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HISTORIA DA

FILOSOFIA
Patrística e Escolástica
G. Reale - D. Antiseri

HISTÓRIA
DA FILOSOFIA
2 Patrística
e Escolástica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Reale, Giovanni
História da filosofia : patrística e escolástica, v. 2 / Giovanni Reale, Dario Antiseri;
[tradução Ivo Storniolo]. — São Paulo : Paulus, 2003.

Título original: Storia delia filosofia. Patrística e Scolastica.


Bibliografia.
ISBN 85-349-2042-7

1. Filosofia - História I. Antiseri, Dario. II. Título. III. Título: Patrística e Escolástica.

02-178 CDD-109
índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia : História 109

Título original
Storia delia filosofia - Volume II: Patrística e Scolastica.
© Editrice LA SCUOLA, Brescia, Itália, 1997

Tradução
Ivo Storniolo

Revisão
Zolferino Tonon

Impressão e acabamento
PAULUS

2a edição, 2005

© PAULUS - 2003
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5084-3066
www.paulus.com.br* editorial@paulus.com.br

ISBN 85-349-2042-7
ISBN 88-350-9218-3 (ed. original)
Existem teorias, argum entações e * * *
disputas filosóficas pelo fato de existirem pro­
A história da filosofia é a história
blemas filosóficos. Assim como na pesquisa
dos problemas filosóficos, das teorias fi­
científica idéias e teorias científicas são res­
losóficas e das argumentações filosófi­
postas a problemas científicos, da mesma
cas. É a história das disputas entre filó­
forma, analogicamente, na pesquisa filosó­
sofos e dos erros dos filósofos. É sem pre
fica as teorias filosóficas são tentativas de
a história de novas tentativas de versar
solução dos problemas filosóficos.
sobre questões inevitáveis, na esperança
Os problem as filosóficos, portanto,
de conhecer sempre m elhor a nós m es­
existem, são inevitáveis e irreprimíveis; en­
m os e de en contrar orien tações para
volvem cada homem particular que não
nossa vida e m otivações m enos frágeis
renuncie a pensar. A maioria desses pro­
para nossas escolhas.
blemas não nos deixa em paz: Deus existe,
A história da filosofia ocidental é a
ou existiriamos apenas nós, perdidos nes­
história das idéias que in-formaram, ou
te imenso universo? 0 mundo é um cos­
seja, que deram forma à história do Oci­
mo ou um caos? A história humana tem
dente. É um patrimônio para não ser dis­
sentido? E s e tem, qualé? Ou, então, tudo
sipado, uma riqueza que não se deve
- a glória e a miséria, as grandes conquis­
perder. E exatamente para tal fim os pro­
tas e os sofrimentos inocentes, vítimas e
blemas, as teorias, as argum entações e
carrascos - tudo acabará no absurdo, des­
as disputas filosóficas são analiticamente
provido de qualquer sentido? E o homem:
explicados, expostos com a maior clareza
é livre e responsável ou é um simples frag­
possível.
mento insignificante do universo, determi­ ★ * *
nado em suas ações p or rígidas leis natu­
rais? A ciência pode nos dar certezas? O Uma explicação que pretenda ser cla­
que é a verdade? Quais são as relações ra e detalhada, a mais compreensível na
entre razão científica e fé religiosa? Quan­ medida do possível, e que ao mesmo tem­
do podem os dizer que um Estado é demo­ po ofereça explicações exaustivas compor­
crático? E quais são os fundamentos da de­ ta, todavia, um "efeito perverso", pelo fato
mocracia? É possível obter uma justificação de que pode não raramente constituir um
racional dos valores mais elevados? E quan­ obstáculo à "memorização" do complexo
do é que som os racionais? pensamento dos filósofos.
Eis, portanto, alguns dos problem as Esta é a razão pela qual os autores
filosóficos de fundo, que dizem respeito pensaram, seguindo o paradigma clássi­
às escolhas e ao destino de todo homem, co do Überweg, a n tep o r à exposição
e com os quais se aventuraram as m en­ analítica dos problemas e das idéias dos
tes mais elevadas da humanidade, dei­ diferentes filósofos uma síntese de tais
xando-nos com o herança um verdadeiro problemas e idéias, concebida como ins­
patrimônio de idéias, que constitui a iden­ trumento didático e auxiliar para a me­
tidade e a grande riqueza do Ocidente. morização.
VI p s e.v\taç.ão

* * * ★ ★ ★
Afirmou-se com justeza que, em linha A o executar este complexo traçado,
geral, um grande filósofo é o gênio de uma os autores se inspiraram em cânones psico-
grande idéia: Platão e o mundo das idéias, pedagógicos precisos, a fim de agilizar a
Aristóteles e o conceito de Ser, Plotino e a memorização das idéias filosóficas, que são
concepção do Uno, Agostinho e a "tercei­ as mais difíceis de assimilar: seguiram o
ra navegação" sobre o lenho da cruz, Des­ método da repetição de alguns conceitos-
cartes e o "cogito", Leibnizeas "mônadas”, chave, assim como em círculos cada vez
Kanteo transcendental, Hegel e a dialética, mais amplos, que vão justamente da sínte­
Marx e a alienação do trabalho, Kierke- se à análise e aos textos. Tais repetições,
gaard e o "singular", Bergson e a "dura­ retomadas e amplificadas de modo opor­
ção", Wittgenstein e os "jogos de lingua­ tuno, ajudam, de modo extremamente efi­
gem ", Popper e a "falsificabilidade" das caz, a fixar na atenção e na memória os
teorias científicas, e assim p or diante. nexos fundantes e as estruturas que sus­
Pois bem, os dois autores desta obra tentam o pensamento ocidental.
propõem um léxico filosófico, um dicioná­ * * *

rio dos conceitos fundamentais dos diver­ Buscou-se também oferecerão jovem,
sos filósofos, apresentados de maneira di­ atualmente educado para o pensamento
dática totalm ente nova. Se as sínteses visual, tabelas que representam sinotica-
iniciais são o instrumento didático da me­ mente mapas conceituais.
morização, o léxico foi idealizado e cons­ Além disso, julgou-se oportuno enri­
truído como instrumento da conceitualiza- quecer o texto com vasta e seleta série de
ção; e, juntos, uma espécie de chave que imagens, que apresentam, além do rosto
permita entrar nos escritos dos filósofos e dos filósofos, textos e momentos típicos da
deles apresentar interpretações que encon­ discussão filosófica.
trem pontos de apoio mais sólidos nos pró­
prios textos. ★ ★ ★
•*■ *'*■ Apresentamos, portanto, um texto ci­
entífica e didaticamente construído, com
Sínteses, análises, léxico ligam-se,
a intenção de oferecer instrumentos ade­
portanto, à ampla e meditada escolha dos
quados para introduzir nossos jovens a
textos, pois os dois autores da presente
olhar para a história dos problemas e das
obra estão profundam ente convencidos
idéias filosóficas como para a história gran­
do fato de que a compreensão de um fi­
de, fascinante e difícil dos esforços intelec­
lósofo se alcança de m odo adequado não
tuais que os mais elevados intelectos do
só recebendo aquilo que o autor diz, mas
Ocidente nos deixaram como dom, mas
lançando sondas intelectuais também nos
também como empenho.
m odos e nos jargões específicos dos tex­
tos filosóficos. G iovanni R eale - D ario A ntiseri
J7 n d ic e C X a r a I

índice dos nomes, XIII a pureza e a humildade, 20; 10. A ressurrei­


índice dos conceitos fundamentais, XVII ção dos mortos, 21.
III. Para além do horizonte
Primeira parte cultural grego----------------- 22
1. O desenvolvimento retilíneo da histó­
A REVOLUÇÃO ria que tem como fim o Juízo universal, 22;
ESPIRITUAL 2. A nova “ medida” do homem no pensa­
mento cristão, 23.
DA MENSAGEM
BÍBLICA
Segunda parte
Capítulo primeiro A PATRÍSTICA
A Bíblia, sua mensagem NA ÁREA CULTURAL
e suas influências
sobre o pensamento ocidental — 3 DE LÍNGUA GREGA
I. Estrutura e significado
da Bíblia__________________ 3 Capítulo segundo
1. O significado do termo “ Bíblia” , 3; Os problemas filosóficos essenciais
2. Os escritos que constituem o Antigo Tes­ que derivam do encontro
tamento, 3; 3. Os vinte e sete livros do N o­ entre “ fé” e “razão” .
vo Testamento, 5; 4. O conceito de “Tes­ Fílon de Alexandria
tam ento” , 6; 5. A inspiração divina da
Bíblia, 8; 6. A importância da Bíblia em
e a G nose___________________ 27
âmbito filosófico, 8.
I. Problemas emergentes
II. As idéias bíblicas do impacto com a Bíblia------ 27
que influíram I. A questão da autenticidade dos textos
sobre o pensamento ocidental 10 bíblicos, 27; 2. A questão da conciliabi-
lidade do Antigo e do Novo Testamento,
1. Passagem do politeísmo grego ao mono- 28; 3. A questão da identidade do cristão,
teísmo cristão, 11; 2. A criação a partir do 29; 4. Os grandes problemas teológicos,
nada, 12; 3. A concepção antropocêntrica 29; 5. O grande Prólogo do Evangelho de
contida na Bíblia, 12; 4. O respeito pelos
João, 30.
mandamentos divinos: a virtude e o peca­
do, 13; 5. O conceito de Providência na Bí­ II. Um precursor:
blia, 14; 6. A desobediência a Deus resgata­
da pela paixão de Cristo, 15; 7. O valor da Fílon de Alexandria________ 31
fé e a participação no Divino, 17; 8. O eros 1. A “ filosofia mosaica” , 32; 2. Deus, “ Lo-
grego, o amor (agápe) cristão e a graça, 18; gos” e “ Poder” , 32; 3. A antropologia filo-
9. Os valores fundamentais do cristianismo: niana, 33; 4. A nova ética, 33.
VIII Dnc\ iice qecaI

III.A Gnose_________________ II. Gregório de Nissa


34
1. Significado do termo “gnose” , 34; 2. Os e os Padres Capadócios_____ 57
novos documentos gnósticos descobertos, 1. A recuperação da cultura clássica dentro
35; 3. Os traços essenciais da doutrina da da fé, 57; 2. Realidade inteligível e mundo
gnose, 35; 4. A “ gnose” como expressão da sensível, 58; 3. A doutrina do homem, 58;
angústia de uma época, 36. 4. A ascensão a Deus, 58.
T extos - Fílon de Alexandria: 1. A criação
do mundo, 37; 2. A nulidade do homem, 38.
III. O Pseudo-Dionísio
Areopagita_______________ 59
1. Formulação da teologia apofática, 59.
Capítulo terceiro
Os apologistas gregos IV. Máximo o Confessor
e a Escola catequética e a última grande batalha
de Alexandria_______________ 39 cristológica_______________ 61
1. Afirmação do dogma de Cristo “ verda­
I. Os Apologistas gregos deiro Deus e verdadeiro homem” , 61.
do século II:
Aristides, Justino, Taciano___ 39 V. João Damasceno__________ 62
I. Marcião Aristides, 39; 2. Justino Mártir, 39; 1. Recuperação da filosofia aristotélica, 62.
2.1. O primeiro platônico cristão, 39; 2.2. A T extos -Gregório de Nissa: 1. Os dois planos
doutrina do Logos, 39; 2.3. A doutrina da alma,
da realidade: sensível e supra-sensível, 63;
40; 2.4. A condenação de Justino à morte, 40;
Pseudo-Dionísio Areopagita: 2. A concepção
3. Taciano, 40; 4. Atenágoras, 41; 5. Teófilo
de Deus como “acima de tudo ”, 65; Máximo
de Antioquia, 41; 6. A Carta a Diogneto, 41.
o Confessor: 3. As cinco divisões da natureza,
II. A Escola catequética 66; 4 .0 amor, 66; 5. A “liturgia cósmica”, 67.
de Alexandria:
Clemente e Orígenes_______ 43 Terceira parte
1. Clemente e a verdadeira “gnose” , 43; 2. A
figura e os fundamentos do pensamento de A PATRÍSTICA
Orígenes, 44; 2.1. Vida e obras filosóficas, 44;
2.2. Doutrina da Trindade e Neoplatonismo, NA ÁREA CULTURAL
44; 2.3. Criação, “apocatástase” e encarnação,
45; 2.4. Importância de Orígenes, 46.
DE LÍNGUA LATINA
TEXTos-Justino Mártir: 1. O itinerário filosó­
fico de Justino, 47; 2. O Logos é Cristo, 48; Capítulo quinto
Carta a Diogneto: 3. Os cristãos são a alma do A Patrística latina
mundo, 49; Clemente de Alexandria: 4. A antes de santo Agostinho______ 71
concepção platônica de Deus, 50; 5. A beleza
espiritual, 51; Orígenes: 6. Sabedoria grega e I. Minúcio Félix, Tertuliano
mensagem cristã, 52; 7. A apocatástase, 53. e os escritores cristãos
até o século IV _____________ 71
Capítulo quarto I. O primeiro escrito apologético cristão-
Os três luminares da Capadócia latino, 71; 2. Os fortes ataques de Minúcio
e as grandes figuras Félix contra os filósofos gregos, 72; 3. Para
do Pseudo-Dionísio Areopagita, Tertuliano, Atenas e Jerusalém nada têm em
comum, 72; 4. O fideísmo de Tertuliano:
Máximo o Confessor “credo quia absurdum” , 72; 5. Influxos es-
e João Damasceno___________ 55 tóicos na ontologia de Tertuliano, 73; 6. Es­
I. A era áurea da Patrística critores cristãos do século III e dos inícios
do IV, 73; 7. Tradutores, comentadores e
e o Concilio de Nicéia_______ 55 eruditos cristãos do século IV, 73.
1. O edito de Milão e as disputas teológicas,
55; 2. O Concilio de Nicéia e a fixação do II. As figuras de Ambrósio,
“credo” , 56. Jerônimo e Rufino ----------- 74
« U n d ic e
IX

1. Ambrósio, 74; 2. Jerônimo e Rufino, 74. II. As Escolas monacais,


T extos - Minúcio Félix: 1. Concordância episcopais e palatinas______ 121
entre filósofos e cristãos, 76; Tertuliano: 2. A 1. A Escolástica e os vários tipos de escola
filosofia e o cristianismo estão em contradi­ da Idade Média, 121; 2. A escola palatina
ção, 77; Ambrósio: 3. Os deveres, 80. criada por Alcuíno, 122.
III. A Universidade___________ 123
Capítulo sexto 1. As Universidades de Bolonha e Paris, 123;
Santo Agostinho 2. Efeitos explosivos da Universidade, 124;
e o apogeu da Patrística_______ 81 3. Razão e fé, 125; 4. Faculdade das artes e
Faculdade de teologia, 126; 5. A “ Cidade
I. A vida, a evolução espiritual de Deus” de Agostinho, 127.
e as obras de santo Agostinho — 81 IV. Joaquim de Fiore__________ 128
I. A vida, 81; 2. A evolução espiritual, 82; 1. A concepção trinitária da história, 128.
3. As obras, 84.
II. Fé, filosofia e vida Capítulo oitavo
no pensamento de Agostinho — 86 O surgimento da Escolástica
I. O filosofar na fé, 88; 2. A descoberta da e seus desenvolvimentos
pessoa e a metafísica da interioridade, 89; de Boécio a Escoto Eriúgena____ 129
3. A verdade e a iluminação, 90; 4. Deus, 91;
5. A Trindade, 93; 6. A doutrina da criação, I. A obra e o pensamento
94; 7. A doutrina das Idéias e das razões semi­ de Severino Boécio__________ 129
nais, 95; 8. A eternidade e a estrutura da tempo-
ralidade, 97; 9. O mal e seu estatuto ontológi- I. Boécio: “ o último dos romanos e o pri­
co, 97; 10. A vontade, a liberdade, a graça, 98; meiro dos escolásticos” , 129; 2. Boécio e a
II. A “ Cidade terrena” e a “ Cidade divina” , lógica, 130; 3 .0 De consolatione philosophiae:
99; 12. A essência do homem é o amor, 100. Deus é a própria felicidade, 131; 4. O pro­
blema do mal e a questão da liberdade, 132;
M apa C onceitual - A centralidade da Trin­ 5. Razão e fé em Boécio, 133; 6. Outros
dade divina, 101. autores do século VI ao século VIII, 133.
T extos -Agostinho: 1. A terceira navegação, II. João Escoto Eriúgena_______ 135
102; 2. O círculo hermenêutico entre razão
e fé, 104; 3. A natureza da Verdade, 106; 4. A 1. A figura e a obra de Escoto Eriúgena, 135;
iluminação, 106; 5. A natureza do Bem, 107; 2. Escoto Eriúgena e o Pseudo-Dionísio,
6. As "Idéias” como pensamentos de Deus, 136; 3. O De divisione naturae, 137; 4. A
110; 7. A criação do tempo e sua natureza, razão em função da fé, 138.
112; 8. O “sábado” de felicidade eterna na T ex t o s -Boécio: 1. A consolação da filoso­
Cidade de Deus e o “oitavo dia”, 114. fia, 139; Escoto Eriúgena: 2. A quadrúplice
divisão da natureza, 143.
Q uarta parte
Quinta parte
GÊNESE
DA ESCOLÁSTICA A ESCOLÁSTICA
NOS SÉCULOS
Capítulo sétimo DÉCIMO PRIMEIRO
A filosofia na Idade Média: E DÉCIMO SEGUNDO
a “ Escolástica” , as “Escolas” ,
as “ Universidades” ___________ 119 Capítulo nono
I. Desenvolvimentos Anselmo de A osta____________ 147
do pensamento medieval____ 119 1. A vida e as obras de Anselmo, 148; 2. Cen­
1. O quadro cronológico, 119. tralidade do problema de Deus em Ansel­
X *Z7k\c! íice qefaI

mo, 149; 3. As provas a posteriori da existên­ I. As Escolas de Chartres


cia de Deus, 149; 4. A prova a priori da exis­ e de São Vítor_____________ 177
tência de Deus ou “argumento ontológico”,
150; 5. Críticas e consensos ao argumento on­ I. Tradição e inovação, 177; 2. As artes do
tológico, 150; 6. Deus e o homem, 151; 7. A trívio em perspectiva religiosa, 178; 3. O
razão dentro do traçado da fé, 153; 8. Carac­ Timeu de Platão interpretado à luz do Gê­
terísticas do “realismo” de Anselmo, 153. nesis, 179; 4. O Didascalicon de Hugo de
São Vítor, 180; 5. A mística e Ricardo de
M apa C onceituai . - Deus e o homem, 155. São Vítor, 180.
T ix io s - Anselmo de Aosta: 1 .0 argumento on­ II. Pedro Lombardo
tológico, 156; 2. A disputa com Gaunilon, 157;
3.AnselmorespondeàsobjeçõesdeGaunilon,160.
e João de Salisbury_________ 182
1. Os livros das Sentenças de Pedro Lom­
bardo, 182; 2. João de Salisbury: os limites
Capítulo décimo da razão e a autoridade da lei, 183.
Abelardo e a grande controvérsia T extos - Hugo de São Vítor: 1. O valor
sobre os universais____________ 161 dos clássicos, 184; Pedro Lombardo: 2. Sen­
tenças sobre filosofia e sobre teologia, 185.
I. Pedro Abelardo____________ 161
I. A vida e as obras, 162; 2. A “dúvida” e as
“regras da pesquisa”, 162; 3. A “ratio” e seu Sexta parte
papel na teologia, 163; 4. Princípios fundamen­
tais da ética, 164; 5. “Intelligo utcredam”, 164. A ESCOLÁSTICA
II. A grande controvérsia NO SÉCULO
sobre os universais__________ 166 DÉCIMO TERCEIRO
1. Os estudos “gramaticais” , 166; 2. A ques­
tão da “ dialética”, 167; 3 .0 problema dos uni­
versais, 167; 3.1. A questão da relação dos Capítulo décimo segundo
nomes e dos conceitos mentais com a reali­ A filosofia árabe e a hebraica,
dade, 167; 3.2. A solução do realismo exage­ a penetração de Aristóteles
rado, 168; 3.3. A solução nominalista, 168;
3.4. A solução moderada de Abelardo: o uni­
no Ocidente
versal como “sermo” extraído da “ratio” sobre e a mediação
a base do “status communis” dos indivíduos, 169; entre aristotelismo
3.5. Implicações lógicas e metafísicas da posi­ e cristianismo_______________ 189
ção “conceitualista” de Abelardo, 169; 3.6. A
posição do “realismo moderado” que será as­ I. A situação política e cultural
sumida por santo Tomás e se imporá como clás­ no século XIII_____________ 189
sica, 170; 3.7. Quadro sinótico geral do pro­ I. Situação político-social e instituições ecle­
blema dos universais e das suas soluções, 170. siásticas, 189; 2. A situação cultural, 190.
M apa C onceitual - Disputa sobre os uni­
versais, 171. II. O aristotelismo de Avicena__191
1. A figura e a obra, 191; 2. O ser possível e
T extos - Abelardo: 1. Confissões autobio­
o ser necessário, 192; 3. A “ lógica da gera­
gráficas a um amigo, 172; 2. A lógica a ser­ ção” e a influência de Avicena, 193.
viço da teologia, 174; Porfírio: 3. A ques­
tão dos universais, 175. III. O aristotelismo de Averróis„ 194
1. A figura e as obras, 194; 2. Primado da
filosofia e eternidade do mundo, 195; 3. Uni-
Capítulo décimo primeiro cidade do intelecto humano, 196; 4. Con-
Centros promotores de cultura seqiiências da unicidade do intelecto, 197;
do século décimo segundo. 5. As primeiras condenações do aristotelis­
As escolas de Chartres mo, 197.
e de São Vítor, Pedro Lombardo M apa C onceitual - Averróis: A teoria do
e João de Salisbury___________177 intelecto, 199.
tU rvd ice 0 e i* a l
XI

IV. A filosofia hebraica________ 200 M apa C onceituai . - O conhecimento huma­


no das leis, 230.
1. Influxos hebraicos sobre o Ocidente: Avi-
cebron, 200; 2. Moisés Maimônides, 200. V. O “filosofar na fé” em Tomás— 231
V. Alberto M agno____________ 202 1. A fé, guia da razão, 231.
1. O programa de pesquisa de Alberto M ag­ T extos - Tomás: 1. Sobre a “cientificidade”
no, 202; 2. A distinção entre filosofia e teo­ da doutrina sagrada, 233; 2. Ente e essên­
logia, 203; 3. Filósofos gregos e teólogos cia, 235; 3. A natureza da alma, 241; 4. As
cristãos, 204. cinco vias para demonstrar a existência de
Deus, 245; 5. Lei eterna, lei natural, lei hu­
T extos - Avicena: 1. A teoria dos intelectos, mana e lei divina, 248.
205; Alberto Magno: 2. A natureza do bem, 206.

Capítulo décimo quarto


Capítulo décimo terceiro O movimento franciscano
A grande síntese e Boaventura de Bagnoregio---- 253
de Tomás de Aquino_________ 211
I. O franciscanismo--------------- 253
I. A vida e as obras de Tomás — 211 1. São Francisco e o franciscanismo, 253;
I. Tomás, um dos maiores pensadores de 2. Alexandre de Hales, 254.
todos os tempos, 211; 2. Razão e fé, filoso­
fia e teologia, 212; 3. A teologia não substi­ II. São Boaventura e os vértices
tui a filosofia, 213. da Escola franciscana----------255
1. São Boaventura: a vida e as obras, 256;
II. A ontologia_______________ 215 2. A posição de Boaventura contra o aristote-
1. O conceito de ente, 216; 2. O ente lógico, lismo averroísta, 256; 3. Na origem dos er­
216; 3. O ente real e a distinção entre essên­ ros do aristotelismo, 257; 4. O exemplarismo,
cia e existência, 216; 4. Novidade da pers­ 258; 5. As “rationes seminales” , 259; 6. Co­
pectiva tomista em relação à ontologia grega, nhecimento humano e iluminação divina,
217; 5. Os transcendentais: o ente como uno, 259; 7. Deus, o homem e a pluralidade das
verdadeiro, bom, 217; 5.1. A unidade do ente formas, 260; 8. Boaventura e Tomás: “uma”
(“ omne ens est unum” ), 217; 5.2. A verdade fé e “duas” filosofias, 261.
do ente (“ omne ens est verum” ), 218; 5.3. A
bondade do ente (“omne ens est bonum” ), 219; M apa C onceitual - Boaventura: A criação,
6. A analogia do ser, 219; 7. Transcendência 262.
de Deus e teologia negativa, 220. T exto s -Boaventura: 1. As seis etapas para
chegar a Deus, 263.
M apa C onceituai . - A ontologia, 2 2 1 .

III. A teologia: Capítulo décimo quinto


as cinco vias para provar Averroísmo latino,
a existência de Deus---------- 222 neo-agostinismo
1. Conhecimento “ a posteriori” da existên­ e filosofia experimental
cia de Deus, 222; 2. A primeira via, ou via no século décimo terceiro------- 269
do movimento, 223; 3. A segunda via, ou
via da causalidade eficiente, 223; 4. A tercei­ I. Siger de Brabante
ra via, ou via da contingência, 224; 5. A quar­ e o averroísmo latino-----------269
ta via, ou via dos graus de perfeição, 225;
6. A quinta via, ou via do finalismo, 225. I. O averroísmo latino, 269; 2. Siger de Bra­
bante e a doutrina da dupla verdade, 270;
M apa C oncf.itual - A s cinco provas da exis­ 3. Os franciscanos em polêmica contra o
tência de Deus, 226. aristotelismo e o relançamento do agostinis-
mo, 271.
IV. A teoria do direito_________227
1. O livre-arbítrio, 227; 2. “ Lex aeterna” , II. A filosofia experimental
“ lex naturalis” , “ lex humana” , “ lex divi­ e as primeiras pesquisas científicas
na” , 228. na era da Escolástica-----------272
XII C J n d ic e g e m I

1. Roberto Grosseteste, 272; 2. Roger Ba­ universal e o nominalismo, 300; 7. A “ na­


con, 273; 2.1. A vida e as obras, 273; 2.2. An­ valha de Ockham” e a dissolução da metafísica
tecipações por parte de Roger Bacon de idéias tradicional, 301; 8. A nova lógica, 302; 9. O
que Francis Bacon tornará famosas no séc. problema da existência de Deus, 303; 10. Con­
XVI, 274; 2.3. A experiência como base de to­ tra a teocracia, a favor do pluralismo, 304.
do conhecimento, 274; 2.4. Problemas físi­
M apa C onceitual - A teoria do conhecimen­
cos e técnicos em Bacon, 274; 2.5. As idéias de
Bacon sobre as traduções, 275; 3. Pesquisas to, 306.
tecnológicas na Idade Média, 276. II. Ockham
e a ciência dos Ockamistas__ 307
Capítulo décimo sexto 1. O novo método da pesquisa científica
proposto por Ockham, 307; 1.1. Fidelida­
João Duns Escoto_____________ 277 de à experiência, 307; 1.2. É preciso buscar
I. A vida e a o b ra _____________ 277 não a essência mas a função dos fenôme­
nos, 308; 1.3. Valorização de hipóteses
I. O “ Doutor sutil” , 277; 2. Distinção en­ explicativas, 308; 1.4. Para uma concepção
tre filosofia e teologia, 278. do universo como homogêneo, 308; 2. Os
II. A metafísica-------------------- 279 Ockhamistas e a ciência aristotélica, 308;
2.1. Para um novo paradigma científico que
1. A univocidade do ente, 280; 2. O ente ultrapassa o aristotelismo, 308; 2.2. Críti­
unívoco, objeto primeiro do intelecto, 281; cas de Buridan a Aristóteles com o método
3. A ascensão a Deus, 282; 4. A insuficiên­ da falsificação empírica, 309; 2.3. Outros
cia do conceito de ente infinito, 282; 5 .0 prin­ contributos significativos, 310; 3. Os Ockha­
cípio de individuação e a “ haecceitas” , 283. mistas e a ciência de Galileu, 310.
III. A concepção do direito------ 285 T extos - Guilherme de Ockam: 1. A lógica
1. O voluntarismo e o direito natural, 285. dos termos, 312.
M apa C onceitual - A univocidade do ente,
287. Capítulo décimo oitavo
T extos - Duns Escoto: 1. A univocidade do Últimas figuras
ente, 288; 2. O princípio de individuação, 290 e fim do pensamento medieval _ 321
I. O problema
Sétima parte do “primado” político-------- 321
I. Egídio Romano e João de Paris: tem pri­
A ESCOLÁSTICA mado a Igreja ou o Império?, 321; 2. O De­
fensor pacis de Marsílio de Pádua, 322.
NO SÉCULO
DÉCIMO QUARTO II. Dois reformadores pré-luteranos:
João Wyclif e João Huss_____ 324
1. João Wyclif, 324; 2. João Huss, 325.
Capítulo décimo sétimo
Guilherme de Ockham, III. Mestre Eckhart
os Ockhamistas e a mística especulativa alemã _ 326
e a crise da Escolástica________ 295 1. As razões da mística especulativa, 326;
2. Mestre Eckhart: o homem e o mundo são
I. Guilherme de Ockham______ 295 nada sem Deus, 327; 3. O retorno do ho­
mem a Deus, 328; 4. Oposições suscitadas
1. A situação histórico-social do séc. XIV, por Eckhart e seus discípulos, 328.
296; 2. Guilherme de Ockham: a figura e as
obras, 298; 3. Independência da fé em rela­ T extos - Mestre Eckhart: 1. Ver Deus nas
ção à razão, 299; 4. O empirismo e o prima­ criaturas e as criaturas em Deus é fonte de
do do indivíduo, 299; 5. Conhecimento in­ verdadeira consolação, 330.
tuitivo e conhecimento abstrato, 300; 6. O Bibliografia do segundo volume, 333.
Z J n c lic e d e nomes*

170,175,178,185,189,190, Berruguete P., 286


A 193,194,195,196,198,202, B oaventura de B agnoregio , 119,
A belardo P., 119, 120, 122, 146, 203,204,206,209,218,219, 120, 137, 147, 151, 187,
161-165,166,167,168,169, 223,225,231,232,233,234, 188, 190, 193, 198, 212,
170,171, 172-175, 178, 182, 235,242,243,244,245,248, 254,255-262,263-268,271,
183, 190 249,250,251,254,257,258, 277,286
270,271,273,274,275,278, Boécio de D áCia, 270
Adeodato, 82 284, 308, 309, 313, 326
A gostinho de H ipona, 30, 44, 69, Boécio S., 119,120,122, 129-134,
A rnóbio, 73 139-243,162,207,212,237,
70, 71, 73, 75, 81-101, 102­
A tanásio de A lexandria, 28, 56 275
116,119,120,122,126,127,
158,162,175,185,202,203, A tenágoras de A tenas, 39, 41 Bonifácio VIII, papa, 271,277,296,
204,206,227,228,233,242, A verróis, 126, 191, 194-199, 200, 297, 322
243,248,249, 250,251,254, 201,253,257,258,269,270, Botticelli S., 92, 96
257, 258, 271, 273, 330 271,274,284 Bradwardine T., 310, 324
A lberto M agno , 137, 190, 198, A vicf.bron, 200 Buridan J., 305, 307, 309-310
202-204, 206-210, 211, 212, A vicena, 126, 191-193, 194, 195,
270, 272, 273, 276, 326, 329 200, 201, 205-206, 235, 236,
A lcuíno de Y ork, 121, 122, 134, 237, 238,241,257,284
135
c
A lexandre III, Papa, 128
A lexandre de A frodísia, 130
C alcídio, 73
A lexandre de H ales, 190,198,253,
B Calisto II, antipapa, 128
254, 256
Alexandre Magno, 275 Carlos IV, imperador, 297
Bacon E, 272, 274 Carlos Magno, 121, 122, 134
Alpago A., 205
Bacon R., 272, 273-276, 277 Carlos o Calvo, imperador, 5, 135,
A mbrósio, 74, 80, 81, 82, 83, 84, 136
Balthasar, H.U. von, 62
120
Bas(lides, 36 C arnéades, 72
A mélio, 89
Basílio de C esaréia, 56, 57 C arpócrates, 36
A mônio S acas, 45
Beato Angélico, 244 C arta A D iogneto, 39, 41-42, 49-50
A nselmo de A osta, 119, 120, 122,
Beatus de Liébana, 9 C assiodoro M.A., 122, 134
145, 146, 147-155, 156-160,
162,164,166,169,171,190, B ecket, T., 183 Celino de Nese, 126
257, 260 B eda, o V enerável, 122, 134 Chenu M.-D., 233
A nselmo de L aon, 162 Bf.rengário de T ours, 167 C ícero, M arco T úlio, 73, 74, 82,
A rcesilau de Pitane, 72 Bergognone, Ambrósio 122, 249, 250
Á rio, 56 de Fossano dito o, 75 C ino de Pistóia, 126
A ristóteles, 8, 11, 12, 14, 19, 21, Bernardo de C hartres, 166, 177, C ipriano de C artago, 71, 73, 130
62, 92, 97, 112, 120, 129, 178, 179, 184 C leanto de A ssos, 76
130,131,141,162,166,168, Bernardo de C laraval, 254 Clemente IV, papa, 274

* Neste índice:
-reportam-se em versal-versalete os nomes dos filósofos e dos homens de cultura ligados ao desenvolvi­
mento do pensamento ocidental, para os quais indicam-se em negrito as páginas em que o autor é tratado
de acordo com o tema, e em itálico as páginas dos textos;
-reportam-se em itálico os nomes dos críticos;
-reportam-se em redondo todos os nomes não pertencentes aos agrupamentos anteriores.
XIV Ó n Ji ice d e n o m e s

C lemente de A lexandria , 43-44,


S0-S1, 76 G 3
C lemente R omano, 29, 43
GaddiT., 182 Jaeger W., 57
CONSTANTINO, IMPERADOR, 55, 73
G alilei G., 310 J erônimo, 6, 74-75, 120, 234
C ousin V., 130
Galla Placídia, 16 J erônimo de Á scoli, 274
C risipo de Sôli, 12, 76
G aunilon, 147, 151, 157, 160 J oão C límaco, 68
C rispo, 73
Gelásio I, papa, 321, 322 JoAo D amasceno, 26, 62, 68, 120,
C roce B., 8 235, 245
G herardo de C remona, 192
G ilberto Porretano, 177, 178 J oão de J andun, 322
G onsalvo H ispano, 277 J oão de Paris, 321-322
G otescalco, 135 Toáo de Salisbury, 146, 166, 178,
V G regório M agno, papa, 120, 208 182,183
Gregório VII, papa, 128, 296 João Evangelista, 1, 5, 19, 27, 30,
Dàmaso, papa, 74 Gregório IX, papa, 197 32, 102, 103,327
D ante A lighieri, 321, 322 Gregório X, papa, 212, 276 J oão Ibn D ahut, 200
Demétrio (bispo), 44 G regório N azianzeno, 56, 57, 66 J oão XXII, 297, 298, 324, 328
D e R egina J., 271 G regório de N issa, 56
Joaquim De Fiore, 128
D escartes R., 90, 147, 151 J ustiniano, imperador, 44, 121
G rousset, R., 24
D e L a M are G., 271 J ustino M ártir, 39-40, 47-48, 49,
G ualtier de Bruges, 254
D onato, H f.lio, 122
76
G uilherme II, o Ruivo, rei da Ingla­
Justo de Gand, 286
D uns E scoto J., 119,120,147,151, terra, 148
190,192,193,277-287,288­ G uilherme de A uxerre, 198
292, 301,303,324 G uilherme de C hampeaux, 162,166,
168, 171, 172, 173, 180
G uilherme de C onches, 177, 179,
180 K
G uilherme de M oerbecke, 326
G undissalvi D., 192, 200 K a n t I., 147, 151
<£ Kilwardby R., 271, 297, 322
K uhn T., 310
Ecberto, 134
E gídio de L assines, 270
E gídio R omano, 2 6 9 ,2 7 1 , 321-322 ■
H
Elias, 277
Hayim, 4
E picuro, 24
H eloísa, 162, 165 L
E pífanes, 36
H enrique I, o L eAo, rei da Ingla­
E sgoto E riúgena J., 61, 66, 117,
terra , 148 L actâncio, L úcio F irmiano, 71, 73
118, 119, 122, 135-138, 143­
144, 148, 166, 168, 190 H enrique VI df. Suf.via, 128 Landolfo de Aquino, 211
E stêvão de P rovins, 198 H enrique df, G and, 271 L eibniz G. W., 147, 151
E usébio de C esaréia, 55 H enrique S uso, 328 Leão XIII, papa, 261
H eráclides Pôntico, 76 Leônidas, pai de Orígenes, 44
H eráclito, 48 Lippi F., 167
H esíodo, 76 Lucas Evangelista, 5, 8, 15
H ilário df, Poitiers, 73 Ludovico o Bávaro, imperador, 297,
Holder A., 133 299
F H ugo de SAo V ítor, 137,177, 180, L utf.ro M., 304
181, 184-185, 235, 254
Fabro C., 220 Huss J., 305, 325
F austo, 83
Filipe o Belo, rei da França, 277,
297 M
Fílon de Alexandria, 26, 28, 31-34,
37-38, 39, 74, 91, 110 J Macrina, 63, 64
F írmico M aterno, J úlio, 73 M acróbio, A mbrósio T eodósio, 73
Francisco de Assis, 253, 263, 267 Inãcio de A ntioquia, 29 M estre E ckhart, 293, 326, 327­
Frederico I Barbarroxa, imperador, Inocêncio III, papa, 189, 190, 296, 328, 330-331
123, 128 322 Magno, 234
Frederico II de Suévia, imperador, Isac J udeu, 200 M aimônides M ., 200-201
189, 211 Isidoro, (gnóstico), 36 M arciano A ristidf.s, 39
Fulberto, 177 Isidoro de Sevilha, 122 M arciano C apella, 136, 178
T T o d ic e d e n o m e s
XV

M arciào de S inope, gnóstico 179 Pinturicchio, Bernardino de Betto Símaco, Quinto Aurélio Mêmio,
Marcos Evangelista, 5, 19, 20 dito o, 94 130
M arsíliodePádua, 321,322-323,324 Pirro df. E lida, 72 Simão de A uthie, 198
M áximo o C onfessor, 25, 26, 61­ Pitágoras, 40, 72, 185 Sinésio de C irenf, 56
62, 66-68, 119, 136 P latão, 8, 11, 12, 14, 17, 18, 21, S ócrates, 21, 24, 48, 249
M ateus df, A cquasparta, 269, 271 33,39,40,50, 62, 72, 73,89,
Mateus Evangelista, 5, 7, 15, 20 91, 95, 102, 106, 107, 110,
Melitão G., 256 111,112,114,115,120,130,
135,177,179,180,184,185,
M inúcio F élix, 71, 72, 76-77 231,232, 249,257, 279, 326
Moeller C., 24 T
Pi.otino, 11,12,21,35,45, 81, 84,
Mônica, 81, 82 88,89,91, 92, 95, 96, 112 T aciano, o A ssírio, 39, 40-41
Pohlenz M., 15, 84 T auler J., 328
Policarpo de E smirna, 29 Tempier E., 269,270,271,297, 322
Porfírio de T iro, 81, 84, 89, 129, Teodora, 211
130, 162, 175-176, 278, 289
A) Teodorico, imperador, 129, 131
Prisciano de L ídia, 122
T eodorico df. C hartres, 177, 179,
N édélec H., 271 P roclo, 327 180
N emésio de E mesa, 56 Pseudo-Dionísio Areopagita, 26, T eodorico de F riburgo, 276
59-60, 65-66, 135, 136, 137,
N estório de A ntioquia, 30 T eófilo de A ntioquia, 39, 41, 58
143, 212, 264, 327
N icolau de A utrecourt, 305 T ertuliano Q. Sétimo Florentf., 71,
Ptolomeu, C láudio, 178
N icolau de O resme, 305, 307, 310 72-73, 77-79
Ptolomeu F iladelfo, 6
N ovaciano, 71, 73 T omãs de A quino, 62, 119, 120,
137, 147, 151, 166, 167,
170, 171, 188, 190, 192,
193, 198, 201, 203, 204,
O 211-232,233-252,259,261,
O 269, 271, 277, 286, 301,
Q uastf.n , 43 303, 322, 326, 328
O ckham, G uilherme df., 119, 120, Q uirino, 48 Tomás de Módena, 202
171,294,295,296,298-306,
307, 308,309,312-320, 321,
324, 326, 327, 329
O rígenes, o C ristão, 43, 44-46, 52-54
R
V
Raffaello Sanzio, 120
Reginaldo de Piperno, 212 V alentim, 36
P Renan E., 269 Valério (bispo), 82
R icardo de M iddlf.town, 271 V anni R ovighi S., 182, 216
Pacher M., 85 R icardo de São V ítor, 177, 180­ Vítor IV, antipapa, 128
P antf.no , 43 181,254 V itorino, G aio MArio, 71, 73, 84,
Parmênides, 12, 24 Roberto de Courçon, 190, 197 130
Pascoal III, antipapa, 128 R oberto de M elun, 235
Patrício, 82 R oberto G rossetf.stf., 2 7 2 -2 7 3 ,
Paulo de Tarso, 3, 5,16,17,19,21, 274, 275, 276, 277
27, 52, 59, 65, 79, 80, 83, R oger de M arston, 271
136, 183, 246, 328 R osceuno DE C ompiégne, 162, 166,
w
Peckham J., 271, 277, 297 168, 169, 171
R ufino, 74-75 WlTEl O, 276
Pedro D amiáo, 166
Rusticiana, 129 W yci.if J., 304, 305,324-325
P edro L ombardo, 146, 182-183,
185-186,202,212,235, 277, R uysbrof.ck, J. de, 329
278,283,298
Pedro, papa, 8
Pf.dro de J oão O livi, 271
Pelágio, 84
2
Peregrino R, 273
P etrarca F„ 89, 297 Saladino, sultão, 200 Z enào de C ício, 12
Pedro, o V enerável, 162 S êneca, L úcio A nf.u, 71, 73 Zósimo, papa, 84
Pll.ATOS, PÔNCIO, 48 S igf.r de B rabante, 269, 270-271 Zurbarán, Francisco de, 232
Z J n d ice d e co n ce ito s
d am e rifai s

agápe, 19
alegoria, 32
analogia, 220
apocatástase, 46
argumento ontológico, 150
monoteísmo, 11
c
conceitualismo, 169
criacionismo, 12 N
navalha de Ockham, 302
nominalismo, 169

ente e essência, 193


■R
realismo exagerado, 168
F realismo moderado, 170

fé e razão, 88
T-

haecceitas, 284 teologia apofática, 59


transcendentais, 219

u
iluminação, 91
intelecto “ possível” universais, 154
e intelecto “ agente” , 196 univocidade, 281
PATRÍSTICA
E ESCOLÁSTICA
A REVOLUÇÃO
ESPIRITUAL
DA MENSAGEM BÍBLICA

“Em verdade, em verdade, vos digo:


ninguém poderá vero Reino de Deus
se não nascer de novo.”

E v a n g e lh o seg u n d o Jo ã o
Capítulo primeiro

A Bíblia, sua mensagem e suas influências


sobre o pensamento ocidental
CS a p í t u l o p r im e ir o

j A B íblia,
s u a m e n s a g e m e s u a s influências
so b re o p en sa m en to ocidental

I. ( S s t m t u m e s i g n i f c a d o d a 3 íblia

• Com o nome de Bíblia (do grego biblía = "livros") indicam-se 73 livros con­
siderados inspirados, distintos em Antigo Testamento (46 livros) e Novo Testamen­
to (27 livros).
O Antigo Testamento divide-se por sua vez em livros his­
O que é a Bíblia
tóricos, livros didáticos e livros proféticos. Os primeiros cinco
1-5
livros históricos (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deute-
ronômio) são os livros da Lei ou Pentateuco.
0 Novo Testamento é composto pelos quatro Evangelhos, pelas Cartas de
Paulo, pelas Cartas dos Apóstolos e pelo Apocalipse.
"Testamento" traduz o termo grego diathéke e indica o pacto ou aliança que
Deus ofereceu a Israel.

• A mensagem bíblica, mesmo que não tenha sido inspirada pela razão e sim
pela fé, teve tal impacto histórico e incidiu de modo tão profundo na concepção
do mundo e da natureza do homem, que deve ser considerada
também do ponto de vista filosófico. a importância
Neste sentido, ela trouxe algumas contribuições revolu- históríco-cultural
cionárías para a história do pensamento. da Bíblia
-> § 6

1 o s ig n if ic a d o Os livros da Bíblia dividem-se em dois


grandes grupos:
d o te rm o " B íb lia " a) os do Antigo Testamento (redigidos
a partir de aproximadamente 1300 a.C. até
“ Bíblia” , do grego biblía, significa “ li­ 100 a.C.; entretanto, os primeiros livros ba­
vros” . E um plural (de biblíon) que, no la­ seiam-se em uma tradição oral antiquíssima;
tim e nas línguas modernas, foi transliterado b) os do Novo Testamento, que remon­
como singular para indicar o “livro” por ex­ tam todos ao século I d.C., centrando-se in­
celência. Na realidade, a Bíblia não é um só teiramente na nova mensagem de Cristo.
livro, mas coletânea de uma série de livros,
cada qual apresentando um título e peculia­
ridades específicas, caracterizado também 2 CD s e s c r it o s q u e co u stitu e m
por extensão diversa e diferentes estilos li­
o T^utigo X e s t a m e u t o
terários e redacionais. Chegou-se a falar até
mesmo da Bíblia como de uma “coletânea
de coletâneas” de livros, já que, por seu tur­ Os livros do Antigo Testamento re­
no, alguns livros são precisamente coletâ­ conhecidos como canônicos pela Igreja ca­
neas de vários livros. tólica (ou seja, que contêm o “ cânon” ou
4 Primeirã parte - y \ r e v o l u ç ã o e s p i r i t u a l d a m e n s a g e m b í b l ic ã

a “ regra” em que deve se basear o crente


no que se refere à verdade da fé) são qua­
renta e seis, subdivididos da seguinte ma­
neira:
Livros históricos:
1. Gênesis
2. Êxodo
3. Levítico
4. Números
5. Deuteronômio
(os livros de Moisés — 1/5 — de­
nominam-se Pentateuco, que significa,
precisamente, “ conjunto de cinco livros” .
Também são chamados Torá, que quer
dizer “ Lei” , ou seja, os livros que contêm
a lei.)
6 . Josué
7. Juizes
8. Rute
9. Primeiro Samuel
10. Segundo Samuel
11. Primeiro Reis
12. Segundo Reis
(os livros 9/12 indicam-se também com Bíblia de Scbocken (Jerusalém, Instituto Schocken).
o título geral de Reis I, II, III, IV) Iluminura de página inteira
13. Primeiro Crônicas com a palavra Bercshith
(“ No princípio"), início do livro do Gênesis,
14. Segundo Crônicas decorada com 46 medalhões
15. Esdras que representam episódios bíblicos ordenados
16. Neemias seqüencialmente da direita para a esquerda
(os livros 15/16 são também indicados e do alto para baixo;
os primeiros episódios são dedicados
por Esdras I e II) a Adão e Eva, e o último a Balaão c ao anjo.
17. Tobias O ilustrador, chamado Hayim,
18. Judite trabalhou por volta de I ó00
19. Ester na Alemanha meridional.
20. Primeiro livro dos Macabeus
21. Segundo livro dos Macabeus
33. Ezequiel
Livros sapienciais ou poéticos: 34. Daniel
22. Jó
(este segundo grupo — 35/46 — é cha­
23. Salmos
mado de “profetas menores” por causa da
24. Provérbios
quantidade exígua de seus escritos)
25. Eclesiastes
26. Cântico dos Cânticos 35. Oséias
27. Sabedoria 3 6 . Joel
28. Eclesiástico 37. Amós
Livros proféticos: 38. Abdias
3 9 . Jonas
(este primeiro grupo — 29/34 — de­ 40. Miquéias
nomina-se “profetas maiores” , por causa da 41. Naum
extensão dos escritos) 4 2 . Habacuc
29. Isaias 43. Sofonias
30. Jeremias 44. Ageu
31. Lamentações 45. Zacarias
32. Baruc 46. Malaquias
5
Cãpítulo primeiro - y \ B íb lia , s u a m e n s a g e m e s u a s in flu ê ncia s...

Esse “ cânon” , que consta já ter assu­ 3 Os vinte e sete liveos


mido consistência entre os cristãos desde o do /\)ovo "Testamento
século IV, foi sancionado definitivamente
pelo Concilio de Trento (os protestantes,
porém, adotaram o cânon hebraico, do qual Os livros do Novo Testamento reco­
falaremos logo adiante). nhecidos como canônicos são 27, divididos
Os hebreus adotaram apenas trinta e da seguinte maneira:
seis livros (dividindo-os em “Torá” , “ Pro­ Quatro Evangelhos, com os Atos dos
fetas” e “ Livros” ), excluindo Tobias, Judite, Apóstolos:
Primeiro e Segundo Macabeus, Sabedoria,
Eclesiástico, Baruc e também parte de Daniel, 1. Evangelho segundo Mateus
que são livros redigidos em grego ou que 2. Evangelho segundo Marcos
nos são conhecidos somente no texto gre­ 3. Evangelho segundo Lucas
go. (Hoje, porém, estamos em condições de 4. Evangelho segundo João
estabelecer que tal restrição remonta aos 5. Atos dos Apóstolos
fariseus da Palestina, que pensavam que, Um corpus de cartas de são Paulo (ou
depois de Esdras, cessara a inspiração divi­ a ele atribuídas):
na, enquanto outras comunidades hebrai­ 6. Carta aos Romanos
cas incluíam entre os livros sagrados tam­ 7. Primeira carta aos Coríntios
bém alguns destes livros. Com efeito, nas 8. Segunda carta aos Coríntios
descobertas ocorridas em 1947 em Qumran, 9. Carta aos Gálatas
que trouxeram à luz numerosos livros per­ 10. Carta aos Efésios
tencentes a uma comunidade hebraica ati­ 11. Carta aos Filipenses
va da época de Cristo, foram achados os 12. Carta aos Colossenses
livros de Tobias e o Eclesiástico, que, por­ 13. Primeira carta aos Tessalonicenses
tanto, não estavam excluídos dos livros sa­ 14. Segunda carta aos Tessalonicenses
grados.) 15. Primeira carta a Timóteo
16. Segunda carta a Timóteo
17. Carta a Tito
18. Carta a Filemon
19. Carta aos Hebreus
Sete cartas de apóstolos ou atribuídas
a apóstolos:
20. Carta de Tiago
21. Primeira carta de Pedro
22. Segunda carta de Pedro
23. Primeira carta de João
24. Segunda carta de João
25. Terceira carta de João
26. Carta de Judas
Um livro profético de S. João:
27. Apocalipse

Hoje, os estudiosos estão bastante con­


cordes em considerar que a Carta aos He­
breus não foi escrita por Paulo, embora o
autor esteja próximo da visão paulina.
Os textos da Bíblia foram redigidos em
três línguas:
- hebraico (a maior parte do Antigo
Testamento)-,
- pequena parte em aramaico (um dia­
leto hebraico);
Uma página da preciosa Bíblia de Carlos o Calvo - e em grego (alguns textos do Antigo
com as histórias de Adão (séc. IX). Testamento e todo o Novo Testamento; ape­
6 Primeira parte - y\ r e v o l u ç ã o e s p i ritual dIa m e n s a g e m b í b l ic a

nas o Evangelho de Mateus, ao que parece, tando-se de manhã, construiu um altar ao


foi redigido primeiro em aramaico e depois pé da montanha e doze esteias para as doze
traduzido em grego). tribos de Israel. Depois enviou alguns jo­
Duas traduções basilares tiveram gran­ vens dos filhos de Israel, e ofereceram os
de importância histórica. Uma, em língua seus holocaustos e imolaram a Javé novi­
grega, de todo o Antigo Testamento: a cha­ lhos como sacrifícios de comunhão. Moisés
mada tradução dos “ Setenta” , iniciada em tomou a metade do sangue e colocou-a em
Alexandria sob o reinado de Ptolomeu Fi- bacias, e espargiu a outra metade do sangue
ladelfo (285-246 a.C.), que ficou como pon­ sobre o altar. Tomou o livro da aliança e o
to de referência na área da cultura grega para leu para o povo; e eles disseram: ‘Tudo o
os próprios hebreus helenizados, e para os que Javé falou, nós o faremos e obedecere­
gregos (muitas referências dos próprios Evan­ mos.’ Moisés tomou do sangue e o aspergiu
gelhos baseiam-se nela). sobre o povo, e disse: ‘Este é o sangue da
A partir do século II d.C. a Bíblia foi aliança que Javé fez convosco, por meio de
traduzida também para o latim. Entretan­ todas estas cláusulas’ ”.
to, a tradução feita por são Jerônimo entre E no profeta Jeremias (31,31ss), eis a
390 e 406 foi a que se impôs de modo está­ promessa de uma “ nova aliança” (aquela
vel, a ponto de ser oficialmente adotada pela que seria inaugurada por Cristo): “ Eis que
Igreja, sendo conhecida com o nome de dias virão — oráculo de Javé — em que se­
Vulgata, por ser considerada a tradução la­ larei com a casa de Israel (e a casa de Judá)
tina por excelência. uma aliança nova. Não como a aliança que
selei com seus pais, no dia em que os tomei
pela mão para fazê-los sair da terra do Egi­
to — minha aliança que eles mesmos rom­
4 O c o n c e it o d e ^ T e s ta m e n to ” peram, embora eu fosse o seu Senhor, orá­
culo de Javé! Porque esta é a aliança que
selarei com a casa de Israel depois desses
Como vimos, as duas partes da Bíblia dias, oráculo de Javé. Eu porei minha lei no
são chamadas de Antigo e Novo Testamen­ seu seio e a escreverei em seu coração. En­
to. O que significa “Testamento” ? Esse ter­ tão eu serei seu Deus e eles serão meu povo.
mo traduz o grego diathéke, indicando o Eles não terão mais de instruir seu próximo
“ pacto” ou “ aliança” que Deus ofereceu a ou seu irmão, dizendo: ‘Conhecei a Javé!’
Israel. Nesse pacto (a oferta do pacto e aqui­ Porque todos me conhecerão, dos menores
lo que ele comporta), a iniciativa é unilate­ aos maiores — oráculo de Javé —, porque
ral, ou seja, inteiramente dependente de vou perdoar sua culpa e não me lembrarei
Deus, que o ofereceu. E Deus o ofereceu por mais de seu pecado” .
mera benevolência, vale dizer, como dom E o autor da Carta aos Hebreus (9,11­
gratuito. 22) assim explica o sentido do novo “ tes­
Eis alguns textos particularmente sig­ tamento” e da nova “ aliança” que é sancio­
nificativos nesse sentido. Em Gênesis 9,9ss nada precisamente com a vinda de Cristo:
após o dilúvio, Deus diz a Noé e seus filhos: “ Cristo, porém, veio como sumo sacerdo­
“ Eis que estabeleço minha aliança convosco te dos bens vindouros. Ele atravessou uma
e com os vossos descendentes depois de vós tenda maior e mais perfeita, que não é obra
e com todos os seres animados que estão de mãos humanas, isto é, que não pertence
convosco. (...) Estabeleço a minha aliança a esta criação. Ele entrou uma vez por to­
convosco: tudo o que existe não será mais das no Santuário, não com o sangue de
destruído pelas águas do dilúvio; não have­ bodes e novilhos, mas com o próprio san­
rá mais dilúvio para devastar a terra” . Em gue, obtendo uma redenção eterna. De fato,
Êxodo 24,3-8, podemos ler a passagem mais se o sangue de bodes e de novilhos, e se a
significativa relativa ao “ antigo” testamen­ cinza da novilha, espalhada sobre os seres
to, ou seja, a aliança sinaítica entre Deus e ritualmente impuros, os santifica purifican­
Israel, que devia durar até Cristo: “ Veio, do os seus corpos, quanto mais o sangue de
pois, Moisés e referiu ao povo todas as pa­ Cristo que, por um espírito eterno, se ofe­
lavras de Javé e todas as leis, e todo o povo receu a si mesmo a Deus como vítima sem
respondeu a uma só voz: ‘Nós observare­ mancha, há de purificar a nossa consciência
mos todas as palavras ditas por Javé’. Moisés das obras mortas para que prestemos um
escreveu todas as palavras de Javé; e, levan­ culto ao Deus vivo. Eis por que ele é media-
7
Cãpítulo primeiro - / \ 3 íblia, s u a m e n s a g e m e s u a s i u f l u ê u c i a s . .

dor de uma nova ‘aliança’. A sua morte


'Ju X L rv ri- X : J L t I 113.113 aconteceu para o resgate das transgressões
cometidas no regime da primeira aliança;
e, por isso, aqueles que são chamados re­
cebem a herança eterna que foi prometida.
Com efeito, onde existe testamento, é ne­
: cessário que se constate a morte do testa-
M dor. O testamento, de fato, só tem valor
no caso de morte. Nada vale enquanto o
i testador estiver vivo. Ora, nem mesmo a
H primeira aliança foi inaugurada sem efusão
M de sangue. De fato, depois que Moisés pro­
>I
clamou a todo o povo cada mandamento
da Lei, ele tomou o sangue de novilhos e
de bodes, juntamente com a água, a lã es­
carlate e o hissopo, e aspergiu o próprio
livro e todo o povo, anunciando: ‘Este é o
sangue da aliança que Deus vos ordenou’.
1 Em seguida ele aspergiu com o sangue a
► 4t tenda e todos os utensílios do culto. Segun­
M!
do a Lei, quase todas as coisas se purificam
P ii ^ r r m m t r x m rrrx com sangue; e sem efusão de sangue não
há remissão” .
E, no Evangelho de Mateus (26,27­
Vnnucna fcncma de um n)Ur.u> I ran^cllni 28), estas palavras são postas na boca do
de Sao M.ireus i \ icua. Dihholaa Nacional). próprio Cristo: “Depois, tomou um cálice

Idulo decorado
do Iranciclho
dc MdlCUS
</<’ mu manuscrito
cm grego,
f>rodiKtdo
entre os sir>. Vc VI,
com Ioda
jirobahilidadc
cm Rarcua, Uaha
( Viena.
Hihliohra Nacional).
8 Primeira parte - A d e v o lu ç ã o espiritu al d a m e n s a g e m bíblica

e, dando graças, deu-lho dizendo: ‘Be- 6 i m p o r t â n c i a d a B íb lia


bei dele todos, pois isto é o meu sangue,
em âm b ito filo só fic o
o sangue da aliança (diathéke), que é der­
ramado por muitos para remissão dos pe­
cados’ A Bíblia, portanto, se apresenta como
“palavra de Deus” . E, como tal, a sua men­
sagem é objeto de fé. Quem acredita poder
pôr a fé entre parênteses e ler a Bíblia como
5 ;A in s p ir a ç ã o d iv in a “ simples cientista” , como se lê um texto de
da Bíbl ia filosofia de Platão ou de Aristóteles, na rea­
lidade está realizando um tipo de operação
que é contra o espírito desse texto. A Bíblia
Numerosas passagens da Bíblia fa­ muda completamente de significado à me­
zem referência à “ inspiração divina” do dida que é lida acreditando-se ou não que
escrito, quando não à ordem direta do pró­ se trata de “palavra de Deus” . Entretanto,
prio Deus para escrever. No Êxodo, lê-se: embora não sendo uma “ filosofia” no sen­
“Javé disse a Moisés: ‘Escreve isso em um tido grego do termo, a visão geral da reali­
livro como recordação (...)’ ” ■ Ou então: dade e do homem que a Bíblia nos apre­
“Javé disse a Moisés: ‘Escreve estas pala­ senta, no que se refere a alguns conteúdos
vras (...)’ ” • Em Isaías (30,8) pode-se ler: essenciais dos quais a filosofia também tra­
“ Vai agora e escreve-o sobre uma pran­ ta, contém uma série de idéias fundamen­
cheta, grava-o em um livro” . João, no iní­ tais que têm uma relevância também filo­
cio do Apocalipse (l,9 ss), registra: “ Eu, sófica de primeira ordem. Aliás, trata-se de
João, vosso irmão e companheiro na tribu- idéias tão importantes que, não só para os
lação, na realeza e na perseverança em Je­ crentes, mas também para os incrédulos, a
sus, encontrava-me na ilha de Patmos, por difusão da mensagem bíblica mudou de
causa da Palavra de Deus e do Testemu­ modo irreversível a fisionomia espiritual do
nho de Jesus. No dia do Senhor, fui movi­ Ocidente. Em suma, pode-se dizer que a pa­
do pelo Espírito e ouvi atrás de mim uma lavra de Cristo contida no Novo Testamen­
voz forte, como de trombeta, ordenando: to (a qual se apresenta como revelação que
‘Escreve o que vês num livro e envia-o às completa, aperfeiçoa e coroa a revelação dos
sete Igrejas’ (...)” . profetas contida no Antigo Testamento) pro­
Quanto à inspiração por parte de Deus, duziu uma revolução de tal alcance que mu­
podemos ler em Jeremias: “Tu serás como dou todos os termos de todos os problemas
a minha boca” . E a segunda carta de Pe­ que o homem se propusera em filosofia no
dro (1,20-21) afirma: “ Sabei isto: que ne­ passado e passou a condicionar também os
nhuma profecia da Escritura resulta de uma termos nos quais o homem os proporia no
interpretação particular, pois que a profe­ futuro. Em outras palavras, a mensagem bí­
cia jamais veio por vontade humana, mas blica condicionará aqueles que a aceitam,
os homens, impelidos pelo Espírito Santo, obviamente de modo positivo, mas também
falaram da parte de Deus”. Lucas (24,27) condicionará aqueles que a rejeitam: em pri­
escreve em seu Evangelho que o Messias, meiro lugar, como termo dialético de uma
“ começando por Moisés e por todos os antítese (a antítese só tem sentido, sempre,
Profetas, interpretou-lhes em todas as Es­ em função da tese à qual se contrapõe); e,
crituras o que a ele dizia respeito” . E Pau­ mais globalmente, como um verdadeiro “ho­
lo reafirma: “Toda escritura é inspirada por rizonte” espiritual que iria impor-se de tal
D eus”. modo a ponto de não ser mais suscetível de
Os mandamentos, inclusive, são escri­ eliminação. Para se entender o que estamos
tos diretamente por Deus. No Êxodo (24,12) dizendo, é paradigmático o título (que re­
lê-se: “ Sobe a mim na montanha e fica lá: presenta todo um programa espiritual) do
dar-te-ei tábuas de pedra, a lei e os manda­ célebre ensaio do idealista e não-crente Be-
mentos que escrevi para ensinares a eles” . nedetto Croce, Perche non possiamo non
Ou então (34,1): “ Lavra duas tábuas de direi cristiani (“Por que não podemos dei­
pedra, como as primeiras, sobe a mim na xar de nos dizer cristãos” ), o que significa
montanha, e eu escreverei as mesmas pala­ precisamente que, uma vez surgido, o cris­
vras que estavam nas primeiras tábuas, que tianismo tornou-se um horizonte intrans­
quebraste” . ponível.
9
Capitulo prítneírO - y\ Bíblia, sua mensagem e suas influências...

Depois da difusão da mensagem bí­ na história. Por essa razão, o horizonte bíbli­
blica, portanto, serão possíveis só estas po­ co permanece um horizonte estruturalmente
sições: intransponível, no sentido que esclarecemos,
a) filosofar na fé, ou seja, crendo; isto é, no sentido de um horizonte para além
b) filosofar procurando distinguir os âm­ do qual já não podemos nos colocar, tanto
bitos da “razão” e da “ fé” , embora crendo; quem crê como quem não crê.
c) filosofar fora da fé e contra a fé, ou Com essas premissas, tratemos de exa­
seja, não crendo. minar as principais idéias bíblicas que apre­
Não será mais possível filosofar fora da sentam relevância filosófica e colocá-las em
fé, no sentido de filosofar como se a mensa­ confronto prospectivo e estrutural com a
gem bíblica nunca tivesse feito seu ingresso visão anterior dos gregos.

Duas imagens tiradas


do Comentário do Apocalipse
de Beatus de Liébana,
executado no séc. XI em Saint-Sever, na França
(Paris, Biblioteca Nacional).
10 Primeira parte - y\ ^ e v o l u ç ã o e sp ir itu a l d a m e n s a g e m bíblica

— ii. id é ia s b íb licas ZZZ


q u e itrfluíram
s o b r e o p e n s a m e n t o o cid eu tal

• As mais significativas contribuições filosóficas da mensa­


O monoteísmo
e o criacionismo gem bíblica são:
a partir do nada 1) o conceito de monoteísmo que substitui o politeísmo
-> § 1-2 grego;
2) o criacionismo a partir do nada, que faz o ser depender
de um ato de vontade de Deus, e que se contrapõe à proibição
de Parmênides da geração do ser a partir do não ser;
O antropocentrismo 3) uma concepção do mundo fortemente antropocêntrica
e a lei posta que não tem precedentes na filosofia helênica, que foi mais
por Deus cosmocêntrica;
-^§3 4) uma interpretação da lei moral diretamente ligada à
vontade de Deus: Deus seria a fonte definitiva da lei moral e o
dever do homem estaria em obedecer seus mandamentos. Para o grego, ao con-
trário, a lei teria o seu fundamento na natureza e a ela também Deus estaria
vinculado;
5) uma desobediência à lei teria causado a queda do
O pecado e a graça hom em ;
->§4 6) o resgate desta situação depende não do homem, mas
da iniciativa gratuita de Deus; para os gregos — em particular
para os órf icos e para os filósofos que neles se inspiraram — dependería, ao contrá­
rio, apenas do homem;
7) a Providência de que fala a Bíblia, diversamente da gre­
Providência ga (em particular socrática e estóica), dirige-se ao homem indi­
eRedenção vidual; a ela está ligada à Redenção operada por Deus por amor
->§5-7 da humanidade;
8) esta atenção de Deus pelo homem revoluciona com­
pletamente o conceito do amor em vários sentidos: primeira­
Eros grego mente, porque o amor cristão (agápe) é característica emi­
e agápe cristão nentemente divina, enquanto para os gregos Deus era amado
—> § 8 e não amante; em segundo lugar porque a dimensão do eros
helênico era aquisitiva, enquanto a do agápe cristão é dona-
tiva;
9) tal inversão não diz respeito apenas ao tema do amor, mas a toda a série
dos valores dos gregos, que o cristianismo ilumina sobre a base do discurso das
bem-aventuranças, em que se privilegia a dimensão da humil­
dade e da mansidão;
Asberr)- 10) igualmente importante é a mudança de perspectiva
aventuranças na escatologia — que não está mais ancorada apenas no dog­
ma da imortalidade da alma, mas também no da ressurreição
dos corpos — ;
11) é significativo, por fim, o novo sentido da história, como progresso para a
salvação e para a realização do reino de Deus: o desenvolvimento da história se­
gundo os gregos tem um andamento circular (a história não
Escatologia tem início nem fim, mas retorna sempre idêntica), enquanto o
e história bíblico-cristão acontece segundo um trajeto retilíneo, que tem
->§10 um fim e uma consumação (o Juízo universal).
11
Capítulo primeiro - A B í b l ia, s u a m e n s a g e m e s u a s m j l u ê m c i a s . ..

1 P assag em
do poli+eísmo grego
ao monoteísmo cristão ■ M onoteísmo. A doutrina da unici­
dade de Deus é especificamente judai-
co-cristã, enquanto todo o mundo
helênico é condicionado pelo poli-
A filosofia grega chegara a conceber a teísm o. No âmbito do pensamento
unidade do divino como unidade de uma grego, todavia, Platão, Aristóteles, e
esfera que admitia essencialmente em seu sobretudo Plotino, haviam antecipa­
próprio âmbito uma pluralidade de entida­ do alguns aspectos com orientação
des, forças e manifestações em diferentes monoteísta.
graus e níveis hierárquicos. Portanto, não Platão, com efeito, no Timeu fala da
chegara a conceber a unicidade de Deus e, unicidade do divino Demiurgo orde-
conseqüentemente, nunca havia sentido co­ nador do cosmo e, nas doutrinas não
mo um dilema a questão de se Deus era uno escritas, põe o Uno no vértice do mun­
do supra-sensível (mesmo admitindo
ou múltiplo. Desse modo, permaneceu sem­ uma série de divindades criadas pelo
pre aquém de uma concepção monoteísta. Demiurgo).
Somente com a difusão da mensagem bíbli­ Aristóteles, embora admitindo uma
ca no Ocidente é que se impôs a concepção multiplicidade de inteligências moto­
do Deus uno e único. E a dificuldade do ras divin as, colocava um prim eiro
homem em chegar a essa concepção demons­ Motor imóvel único, que pensa a si
tra-se pelo próprio mandamento divino mesmo.
“ não terás outro Deus além de mim” (o que Plotino fa z toda a realidade derivar
do absoluto e transcendente princí­
significa que o monoteísmo não é, em abso­ pio do Uno.
luto, uma concepção espontânea), e pelas con­ Em todo caso, o Ocidente ganhou o
tínuas recaídas na idolatria (o que implica conceito de monoteísmo apenas da
sempre uma concepção politeísta) por par­ mensagem bíblica.
te do próprio povo hebreu, através do qual
foi transmitida essa mensagem. E, com essa
concepção do Deus único, infinito em po­
tência, radicalmente diverso de todo o res­
to, nasce uma nova e radical concepção da
transcendência, derrubando qualquer pos­
sibilidade de considerar qualquer outra coi­
sa como “ divino” no sentido forte do termo.
Os maiores pensadores da Grécia, Platão e
Aristóteles, haviam considerado como “ di­
vinos” (ou até mesmo como deuses) os as­
tros, e Platão chegara a chamar o cosmo de
“ Deus visível” e os astros de “ deuses cria­
dos” ; em As Leis, inclusive, ele deu a parti­
da para a religião chamada “ astral” , preci­
samente com base em tais pressupostos. A
Bíblia corta pela base toda forma de poli-
teísmo e idolatria, mas também qualquer
compromisso desse tipo. No Deuteronômio,
podemos ler: “ E quando ergueres os olhos
para o céu e vires o sol, a lua, as estrelas,

Imagem da arte paleocristã que figura Cristo


tendo na mão sua mensagem da Verdade,
sentado sobre o Cosmo,
representado pela significativa personificação
sob seus pés
(particular de um sarcófago conservado
no Museu do Latrão).
12 Primeira parte * y\ r e v o l u ç ã o espiW+wal d a m e n s a g e m b í b l i e a

isto é, todo o exército do céu, não te deixes como e por que os múltiplos derivam do Uno
arrastar, não te prostres diante deles e não e o finito deriva do infinito. A própria cono­
lhes prestes culto A unicidade do Deus bí­ tação que Deus dá de si mesmo a Moisés,
blico comporta transcendência absoluta, que “Eu sou Aquele-que-é” , será interpretada,
coloca Deus como totalmente outro em re­ em certo sentido, como a chave para se en­
lação a todas as coisas, de um modo intei­ tender ontologicamente a doutrina da cria­
ramente impensável no contexto dos filóso­ ção: Deus é o Ser por sua própria essência e
fos gregos. a criação é uma participação no ser, ou seja,
Deus é o ser e as coisas criadas não são ser,
mas têm o ser (que receberam por partici­
pação).
2 A cri a ç ã o a partir do nada

Já vimos quais e quantos foram os vá­ 3 A corvcepção


rios tipos de solução propostos pelos gre­ arr+ropocênteica
gos no que se refere ao problema da “ ori­
coerlida n a Bíblia
gem dos seres” : de Parmênides, que resolvia
o próprio problema com a negação de qual­
quer forma de devir, aos pluralistas, que fa­ Entre os filósofos gregos, a concepção
lavam de “reunião” ou “ combinação” de antropocêntrica teve uma dimensão apenas
elementos eternos; de Platão, que falava de um tanto limitada. Podemos encontrar tra­
um demiurgo e de uma atividade demiúr- ços dela nos Memorabilia de Xenofonte, que,
gica, a Aristóteles, que falava da atração de naturalmente, são eco de idéias socráticas.
um Motor imóvel; dos estóicos, que propu­ Posteriormente, encontramos interessantes
nham uma forma de monismo panteísta, a desdobramentos nesse terreno na Estoá de
Plotino, que falava de uma “processão” me­ Zenao e Crisipo. Mas, como foi demons­
tafísica. E vimos também as diferentes apo­ trado recentemente, Zenão e Crisipo eram
rias que se aninhavam nessas soluções. de origem semítica, de forma que levantou-
A mensagem bíblica, ao contrário, fala se a hipótese de que o antropocentrismo por
de “criação” , precisamente in limine: “No eles professado poderia ser um eco de idéias
princípio, Deus criou o céu e a terra” . E os bíblicas, proveniente de seu patrimônio cul­
criou pela sua “ palavra” : Deus “disse” e as tural étnico. Contudo, o antropocentrismo
coisas “ existiram” . E, como todas as coisas não foi marca do pensamento grego, que,
do mundo, Deus criou diretamente também ao contrário, apresentou-se sempre como
o homem: “ Deus disse: ‘Façamos o ho­ fortemente cosmocêntrico. Homem e cos­
mem...’ ” E Deus não usou nada de preexis­ mo apresentam-se estreitamente conjugados
tente, como o demiurgo platônico, nem se e nunca radicalmente contrapostos, até por­
valeu de “ intermédios” na criação: ele pro­ que, no mais das vezes, o cosmo é concebi­
duziu tudo do nada. do como sendo dotado de alma e de vida
Com essa concepção de criação a par­
tir “ do nada” , cortava-se pela base a maior
parte das aporias que, desde Parmênides,
haviam afligido a ontologia grega. Todas as
coisas têm origem do “ nada” , sem distin­
ção. Deus cria livremente, ou seja, com um
ato de vontade, por causa do bem. Ele pro­ ■ Criacionism o. A doutrina da cria- |
duz as coisas como “ dom” gratuito. O cria­ ção do mundo a partir do nada é de f
do, portanto, é positivo. Falando da cria­ origem bíblica. í
No âmbito do pensamento grego, em j
ção, a Bíblia ressalta insistentemente: “ E particular no que se refere a Platão, j
Deus viu que era bom” . A concepção platô­ pode-se falar de "semicriacionismo": |
nica do Timeu, que também sustenta que o segundo Platão, com efeito, o Demiur- j
demiurgo plasmou o mundo por causa do go não cria do nada, mas plasma e j
bem, é apresentada aqui sob um novo en­ ordena uma matéria caótica e infor- J
foque e num contexto bem mais coerente. me preexistente. j
O criacionismo impor-se-á como a so­
lução por excelência do antigo problema de
13
Capitulo primeiro - , A B íb lia/ s u a m e n s a g e m e s u a s i n f l u ê n c i a s . ..

como o homem. E, por maiores que possam conhecimento. A Bíblia, porém, atribui à
ter sido os reconhecimentos da dignidade e vontade o instrumento da assimilação: as­
da grandeza do homem pelos gregos, eles se semelhar-se a Deus e santificar-se significa
inscrevem sempre em um horizonte cosmo- fazer a vontade de Deus, ou seja, querer o
cêntrico global. Na visão helênica, o homem querer de Deus. E é exatamente essa capa­
não é a realidade mais elevada do cosmo, cidade de fazer livremente a vontade de
como revela este exemplar texto aristotélico: Deus que põe o homem acima de todas as
“ Há muitas outras coisas que, por nature­ coisas.
za, são mais divinas (= perfeitas) do que o
homem, como, para ficar apenas nas mais
visíveis, os astros de que se compõe o uni­
verso”. 4 O respeito
Na Bíblia, ao contrário, mais do que pelos mcmdamervtos divinos:
como um momento do cosmo, ou seja, como
a virtude e o p e c a d o
uma coisa entre as coisas do cosmo, o ho­
mem é visto como criatura privilegiada de
Deus, feita “ à imagem” do próprio Deus e, Os gregos entenderam a lei moral como
portanto, dono e senhor de todas as outras lei da physis, a lei da própria natureza: uma
coisas criadas por ele. No Gênesis está es­ lei que se impõe a Deus e ao homem ao
crito: “ Deus disse: ‘Façamos o homem à mesmo tempo, visto que não foi feita por
nossa imagem, como nossa semelhança, e Deus e que a ela o próprio Deus está vincu­
que ele domine sobre os peixes do mar, as lado. O conceito de um Deus que dá a lei
aves do céu, os animais domésticos, todas moral (um Deus “nomóteta” ) é estranho a
as feras e todos os répteis que rastejam so­ todos os filósofos gregos.
bre a terra” . E ainda: “ Então Javé Deus O Deus bíblico, ao contrário, dá a lei
modelou o homem com a argila do solo, ao homem como “mandamento” . Primei­
insuflou em suas narinas um hálito de vida ro, ele a dá diretamente a Adão e Eva: “ E
e o homem se tornou um ser vivente” . E o Javé Deus deu ao homem este mandamen­
Salmo 8 diz ainda, de modo paradigmático: to: ‘Podes comer de todas as árvores do jar­
dim. Mas da árvore do conhecimento do
“Quando vejo o céu, obra dos teus dedos, bem e do mal não comerás, porque no dia
a lua e as estrelas que fixaste, em que dela comeres terás de morrer’ ” .
o que é um mortal, para dele Posteriormente, como já dissemos, Deus
[te lembrares, “ escreve” diretamente os mandamentos.
e um filho de Adão, que venhas A virtude (o bem moral supremo) tor­
[visitá-lo? na-se obediência aos mandamentos de Deus,
E o fizeste pouco menos do que um coincidindo com a “ santidade” , virtude que,
[deus, na visão “ naturalista” dos gregos, ficava em
coroando-o de glória e beleza. segundo plano. O pecado (o mal moral su­
Para que domine as obras premo), ao contrário, torna-se desobediên­
[de tuas mãos, cia a Deus, dirigindo-se portanto contra
sob seus pés tudo colocaste: Deus, à medida que vai contra os seus man­
ovelhas e bois, todos eles, damentos.
e as feras do campo também;
as aves do céu e os peixes do oceano Diz o Salmo 119:
que percorrem as sendas dos mares” . “ Indica-me, Javé, o caminho dos teus
[estatutos,
E, sendo feito à imagem e semelhança eu quero guardá-lo como recompensa.
de Deus, o homem deve se esforçar por to­ Faze-me entender e guardar tua lei,
dos os modos para “ assemelhar-se a ele” . para observá-la de todo o coração.
O Levítico já afirmava: “Não deveis vos Guia-me no caminho dos teus
contaminar. Porque o vosso Deus sou eu, [mandamentos,
Javé, que vos fez sair da terra do Egito para pois nele está meu prazer” .
ser o vosso Deus: vós, pois, sereis santos
como eu sou santo”. Os gregos já falavam E no Salmo 51 podemos ler:
de “ assimilação a Deus” , mas acreditavam “Pequei contra ti, contra ti somente,
poder alcançá-la com o intelecto, com o pratiquei o que é mau aos teus olhos”.
14 Primeira parte - , A r e v o l u ç ã o e sp ir itu a l d a m e n s a g e m bíblica

A vida, a paixão e a morte de Cristo 5 O conceito


desenvolvem-se inteiramente sob o signo do
de Peovidência na Bíbl ia
fazer a vontade do Pai que o enviou. O N o­
vo Testamento também faz com que o obje­
tivo supremo da vida, o amor de Deus, co­ Sócrates e Platão já haviam falado do
incida com o fazer a vontade de Deus, com Deus-Providência: o primeiro no plano in­
o seguir a Cristo, que concretizou com per­ tuitivo, o segundo com referência ao demiur­
feição aquela vontade. go que constrói e governa o mundo. Mas
Desse modo, o antigo “ intelectualis- Aristóteles ignorou esse conceito, como o ig­
mo” grego é inteiramente subvertido pelo norou também a maior parte dos filósofos
“ voluntarismo” : o “ querer de Deus” é a lei gregos, exceto os estóicos. Mas os estóicos
moral e o “ querer o querer de Deus” é a vir­ podem ter extraído tal concepção, mais uma
tude do homem. A boa vontade (o coração vez, de sua bagagem cultural originária, que
puro) torna-se a nova marca do homem tinha suas raízes na origem semítica dos fun­
moral. dadores do Pórtico, como sustenta a hipó-

O “Cristo Pantocrator” (aqui reproduzido do mosaico normando da ábside da C.atedral de Montreal),


representando bem a centralidade do mistério da redenção dentro da história da salvação.
Capítulo primeiro - A B í b l i a , s u a m e n s a g e m e s u a s influências.
15

tese de Pohlenz. O certo é que a Providên­ levantar para dá-los a ti.’ Digo-vos, mes­
cia dos gregos nunca diz respeito ao homem mo que não se levante para dá-los por ser
individual, e a Providência estóica chega até amigo, levantar-se-á ao menos por causa
a coincidir com o Destino, nada mais sendo da sua insistência e lhe dará tudo aquilo de
do que o aspecto racional da Necessidade que precisa. Também eu vos digo: pedi e
com que o logos produz e governa todas as vos será dado; buscai e achareis; batei e
coisas. Já a Providência bíblica não apenas vos será aberto. Pois todo o que pede, re­
é própria de um Deus que é pessoal em alto cebe; o que busca, acha; e ao que bate, se
grau, mas também, além de se dirigir para o abrirá ”.
criado em geral, dirige-se ainda e particu­ Mas esse sentido de confiança total na
larmente para os homens individuais, espe­ Providência divina também está presente no
cialmente para os mais humildes e necessi­ Antigo Testamento, na mesma dimensão e
tados e para os próprios pecadores (basta com o mesmo alcance, como se pode de­
recordar as parábolas do “ filho pródigo” e preender, por exemplo, do belíssimo Salmo
da “ ovelha perdida” ). Eis uma das passa­ 91:
gens mais famosas e significativas a esse res­
Tu, que dizes “Javé é o meu abrigo”
peito, registrada no Evangelho de Mateus:
e fazes do Altíssimo o teu refúgio.
“ Por isso vos digo: não vos preocupeis com
A desgraça jamais te atingirá
a vossa vida, quanto ao que haveis de co­
e praga nenhuma chegará à tua tenda:
mer, nem com o vosso corpo, quanto ao que
pois em teu favor ele ordenou aos seus
haveis de vestir. Não é a vida mais do que o
[anjos
alimento e o corpo mais do que a roupa?
que te guardem em teus caminhos todos.
Olhai as aves do céu: não semeiam, nem
Eles te levarão em suas mãos,
colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no en­
para que teus pés não tropecem numa
tanto, vosso Pai celeste as alimenta. Ora, não
[pedra;
valeis vós mais do que elas? Quem dentre
poderás caminhar sobre o leão
vós, com as suas preocupações, pode pro­
[e a víbora,
longar, por pouco que seja, a duração da sua
pisarás o leãozinho e o dragão.
vida? E com a roupa, por que andais preo­
Porque a mim se apegou, eu o livrarei,
cupados? Aprendei dos lírios do campo, co­
eu o protegerei, pois conhece o meu
mo crescem, e não trabalham e nem fiam.
[nome.
E, no entanto, eu vos asseguro que nem Salo­
Ele me invocará e eu responderei:
mão, em todo o seu esplendor, se vestiu co­
“Na angústia estarei com ele,
mo um deles. Ora, se Deus veste assim a
eu o livrarei e o glorificarei;
erva do campo, que existe hoje e amanhã se­
vou saciá-lo com longos dias
rá lançada ao forno, não fará ele muito mais e lhe mostrarei a minha salvação” .
por vós, homens fracos na fé? Por isso, não
andeis preocupados, dizendo: ‘Que iremos Essa é uma mensagem de segurança
comer?’ Ou: ‘Que iremos beber?’ Ou: ‘Que total, que estava destinada a subverter as
iremos vestir?’ De fato, são os gentios que frágeis seguranças humanas que os sistemas
estão à procura de tudo isso: o vosso Pai da época helenística haviam construído,
celeste sabe que tendes necessidade de to­ pois nenhuma segurança pode ser absolu­
das estas coisas. Buscai, em primeiro lugar, ta se não tiver uma vinculação precisa com
o Reino de Deus e a sua justiça, e todas es­ um Absoluto. E, precisamente, o homem
tas coisas vos serão acrescentadas. Não vos sente necessidade desse tipo de segurança
preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, total.
pois o dia de amanhã se preocupará consi­
go mesmo. A cada dia basta o seu mal” .
E com a mesma eficácia escreve Lucas
em seu Evangelho: “ Quem dentre vós, se 6 desobediência a IDeus
tiver um amigo e for procurá-lo no meio resgatada
da noite, dizendo: ‘Meu amigo, empresta- pela paixão de (Sristo
me três pães, porque chegou de viagem um
dos meus amigos e nada tenho para lhe ofe­
recer.’ E ele responder de dentro: ‘Não me Com base no que dissemos, também
importunes; a porta já está fechada e meus fica claro o sentido do “pecado original” .
filhos e eu estamos na cama; não posso me Como todo pecado, ele é desobediência,
16 Primeira parte - A r e v o l u ç ã o espiritu al d a m e n s a g e m bíblica

mais precisamente desobediência ao man­ morte, o afastamento de Deus. Em Adão,


damento original de não comer do fruto “ da toda a humanidade pecou; com Adão, o
árvore do conhecimento do bem e do mal” . pecado ingressou na história dos homens
A raiz dessa desobediência foi a soberba do — e, com o pecado, todas as suas conse­
homem, que não queria tolerar limitação qüências. Como escreve Paulo: “ ...por obra
nenhuma, que não queria ter os vínculos do de um só homem o pecado entrou no mun­
bem e do mal (dos mandamentos) e, por­ do e, pelo pecado, a morte; assim, a morte
tanto, que queria ser como Deus. Javé ha­ passou para todos os homens, porque todos
via dito: “ Da árvore do conhecimento do pecaram ...”
bem e do mal não comereis, porque no dia Por si só, o homem não teria podido
em que dela comerdes tereis de morrer” . salvar-se do pecado original e de todas as
Mas a tentação do maligno insinua: “ Não, suas conseqüências. Assim como a criação
não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia foi um dom e assim como a antiga “ alian­
em que dela comerdes, vossos olhos se abri­ ça” , sancionada e muitas vezes traída pelo
rão e vós sereis como deuses, versados no homem, foi um dom, da mesma forma o
bem e no mal”. À culpa de Adão e Eva, que resgate também foi um dom, o maior dos
cedem à tentação, transgredindo o manda­ dons: Deus se fez homem e, com sua paixão
mento divino, segue-se, como punição divi­ e morte, resgatou a humanidade do peca­
na, a expulsão do paraíso terrestre, com to­ do. P’, com sua ressurreição, derrotou a pró­
das as suas conseqüências. E assim fazem pria morte, conseqüência do pecado. Como
seu ingresso no mundo o mal, a dor e a escreve Paulo na Carta aos Romanos: “Não

Este é o célebre arco do “Bom Pastor” no Mausoléu de Galla Placídia em Ravena (séc. V):
o “ Bom Pastor" exprime de modo emblemático a nova imagem de Deus, própria do cristianismo.
17
Cãpltulo primeiro - j A B í b l i a , s u a m e n s a g e m e s u a s i n f l u ê n c i a s . ..

sabeis que todos os que fomos batizados em é uma rebelião contra Deus, a nova mensa­
Cristo Jesus, é na sua morte que fomos gem revela que nenhuma força da natureza
batizados? Pois pelo batismo nós fomos se­ ou do intelecto humano podia resgatar o
pultados com ele na morte para que, como homem. Para tanto, eram necessárias a obra
Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela do próprio Deus feito homem e a participa­
glória do Pai, assim também nós vivamos ção do homem na paixão de Cristo em uma
vida nova. Porque se nos tornamos uma dimensão que permanecera quase inteira­
coisa só com ele por morte semelhante à sua, mente desconhecida para os gregos: a dimen­
assim seremos igualmente semelhantes na são da “ fé” .
sua ressurreição, sabendo que nosso velho
homem foi crucificado com ele para que
fosse destruído este corpo de pecado, e as­
sim não sirvamos mais ao pecado. Com efei­ 7 O valor1da f é
to, quem morreu ficou livre do pecado. Mas, e a participação v\o Divmo
se morremos com Cristo, temos fé que tam­
bém viveremos com ele, sabendo que Cris­
to, uma vez ressuscitado dentre os mortos, A filosofia grega subestimara a fé ou
já não morre, a morte não tem mais do­ crença (pístis) do ponto de vista cognosciti-
mínio sobre ele. Porque, morrendo, ele mor­ vo, pois dizia respeito às coisas sensíveis,
reu para o pecado uma vez por todas; vi­ mutáveis, sendo portanto uma forma de opi­
vendo, ele vive para Deus. Assim também nião (dóxa). Em verdade, Platão a valori­
vós considerai-vos mortos para o pecado e zou como componente do mito, mas, em seu
vivos para Deus em Cristo Jesus. Portanto, conjunto, o ideal da filosofia grega era a
que o pecado não impere mais em vosso epistéme, o conhecimento. E, como vimos,
corpo mortal, sujeitando-vos às suas pai­ todos os pensadores gregos viam no conhe­
xões; nem entregueis vossos membros, co­ cimento a virtude por excelência do homem
mo armas de injustiça, ao pecado; pelo con­ e a realização da essência do próprio homem.
trário, oferecei-vos a Deus como vivos Pois a nova mensagem exige do homem pre­
provindos dos mortos e oferecei vossos mem­ cisamente uma superação dessa dimensão,
bros como armas de justiça a serviço de invertendo os termos do problema e pondo
Deus. E o pecado não vos dominará, por­ a fé acima da ciência.
que não estais debaixo da Lei, mas sob a Isso não significa que a fé não tem um
graça” . valor cognoscitivo próprio: entretanto, tra­
A encarnação de Cristo, sua paixão ex- ta-se de um valor cognoscitivo de natureza
piadora do antigo pecado, que fez seu in­ inteiramente diferente, em comparação com
gresso no mundo com Adão, e sua ressur­ o conhecimento da razão e do intelecto; de
reição resumem o sentido da mensagem todo modo, trata-se de um valor cognos­
cristã — e essa mensagem subverte inteira­ citivo que só se impõe a quem possui aque­
mente os quadros do pensamento grego. Os la fé. Como tal, ela constitui verdadeira
filósofos gregos haviam falado de uma cul­ “ provocação” em relação ao intelecto e
pa original, extraindo o conceito dos misté­ à razão.
rios órficos. E, de certa forma, haviam vin­ Adiante, falaremos sobre as conseqüên­
culado a essa culpa o mal que o homem sofre cias dessa provocação. Antes, é necessário
em si. Mas, em primeiro lugar, ficaram muito captar o seu sentido geral. E é ainda Paulo
longe da explicação da natureza dessa cul­ quem o revela do modo mais sugestivo, em
pa (basta ler, por exemplo, o mito platôni­ sua primeira carta aos Coríntios: “A lingua­
co do Fedro). Em segundo lugar, estavam gem da cruz é loucura para aqueles que se
convencidos de que: perdem, mas para aqueles que se salvam,
a) “ naturalmente” , o ciclo dos nasci­ para nós, é poder de Deus. Pois está escrito:
mentos (a metempsicose) teria cancelado a ‘Destruirei a sabedoria dos sábios e aniqui­
culpa nos homens comuns; larei a inteligência dos inteligentes’. Onde
b) os filósofos podiam libertar-se das está o sábio? Onde está o homem culto?
conseqüências daquela culpa em virtude do Onde está o argumentador deste século?
conhecimento e, portanto, pela força huma­ Deus não tornou louca a sabedoria deste
na, ou seja, de modo autônomo. século? Com efeito, visto que o mundo por
Todavia, além de mostrar a realidade meio da sabedoria não reconheceu a Deus
bem mais inquietante da culpa original, que na sabedoria de Deus, aprouve a Deus pe­
Primeira pãVtC - j \ d e v o lu ç ã o e s p i r i t u a l Ia m e n s a g e m b í b lic a

la loucura da pregação salvar aqueles que ninguém o conhece senão o Espírito de Deus.
crêem. Os judeus pedem sinais e os gregos Quanto a nós, não recebemos o espírito do
andam em busca da sabedoria; nós, porém, mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a
anunciamos Cristo crucificado, que, para os fim de que conheçamos os dons da graça de
judeus, é escândalo, para os gentios é lou­ Deus. Desses dons não falamos segundo a
cura, mas, para aqueles que são chamados, linguagem ensinada pela sabedoria huma­
tanto judeus como gregos, é Cristo, poder na, mas segundo aquela que o Espírito ensi­
de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é na, exprimindo realidades espirituais em ter­
loucura de Deus é mais sábio do que os ho­ mos espirituais. O homem psíquico não
mens e o que é fraqueza de Deus é mais for­ aceita o que vem do Espírito de Deus. É lou­
te do que os homens. Vede, pois, quem sois, cura para ele; não pode compreender, pois
irmãos, vós que recebestes o chamado de isso deve ser julgado espiritualmente. O
Deus; não há entre vós muitos sábios se­ homem espiritual, ao contrário, julga a res­
gundo a carne, nem muitos poderosos, nem peito de tudo e por ninguém é julgado. Pois
muitos de família prestigiosa. Mas o que é ‘quem conheceu o pensamento do Senhor
loucura no mundo, Deus o escolheu para para poder instruí-lo?’ Nós, porém, temos
confundir o que é forte, e o que no mundo é o pensamento de Cristo
vil e desprezado, o que não é, Deus esco­ Essa mensagem subversiva de todos os
lheu para reduzir a nada o que é, a fim de esquemas tradicionais dá origem inclusive
que nenhuma criatura se possa vangloriar a uma nova antropologia (de resto, já am­
diante de Deus. Ora, é por ele que vós sois plamente antecipada no Antigo Testamen­
em Cristo Jesus, que se tornou para nós sa­ to): o homem não é mais simplesmen­
bedoria proveniente de Deus, justiça, santi­ te “ corpo” e “ alma” (entendendo-se por
ficação e redenção, a fim de que, como diz “ alma” razão e intelecto), isto é, em duas
a Escritura, ‘aquele que se gloria, se glorie dimensões, mas sim em três dimensões: “ cor­
no Senhor’. Eu mesmo, quando fui ter con- po” , “ alma” e “ espírito” , onde o “ espíri­
vosco, irmãos, não me apresentei com o pres­ to” é exatamente essa participação no di­
tígio da palavra ou da sabedoria para vos vino através da fé, a abertura do homem
anunciar o mistério de Deus. Pois não quis para a Palavra divina e para a Sabedoria di­
saber outra coisa entre vós a não ser Jesus vina, que o preenche com nova força e, em
Cristo, e Jesus Cristo crucificado. Estive certo sentido, lhe dá nova estatura onto-
entre vós cheio de fraqueza, receio e tremor; lógica.
minha palavra e minha pregação nada ti­ A nova dimensão da fé, portanto, é a
nham da persuasiva linguagem da sabedo­ dimensão do Espírito em sentido bíblico. Os
ria, mas eram uma demonstração do Espí­ gregos haviam conhecido a dimensão do
rito e o poder divino, a fim de que a vossa nous, mas não a do pneuma, que passaria a
fé não se baseie sobre a sabedoria dos ho­ ser a dimensão dos cristãos.
mens, mas sobre o poder de Deus. No en­
tanto, é realmente de sabedoria que falamos
entre os perfeitos, sabedoria que não é des­
te mundo nem dos príncipes deste mundo, 8 O " e .r o s '' g r a g o ,
votados à destruição. Ensinamos a sabedo­ o a m o r ( " a g á p a " ) ceis+ão
ria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus,
e a g ra ça
antes dos séculos, de antemão destinou para
a nossa glória. Nenhum dos príncipes deste
mundo a conheceu, pois, se a tivessem co­ Em um de seus cumes mais significati­
nhecido, não teriam crucificado o Senhor vos, o pensamento grego criou, sobretudo
da glória. Mas, como está escrito, ‘o que os com Platão, a admirável teoria do eros, da
olhos não viram, os ouvidos não ouviram e qual já falamos amplamente. Mas o eros não
o coração do homem não percebeu, isso é Deus, porque é desejo de perfeição, ten­
Deus preparou para aqueles que o amam’. são mediadora que torna possível a eleva­
A nós, porém, Deus o revelou pelo Espírito. ção do sensível ao supra-sensível, força que
Pois o Espírito sonda todas as coisas, até tende a conquistar a dimensão do divino. O
mesmo as profundidades de Deus. Quem, eros grego é falta-e-posse em uma conexão
pois, dentre os homens conhece o que é do estrutural entendida em sentido dinâmico e,
homem, senão o espírito do homem que nele por isso, é força de conquista e ascensão,
está? Da mesma forma, o que está em Deus, que se acende sobretudo à luz da beleza.
Capitulo pTÍfH6ÍT0 - :A Bíblia, sua mensagem e suas influências. 19

Já o novo conceito bíblico de “ amor”


(agápe) é de natureza bem diferente. O amor
não é primordialmente “ subida” do homem, ; ■ A gápe. A doutrina cristã do amor
mas “ descida” de Deus em direção aos ho­ (agápe, charitas) opera uma revolu­
mens. Não é “conquista” , mas “ dom” . Não ção estrutural em relação à concep-
é algo motivado pelo valor do objeto ao qual i ção grega do eros.
Para o grego Deus não pode amar
se dirige, mas, ao contrário, algo espontâ­ 1 porque o amor pressupõe falta e, por­
neo e gratuito. tanto, imperfeição.
Para os gregos, é o homem que ama, Para Platão, por exemplo, o eros de­
não Deus. Para os cristãos, é sobretudo Deus - riva da falta do belo e do desejo de
que ama: o homem só pode amar na dimen­ ( possuí-lo e, portanto, em dimensão
são do novo amor realizando uma revolu­ 1 aquisitiva e ascensiva, é próprio do
ção interior radical e assemelhando o seu homem e não de Deus.
comportamento ao de Deus. | Mesmo para Aristóteles o Motor imó-
? vel é amado e não amante (move co-
O amor cristão é verdadeiramente sem
f mo objeto de amor).
limite, é infinito: Deus ama os homens até o O amor cristão é, ao contrário, primei-
sacrifício da cruz; ama os homens inclusive í ramente próprio de Deus, que ama
em suas fraquezas. Aliás, é sobretudo nisso ; em dimensão donativa, como supe-
que o amor cristão revela a sua desconcer­ rabundância de bem.
tante grandeza: na desproporção entre o
dom e o beneficiário desse dom, ou seja, na
absoluta gratuidade de tal dom.
É no mandamento do amor que Cristo
resume a essência dos mandamentos e da
lei em seu conjunto. No Evangelho de Mar­
cos, podemos ler esta precisa resposta que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Aque­
Cristo deu à pergunta de um escriba, que le que não ama não conheceu a Deus, por­
queria saber qual era o primeiro dos man­ que Deus é amor. Nisto se manifestou o
damentos: “ O primeiro é: (...) o Senhor amor de Deus entre nós: Deus enviou o seu
nosso Deus é o único Senhor; amarás, por­ Filho unigênito ao mundo para que viva­
tanto, o Senhor teu Deus de todo teu co­ mos por ele. Nisto consiste o amor: não fo­
ração, de toda tua alma, de todo teu enten­ mos nós que amamos a Deus, mas foi ele
dimento e com toda a tua força. O segundo quem nos amou e enviou-nos o seu Filho
é: amarás o teu próximo como a ti mesmo. como vítima de expiação pelos nossos pe­
Não existe outro mandamento maior do que cados. Caríssimos, se Deus assim nos amou,
esses (Mc 12,29-31)” . devemos, nós também, amar-nos uns aos
A ilimitação do amor cristão (agápe) outros. Ninguém jamais contemplou a Deus.
se expressa ainda mais profundamente nes­ Se nos amarmos uns aos outros, Deus per­
tas palavras do Evangelho de Mateus: “ Ou­ manece em nós e o seu amor em nós é per­
vistes que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e feito. Nisto reconhecemos que permanece­
odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, vos digo: mos nele e ele em nós: ele nos deu o seu
amai os vossos inimigos e orai pelos que vos Espírito” (ljo 4.7-13).
perseguem; deste modo vos tornareis filhos E a primeira carta aos Coríntios, de
do vosso Pai que está nos céus, porque ele Paulo, contém o mais exaltado hino ao
faz nascer o seu sol igualmente sobre maus agápe, ao novo amor cristão: “ Ainda que
e bons e cair a chuva sobre justos e injustos. eu falasse línguas, as dos homens e as dos
Com efeito, se amais aos que vos amam, que anjos, se eu não tivesse a caridade, seria
recompensa tendes? Não fazem também os como um bronze que soa ou como um cím-
publicanos a mesma coisa? E se saudais ape­ balo que tine. Ainda que eu tivesse o dom
nas os vossos irmãos, que fazeis de mais? da profecia, o conhecimento de todos os
Não fazem também os gentios a mesma coi­ mistérios e de toda a ciência, ainda que ti­
sa? Portanto, deveis ser perfeitos como o vesse toda a fé, a ponto de transportar os
vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,43-48). montes, se não tivesse a caridade, eu nada
A seguinte passagem da primeira carta seria. Ainda que eu distribuísse os meus
de João resume muito bem o arco da temá­ bens aos famintos, ainda que entregasse o
tica do amor cristão: “ .. .amemo-nos uns aos meu corpo às chamas, se não tivesse a ca­
outros, pois o amor é de Deus e aquele que ridade, isso nada me adiantaria. A carida­
20 Primeira parte - y \ r e v o l u ç ã o e s p i r i t u a l d o m e n s a g e m bíblic

de é paciente, a caridade é prestativa, não Bem-aventurados os que são perseguidos por


é invejosa, não se ostenta, não se incha de causa da justiça, porque deles é o Reino dos
orgulho. Nada faz de inconveniente, não Céus.
procura o seu próprio interesse, não se ir­ Bem-aventurados sois, quando vos injuria­
rita, não guarda rancor. Não se alegra com rem e vos perseguirem e, mentindo, disse­
a injustiça, mas se regozija com a verdade. rem todo o mal contra vós por causa de mim.
Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tu­ Alegrai-vos e regozijai-vos, porque será
do suporta. A caridade jamais passará. grande a vossa recompensa nos céus, pois
Quanto às profecias, desaparecerão. Quan­ foi assim que perseguiram os profetas, que
to às línguas, cessarão. Quanto à ciência, vieram antes de vós” .
também desaparecerá. Pois o nosso conhe­
cimento é limitado e limitada é a nossa pro­ Segundo o novo quadro de valores, é
fecia. Mas, quando vier a perfeição, o que preciso retornar à simplicidade e à pureza
é limitado desaparecerá. Quando eu era da criança, porque aquele que é o primeiro
criança, falava como criança, pensava co­ segundo o juízo do mundo será o último
mo criança, raciocinava como criança. De­ segundo o juízo de Deus, e vice-versa. Es­
pois que me tornei homem, fiz desaparecer creve Mateus: “Nessa ocasião, os discípulos
o que era próprio da criança. Agora vemos aproximaram-se de Jesus e lhe perguntaram:
em espelho e de maneira confusa, mas, de­ ‘Quem é o maior no Reino dos Céus?’ Ele
pois, veremos face a face. Agora o meu co­ chamou perto de si uma criança, colocou-a
nhecimento é limitado, mas, depois, conhe­ no meio deles e disse: ‘Em verdade vos digo
cerei como sou conhecido. Agora, portanto, que, se não mudardes e não vos tornardes
permanecem estas três coisas: a fé, a espe­ como as crianças, de modo algum entrareis
rança, a caridade. A maior delas, porém, é no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se
a caridade” (ICor 13,13). tornar pequenino como esta criança, esse é
o maior no Reino dos Céus. E aquele que
receber uma criança como esta por causa do
meu nome, recebe a mim’ ” . E Marcos escre­
9 Os valores jxmdamentais ve: “ Ele, sentando-se, chamou os Doze e dis­
do cristianismo: se: ‘Se alguém quiser ser o primeiro, seja o
último e aquele que serve a todos’ ” .
a pureza e a knmildade
Desse modo, a humildade torna-se uma
virtude fundamental do cristão: o caminho
A mensagem cristã assinalou sem dú­ estreito que dá acesso ao Reino dos Céus. E
vida a mais radical revolução de valores da essa também era uma virtude desconhecida
história humana. Nietzsche chegou a falar dos filósofos gregos. Cristo chega a dizer o
até mesmo de total subversão dos valores seguinte: “ Se alguém quiser vir após mim,
antigos, subversão que tem sua formula­ negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-
ção programática no “ Sermão da Monta­ me. Pois aquele que quiser salvar a sua vida,
nha” , que podemos ler no Evangelho de vai perdê-la; mas o que perder a sua vida
Mateus (5,1-12): por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-
la” . E isso, para o filósofo grego, seria sim­
“ Bem-aventurados os pobres em espírito, plesmente incompreensível. Portanto, cai
porque deles é o Reino dos Céus. por terra também o ideal supremo do sábio
Bem-aventurados os mansos, porque helenístico que compreendera a vaidade do
[herdarão a terra. mundo e de todos os bens “exteriores” e do
Bem-aventurados os aflitos, porque “corpo” , mas, no entanto, punha em si mes­
[serão consolados. mo a certeza suprema, proclamando-se “ au­
Bem-aventurados os que têm fome e tárquico” e absolutamente “ auto-suficien­
sede de justiça, porque serão saciados. te” , capaz de alcançar sozinho o fim último.
Bem-aventurados os misericordiosos, Esse ideal do homem grego, que acreditava
porque alcançarão misericórdia. em si mais do que em todas as coisas exte­
Bem-aventurados os puros de coração, riores com extrema firmeza, havia sido,
[porque verão a Deus. indubitavelmente, um nobre ideal. Mas a
Bem-aventurados os que promovem a mensagem evangélica agora o declara ilu­
[paz, sório — e o faz de maneira categórica. A
porque serão chamados filhos de Deus. salvação não apenas não pode vir das coi­
Capítulo primeiro - y \ B í b l ia, s u a m e n s a g e m e s u a s i u j l u ê u c i a s . ..
21

sas, mas sequer de si mesmo, como diz Cris­ para a “ressurreição dos mortos” . Essa é uma
to: “ Sem mim, nada podeis fazer” . Em uma das marcas da nova fé. E a ressurreição im­
esplêndida passagem da segunda Epístola plica o retorno também do corpo à vida.
aos Coríntios, Paulo sela essa reviravolta no Precisamente isso constituía um gravís­
pensamento antigo. Depois de ter suplica­ simo obstáculo para os filósofos gregos: era
do a Deus três vezes, para que dele afastas­ um absurdo que devesse renascer aquele
se uma grave aflição que o atribulava, teve corpo que era visto por eles como “obstá­
a seguinte resposta: “ Basta-te a minha gra­ culo” e como fonte de toda negatividade e
ça, pois é na fraqueza que a força manifesta de mal.
o seu poder” . Por isso, Paulo conclui: “ Por A reação de alguns estóicos e epicu-
conseguinte, com todo o ânimo prefiro glo­ ristas ao discurso pronunciado por Paulo no
riar-me das minhas fraquezas, para que pou­ Areópago, em Atenas, é muito eloqüente.
se sobre mim a força de Cristo” . Eles ouviram Paulo enquanto ele falava de
Deus. Mas, quando falou em “ ressurreição
dos mortos” , não lhe permitiram que conti­
nuasse a falar. Está registrado nos Atos dos
10 A eessureeição dos mortos Apóstolos: “Ao ouvirem falar de ressurrei­
ção dos mortos, uns zombavam, outros di­
ziam: ‘Ouvir-te-emos a respeito disto outra
O vez.’ Foi assim que Paulo se retirou do meio
conceito de “ alma” é uma criação
grega, cuja evolução nós seguimos a partir deles” .
de Sócrates, que fez dela a essência do ho­ E Plotino, na renovada perspectiva da
mem, a Platão, que fundamenta a sua imor­ metafísica platônica, escrevia, em aberta
talidade com provas racionais, e a Plotino, polêmica com essa crença dos cristãos: “ O
que dela faz uma das três hipóstases. Certa­ que existe de alma no corpo nada mais é
mente, a psyché é uma das figuras teoréti- que alma adormecida. E o verdadeiro des­
cas que melhor marcam o quadro do pensa­ pertar consite na ressurreição — a verda­
mento grego e o seu idealismo metafísico. deira ressurreição, que é do corpo, não com
Recorde-se que os próprios estóicos, embo­ o corpo. Pois ressurgir com um corpo equi­
ra fazendo aberta profissão de materialis- vale a cair de um sono em outro, a passar,
mo, admitiam uma sobrevivência da alma por assim dizer, de um leito a outro. Mas o
(ainda que até o fim da posterior conflagra­ verdadeiro levantar-se tem algo de definiti­
ção cósmica). Em suma, desde Sócrates, os vo, não de um só corpo, mas de todos os
gregos passaram a ver na alma a verdadeira corpos, que são radicalmente contrários à
essência do homem, não sabendo pensar o alma; conseqüentemente levam a contrarie­
homem senão em termos de corpo e alma dade até a raiz do ser. Dá-nos prova disso,
— e toda a tradição platônico-pitagórica e senão o seu devir, pelo menos o seu trans­
o próprio Aristóteles (e, portanto, a maior correr e o seu extermínio, que certamente
parte da filosofia grega) consideraram a al­ não pertencem ao âmbito do ser” .
ma imortal por natureza. Por seu turno, muitos pensadores cris­
A mensagem cristã propôs o problema tãos, ao contrário, não consideraram a dou­
do homem em termos completamente dife­ trina do Fédon e dos platônicos como nega­
rentes. Nos textos sagrados, o termo “ alma” ção de sua fé, procurando até acolhê-la
não aparece nas acepções gregas. O cristia­ como clarificadora. O tema da mediação
nismo não nega que, com a morte do ho­ entre a temática da alma e a temática da
mem, sobreviva algo dele; pelo contrário, ressurreição dos mortos, com a inserção da
fala expressamente dos mortos como sendo nova temática do Espírito, constituirá um
recebidos no “ seio de Abraão” . Entretanto, dos temas mais debatidos pela reflexão fi­
o cristianismo não aponta de modo absolu­ losófica dos cristãos, com diferentes resul­
to para a imortalidade da alma, mas sim tados, como veremos.
22 Primeira parte - r e v o l u ç ã o espiritu al d a m e n s a g e m bíblica

III. P a ra além
d o k orizou te cultural g r e g o

• Todos estes ganhos de ordem moral e filosófica foram propostos não à luz
de um aprofundamento racional e lógico — como objetos de ciência — , mas por
via de fé, também nisso subvertendo o modo comum de pensar dos gregos, que
consideravam a fé uma forma deteriorada de conhecimento —
a fé cristã próprio da sensação — e a ciência como saber supremo. O anún-
como fermento cio do Evangelho torna-se, assim, fermento de civilização ca­
dê civilização paz de ultrapassar o horizonte clássico, sem enfraquecer a con-
* 1~2 tribuição para o desenvolvimento da humanidade.

1 O desenvolvimento retilíneo tanto no seu conjunto como em suas diver­


sas fases.
da kistcmia que tem como fim
E, conseqüentemente, na história assim
o ^ J u íz o universal entendida, também o homem se compreen­
de a si mesmo bem melhor: compreende
Os gregos não tiveram um sentido melhor de onde vem, onde se encontra e
preciso da história: o seu pensamento é aonde é chamado a chegar. Sabe que o Rei­
substancialmente a-bistórico. A idéia de no de Deus já fez seu ingresso no mundo
progresso não lhes foi familiar ou só o foi com Cristo e com sua Igreja e que, portan­
em escala reduzida. Aristóteles falou de to, já se encontra entre nós, ainda que só no
catástrofes recorrentes, que levam conti­ fim dos tempos se realizará em toda a sua
nuamente a humanidade ao estágio pri­ plenitude.
mitivo, ao que se segue uma evolução, que O antigo grego vivia na dimensão da
leva novamente a humanidade a um está­ pólis e pela pólis — e só sabia pensar den­
gio de civilização avançada, que atinge o tro de seus quadros. Destruída a pólis,
ponto atingido pela anterior, ao que se se­ como vimos, o filósofo grego refugiou-se
gue nova catástrofe e assim por diante, no individualismo, sem descobrir um novo
ao infinito. Os estóicos introduziram a tipo de sociedade. Já o cristão vive na Igre­
teoria da destruição cíclica não só da civi­ ja, que não é uma sociedade política nem
lização sobre a terra, mas também do cos­ uma sociedade puramente natural. E uma
mo inteiro, que, depois, se reforma ciclica­ sociedade que, por assim dizer, é ao mes­
mente, da mesma forma que antes, até nos mo tempo horizontal e vertical: vive neste
pormenores mais insignificantes. Em suma, mundo, mas não para este mundo; mani­
repete-se tal qual no passado, ao infinito. festa-se em aparências naturais, mas tem
E isso, examinando-se bem, é a negação do raízes sobrenaturais. Na Igreja de Cristo,
progresso. o cristão vive a vida de Cristo na graça de
A concepção de história expressa na Cristo. A parábola da videira e dos ramos,
mensagem bíblica, ao contrário, não é cícli­ que Cristo conta aos seus apóstolos no
ca, mas retilínea. No transcorrer do tempo, Evangelho de João, expressa melhor do que
verificam-se eventos decisivos e irrepetí- qualquer outra coisa o novo sentido da vida
veis, que são como que etapas que desta­ do cristão em união com Cristo e com os
cam o seu sentido. O fim dos tempos é tam­ outros que vivem em Cristo: “ Eu sou a ver­
bém o fim para o qual eles foram criados: é dadeira videira e meu Pai é o agricultor.
o Juízo universal e o advento do Reino de Todo ramo em mim que não produz fruto
Deus em sua plenitude. E assim a história, ele o corta, e o que produz fruto ele o poda,
que vai da criação à queda, da aliança ao para que produza mais fruto ainda. Vós
tempo de espera do Messias, da vinda de já estais puros, por causa da palavra que
Cristo ao juízo final, adquire um sentido, vos fiz ouvir. Permanecei em mim, como
Capitulo primeiro - y \ ]3 íblia, s u a m e n s a g e m e s u a s in jluências...
23

eu em vós. Como o ramo não pode dar fru­ 2 ;A mova “medida”


to por si mesmo, se não permanece na vi­
do komem
deira, assim também vós, se não perma­
necerdes em mim. Eu sou a videira e vós os no pensamento cristão
ramos. Aquele que permanece em mim e
eu nele produz muito fruto; porque, sem
mim, nada podeis fazer. Se alguém não per­ Há grande riqueza no pensamento gre­
manece em mim, é lançado fora, como o go. Mas a mensagem cristã vai muito além,
ramo, e seca; tais ramos são recolhidos, ultrapassando-o precisamente nos pontos
lançados ao fogo e se queimam. Se perma­ essenciais. Entretanto, seria um grave erro
necerdes em mim e minhas palavras per­ acreditar que essa enorme diferença com­
manecerem em vós, pedi o que quiserdes porte apenas antíteses insanáveis. De todo
e ser-vos-á concedido” (Jo 15,1-7). modo, ainda que alguns hoje sejam desse

Este ícone reproduz bela imagem difundida com diversas variantes no ambiente greco-bizantino.
Representa de modo emblemático a frase evangélica:
“Eu sou a videira e vós os ramos".
Na representação do livro de Cristo e dos outros livros na mão dos Apóstolos,
está simbolizada a fonte da Verdade e sua expansão.
24 Primeira parte - y \ r e v o l u ç ã o e s p i r i t u a l d, mensagí bíblií

parecer, essa não foi a tese dos primeiros Mas, depois da mensagem cristã, até
cristãos, que, depois do brusco impacto ini­ a medida grega do homem deve ser reava­
cial, trabalharam duramente para construir liada. Como diz R. Grousset, “ o coração
uma síntese, como veremos. humano é mais profundo do que a sabedo­
Um erro de fundo dos gregos, para usar ria antiga” . Com efeito, o homem, que os
as palavras de C. Moeller, está no fato de gregos tanto exaltaram, é para o cristão
que “procuraram no homem aquilo que só algo muito maior do que pensavam os gre­
podiam encontrar em Deus. Foi grande o seu gos, mas numa dimensão diversa e por ra­
erro, mas trata-se do erro das almas nobres” . zões diversas: se Deus considerou que de­
Outro erro de fundo foi o de ter nega­ via confiar aos homens a difusão de sua
do com armas dialéticas aquelas realidades própria mensagem e se, até mesmo, chegou
que não se enquadravam em seus quadros a fazer-se-homem para salvar o homem,
perfeitos, como o mal, a dor e a morte (o então a “ medida grega” do homem, mes­
pecado é um erro de cálculo, dizia Sócrates; mo tendo sido tão elevada, torna-se insu­
até o cadáver vive, dizia Parmênides; a mor­ ficiente e deve ser repensada a fundo. E, na
te não é nada, dizia Epicuro; até na tortura grandiosa tentativa de construir essa nova
do ferro incandescente o sábio é feliz, dizia “medida” do homem, nascería o humanis­
toda a filosofia helenística). mo cristão.
A PATRÍSTICA
NA ÁREA CULTURAL
DE LÍNGUA GREGA

■ A elaboração da mensagem bíblica


e o filosofar na fé

“Cristo é o mais forte de todos,


porque se d iz e é a verdade.”

M áxim o o C o n fe sso r
Capítulo segundo
O s problem as filosóficos essenciais que derivam do encontro
entre “ fé” e “ razão”
Fílon de Alexandria e a Gnose

Capítulo terceiro

Os apologistas gregos
e a Escola catequética de Alexandria

Capítulo quarto

Os três luminares da Capadócia


e as grandes figuras do Pseudo-Dionísio Areopagita,
M áxim o o Confessor e Jo ã o Damasceno
O a p H u lo s e g u i d o

O s pro b lem a s -filosofi»


'icos e s s e n c ia is
q u e deriva m do enconfro
entre re e razao
Fíl on d e ;AI e ^ a n d r ia e a C\nose

I . P r o b le m a s e m e rg e n te s
d o im p a c to c o m a K íb lia

• A mensagem evangélica em sua complexidade suscitou uma série de pro­


blemas de grande porte:
1) problemas textuais (a seleção dos textos inspirados, ou probiemas
seja, a fixação do cânon); textuais,
2) problemas de coerência com o Antigo Testamento (como de coerência
conciliar o Deus de justiça do Antigo Testamento com o Deus entre os dois
de amor do Novo); Testamentos,
3) problemas teológicos (o problema trinitário e a fixação e teológicos
do dogma da Trindade no Concilio de Nicéia em 325). -> § 1-2

• Sobre a base desses grandes problemas era claro o esforço de definir a iden­
tidade do cristão, o que ocorreu em três momentos:
1) o dos Padres Apostólicos do séc. I (discípulos diretos dos
apóstolos), que tiveram de modo prevalente interesses morais Os Padres
e ascéticos); Apostólicos,
2) o dos Padres Apologistas do séc. II, que tentaram uma os Apologistas,
defesa do cristianismo, recorrendo também a argumentos filo­ a Patrística
sóficos (de resto, o próprio Prólogo do evangelho de João abria
->§3-5
um caminho neste sentido);
3) por fim, o momento da Patrística (a partir do séc. III d.C.), que usou de
modo sistemático a filosofia (principalmente platônica) para dar uma base teórica
para a Revelação.

1 ;A questão da autenticidade ou seja, distinguir os documentos fidedignos


dos falsos, os autênticos dos inautênticos.
dos textos bíblicos
Ao que parece, os primeiros documentos a
serem coligidos foram as Cartas endereçadas
Cristo anunciou sua mensagem confian­ por Paulo às várias comunidades cristãs, às
do-a à viva voz. Depois de sua morte, essa quais, pouco a pouco, acrescentaram-se
palavra foi fixada em alguns escritos, a par­ outros documentos. Mas foi bastante com­
tir da metade do século I. No curso do tempo, plexa a história que levou à formação do
esses escritos se multiplicaram, mas somen­ cânon definitivo (cuja composição apresen­
te alguns ofereciam as necessárias garantias tamos), sendo necessários três séculos e no­
de credibilidade histórica. Portanto, a primei­ táveis esforços, porque alguns textos que,
ra tarefa urgente foi não apenas a de reco­ pouco a pouco, com o amadurecimento da
lher esse material, mas também selecioná-lo, consciência crítica dos cristãos, tiveram de
28 Segunda pãYte - y \ D a + W s+ ic n na área c u l- fu r a l cie I m g u a g r e c ja

ser excluídos do cânon, já se haviam torna­ rente do Deus de amor do segundo. Para
do familiares e caros para muitos. O cânon muitos, uma grave dificuldade era represen­
do Novo Testamento acabou sendo fixado tada sobretudo pela linguagem antropomór-
em 367, mediante uma carta de Atanásio. fica veterotestamentária. Tudo isso gerou
Mas, mesmo depois de fixado o cânon, con­ grandes debates, favorecendo particularmen­
tinuou a produção de textos sacros. Os es­ te a grande difusão da interpretação alegó­
critos excluídos do cânon ou produzidos rica do Antigo Testamento (difundida por
depois de sua determinação denominam-se Fílon de Alexandria, de que falaremos adian­
apócrifos do Novo Testamento (por analo­ te) e a distinção de vários níveis de compreen­
gia com os apócrifos do Antigo Testamen­ são do texto bíblico, que abriríam amplos
to, ou seja, os escritos que não se encon­ espaços para a reflexão teológica, moral e
tram no cânon do Antigo Testamento). filosófica.

2 questão
da conciliabilidade
do y\utigo
e do A) ovo Testameuto

A segunda questão, ligada a essa, diz


respeito ao Antigo Testamento. O cristão
deve aceitá-lo. Cristo foi categórico sobre
esse ponto: “ Não penseis que vim revogar a
Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas
dar-lhes pleno cumprimento, porque em ver­
dade vos digo que, até que passem o céu e a
terra, não será omitido nem um só i, uma só
vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado.
Aquele, portanto, que violar um só destes me­
nores mandamentos e ensinar os homens a
fazerem o mesmo, será chamado o menor
no Reino dos Céus” . E o próprio Cristo ci­
tou grande número de passagens do Antigo
Testamento como tendo valor de verdade e
de autoridade indiscutível. Mas como inter­
pretar as verdades expressas no Antigo Tes­
tamento? Como conciliar as diferenças exis­
tentes entre o Novo e o Antigo Testamento?
Os gnósticos (de que falaremos adiante) ain­
da complicaram as coisas, rejeitando o An­
tigo Testamento e chegando a declará-lo até
mesmo obra de um Deus diferente e infe­
rior ao do Novo Testamento. Para alguns,
o Deus de justiça do primeiro pareceu dife-

Díptico com as Festas do Senhor,


chamado “grego”
(marfim do séc. XI conservado em Milão,
Tesouro da Catedral).
Sobre duas lâminas estão representadas
cenas evangélicas - que aludem ao dogma
da redenção por meio da encarnação
e da paixão de Cristo hem identificadas
e por vezes comentadas
por uma inscrição em grego.
Capítulo segundo - 1 - Y o U e m a s fi lo
o ss o
ó ft i c o s e s s e n c i a i s . ..
29

3 ;A questão Nesse trabalho complexo, que levou al­


guns séculos, podemos distinguir três mo­
da identidade do cristão
mentos fundamentais:
a) o dos “ Padres apostólicos” do séc. I
Ademais, logo nascería a urgente neces­ (assim chamados porque ligados aos após­
sidade de se defender das acusações de seus tolos e ao seu espírito), que ainda não en­
adversários (particularmente dos hebreus, frentam problemas filosóficos, limitando-se
dos pagãos e, depois, também dos heréti­ à temática moral e ascética (Clemente Ro­
cos, sobretudo dos gnósticos), que deforma­ mano, Inácio de Antioquia, Policarpo de Es-
vam a mensagem evangélica, bem como de mirna);
construir a identidade dos cristãos em to­ b) o dos “Padres apologistas” , que, ao
dos os níveis. longo do séc. II, realizaram uma “ defesa”
sistemática do cristianismo, na qual os filó­
sofos aparecem freqüentemente como os ad­
versários a combater, mas quando se come­
ça também a usar as armas dos filósofos para
construir a própria defesa;
c) o momento da Patrística propria­
mente dita, que vai do séc. III ao início da
Idade Média e no qual o elemento filosófi­
co, especialmente platônico, desempenha pa­
pel bastante considerável.
“Padres da Igreja” , portanto, são to­
dos aqueles homens que contribuíram de
modo determinante para construir o edifí­
cio doutrinário do cristianismo, que a Igre­
ja acolheu e sancionou.

4 O s geandes problemas
teol ógicos

Como fica claro pelo que se disse, o


interesse desses homens, até dos mais cul­
tos, é antes de mais nada religioso e teológi­
co. Sua “ filosofia” é sempre parte integran­
te de sua fé.
Os problemas teológicos maiores que
reclamaram o envolvimento de importan­
tes conceitos filosóficos (com as respectivas
discussões) foram:
fl)o d a Trindade;
b) o da Encarnação;
c) o das relações entre liberdade e graça;
d) o das relações entre fé e razão.

a) A formulação definitiva do dogma


da Trindade só ocorreu em 325, no Conci­
lio de Nicéia, depois de longas discussões e
polêmicas, quando foram identificados e
denunciados os perigos opostos do adocio-
nismo (que consistia em não considerar Cris­
to como filho “gerado” , mas sim “ adotado”
por Deus Pai), que comprometia a divinda­
de de Jesus, e do modalismo (que consistia
30 Segunda paYte - y \ D a t n s t i c a n a á n e a cultural d e lín gua g r e g a

em considerar as pessoas da Trindade como cos, como os de geração, criação, emana­


modos de ser e funções do único Deus), bem ção, processão, substância, consubstancia-
como uma série de posições relacionadas a lidade, bipóstase, pessoa, livre-arbítrio, von­
estas de diversos modos. tade e semelhantes — acarretando assim
b) O problema cristológico também re­ grande densidade filosófica nas discussões
quereu séculos de trabalhosa elaboração e a e o seu progressivo crescimento em sentido
superação de obstáculos de grande dificulda­ ontológico e metafísico.
de, sobretudo o perigo de cindir as duas na­
turezas (a divina e a humana) de Cristo, a
ponto de perder sua unidade intrínseca
(como ocorreu com a doutrina de Nestório 5 O gmnde Peólogo
e com o nestorianismo), ou então de redu­ do ÊvangeIko de ( f f o ã o
zir essas naturezas a uma só (monofisismo).
O Concilio de Éfeso (431) condenou o mono-
.fisismo, e o Concilio de Calcedônia (451) con­ O texto básico para a mediação racio­
denou o nestorianismo, estabelecendo a fór­ nal e a sistematização da doutrina e da fi­
mula “duas naturezas em uma só pessoa, a losofia cristãs foi o prólogo do Evangelho
de Jesus” , ou seja, definindo que Jesus é de João (além das Epístolas de Paulo), que
“verdadeiro Deus” e “verdadeiro homem” . fala do “Verbo” ou “Logos” divino, e fala
Os debates sobre esses dogmas continuaram de Cristo precisamente em termos de Lo­
mesmo depois disso, mas já sobre bases es­ gos: “ No princípio era o Verbo (Logos) e o
senciais consolidadas. Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus.
c) Sobre o terceiro problema, tratare­ No princípio, ele estava com Deus. Tudo
mos ao falar de santo Agostinho. foi feito por meio dele e sem ele nada foi
d) Por fim, o problema das relações en­ feito de tudo o que existe. Nele estava a vi­
tre fé e razão, expressamente levantado na da e a vida era a luz dos homens e a luz bri­
escola catequética de Alexandria e que já lha nas trevas, mas as trevas não a apreen­
encontra uma primeira solução muito clara deram. (...) Ele estava no mundo e o mundo
em Agostinho, mas que se tornaria proble­ foi feito por meio dele, mas o mundo não
ma central na Escolástica, dando origem a o conheceu. Veio para o que era seu e os
diferentes tipos de soluções, ricas em impli­ seus não o receberam. Mas aos que o rece­
cações e conseqüências. beram deu o poder de se tornarem filhos
Todos esses problemas, como já obser­ de Deus: os que crêem em seu nome, que
vamos, envolveram a discussão de impor­ não nasceram do sangue, nem da vontade
tantes conceitos metafísicos e antropológi­ da carne, nem da vontade do homem, mas
de Deus. E o Verbo se fez carne e habitou
entre nós; e nós vimos a sua glória, como a
glória do Unigênito do Pai, cheio de graça
e de verdade. (...) Porque a lei foi dada por
meio de Moisés; a graça e a verdade nos
vieram por Jesus Cristo. Ninguém jamais
viu a Deus: o Filho unigênito, que está vol­
tado para o seio do Pai, este o deu a co­
nhecer” .
Esse texto se apresentou como o mapa
fundamental dos problemas essenciais. E o
conceitò de Logos permitiu utilizar de modo
fecundo uma série de elementos do pensa­
mento helênico, que culminara no conceito
de Logos, como gradualmente examina­
remos.

Cabeça do apóstolo João. Mosaico do séc. XII


(Basílica Ursiana, Ravena).
Cãpítulo Segundo - P r o b l e m a s f i l o s ó f i c o s e s s e n c i a i s . ..
31

II. LAm p ^ e c u ^ s o ^ :
T^ílon d e y \le x a n d ^ ia

• Fílon de Alexandria (ou Fílon Judeu) toma da Estoá o precedentes


conceito de Logos, e de Platão a estrutura do mundo supra- e desenvolvimentos
sensível e o das Idéias, que reforma de modo profundo, consi- §1
derando-o como objeto do pensamento de Deus e criação de
Deus. Do Antigo Testamento toma grande parte dos traços éticos, antropológicos
e teológicos que interpreta e traduz à luz da alegorização filosófica.

• Fílon pode ser considerado precursor dos Padres, princi- a/eoona


palmente porque foi o primeiro a tentar uma mediação entre ^f
a mensagem bíblica e a filosofia grega, dando assim forma ao
que ele próprio chamava de "filosofia mosaica". O instrumen­
to dessa filosofia é a alegoria filosófica que procura, sob a letra do texto revelado,
significados e conceitos filosóficos, de modo que no fim o relato histórico da Sa­
grada Escritura é transcrito como mensagem filosófico-teológica.

• Esta operação permitiu produzir termos e conceitos de grande relevo e de


grande utilidade para os primeiros exegetas cristãos, como, por exemplo, os con­
ceitos de Logos, Potência e Cosmo inteligível. Logos, com efei­
to, significa também "palavra" e no texto bíblico indica a pala- o Logos
vra criadora de Deus ou a Sabedoria. Fílon transforma essa "pa- -> § 2
lavra" em uma hipóstase criadora (chamando-a por vezes de
"Arcanjo", "Mente de Deus", "Filho primogênito de Deus" etc.), na qual se forma
o projeto ideal do mundo (= cosmo inteligível, correspondente do mundo das
Idéias platônicas) durante a criação.

• Deus, conforme o relato bíblico, tem outras atividades (por exemplo, rege o
mundo, julga, dispensa as graças) e, como no caso da Palavra, também estas são
hipostatizadas e tomam o nome de Potências: teremos assim a
Potência real, a benfeitora etc. Toda essa formação de hipóstases As Potências
tem a função de não pôr Deus em contato direto com o mundo -^§2
material, considerado mau.

