possuirmos quase nenhuma prova da sua
supremacia. Mas o clero de Uruk, lugar do culto de Anu,
conservou-nos a história da "exaltação de Istar". Preso aos
encantos de Istar, Anu desejava, há muito tempo, pô-la em pé de
igualdade com ele; consulta, então, os deuses sobre a oportu-
nidade de reabilitar sua amante; o "conselho de família" das
divindades é unânime a lhe sugerir que regularize sua situação
com a formosa deusa. Anu, então, eleva Istar até junto do seu
trono; seu nome de casamento será Antu, a forma feminina do
nome do esposo, como Nin-lil é a forma feminina de Enlil.

142
Depois dessa exaltação, Ismr, a sumeriana Inin, ocupa lugar de
destaque no céu, junto de Anu e se identifica com o planeta
Vênus.

A REALEZA DOS INFERNOS


Os infernos aparecem nos primitivos mitos. Um deles
fazia parte das tabuinhas cuneiformes encontradas em Tell-
Amarna, no Alto Egipto; isto prova, com a tradução de outros
poemas, notadamente o de Gilgamés, descoberto em território
hitita, a larga popularidade de que gozava a literatura babilónica
no mundo antigo. A narração explica como Nergal foi associado
ao domínio dos infernos. A deusa Eresquigal, irmã de Istar,
neles reinava; parece, não obstante o epiteto de "rainha", que ela
era, apenas, uma prisioneira do aralu, nome pelo qual eram os
infernos conhecidos, chamados, também "a vasta terra" ou "o
país do qual não se retoma". Um dia os deuses quiseram se
reunir num grande banquete; pediram a Eresquigal que
mandasse um representante, já que ela não podia se afastar dos
infernos. A deusa envia, então, como seu delegado, Namtar, o
Destino, demónio da Peste. Quando Namtar se apresentou diante
dos deuses reunidos, todos se ergueram, honrando, destarte,
aquela que o enviara; todos menos um, o deus Nergal. Namtar.
ao voltar para os infernos, queixou-se amargamente a Eresquigal
e esta o reenviou novamente, exigindo que o deus que a não
honrara lhe fosse entregue. Quando Namtar voltou para junto
dos deuses. Nergal lá não mais se encontrava e ele não pôde
executar sua missão; mas os deuses preveniram Nergal e este
tomou a ofensiva. Auxiliado por uma escolta de demônios,
dirige-se para os infernos, coloca guardas em todas as portas, a
fim de que a volta não oferecesse dificuldades; penetra nos
infernos, precipita-se sobre Eresquigal e pega-a pelos cabelos;

143
arranca-a do trono e prepara-se para matá-la. A soberba
Eresquigal implora ao vencedor que a poupe, oferece-lhe
partilhar o seu leito e o trono. Nergal aceita e transforma-se,
assim, em deus dos infernos.

A DESCIDA DE ISTAR AOS INFERNOS


Os infernos são o local onde se desenrola a lenda célebre
de Istar e Tamuz, que foi um dos seus amantes; mas esta lenda
parece ser a fusão de dois mitos anteriores, que nada tinham em
comum; um deles tratava de Dumuzi-Tamuz, deus agrário, cuja
morte anual é seguida da ressurreição, ou, sem invocar a morte
do deus, o outro relata a história do deus que partilha sua exis-
tência com duas deusas: uma vida subterrânea quando a natureza
está adormecida, outra terrestre quando retoma a primavera; a
esse mito se junta a descida de Istar aos infernos, com o fito de
trazer Tamuz-Adônis à luz do dia.
O presente mito é o seguinte: Sem fazer menção de
Tamuz, Istar resolve descer aos infernos; logo que chega à porta,
parlamenta com o guardião. Eresquigal, feliz com essa nova
presa, ainda que fosse sua irmã, ordena que a deixem entrar. À
medida que Istar transpõe cada uma das sete portas dos infernos,
o porteiro lhe arrebata um dos seus ornamentos: a coroa. os
brincos das orelhas, os colares, o porta-seios de metal precioso,
a cinta composta de amuletos feitos com "pedras de parto", os
braceletes dos braços e dos artelhos e, finalmente, as "suas
vestes de pudor". E Istar aparece nua diante da rainha dos
infernos; tomada de furor, "sem mesmo refletir, Istar lança-se
sobre ela". Então Eresquigal ordena que seu ministro Namtar
lance contra ela, como matilhas desaçaimadas, a multidão dos
males. Durante esse tempo, sobre toda a terra, a vegetação defi-
nhava e não reverdecia; os animais não se reproduziam, o
144
marido não buscava a esposa para os atos amorosos, a esposa
não se importava com o marido. Os deuses, aterrados, querem
libertar Istar, e Ea cria uma personagem que será sacrificada;
essa figura vai procurar Eresquigal e lhe pede que lhe dê de
beber dum determinado odre, cuja água, sem dúvida, era
reservada aos deuses. "A deusa Eresquigal, ao ouvir tais
palavras, bate nas coxas, morde o dedo." Maldiz o mensageiro
que não terá por alimento senão "os alimentos das valetas e a
água dos condutos de esgoto da cidade". Como conclusão,
forçada sem dúvida pelo pedido do mensageiro, cujo sentido
real nos escapa, Eresquigal manda que derramem sobre Istar as
águas vivificantes e ela é reconduzida de volta através das sete
portas, onde, em cada uma, lhe são devolvidos os adornos e as
vestes.

A EPOPEIA DE GILGAMÉS
No começo dos tempos reinava Gilgamés, rei de Uruk.
Construiu a cidade, os palácios, os templos, as portas e as
muralhas. Bom administrador, seu jugo era pesado a seus
súditos, de modo especial a sua família, mulheres e filhas.
Rogam, então, à deusa Aruru, divindade da fecundação, que
criasse um ser que o tivesse ocupado: destarte seus súditos e
familiares descansariam. Aruru medita sobre a criatura que irá
animar e, lançando argila no solo, amassa-a e anima-a com
sopro vital. Criou, assim, Enquidu, homem selvagem, com o
corpo coberto de pêlos, cabeleira de mulher, que ignora tudo da
civilização; come erva como as gazelas, bebe onde os animais
bebem; é um bruto e toda li força monstruosa de Gilgamés, mais
divina que hurilana (Gilgamés tem dois terços de divindade e
um terço de humanidade, pois sua mãe era a deusa Nin-Sun),
será pouca para o dominar. Entretanto ele é mais que um animal,

145
pois livra os brutos das armadilhas que os caçadores armavam;
estes, desesperados, referem o ocorrido a Gilgamés, que ordena
levar uma moça ao lugar onde o monstro costumava beber;
quando ele aparecesse ela deveria despir-se e seduzi-lo com seus
encantos. Assim aconteceu; a moça tirou a roupa, revelando seus
encantos. O monstro ficou extasiado e durante uma semana
inteira só se ocupou com ela; a moça era uma hierodula (U
cortesã sagrada") do templo de Istar, e, como bem podemos
imaginar, o iniciou na civilização; cortaram-lhe os cabelos,
rasparam-lhes os pêlos, ungiram-no com azeite; prova o pão,
alimento que ignorava, e o vinho, com que se embriaga;
finalmente a hierodula o conduz a Gilgamés, que havia sido
advertido por sonhos assaz incoerentes. A primeira entrevista é
tempestuosa e ambos se engalfinham por causa de uma deusa
que queria se unir a Gilgamés; este é mais forte e consegue
subjugar Enquidu, que se toma seu amigo; empreen"u dem,
então, expedições. A primeira tem por fito o país dos cedros,
onde irão combater o gigante Humbaba, que odiava o Sol
(Sarnas), sem que se saiba a razão. Os anciã os da cidade tentam
dissuadir os dois heróis de empreender essa expedição, cujos
peri~os eles nem imaginam; a deusa Nin-Sun, por seu turno,
suplIca à noiva do Sol que vele por seu filho. O reino de
Humbaba é um lugar de terror, o monstro é um gigante que
vomita fogo; começa o combate e Gilgamés arremete contra o
adversário oito furacões; imóvel no meio do turbilhão, o guarda
dos cedros pede graça, mas eles cortam-lhe a cabeça.
À volta triunfal dessa expedição, Istar, que habita o templo
em companhia de suas hierodulas, apaixona-se por Gilgamés,
que acabara de sair do palácio, coroado e vestido com trajes
novos; a fim de seduzi-lo, exibe diante de seus olhos o
magnifico porvir que lhe está destinado: terá um carro de lápis-
lazúIi e de ouro, rodas de ouro e tabuleiros de pedras preciosas;
todos se prosternarão diante dele quando entrar no templo, todos
146
se prosternarão quando sair; em suma, ela lhe oferece a
divinização. Gilgamés recusa com grosseria e toda essa
passagem destoa do que se diz anteriormente de Gilgamés,
terror das mulheres da cidade; ele lhe lembra os numerosos
amantes: TamUz e sua morte, o pássaro colorido cujas asas ela
quebrara, o leão, o garanhão, o pastor e o jardineiro que ela
metamorfoseara em animais, "e a mim também — diz Gilgamés
— depois de me teres amado assim me tratarás". Istar, furiosa,
ascende aos céus a fim de queixar-se ao pai Anu, pedindo-lhe
que mate Gilgamés. Anu, como Aruru e como os deuses em
geral nesses poemas, não age diretamente; cria um touro celeste
que centenas de homens não podem deter. Contudo, Gilgamés o
vence e Istar, que assistiu do alto do terraço do seu templo ao
combate, amaldiçoa Gilgamés. Enquidu, em resposta, arranca
um membro do touro e lança-o à cabeça da deusa e lhe diz: "Se
te apanho, ligarei estas entranhas ao redor do teu pescoço I" Istar
e suas sacerdotisas choram a morte do touro, enquanto Gilgamés
faz' dos seus cornos um recipiente que conterá a reserva de óleo
para as unções sagradas. Em a noite imediata, Enquidu vê, em
sonhos (istà é, em realidade para os mesopotâmios) o conselho
dos deuses, entre os quais Enlil, que, não obstante Sarnas,
condena Enquidu à morte por causa do assassínio de Humbaba e
por causa da morte do touro, ainda que ambos os feitos
devessem ser atribuídos a Gilgamés. A punição começa;
Enquidu, presa de violenta febre, lamenta sua breve existência
de bruto e amaldiçoa a hierodula que o iniciou na vida
dos civilizados; Sarnas censura sua ingratidão, mas, como
a maldição fora proferida, ele se vê obrigado a ratificá-la e a
infeliz cortesã sagrada é mudada em cadela. Enquidu morre e
Gilgamés se desola: "Capturamos e ferimos o touro celeste,
matamos Humbaba, que habitava nas florestas de cedro! Qual é,
agora, o sono que de ti se apoderou? Tornaste-te sombra e já não
me ouves mais!" Tomado de pânico ao pensar que também ele
147
deveria morrer, Gilgamés lembra-se de um longínquo
antepassado, Um-napisti, "Dia de Vida", o único homem que
fora poupado pelo dilúvio e que vivia nos confins do mundo,.
ele e a mulher, ambos gozando do dom da imortalidade; resolve
ir procurá-lo e saber como poderia alcançar, também, a
imortalidade. Atinge, primeiro, o monte Masu, o monte onde o
Sol tem a sua morada nocturna, e que era guardado por homens-
escorpiões, de talhe gigantesco; estes constatam que Gilgamés é
mais deus que humano e lhe descrevem a rota tenebrosa que
deverá percorrer; percorre-a e chega junto duma árvore
maravilhosa "bela de se ver, cujos frutos são de lápis-lazúli"; é a
uva negra, o herói achava-se na Síria; continuando sua derrota,
alcança, não longe do mar, uma mulher chamada Siduri, que é
qualificada de "taberneira" ou, antes, de produtora de vinho;
esta, sabendo do motivo da viagem de Gilgamés, o dissuade de
maneira formal: "A vida que procuras, não a encontrarás
jamais!" Essa vida é apanágio dos deuses, a morte pertence ao
homens; destarte, ela o convida a divertir-se e a passar bem
enquanto aguarda a hora fatal. Entretanto Siduri lhe indica onde
encontrar o bateleiro de Um-napisti, pois estão perto da terra que
ele habita; esse bateleiro se chama Ursanábi, "servidor-dos-dois-
terços", isto é, de Ea (Anu é 60, Ea 40, isto é, 2/3 de Anu) e
acede em levar o estrangeiro para junto do seu senhor. Mas
deverão atravessar as Aguas da Morte: "Tuas mãos nunca
deverão tocar as Aguas da Morte -diz o barqueiro e se algum
dos teus ramos cair na água, deves abandoná-lo imediatamente e
usar outro, para que nem uma gota molhe teus dedos; portanto,
faze seis remos, a travessia é longa e exige vinte
arpéus.Chegados junto de Um-napisti, Gilgamés lhe expõe o
motivo da viagem e lhe pergunta como conseguiu escapar ao
dilúvio; vem, então, a narrativa do dilúvio (v. O dilúvio), e o
velho lhe diz que seu intento é vão e irrealizável; como pode
Gilgamés esperar que a assembleia dos deuses se reúna

148
expressamente para lhe outorgar a imortalidade? Ele não passa
de um pobre mortal e Um-napisti prova isto mandando que se
assente e fique sem dormir seis dias e sete noites. Gilgamés
assenta-se e logo adormece; ao acordar recebe provisões para a
viagem, uma veste nova, mágica, que jamais envelhecerá. No
último instante, entretanto, Um-napisti, pela intercessão da
mulher, revela ao viajante que uma planta espinhosa está
escondida no fundo do mar; essa planta confere a juventude.
Então, como os pescadores de pérolas, Gilgamés liga pedras aos
pés e mergulha; no fundo das águas encontra a planta
maravilhosa; ensanguenta as mãos, mas consegue arrancá-la e
volta com ela à superfície. "O nome dessas planta — diz
Gilgamés — é o Ancião-Tornado-Jovem; dela comerei e
encontrarei minha juventude."
Então, quando percorre o caminho de volta, sedento,
detém. — se para beber numa fonte de águas frescas; resolve
banhar-se; uma serpente, atraída pelo odor da planta, a arrebata,
bem como Enlil, despojado das tábuas do destino quando fazia
suas abluções (v. Os mitos de Zu e do dragão Labu); é por isso
que a serpente, mudando de pele anualmente, toma o aspecto de
jovem. Cheio de mágoa Gilgamés, em companhia do bateleiro
de Um-napisti, que o seguira fielmente, volta para Uruk e se
consola mostrando-lhe as muralhas da cidade e quanto elas eram
limitadas.
Mas Gilgamés não podia sossegar; quer, ao menos, saber
de Enquidu onde é a região dos infernos. Enquidu, num sonho,
lhe indica os meios de vir ter com ele; Gilgamés, porém, faz
tudo ao contrário do que lhe fora indicado pelo amigo; nada
mais lhe resta, agora, senão o evocar, pois Gilgamés não poderá
mais descer para junto dos mortos. Pede, contudo, a Enlil, mas
não é o seu reino; este volta-se para Sin, que, por sua vez, se
dirige a Ea, o qual, mais avisado procura Nergal, o senhor dos
infernos, e obtém que o espírito de Enquidu retome por alguns
149
momentos. Gilgamés enche o amigo de perguntas; este hesita
em responder, tanto a verdade é pungente; os mortos acham-se
dispostos em categorias; os que morreram em combate, têm o
apoio dos seus; aqueles que não receberam sepultura, aqueles
que não têm quem lhes traga as oferendas fúnebres, erram por
toda parte à cata de alimento; ele mesmo, para se alimentar,
colhe os restos lançados à rua. Assim termina o poema, que
gozou de grande fama na antigüidade.

