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FILOSOFIA
Patrística e Escolástica
G. Reale - D. Antiseri
HISTÓRIA
DA FILOSOFIA
2 Patrística
e Escolástica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Reale, Giovanni
História da filosofia : patrística e escolástica, v. 2 / Giovanni Reale, Dario Antiseri;
[tradução Ivo Storniolo]. — São Paulo : Paulus, 2003.
1. Filosofia - História I. Antiseri, Dario. II. Título. III. Título: Patrística e Escolástica.
02-178 CDD-109
índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia : História 109
Título original
Storia delia filosofia - Volume II: Patrística e Scolastica.
© Editrice LA SCUOLA, Brescia, Itália, 1997
Tradução
Ivo Storniolo
Revisão
Zolferino Tonon
Impressão e acabamento
PAULUS
2a edição, 2005
© PAULUS - 2003
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5084-3066
www.paulus.com.br* editorial@paulus.com.br
ISBN 85-349-2042-7
ISBN 88-350-9218-3 (ed. original)
Existem teorias, argum entações e * * *
disputas filosóficas pelo fato de existirem pro
A história da filosofia é a história
blemas filosóficos. Assim como na pesquisa
dos problemas filosóficos, das teorias fi
científica idéias e teorias científicas são res
losóficas e das argumentações filosófi
postas a problemas científicos, da mesma
cas. É a história das disputas entre filó
forma, analogicamente, na pesquisa filosó
sofos e dos erros dos filósofos. É sem pre
fica as teorias filosóficas são tentativas de
a história de novas tentativas de versar
solução dos problemas filosóficos.
sobre questões inevitáveis, na esperança
Os problem as filosóficos, portanto,
de conhecer sempre m elhor a nós m es
existem, são inevitáveis e irreprimíveis; en
m os e de en contrar orien tações para
volvem cada homem particular que não
nossa vida e m otivações m enos frágeis
renuncie a pensar. A maioria desses pro
para nossas escolhas.
blemas não nos deixa em paz: Deus existe,
A história da filosofia ocidental é a
ou existiriamos apenas nós, perdidos nes
história das idéias que in-formaram, ou
te imenso universo? 0 mundo é um cos
seja, que deram forma à história do Oci
mo ou um caos? A história humana tem
dente. É um patrimônio para não ser dis
sentido? E s e tem, qualé? Ou, então, tudo
sipado, uma riqueza que não se deve
- a glória e a miséria, as grandes conquis
perder. E exatamente para tal fim os pro
tas e os sofrimentos inocentes, vítimas e
blemas, as teorias, as argum entações e
carrascos - tudo acabará no absurdo, des
as disputas filosóficas são analiticamente
provido de qualquer sentido? E o homem:
explicados, expostos com a maior clareza
é livre e responsável ou é um simples frag
possível.
mento insignificante do universo, determi ★ * *
nado em suas ações p or rígidas leis natu
rais? A ciência pode nos dar certezas? O Uma explicação que pretenda ser cla
que é a verdade? Quais são as relações ra e detalhada, a mais compreensível na
entre razão científica e fé religiosa? Quan medida do possível, e que ao mesmo tem
do podem os dizer que um Estado é demo po ofereça explicações exaustivas compor
crático? E quais são os fundamentos da de ta, todavia, um "efeito perverso", pelo fato
mocracia? É possível obter uma justificação de que pode não raramente constituir um
racional dos valores mais elevados? E quan obstáculo à "memorização" do complexo
do é que som os racionais? pensamento dos filósofos.
Eis, portanto, alguns dos problem as Esta é a razão pela qual os autores
filosóficos de fundo, que dizem respeito pensaram, seguindo o paradigma clássi
às escolhas e ao destino de todo homem, co do Überweg, a n tep o r à exposição
e com os quais se aventuraram as m en analítica dos problemas e das idéias dos
tes mais elevadas da humanidade, dei diferentes filósofos uma síntese de tais
xando-nos com o herança um verdadeiro problemas e idéias, concebida como ins
patrimônio de idéias, que constitui a iden trumento didático e auxiliar para a me
tidade e a grande riqueza do Ocidente. morização.
VI p s e.v\taç.ão
* * * ★ ★ ★
Afirmou-se com justeza que, em linha A o executar este complexo traçado,
geral, um grande filósofo é o gênio de uma os autores se inspiraram em cânones psico-
grande idéia: Platão e o mundo das idéias, pedagógicos precisos, a fim de agilizar a
Aristóteles e o conceito de Ser, Plotino e a memorização das idéias filosóficas, que são
concepção do Uno, Agostinho e a "tercei as mais difíceis de assimilar: seguiram o
ra navegação" sobre o lenho da cruz, Des método da repetição de alguns conceitos-
cartes e o "cogito", Leibnizeas "mônadas”, chave, assim como em círculos cada vez
Kanteo transcendental, Hegel e a dialética, mais amplos, que vão justamente da sínte
Marx e a alienação do trabalho, Kierke- se à análise e aos textos. Tais repetições,
gaard e o "singular", Bergson e a "dura retomadas e amplificadas de modo opor
ção", Wittgenstein e os "jogos de lingua tuno, ajudam, de modo extremamente efi
gem ", Popper e a "falsificabilidade" das caz, a fixar na atenção e na memória os
teorias científicas, e assim p or diante. nexos fundantes e as estruturas que sus
Pois bem, os dois autores desta obra tentam o pensamento ocidental.
propõem um léxico filosófico, um dicioná * * *
rio dos conceitos fundamentais dos diver Buscou-se também oferecerão jovem,
sos filósofos, apresentados de maneira di atualmente educado para o pensamento
dática totalm ente nova. Se as sínteses visual, tabelas que representam sinotica-
iniciais são o instrumento didático da me mente mapas conceituais.
morização, o léxico foi idealizado e cons Além disso, julgou-se oportuno enri
truído como instrumento da conceitualiza- quecer o texto com vasta e seleta série de
ção; e, juntos, uma espécie de chave que imagens, que apresentam, além do rosto
permita entrar nos escritos dos filósofos e dos filósofos, textos e momentos típicos da
deles apresentar interpretações que encon discussão filosófica.
trem pontos de apoio mais sólidos nos pró
prios textos. ★ ★ ★
•*■ *'*■ Apresentamos, portanto, um texto ci
entífica e didaticamente construído, com
Sínteses, análises, léxico ligam-se,
a intenção de oferecer instrumentos ade
portanto, à ampla e meditada escolha dos
quados para introduzir nossos jovens a
textos, pois os dois autores da presente
olhar para a história dos problemas e das
obra estão profundam ente convencidos
idéias filosóficas como para a história gran
do fato de que a compreensão de um fi
de, fascinante e difícil dos esforços intelec
lósofo se alcança de m odo adequado não
tuais que os mais elevados intelectos do
só recebendo aquilo que o autor diz, mas
Ocidente nos deixaram como dom, mas
lançando sondas intelectuais também nos
também como empenho.
m odos e nos jargões específicos dos tex
tos filosóficos. G iovanni R eale - D ario A ntiseri
J7 n d ic e C X a r a I
* Neste índice:
-reportam-se em versal-versalete os nomes dos filósofos e dos homens de cultura ligados ao desenvolvi
mento do pensamento ocidental, para os quais indicam-se em negrito as páginas em que o autor é tratado
de acordo com o tema, e em itálico as páginas dos textos;
-reportam-se em itálico os nomes dos críticos;
-reportam-se em redondo todos os nomes não pertencentes aos agrupamentos anteriores.
XIV Ó n Ji ice d e n o m e s
M arciào de S inope, gnóstico 179 Pinturicchio, Bernardino de Betto Símaco, Quinto Aurélio Mêmio,
Marcos Evangelista, 5, 19, 20 dito o, 94 130
M arsíliodePádua, 321,322-323,324 Pirro df. E lida, 72 Simão de A uthie, 198
M áximo o C onfessor, 25, 26, 61 Pitágoras, 40, 72, 185 Sinésio de C irenf, 56
62, 66-68, 119, 136 P latão, 8, 11, 12, 14, 17, 18, 21, S ócrates, 21, 24, 48, 249
M ateus df, A cquasparta, 269, 271 33,39,40,50, 62, 72, 73,89,
Mateus Evangelista, 5, 7, 15, 20 91, 95, 102, 106, 107, 110,
Melitão G., 256 111,112,114,115,120,130,
135,177,179,180,184,185,
M inúcio F élix, 71, 72, 76-77 231,232, 249,257, 279, 326
Moeller C., 24 T
Pi.otino, 11,12,21,35,45, 81, 84,
Mônica, 81, 82 88,89,91, 92, 95, 96, 112 T aciano, o A ssírio, 39, 40-41
Pohlenz M., 15, 84 T auler J., 328
Policarpo de E smirna, 29 Tempier E., 269,270,271,297, 322
Porfírio de T iro, 81, 84, 89, 129, Teodora, 211
130, 162, 175-176, 278, 289
A) Teodorico, imperador, 129, 131
Prisciano de L ídia, 122
T eodorico df. C hartres, 177, 179,
N édélec H., 271 P roclo, 327 180
N emésio de E mesa, 56 Pseudo-Dionísio Areopagita, 26, T eodorico de F riburgo, 276
59-60, 65-66, 135, 136, 137,
N estório de A ntioquia, 30 T eófilo de A ntioquia, 39, 41, 58
143, 212, 264, 327
N icolau de A utrecourt, 305 T ertuliano Q. Sétimo Florentf., 71,
Ptolomeu, C láudio, 178
N icolau de O resme, 305, 307, 310 72-73, 77-79
Ptolomeu F iladelfo, 6
N ovaciano, 71, 73 T omãs de A quino, 62, 119, 120,
137, 147, 151, 166, 167,
170, 171, 188, 190, 192,
193, 198, 201, 203, 204,
O 211-232,233-252,259,261,
O 269, 271, 277, 286, 301,
Q uastf.n , 43 303, 322, 326, 328
O ckham, G uilherme df., 119, 120, Q uirino, 48 Tomás de Módena, 202
171,294,295,296,298-306,
307, 308,309,312-320, 321,
324, 326, 327, 329
O rígenes, o C ristão, 43, 44-46, 52-54
R
V
Raffaello Sanzio, 120
Reginaldo de Piperno, 212 V alentim, 36
P Renan E., 269 Valério (bispo), 82
R icardo de M iddlf.town, 271 V anni R ovighi S., 182, 216
Pacher M., 85 R icardo de São V ítor, 177, 180 Vítor IV, antipapa, 128
P antf.no , 43 181,254 V itorino, G aio MArio, 71, 73, 84,
Parmênides, 12, 24 Roberto de Courçon, 190, 197 130
Pascoal III, antipapa, 128 R oberto de M elun, 235
Patrício, 82 R oberto G rossetf.stf., 2 7 2 -2 7 3 ,
Paulo de Tarso, 3, 5,16,17,19,21, 274, 275, 276, 277
27, 52, 59, 65, 79, 80, 83, R oger de M arston, 271
136, 183, 246, 328 R osceuno DE C ompiégne, 162, 166,
w
Peckham J., 271, 277, 297 168, 169, 171
R ufino, 74-75 WlTEl O, 276
Pedro D amiáo, 166
Rusticiana, 129 W yci.if J., 304, 305,324-325
P edro L ombardo, 146, 182-183,
185-186,202,212,235, 277, R uysbrof.ck, J. de, 329
278,283,298
Pedro, papa, 8
Pf.dro de J oão O livi, 271
Pelágio, 84
2
Peregrino R, 273
P etrarca F„ 89, 297 Saladino, sultão, 200 Z enào de C ício, 12
Pedro, o V enerável, 162 S êneca, L úcio A nf.u, 71, 73 Zósimo, papa, 84
Pll.ATOS, PÔNCIO, 48 S igf.r de B rabante, 269, 270-271 Zurbarán, Francisco de, 232
Z J n d ice d e co n ce ito s
d am e rifai s
agápe, 19
alegoria, 32
analogia, 220
apocatástase, 46
argumento ontológico, 150
monoteísmo, 11
c
conceitualismo, 169
criacionismo, 12 N
navalha de Ockham, 302
nominalismo, 169
fé e razão, 88
T-
u
iluminação, 91
intelecto “ possível” universais, 154
e intelecto “ agente” , 196 univocidade, 281
PATRÍSTICA
E ESCOLÁSTICA
A REVOLUÇÃO
ESPIRITUAL
DA MENSAGEM BÍBLICA
E v a n g e lh o seg u n d o Jo ã o
Capítulo primeiro
j A B íblia,
s u a m e n s a g e m e s u a s influências
so b re o p en sa m en to ocidental
I. ( S s t m t u m e s i g n i f c a d o d a 3 íblia
• Com o nome de Bíblia (do grego biblía = "livros") indicam-se 73 livros con
siderados inspirados, distintos em Antigo Testamento (46 livros) e Novo Testamen
to (27 livros).
O Antigo Testamento divide-se por sua vez em livros his
O que é a Bíblia
tóricos, livros didáticos e livros proféticos. Os primeiros cinco
1-5
livros históricos (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deute-
ronômio) são os livros da Lei ou Pentateuco.
0 Novo Testamento é composto pelos quatro Evangelhos, pelas Cartas de
Paulo, pelas Cartas dos Apóstolos e pelo Apocalipse.
"Testamento" traduz o termo grego diathéke e indica o pacto ou aliança que
Deus ofereceu a Israel.
• A mensagem bíblica, mesmo que não tenha sido inspirada pela razão e sim
pela fé, teve tal impacto histórico e incidiu de modo tão profundo na concepção
do mundo e da natureza do homem, que deve ser considerada
também do ponto de vista filosófico. a importância
Neste sentido, ela trouxe algumas contribuições revolu- históríco-cultural
cionárías para a história do pensamento. da Bíblia
-> § 6
Idulo decorado
do Iranciclho
dc MdlCUS
</<’ mu manuscrito
cm grego,
f>rodiKtdo
entre os sir>. Vc VI,
com Ioda
jirobahilidadc
cm Rarcua, Uaha
( Viena.
Hihliohra Nacional).
8 Primeira parte - A d e v o lu ç ã o espiritu al d a m e n s a g e m bíblica
Depois da difusão da mensagem bí na história. Por essa razão, o horizonte bíbli
blica, portanto, serão possíveis só estas po co permanece um horizonte estruturalmente
sições: intransponível, no sentido que esclarecemos,
a) filosofar na fé, ou seja, crendo; isto é, no sentido de um horizonte para além
b) filosofar procurando distinguir os âm do qual já não podemos nos colocar, tanto
bitos da “razão” e da “ fé” , embora crendo; quem crê como quem não crê.
c) filosofar fora da fé e contra a fé, ou Com essas premissas, tratemos de exa
seja, não crendo. minar as principais idéias bíblicas que apre
Não será mais possível filosofar fora da sentam relevância filosófica e colocá-las em
fé, no sentido de filosofar como se a mensa confronto prospectivo e estrutural com a
gem bíblica nunca tivesse feito seu ingresso visão anterior dos gregos.
1 P assag em
do poli+eísmo grego
ao monoteísmo cristão ■ M onoteísmo. A doutrina da unici
dade de Deus é especificamente judai-
co-cristã, enquanto todo o mundo
helênico é condicionado pelo poli-
A filosofia grega chegara a conceber a teísm o. No âmbito do pensamento
unidade do divino como unidade de uma grego, todavia, Platão, Aristóteles, e
esfera que admitia essencialmente em seu sobretudo Plotino, haviam antecipa
próprio âmbito uma pluralidade de entida do alguns aspectos com orientação
des, forças e manifestações em diferentes monoteísta.
graus e níveis hierárquicos. Portanto, não Platão, com efeito, no Timeu fala da
chegara a conceber a unicidade de Deus e, unicidade do divino Demiurgo orde-
conseqüentemente, nunca havia sentido co nador do cosmo e, nas doutrinas não
mo um dilema a questão de se Deus era uno escritas, põe o Uno no vértice do mun
do supra-sensível (mesmo admitindo
ou múltiplo. Desse modo, permaneceu sem uma série de divindades criadas pelo
pre aquém de uma concepção monoteísta. Demiurgo).
Somente com a difusão da mensagem bíbli Aristóteles, embora admitindo uma
ca no Ocidente é que se impôs a concepção multiplicidade de inteligências moto
do Deus uno e único. E a dificuldade do ras divin as, colocava um prim eiro
homem em chegar a essa concepção demons Motor imóvel único, que pensa a si
tra-se pelo próprio mandamento divino mesmo.
“ não terás outro Deus além de mim” (o que Plotino fa z toda a realidade derivar
do absoluto e transcendente princí
significa que o monoteísmo não é, em abso pio do Uno.
luto, uma concepção espontânea), e pelas con Em todo caso, o Ocidente ganhou o
tínuas recaídas na idolatria (o que implica conceito de monoteísmo apenas da
sempre uma concepção politeísta) por par mensagem bíblica.
te do próprio povo hebreu, através do qual
foi transmitida essa mensagem. E, com essa
concepção do Deus único, infinito em po
tência, radicalmente diverso de todo o res
to, nasce uma nova e radical concepção da
transcendência, derrubando qualquer pos
sibilidade de considerar qualquer outra coi
sa como “ divino” no sentido forte do termo.
Os maiores pensadores da Grécia, Platão e
Aristóteles, haviam considerado como “ di
vinos” (ou até mesmo como deuses) os as
tros, e Platão chegara a chamar o cosmo de
“ Deus visível” e os astros de “ deuses cria
dos” ; em As Leis, inclusive, ele deu a parti
da para a religião chamada “ astral” , preci
samente com base em tais pressupostos. A
Bíblia corta pela base toda forma de poli-
teísmo e idolatria, mas também qualquer
compromisso desse tipo. No Deuteronômio,
podemos ler: “ E quando ergueres os olhos
para o céu e vires o sol, a lua, as estrelas,
isto é, todo o exército do céu, não te deixes como e por que os múltiplos derivam do Uno
arrastar, não te prostres diante deles e não e o finito deriva do infinito. A própria cono
lhes prestes culto A unicidade do Deus bí tação que Deus dá de si mesmo a Moisés,
blico comporta transcendência absoluta, que “Eu sou Aquele-que-é” , será interpretada,
coloca Deus como totalmente outro em re em certo sentido, como a chave para se en
lação a todas as coisas, de um modo intei tender ontologicamente a doutrina da cria
ramente impensável no contexto dos filóso ção: Deus é o Ser por sua própria essência e
fos gregos. a criação é uma participação no ser, ou seja,
Deus é o ser e as coisas criadas não são ser,
mas têm o ser (que receberam por partici
pação).
2 A cri a ç ã o a partir do nada
como o homem. E, por maiores que possam conhecimento. A Bíblia, porém, atribui à
ter sido os reconhecimentos da dignidade e vontade o instrumento da assimilação: as
da grandeza do homem pelos gregos, eles se semelhar-se a Deus e santificar-se significa
inscrevem sempre em um horizonte cosmo- fazer a vontade de Deus, ou seja, querer o
cêntrico global. Na visão helênica, o homem querer de Deus. E é exatamente essa capa
não é a realidade mais elevada do cosmo, cidade de fazer livremente a vontade de
como revela este exemplar texto aristotélico: Deus que põe o homem acima de todas as
“ Há muitas outras coisas que, por nature coisas.
za, são mais divinas (= perfeitas) do que o
homem, como, para ficar apenas nas mais
visíveis, os astros de que se compõe o uni
verso”. 4 O respeito
Na Bíblia, ao contrário, mais do que pelos mcmdamervtos divinos:
como um momento do cosmo, ou seja, como
a virtude e o p e c a d o
uma coisa entre as coisas do cosmo, o ho
mem é visto como criatura privilegiada de
Deus, feita “ à imagem” do próprio Deus e, Os gregos entenderam a lei moral como
portanto, dono e senhor de todas as outras lei da physis, a lei da própria natureza: uma
coisas criadas por ele. No Gênesis está es lei que se impõe a Deus e ao homem ao
crito: “ Deus disse: ‘Façamos o homem à mesmo tempo, visto que não foi feita por
nossa imagem, como nossa semelhança, e Deus e que a ela o próprio Deus está vincu
que ele domine sobre os peixes do mar, as lado. O conceito de um Deus que dá a lei
aves do céu, os animais domésticos, todas moral (um Deus “nomóteta” ) é estranho a
as feras e todos os répteis que rastejam so todos os filósofos gregos.
bre a terra” . E ainda: “ Então Javé Deus O Deus bíblico, ao contrário, dá a lei
modelou o homem com a argila do solo, ao homem como “mandamento” . Primei
insuflou em suas narinas um hálito de vida ro, ele a dá diretamente a Adão e Eva: “ E
e o homem se tornou um ser vivente” . E o Javé Deus deu ao homem este mandamen
Salmo 8 diz ainda, de modo paradigmático: to: ‘Podes comer de todas as árvores do jar
dim. Mas da árvore do conhecimento do
“Quando vejo o céu, obra dos teus dedos, bem e do mal não comerás, porque no dia
a lua e as estrelas que fixaste, em que dela comeres terás de morrer’ ” .
o que é um mortal, para dele Posteriormente, como já dissemos, Deus
[te lembrares, “ escreve” diretamente os mandamentos.
e um filho de Adão, que venhas A virtude (o bem moral supremo) tor
[visitá-lo? na-se obediência aos mandamentos de Deus,
E o fizeste pouco menos do que um coincidindo com a “ santidade” , virtude que,
[deus, na visão “ naturalista” dos gregos, ficava em
coroando-o de glória e beleza. segundo plano. O pecado (o mal moral su
Para que domine as obras premo), ao contrário, torna-se desobediên
[de tuas mãos, cia a Deus, dirigindo-se portanto contra
sob seus pés tudo colocaste: Deus, à medida que vai contra os seus man
ovelhas e bois, todos eles, damentos.
e as feras do campo também;
as aves do céu e os peixes do oceano Diz o Salmo 119:
que percorrem as sendas dos mares” . “ Indica-me, Javé, o caminho dos teus
[estatutos,
E, sendo feito à imagem e semelhança eu quero guardá-lo como recompensa.
de Deus, o homem deve se esforçar por to Faze-me entender e guardar tua lei,
dos os modos para “ assemelhar-se a ele” . para observá-la de todo o coração.
O Levítico já afirmava: “Não deveis vos Guia-me no caminho dos teus
contaminar. Porque o vosso Deus sou eu, [mandamentos,
Javé, que vos fez sair da terra do Egito para pois nele está meu prazer” .
ser o vosso Deus: vós, pois, sereis santos
como eu sou santo”. Os gregos já falavam E no Salmo 51 podemos ler:
de “ assimilação a Deus” , mas acreditavam “Pequei contra ti, contra ti somente,
poder alcançá-la com o intelecto, com o pratiquei o que é mau aos teus olhos”.
14 Primeira parte - , A r e v o l u ç ã o e sp ir itu a l d a m e n s a g e m bíblica
tese de Pohlenz. O certo é que a Providên levantar para dá-los a ti.’ Digo-vos, mes
cia dos gregos nunca diz respeito ao homem mo que não se levante para dá-los por ser
individual, e a Providência estóica chega até amigo, levantar-se-á ao menos por causa
a coincidir com o Destino, nada mais sendo da sua insistência e lhe dará tudo aquilo de
do que o aspecto racional da Necessidade que precisa. Também eu vos digo: pedi e
com que o logos produz e governa todas as vos será dado; buscai e achareis; batei e
coisas. Já a Providência bíblica não apenas vos será aberto. Pois todo o que pede, re
é própria de um Deus que é pessoal em alto cebe; o que busca, acha; e ao que bate, se
grau, mas também, além de se dirigir para o abrirá ”.
criado em geral, dirige-se ainda e particu Mas esse sentido de confiança total na
larmente para os homens individuais, espe Providência divina também está presente no
cialmente para os mais humildes e necessi Antigo Testamento, na mesma dimensão e
tados e para os próprios pecadores (basta com o mesmo alcance, como se pode de
recordar as parábolas do “ filho pródigo” e preender, por exemplo, do belíssimo Salmo
da “ ovelha perdida” ). Eis uma das passa 91:
gens mais famosas e significativas a esse res
Tu, que dizes “Javé é o meu abrigo”
peito, registrada no Evangelho de Mateus:
e fazes do Altíssimo o teu refúgio.
“ Por isso vos digo: não vos preocupeis com
A desgraça jamais te atingirá
a vossa vida, quanto ao que haveis de co
e praga nenhuma chegará à tua tenda:
mer, nem com o vosso corpo, quanto ao que
pois em teu favor ele ordenou aos seus
haveis de vestir. Não é a vida mais do que o
[anjos
alimento e o corpo mais do que a roupa?
que te guardem em teus caminhos todos.
Olhai as aves do céu: não semeiam, nem
Eles te levarão em suas mãos,
colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no en
para que teus pés não tropecem numa
tanto, vosso Pai celeste as alimenta. Ora, não
[pedra;
valeis vós mais do que elas? Quem dentre
poderás caminhar sobre o leão
vós, com as suas preocupações, pode pro
[e a víbora,
longar, por pouco que seja, a duração da sua
pisarás o leãozinho e o dragão.
vida? E com a roupa, por que andais preo
Porque a mim se apegou, eu o livrarei,
cupados? Aprendei dos lírios do campo, co
eu o protegerei, pois conhece o meu
mo crescem, e não trabalham e nem fiam.
[nome.
E, no entanto, eu vos asseguro que nem Salo
Ele me invocará e eu responderei:
mão, em todo o seu esplendor, se vestiu co
“Na angústia estarei com ele,
mo um deles. Ora, se Deus veste assim a
eu o livrarei e o glorificarei;
erva do campo, que existe hoje e amanhã se
vou saciá-lo com longos dias
rá lançada ao forno, não fará ele muito mais e lhe mostrarei a minha salvação” .
por vós, homens fracos na fé? Por isso, não
andeis preocupados, dizendo: ‘Que iremos Essa é uma mensagem de segurança
comer?’ Ou: ‘Que iremos beber?’ Ou: ‘Que total, que estava destinada a subverter as
iremos vestir?’ De fato, são os gentios que frágeis seguranças humanas que os sistemas
estão à procura de tudo isso: o vosso Pai da época helenística haviam construído,
celeste sabe que tendes necessidade de to pois nenhuma segurança pode ser absolu
das estas coisas. Buscai, em primeiro lugar, ta se não tiver uma vinculação precisa com
o Reino de Deus e a sua justiça, e todas es um Absoluto. E, precisamente, o homem
tas coisas vos serão acrescentadas. Não vos sente necessidade desse tipo de segurança
preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, total.
pois o dia de amanhã se preocupará consi
go mesmo. A cada dia basta o seu mal” .
E com a mesma eficácia escreve Lucas
em seu Evangelho: “ Quem dentre vós, se 6 desobediência a IDeus
tiver um amigo e for procurá-lo no meio resgatada
da noite, dizendo: ‘Meu amigo, empresta- pela paixão de (Sristo
me três pães, porque chegou de viagem um
dos meus amigos e nada tenho para lhe ofe
recer.’ E ele responder de dentro: ‘Não me Com base no que dissemos, também
importunes; a porta já está fechada e meus fica claro o sentido do “pecado original” .
filhos e eu estamos na cama; não posso me Como todo pecado, ele é desobediência,
16 Primeira parte - A r e v o l u ç ã o espiritu al d a m e n s a g e m bíblica
Este é o célebre arco do “Bom Pastor” no Mausoléu de Galla Placídia em Ravena (séc. V):
o “ Bom Pastor" exprime de modo emblemático a nova imagem de Deus, própria do cristianismo.
17
Cãpltulo primeiro - j A B í b l i a , s u a m e n s a g e m e s u a s i n f l u ê n c i a s . ..
sabeis que todos os que fomos batizados em é uma rebelião contra Deus, a nova mensa
Cristo Jesus, é na sua morte que fomos gem revela que nenhuma força da natureza
batizados? Pois pelo batismo nós fomos se ou do intelecto humano podia resgatar o
pultados com ele na morte para que, como homem. Para tanto, eram necessárias a obra
Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela do próprio Deus feito homem e a participa
glória do Pai, assim também nós vivamos ção do homem na paixão de Cristo em uma
vida nova. Porque se nos tornamos uma dimensão que permanecera quase inteira
coisa só com ele por morte semelhante à sua, mente desconhecida para os gregos: a dimen
assim seremos igualmente semelhantes na são da “ fé” .
sua ressurreição, sabendo que nosso velho
homem foi crucificado com ele para que
fosse destruído este corpo de pecado, e as
sim não sirvamos mais ao pecado. Com efei 7 O valor1da f é
to, quem morreu ficou livre do pecado. Mas, e a participação v\o Divmo
se morremos com Cristo, temos fé que tam
bém viveremos com ele, sabendo que Cris
to, uma vez ressuscitado dentre os mortos, A filosofia grega subestimara a fé ou
já não morre, a morte não tem mais do crença (pístis) do ponto de vista cognosciti-
mínio sobre ele. Porque, morrendo, ele mor vo, pois dizia respeito às coisas sensíveis,
reu para o pecado uma vez por todas; vi mutáveis, sendo portanto uma forma de opi
vendo, ele vive para Deus. Assim também nião (dóxa). Em verdade, Platão a valori
vós considerai-vos mortos para o pecado e zou como componente do mito, mas, em seu
vivos para Deus em Cristo Jesus. Portanto, conjunto, o ideal da filosofia grega era a
que o pecado não impere mais em vosso epistéme, o conhecimento. E, como vimos,
corpo mortal, sujeitando-vos às suas pai todos os pensadores gregos viam no conhe
xões; nem entregueis vossos membros, co cimento a virtude por excelência do homem
mo armas de injustiça, ao pecado; pelo con e a realização da essência do próprio homem.
trário, oferecei-vos a Deus como vivos Pois a nova mensagem exige do homem pre
provindos dos mortos e oferecei vossos mem cisamente uma superação dessa dimensão,
bros como armas de justiça a serviço de invertendo os termos do problema e pondo
Deus. E o pecado não vos dominará, por a fé acima da ciência.
que não estais debaixo da Lei, mas sob a Isso não significa que a fé não tem um
graça” . valor cognoscitivo próprio: entretanto, tra
A encarnação de Cristo, sua paixão ex- ta-se de um valor cognoscitivo de natureza
piadora do antigo pecado, que fez seu in inteiramente diferente, em comparação com
gresso no mundo com Adão, e sua ressur o conhecimento da razão e do intelecto; de
reição resumem o sentido da mensagem todo modo, trata-se de um valor cognos
cristã — e essa mensagem subverte inteira citivo que só se impõe a quem possui aque
mente os quadros do pensamento grego. Os la fé. Como tal, ela constitui verdadeira
filósofos gregos haviam falado de uma cul “ provocação” em relação ao intelecto e
pa original, extraindo o conceito dos misté à razão.
rios órficos. E, de certa forma, haviam vin Adiante, falaremos sobre as conseqüên
culado a essa culpa o mal que o homem sofre cias dessa provocação. Antes, é necessário
em si. Mas, em primeiro lugar, ficaram muito captar o seu sentido geral. E é ainda Paulo
longe da explicação da natureza dessa cul quem o revela do modo mais sugestivo, em
pa (basta ler, por exemplo, o mito platôni sua primeira carta aos Coríntios: “A lingua
co do Fedro). Em segundo lugar, estavam gem da cruz é loucura para aqueles que se
convencidos de que: perdem, mas para aqueles que se salvam,
a) “ naturalmente” , o ciclo dos nasci para nós, é poder de Deus. Pois está escrito:
mentos (a metempsicose) teria cancelado a ‘Destruirei a sabedoria dos sábios e aniqui
culpa nos homens comuns; larei a inteligência dos inteligentes’. Onde
b) os filósofos podiam libertar-se das está o sábio? Onde está o homem culto?
conseqüências daquela culpa em virtude do Onde está o argumentador deste século?
conhecimento e, portanto, pela força huma Deus não tornou louca a sabedoria deste
na, ou seja, de modo autônomo. século? Com efeito, visto que o mundo por
Todavia, além de mostrar a realidade meio da sabedoria não reconheceu a Deus
bem mais inquietante da culpa original, que na sabedoria de Deus, aprouve a Deus pe
Primeira pãVtC - j \ d e v o lu ç ã o e s p i r i t u a l Ia m e n s a g e m b í b lic a
la loucura da pregação salvar aqueles que ninguém o conhece senão o Espírito de Deus.
crêem. Os judeus pedem sinais e os gregos Quanto a nós, não recebemos o espírito do
andam em busca da sabedoria; nós, porém, mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a
anunciamos Cristo crucificado, que, para os fim de que conheçamos os dons da graça de
judeus, é escândalo, para os gentios é lou Deus. Desses dons não falamos segundo a
cura, mas, para aqueles que são chamados, linguagem ensinada pela sabedoria huma
tanto judeus como gregos, é Cristo, poder na, mas segundo aquela que o Espírito ensi
de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é na, exprimindo realidades espirituais em ter
loucura de Deus é mais sábio do que os ho mos espirituais. O homem psíquico não
mens e o que é fraqueza de Deus é mais for aceita o que vem do Espírito de Deus. É lou
te do que os homens. Vede, pois, quem sois, cura para ele; não pode compreender, pois
irmãos, vós que recebestes o chamado de isso deve ser julgado espiritualmente. O
Deus; não há entre vós muitos sábios se homem espiritual, ao contrário, julga a res
gundo a carne, nem muitos poderosos, nem peito de tudo e por ninguém é julgado. Pois
muitos de família prestigiosa. Mas o que é ‘quem conheceu o pensamento do Senhor
loucura no mundo, Deus o escolheu para para poder instruí-lo?’ Nós, porém, temos
confundir o que é forte, e o que no mundo é o pensamento de Cristo
vil e desprezado, o que não é, Deus esco Essa mensagem subversiva de todos os
lheu para reduzir a nada o que é, a fim de esquemas tradicionais dá origem inclusive
que nenhuma criatura se possa vangloriar a uma nova antropologia (de resto, já am
diante de Deus. Ora, é por ele que vós sois plamente antecipada no Antigo Testamen
em Cristo Jesus, que se tornou para nós sa to): o homem não é mais simplesmen
bedoria proveniente de Deus, justiça, santi te “ corpo” e “ alma” (entendendo-se por
ficação e redenção, a fim de que, como diz “ alma” razão e intelecto), isto é, em duas
a Escritura, ‘aquele que se gloria, se glorie dimensões, mas sim em três dimensões: “ cor
no Senhor’. Eu mesmo, quando fui ter con- po” , “ alma” e “ espírito” , onde o “ espíri
vosco, irmãos, não me apresentei com o pres to” é exatamente essa participação no di
tígio da palavra ou da sabedoria para vos vino através da fé, a abertura do homem
anunciar o mistério de Deus. Pois não quis para a Palavra divina e para a Sabedoria di
saber outra coisa entre vós a não ser Jesus vina, que o preenche com nova força e, em
Cristo, e Jesus Cristo crucificado. Estive certo sentido, lhe dá nova estatura onto-
entre vós cheio de fraqueza, receio e tremor; lógica.
minha palavra e minha pregação nada ti A nova dimensão da fé, portanto, é a
nham da persuasiva linguagem da sabedo dimensão do Espírito em sentido bíblico. Os
ria, mas eram uma demonstração do Espí gregos haviam conhecido a dimensão do
rito e o poder divino, a fim de que a vossa nous, mas não a do pneuma, que passaria a
fé não se baseie sobre a sabedoria dos ho ser a dimensão dos cristãos.
mens, mas sobre o poder de Deus. No en
tanto, é realmente de sabedoria que falamos
entre os perfeitos, sabedoria que não é des
te mundo nem dos príncipes deste mundo, 8 O " e .r o s '' g r a g o ,
votados à destruição. Ensinamos a sabedo o a m o r ( " a g á p a " ) ceis+ão
ria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus,
e a g ra ça
antes dos séculos, de antemão destinou para
a nossa glória. Nenhum dos príncipes deste
mundo a conheceu, pois, se a tivessem co Em um de seus cumes mais significati
nhecido, não teriam crucificado o Senhor vos, o pensamento grego criou, sobretudo
da glória. Mas, como está escrito, ‘o que os com Platão, a admirável teoria do eros, da
olhos não viram, os ouvidos não ouviram e qual já falamos amplamente. Mas o eros não
o coração do homem não percebeu, isso é Deus, porque é desejo de perfeição, ten
Deus preparou para aqueles que o amam’. são mediadora que torna possível a eleva
A nós, porém, Deus o revelou pelo Espírito. ção do sensível ao supra-sensível, força que
Pois o Espírito sonda todas as coisas, até tende a conquistar a dimensão do divino. O
mesmo as profundidades de Deus. Quem, eros grego é falta-e-posse em uma conexão
pois, dentre os homens conhece o que é do estrutural entendida em sentido dinâmico e,
homem, senão o espírito do homem que nele por isso, é força de conquista e ascensão,
está? Da mesma forma, o que está em Deus, que se acende sobretudo à luz da beleza.
Capitulo pTÍfH6ÍT0 - :A Bíblia, sua mensagem e suas influências. 19
sas, mas sequer de si mesmo, como diz Cris para a “ressurreição dos mortos” . Essa é uma
to: “ Sem mim, nada podeis fazer” . Em uma das marcas da nova fé. E a ressurreição im
esplêndida passagem da segunda Epístola plica o retorno também do corpo à vida.
aos Coríntios, Paulo sela essa reviravolta no Precisamente isso constituía um gravís
pensamento antigo. Depois de ter suplica simo obstáculo para os filósofos gregos: era
do a Deus três vezes, para que dele afastas um absurdo que devesse renascer aquele
se uma grave aflição que o atribulava, teve corpo que era visto por eles como “obstá
a seguinte resposta: “ Basta-te a minha gra culo” e como fonte de toda negatividade e
ça, pois é na fraqueza que a força manifesta de mal.
o seu poder” . Por isso, Paulo conclui: “ Por A reação de alguns estóicos e epicu-
conseguinte, com todo o ânimo prefiro glo ristas ao discurso pronunciado por Paulo no
riar-me das minhas fraquezas, para que pou Areópago, em Atenas, é muito eloqüente.
se sobre mim a força de Cristo” . Eles ouviram Paulo enquanto ele falava de
Deus. Mas, quando falou em “ ressurreição
dos mortos” , não lhe permitiram que conti
nuasse a falar. Está registrado nos Atos dos
10 A eessureeição dos mortos Apóstolos: “Ao ouvirem falar de ressurrei
ção dos mortos, uns zombavam, outros di
ziam: ‘Ouvir-te-emos a respeito disto outra
O vez.’ Foi assim que Paulo se retirou do meio
conceito de “ alma” é uma criação
grega, cuja evolução nós seguimos a partir deles” .
de Sócrates, que fez dela a essência do ho E Plotino, na renovada perspectiva da
mem, a Platão, que fundamenta a sua imor metafísica platônica, escrevia, em aberta
talidade com provas racionais, e a Plotino, polêmica com essa crença dos cristãos: “ O
que dela faz uma das três hipóstases. Certa que existe de alma no corpo nada mais é
mente, a psyché é uma das figuras teoréti- que alma adormecida. E o verdadeiro des
cas que melhor marcam o quadro do pensa pertar consite na ressurreição — a verda
mento grego e o seu idealismo metafísico. deira ressurreição, que é do corpo, não com
Recorde-se que os próprios estóicos, embo o corpo. Pois ressurgir com um corpo equi
ra fazendo aberta profissão de materialis- vale a cair de um sono em outro, a passar,
mo, admitiam uma sobrevivência da alma por assim dizer, de um leito a outro. Mas o
(ainda que até o fim da posterior conflagra verdadeiro levantar-se tem algo de definiti
ção cósmica). Em suma, desde Sócrates, os vo, não de um só corpo, mas de todos os
gregos passaram a ver na alma a verdadeira corpos, que são radicalmente contrários à
essência do homem, não sabendo pensar o alma; conseqüentemente levam a contrarie
homem senão em termos de corpo e alma dade até a raiz do ser. Dá-nos prova disso,
— e toda a tradição platônico-pitagórica e senão o seu devir, pelo menos o seu trans
o próprio Aristóteles (e, portanto, a maior correr e o seu extermínio, que certamente
parte da filosofia grega) consideraram a al não pertencem ao âmbito do ser” .
ma imortal por natureza. Por seu turno, muitos pensadores cris
A mensagem cristã propôs o problema tãos, ao contrário, não consideraram a dou
do homem em termos completamente dife trina do Fédon e dos platônicos como nega
rentes. Nos textos sagrados, o termo “ alma” ção de sua fé, procurando até acolhê-la
não aparece nas acepções gregas. O cristia como clarificadora. O tema da mediação
nismo não nega que, com a morte do ho entre a temática da alma e a temática da
mem, sobreviva algo dele; pelo contrário, ressurreição dos mortos, com a inserção da
fala expressamente dos mortos como sendo nova temática do Espírito, constituirá um
recebidos no “ seio de Abraão” . Entretanto, dos temas mais debatidos pela reflexão fi
o cristianismo não aponta de modo absolu losófica dos cristãos, com diferentes resul
to para a imortalidade da alma, mas sim tados, como veremos.
22 Primeira parte - r e v o l u ç ã o espiritu al d a m e n s a g e m bíblica
III. P a ra além
d o k orizou te cultural g r e g o
• Todos estes ganhos de ordem moral e filosófica foram propostos não à luz
de um aprofundamento racional e lógico — como objetos de ciência — , mas por
via de fé, também nisso subvertendo o modo comum de pensar dos gregos, que
consideravam a fé uma forma deteriorada de conhecimento —
a fé cristã próprio da sensação — e a ciência como saber supremo. O anún-
como fermento cio do Evangelho torna-se, assim, fermento de civilização ca
dê civilização paz de ultrapassar o horizonte clássico, sem enfraquecer a con-
* 1~2 tribuição para o desenvolvimento da humanidade.
Este ícone reproduz bela imagem difundida com diversas variantes no ambiente greco-bizantino.
Representa de modo emblemático a frase evangélica:
“Eu sou a videira e vós os ramos".
Na representação do livro de Cristo e dos outros livros na mão dos Apóstolos,
está simbolizada a fonte da Verdade e sua expansão.
24 Primeira parte - y \ r e v o l u ç ã o e s p i r i t u a l d, mensagí bíblií
parecer, essa não foi a tese dos primeiros Mas, depois da mensagem cristã, até
cristãos, que, depois do brusco impacto ini a medida grega do homem deve ser reava
cial, trabalharam duramente para construir liada. Como diz R. Grousset, “ o coração
uma síntese, como veremos. humano é mais profundo do que a sabedo
Um erro de fundo dos gregos, para usar ria antiga” . Com efeito, o homem, que os
as palavras de C. Moeller, está no fato de gregos tanto exaltaram, é para o cristão
que “procuraram no homem aquilo que só algo muito maior do que pensavam os gre
podiam encontrar em Deus. Foi grande o seu gos, mas numa dimensão diversa e por ra
erro, mas trata-se do erro das almas nobres” . zões diversas: se Deus considerou que de
Outro erro de fundo foi o de ter nega via confiar aos homens a difusão de sua
do com armas dialéticas aquelas realidades própria mensagem e se, até mesmo, chegou
que não se enquadravam em seus quadros a fazer-se-homem para salvar o homem,
perfeitos, como o mal, a dor e a morte (o então a “ medida grega” do homem, mes
pecado é um erro de cálculo, dizia Sócrates; mo tendo sido tão elevada, torna-se insu
até o cadáver vive, dizia Parmênides; a mor ficiente e deve ser repensada a fundo. E, na
te não é nada, dizia Epicuro; até na tortura grandiosa tentativa de construir essa nova
do ferro incandescente o sábio é feliz, dizia “medida” do homem, nascería o humanis
toda a filosofia helenística). mo cristão.
A PATRÍSTICA
NA ÁREA CULTURAL
DE LÍNGUA GREGA
M áxim o o C o n fe sso r
Capítulo segundo
O s problem as filosóficos essenciais que derivam do encontro
entre “ fé” e “ razão”
Fílon de Alexandria e a Gnose
Capítulo terceiro
Os apologistas gregos
e a Escola catequética de Alexandria
Capítulo quarto
I . P r o b le m a s e m e rg e n te s
d o im p a c to c o m a K íb lia
• Sobre a base desses grandes problemas era claro o esforço de definir a iden
tidade do cristão, o que ocorreu em três momentos:
1) o dos Padres Apostólicos do séc. I (discípulos diretos dos
apóstolos), que tiveram de modo prevalente interesses morais Os Padres
e ascéticos); Apostólicos,
2) o dos Padres Apologistas do séc. II, que tentaram uma os Apologistas,
defesa do cristianismo, recorrendo também a argumentos filo a Patrística
sóficos (de resto, o próprio Prólogo do evangelho de João abria
->§3-5
um caminho neste sentido);
3) por fim, o momento da Patrística (a partir do séc. III d.C.), que usou de
modo sistemático a filosofia (principalmente platônica) para dar uma base teórica
para a Revelação.
ser excluídos do cânon, já se haviam torna rente do Deus de amor do segundo. Para
do familiares e caros para muitos. O cânon muitos, uma grave dificuldade era represen
do Novo Testamento acabou sendo fixado tada sobretudo pela linguagem antropomór-
em 367, mediante uma carta de Atanásio. fica veterotestamentária. Tudo isso gerou
Mas, mesmo depois de fixado o cânon, con grandes debates, favorecendo particularmen
tinuou a produção de textos sacros. Os es te a grande difusão da interpretação alegó
critos excluídos do cânon ou produzidos rica do Antigo Testamento (difundida por
depois de sua determinação denominam-se Fílon de Alexandria, de que falaremos adian
apócrifos do Novo Testamento (por analo te) e a distinção de vários níveis de compreen
gia com os apócrifos do Antigo Testamen são do texto bíblico, que abriríam amplos
to, ou seja, os escritos que não se encon espaços para a reflexão teológica, moral e
tram no cânon do Antigo Testamento). filosófica.
2 questão
da conciliabilidade
do y\utigo
e do A) ovo Testameuto
4 O s geandes problemas
teol ógicos
II. LAm p ^ e c u ^ s o ^ :
T^ílon d e y \le x a n d ^ ia
• Deus, conforme o relato bíblico, tem outras atividades (por exemplo, rege o
mundo, julga, dispensa as graças) e, como no caso da Palavra, também estas são
hipostatizadas e tomam o nome de Potências: teremos assim a
Potência real, a benfeitora etc. Toda essa formação de hipóstases As Potências
tem a função de não pôr Deus em contato direto com o mundo -^§2
material, considerado mau.
1 "^i\oso^\a m o s a i c a '1
Em algumas passagens, fala dele até como dimensão, de tal natureza que chega a trans
causa instrumental e eficiente. Em outras formar radicalmente o significado, o valor
passagens, porém, fala dele como Arcanjo, e o alcance das outras duas. Segundo essa
Mediador entre criador e criaturas (à medi nova concepção, na qual o componente bí
da que não é incriado, como Deus, mas tam blico torna-se predominante, o homem é
bém não é criado, como as criaturas do constituído por:
mundo), Arauto da paz de Deus e Conser 1) corpo;
vador da paz de Deus no mundo. 2 ) alma-intelecto;
Além disso, o que é muito importante, 3) Espírito proveniente de Deus.
o Logos de Fílon expressa as valências fun Segundo a nova perspectiva, o intelec
damentais da “ Sabedoria bíblica” e da “ Pa to humano é corruptível, no sentido de que
lavra de Deus” bíblica, que é a Palavra cria é intelecto “terreno” , a menos que Deus ins
dora e produtora. Por fim, o Logos também pire nele “ uma força de verdadeira vida” ,
expressa o significado ético de “Palavra com que é o Espírito divino (pneuma).
que Deus guia ao bem” , o significado de Está claro que, considerada em si mes
“ Palavra que salva” . Em todos esses signifi ma, a alma humana (ou seja, o intelecto
cados, o Logos indica uma realidade incor- humano) seria algo muito pobre se Deus nela
pórea, ou seja, metassensível e transcenden não soprasse o seu Espírito (pneuma). Para
te. Mas, como o mundo sensível é construído Fílon, o momento que realiza o vínculo do
segundo o modelo inteligível, ou seja, segun homem ao divino não é mais a alma, como
do o Logos — e mais: pelo instrumento do para os gregos, nem sequer a sua parte mais
Logos —, existe também um aspecto ima- elevada, o intelecto, mas sim o Espírito, que
nente do Logos, que é ação do Logos incor- deriva diretamente de Deus. Conseqüente-
póreo sobre o mundo corpóreo. Nesse sen mente, o homem tem uma vida que se de
tido imanente, o Logos é o vínculo que senvolve em três dimensões:
mantém o mundo unido, o princípio que o 1) segundo a dimensão física puramen
conserva e a norma que o governa. te animal (corpo);
Como Deus não é finito, inumeráveis 2 ) segundo a dimensão racional (alma-
são as manifestações de sua atividade, que intelecto);
Fílon chama de “ Poderes” . No entanto, ele 3) segundo a dimensão superior, divi
só menciona um número limitado desses na e transcendente do Espírito.
poderes e, normalmente, só chama em cau Em si mesma mortal, a alma-intelecto
sa os dois principais (e a eles subordina to torna-se imortal à medida que Deus lhe dá
dos os restantes): o Poder criador, com o o seu Espírito, ela se vincula ao Espírito e
qual o Criador produz o universo, e o Poder vive segundo o Espírito. E caem assim os
régio, com o qual o Criador governa aquilo sustentáculos sobre os quais Platão procu
que criou. rara alicerçar a imortalidade da alma. A
A relação entre o Logos e os dois Po alma não é imortal em si mesma, mas pode-
deres supremos (e, portanto, entre o Logos se tornar imortal à medida que sabe viver
e todos os outros poderes, que, como disse segundo o Espírito.
mos, se subordinam aos dois principais) é
expressamente tematizada por Fílon. Em
alguns textos, ele considera o Logos como
fonte dos outros poderes; em outros, porém, 4 A taova ética
ele atribui ao Logos a função de reunir os
outros poderes. i i]
Todas as significativas novidades que
Fílon introduz na ética dependem precisa
mente dessa terceira dimensão — o Espírito
3 ;A cuateopolc>0Ía filo n i a n a de Deus —, que deriva diretamente da in
terpretação da doutrina da criação e da teo
logia bíblica em geral. A moral torna-se
Na antropologia, Fílon parece seguir inseparável da fé e da religião, desembocan
em parte Platão, distinguindo “alma” e “cor do em verdadeira união mística com Deus e
po” no homem. Mas, pouco a pouco, ele em uma visão extática.
amadurece uma concepção mais avançada, Por causa desse aspecto é a figura de
fazendo irromper no homem uma terceira Abraão que serve como modelo, principal
34 Segunda parte - A A a t r í s f i c a n a á r e a c u l t u r a l d e líiU0ua 0rega
mente por seu caráter de “ migrante” . Com nós mesmos, compreendendo que tudo o
ousada transposição alegórica, a migração que temos não é nosso e dedicando-o a quem
de Abraão torna-se o símbolo da viagem de no-lo deu. E é nesse preciso momento que
toda alma para a salvação e as várias terras Deus se dá a nós. Eis um texto significativo:
que o patriarca atravessou na sua vida (Egi “ Para a criatura, o momento justo para en
to, Caldéia...), tornando-se igualmente eta contrar o seu Criador ocorre quando ela
pas que a alma deve alcançar na sua purifi reconheceu a sua própria nulidade”. E eis
cação segundo uma perspectiva moral (do outro texto, que resume o itinerário: “A gló
vício à virtude), intelectual (da fé no cosmo ria de uma alma extraordinariamente gran
à fé em Deus) e psicológico-pedagógica (da de é ultrapassar o criado, superar os seus
infância à maturidade). limites e vincular-se somente ao incriado,
Por esse caminho, Fílon antecipa aquele segundo os preceitos sagrados, nos quais é
“ itinerário para Deus” que, posteriormen prescrito ‘apegar-se a ele’ (Dt 30,20). Por
te, em alguns Padres, especialmente de Agos isso, àqueles que se apegam a ele e o servem
tinho em diante, se tornará canônico. Do sem interrupção, em troca, ele se dá a si
conhecimento do cosmo, transcendendo o mesmo em herança” .
próprio cosmo, devemos passar a nós mes A vida feliz consiste precisamente nes
mos e ao conhecimento de nós mesmos; mas sa transcendência do humano na dimensão
o dado essencial consiste exatamente no do divino, “vivendo inteiramente para Deus
momento em que também transcendemos a ao invés de viver para si mesmo” .
III. A cãKVOSe
• Gnose significa "conhecimento" e designa a iluminação particular que al
gumas correntes religioso-filosóficas consideravam possuir e que codificavam em
determinadas fórmulas, ou imagens, ou conceitos. Os principais são os seguintes:
1) o conhecimento gnóstico se refere a Deus e à salvação
ultraterrena, apresenta-se como doutrina secreta revelada por
Os fundamentos Cristo a poucos discípulos, e transcrita nos Evangelhos gnósticos;
do pensamento 2) a concepção do mundo dos Gnósticos é pessimista e é
gnóstico
expressão da humanidade angustiada: ela, com efeito, vê o
->§ 1-4
cosmo como reino do mal, e considera a nossa permanência
nele como um exílio;
3) os homens, conforme sua relação com a Gnose, distinguem-se em pneumá
ticos (os que mais participam do conhecimento e se destinam à salvação), hílicos
(ou seja, ligados à terra e destinados à perdição) e psíquicos (abertos a uma ou
outra destinação);
4) este mundo foi criado por um Demiurgo mau (o Deus do Antigo Testamen
to) e é resgatado por um Deus bom (Cristo);
5) a derivação da realidade cósmica e inteligível a partir da unidade primor
dial explica-se por via alegórica com a separação de casais de seres eternos (cha
mados "éons") em uma ordem bastante complicada, e por vezes fruto de fantasia.
7. Como o nascimento de alguns seres pos irrigados: com efeito, se o fluxo excessivo
depende do dissolução de outros, assim tam transborda, o terreno ficará lodoso e barrento,
bém, por sua vez, a dissolução de alguns de em vez de fértil. Para que eu seja fecundo, é
pende do nascimento de outros. Neste sentido preciso que o fluxo esteja em minha medida e
é verdadeiro o dito: "Nada morre daguilo que não desmedido.
nasce, mas, dividindo-se uma coisa em outra, 33. Por isso eu pergunto: "O que me da
dão lugar a uma única forma".3 rás", tu que me fizeste dons infinitos, no limite
fílon, fís alegorias das Leis, I, do que pode receber uma natureza mortal?
em Todos os tratados Aquilo que, por outro lado, desejo ainda apren
do Comentário alegórico da Bíblia. der e adquirir é isto: quem poderá ser o digno
herdeiro de teus benefícios?
34. Ou então "arrisco a morrer sem filhos"
(Gn 15,2), tendo recebido um bem caduco, efê
mero, de breve duração, eu que peço ter o con
trário, isto é, um bem duradouro, que perma
A nulidcide do homem neça no tempo, incontestável, imortal, que
possa espalhar suas sementes, estender suas
Fl nulidade do homem, proclamada aqui raízes, que tenha solidez e que possa levantar
por Fílon, está longe de se r umo humilhação seu tronco direto para o céu?
da p e sso a humana ou um p erder-se em 35. G certamente necessário que a virtu
Deus. S e dermos atenção à psicologia dos de do homem caminhe sobre a terra, mas tam
personagens, notaremos que a personalida bém que chegue até o céu, a fim de que lá,
d e de Rbraão de modo nenhum está "perdi nutrida pela incorruptibilidade, possa permane
da", mas muito mais viva e determinada. cer incólume para sempre.
Fílon, portanto, une estreitamente o reconhe 3ó. Sei bem que tu, que conduzes ao ser
cimento dos próprios limites com a consciên as coisas que não existem e geras todas as
cia da dignidade humana, pois o homem é realidades, não amas uma alma estéril e infe-
exatamente parente e íntimo d e Deus. cunda, uma vez que concedeste à estirpe dos
videntes a graça extraordinária de jamais se
rem estéreis e sem descendentes. Pois bem,
também eu, que faço parte dessa estirpe, de
30. C meu estado de ânimo que Moisés,
sejo, com todo direito, ter um herdeiro. G a partir
o perserutador, inscreveu sobre o meu memorial.
do momento que vejo que essa estirpe não se
Ge, com efeito, diz: “Aproximando-se, Abraão
extingue, penso que seria tanto mais indigno
disse: 'Agora cheguei a falar com meu Senhor,
permitir que meu desejo de beleza acabe em
eu que sou terra e pó" (Gn 18,23.27), uma vez
nada.
que o momento exato para a criatura encontrar
37. Portanto, suplico e imploro que, assim
seu Criador chega quando ela reconheceu sua
como as sementes e as brasas jazem sob a cin
própria nulidade.
za, também a chama salvífico do virtude possa
31. As palavras "O que me darás?" não
acender-se e resplandecer e, transmitindo-se
exprimem a pergunta de quem se encontra na
como chama de uma geração para outra, dure
dúvida, e sim de quem está grato por causa da
o quanto o mundo durar.
grandeza e da plenitude dos bens de que goza.
38. Aos ascetas concedeste o ardente
“O que me darás?" significa: o que mais pode
desejo de semear e gerar filhos da alma, e,
rio ainda esperar em acréscimo? Ó tu, que gos
quando os obtiveram, gritaram de alegria e dis
tas de dar, tuas graças são abundantes, sem
seram: "Gis as crianças; através delas Deus
confins, e não têm limite nem termo e, como
mostrou a compaixão para com seu servo" (Gn
fontes, derramam águas mais abundantes do
33,5). A inocência é sua ama e nutriz; suas a l
que as que delas são alcançadas.
mas são puras, suaves e nobres; estão prepa
32. C bom, porém, olhar não só para o flu
radas para receber as marcas sublimes e divi
xo sempre transbordante de seus benefícios,
nas da virtude.
mas também para nós que somos como cam-
Fílon,
O herdeiro dos coisas divinos,
em Todos o s trotados
3€urípides, fr. 839 Nciuck. do Comentário olegórico do Bíblia.
t S a p ít u lo t e r c e i r o
O s a p o lo g is ta s g re g o s
e a Ê s e o la c a fe g u e tic a de yAlexci^vdria
a expressar uma verdade parcial. Mas, à corruptível, e é justamente por isso que é
medida que se contradizem nos pontos funda Deus, ao passo que tudo o que vem depois
mentais, mostram que não estão de posse dele é gerado e corruptível. Eis por que as al
de uma ciência infalível e de um conheci mas morrem e são punidas; se não fossem
mento irrefutável. Tudo aquilo que ensina corruptíveis, não pecariam” . Nem se pode
ram com veracidade pertence a nós, cristãos. pensar que haja tipos diferentes de realida
Com efeito, depois de Deus nós adoramos e de incorruptíveis, porque não se entendería
amamos o Logos nascido de Deus, eterno e como poderíam ser diferentes. E isso que Pla
inefável, porque ele se fez homem por nós, tão e Pitágoras não entenderam. Justino escre
para curar-nos dos nossos males, tomando- ve: “ Platão e Pitágoras não me interessam,
os sobre si. Os escritores puderam ver a verda nem quem simplesmente defende doutrinas
de de modo obscuro, graças à semente do Lo desse tipo. A verdade é esta: podes aprendê-
gos que neles foi depositada. Mas uma coisa la do que se segue. A alma é vida ou tem
é possuir uma semente e uma semelhança vida. Se é vida, fará viver alguma outra coi
proporcional às próprias faculdades e ou sa, ao invés de si mesma [...]. Ninguém nega
tra é o próprio Logos, cuja participação e que a alma vive. Se portanto vive, vive sem
imitação deriva da graça que dele provém” . ser ela própria a vida, mas participando da
vida. Ora, o que participa de algo é diverso
WSM ;A doutrina do L-ocfos daquilo de que participa. A alma participa
da vida porque Deus quer que tenha a vida” .
Entre suas doutrinas particulares, des O homem não é eterno, e o corpo não está
taca-se a doutrina sobre as relações entre o unido perenemente à alma; e quando esta
Logos-Filho e Deus-Pai, interpretada atra harmonia se rompe, a alma abandona o cor
vés de uma inteligente utilização do concei po e o homem já não existe. “Assim a alma
to estóico de “ Logos proferido” , que Fílon cessará de existir, o espírito de vida separa-
já havia utilizado, e de outros conceitos des se dela: a alma já não existe e retorna ao
tinados a ter grande eco posteriormente: lugar de onde veio” . Desse modo Justino
“ Como princípio, antes de todas as criatu abre espaço à doutrina da ressurreição.
ras, Deus gerou de si mesmo certa potência
racional (loghiké), que o Espírito Santo cha MEE A condenação de
ma ora ‘Glória do Senhor’, ora ‘Sabedoria’, à moi*te
ora ‘Anjo’, ‘Deus’, ‘Senhor’ e Logos (= Ver
bo, Palavra) (...) e porta todos os nomes, O testemunho dos mártires convertera
porque cumpre a vontade do Pai e nasceu Justino.
da vontade do Pai. E, assim, vemos que al Ele, por seu turno, também deu teste
gumas coisas acontecem entre nós: proferin munho profundo de Cristo, cuja fé havia abra
do uma palavra (= logos, verbum), nós ge çado. Com efeito, morreu decapitado em 165,
ramos uma palavra (logos), mas, no entanto, condenado pelo prefeito de Roma por sua
não ocorre uma divisão e uma diminuição profissão de fé no cristianismo. um
do logos (= palavra, pensamento) que está
dentro de nós. E assim vemos também que,
de um fogo, acende-se outro fogo sem que o
fogo que acende seja diminuído: este perma 3 ~ C a cà a no
nece igual e o novo fogo que se acendeu sub
siste sem diminuir aquele do qual se acendeu” .
Outros apologistas do século II, que tive
E S I .A oloutnma ala alma ram certa importância, foram: Taciano o As
sírio, Atenágoras de Atenas, Teófilo de Antio-
O quia e o autor anônimo da Carta a Diogneto,
“ platônico” Justino, que conhecia
bem a doutrina da alma do Fédon, julga que um documento bastante significativo.
essa deve ser reformada estruturalmente. A Taciano foi discípulo de Justino, por
alma não pode ser eterna nem incorruptível quem foi convertido. Em seu Discurso aos
por sua natureza. De fato, ele escreve: “Tudo gregos, ele manifesta acentuada aversão à
o que existe fora de Deus [...] é por sua na filosofia e à cultura grega, ao contrário de
tureza corruptível, pode desaparecer e não seu mestre, vangloriando-se polemicamente
mais existir. Apenas Deus não é gerado e in de ser “ bárbaro” e de ter encontrado a ver
Cãpítulo terceiro - O s a p o l o 0 Í s + a s g r e g o s e a O s c o l a c a + e q u é i i c .a d e y M e x c m d n a
41
não é fruto de considerações e elucubrações tudo como cidadãos e tudo suportam como
de pessoas curiosas; nem se fazem promo forasteiros. Toda terra estrangeira é sua pá
tores, como alguns, de uma teoria humana tria e toda pátria é para eles terra estrangei
qualquer. (...) Habitam em sua própria pá ra. (...) Habitam na terra, mas são cidadãos
tria, mas como estrangeiros; participam de do céu” . [3]
Livro de Bênçãos
da metade do séc. XI
(Bari).
Õinega (íi),
a última letra
ilo alfabeto grego,
símbolo do rélos
ou fim de todas as coisas,
circunda Cristo
em sua majestade.
Capitulo t6YC6ÍYO - O s a p o l o g i s t a s g r e g o s e a O s c o l a c a + e q u é t ic a d e jA I e x c ^ d H a
43
II. y \ O s c o I a ca+equctica
d e y\lexeKvd^ia:
O lem ente e O n gerves
2 7^ f i g u r a e o s f u n d a m e n t o s
d o p en sa m en to d e O r íg e n e s
K f if l V id a e o b r a s f ilo s ó f ic a s
que queiras escondê-los; aprendes a geome viço e se destrói. A concupiscência, com efei
tria dos egípcios, a astronomia dos babilônios, to, torna-se tudo e se transforma em tudo e
tomas dos trácios os sábios encantamentos, tudo quer embelezar para esconder o homem.
muitas coisas te ensinaram também os assírios, M as o homem, com o qual coabita o
para as leis verazes e a crença em relação a Logos, não altera seu aspecto, não se transfor
Deus foste ajudado pelos próprios hebreus. ma, tem a forma do Logos, é semelhante a
Clemente de Alexandria, Deus, é belo, não se enfeita. 6 a beleza verda
O Protréptico. deira e, com efeito, é Deus; tal homem se torna
Deus, porque Deus o quer.
De fato, Heráclito disse bem: "Os homens
são deuses, os deuses homens, umo vez que a
razão é a mesma". O mistério é claro: Deus está
no homem e o homem se torna Deus, e o media
dor realiza a vontade do pai. Mediador é o
fl beleza espiritual* Logos, que é comum a ambos: filho de Deus,
salvador dos homens, de Deus servo, de nós
pedagogo.