%Fílon introduz conspícuas novidades também em antro­ Antropologia


pologia, e sempre com base na leitura alegórica da Bíblia; in­ ->§3
terpreta o homem como constituído por três elementos: o cor­
po, a alma-intelecto e o Espírito; apenas este último seria imortal, porque direta­
mente inspirado por Deus.

• No campo moral, o Alexandrino fundiu de modo coerente a fé com a razão,


considerando a ética como um itinerário para Deus, uma "migração" (análoga à
do pai Abraão da terra da Caldéia), que nos leva a entrar de novo em nós mesmos,
depois de deixar todo interesse pelo mundo externo. Uma vez
descoberta nossa nulidade e o fato de que nós mesmos somos Ética
um dom de Deus, é preciso remontar até Ele e a Ele nos ligar- §4
mos no êxtase.
32 Segunda parte - / \ Pa+ns+ica na á ** e a c u l t u r a l d e líu g u a g r e 0a

1 "^i\oso^\a m o s a i c a '1

: ■ Logos. Provavelmente deduzindo- j


O judeu Fílon, que nasceu em Alexan­ l o do texto bíblico, onde a "palavra" J
dria entre 15 e 10 a.C., desenvolvendo suas (em grego logos) de Deus é criadora
í do mundo, e talvez também com a j
atividades na primeira metade do século I : intenção de interpor entre Deus e o ?
d.C., pode ser considerado um precursor dos mundo hipóstases para lhe garantir :
Padres, pelo menos em certa medida. l a transcendência, o judeu Fílon apre- )
Entre suas obras numerosas, destaca- I sentou pela primeira vez o Logos -
se a série de tratados que constituem um Co­ ■ como Deus segundo, ou Filho primo- '
mentário alegórico do Pentateuco (devemos gênito do Pai, criador do mundo. Re­
recordar sobretudo A criação do mundo, As metendo-se também à imagem da
alegorias das leis, O herdeiro das coisas di­ "Sabedoria" bíblica, ele concebeu o |
Logos como mente de Deus, na qual j
vinas, A migração de Abraão e A mutação Deus traça, sob a forma das Idéias pia- j
dos nomes, que estão entre os mais belos). tônicas, o projeto do cosmo, ao ato |
O mérito histórico de Fílon está em ter' da criação. .
tentado pela primeira vez na história uma Como é fácil imaginar, os primeiros
fusão entre filosofia grega e teologia mosai­ pensadores cristãos, já a partir do evan- ■
ca, criando assim uma “ filosofia mosaica” . gelista João, encontraram neste con- \
O método com o qual Fílon operou a media­ ceito uma poderosa prefiguração de
ção foi o da “alegorese” . Ele sustenta que a Cristo, e o assumiram de modo está- !
vel em sua bagagem cultural e teoló- ‘
Bíblia tem: . gica. I
a) um significado literal, que, no en­
tanto, não é o mais importante;
b) um significado oculto, segundo o
qual as personagens e eventos bíblicos são
símbolos de conceitos e verdades morais,
espirituais e metafísicas. górica alcançará grande êxito, tornando-se
Essas verdades subjacentes (que se co­ um verdadeiro método de leitura da Bíblia
locam em diferentes níveis) requerem parti­ para a maioria dos Padres da Igreja e trans­
cular disposição de espírito (quando não, formando-se, assim, por longo tempo, numa
até mesmo, uma verdadeira inspiração) para constante.
que se possa captá-las. A interpretação ale- A filosofia mosaica de Fílon represen­
tou a aquisição de uma série de novos con­
ceitos, desconhecidos para o pensamento
grego, a começar pelo conceito de “criação”,
do qual ele forneceu a primeira formulação
em termos sistemáticos: Deus cria a matéria
■ Alegoria. É uma imagem que é apre­ do nada e depois imprime a forma sobre ela.
sentada como símbolo de um concei­ Mas, para criar o mundo físico, Deus cria,
to. Interpretação alegórica dos textos antes dele, o cosmo inteligível (as Idéias)
é, portanto, a que procura percorrer
de novo em sentido inverso esta rela­
como “ modelo ideal” . E esse “cosmo inteli­
ção, ou seja, reconduziras imagens ao gível outra coisa não é que o Logos de Deus
sentido filosófico que as inspirou. no ato de formar o mundo” (as Idéias pla­
Mestre e também teórico deste gê­ tônicas, desse modo, tornam-se definitiva­
nero de exegese foi Fílon, que o apli­ mente pensamentos de Deus presentes no
cou de modo sistemático à Bíblia. Se­ Logos de Deus e coincidentes com ele).
gundo Fílon, sob as personagens e os
eventos estão precisos significados fi­
losóficos, em vários níveis. A filosofia
de Fílon consiste justamente em uma ULogos
I // e
interpretação da Bíblia em chave ale­ 2 V eus . "P o d e/'
górica. Do método de Fílon depende
em grande medida a interpretação da
Sagrada Escritura dos primeiros pen­ Fílon distingue o Logos de Deus, dele
sadores cristãos. fazendo uma hipóstase, a ponto de denomi­
3 ná-lo até “ Filho primogênito do Pai incria-
do” , “Deus segundo” e “ Imagem de Deus” .
Capítulo segundo - T-V o b le m n s f il o s ó f ic o s e s s e n c i a i s . . .
33

Em algumas passagens, fala dele até como dimensão, de tal natureza que chega a trans­
causa instrumental e eficiente. Em outras formar radicalmente o significado, o valor
passagens, porém, fala dele como Arcanjo, e o alcance das outras duas. Segundo essa
Mediador entre criador e criaturas (à medi­ nova concepção, na qual o componente bí­
da que não é incriado, como Deus, mas tam­ blico torna-se predominante, o homem é
bém não é criado, como as criaturas do constituído por:
mundo), Arauto da paz de Deus e Conser­ 1) corpo;
vador da paz de Deus no mundo. 2 ) alma-intelecto;
Além disso, o que é muito importante, 3) Espírito proveniente de Deus.
o Logos de Fílon expressa as valências fun­ Segundo a nova perspectiva, o intelec­
damentais da “ Sabedoria bíblica” e da “ Pa­ to humano é corruptível, no sentido de que
lavra de Deus” bíblica, que é a Palavra cria­ é intelecto “terreno” , a menos que Deus ins­
dora e produtora. Por fim, o Logos também pire nele “ uma força de verdadeira vida” ,
expressa o significado ético de “Palavra com que é o Espírito divino (pneuma).
que Deus guia ao bem” , o significado de Está claro que, considerada em si mes­
“ Palavra que salva” . Em todos esses signifi­ ma, a alma humana (ou seja, o intelecto
cados, o Logos indica uma realidade incor- humano) seria algo muito pobre se Deus nela
pórea, ou seja, metassensível e transcenden­ não soprasse o seu Espírito (pneuma). Para
te. Mas, como o mundo sensível é construído Fílon, o momento que realiza o vínculo do
segundo o modelo inteligível, ou seja, segun­ homem ao divino não é mais a alma, como
do o Logos — e mais: pelo instrumento do para os gregos, nem sequer a sua parte mais
Logos —, existe também um aspecto ima- elevada, o intelecto, mas sim o Espírito, que
nente do Logos, que é ação do Logos incor- deriva diretamente de Deus. Conseqüente-
póreo sobre o mundo corpóreo. Nesse sen­ mente, o homem tem uma vida que se de­
tido imanente, o Logos é o vínculo que senvolve em três dimensões:
mantém o mundo unido, o princípio que o 1) segundo a dimensão física puramen­
conserva e a norma que o governa. te animal (corpo);
Como Deus não é finito, inumeráveis 2 ) segundo a dimensão racional (alma-
são as manifestações de sua atividade, que intelecto);
Fílon chama de “ Poderes” . No entanto, ele 3) segundo a dimensão superior, divi­
só menciona um número limitado desses na e transcendente do Espírito.
poderes e, normalmente, só chama em cau­ Em si mesma mortal, a alma-intelecto
sa os dois principais (e a eles subordina to­ torna-se imortal à medida que Deus lhe dá
dos os restantes): o Poder criador, com o o seu Espírito, ela se vincula ao Espírito e
qual o Criador produz o universo, e o Poder vive segundo o Espírito. E caem assim os
régio, com o qual o Criador governa aquilo sustentáculos sobre os quais Platão procu­
que criou. rara alicerçar a imortalidade da alma. A
A relação entre o Logos e os dois Po­ alma não é imortal em si mesma, mas pode-
deres supremos (e, portanto, entre o Logos se tornar imortal à medida que sabe viver
e todos os outros poderes, que, como disse­ segundo o Espírito.
mos, se subordinam aos dois principais) é
expressamente tematizada por Fílon. Em
alguns textos, ele considera o Logos como
fonte dos outros poderes; em outros, porém, 4 A taova ética
ele atribui ao Logos a função de reunir os
outros poderes. i i]
Todas as significativas novidades que
Fílon introduz na ética dependem precisa­
mente dessa terceira dimensão — o Espírito
3 ;A cuateopolc>0Ía filo n i a n a de Deus —, que deriva diretamente da in­
terpretação da doutrina da criação e da teo­
logia bíblica em geral. A moral torna-se
Na antropologia, Fílon parece seguir inseparável da fé e da religião, desembocan­
em parte Platão, distinguindo “alma” e “cor­ do em verdadeira união mística com Deus e
po” no homem. Mas, pouco a pouco, ele em uma visão extática.
amadurece uma concepção mais avançada, Por causa desse aspecto é a figura de
fazendo irromper no homem uma terceira Abraão que serve como modelo, principal­
34 Segunda parte - A A a t r í s f i c a n a á r e a c u l t u r a l d e líiU0ua 0rega

mente por seu caráter de “ migrante” . Com nós mesmos, compreendendo que tudo o
ousada transposição alegórica, a migração que temos não é nosso e dedicando-o a quem
de Abraão torna-se o símbolo da viagem de no-lo deu. E é nesse preciso momento que
toda alma para a salvação e as várias terras Deus se dá a nós. Eis um texto significativo:
que o patriarca atravessou na sua vida (Egi­ “ Para a criatura, o momento justo para en­
to, Caldéia...), tornando-se igualmente eta­ contrar o seu Criador ocorre quando ela
pas que a alma deve alcançar na sua purifi­ reconheceu a sua própria nulidade”. E eis
cação segundo uma perspectiva moral (do outro texto, que resume o itinerário: “A gló­
vício à virtude), intelectual (da fé no cosmo ria de uma alma extraordinariamente gran­
à fé em Deus) e psicológico-pedagógica (da de é ultrapassar o criado, superar os seus
infância à maturidade). limites e vincular-se somente ao incriado,
Por esse caminho, Fílon antecipa aquele segundo os preceitos sagrados, nos quais é
“ itinerário para Deus” que, posteriormen­ prescrito ‘apegar-se a ele’ (Dt 30,20). Por
te, em alguns Padres, especialmente de Agos­ isso, àqueles que se apegam a ele e o servem
tinho em diante, se tornará canônico. Do sem interrupção, em troca, ele se dá a si
conhecimento do cosmo, transcendendo o mesmo em herança” .
próprio cosmo, devemos passar a nós mes­ A vida feliz consiste precisamente nes­
mos e ao conhecimento de nós mesmos; mas sa transcendência do humano na dimensão
o dado essencial consiste exatamente no do divino, “vivendo inteiramente para Deus
momento em que também transcendemos a ao invés de viver para si mesmo” .

III. A cãKVOSe
• Gnose significa "conhecimento" e designa a iluminação particular que al­
gumas correntes religioso-filosóficas consideravam possuir e que codificavam em
determinadas fórmulas, ou imagens, ou conceitos. Os principais são os seguintes:
1) o conhecimento gnóstico se refere a Deus e à salvação
ultraterrena, apresenta-se como doutrina secreta revelada por
Os fundamentos Cristo a poucos discípulos, e transcrita nos Evangelhos gnósticos;
do pensamento 2) a concepção do mundo dos Gnósticos é pessimista e é
gnóstico
expressão da humanidade angustiada: ela, com efeito, vê o
->§ 1-4
cosmo como reino do mal, e considera a nossa permanência
nele como um exílio;
3) os homens, conforme sua relação com a Gnose, distinguem-se em pneumá­
ticos (os que mais participam do conhecimento e se destinam à salvação), hílicos
(ou seja, ligados à terra e destinados à perdição) e psíquicos (abertos a uma ou
outra destinação);
4) este mundo foi criado por um Demiurgo mau (o Deus do Antigo Testamen­
to) e é resgatado por um Deus bom (Cristo);
5) a derivação da realidade cósmica e inteligível a partir da unidade primor­
dial explica-se por via alegórica com a separação de casais de seres eternos (cha­
mados "éons") em uma ordem bastante complicada, e por vezes fruto de fantasia.

1 S ig ni^icado mas correntes religioso-filosóficas do tardio


paganismo, sobretudo de algumas seitas he­
do termo “gnose"
réticas inspiradas no cristianismo.
As doutrinas herméticas e a dos Orá­
O termo gnose quer dizer, literalmen­
culos caldeus podem ser consideradas for­
te, “conhecimento” , mas, tecnicamente, tor­ mas de gnose pagã. Mas a gnose que nos
nou-se indicador daquela forma particular interessa aqui é a que se vinculou ao cristia­
de conhecimento místico própria de algu­ nismo, a ele misturando vários elementos
Capitulo SegUtldo - 1 - V o b l e m a s filosóficos e s s e n c ia is ...
35

helenísticos e também orientais, e contra a revelando ademais nossa verdadeira identi­


qual os Padres vivamente polemizaram. dade, que consiste na pertença ao bem origi­
nário: se o homem sofre o mal, isso significa
que ele pertence ao bem. Portanto, o homem
2 O s novos documentos provém de outro mundo e a ele deve retornar.
gnósticos descobertos Este mundo é o nosso “exílio” e o outro mun­
do é a nossa “pátria” . Um dos mais signifi­
cativos documentos gnósticos afirma: “ Quem
Até há pouco tempo, os estudiosos la­ conheceu o mundo, encontrou um cadáver.
mentavam a grande penúria de documen­ E o mundo não é digno de quem encontrou
tos conservados sobre a gnose e o fato de um cadáver” . O gnóstico deve tomar cons­
que precisavam se basear predominantemen­ ciência de si e, conhecendo-se a si mesmo atra­
te nos testemunhos dos seus adversários para vés de si mesmo, poderá então retornar à
reconstruir a gnose cristã. pátria originária. Papel essencial nesse “re­
Todavia, em 1945, em Nag Hammadi torno” é desempenhado pelo Salvador (Cris­
(no Alto Egito), foram casualmente desco­ to), que é um dos “éons” divinos.
bertos em um cântaro enterrado nada me­
nos que cinqüenta e três escritos, quase to­ c) Os gnósticos dividem os homens em
dos gnósticos, em língua copta, dos quais três categorias:
pelo menos quarenta e três eram inteiramen­ 1) pneumáticos;
te novos. Entretanto, só foram publicados 2 ) psíquicos-,
entre 1972 e 1977, devido a uma série de con­ 3) hílicos.
trariedades de diversos tipos e à proibição Nos primeiros, predomina o Espírito
de livre acesso feita pelo Museu Copta do (pneuma); nos segundos, a alma (psyché); nos
Egito, que se reservou a posse dos textos. terceiros, a matéria (hylej. Os últimos são
Somente em 1977 foi ultimada uma tradu­ destinados à morte, os primeiros à salvação
ção inglesa completa dos documentos. e os segundos têm a possibilidade de salva­
Muitos desses textos tornaram-se recen­ ção, caso sigam as indicações dos primei­
temente disponíveis em outras línguas, na co­ ros, isto é, os eleitos, que possuem a “gnose” .
letânea Os apócrifos do Novo Testamento.
Entretanto, serão necessários muitos d) Este mundo, que é mal, não foi feito
anos ainda para que as necessárias e prévias por Deus, mas sim por um demiurgo mau.
investigações analíticas e particulares pos­ Alguns acreditam que a essência do Gnosti-
sam permitir conclusões sintéticas e gerais. cismo se expressa perfeitamente nas seguin­
tes palavras de Plotino: os gnósticos “ susten­
tam que o demiurgo deste mundo é mau e
3 O s traços essenciais
que o cosmo é mau” . Explica-se, assim, o
fato de que o Deus do Antigo Testamento,
da d o u t r i n a da gnose criador deste mundo, fosse identificado com
esse “demiurgo mau” , e que se contrapunha
a) O objeto específico do “conhecimen­ ao Deus benigno do Evangelho, que, ao con­
to” gnóstico é Deus e as coisas últimas rela­ trário, enviou o Cristo salvador. Cristo é uma
tivas à salvação do homem. Um texto bási­ entidade divina, que veio à terra revestida de
co explica, de modo resumido, que a gnose um corpo apenas aparente. A interpretação
diz respeito aos seguintes pontos: alegórica dos textos sacros permitia aos gnós­
1) quem éramos e o que nos tornamos; ticos dobrá-los às suas exigências.
2 ) onde estávamos e onde fomos lan­
e) O sistema gnóstico complica-se par­
çados;
ticularmente quando tenta explicar a deriva­
3) aonde desejamos ir e de onde fomos ção de toda a realidade inteligível da unidade
resgatados;
primordial por meio de uma série de “éons”
4) o que é o nascimento e o que é o
(entidades eternas), que emanam em duplas
renascimento. (segundo alguns, Cristo seria o último éon),
b) Na experiência do gnóstico, a triste­ bem como a própria derivação do homem.
za e a angústia emergem como dados funda­ A propósito disso, o pensamento gnóstico
mentais, porque revelam um impacto com o revela-se ainda mais complicado pela presen­
negativo e a conseqüente tomada de consciên­ ça de narrativas mitológicas e fantásticas de
cia de uma cisão radical entre o bem e o mal, vários gêneros e diversas gêneses.
36 Segunda parte - A PaM s+i c a v\ck a r c a cul+ ura l d e l í n g u a g r e g a

f) A doutrina gnóstica se apresenta co­


lêmicas demonstram a forte influência que
mo doutrina secreta, revelada por Cristo a esse movimento deve ter exercido na anti­
poucos discípulos, dirigindo-se especialmen­ guidade sobre os espíritos. Com efeito, na­
te às camadas cultas e refinadas e, portan­ quela época que via um mundo espiritual
to, tem caráter aristocrático, em antítese com perecer e outro surgir — e que exatamente
o autêntico espírito evangélico. Os Evange­ por isso foi uma época dominada pela an­
lhos gnósticos apresentam-se precisamen­ gústia —, os gnósticos davam (talvez mais
te como os documentos dessa “ revelação do que outros movimentos filosóficos) um
secreta” . sentido a essa angústia e, portanto, estavam
Entre os defensores das doutrinas gnós- em sintonia com certo modo de sentir pró­
ticas, destacamos: Carpócrates e seu filho Epí- prio daqueles tempos.
fanes, Basílides e seu filho Isidoro e, sobretu­ Um dos documentos descobertos em
do, Valentim, que teve muitos seguidores. Nag Hammadi afirma: “ A ignorância do
Pai havia causado angústia e terror. A an­
gústia se fizera densa como a névoa, de
4 7A “g n o se ." modo que ninguém pudesse ver...” . E, co­
como expressão da aiagúsfia mo sabemos de outra fonte, a própria
materialidade e a corporeidade constituí­
de uma época am para eles experiências de “ terror, dor e
falta de saída” . Mas, por mais que pudesse
Os Padres encontraram (e com justa ra­ responder a instâncias precisas daquela
zão) nas doutrinas gnósticas um viveiro de época, a mensagem gnóstica revelou-se frá­
doutrinas heréticas. Mas suas insistentes po­ gil e sem futuro.
37
Cãpítulo segundo - P f o b l e m a s filosófico s e s s e n c ia is ...

3. Portanto, quando o Cscritura diz: “No sex­


to dia levou a termo as obras" (Gn 2,2), não se
F íl o n d e A l e x a n d r ia
deve crer que ela Faça referência a certo núme­
ro de dias, mas ao número 6, que é perfeito,
porque é a primeiro cifra que é igual à [soma
das] suas partes (ou seja, à sua metade, mais
o seu terço, mais o seu sexto) e é o produto de
R criação do mundo fatores desiguais: justamente o 2 e o 3. De res­
to, a díade e a tríade infringiram a não-corpo-
reidade da mônada, uma vez que a primeira é
fí passagem que citamos ilustra de mo­ imagem da matéria, enquanto, como a maté­
do exemplar qual é o movimento do exeg ese ria, é divisível e seccionável, enquanto a tríade
alegórico d e fílon, ou seja, da Bíblia à Filo­ é imagem do corpo sólido, porque nele se dis­
sofia, e do "Fato" ao conceito. tinguem as três dimensões.
O livro do G ênesis apresenta, de For­ 4. Além disso, o número 6 é congênere
mas concretas ("míticas"), o evento da cria­ ao movimento dos seres vivos dotados de apa­
ção, mas o intérprete transforma e stes Fatos rato locomotor. O corpo destes seres, com efei­
em equivalentes conceitos de cunho platôni­ to, é, por natureza, capaz de se mover em seis
co: “céu, terro e mundo" tornom-se idéias direções: para a frente, para trás, para o alto,
exem plares: os sete dias da criação repre­ para baixo, para a direita e para a esquerda. A
sentam a ordem numérica e, portanto, racio­ sagrada Cscritura quer, portanto, mostrar-nos co­
nal, do ação divina. mo os gêneros mortais e também os incorrup­
tíveis estão em relação com números correspon­
dentes: o gênero mortal, conforme se disse,
1. A criação e os números equipara-se à êxade,' e o gênero feliz e beato
1. "€ o céu e o terra e todo o seu mundo à hebdômada.*2
Foram completados" (Gn 2 ,1 ). Se antes Fala­
ra-se da gênese do intelecto e da sensação, 2. O valor alegórico do número 7
agora se Fala do cumprimento de ambas. A sa ­ 5. No início, portanto, depois de ter con­
grada Escritura, porém, diz que não Foram o in­ cluído a constituição dos seres mortais, Deus
telecto individual e a sensação particular que começa, no sétimo dia, a formação dos outros
foram levados ao cumprimento, mas as Idéias seres, os mais divinos. Deus, na verdade, ja ­
correspondentes, a do intelecto e a da sensa­ mais cessa de criar, mas, como é próprio do
ção. Do ponto de vista alegórico, o intelecto é fogo queimar e da neve resfriar, também é pró­
chamado de "céu", justamente porque as natu­ prio de Deus o fazer: melhor, estas proprie­
rezas inteligíveis estão no céu, e a sensação dades competem a ele muito mais do que aos
de "terra", dado que esta possui uma constitui­ outros, uma vez que ele é também a origem
ção corpórea e mais semelhante à terra. O da atividade de todos os outros seres.
"mundo" do intelecto é, portanto, o conjunto das ó. Todavia, a Cscritura não erra ao dizer
realidades incorpóreas e inteligíveis; o do sen­ que "pôs fim" (Gn 2,2) em vez de "parou". Deus,
sação, o conjunto dos seres corpóreos e dos com efeito, "põe fim" às realidades que pare­
sensíveis em geral. cem agir, mas que, na verdade, são inativas,
2. "C no sexto dia Deus levou a termo suas enquanto, de fato, ele próprio não "deixa" de
obras, as que havia criado" (Gn 2 ,2 ). Sem dú­ agir. Por tal motivo, acrescenta-se "pôs fim às
vida seria tolice crer que o cosmo tenha sido coisas que havia empreendido" (Gn 2 ,3). Com
gerado em seis dias, ou, em geral, no tempo. efeito, tudo o que nossa arte produz, uma vez
Por quê? Porque se o tempo em sua complexi­ realizado, permanece imóvel e permanece tal
dade nasce da seqüência dos dias e das noi­ e qual; todavia, as realidades que a ciência de
tes (cF. Gn 1,14), e isso se realiza necessaria­ Deus cria, uma vez realizados, estão em movi­
mente por meio do movimento do sol acima e mento, de modo que o fim de algumas é o iní­
sob a terra (e, por outro lado, o sol é uma par­ cio de outras, assim como o fim do dia é o início
te do céu, de modo que é preciso convir que o da noite. Do mesmo modo, certamente, deve­
tempo nasceu depois do cosmo), então é to­ mos crer que os meses e o ano presentes são
talmente justo afirmar que o cosmo não Foi cria­ o fim dos passados.
do no tempo, mas que, ao contrário deste últi­
mo, subsiste em razão do cosmo. Com efeito,
foi justamente o movimento do céu que tornou 'Isto é, oo número 6 0 suas propriedades simbólicas.
manifesta a natureza do tempo. 2lsto é, oo número 7 e suos propriedades simbólicos.
38
Segundei parte - y\ Pa+ns+ica na ái*ea cultural de língua grage

7. Como o nascimento de alguns seres pos irrigados: com efeito, se o fluxo excessivo
depende do dissolução de outros, assim tam­ transborda, o terreno ficará lodoso e barrento,
bém, por sua vez, a dissolução de alguns de­ em vez de fértil. Para que eu seja fecundo, é
pende do nascimento de outros. Neste sentido preciso que o fluxo esteja em minha medida e
é verdadeiro o dito: "Nada morre daguilo que não desmedido.
nasce, mas, dividindo-se uma coisa em outra, 33. Por isso eu pergunto: "O que me da­
dão lugar a uma única forma".3 rás", tu que me fizeste dons infinitos, no limite
fílon, fís alegorias das Leis, I, do que pode receber uma natureza mortal?
em Todos os tratados Aquilo que, por outro lado, desejo ainda apren­
do Comentário alegórico da Bíblia. der e adquirir é isto: quem poderá ser o digno
herdeiro de teus benefícios?
34. Ou então "arrisco a morrer sem filhos"
(Gn 15,2), tendo recebido um bem caduco, efê­
mero, de breve duração, eu que peço ter o con­
trário, isto é, um bem duradouro, que perma­
A nulidcide do homem neça no tempo, incontestável, imortal, que
possa espalhar suas sementes, estender suas
Fl nulidade do homem, proclamada aqui raízes, que tenha solidez e que possa levantar
por Fílon, está longe de se r umo humilhação seu tronco direto para o céu?
da p e sso a humana ou um p erder-se em 35. G certamente necessário que a virtu­
Deus. S e dermos atenção à psicologia dos de do homem caminhe sobre a terra, mas tam­
personagens, notaremos que a personalida­ bém que chegue até o céu, a fim de que lá,
d e de Rbraão de modo nenhum está "perdi­ nutrida pela incorruptibilidade, possa permane­
da", mas muito mais viva e determinada. cer incólume para sempre.
Fílon, portanto, une estreitamente o reconhe­ 3ó. Sei bem que tu, que conduzes ao ser
cimento dos próprios limites com a consciên­ as coisas que não existem e geras todas as
cia da dignidade humana, pois o homem é realidades, não amas uma alma estéril e infe-
exatamente parente e íntimo d e Deus. cunda, uma vez que concedeste à estirpe dos
videntes a graça extraordinária de jamais se ­
rem estéreis e sem descendentes. Pois bem,
também eu, que faço parte dessa estirpe, de­
30. C meu estado de ânimo que Moisés,
sejo, com todo direito, ter um herdeiro. G a partir
o perserutador, inscreveu sobre o meu memorial.
do momento que vejo que essa estirpe não se
Ge, com efeito, diz: “Aproximando-se, Abraão
extingue, penso que seria tanto mais indigno
disse: 'Agora cheguei a falar com meu Senhor,
permitir que meu desejo de beleza acabe em
eu que sou terra e pó" (Gn 18,23.27), uma vez
nada.
que o momento exato para a criatura encontrar
37. Portanto, suplico e imploro que, assim
seu Criador chega quando ela reconheceu sua
como as sementes e as brasas jazem sob a cin­
própria nulidade.
za, também a chama salvífico do virtude possa
31. As palavras "O que me darás?" não
acender-se e resplandecer e, transmitindo-se
exprimem a pergunta de quem se encontra na
como chama de uma geração para outra, dure
dúvida, e sim de quem está grato por causa da
o quanto o mundo durar.
grandeza e da plenitude dos bens de que goza.
38. Aos ascetas concedeste o ardente
“O que me darás?" significa: o que mais pode­
desejo de semear e gerar filhos da alma, e,
rio ainda esperar em acréscimo? Ó tu, que gos­
quando os obtiveram, gritaram de alegria e dis­
tas de dar, tuas graças são abundantes, sem
seram: "Gis as crianças; através delas Deus
confins, e não têm limite nem termo e, como
mostrou a compaixão para com seu servo" (Gn
fontes, derramam águas mais abundantes do
33,5). A inocência é sua ama e nutriz; suas a l­
que as que delas são alcançadas.
mas são puras, suaves e nobres; estão prepa­
32. C bom, porém, olhar não só para o flu­
radas para receber as marcas sublimes e divi­
xo sempre transbordante de seus benefícios,
nas da virtude.
mas também para nós que somos como cam-
Fílon,
O herdeiro dos coisas divinos,
em Todos o s trotados
3€urípides, fr. 839 Nciuck. do Comentário olegórico do Bíblia.
t S a p ít u lo t e r c e i r o

O s a p o lo g is ta s g re g o s
e a Ê s e o la c a fe g u e tic a de yAlexci^vdria

---- I. O s ;A polo 0 Ís+as g r e g o s do século II: zzz


^Ans+ides, 3^usfiuoy X a c i a u o

• Justino foi o primeiro platônico cristão e o mais importante dos apologistas.


Retomou de Fílon a doutrina do Logos, que identificou com Cristo: nos homens
estão presentes "sementes" do Logos, graças às quais cada ho­
mem pode conhecer parte da verdade. Concebeu a alma hu- Justino Mártir
mana como mortal por natureza, porque tudo o que vem de- e os outros
pois de Deus, enquanto gerado, é corruptível. apologistas
Outros apologistas do séc. II foram: 00 5T s
- Taciano, discípulo de Justino, valente adversário da filo- ^ 5 '
sofia grega;
- Atenágoras, que forneceu a primeira prova racional da unicidade de Deus e
se empenhou sobre o problema trinitário;
-Teó filo de Antioquia, que retoma a doutrina do Logos de Justino para expli­
car a Trindade;
- o autor da Carta a Diogneto, pequena jóia da literatura cristã antiga.

1 ]\AarcÀcxnc> ^Aeistides de um Diálogo com Trifão. A fervorosa


busca da verdade levou-o de Platão a Cris­
to. Para sua conversão, porém, revelou-se
A primeira Apologia do cristianismo que determinante o testemunho dos mártires. Eis
chegou até nós (descoberta somente no sécu­ suas próprias palavras: “ Quando ainda era
lo passado) é da autoria de Marciano Aristi- discípulo de Platão, eu ouvia as acusações
des, na época do imperador Antonino Pio, dirigidas contra os cristãos. Mas, vendo-os
aproximadamente de meados do século II. intrépidos diante da morte e diante daquilo
Ele sustenta que só os cristãos possuem que os homens mais temem, compreendí que
a verdadeira filosofia, porque encontraram era impossível que eles vivessem no mal” .
mais do que todos os outros a verdade acerca de A seguinte passagem da segunda Apo­
Deus e, em sua pureza de vida, testemunham logia resume perfeitamente sua posição de
adequadamente a verdade em que crêem. cristão em relação à filosofia: “Eu sou cris­
tão, glorio-me disso e, confesso, desejo fa­
zer-me reconhecer como tal. A doutrina de
2 d Ju stin o A^áH-ir Platão não é incompatível com a de Cristo,
mas não se casa perfeitamente com ela, não
EQ I O p>*imeiVo platônico cristão mais do que a dos outros, dos estóicos, dos
poetas e dos escritores. Cada um destes viu,
A figura de maior destaque foi Justino do Verbo divino que estava disseminado
Mártir, que nasceu em Flávia Neápolis, na pelo mundo, aquilo que estava em relação
Palestina, sendo autor de duas Apologias e com a sua natureza, chegando desse modo
40 Segunda pãVte - y\ T -á n ta s+ ic a n a á r e a c u l+ u r a l d e líin g u a g r e g a

a expressar uma verdade parcial. Mas, à corruptível, e é justamente por isso que é
medida que se contradizem nos pontos funda­ Deus, ao passo que tudo o que vem depois
mentais, mostram que não estão de posse dele é gerado e corruptível. Eis por que as al­
de uma ciência infalível e de um conheci­ mas morrem e são punidas; se não fossem
mento irrefutável. Tudo aquilo que ensina­ corruptíveis, não pecariam” . Nem se pode
ram com veracidade pertence a nós, cristãos. pensar que haja tipos diferentes de realida­
Com efeito, depois de Deus nós adoramos e de incorruptíveis, porque não se entendería
amamos o Logos nascido de Deus, eterno e como poderíam ser diferentes. E isso que Pla­
inefável, porque ele se fez homem por nós, tão e Pitágoras não entenderam. Justino escre­
para curar-nos dos nossos males, tomando- ve: “ Platão e Pitágoras não me interessam,
os sobre si. Os escritores puderam ver a verda­ nem quem simplesmente defende doutrinas
de de modo obscuro, graças à semente do Lo­ desse tipo. A verdade é esta: podes aprendê-
gos que neles foi depositada. Mas uma coisa la do que se segue. A alma é vida ou tem
é possuir uma semente e uma semelhança vida. Se é vida, fará viver alguma outra coi­
proporcional às próprias faculdades e ou­ sa, ao invés de si mesma [...]. Ninguém nega
tra é o próprio Logos, cuja participação e que a alma vive. Se portanto vive, vive sem
imitação deriva da graça que dele provém” . ser ela própria a vida, mas participando da
vida. Ora, o que participa de algo é diverso
WSM ;A doutrina do L-ocfos daquilo de que participa. A alma participa
da vida porque Deus quer que tenha a vida” .
Entre suas doutrinas particulares, des­ O homem não é eterno, e o corpo não está
taca-se a doutrina sobre as relações entre o unido perenemente à alma; e quando esta
Logos-Filho e Deus-Pai, interpretada atra­ harmonia se rompe, a alma abandona o cor­
vés de uma inteligente utilização do concei­ po e o homem já não existe. “Assim a alma
to estóico de “ Logos proferido” , que Fílon cessará de existir, o espírito de vida separa-
já havia utilizado, e de outros conceitos des­ se dela: a alma já não existe e retorna ao
tinados a ter grande eco posteriormente: lugar de onde veio” . Desse modo Justino
“ Como princípio, antes de todas as criatu­ abre espaço à doutrina da ressurreição.
ras, Deus gerou de si mesmo certa potência
racional (loghiké), que o Espírito Santo cha­ MEE A condenação de
ma ora ‘Glória do Senhor’, ora ‘Sabedoria’, à moi*te
ora ‘Anjo’, ‘Deus’, ‘Senhor’ e Logos (= Ver­
bo, Palavra) (...) e porta todos os nomes, O testemunho dos mártires convertera
porque cumpre a vontade do Pai e nasceu Justino.
da vontade do Pai. E, assim, vemos que al­ Ele, por seu turno, também deu teste­
gumas coisas acontecem entre nós: proferin­ munho profundo de Cristo, cuja fé havia abra­
do uma palavra (= logos, verbum), nós ge­ çado. Com efeito, morreu decapitado em 165,
ramos uma palavra (logos), mas, no entanto, condenado pelo prefeito de Roma por sua
não ocorre uma divisão e uma diminuição profissão de fé no cristianismo. um
do logos (= palavra, pensamento) que está
dentro de nós. E assim vemos também que,
de um fogo, acende-se outro fogo sem que o
fogo que acende seja diminuído: este perma­ 3 ~ C a cà a no
nece igual e o novo fogo que se acendeu sub­
siste sem diminuir aquele do qual se acendeu” .
Outros apologistas do século II, que tive­
E S I .A oloutnma ala alma ram certa importância, foram: Taciano o As­
sírio, Atenágoras de Atenas, Teófilo de Antio-
O quia e o autor anônimo da Carta a Diogneto,
“ platônico” Justino, que conhecia
bem a doutrina da alma do Fédon, julga que um documento bastante significativo.
essa deve ser reformada estruturalmente. A Taciano foi discípulo de Justino, por
alma não pode ser eterna nem incorruptível quem foi convertido. Em seu Discurso aos
por sua natureza. De fato, ele escreve: “Tudo gregos, ele manifesta acentuada aversão à
o que existe fora de Deus [...] é por sua na­ filosofia e à cultura grega, ao contrário de
tureza corruptível, pode desaparecer e não seu mestre, vangloriando-se polemicamente
mais existir. Apenas Deus não é gerado e in­ de ser “ bárbaro” e de ter encontrado a ver­
Cãpítulo terceiro - O s a p o l o 0 Í s + a s g r e g o s e a O s c o l a c a + e q u é i i c .a d e y M e x c m d n a
41

dade e a salvação em escritos “ bárbaros” (a 3) sobre o fato de que o corpo é mo­


Bíblia). Ele destaca que todas as coisas cria­ ralmente co-responsável pela virtude e pelo
das, incluindo a alma, não são eternas. A vício da alma e, portanto, deve co-dividir o
alma não é imortal por sua natureza. Ela é castigo ou a recompensa.
ressuscitada por Deus juntamente com o
corpo. Interessante é a retomada da tripar-
tição, que está presente tanto em Paulo como
em Fílon, do homem em: 5 Xeójalo de yAmtioquia
1) corpo;
2 ) alma;
3) espírito. Teófilo de Antioquia é autor de três li­
Aquilo que, em nós, é “ imagem e se­ vros A Autólico, elaborados na segunda
melhança” de Deus é o espírito, bem supe­ metade do século II. No primeiro livro fala-
rior à alma. E o espírito — e apenas ele — se da essência de Deus; no segundo, realiza-
que torna o homem (que, por sua natureza, se um confronto entre o relato bíblico e a
é mortal) imortal. mitologia pagã; o terceiro livro, que tem
aspecto prevalentemente apologético, defen­
de a moral e os costumes cristãos.
E belíssima a resposta ao desafio que
4 ^A +enágom s lhe fora lançado por Autólico, no sentido
de que lhe mostrasse o seu Deus, o Deus
cristão. Com efeito, Teófilo responde: “Mos­
Atenágoras de Atenas é autor de uma tra-me o teu homem e eu te mostrarei o meu
Súplica pelos cristãos, composta na segunda Deus” . O que significa: dize-me que homem
metade do século II, na qual refuta as acusa­ és e te direi se e que Deus podes ver. Diz
ções dirigidas contra os cristãos, particular­ Teófilo: “ O homem deve ter alma pura como
mente a de “ ateísmo” , fornecendo a primei­ um límpido espelho. Se a ferrugem corrom­
ra prova racional em favor da unicidade de pe o espelho, não é mais possível ver nele
Deus e procurando esclarecer o conceito de refletida a fisionomia humana. Analoga­
Trindade da seguinte maneira: “ O Filho de mente, se há uma culpa no homem, não lhe
Deus, que é mente (nous), é o primeiro re­ é possível ver Deus” .
bento do Pai. Não que ele seja criado, por­ Teófilo retoma e aprofunda a explica­
que desde o princípio Deus tinha em si o ção da Trindade (Trias) em termos de Logos
Logos, sendo eternamente conjugado ao imanente ou interno a Deus (Logos endiá-
Logos” . O Filho, o Logos, procede do Pai a thetos) e Logos proferido ou pronunciado
fim de ser “Idéia e atividade produtora” de (Logos prophorikós), prosseguindo no ca­
todas as coisas. O Espírito Santo “ flui de Deus minho traçado por Justino. Em si mesma, a
(...) e nele de novo entra como um raio de alma não é mortal nem imortal, mas é sus­
sol” . Em outro escrito seu que chegou até cetível tanto de mortalidade quanto de imor­
nós, Sobre a ressurreição dos mortos, ele for­ talidade. A imortalidade é o prêmio que
nece uma série de provas em favor da ressur­ Deus dá a quem observa sua lei.
reição. A base de sua antropologia ressente-
se, porém, do platonismo. O homem é corpo
e alma. O primeiro é mortal; a segunda é cria­
da, como o corpo, mas não mortal. Quando 6 y \ LZci e t a a T A io g n e .io
o corpo ressuscita, conjuga-se novamente
com a alma, que permanecera quase em um
estado de torpor, e reconstitui-se assim aquela Por fim, ao século II remonta breve
unidade na qual consiste o verdadeiro ho­ Carta dirigida a Diogneto, na qual a identi­
mem, o homem integral. dade dos cristãos no mundo e em relação
Tal doutrina da ressurreição repousa ao mundo é determinada com clareza e coe­
substancialmente sobre três princípios: rência extraordinárias: “ Os cristãos (...) não
1) sobre o fato de que o homem é cria­ se diferenciam dos outros homens nem por
do para a eternidade; território, nem por língua ou por hábitos.
2 ) que é estruturalmente composto de Eles não habitam em cidades próprias, nem
alma e corpo, e esta unidade não pode se falam uma linguagem inusitada. À vida que
perder nem mesmo com a morte; levam nada tem de estranho. Sua doutrina
42
Segunda pãTte - y\ p Ç U n ís + ic a na área c u lt u n a l d e lín g u a CjCec^a

não é fruto de considerações e elucubrações tudo como cidadãos e tudo suportam como
de pessoas curiosas; nem se fazem promo­ forasteiros. Toda terra estrangeira é sua pá­
tores, como alguns, de uma teoria humana tria e toda pátria é para eles terra estrangei­
qualquer. (...) Habitam em sua própria pá­ ra. (...) Habitam na terra, mas são cidadãos
tria, mas como estrangeiros; participam de do céu” . [3]

Livro de Bênçãos
da metade do séc. XI
(Bari).
Õinega (íi),
a última letra
ilo alfabeto grego,
símbolo do rélos
ou fim de todas as coisas,
circunda Cristo
em sua majestade.
Capitulo t6YC6ÍYO - O s a p o l o g i s t a s g r e g o s e a O s c o l a c a + e q u é t ic a d e jA I e x c ^ d H a
43

II. y \ O s c o I a ca+equctica
d e y\lexeKvd^ia:
O lem ente e O n gerves

• Clemente (nascido por volta de 150) se propõe demons- clemente-


trar a perfeita harmonia entre fé e razão, que existe no cristia- a harmonia
nismo. A filosofia não torna a verdade mais forte, mas defen- entre fa e razão
de a fé dos ataques dos inimigos da verdade. §i

• Deus, para Orígenes (185-253), é uma realidade incorpórea, e sua nature­


za transcendente o torna incompreensível à mente humana. Jesus, unigênito
filho de Deus, é "a sabedoria de Deus substancialmente sub­
sistente", na qual existem desde sempre as Idéias de todos os Orígenes:
entes existentes. Embora o Filho seja da mesma natureza do o Pai e o Filho
Pai, Orígenes, talvez influenciado pela estrutura hipostática
do pensam ento médio-platônico/neoplatônico, considera-o
subordinado ao Pai: com efeito, enquanto o Pai é unidade absoluta, o Filho explica
múltiplas atividades.

• A encarnação da alma humana depende do pecado, mas o corpo em si não


é negativo, porque pode tornar-se instrumento de expiação e purificação. Toda­
via, Orígenes não considera que uma só vida seja suficiente para realizar plena­
mente a purificação e, portanto, admite a existência de mais
mundos que se sucedem um ao outro e a doutrina da reencar- A qoutrma
nação das almas. No fim tudo será exatamente igual ao princí- qa ap0catástase
pio (= apocatástase) e a pureza original da criação será reinte- §2
grada.

1 (Slemen+e exagero louvar nele o fundador da teologia


especulativa. (...) Clemente foi o iniciador
e a verdadeira " g n o s e ." arguto e feliz de uma escola que se propunha
a defender e aprofundar a fé com o auxílio
Por volta de 180, em Alexandria, Pan- da filosofia Clemente não se limita a com­
teno, um estóico que se converteu ao cristia­ bater a falsa gnose, nem se detém numa ati­
nismo, fundou uma escola catequética que tude puramente negativa. Com efeito, ele
estava destinada a encontrar seu máximo “opõe à falsa gnose uma gnose autenticamen­
esplendor com Clemente e Orígenes. te cristã, propondo-se a dispor a serviço da
Clemente, chamado “ Alexandrino” fé o tesouro de verdade que se encerra nos
para distingui-lo do homônimo “ Romano” diversos sistemas filosóficos. Os partidários
(morto em 97), nasceu em torno de 150 (em da gnose herética ensinavam a impossibili­
Atenas ou Alexandria). Seu encontro com dade de uma reconciliação entre a ciência e a
Panteno foi decisivo: tornou-se seu aluno, fé, nas quais viam dois elementos contradi­
colaborador e, por fim, também sucessor. De­ tórios. Clemente, porém, procura demons­
le nos ficaram o Protréptico aos gregos, o trar sua harmonia. E a concordância da fé
Pedagogo, os Estrômatas, uma Homilia e (pistis) com o conhecimento (gnosis) que faz
diversos fragmentos. o perfeito cristão e o verdadeiro gnóstico. A
Quasten, um dos maiores estudiosos fé é o princípio e o fundamento da filosofia.
modernos de patrologia, assim caracteriza Esta, por seu turno, é da máxima impor­
nosso autor: “A obra de Clemente de Ale­ tância para o cristão desejoso de aprofundar
xandria marca toda uma época. Não seria o conteúdo de sua fé por meio da razão” .
44 Segunda parte - j \ Cairíshc-a na área c u lt u r a l d e Ungua grega

Acrescida à fé, a filosofia não torna a O pensamento de Orígenes foi duran


verdade mais forte em si mesma, mas torna te longo tempo objeto de debates e acesas
impotentes os ataques dos inimigos da ver­ polêmicas, que envenenaram os ânimos e
dade, constituindo, portanto, um válido ba­ alcançaram sua fase culminante no início do
luarte de defesa. Contudo, para Clemente, século VI, a ponto de provocarem a conde­
a fé permanece como critério da ciência. E a nação de algumas teses de Orígenes até pelo
ciência constitui um auxílio de caráter como imperador Justiniano, em 543, e depois por
que auxiliar para a fé. um concilio, em 553. Provocadas em larga
O conceito que constitui o eixo básico
medida pelos excessos a que haviam sido
das reflexões de Clemente é o conceito de levados os origenistas, essas condenações
“ Logos”, entendido em triplo sentido: causaram a perda de grande parte da enor­
a) princípio criador do mundo; me produção de Orígenes. Entre as obras
b) princípio de toda forma de sabedo­ que nos chegaram, interessam à filosofia: Os
ria, que inspirou os profetas e os filósofos; princípios, que é sua obra-prima doutriná­
c) princípio de salvação (Logos encar­ ria (infelizmente, porém, não nos chegou em
nado). sua redação original), Contra Celso e Co­
O Logos é verdadeiramente o princí­ mentário ao evangelho de João.
pio e o fim, o alfa e o ômega, aquilo de que
tudo provém, e para onde tudo retorna; o
Logos é mestre e salvador. E E 9 D o u tr in a d a T r in d a d e
E, no novo sentido do Logos, a “justa e y \]e o p la to m sm o
medida” , que era a marca da antiga sabe­
doria e da virtude grega, se integra no en­ O pensamento de Orígenes coloca no
sinamento de Cristo. [4~||T1 centro Deus e a Trindade (não o Logos,
como fizera Clemente). A chave filosófica

2 7^ f i g u r a e o s f u n d a m e n t o s
d o p en sa m en to d e O r íg e n e s

K f if l V id a e o b r a s f ilo s ó f ic a s

De outra robustez é o pensamento de


Orígenes, que representa a primeira e gran­
diosa tentativa de síntese entre filosofia e fé
cristã; nele, as doutrinas dos gregos (parti­
cularmente dos platônicos, mas também de
outros filósofos, como, por exemplo, os es-
tóicos) são utilizadas como instrumentos
conceituais aptos para expressar e interpre­
tar racionalmente as verdades reveladas na
Escritura. Orígenes nasceu por volta de 185,
em Alexandria. Seu pai Leônidas morreu
mártir, testemunhando a fé de Cristo. O pa­
trimônio da família foi confiscado e Orígenes
passou a ganhar a vida ensinando. Ainda jo­
vem, a partir de 203, assumiu a direção da
escola catequética, tornando-se verdadeiro
modelo pela doutrina e pelas virtudes. Em
231, forçado a abandonar Alexandria pela
aversão que lhe devotava o bispo Demétrio,
Orígenes prosseguiu sua atividade em Cesa-
réia, na Palestina, com grande sucesso. Atingi­
do pela perseguição aos cristãos ordenada por Miniatura que se imagina representar ( irígenes,
Décio, foi preso e torturado. Morreu em 253 contida em uma versão francesa
devido às conseqüências dessas torturas. da Cidade de Deus de Agostinho.
Cãpítulo terceiro - CDs apologistas gregos e a E s c o la catequética de ;Alexcmdria
45

em que pensa Deus é a da incorporeidade. nistro. Esse subordinacionismo reflete indu­


Enganam-se aqueles que (interpretando gros­ bitavelmente influências da concepção hie­
seiramente a Bíblia) pensam que Deus seja rárquica do inteligível do Medioplatonismo
fogo ou sopro ou então que (como os estói- e do nascente Neoplatonismo. Enquanto o
cos) pensam o ser somente como corpo: Pai é unidade absoluta, o Filho, embora tam­
“ Deus não pode ser entendido como corpo” , bém sendo unidade, desenvolve múltiplas
mas sim como “ realidade intelectual e es­ atividades e por isso recebe muitos nomes
piritual” e “natureza intelectual simples” . na Escritura, conforme as atividades desen­
Deus não pode ser conhecido em sua natu­ volvidas. Cristo tem duas naturezas: é verda­
reza: “Em sua realidade, Deus é incompreen­ deiro Deus e verdadeiro homem (não homem
sível e inescrutável” , porque transcende as aparente, como pretende a heresia docetis-
capacidades da mente humana. ta) e, como tal, tem corpo e alma (a alma de
Nessas palavras podemos ouvir ecos Cristo desempenha papel mediador entre o
neoplatônicos: com efeito, em Alexandria, Logos divino e o corpo humano).
Orígenes freqüentou as aulas de Amônio Foi Orígenes quem estudou com aten­
Sacas, cuja escola foi a forja do neoplato- ção o Espírito Santo, pela primeira vez, iden­
nismo. Orígenes chega até a falar de Deus tificando sua função específica na ação
como de “ mônadas e ênadas” e usa até a santificante.
expressão “ acima da inteligência e do ser” , Ao caracterizar o Pai, o Filho e o Espí­
que Plotino tornará famosa. Entretanto, ele rito Santo como hierarquia, Orígenes reve­
não hesita em considerar Deus também la mais influências platônicas do que em
como “ Inteligência, fonte de toda inteligên­ qualquer outro ponto de seu sistema.
cia e de toda substância intelectual” , como Devemos observar, ademais, que o
Ser que dá o ser a todas as coisas, ou me­ “ subordinacionismo” de Orígenes foi exa­
lhor, que “ participa de tudo o que é ser” , e gerado por seus adversários, que dele tira­
como Bem ou “ Bondade absoluta” , do qual ram conclusões indevidas. É bom destacar
deriva todo outro bem. que Orígenes traça essa hierarquia, mas, ao
O Filho unigênito de Deus, segunda mesmo tempo, ressalta a identidade de na­
pessoa da Trindade, é “ a Sabedoria de Deus tureza, substância ou essência entre Pai e
substancialmente subsistente” . E nessa “ sa­ Filho.
bedoria existente estavam contidas virtua- Ademais, o que é fundamental, afasta-
lidade e forma de toda futura criatura, seja se de modo bastante claro do neoplato­
daquelas que existem primariamente, seja nismo, pondo entre Deus-Trindade e as ou­
daquelas que delas derivam de modo aci­ tras coisas uma separação ontológica através
dental e acessório, todas pré-formadas e dis­ do conceito de criação do nada, de modo
postas em virtude de presciência” . As Idéias que o esquema metafísico segundo o qual a
platônicas tornam-se assim a sabedoria de realidade é desenvolvida revela-se comple­
Deus: “ E se tudo foi feito na sabedoria, já tamente diferente do esquema da processão
que a sabedoria sempre existiu, sempre exis­ neoplatônica, tanto mais que, na obra so­
tiram na sabedoria, pré-constituídos sob a bre Os princípios, ele nos fala de criação ab
forma de Idéias, os seres que posteriormen­ aeterno das idéias no Verbo e não de toda a
te seriam criados também segundo a subs­ realidade. jjT]
tância” .
Combatendo Gnósticos, Adocionistas
e Modalistas, Orígenes sustenta que o Filho Ç A iaç-ão, “a p o c a t á s t a s e ”
de Deus foi “ gerado” ab aeterno pelo Pai e e epvcamaçao
não “criado” como as outras coisas, nem
“ emanado” : foi gerado por via de atividade A doutrina da criação em Orígenes é
espiritual, como, por exemplo, a “ vontade” bastante complexa. Primeiro, Deus criou se­
deriva da mente. E “ essa geração é eterna e res racionais, livres, todos iguais entre si,
perpétua, assim como o esplendor é gerado e os criou à própria imagem (como racio­
pela luz, já que o Filho tornou-se tal não nais). A natureza finita das criaturas e sua
por adoção do Espírito, do exterior, mas é liberdade deram origem a uma diversidade
Filho por natureza” . O Filho é “da mesma no seu comportamento: algumas permane­
natureza” (homooúsios) do Pai. ceram unidas a Deus, outras se afastaram,
Orígenes, entretanto, admite certa “ su­ pecando, por causa de um esfriamento do
bordinação” do Filho ao Pai, do qual é mi­ amor a Deus. E assim nasceu a distinção
46 Segunda parte - jA C a+ W stica n a á**ea cwl+ural d e líin g u a g r e g a

Portanto, para Orígenes, o fim será


exatamente igual ao princípio, isto é, tudo
■ Apocatástase. Orígenes reelabora deverá tornar a ser como Deus criou. Essa é
em chave cristã a doutrina de origem a célebre doutrina origeniana da apocatás­
estóica da recapitulação final do cos­ tase, ou seja, a reconstituição de todos os
mo. No fim tudo será exatamente seres no estado original.
igual ao princípio, e Deus será tudo
em todos: essa concepção implica a No processo das reencarnações, porém,
redenção final de toda criatura (tam­ deve-se destacar que, para as criaturas indi­
bém dos demônios e dos danados). vidualmente, pode-se verificar tanto um pro­
gresso como um retrocesso, ou seja, tanto a
passagem de demônio a homem, a anjo ou
vice-versa, antes que tudo retorne ao esta­
do original.
entre anjos, homens e demônios, conforme Cristo se encarnou uma só vez neste
tenham permanecido fiéis a Deus, ou se afas­ mundo. Sua encarnação destina-se a perma­
tado em certa medida ou se afastado muito necer um evento único e irrepetível.
de Deus. O corpo e o mundo corpóreo em Orígenes exaltou ao máximo o livre-
geral nasceram como conseqüência do pe­ arbítrio das criaturas, em todos os níveis de
cado. Deus revestiu de corpos as almas que sua existência. No próprio estágio final, será
se afastaram parcialmente dele. Mas o cor­ o livre-arbítrio de cada uma e de todas as
po não é algo negativo (como para os pla­ criaturas que, vencido pelo amor de Deus,
tônicos e, sobretudo, para os gnósticos): ele continuará a aderir a ele, agora, porém, sem
é o instrumento e o meio de expiação e pu­ mais recaídas. |T]
rificação. A alma, portanto, preexistia ao
corpo, ainda que não de modo platônico,
porque criada do nada. E a diversidade dos .T m p o r íd n c ia d e O r í g e n e s
homens e de suas condições remonta à di­
versidade de comportamento na vida ante­ A importância de Orígenes é notável
rior (maior ou menor afastamento de Deus). em todos os campos. Seus próprios erros
E doutrina típica de Orígenes (deriva­ devem-se aos excessos de um grande espíri­
da dos gregos, embora com notáveis corre­ to generoso, não a mesquinhos desejos de
ções) a que segundo a qual o “ mundo” deve originalidade. Ele quis ser cristão até as úl­
ser entendido como série de mundos, não timas conseqüências, suportando com he­
contemporâneos, mas subseqiientes um ao roísmo as torturas que o levariam à morte,
outro. Tal visão relaciona-se estreitamente para permanecer fiel a Cristo. As próprias
com a concepção origeniana segundo a qual, doutrinas que não se inserem nos quadros
no fim, todos os espíritos se purificarão, res­ da ortodoxia são explicáveis, plausivelmen-
gatando suas culpas, mas, para se purifica­ te, se colocadas na situação concreta do
rem inteiramente é necessário que sofram momento histórico em que Orígenes viveu.
longa, gradual e progressiva expiação e cor­ E, como alguns estudiosos ressaltaram muito
reção, passando, portanto, por muitas reen- bem, elas revelam um profundo significado
carnações em mundos sucessivos. “ apologético” em favor do cristianismo.
47
Capitulo t6TCCÍTO - C D s a p o l o g i s t a s g r e g o s e a E s c o l a c a t e g u e t i c a d e yM e xa^ vd ^i a

tipo inteligente, ou, pelo menos, tinha essa fama.


J u s t in o M á r t ir Manteve-me consigo os primeiros dias, mas de­
pois me pediu para fixar um pagamento para
continuar, a fim de que nossa interação não
fosse sem frutos. Por este motivo deixei tam­
bém a ele, convicto de que não era de fato
um filósofo.
O itinerário filosófico 4. Minha alma, porém, ainda ansiava e s­
cutar o grande ensinamento característico da fi­
de Justino*1 losofia, razão pela qual me dirigi a um famosís­
simo pitagórico, um homem que possuía muitos
conhecimentos sobre a sabedoria. Logo que me
O itinerário filosófico e espiritual de
encontrei com ele, uma vez que desejava tor­
Justino é marcado por numerosas etapas (do
nar-me seu ouvinte e discípulo, ele me disse:
Estoicismo ao Cristianismo), que são narra­
"Conte-me um pouco. Cstudaste música, astro­
dos na seguinte passagem tirada do prólo­
nomia e geometria? Ou pensas poder contem­
go do Diálogo com Trifão.
plar algo daquilo que leva à felicidade, sem
primeiro ter aprendido estas disciplinas, que
afastam a alma das realidades sensíveis e
a preparam para a aquisição das inteligíveis,
1. fl discussão sobre a origem da filosofia
até contemplar a Beleza, que coincide com o
1. £u te direi o que é claro para mim — Bem?"
disse-lhe. A filosofia é, na realidade, a riqueza 5. Depois de ter elogiado grandemente
maior e mois preciosa para Deus, a única que tais disciplinas, afirmando que são indispen­
nos leva a ele e nos une a ele, e tais são aque­ sáveis, mandou-me embora, pois eu lhe con­
les que dedicaram sua mente à filosofia. To­ fessara que as ignorava, fiquei desconsolado,
davia, muitos esqueceram o que seja a filoso­ como é óbvio, dado que minhas aspirações fi­
fia e por qual razão foi enviado aos homens; caram desiludidas, sobretudo porque estava
de outro modo não teria havido platônicos, nem convicto de que aquele homem fosse de fato
estóicos, nem peripatéticos, nem teóricos, nem sábio; por outro lado, considerando o tempo
pítagóricos, porque esta sabedoria é apenas que gastaria para aprender aquelas disciplinas,
uma. não me animei a esperar tanto tempo.
2. Quero explicar-te, portanto, por qual 6. Cncontrando-me nesta condição de im­
razão ela se tornou multiforme. Aconteceu que potência, decidi dirigir-me aos platônicos: tam­
os seguidores daqueles que na origem dedi­ bém eles, com efeito, gozavam de grande
caram-se a esta disciplina, e por isso se torna­ fama. Dessa forma, entrei em contato em par­
ram famosos, os seguiram não em vista da bus­ ticular com um homem que chegara há pouco
ca da verdade, mas apenas porque estavam em nossa cidade, inteligente e distinto entre
fascinados pela sua força de ânimo, por sua os platônicos, e com ele a cada dia fazia pro­
castidade e pela maravilha de seus discursos: gressos notáveis. Sentia-me atraído pelo co­
cada um deles considerou verdadeiro apenas nhecimento das realidades supra-sensíveis, e
aquilo que aprendera de seu mestre e, por con­ a contemplação das Idéias dava asas à minha
seguinte, eles próprios, que transmitiram a seus mente e, portanto, depois de pouco tempo,
sucessores tais doutrinas e outras análogas, se pensava ter-me tomado sábio, e esperava in­
ornaram com o nome do poi da doutrina. genuamente alcançar logo a visão de Deus:
este, com efeito, é o escopo da filosofia de
Platão.
2. O itinerário filosófico de Justino:
estoicismo, aristotelismo,
pitagorismo e platonismo 3. n diferença entre os filósofos e os profetas
3. Também eu, de resto, desejava antes 1. Perguntei-lhe então: "A quem mais se
encontrar-me com algum deles, e portanto me poderá tomar como mestre e onde se poderá
dirigi a um estóico: depois de passar um tem­ tirar vantagem, se nem sequer em homens
po suficiente com ele, a partir do momento que como estes se encontra a verdade?”. €le res­
não aprendia nada sobre o problema de Deus pondeu: "Há muito tempo, antes ainda de to­
(ele nada sabia disso, e afirmava tratar-se de dos estes presumidos filósofos, existiram ho­
matéria não necessária), o abandonei e me mens beatos, justos e amigos de Deus, que
dirigi a outro, que se definia peripatético: um falaram por inspiração do Gspírito divino e pre-
48 Segunda parte - / \ 'Patns+ica na área cultufal de Ungua grega

viram o futuro, que agoro s® verificou: chamam-


se profetas. Eles soo os únicos que viram a 21
verdade e a anunciaram aos homens sem te­
mer ou adular ninguém, e sem deixar-se domi­
nar pela ambição, mas proclamando apenas O ponto central da apologética de
aquilo que tinham visto e ouvido, inspirados Justino consiste em demonstrar gue Jesu s
pelo Espírito Santo. Cristo é o Logos do qual todos os Filósofos
2. Seus escritos nos foram transmitidos e gregos Falarom. S e isso é verdade, todo Fi­
quem os lê pode deles tirar enorme proveito, lósofo, a medida que participa do Logos, que
tanto sobre os princípios como sobre os fins, e é Cristo, conhece porte da verdade e, neste
sobre tudo aquilo que o filósofo deve saber, sentido, p ode dizer-se cristão.
se neles crê. Eles, com efeito, não apresenta­
ram seus argumentos de modo demonstrativo,
pois dão da verdade um testemunho digno de
1. Os homens como Sócrates e Abraão,
fé e superior a qualquer demonstração-, os even­
que viveram segundo o Logos, são cristãos
tos passados e presentes forçam a aceitar aqui­
lo que foi dito por meio deles. 1. Portanto, para que não haja ninguém
3. Eles, além disso, se demonstraram dig­ que, para liquidar nossas doutrinas sem nenhum
nos de fé graças aos milagres que realizaram, raciocínio, nos objete que, se afirmamos efeti­
pois glorificaram Deus Pai, Criador do universo, vamente que Cristo nasceu há cento e cinqüen-
e anunciaram seu Filho, Cristo, que dele vem; ta anos sob Quirino e, alguns anos mais tarde,
os falsos profetas, inspirados pelo espírito fal­ sob Pôncio Pilotos, pregou aquilo que ensina­
so e impuro, não fizeram e nada fazem de se ­ mos, seguir-se-ia que todos os homens que vi­
melhante, pois ousam até operar prodígios para veram antes dele não poderiam se considerar
extraviar os homens e dar glória aos espíritos e responsáveis pelas próprias ações, procuramos
aos demônios do erro. Pede, portanto, para prevenir e resolver também esta aporia.
que, antes de tudo, te sejam abertas as portas 2. Rprendemos que Cristo é o primogênito
do luz: não são todos, com efeito, que podem de Deus, e recordamos que é o Logos, do qual
perceber e compreender tais verdades, a não todo gênero humano participa.
ser pelo dom de Deus e de seu Cristo". 3. Os que viveram conforme o Logos são
cristãos, mesmo que tenham sido considerados
4. Conversão de Justino oo cristianismo ateus, como, entre os gregos, Sócrates e Herá-
dito, e outros semelhantes, e, entre os bárba­
1. Depois de dizer estas e outras coisas, ros, Abraão, Ananias, Azarias, Misael, Elias, e
que agora não é oportuno referir, foi-se embo­ muitos outros ainda, dos quais agora não elen-
ra, exortando-me a não deixó-las cair (no e s­ camos as obras e os nomes, sabendo que isso
quecimento): nunca mais o revi. No que a mim seria demasiado longo.
se refere, um fogo irrompeu de repente na mi­ 4. Conseqüentemente, aqueles que vive­
nha alma, fui tomado de amor pelos profetas e ram antes de Cristo, mas não segundo o Logos,
por aqueles homens que são amigos de Cristo: foram maus, inimigos de Cristo e assassinos dos
refletindo comigo mesmo sobre suas palavras, que viviam conforme o Logos-, ao contrário,
cheguei à conclusão de que esta era a única aqueles que viveram e vivem conforme o Logos
filosofia certa e salvífica. são cristãos, e não estão sujeitos a medos e
2. Desse modo e por essa razão sou um perturbações.
filósofo. Gostaria que todos tivessem a mesma 5. Qual seja, portanto, o motivo pelo qual,
coragem que eu e não se afastassem mais das através da potência do Logos e pela vontade
palavras do Salvador: nelas, com efeito, estão de Deus Poi e Senhor do universo, um homem
presentes motivos de temor, e são suficientes tenha sido concebido de uma virgem, tenha-se
para confundir aqueles que se desviam do reto chamado Jesus, tenha sido crucificado, morto,
caminho, enquonto uma paz dulcíssima invade ressuscitado e ascendido oo céu, todo homem
aqueles que as põem em prática. Se, portanto, dotado de razão poderá compreendê-lo com
também tu prezas teu destino, se pedes salva­ base nos argumentos que expus.
ção e tens confiança em Deus, e se não te sen­ 6. Quanto a nós, dado que por ora não é
tes estranho ao problema, tens a possibilida­ necessário insistir sobre a demonstração desta
de de, uma vez reconhecido o Cristo de Deus e doutrina, passaremos às demonstrações mais
te tornado perfeito, ser feliz. urgentes no momento.
Justino, Justino, Primeira Apologia,
Diálogo com Triíõo, em Apologias. em Apologias.
49
Capítulo terceiro - O s a p o \ ogistas o s e a E s c o l a c a t e q w é t i c a cie.

cem a muitos; são carentes de tudo e têm


abundância de tudo. São desprezados, mas
C arta a D io g n e t o
no desprezo adquirem glória; são xingados e
ao mesmo tempo se dá testemunho de sua
justiça. São ultrajados e bendizem; são insul­
tados e, ao contrário, honram. Cmbora reali­
zem o bem, são punidos como malfeitores;
Os cristãos embora punidos, se alegram, como se rece­
bessem a vida.
são o olmo do mundo São combatidos pelos judeus como estran­
geiros e são perseguidos pelos gregos, mas
quem os odeia não sabe explicar o motivo da
Fl Corta o Diogneto, transmitido com
própria aversão em relação a eles.
o nome d e Justino, é considerado p elo s e s ­ Enfim, para dizer brevemente, os cristãos
tudiosos como não autêntico. Todovio, é
desenvolvem no mundo a mesma função da
umo pequeno jó io do literatura cristã, ton­
alma no corpo, fl alma está espalhada em to­
to p elo profundidade espiritual do conteú­ dos os membros do corpo; também os cristãos
do, como pela belezo estilístico e retórico do
estão espalhados pelas cidades do mundo, fi
forma, mas também pelo modernidade e p e ­
alma habita no corpo, mas não pertence ao
lo atualidade d e muitos temas discutidos e
corpo; também os cristãos habitam no mundo,
em particular p ela dim ensão política do
mas não pertencem ao mundo. R alma invisível
vida cristã.1
está aprisionada no corpo visível; os cristãos,
estando no mundo, são visíveis, mas o culto
que dirigem a Deus permanece invisível. R car­
ne odeia a alma e a combate, embora sem re­
1. fl identidade dos cristãos: ceber nenhuma injustiça, porque a impede de
vivem neste mundo, abandonar-se aos prazeres; também os cristãos
cidadãos de um outro são odiados pelo mundo, embora não lhe fa­
Os cristãos, com efeito, não se diferen­ çam nenhum mal, porque se opõem aos praze­
ciam dos outros homens nem pelo território nem res. R alma ama a carne e os membros que a
pela língua ou costumes. Não habitam em ci­ odeiam, assim como os cristãos amam quem
dades próprias nem falam umo linguagem os odeia. R alma, que também sustento o cor­
inusitada; a vida que levam nada tem de e s­ po, está presa neste; também os cristãos, em­
tranho. Sua doutrina não é fruto de considera­ bora sejam o apoio do mundo, são aprisiona­
ções e elucubrações de pessoas curiosas, nem dos neste como em um cárcere, fl alma imortal
se apresentam como promotores, como alguns, habita em umo moradia mortal; também os cris­
de alguma teoria humana. Habitando nas ci­ tãos vivem como estrangeiros entre aquilo que
dades gregas e bárbaras, como coube a coda é corruptível, enquanto esperam o incorruptibi­
um, e conformando-se com os costumes locais lidade celeste. Com as mortificações no comer
no que se refere ao vestuário, à alimentação e no beber, a alma se torna melhor; os cris­
e ao resto da vida cotidiana, demonstram o tãos, embora perseguidos, a cada dia se tor­
caráter admirável e extraordinário, no dizer nam mais numerosos.
de todos, de seu sistema de vida. Habitam na Deus lhes reservou um lugar tão sublime,
própria pátrio, mas como estrangeiros, parti­ e a eles não é lícito abandoná-lo.
cipam de tudo como cidadãos, e tudo supor­
tam como forasteiros, qualquer terra estran­
geira é sua pátria e qualquer pátria é terra 2. O cristianismo
estrangeira. e o desígnio transcendente da salvação
Cosam-se como todos, geram filhos, mas
não expõem os recém-nascidos. Têm em co­ Com efeito, conforme disse, não é uma
mum a mesa, mas não o leito. Cstão na carne, invenção terrena o que lhes foi transmitido,
mas não vivem segundo a carne. Moram so­ nem afirmam guardar com tanto cuidado uma
bre a terra, mas são cidadãos do céu. O be­ doutrina passageira, nem lhes foi confiado o
decem às leis estabelecidas, e com sua vida encargo de dispensar mistérios humanos. Mas
superam as leis. flmam o todos e são per­ aquele que é verdadeiramente onipotente,
seguidos por todos. Não são conhecidos, e criador de tudo, Deus invisível, dos céus pôs
assim mesmo são condenados; são mortos, e entre os homens e estabeleceu em seus co­
todavia são vivificados. São pobres e enrique­ rações a Verdade, o Verbo santo e incom-
50
Segunda pavte - y \ T^a+Ws+ica n a áv*ea cwl+w^al d e \ í n g u a g r e g a

preensível; nõo enviou aos homens, como a l­


guém poderio imaginar, um servo, um anjo, um
arconte ou um dos seres a quem fosse confia­
C lem en te d e A l e x a n d r ia
do o governo da terra ou a administração nos
céus, mas o próprio artífice e autor de tudo.
Por meio dele criou os céus, encerrou o mor
em seus próprios confins; seus mistérios soo
fielmente guardados por todos os elementos. n concepção
C ele que faz o sol observar as leis que regu­
lam seu curso cotidiano, sua ordem de brilhar
platônico de Deus
durante a noite é obedecida pela lua e a ele
obedecem os astros que seguem o curso da
Segundo Clemente, a filosofia platôni­
lua; ordenou e dispôs tudo, e a ele estão sub­
co é conciliável com o fé cristã. Isso provém
metidas todas as coisas: os céus e tudo o que
do foto de que, tolvez, Plotão conheceu os
neles há, a terra e tudo o que ela contém, o
Sogrodos Cscrituros e a extroiu delas.
mar e aquilo que nele existe, o fogo, o ar, o
abismo, aquilo que está no alto, nas profunde­
zas e no meio. (Este é aquele que foi enviado
aos homens. Por isso, não sem razão, Demócrito afirma
Talvez, poderio alguém pensar, para man­ que "poucos dos homens sábios, alçando as
dar, amedrontar, aterrar? De modo nenhum, fio mãos àquele que agora os gregos chamam ar,
contrário, foi enviado na humildade e bonda­ fabulam de Zeus; este, com efeito, sabe tudo e
de, como um rei manda seu filho rei, foi envia­ dá e retira e é rei de todas as coisas". Racioci­
do como Deus, como homem entre os homens, nando de modo análogo, também Platão fala
para salvar com a persuasão, não paro domi­ obscuramente de Deus: "Cm torno do rei do
nar, pois a violência não se coaduna com Deus. universo gravitam todos os seres e ele é a cau­
[Deus] o enviou para chamar, não para acu­ sa de toda beleza".
sar; para amar, não para julgar; ele o enviará Quem é, portanto, o rei de todos as coi­
para julgar, e quem poderá agüentar sua vin­ sas? Deus, medida da verdade das coisas que
da? [...] [Não vês que os cristãos] são jog a­ existem. Como, portanto, as coisas medidas são
dos à s feras, para que reneguem o Senhor, e compreendidas na medida, também a verdade
todavia não se deixam vencer? Não vês que mede-se e compreende-se ao pensar Deus.
quanto mais são perseguidos, tanto mais cres­ Moisés verdadeiromente santo diz: “Não
cem em número? Isto nõo parece obra huma­ haverá na tua sacola dois pesos diferentes, um
na, isto é poder de Deus; esta é uma prova grande e um pequeno. Não terás em casa dois
da suo presença. tipos de medida, uma grande e uma pequena.
Com efeito, quem entre os homens conhe­ Terás um peso completo ejusto", tomando Deus
cia plenamente a essência de Deus, antes da como balança e medida e número de todas as
sua vinda? coisas.
Crês talvez nos discursos vazios e insos- Os ídolos injustos e iníquos estão escon­
sos daqueles filósofos considerados dignos de didos em cosa, na sacola e na alma, por assim
fé? Alguns destes diziam que Deus é fogo: cha­ dizer, suja. fi única medido justa, ao invés, o
mam Deus aquilo em que irão acabar; outros o único verdadeiramente Deus, o qual é sempre
identificavam com a água, outros com algum igual e imparcial, mede e pesa todas as coisas
outro elemento criado por Deus. Certamente, abraçando e mantendo em equilíbrio a nature­
se For aceito algum destes raciocínios, qualquer za do universo com sua justiça, como com uma
outro ser criado poderio igualmente ser identi­ balança. '
ficado com Deus. Mas estas são fofocas e im­ "Deus, como diz também o antigo discur­
posturas de charlatões; nenhum homem viu ou so, tendo em suas mãos o princípio e o fim e o
conheceu Deus, mas ele próprio se revelou. centro de todas as coisas, vai direto ao seu
Revelou-se por meio da fé, e apenas com ela é fim, andando conforme a natureza. Cie tem sem­
possível ver Deus. pre atrás de si a justiça que pune aqueles que
Cie, com efeito, senhor e criador de tudo, se desviaram da lei de Deus".
autor e ordenador de todas as coisas, mostrou De onde, Platão, tens esta verdade da
paro com os homens não só amor, mas tam­ qual obscuramente falas? De onde esta abun­
dância de argumentos voticina o culto de Deus?
bém paciência.
São mais sábios que estes — diz ele — os po­
R Diogneto. vos bárbaros. Conheço teus mestres, mesmo
51
Capítulo terceiro - O s a p o l o g i s t a s g r e g o s e a E s c o l a c a t e g u é t i c a d e ;Alex<nr\dda

que queiras escondê-los; aprendes a geome­ viço e se destrói. A concupiscência, com efei­
tria dos egípcios, a astronomia dos babilônios, to, torna-se tudo e se transforma em tudo e
tomas dos trácios os sábios encantamentos, tudo quer embelezar para esconder o homem.
muitas coisas te ensinaram também os assírios, M as o homem, com o qual coabita o
para as leis verazes e a crença em relação a Logos, não altera seu aspecto, não se transfor­
Deus foste ajudado pelos próprios hebreus. ma, tem a forma do Logos, é semelhante a
Clemente de Alexandria, Deus, é belo, não se enfeita. 6 a beleza verda­
O Protréptico. deira e, com efeito, é Deus; tal homem se torna
Deus, porque Deus o quer.
De fato, Heráclito disse bem: "Os homens
são deuses, os deuses homens, umo vez que a
razão é a mesma". O mistério é claro: Deus está
no homem e o homem se torna Deus, e o media­
dor realiza a vontade do pai. Mediador é o
fl beleza espiritual* Logos, que é comum a ambos: filho de Deus,
salvador dos homens, de Deus servo, de nós
pedagogo.
Uma vido conforme o Logos propicia o
Uma vez que a carne é serva, conforme
capacidade d e viver segundo a justa medi­
Paulo atesta, quem de fato irá querer enfeitar
da e, assim, alcançar a verdadeira beleza
esta criada, à guisa de alcoviteiro?1 Que a car­
espiritual.
ne seja forma de servo é atestado pelo Após­
tolo quando fala do Senhor. "Aniquilou a si
mesmo, tomando a natureza de escravo", cha­
A maior de todas as ciências, ao que pa­ mando escravo o homem de carne antes que o
rece, é conhecer a si mesmo; quem, com efeito, Senhor se tornasse escravo e se encarnasse.
conhece a si mesmo, conhecerá Deus e, conhe­ O próprio Deus, porém, sofrendo na car­
cendo Deus, se tornará semelhante o ele, não ne, libertou a carne da corrupção e, depois de
levando ouro nem manto filosófico, mas ope­ tê-la afastado da escravidão portadora de
rando o bem e tendo necessidade de pouquís­ morte e amarga, a revestiu de imortalidade,
simas coisas. dando-lhe este santo ornamento de eternida­
Apenas Deus não tem necessidade de de: a imortalidade.
nada e goza sumamente vendo-nos puros na feciste ainda outra beleza dos homens, a
ordem do pensamento e na do corpo, revesti­ caridade. "A caridade — diz o Apóstolo — é
dos de uma estola cândida, o temperança. magnânima, é benigna, não é invejosa, não se
Tríplice é a atividade do alma. A de en­ vanglorio, não se incha", £ vangloria o orna­
tender— que se chama racional — é o homem mento que tem a aparência do supérfluo e do
interior, e guia este homem visível; o homem não necessário. Por isso acrescenta: "não se
interior, ao contrário, é guiado por outro, ou seja, comporta indecorosamente". Indecorosa é uma
Deus. A alma irascível, sendo algo de ferino, figuro estranha e não segundo a natureza. A
está próximo da mania. Multiforme é a apetitiva alusão é estranha, como claramente explica o
que é a terceira, mais variada que o deus mari­ Apóstolo, dizendo: "não procura aquilo que não
nho Proteu; toma formas diversas e estimula os é seu". A verdade, com efeito, chama natural
adultérios, a volúpia e a molície. aquilo que lhe é próprio; a ambição, ao contrá­
Tornou-se primeiro um leão barbudo rio, procura o que é de outrem, permanecendo
(ainda há o enfeite); os pêlos do queixo fora de Deus, do Logos e da caridade.
mostram que é um homem; Que o próprio Senhor fosse feio de a s­
depois um dragão, um leopardo, um grande pecto o atesta o fepírito pela boca de Isaías:
porco; "Nós o vimos, não tem aparência nem beleza,
o amor pelo ornamento escorregou mas um aspecto desprezível, rejeitado diante
na intemperonça. O homem não aparece dos homens". Todavia, quem é melhor que o
mais semelhante a uma forte fera, Senhor? Não a beleza enganadora da carne,
mas tornou-se água mole mas a verdadeiro beleza da alma e da corpo
e árvore altíssima. ele fez ver, mostrando a benevolência da alma
Desencadeiam-se as paixões, se desen­ e a imortalidade da carne.
freiam os prazeres, murcha a beleza e quando Clemente de Alexandria, O Protréptico.
sopram contra ela as paixões eróticas do d e­
vassidão cai por terra ainda mais depressa que
a pétala, e antes mesmo do outono perde o 'Mediador de relações ilícitas.
52 Segunda pãtte - y \ T-^a+rísfica n a á ^ e a c u l t u r a l d e l í n g u a g r e g a

acima de todas as coisas, fllém disso, o discípu­


lo verdadeiro de Jesus, Paulo, nos mostra que
O r íg e n e s
segundo o entendimento da doutrina cristã é
muito melhor aceitar os argumentos da fé com o
auxílio do razão e da sabedoria, do que com o
auxílio da simples fé, e o mostra dizendo (lCo-
ríntios 1,21): "Uma vez que, com efeito, nos
Sabedoria grega sábios desígnios de Deus o mundo não conhe­
ceu Deus por meio da sabedoria, ele se com-
e mensagem cristã prouve de salvar os fiéis mediante a estultice
da pregação". G bem claro, portanto, que, com
estas palavras, ele quis mostrar que era ne­
Respondendo oo FilósoFo pagão Cel­
cessário conhecer Deus na sabedoria de Deus.
so, que atacara violentamente a mensagem
G uma vez que isso não se verificou. Deus se
cristã, O rígenes aFírma que a "sabedoria
comprouve em um segundo tempo de salvar os
deste mundo" é uma concepção errônea da
fiéis, não mediante a simples estultice, mas
FilosoFia: Deus deve se r conhecido segundo
mediante a estultícia que se refere e concerne
a sabedoria d e Deus, portanto não na di­
à pregação. Disso temos, portanto, que por
mensão do corpóreo, mas na dimensão do
estultícia de pregação devemos entender a
espírito.
mensagem de Jesus Cristo crucificado, como de
resto o entende Paulo, quando diz (ICoríntios
1,23-24): "Nós anunciamos Jesus Cristo crucifi­
cado, escândalo para os judeus, estultícia para
1. n "sabedoria” de Deus e a "estultícia"
os gentios, mas para aqueles que foram cha­
deste mundo
mados, tanto judeus como gregos, Cristo, po­
Oro, jó que Celso põe em questão esto der de Deus e sabedoria de Deus".
frase, como se tivesse sido pronunciado por Orígenes, Contra Celso,
muitos cristãos: "o sabedoria no vido é um livro I, 13.
mal, o estultícia, oo contrário, é um bem'1, é
preciso dizer que ele calunio, falseando nos­
2. Deus transcende
so palavra, pois não refere exatam ente a
as capacidades de compreender
passagem de Paulo, que diz precisamente o
que são próprias do homem
seguinte (ICoríntios 3,18-19): "Se alguém en­
tre vós crê ser sábio da sabedoria deste mun­ Afirmamos que na sua realidade Deus é
do, torne-se estulto, para tornar-se sábio; com incompreensível e imperscrutável. Ainda que
efeito, a sabedoria deste mundo é estultícia possamos pensar e compreender alguma coisa
diante de Deus". Ora, o apóstolo não diz sim­ de Deus, devemos crer que ele seja de longe
plesmente: ”a sabedoria é estultícia diante de superior àquilo que dele pensamos. Admitamos,
Deus", mas diz "a sabedoria deste mundo". G com efeito, ver uma pessoa que a custo pode
ainda, quando diz: “se alguém entre vós crê ser observar a centelha de uma luz ou o clarão de
sábio", não acrescento em duos palavras "tor­ uma fraca lamparina: se quisermos comparar
ne-se estulto", mas especifica: "neste mundo, com a luminosidade e o esplendor do sol aquele
torne-se estulto, para tornar-se sábio". cuja vista não pode acolher mais luz do que a
Por "sabedoria deste mundo" nós enten­ que dissemos, não lhe deveremos dizer que a
demos portanto toda filosofia, fundada sobre luz do sol é incomparavelmente superior à luz
falsos conceitos, que se torna ociosa e inútil, que ele vê? Analogamente, quando nossa in­
conforme as Sagradas Gscrituras; por outro lado, teligência está fechada na estreiteza da carne
dizemos que a estultícia é boa não em sentido e do sangue e se torna mais tarda e obtusa
absoluto, mas quando alguém parece estulto peio contato com esta motéria, mesmo que no
aos olhos deste mundo. O mesmo seria, se nós confronto com a natureza corpóreo seja de lon­
chamássemos estulto um filósofo platônico, o ge superior, todavia, quando tende às realida­
qual crê na imortalidade da alma e na doutrina des incorpóreas e procura compreendê-las, tem
da sua transmigração, diante dos estóicos, dos a custo o valor de uma centelha ou de uma
peripatéticos e dos epicuristas: os estóicos, com lamparina. Mas, entre as realidades intelec­
efeito, caçoam desta convicção, os peripatéticos tuais, ou seja, incorpóreas, o que é tão supe­
põem na berlinda as fofocas de Platão, enquan­ rior a todos, tão inefavelmente e inestima-
to os epicuristas tacham de superstição aque­ velmente excelente quanto Deus? Por isso a
les que admitem a providência e põem Deus natureza dele não pode ser compreendida pela
, 53
Capitulo terceiro - (D s a p o l o g i s t a s g r e g o s e a E s c o l a ca+ e.guética d e yM e xa n d ^ ia -----

capacidade da mente humana, mesmo que seja do (Provérbios 8,30ss), motivo pelo qual tam­
a mais pura e a mais límpida. bém entendemos que Deus sempre se alegra.
Todavia, não parece Fora de lugar se, para Ora, nesta sabedoria, que sempre estava com
tornar mais evidente o conceito, nos servirmos o Pai, estava sempre contida, preordenada sob
de outra comparação. Por vezes nossos olhos a forma de idéias, a criação, de modo que não
não podem olhor o natureza do luz, ou sejo, a houve momento em que a idéia daquilo que
substância do sol; mas observando seu esplen­ teria sido criado não estivesse na sabedoria.
dor e os raios que se difundem nas janelas ou Parece-me que talvez desse modo nós,
em pequenos ambientes aptos a receber a luz, nos limites da nossa pequenez, possamos pen­
daqui podemos argüir quão grande é o princí­ sar Deus de modo ortodoxo, pois não dizemos
pio e a Fonte da luz material. Analogamente, que os criaturas são não-geradas e coeternas
as obras da providência e a maestria que se com Deus, e por outro lado nem que Deus, an­
revela em nosso universo são, por assim dizer, tes nada tendo feito de bom, tenha começado
os raios de Deus em comparação com sua na­ o operar depois de uma mudança, a partir do
tureza e sua substância. Portanto, uma vez que momento que é verdadeiro o que foi escrito:
com suas forças nossa mente não pode conce­ "Tudo fizeste na sabedoria" (Salmo 103,24). A
ber Deus como ele é, pelo beleza de suas obras se tudo foi feito na sabedoria, pois a sabedo­
e pela magnificência de suas criaturas ela o ria sempre existiu, pré-constituídos sob a forma
reconhece como pai do universo. de idéias sempre existiam na sabedoria os se ­
Por isso não devemos crer que Deus seja res que sucessivamente teriam sido criados tam­
corpo ou seja encerrado em um corpo, e sim bém segundo a substância. Penso que pensan­
que ele é natureza intelectual simples, à qual do justamente nisso Salomão diz no Aclesiastes:
absolutamente nada se pode acrescentar, para "O que foi feito? O mesmo que será feito; o
que não se pense que ele tenha em si algo de que foi criado? O mesmo que será criado. Não
mais ou de menos: ele é, em sentido absoluto, há nado de novo sob o sol. A se alguém disser:
mônada e, por assim dizer, ênada:' inteligên­ 'Ais, isto é novo', isso já existiu nos séculos que
cia e fonte da qual derivam toda inteligência e existiram antes de nós" (Aclesiastes l,9 s s ).
toda substância intelectual. Portanto, se tudo isso que existe sob o sol exis­
Orígenes, O s princípios, tiu já nos séculos que se passaram antes de
livro I, 1,5-6. nós, pois não há nada de novo sob o sol, sem
dúvida sempre existiram todas as coisas, os
3. O mundo das Idéias platônicas gêneros e as espécies, e poderiamos dizer tam­
incluído e transfigurado bém aquilo que é numericamente uno.
na Sabedoria de Deus Orígenes, Os princípios,
livro I, 4,4-5.
A este ponto, porém, a inteligência huma­
na se entrega, forçada a se perguntar como é
possível explicar que, a partir do momento que
Deus sempre existiu, também as criaturas sem­
pre existiram; e que existiram, por assim dizer,
sem ter tido início, as criaturas que sem dúvida A apoccitástcise
devemos crer que foram criadas e feitas por
Deus. Visto que, aqui entram em contraste en­
tre si as idéias dos homens, enquanto de ambas No passagem seguinte, Orígenes ilus­
as partes se opõem e contrastam conceitos tra sua célebre teoria da apocatástase, s e ­
validíssimos que procuram atrair a si aquele que gundo a guol todas as coisas no Fim do mun­
os considera, eis o que, segundo a limitadíssima do serão recapituladas na unidade originária
capacidade da nossa inteligência, nos vem à de Deus, gue será tudo em todos.
mente, e que pode ser declarado sem nenhum
perigo para a fé. Deus sempre foi Pai, e sem­
pre teve o Filho unigênito, que, conforme tudo O fim do mundo é prova de que todas as
o que expusemos acima, é chamado também coisas chegaram à plena realização. Aste fato
de sabedoria; esta é a sabedoria com a qual nos lembra que se alguém é tomado pelo dese­
Deus sempre se alegrava tendo criado o mun­ jo de ler e conhecer argumentos tão árduos e
difíceis deverá ter inteligência cultivada e com­
pleta. Com efeito, se ele não tiver tido certa ex­
'Ou seja, realidade absolutamente unitária e simples periência de questões de tal gênero, estes ar­
que não admite em sl nenhuma forma de multiplicidade. gumentos lhe parecerão inúteis e supérfluos [...].
54 Segunda pavte - j A I-Yur ís f IíM n a á ^ e a culfunal d e lí ngu a g n e g a

O fim do mundo ocorrerá quando cada um Devemos crer que toda esta nossa subs­
for submetido às penas conforme os próprios tância corpórea será tirada de tal condição
pecados (Mateus 24,36); e somente Deus co­ quando cada coisa for reintegrada para ser uma
nhece o tempo em que coda um receberá aqui- só coisa (João 17,21), e Deus será tudo em
‘ Io que merece. Consideremos todavia que a todos (1 Coríntios 15,28). Isso, porém, não acon­
bondade de Deus por obra de Cristo conduzirá tecerá em um momento, mas lenta e gradual-
todas as criaturas para um fim único, depois de mente, através de séculos infinitos, pois a cor­
ter vencido e submetido também os adversá­ reção e a purificação sucederão pouco a pouco
rios. Com efeito, assim diz a Cscritura: “Disse o e singularmente, e enquanto alguns com ritmo
Senhor ao meu senhor: Senta-te à minha direi­ mais veloz se apressarão em primeiro lugar para
ta até que eu ponha teus inimigos como esca- a meta e outros os seguirão de perto, outros,
belo de teus pés" (Salmo 109,1). Se não pare­ ao contrário, permanecerão muito atrás. C a s­
ce claro aquilo que a palavra do profeta quer sim, mediante inumeráveis ordens constituídas
dizer, aprendamos mais abertamente de Pau­ por aqueles que progridem e, de inimigos que
lo, que diz: "€ preciso que Cristo reine até que eram, se reconciliam com Deus, chega-se ao
tenha posto todos os seus inimigos sob seus último inimigo, a morte, para que também este
pés" (1 Coríntios 15,25). € se nem estas pala­ seja destruído e não haja mais inimigo (1 Co­
vras tão evidentes do apóstolo nos esclarecem ríntios 15,26).
suficientemente o que significa pôr os inimigos Quando todas as almas racionais forem
sob os pés, ouve como ele continua: “Com efei­ reconduzidas a esta condição, então também a
to, é preciso que tudo lhe seja submetido" (1 natureza deste nosso corpo será levado à gló­
Coríntios 15,27). Mas o que é a submissão pela ria de corpo espiritual. Com efeito, como vemos
qual tudo deve estar submetido a Cristo? Creio que das naturezas racionais as que mereceram
que seja aquela pela qual também nós dese­ a bem-aventurança não são de natureza dife­
jamos estar submetidos a ele, pela qual se lhe rente em relação às que viveram na indignida­
submetem os apóstolos e todos os santos que de do pecado, mas são as mesmas, que antes
o seguiram: com efeito, submissão pela qual pecaram e depois, convertidas e reconciliadas
estamos submetidos a Cristo significa salvação com Deus, foram novamente chamadas à bem-
que Cristo dá a seus submetidos, conforme tudo aventurança: da mesma forma, também sobre
o que dizia também Davi: “Não estará minha a natureza do corpo não devemos crer que um
alma submetida o Deus? Com efeito, dele vem corpo é este de que agora usamos na ignomí­
minha salvação" (Salmo 61,1). nia, na corruptibilidade e na fraqueza, e outro
Observando tal fim, em que todos os ini­ será aquele do qual faremos uso na incorrup­
migos serão submetidos a Cristo e também tibilidade, no poder e na glória; mas será sem­
será destruído o último inimigo, a morte, e Cris­ pre este mesmo corpo que, deixando estas im­
to, a quem tudo foi submetido, entregará o perfeições de agora, será transformado na
reino a Deus pai (1 Coríntios 15,24ss), disso co­ glória e se tornará corpo espiritual, de modo
nhecemos o início das coisas. Com efeito, o que tendo sido vaso para uso vulgar, uma vez
fim é sempre semelhante ao início: e como um purificado se tornará vaso de luxo (Romanos
só é o fim de tudo, assim devemos entender 9,21), receptáculo de bem-aventurança. € de­
um só início de tudo, e como um só é o fim de vemos crer que nesta condição permanecerá
múltiplas coisas, assim, de um só início deri­ sempre e imutavelmente por vontade do Cria­
varam coisas muito variadas e diferentes, que dor, segundo a fé de Paulo que diz: “Temos uma
de novo, pela bondade de Deus, a submissão habitação não feita por mão de homens, eter­
de Cristo e a unidade do Cspírito Santo são re­ na nos céus" (2Coríntios 5,1).
conduzidas a um só fim, que é semelhante ao Orígenes, O s princípios,
início [...]. livro III, 6.
é S a p ítu lo q u a rto

O s -f^ês Iuminares d a O a p a d ó c i a
e a s g r a n d e s figu ra s do P s e u d o - v ionísio
yAreopagi+a/ yVlaxi^no o O o n f e s s o r
e J o ã o D am asceno

I. y \ e r a á u r e a d a T-^a+rís+ica
e o (Soucílio d e /sjiceia

• A promulgação do edito de Constantino em 313 permite Q edjtQ de Mjj§0


à fé cristã manifestar-se publicamente, saindo da clandestini- p 13^
dade. Isso influiu também sobre a reflexão teológica, que, en- §7
quanto estava sempre mais se medindo com a filosofia e as
disciplinas profanas, registrava o acender-se de debates e polêmicas sobre o con­
teúdo da doutrina.

• Se o evento principal do séc. IV foi o Concilio de Nicéia 0 concilio


(325) que fixou o "Credo", isto é, o símbolo da fé dos cristãos, o ^ /v/cé/a (3 2 5 )
evento filosófico mais significativo foi a tentativa de recuperar §2
a cultura clássica dentro da fé.

1 } O edito de AAilão
..... í
e as disputas teológicas

O ano de 313 marca uma reviravolta


decisiva: Constantino promulga o edito de
Milão, no qual sanciona a liberdade de cul­
to e procura conquistar o favor dos cristãos.
Cessando as perseguições, o pensamento
cristão caminha para se tornar soberano. Ao
longo do século IV e na primeira metade do
século V, a dogmática cristã tomou forma
definitiva, através de acesos debates, que se
concluíram em alguns concílios, que se tor­
naram marcos na história da Igreja, como
os de Nicéia (325), Éfeso (431) e Calcedônia
(451). ,
Entre ós teólogos desse período que se
destacaram por engenho e cultura, podemos
recordar os seguintes.
Eusébio de Cesaréia (263-340) escre­ Uma página dos Cânones das Concordâncias
veu uma História da Igreja que vai até 324 dos F.vangelistas de Eusébio
e defendeu firmemente Orígenes; em sua (de um códice dos sécs. X-XI,
Preparação evangélica mostra muita sim- conservado na Biblioteca Oueriniana de Bréscia).
56 Segunda parte -A P o tn s fica no área cui+urol íncjua Cjy*e£]C\

patias pelo platonismo, a ponto de conside­ vezes, onde nasceu o símbolo da fé, destina­
rar Platão em concordância com Moisés. do a ser o “credo” de todos aqueles que se
Ário, que nasceu na Líbia em 256 e mor­ reconhecem como cristãos.
reu em 336, sustenta que o Filho de Deus foi Eis os pontos centrais do grande sím­
criado do não-ser como todo o resto e, conse- bolo de Nicéia: “ Cremos em um só Deus
qüentemente, desencadeou a grande discus­ onipotente (pantokrátor = omnipotens), cria­
são trinitária que levaria ao Concilio de Nicéia. dor (poietés = factor) de todas as coisas,
Atanásio (295-373) foi o campeão da te­ visíveis e invisíveis. E em um só Senhor, Je­
se da “consubstancialidade” do Pai e do Fi­ sus Cristo, Filho unigênito de Deus, gerado
lho e, portanto, o grande adversário de Ário (genethéis = natus) do Pai, ou seja, da subs­
e o triunfador do Concilio de Nicéia. tância (ousía = substantia) do Pai, Deus de
Basílio de Cesaréia, Gregório Nazian- Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus
zeno e Gregório de Nissa sobressaem do pon­ verdadeiro: gerado (gbenetós = genitus) e
to de vista cultural e filosófico, e deles fala­ não criado (poiethéis = factus), consubs­
remos adiante. tanciai (bomooúsios = consubstantialis) ao
Nemésio de Emesa (sécs. IV-V) foi autor Pai, pelo qual todas as coisas foram criadas
de um tratado Sobre a natureza do homem. (eghéneto = facta sunt), as que estão no céu
Por fim, recordemos Sinésio de Cirene (370­ e as que estão na terra; por nós e por nossa
413), formado na última escola platônica de salvação, ele desceu, se encarnou por obra
Alexandria, que se tornou bispo de Ptolemaida. do Espírito Santo (...) e ao terceiro dia res­
suscitou, subiu ao céu e virá para julgar os
vivos e os mortos (...). Creio no Espírito
2 CD(Doncdlio de ÁOieéia Santo (...)” .
Faltam ainda a aquisição do conceito
e a fixqçqo do “credo" de Pessoa e o aprofundamento das relações
entre as três Pessoas (bypostáseis, personae),
O acontecimento principal desse pe­ que só chegariam posteriormente e dos quais
ríodo pode ser considerado o Concilio de falaremos quando tratarmos de santo Agos­
Nicéia de 325, ao qual já acenamos várias tinho.

O primeiro
concilio ecumênico
(Nicéia, 32.S)
em que se condena
o arianismo:
o ícone do mosteiro grego
Metamorpbosis
representa Ario submetido
pela unidade da fé
do concilio ecumênico.
57
Capítulo quarto - O s + f ês l u m i n a r e s d a O a p a d ó c À a

: II. O v e - g o n o d e A) is s a :
e os P a d r e s (C ap adó cios

• Os pontos principais do pensamento de Gregório de Nissa (335-394), o maior


dos luminares da Capadócia, são três:
1) a prevalência do mundo inteligível sobre o mundo sen- Gregório de Nissa
sível, que é concebido como produto de qualidades e de forças § 1-4
incorpóreas (cor, forma, extensão etc.);
2) a antropologia fundada não mais sobre a semelhança entre o homem e o
cosmo, mas sobre a semelhança entre o homem e Deus;
3) a possibilidade de ascender até Deus, removendo tudo aquilo de carnal e
de passional que nos separa dele.

1 A i‘e c w p e iAa ç ã o d a c u ltu r a parecia digno de sobreviver na tradição gre­


ga. Com isso, ele não apenas se fortalece e
c l á s s i c a dervteo d a fé reforça sua posição no mundo civil, como
também salva e dá nova vida a um patrimô­
Na história das idéias filosóficas, dos nio cultural que, em grande parte, sobretu­
teólogos mencionados, interessa sobretudo do nas escolas retóricas da época, se tornara
Gregório de Nissa (335-394), que, juntamen­ uma forma vazia e adulterada de uma tra­
te com seu irmão Basílio de Cesaréia (331­ dição clássica já enrijecida. Muito já se disse
379) e com Gregório Nazianzeno (330-390), sobre os vários renascimentos que a cultura
retomou de seus antecessores a herança gre­ clássica, tanto grega como romana, experi­
ga com maior consistência e consciência. mentou ao longo da história, no Oriente e no
A esse propósito, escreve Werner Jaeger: Ocidente. Mas pouca atenção se deu ao fato
“ Orígenes e Clemente moveram-se por esse de que, no século IV, a época dos grandes
caminho de altas reflexões, mas agora era pre­ Padres da Igreja, temos um verdadeiro renas­
ciso muito mais. Certamente, Orígenes dera cimento que deu à literatura greco-romana
sua teologia à religião cristã no espírito da tra­ algumas de suas maiores personalidades, que
dição filosófica grega, mas aquilo a que os exerceram influência duradoura na história
Padres da Capadócia visavam em seu pensa­ e na cultura, desde sua época até nossos dias.
mento era uma civilização cristã total. E leva­ E a diversidade do espírito grego em rela­
vam para essa empresa a contribuição de vas­ ção ao romano é bem caracterizada pelo fato
ta cultura, que fica evidente em cada parte de de que o Ocidente latino tem o seu Agosti­
seus escritos. Apesar de suas convicções reli­ nho, ao passo que foi por intermédio dos Pa­
giosas, que se opunham a uma reconquista da dres capadócios que o Oriente grego pro­
religião grega, que naquela época era solicita­ duziu nova cultura” .
da por forças poderosas do Estado (basta pen­ A tese de Jaeger (que nos deu imponen­
sar nas tomadas de posição do imperador te edição crítica das obras de Gregório de Nis­
Juliano), não mantiveram oculto o seu alto sa) tem muito de verdadeiro, pois apresenta
apreço pela herança cultural da antiga Grécia. o mérito de reler os capadócios sob nova e
E assim encontramos uma clara linha fecunda ótica. Entretanto, essa recuperação da
de demarcação entre religião grega e cultu­ cultura clássica redunda num aumento dos
ra grega. Desse modo, sob nova forma e em espaços da razão no interior da fé, sem ne­
nível diferente, eles revivem a conexão, sem nhuma redução da razão à dimensão mun­
dúvida positiva e produtiva, entre cristia­ dana. Gregório de Nissa é categórico: “Usa­
nismo e helenismo, que já encontramos em mos a sagrada Escritura como norma e lei de
Orígenes. Nesse caso, não é exagerado fa­ toda doutrina” . A cultura profana é “estéril,
lar de uma espécie de neoclassicismo cris­ porque, quando concebe, não leva o parto a
tão, que é mais do que um fato puramente cumprimento. (...) Mesmo que tais doutri­
formal. Graças à sua obra, o cristianismo er­ nas nem sempre sejam de todo vãs e infor­
gue-se agora como herdeiro de tudo o que mes, o que acontece é que abortam antes de
58 Segunda parte - T-Vi+Ws+ica n a á n e a c u lf u n a l d e l í n g u a g> *e ga

alcançar a luz do conhecimento de Deus” . A ser lidas na Criação do homem: os filósofos


filosofia grega é útil, mas só se oportunamen­ pagãos “ imaginaram coisas mesquinhas e
te purificada: “A filosofia moral e a filosofia indignas da magnificência do homem, na ten­
política poderiam realmente favorecer uma tativa de elevar o momento humano. Disse­
autêntica vida espiritual, se conseguissem ram, com efeito, que o homem é um micro­
purificar seus dados doutrinários das detur­ cosmo, composto pelos mesmos elementos
pações de erros profanos” . do todo. E, com esse esplendor do nome,
O Grande discurso catequético, quequiseram fazer o elogio da natureza, esque­
constitui a obra teológica de maior destaque cendo-se de que, desse modo, tornavam o
de Gregório de Nissa, representa a primeira homem semelhante às características própri­
síntese orgânica dos dogmas cristãos, ampla­ as da mosca e do rato, pois, com efeito, tam­
mente fundamentada e muito bem cons­ bém neles há a mistura de quatro elementos.
truída. Por longo tempo ela permaneceu co­ (...) Que grandeza tem, portanto, o homem se
mo modelo e ponto de referência. o consideramos figura e semelhança do cosmo ?
Entre os diversos temas tratados nas Deste céu que nos circunda, da terra que
obras de Gregório de Nissa, apontamos três, muda, de todas as coisas neles contidas e que
de particular interesse filosófico e moral. passam, com aquilo que os circunda? Mas
em que consiste então, segundo a Igreja, a
grandeza do homem? Não na semelhança
Realidade inteligível com o cosmo, mas sim no ser à imagem do
e mundo sensível Criador da nossa natureza”. A alma e o cor­
po do homem são criados simultaneamente,
a alma sobrevive e a ressurreição reconstitui
Gregório distingue, platonicamente, a a união. Gregório retoma de Orígenes a idéia
realidade em mundo inteligível e mundo sen­ da apocatástase, ou seja, da reconstituição
sível e corpóreo. Mas, neoplatonicamente, o de todas as coisas assim como eram na ori­
mundo sensível é quase esvaziado de sua gem: até mesmo os maus, depois de terem
materialidade, sendo concebido como pro­ sofrido as penas purificadoras, retornarão ao
duto de qualidades e forças incorpóreas, co­ estado original (todos se salvarão).
mo se pode ler no De opificio hominis:
“ Como não há corpo que não seja dotado
de cor, forma, resistência, extensão, peso e ascensao a V eus
das outras qualidades restantes — cada uma
das quais não é corpo, mas algo diferente do
corpo, segundo o caráter particular —, as­ Por fim, encontramos em Gregório uma
sim, pelo contrário, onde quer que ocorram versão cristã da elevação a Deus neoplatô-
tais coisas se opera a existência do corpo. nica, que se realiza mediante a remoção da­
Mas, como a cognição dessas qualidades é quilo que nos divide de Deus: “ A divindade
inteligível e como a Divindade, por nature­ é pureza, libertação em relação às paixões e
za, também é substância inteligível, então não remoção de todo mal: se todas essas coisas
é inverossímil que, na natureza incorpórea, estão em vós, então Deus está realmente em
também possam existir esses princípios inte­ vós. Se o vosso pensamento está livre de todo
ligíveis, pela gênese dos corpos, com a natu­ mal, liberto das paixões, imune a toda im­
reza inteligível fazendo brotar as forças espi­ pureza, então vós sois bem-aventurados,
rituais e o encontro entre eles levando ao porque vedes claramente e porque, estando
nascimento da natureza material”. purificados, percebeis aquilo que é invisível
para aqueles que não estão purificados. E,
uma vez removida dos olhos de vossa alma
y\ dowteiiaa do kornem a obscuridade carnal, vereis claramente a
bem-aventurada visão” .
Teófilo de Antioquia já dizia: “Mostra-
Outra idéia de Gregório de Nissa sobre me o teu homem e eu te mostrarei o meu
o homem também se destacou. Dizer que o Deus” . Aprofundando esse conceito, Gregório
homem é um “microcosmo” , como fizeram de Nissa leva-o à sua formulação perfeita com
os filósofos gregos, significa dizer algo mui­ esta afirmação, que o marca do modo mais sig­
to inadequado. O homem é muito mais. Eis nificativo: “A medida pela qual podeis co­
as palavras precisas de Gregório, que podem nhecer a Deus está em vós mesmos” . BSlglTI
Capítulo quarto - O s tn~ s Iu m i n a ^ e s d a (S a p ad ó cia ...
59

III. O I P s o u d o - D iomsio y W e o p a g i+ a

• Entre os sécs. V e VI viveu o autor de um Corpus de escritos que chegou até


nós sob o nome de Dionísio Areopagita, que tenta uma interpretação do pensa­
mento cristão com base na filosofia de Proclo.
A característica conhecida do pensamento de Dionísio é a . ,.
introdução da teologia chamada apofática (negativa), pela qual ®Pseudo-Dionísio
a absoluta transcendência de Deus em relação ao mundo não Are°Pa9'ta
permite que ele seja designado por nenhum termo, nem mes­
mo filosófico, dado que todo termo designa uma realidade
finita. Portanto, resta apenas designá-lo com uma série de negações (dizer aquilo
que não é, e não aquilo que é), ou recorrer até ao silêncio místico.

Eis o trecho mais significativo da Teo­


1 l H o rm u ía ç ã o
logia mística: “ A Causa boa de todas as coi­
da feol o0Ía apofática
sas pode ser expressa com muitas e com
poucas palavras, mas também com a ausên­
Entre os séculos V e VI, viveu o autor cia absoluta de palavras. Com efeito, não
que se denomina Pseudo-Dionísio Areopagi­ há palavra nem inteligência para expressá-
ta, que foi confundido com aquele Dionísio la, porque está colocada supra-substancial-
que são Paulo converteu com seu discurso mente além de todas as coisas e só se revela
no Areópago. Sob seu nome, chegou-nos um verdadeiramente e sem nenhum véu para
corpus de escritos (Hierarquia celeste, Hie­ aqueles que transcendem todas as coisas im­
rarquia eclesiástica, Nomes divinos, Teolo­ puras e puras, superam toda a subida de
gia mística e Cartas), que teve grande reper­ todos os cumes sagrados, abandonam to­
cussão na Idade Média (a própria estrutura das as luzes divinas e os sons e discursos
hierárquica do Paraíso de Dante foi influen­
ciada pela concepção hierárquica da reali­
dade de Dionísio).
Dionísio repropõe o neoplatonismo em
termos cristãos, sobretudo o platonismo tal
como se configurara na formulação elabo­
rada por Proclo. Mas o que mais se destaca ■ Teologia apofática. A teologia do
nesse corpus, que contém muitas concepções Pseudo-Dionísio Areopagita é forte­
mente inspirada no Neoplatonismo,
bastante sugestivas, é a formulação da teo­ para o qual o Princípio primeiro e su­
logia “ apofática” (ou negativa). Deus pode premo do Uno está acima de tudo, ab­
ser designado por muitos nomes extraídos solutamente transcendente e sepa­
das coisas sensíveis e entendidos em sentido rado de todas as outras realidades
translato, enquanto e à medida que ele é que dele derivam. Isso implica que
causa de tudo; de modo menos inadequa­ qualquer nome que se possa atribuir
do, Deus pode ser designado por nomes ex­ a Deus é fortemente inadequado: é
traídos da esfera das realidades inteligíveis, muito melhor dizer aquilo que Deus
como “ belo” e “ beleza” , “ amor” e “ ama­ não é, do que aquilo que é; em ou­
tras palavras, é mais correto predicar
do” , “ bem” e “ bondade” , e assim por dian­ de Deus atributos negativos (não-ge-
te; mas, melhor ainda, Deus pode ser desig­ rado, incorruptível, imóvel, não-cau-
nado negando-lhe todo atributo, à medida sado etc.), do que atributos positivos
que ele é superior a todos; é o “supra-essen- (bom, belo, santo etc.)
cial” e, portanto, o silêncio e a treva expres­
sam melhor essa realidade supra-essencial
do que a palavra e a luz intelectual.
60 Segunda parte - T ^ a f n s t ic a n a á r e a c u l t u r a l de lín g u a g a a g a

celestes e penetram na escuridão onde ver­ mente impalpável e invisível” e pertencer


dadeiramente reside, como diz a Escritura, completamente “ àquele que tudo transcen­
aquele que está além de tudo”. E trascen- de e a nenhum outro, pela inatividade de
dendo tudo aquilo que é sensível e também todo conhecimento” , tornando-se capaz de
aquilo que é inteligível e inteligente, o ho­ “ conhecer para além da inteligência por
mem pode aderir “ àquele que é completa­ meio do nada conhecer” . [21

fttttl

Miniatura
(tirada da primeira
página do Códice
de Urbino lat. 62,
conservado
na Biblioteca Vaticana)
que representa
o Pseudo-Dionísio
Areopagita,
filósofo
da antiguidade tardia, dltatpp.niio.U)mtec
que teve grande
influência
sobre o pensamento
tioer^cultufrolofioom-
medieval.
Capítulo quarto - O s wês Iummapes da ^dapadóaia...
61

IV. ]\Aáximo o íS o n fesso u


a a ul+ima g r a n d e b a+ alk a cu isto ló g ica

• A filosofia de Máximo o Confessor (579/580-662) é dirigida sobretudo à


tem atização do papel central de Cristo e à defesa do dogma da presença nele de
duas vontades, a humana e a divina: Cristo, portanto, pode ser
considerado verdadeiro homem e verdadeiro Deus, diversamen- A defesa
te do que diziam os monoenergistas (que consideravam que do dogma
em Cristo existisse apenas uma energia divina) e os monotelitas cristológico
(que consideravam que em Cristo existisse apenas uma vonta- -> § 1
de divina).

1 y\fi rmação na e a humana. E assim conseguiu levar à


vitória a tese de Cristo como verdadeiro
do d o g m a de (Sristo
Deus e verdadeiro homem. Mas pagou essa
“verdadeiro Deus sua batalha com grandes sofrimentos: sua
e verdadeiro Komem,/ língua foi cortada, sua mão direita amputa­
da e ele próprio mandado para o exílio. Por
isso foi chamado o “ Confessor” , ou seja,
Máximo viveu de 579/580 a 662 e re­ “Testemunha” da verdadeira fé em Cristo,
presenta a última grande voz original da que ele chamou “ o mais forte de todos, por­
Patrística grega. Entre suas obras, podemos que é e se diz a Verdade” .
recordar os poderosos Ambígua, traduzidos O núcleo essencial do pensamento de
para o latim por Escoto Eriúgena, nos quais Máximo está na tematização do papel cen­
são discutidas passagens difíceis de Dionísio tral da pessoa de Cristo de um ponto de vis­
e Gregório de Nissa, as Questões a Talássio, ta tanto antropológico como metafísico, on-
os sugestivos Pensamentos sobre o amor, tológico e cosmológico, com ousadíssimo
bem como os Pensamentos sobre o conheci­ entrecruzamento de planos, em que convergem
mento de Deus e sobre Cristo, o Livro as­ e se fundem suas concepções antropocên-
cético, a Interpretação do pai-nosso, a Dis­ tricas, teocêntricas e cristocêntricas.
cussão com Pirro, a Mistagogia, numerosos Em uma célebre passagem dos Ambí­
Opúsculos teológicos e várias Cartas. gua, que exerceu profunda influência sobre
Máximo é importante tanto pelo as­ Escoto Eriúgena, Máximo apresentou cinco
pecto filosófico (ele apresenta uma forma distinções fundamentais da realidade: entre
de neoplatonismo repensado a fundo em Deus e criatura, entre mundo inteligível e
função da teologia cristã) como pelo aspec­ sensível, entre céu e terra, entre paraíso e
to místico-ascético e, sobretudo, pelo aspecto mundo habitado, entre homem e mulher. A
teológico, particularmente por sua cristo- partir da posição central do homem, que é
logia. imagem de Deus e, ao mesmo tempo, como
Ele foi grande sobretudo pela batalha microcosmo — é, portanto, um privilegia­
que travou com energia contra as últimas dou­ do anel de conjunção de todos os seres —,
trinas que ameaçavam o dogma cristológico Máximo explicou que a tarefa de unifica­
sancionado pelo Concilio de Calcedônia. ção universal, confiada por Deus ao homem,
Com efeito, haviam-se difundido doutrinas decaído por causa do pecado original, foi
que sustentavam que, em Cristo, existe uma realizada pelo Verbo, em que a natureza
só energia (monoenergismo) e uma só von­ humana e a divina se uniram, sem mistura.
tade (monoteletismo) de natureza divina. Eis a passagem: “Uma vez que, portan­
Tratava-se de formas de cripto-monofisis- to, o homem, depois que foi criado, não se
mo. Máximo as refutou, demonstrando, com moveu naturalmente para o imóvel, como
eficácia e grande tenacidade, que em Cristo seu Princípio (quero dizer, Deus), mas se
há duas atividades e duas vontades: a divi­ dirigiu, contra a natureza, voluntariamen­
62 Segunda parte - A P a M s t i c a n a á n e a cultural d e língua gt^ega

te, de modo irracional, para aquilo que está realizou o grande Desígnio do Pai, recapi-
abaixo dele, sobre o qual ele próprio, por tulando tudo aquilo que está no céu e sobre
ordem divina, teria devido comandar [...], e a terra em Si, em que tudo foi criado” .
assim pouco faltou para que de novo mise­ A partir da concepção do Confessor,
ravelmente corresse o perigo de afundar no segundo a qual tudo é recapitulado em Cris­
não-ser, por isso são transformadas as natu­ to, no qual e pelo qual tudo existe, o maior
rezas [...]. E Deus se torna homem a fim de estudioso moderno de Máximo (H. U. von
salvar o homem perdido, tendo unificado em Balthasar) descreveu a existência humana
si as partes dispersas da natureza na sua tota­ como ato litúrgico, oferta, adoração transfi-
lidade e as formas universais dos particula­ guradora em um templo, tendo como nave
res, de que devia surgir por natureza a união o cosmo inteiro, ou seja, como “liturgia cós­
daquilo que estava dividido [...]. E assim mica” . U ]® ®

V - 3 o ã o D a masceiao

• João Damasceno (primeira metade do séc. VIII), diversa- . .


mente dos outros Padres, assumiu elementos filosóficos tam­
bém de Aristóteles e não somente de Platão. § 7
No Oriente, Damasceno gozou de autoridade semelhante
à de que gozou santo Tomás no Ocidente.

T ^ecupem ção
da filosofia aeisfotélica

Com João Damasceno, que desen­


volveu suas atividades na primeira metade
do século VIII, encerra-se o período da Pa-
trística grega. João não foi uma mente es­
peculativa original, mas sim um grande
sistematizador. Sua obra intitulada Fonte do
conhecimento, subdividida em uma parte fi­
losófica, uma sobre a história das heresias e
outra teológico-doutrinária, tornou-se pon­
to de referência por muito tempo. A terceira
parte, traduzida para o latim por Burgúndio
de Pisa, por volta de meados do século XII,
sob o título De fide orthodoxa, constituiu
um modelo para as sistematizações escolás-
ticas. Ao contrário da maior parte dos Padres
gregos, que haviam extraído os seus instru­
mentos conceituais de Platão e do Platonis-
mo, João Damasceno se apoiou na filosofia
de Aristóteles. No Oriente, gozou de autori­
dade que pode até mesmo ser comparada à
usufruída por santo Tomás no Ocidente.

João Damasceno compõe um sermão.


Miniatura do séc. XI,
conservada na Biblioteca Apostólica Valicana.
63
Capítulo quarto - O s t e ê s Iu m in a r e s d a ( S a p a d ó c i a . . . ---------------

Por isso manifesta-se no homem a mistura


G r e g ó r io d e N is s a de inteligível e de sensível, que é obra da na­
tureza divina, conforme ensina o relato da criação
do mundo. Diz, com efeito, que "Deus, tomando
barro da terra, formou o homem e com o próprio
sopro infundiu a vida na sua criatura", para que
desse modo o elemento terrestre se elevossejun-
Os dois planos do realidade: to ao divino, e uma só e idêntica graça se expan­
disse por toda a criação mediante a mistura da
sensível e supra-sensível natureza inferior com a natureza sobre-humana.
Gregório de Nisso,
fí gronde catequese.
Gregório utilizo a distinção platônica dos
dois planos do realidade (sensível e supra-
sensível) para exprimir algumas verdades da 2. O homem não é apenas um microcosmo,
fé cristã. Retoma o conceito de homem como mas uma imagem do Criador do cosmo
"microcosmo", enquanto imagem de Deus, que "Mas como pode", objetei, “a certeza da
é seu Criador. existência de Deus demonstrar também a exis­
tência da alma humana? A alma não é idêntica
a Deus: apenas neste caso se admitíssemos
1. Os dois planos da realidade: uma coisa seria necessário admitir tudo o mais".
o supra-sensível e o sensível 6 ela1 replicou: "Os sábios dizem que o ho­
mem é um microcosmo que compreende em si
Sõo dois os plonos que o pensamento per­
os mesmos elementos dos quais o universo está
cebe no realidade, onde a especulação distin­
cheio. Se esta teoria for justa — e parece ser —
gue o mundo inteligível e o mundo sensível. C
não teríamos talvez necessidade de outro alia­
nada se poderio conceber além desta divisão
do para confirmar nossas suposições sobre a
na natureza dos seres existentes, fetes dois pla­
alma. Supusemos que ela possui natureza dis­
nos são profundamente distintos entre si, de
tinta e particular, profundamente diversa do es­
modo que nem a realidade sensível está pre­
pessura própria dos corpos. Quando tomamos
sente nas características do inteligível, nem a
conhecimento de todo o universo mediante as
inteligível nas do sensível, mas cada uma delas
percepções sensoriais, a mesma energia que
caracteriza-se pelas qualidades opostas. Com
anima nossas sensações nos leva a pensar no
efeito, a natureza inteligível é uma realidade
objeto e na idéia que se encontra acima delas,
incorpórea, intocável e sem forma; a natureza
e nosso olho se torna o intérprete da sabedoria
sensível, ao contrário, como o próprio riome in­
onipotente que se contempla no universo e que
dica, está sujeita à percepção dos sentidos.
anuncia aquele que o mantém unido por meio
Todavia, assim como no próprio mundo sen­
dela; do mesmo modo, quando olhamos nosso
sível, onde a oposição entre os elementos é pro­
universo, sentimo-nos não pouco ajudados a
fundo, certo acordo de equilíbrio entre os con­
alcançar também aquilo que está escondido por
trários foi excogitado pela sabedoria que dirige
meio daquilo que nos aparece. C escondido fica
o universo, e assim toda a criação aparece inter­
aquele princípio que, sendo destacado, inteligí­
namente harmonizada, sem que nenhuma
vel e invisível, foge da percepção sensorial".
dissonância natural interrompo a continuidade do
acordo; do mesmo modo se realiza por obra da Gregório de Nissa,
A alma e a ressurreição.
sabedoria divina uma mistura e uma combina­
ção do sensível com o inteligível, para que tudo
possa participar de modo igual no bem e nada 3. fl grandeza do homem
do que existe seja privado da participação na
Voltemos às palavras divinas: "Façamos o
natureza superior, flssim a esfera adequada à
homem conforme nossa imagem e semelhan­
natureza inteligível é na realidade a essência sutil
ça". [Filósofos] pagãos imaginaram coisas mes­
e móvel, que pelo espaço ocupado acima do
quinhas e indignas da magnificência do homem,
cosmo obtém do peculiaridade da sua natureza
na tentativa de elevar a condição humana; com
uma grande afinidade com o inteligível; mas o
efeito, disseram que o homem é um microcosmo
ação de uma providência mais alta efetua uma
mistura do inteligível com o mundo sensível, a
fim de que nada do que existe na criação possa
ser rejeitado, como diz o Apóstolo, nem excluído 'é Mcicrina, irmã de Gregório, que protagonizo o diá­
da participação no divino. logo com ele.
64
Segunda patte - y \ T-U i+ ns+ ica na áre.a cu l+ u ^ al d e íngua g^ecja

composto dos mesmos elementos do todo e do uma alma. A inteligência, com efeito, se é
com este esplendor do nome quiseram fazer o própria de todas estas faculdades, ou mostra
elogio da natureza, esquecendo que desse que elas são todos as almas, ou priva cada
modo tornavam o homem semelhante às carac­ uma delas, em igual medida, das proprieda­
terísticas próprios da mosca e do rato, pois tam­ des características da alma".
bém neles existe a misturo dos quatro elemen­ G ela me respondeu: “Também tu queres
tos, porque certamente nos seres animais se examinar de modo coerente esta questão já
vê uma parte mais ou menos grande de cada um debatida por muitos outros: trata-se da idéia
dos elementos, sem os quais nenhum ser que que é preciso ter destes dois princípios, o con­
participo da sensibilidade teria natureza para cupiscível e o irascível, paro ver se fazem parte
subsistir. Que grandeza tem, portanto, o homem, da essência da alma e se estão nela presentes
se o consideramos figura e semelhança do cos­ desde sua formação originária ou se, ao con­
mo? Deste céu que circunda, da terra que mu­ trário, são algo diferente, inserido em nós pos­
da, de todas as coisas neles compreendidas e teriormente. Que sua presença se nota na alma
que passam com aquilo que os circunda? é fato igualmente admitido por todos, mas ne­
Gm que consiste, conforme a Igreja, a gran­ nhum raciocínio ainda soube dizer com exati­
deza do homem? Não na semelhança com o dão o que é preciso pensar sobre eles, de modo
cosmo, mas em ser à imagem do Criador de a ter uma idéia segura a propósito. Ao contrá­
nossa natureza. rio, quose todos [os filósofos] são tomados pela
Gregário de Nisso, dúvida, por causa de suas opiniões erradas e
O homem. diversas. Se a filosofia pagã, que debate este
argumento com seus artifícios, bastasse de fato
paro dar-nos uma demonstração, seria talvez
4. Na definição da alma
supérfluo acrescentar à pesquisa um discurso
não entra aquilo que é completamente
sobre a alma: mas, visto que [os filósofos] che­
estranho a Deus
garam a formular sobre a alma teorias basea­
€ eu, remetendo-me em meu pensamen­ das sobre as aparências e arbitrárias, enquan­
to à definição da alma dada por ela [Macrina] to nós, que não somos livres para dizer o que
em seu discurso anterior, lhe fiz notar que este queremos, usamos a Gscritura santa como re­
não havia ilustrado suficientemente as faculda­ gra e lei de todo doutrina, [segue-se que] nós,
des que se podem pensar presentes na alma. forçados a considerar apenas a Gscritura, acei­
“Conforme o teu discurso, a alma é uma essên­ tamos somente aquilo que concorda com suas
cia inteligente que transmite ao corpo, seu ins­ intenções. Deixemos andar, portanto, o carro pla­
trumento, a força vital, de modo que possa fa­ tônico, o par de potros atrelados, diferentes em
zer funcionar as sensações. Mas nossa olmo seus impulsos, e o auriga que os guia, todos enig­
não se limita a pôr em movimento a faculdade mas de que [Platão] se serve para formular sua
cognoscitiva e especulativa do pensamento pro­ doutrina sobre a alma; coloquemos igualmente
duzindo-a em virtude de sua essência inteligen­ de lado todas as teses do filósofo seguinte,
te, ou a governar os faculdades sensoriais para que, pesquisando habilmente os fenômenos e
que funcionem conforme sua natureza: nela se examinando com cuidado o problema que agora
notam também muitos movimentos ditados pelo nos interessa, nos mostrou que a alma é mor­
concupiscência e pela ira. Graças à presença tal; deixemos de lodo também os filósofos pre­
em nós destas duas funções gerais, temos meio cedentes e sucessivos, tenham eles escrito em
de constatar que sua atividade e seu movimento prosa ou em versos baseados sobre o ritmo e
assumem uma grande variedade de manifes­ sobre o metro; tomemos, ao contrário, como
tações. São muitas as ações que se podem ver base de nosso raciocínio a Gscritura inspirado
guiadas pela faculdade concupiscível; e muitas por Deus, que nos obriga a não considerar nada
são também as ações produzidas pelo princí­ de excelso na alma, que não seja próprio da
pio irascível: nenhum desses dois princípios é natureza divina. Aquele que nos disse que a
corpóreo, e tudo aquilo que é incorpóreo pos­ alma se assemelha a Deus nos mostrou tam­
sui uma inteligência. A definição que demos da bém que aquilo que é estranho a Deus não
olmo nos mostrou, por outro lado, que ela é um entra na definição da alma: a semelhança não
princípio inteligente. Por conseguinte, de nosso poderio subsistir naquilo que é diferente. Uma
discurso nasce um destes dois absurdos: ou a vez que estes dois princípios não se vêem na
ira e a concupiscência são em nós outras a l­ natureza divina, não é também justo supor que
mas, e em nós se pode notar, em vez de uma façam parte da essência da alma.
só alma, uma pluralidade de almas; ou então Gregário de Nisso,
nem o nosso pensamento deve ser considera­ R olmo e a ressurreição.
65
Capitulo quarto - O s t f ê s Iu m i n a m s d a í S a p a d ó c i a . ..

efeito, para expressá-la não há nem palavra


P s e u d o - D io n ís io nem inteligência, porque está colocada supra-
substancialmente além de todas os coisas, e
A r e o p a g it a se revela verdadeiramente e sem nenhum véu
apenas para aqueles que transcendem todas
as coisas impuras e as puras e superam toda
subida de todos os sagrados cimos, e abando­
R concepção de Deus nam todas as luzes divinas e os sons e discur­
sos celestes, e penetram na escuridão onde ver­
como "acima de tudo"1 dadeiramente reside, conforme diz a Cscritura,
aquele que está além de tudo.
Não é, portanto, fora de propósito o fato
O s escritos que estão sob o nome de
de que o divino Moisés recebe a ordem primei­
Dionísio Areopagita (o personagem conver­
ro de purificar-se e depois de separar-se da­
tido por são Paulo no fíreópago de Atenas)
queles que não estão puros, e, portanto, de­
foram na realidade compostos por um autor
pois de completa purificação ouve as trombetas
do séc. V, fortemente influenciado pelo tar­
de muitos sons e vê muitos luzes de que ema­
dio neoplatonismo de Proclo.
nam raios puros e difusos em muitas partes;
A noção de Deus aí contida é, portan­
então ele se separa da multidão e, com os sa ­
to, análoga à noção do Uno neoplatônico,
cerdotes escolhidos, toca a sumidade das a l­
Princípio absolutamente transcendente de
turas divinas e aí não tem relação direta com
toda realidade, acima do ser, da vida e da
Deus e não o vê, pois Deus é invisível, mas vê
inteligência.
apenas o lugar em que ele se encontrava. Isso
significa, creio, que as coisas mais divinas e
mais altas vistas ou pensadas são puras e sim­
1. Deus como realidade ples indicações das coisas submetidas àque­
acima do ser da inteligência le que transcende toda coisa; e por meio de­
Csteja, porém, atento poro que nenhum las se demonstra que a presença de Deus é
daqueles que não são iniciados escute estas superior a toda inteligência enquanto reside
coisas; quero dizer, aqueles que aderem às coi­ sobre as sumidades inteligíveis dos seus luga­
sas que existem e que não imaginam que exis­ res mais santos.
ta algo de modo supra-substoncial para além Cntão, Moisés se liberta de todos as coi­
dos seres, mas crêem conhecer com sua pró­ sas que são vistas e das que vêem e penetra
pria ciência "aquele que pôs as trevas como na escuridão verdadeiramente secreta da ig­
próprio esconderijo". Mas se os ensinamentos norância, na qual faz calar toda percepção
do mistério divino estão fora do alconce d es­ cognoscitiva e adere àquele que é completa­
tes, o que diremos daqueles ainda mais profa­ mente impalpável e invisível, pertencendo com­
nos, que representam mediante as mais bai­ pletomente àquele que tudo transcende e a
xas das criaturas a Causa que transcende todos nenhum outro, nem a si nem a outro, unido em
as criaturas e afirmam que elo por nada supera um modo superior àquele que é completamen­
os formas ímpias e múltiplas por eles plasma­ te desconhecido, mediante a inatividade de
das? C necessário, ao contrário, atribuir a ela e todo conhecimento, e capaz de conhecer para
afirmar dela, enquanto Causa de todas as coi­ além da inteligência com o não conhecer nada.
sas, tudo oquilo que se diz dos seres, e é ain­
da mais importante negar tudo isso, enquanto
2. fl causa de todas as coisas
ela é superior a todas as coisas, nem se deve
está acima de tudo
crer que as negações se oponham às afirma­
ções, mas que está muito mais acima das pri­ Dizemos, portanto, que a Causa de todas
vações essa que transcende toda privação e as coisas e que está acima de todas as coisas
toda atribuição. não é nem carente de substância nem de vida,
Portanto, essa é a forma como o divino nem carente de razão nem sem inteligência;
Bartolomeu diz que a palavra de Deus é gran­ todavia, não é nem um corpo nem uma figura
de e pequeníssima, e o Cvangelho é vasto e nem uma forma, e não tem quantidade ou qua­
amplo e também é conciso. Parece-me que ele lidade ou peso; não está em um lugar; não vê,
tenha compreendido de modo admirável que a não possui tato sensível, não sente nem cai sob
Causa boa de todas as coisas pode ser expres­ o sensibilidade; não conhece desordem ou per­
sa com muitas palavras e com poucas, mas tam­ turbação por ser agitada pelas paixões mate­
bém com o ausência absoluta de palavras. Com riais; não é fraca nem sujeito aos erros sensí-
66 Segunda parte - A P a t n s + i c a n a á ^ e a cultural d e lín gu a g r e g a

veis; nõo tem necessidade da luz, não sofre nhum evidente por si o que e como seja, cha­
mudança ou corrupção ou divisão ou privação mando distinção a ignorância sobre isso, que
ou diminuição; não é nenhuma das coisas sen­ sepora a criatura de Deus. Com efeito, dado
síveis, nem as possui. que ela distingue estes entre si naturalmente,
Pseudo-Dionísio Areopagita, e não pode ser recolhida em unidade em uma
Teologia mística. só essência, porque não pode receber um úni­
co e idêntico termo, foi deixada não-expressa.
A segunda divisão, ao contrário, em base à qual
se distingue toda o natureza que recebeu o ser
de Deus na criação, é a que está entre o inteli­
gível e o sensível. A terceira é aquela segundo
M á x im o o C o n fesso r a qual a natureza se distingue em céu e terra.
A quarta, depois, é aquela segundo a qual a
terra se divide em paraíso e terra habitada, e a
quinta é aquela segundo a qual o homem, que
está acima de todos como um cadinho que con­
tém em si a totalidade, tornando-se em si me­
Rs cinco divisões diador entre todos os extremos de toda divi­
do natureza são, com bondade introduzido com o nascimento
entre os existentes, se subdivide em macho e
fêmea. Tem claramente a plena capacidade de
6sto famosíssima passagem dos Am­ unir naturalmente, pois está no meio de todos
bígua (explicações de dificuldades presentes os extremos, graças às propriedades relativas
nas obras de Gregário Nazianzeno e Dionísio a todos os extremos de suas partes, por meio
fíreopagita) exerceu grande influência sobre das quais, realizando o modo da gênese das
(zscoto Uriúgena (tradutor de obras de Máxi­ coisas distintas, de maneira conforme à causa,
mo e autor do De divisione naturae). teria revelado por si o grande mistério do esco­
Rqui s e apresentam cinco divisões fun­ po divino, tendo feito harmoniosomente termi­
damentais: nar em Deus a união recíproca dos extremos
1) natureza criada/nõo-criodo: dos seres, procedendo dos próximos aos dis­
2) mundo inteligível/sensível; tantes e sucessivamente para o alto dos piores
3) céu/terra; aos melhores [...]. Todavia, uma vez que o ho­
4) paraíso/mundo habitado pelo homem: mem, depois que foi criado, não se moveu na­
5) homem/mulher. turalmente para o Imóvel, como seu Princípio
O homem, que é imagem de Deus e, (digo, Deus), mas se dirigiu contra a natureza,
como microcosmo, é um anel de conjunção voluntariamente, de modo irracional, para aquilo
privilegiado entre os extremos, teria devido que está abaixo dele, sobre o qual ele próprio
unificar os diversos opostos, reconduzindo o por ordem divina teria devido comandar [...], e
Todo o Deus. assim pouco faltou para que de novo misera­
Uma vez que nõo realizou essa tarefa, velmente corresse o perigo de afundar no não-
Deus empreendeu a obra da salvação e da ser, por ele são transformadas as naturezas, e
unificação por meio do mistério da Uncor- de modo paradoxal e sobrenatural. Aquilo que
nação do Verbo. por natureza é absolutamente imóvel se move,
por assim dizer, permanecendo imóvel, para
aquilo que é por natureza movido. A Deus se
O s santos que receberam a maior parte torna homem a fim de salvar o homem perdido.
dos mistérios divinos daqueles que foram se ­ Máximo o Confessor,
guidores e ministros do Logos, e que portanto fímbiguorum iiber.
obtiveram imediatamente o conhecimento dos
mistérios transmitido a eles por sucessão dos
predecessores, dizem que o substância de tudo
o que foi feito distingue-se em cinco divisões. O amor
Dizem que a primeira delas é a que distingue a
Realidade não-criada da criada na sua totali­
dade; esta recebeu o ser por meio do nasci­ Muito significativa e tocante é a doutri­
mento. Afirmam, com efeito, que Deus por bon­ na de Máximo sobre o agape, sobre o amor,
dade produziu a magnífica ordem da totalidade concebido, no Novo Testamento, como amor
dos seres, e que não se torna de modo ne­ -------------------------------------------------- ►
67
C ã p í t u l o C fU ãV tO - O s I r e s l u m i n a r e s d a C a p a d ó c i a . ..