OS MITOS DE ADAPA E DE ETANA


Nos poemas heróicos de cunho didático, como o de
Gilgamés, pode-se também incluir o de Adapa, filho de Ea, o
pescador que diariamente fornecia o peixe necessário ao
santuário. Certa feita, quando pescava no Golfo, um golpe do
Vento-do-Sul, subitamente, virou-lhe a barca; cheio de cólera,
Adapa maldiz o Vento-do-Sul e grita: "Quebrarei tuas asas!" Foi
o suficiente para que as asas do Vento-do-Sul ficassem
quebradas. Ao cabo de sete dias, o deus Anu percebeu que o
Vento não mais soprava; inquiriu a causa e lhe responderam:
"Adapa, o filho de Ea, quebrou as asas do Vento-do.Sul". Anu
manda Adapa ao seu trono para o julgar. O caso é grave e Ea dá
a seu protegido conselhos para que se livre da dificuldade;
supondo que Anu o queira envenenar, aconselha-o a não aceitar
alimento algum; indica-lhe os deuses que encontrará no seu
caminho e dita-lhe a atitude que deverá tomar para com cada um
deles. Adapa executa as prescrições de Ea; apresenta-se com
vestes de luto e encontra à porta de Anu dois deuses, Tamuz e
Gizida, ambos divindades da fertilidade, que, segundo outros
textos, são vistos nos infernos quando da sua morte anual. Esses
deuses perguntam a Adapa: "Por que essas vestes de luto?" "Por
Tamuz e Gizida -responde-ihes Adapa -que, sobre a terra,

150
pereceram." Favoravelmente impressionados, os deuses deixam-
no passar. Adapa se justifica junto de Anu que decide oferecer-
lhe o "alimento da vida"; mas ele recusa e aceita somente novas
vestes e o óleo para as unções. Destarte, perdeu a ocasião de se
tornar imortal.
O poema de Etana narra o seguinte: o herói, desejoso de
facilitar os partos à sua esposa, dirige-se ao deus Sarnas a fim de
obter dele a "pedra de partos", que vimos figurar na cintura de
Istar, quando da sua descida aos infernos. Sarnas aconselha a
Etana de ir a uma montanha, onde encontrará ajuda necessária.
Lá o herói encontra uma serpente e uma águia, que se tinham
associado a fim de fazerem presa em comum. Mas a águia é
perjura; mau grado as advertências dos seus filhotinhos, devora
OS filhotes da serpente, sua sócia; esta, a conselho de Samas,
esconde-se na carcaça de um touro morto; quando a águia vem
para a despedaçar, a serpente a enlaça e, não obstante as súplicas
e promessas da antiga sócia, corta-lhe as asas e as garras e a
abandona, para que morra de fome. Sobrevem, então, Etana, que
alimenta a águia; logo que a ave ficou restabelecida, prontifica-
se levar Etana ao céu, onde obterá de Istar o precioso amuleto
para os partos, que ele tanto deseja. Etana trepa no dorso da
águia e esta começa a subida; a terra sempre e cada vez mais
fica menor a seus olhos; a viagem se prolonga e a moradia de
Istar, situada mais alto que a residência de Anu, se revela
inacessivel; águia e homem caem ao solo; o homem não pode se
igualar aos deuses.

151
Dicionário da Mitologia Babilónica
A
ADAD -Senhor das tempestades, das tormentas acompa-
nhadas de raios e trovões, mas também da chuva benfazeja.
Adad não era deus sumeriano, nem sequer semita. As lendas
fenicias, as mais antigas, tais como as encontradas em Ras-
Shamra, referem que quando todo o panteão foi provido de
templos, somente Adad não tinha nenhum; portanto, não fazia
parte do colégio inicial dos deuses.
Na realidade, Adad é o ~rande deus dos asiânicos,
representado como o habitante dos cimos elevados, armado do
raio e do relâmpago. tendo por atributo o touro, cujos mugidos
lembram o trovão. ~ o grande príncipe da fertilidade, cujos
reflexos se manifestarão nos inúmeros deuses secundários
especializados: O deus da árvore, do campo, da fonte, da vinha
etc. Adad tem por esposa Sala (ou Shala), que é denominada
comumente "A dama da espiga".
AN -V. Anu.
ANU -Anu é forma semita do deus An. Reside nos céus,
conforme o seu ideograma, que é o da estrela; tem poderes mais
extensos que os demais deuses, incluindo até aqueles que se
atribuíam, em geral, aos espíritos da fertilidade e da
fecundidade. Era o deus supremo desde a época sumeriana; mas
outros deuses que também habitavam o céu aos poucos foram
tendo tanto poder como ele. O lugar preferido do seu culto era a
cidade de Der, em Acad, e Uruk, na Suméria. Lá, no seu templo
de Eana, casa do céu ou Anu, pois o mesmo signo, a estrela,
serve para escrever o nome do deus e o da sua residência,
adorava-se, igualmente, sua filha, a deusa Istar, cujo culto,
pouco a pouco, igualou-se ao seu, se o não suplantou. Anu tinha,
também, um famoso templo em Lagash, no quarteirão sagrado
da cidade, Girsu. Nesse templo, da mesma forma, desde o
152
reinado de Enadu, o primeiro soberano do qual possuímos um
monumento, a Estela dos Abutres, Istar que entre seus inúmeros
nomes tinha o de Nini em sumeriano, era adorada como filha de
Anu, e seu culto logo ultrapassou o do grande deus.
Até a época neo-sumeriana e a dinastia babilónica, antes da
intrusão de Marduc, Anu era reconhecido como o deus supremo,
rei dos deuses; colocavam diante dele as insígnias da realeza: o
cetro, o diadema, o bastão de comando e a coroa.
A prioridade de Anu se traduz pela hospitalidade que ele
dá a todos os demais deuses; é "no céu de Anu" que se reúnem
para bem comerem e melhor beberem, assim como para se
lamentarem quando algum perigo os ameaça.
ARALU -Os infernos.
ASSUR - Deus epónimo dos assírios, o deus supremo da
religião ninivita. Seu nome pouco aparece nos mitos babilónios.
B BABU -Esposa de Ninurta. Essa divindade feminina presidia
à saúde dos homens, curava as enfermidades, mas podia,
também, infligir grandes danos aos mortais. BEL -Bel ou Bilu, o
grande deus da Babilónia. Corresponde ao Grande Baal,
"Senhor", dos fenícios. BJ?LTIS -O nome cal deu de Béltis era
Belit, "A Dama". Designava a deusa associada pelos caldeus ao
deus Bel. No começo foi identificada com Istar, mas logo se
tornou divindade independente e distinta.
Os gregos a identificaram com Afrodite; davam-lhe,
também, o nome de Milita, forma grecizada de Belit.
O seu culto comportava ritos estranhos: as mulheres
deveriam passar, quando ainda virgens, algum tempo no templo
da deusa e se entregar ao primeiro que se apresentasse; eram "as
primícias da virgindade"; essa prostituição sagrada é encontrada
na Síria e em Chipre.

153
D
DANQUINA -Esposa de Ea. Não tem história própria.
DEMONIOS - Uma das grandes preocupações da religião
de Assur e da Babilónia eram os génios, espíritos bons ou maus
que cercavam os homens. Os bons génios ou demónios
benéficos eram representados por touros alados e ornavam as
portas dos palácios; os maus demónios eram mais numerosos
que os bons; tinham nascido ora de Bel, ora de Anu, mas unidos,
então, a uma deusa infernal; alguns eram considerados filhos de
Ea e Danquina, não obstante o carácter benfazejo desse casal
divino; a contradição era aparente, pois eles tinham, então, o
nome de "a bílis de Ean.
Os demónios perversos eram figurados como monstros
imperfeitos e horrendos e divididos em várias categorias. A
primeira, a mais frequente, era a dos maus utukku, também
chamados os "Sete", ainda que não tivessem esse número; essa
primeira classe era mal definida; os textos se contradizem; às
vezes dão-lhes o nome de edimmu, "Os que voltam", ou
namtaru, "O DemÓnio da Peste".
Praticavam toda espécie de maldade: perseguiam os
viajantes, maltratavam os animais, promoviam dissenções entre
os membros de uma mesma família, provocavam rixas, faziam
as pessoas sofrer acidentes, tiravam-lhes a boa saúde, numa
palavra, tornavam a vida detestável.
Havia, também, os íncubos e súcubos, que, unindo-se aos
mortais, geravam toda uma série de desgraças: eram crianças
que não nasciam a termo, recém-nados que morriam, abortos
etc. Depois vinham as calamidades: seca ou cheia desastrosa,
morte do gado, perda das colheitas etc.
Os edimmu eram seres revoltados, que tinham sofrido

154
morte injusta ou que não tinham obtido as alegrias que
almejavam; vmgavam-se causando dano aos homens. A lista dos
que se tornavam edimmu era assaz longa: Aquele cujo cadáver
foi abandonado na planície, aquele que ficou sem sepultura, a
mulher que morreu virgem, a mulher que morreu de parto, a mãe
cujo filho nasceu morto, aquele que caiu duma palmeira, aquele
que se afogou...
DJ?RCETIS - Deusa síria, também conhecida como
Dérceto ou Atágartis ou Astarte. Representavam-na com corpo
de peixe. Dércetis houvera, de simples mortal, uma filha, a
célebre Semíramis, que desposou Nino, rei da Assíria, e fundou
Babilónia; Semíramis cercou a cidade com imensas muralhas
flanqueadas por torreões. No fim do governo, sabendo que
Nínias, seu filho, conspirava contra ela, cedeu-lhe a coroa e
metamorfoseou-se em pomba.
Dércetis, originariamente, era deusa de Áscalon (cidade da
antiga Palestina, uma das principais cidades dos filisteus, porto
do Mediterrâneo; vêem-se, hoje, suas ruínas perto de El Djurah,
a 70 km de Jerusalém); confundiu-se com Atágartis de Hier6-
polis; seu culto deu origem à lenda grega de Perseu e
Andrômeda. DUMUZI -Deus da vegetação, de modo especial
das messes.

E
EA - O nome de Ea, em língua sumeriana, era Enqui, o
senhor do solo, mas do solo profundo, do subsolo que para os
babilónios eram um abismo líquido sobre o qual flutuava o
mundo; não era, contudo, deus dos infernos, onde reinava
Nergal. Ea significa "casa d'água"; o nome, portanto, precisa a
qualidade e o carácter da realeza que exerce; de feito, os
babilónios haviam localizado a sabedoria, a ciência e a
prudência no abismo que chamavam apsu, simples semitização
155
da palavra sumeriana ab-zu, morada do saber.
Ea tinha por esposa Danquina, de carácter muito apagado.
Ea era o protetor do gênero humano e algumas tradições teo-
lógicas o faziam criador da humanidade; ele teria modelado em
greda um corpo humano e nele inspirado o sopro vital; vê-se, aí,
claramente, o eco da tradição bíblica, quando Deus fez Adão do
barro da terra. Era, também, deus-oleiro, talvez por causa da sua
habilidade em amassar o barro.
Graças a Ea não se perdeu toda a humanidade, pois ele
avisou Um-napisti e levou-o a construir o barco onde se acolheu
com sua família. Na qualidade de senhor do saber, todas as altas
ciências estão sob a sua protecção: magia, divinação, astronomia
(ou melhor, astrologia), medicina etc.; davam-lhe o epíteto de
"deus do olho brilhante".
ENLIL -O nome semita de Enlil é Bel, que significa "Se-
nhor". Seu domínio é a terra. Em Sumer, o principal lugar de
culto de Enlil era Nipur. Já nas épocas arcaicas era chamado de
"rei dos deuses"; essa primazia, sem dúvida, responde à tradição
do clero, pois ainda que o chamem de "sábio", "ajuizado",
"prudente", foi ele que ordenou o dilúvio, não obstante os pro-
testos de Istar e de Ea. É interessante observar que quando
Marduc ascendeu ao primado no panteão babilónico, também
recebeu o nome de Bel: Bel-Marduc; Enlil tornou-se, então, Bel-
o-Antigo. Sua esposa tomou como nome a forma feminina do
nome do marido, Belit, a Dama.
ENQUI -Senhor das águas profundas, do abismo que
suporta a terra.
ENZU -Deus-lua, senhor do saber.
ERESQUIGAL -Irmã de Sarnas e de Istar. Era a rainha
dos Infernos, chamados aralu. Nergal, um dia, invadiu os
infernos, "país do qual não se retorna" e maltratou Eresquigal;
esta ofereceu-se-Ihe em casamento. Nergal aceitou e tornou-se o
156
rei dos infernos.

G
GATUMDUG -Deusa do leite.
G~NIOS -V. Demónios.
GESHTIN ANA -"A Vinha Celeste", deusa agrícola.
GIBIL -Deus sumeriano. -V. Nuscu.
GIZIDA -Deus da vegetação, pertencente ao ciclo
naturista. GULA -Divindade esposa de Ninurta. Presidia à saúde
e curava as doenças dos homens; mas podia, também, infligir
grandes danos aos mortais. O cão, companheiro de Gula, tornou-
se, entre os gregos, o de Esculápio.

I
INSHUSHINAK -Outro nome para Ninurta. Era o deus de
Susa.
INURTA -V. Ninurta.
ISTAR - Istar, por causa das numerosas divindades das
quais ela se tornou a expressão, tem genealogia bem incerta;
dizem-na filha de Sin, mas também de Anu; é irmã de Samas e
de Eresquigal, deusa dos infernos. Seus esposos e amantes
formam uma lista assaz extensa; quase em toda parte, às vezes
sob nome diferente, é a esposa do deus principal da cidade; por-
tanto, tantos maridos quantas forem as cidades. Atribuem-lhe
dois caracteres diferentes, porque ela representa duas espécies
de deusas: deusa do amor, do prazer, da volúpia e deusa das
batalhas; e isto não por razões filosóficas: o amor, irmão da
morte, a morte consequência do amor etc. Não. É o princípio da
fecundidade por excelência ao qual se uniu o carácter bélico;
mas essas duas qualidades são sempre reverenciadas sob nomes

157
diferentes; em Uruk é Istar da religião naturista; a Istar de Halab
e a Istar de Arbela são divindades bélicas; os atributos, num e
noutro caso, diferem, assim como os símbolos; na baixa época
esse duplo carácter foi acentuado nas assimilações: era Vénus
(ou Afrodite) enquanto deusa do amor e da volúpia, era Cibele
quando deusa da fertilidade. Comumente identifica da com
Astarte, Astarot ou Astoret, era a grande deusa de todos os
povos semitas.

M
MARDUC - Segundo os hebreus, nome do deus adorado
em Babilônia como divindade suprema. Era filho de Ea; seus
atributos: o dragão, o peixe-cabra e o cão. Venceu as divindades
do Caos e organizou o Céu e a Terra. Tinha, também, o nome de
Merodac.
Os deuses da magia, de modo particular, eram
representados por Marduc e Ea; este último, senhor de toda
sabedoria, benfeitor da humanidade, abandonou, pouco a pouco,
todos seus poderes ativos ao filho, Marduc, quando foi da
reforma religiosa da primeira dinastia babilônica.
MERODAC - O mesmo que Marduc.

N
NABU - Cognominado "O escriba dos deuses", Nabu era a
divindade que, anualmente, quando os deuses se reuniam em
assembleia, no início do ano, a fim de fixar os destinos para o
novo período que começava, escrevia em tabuinhas as determi-
nações emanadas da assembleia divina.
NEBO - Divindade assíria que era cultuada na Babilónia.
NERGAL -Deus dos infernos. Era de caráter solar, mas
destruidor.
158
NIDABA -Deusa da fertilidade. Era, propriamente, uma
divindade-grão, deusa dos caniços e dos juncos, tão abundantes
nos terrenos paludosos .junto aos rios e aos canais. Como o
caniço servisse para fazer cálamos, os estiletes com os quais se
escrevia sobre a argila, Nidaba tornou-se a deusa dos númerOs e
dos presságios; além disso se qualificava como a deusa das plan-
tas, em geral, que vicejavam nos marnéis, de modo particular
das equissetáceas, que, calcinadas, produziam a soda, cuja
mistura com óleo e argila dava um sucedâneo do sabão.
Também tinha o nome de Nisaba.
NINCARRAC -Esposa de Ninurta. Era divindade que
presidia à saúde dos homens.
NINGIZIDA -Deus dos bosques e das verduras. Chama-
vam-no "Senhor do bosque da Vida". O mesmo que Gizida.
NINTUD -Deusa que presidia aos partos. Era invocada, de
modo particular, pelas mulheres grávidas.
NINURTA -Ninurta ou Inurta era o deus dos combates no
tempo dos sargônidas; consideram-no um emigrado da religião
naturista.
Nos tempos sumérios, arcaicos, era o senhor de Girsu (Nin
Girsu), o quarteirão sagrado de Lagash; naquela época desem-
penhava o papel de deus da fertilidade, presidia às cheias dos
rios, sem as quais não poderia haver vegetação. Na época assiria
teve armas por símbolos; outrora era a charrua.
Em Ninurta confundem-se muitas divindades:
Inshushinak, o deus de Susa, Zababa, o deus de Kish. ..Sua
poligenia se traduz por aparente poligamia: será esposo ora de
Babu, ora de Nincarrac, ora de Gula; essas divindades femininas
são bem diferenciadas; presidiam à saúde do homem; curavam-
no de suas enfermidades, mas podiam, também, infligir-lhes
sorte funesta.
NISABA -V. Nidaba.
159
NUSCU - Deus da chama. Representa o deus surneriano
Gibil. Os fiéis de Nuscu rendiam-lhe graças sem cessar, pois,
faltando o fogo, os sacrifícios não poderiam ser consumidos.