Uma vido conforme o Logos propicia o
Uma vez que a carne é serva, conforme
capacidade d e viver segundo a justa medi
Paulo atesta, quem de fato irá querer enfeitar
da e, assim, alcançar a verdadeira beleza
esta criada, à guisa de alcoviteiro?1 Que a car
espiritual.
ne seja forma de servo é atestado pelo Após
tolo quando fala do Senhor. "Aniquilou a si
mesmo, tomando a natureza de escravo", cha
A maior de todas as ciências, ao que pa mando escravo o homem de carne antes que o
rece, é conhecer a si mesmo; quem, com efeito, Senhor se tornasse escravo e se encarnasse.
conhece a si mesmo, conhecerá Deus e, conhe O próprio Deus, porém, sofrendo na car
cendo Deus, se tornará semelhante o ele, não ne, libertou a carne da corrupção e, depois de
levando ouro nem manto filosófico, mas ope tê-la afastado da escravidão portadora de
rando o bem e tendo necessidade de pouquís morte e amarga, a revestiu de imortalidade,
simas coisas. dando-lhe este santo ornamento de eternida
Apenas Deus não tem necessidade de de: a imortalidade.
nada e goza sumamente vendo-nos puros na feciste ainda outra beleza dos homens, a
ordem do pensamento e na do corpo, revesti caridade. "A caridade — diz o Apóstolo — é
dos de uma estola cândida, o temperança. magnânima, é benigna, não é invejosa, não se
Tríplice é a atividade do alma. A de en vanglorio, não se incha", £ vangloria o orna
tender— que se chama racional — é o homem mento que tem a aparência do supérfluo e do
interior, e guia este homem visível; o homem não necessário. Por isso acrescenta: "não se
interior, ao contrário, é guiado por outro, ou seja, comporta indecorosamente". Indecorosa é uma
Deus. A alma irascível, sendo algo de ferino, figuro estranha e não segundo a natureza. A
está próximo da mania. Multiforme é a apetitiva alusão é estranha, como claramente explica o
que é a terceira, mais variada que o deus mari Apóstolo, dizendo: "não procura aquilo que não
nho Proteu; toma formas diversas e estimula os é seu". A verdade, com efeito, chama natural
adultérios, a volúpia e a molície. aquilo que lhe é próprio; a ambição, ao contrá
Tornou-se primeiro um leão barbudo rio, procura o que é de outrem, permanecendo
(ainda há o enfeite); os pêlos do queixo fora de Deus, do Logos e da caridade.
mostram que é um homem; Que o próprio Senhor fosse feio de a s
depois um dragão, um leopardo, um grande pecto o atesta o fepírito pela boca de Isaías:
porco; "Nós o vimos, não tem aparência nem beleza,
o amor pelo ornamento escorregou mas um aspecto desprezível, rejeitado diante
na intemperonça. O homem não aparece dos homens". Todavia, quem é melhor que o
mais semelhante a uma forte fera, Senhor? Não a beleza enganadora da carne,
mas tornou-se água mole mas a verdadeiro beleza da alma e da corpo
e árvore altíssima. ele fez ver, mostrando a benevolência da alma
Desencadeiam-se as paixões, se desen e a imortalidade da carne.
freiam os prazeres, murcha a beleza e quando Clemente de Alexandria, O Protréptico.
sopram contra ela as paixões eróticas do d e
vassidão cai por terra ainda mais depressa que
a pétala, e antes mesmo do outono perde o 'Mediador de relações ilícitas.
52 Segunda pãtte - y \ T-^a+rísfica n a á ^ e a c u l t u r a l d e l í n g u a g r e g a
capacidade da mente humana, mesmo que seja do (Provérbios 8,30ss), motivo pelo qual tam
a mais pura e a mais límpida. bém entendemos que Deus sempre se alegra.
Todavia, não parece Fora de lugar se, para Ora, nesta sabedoria, que sempre estava com
tornar mais evidente o conceito, nos servirmos o Pai, estava sempre contida, preordenada sob
de outra comparação. Por vezes nossos olhos a forma de idéias, a criação, de modo que não
não podem olhor o natureza do luz, ou sejo, a houve momento em que a idéia daquilo que
substância do sol; mas observando seu esplen teria sido criado não estivesse na sabedoria.
dor e os raios que se difundem nas janelas ou Parece-me que talvez desse modo nós,
em pequenos ambientes aptos a receber a luz, nos limites da nossa pequenez, possamos pen
daqui podemos argüir quão grande é o princí sar Deus de modo ortodoxo, pois não dizemos
pio e a Fonte da luz material. Analogamente, que os criaturas são não-geradas e coeternas
as obras da providência e a maestria que se com Deus, e por outro lado nem que Deus, an
revela em nosso universo são, por assim dizer, tes nada tendo feito de bom, tenha começado
os raios de Deus em comparação com sua na o operar depois de uma mudança, a partir do
tureza e sua substância. Portanto, uma vez que momento que é verdadeiro o que foi escrito:
com suas forças nossa mente não pode conce "Tudo fizeste na sabedoria" (Salmo 103,24). A
ber Deus como ele é, pelo beleza de suas obras se tudo foi feito na sabedoria, pois a sabedo
e pela magnificência de suas criaturas ela o ria sempre existiu, pré-constituídos sob a forma
reconhece como pai do universo. de idéias sempre existiam na sabedoria os se
Por isso não devemos crer que Deus seja res que sucessivamente teriam sido criados tam
corpo ou seja encerrado em um corpo, e sim bém segundo a substância. Penso que pensan
que ele é natureza intelectual simples, à qual do justamente nisso Salomão diz no Aclesiastes:
absolutamente nada se pode acrescentar, para "O que foi feito? O mesmo que será feito; o
que não se pense que ele tenha em si algo de que foi criado? O mesmo que será criado. Não
mais ou de menos: ele é, em sentido absoluto, há nado de novo sob o sol. A se alguém disser:
mônada e, por assim dizer, ênada:' inteligên 'Ais, isto é novo', isso já existiu nos séculos que
cia e fonte da qual derivam toda inteligência e existiram antes de nós" (Aclesiastes l,9 s s ).
toda substância intelectual. Portanto, se tudo isso que existe sob o sol exis
Orígenes, O s princípios, tiu já nos séculos que se passaram antes de
livro I, 1,5-6. nós, pois não há nada de novo sob o sol, sem
dúvida sempre existiram todas as coisas, os
3. O mundo das Idéias platônicas gêneros e as espécies, e poderiamos dizer tam
incluído e transfigurado bém aquilo que é numericamente uno.
na Sabedoria de Deus Orígenes, Os princípios,
livro I, 4,4-5.
A este ponto, porém, a inteligência huma
na se entrega, forçada a se perguntar como é
possível explicar que, a partir do momento que
Deus sempre existiu, também as criaturas sem
pre existiram; e que existiram, por assim dizer,
sem ter tido início, as criaturas que sem dúvida A apoccitástcise
devemos crer que foram criadas e feitas por
Deus. Visto que, aqui entram em contraste en
tre si as idéias dos homens, enquanto de ambas No passagem seguinte, Orígenes ilus
as partes se opõem e contrastam conceitos tra sua célebre teoria da apocatástase, s e
validíssimos que procuram atrair a si aquele que gundo a guol todas as coisas no Fim do mun
os considera, eis o que, segundo a limitadíssima do serão recapituladas na unidade originária
capacidade da nossa inteligência, nos vem à de Deus, gue será tudo em todos.
mente, e que pode ser declarado sem nenhum
perigo para a fé. Deus sempre foi Pai, e sem
pre teve o Filho unigênito, que, conforme tudo O fim do mundo é prova de que todas as
o que expusemos acima, é chamado também coisas chegaram à plena realização. Aste fato
de sabedoria; esta é a sabedoria com a qual nos lembra que se alguém é tomado pelo dese
Deus sempre se alegrava tendo criado o mun jo de ler e conhecer argumentos tão árduos e
difíceis deverá ter inteligência cultivada e com
pleta. Com efeito, se ele não tiver tido certa ex
'Ou seja, realidade absolutamente unitária e simples periência de questões de tal gênero, estes ar
que não admite em sl nenhuma forma de multiplicidade. gumentos lhe parecerão inúteis e supérfluos [...].
54 Segunda pavte - j A I-Yur ís f IíM n a á ^ e a culfunal d e lí ngu a g n e g a
O fim do mundo ocorrerá quando cada um Devemos crer que toda esta nossa subs
for submetido às penas conforme os próprios tância corpórea será tirada de tal condição
pecados (Mateus 24,36); e somente Deus co quando cada coisa for reintegrada para ser uma
nhece o tempo em que coda um receberá aqui- só coisa (João 17,21), e Deus será tudo em
‘ Io que merece. Consideremos todavia que a todos (1 Coríntios 15,28). Isso, porém, não acon
bondade de Deus por obra de Cristo conduzirá tecerá em um momento, mas lenta e gradual-
todas as criaturas para um fim único, depois de mente, através de séculos infinitos, pois a cor
ter vencido e submetido também os adversá reção e a purificação sucederão pouco a pouco
rios. Com efeito, assim diz a Cscritura: “Disse o e singularmente, e enquanto alguns com ritmo
Senhor ao meu senhor: Senta-te à minha direi mais veloz se apressarão em primeiro lugar para
ta até que eu ponha teus inimigos como esca- a meta e outros os seguirão de perto, outros,
belo de teus pés" (Salmo 109,1). Se não pare ao contrário, permanecerão muito atrás. C a s
ce claro aquilo que a palavra do profeta quer sim, mediante inumeráveis ordens constituídas
dizer, aprendamos mais abertamente de Pau por aqueles que progridem e, de inimigos que
lo, que diz: "€ preciso que Cristo reine até que eram, se reconciliam com Deus, chega-se ao
tenha posto todos os seus inimigos sob seus último inimigo, a morte, para que também este
pés" (1 Coríntios 15,25). € se nem estas pala seja destruído e não haja mais inimigo (1 Co
vras tão evidentes do apóstolo nos esclarecem ríntios 15,26).
suficientemente o que significa pôr os inimigos Quando todas as almas racionais forem
sob os pés, ouve como ele continua: “Com efei reconduzidas a esta condição, então também a
to, é preciso que tudo lhe seja submetido" (1 natureza deste nosso corpo será levado à gló
Coríntios 15,27). Mas o que é a submissão pela ria de corpo espiritual. Com efeito, como vemos
qual tudo deve estar submetido a Cristo? Creio que das naturezas racionais as que mereceram
que seja aquela pela qual também nós dese a bem-aventurança não são de natureza dife
jamos estar submetidos a ele, pela qual se lhe rente em relação às que viveram na indignida
submetem os apóstolos e todos os santos que de do pecado, mas são as mesmas, que antes
o seguiram: com efeito, submissão pela qual pecaram e depois, convertidas e reconciliadas
estamos submetidos a Cristo significa salvação com Deus, foram novamente chamadas à bem-
que Cristo dá a seus submetidos, conforme tudo aventurança: da mesma forma, também sobre
o que dizia também Davi: “Não estará minha a natureza do corpo não devemos crer que um
alma submetida o Deus? Com efeito, dele vem corpo é este de que agora usamos na ignomí
minha salvação" (Salmo 61,1). nia, na corruptibilidade e na fraqueza, e outro
Observando tal fim, em que todos os ini será aquele do qual faremos uso na incorrup
migos serão submetidos a Cristo e também tibilidade, no poder e na glória; mas será sem
será destruído o último inimigo, a morte, e Cris pre este mesmo corpo que, deixando estas im
to, a quem tudo foi submetido, entregará o perfeições de agora, será transformado na
reino a Deus pai (1 Coríntios 15,24ss), disso co glória e se tornará corpo espiritual, de modo
nhecemos o início das coisas. Com efeito, o que tendo sido vaso para uso vulgar, uma vez
fim é sempre semelhante ao início: e como um purificado se tornará vaso de luxo (Romanos
só é o fim de tudo, assim devemos entender 9,21), receptáculo de bem-aventurança. € de
um só início de tudo, e como um só é o fim de vemos crer que nesta condição permanecerá
múltiplas coisas, assim, de um só início deri sempre e imutavelmente por vontade do Cria
varam coisas muito variadas e diferentes, que dor, segundo a fé de Paulo que diz: “Temos uma
de novo, pela bondade de Deus, a submissão habitação não feita por mão de homens, eter
de Cristo e a unidade do Cspírito Santo são re na nos céus" (2Coríntios 5,1).
conduzidas a um só fim, que é semelhante ao Orígenes, O s princípios,
início [...]. livro III, 6.
é S a p ítu lo q u a rto
O s -f^ês Iuminares d a O a p a d ó c i a
e a s g r a n d e s figu ra s do P s e u d o - v ionísio
yAreopagi+a/ yVlaxi^no o O o n f e s s o r
e J o ã o D am asceno
I. y \ e r a á u r e a d a T-^a+rís+ica
e o (Soucílio d e /sjiceia
1 } O edito de AAilão
..... í
e as disputas teológicas
patias pelo platonismo, a ponto de conside vezes, onde nasceu o símbolo da fé, destina
rar Platão em concordância com Moisés. do a ser o “credo” de todos aqueles que se
Ário, que nasceu na Líbia em 256 e mor reconhecem como cristãos.
reu em 336, sustenta que o Filho de Deus foi Eis os pontos centrais do grande sím
criado do não-ser como todo o resto e, conse- bolo de Nicéia: “ Cremos em um só Deus
qüentemente, desencadeou a grande discus onipotente (pantokrátor = omnipotens), cria
são trinitária que levaria ao Concilio de Nicéia. dor (poietés = factor) de todas as coisas,
Atanásio (295-373) foi o campeão da te visíveis e invisíveis. E em um só Senhor, Je
se da “consubstancialidade” do Pai e do Fi sus Cristo, Filho unigênito de Deus, gerado
lho e, portanto, o grande adversário de Ário (genethéis = natus) do Pai, ou seja, da subs
e o triunfador do Concilio de Nicéia. tância (ousía = substantia) do Pai, Deus de
Basílio de Cesaréia, Gregório Nazian- Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus
zeno e Gregório de Nissa sobressaem do pon verdadeiro: gerado (gbenetós = genitus) e
to de vista cultural e filosófico, e deles fala não criado (poiethéis = factus), consubs
remos adiante. tanciai (bomooúsios = consubstantialis) ao
Nemésio de Emesa (sécs. IV-V) foi autor Pai, pelo qual todas as coisas foram criadas
de um tratado Sobre a natureza do homem. (eghéneto = facta sunt), as que estão no céu
Por fim, recordemos Sinésio de Cirene (370 e as que estão na terra; por nós e por nossa
413), formado na última escola platônica de salvação, ele desceu, se encarnou por obra
Alexandria, que se tornou bispo de Ptolemaida. do Espírito Santo (...) e ao terceiro dia res
suscitou, subiu ao céu e virá para julgar os
vivos e os mortos (...). Creio no Espírito
2 CD(Doncdlio de ÁOieéia Santo (...)” .
Faltam ainda a aquisição do conceito
e a fixqçqo do “credo" de Pessoa e o aprofundamento das relações
entre as três Pessoas (bypostáseis, personae),
O acontecimento principal desse pe que só chegariam posteriormente e dos quais
ríodo pode ser considerado o Concilio de falaremos quando tratarmos de santo Agos
Nicéia de 325, ao qual já acenamos várias tinho.
O primeiro
concilio ecumênico
(Nicéia, 32.S)
em que se condena
o arianismo:
o ícone do mosteiro grego
Metamorpbosis
representa Ario submetido
pela unidade da fé
do concilio ecumênico.
57
Capítulo quarto - O s + f ês l u m i n a r e s d a O a p a d ó c À a
: II. O v e - g o n o d e A) is s a :
e os P a d r e s (C ap adó cios
III. O I P s o u d o - D iomsio y W e o p a g i+ a
fttttl
Miniatura
(tirada da primeira
página do Códice
de Urbino lat. 62,
conservado
na Biblioteca Vaticana)
que representa
o Pseudo-Dionísio
Areopagita,
filósofo
da antiguidade tardia, dltatpp.niio.U)mtec
que teve grande
influência
sobre o pensamento
tioer^cultufrolofioom-
medieval.
Capítulo quarto - O s wês Iummapes da ^dapadóaia...
61
te, de modo irracional, para aquilo que está realizou o grande Desígnio do Pai, recapi-
abaixo dele, sobre o qual ele próprio, por tulando tudo aquilo que está no céu e sobre
ordem divina, teria devido comandar [...], e a terra em Si, em que tudo foi criado” .
assim pouco faltou para que de novo mise A partir da concepção do Confessor,
ravelmente corresse o perigo de afundar no segundo a qual tudo é recapitulado em Cris
não-ser, por isso são transformadas as natu to, no qual e pelo qual tudo existe, o maior
rezas [...]. E Deus se torna homem a fim de estudioso moderno de Máximo (H. U. von
salvar o homem perdido, tendo unificado em Balthasar) descreveu a existência humana
si as partes dispersas da natureza na sua tota como ato litúrgico, oferta, adoração transfi-
lidade e as formas universais dos particula guradora em um templo, tendo como nave
res, de que devia surgir por natureza a união o cosmo inteiro, ou seja, como “liturgia cós
daquilo que estava dividido [...]. E assim mica” . U ]® ®
V - 3 o ã o D a masceiao
T ^ecupem ção
da filosofia aeisfotélica
composto dos mesmos elementos do todo e do uma alma. A inteligência, com efeito, se é
com este esplendor do nome quiseram fazer o própria de todas estas faculdades, ou mostra
elogio da natureza, esquecendo que desse que elas são todos as almas, ou priva cada
modo tornavam o homem semelhante às carac uma delas, em igual medida, das proprieda
terísticas próprios da mosca e do rato, pois tam des características da alma".
bém neles existe a misturo dos quatro elemen G ela me respondeu: “Também tu queres
tos, porque certamente nos seres animais se examinar de modo coerente esta questão já
vê uma parte mais ou menos grande de cada um debatida por muitos outros: trata-se da idéia
dos elementos, sem os quais nenhum ser que que é preciso ter destes dois princípios, o con
participo da sensibilidade teria natureza para cupiscível e o irascível, paro ver se fazem parte
subsistir. Que grandeza tem, portanto, o homem, da essência da alma e se estão nela presentes
se o consideramos figura e semelhança do cos desde sua formação originária ou se, ao con
mo? Deste céu que circunda, da terra que mu trário, são algo diferente, inserido em nós pos
da, de todas as coisas neles compreendidas e teriormente. Que sua presença se nota na alma
que passam com aquilo que os circunda? é fato igualmente admitido por todos, mas ne
Gm que consiste, conforme a Igreja, a gran nhum raciocínio ainda soube dizer com exati
deza do homem? Não na semelhança com o dão o que é preciso pensar sobre eles, de modo
cosmo, mas em ser à imagem do Criador de a ter uma idéia segura a propósito. Ao contrá
nossa natureza. rio, quose todos [os filósofos] são tomados pela
Gregário de Nisso, dúvida, por causa de suas opiniões erradas e
O homem. diversas. Se a filosofia pagã, que debate este
argumento com seus artifícios, bastasse de fato
paro dar-nos uma demonstração, seria talvez
4. Na definição da alma
supérfluo acrescentar à pesquisa um discurso
não entra aquilo que é completamente
sobre a alma: mas, visto que [os filósofos] che
estranho a Deus
garam a formular sobre a alma teorias basea
€ eu, remetendo-me em meu pensamen das sobre as aparências e arbitrárias, enquan
to à definição da alma dada por ela [Macrina] to nós, que não somos livres para dizer o que
em seu discurso anterior, lhe fiz notar que este queremos, usamos a Gscritura santa como re
não havia ilustrado suficientemente as faculda gra e lei de todo doutrina, [segue-se que] nós,
des que se podem pensar presentes na alma. forçados a considerar apenas a Gscritura, acei
“Conforme o teu discurso, a alma é uma essên tamos somente aquilo que concorda com suas
cia inteligente que transmite ao corpo, seu ins intenções. Deixemos andar, portanto, o carro pla
trumento, a força vital, de modo que possa fa tônico, o par de potros atrelados, diferentes em
zer funcionar as sensações. Mas nossa olmo seus impulsos, e o auriga que os guia, todos enig
não se limita a pôr em movimento a faculdade mas de que [Platão] se serve para formular sua
cognoscitiva e especulativa do pensamento pro doutrina sobre a alma; coloquemos igualmente
duzindo-a em virtude de sua essência inteligen de lado todas as teses do filósofo seguinte,
te, ou a governar os faculdades sensoriais para que, pesquisando habilmente os fenômenos e
que funcionem conforme sua natureza: nela se examinando com cuidado o problema que agora
notam também muitos movimentos ditados pelo nos interessa, nos mostrou que a alma é mor
concupiscência e pela ira. Graças à presença tal; deixemos de lodo também os filósofos pre
em nós destas duas funções gerais, temos meio cedentes e sucessivos, tenham eles escrito em
de constatar que sua atividade e seu movimento prosa ou em versos baseados sobre o ritmo e
assumem uma grande variedade de manifes sobre o metro; tomemos, ao contrário, como
tações. São muitas as ações que se podem ver base de nosso raciocínio a Gscritura inspirado
guiadas pela faculdade concupiscível; e muitas por Deus, que nos obriga a não considerar nada
são também as ações produzidas pelo princí de excelso na alma, que não seja próprio da
pio irascível: nenhum desses dois princípios é natureza divina. Aquele que nos disse que a
corpóreo, e tudo aquilo que é incorpóreo pos alma se assemelha a Deus nos mostrou tam
sui uma inteligência. A definição que demos da bém que aquilo que é estranho a Deus não
olmo nos mostrou, por outro lado, que ela é um entra na definição da alma: a semelhança não
princípio inteligente. Por conseguinte, de nosso poderio subsistir naquilo que é diferente. Uma
discurso nasce um destes dois absurdos: ou a vez que estes dois princípios não se vêem na
ira e a concupiscência são em nós outras a l natureza divina, não é também justo supor que
mas, e em nós se pode notar, em vez de uma façam parte da essência da alma.
só alma, uma pluralidade de almas; ou então Gregário de Nisso,
nem o nosso pensamento deve ser considera R olmo e a ressurreição.
65
Capitulo quarto - O s t f ê s Iu m i n a m s d a í S a p a d ó c i a . ..
veis; nõo tem necessidade da luz, não sofre nhum evidente por si o que e como seja, cha
mudança ou corrupção ou divisão ou privação mando distinção a ignorância sobre isso, que
ou diminuição; não é nenhuma das coisas sen sepora a criatura de Deus. Com efeito, dado
síveis, nem as possui. que ela distingue estes entre si naturalmente,
Pseudo-Dionísio Areopagita, e não pode ser recolhida em unidade em uma
Teologia mística. só essência, porque não pode receber um úni
co e idêntico termo, foi deixada não-expressa.
A segunda divisão, ao contrário, em base à qual
se distingue toda o natureza que recebeu o ser
de Deus na criação, é a que está entre o inteli
gível e o sensível. A terceira é aquela segundo
M á x im o o C o n fesso r a qual a natureza se distingue em céu e terra.
A quarta, depois, é aquela segundo a qual a
terra se divide em paraíso e terra habitada, e a
quinta é aquela segundo a qual o homem, que
está acima de todos como um cadinho que con
tém em si a totalidade, tornando-se em si me
Rs cinco divisões diador entre todos os extremos de toda divi
do natureza são, com bondade introduzido com o nascimento
entre os existentes, se subdivide em macho e
fêmea. Tem claramente a plena capacidade de
6sto famosíssima passagem dos Am unir naturalmente, pois está no meio de todos
bígua (explicações de dificuldades presentes os extremos, graças às propriedades relativas
nas obras de Gregário Nazianzeno e Dionísio a todos os extremos de suas partes, por meio
fíreopagita) exerceu grande influência sobre das quais, realizando o modo da gênese das
(zscoto Uriúgena (tradutor de obras de Máxi coisas distintas, de maneira conforme à causa,
mo e autor do De divisione naturae). teria revelado por si o grande mistério do esco
Rqui s e apresentam cinco divisões fun po divino, tendo feito harmoniosomente termi
damentais: nar em Deus a união recíproca dos extremos
1) natureza criada/nõo-criodo: dos seres, procedendo dos próximos aos dis
2) mundo inteligível/sensível; tantes e sucessivamente para o alto dos piores
3) céu/terra; aos melhores [...]. Todavia, uma vez que o ho
4) paraíso/mundo habitado pelo homem: mem, depois que foi criado, não se moveu na
5) homem/mulher. turalmente para o Imóvel, como seu Princípio
O homem, que é imagem de Deus e, (digo, Deus), mas se dirigiu contra a natureza,
como microcosmo, é um anel de conjunção voluntariamente, de modo irracional, para aquilo
privilegiado entre os extremos, teria devido que está abaixo dele, sobre o qual ele próprio
unificar os diversos opostos, reconduzindo o por ordem divina teria devido comandar [...], e
Todo o Deus. assim pouco faltou para que de novo misera
Uma vez que nõo realizou essa tarefa, velmente corresse o perigo de afundar no não-
Deus empreendeu a obra da salvação e da ser, por ele são transformadas as naturezas, e
unificação por meio do mistério da Uncor- de modo paradoxal e sobrenatural. Aquilo que
nação do Verbo. por natureza é absolutamente imóvel se move,
por assim dizer, permanecendo imóvel, para
aquilo que é por natureza movido. A Deus se
O s santos que receberam a maior parte torna homem a fim de salvar o homem perdido.
dos mistérios divinos daqueles que foram se Máximo o Confessor,
guidores e ministros do Logos, e que portanto fímbiguorum iiber.
obtiveram imediatamente o conhecimento dos
mistérios transmitido a eles por sucessão dos
predecessores, dizem que o substância de tudo
o que foi feito distingue-se em cinco divisões. O amor
Dizem que a primeira delas é a que distingue a
Realidade não-criada da criada na sua totali
dade; esta recebeu o ser por meio do nasci Muito significativa e tocante é a doutri
mento. Afirmam, com efeito, que Deus por bon na de Máximo sobre o agape, sobre o amor,
dade produziu a magnífica ordem da totalidade concebido, no Novo Testamento, como amor
dos seres, e que não se torna de modo ne -------------------------------------------------- ►
67
C ã p í t u l o C fU ãV tO - O s I r e s l u m i n a r e s d a C a p a d ó c i a . ..
------ p* ----------------------------------------------------
d e Deus e do próximo. Tal temática s e cen
A "liturgia cósmica"1
tralizo sobre o noturezo de Deus como agape
e sobre a p esso a d e Cristo.
Cis umo passagem emblemática tirada
O ápice da doutrina do Confessor so
do Livro ascético: ela apresenta Deus como
bre divisões e unificações, pelo qual tudo é
"amor". Cristo como o "próprio verdadeiro
"recapituiodo" em Cristo, é a concepção da
amor”, o amor por todo homem como "sinal
"liturgia cósmica". R unificação realizado pelo
d e amor d e Deus".
Cncarnoção continua na obra transfiguradora
da Igreja.
fí Igreja está no meio, entre cosmo na
"Mesmo se [os mandamentos] soo mui tural e sobrenatural; assim como a Igreja é
tos, irmão, todavia eles se recapitulam em um um mundo, também o mundo é uma "igreja
só preceito, ou seja: 'Amarás o Senhor teu Deus cósmica", cuja nave é o cosmo sensível. Nes
com todas as tuas forças e com toda o tua men te templo o homem, imagem d e Deus, cele
te, e o teu próximo como a ti mesmo'. C quem bra a adoração, a oferta litúrgica trans
luta para observar e sse preceito, cumpre junto figuradora.
todos os mandamentos. Com efeito, aquele que Rpresentamos duas passagens signifi
não se afastou da paixão por aquilo que é cativas, tirados da Mystogogia, que é uma
material [...] não pode amar nem Deus nem o interpretação simbólico da liturgia.
próximo com verdade, porque é impossível ser
ao mesmo tempo inclinado à matéria e amar
Deus. C isso é aquilo que diz o Senhor: 'Nin
guém pode servir a dois patrões]...]'. Com efei
to, pelo Fato de que nossa mente esto apega 1. R Igreja, figura do cosmo
da às coisas do mundo, é escravizada por elas R santo Igreja de Deus é a figura e a ima
e despreza o mandamento de Deus, transgre gem do cosmo inteiro, constituído de seres visí
dindo-o". veis e invisíveis, porque apresenta em si a mes
C o irmão disse: "De quais coisas falas, pai?" mo união e distinção. Gmbora ela seja de fato
C o ancião respondeu: "De alimentos, rique como uma só casa pela construção, por certa
zas, propriedades, glória, parentes e daí por particularidade na disposição da estrutura ad
diante". mitirá a distinção, sendo dividida, com uma porte
C o irmão perguntou: “Dize-me, pai: Deus reservada exclusivamente aos sacerdotes e aos
por acaso não criou essas coisas e não os deu ministros, chamada santuário, e outra acessível
acaso para que os homens as usassem? Como a todo o povo fiel, chamada nave. Por outro
então ordena não estar apegado a elas?" lado, é una por essência, não estando dividida
G o ancião respondeu: "G evidente que de suas partes por sua diferença recíproca, mas
Deus criou estas coisas e as deu para que os libertando as próprias partes da diferenço que
homens as usassem. C todas as coisas criadas brota de seu nome por sua relação com a uni
por Deus são boas, porque servindo-nos delas dade, e mostrando que ambas são reciproca
bem tornamo-nos agradáveis a Deus; nós, po mente a mesma coisa, e manifestando que, por
rém, sendo fracos e ligados tanto à matéria coesão, uma é para a outro aquilo que cada
como ao modo de pensar, pusemos as coisas uma é para si mesma [...]. Do mesmo modo,
materiais na frente do mandamento do amor, e também todo o cosmo dos seres, gerado por
ficando apegados o elas, combatemos os ho Deus, está subdividido tanto em um mundo in
mens. Devemos, porém, antepor a todas as teligível, formado por essências inteligíveis e
coisas visíveis e ao próprio corpo o amor por incorpóreas, quanto neste mundo sensível e cor-
todo homem, que é sinal do amor por Deus, póreo, também magnificamente entretecido por
como o próprio Senhor indica nos Gvangelhos: muitas formas e naturezas. Trata-se, por assim
'Quem me ama — diz — observará os meus dizer, de outro Igreja, não feito por mãos de
mandamentos'. G qual seja o mandamento, pela homem, revelada sabiamente por esta, feita por
observância do qual nós o amamos, escuta ele mãos de homem, e que tem, como santuário, o
próprio, que diz: 'Gste é o meu mandamento: cosmo superior, constituído pelas potências do
que vos ameis uns aos outros'. Vês que o amor alto e, como nave, este cá debaixo, reservado
mútuo testemunha o amor por Deus, que é a aos seres aos quais toca como sorte a vida
perfeição de todo mandamento de Deus?" sensível.
Máximo o Confessor, Máximo o Confessor,
Liber asceticus. Mçstogogío.
Segunda parte - y \ P a t r í s + i c a n a á r e a cul u^al de. l í n g u a g ^ e g a
2. O homem como Igreja mística veis, tiradas p elo espírito d e modo puro do
matéria, e por fim, com o altar da mente cha
£, vice-versa, o homem é uma Igreja mís
ma o si o silêncio, celebrado nos templos, do
tica: com o nove do corpo, ilumino virtuosa-
grande voz invisível e incognoscível da Divin
mente o porto ativo do olmo com a potência
dade, por meio de outro silêncio, loquaz e de
dos mandamentos, conforme a filosofia ética,
muitos sons [...].
enquanto com o santuário da alma conduz em
Deus, conforme o contemplação natural, por Máximo o Confessor,
meio do razão, os formos das coisas se n sí Mçstagogio.
/» * r * t s /
Os bustos
de João Clímaco,
João Damasceno
e Máximo o
Confessor,
em um códice
conservado
na Biblioteca
Nacional de Paris. 4 t ■r t u
A PATRÍSTICA
NA ÁREA CULTURAL
DE LÍNGUA LATINA
Agostinho
Capítulo quinto
Capítulo sexto
“certum est, quia impossibile est” tornaram-se ridade teológica antes de Agostinho. Desta
muito famosas, e foram condensadas na céle ca-se nele grande sentido eclesial. Deve-se
bre fórmula “credo quia absurdum ”, que resu recordar também Novaciano (em atividade
me muito bem o espírito de Tertuliano. pela metade do século III), que prosseguiu a
Para chegar a Deus, basta uma alma obra de aprofundamento da linguagem teo
simples: a cultura filosófica não ajuda, até lógica técnica iniciada por Tertuliano, e tam
atrapalha. No Testemunho da alma, pode bém foi grande retor, além de filósofo de
mos ler: “Mas não me refiro àquela alma que extração estóica.
se formou na escola, que se treinou na biblio No início do século IV, surgiu a obra
teca, que se empanturrou na Academia e no Contra os pagãos, de Arnóbio, de conteúdo
Pórtico da Grécia e agora dá seus arrotos filosófico, inspirada em grande sentido de
culturais. Para responder, é a ti que chamo, pessimismo acerca da condição do homem,
alma simples, ainda no redil, ainda não ma que o leva a encontrar em Cristo a única
nipulada e privada de cultura, assim como salvação possível. Mas o cristianismo de
és naqueles que só têm a ti, alma íntegra que Arnóbio é superficial. Ele não mostra ter
vens dos ajuntamentos, das ruas, da fiação. familiaridade com a Escritura e, em parte,
Preciso da tua ignorância, porque ninguém ainda permanece dominado por concepções
confia em quatro noções de cultura” . E, em heréticas e até mesmo pagãs.
Apologético, Tertuliano escreve: “ O testi- Lúcio Cecílio Firmiano Lactâncio, alu
monium animae naturaliter christianae!” no de Arnóbio, inicialmente ensinou retóri
ca em Cartago e depois em Nicomédia. De
pois de velho (por volta de 317), tornou-se
5 «Unfluxos es+óicos preceptor de Crispo, filho do imperador
Constantino. Foi claramente superior ao
n a ontologia de Xertuliamo mestre, mas não teve idéias filosóficas e teo
lógicas verdadeiramente originais. Sua obra
Apesar dessa viva antifilosofia, Tertu mais conhecida são As instituições divinas,
liano, em certa medida, revela-se um estói- em sete livros, que é ao mesmo tempo uma
co em ontologia. Para ele, o ser é “corpo” : polêmica contra a religião pagã e uma apai
“nihil enim, si non corpus, nibil est incor- xonada — mas nem sempre perspicaz —
porale, nisi quod non est” . Por vezes há, defesa do culto e da doutrina cristã.
porém, a suspeita de que Tertuliano não dis-
tinga claramente o corpus da substantia.
Ele deve ter absorvido essas teses so 7 TTadufores, comeufadores
bretudo de Sêneca, que ele muito admirava.
Deus é corpo, embora sui generis, assim e eruditos cristãos
como a alma também é corpo. do século I V
O seu De anima, como construção on-
tológica de fundo, representa a antítese exata
do espiritualismo do Fédon. São escassas as contribuições do Oci
À Tertuliano cabe o mérito de ter cria dente latino no século IV.
do a primeira linguagem da teologia latino- Calcídio traduziu e comentou o Timeu
cristã e de ter denunciado muitos erros da de Platão, em chave interpretativa de cará
heresia gnóstica, refutada principalmente ter médio-platônico.
no escrito Adversus Valentinianos. UH Ambrósio Teodósio Macróbio escreveu
um Comentário ao sonho de Cipião (ou seja,
ao livro IV do De re publica, de Cícero),
que será muito lido na Idade Média.
6 úcscG+ores cnsfãos Júlio Fírmico Materno escreveu uma
do sécu lo m obra Sobre o erro das religiões profanas,
contra o politeísmo pagão.
e dos inícios do I V
Caio Mário Vitorino traduziu Plotino
e Porfírio e, tendo-se convertido ao cristia
Na África teve muita importância na nismo, escreveu tratados teológicos.
vida da Igreja são Cipriano, nascido no iní Hilário de Poitiers ficou famoso por sua
cio do século III e falecido ao redor de 258. obra Sobre a Trindade, a qual, porém, não
Foi grande pastor e tornou-se a maior auto tem implicações filosóficas importantes.
74 Terceira parte - A R a+ ^ística cu*ea cul+u vc\\ d e l í n g u a la+iua
II. A s f i g u r a s d e A^nb^ósio,
de^ôi^imo e R uj"Íino
I
construir hoje a obra Sobre os princípios, Mas o espírito latino se expressou so
de Orígenes). Outras traduções importantes bretudo em Agostinho, com quem a Pa-
foram as da História eclesiástica de Eusébio trística alcançou os seus mais altos cumes e
de Cesaréia e de alguns discursos significa com quem encerrou-se definitivamente uma
tivos de Gregório de Nazianzo. época e abriu-se uma nova.
Santo Ambrósio
e outros santos,
em um painel pintado
por Ambrósio de Vossano,
dito o Bergognone,
ativo na l.ombardia
entre 14H1 e 1S22
(Certosa de Pavia).
76
Terceira parte - y \ "P a + r ís ti ca n a á n e a c u l t u r a l d e l í n g u a la+ina
Gstas opiniões, mais ou monos, podom sor e provavelmente é por isso que a filosofia
considerados sem elhantes à s n ossas, uma foi expulsa por certas legislações como a dos
vez que reconhecemos e dizemos que Deus tebanos, dos espartanos, dos habitantes de
é pai de todas as coisas, mas não falamos dis Argos.
so a não ser quando somos interrogados a pro Aproximando-se de nossas coisas, mas ao
pósito. mesmo tempo, como dissemos, ávidos unica
Assim expus as opiniões de quase todos mente de glória e de fátua eloqüência, estes
aqueles filósofos que podem considerar como representantes da cultura profana, quando nas
sua glória mais excelsa ter indicado — embora santas páginas se defrontaram com algo capaz
com nomes diversos — um só Deus, e poderia de satisfazer sua curiosidade, o traduziram em
mos também pensar que hoje os cristãos são elucubrações próprias.
justamente filósofos ou então que, desde aque Não estavam suficientemente persuadidos
la época, os filósofos foram cristãos. de seu caráter divino para serem capazes de
abster-se de qualquer interpolação tortuosa, e
Minúcio félix,
Octovius. não estavam em grau de compreendê-las, e s
crituras árduas e nebulosas como são, de modo
a permanecer impenetráveis aos próprios he-
breus dos quais também pareciam ser pro
priedade reservada. Pois se a verdade se os
tentava com sua luzente simplicidade, mais a
cavilosidode humana negava seu assentimen
to e flutuava, acabando por reduzir à incerteza
T e r t u l ia n o
aquilo que à primeira vista aparecera como
indubitável.
Haviam encontrado Deus puro e indu
bitável e ousaram submetê-lo a discussão, dis-
sertando sobre sua natureza, seus atributos,
fl filosofia e o cristianismo sua sede.
Assim, alguns o proclamaram incorpóreo;
estão em contradição1 outros, corpóreo; e eis os platônicos e os estói-
cos. Outros disseram que ele constava de átomos,
outros de números: e eis Gpicuro e Pitágoras.
No âmbito dos Podres apologistas,
Outros disseram que ele era fogo, conforme
Tertuliono é expressão do tendência antifi-
pareceu a Heráclito.
losóFico que pretendia rejeitar completomen
Os platônicos o consideraram providên
te os doutrinas dos gregos. Fl fé cristã, com
cia das coisas; outros, ao contrário, ou seja, os
efeito, torno inútil todo doutrino filosófico
epicuristas, o designaram inerte e indiferente
openos racional, porque o fé é superior à
e, por assim dizer, ausente de todas as coisas
rozão.
humanas.
Os estóicos colocaram-no fora do mundo
em ato de fazer mover em círculo, como um olei
ro, esta mole universal do mundo. Os platôni
1. fl antiguidade das Sagradas €scrituras
cos, ao invés, o puseram no âmbito do mundo
das quais apreenderam
como um timoneiro presente na nave por ele
os próprios pagãos
dirigida.
Também aqui me socorre a já consolida Igualmente variam as opiniões dos filó
da antiguidade da escritura divina. Sobre a base sofos a propósito do próprio mundo, se houve
de ta! antiguidade não se poderá contestar ter ou não um princípio, se haverá ou não um fim.
ela representado o tesouro com o qual atingiu Não há maior concordância sobre a natureza
toda a sabedoria posterior. € se eu não sentis da alma, que alguns consideram divino e eter
se a oportunidade de reduzir o peso deste vo na, outros, corruptível. Cada um a seu gosto
lume, ter-me-ia prolongado muito nesta d e transformou ou aumentou as opiniões prece
monstração sem limites. dentes.
Há poeta ou sofista que não se tenha Nenhuma maravilha, portanto, se nossos
dessedentado na fonte dos profetas? G de lá antigas tradições oficiais foram alteradas pe
que os filósofos extraíram alimento para a las elucubrações dos filósofos. Da estirpe de
fecundidade de seu engenho. G o que eles to tais filósofos pulularam aqueles que deforma
maram de nós que os torna nossos vizinhos, ram e falsificaram com suas opiniões nosso pró
78 Terceira parte - y\ T-G+^ística n a í f o e a cul+u^al d e l í n g u a l a t i n a
prio acervo documentário poro acomodá-lo às cárcere corpóreo, ferida e manchada por costu
opiniões dos filósofos. De um só caminho fize mes deformantes, esgotada pelas paixões e
ram numerosas trilhas oblíquas e inexplicáveis. pelas libidinagens, liberta de dignidades men
Digo isso de passagem para que ninguém in tirosos, pois bem, apenas tenha um instante de
vente de equiparar-nos aos filósofos justamen arrependimento, logo que tenha um indício de
te por esta reconhecida e admitida variedade cura de seus desregromentos, de sua letargia,
existente em nossa confissão e de deduzir da de suas doenças congênitas, não sabe fazer
multiplicidade das opiniões uma carência da outra coisa a não ser nomear Deus com um úni
verdade. co nome, Deus, porque é o verdadeiro nome
Sem hesitações contrapomos aos adul- de Deus. Qual é a exclamação de todos? "Deus
teradores de nossa doutrina o argumento pre grande, Deus bom. Seja o que Deus quer". Mas
liminar da prescrição, em nome do qual pro há mais. A própria alma o reconhece como juiz.
clamamos como única regra de verdade aquela "Deus o sabe, entrego-me a Deus, Deus provi
que nos foi transmitida por Cristo mediante dencie". Ó testemunho da alma levada instinti
seus apóstolos, dos quais é fácil constatar o vamente ao cristianismo! O que mais? Saindo
quão tardios são estes discursos comenta destes incidentes a alma não se dirige ao
dores. Capitólio, mas ao céu. Cia sabe muito bem qual
é a moradia do Deus vivo: dele, com efeito,
Tertuliano,
tirou sua origem.
fípologético, XLVII.
Tertuliano,
fípologético, XVII.
2. fi alma não se dirige ao Capitólio
mas a Deus, 3. Não há semelhança entre o filósofo grego
e é levada instintivamente ao cristianismo e o cristão
Aquele que adoramos é o Deus uno e Alguém objetará que também entre os
único que tirou do nada, para decoro de sua nossos há aqueles que faltam para com as ins
infinita majestade, toda esta mole imensa do truções da disciplina. Mas lembrai-vos de que
mundo, com o simples comando de sua pala estes deixam imediatamente de ser considera
vra, com o simples explosão de seu gesto inte dos cristãos entre nós. Vossos filósofos, ao in
ligente, com o simples desdobramento de sua vés, tendo na consciência aquela carga de er
potência, esta mole imensa com todo o equi ros, permanecem no número e no decoro da
pamento de seus elementos, de seus organis sabedoria.
mos corpóreos, de seu exército espiritual. Não No conjunto, que semelhança se pode
sem razão os gregos aplicaram o qualificativo captar entre o filósofo e o cristão, entre o discí
específico: o cosmo. Cie é invisível, embora pulo da Grécia e o candidato ao céu, entre o
possamos divisá-lo e percebê-lo. Cie está além traficante da fama terrena e aquele que faz
de toda a nossa compreensão, embora a sen questão de vida, entre o vendedor de palavras
sibilidade humana esteja em grau de percebê- e o realizador de obras, entre quem constrói
lo e calculá-lo. Por isso é verdadeiro, embora sobre a rocha e quem destrói, entre quem alte
sendo tão grande. O que se pode ver, tocar, ra e quem tutela a verdade, entre o ladrão e o
avaliar, é inferior ao olho humano que o perce guardião da verdade?
be, às mãos que o contaminam apalpando-o, Tertuliano,
aos sentidos mediante os quais o encontramos. fípologético, XLVII.
O infinito só é conhecido de si mesmo. Deus é
suscetível de compreensão apenas pela sua su
perioridade a todo compreensão. A extraordi 4. A sabedoria é estultice
nária grandeza o torno ao mesmo tempo co
Cstas são as doutrinas dos homens e dos
nhecido e desconhecido para os humanos. Aqui
demônios, nascidas do espírito da sabedoria
repousa toda a soma de culpabilidade daque
terrena para aqueles ouvidos que têm o pruri
les que não o querem reconhecer: a impossibi
do de ouvi-las. M as o Senhor chamou de
lidade de ignorá-lo.
"estultice" tal sabedoria, e escolheu aquilo que
Quereis que dele demos as provas me
é estulto para o mundo a fim de confundir tam
diante suas obras tão numerosas e tão gran
bém a própria filosofia.1Pois a filosofia é a mo
diosas, que nos contêm, que nos sustentam,
que nos alegram, que nos aterrorizam? Quereis
que dele tragamos o testemunho do fundo da
própria alma? Cis o voz desta alma. Premida no fo . 1Coríntios 1,27: 3,19.
79
Capitulo quinto - y \ T-bi+ns+ica l a t i d a arv+es d e s cm t o / Vc jo st in h o
Tertuliono,
5. n fé acima da razão
Sobre a corne d e Cristo,
Há certamente outras coisas igualmente 5,1-4.
estultas, que se referem às ofensas e à paixão
de Deus: do contrário, que estes digam que é
prudência a crucifixão de Deus. Glimina, portan
to, também isto, Marcião,3 e sobretudo isto. O
que, com efeito, é mais indigno de Deus, o que
merece maior rubor, o nascer ou o morrer, o 2Cf. Colossenses 2,8.
carregar o carne ou o carregar a cruz, o ser cir- 3/\Aordõo (séc. II) se inspirava nos concepções gnós-
cunciso ou o ser traspassado, o ser nutrido ou ticas e rejeitava o Rntigo Testamento e a concepção de
Deus aqui e xp re ssa , em favor da concepção de Deus
o ser sepultado, o ser deposto em uma manje
como amor exp re ssa no Novo Testamento. Deus havia-
doura ou o ser escondido em um sepulcro? S e se encarnado em Cristo, assum indo um corpo não real,
rás mais sábio se não tiveres crido nem nessas mas a p a r e n t e . Tertuliono, em oposição a e ssa concep
coisas. Mas não serás sábio se não tiveres sido ção , escre ve u uma obra d e p e so cham ada C o n tra
estulto no meio do mundo, crendo nas coisas M a r c iã o .
4Cf. 1Coríntios 2,2.
estultas de Deus. Jdem , 15,4.
Tolvez não tenhas tirado de Cristo os pai 6ldem, 15,16-19.
xões, enquanto, como fantasma, ele estova 7Mateus 10,33.
80
Terceira parte - y \ P a t A s t i c a n a á r e a cul+ ura l d e l í n g u a l a t i n a
S a ia ío 7^0osfinko
e o c\pope,u d a P a + rística
I. j A vid a , a e v o l u ç ã o espi^i+ual
e a s o b r a s d e s a u f o yKpostiuKo
Santo Agostinho,
painel de Miehael Pacher (1440-149S).
Munique, Alie Pinakothek.
86 TcVCSÍfÚ püTt6 - " P a tW s + ic a na á i* e a c u l t u r a l d e !ír\ 0 u a la t in a
As provas
• A essa prova da existência de Deus como Verdade se acres
da existência centam outras, sem dúvida retomadas pela bagagem da teolo
de Deus gia clássica: a que da perfeição do mundo remonta ao seu Ar
tífice divino; a baseada sobre o consensus gentium; a ex
gradibus, ou seja, que remonta dos diversos graus de bem pre
sentes no mundo ao Bem em si.
soas da Trindade e sua unidade, torna-se ele os objetivos específicos a que visa sejam di
próprio pessoa. E Agostinho encontra no ferentes dos de Descartes.
homem toda uma série de tríades, que refle Mais globalmente, Agostinho interpre
tem de vários modos a Trindade, tendo no ta o processo cognoscitivo do seguinte
vértice a tríade ser, conhecer e amar, que modo:
espelha as três pessoas da Trindade e sua a) Como Plotino já havia ensinado, a
estrutura uno-trina. sensação não é uma alteração sofrida pe
Assim, Deus se espelha na alma. E la alma. Os objetos sensoriais agem sobre
“ alma” e “Deus” são os pilares da “ filoso os sentidos. Essa alteração do corpo não
fia cristã” agostiniana. Não é indagando o escapa à alma, que, conseqüentemente,
mundo, mas escavando a alma que se en “ age” , extraindo, não do exterior, mas do
contra Deus. interior de si mesma, a representação do
objeto que é a sensação. Assim, na sensação
o corpo é passivo, ao passo que a alma é
ativa.
3 S A verdade e a iluminação b) Mas a sensação é apenas o primei
ro degrau do conhecimento. Com efeito, a
alma mostra sua espontaneidade e sua au
Nessa polaridade alma-Deus, o ponto tonomia em relação às coisas corpóreas à
central é o conceito de “verdade” , ao qual medida que as “ julga” com a razão — e as
Agostinho agregou uma série de outros con julga com base em critérios que contêm um
ceitos fundamentais. Uma passagem conti “algo m ais” em relação aos objetos corpó-
da em A verdadeira religião, que se tornou reos. Estes, com efeito, são mutáveis e im
muito célebre, ilustra perfeitamente essa fun perfeitos, ao passo que os critérios segun
ção do conceito de verdade: “ Não busques do os quais a alma julga são imutáveis e
fora de ti (...); entra em ti mesmo. A verda perfeitos. E isso se mostra de modo mais
de está no homem interior. E, se descobrires evidente quando julgamos os objetos sen
que a tua natureza é mutável, transcende-te síveis em função de conceitos matemáticos
a ti mesmo. Lembra-te, porém, que, trans ou geométricos, ou mesmo estéticos, ou
cendendo a ti mesmo, estás transcendendo quando julgamos as ações em função de
a alma que raciocina, de modo que o termo parâmetros éticos. Os conceitos matemáti-
da transcendência deve ser o princípio onde co-geométricos que aplicamos aos objetos
se acende o próprio lume da razão. E, efeti são necessários, imutáveis e eternos, ao
vamente, onde chega todo bom raciocinador passo que os objetos são contingentes,
senão à verdade? À verdade não é algo que mutáveis e corruptíveis. O mesmo vale para
se constrói à medida que o raciocínio avan os conceitos de unidade e proporção, que
ça; ao contrário, ela é aquilo a que tendem aplicamos aos objetos quando os avalia
os que raciocinam. Vês aqui uma harmonia mos esteticamente.
que não tem similares, e tu próprio confor c) Surge, então, o problema: de onde
me a ela. Reconhece que não és aquilo que a alma deriva esses critérios de conhecimen
a verdade é; a verdade não busca a si pró to com que julga as coisas e que são su
pria, mas és tu que a alcanças, procurando- periores às coisas? Será que ela mesma os
a, não de lugar em lugar, mas com o afeto produz? Certamente não, porque, mesmo
da mente, para que o homem interior se sendo superior aos objetos físicos, ela pró
encontre com aquilo que nele habita com de pria é mutável, ao passo que tais crité
sejo não ínfimo e carnal, mas com sumo e rios são imutáveis e necessários. Por isso, é
espiritual desejo” . necessário concluir que, acima de nossa
Mas vejamos melhor como o homem mente, existe um critério ou uma Lei que
chega à verdade. se chama Verdade, e que, portanto, existe
A argumentação mais conhecida é a uma natureza imutável, superior à alma hu
seguinte. À dúvida cética derruba a si mes mana.
ma, pois, no momento em que pretende ne O intelecto humano, portanto, encon
gar a verdade, a reafirma: si fallor, sum; se tra a verdade como “ objeto” superior a ele,
duvido, precisamente por poder duvidar, com ela julga, mas por ela é julgado. A
existo e estou certo de pensar. Com essa ar verdade é a medida de todas as coisas e o
gumentação, Agostinho sem dúvida anteci próprio intelecto é “ medido” em relação
pou o cartesiano cogito, ergo sum, embora a ela.
Capitulo SCXtO - Sar v+o ^ A g o s t i n h o e o a p o g e u d a 1 -V \ fn s ti c a
91
presente no espírito ao Princípio de toda ver alma uma luz que não se dissipa no lugar,
dade, que é precisamente Deus. onde ressoa uma voz que o tempo não rou
Mas também há em Agostinho outros ba, onde exala um perfume que o vento não
tipos de provas, que vale a pena referir. dispersa, onde provo um sabor que a vora
Em primeiro lugar, recordemos a pro cidade não reduz, onde me aperta um am
va, já bem conhecida dos gregos, que, par plexo que a saciedade jamais dissolve. É
tindo das características de perfeição do isso que eu amo quando amo meu Deus” .
mundo, remonta ao seu artífice. Ser, Verdade, Bem (e Amor) são os atri
Uma segunda prova é a conhecida com butos essenciais de Deus para Agostinho. So
o nome de “consensus gentium”, também bre o segundo e o terceiro já falamos. Sobre
já presente nos pensadores da antiguidade o primeiro Agostinho se exprime com cla
pagã: “ toda a espécie humana confessa que reza, unindo a ontologia grega com a reve
Deus é criador do mundo” . lação bíblica. Os gregos tinham dito que
Uma terceira prova é extraída dos di Deus é o ser supremo (a substância primei
versos graus do bem, a partir dos quais se ra), na Bíblia Deus diz de si mesmo: “Eu
remonta ao primeiro e supremo Bem, que é sou aquele que é” . Justamente enquanto ser
Deus.
Agostinho não demonstra Deus como,
por exemplo, o demonstra Aristóteles, ou
seja, com intenções puramente intelectuais
e a fim de explicar o cosmo, mas sim para
“ fruir a Deus” (frui Deo), e portanto para
amá-lo, para preencher o vazio do seu es
pírito, para pôr fim à inquietude do seu co
ração, para ser feliz. Contrariamente ao que
pensava Plotino, só há verdadeira felicida
de na outra vida, não sendo possível nesta.
Todavia, mesmo nesta terra podemos ter
uma pálida imagem daquela felicidade.
Com efeito, é muito significativo que, nas
Confissões, Agostinho recorra até mesmo
ao vocabulário das Enéadas para descre
ver o momento de êxtase que alcançou em
Ostia, juntamente com a mãe, ao contem
plar Deus. Também significativos são o es
vaziamento metafísico de toda dimensão
física e o despojamento de toda alteridade,
feitos de modo plotiniano, embora com um
pathos espiritual mais ardente e carregado
de novos significados, que encontramos,
por exemplo, nesta passagem das Confis
sões sobre a fruição de Deus, um dos mais
belos escritos de Agostinho: “ Mas o que
amo, amando-te? Não uma beleza corpó-
rea, não um encanto transitório, não um
fulgor como o da luz, que agrada a estes
olhos, não doces melodias de cantos de
todo tipo, não o suave perfume de flores,
de ungüentos e de aromas, não o maná e o
mel, não membros desfrutando no ample-
xo carnal. Não são essas coisas que amo,
amando meu Deus. E, no entanto, por as
sim dizer, amo uma luz, uma voz, um per
fume, um alimento e um amplexo quando Santo Agostinho cm meditarão c oriicao,
amo o meu Deus: luz, voz, perfume, ali cm umà pintura de Sandra Bollicclli ( 144S-1 S101,
mento e amplexo do homem interior que conservada na Igreja de Todos os Santos
está em mim, onde resplandece em minha cm Horcnca.
Capítulo sexto - . S a n t o y A g o s t i n k o e o a p o g e u d a l- ^ a t d s t i c a
93
supremo, Deus, criando as coisas, participa portanto, em sentido absoluto, é tanto o Pai,
com eles o ser, mas não o Ser sumo como como o Filho e como o Espírito Santo: eles
ele é, e sim um ser com diferentes graus em são inseparáveis no Ser e operam insepara-
escala hierárquica. velmente.
Apesar de todas estas precisações, per Portanto, não havendo diferença on-
manece claro para Agostinho que é impos tológica e hierárquica nem diferença de fun
sível para o homem uma definição da natu ções, a igualdade absoluta das três Pessoas
reza de Deus e que, em certo sentido, Deus implica que a Trindade seja “ o único verda
scitur melius nesciendo, pois é mais fácil deiro Deus” .
saber aquilo que ele não é do que aquilo b) Agostinho realiza a distinção entre
que ele é: “ Quando se trata de Deus, o pen as Pessoas com base no conceito de relação.
samento é mais verdadeiro do que a pala Isto significa que, para Agostinho, cada uma
vra, e a realidade de Deus mais verdadeira das três Pessoas é distinta das outras, mas
do que o pensamento” . não ontologicamente diversa. O Pai tem o
Os próprios atributos mencionados (e Filho mas não é o Filho, e o Filho tem o Pai,
todos os outros atributos positivos que se mas não é o Pai; e o mesmo se diga do Espí
possam citar de Deus) não devem ser en rito Santo.
tendidos como propriedade de um sujei Tais atributos, portanto, não pertencem
to, mas como coincidentes com a própria à dimensão do ser e da substância, e sim,
essência dele. Melhor ainda é afirmar atri justamente, da relação. Mas nem por isso
butos positivos de Deus, negando o nega se reduzem ao nível de meros acidentes. Os
tivo da finitude categorial que os acompa acidentes são atributos mutáveis, enquanto
nha. Deus é todo o positivo que se encontra o tipo de relação que distingue as três Pes
na criação, sem os limites que nela exis soas da Trindade não é mutável e se coloca
tem, resumido no atributo da imutabili na dimensão da eternidade.
dade e expresso na fórmula com que ele c) Um terceiro ponto fundamental da
se indicou a si mesmo: “ E m sou aquele doutrina trinitária agostiniana consiste nas
que é” . g-g f f r m analogias triádicas que ele descobre no cria
do, as quais, de simples vestígios da Trinda
de nas coisas e no homem exterior, tornam-
se, na alma humana, verdadeira imagem da
5 A T h ndade própria Trindade, como já vimos.
Entre as muitas analogias, recordemos
duas. .
Todavia, este Deus, que é “ Aquele Todas as coisas criadas apresentam
que é” , para Agostinho é essencialmente unidade, forma e ordem, tanto as coisas
Trindade. A esse tema ele dedica um de seus corpóreas como as almas incorpóreas. Ora,
livros mais profundos, que, sob vários as assim como das obras remontamos ao Cria
pectos, se impôs como sua obra-prima dou dor, que é Deus uno e trino, podemos con
trinária. siderar essas três características como vestí
Devemos salientar três núcleos parti gios de si deixados pela Trindade em sua
cularmente importantes dessa obra. obra.
a) O conceito básico sobre o qual ele Analogamente, em um nível mais al
alicerça sua interpretação é a identidade to, a mente humana é imagem da Trinda
substancial das três Pessoas. de, porque também é una-e-trina, no senti
Os gregos, precisa Agostinho, para ex do que é mente e, como tal, conhece-se a si
primir conceitualmente a Trindade falaram mesma e ama-se a si mesma. Portanto, a
de “ uma essência, e três substâncias” ; os la “ mente” , o seu “conhecimento” e o “ amor”
tinos, porém, falam de “ uma essência ou são três coisas e ao mesmo tempo não são
substância, e três Pessoas” , porque, para os mais que uma, e, quando são perfeitas,
latinos, essência e substância são conside coincidem.
rados sinônimos. Todavia, mesmo com essa Na investigação das analogias trini-
diferença terminológica, uns e outros pre tárias do espírito humano está uma das
tenderam dizer a mesma coisa. Isto implica maiores novidades de Agostinho em rela
que Pai, Filho e Espírito Santo tenham jus ção a esse tema.
tamente uma substancial igualdade e não Conhecimento do homem e conheci
sejam hierarquicamente distinguíveis. Deus, mento de Deus Uno-Trino iluminam-se
94 Terceira parte - ; A T-^atrística n a á t * e a c u l t u r a l d e Iminua l a t i n a
Uma antiga lenda narra que Agostinho, enquanto passeava na praia, pensando no complexo mistério da
Trindade (sobre a qual estava preparando seu tratado), encontrou um menino que, tendo cavado um
buraco na areia, com uma colher queria aí colocar toda a água do mar. Quando Agostinho disse que era
impossível pôr num buraco com uma colher toda a água do mar, o menino, sob cujas aparências havia um
anjo, respondeu: “Seria mais fácil para mim derramar com esta colher toda a água do mar neste buraco,
do que para ti resolver e inserir em um livro o mistério da Trindade". Pinturicchio (14S4-1513) represen
tou tal lenda neste belo quadro que se encontra em Perúgia, na Galeria Nacional da Úmbria. Lembramos
que esta lenda é particularmente significativa, porque o livro de Agostinho sobre a Trindade está entre os
mais notáveis escritos do Ocidente sobre o tema.
Capitulo SCXtO - S a n + o A g o s t i n h o e o a p o g e u d a Ua+ Ws+ica
95
os múltiplos derivaram do Uno (ou de algu O homem sabe “ gerar” (os filhos) e
mas realidades originárias)? Por que e como, sabe “produzir” (os artefacta), mas não sabe
do Ser que não pode não ser, nasceu tam “criar” , porque é um ser finito. Deus “gera”
bém o devir, que implica a passagem de ser de sua própria substância o Filho, que, como
a não ser e vice-versa? tal, é idêntico ao Pai, ao passo que “cria” o
Ao tentar resolver esses problemas, ne cosmo do nada.
nhum dos antigos filósofos chegou ao con Portanto, há diferença enorme entre
ceito de criação, que, como sabemos, é de “criação” e “ geração” , porque, diferente
origem bíblica. Os Platônicos foram os fi mente da primeira, esta última pressupõe o
lósofos que chegaram às posições menos vir (a ser) por outorga de ser por parte do
distantes do criacionismo. Entretanto, mes criador para “aquilo que absolutamente não
mo assim, ainda permaneceu significati existia” . E tal ação é “ dom divino” gratui
va a distância entre suas posições e o to, devido à livre vontade e à bondade de
criacionismo bíblico. No Timeu, Platão ha Deus, além de sua infinita potência.
via introduzido a figura do demiurgo. En Ao criar o mundo do nada, Deus criou,
tretanto, embora sendo racional, livre e juntamente com o mundo, o próprio tem
motivada pela causa do bem, a atividade po. Com efeito, o tempo está estrutural
do demiurgo é gravemente limitada, tanto mente ligado ao movimento; mas não há
acima como abaixo dele. Acima do demiur movimento antes do mundo, só com o
go está o mundo das Idéias, que o trans mundo.
cende e no qual ele se inspira como em um Esta tese já fora (quase literalmente)
modelo; abaixo, ao contrário, está a chora antecipada por Platão no Timeu, mas em
ou matéria informe, também eterna como Agostinho ela simplesmente é melhor fun
as Idéias e como o próprio demiurgo. A damentada e melhor explicada. Assim, “ an
obra do demiurgo, portanto, é obra de fa tes do mundo” não havia um “ antes tem
bricação e não de criação, porque pressu poral” , porque não havia tempo: o que havia
põe como preexistente e independente aqui (aliás, seria necessário dizer “há” ) era o eter
lo de que se vale para construir o mundo. no, que é como que um infinito presente
Plotino, no entanto, deduziu as Idéias e a atemporal (sem transcorrência nem distin
própria matéria do Uno, muito engenho ção de “ antes” e “ depois” ). Mas da ques
samente, do modo como vimos. Todavia, tão do tempo falaremos adiante.
seu impulso o levou aos limites de um ver
dadeiro acosmismo e, oportunamente re
formadas, suas categorias poderíam servir
para interpretar a dialética trinitária, mas
7 t loulriiui das CJdéias
não para interpretar a criação do mundo.
A solução criacionista, que, para Agos e das razões semimais
tinho, é ao mesmo tempo verdade de fé e de
razão, revela-se de uma clareza exemplar. A
criação das coisas se dá do nada (ex nihilo), As Idéias têm um papel essencial na
ou seja, não da substância de Deus nem de criação. Mas, de paradigmas absolutos fora
algo que preexistia (a fórmula que posterior e acima da mente do demiurgo, como eram
mente se tornaria canônica seria ex nihilo em Platão, elas se transformam, como já
sui et subiecti). Com efeito, explica Agosti dissemos, em “ pensamentos de Deus” ou
nho, uma realidade pode derivar de outra também como “Verbo de Deus” .
de três modos: Agostinho declara a teoria das Idéias
a) por geração, caso em que deriva da como um pilar absolutamente fundamental
própria substância do gerador como o filho e irrenunciável, porque está intrinsecamen-
deriva do pai, constituindo algo de idêntico te vinculada à doutrina da criação.
ao gerador; Deus, com efeito, criou o mundo con
b) por fabricação, caso em que a coisa forme a razão e, portanto, criou cada coisa
que é fabricada deriva de algo preexistente fora conforme um modelo que ele próprio pro
do fabricante (de uma matéria), como ocor duziu como seu pensamento, e as Idéias são
re com todas as coisas que o homem produz; justamente estes pensamentos-modelo de
c) por criação a partir do nada absoluto, Deus, e como tais são a verdadeira realidade,
ou seja, não da própria substância nem de ou seja, eternas e imutáveis, e por participa
uma substância externa. ção delas existem todas as coisas.
96 Terceira parte - y \ T-^a+ns+ica n a á f e a cul+w r a \ d e Ií n g u a la+ma
na ótica do universo visto em seu conjunto, tamente com Agostinho que a vontade se
desaparece. De fato, os graus inferiores do impôs à reflexão filosófica, subvertendo a
ser e as coisas finitas, mesmo as mais ínfi antropologia dos gregos e superando defi
mas, revelam-se momentos articulados de nitivamente o antigo intelectualismo moral,
um grande conjunto harmônico. Quando, seus pressupostos e seus corolários. A ator
por exemplo, julgamos que a existência de mentada vida interior de santo Agostinho e
certos animais nocivos seja um “ mal” , na sua formação espiritual, realizada inteira
realidade nós estamos medindo com o metro mente na cultura latina, que dava à voluntas
da nossa utilidade e da nossa vantagem con um relevo desconhecido para os gregos, per
tingente e, portanto, numa ótica errada. mitiram-lhe entender a mensagem bíblica
Medida com o metro do todo, cada coisa, precisamente em sentido “ voluntarista” ,
mesmo aquela aparentemente mais insigni fora dos esquemas intelectualistas do mun
ficante, tem seu sentido e sua razão de ser e, do grego.
portanto, constitui algo positivo. De resto, Agostinho foi o primeiro es
b) Já o mal moral é o pecado. E o pe critor a nos apresentar os conflitos da von
cado depende da má vontade. E a má von tade em termos precisos, como já destaca
tade depende de quê? A resposta de Agosti mos: “Era eu que queria e eu que não queria:
nho é bastante engenhosa. A má vontade era exatamente eu que nem queria plena
não tem uma “causa eficiente” , mas, muito mente, nem rejeitava plenamente. Por isso,
mais, uma “causa deficiente” . Por sua na lutava comigo mesmo e dilacerava-me a mim
tureza, a vontade deveria tender ao Bem mesmo” .
supremo. Mas, como existem muitos bens A liberdade é própria da vontade e não
criados e finitos, a vontade pode tender a da razão, no sentido em que a entendiam os
eles e, subvertendo a ordem hierárquica, gregos. E assim se resolve o antigo parado
pode preferir a criatura a Deus, preferindo xo socrático de que é impossível conhecer o
os bens inferiores aos bens superiores. Sen bem e fazer o mal. A razão pode conhecer o
do assim, o mal deriva do fato de que não bem e a vontade pode rejeitá-lo, porque,
há um único Bem, mas muitos bens, consis embora pertencendo ao espírito humano, a
tindo, precisamente, em uma escolha incor vontade é uma faculdade diferente da ra
reta entre esses bens. O mal moral, portan zão, tendo uma autonomia própria em re
to, é uma aversio a Deo e uma conversio ad lação à razão, embora seja a ela ligada. A
creaturam, é a escolha de um ser inferior ao razão conhece e a vontade escolhe, poden
invés do ser supremo. O fato de ter recebi do escolher até o irracional, ou seja, aquilo
do de Deus uma vontade livre é um grande que não está em conformidade com a reta
bem. O mal é o mau uso desse grande bem, razão. E desse modo se explica a possibili
que se dá do modo que vimos. Por isso, dade da aversio a Deo e da conversio ad
Agostinho pode dizer: “ O bem que está em creaturam.
mim é obra tua, é teu dom; o mal em mim é O pecado original foi um pecado de
meu pecado” . soberba, sendo o primeiro desvio da von
c) O mal físico, como as doenças, os tade. O arbítrio da vontade é verdadeira
sofrimentos, os tormentos do espírito e a mente livre, em sentido pleno, quando não
morte, tem significado bem preciso para faz o mal. Esta é, precisamente, a sua con
quem filosofa na fé: é a conseqüência do dição natural: assim ele foi dado ao homem
pecado original, ou seja, é uma conseqüên originalmente. Mas, depois do pecado ori
cia do mal moral. Na história da salvação, ginal, a verdade se corrompeu e se enfra
porém, também ele tem um significado po queceu, tornando-se necessitada da graça
sitivo. divina.