------ p* ----------------------------------------------------
d e Deus e do próximo. Tal temática s e cen­
A "liturgia cósmica"1
tralizo sobre o noturezo de Deus como agape
e sobre a p esso a d e Cristo.
Cis umo passagem emblemática tirada
O ápice da doutrina do Confessor so ­
do Livro ascético: ela apresenta Deus como
bre divisões e unificações, pelo qual tudo é
"amor". Cristo como o "próprio verdadeiro
"recapituiodo" em Cristo, é a concepção da
amor”, o amor por todo homem como "sinal
"liturgia cósmica". R unificação realizado pelo
d e amor d e Deus".
Cncarnoção continua na obra transfiguradora
da Igreja.
fí Igreja está no meio, entre cosmo na­
"Mesmo se [os mandamentos] soo mui­ tural e sobrenatural; assim como a Igreja é
tos, irmão, todavia eles se recapitulam em um um mundo, também o mundo é uma "igreja
só preceito, ou seja: 'Amarás o Senhor teu Deus cósmica", cuja nave é o cosmo sensível. Nes­
com todas as tuas forças e com toda o tua men­ te templo o homem, imagem d e Deus, cele­
te, e o teu próximo como a ti mesmo'. C quem bra a adoração, a oferta litúrgica trans­
luta para observar e sse preceito, cumpre junto figuradora.
todos os mandamentos. Com efeito, aquele que Rpresentamos duas passagens signifi­
não se afastou da paixão por aquilo que é cativas, tirados da Mystogogia, que é uma
material [...] não pode amar nem Deus nem o interpretação simbólico da liturgia.
próximo com verdade, porque é impossível ser
ao mesmo tempo inclinado à matéria e amar
Deus. C isso é aquilo que diz o Senhor: 'Nin­
guém pode servir a dois patrões]...]'. Com efei­
to, pelo Fato de que nossa mente esto apega­ 1. R Igreja, figura do cosmo
da às coisas do mundo, é escravizada por elas R santo Igreja de Deus é a figura e a ima­
e despreza o mandamento de Deus, transgre­ gem do cosmo inteiro, constituído de seres visí­
dindo-o". veis e invisíveis, porque apresenta em si a mes­
C o irmão disse: "De quais coisas falas, pai?" mo união e distinção. Gmbora ela seja de fato
C o ancião respondeu: "De alimentos, rique­ como uma só casa pela construção, por certa
zas, propriedades, glória, parentes e daí por particularidade na disposição da estrutura ad­
diante". mitirá a distinção, sendo dividida, com uma porte
C o irmão perguntou: “Dize-me, pai: Deus reservada exclusivamente aos sacerdotes e aos
por acaso não criou essas coisas e não os deu ministros, chamada santuário, e outra acessível
acaso para que os homens as usassem? Como a todo o povo fiel, chamada nave. Por outro
então ordena não estar apegado a elas?" lado, é una por essência, não estando dividida
G o ancião respondeu: "G evidente que de suas partes por sua diferença recíproca, mas
Deus criou estas coisas e as deu para que os libertando as próprias partes da diferenço que
homens as usassem. C todas as coisas criadas brota de seu nome por sua relação com a uni­
por Deus são boas, porque servindo-nos delas dade, e mostrando que ambas são reciproca­
bem tornamo-nos agradáveis a Deus; nós, po­ mente a mesma coisa, e manifestando que, por
rém, sendo fracos e ligados tanto à matéria coesão, uma é para a outro aquilo que cada
como ao modo de pensar, pusemos as coisas uma é para si mesma [...]. Do mesmo modo,
materiais na frente do mandamento do amor, e também todo o cosmo dos seres, gerado por
ficando apegados o elas, combatemos os ho­ Deus, está subdividido tanto em um mundo in­
mens. Devemos, porém, antepor a todas as teligível, formado por essências inteligíveis e
coisas visíveis e ao próprio corpo o amor por incorpóreas, quanto neste mundo sensível e cor-
todo homem, que é sinal do amor por Deus, póreo, também magnificamente entretecido por
como o próprio Senhor indica nos Gvangelhos: muitas formas e naturezas. Trata-se, por assim
'Quem me ama — diz — observará os meus dizer, de outro Igreja, não feito por mãos de
mandamentos'. G qual seja o mandamento, pela homem, revelada sabiamente por esta, feita por
observância do qual nós o amamos, escuta ele mãos de homem, e que tem, como santuário, o
próprio, que diz: 'Gste é o meu mandamento: cosmo superior, constituído pelas potências do
que vos ameis uns aos outros'. Vês que o amor alto e, como nave, este cá debaixo, reservado
mútuo testemunha o amor por Deus, que é a aos seres aos quais toca como sorte a vida
perfeição de todo mandamento de Deus?" sensível.
Máximo o Confessor, Máximo o Confessor,
Liber asceticus. Mçstogogío.
Segunda parte - y \ P a t r í s + i c a n a á r e a cul u^al de. l í n g u a g ^ e g a

2. O homem como Igreja mística veis, tiradas p elo espírito d e modo puro do
matéria, e por fim, com o altar da mente cha­
£, vice-versa, o homem é uma Igreja mís­
ma o si o silêncio, celebrado nos templos, do
tica: com o nove do corpo, ilumino virtuosa-
grande voz invisível e incognoscível da Divin­
mente o porto ativo do olmo com a potência
dade, por meio de outro silêncio, loquaz e de
dos mandamentos, conforme a filosofia ética,
muitos sons [...].
enquanto com o santuário da alma conduz em
Deus, conforme o contemplação natural, por Máximo o Confessor,
meio do razão, os formos das coisas se n sí­ Mçstagogio.

/» * r * t s /

\ V?f tt i t P A t/i /7f W / / V ? %* \


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4/ / . /•//1 * .'t » -
i ili t f i - / ’ j* / ' ■
' í‘ ; V 4 *

Os bustos
de João Clímaco,
João Damasceno
e Máximo o
Confessor,
em um códice
conservado
na Biblioteca
Nacional de Paris. 4 t ■r t u
A PATRÍSTICA
NA ÁREA CULTURAL
DE LÍNGUA LATINA

■ O filosofar na fé de santo Agostinho

“Ninguém pode atravessar o mar deste século,


se não for carregado pela cruz de Cristo. ”

Agostinho
Capítulo quinto

A Patrística latina antes de santo Agostinho

Capítulo sexto

Santo Agostinho e o apogeu da Patrística


(S a p ífu lo q u in to

y \ IPcdrísYuza. la+i ncx


anias d e santo jA g ostin ko

I.^Vlmucio Peli*/ Xe^fuliaKvo


e o s e.scHlo^es cHs+ãos a t e o s é c u l o Í V

• Os Padres latinos anteriores a Agostinho foram pouco


Minúcio
atraídos, quando não decisivamente hostis, à filosofia grega. e a sabedoria
Minúcio Fél.ix, particularmente, condenava a sabedoria grega, grega
acusando-a de ser tão grandiloquente e pomposa, quanto vã, -+§1-2
abstrata e superficial. Para ele apenas a doutrina cristã pode
ser considerada sabedoria do coração, autêntica e profunda.
• Para Tertuliano, Atenas e Jerusalém nada têm em co­
Tertuliano:
mum: fé em Cristo e Sabedoria humana se contradizem (daqui
credo quia
sua célebre afirmação: credo quia absurdum). Na verdade, a absurdum
alma é naturaliter christiana e é a cultura filosófica que a afas­ ->§3-5
ta da verdade. Tertuliano assumiu, talvez de Sêneca, uma con­
cepção corpórea da realidade e do próprio Deus.
• Os escritores cristãos dos sécs. III-IV moveram-se substan­ Outros escritores
cialmente em três direções: em sentido pastoral (como Cipriano), cristãos
em sentido teológico (como Novaciano) e em sentido filosófi­ -+§6
co (como Arnóbio e Lactâncio), mas, neste último caso, nem
sempre em formas originais e adequadas à finalidade.
• Os tradutores e comentadores do séc. IV souberam man­
Os tradutores
ter viva a tradição filosófica, sobretudo de estilo platônico e
cristãos
neoplatônico — neste sentido tiveram particular importância -+§7
as traduções de Calcídio — , enquanto alguns deles, como Má­
rio Vitorino, transpuseram para o âmbito teológico traços e
idéias adquiridas no estudo da filosofia.

1 O primeiro escrito ceram os interesses estritamente teológicos e


pastorais ou então filológicos e eruditos. Em
apologético cristão-latirvo
geral, o lugar que eles ocupam na história da
filosofia é bastante modesto. Sendo assim,
Os Padres latinos anteriores a santo limitar-nos-emos a uma abordagem sintética,
Agostinho foram geralmente muito pouco com o objetivo de conhecer, ainda que apenas
atraídos pela filosofia e, mesmo quando se em linhas gerais, o fundo sobre o qual surgiu
ocuparam dela, não criaram idéias verdadei­ a poderosa figura de santo Agostinho.
ramente novas. A formação cultural dos pri­ O primeiro escrito apologético em favor
meiros apologistas foi de caráter jurídico- dos cristãos foi provavelmente o Otávio, de Mi­
retórico, especialmente no sensível e vivo núcio Félix (um advogado romano), escrito
ambiente africano. Em outros Padres prevale­ pelos fins do século II em forma de diálogo.
72 Terceira parte - ;A l-^a+Tis+ica ncx á re a cultural de Imcjua l a t i d a

As finezas ciceronianas e a aparente paca- 3 TMra Xertuliarvo,


tez no tom geral, próprias de Minúcio Fé-
lix, induziram muitos a falar de um espírito jA + e n a s e á erws<d é m
conciliador com a cultura pagã. Na reali­ nada têm em comum
dade não é assim, porque, como bem desta­
caram alguns, os ataques contra os filóso­
fos gregos, substancialmente, são bastante A atitude polêmica em relação à filo­
duros. sofia, assumida por Quinto Setímio Florente
Tertuliano, foi muito mais forte. Nascido
pouco depois da metade do século II em
Cartago, tem como grande destaque de suas
2 CDs -portes ataques obras o Apologético. Outras obras suas in­
de M i núcio F e lix teressantes por vários aspectos são: O tes­
contra os pilósopos gregos temunho da alma, Contra os judeus, As pres­
crições contra os heréticos, Contra Marcião,
Contra os valentinianos, o tratado Sobre a
A propósito das concordâncias que alma, A carne de Cristo e A ressurreição da
podem ser constatadas entre os filósofos carne, entre outras.
gregos e o cristianismo, Minúcio Félix es­ Depois de ilustrar no Apologético a
creve: “ E note-se bem que os filósofos afir­ contraditoriedade dos filósofos e sua imora­
mam as mesmas coisas em que cremos, não lidade, Tertuliano contrapõe os filósofos aos
porque nós tenhamos seguido os passos de­ cristãos do seguinte modo: “ Em seu conjun­
les, mas porque eles se deixaram guiar por to, que semelhança pode-se perceber entre
leve centelha, que os iluminou com as pre­ o filósofo e o cristão, entre o discípulo da
gações dos profetas sobre a divindade, in­ Grécia e o candidato ao céu, entre o trafi­
serindo um fragmento de verdade em seus cante da fama terrena e aquele que faz ques­
sonhos” . tão de vida, entre o vendedor de palavras e
E, depois de acenar à teoria da transmi- o realizador de obras, entre quem constrói
gração das almas, propugnada por Pitágoras sobre a rocha e quem destrói, entre quem
e Platão, que ele julga verdadeira aberração altera e quem tutela a verdade, entre o la­
doutrinária, acrescenta o seguinte a propó­ drão e o guardião da verdade?”
sito da admissão da idéia de que as almas Em outras obras, Tertuliano reafirma
podem assumir corpos também de animais: que Atenas e Jerusalém nada têm em comum,
“ Essa afirmação não parece de fato a tese de como também a Academia e a Igreja. O cris­
um filósofo, parecendo muito mais a tirada tão extrai seus ensinamentos do Pórtico de
injuriosa de um cômico Salomão, que ensina a “ procurar o Senhor
Falando de Sócrates, dos céticos e dos fi­ com simplicidade de coração” . Tertuliano
lósofos em geral, Minúcio afirma sem meios- rejeita qualquer tentativa de fazer do cristia­
termos o seguinte: “ Que se vire, portanto, nismo “ uma contaminação de estoicismo,
por sua conta Sócrates, o palhaço de Ate­ platonismo e dialética” ; com efeito, a fé tor­
nas, com sua confissão de não saber nada, e na inútil qualquer outra doutrina.
vanglorie-se com o atestado de um demônio
mentiroso; e também Arcesilau, Carnéades
e Pirro, com toda a turba dos acadêmicos, 4 O fideísmo de XeH-nliatto:
continuem sempre duvidando (...): nós não
T re d o quia absurdum”
sabemos o que fazer com a teoria dos filó­
sofos; sabemos muito bem que são mestres
de corrupção, corruptos eles próprios, pre­ Para Tertuliano, os filósofos são os
potentes e, além do mais, tão descarados que patriarcas dos heréticos. Como fé em Cris­
estão sempre a clamar contra aqueles vícios to e sabedoria humana se contradizem, ele
nos quais eles próprios se afundaram. Nós escreve em Carne de Cristo: “ O Filho de
não trombeteamos sabedoria, mas a levamos Deus foi crucificado: não me envergonho dis­
viva no coração; não dissertamos sobre a so, precisamente porque é vergonhoso. O
virtude, mas a praticamos; em suma, temos Filho de Deus morreu: isto é crível, porque é
o orgulho de haver alcançado aquilo que eles uma loucura. Foi sepultado e ressuscitou: isto
procuraram com fatigante empenho e jamais é certo, porque é impossível” . As expressões
conseguiram encontrar” . [T] “prorsus credibile est, quia ineptum est” e
Capitulo quinto - y\ D a f r í s f i c a latina a n t e s d e s a n to ^Agostinho
73

“certum est, quia impossibile est” tornaram-se ridade teológica antes de Agostinho. Desta­
muito famosas, e foram condensadas na céle­ ca-se nele grande sentido eclesial. Deve-se
bre fórmula “credo quia absurdum ”, que resu­ recordar também Novaciano (em atividade
me muito bem o espírito de Tertuliano. pela metade do século III), que prosseguiu a
Para chegar a Deus, basta uma alma obra de aprofundamento da linguagem teo­
simples: a cultura filosófica não ajuda, até lógica técnica iniciada por Tertuliano, e tam­
atrapalha. No Testemunho da alma, pode­ bém foi grande retor, além de filósofo de
mos ler: “Mas não me refiro àquela alma que extração estóica.
se formou na escola, que se treinou na biblio­ No início do século IV, surgiu a obra
teca, que se empanturrou na Academia e no Contra os pagãos, de Arnóbio, de conteúdo
Pórtico da Grécia e agora dá seus arrotos filosófico, inspirada em grande sentido de
culturais. Para responder, é a ti que chamo, pessimismo acerca da condição do homem,
alma simples, ainda no redil, ainda não ma­ que o leva a encontrar em Cristo a única
nipulada e privada de cultura, assim como salvação possível. Mas o cristianismo de
és naqueles que só têm a ti, alma íntegra que Arnóbio é superficial. Ele não mostra ter
vens dos ajuntamentos, das ruas, da fiação. familiaridade com a Escritura e, em parte,
Preciso da tua ignorância, porque ninguém ainda permanece dominado por concepções
confia em quatro noções de cultura” . E, em heréticas e até mesmo pagãs.
Apologético, Tertuliano escreve: “ O testi- Lúcio Cecílio Firmiano Lactâncio, alu­
monium animae naturaliter christianae!” no de Arnóbio, inicialmente ensinou retóri­
ca em Cartago e depois em Nicomédia. De­
pois de velho (por volta de 317), tornou-se
5 «Unfluxos es+óicos preceptor de Crispo, filho do imperador
Constantino. Foi claramente superior ao
n a ontologia de Xertuliamo mestre, mas não teve idéias filosóficas e teo­
lógicas verdadeiramente originais. Sua obra
Apesar dessa viva antifilosofia, Tertu­ mais conhecida são As instituições divinas,
liano, em certa medida, revela-se um estói- em sete livros, que é ao mesmo tempo uma
co em ontologia. Para ele, o ser é “corpo” : polêmica contra a religião pagã e uma apai­
“nihil enim, si non corpus, nibil est incor- xonada — mas nem sempre perspicaz —
porale, nisi quod non est” . Por vezes há, defesa do culto e da doutrina cristã.
porém, a suspeita de que Tertuliano não dis-
tinga claramente o corpus da substantia.
Ele deve ter absorvido essas teses so­ 7 TTadufores, comeufadores
bretudo de Sêneca, que ele muito admirava.
Deus é corpo, embora sui generis, assim e eruditos cristãos
como a alma também é corpo. do século I V
O seu De anima, como construção on-
tológica de fundo, representa a antítese exata
do espiritualismo do Fédon. São escassas as contribuições do Oci­
À Tertuliano cabe o mérito de ter cria­ dente latino no século IV.
do a primeira linguagem da teologia latino- Calcídio traduziu e comentou o Timeu
cristã e de ter denunciado muitos erros da de Platão, em chave interpretativa de cará­
heresia gnóstica, refutada principalmente ter médio-platônico.
no escrito Adversus Valentinianos. UH Ambrósio Teodósio Macróbio escreveu
um Comentário ao sonho de Cipião (ou seja,
ao livro IV do De re publica, de Cícero),
que será muito lido na Idade Média.
6 úcscG+ores cnsfãos Júlio Fírmico Materno escreveu uma
do sécu lo m obra Sobre o erro das religiões profanas,
contra o politeísmo pagão.
e dos inícios do I V
Caio Mário Vitorino traduziu Plotino
e Porfírio e, tendo-se convertido ao cristia­
Na África teve muita importância na nismo, escreveu tratados teológicos.
vida da Igreja são Cipriano, nascido no iní­ Hilário de Poitiers ficou famoso por sua
cio do século III e falecido ao redor de 258. obra Sobre a Trindade, a qual, porém, não
Foi grande pastor e tornou-se a maior auto­ tem implicações filosóficas importantes.
74 Terceira parte - A R a+ ^ística cu*ea cul+u vc\\ d e l í n g u a la+iua

II. A s f i g u r a s d e A^nb^ósio,
de^ôi^imo e R uj"Íino
I

• Entre os vários pensadores (filósofos, tradutores, comen­


Ambrósio
-^§1 tadores e eruditos) dos sécs. III-IV destaca-se a figura de Am­
brósio, bispo de Milão de 374 a 397. Assumiu de Fílon o método
alegórico no que se refere à Sagrada Escritura; teve considerá­
vel influência sobre santo Agostinho, do qual foi mestre.

• Devemos lembrar também Jerônimo, autor da tradução


Jerônimo
e Rufino latina da Bíblia destinada a se tornar canônica (a Vulgata), e
-+§2 Rufino, autor de traduções em latim dos Padres gregos (princi­
palmente Orígenes).

■ ^A m b ró sio 3) Os escritos dogmáticos, que freqüen-


temente têm caráter polêmico contra as dou­
trinas heréticas.
4) As obras de características variadas co­
Uma figura de grande destaque foi mo os hinos, os discursos e as cartas. jT]
Ambrósio, bispo de Milão de 374 a 397.
Ambrósio foi grande como pastor, homem
de ação e erudito, mas não é um pensador m
s 3eeônimo e T^ufino
original.
Foi escritor muito fecundo. Tanto em
a
teologia como em exegese bíblica, depen­ Jerônimo (nascido entre 340 e 350 e
de amplamente dos Padres gregos. Sua falecido entre 410 e 420) foi, sem dúvida, o
originalidade se encontra sobretudo nos mais douto dos Padres da Igreja latina, bas­
escritos ético-pastorais, campo no qual tando citar seu perfeito conhecimento do
deve-se destacar o seu De officiis ministro- latim, do grego e do hebraico. Por tais com­
rum (que, de resto, se inspira em Cícero), petências o papa Dâmaso lhe conferiu o
no qual identifica o officium médium com encargo de rever as várias traduções latinas
os mandamentos divinos que valem para da Bíblia que circulavam então e que mos­
todos e o officium perfectum com os con­ travam algumas discordâncias. Mas, desde
selhos de perfeição que valem para os san­ os trabalhos preliminares, Jerônimo perce­
tos. Com Ambrósio, o conceito greco-ro- beu que não bastava simples revisão, mas
mano de officium (criado pela antiga Estoá que era necessário um recurso sistemático
e levado ao primeiro plano por Panécio e às fontes gregas (por exemplo, no que se
Cícero) é assim repensado em bases cris­ refere ao Antigo Testamento, à tradução dos
tãs, tornando-se categoria moral estável no Setenta) e hebraicas. A tradução de Jerônimo
Ocidente. (que ocupou o período de 391 a 406) tor­
Suas obras em geral podem ser dividi­ nou-se canônica, com o nome de Vulgata.
das em quatro grupos fundamentais. Além disso, Jerônimo foi autor de
1) Os escritos exegéticos que nascem, obras exegéticas do Antigo e do Novo Tes­
a maioria, das reelaborações de homi- tamento, de escritos de caráter dogmático e
lias e que se reportam em larga medida ao polêmico, de homílias e de rico epistolário
método de leitura da Bíblia proposto por muito apreciado na Idade Média.
Fílon de Alexandria, e que consistia em Por fim, cabe mencionar Rufino (fale­
aplicar de modo sistemático a alegoria filo­ cido em 410), que teve o mérito de traduzir
sófica. para o latim obras de Padres gregos, entre
2) As obras morais, entre as quais salien­ as quais as de Orígenes (é sobretudo a ele
ta-se o já citado De officiis ministrorum. que devemos a possibilidade de poder re­
Capítulo quinto - PaU-ísti c a latin a a n t e s d e s a n t o ;A g o s t in k o
75

construir hoje a obra Sobre os princípios, Mas o espírito latino se expressou so­
de Orígenes). Outras traduções importantes bretudo em Agostinho, com quem a Pa-
foram as da História eclesiástica de Eusébio trística alcançou os seus mais altos cumes e
de Cesaréia e de alguns discursos significa­ com quem encerrou-se definitivamente uma
tivos de Gregório de Nazianzo. época e abriu-se uma nova.

Santo Ambrósio
e outros santos,
em um painel pintado
por Ambrósio de Vossano,
dito o Bergognone,
ativo na l.ombardia
entre 14H1 e 1S22
(Certosa de Pavia).
76
Terceira parte - y \ "P a + r ís ti ca n a á n e a c u l t u r a l d e l í n g u a la+ina

rerías? Demócrito, que é também aquele que


M in ú c io F é l ix por primeiro colocou em baila os átomos, não
chama freqüentemente a natureza como Deus?
C o próprio Cpicuro, que representa os deuses
em perpétuo repouso, ou até não os admite,
todavia põe a natureza acima de todas as coi­

D Concordância sas. Rristóteles não exprime sempre uma úni­


ca potência divina, chamando Deus ora a inte­
ligência e ora o mundo, e outra vez apresenta
entre filósofos e cristãos explicitamente Deus como o que governa o
mundo. Também Teofrasto demonstra ter vá­
rias opiniões: ele coloca antes de qualquer
Retomando as teses d e Justino e de
coisa o mundo, mas outras vezes a inteligên­
Clemente, Minúcio Félix reviso no Octavius
cia divina. C também Heráclides Pôntico, em­
todos os Filósofos gregos, notando que codo
bora também este mutável em suas opiniões,
um deles descobriu parte da verdade que
admite que o mundo é governado por uma
s e refere a Deus: os cristãos, portanto, são
mente divina. Também Zenão, Crisipo e Cleanto,
os Filósofos por definição e todos os filóso­
apesor das diversas opiniões, acabam por ad­
fos são de algum modo cristãos.
mitir que a Providência é única: com efeito, para
Cleanto Deus é oro o inteligência, ora a alma,
ora o ar; para Zenão, que foi seu mestre, o
€ o que dizemos de Deus senão que é o princípio que governa o mundo é ora a lei na­
inteligência, o razão, o espírito universal? tural e divina, ora a razão, e ele próprio com­
Se te agrada, podemos fazer uma revi­ bate e refuta com muito entusiasmo aquilo que
são dos doutrinas dos filósofos; perceberás que é o erro comum, dizendo que Juno não é mais
estes, embora com linguagem diferente, estão que o ar, Júpiter o céu, Netuno o mar, Vulcão o
de acordo, todavia, na substância, e admitem fogo e demonstrando de modo semelhante
nossa própria opinião. que também os outros deuses venerados pelo
Deixo de lado os filósofos antigos e os povo não são mais que os próprios elementos
primitivos que mereceram o apelativo de s á ­ da natureza. R mesma teoria é sustentada de
bios apenas por suas sentenças, e me dirijo perto por Crisipo: para ele Deus é ora uma
em primeiro lugar a Tales de Mileto, que foi o potência divino dotoda de rozõo, a natureza e
primeiro a se ocupar de coisas celestes. Cie o mundo, ora o destino fatal; e demonstra imi­
afirmou que o princípio de todas as coisas é a tar Zenão quando dá uma interpretação fisio­
água, e que Deus é a inteligência ordenadora lógica dos poemas de Hesíodo, de Homero e
que da água formou todas as coisas. De mi­ de Orfeu. De resto, esta doutrina foi também
nha parte, confesso que esta doutrina da água sustentada por Diógenes de Babilônia, que
e do espírito é tão profunda e sublime que me afirmava que mitos, como o porto de Júpiter
parece difícil que tenha sido inventada por um e o conseqüente nascimento de Minerva, e
homem, e a considero mais como inspirada por outros semelhantes, eram apenas símbolos
Deus. Vê, portanto, como a opinião do filó­ de fenômenos naturais e não de deuses. Xe-
sofo mais antigo seja quase sem elhante à nofonte, discípulo de Sócrates, sentencia ao con­
nossa, flnaxímenes depois e, depois ainda, trário que, uma vez que é impossível ver a fi­
Diógenes afirmam que é o ar um deus imenso gura do verdadeiro Deus, por isso mesmo é
e infinito: também eles, portanto, têm sobre a inútil pesquisá-la, e o estóico Rristão acres­
divindade uma opinião semelhante à nossa, centa que é de todo impossível podê-la en­
fl seguir, Rnaxágoras entende Deus como in­ tender; implicitamente um e outro, justamente
teligência infinita que ordena e move o univer­ porque desistem de podê-la entender, mos­
so; enquanto para Pitágoras Deus é um espí­ traram perceber a majestade de Deus. O raci­
rito que permeia todo o universo e do qual se ocínio de Platão a respeito de Deus e a res­
origina também a vida animal. Sobe-se que peito do próprio conteúdo da religião é mais
Xenófanes afirma que Deus é infinito e que claro, e, se não fosse contaminado pela mis­
tem uma inteligência; e que flntístenes, em­ tura de preconceitos políticos, seria um racio­
bora admitindo que são muitos os deuses do cínio que poderio parecer inspirado pelo céu.
povo, reconhece apenas um como verdadeiro Cie, com efeito, no seu Tímeu, diz que Deus é pai
e primeiro entre todos; e que Cspeusipo cha­ do mundo, formador dos coisas celestes e das
ma Deus uma força da natureza pela qual são terrenas, e tal que, por causa da infinita e in­
governadas todas as coisas. O que mais que­ crível potência, é difícil falar dele a outros.
77
Capitulo quinto - Pa+ fís+ ica latina a n t e s d e s a n to ^ 0 o s t in K o

Gstas opiniões, mais ou monos, podom sor e provavelmente é por isso que a filosofia
considerados sem elhantes à s n ossas, uma foi expulsa por certas legislações como a dos
vez que reconhecemos e dizemos que Deus tebanos, dos espartanos, dos habitantes de
é pai de todas as coisas, mas não falamos dis­ Argos.
so a não ser quando somos interrogados a pro­ Aproximando-se de nossas coisas, mas ao
pósito. mesmo tempo, como dissemos, ávidos unica­
Assim expus as opiniões de quase todos mente de glória e de fátua eloqüência, estes
aqueles filósofos que podem considerar como representantes da cultura profana, quando nas
sua glória mais excelsa ter indicado — embora santas páginas se defrontaram com algo capaz
com nomes diversos — um só Deus, e poderia­ de satisfazer sua curiosidade, o traduziram em
mos também pensar que hoje os cristãos são elucubrações próprias.
justamente filósofos ou então que, desde aque­ Não estavam suficientemente persuadidos
la época, os filósofos foram cristãos. de seu caráter divino para serem capazes de
abster-se de qualquer interpolação tortuosa, e
Minúcio félix,
Octovius. não estavam em grau de compreendê-las, e s­
crituras árduas e nebulosas como são, de modo
a permanecer impenetráveis aos próprios he-
breus dos quais também pareciam ser pro­
priedade reservada. Pois se a verdade se os­
tentava com sua luzente simplicidade, mais a
cavilosidode humana negava seu assentimen­
to e flutuava, acabando por reduzir à incerteza
T e r t u l ia n o
aquilo que à primeira vista aparecera como
indubitável.
Haviam encontrado Deus puro e indu­
bitável e ousaram submetê-lo a discussão, dis-
sertando sobre sua natureza, seus atributos,
fl filosofia e o cristianismo sua sede.
Assim, alguns o proclamaram incorpóreo;
estão em contradição1 outros, corpóreo; e eis os platônicos e os estói-
cos. Outros disseram que ele constava de átomos,
outros de números: e eis Gpicuro e Pitágoras.
No âmbito dos Podres apologistas,
Outros disseram que ele era fogo, conforme
Tertuliono é expressão do tendência antifi-
pareceu a Heráclito.
losóFico que pretendia rejeitar completomen­
Os platônicos o consideraram providên­
te os doutrinas dos gregos. Fl fé cristã, com
cia das coisas; outros, ao contrário, ou seja, os
efeito, torno inútil todo doutrino filosófico
epicuristas, o designaram inerte e indiferente
openos racional, porque o fé é superior à
e, por assim dizer, ausente de todas as coisas
rozão.
humanas.
Os estóicos colocaram-no fora do mundo
em ato de fazer mover em círculo, como um olei­
ro, esta mole universal do mundo. Os platôni­
1. fl antiguidade das Sagradas €scrituras
cos, ao invés, o puseram no âmbito do mundo
das quais apreenderam
como um timoneiro presente na nave por ele
os próprios pagãos
dirigida.
Também aqui me socorre a já consolida­ Igualmente variam as opiniões dos filó­
da antiguidade da escritura divina. Sobre a base sofos a propósito do próprio mundo, se houve
de ta! antiguidade não se poderá contestar ter ou não um princípio, se haverá ou não um fim.
ela representado o tesouro com o qual atingiu Não há maior concordância sobre a natureza
toda a sabedoria posterior. € se eu não sentis­ da alma, que alguns consideram divino e eter­
se a oportunidade de reduzir o peso deste vo­ na, outros, corruptível. Cada um a seu gosto
lume, ter-me-ia prolongado muito nesta d e­ transformou ou aumentou as opiniões prece­
monstração sem limites. dentes.
Há poeta ou sofista que não se tenha Nenhuma maravilha, portanto, se nossos
dessedentado na fonte dos profetas? G de lá antigas tradições oficiais foram alteradas pe­
que os filósofos extraíram alimento para a las elucubrações dos filósofos. Da estirpe de
fecundidade de seu engenho. G o que eles to­ tais filósofos pulularam aqueles que deforma­
maram de nós que os torna nossos vizinhos, ram e falsificaram com suas opiniões nosso pró­
78 Terceira parte - y\ T-G+^ística n a í f o e a cul+u^al d e l í n g u a l a t i n a

prio acervo documentário poro acomodá-lo às cárcere corpóreo, ferida e manchada por costu­
opiniões dos filósofos. De um só caminho fize­ mes deformantes, esgotada pelas paixões e
ram numerosas trilhas oblíquas e inexplicáveis. pelas libidinagens, liberta de dignidades men­
Digo isso de passagem para que ninguém in­ tirosos, pois bem, apenas tenha um instante de
vente de equiparar-nos aos filósofos justamen­ arrependimento, logo que tenha um indício de
te por esta reconhecida e admitida variedade cura de seus desregromentos, de sua letargia,
existente em nossa confissão e de deduzir da de suas doenças congênitas, não sabe fazer
multiplicidade das opiniões uma carência da outra coisa a não ser nomear Deus com um úni­
verdade. co nome, Deus, porque é o verdadeiro nome
Sem hesitações contrapomos aos adul- de Deus. Qual é a exclamação de todos? "Deus
teradores de nossa doutrina o argumento pre­ grande, Deus bom. Seja o que Deus quer". Mas
liminar da prescrição, em nome do qual pro­ há mais. A própria alma o reconhece como juiz.
clamamos como única regra de verdade aquela "Deus o sabe, entrego-me a Deus, Deus provi­
que nos foi transmitida por Cristo mediante dencie". Ó testemunho da alma levada instinti­
seus apóstolos, dos quais é fácil constatar o vamente ao cristianismo! O que mais? Saindo
quão tardios são estes discursos comenta­ destes incidentes a alma não se dirige ao
dores. Capitólio, mas ao céu. Cia sabe muito bem qual
é a moradia do Deus vivo: dele, com efeito,
Tertuliano,
tirou sua origem.
fípologético, XLVII.
Tertuliano,
fípologético, XVII.
2. fi alma não se dirige ao Capitólio
mas a Deus, 3. Não há semelhança entre o filósofo grego
e é levada instintivamente ao cristianismo e o cristão
Aquele que adoramos é o Deus uno e Alguém objetará que também entre os
único que tirou do nada, para decoro de sua nossos há aqueles que faltam para com as ins­
infinita majestade, toda esta mole imensa do truções da disciplina. Mas lembrai-vos de que
mundo, com o simples comando de sua pala­ estes deixam imediatamente de ser considera­
vra, com o simples explosão de seu gesto inte­ dos cristãos entre nós. Vossos filósofos, ao in­
ligente, com o simples desdobramento de sua vés, tendo na consciência aquela carga de er­
potência, esta mole imensa com todo o equi­ ros, permanecem no número e no decoro da
pamento de seus elementos, de seus organis­ sabedoria.
mos corpóreos, de seu exército espiritual. Não No conjunto, que semelhança se pode
sem razão os gregos aplicaram o qualificativo captar entre o filósofo e o cristão, entre o discí­
específico: o cosmo. Cie é invisível, embora pulo da Grécia e o candidato ao céu, entre o
possamos divisá-lo e percebê-lo. Cie está além traficante da fama terrena e aquele que faz
de toda a nossa compreensão, embora a sen­ questão de vida, entre o vendedor de palavras
sibilidade humana esteja em grau de percebê- e o realizador de obras, entre quem constrói
lo e calculá-lo. Por isso é verdadeiro, embora sobre a rocha e quem destrói, entre quem alte­
sendo tão grande. O que se pode ver, tocar, ra e quem tutela a verdade, entre o ladrão e o
avaliar, é inferior ao olho humano que o perce­ guardião da verdade?
be, às mãos que o contaminam apalpando-o, Tertuliano,
aos sentidos mediante os quais o encontramos. fípologético, XLVII.
O infinito só é conhecido de si mesmo. Deus é
suscetível de compreensão apenas pela sua su­
perioridade a todo compreensão. A extraordi­ 4. A sabedoria é estultice
nária grandeza o torno ao mesmo tempo co­
Cstas são as doutrinas dos homens e dos
nhecido e desconhecido para os humanos. Aqui
demônios, nascidas do espírito da sabedoria
repousa toda a soma de culpabilidade daque­
terrena para aqueles ouvidos que têm o pruri­
les que não o querem reconhecer: a impossibi­
do de ouvi-las. M as o Senhor chamou de
lidade de ignorá-lo.
"estultice" tal sabedoria, e escolheu aquilo que
Quereis que dele demos as provas me­
é estulto para o mundo a fim de confundir tam­
diante suas obras tão numerosas e tão gran­
bém a própria filosofia.1Pois a filosofia é a mo­
diosas, que nos contêm, que nos sustentam,
que nos alegram, que nos aterrorizam? Quereis
que dele tragamos o testemunho do fundo da
própria alma? Cis o voz desta alma. Premida no fo . 1Coríntios 1,27: 3,19.
79
Capitulo quinto - y \ T-bi+ns+ica l a t i d a arv+es d e s cm t o / Vc jo st in h o

téria do sabedoria terrena, intérprete temerá­ privado da possibilidade de senti-las? Disse­


ria da natureza e do disposição divina. Portan­ mos antes que ele teria podido sofrer igual­
to, as próprias heresias são subornadas pela mente bem o ludibrio não real da natividade e
filosofia. [...] da infância imaginário. M as, responde-me
Daqui derivam os mitos e as genealogias agora, assassino da verdade: Deus não foi ver­
intermináveis e as questões estéreis e os dis­ dadeiromente crucificado? Não morreu verda­
cursos que serpenteiam como caranguejo: de­ deiramente, uma vez que verdodeiromente cru­
las nos mantém distantes o apóstolo, decla­ cificado? Não ressuscitou verdodeiromente,
rando explicitomente, quando escreve aos obviamente porque estava verdodeiromente
Colossenses,2 que devemos nos manter em morto?
guarda com a filosofia e sua vã sedução — Por conseguinte, terá errado Paulo, que
"estai atentos para que alguém não vos enga­ sustentava não saber outro coiso o não ser que
ne por meio da filosofia e sua vã sedução, con­ Jesus foro crucificado:4 terá errado por acres­
forme a tradição dos homens" — , em contraste centar que foro sepultado:5 terá errado afirman­
com a providência do Espírito Santo. Paulo e s­ do que tinho ressuscitado?6 falso é, portanto,
tivera em Atenas, e conhecera, graças aos en­ nossa fé, e será um fantasma tudo aquilo que
contros que aí fizera, esta sabedoria humana esperamos de Cristo, Marcião, o mais celerado
que pretende possuir a verdade e a corrompe, entre os homens, tu que desculpas os homici­
também ela de vários modos dividida em suas das de Deus: desses, com efeito, Cristo nada
heresias, ou seja, na variedade de suas seitas teve o sofrer, se nada sofreu na realidade. Pou­
que mutuamente se contrastam. po o única esperanço de todo o mundo: por
Portanto, o que Atenas e Jerusalém têm que destróis o vergonha da fé, que nos é ne­
em comum? O que a Academia e a Igreja cessário? Tudo o que é indigno de Deus é útil
têm em comum? O que os hereges e os cris­ poro mim: estou salvo se não estiver envergo­
tãos têm em, comum? Nossa disciplina vem do nhado a respeito de meu Senhor, que diz: "quem
pórtico de Salomão, o qual ensinara que se se envergonhar de mim, também eu me enver­
devia procurar Deus com simplicidade de cora­ gonharei dele".7
ção. Pensem nisso aqueles que inventaram Não acho que existam outros motivos de
um cristianismo estóico e platônico e dialético. vergonha, os quais, mediante meu desprezo
Não precisamos da curiosidade, depois de Je ­ pelo rubor, possam demonstrar-me que foço
sus Cristo, nem da pesquisa depois do Gvan- bem de ser impudente e que a minha é uma
gelho. Quando cremos, não sentimos neces­ feliz estultice. O filho de Deus foi crucificado:
sidade de crer em outra coisa, uma vez que não me envergonho, uma vez que deveria me
cremos antes isto: não haver motivo de ter de envergonhar. O filho de Deus também foi mor­
crer em outra coisa. to: é sem dúvida crível, pois se trota de umo
Tertuliono, coiso tola. G depois de ser sepultado ressusci­
Sobre o prescrição contra os heréticos, tou: é umo coisa certa, porque é umo coiso im­
7,1-9. possível.

Tertuliono,
5. n fé acima da razão
Sobre a corne d e Cristo,
Há certamente outras coisas igualmente 5,1-4.
estultas, que se referem às ofensas e à paixão
de Deus: do contrário, que estes digam que é
prudência a crucifixão de Deus. Glimina, portan­
to, também isto, Marcião,3 e sobretudo isto. O
que, com efeito, é mais indigno de Deus, o que
merece maior rubor, o nascer ou o morrer, o 2Cf. Colossenses 2,8.
carregar o carne ou o carregar a cruz, o ser cir- 3/\Aordõo (séc. II) se inspirava nos concepções gnós-
cunciso ou o ser traspassado, o ser nutrido ou ticas e rejeitava o Rntigo Testamento e a concepção de
Deus aqui e xp re ssa , em favor da concepção de Deus
o ser sepultado, o ser deposto em uma manje­
como amor exp re ssa no Novo Testamento. Deus havia-
doura ou o ser escondido em um sepulcro? S e ­ se encarnado em Cristo, assum indo um corpo não real,
rás mais sábio se não tiveres crido nem nessas mas a p a r e n t e . Tertuliono, em oposição a e ssa concep­
coisas. Mas não serás sábio se não tiveres sido ção , escre ve u uma obra d e p e so cham ada C o n tra
estulto no meio do mundo, crendo nas coisas M a r c iã o .
4Cf. 1Coríntios 2,2.
estultas de Deus. Jdem , 15,4.
Tolvez não tenhas tirado de Cristo os pai­ 6ldem, 15,16-19.
xões, enquanto, como fantasma, ele estova 7Mateus 10,33.
80
Terceira parte - y \ P a t A s t i c a n a á r e a cul+ ura l d e l í n g u a l a t i n a

Se a justiça vale também na guerra, deve


A m b r ó s io ainda mais ser observada na paz. C tal benefí­
cio o profeta fez àqueles que vieram para
capturá-lo. Com efeito, ao saber que era Cliseu
quem se opunha a todos os seus planos, o rei
da Síria havia mondado seu exército para
assediá-lo. Vendo tal exército, Giezi, servo do
Os deveres profeta, começou a preocupar-se com sua pró­
pria salvação. Mas o profeta lhe disse: "Não
temas, porque os que estão conosco são mais
fímbrósio, bispo de Milão, utilizo vários numerosos dos que os que estão com eles". O
conceitos hlosóhcos deduzidos tonto da tra­ profeta orou para que os olhos de seu servo se
dição platônico quanto do tradição estóico. abrissem, e, depois de abertos, Giezi viu todo
No trecho seguinte reinterpreto em cho­ o monte cheio de cavalos e de carros ao redor
ve cristã a doutrino plotônico do justiço. de Cliseu. Cnquanto os inimigos vinham contra
ele, o profeta disse: “fira o Senhor com a ce­
gueira o exército da Síria". Obtendo a graça,
disse aos Sírios: "Segui-me e eu vos conduzirei
A importância da justiça pode ser enten­ até o homem que procurais". C viram Cliseu, que
dida a partir do fato de que ela não sofre ex­ estavam ansiosos por capturar e, embora ven­
ceções nem de lugares nem de pessoas nem do-o, não podiam dele se apoderar. C claro,
de tempos, mas é garantida também aos inimi­ portanto, que também na guerra é preciso ob­
gos; por isso, se foi combinado com o inimigo o servar a lealdade e que trair a palavra dada
dio ou o lugar para a batalha, considera-se con­ não pode ser um ato de honra.
tra a justiça preveni-lo sobre o lugar ou o tempo. Por fim, também aos inimigos davam um
Há diferença, com efeito, entre o ser pego de nome agradável e os chamavam de "estrangei­
improviso por uma batalha ou por um duro con­ ros"; com efeito, conforme o uso antigo, os e s­
fronto ou depois de umo situação antecedente trangeiros (peregrinos) eram chamados de hós­
favorável ao adversário e a um caso fortuito. pedes (hospes). C podemos dizer que também
Daí que se faz vingança mais áspera contra os este costume foi herdado dos nossos porque
inimigos mais encarniçados, ou seja, contra os os hebreus chamavam seus inimigos de "de
desleais e os que cometeram maiores ofen­ outra raça" (allophglos), ou seja, com a pala­
sas, como no caso dos madianitas que, por vra latina alienígenas [nascidos em outro lu­
meio de suas mulheres, induziram ao pecado gar], Assim, no primeiro livro dos Reis lemos:
muitos do povo hebreu, de modo que também "C aconteceu que naqueles dias gente de ou­
sobre o povo dos pais se derramou a cólera tra raça [filisteus] se reuniram paro combater
de Deus. contra Israel".
C por tal motivo aconteceu que Moisés, O fundamento da justiça é a lealdade, o
obtida a vitória, não deixou sobreviver nenhum coração do justo medita pensamentos de leal­
deles. Quanto aos gabaonitas, que invadiram dade, e o justo que se acusa funda a justiça
o povo dos pais mais com o embuste do que sobre a lealdade, porque sua justiça se mani­
com a guerra, Josué não os aniquilou na bata­ festa quando confessa a verdade. Também o
lha, mas os humilhou impondo-lhes condições Senhor, por boca de Isaías, diz: "Cis: eu coloco
ofensivas. Cliseu, por sua vez, não concordou uma pedra como fundamento para Sião", Isto
com a vontade do rei de Israel de motor os sírios é, Cristo como fundamento da Igreja. Cristo, com
que, no decorrer do assédio, introduzira na ci­ efeito, é a fé de todos; a Igreja é, por assim
dade feridos pela cegueira momentânea, para dizer, a norma da justiça, o direito comum de
que não pudessem ver onde entravam, mos todos: ao mesmo tempo ora, ao mesmo tempo
disse: “Não ferirás aqueles que não capturaste age, ao mesmo tempo é posta à prova. Assim,
com tua lança e tua espada; oferece-lhes pão quem renego a si mesmo, este é digno de Cris­
e águo para que comam e bebam e sejam dei­ to. Também Paulo pôs Cristo como fundamento,
xados livres e se dirijam a seu senhor1'. Agiu de a fim de que sobre ele fundássemos as obras
tal modo para que eles, induzidos por um trata­ de justiça, pois a fé é fundamento; nos obras,
mento humano, se mostrassem gratos. Daí por se más, está a iniqüidade; se boas, a justiça.
diante os piratas da Síria cessaram de invadir a Ambrósio,
terra de Israel. Os deveres.
Ç a p ít u Io s e x to

S a ia ío 7^0osfinko
e o c\pope,u d a P a + rística

I. j A vid a , a e v o l u ç ã o espi^i+ual
e a s o b r a s d e s a u f o yKpostiuKo

• Agostinho (354-430) é o mais importante dos Padres da Igreja. Seu itinerá­


rio espiritual e filosófico foi muito articulado: a mãe Mônica, pela sua firme e
tenaz fé, e o bispo Ambrósio, que lhe ensinou o método da
exegese alegórico-filosófica da Bíblia, tiveram papel decisivo A formação
na sua conversão ao cristianismo. Sua formação cultural foi so- espiritual
bretudo de língua e de inspiração latina, marcada quando mui- e filosófica
to pela retórica, disciplina que Agostinho ensinou na África e ->§7-2
em Milão.
Os modelos culturais que sobre ele influíram foram os seguintes: Cícero, que
o converteu à filosofia; o Maniqueísmo, que influenciou boa parte de sua vida
anterior à conversão e também a posterior, enquanto áspera e prolongada foi sua
polêmica antimaniqueísta; o pensamento neoplatônico (particularmente de Plotino
e de Porfírio), que lhe acrescentou a dimensão do supra-sensível, além, natural­
mente, da Bíblia e particularmente das Cartas de Paulo.
A última parte da vida de Agostinho foi dedicada à luta contra as heresias
dos Donatistas (que não queriam readmitir na comunidade aqueles que tinham
abjurado durante as perseguições) e dos Pelagianos, que não consideravam o pa­
pel da graça divina na salvação.

• A vasta produção literária de Agostinho pode ser dividida do seguinte


modo:
1) obras de caráter filosófico (particularmente todos os diálogos);
2) obras teológicas, entre as quais sobressai A Cidade de Deus;
3) escritos exegéticos e polêmicos, principalmente contra os Maniqueus, os
Pelagianos e os Donatistas.
Confissões, que é a obra mais significativa de Agostinho, A produção
constitui, também no gênero, uma novidade absoluta. -> § 3

1 ;A vida de ter freqüentado as escolas em Tagaste e na


vizinha Madaura, conseguiu ir para Carta-
go, graças à ajuda financeira de um amigo
Aurélio Agostinho nasceu em 354 em de seu pai, para realizar seus estudos de re­
Tagaste, pequena cidade da Numídia, na Áfri­ tórica (370/371). Sua formação cultural re­
ca. Seu pai, Patrício, era pequeno proprietá­ alizou-se inteiramente em língua latina e com
rio de terras, ainda ligado ao paganismo (só base nos autores latinos (só superficialmen­
iria se converter no fim da vida). Já sua mãe, te e não de muito bom grado ele se aproxi­
Mônica, era uma fervorosa cristã. Depois mou do grego). Para ele, Cícero manteve-se
82 Terceira parte - H a f n s + i c a t*\a á r e a c u l t u r a l d e l í n g u a l a t i u a

durante longo tempo como modelo e ponto 2 evolução espiei+ual


de referência essencial.
Na época de Agostinho, o retórico já
perdera seu papel antigo, que, como sabe­ Todas essas fases de sua vida e os acon­
mos, era um papel político e civil, tendo-se tecimentos a elas relacionados, em muitos
tornado essencialmente professor. E, assim, aspectos, mostraram-se decisivas para a for­
Agostinho ensinou primeiro em Tagaste mação espiritual e a evolução do pensamen­
(374) e depois em Cartago (375-383). Mas to filosófico e teológico de Agostinho. Por
a turbulência dos estudantes cartagineses o isso, falaremos com mais pormenores des­
levou a transferir-se para Roma em 384. ses aspectos.
No mesmo ano, passou de Roma para a) A primeira personalidade que inci­
Milão, onde assumiu o cargo de professor diu profundamente sobre a alma de Agos­
oficial de retórica da cidade. Agostinho che­ tinho, sem dúvida, foi a de sua mãe, Mônica
gou a Milão graças ao apoio dos maniqueus, (já a figura de seu pai, Patrício era bastante
dos quais, como veremos, foi seguidor du­ esmaecida e evanescente). Foi ela quem, com
rante certo período. Mas em Milão, entre sua firme fé e seu coerente testemunho cris­
384 e 386, através de profundas reflexões tão, lançou em certo sentido as bases e cons­
espirituais, amadureceu sua conversão ao cris­ truiu as premissas da futura conversão do
tianismo. Conseqüentemente, Agostinho de­ filho, sobre o qual, depois, exerceu estímulo
mitiu-se do cargo de professor oficial e reti­ muito tenaz. Mônica tinha cultura modes­
rou-se para Cassiciaco (na Briância), numa ta, mas possuía a força daquela fé que, na
chácara, onde passou a levar uma vida em religião pregada por Cristo, mostra aos
comum com os amigos, a mãe, o irmão e o humildes as verdades que oculta aos doutos
filho Adeodato. e sábios. Assim, as verdades de Cristo vis­
Em 387, Agostinho recebeu o batismo tas através da forte fé de sua mãe constituí­
do bispo Ambrósio (que desempenhou um ram o ponto de partida da evolução de
papel não desprezível, ainda que indireto, Agostinho, embora por diversos anos ele
em sua conversão) e deixou Milão para re­ não aceitasse a religião cristã católica e con­
tornar à África. No caminho de volta, em Ós- tinuasse a procurar sua identidade em ou­
tia, morreu sua mãe, Mônica. Agostinho só tras partes.
conseguiu voltar à África em 388, porque b) O segundo encontro fundamental
Máximo havia usurpado o poder naquela foi com o Ortensio, de Cícero, obra que
região e a viagem se tornara perigosa. Nes­ converteu Agostinho à filosofia quando es­
se meio tempo, esteve em Roma, onde per­ tudava em Cartago. Nesse escrito, Cícero
maneceu durante quase um ano. defendia um conceito de filosofia enten­
Voltando finalmente a Tagaste, vendeu dida de modo tipicamente helenístico,
os bens paternos e fundou uma comunida­ como sabedoria e arte de viver que traz a
de religiosa, logo adquirindo grande noto­ felicidade. Agostinho escreveria depois
riedade pela santidade de sua vida. Em 391, nas Confissões: “ Na verdade, aquele livro
quando se encontrava em Hipona, foi orde­ mudou meus sentimentos e tornou até di­
nado sacerdote pelo bispo Valério, sob pres­ ferentes minhas preces (...) e diferentes
são dos fiéis. Em Hipona, ele ajudou Valério, meus votos e meus desejos. De repente,
sobretudo na pregação, e fundou um mos­ toda esperança humana tornou-se-me vil
teiro, onde se reuniram velhos e fiéis ami­ e eu proclamava a sabedoria imortal com
gos, aos quais se uniram novos adeptos. incrível ardor de espírito” . O ardor desper­
Em 395, foi consagrado bispo. E, no tado pelo Ortensio, entretanto, era atenu­
ano seguinte, com a morte de Valério, Agos­ ado pelo fato de que nele Agostinho não
tinho tornou-se bispo titular. Na pequena encontrava o nome de Cristo. Escreve ele:
cidade de Hipona, travou grandes batalhas “ Pois esse nome (...) meu coração ainda
contra cismáticos e heréticos, nela escreven­ tenro havia bebido piamente junto com
do também seus livros mais importantes. o leite materno e o conservava profun­
Daquela pequena localidade africana, com damente esculpido. E tudo o que estivesse
seu pensamento e sua obra tenaz, determi­ sem esse nome, por mais que fosse litera-
nou uma reviravolta decisiva na história da riamente límpido e verdadeiro, não me
Igreja e do pensamento do Ocidente. Mor­ conquistava de todo” . Agostinho voltou-
reu em 430, enquanto os vândalos sitiavam se então para a Bíblia, mas não a enten­
a cidade. deu. O estilo com o qual estava redigida,
Capitulo Sexto - S a n f o ;A g o stm k o e a a p o g e u d a D a + n stica
83

tão diverso do estilo rico em refinamento buir o pecado ao livre-arbítrio do homem,


da prosa ciceroniana, e o modo antropo­ mas sim ao princípio universal do mal que
lógico com que parecia falar de Deus, ve­ atua também em nós. Escreve Agostinho:
laram sua compreensão, constituindo blo­ “Pretendem que a concupiscência da carne
queio insuperável. (...) seja uma substância contrária (...) e que
c) duas almas e duas inteligências, uma boa e
Aos dezenove anos (373), Agostinho
abraçou o maniqueísmo, que parecia ofere­ a outra má, lutam entre si no homem, ser
cer-lhe ao mesmo tempo uma doutrina de único, quando a carne tem desejos contrários
salvação em nível racional e um espaço tam­ ao espírito e o espírito desejos contrários à
bém para Cristo. O maniqueísmo, uma re­ carne” . É evidente que o “ racionalismo”
ligião herética fundada pelo persa Mani no dessa heresia está na eliminação da necessi­
século III, implicava: dade da fé, muito mais do que na explica­
1) um vivo racionalismo; ção de toda a realidade pela pura razão.
2 ) um marcado materialismo; Mani era oriental e, como tal, abria amplo
3) um dualismo radical na concepção espaço para a fantasia e a imaginação. As­
do bem e do mal, entendidos não apenas sim, sua doutrina revela-se mais próxima das
como princípios morais, mas também como teosofias do Oriente do que da filosofia dos
princípios ontológicos e cósmicos. gregos. Agostinho, consequentemente, logo
Eis alguns trechos do escrito Sobre as foi colhido por muitas dúvidas. Um encon­
heresias, de Agostinho, que ilustram alguns tro com o bispo maniqueu, Fausto, conven­
pontos destacados dessa religião. Os mani- ceu-o da insustentabilidade da doutrina
queístas, escreve Agostinho, afirmaram “ a maniqueísta. Com efeito, Fausto, que era
existência de dois princípios diversos e ad­ considerado como a maior autoridade da
versos entre si, mas, ao mesmo tempo, eter­ seita naquele momento, não esteve em con­
nos e coeternos (...) e, seguindo outros he­ dições de resolver nenhuma das dúvidas de
réticos antigos, imaginaram duas naturezas Agostinho, inclusive admitindo-o sincera­
e substâncias, a do bem e a do mal. Segun­ mente.
do seus dogmas, afirmam que essas duas d) Já em 383/384 Agostinho se afas­
substâncias estão em luta e mescladas entre tava interiormente do maniqueísmo, sen­
si” . Como relata ainda Agostinho, a dou­ do tentado a abraçar a filosofia da Academia
trina maniqueísta apresentava as formas cética, segundo a qual o homem deve du­
como o bem se purifica do mal fazendo vidar de tudo, porque não pode ter conhe­
amplo uso de narrações fantásticas. O bem cimento certo de nada, como já vimos acima.
é a luz, o sol e a lua são os barquinhos que Mas, outra vez, não se sentiu em condições
levam a Deus a luz esparsa em todo o mun­ de seguir os céticos porque em seus escri­
do e misturada ao princípio oposto. A puri­ tos não encontrava o nome de Cristo. En­
ficação do mal pelo bem realiza-se também tretanto, do maniqueísmo ainda guardava
por obra da classe dos homens “ eleitos” , o materialismo, que lhe parecia o único mo­
que, juntamente com a classe dos “ ouvin­ do possível de entender a realidade, e o dua­
tes” , constituía a sua Igreja. Os eleitos puri­ lismo, que lhe parecia explicar os fortes
ficavam o bem não só com uma vida pura conflitos entre bem e mal que sentia em seu
(castidade e renúncia à família), mas tam­ espírito.
bém abstendo-se dos trabalhos materiais e e) Os encontros decisivos de Agostinho
seguindo uma alimentação especial. Os “ou­ deram-se em Milão:
vintes” , que viviam uma vida menos perfei­ 1) do bispo Ambrósio, aprendeu o mo­
ta, eram, em compensação, aqueles que for­ do correto de abordar a Bíblia, que, conse-
neciam o que era necessário para a vida dos qúentemente, tornou-se-lhe inteligível;
“ eleitos” . Para os maniqueístas, Cristo foi 2 ) a leitura dos livros dos neoplatônicos
revestido somente de carne aparente e, por­ revelou-lhe a realidade do imaterial e a não-
tanto, também foram aparentes a sua mor­ realidade do mal;
te e ressurreição. Moisés não foi inspirado 3) lendo são Paulo, por fim, apreen­
por Deus, mas era um dos príncipes das tre­ deu o sentido da fé, da graça e do Cristo
vas, razão pela qual se devia rejeitar o Anti­ redentor. Os antigos elos, que por tanto tem­
go Testamento. A promessa do Espírito San­ po o haviam mantido preso, romperam-se
to feita por Cristo ter-se-ia realizado em definitivamente.
Mani. Em seu dualismo extremo, os mani­ Dada a importância desses encontros,
queístas chegavam até mesmo a não atri­ é necessário precisar alguns detalhes.
84 Terceira parte - y\ P a t r í s h c a n a á n e .a c u l t u r a l d e líi latm a

1) Inicialmente Agostinho ouviu Am- f) A última fase da vida de Agostinho


brósio com interesse profissional, isto é, foi caracterizada pelos debates polêmicos
como um retórico que ouve outro retórico. e pelas batalhas contra os heréticos. A po­
Mas, como escreve ele nas Confissões, “ en­ lêmica contra os maniqueístas perdurou até
quanto abria o coração para acolher a elo- 404. Posteriormente, Agostinho esteve em­
qüência, nele entrava, ao mesmo tempo, penhado predominantemente contra os do-
também a verdade, mas só pouco a pouco natistas, que defendiam a necessidade de
(...): especialmente depois que o ouvi expor não readmitir na comunidade cristã todos
e freqüentemente resolver passagens obscu­ aqueles que, durante as perseguições, ha­
ras da antiga Escritura, que eu entendia ao viam cedido aos perseguidores, apostatan-
pé da letra, permanecendo sem saída” . A do ou sacrificando aos ídolos, sustentando
partir daí, o repúdio maniqueísta ao Antigo conseqúentemente a não validade dos sa­
Testamento já lhe parecia injustificado e in­ cramentos administrados por bispos ou pa­
fundado. E mais, ele ainda escreve: “ Se eu dres que houvessem incorrido em tais cul­
conseguisse pensar uma substância espiri­ pas. Agostinho compreendeu muito bem
tual, todas as complicadas construções dos que o erro de Donato e de seus seguidores
maniqueus se desmantelariam” . consistia em fazer a validade do sacramen­
2) Plotino e Porfírio, que Agostinho leu to depender da pureza do ministro e não
na tradução de M. Vitorino, sugeriram-lhe da graça de Deus. Na conferência de bis­
finalmente a solução das dificuldades onto- pos realizada em Cartago em 411, Agosti­
lógico-metafísicas em que se encontrava en­ nho colheu os frutos de sua polêmica com
volvido. Além da concepção do incorpóreo clara vitória. A partir de 412, Agostinho
e da demonstração de que o mal não é subs­ polemizou particularmente com Pelágio e
tância, mas simples privação, Agostinho seus seguidores, que sustentavam que a boa
também encontrou nos Platônicos muitas vontade e as obras eram suficientes para a
tangências com a Escritura, mas, ainda ou­ salvação do homem, desprezando a neces­
tra vez, neles não encontrou um ponto es­ sidade da graça. Em uma série de obras,
sencial, ou seja, que Cristo morreu para a santo Agostinho mostrou que a revelação
remissão dos pecados dos homens: “ isso não cristã gira essencialmente em torno da ne­
se lê neles” , escreveu. cessidade da graça, ao contrário do que os
3) Agostinho não podia encontrar em pelagianos acreditavam. Sua tese triunfou
nenhum dos filósofos a verdade do Cristo no Concilio de Cartago de 417, e o papa
crucificado para a remissão dos pecados dos Zósimo condenou o pelagianismo. A tese
homens porque, segundo a doutrina cris­ de Pelágio estava em sintonia substancial
tã, como já recordamos, Deus quis mantê- com as convicções dos gregos sobre a autar­
la oculta aos sábios para revelá-la aos hu­ quia da vida moral do homem, enquanto a
mildes, sendo, portanto, uma verdade que, tese de Agostinho era de que o cristianis­
para ser adquirida, requer uma revolução mo subvertia aquela convicção. Escreve
interior, não de razão, mas de fé. E Cristo com razão M. Pohlenz: “ O fato de a Igreja
crucificado é precisamente o caminho para ter-se pronunciado por tal doutrina assi­
operar essa revolução interior. E sobretu­ nalou o fim da ética pagã e de toda a filo­
do com Paulo que Agostinho aprende isso, sofia helênica — e assim começou a Idade
como ele próprio nos diz nas Confissões: M édia” .
“ Uma coisa é vislumbrar a pátria da paz
do cume de um monte cercado pelo bos­
que, não encontrar o caminho que leva a
ela e cansar-se inutilmente por lugares im­ 3 ;As obras
praticáveis, cercados e infestados por de­
sertores fugitivos (...); outra coisa, porém,
é encontrar-se no bom caminho, tornado A produção literária de Agostinho é
seguro pela solicitude do imperador celes­ imensa. Recordaremos somente as obras
te, livre dos assassinos que desertaram da principais.
milícia celeste, os quais o evitam como se a) O período de Cassiciaco caracteriza-
fosse um suplício. Essas verdades penetra­ se pelos escritos de caráter predominantemen­
vam em mim de modo maravilhoso quan­ te filosófico: Contra os acadêmicos, A vida
do eu lia as páginas do ‘menor’ dos teus feliz, A ordem, Os solilóquios, A imortalida­
apóstolos ”. de da alma (este último escrito em Milão). A
Capítulo SCXtO - S a n t o ;A e jo s+ in ko e o a p o q f u d a D a + n s t i c a
85

quantidade da alma, escrito em Roma, é de


388. EmTagaste (388-391) foram compos­
tas as obras O mestre e A música. Trata-se
de escritos próximos aos de Cassiciaco.
b) Sua obra-prima dogmático-filosófi-
co-teológica é A Trindade (399-419).
c) Sua obra-prima apologética é A Ci­
dade de Deus (413-427).
d) Os escritos exegéticos de maior des­
taque são: A doutrina cristã (396-426), os
Comentários literais ao Gênesis (401-414),
os Comentários a João (414-417) e os Co­
mentários aos Salmos.
e) Das obras contra os maniqueístas,
podemos recordar: Sobre os costumes da
Igreja católica e os costumes dos maniqueus
(388-389), Sobre o livre-arbítrio (388 e 391/
395), A verdadeira religião (390) e Sobre o
Gênesis contra os maniqueus (398).
f) Dentre os escritos contra os donatis-
tas, recordamos: Contra a carta de Parme-
niano (400), Sobre o batismo contra os
donatistas (401) e Contra Gaudêncio, bis­
po dos donatistas (419/420).
g) Fazem parte dos escritos polêmicos
antipelagianos: O espírito e a letra (412),
Sobre a gesta de Pelágio (417) e A graça de
Cristo e o pecado original (418).
h) Duas obras inauguraram gêneros li­
terários novos: as Confissões (397), que são
verdadeira obra-prima também do ponto
de vista literário, e as Retratações (426/
427), em que Agostinho reexamina e retifi­
ca algumas teses contidas em sua produ­
ção anterior, que não estavam ou não lhe
pareciam perfeitamente alinhadas com a fé
cristã.

Santo Agostinho,
painel de Miehael Pacher (1440-149S).
Munique, Alie Pinakothek.
86 TcVCSÍfÚ püTt6 - " P a tW s + ic a na á i* e a c u l t u r a l d e !ír\ 0 u a la t in a

II. F é , fil oso-pa e v i d a


n o p e n s a m e n t o d e ^AgosfimKo

Crer • Agostinho foi o primeiro pensador cristão a atuar uma


e compreender síntese madura entre fé, filosofia e vida, considerando que a
-+§1 fé teria recebido clareza da razão, mas também que a razão
teria ganho estímulo e impulso da fé (credo ut intelligam,
intelligo ut credam).

• O que leva Agostinho para além dos horizontes da Grécia é a referência


ao homem, não porém ao homem abstrato e geral, pelo qual também os gregos
se interessavam, mas ao indivíduo, ao eu singular, à pessoa. O
Do homem conceito de pessoa é elaborado por Agostinho sobre a base
em geral à pessoa do papel da vontade: de resto, nos esforços da conversão,
-> § 2 tomava-se freqüentemente agudíssima e dramática justamen­
te a percepção da vontade e da liberdade do homem. Apro­
fundando esse conceito, Agostinho viu na pessoa o reflexo de Deus Trindade nos
modos do ser, do conhecer e do amar.

• O conhecer tende à verdade e a verdade se identifica com Deus; a conse-


qüência é que a maior parte das demonstrações agostinianas da existência de
Deus são demonstrações da existência da verdade. Como é pos­
A iluminação sível que nós formemos conceitos imutáveis, se tudo está em
-+§3 devir? Não é talvez porque existem verdades imutáveis que
determinam o conhecer, e são para nós critério de julgamen­
to? Agostinho, todavia, não aceita in toto a gnosiologia platônica, mas recusa sua
teoria da reminiscência, substituindo-a com a da iluminação: Deus, como na cria­
ção nos torna participantes do ser, também nos torna participantes da verdade,
sendo ele próprio a fonte da verdade.

As provas
• A essa prova da existência de Deus como Verdade se acres­
da existência centam outras, sem dúvida retomadas pela bagagem da teolo­
de Deus gia clássica: a que da perfeição do mundo remonta ao seu Ar­
tífice divino; a baseada sobre o consensus gentium; a ex
gradibus, ou seja, que remonta dos diversos graus de bem pre­
sentes no mundo ao Bem em si.

Características • Dessas provas deriva uma concepção de Deus entendido


filosóficas como Ser, Verdade, Bem em forma absolutamente eminente,
de Deus que se pode exprimir tanto nas formas da teologia negativa,
-»4 quanto na atribuição a ele de tudo o que existe de positivo no
criado, sem os limites do negativo.

• A concepção filosófica de Deus deve ser integrada com o problema teológi­


co por excelência do cristianismo, ou seja, o dogma da Trindade.
Agostinho afirmou a identidade substancial das três Pes­
soas. Isso significa que Deus, em sentido absoluto, é tanto o Pai
A Trindade como o Filho e como o Espírito Santo, e que eles são inseparáveis
55 no ser e operam inseparavelmente. Todavia, essas três Pessoas
são distintas, não do ponto de vista da substância, mas do da
relação, pelo que o Pai tem o Filho, mas não é o Filho, e o Filho tem o Pai, mas não
é o Pai, e o mesmo vale para o Espírito Santo.
Capitulo S6XÍO - S c m + o j A g o s t m k o e o a p o g e .1 4 d a P a + f í s + i c a
87

• Um ponto que claramente se destaca da filosofia grega se encontra na dou­


trina da criação ex nihilo. A criação pode ser:
1) uma geração, e neste caso o gerado deriva da substân- a criação ex nihilo
cia do gerador; -Ȥ 6
2 ) uma fabricação, e então o gerado deriva de uma maté­
ria externa ao gerador;
3) do nada, onde o gerado não vem nem da substância do gerador nem da
matéria externa. A criação ex nihilo implica um conceito de graça absoluto (o
homem depende in toto de Deus).

• No ato criador desenvolvem papel determinante as Idéias, entendidas do


modo médio-platônico como pensamentos de Deus, isto é, concebidas como o
modelo ideal do mundo. Isso não implica que o mundo tenha
nascido já perfeitamente formado: no momento da criação, Idéias
Deus produz apenas as sementes, as "razões seminais" de to­ e razões seminais
das as coisas, as quais têm necessidade de tempo para gerar -^ § 7
aquilo que é inerente à sua natureza.

• O tempo é diverso do eterno: a natureza do tempo, com


efeito, explica-se em relação à alma, que conserva o passado e
antecipa o futuro. O tempo como
distensio animae
Do ponto de vista ontológico, o tempo, portanto, não sub­
->§8
siste: ele existe apenas como memória, intuição e antecipação
na alma.
• Agostinho considera o problema do mal segundo três pontos de vista.
Do ponto de vista metafísico, o mal não existe, mas existem apenas graus infe­
riores de ser em relação a Deus, Sumo Bem.
Do ponto de vista moral, o mal nasce da vontade má que, O mal § 9
em vez de tender ao Sumo Bem, tende a bens inferiores.
O mal físico é uma conseqüência do pecado original e todavia pode ter um
significado catártico em vista da salvação.

• A temática do mal moral põe em primeiro plano o con­


ceito de voluntas, que Agostinho considera como autônoma
A vontade
em relação à razão. A razão conhece e a vontade escolhe, e e a graça
pode escolher também contra a razão. Todavia, a vontade al­ ->§10
cança sua perfeição e sua plena liberdade quando não faz o
mal, mas nisso tem necessidade da graça.

• A concepção agostiniana da história explica-se com a relação entre duas


Cidades, que derivam de dois "amores" contrapostos: o amor de si (cupiditas),
que é princípio do mal, e o amor de Deus (charitas), que é prin­
CÍpio do bem. a Cidade terrena
O conjunto dos homens que amam a Deus forma a Cidade e a Cidade divina
celeste e, ao contrário, o conjunto dos homens que amam a si —>§77
mesmos ou ao mundo forma a Cidade terrena.
Tanto o cidadão da Cidade celeste como o da Cidade terrena ocupam a terra,
mas o primeiro a ocupa como peregrino,'enquanto o segundo como um domina­
dor. A história tem um andam ento linear: tem uma meta final (o juízo univer­
sal), em que o cidadão terreno destina-se à danação, enquanto o cidadão celes­
te à salvação.

• Nas vicissitudes do homem e do mundo, a categoria predominante e abso­


luta não é mais a do saber, como queriam os gregos, mas a do amor: a ordo
amoris é o principal critério de referência; a consistência on-
tológica e moral do homem depende do grau e do peso de A ordo amoris
seu amor. -^§12
88 Terceira parte - y\ "P a +n s+ ica n a á»*ea c u l t u r a l d e l í n g u a l a t m a

1 O fil elimina a inteligência; pelo contrário, como


i osofcxv-
i n a fe
i já acenamos, a fé estimula e promove a inte­
ligência. A fé é um “cogitare cum assensio-
ne ”, um modo de pensar assentindo; por isso,
Plotino mudou o modo de pensar de
sem pensamento não haveria fé. E analoga­
Agostinho, oferecendo-lhe as novas cate­
gorias que iriam romper os esquemas do mente, por seu turno, a inteligência não eli­
mina a fé, mas a fortalece e, de certo modo,
seu materialismo e de sua concepção mani-
a clarifica. Em suma: fé e razão são comple­
queísta da realidade substancial do mal.
mentares. O “credo quia absurdum” é uma
Então, todo o universo e o homem apare­
postura espiritual inteiramente estranha a
ceram-lhe sob nova luz. Mas a conversão e
a fé em Cristo e em sua Igreja mudaram Agostinho.
Desse modo, nasce aquela posição que,
também o modo de viver de Agostinho,
mais tarde, seria resumida nas fórmulas “cre­
abrindo-lhe novos horizontes para seu pró­
do ut intelligam” e "intelligo ut credam”,
prio pensar. A fé tornou-se substância de vida
fórmulas que, de resto, o próprio Agostinho
e pensamento e, assim, tornou-se não só o
antecipou na substância e em parte na for­
horizonte de sua vida, mas também de seu
ma. A origem dessas fórmulas encontra-se
pensamento. E, estimulado e comprovado
pela fé, seu pensamento adquiriu nova esta­ em Isaías (Is 7,9, na versão grega dos Se­
tura e nova essência. Nascia o filosofar-na- tenta), onde se lê “ se não tiverdes fé, não
fé, nascia a “ filosofia cristã” , amplamente podereis entender” , ao que, em Agostinho,
corresponde a precisa afirmação: “intellectus
preparada pelos Padres gregos, mas que só
iria chegar ao perfeito amadurecimento merces est fidei”, “ a inteligência é recom­
com Agostinho. pensa da fé” . Esta é a posição que Agos­
A conversão, com a conseqiiente con­ tinho assumira desde sua primeira obra de
Cassiciaco, Contra os acadêmicos, que per­
quista da fé, foi, com efeito, o eixo em tor­
manece como a marca mais autêntica do
no do qual passou a girar todo o pensamen­
seu filosofar: o homem olha para o que é
to de Agostinho — e, portanto, constitui o
verdadeiro tanto com a fé como com a inte­
caminho de acesso para a sua compreensão.
ligência.
Será que se trata de uma forma de fi-
Platão, notemos, já compreendera
deísmo? Não, Agostinho está bem distante
que a plenitude da inteligência, no que se
do fideísmo, que não deixa de ser uma for­
refere às verdades últimas, só podia se rea­
ma de irracionalismo. A fé não substitui nem
lizar através de uma revelação divina, escre­
vendo o seguinte: “ Tratando-se dessas ver­
dades, é impossível deixar de fazer uma
destas coisas: aprender dos outros qual é a
verdade, descobri-la por si mesmo ou en­
tão, se isso for impossível, aceitar, dentre
os raciocínios humanos, o melhor e menos
fácil de refutar e sobre ele, como sobre uma
■ Fé e razão. O problema do equilí­
jangada, enfrentar o risco da travessia do
brio entre fé e razão é constante no
arco do pensamento medieval. mar da vida.” E havia acrescentado, profe­
A solução de Agostinho, para usar ticamente: “ A menos que não se possa fa­
uma expressão da teoria gnosiológica zer a viagem de modo mais seguro e com
moderna, é um "círculo hermenêu­ menor risco, sobre uma nave mais sólida,
tico": este significa que todo conhe­ isto é, confiando-se a uma revelação di­
cimento pressupõe pré-conhecimen- vina” .
tos apreendidos por outro caminho, Para Agostinho essa nave é o "lignum
que podem depois ser confirmados, crucis”, ou seja, Cristo crucificado. Diz ele:
desmentidos ou modificados.
A fé é, portanto, um pré-conhecimen-
Cristo “ pretendeu que passássemos atra­
to em relação à razão (credo utintelli- vés dele” . E mais: “ Ninguém pode atraves­
gam); mas a razão depois pode e deve sar o mar do século se não for carregado
transpor criticamente as verdades de pela cruz de Cristo” . Nisso consiste preci­
fé (intelligo ut credam). samente o “ filosofar na fé” , ou seja, a “ fi­
losofia cristã” : uma mensagem que mudou
por mais de um milênio o pensamento oci­
dental. 11 | 2
Cãpítulo S6XtO - S a n t o yNgostipvko e o a p o g e u d a "Pa +ns+ica
89

2 ;A descoberta da pessoa gou a responder a Amélio, que solicitava seu


consentimento para que lhe fizesse o retra­
e a metafísica
to: ‘Não basta arrastar este simulacro com
da interioridade o qual a natureza quis nos revestir: vós pre­
tendeis ainda que eu permita deixar uma
imagem mais durável desse simulacro, como
“ E dizer que os homens vão admirar se fosse algo que verdadeiramente valha a
as encostas das montanhas, os vastos flu­ pena ver?’ ” . Agostinho, ao contrário, fala
xos do mar, as amplas correntes dos rios, a continuamente de si mesmo. E sua obra-pri­
extensão do oceano, o girar dos astros, e ma são exatamente as Confissões, nas quais
abandonam a si mesmos” . Essas palavras não só fala amplamente dos seus pais, de
de Agostinho, que podem ser lidas nas Con­ sua terra, das pessoas que lhe eram caras,
fissões (e que tanta impressão iriam causar mas também põe a nu seu espírito em todos
inclusive em Petrarca), constituem verdadei­ os seus mais recônditos cantos e em todas
ro problema. O verdadeiro grande proble­ as tensões íntimas de sua “vontade” . E mais:
ma não é o do cosmo, mas o do homem. O é precisam ente nas tensões íntim as e
verdadeiro mistério não é o mundo, mas nós lacerações de sua vontade, posta em con­
para nós mesmos: “ Que profundo mistério fronto com a vontade de Deus, que Agosti­
é o homem! E, no entanto, tu, Senhor, co­ nho descobre o eu, a personalidade huma­
nheces até o número dos seus cabelos, que na, em um sentido inédito: “ Quando eu
em ti não sofrem redução. E, entretanto, é estava decidindo servir inteiramente ao Se­
mais fácil contar os cabelos dele do que os nhor meu Deus, como havia estabelecido há
afetos e os movimentos de seu coração” . muito, era eu que queria e eu que não que­
Mas Agostinho não propõe o proble­ ria: era exatamente eu que nem o queria ple­
ma do homem em abstrato, ou seja, o pro­ namente, nem o rejeitava plenamente. Por
blema da essência do homem em geral: o isso, lutava comigo mesmo e dilacerava-me
que ele propõe é o problema mais concreto a mim mesmo [...]” .
do eu, do homem como indivíduo irrepe- Estamos doravante bem distantes do
tível, como pessoa, como indivíduo, poder- intelectualismo grego, que só havia deixa­
se-ia dizer com terminologia posterior. Nes­ do um escasso espaço para a “vontade” .
se sentido, o problema de seu eu e o de sua Assim, é a problemática religiosa, o
pessoa tornam-se significativos: “ eu próprio confronto da vontade humana com a von­
me tornara um grande problema (magna tade divina, que leva à descoberta do eu
quaestio) para mim” ; “ eu não compreendo como pessoa.
tudo o que sou” . Como pessoa, Agostinho Na verdade, Agostinho vale-se ainda
torna-se protagonista de sua filosofia: ao também de fórmulas gregas para definir o
mesmo tempo observante e observado. homem, particularmente a fórmula de gê­
Uma comparação com o filósofo gre­ nese socrática que se tornou famosa com o
go a ele mais caro e mais próximo pode nos Alcibíades de Platão, segundo a qual o ho­
mostrar a grande novidade dessa atitude. mem “ é uma alma que se serve de um cor­
Embora pregue a necessidade de nos reti­ po” . Nele, porém, tanto o conceito de alma
rarmos das coisas exteriores para o interior como o de corpo assumem novo significa­
de nós mesmos, na alma, para encontrar a do em virtude do conceito de criação (de que
verdade, Plotino fala da alma e da interio- falaremos adiante), do dogma da “ressur­
ridade do homem em abstrato, ou melhor, reição” e, sobretudo, do dogma da encar­
em geral, despojando rigorosamente a alma nação de Cristo. O corpo torna-se algo bem
de sua individualidade e ignorando a ques­ mais importante do que aquele “vão simu­
tão concreta da personalidade. Plotino não lacro” de que Plotino se envergonhava, co­
apenas nunca falou de si mesmo em sua pró­ mo vimos acima.
pria obra, mas também não queria falar nem Mas a novidade está sobretudo no fato
aos amigos. Escreve Porfírio: “ Plotino (...) de que, para Agostinho, o homem interior é
tinha o aspecto de alguém que se envergo­ imagem de Deus e da Trindade. E a proble­
nha de estar em um corpo. Em virtude des­ mática da Trindade, centrada precisamente
sa disposição de espírito, tinha reservas para nas três pessoas e em sua unidade substan­
falar de seu nascimento, de seus pais, de sua cial e, portanto, na temática específica da
pátria. Desdenhava a tal ponto sujeitar-se a pessoa, mudaria radicalmente a concepção
posar para um pintor ou escultor que che­ do eu, que, à medida que reflete as três pes­
90 Terceira parte - y \ D a + n s t i c a n a á ^ e a cul+u^al d e l í n g u a l a t i n a

soas da Trindade e sua unidade, torna-se ele os objetivos específicos a que visa sejam di­
próprio pessoa. E Agostinho encontra no ferentes dos de Descartes.
homem toda uma série de tríades, que refle­ Mais globalmente, Agostinho interpre­
tem de vários modos a Trindade, tendo no ta o processo cognoscitivo do seguinte
vértice a tríade ser, conhecer e amar, que modo:
espelha as três pessoas da Trindade e sua a) Como Plotino já havia ensinado, a
estrutura uno-trina. sensação não é uma alteração sofrida pe­
Assim, Deus se espelha na alma. E la alma. Os objetos sensoriais agem sobre
“ alma” e “Deus” são os pilares da “ filoso­ os sentidos. Essa alteração do corpo não
fia cristã” agostiniana. Não é indagando o escapa à alma, que, conseqüentemente,
mundo, mas escavando a alma que se en­ “ age” , extraindo, não do exterior, mas do
contra Deus. interior de si mesma, a representação do
objeto que é a sensação. Assim, na sensação
o corpo é passivo, ao passo que a alma é
ativa.
3 S A verdade e a iluminação b) Mas a sensação é apenas o primei­
ro degrau do conhecimento. Com efeito, a
alma mostra sua espontaneidade e sua au­
Nessa polaridade alma-Deus, o ponto tonomia em relação às coisas corpóreas à
central é o conceito de “verdade” , ao qual medida que as “ julga” com a razão — e as
Agostinho agregou uma série de outros con­ julga com base em critérios que contêm um
ceitos fundamentais. Uma passagem conti­ “algo m ais” em relação aos objetos corpó-
da em A verdadeira religião, que se tornou reos. Estes, com efeito, são mutáveis e im­
muito célebre, ilustra perfeitamente essa fun­ perfeitos, ao passo que os critérios segun­
ção do conceito de verdade: “ Não busques do os quais a alma julga são imutáveis e
fora de ti (...); entra em ti mesmo. A verda­ perfeitos. E isso se mostra de modo mais
de está no homem interior. E, se descobrires evidente quando julgamos os objetos sen­
que a tua natureza é mutável, transcende-te síveis em função de conceitos matemáticos
a ti mesmo. Lembra-te, porém, que, trans­ ou geométricos, ou mesmo estéticos, ou
cendendo a ti mesmo, estás transcendendo quando julgamos as ações em função de
a alma que raciocina, de modo que o termo parâmetros éticos. Os conceitos matemáti-
da transcendência deve ser o princípio onde co-geométricos que aplicamos aos objetos
se acende o próprio lume da razão. E, efeti­ são necessários, imutáveis e eternos, ao
vamente, onde chega todo bom raciocinador passo que os objetos são contingentes,
senão à verdade? À verdade não é algo que mutáveis e corruptíveis. O mesmo vale para
se constrói à medida que o raciocínio avan­ os conceitos de unidade e proporção, que
ça; ao contrário, ela é aquilo a que tendem aplicamos aos objetos quando os avalia­
os que raciocinam. Vês aqui uma harmonia mos esteticamente.
que não tem similares, e tu próprio confor­ c) Surge, então, o problema: de onde
me a ela. Reconhece que não és aquilo que a alma deriva esses critérios de conhecimen­
a verdade é; a verdade não busca a si pró­ to com que julga as coisas e que são su­
pria, mas és tu que a alcanças, procurando- periores às coisas? Será que ela mesma os
a, não de lugar em lugar, mas com o afeto produz? Certamente não, porque, mesmo
da mente, para que o homem interior se sendo superior aos objetos físicos, ela pró­
encontre com aquilo que nele habita com de­ pria é mutável, ao passo que tais crité­
sejo não ínfimo e carnal, mas com sumo e rios são imutáveis e necessários. Por isso, é
espiritual desejo” . necessário concluir que, acima de nossa
Mas vejamos melhor como o homem mente, existe um critério ou uma Lei que
chega à verdade. se chama Verdade, e que, portanto, existe
A argumentação mais conhecida é a uma natureza imutável, superior à alma hu­
seguinte. À dúvida cética derruba a si mes­ mana.
ma, pois, no momento em que pretende ne­ O intelecto humano, portanto, encon­
gar a verdade, a reafirma: si fallor, sum; se tra a verdade como “ objeto” superior a ele,
duvido, precisamente por poder duvidar, com ela julga, mas por ela é julgado. A
existo e estou certo de pensar. Com essa ar­ verdade é a medida de todas as coisas e o
gumentação, Agostinho sem dúvida anteci­ próprio intelecto é “ medido” em relação
pou o cartesiano cogito, ergo sum, embora a ela.
Capitulo SCXtO - Sar v+o ^ A g o s t i n h o e o a p o g e u d a 1 -V \ fn s ti c a
91

transformada com base no criacionismo e a


similitude da luz é aquela já usada por Platão
em A República, conjugada com a da luz de
■ Ilum inação. A doutrina de Agosti­ que falam as Sagradas Escrituras. Da mes­
nho sobre a iluminação substitui a ma forma que Deus, que é puro Ser, com a
doutrina platônica da anamnese ou criação transmite o ser às outras coisas, as­
reminiscência. sim, analogamente, enquanto é Verdade,
Para Platão, as almas humanas con­
templaram as Idéias antes de encarnar- transmite às mentes a capacidade de co­
se nos corpos, e depois se recordam nhecer a Verdade, produzindo uma metafí­
delas na experiência concreta. sica marcada pela própria Verdade nas men­
Para Agostinho, ao contrário, a supre­ tes. Deus nos cria como Ser, nos ilumina
ma Verdade de Deus é uma espécie como Verdade, nos atrai e nos dá a paz como
de luz que ilumina a mente humana Amor.
no ato do conhecimento, permitindo- Devemos destacar ainda um último
lhe captar as Idéias, entendidas como ponto. Agostinho insiste no fato de que só
as verdades eternas e inteligíveis pre­
sentes na própria mente divina.
a mens, a parte mais elevada da alma, che­
ga ao conhecimento das Idéias. E diz mais:
para essa visão, “não é toda e qualquer alma
que é apta, mas somente aquela que é san­
ta e pura, ou seja, aquela que tem o olho
santo, puro e sereno com o qual pretende
ver as Idéias, de modo que seja semelhan­
d) Essa verdade que captamos comteo às próprias Idéias” . Trata-se do antigo
puro “ intelecto” é constituída pelas Idéias, tema da “ purificação” e da “ assimilação”
que são rationes intelligibiles incorporales- ao divino como condição de acesso ao Ver­
que rationes, as supremas realidades inteli­ dadeiro, que fora desenvolvido sobretudo
gíveis. Agostinho sabe muito bem que o termo pelos platônicos, mas que em Agostinho re­
“ Idéia” em sentido técnico foi introduzido cebe as valências evangélicas da boa vonta­
por Platão e que a teoria das Idéias é tipica­ de e da pureza de coração. A pureza da al­
mente platônica, mas mostra-se convicto de ma torna-se condição necessária para a
que os filósofos anteriores delas tenham tido visão da Verdade, bem como para a sua
algum conhecimento, porque o valor das fruição. [I]®
Idéias é tal que ninguém pode ser filósofo se
delas não tem conhecimento. As Idéias, diz
Agostinho, são o parâmetro pelo qual toda
coisa é feita. 4 Deus
Entretanto, Agostinho reforma Platão
em dois pontos:
1) faz das Idéias os pensamentos de Deus Alcançando a Verdade, o homem tam­
(como já haviam feito, embora de modos di­ bém alcança Deus — ou estará Deus ain­
ferentes, Fílon, os Medioplatônicos e Plo- da acima da Verdade? Agostinho entende
tino); “Verdade” em muitos significados. Quan­
2 ) rejeita a doutrina da reminiscência, do a entende em seu significado mais forte,
ou melhor, ele a repensa ex novo. ou seja, como Verdade suprema, ela coin­
Sobre o primeiro ponto, devemos des­ cide com Deus: “ Compreende, portanto
tacar que Agostinho transforma a doutrina (...), ó alma, (...) se puderes, que Deus é
da reminiscência na célebre doutrina da “ilu­ Verdade” .
minação” . E essa transformação se impu­ Por conseguinte, a demonstração da
nha no contexto geral do criacionismo, que existência da certeza e da Verdade coincide
está na base da doutrina agostiniana. com a demonstração da existência de Deus.
Os intérpretes tiveram muito trabalho Como os estudiosos já observaram há tem­
para entender essa teoria da “ iluminação” , po, todas as provas que Agostinho fornece
porque, para interpretá-la, referiam-se a da existência de Deus reduzem-se, em últi­
desdobramentos posteriores da doutrina do ma análise, ao esquema das argumentações
conhecimento, introduzindo temas e proble­ acima expostas: primeiro passa-se da exte-
mas estranhos a Agostinho. Na realidade, a rioridade das coisas à interioridade do espí­
doutrina agostiniana é a doutrina platônica rito humano, depois da Verdade que está
92 Terceira parte - y \ í \ \1rísfu< < i\< \ á c e a c ullui't il d e Imcjwa 11. ríiru \

presente no espírito ao Princípio de toda ver­ alma uma luz que não se dissipa no lugar,
dade, que é precisamente Deus. onde ressoa uma voz que o tempo não rou­
Mas também há em Agostinho outros ba, onde exala um perfume que o vento não
tipos de provas, que vale a pena referir. dispersa, onde provo um sabor que a vora­
Em primeiro lugar, recordemos a pro­ cidade não reduz, onde me aperta um am­
va, já bem conhecida dos gregos, que, par­ plexo que a saciedade jamais dissolve. É
tindo das características de perfeição do isso que eu amo quando amo meu Deus” .
mundo, remonta ao seu artífice. Ser, Verdade, Bem (e Amor) são os atri­
Uma segunda prova é a conhecida com butos essenciais de Deus para Agostinho. So­
o nome de “consensus gentium”, também bre o segundo e o terceiro já falamos. Sobre
já presente nos pensadores da antiguidade o primeiro Agostinho se exprime com cla­
pagã: “ toda a espécie humana confessa que reza, unindo a ontologia grega com a reve­
Deus é criador do mundo” . lação bíblica. Os gregos tinham dito que
Uma terceira prova é extraída dos di­ Deus é o ser supremo (a substância primei­
versos graus do bem, a partir dos quais se ra), na Bíblia Deus diz de si mesmo: “Eu
remonta ao primeiro e supremo Bem, que é sou aquele que é” . Justamente enquanto ser
Deus.
Agostinho não demonstra Deus como,
por exemplo, o demonstra Aristóteles, ou
seja, com intenções puramente intelectuais
e a fim de explicar o cosmo, mas sim para
“ fruir a Deus” (frui Deo), e portanto para
amá-lo, para preencher o vazio do seu es­
pírito, para pôr fim à inquietude do seu co­
ração, para ser feliz. Contrariamente ao que
pensava Plotino, só há verdadeira felicida­
de na outra vida, não sendo possível nesta.
Todavia, mesmo nesta terra podemos ter
uma pálida imagem daquela felicidade.
Com efeito, é muito significativo que, nas
Confissões, Agostinho recorra até mesmo
ao vocabulário das Enéadas para descre­
ver o momento de êxtase que alcançou em
Ostia, juntamente com a mãe, ao contem­
plar Deus. Também significativos são o es­
vaziamento metafísico de toda dimensão
física e o despojamento de toda alteridade,
feitos de modo plotiniano, embora com um
pathos espiritual mais ardente e carregado
de novos significados, que encontramos,
por exemplo, nesta passagem das Confis­
sões sobre a fruição de Deus, um dos mais
belos escritos de Agostinho: “ Mas o que
amo, amando-te? Não uma beleza corpó-
rea, não um encanto transitório, não um
fulgor como o da luz, que agrada a estes
olhos, não doces melodias de cantos de
todo tipo, não o suave perfume de flores,
de ungüentos e de aromas, não o maná e o
mel, não membros desfrutando no ample-
xo carnal. Não são essas coisas que amo,
amando meu Deus. E, no entanto, por as­
sim dizer, amo uma luz, uma voz, um per­
fume, um alimento e um amplexo quando Santo Agostinho cm meditarão c oriicao,
amo o meu Deus: luz, voz, perfume, ali­ cm umà pintura de Sandra Bollicclli ( 144S-1 S101,
mento e amplexo do homem interior que conservada na Igreja de Todos os Santos
está em mim, onde resplandece em minha cm Horcnca.
Capítulo sexto - . S a n t o y A g o s t i n k o e o a p o g e u d a l- ^ a t d s t i c a
93

supremo, Deus, criando as coisas, participa portanto, em sentido absoluto, é tanto o Pai,
com eles o ser, mas não o Ser sumo como como o Filho e como o Espírito Santo: eles
ele é, e sim um ser com diferentes graus em são inseparáveis no Ser e operam insepara-
escala hierárquica. velmente.
Apesar de todas estas precisações, per­ Portanto, não havendo diferença on-
manece claro para Agostinho que é impos­ tológica e hierárquica nem diferença de fun­
sível para o homem uma definição da natu­ ções, a igualdade absoluta das três Pessoas
reza de Deus e que, em certo sentido, Deus implica que a Trindade seja “ o único verda­
scitur melius nesciendo, pois é mais fácil deiro Deus” .
saber aquilo que ele não é do que aquilo b) Agostinho realiza a distinção entre
que ele é: “ Quando se trata de Deus, o pen­ as Pessoas com base no conceito de relação.
samento é mais verdadeiro do que a pala­ Isto significa que, para Agostinho, cada uma
vra, e a realidade de Deus mais verdadeira das três Pessoas é distinta das outras, mas
do que o pensamento” . não ontologicamente diversa. O Pai tem o
Os próprios atributos mencionados (e Filho mas não é o Filho, e o Filho tem o Pai,
todos os outros atributos positivos que se mas não é o Pai; e o mesmo se diga do Espí­
possam citar de Deus) não devem ser en­ rito Santo.
tendidos como propriedade de um sujei­ Tais atributos, portanto, não pertencem
to, mas como coincidentes com a própria à dimensão do ser e da substância, e sim,
essência dele. Melhor ainda é afirmar atri­ justamente, da relação. Mas nem por isso
butos positivos de Deus, negando o nega­ se reduzem ao nível de meros acidentes. Os
tivo da finitude categorial que os acompa­ acidentes são atributos mutáveis, enquanto
nha. Deus é todo o positivo que se encontra o tipo de relação que distingue as três Pes­
na criação, sem os limites que nela exis­ soas da Trindade não é mutável e se coloca
tem, resumido no atributo da imutabili­ na dimensão da eternidade.
dade e expresso na fórmula com que ele c) Um terceiro ponto fundamental da
se indicou a si mesmo: “ E m sou aquele doutrina trinitária agostiniana consiste nas
que é” . g-g f f r m analogias triádicas que ele descobre no cria­
do, as quais, de simples vestígios da Trinda­
de nas coisas e no homem exterior, tornam-
se, na alma humana, verdadeira imagem da
5 A T h ndade própria Trindade, como já vimos.
Entre as muitas analogias, recordemos
duas. .
Todavia, este Deus, que é “ Aquele Todas as coisas criadas apresentam
que é” , para Agostinho é essencialmente unidade, forma e ordem, tanto as coisas
Trindade. A esse tema ele dedica um de seus corpóreas como as almas incorpóreas. Ora,
livros mais profundos, que, sob vários as­ assim como das obras remontamos ao Cria­
pectos, se impôs como sua obra-prima dou­ dor, que é Deus uno e trino, podemos con­
trinária. siderar essas três características como vestí­
Devemos salientar três núcleos parti­ gios de si deixados pela Trindade em sua
cularmente importantes dessa obra. obra.
a) O conceito básico sobre o qual ele Analogamente, em um nível mais al­
alicerça sua interpretação é a identidade to, a mente humana é imagem da Trinda­
substancial das três Pessoas. de, porque também é una-e-trina, no senti­
Os gregos, precisa Agostinho, para ex­ do que é mente e, como tal, conhece-se a si
primir conceitualmente a Trindade falaram mesma e ama-se a si mesma. Portanto, a
de “ uma essência, e três substâncias” ; os la­ “ mente” , o seu “conhecimento” e o “ amor”
tinos, porém, falam de “ uma essência ou são três coisas e ao mesmo tempo não são
substância, e três Pessoas” , porque, para os mais que uma, e, quando são perfeitas,
latinos, essência e substância são conside­ coincidem.
rados sinônimos. Todavia, mesmo com essa Na investigação das analogias trini-
diferença terminológica, uns e outros pre­ tárias do espírito humano está uma das
tenderam dizer a mesma coisa. Isto implica maiores novidades de Agostinho em rela­
que Pai, Filho e Espírito Santo tenham jus­ ção a esse tema.
tamente uma substancial igualdade e não Conhecimento do homem e conheci­
sejam hierarquicamente distinguíveis. Deus, mento de Deus Uno-Trino iluminam-se
94 Terceira parte - ; A T-^atrística n a á t * e a c u l t u r a l d e Iminua l a t i n a

mutuamente, quase que como em um es­ 6 jA doutriiaa da cniação


pelho, de modo admirável, realizando per-
feitamente o projeto do filosofar agosti-
niano: conhecer Deus e a própria alma, O problema metafísico que mais preo­
Deus através da alma, a alma através de cupara os antigos era o da derivação do
Deus. múltiplo a partir do Uno: por que e como

Uma antiga lenda narra que Agostinho, enquanto passeava na praia, pensando no complexo mistério da
Trindade (sobre a qual estava preparando seu tratado), encontrou um menino que, tendo cavado um
buraco na areia, com uma colher queria aí colocar toda a água do mar. Quando Agostinho disse que era
impossível pôr num buraco com uma colher toda a água do mar, o menino, sob cujas aparências havia um
anjo, respondeu: “Seria mais fácil para mim derramar com esta colher toda a água do mar neste buraco,
do que para ti resolver e inserir em um livro o mistério da Trindade". Pinturicchio (14S4-1513) represen­
tou tal lenda neste belo quadro que se encontra em Perúgia, na Galeria Nacional da Úmbria. Lembramos
que esta lenda é particularmente significativa, porque o livro de Agostinho sobre a Trindade está entre os
mais notáveis escritos do Ocidente sobre o tema.
Capitulo SCXtO - S a n + o A g o s t i n h o e o a p o g e u d a Ua+ Ws+ica
95

os múltiplos derivaram do Uno (ou de algu­ O homem sabe “ gerar” (os filhos) e
mas realidades originárias)? Por que e como, sabe “produzir” (os artefacta), mas não sabe
do Ser que não pode não ser, nasceu tam­ “criar” , porque é um ser finito. Deus “gera”
bém o devir, que implica a passagem de ser de sua própria substância o Filho, que, como
a não ser e vice-versa? tal, é idêntico ao Pai, ao passo que “cria” o
Ao tentar resolver esses problemas, ne­ cosmo do nada.
nhum dos antigos filósofos chegou ao con­ Portanto, há diferença enorme entre
ceito de criação, que, como sabemos, é de “criação” e “ geração” , porque, diferente­
origem bíblica. Os Platônicos foram os fi­ mente da primeira, esta última pressupõe o
lósofos que chegaram às posições menos vir (a ser) por outorga de ser por parte do
distantes do criacionismo. Entretanto, mes­ criador para “aquilo que absolutamente não
mo assim, ainda permaneceu significati­ existia” . E tal ação é “ dom divino” gratui­
va a distância entre suas posições e o to, devido à livre vontade e à bondade de
criacionismo bíblico. No Timeu, Platão ha­ Deus, além de sua infinita potência.
via introduzido a figura do demiurgo. En­ Ao criar o mundo do nada, Deus criou,
tretanto, embora sendo racional, livre e juntamente com o mundo, o próprio tem­
motivada pela causa do bem, a atividade po. Com efeito, o tempo está estrutural­
do demiurgo é gravemente limitada, tanto mente ligado ao movimento; mas não há
acima como abaixo dele. Acima do demiur­ movimento antes do mundo, só com o
go está o mundo das Idéias, que o trans­ mundo.
cende e no qual ele se inspira como em um Esta tese já fora (quase literalmente)
modelo; abaixo, ao contrário, está a chora antecipada por Platão no Timeu, mas em
ou matéria informe, também eterna como Agostinho ela simplesmente é melhor fun­
as Idéias e como o próprio demiurgo. A damentada e melhor explicada. Assim, “ an­
obra do demiurgo, portanto, é obra de fa­ tes do mundo” não havia um “ antes tem­
bricação e não de criação, porque pressu­ poral” , porque não havia tempo: o que havia
põe como preexistente e independente aqui­ (aliás, seria necessário dizer “há” ) era o eter­
lo de que se vale para construir o mundo. no, que é como que um infinito presente
Plotino, no entanto, deduziu as Idéias e a atemporal (sem transcorrência nem distin­
própria matéria do Uno, muito engenho­ ção de “ antes” e “ depois” ). Mas da ques­
samente, do modo como vimos. Todavia, tão do tempo falaremos adiante.
seu impulso o levou aos limites de um ver­
dadeiro acosmismo e, oportunamente re­
formadas, suas categorias poderíam servir
para interpretar a dialética trinitária, mas
7 t loulriiui das CJdéias
não para interpretar a criação do mundo.
A solução criacionista, que, para Agos­ e das razões semimais
tinho, é ao mesmo tempo verdade de fé e de
razão, revela-se de uma clareza exemplar. A
criação das coisas se dá do nada (ex nihilo), As Idéias têm um papel essencial na
ou seja, não da substância de Deus nem de criação. Mas, de paradigmas absolutos fora
algo que preexistia (a fórmula que posterior­ e acima da mente do demiurgo, como eram
mente se tornaria canônica seria ex nihilo em Platão, elas se transformam, como já
sui et subiecti). Com efeito, explica Agosti­ dissemos, em “ pensamentos de Deus” ou
nho, uma realidade pode derivar de outra também como “Verbo de Deus” .
de três modos: Agostinho declara a teoria das Idéias
a) por geração, caso em que deriva da como um pilar absolutamente fundamental
própria substância do gerador como o filho e irrenunciável, porque está intrinsecamen-
deriva do pai, constituindo algo de idêntico te vinculada à doutrina da criação.
ao gerador; Deus, com efeito, criou o mundo con­
b) por fabricação, caso em que a coisa forme a razão e, portanto, criou cada coisa
que é fabricada deriva de algo preexistente fora conforme um modelo que ele próprio pro­
do fabricante (de uma matéria), como ocor­ duziu como seu pensamento, e as Idéias são
re com todas as coisas que o homem produz; justamente estes pensamentos-modelo de
c) por criação a partir do nada absoluto, Deus, e como tais são a verdadeira realidade,
ou seja, não da própria substância nem de ou seja, eternas e imutáveis, e por participa­
uma substância externa. ção delas existem todas as coisas.
96 Terceira parte - y \ T-^a+ns+ica n a á f e a cul+w r a \ d e Ií n g u a la+ma

M as Agostinho utiliza, para explicar dades de sua concretização, infundindo nela,


a criação, além da teoria das Idéias, tam­ precisamente, as razões seminais de cada
bém a teoria das “razões seminais” , criada coisa. A evolução do mundo ao longo do
pelos Estóicos e posteriormente retomada tempo outra coisa não é do que a concre­
e reelaborada em bases metafísicas por tização e a realização de tais “ razões semi­
Plotino. A criação do mundo ocorre de nais” e, portanto, um prolongamento da
modo simultâneo. Mas Deus não cria a to­ ação criadora de Deus.
talidade das coisas possíveis como já con­ O homem foi criado como “ animal
cretizadas: ele insere no criado as “sementes” racional” e encontra-se no vértice do mun­
ou “germes” de todas as coisas possíveis, do sensível. Como já vimos, a sua alma
as quais, posteriormente, ao longo do tem­ é imagem de Deus-Trindade. A alma é
po, desenvolvem-se pouco a pouco, de vá­ imortal.
rios modos e com o concurso de várias cir­ As provas da imortalidade são em
cunstâncias. parte extraídas de Platão, mas em parte
Em suma: juntamente com a matéria, são aprofundamentos agostinianos, co­
Deus criou virtualmente todas as possibili­ mo, por exemplo, a prova que se baseia na

Agostinho em sua cela.


Têmpera sobre lâmina
de Sandro Botticelli (1445-1510).
Cdpítulo SCXtO - S a n t o ./ V g o s t m K o e o a p o g e u d a 1- ^ a f n s t i c a
97

autoconsciência, dela deduzindo a simpli­ presentes tanto o passado como o presente


cidade e a espiritualidade da própria alma e o futuro. Mais propriamente, deveriamos
e, portanto, a sua incorruptibilidade, ou en­ dizer que “ os tempos são três: o presente
tão a prova que infere a imortalidade da do passado, o presente do presente e o pre­
alma da presença nela da Verdade eterna: sente do futuro. E, de qualquer forma, é
“ Se a alma morresse, morrería também a em nosso espírito que se encontram esses
Verdade” . três tempos, que não são vistos em outra
Agostinho fica na dúvida quanto à so­ parte: o presente do passado, vale dizer, a
lução do problema do modo como as almas memória; o presente do presente, isto é, a
singulares são geradas: isto é, se Deus cria ca­ intuição; o presente do futuro, ou seja, a
da alma diretamente, ou se as criou todas espera” .
em Adão e de Adão sucessivamente se “trans­ Assim, embora tendo uma ligação com
mitem” mediante os pais. o movimento, o tempo não está no movi­
Agostinho parece ter nutrido simpatias mento e nas coisas em movimento, mas sim
por uma solução “traducionista” deste últi­ na alma. Mais precisamente: conforme se
mo tipo, embora entendida em nível espiri­ revela estruturalmente ligado à memória,
tual, que, a seu parecer, explicaria melhor a à intuição e à espera, o tempo pertence à
transmissão do pecado original. Mas tam­ alma, sendo predominantemente “ uma ex­
bém não exclui a criação direta. [6 ] tensão da alm a” , precisamente uma ex­
tensão entre “ memória” , “ intuição” e “ es­
pera” .
Tal solução, em certa medida, já havia
8 7A eternidade e a estrutura sido antecipada por Aristóteles, mas Agosti­
da temporalidade nho a desenvolve em sentido marcadamente
espiritual, levando-a às suas últimas conse-
qüências. [T]
“ O que fazia Deus antes de criar o céu
e a terra?” . Essa foi a pergunta que levou
Agostinho a uma análise do tempo e o con­
duziu a soluções geniais, que se tornaram 9 O mal
muito famosas. e seu esfatu+o oufolc>0 Íco
Antes de Deus criar o céu e a terra não
havia tempo e, portanto, como já indicamos,
não se pode falar de um “ antes” anterior à Ao problema da criação está ligado o
criação do tempo. O tempo é criação de grande problema do mal, para o qual Agos­
Deus e, por isso, a pergunta proposta não tinho conseguiu apresentar uma explicação
tem sentido, pois põe para Deus uma cate­ que constituiu ponto de referência durante
goria que vale só para a criatura, cometen­ séculos e ainda guarda a sua validade
do-se assim um erro estrutural. Com efeito, Se tudo provém de Deus, que é Bem,
“tempo” e “eternidade” são duas dimensões de onde provém o mal?
incomensuráveis; muitos dos erros cometi­ Depois de ter sido vítima da explica­
dos pelos homens, quando falam de Deus, ção dualista maniquéia, como vimos, Agos­
como na pergunta proposta acima, nascem tinho encontrou em Plotino a chave para
da aplicação indevida do conceito de tem­ resolver a questão: o mal não é um ser, mas
po ao eterno, que é coisa totalmente dife­ deficiência e privação de ser.
rente de tempo. Mas Agostinho aprofunda ainda mais
Mas o que é o tempo? a questão. O problema do mal pode ser exa­
O tempo implica passado, presente e minado em três planos: a) metafísico-on-
futuro. Mas o passado não é mais e o futuro tológico; b) moral; c) físico.
não é ainda. E o presente, “ se existisse sem­ a) Do ponto de vista metafísico-on-
pre e não transcorresse no passado, não seria tológico, não existe mal no cosmo, mas ape­
mais tempo, mas eternidade” . Na realida­ nas graus inferiores de ser em relação a
de, o ser do presente é um contínuo deixar Deus, que dependem da finitude da coisa
de ser, um tender continuamente ao não-ser. criada e dos diferentes níveis dessa finitude.
Agostinho destaca que, na realidade, Mas, mesmo aquilo que, numa considera­
o tempo existe no espírito do homem, por­ ção superficial, parece um “ defeito” (e, por­
que é no espírito do homem que se mantêm tanto, poderia parecer um mal), na realidade,
98 7 'eYCCivã parte - y\ "í-Vi+nsüm n a á r e a c u ltu ra l c \e - Iíip\0ua latin a

na ótica do universo visto em seu conjunto, tamente com Agostinho que a vontade se
desaparece. De fato, os graus inferiores do impôs à reflexão filosófica, subvertendo a
ser e as coisas finitas, mesmo as mais ínfi­ antropologia dos gregos e superando defi­
mas, revelam-se momentos articulados de nitivamente o antigo intelectualismo moral,
um grande conjunto harmônico. Quando, seus pressupostos e seus corolários. A ator­
por exemplo, julgamos que a existência de mentada vida interior de santo Agostinho e
certos animais nocivos seja um “ mal” , na sua formação espiritual, realizada inteira­
realidade nós estamos medindo com o metro mente na cultura latina, que dava à voluntas
da nossa utilidade e da nossa vantagem con­ um relevo desconhecido para os gregos, per­
tingente e, portanto, numa ótica errada. mitiram-lhe entender a mensagem bíblica
Medida com o metro do todo, cada coisa, precisamente em sentido “ voluntarista” ,
mesmo aquela aparentemente mais insigni­ fora dos esquemas intelectualistas do mun­
ficante, tem seu sentido e sua razão de ser e, do grego.
portanto, constitui algo positivo. De resto, Agostinho foi o primeiro es­
b) Já o mal moral é o pecado. E o pe­ critor a nos apresentar os conflitos da von­
cado depende da má vontade. E a má von­ tade em termos precisos, como já destaca­
tade depende de quê? A resposta de Agosti­ mos: “Era eu que queria e eu que não queria:
nho é bastante engenhosa. A má vontade era exatamente eu que nem queria plena­
não tem uma “causa eficiente” , mas, muito mente, nem rejeitava plenamente. Por isso,
mais, uma “causa deficiente” . Por sua na­ lutava comigo mesmo e dilacerava-me a mim
tureza, a vontade deveria tender ao Bem mesmo” .
supremo. Mas, como existem muitos bens A liberdade é própria da vontade e não
criados e finitos, a vontade pode tender a da razão, no sentido em que a entendiam os
eles e, subvertendo a ordem hierárquica, gregos. E assim se resolve o antigo parado­
pode preferir a criatura a Deus, preferindo xo socrático de que é impossível conhecer o
os bens inferiores aos bens superiores. Sen­ bem e fazer o mal. A razão pode conhecer o
do assim, o mal deriva do fato de que não bem e a vontade pode rejeitá-lo, porque,
há um único Bem, mas muitos bens, consis­ embora pertencendo ao espírito humano, a
tindo, precisamente, em uma escolha incor­ vontade é uma faculdade diferente da ra­
reta entre esses bens. O mal moral, portan­ zão, tendo uma autonomia própria em re­
to, é uma aversio a Deo e uma conversio ad lação à razão, embora seja a ela ligada. A
creaturam, é a escolha de um ser inferior ao razão conhece e a vontade escolhe, poden­
invés do ser supremo. O fato de ter recebi­ do escolher até o irracional, ou seja, aquilo
do de Deus uma vontade livre é um grande que não está em conformidade com a reta
bem. O mal é o mau uso desse grande bem, razão. E desse modo se explica a possibili­
que se dá do modo que vimos. Por isso, dade da aversio a Deo e da conversio ad
Agostinho pode dizer: “ O bem que está em creaturam.
mim é obra tua, é teu dom; o mal em mim é O pecado original foi um pecado de
meu pecado” . soberba, sendo o primeiro desvio da von­
c) O mal físico, como as doenças, os tade. O arbítrio da vontade é verdadeira­
sofrimentos, os tormentos do espírito e a mente livre, em sentido pleno, quando não
morte, tem significado bem preciso para faz o mal. Esta é, precisamente, a sua con­
quem filosofa na fé: é a conseqüência do dição natural: assim ele foi dado ao homem
pecado original, ou seja, é uma conseqüên­ originalmente. Mas, depois do pecado ori­
cia do mal moral. Na história da salvação, ginal, a verdade se corrompeu e se enfra­
porém, também ele tem um significado po­ queceu, tornando-se necessitada da graça
sitivo. divina.
Conseqüentemente, o homem não
pode ser “ autárquico” em sua vida moral:
ele necessita de tal ajuda divina. Portanto,
10 A vorvtadey quando o homem procura viver retamente
a libeedade, a grnça valendo-se unicamente de suas próprias
forças, sem ajuda da graça divina liberta­
dora, então ele é vencido pelo pecado; liber­
Já acenamos ao papel que a “ vonta­ ta-se do mal com o poder de crer na gra­
de” desempenha em Agostinho. Aliás, há ça que o salva, e com a livre escolha dessa
tempo os estudiosos destacaram que foi exa- graça.
Capitulo S e x t O - S a n t o j A g o s t m k o e. o a p o g e u d a P a + H S + ic a
99

11 A '(Sidade f e r re ta ” segundo o homem; a divina é a daqueles que


vivem segundo Deus” .
e a "(Sidade divirva" As duas Cidades têm um corresponden­
te no céu, mais precisamente nas fileiras dos
anjos rebeldes e dos que permaneceram fiéis
O mal é amor a si mesmo (soberba), o a Deus. Na terra, essa correspondência re­
bem é amor a Deus. Isso vale tanto para o velou-se em Caim e Abel: as duas persona­
homem como indivíduo quanto para o ho­ gens bíblicas assumem assim o valor de sím­
mem que vive em comunidade com os ou­ bolos das duas Cidades. Nesta terra, o
tros. O conjunto dos homens que vivem para cidadão da Cidade terrena parece ser o
Deus constitui a Cidade celeste. Escreve dominador, enquanto o cidadão da Cidade
Agostinho: “ Dois amores diversos geram as celeste é peregrino. Mas o primeiro está des­
duas cidades: o amor a si mesmo, levado tinado à eterna danação, enquanto o segun­
até o desprezo por Deus, gerou a Cidade do está destinado à eterna salvação.
terrena; o amor a Deus, levado até o des­ Assim, a história adquire um sentido
prezo por si, gerou a Cidade celeste. Aquela totalmente desconhecido para os gregos,
gloria-se de si mesma, esta de Deus. Aquela como já vimos: ela tem um princípio, com a
procura a glória dos homens, esta tem por criação, e um termo, com o fim do mundo,
máxima glória a Deus” . E ainda: “A Cida­ ou seja, com o juízo final e com a ressurrei­
de terrena é a cidade daqueles que vivem ção. E tem três momentos intermediários

Na ilustração,
a mais antiga representação
de Agostinho
que chegou até nós
(remonta ao período
entre o fim do séc. VI
e os inícios do séc. Vil).
Conserva-se
na Biblioteca do Latrãio.
100 Terceira parte - y\ P a t W s t i c a n a á i * e a c u l t u r a l d e Ií n g u a \aV\na

essenciais, que marcam seu decurso: o peca­ Agostinho apresenta também um crité­
do original com suas conseqüências, a espe­ rio para o amor, com a distinção entre o uti e
ra da vinda do Salvador e a encarnação e o frui. Os bens finitos devem ser usados como
paixão do Filho de Deus, com a constitui­ meios e não ser transformados em objeto de
ção de sua Igreja. fruição e deleite, como se fossem fins.
Agostinho insiste muito, ao final da E, assim, a virtude do homem, que os
Cidade de Deus, na ressurreição. A carne res­ filósofos gregos haviam determinado em
suscitará integrada e em certo sentido trans­ função do conhecimento, é recalibrada por
figurada, mas continuará carne. Agostinho em função do amor. A virtus é a
A história se concluirá com o Dia do ordo amoris, ou seja, o amar a si mesmo, os
Senhor, que será como que o oitavo dia con­ outros e as coisas segundo a dignidade
sagrado com a ressurreição de Cristo e no ontológica própria de cada um desses seres,
qual se realizará, em sentido global, o re­ no sentido que já vimos.
pouso eterno. BBIISIsl O próprio conhecimento da Verdade e
da Luz que ilumina a mente é expresso por
Agostinho em termos de amor: “ Quem co­
nhece a Verdade conhece tal Luz, e quem
12 jA essência do komem conhece essa Luz conhece a eternidade. O
é o am oe amor é aquilo que conhece” .
De resto, o filosofar nessa fé segundo a
qual a criação e a redenção nasceram de um
De Sócrates em diante, os filósofos gre­ ato amoroso de doação, devia levar necessa­
gos sempre disseram que o homem bom é riamente a essa reinterpretação do homem,
aquele que sabe e conhece, e que o bem e a de sua história como indivíduo e de sua his­
virtude são ciência. Já Agostinho diz, ao tória como cidadão, na perspectiva do amor.
contrário, que o homem bom é aquele que Essa frase lapidar resume a mensagem
ama: aquele que ama aquilo que deve amar. agostiniana, à guisa de sinal emblemático:
Quando o amor do homem volta-se pondus meum, amor meus (“ o meu peso está
para Deus (amando os homens e as coisas no meu amor” ). A consistência do homem
em função de Deus), é cbaritas; quando, po­ é dada pelo peso do seu amor, assim como
rém, volta-se para si mesmo, para o mundo pelo seu amor determina-se o seu destino
e para as coisas do mundo, é cupiditas. Amar terreno e ultraterreno. Nessa perspectiva,
a si mesmo e aos homens não segundo o pode-se compreender muito bem a exorta­
juízo dos homens, mas segundo o juízo de ção conclusiva de Agostinho: ama, et fac
Deus, significa amar do modo justo. quod vis (“ ame, e faça o que quiser” ).
Capítulo sexto - S a n t o y \ g o s + i n k o e o c\poge.\A d a " P a f n s + i c a
101

AGOSTINHO
A CENTRALIDADE DA TRINDADE DIVINA

Mundo Homem
- todas as coisas têm unidade, ordem e forma - o homem é pessoa, isto é, in­
- estas características são vestígios que a divíduo irrepetível
Trindade deixou nas coisas - é imagem das três Pessoas da
- graças a estas podemos remontar do Trindade e, com efeito, é, co­
mundo a Deus, a partir dos graus de per­ nhece e ama
feição que existem no mundo - tem em si uma faculdade da
| vontade que é diferente da fa­
............ > culdade da razão
- a vontade livre é a que esco­
lhe o bem superior em vez do
inferior, isto é, vive para Deus
- o conjunto dos homens que
vivem para Deus forma a Ci­
TRINDADE dade celeste, o conjunto dos
- implica a identidade substancial maus forma a Cidade terrena
das três Pessoas - o mal não tem estatuto on-
- a diferença é apenas relacionai tológico, mas nasce da con­
(o Pai tem o filho, fusão de um bem inferior com
mas não é o filho; um bem superior
o Filho tem o Pai, - o homem encontra sobretudo
mas não é o Pai etc.) em si mesmo a prova da exis­
tência de Deus que se manifes­
A Trindade é: ta como verdade

A
SER AMOR
enquanto v enquanto
Sumo ser, Sumo amor,
Deus cria VERDADE Deus beneficia
enquanto
Suma verdade,
T Deus ilumina
1
Criação
o mundo é criado segundo a T Amor
razão, isto é, segundo as Idéias- - no homem, assim como
paradigma que estão na men­ Iluminação na Trindade, o amor é
te de Deus - a alma tem critérios de conhe­ essencial. A virtude,
é ex nihilo sui et subiecti, isto | cimento imutáveis e necessá­ com efeito, reduz-se à
é, Deus não age sobre uma rios que lhe vêm de Deus ordo atnoris: amar a si
substância preexistente (sua - a mente de Deus tem em si os mesmos, os outros e as
ou externa a si), mas cria do modelos imutáveis e eternos coisas conforme sua
nada (= Idéias) de todas as coisas dignidade ontológica
Deus não cria a totalidade das - Deus, no momento da criação, - o amor perfeito é o
coisas como já atuadas, mas participa às coisas a capacida­ doador, que tem em
insere no criado as razões se­ de de manifestar-se pela ver­ Cristo (o Deus feito
minais das coisas, que pouco dade, e às mentes a capacida­ homem) o vértice su­
a pouco se desenvolvem de de colhê-las premo
102
Terceira parte - V \ P a M s t i c a n a áp*ea cult w f*al d e l í n g u a l a t i n a

p alavras, João acrescenta: E o Verbo era


Deus.
A g o s t in h o
C este Verbo é justamente aquele de que
ontem falamos longamente, e que o Senhor nos
tenha concedido, depois de tanto falar como
fizemos, ter conseguido fazer chegar algo até
vossos corações.
A terceira navegação 1 No princípio era o Verbo.
C sempre o mesmo, é do mesmo modo, é
desde sempre assim como é, não pode mudar,
fí segundo navegação d e Platão cons­ é este: "É".
titui uma das maiores conquistas do p en sa ­ Cntão, quem poderá compreender, do
mento ocidental, isto é, o ganho do dimensão momento que se vê que todas os coisas mor­
supra-sensível. Pio tão comporá esto busca tais são mutáveis, e do momento que se vê
do verdade a uma jangada sobre a qual d e ­ que não apenas os corpos variam pela quali­
vemos enfrentar o risco da travessia do mor dade, com o nascer, o crescer, o declinar e o
da vido. fí razão humana é apenas uma ja n ­ morrer, mas também as próprias almas se se ­
gada. param e se dividem, sob a influência de d ese­
Conforme Platão, estaríamos mais s e ­ jos diferentes, e do momento que se vê que
guros s e tivéssem os uma revelação divina, os homens podem receber a sabedoria se se
um logos divino no qual confiarmos; tal reve­ aproximam da luz, do calor dela, mas po­
lação seria uma nave mais sólida. dem também perder a própria sab edoria, e
fígostinho liga-se diretamente a estas afastar-se dela por causa de uma influên­
intuições platônicos, retomando o mesma cia má?
linguagem de marinheiro. Neste sentido se Portanto, do momento que se vê que to­
fala d e "terceira navegação", a navegação das estas coisas são mutáveis, o que é aquilo
que nos leva a ganhar os horizontes últi­ que é, a não ser aquilo que transcende todas
mos que sã o dados apenas pela fé cristã, as coisas que existem e não são deste mo­
fí tese d e fígostinho é a seguinte: alguns do? Quem, portanto, compreenderá isso? Ou
filósofos compreenderam que existe o olém, quem, de algum modo, tendo posto em ato as
mas a razão humana sozinha não podia dar forças de sua mente paro poder compreender
aos homens o meio para chegar ao além. como puder aquilo que é, está em grau de
Entre nós e o além existe o mar d este sécu­ chegar àquilo que de algum modo com sua
lo, que devem os atravessar. E então veio mente conseguiu captar?
Cristo justam ente para trazer-nos o meio É como se alguém conseguisse ver de lon­
para atravessar o mar da vida,- e o único ge a pátria, mas existe o mar que dela o sepa­
meio seguro que nos permite atravessar ra. Cie vê paro onde deve ir, mas falta-lhe o
este mar é a cruz. meio para ir.
Rssim acontece para nós, que queremos
alcançar nossa estabilidade, onde aquilo que
é é, porque este apenas é sempre assim como
é. Há no meio o mar deste século, através do
1. A cruz de Cristo qual devemos ir, mesmo que vejamos para onde
é o lenho devemos ir, enquanto muitos não vêem para
que nos faz atravessar onde devem ir.
o mar da vida Por isso, para que tivéssemos também o
meio para ir, veio de lá aquele ao qual quería­
O texto prossegue: Houve um homem mos ir.
mandado por Deus, cujo nome era João. E o que fez?
Rs coisas que foram ditas antes, irmãos Preparou o lenho com o qual pudéssemos
caríssimos, foram ditas sobre o inefável divin­ atravessar o mar.
dade de Cristo, e foram ditas de modo quase Com efeito, ninguém pode atravessar o
inefável. mor deste mundo, se não for levado pelo cruz
Com efeito, quem compreenderá isto: No de Cristo.
princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto R esta cruz poderá se agarrar, por vezes,
de Deus? também quem tem os olhos doentes. C quem
C para que não te parecesse aviltado o não consegue ver de longe para onde deve ir,
termo Verbo, por causa do uso quotidiano das não se separe da cruz, e o cruz o levará.
103
Capítulo sexto - S a n t o y\ g o stin k o e o a p o g e u d a P atrís+ ica ,— ,