O
OANES - Um dos principais deuses da Babilónia. Oanes,
saído do mar Eritreu, era um monstro metade homem e metade
peixe, que apareceu pela primeira vez perto de um lugar vizinho
a Babilônia. Tinha duas cabeças, a de homem sob a de peixe.
Esse monstro vivia entre os homens, sem comer; deu-lhes o
conhecimento das letras, das artes e das ciências em geral, assim
corno da agricultura. Ao pôr do sol Oanes se retirava para o mar
e passava a noite sob as águas.

S
SALA -Esposa de Adad. Tinha o epíteto de ..A Dama da
Espiga".
SAMAS -O deus Sol, Utu em sumeriano. Sarnas era filho
do deus-lua. Para nós o sol tem importância mui diversa da que
lhe atribuem no Oriente. O sol da manhã, que aquece a terra, é o
benvindo; dispersa as trevas, asilo dos maus espíritos que
engendram o terror; mas, à medida que avança no seu curso,
cessa de ser benfeitor da humanidade; é ele que queima as plan-
tações e que faz da planície um deserto; o sol do meio-dia
éassassino: faz os homens sofrerem ataques de insolação, causa-
lhe incômodos vários, dissemina epidemias; deixa, então, de ser
Sarnas e se transforma em Nergal, deus dos infernos,
abastecedor de seu próprio domínio por meio das epidemias que
espalha sobre a terra. A principal qualidade de Sarnas é ser deus
da justiça. Essa atribuição nos esclarece a respeito do modo de
pensar das populações primitivas que o conceberam; por

160
definição, o sol vê tudo (bem como na Grécia), inunda tudo com
a sua luz, expulsa as trevas, propícias aos maus; é, pois, por
excelência, o deus da justiça.
Soberanos que promulgavam leis, corno Hamurábi,
colocam suas leis sob os auspícios do Sol; no código desse rei,
que se encontra no Louvre, vemos o monarca representado em
adoração diante de Samas.
Numa época certamente secundária do seu culto, atribuí-
ram-lhe dois filhos, Quitu e Mesaru, palavras que, respectiva-
mente, significam "Direito" e "Justiça". Temos aí puras hipós-
tases teológicas, absolutamente estranhas ao período arcaico.
A esposa de Sarnas chamava-se Aia.
SEMtRAMIS -Rainha lendária da Assíria, filha da deusa
Dérceto ou Dércetis; abandonada pela mãe, tornou-se escrava.
Um general de Nino, pressentindo seu gênio e fascinado pela
beleza da escrava, tomou-a por esposa; o próprio Nino por ela se
apaixonou, o qual, antes ficara impressionado com a coragem
que a jovem demonstrara por ocasião do ataque dos bactros.
Nino, então, fez com que o general a cedesse, e a tomou por
esposa.Semíramis de imediato conseguiu poder sem limites
sobre seu novo marido; dessa união nasceu um filho, Nínias.
Segundo antiga tradição, Semíramis, um dia, pediu ao esposo
que lhe confiasse, por um momento, o poder real absoluto; este
cedeu aos rogos da esposa e foi logo massacrado.
Seja como for, Semíramis sucedeu a Nino no trono.
Engrandeceu, fortificou e embelezou Babilónia; cercou-a de
muros tão largos que dois carros podiam cruzar por cima deles
tranquilamente; construiu imensas plataformas cobertas de
jardins magníficos, os chamados "Jardins suspensos da
Babilônia", urna ponte sobre o Eufrates, galerias sob o leito do
rio e um lago que acolhesse as águas excedentes no tempo da
cheia. Na Arménia mano dou erguer o famoso Artemita e outras
161
obras não menos importantes que as de Babilónia. Submeteu a
Arábia, o Egito, urna parte da Etiópia e da Líbia e só não teve
sucesso na expedição que dirigiu contra a tndia. Morreu depois
de ter reinado 42 anos; sucedeu-lhe Ninias, seu filho, que,
talvez, tenha lhe abreviado os dias.
Semíramis foi adorada pelos assírios sob a forma de
pomba; contava-se que ela tinha sido criada por pombas e que
ao morrer subira aos céus sob a forma de uma dessas aves; seu
próprio nome significava pomba. Outras tradições referem que
Semiramis matou o marido e todos os filhos, com exceção de
Nínias. A tradição recolhida por Justino (Rist. Phil., li) é assaz
diversa.
SIN - Sin é nome semita do deus-lua que se chamava em
sumeriano En-zu, o senhor do saber; aí também se encontram
duas concepções diferentes, uma colocando o saber no céu,
outra nas águas subterrâneas. Contrariamente a muitos povos, os
mesopotâmios da lua fizeram um deus, não uma deusa.
O deus Sin gozava de grande prestígio; era ele que, com as
variações do seu disco regulava o curso dos meses (os
babilónios tinham o mês lunar), que, de tempos a tempos, era
necessário pôr de acordo com o curso do ano verdadeiro, isto é,
o ano solar. Assim, uma das formas de escrever seu nome é o
número trinta, do total de dias necessário à revolução lunar. A
regularidade do curso lunar deu a Sin o carácter de ordem e
sabedoria. Imaginavam-no como homem de idade madura, com
imensa barba de lápis-lazúli. Para os mesopotâmios, o crescente
lunar que, naquela latitude aparece com a convexidade quase
paralela ao horizonte, era a barca do deus na qual ele percorria o
céu.

T
TAMUZ - Deus da vegetação. O seu culto permaneceu até
162
ao primeiro milenário; p seu nome figurava no calendário, pois
tinha um mês que lhe era dedicado, "o mês Tamuz", junho-
julho; celebravam-se inúmeras festas em sua honra; com o
correr dos séculos o culto de Tamuz permaneceu quase apagado,
mas as lendas em que ele participava gozaram, sempre, de
extraordinário prestígio. Mas, no decorrer do período greco-
romano, Tamuz conheceu um esplendor que não foi igualado
por nenhum outro deus do panteão babilónico: transformou-se
no famoso Adónis, adaptação do semita Adon, "Senhor".
O culto de Tamuz aparece na Bíblia (Ezequiel, VIII, 14):
"Conduziu-me até a entrada da porta setentrional da casa do
Senhor: mulheres estavam sentadas, chorando Tamuz".
No estio, os povos semitas costumavam celebrar festas
fúnebres, por causa da sua morte prematura.
TRÍADES - A religião babilônica conhecia duas trlades
(conjunto de três deuses, segundo o esquema familial, pai, mãe e
filho) principais; a característica mais notável dessas tríades é
que não correspondem ao sentido comum que lhe dão, feito sob
o esquema familial, de pai, mãe e filho; em geral, as religiões
evoluídas de um culto naturista, não guardam essa noção.
A primeira tríade babilónica é composta dê Anu, Enlil e
Ea; a segunda é formada por Sin, Sarnas e Istar. — V. esses
nomes.

U
UTU - O Sol. Utu, nome sumeriano, é o mesmo Samas.

Z
ZABABA -Deus de Kish. Era o mesmo deus Ninurta.

163
MITOLOGIA FENÍCIA
O PAÍS
A Fenícia correspondia à maior parte do litoral da Síria
hodierna; tinha por limites, ao Sul, o monte Carmelo; ao Norte,
o golfo de Isso, depois o território da cidade de Arados ou
Arvad, o rio Eleutério (hoje Nahr-el-Kebir). A Este era limitada
pela cadeia do Líbano, a Oeste pelo mar. A situação geográfica
da Fenícia justifica plenamente o destino histórico de seus habi-
tantes. Os fenícios nada podiam esperar da agricultura; somente
ao Norte, perto da embocadura do Eleutério, e ao Sul, perto de
Acre, estendem-se verdadeiras planícies. Excluída a região de
Sídon e de Tiro, que constituiria depois o cabo Branco até
Asclépio (Nahr-Awali), a "planície da Fenícia", a montanha
segue de perto a margem e os espaços cultiváveis são
insuficientes, como já o eram na proto-história, para alimentar o
povo; o destino dos fenícios, pois, era o mar.
A cadeia do Líbano, cujo nome significa "branco", começa
ao sul do Nahr-eI-Kebir e termina no vale cavado pelo Nahr-
Qasimiyeh; estende-se por 100 km de comprimento e ultrapassa,
em alguns pontos, 3000 m de altitude; é uma barreira difícil de
ser transposta.
A população da Fenícia era assaz densa; os textos mencio-
nam 25 cidades importantes; estas, do ponto de vista político-
religioso, foram: Gebal, centro de culto Importantíssimo; Sídon,
apelidada de "mãe de Canaã"; Tiro que, além da sua importância
comercial. exerceu papel preponderante na constituição dos
dogmas da religião fenícia; Ugarit (hoje Ras-~hamra), em razão
do seu afastamento, tinha mais independênçia que as cidades
centrais da Fenícia; Bérito (hoje Beirute), sobre o cabo do
mesmo nome, era centro importante, tanto comercial como reli-
gioso.
164
O POVO
Como ocorre frequentemente com as narrações históricas
da antigüidade, as mais antigas testemunhas que possuímos
sobre a Fenícia são em parte lendárias. As fundações de cidades
são obras de deuses. Os mitos tírios referem que logo após a
criação do mundo surgiu uma raça de semideuses, depois de
gigantes, que inventou tudo que podia ser útil à humanidade; um
deles, Usoos, o caçador, foi o primeiro que se aventurou a
enfrentar o mar, sobre um toco de árvore; aterrou numa ilha da
costa síria, e nela ergueu duas colunas, uma ao Fogo outra ao
Vento; derramou o sangue dos animais que caçara e fundou, ao
mesmo tempo, Tiro e a religião que depois os homens adotaram.
Segundo outro mito, Tiro vogava sobre o mar e abrigava a
oliveira de Astarte, sobre a qual vigiavam uma águia e uma
serpente; a ilha deixaria de vogar ao acaso quando alguém
conseguisse sacrificar a águia aos deuses. Usoos conseguiu e
desde então os deuses não deixaram mais de habitar Tiro.Nessa
cidade nasceu
Astarte; H~ródoto, que visitou o país por volta de 450
a.C., nos refere que os sacerdotes de Tiro lhe asseguraram que o
templo de Melcarte fora construído ao mesmo tempo que a
cidade, 2300 anos antes da época da sua visita; teria, então, sido
fundada em 2750 a.C. Mas Justino afirma que Tiro foi fundada
um ano antes da queda de Tróia, vale dizer, por volta do ano
1200 a.C. Com as demais cidades ocorre o mesmo: não se tem
certeza de quando começaram a existir.
No período pré-histórico, mais de 3000 anos antes da
nossa era, a região sul e sudeste da Fenícia era habitada de
povos que moravam em cavernas (os gregos chamavam esses
homens trogloditas) e nelas dispunham seus lugares de culto;
165
muito antes do/período histórico os semitas se espalharam pelo
país; formaram tribos sedentárias, conhecidas pelos egípcios
com o nome de Amu ("nômades"), Horu ("a região costeira"),
Lotanu ("zona interior"); mas os habitantes das cavernas não
tinham desaparecido de todo; provavelmente os egípcios se
referiam a eles quando falavam nos Iuntius. A Alta gíria, então,
era conhecida pelo nome de Amurru ("País do Oeste"); era um
verdadeiro reservatório de semitas, cujas migrações atingiram o
norte, além do Tauro, e a Babilônia, a este. No segundo
milenário, toda a retaguarda do país e a Fenícia eram conhecidas
com o nome de Canaã.
Desde a antiguidade admitiu-se que os fenícios não eram
autóctones; Heródoto achava que tinham vindo das margens do
mar Eritreu; parece provável que vieram de Amurru, o Norte da
Síria; outras tradições afirmavam que procediam daquela região
que os egípcios chamavam Punto.
As cidades fenícias não possuíam governo central, mas
eram autónomas; essa a razão por que quase sempre estavam
sob domínio estrangeiro. O Egito, desde épocas imemoriais, teve
grande ascendência sobre a Fenícia. A escrita dos povos
primitivos é pictográfica, isto é, representa os objetos na sua
forma exterior; o melhor exemplo é a linguagem escrita dos
egípcios, cujos hier6glifos não são outra coisa senão pinturas
convencionais dos objetos que representam coisas e idéias. A
escrita cuneiforme, no início, também era pictográfica, assim
como a dos hititas.
Os mesopotâmios, por primeiro, chegaram à noção de
sílaba que compõe a palavra: ao lado dos valores ideográficos,
que permaneceram, atribuíram à sílaba valor silábico;
conseguiram, até, destacar as vogais como som simples, mas
não puderam ultrapassar este estágio e não chegaram à
consoante privada de vogal.

166
Atribui-se, comumente, aos fenícios a invenção e
propagação do alfabeto; a data geral dessa invenção deve ser
colocada no fim do li milenário, por volta de 1 200 a.C.
O alfabeto fenício se compõe de 22 letras, todas
consoantes; as vogais não se escreviam. É provável que os
fenícios tenham derivado seu alfabeto da escrita hierática dos
egípcios.
As letras fenícias tinham nome e este passou para o grego,
com pequenas modificações: aleph (a), bet (b), gimmel (g), dalet
(d), transformaram-se em alfa (a), beta (b), gama (g), delta (d)
etc.
O fenício é uma subdivisão da língua cananeia, semita,
juntamente com o hebreu, ao qual muito se assemelha.

A RELIGIÃO
Para os países de civilização muito antiga, tais como o
Egipto, a Assíria-Babilónia e a Fenícia, a religião é a base da
sociedade. Conhecemos a religião fenícia através de duas fontes
diferentes, que representam, igualmente, dois estágios diversos
na sua evolução histórica: 1) os textos de Ras-Shamra, reflexo
das tradições mais antigas; 2) os escritos da baixa época que
testemunham o que se tinha tornado a religião a partir da era
greco-romana. Da leitura dos textos de Ras-Shamra resulta que
no fastígio do panteão fenício se achava EI-Dágon; suas
atribuições eram velar pelo curso dos rios e anunciar a chuva;
tinha por companheira Aserat do Mar, chamada, também, Elat.
Depois vinha Baal, palavra que significa "senhor"; trata-se, sem
dúvida, de um epíteto; parece que Baal foi um deus adoptado
pelos fenícios depois que o panteão já tinha sido esboçado; Baal
seria, pois, um deus local, pré-fenício. Era um deus guerreiro,

167
com capacete, trazendo o raio na mão; esses atributos o
identificam com o Grande Deus da Alta gíria que encontramos
entre os hurritas e os hititas; em suma, é uma velha divindade
asiânica.
Aliian, filho de Baal, tinha atribuições mais ou menos
idênticas às do pai: presidia às correntes d'água subterrâneas, aos
cursos d'água, e por extensão, ao mar.
A irmã de Aliian é Anat, virgem guerreira que tem todos
os caracteres da Istar de Arbela, dos assírios. Astarte, que
parece, no princípio, ter sido uma réplica de Anat, tinha, então, o
nome de Astart; confundiu-se com Anat na baixa época sob o
nome de Astarte, do qual fizeram Atárgatis. O antagonista de
Aliian é seu irmão Mot (segundo Fílon de Biblos, a palavra
significa "morte"; conforme R. Dussaud, tem o sentido de "o
herói", o "guerreiro"), que tem os caracteres do Nergal
babilónio, ao mesmo tempo sol do meio-dia, destruidor de toda
vegetação, e deus dos infernos. Baal é um deus dos extremos: da
tempestade que quebra e destrói e da chuva que fertiliza; Aliian
é um deus das fontes e dos córregos, que faz o grão germinar,
mas também da inundação que assola e arruina tudo; Mot é o
espírito da colheita e do período de sono e des. canso que a
seguem na terra. Aliian (cuja sorte arrasta a de Baal) não pode,
pois, coexistir com Mot; quando um está sobre a terra, o outro se
acha nos infernos, já que ambos traduzem a altemância das
estações. Esse fato é expresso na lenda de Istar e Adónis.
A "lenda do sábio DaneI" igualmente tem traços de ritos
agrários; o "hino ao deus Nical e às deusas Cosarot" contém a
descrição de um hieros gamos ("casamento sagrado") entre
divindades: são, ainda, ritos de fertilidade. Do exposto verifica-
se que a religião fenícia, no meio do li milenário, conservou com
muita pureza os múltiplos traços da sua origem: é um ramo da
religião asiânica primitiva das forças da fertilidade e da fecun-
dação.
168
O exame da religião fenícia da baixa época revela que o
carácter naturista, asiânico, tomou forma diferente sob a influên-
cia da filosofia grega e de outros elementos alienígenas; mas as
grandes divindades permanecem perfeitamente reconhecíveis.
São desse período as cosmogonias, a origem dos deuses e
a criação do homem; há vários traços que lembram as narrações
da Bíblia.