Conseqüentemente, o homem não
pode ser “ autárquico” em sua vida moral:
ele necessita de tal ajuda divina. Portanto,
10 A vorvtadey quando o homem procura viver retamente
a libeedade, a grnça valendo-se unicamente de suas próprias
forças, sem ajuda da graça divina liberta
dora, então ele é vencido pelo pecado; liber
Já acenamos ao papel que a “ vonta ta-se do mal com o poder de crer na gra
de” desempenha em Agostinho. Aliás, há ça que o salva, e com a livre escolha dessa
tempo os estudiosos destacaram que foi exa- graça.
Capitulo S e x t O - S a n t o j A g o s t m k o e. o a p o g e u d a P a + H S + ic a
99
Na ilustração,
a mais antiga representação
de Agostinho
que chegou até nós
(remonta ao período
entre o fim do séc. VI
e os inícios do séc. Vil).
Conserva-se
na Biblioteca do Latrãio.
100 Terceira parte - y\ P a t W s t i c a n a á i * e a c u l t u r a l d e Ií n g u a \aV\na
essenciais, que marcam seu decurso: o peca Agostinho apresenta também um crité
do original com suas conseqüências, a espe rio para o amor, com a distinção entre o uti e
ra da vinda do Salvador e a encarnação e o frui. Os bens finitos devem ser usados como
paixão do Filho de Deus, com a constitui meios e não ser transformados em objeto de
ção de sua Igreja. fruição e deleite, como se fossem fins.
Agostinho insiste muito, ao final da E, assim, a virtude do homem, que os
Cidade de Deus, na ressurreição. A carne res filósofos gregos haviam determinado em
suscitará integrada e em certo sentido trans função do conhecimento, é recalibrada por
figurada, mas continuará carne. Agostinho em função do amor. A virtus é a
A história se concluirá com o Dia do ordo amoris, ou seja, o amar a si mesmo, os
Senhor, que será como que o oitavo dia con outros e as coisas segundo a dignidade
sagrado com a ressurreição de Cristo e no ontológica própria de cada um desses seres,
qual se realizará, em sentido global, o re no sentido que já vimos.
pouso eterno. BBIISIsl O próprio conhecimento da Verdade e
da Luz que ilumina a mente é expresso por
Agostinho em termos de amor: “ Quem co
nhece a Verdade conhece tal Luz, e quem
12 jA essência do komem conhece essa Luz conhece a eternidade. O
é o am oe amor é aquilo que conhece” .
De resto, o filosofar nessa fé segundo a
qual a criação e a redenção nasceram de um
De Sócrates em diante, os filósofos gre ato amoroso de doação, devia levar necessa
gos sempre disseram que o homem bom é riamente a essa reinterpretação do homem,
aquele que sabe e conhece, e que o bem e a de sua história como indivíduo e de sua his
virtude são ciência. Já Agostinho diz, ao tória como cidadão, na perspectiva do amor.
contrário, que o homem bom é aquele que Essa frase lapidar resume a mensagem
ama: aquele que ama aquilo que deve amar. agostiniana, à guisa de sinal emblemático:
Quando o amor do homem volta-se pondus meum, amor meus (“ o meu peso está
para Deus (amando os homens e as coisas no meu amor” ). A consistência do homem
em função de Deus), é cbaritas; quando, po é dada pelo peso do seu amor, assim como
rém, volta-se para si mesmo, para o mundo pelo seu amor determina-se o seu destino
e para as coisas do mundo, é cupiditas. Amar terreno e ultraterreno. Nessa perspectiva,
a si mesmo e aos homens não segundo o pode-se compreender muito bem a exorta
juízo dos homens, mas segundo o juízo de ção conclusiva de Agostinho: ama, et fac
Deus, significa amar do modo justo. quod vis (“ ame, e faça o que quiser” ).
Capítulo sexto - S a n t o y \ g o s + i n k o e o c\poge.\A d a " P a f n s + i c a
101
AGOSTINHO
A CENTRALIDADE DA TRINDADE DIVINA
Mundo Homem
- todas as coisas têm unidade, ordem e forma - o homem é pessoa, isto é, in
- estas características são vestígios que a divíduo irrepetível
Trindade deixou nas coisas - é imagem das três Pessoas da
- graças a estas podemos remontar do Trindade e, com efeito, é, co
mundo a Deus, a partir dos graus de per nhece e ama
feição que existem no mundo - tem em si uma faculdade da
| vontade que é diferente da fa
............ > culdade da razão
- a vontade livre é a que esco
lhe o bem superior em vez do
inferior, isto é, vive para Deus
- o conjunto dos homens que
vivem para Deus forma a Ci
TRINDADE dade celeste, o conjunto dos
- implica a identidade substancial maus forma a Cidade terrena
das três Pessoas - o mal não tem estatuto on-
- a diferença é apenas relacionai tológico, mas nasce da con
(o Pai tem o filho, fusão de um bem inferior com
mas não é o filho; um bem superior
o Filho tem o Pai, - o homem encontra sobretudo
mas não é o Pai etc.) em si mesmo a prova da exis
tência de Deus que se manifes
A Trindade é: ta como verdade
A
SER AMOR
enquanto v enquanto
Sumo ser, Sumo amor,
Deus cria VERDADE Deus beneficia
enquanto
Suma verdade,
T Deus ilumina
1
Criação
o mundo é criado segundo a T Amor
razão, isto é, segundo as Idéias- - no homem, assim como
paradigma que estão na men Iluminação na Trindade, o amor é
te de Deus - a alma tem critérios de conhe essencial. A virtude,
é ex nihilo sui et subiecti, isto | cimento imutáveis e necessá com efeito, reduz-se à
é, Deus não age sobre uma rios que lhe vêm de Deus ordo atnoris: amar a si
substância preexistente (sua - a mente de Deus tem em si os mesmos, os outros e as
ou externa a si), mas cria do modelos imutáveis e eternos coisas conforme sua
nada (= Idéias) de todas as coisas dignidade ontológica
Deus não cria a totalidade das - Deus, no momento da criação, - o amor perfeito é o
coisas como já atuadas, mas participa às coisas a capacida doador, que tem em
insere no criado as razões se de de manifestar-se pela ver Cristo (o Deus feito
minais das coisas, que pouco dade, e às mentes a capacida homem) o vértice su
a pouco se desenvolvem de de colhê-las premo
102
Terceira parte - V \ P a M s t i c a n a áp*ea cult w f*al d e l í n g u a l a t i n a
2. O cristão deve aderir [...]": e não diz: "Pois não conheceram Deus",
àquilo que Cristo se tornou por nós, mas: "Pois, tendo conhecido a Deus, não o glo
poro poder alcançar rificaram, nem lhe deram graças como Deus, mas
aquilo que ele sempre é se dispersaram em seus raciocínios, e seu co
ração insipiente se obscureceu".
Por isso, irmãos, gostaria d® fazer entrar De que modo se obscureceu?
esto verdade em vossos corações: se quiserdes Cie o diz claramente logo depois: “Procla
viver de modo piedoso e cristão, oderi o Cristo mando-se sábios, se tornaram estultos".
conforme aquilo que ele se tornou por nós, para Viram ondedeveriam ir, mas, ingratos para
que pudéssemos alcançá-lo conforme aquilo com aquele que lhes dera aquilo que tinham
que é. C ele veio a nós conforme aquilo que visto, quiseram atribuir a si mesmos aquilo que
sempre era, para tornar-se por nós aquilo que viram, e, tornando-se soberbos, perderam aqui
não era: uma vez que se tornou isso por nós, lo que viam, e daí se voltaram para os ídolos,
para oferecer o meio sobre o qual os enfermos para os simulacros e os cultos dos demônios,
fossem transportados, atravessassem o mar do até adorar a criatura e desprezar o Criador.
mundo e chegassem à pátria, onde não haverá Todavia, fizeram estas coisas quando já
mais necessidade de uma nave, porque não estavam corrompidos; e chegaram a corromper-
haverá mais um mar a atravessar. se porque se ensoberbeceram; e justamente
Portanto, é melhor não ver com a inteli por ensoberbecer-se se afirmaram sábios.
gência aquilo que ele é, e todavia não sepa Portanto, aqueles dos quais o Apóstolo
rar-se da cruz de Cristo, do que vê-lo com a in d isse que eram "aqueles que conheceram
teligência, e desprezar a cruz de Cristo. Deus", viram aquilo que diz João, ou seja, que
C algo ainda melhor e bom em sumo grau, todas as coisas foram feitas por meio do Verbo
se possível, que se veja onde se deve ir e nos de Deus. Com efeito, nos livros dos filósofos
mantenhamos ligados àquele que leva, para encontram-se ditas estas coisas, e também que
alcançar o termo. Deus tem um filho unigênito, por meio do qual
Isto puderam fazer as grandes mentes dos todas as coisas existem.
montes, aqueles que chamamos justamente de Cies puderam ver aquilo que existe, mas
montanhas, que a luz da justiça ilumina em sumo viram isso de longe, e não quiseram manter fir
grau. Puderam fazer isso, e viram aquilo que é. me a humildade de Cristo, ou seja, aquela nave
Com efeito, João, vendo-o, dizia: No prin sobre a qual teriam podido alcançar com segu
cípio oro o Verbo, o o Verbo estava junto de rança aquilo que puderam ver de longe.
Deus, 0 o Verbo era Deus. Cies viram isso e, C a cruz de Cristo foi por eles desprezada.
para alcançar aquilo que viam de longe, não Tu deves atravessar o mar e desprezas a
se afastaram da cruz de Cristo, e não despre cruz!
zaram a humildade de Cristo. Ó sabedoria cheia de soberba!
Todavia, também os pequenos, que não Caçoas de Cristo crucificado; mas é justa
estão em grau de compreender isso, mas não mente ele que viste de longe: No princípio era
se afastaram da cruz, da paixão e da ressurrei o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus.
ção de Cristo, sobre a mesma nave são condu Mas por que foi crucificado?
zidos àquilo que não vêem, ou seja, na mesma Porque para ti era necessário o lenho da
nave sobre o qual realizam a travessia também sua humildade.
aqueles que vêem. Com efeito, tu estavas inchado de sober
ba, e foras lançado para longe daquela pátrio;
3. R soberba dos filósofos pelas ondas deste mundo o caminho fora inter
e a humildade do lenho da cruz rompido; e não existe um meio com o qual po
des realizar a travessia para chegar à pátria,
Na verdade, existiram filósofos deste mun se não te deixares levar pelo lenho da cruz.
do que procuraram o Criador por meio do cria Ingrato que és, caçoas daquele que veio
tura, uma vez que o Criador pode ser encontra a ti, justamente para fazer-te retornar a ele!
do mediante a criatura, conforme o Rpóstolo Cie mesmo se tornou caminho, um cami
afirma de modo claro: "Com efeito, as perfei- nho através do mar: por isso ele caminhou so
ções invisíveis de Deus podem ser compreen bre o mor, para mostror-te que existe um cami
didas pela inteligência, a partir da criação do nho pelo mor.
mundo, por meio das coisas que por ele foram Tu, porém, que não podes caminhar so
feitas, assim como a sua potência eterna e a bre o mar como ele o fez, deixa-te levar por
sua divindade, de modo que não são escusó- esta nave, deixa-te levar pelo lenho da cruz:
veis". C continua: "Pois, tendo conhecido a Deus crê no crucificado, e poderás chegar.
104
Terceira parte - y \ T M t n s + i c a n a á r e a c u l+ u fa l d e l í n g u a l a t i n a
Por ti 0I0 s© fez crucificar, ou seja, poro autoridade da própria verdade já conhecida e
©nsinar-to o humildade, 0 porque, se tivesse evidente. Porém, uma vez que descemos nas
vindo como Deus, nõo teria vindo poro todos coisas temporais e por causa delas somos des
aqueles qu© nõo estavam em grou de ver Deus. viados das coisas eternas, primeiro vem, não
Com efeito, nõo é segundo aquilo pelo por natureza e excelência, mas na ordem do
qual ele é Deus, que ele veio ou partiu, porque tempo, certo remédio temporal, que chama à
Deus está presente em tudo e nõo se acha con salvação não aqueles que sabem, mas aque
tido em nenhum lugar. les que crêem.
Todavia, de que modo veio?
Rgostinho,
Veio na veste de homem. fí verdadeira religião,
Rgostinho, 24, 45.
fímor absoluto 0
“Terceira navegação",
sob a direção de G . Reale. 2. fl fé procuro e a inteligência encontra
fl fé procuro, a inteligência encontra; por
isso o Profeta diz: "Se não crerdes, não com
preendereis". C por outro lado a inteligência
procura ainda aquele que encontrou; porque
O círculo hermenêutico "Deus observa os filhos do homem", como se
entre razão e fé1 canta no Salmo inspirado, "para ver se há quem
tem inteligência, quem procura Deus". Portan
to, por isso o homem deve ser inteligente, para
Poro Figostinho o fé nõo tom um coró- procurar Deus.
toro-rocionol ou metorroclonol, e sim um pre
Rgostinho,
ciso valor cognoscitivo, no sentido d e que
fí Trindade, XV, 2, 2.
represento umo experiência vivida da verda
de. Fntre fé e razão há umo circularidade,
isto é, o fé fornece algumas pré-compreen- 3. Se não se crê, não se entende
sõ e s que depois podem se r examinadas e
criticadas pela razão. Demos graças a Deus se tivermos enten
€sta posição, portanto, afasta-se tan dido. € se alguém entendeu pouco, não peça
to do fideísmo quanto do racionalismo. O mais ao homem, mas dirija-se àquele do qual
fideísmo extremado se exprime pela propo pode esperar mais. Podemos, como trabalha
sição d e Tertuliano credo quia absurdum,- o dores fora de vós, plantar e irrigar, mas é Deus
racionalismo extremado nego qualquer va que faz crescer. "Minha doutrina — diz — não
lor ò fé. é minha, mas daquele que me mondou". Aque
fí posição de Rgostinho é, ao invés, bem le que diz não ter entendido, ouça um conse
expressa pela proposição credo ut intelligam, lho. No momento de revelar uma verdade tão
intelligo ut credam. importante e profunda, Cristo Senhor se deu
conta de que nem todos a entenderíam, e por
isso nas palavras que seguem dá um conselho.
Queres entender? Crê. Deus, com efeito, por
meio do profeta, disse: "Se não crerdes, não
1. O crer como remédio temporal compreendereis". C isso que o Senhor enten
para a salvação de, quando, continuando, diz: "Se alguém qui
Por esta razão, também o remédio da ser fazer a vontade dele, conhecerá se esta
alma, que é fornecido pela providência divina doutrina é de Deus, ou se falo por mim mes
e pela inefável bondade, é belíssimo por gra mo". O que significa "se alguém quiser fazer a
duação e ordem. Cie se divide em autoridade e vontade dele"? Cu dissera: se alguém crer; e
razão. tinha dado este conselho: se não compreen
fl autoridade exige a fé e prepara o ho deste, crê! fi inteligência é fruto da fé. Não pro
mem à razão. cures, portanto, entender para crer, mas crê para
fl razão leva à inteligência e ao conheci entender; porque, se não crerdes, não en
mento. tendereis.
Mesmo que a razão não abandone total Rgostinho,
mente a autoridade, quando se considera a Comentário 00 Cvangelho d e João,
quem se deve crer, é sem dúvida suprema a 29, 6.
105
Cãpítulo sexto - S a n t o .A g o s tin k o e o a p o g e u d a P a t n s t i c a ------
inefável e singular, da qual deriva toda medi Cu, porém, chamo de hyle certa matéria
da, toda forma e todo ordem. completamente informe e sem qualidades, da
Onde estas três coisas são grandes, os qual se formam estas qualidades que perce
bens são grandes; onde são pequenos, os bens bemos.
são pequenos; onde de fato não existem, não € é por isso que em grego hq/e significa
existe nenhum bem. lenho, porque para aqueles que trabalham ela
C além disso, onde estas três coisas são se apresenta não tanto como capaz de elo pró
grandes, as naturezas são grandes; onde são pria fazer algo, mas como aquilo com que se
pequenas, os naturezas são pequenas; onde pode fazer alguma coisa.
de fato não existem, não existe nenhuma na Portanto, não se deve chamar de mal
tureza. esta matéria que não se pode perceber me
diante alguma forma, mas que dificilmente se
pode pensar com todo tipo de privação de
4. O mal como corrupção do medida,
forma.
da formo e da ordem
Com efeito, ela tem capacidade de rece
Por isso, quando se pergunta de onde ber formas: de fato, se não pudesse receber a
deriva o mal, primeiro se deve procurar o que é forma imposta pelo artífice, não poderio abso
o mal. lutamente se chamar de matéria.
O mal não é mais que corrupção ou da Por outro lado, se a formo é determinado
medido, ou da forma, ou da ordem natural. bem, pelo qual aqueles que prevalecem pela
Por isso se diz natureza má aquela que é forma são ditos de forma adequada, e pela
corrompida: com efeito, uma natureza incorrupta beleza são chamados belos, está fora de dúvi
é boa sob todo aspecto. da de que também a capacidade de receber
Todavia, também o mesma natureza cor forma é igualmente um bem.
rupta, enquanto natureza, é boa; enquanto é Assim, por exemplo, a partir do momento
corrupta, ao contrário, é má. [...] que a sabedoria é um bem, ninguém duvida de
que a capacidade de receber sabedoria seja
um bem.
5. Não existe uma natureza má enquanto tal
C, uma vez que todo bem existe por obra
Nenhuma natureza, portanto, enquanto é de Deus, ninguém deve duvidar de que tam
natureza, é má; mas para cada natureza não bém esta matéria, se é algo, não pode existira
existe mol o não ser o de ser diminuída no bem. não ser por Deus.
Todavia, se, com a diminuição, o bem se
perdesse até anulor-se, não permanecería,
desse modo, nenhumo natureza; não apenas
7. Deus é o ser verdadeiro e imutável
não permanecería aquele tipo de natureza que
do qual apenas o nada é contrário
os Maniqueus supõem, em que se encontram De modo esplêndido e divino nosso Deus
tontos bens que demonstram sua cegueira ver disse a seu servo: "Cu sou aquele que sou; e
dadeiramente extraordinária, mas nem mesmo aos filhos de Israel dirás: 'Aquele que é ’ man
qualquer tipo de natureza que alguém pudes dou-me a vós".
se imaginar. Com efeito. Deus existe verdadeiramen
te, porque é imutável. De fato, toda mutação
faz não existir aquilo que existia. Por isso é ver
6. Também a matéria é um bem
dadeiramente ser aquele que é imutável.
e também ela deriva de Deus
As outras coisas que por ele foram feitas,
Não se deve dizer que a matéria que os receberam o ser dele conforme sua medida.
antigos chamaram hq/e seja um mal. Por isso, a ele que existe em sumo grau
Não falo daquela que Mani, com tola vai nada pode ser contrário a não ser aquilo que
dade, chama hyle, formadora dos corpos, não não existe.
sabendo o que diz, motivo pelo qual com razão
se lhe objeta introduzir outro Deus, pelo fato
8. Deus como Medida suprema e Sumo Bem
de que ninguém pode formar os corpos a não
ser Deus. Não se deve dizer que Deus tem certa
Com efeito, os corpos não são criados, se medida, de modo que não se creia que dele se
com eles não subsistem medida, forma e or diga que tem um fim.
dem, que são bens, e que não podem existir a Nem, todavia, é sem medida aquele por
não ser por obra de Deus, que, creio, os pró obra do qual foi conferida uma medida para
prios Maniqueus admitem. todas as coisas.
110 Terceira parte - y-\ V a t r í s t i c a n a á r e a c u l t u f a l d e l í n g u a l a t i n a
Nem, por outro lodo, é oportuno dizer que ou é menos ordenada do que deveria ser, ou
Deus é medido, como se ele tivesse recebido não é ordenada do modo como deveria ser.
de olguém uma medida. Concluindo, onde existe certa medida, cer
Todavia, se dizemos que Deus é a Medi ta forma e certa ordem, existe também certo
da suprema, talvez dizemos algo, se, porém, bem e certa natureza. Ro contrário, onde não
com aquilo que chamamos Medida suprema, existe nenhuma medida, nenhuma forma e ne
nós entendemos o Sem supremo. nhuma ordem, não existe nenhum bem e ne
Com efeito, toda medida, enquanto me nhuma natureza.
dida, é um bem. Rgostinho, Natureza do Bem.
Por isso todas as coisas que foram medi
das, que têm justa e conveniente medida não
podem ser denominadas sem valor; mesmo que,
em outro significado, entendamos “medida" no
sentido de “fim", para dizer que não existe me
dida onde não existe um fim. fls "Idéias"
Por vezes dizemos isso como elogio, como como pensamentos de Deus
quando se diz: ”C o seu reino não terá fim". Nes
te caso se poderio também dizer que não terá
medida, desde que se entenda medida no sen Sobre a teoria das Idéias, uma das maio
tido de fim. Com efeito, aquele que reina sem res conquistas do pensam ento platônico,
alguma medida, de algum modo não reina. Rgostinho expressou claramente sua p osi
ção em uma Quaestio específica.
R s Idéias não são, para ele, seres sub
9. Medida, forma e ordem
sistentes em si e por si, como uma esfera de
são sempre boas
realidades que subsistem por si.
e podem ser considerados mós
R s Idéias são as formas paradigmá
apenas relativamente,
ticos, os modelos das coisas, os razões ou e s
ou seja, caso se manifestem inferiores
truturas estáveis e imutáveis, segundo as
ao que deveríam ser
quais são feitas todas as coisas.
Portanto, dizemos que a medida é má, a € de tal forma Importante o conceito de
forma é má, a ordem é má enquanto são inferio "Idéia'', diz Rgostinho, que todos aqueles que
res ao que deveriam ser, ou quando não se adap fizeram filosofia de algum modo o tiveram,
tam às coisas às quais devem estar adaptadas. mesmo que não o tenham expresso de modo
Tais coisas são, portanto, chamadas de preciso. Não é com efeito possível se r filó
más, enquanto são estranhas e incongruentes, sofo sem este conceito.
como se disséssemos que alguém não se com Pois bem, para Rgostinho as Idéias são
portou de modo bom, enquanto agiu de modo a verdadeiro realidade, como queria Platão,
inferior de como deveria ter agido, ou enquan mas não subsistentes em si e por si, e sim
to agiu como em tal circunstância não deveria subsistentes como pensamentos eternos de
ter agido, ou fez mais do que deveria, ou de Deus. R s Idéias estão na mente de Deus, e
modo não conveniente. De modo que o que é portanto o Hiperurônio platônico é a mente
reprovado, ou seja, o ato feito de modo mau, de Deus.
com justa razão não é reprovado por outro mo Nessa direção o Potrística grega já se
tivo a não ser pelo motivo que nele não foi man movera de modo claro, mas também o pen
tida a medida. samento greco-pagão, tanto os Platônicos
Do mesmo modo, dizemos que uma forma dos primeiros dois séculos da era cristã como
é má ou por comparação com uma mais agracia Plotino, que pusera justamente no Nous, ou
da e mais belo, enquanto esta é uma forma in seja, no Fspírito ou Inteligência, o mundo das
ferior e a outra é superior, não por grandeza, Idéias na sua globalidade. M as para os pen
mas por elegância; ou então porque ela não sadores cristãos o ponto d e partida fora
convém à coisa à qual foi aplicada, de modo que indubitavelmente Fílon de Rlexandrio, escri
se manifesta estranha e inconveniente, como se tor judeu (que viveu na primeira metade do
um homem caminhasse nu em público; coisa que séc. I d.C.), que foi o primeiro a apresentar
não é de estranhar, caso aconteça no banho. os Idéias platônicas como contidas no Logos
Do mesma forma, também a ordem deno divino, e produzidas por Deus. Todavia, uma
mina-se mó, quando o própria ordem apareça vez que a passagem em que Fílon exprime
como inferior à devido; por isso, neste caso não é este seu pensamento é d e importância his-
a ordem que é má, e sim a desordem, enquanto -------------------------------------------------- ►
111
Capitulo S C X tO - S a n t o ^ g o stirtk o e o a p o g e - u d a T^a+nísfica
A criação do tempo
1. O que fazia Deus antes de criar o céu
e suo natureza e a terra?
l\lão estariam talvez cheios de sua velhice
fí teorio do tempo de fígostinho tornou- os que nos perguntam: "O que fazia Deus antes
s e Famoso. Com efeito, ela tem uma e sp e s de fazer o céu e a terra? Se, com efeito, conti
sura teórica verdadeiramente notável e p o s nuam, estava ocioso sem operar, por que tam
sui tríplice matriz. bém depois não permaneceu sempre no estado
De um lado, inspira-se no Ti meu de primitivo, sempre abstendo-se de operar? Se de
Platão, ao menos em um ponto. FUém disso, fato se desenvolveu em Deus um impulso e uma
tem um precedente conspícuo, em outro pon vontade nova de estabelecer uma criação que
to, em fíristóteles. Por Fim, ligo-se à proble antes jornais estabelecera, seria ainda uma eter
mática do tempo tratada por Plotino. nidade verdadeira aquela em que nasce uma
Platão, no Ti meu, dissera que a verda vontade antes inexistente? A vontade de Deus
deira dimensão ontológica do mundo inteli não é uma criatura, e sim anterior a toda criatu
gível é o da eternidade; o tempo, portanto, ra, porque nada seria criado sem a vontade pré-
é apenas a dimensão do cosmo e do se r existente de um criador. Portanto, o vontade de
Físico. O tempo foi criado pelo Demiurgo jun Deus é uma só coisa com a sua substância. C se
to com o mundo e, portanto, antes da cria na substância de Deus surgiu algo que antes não
ção do mundo não existia tempo. existia, tal substância é chamada erroneamente
fíristóteles, na Física, definira o tempo de eterna. Por outro lado, se era vontade eterna
como "número do movimento conforme o an de Deus que existisse a criatura, como não serio
tes e o depois"; mas a numeração do antes e eterna também a criatura?"
do depois supõe o alma como condição in Os que assim falam não te compreendem
--------------------------------------------------- ainda, ó sabedoria de Deus, luz das mentes.
113
Capítulo sexto - S a n t o y \ 0 o s t i n k o e o a p o g e u d a l-^a+Ws+ica
Nõo compreendem ainda como nasce aquilo os séculos? Como teria existido um tempo não
que nasce de ti e em ti. Quereríam conhecer o iniciado por ti? C como teria transcorrido, caso
eterno, mas sua mente vaga ainda de modo jamais tivesse existido? Tu, portanto, és o ini
vão no fluxo do passado e do futuro. ciador de todo tempo, e se houve um tempo
Quem a deterá e a fixará, a fim de que, antes que criasses o céu e a terra, não se pode
estável por breve tempo, colha por breve tem dizer que te obstinhas de operar. Também aque
po o esplendor da eternidade sempre estável, le tempo era obra tua, e não puderam transcor
confronte-o com o tempo jamais estável, e veja rer tempos antes que tivesses criado um tem
como não se pode instituir um confronto, assim po. Portanto, se antes do céu e da terra não
como a duração do tempo duro pelo passagem existia tempo, por que perguntar o que fazias
de muitos movimentos, que não podem desen então? Não existia um então onde não existia
volver-se simultaneamente, enquanto no eterni um tempo.
dade nada passa, mas é tudo presente, de modo
diferente do tempo, jamais todo presente; como
4. O hoje da Divindade é a eternidade
o passado seja sempre impulsionado pelo fu
turo, e o futuro siga sempre o passado, e pas Mas não é no tempo que precedes os tem
sado e futuro nasçam e fluam sempre daquele pos. De outro modo não os terias a todos pre
que é o eterno presente? Quem deterá a mente cedido. C tu precedes todos os tempos passa
do homem, a fim de que se estabeleça e veja dos pelo vértice de tua eternidade sempre
como o eternidade estável, não futura nem pre presente, superas todos os futuros, porque ora
sente, determine futuro e presente? Seria minha são futuros, e depois chegados serão passa
mão capaz de tanto ou a mão da minha boca dos. Tu, ao contrário, és sempre o mesmo, e
produziría com palavras um efeito tão grande? teus anos jamais terminarão. Teus anos não vão
nem vêm, a fim de que todos possam vir. Teus
2. Deus antes de fazer o céu e a terra anos estão todos ao mesmo tempo, porque são
não fazia nada estáveis; não se vão, eliminados pelos que vêm,
porque não passam.
Gs como respondo o quem pergunta: "O Cstes, ao invés, os nossos, existirão to
que fazia Deus antes de fazer o céu e a terra?1'. dos quando todos não existirem mais.
Não respondo como aquele fulano que, dizem, Teus anos são apenas um dia, e teu dia
respondeu eludindo com uma piada a insídia da não é todo dia, mas hoje, porque o teu hoje
pergunta: "Preparava a geena para quem pers- não precede ao amanhã, como não sucedeu ao
cruta os mistérios profundos". Uma coisa é en ontem. Teu hoje é a eternidade. Por isso geras
tender, outra caçoar. (fu não responderei assim. te coeterno contigo aquele do qual disseste:
Prefiro responder: "Não sei o que não sei", em "Hoje te gerei". Tu criaste todos os tempos, e
vez de ridicularizar quem fez uma pergunta pro antes de todos os tempos tu existes, e sem
funda, e elogiar quem deu uma resposta falsa. nenhum tempo não havia tempo.
Digo, ao contrário, que tu. Deus nosso, és o cria
dor de toda coisa criada; e se com o nome de
5. O conceito de tempo
céu e terra se entende toda coisa criada, ousada-
mente digo: "Deus, antes de fazer o céu e a ter Não existiu, portanto, um tempo, durante o
ra, nõo fazia nada". Com efeito, se fazia algo, o qual terias feito nada, pois o próprio tempo foi
que fazia, a não ser uma criatura? Oh, se eu sou feito por ti, e não há um tempo eterno contigo,
besse o quanto desejo com minha vantagem de pois és estável, enquanto um tempo que fosse
saber, do mesmo modo como sei que não exis estável não seria tempo. O que é o tempo?
tia nenhuma criatura antes da primeira criatura! Quem sabería explicá-lo de modo claro e bre
ve? Quem saberia dele formar mesmo que ape
3. Nõo há tempo sem criação nas o conceito na mente, para depois expressá-
lo em palavras? € ainda, qual palovra mois
Se algum espírito leviano, vagueando familiar e conhecida do tempo ocorre em nos
entre as imagens do passado, se admira de sas conversas? Quando somos nós que fala
que tu, Deus que tudo podes e tudo crias e mos, é certo que entendemos, e entendemos
tudo manténs, autor do céu e da terra, tenhas também quando dele ouvimos outros falarem.
te abstido de tanto operar, antes de tal cria O que é, portanto, o tempo? Se ninguém me
ção, por inumeráveis séculos, se levante e ob interroga, eu sei; se quisesse explicá-lo a quem
serve que sua admiração é infundada. Como me interroga, não sei. Isto porém posso dizer
poderíam passar inumeráveis séculos, se tu não com confiança de saber: sem nada que passe,
os tivesses criado, autor e iniciador de todos não existiría um tempo passado; sem nado que
114
Terceira parte - / \ V a M s t í c a n a ó ^ e a c u ltu r a l d e lín g u a latina
venha, nõo existiría um tempo futuro; sem nado o pensamento para medir a voz, como se res
que existo, nõo existirio um tempo presente. soasse a fim de que possamos referir algo so
Dois, portonto, desses tempos, o possodo e o bre intervalos de silêncio em termos de exten
futuro, como existem, dado que o primeiro nõo são temporal? Também sem empregar a voz e
existe mais e o segundo ainda nõo existe? C os lábios percorremos com o pensamento poe
quanto ao presente, se fosse sempre presen mas e versos e discursos, referimos todas as
te, sem traduzir-se em passado, nõo seria mais dimensões de seu desenvolvimento e as pro
tempo, mas eternidade. Portanto, se o presen porções entre os vários espaços de tempo, exo-
te, para ser tempo, deve traduzir-se em passa tamente como se os recitássemos falando.
do, como podemos dizer também dele que exis Quem, desejando emitir um som mais extenso,
te, se a razão pela qual existe é que nõo primeiro determinou sua extensão com o pen
existirá? Portanto, nõo podemos falar com ver samento, certamente reproduziu em silêncio
dade da existência do tempo, a não ser en esse espaço de tempo e, confiondo-o à me
quanto tende a não existir. mória, começa a emitir o som, que se produz
até que seja levado ao termo preestabelecido:
ou melhor, produziu-se e se produzirá, pois a
6. Os três tempos:
parte já realizado evidentemente se produziu,
o presente do passado,
a que permanece se produzirá. Rssim se reali
o presente do presente
za. R tensão presente faz passar o futuro para
e o presente do futuro
o passado, o passado cresce com a diminuição
Um fato agora está claro: nem o futuro nem do futuro, até que com a consumação do futuro
o passado existem. £ inexato dizer que os tem tudo será apenas passado.
pos são três; passado, presente e futuro. Talvez Mas como diminuiría e se consumaria o
fosse exato dizer que os tempos são três: pre futuro, que ainda nõo existe, e como crescería
sente do passado, presente do presente, pre o passado, que nõo existe mais, senão pela
sente do futuro. £stas três espécies de tempos existência no espírito, autor desta operação,
existem de algum modo na alma e nõo vejo em dos três momentos da espera, da atenção e
outro lugar: o presente do passado é a memória; da memória? Dessa forma, o objeto da espera
o presente do presente, a visão; o presente do feito objeto da atenção passa à memória. Quem
futuro, a espera. Permitam-me estas expressões nega que o futuro nõo existe ainda? Todavia,
e então vejo e admito três tempos, e três tem existe já no espírito a espera do futuro. £ quem
pos existem. Diga-se ainda que os tempos sõo nega que o passado nõo existe mais? Todavia,
três: passado, presente e futuro, conforme o existe ainda no espírito a memória do passa
expressão abusiva que entrou em uso; digo-se do. £ quem nega que o tempo presente carece
também o seguinte: vede, nõo reparo, nõo con de extensão, sendo um ponto que passa? To
tradigo nem zombo de ninguém, contanto que davia, perdura a atenção, diante da qual corre
se compreenda aquilo que se diz: que o futuro para seu desaparecimento aquilo que aí apa
agora não existe, nem o passado. Raramente rece. O Futuro inexistente, portanto, nõo é lon
nós nos exprimimos com exatidão; no mais das go, mas um longo futuro é a espera longa de
vezes nos exprimimos inexatamente, mas é pos um futuro; da mesma forma, nõo é longo o pas
sível reconhecer o que queremos dizer. sado, inexistente, mos um longo passado é a
memória longa de um passado.
7. No ânimo está a medido do tempo Rgostinho, Confissões.
Como hó, portanto, dois conhecimentos ele é Deus, do qual estaremos repletos quan
dos moles, um pelo quol eles não fogem do do Deus for tudo em todos.
poder do mente, o outro porque tocom o expe Nossas próprias boas obras, quando se
riência dos sentidos (uma coiso é conhecer to reconhecem como suas ao invés de como nos
dos os vícios mediante aquilo que o sabedoria sas, são-nos atribuídas como mérito para al
ensino, outro é conhecê-los por meio de uma cançar este sábado; se, ao contrário, as tiver
vida corrupto, estultamente), também há dois mos atribuído a nós, serão como obras servis,
modos de esquecer os males: quem os conhe enquanto do sábado se diz: "Não fareis nenhu
ceu graças às informações do suo doutrina, e s ma obra servil". Por isso também por meio do
quece-se deles de modo diverso de quem de profeta Czequiel se diz: "Dei a eles também os
les fez experiência e os sofreu; poro um é como meus sábados como sinal entre mim e eles para
se tronscurasse seu estudo, poro o outro é como que soubessem que sou eu, o Senhor, que os
se fosse subtraído de seu tormento. Cste se santifico". Cntão conheceremos isso perfeita-
gundo tipo de esquecimento é aquele pelo quol mente, quando estivermos perfeitamente livres
os santos esquecerão seus moles passados; e virmos perfeitamente que ele é Deus.
serão todos dele subtraídos, de modo a ser
cancelados completomente de suo experiência. 4. As seis eras da história do homem
Ro invés, no plano da capacidade de seu co
nhecimento, que neles será grande, não ape €sta celebração do sábado aparecerá de
nas não ignorarão seu passado, como também modo mais evidente se se calcularem, como se
a eterna infelicidade dos danados. Por outro fossem dias, também as eras, conforme aque
lado, se eles não souberem que foram infeli les períodos que a Gscritura parece nos apre
zes, como poderão exclamar, com o Salmo; sentar, pois ele será o sétimo dia. R primeira
"Cantarei sem fim as graças do Senhor"? C não era, como se fosse o primeiro dia, vai de Rdão
haverá seguramente nesta Cidade um canto até o dilúvio, a segunda até Rbrão, igual à pri
mais doce do que este para glorificar a graça meira não como duração mas como número de
de Cristo, em cujo sangue fomos libertos. Cum- gerações; parece-nos, de fato, que foram dez.
prir-se-ão então as palavras: "Parai e sabei que R partir daqui, como precisa o evangelista M a
eu sou Deus". teus, seguem-se três eras até a vindo de Cris
to, cada uma das quais compreende quatorze
gerações: uma vai de Rbrão a Davi, outra vai
3. No "sétimo dia" veremos a Deus,
até o exílio na Babilônia, a terceira até a
que será tudo em todos
encarnação de Cristo. No total são cinco eras. R
Cste será de fato o sábado supremo, que sexta ainda está em curso e não deve ser me
não conhecerá fim, e que o Senhor recomen dida em termos de gerações, pois está escrito:
dou às origens do criado, dizendo.- "Cntõo Deus "Não cabe a vós conhecer os tempos e os mo
no sétimo dia levou a termo o trabalho feito e mentos que o Pai reservou à sua escolha".
descansou no sétimo dia de todo o seu trabalho.
Deus abençoou o sétimo dia e o consagrou, 5. O "oitavo dia" da vido eterna
porque nele tinha descansado de todo traba
lho que ele, criando, tinha realizado". Justamen Depois desta era Deus repousará como
te nós próprios seremos o sétimo dia quando no sétimo dia, fazendo nele repousar aquele
estivermos repletos e reconstituídos pela sua mesmo sétimo dia que seremos nós. Seria de
bênção e pela sua consagração. Rí estaremos masiado longo neste ponto examinar atenta
livres para ver que ele é Deus, enquanto quise mente cada uma dessas eras; todavia, esta
mos ser Deus para nós mesmos quando caí sétima será o nosso sábado, cujo fim não será
mos longe dele, dando ouvidos às palavras do o declínio, e sim o dia do Senhor, como que um
sedutor: "Tornar-vos-eis como Deus"; assim nos oitavo dia da vida eterna, o qual foi consagra
afastamos do verdadeiro Deus, por interven do na ressurreição de Cristo, prefigurando o
ção do qual ter-nos-íamos tornado como ele por repouso eterno do espírito e do corpo. Rí re
meio de uma participação, em vez de por uma pousaremos e veremos, veremos e amaremos,
deserção. Sem ele não fizemos mais que incor amaremos e louvaremos. Isso será no fim, e
rer em sua cólera. Reconstituídos por ele, ao não haverá fim! Que outra coisa é nosso fim,
invés, e tornados perfeitos por uma graça maior, senão chegar ao reino que não tem fim?
estaremos livres para a vida eterna, vendo que Agostinho, R Cidode de Deus.
GENESE
DA ESCOLÁSTICA
■ Primeiras teorizações
das relações entre fé e razão na Idade Média
E sc o to Eriú g e n a
Capítulo sétimo
Capítulo oitavo
O surgimento da Escolástica
e seus desenvolvimentos de Boécio a Escoto Eriúgena 129
tS a p ítu lo sé tim o
~ I . X ^ e s e t A V o lv im e n t o s '
d o p e n s a m e n t o m e d ie va l
n. ^ (zÃscolas m o n a c a i s ,
e p i s c o p a i s e pala+inas
• Entre essas escolas assumiu grande importância, a partir do fim do séc. VIII,
a Escola palatina desejada por Carlos Magno, com a intenção de fazer surgir na
terra dos Francos uma nova Atenas.
Instituída e dirigida por Alcuíno de York, esta escola teve
no início caráter erudito e eclético; somente a partir da segun- A £SC0/a paiatina
da geração assumiu conotações originais e criativas. Organi- §2
zou a instrução em três níveis:
1 ) a instrução elementar;
2) o estudo das sete artes liberais do trívio (gramática, retórica e dialética) e
do quadrívio (aritmética, geometria, astronomia e música);
3) o estudo aprofundado da Sagrada Escritura.
III. j A LAmve^s i d a d e
2 éEfei+os explosivos
da LAmiveesidade Brasão da Universidade de Bolonha.
O Estúdio de Bolonha nasceu no séc. XI
corno livre e espontânea associação de estudantes
Dois são os efeitos mais relevantes de e mestres que fundaram uma escola especializada
vidos à instituição e à consolidação da uni na exegese do direito romano.
versidade.
a) O primeiro constitui-se pelo surgi
mento de um sodalício de mestres, sacerdo Ao lado dos poderes tradicionais, como
tes e leigos, ao qual a Igreja confiava a tare o sacerdotium e o regnum, acrescentava-se
fa de ensinar a doutrina revelada. Trata-se um terceiro poder, o studium ou a classe dos
de fenômeno de grande alcance histórico, intelectuais, cuja ação exerceu peso relevante
porque até então a doutrina oficial da Igre sobre a vida social da época.
ja era (e sempre tinha sido) confiada à hie b) O segundo efeito ou dado caracte
rarquia eclesiástica. rístico foi a abertura da universidade pari
Capitulo sétimo - filosofia n a D d a â a f A á d \ a
125
Um curso universitário
na Idade Média,
em um baixo-relevo
de Celino de Nese,
arquiteto e escultor do séc. XIV.
O ensino universitário medieval,
por meio da alternância
da lcctio e da disputatio,
permitia a troca permanente
de idéias entre mestres e estudantes
(particular da tumba
de Cino de Pistóia,
Catedral de Pistóia).
127
Capítulo sétimo - y \ filosofia n a T J dade M é d i a
iv. 3 o a q iA iv n d e Pi o c e
O s u ^ g im e rv fo deu Ê s c o l a s + i c a
e s e u s desenvolvim entos
d e B oeeio a Ê s c o t o Ê e i u g e n a
I. y \ o b r a e o pervsamervto
d e 5everirvo 3 o e e i o
das adidos ao palácio real). Atacado e acu a tradução e o comentário de todas as obras
sado pelo referendarius Cipriano, expoente de Platão, para depois mostrar a concordân
do partido filogótico, foi preso e julgado sem cia substancial entre os dois filósofos.
ao menos ser ouvido. Foi justiçado no inver Devido também à morte prematura,
no de 524 no Ager Calventianus, ao norte de Boécio não conseguiu levar a termo o seu
Pavia. As principais acusações foram a de ter vasto e ambicioso projeto. De todo modo,
impedido o trabalho dos delatores em rela escreveu um comentário ao Isagoge de Por-
ção ao Senado e de ter tramado a restaura fírio, tomando por base a tradução de M á
ção da autoridade do Imperador em prejuí rio Vitorino. Entretanto, insatisfeito com tal
zo de Teodorico. tradução, realizou pessoalmente outra, mais
Os estudiosos definiram Boécio como correta e literal, desenvolvendo então um
“ o último dos romanos e o primeiro dos comentário muito mais vasto. Traduziu e co
escolásticos” e, portanto, como um dos fun mentou as Categorias, de Aristóteles. Apron
dadores da Idade Média. Na realidade, a ele tou a versão do De interpretatione, também
remontam as linhas essenciais que a cultura de Aristóteles, escrevendo dois comentários
da Idade Média seguirá. sobre essa obra: um, elementar, em dois li
Em uma carta a Símaco, Boécio ex vros, e outro, mais articulado e vasto, em
pressa a intenção de levar em conta todas seis livros. Comentou os Tópicos, de Cícero.
as ciências que conduzem à filosofia: arit Ainda do Organon de Aristóteles, traduziu
mética, música, geometria e astronomia. E os Analíticos primeiros e segundos, os Elen
a consideração dessas ciências deveria estar cos sofísticos e os Tópicos.
em função da filosofia. Com tal propósito, Foi através desses textos que a Idade
Boécio projetou a tradução para o latim, Média conheceu Aristóteles até o século XII.
com comentários, de todas as obras de lógi
ca, moral e física de Aristóteles, bem como
2 B oecio e a loguza
3 O TDa c o n s o l a i i o n e
p h ilo s o p h ia e :
Deus é a p r ó p r i a felicidade
do-te entre dificuldades de todo tipo, perdes tudo aquilo que se move, de alguma forma
a tua serenidade. Gostarias de transcorrer a derivam as suas causas, a sua ordem, as suas
vida entre prazeres? Mas quem não sentiria formas distintivas da imutabilidade da men
desprezo e repugnância por alguém que se te divina” . E a realização efetiva dos acon
faz escravo de uma coisa tão vil e frágil como tecimentos no tempo e no espaço é aquilo
o corpo?” . Portanto, não é nessas coisas ter “que foi chamado destino pelos antigos” .
renas que se deve buscar a felicidade. Por A providência, portanto, é “ a própria ra
outro lado, é impossível negar que existe a zão divina, que repousa estavelmente no
bem-aventurança, pois os bens imperfeitos supremo ser, senhor de todas as coisas, que
só o são à medida que participam do perfei a todas governa; já o destino é a disposição
to. Diz então a Filosofia: “Assim, é preciso inerente às coisas mutáveis, pela qual a pro
reconhecer que Deus é a própria felicidade vidência mantém cada coisa estreitamente
(...), tanto a felicidade como Deus são o ligada à sua ordem” .
sumo bem” . E Boécio responde: “ Nenhu E a Filosofia prossegue: os homens,
ma conclusão (...) poderia ser mais verda porém, são incapazes de se dar conta de tal
deira do que essa em substância, mais sóli ordem, de modo que “ tudo parece confuso
da na estrutura lógica, mais digna diante de e subvertido” , quando, na realidade, “to
Deus” . [T] das as coisas estão ordenadamente dispos
tas segundo uma norma a elas apropriada,
que as orienta para o bem. Com efeito, não
há nada que seja feito visando ao mal, nem
4 O problema do mal mesmo por parte dos próprios maus; na rea
e a questão da liberdade lidade, estes (...) procuram o bem, mas dele
são desviados por um despercebido erro de
avaliação” . Ademais, admitindo-se que al
Estamos diante de teses de natureza guém esteja em condições de distinguir os
neoplatônica, que Boécio explicita ainda bons dos maus, “ será que poderá olhar tam
melhor no fim do terceiro livro, quando afir bém dentro da alma, para ver como é feita
ma que o Uno, o Bem e Deus são a mesma a sua constituição íntima (...)?”
coisa. Ora, se as coisas são assim, se é a pro
Entretanto, se “ o mundo é governado vidência que governa o mundo, como é
por D eus” , uma questão emerge como que esse fato se concilia com a liberdade do
ineludível: como então existe o mal e por homem?
que os maus permanecem impunes? Esse é Pois bem, a resposta que encontramos
o problema que Boécio enfrenta no quarto no quinto livro do De consolatione para tal
livro. interrogação é que o conhecimento divino
A Filosofia observa que todos os que é conhecimento simultâneo de todos os
se afastam da honestidade são pessoas con acontecimentos, tanto dos passados como
denadas, embrutecidas, infelizes. dos futuros. Assim, “ se tu quisesses avaliar
Este, portanto, é o resultado para quem exatamente a pré-visão com que ele reco
abandona a honestidade: deixa de ser ho nhece todas as coisas, deverías justamente
mem e se transforma em animal. Será que a considerar que não se trata de presciência
felicidade está nisso? Ora, apesar disso, de coisas projetadas no futuro, mas de co
Boécio se surpreende com o fato de que “ as nhecimento de um presente que nunca pas
coisas andem ao contrário: os bons sofrem sa. Daí não chamar-se previdência, mas pro
as penas devidas ao delito, ao passo que os vidência (...). Por que, então, pretendes que
maus se apropriam da recompensa que cabe se tornem necessárias as coisas que são in
à virtude” . vestidas pelo lume divino quando nem mes
Qual é, portanto, “ a razão de tão in mo os homens tornam necessárias as coisas
justa confusão de valores” ? A Filosofia, no que vêem? Será que, na realidade, o teu olhar
entanto, lembra a Boécio que ele não deve acrescenta alguma necessidade às coisas que
se surpreender com tais coisas, desde que vês como presentes?” . Em suma: em Deus,
compreenda os princípios que regulam a estão presentes os acontecimentos futuros e
atividade daquelas coisas que, aparentemen estão presentes no modo como acontecem,
te, acontecem por acaso. E esse princípio é razão pela qual aqueles que dependem do
a providência: “A origem de todo o criado, livre-arbítrio estão presentes em sua contin
toda evolução das naturezas mutáveis e de gência.
Cãpítulo O Ítã V O - O surgim en to d a (S s c o lá s tic a e s e u s d es en volvim e n tos
133
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Miniatura que representa Boécio na prisão.
134 Quarta parte - d ê n e s e d a É se o lá stica
xar a vida pública, fundando o mosteiro de Etymologiae, na qual resume o saber do seu
Vivarium, no qual reuniu vasta biblioteca e tempo, seguindo o fio da origem das pala
escreveu suas obras: De anima e Institutio- vras (suas hipóteses são freqüentemente ar
nes, a História dos Godos, as epístolas bitrárias, mas são ocasião para divagar nos
Variae. Seu mosteiro foi um dos primeiros mais diversos campos e nos oferecem pre
exemplos de centro de espiritualidade e de ciosas informações sobre a cultura depois
cultura onde devia refugiar-se o estudo do da queda do Império).
passado com a aproximação dos tempos Outra obra enciclopédica foi escrita
obscuros dos “ séculos de ferro” . Cassiodoro mais tarde pelo “venerável” Beda (673-735)
confirma o plano dos estudos liberais que com o monumental De rerum natura, ao
devem ser seguidos pelos clérigos, compre lado de escritos gramaticais e retóricos; ele
endendo, conforme o esquema traçado em é mestre de Ecberto, primeiro bispo de York
torno de 430 por Marciano Capella no De e por sua vez mestre de Alcuíno. Com estas
nuptiis Mercurii et Philologiae, as artes do figuras a longínqua Britânia participa da
trivium (gramática, dialética, retórica) e do conservação do patrimônio de cultura amea
quadrivium (aritmética, geometria, astrono çado pelos Bárbaros.
mia, música). Mas a figura mais significativa no res
Isidoro nasce no mesmo ano da morte surgimento e na difusão da cultura nesta fase
de Cassiodoro (570), em outro reino roma- da história da Idade Média é a de Alcuíno
no-barbárico, o visigótico da Espanha. Além de York (730-804), como fundador da Es
de escritos teológicos e de uma História dos cola palatina desejada por Carlos Magno
Godos e dos Vândalos, dedicou-se a uma (781), da qual já explicamos acima as ca
vasta enciclopédia em vinte livros, intitulada racterísticas de grande importância.
\ i ) s M M I . N M O I ! I I ; h , j N 1
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v, k ,i :( /■ i9 i. a
Frontispício da edição
do De divisione naturae,
a obra maior /> V II \ I I
de Escoto F.riúgena, ; , I \ I. i ;
publicada em Oxford \ Ml ' < ! ' • •
em 1681.
siástica e a Teologia mística), que tanta di Depois da morte de Carlos, o Calvo,
fusão tiveram na Idade Média, bem como ocorrida em 877, não se tem mais notícias
os Ambigua, de Máximo, o Confessor (ex de Escoto Eriúgena, que, ao que parece, mor
plicação de passagens difíceis das obras de reu alguns anos depois na França.
Gregório Nazianzeno e do Pseudo-Dionísio
Areopagita) e o De opificio hominis (a cria
ção do homem), de Gregório de Nissa.
Mas, além de tradutor, ele também foi .2. údscofo (£7riwgeiaa
pensador original, seja com comentários a e o Pseud o-V ionísi o
algumas obras do Pseudo-Dionísio, abrin
do a série dos comentadores medievais des
se difundido corpus, seja, particularmente, O autor grego que mais influiu sobre
com a sua obra maior De divisione naturae, Escoto Eriúgena foi certamente o Pseudo-
em cinco livros, realizada antes de 865 sob Dionísio, assim chamado porque se acredi
a forma de diálogo entre mestre e discípulo. tava que fosse o juiz do Areópago encon
Dentre os escritos menores, pode-se trado por são Paulo, quando, na verdade,
recordar as Glosas aos opúsculos teológi depois se saberia que suas obras foram ela
cos de Boécio e as Annotationes in Marcia- boradas bem mais tarde, sendo o autor de
num Capellam, que é comentário escolás- evidente formação neoplatônica.
tico a um texto pagão do século V, o De Como já dissemos, no centro das refle
nuptiis Mercurii et Philologiae, de Marcia xões do Pseudo-Dionísio está Deus, cujo
no Capella. conhecimento começa com a via positiva e
Capítulo oitavo - O swi *qi me nt o d a é E s c o l á s + i c a e. s e u s d e s e n v o l v i m e n t o s
137
termina com a via negativa. A primeira con de todos os predicados, limitados e finitos,
siste em atribuir-lhe as perfeições simples dasque estamos inclinados a atribuir a Deus.
criaturas (via positiva), ao passo que a se Só impropriamente se pode chamar de cria
gunda consiste em negá-las (via negativa). tura sua primeira manifestação, porque se
Tais negações não devem ser entendi identifica com o Logos ou Filho de Deus, não
das em sentido de privação, mas sim de produzido no espaço e no tempo, mas, se
transcendência. Por esse motivo, a teologia gundo o prólogo do Evangelho de são João,
negativa denomina-se também teologia su- coeterno ao Pai e coessencial a ele: Deus não
per-afirmativa. Para além de todo conceito seria Deus se não fosse desde a eternidade o
ou conhecimento humano, Deus é supra-ser, gerador do próprio Logos ou sabedoria.
supra-substância, supra-bondade, supra- b) Natureza que é criada e cria. E o
vida e supra-espírito. Logos ou sabedoria de Deus, no qual estão
Embora a inspiração seja neoplatônica, contidas as causas primordiais ou arquéti
a substância do pensamento de Escoto Eriú- pos de todas as coisas. Trata-se de idéias,
gena é cristã, porque ele não é monista: a modelos, espécies e formas que expressam
unidade do todo em sentido panteísta lhe é o pensamento e a vontade de Deus, chama
estranha, como a emanação. Com efeito, en dos também de “ predestinações” ou “von
tre o Pseudo-Dionísio e o Neoplatonismo tades divinas” , por imitação às quais as coi
existe a barreira do Deus criador, pessoal, sas se formarão. Vista sob essa ótica, toda a
distinto das criaturas. criação é eterna: “Tudo aquilo que está nele
Por isso, não há nada de fatal em Esco permanece sempre e é vida eterna” . As coi
to Eriúgena, já que o retorno do homem a sas, situadas no espaço e no tempo, são infe
Deus leva a marca de sua liberdade. riores, menos perfeitas e menos verdadeiras
A essa tese fundamental é preciso acres do que o modelo ou arquétipo, por causa
centar ainda a tese do processo gradual, se de sua mutabilidade e caducidade. E óbvio
gundo a qual o universo está disposto do mí que esses modelos são diversos e múltiplos
nimo ao máximo. Trata-se de uma hierarquia para nós, não para Deus, assim como a cria
ção comporta mudanças para nós, não para
respeitada no céu e na terra, celeste e terrena,
sobre a qual é preciso refletir e na qual deve-Deus. Ademais, tais modelos, ao contrário
se inspirar a vida individual e social. das idéias perfeitas e imóveis de Platão, são
Pois bem, essa síntese, que influiría socausas eficientes e não apenas exemplares.
bre pensadores como Hugo de São Vítor, Quem transforma esses exemplares em cau
Alberto Magno, são Boaventura e santo To sas eficientes é o Espírito Santo, que faz sair
más de Aquino, influenciou poderosamente dos exemplares eternos as coisas e os indiví
Escoto Eriúgena, que a acolheu e repensou duos, o que, portanto, é a “causa da divisão,
em sua obra maior, o De divisione naturae. multiplicação e distribuição de todas as cau
sas em efeitos, gerais, especiais e próprios,
segundo a natureza e segundo a graça” . Não
3 O XA’ d iv isio n e n a iu n a e se trata, portanto, de criação, mas da subs
tância dialética da qual as coisas são expres
são e retorno. Trata-se de uma substância da
qual as coisas são feitas e que é, ao mesmo
Essa obra de Escoto Eriúgena, em cin
tempo, natural e sobrenatural, para além de
co livros e em forma de diálogo, pode ser
qualquer distinção das duas ordens, que, ao
resumida em quatro etapas ou divisões:
contrário, se interpenetram e se fundem.
a) natureza que não é criada e cria;
c) Natureza que é criada e não cria. E o
b) natureza que é criada e cria; mundo criado no espaço e no tempo, que,
c) natureza que é criada e não cria;
por seu turno, não produz e não cria outras
d) natureza que não é criada e não cria. coisas. O mundo é o que Deus quis e quer
a) Natureza que não é criada e cria.que
E seja, é a sua manifestação ou theopha-
Deus, incriado e criador de todas as coisas. nía. Ele é criado do nada e não é, como que
Sendo perfeitíssimo, Deus não é cognoscível, riam os “filósofos seculares” , uma matéria
estando acima de todos os atributos (supra- informe e eterna. Se o aspecto sensível e múl
substância, supra-bondade, supra-potência, tiplo das coisas é expressão do pecado origi
supra-vida etc.): trata-se precisamente da via nal — o que se coaduna com o neoplatonismo
negativa do Pseudo-Dionísio, que supera a —, o significado último do mundo é o ho
teologia afirmativa porque leva à negação mem, chamado a reassumi-lo e reconduzi-lo
138 Quarta parte - G ê n e s e d a é í^ sc oi ás+ ica
a Deus. Nele, oficina do universo, tudo está ra autoridade não se opõe à reta razão, nem
abarcado, é partícipe do mundo sensível e esta à verdadeira autoridade, porque ambas
do mundo inteligível, sendo portanto resu derivam de única fonte, isto é, da sabedoria
mo do cosmo. A substância do homem está divina” .
na alma, de que o corpo é instrumento: “ O Estabelecendo estreita correspondên
corpo é nosso, mas não é nós” . Com o pecado, cia entre o pensamento e a realidade, Escoto
o corpo tornou-se corruptível; originalmen Eriúgena contribuiu de modo relevante para
te imortal, voltará a sê-lo com a ressurreição. a reavaliação da investigação lógico-filo-
d) sófica em um contexto claramente teológi
Natureza que não é criada e não cria.
É Deus como termo final de tudo. O quarto co. Já no De praedestinatione, escrito para
e o quinto livros do De divisione naturae refutar as teses de Gotescalco, evidenciava
descrevem a epopéia do retorno. O tempo o papel insubstituível da ratio, já que, à co
intermediário entre a origem e o retorno é letânea de passagens dos Padres da Igreja
ocupado pelo esforço do homem para re em uso na sua época, ele opôs a necessida
conduzir tudo a Deus, na imitação do Filho de de recorrer à razão para explicar e escla
de Deus, que, encarnando-se, recapitulou em recer trechos controversos e teses contra
si o universo e mostrou o caminho do retor postas.
no. Por isso, a encarnação de Deus é um fato Escoto Eriúgena superou a concepção
capital, ao mesmo tempo natural e sobrena da lógica como simples técnica de lingua
tural, filosófico e teológico. O retorno se dá gem, que remontava às escolas de retórica
em fases: a dissolução do corpo nos quatro e de direito do Baixo Império, desenvol
elementos; a ressurreição do corpo glorioso; vendo uma interpretação realista dos uni
a dissolução do homem corpóreo no espírito versais em um contexto claramente teo
e nos arquétipos primordiais; por fim, a na lógico. Com efeito, no seu De divisione
tureza humana e suas causas, que se movem naturae, a dialética é entendida como a
em Deus como o ar na luz. Então, Deus será própria estrutura da realidade no seu rea
tudo em cada coisa; aliás, não haverá nada lizar-se: em suas duas fases, ascendente e
mais além de Deus. Não se trata de dissolu descendente (a divisio, do uno ao múlti
ção da individualidade, mas na sua conser plo, e a reductio, do múltiplo ao uno), cons
vação da mais elevada forma: como o ar não titui o ritmo interno da natureza e da his
perde sua natureza quando penetrado pela tória do mundo. A dialética é antes de tudo
luz, e o ferro não se anula quando se funde uma arte divina, fundada na própria obra
ao fogo, da mesma forma toda natureza se do Criador. E é por isso que os homens
assimilará em Deus sem perder sua indivi descobrem e não criam a dialética, como
dualidade, ontologicamente transfigurada e instrumento de compreensão do real e de
não anulada. [T] elevação a Deus. Desse modo, Escoto Eriú
gena abole toda distinção entre religião e
filosofia: “A verdadeira filosofia outra coi
sa não é do que religião e, inversamente, a
4 ;A razão em função da fé verdadeira religião outra coisa não é do que
verdadeira filosofia” . E, nesse contexto re
ligioso, ele chega a dizer que ninguém pode
Nenhuma autoridade — diz Escoto entrar no céu a não ser passando pela filo
Eriúgena — deve te afastar das coisas que sofia {Nemo intrat in caelum nisi per pbi-
são ensinadas pela reta razão. “ A verdadei losophiam).