2. O cristão deve aderir [...]": e não diz: "Pois não conheceram Deus",
àquilo que Cristo se tornou por nós, mas: "Pois, tendo conhecido a Deus, não o glo­
poro poder alcançar rificaram, nem lhe deram graças como Deus, mas
aquilo que ele sempre é se dispersaram em seus raciocínios, e seu co­
ração insipiente se obscureceu".
Por isso, irmãos, gostaria d® fazer entrar De que modo se obscureceu?
esto verdade em vossos corações: se quiserdes Cie o diz claramente logo depois: “Procla­
viver de modo piedoso e cristão, oderi o Cristo mando-se sábios, se tornaram estultos".
conforme aquilo que ele se tornou por nós, para Viram ondedeveriam ir, mas, ingratos para
que pudéssemos alcançá-lo conforme aquilo com aquele que lhes dera aquilo que tinham
que é. C ele veio a nós conforme aquilo que visto, quiseram atribuir a si mesmos aquilo que
sempre era, para tornar-se por nós aquilo que viram, e, tornando-se soberbos, perderam aqui­
não era: uma vez que se tornou isso por nós, lo que viam, e daí se voltaram para os ídolos,
para oferecer o meio sobre o qual os enfermos para os simulacros e os cultos dos demônios,
fossem transportados, atravessassem o mar do até adorar a criatura e desprezar o Criador.
mundo e chegassem à pátria, onde não haverá Todavia, fizeram estas coisas quando já
mais necessidade de uma nave, porque não estavam corrompidos; e chegaram a corromper-
haverá mais um mar a atravessar. se porque se ensoberbeceram; e justamente
Portanto, é melhor não ver com a inteli­ por ensoberbecer-se se afirmaram sábios.
gência aquilo que ele é, e todavia não sepa­ Portanto, aqueles dos quais o Apóstolo
rar-se da cruz de Cristo, do que vê-lo com a in­ d isse que eram "aqueles que conheceram
teligência, e desprezar a cruz de Cristo. Deus", viram aquilo que diz João, ou seja, que
C algo ainda melhor e bom em sumo grau, todas as coisas foram feitas por meio do Verbo
se possível, que se veja onde se deve ir e nos de Deus. Com efeito, nos livros dos filósofos
mantenhamos ligados àquele que leva, para encontram-se ditas estas coisas, e também que
alcançar o termo. Deus tem um filho unigênito, por meio do qual
Isto puderam fazer as grandes mentes dos todas as coisas existem.
montes, aqueles que chamamos justamente de Cies puderam ver aquilo que existe, mas
montanhas, que a luz da justiça ilumina em sumo viram isso de longe, e não quiseram manter fir­
grau. Puderam fazer isso, e viram aquilo que é. me a humildade de Cristo, ou seja, aquela nave
Com efeito, João, vendo-o, dizia: No prin­ sobre a qual teriam podido alcançar com segu­
cípio oro o Verbo, o o Verbo estava junto de rança aquilo que puderam ver de longe.
Deus, 0 o Verbo era Deus. Cies viram isso e, C a cruz de Cristo foi por eles desprezada.
para alcançar aquilo que viam de longe, não Tu deves atravessar o mar e desprezas a
se afastaram da cruz de Cristo, e não despre­ cruz!
zaram a humildade de Cristo. Ó sabedoria cheia de soberba!
Todavia, também os pequenos, que não Caçoas de Cristo crucificado; mas é justa­
estão em grau de compreender isso, mas não mente ele que viste de longe: No princípio era
se afastaram da cruz, da paixão e da ressurrei­ o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus.
ção de Cristo, sobre a mesma nave são condu­ Mas por que foi crucificado?
zidos àquilo que não vêem, ou seja, na mesma Porque para ti era necessário o lenho da
nave sobre o qual realizam a travessia também sua humildade.
aqueles que vêem. Com efeito, tu estavas inchado de sober­
ba, e foras lançado para longe daquela pátrio;
3. R soberba dos filósofos pelas ondas deste mundo o caminho fora inter­
e a humildade do lenho da cruz rompido; e não existe um meio com o qual po­
des realizar a travessia para chegar à pátria,
Na verdade, existiram filósofos deste mun­ se não te deixares levar pelo lenho da cruz.
do que procuraram o Criador por meio do cria­ Ingrato que és, caçoas daquele que veio
tura, uma vez que o Criador pode ser encontra­ a ti, justamente para fazer-te retornar a ele!
do mediante a criatura, conforme o Rpóstolo Cie mesmo se tornou caminho, um cami­
afirma de modo claro: "Com efeito, as perfei- nho através do mar: por isso ele caminhou so­
ções invisíveis de Deus podem ser compreen­ bre o mor, para mostror-te que existe um cami­
didas pela inteligência, a partir da criação do nho pelo mor.
mundo, por meio das coisas que por ele foram Tu, porém, que não podes caminhar so­
feitas, assim como a sua potência eterna e a bre o mar como ele o fez, deixa-te levar por
sua divindade, de modo que não são escusó- esta nave, deixa-te levar pelo lenho da cruz:
veis". C continua: "Pois, tendo conhecido a Deus crê no crucificado, e poderás chegar.
104
Terceira parte - y \ T M t n s + i c a n a á r e a c u l+ u fa l d e l í n g u a l a t i n a

Por ti 0I0 s© fez crucificar, ou seja, poro autoridade da própria verdade já conhecida e
©nsinar-to o humildade, 0 porque, se tivesse evidente. Porém, uma vez que descemos nas
vindo como Deus, nõo teria vindo poro todos coisas temporais e por causa delas somos des­
aqueles qu© nõo estavam em grou de ver Deus. viados das coisas eternas, primeiro vem, não
Com efeito, nõo é segundo aquilo pelo por natureza e excelência, mas na ordem do
qual ele é Deus, que ele veio ou partiu, porque tempo, certo remédio temporal, que chama à
Deus está presente em tudo e nõo se acha con­ salvação não aqueles que sabem, mas aque­
tido em nenhum lugar. les que crêem.
Todavia, de que modo veio?
Rgostinho,
Veio na veste de homem. fí verdadeira religião,
Rgostinho, 24, 45.
fímor absoluto 0
“Terceira navegação",
sob a direção de G . Reale. 2. fl fé procuro e a inteligência encontra
fl fé procuro, a inteligência encontra; por
isso o Profeta diz: "Se não crerdes, não com­
preendereis". C por outro lado a inteligência
procura ainda aquele que encontrou; porque
O círculo hermenêutico "Deus observa os filhos do homem", como se
entre razão e fé1 canta no Salmo inspirado, "para ver se há quem
tem inteligência, quem procura Deus". Portan­
to, por isso o homem deve ser inteligente, para
Poro Figostinho o fé nõo tom um coró- procurar Deus.
toro-rocionol ou metorroclonol, e sim um pre­
Rgostinho,
ciso valor cognoscitivo, no sentido d e que
fí Trindade, XV, 2, 2.
represento umo experiência vivida da verda­
de. Fntre fé e razão há umo circularidade,
isto é, o fé fornece algumas pré-compreen- 3. Se não se crê, não se entende
sõ e s que depois podem se r examinadas e
criticadas pela razão. Demos graças a Deus se tivermos enten­
€sta posição, portanto, afasta-se tan­ dido. € se alguém entendeu pouco, não peça
to do fideísmo quanto do racionalismo. O mais ao homem, mas dirija-se àquele do qual
fideísmo extremado se exprime pela propo­ pode esperar mais. Podemos, como trabalha­
sição d e Tertuliano credo quia absurdum,- o dores fora de vós, plantar e irrigar, mas é Deus
racionalismo extremado nego qualquer va­ que faz crescer. "Minha doutrina — diz — não
lor ò fé. é minha, mas daquele que me mondou". Aque­
fí posição de Rgostinho é, ao invés, bem le que diz não ter entendido, ouça um conse­
expressa pela proposição credo ut intelligam, lho. No momento de revelar uma verdade tão
intelligo ut credam. importante e profunda, Cristo Senhor se deu
conta de que nem todos a entenderíam, e por
isso nas palavras que seguem dá um conselho.
Queres entender? Crê. Deus, com efeito, por
meio do profeta, disse: "Se não crerdes, não
1. O crer como remédio temporal compreendereis". C isso que o Senhor enten­
para a salvação de, quando, continuando, diz: "Se alguém qui­
Por esta razão, também o remédio da ser fazer a vontade dele, conhecerá se esta
alma, que é fornecido pela providência divina doutrina é de Deus, ou se falo por mim mes­
e pela inefável bondade, é belíssimo por gra­ mo". O que significa "se alguém quiser fazer a
duação e ordem. Cie se divide em autoridade e vontade dele"? Cu dissera: se alguém crer; e
razão. tinha dado este conselho: se não compreen­
fl autoridade exige a fé e prepara o ho­ deste, crê! fi inteligência é fruto da fé. Não pro­
mem à razão. cures, portanto, entender para crer, mas crê para
fl razão leva à inteligência e ao conheci­ entender; porque, se não crerdes, não en­
mento. tendereis.
Mesmo que a razão não abandone total­ Rgostinho,
mente a autoridade, quando se considera a Comentário 00 Cvangelho d e João,
quem se deve crer, é sem dúvida suprema a 29, 6.
105
Cãpítulo sexto - S a n t o .A g o s tin k o e o a p o g e u d a P a t n s t i c a ------

4. fl fé torna capazes de entender xamento; tudo é grandeza, elevação, pleno


segurança, eterno estabilidade, sem temor de
Direi entõo: quem pode, entendo; quem ataques inimigos ou de limites. £ grande oquilo
não pode, creio. Direi com o Senhor: "Vós julgais que começo o partir do fé, embora seja des­
segundo o corne; eu não julgo ninguém"; isto prezado; assim como em uma construção os
é, nõo julgo ninguém agora, ou não julgo nin­ inexperientes costumam dor pouco importân­
guém segundo o corne. C "mesmo que julgue, cia oos alicerces. Cava-se um grande buraco,
meu julgamento é verdadeiro". Porque teu jul­ oí se lançam pedros o esmo, nõo talhadas nem
gamento é verdadeiro? "Porque nõo estou só polidos, e portanto nada de belo aparece,
— responde — mos comigo estó o Poi que me como nada de belo oparece na raiz de uma
mondou". árvore. Todavia, tudo aquilo que na árvore te
Cntão, Senhor Jesus, se estivesses sozi­ agrada veio para cimo a partir da raiz. Olhas
nho, teu julgamento serio falso; por issojulgos o raiz e elo nõo te agrada, contemplas a árvo­
segundo o verdade porque nõo estos só, mos re e ficas admirado. Cstulto, aquilo que admi­
contigo está o Poi que te mondou? O que pos­ ras proveio daquilo que não te agrada. Pare­
so eu responder? Respondo ele mesmo; "Meu ce-te coisa sem importância a fé dos crentes,
julgamento é verdadeiro". Por que é verdadei­ porque nõo tens uma balança para pesá-la.
ro? "Porque nõo estou só, mos comigo está o Todavia, escuta para onde elo conduz e sab e­
Poi que me mondou". Todovio, se o Poi está rás medir seu valor. O próprio Senhor, em ou­
contigo, como te mondou? Cie te mondou e está tra circunstância, diz: "Se tiverdes fé como umo
contigo, de modo que, mesmo mondado, nõo semente de mostarda". O que existe de mais
te afastaste dele e, vindo poro o nosso meio, humilde e, ao mesmo tempo, de mais podero­
permaneceste o mesmo junto o ele? Como se so? O que existe de mais negligenciável e, ao
pode crer nisso? Como se pode entender? R mesmo tempo, de mais fecundo? Portanto, tam­
estos duos perguntas respondo assim: correto­ bém vós — diz o Senhor — "se permanecerdes
mente perguntas como se pode entender, mos na minha polovro", na qual crestes, para onde
nõo corretomente perguntas como se pode crer. sereis conduzidos? "Sereis de foto meus discí­
Com efeito, o foto de nõo entender logo, foz pulos". C qual vantagem teremos? "£ conhe­
que exercites oquilo que propriamente se cha­ cereis o verdade".
mo fé; de foto, se te fosse dado entender ime­ O que ele promete aos crentes, irmãos?
diatamente, nõo terias necessidade de crer, "£ conhecereis a verdade". Mas como? Nõo a
porque verias com teus olhos. Justomente por­ tinham já conhecido quando o Senhor falava?
que nõo entendes, crês; mos, crendo, tornas-te Se não a tinham conhecido, como puderam
copoz de entender; com efeito, se nõo crês, ja ­ crer? Cies nõo creram porque tinham conheci­
mais conseguirás entender, porque te tornarás do, mas creram paro conhecer. Creiamos tam­
sempre menos copoz. Deixo que o fé te purifi­ bém nós paro conhecer, nõo esperemos co­
que, o fim de que te seja concedido alcançar o nhecer para crer. Aquilo que conheceremos nõo
pleno inteligêncio. pode ser visto pelos olhos, nem ouvido pelos
Agostinho, ouvidos, nem pode ser compreendido pelo
Comentário oo Cvongelho de João, coração do homem. Com efeito, o que é a Fé,
36, 7. senão crer naquilo que nõo vês? fl fé é crer
naquilo que nõo vês; a verdade é ver aquilo
5. R fé é crer naquilo que não vês que creste.
e a verdade é ver aquilo que creste Agostinho,
Comentário oo Cvongelho d e João,
Jesus começou entõo o dizer aos judeus 40, 8-9.
que nele tinham crido; "Se perm anecerdes
no minha polovro [...]". Cie diz "se perma­
necerdes", enquanto já fostes iniciados e já 6. R fé faz ver de modo mais luminoso
começastes o estor no minha polovro. "Se
permanecerdes", isto é, se permanecerdes fl fé ajuda o conhecimento e o amor de
constantes no fé que começou o estor em vós Deus, nõo no sentido de que no-lo faça conhe­
que credes, onde chegareis? Considero quol cer e amar porque antes de fato nõo o conhecía­
é o início e poro onde conduz. Amaste o fun­ mos ou nõo o amávamos, mas nos ajuda a
damento, agora contemplo o vértice, e des- conhecê-lo de modo mais luminoso e a amá-lo
to boixezo levanto o olhor poro o olturo. fl fé com amor mais firme.
supõe certo oboixomento; no visão, no imor­ Agostinho,
talidade, no eternidade nõo há nenhum abai- Fl Trindade, VIII, 9, 13.
106 Terceira parte - yA T-^cvMs+ica n a á v -a a cwl+u^al d e l í n g u a l a t i n a

zem prazer. Reconhece, portanto, qual é a per­


R natureza da Verdade feita harmonia.
Não vás para fora de ti: retorna a ti mes­
mo. A verdade habita no homem interior. € se
Poro fígostinho o Verdade supremo co­ descobrires que tua natureza é mutável, transcen­
incide com Deus: poro olconçor Deus e en­ de também a ti mesmo. Mas, lembra-te, quan­
contrar, portanto, o Verdade, não devemos do transcendes a ti mesmo, transcendes a alma
nos dirigir poro o exterior, mos devemos en­ racional. Tende, portanto, para onde se acen­
trar de novo em nós mesmos, e procurar em de a própria luz do razão.
nosso interioridode: oí habita a Verdode, em Aonde chega, com efeito, todo aquele que
nosso olmo, que é um refíexo e umo ima­ bem raciocina, senão à verdade? Isso porque
gem de Deus, o próprio luz do rozõo. a verdade não alcança a si mesma com o racio­
cínio, mas é aquilo a que tendem aqueles que
raciocinam. Vê aí uma harmonia que não tem
igual, e liga-te a ela. Reconhece que não és
1. Duas passagens tiradas dos Solilóquios aquilo que ela é; justamente porque não pro­
fígostinho: Gs, orei o Deus. cura a si mesma: ao contrário, chegaste a ela
Razão: 6 então, o que queres sober? procurando-a, não de um lugar para outro, mas
fígostinho: Todos os coisas que pedi no com o apaixonado movimento da mente, a fim
oração. de que o homem interior se ligue àquilo que
Razão: Foze um breve resumo. nele habita com um prazer não ínfimo e carnal,
fígostinho: Deus e o alma: eu desejaria mas sumo e espiritual.
conhecer isso. Agostinho, fí verdadeiro religião, 39, 72.
Razão: Nada mais?
fígostinho: Absolutamente nada.
Razão: Antão, começa a procurar.
fígostinho: Cremos no auxílio de Deus.
Razão: Cremos nisso de fato, admitindo R iluminação
que isso esteja em nosso poder.
fígostinho: Nosso poder é ele mesmo.
Razão: Pede, portanto, do modo mais con­ fí doutrino do iluminação é verdadeira­
ciso e perfeito que puderes. mente umo espécie de "lugar clássico" do íi-
fígostinho: Deus, sempre idêntico, possa losofío de fígostinho, sobre o quol muito se
eu conhecer a mim mesmo, possa eu conhecer discutiu em todos os tempos.
a ti! Pedi eu. Troto-se de umo teoria muito belo e,
Rgostinho, Solilóquios, I, 2, 7. no realidade, fácil de entender, coso a d e s­
pojem os dos complicações trazidos p elos
* * * revisões o que muitos intérpretes o subme­
O que, portanto, impede que o olmo recor­ teram. fí inspiração do doutrino é decisivo­
de a originária beleza perdida, quando ela pode mente platônico, mesmo que fígostinho re­
fazê-lo a partir de seus próprios vícios? Assim, jeite o concepção platônico do reminiscêncio.
com efeito, a sabedoria de Deus se estende com fí possogem à que fígostinho s e refere, ao
força de um confim ao outro. Assim, por meio contrário, de modo positivo é o possogem
dele, o sumo artífice ligou ordenadamente suas do República sobre o Bem.
obras para a direção do único fim da beleza. O Bem, diz Platão, é comparável oo sol
Assim a sua bondade, a partir das criaturas mais e à suo luz. físsim como o sol torno os cores
altas até as mais baixos, não negou alguma dos coisas e os coisos em gero! visíveis e os
beleza, que apenas dele podia provir, de modo olhos capazes de ver, onologomente o Bem
que ninguém pode se afastar da verdade e não torno os realidades ideais inteligíveis e o
ser tomado por algum sinal dela. olmo rocionol inteligente, ou sejo, capaz de
Agostinho, Solilóquios, II, 1, 1. conhecer os inteligíveis. O Bem, portanto, p o ­
ro Plotão é couso do verdode e do capaci­
2. Uma passagem emblemática dade do olmo de conhecer o verdode.
de A verdadeira religião Do mesmo fármo, poro fígostinho, a s­
sim como Deus enquanto Se r supremo parti­
Procura o que fascina no prazer do corpo: cipo o s e r á s coisos que crio, onologomente,
encontrarás apenas a harmonia. Uma vez que enquanto Verdode supremo, é couso do Ver­
os contrastes produzem dor, os acordes produ­ ---------------------------------------------------
107
Capitulo SCXtO - S a n t o y \ g o s + in K o e o a p o g e u d a P a + e ís + ic a

lo qual são boas e belas todas as coisas que


dade objetivo, que é por sua vez causo da são boas e belas. Deus luz inteligível, no qual,
capacidade do mente humana d e conhecer do qual e pelo qual resplandece inteligivel­
a verdade, produzindo nas mentes como que
mente tudo aquilo que inteligivelmente res­
certa morca metafísica, não tanto na forma
plandece.
d e Idéias inatas, mas como abertura meta­
Rgostinho, Solilóquios, 1, 1, 3.
Físico do olmo poro o verdade. Neste senti­
do, justamente, Deus nos ilumino. De modo
significativo e eficaz Rgostinho assim sinteti­ 2. Contra a doutrina da reminiscêncio
za a s características divinas até aqui descri­ Se o esquecimento cancelou tudo, sob a
tas: como o sol existe, resplandece e ilumi­ guia do ensinamento pode-se novamente a l­
na, também Deus existe, é inteligível e cançar aquilo que desaparecera completamen­
comunica inteligibilidade. te e assim será reencontrado como era. Por isso,
Citamos as passagens clássicas tiradas Platão, o célebre filósofo, esforçou-se por per­
dos Solilóquios e d e fl Trindade. Csta última suadir-nos de que as almas viveram aqui antes
inclui também a crítica à doutrina platônica ainda de unir-se a estes corpos e por isso se
do reminiscêncio. explica que aquilo que se aprende é reminis-
(Notemos que o doutrino platônica da cência daquilo que já se conhecia, mais do que
reminiscêncio não está indissoluvelmente li­ conhecimento de alguma coisa nova. Com efei­
gada oo que Platão sustento na República. to, ele conta que um escravo, interrogado so­
Tudo o que diz na República liga-se, ao in­ bre questões de geometria, respondeu como
vés, com tudo o que afirma no mito do carro um mestre versado naquela disciplina. Interro­
a lado e do Hiperurônio, onde o s almas gado gradualmente e com jeito via aquilo que
"vêem" as idéias na "planície do verdade": devia ver e dizia aquilo que tinha visto. Mas,
e, portanto, na luz do verdade). caso aqui se tratasse de uma lembrança de
coisas anteriormente conhecidas, não seria pos­
sível a todos ou o quase todos responder a
perguntas de tal gênero. Com efeito, nem to­
1. fl iluminação como fundamento dos foram geômetras em sua vida anterior, e
do conhecimento os geômetras são tão raros entre os homens
Deus é inteligível, e inteligíveis são tam­ que a custo se pode encontrar algum deles.
bém os princípios das ciências; todavia, há no­ Rgostinho, fí Trindade, XII, 14,23-15,24.
tável diferença entre as duas coisas. Com efei­
to, tanto a terra como a luz são visíveis: mas a 3. fl luz incorpórecí da iluminação
terra não pode ser vista se a luz não brilhar.
Deve-se, portanto, crer que também os conhe­ C preciso antes pressupor que a natureza
cimentos que são transmitidos nos ciências, e da alma intelectiva foi feita de modo que, uni­
que todo aquele que é capaz de entender ad­ da, conforme a ordem natural disposta pelo
mite sem nenhuma dúvida serem veríssimos, Criador, às coisas inteligíveis, as percebe em
não podem ser compreendidos se não forem uma luz incorpórea especial, do mesmo modo
iluminados por outra coisa, como por um sol que o olho carnal percebe aquilo que o circun­
deles. da, na luz corpórea, pois ele foi criado capaz
Portanto, como no sol natural podemos desta luz e para ela ordenado.
observar três coisas: que existe, que resplan­ Rgostinho, fí Trindade, XII, 14,23-15,24.
dece e que ilumina, assim, naquele Deus e s­
condido que queres conhecer existem três ou­
tras coisas: que existe, que é inteligível e que
torna inteligíveis todas os outras coisas.
C eu quero ensinar-te a compreender e s­
A natureza do Bem
tas duas coisas, ou seja, a ti mesmo e a Deus.
Rgostinho, Solilóquios, I, 8, 15.
Conforme Rgostinho, os conotações
Deus vida verdadeira e suprema, no qual, fundamentais do Bem são três: "medida",
do quol e pelo qual vivem todas as coisas que "forma" e "ordem". M edida, no sentido de
verdadeiramente e supremamente vivem. determ inação preciso do ente enquanto
Deus felicidade, no qual, do qual e pelo finito: forma, enquanto fundamento numéri­
qual são felizes todos aqueles que são felizes. co último de distinção; ordem (ou peso ) en-
Deus bondade e beleza, no qual, do qual e pe­ -------------------------------------------------- ►
108 Terceira parte - y\ 1- \ \ frís tO r\ v\ c\ á ^ e a cu ltu ral d e lín g u a latina

Deus é espírito imutável.


quanto consistência ontológico 0 posição O espírito mutável é uma natureza criada,
oxiológico. mas melhor que o corpo.
Estes conceitos sã o deduzidos tanto Com efeito, o corpo não é espírito, com ex­
do tradição neoplotônico, que remonto oté ceção do vento, que em certo sentido diferente
o s doutrinas não escritos do próprio Platão, é chamado de "espírito", porque é invisível para
como d os textos bíblicos, e em porticulor nós, e todavia sua força não é sentida como
d o livro do S ab e d o ria . N este se n tid o , pequena.
Deus 0 a M ed id o suprem o d e to d o s o s
coisas, enquanto o mol é desm ed id o 0
desordem , isto é, privação d e medido e de 2. Uma natureza antitética a Deus
ordem. foi erroneamente introduzida
pelos Maniqueus.
Indicação do modo
pelo qual este erro é superado
1. Deus é Bem supremo
No que se refere àqueles que, não con­
acima do qual não há nada
seguindo compreender que toda natureza, isto
e do qual derivam todos os bens,
é, todo espírito e todo corpo, é naturalmente
grandes e pequenos.
bom, se sentem perturbados pela iniqüidade
O Bem supremo,
do espírito e pela mortalidade do corpo, e por
acima do qual não há nada, é Deus;
este motivo procuram introduzir outra nature­
e por isso é um bem imutável e,
za do espírito maligno e do corpo mortal que
portanto, verdadeiramente eterno
Deus não criou: pois bem, nós pensamos que
e verdadeiramente imortal
isso que dizemos possa alcançar sua com­
Todas as outras coisas são apenas obra preensão.
dele, mas não existem a partir dele. Com efei­ Cies admitem, com efeito, que todo bem
to, aquilo que existe a partir dele coincide com não pode existir a não ser por obra do Deus
aquilo que ele próprio é; ao contrário, as coi­ supremo e verdadeiro.
sas que foram feitas por obra dele, não são € isto é verdadeiro, e é suficiente para
aquilo que ele próprio é. corrigi-ios, uma vez que queiramos prestar
Portanto, se apenas ele é imutável, todas atenção.
as coisas que fez, enquanto as fez do nada,
são mutáveis.
3. De Deus derivam todos os bens criados
Com efeito, ele é tão onipotente que está
em função da medida,
em grau de produzir também do nada, ou seja,
da formo e da ordem
daquilo que de fato não existe, coisas boas,
tanto grandes como pequenas, celestes e ter­ Nós, cristãos católicos, veneramos um Deus
restres, espirituais e corpóreas. por obra do qual existem todos os bens, tanto
Uma vez que, verdadeiramente, ele é tam­ grandes como pequenos; por obra do qual exis­
bém justo, não tornou as coisas que fez do nada te toda medida, tanto grande como pequena;
iguais àquilo que gerou a partir de si. por obra do qual existe toda forma, tanto gran­
Portanto, a partir do momento que todas de como pequena; por obra do qual existe toda
as coisas boas, tanto grandes como pequenas, ordem, tanto grande como pequena.
em qualquer nível da realidade se encontrem, Com efeito, todas as coisas, quanto mais
não podem existir a não ser por obra de Deus, são dotadas de medida, de forma e de ordem,
segue-se que toda natureza enquanto natureza tanto mais são boas sob todo aspecto; ao con­
é um bem, e que toda natureza não pode existir trário, quanto menos são dotadas de medida,
a não ser a partir do Deus supremo e verdadei­ de formo e de ordem, tanto menos são boas.
ro: com efeito, todos os bens também não su­ Portanto, estas três coisas: medida, for­
premos mas vizinhos ao bem supremo, e até to­ ma e ordem, para não falar das inumeráveis
dos os bens, também os menores que existem outras que aparecem ligadas a estas três; e s­
bem longe do Bem supremo, não podem existir tas três coisas, portanto, toda medida, forma e
a não ser por obra do mesmo Bem supremo. ordêm, são como bens gerais nas coisas que
Por isso, todo espírito, também mutável, foram feitas por Deus, tanto no espírito como
e todo corpo existem por obra de Deus: e tal é no corpo.
toda natureza criada. Por este motivo Deus está acima de toda
Com efeito, toda natureza é ou espírito ou forma, acima de toda ordem. 6 está acima não
corpo. pela distância espacial, mas por uma potência
109
Capítulo seXtO - S a n t o ; A g o s + i u f\ o e o a p o g e u d a T-Çafns+ica

inefável e singular, da qual deriva toda medi­ Cu, porém, chamo de hyle certa matéria
da, toda forma e todo ordem. completamente informe e sem qualidades, da
Onde estas três coisas são grandes, os qual se formam estas qualidades que perce­
bens são grandes; onde são pequenos, os bens bemos.
são pequenos; onde de fato não existem, não € é por isso que em grego hq/e significa
existe nenhum bem. lenho, porque para aqueles que trabalham ela
C além disso, onde estas três coisas são se apresenta não tanto como capaz de elo pró­
grandes, as naturezas são grandes; onde são pria fazer algo, mas como aquilo com que se
pequenas, os naturezas são pequenas; onde pode fazer alguma coisa.
de fato não existem, não existe nenhuma na­ Portanto, não se deve chamar de mal
tureza. esta matéria que não se pode perceber me­
diante alguma forma, mas que dificilmente se
pode pensar com todo tipo de privação de
4. O mal como corrupção do medida,
forma.
da formo e da ordem
Com efeito, ela tem capacidade de rece­
Por isso, quando se pergunta de onde ber formas: de fato, se não pudesse receber a
deriva o mal, primeiro se deve procurar o que é forma imposta pelo artífice, não poderio abso­
o mal. lutamente se chamar de matéria.
O mal não é mais que corrupção ou da Por outro lado, se a formo é determinado
medido, ou da forma, ou da ordem natural. bem, pelo qual aqueles que prevalecem pela
Por isso se diz natureza má aquela que é forma são ditos de forma adequada, e pela
corrompida: com efeito, uma natureza incorrupta beleza são chamados belos, está fora de dúvi­
é boa sob todo aspecto. da de que também a capacidade de receber
Todavia, também o mesma natureza cor­ forma é igualmente um bem.
rupta, enquanto natureza, é boa; enquanto é Assim, por exemplo, a partir do momento
corrupta, ao contrário, é má. [...] que a sabedoria é um bem, ninguém duvida de
que a capacidade de receber sabedoria seja
um bem.
5. Não existe uma natureza má enquanto tal
C, uma vez que todo bem existe por obra
Nenhuma natureza, portanto, enquanto é de Deus, ninguém deve duvidar de que tam­
natureza, é má; mas para cada natureza não bém esta matéria, se é algo, não pode existira
existe mol o não ser o de ser diminuída no bem. não ser por Deus.
Todavia, se, com a diminuição, o bem se
perdesse até anulor-se, não permanecería,
desse modo, nenhumo natureza; não apenas
7. Deus é o ser verdadeiro e imutável
não permanecería aquele tipo de natureza que
do qual apenas o nada é contrário
os Maniqueus supõem, em que se encontram De modo esplêndido e divino nosso Deus
tontos bens que demonstram sua cegueira ver­ disse a seu servo: "Cu sou aquele que sou; e
dadeiramente extraordinária, mas nem mesmo aos filhos de Israel dirás: 'Aquele que é ’ man­
qualquer tipo de natureza que alguém pudes­ dou-me a vós".
se imaginar. Com efeito. Deus existe verdadeiramen­
te, porque é imutável. De fato, toda mutação
faz não existir aquilo que existia. Por isso é ver­
6. Também a matéria é um bem
dadeiramente ser aquele que é imutável.
e também ela deriva de Deus
As outras coisas que por ele foram feitas,
Não se deve dizer que a matéria que os receberam o ser dele conforme sua medida.
antigos chamaram hq/e seja um mal. Por isso, a ele que existe em sumo grau
Não falo daquela que Mani, com tola vai­ nada pode ser contrário a não ser aquilo que
dade, chama hyle, formadora dos corpos, não não existe.
sabendo o que diz, motivo pelo qual com razão
se lhe objeta introduzir outro Deus, pelo fato
8. Deus como Medida suprema e Sumo Bem
de que ninguém pode formar os corpos a não
ser Deus. Não se deve dizer que Deus tem certa
Com efeito, os corpos não são criados, se medida, de modo que não se creia que dele se
com eles não subsistem medida, forma e or­ diga que tem um fim.
dem, que são bens, e que não podem existir a Nem, todavia, é sem medida aquele por
não ser por obra de Deus, que, creio, os pró­ obra do qual foi conferida uma medida para
prios Maniqueus admitem. todas as coisas.
110 Terceira parte - y-\ V a t r í s t i c a n a á r e a c u l t u f a l d e l í n g u a l a t i n a

Nem, por outro lodo, é oportuno dizer que ou é menos ordenada do que deveria ser, ou
Deus é medido, como se ele tivesse recebido não é ordenada do modo como deveria ser.
de olguém uma medida. Concluindo, onde existe certa medida, cer­
Todavia, se dizemos que Deus é a Medi­ ta forma e certa ordem, existe também certo
da suprema, talvez dizemos algo, se, porém, bem e certa natureza. Ro contrário, onde não
com aquilo que chamamos Medida suprema, existe nenhuma medida, nenhuma forma e ne­
nós entendemos o Sem supremo. nhuma ordem, não existe nenhum bem e ne­
Com efeito, toda medida, enquanto me­ nhuma natureza.
dida, é um bem. Rgostinho, Natureza do Bem.
Por isso todas as coisas que foram medi­
das, que têm justa e conveniente medida não
podem ser denominadas sem valor; mesmo que,
em outro significado, entendamos “medida" no
sentido de “fim", para dizer que não existe me­
dida onde não existe um fim. fls "Idéias"
Por vezes dizemos isso como elogio, como como pensamentos de Deus
quando se diz: ”C o seu reino não terá fim". Nes­
te caso se poderio também dizer que não terá
medida, desde que se entenda medida no sen­ Sobre a teoria das Idéias, uma das maio­
tido de fim. Com efeito, aquele que reina sem res conquistas do pensam ento platônico,
alguma medida, de algum modo não reina. Rgostinho expressou claramente sua p osi­
ção em uma Quaestio específica.
R s Idéias não são, para ele, seres sub­
9. Medida, forma e ordem
sistentes em si e por si, como uma esfera de
são sempre boas
realidades que subsistem por si.
e podem ser considerados mós
R s Idéias são as formas paradigmá­
apenas relativamente,
ticos, os modelos das coisas, os razões ou e s ­
ou seja, caso se manifestem inferiores
truturas estáveis e imutáveis, segundo as
ao que deveríam ser
quais são feitas todas as coisas.
Portanto, dizemos que a medida é má, a € de tal forma Importante o conceito de
forma é má, a ordem é má enquanto são inferio­ "Idéia'', diz Rgostinho, que todos aqueles que
res ao que deveriam ser, ou quando não se adap­ fizeram filosofia de algum modo o tiveram,
tam às coisas às quais devem estar adaptadas. mesmo que não o tenham expresso de modo
Tais coisas são, portanto, chamadas de preciso. Não é com efeito possível se r filó­
más, enquanto são estranhas e incongruentes, sofo sem este conceito.
como se disséssemos que alguém não se com­ Pois bem, para Rgostinho as Idéias são
portou de modo bom, enquanto agiu de modo a verdadeiro realidade, como queria Platão,
inferior de como deveria ter agido, ou enquan­ mas não subsistentes em si e por si, e sim
to agiu como em tal circunstância não deveria subsistentes como pensamentos eternos de
ter agido, ou fez mais do que deveria, ou de Deus. R s Idéias estão na mente de Deus, e
modo não conveniente. De modo que o que é portanto o Hiperurônio platônico é a mente
reprovado, ou seja, o ato feito de modo mau, de Deus.
com justa razão não é reprovado por outro mo­ Nessa direção o Potrística grega já se
tivo a não ser pelo motivo que nele não foi man­ movera de modo claro, mas também o pen ­
tida a medida. samento greco-pagão, tanto os Platônicos
Do mesmo modo, dizemos que uma forma dos primeiros dois séculos da era cristã como
é má ou por comparação com uma mais agracia­ Plotino, que pusera justamente no Nous, ou
da e mais belo, enquanto esta é uma forma in­ seja, no Fspírito ou Inteligência, o mundo das
ferior e a outra é superior, não por grandeza, Idéias na sua globalidade. M as para os pen­
mas por elegância; ou então porque ela não sadores cristãos o ponto d e partida fora
convém à coisa à qual foi aplicada, de modo que indubitavelmente Fílon de Rlexandrio, escri­
se manifesta estranha e inconveniente, como se tor judeu (que viveu na primeira metade do
um homem caminhasse nu em público; coisa que séc. I d.C.), que foi o primeiro a apresentar
não é de estranhar, caso aconteça no banho. os Idéias platônicas como contidas no Logos
Do mesma forma, também a ordem deno­ divino, e produzidas por Deus. Todavia, uma
mina-se mó, quando o própria ordem apareça vez que a passagem em que Fílon exprime
como inferior à devido; por isso, neste caso não é este seu pensamento é d e importância his-
a ordem que é má, e sim a desordem, enquanto -------------------------------------------------- ►
111
Capitulo S C X tO - S a n t o ^ g o stirtk o e o a p o g e - u d a T^a+nísfica

tamo-nos da tradução literal, porque rationes


tórico capital, para compreender a evolução corresponde ao grego logoi, mas quem quiser
do pensamento antigo e cristão sobre este usar este vocábulo (rationes) não trairá o sen­
tema, e portanto também paro compreender tido da expressão. As Idéias são de fato for­
o Quaestio agostiniana, referimos o ponto mas fundamentais, ou razões estáveis e imutá­
cardeal da mesma passagem : "[...] poder- veis das coisas — que por sua vez são formadas
se-ia dizer que o mundo inteligível não é mais e por isso são eternas e sempre idênticas —
que o logos divino já empenhado no ato da as quais estão contidas na inteligência divina.
criação. Com efeito, a cidade concebido no € embora estas não nasçam nem morram, to­
pensamento não é mais que o raciocínio cal­ davia, sobre seu modelo forma-se tudo aquilo
culado do arquiteto quando está projetando que pode nascer e morrer e tudo aquilo que
fundar o cidade que tem em mente". "[...] o nasce e morre.
mundo inteligível só p ode se r Identificado
com o logos divino". 3. O homem conhece
fí alma humana capta as Idéias, ou seja, as "Idéias” por meio da alma
o inteligível, justamente com a inteligência,
como que "iluminado". fí doutrina das Idéias A alma não pode conhecer as Idéias se
leva assim à doutrina da iluminação. não for alma racional, com a parte de si que é
superior, isto é, com o espírito (mens) e com a
razão, como que com sua face ou olho interior
e inteligível. € nem toda e qualquer alma racio­
1. O significado do termo "Idéia” nal é idôneo poro esta visão, mas aquela que
é santa e pura, ou seja, aquela que tem olho
Afirma-se que Platão foi o primeiro a no­ são, claro e sereno, com o qual pretende ver
mear as Idéias. Todavia, mesmo que este ter­ as Idéias, de modo que seja semelhante às
mo não existisse antes que ele o cunhasse, nem próprias Idéias.
por isso não existiam as realidades que ele
chamou de Idéias, ou não existia o conhecimen­ 4. fls "Idéias”
to destas realidades; mas provavelmente fo­ estão na mente do Deus criador
ram chamadas por outros com nomes diversos.
€ lícito com efeito impor qualquer nome a uma Quem ousaria, seja religioso ou formado
realidade conhecida que ainda não tenha um na verdadeira religião, mesmo que ainda não
nome usual. Não é verossímil, de fato, ou que possa intuiras Idéias, negar sua existência? Ao
não tenha havido nenhum filósofo (sapiens) contrário, afirmará que tudo aquilo que existe,
antes de Platão, ou que ninguém tenha tido isto é, todas as coisas que foram determina­
conhecimento dessas realidades, de qualquer das em seu gênero por uma natureza própria
forma que sejam concebidas, que Platão cha­ para poder existir, foram criadas por Deus, e
ma de idéias, pois tal é seu valor que, sem delas por obra sua vive tudo aquilo que tem vida, e
ter conhecimento, ninguém pode ser chamado toda a conservação do universo, e a própria
de filósofo. A é crível que tenham existido filó­ ordem com a qual as coisas mutáveis seguem
sofos também em outros povos, além da Grécia: seu curso temporal com determinada medida,
coisa não só atestado por Platão nas viagens tudo isso está contido e é governado por leis
realizadas para enriquecer sua sabedoria, mas do Altíssimo.
também afirmada em seus escritos. Se, portan­ Ora, estabelecido e concedido isso, quem
to, existiram tais filósofos, não se pode afirmar ousaria dizer que Deus criou todas as coisas
que tenham ignorado as Idéias, mesmo que as irracionalmente? A se isso não se pode dizer
tenham chamado com outro nome. nem crer, daí se conclui que cada coisa foi cria­
Mas agora basta sobre o nome. Vejamos da conforme a razão. Mas seria absurdo pen­
o que são as Idéias, que importa considerar e sar que o homem tivesse sido criado segundo
conhecer acima de tudo, deixando ao arbítrio a mesma razão ou Idéia do cavalo.
de cada um chamá-las como quiser, quando as Toda coisa, portanto, foi criada segundo
tiver conhecido. uma razão ou Idéia própria. A tais razões ou
Idéias onde se deve pensar que estejam a não
ser na mente do Ariador? Aom efeito, Deus não
2. fis "Idéias”
podia certamente olhar para algo colocado fora
como razões imutáveis das coisas
de si para criar sobre o modelo disso aquilo
Podemos chamar as Idéias, em latim, de que procurava: seria sacrílego pensar assim.
formae ou species, se quisermos traduzir lite­ Ora, se estas razões de todas as coisas
ralmente. Se as chamamos de rationes afas- criadas ou a serem criadas estão contidos na
112
Terceira parte - y \ P a M s + ic a n a á n & a cn ltu r a l Ií n g u a í a f m a

mente divina, e na mente divina não pode existir


nada que não seja eterno e imutável, e estas dispensável, porque apenas a inteligência que
razões fundamentais das coisas são as que Pla­ existe na alma tem capacidade de numerar.
tão chama de Idéias, não apenas existem as Portanto, conclui fíristóteles, 'ê impossível a
Idéias, mas as Idéias são a verdadeira realida­ existência do tempo sem a da alma".
de, porque são eternas e imutáveis e, por par­ Cm Plotino, depois, a Função temporali-
ticipação nelas, tudo aquilo que existe exis­ zadora da alma torna-se até metaFisicamente
te, seja qual for o seu modo de ser. determinante.
fígostinho dá á doutrina do tempo uma
coloração Fortemente psicológica, na dimen­
5. A inteligência humana
são da interioridode que é uma cifra deter­
conhece as "Idéias”
minante do seu pensamento.
porque iluminada pela luz inteligível
FUém disso, devemos dizer que as an­
Mas a alma racional é a coisa mais alta tecipações dos Filósofos que mencionamos
de todas as coisas criadas, e é a mais próxima teriom permanecido pouco incisivos e pouco
de Deus, quando é puro, e enquanto adere a influentes sem a revisão de fígostinho, que
ele com a caridade, é também inundada por portanto se impõe como determinante.
ele de luz inteligível, e assim, iluminada, perce­ fí célebre objeção que era Feita por mui­
be estas razões, não com os olhos do corpo, tos: "o que Fazia Deus antes de criar o mun­
mas com a parte principal de si, ou seja, com a do?", fígostinho, com esto teoria do tempo
inteligência, e em virtude desta visão torna-se como tendo sido criado com o mundo, dá uma
beatíssima. Tais razões, conforme dissemos, resposta perfeita: Deus é eterno, e o eterno
podem ser chomadas de formos ou espécies não é mensurável com o tempo; portanto,
ou razões e a muitos é concedido nomeá-las antes de criar o mundo não existia um "an­
como querem, mas a poucos concede-se ver o tes" e um "depois", porque existia justamen­
que verdadeiramente são. te apenas a eternidade e não o tempo.
Agostinho, O tempo, depois, é um distensão p si­
De diversis quaestionibus. Quoestio d e Ideis. cológica, ou seja, uma extensão da olmo que
registra o passado e espera o Futuro, no pre­
sente, e dá unidade à pluralidade do tempo
em devir.

A criação do tempo
1. O que fazia Deus antes de criar o céu
e suo natureza e a terra?
l\lão estariam talvez cheios de sua velhice
fí teorio do tempo de fígostinho tornou- os que nos perguntam: "O que fazia Deus antes
s e Famoso. Com efeito, ela tem uma e sp e s­ de fazer o céu e a terra? Se, com efeito, conti­
sura teórica verdadeiramente notável e p o s­ nuam, estava ocioso sem operar, por que tam­
sui tríplice matriz. bém depois não permaneceu sempre no estado
De um lado, inspira-se no Ti meu de primitivo, sempre abstendo-se de operar? Se de
Platão, ao menos em um ponto. FUém disso, fato se desenvolveu em Deus um impulso e uma
tem um precedente conspícuo, em outro pon­ vontade nova de estabelecer uma criação que
to, em fíristóteles. Por Fim, ligo-se à proble­ antes jornais estabelecera, seria ainda uma eter­
mática do tempo tratada por Plotino. nidade verdadeira aquela em que nasce uma
Platão, no Ti meu, dissera que a verda­ vontade antes inexistente? A vontade de Deus
deira dimensão ontológica do mundo inteli­ não é uma criatura, e sim anterior a toda criatu­
gível é o da eternidade; o tempo, portanto, ra, porque nada seria criado sem a vontade pré-
é apenas a dimensão do cosmo e do se r existente de um criador. Portanto, o vontade de
Físico. O tempo foi criado pelo Demiurgo jun­ Deus é uma só coisa com a sua substância. C se
to com o mundo e, portanto, antes da cria­ na substância de Deus surgiu algo que antes não
ção do mundo não existia tempo. existia, tal substância é chamada erroneamente
fíristóteles, na Física, definira o tempo de eterna. Por outro lado, se era vontade eterna
como "número do movimento conforme o an­ de Deus que existisse a criatura, como não serio
tes e o depois"; mas a numeração do antes e eterna também a criatura?"
do depois supõe o alma como condição in­ Os que assim falam não te compreendem
--------------------------------------------------- ainda, ó sabedoria de Deus, luz das mentes.
113
Capítulo sexto - S a n t o y \ 0 o s t i n k o e o a p o g e u d a l-^a+Ws+ica

Nõo compreendem ainda como nasce aquilo os séculos? Como teria existido um tempo não
que nasce de ti e em ti. Quereríam conhecer o iniciado por ti? C como teria transcorrido, caso
eterno, mas sua mente vaga ainda de modo jamais tivesse existido? Tu, portanto, és o ini­
vão no fluxo do passado e do futuro. ciador de todo tempo, e se houve um tempo
Quem a deterá e a fixará, a fim de que, antes que criasses o céu e a terra, não se pode
estável por breve tempo, colha por breve tem­ dizer que te obstinhas de operar. Também aque­
po o esplendor da eternidade sempre estável, le tempo era obra tua, e não puderam transcor­
confronte-o com o tempo jamais estável, e veja rer tempos antes que tivesses criado um tem­
como não se pode instituir um confronto, assim po. Portanto, se antes do céu e da terra não
como a duração do tempo duro pelo passagem existia tempo, por que perguntar o que fazias
de muitos movimentos, que não podem desen­ então? Não existia um então onde não existia
volver-se simultaneamente, enquanto no eterni­ um tempo.
dade nada passa, mas é tudo presente, de modo
diferente do tempo, jamais todo presente; como
4. O hoje da Divindade é a eternidade
o passado seja sempre impulsionado pelo fu­
turo, e o futuro siga sempre o passado, e pas­ Mas não é no tempo que precedes os tem­
sado e futuro nasçam e fluam sempre daquele pos. De outro modo não os terias a todos pre­
que é o eterno presente? Quem deterá a mente cedido. C tu precedes todos os tempos passa­
do homem, a fim de que se estabeleça e veja dos pelo vértice de tua eternidade sempre
como o eternidade estável, não futura nem pre­ presente, superas todos os futuros, porque ora
sente, determine futuro e presente? Seria minha são futuros, e depois chegados serão passa­
mão capaz de tanto ou a mão da minha boca dos. Tu, ao contrário, és sempre o mesmo, e
produziría com palavras um efeito tão grande? teus anos jamais terminarão. Teus anos não vão
nem vêm, a fim de que todos possam vir. Teus
2. Deus antes de fazer o céu e a terra anos estão todos ao mesmo tempo, porque são
não fazia nada estáveis; não se vão, eliminados pelos que vêm,
porque não passam.
Gs como respondo o quem pergunta: "O Cstes, ao invés, os nossos, existirão to­
que fazia Deus antes de fazer o céu e a terra?1'. dos quando todos não existirem mais.
Não respondo como aquele fulano que, dizem, Teus anos são apenas um dia, e teu dia
respondeu eludindo com uma piada a insídia da não é todo dia, mas hoje, porque o teu hoje
pergunta: "Preparava a geena para quem pers- não precede ao amanhã, como não sucedeu ao
cruta os mistérios profundos". Uma coisa é en­ ontem. Teu hoje é a eternidade. Por isso geras­
tender, outra caçoar. (fu não responderei assim. te coeterno contigo aquele do qual disseste:
Prefiro responder: "Não sei o que não sei", em "Hoje te gerei". Tu criaste todos os tempos, e
vez de ridicularizar quem fez uma pergunta pro­ antes de todos os tempos tu existes, e sem
funda, e elogiar quem deu uma resposta falsa. nenhum tempo não havia tempo.
Digo, ao contrário, que tu. Deus nosso, és o cria­
dor de toda coisa criada; e se com o nome de
5. O conceito de tempo
céu e terra se entende toda coisa criada, ousada-
mente digo: "Deus, antes de fazer o céu e a ter­ Não existiu, portanto, um tempo, durante o
ra, nõo fazia nada". Com efeito, se fazia algo, o qual terias feito nada, pois o próprio tempo foi
que fazia, a não ser uma criatura? Oh, se eu sou­ feito por ti, e não há um tempo eterno contigo,
besse o quanto desejo com minha vantagem de pois és estável, enquanto um tempo que fosse
saber, do mesmo modo como sei que não exis­ estável não seria tempo. O que é o tempo?
tia nenhuma criatura antes da primeira criatura! Quem sabería explicá-lo de modo claro e bre­
ve? Quem saberia dele formar mesmo que ape­
3. Nõo há tempo sem criação nas o conceito na mente, para depois expressá-
lo em palavras? € ainda, qual palovra mois
Se algum espírito leviano, vagueando familiar e conhecida do tempo ocorre em nos­
entre as imagens do passado, se admira de sas conversas? Quando somos nós que fala­
que tu, Deus que tudo podes e tudo crias e mos, é certo que entendemos, e entendemos
tudo manténs, autor do céu e da terra, tenhas também quando dele ouvimos outros falarem.
te abstido de tanto operar, antes de tal cria­ O que é, portanto, o tempo? Se ninguém me
ção, por inumeráveis séculos, se levante e ob­ interroga, eu sei; se quisesse explicá-lo a quem
serve que sua admiração é infundada. Como me interroga, não sei. Isto porém posso dizer
poderíam passar inumeráveis séculos, se tu não com confiança de saber: sem nada que passe,
os tivesses criado, autor e iniciador de todos não existiría um tempo passado; sem nado que
114
Terceira parte - / \ V a M s t í c a n a ó ^ e a c u ltu r a l d e lín g u a latina

venha, nõo existiría um tempo futuro; sem nado o pensamento para medir a voz, como se res­
que existo, nõo existirio um tempo presente. soasse a fim de que possamos referir algo so­
Dois, portonto, desses tempos, o possodo e o bre intervalos de silêncio em termos de exten­
futuro, como existem, dado que o primeiro nõo são temporal? Também sem empregar a voz e
existe mais e o segundo ainda nõo existe? C os lábios percorremos com o pensamento poe­
quanto ao presente, se fosse sempre presen­ mas e versos e discursos, referimos todas as
te, sem traduzir-se em passado, nõo seria mais dimensões de seu desenvolvimento e as pro­
tempo, mas eternidade. Portanto, se o presen­ porções entre os vários espaços de tempo, exo-
te, para ser tempo, deve traduzir-se em passa­ tamente como se os recitássemos falando.
do, como podemos dizer também dele que exis­ Quem, desejando emitir um som mais extenso,
te, se a razão pela qual existe é que nõo primeiro determinou sua extensão com o pen­
existirá? Portanto, nõo podemos falar com ver­ samento, certamente reproduziu em silêncio
dade da existência do tempo, a não ser en­ esse espaço de tempo e, confiondo-o à me­
quanto tende a não existir. mória, começa a emitir o som, que se produz
até que seja levado ao termo preestabelecido:
ou melhor, produziu-se e se produzirá, pois a
6. Os três tempos:
parte já realizado evidentemente se produziu,
o presente do passado,
a que permanece se produzirá. Rssim se reali­
o presente do presente
za. R tensão presente faz passar o futuro para
e o presente do futuro
o passado, o passado cresce com a diminuição
Um fato agora está claro: nem o futuro nem do futuro, até que com a consumação do futuro
o passado existem. £ inexato dizer que os tem­ tudo será apenas passado.
pos são três; passado, presente e futuro. Talvez Mas como diminuiría e se consumaria o
fosse exato dizer que os tempos são três: pre­ futuro, que ainda nõo existe, e como crescería
sente do passado, presente do presente, pre­ o passado, que nõo existe mais, senão pela
sente do futuro. £stas três espécies de tempos existência no espírito, autor desta operação,
existem de algum modo na alma e nõo vejo em dos três momentos da espera, da atenção e
outro lugar: o presente do passado é a memória; da memória? Dessa forma, o objeto da espera
o presente do presente, a visão; o presente do feito objeto da atenção passa à memória. Quem
futuro, a espera. Permitam-me estas expressões nega que o futuro nõo existe ainda? Todavia,
e então vejo e admito três tempos, e três tem­ existe já no espírito a espera do futuro. £ quem
pos existem. Diga-se ainda que os tempos sõo nega que o passado nõo existe mais? Todavia,
três: passado, presente e futuro, conforme o existe ainda no espírito a memória do passa­
expressão abusiva que entrou em uso; digo-se do. £ quem nega que o tempo presente carece
também o seguinte: vede, nõo reparo, nõo con­ de extensão, sendo um ponto que passa? To­
tradigo nem zombo de ninguém, contanto que davia, perdura a atenção, diante da qual corre
se compreenda aquilo que se diz: que o futuro para seu desaparecimento aquilo que aí apa­
agora não existe, nem o passado. Raramente rece. O Futuro inexistente, portanto, nõo é lon­
nós nos exprimimos com exatidão; no mais das go, mas um longo futuro é a espera longa de
vezes nos exprimimos inexatamente, mas é pos­ um futuro; da mesma forma, nõo é longo o pas­
sível reconhecer o que queremos dizer. sado, inexistente, mos um longo passado é a
memória longa de um passado.
7. No ânimo está a medido do tempo Rgostinho, Confissões.

6 em ti, espírito meu, que meço o tempo.


Não te precipites contra mim: é assim; não te
precipites contra ti por causa de tuas impres­
sões, que te perturbam, £ em ti, repito, que
meço o tempo. R impressão que as coisas pro­ O "sábado"
duzem em ti em sua passagem, e que perdura de felicidade eterna
depois de sua passagem, é tudo o que meço, na Cidade de Deus
presente, e nõo tanto as coisas que passam,
para produzi-la; é tudo o que meço, quando e o "oitavo dia"
meço o tempo.
£ este é, portanto, o tempo, ou nõo é o Podemos dizer que os "duos Cidades",
tempo que meço. Mas quando medimos os si­ já concebidos, embora em medido limitada,
lêncios e dizemos que tal silêncio durou tanto por Platão, no final do livro IX da suo Repúbli-
tempo, quanto durou tal voz, nõo concentramos
115
Capítulo SeXtO - 5 c m fo ^ 0 o s + in K o e. o apogeu d a T M - f r ís t ic a

guromente mois livre, enquonto liberto do fas­


co, levam às extremas conseqüências aquilo cínio do pecado, chegando o sentir o fascínio
que ainda o próprio Platão havia entrevisto. irremovível do não querer mois pecar. Com efei­
Platão dizia, com efeito, que existem to, o livre-orbítrio, que primeiro foi dado oo ho­
dois modos d e viver: aquele que s e funda­ mem, quando inicialmente foi criodo reto, terio
mento sobre o "medida“ do homem e aque­ podido não pecar, mas terio podido também
le que considera ao invés Deus como "medi­ pecar; o livre-orbítrio final oo invés será ainda
da d e todas as coisas". C para fígostinho a maior, pois não poderá pecar. Também isto,
Cidade terrena é justomente a daqueles que porém, por dom de Deus e não por umo possi­
vivem segundo o homem, ou seja, tomando bilidade de suo natureza.
o homem como medida suprema, enquanto Uma coisa, de fato, é ser Deus, e outra é
o Cidade celeste é a daqueles que vivem participar de Deus. Deus por natureza não pode
segundo Deus, ou seja, tomando o próprio pecar; ao contrário, quem participa de Deus re­
Deus como medida suprema. cebeu dele o dom de não poder pecar. Dever-
Todavia, bastante além de Plotão, fígos­ se-ia, portanto, respeitar uma seqüência no dom
tinho adquire uma visão global dos duos Ci­ de Deus: de início era concedido o livre-orbítrio
dades, em dimensão cósmica e hipercósmica. pelo qual o homem podia não pecar, no fim o
Também no céu existem as duas Cida­ livre-orbítrio pelo qual o homem não podia p e ­
des, o dos anjos rebeldes e a dos que p er­ car: aquele para adquirir um mérito, este para
maneceram fiéis o Deus. Sobre a terra, ao acolher umo recompensa. Mas, uma vez que
contrário, surgiram com Caim e com fíbel a esta natureza pecou quando pôde pecar, é li­
Cidade do amor do homem terreno, que d e ­ berta por uma graça ainda maior, que a conduz
semboco no ódio, e a Cidade do amor ver­ à liberdade na qual não pode pecar. Como a
dadeiro d e Deus. primeira imortalidade, que Adão perdeu com o
fí Cidade terrena, que aqui sobre a ter­ pecado, residiu na possibilidade de não mor­
ra parece dominante, será eternamente der­ rer e a última estará na impossibilidade de
rotada na danação; ao contrário, a Cidode morrer, também o primeiro livre-orbítrio residiu
celeste, que aqui aparece como peregrino, na possibilidade de não pecar e o último esta­
terá poz no eterna salvação. rá na impossibilidade de pecar.
Ressuscitado na Cidade celeste, o ho­ De tal modo, então, a vontade da pieda­
mem terá a felicidade à qual não falta ne­ de e da justiça não se poderá perder, também
nhum bem: haverá diferentes graus de amor não se poderá perder a da felicidade. Com o
e de recompensa: se r sem inveja, a liberda­ pecado nós, certamente, não conservamos nem
de do não-poder-pecar (ao invés da do po- a piedade nem a felicidade, mas não perde­
der-não-pecar, típica desta vida), o esqueci­ mos a vontade de ser felizes, mesmo depois
mento dos moles terrenos nos bens eternos de ter perdido a felicidade. Dever-se-ia talvez
e, por fim, a possibilidade de ver Deus que negar que Deus tenha o livre-orbítrio, umo vez
será tudo em todos. C se ver Deus tudo em que ele não pode pecar?
todos será como o "sábado" eterno, o "séti­
mo dia" eterno, o coroação d esse dia será
como o "oitavo dia" da vida eterna, cujo fim 2. O esquecimento dos moles
será o de não-ter-mais-um-fim, ou seja, o eter­ na Cidode eterna
nidade. Tal Cidade, portanto, terá uma vontade li­
C este é justamente o sentido do ho­ vre, una em todos e inseparável em cada um;
mem. Quemé, portanto, o homem? O homem liberto de todo mal e repleta de todo bem,
é aquele que, peregrino sobre a terro, tem gozando indefectivelmente na alegria dos góu-
como fim o de chegara um reino que não tem dios eternos, esquecida das culpas e das pe­
um fim. nas, sem esquecer, porém, sua libertação e sem
Leiamos o belíssimo finoI da Cidode de ser ingrata para com seu libertador. No plano
Deus. do conhecimento racional recordará também
seus males passados, mas, no plano da expe­
riência direta, não recordará mais nada. Tam­
bém o médico mais valoroso conhece de fato
1. Na Cidade eterna
quase todas os doenças, como elas podem ser
teremos a liberdade de não-poder-pecar
conhecidas por profissão; muitíssimas, ao invés,
Não é verdade que os santos não terão o não conhece, assim como podem ser experi­
livre-orbítrio, porque não poderão sentir mois o mentadas no próprio corpo, não as tendo pro­
fascínio do pecado. Cie será, oo contrário, se ­ vado.
116
Terceira parte - y \ TM tns+ica ái*ea cu ltu r al d e lín g u a latina

Como hó, portanto, dois conhecimentos ele é Deus, do qual estaremos repletos quan­
dos moles, um pelo quol eles não fogem do do Deus for tudo em todos.
poder do mente, o outro porque tocom o expe­ Nossas próprias boas obras, quando se
riência dos sentidos (uma coiso é conhecer to­ reconhecem como suas ao invés de como nos­
dos os vícios mediante aquilo que o sabedoria sas, são-nos atribuídas como mérito para al­
ensino, outro é conhecê-los por meio de uma cançar este sábado; se, ao contrário, as tiver­
vida corrupto, estultamente), também há dois mos atribuído a nós, serão como obras servis,
modos de esquecer os males: quem os conhe­ enquanto do sábado se diz: "Não fareis nenhu­
ceu graças às informações do suo doutrina, e s­ ma obra servil". Por isso também por meio do
quece-se deles de modo diverso de quem de­ profeta Czequiel se diz: "Dei a eles também os
les fez experiência e os sofreu; poro um é como meus sábados como sinal entre mim e eles para
se tronscurasse seu estudo, poro o outro é como que soubessem que sou eu, o Senhor, que os
se fosse subtraído de seu tormento. Cste se ­ santifico". Cntão conheceremos isso perfeita-
gundo tipo de esquecimento é aquele pelo quol mente, quando estivermos perfeitamente livres
os santos esquecerão seus moles passados; e virmos perfeitamente que ele é Deus.
serão todos dele subtraídos, de modo a ser
cancelados completomente de suo experiência. 4. As seis eras da história do homem
Ro invés, no plano da capacidade de seu co­
nhecimento, que neles será grande, não ape­ €sta celebração do sábado aparecerá de
nas não ignorarão seu passado, como também modo mais evidente se se calcularem, como se
a eterna infelicidade dos danados. Por outro fossem dias, também as eras, conforme aque­
lado, se eles não souberem que foram infeli­ les períodos que a Gscritura parece nos apre­
zes, como poderão exclamar, com o Salmo; sentar, pois ele será o sétimo dia. R primeira
"Cantarei sem fim as graças do Senhor"? C não era, como se fosse o primeiro dia, vai de Rdão
haverá seguramente nesta Cidade um canto até o dilúvio, a segunda até Rbrão, igual à pri­
mais doce do que este para glorificar a graça meira não como duração mas como número de
de Cristo, em cujo sangue fomos libertos. Cum- gerações; parece-nos, de fato, que foram dez.
prir-se-ão então as palavras: "Parai e sabei que R partir daqui, como precisa o evangelista M a­
eu sou Deus". teus, seguem-se três eras até a vindo de Cris­
to, cada uma das quais compreende quatorze
gerações: uma vai de Rbrão a Davi, outra vai
3. No "sétimo dia" veremos a Deus,
até o exílio na Babilônia, a terceira até a
que será tudo em todos
encarnação de Cristo. No total são cinco eras. R
Cste será de fato o sábado supremo, que sexta ainda está em curso e não deve ser me­
não conhecerá fim, e que o Senhor recomen­ dida em termos de gerações, pois está escrito:
dou às origens do criado, dizendo.- "Cntõo Deus "Não cabe a vós conhecer os tempos e os mo­
no sétimo dia levou a termo o trabalho feito e mentos que o Pai reservou à sua escolha".
descansou no sétimo dia de todo o seu trabalho.
Deus abençoou o sétimo dia e o consagrou, 5. O "oitavo dia" da vido eterna
porque nele tinha descansado de todo traba­
lho que ele, criando, tinha realizado". Justamen­ Depois desta era Deus repousará como
te nós próprios seremos o sétimo dia quando no sétimo dia, fazendo nele repousar aquele
estivermos repletos e reconstituídos pela sua mesmo sétimo dia que seremos nós. Seria de­
bênção e pela sua consagração. Rí estaremos masiado longo neste ponto examinar atenta­
livres para ver que ele é Deus, enquanto quise­ mente cada uma dessas eras; todavia, esta
mos ser Deus para nós mesmos quando caí­ sétima será o nosso sábado, cujo fim não será
mos longe dele, dando ouvidos às palavras do o declínio, e sim o dia do Senhor, como que um
sedutor: "Tornar-vos-eis como Deus"; assim nos oitavo dia da vida eterna, o qual foi consagra­
afastamos do verdadeiro Deus, por interven­ do na ressurreição de Cristo, prefigurando o
ção do qual ter-nos-íamos tornado como ele por repouso eterno do espírito e do corpo. Rí re­
meio de uma participação, em vez de por uma pousaremos e veremos, veremos e amaremos,
deserção. Sem ele não fizemos mais que incor­ amaremos e louvaremos. Isso será no fim, e
rer em sua cólera. Reconstituídos por ele, ao não haverá fim! Que outra coisa é nosso fim,
invés, e tornados perfeitos por uma graça maior, senão chegar ao reino que não tem fim?
estaremos livres para a vida eterna, vendo que Agostinho, R Cidode de Deus.
GENESE
DA ESCOLÁSTICA
■ Primeiras teorizações
das relações entre fé e razão na Idade Média

“A verdadeira filosofia não é mais que a religião,


e, inversamente, a verdadeira religião
não é mais que a verdadeira filosofia. ”
“Ninguém entra no céu,
a não ser por meio da filosofia.

E sc o to Eriú g e n a
Capítulo sétimo

A filosofia na Idade M édia:


a “ Escolástica” , as “ E scolas” , as “ Universidades” 119

Capítulo oitavo

O surgimento da Escolástica
e seus desenvolvimentos de Boécio a Escoto Eriúgena 129
tS a p ítu lo sé tim o

7A filosofia rva J d a d e A^^dia:


a c^ sco lastica , a s c-sco las ,
as //lA m v e r s id a d e s //

~ I . X ^ e s e t A V o lv im e n t o s '
d o p e n s a m e n t o m e d ie va l

• O pensamento protocristão que se desenvolve paralelamente ao pensamento


tardo-pagão antigo pode ser considerado concluído com Agostinho no séc. V, no
que se refere ao Ocidente latino. No Oriente grego, ao contrário, conclui-se com
Máximo o Confessor no séc. VII.
Depois destas datas o pensamento medieval pode assim se articular:
1) o período que se estende do séc. V ao IX (formação dos reinos românico-
bárbaros e consolidação do Sagrado Império Romano), conhecido pelo nome de
"obscurantismo" medieval devido ao estado de depressão em
que se encontra a pesquisa cultural; tem apenas duas figuras
eminentes: Boécio e Escoto Eriúgena; Quadro
2) a segunda fase da Idade Média, que ocupa os sécs. X e cronológico
XI (lutas pelas investiduras e pelas cruzadas) e se caracteriza da filosofia
pelas reformas monásticas; entre as figuras de destaque deste medieval
período estão: Anselmo de Aosta, Abelardo e os expoentes das 57
Escolas de Chartres e de São Vítor;
3) a terceira fase (séc. XIII), que coincide com a era de ouro da Escolástica,
com santo Tomás, são Boaventura e Duns Escoto;
4) a quarta e última fase, que marca a crise da Igreja e do Império e também
da relação entre fé e razão: é o tempo de Ockham.

1 CD q u a d r o cronológico Ocidente latino vai do fim do séc. V até o


séc. XIV, enquanto no mundo grego pode-se
fazê-la iniciar-se quase dois séculos depois.
O cristianismo, em seu surgimento e De modo particular, na história do pen­
desenvolvimento, muda o paradigma global samento cristão é preciso distinguir a fase
do modo de pensar e de fazer filosofia. Por das origens e dos primeiros desenvolvimen­
conseguinte, já ao ler as obras dos primeiros tos, que coincide cronologicamente com a
pensadores cristãos se tem a impressão de fase última do pensamento pagão antigo, da
passar para um mundo cultural totalmente fase medieval, justamente no modo em que
diferente do pagão antigo. Ele tem, com efei­ distinguimos o pensamento cristão nesta
to, fundamentos conspícuos e precisos, a obra.
ponto de muitos estudiosos englobarem o O pensamento protocristão que se de­
pensamento patrístico na ótica medieval, não senvolve paralelamente ao pensamento tar­
tanto como princípio mas pelo menos de fato. dio pagão-antigo, na área cultural de língua
A realidade histórica é, porém, muito latina termina com Agostinho (séc. V). Na
mais complexa. área cultural de língua grega, porém, ele ter­
A era medieval abraça quase um milê­ mina, sob certo aspecto, com Máximo o
nio, e está entre as eras mais complexas. No Confessor (primeira metade do séc. VII), en­
120 Quarta parte - C Ã ê n e sa d a (E sco lá stica

quanto João Damasceno abre a perspectiva Alem da significativa figura “ de pas­


da cultura medieval deslocando o centro do sagem” de Boécio, nesta primeira fase so­
interesse filosófico de Platão para Aristóteles, bressai principalmente Escoto Eriúgena.
como pouco a pouco se fará também no Oci­ b) A segunda fase se estende do séc. X
dente, conforme veremos. (ou do fim do IX) até o séc. XI, e caracteriza-
De forma que podemos resumir o que se pelas reformas monásticas, pela renova­
precisamos, dizendo que o pensamento pro- ção política da Igreja, que se manifesta por
tocristão da Patrística representa o aspecto meio das complexas lutas pelas investiduras,
cristão do pensamento antigo tardio, enquan­ e pelas grandes cruzadas.
to a Escolástica, na sua gênese e nos seus de­ Entre as figuras de relevo dessa fase de­
senvolvimentos, representa toda a era me­ vemos indicar Anselmo de Aosta, Abelardo,
dieval. e ainda as significativas Escolas de Chartres
Deste período foi proposta uma signi­ e de São Vítor.
ficativa articulação em quatro fases, que é par­ c) A terceira fase marca a era de ouro da
ticularmente esclarecedora e fecunda, sobre­ Escolástica no decorrer do século XIII.
tudo do ponto de vista didático. Florescem as Universidades e torna-se
a) marcante a grande figura de santo Tomás,
A primeira fase se estende por qua­
tro séculos e vai do fim do séc. V até o fim do além das muito conspícuas figuras de são
séc. IX, ou seja, do surgimento e do desen­ Boaventura e de Duns Escoto.
volvimento dos reinos romano-barbáricos d) A quarta fase da Idade Média coin­
até a restauração e a consolidação do Sagra­ cide com o séc. XIV e se caracteriza pela crise
do Império Romano por obra dos Carolín- da Igreja e do Império e, portanto, pela con­
gios. Esta é a fase mais problemática da Idade clusão do mundo espiritual que caracteri­
Média, na qual se encontra o assim chama­ zou esta era.
do “ obscurantismo” medieval, mas com a A figura saliente é a de Ockham, com
clara presença de momentos em que se veri­ o qual se abre o divórcio entre razão e fé.
fica um renascimento cultural, que retoma Exatamente pela clareza didática des­
e desenvolve aspectos do pensamento anti­ ta divisão nós a seguiremos também na dis­
go tardio. tribuição do material.

Taixa inferior do afresco “/\ disputa sobre o sacramento",


pintado por Raffaello em I SOó na Sala da Assinatura, no Vaticano.
Aí estão representados os protagonistas do debate filosófico e teológico sobre a Taicaristia,
que terá sua definição apenas no séc. XVI com os decretos do Concilio de Trento.
No afresco podemos reconhecer: I. são Gregário, 2. são Jerónimo, santo Ambróisio,
4. santo Agostinho, S. santo Tomás, 6. são Boaventura, 7. Dante Alighieri.
Capitulo sétimo - y \ filosofia n a J J d a d e A ^ é d ia
121

n. ^ (zÃscolas m o n a c a i s ,
e p i s c o p a i s e pala+inas

• A difusão e a elaboração da cultura até o séc. XIII — Três tipos


tempo em que se formaram as Universidades — estava confia- de Escola
da às Escolas monacais (em geral anexas a uma abadia), epis- -> § 1
copais (anexas a uma catedral) e palatinas (anexas à corte).

• Entre essas escolas assumiu grande importância, a partir do fim do séc. VIII,
a Escola palatina desejada por Carlos Magno, com a intenção de fazer surgir na
terra dos Francos uma nova Atenas.
Instituída e dirigida por Alcuíno de York, esta escola teve
no início caráter erudito e eclético; somente a partir da segun- A £SC0/a paiatina
da geração assumiu conotações originais e criativas. Organi- §2
zou a instrução em três níveis:
1 ) a instrução elementar;
2) o estudo das sete artes liberais do trívio (gramática, retórica e dialética) e
do quadrívio (aritmética, geometria, astronomia e música);
3) o estudo aprofundado da Sagrada Escritura.

1 ;A ó^scolásfica estava fadada a inexorável declínio. A aber­


tura de novas escolas ou a absorção das an­
e os vários tipos de escola
tigas em novas instituições educativas, pela
da «Udade A^édia Igreja, marca o início da formação e or­
ganização, lenta e laboriosa, de uma nova
cultura.
Mais do que um conjunto de doutri­ Até o século XIII, quando começa a
nas, entendemos por Escolástica a filoso­ formação das Universidades, as escolas são:
fia e a teologia que eram ensinadas nas es­ 1) monacais ou ab ad ais (anexas á
colas medievais. Essa é uma caracterização uma abadia) e, no mais, conduzidas por
de certa forma extrínseca mas significativa monges;
e útil: útil, porque nos liberta da tarefa de 2) episcopais (anexas a uma catedral);
precisar logo o corpo doutrinário que se 3) palatinas (anexas à corte: palatium).
pode chamar “ escolástico” (teremos, ao in­ No período das invasões bárbaras, as
vés, a possibilidade de vê-lo em seus desen­ escolas abaciais ou monacais representaram
volvimentos articulados e nas suas linhas o refúgio privilegiado da cultura, tanto por
dominantes nos capítulos seguintes); sig­ meio da transcrição como da conservação
nificativa, porque nos transporta para o dos clássicos.
ambiente em que tais doutrinas foram ela­ As escolas episcopais se tornaram pre­
boradas, pensadas e aprofundadas a partir dominantemente local da instrução elemen­
da primeira reorganização medieval das tar, necessária para o acesso ao sacerdócio
escolas, promovida e sustentada por Carlos ou para assumir funções de utilidade públi­
Magno. ca e de administração.
O fechamento das últimas escolas pa- A escola que mais do que qualquer ou­
gãs, no início do século VI (precisamente tra destinou-se a incidir sobre a cultura me­
pelo edito de 529), por obra do imperador dieval e que contribuiu para o despertar da
Justiniano, além de ato político e adminis­ cultura foi a palatina, desejada por Carlos
trativo, marcou também o fim da cultura Magno e confiada em 781 a Alcuíno de
pagã que, por outro lado, por si mesma já York.
122 Quarta parte - g ê n e s e d a ( í£ s c o l á s + i c a

m m t\ 6 S C O Ia palatina tras coisas ao contraste entre o entusiasmo


WÊSm por poetas e pensadores pagãos e a idéia,
c a i a d a p o e jAIcuíno
freqüentemente repetida, mas não adequa­
damente argumentada, de que se devia re­
Formado na escola episcopal de Jarrow, conhecer aos estudos bíblicos a proeminên-
fundada por Beda o Venerável (674-735), a cia absoluta na formação do cristão.
figura de maior destaque do monaquismo Somente a partir da segunda geração
anglo-saxão), Alcuíno (730-804) foi diretor carolíngia é que essa grave incerteza foi su­
da escola palatina e conselheiro do rei para perada, quando, mediante Escoto Eriúgena,
todas as questões inerentes à instrução e ao tentou-se uma reavaliação da dialética e da
culto. filosofia pela inserção das artes liberais no
Ele organizou a instrução em três graus: contexto teológico. Assim, de formas de eru­
1) leitura, escrita, noções elementares de dição especiosa, essas artes tornaram-se ins­
latim vulgar, compreensão sumária da Bíblia trumentos de pesquisa, compreensão e ela­
e dos textos litúrgicos; boração no interior das verdades cristãs. E
2) estudo das sete artes liberais (as ar­ foi desse modo que se configurou a “pri­
tes do trívio: gramática, retórica e dialética; meira escolástica”, ou seja, o período de pen­
e as artes do quadrívio: aritmética, geome­ samento que vai de Escoto Eriúgena a san­
tria, astronomia e música); to Anselmo, das escolas de Chartres e de
3) estudo aprofundado da Sagrada Es­ São Vítor a Abelardo.
critura.
Uma expressão do espírito e do empe­
nho com que Alcuíno se dedicou a essa obra
de renovação, desejada pelo Imperador e
pela corte de Aquisgrana, é a sua idéia de
fazer surgir na terra dos Francos uma nova
Atenas, mais esplêndida do que a antiga,
pois nobilitada pelo ensinamento de Cristo.
Embora tenha sido incapaz de expres­
sar uma cultura profunda, que fosse além
da justaposição ou contaminação de mode­
los literários e filosóficos do mundo clássi­
co e de modelos teológicos do mundo patrís-
tico, Alcuíno teve o mérito de elaborar
manuais para cada uma das sete artes libe­
rais, por meio dos quais canalizou e disci­
plinou o ensino e o estudo.
O caráter pouco orgânico e heterogê­
neo dos manuais — para a gramática, a re­
tórica e a dialética, ele utiliza Isidoro de Se-
vilha (570-636), Cassiodoro (480/490-570),
Beda, santo Agostinho e Boécio, como tam­
bém Prisciano, Donato e Cícero —, bem
como o caráter compilatório dos seus escri­
tos teológico-filosóficos — como o De fide
sanctae et individuae Trinitatis e a carta a
Eulália De animae ratione, extraídos em sua
maior parte dos escritos de santo Agostinho, Alcuíno (7.10-804) dirigiu a Escola palalina
mas sem autêntica base doutrinária —, pro­ efo, conselheiro de Carlos Magno
vocaram certo mal-estar, devido entre ou­ para as questões referentes à instrução e ao culto.
Capítulo sétimo - ; A f il o s o f ia na J d a d e M é d ia
123

III. j A LAmve^s i d a d e

• Nos sécs. XII-XIII nascem em Bolonha e em Paris as primeiras Universidades,


sob a forma de associação corporativa de mestres e estudantes.
As consequências foram notáveis:
- prim eiram ente contribuíram para form ar uma classe de intelectuais
(studium) que se escorava nos poderes tradicionais do regnum e do sacer-
dotium ;
- em segundo lugar ajudaram a superar as diferenças de A$ Drjmejras
classe social, em novo tipo de nobreza (gentileza) dependente unjversidades
da cultura adquirida. § 7.2

• Se definimos com o nome de Escolástica o pensamento elaborado nas scholae


e na universitas, podemos encontrar o eixo básico dessa cultura na relação fé-
razão, e mais precisamente no uso da filosofia como instru­
mento de interpretação da Sagrada Escritura, e de clarificação A re/ação
e defesa da fé em vista da construção de uma doutrina siste- entre e razão
mática. -> § 3

• Os programas de estudo que, a partir da Escola palatina, distinguiam as


artes liberais das teológicas, se realizaram em duas diferentes Faculdades: uma,
assim chamada das Artes, que recolhia as artes do trívio e do quadrívio, e que por
sua própria natureza desenvolveu de modo mais livre e autô­
nomo a razão e a pesquisa; a outra, a Faculdade Teológica, Faculdade
procurou dar corpo aos conteúdos de fé, por meio da exegese das artes
bíblica e da exposição sistemática da doutrina cristã. A diversi­ e Faculdade
ficação, e também as tentativas de síntese entre os resultados de teologia
das pesquisas das duas faculdades, é expressão da tensão en­ ^ § 4
tre fé e razão e do esforço de mediação entre elas.

1 m ;As (4rvivees idades Em Bolonha, prevaleceu a universitas


scholarium, isto é, a corporação estudantil,
de Bolonka e Paeis à qual Frederico I Barbarroxa concedeu par­
ticulares privilégios em 1158.
A partir dos séculos XII-XIII, a escola Em Paris (a 1200 remonta o primeiro
se configura como universidade, que é pro­ decreto régio que a reconhece implicitamen­
duto típico da Idade Média. O modelo das te studium generale) prevaleceu a universitas
escolas era constituído pelas escolas da an­ magistrorum et scholarium, espécie de cor­
tiguidade, das quais se tentou a renovação poração unitária de mestres e estudantes. Em
e a continuação, mas para a universidade Paris, buscou-se a ampliação da escola da
não havia modelo algum. catedral de Notre-Dame, que por várias cir­
O cunstâncias adquirira ao longo do século XII
termo “ universidade” , originalmen­
te, não indicava um centro de estudos, e sim uma proeminência sobre todos os outros cen­
muito mais uma associação corporativa ou, tros de estudo, atraindo estudantes de todas
como diriamos hoje, um “ sindicato” , que as partes da Europa. Ademais, embora as es­
tutelava os interesses de uma categoria de colas episcopais e monásticas, bem como as
pessoas. Bolonha e Paris representam os dois palatinas, fossem instituições eclesiásticas de
modelos de organização em que se inspira­ caráter local, logo a universidade de Paris
ram, mais ou menos, todas as outras uni­ tornou-se objeto de atenção da Cúria roma­
versidades. na, que favoreceu seu desenvolvimento e,
124 QuCirtCt parte - í l â n e s e d a tB sco lá stica

Uma aula na Universidade.


Erontispício de sarcófago
do séc. XIV
(Hiena, Universidade).

sobretudo, suas tendências autonomistas,


subtraindo-a à tutela direta do rei, do bispo
e de seu chanceler. Assim, fato verdadeira­
mente significativo, as aspirações à liberdade
de ensino, contra a resistência e a oposição
dos poderes locais, encontraram um primei­
ro sustentáculo na proteção papal. O cará­
ter “ clerical” da universidade nos permite
compreender por que as autoridades ecle­
siásticas — primeiramente os representan­
tes diretos do papa — redigiam os estatu­
tos, proibiam a leitura de certos textos e
intervinham para compor dissídios e con­
trovérsias.

2 éEfei+os explosivos
da LAmiveesidade Brasão da Universidade de Bolonha.
O Estúdio de Bolonha nasceu no séc. XI
corno livre e espontânea associação de estudantes
Dois são os efeitos mais relevantes de­ e mestres que fundaram uma escola especializada
vidos à instituição e à consolidação da uni­ na exegese do direito romano.
versidade.
a) O primeiro constitui-se pelo surgi­
mento de um sodalício de mestres, sacerdo­ Ao lado dos poderes tradicionais, como
tes e leigos, ao qual a Igreja confiava a tare­ o sacerdotium e o regnum, acrescentava-se
fa de ensinar a doutrina revelada. Trata-se um terceiro poder, o studium ou a classe dos
de fenômeno de grande alcance histórico, intelectuais, cuja ação exerceu peso relevante
porque até então a doutrina oficial da Igre­ sobre a vida social da época.
ja era (e sempre tinha sido) confiada à hie­ b) O segundo efeito ou dado caracte­
rarquia eclesiástica. rístico foi a abertura da universidade pari­
Capitulo sétimo - filosofia n a D d a â a f A á d \ a
125

siense a mestres e estudantes provenientes


de qualquer camada social.
Embora posteriormente a universidade
se tornasse aristocrática, na Idade Média ela
era “ popular” , no sentido de que também
recebia estudantes pobres, filhos de campo­
neses e artesãos, que, por meio de alguns
privilégios, como a isenção de taxas, bolsas de
estudo e alojamento gratuito, conseguiam
completar os rigorosos cursos de estudo.
Depois do ingresso na universidade,
desapareciam as diferenças sociais entre os
estudantes: os goliardos e os clérigos cons­
tituíam mundo à parte, cuja “ nobreza” não
era mais representada pelo segmento de ori­
gem, mas pela cultura adquirida.
Esse era o novo conceito de “nobreza” ,
ou, como se dizia então, de “gentileza” .
A cultura medieval floresceu juntamen­
te com essas instituições, primeiro as scbolae e
depois a universitas (devemos notar a difu­
são destes centros de estudo: Oxford, 1167/
68; Pádua, 1222; Nápoles, 1224; Cambrid-
ge, 1230/40 etc.). Por Escolástica entende­
mos precisamente aquele corpo doutrinário Brasão da Universidade de Oxford,
que, inicialmente de forma bastante inorgâ­ fundada em 1167-1168.
nica e depois de modo sempre mais sistemá­
tico, foi elaborado nesses centros de estudo,
nos quais encontramos, dedicados a escre­ so em sua estrutura lógico-gramatical, na
ver e a ensinar, homens criativos, freqüente- realidade trata-se do aperfeiçoamento dos
mente dotados de grande capacidade de crí­ instrumentos lógicos para melhor compreen­
tica e de agudeza lógica. são dos textos bíblicos e dos ensinamentos
dos Padres da Igreja.
A razão é posta predominantemente em
função da fé, ou seja, a filosofia serve à teo­
3 R azão e fé. logia, para a interpretação da Escritura
(exegese) ou para a construção doutrinária
sistemática (dogmática).
Com esse binômio “razão” e “ fé” que­ A pesquisa racional “ autônoma” deve
remos indicar o “ programa de pesquisa” ser vista no quadro do problema religioso
fundamental da Escolástica, que vai do uso da conversão dos infiéis, para quem é ne­
acrítico da razão e da conseqüente aceita­ cessário propor a doutrina cristã com argu­
ção da doutrina cristã com base na “ autori­ mentação racional.
dade” , às primeiras tentativas de penetra­ Não basta crer: é preciso também com­
ção racional da Revelação e às construções preender (intelligere) a fé. E isso não se ob­
sistemáticas, que lêem e interpretam as ver­ tém somente interpretando os textos sacros
dades cristãs de forma argumentada. ou mostrando suas possíveis implicações
Ligada profundamente às instituições para a vida individual e comunitária dos
eclesiásticas, a cultura medieval revela marca homens, mas também demonstrando com
profundamente cristã, pelo fato de se orien­ base na razão as verdades aceitas pela fé ou,
tar no sentido da compreensão da doutrina pelo menos, a sua logicidade ou a sua não-
revelada, por ter amadurecido no interior de contraditoriedade com os princípios funda­
suas verdades ou talvez por se contrapor a mentais da razão.
elas. Trata-se, portanto, de exercício da
Embora em certos momentos históri­ razão que foi se desenvolvendo e refinan­
cos esse esforço se detenha em torno de ele­ do, tendo em vista a extensão da área dos
mentos gramaticais-literários ou no discur- crentes.
126 Quarta parte - G ê n e s e d a íS s o o l á s + ic a

A utilização dos princípios racionais,


primeiro platônicos e depois aristotélicos,
era feita para demonstrar que as verdades
da fé cristã não são disformes ou contrárias
às exigências da razão humana, que, ao con­
trário, encontra nessas verdades a sua com­
pleta realização.
A influência do platonismo e do neo-
platonismo, mediante Agostinho, e a influên­
cia do aristotelismo, primeiro através de Avi-
cena e Averróis e depois pelo conhecimento
direto das obras do Estagirita, devem ser in­
terpretadas nesse contexto, isto é, como de­
monstração de que o pensamento filosófico
clássico pode ser precioso subsídio para me­
lhor compreensão da doutrina cristã.

sA m Faculdade das aetes


O antigo brasão da Universidade de Cambridge,
e Faculdade de teologia dividido em quatro setores
e decorado com lírios e leões rampantes.
Para entender melhor o diálogo e as
tensões entre razão e fé, é oportuno recor­
dar que a universidade medieval dividia- O magister artium, portanto, era pro­
se em:
fessor que se inspirava unicamente na ra­
1) Faculdade das artes liberais (trívio e
zão, sem preocupação teológica direta;
quadrívio), cujo curso durava seis anos;
pode-se dizer que era professor de filosofia.
2) Faculdade de teologia, cujo curso
Enquanto as escolas monásticas, episcopais
durava pelo menos oito anos.1
e palatinas limitavam-se quase exclusivamente
1) A Faculdade das artes, em si, ao estudo da lógica (ou dialética), como in­
era
propedêutica à segunda, porque as artes li­ trodução à filosofia, a Faculdade das artes
berais eram consideradas como a base de examinava a nova produção científico-filo-
toda a instrução, com particular destaque sófica, que provinha predominantemente do
para a gramática e a lógica, a matemática, a mundo árabe. Por isso, tal Faculdade tor­
física, a metafísica e a ética. nou-se bastião das novas idéias, de índole

Um curso universitário
na Idade Média,
em um baixo-relevo
de Celino de Nese,
arquiteto e escultor do séc. XIV.
O ensino universitário medieval,
por meio da alternância
da lcctio e da disputatio,
permitia a troca permanente
de idéias entre mestres e estudantes
(particular da tumba
de Cino de Pistóia,
Catedral de Pistóia).
127
Capítulo sétimo - y \ filosofia n a T J dade M é d i a

fundamentalmente aristotélica, que iam sen­ 5 7A “(Sidade de Deus”


do descobertas e debatidas. de y\0os+inKo
2) A Faculdade de teologia, ao invés,
tinha por objetivo o estudo acurado da Bí­
blia, através da exegese e da exposição siste­ Para entender mais completamente o
mática da doutrina cristã, do que as Sum- clima geral no qual se desenvolvia o debate
mae são a expressão mais completa. Para entre razão e fé, é oportuno recordar a inter­
se entender a vivacidade dessa faculdade, pretação dominante acerca da história, que
deve-se lembrar que quase todos os mes­ representa o horizonte no qual se vivia e se
tres de teologia haviam passado antes pela pensava na época. A teoria que predomina
faculdade das artes, não sendo portanto es­ incontrastavelmente na Idade Média, até o
tranhos aos interesses e problemas que lá ano 1000, é a teoria das duas cidades de
eram debatidos. Agostinho, a cidade celeste, “vivendo por fé
As orientações distintas e por vezes e em peregrinação neste mundo” , e a cidade
contrapostas dessas duas faculdades talvez terrena, identificada por Agostinho com as
nos ajudem a entender as tensões entre ra­ forças que semeavam morte e saques.
zão e fé, bem como os esforços para sua O pessimismo agostiniano em relação
conciliação ou o clima no qual eram ela­ à cidade terrena encontrava sustentação na
boradas e defendidas perspectivas às vezes constatação de que o Império, com o qual se
inconciliáveis. A tudo isso, para se enten­ identificava a cidade terrena, efetivamente
der a vivacidade dialógica no interior das marchava para seu fim. Passando dos roma­
respectivas faculdades, deve-se acrescentar nos para os gregos (Bizâncio), depois para
que os métodos de ensino — a lição (lectio) os francos e, posteriormente, para os lom-
e o seminário (disputado) — permitiam per­ bardos e os germânicos, o Império estava
manente troca de idéias entre estudantes e envelhecendo, exaurindo sua carga de uni­
mestres. ficação e renovação.
A disputado consistia na discussão com Entretanto, com o nascimento do Sa­
os estudantes sobre um tema proposto em cro Império Romano, a cidade terrena não
forma de pergunta (quaestio), em torno da tinha mais uma entidade com a qual se iden­
qual falavam primeiro os estudantes e de­ tificar, porque o Império se apresentava
pois o mestre. como o corpo material da cidade de Deus,
A importância da quaestio, que repre­ dando lugar a uma única cidade, ao mesmo
senta a forma típica do procedimento didá­ tempo com aspectos terrenos e celestes, sa­
tico, nos permite entrever a vivacidade do grados e profanos, com preocupações tem­
debate e a tensão constante entre razão e fé porais e expectativas escatológicas. Ao dua­
a propósito dos temas que iam emergindo, lismo originário segue-se então uma espécie
conforme os textos examinados ou os pro­ de monismo, marcado primeiro pelo predo­
blemas levantados. mínio das forças imperiais e depois das for­
ças eclesiásticas.
Nesse período, embora com modifica­
ções, às vezes profundas, continua prevale­
cendo a concepção agostiniana da história,
à medida que o sentido da história é estabe­
lecido naquele fio providencial que, sob a
guia da Igreja, conduz os homens para a
Cidade Celeste.
128 Quarta parte - ( ^ ê n e s e d a é r ^ s c o lá s fi c a

iv. 3 o a q iA iv n d e Pi o c e

• O mom ento de decadência moral em que a Igreja e o Império se en­


contravam no séc. XII exigiu o nascim ento de nova tensão escatológica, que
em Joaquim de Fiore (1130-1202) encontrou sua melhor ex-
As três eras pressão.
-> £ 1 Ele interpretou o desenvolvimento da história na base do
mistério trinitário, levando em conta a relação conflitual entre
a "Cidade de Deus" e a "Cidade do homem" de Agostinho, e distinguindo com
efeito três eras: a do Pai, a do Filho e a do Espírito.

1 ;A concepção temifáeia religiosos. Com efeito, o século XII foi um


dos mais tempestuosos: as sanguinolentas
da História
lutas das Comunas contra o Império; o
dissídio entre o Papado e Frederico Barbar-
roxa, com duros conflitos que levaram à elei­
Depois da visão agostiniana, a concep­ ção de três antipapas (Vítor IV, Pascoal III e
ção de história de maior destaque na Idade Calisto II, opostos a Alexandre III); a queda
Média foi a do abade calabrês Joaquim de de Jerusalém em 1187, jogando por terra o
Fiore (1130-1202). Como se sabe, à desa­ grande sonho medieval do qual nasceram
gregação da unidade política realizada por as Cruzadas; crueldade e repressão contra a
Carlos Magno, seguiu-se o regime feudal, feudalidade eclesiástica e leiga, fiel à tradi­
com a fragmentação do poder central para ção normanda, por parte de Henrique VI
possibilitar a defesa das populações e dos ter­ de Suévia. E a isso acrescentem-se as inú­
ritórios contra a nova onda de invasões bár­ meras desordens morais que afligiam a Igre­
baras. Com o regime feudal, as instituições ja, feudalizada e mundanizada, contra as
eclesiásticas sofreram profunda transfor­ quais são Bernardo erguia em vão sua voz
mação, porque estavam confiadas a homens de advertência.
mais fiéis ao poder leigo que ao religioso. O Pois bem, nesse contexto, reconsideran­
clero começou a se mundanizar. A essa de­ do o mistério trinitário, Joaquim de Fiore
cadência de costumes logo se opôs um mo­ propõe uma mensagem reformista-esca-
vimento de reforma que começou a dar os tológica, uma espécie de renovatio moral e
primeiros sinais no século X, com o mona- religiosa, alimentando a expectativa de uma
quismo de Cluny, difundindo-se depois no iminente “terceira idade”, que é a do Espíri­
século seguinte. Esse movimento encontrou to. À “idade do Pai” e à “ idade do Filho”
sua expressão doutrinária mais completa em deveria seguir a “idade do Espírito” , marcada
Gregório VII, do qual tomou o nome de por uma palingenesia total e que não tarda­
“ reforma gregoriana” , que inaugurou nova ria a se realizar, libertando os homens das
fase histórica, já que a idéia tradicional de contradições em que haviam caído.
“ fuga do mundo” foi substituída pelo ideal Entendida como a suprema e definiti­
da conquista cristã do mundo. E a época va mahifestação do divino na realidade da
das Cruzadas. história, essa “ terceira idade” representava
Essa reforma da Igreja, que levou à con­ e expressava o desejo difuso de renovação
centração de todo o poder, religioso e secu­ radical existente, no sentido da libertação
lar, nas mãos do Pontífice romano, provocou do peso das instituições e problemas de or­
mundanização diferente da Igreja, implicada dem terrena.
em acontecimentos políticos e, portanto, Como vemos, trata-se de uma concep­
envolvida em lutas e rixas que afastavam ção da história não mais cristocêntrica, mas
sua atenção dos problemas propriamente trinitária.
(S a p ítu lo o ita v o

O s u ^ g im e rv fo deu Ê s c o l a s + i c a
e s e u s desenvolvim entos
d e B oeeio a Ê s c o t o Ê e i u g e n a

I. y \ o b r a e o pervsamervto
d e 5everirvo 3 o e e i o

• Severino Boécio (480-524) é considerado o último dos Uma grande


romanos e o primeiro dos escolásticos, e, portanto, uma figura figura
chave no surgimento da Idade Média. Seu fim era o de tornar no surgimento
conhecida aos latinos a cultura grega, por meio de um projeto da Idade Média
vastíssimo (mas apenas em parte realizado) de traduções e de ^ § 1
comentários, entre os quais marcaram época os comentários às
obras de lógica, de Aristóteles.
• No comentário ao Isagoge de Porfírio, Boécio chocou-se
também com uma das questões fundamentais da Idade Média, A questão
a questão dos universais (ou seja, o problema da natureza dos universais
ontológica dos universais), que ele resolveu no sentido de um $2
realismo moderado: o universal, enquanto tal, nasce por abs­
tração do conhecimento dos indivíduos.
• O nom e de Boécio, porém, está, ligado sobretudo ao De consolatione
philosophiae, do qual podem os salientar os pontos seguintes:
1) a filosofia está em grau de mostrar ao homem a verda­
deira felicidade (o próprio Deus ou o sumo Bem) e de afastá-lo o De
dos bens fictícios e aleatórios (bens materiais); consolatione
philosophiae
2) a filosofia ensina a crer na Providência divina, apesar da
-+§3
presença do mal, porque ensina a ver a orientação universal da
realidade para o bem.
• Uma vez admitida a Providência, como se pode salvar a
liberdade hum ana? Deus, segundo Boécio, conhece e dispõe Providência
também as coisas futuras sobre a base da natureza que cada e liberdade
uma delas terá: como eventos necessários, se houver eventos humana,
razão e fé
necessários, e como eventos livres, se houver livres. Ele é um
->§4-5
"filósofo cristão".

1 Boécio: co. Foi nomeado cônsul em 510. Em 522,


seus dois jovens filhos foram elevados à dig­
" o último dos mmanos nidade do cargo consular, ocasião em que
e o pHmeieo dos escolásticos,/ ele pronunciou o panegírico de Teodorico.
Ainda por volta de 522-523 exerceu o car­
Anísio Mânlio Severino Boécio nasceu go de magister officiorum (direção geral dos
em Roma por volta de 480. Muito jovem serviços da corte e do Estado, algumas fun­
ainda, casou com Rusticiana, filha de Síma- ções de política externa, comando dos guar­
130 Q li U T t U parte - C Â ê n e s e - d a íE sco lás+ ica

das adidos ao palácio real). Atacado e acu­ a tradução e o comentário de todas as obras
sado pelo referendarius Cipriano, expoente de Platão, para depois mostrar a concordân­
do partido filogótico, foi preso e julgado sem cia substancial entre os dois filósofos.
ao menos ser ouvido. Foi justiçado no inver­ Devido também à morte prematura,
no de 524 no Ager Calventianus, ao norte de Boécio não conseguiu levar a termo o seu
Pavia. As principais acusações foram a de ter vasto e ambicioso projeto. De todo modo,
impedido o trabalho dos delatores em rela­ escreveu um comentário ao Isagoge de Por-
ção ao Senado e de ter tramado a restaura­ fírio, tomando por base a tradução de M á­
ção da autoridade do Imperador em prejuí­ rio Vitorino. Entretanto, insatisfeito com tal
zo de Teodorico. tradução, realizou pessoalmente outra, mais
Os estudiosos definiram Boécio como correta e literal, desenvolvendo então um
“ o último dos romanos e o primeiro dos comentário muito mais vasto. Traduziu e co­
escolásticos” e, portanto, como um dos fun­ mentou as Categorias, de Aristóteles. Apron­
dadores da Idade Média. Na realidade, a ele tou a versão do De interpretatione, também
remontam as linhas essenciais que a cultura de Aristóteles, escrevendo dois comentários
da Idade Média seguirá. sobre essa obra: um, elementar, em dois li­
Em uma carta a Símaco, Boécio ex­ vros, e outro, mais articulado e vasto, em
pressa a intenção de levar em conta todas seis livros. Comentou os Tópicos, de Cícero.
as ciências que conduzem à filosofia: arit­ Ainda do Organon de Aristóteles, traduziu
mética, música, geometria e astronomia. E os Analíticos primeiros e segundos, os Elen­
a consideração dessas ciências deveria estar cos sofísticos e os Tópicos.
em função da filosofia. Com tal propósito, Foi através desses textos que a Idade
Boécio projetou a tradução para o latim, Média conheceu Aristóteles até o século XII.
com comentários, de todas as obras de lógi­
ca, moral e física de Aristóteles, bem como

2 B oecio e a loguza

Ao que tudo indica, Cousin conside­


rou, de modo excessivo, que o problema dos
universais é o problema da Escolástica. E
esse problema passou para a Escolástica pre­
cisamente através de Boécio. Com efeito,
comentando o Isagoge de Porfírio, Boécio
encontrou três questões fundamentais pro­
postas por ele:
a) se existem ou não os universais —
ou seja, os gêneros e as espécies: animal, ho­
mem etc.;
b) se eles são ou não corpóreos;
c) supondo que sejam incorpóreos, se
estão ou não unidos às coisas sensíveis.
Ora, Porfírio se propusera essas ques­
tões, mas não havia proposto soluções para
elas. Já Boécio, nas pegadas de Alexandre de
Afrodísia, formulou respostas que podem ser
qualificadas e resumidas na concepção que,
em seguida, como veremos, viria a ser cha­
mada de realismo moderado. O universal
(animal, homem etc.) só existe enquanto uni­
versal no intelecto e, por isso, os universais
Boéc io (480-524) foi o mais ilustre mediador
entre a antiguidade e a Idade Média.
são incorpóreos. Não existe o homem univer­
Aqui reproduzimos a miniatura sal na realidade, só homens singulares. E abs­
que abre um códice francês do séc. XV, traindo dos homens singulares as suas carac­
contendo o De consolatione philosophiae terísticas comuns — típicas da espécie ou do
(Viena, Biblioteca Nacional). gênero — que se obtêm os universais.
Cãpítulo oitavo - O su rgim en to d o É s c o l á s t i c o e s e u s desen volvim entos
131

3 O TDa c o n s o l a i i o n e
p h ilo s o p h ia e :
Deus é a p r ó p r i a felicidade

A obra mais famosa de Boécio é o De


consolatione philosophiae. Em prosa e ver­
so, ela foi escrita na prisão e exerceu consi­
derável influência sobre o pensamento e a
espiritualidade da Idade Média.
Sigamos as linhas essenciais desta obra.
Enquanto Boécio se encontra na prisão
e se lamenta, aparece-lhe “ uma mulher de
aspecto venerando, com olhos fulgurantes e
penetrantes, além da capacidade comum dos
homens” . Ela expulsa as musas que estavam
em torno de Boécio, musas que são “ mere-
trizes de teatro, que não apenas não podem
oferecer qualquer remédio para as suas do­
res, como ainda as alimentam, com seus do­
ces venenos” . Boécio fixa o olhar na mulher
que apareceu e logo reconhece a sua “ nu-
triz” , em cuja casa estivera desde a juventu­
de: a Filosofia.
Então a Filosofia lhe faz compreender
que ele esqueceu a si mesmo e esqueceu que,
uma vez que o governo do mundo não está
entregue “ à cegueira do acaso, mas à divina
razão” nada se deve temer. Assim começa o
primeiro dos cinco livros do De consolatione.
No segundo livro a Filosofia exorta seu
discípulo a conformar-se com as vicissitu-
des da Fortuna, que é o destino que domina
a vida humana. E, quanto mais ela parece
favorável aos homens, tanto mais lhes é con­
trária, pois os impede de ver em que consis­
Boécio, ministro do rei Teodorico te a verdadeira felicidade. A partir dessas
e por cie preso porque suspeito de traição, idéias, típicas do bom senso, a Filosofia co­
escreveu no cárcere sua obra mais famosa: meça uma terapia mais eficaz dos males que
De consolatione philosophiae. afligem Boécio. Aborda o problema do bem,
A ilustração alegórica mostra Boécio que não se encontra nas honras, na glória,
na prisão e a Pilosofia. nas riquezas, nos prazeres, no poder. Se al­
guém procurar a felicidade por esse caminho,
só encontrará soluções aberrantes: trata-se
Além de tradutor e comentador dos es­ de caminhos que “ não estão em condições
critos lógicos que mencionamos, Boécio tam­ de levar ninguém àquela meta a que prome­
bém foi autor de tratados lógicos: Introductio tem conduzi-lo” . Com efeito, diz a Filoso­
ad categóricos syllogismos, De syllogismo fia: “Tratarás de acumular dinheiro? Mas
categórico, De syllogismo hypothetico, De terás de subtraí-lo de quem o possui. Gos­
divisione e De differentiis topicis. tarias de ostentar belos cargos? Terás de te
A lógica de Boécio não é muito origi­ rebaixar a suplicá-los a quem pode dá-los a
nal, mas bastante refinada. Aristóteles per­ ti. E precisamente tu, que anseias superar
manece a sua matriz de base, mesmo que se todos os outros em honras, te desonrarás,
possam localizar algumas influências da ló­ rebaixando-te servilmente a esmolá-los. As­
gica estóica. Ele, todavia, tem enorme impor­ piras ao poder? Expor-te-ás às traições de
tância, à medida que a lógica antiga passa quem te estiver submetido e te submeterás
para a Idade Média justamente por meio dele. aos perigos. Visas à glória? Mas, dispersan­
132 Quarta parte - C \ & n & s e d a (Sscolástica

do-te entre dificuldades de todo tipo, perdes tudo aquilo que se move, de alguma forma
a tua serenidade. Gostarias de transcorrer a derivam as suas causas, a sua ordem, as suas
vida entre prazeres? Mas quem não sentiria formas distintivas da imutabilidade da men­
desprezo e repugnância por alguém que se te divina” . E a realização efetiva dos acon­
faz escravo de uma coisa tão vil e frágil como tecimentos no tempo e no espaço é aquilo
o corpo?” . Portanto, não é nessas coisas ter­ “que foi chamado destino pelos antigos” .
renas que se deve buscar a felicidade. Por A providência, portanto, é “ a própria ra­
outro lado, é impossível negar que existe a zão divina, que repousa estavelmente no
bem-aventurança, pois os bens imperfeitos supremo ser, senhor de todas as coisas, que
só o são à medida que participam do perfei­ a todas governa; já o destino é a disposição
to. Diz então a Filosofia: “Assim, é preciso inerente às coisas mutáveis, pela qual a pro­
reconhecer que Deus é a própria felicidade vidência mantém cada coisa estreitamente
(...), tanto a felicidade como Deus são o ligada à sua ordem” .
sumo bem” . E Boécio responde: “ Nenhu­ E a Filosofia prossegue: os homens,
ma conclusão (...) poderia ser mais verda­ porém, são incapazes de se dar conta de tal
deira do que essa em substância, mais sóli­ ordem, de modo que “ tudo parece confuso
da na estrutura lógica, mais digna diante de e subvertido” , quando, na realidade, “to­
Deus” . [T] das as coisas estão ordenadamente dispos­
tas segundo uma norma a elas apropriada,
que as orienta para o bem. Com efeito, não
há nada que seja feito visando ao mal, nem
4 O problema do mal mesmo por parte dos próprios maus; na rea­
e a questão da liberdade lidade, estes (...) procuram o bem, mas dele
são desviados por um despercebido erro de
avaliação” . Ademais, admitindo-se que al­
Estamos diante de teses de natureza guém esteja em condições de distinguir os
neoplatônica, que Boécio explicita ainda bons dos maus, “ será que poderá olhar tam­
melhor no fim do terceiro livro, quando afir­ bém dentro da alma, para ver como é feita
ma que o Uno, o Bem e Deus são a mesma a sua constituição íntima (...)?”
coisa. Ora, se as coisas são assim, se é a pro­
Entretanto, se “ o mundo é governado vidência que governa o mundo, como é
por D eus” , uma questão emerge como que esse fato se concilia com a liberdade do
ineludível: como então existe o mal e por homem?
que os maus permanecem impunes? Esse é Pois bem, a resposta que encontramos
o problema que Boécio enfrenta no quarto no quinto livro do De consolatione para tal
livro. interrogação é que o conhecimento divino
A Filosofia observa que todos os que é conhecimento simultâneo de todos os
se afastam da honestidade são pessoas con­ acontecimentos, tanto dos passados como
denadas, embrutecidas, infelizes. dos futuros. Assim, “ se tu quisesses avaliar
Este, portanto, é o resultado para quem exatamente a pré-visão com que ele reco­
abandona a honestidade: deixa de ser ho­ nhece todas as coisas, deverías justamente
mem e se transforma em animal. Será que a considerar que não se trata de presciência
felicidade está nisso? Ora, apesar disso, de coisas projetadas no futuro, mas de co­
Boécio se surpreende com o fato de que “ as nhecimento de um presente que nunca pas­
coisas andem ao contrário: os bons sofrem sa. Daí não chamar-se previdência, mas pro­
as penas devidas ao delito, ao passo que os vidência (...). Por que, então, pretendes que
maus se apropriam da recompensa que cabe se tornem necessárias as coisas que são in­
à virtude” . vestidas pelo lume divino quando nem mes­
Qual é, portanto, “ a razão de tão in­ mo os homens tornam necessárias as coisas
justa confusão de valores” ? A Filosofia, no que vêem? Será que, na realidade, o teu olhar
entanto, lembra a Boécio que ele não deve acrescenta alguma necessidade às coisas que
se surpreender com tais coisas, desde que vês como presentes?” . Em suma: em Deus,
compreenda os princípios que regulam a estão presentes os acontecimentos futuros e
atividade daquelas coisas que, aparentemen­ estão presentes no modo como acontecem,
te, acontecem por acaso. E esse princípio é razão pela qual aqueles que dependem do
a providência: “A origem de todo o criado, livre-arbítrio estão presentes em sua contin­
toda evolução das naturezas mutáveis e de gência.
Cãpítulo O Ítã V O - O surgim en to d a (S s c o lá s tic a e s e u s d es en volvim e n tos
133

R azão e fé em Boécio ficamente se consideram como autênticos qua­


tro dos cinco tratados teológicos de Boécio.
São eles:
O De consolatione pareceu para alguns a) De Trinitate;
uma obra essencialmente leiga, privada de b) Utrum Pater et Filius et Spiritus
conotações cristãs, sem referências aos mis­ Sanctus de divinitate substantialiter praedi-
térios do cristianismo. Usa principalmente centur;
argumentos de inspiração platônica e neo- c) Quomodo substantiae in eo quod
platônica. sint, bonae sint;
Isso, porém, não nos deve enganar. d) Liber contra Eutychen et Nestorium.
Com efeito, os opúsculos teológicos de Boé- As únicas reservas são as manifestadas
cio, que talvez tenham exercido sobre o pen­ sobre a autenticidade do De fide catbolica.
samento medieval influência ainda maior do Doravante está fora de discussão, por­
que o De consolatione, foram considerados tanto, que Boécio tenha sido um filósofo
apócrifos por aqueles que viram no De conso­ cristão.
latione apenas uma obra pagã. Entretanto,
as coisas mudaram a partir de 1875, quan­
do Alfred Holder descobriu um fragmento Outeos autores
(Anecdoton Holderi) que remontava a 522,
atribuído a Cassiodoro, no qual, entre ou­
do século Wao sécu lo vrn
tras coisas, afirma-se que Boécio “compôs
um tratado sobre a Santa Trindade, alguns Magno Aurélio Cassiodoro, também
escritos sobre questões dogmáticas e uma ministro de Teodorico, nasceu na Calábria
obra contra Nestório” . Atualmente, paci­ entre 480 e 490, para aí se retirou após dei-

| m o i n a i
m m íhtinc* floi
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u c u o ctig*
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falte; nniti
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l l e n r m com itee ttcfcM ictiuu» it n
Miniatura que representa Boécio na prisão.
134 Quarta parte - d ê n e s e d a É se o lá stica

xar a vida pública, fundando o mosteiro de Etymologiae, na qual resume o saber do seu
Vivarium, no qual reuniu vasta biblioteca e tempo, seguindo o fio da origem das pala­
escreveu suas obras: De anima e Institutio- vras (suas hipóteses são freqüentemente ar­
nes, a História dos Godos, as epístolas bitrárias, mas são ocasião para divagar nos
Variae. Seu mosteiro foi um dos primeiros mais diversos campos e nos oferecem pre­
exemplos de centro de espiritualidade e de ciosas informações sobre a cultura depois
cultura onde devia refugiar-se o estudo do da queda do Império).
passado com a aproximação dos tempos Outra obra enciclopédica foi escrita
obscuros dos “ séculos de ferro” . Cassiodoro mais tarde pelo “venerável” Beda (673-735)
confirma o plano dos estudos liberais que com o monumental De rerum natura, ao
devem ser seguidos pelos clérigos, compre­ lado de escritos gramaticais e retóricos; ele
endendo, conforme o esquema traçado em é mestre de Ecberto, primeiro bispo de York
torno de 430 por Marciano Capella no De e por sua vez mestre de Alcuíno. Com estas
nuptiis Mercurii et Philologiae, as artes do figuras a longínqua Britânia participa da
trivium (gramática, dialética, retórica) e do conservação do patrimônio de cultura amea­
quadrivium (aritmética, geometria, astrono­ çado pelos Bárbaros.
mia, música). Mas a figura mais significativa no res­
Isidoro nasce no mesmo ano da morte surgimento e na difusão da cultura nesta fase
de Cassiodoro (570), em outro reino roma- da história da Idade Média é a de Alcuíno
no-barbárico, o visigótico da Espanha. Além de York (730-804), como fundador da Es­
de escritos teológicos e de uma História dos cola palatina desejada por Carlos Magno
Godos e dos Vândalos, dedicou-se a uma (781), da qual já explicamos acima as ca­
vasta enciclopédia em vinte livros, intitulada racterísticas de grande importância.

Miniatura do séc. XII


que representa Cassiodoro.
Capitulo o itã V O - CD su^gim e^ to d a í£ sco lá s+ ic a e s e u s d eseu v o !v im e u to s
135

II. 3 OCXo (S sco to CDD\ u g e u a

• A filosofia de Escoto Eriúgena (séc. IX) inspira-se no Teoioqía po sjtj va


pensamento neoplatônico, absorvido por meio da leitura do e teologianegativa
Pseudo-Dionísio Areopagita. O conhecimento de Deus começa § 7.2
com a via positiva, isto é, com a atribuição a Deus de todas as
perfeições das criaturas e termina com a via negativa, que consiste em negar como
insuficientes todas as perfeições: em tal sentido, a via negativa corresponde a
uma via "superafirmativa" (Deus é supra-substância, suprabondade etc.)

• No tratado De divisione naturae o filósofo distingue a realidade em quatro


partes:
1) a natureza que não é criada e que cria, isto é, Deus;
2) a natureza que é criada e que cria, isto é, o Logos, o qual contém os mode­
los ideais de todas as coisas; estes modelos, porém, não são apenas causas exem­
plares — como queria Platão — , mas tornam-se também causas
eficientes por efeito do Espírito Santo, que faz derivar dos exem- 0 De divisione
piares eternos as realidades individuais; naturae
3) a natureza que é criada e não cria, isto é, o cosmo; o e sua estrutura
cosmo é uma manifestação de Deus (theophania) e o homem -> § 3
tem a tarefa específica de reconduzi-lo a Deus;
4) a natureza que não é criada e não cria, e esta é ainda Deus, entendido
como fim da História.
Neste ponto, o mundo e o homem são recapitulados em Deus: mas o homem
não perde sua individualidade, como o ar não perde sua individualidade quando
é atravessado pela luz.

• Escoto Eriúgena forneceu também uma interpretação


realista dos universais, considerando a dialética não somente "Ninguém
como regra do pensamento, mas também como a própria es­ entra no céu
trutura da realidade, como a arte fundada pelo Criador no ato a não ser
da criação. Em tal sentido, não existe diferença entre religião e por meio
filosofia enquanto ambas fazem referência a Deus; nosso filó­ da filosofia "
sofo, portanto, pode afirmar que ninguém entra no céu a não -^§4
ser por meio da filosofia.