O PANTEÃO FENÍCIO
Os documentos da baixa época comumente transcrevem os
nomes das divindades fenícias sob forma grega; os nomes fení-
cios, em geral, são teóforos. Da multidão de divindades fenícias
som~nte algumas emergiram até nós, os chamados Grandes deu-
ses; estes eram adorados em diferentes lugares, cada cidade
tinha preferência por determinado deus, o padroeiro, mas não
excluía o culto dos demais; os fenícios os designavam pelo
nome de Alonim, plural de El e que significa "deus" em língua
semita, e pelo nome de Baalim, plural de Baal, que significa
"senhor"; eram chamados, também, de melec ("rei") e adon
("senhor"). Freqüentemente consideram Baal como o nome de
divindade determinada; na verdade, Baal designa os deuses em
geral; o Baal de Tiro era "o senhor de Tiro", o Baal do Líbano
era "o senhor do Líbano" etc.
A maior parte dos nomes divinos eram perífrases:
Melcarte era "o rei da cidade".
Já que a maior parte das cidades fenícias reverenciavam
um baal, é conveniente qualificar, sempre, o nome do lugar onde
ele era adorado: Baal-rosh ("senhor do promontório"), Baal-
sáfon ("senhor do norte"), Baal-shamin ("senhor dos céus").
Baal-Lébanon (" senhor do Líbano") etc.

169
Melcarte -.Era o baal de Tiro e seu nome significa,
simplesmente, "o deus da cidade", que nada explica da sua
identidade; na origem era um deus tribal; os gregos o
assimilaram a Héracles (Hércules). Seu caráter, na origem, era
solar; mais tarde, sem perder seus atributos primitivos, ganhou
outros, notadamente o de divindade marinha.
Dágon -O Baal Dágon, cognominado Síton, adquiriu, na
baixa época, atributos marinhos; mas seu caráter primitivo per-
maneceu na história dos Urânides; explicam seu nome ligando-o
a uma palavra que significa "trigo" ou "oferenda de trigo"; mais
tarde, por causa do carácter marinho que lhe atribuíram, ligaram
seu nome à raiz semita que tem o sentido de "peixe"; conforme a
Bíblia (I Samuel, V, 3-4) e às moedas greco-romanas de Abido,
podemos identificá-lo com o deus-peixe Oanes da Caldeia.
Esmun -Em Sídon reinava um deus que não era chamado
de Baal, Esmun, que foi identificado com Asclépios (Esculápio);
era deus da saúde e, primitivamente, divindade ctônia. A etimo-
logia de Esmun não é pacífica; conforme Lidzbarski, seria forma
derivada de shem, "o nome" por excelência, antigo titulo divino
que desapareceu muito cedo; seria, então, simples epíteto como
Baal.
Astart -As duas grandes cidades do norte da Fenícia adora-
vam em primeiro lugar não um dos múltiplos Baal, mas uma
Baalat, forma feminina daquele nome, que se pode traduzir por
"senhora" ou "dama". Em Beirute havia a Baalat-Beirut, isto é,
"A Senhora de Beirute", por exemplo.
Astart parece a prosódia melhor; daí a forma grega
Astarte. Astoret tem origem arbitrária.
Astart era a personificação da fecundidade, a deusa da
maternidade e da fertilidade, a deusa-mãe; entre os assírio-
babilônios assumiu, também, aspectos bélicos; mas o primitivo
sempre prevaleceu na Fenícia. Os gregos a identificaram com
170
Mrodite. Sua natureza era de tal modo compreensiva que a
consideraram ora Réia ora Cibele ora a Grande Deusa Síria.
Adónis - O culto desta divindade esteve sempre
intimamente unido ao de Astart; era representado sob os traços
de um belo mancebo; numa caçada, foi morto por furioso javali;
Astart, sua amante, foi aos infernos buscá-lo. A narrativa da
história de Adónis, devida ao poeta Paníasis õu Paníase
(primeira metade do V século a.C.), é a mais antiga, de
procedência grega, que possufmos.
O nascimento milagroso de Adónis lembra que ele era
uma divindade agrária, um espírito da vegetação; seu culto era
celebrado em toda a Fenícia. Veja-se a história de Adônis no
Dicionário da Mitologia greco-romana, de Tassilo Orpheu
Spalding. A personalidade de Adônis é assaz obscura; nenhum
texto fenício, grego ou latino esclarece o assunto; o nome é a
forma helenizada da palavra semita adon, "senhor"; Adónis
ficou restrito ao mundo greco-romano; as línguas hebraica e
siríaca chamavam esse deus Tamuz.
A verdadeira personalidade de Adónis nos é revelada por
Damáscio (VI século da nossa era), que refere não "ser o deus
nem egípcio nem grego, mas fenício, sendo seu nome Esmunos;
era filho de Sadicos". Este texto nos faz compreender a verda-
deira identidade de Adônis: ele esconde o nome de Esmun,
como o titulo baal dissimula o verdadeiro nome do Grande deus.

OS DEUSES DE CARTAGO
Os deuses de Cartago foram os da Fenícia, pois Tiro era a
metrópole da cidade.
De modo especial eram reverenciados em Cartago: Baal-
Hámon, que os romanos identificaram com Cronos ou Saturno;
171
Esmun e Astart, que tomou, em Cartago, o nome de Tanit (em
português Tânita), assimilada pelos romanos a Juno Celeste;
entre os deuses de segunda categoria cultuavam: Adônis, Bés,
anão grotesco cujo culto proviera da Asia ocidental e do Egito, e
os gênios, benéficos e maléficos.
Por natureza, Baal-Hámon é deus celeste e o único do pan-
teão fenício que Fílon de Biblos não explica pelo evemerismo,
como simples mortal. Como havia uma divindade africana cha-
mada Júpiter-Amon, a confusão se originou entre ambos; as
características de Baal-Hámon fizeram com que o identificassem
com o Zeus Celeste; na realidade, eram duas divindades
distintas, o que prova a ortografia verdadeira do nome primitivo
do deus, Baal-Hámon, logo esquecida a favor da grafia
freqüente mas errônea: Baal-Amon.
Moloque (nos cilindros-sinetes aparece a forma Malac),
isto é, "rei", era apresentado sob a forma de homem com
cabeça,de touro; essa divindade também era adorada pelos
amonitas e moabitas; os cartagineses introduziram seu culto na
Sicília em 512 a.C. Foi identificado com Baal e com o Cronos
grego. Sacrificavam-lhe vítimas humanas, notadamente
crianças. Segundo Diodoro, a estátua de Moloque era de metal
(bronze) e tinha os braços estendidos para receber as vítimas
humanas que lhe ofereciam (v. Sacrifícios humanos).
Pensa-se que o famoso touro de Fálaris era um
representação desse ídolo, com o qual o Minotauro das lendas
gregas também tem afinidade.

SACRIFÍCIOS HUMANOS
O sacrifício dos primeiros filhos masculinos era prática
corrente entre os cananeus da alta antiguidade; os fenícios
guardaram esse costume até época avançada. Refere Fílon que
ele era de uso em ocasiões de grande calamidade pública;
172
sacrificavam-se, então, as crianças mais queridas, a fim de
afastar as desgraças; nos tempos ordinários substituía-se a
vítima humana por um animal; nas fundações de templo
sacrificavam-se hóstias humanas, como se verifica no templo de
Tânita, em Cartago, e nas escavações de Kafer-Djarra, velho
sítio cananeu.
Refere Diodoro que após a vitória dos cartagineses sobre
Agátocles (307 a.C.), os prisioneiros foram imolados no altar
dos deuses; é ainda Diodoro quem nos revela a imolação de dois
meninos na Sicília, provavelmente quando na ilha foi
introduzido o culto de Moloque.
Assegura-nos Tertuliano que ainda no seu tempo (III
século da nossa era) se faziam, em segredo, sacrifícios humanos.

AS ADÓNIAS
As festas religiosas dos fenícios tinham quase sempre
carácter de peregrinação, pois os templos, em geral, estavam
SItuados sobre colinas vizinhas às grandes cidades; o santuário
de Baal-Marcod, um dos mais famosos templos de Beirute, se
erguia acima da cidade, em Deir-eI-Calaa.
A festa mais famosa da Fenícia era em honra de Adônis,
as Adônias, cerimônias típicas e características do povo fenício,
celebradas com grande pompa em Afka, no verão; para o templo
do deus acorriam peregrinos de toda a Fenícia, e, mais tarde, até
dos países vizinhos.
Uma espécie de procissão subia as alturas do Líbano,
detendo-se em vários pontos, as diversas etapas da caçada
empreendida pelo deus, a qual finalizou com a sua morte;
depois, imagens de Adónis, de terracota ou de cera, eram
dispostas à entrada do templo ou sobre terraços; as mulheres
cercavam os simulacros lamentando-se e chorando; executavam

173
ao seu redor danças fúnebres e cantavam cantos tristes. Na
mesma época, semeavam grãos de rápido crescimento em potes
cheios de terra húmida; logo surgia uma superfície esmeraldina,
que o ardente sol de junho em pouco secava; era o símbolo da
vida efémera do deus; por meio dessa cerimónia, de alguma
maneira, era recuperado o espírito da vegetação, atacado de
modo inclemente pelos ardores do verão.
Observando a coloração avermelhada do rio Adónis (o
célebre Nahr-Ibrahim), na primavera, supunham alguns
observadores que tal festa se realizava nessa estação; mas a
coloração se produz irregularmente, depois de grandes
tempestades. Hoje todos admitem que elas se celebravam na
época das colheitas; sabemos, aliás, que o imperador Juliano o
Apóstata, em viagem pela Síria, assistiu a essas festas nos meses
de junho-julho. Através de Teócrito (I dílio XV: As siracusanas)
conhecemos o modo pelo qual se realizavam os funerais de
Adônis no li século antes da nossa era, em Alexandria, onde o
culto do deus gozava de grande favor popular. Havía três dias
feriáveis; no primeiro, verdadeira festa, com oferendas de nozes,
figos, flores, aves e um banquete; no segundo, luto pelos
funerais do deus; no terceiro dia, no qual o deus ressuscitava,
representações de um drama sagrado, no meio da alegria geral.
Mas as festividades todas estavam impregnadas de tristeza; eram
solenidades fúnebres, mais que de regozijo, reprodução de
verdadeira cena de funerais: exposição do cadáver, oferendas e
banquete em comum. As solenidades descritas por Teócrito
deveriam ser idênticas nos grandes centros fenícios, mormente
em Biblos, onde o culto de Adônis era o primeiro.

BAAL E O PRÍNCIPE DO MAR


O príncipe Iam, cujo nome significa "o Mar", também
174
chamado Juiz-Rio, decidiu que lhe seria construído um palácio.
Pediu o auxílio do deus arquiteto e artífice Cutar, "O Hábil", que
simbolizava as poderosas civilizações de além-mar, pois "Creta
era sua residência, o Egito o seu patrimônio". O deus El parece
aprovar o desígnio do filho Iam e está prestes a reconhecer-lhe a
realeza entre os deuses, sem levar em conta as pretensões do
deus Astar, pretendente do trono divino. Mas Iam torna-se
arrogante. Presume-se que Baal tenha recusado pagar-lhe
tributo, pois o Príncipe do Mar envia deputados à assembléia
dos deuses a fim de que Baal lhe seja entregue como escravo.
Percebendo que a embaixada se aproxima, os deuses ficam
temerosos, e, consternados, "inclinam a cabeça sobre os
joelhos". Baal censura-lhes a covardia. Os enviados de Iam
saúdam respectivamente EI que se declara pronto a lhes entregar
Baal, não sem ironia, pois lhes pondera que a tarefa não sera
fácil. Com efeito, Baal e assistido das deusas Anat, sua belicosa
irmã, e Astarte. Baal, então, arma-se para enfrentar o Principe
do Mar. Cutar fabrica-lhe duas maças, "Expulsa" e
"Afasta", .que "nas mãos de Baal voam como águias". Com elas
Baal esmaga a cabeça do seu inimigo e Astarte proclama:
"Seguramente Iam esta morto, e Baal e nosso rei 1 "
O mito de Baal e do Príncipe do Mar tem duas
interpretações; uma ve nele alusão de caráter histórico: Iam
personifica "os povos do mar" assaltando a costa fenicia, e
expulsos pelo deus nacional de Ugarit; a outra procede de
comparação entre este mito e o poema babilônico da criação,
onde Marduc, o campeão dos deuses, fende em dois o cadaver
de Tiamat, o poder do Mar, para dele formar o mundo.

O PALÁCIO DE BAAL. A DEUSA ANAT


Há um hino, muito curioso, que, provavelmente, era
175
recitado ou cantado na inauguração de um templo (conforme a
narração da dedicação do templo de Jerusalém por Salomão, I
Reís, VIII), ou quando se realizava a entronização periódica de
Baal.
A primeira parte que possuímos fa]; menção dos
preparativos para um grande banquete em honra de Baal; a
seguir sua irmã Anat combate e massacra os guerreiros,
mergulhando os joelhos no sangue e empilhando as cabeças;
terminado o morticinio, Anat recebe uma mensagem de Baal
ordenando-lhe que volte a trabalhos mais pacificos (a virgem
guerreira é, também, deusa da vida e da fecundidade). Baal
convoca a irmã; esta admira-se; não exterminou ela todos os
inimigos do irmão! Não abateu o Principe do Mar, o dragão
Tanin, e Lotan, ..A serpente tortuosa, a besta de sete cabeças/" A
seguir, certamente, Baal pede que a irmã interceda em seu favor;
esta diz a EI: "0 poderoso Baal é nosso rei, nosso juiz, não há
ninguém acima dele, e, contudo, não tem casa como os demals
deuses, não tem corte como os filhos de Atirat". Seduzido ou
ameaçado por Anat, o pai dos deuses aquiesce e manda buscar
no Egito o divino arquiteto Cutar. AtÍrat, a mãe dos deuses,
reconhece a realeza de Baal e pede a EI que lhe construa um
palácio de ouro, de prata e de lápis-Ia];úli, para que Baal mande
chuvas abundatltes. Cutar põe-se a obra e acende as forjas no
palácio em construção; Baal fica inquieto com os planos de
Cutar, pois este quer pôr aberturas no palácio. Baal pensa, então,
no suntuoso banquete que irá oferecer aos deuses e às deusas, e
parte para visitar as cidades do reino. A sua volta, aceita o platlo
de Cutar: uma janela será aberta no palácio. Subitamente o tom
muda. Baal é consagrado, o seu palácio é o de um deus, mas
Mot o ameaça, Mot que mora numa região subterrânea e fétida.
O palácio de Baal parece ser, ao mesmo tempo, a residência
celeste do deus e; o seu reflexo terrestre, o templo de Baal em
Ugarit.
176
BAAL E MOT
Mot intima Baal a descer para a sua goela, ávida para o
devorar.Ele estende os lábios até os céus, sua língua até as
estrelas. Baal não oferece resistência e se declara escravo de
Mot. Antes de se entregar ao adversário, Baal se une a uma
novilha, que não pode ser outra senão Anat, e gera um filho.
Anunciam a El a morte de Baal, "O Príncipe da Terra", e o pai
dos deuses veste luto; Anat chora e fere o peito com punhadas.
Entretanto Atirat procura fazer com que Astar ocupe o trono de
Baal, mas não tem êxito. Anat parte em busca do irmão, acom-
panhada da deusa solar Sapash, que conhece todos os recantos
do universo; encontram Mot: "ela o ceifa, o joeira, o gradeia,
dispersa suas carnes pelos campos e as aves as devoram". EI,
graças a um sonho premonitório, sabe que Baal vai ressuscitar;
vê, antecipadamente, "os céus gotejarem óleo, os regatos
correrem como mer'. Ordena a Anat e a Sapash que encontrem
Baal; aS deusas levam o deus morto para as alturas do Tsáfon
onde ele recomeçará o seu reinado glorioso.
Trata-se, evidentemente, dum mito agrário, fundamento de
um ritual de fertilidade. Baal é a personificação da chuva, da
qual a terra necessita para produzir fruto; Mot é o grão, inchado
pela água; quando os aguaceiros passaram, Baal morre, deu sua
substância ao .grão que amadurece. Mas no momento em que o
trono de Baal permanece vazio, no rigor do verão, Anat e a
deusa solar recolhem piedosamente os restos do deus, preparam
a reconstituição das nuvens.