139
Capitulo oitavo - O SMi^gimehío da é^scolastica e seus deseuvolvimeu+os
res bens?Gstá aindci vigoroso 0 incólume aquele tem nenhuma experiência disso, 0 dó medo a
preciosíssimo orgulho do gênero humono qu© quem o teve. Acrescenta depois que quanto
0 Símaco, t0u sogro, 0 — coisa quo resgatarás mais uma pessoa é afortunada, mais delicada
voluntariamonto com o preço da vida — tal ho é sua sensibilidade, e que, se tudo não está
mem, todo sabedoria 0 virtud0, S0 lamenta po exatamente a seu gosto, não sendo avessa a
las ofensas a ti dirigidas, sem cuidar-sa das qua qualquer adversidade, abate-se diante da me
podam atingi-lo. Gstá viva tua esposa, mulher nor delas: infinitas são as coisas que privam os
do índolo resorvada, de singular modéstia 0 mais afortunados da felicidade perfeita. Tens
honestidade 0, para resumir brevemente todos idéia de quantos se julgariam quase no céu se
os dotes dela, semelhante ao pai; vive, eu te tivessem como sorte uma parte ainda que míni
digo, e, chegando a odiar esta vida, anima-se ma daquilo que resta de tua fortuna? Gste mes
apenas por ti, 0 se consome em lágrimas 0 dor mo lugar, que chamas de exílio, é a pátria para
com tua falta (único motivo pelo qual também aqueles que aí habitam. De modo que é verda
eu julgaria que perd0ste parte de tua felicida de que a miséria está na opinião que dela se
de). Que direi depois a respeito de teus filhos tem, e que ao contrário feliz é a sorte, seja ela
já cônsules, de cuja índole, herdada tanto do qual for, daquele que a tolera com espírito se
avô quanto do pai, já aparece um claro ensaio, reno. Quem é tão feliz a ponto de não desejar
como é possível em jovens daquela idade? mudar o próprio estado, quando se deixa to
Portanto, uma vez que a principal preocupação mar pela impaciência? De quantas amarguras
dos mortais é a de conservar a vida, feliz de ti, é coberta a doçura do felicidade humana! M es
se conhecesses teus bens, dado que também mo que ela possa parecer agradável a quem
agora tens em abundância aquelas coisas que dela goza, todavia não se lhe pode impedir de
ninguém duvido ser mais preciosas na vida. Por ir embora quando quiser. G pois evidente o quão
isso, enxuga as lágrimas; a fortuna ainda não miserável 0 a felicidade derivada das coisas
passou a odiar a todos até o último, nem se mortais, que não dura para sempre nem mes
desencadeou sobre ti uma tempestade dema mo naqueles que não se deixam por elas se
siado veemente, uma vez que permanecem fir duzir, nem satisfaz completamente aqueles que
mes âncoras que não permitirão que te falte o a procuram com afã".
conforto do presente e a esperança do futuro". "Portanto, por que, ó mortais, procurais
Respondi: "Peço que elas estejam firmes; fora de vós a felicidade que está dentro de vós?
enquanto permanecerem, com efeito, seja como O erro e a ignorância vos confundem. Agora te
forem as coisas, eu serei salvo. Mas vês que mostrarei brevemente o fulcro sobre o qual se
grande parte de nossas distinções foi-se em apóia a mais alta felicidade. Gxiste algo mais
bora". Gla disse.- "Teremos feito certo progres precioso para ti do que tu mesmo? Não, res
so, caso de modo nenhum te lamentes de tua ponderás; e, portanto, se fores senhor de ti
sorte. Mas não posso suportar a volúpia com a mesmo, possuirás aquilo que jamais d eseja
qual com tanto pranto e ansiedade lamentas rias perder, nem a fortuna te poderio arrebatar.
que falte alguma coisa à tua Felicidade. Com G para que reconheças que a felicidade não
efeito, quem possui uma felicidade tão privada pode consistir nestes bens fortuitos, raciocina
de nuvens que não contraste em algo com a assim. Se a felicidade é o sumo bem da natu
natureza de seu estado? A condição dos bens reza dotada de razão, 0 se não é sumo aquele
humanos é na verdade coisa que produz an bem que de algum modo pode ser tirado, pois
gústia, e tal que ou não se realiza nunca pleno lhe é superior aquele bem que não pode ser
mente ou jamais dura para sempre. Gste está tirado, torna-se claro que o instabilidade da
repleto de riquezas, mas enrubesce por causa fortuna não pode aspirar a possuir a felicidade.
de sua obscura ascendência; aquele é famoso Além disso, aquele que é dominado por esta
pelo nobreza das origens, mas se debate em felicidade caduca, ou sabe que ela é mutável
restrições econômicas tais que preferiría ser ou não sabe. Se não sabe, pode ser feliz a
desconhecido. Rquele que é abundantemente sorte de quem vive na cegueira da ignorância?
provido de ambos os bens chora seu celibato; Se sabe, necessariamente teme perder aquilo
aquele que é afortunado no matrimônio, mas que certamente poderá perder; e por isso o con
privado de filhos, acumula riquezas para um tínuo temor não lhe permite ser feliz. Ou talvez,
herdeiro estranho; aquele, por fim, que se a le se o tiver perdido, pensa que seja coisa sem
gra com os filhos derrama lágrimas amargas importância? Mas também então é bastante
pelos erros do filho ou da filha". insignificante aquele bem cuja perda pode ser
"Ninguém, portanto, se encontro facilmente suportada serenamente. Sei que estás persua
em sintonia com o própria sorte; em coda um dido e firmemente convicto, por muitíssimas
há sempre algo que é ignorado por quem não demonstrações, que as mentes dos homens não
141
Capítulo oitavo - O su ^ gim eu to d a írtscolás+ ica e s e u s d e s e u v o lv im e u to s
sõo de modo olgum mortais, e é evidente que efeito, é ser incluído oo longo do arco de uma
o felicidade dado pelo acaso termina com a vida sem termo — coisa que Platão atribui ao
morte do corpo. Não há dúvida, portanto, de mundo — , outra é acolher em si a presença
que, se esto felicidade pode trazer a bem- total e simultânea de uma vida sem fim, o que
aventurança, todo o qênero humano caio no evidentemente é próprio da mente divina. Nem
infelicidade no momento final da morte". Deus deve parecer mais antigo que as coisas
criadas por quantidade de tempo, mas sim por
3. A eternidade de Deus prerrogativa de suo simples natureza, o movi
e a liberdade do homem mento infinito das coisas temporais imita justa
mente o estado presencial da imóvel vida divi
"Uma vez que, portanto, como pouco an na, e, não podendo reproduzi-lo ou igualá-lo,
tes ficou demonstrado, tudo aquilo que se co da imobilidade decai para o movimento, da sim
nhece é conhecido não em virtude da própria plicidade da presença se reduz à infinita exten
natureza, mas da natureza daqueles que o com são do futuro e do passado. Cmbora não es
preendem, vejamos agora, conforme nos é per tando em grau de possuir contemporaneamente
mitido, qual é a condição da essência divina, a plenitude total da própria vida, apesar de tudo
de modo a poder também reconhecer qual é a isso, pelo próprio fato de que de algum modo
sua ciência, é juízo comum de todos os seres jamais cessa de ser, parece querer emular em
providos de razão que Deus é eterno. Conside certa medida aquilo que não pode igualar e
remos portanto o que seja a eternidade; esta, exprimir plenamente, estreitando-se àquele tipo
com efeito, nos desvelará ao mesmo tempo a de presença que é própria deste breve e fugaz
natureza e a ciência divina. A eternidade, pois, momento. Uma vez que tal presença traz em si,
é o posse simultânea e perfeita da vida sem por assim dizer, uma imagem daquela impere-
fim, coisa que aparecerá mais clara a partir de cível, fornece uma aparência de existência àque
um confronto com as realidades temporais. Tudo les seres aos quais tocou como sorte; todavia,
aquilo que vive no tempo procede no presente uma vez que não pôde permanecer imóvel, tor
do passado para o futuro, e não há nada, da nou-se senhora de um infinito itinerário de tem
quilo que é colocado no tempo, que posso abra po, prolongando deste modo, no devir, a vida
çar conjuntamente todo o espaço da própria que não pôde abraçar em sua plenitude per
vida; enquanto não consegue ainda agarrar manecendo imóvel. Portanto, se quiséssemos
aquilo que acontecerá amanhã, já perdeu aquilo dar às coisas seu justo nome, diriamos, seguin
que foi ontem; e também na vida do hoje viveis do Platão, que Deus é eterno, o mundo, ao in
openas no átimo móvel e fugidio. Portanto, tudo vés, é perpétuo".
aquilo que é condicionado pelo tempo, mesmo "Uma vez que, portanto, toda faculdade
que, como afirma Aristóteles a propósito do de julgamento compreende, segundo a própria
mundo, não tenha jamais começado a ser e ja natureza, as coisas por ela subsumidas, e Deus
mais termine, e a duração de sua vida coincida se encontra sempre em um estado de eterna
com a infinidade do tempo, todavia não é ain presença; também sua ciência, ultrapassando
da tal de modo a poder ser corretomente julga toda mutação temporal, permanece na simpli
do eterno. Cie, com efeito, não compreende em cidade da própria presença, e abraçando to
si e não abraça em sua totalidade simultanea dos os espaços infinitos do passado e do futu
mente o espaço de uma vida mesmo que infini ro os contemplo no próprio e simples ato de
ta, enquanto não possui ainda as realidades conhecimento, como se acontecessem justamen
futuras, e não possui mais as já transcorridas. te naquele momento. De formo que, se quise
Aquele ser, portanto, que encerra e possui em res julgar bem a previdência, com a qual ele
si simultaneamente a plenitude total de uma discerne todas as coisas, afirmarás de modo
vida sem fim, e ao qual não falta nada do futu mais justo que seja não pré-ciência, por assim
ro e nada do passado tenha escapado, ape dizer, do futuro, mas ciência de uma presença
nas este com razão é julgado ser eterno, e é que jamais falta; razão pelo qual é melhor cha
necessário que, plenamente senhor de si, e s mada de providência do que previdência, por
teja sempre presente e por assim dizer ao lado que, posta bem longe dos seres mais baixos,
de si mesmo, e tenha presente a si o infinito vê diante de si o universo inteiro como do vérti
transcorrer do tempo". ce mais excelso dos coisas. Por que pretendes
"Crram portanto aqueles que, tendo co então que se tornem necessárias as coisas que
nhecimento da opinião de Platão, de que este são investidas pela luz divina, quando sequer
mundo não teve um início de tempo e não terá os homens tornam necessárias as que vêem?
fim, afirmam por isso que o mundo criado se Talvez teu olhar acrescenta uma necessidade
torna coeterno a seu Criador. Uma coisa, com qualquer às coisas que vês presentes a ti? De
142 Quarta parte - G ê n e s e d a áT scolàs+ ica
modo nenhum! Todavia, se é lícito um confronto tecimentos futuros que provêm da liberdade de
entre o presente divino e o humano, como ve decisão; os quais, portanto, quando referidos
des algumas coisas neste vosso presente tem ò intuição divina, tornam-se necessários para a
poral, da mesma forma ele as penetra todas condição do conhecimento divino; considerados
em seu presente eterno. A pré-ciência divina, ao invés em si mesmos, não perdem a absolu
portanto, não muda a natureza e as proprieda ta liberdade da própria natureza. Acontecerão
des das coisas, e as vê presentes diante de si portanto sem nenhuma dúvida todas os coisas
do modo como acontecerão um dia no tempo. que Deus conhece antecipadamente que suce
£ não confunde os juízos feitos sobre as coisas, derão, mas algumas delas brotam do livre-ar-
mas com um só intuito da sua mente conhece bítrio, e, embora se realizem, não por isso per
até o fundo tanto aquilo que acontecerá ne dem a própria natureza, em virtude da qual,
cessariamente, como aquilo que acontecerá não antes que se realizassem, teriam podido tam
necessariam ente, como vós, quando vedes bém não realizar-se".
contemporaneamente um homem que caminha "Mas o que importa — me dirás — que
sobre a terra e o sol que surge no céu, distinguis não sejam necessárias, a partir do momento
uma coisa da outra, mesmo que as vejais jun que, por causa da condição da ciência divina,
tas, e julgais voluntária a primeira e necessária disso resultará em todo caso uma necessidade
a segunda. Da mesma forma, portanto, ocorre equivalente? Isto importa, isto é, que dos fatos
com o intuito divino, discernindo cada coisa não há pouco citados, o sol que surge e o homem
ultrapassa em nada a qualidade das coisas que que caminha (dois eventos que, enquanto acon
a ele estão presentes, enquanto em relação à tecem, não podem não acontecer), um, ainda an
condição do tempo sejam futuras. Por conse tes que acontecesse, devia necessariamente
guinte, quando Deus conhece que sucederá a l existir, o outro não; assim também, aquelas rea
guma coisa que ele sabe privada da necessi lidades que Deus tem presentes a si sem ne
dade de existir, esta não é uma opinião, mas nhuma dúvida existem, mas delas algumas bro
um conhecimento fundado sobre a verdade. tam da necessidade natural, outras da vontade
"£ se a este ponto dissesses que aquilo daqueles que as realizam. Não erradamente,
que Deus vê no futuro não pode não aconte portanto, dizemos que estas coisas, caso as con
cer, e que aquilo que não pode não acontecer sideremos em sua relação ao conhecimento di
acontece por necessidade, e me pusesses em vino, são necessárias, mas, se as considerar
apuro sobre este tema da necessidade, eu te mos em si mesmas são livres dos vínculos da
mostrarei uma realidade absolutamente verda necessidade, assim como tudo aquilo que os sen
deira, mas tal que dificilmente poderio atingir tidos percebem é universal se o referimos à ra
quem não esteja enfronhado na contemplação zão, particular se o referimos a si mesmo".
de Deus. £u te respondería que o próprio futu "Todavia, se está em meu poder — dirás
ro, se o considerarmos em relação ao conheci — mudar de propósito, tornarei vã a providên
mento que Deus dele tem, é necessário, mas, cia, quando por acaso mudar minhas intenções,
quando o examinamos em sua própria nature que ela conhece com precedência. 0 a respon
za é absolutamente livre e privado de vínculos. derá que podes mudar o teu propósito, mas
Há, com efeito, duas espécies de necessida não podes te subtrairá pré-ciência divina, pois
de; uma simples, como, por exemplo, que ne a presente verdade da providência vê que po
cessariamente todos os homens são mortais, a des fazê-lo, e também se o fazes, e para qual
outra condicional, como quando se tu sabes que coisa te diriges, assim como não poderias fugir
tal pessoa caminha, é necessário que ela ca ao olhar de um olho que te supervisiona, por
minhe. Aquilo que alguém conhece não pode mais que com livre vontade tu te dirijas às mais
ser diversamente de como é conhecido; esta variadas ações. Mas então, perguntarás, o ciên
necessidade condicional, porém, não traz con cia divina mudará conforme a minha disposição,
sigo a necessidade simples. Não dá origem à de modo que, quando eu quiser isto ou aquilo,
necessidade condicional a natureza própria de também elo parecerá alternar o modo de co
uma coisa, mas a acresce de uma condição; nhecer? De modo nenhum. A intuição divina corre
nenhuma necessidade obriga com efeito a ca adiante de todo evento futuro, e o traz e cha
minhar aquele que caminha voluntariamente, ma de novo à presença do próprio conhecimen
por mais necessário seja que, enquanto cami to; e não se alterna, como crês, ao prever ora
nha, ele caminhe. Do mesmo modo, portanto, isto ora aquilo, mas em um único olhar simples,
se a providência vê alguma coisa como presen permanecendo imóvel, prevê e abraça tuas
te, é necessário que ela exista, embora não mudanças. £ este poder de compreender e de
tenha nenhuma necessidade de natureza. Pois ver todas as coisas. Deus não o tem do êxito
bem, Deus vê como junto a si presentes os acon das realidades futuras, mas a partir da própria
143
Capítulo oitavo - O surgim en to d a éA scolá stica e s e u s d esen volvim en tos
simplicidade. Desse modo fico resolvido tam de nosso espírito, que é a divisão em coisas
bém o questão posto hó pouco, isto é, que se que existem e coisas que não existem, foi-me
rio coisa indigno dizer que nossos oções futu oferecido um termo geral para exprimir umas e
ros sejom couso do ciêncio divino. A forço do outras, a palavra grega phqsis, que corresponde
ciência divino, com efeito, abraçando todos os à latino noturo. Ou talvez não te pareça que as
coisas com seu conhecimento presencial, fixou coisas sejam assim?
poro todo coiso o próprio limite, e nada deve D iscípulo - Ao contrário, estou de acordo;
às que acontecerão em seguido". pois também eu, quando começo a raciocinar,
"Posto isso, permanece intocto poro os vejo que é exatamente assim.
homens o liberdade de escolho, e não injusta M cstrc - Natureza é, portanto, o nome ge
mente os leis estabelecem penas e prêmios, ral de todas as coisas que existem e que não
pois os vontades deles são livres de qualquer existem.
necessidade; e permanece que Deus tudo co D iscípulo - Sim; nada, com efeito, pode se
nhece antecipadamente, olhando do alto. A apresentar a nosso pensamento a que não se
eternidade sempre presente de sua visão con possa aplicar tal palavra.
verge com a qualidade futura de nossas ações, M cstrc - Portanto, uma vez que estamos
dispensando prêmios aos bons, castigos aos de acordo sobre este termo geral, gostaria que
maus. Não é vão repor em Deus esperanças e me dissesses como a natureza se divide em
preces, que, quando são retas, não podem não diferentes espécies. Ou, se crês, primeiro ex
ter eficácia. Afastai-vos, portanto, dos vícios, perimentarei dividir, e julgarás se a divisão é
praticai as virtudes, elevai o espírito a espe bem-feita.
ranças justas, dirigi ao céu preces humildes. D iscípulo - Começa então; estou impaciente
Cabe a vós, caso não queirais fingir não sabê- de ouvir de ti o verdadeiro modo de dividi-la.
lo, uma grande necessidade de ser retos, pois M cstrc - Parece-me que a natureza se di
vossas ações se realizam diante dos olhos de vide, por quatro diferenças, em quatro espé
um juiz que vê todas as coisas". cies: a primeira é aquela que cria e não é cria
Boécio, F) consolação da filosofia. da, a segunda é criada e cria, a terceira é criada
e não cria, a quarta não cria nem é criada. Cs-
tas quatro se opõem duas o duas, pois a ter
ceira se opõe à primeira e a quarta à segundo;
mas a quarta parece impossível porque sua di
ferença específica é o fato de não poder ser.
E sco to E r iú g e n a Parece-te justa esta divisão ou não?
D iscípulo - Justa; mas eu desejaria que tu
a repetisses para que me ficasse mais clara a
oposição das formas que mencionaste.
M cstrc - Parece-me que devas ver a opo
sição entre a primeira e a terceira, pois a pri
fi quadrúplice divisão meira cria e não é criado, e se lhe opõe aquela
do natureza que é criada e não cria. A segunda depois se
opõe à quarta, pois a segunda é criada e cria,
enquanto a quarta nem cria nem é criada.
Fortemente influenciado p elo neoplo- D iscípulo - Vejo claramente. Mas me per
tonismo cristão do Pseudo-Dionísio fíreopa- turba muito a quarta espécie que acrescentas
gito, €scoto propõe uma subdivisão hierár te; sobre as outras, com efeito, não tenho hesi
quica da natureza em quatro partes: tações, pois com a primeira entendemos,
1) Deus (natureza não criada que crio); parece-me, a causa de tudo aquilo que existe,
2) Logos (natureza criada que cria); e daquilo que não existe; com a segunda, as
3) mundo (natureza criado que não cria); causas primordiais; com a terceira, aquilo que
4) Deus como fim último (natureza não se gera e existe no tempo e no espaço. Por
criada que não cria). isso, parece-me necessário discutir mais parti
cularmente sobre cada uma delas. [...]
M cstrc - Recolhamos então em unidade,
procedendo analiticamente, as quatro formas
M cstrc - Tendo freqüentemente pensado anteriormente mencionadas que coincidem en
e estudado atentamente, o quanto me permi tre si. A primeira e a quarta são uma só reali
tiam as forças, à primeira divisão das coisas dade, pois se aplicam apenas a Deus: Deus é,
perceptíveis e das que superam a capacidade com efeito, o princípio de todas as coisas cria
144 Quarta parte - C dèn e s e dct ( ~ S í d / i s l i ! ; i
das, 0 é o fim ao qual todas tendem para re dade. Vês então que duas das quotro formas
pouso: nele eternamente e imutavelmente. Di- acima mencionadas, a primeira e a quarta, se
zamos, com efeito, que a causa de toda coisa reduzem ao Criador, e as outras duas, a segun
cria, porque dela, com admirável e divina multi da e a terceira, se reduzem à criatura?
plicação, procede o conjunto das coisas que D iscIpulo - Vejo, e admiro a complexidade
dela e depois dela foram criadas, em gêneros, das coisas. De fato, as duas primeiras formas
espécies, números, diferenças, e tudo aquilo não se distinguem em Deus, mas em nossa con
que se considera existente em natureza. Mas, templação, e não são formas de Deus, mas de
uma vez que tudo isso que dela procede volta nossa razão, pela dupla noção de princípio e
rá à mesma causa, quando chegar ao fim, por de fim; nem se reduzem à unidade em Deus,
isso a causa primeira se diz fim de toda coisa, mas em nossa teoria que, enquanto considera
e enquanto tal não cria nem é criada. Com efei o princípio e o fim, cria em si mesma duas for
to, quando tudo tiver voltado a ela, nada pro mas de contemplação e as reúne depois em
cederá mais dela por geração, lugar e tempo, uma, quando extraídas da simplicidade divi
em gêneros e espécies, pois tudo será quieto, na. Princípio e fim, de fato, não são nomes pró
imutável, e indivisivelmente um [...]. Vê, portan prios da natureza divina, mas de sua relação
to, que a primeira e a quarta forma da natureza com as coisas criadas. Dela com efeito extraem
se reduzem a uma só realidade? sua origem, e por isso ela se chama princípio, e
D iscípulo - Vejo e entendo. Com efeito, em uma vez que a ela se dirigem, para nela termi
Deus a primeira forma não se distingue da quar nar, ela recebe o nome de fim. As outras duas
ta: em Deus, de fato, não existem duas reali formas, ao invés, digo a segunda e a terceira,
dades, mas apenas uma; todavia, uma vez que surgem não só em nosso contemplação, mas
de Deus temos uma noção quando o conside se encontram na própria natureza das coisas
ramos como princípio, e outra quando o conside criadas, na qual as causas são separadas dos
ramos como fim, em nossa teoria elas aparecem efeitos, e os efeitos se unem às causas, uma
como duas formas, constituídas na simplicida vez que são uma só coisa em seu gênero, ou
de da natureza divina pelo duplo olhar de nos seja, no fato de serem criaturas.
sa contemplação. M cstrc - De quatro, portanto, se tornam
M cstrc - Vês de forma correta. € então? duas.
Devemos reduzir a uma só realidade também a D iscípulo - Não me oponho.
segunda e a terceira forma? Com efeito, creio M cstrc - O que dirias de unir a criatura ao
que não te escapa que, assim como a primeira Criador, de modo a não conceber nele senão
e a quarta se consideram no Criador, da mes aquele que única e verdadeiramente é? Com
ma forma a segunda e a terceira se consideram efeito, nada que está fora dele dizemos verda
na criatura. A segunda, de fato, como disse deiramente ser, pois tudo aquilo que dele pro
mos, é criada e cria, e por ela entendemos as cede não é outra coisa, enquanto existe, se
causas primordiais das coisas criadas; a tercei não uma participação daquele que apenas
ra forma é criada e não cria, e se encontra nos subsiste por si e para si. Negarás, portanto, que
efeitos das causas primordiais. A segunda e a o Criador e a criatura são um único ser?
terceira, portanto, estão contidas em um mes D iscípulo - Não o negaria facilmente, pois
mo gênero, o da natureza criada, e nisso são parece-me ridículo opor-me a esta reunião.
uma só realidade: as formas, com efeito, consi Cscoto Criúgena,
deradas em seu gênero, são uma única reali De divisione noturoe.
A ESCOLASTICA
NOS SÉCULOS
DÉCIMO PRIMEIRO
E DÉCIMO SEGUNDO
■ A consolidação das relações entre razão e fé
A n se lm o de A o sta
Capítulo nono
Anselmo de Aosta
Capítulo décimo
T ^ K v se lm o d e ^ o s t a
Mas como se harmonizam liberdade assim como Deus prevê. Portanto, é neces
humana e presciência divina, predestinação sário que algo seja sem necessidade” .
e livre-arbítrio, graça e mérito? Como é pos Aparentemente formal, essa resposta
sível falar de liberdade e de responsabilida se enriquece com outros elementos quan
de humana no contexto de um Deus onipo do Anselmo explicita que é possível a pre
tente, onisciente e predestinante? Esses são visão da necessidade da verificação de um
alguns temas do ensaio De concordia. Ansel acontecimento futuro livre, porque tal pre
mo assim formula a resposta a essas inter visão divina se dá na eternidade, onde não
rogações: “ Se um acontecimento se cumprirá há mutação, ao passo que o acontecimen
sem necessidade, Deus, que prevê todo acon to livre ocorre no tempo. Trata-se de dois
tecimento futuro, deve prever também isso. planos distintos, o da eternidade e o do
Mas o que Deus prevê será necessariamente tempo.
Um angulo
da catedral
de C.anterbury,
que constitui
uma tias maiores
expressões
arquitetônicas
do gótico inglês.
Depois de eleito
abade do mosteiro
de Bec
na Normandia
(W7,V.
Anselmo
foi nomeado
arcebispo
de C.anterbury
(W9B).
Capítulo nono - Anselmo de Aosta 153
Í1
M Universais. O termo "universal" de
samente, participam daquela bondade, da riva da expressão unum in diversis: in
quele ser e daquela natureza. As coisas boas, dica, portanto, aquilo que unifica uma
grandes, existentes etc., não seriam conce diversidade, ou seja, as propriedades
bíveis se não houvesse o pressuposto da comuns de uma multiplicidade de in
bondade, do ser etc., que são idéias univer divíduos.
sais e arquetípicas, situadas na mente divi
na e sobre as quais se moldou o criado.
A esse realismo de ascendência platô Na tradição platônica os universais são
nica é preciso acrescentar o realismo teoló as Idéias, o ser no mais alto grau, isto é,
gico, que justifica a investigação racional as essências transcendentes das quais
relativa aos mistérios da fé cristã. Ou seja, a participam as realidades concretas.
posse das verdades reveladas por meio da Na tradição aristotélica, o universal é,
fé faz com que a razão seja constantemente ao contrário, o conceito, que se ob
tém da mente por abstração,
vinculada ao seu conteúdo e sua investiga f O problema medieval consiste em es-
ção siga o movimento lógico que parte da tabelecer qual seja o estatuto onto-
I
fé para explicitar seu conteúdo e iluminar lógico dos universais: se são Idéias
suas relações. transcendentes, pensamentos de
Justamente porque é a fé que socorre o Deus etc., ou se são apenas concei
movimento lógico da razão e de seus con tos mentais, ou até mesmo apenas
ceitos, não a experiência pura e simples, é palavras insignificantes, ou se existe
que se pode entender a força da objeção do uma solução que medeia as várias
monge Gaunilon, que observava — e, de posições.
pois dele, também santo Tomás — que,
quando pronunciamos o nome “Deus” , nem
sempre vamos além do som físico da pala çava seu mestre a se pôr a descoberto, isto
vra, sobretudo no caso dos ateus e incrédu é, a reconhecer que punha a fé como funda
los. Por isso, não é possível sustentar que se mento. Era por essa razão, portanto, que
pode deduzir a existência de Deus a partir Anselmo se dirigia somente a quem, pela fé,
do conceito de Deus. No fundo, sucintamen já possuía as verdades que procurava de
te, Gaunilon lançava à discussão a concep monstrar com a razão, mas não ao tolo de
ção realista dos conceitos de Anselmo e for- que fala a Bíblia ou ao ateu.
Capítulo nono - A n s e l m o de A o sta
155
ANSELMO
DEUS E O HOMEM
P r o v a s A POSTERIORI P r o v a s A PRIORI
DA EXISTÊNCIA DE ÜEUS DA EXISTÊNCIA DE ÜEUS
DEUS
uma coisa é o problema
da existência de Deus,
outra coisa é o problema
da natureza de Deus.
Deus é bondade absoluta,
suma grandeza
e perfeição,
\ causa das coisas
T
a lib erd ad e h u m an a
HOMEM coincide
com a vontade do bem
o conhecim ento
humano mede-se
pelas coisas,
o divino as mede
A L IB E R D A D E H U M A N A C o n c e p ç ã o r e a l is t a Fé e r a z ã o
o coisa é. No primeiro modo, portanto, pode- lecto, não esteja apenas no intelecto, mas tam
se pensar que Deus não exista, mas no segun bém na realidade, porque diversamente não
do absolutamente não: por isso ninguém, que poderio ser o ente maior de todos. Mas talvez
compreenda aquilo que Deus é, pode pensar possamos responder do seguinte modo.
que Deus não existe, embora diga em seu cora
ção estas palavras, não lhes dando nenhum sig 2. € preciso distinguir
nificado ou dando-lhes um significado estranho. entre "pensar" e "entender"
Deus, de fato, é aquilo do qual não se pode
pensar o maior. Quem compreende bem isto, Se afirmamos que este ente já está em
compreende certamente que ele existe em modo meu intelecto apenas pelo fato de que eu com
tal que nem sequer no pensamento pode não preendo aquilo que se diz, não poderio dizer
existir. Quem, portanto, compreende que Deus de modo semelhante ter no intelecto também
é assim, não pode pensar que ele não existe. todas as coisas falsas e sem dúvida de nenhum
Cu te agradeço, bom Senhor, te agradeço modo existentes em si mesmas, porque se al
porque aquilo que antes acreditei graças a um guém as dissesse eu compreendería tudo aquilo
dom teu, agora pela tua iluminação o compreen que dirio? A menos que por acaso não resulte
do de modo tal que, se não quisesse crer que que este ente seja tal que não possa estar no
tu existes, não poderio não compreendê-lo. pensamento do mesmo modo em que estão
Anselmo, Proslogion. também as coisas falsas ou dúbias, e então eu
não seja obrigado a dizer que penso ou tenho
no pensamento aquilo que ouvi, mas que o com
preendo e que o tenho no intelecto; ou seja,
digamos que não o posso pensar a não ser en
tendendo-o, isto é, compreendendo com ciên
fl disputei com Gounilon1 cia, que ele existe na própria realidade.
Todavia, se assim for, em primeiro lugar
ter tal ente no intelecto não será mais coisa
Gounilon respondeu o fínselmo, negan diversa e precedente no tempo, em relação ao
do o volor do argumento ontológico: não se compreender em um tempo sucessivo que o
p o d e deduzir a existênda real d e Deus a p e ente existe, como ocorre com uma pintura, que
nas da idéia da perfeição d e Deus. antes está na mente do pintor e depois na obra
fí resposta de fínselmo (citada no tre produzido. Além disso, bem dificilmente pode
cho gue segue) confirma novamente o volidez rá ser crível que, quando se tiver dito ou ouvido
d e sua prova. isto, não se possa pensar que isso não exista,
assim como ao invés se pode pensar que Deus
não existe. Com efeito, se não se pode, por
que toda essa disputa é assumida contra quem
1. Síntese do argumento de Anselmo
nega ou duvida que exista uma tal natureza?
A quem duvida ou nega que exista tal na Por fim, que tal ente seja tal de modo a não
tureza, da qual não se possa pensar nada de poder ser percebido, que apenas é pensado,
maior, dizemos aqui que sua existência é pro sem a segura compreensão de sua indubitável
vada, em primeiro lugar, pelo fato de que aque existência, deve ser-me provado com algum ar
le mesmo que a nega ou dela duvida já a pos gumento que não se preste à dúvida, e não
sui no intelecto, quando, ouvindo falar disso, com este; pois, quando compreendo aquilo que
compreende aquilo que é dito; em segundo lu ouvi, isso já está em meu intelecto. Com este
gar, porque aquilo que ele compreende é ne argumento, afirmo ainda que podem existir, da
cessário que não esteja apenas no intelecto, mesmo forma, todas as outras afirmações in
mas também no realidade. C esta última pas certas ou também falsas ditos por alguém do
sagem é provada assim: uma vez que existir qual compreendo as palavras; e existiríam tam
também na realidade é maior do que existir ape bém mais se eu, que ainda não creio neste ar
nas no intelecto, se aquilo que ele compreen gumento, nelas cresse, enganado, como acon
de existe apenas no intelecto, maior do que tece freqüentemente.
isso será tudo aquilo que existir também na re
alidade, e assim o ente maior de todos será 3. O exemplo do pintor não é válido
menor do que algum outro ente e não será o
maior de todos, o que certamente é contraditó Portanto, nem mesmo o exemplo do pin
rio. Portanto, é necessário que o ente maior de tor, que já possui no intelecto a pintura que
todos, do qual já se provou que está no inte está paro fazer, pode concordar bem com este
158 Quifltã parte - ; A <Sscolás+ ica n os s é c u l o s d é -c tm o p H m e ifo e d é c i m o s e g u n d e
argumento. Com efeito, o pintura, oindo antes pensado conforme uma realidade perfeitamente
de ser pintada, encontra-se na própria arte do verdadeira: não a realidade que seria aquele
pintor, e tal realidade na arte do artífice não é homem individual, mas o realidade que é o
mais que parte de sua inteligência, pois, como homem em geral.
diz santo Agostinho, "quando um artesão está Todavia, quando então ouço dizer "Deus"
para construir um armário, antes ele o tem na ou "o ente maior de todos", não posso tê-lo
mente; o armário fabricado não é vida, porque no pensamento ou no intelecto assim como
vive a alma do artífice, na qual existem todas teria aquela coisa falsa no pensamento ou
estas coisas antes de serem produzidas". no intelecto, porque enquanto posso pensar
Com efeito, como estas coisas na alma viven- aquela coisa em conformidade com uma reali
te do artífice são vida, a não ser porque não dade verdadeira e por mim conhecida, Deus,
são mais que a ciência ou inteligência de sua ao contrário, não o posso absolutamente pen
alma? sar a não ser apenas conforme as palavras.
Ao contrário, de tudo aquilo que o inte Mas apenas com as palavras se pode bem pou
lecto percebe como verdadeiro, tendo-o ouvido co, ou nunca se pode, pensar algo de verda
ou pensado, com exceção das coisas que são deiro, porque quando se pensa deste modo
conhecidas como pertencentes à própria natu não se pensa tanto na própria palavra, isto é,
reza da mente, uma coisa é sem dúvida o con no som das letras ou das sílabas, que é uma
teúdo verdadeiro e outra o próprio intelecto realidade certamente verdadeira, e sim no sig
com que é captado. Portanto, mesmo que fos nificado da palavra ouvida. Mas este não é
se verdadeiro que existe o ente do qual nada pensado como quem sabe o que aquela pa
pode ser pensado maior, este ser, todavia, lavra normalmente significa, isto é, como quem
ouvido e compreendido, não é como a pintura a pensa conforme uma realidade verdadeira
ainda não executada e presente no intelecto ao menos apenas no pensamento, e sim como
do pintor. quem não conhece aquele significado e o pen
sa apenas conforme o movimento do espírito
provocado pela escuta de tal palavra, na ten
4. Pode-se pensar que Deus não exista,
tativa de construir para si o significado da pa
seguindo o argumento de Anselmo
lavra percebida. Seria verdadeiramente admi
A isso acrescentemos aquilo que ob rável, se pudesse fazê-lo colhendo a verdade
servamos, isto é, que não posso, pelo fato de da coisa.
tê-lo ouvido, pensar ou ter no intelecto aque Assim, portanto, e com certeza não diver
le ente maior do que todas as coisas que se samente, me consta ter até agora em meu inte
podem pensar, do qual se diz que não pode lecto aquele ente, quando ouço e compreendo
ser outra coisa a não ser o próprio Deus, como quem diz que existe um ente maior do que to
não posso pensar ou ter no intelecto a q u e das as coisas que podem ser pensadas. Que
le ente em base o uma coisa por mim conhe isto seja dito a respeito daquela afirmação se
cida tanto pela suo espécie como pelo seu gundo a qual aquela sumo natureza já está em
gênero, também não posso pensar ou ter no meu intelecto.
intelecto, da mesma forma, nem sequer o pró
prio Deus; justamente por este motivo, por
5. Se Deus é pensado
tanto, posso também pensar que Deus não
apenas "secundum vocem",
existe.
não se pode deduzir sua existência real
Com efeito, não conheço a própria coisa,
nem posso conjeturá-la o partir de outra coisa Que o suma natureza exista necessaria
que lhe seja semelhante, pois tu mesmo afir mente também na realidade, isso me é demons
mas que ela é uma realidade de tal modo fei trado dizendo que, se não fosse assim, tudo
ta, que nenhuma coisa pode ser-lhe semelhan aquilo que existe na realidade seria maior do
te. De fato, se eu ouvisse falar de um homem que ela; portanto, ela não seria aquele ente
que me é completamente desconhecido, do qual maior do que todos, do qual já se provou que
ignorasse também a existência, poderio toda seguramente já está no intelecto. A esta argu
via pensá-lo segundo a própria realidade que mentação respondo: se é preciso dizer, daqui
é o homem, por meio da noção específica ou lo que não 'pode sequer ser pensado segundo
genérica em virtude da qual sei o que seja um a verdade de uma coisa qualquer, que está no
homem ou o que sejam os homens. Todavia, intelecto, eu não nego que deste modo ele
poderia ocorrer, se quem me fala disso mentis esteja também em meu intelecto. Mas uma vez
se, que aquele homem pensado por mim não que disso não se pode de foto deduzir que ele
existisse, embora eu o tenho em todo caso exista também na realidade, não lhe concedo
159
Cupltlilo nono - y X ^ s e l m o d e y \o s+ a
absolutamente a existência real, até que não mais duvidar da verdadeira existência daque
me seja provada com um argumento indu- la ilha, ou eu crería que deseja brincar ou não
bitável. sabería a quem considerar mais estulto, se lhe
Quem diz que este ente existe, porque concedesse ter razão, e ele, se cresse ter e s
diversamente aquilo que é maior do que todos tabelecido com alguma certeza a existência
não seria maior do que todos, não presta sufi daquela ilha, sem ter-me antes demonstrado
ciente atenção a quem está falando. Cu, com que a sua perfeição se encontra em meu inte
efeito, não digo ainda, ao contrário, nego ou du lecto como uma coisa verdadeiram ente e
vido, que este ente seja maior do que alguma indubitavelmente existente, e não como algo
coisa verdadeira, nem lhe concedo outro ser se falso ou incerto.
não aquele, admitido que se deve chamá-lo
"ser", de uma coisa completamente ignota que 7. Crítica final do argumento
a mente se esforça para imaginar apenas se
gundo a palavra ouvida. Portanto, de que modo Cstas coisas, no entanto, respondería
me é demonstrado que este ser maior existe aquele insipiente às objeções. Quando se lhe
na verdade da coisa, enquanto consta que é diz que aquele ente maior do que todos é tal
maior do que todas as coisas, quando até agora de modo a não poder ser sequer pensado
eu nego ou coloco em dúvida justamente este como não existente, e isto de novo não é de
constar, não admitindo que tal ente maior do monstrado de outro modo, a não ser dizendo
que todos exista em meu intelecto ou em meu que de outra forma não seria o ente maior do
pensamento, nem mesmo naquele modo com que todos, o insipiente poderio repetir a mes
o qual existem também muitas coisas dúbias e ma resposta e dizer: quando foi que eu disse
incertas? € primeiro necessário, com efeito, que que na realidade verdadeira existe tal ente, ou
me seja certo que tal ser maior existe em uma seja, o “maior do que todos", de forma que dis
realidade verdadeira em algum lugar; então so se me deva provar que ele existe também
apenas, pelo fato de que é maior do que to na própria realidade, de modo a não poder ser
das as coisas, não será mais incerto que sub sequer pensado como não existente? Cm pri
siste também em si mesmo. meiro lugar deve-se por isso provar, com a l
gum argumento certíssimo, que há alguma
natureza superior, isto é, maior e melhor do
6. O exemplo da Ilha Perdida que todas as que existem, de modo que disso
Tomemos um exemplo. Alguém diz que em possamos depois demonstrar todas as outras
alguma parte do oceano há uma ilha que, por qualidades, das quais não pode necessaria
causa da dificuldade, ou melhor, da impossibi mente faltar o ente que é maior e melhor do
lidade de encontrar aquilo que não existe, a l que todos.
guns chamam "Perdida". Cies fabulam que, muito Quando depois se diz que esta suma re
mais do que se diz das Ilhas Afortunadas, esta alidade não pode ser pensado como não exis
ilha é opulento pela sua inestimável abundân tente, dir-se-ia talvez melhor que sua não exis
cia de todo tipo de riqueza e de toda delícia; e tência, ou também a possibilidade de sua não
que, sem possuidor ou habitante qualquer, seja existência, não pode ser entendida. Com efei
superior pela superabundância de bens a to to, conforme o significado desta palavra, não
das as outras terras habitadas em todo lugar se podem compreender as coisas falsas; que
pelos homens. Que alguém me diga tudo isso, certamente podem ser pensadas, da m es
e eu compreenderei facilmente este dizer, no ma forma com que o insipiente pensou que
qual não há nenhuma dificuldade. Deus não existe. Também eu sei com absolu
Todavia, se depois acrescentasse, como ta certeza que existo, mas sei ainda que po
se fosse uma conseqüência: não podes duvi derio também não existir. Ao invés disso, com
dar que esta ilha melhor do que todas as ter preendo de modo indubitável que aquele ser
ras existe verdadeiramente em algum lugar no que é sumo, isto é, Deus, existe e não pode
realidade, mais do que o fato de não duvida não existir.
res que existe em teu intelecto; e uma vez Depois não sei se posso pensar que não
que é melhor existir não só no intelecto, mas existo, enquanto sei com absoluta certeza que
também na realidade, porque se não existis existo. Mas se posso, por que não valería o
se na realidade qualquer outra terra existente mesmo também para todas as outras coisas que
na realidade seria melhor do que ela, e assim conheço com a mesma certeza? Se ao invés não
a ilha já por ti entendida como superior não posso, tal impossibilidade não se referirá ape
seria superior. Se este, digo, quisesse conven nas a Deus.
cer-me com tais argumentos que não se deve Anselmo, Proslogion
160
Quitlta parte - y \ é S s c o l a s + i c a n o s s é c u l o s d é c i m o pnme.i^o e d é c i m o ' se9 u u d c
^Abel a rd o
e. a g m ia d e con trovérsia
sob^e os universais
I . 1-^ ed y \b e l a ^ d o
seus contemporâneos, ele não crê que a ra sivas. Daí seus conflitos com as autoridades
zão possa dar explicações definitivas. e com a tradição. Mas o esforço de Abelardo
Todas as explicações dos filósofos, bem para aprofundar com a razão os problemas
como dos Padres e dos teólogos, são opiniões, máximos da teologia foi apenas contrasta
mais ou menos abalizadas, mas nunca conclu do, e não bloqueado, por esses conflitos.
■>-, fu
Abelardo (1079-1142)
e o pensador
mais prestigioso
do séc. XII.
Por sua vida
atormentada e inquieta,
por suas obras ricas
de jermentos wnts ninlart iccmi&tôt
e iie novas indicações
metodoh igicas, f&tll Cttct
foi definido como ^ u p m d ttm fiifã m w
"a outra vertente
da Idade Média”. cwícr ncfçhwtoirnuc
Aqui Abelardo
é representado nmgfjmuapifia-flôuiir
ao lado de Heloísa, uMtftitfattiatmiwnwic
com a qual teve
a conhecida ^ *oí cwattaiit i jtica tenve
aventura amorosa, ttn c u a n m tt i (m cii a n u ;
no fim da qual uma e outro
entraram para o mosteiro. ^ ^ fn m m a u c ím ítm
Heloísa, ao morrer,
quis ser sepultada
na mesma tumba
de Abelardo.
ê ís
Miniatura do séc. XIV
(de I e ronian de Ia Rose,
Museu C.oudé, (é.bantillv).
166 Quinta parte - A ^scolás+icc a n o s s é c u l o s d é c i m o p^imei^o e de<
d é c im o segu n d o
II A g r a n d e , c o n tr o v é r s ia
S O b r e o s uuive^sais
• Abelardo, todavia, passou para a história também pela posição que assu
miu na secular questão dos universais. As soluções oferecidas a tal problema a
partir da especulação medieval eram as seguintes:
1 O s estudos " g r a m a i i t z a i s " vez. Por essa razão, João de Salisbury, discí
pulo de Bernardo de Chartres, afirmava que
“ a gramática é o berço de toda filosofia” .
A lenta passagem da auctoritas para a
Os estudos “gramaticais” foram parti ratio, a que conduziam os estudos “ grama
cularmente cultivados nos séculos IX-XII. Per ticais” , explica a reação difundida dos tra
mitindo ingressar progressivamente no mun dicionalistas, para os quais a palavra dos
do dos sinais lingüísticos, o desenvolvimento Padres e da Bíblia devia ser meditada e as
desses estudos, que tiveram impulso notável sumida como norma de vida e não profana
na escola de Chartres, resultou em madura da ou laicizada através do uso e das distin
consciência da relação entre voces e res, que ções dos instrumentos “gramaticais” . São
era preciso estudar e explicitar de quando em Pedro Damião (1007-1072), que represen-
Capítulo décimo - A b e l a r d o e cx q r a n .i d e c o n t r o v é r s i a s o b r e o s u n i v e r s a i s
167
Roma, Igreja de Santa Maria sobre Minerva: “A disputa de santo Tomás de Aquino com os heréticos"
(Filippino Lippi).
ta tão bem essa reação, no tratado Sobre a A íntima ligação entre os estudos gra
perfeição monástica chega a considerar que maticais e a dialética foi evidenciada sobre
o iniciador desses estudos foi o diabo: “ Não tudo por Abelardo.
disse ele ‘vós sereis como deuses’ ? Os nos Identificada com a lógica e, portanto,
sos progenitores aprenderam com o tenta com a ratio in exercitio, a dialética impõe o
dor a declinar Deus e a falar dele no plural” . rigor na investigação, que se concretiza na
análise dos termos do discurso, através de um
exame crítico do processo de “imposição” das
voces ou termos às res designadas e pela iden
2 ;A q u e s t ã o d a ^ d ia lé t ic a ” tificação do papel que tais voces desempenham
na estrutura e no contexto do discurso.
Relacionada com os estudos gramati
cais e seu posterior desenvolvimento, a dia
lética levou ainda à maior exaltação da ratio. 3 O p e o b le m a d o s u n iv e e sa is
A propósito disso, escreve Berengário
de Tours (falecido em 1088): “ E próprio de
um grande coração recorrer à dialética para
cada coisa, pois recorrer a ela é recorrer à 651 .A questão da relação dos nomes
razão, de modo que aquele que a ela não e dos conceitos mentais com a realidade
recorre, sendo feito à imagem de Deus se
gundo a razão, despreza a própria dignida A relação entre voces e res, entre lingua
de e não pode renovar-se dia-a-dia à ima gem e realidade, que está no centro dos estudos
gem de Deus” . gramaticais e da dialética, constitui o elemen
168 Quinta parte - A A s c o l á s f i o a n o s s é c u l o s d é c i m o |.n'i muIro e c l é c i m o s o . i u n . ! o
m a a solução modelada
de jAbela rdo: o umve^sal como “sermo” E E f l im p lica çõ e s lc> Ícas 0
ex+raído da Va+icd sob^e a base e metafísicas cia posição Tcmceitualista”
do ^status communis” dos indivíduos de ^Abelardo
I
posteriores às coisas (na mente hu Para concluir este ponto, traçamos um
mana) correspondem aos conceitos quadro sinótico, que resume sinteticamente
lógicos. as coisas ditas sobre as soluções do proble
ma dos universais e antecipa algumas coisas
de que pouco a pouco trataremos. m
171
Capitulo décimo - y \ . b e i a r d o e a 0^ai,n d e c o n t r o v é r s i a s o b r e o s u n i v e r s a i s
Os universais
podem ser
> A A
▼ ▼
! REALISMO EXAGERADO NOMINALISMO
| Foi a tese Foi a tese propugnada
I de Guilherme de Champeaux por Roscelino
e em parte de Anselmo. e também por Ockham.
^ Retoma posições platônicas O universal
é puramente um nome
que se refere
a mais indivíduos
T
CONCEITUALISMO
Foi a tese propugnada REALISMO MODERADO
sobretudo por Abelardo
que, porém, Foi a tese de Tomás:
admitia certa relação os universais existem ante rem
com a realidade das coisas na mente de Deus,
no que se refere in re como forma das coisas,
ao status communis e post rem como conceito mental
172
Quinta parte - A £sc-olásfi<~<( n o s s é c u l o s d é c i m o p n m e i t* o e. d é c i m o s ee g u u d c
enquanto aqui todos aqueles que queriam apren cola de dialética é quase impossível. Lívido de
der a dialética me esperavam ansiosamente. bílis e vermelho de raiva, não conseguia supor
Rlguns anos depois, estando já há tempo tar tal situação, e com astúcia procurou afastar-
curado, fiquei sabendo que meu antigo mestre, me mais uma vez. Todavia, como não tinha ele
Guilherme, que era orquidiácono de Paris, tro mentos suficientes para atingir-me diretamente,
cara o antigo hábito poro entrar na Ordem dos mandou destituir do cargo, atribuindo-lhe cul
Cônegos Regulares, pois, pelo que se dizia, es pas infamantes, aquele que me deixara seu
perava assim ter mais fácil acesso oos cargos lugar e o substituiu por outro discípulo, noto
mais elevados com este gesto de zelo religioso, riamente contrário a mim. Voltei então para Melun
como de fato aconteceu quando foi nomeado e reabri minha escola; a fama de que eu gozava
bispo de Châlons. Mas nem mesmo depois des era proporcional à hostilidade invejosa da qual
ta espécie de conversão ele deixou Paris ou Guilherme não fazia mistério, porque é verda
abandonou seus estudos de filosofia, e no pró de aquilo que diz o poeta Ovídio:
prio mosteiro, para o qual se transferira depois fí invejo é como o vento, que íustigo mais
de ter entrado na Ordem, abriu uma escola pú os cimos mais oitos.
blica. Cntão voltei para junto dele paro estudar Pouco tempo depois, Guilherme, perceben
retórica e, para recordar apenas uma de nossas do que quase todas as pessoas de bom senso,
tantas disputas, refutei justamente naqueles dias, duvidando da sinceridade de sua fé e ironizando
ou melhor, demoli, fazendo até com que mudas de sua conversão pelo fato de que continuara a
se de opinião, sua velha doutrina sobre os uni viver em Paris, transferiu-se com seu pequeno
versais. fl propósito da existência comum dos grupo de irmãos e com toda sua escola para um
universais, com efeito, Guilherme sustentava que vilarejo distante de Paris. Depressa, de Melun
em todos os indivíduos está presente essenci voltei para Paris, na esperança de que me teria
almente a mesma realidade, de modo que não deixado em paz, mas, como encontrei a cátedra
há nenhuma diferença em essência, mas ape ocupada por aquele rival que Guilherme no
nas certa variedade como conseqüência da meara seu sucessor, fui instalar-me com minha
multiplicidade dos acidentes. Depois de nossa escola um pouco fora da cidade, sobre a colina
disputa, porém, ele modificou sua teoria e che de Sointe Geneviève, como que para assediar
gou a sustentar que a própria realidade está aquele que havia ocupado meu lugar.
presente nos indivíduos singulares, não essen Guando soube disso. Guilherme, deixan
cialmente mas indiferentemente. Todavia, como do de lado qualquer escrúpulo, não hesitou em
se sabe, o problema dos universais em nosso voltar a Paris e o recolocar no antigo mosteiro
campo é um problema fundamental (não por seus coirmãos e os poucos alunos que conse
nada também Porfírio, no Isagoge, tratando dos guira reunir. Seu escopo, por assim dizer, era o
universais, não ousa proceder a uma verdadeira de liberar, depois de tê-lo abandonado, seu fiel
e própria definição da questão e se limita a di de meu assédio, mas, apesar de tudo, isso mais
zer que "a coisa não é das mais simples"), e por o prejudicou do que ajudou. Com efeito, esse
isso quando Guilherme corrigiu, ou melhor, foi infeliz tinha ainda um minguado grupo de discí
forçado a modificar completamente seu pensa pulos, graças sobretudo a seus comentários so
mento a respeito, suas aulas caíram em tal des bre Prisciano, questão em que era considerado
crédito que com muito favor lhe foi concedido muito hábil, mas depois da chegada de seu
tratar os outras partes da dialética, e com razão, mestre perdeu quase todos aqueles poucos alu
pois na realidade o ponto mais importante de nos e foi forçado a abandonar a direção da e s
nossos estudos é justamente o que se refere ao cola; aliás, não muito depois, desistindo de
problema dos universais. poder conseguir algum sucesso nesse campo,
Cm todo caso, a partir daquele momento, também ele entrou na vida monástica.
tornei-me neste campo tal autoridade que tam Quais foram as disputas que meus alunos
bém aqueles que antes eram os mais apaixo tiveram com Guilherme e com seus discípulos de
nados seguidores daquele grande mestre e pois de sua volta, quais êxitos nesses desen
meus mais ferrenhos adversários, se precipitam contros a sorte reservou a meus alunos e tam
em massa em minhas aulas; mais ainda, o pró bém a mim por meio deles, é coisa conhecida
prio sucessor de Guilherme na escola de Paris de todos e também tu o sabes. €u, como Rjax
veio oferecer-me seu lugar, para poder assistir na llíodo, poderio limitar-me a dizer, com um pou
junto com todos os outros minhas aulas, justa co de modéstia talvez, mas com o mesmo tom:
mente onde pouco tempo antes havia triunfa Queres sa ber o resultado do batalho?
do seu e meu mestre. Saiba que meu inimigo não me derrotou.
Dizer quanta dor e quanta inveja provou Abelardo e Heloísa,
Guilherme nos poucos dias em que dirigi a e s Cortos d e amor.
174
Quinta parte - A É s c o l ó s + i c a n o s s é c u l o s d é c i m o pHmeii*o e d é c i m o s e g u n d e
0 Faz seguir o resultado pelas palavras "e a s filho, hoje te gerei. Pede e eu te darei as na
sim Foi Feito" (Gn l,7 s s ). G e mostra que Deus ções como herança" (SI 2 ,7 ss). Quando aFir
criou todas as coisas em seu Verbo, isto é, em ma: "hoje te gerei", é como se dissesse: tu és
sua sabedoria, portanto racionalmente. R este eternamente de minha própria substancia. Aom
respeito em outro lugar o salmista aFirma: "Ge efeito, na eternidade não há passado nem
disse e as coisas Foram Feitas" (51 32,9), isto é, Futuro, mas tudo está simplesmente presente,
ele criou e ordenou todas as coisas por meio por isso o advérbio que indica o tempo pre
da razão. Am outro lugar, mostrando claramen sente é utilizado para significar a eternidade,
te que este Verbo não é uma palavra p assa diz portanto "hoje" para dizer "eternamente".
geira que se ouve, mas permanente e inteligí Aorretamente acrescenta ao advérbio "hoje" o
vel, aFirma: "Ge criou os céus com sabedoria" verbo "gerei", um passado unido ao presente,
(51 135,5). Asta palavra intelectual de Deus, para indicar, mediante o termo "hoje", que esta
isto é, a eterna disposição de sua sabedoria, é geração está sempre presente, e com o termo
descrita deste modo por Agostinho: "A palavra "gerei", que ela está sempre realizada e com
divina é a própria disposição de Deus, que não pleta, e por isso ele usou o passado como
tem um som estridente e passageiro, mas uma para indicar a perfeição, para mostrar que o
Força que permanece eternamente". A respeito Filho sempre Foi gerado e sempre Foi gerado
dela no VIII livro do De TrinitoteaFirma: "Ale cha pelo Pai. Am outro lugar ele proclama mais cla
mou Filho seu Verbo para mostrar que é gera ramente a eternidade do Filho, dizendo: "Per
do por ele". manecerá com o sol e antes do lua de gera
ção em geração" (SI 7 1 ,5 ). Ainda: "Contigo
está o princípio, no dia de tua virtude, no e s
4. Por que a bondade de Deus
plendor dos santos eu te gerei de meu seio
é chamada €spírito Santo
antes da aurora" (SI 109,3).
O nome Aspírito Santo exprime o sentimen Abelardo,
to de bondade e de caridade, como o espírito, Teologia do Sumo Bem.
isto é, o sopro que sai de nossa boca, manifes
ta sobretudo os sentimentos do coração, tanto
quando suspiramos por amor, como quando nos
lamentamos de angústia pela Fadiga ou pela dor.
Por este motivo o Aspírito Santo é entendido
como sentimento bom nesta passagem do livro P O R F ÍR IO
da Sabedoria: "8om é o espírito de sabedoria,
não sairão blasfêmias de seus lábios" (Sb 1,6).
Aqui o nome Aspírito Santo indica exclusivamen
te uma pessoa, todavia tomado em outro signi
ficado ele é comum às três pessoas, pelo Fato
de que a substância divina é espiritual e não
D fl questão dos universais
corpórea, e também santa. Sucede freqüen-
temente que um nome comum a muitas coisas
R passagem seguinte, tirado do Isa-
se refira o uma delas como seu nome próprio. A
goge de Porfírio, deu origem à célebre dis
uma vez que as outras coisas têm nomes pró
puta sobre os universais. Porfírio se pergun
prios por meio dos quais se distinguem mutua
to s e o s universais tinhom um estatuto
mente, enquanto esta não tem um nome que
ontológico, e de que noturezo, ou se tinham
indique sua diferença, o que antes era comum a
umo existência openos mentol, como puros
todas as outras torna-se nome próprio desta.
conceitos. Porém, n e sse escrito, deixo o
Aomo quando Falamos de clérigos para salien
questão em suspenso, ofírmondo que se tro
tara diferença com os monges, embora também
to de um temo demasiado complexo para
os monges sejam clérigos, ou ainda quando Fa
se r examinado em um breve trotado.
lamos de Fiéis para salientar a diferença com
os mártires, embora sobretudo os mártires de
vam ser chamados de Fiéis.
Há também muitas outras passagens dos Caro Crisaório, dado que para compreen
profetas nas quais está claramente mostrada der a doutrina das categorias de Aristóteles é
a distinção dentro da Trindade. O próprio Davi necessário saber o que sejam o gênero, a di
ensinou claramente a eterna geração do Filho ferenço, a espécie, o próprio e o ocidente, e dado
a partir do Pai, Fazendo a pessoa do Filho Fa que esta análise é basilar para a Formulação
lar deste modo: "O Senhor me disse: tu és meu das definições, e, em todo caso, para tudo aqui-
176
Q t lin t ã p a r te - y \ Ê s c o l á s t i c a n o s s é c u lo s d é c im o p c im e ic o e d é c i m o s e g u n d o
e d e S ã o Vítop
/i catedral de Chartres, da qual recebe o nome a Escola homônima, o maior centro de cultura do séc. XII.
180 Quinta parte - y\ C E - s c o l á s ti c a n o s s é c u l o s d é c i m o p r i m e i r o e d é c i m o s e g u n d o
Finalmente, há coisas supra rationem, isto é, si mesmas a sua razão. Esta reside, porém,
superiores à razão e objeto específico e único no ser infinito, incriado e eterno que é Deus.
da fé. Do conjunto resulta um pleno acordo Portanto, para Ricardo, a ascensão mística
entre razão e fé, mas sobretudo a superiori parte da cogitatio e, através da meditatio,
dade desta como realização de todos os es chega à contemplatio.
forços humanos, constituída pela contempla Esta, que é preparada pelo exercício das
ção e pela posse de Deus. virtudes, conduz ao mergulho abissal em
Quem aprofundou a vida mística foi o Deus. À medida que ascende por meio dos
escocês Ricardo (morto em 1173) que suce graus da contemplação, a alma se dilata, se
deu a Hugo como mestre e prior da Escola eleva sobre si mesma e, no momento supre
de São Vítor. mo, se aliena completamente de si mesma
Fundamentalmente neoplatônico e pro para transfigurar-se em Deus.
fundamente místico, Ricardo evidenciou a A Escola de São Vítor, portanto, culti
ligação entre razão e fé. vou com grande empenho as ciências, a fi
A fé nos diz que existe um só Deus; losofia e a teologia, compenetradas entre si
que Deus é eterno e incriado; que Deus é por um espírito contemplativo dos misté
uno e trino. Pois bem, a razão procura jus rios divinos, ao qual tudo pode e deve con
tamente as rationes necessariae da fé. As duzir, como ao momento mais alto e signifi
coisas mudam e perecem, não encontram em cativo da vida intelectual e moral.
Pedro Lombardo nasceu perto de No- boca” . Depois de ter passado alguns anos
vara. Realizou seus estudos inicialmente em na corte pontifícia, João voltou para a In
Bolonha e depois na Escola de São Vítor, glaterra, tornando-se secretário do arcebis
em Paris. Aqui, a partir de 1140, ensinou po de Canterbury, Thomas Becket, a quem
na escola catedral. Tornou-se bispo de Paris dedicou o Metalogicon e o Policraticus. A
em 1159, morreu em 1160. luta entre Thomas Becket e Henrique II teve
Autor de um Comentário às cartas de como epílogo o “ assassínio na catedral” , do
são Paulo e de outro Comentário aos sal arcebispo. E João voltou à França, onde se
mos, Pedro Lombardo escreveu os seus Libri tornou bispo de Chartres em 1176 e mor
quattuor sententiarum — que seriam comen reu em 1180.
tados por todos os grandes escolásticos — João apreciava a cultura humanista e
no período de tempo que vai de 1150 a a lógica. Não era cético. E, no entanto, en
1152. Trata-se de uma obra que se apresen tregava-se ao critério do conhecimento pro
ta como compêndio da doutrina cristã, ex vável de que falava Cícero. Era esse critério
traída da Escritura e da autoridade dos Pa que lhe permitia fugir da verbosidade, por
dres, e também estão presentes a Escola de um lado, e do dogmatismo, por outro. “Pre
são Vítor e Abelardo. firo duvidar sobre as coisas em particular,
A obra de Pedro Lombardo não é, cer junto com os acadêmicos, do que definir
tamente, obra original; é muito mais uma temerariamente, mediante danosa simula
obra de compilação na qual “ desembocam to ção, o que ainda permanece desconhecido e
das as correntes anteriores” . Entretanto, o oculto” , escrevia João.
comentário de Pedro se impõe por seu gran Em suma, ele se sentia próximo da
de equilíbrio. Com efeito, ele reconhece os modéstia dos acadêmicos, uma atitude que
direitos da razão, mas somente até um pon também estaria em consonância com os es
to em que submete a razão à fé. E esse seu tudiosos cristãos, se pensarmos que somen
equilíbrio foi certamente um dos motivos te Deus conhece completamente a verdadeira
do sucesso de suas Sentenças. tS fg fT I realidade do universo.
Claro, há verdades que o homem pode
alcançar, por meio dos sentidos, da razão e
da fé; mas também é preciso admitir com
muita franqueza que existem problemas
os limi+es da r a z ã o diante dos quais a razão faria muito bem
e a aw+oeidade da lei
em suspender seus juízos e se deter. Eis, por
exemplo, alguns problemas que obrigam a
razão a admitir seus próprios limites: a ques
Uma personagem característica do fim tão da origem da alma; os problemas da
do século XII foi João de Salisbury. Nasci providência, do acaso e do livre-arbítrio; a
do na Inglaterra, precisamente em Salisbury, questão da infinidade dos números e da
por volta de 1110, João estudou na França, divisibilidade infinita das grandezas; o pro
onde freqüentou a escola de Chartres, ten blema dos universais etc. João não pretende
do sido aluno de Abelardo, como recorda o que não se discuta sobre essas questões, mas
próprio João: “A seus pés recebi os primei exige que não se tenha como soluções defi
ros rudimentos da arte lógica e absorvi com nitivas e absolutas as que que são apenas
apaixonada avidez tudo o que vinha de sua tentativas.
184
Quinta parte - A Ê s c o l á s - H c a n o s s é c u l o s d é c i m o p»*ime.ii*o e d é c i m o s e 03 uu d c
Nõo subestimes portanto nenhuma formo O estudante de valor deve ser humilde e
de saber, porque toda ciência tem volor. Caso dócil, absolutamente alheio às ocupações mun
tenhas tempo, não te eximos de ler os livros danas e aos engodos das paixões, diligente e
que se te apresentam: mesmo que deles não zeloso, disposto a aprender de bom grado algo
tires particular utilidade, todavia deles não te de todos; jamais deve ser presunçoso da pró
rás também nenhum dano, porque, a meu pa pria cultura, deve fugir como de comida enve
recer, não existe um escrito que não proponha nenada dos escritos que contêm doutrinas fal
algo de interessante, quando examinado no sas, deve tratar a fundo uma questão antes de
tempo e no lugar devidos: pode conter alguma formular seu julgamento; deve preocupar-se de
notícia especial, que o leitor precavido poderá ser, não de parecer culto. Deverá preferir as
apreciar com maior prazer, quanto mais singu palavras dos sábios e tê-las sempre presentes
lar e preciosa for a informação. na mente, como modelo a ser imitado: se por
Não é um bem, todavia, aquilo que im vezes não conseguir perceber uma passagem
pede o melhor: se não te é possível ler todos obscura, talvez pela profundidade dos concei
os livros, lê aqueles que são mais úteis para tos, não prorromperá em invectivas, quase acre
ti. Mesmo que pudesses ler tudo, não deve- ditando que não há nada de válido, a não ser
rias jam ais colocar em todas a s leituras o aquilo que ele próprio está em grau de com
mesmo empenho: há alguns livros que é pre preender.
ciso ler, a fim de que não nos sejam total Esta é a humildade que caracteriza os e s
mente desconhecidos, enquanto de outros tudantes disciplinados.
devemos formar-nos ao menos um juízo, porque Hugo de São Vítor,
freqüentemente arriscamo-nos a supervalorizar Didascolicon.
justamente aquilo que ignoramos, e julgamos
melhor quando temos algum conhecimento dos
assuntos.
Rgora podes perceber por que a humil
dade te é indispensável: não deixes de lado
nenhuma ciência, mas esforça-te para apren P ed ro L om bardo
der de bom grado algo de todos; depois, quan
do tiveres alcançado certo grau de instrução,
não desprezarás ninguém; convém que adotes
este comportamento.
Nestes últimos tempos, justamente por
não ter seguido estes princípios, algumas pes Sentenças sobre filosofia
soas se inflaram de orgulho: exaltavam com e sobre teologia
excessiva complacência sua ciência e, crendo com
absoluta certeza serem grandes, pensavam que
os outros (também todos aqueles que jamais Pedro Lombordo, em seu compêndio de
haviam conhecido) não fossem comparáveis a sentenças tirados da tradição patrística, su s
eles, nem teriam podido jamais se tornar iguais tento o utilidade da Filosofia apenas quan
a eles. Desta atitude derivou também o fato do submetida à teologia: é esta atitude que
desconcertante que certos tagarelas presunço s e p ode exprimir com o célebre dito philo-
sos tacharam de ingênuos os antigos profes sophia ancilla theologiae.
sores: pareciam convencidos de que a sab e
doria tivesse nascido com eles e que morreria
com eles. Rndavam dizendo que a linguagem Rgostinho ensina: primeiro, que é neces
dos textos divinos é de tal forma simples, que sário demonstrar segundo a autoridade das S a
não precisa da explicação de nenhum profes gradas Escrituras que a fé seja assim; segun
sor para ser compreendida: pode bastar a cada do, que contra os tagarelas raciocinadores,
estudante a força de sua própria habilidade mais soberbos do que capazes, é preciso ser
para explicar também as verdades mais pro vir-se de razões católicas e de comparações
fundas. Torciam o nariz e retorciam a boca, alu congruentes para a defesa e a afirmação da fé
dindo aos docentes de teologia; não percebi (IS e n t.. 2, 3).
am que ofendiam a Deus, enquanto andavam Os doutos poderosos, que julgam sobre
dizendo elegantemente que suas palavras são os costumes, como Platão, Rristóteles, Pitógo-
"simples", mas insinuando com malícia que são ras, são anulados em comparação com Cristo,
"insípidas". Não vos aconselho de modo algum e nada sabem; jazem mortos; sua sabedoria é
a imitar tais indivíduos! estultícia (Psolmum 140,7).
186 Quinta parte - y\ ^ s c o l á s t i c a n o s s é c u lo s d é c i m o p r i m e i r o e d é c i m o s e g u n d o
De foto, tois cirgúcicis 0 coisas semelhantes não se pode nem se pôde ter por meio da con
têm lugar nas criaturas, mas o mistério da fé está templação das criaturas um suficiente conheci
livre de argumentos filosóficos (III Sent., dist. 22). mento da Trindade sem a revelação da doutri
Acrescentai a caridade à ciência e a ciên na ou da inspiração interior. Daí que aqueles
cia será útil. Sozinha, com efeito, a ciência é inú antigos filósofos quase na sombra e de longe
til, com o caridade é útil; sozinha, porém, infla viram a verdade, faltando-lhes o intuito da Trin
de soberba, como para os demônios, que com dade (/ Sent., 3, 6).
termo grego são denominados pela ciência; ne Por isso dizemos que esta distinção da
les está a ciência sem a caridade (Epist. I od suma Trindade, que a fé católica proclama, os
Corinthios, 8). antigos não a tiveram de nenhum modo e não
Por meio do céu e da terra e das outras a puderam ter sem a revelação da doutrina ou
criaturas, que eles compreenderam ser imen da inspiração interior. A revelação ocorre, com
sas e perpétuos, conheceram o próprio Criador efeito, de três modos: por meio das obras, por
incomparável, imenso, eterno (Epist. o d Roma meio da doutrina, por meio da inspiração. Deus
nos, I, 20, 23). lhes revelou a verdade por meio das obras, e
Não pode ser crido aquilo que pode ser não por meio da doutrina ou da inspiração. Cies,
percebido [...]. O que é, com efeito, a fé senão portanto, viram a verdade de longe, mas não
crer aquilo que não vês? (III Sent., 22, 7). se aproximaram dela por meio da humildade
C necessário que, conhecendo o Criador (Epist. od Romanos, I, 20-23).
mediante seus efeitos, conheçamos a Trinda
Pedro lombardo,
de, cujo vestígio aparece nas criaturas (Epist.
em Grande Antologia Fiiosofíco,
o d Romanos, XI, 33-36). vol. V,
Foi demonstrado que nas criaturas se en organizado por G. Di Napoli,
contra certa imagem da Trindade; com efeito, Marzorati.