1 y \ fig u r a e a o b ra do por volta de 847 na corte de Carlos, o


Calvo, chamado da Irlanda, onde nascera
d e é E s c o to íS n ú g e u a por volta de 810, para dirigir a escola pala-
tina. Quando já era um apreciado mestre na
Se Alcuíno foi o maior artífice do renas­ corte da França, foi convidado pelos bispos
cimento cultural carolíngio, por seu espíri­ de Reims e de Laon a refutar a tese da du­
to organizador e pela criação de suas pri­ pla predestinação, de Gotescalco, para quem
meiras obras doutrinárias, também é certo alguns estavam infalivelmente predestinados
que João Escoto Eriúgena foi a figura mais ao inferno e outros ao paraíso. Escreveu en­
representativa e prestigiosa dessa fase. Pela tão, em 851, o De praedestinatione, no qual,
poderosa síntese filosófico-teológica e pela porém, parece ter superado os limites, já que
obscuridade estrutural dos seus escritos mais chegou a falar da transitoriedade do infer­
originais, ele foi ao mesmo tempo o gigante no. Só a proteção de Carlos, o Calvo, salvou-
e a esfinge do seu século. o da condenação.
Proveniente da grande forja dos escotos A pedido do próprio Imperador, tra­
ou irlandeses (a Irlanda era chamada “ Scotia duziu o corpus dos escritos do Pseudo-Dio­
maior” ), Escoto Eriúgena pode ser encontra­ nísio (a Hierarquia celeste, a Hierarquia ecle-
136 Quarta parte - CÀè-ne.st?. d a £Lsco!ás+ica

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Frontispício da edição
do De divisione naturae,
a obra maior /> V II \ I I

de Escoto F.riúgena, ; , I \ I. i ;
publicada em Oxford \ Ml ' < ! ' • •
em 1681.

siástica e a Teologia mística), que tanta di­ Depois da morte de Carlos, o Calvo,
fusão tiveram na Idade Média, bem como ocorrida em 877, não se tem mais notícias
os Ambigua, de Máximo, o Confessor (ex­ de Escoto Eriúgena, que, ao que parece, mor­
plicação de passagens difíceis das obras de reu alguns anos depois na França.
Gregório Nazianzeno e do Pseudo-Dionísio
Areopagita) e o De opificio hominis (a cria­
ção do homem), de Gregório de Nissa.
Mas, além de tradutor, ele também foi .2. údscofo (£7riwgeiaa
pensador original, seja com comentários a e o Pseud o-V ionísi o
algumas obras do Pseudo-Dionísio, abrin­
do a série dos comentadores medievais des­
se difundido corpus, seja, particularmente, O autor grego que mais influiu sobre
com a sua obra maior De divisione naturae, Escoto Eriúgena foi certamente o Pseudo-
em cinco livros, realizada antes de 865 sob Dionísio, assim chamado porque se acredi­
a forma de diálogo entre mestre e discípulo. tava que fosse o juiz do Areópago encon­
Dentre os escritos menores, pode-se trado por são Paulo, quando, na verdade,
recordar as Glosas aos opúsculos teológi­ depois se saberia que suas obras foram ela­
cos de Boécio e as Annotationes in Marcia- boradas bem mais tarde, sendo o autor de
num Capellam, que é comentário escolás- evidente formação neoplatônica.
tico a um texto pagão do século V, o De Como já dissemos, no centro das refle­
nuptiis Mercurii et Philologiae, de Marcia­ xões do Pseudo-Dionísio está Deus, cujo
no Capella. conhecimento começa com a via positiva e
Capítulo oitavo - O swi *qi me nt o d a é E s c o l á s + i c a e. s e u s d e s e n v o l v i m e n t o s
137

termina com a via negativa. A primeira con­ de todos os predicados, limitados e finitos,
siste em atribuir-lhe as perfeições simples dasque estamos inclinados a atribuir a Deus.
criaturas (via positiva), ao passo que a se­ Só impropriamente se pode chamar de cria­
gunda consiste em negá-las (via negativa). tura sua primeira manifestação, porque se
Tais negações não devem ser entendi­ identifica com o Logos ou Filho de Deus, não
das em sentido de privação, mas sim de produzido no espaço e no tempo, mas, se­
transcendência. Por esse motivo, a teologia gundo o prólogo do Evangelho de são João,
negativa denomina-se também teologia su- coeterno ao Pai e coessencial a ele: Deus não
per-afirmativa. Para além de todo conceito seria Deus se não fosse desde a eternidade o
ou conhecimento humano, Deus é supra-ser, gerador do próprio Logos ou sabedoria.
supra-substância, supra-bondade, supra- b) Natureza que é criada e cria. E o
vida e supra-espírito. Logos ou sabedoria de Deus, no qual estão
Embora a inspiração seja neoplatônica, contidas as causas primordiais ou arquéti­
a substância do pensamento de Escoto Eriú- pos de todas as coisas. Trata-se de idéias,
gena é cristã, porque ele não é monista: a modelos, espécies e formas que expressam
unidade do todo em sentido panteísta lhe é o pensamento e a vontade de Deus, chama­
estranha, como a emanação. Com efeito, en­ dos também de “ predestinações” ou “von­
tre o Pseudo-Dionísio e o Neoplatonismo tades divinas” , por imitação às quais as coi­
existe a barreira do Deus criador, pessoal, sas se formarão. Vista sob essa ótica, toda a
distinto das criaturas. criação é eterna: “Tudo aquilo que está nele
Por isso, não há nada de fatal em Esco­ permanece sempre e é vida eterna” . As coi­
to Eriúgena, já que o retorno do homem a sas, situadas no espaço e no tempo, são infe­
Deus leva a marca de sua liberdade. riores, menos perfeitas e menos verdadeiras
A essa tese fundamental é preciso acres­ do que o modelo ou arquétipo, por causa
centar ainda a tese do processo gradual, se­ de sua mutabilidade e caducidade. E óbvio
gundo a qual o universo está disposto do mí­ que esses modelos são diversos e múltiplos
nimo ao máximo. Trata-se de uma hierarquia para nós, não para Deus, assim como a cria­
ção comporta mudanças para nós, não para
respeitada no céu e na terra, celeste e terrena,
sobre a qual é preciso refletir e na qual deve-Deus. Ademais, tais modelos, ao contrário
se inspirar a vida individual e social. das idéias perfeitas e imóveis de Platão, são
Pois bem, essa síntese, que influiría so­causas eficientes e não apenas exemplares.
bre pensadores como Hugo de São Vítor, Quem transforma esses exemplares em cau­
Alberto Magno, são Boaventura e santo To­ sas eficientes é o Espírito Santo, que faz sair
más de Aquino, influenciou poderosamente dos exemplares eternos as coisas e os indiví­
Escoto Eriúgena, que a acolheu e repensou duos, o que, portanto, é a “causa da divisão,
em sua obra maior, o De divisione naturae. multiplicação e distribuição de todas as cau­
sas em efeitos, gerais, especiais e próprios,
segundo a natureza e segundo a graça” . Não
3 O XA’ d iv isio n e n a iu n a e se trata, portanto, de criação, mas da subs­
tância dialética da qual as coisas são expres­
são e retorno. Trata-se de uma substância da
qual as coisas são feitas e que é, ao mesmo
Essa obra de Escoto Eriúgena, em cin­
tempo, natural e sobrenatural, para além de
co livros e em forma de diálogo, pode ser
qualquer distinção das duas ordens, que, ao
resumida em quatro etapas ou divisões:
contrário, se interpenetram e se fundem.
a) natureza que não é criada e cria;
c) Natureza que é criada e não cria. E o
b) natureza que é criada e cria; mundo criado no espaço e no tempo, que,
c) natureza que é criada e não cria;
por seu turno, não produz e não cria outras
d) natureza que não é criada e não cria. coisas. O mundo é o que Deus quis e quer
a) Natureza que não é criada e cria.que
E seja, é a sua manifestação ou theopha-
Deus, incriado e criador de todas as coisas. nía. Ele é criado do nada e não é, como que­
Sendo perfeitíssimo, Deus não é cognoscível, riam os “filósofos seculares” , uma matéria
estando acima de todos os atributos (supra- informe e eterna. Se o aspecto sensível e múl­
substância, supra-bondade, supra-potência, tiplo das coisas é expressão do pecado origi­
supra-vida etc.): trata-se precisamente da via nal — o que se coaduna com o neoplatonismo
negativa do Pseudo-Dionísio, que supera a —, o significado último do mundo é o ho­
teologia afirmativa porque leva à negação mem, chamado a reassumi-lo e reconduzi-lo
138 Quarta parte - G ê n e s e d a é í^ sc oi ás+ ica

a Deus. Nele, oficina do universo, tudo está ra autoridade não se opõe à reta razão, nem
abarcado, é partícipe do mundo sensível e esta à verdadeira autoridade, porque ambas
do mundo inteligível, sendo portanto resu­ derivam de única fonte, isto é, da sabedoria
mo do cosmo. A substância do homem está divina” .
na alma, de que o corpo é instrumento: “ O Estabelecendo estreita correspondên­
corpo é nosso, mas não é nós” . Com o pecado, cia entre o pensamento e a realidade, Escoto
o corpo tornou-se corruptível; originalmen­ Eriúgena contribuiu de modo relevante para
te imortal, voltará a sê-lo com a ressurreição. a reavaliação da investigação lógico-filo-
d) sófica em um contexto claramente teológi­
Natureza que não é criada e não cria.
É Deus como termo final de tudo. O quarto co. Já no De praedestinatione, escrito para
e o quinto livros do De divisione naturae refutar as teses de Gotescalco, evidenciava
descrevem a epopéia do retorno. O tempo o papel insubstituível da ratio, já que, à co­
intermediário entre a origem e o retorno é letânea de passagens dos Padres da Igreja
ocupado pelo esforço do homem para re­ em uso na sua época, ele opôs a necessida­
conduzir tudo a Deus, na imitação do Filho de de recorrer à razão para explicar e escla­
de Deus, que, encarnando-se, recapitulou em recer trechos controversos e teses contra­
si o universo e mostrou o caminho do retor­ postas.
no. Por isso, a encarnação de Deus é um fato Escoto Eriúgena superou a concepção
capital, ao mesmo tempo natural e sobrena­ da lógica como simples técnica de lingua­
tural, filosófico e teológico. O retorno se dá gem, que remontava às escolas de retórica
em fases: a dissolução do corpo nos quatro e de direito do Baixo Império, desenvol­
elementos; a ressurreição do corpo glorioso; vendo uma interpretação realista dos uni­
a dissolução do homem corpóreo no espírito versais em um contexto claramente teo­
e nos arquétipos primordiais; por fim, a na­ lógico. Com efeito, no seu De divisione
tureza humana e suas causas, que se movem naturae, a dialética é entendida como a
em Deus como o ar na luz. Então, Deus será própria estrutura da realidade no seu rea­
tudo em cada coisa; aliás, não haverá nada lizar-se: em suas duas fases, ascendente e
mais além de Deus. Não se trata de dissolu­ descendente (a divisio, do uno ao múlti­
ção da individualidade, mas na sua conser­ plo, e a reductio, do múltiplo ao uno), cons­
vação da mais elevada forma: como o ar não titui o ritmo interno da natureza e da his­
perde sua natureza quando penetrado pela tória do mundo. A dialética é antes de tudo
luz, e o ferro não se anula quando se funde uma arte divina, fundada na própria obra
ao fogo, da mesma forma toda natureza se do Criador. E é por isso que os homens
assimilará em Deus sem perder sua indivi­ descobrem e não criam a dialética, como
dualidade, ontologicamente transfigurada e instrumento de compreensão do real e de
não anulada. [T] elevação a Deus. Desse modo, Escoto Eriú­
gena abole toda distinção entre religião e
filosofia: “A verdadeira filosofia outra coi­
sa não é do que religião e, inversamente, a
4 ;A razão em função da fé verdadeira religião outra coisa não é do que
verdadeira filosofia” . E, nesse contexto re­
ligioso, ele chega a dizer que ninguém pode
Nenhuma autoridade — diz Escoto entrar no céu a não ser passando pela filo­
Eriúgena — deve te afastar das coisas que sofia {Nemo intrat in caelum nisi per pbi-
são ensinadas pela reta razão. “ A verdadei­ losophiam).
139
Capitulo oitavo - O SMi^gimehío da é^scolastica e seus deseuvolvimeu+os

Quando ela viu as Musas da poesia que


estavam ao lado de meu leito e ditavam pala­
B o é c io
vras aos meus prantos, um pouco perturbada e
acesa nos olhos severos, disse: "Quem permi­
tiu que estas mulherzinhas de teatro se aproxi­
massem do doente, a elas que não só não sua­

D fí consolação do filosofia1 vizariam suas dores com algum remédio, mas,


ao contrário, as fomentariam com doces vene­
nos? São justamente estas, na verdade, que
sufocam, com os estéreis espinhos dos afetos,
Boécio vivo encarcerado injustamente o colheita da razão fecunda de frutos, e acos­
e Fechado em uma torre à espera d e um pro­ tumam a mente dos homens ao mal, em vez de
cesso que jam ais s e realizará. Bstá cons­ libertá-los deste. G mesmo que vossos lisonjas,
ciente d e suo inocência e de se r vítima de como em geral acontece, desviassem algum
uma conjuração, e seu ânimo está prostrado profano, julgaria poder suportá-lo com menor
e abatido: neste ponto intervém a FilosoFia, aflição: nele não provocariam certamente ne­
personiFicada em uma mulher majestosa que nhum dano à nossa obra. Gste, porém, cresceu
o visita no cárcere. €la represento a voz da nos estudos eleáticos e acadêmicos; retirai-vos,
reta razão que traz o equilíbrio e a serenida­ portanto, sereias doces que levam à morte, e
d e p or meio d e argumentações sobre os deixai-o para que minhas musas o curem e o
valores da vida, sobre a Felicidade, a liber­ recuperem!"
dade e a verdade suprema que é Deus. F) tais reprovações o coro inclinou melan-
colicamente a face para a terra, e, revelando
no rubor a vergonha, transpôs confuso a solei­
ra da porta. G eu, que tinha a visão obscureci-
1. A aparição da Filosofia
da pelas lágrimas e nem podia distinguir quem
Gnquanto silenciosamente eu considera­ fosse esta mulher de autoridade tão imperio­
va estas coisas, e punha por escrito minha sa, permaneci estupefato, e dirigindo os olhos
lamentação cheio de lágrimas, pareceu-me que para o chão me dispus a esperar em silêncio
se curvasse sobre minha cabeça uma mulher de aquilo que deveria ser feito em seguida. Gntão
rosto como que venerando, de olhos fulguran­ ela, vindo mais perto, sentou-se na extremida­
tes e penetrantes para além da capacidade de de meu cotre, e olhando fixamente minha
humana, com a face encarnada e inesgotável face grave por causa da dor profunda e dirigida
vigor — embora fosse tão sobrecarregada de para o chão por causa da aflição, lamentou-se
anos que não se podia crer de nossa época — , por cousa da perturbação de minha mente [...].
de estatura difícil de avaliar. Com efeito, ora se
reduzia à medida normal dos homens, ora pa­
2. A felicidade está dentro,
recia tocar o céu com a parte superior da ca­
e não fora de nós
beça; depois, quando a levantava ainda mais
para o alto, penetrava também o próprio céu Gntão eu disse: "G verdade tudo o que me
e desaparecia aos olhos daqueles que a ob­ trazes à mente, ó nutriz de todos as virtudes,
servavam. Suas vestes eram tecidas, com re­ nem posso desmentir o época, embora ra­
finada destreza, de sutilíssimos fios de maté­ pidíssima, de minha prosperidade. Mas é isso
ria indestrutível, e elo própria (como depois que verdadeiromente mais me atormenta, quan­
soube por sua boca) as tecera com as próprios do penso no questão: uma vez em toda adver­
mãos; um véu, por assim dizer, de descuidado sidade da sorte, o ter sido feliz é o tipo mais
antiguidade obscurecia seu esplendor, como doloroso de infortúnio". Gla respondeu: "Tu,
acontece nas pinturas expostas à fumaça. Na porém, não podes razoavelmente atribuira cul­
orla inferior lia-se, recamodo, um n grego, na pa às próprias coisas pela pena que suportas
superior um © (a letra theto); entre uma e ou­ por ter nutrido uma falsa opinião. Na verdade,
tra apareciam desenhados a modo de escada se te perturba este nome vazio de uma felici­
alguns degraus mediante os quais se podia dade sujeito ao acaso, consideremos juntos
ascender da mais baixa à mais alta. Mesmo quão grandes e numerosos são os bens dos
assim as mãos de alguns violentos haviam quais usufruis. Se por graça divino te é conser­
lacerado a veste, e dela retiraram todos os vado íntegro e intacto aquilo que possuías de
fragmentos que podiam. G sua direita segu­ mais precioso em todo o patrimônio da tua for­
rava alguns pequenos livros, a esquerda um tuna, poderás razoavelmente lamentar-te da má
cetro. sorte, embora mantendo todos os teus melho­
140
Quarta parte - C\&ne.se da £Fscolás+ica

res bens?Gstá aindci vigoroso 0 incólume aquele tem nenhuma experiência disso, 0 dó medo a
preciosíssimo orgulho do gênero humono qu© quem o teve. Acrescenta depois que quanto
0 Símaco, t0u sogro, 0 — coisa quo resgatarás mais uma pessoa é afortunada, mais delicada
voluntariamonto com o preço da vida — tal ho­ é sua sensibilidade, e que, se tudo não está
mem, todo sabedoria 0 virtud0, S0 lamenta po­ exatamente a seu gosto, não sendo avessa a
las ofensas a ti dirigidas, sem cuidar-sa das qua qualquer adversidade, abate-se diante da me­
podam atingi-lo. Gstá viva tua esposa, mulher nor delas: infinitas são as coisas que privam os
do índolo resorvada, de singular modéstia 0 mais afortunados da felicidade perfeita. Tens
honestidade 0, para resumir brevemente todos idéia de quantos se julgariam quase no céu se
os dotes dela, semelhante ao pai; vive, eu te tivessem como sorte uma parte ainda que míni­
digo, e, chegando a odiar esta vida, anima-se ma daquilo que resta de tua fortuna? Gste mes­
apenas por ti, 0 se consome em lágrimas 0 dor mo lugar, que chamas de exílio, é a pátria para
com tua falta (único motivo pelo qual também aqueles que aí habitam. De modo que é verda­
eu julgaria que perd0ste parte de tua felicida­ de que a miséria está na opinião que dela se
de). Que direi depois a respeito de teus filhos tem, e que ao contrário feliz é a sorte, seja ela
já cônsules, de cuja índole, herdada tanto do qual for, daquele que a tolera com espírito se ­
avô quanto do pai, já aparece um claro ensaio, reno. Quem é tão feliz a ponto de não desejar
como é possível em jovens daquela idade? mudar o próprio estado, quando se deixa to­
Portanto, uma vez que a principal preocupação mar pela impaciência? De quantas amarguras
dos mortais é a de conservar a vida, feliz de ti, é coberta a doçura do felicidade humana! M es­
se conhecesses teus bens, dado que também mo que ela possa parecer agradável a quem
agora tens em abundância aquelas coisas que dela goza, todavia não se lhe pode impedir de
ninguém duvido ser mais preciosas na vida. Por ir embora quando quiser. G pois evidente o quão
isso, enxuga as lágrimas; a fortuna ainda não miserável 0 a felicidade derivada das coisas
passou a odiar a todos até o último, nem se mortais, que não dura para sempre nem mes­
desencadeou sobre ti uma tempestade dema­ mo naqueles que não se deixam por elas se­
siado veemente, uma vez que permanecem fir­ duzir, nem satisfaz completamente aqueles que
mes âncoras que não permitirão que te falte o a procuram com afã".
conforto do presente e a esperança do futuro". "Portanto, por que, ó mortais, procurais
Respondi: "Peço que elas estejam firmes; fora de vós a felicidade que está dentro de vós?
enquanto permanecerem, com efeito, seja como O erro e a ignorância vos confundem. Agora te
forem as coisas, eu serei salvo. Mas vês que mostrarei brevemente o fulcro sobre o qual se
grande parte de nossas distinções foi-se em­ apóia a mais alta felicidade. Gxiste algo mais
bora". Gla disse.- "Teremos feito certo progres­ precioso para ti do que tu mesmo? Não, res­
so, caso de modo nenhum te lamentes de tua ponderás; e, portanto, se fores senhor de ti
sorte. Mas não posso suportar a volúpia com a mesmo, possuirás aquilo que jamais d eseja­
qual com tanto pranto e ansiedade lamentas rias perder, nem a fortuna te poderio arrebatar.
que falte alguma coisa à tua Felicidade. Com G para que reconheças que a felicidade não
efeito, quem possui uma felicidade tão privada pode consistir nestes bens fortuitos, raciocina
de nuvens que não contraste em algo com a assim. Se a felicidade é o sumo bem da natu­
natureza de seu estado? A condição dos bens reza dotada de razão, 0 se não é sumo aquele
humanos é na verdade coisa que produz an­ bem que de algum modo pode ser tirado, pois
gústia, e tal que ou não se realiza nunca pleno­ lhe é superior aquele bem que não pode ser
mente ou jamais dura para sempre. Gste está tirado, torna-se claro que o instabilidade da
repleto de riquezas, mas enrubesce por causa fortuna não pode aspirar a possuir a felicidade.
de sua obscura ascendência; aquele é famoso Além disso, aquele que é dominado por esta
pelo nobreza das origens, mas se debate em felicidade caduca, ou sabe que ela é mutável
restrições econômicas tais que preferiría ser ou não sabe. Se não sabe, pode ser feliz a
desconhecido. Rquele que é abundantemente sorte de quem vive na cegueira da ignorância?
provido de ambos os bens chora seu celibato; Se sabe, necessariamente teme perder aquilo
aquele que é afortunado no matrimônio, mas que certamente poderá perder; e por isso o con­
privado de filhos, acumula riquezas para um tínuo temor não lhe permite ser feliz. Ou talvez,
herdeiro estranho; aquele, por fim, que se a le­ se o tiver perdido, pensa que seja coisa sem
gra com os filhos derrama lágrimas amargas importância? Mas também então é bastante
pelos erros do filho ou da filha". insignificante aquele bem cuja perda pode ser
"Ninguém, portanto, se encontro facilmente suportada serenamente. Sei que estás persua­
em sintonia com o própria sorte; em coda um dido e firmemente convicto, por muitíssimas
há sempre algo que é ignorado por quem não demonstrações, que as mentes dos homens não
141
Capítulo oitavo - O su ^ gim eu to d a írtscolás+ ica e s e u s d e s e u v o lv im e u to s

sõo de modo olgum mortais, e é evidente que efeito, é ser incluído oo longo do arco de uma
o felicidade dado pelo acaso termina com a vida sem termo — coisa que Platão atribui ao
morte do corpo. Não há dúvida, portanto, de mundo — , outra é acolher em si a presença
que, se esto felicidade pode trazer a bem- total e simultânea de uma vida sem fim, o que
aventurança, todo o qênero humano caio no evidentemente é próprio da mente divina. Nem
infelicidade no momento final da morte". Deus deve parecer mais antigo que as coisas
criadas por quantidade de tempo, mas sim por
3. A eternidade de Deus prerrogativa de suo simples natureza, o movi­
e a liberdade do homem mento infinito das coisas temporais imita justa­
mente o estado presencial da imóvel vida divi­
"Uma vez que, portanto, como pouco an­ na, e, não podendo reproduzi-lo ou igualá-lo,
tes ficou demonstrado, tudo aquilo que se co­ da imobilidade decai para o movimento, da sim­
nhece é conhecido não em virtude da própria plicidade da presença se reduz à infinita exten­
natureza, mas da natureza daqueles que o com­ são do futuro e do passado. Cmbora não es­
preendem, vejamos agora, conforme nos é per­ tando em grau de possuir contemporaneamente
mitido, qual é a condição da essência divina, a plenitude total da própria vida, apesar de tudo
de modo a poder também reconhecer qual é a isso, pelo próprio fato de que de algum modo
sua ciência, é juízo comum de todos os seres jamais cessa de ser, parece querer emular em
providos de razão que Deus é eterno. Conside­ certa medida aquilo que não pode igualar e
remos portanto o que seja a eternidade; esta, exprimir plenamente, estreitando-se àquele tipo
com efeito, nos desvelará ao mesmo tempo a de presença que é própria deste breve e fugaz
natureza e a ciência divina. A eternidade, pois, momento. Uma vez que tal presença traz em si,
é o posse simultânea e perfeita da vida sem por assim dizer, uma imagem daquela impere-
fim, coisa que aparecerá mais clara a partir de cível, fornece uma aparência de existência àque­
um confronto com as realidades temporais. Tudo les seres aos quais tocou como sorte; todavia,
aquilo que vive no tempo procede no presente uma vez que não pôde permanecer imóvel, tor­
do passado para o futuro, e não há nada, da­ nou-se senhora de um infinito itinerário de tem­
quilo que é colocado no tempo, que posso abra­ po, prolongando deste modo, no devir, a vida
çar conjuntamente todo o espaço da própria que não pôde abraçar em sua plenitude per­
vida; enquanto não consegue ainda agarrar manecendo imóvel. Portanto, se quiséssemos
aquilo que acontecerá amanhã, já perdeu aquilo dar às coisas seu justo nome, diriamos, seguin­
que foi ontem; e também na vida do hoje viveis do Platão, que Deus é eterno, o mundo, ao in­
openas no átimo móvel e fugidio. Portanto, tudo vés, é perpétuo".
aquilo que é condicionado pelo tempo, mesmo "Uma vez que, portanto, toda faculdade
que, como afirma Aristóteles a propósito do de julgamento compreende, segundo a própria
mundo, não tenha jamais começado a ser e ja ­ natureza, as coisas por ela subsumidas, e Deus
mais termine, e a duração de sua vida coincida se encontra sempre em um estado de eterna
com a infinidade do tempo, todavia não é ain­ presença; também sua ciência, ultrapassando
da tal de modo a poder ser corretomente julga­ toda mutação temporal, permanece na simpli­
do eterno. Cie, com efeito, não compreende em cidade da própria presença, e abraçando to­
si e não abraça em sua totalidade simultanea­ dos os espaços infinitos do passado e do futu­
mente o espaço de uma vida mesmo que infini­ ro os contemplo no próprio e simples ato de
ta, enquanto não possui ainda as realidades conhecimento, como se acontecessem justamen­
futuras, e não possui mais as já transcorridas. te naquele momento. De formo que, se quise­
Aquele ser, portanto, que encerra e possui em res julgar bem a previdência, com a qual ele
si simultaneamente a plenitude total de uma discerne todas as coisas, afirmarás de modo
vida sem fim, e ao qual não falta nada do futu­ mais justo que seja não pré-ciência, por assim
ro e nada do passado tenha escapado, ape­ dizer, do futuro, mas ciência de uma presença
nas este com razão é julgado ser eterno, e é que jamais falta; razão pelo qual é melhor cha­
necessário que, plenamente senhor de si, e s­ mada de providência do que previdência, por­
teja sempre presente e por assim dizer ao lado que, posta bem longe dos seres mais baixos,
de si mesmo, e tenha presente a si o infinito vê diante de si o universo inteiro como do vérti­
transcorrer do tempo". ce mais excelso dos coisas. Por que pretendes
"Crram portanto aqueles que, tendo co­ então que se tornem necessárias as coisas que
nhecimento da opinião de Platão, de que este são investidas pela luz divina, quando sequer
mundo não teve um início de tempo e não terá os homens tornam necessárias as que vêem?
fim, afirmam por isso que o mundo criado se Talvez teu olhar acrescenta uma necessidade
torna coeterno a seu Criador. Uma coisa, com qualquer às coisas que vês presentes a ti? De
142 Quarta parte - G ê n e s e d a áT scolàs+ ica

modo nenhum! Todavia, se é lícito um confronto tecimentos futuros que provêm da liberdade de
entre o presente divino e o humano, como ve­ decisão; os quais, portanto, quando referidos
des algumas coisas neste vosso presente tem­ ò intuição divina, tornam-se necessários para a
poral, da mesma forma ele as penetra todas condição do conhecimento divino; considerados
em seu presente eterno. A pré-ciência divina, ao invés em si mesmos, não perdem a absolu­
portanto, não muda a natureza e as proprieda­ ta liberdade da própria natureza. Acontecerão
des das coisas, e as vê presentes diante de si portanto sem nenhuma dúvida todas os coisas
do modo como acontecerão um dia no tempo. que Deus conhece antecipadamente que suce­
£ não confunde os juízos feitos sobre as coisas, derão, mas algumas delas brotam do livre-ar-
mas com um só intuito da sua mente conhece bítrio, e, embora se realizem, não por isso per­
até o fundo tanto aquilo que acontecerá ne­ dem a própria natureza, em virtude da qual,
cessariamente, como aquilo que acontecerá não antes que se realizassem, teriam podido tam­
necessariam ente, como vós, quando vedes bém não realizar-se".
contemporaneamente um homem que caminha "Mas o que importa — me dirás — que
sobre a terra e o sol que surge no céu, distinguis não sejam necessárias, a partir do momento
uma coisa da outra, mesmo que as vejais jun­ que, por causa da condição da ciência divina,
tas, e julgais voluntária a primeira e necessária disso resultará em todo caso uma necessidade
a segunda. Da mesma forma, portanto, ocorre equivalente? Isto importa, isto é, que dos fatos
com o intuito divino, discernindo cada coisa não há pouco citados, o sol que surge e o homem
ultrapassa em nada a qualidade das coisas que que caminha (dois eventos que, enquanto acon­
a ele estão presentes, enquanto em relação à tecem, não podem não acontecer), um, ainda an­
condição do tempo sejam futuras. Por conse­ tes que acontecesse, devia necessariamente
guinte, quando Deus conhece que sucederá a l­ existir, o outro não; assim também, aquelas rea­
guma coisa que ele sabe privada da necessi­ lidades que Deus tem presentes a si sem ne­
dade de existir, esta não é uma opinião, mas nhuma dúvida existem, mas delas algumas bro­
um conhecimento fundado sobre a verdade. tam da necessidade natural, outras da vontade
"£ se a este ponto dissesses que aquilo daqueles que as realizam. Não erradamente,
que Deus vê no futuro não pode não aconte­ portanto, dizemos que estas coisas, caso as con­
cer, e que aquilo que não pode não acontecer sideremos em sua relação ao conhecimento di­
acontece por necessidade, e me pusesses em vino, são necessárias, mas, se as considerar­
apuro sobre este tema da necessidade, eu te mos em si mesmas são livres dos vínculos da
mostrarei uma realidade absolutamente verda­ necessidade, assim como tudo aquilo que os sen­
deira, mas tal que dificilmente poderio atingir tidos percebem é universal se o referimos à ra­
quem não esteja enfronhado na contemplação zão, particular se o referimos a si mesmo".
de Deus. £u te respondería que o próprio futu­ "Todavia, se está em meu poder — dirás
ro, se o considerarmos em relação ao conheci­ — mudar de propósito, tornarei vã a providên­
mento que Deus dele tem, é necessário, mas, cia, quando por acaso mudar minhas intenções,
quando o examinamos em sua própria nature­ que ela conhece com precedência. 0 a respon­
za é absolutamente livre e privado de vínculos. derá que podes mudar o teu propósito, mas
Há, com efeito, duas espécies de necessida­ não podes te subtrairá pré-ciência divina, pois
de; uma simples, como, por exemplo, que ne­ a presente verdade da providência vê que po­
cessariamente todos os homens são mortais, a des fazê-lo, e também se o fazes, e para qual
outra condicional, como quando se tu sabes que coisa te diriges, assim como não poderias fugir
tal pessoa caminha, é necessário que ela ca­ ao olhar de um olho que te supervisiona, por
minhe. Aquilo que alguém conhece não pode mais que com livre vontade tu te dirijas às mais
ser diversamente de como é conhecido; esta variadas ações. Mas então, perguntarás, o ciên­
necessidade condicional, porém, não traz con­ cia divina mudará conforme a minha disposição,
sigo a necessidade simples. Não dá origem à de modo que, quando eu quiser isto ou aquilo,
necessidade condicional a natureza própria de também elo parecerá alternar o modo de co­
uma coisa, mas a acresce de uma condição; nhecer? De modo nenhum. A intuição divina corre
nenhuma necessidade obriga com efeito a ca­ adiante de todo evento futuro, e o traz e cha­
minhar aquele que caminha voluntariamente, ma de novo à presença do próprio conhecimen­
por mais necessário seja que, enquanto cami­ to; e não se alterna, como crês, ao prever ora
nha, ele caminhe. Do mesmo modo, portanto, isto ora aquilo, mas em um único olhar simples,
se a providência vê alguma coisa como presen­ permanecendo imóvel, prevê e abraça tuas
te, é necessário que ela exista, embora não mudanças. £ este poder de compreender e de
tenha nenhuma necessidade de natureza. Pois ver todas as coisas. Deus não o tem do êxito
bem, Deus vê como junto a si presentes os acon­ das realidades futuras, mas a partir da própria
143
Capítulo oitavo - O surgim en to d a éA scolá stica e s e u s d esen volvim en tos

simplicidade. Desse modo fico resolvido tam­ de nosso espírito, que é a divisão em coisas
bém o questão posto hó pouco, isto é, que se ­ que existem e coisas que não existem, foi-me
rio coisa indigno dizer que nossos oções futu­ oferecido um termo geral para exprimir umas e
ros sejom couso do ciêncio divino. A forço do outras, a palavra grega phqsis, que corresponde
ciência divino, com efeito, abraçando todos os à latino noturo. Ou talvez não te pareça que as
coisas com seu conhecimento presencial, fixou coisas sejam assim?
poro todo coiso o próprio limite, e nada deve D iscípulo - Ao contrário, estou de acordo;
às que acontecerão em seguido". pois também eu, quando começo a raciocinar,
"Posto isso, permanece intocto poro os vejo que é exatamente assim.
homens o liberdade de escolho, e não injusta­ M cstrc - Natureza é, portanto, o nome ge­
mente os leis estabelecem penas e prêmios, ral de todas as coisas que existem e que não
pois os vontades deles são livres de qualquer existem.
necessidade; e permanece que Deus tudo co­ D iscípulo - Sim; nada, com efeito, pode se
nhece antecipadamente, olhando do alto. A apresentar a nosso pensamento a que não se
eternidade sempre presente de sua visão con­ possa aplicar tal palavra.
verge com a qualidade futura de nossas ações, M cstrc - Portanto, uma vez que estamos
dispensando prêmios aos bons, castigos aos de acordo sobre este termo geral, gostaria que
maus. Não é vão repor em Deus esperanças e me dissesses como a natureza se divide em
preces, que, quando são retas, não podem não diferentes espécies. Ou, se crês, primeiro ex­
ter eficácia. Afastai-vos, portanto, dos vícios, perimentarei dividir, e julgarás se a divisão é
praticai as virtudes, elevai o espírito a espe­ bem-feita.
ranças justas, dirigi ao céu preces humildes. D iscípulo - Começa então; estou impaciente
Cabe a vós, caso não queirais fingir não sabê- de ouvir de ti o verdadeiro modo de dividi-la.
lo, uma grande necessidade de ser retos, pois M cstrc - Parece-me que a natureza se di­
vossas ações se realizam diante dos olhos de vide, por quatro diferenças, em quatro espé­
um juiz que vê todas as coisas". cies: a primeira é aquela que cria e não é cria­
Boécio, F) consolação da filosofia. da, a segunda é criada e cria, a terceira é criada
e não cria, a quarta não cria nem é criada. Cs-
tas quatro se opõem duas o duas, pois a ter­
ceira se opõe à primeira e a quarta à segundo;
mas a quarta parece impossível porque sua di­
ferença específica é o fato de não poder ser.
E sco to E r iú g e n a Parece-te justa esta divisão ou não?
D iscípulo - Justa; mas eu desejaria que tu
a repetisses para que me ficasse mais clara a
oposição das formas que mencionaste.
M cstrc - Parece-me que devas ver a opo­
sição entre a primeira e a terceira, pois a pri­
fi quadrúplice divisão meira cria e não é criado, e se lhe opõe aquela
do natureza que é criada e não cria. A segunda depois se
opõe à quarta, pois a segunda é criada e cria,
enquanto a quarta nem cria nem é criada.
Fortemente influenciado p elo neoplo- D iscípulo - Vejo claramente. Mas me per­
tonismo cristão do Pseudo-Dionísio fíreopa- turba muito a quarta espécie que acrescentas­
gito, €scoto propõe uma subdivisão hierár­ te; sobre as outras, com efeito, não tenho hesi­
quica da natureza em quatro partes: tações, pois com a primeira entendemos,
1) Deus (natureza não criada que crio); parece-me, a causa de tudo aquilo que existe,
2) Logos (natureza criada que cria); e daquilo que não existe; com a segunda, as
3) mundo (natureza criado que não cria); causas primordiais; com a terceira, aquilo que
4) Deus como fim último (natureza não se gera e existe no tempo e no espaço. Por
criada que não cria). isso, parece-me necessário discutir mais parti­
cularmente sobre cada uma delas. [...]
M cstrc - Recolhamos então em unidade,
procedendo analiticamente, as quatro formas
M cstrc - Tendo freqüentemente pensado anteriormente mencionadas que coincidem en­
e estudado atentamente, o quanto me permi­ tre si. A primeira e a quarta são uma só reali­
tiam as forças, à primeira divisão das coisas dade, pois se aplicam apenas a Deus: Deus é,
perceptíveis e das que superam a capacidade com efeito, o princípio de todas as coisas cria­
144 Quarta parte - C dèn e s e dct ( ~ S í d / i s l i ! ; i

das, 0 é o fim ao qual todas tendem para re­ dade. Vês então que duas das quotro formas
pouso: nele eternamente e imutavelmente. Di- acima mencionadas, a primeira e a quarta, se
zamos, com efeito, que a causa de toda coisa reduzem ao Criador, e as outras duas, a segun­
cria, porque dela, com admirável e divina multi­ da e a terceira, se reduzem à criatura?
plicação, procede o conjunto das coisas que D iscIpulo - Vejo, e admiro a complexidade
dela e depois dela foram criadas, em gêneros, das coisas. De fato, as duas primeiras formas
espécies, números, diferenças, e tudo aquilo não se distinguem em Deus, mas em nossa con­
que se considera existente em natureza. Mas, templação, e não são formas de Deus, mas de
uma vez que tudo isso que dela procede volta­ nossa razão, pela dupla noção de princípio e
rá à mesma causa, quando chegar ao fim, por de fim; nem se reduzem à unidade em Deus,
isso a causa primeira se diz fim de toda coisa, mas em nossa teoria que, enquanto considera
e enquanto tal não cria nem é criada. Com efei­ o princípio e o fim, cria em si mesma duas for­
to, quando tudo tiver voltado a ela, nada pro­ mas de contemplação e as reúne depois em
cederá mais dela por geração, lugar e tempo, uma, quando extraídas da simplicidade divi­
em gêneros e espécies, pois tudo será quieto, na. Princípio e fim, de fato, não são nomes pró­
imutável, e indivisivelmente um [...]. Vê, portan­ prios da natureza divina, mas de sua relação
to, que a primeira e a quarta forma da natureza com as coisas criadas. Dela com efeito extraem
se reduzem a uma só realidade? sua origem, e por isso ela se chama princípio, e
D iscípulo - Vejo e entendo. Com efeito, em uma vez que a ela se dirigem, para nela termi­
Deus a primeira forma não se distingue da quar­ nar, ela recebe o nome de fim. As outras duas
ta: em Deus, de fato, não existem duas reali­ formas, ao invés, digo a segunda e a terceira,
dades, mas apenas uma; todavia, uma vez que surgem não só em nosso contemplação, mas
de Deus temos uma noção quando o conside­ se encontram na própria natureza das coisas
ramos como princípio, e outra quando o conside­ criadas, na qual as causas são separadas dos
ramos como fim, em nossa teoria elas aparecem efeitos, e os efeitos se unem às causas, uma
como duas formas, constituídas na simplicida­ vez que são uma só coisa em seu gênero, ou
de da natureza divina pelo duplo olhar de nos­ seja, no fato de serem criaturas.
sa contemplação. M cstrc - De quatro, portanto, se tornam
M cstrc - Vês de forma correta. € então? duas.
Devemos reduzir a uma só realidade também a D iscípulo - Não me oponho.
segunda e a terceira forma? Com efeito, creio M cstrc - O que dirias de unir a criatura ao
que não te escapa que, assim como a primeira Criador, de modo a não conceber nele senão
e a quarta se consideram no Criador, da mes­ aquele que única e verdadeiramente é? Com
ma forma a segunda e a terceira se consideram efeito, nada que está fora dele dizemos verda­
na criatura. A segunda, de fato, como disse­ deiramente ser, pois tudo aquilo que dele pro­
mos, é criada e cria, e por ela entendemos as cede não é outra coisa, enquanto existe, se ­
causas primordiais das coisas criadas; a tercei­ não uma participação daquele que apenas
ra forma é criada e não cria, e se encontra nos subsiste por si e para si. Negarás, portanto, que
efeitos das causas primordiais. A segunda e a o Criador e a criatura são um único ser?
terceira, portanto, estão contidas em um mes­ D iscípulo - Não o negaria facilmente, pois
mo gênero, o da natureza criada, e nisso são parece-me ridículo opor-me a esta reunião.
uma só realidade: as formas, com efeito, consi­ Cscoto Criúgena,
deradas em seu gênero, são uma única reali­ De divisione noturoe.
A ESCOLASTICA
NOS SÉCULOS
DÉCIMO PRIMEIRO
E DÉCIMO SEGUNDO
■ A consolidação das relações entre razão e fé

“Eu não tento, Senhor, mergulhar em teus misté­


rios, porque minha inteligência não é adequada;
desejo, porém, entender um pouco da tua verda­
de, que o meu coração já crê e ama. Não procuro
compreender-te para crer, mas creio para poder te
compreender. ”

A n se lm o de A o sta
Capítulo nono

Anselmo de Aosta

Capítulo décimo

Abelardo e a grande controvérsia sobre os universais

Capítulo décimo primeiro

Centros prom otores de cultura do século décimo segundo.


As escolas de Chartres e de São Vítor,
Pedro Lom bardo e Jo ã o de Salisbury
(Sapí+ ulo kAoK\o

T ^ K v se lm o d e ^ o s t a

• Anselm o nasceu em Aosta em 1033, de nobre famí- vjd


lia. Entrou no mosteiro beneditino de Santa Maria de Bec na de Anse/mo
Norm andia, do qual se tornou prior e depois abade, em de Aosta
1078. Passou os últim os anos em Canterbury, onde m orreu _> 7
em 1109.

• A Anselmo de Aosta interessa sobretudo o problema de Deus, a respeito do


qual ele distingue a questão da existência da questão da natureza. No Monologion
Anselmo formula quatro provas da existência de Deus, chamadas a posteriori por­
que partem da natureza das coisas:
1 ) a primeira parte da existência de coisas boas para re­
montar à Bondade absoluta; c'uaíro P.rovas
2) a segunda parte da variedade das grandezas para che- d P°sxj^ ° " ja
gar a uma suma grandeza, da qual as outras participam; de Deus
3) a terceira baseia-se sobre o conceito de causa: tudo o que 2 -3
é existe por causa de alguma coisa; é preciso, portanto, admitir
um Ser supremo em virtude do qual existem todas as coisas;
4) a quarta se baseia sobre os graus de perfeição que remetem a uma perfei­
ção suma.
Estas provas subentendem uma concepção realista dos universais, que faz aos
conceitos das realidades existentes corresponder Idéias universais e arquetípicas
subjacentes na mente de Deus, e usadas como modelos da criação.

• No Proslogion Anselmo introduz uma prova ulterior da existência de Deus a


priori (ou seja, que não depende da natureza das coisas) a qual é conhecida como
"argumento ontológico". Deus é a realidade da qual nada se
pode pensar de maior. Assim sendo, quando quiséssemos ne­
gar a existência de Deus, tomado justamente na acepção defi- 0 ar9 umento
nida, cairiamos em uma autocontradição, enquanto chegaria- ?anp°jod)C°
mos a admitir a existência mental de Deus (porque de outro ^ 4 .5
modo não seria pensado e, portanto, também não negado),
mas não sua existência real. Todavia, deste modo, privamos Deus
da perfeição da existência e isso contradiz a própria noção do Deus no qual pensa­
mos, ou seja, "o ente do qual nada se pode pensar de maior" (em resumo: o Deus
apenas pensado é inferior ao Deus também existente).
Este argumento — chamado também a simultâneo, enquanto passa direta­
mente da idéia à existência — naturalmente sofreu muitas críticas (por exemplo, as
de seu discípulo Gaunilon, de santo Tomás e, em época moderna, de Kant) e tam­
bém confirmações significativas (são Boaventura, Duns Escoto, Descartes, Leibniz).

• O conhecimento humano se baseia sobre o conceito, e o


conceito é mais ou menos verdadeiro conforme sua maior ou verdade
menor adequação em relação às coisas. O pensamento reto é, e liberdade
portanto, aquele que exprime a realidade assim como ela é. -> 6
Para Anselmo existe também uma retidão da vontade e da li­
148 Quinta parte - y \ É sco ló sti C
ca p\o s s é c u l o s d é c i m o p^imtimo c d é cc i m o s e q ^udc

berdade; a liberdade é a capacidade de agir conforme o bem, e não a possibilida­


de de pecar, porque de outro modo Deus não seria livre.

• Mas como se concilia a liberdade humana com a onipo-


Liberdade humana tência/onisciência divina? Concilia-se admitindo que Deus pre­
e onisciência vê as coisas no modo (da necessidade, da possibilidade, da li­
divina berdade) como acontecerão, e isto se torna possível pelo fato
->■ 7 de que a previsão divina tem lugar na eternidade, enquanto a
realização tem lugar no tempo.

• Complexivamente, a especulação de Anselmo se realiza na relação de ra-


zão/fé e se propõe esclarecer com a razão aquilo que se possui com a fé: em suma,
a razão se move ao longo do traçado da fé para explicitar sua
"Credo ut verdade. Compreende-se, portanto, o sentido de sua célebre
intelligam afirm ação credo ut intelligam; nela está implícito um uso
-> 7 confirmativo da fé em confronto com a razão, onde a fé é vista
como a garantia da verdade da razão.

1 A vida e as obras Nascido em Aosta em 1033, de família


nobre, Anselmo deixou a casa paterna com
de ;Arvselmo
a morte prematura da mãe, passando a pere­
grinar por vários mosteiros na França. Por
Enquanto Escoto Eriúgena é o pensa­ fim, ingressou no mosteiro beneditino de
dor de maior destaque do século IX, An­ Bec, na Normandia, onde transcorreria seus
selmo de Aosta ocupa esse lugar no século melhores e mais fecundos anos, primeiro co­
XI. mo monge e depois como prior e abade.
Entre os séculos IX e X, o caráter flui­ Nesse período, entre 1076 e 1077, ele
do das condições políticas e das estrutu­ escreveu suas obras mais famosas: o Mono-
ras econômico-sociais explica, de certa logion (ou seja, “ Solilóquio” ) e o Proslogion
forma, a estagnação da cultura e sua ex­ (“ Colóquio” ).
trema fragmentação. E um período de Depois de sua eleição para abade (1078),
transição geral. No século XI, porém, te­ ele escreveu o De grammatico (“ O gramá­
mos um reflorescimento de vida em vários tico” ), o De veritate (“ A verdade” ), o De
níveis. libertate arbitrii (“ O livre-arbítrio” ), o De
Antes enfeudada ao Império, a Igreja casu diaboli (“A queda do diabo” ), o Liber
começa a se mover e, por volta de meados de fide Trinitatis e o De incarnatione Verbi.
do século, dá vida a uma reforma radical Nomeado depois arcebispo de Canter-
de suas instituições. O combate às investi­ bury, na Inglaterra, envolveu-se longamente
duras, que é uma luta contra o Império, e as com Guilherme II, o Ruivo, e seu sucessor
Cruzadas constituem duas expressões sig­ Henrique sobre a questão das investiduras
nificativas desse redespertar, que tem seu eclesiásticas. Foi aí que iniciou a elabora­
ponto de partida na abadia de Cluny e na ção do Cur Deus homo (“ Por que Deus se
velha ordem beneditina, à qual se juntam fez homem” ), que concluiría na Itália, onde
novas ordens, como a dos cistercienses e a permaneceu de 1097 a 1100, exilado por
dos cartuxos. Guilherme.
Pois bem, o filho mais ilustre da famí­ Nesse período, estimulado pelo Con­
lia beneditina, que compreendeu mais do cilio de Bari de 1098, do qual participara,
que ninguém a necessidade de viver e apre­ escreveu o De processione Spiritus Sancti.
sentar a fé em um novo e mais articulado Viveu seus últimos anos em Canterbury,
contexto de vida, foi precisamente Anselmo onde escreveu o De concordia praescientiae
de Aosta, com o qual nasceu a teologia et praedestinationis et gratiae Dei cum libe­
centrada no instrumento da razão, a ponto ro arbítrio (“A concordância da presciên-
de ter sido chamado de “ o primeiro escolás- cia, da predestinação e da graça de Deus com
tico autêntico” . o livre-arbítrio” ).
Capítulo nono - .A n selm o d e A o s t a
149

Morreu em 21 de abril de 1109, num 3 T^S provas a posteriori


momento em que se dedicava a meditar so­
bre a origem da alma. da existência de X9eus

São quatro as provas com as quais


Anselmo mostra como, a partir do mundo,
2 (Serdmlidade do problema se chega a Deus.
de IDeus em y\r\selmo A primeira deriva da consideração de
que cada qual tende a se apoderar das coi­
sas que julga boas. Mas os bens são múlti­
Todo o pensamento de santo Anselmo plos. Então, como será o seu princípio: múl­
é dominado pela idéia de Deus. Essa é a ques­ tiplo ou único? A bondade em virtude da
tão que baseia e unifica suas investigações. qual as coisas são boas só pode ser uma.
E, a esse propósito, eis uma primeira dis­ Assim, se as coisas são boas, existe a Bon­
tinção: uma coisa é falar da existência de dade absoluta.
Deus, outra é falar de sua natureza. Trata-se A segunda deriva da idéia de grande­
de duas posições diferentes: uma coisa é per­ za, não espacial, mas qualitativa. A varie­
guntar se algo existe, outra é perguntar o que dade dessa grandeza, por nós constatada,
é esse algo. exige a suma grandeza, da qual todas as
Tal distinção torna-se clara no Monolo- outras são participação gradual.
gion, onde formula as provas a posteriori (dos A terceira não deriva de um aspecto
efeitos para a causa) da existência de Deus, particular da realidade (bondade ou gran­
sendo deixada de lado no Proslogion, onde deza), mas do ser simplesmente. Eis a for­
ele formula o argumento ontológico. Com mulação de Anselmo: “Tudo aquilo que
efeito, santo Anselmo demonstra a existên­ existe, existe em virtude de alguma coisa ou
cia de Deus tanto a posteriori como a priori. em virtude de nada. Mas nada existe em vir-

Santo Anselmo (lOdd-l 109)


é mn ilos vértices
do pensamento medieval.
150 Quinta parte - y\ Êscolós+ica n o s s é c u l o s d é c i m o p n tm em o c d é cc i m o s e g3 un dc

tude de nada, isto é, do nada não provém


nada. Assim, ou se admite a existência do
ser em virtude do qual as coisas existem ou
nada existe. Mas, como existe algo, existe o ■ Argum ento ontológico. Trata-se
ser supremo” . de uma prova a priori da existência
A quarta deriva da constatação dos de Deus, obtida a partir da própria
graus de perfeição, apóia-se sobre a hierar­ idéia de Deus.
quia dos seres e exige que exista uma per­ Esta prova se baseia no pressuposto
feição primeira e absoluta. de que a existência real é uma per­
feição; se Deus é o Ser que por defi­
Entretanto, ao término do seu traba­ nição possui todas as perfeições, deve
lho, Anselmo percebeu que as quatro pro­ necessariamente possuir também a
vas do Monologion, elaboradas de forma existência.
um tanto complexa e tortuosa, submete­ Em outras palavras: não se pode pen­
ríam a dura prova a mente dos leitores. Con- sar Deus como não-existente, porque
seqüentemente, procurou outro caminho, de outro modo não pensaríamos Deus,
que, quase como a luz vivida de um relâm­ mas um Ser inferior.
pago, permitisse à mente abranger a priori
a afirmação da existência de Deus. Anselmo
era teólogo que não pensava pelo gosto de
pensar: tinha bem vivo dentro de si o sen­
timento da responsabilidade e do dever de
difundir a verdade, a verdade de Deus. Daí
a necessidade de um argumento simples, per- nega que Deus seja o ser do qual nada pode
suasivo e auto-suficiente, destinado a gerar ser maior.
a imediata e invencível convicção da exis­ Em outros termos: se Deus é o ser em
tência de Deus. E foi justamente no Pros- relação ao qual nada pode ser maior, não é
logion que ele expôs esse argumento. possível considerá-lo como existente no pen­
samento, mas não na realidade, porque, nes­
se caso, ele não seria o maior. Santo Anselmo
4 ;A prova a priori estava persuadido de que os homens tinham
forte sentimento de Deus: a sociedade esta­
da existência de Deus va plena desse sentimento, que era o alimen­
ou " a r g u m e .n + 0 o n t o l ó g i c o ' to secreto da vida e das reformas eclesiásti­
cas em curso. O que ele fez foi uma tentativa
de dar estrutura lógica a um núcleo funda­
Os termos essenciais em que podemos mental do “ fato religioso” , considerando
resumir o célebre “ argumento ontológico” poder traduzir em conclusões racionais a acei­
são estes: Deus é “aquilo do qual nada de tação difusa da fé cristã.
maior se pode pensar” (id quo maius cogitari Esse argumento, ao qual nem mesmo os
nequit). E isso é pensado até pelo ateu e pelo ateus poderíam resistir, é chamado ontológi­
tolo de que fala o Salmo, que, no seu coração, co porque, a partir da análise da idéia de Deus,
diz: “ Deus não existe” . Para negar a Deus, que está na mente, se deduz a sua existência
ele sabe que está falando de um ser do qual fora da mente; também é chamado a simul­
não é possível pensar nada de maior. Portan­ tâneo, porque sustenta que na idéia de Deus
to, se o ateu pensa Deus, Deus está em seu está incluída, ao mesmo tempo, a existência. Pen­
intelecto, do contrário não pensaria nem ne­ sar Deus e considerá-lo realmente existente
garia sua existência. Mas, ao negar que Deus é, simultaneamente, unum et idem. [T]
existe, o ateu quer dizer que Deus não existe
fora do seu intelecto, isto é, na realidade.
E aí reside a contradição: se ele pensa
que Deus é o ser do qual nada de maior se
pode pensar e, ao mesmo tempo, nega que
5 tSríticas e consensos
Deus exista fora do seu pensamento, então ao a r g u m e n t o ontológico
é induzido a admitir que é possível algo
maior do que Deus, algo que, além de exis­ O argumento de Anselmo encontrou
tir no pensamento, exista também na reali­ críticas e consensos. O primeiro a pôr em dú­
dade. O que é contraditório, pois afirma e vida sua validade foi seu discípulo, o monge
Capítulo nono - . A n s e l m o de Aos+a
151

Gaunilon, que escreveu o Liber pro insi­ 6 De ws e o kornem


piente, no qual observa que, a propósito do
termo “ Deus” , é bem difícil ter dele um co­
nhecimento substancial, isto é, que vá além E este o binômio no qual se baseiam
do puro significado verbal. Por outro lado, as reflexões de santo Anselmo: Deus e o
recorda Gaunilon, não é suficiente ter uma homem.
idéia dele para que se possa afirmar sua re­ Acenando a alguns temas ligados a ele,
alidade objetiva. Se assim fosse, então bas­ parece-nos interessante abordar a relação
taria pensar uma coisa, como, por exemplo, entre conhecimento e palavra. Distinguin­
uma ilha cheia de delícias e, portanto, a mais do a palavra como sinal físico, externo a
perfeita, para que estivéssemos autorizados nós, como puramente pensada e, portan­
a admitir sua existência. Assim, Gaunilon to, em nosso interior, e, por fim, como ex­
refutou a licitude da passagem do mundo pressão interior, isto é, como intelecção da
ideal para o mundo real. Anselmo replicou realidade por meio do nosso intelecto, san­
com o Liber apologeticus, notando que o to Anselmo se detém nesta última acepção,
exemplo da ilha perfeita não é adequado, pregando originariamente sua veracidade
porque não representa o ser do qual não se ou falsidade. Essa palavra mental ou con­
pode pensar nada de maior, pois esse argu­ ceito é mais ou menos verdadeira, depen­
mento vale apenas para ele. A ilha pode ser dendo do seu maior ou menor grau de se­
a maior, mas somente em relação às outras melhança com a coisa. O conhecimento
ilhas (dotada, portanto, de uma grandeza humano, portanto, é medido pelas coisas.
relativa), mas não a realidade maior em ab­ Diferentemente da palavra humana, porém,
soluto, como é o caso de Deus. a palavra divina é medida das coisas, por­
Santo Tomás retomaria e aprofundaria que é o seu modelo. Daí as considerações
a objeção de Gaunilon. Na Suma contra os sobre a verdade humana como retidão e
gentios lemos: “ Mesmo entre aqueles que capacidade de dizer como são as coisas:
admitem a existência de Deus, nem todos “significat esse quod est”, escreve Anselmo
sabem que ele seja ‘aquele do qual nada de no De veritate.
maior se pode pensar’. Porém, mesmo ad­ Além do intelecto, a retidão também
mitindo isso, não se seguiria que, de fato, diz respeito à vontade: no primeiro caso, é
deva existir na natureza, porque, para tan­ verdade; no segundo, é justiça e bem. Aliás,
to, é necessário que tanto a coisa como o a própria liberdade, conotação essencial da
seu conceito (ratio) sejam admitidos do vontade, é definida como retidão ou capa­
mesmo modo. Por isso, quando se concebe cidade de fazer o bem. Com efeito, ao con­
o que se encerra sob o nome de Deus, daí trário do que muitos consideravam, a liber­
não deriva que ele exista, a não ser no inte­ dade não consiste em “poder pecar” , caso
lecto. A existência real, ao contrário, é de­ no qual Deus e os anjos não seriam livres. A
monstrada perfeitamente por meio dos efei­ liberdade é capacidade de agir retamente,
tos, isto é, a posteriori”. identificando-se, portanto, com a vontade
Diferentemente de santo Tomás, Boa- do bem e, desse modo, com a boa vontade.
ventura e Duns Escoto compartilharam o Nós somos livres com o objetivo de conser­
argumento de santo Anselmo. Na filosofia var “ a retidão da vontade por amor à pró­
moderna, Descartes e Leibniz também aco­ pria retidão” . Trata-se, portanto, de uma re­
lheram tal argumento, embora com algumas tidão que deve ser amada e buscada por si
variações relevantes. Leibniz o reformulou mesma, não por outros fins. Ela é o bem
mais ou menos assim: “ O ser necessário, se é maior, sem o qual não é possível alcançar
possível, existe; mas é possível, logo existe” . os outros valores. Retidão da vontade e re­
Kant, porém, o rejeitou decididamen­ tidão do intelecto, ou seja, justiça e verda­
te, em nome da distinção radical que é ne­ de, se encontram e se fundem. E claro que a
cessário admitir entre a existência pensada vontade pode se transviar, perdendo tal re­
e a existência real. Entretanto, nem mesmo tidão e tornando-se escrava dos vícios. Mas,
a força crítica de Kant foi suficiente para ainda nesse caso, a vontade conserva a sua
sepultar o argumento ontológico. Assim, o liberdade, ou seja, o instinto de retidão no
argumento ontológico continuou sendo con­ qual consiste a liberdade e que, pela graça
tínua preocupação não apenas dos filóso­ de Deus e, portanto, com a sua ajuda, nos
fos e teólogos, mas, hoje, também dos lógi­ permite libertar-nos do pecado e retomar o
cos e dos filósofos da linguagem. mm caminho do bem.
152 Q u i f í t ã p a r t e - ; A é5 s í r o l á s l i c a n a s s é t r u l o s d é c i m o p r i m e i r o t? d e t imo qimole
ee

Mas como se harmonizam liberdade assim como Deus prevê. Portanto, é neces­
humana e presciência divina, predestinação sário que algo seja sem necessidade” .
e livre-arbítrio, graça e mérito? Como é pos­ Aparentemente formal, essa resposta
sível falar de liberdade e de responsabilida­ se enriquece com outros elementos quan­
de humana no contexto de um Deus onipo­ do Anselmo explicita que é possível a pre­
tente, onisciente e predestinante? Esses são visão da necessidade da verificação de um
alguns temas do ensaio De concordia. Ansel­ acontecimento futuro livre, porque tal pre­
mo assim formula a resposta a essas inter­ visão divina se dá na eternidade, onde não
rogações: “ Se um acontecimento se cumprirá há mutação, ao passo que o acontecimen­
sem necessidade, Deus, que prevê todo acon­ to livre ocorre no tempo. Trata-se de dois
tecimento futuro, deve prever também isso. planos distintos, o da eternidade e o do
Mas o que Deus prevê será necessariamente tempo.

Um angulo
da catedral
de C.anterbury,
que constitui
uma tias maiores
expressões
arquitetônicas
do gótico inglês.
Depois de eleito
abade do mosteiro
de Bec
na Normandia
(W7,V.
Anselmo
foi nomeado
arcebispo
de C.anterbury
(W9B).
Capítulo nono - Anselmo de Aosta 153

No que se refere à nossa responsabili­ Trata-se, portanto, da fé que procura


dade e aos méritos que acumulamos com a a inteligência (fides quaerens intellectum) e,
nossa vida, Anselmo recorda o que escla­ conseqüentemente, de contínua e sutil me­
receu com mais amplitude em outras obras, ditação racional sobre as razões da fé. Tan­
isto é, que a liberdade se identifica com a to quando Anselmo coloca entre parênteses
vontade e, portanto, com a retidão. Ora, as verdades que aceita pela fé para alcançá-
Deus não pode retirar ou conceder tal reti­ las com a razão como quando reflete sobre
dão ou eliminar a liberdade sem, com isso, as verdades de fé, tanto em um como no ou­
suprimir a própria vontade. Se isso ocor­ tro caso a razão move-se constantemente ao
resse, Deus abandonaria a razão pela qual longo do traçado da fé, pela explicitação de
criou o homem livre e, portanto, responsá­ suas verdades. Aí estão o programa e o âm­
vel por suas ações, o que, em última análi­ bito nos quais amadurece a “razão” ansel-
se, constitui a sua superioridade em relação miana. Nesse contexto é que se podem com­
às outras criaturas e, portanto, estaria em preender suas duas afirmações sintéticas,
contradição consigo mesmo. tornadas famosíssimas: fides quaerens in­
Afirmar isso não significa dizer que o tellectum (onde justamente se exprime a ne­
homem é auto-suficiente e que, portanto, cessidade de que a fé procure suas con­
não tem necessidade da ajuda de Deus para firmações no âmbito da razão) e credo ut
alcançar sua meta final. Esta permanece um intelligam (onde se afirma a prioridade da
dom. Mas a fidelidade a esse dom e às suas fé em relação à razão), a fé se ilumina com
implicações depende direta e exclusiva­ a inteligência.
mente de nossa liberdade de adesão. Daí a As verdades de fé estão pressupostas
necessidade da concordância, e não do con­ (fides quae creditur) nos seus conteúdos, que
traste, entre a graça de Deus e a nossa liber­ não são fruto da investigação racional, mas
dade. a ela são oferecidos pela própria fé, que per­
manece como o ponto de partida, espécie
de pilastra irrevogável de toda a construção
racional. A razão serve para desarticular as
7 A razão verdades da fé ou para iluminá-las por meio
dem+uo do frnçado da fé de argumentações dialéticas. Desse conjun­
to surte perfeita concordância entre fé e ra­
zão, com a condição de que esta seja utili­
No prólogo do Proslogion, Anselmo in­ zada conforme normas precisas e método
voca Deus com estas palavras emblemáticas: coerente, e parta de um pressuposto indu-
“ Eu não tento, Senhor, mergulhar em teus bitável.
mistérios, porque minha inteligência não é Todavia, qual é, precisamente, esse
adequada; desejo, porém, entender um pou­ pressuposto fundamental sobre o qual o edi­
co da tua verdade, que o meu coração já crê fício da razão deve se apoiar?
e ama. Não procuro compreender-te para
crer, mas creio para poder te compreender” .
Este foi, com efeito, o programa de
Anselmo: esclarecer com a razão aquilo que 8 tSamctenísficas
já se possui com a fé. De resto esse, justa­ do Vealismo” de y\nselmo
mente, fora o pedido que os monges lhe
haviam feito: que aquilo que é revelado não
fosse apenas imposto com a autoridade da A primeira característica, que condi­
Escritura, mas também resplandecesse com ciona todas as outras, é representada pela
a luminosidade do raciocínio. Daí as pro­ unidade e perfeita correspondência entre lin­
vas da existência de Deus, a tentativa de guagem, pensamento e realidade, ou mútua
compreender por que o Verbo de Deus se remitência entre lógica e mundo ou entre
encarnou, por que Deus é uno e trino e como res e voces. A realidade corresponde aos
são “co-possíveis” a predestinação e a li­ conceitos, e a remitência dos conceitos à rea­
berdade humana. Anselmo tem grande con­ lidade é fruto de um movimento objetivo.
fiança na razão humana, que, em sua opi­ Anselmo defende uma concepção realista
nião, é capaz de lançar luz sobre os mistérios dos universais (assunto de que trataremos
da fé cristã e demonstrar sua coerência, sua no capítulo seguinte). Aos conceitos de bon­
conveniência e sua necessidade. dade, sabedoria, ser e natureza corresponde
154 Quinta parte - y \ Ê s c o l á s + i c a n o s s é c u l o s d é c i m o pWme i^o e d é c i m o s e g u u d o

uma realidade ontológico-teológica, da qual


depende toda a atividade cognoscitiva do
intelecto relativamente às coisas que, preci­

Í1
M Universais. O termo "universal" de­
samente, participam daquela bondade, da­ riva da expressão unum in diversis: in­
quele ser e daquela natureza. As coisas boas, dica, portanto, aquilo que unifica uma
grandes, existentes etc., não seriam conce­ diversidade, ou seja, as propriedades
bíveis se não houvesse o pressuposto da comuns de uma multiplicidade de in­
bondade, do ser etc., que são idéias univer­ divíduos.
sais e arquetípicas, situadas na mente divi­
na e sobre as quais se moldou o criado.
A esse realismo de ascendência platô­ Na tradição platônica os universais são
nica é preciso acrescentar o realismo teoló­ as Idéias, o ser no mais alto grau, isto é,
gico, que justifica a investigação racional as essências transcendentes das quais
relativa aos mistérios da fé cristã. Ou seja, a participam as realidades concretas.
posse das verdades reveladas por meio da Na tradição aristotélica, o universal é,
fé faz com que a razão seja constantemente ao contrário, o conceito, que se ob­
tém da mente por abstração,
vinculada ao seu conteúdo e sua investiga­ f O problema medieval consiste em es-
ção siga o movimento lógico que parte da tabelecer qual seja o estatuto onto-

I
fé para explicitar seu conteúdo e iluminar lógico dos universais: se são Idéias
suas relações. transcendentes, pensamentos de
Justamente porque é a fé que socorre o Deus etc., ou se são apenas concei­
movimento lógico da razão e de seus con­ tos mentais, ou até mesmo apenas
ceitos, não a experiência pura e simples, é palavras insignificantes, ou se existe
que se pode entender a força da objeção do uma solução que medeia as várias
monge Gaunilon, que observava — e, de­ posições.
pois dele, também santo Tomás — que,
quando pronunciamos o nome “Deus” , nem
sempre vamos além do som físico da pala­ çava seu mestre a se pôr a descoberto, isto
vra, sobretudo no caso dos ateus e incrédu­ é, a reconhecer que punha a fé como funda­
los. Por isso, não é possível sustentar que se mento. Era por essa razão, portanto, que
pode deduzir a existência de Deus a partir Anselmo se dirigia somente a quem, pela fé,
do conceito de Deus. No fundo, sucintamen­ já possuía as verdades que procurava de­
te, Gaunilon lançava à discussão a concep­ monstrar com a razão, mas não ao tolo de
ção realista dos conceitos de Anselmo e for- que fala a Bíblia ou ao ateu.
Capítulo nono - A n s e l m o de A o sta
155

ANSELMO
DEUS E O HOMEM

P r o v a s A POSTERIORI P r o v a s A PRIORI
DA EXISTÊNCIA DE ÜEUS DA EXISTÊNCIA DE ÜEUS

se as coisas são boas, existe uma - Deus é aquilo a respeito do qual


bondade absoluta (= Deus) nada se pode pensar de mais
das grandezas qualitativas que exis­ perfeito
tem se remonta a uma suma gran­ - mas entre as perfeições existe
deza (= Deus) também a da existência
tudo o que existe existe em virtude - portanto, não se pode pensar
de algo; deve, portanto, haver um Ser Deus-suma perfeição sem o atri­
supremo, causa das coisas (= Deus) buto da existência
os diversos graus de perfeição que
existem remetem a uma suma per­
feição (= Deus)

DEUS
uma coisa é o problema
da existência de Deus,
outra coisa é o problema
da natureza de Deus.
Deus é bondade absoluta,
suma grandeza
e perfeição,
\ causa das coisas

T
a lib erd ad e h u m an a
HOMEM coincide
com a vontade do bem

o conhecim ento
humano mede-se
pelas coisas,
o divino as mede

A L IB E R D A D E H U M A N A C o n c e p ç ã o r e a l is t a Fé e r a z ã o

não está em contraste d o s u n iv e r s a is esclarecer


com a presciência divina. As coisas boas, grandes etc., com a razão
Deus pensa na eternidade não seriam concebíveis aquilo que se possui
os eventos se não existissem as Idéias com a fé
que se desenvolverão correspondentes credo u t in telligam
no tempo no modo na mente divina,
em que se desenvolverão: como modelos da criação
segundo a necessidade
quando são necessários
e segundo a liberdade
quando são livres
Quinta patte - y \ <í £ sco lá s+ ica n o s s é c u l 5 d é c i m o p n m e m o e. cíé.o\tr\o s e g u n d o

s e pode pensar o maior. Mas, evidentemente,


isso não pode existir. Portanto, aquilo do qual
A n selm o d e A o sta
não se pode pensar o maior existe, sem dúvi­
da, tanto no intelecto como na realidade.

2. Não se pode pensar que Deus não existe


D O argumento ontológico1 Tudo isso é de tal forma verdadeiro que
não se pode sequer pensar que Deus não exis­
te. Com efeito, pode-se pensar que existo algo
OProslogion opresento-se como um co- do qual não se possa pensar que não existe; e
lóquio do autor com Deus, com a própria alma isso é maior do que aquilo do qual se pode
e com o leitor, na tentativa de agarrar algo pensar como não existente. Portonto, se aquilo
sobre o Se r supremo, através d e um longo do qual não se pode pensar o maior pode ser
itinerário que, partindo da fé, tende à visão pensado como não existente, aquilo mesmo do
contemplativo de Deus. O coração do obra qual não se pode pensar o maior não é aquilo
é o argumento ontológico, segundo o qual do qual não se pode pensar o maior: mas isso
Deus é oquilo do quol nado s e p o d e pensar é contraditório. Portanto, aquilo do qual não se
de maior e, portanto, deve existir necessaria­ pode pensar o maior existe tão verdadeiramen­
mente. te que não se pode sequer pensar como não
existente.
C este és tu, Senhor nosso Deus. Portan­
to, tu existes tão verdadeiromente, Senhor meu
1. Deus verdadeiramente existe
Deus, que não podes sequer ser pensado como
Portonto, ó Senhor, tu que dós o inteligên­ não existente. C justamente. Com efeito, se uma
cia à fé, concede-me compreender, noquilo que mente qualquer pudesse pensar algo melhor
sabes que possa me ajudar, que tu existes como do que tu, a criatura se elevaria acima do Cria­
cremos e que és aquilo que cremos. dor e seria juiz do Criador; o que seria grande­
£ de foto cremos que sejas algo do qual mente absurdo. Na verdade, de tudo aquilo que
nada se possa pensar de maior. Ou talvez não existe, com a única exceção de ti, pode-se pen­
existe tal natureza, porque "disse o insipiente em sar que não exista. Apenas tu, portanto, tens o
seu coração: Deus não existe"? Todavia, certa­ ser do modo mais verdadeiro, e por isso máxi­
mente aquele mesmo insipiente, quando ouve mo, em relação a todas as coisas, porque qual­
o que digo, isto é, "algo do qual nada se pode quer outra coisa existe de modo assim verda­
pensor de maior", compreende oquilo que ouve; deiro e, portanto, tem um ser menor. Por que,
e isso que compreende está no seu intelecto, portanto, "o insipiente disse em seu coração:
mesmo que ele não entenda que tal coisa exis­ Deus não existe", quando é tão evidente para
ta: uma coisa, com efeito, é que algo esteja no a mente racional que tu és mais do que todas
intelecto, e outra é entender que tal coisa exis­ as coisas? Por qual motivo, o não ser porque é
ta. Quando o pintor, de fato, antes penso na­ estulto e insipiente?
quilo que está para fazer, tem certamente no
intelecto aquilo que ainda não fez, mas não
3. De que modo o insipiente
entende ainda que isso exista. Quando, ao in­
disse em seu coração
vés, já o pintou, não só tem no intelecto aquilo
aquilo que não se pode pensar
que já fez, mas entende também que ele exis­
te. Também o insipiente, portanto, deve convir Mas de que modo o insipiente disse em
que, ao menos no intelecto, hoja algo do qual seu coração oquilo que não pôde pensar, ou
não se pode pensar nada de maior, porque de que modo não pôde pensar aquilo que dis­
quando ouve esta expressão ele a entende, e se em seu coração, dado que é a mesma coisa
tudo aquilo que se entende está no intelecto. dizer no coração e pensor? Se verdadeiramen­
Todavia, certamente aquilo do qual nada te, ou melhor, uma vez que verdadeiramente
se pode pensar de maior não pode estar ape­ exista, ele o pensou porque o disse em seu
nas no intelecto. Se, com efeito, está apenas coração, ou seja, não o disse em seu coração
no intelecto, pode-se pensar que exista tam­ porque não podia pensá-lo, não apenas de um
bém na realidade, o que é maior. Se, portanto, modo se diz no coração ou se pensa algo: em
oquilo do qual nado se pode pensar o maior um modo, com efeito, umo coisa é pensada
está apenas no intelecto, aquilo mesmo do qual quando se pensa a palavra que a significa; de
não se p o d e pensor o maior é aquilo do qual outro modo, quando se compreende aquilo que
157
Capitulo nono - .A n s e lm o d e A o s + a

o coisa é. No primeiro modo, portanto, pode- lecto, não esteja apenas no intelecto, mas tam­
se pensar que Deus não exista, mas no segun­ bém na realidade, porque diversamente não
do absolutamente não: por isso ninguém, que poderio ser o ente maior de todos. Mas talvez
compreenda aquilo que Deus é, pode pensar possamos responder do seguinte modo.
que Deus não existe, embora diga em seu cora­
ção estas palavras, não lhes dando nenhum sig­ 2. € preciso distinguir
nificado ou dando-lhes um significado estranho. entre "pensar" e "entender"
Deus, de fato, é aquilo do qual não se pode
pensar o maior. Quem compreende bem isto, Se afirmamos que este ente já está em
compreende certamente que ele existe em modo meu intelecto apenas pelo fato de que eu com­
tal que nem sequer no pensamento pode não preendo aquilo que se diz, não poderio dizer
existir. Quem, portanto, compreende que Deus de modo semelhante ter no intelecto também
é assim, não pode pensar que ele não existe. todas as coisas falsas e sem dúvida de nenhum
Cu te agradeço, bom Senhor, te agradeço modo existentes em si mesmas, porque se al­
porque aquilo que antes acreditei graças a um guém as dissesse eu compreendería tudo aquilo
dom teu, agora pela tua iluminação o compreen­ que dirio? A menos que por acaso não resulte
do de modo tal que, se não quisesse crer que que este ente seja tal que não possa estar no
tu existes, não poderio não compreendê-lo. pensamento do mesmo modo em que estão
Anselmo, Proslogion. também as coisas falsas ou dúbias, e então eu
não seja obrigado a dizer que penso ou tenho
no pensamento aquilo que ouvi, mas que o com­
preendo e que o tenho no intelecto; ou seja,
digamos que não o posso pensar a não ser en­
tendendo-o, isto é, compreendendo com ciên­
fl disputei com Gounilon1 cia, que ele existe na própria realidade.
Todavia, se assim for, em primeiro lugar
ter tal ente no intelecto não será mais coisa
Gounilon respondeu o fínselmo, negan­ diversa e precedente no tempo, em relação ao
do o volor do argumento ontológico: não se compreender em um tempo sucessivo que o
p o d e deduzir a existênda real d e Deus a p e ­ ente existe, como ocorre com uma pintura, que
nas da idéia da perfeição d e Deus. antes está na mente do pintor e depois na obra
fí resposta de fínselmo (citada no tre­ produzido. Além disso, bem dificilmente pode­
cho gue segue) confirma novamente o volidez rá ser crível que, quando se tiver dito ou ouvido
d e sua prova. isto, não se possa pensar que isso não exista,
assim como ao invés se pode pensar que Deus
não existe. Com efeito, se não se pode, por­
que toda essa disputa é assumida contra quem
1. Síntese do argumento de Anselmo
nega ou duvida que exista uma tal natureza?
A quem duvida ou nega que exista tal na­ Por fim, que tal ente seja tal de modo a não
tureza, da qual não se possa pensar nada de poder ser percebido, que apenas é pensado,
maior, dizemos aqui que sua existência é pro­ sem a segura compreensão de sua indubitável
vada, em primeiro lugar, pelo fato de que aque­ existência, deve ser-me provado com algum ar­
le mesmo que a nega ou dela duvida já a pos­ gumento que não se preste à dúvida, e não
sui no intelecto, quando, ouvindo falar disso, com este; pois, quando compreendo aquilo que
compreende aquilo que é dito; em segundo lu­ ouvi, isso já está em meu intelecto. Com este
gar, porque aquilo que ele compreende é ne­ argumento, afirmo ainda que podem existir, da
cessário que não esteja apenas no intelecto, mesmo forma, todas as outras afirmações in­
mas também no realidade. C esta última pas­ certas ou também falsas ditos por alguém do
sagem é provada assim: uma vez que existir qual compreendo as palavras; e existiríam tam­
também na realidade é maior do que existir ape­ bém mais se eu, que ainda não creio neste ar­
nas no intelecto, se aquilo que ele compreen­ gumento, nelas cresse, enganado, como acon­
de existe apenas no intelecto, maior do que tece freqüentemente.
isso será tudo aquilo que existir também na re­
alidade, e assim o ente maior de todos será 3. O exemplo do pintor não é válido
menor do que algum outro ente e não será o
maior de todos, o que certamente é contraditó­ Portanto, nem mesmo o exemplo do pin­
rio. Portanto, é necessário que o ente maior de tor, que já possui no intelecto a pintura que
todos, do qual já se provou que está no inte­ está paro fazer, pode concordar bem com este
158 Quifltã parte - ; A <Sscolás+ ica n os s é c u l o s d é -c tm o p H m e ifo e d é c i m o s e g u n d e

argumento. Com efeito, o pintura, oindo antes pensado conforme uma realidade perfeitamente
de ser pintada, encontra-se na própria arte do verdadeira: não a realidade que seria aquele
pintor, e tal realidade na arte do artífice não é homem individual, mas o realidade que é o
mais que parte de sua inteligência, pois, como homem em geral.
diz santo Agostinho, "quando um artesão está Todavia, quando então ouço dizer "Deus"
para construir um armário, antes ele o tem na ou "o ente maior de todos", não posso tê-lo
mente; o armário fabricado não é vida, porque no pensamento ou no intelecto assim como
vive a alma do artífice, na qual existem todas teria aquela coisa falsa no pensamento ou
estas coisas antes de serem produzidas". no intelecto, porque enquanto posso pensar
Com efeito, como estas coisas na alma viven- aquela coisa em conformidade com uma reali­
te do artífice são vida, a não ser porque não dade verdadeira e por mim conhecida, Deus,
são mais que a ciência ou inteligência de sua ao contrário, não o posso absolutamente pen­
alma? sar a não ser apenas conforme as palavras.
Ao contrário, de tudo aquilo que o inte­ Mas apenas com as palavras se pode bem pou­
lecto percebe como verdadeiro, tendo-o ouvido co, ou nunca se pode, pensar algo de verda­
ou pensado, com exceção das coisas que são deiro, porque quando se pensa deste modo
conhecidas como pertencentes à própria natu­ não se pensa tanto na própria palavra, isto é,
reza da mente, uma coisa é sem dúvida o con­ no som das letras ou das sílabas, que é uma
teúdo verdadeiro e outra o próprio intelecto realidade certamente verdadeira, e sim no sig­
com que é captado. Portanto, mesmo que fos­ nificado da palavra ouvida. Mas este não é
se verdadeiro que existe o ente do qual nada pensado como quem sabe o que aquela pa­
pode ser pensado maior, este ser, todavia, lavra normalmente significa, isto é, como quem
ouvido e compreendido, não é como a pintura a pensa conforme uma realidade verdadeira
ainda não executada e presente no intelecto ao menos apenas no pensamento, e sim como
do pintor. quem não conhece aquele significado e o pen­
sa apenas conforme o movimento do espírito
provocado pela escuta de tal palavra, na ten­
4. Pode-se pensar que Deus não exista,
tativa de construir para si o significado da pa­
seguindo o argumento de Anselmo
lavra percebida. Seria verdadeiramente admi­
A isso acrescentemos aquilo que ob­ rável, se pudesse fazê-lo colhendo a verdade
servamos, isto é, que não posso, pelo fato de da coisa.
tê-lo ouvido, pensar ou ter no intelecto aque­ Assim, portanto, e com certeza não diver­
le ente maior do que todas as coisas que se samente, me consta ter até agora em meu inte­
podem pensar, do qual se diz que não pode lecto aquele ente, quando ouço e compreendo
ser outra coisa a não ser o próprio Deus, como quem diz que existe um ente maior do que to­
não posso pensar ou ter no intelecto a q u e­ das as coisas que podem ser pensadas. Que
le ente em base o uma coisa por mim conhe­ isto seja dito a respeito daquela afirmação se ­
cida tanto pela suo espécie como pelo seu gundo a qual aquela sumo natureza já está em
gênero, também não posso pensar ou ter no meu intelecto.
intelecto, da mesma forma, nem sequer o pró­
prio Deus; justamente por este motivo, por­
5. Se Deus é pensado
tanto, posso também pensar que Deus não
apenas "secundum vocem",
existe.
não se pode deduzir sua existência real
Com efeito, não conheço a própria coisa,
nem posso conjeturá-la o partir de outra coisa Que o suma natureza exista necessaria­
que lhe seja semelhante, pois tu mesmo afir­ mente também na realidade, isso me é demons­
mas que ela é uma realidade de tal modo fei­ trado dizendo que, se não fosse assim, tudo
ta, que nenhuma coisa pode ser-lhe semelhan­ aquilo que existe na realidade seria maior do
te. De fato, se eu ouvisse falar de um homem que ela; portanto, ela não seria aquele ente
que me é completamente desconhecido, do qual maior do que todos, do qual já se provou que
ignorasse também a existência, poderio toda­ seguramente já está no intelecto. A esta argu­
via pensá-lo segundo a própria realidade que mentação respondo: se é preciso dizer, daqui­
é o homem, por meio da noção específica ou lo que não 'pode sequer ser pensado segundo
genérica em virtude da qual sei o que seja um a verdade de uma coisa qualquer, que está no
homem ou o que sejam os homens. Todavia, intelecto, eu não nego que deste modo ele
poderia ocorrer, se quem me fala disso mentis­ esteja também em meu intelecto. Mas uma vez
se, que aquele homem pensado por mim não que disso não se pode de foto deduzir que ele
existisse, embora eu o tenho em todo caso exista também na realidade, não lhe concedo
159
Cupltlilo nono - y X ^ s e l m o d e y \o s+ a

absolutamente a existência real, até que não mais duvidar da verdadeira existência daque­
me seja provada com um argumento indu- la ilha, ou eu crería que deseja brincar ou não
bitável. sabería a quem considerar mais estulto, se lhe
Quem diz que este ente existe, porque concedesse ter razão, e ele, se cresse ter e s­
diversamente aquilo que é maior do que todos tabelecido com alguma certeza a existência
não seria maior do que todos, não presta sufi­ daquela ilha, sem ter-me antes demonstrado
ciente atenção a quem está falando. Cu, com que a sua perfeição se encontra em meu inte­
efeito, não digo ainda, ao contrário, nego ou du­ lecto como uma coisa verdadeiram ente e
vido, que este ente seja maior do que alguma indubitavelmente existente, e não como algo
coisa verdadeira, nem lhe concedo outro ser se ­ falso ou incerto.
não aquele, admitido que se deve chamá-lo
"ser", de uma coisa completamente ignota que 7. Crítica final do argumento
a mente se esforça para imaginar apenas se­
gundo a palavra ouvida. Portanto, de que modo Cstas coisas, no entanto, respondería
me é demonstrado que este ser maior existe aquele insipiente às objeções. Quando se lhe
na verdade da coisa, enquanto consta que é diz que aquele ente maior do que todos é tal
maior do que todas as coisas, quando até agora de modo a não poder ser sequer pensado
eu nego ou coloco em dúvida justamente este como não existente, e isto de novo não é de­
constar, não admitindo que tal ente maior do monstrado de outro modo, a não ser dizendo
que todos exista em meu intelecto ou em meu que de outra forma não seria o ente maior do
pensamento, nem mesmo naquele modo com que todos, o insipiente poderio repetir a mes­
o qual existem também muitas coisas dúbias e ma resposta e dizer: quando foi que eu disse
incertas? € primeiro necessário, com efeito, que que na realidade verdadeira existe tal ente, ou
me seja certo que tal ser maior existe em uma seja, o “maior do que todos", de forma que dis­
realidade verdadeira em algum lugar; então so se me deva provar que ele existe também
apenas, pelo fato de que é maior do que to­ na própria realidade, de modo a não poder ser
das as coisas, não será mais incerto que sub­ sequer pensado como não existente? Cm pri­
siste também em si mesmo. meiro lugar deve-se por isso provar, com a l­
gum argumento certíssimo, que há alguma
natureza superior, isto é, maior e melhor do
6. O exemplo da Ilha Perdida que todas as que existem, de modo que disso
Tomemos um exemplo. Alguém diz que em possamos depois demonstrar todas as outras
alguma parte do oceano há uma ilha que, por qualidades, das quais não pode necessaria­
causa da dificuldade, ou melhor, da impossibi­ mente faltar o ente que é maior e melhor do
lidade de encontrar aquilo que não existe, a l­ que todos.
guns chamam "Perdida". Cies fabulam que, muito Quando depois se diz que esta suma re­
mais do que se diz das Ilhas Afortunadas, esta alidade não pode ser pensado como não exis­
ilha é opulento pela sua inestimável abundân­ tente, dir-se-ia talvez melhor que sua não exis­
cia de todo tipo de riqueza e de toda delícia; e tência, ou também a possibilidade de sua não
que, sem possuidor ou habitante qualquer, seja existência, não pode ser entendida. Com efei­
superior pela superabundância de bens a to­ to, conforme o significado desta palavra, não
das as outras terras habitadas em todo lugar se podem compreender as coisas falsas; que
pelos homens. Que alguém me diga tudo isso, certamente podem ser pensadas, da m es­
e eu compreenderei facilmente este dizer, no ma forma com que o insipiente pensou que
qual não há nenhuma dificuldade. Deus não existe. Também eu sei com absolu­
Todavia, se depois acrescentasse, como ta certeza que existo, mas sei ainda que po­
se fosse uma conseqüência: não podes duvi­ derio também não existir. Ao invés disso, com­
dar que esta ilha melhor do que todas as ter­ preendo de modo indubitável que aquele ser
ras existe verdadeiramente em algum lugar no que é sumo, isto é, Deus, existe e não pode
realidade, mais do que o fato de não duvida­ não existir.
res que existe em teu intelecto; e uma vez Depois não sei se posso pensar que não
que é melhor existir não só no intelecto, mas existo, enquanto sei com absoluta certeza que
também na realidade, porque se não existis­ existo. Mas se posso, por que não valería o
se na realidade qualquer outra terra existente mesmo também para todas as outras coisas que
na realidade seria melhor do que ela, e assim conheço com a mesma certeza? Se ao invés não
a ilha já por ti entendida como superior não posso, tal impossibilidade não se referirá ape­
seria superior. Se este, digo, quisesse conven­ nas a Deus.
cer-me com tais argumentos que não se deve Anselmo, Proslogion
160
Quitlta parte - y \ é S s c o l a s + i c a n o s s é c u l o s d é c i m o pnme.i^o e d é c i m o ' se9 u u d c

vez tu mesmo, que dizes que segundo o signifi­


Anselmo responde cado próprio desta palavra não se podem com­
preender as coisas falsas, objetarias que nada
às objeções de Gounilon daquilo que existe pode ser compreendido
como não existente. C falso, com efeito, que
1. O exemplo da Ilha Perdida não é válido.
aquilo que existe não exista. Por isso não seria
Rpenas aquilo do quol não se pode pensar
próprio de Deus o não poder ser compreendi­
o maior não pode
do como não existente. 6 se alguma das coisas
ser pensado não existente
que certissimamente existem pode ser compreen­
Mas é como se, objetos, alguém disses­ dida como não existente, também as outras
se que não se pode duvidar de que verdadei­ coisas certas podem da mesma forma ser com­
ramente exista na realidade uma ilha do oceano, preendidas como não existentes.
superior pela sua fertilidade a todas as terras, Mas tudo isso não se pode certamente
que pela dificuldade e até impossibilidade de objetar, se considerarmos bem, a propósito do
encontrar aquilo que não existe é chamada “Per­ Pensamento. Com efeito, também se nenhuma
dida", porque alguém a entende facilmente, das coisas que existem pode ser compreendi­
logo que lhe é descrita com palavras. Digo com da como não existente, todavia todas podem
toda segurança que se alguém me encontrar ser pensadas como não existentes, com exce­
uma coisa existente ou na própria realidade ou ção do ente que existe sumamente. Podem com
apenas no pensamento, além "daquilo do qual efeito ser pensados como não existentes to­
não se pode pensar o maior", à qual se possa das e apenas aquelas coisas que têm início ou
aplicar a concatenação desta minha argumen­ fim ou uma conjunção de portes e, como jó dis­
tação, encontrarei e lhe darei o ilha Perdida, se, tudo aquilo que não é como tudo em algum
que não mais se perderá. lugar ou em algum tempo. Ao contrário, não
Mas já se vê claromente que "aquilo do pode ser pensado como não existente apenas
qual não se pode pensar o maior", que existe aquele ente no qual nenhum pensamento en­
segundo uma razão de verdade tão certa, não contra nem início, nem fim, nem conjunção de
pode ser pensado como não existente. De ou­ partes, e que é todo sempre e em todo lugar.
tra forma, com efeito, não existiria de algum Saibas, portanto, que podes pensar que
modo. Cm suma, se alguém diz pensar que ele não existes, enquanto sabes certissimamente
não existe, eu lhe rebato que, quando pensa que existes; eu me maravilho de que tenhas
isso, ou pensa algo do qual não se possa pen­ dito não saber se podes pensá-lo. Com efeito,
sar o maior, ou não o pensa. Se não o pensa, nós pensamos a não-existência de muitas coi­
não pode pensar que aquilo que não pensa sas que sabemos que existem, e a existência
não exista. Se, ao invés, o pensa, certamente de muitas coisas que sabemos que não existem:
pensa algo que não pode sequer ser pensado não julgando, mas fingindo que seja assim como
como não existente. Com efeito, se pudesse pensamos. Certamente podemos pensar que
ser pensado como não existente, poder-se-ia uma coisa não existe, enquanto sabemos que
pensar que tivesse um princípio e um fim. Mas existe, porque ao mesmo tempo podemos aqui­
isso não pode ser. Quem portanto o pensa, lo e sabemos isto. € não podemos pensar que
pensa algo que não pode sequer ser pensado a coisa não exista, enquanto sabemos que exis­
como não existente. Mas quem pensa este algo, te, porque não podemos pensar que ela ao
não pensa que ele não exista. Do contrário mesmo tempo exista e não exista. Se alguém,
pensa aquilo que não pode ser pensado. Não portanto, distingue de tal modo os dois signifi­
se pode, portanto, pensar que "aquilo do qual cados desta expressão, compreenderá que de
não se pode pensar o maior" não existo. nada, enquanto se sabe que existe, se pode
pensar que não exista, e que de toda coisa,
com exceção daquilo do qual não se pode pen­
2. fí diferença entre "pensar" e "compreender"
sar o maior, também quando se sabe que exis­
a impossibilidade de que Deus não existo
te, se pode pensar que não exista, flssim, por­
Podes objetar que quando se diz que não tanto, é próprio de Deus o não poder ser
se pode pensar que esta suma realidade não pensado como não existente e, todavia, não
exista, melhor se d iria talvez que não se pode se pode pensar que os coisas múltiplas não
compreender que ela não existe ou também existam, enquanto existem. De que modo se
possa não existir. Ro contrário, era preciso di­ pode todavia dizer a respeito de pensar que
zer justamente que não se pode pensar. Com Deus não existe, considero tê-lo explicado su­
efeito, se eu tivesse dito que não se pode com- ficientemente no meu opúsculo.
preen derque aquela realidade não existe, tal­ Anselmo, Proslogion.
tdapífulo décimo

^Abel a rd o
e. a g m ia d e con trovérsia
sob^e os universais

I . 1-^ ed y \b e l a ^ d o

• Abelardo (1079-1142) reconhece a função positiva da dúvida em relação à


pesquisa, também teológica, enquanto fornece seu ponto de partida.
Para superar a fase da dúvida é, no entanto, necessário
impor-se regras, como a análise lingüístico-terminológica do A dúvida
texto, a verificação de sua autenticidade, suas relações com o metódica
contexto, a pesquisa da maior objetividade possível na exe­
~^§ 1-2
gese.

• A partir destas regras podemos entender o papel preponderante que


Abelardo reserva à ratio critica também nas questões que se referem a Deus. To­
davia, nosso filósofo tinha bem claro o conceito da inatin-
gibilidade da natureza divina e, portanto, propunha como ob- "intelligere" e
jetivo não tanto a verdade, e sim a verossimilhança, ou seja, "comprehendere"
uma cognição acessível à razão humana e não contrária à Sa- -> § 3
grada Escritura.
Introduz-se assim uma distinção entre intelligere e comprehendere: a ratio
e a fides permitem o intelligere, mas o comprehendere é dom exclusivo de
Deus.

• Na moral Abelardo traz à luz o papel da consciência


como fonte da intentio ou consensus animi. A alma humana O "consensus
seria teatro de impulsos que são involuntários e instintivos e, animi"
portanto, pré-morais; a moralidade surge no momento em como fundamento
que a consciência dá seu consenso. Os atos morais, portanto, da moral
são qualificados a partir do interno, pela intenção de quem
opera.

• O caráter intencional da consciência moral faz com que


os instintos e as inclinações não sejam maus porque, exatamente O corpo
não é mau
enquanto tais, precedem a esfera da moralidade. Mas, se estes nem fonte de mal
não são maus, com maior razão também não o serão a corpo- -^§4
reidade à qual se referem. Cai desse modo a prejudicial dua­
lidade e anticorporeidade na concepção do homem.

• Nessa visão, a ratio (lógica, dialética) goza de autonomia própria, e tem


regras específicas. Ela, todavia, se devidamente cultivada, leva à fé: daqui a ex­
pressão intelligo ut credam. A razão, porém, em nenhum caso
— e, portanto, também no dos Padres e dos grandes teólogos "intelligo
— chega a verdades definitivas, de modo que o saber humano ut credam"
se conclui de todo modo na forma de verossimilhança. ->§5
162 Quinta parte - A Gscolás+icc a t^os s é c u l o s d é c i m o p ^i m ei co e d é tc i m o s e c t u n d o

1 ;A vida e as obms tão do Ocidente, moderno Aristóteles, êmu-


lo ou maior dos dialéticos de todos os tem­
pos; príncipe dos estudos, famoso no mun­
do; gênio multiforme, penetrante e agudo;
Enquanto Anselmo de Aosta foi a fi­ tudo superava com o poder da razão e a arte
gura mais representativa do século XI, Abe­ da palavra — esse era Abelardo” .
lardo foi a figura mais prestigiosa do século E quando, vinte anos depois, Heloísa
XII. E preciso referir-se aos seus escritos para morreu, por sua vontade foi sepultada na
compreender a gênese dos métodos das gran­ mesma tumba do seu venerado Abelardo.
des escolas universitárias do Duzentos. Podem-se catalogar os escritos do in­
À luz de sua vida atormentada e inquieta quieto filósofo em quatro setores: lógico,
e à luz de suas obras, ricas de fermentos críti­ teológico, ético, autobiográfico.
cos e de novas indicações metodológicas, Abe­ 1) No que se refere à lógica: Glosas lite­
lardo aparece como figura estimulante e anteci- rais (ao De interpretatione, ao De divisione
padora de muitos problemas da Idade Média. de Boécio, a Porfírio e às Categoriae), publi­
Com a Historia calamitatum (“História cadas pelos modernos com o título Intro-
das minhas desditas” ), Abelardo nos deixou ductiones parvulorum (para os estudantes ini­
uma autobiografia interessante, viva, humana ciantes) ou Introductiones dialecticae; Lógica
e, do ponto de vista histórico, crível. Nascido nostrorum; Lógica ingredientibus (das pri­
em Le Pallet, perto de Nantes, em 1079, filho meiras palavras do texto); Dialectica.
de um militar que amava as letras, foi discí­ 2) No que se refere à teologia: a Theolo-
pulo de Roscelino em Loches, de Guilherme de gia cbristiana ou também Theologia summi
Champeaux em Paris e de Anselmo de Laon. boni; Theologia ou também Introductio ad
Todavia, mais do que humilde discípu­ theologiam ou Theologia scbolarium (deve-
lo, mostrou-se sempre insatisfeito e crítico em se notar que Abelardo foi o primeiro a usar
relação às doutrinas professadas por seus o termo Theologia como síntese da doutri­
mestres, sobretudo em relação à natureza dos na cristã; antes dele, em santo Agostinho e no
universais e ao uso da dialética. começo da Idade Média, Theologia desig­
Depois de algumas tentativas de ter uma nava a especulação pagã ou puramente filo­
escola própria, primeiro em Melun e em se­ sófica sobre a divindade). Além disso, Com-
guida em Corbeil, conseguiu abrir uma na mentaria in epistulam Pauli ad Romanos e
colina de Santa Genoveva, em Paris, a qual Expositio in hexaemeron. No que se refere
logo se encheu de estudantes e admiradores. ao método, é importante o Sic et non (Sim e
O período mais brilhante de seu ma­ não), que representa uma boa coletânea de
gistério coincide com os anos 1114-1118, sentenças extraídas dos Padres e das Escri­
quando ocupou a cátedra da escola de No- turas sobre 158 problemas teológicos, onde
tre-Dame, que foi o primeiro núcleo de uma • as sentenças são contrapostas.
universidade livre na França. 3) No que se refere à ética: Ethica seu
Remonta a esse período sua célebre e Scito te ipsum (“ Conhece-te a ti mesmo” ) e,
dramática aventura com a jovem literata He­ incompleto, o seu último escrito, Dialogus
loísa, ao fim da qual ela entrou para o con­ inter judaeum, philosophum et christianum.
vento e ele se tornou monge. 4) Por fim, de caráter autobiográfico,
No Concilio de Soissons, em 1121, al­ a mencionada Historia calamitatum, o Epis-
gumas de suas teses sobre o mistério da tolarium, a correspondência com Heloísa, e
Santíssima Trindade foram condenadas. No as Poesias, que fazem dele um dos maiores
Concilio de Sens, em 1140, foram rejeita­ escritores do seu século. pT)
das como “ desvios” outras teses suas, rela­
tivas à lógica e ao papel confiado à ratio na
investigação das verdades cristãs. Apelan­
do ao papa por uma avaliação mais justa, 2 ;A " d ú v i d a "
no curso da viagem, cansado e prostrado, e as “regras da pesquisa”
se detém em Cluny, onde é recebido benevo­
lamente por Pedro, o Venerável. Foi aí que,
recolhido e em oração, morreu em 1142. Na segunda glosa da Lógica ingre­
Pedro, o Venerável, ditou o seguinte dientibus, Abelardo enuncia o princípio se­
epitáfio para o túmulo de Abelardo, que se gundo o qual é sob o estímulo da dúvida
celebrizou: “ Sócrates da França, sumo Pla­ que se empreende a pesquisa e é por meio
163
Capítulo décimo - A b e l a r d o e a i ^ a n d e ccm+ ^ov é^ sia os um ve^sais

da pesquisa que se chega ao conhecimento normas da lógica que se concretiza a pró­


da verdade. pria ratio, revelando assim o seu efetivo
É uma fórmula geral que esclarece o poder especulativo, sem condenações fáceis
caráter “problemático” do pensamento, tan­ ou exageros pretensiosos. Substancialmen­
to filosófico como teológico. E a premissa te, ao cultivar a dialética, Abelardo preten­
de qualquer investigação crítica. A dúvida, dia cultivar a ratio. Esta, portanto, é uma
porém, é apenas o ponto de partida. Não é espécie de instrumento, ou melhor, a sede
absolutizada, sendo muito mais caminho da consciência crítica de teses ou afirmações,
para a pesquisa. Trata-se de uma “ dúvida não acolhidas somente com base na autori­
metódica” . dade do proponente, mas também com base
Todavia, como vencer a dúvida ou su­ na tomada de consciência do seu conteúdo
perar o impasse de posições contrastantes, e dos argumentos apresentados em sua sus­
e aproximar-se da realidade? tentação.
Pois bem, para tal fim, a primeira re­ A razão dialética, portanto, é razão crí­
gra impõe a análise do significado dos ter­ tica, razão que se interroga continuamente
mos de um texto, com todas as suas impli­ ou razão como pesquisa. Claro, sua extensão
cações histórico-lingüísticas. Uma análise e aplicação a todos os campos (incluindo as
lingüística que se impõe, porque nem sem­ auctoritates dos Padres ou da Escritura) apa­
pre nos atemos à proprietas sermonis. receram aos olhos dos contemporâneos co­
A segunda regra impõe a comprova­ mo uma espécie de dessacralização das ver­
ção da autenticidade do escrito, tanto no que dades cristãs, suscitando ásperas polêmicas
se refere ao autor como no que diz respeito por colocar a ratio critica entre o pensamen­
às eventuais corruptelas e interpolações. to humano e o Logos divino.
A terceira exige que o exame crítico de Compartilhando sua posição, Eleloísa
textos dúbios seja feito tendo como referên­ chegou a escrever a Abelardo dizendo que,
cia os textos autênticos, levando-se em conta sem essa ratio critica, a Bíblia seria como
eventuais retratações e correções. O que sig­ um espelho colocado diante de um cego. E,
nifica que um texto deve ser interpretado no com efeito, era a isso que Abelardo visava:
quadro de todo o corpus da obra de um au­ tornar mais compreensível o mistério cris­
tor. Por fim, não se deve confundir as opiniões tão, não profaná-lo nem degradá-lo. Tanto
citadas com a opinião pessoal do autor e, so­ que, falando a propósito de sua exposição
bretudo, não interpretar como solução aqui­ sobre o dogma da Trindade, ele declara:
lo que o autor apresenta como problema. “Nós não prometemos ensinar a verdade,
Trata-se de normas crítico-exegéticas de que, como é sabido, nem nós nem nenhum
caráter geral, embora formuladas para resol­ outro mortal pode alcançar desse modo, mas
ver o problema dos dieta dos Padres ou para apenas propor algo de verossímil que seja
esclarecer trechos controversos ou obscuros acessível à razão humana e não contrário à
da Escritura. Abelardo decidiu aplicar essas Sagrada Escritura” .
normas para dar caráter científico à investiga­ O refinamento da ratio, portanto, orien­
ção, mas, ao mesmo tempo, tinha a convic­ ta-se para o “ verossímil” no discurso de di-
ção de que nem sempre essas regras permi­ vinis, do qual pretende apresentar um co­
tem a superação dos contrastes ou penetrar nhecimento aproximativo-analógico, sem
o significado dos textos bíblicos. Mesmo nenhuma pretensão de exaurir o seu con­
conclamando a não se renunciar jamais à pes­ teúdo. Pois bem, mesmo tendo consciência
quisa crítica, ele não hesita em destacar o li­ dos limites da razão, Abelardo considera
mite de nossa mente para entender plenamen­ necessária a investigação crítico-racional
te os ensinamentos dos Padres ou da Bíblia. para subtrair os enunciados cristãos a qual­
quer acusação de absurdo e, o que é mais
importante, torná-los de alguma forma aces­
síveis à inteligência humana. Trata-se de um
3 Vatio” esforço programático em que o discurso fi­
e seu papel n a teologia losófico não revoga o discurso teológico,
mas sim o facilita e o torna acessível e, por­
tanto, a razão não elimina a fé, mas a cor­
Abelardo exalta a dialética, centrada robora.
na questão das relações entre voces e res (das Nesse contexto, Abelardo distingue o
quais falaremos), porque é na fidelidade às intelligere do comprehendere, afirmando
164 Quinta parte - y\ íBscolás-Hca noss s é c u l o s d é c i m o p n m c i i* o e. d é c ;ec|unc
í i m o st'

que a ratio é indispensável para a inteligi­ b) O segundo objetivo perseguido por


bilidade, não para a compreensão das ver­ Abelardo com a doutrina da intentio cons­
dades cristãs. titui-se pela convicção de que nosso corpo
O intelligere é obra conjunta da ratio e não é poluído estruturalmente pela concu-
da fides, ao passo que o comprehendere é piscência nem está tomado pela presença
dom exclusivo de Deus, que concede aos inevitável do mal, do qual deva libertar-se
homens dóceis à sua graça o dom de pene­ por meio do contemptus mundi ou despre­
trar no cerne de seus mistérios. zo pela vida terrena. As estruturas corpóreas,
A razão é necessária para que a fé não as inclinações ou paixões humanas, em si
se reduza a uma vazia e mecânica prolatio mesmas, não são pecaminosas senão em con-
verborum ou à aceitação acrítica e passiva seqüência da adesão voluntária às suas soli­
de um corpus de fórmulas sacrais: a graça citações. Acentuando a importância da in­
ou donum Dei é necessária para que nos tentio, portanto, Abelardo pretende propor
deixemos permear e invadir por aquelas ver­ à discussão a concepção antropológica im-
dades. [T] perante de tipo dualista, tendencialmente
pessimista, e recuperar a iniciativa do sujei­
to, dando novamente ao homem a respon­
sabilidade por suas ações.
4 1-Virvcípios fvuadamen+ais c) O terceiro objetivo é o de contestar
da ética o estilo tão difundido, tanto ontem como
hoje, de julgar fácil e peremptoriamente a
vida do próximo sem procurar conhecer os
Abelardo dedicou ao problema da vida seus fins e objetivos. “ Os homens julgam
moral um tratado conspícuo, de claro sa­ — escreve Abelardo — aquilo que lhes apa­
bor socrático, a Etbica seu Scito te ipsum. rece, não tanto aquilo que lhes está oculto,
Na ética, Abelardo evidencia a consciên­ sem levar em conta tanto a punibilidade da
cia como centro de irradiação da vida mo­ culpa como o efeito da ação. Somente Deus,
ral, fonte da intentio ou consensus animi. que não olha para as ações que fazemos,
Esse é o fator primário e o motivo básico mas sim para o espírito com que as faze­
da vida moral ou, ainda, aquilo que quali­ mos, avalia com base na verdade as razões
fica como boas ou más as ações: “Não se de nossa intenção e examina a culpa com
pode chamar de ‘pecado’ a própria vontade juízo perfeito” .
ou o desejo de fazer aquilo que não é lícito,
mas sim o consentimento à vontade ou ao
desejo” .
Abelardo, portanto, distingue clara­ 5 MTntelligo uf credí
mente o plano da instintividade do plano
propriamente consciente e racional. O pri­
meiro, constituído pelas inclinações, os im­ Se a expressão que resume o pensa­
pulsos e os desejos naturais, é pré-moral, mento de santo Anselmo é credo ut intelligam,
ao passo que o segundo, constituído pela a expressão que pode sintetizar o esforço teó­
iniciativa do sujeito e, portanto, por suas rico de Abelardo é intelligo ut credam. A
intenções e propósitos, é verdadeiramente lógica, ou melhor, a dialética, é ciência au­
moral. tônoma e, portanto, uma filosofia racio­
A acentuação do elemento intencional nal, mas “ o fim do itinerário filosófico é
como fator determinante da vida moral tem Deus” . Em Abelardo, a ratio não é imedia­
objetivo tríplice em Abelardo. tamente serva da teologia, porque é culti­
a) vada em si mesma, para possuir seus ins­
O primeiro é representado pela neces­
sidade de interiorizar a vida moral, que, em trumentos e adestrar-se no seu uso. Mas
sua opinião, reside na alma, em cujo interior tal esforço e tal obra estão conclusivamen­
se cumpre o bem ou o mal antes de se exte- te em função da melhor compreensão das ver­
riorizar em atos específicos. E isso em aber­ dades da fé.
ta polêmica com o legalismo ético, bastante Assim como para Anselmo, também
difundido no século XII e freqüentemente para Abelardo é a revelação divina que ofe­
codificado nos chamados Libri poenitentia- rece os conteúdos que, depois, é preciso es­
les ou casuística, nos quais classificavam-se clarecer e explicitar com analogias e similitu-
pecados e penas. des. Mas, diferentemente de Anselmo e de
165
Capitulo décimo - ^ A b e l a e d o e. a qi'*uwlt ‘ c o o + e o v é e s i a s o b e e o s emivees-ais

seus contemporâneos, ele não crê que a ra­ sivas. Daí seus conflitos com as autoridades
zão possa dar explicações definitivas. e com a tradição. Mas o esforço de Abelardo
Todas as explicações dos filósofos, bem para aprofundar com a razão os problemas
como dos Padres e dos teólogos, são opiniões, máximos da teologia foi apenas contrasta­
mais ou menos abalizadas, mas nunca conclu­ do, e não bloqueado, por esses conflitos.

fn n tn ífi!iim * ftiíiu jvm-


d tilcúwtih^bíctt atvtuic

■>-, fu

Abelardo (1079-1142)
e o pensador
mais prestigioso
do séc. XII.
Por sua vida
atormentada e inquieta,
por suas obras ricas
de jermentos wnts ninlart iccmi&tôt
e iie novas indicações
metodoh igicas, f&tll Cttct
foi definido como ^ u p m d ttm fiifã m w
"a outra vertente
da Idade Média”. cwícr ncfçhwtoirnuc
Aqui Abelardo
é representado nmgfjmuapifia-flôuiir
ao lado de Heloísa, uMtftitfattiatmiwnwic
com a qual teve
a conhecida ^ *oí cwattaiit i jtica tenve
aventura amorosa, ttn c u a n m tt i (m cii a n u ;
no fim da qual uma e outro
entraram para o mosteiro. ^ ^ fn m m a u c ím ítm
Heloísa, ao morrer,
quis ser sepultada
na mesma tumba
de Abelardo.
ê ís
Miniatura do séc. XIV
(de I e ronian de Ia Rose,
Museu C.oudé, (é.bantillv).
166 Quinta parte - A ^scolás+icc a n o s s é c u l o s d é c i m o p^imei^o e de<
d é c im o segu n d o

II A g r a n d e , c o n tr o v é r s ia
S O b r e o s uuive^sais

• Abelardo, todavia, passou para a história também pela posição que assu­
miu na secular questão dos universais. As soluções oferecidas a tal problema a
partir da especulação medieval eram as seguintes:

O realismo « 1 ) 0 realismo extremo de Escoto Eriúgena, Guilherme de


exagerado Champeaux e, em parte, de Anselmo de Aosta, que afirma que
§ 3 .2 os universais existem em si, como Idéias platônicas, ou seja, ante
rem, antes das coisas.
Assim como as Idéias arquetípicas são o modelo da realidade, o conhecimen­
to delas é indiretamente o conhecimento da realidade.

• 2) O nominalismo — posição assumida sobretudo por Ros-


celino — segundo o qual o universal seria puro nome que desig­
O nominalismo na uma multiplicidade de indivíduos. Em tal sentido o conhecimen­
->§3.3 to só pode ter resultados céticos, porque não existe nenhuma
ligação substancial entre as palavras/conceitos e as coisas.

• 3) A estas posições acrescenta-se a de Abelardo, que se pode chamar de


conceitualismo. Os universais, observa Abelardo, não existem na natureza e sim
em nossa mente (posf rem) como conceitos; estes se formam
. quando a mente, no processo cognoscitivo-abstrativo, distin-
° C$ 3 C<^'*Uç l,smo gue e separa os diversos elementos que estão compactados na
à ' "‘ realidade dos seres concretos. Nos conceitos universais o inte­
lecto separa de mais entes semelhantes um modo de ser co­
mum, e este é o conceito universal para aquele grupo de indivíduos. Desse modo,
porém, não é captada a essência das coisas, mas seu status communis; por conse­
guinte, não podemos conhecer a realidade em si — esta é conhecida somente por
Deus — , mas propriamente nossos conceitos, que exprimem apenas parte da rea­
lidade: exatamente a certa condição de natureza da qual mais objetos participam.

• O realismo moderado — típico sobretudo de santo Tomás — segundo o


qual os universais subsistem: ante rem como Idéias-arquétipos na mente de Deus;
in re como formas das coisas (no modo de Aristóteles); e post
o realismo rem, na mente do homem, como conceitos.
moderado Notemos que neste caso a colocação post rem depende
§36 da colocação in re que, por sua vez, depende da ante rem.

1 O s estudos " g r a m a i i t z a i s " vez. Por essa razão, João de Salisbury, discí­
pulo de Bernardo de Chartres, afirmava que
“ a gramática é o berço de toda filosofia” .
A lenta passagem da auctoritas para a
Os estudos “gramaticais” foram parti­ ratio, a que conduziam os estudos “ grama­
cularmente cultivados nos séculos IX-XII. Per­ ticais” , explica a reação difundida dos tra­
mitindo ingressar progressivamente no mun­ dicionalistas, para os quais a palavra dos
do dos sinais lingüísticos, o desenvolvimento Padres e da Bíblia devia ser meditada e as­
desses estudos, que tiveram impulso notável sumida como norma de vida e não profana­
na escola de Chartres, resultou em madura da ou laicizada através do uso e das distin­
consciência da relação entre voces e res, que ções dos instrumentos “gramaticais” . São
era preciso estudar e explicitar de quando em Pedro Damião (1007-1072), que represen-
Capítulo décimo - A b e l a r d o e cx q r a n .i d e c o n t r o v é r s i a s o b r e o s u n i v e r s a i s
167

Roma, Igreja de Santa Maria sobre Minerva: “A disputa de santo Tomás de Aquino com os heréticos"
(Filippino Lippi).

ta tão bem essa reação, no tratado Sobre a A íntima ligação entre os estudos gra­
perfeição monástica chega a considerar que maticais e a dialética foi evidenciada sobre­
o iniciador desses estudos foi o diabo: “ Não tudo por Abelardo.
disse ele ‘vós sereis como deuses’ ? Os nos­ Identificada com a lógica e, portanto,
sos progenitores aprenderam com o tenta­ com a ratio in exercitio, a dialética impõe o
dor a declinar Deus e a falar dele no plural” . rigor na investigação, que se concretiza na
análise dos termos do discurso, através de um
exame crítico do processo de “imposição” das
voces ou termos às res designadas e pela iden­
2 ;A q u e s t ã o d a ^ d ia lé t ic a ” tificação do papel que tais voces desempenham
na estrutura e no contexto do discurso.
Relacionada com os estudos gramati­
cais e seu posterior desenvolvimento, a dia­
lética levou ainda à maior exaltação da ratio. 3 O p e o b le m a d o s u n iv e e sa is
A propósito disso, escreve Berengário
de Tours (falecido em 1088): “ E próprio de
um grande coração recorrer à dialética para
cada coisa, pois recorrer a ela é recorrer à 651 .A questão da relação dos nomes
razão, de modo que aquele que a ela não e dos conceitos mentais com a realidade
recorre, sendo feito à imagem de Deus se­
gundo a razão, despreza a própria dignida­ A relação entre voces e res, entre lingua­
de e não pode renovar-se dia-a-dia à ima­ gem e realidade, que está no centro dos estudos
gem de Deus” . gramaticais e da dialética, constitui o elemen­
168 Quinta parte - A A s c o l á s f i o a n o s s é c u l o s d é c i m o |.n'i muIro e c l é c i m o s o . i u n . ! o

to essencial da questão dos universais, viva­


mente debatida no século XII por suas im­
plicações lingüísticas, gnosiológicas e teoló­ I
f ■ Realism o exagerado. Trata-se da
gicas. f posição platônica levada às extremas
O problema dos universais, com efei­ | conseqüências. Os universais seriam
to, diz respeito à determinação do funda­ I entes reais, subsistentes em si, Idéias
mento e do valor dos conceitos e termos | eternas e transcendentes que têm
universais — por exemplo, “ animal” , “ ho­ | função de arquétipo e paradigma em
mem” — aplicáveis a uma multiplicidade de | relação aos indivíduos concretos.
indivíduos. Í . ■- . .
Mais em geral, trata-se de um proble­
ma que diz respeito à determinação da rela­
ção entre as idéias ou categorias mentais,
expressas com termos lingüísticos, e as rea­
lidades extramentais; ou, em última análi­ infundada. Essencialmente, era uma concep­
se, é o problema da relação entre as voces e ção metafísica rigidamente tradicionalista.
as res, entre as palavras e as coisas, entre o Se os universais são reais em si mesmos e
pensamento e o ser. estão também essencialmente presentes em
O problema envolve, portanto, o fun­ cada um dos indivíduos, então estes em nada
damento e a validade do conhecimento e, diferem entre si pela essência, mas somente
em geral, do saber humano. Podemos ainda pela variedade dos acidentes.
reformular a questão do seguinte modo: os As razões gerais que levaram Abelardo
universalia são ante rem, in re ou post remi a rejeitar a tese de seu mestre Guilherme são
as seguintes: a primeira é extraída do De in-
B I A solução do realismo exa £fi*ado 0 terpretatione de Aristóteles, segundo o qual
o universal é aquilo que é predicável de vá­
O realismo exagerado é a tese segundo rios entes. Se isso é verdade, o universal não
a qual os termos universais são res ou enti­ pode ser uma res, um ente objetivo que, en­
dades metafísicas subsistentes. quanto tal, não pode funcionar como pre­
O mais conhecido defensor dessa teo­ dicado de outro ente, segundo o princípio
ria realista dos universais foi Guilherme de res de re non praedicatur. A segunda é a
Champeaux, que nasceu em 1070 e morreu desvalorização do indivíduo, que só existe
em 1121. Em sua opinião, há perfeita ade­ na realidade. Com efeito, a teoria da identi­
quação ou correspondência entre os concei­ dade ou solução realista, ao atribuir uma
tos universais e a realidade. Trata-se de uma substância numericamente idêntica a todos
linha teórica cuja inspiração de fundo é de os seres classificados com o mesmo concei­
clara ascendência platônica. to universal, torna puramente acidental a
Originalmente, essa tese teve grande sig­ sua distinção, baseada somente em formas
nificado, pois mostrava que a gramática, a ou propriedades acidentais. Em um perío­
retórica e a lógica não tinham valor simples­ do de exaltação da ratio e, portanto, do in­
mente lingüístico-formal. Já se disse que, divíduo no plano filosófico, além do nível
quando João Escoto Eriúgena apresentou sua social, essa tese só poderia parecer reacio­
interpretação realista dos universais, “pro­ nária ou falsamente tradicionalista.
vocou grande estupor” . Com efeito, naquele
dado momento histórico, tal concepção, es­ 6Í 8 .A solução uominalisto
tabelecendo estreita correspondência entre o
pensamento e a realidade, representou a A tese que se contrapõe ao realismo exa­
revalorização da investigação lógico-filosó- gerado de Guilherme é o nominalismo de Ros-
fica. O estudo da linguagem, portanto, era o celino de Compiègne, que nasceu por volta de
estudo da realidade, e, sendo esta uma teofa- 1050 e morreu pouco depois de 1120.
nia, era o estudo da própria manifestação de Em sua opinião, os universais ou con­
Deus, daquele Deus sobre cujas idéias uni­ ceitos universais não têm nenhum valor, nem
versais e eternas as coisas eram modeladas. semântico nem predicativo, não podendo se
Todavia, com o desenvolvimento dos referir a nenhuma res, dado que todas as
estudos gramaticais, ao ser retomada e re- coisas existentes são singulares ou separadas
proposta por Guilherme de Champeaux, (discretae), e nada existe além da individua­
essa teoria já pareceu reacionária, além de lidade (nihil est praeter individuum).
169
Capítulo décimo - y \ b e l a r d c I m u d e c o h f ^ o v t V s i a s o b r e o s ur viversais

lares ou universais são os sermones (...). Di­


gamos, portanto, que os sermones é que são
■ Nominalismo. Trata-se de uma po­ universais, já que desde a origem, isto é, des­
sição ceticizante que rejeita completa­ de a instituição dos homens, receberam a pro­
mente toda forma de platonismo. O priedade de serem predicados de muitos".
universal seria simples nome que indi­ Na realidade, para Abelardo, tudo é in­
ca uma multiplicidade de indivíduos e
nada mais. Não apenas não tem um
dividual, é unidade compacta ou singular
status ontológico, mas também não tem de matéria e forma. Apesar disso, pelo pen­
um status lógico fundativo da palavra. samento, a ratio humana tem o poder de dis­
tinguir e separar os diversos elementos que
subsistem unidos na realidade. Analisando
e comparando os diversos seres singulares
no processo cognoscitivo-abstrativo, a ratio
está em condições de captar entre os indiví­
Trata-se de uma teoria que, negando duos da mesma espécie um aspecto peculiar
qualquer valor aos universais, revela-se fun­ que eles compartilham.
damentalmente cética, porque anula alguns E nessa similitudo ou status commu-
instrumentos do conhecimento humano, o nis, captado pelo intelecto, se baseiam os
qual se torna simples atividade analítica de conceitos universais, que, diferentemente dos
fatos concretos e individuais, incapaz de as­ conceitos singulares, não nos dão a forma
cender a níveis de caráter geral. própria e determinada dos indivíduos, mas
A maior fonte de dados sobre o nomi- somente a imagem comum de uma plurali­
nalismo de Roscelino é constituída pelo De dade de indivíduos.
incarnatione Verbi, de Anselmo de Aosta,
ao qual remonta a definição segundo a qual
os universais seriam para Roscelino meros
flatus voeis ou simples emissões de vocábu­
los, sem que os termos universais remetam
a algo de objetivo. Anselmo explica tal nomi- ■ C onceitualism o. Trata-se de uma
nalismo com o fato de que a razão está tão forma de aristotelismo reelaborado
envolvida “ nas imaginações corpóreas” a sobretudo por A b elardo: o univer­
ponto de não poder mais se libertar, inca­ sal, embora não sendo um arquétipo
ideal, é um conceito significativo ob­
paz de se elevar acima das realidades indivi­ tido por abstração.
duais e materiais, incapaz de distinguir a
intelecção universal da razão dos dados par­
ticulares da fantasia e dos sentidos.

m a a solução modelada
de jAbela rdo: o umve^sal como “sermo” E E f l im p lica çõ e s lc> Ícas 0
ex+raído da Va+icd sob^e a base e metafísicas cia posição Tcmceitualista”
do ^status communis” dos indivíduos de ^Abelardo

Enquanto os realistas propunham o pro­ Deve-se precisar que o status communis


blema dos universais no campo estritamente não denota realidade substancial ou essên­
metafísico, ontologizando os universais, isto cia comum. Ele indica apenas um modo de
é, sustentando que eles são res ou entidades ser, uma condição de natureza comum aos
metafísicas, os nominalistas, em oposição ra­ indivíduos da mesma espécie. O homem
dical, puseram em crise o valor significante como essência não existe, mas o ser-um-ho-
dos termos universais. Mas tanto uma como mem é condição real e concreta, que é co­
a outra teoria tiveram de suportar severas crí­ mum a todos os homens concretos.
ticas. Se o universal não é res nem apenas O que é então o universal? Do ponto
vox ou flatus voeis, então o que é? de vista genético e semântico, é um sermo,
Abelardo, o mais empenhado nesse de­ “ que é gerado pelo intelecto e gera o inte­
bate, escreve: “Há outra teoria acerca dos lecto” . E um conceito ou discurso mental
universais que é mais conforme com a ra­ que brota de processo de abstração mas com
zão: é a que não atribui a universalidade nem bases objetivas, ou seja, é expressão do ser
à res nem às voces, sustentando que singu­ sobre bases lógicas e lingüísticas.
170 Quinta parte - y \ <Ss r o l á s t i o a n o s s é c u l o s d é c i m o p r i m e i r o e d é c i m o s e g u n d o

Em base ao que dissemos, é claro que a posição rio “realismo moderado7


7
posição de Abelardo aparece de certo modo que será assumida por santo Tomás
como intermediária entre os dois extremos e se impoi^ci como clássica
opostos. Ela oferece traços que têm certo sa­
bor de realismo moderado, enquanto admi­ Para sermos mais exatos, portanto, de­
te que o universal tem como fundamento o vemos dizer que Abelardo, à medida que
status communis, ou seja, o modo de ser dos afirma que o universal para nós existe so­
indivíduos da mesma espécie; mas ele nega, bretudo post rem, isto é, que é um conceito
como dissemos, que isso denote uma realida­ mental abstraído da realidade individual, é
de substancial in re subsistente por si (as reali­ um “conceitualista” , embora com certo tra­
dades subsistentes por si são os indivíduos). ço de realismo moderado.
Por outro lado, Abelardo inclina-se a ad­ O realismo moderado por excelência
mitir que existem Idéias substanciais das coi­ será sobretudo o de santo Tomás, que sus­
sas, mas apenas na mente de Deus como “ ar­ tentará que o universal existe:
quétipos” ou modelos (ante rem, em sentido a) tanto ante rem na mente de Deus
platônico); mas, como tais, nós não as conhe­ como arquétipo (como queria Platão, mas
cemos. repensado em ótica criacionista);
b) como in re, isto é, nas coisas, como
forma que estrutura ontologicamente os in­
divíduos (como queria Aristóteles, embora
repensada em ótica criacionista);
■ Realism o m oderado. Trata-se de c) como também post rem, como con­
uma posição mediana entre a concep­ ceito mental (como pensava Aristóteles).
ção platônica e a aristotélica. Os uni­ Esta problemática do universal dará lu­
versais têm tríplice valência: gar a riquíssimo florescimento de estudos
1) se considerados como transcenden­ sobre a linguagem e sobre a lógica nos sécu­
tes e anteriores às coisas (na mente
de Deus) correspondem às Idéias pla­ los seguintes, como veremos.
tônicas;
2) se considerados como imanentes e
E f if l <2wad>*o sinótico geral
presentes nas coisas (nos corpos indivi­
duais) correspondem às formas aristo- do problema dos universais
télicas; e das suas soluções
3) se considerados como abstratos e

I
posteriores às coisas (na mente hu­ Para concluir este ponto, traçamos um
mana) correspondem aos conceitos quadro sinótico, que resume sinteticamente
lógicos. as coisas ditas sobre as soluções do proble­
ma dos universais e antecipa algumas coisas
de que pouco a pouco trataremos. m
171
Capitulo décimo - y \ . b e i a r d o e a 0^ai,n d e c o n t r o v é r s i a s o b r e o s u n i v e r s a i s

DISPUTA SOBRE OS UNIVERSAIS

Os universais
podem ser

> A A

ante rem post rem in re como puros


/ isto é, antes / ou seja, \ / ou seja, \ 1 nomes \
das coisas sensíveis, j na mente. j nas coisas sensíveis, j j sem uma relação j
ou seja, / 1 i como suas j
\ como conceitos / \ estrutural j
\ existem em si ' abstratos \ conotações com as coisas /
e por si / ontológicas / \ /

▼ ▼
! REALISMO EXAGERADO NOMINALISMO
| Foi a tese Foi a tese propugnada
I de Guilherme de Champeaux por Roscelino
e em parte de Anselmo. e também por Ockham.
^ Retoma posições platônicas O universal
é puramente um nome
que se refere
a mais indivíduos

T
CONCEITUALISMO
Foi a tese propugnada REALISMO MODERADO
sobretudo por Abelardo
que, porém, Foi a tese de Tomás:
admitia certa relação os universais existem ante rem
com a realidade das coisas na mente de Deus,
no que se refere in re como forma das coisas,
ao status communis e post rem como conceito mental
172
Quinta parte - A £sc-olásfi<~<( n o s s é c u l o s d é c i m o p n m e i t* o e. d é c i m o s ee g u u d c

rigi aonde eu ouvia dizer que se estudava esta


arte, enfrentando qualquer tipo de discussão.
A bela r d o
Cheguei finalmente a Paris, onde já há tempo
os estudos de dialética haviam alcançado de­
senvolvimentos excepcionais, e freqüentei a
escola de Guilherme de Champeaux, que con­

D Confissões autobiográficos sidero o mais importante de meus mestres, pelo


sua preparação e fama, neste campo. Am um
primeiro tempo trabalhei muito bem com ele,
o um amigo mas depois nossas relações se desgastaram,
porque eu começara a criticar algumas de suas
Em uma carta intitulada Abaelardi ad idéias e não temia demonstrar-lhe que fre-
omicum suum consolatoria, nosso Filósofo re­ qüentemente era ele que errava, tanto que na
lata em primeiro p esso a umo versão subs- maioria das vezes quem saía vencedor de nos­
tanciolmente aceitável de sua vida. sas disputas era eu. Por outro lado, minha se ­
Sua intenção não era a de consolar um gurança e minha bravura suscitavam também o
amigo infeliz, mas o de desafogar os pró­ desdém e a inveja dos outros discípulos que
prios sentimentos em um momento particu­ estudavam comigo, sobretudo porque eu era o
larmente delicado de sua vida. mais jovem e o último que havia chegado.
Aqui tiveram início minhas desgraças, que
perduram ainda hoje; quanto mais minha fama
crescia, mais aumentava a inveja de todos em
Nasci em umo aldeio chamado Ralais, que relação a mim. No fim, supervalorizando talvez,
está às portas da Bretanha Menor, cerca de oito dada a idade, minhas reais capacidades, aspi­
milhas o oriente de Nantes. Minha terra de ori­ rei, apesar de ser pouco mais que um jovem,
dirigir uma escola. Procurei logo o lugar onde
gem ou o sangue que corre em minhas veias
deram-me não só certa agudez intelectual, mas poderio empreender esta atividade e pareceu-
também o gosto pelos estudos literários. Tam­ me tê-lo descoberto em Melun, uma cidadezi-
bém meu pai, de resto, antes de abraçar o vida nha então famosa e, além disso, residência real.
de soldado, tinha certa cultura literária; tinha tam­ Mas meu mestre intuiu minhas intenções e re­
bém tal paixão pelos livros que quis dor a todos correu a todos os meios e a todos os subterfú­
os filhos uma boa cultura antes de encaminhá- gios à sua disposição para relegar a mim e a
los ao serviço dos armas. Fez o mesmo também minha escoia o mais distante possível de Paris:
comigo. Au era o filho primogênito; conseqüen- procurava, no realidade, antes ainda que eu
temente, era-lhe o mais caro, e com maior cui­ deixasse sua escola, impedir-me de fundar uma
dado atendeu à minha instrução. Para mim, es­ escola própria, e fazia de tudo para tirar-me o
tudar ero muito fácil e agradável; dediquei-me lugar que eu escolhera. Por sorte, porém, ele
às letras com tanta paixão e tal foi o fascínio tinha a hostilidade de diversos dos senhores
que elas exerceram sobre mim, que logo me daquela cidadezinho, e eu, graças também ao
decidi a renunciar à carreira militar, à herança e apoio deles, consegui coroar meu sonho; aliás,
a meus direitos de primogênito em favor de meus seu próprio comportamento abertamente hostil
irmãos: em outras palavras, abandonei definiti­ ajudou-me a granjear um grande número de
vamente a corte de Marte para ser educado no simpatias.
seio de Minerva. A, uma vez que entre todas as Por outro lado, depois deste meu exórdio
disciplinas filosóficas eu preferia as armas da no ensino, minha fama no campo da dialética se
dialética,1 por causa de seus raciocínios argu­ difundiu enormemente e pouco a pouco obscu-
tos, posso dizer que troquei as armas da guerra receu não só a de meus velhos companheiros
por estas armas e preferi aos triunfos militares de estudo mas também a do próprio Guilherme
as vitórias nas disputas filosóficas. Bem depressa os bons resultados obtidos
Desse modo, pus-me a percorrer as vá ­ me induziram, talvez supervalorizando novamen­
rias províncias como um peripatético,2 e me di- te minhas reais capacidades, a transferir minha
escola para Corbeil, cidadezinho próxima de Pa­
ris, também porque assim eu podia fazer ouvir
melhor minha voz nas diversas disputas. Todavia,
'Como d ia lé t ic o entende-se aqui a arte do raciocínio, a não muito tempo depois, fiquei doente por causo
parte da lógica que ensina a argumentar.
9Com este termo Rbelardo quer indicar sua condição
do trabalho excessivo a que me submetí e fui for­
de d e n c u s v a g a n s , enquanto se deslocava de escola em çado a voltar para minha aldeia natal. Permanecí
escola. alguns anos lá, como em exílio, longe do frança,
173
Capítulo décimo - ; A b e lc u * d o e Q g r a n d e c o n t r o v é r s i a s o b r e o s u n i v e r s a i s

enquanto aqui todos aqueles que queriam apren­ cola de dialética é quase impossível. Lívido de
der a dialética me esperavam ansiosamente. bílis e vermelho de raiva, não conseguia supor­
Rlguns anos depois, estando já há tempo tar tal situação, e com astúcia procurou afastar-
curado, fiquei sabendo que meu antigo mestre, me mais uma vez. Todavia, como não tinha ele­
Guilherme, que era orquidiácono de Paris, tro­ mentos suficientes para atingir-me diretamente,
cara o antigo hábito poro entrar na Ordem dos mandou destituir do cargo, atribuindo-lhe cul­
Cônegos Regulares, pois, pelo que se dizia, es­ pas infamantes, aquele que me deixara seu
perava assim ter mais fácil acesso oos cargos lugar e o substituiu por outro discípulo, noto­
mais elevados com este gesto de zelo religioso, riamente contrário a mim. Voltei então para Melun
como de fato aconteceu quando foi nomeado e reabri minha escola; a fama de que eu gozava
bispo de Châlons. Mas nem mesmo depois des­ era proporcional à hostilidade invejosa da qual
ta espécie de conversão ele deixou Paris ou Guilherme não fazia mistério, porque é verda­
abandonou seus estudos de filosofia, e no pró­ de aquilo que diz o poeta Ovídio:
prio mosteiro, para o qual se transferira depois fí invejo é como o vento, que íustigo mais
de ter entrado na Ordem, abriu uma escola pú­ os cimos mais oitos.
blica. Cntão voltei para junto dele paro estudar Pouco tempo depois, Guilherme, perceben­
retórica e, para recordar apenas uma de nossas do que quase todas as pessoas de bom senso,
tantas disputas, refutei justamente naqueles dias, duvidando da sinceridade de sua fé e ironizando
ou melhor, demoli, fazendo até com que mudas­ de sua conversão pelo fato de que continuara a
se de opinião, sua velha doutrina sobre os uni­ viver em Paris, transferiu-se com seu pequeno
versais. fl propósito da existência comum dos grupo de irmãos e com toda sua escola para um
universais, com efeito, Guilherme sustentava que vilarejo distante de Paris. Depressa, de Melun
em todos os indivíduos está presente essenci­ voltei para Paris, na esperança de que me teria
almente a mesma realidade, de modo que não deixado em paz, mas, como encontrei a cátedra
há nenhuma diferença em essência, mas ape­ ocupada por aquele rival que Guilherme no­
nas certa variedade como conseqüência da meara seu sucessor, fui instalar-me com minha
multiplicidade dos acidentes. Depois de nossa escola um pouco fora da cidade, sobre a colina
disputa, porém, ele modificou sua teoria e che­ de Sointe Geneviève, como que para assediar
gou a sustentar que a própria realidade está aquele que havia ocupado meu lugar.
presente nos indivíduos singulares, não essen­ Guando soube disso. Guilherme, deixan­
cialmente mas indiferentemente. Todavia, como do de lado qualquer escrúpulo, não hesitou em
se sabe, o problema dos universais em nosso voltar a Paris e o recolocar no antigo mosteiro
campo é um problema fundamental (não por seus coirmãos e os poucos alunos que conse­
nada também Porfírio, no Isagoge, tratando dos guira reunir. Seu escopo, por assim dizer, era o
universais, não ousa proceder a uma verdadeira de liberar, depois de tê-lo abandonado, seu fiel
e própria definição da questão e se limita a di­ de meu assédio, mas, apesar de tudo, isso mais
zer que "a coisa não é das mais simples"), e por o prejudicou do que ajudou. Com efeito, esse
isso quando Guilherme corrigiu, ou melhor, foi infeliz tinha ainda um minguado grupo de discí­
forçado a modificar completamente seu pensa­ pulos, graças sobretudo a seus comentários so­
mento a respeito, suas aulas caíram em tal des­ bre Prisciano, questão em que era considerado
crédito que com muito favor lhe foi concedido muito hábil, mas depois da chegada de seu
tratar os outras partes da dialética, e com razão, mestre perdeu quase todos aqueles poucos alu­
pois na realidade o ponto mais importante de nos e foi forçado a abandonar a direção da e s­
nossos estudos é justamente o que se refere ao cola; aliás, não muito depois, desistindo de
problema dos universais. poder conseguir algum sucesso nesse campo,
Cm todo caso, a partir daquele momento, também ele entrou na vida monástica.
tornei-me neste campo tal autoridade que tam­ Quais foram as disputas que meus alunos
bém aqueles que antes eram os mais apaixo­ tiveram com Guilherme e com seus discípulos de­
nados seguidores daquele grande mestre e pois de sua volta, quais êxitos nesses desen­
meus mais ferrenhos adversários, se precipitam contros a sorte reservou a meus alunos e tam­
em massa em minhas aulas; mais ainda, o pró­ bém a mim por meio deles, é coisa conhecida
prio sucessor de Guilherme na escola de Paris de todos e também tu o sabes. €u, como Rjax
veio oferecer-me seu lugar, para poder assistir na llíodo, poderio limitar-me a dizer, com um pou­
junto com todos os outros minhas aulas, justa­ co de modéstia talvez, mas com o mesmo tom:
mente onde pouco tempo antes havia triunfa­ Queres sa ber o resultado do batalho?
do seu e meu mestre. Saiba que meu inimigo não me derrotou.
Dizer quanta dor e quanta inveja provou Abelardo e Heloísa,
Guilherme nos poucos dias em que dirigi a e s­ Cortos d e amor.
174
Quinta parte - A É s c o l ó s + i c a n o s s é c u l o s d é c i m o pHmeii*o e d é c i m o s e g u n d e

judicar, quanto mais estivesse certo de realizar


2 aquilo que quer por meio de seu poder e de
sua habilidade. Além disso, quem não é movi­
a serviço da teologia1 do pelo sentimento da bondade não predis­
põe os outros o esperar por seus benefícios.
Uma das características de Flbelardo é Cstas três características, portanto, se unem para
o uso dos instrumentos lógicos (particular­ fazer com que ele possa realizar aquilo que
mente arístotélicos) para o exame dos pon­ quer, e enquanto bom queira aquilo que é bom
tos fundamentais da fé cristã. Por meio de e não exorbite por insipiência os limites da ra­
um cerrado e rigoroso confronto com as opi­ zão. Cie é sem dúvida bom e perfeito em tudo.
niões dos adversários, ele individua no lin­ Csta diferenciação dentro da Trindade não só
guagem o espaço em que o trabalho do teó­ permite descrever a perfeição do sumo bem,
logo p ode se r exercido com a mais completa mas é também muito útil para convencer os ho­
autonomia. mens ao culto de Deus. Por este motivo a pró­
pria sabedoria de Deus encarnada se referiu a
ela de modo particular em sua pregação. Duas
coisas fazem com que nos submetamos com­
pletamente a Deus: o temor e o amor. O poder
1. O que significa a distinção das Pessoas e a sabedoria suscitam em nós o máximo grau
de temor, pois sabemos que Deus pode punir
Cristo, o própria sabedoria d® Deus en­
os erros e nada lhe escapa. A bondade, ao
carnada, descrevendo o perfeição do sumo bem,
contrário, está ligada ao amor, pois amamos
que é Deus, a distinguiu acuradamente por meio
de modo especial aquilo que consideramos
de três nomes, quando chamou, por três razões,
sumamente bom. Disso deriva com certeza que
a substância divina única e singular, absoluta­
Deus quer punir a impiedade: de fato, quanto
mente individual e simples, Pai, filho e Cspírito
mais aprecia a eqüidade, tanto mais despreza
Santo.
a iniqüidade, conforme está escrito: "Amaste a
justiça e odiaste a iniqüidade" (51 44,8).
2. O que significam os nomes das Pessoas O nome Pai, conforme dissemos, designa
o poder; o nome filho, a sabedoria; o nome
A substância divina é chamada Pai por cau­ Cspírito Santo, o sentimento de bondade para
sa do único poder de sua majestade, que é a com as criaturas. Determinaremos a seguir o
onipotência, por meio da quol pode fazer aqui­ fundamento desses nomes, mostrando como,
lo que quer, enquanto nado lhe pode resistir. C para indicar estas diferenças em Deus, eles são
chamodo filho por causa da própria sabedoria, usados de modo translato em relação a seu
por meio da qual pode distinguir e separar con­ significado costumeiro. Antes de tudo, porém,
forme a verdade todas os coisas, de modo que mostremos que a distinção dentro da Trindade
nada pode fugir-lhe ou enganá-la. C chamada não se originou de Cristo, mas foi ensinada por
Cspírito Santo por causa da graça da sua bon­ ele com maior clareza e precisão. A inspiração
dade, pela qual Deus não urde males, mas está divina se dignou revelá-la aos Hebreus por meio
disposto a salvara todos, distribui a nós os dons dos profetas, e aos pagãos por meio dos filó­
de sua graça sem olhar o que nós ganhamos sofos, para impelir, por meio do conhecimento
com nossa depravação, e salva com a miseri­ da perfeição do sumo bem, um e outro povo ao
córdia aqueles que não pode salvar por meio culto do único Deus, "do quol, por meio do qual"
da justiço. Afirmar que Deus é três pessoas, isto e no qual "existem todas as coisas" (1 Cor 8,6),
é, o Poi, o filho e o Cspírito Santo, é como dizer e para que a fé na Trindade, enquanto transmi­
que a substância é poderosa, sábia e boa, ou tida pelos antigos doutores, fosse acolhida com
melhor, que é o próprio poder, sabedoria e maior facilidade por ambos os povos no tempo
bondade. A completa perfeição do bem con­ da graça. [...]
siste nestas três determinações: poder, sabe­
doria e bondade, e cada uma delas pouco vale 3. Por que a sabedoria é chamada Verbo
sem os outras duas. Com efeito, quem é pode­
roso, mas não sobe dirigir segundo a razão A sabedoria é chamada Verbo porque, por
aquilo que lhe é possível, possui um poder fa­ meio das palavras, alguém manifesta o próprio
tal e prejudicial. Quem é sábio e age com reti­ conhecimento e a profundidade de sua ciência.
dão, carece de eficácia caso não posso fazer Por isso, Moisés, conforme já recordamos, faz
nada. Quem fosse poderoso e sábio, mas de preceder a narração da criação das diversas
modo nenhum bom, seria mais inclinado a pre­ coisas pela expressão "Deus disse" (Gn 1,3ss),
175
Capítulo décimo - y- X U l a r d o e. a g r a n d e c o n t r o v é r s i a s o b r e o s u n i v e r s a i s

0 Faz seguir o resultado pelas palavras "e a s­ filho, hoje te gerei. Pede e eu te darei as na­
sim Foi Feito" (Gn l,7 s s ). G e mostra que Deus ções como herança" (SI 2 ,7 ss). Quando aFir­
criou todas as coisas em seu Verbo, isto é, em ma: "hoje te gerei", é como se dissesse: tu és
sua sabedoria, portanto racionalmente. R este eternamente de minha própria substancia. Aom
respeito em outro lugar o salmista aFirma: "Ge efeito, na eternidade não há passado nem
disse e as coisas Foram Feitas" (51 32,9), isto é, Futuro, mas tudo está simplesmente presente,
ele criou e ordenou todas as coisas por meio por isso o advérbio que indica o tempo pre­
da razão. Am outro lugar, mostrando claramen­ sente é utilizado para significar a eternidade,
te que este Verbo não é uma palavra p assa­ diz portanto "hoje" para dizer "eternamente".
geira que se ouve, mas permanente e inteligí­ Aorretamente acrescenta ao advérbio "hoje" o
vel, aFirma: "Ge criou os céus com sabedoria" verbo "gerei", um passado unido ao presente,
(51 135,5). Asta palavra intelectual de Deus, para indicar, mediante o termo "hoje", que esta
isto é, a eterna disposição de sua sabedoria, é geração está sempre presente, e com o termo
descrita deste modo por Agostinho: "A palavra "gerei", que ela está sempre realizada e com­
divina é a própria disposição de Deus, que não pleta, e por isso ele usou o passado como
tem um som estridente e passageiro, mas uma para indicar a perfeição, para mostrar que o
Força que permanece eternamente". A respeito Filho sempre Foi gerado e sempre Foi gerado
dela no VIII livro do De TrinitoteaFirma: "Ale cha­ pelo Pai. Am outro lugar ele proclama mais cla­
mou Filho seu Verbo para mostrar que é gera­ ramente a eternidade do Filho, dizendo: "Per­
do por ele". manecerá com o sol e antes do lua de gera­
ção em geração" (SI 7 1 ,5 ). Ainda: "Contigo
está o princípio, no dia de tua virtude, no e s­
4. Por que a bondade de Deus
plendor dos santos eu te gerei de meu seio
é chamada €spírito Santo
antes da aurora" (SI 109,3).
O nome Aspírito Santo exprime o sentimen­ Abelardo,
to de bondade e de caridade, como o espírito, Teologia do Sumo Bem.
isto é, o sopro que sai de nossa boca, manifes­
ta sobretudo os sentimentos do coração, tanto
quando suspiramos por amor, como quando nos
lamentamos de angústia pela Fadiga ou pela dor.
Por este motivo o Aspírito Santo é entendido
como sentimento bom nesta passagem do livro P O R F ÍR IO
da Sabedoria: "8om é o espírito de sabedoria,
não sairão blasfêmias de seus lábios" (Sb 1,6).
Aqui o nome Aspírito Santo indica exclusivamen­
te uma pessoa, todavia tomado em outro signi­
ficado ele é comum às três pessoas, pelo Fato
de que a substância divina é espiritual e não
D fl questão dos universais
corpórea, e também santa. Sucede freqüen-
temente que um nome comum a muitas coisas
R passagem seguinte, tirado do Isa-
se refira o uma delas como seu nome próprio. A
goge de Porfírio, deu origem à célebre dis­
uma vez que as outras coisas têm nomes pró­
puta sobre os universais. Porfírio se pergun­
prios por meio dos quais se distinguem mutua­
to s e o s universais tinhom um estatuto
mente, enquanto esta não tem um nome que
ontológico, e de que noturezo, ou se tinham
indique sua diferença, o que antes era comum a
umo existência openos mentol, como puros
todas as outras torna-se nome próprio desta.
conceitos. Porém, n e sse escrito, deixo o
Aomo quando Falamos de clérigos para salien­
questão em suspenso, ofírmondo que se tro­
tara diferença com os monges, embora também
to de um temo demasiado complexo para
os monges sejam clérigos, ou ainda quando Fa­
se r examinado em um breve trotado.
lamos de Fiéis para salientar a diferença com
os mártires, embora sobretudo os mártires de­
vam ser chamados de Fiéis.
Há também muitas outras passagens dos Caro Crisaório, dado que para compreen­
profetas nas quais está claramente mostrada der a doutrina das categorias de Aristóteles é
a distinção dentro da Trindade. O próprio Davi necessário saber o que sejam o gênero, a di­
ensinou claramente a eterna geração do Filho ferenço, a espécie, o próprio e o ocidente, e dado
a partir do Pai, Fazendo a pessoa do Filho Fa­ que esta análise é basilar para a Formulação
lar deste modo: "O Senhor me disse: tu és meu das definições, e, em todo caso, para tudo aqui-
176
Q t lin t ã p a r te - y \ Ê s c o l á s t i c a n o s s é c u lo s d é c im o p c im e ic o e d é c i m o s e g u n d o

Io que se refere à divisão e à demonstração, nalmente, se são separados ou se se encon­


farei poro ti umo breve exposição em poucos tram nas coisas sensíveis, inerentes a elas; este
palavras, no forma, por assim dizer, de uma isa- é, com efeito, um tema muito complexo, que
goge, daquilo que nos foi transm itido pelos tem necessidade de outro tipo de pesquisa,
antigos, deixando a s questões mais complexas muito mais aprofundado.
e tratando em igual m edida os m ais sim ples. Disponho-me, ao contrário, a explicar-
Previno-te logo que não enfrentarei o pro­ te de um ponto de vista lógico aquilo que su s­
blema dos gêneros e das espécies, isto é, se tentaram sobre estas duas questões e sobre
são subsistentes por si ou se são sim ples con­ outras, sobretudo os Peripatéticos.
ceitos mentais; e, no coso que sejom subsis­
tentes, se são corpóreos ou incorpóreos; e, fi­ Porfírio, Isagoge.
íS a p ít u lo d é c im o peim em o

L L pvIt o s prom otores d e c u ltu m


do sé c u lo d éc im o se0uudo.
y \ s e s c o l a s d e {SkaH res e d e S ã o V í for,
P e d ro Lom bardo e 3°^ ° d e S alisbu ry

----- I. y \ s E s c o la s d e L k u rf-^ e s — ,..ZZI

e d e S ã o Vítop

• A Escola de Chartres (Bernardo e Teodorico de Chartres, Guilherme de


Conches, Gilberto Porretano) foi o mais importante centro cultural do séc. XII,
conhecido pela leitura e interpretação dos clássicos, e particu­
larmente Platão. A Escola
Especial importância tinha o estudo das artes do trívio, de Chartres
sobretudo a gram ática, porque ela, ligando-se a uma concep- <? ° estudo
ção platônico-realista dos universais, exprimia também certa dos clássicos
capacidade cognoscitiva do mundo: com efeito, se o nome $ 1~3
exprime as Idéias e as Idéias são arquétipos das coisas, o estu­
do das relações entre os nomes exprime em alguma medida a relação entre as
coisas.
Teodorico de Chartres procurou mediar o Timeu platônico com o Gênesis,
identificando os princípios do mundo com Deus, entendido como o principio da
unidade, e com a matéria, entendida como o princípio da multiplicidade.