LENDAS REAIS

177
História do rei Queret - O rei Queret perdeu toda sua famí-
lia, mulher e filhos e não tem mais herdeiros. O deus EI, que
éseu pai, assim como Javé é o 1;!ai do rei de Israel ("Disse-me o
Senhor: Tu és meu filho, eu hoje te ~ereiN, Salmos, II, 7), lhe
ap~rece em sonhos e l!1e orde!la ql.1e ~arta com exército para.
o palS de Udum, onde rema Pabll, CUja filha ele desposará,
Hurila, "Encantadora como Anat, amável como Astarte". Queret
obedece à ordem divina. Chegado ao reino de Pabil, recusa
todos os presentes, pedindo somente a mão da filha do rei em
casamento. Na assembleia dos deuses, Baal intercede para que
EI abençoe Queret. A bênção é concedida: Queret terá sete, oito
filhos, dos quais um será amamentado pelas deusas Anat e
Astarte. O reino de Queret prospera; ele oferece banquetes aos
nobres do pais.
Há uma lacuna no texto. Este recomeça mostrando Queret
enfermo, cercado dos filhos. "Pai, morrerás como os homens? os
deuses morrem?" pergunta um dos filhos. Entretanto, todo o
reino de Queret já o chora. Depois de um conselho dos deuses,
El pergunta que poderá curar Queret; este é realmente curado e
amaldiçoa o filho que quis aproveitar da sua fraqueza para
reinar.
Histórta do sábio Danel - DaneI vem citado no livro de
Ezequiel: "Ainda que houvesse nesse país Noé, DaneI e J Ó,
esses três homens não salvariam senão a si próprios, devido à
sua justiça, oráculo do Senhor Javé. .." (XIV, 14). "Sem dúvida,
eis-te mais sábio que DaneI, nenhum mistério te é obscuro"
(XXVIII, 3). DaneI não só era justo e sábio, mas, igualmente,
um rei privado de descendência. Ele não tem filhos para o
auxiliarem no culto e combaterem com vigor os inimigos. Baal
~piada-se de DaneI e intercede por ele junto ao deus El; nasce,
então, a DaneI um filho que há nome Acat. Um dia, DaneI,
sentado à sua porta para "julgar a causa da viúva e do órfão", vê
chegar o deus Cutar. DaneI dá-lhe de comer e beber, bem como
178
Abraão no vale de carvalhos de Mambré, quando viu três
homens diante da sua tenda (Gên., XVIII, 1-8). Cutar dá-lhe um
arco e flechas, que Danel confia ao filho Acat e manda-o à caça.
Durante a caçada, Acat encontra a deusa Anat, a qual logo
cobiça o arco de Acat; para tê-lo, oferece-lhe ouro, prata e, por
fim, a imortalidade; mas o jovem não consente em se desfazer
do arco e das flechas; discretamente zomba da caçadora: bem
sabe ele que a morte é o destino dos homens, somente os deuses
são imortais. Anat, despeitada, vai queixar-se a El e prepara a
vingança. Ajudada de um certo Iatpan, Anat, voando entre as
águias, acima de Acat, quebra-lhe a cabeça. DaneI, advertido da
morte do filho, dá curso às lágrimas e maldiz a Terra por sete
anos. Muitos pormenores do poema permanecem obscuros.
Parece que Acat tinha uma irmã, e esta resolve castigar Iatpan; é
plausível, também que Anàt pretendesse ressuscitar o .jovem
Acat; os ritos cumpridos por DaneI dão a impressão de que ele
almeja o mesmo objectivo: ressuscitar o filho.

MITOLOGIAS HURRITA E HITITA

A REGIÃO
De cada lado da Mesopotâmia, planície fértil situada entre
o Tigre e o Eufrates, erguem-se dois maciços montanhosos; um,
a Este, é o platô do Irã, bordado de cadeias com verdadeiros de-
graus; o segundo, a oeste, é o platô da Asia Menor, com 1 000 a
1 300 m de altitude, separado pelo Tauro e pelo Amano da Alta
Síria, prolongamento natural da Mesopotâmia em direcção do
norte-oeste. É região áspera, inóspita, açoitada por ventos
furiosos e castigada com grandes frios, praticamente isolada da
costa, ao norte e ao sul, por montanhas abruptas. Essas duas
regiões, a Anatólia e a Alta Síria, foram o domínio dos hititas e
179
dos hur. ritas, dos quais faziam parte os mitanianos, habitantes
do Mitâni. Ainda que hurritas e hititas, em épocas precedentes
ao período histórico, tenham sido verdadeiros parentes, contudo,
sempre se encontraram em competição, quando a luta pela
sobrevivência os levou a combater perpetuamente na Alta Síria,
o país de Canaã, que compreendia a Fenícia e a Palestina e se
estendia como um corredor entre a Asla e o Egipto. Os
habitantes dessa região eram misturados, bem como os
mesopotâmios; assiânicos, semitas e indo-europeus.
Durante muito tempo os hititas foram chamados heteus,
por causa do nome que tinham na tradução grega da Bíblia, feita
pelos Setenta: Chettaios, que na Vulgata passou para Hethaeus;
o nome hitita também deriva da Bíblia: Hittin. Mas os assírios
conheceram esse povo sob o nome de Hatti e os egípcios, de Ht',
porque não escreviam as vogais (cf. Gên., XXIII, 3-20; XXV, 9;
XLIX, 29-32; Exodo, 111, 8-9, XIII, 5; XXIII, 23; XXXIII, 2;
XXXIV, 11; Juízes, 111, 5; I Reis, IX, 20-21; XI, 1; Josué,
III, 10; IX, 1; XI, 3; XII, 8; XXIV, u; Números, XIII, 30; I
Samuel, XXVI, 6; 11 Samuel, XI, 3; XXIII, 39).
A língua hitita é de origem indo-europeia, mesclada com
elementos acadianos.
Os hurritas apareceram muito cedo no horizonte histórico
da Mesopotâmia, antes de 2300 a.C. Nessa época já estavam
instalados a Este do Tigre; já constituíam importante factor
político no tempo do rei de Agade, Naram-Sin (2270-2223);
ignoramos, porém, toda a sua história ou quase toda; no século
XV, uma dinastia ariana congrega os pequenos estados hurritas
num vasto império, que se estende do Tigre ao Mediterrâneo. Os
hurritas foram os intermediários entre os babilónios e os hititas;
estes jamais tiveram contactos directos com Babilónia. Nas
campanhas dirigi das contra os Estados hurritas politicamente
organizados, os hititas levaram, segundo nos referem os textos

180
analíticos do rei hitita Hatusil I (1650-1620), prisioneiros entre
os quais sacerdotes e vasta presa composta de estátuas roubadas
aos templos. Este episódio parece marcar o início da influência
religiosa hurrita sobre os hititas. Depois o grande centro hurrita
da Cilícia, o Kizzuwatna, entrará na órbita da influência hitita,
na época de Supiluliuma (por volta de 1350), e a civilização
hitita mescla-se profundamente com traços característicos da
sociedade hurrita, principalmente nos domínios religioso e
social.
Durante esses séculos, enquanto elaboram sua consciência
política, os hurritas estão em contacto imediato com a Mesopo-
tâmia, para eles fonte de toda civilização.
O século XIII assiste, destarte, à elaboração de um sincre-
tismo religioso que tentava ordenar as diversas divindades do
Oriente Próximo antigo, da Mesopotâmia ao Mediterrâneo,
numa só e única teologia, onde divindades hurritas, sumerianas e
cananéias teriam seu lugar.
Considerável número de textos hurritas foram encontrados
no Oriente Próximo, na região do Tigre e do Eufrates, no
Mediterrâneo. A maioria desses documentos, constituídos de
textos religiosos e mágicos, provém dos arquivos reais dos reis
hititas de Hatusas (hoje Boghaz-Koy, na Turquia). Esses textos,
escritos em língua muito imperfeitamente conhecida, do tipo
chamado "aglutinante", e que não se liga nem às línguas indo-
europeias nem às línguas semitas, são de difícil interpretação;
mas, felizmente, inúmeros textos hurritas foram traduzidos para
o hitita, hoje língua perfeitamente conhecida; daí o
conhecimento que temos de alguns mitos hurritas. Explica-se,
assim, também, porque no título do presente trabalho pus
primeiro o adjectivo "hurrita".

181
A RELIGIÃO
Quando se estuda a religião hitita, à luz dos textos de
Boghaz - Keui (ou Koy), percebemos que a expressão "os mil
deuses do país de Hati", que os escribas usam com frequência,
não é mera hipérbole. A confusão do panteão hitita é
inextricável.
A alta antiguidade não fazia distinção entre um país e seus
deuses; quando um reino era anexado, os deuses do país vencido
se integravam no panteão do vencedor. A origem desse modo de
proceder era um sentimento complexo: conciliar as forças
estrangeiras dos deuses alienígenas, não enfrentar a sua cólera e
o desejo de captar, para seu proveito, as potências emanadas das
divindades estrangeiras.
Desde a época de Eannadu, que reinou em Lagash nos pri-
meiros séculos do III milenário, o norte da Mesopotâmia era
conhecido sob o nome de Subaru; essa região engloba os futuros
territórios da Assíria e do Mitâni, isto é, a região situada entre o
Zagros e o Eufrates.
No panteão hitita-hurrita, os primeiros deuses que
aparecem são mitanianos; seguem-se as divindades arianas e por
último os deuses dos países vizinhos.
Os deuses mitanianos propriamente ditos são Tesup e sua
companheira Hepa (Hebe ou Hepit); os arianos são: Nltra, Va-
rona, Indra, Os Nasatia; os deuses dos países vizinhos são:
Assur, Zababa, lsara (variedade da Istar babilônica), Anu,
Antum, Enlil, Ninlil, Sin, Sarnas, Istar, Ea, Danquina, Nergal e
Ninegal.
Os deuses proto-hititas são representados por Catisapi,
Vasezel, Tetesapi, Irbitiga, Santa, Tarunza, Suwasuna, Vandu
Iasala.
Além dessas divindades, os hititas e hurritas cultuavam

182
com grande empenho o Grande Deus e a Granqe Deusa.
Vejamos o que nos dizem os textos sobre algumas dessas
divindades.
Tesup e Hepa: Tesup é um deus elementar, deus dos
cumes, do raio e da tempestade; secundariamente, da chuva
generos,a e da fertilidade; compara-se ao deus Adad, com o qual
tem multas afinidades. Hepa é sua companheira, deusa da
fertilidade e da fecundidade, como Istar; com Tesup ela forma o
par divino por excelência.
Isara, espécie de Istar, era representada pelo escorpião;
nela os mitanianos viam a "Senhora do Juramento".
Anu era deus da Babilônia e de Sumer, divindade do céu.
Enlil, também deus babilónio, era o deus da terra.
Sin, deus-lua, também babilônio, era o senhor do
juramento. Sarnas, lstar, deusa da fecundidade e da fertilidade e
Ea tinham as mesmas funções e atributos que em BabilÔnia.
Ninegal era divindade do mundo inferior.
Nisaba era a deusa dos cereais, uma espécie de Ccres
hitita.

O MITO DE ASERTU
Asertu (que parece ser a mesma divindade semita do oeste,
Asirtu), quis seduzir o Grande Deus (isto é, Tesup); este repele
as solicitações amorosas da deusa.' Asertu, então, atribui ao
Grande Deus a tentativa de querer violentá-la. O Grande Deus
vai em busca do marido da deusa e lhe expõe a verdade. Esse
mito seria de escasso interesse se não fosse a reprodução da
história de José, no Egito, e da mulher de Putifar (Gên., XXXIX,
1-20) e não lembrasse o famoso conto egípcio "Os dois irmãos",

183
O MITO DA GRANDE SERPENTE
A serpente Iluianca, através de peripécias pouco
inteligíveis, entra em luta com o Grande Deus, inimigos que
eram há muito tempo. Depois que a serpente Iluianca o atacou, o
deus queixa-se amargamente e quer que a castiguem. Então o
deus Inara prepara uma grande festa e enche bilhas e bilhas com
diversas bebidas; enfeita-se e convida a Grande Serpente a sair
da sua cova e vir comer e beber; e a serpente Iluianca veio com
seus filhotes; comeram e beberam, esvaziaram todas as bilhas e
aplacaram a vontade de beber; de sorte que não puderam mais
entrar na cova. Então aproveitaram a ocasião e amarraram a
Grande Serpente; o Grande Deus, auxiliado de outras
divindades, a exterminou. Esse mito parece ser uma réplica da
história de Tiamat, o Caos (um dragão) e da Grande Serpente
que o deus Asar vigiava, na literatura babilónica.

O MITO DE TELEPINO
O mito de Telepino lembra eloquentemente o de Tamuz e
as consequências, funestas para os homens, da descida de Istar
aos infernos.
Telepino (deus da vegetação) havia desaparecido e toda a
terra periclitava; no fogão morriam as chamas, nos santuários os
deuses, nos estábulos os cordeiros, nos campos os bois e vacas.
A ovelha não procurava mais o macho, a vaca não buscava o
touro. As árvores perdiam as folhas, os grãos não germinavam.
Secavam-se os prados, as fontes não corriam. Reinava a fome no
país; homens e deuses morriam por falta de alimento. O Grande
deus Sol deu uma festa e para ela convidou todos os outros
deuses; comeram, mas não puderam aplacar a fome; beberam,
mas continuaram sequiosos (parece que se deve compreender
que tanto o alimento como a bebida perderam suas qualidades
próprias). Então o Grande deus disse ao filho: "Telepino não
184
está mais na terra; irritou-se e conduziu tudo com ele. E os
grandes e os pequenos deuses gritam que é preciso ir procurá-
lo". O deus-Sol mandou a águia como mensageira rápida:
"Vai e perscruta as altas montanhas, os vales, os
desfiladeiros; procura; investiga o abismo das águas". A águia
partiu mas não encontrou nada; voltou e referiu isto ao deus-Sol:
"Não encontrei Telepino, o deus todo-poderoso". O Grande deus
disse à Daína dos deuses: "Que devemos fazer? Morreremos de
fome". A Dama dos deuses lhe disse: "Faze antes isto. Vai tu
mesmo e procura Telepino". Ele foi à cidade, bateu à porta, mas
Telepino não estava em casa. Então quebra a tranca e a casa.
Voltou sem o encontrar. Após uma s~gunda exploração, tão
infrutífera quanto a primeira, a Abelha sai em busca de
Telepino. A Dama dos deuses diz à Abelha: "Vai e procura
Telepino e quando o tiveres encontrado, pica-o nas mãos e nos
pés, para que ele se erga. Lava-o, em seguida, enxuga-o, torna-o
puro e traze-o aqui". Telepino foi encontrado, voltou, e tudo
retoma seu curso normal.
Há, no poema, evidente imitação do poema babilônico,
quando a desolação se espalha por sobre a terra com a descida
de Istar aos infernos.

185
MITOLOGIA CELTA

É quase impossível expor em linhas gerais a complexa mitologia


celta; inicialmente, é difícil fixar, no tempo e no espaço, o limite
exacto do domínio celta; os celtas foram antes uma raça que um
povo. Seu nome aparece pela primeira vez na obra de Hecateu
de Mileto (Geografia, escrita por volta do século V a.C.).
Etnologicamente, a Alemanha seria o centro do habitar primitivo
dos celtas. Mais ou menos no século IX a.C. invadiram a Gália,
em vagas sucessivas, que só terminariam no século II; no século
VI estabeleceram-se na península ibérica; por volta do século
IV, invadiram a Itália e se apoderaram de Roma (batalha de
Alia, 390 a.C.). Os celtas continentais se estenderam pela
Hungria até a Grécia e a Ásia Menor.
Jamais os celtas constituíram uma nação unida, coesa,
homogénea; formavam tribos separadas, turbulentas, ciosas de
sua liberdade, que se hostilizavam mutuamente.
Um segundo grupo de celtas, os insulares, ocuparam os países
do Norte, Grã-Bretanha e Irlanda. Os últimos bandos de celtas,
no século I da nossa era, passaram do Norte da Gália para a ilha
da Bretanha, com o nome de Belgas.
Pouco se sabe da mitologia celta. A mitologia chamada celta-
latina, ou galo-romana, ou galo-latina, que é a mitologia celta
que chegou até nossos dias através dos escritos latinos (César,
Tácito, Lucano etc.), traz, é evidente, os nomes e os atributos
dos deuses à moda latina; sempre que isto ocorrer
expressamente faremos menção, para que o leitor pouco
familiarizado com a mitologia não julgue que o celtas adoravam
um deus chamado Apolo ou Júpiter, por exemplo.