A ESCOLÁSTICA
NO SÉCULO
DÉCIMO TERCEIRO
■ A s grandes sistem atizações da relação
entre razão e fé
Boaventura
Capítulo décimo segundo
Af i \ osofia ã m b e e a k a b m i c a ,
a pervefração d e yAris+ófeles rvo Ociderv+e
e a m ediação
eKvfre aHstofelismo e cristianismo
II. o aristotelismo d e y \ v i c e n a
^ fig u r a e a o b ra
4f V lwu Uíí
tf irwitra (tmt-
A primeira forma sistemática pela qual quAuft.tgmfcitn*. 'XCoei
o aristotelismo se apresentou aos pensado Cd.tOi
mttmrt cr1|ímnan&. *Wt«n
res medievais foi mediada pelo filósofo persa iMjttft «rhu «yfi»
Avicena, de cultura enciclopédica, que cul ■ jufcft.fmftigita «■ Í tttfl*
íWtfl
tivou preferencialmente a medicina e a filo c ti*
sofia. c rw a c q v a ^ J. SM*8
.WM»1
Nascido em 980 nas proximidades de \ma<
Bukara, na Pérsia, e morto nas proximidades tów
de Hamadan em 1037, ele escreveu muitas »0*írt
obras, que foram traduzidas e divulgadas
na segunda metade do século XII.
O primeiro grupo de traduções, extraí
das de sua obra maior O livro da cura, em
18 volumes (abrangendo a Lógica, a Retó-
O see possível
e o see necessário
m. o a n s+ofel is mo
d e y \ v e k*k*0ÍS
2 T ^ n m a d io da filosofia
Miniatura de um códice do séc. XIV
que representa o filósofo Averróis (1 126-1198) e eternidade do mrmdo
(Cesena, Biblioteca Malatestiana).
Corão são símbolos imperfeitos, que devem dual? O intelecto possível, enquanto tal, co
ser interpretados e propostos à mentalida nhece passando da potência ao ato. Para
de dos simples e ignorantes, da verdade úni tanto, necessita do intelecto ativo ou inte
ca que a filosofia enucleia e sistematiza. ligência divina, que, sendo em ato, pode
Além dessa tese fundamental, em cla desenvolver tal ação. Escreve Averróis: “As
ro contraste com o concordismo de Avicena, sim como a luz faz com que a cor em po
Averróis destaca, com Aristóteles, que o tência passe a ser cor em ato, de modo que
motor supremo e os motores dos céus, sendo possa mover nossa vista, do mesmo modo
inteligências que refletem sobre si mesmas, o intelecto agente faz com que os conceitos
pensando-se, movem necessariamente não inteligíveis em potência passem a ser con
como causas eficientes, mas sim como causas ceitos em ato, de modo que o intelecto ma
finais, isto é, como aquele bem ou perfeição terial os receba” . O intelecto agente, po
ao qual cada céu aspira com seu movimento. rém, não atua diretamente sobre o intelecto
Assim, a relação entre o motor supremo e possível, mas sim sobre a fantasia ou ima
os motores intermediários não é relação de ginação, que, sendo sensível, contém os uni
eficiência, como queria Avicena, mas sim de versais somente em forma potencial. E essa
finalidade. O movimento que assegura a imaginação sensível, sobre a qual atua o
unidade para todo o universo é o movimen intelecto divino, que, sendo individual, dá
to do primeiro motor, sendo, portanto, eter a sensação de que o conhecimento seja in
no e de natureza final, não eficiente. dividual. Na realidade, ela é apenas um
A tese da eternidade do mundo e do continente potencial dos universais, que,
caráter necessário do movimento do primei porém, transformados em ato pela luz do
ro motor inscreve-se na própria concepção intelecto divino, só podem ser recebidos pelo
aristotélica de Deus como “ pensamento de intelecto possível que se torna atual e que,
pensamento” e, portanto, como atividade em si mesmo, é espiritual e, portanto, se
necessária e eterna. parado, único, não misturado à matéria e,
desse modo, supra-individual.
Assim, além do intelecto divino, que
é único, também o intelecto possível é úni
LArvicidade co para todos os homens, que a ele se li
do intelecto kwmano gam provisoriamente por meio da fantasia
ou da imaginação, onde os universais es
tão contidos em forma potencial. Desse
Além do primado da filosofia e da eter modo, o ato de entender é do homem indi
nidade do mundo, a terceira tese de Averróis vidual, uma vez que está ligado à fantasia
discutida pelos medievais foi a relativa à ou imaginação sensível, mas ao mesmo
unicidade do intelecto possível, o único do tempo é supra-individual, visto que o uni
qual é predicável a imortalidade, tanto que versal em ato não pode ser contido pelo
Averróis nega a imortalidade individual. indivíduo em particular, por sua natureza
Com efeito, o intelecto possível, pelo qual desproporcional ao caráter supra-indivi
conhecemos e formulamos noções e princí dual do universal.
pios universais, não pode ser individual, isto
é, não pode ser forma do corpo, porque nes
se caso não poderia estar disponível às for
mas inteligíveis de caráter universal. Por isso,
falando do intelecto, Aristóteles diz que ele | ■ Intelecto "possível" e intelecto
é separado, simples, impassível e inalterá | "agente". Averróis reformula a teo-
vel. Se fosse individual, o intelecto seria in I ria aristotélica da inteligência divina e
dividualizado pela matéria — a qual é o prin | da inteligência humana de modo ori-
| ginal e paradoxal: a única inteligên-
cípio da individualização — e, então, seria
í cia ativa (agente) seria a de Deus; a
incapaz de alcançar o universal e, portanto, | inteligência humana é apenas poten-
o saber. O intelecto, portanto, é único para f ciai (possível), ou seja, tem necessida-
toda a humanidade e não misturado com a f de da inteligência divina para passar
matéria. | da potência ao ato, mas também ela é
Mas, então, como é que o homem in ? única para toda a humanidade.
dividual conhece? E em que sentido o co
nhecimento pode ser considerado indivi
Capítulo décimo segundo - A fi lo s o fi a á r a b e e h e b r a i c a e o an sto+elism o n o O c i d e n t e
No fundo, com essa tese, Averróis pre interpretação que se difundiu, em consonân
tende salvaguardar o saber, que não perece cia com o despertar da vida econômica e
com o indivíduo porque é patrimônio de com a redescoberta da positividade terrena,
toda a humanidade. E o arquivo onde esses foi a interpretação de cunho hedonista. Se
resultados se conservam, em benefício de tudo o que é individual se dissolve com a mor
toda a humanidade, é o chamado “ intelec te e se o homem não é, em última instância,
to possível” , superior à capacidade do indi responsável por sua atividade espiritual, que
víduo e, portanto, independente. E uma es é supra-individual, então a pregação sobre
pécie de mundo feito de Idéias, de criações a morte e suas conseqüências, relativas so
humanas que transcendem o indivíduo e a bretudo à inutilidade do mundo, perde o seu
ele sobrevivem, tendo em vista outras con vigor, revelando-se pura ficção.
quistas, com as quais cresce a concretização Não é difícil perceber aí os germes pri
do intelecto possível, até sua completa con mordiais e inequívocos da concepção mate
cretização, com a qual se concluirá a histó rialista ou apenas naturalista da vida e do
ria da humanidade. homem, que a redescoberta de alguns clás
Alcançada essa meta, realizar-se-á en sicos do pensamento antigo alimentavam.
tão a perfeita união do intelecto possível, Na matéria, tudo se transforma e se move
atualizado pelo saber, com o intelecto di eternamente, nascendo em outro lugar e em
vino, que está sempre em ato. A atualiza outro tempo, em ciclo perene, em relação
ção penosamente amadurecida do intelecto ao qual o indivíduo é apenas presença tran
possível se fundirá então com a atualidade sitória.
permanente do intelecto divino. E esse o epí
logo ou união mística de que falam as re
ligiões.
5 _/\s primeieas condenações
do aeisfotelismo
4 éSorvseqüêiacias
da rmicidade do intelecfo Foram particularmente essas conse
qüências que animaram o debate entre os
Escolásticos, decididos a combater suas pre
Enquanto as teses relativas ao papel da missas, seja por meio de uma leitura mais
filosofia no âmbito do saber e à eternidade atenta de Aristóteles, seja redescobrindo o
do mundo seriam diversamente repensadas, sentido mais genuíno de algumas verdades
a tese que mais agitou os medievais foi a da da religião cristã. E esse o contexto no qual
unicidade do intelecto possível, porque se deve ser lida a interdição posta por Roberto
encontrava em claro contraste com a fé na de Courçon nos primeiros estatutos univer
imortalidade pessoal, um dos dados de fun sitários de 1215: “Nos fundamentos da Lei
do da religião cristã, e não apenas desta. Se tura devem estar os livros de Aristóteles so
o intelecto possível não é parte da alma hu bre a dialética, tanto da antiga como da nova
mana, mas está apenas temporariamente li lógica, nos cursos institucionais, mas não
gado a ela, então a imortalidade não cabe nos extraordinários (...). Entretanto, não
ao homem em particular, mas sim a essa re devem ser lidos a Metafísica ou os livros
alidade supra-individual. Dante, que exalta naturales de Aristóteles ou sínteses deles (co
Averróis como aquele que “ fez o grande co mentários de Averróis)” . Na mesma linha
mentário” , também o estigmatiza como per está a decisão de Gregório IX, que, em 1231
tencente às fileiras dos que “fazem a alma (por ocasião da greve dos estudantes, que
morta com o corpo” . durou dezoito meses e à qual não era estra
Ora, essa doutrina se prestava a duas nho o problema do aristotelismo, defendi
interpretações: uma de caráter ascético, ou do pela faculdade de artes e combatido pela
tra de caráter materialista e hedonista. E faculdade de teologia), confirmou a proibi
verdade que a atividade vegetativo-sensiti- ção de 1215, mas só até que os escritos de
va é típica da alma, forma do corpo, mas Aristóteles não fossem corrigidos (“Quous-
esta no homem tende a elevar-se e unir-se à que examinati fuerint et ab omni suspicione
inteligência. purgati” ).
Todavia, se essa interpretação ascético- Nomeada por Gregório IX e compos
mística era possível e talvez até fundada, a ta por homens que deram provas de abertu
198 SeXtã parte - A ( í E s c o l á s t i c a n o s é c u l o d é c i m o t e r c e i po
«sfe» dtamfwt me q»
w K fw »a d m » ukJ i !
maautd * p k » k u m u u *» C-i A m pttanpi
fcnc conci^í r ast aviam *ml áem iltt qt « o s » fpecaUtnut
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Da cdirio princeps de Pádua (1471) do comentário de Averróis à Física de Aristóteles (Ferrara, Bibliote
ca Ariostea).
Capitulo décitTlO SCgUtldo * ; A -filosofia á r a b e e a k e b r a i c a e o a n s t o + e l i s m o n o O c i d e n t e
199
AVERRÓIS
A TEORIA DO INTELECTO
Intelecto
INTELECTO INTELECTO
POSSÍVEL AGENTE
- É único, separado, \ - E o intelecto divino
supra-individual - Põe em ato os conceitos
- Recebe na fantasia inteligíveis em potência
os conceitos inteligíveis atualizados
pelo intelecto agente
- É o saber coletivo da humanidade
que se incrementa
com a evolução da consciência
- Quando todo o intelecto possível
for atualizado, ele se identificará
(= umo mística) /
com o intelecto divino /
em ato x
FANTASIA \
- É individual e sensível x
- Acolhe os universais em potência,
apenas enquanto continente e,
sendo sensível,
não está em grau de compreendê-los X HOMEM
- Dá a impressão ,/ - Está unido,
\ x de que o conhecimento / por meio da fantasia, \
\ seja individual \ com o intelecto possível \
j - O ato do entender \
^ / é tanto do homem singular \
! (enquanto ligado à fantasia sensível individual), |
como supra-individual j
(o saber transcende o sapiente singular j
\ e tem caráter cumulativo j
\ para toda a humanidade), /
enquanto o universal em ato /
\ não pode ser captado pelo indivíduo
200 Sexta parte - A é ^ s c o lá s + ic a v\o s é c u lo d é c im o t e r c e i r o
da foi o Guia dos perplexos. O livro se diri rio, deveriamos negar a liberdade de Deus.
ge a todos os que se encontram sufocados O mundo não é eterno, mas contingente.
pela perplexidade derivada dos aparentes con Ele é fruto da livre vontade de Deus. E Deus
trastes entre razão e fé. Moisés Maimônides é a causa eficiente e final de todo o univer
escreveu o Guia dos perplexos precisamen so. Por outro lado, Maimônides posiciona-
te para demonstrar que a filosofia e a Bí se próximo das concepções de Averróis
blia, na realidade, são conciliáveis. quando afirma que o intelecto agente é
Para Maimônides, como para Avicena, único e separado para todos os homens,
pode-se demonstrar que Deus existe e pode- que possuem singularmente o intelecto pas
se também chegar a compreender que ele é sivo, que conhecem pela ação do intelecto
uno e incorpóreo. As coisas existentes são ativo. O resultado disso, na opinião de
contingentes, pois não têm em si mesmas as Maimônides, é que a imortalidade não ca
razões de sua própria existência e, conse- be ao homem individualmente, já que, com
qüentemente, remetem a um Ser necessá a corrupção do corpo, se desvanece a dife
rio. Diversamente de Avicena, porém, M ai rença dos indivíduos, restando o puro inte
mônides não aceita de modo nenhum a lecto. O homem não é imortal como indiví
doutrina da eternidade do mundo, já que duo, mas somente como parte do intelecto
as provas aristotélicas dessa tese não são ativo. As teses de Moisés Maimônides fo
decisivas. Assim, o crente pode aceitar tran- ram freqüentemente retomadas pelos filó
qüilamente o dogma da criação. O mundo sofos escolásticos e pelo próprio Tomás de
não pode ser necessário, pois, caso contrá Aquino.
Incisão de um manuscrito
do séc. XII,
que representa o filósofo
c médico judeu
Moisés Maimônides
i (11.IS-1204).
202 Sexta parte - ; A é £ s c o l a s + i c a n o s é c u l o d é c i m o \av
V. jWbarfo ]\Ac\qno
1 CDprograma de pesquisa
de ;AIbeefo J\/\.agy\o
2 .A disfmção
entee filosofia e teolog ia
VICENNyE
P H I L O S O P H I P R íECLARISSIM I
AC MIDICORYM PRINCÍPIS.
Compcndíum de anima.
Dcmahadi.de díípofirione,íèu Ioco,ad quem
rcuertítur homo,vel anima eíus poft morre,
Aphoríímí de anima.
Dedíffiníríombu$,& quaeíitís,
Dedíuifione (èíentíarum,
AB ANDRÉA AIPAGO l l l l V N I N S I
phííoíôpho,ac medico, idiomatíscp arabící
peririffimo,ex arabico in Iatinu vería.
Cum expofitionibus eiufdem Andref collcltit
ab au&oribus arabicis.
OMNI A N V N C P R I M V M I N
l v C 1M E D I T A .
mos paro os filósofos este tem oito signifi tence a tarefa de fazer p assar, iluminan
cados: do-o, o intelecto material da potência para
o ato.
1) O intelecto do quol fala Aristóteles
no Livro do silogism o difere da ciência. €ste Avicena, organizado
por G . Quadri,
intelecto, diz ele, designa os conceitos, e
em G rande Antologia Filosófica,
os assentim entos que provêm à alma medi Marzorati.
ante o espírito, enquanto o ciência é aquilo
que resulta da aquisição exterior. Depois
vêm os intelectos recordados no Livro da
olmo.
2) e 3) O intelecto especulativo e o in
telecto prático. O primeiro é uma faculdade
da alma que recebe a qüididade1 das coi A lber to M agno
sa s universais enquanto e la s são universais.
O segundo é uma faculdade da alma que é
princípio motor da faculdade apetitiva, para
aquilo que ela escolheu de particular em ra
zão de um fim entrevisto. Chamam-se intelec
to num erosas forças do intelecto esp ecu R natureza
lativo. do bem
4) O intelecto material, faculdade da
alma preparada para receber a s qüididades
das coisas abstraídas das matérias. Entre I2 3 6 e 12 3 7 Fllberto Mogno com
5) Intelecto habitual, que é o intelecto p ô s oTratado sobre a natureza do bem. Tra
material aperfeiçoado de modo a se tornar ta-se de umo obro de juventude, a mais an
uma potência vizinha ao ato mediante atua tigo gue chegou até nós.
ção daquilo que Aristóteles chama de inte Como aparece p elo Proêmio, ela d e
lecto no Livro do silogism o. veria ter sido articulada em se te tratados.
De fato, oté nós chegaram apenas o pri
6) O intelecto em ato, que é o aperfei meiro e o segundo, provavelm ente o s úni
çoamento da alma em uma forma qualquer, cos que foram compostos.
ou se ja , uma forma inteligível a ponto de en No Proêmio, além d e expor o plano
tender esta última e encerrar a mesma me da obra, Fllberto M agno "distingue o Bem
diante o ato quando o quiser. em si e p o r si, isto é, Deus, e o bem p elo
7) O intelecto adquirido, que é uma qual todas o s co isas sã o bem, isto é, o
qüididade abstrata da matéria, a qual é for bem d e natureza".
temente impressa na alma como uma atua No primeiro tratado e le inicia d e fi
ção proveniente da parte exterior. nindo o bem d e natureza que e le identi
fica "com a ordem, p ois todas a s criaturas,
8) O s intelectos que se dizem agentes,
criadas p o r Deus, sã o a e le ord en a d a s
que são todos qüididades completamente
e, se g u in d o F g o stin h o , d istin g u e n ele
puras da matéria.
o modo, a figura e a ordem. F esta d is
C e is a definição do intelecto Agente:
tinção reconduz a do livro da S a b e d o
e le é, enquanto intelecto, uma forma su b s
ria, em que s e lê que D eus d isp ô s to da s
tancial cuja essên cia é ser qüididade pura
a s co isa s conforme o número, m edida,
de qualquer mistura com o m atéria, e isso
p eso ".
por si mesmo e não por abstração que ou
No segu n do tratado, em primeiro lu
tros d e le façam fora da matéria e d as co
gar, d e fin e -se o que é o bem genérico
nexões da m atéria, do modo como vem ob
e, portanto, F lb e rto M agno, "com conti
tido a qüididade de todo ente. Enquanto
nuas referên cia s à Bíblia e a o s Padres,
intelecto Agente e le é uma substância que
m ostrja] que e ste bem s e m anifesta no
tem o atributo de que falamos e ao qual per
homem 'quando fazem os aquilo que d e
vem os fa zer e d eixam os d e lado aquilo
que é p re c iso d e ix a r d e lado', e falta
'quando descuram os aquilo que d e ve s e r
feito, e quando fazem os aquilo que não
Ou seja, os essências.
207
Capítulo décimo segundo - fi loso-f-ia á r a b e e a k e b r a i c a e o a ris + o + e lis m o no O c i d e n t e
plo q s obras da caridade e da fé etc., jam ais sua consciência, sabe que o acusado é ino
são realizadas mal, ao invés, a s ações boas cente, todavia é forçado a fazer matar quem,
em si, isto é, a s ações boas por aquilo que conforme a ordem da lei, foi provado ser cul-
há em si m esm as, por v e z e s podem ser pável pelas acusações e pelas deposições
realizadas mal por algum motivo, como por das testemunhas.
exemplo o dar esmola, que é feito mal quan Depois disso, devemos considerar este
do é feito para conseguir o elogio dos ho bem do ponto de vista moral, mostrando
mens, embora permanecendo sempre uma como se manifesta no homem, como falta no
ação boa em si. Se depois aquilo que dizem mais das vezes e como, uma vez perdido,
estes mestres se ja verdadeiro ou não, é ta pode-se reconquistá-lo.
refa de outros considerá-lo atentamente. €u,
na verdade, prefiro definir o bem genérico
4. Como se manifesta o bem genérico
como aquilo que é o primeiro bem por aquilo
que se refere aos costumes. € preciso, por Portanto, uma vez que este bem consis
tanto, considerar que algum as co isas d e te em uma justo proporção de nossa ação
pendem de nós, outras não; não dependem em relação à matéria, isto é, da coiso que
de nós a s criaturas deste mundo, depende constitui o termo de nossa ação, o bem se
de nós aquilo do que somos senhores, como manifesta em nós quando fazemos aquilo que
as ações voluntárias, sejam elas atos ou p a devemos fazer, e deixamos de lado aquilo
lavras. que é preciso deixar de lado, isto é, como
Como na natureza uma só coisa é a pri diz Gregário Mogno; "Dá de comer a quem
meira, e é o sujeito das formas naturais, isto morre de fome, porque se não lhe dás de
é, a matéria, e tem por vezes uma forma bela, comer, tu o m atas”, e como lemos nos Pro
por vezes uma formo feia, também nos cos vérbios: “Liberta aqueles que são levados à
tumes, isto é, nas obras de nossa vontade, morte". "Dar de comer a quem tem fome", com
há uma obra que está sujeita à s circunstân efeito, é restaurar quem deve ser restaura
cias, e isso se entende como bem genérico e do; da mesma forma, libertar quem é levado
mal genérico, e se reveste por vezes de cir à morte por causa da fraude de outro e não
cunstâncias boas, por vezes de circunstân por suo iniqüidade, é libertar quem deve ser
cias más. Rssim, o bem genérico é sim ples liberto. C assim também ao realizar esta ou
mente uma ação que tem como termo uma tra ação encontramos um exemplo de bem
matéria adequada, como dar de comer a um genérico; com efeito, Jó diz de si mesmo;
faminto, matar quem deve ser morto e liber "Destroçava a s p resas do perverso, e de
tar quem deve ser liberto. Com efeito, maté seus dentes arrancava a p resa”. Com e fe i
ria da ação é aquilo a que se aplica a pró to, “destroçar a s presas do perverso" é d e s
pria ação. Da mesma forma, mal genérico é troçar aquilo que deve ser destroçado, e
a ação que tem como termo uma matéria não "arrancar de seus dentes a presa" é libertar
adequada, como dar de comer a alguém que quem deve ser liberto.
está saciado ou matar quem não deve ser Para a primeira ação, isto é, restaurar
morto. € assim também no restante. Portan quem deve ser restaurado, são desculpados
to, de um lado uma ação genericamente boa o sacerdote Abimelec, que deu de comer a
pode ser realizada mal, e uma ação generi Davi o pão consagrado do apresentação, e
camente má pode ser bem realizada. Com os discípulos do Senhor que colheram esp i
efeito, se uma ação genericamente boa rea gas no dia de sábado. Para a segunda ação,
liza-se em circunstâncias más, realiza-se em isto é, libertar quem deve ser liberto, louva
todo caso mal, como dar de comer a um fa a si mesmo Davi quando, no acampamento
minto para depois se gabar disso, ou nutrir contra os filisteus, diante de Saul diz ter ma
um fanfarrão; e da mesma forma, matar quem tado o leão, isto é, os tiranos que oprimiam
deve ser morto por rancor e desejo de vin injustamente o povo de Deus, e o urso, isto
gança, sem observar a ordem da lei. Ao con é, os amantes dos prazeres e blasfemadores
trário, uma ação genericamente má pode ser contra os quais deve ser feita justiça.
realizada bem, como dar a quem não é pre Da mesma forma, o homem deve matar
ciso dar, mas em nome do profeta e para em si mesmo aquilo que deve ser morto, isto
fazer penitência, e matar quem não deve ser é, a concupiscência e o pecado, como diz o
morto, porque assim exigem as acusações e Apóstolo: “Castigo meu corpo [...]", e aos
as provas, que são contra ele; o juiz, com Romanos: "Considerai a vós mesmos como
efeito, é forçado a proceder conforme as acu mortos em relação ao pecado, mas vivos em
sações e, portanto, mesmo que apenas com relação a Deus". Mata em si o leão quando
209
Capítulo décimo segundo - A filo s o fia á r a b e e a k e b r a i c a e o a n s f o i e lis m o n o O c i d e n t e --------
afasta da ira o podar irascível de sua alma, põe, para ver como dela se pode servir, e
o urso quando apaga o concupiscível, por depois torna sua ação adequada à matéria.
que não realizas seus desejos: dá de comer G assim ensina o Filósofo na ético, dizendo:
a quem deve ser restaurado quando nutre "G um bom sapateiro aquele que dos couros
sua olmo com o pão da vida, isto é, da graça à sua disposição extrai o melhor calçado": e
celeste, como pedimos ao rezar todos os da mesma forma é bom moralmente quem
dias: "Dá-nos hoje nosso pão cotidiano". realiza a ação melhor e mais conveniente em
relação à matéria com a qual deve agir.
R propósito do segundo caminho, isto
5. Como falto o bem genérico
é, da realização de muitas boas ações, para
Devemos agora considerar por quais que da freqüência nasça a facilidade, se diz
ações este bem mais facilmente falta. Ora, nos Provérbios: "Vá até a formiga, preguiço
estas ações são duas, isto é, quando des- so, e aprende a sabedoria; ela, com efeito,
curamos aquilo que deve ser feito, e quando embora não tendo um chefe, recolhe para si
fazemos aquilo que não devemos fazer. Como o alimento durante o tempo da ceifa". G ain
de fato em nosso corpo o bem da saúde é da, de modo egrégio, com quatro metáforas
danificado de dois modos, isto é, quando não no fim dos Provérbios o ensina Salomão, di
nos é subministrado o necessário, e neste zendo: "São quatro a s coisas menores da
caso a saúde se arruina por uma carência, e terra, mas são mais sáb ias que os sábios:
também quando fazemos coisas danosas à as formigas, povo sem força, que recolhem o
saúde ou ingerimos coisas danosas ao cor alimento durante o tempo da ceifa; as lebres,
po, como um veneno: da mesma forma tam povo fraco, que põem na rocho sua toca; os
bém o bem genérico dos costumes é d es gafanhotos, que não têm rei, mas saem to
truído de dois modos, porque se consuma por dos divididos em fileiras; as lagartixas, que
inanição quando, descurando fazer aquilo se podem prender com as mãos, mas habi
que devem os fazer, não subministramos à tam nos palácios dos reis".
alma o necessário: e é morto pelo veneno G aqui estão indicados os quatro frutos
do pecado, quando fazemos aquilo que não da realização de muitas ações boas. Primei
devemos fazer. ramente méritos em abunclância, que são o
alimento da alma; mesmo se a formiga é um
animal pequeníssimo e pode transportar a p e
6. Como se readquire o bem genérico nas um pouco por vez, todavia muitas formi
Para readquirir o bem genérico há para gas, com o vaivém contínuo, conseguem acu
o homem duplo caminho: o primeiro consiste mular muito. Como, com efeito, diz o Filósofo
em sempre adequar suas ações àquilo a que [Rristótelesj: "uma andorinha não faz o ni
se aplica a próprio ação, isto é, ao conside nho" com um só vôo, mas com mais e mais
rar, com previdente solicitude, o que tem à vôos; também se apenas uma ação parece
disposição, e para dele fazer conta a fim de pequena, todavia muitas ações adquirem ri
regular sua ação, adequando-a. Outro cami cos méritos. Assim as abelhas produzem mel
nho consiste em realizar freqüentemente di e cera, não uma só, mas muitos, e não com
versas boas ações, porque a freqüência é, um só vôo, mas com muitos.
por assim dizer, a mãe da facilidade para O segundo fruto é que o homem, em
realizar o bem. bora sendo fraco, realizando freqüentemente
A propósito do primeiro caminho se diz muitas boas ações torna-se forte no bem. A
no G ênesis que Isaac, quando Rebeca foi até lebre, com efeito, é o homem tímido no com
ele, tinha saído para p assear pelo campo: bate ao pecado. Todavia, com uma ação
"o campo", com efeito, em que nós devemos depois da outra sobe sobre a firmíssima ro
trabalhar com fadiga é o nosso comportamen cha do hábito e ali põe o berço do repouso
to: aí "passeam os" quando com previdente na virtude, para não ter de sofrer os a s s a l
solicitude cuidamos que cada ação nossa se tos dos vícios.
una de modo justo à matéria à qual se deve O terceiro fruto é que, mesmo se o ho
aplicar. Por isso diz o Gclesiástico; "Se fazes mem, fraco por sua origem, não tem um rei
o bem [...] e em tuas boas ações haverá muita que possa cuidar de suas tarefas e das guer
graça", e ainda: "Beneficia o justo e disso ras, todavia, impelindo (como um gafanho
terás uma grande recompensa, talvez não to) um salto da terra, deste e daquele bem
dele, mas certamente do Senhor". Por isso nasce uma multidão, que vai contra o diabo.
também quem quer construir uma casa, pri Por isso, no Cântico dos cânticos se diz da
meiro examina e mede a matéria de que d is esposa que é "terrível como esquadrão".
210 Sexta parte - y \ í S s c o l á s t i c a no s é c u lo d é c i m o t e r c e i r o
O quarto fruto é que, mesmo que o céu calipse dizem: "Fizeste de nós um reino para
® o reino dos céus ®st®jam muito long® d® nosso Deus". Com efeito , são reis todos
nós, todavia, arrastando-nos continuamen- aq ueles que recebem a coroa no reino dos
t® como a s lagartixas, com nossas ações ha céus.
bitarem os no céu "nos palácio s dos reis" Alberto Magno,
santos, daqueles reis, digo, que no Apo O bem.
ó^ apítulo Jiác-\yr\o t e r c e ir o
A g r a n d e sín+ese
d e T o m a s d e ^Aquino
I . A vida e a s obras d e T o m á s
cipal dever de minha vida, que cada pala veis à razão. No primeiro livro, por exem
vra minha e cada sentido meu falem dele” . plo, em que fala de Deus, não aborda a
O objeto primário de suas reflexões é Deus, questão da Trindade; já as verdades co
não o homem ou o mundo, porque somente nhecidas somente pela Revelação as reúne
no contexto da revelação é que se torna pos no quarto livro.
sível raciocinar sobre o homem e o mundo. É preciso partir das verdades “ racio
Muito se tem discutido sobre se existe nais” , porque é a razão que nos une. Escre
ou não uma razão autônoma da fé em To ve santo Tomás: “ É necessário recorrer à
más, ou seja, uma filosofia distinta da teo razão, à qual todos devem assentir” . E so
logia. A verdade é que em Tomás há uma bre essa base que se podem obter os primei
razão e uma filosofia como preambula fidei. ros resultados universais, porque racionais,
A filosofia tem sua configuração e sua au com base nos quais se pode depois cons
tonomia, mas não exaure tudo o que se pode truir um discurso de aprofundamento de
dizer ou conhecer. Assim, é preciso integrá- caráter teológico. Discutindo com os judeus,
la a tudo o que está contido na sacra doctri- pode-se assumir como pressuposto o Anti
na em relação a Deus, ao homem e ao mun go Testamento; discutindo com os heréticos,
do. A diferença entre a filosofia e a teologia pode-se assumir toda a Bíblia. Mas que pres
não está no fato de que uma trata de certas suposto pode tornar possível a discussão
coisas e a outra de outras coisas, porque com os pagãos ou gentios senão aquilo que
ambas falam de Deus, do homem e do mun nos assemelha, isto é, a razão?
do. A diferença está no fato de que a pri
meira oferece um conhecimento imperfeito
daquelas mesmas coisas que a teologia está
em condições de esclarecer em seus aspec
tos e conotações específicos relativos à sal
vação eterna.
A fé, portanto, melhora a razão assim
como a teologia melhora a filosofia. A gra
ça não suplanta, mas aperfeiçoa a natureza.
E isso significa duas coisas:
a) a teologia retifica a filosofia, não a
substitui, assim como a fé orienta a razão,
não a elimina;
b) a filosofia, como preambulum fidei,
tem sua autonomia, porque é formulada
com instrumentos e métodos não assimi
láveis aos da teologia.
3 ;A feologia
n ã o subsfitui a filosofia
II. y\ orvfol O0 ia
«•A essência é o "o que é" de uma coisa, mas é apenas po- , .
tência de ser: apenas em Deus potência e existência coincidem; mnühoen
no mundo e no homem não há correspondência entre potência §3 9
de ser e existência real. Por este motivo, apenas Deus é necessá
rio (possui como próprio o ato de ser): o mundo, ao contrário, é
contingente, porque possui o ser apenas por participação.
• Em Tomás o ato de ser tem proeminência sobre a essência, a tal ponto que
sua filosofia pode ser considerada uma metafísica do ser. O problema dominante
é, portanto, estabelecer o que é o ser (e não o que é a essên
cia), ou por que existe o ser e não o nada. Mas a solução per- Q serprevaiece
tence ao âmbito do mistério, e ao homem cabe maravilhar-se a sobre a essênc/a
cada momento do fato de que tudo o que é existe, enquanto §4
seria mais lógico que não existisse. Diverso, porém, é o discur
so sobre os modos de ser que são para nosso filósofo as dez
categorias.
Os
• Todo ente compreende em si o uno, o verdadeiro e o transcendentais
bom (os assim chamados transcendentais do ser), motivo pelo do ser
qual se pode dizer que o ser é uno, verdadeiro e bom. 5
* Por fim, tudo o que é, é também bom porque é fruto da Omne ens
bondade difusiva de Deus. Nessa luz Deus se apresenta como est b° num
Sumo bem. - > § 5.3
216 Sexta parte - j A íE sco lás+ ica k\o s é c u l o d é c i m o \e-V-cc\v-o
2 O eia+e Ió a ic o
CD eiafe re a l
e a d is tin ç ã o
Pois bem, o ente lógico se expressa pelo
verbo auxiliar ser, conjugado em todas as for e n tr e e s s ê n c i a e e x is t ê n c ia
mas: “A sua função é a de unir vários con
ceitos, sem com isso pretender que eles exis
tam efetivamente na realidade, pelo menos Toda realidade, tanto o mundo como
do modo como são concebidos por nós. Nós Deus, é ente, porque tanto o mundo como
usamos o verbo ‘ser’ para expressar cone Deus existem. O ente diz respeito a tudo,
xões de conceitos, que são verdadeiras en tanto ao mundo como a Deus, mas de modo
quanto ligam corretamente tais conceitos, analógico, porque Deus é ser, mas o mundo
mas não expressam a existência dos concei tem ser. Em Deus, o ser se identifica com
tos que ligam. Quando dizemos que ‘a afir sua essência, razão pela qual também é cha
mação é contrária à negação’ ou que ‘a ce mado “ato puro” e “ser subsistente”, mas na
gueira está nos olhos’, falamos a verdade, criatura, ao contrário, se distingue da essên
mas esse ‘está’ não significa que existe a afir cia, no sentido de que esta não é a existência,
mação nem que existe a cegueira. Existem mas tem a existência, ou melhor, o ato gra
homens que afirmam e existem coisas sobre ças ao qual não é mais lógica, mas sim real.
as quais podem-se pronunciar afirmações, Esses dois conceitos tão freqüentes, de
mas não existem afirmações. Existem olhos essência e ato de ser (actus essendi), são as
privados de sua função normal, mas não duas pilastras do ente real. A essência indi
existe a cegueira: a cegueira é o modo pelo ca “ o que é” uma coisa, ou seja, o conjunto
217
Capitulo décimo tcvccivo - f \ g r a n d e , sín tese d e T o m á s d e ;Aquino
dos dados fundamentais pelos quais os en das essências, um fundamento que funda a
tes — Deus, o homem, o animal, a planta realidade e a própria possibilidade das es
— se distinguem entre si. No que se refere a sências.
Deus, a essência se identifica com o ser, mas Pois bem, diante desse tema do ser, pa
para todo o resto significa aptidão para ser, rece-nos necessário dizer logo que ele pertence
isto é, potência de ser (id quod potest esse). ao âmbito do mistério, do indizível, já que
O que significa que, se as coisas existem, funda a própria possibilidade de todo dis
não existem necessariamente, podendo tam curso. E um fundamento que não buscamos,
bém não existir, e se existem, podem perecer pelo simples fato de que está sempre já pre
e não existir mais. Sua essência é aptidão sente no fato de ser dos entes, nesse milagre
para ser e não, como em Deus, identificação pelo qual o que poderia não ser existe de fato.
com o ser. E como a essência das criaturas Trata-se da redescoberta da estupefação dian
não se identifica com a existência, o mundo, te do mistério do ser, fazendo renascer a es
em seu conjunto e em cada um de seus compo tupefação originária que desperta em nós
nentes, não existe necessariamente, ou seja, quando percebemos o dom inestimável e in
é contingente, podendo ser ou não ser. dizível do ato graças ao qual somos tirados
Por fim, enquanto é contingente, o mun do nada para o ser. Esse é o primeiro e fun
do, se existe, não existe por sua virtude — damental alicerce, que obscurece o proble
pois sua essência não se identifica com a ma posterior do modo de ser, expresso por
existência — mas em virtude de outro, cuja Tomás com as dez categorias (a substância e
essência se identifica com o ser, isto é, Deus. os nove acidentes), que são tentativas de des
Esse será o núcleo metafísico que sustenta crever todos os possíveis modos de ser.
rá as provas de santo Tomás em favor da Tal filosofia é otimista, porque desco
existência de Deus. bre um sentido profundo no fundo daquilo
Nesse conjunto, fica evidente que, se o que existe; é uma filosofia do concreto, já
discurso sobre a essência é fundamental, que o ser é o ato graças ao qual as essências
mais fundamental ainda é o discurso sobre existem de fato. Mas também é a filosofia
o ser, ou melhor, sobre o ato de ser, possuído do crente, porque só o crente pode propor
originalmente por Deus, e de forma derivada as essências à discussão e captar o ato bási
ou por participação pelas criaturas. 2 co e positivo graças ao qual existe algo ao
invés de nada. Mas esse discurso nos leva a
falar das conotações do ser ou transcenden
tais (uno, verdadeiro, bom).
4 AJovidade
da peespectiva fomis+a
em relação 5 CDs fmusceudentais:
à ontologia 0 re 0 a o ente como uno,
verdadeieo, bom
essências, mas ao ser: o que é o ser e por (“omne eus est unum”)
;A b o n d a d e d o e n t e
f o m n e e n s e s t b o n n m ”)
TOMÁS
A ONTOLOGIA
ENTE UNO
> o ser e uno,
ou seja,
A. não é
autocontraditório,
ENTE LÓGICO é indivisível,
ENTE REAL mas é participável
nem tudo
o que é pensado existe tudo o que existe é ente,
assim como é pensado. mas de modo analógico:
4
O caráter universal Deus, p. ex., é o ser,
dos conceitos enquanto o criado tem o ser
fruto da faculdade abstrativa por participação.
do Intelecto \ O ente real
(= realismo moderado) se distingue em:
- - TRANSCENDENTAIS
' .
MUNDO CRIADO
as criaturas, enquanto participam do ser divino,
em parte se assemelham a Deus e em parte não.
Isto significa que entre Deus e o mundo há analogia,
no sentido que aquilo que se predica das criaturas
também se pode predicar de Deus,
não, porém, do mesmo modo,
nem no mesmo grau
222
Sexta parte - y \ íB s c o lá s - H c a n o s é c u lo d é c im o te ^ ce i^ o
III. y \ te o lo gia:
a s c i n c o v ia s p a r a p r o v a r a e x i s t ê n c i a d e D e u s
do a partir da consideração do mundo, que vido e é movido por outro, ou seja, por quem
remete ao seu autor. O ponto de partida de está em ato, sendo, portanto, capaz de ope
cada via, de quando em vez, é constituído rar a passagem da potência ao ato. O prin
por elementos extraídos da cosmologia aris- cípio omne quod movetur ab alio movetur
totélica que Tomás utiliza, confiante em sua é universal, devendo, portanto, ser aplica
eficácia persuasiva, num momento em que do a tudo aquilo que, de algum modo, se
o aristotelismo era a filosofia hegemônica. move. Em virtude de tal princípio, dever-se-
Mas a força probatória dos argumentos em ia compreender como é frágil a objeção se
particular é toda e sempre de índole metafí gundo a qual o mundo pode se explicar sem
sica, e assim pretende permanecer em situa recorrer a Deus, porque os fatos naturais se
ções científicas diversas. explicariam com a natureza, e as ações hu
manas com a razão e a vontade. Tal expli
cação é insuficiente porque recorre a reali
dades mutáveis, mas “tudo o que é mutável
2 jA peimeim via, e defectível deve ser reconduzido a um prin
ou via do movimento cípio imutável e necessário” . Mas eis uma
objeção: não se poderia recorrer a uma sé
rie infinita de motores e coisas movidas?
Escreve Tomás na Summa theologiae: Não, porque o processo ao infinito ou circu
“A primeira [via], que é a mais evidente, é a lar desloca o problema e não o explica, ou
que parte do movimento. Com efeito, é cer seja, não encontra a razão última da muta
to e sabido pelos sentidos que algumas coi ção. Portanto, é necessário afirmar a existên
sas se movem neste mundo. Ora, tudo aqui cia de um primum movens quod in nullo mo-
lo que se move é movido por outro, já que veatur, isto é, a existência de um imutável.
uma coisa não se desloca se não for em po E esse imutável é o que todos chamam Deus.
tência em relação ao termo do movimento;
ao passo que quem move, move enquanto
está em ato. Com efeito, mover quer dizer
levar da potência ao ato. Ora, uma coisa não 3 ;A s&guncla via,
pode ser levada de potência a ato senão em ou via da causalidade eficiente
virtude de um ente que já está em ato. Por
exemplo, aquilo que é quente em ato, como
o fogo, torna quente a madeira, que estava “A segunda via parte da noção de cau
quente em potência, e assim a muda e a al sa eficiente. No mundo das coisas sensí
tera. Mas não é possível que a mesma coisa veis nos defrontamos com a existência de
esteja ao mesmo tempo em ato e potência uma ordem de causas eficientes. Não há
sob o mesmo aspecto. Só pode sê-lo sob as caso conhecido e, na verdade, é impossível
pectos diversos: aquilo que é quente em ato que uma coisa seja a causa eficiente de si
não pode sê-lo também em potência, mas é, mesma, porque para tanto deveria ser an
ao mesmo tempo, frio em potência. Assim, terior a si mesma, coisa inconcebível. Ora,
é impossível que, sob o mesmo aspecto e ao não é possível ir ao infinito na série das cau
mesmo tempo, uma coisa seja movente e mo sas eficientes, porque em todas as causas efi
vida (movens et motum), ou seja, que mova cientes ordenadas a primeira é a causa da
a si mesma. Portanto, tudo aquilo que se intermédia e a intermédia é causa da última,
move deve ser movido por outro” . podendo as causas intermediárias ser vá
Essa é a via movimento, considerada a rias ou uma só. Ora, anular a causa significa
primeira e mais manifesta, para chegar ao anular o efeito. Por isso, se não houver uma
primeiro Motor. Se nas outras formulações, causa primeira entre as causas eficientes,
seguindo de perto Aristóteles, Tomás se de não haverá nem causa intermediária nem
tém nos diversos modos pelos quais um ente causa última. Mas, proceder ao infinito nas
pode se mover, nesta formulação mais ma causas eficientes significa eliminar a causa
dura o aspecto cosmológico é secundário, eficiente primeira; assim não teríamos nem
emergindo com força o aspecto metafísico. efeito último, nem causas eficientes inter
O movimento é analisado como passagem mediárias, o que, evidentemente, é falso.
da potência ao ato, passagem que não pode Por isso, é necessário admitir uma primei
ser efetuada por aquilo que se move, por ra causa eficiente, à qual todos dão o nome
que, caso se mova, isso significa que é mo de Deus” .
224 Sexta patte - ; A ( S s c o l á s + i c a n o s é c u l o d é c i m o t e ^ c e i^ o
Tomus Primus,
D- T H O M A E A Q V I N A T I S
D 0 C T O R 1 S A N G E L I C t
COMPLECTEHS.
Via» iftmbeitíThon»* exdiMsfouthonbnicoIfcâain.
ExpoGàowm ia Primam St Secundam Perihemenát.ct
Ia Primam & Secando» Pofterioram Aiulyocamm.
' ÀR.1STOTELIS.
não ser, pois constatamos que se geram e se elas se aproximam mais ou menos a algo de
corrompem e, conseqüentemente, lhes é pos sumo e absoluto; assim, mais quente é aquilo
sível tanto ser como não ser. Mas é impossí que mais se aproxima do sumamente quen
vel que todas as coisas dessa natureza tenham te. Dessa forma, existe algo que é verdadei
existido sempre, pois o que pode não ser, em ro, nobre e bom em grau máximo e, conse
algum tempo não existia. Por isso, se todas qüentemente, algo que, em grau máximo, é
as coisas [existentes na natureza são tais que] ser, já que o que é máximo, na verdade, é
podem não existir, em algum tempo não ha máximo também no ser, conforme diz Aristó
vería nada de existente. Ora, se isso é verda teles. Ora, o que é máximo em cada gênero
de, também agora não havería nada de exis é a causa de todos os que pertencem àquele
tente, pois o que não existe só começa a existir gênero: por exemplo, o fogo, que é máximo
por meio de alguma coisa que já existe. Por no calor, é causa de todas as coisas quentes,
isso, se em algum tempo não havia nenhum conforme diz também Aristóteles. Por isso,
ser, teria sido impossível alguma coisa come deve haver algo que para todos os entes é a
çar a existir e, assim, também agora nada causa de seu ser, de sua bondade e de toda
existiría, o que, evidentemente, é falso. Por outra perfeição. E a isso chamamos Deus” .
isso, nem todos os entes são contingentes, mas Também esse caminho parte da consta
é preciso que na realidade haja alguma coisa tação empírica, metafisicamente interpreta
necessária. Ora, toda coisa necessária tem a da, relativa à gradação dos entes, segundo a
sua necessidade causada por outra, ou não. qual o ser é participado e expresso diversa
Ora, é impossível ir ao infinito nas coisas mente. Elá um mais ou um menos no plano
necessárias, que têm a causa de sua necessi do ser e, conseqüentemente — recorde-se o
dade em alguma outra coisa, como já foi de que já se disse a propósito dos transcendentais
monstrado a respeito das causas eficientes. —, no nível de bondade, de unidade e de ver
Por isso, não podemos deixar de admitir a dade. Quanto mais ser um ente tiver, tanto
existência de um ser que seja em si mesmo mais é uno, verdadeiro e bom. Ora, constata
necessário, e não receba de outros a própria da essa gradação, passa-se à explicação, afir
necessidade, mas seja causa de necessidade mando que as coisas mais ou menos verda
para os outros. E a este todos chamam Deus” . deiras, boas etc., o são em relação a um ser
Este argumento parte da constatação absolutamente uno, verdadeiro e bom, que
de que as criaturas, já que nascem, crescem possui o ser de modo absoluto. Esta é a ra
e morrem, são contingentes e, portanto, pos zão da passagem: se os entes têm um grau
síveis, isto é, não possuem o ser em virtude diverso de ser, isso significa que tal fato não
de sua essência. Como exemplificar, então, lhes deriva em virtude de suas respectivas
a passagem da possibilidade à existência essências, caso em que seriam sumamente
atual e, portanto, ao grau de ser ou necessi perfeitos. E, se não deriva de suas respecti
dade que de fato possuem? Se tudo fosse vas essências, isso significa que o receberam
possível, teria havido um tempo em que de um ser que dá sem receber, que permite a
nada teria existido e agora nada existiría. participação sem ser partícipe, porque é fon
Se quisermos explicar a existência atual dos te de tudo o que de algum modo existe.
entes, isto é, a passagem do estado possível
ao estado atual, é preciso admitir uma cau
sa que não foi e não é de modo algum con 6 A quinta via,
tingente ou possível, porque está sempre em
ou via do j-inalismo
ato. E essa causa se chama Deus.
e inteligência, como a flecha lançada pelo ar algumas coisas, coisas que têm em si um prin
queiro. Por isso, existe algum ser inteligente cípio de unidade e finalidade. E a segunda é
que dirige todas as coisas naturais para seu fim. que as exceções devidas ao acaso não redu
E esse ser nós chamamos Deus” . zem a validade desse ponto de partida.
Também este último caminho parte da Ora, se o agir em função de um fim
constatação de que as coisas ou algumas de constitui certo modo de ser, pergunta-se qual
las agem e operam como se tendessem para seja a causa dessa regularidade, ordem e fi
um fim. Dizendo que alguns corpos naturais nalidade, constatáveis em alguns entes. Tal
agem sempre ou quase sempre do mesmo causa não se pode identificar com os próprios
modo, Tomás quer destacar duas coisas. A pri entes, visto que eles são privados de co
meira é que ele não parte da finalidade de todo nhecimento (cognitione carent) e, neste caso,
o universo (quando muito, apenas a aborda) é necessário o conhecimento do fim. Desse
e não pressupõe uma concepção mecanicista modo, é preciso remontar a um Ordenador,
da natureza, na qual Deus interviria, juntan dotado de conhecimento e em grau de dar
do pedaços indiferentes para constituir o re ser aos entes daquele modo específico no qual
lógio. A finalidade constatada diz respeito a eles de fato operam.
TOMÁS
AS CINCO PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS
\
\
Terceira via
d a con tin gên cia
/ As coisas são contingentes, ou \
seja, podem existir ou não \
existir. Mas aquilo que pode
existir ou não existir, algum
tempo não existiu. Isso impli
\
ca que ouve um tempo em que \
nada existia. Mas se assim \
fosse também agora nunca
Segunda via deveria existir nada, porque Quarta via
d a c au sa é impossível que aquilo que d o s g ra u s de p erfeição
Não é possível que exista não existe comece a existir, a Existem diversos graus de
uma série infinita de cau não ser por algo que já exis perfeição, mas isso impli
sas. Existe uma primeira te. É, portanto, necessário que ca um grau máximo ao
causa não-causada, e esta algo seja necessário. E isso é I qual referir-se. Esta suma
é Deus Deus perfeição é Deus.
Capitulo décimo tevccivo - y \ grem d e sín tese d e T o m á s d e y\q ui^ o
227
IV. y \ f e o n a d o di^eifo
• O homem, que para Tomás é natureza racional, conhece o fim das coisas,
mas não tem uma compreensão imediata do fim último de todas as coisas, isto é,
de Deus. Se tivesse a visão de Deus, seria fatalmente atraído
por ele, porém, conhecendo apenas fins parciais, sua vontade é Liberdade
livre de querê-los ou não querê-los. do homem
O homem tem, por outro lado, uma disposição natural para -> § 1
compreender os princípios das ações boas, mas pode também
deliberadamente rejeitá-los e, portanto, pecar: o pecado, por conseguinte, de
pende do livre-arbítrio.
• Tomás distingue quatro tipos de lei: a lex aeterna, a lex naturalis, a lex
humana e a lex divina.
A lex aeterna é o plano racional de Deus, a ordem do universo. Ora, esta
ordem é em parte desconhecida para o homem e em parte conhecida: a parte
conhecida constitui a lei natural, cuja essência pode se redu
zir à seguinte máxima: "deve-se fazer o bem e evitar o mal, e o s quatro tipos
o bem é aquilo que tende à conservação e o mal à destruição de lei
de si". Ligada à lei natural está a lei humana, isto é, o direito -» §2
positivo posto pelo homem. Este deriva da lei natural de dois
modos: ou por dedução (e então se tem o jus gentium ) ou por especificação (e
então se tem o jus civile). Por exemplo, faz parte do jus gentium a proibição do
homicídio, enquanto faria parte do jus civile a sanção para quem pratica o ho
micídio.
Se a derivação da lei natural é essencial para a lei humana, então é eviden
te que ela não pode contradizê-la. Uma norma que contradissesse a lei natural
não seria justa, e portanto não seria lei: é, portanto, dever de cada um desobe
decer à lei injusta, assim como é dever rebelar-se contra o tirano enquanto
agente do mal. Acima destas leis existe a lei divina — que foi revelada no Evange
lho — e que está ligada ao fim sobrenatural do homem, ou seja, à bem-aven-
turança eterna.
ta deliberadamente e infringe as leis uni modos: por dedução, isto é, per modum
versais que a razão lhe dá a conhecer e a conclusionum, ou por especificação de nor
lei de Deus lhe revela. mas mais gerais, isto é, per modum determi-
nationis. No primeiro caso, temos o jus
gentium, no segundo o jus civile.
Assim, a proibição do homicídio é par
2 "L & x a e t e r n a " ; " le x n a t u e a lis " , te do jus gentium, mas o tipo de pena que
"lex kwmaha"; "lex divirva" deve ser reservada ao homicida é parte do
jus civile, pois se trata da aplicação históri
ca e social de uma lei natural especificada e
Tomás distingue três tipos de leis: a lex fixada pelo jus gentium. Sendo derivados
aeterna, a lex naturalis e a lex humana. E logicamente da lex naturalis, os preceitos do
acima delas está a lex divina, ou seja, a lei jus gentium podem ser conhecidos indepen
revelada por Deus. A lex aeterna é o plano dentemente de uma pesquisa histórica so
racional de Deus, a ordem do universo in bre os diversos tipos de sociedade, ao passo
teiro, pela qual a sabedoria divina dirige que, evidentemente, o mesmo não vale para
todas as coisas para seu fim. É o plano da os preceitos do jus civile. Se os preceitos da
Providência conhecido unicamente de Deus lei humana ou positiva são derivados da lei
e de poucos eleitos. Entretanto, há uma parte natural, eles são conhecidos pela razão e
dessa lei eterna da qual, como natureza ra estão presentes no conhecimento. Desse
cional, o homem é partícipe. E tal partecipa- modo, a sociedade poderia até não fixá-los
tio legis aeternae in rationali creatura é de na lei humana ou jurídica. Entretanto, nós
finida por Tomás com o nome de lei natural. os encontramos estabelecidos no direito. E
Em suma, enquanto seres racionais, os isso se dá porque existem “pessoas propen
homens conhecem a lei natural, cujo núcleo sas aos vícios e neles obstinadas, e dificil
essencial está no preceito de que “ se deve mente podem ser guiadas pela persuasão.
fazer o bem e evitar o mal” . Para o homem, Assim, é necessário que sejam obrigadas pela
como para todo ente, a sua própria conser força e pelo temor a evitar o mal, para que,
vação é um bem. Para o homem, como para abstendo-se de fazer o mal pelo menos por
todo animal, é bem seguir os ensinamentos esse motivo, deixem os outros em paz e, fi
universais da natureza: união do macho e nalmente, por esse hábito de evitar o mal,
da fêmea, proteção e crescimento dos filho sejam levadas a fazer voluntariamente o que
tes etc. Para o homem, enquanto ser racional, antes só faziam por medo, tornando-se as
é bem conhecer a verdade, viver em socie sim virtuosas” .
dade etc. Entretanto, mais do que especi A coerção exercida pela lei humana,
ficação do que é o honum e do que é o ma- portanto, tem a função de tornar possível a
lum, ele vê a lei natural principalmente como convivência pacífica entre os homens, em
forma da racionalidade. bora para santo Tomás ela tenha também
Estreitamente ligada à lex naturalis, função pedagógica. A lei humana, portan
Tomás considera a lex humana. to, pressupõe homens imperfeitos. E como
Trata-se da lei jurídica, isto é, o direito ela não reprime todos os vícios, mas somente
positivo, a lei feita pelo homem. E os homens, os “ que prejudicam os outros” e que, co
que são sociáveis por natureza, fazem as leis mo “ os homicídios, os furtos etc.” , “ amea
jurídicas para dissuadir os indivíduos do mal. çam a conservação da sociedade humana” ,
E como toda lei é aliquid pertinens ad ratio- da mesma forma “ não se precisa ordenar
nem (isto é, algo que pertence à razão, uma todos os atos virtuosos, mas somente aque
vez que pertence à razão estabelecer os meios les que são necessários ao bem comum” .
para os fins e ver a ordem dos fins), a lex Se a derivação da lei natural é essencial
humana é a ordem promulgada pela coleti para a lei humana, então é evidente que, quan
vidade (multitudo) ou por quem tem a res do uma lei humana contradiz a lei natural,
ponsabilidade pela comunidade (ab eo qui nesse caso ela não existe como lei. Essa é a
curam communitatis habet), tendo em vista razão pela qual a lei deve ser justa. A exem
o bem comum. plo de Agostinho, também para Tomás “não
Entretanto, como acenamos acima, as parece que possa haver lei se ela não for jus
leis feitas pelo homem se baseiam na lei na ta” . Se uma lei positiva estivesse em desacor
tural. Com efeito, na opinião de Tomás, a do com a lei natural, então ela “não seria mais
lei humana deriva da lei natural de dois uma lei, mas uma corrupção da lei” .
Capítulo décimo terceiro - A g r a n d e sín tese d e T o m á s d e y\q u in o
229
TOMÁS
O CONHECIMENTO HUMANO DAS LEIS
lex humana
Corresponde ao direito positivo;
é a ordem promulgada
pelo homem
ius civile
ias gentium
deriva da lei
if deriva da lei natural por especificação.
natural por dedução. P. ex.: aplicar
\ P. ex.: a proibição determinada pena
^ do homicídio aos homicidas
deriva da lex naturalis-,
tem função pedagógica
! \
! O HOMEM
! O homem, enquanto
| dotado de razão e de
| livre-arbítrio, conhece
| a lei divina, a lei eter- lex divina
I na e a lei humana, e é a lei revelada,
| peca quando infringe a lei positiva
■ as duas primeiras leis expressa pelo Evangelho;
> e a terceira, enquanto guia à bem-aventurança
baseada sobre a lei à qual todo homem aspira
I natural
lex aeterna
lex naturalis
É o plano
é a parte da lex aeterna racional de Deus,
que é conhecida do homem é a ordem
enquanto racional. do universo inteiro.
P. ex.: “ fazer o bem São conhecidos por Deus
e não fazer o mal” e por pouquíssimos beatos
Capítulo décimo terceiro - y \ cj^cmde s m t e s e d e T o m á s d e ;A c j u m o
231
V. O ^filoso-faT n a ^é!' em T o m á s
Mas poderá Deus criar para a sua gló e moral) em contexto diferente. Sua raiz se
ria sendo esta inalterável, porque não pode encontra na contingência do ser finito, que
crescer nem diminuir? Deus cria outros se explica as mutações e a morte, bem como a
res para que desfrutem de sua glória, como liberdade da criatura racional, que pode não
ele próprio a desfruta. Não é para si mesmo, reconhecer sua dependência de Deus. O mal
portanto, mas sim para nós que Deus difun moral não é causado pelo corpo. Não é o
de sua glória; não é para ganhá-la, porque corpo que faz o espírito pecar, mas o espí
já a possui; nem para aumentá-la, porque rito que faz pecar o corpo. O mal moral não
já é perfeita, mas apenas para comunicá-la. significa diminuir o papel da racionalidade,
O Deus de Tomás é o Deus do amor, sendo, como para os filósofos gregos; não é identi
portanto, criador e provedor, não ficando ficável com o erro. O mal é desobediência a
encerrado no círculo de seus pensamentos, Deus, é rejeição da dependência fundamen
como o Deus de Aristóteles. tal em relação ao Criador. A raiz do mal está
Nesse contexto, o problema do mal na liberdade.
assume outras conotações. Se Deus não exis Fundidas na unidade do homem, a
te, então o bem não se explica. Mas, se Deus substancialidade da alma de Platão e a for
existe, de onde vem o mal? Para a filosofia malidade da alma de Aristóteles permitem
antiga, como o ser é o bem, o mal é o não- entrever o primado da pessoa sobre a espé
ser, a matéria que se rebela contra a forma cie. Não é a espécie humana, que é resso
ou contra a ação plasmadora do Demiurgo nância da idéia platônica, e sim a pessoa que
(Platão). Tomás, para quem tudo provém ocupa o primeiro plano, sendo partícipe do
de Deus, propõe o problema do mal (físico ser divino e estando destinada à visão beatí-
fica. Por isso, persona significat id quod est
perfectissimum in tota natura.
E uma filosofia nova em que os anti
gos problemas são aprofundados da altura
de que a fé nos faz vislumbrar e que a teolo
gia desenvolve. O vinho novo é posto em
odres velhos, mas tornado sólidos por apro
fundamentos filosóficos desencadeados pe
las perspectivas abertas pela fé.
T om ás
O leitor otual que s e propõe ler o Sumo Teológico corre o risco de permanecer desconcer
tado por suo estrutura. O s críticos — entre os quais em particular Marie-Dominique Chenu —
explicaram com clareza a origem deste delineamento e resumiremos aqui suas observações.
R Suma nõo está dividida em capítulos ligados entre si por uma linha expositiva unitária,
mas s e compõe de múltiplas questões, cada uma das quais, por sua vez, s e divide em artigos.
R gênese dessa estrutura é propriamente pedagógica, no sentido de que é o resultado
do método d e ensino em uso no séc. XIII, o qual se dispunha em dois níveis:
a) no primeiro nível requeria-se o simples análise dos Textos Sagrados, dirigida à sua
compreensão e interpretação:
b) no segundo nível s e requeria um esTorço de aprofundamento de tipo filosófico, depois
do quol, justamente pela maior complexidade da investigação, se desenvolviam e xeg eses
discordantes e por vezes até opostas.
Surgiam então as quaestiones que, progressivamente, seguindo uma lógica própria, e
assumindo dim ensões consideráveis, deixavam a forma do simples comentário, para assumir
um caráter autônomo. Tais quaestiones eram depois reagrupadas por argumento, e divididas
em artigos, conforme as necessidades.
R seguir temos alguns artigos da primeira questão abordada por Tomás de Rquino na
Suma Teológica, que são d e fundamental importância para o compreensão d e sua obra e de
seu pensamento. Nestes ele s e pergunta sobre qual é a natureza da doutrina sagrada (o
termo teologia terá plena difusão apenas nos séculos sucessivos), qual o seu objeto, seus
princípios, seu método. R s respostas que ele dá o estas perguntas constituem um p a sso deci
sivo. R doutrino sagrado, afirmará, "é verdadeira ciência, que tem seu próprio campo de explo
ração (Deus), seu s princípios próprios (os artigos de fé), sua própria luz (a Revelação divino),
um método próprio (o método de autoridade)
perior, isto é, do ciência d® Deus e dos beotos. téria, porque ela se ocupa prevolentemente de
Portanto, como a músico admite os princípios coisas que por sua sublimidade transcendem a
que o matemático lhe fornece, também a dou razão: as outras, vice-versa, tratam de coisas
trino sagrada aceito os princípios revelados por acessíveis à razão.
Deus. Depois, entre as disciplinas práticas é su
perior aquela que é ordenada a um fim mais
Sotuçfio das DificuiDRDCs: 1. Os princípios de
remoto: assim, a política é superior à ciência ou
toda ciência ou são evidentes por si ou à luz de
arte militar, porque o bem do exército destina-
alguma ciência superior. C tois são também os
se a buscar o bem do Cstado. Ora, o fim desto
princípios do ciência sagrada, como agora ex
ciência, enquanto é ciência prática, é a eterna
plicamos.
bem-aventurança, à qual estão dirigidos os fins
2. Os fotos particulares na doutrina s a
de todas as ciências práticas. De modo que,
grada não têm uma parte principal: aí foram in
sob todos os aspectos, é evidente a superiori
troduzidos certos exemplos de vida, como acon
dade dela.
tece nas ciências morais, ou tombém para
declarar a autoridade dos homens por meio dos S olução Dns dificuldadcs: 1 . Nada impede
quais derivou a revelação, sobre a qual se fun que o que por sua natureza é mais certo, seja
do a (Escrituro ou doutrino sagrada. menos certo relativamente a nós: isso depen
de da fraqueza de nossa mente, a qual, confor
2. Se a doutrina sagrada me Aristóteles, "diante das coisas mais eviden
é superior às outras ciências tes da natureza é como o olho da coruja diante
do sol". Por isso, a dúvida de alguns a respeito
PnRccc que a doutrina sagrada não é su dos artigos de fé não deriva da incerteza da
perior às outras ciências. Com efeito: coisa em si mesma, mas da fraqueza de nosso
1. R certeza de uma ciência faz porte da intelecto. Rpesar disso, um mínimo que se pos
sua dignidade. Ora, as outros ciências, apoian sa ter de conhecimento das coisas mais altas é
do-se sobre princípios indubitáveis, se apresen muito mais desejável do que o conhecimento
tam como mais certas do que a doutrina sagra mais seguro das inferiores, como afirma o Filó
da, cujos princípios, os artigos de fé, são sofo.
suscetíveis de dúvida. Portanto, as outras ciên 2. R ciência sagrada pode, sim, receber
cias são superiores a ela. alguma coisa das disciplinas filosóficas, não por
2. £ próprio de uma ciência inferior em que delas tenha necessidade, mas para me
prestar de outra, como a música da aritmética. lhor esclarecer seus ensinamentos. Seus princí
Oro, a doutrina sagrada toma algo das disci pios, com efeito, não os toma delas, mas
plinas filosóficas, como nota são Jerônimo4 em imediatamente de Deus por revelação. C por
uma corto a Mogno: "Os antigos doutores en isso não empresta das outros ciências como se
cheram seus livros com tanto doutrina e tontas fossem superiores, mas delas se s e v e como
máximas dos filósofos, que não sabes o que de inferiores e de servas; justamente como
mais admirar neles, se a erudição profana ou a acontece com as ciências ditas arquitetônicas5
ciência escriturística1'. Portanto, a sagrada dou que utilizam as ciências inferiores, como a polí
trina é inferior òs outras ciências. tica em reloção à arte militar. C o uso que a
ciência sagrada delas faz não em razão de sua
Cm contrario: Rs outras ciências são cha fraqueza ou insuficiência, mas unicamente por
mados servas do teologia, conforme o dito dos causa da fraqueza de nosso intelecto; este, dos
Provérbios: "[o sabedoria] mandou convidar coisas conhecidas pelo natural lume da razão
suas servos à fortaleza". (do qual derivam as outras ciências), é mais
facilmente conduzido, como pelo mão, à cog-
Rcspondo: Csta ciência, sendo igualmente nição das coisas sobrenaturais, que ensinam
especulativa e prática, ultrapasso todos as ou
esta ciência.
tras tanto especulativas como práticas. Com efei
to, entre as especulativas uma é mais digna da
outra tanto pela certeza como pela excelência
,lSão Jerônimo (por 347-420) é um dos mais doutos
da matéria. Ora, esta ciência, por ambos os Podres do Igrejo. é lembrado sobretudo por seus trabalhos
motivos, é excelsa entre as especulativas. de tradução e de exegese do Sagrada êscritura, do qual
Quanto à certeza, porque enquanto as outras santo Tomás frequentemente se serve.
ciências a derivam do lume notural da razão bSõo chamados a r q u ite tô n ic o s, por analogia com a ar
quitetura a cujo serviço concorrem várias disciplinas (do fí
humana que pode errar, ela a tira do lume da sica à matemática e à geometria), a s ciências ou artes que
ciência de Deus, que não pode se enganar. utilizom para seus próprios fins os conhecimentos de outras
Igualmente supero-os pelo dignidade da ma ciências e artes.