• Se a Escola de Chartres acentua os aspectos filosóficos, a Escola de São Vítor,


que deve grande parte da sua fama a Hugo de São Vítor, acentua os místicos.
Hugo procurou fixar um razoável cânon para a exegese dos textos bíblicos,
para que se mantivesse uma distância justa do excessivo alegorismo e do literalismo.
Introduziu também no curriculum escolástico as artes mecânicas, levando em con­
ta as exigências que a vida das comunas andava exprimindo. O caráter típico da
Escola de São Vítor está, em todo caso, na perspectiva mística
entendida como o ápice do conhecimento. o misticismo
Ricardo de São Vítor traduzirá esta perspectiva na fórmu- da Escola
Ia da cogitatio, meditatio, contemplado, que são as etapas da de São vítor
ascensão mística que leva à identificação com Deus. 5 4-5

1 Tradição e inovação 1028. Posteriormente, no século XII, os mes­


tres mais conhecidos, que deram brilho à
escola catedral de Chartres, foram os irmãos
Ao falar da escola de Chartres, fala­ Bernardo e Teodorico de Chartres e Guilher­
mos do principal centro cultural do século me de Conches, que se destacaram pela lei­
XII, com mestres de grande prestígio e com tura direta dos clássicos, pela predileção
um núcleo doutrinai unitário e, em muitos pelos autores antigos, particularmente por
aspectos, inovador. Platão, e, portanto, pela importância que
A fama dessa escola já remontava aos davam às humanae litterae. Trata-se de um
tempos do bispo Fulberto, que morreu em humanismo feito de gramática e retórica,
178 Qliintã parte - A ó f s c o l á s + i c a n o s s é c u l o s d é c i m o p n im e ir o c d é c i m o s e g u n d o

pella, As núpcias de Mercúrio e da Filologia,


que celebra a relação entre as letras e as ciên­
cias. Ademais, também o Planisfério, o Câ-
non e as Tábuas de Ptolomeu, que dizem
respeito à aritmética, à geometria e à astro­
nomia.
No que se refere à dialética, além do
corpus da lógica vetus, há também o resto
do Organon de Aristóteles (Analíticos, Tó­
picos e Elencos).
O estudo dessas obras era motivado
pela convicção de que, para filosofar, o in­
telecto precisa ser iluminado pelo quadrívio
e possuir os instrumentos de interpretação
constituídos pelo trívio.
O estudo da herança do mundo clás­
sico era justificado pelo fundador da esco­
la, Bernardo, que foi um platônico e que
tornou famosa a célebre imagem “ dos anões
e dos gigantes” . Os anões são os modernos,
os gigantes são os antigos, com os primei­
ros sentados no ombro dos segundos. Os
gigantes são constitucionalmente mais ro­
bustos e desenvolvidos, mas os segundos
gozam do privilégio de olhar mais longe e
ver mais coisas, com a condição, porém,
de não descerem de sua posição privile­
giada.
/l excelência do modelo antigo e a confiança
Nós, portanto, devemos ser como anões,
no progresso histórico do conhecimento
são expressas por Bernardo na célebre imagem
sentados no ombro dos gigantes, estudan­
"dos anões e dos gigantes". do suas obras e desenvolvendo seus estímu­
Este vitral da catedral de Chartres, los e indicações.
representando os quatro evangelistas A imagem destaca a excelência do
sobre as costas dos quatro profetas maiores modelo antigo e, ao mesmo tempo, a con­
do Antigo Testamento com a Virgem no centro, fiança no progresso histórico do conheci­
traduz em iconografia sacra mento.
a expressão de Bernardo.

2 ;As arfes do feívio


bem como de todas as artes do quadrívio, em peespeetiva eelÍ0Íosa
particularmente das ciências naturais (ma­
temática e astronomia), onde foram buscar
estímulos e solicitações para refletir sobre O culto das artes do trívio, sua aplica­
as verdades cristãs. ção prática na atividade escolar e sua utili­
Da escola de Chartres também saiu zação em termos religiosos são atestados por
Gilberto Porretano, falecido em 1154. A João de Salisbury na obra Metalogicon,
influência de Bernardo sobre a formação onde, falando das aulas de Bernardo, escreve
de Gilberto foi determinante. No século que ele usava as artes do trívio em função
XII, Abelardo predominou no terreno da da fé e da moral.
lógica; Gilberto o superou na esfera da me­ No que se refere ao aspecto mais es­
tafísica: foi inteligência altamente espe­ pecificamente gramatical, é útil acenar para
culativa a interpretação realista do Platonismo, se­
Os textos em que a escola de Chartres gundo o qual o nome expressa a natureza
se baseava, por si sós, são bastante significa­ mesma da coisa designada. Com efeito, se
tivos quanto à sua orientação doutrinai. An­ há perfeita analogia entre o universo das
tes de mais nada, a obra de Marciano Ca- coisas e o universo dos nomes, porque am­
Capitulo décimo ptimeivo - (Zer\^ros p f o m o lo ^ e s d e c u l f u m d o s é c u lo décimo seg un d o
179

bos derivam do mundo das “ idéias” , então 3 O ~Cim&u de l-^lafão


as diferentes formulações gramaticais ex­
iu+eepretado à luz do G ê rvesis
pressam, com as flexões dos casos, dos gê­
neros etc., o grau diverso de participação
das coisas mencionadas na perfeição origi­ A orientação doutrinai da escola foi
nária. substancialmente platônica, e a obra mais li­
Por exemplo: na passagem do subs­ da e comentada foi o Timeu, de Platão. Tra­
tantivo abstrato “ brancura” para o verbo ta-se da filosofia da natureza elaborada
“ branquear” e para o adjetivo “ branco” , pelo filósofo mais próximo da revelação
Bernardo via a idéia se transmitindo até cor­ cristã e, portanto, um subsídio válido para a
romper-se no “ branco” . Ou seja, à medida melhor compreensão do Gênesis, a narrati­
que desce em direção ao sensível, a idéia se va bíblica da criação do mundo. Ademais,
empobrece e obscurece. Trata-se, portan­ trata-se de uma primeira tentativa de rela­
to, de uma perspectiva gramatical e retóri­ cionar a física com a teologia, encaminhan­
ca de tipo realista, na qual eram relidos do o desenvolvimento das ciências do qua-
alguns momentos propriamente metafísicos drívio.
de Platão. O maior expoente da escola foi Teodo-
Essas pistas serão retomadas por Gui­ rico de Chartres, irmão de Bernardo, que
lherme de Conches (1080-1154), convenci­ morreu por volta de 1155. Seus escritos mais
do de que a ignorância gramatical ou lin- significativos são o Heptateucon, que é o
güística leva à ignorância filosófica. programa das sete artes liberais, o De septem

/i catedral de Chartres, da qual recebe o nome a Escola homônima, o maior centro de cultura do séc. XII.
180 Quinta parte - y\ C E - s c o l á s ti c a n o s s é c u l o s d é c i m o p r i m e i r o e d é c i m o s e g u n d o

diebus, que é um comentário ao Gênesis, e terpretação. Ele rejeita, particularmente, as


os comentários ao De bebdomadibus e ao incongruentes e genéricas interpretações alegó­
De Trinitate, de Boécio. ricas, mas também as interpretações opostas
Fundindo as indicações do Gênesis e que se reduzem exclusivamente à litera-
do Timeu, Teodorico afirma que dois são lidade. A letra mata, o espírito vivifica: “e
os princípios das coisas: Deus, princípio da digo essas coisas não para oferecer a quem
unidade, e a matéria, princípio da multi­ quer que seja a oportunidade de interpretar
plicidade. Em sua opinião, Platão não en­ a Escritura ao seu bel-prazer, mas para de­
tendeu a matéria como um princípio coeter- monstrar que aquele que segue apenas o sen­
no a Deus, mas, ao modo pitagórico, pôs a tido literal não pode ir muito longe sem se
matéria como derivada ou descida da uni­ enganar (...)” .
dade. Trata-se de uma aproximação que Além disso, um elemento que também
parecia mais adequada para uma cautelo­ se deve salientar é o espaço que Hugo con­
sa tentativa de cristianização do neoplato- cedia às “ artes mecânicas” , que corajosa­
nismo. mente alinhava junto com as artes do trívio
Teodorico teve grande interesse pelas e do quadrívio. Elas expressam a atenção
ciências naturais, embora em acordo com que dava à nova vida citadina. Com efeito,
um desígnio teológico superior. Isso se encon­ trata-se das artes têxteis, da fabricação de
tra igualmente em outro mestre de Chartres, armas, da navegação, da agricultura, da
Guilherme de Conches. caça, do teatro, das técnicas de conserva­
ção dos alimentos. Estamos diante de dis­
ciplinas de certo modo novas, que refletem
as atividades da nova economia burguesa e
4 CDIDidascalicon que são teorizadas por Hugo, que as colo­
d e -Hugo d e São Vítor ca no amplo quadro de um discurso filosó­
fico concreto.
Seu apreço por essas disciplinas não-
Fundada por Guilherme de Cham- liberais era motivado pela convicção de que
peaux, a escola da abadia de São Vítor, dos seu estudo poderia contribuir “para a ele­
cônegos agostinianos de Paris, foi um cen­ vação da atual condição humana” . Assim
tro de viva atividade cultural, entendida como como a ética ajuda a agir retamente e a físi­
prólogo necessário para uma autêntica vida ca fornece os instrumentos para um conhe­
mística. cimento mais eficaz do mundo, essas artes
A exemplo da escola de Chartres, ela vêm ao encontro de nossas necessidades
também acentua os aspectos filosóficos e cotidianas. [T]
científicos da cultura; mas, diferentemente
dela, a escola de São Vítor insiste na oração
e na contemplação de Deus, ao qual tudo é
funcional. Misticismo e cultura são progra- 5 A mística
maticamente fundidos numa unidade, como e Ricaeclo d e São Vítoe
não é difícil observar no representante mais
ilustre dessa escola, ou seja, Hugo de São
Vítor. Apesar da distinção clara entre ciências
Dentre os escritos de Hugo (nascido na profanas e ciência sagrada, e embora as pri­
Saxônia em 1096 e falecido em 1141), como meiras tenham sido cultivadas segundo mé­
o De sacramentis christianae fidei, o Epitome todos próprios a cada uma delas, todavia,
in philosophiam e o Commentum à Hierar­ elas permanecem subordinadas à teologia e,
quia celeste do Pseudo-Dionísio, o Didasca- portanto, à mística. Para tal fim é oportuno
licon (em sete livros) é a obra mais completa acenar à forma ascendente dos graus do real,
e sistemática, dispondo e ordenando inteli­ progressivamente domináveis com a razão e
gentemente o saber da época. com a fé. Há coisas essencialmente racionais,
Pela estrutura e o rigor metódico, essa cognoscíveis portanto apenas com a razão,
obra foi um modelo para as Suntmae que como as verdades da matemática, os princí­
serão escritas posteriormente. pios da lógica e da dialética. Há depois coi­
Certa importância tem a concepção de sas secundum rationem, isto é, verdades
Hugo sobre a exegese: conforme Hugo, as prováveis, como as históricas, para cuja com­
Escrituras não podem suportar qualquer in­ preensão a razão deve ser ajudada pela fé.
181
Capítulo décimo primeiro - C e n f f o s p ro m o to re s d e cu ltu ra d o s é c u lo d é c im o s e g u n d e

Finalmente, há coisas supra rationem, isto é, si mesmas a sua razão. Esta reside, porém,
superiores à razão e objeto específico e único no ser infinito, incriado e eterno que é Deus.
da fé. Do conjunto resulta um pleno acordo Portanto, para Ricardo, a ascensão mística
entre razão e fé, mas sobretudo a superiori­ parte da cogitatio e, através da meditatio,
dade desta como realização de todos os es­ chega à contemplatio.
forços humanos, constituída pela contempla­ Esta, que é preparada pelo exercício das
ção e pela posse de Deus. virtudes, conduz ao mergulho abissal em
Quem aprofundou a vida mística foi o Deus. À medida que ascende por meio dos
escocês Ricardo (morto em 1173) que suce­ graus da contemplação, a alma se dilata, se
deu a Hugo como mestre e prior da Escola eleva sobre si mesma e, no momento supre­
de São Vítor. mo, se aliena completamente de si mesma
Fundamentalmente neoplatônico e pro­ para transfigurar-se em Deus.
fundamente místico, Ricardo evidenciou a A Escola de São Vítor, portanto, culti­
ligação entre razão e fé. vou com grande empenho as ciências, a fi­
A fé nos diz que existe um só Deus; losofia e a teologia, compenetradas entre si
que Deus é eterno e incriado; que Deus é por um espírito contemplativo dos misté­
uno e trino. Pois bem, a razão procura jus­ rios divinos, ao qual tudo pode e deve con­
tamente as rationes necessariae da fé. As duzir, como ao momento mais alto e signifi­
coisas mudam e perecem, não encontram em cativo da vida intelectual e moral.

A Filosofia com a Dialética e a Geometria. Vavimento cm mosaico de 1105 (Ivrea, Seminário).


182 Quinta parte - y \ é E é c o l a s t i c a n o s s é c u l o s d é c i m o p n im e m o e d é c i m o s e g u n d o

II. T-^e-dlo .Lombardo


e 3^oão d e .S alisbury

• A fama de Pedro Lombardo está ligada sobretudo aos


livros das Sentenças que, embora não particularmente profun­
As Sentenças
dos no campo filosófico, recolhem com diligência e com equilí­
de Pedro
Lombardo brio crítico os maiores contributos das correntes de pensamen­
->§7 to anteriores, com a intenção de apresentar um compêndio da
doutrina cristã.

• João de Salisbury, discípulo de Abelardo, sustenta uma


João posição filosófica não dogmática de derivação acadêmico-
de Salisbury: ciceroniana, que o levou a preferir os termos de um conheci­
a humildade mento provável em vez da presunçosa segurança de quem pre­
da razão tende captar a verdade. A humildade da razão se coaduna bem
-> § 2 com a fé cristã, que considera que apenas Deus é verdadeira­
mente sábio.

O s Iiv^os das S & n t e n ç a s


^
de Ped^o L o m b a r d o

“ O século XII também foi o século em


que se chegou à sistematização da teologia,
entendendo por sistematização certa unida­
de na exposição das verdades de fé (...). Sen­
te-se a necessidade de reunir a doutrina ca­
tólica em uma exposição ordenada” (S.
Vanni Rovighi).
As verdades da fé estão contidas na Sa­
grada Escritura, mas nem sempre havia con­
cordância sobre vários trechos, inclusive im­
portantes, da Escritura. Desse modo, tomou
corpo a exigência de reunir e divulgar, junta­
mente com os trechos da Escritura que expres­
sam as verdades da fé, também as interpre­
tações que dessas verdades deram os Padres.
Foi assim que nasceram as Summae ou
Sententiae, que, devido à dificuldade de aces­
so aos manuscritos, passaram a funcionar co­
mo verdadeiras enciclopédias da doutrina
cristã. Durante toda a Idade Média, foram
instrumentos essenciais, tanto para o estu­
do como para o ensino.
Entre os vários livros de Sentenças, os
Libri quattuor sententiarum de Pedro Lom­
bardo tiveram importância central para toda Pedro Lombardo numa pintura de Taddeo Caddi
a Idade Média. (1290/1200-1266).
Capítulo décimo primeiro - C e n t r o s p r o m o t o r e s d e cul+iw**a d o s é c u l o d e .c \ n \ o s e g uKvdc
183

Pedro Lombardo nasceu perto de No- boca” . Depois de ter passado alguns anos
vara. Realizou seus estudos inicialmente em na corte pontifícia, João voltou para a In­
Bolonha e depois na Escola de São Vítor, glaterra, tornando-se secretário do arcebis­
em Paris. Aqui, a partir de 1140, ensinou po de Canterbury, Thomas Becket, a quem
na escola catedral. Tornou-se bispo de Paris dedicou o Metalogicon e o Policraticus. A
em 1159, morreu em 1160. luta entre Thomas Becket e Henrique II teve
Autor de um Comentário às cartas de como epílogo o “ assassínio na catedral” , do
são Paulo e de outro Comentário aos sal­ arcebispo. E João voltou à França, onde se
mos, Pedro Lombardo escreveu os seus Libri tornou bispo de Chartres em 1176 e mor­
quattuor sententiarum — que seriam comen­ reu em 1180.
tados por todos os grandes escolásticos — João apreciava a cultura humanista e
no período de tempo que vai de 1150 a a lógica. Não era cético. E, no entanto, en­
1152. Trata-se de uma obra que se apresen­ tregava-se ao critério do conhecimento pro­
ta como compêndio da doutrina cristã, ex­ vável de que falava Cícero. Era esse critério
traída da Escritura e da autoridade dos Pa­ que lhe permitia fugir da verbosidade, por
dres, e também estão presentes a Escola de um lado, e do dogmatismo, por outro. “Pre­
são Vítor e Abelardo. firo duvidar sobre as coisas em particular,
A obra de Pedro Lombardo não é, cer­ junto com os acadêmicos, do que definir
tamente, obra original; é muito mais uma temerariamente, mediante danosa simula­
obra de compilação na qual “ desembocam to­ ção, o que ainda permanece desconhecido e
das as correntes anteriores” . Entretanto, o oculto” , escrevia João.
comentário de Pedro se impõe por seu gran­ Em suma, ele se sentia próximo da
de equilíbrio. Com efeito, ele reconhece os modéstia dos acadêmicos, uma atitude que
direitos da razão, mas somente até um pon­ também estaria em consonância com os es­
to em que submete a razão à fé. E esse seu tudiosos cristãos, se pensarmos que somen­
equilíbrio foi certamente um dos motivos te Deus conhece completamente a verdadeira
do sucesso de suas Sentenças. tS fg fT I realidade do universo.
Claro, há verdades que o homem pode
alcançar, por meio dos sentidos, da razão e
da fé; mas também é preciso admitir com
muita franqueza que existem problemas
os limi+es da r a z ã o diante dos quais a razão faria muito bem
e a aw+oeidade da lei
em suspender seus juízos e se deter. Eis, por
exemplo, alguns problemas que obrigam a
razão a admitir seus próprios limites: a ques­
Uma personagem característica do fim tão da origem da alma; os problemas da
do século XII foi João de Salisbury. Nasci­ providência, do acaso e do livre-arbítrio; a
do na Inglaterra, precisamente em Salisbury, questão da infinidade dos números e da
por volta de 1110, João estudou na França, divisibilidade infinita das grandezas; o pro­
onde freqüentou a escola de Chartres, ten­ blema dos universais etc. João não pretende
do sido aluno de Abelardo, como recorda o que não se discuta sobre essas questões, mas
próprio João: “A seus pés recebi os primei­ exige que não se tenha como soluções defi­
ros rudimentos da arte lógica e absorvi com nitivas e absolutas as que que são apenas
apaixonada avidez tudo o que vinha de sua tentativas.
184
Quinta parte - A Ê s c o l á s - H c a n o s s é c u l o s d é c i m o p»*ime.ii*o e d é c i m o s e 03 uu d c

soas desse tipo, que, privadas ainda dos rudi­


H ugo de S ão V ít o r mentos da cultura, julgavam apenas coisa dig­
na deles ocupar-se de altíssimos problemas;
acreditavam poder tornar-se grandes, apenas
lendo os livros ou ouvindo as palavras de auto­
res célebres e sábios.
"Nós — diziam — os vimos, ouvimos suas
^ 1 O valor dos clássicos palestras, freqüentemente eles costumavam
conversar conosco, fomos conhecidos por ho­
mens excelentes e famosos!". Cu, porém, vos
Os clássicos do pensamento helênico digo: "Quisesse o céu que ninguém no mundo
são instrumentos indispensáveis paro quem me conhecesse, mas que eu pudesse conhecer
quer alcançar a sabedoria. o que é humanamente cognoscível".
R culturo da Rscolo de São Vítor pode Vós vos vangloriais de ter visto, mas não
s e r e xp ressa p ela célebre metáfora dos dizeis que entendestes Platão: neste ponto creio
"anões sentados sobre os ombros dos gi­ que não seja para vós ocasião de prestígio vir
gantes" (cunhada por Bernardo d e Chartres): ouvir minhas aulas. €u não sou Platão, nem tive
Plotão é um gigante da cultura, mas um anão a sorte de encontrá-lo. Bebestes na fonte da
sentado sobre seus ombros p ode ver mais. filosofia, mas seria de grande bem se ainda
tivésseis sede! Até um rei, que tenha bebido
em cálices de ouro, bebe também de um copo
de barro, se tiver sede. Por que deverieis reti­
Um sábio, interrogado sobre os melhores rar-vos? Ouvistes Platão, escutai agora também
disposições poro aprender, respondeu: espíri­ Crisipo. Tornou-se proverbial o dito: "Talvez aqui­
to humilde, empenho no pesquiso, vido tran- lo que não saibas, Ofélio o saiba".
qüilo, investigação silenciosa, pobrezo, terra e s­ Não há nenhuma pessoa a quem tenha
trangeiro: tais circunstâncias tornom mois rápido sido dado saber tudo, também não há nenhu­
o superação dos dificuldades que se encontram ma que não tenho recebido da natureza algum
durante os estudos. dom especial: os estudantes, portanto, devem
Ge conhecia, penso, oquele dito: O bom ouvir de bom grado a todos, devem se esforçar
comportamento moral enriquece a cultura, e por para ler tudo e não devem desprezar nenhum
tal motivo acrescentou advertências sobre o escrito, nenhum autor, nenhum ensinamento:
modo de viver segundo as normas que se refe­ sem preconceitos devem procurar aprender de
rem ao estudo, para que o aluno pudesse che­ qualquer pessoa aquilo que não sabem; não
gar a conhecer não só o método de seu traba­ devem pensar em tudo o que já conhecem, mas
lho, mas também o estilo de sua vida. em tudo o que ainda ignoram.
Não merece aplauso a ciência de uma pes­ Neste sentido se diz que Platão, um tem­
soa desonesta: por isso é de máxima impor­ po, preferiu aprender com humildade, em vez
tância que aquele que se dedico à pesquisa de ensinar com presunção. Por que deverias te
do saber não deixe de lado as regras de uma envergonhar de aprender, e não tens pudor de
vida correta. ser ignorante? Isso é muito mais desonroso. Por
A humildade é a condição preliminar de que aspiras o coisas tão grandes, quando és
um comportamento disciplinado; desta virtude tão pequeno? Considera realmente até onde
existem muitos testemunhos: os seguintes se podem chegar tuas forças.
referem especialmente aos estudantes. Antes Procede de modo melhor aquele que ca­
de tudo eles não devem desvalorizar nenhuma minha com passo regular. Alguns quiseram dar
ciência e nenhum livro, em segundo lugar; não um grande salto para frente e depois caíram
devem envergonhar-se de aceitar um ensina­ em um despenhadeiro. Portanto, não tenhas
mento de qualquer pessoa e, finalmente, se muita pressa: somente assim alcançarás primei­
conseguirem adquirir cultura, não deverão ja ­ ro a sabedoria.
mais desprezar ninguém. . Aprende de bom grado de todos aquilo
Muitos se enganam, pois querem parecer que não sabes, porque a humildade pode le­
sábios antes do tempo — abandonam-se a s­ var-te o participar da posse daquele bem e s­
sim à vaidade do orgulho, começam a fingir ser pecial que a natureza reservou a cada ser hu­
aquilo que não são e o envergonhar-se daqui­ mano particular. Será mais sábio de todos
lo que são: tanto mois se afastam da sabedo­ aquele que tiver querido aprender olgo de to­
ria, quanto mais anseiam por ser considerados dos: quem recebe algo de todos, acabo por se
sábios e não por sê-lo. Conhecí diversas pes­ tornar mais rico do que todos.
185
Cã p l t u l o d é c i m o p v im e Í T O - Centros promotores de cultura do século décimo segundo

Nõo subestimes portanto nenhuma formo O estudante de valor deve ser humilde e
de saber, porque toda ciência tem volor. Caso dócil, absolutamente alheio às ocupações mun­
tenhas tempo, não te eximos de ler os livros danas e aos engodos das paixões, diligente e
que se te apresentam: mesmo que deles não zeloso, disposto a aprender de bom grado algo
tires particular utilidade, todavia deles não te­ de todos; jamais deve ser presunçoso da pró­
rás também nenhum dano, porque, a meu pa­ pria cultura, deve fugir como de comida enve­
recer, não existe um escrito que não proponha nenada dos escritos que contêm doutrinas fal­
algo de interessante, quando examinado no sas, deve tratar a fundo uma questão antes de
tempo e no lugar devidos: pode conter alguma formular seu julgamento; deve preocupar-se de
notícia especial, que o leitor precavido poderá ser, não de parecer culto. Deverá preferir as
apreciar com maior prazer, quanto mais singu­ palavras dos sábios e tê-las sempre presentes
lar e preciosa for a informação. na mente, como modelo a ser imitado: se por
Não é um bem, todavia, aquilo que im­ vezes não conseguir perceber uma passagem
pede o melhor: se não te é possível ler todos obscura, talvez pela profundidade dos concei­
os livros, lê aqueles que são mais úteis para tos, não prorromperá em invectivas, quase acre­
ti. Mesmo que pudesses ler tudo, não deve- ditando que não há nada de válido, a não ser
rias jam ais colocar em todas a s leituras o aquilo que ele próprio está em grau de com­
mesmo empenho: há alguns livros que é pre­ preender.
ciso ler, a fim de que não nos sejam total­ Esta é a humildade que caracteriza os e s­
mente desconhecidos, enquanto de outros tudantes disciplinados.
devemos formar-nos ao menos um juízo, porque Hugo de São Vítor,
freqüentemente arriscamo-nos a supervalorizar Didascolicon.
justamente aquilo que ignoramos, e julgamos
melhor quando temos algum conhecimento dos
assuntos.
Rgora podes perceber por que a humil­
dade te é indispensável: não deixes de lado
nenhuma ciência, mas esforça-te para apren­ P ed ro L om bardo
der de bom grado algo de todos; depois, quan­
do tiveres alcançado certo grau de instrução,
não desprezarás ninguém; convém que adotes
este comportamento.
Nestes últimos tempos, justamente por
não ter seguido estes princípios, algumas pes­ Sentenças sobre filosofia
soas se inflaram de orgulho: exaltavam com e sobre teologia
excessiva complacência sua ciência e, crendo com
absoluta certeza serem grandes, pensavam que
os outros (também todos aqueles que jamais Pedro Lombordo, em seu compêndio de
haviam conhecido) não fossem comparáveis a sentenças tirados da tradição patrística, su s­
eles, nem teriam podido jamais se tornar iguais tento o utilidade da Filosofia apenas quan­
a eles. Desta atitude derivou também o fato do submetida à teologia: é esta atitude que
desconcertante que certos tagarelas presunço­ s e p ode exprimir com o célebre dito philo-
sos tacharam de ingênuos os antigos profes­ sophia ancilla theologiae.
sores: pareciam convencidos de que a sab e­
doria tivesse nascido com eles e que morreria
com eles. Rndavam dizendo que a linguagem Rgostinho ensina: primeiro, que é neces­
dos textos divinos é de tal forma simples, que sário demonstrar segundo a autoridade das S a ­
não precisa da explicação de nenhum profes­ gradas Escrituras que a fé seja assim; segun­
sor para ser compreendida: pode bastar a cada do, que contra os tagarelas raciocinadores,
estudante a força de sua própria habilidade mais soberbos do que capazes, é preciso ser­
para explicar também as verdades mais pro­ vir-se de razões católicas e de comparações
fundas. Torciam o nariz e retorciam a boca, alu­ congruentes para a defesa e a afirmação da fé
dindo aos docentes de teologia; não percebi­ (IS e n t.. 2, 3).
am que ofendiam a Deus, enquanto andavam Os doutos poderosos, que julgam sobre
dizendo elegantemente que suas palavras são os costumes, como Platão, Rristóteles, Pitógo-
"simples", mas insinuando com malícia que são ras, são anulados em comparação com Cristo,
"insípidas". Não vos aconselho de modo algum e nada sabem; jazem mortos; sua sabedoria é
a imitar tais indivíduos! estultícia (Psolmum 140,7).
186 Quinta parte - y\ ^ s c o l á s t i c a n o s s é c u lo s d é c i m o p r i m e i r o e d é c i m o s e g u n d o

De foto, tois cirgúcicis 0 coisas semelhantes não se pode nem se pôde ter por meio da con­
têm lugar nas criaturas, mas o mistério da fé está templação das criaturas um suficiente conheci­
livre de argumentos filosóficos (III Sent., dist. 22). mento da Trindade sem a revelação da doutri­
Acrescentai a caridade à ciência e a ciên­ na ou da inspiração interior. Daí que aqueles
cia será útil. Sozinha, com efeito, a ciência é inú­ antigos filósofos quase na sombra e de longe
til, com o caridade é útil; sozinha, porém, infla viram a verdade, faltando-lhes o intuito da Trin­
de soberba, como para os demônios, que com dade (/ Sent., 3, 6).
termo grego são denominados pela ciência; ne­ Por isso dizemos que esta distinção da
les está a ciência sem a caridade (Epist. I od suma Trindade, que a fé católica proclama, os
Corinthios, 8). antigos não a tiveram de nenhum modo e não
Por meio do céu e da terra e das outras a puderam ter sem a revelação da doutrina ou
criaturas, que eles compreenderam ser imen­ da inspiração interior. A revelação ocorre, com
sas e perpétuos, conheceram o próprio Criador efeito, de três modos: por meio das obras, por
incomparável, imenso, eterno (Epist. o d Roma­ meio da doutrina, por meio da inspiração. Deus
nos, I, 20, 23). lhes revelou a verdade por meio das obras, e
Não pode ser crido aquilo que pode ser não por meio da doutrina ou da inspiração. Cies,
percebido [...]. O que é, com efeito, a fé senão portanto, viram a verdade de longe, mas não
crer aquilo que não vês? (III Sent., 22, 7). se aproximaram dela por meio da humildade
C necessário que, conhecendo o Criador (Epist. od Romanos, I, 20-23).
mediante seus efeitos, conheçamos a Trinda­
Pedro lombardo,
de, cujo vestígio aparece nas criaturas (Epist.
em Grande Antologia Fiiosofíco,
o d Romanos, XI, 33-36). vol. V,
Foi demonstrado que nas criaturas se en­ organizado por G. Di Napoli,
contra certa imagem da Trindade; com efeito, Marzorati.
A ESCOLÁSTICA
NO SÉCULO
DÉCIMO TERCEIRO
■ A s grandes sistem atizações da relação
entre razão e fé

“[...] como se alguém cai em um precipício e a í


permanece se outro alguém não o ajuda a levan­
tar-se, também nossa alma não teria podido levan­
tar-se das coisas sensíveis até a contemplação de
si mesma e da verdade eterna nela refletida, se a
própria verdade, assumindo a forma humana em
Cristo, não se tivesse tornado escada de repara­
ção pela queda da primeira escada de Adão. Por
isso, ninguém, por mais que possa ser iluminado
pelos dons da natureza e da ciência adquirida, pode
reentrar em si mesmo para a í gozar Deus, a não
ser pela mediação de Cristo, que disse: E u so u a
porta; quem p a s s a r por mim s e sa lv a rá , entrará e
e n co n trará p a sta g e n s e te rn a s .”

Boaventura
Capítulo décimo segundo

A filosofia árabe e a hebraica,


a penetração de Aristóteles no Ocidente
e a mediação entre aristotelismo e cristianismo 189

Capítulo décimo terceiro

A grande síntese de Tom ás de Aquino 211

Capítulo décimo quarto

O movimento franciscano e Boaventura de Bagnoregio 253

Capítulo décimo quinto

Averroísmo latino, neo-agostinismo e filosofia experimental


no século décimo terceiro 269

Capítulo décimo sexto

Jo ã o Duns Escoto 277


(S a p ífu lo d é c im o s e g u n d o

Af i \ osofia ã m b e e a k a b m i c a ,
a pervefração d e yAris+ófeles rvo Ociderv+e
e a m ediação
eKvfre aHstofelismo e cristianismo

I. A si+uação política e cultural


no s é c u l o XIII

• O séc. XIII assiste à instituição das ordens mendicantes (Franciscanos e


Dominicanos), das universidades (sobretudo Bolonha e Paris) e, em filosofia, à
difusão do pensamento aristotélico.
Este último é particularmente significativo porque propõe a difusão
pela primeira vez na Idade Média uma explicação racional do do aristotelismo
mundo e uma visão do homem totalmente independente das -> § 2
verdades cristãs e da revelação.

1 Situação político-social tatis). Do ponto de vista religioso, o Oci­


dente professa a fé católica, que penetra em
e instituições eclesiásticas todas as classes sociais. O primado do cato­
licismo explica o lugar central ocupado pelo
O séc. XIII representa o período áureo papado, que obriga todos a reconhecerem a
da teologia e da filosofia. Esse fato é decor­ função mediadora e de guia da Igreja. E é o
rente de muitos fatores: a criação das uni­ período da crise do mundo bizantino, crise
versidades, a instituição das ordens mendi­ que tem um de seus momentos centrais na
cantes (franciscanos e dominicanos) e o tomada de Constantinopla pelos cruzados
contato do ambiente ocidental com obras (1204), a partir da qual se realiza um inter­
filosóficas até então desconhecidas. As univer­ câmbio cultural mais intenso.
sidades tornam-se centros de intenso ensino b) Do ponto de vista das instituições
e pesquisa; as ordens mendicantes passam a eclesiásticas, é o período das duas ordens
fornecer número relevante e qualificado de religiosas mais prestigiosas, a dos domi­
mestres; a nova literatura centra-se predo­ nicanos e a dos franciscanos. Diferentemente
minantemente em torno dos escritos metafí­ das ordens monásticas aparecidas nos sécu­
sicos e físicos de Aristóteles, que, conhecidos los anteriores, cujos adeptos viviam nos de­
por intermédio da mediação dos árabes, são sertos ou no campo e que eram ligadas à
agora redescobertos em sua redação original. economia feudal, os franciscanos e os do­
a ) Do ponto de vista político-social, minicanos escolheram as cidades como cen­
esse período é marcado pelo amadurecimen­ tro de sua atividade, pois elas se haviam tor­
to das comunas e pelo forte desenvolvimen­ nado locais de intensa vida econômica,
to das camadas burguesas. E o período da cultural e religiosa, freqüentemente con­
tentativa falida de restauração imperial por denadas pelos ascetas, que, com entonação
Frederico II, em virtude da forte tendência apocalíptica, conclamavam as pessoas a des­
autonomista dos países. E o período da prezar o mundo e viver vida austera. Basta
teocracia papal, que, com Inocêncio III, pre­ recordar os “ flagelantes” , os “ humilhados”
tende a plenitude do poder (plenitudo potes- e vários outros movimentos afins, logo con­
190 Sexta patte - é^scolés+ica n o s é c u lo d é c im o ter ce ir o

denados pela Igreja oficial. Empenhadas na b) Do ponto de vista mais propriamen­


pregação, essas novas ordens religiosas logo te cultural, o acontecimento filosófico de
perceberam a importância da universidade, maior relevo no século XIII é constituído pelo
instrumento idôneo para o aprofundamento conhecimento e a lenta difusão do pensamen­
doutrinário e para obra eficaz de evangeli- to de Aristóteles, tanto no que diz respeito à
zação. Com efeito, o centro intelectual da física como à metafísica. A exemplo dos es­
cidade era a universidade, onde a emanci­ critos lógicos, que há tempo eram conheci­
pação intelectual andava de braço dado com dos e utilizados, os escritos de cosmologia e
a emancipação social. As cátedras, que as metafísica tornam-se pela primeira vez obje­
duas ordens religiosas logo conquistaram, to de estudo e debate. A novidade dessas
tornaram-se os centros mais abalizados, pela obras consiste no fato de que oferecem “ex­
seriedade do ensino e pela profundidade plicação racional” do mundo e visão filosó­
doutrinária. Pode-se dizer que o século XIII é fica do homem completamente independen­
o século de Alberto Magno e Tomás de Aqui- tes das verdades cristãs. Até então, por parte
no (dominicanos), de Alexandre de Hales, dos pensadores mais destacados, de Escoto
Boaventura de Bagnoregio e de João Duns Eriúgena a Abelardo, de Anselmo aos repre­
Escoto (franciscanos). sentantes das escolas de Chartres e São Vítor,
embora elaboradas com instrumentos racio­
nais autônomos, as concepções da realidade
eram substancialmente concepções teológi­
2 situação cultural cas, derivadas da Revelação, repensadas e
esclarecidas pela razão. A filosofia era cons­
tituída pela lógica e por intuições platônicas
a) Do ponto de vista das instituiçõese neoplatônicas, facilmente utilizáveis e
escolásticas, estamos no período do nasci­ harmonizáveis com o dado revelado.
mento e da organização das universidades. Com a descoberta das obras de física e
A primeira universidade foi a de Bolonha, metafísica de Aristóteles, não somente pas­
interessada mais no direito do que na teolo­ sou-se a ter instrumentos formais autôno­
gia, e independente da autoridade eclesiás­ mos, mas também conteúdos próprios e
tica. Já o primeiro e mais importante centro perspectivas novas, elementos que levam a
universitário de filosofia e teologia foi o de filosofia a pretender autonomia própria e
Paris. Graças sobretudo a Inocêncio III, distinção clara em relação à teologia. Em­
transformou-se no verdadeiro cérebro da bora a fé tenha necessidade da razão, esta,
“ república cristã” , uma forja na qual foi ela­ porém, possui âmbito independente, com
borada uma cultura teológica mais sólida. conteúdos próprios.
Antecedida pelas escolas de Chartres e de Podemos dizer que o século XIII foi o
São Vítor, essa universidade nasceu em século da aceitação ou da rejeição de Aris­
1200, ano em que Filipe Augusto subtraiu tóteles, do repensamento de sua doutrina no
os mestres e estudantes à jurisdição ordiná­ contexto das verdades cristãs ou de sua “cris-
ria e os submeteu à jurisdição do bispo de tianização” . Em suma, trata-se da questão
Paris, que exercia sua autoridade por meio da relação sistemática entre fé e razão, entre
do chanceler da universidade. Assim, o ano filosofia e teologia. As modalidades de con­
de 1200 marcou o ato de nascimento dessa cordância ou as relações recíprocas entre uma
universidade, ao passo que o ano de 1215 e outra assumirão tonalidades diversas, mas
marcou a sua primeira organização em ter­ o certo é que o objetivo desse intenso debate,
mos de disciplinas de ensino (faculdade das que se prolongará por todo o século, será o
artes e faculdade de teologia), de duração da submissão definitiva da razão à fé, da fi­
dos cursos e de natureza dos títulos, graças losofia à teologia, da ciência à sabedoria.
aos estatutos redigidos pelo legado pon­ Todavia, para compreender isso de
tifício e antigo mestre de Paris, Roberto de modo adequado é preciso traçar um qua­
Courçon. Essa universidade serviu de mo­ dro geral que ilustre o modo em que o pen­
delo para as de Oxford e Cambridge e, mais samento de Aristóteles permaneceu no
tarde, para as numerosas universidades que Oriente e como se difundiu e foi recebido
surgiriam por toda parte na Europa. no Ocidente.
Capítulo décimo segundo o s o t i a ai^abe e cx K e b i * a ic a e. o a r i s t o t e l i s m o r\o O c i d e n t e
- y \ filosofi
191

II. o aristotelismo d e y \ v i c e n a

• O aristotelismo chegou ao Ocidente por meio dos ára- A djstjn .


bes, particularmente de Avicena e Averróis. e n tre ^ 0
Avicena (980-1037) distingue claramente entre ente (con- ente e essência
ereto) e essência (abstrata): os entes existem de fato (por exem- §2
pio, os homens), enquanto a essência (por exemplo, a humani­
dade) prescinde da existência, porque representa o "o que é" de um ente, que
poderia existir ou não existir.
• O ente se distingue:
- em possível (o que existe, mas poderia também não exis- Ente possível
tir, porque não tem em si sua própria razão de ser); e ente necessário
- e em necessário (que não pode não ser porque tem em si -^ § 2
sua própria razão de ser).
Possível é o mundo, necessário é apenas Deus. Todavia, a possibilidade do
mundo não é absoluta, dado que é acompanhada por certa necessidade. O mun­
do deriva de Deus, de modo que não possui em si a existência, e portanto é possí­
vel. Todavia, Deus não pode deixar de criar o mundo, enquanto produz necessaria­
mente a primeira Inteligência (motriz do primeiro céu) e depois pouco a pouco as
outras até a décima, que irradia as formas sobre nosso mundo. O mundo, portan­
to, é produzido necessariamente por Deus e em tal sentido é também necessário.
• A décima inteligência é responsável pela atualização do A íeona
intelecto possível (humano e individual), por meio da atuali- c/os intelectos
zação dos princípios primeiros (com isso temos o intelecto ha- §3
bitual) e dos conceitos universais (e temos assim o intelecto
em ato) e a elevação de nosso intelecto individual ao supremo intelecto agente
(intelecto santo).

^ fig u r a e a o b ra

4f V lwu Uíí
tf irwitra (tmt-
A primeira forma sistemática pela qual quAuft.tgmfcitn*. 'XCoei
o aristotelismo se apresentou aos pensado­ Cd.tOi
mttmrt cr1|ímnan&. *Wt«n
res medievais foi mediada pelo filósofo persa iMjttft «rhu «yfi»
Avicena, de cultura enciclopédica, que cul­ ■ jufcft.fmftigita «■ Í tttfl*
íWtfl
tivou preferencialmente a medicina e a filo­ c ti*
sofia. c rw a c q v a ^ J. SM*8
.WM»1
Nascido em 980 nas proximidades de \ma<
Bukara, na Pérsia, e morto nas proximidades tów
de Hamadan em 1037, ele escreveu muitas »0*írt
obras, que foram traduzidas e divulgadas
na segunda metade do século XII.
O primeiro grupo de traduções, extraí­
das de sua obra maior O livro da cura, em
18 volumes (abrangendo a Lógica, a Retó-

,Avicena ll>S0-111 >_j.


tal como c representado em uni herbário
ilo see. XIV (manuscrito palatiuo conservado
na liihliotcca Nacional de Horencal.
192 Sexta parte - y\ Ê-scolós+ica no s é o n lo d é c im o fe^cemo

O see possível
e o see necessário

Da imensa produção do filósofo persa


(que perfaz mais de 250 obras), que vai da
medicina à lógica, da física à música e às
doutrinas esotéricas da religião, abordare­
mos somente as teses que foram acolhidas e
repensadas no século XIII desde Tomás de
Aquino até João Duns Escoto, passando a
integrar o movimento que ficou conhecido
como Avicenismo latino.
Em relação à sua produção extrafilo-
sófica é preciso lembrar o Cânon de medi­
cina, destinado a tornar-se — graças à tra­
dução latina de Gherardo de Cremona —
um ponto de referência da medicina medie­
val. Trata-se de uma obra em cinco livros
que reúne de modo ordenado e claro, se­
gundo um método compilatório — e, por­
tanto, pouco original —, não só os funda­
mentos da medicina, mas também os da
farmacologia.
No que se refere ao pensamento filosó­
fico de Avicena, devemos destacar a distin­
ção entre ente e essência, o primeiro concre­
Frontispício de uma edição to e a segunda abstrata. Os homens, por
do Quinhentos das obras de Avicena exemplo, constituem o ente, ao passo que a
traduzidas para o latim. humanidade constitui a essência. Os primei­
ros existem de fato, mas a segunda prescinde
da existência, pois representa a definição ou
rica, a Poética, a Física — em oito seções, o quid est, que em si mesma não denota a
das quais a sexta é o De anima — e a Me­ existência nem a não-existência, a necessida­
tafísica), completou-se por volta de 1180 em de ou a contingência. Equinitas est tantum
Toledo, graças a Domingos Gundissalvi. equinitas, ou seja, a “cavalidade” é tal e isso
A obra de Avicena constitui a primeira basta, escrevia Avicena. Portanto, uma coisa
grande síntese especulativa que tem raízes é a essência e outra a existência. E a primei­
na cultura clássica e que constituiu um pon­ ra, em si mesma, não denota a segunda.
to de referência essencial para a cultura oci­ Ademais, no que se refere ao ente real,
dental e a orientou de modo decisivo. é preciso distinguir entre o ser necessário e
A filosofia de Avicena é profundamente o ser possível. O que existe de fato, mas que,
permeada de Neoplatonismo e de elementos em si mesmo, poderia também não existir é
extraídos da religião islâmica que comple­ chamado por Avicena ente possível: trata-
taram suas perspectivas aristotélicas (sobre­ se do ser que não tem em si mesmo a razão
tudo no que se refere à teologia e à cosmo- de sua própria existência, encontrando-a em
logia), o que permitiu entusiástica acolhida uma causa que o fez ser. Diferente do ser
por muitos pensadores cristãos. possível é o ser que existe de fato e de direi­
O Neoplatonismo era um velho co­ to ou ser necessário, isto é, o ser que não
nhecido dos latinos e já assimilado pelo pode deixar de ser, porque possui em si mes­
pensamento cristão desde a época patrística; mo a razão do seu existir. Essa distinção é
a religião islâmica apresentava não poucas fundamental, porque separa o mundo de
verdades em comum com o cristianismo. E, Deus: um é apenas possível, pois sua exis­
desse modo, muitas teses aristotélicas, fil­ tência atual é contingente, não postulada por
tradas através de elementos neoplatônicos sua essência, ao passo que o outro é neces­
e islâmicos, não encontraram dificuldades sário; o primeiro é dependente, o segundo é
para se impor no ambiente medieval. independente.
Capítulo décimo segundo - A f i lo s o fi a á e a hat> m i c a e o a n s + o t e l i s m o n o O c i d e ^ + e
193

matéria corruptível, ao contrário da maté­


ria incorruptível dos céus, é princípio de mu­
■ ■ Ente e essência. Com estes termos tação e multiplicidade e, portanto, de indivi­
í se distinguem a realidade concreta e , dualidade. Como se vê claramente, estamos
' existente (por exemplo, o homem in- diante da concepção hilemórfica de Aristó­
É dividual) e o universal abstrato (por
teles, mas repensada conforme as categorias
? exemplo, a idéia de humanidade). O
í ente existe de fato (de modo neces- ? neoplatônicas. Com efeito, as formas se ir­
| sário caso se trate de Deus, de modo radiam da décima Inteligência, que é “doa-
{ contingente caso se trate das criatu- dora de formas” , no sentido de que é ela
| ras), enquanto a essência exprime o que irradia as formas na matéria-prima do
I "o que é" de cada coisa singular, isto mundo sublunar. E entre essas formas estão
; é, o conjunto de suas determinações. também as almas incorruptíveis e imortais
fS ..■ "•'""'"'',,,--7 -\ ' ' ^ infundidas nos corpos.
No plano gnosiológico a décima Inte­
ligência opera a passagem da potência ao
ato do intelecto possível ou passivo, ou seja,
do intelecto humano e individual. E isso por
3 ;A " l ó g i c a da geração* meio da irradiação tanto dos princípios pri­
c a i n f l u ê n c i a de j \ v i c e . n a meiros (com o que temos o intelecto habi­
tual) como dos conceitos universais que
apreendemos por meio da abstração (com
Mas qual é a relação entre o mundo e o que temos o intelecto em ato), e mediante
Deus? Trata-se de relação de necessidade ou a elevação do nosso intelecto individual ao
de liberdade, de emanação ou de criação? supremo intelecto agente (empresa difícil e
Avicena responde a essas questões, reservada a poucos, apenas dos quais se po­
fundamentais para os pensadores medievais, de falar de intelecto santo). Em todas essas
fundindo Aristóteles e o neoplatonismo. Com formas de contato com o intelecto agente
efeito, em sua opinião, o mundo é ao mes­ único, permanecem intactas a individuali­
mo tempo contingente e necessário: é con­ dade e a personalidade singular do homem.
tingente enquanto a existência atual não lhe Essas são algumas teses do filósofo per­
cabe em virtude de sua essência, sendo en­ sa, que terão grande influência sobre Tomás
tão apenas possível; no entanto, é necessá­ de Aquino (a distinção real entre essência e
rio enquanto Deus, de quem recebe a exis­ existência, ou melhor, entre essência e ser),
tência, não pode deixar de agir segundo sua sobre Boaventura (a pluralidade das formas
natureza. Concebido aristotelicamente como no indivíduo: forma espiritual e formas sen­
pensamento do pensamento, Deus produz sitivas e vegetativas), sobre Duns Escoto (a
necessariamente a primeira Inteligência e doutrina das essências) e, sobre todos, a dis­
esta a segunda, dando início a um processo tinção entre esfera celeste e esfera terrena,
descendente necessário e não livre, de índo­ além de muitos outros elementos de gno-
le claramente neoplatônica. A partir da pri­ siologia e de astronomia. Porém, mais do
meira, cada Inteligência cria a imediatamen­ que as teses em particular, o que determi­
te inferior, até a décima, ao mesmo tempo nou a sorte do seu pensamento foi a tenta­
que cria os céus respectivos, dos quais são tiva de harmonizar a filosofia aristotélica
forças motrizes. com a religião islâmica e, portanto, para os
Diferentemente das outras, a décima cristãos, com algumas teses fundamentais do
Inteligência não gera nova realidade, mas cristianismo, coisa que, aprioristicamente,
atua diretamente sobre o mundo terreno, não parecia possível. Com efeito, era essa
posto sob o nono céu, o da lua, tanto no a medida de avaliação de qualquer propos­
plano ontológico como no plano gnosio- ta filosófica e também o objetivo de mui­
lógico. No primeiro plano, estruturando o tos repensamentos e retificações subse-
mundo terreno em matéria e forma, onde a qüentes. [T]
194 Sexta patte - j A í S s o o l à s t i c a n o s é c u l o cié.(z\yr\o f e ^ c e i^ o

m. o a n s+ofel is mo
d e y \ v e k*k*0ÍS

• Averróis (1126-1198) comentou Aristóteles com grande


A superioridade
da filosofia
liberdade, à luz dos dogmas do Islã. Remetendo-se freqüente-
aristotélica mente em sentido crítico a Avicena, Averróis sustenta que a dou­
->$2 trina de Aristóteles coincide com a suprema verdade, e que,
mesmo que teologia e filosofia convirjam para uma verdade
única, todavia, em caso de desacordo, a posição dos filósofos teria maior autorida­
de: a revelação, com efeito, produz símbolos imperfeitos que cabe à razão decifrar.

A eternidade • Averróis sustenta a eternidade do mundo, que deriva da


do mundo eternidade do Motor imóvel como causa final do próprio mun­
-^§2 do (e não causa eficiente, como queria Avicena).

• Ainda típica de Averróis é a tese da unicidade do intelec­


Unicidade to possível, o único a quem toca a imortalidade: o intelecto
do intelecto possível conhece os universais e, portanto, não pode ser indivi­
possível dual, mas será universal (uno para toda a humanidade). Disso
e mortalidade se deduz que o intelecto individual não é imortal.
do individual
3 • O intelecto agente (divino) leva ao ato os universais, que
estão em potência na fantasia ou imaginação do homem sin­
gular, a qual, sendo sensível, contém os universais apenas em potência; nesta sede
os universais são captados pelo intelecto potencial.
Em tal processo está implicada não só a existência do sa­
Do pensamento ber individual (a fantasia é individual), mas também a existên­
à união mística cia do saber universal de toda a humanidade, encerrado no
^§3 intelecto possível, como espécie de bagagem de conhecimen­
tos que se refere a todos os homens e que cresce em razão de
suas atuações sucessivas. Quando o intelecto possível estiver completamente atua­
lizado pelo intelecto divino, haverá a fusão íntima dos dois, correspondente à
união mística de que falam as religiões.

• Em conseqüência da admissão de um único intelecto pos­


As resistências
ao aristotelismo
sível, Averróis nega a imortalidade pessoal e a responsabilida­
averroísta de moral individual no juízo post mortem.
-» § 4-5 Essas posições, que são evidentemente difíceis de conciliar
com os dogmas da religião cristã, suscitaram não poucas resis­
tências ao aristotelismo, e também induziram a uma revisão dele de forma mais
aprofundada.

1 ;A figura e as obras aristotelismo de Averróis, que escreveu um


Tratado decisivo sobre a concordância en­
tre filosofia e religião, obra que permane­
No fim das contas, o aristotelismo de ceu desconhecida na Idade Média.
Avicena não provocou grande perplexidade Ele diz querer delimitar os âmbitos res­
nos filósofos cristãos, por causa de sua cons­ pectivos do saber e da fé corânica, mas a
tante tentativa de harmonizar as teses de confiança que tem na razão é total e ilimita­
Aristóteles com as verdades da religião is­ da. E a razão o leva a afirmar, com Aristó­
lâmica. Mas o mesmo não ocorreu com o teles, a eternidade do mundo, negando a
Capítulo décimo segundo - A f i lo s o fi a á r a b e e , h e b r a i c a e o aHs+o+elismo evoO c i d e n t e

disse nada que seja digno de nota. É algo


verdadeiramente digno de maravílhamento
que tudo isso seja encontrado em um só
homem” . E Dante fará eco a essa difundida
opinião ao dizer que Aristóteles é o “ mestre
daqueles que sabem” .
Os medievais só conheceram e discuti­
ram o Grande comentário, mas Averróis
escrevera outras obras, entre as quais, pre­
cisamente, o Tratado decisivo sobre a con­
cordância entre filosofia e religião, além de
A conjunção entre intelecto material e inte­
lecto separado, e também A eternidade do
mundo. Inicialmente protegido pelos sobe­
ranos e depois exilado por ter sido conside­
rado incrédulo, morreu em Marrocos em
1198.

2 T ^ n m a d io da filosofia
Miniatura de um códice do séc. XIV
que representa o filósofo Averróis (1 126-1198) e eternidade do mrmdo
(Cesena, Biblioteca Malatestiana).

Persuadido de que a verdadeira filoso­


fia é a de Aristóteles, Averróis procurou cap­
imortalidade da alma singular. Obviamen­ tar o seu pensamento autêntico por meio de
te, construída sobre essas bases, a filosofia comentário escrupuloso, apresentando as­
de Averróis logo se transformou em fonte sim a exposição de uma filosofia que fosse
de preocupação para a autoridade eclesiás­ não apenas independente da teologia e da
tica e de acesos debates para os mestres religião, mas também sede privilegiada da
parisienses. verdade. Escrevia Averróis: “ A doutrina de
Nascido em 1126, em Córdoba (no co­ Aristóteles coincide com a suprema verda­
ração daquela Espanha muçulmana que du­ de” . Esta é a razão pela qual Averróis con­
rou oito séculos e na qual a cultura árabe, sidera justo pensar que Aristóteles “ foi cria­
tanto filosófica como científica e literária, do e nos foi dado pela divina providência,
conheceu um de seus períodos mais cria­ para que pudéssemos conhecer tudo o que
tivos), Averróis foi jurista e médico, mas, é cognoscível” .
sobretudo, foi grande comentador de Aris­ Defendendo-se da acusação de ser in­
tóteles, e um grande metafísico. crédulo, destaca com vivacidade que as di­
Como comentador de Aristóteles, Aver­ vergências de opinião dos filósofos e teólo­
róis produziu três tipos de comentários: o gos devem ser creditadas mais a diferenças
Comentário médio ou paráfrases livres do de interpretação do que a uma efetiva di­
texto; epítomes ou simples compêndios, versidade de princípios essenciais, que fos­
sem nenhuma ligação estreita com o texto; sem negados por uns e defendidos por ou­
o Grande comentário, relativo à Física, à tros. E, nessas divergências, é preciso estar
Metafísica, ao De anima, ao De coelo e aos ao lado dos filósofos, pois estes, servindo-se
Analíticos primeiros, onde o texto de Aris­ da razão, nada mais fazem do que se ater
tóteles é reproduzido por inteiro e comen­ ao direito tutelado pela própria religião. Se
tado parágrafo por parágrafo. Essa obra foi é verdade que filosofia e religião ensinam a
elaborada em polêmica com as “ falsas” in­ verdade, então não pode haver desacordo
terpretações de Aristóteles, sobretudo a de substancial entre elas. Em caso de contrastes,
Avicena, em virtude do imenso apreço que é preciso interpretar o texto religioso no sen­
ele tinha pelo Estagirita. Escreve ele: “Ne­ tido exigido pela razão, porque a verdade é
nhum daqueles que o seguiram, até os nos­ uma só, a da filosofia. Não existe, portan­
sos dias, isto é, durante mil e quinhentos to, dupla verdade. Existe apenas a verdade
anos, conseguiu acrescentar àquilo que ele da razão; as verdades religiosas expostas no
196 Sexta parte - ; A CEscolás+ ica k\o s é c u l o d é c im o terce iro

Corão são símbolos imperfeitos, que devem dual? O intelecto possível, enquanto tal, co­
ser interpretados e propostos à mentalida­ nhece passando da potência ao ato. Para
de dos simples e ignorantes, da verdade úni­ tanto, necessita do intelecto ativo ou inte­
ca que a filosofia enucleia e sistematiza. ligência divina, que, sendo em ato, pode
Além dessa tese fundamental, em cla­ desenvolver tal ação. Escreve Averróis: “As­
ro contraste com o concordismo de Avicena, sim como a luz faz com que a cor em po­
Averróis destaca, com Aristóteles, que o tência passe a ser cor em ato, de modo que
motor supremo e os motores dos céus, sendo possa mover nossa vista, do mesmo modo
inteligências que refletem sobre si mesmas, o intelecto agente faz com que os conceitos
pensando-se, movem necessariamente não inteligíveis em potência passem a ser con­
como causas eficientes, mas sim como causas ceitos em ato, de modo que o intelecto ma­
finais, isto é, como aquele bem ou perfeição terial os receba” . O intelecto agente, po­
ao qual cada céu aspira com seu movimento. rém, não atua diretamente sobre o intelecto
Assim, a relação entre o motor supremo e possível, mas sim sobre a fantasia ou ima­
os motores intermediários não é relação de ginação, que, sendo sensível, contém os uni­
eficiência, como queria Avicena, mas sim de versais somente em forma potencial. E essa
finalidade. O movimento que assegura a imaginação sensível, sobre a qual atua o
unidade para todo o universo é o movimen­ intelecto divino, que, sendo individual, dá
to do primeiro motor, sendo, portanto, eter­ a sensação de que o conhecimento seja in­
no e de natureza final, não eficiente. dividual. Na realidade, ela é apenas um
A tese da eternidade do mundo e do continente potencial dos universais, que,
caráter necessário do movimento do primei­ porém, transformados em ato pela luz do
ro motor inscreve-se na própria concepção intelecto divino, só podem ser recebidos pelo
aristotélica de Deus como “ pensamento de intelecto possível que se torna atual e que,
pensamento” e, portanto, como atividade em si mesmo, é espiritual e, portanto, se­
necessária e eterna. parado, único, não misturado à matéria e,
desse modo, supra-individual.
Assim, além do intelecto divino, que
é único, também o intelecto possível é úni­
LArvicidade co para todos os homens, que a ele se li­
do intelecto kwmano gam provisoriamente por meio da fantasia
ou da imaginação, onde os universais es­
tão contidos em forma potencial. Desse
Além do primado da filosofia e da eter­ modo, o ato de entender é do homem indi­
nidade do mundo, a terceira tese de Averróis vidual, uma vez que está ligado à fantasia
discutida pelos medievais foi a relativa à ou imaginação sensível, mas ao mesmo
unicidade do intelecto possível, o único do tempo é supra-individual, visto que o uni­
qual é predicável a imortalidade, tanto que versal em ato não pode ser contido pelo
Averróis nega a imortalidade individual. indivíduo em particular, por sua natureza
Com efeito, o intelecto possível, pelo qual desproporcional ao caráter supra-indivi­
conhecemos e formulamos noções e princí­ dual do universal.
pios universais, não pode ser individual, isto
é, não pode ser forma do corpo, porque nes­
se caso não poderia estar disponível às for­
mas inteligíveis de caráter universal. Por isso,
falando do intelecto, Aristóteles diz que ele | ■ Intelecto "possível" e intelecto
é separado, simples, impassível e inalterá­ | "agente". Averróis reformula a teo-
vel. Se fosse individual, o intelecto seria in­ I ria aristotélica da inteligência divina e
dividualizado pela matéria — a qual é o prin­ | da inteligência humana de modo ori-
| ginal e paradoxal: a única inteligên-
cípio da individualização — e, então, seria
í cia ativa (agente) seria a de Deus; a
incapaz de alcançar o universal e, portanto, | inteligência humana é apenas poten-
o saber. O intelecto, portanto, é único para f ciai (possível), ou seja, tem necessida-
toda a humanidade e não misturado com a f de da inteligência divina para passar
matéria. | da potência ao ato, mas também ela é
Mas, então, como é que o homem in­ ? única para toda a humanidade.
dividual conhece? E em que sentido o co­
nhecimento pode ser considerado indivi­
Capítulo décimo segundo - A fi lo s o fi a á r a b e e h e b r a i c a e o an sto+elism o n o O c i d e n t e

No fundo, com essa tese, Averróis pre­ interpretação que se difundiu, em consonân­
tende salvaguardar o saber, que não perece cia com o despertar da vida econômica e
com o indivíduo porque é patrimônio de com a redescoberta da positividade terrena,
toda a humanidade. E o arquivo onde esses foi a interpretação de cunho hedonista. Se
resultados se conservam, em benefício de tudo o que é individual se dissolve com a mor­
toda a humanidade, é o chamado “ intelec­ te e se o homem não é, em última instância,
to possível” , superior à capacidade do indi­ responsável por sua atividade espiritual, que
víduo e, portanto, independente. E uma es­ é supra-individual, então a pregação sobre
pécie de mundo feito de Idéias, de criações a morte e suas conseqüências, relativas so­
humanas que transcendem o indivíduo e a bretudo à inutilidade do mundo, perde o seu
ele sobrevivem, tendo em vista outras con­ vigor, revelando-se pura ficção.
quistas, com as quais cresce a concretização Não é difícil perceber aí os germes pri­
do intelecto possível, até sua completa con­ mordiais e inequívocos da concepção mate­
cretização, com a qual se concluirá a histó­ rialista ou apenas naturalista da vida e do
ria da humanidade. homem, que a redescoberta de alguns clás­
Alcançada essa meta, realizar-se-á en­ sicos do pensamento antigo alimentavam.
tão a perfeita união do intelecto possível, Na matéria, tudo se transforma e se move
atualizado pelo saber, com o intelecto di­ eternamente, nascendo em outro lugar e em
vino, que está sempre em ato. A atualiza­ outro tempo, em ciclo perene, em relação
ção penosamente amadurecida do intelecto ao qual o indivíduo é apenas presença tran­
possível se fundirá então com a atualidade sitória.
permanente do intelecto divino. E esse o epí­
logo ou união mística de que falam as re­
ligiões.
5 _/\s primeieas condenações
do aeisfotelismo

4 éSorvseqüêiacias
da rmicidade do intelecfo Foram particularmente essas conse­
qüências que animaram o debate entre os
Escolásticos, decididos a combater suas pre­
Enquanto as teses relativas ao papel da missas, seja por meio de uma leitura mais
filosofia no âmbito do saber e à eternidade atenta de Aristóteles, seja redescobrindo o
do mundo seriam diversamente repensadas, sentido mais genuíno de algumas verdades
a tese que mais agitou os medievais foi a da da religião cristã. E esse o contexto no qual
unicidade do intelecto possível, porque se deve ser lida a interdição posta por Roberto
encontrava em claro contraste com a fé na de Courçon nos primeiros estatutos univer­
imortalidade pessoal, um dos dados de fun­ sitários de 1215: “Nos fundamentos da Lei­
do da religião cristã, e não apenas desta. Se tura devem estar os livros de Aristóteles so­
o intelecto possível não é parte da alma hu­ bre a dialética, tanto da antiga como da nova
mana, mas está apenas temporariamente li­ lógica, nos cursos institucionais, mas não
gado a ela, então a imortalidade não cabe nos extraordinários (...). Entretanto, não
ao homem em particular, mas sim a essa re­ devem ser lidos a Metafísica ou os livros
alidade supra-individual. Dante, que exalta naturales de Aristóteles ou sínteses deles (co­
Averróis como aquele que “ fez o grande co­ mentários de Averróis)” . Na mesma linha
mentário” , também o estigmatiza como per­ está a decisão de Gregório IX, que, em 1231
tencente às fileiras dos que “fazem a alma (por ocasião da greve dos estudantes, que
morta com o corpo” . durou dezoito meses e à qual não era estra­
Ora, essa doutrina se prestava a duas nho o problema do aristotelismo, defendi­
interpretações: uma de caráter ascético, ou­ do pela faculdade de artes e combatido pela
tra de caráter materialista e hedonista. E faculdade de teologia), confirmou a proibi­
verdade que a atividade vegetativo-sensiti- ção de 1215, mas só até que os escritos de
va é típica da alma, forma do corpo, mas Aristóteles não fossem corrigidos (“Quous-
esta no homem tende a elevar-se e unir-se à que examinati fuerint et ab omni suspicione
inteligência. purgati” ).
Todavia, se essa interpretação ascético- Nomeada por Gregório IX e compos­
mística era possível e talvez até fundada, a ta por homens que deram provas de abertu­
198 SeXtã parte - A ( í E s c o l á s t i c a n o s é c u l o d é c i m o t e r c e i po

ra para as novas correntes filosóficas (Gui­ rigidas no contexto de teses propriamente


lherme de Auxerre, Estêvão de Provins e Si- cristãs; outro, de maior adesão às indica­
mão de Authie), a comissão não concluiu o ções agostinianas, integradas por elementos
trabalho de revisão dos escritos aristotélicos de origem aristotélica. O primeiro foi segui­
por causa da complexidade dos problemas do por santo Tomás de Aquino, o segundo
e, talvez, também por causa da imperícia por são Boaventura de Bagnoregio, ambos
dos membros. Mas aquilo que não foi feito empenhados na obra de harmonização da
por autoridade realizar-se-ia espontânea e razão com a fé. Mas tanto um como o ou­
progressivamente por meio da reflexão crí­ tro foram precedidos por outras tentativas,
tica e dos acesos debates dos pensadores cris­ entre as quais merecem particular atenção
tãos. Os caminhos seguidos foram substan­ a de santo Alberto Magno, mestre de santo
cialmente dois: um de maior adesão às Tomás, e a de Alexandre de Hales, mestre
indicações de Aristóteles, repensadas e cor­ de são Boaventura.

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Da cdirio princeps de Pádua (1471) do comentário de Averróis à Física de Aristóteles (Ferrara, Bibliote­
ca Ariostea).
Capitulo décitTlO SCgUtldo * ; A -filosofia á r a b e e a k e b r a i c a e o a n s t o + e l i s m o n o O c i d e n t e
199

AVERRÓIS
A TEORIA DO INTELECTO

Intelecto

INTELECTO INTELECTO
POSSÍVEL AGENTE
- É único, separado, \ - E o intelecto divino
supra-individual - Põe em ato os conceitos
- Recebe na fantasia inteligíveis em potência
os conceitos inteligíveis atualizados
pelo intelecto agente
- É o saber coletivo da humanidade
que se incrementa
com a evolução da consciência
- Quando todo o intelecto possível
for atualizado, ele se identificará
(= umo mística) /
com o intelecto divino /
em ato x

FANTASIA \
- É individual e sensível x
- Acolhe os universais em potência,
apenas enquanto continente e,
sendo sensível,
não está em grau de compreendê-los X HOMEM
- Dá a impressão ,/ - Está unido,
\ x de que o conhecimento / por meio da fantasia, \
\ seja individual \ com o intelecto possível \
j - O ato do entender \
^ / é tanto do homem singular \
! (enquanto ligado à fantasia sensível individual), |
como supra-individual j
(o saber transcende o sapiente singular j
\ e tem caráter cumulativo j
\ para toda a humanidade), /
enquanto o universal em ato /
\ não pode ser captado pelo indivíduo
200 Sexta parte - A é ^ s c o lá s + ic a v\o s é c u lo d é c im o t e r c e i r o

IV. A fil O S O t■ lpOia k e b m i c a

• A filosofia hebraica no séc. XII tem um representante


Avicebron significativo em Avicebron (1021-1050/70), que sustentava uma
-> § i concepção radicalmente hilemórfica (todas as substâncias, até
as espirituais, são compostas de matéria e forma).
Junto dele temos Moisés Maimônides (1135-1204) que, como Avicena, afir­
ma que é possível demonstrar racionalmente a existência e a espiritualidade de
Deus, mas, diversamente de Avicena, nega que o mundo seja eterno (se o mundo
fosse eterno seria necessário, mas então Deus não seria livre ao criá-lo). De Averróis
ele toma a tese da unicidade do intelecto possível e, por conse-
Maimônides guinte, da não-imortalidade do homem individual: o homem,
-> § 2 conforme Maimônides, seria imortal apenas como parte do in­
telecto ativo.

1 C Jn jlu xo s k e b m i c o s téria e forma, também as espirituais. Essa é a


doutrina do hilemorfismo universal. E a ma­
sobre o Ocidente: téria e a forma são movidas por vontade de
^Avicebron unirem-se uma à outra. Tal impulso é trans­
mitido a elas pelo próprio Criador. Escreve
Avicebron: “No ser, há apenas três coisas:
Não foram apenas os árabes que influí­ por um lado, a matéria e a forma; por outro
ram sobre o pensamento ocidental, mas tam­ lado, a Essência primeira; por fim, a Vonta­
bém os judeus. Vivendo nas comunidades de que está entre os dois extremos” .
hebraicas espalhadas pelo império árabe, os
judeus procuraram ser fiéis à sua tradição,
tanto que nunca abandonaram o monoteísmo
nem a idéia da criação ex nihilo. Entretanto,
sofreram a influência da cultura árabe, tão rica e 2 Adoisés Ma mômides
tão florescente, independentemente dos mo­
tivos religiosos de fundo, comuns à religião
árabe e à religião judaica. Médico dos califas O pensamento de Moisés Maimônides
de Kairouan, Isaac Judaeus (Isac Judeu, em (1135-1204), porém, foi muito mais influen­
torno de 865-955) foi autor de escritos — te do que o de Avicebron. Mais profundo e
que mais tarde circulariam muito no Ocidente mais racional, decididamente influenciado
— nos quais concepções de origem neoplatô- pelas doutrinas de Aristóteles, que ele teve
nica se entrelaçam com idéias físicas e médicas. oportunidade de conhecer através dos ára­
No ambiente espanhol viveu, no século bes, Moisés Maimônides nasceu em Córdo-
IX, Ibn Gabirol, conhecido pelos latinos com ba em 1135. Por causa da atitude intole­
o nome de Avicebron (1021-1050/1070 apro­ rante dos Almoadas, foi obrigado a deixar
ximadamente). A obra de Avicebron mais a Espanha, permanecendo por algum tem­
estudada pelos escolásticos foi a Fons vitae, po no Marrocos (em Fez), passando depois
escrita em árabe, mas traduzida para o latim para a Palestina e acabando por se estabele­
por João Ibn Dahut e Domingos Gundissalvi. cer no Cairo. Comerciou pedras preciosas,
Essa obra teve tanta influência que se che­ mas no Cairo também ministrou aulas pú­
gou a acreditar que fora elaborada por autor blicas, adquirindo grande fama como filó­
cristão. Nela, Avicebron procura harmoni­ sofo e teólogo, mas especialmente como
zar os resultados da razão (permeada de Neo- médico. O ministro do sultão Saladino o
platonismo) com os princípios essenciais da tornou médico da corte e, assim, não tendo
religião judaica. Assim, por exemplo, no que mais necessidade dos proventos do comér­
se refere à relação entre Deus e o mundo, cio para viver, pôde dedicar-se aos estudos.
Avicebron sustenta que todas as substâncias, Moisés Maimônides escreveu sobre me­
com exceção de Deus, são compostas de ma­ dicina e teologia, mas sua obra mais conheci­
1 201
Capitulo décimo segundo - y \ f ilo s o f ia á ^ a b e e a h e b r a i c a . 11 1

da foi o Guia dos perplexos. O livro se diri­ rio, deveriamos negar a liberdade de Deus.
ge a todos os que se encontram sufocados O mundo não é eterno, mas contingente.
pela perplexidade derivada dos aparentes con­ Ele é fruto da livre vontade de Deus. E Deus
trastes entre razão e fé. Moisés Maimônides é a causa eficiente e final de todo o univer­
escreveu o Guia dos perplexos precisamen­ so. Por outro lado, Maimônides posiciona-
te para demonstrar que a filosofia e a Bí­ se próximo das concepções de Averróis
blia, na realidade, são conciliáveis. quando afirma que o intelecto agente é
Para Maimônides, como para Avicena, único e separado para todos os homens,
pode-se demonstrar que Deus existe e pode- que possuem singularmente o intelecto pas­
se também chegar a compreender que ele é sivo, que conhecem pela ação do intelecto
uno e incorpóreo. As coisas existentes são ativo. O resultado disso, na opinião de
contingentes, pois não têm em si mesmas as Maimônides, é que a imortalidade não ca­
razões de sua própria existência e, conse- be ao homem individualmente, já que, com
qüentemente, remetem a um Ser necessá­ a corrupção do corpo, se desvanece a dife­
rio. Diversamente de Avicena, porém, M ai­ rença dos indivíduos, restando o puro inte­
mônides não aceita de modo nenhum a lecto. O homem não é imortal como indiví­
doutrina da eternidade do mundo, já que duo, mas somente como parte do intelecto
as provas aristotélicas dessa tese não são ativo. As teses de Moisés Maimônides fo­
decisivas. Assim, o crente pode aceitar tran- ram freqüentemente retomadas pelos filó­
qüilamente o dogma da criação. O mundo sofos escolásticos e pelo próprio Tomás de
não pode ser necessário, pois, caso contrá­ Aquino.

Incisão de um manuscrito
do séc. XII,
que representa o filósofo
c médico judeu
Moisés Maimônides
i (11.IS-1204).
202 Sexta parte - ; A é £ s c o l a s + i c a n o s é c u l o d é c i m o \av

V. jWbarfo ]\Ac\qno

• Segundo Alberto Magno, o filósofo e o teólogo se ocupam ambos de Deus,


mas com perspectivas diversas: na perspectiva filosófica conta apenas a razão,
enquanto na fé se vai além da razão; na filosofia as premissas devem ser evi­
dentes; na fé, ao contrário, age a inspiração divina; a filosofia
As diferenças parte dos dados de fato, a fé parte da revelação; a filosofia
entre perspectiva exercita uma visão teórica e destacada das coisas, a fé implica
teológica envolvimento afetivo; por fim, a fé pode atingir a verdade que
e filosófica a filosofia não alcança.
-->§2-3 Isto depende do fato de que o teólogo se serve da ratio
superior que alcança não as coisas, mas as causas eternas das
coisas; a ratio inferior, própria do filósofo, se detém, ao contrário, nas coisas. A
primeira ratio — da qual Agostinho é mestre — leva à sabedoria, a segunda — da
qual Aristóteles é o intérprete máximo — leva à ciência.

1 CDprograma de pesquisa
de ;AIbeefo J\/\.agy\o

A primeira grande expressão filosófica


e científica do impacto de Aristóteles sobre
a cultura ocidental latina é a do dominicano
Alberto Magno. Foi o mais ilustre catedrá-
tico da faculdade de teologia de Paris e foi
chamado “M agno” porque seu pensamen­
to científico e filosófico-teológico gozou de
grande autoridade enquanto ainda vivia.
Descendente dos duques de Bollstàdt,
Alberto nasceu em 1193 segundo alguns, em
1206 segundo outros. Depois de um perío­
do de magistério em algumas comunidades
alemãs, foi ilustre docente em Paris de 1245
a 1248, retornando depois para Colônia.
Após breve estadia na corte pontifícia de
Anagni como conselheiro e em Ratisbona
como bispo, estabeleceu-se em Colônia, on­
de morreu em 1280.
Entre os escritos científicos dignos de
nota, podemos recordar: Sobre os vegetais
e as plantas, Sobre os minerais e Sobre os
animais.
Entre seus escritos filosóficos, podemos
lembrar: a Metafísica e um comentário ao
Liber de causis, bem como suas paráfrases
da Ética, da Física e da Política de Aristó­ Alberto Magno (falecido em I2S0),
teles. o mais conspícuo precursor
da grande síntese tomista,
Por fim, dos seus escritos teológicos são é aqui representado em um afresco
dignos de nota: o Comentário às Sentenças, pintado em 13S2 por Tonais de Modena
de Pedro Lombardo, a Summa de creaturis na sala do Capítulo do ex-convento dominicano
e o De Unitate intellectus (contra os aver- de São Nicolau,
roístas). boje Seminário episcopal de Treviso.
Capitulo décimo segundo - y \ f i lo s o fi a á r a b e e a K e b c a i c a e o a n s + o t e l i s m o n o O c i d e n t e
203

Tanto na paráfrase de algumas obras 5) a filosofia é procedimento puramen­


de Aristóteles como em seus escritos origi­ te teorético, ao passo que a fé comporta pro­
nais, Alberto se mostra genuíno admirador cesso intelectivo-afetivo, porque envolve a
da filosofia e da ciência de Aristóteles. Um existência do homem no amor de Deus.
de seus méritos mais significativos foi o de Apenas para exemplificar a distinção
ter inserido o aristotelismo no pensamento entre filosofia e teologia, basta constatar
cristão, orientando assim a atenção especu­ que o conhecimento da realidade não é úni­
lativa de seu ilustre discípulo Tomás de co, e sim duplo, conforme consideremos a
Aquino. res in se, é objeto da filosofia, ou a res ut
O mérito de Alberto consiste muito beatificabilis, objeto da teologia. E não são
mais em ter apresentado Aristóteles como poucos os problemas a propósito dos quais
patrimônio a assimilar e não como autor que Alberto apresenta soluções distintas. Por
devesse ser conhecido para ser melhor com­ exemplo: ele expõe e mostra compartilhar
batido. Entre os filósofos, Aristóteles “ é a psicologia do conhecimento de Aristóte­
aquele a quem se necessita dar maior crédi­ les; ao mesmo tempo, porém, compartilha
to em filosofia” , como a Agostinho na teo­ a psicologia de Agostinho e a doutrina da
logia. Por isso, Alberto colocou-se contra imagem trinitária na alma humana, no cam-
os que combatiam, ou melhor, “ blasfema­
vam” a filosofia de Aristóteles, rigoroso e
elevado pensador no que se refere ao “mun­
do natural” .
Aristóteles e Agostinho, portanto, são
os principais mestres, aos quais Alberto se
refere constantemente e com base nos quais
traça a distinção entre filosofia e teologia,
que são duas ciências específicas, distintas
pelos princípios de conhecimento, pelo su­
jeito e o objeto de que tratam e pelo fim que
perseguem. É verdade que tanto o filósofo
como o teólogo tratam da existência de Deus,
mas com perspectivas, resultados e finali­
dades completamente diferentes.

2 .A disfmção
entee filosofia e teolog ia

Para Alberto, são pelo menos cinco as


diferenças entre o conhecimento filosófico
de Deus e o seu conhecimento teológico:
1) no conhecimento filosófico, utiliza-
se somente a razão, ao passo que, com a fé,
se vai além da razão;
2) a filosofia parte de premissas que
devem ser conhecidas por si mesmas, ou seja,
imediatamente evidentes, ao passo que na
fé há um lumen infusum que reflui sobre a
razão, abrindo-lhe perspectivas que, de ou­
tro modo, seriam impensáveis;
3) a filosofia parte da experiência das Página de um códice
coisas criadas, enquanto a fé parte do Deus do De animalibus de Alberto Magno.
revelante; A miniatura com a letra capitular
4) a razão não nos diz o que é Deus representa Alberto Magno
(quid sit), mas a fé o diz, dentro de certos com o hábito dos dominicanos
limites; (Biblioteca l aurenciana, Y-lorençaj.
204 Sexta parte - y \ ( S s c o lé s t i c a no s é c u lo d é c im o te^cem o

po da teologia. Alguns historiadores chega­ do modalidades e perspectivas de caráter


ram a se perguntar qual era a doutrina psico­ universal e explorando apenas determina­
lógica de Alberto, se a primeira ou a segunda. dos hábitos e poderes cognoscitivos da psi­
A resposta, porém, é que ele compartilha que humana. E não é possível ir mais além
ambas as doutrinas, porque são diferentes as partindo dos princípios racionais.
ordens de consideração e as perspectivas Já os teólogos, considerando a realida­
sob as quais estuda o mesmo “ objeto mate­ de specialius, descobriram na alma novas
rial” . O mesmo pode-se dizer do mistério da faculdades, correspondentes a aspectos espe­
Santíssima Trindade, que em filosofia con­ cíficos e novos hábitos científicos correlatos,
sidera-se incognoscível, ao passo que em teo­ de cuja existência os filósofos sequer sus­
logia, nas pegadas de Agostinho, ela é in- peitavam. E isso porque eles se serviram
terpretável. daquilo que Agostinho chama ratio superior,
O mesmo vale também para o proble­ a parte superior da alma, dando lugar não à
ma da criação: o filósofo prova somente que ciência, mas à sabedoria. Tal empresa só lhes
o mundo não pode ter começado por um foi possível porque eles foram iluminados
movimento de autogeração, mas não chega pela Revelação, que, como novo sol, desper­
à idéia da criação, da qual, ao contrário, parte tou problemas antes desconhecidos. É mister
o teólogo. No que se refere ao caráter tem­ observar aqui que a distinção entre consi­
poral ou eterno do mundo, a filosofia não deração communior e specialior da realida­
pode se pronunciar com argumentos proba­ de cognoscível baseia-se na própria coisa,
tórios nem a favor de uma nem de outra tese, dotada de estrutura própria e, ao mesmo
bem como a propósito da imortalidade da tempo, de uma ratio essendi totalmente re­
alma individual; já para o teólogo o mundo ferida ao princípio supremo. Assim, o co­
é criado e a alma é imortal. Em suma, theo- nhecimento pode recair imediatamente so­
logica non conveniunt cum philosophicis in bre a coisa ou sobre a idéia eterna à qual ela
principiis, isto é, as coisas teológicas não se se refere. No primeiro caso, a consideração
conjugam com as coisas filosóficas em seus é communior, no segundo é specialior; a
princípios. Isso ocorre porque “ a teologia se primeira é obra da ratio inferior, a segunda
baseia na revelação e na inspiração, não so­ da ratio superior. Se isso é verdade, então
bre a razão” . O filósofo diz tudo o que pode que sentido têm as polêmicas em curso con­
ser dito “com base no raciocínio” . E com tra o aristotelismo?
certeza, afirma Alberto, não se pode ter qual­ Aos defensores radicais das teses — e
quer conhecimento da Trindade, da Encar­ somente das teses — agostinianas que se
nação e da Ressurreição a partir de uma pers­ empenharam na polêmica antiaristotélica,
pectiva puramente natural. m Alberto endereçou a censura de que só le­
vavam em conta a ratio superior, deixando
a ratio inferior de lado. Se Agostinho é o
mestre insuperável na primeira, na segunda
3 "Filósofos gregos o mestre é Aristóteles. Evidenciando o du­
e teólogos cristãos
plo aspecto da realidade e o duplo plano da
razão, Alberto mostra a oportunidade de
desenvolver tanto uma quanto a outra: a
Inimigo do antiaristotelismo que cam­ sapientia, que se funda na ratio superior ilu­
peava na faculdade de teologia, Alberto apre­ minada pela fé, e a scientia, que considera
senta princípios para uma avaliação mais as coisas circunscritas em si, segundo suas
serena das posições contrapostas. Os gregos causas imediatas. Por isso ele se empenhou
— e Aristóteles em particular — nos apre­ a fundo para tornar conhecidas dos latinos
sentaram análises muito sutis sobre a alma as obras de Aristóteles.
humana, considerando-a porém num enfo­ Mas a grande síntese especulativa en­
que geral. Ou seja: eles tematizaram os ob­ tre a teologia cristã e o aristotelismo não foi
jetos que especificam as potências espirituais obra de Alberto Magno, mas de Tomás de
e sensíveis de um modo geral, estabelecen­ Aquino, do qual falaremos agora.
205
Capítulo décimo segundo - y \ f i lo s o fi a á r a b e k e b m i c a e o an s+otelism o no O c i d e n t e —

Intelecto é um nome que se usa em sen­


A v ic e n a tidos múltiplos.
Chamamos intelecto a saúde mental ori­
ginária no homem. Sua definição é então:
uma faculdade mediante a qual se opera a
distinção entre o belo e o feio. Dizemos ain­
da intelecto aquilo que o homem adquire de
fl teoria leis universais mediante a experiência e se
define: significados reunidos no espírito, pre­
dos intelectos missas das quais se descobrem as vantagens
e os fins. Cm outro sentido se diz que o inte­
lecto é uma louvável disposição que perten­
No passagem seguinte, fívicena sinte­ ce ao homem em seus movimentos, repou­
tiza todos os possíveis signiFicados do termo sos, palavra, escolha.
"intelecto". Cstes três sentidos são aqueles em que
a massa dos homens usa o termo intelecto;

VICENNyE
P H I L O S O P H I P R íECLARISSIM I
AC MIDICORYM PRINCÍPIS.

Compcndíum de anima.
Dcmahadi.de díípofirione,íèu Ioco,ad quem
rcuertítur homo,vel anima eíus poft morre,
Aphoríímí de anima.
Dedíffiníríombu$,& quaeíitís,
Dedíuifione (èíentíarum,
AB ANDRÉA AIPAGO l l l l V N I N S I
phííoíôpho,ac medico, idiomatíscp arabící
peririffimo,ex arabico in Iatinu vería.
Cum expofitionibus eiufdem Andref collcltit
ab au&oribus arabicis.
OMNI A N V N C P R I M V M I N
l v C 1M E D I T A .

Frontispício estampado V I N i T I l s APVD I V N T A t M X IT I»


do Compendium de anima de Avicena,
escrito por André Alpago, 1526.
206 Sexta patte - £ 7 s c o l á s t i c a no s é c u lo clé-dmo t e r c e i s

mos paro os filósofos este tem oito signifi­ tence a tarefa de fazer p assar, iluminan­
cados: do-o, o intelecto material da potência para
o ato.
1) O intelecto do quol fala Aristóteles
no Livro do silogism o difere da ciência. €ste Avicena, organizado
por G . Quadri,
intelecto, diz ele, designa os conceitos, e
em G rande Antologia Filosófica,
os assentim entos que provêm à alma medi­ Marzorati.
ante o espírito, enquanto o ciência é aquilo
que resulta da aquisição exterior. Depois
vêm os intelectos recordados no Livro da
olmo.
2) e 3) O intelecto especulativo e o in­
telecto prático. O primeiro é uma faculdade
da alma que recebe a qüididade1 das coi­ A lber to M agno
sa s universais enquanto e la s são universais.
O segundo é uma faculdade da alma que é
princípio motor da faculdade apetitiva, para
aquilo que ela escolheu de particular em ra­
zão de um fim entrevisto. Chamam-se intelec­
to num erosas forças do intelecto esp ecu ­ R natureza
lativo. do bem
4) O intelecto material, faculdade da
alma preparada para receber a s qüididades
das coisas abstraídas das matérias. Entre I2 3 6 e 12 3 7 Fllberto Mogno com­
5) Intelecto habitual, que é o intelecto p ô s oTratado sobre a natureza do bem. Tra­
material aperfeiçoado de modo a se tornar ta-se de umo obro de juventude, a mais an­
uma potência vizinha ao ato mediante atua­ tigo gue chegou até nós.
ção daquilo que Aristóteles chama de inte­ Como aparece p elo Proêmio, ela d e ­
lecto no Livro do silogism o. veria ter sido articulada em se te tratados.
De fato, oté nós chegaram apenas o pri­
6) O intelecto em ato, que é o aperfei­ meiro e o segundo, provavelm ente o s úni­
çoamento da alma em uma forma qualquer, cos que foram compostos.
ou se ja , uma forma inteligível a ponto de en­ No Proêmio, além d e expor o plano
tender esta última e encerrar a mesma me­ da obra, Fllberto M agno "distingue o Bem
diante o ato quando o quiser. em si e p o r si, isto é, Deus, e o bem p elo
7) O intelecto adquirido, que é uma qual todas o s co isas sã o bem, isto é, o
qüididade abstrata da matéria, a qual é for­ bem d e natureza".
temente impressa na alma como uma atua­ No primeiro tratado e le inicia d e fi­
ção proveniente da parte exterior. nindo o bem d e natureza que e le identi­
fica "com a ordem, p ois todas a s criaturas,
8) O s intelectos que se dizem agentes,
criadas p o r Deus, sã o a e le ord en a d a s
que são todos qüididades completamente
e, se g u in d o F g o stin h o , d istin g u e n ele
puras da matéria.
o modo, a figura e a ordem. F esta d is ­
C e is a definição do intelecto Agente:
tinção reconduz a do livro da S a b e d o ­
e le é, enquanto intelecto, uma forma su b s­
ria, em que s e lê que D eus d isp ô s to da s
tancial cuja essên cia é ser qüididade pura
a s co isa s conforme o número, m edida,
de qualquer mistura com o m atéria, e isso
p eso ".
por si mesmo e não por abstração que ou­
No segu n do tratado, em primeiro lu­
tros d e le façam fora da matéria e d as co­
gar, d e fin e -se o que é o bem genérico
nexões da m atéria, do modo como vem ob­
e, portanto, F lb e rto M agno, "com conti­
tido a qüididade de todo ente. Enquanto
nuas referên cia s à Bíblia e a o s Padres,
intelecto Agente e le é uma substância que
m ostrja] que e ste bem s e m anifesta no
tem o atributo de que falamos e ao qual per­
homem 'quando fazem os aquilo que d e ­
vem os fa zer e d eixam os d e lado aquilo
que é p re c iso d e ix a r d e lado', e falta
'quando descuram os aquilo que d e ve s e r
feito, e quando fazem os aquilo que não
Ou seja, os essências.
207
Capítulo décimo segundo - fi loso-f-ia á r a b e e a k e b r a i c a e o a ris + o + e lis m o no O c i d e n t e

segundo sua essên cia, a fim de que não


d eve m o s Fazer', e s e readqu ire c o n sid e ­
apareça disforme caso o ultrapasse para
rando com a ten ção o matéria d e n o ssa s
além da medida. A figura é, pois, a forma e
a çõ e s e realizando Freqüentem ente boas
a perfeição da coisa em sua natureza. A or­
a çõ e s, paro adquirir a g ilid a d e ao re a li­
dem, por fim, é inclinação ao devido fim da
za r o bem
própria natureza. No livro da Sabedoria, a
este respeito lemos: "Dispuseste todas as
co isas conforme o número, a medida e o
peso". O número é a forma que dá à coisa
1. Proêmio
uma disposição proporcionada, conforme diz
Boécio no livro fl consolação da Filosofia:
"Por que me chomos bom? Ninguém é
"Com os números abraças os elementos, de
bom o não ser um só, Deus". Desta resposta
modo que o frio concorde com as chamas, e
do Filho de Deus se compreende que bom
a s muitas águas com os desertos, e assim o
se deve entender em dois significados, isto
fogo etéreo não voe embora, nem a s terras
é, como aquilo que é bom por si e substancial­
com o próprio peso sejam puxadas para o
mente e é ele próprio sua bondade, e este é
fundo".
apenas Deus; em outro significado se diz que
Aqui de fato Boécio chama números as
é bom aquilo que não é sua bondade, Ago­
proporções de mistura e de composição, s e ­
ra pretendemos tratar das diferenças entre
gundo as quais Deus formou os elementos e
estes dois bens do ponto de vista moral, in­
com estes últimos as coisas compostas, para
vocando o Bem substancial, que, conforme
que nenhum dos componentes se separe do
escreve Agostinho no livro sobre o Trindade,
outro e a criatura não seja assim diminuída.
é "bem de todo bem" para que, mostrando-
A medida é, pois, o modo que circunscreve
se ele próprio na riqueza de sua bondade,
e limita a coisa, para que não se estenda
descubra um tesouro de bondade a ser ca­
dem asiado ou de modo imperfeito. Peso, fi­
vado, revelando aquilo que, também segun­
nalmente, é a ordem que guarda e conserva
do os que se ocupam de moral, todos d e­
a ordem de natureza segundo a inclinação
sejam, porque, conforme o que diz o Filósofo
da coisa para o próprio lugar e para o pró­
nas éticas: “Dizem que é bem aquilo a que
prio operar. Csta, portanto, é a bondade de
todos tendem". Da natureza deste bem cria­
natureza que se encontra em toda criatura
do desejam os, portanto, neste tratado fazer
de Deus; mas também esta bondade Deus
uma exposição mais moral do que metafísica,
ordena e conduz pela mão. Com efeito, esta
compondo um primeiro tratado sobre o bem
bondade é um traço da trindade e da unida­
de natureza, um segundo sobre o bem da
de: da unidade, porque estes elementos se
virtude política, um terceiro sobre o bem da
encontram em uma só coisa; da trindade, por­
graça, um quarto sobre o bem que está nos
que são três os elementos que se conside­
dons (do Cspírito Santo), um quinto sobre o
ram em qualquer coisa. Com efeito, na figura
bem das bem-aventuranças, um sexto sobre
se tem o Filho; no modo ou medida, o Pai,
o bem dos frutos do Cspírito, um sétimo e
que com seu poder define e limita cada coi­
último sobre o bem da felicidade e da bem-
sa; no peso depois, ou na ordem, o Cspírito
oventurança nas quais é plena a perfeição
Santo, que bem ordena toda coisa no bem e
da vida espiritual.
a cumula com sua bondade. Nesta bondade,
portanto. Deus viu aquilo que havia criado,
2. fl definição do bem de natureza porque as criaturas poro ele, Bem, eram boas
e a ele, por sua bondade, erom ordenadas,
Voltemos ao primeiro ponto, definindo e e por esta bondade "os céus narram a glória
dividindo o bem de natureza ou ordem; e tais de Deus", e o Apóstolo diz: "Boa é toda cria­
[bens de natureza] são todas a s coisas cri­ tura de Deus”. [...]
ad as, que Deus na sua bondade criou e or­
denou a si mesmo e à sua glória. Sobre isso
3. fl definição do bem genérico
lemos no primeiro capítulo do G ê n e sis: “Viu
tudo o que havia feito, e era muito bom"; e Bem genérico é definido por alguns mes­
no Salmo; "Abrindo tua mão cumulaste de tres como aquilo que genericamente é bem,
bondade todas a s coisas". Agostinho d is­ que pode ser feito bem e mal, mas em si é
tingue esta bondade em modo, figura e or­ bem, distinguindo assim entre bem em si e
dem. O modo é o limite de cada coisa, isto bem por si (secundum s e ). Com efeito, como
é, que põe diante de toda criatura um fim dizem, as ações boas por si, como por exem­
208
Sexta patte - ( S s c o l á s t i c a n o s é c u l o clé.c.'m \o t e n c e i n o

plo q s obras da caridade e da fé etc., jam ais sua consciência, sabe que o acusado é ino­
são realizadas mal, ao invés, a s ações boas cente, todavia é forçado a fazer matar quem,
em si, isto é, a s ações boas por aquilo que conforme a ordem da lei, foi provado ser cul-
há em si m esm as, por v e z e s podem ser pável pelas acusações e pelas deposições
realizadas mal por algum motivo, como por das testemunhas.
exemplo o dar esmola, que é feito mal quan­ Depois disso, devemos considerar este
do é feito para conseguir o elogio dos ho­ bem do ponto de vista moral, mostrando
mens, embora permanecendo sempre uma como se manifesta no homem, como falta no
ação boa em si. Se depois aquilo que dizem mais das vezes e como, uma vez perdido,
estes mestres se ja verdadeiro ou não, é ta­ pode-se reconquistá-lo.
refa de outros considerá-lo atentamente. €u,
na verdade, prefiro definir o bem genérico
4. Como se manifesta o bem genérico
como aquilo que é o primeiro bem por aquilo
que se refere aos costumes. € preciso, por­ Portanto, uma vez que este bem consis­
tanto, considerar que algum as co isas d e ­ te em uma justo proporção de nossa ação
pendem de nós, outras não; não dependem em relação à matéria, isto é, da coiso que
de nós a s criaturas deste mundo, depende constitui o termo de nossa ação, o bem se
de nós aquilo do que somos senhores, como manifesta em nós quando fazemos aquilo que
as ações voluntárias, sejam elas atos ou p a­ devemos fazer, e deixamos de lado aquilo
lavras. que é preciso deixar de lado, isto é, como
Como na natureza uma só coisa é a pri­ diz Gregário Mogno; "Dá de comer a quem
meira, e é o sujeito das formas naturais, isto morre de fome, porque se não lhe dás de
é, a matéria, e tem por vezes uma forma bela, comer, tu o m atas”, e como lemos nos Pro­
por vezes uma formo feia, também nos cos­ vérbios: “Liberta aqueles que são levados à
tumes, isto é, nas obras de nossa vontade, morte". "Dar de comer a quem tem fome", com
há uma obra que está sujeita à s circunstân­ efeito, é restaurar quem deve ser restaura­
cias, e isso se entende como bem genérico e do; da mesma forma, libertar quem é levado
mal genérico, e se reveste por vezes de cir­ à morte por causa da fraude de outro e não
cunstâncias boas, por vezes de circunstân­ por suo iniqüidade, é libertar quem deve ser
cias más. Rssim, o bem genérico é sim ples­ liberto. C assim também ao realizar esta ou­
mente uma ação que tem como termo uma tra ação encontramos um exemplo de bem
matéria adequada, como dar de comer a um genérico; com efeito, Jó diz de si mesmo;
faminto, matar quem deve ser morto e liber­ "Destroçava a s p resas do perverso, e de
tar quem deve ser liberto. Com efeito, maté­ seus dentes arrancava a p resa”. Com e fe i­
ria da ação é aquilo a que se aplica a pró­ to, “destroçar a s presas do perverso" é d e s­
pria ação. Da mesma forma, mal genérico é troçar aquilo que deve ser destroçado, e
a ação que tem como termo uma matéria não "arrancar de seus dentes a presa" é libertar
adequada, como dar de comer a alguém que quem deve ser liberto.
está saciado ou matar quem não deve ser Para a primeira ação, isto é, restaurar
morto. € assim também no restante. Portan­ quem deve ser restaurado, são desculpados
to, de um lado uma ação genericamente boa o sacerdote Abimelec, que deu de comer a
pode ser realizada mal, e uma ação generi­ Davi o pão consagrado do apresentação, e
camente má pode ser bem realizada. Com os discípulos do Senhor que colheram esp i­
efeito, se uma ação genericamente boa rea­ gas no dia de sábado. Para a segunda ação,
liza-se em circunstâncias más, realiza-se em isto é, libertar quem deve ser liberto, louva
todo caso mal, como dar de comer a um fa ­ a si mesmo Davi quando, no acampamento
minto para depois se gabar disso, ou nutrir contra os filisteus, diante de Saul diz ter ma­
um fanfarrão; e da mesma forma, matar quem tado o leão, isto é, os tiranos que oprimiam
deve ser morto por rancor e desejo de vin­ injustamente o povo de Deus, e o urso, isto
gança, sem observar a ordem da lei. Ao con­ é, os amantes dos prazeres e blasfemadores
trário, uma ação genericamente má pode ser contra os quais deve ser feita justiça.
realizada bem, como dar a quem não é pre­ Da mesma forma, o homem deve matar
ciso dar, mas em nome do profeta e para em si mesmo aquilo que deve ser morto, isto
fazer penitência, e matar quem não deve ser é, a concupiscência e o pecado, como diz o
morto, porque assim exigem as acusações e Apóstolo: “Castigo meu corpo [...]", e aos
as provas, que são contra ele; o juiz, com Romanos: "Considerai a vós mesmos como
efeito, é forçado a proceder conforme as acu­ mortos em relação ao pecado, mas vivos em
sações e, portanto, mesmo que apenas com relação a Deus". Mata em si o leão quando
209
Capítulo décimo segundo - A filo s o fia á r a b e e a k e b r a i c a e o a n s f o i e lis m o n o O c i d e n t e --------

afasta da ira o podar irascível de sua alma, põe, para ver como dela se pode servir, e
o urso quando apaga o concupiscível, por­ depois torna sua ação adequada à matéria.
que não realizas seus desejos: dá de comer G assim ensina o Filósofo na ético, dizendo:
a quem deve ser restaurado quando nutre "G um bom sapateiro aquele que dos couros
sua olmo com o pão da vida, isto é, da graça à sua disposição extrai o melhor calçado": e
celeste, como pedimos ao rezar todos os da mesma forma é bom moralmente quem
dias: "Dá-nos hoje nosso pão cotidiano". realiza a ação melhor e mais conveniente em
relação à matéria com a qual deve agir.
R propósito do segundo caminho, isto
5. Como falto o bem genérico
é, da realização de muitas boas ações, para
Devemos agora considerar por quais que da freqüência nasça a facilidade, se diz
ações este bem mais facilmente falta. Ora, nos Provérbios: "Vá até a formiga, preguiço­
estas ações são duas, isto é, quando des- so, e aprende a sabedoria; ela, com efeito,
curamos aquilo que deve ser feito, e quando embora não tendo um chefe, recolhe para si
fazemos aquilo que não devemos fazer. Como o alimento durante o tempo da ceifa". G ain­
de fato em nosso corpo o bem da saúde é da, de modo egrégio, com quatro metáforas
danificado de dois modos, isto é, quando não no fim dos Provérbios o ensina Salomão, di­
nos é subministrado o necessário, e neste zendo: "São quatro a s coisas menores da
caso a saúde se arruina por uma carência, e terra, mas são mais sáb ias que os sábios:
também quando fazemos coisas danosas à as formigas, povo sem força, que recolhem o
saúde ou ingerimos coisas danosas ao cor­ alimento durante o tempo da ceifa; as lebres,
po, como um veneno: da mesma forma tam­ povo fraco, que põem na rocho sua toca; os
bém o bem genérico dos costumes é d es­ gafanhotos, que não têm rei, mas saem to­
truído de dois modos, porque se consuma por dos divididos em fileiras; as lagartixas, que
inanição quando, descurando fazer aquilo se podem prender com as mãos, mas habi­
que devem os fazer, não subministramos à tam nos palácios dos reis".
alma o necessário: e é morto pelo veneno G aqui estão indicados os quatro frutos
do pecado, quando fazemos aquilo que não da realização de muitas ações boas. Primei­
devemos fazer. ramente méritos em abunclância, que são o
alimento da alma; mesmo se a formiga é um
animal pequeníssimo e pode transportar a p e ­
6. Como se readquire o bem genérico nas um pouco por vez, todavia muitas formi­
Para readquirir o bem genérico há para gas, com o vaivém contínuo, conseguem acu­
o homem duplo caminho: o primeiro consiste mular muito. Como, com efeito, diz o Filósofo
em sempre adequar suas ações àquilo a que [Rristótelesj: "uma andorinha não faz o ni­
se aplica a próprio ação, isto é, ao conside­ nho" com um só vôo, mas com mais e mais
rar, com previdente solicitude, o que tem à vôos; também se apenas uma ação parece
disposição, e para dele fazer conta a fim de pequena, todavia muitas ações adquirem ri­
regular sua ação, adequando-a. Outro cami­ cos méritos. Assim as abelhas produzem mel
nho consiste em realizar freqüentemente di­ e cera, não uma só, mas muitos, e não com
versas boas ações, porque a freqüência é, um só vôo, mas com muitos.
por assim dizer, a mãe da facilidade para O segundo fruto é que o homem, em­
realizar o bem. bora sendo fraco, realizando freqüentemente
A propósito do primeiro caminho se diz muitas boas ações torna-se forte no bem. A
no G ênesis que Isaac, quando Rebeca foi até lebre, com efeito, é o homem tímido no com­
ele, tinha saído para p assear pelo campo: bate ao pecado. Todavia, com uma ação
"o campo", com efeito, em que nós devemos depois da outra sobe sobre a firmíssima ro­
trabalhar com fadiga é o nosso comportamen­ cha do hábito e ali põe o berço do repouso
to: aí "passeam os" quando com previdente na virtude, para não ter de sofrer os a s s a l­
solicitude cuidamos que cada ação nossa se tos dos vícios.
una de modo justo à matéria à qual se deve O terceiro fruto é que, mesmo se o ho­
aplicar. Por isso diz o Gclesiástico; "Se fazes mem, fraco por sua origem, não tem um rei
o bem [...] e em tuas boas ações haverá muita que possa cuidar de suas tarefas e das guer­
graça", e ainda: "Beneficia o justo e disso ras, todavia, impelindo (como um gafanho­
terás uma grande recompensa, talvez não to) um salto da terra, deste e daquele bem
dele, mas certamente do Senhor". Por isso nasce uma multidão, que vai contra o diabo.
também quem quer construir uma casa, pri­ Por isso, no Cântico dos cânticos se diz da
meiro examina e mede a matéria de que d is­ esposa que é "terrível como esquadrão".
210 Sexta parte - y \ í S s c o l á s t i c a no s é c u lo d é c i m o t e r c e i r o

O quarto fruto é que, mesmo que o céu calipse dizem: "Fizeste de nós um reino para
® o reino dos céus ®st®jam muito long® d® nosso Deus". Com efeito , são reis todos
nós, todavia, arrastando-nos continuamen- aq ueles que recebem a coroa no reino dos
t® como a s lagartixas, com nossas ações ha­ céus.
bitarem os no céu "nos palácio s dos reis" Alberto Magno,
santos, daqueles reis, digo, que no Apo­ O bem.
ó^ apítulo Jiác-\yr\o t e r c e ir o

A g r a n d e sín+ese
d e T o m a s d e ^Aquino

I . A vida e a s obras d e T o m á s

•Tom ás nasceu em Roccasecca em 1221. Apesar da hosti- A vjda


lidade da família, entrou na ordem dos dominicanos, e de 1248 § 7
a 1252 foi discípulo de Alberto Magno. A seguir ensinou em
Paris e depois nas principais universidades européias (Colônia, Bolonha, Roma,
Nápoles), conforme era costume dos dominicanos. Morreu em 1274 no mosteiro
de Fossanova.

• Santo Tomás é o representante máximo da Escolástica. A filosofia


Sua filosofia é considerada como preambulum fidei, ou seja, como
como preparação para a fé, mas exatamente por isso ela goza preambulum
de autonomia própria. Além disso, a filosofia de Tomás tem fidei
uma função apologética, pois permite discutir com quem não - ^§2
aceita nenhuma fé.

1 ( a r v a a S/ essa razão, Tomás prosseguiu seus estudos


em Nápoles, na universidade recentemente
um dos maiores pensadores fundada por Frederico II.
de todos os tempos Foi aí que entrou em contato com a
ordem dos dominicanos, muitos dos quais
dedicavam-se ao estudo e ao ensino univer­
Expoente máximo entre os escolásticos, sitários. E decidiu ingressar na ordem, atraí­
verdadeiro gênio metafísico e um dos maio­ do pela nova forma de vida religiosa, aber­
res pensadores de todos os tempos, Tomás ta para as novas instâncias sociais, envolvida
de Aquino elaborou um sistema de saber no debate cultural, e livre de interesses mun­
admirável pela transparência lógica e pela co­ danos. Sua decisão foi firme e, apesar da
nexão orgânica entre as partes, de índole mais oposição da família, expressa por várias for­
aristotélica do que platônico-agostiniana. mas, tornou-se irrevogável.
Italiano pelo lado do pai, Landolfo, con­ Discípulo de Alberto Magno em Colô­
de de Aquino, e normando pelo lado da mãe, nia entre 1248 e 1252, logo mostrou seu
Teodora, Tomás nasceu em Roccasecca, no talento especulativo. Convidado pelo mes­
sul do Lácio, em 1221. Teve sua educação tre a expor seu ponto de vista sobre uma
primária na abadia de Montecassino, para quaestio que estava sendo debatida, Tomás,
onde foi levado na esperança de que contri­ que era chamado de “ boi mudo” pelo com­
buísse para o brilho do sobrenome da famí­ portamento reservado e silencioso, expôs o
lia. Com efeito, o abade de Montecassino problema com tanta profundidade e lim-
era poderoso feudatário. Mas, devido às pidez que levou Alberto a exclamar: “Este
contínuas guerras entre papa e imperador, moço, que nós chamamos de ‘boi mudo’, mu­
a abadia foi logo reduzida a estado de aban­ girá tão forte que se fará ouvir no mundo
dono desolador e de triste decadência. Por inteiro!”
212 Sexta parte - y\ íí£ sco làstica n o s é c u lo d é c im o te^cem o

Em 1252, quando o mestre-geral da or­ Foi surpreendido pela morte aos 53


dem solicitou um jovem bacharel (hoje, se anos, em 7 de março de 1274, no mosteiro
diria professor-assistente) para encaminhar cisterciense de Fossanova, quando viajava
à carreira acadêmica na Universidade de Pa­ para Lião, para onde ia, por ordem do papa
ris, Alberto não hesitou em indicar Tomás. Gregório X, precisamente para participar de
Ensinou em Paris de 1252 a 1254 como um Concilio.
baccalaureus biblicus, e de 1254 a 1256 co­
mo baccalaureus sententiarius. Nada temos
do seu ensino bíblico, mas, dos seus comen­ 2 1' v a z ã o e f é ,
tários às Sentenças de Pedro Lombardo, res­
ta-nos o monumental Scriptum in libros filosofia e feologia
quattuor sententiarum. Ademais, são desse
período os opúsculos De ente et essentia e
De principiis naturae, nos quais Tomás ex­ Na abertura da Summa contra gentiles,
põe os princípios metafísicos gerais em que Tomás faz suas as palavras de Hilário de
iria inspirar suas reflexões posteriores. Poitiers: “ Sei que devo a Deus, como prin-
Superados os obstáculos interpostos
pelos “ mestres seculares” , ele foi agraciado
com o título de magister em teologia, junta­
mente com são Boaventura, obtendo uma
cátedra em Paris, onde ensinou de 1256 a
1259. Remontam a esse período as Quaes-
tiones disputatae de veritate, o Comentário
ao De Trinitate de Boécio e a Summa Con­
tra Gentiles.
Depois desse período parisiense, Tomás
peregrinou pelas maiores universidades eu­
ropéias. Pertencem a essa época as Quaes-
tiones disputatae de potentia, o Comentário
ao De divinis nominibus do Pseudo-Dioní-
sio, o Compendium theologiae e o De subs-
tantiis separatis.
Chamado pela segunda vez a Paris, para
combater os antiaristotélicos e os averroístas,
que tinham em Siger de Brabante o seu por­
ta-voz, ele escreveu o De aeternitate mundi e
o De unitate intellectus contra averroístas, e
preparou o esboço de sua obra maior, a
Summa theologiae, iniciada em sua estadia
em Roma e Viterbo, continuada em Paris e
depois em Nápoles, mas não concluída.
Sua saúde estava em declínio. Ele chegou
a dizer ao seu fiel amigo e secretário Reginal-
do de Piperno, que o exortava a terminar sua
obra: Raynalde, non possum, quia omnia quae
scripsi videntur mihi paleae (“ Reginaldo, não
posso, porque todas as coisas que escrevi me
parecem inépcias” ). E, diante da insistência
de Reginaldo, repetiu: Videntur mihi paleae
respectu eorum quae vidi et revelata sunt mihi
(“ Parecem-me inépcias em relação às coisas
que vi e que me foram reveladas” ). Dessa de­
claração emerge o sentido de pequenez e qua­
se de inutilidade da própria obra, que um
homem profundamente religioso como ele Miniatura tirada dc um manuscrito
experimentava diante do mistério da morte do De unitate intellectus de Tomás dc Áqitino
e da esperança do encontro com Deus. (Biblioteca Ambrosiana, Milão).
213
Capítulo décimo terceiro - g r a n d e , s ín t e s e d e T o m á s d e ;A q u m o

cipal dever de minha vida, que cada pala­ veis à razão. No primeiro livro, por exem­
vra minha e cada sentido meu falem dele” . plo, em que fala de Deus, não aborda a
O objeto primário de suas reflexões é Deus, questão da Trindade; já as verdades co­
não o homem ou o mundo, porque somente nhecidas somente pela Revelação as reúne
no contexto da revelação é que se torna pos­ no quarto livro.
sível raciocinar sobre o homem e o mundo. É preciso partir das verdades “ racio­
Muito se tem discutido sobre se existe nais” , porque é a razão que nos une. Escre­
ou não uma razão autônoma da fé em To­ ve santo Tomás: “ É necessário recorrer à
más, ou seja, uma filosofia distinta da teo­ razão, à qual todos devem assentir” . E so­
logia. A verdade é que em Tomás há uma bre essa base que se podem obter os primei­
razão e uma filosofia como preambula fidei. ros resultados universais, porque racionais,
A filosofia tem sua configuração e sua au­ com base nos quais se pode depois cons­
tonomia, mas não exaure tudo o que se pode truir um discurso de aprofundamento de
dizer ou conhecer. Assim, é preciso integrá- caráter teológico. Discutindo com os judeus,
la a tudo o que está contido na sacra doctri- pode-se assumir como pressuposto o Anti­
na em relação a Deus, ao homem e ao mun­ go Testamento; discutindo com os heréticos,
do. A diferença entre a filosofia e a teologia pode-se assumir toda a Bíblia. Mas que pres­
não está no fato de que uma trata de certas suposto pode tornar possível a discussão
coisas e a outra de outras coisas, porque com os pagãos ou gentios senão aquilo que
ambas falam de Deus, do homem e do mun­ nos assemelha, isto é, a razão?
do. A diferença está no fato de que a pri­
meira oferece um conhecimento imperfeito
daquelas mesmas coisas que a teologia está
em condições de esclarecer em seus aspec­
tos e conotações específicos relativos à sal­
vação eterna.
A fé, portanto, melhora a razão assim
como a teologia melhora a filosofia. A gra­
ça não suplanta, mas aperfeiçoa a natureza.
E isso significa duas coisas:
a) a teologia retifica a filosofia, não a
substitui, assim como a fé orienta a razão,
não a elimina;
b) a filosofia, como preambulum fidei,
tem sua autonomia, porque é formulada
com instrumentos e métodos não assimi­
láveis aos da teologia.

3 ;A feologia
n ã o subsfitui a filosofia

Na Summa contra gentiles, falando


a propósito das verdades relativas a Deus,
Tomás escreve: “ Há algumas verdades que
superam todo poder da razão humana, co­
mo, por exemplo, a verdade de que Deus
é uno e trino. Outras verdades podem ser
pensadas pela razão natural, como, por exem­
plo, as verdades de que Deus existe, de
que Deus é uno, e outras m ais” . Enquan­ Tomás (i 221 -1274)
to, em outras obras, ele expõe conjunta­ marca o ápice da E.scolástica medieval.
mente as verdades naturais e sobrenaturais, E unanimemente considerado o máximo
aqui os três primeiros livros são dedica­ dos filósofos medievais
dos às verdades que ele considera acessí­ (Coleção Cio mana. Idorença).
214 S c X t U p a t t e - ; A CíL sco lá s+ ica n o s é c u l o d é c i m o t e r c e i r o

Anteporta da primeira edição


estampada da Opera omnia
de Tomás de Aquino
(Roma, 1570).
O filósofo é retratado
entre duas mulheres
que simbolizam
a Teologia e a Filosofia.

A esse motivo, de índole apologética, a convicção de que, apesar de sua radical


devem-se acrescentar duas considerações de dependência de Deus no ser e no agir, o ho­
caráter mais geral, isto é, no sentido de que a mem e o mundo gozam de relativa autono­
razão constitui nossa característica. Deixar mia, sobre a qual deve-se refletir com os ins­
de utilizar essa força, mesmo que em nome trumentos da razão pura, fazendo frutificar
de uma luz superior, seria deixar de lado uma todo o potencial cognoscitivo para respon­
exigência primordial e natural. Ademais, exis­ der à vocação original de “conhecer e domi­
te um corpus filosófico que é fruto de tal exer­ nar o mundo” . Assim, o saber teológico não
cício racional, como a filosofia grega, cujos suplanta o saber filosófico nem a fé substitui
resultados foram apreciados e utilizados por a razão, até porque, e este é o último motivo,
toda a tradição cristã. Por fim, Tomás tinha a fonte da verdade é única. (T]
215
Capítulo décimo terceiro - y \ g r a n d a sín tese d e T o m á s d e E q u i n o

II. y\ orvfol O0 ia

• A metafísica de Tomás distingue o ente da essência e Ente lógico


privilegia o primeiro em relação à segunda. O ente pode ser e ente rea/
lógico (conceituai) e real (extramental). O ente lógico tem a ~+§ 1-2
função de unir mais conceitos, mas isso não significa que para
cada ente lógico corresponda um ente real (por exemplo, ao conceito de cegueira
não corresponde nenhum ente real). É esta a posição do "realismo moderado"
que recorre ao poder de abstração do intelecto para explicar os universais.

••Tudo o que existe é ente e, portanto, também Deus e o Q ser


mundo. Todavia, Deus e o mundo são entes de modo diverso: p0r analogia
o ser se predica deles por analogia; Deus é o ser, o mundo tem §3
o ser.

«•A essência é o "o que é" de uma coisa, mas é apenas po- , .
tência de ser: apenas em Deus potência e existência coincidem; mnühoen
no mundo e no homem não há correspondência entre potência §3 9
de ser e existência real. Por este motivo, apenas Deus é necessá­
rio (possui como próprio o ato de ser): o mundo, ao contrário, é
contingente, porque possui o ser apenas por participação.

• Em Tomás o ato de ser tem proeminência sobre a essência, a tal ponto que
sua filosofia pode ser considerada uma metafísica do ser. O problema dominante
é, portanto, estabelecer o que é o ser (e não o que é a essên­
cia), ou por que existe o ser e não o nada. Mas a solução per- Q serprevaiece
tence ao âmbito do mistério, e ao homem cabe maravilhar-se a sobre a essênc/a
cada momento do fato de que tudo o que é existe, enquanto §4
seria mais lógico que não existisse. Diverso, porém, é o discur­
so sobre os modos de ser que são para nosso filósofo as dez
categorias.
Os
• Todo ente compreende em si o uno, o verdadeiro e o transcendentais
bom (os assim chamados transcendentais do ser), motivo pelo do ser
qual se pode dizer que o ser é uno, verdadeiro e bom. 5

• Dizer que o ser é uno significa afirmar que ele é intrinse-


camente não contraditório; mas também neste caso a unidade g™ ^^
se predica de Deus e do homem apenas por analogia. Deus, ^§57
com efeito, é verdadeiramente simples; o homem, ao contrá- '
rio, é uma unidade por composição (essência + actus essendí).

• O verdadeiro é um transcendental do ente no sentido de que todo ente é


inteligível. Mas isso pode ser dito em dois sentidos: de um lado, para afirmar que
existe uma verdade ontológica (todo ente é verdadeiro por­
que se adapta ao intelecto divino que o pensa), e por outro Omne ens
lado para afirmar que existe uma verdade lógica, que é a ade- est verum
quação da nossa mente humana ao objeto. A verdade de um §52
ente depende do grau de ser que possui; neste sentido, Deus,
que é sumo ente, é também suma verdade.

* Por fim, tudo o que é, é também bom porque é fruto da Omne ens
bondade difusiva de Deus. Nessa luz Deus se apresenta como est b° num
Sumo bem. - > § 5.3
216 Sexta parte - j A íE sco lás+ ica k\o s é c u l o d é c i m o \e-V-cc\v-o

• Dado que Deus é causa do criado, o próprio criado


Semelhança apresenta algumas semelhanças com Deus. Por outro lado, a
e dessemelhança
transcendência de Deus implica também uma insuperável
de Deus
com o criado: dessemelhança entre o Criador e o criado, a ponto de nosso
a relação conhecimento de Deus (pelo fato de que Deus não tem ne­
de analogia nhuma essência específica) tornar-se impossível, e exprimível
e a teologia apenas por via negativa. Essa contemporânea semelhança e
negativa dessemelhança do mundo com Deus constitui a relação de ana­
->§6-7 logia.

1 O c o n c e ito d e e n te qual o intelecto expressa o fato de que cer­


tos olhos não vêem” (S. Vanni Rovighi).
Assim, nem tudo o que é objeto do pensa­
mento existe no modo como é pensado. Não
Tomás expõe as linhas fundamentais
se devem hipostatizar os conceitos, acredi­
da metafísica em sua obra juvenil O ente e
tando que cada um deles tenha uma corres­
a essência, onde explicita os conceitos de
pondência na realidade.
ente e de essência, delineando os traços ca­
Nesse sentido, é compreensível o rea­
racterísticos das premissas teoréticas que
lismo moderado de Tomás, segundo o qual
sustentarão sua construção filosófico-teoló-
o caráter universal dos conceitos é fruto do
gica.
poder de abstração do intelecto. O univer­
O conceito fundamental é o de ente, com
sal não é real, porque somente o indivíduo
o qual se indica qualquer coisa que exista.
é real. Essa universalidade, porém, não está
Ele pode ser tanto lógico ou puramente con­
privada de algum fundamento na realida­
ceituai, como real ou extramental. Essa dis­
de, da qual, com efeito, se deduz. Elevando-
tinção é da maior importância, porque sig­
se acima da experiência sensível, o intelecto
nifica que nem tudo o que é pensado existe
alcança uma universalidade que, em parte,
realmente. O ente lógico e o ente real são duas
é expressão de sua ação de abstração e em
vertentes que se precisa manter distintas.
parte é expressão da realidade.

2 O eia+e Ió a ic o
CD eiafe re a l
e a d is tin ç ã o
Pois bem, o ente lógico se expressa pelo
verbo auxiliar ser, conjugado em todas as for­ e n tr e e s s ê n c i a e e x is t ê n c ia
mas: “A sua função é a de unir vários con­
ceitos, sem com isso pretender que eles exis­
tam efetivamente na realidade, pelo menos Toda realidade, tanto o mundo como
do modo como são concebidos por nós. Nós Deus, é ente, porque tanto o mundo como
usamos o verbo ‘ser’ para expressar cone­ Deus existem. O ente diz respeito a tudo,
xões de conceitos, que são verdadeiras en­ tanto ao mundo como a Deus, mas de modo
quanto ligam corretamente tais conceitos, analógico, porque Deus é ser, mas o mundo
mas não expressam a existência dos concei­ tem ser. Em Deus, o ser se identifica com
tos que ligam. Quando dizemos que ‘a afir­ sua essência, razão pela qual também é cha­
mação é contrária à negação’ ou que ‘a ce­ mado “ato puro” e “ser subsistente”, mas na
gueira está nos olhos’, falamos a verdade, criatura, ao contrário, se distingue da essên­
mas esse ‘está’ não significa que existe a afir­ cia, no sentido de que esta não é a existência,
mação nem que existe a cegueira. Existem mas tem a existência, ou melhor, o ato gra­
homens que afirmam e existem coisas sobre ças ao qual não é mais lógica, mas sim real.
as quais podem-se pronunciar afirmações, Esses dois conceitos tão freqüentes, de
mas não existem afirmações. Existem olhos essência e ato de ser (actus essendi), são as
privados de sua função normal, mas não duas pilastras do ente real. A essência indi­
existe a cegueira: a cegueira é o modo pelo ca “ o que é” uma coisa, ou seja, o conjunto
217
Capitulo décimo tcvccivo - f \ g r a n d e , sín tese d e T o m á s d e ;Aquino

dos dados fundamentais pelos quais os en­ das essências, um fundamento que funda a
tes — Deus, o homem, o animal, a planta realidade e a própria possibilidade das es­
— se distinguem entre si. No que se refere a sências.
Deus, a essência se identifica com o ser, mas Pois bem, diante desse tema do ser, pa­
para todo o resto significa aptidão para ser, rece-nos necessário dizer logo que ele pertence
isto é, potência de ser (id quod potest esse). ao âmbito do mistério, do indizível, já que
O que significa que, se as coisas existem, funda a própria possibilidade de todo dis­
não existem necessariamente, podendo tam­ curso. E um fundamento que não buscamos,
bém não existir, e se existem, podem perecer pelo simples fato de que está sempre já pre­
e não existir mais. Sua essência é aptidão sente no fato de ser dos entes, nesse milagre
para ser e não, como em Deus, identificação pelo qual o que poderia não ser existe de fato.
com o ser. E como a essência das criaturas Trata-se da redescoberta da estupefação dian­
não se identifica com a existência, o mundo, te do mistério do ser, fazendo renascer a es­
em seu conjunto e em cada um de seus compo­ tupefação originária que desperta em nós
nentes, não existe necessariamente, ou seja, quando percebemos o dom inestimável e in­
é contingente, podendo ser ou não ser. dizível do ato graças ao qual somos tirados
Por fim, enquanto é contingente, o mun­ do nada para o ser. Esse é o primeiro e fun­
do, se existe, não existe por sua virtude — damental alicerce, que obscurece o proble­
pois sua essência não se identifica com a ma posterior do modo de ser, expresso por
existência — mas em virtude de outro, cuja Tomás com as dez categorias (a substância e
essência se identifica com o ser, isto é, Deus. os nove acidentes), que são tentativas de des­
Esse será o núcleo metafísico que sustenta­ crever todos os possíveis modos de ser.
rá as provas de santo Tomás em favor da Tal filosofia é otimista, porque desco­
existência de Deus. bre um sentido profundo no fundo daquilo
Nesse conjunto, fica evidente que, se o que existe; é uma filosofia do concreto, já
discurso sobre a essência é fundamental, que o ser é o ato graças ao qual as essências
mais fundamental ainda é o discurso sobre existem de fato. Mas também é a filosofia
o ser, ou melhor, sobre o ato de ser, possuído do crente, porque só o crente pode propor
originalmente por Deus, e de forma derivada as essências à discussão e captar o ato bási­
ou por participação pelas criaturas. 2 co e positivo graças ao qual existe algo ao
invés de nada. Mas esse discurso nos leva a
falar das conotações do ser ou transcenden­
tais (uno, verdadeiro, bom).
4 AJovidade
da peespectiva fomis+a
em relação 5 CDs fmusceudentais:
à ontologia 0 re 0 a o ente como uno,
verdadeieo, bom

Não sem razão a metafísica de Tomás


foi definida como metafísica do ser ou do A noção de “transcendental” implica
actus essendi. Com efeito, o ser é o ato que a identificação total de “ uno” , “verdadei­
realiza a essência, que em si mesma não pas­ ro” e “ bom” com o ente, no sentido em que
sa de poder-ser. Trata-se, portanto, de filo­ são inseparáveis dele, a ponto de se conver­
sofia do ser, não de filosofia das essências terem totalmente entre si. De modo que di­
ou dos entes, mas do ser que permite às es­ zer que o uno, o verdadeiro e o bom são os
sências se realizarem e se transformarem em transcendentais do ser significa dizer que o
entes. Trata-se, pois, de uma perspectiva in­ ser é uno, verdadeiro e bom.
teiramente nova em relação à ontologia gre­
ga. Como reflexo disso, as perguntas mais
típicas dessa filosofia não dizem respeito às m a unidade do ente

essências, mas ao ser: o que é o ser e por (“omne eus est unum”)

que ele existe ao invés do nada?