186
A LÍNGUA
Os celtas falavam uma língua pertencente à enorme árvore
indo-europeia; infelizmente, é hoje extinta, Nada, ou quase nada
sabemos dessa língua que, em dado momento, esteve espalhada
por quase toda a Europa. Dela nos restam pouquíssimos vestí-
gios. Os celtas fundiram-se de tal modo com oS romanos, que as
inscrições que até nós chegaram, trazem os nomes dos principais
deuses celtas junto com nomes romanos, aos quais foram
associados ou com os quais foram identificados:
Deo Mercurio Atusmeiro. Marti Latobio.
Marti Toutati. Marti Latobio Harmogio Toutati Sin-ati
Mogenio...
Não sabemos, exactamente, qual era a denominação
original desses deuses nem quais as suas precípuas funções; os
romanos, ao deles ter conhecimento, imediatamente os
identificaram com as divindades romanas, dando-lhes o mesmo
carácter, atributos e funções.
Encontram-se, hodiernamente, vestígios da língua celta no
baixo-bretão e no idioma gaélico, falado no país de Gales e na
Irlanda.
Quase todos os dados mitológicos que possuímos são
assaz recentes; do rico acervo original dos celtas, quando estes
invadiram a Europa central (1500-1600 a.C.), quase nada
sabemos; ignoramos mesmo se os mitos já estavam formados ou
se já tinham elaborado uma cosmogonia.

(Guinevere em francês, Genevra em português), era filha


do gigante Ogyrvan, protetor e iniciador do bardismo; nos textos
primitivos era irmã de Artur, antes de ser sua mulher.
Os dois filhos (ou sobrinhos?), Gwalchmai e Medrawt, um
bom e o outro mau, correspondem a duas divindades, da Luz
187
(Ueu) e das Trevas (Dylan). Gwalchmai ("Falcão de Maio"), é
Sir Gauvain e Medrawt, Sir Modrer. Um terceiro irmão, Gwal-
chaved ("Falcão do Verão"), tomar-se-á Galahad. Brandegore
ésem dúvida "Brân de Gwales", reminiscência do Brân cristia-
nizado que levou o Graal para a Bretanha.
Tão importante como o rei é o poderoso mágico Myrddin,
que se tornou Merlin, detentor de todo poder, possuidor de todas
as riquezas e senhor do País das Fadas. Uther Pendragon, ou
Urien, pode muito bem ser Uthr Ben, a "Cabeça Maravilhosa de
Brân", que viveu 87 anos depois de ter sido separada do tronco.
Balan, enfim, seria Balin, o deus galo-britânico Belinus.
O ciclo mítico do Rei Marc'h (Mark) e da Rainha Essylt
(Isolda, em francês Yseillt) e do seu sobrinho Drystan (Tristão),
se prende, igualmente, à "matéria do Rei Artur". Multidão de
personagens secundárias perdem a sua individualidade para se
fundirem na imensa turba anónima dos korred (anões), korriga-
nes (fadas) e morganas (demônios fêmeas das águas) do folclore
bretão da península armórica.
Mesmo o elemento mais cristão da lenda medieval do Rei
Artur, a conquista do santo Graal, tem o seu fundamento
na mitologia celta; trata-se da caldeirinha-talismã, provida de
virtudes maravilhosas, que os deuses se afadigavam em roubar
uns dos outros. O velho poema gaulês do Livre de Taliessin, "o
Saco de Annwfn", relata como Artur se apoderou da caldeirinha
mágica, mas, quanto à expedição, só retomaram sete, ainda que
no momento do embarque, houvesse "três vezes ou mais para
encher seu navio". A caldeirinha pagã mudou muito pouco para
se tornar o santo Graal que José de Arimateia encheu com o
sangue sagrado de Jesus Cristo.
ARVORES (CULTO DAS) - As árvores eram objecto de
fervoroso culto por parte dos celtas; tinham veneração especial
pelo carvalho; as árvores sagradas eram guardadas por fadas.
188
Lemovices, Eburovices (povos da Gália) significam "guerreiros
colocados sob a protecção do olmeiro (irlandês ibor)"; Mac
Cuill, "filho da aveleira" é nome de um rei lendário da Irlanda e
dum irlandês convertido por São Patrícia; Mac Dara é "filho do
carvalho"; Mac Culinn, "filho do azevinho"; Der Draigin, "filha
da acácia"; Der Froich, "filha da urze"; Elogan, "rebento do
teixo"...
Como se vê, a dendrolatria céltica assumia carácter
eminentemente prático: as árvores sagradas eram protectoras do
povo.

Dicionário da Mitologia Celta

A
ABNOBA -Deusa da Floresta Negra (Forêt-Noire,
Schwarzwald).
AIFF~ -V. Cuchulainn.
AMAETHON -Filho de Dôn; presidia a Agricultura.
AMERGIN -Druida. ""- V. Cessair.
ANDARTA -Deusa guerreira.
ANDRASTA -Deusa guerreira. Aparece com a rainha Bu-
dica. Tinha um esposo que foi identificado com Marte (deus da
guerra) romano.
ARDUINA -Deusa de Ardennes. Foi identificada pelos
romanos com Diana, a Artemis grega. ARIANROD -Filha única
de Dôn, divindade tutelar da constelação Corona borealis
("Coroa boreal"), que os gauleses chamavam Caer Arianrod
("'Castelo de Arianrod"). ARTIO -:- Deusa adorada pelos
helvécios das cercanias de
189
Berna. A palavra artio significa "urso". ARTUR -Quase
todas as personagens, deuses e heróis, da mitologia céltica, e
mais particularmente gaulesa (os gauleses eram c.eltas), se
encontram fortemente evemerizadas nos romances do ciclo
medieval de Artur, que constitui a massa principal da "matéria
da Bretanha". A Historia Regtlm Britanniae ("História dos Reis
da Bretanha"), de Geoffroi de Monmouth foi concluída por volta
de 1136; as lendas heróicas da "Bretanha a Grande" se
constituíram em romances arturianos nos séculos XII e XIII; em
1470 Sir Thomas Malory compôs a "':forte de Artur, traduzido
ou inspirado em fontes francesas. .0 Ltvro Vermelho de Hergest
(Livre rouge d'Hergest), manus.cnto do século XIV, contém,
também, algumas façanhas do ReI Artur..
Artur é semideus, semi-rei, cujo protótipo, tálvez, tenha
VIvido por volta do século V ou VI. Sua mulher, Gwenhwyar

B
BALOR -Gigante irlandês de "mau olho"; tinha as pálpe-
bras caídas sobre os olhos e era mister um forcado para erguê-
las; seu congênere gaulês chamava-se Yspaddaden.
BANBA -V. Cessa ir.
BARR-FIND -o mesmo deus Manannân, rei da ilha de
Man,
onde ainda se vê seu tÚInulo gigantesco, nas imediações
do castelo de Peel; parece que tinha três pernas; Barr-Find é
nome irlandês: "Cabeça Branca"; transformou-se no piloto Barin
do Rei Artur; na hagiografia cristã tornou-se São Barri,
padroeiro dos pescadores irlandeses, em particular dos de Man.
Barr-Find era filho do deus Uyr, no início, provavelmente
considerado deus do Mar, das Vagas ou das Tempestades.
BELENOS -"O Brilhante': ou "Aquele Que Reluz", divin-
190
dade que pelos romanos foi identificada com o ApoIo latino; os
autores chamam Belenos o "ApoIo gaulês".
BELISAMA -"Semelhante à Chama", espécie de deusa
Vestal, padroeira das indústrias que dependiam do fogo.
BIL~ -V. Cessa ir.
BORMANO -"Aquele Que Borbulha", deus das fontes ter
mais. -V. Bormo e Borvo.
BORMO -V. Bormano.
BORVO -V. Bormo.
BRESS -V. Cessair.
BRrGIDA -V. Cessair.
BRIGIT -Irmã do deus Oengus, o Cupido irlandês, divin-
da,de .do _Amor. Brigit é uma deusa tríplice, a menos que haja
tres lrmas com o mesmo nome. ~ venerada ao mesmo tempo
pelos poetas (que inspira), pelos ferreiros (que ela enriquece) e
pelos médicos (os quais ela assiste, pois preside os partos).
Enquanto deusa das estações do ano, seu culto se celebrava no
primeiro dia de fevereiro, dia do Imbolc, grande festa de purifi-
cação. Cristianizada, Brigit tornou-se Santa Brígida, padroeira
da cidade de Kildare. V. Brígida no verbete Cessair.
BRON -O deus marítimo Llyr tinha dois filhos: Bron ou
Brân (Bron é irlandês e Brân é gaulês) e Manannân ou Manawy-
dano O irlandês Bron mac Llyr é figura apagada; mas Brân ab
Llyr da Grã-Bretanha é temível herói. Era um enorme gigante
que nenhum palácio ou nenhum navio podia abrigar; atravessou
a vau o mar da Irlanda para combater e destruir um rei e seu
exército; estendido através de um rio, seu corpo gigantesco ser-
viu de ponte para o exército passar. Possuía uma caldeirinha
mágica com a qual ressuscitava os mortos. Harpista e músico,
era o protetor dos lili e dos bardos. Rei das regiões infernais,
lutou para defender os tesouros mágicos que o filho de Dôn
191
queria J;'oubar. Ferido por uma flecha envenenada, ordenou que
lhe cortassem a cabeça, a fim de abreviar seus padecimentos; e
esta cabeça decepada continuava a conversar e a dar ordens
durante 87 anos, que tantos foram necessários para levar o corpo
à sepultura, uma colina de Londres, talvez a moderna Tower
Hill. A cabeça cortada de Brân, voltada para o Sul, prevenia a
ilha de toda e qualquer invasão; o Rei Artur cometeu a
imprudência de exumá-la, tornando possível, destarte, a
conquista saxônia.
Há um outro Brân (ou Bron), viajante intrépido, que nave-
gou até às regiões do Além; é o navegador das regiões
misteriosas; sob o nome de São Brandão (Saint Brandan) este
deus canonizado é a piedosa personagem que difundiu o
cristianismo na Grã-Bretanha.

CAIRBR~ -V. Cessair. CALLATIN -V. Cuchulainn.


CARVALHO -Venerado por toda a Gália, o carvalho pôde
ser considerado por alguns cronistas como o deus supremo dos
*auleses; assegura-nos Plinio o Antigo (Hist. Nat., XVI, 249)
que 'é nos bosques de carvalhos que os druidas têm os seus
santuários"; não celebravam nenhum rito sagrado sem as folhas
ou ramos dos carvalhos; criam que a presença do visgo revelava
a do deus sobre a árvore no qual se encontrava; colhiam esse
visgo com solenes cerimônias; depois de terem sacrificado dois
touros brancos, um sacerdote, revestido de manto branco,
trepava na árvore e cortava o visgo com uma foice de ouro o
qual era recolhido em um pano ou tecido de cor alvinitente.
Ainda hoje os franceses consideram o carvalho como árvore que
traz felicidade. -V. Arvores (culto das)

192
CESSAIR -Depois do grande dilúvio universal, a ilha que
se tornaria a Irlanda foi invadida pela rainha-mágica-feiticeira
Cessair, acompanhada de numeroso séquito; parece que essa
feiticeira é uma reencarnação da Circe de Homero. Mas Cessair
pereceu com toda a sua raça. Por volta de 2640 a.C. o Príncipe
Partholon, vindo da Grécia, desembarcou na Irlanda com 24
casais; ao cabo de 300 anos eram 5000; mas uma misteriosa
epidemia matou a todos no curso das festas que se realizavam
em honra de Beltine; a sepultura colectiva desse povo é a colina
de Tallaght, perto de Dublim. Entretanto, por volta de 2600, a
raça dos "Filhos de Nemed" (cujo nome significa "sagrado"),
originária da Cítia, pusera pé na ilha, então deserta; outro grupo
de invasores nela desembarcou em 2400, no dia de Lugnasad
(primeiro de agosto), o terceiro grande dia festivo do ano celta.
Os Fir Bolg ("Homens belgas"?) constituíam o elemento
principal dessa invasão, aos quais se misturavam diversas tribos,
Gaileóin (gauleses?), Fir Dommann (os Dummonni da Grã-
Bretanha?) e outros mais; finalmente, vindos das Ilhas do Oeste,
onde estudavam a Magia, chegaram os membros da Tuatha Dê
Danann, que eram de raça divina; trouxeram seus talismãs: a
espada de Nuada, a lança de Lug, a caldeirinha de Dagda e a
"pedra d,? Dest~no" de Fâl, que gritava quando se sentava sobre
ela o reI legítImo da Irlanda. Todos esses invasores foram
obrigados a lutar com os Gigantes monstruosos que habitavam o
pais; uns tinham somente um olho e uma mão, outros eram
providos de cabeça de animal, comumente de cabra; esses
monstros eram os Fomóiré (de lo, "sob" e moiré ou mahr,
"demónio fêmea"). Os Tuatha Dê ~anann e os Fir Bolg
começaram, então, uma terrível guerra, cuJos combates vêm
relatados num manuscrito do século XV. Os Tuatha Dê Danann
vencem; no curso da batalha, seu rei, Nuada, perde a mão
direita; essa mutilação acarreta sua queda do trono; o hábil
curador Diancecht a substitui por uma mão de prata articulada;