235
Capítulo décimo terceiro - y \ g r a r u l e s í n t e s e d e T o m á s d e A q uino
3. Se Deus é o sujeito de estudo que se referem a Deus, nós nos servimos de al
desta ciência guns efeitos, de natureza ou de graça, produzi
dos pelo mesmo Deus, em lugar de uma defini
PflRsce que Deus nõo é o sujeito desto ciên
ção [impossível].
cia. Com efeito:
Justamente como se faz em algumas dis
1. Cm todo ciência descreve-se a nature
ciplinas filosóficas, quando se demonstra um
za daquilo que forma o sujeito dela, como se
enunciado a respeito de uma causa mediante
tem de Rristóteles. Ora, esta ciência não co
um efeito dela, tomando o efeito em lugar da
nhece a natureza de Deus, como observa o
definição da causa.
Damasceno:6 "Poro nós é impossível dizer de
2. C também verdade que todas as coi
Deus aquilo que ele é". Portonto, Deus não é o
sas das quais trata a doutrina sagrado estão
sujeito desta ciência.
compreendidas no termo Deus, não porém como
2. Tudo aquilo que é tratado em dada ciên
partes ou espécies ou acidentes, mas por e s
cia está incluído no sujeito dela. Ora, na sagra
tarem de algum modo ordenados a ele.
da Gscritura nos ocupamos de muitas outras
Tomás,
coisas distintas de Deus, por exemplo, das cria
fí sumo teológico, vol. I.
turas e dos costumes dos homens. Portanto,
Deus não é o sujeito desta ciência.
C m c o n t r a r io : Sujeito de uma dado ciên
cia é aquele ao redor do qual tal ciência ra
ciocina. Ora, nesta ciência se fala de Deus,
tanto que se chama teologia, discurso a respei
€nte e essência
to de Deus. Portanto, Deus é o sujeito desta
ciência.
O ente e a essência, um dos primeiros
R e s p o n d o -. Deus
é sujeito desta ciência. Com escritos de Tomás de fíquino, pode ser con
efeito, existe entre sujeito e ciência a mesma siderado um resumo dos princípios gerais de
relação que passa entre objeto e faculdade ou sua metafísico.
hábito. Nele Tomás estudo, entre outras coi
Ora, objeto próprio de uma faculdade ou sas, a relação entre o ordem ontológica e a
hábito é o que inclui todo outro objeto sob aque ordem lógica do real, o problema do princí
la faculdade ou hábito: assim, o homem e a pio de individuaçõo e o problema dos uni
pedra dizem relação à vista sendo coloridos, versais.
motivo pelo qual o colorido é o objeto próprio
da vista.
Ora, na doutrina sagrada tudo é tratado
sob o ponto de vista de Deus; ou porque é o 1. Prólogo
próprio Deus, ou porque se ordena a ele como
Uma vez que — como diz o filósofo no I
princípio e fim. C cloro, portanto, que Deus é o
livro sobre O céu e o mundo — um erro pe
sujeito da sagrado doutrina. C isso aparece
queno no princípio pode se tornar grande no
evidente também dos princípios desta ciência,
fim, e uma vez que o ente e a essência são
que são os artigos da fé, a qual se refere a
aquilo que por primeiro é concebido pelo inte
Deus: idêntico, com efeito, é o sujeito dos prin
lecto, como afirma Rvicena no início de sua
cípios e de toda a ciência, uma vez que toda
Metafísica, é necessário, poro penetrarem sua
a ciência virtualmente está contida nos prin
dificuldade e para que não se caia em erro por
cípios.
Outros, todavia, olhando mais as coisas
tratadas nesta ciência do que ao ponto de visto
sob o qual são cosideradas, assinalaram di
6S qo João de Damasco, chamado o Damasceno (por
versamente seu sujeito: alguns, as coisas e 6 7 5 -7 4 9 ). C o último grande teólogo da antiga Igreja
os sin a is,7 outros, as obras da redenção,8 grega. €m sua obra teológica mais conhecida ( D e fíd e
outros ainda todo o Cristo, isto é, a Cabeça e o r t o d o x o ) confluiu o melhor do especulação dos Podres
os membros.9 gregos.
'Conforme Pedro Lombardo, o sujeito da teoiogia era
De todas estas coisas, é verdade, trata a dou dado pelas c o is a s (isto é, por Deus em sua natureza e em
trina sagrada, mas conforme se ordenam a Deus. seus atributos e pelas criaturas de Deus) e pelos s in a is
(isto é, pelos sacramentos).
SOlUÇlRO DIRS DIFICULDRDCS: 1 . C fetO q U 0 d e
8Para Hugo de São Vítor o sujeito da ciência sagrada
Deus não podemos conhecer a essência: tam eram as "obras da Redenção".
bém nesta doutrina, para pesquisar as coisas festa era a tese sustentada por Roberto de Melun.
236 Sexta parte - y \ íS sco lá s+ ica n o s é c u lo d é c im o terce iro
couso do ignorância de tais termos, explicar o "aquilo que era o ser", isto é, aquilo por meio
que significam "ente" e "essência", de que modo do qual algo possui o fato de ser aquela coi
se encontram nas diversas coisas e em qual sa. fl essência é chamada também forma, à
relação se encontram com as intenções lógi medida que como forma se entende a certeza
cas, isto é, com o gênero, a espécie e a dife de cada coisa, como diz flvicena no segundo
rença. livro da sua Metafísica. G com outro nome, a
6 essência também é chamada natureza, toman
do momento que devemos extrair o co
nhecimento dos coisas simples a partir do das do "natureza" conforme o primeira das quatro
coisas compostas, e proceder do que é deriva acepções distintas por Boécio no tratado So
do àquilo que precede — de modo que, ini bre duas naturezas, isto é, aquela pela qual
ciando dos coisas mais fáceis, o próprio proce se diz natureza tudo aquilo que de qualquer
dimento se torne mais maleável — , deveremos modo pode ser apreendido pelo intelecto; com
passar do significado do termo "ente" ao do efeito, toda coisa é inteligível apenas em vir
termo "essência”. tude de sua definição e essência, e neste sen
tido também o Filósofo afirma, no quinto livro da
Metafísico, que toda substância é uma natu
2. Os termos "ente” e "essência"
reza. Todavia, o termo natureza, entendido
€ preciso, portanto, saber que, como afir deste modo, parece significar a essência da
ma o Filósofo no V livro da Metafísico, o ente coisa enquanto é ordenada à sua própria ope
por si diz-se em dois modos: no primeiro, é ente ração, a partir do momento que nenhuma coi
aquilo que se divide nos dez gêneros; no ou sa pode faltar à sua operação essencial; o
tro, é ente aquilo que significa a verdade dos termo qüididade é, ao contrário, tomado d a
proposições. Fl diferença está aqui no fato de quilo que é expresso através da definição. Mas
que no segundo sentido podemos dizer ente diz-se essência pelo fato de que o ente pos
tudo aquilo em torno do qual é possível formar sui seu ser em virtude dela e nela.
uma proposição afirmotiva, mesmo quando nõo Gnquonto o ente se diz em sentido abso
indica nada de real; e neste sentido dizemos luto e em primeiro lugar das substâncias, e se
entes também os privações e as negações: di cundariamente e quase em sentido relativo dos
zemos, com efeito, gue a afirmação é oposta à acidentes, podemos concluir que a essência
negação, e que a cegueira está no olho. No está própria e verdadeiramente nas substân
primeiro modo, ao contrário, podemos dizer ente cias, enquanto nos acidentes está de algum
apenas aquilo que põe algo de real, e neste modo, e em sentido relativo. Gntre as substân
sentido a cegueira e as outras coisas deste tipo cias algumas são simples e algumas compos
nõo sõo entes. tas, e em ambos os tipos está a essência, mas
O termo essência, portanto, nõo se con nas simples de modo mais verdadeiro e mais
segue a partir da segunda acepção de ente: nobre, à medido que também seu ser é mais
denominam-se com efeito entes deste modo nobre; elas são, com efeito, causa das com
algumas coisas que não possuem uma essên postas, ou ao menos o é a substância primeira
cia, como é evidente nas privações; a essência simples, que é Deus. Mas, uma vez que as e s
deduz-se, ao contrário, da primeira acepção de sências das substâncias simples são para nós
ente. Por isso o Comentador, no mesmo lugar, menos manifestas, é preciso partir das essên
diz gue o ente entendido deste primeiro modo cias das substâncias compostas, de modo que
é aquilo que indica a substância da coisa. C partindo das coisas mais fáceis o procedimen
uma vez que, como se disse, o ente entendido to se torne mais maleável.
deste modo se divide nos dez gêneros, é pre
ciso gue a essência indique algo de comum a
3. fl essência das substâncias compostas
todas os naturezas através das quais os diver
sos entes podem ser colocados nos vários gê Nas substâncias compostas, portanto, a for
neros e nas várias espécies, assim como a hu ma e a matéria são conhecidas, como no homem
manidade é a essência do homem, e assim por a alma e o corpo. Não se pode, porém, dizer
dionte. que apenas uma delas se chame essência. Com
C uma vez que aquilo por meio do qual a efeito, que apenas a matéria nõo seja a e s
coisa é constituída no próprio gênero ou na sência é evidente, a partir do momento que
própria espécie é significado mediante a defi coda coisa é cognoscível e ordenada em uma
nição gue exprime aquilo que a coisa é, daí espécie ou em um gênero por meio do essên
se segue que o termo essência é mudado cia, enquanto a matéria não é princípio de co
pelos filósofos no de qüididade: e este é tam nhecimento, nem algo pode ser determinado
bém aquilo que o próprio filósofo choma de em uma espécie ou em um gênero por meio da
, , . . 237
C a p it u lo décíntO te rce iro - x \ g r a n d e s ín t e s e d e T o m á s d e E q u i n o ------
matéria, mas apenas mediante aquilo pelo que essência é aquilo pelo qual uma coisa é dita
algo está em ato. Nem mesmo apenas a forma ser e, portanto, ocorre que a essência, em vir
pode ser dita em si essência de uma substân tude da qual a coisa é chamada ente, não é
cia composta, embora alguns procurem susten nem apenas a forma nem apenas a matéria,
tar esta tese. Do que foi dito resulta claro, com mas uma e outra, embora de tal ser seja cau
efeito, que a essência da coisa, e a definição sa, a seu modo, apenas a forma. Vemos, com
das substâncias naturais, contêm não apenas efeito, também em outros casos que aquilo que
a forma, mas também a matéria; caso contrá é constituído por mais princípios não é deno
rio, com efeito, entre as definições naturais e minado por um só deles, mas por aquilo que
as matemáticas não haveria nenhuma diferen os compreende em seu conjunto, como é evi
ça. Nem se pode dizer que na definição das dente, por exemplo, nos sabores, a partir do
substâncias naturais a matéria seja posta como momento que o doçura é produzida pela ação
algo de acrescentado à essência, ou como um do quente sobre o úmido, e embora desse mo
ente externo àquela essência, porque este tipo do o calor seja causa da doçura, nem por isso
de definição é próprio dos acidentes, que não todavia o corpo é chamado doce por causa do
possuem uma essência perfeita, e por isso ocor calor, mas por causa do sabor que compreen
re que em sua definição esteja incluído o sujei de o quente e o úmido.
to, que está fora de seu gênero. € claro, por Todavia, uma vez que o princípio de indi-
tanto, que a essência compreende a matéria e viduação é a matéria, disso pareceria talvez de
a formo. ■ rivar que a essência, que compreende em si ao
Não se pode dizer também que a essên mesmo tempo a matéria e o forma, seja ape
cia nomeie a relação que intercorre entre a nas particular e não universal: e daqui seguir-
matéria e a forma, ou algo a ela acrescenta se-ia então que os universais não poderíam ter
do, porque em tal caso seria necessariamente uma definição, se a essência é aquilo que é
um acidente e algo externo à coisa, e esta expresso por meio da definição. C por isso é
última não poderio ser conhecida por meio preciso saber que não é a matéria entendida
delo: todas características que, ao contrário, em um modo qualquer que se torna princípio
são próprias da essência. Rtravés da forma, de individuação, mas apenas a matéria signata,
com efeito, que é ato da matéria, a matéria é e chamo de matéria signata a que é considera
tornada um ente em ato e uma determinada da sob determinadas dimensões. Tal matéria
coisa, razão pela qual aquilo que se acres não é posta na definição do homem enquanto
centa a ela não fornece à matéria o ser em homem, mas poderio ao invés ser posta na
ato simplesmente, mas o ser em ato naquele definição de Sócrates, caso Sócrates tivesse
modo, assim como fazem os acidentes, no sen uma definição. Na definição do homem põe-se
tido em que, por exemplo, a brancura faz com oo invés a matéria não signata: com efeito, na
que uma coisa seja branca em ato. Por isso, definição do homem não são colocados e s
quando é adquirido tal forma, não se tem uma tes determinados ossos ou esta determinada
geração em sentido absoluto, mas em sentido carne, mas ossos e carne em sentido absoluto,
relativo. que representam a matéria do homem não
Permanece, portanto, que o termo essên signata.
cia designa nas substâncias compostas aquilo Torna-se claro, portanto, que o essência
que é composto pela matéria e pela forma: e do homem e a de Sócrates diferem entre si
com isso concorda a afirmação de Boécio, no pelo foto de que em uma a matéria é signata,
Comentário às Categorias, quando diz que ousio e na outra não, e por isso o Comentador, a
significa o composto; ousio, com efeito, entre propósito do VII livro da Metafísica, diz: “Só
os gregos é a mesma coisa que essência en crates não é mais que animalidade e racio
tre nós, como ele próprio refere no livro Sobre nalidade, que constituem sua qüididade". Des
a s duas naturezas. Também flvicena diz que a sa forma, também a essência do gênero e a
qüididade das substâncias compostas é a mes da espécie diferem entre si como aquilo que é
ma composição de matéria e forma, e a pro assinalado e aquilo que não é assinalado,
pósito do sétimo livro da Metafísica o Comen embora nos dois casos haja um modo diverso
tador diz que “a natureza, que as espécies nas de designação, pois a designação do indiví
coisas geráveis possuem, é algo de meio, isto duo em relação à espécie ocorre mediante o
é, composto de matéria e de forma". C com matéria determinada pelas dimensões, en
isso concorda também a razão, a partir do quanto a da espécie em relação ao gênero se
momento que o ser da substância composta dá mediante a diferença constitutiva, que se
não é nem apenas da forma, nem apenas da extrai da forma da coisa. Mas esta determina
matéria, mas do próprio composto: porém a ção ou designação que se encontra na espé-
238
Sexta parte - y \ < £ s c o l á s t i c a n o s é c u lo d é c i m o t e r c e i r o
ei ®em relação q o gênero nõo ocorre por algo sui uma forma tal, pela qual podem ser desig
que se posso encontrar no essência da esp é nadas nele três dimensões", entendia-se uma
cie sem estar na do gênero: ao contrário, tudo forma qualquer: a alma, a forma da pedra ou
aquilo que está na espécie, também está no qualquer outra forma. € deste modo a forma do
gênero, mas de modo indeterminado. Com animal está implicitamente contida na forma do
efeito, se "animal" não fosse tudo aquilo que corpo, à medida que o corpo representa o gê
é "homem", mas apenas uma parte dele, não nero em seus confrontos.
poderio ser predicado do homem, a partir do £ é assim também na relação entre "ani
momento que nenhuma parte integrante pode mal" e “homem". Com efeito, se "animal" deno
ser predicada de seu inteiro. minasse apenas a coisa dotada da perfeição
Como isso aconteça, poder-se-á ver, caso de sentir e se mover por um seu princípio intrín
se considere de que modo o corpo difere en seco, excluindo toda outra perfeição, então to
quanto põe-se como parte do animal e en das as outras perfeições que viriam a ser acres
quanto põe-se como gênero: não se pode, com centadas representariam como que partes, ao
efeito, dizer que ele é gênero do mesmo modo invés de estar implicitamente contidas na natu
em que é parte integrante. O termo "corpo" reza do animal, e deste modo "animal" não
pode, portanto, ser entendido em diversas poderio constituir um gênero. Mas é, ao invés,
acepções. Cnquanto está na categoria da subs um gênero, à medida que indica uma coisa por
tância, chama-se assim pelo fato de que pos cuja forma podem provir o sentido e o movi
sui uma natureza tal pela qual é possível nele mento, seja qual for a forma, seja por se tratar
distinguir três dimensões; e as mesmas três apenas da alma sensitiva, seja por se tratar ao
dimensões, uma vez designadas, constituem invés da alma ao mesmo tempo sensitiva e ra
o corpo que está no gênero da quantidade. cional.
Acontece depois nas coisas que a uma perfei Assim, portanto, o gênero significa de
ção pode-se acrescentar outra, assim como é modo indeterminado tudo aquilo que está na
evidente no homem, no qual à natureza sensi espécie, e não significa apenas o matéria.
tiva se acrescenta a intelectual. Analogamente, Analogamente, também a diferença significa
também à perfeição de possuir uma forma tal o todo, e nõo apenas a forma, e assim tam
pela qual seja possível distinguir na coisa três bém a definição e a espécie. Mas, de modo
dimensões, pode ser acrescentada outra per diverso, porque o gênero significa o todo como
feição, como a vida ou algo do gênero. O ter uma denominação que determina aquilo que
mo corpo pode, portanto, designar qualquer é material na coisa sem determinar sua forma
coisa que possui uma forma tal pela qual é própria: razão pela qual o gênero é extraído
possível distinguir nela três dimensões, sem da matéria, embora não sendo matéria, como
outro acréscimo, isto é, de modo que àquela é evidente a partir do momento que algo se
forma nõo se sigo nenhuma outra perfeição e diz corpo pelo fato de possuir uma perfeição
que, qualquer coisa que venha a ser acres tal pela qual nele seja possível distinguir as
centada, resulte estranha ao significado do três dimensões, e esta perfeição é de algum
corpo assim entendido. € neste sentido o cor modo material em relação a uma perfeição ul
po é parte material e integrante do animal, terior. A diferença, ao contrário, é como uma
pois em tal modo a alma está além daquilo denominação depreendida de uma forma de
que é significado pelo termo corpo, e sobrevêm terminada, prescindindo do fato que seu pri
ao próprio corpo, de modo tal que destes dois meiro conceito compreenda a matéria deter
— isto é, da alma e do corpo — assim como minada, como resulta evidente a partir do
de duas partes, se constitua o animal. momento que quando algo se diz animado —
O termo corpo pode ser entendido tam isto é, tal de possuir uma alma — não se deter
bém de modo a significar uma coisa que possui mina o que ele seja, se um corpo ou alguma
aquela forma tal, pela qual seja possível de outra coisa. Por isso Avicena diz que o gênero
signar nela as três dimensões, seja qual for a não está compreendido na diferença como
própria forma, seja que a esta se possa seguir parte de sua essência, mas apenas como um
ulterior perfeição, ou que isso não aconteça. € ente fora da essência, assim como também o
neste sentido "corpo" é o gênero de "animal", sujeito está incluído no conceito das proprie
porque em "animal" nõo é possível encontrar dades. € por isso também o gênero, propria
nada que não esteja contido implicitamente em mente falando, não se predica da diferença,
“corpo". A alma não é, com efeito, uma forma como salienta o Filósofo no III livro da M eta
diversa daquela pela qual na coisa era possí físico e no IV dos Tópicos, a não ser talvez no
vel distinguir as três dimensões, e, portanto, modo pelo qual o sujeito pode ser predicado
quando se dizia que "o corpo é aquilo que pos da propriedade. Mas a definição ou a espécie
239
Capítulo décimo terceiro -- A g r a n d e , s í n t e s e d e T o m á s d e A qw iiao ---------
natureza da espécie com exclusão do matéria existe formalmente. O ser que é Deus é, com
designada exprima a parte formal: e, portan efeito, tal que nada a ele se pode acrescentar,
to, a humanidade é indicada como uma forma e por causa de sua própria pureza se distingue
qualquer e é chamada a forma do todo, não de qualquer outro ser; por isso, no comentário
como se fosse acrescentada a partir do exte à nona proposição do livro Sobre os causas se
rior às partes essenciais, isto é, à matéria e à diz que a individuação da causa primeira, que
forma, assim como a forma da casa se acres é apenas ser, tem lugar pela sua pura bonda
centa às suas partes integrantes, mas de pre de. Mas o ser comum, assim como não inclui em
ferência como a forma que é o todo, isto é, seu conceito nenhum acréscimo, não inclui tam
que compreende a forma e a matéria, com bém a exclusão de qualquer acréscimo, porque
exclusão todavia de tudo aquilo pelo qual a — se assim fosse — o ser ao qual alguma ou
matéria pode ser designada. tra coisa seria acrescentada não poderio ser
Portanto, dessa forma torna-se evidente considerado como tal.
que a essência do homem é expressa com este Analogamente, embora Deus seja apenas
termo "homem" e com este termo "humanida ser, não é necessário que lhe faltem as outras
de", mas de modo diverso, conforme dissemos, perfeições ou nobrezas: ao contrário, Deus pos
porque o termo "homem" a indica como um todo, sui todas as perfeições que estão em todos os
isto é, não excluindo a designação da matéria, gêneros, de modo a ser chamado perfeito em
mas contendo-a em nível implícito e indistinto, sentido absoluto, como dizem o Filósofo e o Co
assim como dissemos que o gênero contém a mentador no V livro da Metafísica, mas as pos
diferença, e portanto tal termo "homem" se sui de modo mais excelente em relação a to
predica dos indivíduos; o termo "humanidade", das as outras coisas, porque nele formam uma
ao invés, indica a mesma essência como parte, unidade, enquanto nas outras coisas permane
pois contém em sua significação apenas aquilo cem distintas entre si. € isso porque todas as
que é próprio do homem enquanto homem, e perfeições convêm a Deus segundo o seu ser
exclui toda designação, motivo pelo qual não simples; e como quem estivesse em grau de
se predica dos indivíduos do homem: e é por realizar por meio de uma só qualidade as ope
isso que por vezes o termo "essência" encon rações de todas as outras qualidades encerra
tra-se predicado de coisas reais (dizemos com ria naquela única qualidade todas as outras,
efeito que Sócrates é uma essência qualquer) também Deus encerra em seu próprio ser todas
enquanto por vezes é negado, como quando as perfeições.
se diz que a essência de Sócrates não é Cm um segundo modo, a essência se en
Sócrates. [...] contra nas substâncias criadas intelectuais, em
que o ser é diferente de sua essência, por mais
que a própria essência seja privada de maté
4. A essência divina
ria. Seu ser não é por isso absoluto, mas rece
e as essências das criaturas
bido, e por isso limitado e finito conforme a
Do que vimos, portanto, torna-se claro de capacidade da natureza que recebe: mas sua
que modo a essência se encontra nas diversas natureza ou qüididade é todavia absoluta, não
coisas. Nas substâncias encontram-se, portan recebida em alguma matéria. C por isso se diz
to, três modos diversos de possuir a essência. no livro Sobre a s causas que as inteligências
Há, de fato, algo, como Deus, cuja essência é são infinitas embaixo e finitas no alto: com efei
seu próprio ser, e por isso existem alguns filó to, são finitas em relação ao ser que recebem
sofos que afirmam que Deus não tem qüididade daquilo que é superior: mas não são finitas
ou essência, pois sua essência não é mais que embaixo, porque suas formas não são limita
seu ser. 6 disso segue que ele próprio não exis das segundo a capacidade de alguma maté
te em um gênero, pois tudo aquilo que existe ria em grau de recebê-las. Portanto, nestas
em gênero deve necessariamente ter além do substâncias não se encontra uma multiplicidade
ser uma qüididade: do momento que a qüidi de indivíduos dentro de uma mesma espécie,
dade ou natureza do gênero ou da espécie não conforme dissemos, a não ser no caso da alma
se distingue segundo o modo de ser de sua humana, por causa do corpo ao qual se une. 6
natureza naquilo do qual é gênero e espécie, e também se a sua individuação depende oca
é, ao invés, o ser que se dá de modos diversos sionalmente do corpo, quanto ao seu início,
nas coisas diversas. porque toda alma não adquire seu ser indivi
6 dual a não ser no corpo do qual é ato, não é
quando se diz que Deus é apenas ser,
não se é forçado por isso a cair no erro daque todavia necessário que, uma vez destruído o
les que sustentaram que Deus é aquele ser corpo, a individuação falte, porque, tendo um
universal em virtude do qual qualquer coisa ser absoluto, uma vez adquirido o ser indivi-
241
Capitulo décimo terceiro - A g r a n d e s ín t e s e d e T o m á s d e . A q u i n o
dual pelo foto de se ter tornodo formo de d e sejam acidentais, porque o fato de possuir
terminado corpo, tal ser permanece sempre maior ou menor perfeição não diversifica a
individual. G por isso Avicena diz que a indivi- espécie; com efeito, o grau de perfeição, com
duação e o multiplicação das almas depende a qual se recebe uma mesma forma, não é
do corpo quanto a seu princípio, mas não quan causa da diversidade na espécie, assim como
to ao termo. o mais branco e o menos branco na partici
G uma vez que nestas substâncias a pação do mesmo modo de ser da brancura,
qüididade não é idêntico ao ser, são colocá- mas o diverso grau de perfeição das mesmas
veis em uma predicação, e por isso se en formas ou naturezas participadas diversifica
contram nelas gênero, espécie e diferença, a espécie, e este é o modo com o qual tam
embora suas diferenças próprias nos sejam bém a natureza procede por graus das plan
desconhecidas. Nas coisas sensíveis, com efei tas aos animais, através de algumas realida
to, também as próprias diferenças essenciais nos des que são intermediárias entre os animais
são ignoradas, motivo pelo qual são indicadas e as plantas, como diz o Filósofo no VII livro
por meio dos diferenças acidentais que tiram Sobre o s animais. Além disso, não é neces
sua origem das essenciais, assim como a cau sário que a divisão das substâncias intelec
sa é indicada mediante seu efeito, como quan tuais tenha lugar sempre por duas diferenças
do o foto de ser bípede é indicado como diferen verdadeiras, porque é impossível que isso se
ça do homem. Mas os acidentes próprios das dê em todas as coisas, como o Filósofo ob
substâncias imateriais nos são ignorados, e por serva no XI livro So bre o s onimois.
isso suas diferenças não nos podem ser indi Gm um terceiro modo, a essência se en
cadas nem por si nem por meio das diferenças contra nas substâncias compostas de matéria e
acidentais. forma, nas quais não apenas o ser é recebido
Todavia, é preciso saber que gênero e e finito, pelo fato de que recebem o ser de outro,
espécie não são tomados do mesmo modo nas mas a própria natureza ou qüididade é neste
substâncias intelectuais e nas sensíveis, porque caso recebida na matéria signoto. G por isto são
nestas últimas o gênero é retirado daquilo que finitas tanto embaixo quanto no alto, e nelas já
nela é formal, motivo pelo qual Avicena, no iní é possível, pela divisão da matéria signoto, a
cio de seu livro Sobre o olmo, diz que nas coi multiplicação dos indivíduos dentro de uma
sas compostas de matéria e forma a forma "é a mesma espécie. Como depois nestas substân
diferença simples daquilo que é constituído por cias a essência esteja em relação com as inten
ela", todavia, não no sentido de que a própria ções lógicas, já o dissemos acima.
forma seja a diferença, mas no sentido que é Tomás,
princípio da diferença, como ele próprio preci €nte e (Essência
sa em sua Metafísico. G esta diferença se diz
diferença simples porque se depreende daqui
lo que é parte da qüididade da coisa, isto é,
da forma. Mas, uma vez que as substâncias A natureza da alma
imateriais são qüididades simples, nelas a di
ferença não pode ser retirada de uma parte da
qüididade, mas da qüididade no seu conjunto, Poro Tomás o homem é "composto d e
e por isso, no início do livro Sobre o olmo, Avi espírito e m atéria”, isto é, d e olmo e cor
cena diz que "possuem uma diferença simples po. R tarefo do teólog o é o d e "ocupar-
apenas as espécies cujas essências são com s e do homem do ponto d e visto do olmo,
postas de matéria e forma". não do corpo". Ris, portanto, que no q u e s
Analogamente, também o gênero se e x tão seten ta e cinco e le s e pergunto sob re
trai nelas de toda a essência, mas de modo quol se jo o noturezo do olmo e so b re os
diferente. Toda substância separada tem em reloções que intercorrem entre esto e o
comum com a s outras a imaterialidade, mas corpo.
difere no grau de perfeição, à medida que Poro Tomás, a olmo é o "princípio do
se distancia da potencialidade e se aproxi vido", elo "não é um corpo, mas oto d e um
ma do ato puro. G, portanto, daquilo que d e corpo". Rlém disso,, elo é "incorpóreo e
las segue pois são imateriais, se extrai o g ê subsistente". €m outros polovros, elo não
nero, como o intelectualidade ou algo de só é "imoteriol" (ou melhor, espiritual), m ospos
semelhante, enquanto daquilo que nelas s e sui também umo subsistência autônomo. Fi
gue o grau de perfeição se extrai a diferença nalmente, o olmo não é corruptível, mos
que permanece, todavia, desconhecida para incorruptível e imortol.
nós. G não é necessário que tais diferenças
242
Sexta parte - A É s c o l ó s t i c a n o s é c u lo d é c im o te n c e in o
mente mas apenas potencialmente na pupila. dade de conhecer as coisas, não deve possuir
Portanto, não é necessário que as semelhan nenhuma delas em sua natureza; porque, a
ças das coisas materiais se encontrem atual que estivesse inserida nela por natureza im-
mente na essência da alma, mas que esta pediria o conhecimento das outras. Com efei
esteja em potência a [receber] tais semelhan to, vemos que a língua do enfermo, quando
ças. Mas, uma vez que os antigos Naturalistas está infectada de humor bilioso e amargo, não
não sabiam distinguir entre ato e potência, pode perceber o doce, mas tudo lhe parece
afirmavam que a alma era um corpo, justamen amargo. Portanto, se o princípio intelectivo ti
te para que pudesse conhecer os corpos; mais vesse em si mesmo a natureza de algum cor
ainda, afirmavam que era composta dos prin po, não poderio conhecer todos os corpos.
cípios [elementares] de todos os corpos, a fim Tanto mais que cada corpo possui uma natu
de que seu conhecimento pudesse se esten reza determinada. Por conseguinte, é impos
der a todos os corpos. sível que o princípio intelectivo seja um corpo.
3. Pode haver duas espécies de conta Da mesma forma, é impossível que ele
tos; o contato quantitativo e o virtual. Com o entenda mediante um órgão corpóreo, porque
primeiro um corpo só pode ser tocado por um também a natureza desse órgão material im
corpo. Com o segundo, um corpo pode ser to pediría o conhecimento de todos os corpos; com
cado também por um ser incorpóreo, que o efeito, se determinada cor além de estar na
move. pupila [no momento do conhecimento] também
está no recipiente de vidro, os líquidos nele
vertidos aparecerão [sempre] da mesma cor.
2. Se a alma humana é algo subsistente4
Por isso o princípio intelectivo, chamado
PflRece que a alma humana não é algo mente ou intelecto, tem uma atividade própria,
subsistente. Com efeito; na qual o corpo não entro. Ora, nada pode
1. Aquilo que é subsistente é um hoc operar por si mesmo, se não subsiste por si
aliquid[istoé, um ser concreto]. Ora, não a alma, mesmo. A operação, com efeito, só compete
mas o composto de alma e corpo é um hoc ao ente em ato; tanto é verdade que as coisas
aliquid. Portanto, a alma não é subsistente. operam conforme seu modo de existir. Por isso
2. Tudo aquilo que é subsistente pode não dizemos que o calor aquece; quem aquece
mos dizer que opera. Ora, não se pode afirmar é o sujeito do calor [colidum]. Portanto, perma
que a alma opere; uma vez que, conforme nece demonstrado que a alma humana, que é
Aristóteles, “dizer que a alma sente ou que en chamada mente ou intelecto, é um ser in
tende, é como dizer que ela tece ou que edifica". corpóreo e subsistente.
Portanto, a alma não é um ser subsistente. SoiuçAo d a s DincuiDRDCs: 1. A expressão hoc
3. 6 se a alma fosse algo subsistente, oliquid pode ser tomada em dois sentidos: para
deveria ter uma atividade qualquer sem o cor indicar qualquer ser subsistente ou então para
po. Ao contrário, não existe nenhuma atividade indicar um ser subsistente que é completo na
sem o corpo, nem mesmo o entender; uma vez natureza de dada espécie. Tomado no primeiro
que não há intelecção sem fantasma, e isso não modo, exclui a inerência, próprio do acidente e
é possível sem o corpo. Portanto, a alma huma da forma material: no segundo exclui ainda a
na não é algo subsistente. imperfeição que tem a parte [em relação ao
C m c o n t r á r io : Santo Agostinho ensina: todo]. Portanto, a mão, por exemplo, se pode
“Quem vê a natureza da mente, isto é, como rá dizer hoc aliquid no primeiro modo, mas não
ela é uma substância, e além do mais não no segundo. Ora, sendo a alma uma parte da
corpórea, vê também que aqueles, os quais espécie humana, poder-se-á denominar hoc
opinam que ela é corpórea, enganam-se ao
atribuir-lhe aquelas coisas sem as quais não
podem conceber nenhuma natureza, isto é,
os semblantes dos corpos". Por isso, não só
a natureza da mente humana é imaterial, mas 4Comentando o conteúdo deste artigo, podre Centi
é ainda uma substância, isto é, algo subsis escreve: "Depois de ter precisado o conceito de olmo, como
princípio devido e, portanto, como formo, em contraposição
tente. o tudo o que é matéria, santo Tomás posso aqui a pergun
R c s p o n d o : Devemos necessariamente afir tar se o forma que é a alma humano tem subsistência pró
mar que o princípio da operação intelectiva, pria, independentemente do corpo vivificado por elo. £m
isto é, a alma do homem, é incorpóreo e sub outros termos: aqui se fala da espiritualidade do aima.
— €, uma vez demonstrada a espiritualidade, ou seja, a
sistente. Com efeito, é sabido que o homem subsistência autônoma do espírito humano, será fácil pro
com sua inteligência pode conhecer a nature ceder ò demonstração de suo imortalidade. O argumento,
za de todos os corpos. Ora, quem tem a facul portanto, é da máxima importância”.
244 Sexta parte - y \ £ T s c o lá s + ic a n o s é c u lo d é c im o t e r c e i r o
oliquidno primeiro modo, sendo dotada de uma rações das partes são atribuídas ao todo. Com
subsistência, mas não no segundo modo. Nes efeito, dizemos que é o homem que vê mediante
te sentido, [apenas] o composto de alma e de o olho e apalpa mediante a mão, mas não como
corpo se diz hoc oliquid. um objeto quente que aquece mediante o ca
2. lor: pois o calor, falando propriamente, não
Aristóteles uso aquelas palavras não
para exprimir seu parecer, mas o de quem dizia aquece de nenhum modo. Portanto, podemos
que o entender é um movimento, como se afirmar que a alma entende, como o olho vê:
depreende do contexto. mas em sentido rigoroso é melhor dizer que é o
Também se pode responder que a opera homem que entende, mediante a alma.
ção propriamente pertence a quem propriamen 3. Para que o intelecto aja requer-se o cor
te existe. Por vezes porém, se pode dizer que po, não como um órgão necessário para exer
uma coisa propriamente existe quando, sem ser citar tal ação, mas apenas como objeto: com
um acidente ou uma forma corpórea, é todavia efeito, a imagem fantástica está no intelecto,
parte [de um todo]. Mas se diz que uma coisa é assim como o calor para a vista. Mas ter tal
rigorosa e propriamente subsistente, quando necessidade do corpo não exclui que o intelec
não só não é inerente a um sujeito no modo to seja subsistente: de outro modo também o
dito acima, mas não é nem mesmo parte [de animal não seria um ser subsistente, pois tem
um todo]. Sob este ponto de vista, nem o olho necessidade das coisas exteriores sensíveis
nem a mão se podem dizer propriamente para sentir.
subsistentes, e por conseguinte nem sequer Tomás,
propriamente operantes. C por isso que as ope H sumo teológico, vol. V.
de qu® o S0r 0xpr0sso por tal nom0 ©xisto no do evidente em relação a nós, pode ser demons
roa lidado das coisas; mas apenas no concep trada por meio dos efeitos por nós conhecidos.
ção do intolocto. Nom so podo argüir que exis
ta na realidade se antes não se admite que na SoiuçAo das DiricuiDADCs: 1. A existência de
realidade há uma coisa da qual não se pode Deus e outras verdades que em relação a Deus
pensar uma maior: o que não se concede por podem ser conhecidas com a razão natural não
aqueles que dizem que Deus não existe. são, conforme são Paulo, artigos de fé, mas pre
3. liminares
Qu® exista a verdade em geral é por si aos artigos de fé; com efeito, a fé pres
evidente; mas que aí se encontre uma Verdade supõe a cognição natural, como a graça pressupõe
primeira não é para nós igualmente evidente. a natureza, como [em geral] a perfeição pressu
põe o perfectível. Mas nada impede que uma
coisa, que é de seu objeto de demonstração e
2. Se é demonstrável que Deus existe
de ciência, seja aceita como objeto de fé por quem
PflRece não ser demonstrável que Deus não chega a compreender sua demonstração.
existe. Com efeito; 2. Quando se quer demonstrar uma cau
1. Que Deus existe é um artigo de fé. Ora, sa mediante o efeito, é necessário servir-se do
as coisas de fé não podem ser demonstradas, efeito em lugar da definição [ou natureza] da
porque a demonstração gera a ciência, enquan causa, para demonstrar que esta existe; e isso
to a fé é apenas das coisas não evidentes, como vale especialmente em relação a Deus. Com
assegura o Apóstolo. Portanto, não se pode efeito, para provar que uma coisa existe, é ne
demonstrar que Deus existe. cessário tomar por termo médio sua definição
2. O termo médio de uma demonstração nominal, não a definição real, pois o questão
se depreende da natureza do sujeito. Ora, de em relação à essência de uma coisa vem de
Deus não podemos saber o que é, mas apenas pois da que se refere à sua existência. Ora, os
o que não é, como nota o Damasceno. Portan nomes de Deus provêm de seus efeitos, como
to, não podemos demonstrar que Deus existe. veremos o seguir: por isso, ao demonstrar a
3. Se pudéssemos demonstrar que Deus existência de Deus mediante os efeitos, pode
existe, isso seria possível apenas mediante mos tomar como termo médio aquele que sig
seus efeitos. Mas estes efeitos não são pro nifica o nome Deus.3
porcionais a ele, pois ele é infinito, e os efeitos 3. De efeitos não proporcionais à causa
são finitos; com efeito, entre finito e infinito não não se pode ter desta uma cognição perfeita;
há proporção. Não se podendo então demons todavia, de qualquer efeito podemos ter mani
trar uma causa mediante um efeito despropor festamente a demonstração que a causa exis
cionado, segue-se que não é possível demons te, conforme dissemos. € assim, dos efeitos de
trar a existência de Deus. Deus se pode demonstrar que Deus existe,
embora não se posso ter por meio deles um
Cm co n tr a r io ; Diz o Apóstolo: "As perfeições conhecimento perfeito da essência dele.
invisíveis de Deus, compreendidas pelas coisas
feitas, tornam-se visíveis". Ora, isto não aconte
3. Se Deus existe
ceria, se mediante as coisas criadas não se pu
desse demonstrara existência de Deus; com efei Parccc que Deus não existe. Com efeito;
to, a primeira coisa que é preciso conhecer a 1. Se de dois contrários um é infinito, o
respeito de um objeto dado é se ele existe. outro permanece completamente destruído.
Ora, no nome Deus entende-se afirmado um
R c s p o n d o : Há dupla demonstração: Uma
bem infinito. Portanto, se Deus existisse, não
procede da [cognição da] causa, e é chamada deveria existir mais o mal. Vice-versa, no mun
propter quid,] e esta se move daquilo que de do existe o mal. Portanto, Deus não existe.
seu tem uma prioridade ontológica. A outra, par
2. Aquilo que pode ser realizado por um
te dos efeitos e é chamada demonstração quicF
número restrito de causas, não se vê por que
e se move de coisas que têm uma prioridade
deve se realizar a partir de causas mais nume
apenas em relação a nós: toda vez que um efei- '
to nos é mais conhecido do que sua causa, nós
nos servimos dele paro conhecer a causa. De
qualquer efeito se pode demonstrar a existên 'Trata-se do assim chamada demonstração o priori.
cia de sua causa (desde que os efeitos sejam H rata-se da assim chamado demonstração o posteriori.
para nós mais conhecidos do que a causa); por 5€m outros palavras, enquanto para uma demonstra
ção "propter quid' ou o priori é necessário "partir da defini
que, como todo efeito depende de sua causa, ção que exprime o natureza própria e real d as coisas, para
quando há efeito é necessário que pré-exista uma demonstração 'quid [isto é, o posteriori], basta partir
a cousa. Portanto, a existência de Deus, não sen do efeito próprio".
247
Capítulo décimo terceiro - . A g m n d e s m fe .s e d e T o m á s d e ;A c | u m o
rosas. Ora, todos os fenômenos quo aconte não se encontra, e é impossível, que uma coisa
cem no mundo poderiam ser produzidos por seja causa eficiente de si mesma, pois, de outra
outros cousos, no suposição d® que Deus não forma, existiria antes de si mesma, o que é in
existisse: com efeito, os naturais se reportam, concebível. Ora, um processo ao infinito nas cau
como seu princípio, à natureza: os voluntários, sas eficientes é absurdo. Porque em todas as
à razão ou vontade humana. Nenhuma neces causas eficientes concatenadas a primeira é cau
sidade, portanto, da existência de Deus. sa da intermediária, e a intermediária é causa
do última, sejam as intermediárias muitas ou uma
€m c o n t r a r io : No êxodo se diz, na pessoa
só; ora, eliminada a causa é subtraído também
de Deus: "€u sou aquele que ê " .
o efeito: portanto, se no ordem das causas eficien
R c s p o n d o : Que Deus existe pode ser pro tes não existisse uma primeira causa, não have
vado por cinco vias. ria também a última, nem a intermediária. Mas
proceder ao infinito nas causos eficientes equi
a. A primeira via, ou via do movimento vale a eliminar a primeira causa eficiente; e a s
fl primeira e a mais evidente é a que se sim não teríamos nem o efeito último, nem as
depreende do movimento. Com efeito, é certo causas intermediárias: o que evidentemente é
e consta dos sentidos, que neste mundo algu falso. Portanto, é preciso admitir uma primeira
mas coisas se movem. Ora, tudo aquilo que se causa eficiente, que todos chamam Deus.
move é movido por outro. Com efeito, nada se
c. A terceiro via, ou via da contingência
transmuta que não seja potencial em relação
ao termo do movimento: enquanto quem move, fl terceira via é tomada do possível [ou
move enquanto está em ato. Porque mover não contingente] e do necessário, e é o seguinte,
significa mais que impelir alguma coisa da po flntre as coisas encontramos as que podem existir
tência ao ato: e nado pode ser reduzido da e não existir; com efeito, algumas coisas nas
potência ao ato a não ser mediante um ser que cem e terminam, o que quer dizer que podem
já está em ato. Por exemplo, o fogo que é quen existir e não existir. Ora, é impossível que todas
te atualmente torna quente em ato a lenha, que as coisas de tal natureza tenham sempre existi
era quente apenas potencialmente, e assim a do, porque aquilo que pode não existir, um tem
move e a altera. Mas não é possível que uma po não existia. Portanto, se todas as coisas [exis
mesma coisa esteja simultaneamente e sob o tentes em natureza são tais que] podem não
mesmo aspecto em ato e em potência: ela o existir, em dado momento nada existiu na reali
pode ser apenas sob diversas relações: assim, dade. Mas, se isto é verdadeiro, também agora
aquilo que é quente em ato não pode ser ao não existiria nada, porque aquilo que não exis
mesmo tempo quente em potência, mas é ao te, não começa a existir a não ser por alguma
mesmo tempo frio em potência. €, portanto, coisa que existe. Portanto, se não existia nenhum
impossível que sob o mesmo aspecto uma coi ente, é impossível que alguma coisa começasse
sa seja ao mesmo tempo movente e movida, a existir, e assim também agora não existiria
isto é, que mova a si mesma. Portanto, é ne nada, o que evidentemente é falso. Portanto,
cessário que tudo aquilo que se move seja nem todos os seres são contingentes, mas é
movido por outro. Se, portanto, o ser que move necessário que na realidade exista alguma coi
está também ele sujeito a movimento, é pre sa de necessário. Ora, tudo aquilo que é neces
ciso que seja movido por outro, e este por um sário, ou tem a causa de suo necessidade em
terceiro e assim por diante. Ora, não se pode outro ser ou não. Por outro lado, nos entes ne
de tal modo proceder ao infinito, porque de cessários que têm em outro lugar a causa de
outro forma não haveria um primeiro motor e, sua necessidade, não se pode proceder ao infi
por conseguinte, nenhum outro motor, porque nito, como também nas causas eficientes, con
os motores intermediários não movem a não forme demonstramos. Portanto, é preciso con
ser enquanto são movidos pelo primeiro motor, cluir pela existência de um ser que seja por si
como o bastão não move a não ser enquanto é necessário, e não extraia de outros a própria
movido pela mão. Portanto, é necessário che necessidade, mas seja causa de necessidade
gar a um primeiro motor que não seja movido paro outros. € este todos dizem Deus.
por outro; e todos reconhecem que este é Deus.
d. A quarta via,
b. A segunda via, ou via dos graus de perfeição
ou via da causalidade eficiente fl quarta via se toma dos graus que se en
fl segunda via parte da noção de causa contram nas coisas, ê foto que nas coisas se en
eficiente, flncontramos no mundo sensível que contra o bem, o verdadeiro, o nobre e outras
existe uma ordem entre as causas eficientes, mas perfeições semelhantes em grau maior ou menor.
248
Sexta parte - y \ é T s c o lá s t ic a n o s é c u lo d é c i m o t e ^ c e m o
R ê s p o n d o : Conforme j á vimos, o lei não é tureza, como ocorre nas criaturas privadas de
mais que o ditame do rozõo prática existente razão, as quais agem para o fim guiadas a p e
no príncipe que governa uma sociedade, ou nas pelo apetite natural; o homem, ao contrá
comunidade perfeita. Ora, uma vez demons rio, age para um fim mediante a razão e a von
trado, como fizemos na Primeiro Porte, que o tade. Portanto, no homem não existe uma lei
mundo é dirigido pelo divina providência, é claro natural.
que toda a comunidade do universo é gover 3. Quanto mais alguém é livre, menos está
nada pela razão divina. Por isso o próprio pla submetido à lei. Ora, o homem é mais livre do
no com o qual Deus, como príncipe do univer que todos os animais, por causa do livre-arbí-
so, governo os coisas tem natureza de lei. C trio, que os animais não possuem. Por isso, uma
uma vez que a mente divina não concebe na vez que os outros animais não estão submeti
da no tempo, sendo o seu pensamento eter dos a uma lei natural, também o homem não
no, como ensina o Cscritura, esta lei deve ser deve a ela estar submetido.
eterna.
Cm c o n t r a r io : A propósito daquele texto
SoiUÇAO DAS DIFICULDAD6S:1. fls COÍSOS que paulino, "quando os gentios que não têm lei
não existem em si mesmas existem junto de fazem por natureza os coisas da lei", a G/osso
Deus, porque pré-conhecidas e pré-ordenadas explica: "Cmbora não tenham a lei escrita, têm
por ele, conforme a expressão do Apóstolo: porém a lei natural, mediante a qual cada
"Chama as coisas que não existem como se um entende e sab e qual é o bem e qual é o
existissem". Por isso a concepção eterna da lei mal".
divina se apresenta como lei eterna, enquanto
R c s p o n d o : Conforme dissemos, sendo o lei
é ordenada por Deus para o governo das coi
uma regra ou medida, em um sujeito ela pode
sas que ele já conhece.
se encontrar de dois modos: primeiro, como
2. A promulgação acontece com palavras
em um princípio regulador e medidor; segun
e por escrito: e em ambos os modos a lei eter
do, como em uma coisa regulada e medida,
na tem sua promulgação por parte de Deus que
pois esta última é regulada e medida enquan
a promulga. Com efeito, a Palavra (o Verbo) de
to participa da regra ou medida. Ora, uma vez
Deus é eterna, como também é eterna a escri
que todas as coisas submetidas à divina pro
tura do livro da vida. Ao invés, o promulgação
vidência são reguladas e medidas, como vi
não pode ser eterna por parte da criatura que
mos, pela lei eterna, é claro que todas elas
deve lê-la ou escutá-la.1 4
2
participam mais ou menos da lei eterna, por
3. A lei implica um ordenamento ao fim de
que de seu influxo recebem uma inclinação aos
modo ativo, isto é, enquanto ela serve para
próprios atos e aos próprios fins. Pois bem,
ordenar alguma coisa para seu fim; não tanto
entre todos os outros seres a criatura racional
de modo passivo, isto é, no sentido de que ela
está submetida de modo mais excelente à pro
própria seja ordenada para um fim. Isso ocorre
vidência divina, porque dela participa com o
apenas peroccidens naqueles legisladores que
prover o si mesma e a outros. Por isso nela se
têm seu fim fora de si mesmos, ao qual devem
tem uma participação da razão eterna, da qual
ordenar suas próprias leis. O próprio Deus, ao
deriva uma inclinação natural para o ato e o
invés, é o fim do seu governar, e sua lei não é
fim devido. C esta participação da lei eterna
mais que ele próprio. Por isso a lei eterna não
é ordenada a outro fim.
no criatura racional se denomina lei natural. nios dos mortais e incertos os nossos projetos”.
£is por que o Salmista, depois de ter dito: Portanto, da razão humana não pode derivar
"Sacrificai sacrifícios dejustiça", como que para nenhuma lei.
responder ao quesito de quem procura as Cm c o n t r á r io : Santo Agostinho distingue
obras da justiça, "muitos dizem: quem me fará duas leis, uma eterna e a outra temporal, que
ver o bem?", assim responde: "Como selo está ele faz coincidir com a humana.
impressa sobre nós a luz de tua face, ó S e
nhor”;6 como poro dizer que a luz do razão na R c s p o n d o : Conforme já explicamos, a lei é
tural, que nos permite discernir o mal e o bem, um ditame da razão prática. Ora, na razão prá
outra coisa não é em nós que uma marca da luz tica e na especulativa se encontram procedi
divina. Por isso é evidente que a lei natural mentos análogos: com efeito, uma e outra, con
nada mais é que a participação da lei eterna forme vimos, partindo de alguns princípios
na criatura racional. chegam a conclusões. Por isso, segundo esta
analogia, como no campo especulativo dos pri
S o l u ç ã o d a s dificuldadcs : 1. O argumento se
meiros princípios indemonstráveis, naturalmen
ria justo se a lei natural fosse algo de diverso
te conhecidos, se produzem em nós as conclu
da lei eterna. Cia, ao invés, conforme vimos,
sões das diversas ciências, das quais não temos
não é mais que uma participação dela.
um conhecimento inato, assim é necessário que
2. Todos os atos da razão e da vontade
a razão humana, dos preceitos da lei natural,
derivam em nós, conforme dissemos, segundo
como de princípios universais e indemonstráveis,
a natureza: com efeito, todo raciocínio deriva
chegue a dispor das coisas de modo mais par-
dos primeiros princípios conhecidos por natu
ticularizado.
reza, e todo apetite relacionado com os meios
£ estas disposições particulares, elabo
deriva do apetite natural do último fim. Cis
radas pela razão humana, se chamam leis hu
por que também a primeira orientação de
manas, caso se encontrem as outras condições
nossos atos para o fim se dá mediante a lei
requeridas pela noção de lei, segundo as ex
natural.
plicações dadas na questão precedente. Cí
3. Também os animais privados de razão
cero,7 com efeito, escreveu que "a primeira
participam a seu modo da lei eterna, como as
origem do direito é obra da natureza: por
criaturas racionais. Todavia, como os criaturas
tanto, certas disposições, por meio do jul
racionais dela participam mediante o intelecto
gamento favorável da razão, passam para o
e a razão, esta participação se chama lei em
costume: e finalmente estas coisas, que a na
sentido próprio. Com efeito, a lei, como d isse
tureza promovera e o costume confirmara, fo
mos acima, pertence à razão, fls criaturas ir
ram sancionadas pelo temor e pela santidade
racionais, ao invés, não participam dela me
das leis".
diante a razão: por isso no caso delas não se
pode falar de lei, a não ser em sentido me S o iu ç r o d r s d ific u ld a d e s : 1. A razão huma
tafórico. na não está em grau de participar plenamente
do ditame da mente divina, mas apenas a seu
3. Se existe uma lei humana modo e imperfeitamente. Por isso, como em
campo especulativo existe em nós um conhe
PflRsce que não existe umo lei humana. Com cimento de certos princípios universais, median
efeito: te uma participação natural da sabedoria divi
1. A lei natural, conforme vimos, é uma na, mas não a ciência peculiar de qualquer
participação da lei eterna. Mas, conforme diz verdade, como se encontra na sabedoria de
santo Agostinho, por força da lei eterna “todas Deus, assim também em campo prático o ho
as coisas são maximamente ordenadas". Por mem é naturalmente participante da lei eterna
tanto, basta a lei natural para pôr ordem em segundo certos princípios universais, mas não
todas as coisas humanas. Portanto, não é ne segundo as diretivas particulares dos atos sin-
cessário que exista uma lei humana.
2. Dissemos que a lei tem função de me
dida. Mas a razão humana não é medida das
coisas, pois é mais verdadeiro o contrário, como 6Na realidade, esta interpretação do salmo é errada,
nota Aristóteles. Por isso da razão humana não enquanto dos textos originais s e tem o seguinte tradu
pode derivar nenhuma lei. ção: "Imolai vítimas d e ju stiça e confiai em Jové! Levanto
3. A medida deve ser certíssima, confor sobre nós a luz d e tua foce, Jové! Puseste alegria em meu
coração".
me Aristóteles. Ora, as sugestões da razão 7Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.). Santo Tomás o cita
humana sobre as ações a realizar são incertas, freqüentemente e "quase sempre com honra, a exemplo
como nota a Cscritura: "Tímidos são os raciocí d e Rgostinho, do qual frequentemente extraí a s citações".
251
Capítulo decimO tetceito - y \ 0>»ande s ín te s e d e T o m á s d e y\í]í.\ino
guiares, que todavia estão contidos na lei eter último. Se ele, com efeito, fosse ordenado ape
na. Por isso é necessário que a lei humana nas a um fim que não supera a capacidade das
p asse a estab elecer p articulares decretos faculdades humanas, não seria necessário que
de lei. tivesse uma orientação de ordem racional su
2. R razão humana por si não é regra perior à lei natural e à lei humana positiva que
ou medida das coisas; porém nela estão ina dela resulta. Mas, sendo o homem ordenado
tos certos princípios que são regras, ou medi ao fim da bem-aventurança eterna, a qual ul
das gerais das ações que o homem deve rea trapasso, conforme vimos acima, as capacida
lizar, e das quais a razão natural é regra e des naturais do homem, era necessário que ele
medida, embora não o se ja das coisas na fosse dirigido a seu fim, acima da lei natural e
turais. humana, por uma lei dada expressamente por
3. A razão prática tem por objeto a p e Deus.
nas as ações a serem realizadas, que são sin Segundo, porque a propósito dos atos
gulares e contingentes: não tanto as coisas humanos há muitas diferenças de valoração,
necessárias, objeto da razão especulativa. Por dada a incerteza do julgamento humano, e s
isso a s leis humanas não podem ter a infalibi pecialmente em relação aos fatos contingen
lidade que têm a s conclusões das ciências tes e particulares. Por isso, para que o ho
especulativas. 6 nem é necessário que toda mem pudesse sab er sem nenhuma dúvida
medida seja completamente infalível e certa, aquilo que deve fazer ou evitar, era necessá
mas basta que o seja conforme seu gênero rio que em seus atos fosse guiado por uma
comporta.8 lei revelada por Deus, na qual não pode ha
ver erro.
Terceiro, porque o homem se limita a le
4. Se era necessária a existência gislar sobre aquilo que pode julgar. Ora, o ho
de uma lei divina positiva mem não pode julgar os atos internos, que
estão escondidos, mas apenas os externos e
PfíRccc que não seria necessária a exis visíveis. Todavia, a perfeição da virtude requer
tência de uma lei divina [positiva]. Com efeito: que o homem seja reto em uns e nos outros.
1. fl lei natural, conforme dissemos, é uma Portanto, a lei humana não podia reprimir, ou
participação humana da lei eterna. Mas a lei comandar eficazmente, os atos interiores; pa
eterna, conforme vimos, é lei divina. Portanto, ra isso era necessária a intervenção da lei di
não é necessário que, além da lei natural e das vina.
leis humanas que dela derivam, também exista Quarto, como nota santo Agostinho, a lei
outra lei divina. humana não é capaz de punir e de proibir to
2. Cstá escrito que "Deus deixou o homem das as ações más, pois, se quisesse eliminar
na mão de seu conselho". Ora, vimos acima que todas elas, muitos bens seriam eliminados e
o conselho é um ato da razão. Portanto, o ho ficaria comprometido o bem comum, necessário
mem foi entregue ao governo do própria ra para o relacionamento humano. Por isso, para
zão. Mas o ditame da razão humana forma, que nenhuma culpa permanecesse impune, era
como dissemos, a lei humana. Portanto, não é necessária a intervenção da lei divina, que proí
preciso que o homem seja governado por uma be todos os pecados.
lei divina. físses quatro motivos são acenados em
3. R natureza humana é provida melhor uma frase dos Salmos: "A lei do Senhor é sem
do que as criaturas privadas de razão. Ora, mancha", ou seja, não admite nenhuma feal
estas criaturas não têm uma lei divina, distinta dade de pecado; "refaz as almas", pois re
de sua inclinação natural inato. Muito menos, gula nao só os atos externos, mas também
portanto, deverá ter uma lei divina a criatura
racional.
o movimeKvfo fV anciscano
e B o a v e h f w m d e Ba0iaore0Ío
I. O f ^ a n c is c a E v is m o
II. S ã o B o a v e n t u m
e o s vé-H-ices d a S s c o l a fraKtciscatta
2 ;A posição de Boaver\tuea
contra o aeistotelismo
averraísta
Esse trecho — que pode ser lido nas ça corrosiva em relação ao pensamento
Collationes de donis Spiritus Sancti — ex cristão.
pressa admiravelmente a função do saber Boaventura estudara Aristóteles na
filosófico. Por mais elevado e sublime que faculdade das artes, na qual ingressara em
seja, o saber filosófico é fonte de erros se 1235, quando a adoção das obras do Esta-
detém o olhar em si mesmo e não o dirige girita já se podia considerar completa e,
para saber mais alto, teológico e místico. portanto, o conhecia sobretudo em sua ver
Boaventura, portanto, não é contra a filo são averroísta.
sofia em geral, mas sim contra aquela filo Portanto, embora apreciando suas inú
sofia que é incapaz de captar a tensão entre meras contribuições para o estudo da natu
o finito e o infinito, entre o homem e Deus, reza, ele rejeitava seu espírito e suas orien
na concretude do nosso ser, tendencialmente tações gerais, porque estranhos à história e
orientado para a salvação, mas continua ao destino do cristão. Aristóteles é uma au
mente exposto ao mal. toridade no campo da física, mas não no
O problema de Boaventura, portanto, campo do saber filosófico, onde a autorida
não é o de rejeitar o uso da razão e toda de cabe a Platão e, superior a ambos, a Agos
filosofia, mas sim o de distinguir uma filo tinho.
sofia cristã de uma filosofia não cristã. Ele Boaventura, pois, opta pela tradição
é contra uma filosofia não cristã, contra uma platônica agostiniana contra a tradição aris
razão auto-suficiente, incapaz de captar no totélica, porque para a primeira a filosofia
mundo o signum, as pegadas de Deus. E é a teorização do anseio das coisas e do ho
contrário a uma razão que considera o mun mem por Deus e, no repensamento agosti-
do como realidade totalmente profana e com niano, é esclarecimento das implicações exis
leis autônomas e auto-suficientes. Em suma, tenciais da fé, ao passo que, para a segunda,
Boaventura realiza escolha consciente da a filosofia é reflexão autônoma e, em mui
quela tradição de pensamento que, a partir tos aspectos, fechada em si mesma e, por
de Platão, através de Agostinho e Anselmo, tanto, desnorteante. A filosofia de inspira
havia sustentado a reflexão cristã na consi ção aristotélica não era capaz de sustentar
deração do mundo como sistema de corres o esforço de Boaventura para ligar estreita
pondências ordenadas, como tecido de sig mente os componentes filosóficos com os
nificados e relações alusivos a Deus uno e teológicos, o elemento revelado com o racio
trino, e o homem como inquieto peregrino nal. Ele buscava uma filosofia que alimen
do Absoluto tripessoal. tasse a sua religiosidade, o seu abraço cons
Para que serve uma filosofia que não tante com a teologia, seu misticismo, aquele
torne mais evidente a presença de Deus no calor afetivo para o qual cada passo é, ao
mundo e não leve a cabo a aspiração do mesmo tempo, ato de inteligência e ato de
homem ao conhecimento e à posse de Deus? amor.
O exercício da razão é salutar quando nos No quadro da tradição monástica e do
permite descobrir, no mundo e em nós mes espírito religioso difundido por Francisco de
mos, aqueles germes divinos que, depois, a Assis, Boaventura, diante das tradições fi
teologia e a mística levam à sua completa losóficas mais abalizadas, optou pela tradi
maturação. O programa de Boaventura, que ção platônica e, portanto, rejeitou a tradi
fundamenta as suas escolhas filosóficas, é ção aristotélica.
constituído pelo quaerere Deum que relucet
e latet nas coisas, que se manifesta e se ocul
ta, em torno do qual deve se realizar o es
forço da meditatio, segundo a tradição mo 3 N a orÍ0em dos erros
nástica, como prólogo à consummatio, que do aeistofelismo
é constituída pela visão beatífica. A ciência
filosófica que Boaventura busca e, a seu mo
do, elabora é, portanto, “ caminho para ou Em trecho famoso das Collationes in
tras ciências” , constituídas pela teologia e Hexaemeron, Boaventura afirma que a re
pela mística, da qual a filosofia, precisamen jeição da teoria platônica das Idéias está na
te, é prólogo e instrumento. origem dos erros de Aristóteles e seus segui
De qual filosofia são Boaventura des dores árabes, Avicena e Averróis.
confia? Da filosofia aristotélica, que, na Em que sentido e por que a negação
versão averroísta, mostrara toda a sua for das Idéias platônicas, reinterpretadas como
258 Sexta parte - / \ C s c o l ó s t i c a n o s é c u lo d é c im o te^cem o
as Idéias por meio das quais Deus criou o tônica é que as coisas não procedem de Deus
mundo, constitui a fonte dos erros aristoté- por meio de emanação inconsciente e ne
licos? Negar as Idéias quer dizer que Deus é cessária, mas são livremente criadas por ele,
somente causa final das coisas, que atrai ou seja, desejadas. E quem quer sabe o que
para si sem conhecer. quer. Deus é artista que cria aquilo que
Conseqüentemente, Deus não é criador concebeu.
do mundo, não é providente, mas estranho Com base nessa leitura, o mundo em
ao evento cósmico, soberbamente fechado seu conjunto é um livro, no qual reluz a Trin
em si mesmo. E continua Boaventura: “Daí dade que o criou segundo triplo grau de
deriva que tudo o que ocorre é casual ou expressão, isto é, segundo o modo do vestí
fatalmente necessário. E como é impossível gio, da imagem e da semelhança. O vestígio
que tudo seja casual, os árabes introduzem é o das criaturas irracionais, a imagem é a
no mundo uma necessidade fatal, conside das criaturas intelectuais e a semelhança é a
rando que as substâncias que movem os céus das criaturas deiformes.
sejam causas necessárias de todos os acon Assim, na própria universitas creata há
tecimentos” . como que uma escada por meio da qual pode-
Todavia, onde não há liberdade não há se subir até Deus: se as coisas são vestígios al
responsabilidade e, portanto, nem penas ou gumas, imagem outras e similitudes de Deus
prêmios além desta vida. Assim, se tudo proce outras, é necessário que o homem, para al
de necessariamente de Deus, o mundo é eter cançar seu destino, proceda através desses
no, já que o que existe necessariamente não graus, partindo do mundo corpóreo, que está
pode não ser, não pode ter princípio e fim. fora de nós, entrando no espírito, que é ima
Daí outro erro: a unicidade do intelec gem de Deus, e caminhando para a realidade
to. Se o mundo é eterno, é preciso admitir eterna, que nos transcende. A especulação tor
que existiram infinitos homens e, portanto, na-se assim itinerarium mentis in Deum, isto
infinitas almas; e se estas são incorruptíveis é, viagem mística em direção a Deus.