Sendo a metafísica do ser, a metafísica Dizer que o ser é uno significa dizer
de Tomás pretende nos oferecer um funda­ que ele é intrinsecamente não contraditó­
mento do saber mais profundo do que o rio, não sendo dividido, embora seja parti-
218 Sexta parte - A < £ s c o l ó s t i c a v\o s é c u l o d é c i m o t e r c e i r o

cipável. Aliás, a unidade depende do grau


de ser, no sentido de que, quanto maior é o
grau de ser que se possui, maior é a unida­
de. A unidade de um monte de pedras é
menor do que a unidade de Pedro ou de
Paulo, porque o ser possuído por um e por
outro é diferente. A filosofia de Tomás não
é filosofia da unidade, mas sim filosofia do
ser e, conseqüentemente, da unidade. O ser
é o fundamento da unidade: a unidade de
Deus é diferente da unidade de Pedro e esta
da unidade de uma pedra, precisamente por
causa dos diversos graus de ser. A unidade
de Deus é a unidade da simplicidade, por­
que o ser é total; a unidade de Pedro é a
unidade da composição (essência + actus
essendi) como o é a unidade da pedra, só
que em grau inferior. A unidade trans­
cendental não é identificável com a unida­
de numérica: a primeira diz respeito a todo
ente, ao passo que a segunda só aos entes
quantitativos, isto é, aqueles entes que, de
posse da quantidade ou matéria, são men­
suráveis. A unidade transcendental pertence
ao âmbito da metafísica, ao passo que a
unidade numérica, ao âmbito da matemá­
I .etra capitular com ilummtirii,
tica. representando santo Tomás.

l i l .A ver dade do ente


("emine ens est ve mm”)
dizer que todo ente é expressão do ar­
O verdadeiro é um transcendental do quiteto supremo que, ao criar, pretendeu
ente no sentido de que todo ente é inteli­ realizar um projeto preciso. E essa é a ver­
gível, racional. Nesse ponto, deve-se des­ dade ontológica, isto é, a adequação de
tacar que, no livro VI da Metafísica, à um ente, de todo ente, ao intelecto divino
pergunta se a metafísica deve tratar da ver­ (adaequatio rei ad intellectum). A verdade
dade, Aristóteles responde de forma ne­ ontológica deve-se distinguir da verdade
gativa. E a razão é a seguinte: a metafísica lógica ou verdade humana, que é ou deve
trata do ser real e não da verdade, que não tender a ser adequação de nosso intelecto
está nas coisas, mas sim na mente, ou me­ às coisas (adaequatio intellectus nostri ad
lhor, no juízo do intelecto, que compõe e rem).
decompõe os conceitos e os liga entre si. O que se disse sobre a unidade vale
M ais do que na metafísica, o lugar para se também para a verdade ontológica. A ver­
tratar da verdade é a lógica, já que a ver­ dade do ente depende do grau de ser que ele
dade está no pensamento e não na reali­ possui. Deus é a suma verdade porque é o
dade. sumo ser. Os entes finitos são mais ou me­
Tomás, embora dando o devido espa­ nos verdadeiros com base no grau de ser ou
ço à lógica e à abordagem de seus princí­ de participação no ser divino. Todos os en­
pios fundamentais (princípio de identida­ tes, porém, são verdadeiros, porque cada
de, princípio da não-contradição, princípio qual a seu modo expressa um projeto, tem
do terceiro excluído e anexos a eles rela­ uma razão de ser, apresenta uma vocação:
tivos), considera que a metafísica também alguns são necessariamente fiéis a tal voca­
deve tratar da verdade, pelo fato de que o ção; outros, dotados de inteligência e von­
mundo e as criaturas individualmente são tade, podem ser fiéis ou trair tal vocação,
expressão do projeto divino, são fruto do que, no entanto, permanece inscrita em sua
pensamento de Deus. Assim, quando ele essência ou natureza, como uma espécie de
afirma que todo ente é verdadeiro, quer permanente lembrete.
Capitulo décimo tCYCCÍYO - y \ g r a n d e s í n t e s e d e Tio m á s d e y \ q u i n o
219

;A b o n d a d e d o e n t e
f o m n e e n s e s t b o n n m ”)

Embora não se possa considerá-la a te­ ■ Transcendentais. Com este termo


se fundamental, esta certamente é a tese que indicam-se as propriedades que com­
qualifica a metafísica de Tomás como cris­ petem a todo ser, e que, portanto,
tã. Tudo aquilo que existe, todo ente, é bom, transcendem (vão além) as categorias
porque é fruto e expressão da bondade su­ singulares.
prema e livremente difusiva de Deus. Assim Os principais são o "uno", o "verda­
como uma idéia musical não pode ser ex­ deiro" e o "bom" (mas poderiamos
pressa por meio de um único som, pela ri­ acrescentar também o "belo"):
- o uno indica a simplicidade e a não
queza dela e pela pobreza deste, da mesma contraditoriedade do ente;
forma a suprema bondade de Deus não pode - o verdadeiro indica a cognoscibili-
se revelar por meio de uma única criatura. dade e a racionalidade do ente;
Com suas infinitas maravilhas, o mundo é - o bom indica a amabilidade e o grau
uma primeira tentativa de expressar tal bon­ de perfeição do ser.
dade. Assim, todas as coisas, singularmente
e em seu conjunto, são boas, porque possu­
em um grau de ser e de perfeição. Omne
ens est bonum quia omne ens est ens. O cris­
tão não pode ser pessimista. Ele é radical­
mente otimista. E a estupefação admirada
diante do criado reflete atitude ainda mais relação a um ente privilegiado, a uma es­
radical, precisamente a atitude de quem se sência particular, não equivocamente, mas
sente partícipe da bondade de Deus e sente- como se atribui o “ ser sadio” ao ser vivo, à
se orgulhoso de descobrir tal dependência, medicina que é sua causa e à cor do rosto
que exalta e não humilha. que é seu efeito. Da mesma forma ocorre
Mas, se todo ente é bom porque, a seu com o ser: são seres a substância e os aci­
modo, todo ente é uma perfeição, da mes­ dentes, mas a substância de modo particu­
ma forma todo ente é bom porque é objeto lar, principal, primeiro e privilegiado, e os
de uma vontade ou, em geral, de uma ape- acidentes somente enquanto modificações
tência ou desejo. Bonum est quod omnia secundárias da substância. Disso tudo, evi­
appetunt, ou seja, a bondade implica o de­ dencia-se que Aristóteles se interessa pela
sejo de tal perfeição. As coisas são boas en­ razão horizontal dos seres entre si e fala da
quanto queridas por Deus de forma gera­ analogia em relação à substância e aos aci­
dora — Deus cria amando —; pelo homem dentes. Já Tomás de Aquino, embora esta­
de forma derivada: o homem ama as coisas belecendo a posição de que o ser diz respei­
porque são boas. Partindo da perspectiva to aos entes finitos, se interessa mais pela
do bem enquanto algo por nós desejado, relação entre Deus e o mundo, diferentemen­
Tomás distingue o bem honesto, que é o bem te de Aristóteles. Este se move em direção
desejado por si mesmo; o bem útil, que é o horizontal, Tomás em direção vertical, fa­
bem desejado como meio para conseguir zendo referência particular ao transcenden­
alguma outra coisa; o bem deleitável, que é te. E, a esse propósito, fala da analogia que,
o bem desejado pelo prazer que oferece. A além de esclarecer a relação entre os entes
essa altura, é óbvio que o bem honesto e finitos, torna precisa a relação entre Deus e
deleitável é Deus e que os outros bens são as criaturas, entre o infinito e o finito.
tais tendo em vista o fim a que devem con­ À medida que participam do ser de
duzir. Deus, as criaturas em parte se assemelham
a ele e em parte não. Não há identidade en­
tre Deus e as criaturas, mas também não há
equivocidade (isto é, diferença absoluta),
6 A a n a \ o c i\ a do ser pois sua imagem está refletida no mundo.
Assim, há entre Deus e as criaturas uma re­
lação de semelhança e dessemelhança. Pois
No livro IV da Metafísica, Aristóteles bem, semelhança e dessemelhança, tomadas
escreve que o ente se predica das coisas de conjuntamente, constituem uma relação de
modo múltiplo e diverso, mas sempre em analogia, no sentido de que aquilo que se
220 Sexta parte - y \ (z^sco lastica f\o s é c u l o décim o te r ce i uo

predica das criaturas pode-se predicar de


Deus (e por isso Deus é semelhante às cria­
turas), mas não do mesmo modo nem com
a mesma intensidade (e, portanto, em tal ■ A nalogia. Com este termo indica-
sentido, Deus e as criaturas são desseme­ se a relação de participação que exis­
te entre o ser infinito de Deus cria­
lhantes). dor e o ser finito dos entes criados:
trata-se de uma relação analógica, isto
é, de semelhança, intermediária entre
a univocidade e a equivocidade, o
7 Xeaiascertdervcia de Xeus que significa nem completamente
idêntico nem completamente dife­
e teologia negativa rente.
O ser é o conceito analógico por ex­
celência, enquanto se predica de toda
O fundamento metafísico da analogia realidade, porém seu modo varia es­
está no fato de que, causando, a causa trans­ sencialmente de um gênero para o
mite-se a si mesma, de certo modo, ao cau­ outro.
sado. A semelhança, portanto, não é uma
qualidade adicional, um acidente que se
acrescenta do exterior, mas é co-essencial à
natureza do efeito, do qual nada mais é do
que o sinal externo. Quem recorda as im­
plicações do ser e suas propriedades não se
surpreenderá diante da observação de.que rior à teologia positiva. Nós sabemos mais
o mundo é sagrado, porque sua relação de aquilo que Deus não é do que aquilo que Deus
dependência em relação a Deus está inscri­ é. Por isso, na opinião de alguns, a analogia
ta em seu próprio ser. está mais próxima da equivocidade do que
Assim como é bastante vivo o sentido da univocidade, ou seja, salienta de maneira
de semelhança, também é muito vivo o senti­ marcada mais aquilo que distingue Deus do
do de dessemelhança entre criador e criaturas. criado, do que aquilo que o aproxima.
Estabelece-se aqui o sentido da transcendên­ Podemos expressar essa relação pro­
cia de D eus e, portanto, o sentido da teolo­ funda entre o ser de Deus e o ser do mundo
gia negativa. Se é certo que conhecemos al­ recorrendo às palavras de um agudo intér­
guma coisa de Deus, também é certo que esse prete do pensamento de Tomás: “ Os entes
nosso conhecimento, tal como é formulado participam do ser, o que significa que seu
por nós, não reflete a natureza de Deus. Deus ser não é o ser. A diferença é a própria par­
non babet essentiam, quia essentia sua non ticipação: os muitos são ‘outros’ em rela­
est aliud quam suum esse (“ Deus não tem ção ao Uno, não algo ‘fora’ do Uno. Graças
essência, porque sua essência não é mais que à diferença, o Ser e os entes estão ao mesmo
o seu ser” ). Se Deus não tem nenhuma es­ tempo na mais estreita relação de pertença
sência, porque esta se identifica com o ser, e e na máxima distância: participar é ter junto,
se todo o nosso conhecimento é tentativa para mas é ao mesmo tempo não-ser o ato e a per­
precisar sua natureza, então podemos com­ feição de que se participa, justamente por­
preender por que a teologia negativa é supe- que só se participa” (C. Fabro). U J
Capítulo décimo terceiro - A g ra n d e- s ín te s e d e T o m á s d e A q « i n o

TOMÁS
A ONTOLOGIA

ENTE UNO
> o ser e uno,
ou seja,
A. não é
autocontraditório,
ENTE LÓGICO é indivisível,
ENTE REAL mas é participável
nem tudo
o que é pensado existe tudo o que existe é ente,
assim como é pensado. mas de modo analógico:
4
O caráter universal Deus, p. ex., é o ser,
dos conceitos enquanto o criado tem o ser
fruto da faculdade abstrativa por participação.
do Intelecto \ O ente real
(= realismo moderado) se distingue em:

- - TRANSCENDENTAIS
' .

j (verdadeiro, uno, bom)


o ser é uno,
verdadeiro e bom
.* ~-
ESSÊNCIA r
atitude/potência para ser.
É universal BOM
ATO DE SER o ser é bom
é aquilo que existe de fato. porque desejado
Nas criaturas pela bondade
essência e ato de ser de Deus
são distintos;
em Deus coincidem
r '
DEUS
apenas em Deus VERDADEIRO
essência e existência
o ser é verdadeiro
coincidem.
porque
Deus tem o ser
é inteligível
de forma originária;
e é inteligível
o mundo
porque Deus
por participação
o pensou
para criá-lo

MUNDO CRIADO
as criaturas, enquanto participam do ser divino,
em parte se assemelham a Deus e em parte não.
Isto significa que entre Deus e o mundo há analogia,
no sentido que aquilo que se predica das criaturas
também se pode predicar de Deus,
não, porém, do mesmo modo,
nem no mesmo grau
222
Sexta parte - y \ íB s c o lá s - H c a n o s é c u lo d é c im o te ^ ce i^ o

III. y \ te o lo gia:
a s c i n c o v ia s p a r a p r o v a r a e x i s t ê n c i a d e D e u s

• Deus, para Tomás, é o primeiro na ordem ontológica,


/\s cinco vias
para demonstrar mas não na gnosiológica; isso significa que não se capta ime­
a existência diatam ente, mas por via de inferência, a partir de seus efei­
de Deus tos. Neste sentido, nosso filósofo formulou cinco demonstra­
~^§1 ções da existência de Deus, conhecidas com o nome de "cinco
wi -»r,f

• A primeira via (do movimento) parte da consideração de


A primeira via,
do movimento que tudo o que se move é movido por outro e que, portanto,
h>§2 para não terminar em um regresso ao infinito que nada expli­
caria, é preciso admitir um primum movens que não é movido
por nada: e este é Deus.

• A segunda via (da causa), a partir da constatação de que


A segunda via,
da causa nenhuma coisa pode ser causa de si mesma, deduz o fato de
-^§3 que deve existir uma causa primeira e não-causada, que pro­
duz e não é produzida, que se identifica com o ser que se cha­
ma Deus.

A terceira via, • A terceira via (da contingência) parte do princípio de que


da contingência o que pode não ser, um tempo não existia. Se, portanto, todas
>§ 4 as coisas podem não ser (são contingentes), em dado momento
nada existia na realidade. Porém, se isso for verdade, também
agora não existiría nada (porque o que não existe não começa a existir a não ser
por causa daquilo que já existe), a menos que não exista alguma coisa de necessa­
riamente existente. Concluindo: nem tudo pode ser contingente, mas é preciso
que haja algo necessário, e é aquilo que costumeiramente se chama Deus.

A quarta via, • A quarta via (dos graus de perfeição) deduz, da consta­


dos graus tação empírica de uma gradação de perfeições (bem, verda­
de perfeição de...), a existência de uma suma perfeição, que é justamente
—>§ 5 chamada Deus.

«»A quinta via (do finalismo) parte da constatação de que


A quinta via, os corpos físicos operam para um fim e deduz que eles agem
do finalismo de tal modo porque são dirigidos por um ser inteligente, como
-> $ 6 a flecha do arqueiro. Ora, este ordenador supremo é aquele
que chamamos Deus.

1 i ( Z o n h ecimento " a posteeioei" Para Tomás, Deus é o primeiro na ordem


ontológica, mas não na ordem gnosiológica.
da existência de Deus
Mesmo sendo o fundamento de tudo, Deus
deve ser alcançado por caminhos a posteriori,
No contexto das linhas metafísicas ex­ isto é, partindo dos efeitos, do mundo. As­
postas, não será difícil captar o valor das sim, se na ordem ontológica Deus precede
cinco provas ou vias por meio das quais To­ suas criaturas como a causa precede os efei­
más alcança a única meta, Deus, no qual tos, na ordem gnosiológica ele vem depois
tudo se unifica e adquire luz e coerência. das criaturas, no sentido de que é alcança-
Capitulo décimo tcvccivo - y\ g r a n d e s í n t e s e d e T o m á s d e y \ q ui no
223

do a partir da consideração do mundo, que vido e é movido por outro, ou seja, por quem
remete ao seu autor. O ponto de partida de está em ato, sendo, portanto, capaz de ope­
cada via, de quando em vez, é constituído rar a passagem da potência ao ato. O prin­
por elementos extraídos da cosmologia aris- cípio omne quod movetur ab alio movetur
totélica que Tomás utiliza, confiante em sua é universal, devendo, portanto, ser aplica­
eficácia persuasiva, num momento em que do a tudo aquilo que, de algum modo, se
o aristotelismo era a filosofia hegemônica. move. Em virtude de tal princípio, dever-se-
Mas a força probatória dos argumentos em ia compreender como é frágil a objeção se­
particular é toda e sempre de índole metafí­ gundo a qual o mundo pode se explicar sem
sica, e assim pretende permanecer em situa­ recorrer a Deus, porque os fatos naturais se
ções científicas diversas. explicariam com a natureza, e as ações hu­
manas com a razão e a vontade. Tal expli­
cação é insuficiente porque recorre a reali­
dades mutáveis, mas “tudo o que é mutável
2 jA peimeim via, e defectível deve ser reconduzido a um prin­
ou via do movimento cípio imutável e necessário” . Mas eis uma
objeção: não se poderia recorrer a uma sé­
rie infinita de motores e coisas movidas?
Escreve Tomás na Summa theologiae: Não, porque o processo ao infinito ou circu­
“A primeira [via], que é a mais evidente, é a lar desloca o problema e não o explica, ou
que parte do movimento. Com efeito, é cer­ seja, não encontra a razão última da muta­
to e sabido pelos sentidos que algumas coi­ ção. Portanto, é necessário afirmar a existên­
sas se movem neste mundo. Ora, tudo aqui­ cia de um primum movens quod in nullo mo-
lo que se move é movido por outro, já que veatur, isto é, a existência de um imutável.
uma coisa não se desloca se não for em po­ E esse imutável é o que todos chamam Deus.
tência em relação ao termo do movimento;
ao passo que quem move, move enquanto
está em ato. Com efeito, mover quer dizer
levar da potência ao ato. Ora, uma coisa não 3 ;A s&guncla via,
pode ser levada de potência a ato senão em ou via da causalidade eficiente
virtude de um ente que já está em ato. Por
exemplo, aquilo que é quente em ato, como
o fogo, torna quente a madeira, que estava “A segunda via parte da noção de cau­
quente em potência, e assim a muda e a al­ sa eficiente. No mundo das coisas sensí­
tera. Mas não é possível que a mesma coisa veis nos defrontamos com a existência de
esteja ao mesmo tempo em ato e potência uma ordem de causas eficientes. Não há
sob o mesmo aspecto. Só pode sê-lo sob as­ caso conhecido e, na verdade, é impossível
pectos diversos: aquilo que é quente em ato que uma coisa seja a causa eficiente de si
não pode sê-lo também em potência, mas é, mesma, porque para tanto deveria ser an­
ao mesmo tempo, frio em potência. Assim, terior a si mesma, coisa inconcebível. Ora,
é impossível que, sob o mesmo aspecto e ao não é possível ir ao infinito na série das cau­
mesmo tempo, uma coisa seja movente e mo­ sas eficientes, porque em todas as causas efi­
vida (movens et motum), ou seja, que mova cientes ordenadas a primeira é a causa da
a si mesma. Portanto, tudo aquilo que se intermédia e a intermédia é causa da última,
move deve ser movido por outro” . podendo as causas intermediárias ser vá­
Essa é a via movimento, considerada a rias ou uma só. Ora, anular a causa significa
primeira e mais manifesta, para chegar ao anular o efeito. Por isso, se não houver uma
primeiro Motor. Se nas outras formulações, causa primeira entre as causas eficientes,
seguindo de perto Aristóteles, Tomás se de­ não haverá nem causa intermediária nem
tém nos diversos modos pelos quais um ente causa última. Mas, proceder ao infinito nas
pode se mover, nesta formulação mais ma­ causas eficientes significa eliminar a causa
dura o aspecto cosmológico é secundário, eficiente primeira; assim não teríamos nem
emergindo com força o aspecto metafísico. efeito último, nem causas eficientes inter­
O movimento é analisado como passagem mediárias, o que, evidentemente, é falso.
da potência ao ato, passagem que não pode Por isso, é necessário admitir uma primei­
ser efetuada por aquilo que se move, por­ ra causa eficiente, à qual todos dão o nome
que, caso se mova, isso significa que é mo­ de Deus” .
224 Sexta patte - ; A ( S s c o l á s + i c a n o s é c u l o d é c i m o t e ^ c e i^ o

À primeira vista, o argumento parece O argumento, portanto, se baseia em dois


subentender o universo de esferas concên­ elementos: por um lado, todas as causas efi­
tricas que é típico do pensamento antigo. cientes causadas por outras causas eficien­
Com efeito, nessa visão, a causalidade efi­ tes; por outro lado, a causa eficiente não-
ciente exercida no plano de uma das esferas causada, que é a causa de todas as causas.
se justifica pela causalidade eficiente da es­ No fundo, trata-se de responder a esta in­
fera imediatamente superior; além disso, o terrogação: como é possível que alguns en­
número de esferas intermediárias não pode tes sejam causas de outros entes? Indagar
ser infinito, porque, se assim fosse, não ha­ sobre essa possibilidade significa chegar a
vería a primeira causa eficiente e, conseqüen- uma causa primeira não-causada, que, se
temente, não haveria causas intermediárias existe, identifica-se com aquele ser que cha­
nem efeitos últimos, o que é falso. Entre­ mamos Deus.
tanto, quando afirma que não importa “ que
as causas intermediárias sejam várias ou
uma só” , Tomás dá a entender que não quer
ligar a validade dessa prova à cosmologia 4 ;A teeceira via,
antiga. Sua prova tem valor metafísico e não ou via da contingência
físico. Com efeito, ele pretende dar razão
da existência da causalidade eficiente no
mundo. E isso é impossível enquanto não “A terceira via deriva do possível [ou
se chega a uma causa eficiente primeira, isto contingente] e do necessário, e é esta. Encon­
é, uma causa que produz e não é produzida. tramos coisas que têm possibilidade de ser e

Tomus Primus,
D- T H O M A E A Q V I N A T I S
D 0 C T O R 1 S A N G E L I C t
COMPLECTEHS.
Via» iftmbeitíThon»* exdiMsfouthonbnicoIfcâain.
ExpoGàowm ia Primam St Secundam Perihemenát.ct
Ia Primam & Secando» Pofterioram Aiulyocamm.
' ÀR.1STOTELIS.

Frontispíúo do primeiro tomo


da Opera omnia
de Tomás de Aqumo
(Roma, 1570).
No centro da incisão
está retratado Tomás.
Capitulo dédm O terceiro - y \ g r a n d e sín tese d e T o m á s d e jA qu in o
225

não ser, pois constatamos que se geram e se elas se aproximam mais ou menos a algo de
corrompem e, conseqüentemente, lhes é pos­ sumo e absoluto; assim, mais quente é aquilo
sível tanto ser como não ser. Mas é impossí­ que mais se aproxima do sumamente quen­
vel que todas as coisas dessa natureza tenham te. Dessa forma, existe algo que é verdadei­
existido sempre, pois o que pode não ser, em ro, nobre e bom em grau máximo e, conse­
algum tempo não existia. Por isso, se todas qüentemente, algo que, em grau máximo, é
as coisas [existentes na natureza são tais que] ser, já que o que é máximo, na verdade, é
podem não existir, em algum tempo não ha­ máximo também no ser, conforme diz Aristó­
vería nada de existente. Ora, se isso é verda­ teles. Ora, o que é máximo em cada gênero
de, também agora não havería nada de exis­ é a causa de todos os que pertencem àquele
tente, pois o que não existe só começa a existir gênero: por exemplo, o fogo, que é máximo
por meio de alguma coisa que já existe. Por no calor, é causa de todas as coisas quentes,
isso, se em algum tempo não havia nenhum conforme diz também Aristóteles. Por isso,
ser, teria sido impossível alguma coisa come­ deve haver algo que para todos os entes é a
çar a existir e, assim, também agora nada causa de seu ser, de sua bondade e de toda
existiría, o que, evidentemente, é falso. Por outra perfeição. E a isso chamamos Deus” .
isso, nem todos os entes são contingentes, mas Também esse caminho parte da consta­
é preciso que na realidade haja alguma coisa tação empírica, metafisicamente interpreta­
necessária. Ora, toda coisa necessária tem a da, relativa à gradação dos entes, segundo a
sua necessidade causada por outra, ou não. qual o ser é participado e expresso diversa­
Ora, é impossível ir ao infinito nas coisas mente. Elá um mais ou um menos no plano
necessárias, que têm a causa de sua necessi­ do ser e, conseqüentemente — recorde-se o
dade em alguma outra coisa, como já foi de­ que já se disse a propósito dos transcendentais
monstrado a respeito das causas eficientes. —, no nível de bondade, de unidade e de ver­
Por isso, não podemos deixar de admitir a dade. Quanto mais ser um ente tiver, tanto
existência de um ser que seja em si mesmo mais é uno, verdadeiro e bom. Ora, constata­
necessário, e não receba de outros a própria da essa gradação, passa-se à explicação, afir­
necessidade, mas seja causa de necessidade mando que as coisas mais ou menos verda­
para os outros. E a este todos chamam Deus” . deiras, boas etc., o são em relação a um ser
Este argumento parte da constatação absolutamente uno, verdadeiro e bom, que
de que as criaturas, já que nascem, crescem possui o ser de modo absoluto. Esta é a ra­
e morrem, são contingentes e, portanto, pos­ zão da passagem: se os entes têm um grau
síveis, isto é, não possuem o ser em virtude diverso de ser, isso significa que tal fato não
de sua essência. Como exemplificar, então, lhes deriva em virtude de suas respectivas
a passagem da possibilidade à existência essências, caso em que seriam sumamente
atual e, portanto, ao grau de ser ou necessi­ perfeitos. E, se não deriva de suas respecti­
dade que de fato possuem? Se tudo fosse vas essências, isso significa que o receberam
possível, teria havido um tempo em que de um ser que dá sem receber, que permite a
nada teria existido e agora nada existiría. participação sem ser partícipe, porque é fon­
Se quisermos explicar a existência atual dos te de tudo o que de algum modo existe.
entes, isto é, a passagem do estado possível
ao estado atual, é preciso admitir uma cau­
sa que não foi e não é de modo algum con­ 6 A quinta via,
tingente ou possível, porque está sempre em
ou via do j-inalismo
ato. E essa causa se chama Deus.

“A quinta via se depreende do governo


5 A quarta via, das coisas. Nós podemos ver que algumas
ou via dos gMus de perfeição
coisas, que carecem de conhecimento, como
os corpos naturais, agem em função de um
fim. E isso é evidente pelo fato de que sempre
“A quarta via diz respeito à gradação ou quase sempre agem do mesmo modo, para
que se pode encontrar nas coisas. É um fato obter a perfeição. Portanto, está claro que não
que nas coisas se encontra o bem, o verda­ alcançam seu fim por acaso, mas por uma
deiro, o nobre e outras perfeições em grau predisposição. Ora, tudo o que não tem inteli­
maior ou menor. Mas o grau maior ou me­ gência não tende ao fim, a menos que seja diri­
nor se atribui às diversas coisas conforme gido por algum ente dotado de conhecimento
226 Sexta parte - y \ fc sc oléstica e\o s é c u lo d é c im o te^cem o

e inteligência, como a flecha lançada pelo ar­ algumas coisas, coisas que têm em si um prin­
queiro. Por isso, existe algum ser inteligente cípio de unidade e finalidade. E a segunda é
que dirige todas as coisas naturais para seu fim. que as exceções devidas ao acaso não redu­
E esse ser nós chamamos Deus” . zem a validade desse ponto de partida.
Também este último caminho parte da Ora, se o agir em função de um fim
constatação de que as coisas ou algumas de­ constitui certo modo de ser, pergunta-se qual
las agem e operam como se tendessem para seja a causa dessa regularidade, ordem e fi­
um fim. Dizendo que alguns corpos naturais nalidade, constatáveis em alguns entes. Tal
agem sempre ou quase sempre do mesmo causa não se pode identificar com os próprios
modo, Tomás quer destacar duas coisas. A pri­ entes, visto que eles são privados de co­
meira é que ele não parte da finalidade de todo nhecimento (cognitione carent) e, neste caso,
o universo (quando muito, apenas a aborda) é necessário o conhecimento do fim. Desse
e não pressupõe uma concepção mecanicista modo, é preciso remontar a um Ordenador,
da natureza, na qual Deus interviria, juntan­ dotado de conhecimento e em grau de dar
do pedaços indiferentes para constituir o re­ ser aos entes daquele modo específico no qual
lógio. A finalidade constatada diz respeito a eles de fato operam.

TOMÁS
AS CINCO PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS

Primeira via DEUS Quinta via


d o m ovim en to _í as cinco provas d o fin alism o
Tudo aquilo que se move é V (= vias) da existência J Existe um finalismo no
movido por outro. \ de Deus cosmo, e isso implica a
E preciso então crer na ____ existência de uma causa
existência de um prim u m / \ inteligente e finalizante:
m ovens. E este, justamente, justamente, Deus.
é Deus / \

\
\

Terceira via
d a con tin gên cia
/ As coisas são contingentes, ou \
seja, podem existir ou não \
existir. Mas aquilo que pode
existir ou não existir, algum
tempo não existiu. Isso impli­
\
ca que ouve um tempo em que \
nada existia. Mas se assim \
fosse também agora nunca
Segunda via deveria existir nada, porque Quarta via
d a c au sa é impossível que aquilo que d o s g ra u s de p erfeição
Não é possível que exista não existe comece a existir, a Existem diversos graus de
uma série infinita de cau­ não ser por algo que já exis­ perfeição, mas isso impli­
sas. Existe uma primeira te. É, portanto, necessário que ca um grau máximo ao
causa não-causada, e esta algo seja necessário. E isso é I qual referir-se. Esta suma
é Deus Deus perfeição é Deus.
Capitulo décimo tevccivo - y \ grem d e sín tese d e T o m á s d e y\q ui^ o
227

IV. y \ f e o n a d o di^eifo

• O homem, que para Tomás é natureza racional, conhece o fim das coisas,
mas não tem uma compreensão imediata do fim último de todas as coisas, isto é,
de Deus. Se tivesse a visão de Deus, seria fatalmente atraído
por ele, porém, conhecendo apenas fins parciais, sua vontade é Liberdade
livre de querê-los ou não querê-los. do homem
O homem tem, por outro lado, uma disposição natural para -> § 1
compreender os princípios das ações boas, mas pode também
deliberadamente rejeitá-los e, portanto, pecar: o pecado, por conseguinte, de­
pende do livre-arbítrio.

• Tomás distingue quatro tipos de lei: a lex aeterna, a lex naturalis, a lex
humana e a lex divina.
A lex aeterna é o plano racional de Deus, a ordem do universo. Ora, esta
ordem é em parte desconhecida para o homem e em parte conhecida: a parte
conhecida constitui a lei natural, cuja essência pode se redu­
zir à seguinte máxima: "deve-se fazer o bem e evitar o mal, e o s quatro tipos
o bem é aquilo que tende à conservação e o mal à destruição de lei
de si". Ligada à lei natural está a lei humana, isto é, o direito -» §2
positivo posto pelo homem. Este deriva da lei natural de dois
modos: ou por dedução (e então se tem o jus gentium ) ou por especificação (e
então se tem o jus civile). Por exemplo, faz parte do jus gentium a proibição do
homicídio, enquanto faria parte do jus civile a sanção para quem pratica o ho­
micídio.
Se a derivação da lei natural é essencial para a lei humana, então é eviden­
te que ela não pode contradizê-la. Uma norma que contradissesse a lei natural
não seria justa, e portanto não seria lei: é, portanto, dever de cada um desobe­
decer à lei injusta, assim como é dever rebelar-se contra o tirano enquanto
agente do mal. Acima destas leis existe a lei divina — que foi revelada no Evange­
lho — e que está ligada ao fim sobrenatural do homem, ou seja, à bem-aven-
turança eterna.

1 O I v r e - a r b ítn o E é exatamente no libero arbítrio, na


liberdade do homem (que não é de forma
alguma reduzida pela presciência de Deus,
Para Tomás, o homem é natureza racio­ que prevê o que é necessário e o que pro­
nal, isto é, um ser capaz de conhecer: ratio priamente será livre, isto é, devido unica­
est potissima hominis natura. E é justamente mente à liberdade humana), que Tomás vê
essa concepção de homem que encontramos a raiz do mal, concebido, com Agostinho,
na base da ética e da política de Tomás de como ausência de bem. “ Por sua própria
Aquino. Antes de mais nada, o homem conhe­ natureza, o homem tem o livre-arbítrio” :
ce o fim ao qual cada coisa tende por nature­ ele não se dirige para um fim, como a fle­
za, e conhece uma ordem das coisas no cume cha lançada pelo arqueiro, mas sim se diri­
da qual está Deus como Bem. supremo. N a­ ge livremente para um fim. E como há nele
turalmente, se o intelecto pudesse oferecer a um habitus natural de captar os princípios
visão beatífica de Deus, a vontade humana do conhecimento, também há sempre nele
não poderia deixar de querê-la. Mas, aqui uma disposição ou habitus natural — a
embaixo, isso não é possível. Na vida terrena, assim chamada sindérese — que o leva a
o intelecto só conhece o bem e o mal de coi­ compreender os princípios que inspiram e
sas e ações que não são Deus. Portanto, a guiam as boas ações. M as compreender
vontade é livre para querê-las ou não querê- ainda não significa agir. E o homem, justa­
las. Esse é o sentido da ratio causa libertatis. mente porque é livre, peca quando se afas­
228 Sexta parte - y\ C - s c o l ó s t i c a v\o s é c u l o d é c i m o +e**ceÍTo

ta deliberadamente e infringe as leis uni­ modos: por dedução, isto é, per modum
versais que a razão lhe dá a conhecer e a conclusionum, ou por especificação de nor­
lei de Deus lhe revela. mas mais gerais, isto é, per modum determi-
nationis. No primeiro caso, temos o jus
gentium, no segundo o jus civile.
Assim, a proibição do homicídio é par­
2 "L & x a e t e r n a " ; " le x n a t u e a lis " , te do jus gentium, mas o tipo de pena que
"lex kwmaha"; "lex divirva" deve ser reservada ao homicida é parte do
jus civile, pois se trata da aplicação históri­
ca e social de uma lei natural especificada e
Tomás distingue três tipos de leis: a lex fixada pelo jus gentium. Sendo derivados
aeterna, a lex naturalis e a lex humana. E logicamente da lex naturalis, os preceitos do
acima delas está a lex divina, ou seja, a lei jus gentium podem ser conhecidos indepen­
revelada por Deus. A lex aeterna é o plano dentemente de uma pesquisa histórica so­
racional de Deus, a ordem do universo in­ bre os diversos tipos de sociedade, ao passo
teiro, pela qual a sabedoria divina dirige que, evidentemente, o mesmo não vale para
todas as coisas para seu fim. É o plano da os preceitos do jus civile. Se os preceitos da
Providência conhecido unicamente de Deus lei humana ou positiva são derivados da lei
e de poucos eleitos. Entretanto, há uma parte natural, eles são conhecidos pela razão e
dessa lei eterna da qual, como natureza ra­ estão presentes no conhecimento. Desse
cional, o homem é partícipe. E tal partecipa- modo, a sociedade poderia até não fixá-los
tio legis aeternae in rationali creatura é de­ na lei humana ou jurídica. Entretanto, nós
finida por Tomás com o nome de lei natural. os encontramos estabelecidos no direito. E
Em suma, enquanto seres racionais, os isso se dá porque existem “pessoas propen­
homens conhecem a lei natural, cujo núcleo sas aos vícios e neles obstinadas, e dificil­
essencial está no preceito de que “ se deve mente podem ser guiadas pela persuasão.
fazer o bem e evitar o mal” . Para o homem, Assim, é necessário que sejam obrigadas pela
como para todo ente, a sua própria conser­ força e pelo temor a evitar o mal, para que,
vação é um bem. Para o homem, como para abstendo-se de fazer o mal pelo menos por
todo animal, é bem seguir os ensinamentos esse motivo, deixem os outros em paz e, fi­
universais da natureza: união do macho e nalmente, por esse hábito de evitar o mal,
da fêmea, proteção e crescimento dos filho­ sejam levadas a fazer voluntariamente o que
tes etc. Para o homem, enquanto ser racional, antes só faziam por medo, tornando-se as­
é bem conhecer a verdade, viver em socie­ sim virtuosas” .
dade etc. Entretanto, mais do que especi­ A coerção exercida pela lei humana,
ficação do que é o honum e do que é o ma- portanto, tem a função de tornar possível a
lum, ele vê a lei natural principalmente como convivência pacífica entre os homens, em­
forma da racionalidade. bora para santo Tomás ela tenha também
Estreitamente ligada à lex naturalis, função pedagógica. A lei humana, portan­
Tomás considera a lex humana. to, pressupõe homens imperfeitos. E como
Trata-se da lei jurídica, isto é, o direito ela não reprime todos os vícios, mas somente
positivo, a lei feita pelo homem. E os homens, os “ que prejudicam os outros” e que, co­
que são sociáveis por natureza, fazem as leis mo “ os homicídios, os furtos etc.” , “ amea­
jurídicas para dissuadir os indivíduos do mal. çam a conservação da sociedade humana” ,
E como toda lei é aliquid pertinens ad ratio- da mesma forma “ não se precisa ordenar
nem (isto é, algo que pertence à razão, uma todos os atos virtuosos, mas somente aque­
vez que pertence à razão estabelecer os meios les que são necessários ao bem comum” .
para os fins e ver a ordem dos fins), a lex Se a derivação da lei natural é essencial
humana é a ordem promulgada pela coleti­ para a lei humana, então é evidente que, quan­
vidade (multitudo) ou por quem tem a res­ do uma lei humana contradiz a lei natural,
ponsabilidade pela comunidade (ab eo qui nesse caso ela não existe como lei. Essa é a
curam communitatis habet), tendo em vista razão pela qual a lei deve ser justa. A exem­
o bem comum. plo de Agostinho, também para Tomás “não
Entretanto, como acenamos acima, as parece que possa haver lei se ela não for jus­
leis feitas pelo homem se baseiam na lei na­ ta” . Se uma lei positiva estivesse em desacor­
tural. Com efeito, na opinião de Tomás, a do com a lei natural, então ela “não seria mais
lei humana deriva da lei natural de dois uma lei, mas uma corrupção da lei” .
Capítulo décimo terceiro - A g r a n d e sín tese d e T o m á s d e y\q u in o
229

Portanto, se a lei humana não concor­


da com a lei natural, ela não é lei, mas
corrupção da lei. Essa idéia de Tomás teve thom T de ÀCIVINO
enorme influência, sendo freqüentemente ANGELÍC!. ET S i-CCLÍíSI A i>< >CTOK.IS;
invocada para impugnar leis jurídicas con­ Aimi Ordiim Pr.tdic.wnmi.
sideradas em contradição com aquilo que
aqueles que impugnam tal lei consideram Q -y A E S T I Ü N E S Q V O D LlB E TA LE S
direito natural. Para Tomás, a lei humana é
moralmente válida quando deriva da lei na­ Duotlecim.
tural. Na opinião de santo Tomás, as leis
N F N C AB 1N B IN IT IS M E N D tS F tN D IC A T A E ,
jurídicas injustas são “mais violência do que ' Ç?fmamdanrtflttmu.
leis” . Entretanto, considera ele, tais leis po­
dem até ser obrigatórias, mas somente onde Qüanim matens,-,, dí artículos Indextn psincipio carum
seja necessário “ evitar escândalo ou desor­ ' íãciihmè oftendit.
dem” . Em todo caso, porém, é preciso sem­
pre desobedecer à lei injusta se ela for con­
tra a lei divina positiva, impondo a idolatria,
por exemplo. E também é justificada a rebe­
lião contra o tirano. Para Tomás, é lícito re­
belar-se contra o tirano, com a condição de
que a rebelião não ocasione para os súditos
males piores e maiores do que a própria
tirania. Na opinião de Tomás, a monar­
quia é o melhor tipo de governo, porque
assegura melhor a ordem e a unidade do
Estado. E o pior tipo de governo é preci­
samente a tirania, já que uma força que
atua para o mal é mais eficaz e, portanto,
mais danosa, quando está unida (como na
tirania).
O Estado pode encaminhar os homens Apue! Ftaoaícum de f ranafeis Seneníem.
para o bem comum e pode favorecer algumas
virtudes, mas não permite ao homem alcan­ íroutispicio das Quacstiones QmhJlibetalcs
çar o seu fim último, que é sobrenatural. Em de domas, publicadas cm Veneza cm I >96.
suma, a lei natural e as leis positivas servem
aos fins terrenos do homem. Mas o homem
tem um fim sobrenatural, que é precisamen­ divina, isto é, a lei revelada, a lei positiva de
te a bem-aventurança eterna. E a lex naturalis Deus que encontramos no Evangelho, que é
e a lex humana não são suficientes para con­ guia para alcançar a bem-aventurança e que,
duzir o homem a esse fim. Para tanto, é ne­ além disso, preenche as lacunas e imperfei­
cessária uma lei sobrenatural: trata-se da lex ções das leis humanas. [5]
230 Sexta parte - y \ <r^scolás+ica n o s é c u l o d é c i m o t e ^ c e i ^ o

TOMÁS
O CONHECIMENTO HUMANO DAS LEIS

lex humana
Corresponde ao direito positivo;
é a ordem promulgada
pelo homem
ius civile
ias gentium
deriva da lei
if deriva da lei natural por especificação.
natural por dedução. P. ex.: aplicar
\ P. ex.: a proibição determinada pena
^ do homicídio aos homicidas
deriva da lex naturalis-,
tem função pedagógica

! \
! O HOMEM
! O homem, enquanto
| dotado de razão e de
| livre-arbítrio, conhece
| a lei divina, a lei eter- lex divina
I na e a lei humana, e é a lei revelada,
| peca quando infringe a lei positiva
■ as duas primeiras leis expressa pelo Evangelho;
> e a terceira, enquanto guia à bem-aventurança
baseada sobre a lei à qual todo homem aspira
I natural

lex aeterna
lex naturalis
É o plano
é a parte da lex aeterna racional de Deus,
que é conhecida do homem é a ordem
enquanto racional. do universo inteiro.
P. ex.: “ fazer o bem São conhecidos por Deus
e não fazer o mal” e por pouquíssimos beatos
Capítulo décimo terceiro - y \ cj^cmde s m t e s e d e T o m á s d e ;A c j u m o
231

V. O ^filoso-faT n a ^é!' em T o m á s

• A centralidade de Deus, entendido como o criador do ser enquanto tal e


não apenas das formas do ser, constitui a linha condutora da filosofia de Tomás.
Por este motivo também as provas cosmológicas da existência
de Deus, que pareciam simplesmente retomadas de Aristóteles, Fé e razão
têm, na verdade, um alcance metafísico ausente em Aristóteles, -> § 1
por causa da relação com o ato criador.
Também a teologia e a moral se destacam claramente dos precedentes gre­
gos, em um caso por causa da concepção personalista do homem, e no outro por
causa da concepção voluntarista do ato moral e do pecado.

1 Se o discurso no nível de ser mostra a


A f é ■t 9 uia
L da i'azao profundidade da relação dos seres com o ser
supremo, o discurso sobre o ato criador
mostra a nova perspectiva com a qual To­
Deus é o ser supremo e perfeito, o ser más interpreta o mundo. Como Deus é fon­
verdadeiro. Todo o resto é fruto do seu ato te de todo o ser, nada escapa à sua ação,
criativo, livre e consciente. Essas são as duas nem mesmo a última determinação indivi­
teses aceitas por fé, que cumprem a função dual. Mas só se pode dizer que cada coisa
de guias do discurso racional, ou melhor, tem um significado e uma vocação se cada
esse é o metro de avaliação com que Tomás realidade, enquanto existente, é por ele co­
examina qualquer outro discurso filosófico nhecida e querida.
e se aproxima de Aristóteles para repropor Os antigos problemas reencontram-se
suas teses mais qualificadas. no quadro dessas duas teses fundamentais,
O peso dessas teses na elaboração da mas aprofundados e renovados. Se Deus é
metafísica e das provas da existência de Deus o ser supremo e criador, então as criaturas
foi tão relevante que chegou a levar não também são seres. Elas, porém, não são o
poucos estudiosos a falarem de filosofia cris­ ser, mas têm o ser através do ato causai que,
tã e não simplesmente de “ filosofia” . É fácil além das formas dos entes, também deter­
nesse caso compreender como todos os pro­ mina o ser dos entes.
blemas propostos pela filosofia grega se mo­ Além disso, se Deus é o ser supremo e
dificam no quadro da afirmação de que Deus o ser por essência, como conceber criaturas
é o ser supremo e criador. fora dele? A essa pergunta Tomás responde
Enquanto, no contexto tomista, Deus é com a doutrina da analogia, extraída de
fonte do ser, de todo o ser, no contexto gre­ Aristóteles, mas com nova valência, porque
go Deus é aquele que dá forma ao mundo, explica a similitude e a dessemelhança en­
moldando uma matéria preexistente (Pla­ tre o ser supremo e o ser parcial.
tão), ou então que dá origem ao cosmo, atrain­ A essa categoria agrega-se outra noção,
do-o com sua própria perfeição (Aristóteles). a de participação, que esclarece ulteriormen-
O Deus dos filósofos gregos não dá o ser te como é possível haver outros seres fora
em sentido radical e total, mas apenas certo de Deus. Esses seres nada mais são do que
modo de ser, porque também a matéria exis­ “participação” do ser divino. Deus é o ser
te desde a eternidade e é dele independente. por essência, as criaturas por participação.
Para Tomás, ao contrário, além da forma Tal conceito implica amor, liberdade e cons­
dos seres, Deus é o criador do ser dos seres. ciência, por meio dos quais Deus transmite
Portanto, as provas cosmológicas, que pa­ seu ser fora de si. O Deus de Aristóteles atrai
recem tomadas em peso de Aristóteles, de para si as coisas como causa final, coisas
certo modo mudam de fisionomia. As pro­ que, porém, não foram criadas por ele; o
vas não são físicas, mas físico-metafísicas, Deus de Tomás atrai para si as criaturas,
por causa da relação primária e fundante, que criou por amor, encerrando o ciclo de
constituída pelo ato criador. amor aberto com o ato criador.
232 Sexta parte - y \ C3s c o l á s t i c a n o s é c u l o d é x z iy n o t e r c e i r o

Mas poderá Deus criar para a sua gló­ e moral) em contexto diferente. Sua raiz se
ria sendo esta inalterável, porque não pode encontra na contingência do ser finito, que
crescer nem diminuir? Deus cria outros se­ explica as mutações e a morte, bem como a
res para que desfrutem de sua glória, como liberdade da criatura racional, que pode não
ele próprio a desfruta. Não é para si mesmo, reconhecer sua dependência de Deus. O mal
portanto, mas sim para nós que Deus difun­ moral não é causado pelo corpo. Não é o
de sua glória; não é para ganhá-la, porque corpo que faz o espírito pecar, mas o espí­
já a possui; nem para aumentá-la, porque rito que faz pecar o corpo. O mal moral não
já é perfeita, mas apenas para comunicá-la. significa diminuir o papel da racionalidade,
O Deus de Tomás é o Deus do amor, sendo, como para os filósofos gregos; não é identi­
portanto, criador e provedor, não ficando ficável com o erro. O mal é desobediência a
encerrado no círculo de seus pensamentos, Deus, é rejeição da dependência fundamen­
como o Deus de Aristóteles. tal em relação ao Criador. A raiz do mal está
Nesse contexto, o problema do mal na liberdade.
assume outras conotações. Se Deus não exis­ Fundidas na unidade do homem, a
te, então o bem não se explica. Mas, se Deus substancialidade da alma de Platão e a for­
existe, de onde vem o mal? Para a filosofia malidade da alma de Aristóteles permitem
antiga, como o ser é o bem, o mal é o não- entrever o primado da pessoa sobre a espé­
ser, a matéria que se rebela contra a forma cie. Não é a espécie humana, que é resso­
ou contra a ação plasmadora do Demiurgo nância da idéia platônica, e sim a pessoa que
(Platão). Tomás, para quem tudo provém ocupa o primeiro plano, sendo partícipe do
de Deus, propõe o problema do mal (físico ser divino e estando destinada à visão beatí-
fica. Por isso, persona significat id quod est
perfectissimum in tota natura.
E uma filosofia nova em que os anti­
gos problemas são aprofundados da altura
de que a fé nos faz vislumbrar e que a teolo­
gia desenvolve. O vinho novo é posto em
odres velhos, mas tornado sólidos por apro­
fundamentos filosóficos desencadeados pe­
las perspectivas abertas pela fé.

“Apoteose de santo Tomás de Aquino”,


obra do pintor espanhol Francisco de 7.urbarán
(1598-1664),
conservada no Museu de Sevilha.
233
Capítulo décimo tevceito - A 0K a n d e s írv te s e d e T o m á s d e A q w i n o

T om ás

Sobre o "cientificidade" do doutrina sogrodo

O leitor otual que s e propõe ler o Sumo Teológico corre o risco de permanecer desconcer­
tado por suo estrutura. O s críticos — entre os quais em particular Marie-Dominique Chenu —
explicaram com clareza a origem deste delineamento e resumiremos aqui suas observações.
R Suma nõo está dividida em capítulos ligados entre si por uma linha expositiva unitária,
mas s e compõe de múltiplas questões, cada uma das quais, por sua vez, s e divide em artigos.
R gênese dessa estrutura é propriamente pedagógica, no sentido de que é o resultado
do método d e ensino em uso no séc. XIII, o qual se dispunha em dois níveis:
a) no primeiro nível requeria-se o simples análise dos Textos Sagrados, dirigida à sua
compreensão e interpretação:
b) no segundo nível s e requeria um esTorço de aprofundamento de tipo filosófico, depois
do quol, justamente pela maior complexidade da investigação, se desenvolviam e xeg eses
discordantes e por vezes até opostas.
Surgiam então as quaestiones que, progressivamente, seguindo uma lógica própria, e
assumindo dim ensões consideráveis, deixavam a forma do simples comentário, para assumir
um caráter autônomo. Tais quaestiones eram depois reagrupadas por argumento, e divididas
em artigos, conforme as necessidades.
R seguir temos alguns artigos da primeira questão abordada por Tomás de Rquino na
Suma Teológica, que são d e fundamental importância para o compreensão d e sua obra e de
seu pensamento. Nestes ele s e pergunta sobre qual é a natureza da doutrina sagrada (o
termo teologia terá plena difusão apenas nos séculos sucessivos), qual o seu objeto, seus
princípios, seu método. R s respostas que ele dá o estas perguntas constituem um p a sso deci­
sivo. R doutrino sagrado, afirmará, "é verdadeira ciência, que tem seu próprio campo de explo­
ração (Deus), seu s princípios próprios (os artigos de fé), sua própria luz (a Revelação divino),
um método próprio (o método de autoridade)

1. Se a sagrada doutrina é ciência R c s p o n d o : A doutrina sagrada é uma ciên­


cia. C se prova assim: há duplo gênero de ciên­
PflRece que a doutrino sagrada1 não é ciên­
cias. Algumas delas procedem de princípios co­
cia,1
2 Com efeito:
nhecidos por lume natural do intelecto, como a
1. Toda ciência procede de princípios evi­
aritmética e a geometria: outras procedem de
dentes por si. A sagrada doutrina, ao contrário,
princípios conhecidos à luz de uma ciência su­
procede de artigos de fé, que não são por si
perior: por exemplo, a perspectiva se baseia
evidentes, tanto que nem todos os aceitam: "não
sobre princípios de geometria e a música sobre
de todos, com efeito, é a fé", como diz o Após­
princípios de aritmético.3 C de tal modo a sagra­
tolo. Portanto, a doutrina sagrada não é ciência.
da doutrina é uma ciência, pois se apóio sobre
2. A ciência não se ocupa dos singulares
princípios conhecidos por lume de ciência su-
[mas dos universais]. Oro, o doutrina sagrada
se ocupa de particularidades, como das gestas
de Abrão, de Isaac e de Jacó. Conseqüente-
mente, não é ciência. 'Com o expressão d o u trin a s a g r a d o Tomás indico o
"ensinamento que procede do Revelação, ensinamento ton­
C m co n trá rio : Diz santo Agostinho: "A esta to em sentido ativo como em sentido passivo, isto é, como
ciência diz respeito apenas aquilo pelo qual a complexo dos verdodes ordenados à luz do Revelação”.
fé que salva é gerada, nutrida, defendida, re­ 20 termo c iê n cia é oqui assumido no significado oristo-
télico de "cogmção certo de uma verdade demonstrado por
forçada". Como isso é próprio unicamente da
meio dos causas".
sagrada doutrina, daí resulta que a doutrina ■■Nesta exemplificoçõo Tomás segue o esquema dos
sagrada é ciência. ciências eloborodo por firistóteles.
234 Sexta parte - y \ Ç C s c o I á s + i c a n o s é c u l o d é c i m o Terraemo

perior, isto é, do ciência d® Deus e dos beotos. téria, porque ela se ocupa prevolentemente de
Portanto, como a músico admite os princípios coisas que por sua sublimidade transcendem a
que o matemático lhe fornece, também a dou­ razão: as outras, vice-versa, tratam de coisas
trino sagrada aceito os princípios revelados por acessíveis à razão.
Deus. Depois, entre as disciplinas práticas é su­
perior aquela que é ordenada a um fim mais
Sotuçfio das DificuiDRDCs: 1. Os princípios de
remoto: assim, a política é superior à ciência ou
toda ciência ou são evidentes por si ou à luz de
arte militar, porque o bem do exército destina-
alguma ciência superior. C tois são também os
se a buscar o bem do Cstado. Ora, o fim desto
princípios do ciência sagrada, como agora ex­
ciência, enquanto é ciência prática, é a eterna
plicamos.
bem-aventurança, à qual estão dirigidos os fins
2. Os fotos particulares na doutrina s a ­
de todas as ciências práticas. De modo que,
grada não têm uma parte principal: aí foram in­
sob todos os aspectos, é evidente a superiori­
troduzidos certos exemplos de vida, como acon­
dade dela.
tece nas ciências morais, ou tombém para
declarar a autoridade dos homens por meio dos S olução Dns dificuldadcs: 1 . Nada impede
quais derivou a revelação, sobre a qual se fun­ que o que por sua natureza é mais certo, seja
do a (Escrituro ou doutrino sagrada. menos certo relativamente a nós: isso depen­
de da fraqueza de nossa mente, a qual, confor­
2. Se a doutrina sagrada me Aristóteles, "diante das coisas mais eviden­
é superior às outras ciências tes da natureza é como o olho da coruja diante
do sol". Por isso, a dúvida de alguns a respeito
PnRccc que a doutrina sagrada não é su­ dos artigos de fé não deriva da incerteza da
perior às outras ciências. Com efeito: coisa em si mesma, mas da fraqueza de nosso
1. R certeza de uma ciência faz porte da intelecto. Rpesar disso, um mínimo que se pos­
sua dignidade. Ora, as outros ciências, apoian­ sa ter de conhecimento das coisas mais altas é
do-se sobre princípios indubitáveis, se apresen­ muito mais desejável do que o conhecimento
tam como mais certas do que a doutrina sagra­ mais seguro das inferiores, como afirma o Filó­
da, cujos princípios, os artigos de fé, são sofo.
suscetíveis de dúvida. Portanto, as outras ciên­ 2. R ciência sagrada pode, sim, receber
cias são superiores a ela. alguma coisa das disciplinas filosóficas, não por­
2. £ próprio de uma ciência inferior em­ que delas tenha necessidade, mas para me­
prestar de outra, como a música da aritmética. lhor esclarecer seus ensinamentos. Seus princí­
Oro, a doutrina sagrada toma algo das disci­ pios, com efeito, não os toma delas, mas
plinas filosóficas, como nota são Jerônimo4 em imediatamente de Deus por revelação. C por
uma corto a Mogno: "Os antigos doutores en­ isso não empresta das outros ciências como se
cheram seus livros com tanto doutrina e tontas fossem superiores, mas delas se s e v e como
máximas dos filósofos, que não sabes o que de inferiores e de servas; justamente como
mais admirar neles, se a erudição profana ou a acontece com as ciências ditas arquitetônicas5
ciência escriturística1'. Portanto, a sagrada dou­ que utilizam as ciências inferiores, como a polí­
trina é inferior òs outras ciências. tica em reloção à arte militar. C o uso que a
ciência sagrada delas faz não em razão de sua
Cm contrario: Rs outras ciências são cha­ fraqueza ou insuficiência, mas unicamente por
mados servas do teologia, conforme o dito dos causa da fraqueza de nosso intelecto; este, dos
Provérbios: "[o sabedoria] mandou convidar coisas conhecidas pelo natural lume da razão
suas servos à fortaleza". (do qual derivam as outras ciências), é mais
facilmente conduzido, como pelo mão, à cog-
Rcspondo: Csta ciência, sendo igualmente nição das coisas sobrenaturais, que ensinam
especulativa e prática, ultrapasso todos as ou­
esta ciência.
tras tanto especulativas como práticas. Com efei­
to, entre as especulativas uma é mais digna da
outra tanto pela certeza como pela excelência
,lSão Jerônimo (por 347-420) é um dos mais doutos
da matéria. Ora, esta ciência, por ambos os Podres do Igrejo. é lembrado sobretudo por seus trabalhos
motivos, é excelsa entre as especulativas. de tradução e de exegese do Sagrada êscritura, do qual
Quanto à certeza, porque enquanto as outras santo Tomás frequentemente se serve.
ciências a derivam do lume notural da razão bSõo chamados a r q u ite tô n ic o s, por analogia com a ar­
quitetura a cujo serviço concorrem várias disciplinas (do fí­
humana que pode errar, ela a tira do lume da sica à matemática e à geometria), a s ciências ou artes que
ciência de Deus, que não pode se enganar. utilizom para seus próprios fins os conhecimentos de outras
Igualmente supero-os pelo dignidade da ma­ ciências e artes.
235
Capítulo décimo terceiro - y \ g r a r u l e s í n t e s e d e T o m á s d e A q uino

3. Se Deus é o sujeito de estudo que se referem a Deus, nós nos servimos de al­
desta ciência guns efeitos, de natureza ou de graça, produzi­
dos pelo mesmo Deus, em lugar de uma defini­
PflRsce que Deus nõo é o sujeito desto ciên­
ção [impossível].
cia. Com efeito:
Justamente como se faz em algumas dis­
1. Cm todo ciência descreve-se a nature­
ciplinas filosóficas, quando se demonstra um
za daquilo que forma o sujeito dela, como se
enunciado a respeito de uma causa mediante
tem de Rristóteles. Ora, esta ciência não co­
um efeito dela, tomando o efeito em lugar da
nhece a natureza de Deus, como observa o
definição da causa.
Damasceno:6 "Poro nós é impossível dizer de
2. C também verdade que todas as coi­
Deus aquilo que ele é". Portonto, Deus não é o
sas das quais trata a doutrina sagrado estão
sujeito desta ciência.
compreendidas no termo Deus, não porém como
2. Tudo aquilo que é tratado em dada ciên­
partes ou espécies ou acidentes, mas por e s­
cia está incluído no sujeito dela. Ora, na sagra­
tarem de algum modo ordenados a ele.
da Gscritura nos ocupamos de muitas outras
Tomás,
coisas distintas de Deus, por exemplo, das cria­
fí sumo teológico, vol. I.
turas e dos costumes dos homens. Portanto,
Deus não é o sujeito desta ciência.
C m c o n t r a r io : Sujeito de uma dado ciên­
cia é aquele ao redor do qual tal ciência ra­
ciocina. Ora, nesta ciência se fala de Deus,
tanto que se chama teologia, discurso a respei­
€nte e essência
to de Deus. Portanto, Deus é o sujeito desta
ciência.
O ente e a essência, um dos primeiros
R e s p o n d o -. Deus
é sujeito desta ciência. Com escritos de Tomás de fíquino, pode ser con­
efeito, existe entre sujeito e ciência a mesma siderado um resumo dos princípios gerais de
relação que passa entre objeto e faculdade ou sua metafísico.
hábito. Nele Tomás estudo, entre outras coi­
Ora, objeto próprio de uma faculdade ou sas, a relação entre o ordem ontológica e a
hábito é o que inclui todo outro objeto sob aque­ ordem lógica do real, o problema do princí­
la faculdade ou hábito: assim, o homem e a pio de individuaçõo e o problema dos uni­
pedra dizem relação à vista sendo coloridos, versais.
motivo pelo qual o colorido é o objeto próprio
da vista.
Ora, na doutrina sagrada tudo é tratado
sob o ponto de vista de Deus; ou porque é o 1. Prólogo
próprio Deus, ou porque se ordena a ele como
Uma vez que — como diz o filósofo no I
princípio e fim. C cloro, portanto, que Deus é o
livro sobre O céu e o mundo — um erro pe­
sujeito da sagrado doutrina. C isso aparece
queno no princípio pode se tornar grande no
evidente também dos princípios desta ciência,
fim, e uma vez que o ente e a essência são
que são os artigos da fé, a qual se refere a
aquilo que por primeiro é concebido pelo inte­
Deus: idêntico, com efeito, é o sujeito dos prin­
lecto, como afirma Rvicena no início de sua
cípios e de toda a ciência, uma vez que toda
Metafísica, é necessário, poro penetrarem sua
a ciência virtualmente está contida nos prin­
dificuldade e para que não se caia em erro por
cípios.
Outros, todavia, olhando mais as coisas
tratadas nesta ciência do que ao ponto de visto
sob o qual são cosideradas, assinalaram di­
6S qo João de Damasco, chamado o Damasceno (por
versamente seu sujeito: alguns, as coisas e 6 7 5 -7 4 9 ). C o último grande teólogo da antiga Igreja
os sin a is,7 outros, as obras da redenção,8 grega. €m sua obra teológica mais conhecida ( D e fíd e
outros ainda todo o Cristo, isto é, a Cabeça e o r t o d o x o ) confluiu o melhor do especulação dos Podres
os membros.9 gregos.
'Conforme Pedro Lombardo, o sujeito da teoiogia era
De todas estas coisas, é verdade, trata a dou­ dado pelas c o is a s (isto é, por Deus em sua natureza e em
trina sagrada, mas conforme se ordenam a Deus. seus atributos e pelas criaturas de Deus) e pelos s in a is
(isto é, pelos sacramentos).
SOlUÇlRO DIRS DIFICULDRDCS: 1 . C fetO q U 0 d e
8Para Hugo de São Vítor o sujeito da ciência sagrada
Deus não podemos conhecer a essência: tam­ eram as "obras da Redenção".
bém nesta doutrina, para pesquisar as coisas festa era a tese sustentada por Roberto de Melun.
236 Sexta parte - y \ íS sco lá s+ ica n o s é c u lo d é c im o terce iro

couso do ignorância de tais termos, explicar o "aquilo que era o ser", isto é, aquilo por meio
que significam "ente" e "essência", de que modo do qual algo possui o fato de ser aquela coi­
se encontram nas diversas coisas e em qual sa. fl essência é chamada também forma, à
relação se encontram com as intenções lógi­ medida que como forma se entende a certeza
cas, isto é, com o gênero, a espécie e a dife­ de cada coisa, como diz flvicena no segundo
rença. livro da sua Metafísica. G com outro nome, a
6 essência também é chamada natureza, toman­
do momento que devemos extrair o co­
nhecimento dos coisas simples a partir do das do "natureza" conforme o primeira das quatro
coisas compostas, e proceder do que é deriva­ acepções distintas por Boécio no tratado So­
do àquilo que precede — de modo que, ini­ bre duas naturezas, isto é, aquela pela qual
ciando dos coisas mais fáceis, o próprio proce­ se diz natureza tudo aquilo que de qualquer
dimento se torne mais maleável — , deveremos modo pode ser apreendido pelo intelecto; com
passar do significado do termo "ente" ao do efeito, toda coisa é inteligível apenas em vir­
termo "essência”. tude de sua definição e essência, e neste sen­
tido também o Filósofo afirma, no quinto livro da
Metafísico, que toda substância é uma natu­
2. Os termos "ente” e "essência"
reza. Todavia, o termo natureza, entendido
€ preciso, portanto, saber que, como afir­ deste modo, parece significar a essência da
ma o Filósofo no V livro da Metafísico, o ente coisa enquanto é ordenada à sua própria ope­
por si diz-se em dois modos: no primeiro, é ente ração, a partir do momento que nenhuma coi­
aquilo que se divide nos dez gêneros; no ou­ sa pode faltar à sua operação essencial; o
tro, é ente aquilo que significa a verdade dos termo qüididade é, ao contrário, tomado d a­
proposições. Fl diferença está aqui no fato de quilo que é expresso através da definição. Mas
que no segundo sentido podemos dizer ente diz-se essência pelo fato de que o ente pos­
tudo aquilo em torno do qual é possível formar sui seu ser em virtude dela e nela.
uma proposição afirmotiva, mesmo quando nõo Gnquonto o ente se diz em sentido abso­
indica nada de real; e neste sentido dizemos luto e em primeiro lugar das substâncias, e se ­
entes também os privações e as negações: di­ cundariamente e quase em sentido relativo dos
zemos, com efeito, gue a afirmação é oposta à acidentes, podemos concluir que a essência
negação, e que a cegueira está no olho. No está própria e verdadeiramente nas substân­
primeiro modo, ao contrário, podemos dizer ente cias, enquanto nos acidentes está de algum
apenas aquilo que põe algo de real, e neste modo, e em sentido relativo. Gntre as substân­
sentido a cegueira e as outras coisas deste tipo cias algumas são simples e algumas compos­
nõo sõo entes. tas, e em ambos os tipos está a essência, mas
O termo essência, portanto, nõo se con­ nas simples de modo mais verdadeiro e mais
segue a partir da segunda acepção de ente: nobre, à medido que também seu ser é mais
denominam-se com efeito entes deste modo nobre; elas são, com efeito, causa das com­
algumas coisas que não possuem uma essên­ postas, ou ao menos o é a substância primeira
cia, como é evidente nas privações; a essência simples, que é Deus. Mas, uma vez que as e s­
deduz-se, ao contrário, da primeira acepção de sências das substâncias simples são para nós
ente. Por isso o Comentador, no mesmo lugar, menos manifestas, é preciso partir das essên­
diz gue o ente entendido deste primeiro modo cias das substâncias compostas, de modo que
é aquilo que indica a substância da coisa. C partindo das coisas mais fáceis o procedimen­
uma vez que, como se disse, o ente entendido to se torne mais maleável.
deste modo se divide nos dez gêneros, é pre­
ciso gue a essência indique algo de comum a
3. fl essência das substâncias compostas
todas os naturezas através das quais os diver­
sos entes podem ser colocados nos vários gê­ Nas substâncias compostas, portanto, a for­
neros e nas várias espécies, assim como a hu­ ma e a matéria são conhecidas, como no homem
manidade é a essência do homem, e assim por a alma e o corpo. Não se pode, porém, dizer
dionte. que apenas uma delas se chame essência. Com
C uma vez que aquilo por meio do qual a efeito, que apenas a matéria nõo seja a e s­
coisa é constituída no próprio gênero ou na sência é evidente, a partir do momento que
própria espécie é significado mediante a defi­ coda coisa é cognoscível e ordenada em uma
nição gue exprime aquilo que a coisa é, daí espécie ou em um gênero por meio do essên­
se segue que o termo essência é mudado cia, enquanto a matéria não é princípio de co­
pelos filósofos no de qüididade: e este é tam­ nhecimento, nem algo pode ser determinado
bém aquilo que o próprio filósofo choma de em uma espécie ou em um gênero por meio da
, , . . 237
C a p it u lo décíntO te rce iro - x \ g r a n d e s ín t e s e d e T o m á s d e E q u i n o ------

matéria, mas apenas mediante aquilo pelo que essência é aquilo pelo qual uma coisa é dita
algo está em ato. Nem mesmo apenas a forma ser e, portanto, ocorre que a essência, em vir­
pode ser dita em si essência de uma substân­ tude da qual a coisa é chamada ente, não é
cia composta, embora alguns procurem susten­ nem apenas a forma nem apenas a matéria,
tar esta tese. Do que foi dito resulta claro, com mas uma e outra, embora de tal ser seja cau­
efeito, que a essência da coisa, e a definição sa, a seu modo, apenas a forma. Vemos, com
das substâncias naturais, contêm não apenas efeito, também em outros casos que aquilo que
a forma, mas também a matéria; caso contrá­ é constituído por mais princípios não é deno­
rio, com efeito, entre as definições naturais e minado por um só deles, mas por aquilo que
as matemáticas não haveria nenhuma diferen­ os compreende em seu conjunto, como é evi­
ça. Nem se pode dizer que na definição das dente, por exemplo, nos sabores, a partir do
substâncias naturais a matéria seja posta como momento que o doçura é produzida pela ação
algo de acrescentado à essência, ou como um do quente sobre o úmido, e embora desse mo­
ente externo àquela essência, porque este tipo do o calor seja causa da doçura, nem por isso
de definição é próprio dos acidentes, que não todavia o corpo é chamado doce por causa do
possuem uma essência perfeita, e por isso ocor­ calor, mas por causa do sabor que compreen­
re que em sua definição esteja incluído o sujei­ de o quente e o úmido.
to, que está fora de seu gênero. € claro, por­ Todavia, uma vez que o princípio de indi-
tanto, que a essência compreende a matéria e viduação é a matéria, disso pareceria talvez de­
a formo. ■ rivar que a essência, que compreende em si ao
Não se pode dizer também que a essên­ mesmo tempo a matéria e o forma, seja ape­
cia nomeie a relação que intercorre entre a nas particular e não universal: e daqui seguir-
matéria e a forma, ou algo a ela acrescenta­ se-ia então que os universais não poderíam ter
do, porque em tal caso seria necessariamente uma definição, se a essência é aquilo que é
um acidente e algo externo à coisa, e esta expresso por meio da definição. C por isso é
última não poderio ser conhecida por meio preciso saber que não é a matéria entendida
delo: todas características que, ao contrário, em um modo qualquer que se torna princípio
são próprias da essência. Rtravés da forma, de individuação, mas apenas a matéria signata,
com efeito, que é ato da matéria, a matéria é e chamo de matéria signata a que é considera­
tornada um ente em ato e uma determinada da sob determinadas dimensões. Tal matéria
coisa, razão pela qual aquilo que se acres­ não é posta na definição do homem enquanto
centa a ela não fornece à matéria o ser em homem, mas poderio ao invés ser posta na
ato simplesmente, mas o ser em ato naquele definição de Sócrates, caso Sócrates tivesse
modo, assim como fazem os acidentes, no sen­ uma definição. Na definição do homem põe-se
tido em que, por exemplo, a brancura faz com oo invés a matéria não signata: com efeito, na
que uma coisa seja branca em ato. Por isso, definição do homem não são colocados e s ­
quando é adquirido tal forma, não se tem uma tes determinados ossos ou esta determinada
geração em sentido absoluto, mas em sentido carne, mas ossos e carne em sentido absoluto,
relativo. que representam a matéria do homem não
Permanece, portanto, que o termo essên­ signata.
cia designa nas substâncias compostas aquilo Torna-se claro, portanto, que o essência
que é composto pela matéria e pela forma: e do homem e a de Sócrates diferem entre si
com isso concorda a afirmação de Boécio, no pelo foto de que em uma a matéria é signata,
Comentário às Categorias, quando diz que ousio e na outra não, e por isso o Comentador, a
significa o composto; ousio, com efeito, entre propósito do VII livro da Metafísica, diz: “Só­
os gregos é a mesma coisa que essência en­ crates não é mais que animalidade e racio­
tre nós, como ele próprio refere no livro Sobre nalidade, que constituem sua qüididade". Des­
a s duas naturezas. Também flvicena diz que a sa forma, também a essência do gênero e a
qüididade das substâncias compostas é a mes­ da espécie diferem entre si como aquilo que é
ma composição de matéria e forma, e a pro­ assinalado e aquilo que não é assinalado,
pósito do sétimo livro da Metafísica o Comen­ embora nos dois casos haja um modo diverso
tador diz que “a natureza, que as espécies nas de designação, pois a designação do indiví­
coisas geráveis possuem, é algo de meio, isto duo em relação à espécie ocorre mediante o
é, composto de matéria e de forma". C com matéria determinada pelas dimensões, en­
isso concorda também a razão, a partir do quanto a da espécie em relação ao gênero se
momento que o ser da substância composta dá mediante a diferença constitutiva, que se
não é nem apenas da forma, nem apenas da extrai da forma da coisa. Mas esta determina­
matéria, mas do próprio composto: porém a ção ou designação que se encontra na espé-
238
Sexta parte - y \ < £ s c o l á s t i c a n o s é c u lo d é c i m o t e r c e i r o

ei ®em relação q o gênero nõo ocorre por algo sui uma forma tal, pela qual podem ser desig­
que se posso encontrar no essência da esp é­ nadas nele três dimensões", entendia-se uma
cie sem estar na do gênero: ao contrário, tudo forma qualquer: a alma, a forma da pedra ou
aquilo que está na espécie, também está no qualquer outra forma. € deste modo a forma do
gênero, mas de modo indeterminado. Com animal está implicitamente contida na forma do
efeito, se "animal" não fosse tudo aquilo que corpo, à medida que o corpo representa o gê­
é "homem", mas apenas uma parte dele, não nero em seus confrontos.
poderio ser predicado do homem, a partir do £ é assim também na relação entre "ani­
momento que nenhuma parte integrante pode mal" e “homem". Com efeito, se "animal" deno­
ser predicada de seu inteiro. minasse apenas a coisa dotada da perfeição
Como isso aconteça, poder-se-á ver, caso de sentir e se mover por um seu princípio intrín­
se considere de que modo o corpo difere en­ seco, excluindo toda outra perfeição, então to­
quanto põe-se como parte do animal e en­ das as outras perfeições que viriam a ser acres­
quanto põe-se como gênero: não se pode, com centadas representariam como que partes, ao
efeito, dizer que ele é gênero do mesmo modo invés de estar implicitamente contidas na natu­
em que é parte integrante. O termo "corpo" reza do animal, e deste modo "animal" não
pode, portanto, ser entendido em diversas poderio constituir um gênero. Mas é, ao invés,
acepções. Cnquanto está na categoria da subs­ um gênero, à medida que indica uma coisa por
tância, chama-se assim pelo fato de que pos­ cuja forma podem provir o sentido e o movi­
sui uma natureza tal pela qual é possível nele mento, seja qual for a forma, seja por se tratar
distinguir três dimensões; e as mesmas três apenas da alma sensitiva, seja por se tratar ao
dimensões, uma vez designadas, constituem invés da alma ao mesmo tempo sensitiva e ra­
o corpo que está no gênero da quantidade. cional.
Acontece depois nas coisas que a uma perfei­ Assim, portanto, o gênero significa de
ção pode-se acrescentar outra, assim como é modo indeterminado tudo aquilo que está na
evidente no homem, no qual à natureza sensi­ espécie, e não significa apenas o matéria.
tiva se acrescenta a intelectual. Analogamente, Analogamente, também a diferença significa
também à perfeição de possuir uma forma tal o todo, e nõo apenas a forma, e assim tam­
pela qual seja possível distinguir na coisa três bém a definição e a espécie. Mas, de modo
dimensões, pode ser acrescentada outra per­ diverso, porque o gênero significa o todo como
feição, como a vida ou algo do gênero. O ter­ uma denominação que determina aquilo que
mo corpo pode, portanto, designar qualquer é material na coisa sem determinar sua forma
coisa que possui uma forma tal pela qual é própria: razão pela qual o gênero é extraído
possível distinguir nela três dimensões, sem da matéria, embora não sendo matéria, como
outro acréscimo, isto é, de modo que àquela é evidente a partir do momento que algo se
forma nõo se sigo nenhuma outra perfeição e diz corpo pelo fato de possuir uma perfeição
que, qualquer coisa que venha a ser acres­ tal pela qual nele seja possível distinguir as
centada, resulte estranha ao significado do três dimensões, e esta perfeição é de algum
corpo assim entendido. € neste sentido o cor­ modo material em relação a uma perfeição ul­
po é parte material e integrante do animal, terior. A diferença, ao contrário, é como uma
pois em tal modo a alma está além daquilo denominação depreendida de uma forma de­
que é significado pelo termo corpo, e sobrevêm terminada, prescindindo do fato que seu pri­
ao próprio corpo, de modo tal que destes dois meiro conceito compreenda a matéria deter­
— isto é, da alma e do corpo — assim como minada, como resulta evidente a partir do
de duas partes, se constitua o animal. momento que quando algo se diz animado —
O termo corpo pode ser entendido tam­ isto é, tal de possuir uma alma — não se deter­
bém de modo a significar uma coisa que possui mina o que ele seja, se um corpo ou alguma
aquela forma tal, pela qual seja possível de­ outra coisa. Por isso Avicena diz que o gênero
signar nela as três dimensões, seja qual for a não está compreendido na diferença como
própria forma, seja que a esta se possa seguir parte de sua essência, mas apenas como um
ulterior perfeição, ou que isso não aconteça. € ente fora da essência, assim como também o
neste sentido "corpo" é o gênero de "animal", sujeito está incluído no conceito das proprie­
porque em "animal" nõo é possível encontrar dades. € por isso também o gênero, propria­
nada que não esteja contido implicitamente em mente falando, não se predica da diferença,
“corpo". A alma não é, com efeito, uma forma como salienta o Filósofo no III livro da M eta ­
diversa daquela pela qual na coisa era possí­ físico e no IV dos Tópicos, a não ser talvez no
vel distinguir as três dimensões, e, portanto, modo pelo qual o sujeito pode ser predicado
quando se dizia que "o corpo é aquilo que pos­ da propriedade. Mas a definição ou a espécie
239
Capítulo décimo terceiro -- A g r a n d e , s í n t e s e d e T o m á s d e A qw iiao ---------

compreendem um 0 outro, isto 0, tonto o ma­ isso o Comentador, no XI livro da Metafísico,


téria determinada que so designa com o nome diz que a matéria-prima se diz una pela remo­
do gênero, como a Forma determinada quo se ção de todas as formas, enquanto o gênero se
designa com o noma da diferença. diz uno pela forma comum significada; e disso
Disso torna-se evidente a razão pala qual se torna evidente que com o acréscimo da dife­
o gênero, a espécie e a diferença correspondem rença, removida a indeterm inação que era a
respectivamente à matéria, à Forma e ao com­ causa da unidade do gênero, permanecem e s­
posto na realidade, embora não sejam a mes­ pécies diversas por essência.
ma coisa, a partir do momento que nem o gê­ € uma vez que, conforme dissemos, a na­
nero é a matéria, embora sendo tirado da tureza da espécie é indeterminada em rela­
matéria como aquilo que designa o todo, nem ção ao indivíduo, assim como a natureza do
a diferença é a Forma, embora sendo tirada da gênero em relação à espécie, temos que como
Forma enquanto designa o todo. Por isso dize­ aquilo que representa o gênero, enquanto era
mos que o homem é um animal racional, e não predicado da espécie, exprimia implicitamen­
que é composto de animal e racional do mes­ te na sua significação, mesmo que de modo
mo modo em que dizemos que é composto de indistinto, tudo aquilo que está de modo de­
alma e corpo; o homem se diz, com efeito, com­ terminado na espécie, assim é necessário
posto de alma e corpo no sentido que da com­ também que aquilo que representa a esp é­
posição de duas coisas vem a resultar uma ter­ cie, enquanto é predicado do indivíduo, ex­
ceira, que não coincide com nenhuma das duas prima tudo aquilo que está essencialmente no
primeiras: o homem não é, com efeito, nem alma indivíduo, embora de modo indistinto. Deste
nem corpo. Mas se dizemos que o homem re­ modo, a essência da espécie é indicada com
sulta de algum modo da composição de animal o termo homem, razão pela qual homem é
e racional, não poderá ser entendido como uma predicado de Sócrates. Todavia, se a nature­
terceira coisa Formada pela união de duas coisas za da espécie é indicado com exclusão da
mas como um terceiro conceito, Formado pela matéria designada que representa o princí­
união de dois conceitos. O conceito de animal, pio de individuação, terá função de parte, e
com efeito, não compreende a determinação deste modo é indicada com o termo huma­
da Forma especial, e exprime a natureza da nidade: a humanidade, com efeito, significa
coisa com base naquilo que representa de a l­ aquilo pelo qual um homem é homem. A ma­
gum modo a matéria em relação à perfeição téria designada não é aquilo pelo qual um
última. O conceito dessa diferença "racional" homem é homem, e assim de modo nenhum
consiste, ao invés, na determinação da Forma está incluída entre aquilo que faz de um ho­
específica, e destes dois conceitos se constitui mem um homem. Portanto, uma vez que a hu­
o da espécie ou da definição. (E assim como manidade em seu conceito inclui apenas aqui­
uma coisa constituída de outras coisas não re­ lo pelo qual um homem é homem, é evidente
cebe a predicação dos mesmas coisas das quais que de sua significação é excluída ou remo­
é constituída, também o conceito não recebe a vida a matéria designada: e uma vez que a
predicação dos conceitos dos quais é consti­ parte não se predica do todo, daí procede
tuído; não dizemos, com efeito, que a defini­ que a humanidade não se predica nem do
ção é o gênero ou a diferença. homem nem de Sócrates. Por isso Avicena diz
êmbora o gênero signifique toda a essên­ que a qüididade do composto não é o mesmo
cia da espécie, todavia não é necessário que composto do qual é qüididade, embora tam­
espécies diversas, pertencentes a um único bém a mesma qüididade, embora seja com­
gênero, possuam uma só essência, a partir do posta, não é o homem; ao contrário, é preciso
momento que a unidade do gênero provém da que seja recebida em algo que é a matéria
mesma indeterminação ou indiferença, e não designada.
porque aquilo que é significado pelo gênero Todavia, uma vez que, conforme foi dito,
seja uma natureza numericamente idêntica em a designação da espécie em relação ao gê­
espécies diversas, à qual se acrescenta outra nero tem lugar mediante a forma, e a desig­
coisa, que é a diferença que o determina, a s­ nação do indivíduo em relação à espécie tem
sim como a forma determino a matéria que é lugar mediante a matéria, é necessário que o
numericamente idêntica, e sim porque o gêne­ termo que indica aquilo de que se extrai a
ro significa certa forma, mas não de modo de­ natureza do gênero com exclusão da forma
terminado esta ou aquela forma que é ex­ determinada que completa a espécie expri­
pressa de modo determinado pela diferença, ma a parte material do todo, assim como "cor­
e que não é diversa daquela que em nível po" exprime a parte material do homem; e que
indeterminado fora expressa pelo gênero. € por o termo que significa aquilo de que se extrai a
240
Sexta patte - y\ ^ s c o I ó s +í c q u o s é c u lo d é c im o t e r c e i r o

natureza da espécie com exclusão do matéria existe formalmente. O ser que é Deus é, com
designada exprima a parte formal: e, portan­ efeito, tal que nada a ele se pode acrescentar,
to, a humanidade é indicada como uma forma e por causa de sua própria pureza se distingue
qualquer e é chamada a forma do todo, não de qualquer outro ser; por isso, no comentário
como se fosse acrescentada a partir do exte­ à nona proposição do livro Sobre os causas se
rior às partes essenciais, isto é, à matéria e à diz que a individuação da causa primeira, que
forma, assim como a forma da casa se acres­ é apenas ser, tem lugar pela sua pura bonda­
centa às suas partes integrantes, mas de pre­ de. Mas o ser comum, assim como não inclui em
ferência como a forma que é o todo, isto é, seu conceito nenhum acréscimo, não inclui tam­
que compreende a forma e a matéria, com bém a exclusão de qualquer acréscimo, porque
exclusão todavia de tudo aquilo pelo qual a — se assim fosse — o ser ao qual alguma ou­
matéria pode ser designada. tra coisa seria acrescentada não poderio ser
Portanto, dessa forma torna-se evidente considerado como tal.
que a essência do homem é expressa com este Analogamente, embora Deus seja apenas
termo "homem" e com este termo "humanida­ ser, não é necessário que lhe faltem as outras
de", mas de modo diverso, conforme dissemos, perfeições ou nobrezas: ao contrário, Deus pos­
porque o termo "homem" a indica como um todo, sui todas as perfeições que estão em todos os
isto é, não excluindo a designação da matéria, gêneros, de modo a ser chamado perfeito em
mas contendo-a em nível implícito e indistinto, sentido absoluto, como dizem o Filósofo e o Co­
assim como dissemos que o gênero contém a mentador no V livro da Metafísica, mas as pos­
diferença, e portanto tal termo "homem" se sui de modo mais excelente em relação a to­
predica dos indivíduos; o termo "humanidade", das as outras coisas, porque nele formam uma
ao invés, indica a mesma essência como parte, unidade, enquanto nas outras coisas permane­
pois contém em sua significação apenas aquilo cem distintas entre si. € isso porque todas as
que é próprio do homem enquanto homem, e perfeições convêm a Deus segundo o seu ser
exclui toda designação, motivo pelo qual não simples; e como quem estivesse em grau de
se predica dos indivíduos do homem: e é por realizar por meio de uma só qualidade as ope­
isso que por vezes o termo "essência" encon­ rações de todas as outras qualidades encerra­
tra-se predicado de coisas reais (dizemos com ria naquela única qualidade todas as outras,
efeito que Sócrates é uma essência qualquer) também Deus encerra em seu próprio ser todas
enquanto por vezes é negado, como quando as perfeições.
se diz que a essência de Sócrates não é Cm um segundo modo, a essência se en­
Sócrates. [...] contra nas substâncias criadas intelectuais, em
que o ser é diferente de sua essência, por mais
que a própria essência seja privada de maté­
4. A essência divina
ria. Seu ser não é por isso absoluto, mas rece­
e as essências das criaturas
bido, e por isso limitado e finito conforme a
Do que vimos, portanto, torna-se claro de capacidade da natureza que recebe: mas sua
que modo a essência se encontra nas diversas natureza ou qüididade é todavia absoluta, não
coisas. Nas substâncias encontram-se, portan­ recebida em alguma matéria. C por isso se diz
to, três modos diversos de possuir a essência. no livro Sobre a s causas que as inteligências
Há, de fato, algo, como Deus, cuja essência é são infinitas embaixo e finitas no alto: com efei­
seu próprio ser, e por isso existem alguns filó­ to, são finitas em relação ao ser que recebem
sofos que afirmam que Deus não tem qüididade daquilo que é superior: mas não são finitas
ou essência, pois sua essência não é mais que embaixo, porque suas formas não são limita­
seu ser. 6 disso segue que ele próprio não exis­ das segundo a capacidade de alguma maté­
te em um gênero, pois tudo aquilo que existe ria em grau de recebê-las. Portanto, nestas
em gênero deve necessariamente ter além do substâncias não se encontra uma multiplicidade
ser uma qüididade: do momento que a qüidi­ de indivíduos dentro de uma mesma espécie,
dade ou natureza do gênero ou da espécie não conforme dissemos, a não ser no caso da alma
se distingue segundo o modo de ser de sua humana, por causa do corpo ao qual se une. 6
natureza naquilo do qual é gênero e espécie, e também se a sua individuação depende oca­
é, ao invés, o ser que se dá de modos diversos sionalmente do corpo, quanto ao seu início,
nas coisas diversas. porque toda alma não adquire seu ser indivi­
6 dual a não ser no corpo do qual é ato, não é
quando se diz que Deus é apenas ser,
não se é forçado por isso a cair no erro daque­ todavia necessário que, uma vez destruído o
les que sustentaram que Deus é aquele ser corpo, a individuação falte, porque, tendo um
universal em virtude do qual qualquer coisa ser absoluto, uma vez adquirido o ser indivi-
241
Capitulo décimo terceiro - A g r a n d e s ín t e s e d e T o m á s d e . A q u i n o

dual pelo foto de se ter tornodo formo de d e­ sejam acidentais, porque o fato de possuir
terminado corpo, tal ser permanece sempre maior ou menor perfeição não diversifica a
individual. G por isso Avicena diz que a indivi- espécie; com efeito, o grau de perfeição, com
duação e o multiplicação das almas depende a qual se recebe uma mesma forma, não é
do corpo quanto a seu princípio, mas não quan­ causa da diversidade na espécie, assim como
to ao termo. o mais branco e o menos branco na partici­
G uma vez que nestas substâncias a pação do mesmo modo de ser da brancura,
qüididade não é idêntico ao ser, são colocá- mas o diverso grau de perfeição das mesmas
veis em uma predicação, e por isso se en ­ formas ou naturezas participadas diversifica
contram nelas gênero, espécie e diferença, a espécie, e este é o modo com o qual tam­
embora suas diferenças próprias nos sejam bém a natureza procede por graus das plan­
desconhecidas. Nas coisas sensíveis, com efei­ tas aos animais, através de algumas realida­
to, também as próprias diferenças essenciais nos des que são intermediárias entre os animais
são ignoradas, motivo pelo qual são indicadas e as plantas, como diz o Filósofo no VII livro
por meio dos diferenças acidentais que tiram Sobre o s animais. Além disso, não é neces­
sua origem das essenciais, assim como a cau­ sário que a divisão das substâncias intelec­
sa é indicada mediante seu efeito, como quan­ tuais tenha lugar sempre por duas diferenças
do o foto de ser bípede é indicado como diferen­ verdadeiras, porque é impossível que isso se
ça do homem. Mas os acidentes próprios das dê em todas as coisas, como o Filósofo ob­
substâncias imateriais nos são ignorados, e por serva no XI livro So bre o s onimois.
isso suas diferenças não nos podem ser indi­ Gm um terceiro modo, a essência se en­
cadas nem por si nem por meio das diferenças contra nas substâncias compostas de matéria e
acidentais. forma, nas quais não apenas o ser é recebido
Todavia, é preciso saber que gênero e e finito, pelo fato de que recebem o ser de outro,
espécie não são tomados do mesmo modo nas mas a própria natureza ou qüididade é neste
substâncias intelectuais e nas sensíveis, porque caso recebida na matéria signoto. G por isto são
nestas últimas o gênero é retirado daquilo que finitas tanto embaixo quanto no alto, e nelas já
nela é formal, motivo pelo qual Avicena, no iní­ é possível, pela divisão da matéria signoto, a
cio de seu livro Sobre o olmo, diz que nas coi­ multiplicação dos indivíduos dentro de uma
sas compostas de matéria e forma a forma "é a mesma espécie. Como depois nestas substân­
diferença simples daquilo que é constituído por cias a essência esteja em relação com as inten­
ela", todavia, não no sentido de que a própria ções lógicas, já o dissemos acima.
forma seja a diferença, mas no sentido que é Tomás,
princípio da diferença, como ele próprio preci­ €nte e (Essência
sa em sua Metafísico. G esta diferença se diz
diferença simples porque se depreende daqui­
lo que é parte da qüididade da coisa, isto é,
da forma. Mas, uma vez que as substâncias A natureza da alma
imateriais são qüididades simples, nelas a di­
ferença não pode ser retirada de uma parte da
qüididade, mas da qüididade no seu conjunto, Poro Tomás o homem é "composto d e
e por isso, no início do livro Sobre o olmo, Avi­ espírito e m atéria”, isto é, d e olmo e cor­
cena diz que "possuem uma diferença simples po. R tarefo do teólog o é o d e "ocupar-
apenas as espécies cujas essências são com­ s e do homem do ponto d e visto do olmo,
postas de matéria e forma". não do corpo". Ris, portanto, que no q u e s­
Analogamente, também o gênero se e x ­ tão seten ta e cinco e le s e pergunto sob re
trai nelas de toda a essência, mas de modo quol se jo o noturezo do olmo e so b re os
diferente. Toda substância separada tem em reloções que intercorrem entre esto e o
comum com a s outras a imaterialidade, mas corpo.
difere no grau de perfeição, à medida que Poro Tomás, a olmo é o "princípio do
se distancia da potencialidade e se aproxi­ vido", elo "não é um corpo, mas oto d e um
ma do ato puro. G, portanto, daquilo que d e­ corpo". Rlém disso,, elo é "incorpóreo e
las segue pois são imateriais, se extrai o g ê­ subsistente". €m outros polovros, elo não
nero, como o intelectualidade ou algo de só é "imoteriol" (ou melhor, espiritual), m ospos­
semelhante, enquanto daquilo que nelas s e ­ sui também umo subsistência autônomo. Fi­
gue o grau de perfeição se extrai a diferença nalmente, o olmo não é corruptível, mos
que permanece, todavia, desconhecida para incorruptível e imortol.
nós. G não é necessário que tais diferenças
242
Sexta parte - A É s c o l ó s t i c a n o s é c u lo d é c im o te n c e in o

1. Se a alma é um corpo exemplo, é princípio de vida no animal; toda­


via, um corpo jamais poderá ser primeiro princí­
Prrccc que a olmo é um corpo. Com efeito:
pio de vida. Com efeito, é manifesto que ao
1. A olmo é o elemento motor do corpo.
corpo, enquanto corpo, nõo pertence nem ser
Mas nõo se pode dizer que seja um móvel não
princípio de vida, nem ser um vivente: de outro
movido. Tonto porque porece que nada posso
modo todo corpo seria um vivente, ou princípio
imprimir um movimento, se nõo for por suo vez
de vida. Portanto, se um corpo é vivente ou prin­
movido: pois ninguém dá oquilo que nõo tem,
cípio de vida, isso depende do fato de que ele
como um objeto nõo quente nõo aquece. C tom­
é to/ corpo. Ora, um ser é atualmente tal por
bem porque, se existisse um motor nõo movi­
força de um princípio, que é chamado o seu
do, causaria um movimento sempiterno e uni­
ato. Por isso a alma, que é o primeiro princípio
forme, como provo Aristóteles: e isto nõo se
de vida, nõo é um corpo mas ato de um corpo:
verifico no movimento do animal, que provém
como o calor, que é princípio do aquecimento,
do olmo. Portanto, o olmo é um motor movido.
nõo é um corpo, mas o ato [ou a perfeição] de
Mas todo motor movido é corpo. Portanto, o
um corpo.
olmo é um corpo.
2. Todo conhecimento ocorre mediante S o l u ç ã o d ã s d ific u ld ã d c s : 1. Cmbora tudo
umo semelhança. Ora, nõo pode acontecer que aquilo que se move seja movido por outro, nõo
um corpo se assemelhe a umo coiso incorpórea. se pode, todavia, remontar ao infinito e, por­
Portanto, se a olmo nõo fosse um corpo, nõo tanto, é necessário afirmar que nem todo mo-
poderio conhecer os coisas materiais. vente é movido. Com efeito, se o mover-se nõo
3. é necessário que haja um contato entre é mais que um sair da potência para o ato, o
o motor e a coisa movida. Mas o contato nõo motor dó ao móvel aquilo que tem, enquanto o
acontece o nõo ser entre os corpos. Por isso, atua. Ora, como prova Aristóteles, existe um
se a alma move o corpo, também ela deve ser motor inteiramente imóvel, que nõo se move
um corpo. nem por natureza nem indiretamente: e tal mo­
tor é capaz de imprimir um movimento unifor­
£ m c o n t r a r io : Santo Agostinho ensina que
me. Ao contrário, há outros motores que, em­
a alma "é dito simples por respeito ao corpo,
bora nõo estando sujeitos ao movimento por
pois ela nõo ocupo o espaço mediante o quan­
força de sua natureza, a ele estão sujeitos indi­
tidade".1
retamente: por isso eles nõo imprimem um movi­
R c s p o n d o : Para indagar sobre o natureza mento sempre uniforme. A alma é um destes.3
do olmo, é preciso portir do pressuposto que Há, finalmente, outros motores, que são sujei­
o olmo é o primeiro princípio do vido nos vi- tos ao movimento por força de sua natureza,
ventes que nos circundam: com efeito, chama­ isto é, os corpos. Mas, uma vez que os antigos
mos animados os seres viventes, e inanimados filósofos naturalistas só acreditavam na exis­
os que são privados de vida. A vida, depois, tência dos corpos, afirmavam que todo motor
se manifesta especialmente na dupla ativida­ era movido, e que a própria alma estava sujei­
de do conhecimento e do movimento. Os anti­ ta ao movimento por força de sua natureza, e
gos filósofos,*2 que nõo conseguiam elevar-se que ela fosse um corpo.
acima da imaginação, consideravam que ó prin­ 2. Nõo é necessário que a semelhança
cípio de tais atividades fosse um corpo: por da coisa conhecida se encontre atualmente
isso afirmavam que somente os corpos são na natureza do cognoscente; porque se te­
seres reais e que fora deles só há o nada. £m mos um ser, o qual antes seja cognoscente
base a isso, diziam que o alma nõo é mais em potência e depois em ato, não é neces­
que um corpo. sário que a semelhança [ou imagem] do obje­
€mbora se possa mostrar o falsidade de to conhecido se encontre em ato na natureza
tal opinião de muitos modos, todavia usaremos do cognoscente, mas basta que aí se encon­
um só argumento que, por sua universalidade tre em potência; assim a cor nõo está atual­
e certeza, prova como a alma nõo é um corpo.
Com efeito, é evidente que nem todo princípio
de operações vitais é uma alma, de outra for­
ma também o olho seria uma alma, sendo prin­ 'Csta passagem é tirada do D e Trin ita íe de Rgostinho.
cípio da operação visiva; e poderiamos dizer o R esta obra, como veremos, Tomás volto frequentemente,
mesmo dos outros órgãos da alma. Nós, ao in­ nos páginas seguintes.
2Trata-se dos Pré-socráticos.
vés, chamamos de alma o primeiro princípio da 36m outros palavras, a olmo é p e r a c c id e n s "submetida
vida. Oro, ainda que um corpo possa ser em ao movimento, porque está unida a um corpo, o qual é por
certo sentido princípio de vida, o coração, por si um ser sujeito ao movimento".
243
Cãpltulo dédmo terceiro - / \ g r a n d e sín te s e d e T o m á s d e .A q u in o

mente mas apenas potencialmente na pupila. dade de conhecer as coisas, não deve possuir
Portanto, não é necessário que as semelhan­ nenhuma delas em sua natureza; porque, a
ças das coisas materiais se encontrem atual­ que estivesse inserida nela por natureza im-
mente na essência da alma, mas que esta pediria o conhecimento das outras. Com efei­
esteja em potência a [receber] tais semelhan­ to, vemos que a língua do enfermo, quando
ças. Mas, uma vez que os antigos Naturalistas está infectada de humor bilioso e amargo, não
não sabiam distinguir entre ato e potência, pode perceber o doce, mas tudo lhe parece
afirmavam que a alma era um corpo, justamen­ amargo. Portanto, se o princípio intelectivo ti­
te para que pudesse conhecer os corpos; mais vesse em si mesmo a natureza de algum cor­
ainda, afirmavam que era composta dos prin­ po, não poderio conhecer todos os corpos.
cípios [elementares] de todos os corpos, a fim Tanto mais que cada corpo possui uma natu­
de que seu conhecimento pudesse se esten­ reza determinada. Por conseguinte, é impos­
der a todos os corpos. sível que o princípio intelectivo seja um corpo.
3. Pode haver duas espécies de conta­ Da mesma forma, é impossível que ele
tos; o contato quantitativo e o virtual. Com o entenda mediante um órgão corpóreo, porque
primeiro um corpo só pode ser tocado por um também a natureza desse órgão material im­
corpo. Com o segundo, um corpo pode ser to­ pediría o conhecimento de todos os corpos; com
cado também por um ser incorpóreo, que o efeito, se determinada cor além de estar na
move. pupila [no momento do conhecimento] também
está no recipiente de vidro, os líquidos nele
vertidos aparecerão [sempre] da mesma cor.
2. Se a alma humana é algo subsistente4
Por isso o princípio intelectivo, chamado
PflRece que a alma humana não é algo mente ou intelecto, tem uma atividade própria,
subsistente. Com efeito; na qual o corpo não entro. Ora, nada pode
1. Aquilo que é subsistente é um hoc operar por si mesmo, se não subsiste por si
aliquid[istoé, um ser concreto]. Ora, não a alma, mesmo. A operação, com efeito, só compete
mas o composto de alma e corpo é um hoc ao ente em ato; tanto é verdade que as coisas
aliquid. Portanto, a alma não é subsistente. operam conforme seu modo de existir. Por isso
2. Tudo aquilo que é subsistente pode­ não dizemos que o calor aquece; quem aquece
mos dizer que opera. Ora, não se pode afirmar é o sujeito do calor [colidum]. Portanto, perma­
que a alma opere; uma vez que, conforme nece demonstrado que a alma humana, que é
Aristóteles, “dizer que a alma sente ou que en­ chamada mente ou intelecto, é um ser in­
tende, é como dizer que ela tece ou que edifica". corpóreo e subsistente.
Portanto, a alma não é um ser subsistente. SoiuçAo d a s DincuiDRDCs: 1. A expressão hoc
3. 6 se a alma fosse algo subsistente, oliquid pode ser tomada em dois sentidos: para
deveria ter uma atividade qualquer sem o cor­ indicar qualquer ser subsistente ou então para
po. Ao contrário, não existe nenhuma atividade indicar um ser subsistente que é completo na
sem o corpo, nem mesmo o entender; uma vez natureza de dada espécie. Tomado no primeiro
que não há intelecção sem fantasma, e isso não modo, exclui a inerência, próprio do acidente e
é possível sem o corpo. Portanto, a alma huma­ da forma material: no segundo exclui ainda a
na não é algo subsistente. imperfeição que tem a parte [em relação ao
C m c o n t r á r io : Santo Agostinho ensina: todo]. Portanto, a mão, por exemplo, se pode­
“Quem vê a natureza da mente, isto é, como rá dizer hoc aliquid no primeiro modo, mas não
ela é uma substância, e além do mais não no segundo. Ora, sendo a alma uma parte da
corpórea, vê também que aqueles, os quais espécie humana, poder-se-á denominar hoc
opinam que ela é corpórea, enganam-se ao
atribuir-lhe aquelas coisas sem as quais não
podem conceber nenhuma natureza, isto é,
os semblantes dos corpos". Por isso, não só
a natureza da mente humana é imaterial, mas 4Comentando o conteúdo deste artigo, podre Centi
é ainda uma substância, isto é, algo subsis­ escreve: "Depois de ter precisado o conceito de olmo, como
princípio devido e, portanto, como formo, em contraposição
tente. o tudo o que é matéria, santo Tomás posso aqui a pergun­
R c s p o n d o : Devemos necessariamente afir­ tar se o forma que é a alma humano tem subsistência pró­
mar que o princípio da operação intelectiva, pria, independentemente do corpo vivificado por elo. £m
isto é, a alma do homem, é incorpóreo e sub­ outros termos: aqui se fala da espiritualidade do aima.
— €, uma vez demonstrada a espiritualidade, ou seja, a
sistente. Com efeito, é sabido que o homem subsistência autônoma do espírito humano, será fácil pro­
com sua inteligência pode conhecer a nature­ ceder ò demonstração de suo imortalidade. O argumento,
za de todos os corpos. Ora, quem tem a facul­ portanto, é da máxima importância”.
244 Sexta parte - y \ £ T s c o lá s + ic a n o s é c u lo d é c im o t e r c e i r o

oliquidno primeiro modo, sendo dotada de uma rações das partes são atribuídas ao todo. Com
subsistência, mas não no segundo modo. Nes­ efeito, dizemos que é o homem que vê mediante
te sentido, [apenas] o composto de alma e de o olho e apalpa mediante a mão, mas não como
corpo se diz hoc oliquid. um objeto quente que aquece mediante o ca­
2. lor: pois o calor, falando propriamente, não
Aristóteles uso aquelas palavras não
para exprimir seu parecer, mas o de quem dizia aquece de nenhum modo. Portanto, podemos
que o entender é um movimento, como se afirmar que a alma entende, como o olho vê:
depreende do contexto. mas em sentido rigoroso é melhor dizer que é o
Também se pode responder que a opera­ homem que entende, mediante a alma.
ção propriamente pertence a quem propriamen­ 3. Para que o intelecto aja requer-se o cor­
te existe. Por vezes porém, se pode dizer que po, não como um órgão necessário para exer­
uma coisa propriamente existe quando, sem ser citar tal ação, mas apenas como objeto: com
um acidente ou uma forma corpórea, é todavia efeito, a imagem fantástica está no intelecto,
parte [de um todo]. Mas se diz que uma coisa é assim como o calor para a vista. Mas ter tal
rigorosa e propriamente subsistente, quando necessidade do corpo não exclui que o intelec­
não só não é inerente a um sujeito no modo to seja subsistente: de outro modo também o
dito acima, mas não é nem mesmo parte [de animal não seria um ser subsistente, pois tem
um todo]. Sob este ponto de vista, nem o olho necessidade das coisas exteriores sensíveis
nem a mão se podem dizer propriamente para sentir.
subsistentes, e por conseguinte nem sequer Tomás,
propriamente operantes. C por isso que as ope­ H sumo teológico, vol. V.

Santo Tomás de Aquino,


particular da “Crucifixão ”
do Beato Angélico
(Museu de São Marcos,
Florença).
245
Capítulo décimo terceiro - A g r a n d e s ín te s e d e T o m á s d e ;Aqwm o

segundo o dito do Salmo: “O estulto diz em


D As cinco vias paro demonstrar seu coração: "Deus não existe". Portanto, que
Deus existe não é por si evidente.
a existência de Deus*1
R c s p o n d o : Uma coisa pode ser por si evi­
dente de dois modos: primeiro, em si mesma,
mas não para nós; segundo, em si mesma e
Rs cinco provas aduzidos por santo To­
também para nós. C, na verdade, uma proposi­
más para demonstrar a existência de Deus são
ção é por si evidente pelo fato de que o
todas a posteriori, isto é, partem de entes do
predicado está incluído na noção do sujeito,
mundo para remontara seu Princípio que é Deus.
como esta: “o homem é um animal"; com efeito,
R primeira via alcanço Deus como Motor
"animar faz parte da própria noção de homem.
Imóvel, a segunda como Causo Primeira, a ter­
Portanto, se é de todos conhecida a natureza
ceira como Ser Necessário, a quarta como Sumo
do predicado e do sujeito, a proposição resul­
Bem, o quinta como Inteligência Providencial.
tante será evidente para todos, como acontece
nos primeiros princípios de demonstração, cujos
termos são noções comuns que ninguém pode
ignorar, como ente e não ente, o todo e a parte
1. Se é por si evidente que Deus existe
etc. Todavia, se para alguém permanece des­
Pflfiece que é por si evidente que Deus exis­ conhecida a natureza do predicado e do sujei­
te. Com efeito: to, a proposição será evidente em si mesma,
1. Dizemos evidentes por si os coisos dos mas não para aqueles que ignoram o predicado
quois temos naturalmente inerente o cognição, e o sujeito da proposição. € assim sucede, con­
como acontece com os primeiros princípios. Ora, forme nota Boécio, que alguns conceitos são
como assegura o Damasceno, "o conhecimento comuns e evidentes apenas para os doutos, co­
da existência de Deus é naturalmente inerente mo, por exemplo: "as coisas imateriais não ocu­
em todos". Portanto, a existência de Deus é por pam um espaço".
si evidente. Portanto, digo que esta proposição “Deus
2. Cvidente por si é aquilo que logo se existe" em si mesma é por si evidente, porque o
entende, apenas tendo percebido os termos; e predicado se identifica com o sujeito; Deus, com
isto Aristóteles o atribui aos primeiros princí­ efeito, como veremos a seguir, é seu próprio ser:
pios da demonstração; com efeito, conhecen­ porém, como ignoramos a essência de Deus,
do o que é o todo e o que é a parte, logo se para nós não é evidente, mas necessita ser
entende que o todo é maior do que sua parte. demonstrada por meio das coisas que nos são
Ora, entendendo o que significo a palavra Deus, mais conhecidas, apesar de que por si sejam
no mesmo instante se compreende que Deus menos evidentes, isto é, por meio dos efeitos.
existe. Com efeito, indica-se com este nome um
SoiuçAo DRis DiFicuLDRDCs: 1. € verdade que
ser do qual não se pode indicar um maior; ora,
temos por natureza um conhecimento geral e
é maior aquilo que existe ao mesmo tempo na
confuso da existência de Deus, enquanto Deus
mente e na realidade do que quanto existe
é a felicidade do homem; porque o homem
apenas na mente; de onde, pelo foto de se en­
deseja naturalmente a felicidade, e aquele que
tender este nome Deus, logo vem à nossa men­
naturalmente deseja, também naturalmente
te [de conceber] sua existência, segue-se que
conhece. Mas isto não é propriamente um co­
existe também na realidade. Portanto, que Deus
nhecer que Deus existe, como não é conhecer
existe é por si evidente.
Pedro o ver que alguém está vindo, embora
3. C por si evidente que existe a verdade;
quem está vindo seja de fato Pedro: muitos,
porque quem nega que a verdade existe, admi­
com efeito, pensam que o bem perfeito do ho­
te que existe uma verdade; com efeito, se a ver­
mem, a felicidade, consiste nas riquezas, outros
dade não existe será verdadeiro que a verdade
nos prazeres, outros em alguma outra coisa.
não existe. Mas se há algo verdadeiro, é preci­
2. Pode acontecer também que aquele
so que exista a verdade. Ora, Deus é a Verda­
que ouve esta palavra Deus não entenda que
de. "Cu sou o caminho, a verdade e a vida".
se queira significar com ela um ser do qual não
Portanto, que Deus existe é por si evidente.
se pode pensar que seja o maior, a partir do
Cm c o n t r á r io : Ninguém pode pensar o momento que alguns acreditaram que Deus fos­
oposto daquilo que é por si evidente, como se corpo. Mas, dado ainda que todos com o
explica Aristóteles em relação aos primeiros termo Deus entendam significar aquele que se
princípios da demonstração. Ora, podemos diz, isto é, um ser do qual não se pode pensar
pensar o oposto do enunciado: Deus existe, o maior, disto não segue, porém, a persuasão
246 Sexta parte - y\ < £ s c o lá s tic a k\o s é c u lo d é c im o t e c c e iw

de qu® o S0r 0xpr0sso por tal nom0 ©xisto no do evidente em relação a nós, pode ser demons­
roa lidado das coisas; mas apenas no concep­ trada por meio dos efeitos por nós conhecidos.
ção do intolocto. Nom so podo argüir que exis­
ta na realidade se antes não se admite que na SoiuçAo das DiricuiDADCs: 1. A existência de
realidade há uma coisa da qual não se pode Deus e outras verdades que em relação a Deus
pensar uma maior: o que não se concede por podem ser conhecidas com a razão natural não
aqueles que dizem que Deus não existe. são, conforme são Paulo, artigos de fé, mas pre­
3. liminares
Qu® exista a verdade em geral é por si aos artigos de fé; com efeito, a fé pres­
evidente; mas que aí se encontre uma Verdade supõe a cognição natural, como a graça pressupõe
primeira não é para nós igualmente evidente. a natureza, como [em geral] a perfeição pressu­
põe o perfectível. Mas nada impede que uma
coisa, que é de seu objeto de demonstração e
2. Se é demonstrável que Deus existe
de ciência, seja aceita como objeto de fé por quem
PflRece não ser demonstrável que Deus não chega a compreender sua demonstração.
existe. Com efeito; 2. Quando se quer demonstrar uma cau­
1. Que Deus existe é um artigo de fé. Ora, sa mediante o efeito, é necessário servir-se do
as coisas de fé não podem ser demonstradas, efeito em lugar da definição [ou natureza] da
porque a demonstração gera a ciência, enquan­ causa, para demonstrar que esta existe; e isso
to a fé é apenas das coisas não evidentes, como vale especialmente em relação a Deus. Com
assegura o Apóstolo. Portanto, não se pode efeito, para provar que uma coisa existe, é ne­
demonstrar que Deus existe. cessário tomar por termo médio sua definição
2. O termo médio de uma demonstração nominal, não a definição real, pois o questão
se depreende da natureza do sujeito. Ora, de em relação à essência de uma coisa vem de­
Deus não podemos saber o que é, mas apenas pois da que se refere à sua existência. Ora, os
o que não é, como nota o Damasceno. Portan­ nomes de Deus provêm de seus efeitos, como
to, não podemos demonstrar que Deus existe. veremos o seguir: por isso, ao demonstrar a
3. Se pudéssemos demonstrar que Deus existência de Deus mediante os efeitos, pode­
existe, isso seria possível apenas mediante mos tomar como termo médio aquele que sig­
seus efeitos. Mas estes efeitos não são pro­ nifica o nome Deus.3
porcionais a ele, pois ele é infinito, e os efeitos 3. De efeitos não proporcionais à causa
são finitos; com efeito, entre finito e infinito não não se pode ter desta uma cognição perfeita;
há proporção. Não se podendo então demons­ todavia, de qualquer efeito podemos ter mani­
trar uma causa mediante um efeito despropor­ festamente a demonstração que a causa exis­
cionado, segue-se que não é possível demons­ te, conforme dissemos. € assim, dos efeitos de
trar a existência de Deus. Deus se pode demonstrar que Deus existe,
embora não se posso ter por meio deles um
Cm co n tr a r io ; Diz o Apóstolo: "As perfeições conhecimento perfeito da essência dele.
invisíveis de Deus, compreendidas pelas coisas
feitas, tornam-se visíveis". Ora, isto não aconte­
3. Se Deus existe
ceria, se mediante as coisas criadas não se pu­
desse demonstrara existência de Deus; com efei­ Parccc que Deus não existe. Com efeito;
to, a primeira coisa que é preciso conhecer a 1. Se de dois contrários um é infinito, o
respeito de um objeto dado é se ele existe. outro permanece completamente destruído.
Ora, no nome Deus entende-se afirmado um
R c s p o n d o : Há dupla demonstração: Uma
bem infinito. Portanto, se Deus existisse, não
procede da [cognição da] causa, e é chamada deveria existir mais o mal. Vice-versa, no mun­
propter quid,] e esta se move daquilo que de do existe o mal. Portanto, Deus não existe.
seu tem uma prioridade ontológica. A outra, par­
2. Aquilo que pode ser realizado por um
te dos efeitos e é chamada demonstração quicF
número restrito de causas, não se vê por que
e se move de coisas que têm uma prioridade
deve se realizar a partir de causas mais nume­
apenas em relação a nós: toda vez que um efei- '
to nos é mais conhecido do que sua causa, nós
nos servimos dele paro conhecer a causa. De
qualquer efeito se pode demonstrar a existên­ 'Trata-se do assim chamada demonstração o priori.
cia de sua causa (desde que os efeitos sejam H rata-se da assim chamado demonstração o posteriori.
para nós mais conhecidos do que a causa); por­ 5€m outros palavras, enquanto para uma demonstra­
ção "propter quid' ou o priori é necessário "partir da defini­
que, como todo efeito depende de sua causa, ção que exprime o natureza própria e real d as coisas, para
quando há efeito é necessário que pré-exista uma demonstração 'quid [isto é, o posteriori], basta partir
a cousa. Portanto, a existência de Deus, não sen­ do efeito próprio".
247
Capítulo décimo terceiro - . A g m n d e s m fe .s e d e T o m á s d e ;A c | u m o

rosas. Ora, todos os fenômenos quo aconte­ não se encontra, e é impossível, que uma coisa
cem no mundo poderiam ser produzidos por seja causa eficiente de si mesma, pois, de outra
outros cousos, no suposição d® que Deus não forma, existiria antes de si mesma, o que é in­
existisse: com efeito, os naturais se reportam, concebível. Ora, um processo ao infinito nas cau­
como seu princípio, à natureza: os voluntários, sas eficientes é absurdo. Porque em todas as
à razão ou vontade humana. Nenhuma neces­ causas eficientes concatenadas a primeira é cau­
sidade, portanto, da existência de Deus. sa da intermediária, e a intermediária é causa
do última, sejam as intermediárias muitas ou uma
€m c o n t r a r io : No êxodo se diz, na pessoa
só; ora, eliminada a causa é subtraído também
de Deus: "€u sou aquele que ê " .
o efeito: portanto, se no ordem das causas eficien­
R c s p o n d o : Que Deus existe pode ser pro­ tes não existisse uma primeira causa, não have­
vado por cinco vias. ria também a última, nem a intermediária. Mas
proceder ao infinito nas causos eficientes equi­
a. A primeira via, ou via do movimento vale a eliminar a primeira causa eficiente; e a s­
fl primeira e a mais evidente é a que se sim não teríamos nem o efeito último, nem as
depreende do movimento. Com efeito, é certo causas intermediárias: o que evidentemente é
e consta dos sentidos, que neste mundo algu­ falso. Portanto, é preciso admitir uma primeira
mas coisas se movem. Ora, tudo aquilo que se causa eficiente, que todos chamam Deus.
move é movido por outro. Com efeito, nada se
c. A terceiro via, ou via da contingência
transmuta que não seja potencial em relação
ao termo do movimento: enquanto quem move, fl terceira via é tomada do possível [ou
move enquanto está em ato. Porque mover não contingente] e do necessário, e é o seguinte,
significa mais que impelir alguma coisa da po­ flntre as coisas encontramos as que podem existir
tência ao ato: e nado pode ser reduzido da e não existir; com efeito, algumas coisas nas­
potência ao ato a não ser mediante um ser que cem e terminam, o que quer dizer que podem
já está em ato. Por exemplo, o fogo que é quen­ existir e não existir. Ora, é impossível que todas
te atualmente torna quente em ato a lenha, que as coisas de tal natureza tenham sempre existi­
era quente apenas potencialmente, e assim a do, porque aquilo que pode não existir, um tem­
move e a altera. Mas não é possível que uma po não existia. Portanto, se todas as coisas [exis­
mesma coisa esteja simultaneamente e sob o tentes em natureza são tais que] podem não
mesmo aspecto em ato e em potência: ela o existir, em dado momento nada existiu na reali­
pode ser apenas sob diversas relações: assim, dade. Mas, se isto é verdadeiro, também agora
aquilo que é quente em ato não pode ser ao não existiria nada, porque aquilo que não exis­
mesmo tempo quente em potência, mas é ao te, não começa a existir a não ser por alguma
mesmo tempo frio em potência. €, portanto, coisa que existe. Portanto, se não existia nenhum
impossível que sob o mesmo aspecto uma coi­ ente, é impossível que alguma coisa começasse
sa seja ao mesmo tempo movente e movida, a existir, e assim também agora não existiria
isto é, que mova a si mesma. Portanto, é ne­ nada, o que evidentemente é falso. Portanto,
cessário que tudo aquilo que se move seja nem todos os seres são contingentes, mas é
movido por outro. Se, portanto, o ser que move necessário que na realidade exista alguma coi­
está também ele sujeito a movimento, é pre­ sa de necessário. Ora, tudo aquilo que é neces­
ciso que seja movido por outro, e este por um sário, ou tem a causa de suo necessidade em
terceiro e assim por diante. Ora, não se pode outro ser ou não. Por outro lado, nos entes ne­
de tal modo proceder ao infinito, porque de cessários que têm em outro lugar a causa de
outro forma não haveria um primeiro motor e, sua necessidade, não se pode proceder ao infi­
por conseguinte, nenhum outro motor, porque nito, como também nas causas eficientes, con­
os motores intermediários não movem a não forme demonstramos. Portanto, é preciso con­
ser enquanto são movidos pelo primeiro motor, cluir pela existência de um ser que seja por si
como o bastão não move a não ser enquanto é necessário, e não extraia de outros a própria
movido pela mão. Portanto, é necessário che­ necessidade, mas seja causa de necessidade
gar a um primeiro motor que não seja movido paro outros. € este todos dizem Deus.
por outro; e todos reconhecem que este é Deus.
d. A quarta via,
b. A segunda via, ou via dos graus de perfeição
ou via da causalidade eficiente fl quarta via se toma dos graus que se en­
fl segunda via parte da noção de causa contram nas coisas, ê foto que nas coisas se en­
eficiente, flncontramos no mundo sensível que contra o bem, o verdadeiro, o nobre e outras
existe uma ordem entre as causas eficientes, mas perfeições semelhantes em grau maior ou menor.
248
Sexta parte - y \ é T s c o lá s t ic a n o s é c u lo d é c i m o t e ^ c e m o

Mas o grau maior ou menor se otribuem às diver­


sos coisas conforme se aproximam mais ou me­ más há quatro tipos de leis: eterna, natural,
nos de algo sumo e absoluto; assim, mais quente humana e divina, fí lei eterna é o plano racio­
é aquilo que mais se aproximo do sumamente nal de Deus, é a ordem do universo inteiro
quente, Há, portanto, algo que é verdadeiro ao por meio da qual a sabedoria divina dirige
sumo, ótimo enobilíssimo, e, por conseguinte, algo todas as coisas a seu fim. €m resumo, é o
que é o supremo ente; pois, como diz Aristóteles, plano providencial que é conhecido apenas
aquilo que é máximo enquanto verdadeiro, é tal de Deus e do qual o homem é participante só
também enquanto ente. Ora, aquilo que é máxi­ de uma parte. Os homens, com efeito, enquan­
mo em dado gênero, é causa de todos os que per­ to seres racionais, conhecem a lei natural. €s-
tencem àquele gênero, como o fogo, quente ao treitamente ligada à lei natural está a lei hu­
máximo, é causa de todo color, como diz Aris­ mana, isto é, o direito positivo. €m outras
tóteles. Portanto, há algo que para todos os en­ palavras, para Tomás, a lei humana é moral­
tes é causa do ser, da bondade e de qualquer mente válida apenas s e deriva da lei natural.
perfeição. € este chamamos Deus. fícima da lei natural e dos leis positi­
vas nosso filósofo p õ e a lei divina, ou seja,
e. A quinta via, ou via do finalismo a lei revelada por Deus que encontramos no
A quinto via se depreende do governo dos (evangelho e que é guia para alcançara bem-
coisas. Vemos que algumas coisas, que são oventurança. €sta é a lei que permite ao ho­
privadas de conhecimento, isto é, os corpos fí­ mem alcançar seu fim último, o sobrenatural.
sicos, operam para um fim, como se manifesto € esta a lei que preenche as lacunas e as
pelo fato de que elas operam sempre ou qua­ imperfeições das leis humanas que têm como
se sempre do mesmo modo para atingir a per­ fim apenas o bem comum.
feição: daí se manifesta que não por acaso,
mas por uma predisposição, alcançam seu fim.
Ora, aquilo que é privado de inteligência não
tende ao fim a não ser porque está dirigido por 1. Se há uma lei eterna
um ser cognoscitivo e inteligente, como a flecha
lançada pelo arqueiro. Portanto, existe algum PflRece que não há uma lei eterna.’ Com
ser inteligente, a partir do qual todas as coisas efeito:
naturais são ordenadas para um fim: e a este 1. Qualquer lei é imposta por alguém. Mas
ser chamamos Deus. não existe a partir da eternidade um sujeito ao
Tomás,
qual impor uma lei, pois a partir da eternidade
R suma teológica, vol. I. existe apenas Deus. Portanto, nenhuma lei pode
ser eterna.
2. A promulgação é essencial à lei. Mas a
promulgação não podia existir desde a eternida­
de, pois não existia ninguém para o qual promul­
gá-la. Portanto, nenhuma lei pode ser eterna.2
Lei eterna, 3. A lei implica uma ordem para o fim. Ora,
lei natural, nada daquilo que é eterno é ordenado ao fim,
lei humana, pois apenas o fim último é eterno. Por isso ne­
nhuma lei é eterna.
e lei divina
Cm contrario : Cscreve santo Agostinho:3 "A
lei, que se denomina razão suprema, para quem
Depois de ter examinado o essência do compreenda não pode não aparecer imutável
lei considerada em si mesma, Tomás passa o e eterna".*5
analisar os tipos de lei que existem. São seis
os quesitos que enfrenta e aos quais responde:
1. s e existe uma lei eterna; 'Cntre os que negam o existência d e uma lei eterna
2. s e existe uma lei natural: há, por exemplo, os materialistas (que negam o existência
3. s e existe uma lei humana: de Deus) e os deístas (que negam suo providência).
4. s e existe uma lei divina: e€ esta a dificuldade principal levantada por todos os
que sustentam que não existe uma lei eterna. Como podia
5. s e o lei divino é apenas uma:
tal lei, argumentam, ser promulgada d esd e a eternidade
ó. s e existe uma lei do pecado. se seus súditos ainda não existiam?
Desta questão (da qual citamos o s pri­ 5R existência da lei eterna foi afirmada no antiguidade
meiros quatro artigos) emerge que poro To­ por Cícero, "do qual hauriu santo Agostinho, que sobre a
---------------------------------------------------► questão é a fonte principal d e santo Tomás".
249
Capítulo décimo terceiro -- g r a n d e s ín te s e d e T o m á s d e jA q u in o

R ê s p o n d o : Conforme j á vimos, o lei não é tureza, como ocorre nas criaturas privadas de
mais que o ditame do rozõo prática existente razão, as quais agem para o fim guiadas a p e­
no príncipe que governa uma sociedade, ou nas pelo apetite natural; o homem, ao contrá­
comunidade perfeita. Ora, uma vez demons­ rio, age para um fim mediante a razão e a von­
trado, como fizemos na Primeiro Porte, que o tade. Portanto, no homem não existe uma lei
mundo é dirigido pelo divina providência, é claro natural.
que toda a comunidade do universo é gover­ 3. Quanto mais alguém é livre, menos está
nada pela razão divina. Por isso o próprio pla­ submetido à lei. Ora, o homem é mais livre do
no com o qual Deus, como príncipe do univer­ que todos os animais, por causa do livre-arbí-
so, governo os coisas tem natureza de lei. C trio, que os animais não possuem. Por isso, uma
uma vez que a mente divina não concebe na­ vez que os outros animais não estão submeti­
da no tempo, sendo o seu pensamento eter­ dos a uma lei natural, também o homem não
no, como ensina o Cscritura, esta lei deve ser deve a ela estar submetido.
eterna.
Cm c o n t r a r io : A propósito daquele texto
SoiUÇAO DAS DIFICULDAD6S:1. fls COÍSOS que paulino, "quando os gentios que não têm lei
não existem em si mesmas existem junto de fazem por natureza os coisas da lei", a G/osso
Deus, porque pré-conhecidas e pré-ordenadas explica: "Cmbora não tenham a lei escrita, têm
por ele, conforme a expressão do Apóstolo: porém a lei natural, mediante a qual cada
"Chama as coisas que não existem como se um entende e sab e qual é o bem e qual é o
existissem". Por isso a concepção eterna da lei mal".
divina se apresenta como lei eterna, enquanto
R c s p o n d o : Conforme dissemos, sendo o lei
é ordenada por Deus para o governo das coi­
uma regra ou medida, em um sujeito ela pode
sas que ele já conhece.
se encontrar de dois modos: primeiro, como
2. A promulgação acontece com palavras
em um princípio regulador e medidor; segun­
e por escrito: e em ambos os modos a lei eter­
do, como em uma coisa regulada e medida,
na tem sua promulgação por parte de Deus que
pois esta última é regulada e medida enquan­
a promulga. Com efeito, a Palavra (o Verbo) de
to participa da regra ou medida. Ora, uma vez
Deus é eterna, como também é eterna a escri­
que todas as coisas submetidas à divina pro­
tura do livro da vida. Ao invés, o promulgação
vidência são reguladas e medidas, como vi­
não pode ser eterna por parte da criatura que
mos, pela lei eterna, é claro que todas elas
deve lê-la ou escutá-la.1 4
2
participam mais ou menos da lei eterna, por­
3. A lei implica um ordenamento ao fim de
que de seu influxo recebem uma inclinação aos
modo ativo, isto é, enquanto ela serve para
próprios atos e aos próprios fins. Pois bem,
ordenar alguma coisa para seu fim; não tanto
entre todos os outros seres a criatura racional
de modo passivo, isto é, no sentido de que ela
está submetida de modo mais excelente à pro­
própria seja ordenada para um fim. Isso ocorre
vidência divina, porque dela participa com o
apenas peroccidens naqueles legisladores que
prover o si mesma e a outros. Por isso nela se
têm seu fim fora de si mesmos, ao qual devem
tem uma participação da razão eterna, da qual
ordenar suas próprias leis. O próprio Deus, ao
deriva uma inclinação natural para o ato e o
invés, é o fim do seu governar, e sua lei não é
fim devido. C esta participação da lei eterna
mais que ele próprio. Por isso a lei eterna não
é ordenada a outro fim.