193
constrangido a abdicar, Nuada "com mão de prata" é substituído
por Bress ("Belo"), filho de Elatha (O Saber), rei dos Fumóiré, e
da Dé Danann Eriu; Bress desposa Brígida, filha de Dagda, e os
dois povos inimigos se aliam; Cian, filho de Diancecht, desposa
Ethniu, filha de Balor.Mas Bres (ou
Bress) é um odioso tirano e sobrecarrega seUs súditos
/com pesados impostos e taxas; zomba de Cairbré, filho de
Ogma, o maior filé (bardo) dos Dê Danann; e o insolente Bress é
obrigado a abdicar por um prazo de sete anos; então Nuada
assume o poder e o trono, pois sua mão decepada foi
milagrosamente reposta no lugar graças às encantações de
Miach, outro filho de Diancecht; esse feito valeu a morte ao
bom Miach, cujo pai, invejoso, não podia admitir um
competidor na arte de curar.
Bress, entretanto, reúne-se com seu conselho numa
morada submarina. Persuade os Fomóiré a que o ajudem a
expulsar da Irlanda os Dê Danann; os preparativos da guerra
duram sete anos, período durante o qual cresce o famoso Lug, o
menino prodigioso, "senhor de todas as artes", nascido de Cian e
de Ethniu; Lug organiza a resistência dos Dê Danann, enquanto
Goibniu lhe forja as armas e Diancecht faz jorrar uma fonte
maravilhosa que cura as feridas e reanima os guerreiros mortos;
mas alguns espiões dos Fomóiré a descobrem e a tornam
ineficaz lançando-lhe pedras malditas. Após algumas pequenas
batalhas e duelos trava-se a luta decisiva, na Moytura do Norte,
planicie de Carrowmore, perto de Sligo (os alinhamentos de
Sligo, juntamente com os de Carnac, são os mais imponentes
grupos de pedras ergui das que existe), onde morrem inúmeras
personagens de ambos os partidos: Indech, filho da deusa
Domnu, é morto por Ogma, que por sua vez também cai
moribundo; Balor "de mau olho" fere Nuada com seu olhar fatal;
mas Lug, com a sua funda mágica fura os olhos de Balor;
dizimados e desmoralizados, os horrendos Fomóiré recuam e
194
são expulsos até o mar; Bress é feito prisioneiro e a hegemonia
dos gigantes foi quebrada para sempre.
O poder dos Dê Danann, contudo, conheceu rápido
declfnio. Duas divindades do Império dos Mortos, Ith. e Bilé,
desembarcaram na embocadura do Kenmare e começaram a
intervir nos conselhos políticos dos vencedores. Mil, filho de
Bilé, vai ao encontro do pai que já se acha na Irlanda; com ele
vão seus oito filhos e o seu séquito; como os invasores
precedentes, também estes desembarcam num primeiro de maio.
Na direção de Tara encontram sucessivamente três deusas
epônimas: Banba, Fodla e Eriu. Cada uma delas pede ao druida
Amergin, conselheiro-adivinho de Mil, que dê seus nomes à
ilha; esta, então, fica sendo chamada Erinn (genitivo de Eriu),
porque Edu fez seu pedido em terceiro lugar; depois de novos e
sangrentos combate's, no último dos quais intervém Manannân,
filho de UY,r ("O Oceano"), os reis Tuatha são mortos pelos
filhos sobrevIventes de Mil. Conclui-se um pacto de paz; os
Tuatha cedem .a "verde Erin"( Erinn) e se retiram do país para o
Além, não eXIgindo mais que um sacrifício celebrado
anualmente em sua lembrança.
CIAN - V. Cessair.
CONCHOBAR - Conahar; pronuncia-se Conor. -V.
Cuchulainn.
CONLACH - V. Cuchulainn.
CORMAC - V. Fionn.
CUCHULAINN - As aventuras de Cuchulainn (pronuncia-
se Cu-hu-lim) constituem a epopéia central do ciclo heróico de
Ulster; são contemporâneas dos inícios do cristianismo; de feito,
a tradição refere que no ano 30 a.C. surgiu o jovem Rei
Conchobar mac Nessa e que em 33 da nossa era morreu; e toda a
breve carreira do famoso Cuchulainn se desenrola sob o reinado
deste soberano.
195
Cuchulainn, ao nascer, chamava-se Setanta; era filho de
Dechtiré, irmã do Rei Conchobar, casada com o profeta Sualtan;
mas seu pai verdadeiro era o deus Lug "de .longos braços", mito
solar dos Tuatha Dê Danann; criado entre os demais filhos dos
vassalos e guerreiros do rei, valentes campeões do Ramo
Vermelho de Ulster (provavelmente nome de uma milícia ou
ordem primitiva de cavalaria), Setanta, com a idade de sete anos
matou o terrível cão de guarda de Culann, chefe dos ferreiros de
Ulster; daí lhe adveio o nome de Cuchulainn, "Cão de Culann";
o menino possuía força monstruosa; quando se deixava dominar
pela cólera, irradiava intenso calor e suas feições ficavam
transtornadas e pavorosas; logo depois massacrou três gigantes,
guerreiros mágicos, que tinham desafiado os nobres do Ramo
Vermelho; finalmente mandam-no para junto da feiticeira
Scâthach, "Rainha das Trevas", epônima da ilha Skye, onde
deverá concluir sua educação; a feiticeira reside em Albu, na
Escócia e ensina a Cuchulainn toda a sua ciência mágica; o
discípulo, reconhecido, antes de partir resolve destruir a
Amazona Aiffé, mortal inimiga de Scâthach; não só a derrota
mas também a deixa grávida, e volta para Ulster rico de
sortilégios e munido de armas prodigiosas. Pouco tempo depois
o jovem se apaixona pela formosa Emer (pronuncia-se Avair),
filha de Forgall Manach, mágico poderoso e solerte; este recusa
dar a mão da filha ao jovem herói; Cuchulainn.. então, rapta-a,
depois de ter matado a guarnição e o pai da loira donzela, a qual
estava presa num castelo mágico. Segue-se longa e fastidiosa
narração de combates e duelos onde se justifica plenamente o
título de "campeão" outorgado ao herói. Suas mais notáveis
façanhas' são aquelas que leva a cabo no curso da gaziva dos
bois de Cooley (Táin bo Cuailngé), a sangrenta história da longa
guerra que os quatro reinos da .Irlanda desencadearam contra
Ulster, à instigação da temível rainha de Connaught, a pérfida
Medb (pronuncia-se Méve), que aparece como "rainha Mab" em

196
Shakespeare; o objeto dessa guerra é a posse de um animal
mágico, o Touro castanho-escuro de Cooley. Ora, Medb teve o
cuidado de travar a guerra numa época em que os Ulates
(habitantes de Ulster) estavam paralisados por uma estranha
fraqueza periódica que os tornava incapazes de guerrear ou
mesmo de se movimentarem; esta misteriosa doença lhes havia
sido infligida como castigo pela deusa Macha, da qual, certa
feita, haviam zombado. Então, quando o reino de Ulster parecia
estar prestes a cair sob os golpes do inimigo, Cuchulainn, que,
em razão da sua origem divina, escapara à maldição comum,
parte sozinho para enfrentar a horda inimiga; há inúmeras lutas e
combates singulares; Lug, verdadeiro pai de Cuchulainn, todas
as noites, por meio de ervas mágicas e de bebidas misteriosas,
cura as feridas do filho; Morrigan, deusa da guerra, auxilia-o e o
aconselha, salvando-o mais de uma vez; por fim oferece-lhe seu
amor e daí provém o ódio impotente que terá contra o herói até o
fim deste.
Mais tarde, num barco mágico, dirige-se para Mag Mell
("A Planície da Alegria"), onde se apaixona pela deusa Fand,
esposa abandonada de Manannân mac Llyr, que se entrega ao
herói; Cuchulainn retoma para Ulster, e Fand, ao cabo de um
ano, fiel ao prometido, apresenta-se na margem para que ele a
possua; mas ambos são surpreendidos por Emer; os lamentos da
jovem comovem a deusa que abandona o herói à sua esposa e
volta para junto do marido que a viera buscar.
Pouco mais tarde, sem saber quem era, Cuchulainn mata
seu filhc\, o jovem Conlach, que ele tivera com a Amazona-
feiticeira Aiffé.
Por fim, a odiosa rainha Medb consegue seu intento: matar
o herói. Três feiticeiras, filhas de Callatin, que tinham no
Oriente aprendido todas as ciências maléficas, revestem-se da
forma de corvos e arrastam o jovem para a planície de
Muirthemné, onde fazem com que ele viole o tabu em lhe
197
oferecendo carne de cão, que não poderia aceitar; tiranl-lhe a
lança mágica e Cuchulainn, afinal, despojado de todos seus
poderes sobrenaturais, amarra-se a um pilar de pedra (menir)
para morrer de pé; recebe a homenagem do seu cavalo negro e
exala o derradeiro alento.

DAGDA -Dagda ou Dagdé, contração de Dagodevos, "o


Deus Eficaz", é o nome pelo qual era conhecido o deus-chefe
Eochaid Ollathair. Outro nome que lhe davam, Ruad Ro-fhessa,
"Senhor da Ciência Completa", proclama bem alto sua
onipotência; com efeito, Dagda é bom para tudo: dos mágicos é
o primeiro e o mais poderoso, temível guerreiro, habilíssimo
artífice e o mais esperto de todos quantos "possuem a vida e a
morte", Possui uma caldeirinha maravilhosa, na qual se podem
alimentar todos os homens da terra. Chama sucessivamente as
estações do ano tocando a harpa divina. Vestido com uma túnica
curta, traz na cabeça um capuz e na mão uma enorme maça, que
transporta montado sobre rodas; é o senhor da vida e da morte,
dispensadqr da abundância.Parece que seu equivalente gaulês é
Math, o irmão da deusa Dôn.
DANA - A mãe do panteão celta insular é a deusa Dana
(ou Donu), na Irlanda, e Dôn na Grã-Bretanha; é a companheira
de Bilé (em irlandês) ou Béli (em bretão), que parece
corresponder ao Dis pater dos romanos, do qual, no dizer de
César, pretendiam os gauleses descender. A sua descendência
chama-se Tuatha Dê Danann (tribos da deusa Dana) na literatura
gaélica, ou Filhos de Dôn nos documentos de origem bretã. -V.
Cessair.

198
DECHTIRÊ -V, Cuchulainn.
DÊ DANANN -V. Cessa ir.
DÊ DANANN ERIU -Deusa epônima da Irlanda. Erinn
(Erin em português, "a verde Erin" dos antigos
navegadores) é genitivo de Eriu e nome comum para designar a
Irlanda. DIANCECHT -Deus goidélico da Saúde e da Cura,
espécie .de Esculápio irlandês -V. C essair.
DIARMAID - V. Fionn,
DOM NU - V, Cessair.
DON - V. Duan.
DONU -V. Dana.
DRUIDAS - Havia druidas gauleses e irlandeses.
Comumente se ouve e se lê que os "druidas eram a casta
sacerdotal dos antigos celtas"; se por sacerdotes se designam
pessoas especialmente consagradas, com carácter profissional,
para executarem ritos religioso-culturais, nomeadamente o ato
do sacrifício, em nome da comunidade ou em nome próprio —
os druidas não foram sacerdotes, Se tivessem sido sacerdotes do
antigo culto céltico, encontrá-los-íamos, sem dúvida, ocupando
lugar de destaque entre os celtas da Itália, da Espanha, da
Europa central e da península dos Bálcãs assim como da Asia
Menor; mas, nestas regiões, os druidas parece diferirem
profundamente dos da Gália e da Irlanda. Havia, na Gália, uma
classe denominada gutuatri, palavra que em geral se interpreta
como "os que invocam" ou "os que interpretam vozes", da raiz
gutu, "voz"; é bem possível que os gutuatri exercessem, entre os
celtas, as funções sacerdotais. O termo druida é derivado de
duas raízes, dru, "a fundo" ou "completamente" (advérbio) e vid,
"conhecer"; portanto, druidas seriam "aqueles que têm
conhecimento profundo (ou completo )"; por outras palavras,
eram "mestres" ou "filósofos". Formavam ordem, não casta
199
fechada, Outra etimologia da palavra, mais concorde com a
filologia, afirma que provém do celta deru, "carvalho".
Os druidas se dividiam em três classes: 1) os druidas pro-
priamente ditos, possessores, no início, do supremo poder que
mais tarde cederam aos brenns (daí o nome que os romanos da-
vam ao general celta que invadiu a Itália e conquistou Roma,
Breno), "os chefes" ou "generais dos guerreiros": 2) os eubages,
adivinhos e sacrificadores; e 3) os bardos, que cantavam hinos e
celebravam as façanhas dos heróis. Os druidas criam na imor-
talidade da alma e na metempsicose; cultuavam vários deuses
mas não possuíam templos: reuniam-se nas sombrias florestas; a
sua assembleia geral era perto de Chartres; tinham uma célebre
escola em Dreux; nas grandes calamidades os druidas imolavam
vítimas humanas. O druidismo atribuía misteriosas virtudes a
certas plantas, à verbena, à selagina, ao sâmolo e, de modo espe-
cial, ao agárico ou, melhormente, ao visco ou visgo -;v.
Carvalho — que era cortado, em certos dias, com grandes
cerimónias, sobre velhos carvalhos. Os druidas eram, ao mesmo
tempo, médicos, astrónomos, físicos e conselheiros; toda sua
ciência se continha em versos que não eram escritos mas que
aprendiam de cor. As druidisas, feiticeiras e profetisas, tinham
seu principal santuário na ilha do Sena, sobre a costa de
Finisterra.
As invasões dos romanos.. depois as do bárbaros e o
cristianismo puseram fim à religião dos druidas, os quais se
refugiaram na Armórica (Bretanha) e depois na Irlanda;
desapareceram definitivamente por volta do século VII; as
práticas do druidismo foram condenadas pelo concílio de
Nantes, em 618.
Há uma teoria que afirma ter sido o druidismo, juntamente
com certo número de práticas de magia, ensinado aos celtas
irlandeses pelos pictos, que não seriam de origem céltica. A
teoria da origem não-céltlca do druidismo foi defendida por J.
200
Pokorny (Celtic Review, julho de 1908).
Os monumentos chamados druídicos, dólmen, menir,
cromlech etc., são considerados como bem anteriores à época
gaulesa. DUMIAS -Deus tutelar da montanha de Dôme; mais
tarde tomou-se simples epíteto aplicado ao Mercurius latino
(Mercúrio).

EMER - Emer (pronuncia-se Avair) era esposa de Cuchu-


lainn e filha de Forgall Manach, o mágico. - V. Cuchulainn.
ÉPONA -"A Cavaleira" ou, para usar um termo grego, "A
Amawna ". J?, uma das divindades celtas que melhor
conhecemos e que parece não ter sofrido o sincretismo romano.
J?, representada sempre a cavalo, sentada de lado, como as
amazonas do século passado; na cabeça traz um diadema; ao seu
lado vê-se uma jumenta ou um poldro, que às vezes a deusa
alimenta; seus atributos eram o como da abundância
(cornucópia), uma pátera e frutos. Divindade tutelar, Épona
presidia, também, à fecundidade do solo, fertilizado pelas águas;
desse aspecto surgiu a extravagante teoria de alguns
pseudomitólogos que querem ver em Épona a exacta
contrapartida da fonte Hipocrene, a "fonte cabalina" ou "as
águas cabalinas" de Camões (Soneto, 21), fonte beócia
famosíssima na mitologia grega. Era muito popular na Gália,
segundo atestam as numerosas representações que chegaram até
nós; mais tarde, isto é, depois de César, o culto .de Épona foi
levado para Roma; os romanos perderam o sentido primitivo do
culto de Épona (deusa tutelar e deusa da fertilidade), e ela se
201
tomou apenas a protectora da raça equina; punham sua imagem
nas cavalariças. A divindade gaulesa Rhiannon, ..A Grande
Rainha", tem alguma afinidade com J?,pona; como esta, parece
que foi uma "deusa-égua".
ERIU - V. Cessair.
ESUS - O deus Esus chegou até nós através dos romanos;
o próprio nome já parece ser uma adaptação latina.
Lucano, no seu poema Farsalia refere-se ao "horrível Esus de
ferozes altares" (1,444 e seguintes). Era o deus do Trovão, do
Raio e dasTempestades; equivalia, portanto, a Júpiter. O deus
sanguinário de Lucano, segundo um comentador da Idade
Média, exigia no seu culto vítimas humanas, que eram suspensas
de uma árvore. Em Treves e em Paris encontraram-se
monumentos onde Esus aparece como derrubador de árvores; o
monumento de Paris, de origem galo-romana, apresenta numa
face "O Touro com oS Três Grous", e pa outra o deus lenhador
que corta os ramos com seu machado; sabemos que se trata de
Esus, mas ignoramos os mitos que simboliza. Os filólogos
querem ver na palavra Esus a deturpação de erus, "senhor" ou
"dono de casa".
ETHNIU - V. Cessair.

FAND - V. Cuchulainn.
FILI - Poeta.
FINN - V. Fionn.
FINN MAC CUMHAIL -Herói e mágico do ciclo feniano
ou de Ossian. -V. Fionn.
202
FIONN - Chefe dos Fianna de Leinster, o herói Fionn ou
Finn mac Cumhail é o fanfarrão que mata monstros e é mágico
ao mesmo tempo. J?" também, poeta, e vive principescamente;
seu caráter principal é a desconfiança e a astúcia; aparentado aos
Fir Bolg e aos Tuatha Dê, assim como a Sualtam; pai putativo
de Cuchulainn, não obstante a sua idade casou-se com a formosa
Grainné, filha de Cormac, que logo o abandonou seduzida pelo
jovem e encantador guerreiro Diarmaid (Dermat).
Finn é pai de Ossian (Oissin) e avô de Oscar (Osgur); são
seus inimigos o altivo e orgulhoso GoII e seu irmão Conan,
filhos de Môrna e chefes do clã temível dos Connaught. O nome
Finn significa "Branco" ou "Louro". Morreu numa batalha, em
Ghabra, onde seu inimigo era Cairbré Lifec4air, bisneto do Rei
Conn. FODLA - V. Cessair.
FOMóIRÉ - V. Cessair.
FORGALL MANACH -V. Cuchulainn.

GOBANNON - Deus do fogo, espécie V. Gavannotz.


GOIBNIU -V. Cessa ir.
GOV ANNON -Govannon é nome bretão; a forma
irlandesa é Goibniu e significa "ferreiro". Este deus é o Vulcano
das tribos celtas insulares; fornece armas aos membros do clã e
aos aliados. Forjou a cervilheira que conferia a imortalidade.
Consideram-no, na Irlanda, o arquitecto das altas torres
redondas c: das primeiras igrejas cristãs.
GRAINNl? -Filha de Cormac e esposa de Fionn ou Finn
mac Cumhail; abandonou o esposo seduzida pelo jovem e bri-
lhante Diarmaid. -V. Fionn.