(imortais), então há atualmente infinitos ho O mundo, portanto, está cheio de si
mens, o que, para Aristóteles, é inadmissí nais analógicos do divino, que é preciso de
vel. Para superar tal aporia, Averróis afir cifrar como alimento do espírito. Escreve
ma que há um só intelecto espiritual ou Boaventura no Itinerarium: “ Quem não se
imortal para todos os homens, com a con- ilumina com o esplendor de coisas tão gran
seqüente negação de que haja uma felicida des como as coisas criadas, é cego; quem
de ou uma pena individual após a morte. não desperta com tantos clamores, é surdo;
Estas são algumas conseqüências, em quem, com todas essas coisas, não se põe a
claro contraste com a doutrina cristã, da re louvar Deus, é mudo; quem, a partir de in
jeição aristotélica da doutrina das Idéias. Daí dícios tão evidentes, não volta a mente para
a importância da teoria platônica das Idéias, o primeiro princípio, é tolo” . Enquanto os
que Boaventura, seguindo as pegadas de san antigos divinizavam o mundo e o homem
to Agostinho, repensa e repropõe na forma moderno o demitiza, lendo-o com base em
da doutrina do exemplarismo. categorias rigorosamente científicas, Boa
ventura propõe uma interpretação que dis
tingue, não separa, Deus do mundo, para
que ele não seja profanado ou desumani-
4 O e x e r n p l ansmo zado.
Ele percebeu o vínculo existente entre
o caráter sacral do mundo e o caminho
Os germes negativos da filosofia aristo ascensional do homem, que não é evasivo,
télica podem ser resumidos na possibilida mas sim comprometido com o mundo, ain
de de conceber o mundo sem Deus, ou en da que nele não se dissolva: “ Abre os teus
tão com um Deus que seja motor imóvel, lábios e dedica o teu coração a exaltar e
impessoal, sem amor, nem criador nem pro honrar Deus em todas as criaturas, para não
vidente. Para extirpar essa visão, Boaventura ocorrer que o mundo todo se insurja contra
elabora a doutrina do exemplarismo, segun ti. Com efeito, precisamente por isso o mun
do a qual em Deus encontram-se as Idéias, do lutará contra os insensatos (pugnabit
ou seja, os modelos, as similitudes das coi orbis terrarum contra insensatos)” . Se o ho
sas, das mais humildes às mais elevadas. E a mem não respeita o mundo, então o mundo
razão desse repensamento da doutrina pla se revoltará contra ele.
Capítulo décimo CjUUrtO - O m o v i m e n f o |k'cuu:is<r( \k o e B o c i v e n l a ^ a d e B a g ^ o ^ e g i o
259
co-intuição pretende precisamente destacar intelectivo está no conceito de ser que, para
que o contato com o objeto implica simul o nosso espírito, é a irradiação do ser abso
taneamente a percepção confusa do mode luto, no qual estão as Idéias eternas de to
lo divino. Com efeito, a co-intuição implica dos os entes. Todavia, o homem não tem
o contato direto com o objeto e reflexo com idéia clara dessa realidade inteligível, mas
o exemplar. A percepção do exemplar não é apenas uma idéia confusa, porque é uma
direta, mas também não pode ser chamada irradiação de Deus ou ainda o sinal de sua
indireta, no sentido mediato e escalonado presença em nós.
do raciocínio silogístico. A simultaneidade
da co-intuição é muito mais consecutiva, no
sentido de que o intelecto, percebido o exem
plificado, o refere imediatamente ao exem
plar, que, no entanto, não conhece em sua e a p lu e a lid a d e d a s f o r m a s
configuração divina definitiva.
Para maior esclarecimento desse núcleo
doutrinário é oportuno acenarmos para a Se Deus é o ser ao qual remetemos to
teoria da iluminação, que Boaventura pro das as coisas, é estranha a cegueira do inte
põe para explicar nosso conhecimento inte lecto, que não sente necessidade dele, sem o
lectual. O conhecimento sensível se refere qual nada pode ver ou conhecer. Pois bem,
aos objetos materiais e se realiza através dos precisamente por estar convencido de que
sentidos, enquanto o conhecimento intelec tudo fala de Deus, que está presente em nós
tual transcende os sentidos e atinge o uni mais do que nós em nós mesmos, Boa
versal. Todavia, em que se funda tal uni ventura, mais do que demonstrar sua exis
versalidade? E de onde os conhecimentos tência, preocupa-se em refinar ou purificar
necessários, como o dos princípios primei o olhar interior, para que, nele, o homem
ros e das verdades matemáticas, extraem tal encontre a marca de Deus impressa em sua
necessidade? Um aristotélico teria respon mente e se disponha a aceitar “ essa verdade
dido que o fundamento da universalidade e que toda criatura proclama” . Suas proposi
da necessidade das idéias deve-se à ação de ções podem ser vistas também como provas,
abstração, que liberta das coisas singulares porém, mais do que provas, são exercita-
e contingentes o que nelas existe de univer tiones ou treinamentos para que o espírito
sal e necessário. saiba captar a presença de Deus fora de si,
Boaventura, porém, mostra-se insatis dentro de si e acima de si, em aproximação
feito com tal resposta, porque descobre nela ascendente que se conclui com a visão bea-
um resíduo de necessidade e auto-suficiên tífica.
cia pagã. Como o homem, as coisas são sin Deus está praesentissimus ipsae ani-
gulares e contingentes e, por si mesmas, não mae. E até o argumento do Proslogion de
podem funcionar como fundamento dessa Anselmo, mais do que específica demons
necessidade e universalidade. O fundamen tração da existência de Deus, é argumento
to, portanto, só pode ser uma luz divina, que prova a imediata presença de Deus em
que permite a vinculação do finito com os nós. Como se pode propor à discussão a luz
exemplares divinos. Com efeito, como é pos graças à qual nós vemos? Se a noção de Deus
sível conhecer as coisas imperfeitas e con como ser absoluto está na base de todo o
tingentes sem termos a idéia do perfeito e nosso conhecimento, não há necessidade de
necessário? Sem a idéia do infinito, não é demonstrar sua existência, mas somente de
possível conhecer o finito como finito. Em esclarecer sua presença, para que nosso lou
relação a quê o consideramos finito? Devi vor seja consciente. Escreve Boaventura no
do à nossa contingência, Boaventura estava Comentário às Sentenças: “Não há louvor
convicto de que as coisas podem gerar co perfeito se não há quem aprove, nem há
nhecimento imutável, mas somente quando perfeita manifestação se não há quem en
relacionadas com os exemplares divinos. Por tenda, nem transmissão perfeita de bens se
isso, o conhecimento implica a co-presença não há quem desfrute. E, como só a criatu
em nós de Deus e das coisas. ra racional pode aprovar, conhecer a verda
Daí o primado, em nosso espírito, da de e desfrutar dos dons, as outras criaturas,
quele ser puríssimo e atualíssimo in quo sunt as irracionais, não se reportam imediata
rationes omnium in sua puritate. Assim, o mente a Deus, mas somente através da cria
fundamento de todo o nosso conhecimento tura racional. Esta, por seu turno, que é ca
Capítulo décimo quarto - O m ovim ento -fra n ciscan o e B o a v e n t u n a d e 13a g n o ^ e g i o 261
paz de louvar, conhecer e assumir outras Ele é um místico. Olha o mundo com
coisas para delas desfrutar, é feita para se os olhos da fé. A razão é instrumentum fidei:
reportar imediatamente a Deus” . E, por essa a razão lê aquilo que a fé ilumina, é gramá
relação imediata com Deus, o homem é ima tica escrita com o alfabeto da fé.
gem de Deus. E é imagem graças às suas fa Por isso, pode-se compreender perfei-
culdades espirituais, como a memória, a in tamente por que as filosofias de são Boa
teligência e a vontade. ventura e de santo Tomás, de certa forma,
Por essa riqueza, a alma goza de certa são incomensuráveis, para usar uma expres
independência do corpo, uma particular ne são da epistemologia contemporânea.
cessidade de existir por si mesma, a necessi Naturalmente, há pontos em comum,
dade de ser substância e, portanto, composta pois trata-se de dois filósofos cristãos. E toda
de matéria e forma. A alma não é pura for ameaça contra a fé os encontra unidos.
ma, privada de matéria. Sendo capaz de exis Mas essa concordância se dá a propó
tir por si mesma, de agir e de sofrer, a alma, sito das linhas, não da forma. Os dados são
como todas as substâncias criadas, é com os mesmos, mas vistos sob luz diferente.
posta de matéria e forma. O que não a impe Em 1879, Leão XIII falou de Tomás e
de de unir-se como forma, ou seja, como per Boaventura como de duae olivae et duo
feição, ao corpo, que por seu turno também candelabra in domo Dei lucentia. Mas o que
é constituído de matéria e forma. Agosti- se deve destacar logo é que os dois candela
nianamente, alma e corpo são duas substân bros iluminam as coisas de modo diferente.
cias, embora complementares, isto é, feitas Na realidade, a concordância não é identi
uma para a outra. dade. Está claro que as duas doutrinas fo
ram elaboradas com base em duas preocu
pações diferentes, nunca vendo os mesmos
problemas sob o mesmo aspecto. Trata-se
8 Boavervtvma e "Tomás: de duas filosofias complementares: a fé em
“ u m a " fé. e “ c \ u a s " filosofias Deus é única, mas as tentativas humanas de
nos situar na e pela fé são múltiplas.
Em suma, podemos dizer que a fé é
E a partir de Cristo que Boaventura libertadora, permitindo-nos e impondo-nos
olha e lê a história do homem e do universo que sejamos despreconceituosos, ao passo
inteiro. que todas as tentativas humanas são relati
A filosofia de Boaventura, portanto, é fi vas (ao tempo, ao espaço, à cultura da épo
losofia cristã. Boaventura é um cristão-que-fi- ca, aos instrumentos disponíveis e assim por
losofa e não um filósofo-que-é-também-cristão. diante).
262 Sexta parte - y \ (z i- s c o la s + ic a no s é c u lo d é c im o t e r c e i r o
BOAVENTURA
>4 CRIAÇÃO
.. A
“razões seminais”
a criação parte de um estado de caos,
por meio de diferenciações graduais. \ A -------------
Mas isso implica que na matéria exemplarismo
exista uma forma intrínseca, Deus se serve das Idéias
aí colocada por Deus / de sua mente
desde o início e que esta, como projeto exemplar
como uma semente, do mundo que cria
\ se desenvolve no tempo
se poro o luz com o máximo imediatismo o in cendente em relação a nós, ninguém pode che
tensidade. gar à bem-aventurança se não se elevar acima
4. Convido, portanto, o leitora gemer, pri de si mesmo, não em sentido físico, mas em
meiramente, pedindo o Cristo crucificado, cujo virtude de um impulso do coração. Por outro
songue nos purifica das impurezas do vício, para lado, não podemos nos elevar acima de nós se
que não creia que lhe seja suficiente a leitura uma força superior a nós não o permitir. Com
sem a compunção, a reflexão sem a devoção, efeito, por mais que nos disponhamos interior
a busca sem o impulso da admiração, a pru mente a esta ascensão, de nada serve tudo
dência sem a capacidade de abandonar-se à aquilo se o auxílio de Deus não nos socorrer.
alegria, a atividade separada da religiosida Ora, o auxílio de Deus socorre aqueles que o
de, o saber separado da caridade, a inteligên invocam de todo coração, com humildade e
cia sem a humildade, o estudo não apoiado devoção; isto é, aqueles que por ele anelam
pela graça divina, o espelho da realidade sem neste vale de lágrimas por meio de ardente
a sabedoria inspirada por Deus. Proponho por oração. A oração, portanto, é a fonte e a ori
isso as reflexões seguintes a todos os que são gem de nossa elevação a Deus. Por isso, Dio-
movidos pela graça de Deus, aos humildes e nísio, em sua obra De M ística Theologio, pro
aos piedosos, àqueles que são animados pelo pondo-se a nos indicar os meios para chegar
arrependimento e pela devoção; a todos aque ao rapto da alma, põe em primeiro lugar a ora
les que, ungidos com "o óleo da verdadeira ale ção. Oremos, portanto, e digamos ao Senhor
gria", amam a sabedoria divina e a buscam com Deus nosso: "Conduze-me, Senhor, em teu ca
ardente desejo; a todos os que pretendem minho e entrarei em tua verdade; alegre-se meu
dedicar-se inteiramente a louvar a Deus, a ad coração, para que tema o teu nome".
mirar suas perfeições e a degustar sua doçura, 2. Assim orando, somos iluminados de
fazendo porém notar que pouco ou nada vale modo a conhecer as etapas da ascensão o
o espelho constituído pela realidade externa, Deus. Com efeito, para nós homens, em nossa
caso o espelho interior de nossa alma não e s atual condição, toda a realidade constitui uma
teja perfeitamente polido e nítido. Por isso, escada para ascender a Deus. Ora, entre as
homem de Deus, empenha-te, antes de tudo, coisas, algumas são vestígio de Deus, outras sua
a ouvir a voz da consciência que te chama ao imagem; algumas são corpóreas, outras espiri
arrependimento, e depois eleva os olhos aos tuais; algumas são temporais, outras são imor
raios da sabedoria que se refletem naqueles tais; e, portanto, algumas estão fora de nós,
espelhos, de modo que não aconteça que jus outras, ao contrário, em nós. Por conseguinte,
tamente a consideração daqueles raios dema para chegar à consideração do primeiro Princí
siadamente luminosos te lance em uma trevo pio, que é puro espírito, eterno e transcenden
mais profunda. te, é necessário que passemos antes pela con
5. Considerei oportuno subdividir a obra sideração de seus vestígios que são corpóreos,
em sete capítulos, encimando-os com títulos que temporais e externos a nós, e isto significa ser
facilitassem a compreensão do conteúdo. Final conduzidos no caminho de Deus. C necessário,
mente, convido o leitor a levar em conta mais a finalmente, que nos elevemos ao que é eter
intenção do autor do que os resultados de seu no, puro espírito e transcendente, fixando com
trabalho; mais o significado de tudo o que afir atenção o olhar sobre o primeiro Princípio, e
ma do que o estilo sem enfeites; mais a verda isto significa alegrar-se com o conhecimento de
de do que uma forma burilada; mais aquilo que Deus e com a adoração de sua majestade.
mantém vivo o afeto do que aquilo que torna 3. Cstas três etapas constituem, portanto,
erudita a inteligência. Para conseguir tal esco a viagem de três dias na solidão, as três luzes
po, não é preciso examinar com pressa e negli que nos iluminam no decorrer de uma só jorna
gência o desdobramento destas reflexões, mas da, da qual a primeira é semelhante àquela do
meditá-las com a máxima atenção. crepúsculo, a segunda àquela da manhã, a ter
ceira àquela do meio-dia. Cias espelham tam
bém os três modos nos quais as coisas exis
2. fis etapas da ascensão a Deus:
tem, isto é, na matéria, na inteligência criada e
como se conhece Deus especularmente na arte eterna, e com referência aos quais foi
por meio de seus vestígios no universo1 dito; "seja feito", "fez” e "foi feito" e, ainda,
1. "feliz o homem cujo apoio está em ti! espelham as três ordens de substância —
l\lo vale de lágrimas, no lugar em que foi colo corpórea, espiritual e divina — presentes em
cado, ele decidiu ascender a ti". Dado que a Cristo, que é a escada para nossa ascensão.
bem-aventurança consiste apenas na fruição do 4. A e sta s três eta p a s p ro gressivas
sumo Bem, e o sumo Bem é uma realidade trans correspondem, em nossa alma, três modos di
, 265
Capitulo décimo quarto - O m ovim ento f m n c i s c a n o e B o a v e n t w m d e B a g n o ** e g io .— ,— ~
versos segundo os quais elo considera as coi descendência por causa do pecado original,
sas. Com o primeiro se volta para as realida foram prostrados por terra. O pecado original
des corpóreas, externas a nós, e é chamado corrompeu de dois modos a natureza humana,
animalidade ou sensibilidade; com o segundo, isto é, na mente com a ignorância e na carne
volta-se para si mesma, sem sair de si, e é cha com a concupiscência, de modo que o homem,
mado espírito; com o terceiro, que é dito men enceguecido e prostrado por terra, jaz nas tre
te, a alma se volta para as realidades que a vas e não consegue ver a luz do céu, a menos
transcendem. A partir de todas estas coisas, a que a graça e a justiça venham em seu auxílio
alma deve se preparar para ascender a Deus, contra a concupiscência, a ciência e a sabedo
para que ele seja amado "com toda a mente, ria contra a ignorância. Tudo isso ocorre por meio
com todo o coração, com toda a alma"; nisto de Jesus Cristo, "que se tornou por nós sabe
consiste a perfeita observância da lei e, ao doria e justiça e santificação e redenção". Cie,
mesmo tempo, a sabedoria cristã. sendo “poder de Deus e sabedoria de Deus",
5. Mas cada um dos modos acenados se Verbo encarnado "cheio de graça e de verda
desdobra, conforme consideremos Deus como de", nos deu "a graça e a verdade", isto é, in
"alfa e ômega", ou então enquanto vemos Deus, fundiu em nós a graça da caridade que, nas
em cada um dos modos acenados, como por cendo "de um coração puro, de uma consciência
meio de um espelho ou como dentro de um boa e de uma fé sem fingimento", torna reta
espelho, ou então enquanto cada um destes toda a nossa alma em seus três aspectos dos
modos de considerar Deus é assumido em sua quais falamos anteriormente. Cristo nos ensi
pureza e em conexão com os outros. Segue- nou também a ciência da verdade conforme as
se, necessariamente, que as três etapas princi três formas da teologia, isto é, do teologia sim
pais de nossa ascensão se tornam seis, de bólica, da teologia propriamente dita e da teo
modo que, assim como Deus em seis dias criou logia mística, a fim de que nós, graças à teolo
toda a realidade e no sétimo repousou, tam gia simbólica, nos sirvamos retamente das
bém o microcosmo, isto é, o homem, seja con realidades sensíveis, mediante a teologia pro
duzido, de modo sumamente ordenado, atra priamente dita nos sirvamos retamente das rea
vés de seis iluminações sucessivas, ao repouso lidades inteligíveis, por meio da teologia místi
da contemplação. Csta subida é simbolizada ca sejamos raptados no êxtase que excede as
por seis degraus que conduziam ao trono de capacidades de nossa mente.
Salomão; tinham seis asas os serafins vistos 8. C, portanto, necessário que quem queira
por Isaías; depois de seis dias Deus "chamou ascender a Deus, depois de ter evitado cair na
Moisés da nuvem" e "depois de seis dias", con culpa que corrompe nossa natureza, exercite as
forme refere Mateus, Cristo "conduziu os discí faculdades naturais das quais antes se falou,
pulos sobre um monte e se transfigurou diante para obter, mediante a oração, a graça que rea
deles". bilita; por meio de reta conduta de vida, a jus
6. A essas seis etapas de nossa ascen tiça que purifica; por meio da meditação, a ciên
são a Deus correspondem as seis faculdades cia que ilumina; e, por meio da contemplação,
da alma, por meio das quais nos elevamos das a sabedoria que nos torna perfeitos. Portanto,
realidades inferiores às superiores, das exter como ninguém pode chegar à sabedoria a não
nas a nós às internas, das realidades tempo ser por meio da graça, da justiça e da ciência,
rais às eternas. Cstas faculdades são o senti da mesma forma não se pode chegar à con
do, a faculdade imaginativa, a razão, o intelecto, templação a não ser pela meditação penetran
a inteligência e a parte mais elevada da men te, pela conduta de vida santa e oração devota.
te, que é chamada também centelha da sindé- Como, portanto, a graça constitui o fundamento
rese. Cssas faculdades, presentes em nós por da retidão da vontade e da iluminação de uma
natureza, foram deformadas pela culpa e res razão penetrante, também é necessário, antes
tauradas pela graça; ora, é necessário purificá- de tudo, orar, depois viver santamente e, por
las mediante a prática da justiça, exercitá-las fim, aplicar-se à consideração da verdade e,
por meio da ciência e torná-las perfeitas em aplicando-se a ela, ascender grodativamente
virtude da sabedoria. até chegar ao monte excelso, "a Sião", onde
7. Com efeito, segundo a constituição ori "se contemple o Deus dos deuses".
ginária de suo natureza, o homem foi criado 9. Portanto, dado que é preciso primeiro
capaz de chegar ao repouso da contemplação, subir e depois descer a escada de Jacó, colo
e por isso "Deus o colocou no jardim das delí quemos a primeira etapa de nossa ascensão
cias". Porém, afastando-se da verdadeira luz embaixo, considerando todo este mundo sen
para voltar-se ao bem passageiro, ele próprio, sível como um espelho, por meio do qual pos
por causa de sua própria culpa, e toda a sua samos nos elevar a Deus, sumo artífice, de
266 Sexta parte - ; A < £ s c o lá s + i c a no s é c u lo d é c i m o t e r c e i r o
modo o ser os verdadeiros hebreus que pas mente espirituais, melhores e mais elevadas em
sam do Çgito para a terra prometida a seus pais, relação às precedentes. Vê, ainda, que algu
os verdadeiros cristãos que passam com Cristo mas realidades, como as terrenas, estão sujei
“deste mundo ao Pai", os verdadeiros amantes tas à mudança e à corrupção, e que outras, como
da sabedoria que nos chama, dizendo: “Vinde a as celestes, estão sujeitas à mudança, mas não
mim vós todos que me desejais e sociai-vos de à corrupção, e disso percebe que existem rea
meus frutos". “Com efeito, da grandeza e da be lidades não sujeitas nem à mudança nem à
leza das criaturas pode-se conhecer seu criador". corrupção, como as divinas.
10. Ora, a suma potência, a suma sab e Portanto, dessa realidade visível o inte
doria e a suma bondade do criador resplan lecto se eleva à consideração da potência, sa
decem nas coisas criadas, nos três modos se bedoria e bondade de Deus, existente, viven-
gundo os quais os sentidos do corpo tornam te, inteligente, puramente espiritual, incorruptível
conhecido este fato ao sentido interno. Com e imutável.
efeito, os sentidos do corpo prestam seu servi 14. £sta consideração se amplia, depois,
ço à faculdade intelectiva seja quando indaga conforme as sete características das criaturas
mediante a razão, como quando crê com uma — que constituem sete testemunhos da potên
adesão de fé, como também quando contem cia, sabedoria e bondade de Deus — isto é,
pla inteiectivamente. Quando contempla, ela caso se detenha para examinar a origem, a
considera a existência atual das coisas; quan grandeza, a multiplicidade, a beleza, a plenitu
do crê, considera o desenvolvimento que é pró de, a atividade e a ordem de todas as coisas.
prio delas; quando se serve da razão, os consi Com efeito, a origem das coisas, na obra dos
dera no forma excelente de sua potencialidade. seis dias, quanto à sua criação, à sua recíproca
1 1. Cm primeiro lugar, quando o olhar distinção e à suo beleza, proclama a potência
daquele que contempla considera as coisas em de Deus que criou do nada todas as coisas, o
si mesmas, vê nelas o peso, o número e a me sua sabedoria que limpidamente as distinguiu
dida; vê o peso em relação ao lugar para o uma da outra, a sua bondade que generosa
qual ele a faz tender, o número por meio do mente dotou a todas de beleza. A grandeza
qual se distinguem uma da outra, o medida das coisas, portanto, tanto quanto ao seu com
mediante a qual são delimitadas reciprocamen primento, largura e profundidade, como quan
te. Cm virtude disso, vê nelas a dimensão, a to à excelência de seu poder, que se expande
harmonia e a ordem, e também a substância, a em comprimento, largura e profundidade, segun
capacidade operativa e a atividade. Tudo isso do se manifesta na difusão da luz, seja quanto
lhe permite elevar-se das coisas, como de um à eficácia com a qual elas operam de modo
vestígio, ao conhecimento da imensa potência, penetrante, contínuo e extenso, como aparece
sabedoria e bondade de seu criador. na operação do fogo, manifesta com clareza a
12. Cm seguida, o olhar de quem conside imensa potência, sabedoria e bondade do Deus
ra este mundo do ponto de vista da fé dirige a trino, o qual permanece em todas as coisas com
própria atenção à sua origem, ao seu curso e ao sua potência, presença e essência, embora não
seu fim. Com efeito, “pela fé" cremos que “o uni circunscrito por nenhuma delas. A multiplicidade,
verso foi formado pelo Verbo de vida"; pela fé pois, das coisas, considerada em relação à sua
cremos que três leis — isto é, de natureza, da diversificação conforme o gênero, a espécie e
Cscritura e de graça — se sucedem e se sucede as característicos individuais, na substância, na
ram, e se desenvolveram no tempo com ordem forma ou figura, no capacidade operativa, além
regularíssima; pela fé cremos que o mundo terá de toda avaliação humano, faz compreender e
fim com o juízo final. Podemos descortinar, de manifesta abertamente a incomensurabilidade,
tal modo, na origem do mundo a potência do em Deus, dos três atributos mencionados. Por
sumo Princípio, no desenvolvimento do mundo sua vez, a beleza das coisas, considerada em
sua providência, e no fim do mundo sua justiça. relação à variedade de luzes, figuras e cores
13. Por fim, o olhar de quem indaga me presentes tanto nos corpos simples como nos
diante a razão vê algumas realidades apenas compostos, como também nos orgânicos, nos
existirem; as outras, existirem e viverem; outras, corpos celestes assim como nos minerais, nas
depois, existirem, viverem e discernirem. As pri pedras como nos metais, nas plantas como nos
meiras são as menos elevadas, as segundas animais, proclama com toda evidência os três
ocupam um lugar intermediário, as terceiras são atributos mencionados. Analogamente, estes
as mais elevadas. Vê, igualmente, que algu são manifestados pelo plenitude das coisas,
mas realidades são apenas corpóreas, outras razão pela qual a matéria é plena de formas,
são em parte corpóreas e em parte espirituais, presentes nela como razões seminais; a forma
e disso percebe que existem realidades pura é pleno de força operativa, conforme sua po-
267
Capítulo décitYlO Q U ã Y tO - O m ovim en to jlvuu" is, <u\o e B o a v e n tu i*o d e S iagnvonegio
tência de ogir, e a potência operativo é pleno onde aquele que é verdadeiramente pacífico
de efeitos, em conformidade com suo capaci repousa na alma cheia de paz, como em uma
dade de atuá-los. R operação, pois, é múlti Jerusalém interior. Rias são também como as
pla, enquanto é operação da natureza, enquan seis asas do querubim, em virtude das quais a
to é operação do artífice, enquanto é operação alma do verdadeiro contemplativo, plena da ilu
moral: ela, com sua múltipla variedade, mostra minação da sabedoria celeste, está em grau
a imensidão daquela potência, sabedoria de elevar-se para o alto. Rias são, igualmente,
ordenadora e bondade que é “causa do existir, como os primeiros seis dias, durante os quais a
critério do entender e ordenação do viver" de alma deve exercitar-se para chegar finalmente
todas as coisas. Além disso, a ordem das coi ao repouso do sábado. Nossa alma teve a in
sas, como aparece pelo livro da criação, em re tuição de Deus fora de si, através de seus ves
lação ao critério de sua duração, de sua coloca tígios e em seus vestígios; em si, mediante sua
ção e de seu influxo, isto é, em relação a se imagem e em sua imagem; acima de si, pela
estar dispostas conforme um antes e um depois, semelhança da luz divina, que resplandece aci
em uma posição mais ou menos elevada e con ma de nós, e na mesma luz, o quanto é possí
forme maior ou menor dignidade, faz compreen vel em nossa condição de peregrinos e à medi
der com clareza a proeminência, a sublimidade da que ela se exercita na contemplação.
e a dignidade do primeiro Princípio quanto à sua Quando nossa alma chegou enfim, na sexta
infinita potência. Ro invés, a ordem encontrável etapa, a conhecer especularmente, no Princípio
nas leis, nos preceitos e nos julgamentos con primeiro, sumo e "mediador entre Deus e os
tidos no livro da Rscritura faz compreender a homens", Jesus Cristo, realidades que de ne
imensidão de sua sabedoria. Por fim, a ordem nhum modo podem ser encontradas nas criatu
dos sacramentos divinos, dos benefícios e das ras e que excedem toda capacidade indaga-
recompensas no corpo da Igreja manifesta sua dora do intelecto humano, resta-lhe transcender
imensa bondade, de modo que por esta mes e ultrapassar - mediante o conhecimento e s
ma ordem somos conduzidos pela mão, e com pecular dessas realidades - não apenas este
plena evidência, ao Princípio primeiro e sumo, mundo sensível, mas também a si mesma. Nes
que é potentíssimo, sapientíssimo e ótimo. ta passagem, Cristo é “caminho e porta", Cristo
15. é escada e veículo, como “o propiciatório colo
Cego é, portanto, quem não é ilumi
nado pelos inumeráveis esplendores das reali cado sobre a arca de Deus" e “o mistério e s
dades criadas: surdo, quem não é despertado condido nos séculos".
pelas vozes tão numerosas; mudo, quem não é 2. Aquele que olha este "propiciatório",
impelido o louvar a Deus pela consideração de dirigindo o olhar inteiramente para ele, e com
todos estes seus efeitos; idiota quem, a partir fé, esperança, caridade, devoção, admiração,
de tantos sinais, não reconhece o primeiro Prin exultação, estima, louvor e júbilo o olha nova
cípio. Rbre, portanto, teus olhos; tende as ore mente fixado na cruz, faz com ele a páscoa,
lhas de teu espírito; abre teus lábios e dispõe isto é, “o trânsito", para atravessar o mar Ver
teu coração de modo a poder ver, ouvir, louvar, melho por meio da trave da cruz e, saindo do
amar e adorar, glorificar e honrar teu Deus em Rgito, entrar no deserto. Rí degusta o maná
todas as criaturas, a fim de que o universo in escondido e repousa com Cristo no sepulcro,
teiro não se insurja contra ti. Por este motivo, como se estivesse exteriormente morto, e to
com efeito, "o universo se lançará contra os idio davia ouvindo, o quanto é possível nesta con
tas" e, ao contrário, será motivo de glória para dição de peregrinos, aquilo que foi dito ao la
aqueles sábios que podem afirmar, conforme a drão unido a Cristo; “Hoje estarás comigo no
palavra do profeta; “Tu me alegraste, Senhor, paraíso".
com tuas obras, e eu exultarei com a obra de 3. Rsta passagem foi mostrada também
tuas mãos". "Quão admiráveis são tuas obras. ao beato Francisco, quando, no arrebatamento
Senhor! Tudo fizeste com sabedoria e a terra extático da contemplação sobre o ápice do
está cheia de tuas riquezas". [...] monte — onde desenvolví em meu ânimo e s
tas considerações que foram escritas — lhe apa
receu o serafim com seis asas, pregado na cruz,
3. O arrebatamento místico da alma,
como eu e muitos outros ouvimos de um com
no qual concede-se o repouso ao intelecto,
panheiro seu, que com ele estava naquela cir
enquanto o afeto se derrama
cunstância. Rqui ele realizou a passagem para
totalmente em Deus
Deus, por meio do rapto extático da contem
1. Rs seis considerações percorridas são plação, e foi posto como modelo de perfeita
como os seis degraus do trono do verdadeiro contemplação, como antes fora modelo de
Salomão, por meio dos quais se chega à paz, ação, como novo "Jacó e Israel", para que por
268
Sexta parte - A ( S s c o l ó s + i c a v\o s é c u l o d é c i m o te.rc-e .iro
meio dele, mais com o exemplo do que com o templações místicas, comportar-te deste modo:
palavra, Deus convidasse todos os homens ver deixa de lodo a atividade dos sentidos e do
dadeiramente espirituais a esta passagem e a intelecto, as realidades sensíveis e as invisí
este arrebotamento extático do olmo. veis, tudo aquilo que é e tudo aquilo que não
4. Nesta passagem, porém, poro que ela é, e, ignorando tudo, volta-te, o quanto te for
seja perfeita, é necessário que todas as ativi possível, à unidade daquele que transcende
dades intelectuais sejam deixadas de lado e toda essência e todo saber. Abandonando tudo
que o ápice do afeto se fundamente e se trans e livre doravante de todo vínculo, enquanto
forme inteiramente em Deus. Cste estado é mís transcendes a ti mesmo e todas as coisas em
tico e secretíssimo, e "ninguém o conhece a não um impulso incomensurável e perfeito de tua
ser quem o recebe", nem o recebe senão quem alma tornada pura, ascenderás ao raio da trevo
o deseja, nem o deseja senão quem está infla divina, que supera toda essência".
mado oté o íntimo pelo fogo do Espírito Santo, 6. Se, enfim, te perguntas como isso acon
que Cristo mandou sobre a terra. C justamente tece, interroga a graça, não a doutrina; o de
por isso o Apóstolo afirma que esta sabedoria sejo, não a inteligência; o gemido da oração,
mística foi revelada por obra do Cspírito Santo. não o estudo e a leitura; o esposo, não o mes
5. Para chegar a este estado, a natureza tre; Deus, não o homem; a trevo, não a lumi
nada pode e pouco se pode fazer; é preciso, nosidade; não o luz, mos o fogo que tudo infla
portanto, conceder pouco à busca e muitíssimo mo e que transporta para Deus com o impulso
à compunção; pouco à lingagem exterior e mui da compunção e o afeto mais ardente. Deus é
tíssimo à alegria interior; pouco à palavra e ao este fogo e seu "lar está em Jerusalém", Cristo
escrito e tudo ao dom de Deus, isto é, ao Cspí- acende este fogo no ímpeto amoroso de sua
rito Santo; pouco ou nada às criaturas e tudo à ardentíssima paixão, e o prova verdadeiramen
Cssência criadora, ao Pai, ao Filho e ao Cspírito te apenas aquele que diz: "Minha alma dese
Santo, dizendo com Dionísio ao Deus-Trindade: jou o estrangulamento e meus ossos o morte".
"Ó Trindade, que transcendes toda essência; ó Quem ama esta morte pode ver Deus, pois é
Deus, que transcendes a divindade, ó supremo indubitavelmente verdadeira esta afirmação;
mestre da teologia cristã, guia-nos oté o vérti "Nenhum homem pode ver-me e permanecer
ce de todo colóquio místico, que supera todo vivo". Morramos, portanto, e entremos na trevo;
conhecimento, toda luz, toda altura; onde os imponhamos silêncio às preocupações, aos
extremos, absolutos e imutáveis mistérios da desejos, às imagens sensíveis; passemos com
teologia se ocultam nas trevas, para além de Cristo crucificado "deste mundo para o Pai", a
toda luz, de um silêncio que ensina escondi- fim de que, quando nos houver mostrado o Pai,
damente, em uma escuridão profundíssima, que digamos com Filipe: "Basta-nos"; ouçamos com
transcende toda clareza e toda luz, na qual toda Paulo: "Basta-te minha graça"; exultemos com
realidade resplandece, e que preenche além Davi, dizendo: "Desfalecem minha carne e meu
de toda medida o intelecto com o esplendor de coração, Deus de meu coração, e minha porção
inimagináveis bens invisíveis”. Isto se deve di é Deus eternamente". "Seja bendito o Senhor
zer a Deus. Ao amigo, pelo contrário, para o eternamente e todo o povo diga: Assim seja,
qual são escritas estas páginas, diga-se com o assim seja". Amém.
próprio Dionísio: "Tu podes, amigo, depois de Boaventura,
um caminho tornado seguro, em relação às con Itinerário do olmo o Deus.
é S a p ítu lo d é c im o q u in to
I . S i g e c d e 3 ^ a b a K \fe -----
e o avec^oísmo la+i n o
\ T^oberto ó^rossetes+e
E S .A n t e c ip a ç õ e s
por p a r t e d e N o g e i* B a c o n
d e i d é ia s q u e E r a n c i s B a c . o n
t o r n a r á f a m o s a s no s é c . XVI
tenta a importância fundamental da mate (...) Também não seria difícil construir um
mática. instrumento pelo qual um só homem po
Estudioso da física e particularmente dería puxar violentamente para si mil ho
da ótica, Bacon compreendeu as leis da re mens (...). Da mesma forma, é possível
flexão e da refração da luz. Estudando as construir instrumentos para caminhar nos
lentes, explicou como elas poderíam ser dis rios e no mar até tocar no seu fundo, sem
postas para a confecção de óculos (e a in acarretar perigos para o corpo. Alexandre
venção dos óculos é precisamente atribuída Magno deve ter usado instrumentos desse
a Bacon) e de telescópios. tipo para explorar o fundo marinho, como
Intuiu coisas como o vôo, o emprego foi relatado pelo astrônomo Ético” . Bacon
de explosivos, a circunavegação do globo, afirma que instrumentos do gênero “ foram
a propulsão mecânica e outras idéias. construídos na antiguidade e são feitos ain
Eis as coisas que, ao parecer de Bacon, da hoje, exceto a máquina para voar, que
podem ser realizadas “com os recursos e nem eu nem outros por mim conhecidos ja
percepções do engenho humano” : “Pode-se mais viram” . Entretanto, Bacon diz conhe
construir meios para navegar sem remado cer um homem sábio que “ procurou cons
res, de modo que naves imensas (...), com truir também esse instrumento” . Os objetos
um só timoneiro, andem em velocidade que podem ser construídos são “ uma infi
maior do que se fossem movidas por uma nidade” , dentre os quais Bacon cita tam
multidão de remadores. Pode-se construir bém “ as pontes lançadas para o outro lado
carros que andem sem cavalos (...). E é pos do rio sem pilastras” .
sível também construir máquinas para
voar; (_e) um instrumento de pequenas di
mensões, mas em condições de erguer e ;A s id é ia s d e B a c o n
abaixar pesos de grandeza quase infinita. s o la r é , a s t r a d u ç õ e s
I. A vid a e a o b r a
I. y\ m e t a f ís ic a
Iluminura tirada
de um códice do séc. XIV,
contendo o comentário
de Duns Escoto
ao primeiro livro
das Sentenças de Pedro l.ombardo.
Escoto é retratado
em hábito moitacal
com um livro nas máos
(Biblioteca Eaurenciana,
Elorença).
284 ScxtCI parte - ;A < r L s co lá s fica n o s é c u l o d é c i m o +e**cemo
III. y \ c o n c e p ç ã o d o direito
médios adequados, o ato de tomá-los não é Apesar dessa autonomia nos respecti
necessário, mas livre, porque posso preferir vos campos, a liberdade da vontade conti
a morte à vida. Se os tomo, o ato livre será nua sendo a perfeição suprema do homem,
também racional, no sentido de que alcanço com a qual subsiste ou decai a sua humani
a meta com os meios que a ciência põe à mi dade. Conhecer para amar em liberdade —
nha disposição. Trata-se assim de conver essa é a mensagem de Escoto.
gência de duas atividades diferentes — in- Essa orientação substancialmente teo
telectiva e volitiva — na direção de objetivo lógica deixa entrever uma espécie de duali
único. dade entre filosofia, insuficiente e abstrata, e
Tal convergência não deforma a inte teologia. O Deus dos filósofos não é o mes
lectualidade do ato intelectivo nem a li mo Deus dos teólogos, criador e salvador.
berdade do ato volitivo. Embora profunda, Muitas verdades são subtraídas ao domínio
a interferência nunca chega à identidade. da razão, como a origem temporal do mun
O ato da vontade, que em si é perfeito, ain do e a imortalidade da alma, a propósito das
da que iluminado pelo intelecto, procede quais só se podem apresentar persuasiones,
sempre essencialmente da vontade, como mas não autênticas demonstrationes.
causa principal, assim como o ato do inte O equilíbrio entre razão e fé rompe-se
lecto, ainda que guiado pela vontade, pro em favor da segunda, mas no quadro de uma
cede sempre e intrinsecamente do inte tensão que ainda é a de Tomás e de Boa-
lecto. ventura.
__ ...... intelecto
baccccitas é feito para conhecer
depois do esvaziam ento F.NTI: o ente u n ívo co ,
do u n ive rsal, e, po rtan to,
a verdade m ais profunda
UNÍVOCO sua extensão é ilim ita d a ,
é a do p a rtic u la r !■. o primeiro m as tam bém
(= haeceeitas); vOfkeno simples e uimoco. de uma genericidade ilimitada ,
esta é a realid ad e últim a Estendendo a distinção modal porque prescinde da riqueza
de um ente M'fo é. presundindu e varied ade específica das coisas.
e não pode ser deduzida de iodos os modos específicos Por isso
nem da m atéria m i que se atua) o conhecim ento filosérfico
nem da form a p.ir.l todos os» enies tem necessidade
se obtém o eiue univoco. das ciências p articu lares
<>liotnem e J)eiis são emes, ■da teologia
mas o primeiro
o é no modo finito
e e evidente,
n ou(ro e inhnno
bem * v dc\e M.*r demonstrado /
lustam ente porque pessoa
o conhecim ento filo só fico da re va lo rização
do ente é g enérico, do in d ivid u al deriva
não se pode d eduzir a cen tralid ade da pessoa,
dele o bonum. ente que não pode ser
L\, p o rtan to , reduzido a ou tro.
o bonum H um u n iversal con creto,
não e um tran scen d en tal, ou seja, na pessoa se id entificam
mas aq uilo in d ivid u al e u n iversal.
que Deus quer e im põe. A pessoa é um todo no todo
b ns et bonum Deus e não uma parte do todo
non eonvertunlur Se o m undo existe
é tam bém possível ( - p ro d u tível).
Q u a l é o fundam ento desta possibilidade?
N ão é o nada nem p ró p rias coisas,
mas um ser d istin to do ser produ tível (possível)
que existe e age por si
e não é por sua vez pro d u tível.
Se as coisas são possíveis,
tam bém este ente é possível.
M as é apenas possível ou é tam bém real?
É real e em ato, porque se não existisse
nem seria possível (p ro d u tíve l),
porque ninguém
está em grau de produ zi-lo.
O ente primeiro ,
sc é possível , e real
288
Sexta parte - A < £ s c o l á s t i c a v\o s é c u lo d é c i m o t e ^ c e i^ o
tenho um mesmo conceito unívoco, que d e ças que restringem pressupõem o mesmo con
preende dos criaturas. [...] ceito de ente comum, que restringem.1 2 [...]
[M as p o d e -se perguntar] qual é a Conforme foi demonstrado que Deus não
univocidade do ente, e a quem ela se re é naturalmente cognoscível por nós se o ente
fere? [...] não for unívoco ao criado e ao incriado, também
Digo que o ente, quanto à qüididade, não se pode demonstrar da substância e do aciden
é unívoco a tudo aquilo que é inteligível por te. Com efeito, uma vez que a substância não
si, porque desta forma não é unívoco nem às produz imediatamente em nosso intelecto o co-
últimas diferenças nem às paixões próprias
do ente.1
[Porém] as coisas a respeito das quais o 1Rs diferenças últimas são os modos intrínsecos do ente,
ente não é unívoco na qüididade estão incluí como o modo finito e o modo infinito, em que concretomente
das naquelas em que o ente é unívoco em tal se encontro realizado. êstes se distinguem formalmente do
ente, no sentido de que suo consistência lógico é diferente
modo, [e estas são] todos [...] os gêneros e as
em relação ò consistência lógico de ente. Posso conhecer o
espécies e os indivíduos, e todas as partes ente sem os modos, e os modos sem o ente. Rs paixões do
essenciais dos gêneros, e o ente incriado, [as ente, ou propriedades transcendentais, são o unidode, a
quais] incluem o ente qüiditativamente. [...] verdode, o bondade, e estos não incluem, em suo essência,
Acontece, com efeito, que o intelecto esteja cer o noção de ente, e vice-versa, motivo pelo quol uma não
pode dizer-se formolmente do outro: o ente na máximo ab s
to de que cada um [destes] conceitos qüidi- tração não está contido no verdode, concebido por suo vez
tativos seja ente, duvidando apenas das dife no máximo indeterminoção. Uma não é o outra.
renças que restringem o ente a tal conceito, se 2R univocidade foge o todo acusação de ponteísmo: o
é ou não tal ente, e assim o conceito de ente ente não é concebido à maneiro dos gêneros no árvore de
Porfírio, isto é, do quol se posso derivar o essêncio criado
enquanto convém àquele conceito é diverso
e o essêncio incriado, como determinações específicas ul-
daqueles conceitos inferiores a respeito dos teriores. O ente põe-se como tal em toda realidade e em
quais o intelecto está duvidoso e^incluído em todo momento do realidade. O ente finito e o ente infinito
ambos os conceitos inferiores, pois as diferen não são especificações, mos modos intrínsecos do ente.
290
Sexta parte - p \ « S s c o ló s t ic a na s é c u lo d é c i m o t e r c e i r o
nhecimento de si, mas apenas o acidente sensí 1. R substância material por sua natureza
vel, segue-se que não poderemos ter nenhum não é por si esta, porque então [...] o intelecto
conceito qüiditativo dela se não houver um con não podería compreendê-lo em seu oposto,
ceito qüiditativo que possa ser abstraído do con caso não compreendesse seu objeto segundo
ceito de acidente; mas nenhum conceito qüidi uma razão de entendimento, repugnante à ra
tativo pode ser abstraído do conceito de acidente zão de tal objeto [...]. Na coisa há uma unidade
a não ser o conceito de ente; portanto etc.3 [...] real sem qualquer operação do intelecto, me
€m suma; o ente é unívoco a todos, mas nor que a unidode numeral, ou seja, do que a
aos conceitos não simplesmente simples é unidade, própria do singular, cuja unidade é
unívoco quanto à qüididode, enquanto aos con unidade de natureza por si, e segundo esta
ceitos simplesmente simples é unívoco enquanto unidade própria da natureza enquanto é natu
determinável ou denominável, e não enquanto reza, a natureza é indiferente à unidade da sin
é predicado deles qüiditativamente, porque isso gularidade. Portanto, não é por si una de tal
inclui contradição. modo por aquela unidade, isto é, pela unida
João Duns €scoto, Ordinotio, I, de da singularidade. [...] 6 não apenas a pró
sob a direção de C. Bolic, pria natureza é por si indiPerente a estar no in
em Grande Antologia Filosófica, Marzorati. telecto e a estar em particular, e por isso a ser
universal e singular, mas mesmo tendo ela o
ser no intelecto, não tem por si primigeniamente
a universalidade. Com ePeito, embora posso
compreender-se na universalidade, como modo
de entendê-la, todavia a universalidade não é
O princípio de individuação parte de seu conceito primeiro, porque não é
conceito do metoPísico, mas do lógico. [...] €
como segundo aquele ser, a natureza não é
Cm nome do que os seres se distinguem
universal por si, mas a universalidade quase
entre si?Poro que o "natureza humana", que
sobrevêm àquela natureza segundo sua primei
nos torna comuns, s e torne e ste homem,
ra razão, segundo a qual se torna objeto, a s
João, Tiago etc., do que tem necessidade?C
sim também na coisa extramental, onde a na
o problem a que o s Cscolásticos chamam
tureza é conjunta com a singularidade, aquela
"princípio d e individuação".
natureza não tem por si como termo a singulari
Duns Cscoto afirmo que para resolver o
dade, mas é antecedente naturalmente àquela
problema é preciso recorrer a um particular
razão que a restringe àquela singularidade; e
modo d e ser, a um incremento de se r que
investe todos o s componentes, contraindo- enquanto é antecedente naturalmente àquilo
que o restringe, não lhe repugna ser sem isso.
os e subtraindo-os à indeterminação; ou tam
bém a uma espécie de intensificação do ser, C como o objeto no intelecto segundo o sua
entidade e universalidade tem verdadeiramen
graças ò qual uma realidade é esta e não
te um ser inteligível, também na natureza das
aquela (haec-haecceitas). Para que não mo
coisas segundo aquela entidade tem um ver
difique os elementos constitutivos — não é
dadeiro ser real. Poro da alma. 6 segundo tal
um elemento essencial — o "haecceitas" é
entidade tem uma unidade proporcionável a si,
olgo d e absolutamente original, graças à
que é indiPerente à singularidade, de modo que
qual o indivíduo s e reconhece intrinsecamente
não repugna por si àquela unidade ser aPirma-
singular e absolutamente irrepetível.
da com qualquer unidade de singularidade [...].
Com tal tese Cscoto pretendeu demons
2. Uma vez que nos entes há algo de indi
trar que o indivíduo é mais perfeito do que a
visível em partes subjetivas, isto é, algo ao qual
espécie à qual pertence e, porque tem um
repugna formalmente ser dividido em mais coi
maior grau de ser, não é funcional ò e sp é
sas singulares em que cada uma seja ele mes
cie, como paro o mundo pagão, mas único
termo do oto volitivo. mo, pergunta-se, não porque Pormalmente isso
lhe repugna — uma vez que assim a repugnân
cia repugna Pormalmente a si — mas por que
como fundamento intrínseco esta repugnância
3Digci-se do conhecimento do substância o que s e disse nela se encontra. Portanto, o sentido da ques
do conhecimento d e Deus. S e entre os ocidentes e o subs tão nesta matéria é: o que há na pedra pelo
tância nõo houvesse nado em comum, do conhecimento dos que, como por um fundamento próximo, lhe re-
acidentes nunca poderiamos chegar ao conhecimento do
substância, isso é falso, porque conhecemos a s substâncias
pugne simplesmente dividir-se em mais coisas
finitas partindo de seus acidentes . Portanto, entre estes e singulares em que cada uma seja ela mesma;
aquela deve existir uma ponte, e esta é o ente equívoco. tal divisão em partes subjetivas é própria a todo
291
Capítulo décimo sexto - [ J o ã o D u u s É s coto
o universal, (intendida a questão desse modo, tidade]: a substância existente em ato, não
provo que um indivíduo formalmente não exis mudada por uma transformação substancial, não
te por uma negação ou privação [...], porque pode mudar-se desta em não-esta, pois tal sin
nada repugna a algum ente simplesmente pela gularidade — conforme se disse — não pode
privação nele apenas, mas por olgo de positi se tornar outra e outra na mesma substância
vo nele. [...] Portanto, é necessário que por a l permanecendo ela a mesma, não mudada subs
guma coisa de positivo intrínseco a esta pedra, tancialmente; mas a substância existente em
como por uma razão próprio, repugne ser dividi ato, não intervindo nela alguma mutação subs
da em partes subjetivos, e aquele positivo será tancial ou não tendo mudado, pode sem con
aquilo que se diz ser por si causo de indivi- tradição existir sob outra e outra quantidade e
duação, e por individuação entendo esta indivi qualquer acidente absoluto; portanto, por ne
sibilidade ou repugnância à divisibilidade [...]. nhuma maneira similar é formalmente tal subs
3. A substância material [não é] indivíduo tância determinada por esta singularidade [...].
ou razão de individuação de alguma outra coi 5. [A substância material não é esta e
sa pela existência atual [...], uma vez que o que indivíduo pela matéria;] a matéria pertence à
não é por si distinto ou determinado não pode essência do substância composta, por exem
ser o primeiro que distingo ou determine o ou plo, do homem, e tal composto não é precisa
tro; ora, o ser de existência, à medida que se mente a essência do forma. Portanto, como
distingue do ser da essência, não é por si dis aquele composto não pode por si ser este [...]
tinto ou determinado. Com efeito, o ser de exis assim também nem a matéria — que é parte
tência não tem as próprias diferenças, diversas daquele — pode ser por si esta, uma vez que
das diferenças do ser da essência, porque en o composto não pode ser comum e da mesma
tão seria necessário admitir uma própria coorde razão em coisas diversas, sem que tudo aquilo
nação de existências, diversa do coordenação que pertence à sua essência possa ser da mes
das essências, mas é determinado precisamen ma razão com aquelas coisas. Além disso [...] a
te a partir da determinação do outro; portanto, matéria é a mesma no gerado e no corrompi
ele não determina alguma outra coisa. Sobre do, portanto tem as mesmas singularidades no
isso se pode argumentar de outra forma: aqui gerado e no corrupto.
lo que pressupõe a determinação e a distinção 6. [Que a substância material seja] in
de outro não é a razão de determinação ou de divíduo por uma entidade positiva por si, que
distinção do mesmo; mas a existência enquan determina a natureza à singularidade [...], pro
to determinada e distinta pressupõe uma or va-se assim: como a unidade em comum suce
dem e uma distinção de essências; portanto etc. de por si à entidade em comum, também qual
[...] Como no gênero se dá o supremo conside quer unidade por si sucede a certo entidade;
rando-o precisamente sob o aspecto da essên portanto, a unidade enquanto simples, como a
cia, assim se dão gêneros intermediários e e s unidade da indivisão ([...], istoé, àqual repug
pécies e diferenças, e se dá também o ínfimo, na uma divisão em mais partes subjetivas, e à
isto é, o singular sem alguma existência atual, qual repugna não ser esta coisa determinada,
aquilo que aparece evidentemente, pois "este se está nos entes, como de resto isso supõe
homem" não inclui formalmente mais a existên cada uma das diversas opiniões), sucede por
cia atual do que "o homem". si a certa entidade. Mas não sucede por si à
4. Cxponho aquilo que entendo por indi entidade de natureza, pois dessa há uma uni
viduação ou unidade numeral, ou seja, singular: dade própria e real por si [...]; portanto, suce
não entendo certamente a unidade indeter de a outra entidade, esta sim, determinante, e
minada, segundo a qual todo coisa em uma esta entidade formará o uno por si com a enti
espécie é dita una de número, mas a unidade dade de natureza, pois o todo ao qual perten
determinada como esta, de modo que, assim ce esta unidade é perfeito em si. Além disso,
como já dissemos que é impossível que o indi toda diferença das coisas que diferem se reduz
víduo se divida em partes quantitativas, e se a algumas coisas inicialmente diversas, pois de
busca a razão desta impossibilidade, também outra forma não haveria um termo fixo nas coi
digo que é impossível que o indivíduo não seja sas que diferem; mas os indivíduos diferem pro
determinado com esta singularidade, e se bus priamente, pois, embora havendo algo de idên
ca a causa não das singularidades em geral tico, são entes diversos; portanto, sua diferença
mas desta singularidade determinada em par se reduz a algumas coisas que são inicialmen
ticular, isto é, determinada enquanto é determi- te diversas. Gstas coisas inicialmente diversas
nadamente esta. Cntendendo de tal modo a não são a natureza nesta coisa e a natureza
singularidade [demonstro que a substância naquela coisa, porque não é a mesma coisa
material não é indivíduo ou singular pela quan aquela pela qual algumas coisas convêm for
292
Sexta parte - A Éscolóstica n o s é c u lo d é c im o te ^ c e in o
malmente entre si e aquela pela qual diferem seu oposto. € como o composto enquanto na
realmente, embora uma mesma coisa possa ser tureza não inclui sua entidade pela qual é for
realmente distinto e também realmente conve malmente isto, assim também nem a matéria
niente. Com efeito, pouco importa ser distinto enquanto natureza inclui sua entidade pela qual
e ser aquilo pelo qual alguma coisa primeira é esta matéria, nem a forma enquanto nature
mente é distinta. Portanto, assim acontecerá za inclui sua entidade. Portanto, esta entidade
com a unidade. Por isso, além da natureza não é a matéria ou a forma ou o composto en
neste e naquele, há algumas coisas inicialmen quanto cada um destes é natureza, mos é o
te diversas pelas quais este e aquele primei última realidade da entidade que é matéria ou
ramente diferem, e precisamente uma coisa que é forma ou que é composto, de modo que
nesta coisa e outra naquela; e aquilo pelo qual toda entidade comum e todavia determinável
os coisas diferem não podem ser negações pode ainda ser distinta, pelo fato de ser uma
[...], nem acidentes [...]: portanto, serão algu coisa só, em mais realidades formalmente dis
mas entidades positivas por si, que determi tintas, das quais esta não é formalmente aque
nam a natureza [...]. la: e esta é formalmente entidade singular, e
7. aquela é formalmente entidade de natureza;
C se perguntas qual é a entidade indi
vidual da qual se depreende a diferença indivi nem podem estas duas realidades ser coisa e
dual — é talvez a matéria, ou a formo, ou o coisa, como o podem ser a realidade da qual
com posto? — resp o n d o : toda e n tid a d e se extrai o gênero e a realidade da qual se
qüiditotiva, tanto parcial como total, de qual extrai a diferença (das quais deriva a realida
quer gênero, é por si indiferente, enquanto en de específica), mas sempre em uma mesma
tidade qüiditotiva, a esta e àquela entidade, entidade, tanto parcial como total, são realida
de modo que, enquanto entidade qüiditotiva, des da mesma coisa, formalmente distintas.
é naturalmente antecedente àquela entidade
João Duns Bscoto,
enquanto é esta; e enquanto é antecedente Ordinatio, sob o direção de C. Balic,
naturalmente, como não lhe convém ser esta, em Grande Rntologia Filosófica,
também não lhe repugna segundo sua razão o Marzorati.
A ESCOLASTICA
NO SÉCULO
DÉCIMO QUARTO
■ A ruptura do equilíbrio entre razão e fé
Guilherme de Ockham,
os Ockhamistas e a crise da Escolástica
£^\uilke.rme d e O c k k a m ,
os O c k k a m i s t a s
e a c r is e d a Ê s c o lá s + ic a
I. ÍMuilke^me d e O c k k a m
1 situação kistóeico-social
do séc. XÍV
toda a expectativa escatológica do séc. XIII, mãos dos monarcas franceses. A época da
agrupando em torno das instituições eclesiás teocracia secular e espiritual estava em via
ticas, além da alma popular, também o po de extinção.
der temporal dos Estados. Na realidade, es Em contexto mais geral, com implica
ses objetivos só foram alcançados de modo ções de caráter socioeconômico, mas com
provisório, pela mudança das exigências conotações de evidente anticlericalismo, de
sociais, religiosas e culturais. Com efeito, o vemos recordar três revoltas populares: a
dissídio e a tensão religiosa do Duzentos, que Jacquerie, na França, a revolta dos peque
se expressaram nas muitas formas de vida re nos artesãos de Ciompi, na Toscana, e a re
ligiosa, algumas perseguidas como heréticas, volta dos Lollards, na Inglaterra. O objetivo
outras acolhidas e favorecidas, estavam se leigo em relação à Igreja era o de subtrair-
reduzindo, resolvendo-se em parte por uma lhe todo poder temporal e submetê-la à au
espécie de afastamento dos ideais religiosos, toridade do Estado no que se refere às ques
que se revestiam agora de formas exaspera tões mundanas. A salvação é fato interior e
das de ascetismo, da parte dos ideais de vida espiritual, não tendo necessidade de estru
leiga. Estes últimos, embora conservando tura de bens e poder, o que, ao contrário,
íntima religiosidade própria, foram se con constitui forte impedimento, posicionando-se
figurando na forma das novas exigências da em contraste com as orientações do Evan
vida social, tanto econômica como política. gelho. Significativa dessa espiritualidade con-
Além disso, começava a se afirmar uma testatária popular foi a longa controvérsia que,
ruptura radical entre a Igreja e os nascentes nos séculos XIII e XIV, dividiu a ordem
Estados nacionais, com tentativas de desfor franciscana em relação à questão da pobre
ra e predominância de uma e de outra par za. Para alguns, os chamados “espirituais”,
te. Nesse sentido, é significativo o conflito a fidelidade a essa virtude devia ser rigoro
entre Bonifácio VIII e Filipe, o Belo. Porém, sa, enquanto, para outros, podia ser flexível,
mais significativo ainda nesse sentido é o ca porque se trataria de simples instrumento,
tiveiro de Avignon, como também, mais tar sendo portanto adaptável às circunstâncias
de, a façanha de Ludovico, o Bávaro, que, históricas da evangelização. Essa polêmica,
em 1326, recebeu a coroa imperial no Capi porém, não se circunscrevia só à ordem
tólio, não mais na igreja e não mais do papa. franciscana, atingindo também a Igreja, con
Como o papa João XXII não quis reconhecer vidada a livrar-se das vestes do poder e da
Ludovico como imperador, a dieta de Frank riqueza.
furt, em 1338, proclamou a aprovação pon Do ponto de vista mais propriamente
tifícia como supérflua, assim como faria cultura], o Trezentos vive à sombra das vá
mais tarde Carlos IV, em 1356. A Alema rias condenações de que foi objeto, a partir
nha começava a realizar no campo político de fins do Duzentos, o aristotelismo aver-
aquele afastamento da Igreja católica que roísta e tomista, tanto em Paris como, sobre
depois Lutero reforçaria e justificaria no cam tudo, em Oxford. Às condenações do bispo
po doutrinário. Estêvão Tempier, de 1277, que não tinham
Esses conflitos constituíam os sinais do efeito fora da universidade e da diocese de
iminente crepúsculo de uma política e de Paris, seguiram-se no mesmo ano, em Ox
uma concepção de poder. Os ideais e o po ford, por parte de Roberto Kilwardby, as
der que se encarnavam nas duas figuras proibições das teorias tomistas da geração,
teocráticas, do pontífice romano e do impe da passividade da matéria, da introdução de
rador germânico, entraram em decadência novas formas no corpo humano após a mor
na consciência dos mais atentos aos novos te e da unidade da forma. Essas proibições
fenômenos sociais. Em consequência do de foram reafirmadas e ampliadas em Oxford
senvolvimento econômico e, portanto, da pelo franciscano John Peckham, em dezem
ascensão da burguesia, os grandes Estados bro de 1284 e, depois, em abril de 1286.
nacionais independentes, que consolidavam Se, além dessas condenações, recordar
suas estruturas financeiras e seus instrumen mos as polêmicas entre os seguidores de
tos militares, tornavam-se os verdadeiros pro Boaventura e Tomás e, depois, entre os par
tagonistas da história européia. Apesar das tidários de Escoto e Tomás, não será difícil
disputas e lutas, Petrarca com toda razão perceber a queda da tensão criadora que
define o Império como “vão nome sem su caracterizara o Duzentos e a crise em que se
jeito” e a Igreja, no “cativeiro de Avignon” , debatiam a razão e a filosofia, antes consi
como um cômodo instrumento de poder nas deradas subsídios necessários à fé e agora
298 Sétima pilrtc - y \ C 7 s c o !á s tic a no s é c u lo d é c im o q u a r fo
abriga junto a Ludovico, o Bávaro, em Pisa, prováveis, porque parecem falsas para os
ao qual parece ter dito: Tu defendes me gla- que se servem da razão natural. O âmbito
dio, ego defendam te calamo. Seguindo o das verdades reveladas é radicalmente sub
imperador, estabeleceu-se depois em Muni traído ao reino do conhecimento racional.
que da Baviera, onde morreria em 1349, A filosofia não é serva da teologia, que não
vítima de epidemia de cólera. é mais considerada ciência, mas sim um
Durante esse período, no qual não es complexo de proposições mantidas em vin-
creveu mais sobre filosofia, produziu muitas culação não pela coerência racional, e sim pe
obras polêmicas de tema político-religioso. la força de coesão da fé.
Recordemos o Opus nonaginta dierum e o Com- Nesse contexto e em tal direção, Ockham
pendium errorum papae Johannis XXII, transformou outra verdade cristã, a supre
onde defende um conceito rigoroso de po ma onipotência de Deus, em instrumento de
breza contra a postura conciliatória do Pon dissolução das metafísicas do cosmo que se
tífice; o Breviloquium de potestate papae e haviam cristalizado nas filosofias ocidentais
o Dialogus (originalmente em três partes, de inspiração aristotélica e neoplatonizante.
mas que chegou até nós incompleto), onde Se a onipotência de Deus é ilimitada e o
fala da possibilidade de depor o Papa no ca mundo é obra contingente de sua liberdade
so de ele tornar-se herético e das relações en criadora, então, diz Ockham, não há nenhu
tre o Papa, o Concilio e o Imperador. Além ma vinculação entre Deus onipotente e a
disso, também o Tractatus de jurisdictione multiplicidade dos indivíduos finitos, singu
in causis matrimonialibus e o De imperato- larmente, além do laço que brota de puro
rum et pontificum potestate. ato de vontade criadora da parte de Deus e,
portanto, não tematizável por nós, mas co
nhecido apenas por sua sabedoria infinita.
Então, o que são os sistemas de exem
3 «UiadepervdêkAcia da f é plares ideais, de formas platônicas ou de
em relação a r a z ã o essências universais, propostos por Agosti
nho, Boaventura e Escoto como intermediá
rios entre o Logos divino e a grande multi
Mais do que ninguém, Ockham tinha plicidade das criaturas, senão resíduos de
consciência da fragilidade teórica da harmo razão soberba e pagã?
nia entre razão e fé, bem como do caráter O mesmo se diga das doutrinas da ana
subsidiário da filosofia em relação à teolo logia, das causas e, antes, da metafísica do
gia. As tentativas de Tomás, Boaventura e ser de Tomás de Aquino, que instituem re
Escoto no sentido de mediar a relação entre lações reais ou de alguma continuidade en
razão e fé com elementos aristotélicos ou tre a onipotência de Deus e a contingência
agostinianos, através da elaboração de com das criaturas. Essas metafísicas pertencem
plexas construções metafísicas e gnosioló- a um reino que está a meio caminho entre a
gicas, pareciam-lhe inúteis e danosas. O pla fé e a razão, incapaz de alimentar uma e
no do saber racional, baseado na clareza e sustentar a outra.
evidência lógica, e o plano da doutrina teo
lógica, orientado pela moral e baseado na lu
minosa certeza da fé, são planos assimétri
cos. Não se trata apenas de distinção, mas 4 , O empieismo
de separação. Escreve Ockham na Lectura e o p r 'm \ a d o do indivíduo
sententiarum: “ Os artigos de fé não são prin
cípios de demonstração nem conclusões, e
nem mesmo prováveis, já que parecem fal A clara distinção entre Deus onipoten
sos para todos, ou para a maioria ou para te e a multiplicidade dos indivíduos, sem
os sábios, entendendo por sábios os que se nenhum laço além do que pode ser identi
entregam à razão natural, já que só de tal ficado com o puro ato da vontade divina
modo se entende o sábio na ciência e na fi criadora, racionalmente indecifrável, é tão
losofia” . clara a ponto de induzir Ockham a conce
As verdades de fé não são evidentes por ber o mundo como conjunto de elementos
si mesmas, como os princípios da demons individuais, sem nenhum laço verdadeiro
tração; não são demonstráveis, como as con entre si e não ordenáveis em termos de na
clusões da própria demonstração; não são tureza ou de essência. A exaltação do indi-
300 Sétima parte - < S s c o l á s t i c « n o s é c u l o d é c i m o c|ua^+o
víduo é tal que Ockham nega até mesmo a O conhecimento intuitivo perfeito se
distinção interna entre matéria e forma no tem quando o objeto, por exemplo, da arte
indivíduo, distinção que, se fosse real, com ou da ciência, é uma realidade presente; ele
prometería a unidade e a existência do indi é, ao contrário, imperfeito, quando se refe
víduo. re a qualquer realidade do passado.
Eis, então, as duas conseqüências fun O conhecimento intuitivo pode ser tan
damentais do primado absoluto do indiví to sensível (conhecer esta mesa) como intelec
duo. Antes de mais nada, em contraste com tual, enquanto o intelecto conhece também
as concepções aristotélicas e tomistas, segun seus próprios atos e os movimentos da alma,
do as quais o verdadeiro saber tem como como o amor, a dor ou o prazer. Portanto, o
objeto o universal, Ockham considera que empirismo de Ockham é sem dúvida radi
o objeto próprio da ciência é constituído cal, mas absolutamente não sensístico.
pelo objeto individual. A segunda é que todo O conhecimento abstrativo deriva do
o sistema de causas necessárias e ordena conhecimento intuitivo e pode ser entendi
das, que constituíam a estrutura do cosmo do de dois modos: de um lado, quando se
platônico e aristotélico, cede seu lugar a um refere a algo abstraído de muitos singula
universo fragmentado em inúmeros indiví res; por outro lado, enquanto faz abstração
duos isolados, absolutamente contingentes da existência e não-existência das coisas con
porque dependentes da livre escolha divina. tingentes.