203
GWYDION -Deus civilizador, dispensador dos benefícios
e propagador das artes. Suas aventuras lembram as de Odin
(Wotan-Woden), deus teutônico. Nasceu misteriosamente de
pais mal conhecidos; ilustrou-se na eloqüência, na magia e na
arte dos combates: foi temível guerreiro. Quando Gwydion
perdeu seus filhos, pôs-se a criar seres humanos, dando vida a
vegetais. Seu culto floresceu, sobretudo, no país de Gales.

I
ICAUNO -Deus tutelar de Yonne.
INDECH -Filho da deusa Domnu; foi morto por Ogma.
ITH -Divindade do Reino dos Mortos. Junto com Bilé
desembarcou na Irlanda e pôs fim ao poder dos Dê Danann.

L
LEABHAR GABHALA -HLivro das Invasões" ou "Livro
das Conquistas", obra onde vêm relatadas as origens lendárias
da Irlanda. Nessa obra há narrações mitológicas dos celtas de
mistura com acontecimentos históricos e factos de evemerismo
cristianizado.
LLE1!.- Lleu, ident~ficado com o deus irlandês Lugh ou
Lug, é divIndade benfazeja. Quase nada sabemos desse antigo
deus. — V. Lug.
LLUD - Llud ou Niidd ou Nuada (irlandês), filho de Dôn;
é chamado HMão de Prata". Nessa divindade encontram-se tra-
ços do Júpiter romano, o que nos faz crer tenha ela sofrido o
sincretismo comum a outras divindades. Llud deu seu nome à
sua cidade favorita, Caer Llud, que logo se tornou London (Lon-

204
dres); a colina de Ludgate, em Londres, outra coisa não seria
que o seu túmulo; a catedral de São Paulo, que a coroa, ocupou
o lugar onde se erguia um templo dedicado a este deus.
LLYR - Llyr é nome gaulês; conhecido, também, por Ler,
designa o Oceano. Seu sobrenome Llediaith (" Meia-língua")
deixa entrever que se compreende maIo que diz.
Geoffroi de Monmouth, nas suas Crônicas, o assimila a
um antigo rei da Grã-Bretanha; e, pela adjunção de minúcias
sem dúvida pertencentes a fatos históricos, humanizou-se de tal
modo que veio a dar o Rei Lear de Sbakespeare.
Uyr, deus marinho, teve dois filhos, Bron e Manannân,
ambos mais famosos que o pai.
LUG - Deus irlandês, também conhecido por Lugh,
chamado Lâhm-fhâda, HMão Longa"; era deus benéfico. A
irradiação do seu semblante era tal que nenhum mortal podia
olhar para o seu rosto. Era o senhor absoluto das artes, tanto das
d.e paz como das de guerra; davam-lhe o apelido Samhildânach,
que poderíamos traduzir pelo grego “politécnico”; ganhou fama
como ferreiro, carpinteiro, poeta, harpista, campeão, historiador
e feiticeiro. Encarnava todas as actividades da tribo. Lug possufa
uma lança mágica que sozinha e por si mesma ia ferir o inimigo
quando o deus era ameaçado; seu arco era o Arco-1ris; na
Irlanda chamavam .( e em alguns lugares ainda usam a
designação) a Via-Láctea de "Cadeia de Lug".
LUXÓVIO -Deus tutelar das águas de Luxeuil; sua
companheira era Bricta.

M
MANANNAN -Filho de Llyr; em gaulês seu nome era
Manawydan ab Llyr, conhecido como bravo agricultor e hábil
sapateiro; às vezes entra em luta com divindades estrangeiras ou
205
com as divindades benéficas; construiu, com ossos humanos, a
fortaleza de Annoeth (península de Gower).
O Manannân mac Llyr, irlandês, era um mágico temível;
usava um capacete chamejante e sua couraça era invulnerável;
sua espada matava logo ao primeiro golpe, e possuía uma manto
que o tornava invisível; na terra, seu veloz ginete fendia os ares
com a rapidez do raio, e no mar, a barca que o copduzia vogava
sem velas e sem remos para onde ele quisesse. Os marinheiros o
invocavam sob o título de "Senhor dos Cabos" e os mercadores
pretendem que ele tenha fundado a sua corporação. Foi rei de
Man, ilha, onde o seu túmulo gigantesco ainda hoje se pode ver,
perto do castelo de Peel. Parece que tinha três pernas, fato
testemunhado pelas armas da ilha que ostentam as três pernas
dispostas como os raios de uma roda. Chamavam-no, também,
Barr-Find, "Cabeça Branca"; tornou-se o piloto Barin que
conduziu o Rei Artur para Avallon.
MANANNAN MAC LLYR -V. o verbete anterior.
MEDB -Medb, que se pronunciava, Meve, é a pérfida
rainha
que aparece no ciclo heróico de Ulster, Cuchulainn;
Shakespeare transformou-a na Rainha Mab, que aparece em
Romeu e Julieta (I, IV, 615):

Pelo que vejo, foste visitado


Pela Rainha Mab. Ela é parteira
Entre as fadas; e é tão pequenina
Como a ágata do anel que os conselheiros..."
O nome Mab, em welsh, significa "criança"; Beaufort
menciona a “Rainha Mag” como a rainha das fadas Irlandesas. -
— V. Cuchulainn.

206
MENIR - Bloco de pedra mais alto que largo, assemelhan-
do-se às vezes a um obelisco, não(} talhado, plantado no solo.
Acredita-se que a erecção desses monumentos atendia a fins
religiosos, ainda que não esteja afastada a hipótese de sua
destinação ser funerária ou simplesmente comemorativa. Os
menires abundam no solo francês, sobretudo na Bretanha; há
também menires no oeste da Inglaterra, na Irlanda e ao longo do
litoral oeste da Europa. Encontraram-se outros na Africa e na
Asia. Os menires em círculo têm o nome de cromlechs. Deriva a
palavra de men, "pedra" e hir "comprida", vocábulos celtas..
MORRIGU -Morrigu ou Morrigan (irlandês), "Rainha dos
Fantasmas", era deusa da Guerra. Aparocia sob aspecto apavo-
rante aos guerreiros e participava dos combates; não raro se
manifestava aos guerreiros antes de' estes partirem para a luta,
onde seriam vencidos ou vencedores. Outras divindades sangui-
nárias e cruéis do panteão celta, na realidade, par()'ce que são
apenas encamações desta famosa Morrigu: Badb, que se mani-
festava sob a figura de uma gralha; Macha, palavra que significa
"batalha" e Nemain, "pânico" ou, melhor, "terror'.

N
NANTOSUELTA -Gênio ou divindade feminina, ligada ao deus
Sucelo. Seu nome deriva de nanto, "vale". NEMAUSUS -Deus
tutelar da cidade de Nimes e génio da fonte que abastecia essa
cidade. NEMETONA -Deusa guerreira, espécie de Belona, da
qual nada se sabe. NIAMH -Niamh (pronuncia-se Nieve) era
uma deusa-fada, filha de Manannân, que aparece no ciclo de
Ossian; levou o herói para o paraíso. NUADA -Rei dos Tuatha
Dê Danann. No combate cortaram-lhe a mão e ele a substituiu
por uma de prata, donde o nome: "com a mão de prata". Por
causa dessa mutilação foi obrigado a abdicar em favor de Bres;
207
mas este, mais tarde, também abdicou, e Nuada, novamente,
subiu ao trono, pois sua mão lhe foi restituída graças às
habilidades de Miach, célebre feiticeiro filho de Diancecht, o
qual, por causa dessa operação, foi morto pelo pai, invejoso da
sua perícia.

O
OENGUS - Filho de Dagda. ~ o deus Cupido {deus do
Amor) irlandês, irmão de Brigit. Os beijos de Oengus transfor-
mavam-se em pássaros que modulavam cantos amorosos; qual
outro Orfeu, quando tocava música, arrastava pós si todos aque-
les que a ouvÍamo
OGMA - Guerreiro que matou Indech.
ÓGMIOS - O retor grego Luciano, no século 11 da nossa
era, dedicou um pequeno tratado "ao deus celta chamado
Ógmios". Diz ter visto a referida divindade representada sob os
traços de um ancião cheio de rugas e quase calvo, vestido com
pele de leão e munido duma formidável maça; por causa destes
atributos, identificou-o com Hércules (Héracles em grego). Mas
o poder desse Hércules celta não está no vigor físico, mas sim na
eloquência; de fato, representam-no com cadeias que ligam sua
língua às orelhas dos que o ouvem.
Parece que o deus Ógmios (não sabemos qual a forma
exata celta deste nome) foi um herói civilizador, deus da
eloqüência e dos discursos persuasivos; na mitologia irlandesa
transformou-se no campeão Ogma (seria este seu nome
primitivo, antes de ser grecizado?), cuja espada, no curso da
batalha de Mag Tured narra as façanhas que levou a cabo; é o
inventor dos caracteres ogâmicos (escrita dos antigos povos
gaélicos e escandinavos, principalmente do alfabeto dos
irlandeses; constava de linhas verticais ou oblíquas, acima ou
abaixo da linha, ou simplesmente cortando-a) e presidia, já
208
como deus, à eloqüência; acredita-se, pois, que Ógmios seja um
avatar de um deus essencialmente celta. Já os antigos romanos
notavam o gosto que tinham os celtas pelos belos e bons
discursos.
OSSIAN - Filho de Finn, Ossian é a 'figura mais
importante do chamado ciclo feniano ou de Ossian. Mas sua
importância cresce de modo na série de baladas pós-fenianas,
nas quais as façanhas de seu pai são relatadas em forma de
diálogo entre Ossian e São Patrício, padroeiro cristão da Irlanda.
Quando foi da derrota de Gabhra, Ossian escapou graças à
deusa-fada Niamh (q. v,), que o conduziu na sua barca de vidro
para Tir na n-Og, o paraíso céltico. Ossian aí passou 300 anos de
deliciosa juventude, enquanto o mundo e os reinos mudavam e
se sucediam. No fim desse tempo, saudoso do seu país natal, dos
parentes e das coisas humanas, quis retomar à face da terra.
Niarnh lhe confia a montaria mágica que ela mesma usava, reco-
mendando-Ihe insistentemente que não pusesse o pé em terra;
mas a correia rompe-se, a sela desliza e Ossian cai por terra;
quando se ergue, custosamente, é um ancião cego e fraco.
As pretendidas composições de Ossian gozaram de favor
extraordinário no fim do século XVIII e nos começos do XIX.
Ainda que fundadas em boas tradições gaélicas e imitadas de
diversas narrações em prosa devidas a autores desconhecidos, as
Poesias traduzidas de Ossian, filho de Fingal (aparecidas de
1760 a 1763), jamais foram traduções, mas sim obras originais
do pseudotradutor, o escocês James Macpherson. Suscitaram o
entusiasmo de almas sensíveis e a ac;imiração dos mais ilustres
escritores românticos: Goethe, Herder, Mme de Stael, Chateau-
bríand, Byron, Lamartine. ..Napoleão lia e relia Ossian. Mesmo
quando começou a se duvidar da origem das poesias de Ossian,
não perderam de todo o valor. O introdutor do Romantismo no
Brasil, José Bonifácio (e não Domingos de Magalhães), lia sem-
pre com renovado prazer as poesias de Ossian.
209
Mas os nomes primitivos, nessas poesias, estão
desfigurados, e tomaram consonâncias poéticas, a fim de
corresponder aos "anseios da época romântica": Finn t<;>rnou-
se Fingal, Conor transforma-se em Caibar, Deidré em Darthula,
Conlaoch em Carthon, Cuchulainn em Clessamor, Aiffé em
Moina...
PARTHOLON -Príncipe que veio da Grécia e colonizou a
Irlanda. PWYLL -~ nome gaulês. Esta divindade é aliada dos
filhos de Llyr na sua luta contra os filhos de Don. Casou-se com
Rhlannon (H Grande Rainha H) e teve um filho, Pryderi, que o
sucedeu enquanto reinava em Annwfn (o Além bretão). Pwyll
partilhou seu trono no Reino das Sombras com Manawydan ab
Llyr.
S
SETANTA - Nome primitivo de Cuchulainn, (q. v.). SIDI
-Sidi ou Aes Side, "Os habitantes da colina", era um antigo
nome irlandês para designar os deuses. Sideoga, diminutivo de
Sidi, é o nome moderno das fadas.
SIRONA - Deusa de natureza astral.
SMÉRTRIOS - Deus gaulês que foi assimilado pelos
romanos a Hércules. Smértrios aparece no monumento dos
nautas parisienses combatendo com a serpente; é tudo o que dele
sabemos.
SUALTAM - Pai putativo de Cuchulainn. Era um famoso
profeta
SUCELOS -"Aquele que bate fortemente", divindade que
figura em vários monumentos, sob o aspecto de homem cabe-
ludo e barbudo, vestido com amplo manto apertado na cintura e
brandindo um malho oU martelo; seu outro atributo era um vaso
para beber. Este mesmo deus, na Gália narbonense, se chamava
Silvano, que é um deus típico dos romanos (de silva, "floresta")
210
e que presidia à vegetação em geral e às florestas e bosques.
Sucelos andava associado à deusa Nantosuelta, deusa puramente
céltica.
A assimilação de Sucelos a Silvano é um dos casos mais
típicos da fusão religiosa galo-romana..
Na região de Salzbach, Sucelos estava associado à deusa
Aeracura (nome que parece não ser gaulês), representada com
um corno da abundância (Cornucópia) e com um cesto cheio de
frutos.

T
TÁRANIS - Táranis, em irlandês Torann, "Aquele que
Troveja, era o deus do Trovão, do Raio e da Tempestade.
Correspondia ao Júpiter latino. É só o que dele sabemos.
TEUTATES -Como seu nome indica, teuta, em gaulês
touta e em irlandês tuath, "tribo" ou "povo", era, ao menos no
início, "deus da tribo", divindade tribal de amplos poderes. Era o
deus principal dos cel.tas. Outra hipótese pretende que Teutates
não é nome próprio individual mas um título ou nome genérico,
como, por exemplo, o de faraó, aplicado aos reis do Egito;
efeti-: vamente, em inscrições lê-se: Marti Toutati, "ao Marte-
Toutates (ou Teutates)"; seria, nesse caso, um deus gaulês
paralelo ao Marte romano, isto é, deus da guerra ou divindade
guerreira. Parece que cada tribo gaulesa tinha o seu próprio
"Teutates", adorado de modo diverso e com denominação
diferente: Albiorix, "Rei do Mundo" (?), Caturix. "Rei dos
combates". Lucetius, Aquele que brilha" (essa palavra é
genuinamente latina, de lux, lucis, Hluz"), Rigisamos, "Muito
real"...
Todas essas designações são muito imprecisas, pois, na
maioria dos casos, trata-se de nomes latinos.

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TOUTIORIX (ou Tutiorix) -Nome de ApoIo. Parece que a
palavra significa "Rei Protetor"; .estava associado a Sirona,
deusa de natureza astral. Não sabemos qual a forma primitiva do
nome desse deus nem o seu caráter particular. É provável que
seja o mesmo Borvo (Bormo ou Bormanus) ou Belenos:
"Aquele que Brilha".
TRICÉFALO - "Três Cabeças", nome que os mitológicos
dão à figura que aparece em 32 efígies recolhidas,
principalmente, no nordeste da Gália.
Tricéfalo é uma personagem com três cabeças ou com três
rostos. Numa .estela encontrada em La Malmaison, perto de
Reims, o Tricéfalo domina o par divino formado por Mercúrio e
Rosmerta.
Explicam alguns mitólogos, com fundadas razões, que
essa personagem seja apenas uma representação do deus que os
roma110S identificaram ao seu Mercúrio e do qual nada
sabemos; a multiplicação das cabeças seria o meio prático de
aumentar o poder da representação divina: é o princípio da
"repetição de intensidade". Com efeito, vários deuses diferentes
são às vezes dotados de três cabeças pelos artistas gauleses; não
raro triplicavam a própria pessoa divina, como é o caso das
Matres, deusas mães célticas, comumente anónimas, comumente
adoradas com Domes estritamente locais ou regionais; este
carácter anónimo e este gosto pela "trindade" fazem parte,
parece, de antigos conceitos da velha religião celta, di! qual
nada sabemos.
V
VOSEGO - Deus tutelar dos Vosges.

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