Nesse contexto, pode-se compreender a Conseqüentemente, o objeto de ambos
irrelevância dos conceitos de ato e potên os conhecimentos é idêntico, mas captado sob
cia, bem como de matéria e forma, nos quais aspectos diversos: o intuitivo capta a exis
baseava-se há mais de um século a proble tência ou a inexistência de uma realidade,
mática metafísica e gnosiológica ocidental. ao passo que o abstrativo prescinde desses
dados. Os dois conhecimentos são intrinse-
camente distintos porque cada qual tem o
seu próprio ser: o primeiro diz respeito a
é3 or\kecimer\to intuitivo juízos de existência, o segundo não; o pri
e conkecimento akst^ato meiro está ligado à existência ou não de uma
coisa (por exemplo, este livro sobre a mesa),
o segundo prescinde disso; o primeiro é cau
O primado do indivíduo leva ao prima sado pelo objeto presente, o segundo o pres
do da experiência, na qual se baseia o conhe supõe e é posterior à sua apreensão; o pri
cimento. A esse respeito, é necessário distin meiro trata de verdades contingentes, o
guir entre conhecimento não-complexo, segundo de verdades necessárias e univer
relativo aos termos singulares e aos objetos sais. Mas em que sentido o conhecimento
que eles designam, e conhecimento comple abstrato persegue verdades necessárias e uni
xo, relativo às proposições resultantes, com versais?
postas de termos. A evidência de uma pro
posição deriva da evidência dos termos que
a compõem. Não havendo esta, não pode ha
ver aquela. 6 O univeesal e o taondnalismo
Daí a importância do conhecimento
não-complexo, que pode ser intuitivo e
abstrativo. Em muitas oportunidades e sem vaci-
O conhecimento intuitivo se refere à exis lações, Ockham afirmou que o universal não
tência de um ser concreto e por isso move-se na é real. A realidade do universal, portanto, é
esfera da contingência, porque atesta a exis contraditória, devendo ser total e radicalmen
tência ou não de uma realidade. A importân te excluída. A realidade é essencialmente in
cia do conhecimento intuitivo consiste antes dividual. Os universais são nomes, não uma
de mais nada no fato de que é o conhecimen realidade, nem algo com fundamento na rea
to fundamental, sem o qual os outros tipos lidade, A realidade, portanto, é essencialmen
de conhecimento não seriam possíveis. Com te individual.
o conhecimento intuitivo chegamos a saber se Dessa forma cai por terra o problema
uma coisa existe ou não existe, e assim o inte do princípio de individuação, que tanto preo
lecto julga de modo imediato sobre a reali cupara a mente dos clássicos, porque se con
dade ou irrealidade de qualquer coisa. sidera infundada a passagem da natureza es
Capitulo décimo sétimo - ( G u i l h e r m e de Ockham, o s O k k a m i s + a s . ..
301
causa final. Não tem sentido dizer que o fogo cluir do mundo e da ciência os entes e con
queima em função de um fim, uma vez que ceitos supérfluos, a começar pelos entes e
não é necessário postular um fim para que conceitos metafísicos, que imobilizam a rea
se tenha tal efeito. lidade e a ciência, configurando-se como
No que se refere à gnosiologia, com norma metodológica que mais tarde seria
suas implicações metafísicas, o discurso é definida como rejeição das “ hipóteses ad
mais simples. Diante do tema de se é ou não boc”. Por outro lado, tal crítica parte do pres
necessário distinguir o intelecto agente do suposto de que não é necessário admitir
intelecto possível, tão debatido entre aristo- nada fora dos indivíduos, bem como, por
télicos e averroístas e aristotélicos-tomistas, fim, de que o conhecimento fundamental é
Ockham afirma que essa é uma questão ocio o conhecimento empírico.
sa. Ele não apenas nega essa distinção como
supérflua, mas afirma com decisão a unida
de do ato cognoscitivo e a individualidade
do intelecto que o realiza. A suposta neces 8 A mova lógica
sidade de categorias e de princípios univer
sais, que levara à distinção entre intelecto
agente e intelecto possível, é considerada ar- Nesse quadro de uma linha essencial
tificiosa e completamente inútil para a con mente crítica à construção metafísica tra
cretização efetiva do conhecimento. Se o dicional, como se configura a lógica, cujas
conjunto das operações cognoscitivas é úni regras devem ser respeitadas por qualquer
co, também único deve ser o intelecto que o discurso científico? O objetivo que o francis-
realiza. Se nem a memória nem o conheci cano inglês se propõe é o de libertar nosso
mento conceituai devem nos afastar do con pensamento da fácil confusão entre entida
tato imediato com o mundo empírico, então des lingüísticas e entidades reais, entre os
todo recurso a entidades mais complicadas elementos do discurso e os elementos da rea
e mediadoras deve ser rejeitado como su lidade.
pérfluo. Substancialm ente, o que Ockham
O mesmo se pode dizer das species defende é que não devemos atribuir aos si
como imagens intermediárias entre nós e os nais, necessários para descrever e comuni
objetos. Elas são inúteis para explicar a per car, nenhuma outra função senão a de repre
cepção dos objetos. Com efeito, o valor cog sentação ou símbolo, cujo significado está
noscitivo da espécie é nulo, porque, se o em assinalar ou indicar realidades diversas
objeto não fosse captado imediatamente, a deles.
espécie não poderia torná-lo conhecido e, E, portanto, evidente a intenção de
se o objeto está presente, então ela se torna Ockham de dar à lógica estatuto autônomo
supérflua. e mais rigoroso que o dado por seus ante
Tal sequência de críticas à construção cessores. O importante a destacar é a cons
metafísica e gnosiológica com a qual Ock tante negação de qualquer objetividade aos
ham se defronta nos sugere duas observações. termos, no sentido de que sua função é sem
Antes de mais nada, a “navalha de Ockham” pre a de indicar algo diverso de si mesmos.
abre caminho para um tipo de considera Trata-se de separação radical entre lógica e
ção “ econômica” da razão, que tende a ex- realidade, entre termos e res, entre plano con
ceituai e plano real.
E qual seria a fecundidade dessa dis
tinção?
Em primeiro lugar, a separação clara
entre lógica e realidade permite a Ockham
■ N avalha de O ckham . Com esta me tratar os termos como se fossem puros sím
tá fo ra O ckham quer e xp rim ir um bolos e relacioná-los entre si sem se ocupar
princípio antiplatônico, segundo o da realidade designada. Desse modo, ele se
qual não é necessário m ultiplicar os posiciona em condições de oferecer uma
entes e construir um mundo ideal de impecável teoria da demonstração lógica,
essências: de fato , não é preciso ir evidente e rigorosa em si mesma, porque
além dos indivíduos. constituída por puros símbolos. À luz dos
resultados a que chegou a moderna lógica
simbólica, sobretudo com a distinção entre
Capitulo décimo sétimo - Cãuilkei*me d e O c k k a m , o s O k k c i m i s + a s , ..
303
sentido de derrubar tais mediações, apre livre de fiéis, que, no curso de sua tradição
sentando como separados, mas com todo histórica, sanciona as verdades que consti
o seu peso, o universo da natureza e o uni tuem sua vida e seu fundamento. A que se
verso da fé. Não mais intelligo ut credam, ria reduzida a presença do Espírito Santo
nem mais credo ut intelligam, e sim credo na comunidade dos fiéis se a função de san
et intelligo. cionar leis ou impor verdades coubesse ao
papa e ao Concilio? A teocracia e a aristo
cracia não têm lugar na Igreja. E preciso
abrir espaço para os fiéis, para todos os fiéis,
éSorvfra a teocracia, membros efetivos da Igreja, cuja comuni
a favor do pluralismo dade é a única à qual compete a infalibili
dade.
Podemos perceber aí a aspiração à re
Ockham foi um dos mais inteligentes forma, que se acentuaria ainda mais no sé
intérpretes da decadência, na consciência co culo seguinte, até desembocar na distante
letiva, dos ideais e dos poderes universais Reforma protestante. Os germes foram lan
encarnados pelas duas figuras teocráticas: çados, mas seu florescimento não é prelúdio
o imperador e o pontífice romano. A defesa ao retorno à unidade medieval, e sim à afir
intransigente do “ indivíduo” como única mação daquele pluralismo que, primeiro
realidade concreta, a tendência de basear com Wyclif e depois com Lutero, tornar-se-
o valor do conhecimento na experiência di ia divisão e dispersão.
reta e imediata, bem como a separação A época da unidade e da harmonia en
programática entre a experiência religiosa trou em ocaso. A acentuação do indivíduo
e o saber racional e, portanto, entre fé e — no interior da Igreja, na ordem fran-
razão, não podiam deixar de conduzi-lo à ciscana e também na sociedade civil — leva
defesa da autonomia do poder civil em re ao nascimento do direito subjetivo e, por
lação ao poder espiritual e, portanto, à exi tanto, à noção moderna de liberdade indi
gência de profunda transformação da es vidual e de sua autonomia, tendo por resul
trutura e do espírito da Igreja. Trata-se de tado o nascimento da ciência do direito civil,
projeto que, pelo que se pode ver a partir como também do direito eclesiástico.
destes últimos elementos, atinge todos os Tais são as conseqüências últimas da
fundamentos da cultura medieval, lançan tese fundamental da separação entre razão
do os pressupostos da cultura humanista- e fé, entre a ordem espiritual e a ordem mun
renascentista. dana, resultando sobretudo no primado do
Envolvido no conflito entre o papado e indivíduo sobre qualquer universal.
o império, Ockham pretende redimensionar Com Ockham, a escolástica chega ao
o poder do pontífice e demitizar o caráter fim. No Trezentos, depois dele, não surgem
sagrado do império, interessado mais no mais grandes personalidades nem grandes
primeiro do que no segundo. sistemas. Nascem as escolas, o Tomismo,
Se o papa tivesse recebido de Cristo tal o Escotismo e o Ockhamismo que lutam en
plenitude de poderes e se comportasse em tre si, repensando e freqüentemente pole
conseqüência, submeteria a si todos os cris mizando sobre as afirmações de seus res
tãos. Teríamos então uma escravidão pior do pectivos mestres. Diante do Tomismo e do
que a antiga, porque diria respeito a todos Escotismo, que representavam a via antiqua,
os homens. Trata-se então de uma tese não o Ockhamismo se impõe como a via moder
apenas contrária ao Evangelho, mas tam na, enquanto é programaticamente crítico
bém às exigências fundamentais da convi em relação à tradição escolástica. Apesar
vência humana. das proibições e condenações, tal orienta
Na realidade, seu poder é limitado. O ção vai corroendo lentamente os antigos
papa é ministrator, não dominator; deve ser sistemas e fazendo emergir instâncias e prin
vir, não sujeitar. Seu poder foi instituído em cípios que lentamente se reuniríam em nova
benefício dos súditos e não para que lhes visão de mundo. Em 25 de setembro de 1339,
fosse retirada aquela liberdade que está na a leitura de Ockham é proibida em Paris,
base do ensinamento de Cristo. E tal poder proibição reafirmada em 29 de dezembro
não cabe ao papa, nem ao Concilio, porque de 1340 no que se refere às suas teses prin
ambos são falíveis. Não é o papa, nem o cipais. Apesar disso o Ockhamismo con
Concilio, e sim a Igreja, como comunidade quista terreno nas maiores universidades,
Capitulo deam o sétimo - Cãui Ihe mu1de Oc\<\\an\, os é3l<hcimisfos... 305
com homens dedicados a mostrar a incon roso, como Nicolau de Autrecourt (1350)
sistência da cosmologia aristotélica, como e o próprio João Buridan e, por fim, a de
Jo ão Buridan (1290-1358) e Nicolau de fender a necessidade de reforma radical da
Oresme (falecido em 1382), a mostrar a Igreja, como o inglês João Wyclif (em tor
inconciliabilidade da fé com a razão em no de 1328-1384) e o boêmio João Huss
nome de um conceito de ciência mais rigo (1369-1415).
Pagina de um códice
que contém a
Summa totius logicae
de Ockham,
conservado na Biblioteca Vaticana.
306 Sétima parte - A S s c o l á s + i c a n o s é c u l o d é c i m o c|warto
OCKHAM
A TEORIA DO CONHECIMENTO
CONHECIMENTO
x “ a navalha”
entia non su n t m u ltip lica n d a p rae te r necessitatem .
E o critério do conhecimento.
Depois da sua aplicação,
cai o conceito de substância
(nós conhecemos as qualidades e não a substância),
a causa eficiente e a causa final.
Por conseguinte, também o universal não é real;
mas sinal abreviativo de coisas semelhantes:
n o m in alism o
O conhecimento
se distingue em:
não-complexo
/ complexo \
quando se baseia
j quando se baseia sobre elementos simples
\ sobre um complexo de elementos /
____ . __r \
/ intuitivo N .... .. . - A.....
sensível ... { (diz se uma coisa existe
ou não) x / abstrativo
\ prescinde da existência
\ ou não de uma coisa /
> \
1 ..
inteligível ;
no sentido
de abstrair
y dos singulares
.. /
perfeito no sentido
1, (do presente) de fazer abstração \
da existência
T. ou não
das coisas
imperfeito
(do passado) ,
Capítulo décimo sétimo - C ã u il h e f m Ê d e O c k h a m, o s O k k a m i s + a s . . .
307
II. O c k k a m
e a ciência dos O c k k a m is fa s
terizada pela universalidade e pela necessi vais chegam a resultados francamente ori
dade (com o termo epistéme, precisamente, ginais envolve um princípio basilar da teo
Aristóteles entendia um tipo de saber uni ria física de Aristóteles, que prevê a ação di
versal e necessário), o conhecimento cien reta e contínua de um motor para explicar
tífico do particular e o probabilismo. Mas, qualquer tipo de movimento local, incluin
na realidade, todo o sistema científico do do o dos objetos arremessados com força.
grande filósofo grego já parecia vacilar dois Ora, no lançamento dos “ projéteis” é ne
séculos antes de Galileu, golpeado por cessário admitir a presença de um motor
impiedosa crítica nos seus próprios prin diverso daquele que produziu inicialmente
cípios. o movimento (por exemplo, a mão que se
As críticas dos mestres medievais têm separa da pedra depois de tê-la arremessa
por base um princípio de origem neopla- do). Para contornar essa dificuldade, Aris
tônica e uma convicção religiosa clara, se tóteles viu-se obrigado a introduzir em sua
gundo a qual tudo o que é verdadeiramente teoria uma explicação acessória, que, no
possível pode ser realizado no futuro ou em entanto, chocava-se claramente com o que
algum outro mundo imaginário que Deus, pode ser experimentado, isto é, ele consi
em sua onipotência, poderia criar. derava que a pedra arremessada com força
Diante das argutas imaginationes dos pela mão continuava a se mover porque o
medievais, o universo aristotélico, finito, ar, criando vórtices em torno da pedra, a
fechado e com todos os seus aspectos já mantinha em movimento.
determinados, mostra-se terrivelmente es
treito. Para Aristóteles, por exemplo, não
pode existir vácuo na natureza, porque é W lSM (C rític a s d e B u f id a n
contrário às suas leis físicas, mas os físicos a ^A ristó te le s c o m o m é to d o
mentol nem qualquer acidente extramentol pode poderio existir sem elas, pois em virtude da
ser tol universal. £ do universal ossim falarei potência divina toda coisa que é naturalmente
nos parágrafos seguintes. O outro é o univer anterior em relação a uma outra pode existir
sal por instituição voluntária. £ assim a palavra, sem esta última, mas o que resulta é absurdo.
que é verazmente uma qualidade numerica Além disso, se esta opinião fosse verda
mente una, é universal, pois é um sinal instituí deira, nenhum indivíduo poderio ser criado se
do voluntariamente para significar mais coisas. outro indivíduo preexistisse, porque não rece
Portanto, como a palavra é dita comum, assim bería todo o seu ser a partir do nado, se o uni
pode ser dito universal; todavia, isso não pro versal que nele existe tivesse existido antes em
vém da natureza do coisa, mas apenas da von outro indivíduo. Pela mesma razão, seguir-se-
tade de quem a instituiu. ia também que'Deus não poderio aniquilar um
só indivíduo desta substância sem destruir tam
2. O universal não é algo extramental bém todos os outros indivíduos, porque se des
truísse um indivíduo, destruiría tudo aquilo que
fl partir do momento que não é suficiente se refere à essência deste indivíduo, e por con
expor estas coisas, caso não sejam provodas seguinte destruiría aquele universal que está
com uma argumentação explícita, aduzirei en nele e nos outros, e portanto não subsistiríam
tão algumos argumentações para sustentar coi os outros, pois não poderíam subsistir sem este
sas ditas anteriormente, e as confirmarei com universal que é posto como uma parte deles.
autoridades. Além disso, tal universal não poderio ser
Com efeito, que nenhum universal seja posto como algo de totalmente extrínseco à
uma substância existente fora da alma pode essência do indivíduo; com efeito, pertencería
ser provado de modo evidente. Primeiramente à essência do indivíduo, e por conseguinte o
alguém assim argumento: nenhum singular é indivíduo seria composto de universais, e a s
substância singular e una de número. Se, com sim o indivíduo não seria mais singular que uni
efeito, se sustentasse esta posição, seguir-se- versal.
ia que Sócrates seria um universal, pois não há Além disso, seguir-se-ia que algo que
uma razão pela qual um universal seja uma pertence à essência de Cristo seria mísero e
substância singular mais do que outra. Na rea danado, porque tal natureza comum, existente
lidade, nenhuma substância singular é um uni realmente em Cristo e em algum indivíduo da
versal, mas toda substância é una de número e nado, seria ela mesma danada, pois se encon
singular, porque toda substância ou é uma só tra em Judas. Isso, em todo caso, é absurdo.
coisa e não mais coisas, ou é mais coisas. Se e Poderíam ser acrescentadas muitas outras
uma só coisa e não mois, é una de número, argumentações, que deixo de lado por brevi
isso é com efeito chamado por todos uno de dade, e corroboro a mesma conclusão por au
número. Se ao invés alguma substância consis toridade.
te em mais coisas, ou é mais coisas singulares Cm primeiro lugar pode-se coníirmar gra
ou mais coisas universais. Se se verifica o pri ças àquilo que Aristóteles diz no livro VII da
meiro caso, segue-se que uma substância se Metafísica, onde, querendo saber se o univer
ria mois substâncias singulares, e por conse sal é uma substância, demonstra que nenhum
guinte, pela mesma razão, feríamos que uma universal é uma substância. Cie diz, com efeito:
substância qualquer seria mais homens: e en "C impossível que a substância seja um dos ter
tão, embora o universal seja distinto do indiví mos universais, seja ele qual for".
duo particular, todavia não se distinguiria dos Além disso, no livro X da Metafísico, afir
porticulores. Se, ao invés, umo substância con ma: "£ assim, se não é possível que um univer
sistisse de mais coisas universais, eu tomo uma sal seja uma substância, conforme foi dito nos
só destas coisas universais e me pergunto: ou trotados sobre a substância e sobre o ente,
é mois coisas ou umo só e não mais. Se se dá (quando precisamos que) o próprio ser não
o segundo caso, segue-se que é singular; se pode ser uma substância no sentido que se
se dá o primeiro caso, pergunto: ou é mais coi identifica com determinada unidade existente
sas singulares ou mais coisas universais. £ a s fora do múltiplo".
sim, ou haverá um processo ao infinito ou se Dessas afirmações emerge que segundo
estabelecerá que nenhuma substância que não a intenção de Aristóteles nenhum universal é
seja ao mesmo tempo singular é universal; dis uma substância, embora suponha substâncias.
so resulta que nenhuma substância é universal. Além disso, o Comentador, no livro VII da
Além disso, se um universal fosse uma só Metafísica, comentário 44, afirma: "No indiví
substância, existente nas substâncias singula duo não hó outra substância a não ser o maté
res mas distinta destas últimas, seguir-se-ia que ria e a forma particular, da qual é composto".
314 Sétima parte - y \ < Ascolás+ ica n o s é c u l o d é c i m o q u a n to
Além disso, no mesmo lugar, comentário mitem que todo universal é predicóvel de mais
45, se lê: "Dizemos então que é impossível que coisas; mas apenas uma intenção da olmo ou
alguma das coisas que se dizem universais seja um sinal instituído convencionalmente, e não
a substância de uma coisa, embora exprima a uma substância qualquer, destina-se a ser pre
substância das coisas". dicado; portanto, apenas uma intenção da alma
Além disso, no mesmo texto, comentário ou um sinal arbitrário é um universal. Mas ago
47, sustenta: "€ impossível que estas sejam ra não adoto o termo "universal" para indicar
partes de substâncias existentes por si". um sinal instituído convencionalmente, mas para
Além disso, no livro VIII do Metafísico, co indicar aquilo que é universal por natureza. C
mentário 2, afirma: "O universal não é nem uma claro que uma substância não se destina a ser
substância nem um gênero". predicada, pois, se assim fosse, seguir-se-ia
Além disso, no livro X da Metafísica, co que uma proposição seria composta de subs
mentário ó, diz: "Uma vez que universais não tâncias particulares, e por conseguinte o sujei
são substâncias, é claro que o ser comum não to poderio estar em Roma e o predicado na
é uma substância existente fora da alma". Inglaterra, o que é absurdo.
Das precedentes autoridades e de mui Além disso, uma proposição só pode exis
tas outras podemos concluir que nenhum uni tir ou na mente, ou na linguagem, ou na escrita;
versal é uma substância, em qualquer modo o portanto, suas partes não existem a não ser na
consideremos. Portanto, o consideração do in mente, ou na linguagem, ou na escrita; estas,
telecto não faz com que algo seja ou não uma na verdade, não são as características das subs
substância, embora o significado do termo faça tâncias particulares. Consto, portanto, que ne
com que delas se predique, sem substituí-lo, o nhuma proposição pode ser composta por subs
nome "substância". Assim, se o termo "cão" na tâncias. Mas uma proposição é composto de
proposição "o cão é um animal" está para o universais; por conseguinte, os universais não
cão que ladra, então a proposição é verdadei podem ser de algum modo substâncias.
ra; se, ao invés, supõe para a constelação,
então a proposição é falso. Todavia, que uma 3. Opinião a respeito do ser do universal:
mesma coisa segundo um modo de considerar de que modo existe fora do mente?
seja uma substância e segundo outra não o Contra Duns €scoto
seja, é impossível.
Portanto, é preciso simplesmente admitir Cmbora a muitos seja evidente que o uni
que nenhum universal é uma substância, seja versal não é uma substância extramental, exis
qual for o modo como seja considerado. Qual tente nos indivíduos, realmente distinta deles,
quer universal é mais uma intenção da alma, todavia, para alguns parece que o universal
que segundo uma opinião provável não difere existe de algum modo fora da mente nos indi
do ato de entender. Dizem até que a intelec- víduos, não como algo de realmente distinto,
ção, com a qual eu entendo "homem", é um si mas apenas formalmente distinto. Cstes susten
nal natural que significa homens no modo em tam, portanto, que em Sócrates há uma nature
que o choro é um sinal natural da doença, da za humana, que é unida a Sócrates por uma
tristeza ou da dor; e este sinal é tal que pode diferença individual, que não se distingue da
estar para os homens em uma proposição men quela natureza realmente, mas formalmente. Por
tal, como a palavra pode estar no lugar das conseguinte, não são duas coisas, mas formal
coisas na proposição oral. Com efeito, que o mente uma não é a outra.
universal seja uma intenção da alma Avicena o Mas esta opinião parece-me inteiramen
exprime suficientemente no livro V da Metafísica, te improvável. Cm primeiro lugar, porque nas
onde afirma: "Digo, portanto, que o universal se coisas criadas não pode jamais haver uma dis
diz de três modos. Dizemos, com efeito, univer tinção, seja qual for, fora da alma, a não ser
sal aquilo que é predicado em ato de mais coi onde as coisas são distintas; se então houves
sas, como "homem”, e dizemos universal a in se uma distinção qualquer entre esta natureza
tenção que é possível predicar de mais coisas". e esta diferença, seria necessário que elas fos
€ continua: "Dizemos também universal a inten sem coisas realmente distintas. Provo o assun
ção que nada proíbe de pensar que não se to com forma silogística: esta natureza não é
predique de mais coisas". formalmente distinta dela mesma; esta diferença
Destas e de muitas outras afirmações apa individual é formalmente distinta desta nature
rece claro que o universal é uma intenção da za; portanto, esta diferença individual não é esta
alma destinado a ser predicada de muitas coisas. natureza.
C isso pode ser confirmado também com Além disso, uma mesma coisa não é co
argumentações de razão; com efeito, todos ad mum e própria; mas, segundo esses, a diferen
315
Capitulo décimo sétimo - Caiailk e ^ m e d e O c k k a m , o s O k K o m i s f a s . ..
50 admitir qu© nenhum universal pertence à não acidentes. €, portanto, devemos conceder
essência de uma substância qualquer. Com efei que algum acidente, isto é, aquele que é sinal
to, todo universal é uma intenção da alma ou apenas das substâncias, é por si mais geral do
um sinal instituído voluntariamente, e nada dis que a substância. € isto não é mais inconve
so pertence à essência de uma substância, e, niente do que dizer que uma palavra é o nome
por conseguinte, nenhum gênero, nenhuma e s de muitas substâncias.
pécie, nenhum universal pertence à essência de Mas uma coisa pode de fato ser mais geral
uma substância qualquer, mas, falando mois do que si mesma? Podemos responder não,
propriamente, devemos de preferência dizer porque, a fim de que uma coisa seja mais geral
que o universal exprime ou explica a natureza do que outra, se requer que uma seja distinta
da substância, isto é, a natureza que é a subs da outra. €, portanto, podemos dizer que nem
tância. C isto é o que diz o Comentador no livro todos os universais são por si mesmos menos
VII da Metafísico: impossível que uma das gerais do que o termo comum "qualidade",
coisas ditas universais seja a substância de embora todos os universais sejam qualidade,
algo, embora elas manifestem as substâncias e todavia não é menos geral do que ele mes
das coisas". Portanto, todas as autoridades que mo, mas é simplesmente ele mesmo.
afirmam que os universais pertencem à essên € se disséssemos: o mesmo termo não se
cia das substâncias ou estão nas substâncias pode predicar de diversas categorias, então a
ou são partes das substâncias, devem ser en qualidade não é comum a diversas predicações;
tendidas no sentido de que tais autores que é preciso salientar que, seja que o mesmo ter
rem unicamente dizer que tais universais decla mo se predique, seja que não se predique de
ram, exprimem, explicam, designam e significam diversas predicações quando são tomadas sig
as substâncias das coisas. nificativamente, todavia, quando aquelas pre
C se objetas que os nomes comuns, como dicações subsistem e supõem de modo não sig
"homem", "animal", e assim por diante, signifi nificativo não é inconveniente que o mesmo
cam coisas substanciais e não significam subs termo seja predicado de diversas categorias.
tâncias singulares, porque neste último caso Portanto, se na proposição "a substância é uma
"homem" significaria todos os homens, coisa que qualidade" o sujeito permanece materialmente
parece falsa, então tais nomes significam subs ou simplesmente pela intenção, a proposição
tâncias diferentes em relação às substâncias é verdadeira. C do mesmo modo a proposição
singulares; devemos responder que tais nomes "a quantidade é uma qualidade" é verdadeira
significam apenas coisas singulares. Com efei se o termo "quantidade" não convém signifi
to, o nome "homem" não significa nada mais cativamente: e, assim, o mesmo termo é pre
que o homem singular, e, portanto, jamais su dicado de diversas predicações. Como as duas
põe uma substância a não ser quando a supõe proposições "substância é uma palavra" e
para um homem particular. Por conseguinte, é "quantidade é uma palavra" são verdadeiras
preciso admitir que o nome "homem" significa se os sujeitos supõem materialmente e não sig
diretamente e com o mesmo título todos os ho nificativamente.
mens particulares, e todavia nem por isso re . € se dizes: a qualidade espiritual é mais
sulta que o nome "homem" seja uma palavra geral do que qualquer outra predicação, pelo
equívoco, a partir do momento que embora sig fato de que se predica de todas as outras ca
nifique mais coisas diretamente e com o mes tegorias, e nenhuma categoria se predica de
mo título, todavia as significa em virtude de uma todas as categorias.
única disposição, e ao significar aquela multi C preciso responder que a qualidade e s
plicidade está subordinado a um só conceito e piritual não se predica de todas as predicações
não a mais conceitos, e por isso é predicado tomadas significativamente, mas apenas toma
deles univocamente. das como sinais, e por isso não resulta que seja
A última objeção, aqueles que sustentam mais geral do que qualquer outra predicação.
que as intenções da alma são qualidades da Com efeito, o ser mais ou menos geral de um
mente devem responder que todos os univer termo deve-se ao fato de que um termo toma
sais são acidentes. Todavia, nem todos os uni do significativamente pode ser predicado de
versais são sinais dos acidentes, mas alguns mais coisas em relação o outro termo, igual
são sinais apenas das substâncias e aqueles mente tomado significativamente. Csta é a mes
que são sinais apenas das substâncias consti ma dificuldade que se encontra a propósito do
tuem a categoria da substância, os outros cons nome "palavra"; com efeito, este nome é um
tituem as outros predicações. 6 preciso então termo que faz parte dos nomes; na realidade,
admitir que a categoria da substância é um aci o nome "palavra" é um nome; e todo nome não
dente, embora ela exprima as substâncias e é o nome "palavra". Todavia, o nome "palavra"
318
Sétima püYte - ; A é E is c o lá s f i c a n o s é c u lo d é c im o <11u\rto
em olgum modo mais geral em relação a todos uma espécie especialíssima em relação às bran
os outros nomes, incluído o nome "nome", com curas, porque embora por vezes uma só bran
efeito todo nome é uma palavra, mas nem toda cura convenha mais com outra brancura do que
palavra é um nome. com a terceira, como duas brancuras igualmen
Rnalogamente parece que um mesmo ter te intensas parecem concordar mais do que uma
mo possa ser mais geral e menos geral em re brancura de grande intensidade e de uma fra
lação a um mesmo termo. € esta dificuldade ca intensidade, todavia, uma dessas brancuras
pode ser resolvida, dizendo que o argumento convém sempre com alguma porte da outra tanto
seria conclusivo se os termos supusessem de quanto cada uma das duas brancuras convém
modo uniforme em todas as proposições com com a outra. 6 por esta razão, "brancura", em
que se prova a conclusão. Contudo, no caso relação às brancuras, é uma espécie espe-
presente é diferente. Se, todavia, se dissesse ciolíssima e não um gênero.
que um termo é menos geral do que outro, en Na verdade, todavia, é preciso notar que
quanto do termo menos geral, tomado segun tanto o gênero quanto a espécie podem ser
do certo modo de supor, e de muitos outros, se entendidos em dois sentidos, um amplo e um
predica outra coisa, também se esta coisa não estrito. £m sentido estrito se diz gênero aquilo
se predicasse universalmente do primeiro se ela com o qual se responde corretamente à pergun
supusesse de modo diverso: pode-se, então, ta "o que é", posta ao sujeito de uma coisa que
conceder que um termo pode ser mais ou me se indica graças a um pronome demonstrativo.
nos geral em relação ao mesmo, mas neste caso Como, por exemplo, no caso em que se per
"mais geral" e "menos geral" não são opostos, guntasse "o que é isto?", indicando Sócrates, se
mas simplesmente diversos. [...] respondería corretamente, dizendo que é um
animal ou um homem, e assim por diante com os
outros gêneros. O mesmo vale para a espécie.
5. Os cinco universais
Cm sentido amplo, ao invés, se diz gêne
e a suficiência de seu número
ro ou espécie tudo aquilo com que se respon
Tendo explicado o que é o universal, é de corretamente à pergunta "o que é?" posta
preciso ver quantas são as espécies de univer com um nome conotativo, e não apenas abso
sal. Propõem-se cinco universais, cuja suficiên luto. Por exemplo, se se pergunta "o que é o
cia e número podem ser aceitos pelo raciocínio branco?", se respondería corretamente que é
seguinte. Todo universal é predicável de mui algo colorido. C todavia, se quem põe a per
tas coisas: portanto, ou é predicado in q uidóe gunta "o que é" usasse um pronome demons
muitas coisas ou não. Se se predica in quid, de trativo, não se poderio jamais responder corre
modo que graças a ele é possível responder tamente através da expressão "colorido". Com
corretamente à pergunta "o que é?" posta a efeito, qualquer coisa que fosse indicada com
respeito de algo, isso é possível de dois mo o pronome "isto", perguntando "o que é isto?",
dos. Uma vez que ou as coisas múltiplas das não se daria uma resposta correta dizendo que
quais é predicado são todas semelhantes, de é "algo colorido". Pois colocando a pergunta
modo que todas convêm por sua essência, deste modo ou indicas o sujeito da brancura, e
exceto se uma coisa não for composta por mais então é claro que não respondes corretamen
coisas igualmente semelhantes, e tal é a espé te; ou indicas a brancura, e é manifesto que
cie especialíssima; ou então nem todas as coi não respondes corretamente com "colorido",
sas das quais é predicado concordam no modo porque a brancura não é colorida: ou mostras
indicado, mas é possível encontrar duas coisas um agregado, e é manifesto que não respon
que são absolutamente dessemelhantes tanto des de modo correto, porque aquele agrega
em sua totalidade como em suas partes, se têm do não é colorido, como será exposto mais
partes, como no caso de "animar. Com efeito, adiante; ou indicas o termo, e é manifesto que
“animar se predica do homem e do asno, e a aquele termo não é colorido. Cmerge então, que
semelhança substancial é maior entre dois ho à pergunta "o que é o branco" se responde
mens do que entre um homem e um asno. Da convenientemente com "colorido", e que por
mesma forma, para "cor" em relação à brancura esta expressão "colorido" pode ser dito gêne
e ao negrume; com efeito, nem este negrume ro, entendendo gênero em sentido amplo. Uma
nem algumas de suas partes concordam com vez que, todavia, com "colorido" não se respon
esta brancura ou com alguma parte desta bran de convenientemente à pergunta "o que é"
cura tanto quanto umo brancura convém com posta com um pronome demonstrativo, então
outra, e por isso uma intenção predicável da não é um gênero, assumindo a palavra "gêne
brancura e do negrume não é a espécie e s ro" em sentido estrito. € o mesmo vale, propor
pecialíssima, mas o gênero. Mas a brancura é cionalmente, para a espécie.
319
Capitulo décimo sétimo - óTu ilkerm e d e O c k k a m , o s O k h o m i s t a s . . .
Gsto distinção é indispensável, porque sem coisas. A respeito de "uno", ao invés, o caso é
elo não se podem salvar sem contradição mui diferente, porque "uno" pode ser considerado
tos argumentos autorizados de Aristóteles e de um acidente ou um próprio.
outros autores; mas se devem expor através Ao segundo argumento pode-se respon
de tal distinção, porque muitas regras são en der que o termo comum "universal" é um gêne
tendidas a respeito do gênero e da espécie ro, e portanto o gênero se predica do espécie,
tomados no primeiro sentido, regras que não não por aquilo que é, mas por causa da espé
são entendidas nos outros sentidos, como re cie que significa.
sultará claro em continuação.
Se ao invés se predica tal predicável in
6. O indivíduo contido sob os universais
quid, isso acontece ou porque exprime apenas
uma parte da coisa e não outra, sem exprimir Uma vez estabelecidas estas coisas so
nada de extrínseco, e assim se tem a diferen bre os universais, é preciso falar de cada um
ça. Como "racional", se é a diferença que con dos cinco universais de modo específico. Gm
vém ao homem, exprime uma parte do homem, primeiro lugar, porém, é preciso falar do indiví
isto é, a forma e não a matéria. Ou então por duo que está contido sob qualquer universal.
que exprime, ou remete a, algo que não é par A primeira coisa que se deve saber é que
te da coisa, e então se predica de modo con para os lógicos os nomes "indivíduo", "singu
tingente ou de modo necessário: se se predica lar", "suposto" são conversíveis, embora para
de modo contingente, então se chama aciden os teólogos "indivíduo" e "suposto" não se con
te, se se predica de modo necessário, se cha vertem, porque para estes apenas a substân
ma próprio. cia é um suposto, enquanto o acidente é um
Na verdade, todavia, é preciso saber que indivíduo. Mas neste capítulo é preciso usar
por vezes o extrínseco ao qual remete pode estes nomes conforme a acepção usada pelos
ser uma proposição sem a verdade da qual não lógicos.
se pode predicar verdadeiramente a existência Para os lógicos "indivíduo" pode ser en
de algo, como, segundo a opinião de quem tendido de três modos. Com efeito, em um pri
sustenta que a quantidade não é outra coisa meiro sentido se chama indivíduo tudo aquilo
em relação à substância e à qualidade, o nome que é uma só coisa de número e não mais, e
"quantidade", quando se predica de algo, indi deste modo se pode admitir que qualquer uni
ca que a proposição "isto tem as partes distan versal é um indivíduo. Gm outro sentido se cha
tes umas das outras” é verdadeira, se for for ma indivíduo uma realidade extramental, que é
mulada. uma só e não mais, e não é o sinal de alguma
G preciso também saber que, segundo nu coisa; e assim qualquer substância é um indiví
merosas opiniões, o mesmo termo pode ser um duo. Gm um terceiro sentido se chama indivíduo
gênero, entendido em sentido amplo, em rela o sinal próprio de uma só coisa, que se chama
ção a certas coisas, e um próprio ou um aciden termo discreto; e neste sentido Porfírio diz que
te em relação o outras coisas, como a quanti o indivíduo é aquilo que se predica de uma só
dade em relação a algumas é um gênero, por coisa. Gsta definição em todo caso não pode
exemplo em relação ao corpo, à linha, à super ser entendida a propósito das coisas existen
fície e assim por diante, e todavia, segundo tes fora da mente, por exemplo de Sócrates e
quem sustenta que a quantidade não é outra de Platão, e assim por diante, porque tal coisa
coisa em relação à substância e à qualidade, é não se predica nem de um só nem de mais;
um acidente ou um próprio em relação à subs portanto, é necessário que se entenda esto
tância e à qualidade. Mas isto é impossível em definição como a de um sinal que é próprio de
relação ao gênero, entendido em sentido estri uma só coisa, que não pode ser predicado a
to. G é preciso dizer a mesma coisa a propósito não ser de uma só coisa, isto é, não se predica
da espécie. de modo conversível de um termo, que pode
G se dizes: o ente é um universal, e igual supor para mais coisas na mesma proposição.
mente o uno (é um universal), e todavia não é Tal modo de ser indivíduo pode ser ex
um gênero. presso em modo tríplice. Porque por vezes um
De modo semelhante, o nome comum "uni indivíduo é o nome próprio de alguém, como o
versal" é um universal, e todavia não é nem um nome "Sócrates" e o nome "Platão". Outras ve
gênero nem uma espécie. zes é um pronome demonstrativo, como "isto é
Ao primeiro destes argumentos pode-se um homem", indicando Sócrates. Outras vezes
responder que aquela é uma divisão válida paro ainda é um pronome demonstrativo tomado com
os universais que não se predicam de todas as um termo comum, como "este homem", "este
coisas, enquanto "ente" se predica de todas as animal", "esta pedra", e assim por diante.
320
Sétima pavte - / \ é S s c o l á s t i c a n o s é c u lo d é c im o q u a n t o
~ I. O p c o b le m a ----------------
d o ^primado^ político
império são independentes. Entretanto, en colástica, a obra política de Marsílio de Pá-
quanto o papa Gelásio formulava a teoria das dua destaca-se como um dos pontos mais
“ duas espadas” , porque, na época, ela estava significativos, representando claramente o
em função da reivindicação de autonomia da fim do pensamento medieval e o início da
Igreja em relação à política, mais tarde, em época moderna. E isso pelo fato de que as
um contexto histórico e político diferente, teorias políticas e jurídicas de Marsílio co
especialmente com Inocêncio III (1198-1216), locam-se fora do âmbito em que se desen
avançou decididamente a teoria do primado volvera a polêmica dos medievais: com efei
do poder da Igreja sobre o do império. Daí to, Marsílio elabora sua doutrina sem levar
todas as polêmicas posteriores sobre o pre em conta o direito natural divino que, de
domínio de um ou de outro poder. um ou de outro modo, constituira um dos
O defensor da tese curial foi Egídio Roma pilares do pensamento medieval.
no (de Colonna), nascido em Roma em 1247,
aluno de santo Tomás em Paris, defensor do
tomismo contra a condenação de Estêvão
Tempier e de Roberto Kilwardby, mestre em 2 CDDefensor pacis cie
Paris depois da morte de Tempier, sagrado jMai^sílio de IPádua
arcebispo de Burges por Bonifácio VIII e
morto em Avignon em 1316. No seu De eccle-
siastica potestate, que é de 1302, Egídio Ro Marsílio Maierardini nasceu em Pádua
mano alinha-se em favor da tese curial, afir entre 1275 e 1280, indo mais tarde para Pa
mando que tanto a autoridade política como ris, onde ensinou e onde, entre 1312e 1313,
qualquer poder derivam da Igreja ou através foi reitor da universidade. Em Paris, ele so
da Igreja. E a Igreja se identifica com o papa. freu a influência do averroísmo latino, que
Nessa época, o mais tenaz opositor das separava claramente a razão da fé e, com a
teses do papista Egídio Romano foi João de doutrina da dupla verdade, eliminava os
Paris (1269-1306), que, no De potestate re obstáculos para o caminho do racionalismo
gia et papali, afirmou o direito dos indiví radical. Também averroísta era João de Jan-
duos à propriedade, negou que o papa pu dun, que se diz ter colaborado com Marsílio
desse se arrogar a plenitudo potestatis e lhe na elaboração de sua obra maior, que é o
atribuiu unicamente a função de adminis Defensor pacis, concluído em 1324. Mor
trador dos bens da Igreja. reu entre 1342 e 1343. ;
Dante (1265-1321), no De monarchia, Examinemos as teses de fundo do De
também se preocupou em defender o império fensor pacis. Pois bem, para Marsílio, o Es
em relação às pretensões do papado. Segundo tado é uma communitas perfecta, uma co
ele, as duas instituições visam a objetivos di munidade natural auto-suficiente, que se
ferentes: o império trata dos bens que pode ergue com base na razão e na experiência
mos conseguir nesta terra; a Igreja cuida da dos homens, servindo-lhes para “viver — e
bem-aventurança celeste. Assim, dadas as suas viver bem” . O Estado de que fala Marsílio
diferentes finalidades, as duas instituições são não é mais o Império universal, mas sim o
irredutíveis uma à outra. Mas, querendo-se Estado nacional, a comuna ou o magistra
discutir o primado de uma das duas, então, do, isto é, o Estado de sua época. E, para
considerando que só o império pode assegu ele, esse Estado é construção humana, que
rar a paz e a justiça, tal primado cabe ao im responde a finalidades humanas, não haven
perador, já que, pela perfeição da convivência do vínculos de natureza teológica.
humana, “convém ser um, como timoneiro, Fé e razão são distintas, como o são a
que, considerando as diversas condições do Igreja e o Estado. E este não deve se subme
mundo, entre os diversos e necessários ofícios, ter àquela. Ao contrário, no que se refere à
tenha o bastão do universal e imbatível ofício vida terrena, é a Igreja que deve se subme
de comandar [...]” . E essa figura é o impera ter ao Estado.
dor: “E ele o mandante de todos os manda Naturalmente, há a lei religiosa, que tem
mentos e o que ele diz é lei; por todos deve ser por fim a glória ou a pena “in saeculo
obedecido e todo outro mandamento é do seu venturo ”. E a lei mosaica, a evangélica, como
mandamento que adquire vigor e autoridade” . também a de Maomé e a dos próprios persas.
Em uma visão de conjunto, não é difí Mas, além dessa lei religiosa, há também a
cil constatar que, no panorama geral dos lei que constitui o critério do justo e do útil
autores citados e dos outros autores da es- no plano puramente humano e social. E essa
323
Capítulo décimo oitavo - Ú ltim a s figu ra s...
lei é tal porque é um mandamento coativo, vis humanos, sob ameaça de pena ou suplí
ao qual está ligada “ uma punição ou uma cio terreno” .
recompensa a ser atribuída neste mundo” . A lei e o Estado, portanto, são coisas e
Desse modo, para Marsílio, a lei não construções humanas, encontrando sua jus
tem um fundamento divino, nem um supor tificação unicamente no fato de serem esta
te ético, nem se baseia no direito natural. belecidos pela vontade humana. E a lei que
Escreve ele no Defensor pacis: “Nós dize é soberana, não o indivíduo ou o governo,
mos que o legislador, isto é, a causa efetiva que o povo trata de controlar precisamente
primeira e própria da lei, é o povo, ou seja, por meio da lei, já que, juntamente com
a coletividade (universitas) dos cidadãos ou Aristóteles, Marsílio está convencido de que
a sua parte mais importante (valentior pars), “ onde as leis não são soberanas, não há ver
que, por sua escolha, ou seja, por vontade dadeiro Estado” .
expressa em palavras na reunião geral dos Soberania popular e Estado de direito:
cidadãos, ordena, ou melhor, determina fa eis, portanto, os dois pilares inovadores da
zer ou omitir uma coisa relativa aos atos ci original teoria política de Marsílio de Pádua.
* * O P V S 1N S1GN E CV Ii
T I T V L V M jj‘LCi T A V r O R I i. NSOULM P AO> .
quod quvítioncm tii.imüm tjlimcoiiüniH-rl.imJ Vpotcíbíe na
t m i er i m i» i; a â r v ju í c x t ul 1ill im e t r a a , p u >Íuí urü I licula
gís.lurcconíültts.in lummaoptunaru htcrarum citltenljus
omníbuf.Scriptum quidcm arife anncMMccnrovKl
1 1' DüViC VM f AC&AKt MCS lllultl lílliKS It.nian c
dacun íamilia protvnititm,.« nun» m
luecm piÍBian* ardúum.pcr quàmcaiugatc cc ditgewo'. tlsml
ucro conrin* a<,mck x oúcndic qui
prxfai luoern fcquitur.
Prontispício da primeira
edição impressa
do Defensor pacis
de Marsílio de Pádua
(Basiléia, 1522).
324 Sétima parte - A Ê s c o l ó s + i c a no sécwlo d é cim o qwaWo
2 3oão f-luss
Na imagem João Huss (1369-1415),
reformador religioso boêmio,
As idéias de Wyclif também exerceram colocado na fogueira.
influência sobre a concepção teológico-po- No fundo da miniatura pode-se notar o papa,
lítica de João Huss (1369-1415), cuja obra, os cardeais e os bispos do concilio de Constança.
326 Sétima parte - A Ê sco ló s+ ica iao sécu lo décim o q u a H o
Deus é uno • O que Mestre Eckhart procura é uma relação direta en
em todas as coisastre a criatura e o Criador, é justamente a unificação dos dois.
e acima O mundo e o homem sem Deus são nada, e a idéia do
de todas as coisasmundo está presente ab aeterno em Deus. Deve-se então afir
- >§2 mar que em Deus coincidem pensamento e ser e que seu ser
puríssimo consiste justamente na capacidade de dar o ser às
coisas. Deus é também uno e princípio de unidade e como tal "desce totalmente
em todas as coisas", determinando a essência de cada uma, mas "o que é uno em
todas as coisas deve estar necessariamente sobre as coisas" (isto é, acima do ser).
é o retorno a Deus e a união com Deus. Colônia, como mestre no Studium geral dos
Entretanto, quando a dissolução das preten dominicanos, tendo entre seus discípulos
sões da escolástica (dissolução iniciada com Henrique Suso. Eckhart é autor de um Opus
Duns Escoto e levada a conclusões mais con- tripartitum, de Quaestiones, de Pregações e
seqüentes por Ockham) minou a confiança de Tratados, estes últimos escritos em ale
de que a razão pudesse pelo menos alcan mão. Morreu pelo ano 1327.
çar os preambula fidei, então a questão da A obra de Eckhart pode ser vista como
fé emergiu novamente, mais aguda do que busca significativa de justificação daquela
nunca, e o caminho do misticismo apareceu fé que, como apontamos, ficou sem o su
como o único praticável para ligar o homem porte da razão. Seu pensamento está centra
com Deus. De fato, o problema parecia mais do na idéia de unidade entre Deus e o ho
premente do que nunca: se a fé não encon mem, entre o sobrenatural e o natural. Sem
tra nenhum suporte na razão, não sendo ela Deus, o homem e o mundo natural não te-
demonstrável, nem fundamentável, nem plau riam nenhum sentido e nada seriam.
sível por força da razão, não será ela então Escreve Eckhart: “ O ser e o conhecer
puro arbítrio, uma loucura a mais? coincidem realmente em Deus (...)” . Por
Era essa, portanto, a missão mais pre isso, desde sempre está presente em Deus a
mente que, em seu crepúsculo, a escolástica idéia das criaturas e a vontade de criar. Con-
punha diante dos homens de fé: restabele seqüentemente, as coisas estão ab aeterno
cer o contato entre o homem e Deus. no intelecto do próprio Deus, “porque Deus
E foi exatamente essa a questão enfren é intelecto e conhecimento e o seu conhecer
tada pela corrente constituída pelo misticis é o fundamento do próprio ser” . A esse res
mo especulativo alemão. Misticismo porque peito, Eckhart referia-se ao Evangelho de
insiste no fato de que Deus está além de toda João: “No princípio era o Verbo e o Verbo
a nossa possibilidade conceituai e porque estava com Deus e o Verbo era Deus” . E
sustenta que o homem, afastado de Deus, comenta: “ O evangelista não diz: ‘No prin
não é nada. Especulativo pelo fato de que cípio era o ente e Deus era o Ente’. Ora, o
está entremeado de filosofia, alimentando- Verbo refere-se totalmente ao intelecto, exis
se sobretudo com as doutrinas neoplatônicas tindo nele como ato que diz ou como pala
de Proclo e do Pseudo-Dionísio e assumin vra dita, encerrando em si o ser ou o não-
do como base central aquela teologia nega ser. E por isso que o Salvador diz: ‘Eu sou a
tiva que, por exemplo, em Tomás constituía Verdade’ ” . Deus, portanto, não é o ser, pois
apenas um elemento do seu sistema filosó- é ele quem cria o ser.
fico-teológico. Todavia, nós também podemos dizer
Pois bem, o mestre dominicano Eckhart que Deus é o ser, com a condição de que
foi o expoente principal desse movimento com isso não entendamos o ser enquanto
de pensamento místico-especulativo. E dele criatura, mas sim o ser pelo qual todas as
devemos falar agora. coisas existem: “ Se o ser convém às criatu
ras, ele não está em Deus senão como na
causa: por isso, em Deus não está o ser, e
sim a pureza do ser” .
2 A d e stre éúckkaM-: Além disso, “Deus é caridade” . Ele o é
o komem e o mundo porque o amor unifica e se difunde. Deus é
são nada sem Deus
caridade e é uno; com efeito, é “ impossível
que existam dois infinitos” . De fato, “o uno
desce totalmente a todas as coisas que são
Mestre Eckhart (Equardus) nasceu em exteriores, múltiplas e numeradas; ele não
Hochheim, próximo a Gota, na Turíngia, se divide em cada uma das coisas, mas sim,
por volta de 1260. Ingressando no conven permanecendo uno incorrupto, insufla todo
to dos dominicanos de Erfurt, estudou de número e enforma com sua unidade” .
pois em Estrasburgo e em Colônia. Tornou- Deus, portanto, está em todas as cria
se professor de teologia em 1302; ensinou turas: sem Deus, elas são nada. Mas o Deus
em Paris de 1302 a 1304. Exerceu cargos “ que está em todas as criaturas é o mesmo
na ordem dominicana. De 1311 a 1314, mo que está acima delas, pois aquilo que é uno
rou novamente em Paris. Em 1314, foi para em muitas coisas deve estar necessariamen
Estrasburgo, onde se dedicou à pregação. A te acima das coisas” . As coisas são tais por
partir de 1320, estabeleceu-se novamente em que têm uma essência, a qual não existiría
328 Sétima parte - A Ç tsco lá s+ ica no s é c u lo d é c im o q u a r to
se Deus não a houvesse pensado, se ela não ele queira derramar sobre nós vergonhas,
estivesse em Deus: “Deus está em todas as cansaços ou dores, (pois a coisa melhor é)
criaturas, pois elas têm uma essência, e nem aceitar tudo isso com prazer e reconhecimen
por isso deixa de estar acima delas. E ele, to, deixando-se guiar por Deus ao invés de
que está em todas as criaturas, é o mesmo perturbar-se” . Naturalmente, o homem “ de
que está acima delas, pois aquilo que é uno ve se exercitar nas obras, que são o fruto
em muitas coisas deve estar necessariamen das virtudes (...)” , e, no entanto, “é preciso
te acima das coisas” . aprender a ser livre mesmo em meio às nos
Deus-está-acima-do-ser. O ser pode ser sas obras” .
conhecido, mas Deus é inefável. Livres também para a morte: “ O ho
Concluindo, o grande conceito (expres mem verdadeiramente perfeito deve habi
so por Platão na República e depois difun tuar-se à morte, sair de si e transformar-se
dido largamente pelos neoplatônicos) do de tal modo em Deus que a sua única bem-
Princípio supremo acima-do-ser predomina aventurança seja não saber mais nada de si
em nosso filósofo. E, afirma Eckhart, quan e de qualquer outra coisa, mas apenas de
do digo que Deus não é o ser, mas está aci Deus, não conhecendo outro querer senão
ma do ser, “com isto não lhe tirei o ser; ao o querer de Deus e conhecer a Deus como
contrário, eu o enobreci” . ftffglT l Deus o conhece, conforme o que diz são
Paulo” .
O retorno do homem a Deus exige a
alma “ livre e despojada de toda coisa cria
3 i CD retomo do kometn a Peus da” . Somente assim é que a alma “capta
Deus e está em Deus, una com Deus, vendo
Deus face a face” . E a alma que está em Deus
Tudo aquilo que existe, existe por obra está “ pronta a receber todo ataque, toda
do Ser divino, que “ ama necessariamente” . provação, contrariedade ou dor, suportan
Assim, as coisas e o próprio homem, sem do-os de bom grado, com espírito alegre e
Deus, são nada. Essa é a razão pela qual o sereno (...), repousando tranqüilamente na
homem deve voltar para Deus: somente riqueza e na comunhão da inefável sabedo
retornando a Deus é que o homem encon ria superior” . Com efeito, a dor é insupor
trará a si mesmo. E nós “ captamos Deus na tável quando o homem sofre por si mesmo,
alma, que possui uma gota da razão, uma mas, se sofre por Deus, então o sofrimento
centelha, um germe” . não dói, “ já que Deus suporta o peso” : “ Se
Novamente, é a razão que deve ser cap me fosse posto um peso de quatro arrobas
turada por Deus e se aprofundar nele. Mas, sobre os ombros, mas outro carregasse o
para tanto, o homem deve tornar-se um es peso, de bom grado me submetería a um ou
pírito livre: “ Espírito livre é aquele que não a cem quilos, já que não me seria pesado
se preocupa com nada e a nada se liga, não nem me faria mal” .
se vincula de modo algum ao seu interesse e
não pensa em si mesmo nem em nada, já
que se aprofunda na amantíssima vontade
de Deus, renunciando à própria vontade” . 4 Oposições suscitadas
Eckhart afirma que aquele que é reto por éccLckart
tem verdadeiramente Deus em si. E quem
e seus discípulos
tem Deus “ o tem em todos os lugares, nas
ruas e entre as pessoas, da mesma forma
que na Igreja, na solidão ou na cela. Se ele A condenação de dezessete teses de
o possui verdadeiramente e o possui sem Eckhart como heréticas e de onze como te
pre, ninguém poderá perturbá-lo” . Como merárias feita por João XXII é significati
nada pode perturbar a Deus, também nada va. Suas idéias têm alcance demolidor de
pode perturbar o homem que “ leva Deus alguns dos eixos que sustentavam o pensa
em todas as suas obras e em todo lugar” , mento medieval, e seu neoplatonismo dissol
já que “toda obra sua é muito mais obra ve os pilares do aristotelismo e sua media
de Deus” . ção sintética não aparece mais possível como
Assim, é preciso “ precaver-se de si fora, ao invés, em Tomás de Aquino.
mesmo” e ser “ livre dos desejos” . O que im Foram discípulos de Eckhart João Tau-
porta é abandonar-se em Deus, “mesmo que ler (1300-1361) e Henrique Suso (1296-1366).
329
Capítulo décimo oitavo - Úl+í m a s f i g u r a s . ..
A influência de Eckhart se fez sentir sobre o te publicada pela primeira vez por Lutero
holandês João de Ruysbroeck (1293-1381) entre 1516 e 1518.
e na obra mística que se tornou famosa, Ockham e Eckhart, em sentido opos
intitulada Teologia alemã, escrita em Frank to, exprimem do modo mais significativo o
furt por um dominicano anônimo na segun fim do pensamento escolástico e da Idade
da metade do século XIV, e significativamen Média.
Indubitavelmente toda dor provém do foto de ânimo imperturbável na paz de seu coração, é
que não tendes o Deus e apenas o Deus. Se então verdadeiro aquilo que eu disse: que nada
fosses formado e gerado unicamente pela Jus daquilo que lhe ocorre pode perturbar o justo.
tiça, nada verdadeiramente poderio fazer-te Mas se, ao invés, ele é perturbado pelos ma
sofrer, como a Justiça não pode fozer sofrer o les exteriores, é verdadeiramente justo e cor
próprio Deus. Salomão diz: "Nada do que pode reto que Deus tenha permitido que a adversi
acontecer pode fazer o justo sofrer". G e não dade aconteça a este homem que queria ser
diz "o homem justo", ou "o anjo justo", nem isto justo e se iludia de sê-lo, enquanto coisas tão
nem aquilo. G e diz: "o justo". Rquilo que per mesquinhas podiam perturbá-lo. Se este é o
tence a certo indivíduo justo e faz com que a direito de Deus, este homem na verdade não
justiça seja sua propriedade e ele seja justo, é deve se entristecer mas gozar disso mais que
o fato de que ele é filho e tem um poi sobre a da própria vida, da qual na realidade cada um
terra e é criatura feita e criada, pois seu pai é se alegra e que é para todo homem mais pre
criatura feita e criada. Mas aquele que é abso ciosa do que o mundo inteiro: com efeito, de
lutomente justo enquanto não tem um pai feito que serviria ao homem o mundo inteiro se ele
e criado, não pode ser atingido por sofrimen não existisse mais?
tos e dores, assim como Deus não pode ser fl terceira palavra que podemos e deve
atingido por eles, pois Deus e a Justiça são umo mos saber é esta: segundo a verdade natural,
só coisa e apenas a Justiça é o pai deste justo. apenas Deus é a fonte e manancial de todo
R Justiça não pode fazê-lo sofrer, pois a Justiça bem, de toda verdade essencial e da consola
é toda amor, olegria e delícia,- e depois, se a ção, e tudo aquilo que não é Deus tem em si
Justiça causasse dor ao justo, ela a causaria natural amargura, desconforto e dor, e não
também a si mesma. Nada de dessemelhante acrescenta nada à bondade que vem de Deus
e de injusto, nenhuma coisa feita ou criada po e é Deus; pelo contrário, minimiza, cobre e e s
derio fazer o justo sofrer, pois toda coisa criada conde a doçura, o conforto e a suavidade que
está longe sob ele, como está longe sob Deus, Deus dá.
não exerce nenhuma impressão nem influência Rlém disso, digo que toda pena deriva
sobre o justo e não nasce nele, que tem como do amor por aquilo que a adversidade me ti
pai apenas Deus. Por isso, o homem deve fa rou. Portanto, se a perda de coisas exteriores
zer de modo a destacar-se de si mesmo e de me provoca sofrimento, isto é sinal certo de que
todas as criaturas e reconhecer apenas Deus amo as coisas exteriores, isto é, que amo ver
como Pai. Éntõo nada pode acarretar-lhe dor e dadeiramente a dor e a aflição. Que maravi
aflição, nem Deus nem a criatura, nem coisa cria lha, portanto, se sofro, a partir do momento que
da nem incriada; e todo o seu ser, vida, conhe amo e busco o sofrimento e o desconforto? Meu
cimento, saber e amor é de Deus, em Deus e coração e meu amor atribuem à criatura a Bon
Deus. dade que é propriedade de Deus. £u me dirijo
Há ainda outra coisa que devemos saber, para a criatura de onde provém naturalmente a
ou seja, aquilo que consola igualmente o ho aflição, e me afasto de Deus do qual flui todo
mem em todas as suas adversidades. Isto é, conforto. Por que então me admiro se me en
que o homem justo e bom goza certamente de tristeço e sofro? Na verdade, é impossível a
modo incomparável e também inexprimível da Deus e ao mundo inteiro que o homem encon
obra da Justiça, mais do que ele próprio ou o tre a verdadeira consolação quando a busca
anjo mais elevado possam gozar em sua essên nas criaturas. Mas quem amasse apenas a Deus
cia natural e em sua vida. Gs por que os santos nas criaturas e as criaturas apenas em Deus
deram com alegria sua vida pela Justiça. encontraria em todo lugar uma consolação ver
Rgora eu digo: se ao homem bom e justo dadeira, justa e imutável.
acontecem a partir de fora coisas desagradá Mestre tEckhart,
veis e ele todavia permanece com o mesmo Tratados e predicas.
B i b l i o g r a f i a d o volume II
Literatura
Sexta parte (caps. 12-16)
J. Quasten, Patrologia, cit., vol. I, pp. 414-421,493
574; vol. III, pp. 325-434; B. Altaner, Patrologia,
A Escolástica
cit., pp. 148-166, 429-474. no século décimo terceiro.
Tomás de Aquino,
Boaventura de Bagnoregio,
Quarta parte (caps. 7-8) João Duns Escoto
Gênese da Escolástica.
Boécio e Escoto Eriúgena Textos
Textos Tomás de Aquino: La Sommna teologica, com
texto latino em paralelo, sob a direção dos Do
Severino Boécio: Consolazione delia filosofia, com minicanos italianos, 34 vols., Salani, Florença,
texto latino em paralelo, sob a direção de L. Ober- 1949ss; Ente ed essenza, com texto latino em pa
tello, Rusconi, Milão, 1996. ralelo, sob a direção de P. Porro, Rusconi, Milão,
Literatura 1995.
Cf. as obras de caráter geral citadas no início; para Boaventura de Bagnoregio: Itinerário delPanima a
Escoto Eriúgena: M. Dal Pra, Scoto Eriúgena, Dio, com texto latino em paralelo, sob a direção de
Bocca, Milão, 1951; P. Mazzarella, II pensiero di L. Mauro, Rusconi, Milão, 1996.
G. Scoto Eriúgena, Cedam, Pádua, 1957; T. Gre- Roger Bacon: veja-se E. Bettoni, La scolastica pos-
gory, G. Scoto Eriúgena. Tre studi, Le Monnier, Flo- tomistica, em Grande Antologia Filosófica, Mar-
rença, 1963. zorati, Milão, 1954, vol. IV.
Duns Escoto: veja-se O. Todisco, La ragione nella
Cap. 9 fede secondo G. Duns Scoto, Centro di Studi Fran-
Anselmo de Aosta cescani, Roma, 1978.
Literatura
Textos
Além das obras de caráter geral citadas no início e
Anselmo de Aosta: Opere filosofiebe, sob a direção as obras críticas citadas entre os textos, remetemos
de S. Vanni Rovighi, Laterza, Bari, 1969; Monolo- a: E. Gilson, La filosofia di San Bonaventura, sob a
gion, com texto latino em paralelo, sob a direção direção de C. Marabelli, Jaca Book, Milão, 1995;
de I. Sciuto, Rusconi, Milão, 1995; Proslogion, com G. Fassò, Storia delia filosofia dei diritto, vol. I, II
texto latino em paralelo, sob a direção de I. Sciuto, Mulino, Bolonha, 1966; S. Vanni Rovighi, Intro-
Rusconi, Milão, 1996. duzione a Tommaso d’Aquino, Laterza, Bari, 1981
Literatura (destas obras foi tirada também a tradução de al
Além das obras de caráter geral, veja-se S. Vanni guns trechos citados no texto). Cf. também: E.
Rovighi, S. Anselmo e la filosofia dei secolo XI, Bettoni, Duns Scoto filosofo, Vita e Pensiero, Mi
Bocca, Milão, 1949. lão, 1966.
B i b l io g r a f ia do volume II
335
Cap. 17 Cap. 18
Guilherme de Ockham, Ultimas figuras
os Ockhamistas e a crise da Escolástica e fim do pensamento medieval
Textos Textos
Guilherme de Ockham: Filosofia, teologia, política, Marsílio de Pádua: Defensor pacis, sob a direção
sob a direção de A. Coccia, Andò, Palermo, 1966. de C. W. Previté-Orton, Cambridge, 1928.
Para os Ockhamistas: F. Bottin, La scienza degli Mestre Eckhart: Trattati e prediche, sob a direção
Occamisti, Maggioli Editore, Rimini, 1982. Veja- de G. Faggin, Rusconi, Milão, 1982.
se também Th. S. Kuhn, La struttura delle rivolu- Para os trechos de Dante Alighieri citados remete
zioni scientifiche, Einaudi, Turim, 1969. mos a: Convívio, em Le opere di Dante, “ Società
Dantesca Italiana” , Florença, 19602.
Literatura
Além das obras de caráter geral citadas no início e Literatura
as obras críticas citadas entre os textos, remetemos Para Marsílio de Pádua: G. De Lagarde, Alie origini
a: G. De Lagarde, Alie origini dello spirito laico, 5 dello spirito laico, cit., vol. III.
vols., Morcelliana, Bréscia, 1964-1968 (Ockham é Para Mestre Eckhart: G. Faggin, Meister Eckhart e
tratado nos vols. IV e V); A. Ghisalberti, Introdu- la mistica tedesca preprotestante, Bocca, Milão,
zione a Guglielmo di Ockham, Laterza, Roma-Bari, 1946; A. Klein, Meister Eckhart. La dottrina mistica
1976. delia giustificazione, Mursia, Milão, 1978.