2. Se há em nós uma lei natural


4Temos nesta p assagem a resposta ò objeção princi­
Pnfiece que não há em nós uma lei natu­ pal levantada pelos que negam a existência d e uma lei
ral.5 Com efeito: eterna: cf. nota n. 2. fl resposta d e Tomás é claríssimo: a
lei eterna é promulgada d e sd e a eternidade "em Deus,
1. O homem é governado pela lei eterna, como é existente em Deus, pois nele preexistiam d esd e
pois, como ensina santo Agostinho, "é a lei eter­ sempre todos a s coisas. Toda coisa que existe no tempo
existe d e sd e a eternidade presente a Deus, por e le pré-
na que estabelece com justiça que todas as
conhecida e pré-ordenoda, pois e le é imutável, eterno,
coisas existam na máxima ordem". Ora, a natu­ infinito”.
reza, como não carece do necessário, também 5fl existência de uma lei fundada sobre a natureza,
não excede no supérfluo. Por isso não existe isto é, d e um direito natural, foi admitida na antiguidade
no homem uma lei natural. por muitos filósofos (Sócrates, Platão, firistóteles, Cícero).
Na Renascença será defendida pelos jurinaturalistas. Com
2. A lei ordena os atos humanos para a expressão "lei da natureza” ou "direito natural" entende-
seu fim, conforme dissemos. Ora, a ordem dos s e o conjunto d e normas não postas pelo legislador, mas
atos humanos para o fim não deriva da na- próprias da natureza humana.
250
Sexta parte - j A C T s c o lá s + i c a n o s é c u lo d é c i m o t e n c e i f o

no criatura racional se denomina lei natural. nios dos mortais e incertos os nossos projetos”.
£is por que o Salmista, depois de ter dito: Portanto, da razão humana não pode derivar
"Sacrificai sacrifícios dejustiça", como que para nenhuma lei.
responder ao quesito de quem procura as Cm c o n t r á r io : Santo Agostinho distingue
obras da justiça, "muitos dizem: quem me fará duas leis, uma eterna e a outra temporal, que
ver o bem?", assim responde: "Como selo está ele faz coincidir com a humana.
impressa sobre nós a luz de tua face, ó S e ­
nhor”;6 como poro dizer que a luz do razão na­ R c s p o n d o : Conforme já explicamos, a lei é
tural, que nos permite discernir o mal e o bem, um ditame da razão prática. Ora, na razão prá­
outra coisa não é em nós que uma marca da luz tica e na especulativa se encontram procedi­
divina. Por isso é evidente que a lei natural mentos análogos: com efeito, uma e outra, con­
nada mais é que a participação da lei eterna forme vimos, partindo de alguns princípios
na criatura racional. chegam a conclusões. Por isso, segundo esta
analogia, como no campo especulativo dos pri­
S o l u ç ã o d a s dificuldadcs : 1. O argumento se ­
meiros princípios indemonstráveis, naturalmen­
ria justo se a lei natural fosse algo de diverso
te conhecidos, se produzem em nós as conclu­
da lei eterna. Cia, ao invés, conforme vimos,
sões das diversas ciências, das quais não temos
não é mais que uma participação dela.
um conhecimento inato, assim é necessário que
2. Todos os atos da razão e da vontade
a razão humana, dos preceitos da lei natural,
derivam em nós, conforme dissemos, segundo
como de princípios universais e indemonstráveis,
a natureza: com efeito, todo raciocínio deriva
chegue a dispor das coisas de modo mais par-
dos primeiros princípios conhecidos por natu­
ticularizado.
reza, e todo apetite relacionado com os meios
£ estas disposições particulares, elabo­
deriva do apetite natural do último fim. Cis
radas pela razão humana, se chamam leis hu­
por que também a primeira orientação de
manas, caso se encontrem as outras condições
nossos atos para o fim se dá mediante a lei
requeridas pela noção de lei, segundo as ex­
natural.
plicações dadas na questão precedente. Cí­
3. Também os animais privados de razão
cero,7 com efeito, escreveu que "a primeira
participam a seu modo da lei eterna, como as
origem do direito é obra da natureza: por­
criaturas racionais. Todavia, como os criaturas
tanto, certas disposições, por meio do jul­
racionais dela participam mediante o intelecto
gamento favorável da razão, passam para o
e a razão, esta participação se chama lei em
costume: e finalmente estas coisas, que a na­
sentido próprio. Com efeito, a lei, como d isse­
tureza promovera e o costume confirmara, fo­
mos acima, pertence à razão, fls criaturas ir­
ram sancionadas pelo temor e pela santidade
racionais, ao invés, não participam dela me­
das leis".
diante a razão: por isso no caso delas não se
pode falar de lei, a não ser em sentido me­ S o iu ç r o d r s d ific u ld a d e s : 1. A razão huma­
tafórico. na não está em grau de participar plenamente
do ditame da mente divina, mas apenas a seu
3. Se existe uma lei humana modo e imperfeitamente. Por isso, como em
campo especulativo existe em nós um conhe­
PflRsce que não existe umo lei humana. Com cimento de certos princípios universais, median­
efeito: te uma participação natural da sabedoria divi­
1. A lei natural, conforme vimos, é uma na, mas não a ciência peculiar de qualquer
participação da lei eterna. Mas, conforme diz verdade, como se encontra na sabedoria de
santo Agostinho, por força da lei eterna “todas Deus, assim também em campo prático o ho­
as coisas são maximamente ordenadas". Por­ mem é naturalmente participante da lei eterna
tanto, basta a lei natural para pôr ordem em segundo certos princípios universais, mas não
todas as coisas humanas. Portanto, não é ne­ segundo as diretivas particulares dos atos sin-
cessário que exista uma lei humana.
2. Dissemos que a lei tem função de me­
dida. Mas a razão humana não é medida das
coisas, pois é mais verdadeiro o contrário, como 6Na realidade, esta interpretação do salmo é errada,
nota Aristóteles. Por isso da razão humana não enquanto dos textos originais s e tem o seguinte tradu­
pode derivar nenhuma lei. ção: "Imolai vítimas d e ju stiça e confiai em Jové! Levanto
3. A medida deve ser certíssima, confor­ sobre nós a luz d e tua foce, Jové! Puseste alegria em meu
coração".
me Aristóteles. Ora, as sugestões da razão 7Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.). Santo Tomás o cita
humana sobre as ações a realizar são incertas, freqüentemente e "quase sempre com honra, a exemplo
como nota a Cscritura: "Tímidos são os raciocí­ d e Rgostinho, do qual frequentemente extraí a s citações".
251
Capítulo decimO tetceito - y \ 0>»ande s ín te s e d e T o m á s d e y\í]í.\ino

guiares, que todavia estão contidos na lei eter­ último. Se ele, com efeito, fosse ordenado ape­
na. Por isso é necessário que a lei humana nas a um fim que não supera a capacidade das
p asse a estab elecer p articulares decretos faculdades humanas, não seria necessário que
de lei. tivesse uma orientação de ordem racional su­
2. R razão humana por si não é regra perior à lei natural e à lei humana positiva que
ou medida das coisas; porém nela estão ina­ dela resulta. Mas, sendo o homem ordenado
tos certos princípios que são regras, ou medi­ ao fim da bem-aventurança eterna, a qual ul­
das gerais das ações que o homem deve rea­ trapasso, conforme vimos acima, as capacida­
lizar, e das quais a razão natural é regra e des naturais do homem, era necessário que ele
medida, embora não o se ja das coisas na­ fosse dirigido a seu fim, acima da lei natural e
turais. humana, por uma lei dada expressamente por
3. A razão prática tem por objeto a p e­ Deus.
nas as ações a serem realizadas, que são sin­ Segundo, porque a propósito dos atos
gulares e contingentes: não tanto as coisas humanos há muitas diferenças de valoração,
necessárias, objeto da razão especulativa. Por dada a incerteza do julgamento humano, e s ­
isso a s leis humanas não podem ter a infalibi­ pecialmente em relação aos fatos contingen­
lidade que têm a s conclusões das ciências tes e particulares. Por isso, para que o ho­
especulativas. 6 nem é necessário que toda mem pudesse sab er sem nenhuma dúvida
medida seja completamente infalível e certa, aquilo que deve fazer ou evitar, era necessá­
mas basta que o seja conforme seu gênero rio que em seus atos fosse guiado por uma
comporta.8 lei revelada por Deus, na qual não pode ha­
ver erro.
Terceiro, porque o homem se limita a le­
4. Se era necessária a existência gislar sobre aquilo que pode julgar. Ora, o ho­
de uma lei divina positiva mem não pode julgar os atos internos, que
estão escondidos, mas apenas os externos e
PfíRccc que não seria necessária a exis­ visíveis. Todavia, a perfeição da virtude requer
tência de uma lei divina [positiva]. Com efeito: que o homem seja reto em uns e nos outros.
1. fl lei natural, conforme dissemos, é uma Portanto, a lei humana não podia reprimir, ou
participação humana da lei eterna. Mas a lei comandar eficazmente, os atos interiores; pa­
eterna, conforme vimos, é lei divina. Portanto, ra isso era necessária a intervenção da lei di­
não é necessário que, além da lei natural e das vina.
leis humanas que dela derivam, também exista Quarto, como nota santo Agostinho, a lei
outra lei divina. humana não é capaz de punir e de proibir to­
2. Cstá escrito que "Deus deixou o homem das as ações más, pois, se quisesse eliminar
na mão de seu conselho". Ora, vimos acima que todas elas, muitos bens seriam eliminados e
o conselho é um ato da razão. Portanto, o ho­ ficaria comprometido o bem comum, necessário
mem foi entregue ao governo do própria ra­ para o relacionamento humano. Por isso, para
zão. Mas o ditame da razão humana forma, que nenhuma culpa permanecesse impune, era
como dissemos, a lei humana. Portanto, não é necessária a intervenção da lei divina, que proí­
preciso que o homem seja governado por uma be todos os pecados.
lei divina. físses quatro motivos são acenados em
3. R natureza humana é provida melhor uma frase dos Salmos: "A lei do Senhor é sem
do que as criaturas privadas de razão. Ora, mancha", ou seja, não admite nenhuma feal­
estas criaturas não têm uma lei divina, distinta dade de pecado; "refaz as almas", pois re­
de sua inclinação natural inato. Muito menos, gula nao só os atos externos, mas também
portanto, deverá ter uma lei divina a criatura
racional.

Cm c o n t r a r io : Davi pede a Deus expressa­ 8Trata-se d e "uma importante observação do ponto de


visto metodológico. Santo Tomás, remetendo-se a Aris­
mente a imposição de uma lei: "Senhor, impõe-
tóteles (ft/ca a Nicômaco, I, 1). afirma que não s e pode
me uma lei no caminho de teus estatutos". pretender a mesma infalibilidade e certeza em toda ciên­
cia; mas em cada uma, nos limites que comporta a matéria
R c s p o n d o : Para a orientação de nossa vida ou o objeto próprio. Assim na moral, por exemplo, cujo
objeto é particular e contingente (as açõ es humanos), não
era necessária, além da lei natural e da huma­
se pode ter a mesmo certeza que na metafísica, cujo obje­
na, uma lei divina [positiva], C isso por quatro to é universal e necessário (o ser dos coisos). Uma regra
motivos. Primeiro, porque o homem, mediante prática, como é a lei, não pode ser considerado como se
a lei, é guiado em seus atos em direção ao fim fosse um princípio teórico".
252
SextU parte - y -\ é c s c o l á s t i c a n o s é c u lo d é c i m o t e r c e i r a

os internos; "o testemunho do Senhor é se ­ 2. O conselho é uma busca: e, de fato,


guro", por causo do certeza da verdade e do deve mover a partir de alguns princípios. Mas,
retidão; "dá a sabedoria aos pequeninos", en­ pelas razões aduzidas, não basta basear-se
quanto ordena o homem ao fim sobrenatural sobre princípios postos em nós pela natureza,
e divino. que são os preceitos do lei natural; é necessá­
rio, ao invés, recorrer a outros princípios, isto é,
Soiuçfto d r s DiFicuiDflDcs: 1. fl le i eterna é
aos preceitos da lei divina.
participada pela lei natural conforme a cap a­
5. fls criaturas irracionais não são orde­
cidade da natureza humana. M as o homem
nadas a um fim superior às suas capacidades
tem necessidade de ser guiado de modo mais
naturais. Por isso a comparação não se sus­
alto ao fim último sobrenatural. €is por que se
tenta.
tem uma lei divino positiva, mediante a qual
a lei eterna é participada em um grau mais Tomás,
alto. Fl sumo teológica, vol. XII
tS a p ífu lo d é c im o q u a e fo

o movimeKvfo fV anciscano
e B o a v e h f w m d e Ba0iaore0Ío

I. O f ^ a n c is c a E v is m o

• O movimento franciscano não teve apenas intentos mis- Q movimento


sionários e caritativos, mas exprimiu também uma atividade franciscano
cultural dirigida a defender a doutrina cristã das forças que a §7
contrastavam, e que se identificavam principalmente com o
aristotelismo de Averróis.

• Precursor deste endereçamento foi Alexandre de Hales, Aiexancjre


que orientou o eixo da sua filosofia em sentido platônico- de Hales6
agostiniano, colocando as premissas para a filosofia de são ^ §2
Boaventura, seu discípulo.

1 São T-ecmcisco ideal evangélico da pobreza, praticavam a


humildade, rejeitavam o fausto do clero e
e o jVcmciscanismo
da hierarquia e a riqueza dos monges e, por
isso, defendiam a necessidade de sustentar-
O despertar político, econômico e cul­ se com o próprio trabalho. Mas, além de se
tural dos séculos XI e XII acompanha-se por inspirar no Evangelho, essa pobreza também
certo torpor econômico e por marcada de­ era motivada por mentalidade maniqueísta;
cadência de costumes. Para amplos segmen­ a referência à Igreja primitiva comportava
tos de pessoas, a fé religiosa é mais um fato também a rejeição da estrutura hierárqui­
emocional do que razão profunda de vida. ca; além de imitação de Cristo, a penitência
A estrutura hierárquica da Igreja — ordo era também desprezo do corpo e do mun­
rectorum seu praedicatorum, à qual perten­ do. O apego do clero a seus privilégios e o
cia o clero, ordo continentium, à qual perten­ temor de compartilhar com os leigos a fa­
ciam os monges, e ordo coniugatorum, a que culdade de pregar contribuíram para que
pertenciam os leigos — não permitia autên­ esses movimentos populares (flagelantes, hu­
tica comunhão de ideais religiosos, aliás, tor­ milhados etc.) fossem tidos como heréticos.
nava extremamente difícil forte retomada Dessa realidade Francisco de Assis
espiritual. O clero, ao qual cabia a missão da (1182-1226) fez-se intérprete, acolhendo as
pregação, era mais ligado à autoridade im­ instâncias mais válidas dos movimentos
perial e a seus problemas do que ao papa e populares (viver segundo o Evangelho, re­
suas diretrizes, amava mais os privilégios da jeitar o fausto, sustentar-se com o próprio
religião do que os mandamentos do Evange­ trabalho e pregar) e superando os elemen­
lho. Os monges, aliás, isolados da vida social, tos negativos (a insubordinação à Igreja hie­
dispunham de imensas riquezas, cujo uso rárquica, a tristeza e o pessimismo) com a
freqüentemente raiava os limites do abuso. submissão à Igreja e uma concepção alegre
Nesse quadro e como reação a essa si­ da vida. Seus seguidores não buscavam os
tuação, nasceram no século XIII muitos mo­ desertos, e sim as cidades, onde se desen­
vimentos populares que propugnavam o volvia a vida real, com toda a gama de pro­
254 Sexta parte - y\ C ^ sco lástica n o s é c u lo d é c im o terce iro

blemas. Enquanto os beneditinos provinham 2 jAlexcmdee de 'Hales


em geral das classes superiores, os francisca-
nos eram predominantemente de origem
burguesa (mercadores, profissionais etc.). A
burguesia ainda não se transformara em uma Assim como Alberto Magno foi mes­
classe distinta, mas, em sua escalada rumo tre de Tomás de Aquino, Alexandre de Hales
ao poder econômico, ainda se considerava (1185/1186-1245) o foi de Boaventura. Tor­
“ povo” , contra a nobreza de origem feudal. nando-se franciscano quando já era mestre-
E, da burguesia, os franciscanos manifesta­ regente da cátedra de teologia em Paris, Ale­
vam o espírito de iniciativa e empreendimen­ xandre de Hales foi o iniciador da escola
to. Basta pensar nas inúmeras atividades franciscana. Embora incompleta, a Summa
sociais que desenvolviam e nas viagens que universae theologiae é a sua obra mais fa­
empreendiam, porque não eram estáveis mas mosa e original.
vagantes, às missões no Oriente Médio. Em Entre as teses que Boaventura retoma­
suma, o movimento fransciscano pretendia ria e aprofundaria de seu mestre, pode-se
ser a tradução das instâncias religiosas po­ recordar a insustentabilidade da eternidade
pulares mais difundidas e profundas, à luz do mundo, o exemplarismo e a teoria das
de um cristianismo vivido ativamente. rationes seminales, a independência relati­
Além das várias formas de atividade em va da alma em relação ao corpo e sua com­
favor dos deserdados, logo se pensou tam­ posição de matéria e forma e, portanto, a
bém em um tipo de atividade de caráter pro­ pluralidade das formas no indivíduo. Para
priamente cultural para responder às instân­ Alexandre, a anima só é tabula rasa em re­
cias provenientes dos novos conhecimentos lação às coisas inferiores, que se reconhe­
filosóficos, que pareciam em contraste com cem por meio da razão. Para poder conhe­
o espírito cristão. Além do exemplo, não se­ cer as coisas interiores e superiores, o
ria o caso de recorrer também à doutrina intelecto necessita da iluminação divina.
para conter o pessimismo dos movimentos Ademais, ele aceita o argumento ontológico
heréticos e o ascetismo cátaro que implica­ de santo Anselmo e exalta o elemento
va a rejeição da natureza e do corpo? Não afetivo-volitivo em correspondência com a
seria o caso de teorizar a elevação a Deus concepção de Deus como bem supremo.
como recuperação da beleza da natureza e Os autores aos quais ele se refere ex­
da grandeza do homem, que, ao renunciar, plicitamente são: Agostinho, são Bernardo,
não despreza, mas se eleva e se torna mais Hugo e Ricardo de São Vítor. Seu progra­
verdadeiro? Não seria o caso de refutar a ma se inspira na frase de Gualtier de Bruges:
tese da unidade do intelecto, que reduzia a Plus credendum est Augustino quam philo-
responsabilidade individual, bem como as sopho (isto é, Aristóteles).
teses do fatalismo e do dualismo grego e No quadro dessa escolha de autores,
maniqueísta, que comprometiam a unidade que é a opção por uma precisa orientação
e a positividade da natureza, que há tempos cultural, e à luz das teses mais qualificadas
se haviam infiltrado no mundo cultural da de Alexandre, que a escola franciscana as­
época, com a descoberta dos escritos aristo- sumiría como característica de sua orienta­
télicos? ção doutrinária e espiritual, pode-se com­
A atividade puramente pastoral, sem preender por que Boaventura fala dele com
uma cultura adequada aos novos tempos, não veneração, chamando-o pater et magister
era suficiente. Como fundamento, fazia-se noster. Com efeito, ele aprofundaria os
necessária precisamente uma intensa reto­ ensinamentos do seu mestre e, baseando-se
mada da vida cultural. E o intérprete e or­ na mesma tradição doutrinária, reafirmaria
ganizador desse projeto foi Boaventura de com maior vigor e rigor premissas e conclu­
Bagnoregio, a ponto de ter merecido o título sões, apresentando uma visão de Deus, do
de “ segundo fundador da ordem francis- homem e do mundo mais harmônica e, ao
cana” . mesmo tempo, mais articulada.
255
Capitulo décÍMlO (JUãTtO - O m o v i m e n t o f r c m c i s c a n o e. B o o v e n t u m d e 13ag tt o* * e 0 Ío

II. S ã o B o a v e n t u m
e o s vé-H-ices d a S s c o l a fraKtciscatta

•S ão Boaventura (1217/18-1274) inspira-se na tradição platônico-agostiniana,


da qual retoma sobretudo a teoria das Idéias e o conceito geral de dependência
do mundo em relação a Deus. Ele funde estes temas em um
pensamento orientado em sentido místico, no qual a fé tem crítica
proeminência e a razão é instrumento da fé. ao arístotelismo
O objetivo polêmico de Boaventura é o arístotelismo em -> § 2
geral, enquanto filosofia da autonomia do mundo, e o averroís-
mo em particular, por causa de algumas teses que claramente contradiziam os
dogmas cristãos (unidade do intelecto passivo, eternidade do mundo etc.).
O paradigma que Boaventura propõe é o de um mundo que seja signum Dei
e de uma filosofia que alimente o sentido religioso: tal lhe parecia ser o pensa­
mento agostiniano e platônico.
• O arístotelismo se afasta da verdade no momento em que nega a doutrina
das Idéias (como pensamentos de Deus), porque negar as Idéias significa reduzir
Deus a causa final do mundo e, portanto, afundar o mundo
em uma espécie de fatalismo no qual não há lugar para a liber- centralidade
dade e para a responsabilidade humana. da doutrina
Também a unidade do intelecto potencial é conseqüência das idéias
da negação das Idéias e isto torna impossível o juízo individual $3
depois da morte.
• Deus é semelhante a um artista que cria aquilo que pensou e participa ao
criado parte de si: o mundo, por sua vez, reflete a Trindade que o criou em propor­
ções diversas, ou como vestígio (o mundo externo), ou como
imagem (as realidades espirituais), ou como semelhança (as O mundo
realidades transcendentes e deiformes). como sinal de Deus
Estes sinais analógicos de Deus espalhados no mundo po­ e o itinerário
da mente
dem ser seguidos pelo homem como um itinerário da mente
para Deus
para Deus; todavia, a condição para que isso aconteça é a de —»§ 4
não perder o sentido da sacralidade do mundo.
• Com efeito, mesmo a parte material do mundo não é
As razões
totalm ente informe, porque Deus já a equipou, no momento seminais
da criação, das razões seminais que correspondem a um início -> § 5
de forma {ratio seminalis), que dirige a ação das causas naturais.
• A natureza sacral do mundo faz com que a intuição dos objetos (exemplados)
leve à "co-intuição" dos modelos divinos (exemplares). Apenas nesta direção, ou
seja, graças à luz divina, pode-se captar os universais (por exemplo, a idéia de per­
feito, necessário etc.), que não se encontram na natureza e que
também são necessários ao conhecimento. o conhecimento
Como fundam ento do conhecim ento intelectivo está o como co-intuição
conceito de ser, é a irradiação do ser absoluto em que estão -» § 6
todas as Idéias, mas das quais não conseguimos ter um conhe­
cimento adequado.
• Uma vez que tudo fala de Deus, o filósofo não tem
necessidade de provar sua existência, e sim sua presença no °e aa
mundo, e sobretudo em nossa alma (o homem é imagem de ^ § y
Deus). Por meio deste contato particular com o divino, a alma
goza de certa autonomia em relação ao corpo e existe por si. Por conseguinte,
tanto a alma como o corpo são compostos de matéria e forma.
256 Sexta parte - (E^sc-olcts+icct f\o s é c u l o d é c i m o t e ^ c e i^ o

1 São Boaventura: em 2 de fevereiro de 1257, viajou muito por


necessidade dos frades e por encargos ponti­
a vida e as obras
fícios, visitando a Itália, a Inglaterra, Flan-
dres, a Alemanha e a Espanha. Por ocasião
Nascido em Civita, hoje distrito de Bag- das quaresmas de 1267 e 1268, retomando
noregio, por volta de 1217-1218, Boaven- o contato com sua escola, participou em Paris
tura (nome civil, Giovanni Fidanza) estudou da conhecida disputa contra os aristotéli-
filosofia na Universidade de Paris (1236-123 8), cos averroístas, sobre a qual temos um ensaio
laureando-se em artes em 1242-1243. Ingres­ nas Collationes sobre o Decálogo e sobre os
sando aos vinte e cinco anos na ordem fran- Dons do Espírito Santo, além das Collatio­
ciscana, estudou teologia com Alexandre de nes in Hexaemeron, que ficaram incomple­
Hales, conseguindo em 1253 a licenciatura tas. As três séries de Collationes constituem
e o magistério (título que só lhe seria reco­ a mais alta expressão do pensamento medie­
nhecido em 1257, devido à oposição dos val. Feito cardeal e bispo de Albano em maio
mestres parisienses contra os mendicantes). de 1273 por Gregório X, foi escolhido depois
Ensinou no Estúdio parisiense na qualidade para presidir os trabalhos preparatórios do
de bacharel bíblico e sentenciário (1248-1252) Concilio Ecumênico de Lião (7 de maio a 19
e, depois, de mestre-regente (1253-1257), su­ de julho de 1274), esforçando-se pela união
cedendo ao coirmão Guilherme Melitão. dos gregos com a Igreja romana, que foi efe­
Eleito ministro-geral da ordem franciscana tivamente alcançada. Extenuado por tanto
esforço, adoeceu gravemente e, em 15 de
julho de 1274, morreu em Lião, na França.
Boaventura foi um dos autores mais
fecundos da Idade Média. Escreveu sessen­
ta e cinco obras, das quais quarenta e cinco
foram editadas, de natureza filosófico-teo-
lógica, exegética, ascética e oratória, que,
na edição crítica dos Padres de Quaracchi,
de Florença (1882-1902), encontram-se di­
vididas em cinco grupos e dez tomos.
Além das obras citadas, devemos re­
cordar o Itinerarium mentis in Deum, o De
reduetione artium ad theologiam e Christus
unus omnium magister, nas quais se encon­
tra compendiado todo o seu pensamento,
com clareza e rigor.

2 ;A posição de Boaver\tuea
contra o aeistotelismo
averraísta

“Ainda que o homem tenha o conheci­


mento da natureza e da metafísica, que se
eleve até as substâncias mais altas, e admi­
tamos que, aí chegando, o homem se dete­
nha: é impossível ele não cair em erro se não
for ajudado pela luz da fé e não crer que
Deus é uno e trino, poderosíssimo e ótimo
ao extremo na bondade (...). Foi por isso
São Boaventura
que essa ciência precipitou e obscureceu os
(aqui em uma pintura do Beato Angélico, filósofos (pagãos), já que eles não possuíam
conservada na capela de Nicolau V no Vaticano) a luz da fé (...). A ciência filosófica é cami­
foi o expoente máximo nho para outras ciências, mas quem quer se
da Escola filosófica franciscana medieval. deter nela cai nas trevas” .
Capitulo décimo quarto - Cõ m o v i m e n t o [m n c isc a n o e B oaven tw ca d e B ag n o ^ e gio
257

Esse trecho — que pode ser lido nas ça corrosiva em relação ao pensamento
Collationes de donis Spiritus Sancti — ex­ cristão.
pressa admiravelmente a função do saber Boaventura estudara Aristóteles na
filosófico. Por mais elevado e sublime que faculdade das artes, na qual ingressara em
seja, o saber filosófico é fonte de erros se 1235, quando a adoção das obras do Esta-
detém o olhar em si mesmo e não o dirige girita já se podia considerar completa e,
para saber mais alto, teológico e místico. portanto, o conhecia sobretudo em sua ver­
Boaventura, portanto, não é contra a filo­ são averroísta.
sofia em geral, mas sim contra aquela filo­ Portanto, embora apreciando suas inú­
sofia que é incapaz de captar a tensão entre meras contribuições para o estudo da natu­
o finito e o infinito, entre o homem e Deus, reza, ele rejeitava seu espírito e suas orien­
na concretude do nosso ser, tendencialmente tações gerais, porque estranhos à história e
orientado para a salvação, mas continua­ ao destino do cristão. Aristóteles é uma au­
mente exposto ao mal. toridade no campo da física, mas não no
O problema de Boaventura, portanto, campo do saber filosófico, onde a autorida­
não é o de rejeitar o uso da razão e toda de cabe a Platão e, superior a ambos, a Agos­
filosofia, mas sim o de distinguir uma filo­ tinho.
sofia cristã de uma filosofia não cristã. Ele Boaventura, pois, opta pela tradição
é contra uma filosofia não cristã, contra uma platônica agostiniana contra a tradição aris­
razão auto-suficiente, incapaz de captar no totélica, porque para a primeira a filosofia
mundo o signum, as pegadas de Deus. E é a teorização do anseio das coisas e do ho­
contrário a uma razão que considera o mun­ mem por Deus e, no repensamento agosti-
do como realidade totalmente profana e com niano, é esclarecimento das implicações exis­
leis autônomas e auto-suficientes. Em suma, tenciais da fé, ao passo que, para a segunda,
Boaventura realiza escolha consciente da­ a filosofia é reflexão autônoma e, em mui­
quela tradição de pensamento que, a partir tos aspectos, fechada em si mesma e, por­
de Platão, através de Agostinho e Anselmo, tanto, desnorteante. A filosofia de inspira­
havia sustentado a reflexão cristã na consi­ ção aristotélica não era capaz de sustentar
deração do mundo como sistema de corres­ o esforço de Boaventura para ligar estreita­
pondências ordenadas, como tecido de sig­ mente os componentes filosóficos com os
nificados e relações alusivos a Deus uno e teológicos, o elemento revelado com o racio­
trino, e o homem como inquieto peregrino nal. Ele buscava uma filosofia que alimen­
do Absoluto tripessoal. tasse a sua religiosidade, o seu abraço cons­
Para que serve uma filosofia que não tante com a teologia, seu misticismo, aquele
torne mais evidente a presença de Deus no calor afetivo para o qual cada passo é, ao
mundo e não leve a cabo a aspiração do mesmo tempo, ato de inteligência e ato de
homem ao conhecimento e à posse de Deus? amor.
O exercício da razão é salutar quando nos No quadro da tradição monástica e do
permite descobrir, no mundo e em nós mes­ espírito religioso difundido por Francisco de
mos, aqueles germes divinos que, depois, a Assis, Boaventura, diante das tradições fi­
teologia e a mística levam à sua completa losóficas mais abalizadas, optou pela tradi­
maturação. O programa de Boaventura, que ção platônica e, portanto, rejeitou a tradi­
fundamenta as suas escolhas filosóficas, é ção aristotélica.
constituído pelo quaerere Deum que relucet
e latet nas coisas, que se manifesta e se ocul­
ta, em torno do qual deve se realizar o es­
forço da meditatio, segundo a tradição mo­ 3 N a orÍ0em dos erros
nástica, como prólogo à consummatio, que do aeistofelismo
é constituída pela visão beatífica. A ciência
filosófica que Boaventura busca e, a seu mo­
do, elabora é, portanto, “ caminho para ou­ Em trecho famoso das Collationes in
tras ciências” , constituídas pela teologia e Hexaemeron, Boaventura afirma que a re­
pela mística, da qual a filosofia, precisamen­ jeição da teoria platônica das Idéias está na
te, é prólogo e instrumento. origem dos erros de Aristóteles e seus segui­
De qual filosofia são Boaventura des­ dores árabes, Avicena e Averróis.
confia? Da filosofia aristotélica, que, na Em que sentido e por que a negação
versão averroísta, mostrara toda a sua for­ das Idéias platônicas, reinterpretadas como
258 Sexta parte - / \ C s c o l ó s t i c a n o s é c u lo d é c im o te^cem o

as Idéias por meio das quais Deus criou o tônica é que as coisas não procedem de Deus
mundo, constitui a fonte dos erros aristoté- por meio de emanação inconsciente e ne­
licos? Negar as Idéias quer dizer que Deus é cessária, mas são livremente criadas por ele,
somente causa final das coisas, que atrai ou seja, desejadas. E quem quer sabe o que
para si sem conhecer. quer. Deus é artista que cria aquilo que
Conseqüentemente, Deus não é criador concebeu.
do mundo, não é providente, mas estranho Com base nessa leitura, o mundo em
ao evento cósmico, soberbamente fechado seu conjunto é um livro, no qual reluz a Trin­
em si mesmo. E continua Boaventura: “Daí dade que o criou segundo triplo grau de
deriva que tudo o que ocorre é casual ou expressão, isto é, segundo o modo do vestí­
fatalmente necessário. E como é impossível gio, da imagem e da semelhança. O vestígio
que tudo seja casual, os árabes introduzem é o das criaturas irracionais, a imagem é a
no mundo uma necessidade fatal, conside­ das criaturas intelectuais e a semelhança é a
rando que as substâncias que movem os céus das criaturas deiformes.
sejam causas necessárias de todos os acon­ Assim, na própria universitas creata há
tecimentos” . como que uma escada por meio da qual pode-
Todavia, onde não há liberdade não há se subir até Deus: se as coisas são vestígios al­
responsabilidade e, portanto, nem penas ou gumas, imagem outras e similitudes de Deus
prêmios além desta vida. Assim, se tudo proce­ outras, é necessário que o homem, para al­
de necessariamente de Deus, o mundo é eter­ cançar seu destino, proceda através desses
no, já que o que existe necessariamente não graus, partindo do mundo corpóreo, que está
pode não ser, não pode ter princípio e fim. fora de nós, entrando no espírito, que é ima­
Daí outro erro: a unicidade do intelec­ gem de Deus, e caminhando para a realidade
to. Se o mundo é eterno, é preciso admitir eterna, que nos transcende. A especulação tor­
que existiram infinitos homens e, portanto, na-se assim itinerarium mentis in Deum, isto
infinitas almas; e se estas são incorruptíveis é, viagem mística em direção a Deus.
(imortais), então há atualmente infinitos ho­ O mundo, portanto, está cheio de si­
mens, o que, para Aristóteles, é inadmissí­ nais analógicos do divino, que é preciso de­
vel. Para superar tal aporia, Averróis afir­ cifrar como alimento do espírito. Escreve
ma que há um só intelecto espiritual ou Boaventura no Itinerarium: “ Quem não se
imortal para todos os homens, com a con- ilumina com o esplendor de coisas tão gran­
seqüente negação de que haja uma felicida­ des como as coisas criadas, é cego; quem
de ou uma pena individual após a morte. não desperta com tantos clamores, é surdo;
Estas são algumas conseqüências, em quem, com todas essas coisas, não se põe a
claro contraste com a doutrina cristã, da re­ louvar Deus, é mudo; quem, a partir de in­
jeição aristotélica da doutrina das Idéias. Daí dícios tão evidentes, não volta a mente para
a importância da teoria platônica das Idéias, o primeiro princípio, é tolo” . Enquanto os
que Boaventura, seguindo as pegadas de san­ antigos divinizavam o mundo e o homem
to Agostinho, repensa e repropõe na forma moderno o demitiza, lendo-o com base em
da doutrina do exemplarismo. categorias rigorosamente científicas, Boa­
ventura propõe uma interpretação que dis­
tingue, não separa, Deus do mundo, para
que ele não seja profanado ou desumani-
4 O e x e r n p l ansmo zado.
Ele percebeu o vínculo existente entre
o caráter sacral do mundo e o caminho
Os germes negativos da filosofia aristo­ ascensional do homem, que não é evasivo,
télica podem ser resumidos na possibilida­ mas sim comprometido com o mundo, ain­
de de conceber o mundo sem Deus, ou en­ da que nele não se dissolva: “ Abre os teus
tão com um Deus que seja motor imóvel, lábios e dedica o teu coração a exaltar e
impessoal, sem amor, nem criador nem pro­ honrar Deus em todas as criaturas, para não
vidente. Para extirpar essa visão, Boaventura ocorrer que o mundo todo se insurja contra
elabora a doutrina do exemplarismo, segun­ ti. Com efeito, precisamente por isso o mun­
do a qual em Deus encontram-se as Idéias, do lutará contra os insensatos (pugnabit
ou seja, os modelos, as similitudes das coi­ orbis terrarum contra insensatos)” . Se o ho­
sas, das mais humildes às mais elevadas. E a mem não respeita o mundo, então o mundo
razão desse repensamento da doutrina pla­ se revoltará contra ele.
Capítulo décimo CjUUrtO - O m o v i m e n f o |k'cuu:is<r( \k o e B o c i v e n l a ^ a d e B a g ^ o ^ e g i o
259

Com a tese de que a matéria tem em si


as rationes seminales de todas as formas que
emergirão, Boaventura pretendia, por um
lado, combater a tese aristotélica segundo a
qual a matéria é puramente potencial e, por
outro lado, combater a tese dos que priva­
vam os agentes naturais de qualquer ativi­
dade, atribuindo tudo a Deus. E por isso
que ele precisa seu sentido e seu alcance.
Assim como há em Deus uma norma que
dirige o devir da natureza, isto é, a causa
exemplar, que pode ser chamada ratio cau-
salis do efeito, da mesma forma há na ma­
téria algo que dirige a ação das causas natu­
rais: trata-se da ratio seminalis, que é como
que um início (incohatio) de forma, uma
força intrínseca posta na matéria desde a
criação. E óbvio que, afirmando que Deus
pôs na matéria os germes de seu desenvolvi­
mento futuro, Boaventura quer acentuar a
ação divina e diminuir, sem suprimir, a ação
natural.
Para todo medieval, o cosmo é total­
mente dependente de Deus. No entanto, se,
para Tomás de Aquino, ele tem em si mes­
mo as razões de suas atividades, carecendo
“.São Boaventura em seu escritório", apenas do concurso geral graças ao qual
de um mestre florentino do séc. XV persiste no ser, já para Boaventura ele care­
(Academia Carrara, Bérgamo). ce de tal autonomia, necessitando de con­
curso particular para explicar sua ativida­
de. O Deus do Aquinense “move” a natureza
enquanto natureza, ao passo que o de Boa­
O ateísmo não é apenas um fato ínti­ ventura a “completa” enquanto natureza.
mo ou da consciência. Ao considerar o mun­ Mais do que exaltar sua autonomia, como
do como realidade profana, o homem não faz Tomás, em consonância com sua inspi­
o respeita, mas o explora, rompendo seu ração aristotélica, Boaventura quer revelar
equilíbrio e violando suas leis. Então, a na­ sua inconsistência, em consonância com a
tureza se revolta. Basta essa observação sobre vanitas vanitatum do Eclesiastes. Também
a natureza para libertar a filosofia de Boa­ a partir dessa perspectiva é fácil compreen­
ventura do clima de filosofia edificante em der que a orientação de Boaventura é dife­
que freqüentemente foi confinada. [T] rente da de Tomás.

5 jAs Va+iones seminales'’'' 6 íSonlaecimento l\ u m a n o


e iluminação divina

Com a tese das rationes seminales, Boa­


ventura quer dizer que Deus já emitiu na Assim, graças ao exemplarismo e às
matéria os germes do que surgirá na natu­ rationes seminales, o mundo apresenta-se
reza, e que a ação das causas segundas limi­ como um palco de sinais — pegada, ves­
ta-se a desenvolver o que Deus semeou. A tígio, imagem e semelhança de Deus —,
matéria nunca existiu totalmente informe, aliás, um templo sagrado, no qual se anun­
mas também não foi criada com todas as cia o mistério de Deus. Ora, nesse quadro
formas atualmente existentes. Ela evoluiu a exemplarista, como é possível conhecer as
partir do estado de caos original, através de coisas sem ascender simultaneamente ao
diferenciações graduais. exemplar divino? A tese boaventuriana da
260 Sexta pãVte - ; A tS sco lá s+ ica n o s é c u lo d é c im o fe^cemo

co-intuição pretende precisamente destacar intelectivo está no conceito de ser que, para
que o contato com o objeto implica simul­ o nosso espírito, é a irradiação do ser abso­
taneamente a percepção confusa do mode­ luto, no qual estão as Idéias eternas de to­
lo divino. Com efeito, a co-intuição implica dos os entes. Todavia, o homem não tem
o contato direto com o objeto e reflexo com idéia clara dessa realidade inteligível, mas
o exemplar. A percepção do exemplar não é apenas uma idéia confusa, porque é uma
direta, mas também não pode ser chamada irradiação de Deus ou ainda o sinal de sua
indireta, no sentido mediato e escalonado presença em nós.
do raciocínio silogístico. A simultaneidade
da co-intuição é muito mais consecutiva, no
sentido de que o intelecto, percebido o exem­
plificado, o refere imediatamente ao exem­
plar, que, no entanto, não conhece em sua e a p lu e a lid a d e d a s f o r m a s
configuração divina definitiva.
Para maior esclarecimento desse núcleo
doutrinário é oportuno acenarmos para a Se Deus é o ser ao qual remetemos to­
teoria da iluminação, que Boaventura pro­ das as coisas, é estranha a cegueira do inte­
põe para explicar nosso conhecimento inte­ lecto, que não sente necessidade dele, sem o
lectual. O conhecimento sensível se refere qual nada pode ver ou conhecer. Pois bem,
aos objetos materiais e se realiza através dos precisamente por estar convencido de que
sentidos, enquanto o conhecimento intelec­ tudo fala de Deus, que está presente em nós
tual transcende os sentidos e atinge o uni­ mais do que nós em nós mesmos, Boa­
versal. Todavia, em que se funda tal uni­ ventura, mais do que demonstrar sua exis­
versalidade? E de onde os conhecimentos tência, preocupa-se em refinar ou purificar
necessários, como o dos princípios primei­ o olhar interior, para que, nele, o homem
ros e das verdades matemáticas, extraem tal encontre a marca de Deus impressa em sua
necessidade? Um aristotélico teria respon­ mente e se disponha a aceitar “ essa verdade
dido que o fundamento da universalidade e que toda criatura proclama” . Suas proposi­
da necessidade das idéias deve-se à ação de ções podem ser vistas também como provas,
abstração, que liberta das coisas singulares porém, mais do que provas, são exercita-
e contingentes o que nelas existe de univer­ tiones ou treinamentos para que o espírito
sal e necessário. saiba captar a presença de Deus fora de si,
Boaventura, porém, mostra-se insatis­ dentro de si e acima de si, em aproximação
feito com tal resposta, porque descobre nela ascendente que se conclui com a visão bea-
um resíduo de necessidade e auto-suficiên­ tífica.
cia pagã. Como o homem, as coisas são sin­ Deus está praesentissimus ipsae ani-
gulares e contingentes e, por si mesmas, não mae. E até o argumento do Proslogion de
podem funcionar como fundamento dessa Anselmo, mais do que específica demons­
necessidade e universalidade. O fundamen­ tração da existência de Deus, é argumento
to, portanto, só pode ser uma luz divina, que prova a imediata presença de Deus em
que permite a vinculação do finito com os nós. Como se pode propor à discussão a luz
exemplares divinos. Com efeito, como é pos­ graças à qual nós vemos? Se a noção de Deus
sível conhecer as coisas imperfeitas e con­ como ser absoluto está na base de todo o
tingentes sem termos a idéia do perfeito e nosso conhecimento, não há necessidade de
necessário? Sem a idéia do infinito, não é demonstrar sua existência, mas somente de
possível conhecer o finito como finito. Em esclarecer sua presença, para que nosso lou­
relação a quê o consideramos finito? Devi­ vor seja consciente. Escreve Boaventura no
do à nossa contingência, Boaventura estava Comentário às Sentenças: “Não há louvor
convicto de que as coisas podem gerar co­ perfeito se não há quem aprove, nem há
nhecimento imutável, mas somente quando perfeita manifestação se não há quem en­
relacionadas com os exemplares divinos. Por tenda, nem transmissão perfeita de bens se
isso, o conhecimento implica a co-presença não há quem desfrute. E, como só a criatu­
em nós de Deus e das coisas. ra racional pode aprovar, conhecer a verda­
Daí o primado, em nosso espírito, da­ de e desfrutar dos dons, as outras criaturas,
quele ser puríssimo e atualíssimo in quo sunt as irracionais, não se reportam imediata­
rationes omnium in sua puritate. Assim, o mente a Deus, mas somente através da cria­
fundamento de todo o nosso conhecimento tura racional. Esta, por seu turno, que é ca­
Capítulo décimo quarto - O m ovim ento -fra n ciscan o e B o a v e n t u n a d e 13a g n o ^ e g i o 261

paz de louvar, conhecer e assumir outras Ele é um místico. Olha o mundo com
coisas para delas desfrutar, é feita para se os olhos da fé. A razão é instrumentum fidei:
reportar imediatamente a Deus” . E, por essa a razão lê aquilo que a fé ilumina, é gramá­
relação imediata com Deus, o homem é ima­ tica escrita com o alfabeto da fé.
gem de Deus. E é imagem graças às suas fa­ Por isso, pode-se compreender perfei-
culdades espirituais, como a memória, a in­ tamente por que as filosofias de são Boa­
teligência e a vontade. ventura e de santo Tomás, de certa forma,
Por essa riqueza, a alma goza de certa são incomensuráveis, para usar uma expres­
independência do corpo, uma particular ne­ são da epistemologia contemporânea.
cessidade de existir por si mesma, a necessi­ Naturalmente, há pontos em comum,
dade de ser substância e, portanto, composta pois trata-se de dois filósofos cristãos. E toda
de matéria e forma. A alma não é pura for­ ameaça contra a fé os encontra unidos.
ma, privada de matéria. Sendo capaz de exis­ Mas essa concordância se dá a propó­
tir por si mesma, de agir e de sofrer, a alma, sito das linhas, não da forma. Os dados são
como todas as substâncias criadas, é com­ os mesmos, mas vistos sob luz diferente.
posta de matéria e forma. O que não a impe­ Em 1879, Leão XIII falou de Tomás e
de de unir-se como forma, ou seja, como per­ Boaventura como de duae olivae et duo
feição, ao corpo, que por seu turno também candelabra in domo Dei lucentia. Mas o que
é constituído de matéria e forma. Agosti- se deve destacar logo é que os dois candela­
nianamente, alma e corpo são duas substân­ bros iluminam as coisas de modo diferente.
cias, embora complementares, isto é, feitas Na realidade, a concordância não é identi­
uma para a outra. dade. Está claro que as duas doutrinas fo­
ram elaboradas com base em duas preocu­
pações diferentes, nunca vendo os mesmos
problemas sob o mesmo aspecto. Trata-se
8 Boavervtvma e "Tomás: de duas filosofias complementares: a fé em
“ u m a " fé. e “ c \ u a s " filosofias Deus é única, mas as tentativas humanas de
nos situar na e pela fé são múltiplas.
Em suma, podemos dizer que a fé é
E a partir de Cristo que Boaventura libertadora, permitindo-nos e impondo-nos
olha e lê a história do homem e do universo que sejamos despreconceituosos, ao passo
inteiro. que todas as tentativas humanas são relati­
A filosofia de Boaventura, portanto, é fi­ vas (ao tempo, ao espaço, à cultura da épo­
losofia cristã. Boaventura é um cristão-que-fi- ca, aos instrumentos disponíveis e assim por
losofa e não um filósofo-que-é-também-cristão. diante).
262 Sexta parte - y \ (z i- s c o la s + ic a no s é c u lo d é c im o t e r c e i r o

BOAVENTURA
>4 CRIAÇÃO

-------------------- ív DEUS ) ----------- -- -..... "


- está presente e operante em todo ato cognoscitivo nosso e, por­
tanto, não há necessidade de demonstrar sua existência, mas
basta mostrar sua presença em nossa interioridade
- é como um artista que cria, e, portanto, tem um projeto racional
que se exprime nas idéias
- a criação se realiza de duas formas:

.. A
“razões seminais”
a criação parte de um estado de caos,
por meio de diferenciações graduais. \ A -------------
Mas isso implica que na matéria exemplarismo
exista uma forma intrínseca, Deus se serve das Idéias
aí colocada por Deus / de sua mente
desde o início e que esta, como projeto exemplar
como uma semente, do mundo que cria
\ se desenvolve no tempo

^___________ ___________ \ ____ _


criado
o criado é sinal de Deus em vários níveis:
como vestígio (para os entes sensíveis),
como imagem (para o homem),
como semelhança (para as realidades deiformes).
O mundo é, portanto,
uma escada que permite ao homem ascender até Deus.
Tudo fala de Deus.
homem
Deus está presente no homem.
O homem é imagem de Deus
pelas suas faculdades espirituais
da memória, do intelecto, da vontade e do conhecimento
V J
\
conhecimento e co-intuição
o conhecimento, mesmo o sensível,
implica o universal e o conceito de perfeição.
Isso se explica com o fato de que o homem,
no momento em que colhe “o exemplificado”,
ou seja, a coisa criada sobre a base do exemplar ideal,
co-intui também o exemplar (= Idéia na mente de Deus).
Mas esta co-intuição pode ocorrer apenas por iniciativa de Deus (= iluminação)
263
Capítulo d c d fH O quarto - O movim ento j-vc \ v\ c À s c - c \ n o e B o a v e n tu r a d e 3 a g n o ^ e g io

sétimo sucessor a serviço da Ordem — , suce­


B o a ven tu ra deu que, trinta e três anos depois de sua mor­
te, por inspiração divina me retirei sobre o monte
Rlverne, como em um lugar tranqüilo para sa ­
tisfazer meu desejo amoroso de paz interior: e
naquele lugar, enquanto meditava sobre alguns
caminhos que permitem à nossa alma ascen­
Rs seis etapas der a Deus, apresentou-se a mim entre outras
considerações aquele milagre que justamente
para chegar a Deus aí aconteceu ao beato Francisco, quando lhe
opareceu um serafim alado em forma de crucifi­
xo. Parando para considerar esta visão, imedia­
No Itinerário do olmo o Deus, Booven-
tamente compreendi que ela colocava diante
turo individuo os etapas que é p red so p er­
dos olhos o êxtase ao qual o próprio Francisco
correr para chegar a Deus: o homem sobre a
chegara na contemplação, e o caminho que a
terra é viojor 0 deve atravessar o deserto
ele conduz.
deste mundo antes de chegar a Deus. R s
3. Com efeito, as seis asas do serafim
principais etapas são as seguintes:
podem significar retamente as seis elevações
1) a consideração daquilo que está foro
iluminadoras que, como etapas ou estados
de nós, no mundo físico;
preparatórios, dispõem a alma a chegar àque­
2) a consideração daquilo que está
la paz que ela atinge no rapto extático pró­
dentro d e nós, em nossa alma;
prio da sabedoria cristã. C o único caminho que
3) a consideração daquilo que está aci­
a ela conduz é aquele ardentíssimo amor pelo
ma de nós, por meio d e Jesu s Cristo.*1
crucifixo que transformou Paulo em Cristo, "de­
pois de tê-lo raptado até o terceiro céu", de
modo a fazê-lo exclamar: "Cstou crucificado com
Cristo; não sou mais eu que vivo, mas é Cristo
1. Prólogo
que vive em mim". Cste amor pelo Crucificado
1. No início deste itinerário, invoco o pri­ compenetrou o tal ponto a olmo de Francisco
meiro Princípio, do qual, como "Pai do luz", des­ que se manifestou em sua carne, quando, por
cende todo iluminação espiritual, "todo coisa dois anos, antes de sua morte, ele carregou
excelente e todo dom perfeito". Invoco o eter­ impressos no próprio corpo os santíssimos e s­
no Pai por meio de seu filho e nosso Senhor tigmas da paixão. Rs seis asas do serafim fa­
Jesus Cristo, poro que, pelo intercessõo do zem compreender, portanto, as seis sucessi­
santíssimo Virgem Maria, mãe do mesmo Deus vas iluminações espirituais, que, a partir das
e Senhor nosso Jesus Cristo, e do beoto Fran­ criaturas, conduzem até Deus, ao qual ninguém
cisco, nosso guio e nosso pai, "queira iluminar chega pelo reto caminho a não ser por meio
os olhos" de nosso mente, "poro guior nossos do Crucificado. Com efeito, "quem não entra
passos sobre o caminho daquela paz" "que su­ pela porta do redil, mas sobe por alguma ou­
pera toda compreensão". Paz que o Senhor nos­ tra parte, este é um ladrão e um predador".
so Jesus Cristo anunciou e deu ao mundo e que Ro contrário, "quem entrar por esta porta, en­
foi pregado por nosso pai Francisco, o qual anun­ trará e sairá e encontrará pastagem". Por isso,
ciava a paz no início e no Fim de toda sua pre­ João afirma no Rpocalipse: "Bem-aventurados
gação, augurava a paz toda vez que dirigia a aqueles que lavam suas vestes no sangue do
saudação, anelava a paz do êxtase toda vez Cordeiro, pois assim terão poder sobre a ár­
que se abandonava à contemplação, como ver­ vore da vida e entrarão na cidade pelas por­
dadeiro cidadão daquela Jerusalém celeste, a tas", como querendo dizer que não se pode
propósito da qual um verdadeiro homem de paz, entrar, com a contemplação, na Jerusalém ce­
que "se conservava em paz tombem com aque­ leste, a não ser transpondo aquela porta que
les que odiavam a paz", diz: "Invocai paz para é o sangue do Cordeiro. Nem, com efeito, se
Jerusalém". Cie, com efeito, sobia que o trono está de algum modo preparado para a con­
de Salomão está fundado apenas sobre a paz, templação dos realidades divinas, que condu­
dado que está escrito: "Na paz colocou sua zem ao arrebatamento extático da alma, senão
sede, e sua morada em Sião". com a condição de ser, como Daniel, "homem
2. Portanto, uma vez que também eu pro­ de desejo". Ora, são dois os meios que ge­
curava com espírito ardente esta paz, a exem­ ram em nós este desejo: o grito da oração que
plo do beatíssimo pai Francisco — eu que, pe­ prorrompe, fremente, "do gemido do coração",
cador e totalmente indigno, tomo seu lugar como e o fulgor da reflexão, que faz a alma voltar-
264
Sexta paTte - / \ C S scolás+ica no s é c u l o d é c i m o tet*ceifo

se poro o luz com o máximo imediatismo o in­ cendente em relação a nós, ninguém pode che­
tensidade. gar à bem-aventurança se não se elevar acima
4. Convido, portanto, o leitora gemer, pri­ de si mesmo, não em sentido físico, mas em
meiramente, pedindo o Cristo crucificado, cujo virtude de um impulso do coração. Por outro
songue nos purifica das impurezas do vício, para lado, não podemos nos elevar acima de nós se
que não creia que lhe seja suficiente a leitura uma força superior a nós não o permitir. Com
sem a compunção, a reflexão sem a devoção, efeito, por mais que nos disponhamos interior­
a busca sem o impulso da admiração, a pru­ mente a esta ascensão, de nada serve tudo
dência sem a capacidade de abandonar-se à aquilo se o auxílio de Deus não nos socorrer.
alegria, a atividade separada da religiosida­ Ora, o auxílio de Deus socorre aqueles que o
de, o saber separado da caridade, a inteligên­ invocam de todo coração, com humildade e
cia sem a humildade, o estudo não apoiado devoção; isto é, aqueles que por ele anelam
pela graça divina, o espelho da realidade sem neste vale de lágrimas por meio de ardente
a sabedoria inspirada por Deus. Proponho por oração. A oração, portanto, é a fonte e a ori­
isso as reflexões seguintes a todos os que são gem de nossa elevação a Deus. Por isso, Dio-
movidos pela graça de Deus, aos humildes e nísio, em sua obra De M ística Theologio, pro­
aos piedosos, àqueles que são animados pelo pondo-se a nos indicar os meios para chegar
arrependimento e pela devoção; a todos aque­ ao rapto da alma, põe em primeiro lugar a ora­
les que, ungidos com "o óleo da verdadeira ale­ ção. Oremos, portanto, e digamos ao Senhor
gria", amam a sabedoria divina e a buscam com Deus nosso: "Conduze-me, Senhor, em teu ca­
ardente desejo; a todos os que pretendem minho e entrarei em tua verdade; alegre-se meu
dedicar-se inteiramente a louvar a Deus, a ad­ coração, para que tema o teu nome".
mirar suas perfeições e a degustar sua doçura, 2. Assim orando, somos iluminados de
fazendo porém notar que pouco ou nada vale modo a conhecer as etapas da ascensão o
o espelho constituído pela realidade externa, Deus. Com efeito, para nós homens, em nossa
caso o espelho interior de nossa alma não e s­ atual condição, toda a realidade constitui uma
teja perfeitamente polido e nítido. Por isso, escada para ascender a Deus. Ora, entre as
homem de Deus, empenha-te, antes de tudo, coisas, algumas são vestígio de Deus, outras sua
a ouvir a voz da consciência que te chama ao imagem; algumas são corpóreas, outras espiri­
arrependimento, e depois eleva os olhos aos tuais; algumas são temporais, outras são imor­
raios da sabedoria que se refletem naqueles tais; e, portanto, algumas estão fora de nós,
espelhos, de modo que não aconteça que jus­ outras, ao contrário, em nós. Por conseguinte,
tamente a consideração daqueles raios dema­ para chegar à consideração do primeiro Princí­
siadamente luminosos te lance em uma trevo pio, que é puro espírito, eterno e transcenden­
mais profunda. te, é necessário que passemos antes pela con­
5. Considerei oportuno subdividir a obra sideração de seus vestígios que são corpóreos,
em sete capítulos, encimando-os com títulos que temporais e externos a nós, e isto significa ser
facilitassem a compreensão do conteúdo. Final­ conduzidos no caminho de Deus. C necessário,
mente, convido o leitor a levar em conta mais a finalmente, que nos elevemos ao que é eter­
intenção do autor do que os resultados de seu no, puro espírito e transcendente, fixando com
trabalho; mais o significado de tudo o que afir­ atenção o olhar sobre o primeiro Princípio, e
ma do que o estilo sem enfeites; mais a verda­ isto significa alegrar-se com o conhecimento de
de do que uma forma burilada; mais aquilo que Deus e com a adoração de sua majestade.
mantém vivo o afeto do que aquilo que torna 3. Cstas três etapas constituem, portanto,
erudita a inteligência. Para conseguir tal esco­ a viagem de três dias na solidão, as três luzes
po, não é preciso examinar com pressa e negli­ que nos iluminam no decorrer de uma só jorna­
gência o desdobramento destas reflexões, mas da, da qual a primeira é semelhante àquela do
meditá-las com a máxima atenção. crepúsculo, a segunda àquela da manhã, a ter­
ceira àquela do meio-dia. Cias espelham tam­
bém os três modos nos quais as coisas exis­
2. fis etapas da ascensão a Deus:
tem, isto é, na matéria, na inteligência criada e
como se conhece Deus especularmente na arte eterna, e com referência aos quais foi
por meio de seus vestígios no universo1 dito; "seja feito", "fez” e "foi feito" e, ainda,
1. "feliz o homem cujo apoio está em ti! espelham as três ordens de substância —
l\lo vale de lágrimas, no lugar em que foi colo­ corpórea, espiritual e divina — presentes em
cado, ele decidiu ascender a ti". Dado que a Cristo, que é a escada para nossa ascensão.
bem-aventurança consiste apenas na fruição do 4. A e sta s três eta p a s p ro gressivas
sumo Bem, e o sumo Bem é uma realidade trans­ correspondem, em nossa alma, três modos di­
, 265
Capitulo décimo quarto - O m ovim ento f m n c i s c a n o e B o a v e n t w m d e B a g n o ** e g io .— ,— ~

versos segundo os quais elo considera as coi­ descendência por causa do pecado original,
sas. Com o primeiro se volta para as realida­ foram prostrados por terra. O pecado original
des corpóreas, externas a nós, e é chamado corrompeu de dois modos a natureza humana,
animalidade ou sensibilidade; com o segundo, isto é, na mente com a ignorância e na carne
volta-se para si mesma, sem sair de si, e é cha­ com a concupiscência, de modo que o homem,
mado espírito; com o terceiro, que é dito men­ enceguecido e prostrado por terra, jaz nas tre­
te, a alma se volta para as realidades que a vas e não consegue ver a luz do céu, a menos
transcendem. A partir de todas estas coisas, a que a graça e a justiça venham em seu auxílio
alma deve se preparar para ascender a Deus, contra a concupiscência, a ciência e a sabedo­
para que ele seja amado "com toda a mente, ria contra a ignorância. Tudo isso ocorre por meio
com todo o coração, com toda a alma"; nisto de Jesus Cristo, "que se tornou por nós sabe­
consiste a perfeita observância da lei e, ao doria e justiça e santificação e redenção". Cie,
mesmo tempo, a sabedoria cristã. sendo “poder de Deus e sabedoria de Deus",
5. Mas cada um dos modos acenados se Verbo encarnado "cheio de graça e de verda­
desdobra, conforme consideremos Deus como de", nos deu "a graça e a verdade", isto é, in­
"alfa e ômega", ou então enquanto vemos Deus, fundiu em nós a graça da caridade que, nas­
em cada um dos modos acenados, como por cendo "de um coração puro, de uma consciência
meio de um espelho ou como dentro de um boa e de uma fé sem fingimento", torna reta
espelho, ou então enquanto cada um destes toda a nossa alma em seus três aspectos dos
modos de considerar Deus é assumido em sua quais falamos anteriormente. Cristo nos ensi­
pureza e em conexão com os outros. Segue- nou também a ciência da verdade conforme as
se, necessariamente, que as três etapas princi­ três formas da teologia, isto é, do teologia sim­
pais de nossa ascensão se tornam seis, de bólica, da teologia propriamente dita e da teo­
modo que, assim como Deus em seis dias criou logia mística, a fim de que nós, graças à teolo­
toda a realidade e no sétimo repousou, tam­ gia simbólica, nos sirvamos retamente das
bém o microcosmo, isto é, o homem, seja con­ realidades sensíveis, mediante a teologia pro­
duzido, de modo sumamente ordenado, atra­ priamente dita nos sirvamos retamente das rea­
vés de seis iluminações sucessivas, ao repouso lidades inteligíveis, por meio da teologia místi­
da contemplação. Csta subida é simbolizada ca sejamos raptados no êxtase que excede as
por seis degraus que conduziam ao trono de capacidades de nossa mente.
Salomão; tinham seis asas os serafins vistos 8. C, portanto, necessário que quem queira
por Isaías; depois de seis dias Deus "chamou ascender a Deus, depois de ter evitado cair na
Moisés da nuvem" e "depois de seis dias", con­ culpa que corrompe nossa natureza, exercite as
forme refere Mateus, Cristo "conduziu os discí­ faculdades naturais das quais antes se falou,
pulos sobre um monte e se transfigurou diante para obter, mediante a oração, a graça que rea­
deles". bilita; por meio de reta conduta de vida, a jus­
6. A essas seis etapas de nossa ascen­ tiça que purifica; por meio da meditação, a ciên­
são a Deus correspondem as seis faculdades cia que ilumina; e, por meio da contemplação,
da alma, por meio das quais nos elevamos das a sabedoria que nos torna perfeitos. Portanto,
realidades inferiores às superiores, das exter­ como ninguém pode chegar à sabedoria a não
nas a nós às internas, das realidades tempo­ ser por meio da graça, da justiça e da ciência,
rais às eternas. Cstas faculdades são o senti­ da mesma forma não se pode chegar à con­
do, a faculdade imaginativa, a razão, o intelecto, templação a não ser pela meditação penetran­
a inteligência e a parte mais elevada da men­ te, pela conduta de vida santa e oração devota.
te, que é chamada também centelha da sindé- Como, portanto, a graça constitui o fundamento
rese. Cssas faculdades, presentes em nós por da retidão da vontade e da iluminação de uma
natureza, foram deformadas pela culpa e res­ razão penetrante, também é necessário, antes
tauradas pela graça; ora, é necessário purificá- de tudo, orar, depois viver santamente e, por
las mediante a prática da justiça, exercitá-las fim, aplicar-se à consideração da verdade e,
por meio da ciência e torná-las perfeitas em aplicando-se a ela, ascender grodativamente
virtude da sabedoria. até chegar ao monte excelso, "a Sião", onde
7. Com efeito, segundo a constituição ori­ "se contemple o Deus dos deuses".
ginária de suo natureza, o homem foi criado 9. Portanto, dado que é preciso primeiro
capaz de chegar ao repouso da contemplação, subir e depois descer a escada de Jacó, colo­
e por isso "Deus o colocou no jardim das delí­ quemos a primeira etapa de nossa ascensão
cias". Porém, afastando-se da verdadeira luz embaixo, considerando todo este mundo sen­
para voltar-se ao bem passageiro, ele próprio, sível como um espelho, por meio do qual pos­
por causa de sua própria culpa, e toda a sua samos nos elevar a Deus, sumo artífice, de
266 Sexta parte - ; A < £ s c o lá s + i c a no s é c u lo d é c i m o t e r c e i r o

modo o ser os verdadeiros hebreus que pas­ mente espirituais, melhores e mais elevadas em
sam do Çgito para a terra prometida a seus pais, relação às precedentes. Vê, ainda, que algu­
os verdadeiros cristãos que passam com Cristo mas realidades, como as terrenas, estão sujei­
“deste mundo ao Pai", os verdadeiros amantes tas à mudança e à corrupção, e que outras, como
da sabedoria que nos chama, dizendo: “Vinde a as celestes, estão sujeitas à mudança, mas não
mim vós todos que me desejais e sociai-vos de à corrupção, e disso percebe que existem rea­
meus frutos". “Com efeito, da grandeza e da be­ lidades não sujeitas nem à mudança nem à
leza das criaturas pode-se conhecer seu criador". corrupção, como as divinas.
10. Ora, a suma potência, a suma sab e­ Portanto, dessa realidade visível o inte­
doria e a suma bondade do criador resplan­ lecto se eleva à consideração da potência, sa ­
decem nas coisas criadas, nos três modos se ­ bedoria e bondade de Deus, existente, viven-
gundo os quais os sentidos do corpo tornam te, inteligente, puramente espiritual, incorruptível
conhecido este fato ao sentido interno. Com e imutável.
efeito, os sentidos do corpo prestam seu servi­ 14. £sta consideração se amplia, depois,
ço à faculdade intelectiva seja quando indaga conforme as sete características das criaturas
mediante a razão, como quando crê com uma — que constituem sete testemunhos da potên­
adesão de fé, como também quando contem­ cia, sabedoria e bondade de Deus — isto é,
pla inteiectivamente. Quando contempla, ela caso se detenha para examinar a origem, a
considera a existência atual das coisas; quan­ grandeza, a multiplicidade, a beleza, a plenitu­
do crê, considera o desenvolvimento que é pró­ de, a atividade e a ordem de todas as coisas.
prio delas; quando se serve da razão, os consi­ Com efeito, a origem das coisas, na obra dos
dera no forma excelente de sua potencialidade. seis dias, quanto à sua criação, à sua recíproca
1 1. Cm primeiro lugar, quando o olhar distinção e à suo beleza, proclama a potência
daquele que contempla considera as coisas em de Deus que criou do nada todas as coisas, o
si mesmas, vê nelas o peso, o número e a me­ sua sabedoria que limpidamente as distinguiu
dida; vê o peso em relação ao lugar para o uma da outra, a sua bondade que generosa­
qual ele a faz tender, o número por meio do mente dotou a todas de beleza. A grandeza
qual se distinguem uma da outra, o medida das coisas, portanto, tanto quanto ao seu com­
mediante a qual são delimitadas reciprocamen­ primento, largura e profundidade, como quan­
te. Cm virtude disso, vê nelas a dimensão, a to à excelência de seu poder, que se expande
harmonia e a ordem, e também a substância, a em comprimento, largura e profundidade, segun­
capacidade operativa e a atividade. Tudo isso do se manifesta na difusão da luz, seja quanto
lhe permite elevar-se das coisas, como de um à eficácia com a qual elas operam de modo
vestígio, ao conhecimento da imensa potência, penetrante, contínuo e extenso, como aparece
sabedoria e bondade de seu criador. na operação do fogo, manifesta com clareza a
12. Cm seguida, o olhar de quem conside­ imensa potência, sabedoria e bondade do Deus
ra este mundo do ponto de vista da fé dirige a trino, o qual permanece em todas as coisas com
própria atenção à sua origem, ao seu curso e ao sua potência, presença e essência, embora não
seu fim. Com efeito, “pela fé" cremos que “o uni­ circunscrito por nenhuma delas. A multiplicidade,
verso foi formado pelo Verbo de vida"; pela fé pois, das coisas, considerada em relação à sua
cremos que três leis — isto é, de natureza, da diversificação conforme o gênero, a espécie e
Cscritura e de graça — se sucedem e se sucede­ as característicos individuais, na substância, na
ram, e se desenvolveram no tempo com ordem forma ou figura, no capacidade operativa, além
regularíssima; pela fé cremos que o mundo terá de toda avaliação humano, faz compreender e
fim com o juízo final. Podemos descortinar, de manifesta abertamente a incomensurabilidade,
tal modo, na origem do mundo a potência do em Deus, dos três atributos mencionados. Por
sumo Princípio, no desenvolvimento do mundo sua vez, a beleza das coisas, considerada em
sua providência, e no fim do mundo sua justiça. relação à variedade de luzes, figuras e cores
13. Por fim, o olhar de quem indaga me­ presentes tanto nos corpos simples como nos
diante a razão vê algumas realidades apenas compostos, como também nos orgânicos, nos
existirem; as outras, existirem e viverem; outras, corpos celestes assim como nos minerais, nas
depois, existirem, viverem e discernirem. As pri­ pedras como nos metais, nas plantas como nos
meiras são as menos elevadas, as segundas animais, proclama com toda evidência os três
ocupam um lugar intermediário, as terceiras são atributos mencionados. Analogamente, estes
as mais elevadas. Vê, igualmente, que algu­ são manifestados pelo plenitude das coisas,
mas realidades são apenas corpóreas, outras razão pela qual a matéria é plena de formas,
são em parte corpóreas e em parte espirituais, presentes nela como razões seminais; a forma
e disso percebe que existem realidades pura­ é pleno de força operativa, conforme sua po-
267
Capítulo décitYlO Q U ã Y tO - O m ovim en to jlvuu" is, <u\o e B o a v e n tu i*o d e S iagnvonegio

tência de ogir, e a potência operativo é pleno onde aquele que é verdadeiramente pacífico
de efeitos, em conformidade com suo capaci­ repousa na alma cheia de paz, como em uma
dade de atuá-los. R operação, pois, é múlti­ Jerusalém interior. Rias são também como as
pla, enquanto é operação da natureza, enquan­ seis asas do querubim, em virtude das quais a
to é operação do artífice, enquanto é operação alma do verdadeiro contemplativo, plena da ilu­
moral: ela, com sua múltipla variedade, mostra minação da sabedoria celeste, está em grau
a imensidão daquela potência, sabedoria de elevar-se para o alto. Rias são, igualmente,
ordenadora e bondade que é “causa do existir, como os primeiros seis dias, durante os quais a
critério do entender e ordenação do viver" de alma deve exercitar-se para chegar finalmente
todas as coisas. Além disso, a ordem das coi­ ao repouso do sábado. Nossa alma teve a in­
sas, como aparece pelo livro da criação, em re­ tuição de Deus fora de si, através de seus ves­
lação ao critério de sua duração, de sua coloca­ tígios e em seus vestígios; em si, mediante sua
ção e de seu influxo, isto é, em relação a se imagem e em sua imagem; acima de si, pela
estar dispostas conforme um antes e um depois, semelhança da luz divina, que resplandece aci­
em uma posição mais ou menos elevada e con­ ma de nós, e na mesma luz, o quanto é possí­
forme maior ou menor dignidade, faz compreen­ vel em nossa condição de peregrinos e à medi­
der com clareza a proeminência, a sublimidade da que ela se exercita na contemplação.
e a dignidade do primeiro Princípio quanto à sua Quando nossa alma chegou enfim, na sexta
infinita potência. Ro invés, a ordem encontrável etapa, a conhecer especularmente, no Princípio
nas leis, nos preceitos e nos julgamentos con­ primeiro, sumo e "mediador entre Deus e os
tidos no livro da Rscritura faz compreender a homens", Jesus Cristo, realidades que de ne­
imensidão de sua sabedoria. Por fim, a ordem nhum modo podem ser encontradas nas criatu­
dos sacramentos divinos, dos benefícios e das ras e que excedem toda capacidade indaga-
recompensas no corpo da Igreja manifesta sua dora do intelecto humano, resta-lhe transcender
imensa bondade, de modo que por esta mes­ e ultrapassar - mediante o conhecimento e s­
ma ordem somos conduzidos pela mão, e com pecular dessas realidades - não apenas este
plena evidência, ao Princípio primeiro e sumo, mundo sensível, mas também a si mesma. Nes­
que é potentíssimo, sapientíssimo e ótimo. ta passagem, Cristo é “caminho e porta", Cristo
15. é escada e veículo, como “o propiciatório colo­
Cego é, portanto, quem não é ilumi­
nado pelos inumeráveis esplendores das reali­ cado sobre a arca de Deus" e “o mistério e s­
dades criadas: surdo, quem não é despertado condido nos séculos".
pelas vozes tão numerosas; mudo, quem não é 2. Aquele que olha este "propiciatório",
impelido o louvar a Deus pela consideração de dirigindo o olhar inteiramente para ele, e com
todos estes seus efeitos; idiota quem, a partir fé, esperança, caridade, devoção, admiração,
de tantos sinais, não reconhece o primeiro Prin­ exultação, estima, louvor e júbilo o olha nova­
cípio. Rbre, portanto, teus olhos; tende as ore­ mente fixado na cruz, faz com ele a páscoa,
lhas de teu espírito; abre teus lábios e dispõe isto é, “o trânsito", para atravessar o mar Ver­
teu coração de modo a poder ver, ouvir, louvar, melho por meio da trave da cruz e, saindo do
amar e adorar, glorificar e honrar teu Deus em Rgito, entrar no deserto. Rí degusta o maná
todas as criaturas, a fim de que o universo in­ escondido e repousa com Cristo no sepulcro,
teiro não se insurja contra ti. Por este motivo, como se estivesse exteriormente morto, e to­
com efeito, "o universo se lançará contra os idio­ davia ouvindo, o quanto é possível nesta con­
tas" e, ao contrário, será motivo de glória para dição de peregrinos, aquilo que foi dito ao la­
aqueles sábios que podem afirmar, conforme a drão unido a Cristo; “Hoje estarás comigo no
palavra do profeta; “Tu me alegraste, Senhor, paraíso".
com tuas obras, e eu exultarei com a obra de 3. Rsta passagem foi mostrada também
tuas mãos". "Quão admiráveis são tuas obras. ao beato Francisco, quando, no arrebatamento
Senhor! Tudo fizeste com sabedoria e a terra extático da contemplação sobre o ápice do
está cheia de tuas riquezas". [...] monte — onde desenvolví em meu ânimo e s­
tas considerações que foram escritas — lhe apa­
receu o serafim com seis asas, pregado na cruz,
3. O arrebatamento místico da alma,
como eu e muitos outros ouvimos de um com­
no qual concede-se o repouso ao intelecto,
panheiro seu, que com ele estava naquela cir­
enquanto o afeto se derrama
cunstância. Rqui ele realizou a passagem para
totalmente em Deus
Deus, por meio do rapto extático da contem­
1. Rs seis considerações percorridas são plação, e foi posto como modelo de perfeita
como os seis degraus do trono do verdadeiro contemplação, como antes fora modelo de
Salomão, por meio dos quais se chega à paz, ação, como novo "Jacó e Israel", para que por
268
Sexta parte - A ( S s c o l ó s + i c a v\o s é c u l o d é c i m o te.rc-e .iro

meio dele, mais com o exemplo do que com o templações místicas, comportar-te deste modo:
palavra, Deus convidasse todos os homens ver­ deixa de lodo a atividade dos sentidos e do
dadeiramente espirituais a esta passagem e a intelecto, as realidades sensíveis e as invisí­
este arrebotamento extático do olmo. veis, tudo aquilo que é e tudo aquilo que não
4. Nesta passagem, porém, poro que ela é, e, ignorando tudo, volta-te, o quanto te for
seja perfeita, é necessário que todas as ativi­ possível, à unidade daquele que transcende
dades intelectuais sejam deixadas de lado e toda essência e todo saber. Abandonando tudo
que o ápice do afeto se fundamente e se trans­ e livre doravante de todo vínculo, enquanto
forme inteiramente em Deus. Cste estado é mís­ transcendes a ti mesmo e todas as coisas em
tico e secretíssimo, e "ninguém o conhece a não um impulso incomensurável e perfeito de tua
ser quem o recebe", nem o recebe senão quem alma tornada pura, ascenderás ao raio da trevo
o deseja, nem o deseja senão quem está infla­ divina, que supera toda essência".
mado oté o íntimo pelo fogo do Espírito Santo, 6. Se, enfim, te perguntas como isso acon­
que Cristo mandou sobre a terra. C justamente tece, interroga a graça, não a doutrina; o de­
por isso o Apóstolo afirma que esta sabedoria sejo, não a inteligência; o gemido da oração,
mística foi revelada por obra do Cspírito Santo. não o estudo e a leitura; o esposo, não o mes­
5. Para chegar a este estado, a natureza tre; Deus, não o homem; a trevo, não a lumi­
nada pode e pouco se pode fazer; é preciso, nosidade; não o luz, mos o fogo que tudo infla­
portanto, conceder pouco à busca e muitíssimo mo e que transporta para Deus com o impulso
à compunção; pouco à lingagem exterior e mui­ da compunção e o afeto mais ardente. Deus é
tíssimo à alegria interior; pouco à palavra e ao este fogo e seu "lar está em Jerusalém", Cristo
escrito e tudo ao dom de Deus, isto é, ao Cspí- acende este fogo no ímpeto amoroso de sua
rito Santo; pouco ou nada às criaturas e tudo à ardentíssima paixão, e o prova verdadeiramen­
Cssência criadora, ao Pai, ao Filho e ao Cspírito te apenas aquele que diz: "Minha alma dese­
Santo, dizendo com Dionísio ao Deus-Trindade: jou o estrangulamento e meus ossos o morte".
"Ó Trindade, que transcendes toda essência; ó Quem ama esta morte pode ver Deus, pois é
Deus, que transcendes a divindade, ó supremo indubitavelmente verdadeira esta afirmação;
mestre da teologia cristã, guia-nos oté o vérti­ "Nenhum homem pode ver-me e permanecer
ce de todo colóquio místico, que supera todo vivo". Morramos, portanto, e entremos na trevo;
conhecimento, toda luz, toda altura; onde os imponhamos silêncio às preocupações, aos
extremos, absolutos e imutáveis mistérios da desejos, às imagens sensíveis; passemos com
teologia se ocultam nas trevas, para além de Cristo crucificado "deste mundo para o Pai", a
toda luz, de um silêncio que ensina escondi- fim de que, quando nos houver mostrado o Pai,
damente, em uma escuridão profundíssima, que digamos com Filipe: "Basta-nos"; ouçamos com
transcende toda clareza e toda luz, na qual toda Paulo: "Basta-te minha graça"; exultemos com
realidade resplandece, e que preenche além Davi, dizendo: "Desfalecem minha carne e meu
de toda medida o intelecto com o esplendor de coração, Deus de meu coração, e minha porção
inimagináveis bens invisíveis”. Isto se deve di­ é Deus eternamente". "Seja bendito o Senhor
zer a Deus. Ao amigo, pelo contrário, para o eternamente e todo o povo diga: Assim seja,
qual são escritas estas páginas, diga-se com o assim seja". Amém.
próprio Dionísio: "Tu podes, amigo, depois de Boaventura,
um caminho tornado seguro, em relação às con­ Itinerário do olmo o Deus.
é S a p ítu lo d é c im o q u in to

;Ave. Egoísmo la+mo, ne.o-<a0ostmismo


e filosofia imeiafal
rvo sé c u lo décim o terceit^o

I . S i g e c d e 3 ^ a b a K \fe -----
e o avec^oísmo la+i n o

• Se para Averróis a filosofia gozava de substancial autonomia em relação à


fé e não tinha necessidade de alguma integração, para Siger de Brabante (por
1240-1284), grande representante do averroísmo latino, tam­
bém a fé tem seu valor próprio.
Disso deriva a doutrina da dupla verdade, para a qual, O averroísmo
latino
mesmo se as proposições de razão estão em contraste com as e a doutrina
da fé, estas são igualmente aceitáveis como fé. da dupla verdade
Portanto, não se procura mais a harmonia entre fé e ra­ 1-2
zão, dado que elas se movem agora sobre planos diferentes,
por exemplo:
- a filosofia proclama a eternidade do mundo, enquanto a fé proclama sua
criação;
- a fé fala de alma individual, enquanto para o filósofo o intelecto é uno para
todos os homens.
Nestes casos de contraste o cristão deve escolher a fé, mas tratar-se-ia em
todo caso de uma opção pessoal e desmotivada, que em teoria podería ser a todo
momento rebatida.

• Em 1270 Estêvão Tempier, arcebispo de Paris, condenou A divisão


o averroísmo e algumas teses tomistas. O mundo cristão se di­ entre
vidiu entre os franciscanos, que retomavam a linha platônico- franciscanos
agostiniana (por exemplo, com Mateus de Acquasparta), e os e dominicanos
dominicanos (por exemplo, com Egídio Romano), que defen­ ^§3
diam o tomismo.

1 O averroísmo la+irvo des da fé se quisermos que os problemas


mais urgentes e profundos do bomem te­
nham solução satisfatória.
A intenção de fundo de Tomás foi a de Esse grandioso projeto filosófico, que
delimitar a autonomia da razão e, desse mo­ tinha futuro de grande destaque em seu des­
do, também da filosofia. Simultaneamente, tino, não teve porém vida fácil. Com efeito,
foi também a de conciliar a razão com a fé, os primeiros grandes obstáculos lhe foram
por um lado, mostrando que as verdades da antepostos por aquele movimento filosófi­
razão não contradizem, mas suportam as co que, desde os tempos de Renan, foi cha­
verdades da fé e, por outro lado, mostran­ mado de averroísmo latino e que encontrou
do que as verdades da razão levam a resul­ em Siger de Brabante (aproximadamente
tados que precisam ser integrados às verda­ 1240-1284) seu mais destacado expoente.
270 Sexta parte - jA . £ ^sco lá s+ ica n o s é c u l o d é c i m o te^ceipo

2 Si0ee de Brabante trária às opiniões dos filósofos, “ é ela que


nós queremos preferir, agora e sempre” .
e a douteiiva
Também podemos encontrar idéias
da dwpla verdade análogas às de Siger em seu discípulo Boécio
de Dácia (autor de Comentários a Aristóteles
e de um De mundi aeternitate), para quem,
Para Averróis, o aristotelismo — ou como “ a filosofia não se baseia em revela­
seja, a filosofia — não tinha nenhuma ne­ ções e milagres” , “ é tolo pedir demonstra­
cessidade de integrações provenientes da fé. ções sobre coisas que, em si mesmas, não
A filosofia é saber demonstrativo. A verda­ admitem uma razão” .
de — no fundo — é unicamente a verdade Pelo que foi dito, pode parecer que, no
filosófica. fim das contas, se pudesse caminhar tran-
Pois bem, entre 1260 a 1265 difundiu- qüilamente na trilha da “ dupla verdade”
se, em Paris, um aristotelismo que não esta­ trilhada por Siger, pelo fato de que, de todo
va em absoluto preocupado com a concilia­ modo, a supremacia da fé parece assegura­
ção entre razão e fé: trata-se precisamente da e que o exercício da razão consiste em
do averroísmo latino. operações que, em última análise e de qual­
Nessa época, Siger de Brabante era quer forma, são irrelevantes para as verda­
mestre na faculdade de arte da Universida­ des de fé que são o porro unum necessarium
de de Paris. Defensor da interpretação que para o homem. Entretanto, a situação era
Averróis dera de Aristóteles, ele professava facilmente revertida em prejuízo da fé, já que
doutrinas como a da eternidade do mundo a filosofia de Aristóteles era a verdade hu­
e da unidade do intelecto possível e, deixan­ manamente alcançável em condições de der­
do de atentar para os contrastes entre os rubar as verdades de fé que se mostrassem
resultados da filosofia e os artigos de fé, em contraste com ela.
professava a doutrina da “ dupla verdade” , Em suma, a doutrina da dupla verda­
segundo a qual, mesmo que em contraste de constituía um mecanismo de proteção do
com as proposições da fé, as proposições da racionalismo mais radical e agressivo.
razão são igualmente aceitáveis por fé. Nesse meio tempo, em 1270, Egídio de
Siger de Brabante se apresenta como Lassines enviava a Alberto Magno uma car­
um expositor das “ opiniões do filósofo” , ta, expondo quinze teses sustentadas pelos
ainda que as opiniões de Aristóteles fossem mestres de Paris. Dessas teses, a primeira
“ contrárias à verdade” . Por outro lado, dizia respeito à unidade do intelecto e a quin­
“ ninguém deve tentar submeter à investiga­ ta à eternidade do mundo. Alberto refutou
ção racional aquilo que supera a razão, as­ essas teses no seu De quindecim problema-
sim como ninguém deve negar a verdade tibus.
católica com base em razões filosóficas” . Ainda em 1270, Estêvão Tempier, ar­
Se Tomás procurava conciliar fé e ra­ cebispo de Paris, condenou o averroísmo.
zão, Siger, ao contrário, separa os dois cam­ Siger e Boécio de Dácia não se considera­
pos, não considerando como vitais as con­ ram derrotados, prosseguindo seu trabalho
tradições entre eles. e seus ensinamentos, até que, em 1277, o
Para a fé, por exemplo, o mundo, cria­ mesmo Estêvão Tempier condenava duzen-
do por Deus, não é eterno, mas, para o filó­ tas e dezenove proposições e, com elas, o
sofo Siger, a matéria é eterna. averroísmo e o aristotelismo. Intimado pelo
Deus é o primeiro motor sempre em tribunal da Inquisição como acusado de
ato, de modo que a criação é uma necessi­ heresia, Siger apelou para o papa. Obriga­
dade que brota daquilo que Deus é, e não do a permanecer junto à corte papal, Siger
fruto de sua livre iniciativa. acabou assassinado por um clérigo enlou­
A fé nos fala de uma alma individual, quecido que estava a seu serviço. Isso ocor­
mas, para o filósofo Siger, o intelecto é uno reu entre 1281 e 1284 em Orvieto, num
e idêntico para todos os homens. período em que a corte papal encontrava-se
Siger não se alarmava com tais contras­ naquela cidade.
tes flagrantes, já que, segundo suas declara­ Dentre os numerosos escritos de Siger,
ções, como já acenamos, ele expunha as devemos recordar Quaestiones in librum
opiniões de Aristóteles sem presumir que elas tertium De anima (em torno de 1268), De
fossem verdadeiras, acrescentando que em­ aeternitate mundi (em torno de 1271) e o
bora “ a santa fé católica” se mostrasse con­ Tractatus de anima intellectiva (1272-1273).
Capítulo décimo quinto - y W i - í - o í s m o IcUincv n e o - a g o s t i n i s m o .
271

Boaventura criticou duramente os “ er­ Enquanto os dominicanos reagiam com


ros” de Siger e de todo o aristotelismo. To­ vários Correctoria do Correctorium (ou,
más, por seu turno, escreveu em 1270 o De como também se dizia, do Corruptorium)
unitate intellectus contra averroistas pari­ de Guilherme, o franciscano Mateus de Ac-
sienses, afirmando que Averróis foi mais “cor­ quasparta, também aluno de Boaventura em
ruptor” do que “comentador” de Aristóteles. Paris e posteriormente geral da ordem, car­
deal e amigo de Bonifácio VIII, retomava
plenamente a doutrina agostiniana da ilu­
minação.
3 O s f m r v c is c a n o s Mateus sustentava que existem verda­
e m p o lê m ic a des, que são princípios da lógica ou afir­
mações como por exemplo “ o homem é ani­
c o n f r-a o a n s f o t e lis m o mal racional” , e que são verdades eternas.
e o r e la n ç a m e n to Essas verdades, portanto, não podem se ba­
d o a g o s tin is m o sear em objetos contingentes, mas encontram
seu fundamento na iluminação por parte
de Deus, no qual se encontram os exem­
Entre as duzentas e dezenove teses con­ plares eternos. E, ainda contra Tomás, M a­
denadas pelo arcebispo Tempier havia tam­ teus reafirma o argumento ontológico de
bém teses tomistas. E por detrás dessa con­ Anselmo.
denação encontrava-se a nunca adormecida Outros franciscanos, alunos de Boaven­
tradição agostiniana, que também inspirou tura, foram Roger de Marston, Ricardo de
a condenação que, no mesmo ano de 1277, Middletown e Pedro de João Olivi, chefe dos
o arcebispo de Canterbury, o dominicano espirituais e defensor do retorno dos frades
Roberto Kilwardby (mestre de teologia em franciscanos à pobreza absoluta.
Oxford e mais tarde cardeal), emitiu contra Polêmico em relação ao tomismo e fa­
a teoria tomista da unidade da forma subs­ vorável ao agostinismo, Henrique de Gand
tancial do homem, e em defesa da tese se­ tornou-se mestre de teologia em Paris pre­
gundo a qual a alma humana é composta e cisamente em 1277, tendo participado da
não simples, no sentido de que, nela, seriam reunião de mestres convocada por Estêvão
distintas a parte vegetativa, a sensitiva e a Tempier, na qual emergiu a condenação das
intelectiva. teses averroistas e tomistas.
O sucessor de Kilwardby na sede ar- Contra o intelectualismo tomista, Hen­
quiepiscopal de Canterbury, John Peckham, rique defendeu o voluntarismo, sustentan­
também se ergueu em defesa da tradição fi­ do que o amor é superior à sabedoria, que a
losófica de Agostinho contra o tomismo, re­ vontade tem por objeto o bem supremo e
afirmando a condenação do tomismo em que o fim último é superior ao intelecto, que
1284 e em 1286. Ex-discípulo de Boaventura tem por objeto a verdade, que é apenas um
em Paris e ele próprio franciscano, Peckham dos bens.
quis reafirmar os núcleos doutrinários da À defesa do agostinismo contra o aris­
tradição agostiniana. totelismo tomista, defesa elaborada e difun­
Outro defensor do neo-agostinismo da dida sobretudo pelos discípulos de Boaven­
Escola franciscana foi Guilherme de la Mare, tura, se contrapôs a defesa da doutrina
mestre em Oxford. Guilherme é autor do tomista pelos dominicanos, entre os quais
influente escrito Correctorium fratis Tho- pode-se mencionar Hervé Nédélec, líder da
mae, que critica cento e dezessete teses cons­ escola tomista parisiense, João de Regina (ou
tantes dos escritos de Tomás. Esse Correcto­ de Nápoles), que ensinou primeiro em Paris
rium tornou-se influente pelo fato de que, e depois em Nápoles, tendo difundido o
em 1282, o geral da ordem franciscana or­ tomismo na Itália no período de 1300 a
denou a todos os frades que não dessem a 1335, defendendo-o até mesmo contra as
conhecer as teorias tomistas sem os comen­ idéias de Escoto; e Egídio Romano (aproxi­
tários de Guilherme. madamente 1247-1316).
272 Sexta parte - A É s c o l ó s + i c a no s é c u lo d é c im o fe^cemo

— 11. A filosofia e x p c n m e n f a l ----


e a s p n m e m a s p e s q u i s a s cie n tíficas
na e r a d a écsco lástica

• Enquanto em Paris havia um particular desenvolvimento da pesquisa teoló­


gica e filosófica, em Oxford se formava uma filosofia empírica da natureza, atenta
aos fenômenos naturais e à experimentação.
Fundador desta filosofia foi Roberto Grosseteste, que for-
Roberto mulou uma cosmologia da luz, segundo a qual as nove esferas
Grosseteste celestes e as quatro esferas terrestres (do fogo, do ar, da terra e
-> § 1 da água) nascem de uma agregação e desagregação da luz.

• Roger Bacon — o representante máximo da escola naturalista de Oxford — ,


explicitando as causas da ignorância (o autoritarismo, a presunção de saber, o
hábito, a insipiência), antecipou a que será a teoria dos idola
Roger Bacon de Francis Bacon. Além disso, identificou na experiência inter-
-»§ 2 na (em prática correspondência com a iluminação agostiniana)
e na experiência externa o critério de verdade: por meio da
primeira chegamos às verdades sobrenaturais e mediante a segunda às verdades
naturais.
Bacon ocupou-se também com física e ótica, e teve surpreendentes intuições
sobre as futuras conquistas da técnica (por exemplo, o vôo e a propulsão mecânica).

• Com os filósofos da escola de Oxford e também com


A síntese
entre
Alberto Magno criou-se um filão naturalista e experimentalista
prática e teoria dentro da filosofia escolástica que, de um lado, absorveu no
-^§3 âmbito do saber alguns conhecimentos técnico-práticos, e do
outro, lentamente facilitou a formação de uma síntese entre
prática e teoria, que estará na base da ciência moderna.

\ T^oberto ó^rossetes+e

Enquanto, em Paris, as artes do trívio


(isto é, a gramática, a retórica e a dialética)
granjeavam a maior estima,' em Oxford os
interesses de muitos professores voltavam-
se sobretudo para as artes do quadrívio
(aritmética, geometria, música e astrono­
mia). E precisamente em Oxford temos as
primeiras manifestações mais significati­
vas do que se pode considerar como uma
filosofia empírica da natureza, ligada a for­
mas incipientes de investigações experi­
mentais.

Retrato de Roberto Crosseleste,


conservado no Britisb Mnseitm.
Capitulo décimo quinto - ^ v e f m l s m o la tin o, n e o - a g o s t i n i s m o . ..
273

Naturalmente, quando falamos de ciên­ bre as propriedades dos espelhos e sobre a


cia experimental na Idade Média, não deve­ natureza das lentes.
mos pensá-la com as características de auto­ Todavia, independentemente disso, é
nomia metodológica e especialização que ela notável o fato de que Grosseteste tenha ex­
adquiriría mais tarde. Trata-se de concepção pressado com grande lucidez um princípio
da natureza e de poucas pesquisas experi­ que, mais tarde, estaria na base do pensa­
mentais, enquadradas e estreitamente ligadas mento de Galileu e da física moderna: “E
dentro da visão de mundo que os medievais imensa a utilidade do estudo das linhas, dos
receberam da antiguidade por meio da me­ ângulos e das figuras, já que, sem ele, nada
diação dos árabes. se pode conhecer da filosofia natural. Esses
Entretanto, o que importa destacar é elementos valem de modo absoluto para
que, embora mescladas a elementos teoló­ todo o universo e para as partes dele” .
gicos, místicos e metafísicos, as novas pes­
quisas delineiam o desenvolvimento de po­
tencialidades do pensamento grego, que a
vigilante preocupação teológica fizera com 2 Tvo0ee Bacon
que ficassem de lado.
Alberto Magno já dedicara atenção
aos minerais e aos seres vivos. Em sua
obra Sobre os vegetais afirmara que “ so­ tSM A vida e as ob^as

mente a experiência pode dar a certeza nes­


ses assuntos, porque o silogismo não tem Se Roberto Grosseteste pode ser con­
valor a respeito de fenômenos tão particu­ siderado como o iniciador do naturalismo
de Oxford, seu representante principal foi
lares” .
Entretanto, foi o dominicano Roberto sem dúvida Roger Bacon.
Grosseteste que determinou o rumo funda­ Bacon foi aluno de Grosseteste, que
mental assumido pelos estudos físicos nos também aponta entre seus predecessores e
mestres Pedro Peregrino, que em Lucera, na
séculos XIII e XIV.
Nascido em 1175 perto de Stradbrok, no Púlia, em 1269, publicava a sua Epistula de
condado de Suffolk, na Inglaterra, Roberto magnete (à qual se referiría, em 1600, o es-
Grosseteste estudou em Oxford e Paris. Foi
mestre-regente e chanceler da Universidade
de Oxford. Foi ordenado bispo de Lincoln
em 1235, e morreu excomungado pelo papa
Inocêncio IV, que havia criticado e atacado
em suas pregações. Tradutor da Ética de
Aristóteles, Grosseteste escreveu Commen-
tarii aos Analíticos posteriores, aos Elencos
sofísticos e à Física de Aristóteles, sendo ain­
da autor de escritos filosóficos como De unica
forma omnium, De potentia et actu, De
veritate propositionis, De scientia Dei e De
libero arbítrio.
Além de Aristóteles, também Agosti­
nho está presente em seu sistema filosófico,
e de modo maciço. Sua cosmologia é uma
filosofia da luz. Na opinião de Grosseteste,
é mediante processos de difusão, agregação
e desagregação da luz que se formam as nove
esferas celestes e as quatro esferas terrestres
(do fogo, do ar, da água e da terra). Todos
os fenômenos da natureza são explicáveis
por obra da luz.
E dentro dessa metafísica da luz que
encontramos encastelados e sistematizados Roger Bacon (por 1214-1292) foi uma das figuras
alguns conhecimentos de natureza científi­ mais notáveis da última hscolástica
ca e empírica, como os conhecimentos so­ c um precursor do empirismo moderno.
274 Sexta parte - A A s c o l á s t i c a n o s é c u lo d é c im o te ^ ce i^ o

tudioso do magnetismo Gilbert). Bacon, por­ B f i E A e x p e r iê n c ia


tanto, nasceu aproximadamente em 1214, c o m o b a s e d e to d o c o n h e c im e n to
estudou em Oxford sob a orientação de Gros-
seteste e depois em Paris, onde se tornou Diz Bacon que dois são os modos pe­
mestre de teologia. Por volta de 1252 voltou los quais chegamos ao conhecimento: “por
para Oxford. Protegido do papa Clemente argumentação e por experimentação” . A ar­
IV (esse papa era Guy de Foulques, velho gumentação conclui, mas não nos torna se­
amigo de Bacon; no ano seguinte à sua elei­ guros, uma vez que não afasta a dúvida.
ção como papa, isto é, em 1266, ele escreveu Por isso, a verdade deve ser encontra­
a Bacon uma carta para que lhe enviasse o da pelo caminho da experiência, que pode
seu Opus maius). Depois da morte do papa, ser externa e interna-, a externa é a experiên­
que ocorreu em 1278, onerai da ordem fran- cia que realizamos por meio dos sentidos;
ciscana, Jerônimo de Ascoli, condenou as a interna não se identifica com a autocons-
teorias de Bacon, impondo-lhe a clausura ciência, mas com a experiência da ilumi­
severa, isto é, o cárcere. Parece que Bacon nação divina de Agostinho. Através da ex­
morreu em 1292, ano ao qual remonta a periência externa, chegamos às verdades
elaboração do seu Compêndio dos estudos naturais, ao passo que, por meio da ilumi­
teológicos. A obra principal de Bacon é o nação divina, alcançamos as verdades so­
Opus maius, ao qual deveríam se seguir (mas brenaturais.
permaneceram em forma de esboço) o Opus
minus e o Opus tertium. Essas três obras
M SM P r o b l e m a s f ís ic o s e t é c n ic o s
deveríam constituir uma verdadeira enciclo­ em B a tz o n
pédia do saber.
Assim como para Averróis, também No que se refere mais especificamente
para Bacon Aristóteles é “ a perfeição últi­ ao conhecimento da natureza, a exemplo de
ma do homem” . Entretanto, isso não signi­ seu mestre Roberto Grosseteste, Bacon sus-
fica que a busca da verdade termina com
Aristóteles, pois, na opinião de Bacon, a
verdade é filha do tempo.

E S .A n t e c ip a ç õ e s
por p a r t e d e N o g e i* B a c o n
d e i d é ia s q u e E r a n c i s B a c . o n
t o r n a r á f a m o s a s no s é c . XVI

Justamente na primeira parte do Opus


maius encontra-se uma análise interessante
dos obstáculos que se antepõem ao alcance
da verdade. Essa análise antecipa e lembra
a que mais tarde outro Bacon, isto é, Francis
Bacon, realizaria em torno dos idola.
Pois bem, para Roger Bacon são qua­ C * íU U i . T.r.t-.p^íw •y jv t f n t li? n ift t m t m t

tro as causas da ignorância: ” ■


t |jm A n rm q ia »uh‘
- ..«?•*».-«**
%tw rÍK jytuj* -r<<p* * *tj
ii . i - : í íVflpi'' -O

a) o exemplo da autoridade frágil e in­ h£?e. mfcmsne i w*\>


M im * jm lp ff i ç m * .. mv«ç» > a v-:t4<-h»a cvtnitfa»
gênua; tim itin f •' *■ *'-*£.* •v a o E n .i n p ti- j».«rvt.
b) o hábito contínuo; - l Cv' « f c tio iti» p w v r }<.?•»>'* tn . A m j-fu* q u e i,

c) as idéias tolas do leigo; hmt* rt


•*** VVt ip *w iittft-tit f t w . 4 V ■■tutu*
, Í K - H . r t t* irtí-.u i 4\
■ »«»*»• >•
d) o ocultamento da ignorância por • ritvrfOjao.-» ííí « '« í- fív í^-.- A q ç * ' ’
V1 tNi-ip .|r-- .** 4* s><•«»-,«» >M:»u< i'i,' .5
meio da ostentação de uma aparente sabe­ a
t .• * - ü r ( y 'n C f .f i .{Altl* * r V ■-? - l«N>mUVPí •> •
doria. ‘‘V <» • ■‘-M !•*■?»n* >;r , *v~‘S *»H itK Ít <1 4 c

Para Bacon, a verdade é filha do tem­ Í \ i ‘J $UV ÇlitCHM i V / l l » » * * : t* t»i/'


V» d-.-.-.o,»- p eju s m .. Xvt>*tn' M c C tav ifl twtrHHfíi
po, e a ciência é obra da humanidade, não j.» -poi?1 - y v ;.j;V «vl {>,.*.v
do indivíduo. E, com o passar do tempo,
os homens que vêm depois eliminam os O monge Roger Bacon cm sua cela enquanto estuda
erros dos que os precederam. E assim se pro­ (de um códice da Biblioteca Bodleiana
gride. de Oxford).
Capitulo décitTlO C[UÍfltO - ^ X ve ^ ^ o ísm o la t in o , n e o - a g o s + in is m o ...
275

tenta a importância fundamental da mate­ (...) Também não seria difícil construir um
mática. instrumento pelo qual um só homem po­
Estudioso da física e particularmente dería puxar violentamente para si mil ho­
da ótica, Bacon compreendeu as leis da re­ mens (...). Da mesma forma, é possível
flexão e da refração da luz. Estudando as construir instrumentos para caminhar nos
lentes, explicou como elas poderíam ser dis­ rios e no mar até tocar no seu fundo, sem
postas para a confecção de óculos (e a in­ acarretar perigos para o corpo. Alexandre
venção dos óculos é precisamente atribuída Magno deve ter usado instrumentos desse
a Bacon) e de telescópios. tipo para explorar o fundo marinho, como
Intuiu coisas como o vôo, o emprego foi relatado pelo astrônomo Ético” . Bacon
de explosivos, a circunavegação do globo, afirma que instrumentos do gênero “ foram
a propulsão mecânica e outras idéias. construídos na antiguidade e são feitos ain­
Eis as coisas que, ao parecer de Bacon, da hoje, exceto a máquina para voar, que
podem ser realizadas “com os recursos e nem eu nem outros por mim conhecidos ja­
percepções do engenho humano” : “Pode-se mais viram” . Entretanto, Bacon diz conhe­
construir meios para navegar sem remado­ cer um homem sábio que “ procurou cons­
res, de modo que naves imensas (...), com truir também esse instrumento” . Os objetos
um só timoneiro, andem em velocidade que podem ser construídos são “ uma infi­
maior do que se fossem movidas por uma nidade” , dentre os quais Bacon cita tam­
multidão de remadores. Pode-se construir bém “ as pontes lançadas para o outro lado
carros que andem sem cavalos (...). E é pos­ do rio sem pilastras” .
sível também construir máquinas para
voar; (_e) um instrumento de pequenas di­
mensões, mas em condições de erguer e ;A s id é ia s d e B a c o n
abaixar pesos de grandeza quase infinita. s o la r é , a s t r a d u ç õ e s

Por fim, são muito interessantes as ob­


servações de Bacon sobre a tradução. De­
J7
pois de notar as dificuldades objetivas (co­
mo a falta de termos latinos para expressar
^Fratris Rogcnj Ba- os conceitos científicos) e o grande núme­
CH O N IS ANGLICI.DE MIRABL ro de erros cometidos nas traduções de
hpotcftare artú & natune.Líbcllui. Aristóteles, Bacon diz que “ é impossível que
h b b m b | Eftne pcticioni rcipondeo. N i li» os modos de dizer próprios de uma língua
B k W H O natura potcnsue & mirabilia, sejam encontrados em outra” ; acrescenta
are vteiu natura pro inftru que “não é possível traduzir para outra lín­
mento pottntior eft virrutc natu* gua, com todas as nuanças típicas da lín­
rali,Gcut vidcmiu in mulris-Quic gua original, aquilo que está bem expresso
.■ ^ ^ ® ™ ™ “ quidautemeftpneter operanoné
natura; vel artis, aur non eíl humanum, aut eft fi« em alguma língua” e, sobretudo, ressalta
âu m ,& fraudibus occupatum. Nam funt qui mo* que “ é necessário que o tradutor conheça
tu vcIoci,mcmbrorú apparenna,aur vocum diuerfi muito bem a ciência que quer traduzir e as
tate, aut uiíbumcnrorum lubdlitate, aut tenebra, duas línguas, a língua da qual traduz e a
aut coníênfu,multa morealibus proponunt miran* língua para a qual traduz. Somente Boé-
da,<]uz non habenr exiftentút veritaremrhis múdui
plcnus eft.íicur manitêihim eíLná ioeulatores mui»
cio, o primeiro tradutor, teve perfeito co­
ta manuum velocitate menriuntur, Sc phytomíTse nhecimento e domínio das línguas. E uni­
vocum varíerate in ventre & guttuie ngmenris Sc camente Roberto Grosseteste conhece as
ore formanr voces humanas,à longe vel prope,/>uc ciências” .
volunr.ac G fpirirus tunc humane loqucrcrur, etiã Na opinião de Bacon, os outros traduto­
fonos brutorú confingunt.Cauíç verò gramtni íiib*
ditx,& m larenbus terra: condira;, oftendunt quòd
res eram uns ingênuos, que conheciam pou­
vis humanaeíl,& non fpirirus.qux magno fingunr co tanto das ciências como das línguas, “co­
mcndaao.Cum vero m tcncbns crepufculi vel no» mo o demonstram suas traduções” .
k.,. A conseqüência de tudo isso era que
“ ninguém pode compreender as obras de
Primeira página da obra Aristóteles pelas traduções” , pois nelas ha­
de Roger Bacon vería “muitas deformações de significado”
De mirabili potestate artis et naturae (1251). e “ muita falsidade” .
276 Sexta parte - ; A é£scolas+ica p\o s écu lo d écim o terceiro

3 Pesquisas tecuológicas dos quais homens engenhosos pudessem ter-


se exercitado.
ua CJdade Adédia E, na realidade, assim é: basta pensar
nos vários tipos de arreamento; no lagar
movido a força hidráulica; no malho à água;
Com Alberto Magno, Roberto Gros- no relógio mecânico; na fiação da seda com
seteste, Roger Bacon — e também com correame articulado; no moinho de vento;
Witelo, que viveu em torno de 1270 e foi o na fabricação de lentes e de papel; na extra­
autor da Perspectiva, e com Teodorico de ção de substâncias como metais, alcalóides,
Friburgo (por volta de 1250-1310) —, as­ sabão, ácidos, alcoóis e pólvora de disparo;
sistimos, portanto, ao nascimento e lento de­ e muitas outras soluções técnicas engenho­
senvolvimento de uma vertente matemática sas para problemas nem sempre simples.
e experimentalista no interior da filosofia Pois bem, todo esse mundo tecnológico
escolástica. estava fora do “ saber” , isto é, fora da filo­
Todavia, o fato de que a pesquisa, por sofia. E Grosseteste e Roger Bacon estão si­
assim dizer, científico-tecnológica tenha per­ tuados precisamente no início daquele mo­
manecido até então substancialmente fora vimento de pensamento que, reunindo teoria
do reino da filosofia não significa, absolu­ e prática, conduziría à ciência moderna e,
tamente, que a vida prática não houvesse ao mesmo tempo, à dissolução da concep­
apresentado ocasiões e problemas em torno ção tradicional do mundo.

Disputa entre um teólogo e um astrônomo h.xploração sideral, com instrumentos primitivos,


(Biblioteca pública “A. Mai", Bcrgamo). cm unia miniatura do scc. XIII.
(S a p ítu lo d é c i m o sejeto

cJoão X ) uns Êscofo

I. A vid a e a o b r a

• A grande parte dos ásperos debates entre aristotélico-tomistas e platônico-


agostinianos depende, no parecer de João Duns Escoto (1266-1308), da delimita­
ção não rigorosa dos âmbitos de pesquisa da filosofia e da
teologia: uma trata do ente enquanto ente com procedimen- Duns Escoto:
to demonstrativo, e a outra trata dos objetos de fé com proce- filosofia
dimento persuasivo; um aplica a lógica do natural, a outra a e te^ í°? ia
do sobrenatural. à '

1 O sutil’7 teológicos, voltou depois para a Inglaterra,


indo trabalhar no estúdio dos Frades me­
nores, anexo à Universidade de Cambridge,
onde começou a comentar as Sentenças de
Chamado por seus contemporâneos de Pedro Lombardo. De Cambridge, foi para
Doctor Subtilis pela fineza e profundidade de Oxford (1300-1302) e daí para Paris (1302­
sua doutrina, João Escoto nasceu no povoa­ 1303). Tendo rejeitado, juntamente com
do de Duns, na Escócia, em 1266, quando outros professores da Universidade, o ape­
Tomás de Aquino e Boaventura de Bagno- lo de Filipe, o Belo, ao concilio contra o papa
regio encontravam-se no auge de sua produ­ Bonifácio VIII, foi obrigado a deixar Paris e
ção científica. Ele se formou e trabalhou nos retornar a Oxford. Em 1304, o ministro-
dois maiores centros de estudo da época: geral da ordem franciscana, Gonsalvo His­
Oxford e Paris. Na ETniversidade de Oxford, pano, que fora seu professor, apresentou-o
caracterizada pela tradição “científica” de à Universidade de Paris para a obtenção da
Grosseteste, Roger Bacon e Peckham, ele licenciatura em sagrada teologia, que lhe foi
aprendeu uma concepção extremamente ri­ conferida em 1305, recebendo logo depois
gorosa de “procedimento demonstrativo” . a regência do estúdio dos frades menores.
Em Paris, centro de polêmicas entre tomis- Mas, devido às crescentes tensões entre o
tas, averroístas e agostinianos, ele amadure­ imperador e o papa, Escoto foi chamado pa­
ceu a necessidade de ir além daqueles contras­ ra o estúdio de Colônia, onde, depois de um
tes, baseando-se, por um lado, na autonomia ano de ensino, morreu em 1308, sendo se­
e nos limites da filosofia e, por outro, no âmbito pultado na Igreja de são Francisco, naque­
específico e na riqueza dos problemas da teo­ la cidade. O dístico que está esculpido em
logia. seu túmulo resume muito bem o que foi sua
Aluno do convento franciscano de Had- vida atorm entada: “Scotia me genuit,/
dington, Escoto vestiu o hábito de são Fran­ Anglia me suscepit, Gallia me docuit,/
cisco em 1278, incentivado por um tio, Elias. Colonia me tenet”.
Estudou teologia em Northhampton, na In­ Para entender o diverso sentido teóri­
glaterra, onde foi ordenado sacerdote em co de seus escritos, é preciso distinguir ne­
1291. Enviado a Paris nos anos 1291-1296 les um primeiro grupo, sobretudo de obras
para aprofundar seus estudos filosóficos e da juventude, constituído pelos Comentá­
278 Sexta parte - A C ls c olés+ica iao s é c u l o d é c i m o tet *c em o

rios a obras de filósofos antigos, particular­ filosofia segue o procedimento demonstra­


mente de Aristóteles e Porfírio, e um segun­ tivo, a teologia o procedimento persuasi-
do grupo, pertencente ao período da matu­ vo. A filosofia se detém na “ lógica do na­
ridade, representado pelos Comentários às tural” , a teologia move-se na “ lógica do
Sentenças de Pedro Lombardo. À parte a sobrenatural” . A filosofia se ocupa do ge­
semelhança do gênero literário — trata-se, ral ou universal, porque é obrigada a se­
na maior parte, de comentários —, é notá­ guir pro statu isto o itinerário cognoscitivo
vel a diferença de conteúdo e de valor dos da abstração, enquanto a teologia apro­
dois grupos, como sugerem os próprios tí­ funda e sistematiza tudo o que Deus se dig­
tulos com os quais tais obras foram desig­ nou nos revelar sobre sua natureza pessoal
nadas: Reportata parisiensa, Lecturae can- e nosso destino. A filosofia é essencialmente
tabrigenses, Ordinatio. especulativa, porque visa a conhecer por
A Reportatio indica um escrito redigi­ conhecer, ao passo que a teologia é tenden-
do com a aprovação do mestre, neste caso cialmente prática, porque nos põe a par de
de Escoto, por discípulos, que assim repor­ certas verdades para nos induzir a agir mais
tavam o que o mestre ensinava. corretamente.
A Ordinatio, antes conhecida como A filosofia não melhora se posta sob
Opus Oxoniense, foi assim intitulada pelos a tutela da teologia, nem esta se torna
editores da comissão romana formada para mais rigorosa e persuasiva se utilizar os ins­
a sua publicação crítica, porque “ orde­ trumentos e tender aos mesmos fins que a
nada” ou ditada pessoalmente por Esco­ filosofia. A pretensão dos aristotélicos
to. Essa, obviamente, é a obra maior de avicenistas e averroístas de sufocar a teolo­
Escoto, embora ele não tenha conseguido gia com a filosofia, a tentativa dos agosti-
concluí-la. nianos de sufocar a filosofia com a teolo­
A Lectura, por fim, representa as ano­ gia e a orientação dos tomistas de buscar
tações do mestre, feitas para auxiliá-lo no a qualquer custo a concordância entre ra­
ensino diário. Além desses escritos, é bom zão e fé, entre filosofia e teologia, se expli­
recordar um opúsculo denso e conciso, o De cam, segundo Escoto, pelo rigor insuficien­
primo principio, definido com razão como te com que essas teses e perspectivas são
a maior das obras breves de Duns Escoto. propostas.

2 Distinção entre filosofia


e teologia

Contra a absorção agostiniana da fi­


losofia pela teologia e contra o concordis-
mo tomista entre filosofia e teologia, Escoto
propõe a clara distinção entre os dois cam­
pos. A filosofia tem uma metodologia e um
objeto não assimiláveis à metodologia e ao
objeto da teologia. As disputas que se mul­
tiplicavam e as condenações que frequen­
temente se seguiam a elas, na opinião de
Escoto, tinham origem comum: a não de­
limitação rigorosa dos âmbitos de pes­
quisa. Daí, para Escoto, a importância de
precisar as respectivas esferas de ação e as
orientações específicas da filosofia e da teo­
logia.
A filosofia ocupa-se do ente enquan­ /oão Duns Escoto.
to tal e de tudo o que a ele é redutível ou Iluminura do séc. XIV da Ordinatio
dele dedutível. Já a teologia, ao contrário, (Biblioteca Silvestríana,
trata dos articula fidei ou objetos de fé. A Academia dei Concordi, Rovigo).
279
Capítulo décimo sexto - 3 o ã o D u n s É s c o to

I. y\ m e t a f ís ic a

• Para evitar equívocos Escoto propõe submeter a análise


todos os conceitos complexos para reduzi-los a conceitos sim- a doutrina
pies, e para isso elabora a doutrina da distinção. da distinção
Há três tipos de distinção: a real (por exemplo: Sócrates $1
é diferente de Platão); a formal (por exemplo: entre inte­
ligência e vontade); a modal (conforme graus de intensidade). A estas se acres­
cente a distinção de razão (lógica), que se refere ao âmbito mental e não ao
real.

• A doutrina da distinção, em seu complexo, leva ao conceito de univocidade


como simplicidade elementar: o conceito mais simples (unívoco) é o ente enquan­
to pode ser predicável de tudo.
A noção de ente unívoco é alcançada por meio da distinção modal: o ente
unívoco é o ser que se obtém prescindindo de todos os modos específicos em que
é concretizado.
Desse modo, pode-se atribuir o ente unívoco tanto a Deus Q .
como ao homem, mas apenas porque de tal modo se prescinde ^/un/Voc/dade
do modo em que as duas realidades existem: uma, segundo o 7
modo infinito; a outra, segundo o modo finito. Compreende­
mos, portanto, que se o ente unívoco tem a máxima universa­
lidade, ele também possui a mínima especificidade e, por conseguinte, quase nada
diz sobre o objeto do qual se predica.

• O objeto típico do intelecto é o ente unívoco e, portan­


to, tudo entra no âmbito do conhecimento intelectual-filosó- o ente unívoco
fico; contudo, dada a mínima capacidade conotativa do ente objeto
unívoco, a riqueza e a variedade da realidade concreta e hu- do intelecto
mana destinam-se a escapar da filosofia: eis por que à filosofia §2
são necessárias como complemento as ciências singulares e so­
bretudo a teologia. Com efeito, muitas verdades, como a origem do mundo e a
imortalidade da alma, escapam à razão e são objeto da teologia: em tal caso,
porém, são persuasiones e não demonstrationes.

• Os modos essenciais do ente unívoco são os do finito e do infinito. Todavia,


enquanto o ente finito é imediatamente evidente, para a existência do ser infini­
to é preciso uma demonstração convincente.
Escoto rejeita as demonstrações que partem da experiên- . . .
cia, porque a experiencia nao e necessária e, portanto, tam-
bem a demonstração que dela deriva nao o seria. Portanto, em § 3_4
vez de partir da existência factual das coisas, ele parte da pos­
sibilidade das coisas: ora, enquanto a existência das coisas é
contingente, a possibilidade das coisas é necessária (as coisas enquanto existem
ou existiram são necessariamente possíveis).
Fica então demonstrado que a razão de tal possibilidade está em um ente
não produzido, mas em grau de produzir (= Deus), o qual existe em ato, porque
se assim não fosse também não seria possível, dado que nenhum outro estaria
em grau de produzi-lo. Este ente, cuja conotação é a infinitude, é o objeto pró­
prio da filosofia que, ocupando-se do ente, deve ocupar-se também e sobretu­
do de Deus. A filosofia alcança dessa forma o vértice da realidade, mas de modo
um tanto genérico e formal, porque a essência do ente divino escapa da com­
preensão humana. Dessa forma se manifesta a exigência do aprofundamento
teológico.
280 Sexta parte - A ê s c o lá s tica n o sécu lo d écim o terceiro

• Original é também a teoria da individuação, que inverte o esquema ideal


da antiguidade (no qual o universal era superior ao individual), considerando a
individualidade (que Escoto chama de haecceitas, de haec est,
o ser este e não outro) como uma perfeição do ente.
A haecceitas
Tal doutrina é funcional para uma poderosa revalorização
e o conceito
de pessoa do conceito de pessoa, a qual não pode ser subordinada ao
>§5 universal da espécie, porque sua unicidade não é parte de um
todo, mas um todo no tudo.

• A modalidade da possibilidade, se vale para o mundo, vale também para a


moral, motivo pelo qual, coerentemente, Escoto declara a contingência da moral
enquanto tal. O bem não pode ser deduzido do ser, mas apenas do Deus infinito:
por esta razão Bem é aquilo que Deus quer e impõe. Isso não
O bem significa que a ética humana careça de racionalidade; significa,
não depende ao contrário, que carece de obrigatoriedade, pois esta depen­
do ser, de da vontade legiferante de Deus. Deus, em suma, teria podi­
mas apenas do formular outras leis e estas teriam tido em todo caso cará­
de Deus ter vinculante.
-> § 5 Tal argumentação leva à clara distinção entre intelecto e
vontade, a qual se reflete também na natureza humana: a li­
berdade humana — que para Escoto constitui a perfeição do homem — não de­
pende do intelecto, mas da vontade.

1 ;A un\voc'\dcxJia d o e n te Além dessas distinções, que têm seu funda­


mento na realidade, há também a distinção
da razão, que se dá quando decompomos
Com a intenção de evitar equívocos e ulteriormente um conceito para compreen­
deletérias misturas entre elementos filosófi­ der mais claramente seu conteúdo, sem que
cos e elementos teológicos, Escoto propõe isso tenha correspondência na realidade.
submeter à análise crítica todos os concei­ Trata-se mais de necessidade lógica do que
tos complexos, a fim de obter conceitos sim­ ontológica.
ples, com os quais se deve então proceder à Pois bem, quando se fala de univoci-
construção de um discurso filosófico funda­ dade a propósito da filosofia escotista, o que
mentado. Se não alcançarmos essa simplici­ se pretende é falar da simplicidade irredu­
dade, as combinações de conceitos conterão tível à qual todos os conceitos complexos
ambiguidades ou passagens injustificadas. devem ser reconduzidos. Ou seja, trata-se
Aquilo que existe e sobre o que medita­ dos conceitos que Escoto chama de concei­
mos é complexo. A função do filósofo é con­ tos simpliciter simplices, no sentido de que
tribuir para dissipar tal complexidade, an­ cada um deles não é identificável com ne­
tes de mais nada ajudando a pôr ordem e nhum outro. São conceitos que só é possí­
ver claro na selva de nossos conceitos. vel negar ou afirmar de um sujeito, mas não
Em tal contexto e com essa função, ambas as coisas juntas, como, por exemplo,
Escoto elabora a doutrina da distinção (dis­ pode acontecer a propósito dos conceitos
tinção real, formal e modal). Esse é o cami­ analógicos, que, dada a sua complexidade,
nho que leva do complexo ao simples, que podem ser afirmados e negados ao mesmo
supera as incompreensões e vence as falsas tempo, em relação ao mesmo sujeito, a par­
pretensões. Entre Sócrates e Platão há uma tir de ângulos diferentes.
distinção real; entre a inteligência e a von­ Pois bem, entre todos os conceitos uní-
tade, a distinção é apenas formal, entre a vocos, o conceito primeiro e mais simples
luminosidade e o seu grau de intensidade, a é o conceito de ente, porque predicável de
distinção é modal. Se isso é verdade, então tudo o que de algum modo existe. Mas o
pode-se conceber um conceito sem o outro, que é o ente unívoco, fundamento da meta­
sendo deletério considerar os conceitos jun­ física de Escoto? Ao falarmos da distinção
tos, como se constituíssem uma só noção. modal, dissemos que é possível conceber
Capítulo décimo sexto - Jo ã o X^u k s âzscoia 281

uma perfeição — a racionalidade, a lumino­


sidade etc. — sem o seu grau específico de
intensidade: a racionalidade de Deus não é
a mesma do homem; a luminosidade do sol ■ Univocidade. Para o Tomismo o con­
é diferente da do lampião. Ampliando essa ceito de ser é analógico, enquanto
distinção modal a todos os entes, pode-se para Duns Escoto é unívoco: isto sig­
fixar o conceito de ente prescindindo dos nifica que ele é predicável da mesma
modos específicos em que eles efetivamen­ forma de tudo aquilo que existe.
te se concretizam. Nesse caso, tem-se então
o conceito simples e, portanto, unívoco de
ente, que é universal porque é aplicável a
tudo o que existe de maneira unívoca. Com
efeito, ele se aplica tanto a Deus como ao
homem porque ambos existem. A diferen­
ça entre Deus e o homem não está no fato sar são os contornos do objeto que esteja
de que o primeiro exista e o segundo não, em condições de expressar, e ao mesmo tem­
mas sim no fato de que o primeiro existe po circunscrever o horizonte cognoscitivo
de modo infinito e o segundo de modo fi­ do nosso intelecto. O olho é feito para a cor
nito. Ora, deixando-se de lado os modos de e o ouvido para o som. E o intelecto, foi fei­
ser, o conceito de ente se aplica a ambos da to para quê? Qual é o objeto que expressa o
mesma forma. Mas, precisamente pelo fato âmbito efetivo no qual o intelecto pode se
de prescindir dos modos de ser, o conheci­ mover?
mento de tal conceito não permite identifi­ A resposta de Escoto para essa inter­
car os traços específicos dos seres aos quais rogação é que esse objeto, na situação atual
se aplica. do homem, é precisamente o ente unívoco
Com isso, podemos compreender quão ou o ente enquanto ente. Como, sendo uní­
deformada foi a acusação de panteísmo fei­ voco, o ente é aplicável a tudo o que existe,
ta a Escoto por causa da univocidade. A no­ da mesma forma o intelecto é feito para co­
ção unívoca de ente é de índole metafísica, nhecer tudo o que existe, material e espiri­
no sentido de que expressa a própria essên­ tual, particular e universal: não há nada que
cia do ser ou o ser enquanto ser, e não a to­ lhe seja interdito. Com seu pensamento, o
talidade dos seres ou sua soma. Exatamente homem pode abarcar o universo. Por sua
por prescindir dos modos de ser é que Es­ universalidade, o conceito de ente enquan­
coto chama tal noção de deminuta ou im­ to ente indica a extensão ilimitada do nosso
perfeita. .CD intelecto.
Todavia, se, por sua universalidade,
esse conceito permite entrever a extensão de
nosso poder cognoscitivo, no entanto, por
2 CDente umvoco, sua extrema pobreza e sua generalização
objeto primeieo do intelecto máxima, ele também nos faz entrever a po­
breza do intelecto e, por reflexo, a absurda
pretensão de certos metafísicos de respon­
Convencido de que um dos traços es­ derem à complexidade do real. Pro statu
pecíficos do homem é o fato de ser inteli­ isto, ou seja, na condição humana atual, o
gente — inteligência que é expressão primei­ intelecto humano é obrigado a seguir o pro­
ra da transcendência do homem em relação cesso de abstração e, portanto, a alcançar o
a todos os outros seres vivos —, Escoto se inteligível, prescindindo — pela abstração
apressa a precisar o âmbito cognoscitivo do — da riqueza efetiva da realidade concreta.
homem, preocupado em não lhe atribuir po­ O conhecimento filosófico se detém nas
deres ilusórios nem privá-lo de suas poten­ fronteiras do universal e a metafísica, ocu­
cialidades e prerrogativas. Por isso, diante pando-se do ser comum, prescinde da rique­
da questão do objeto primeiro do intelecto, za estrutural das coisas.
ele responde antes de mais nada que não Assim, é necessário pôr ao lado da fi­
pretende tratar do objeto que o homem co­ losofia, em posição subalterna e autôno­
nhece primeiro na ordem do tempo nem do ma, as ciências em particular e, para os
objeto mais perfeito que o homem esteja em aspectos de salvação da nossa existência, a
condições de alcançar. O que ele quer preci- teologia.
282 Sexta patte - é t s c o l á s f i c a no s é c u lo d é c im o fe^cemo

3 A ascensão a Ideus Pois bem, estabelecida a necessidade da


possibilidade, Escoto pergunta-se qual é seu
fundamento ou causa. Nessa questão, seu
Sendo privada dos modos concretos de procedimento é o tradicional. O fundamen­
ser, a noção unívoca de ente é definida como to de tal possibilidade não é o nada, porque
deminuta ou imperfeita. Mas, exatamente o nada não é fundamento ou causa. Tam­
por ser imperfeita, tal noção não apenas não bém não é constituído pelas próprias coisas,
se choca com os modos de ser, mas também porque não é possível que as coisas possam
tende a eles como a suas configurações efeti­ se dar a si mesmas a existência que ainda
vas. Ora, os modos supremos de ser são a não têm. Então, é necessário pôr a razão de
finitude e a infinitude, que representam o tal possibilidade em um ser diferente do ser
ente em sua perfeição efetiva. Tais modos produtível. Ora, esse ser que transcende a
determinam a noção unívoca de ente, da esfera do produtível ou das coisas possíveis
mesma forma como a intensidade expressa existe e atua por si mesmo ou existe e atua
a luminosidade da luz ou um grau particu­ em virtude de outro ser. No segundo caso,
lar de cor concretiza a brancura. Em suma, propõe-se a mesma pergunta, porque ele
trata-se da passagem do abstrato para o con­ dependería de outro, sendo por seu turno
creto, do universal para o particular. produtível. No primeiro caso, temos um ente
Ora, está claro que não há necessidade em condições de produzir, mas que não é de
de nenhuma prova da existência do ente fi­ modo algum produtível. Assim, chegamos
nito, porque ele é objeto da experiência ime­ ao ente que se busca, porque explica a pos­
diata e cotidiana. No entanto, urge uma sibilidade ou produtividade do mundo sem
demonstração precisa da existência do ente que sua existência, por seu turno, exija ul-
infinito, porque ele não constitui um dado terior explicação.
de evidência imediata. Se o conceito de “ente Desse modo, se as coisas são possíveis,
infinito” não é contraditório em si mesmo também é possível um ente primeiro. Mas
— ao contrário, parece que a noção unívoca tal ente é apenas possível ou existe de fato?
de ente encontra na infinitude sua realiza­ A resposta é que tal ente existe em ato, por­
ção mais completa —, tal conceito repre­ que, se não existisse, também não seria pos­
senta efetivamente alguma coisa? Em outras sível, considerando que nenhum outro esta­
palavras: entre os entes existentes há algum ria em condições de produzi-lo. Assim, se é
do qual se possa dizer que é verdadeiramente possível, o ente primeiro é real. Mas qual é
infinito? São esses os termos em que Duns sua conotação específica? A infinitude, por­
Escoto propõe a questão. que é supremo e ilimitado. E assim, tendo
E, tratando-se de questão importan­ identificado o ente enquanto ente como ob­
tíssima, ele se propõe produzir uma de­ jeto primeiro do intelecto, Escoto descobre
monstração da existência do ente infinito que só o ser infinito é o Ser no sentido pleno
que seja a mais irrepreensível possível. O da palavra, porque é fundamento de todos
que significa que a argumentação dever-se- os entes e, antes ainda, de sua possibilidade.
ia fundar em premissas certas e, ao mesmo
tempo, necessárias. Com tal objetivo, ele
considera insuficientes as provas baseadas
em dados empíricos, porque são certas, mas 4 .A insuficiência
não necessárias. E essa a razão pela qual do conceifo de ente infinito
Escoto não parte da existência efetiva e con­
tingente das coisas, mas sim de sua possi­
bilidade. Ou seja: o fato de que as coisas O conceito de “ente infinito” é o mais sim­
existem é dado certo, mas não necessário, ples e mais abrangente a que podemos chegar.
porque também poderíam não existir; mas Mas esse elevadíssimo conceito, ao qual
que as coisas podem existir a partir do fa­ o nosso intelecto pode chegar, expressa ver­
to de existirem, é necessário. Em outras pa­ dadeiramente a riqueza pessoal de Deus, a
lavras, se o mundo existe, é absolutamen­ ponto de satisfazer as nossas exigências exis­
te certo e necessário que ele pode existir: tenciais e mostrar a inutilidade da teologia e,
ab esse ad posse valet illatio. Ainda que antes dela, da Revelação?
desaparecesse, continuaria sendo verdadei­ Escoto responde com extrema clareza a
ro que o mundo pode existir, visto que já essa interrogação crucial, afirmando que o
existiu. conceito de ente infinito, ao qual pode se ele-
283
Capítulo décimo sexto - ( ^ o ã o D u n s Ê sc o to

var o intelecto humano, é em si mesmo pobre do seu âmbito de competência. Rigorizar o


e insuficiente, porque não consegue nos intro­ discurso filosófico e captar seu caráter ge­
duzir na riqueza misteriosa de Deus, como po­ ral e abstrato significa pôr fim às suas pre­
demos ler na Ordinatio: “ Deus não é conhe­ tensões de exaurir o campo do ser, conside­
cido naturalmente pelo homem peregrino de rando-se oniabrangente e incompatível com
forma própria e particular, isto é, segundo a uma forma superior de saber.
razão de tal essência (divina), enquanto esta
é em si[...]” . E isso pelo fato de que a essência
divina não é uma realidade que possa ser com­ 5 O p r i n c í p i o dd ee individ u a ç a o
preendida naturalmente pelo homem.
Escoto proclama a possibilidade e os e a A a e c c e / f d s

limites da filosofia. E afirma o espaço e a


necessidade da teologia. Qualquer contro­ Escoto reafirma o primado do indivi­
vérsia entre filósofos e teólogos só pode bro­ dual, negando existir, em si ou em Deus, a
tar da falta de consciência desses limites e natureza ou a essência da qual os indivíduos

Iluminura tirada
de um códice do séc. XIV,
contendo o comentário
de Duns Escoto
ao primeiro livro
das Sentenças de Pedro l.ombardo.
Escoto é retratado
em hábito moitacal
com um livro nas máos
(Biblioteca Eaurenciana,
Elorença).
284 ScxtCI parte - ;A < r L s co lá s fica n o s é c u l o d é c i m o +e**cemo

participariam. Interpretar o singular como individualidade e à universalidade (sendo,


participação no universal seria conceder de­ por natureza, comum a todos os entes da
mais à concepção pagã, que desdenha um e mesma espécie) e, conseqüentemente, sequer
exalta o outro, e não leva em consideração o composto podem ser causa das caracte­
o ato criador de Deus e sua providência. rísticas e das diferenças individuais: “ Essa
Escoto destaca que Deus não nos propôs um entidade (a individualidade) não é nem ma­
esquema ideal ao qual devamos nos referir téria, nem forma, nem composto, no senti­
na vida cotidiana, mas sim Cristo, à cuja ima­ do que cada um deles é natureza, mas é a
gem nos criou e para cuja perfeição nos im­ realidade última do ente que é matéria, que
pele. Deus conhece a todos singularmente, é forma, que é composto” . Escoto sustenta
confiando a cada qual um lugar preciso na então que é a realidade última que explica a
economia geral da salvação pessoal. individualidade, isto é, a sua perfeição, gra­
A teoria do princípio da individuação ças à qual uma realidade baec est, é esta e
oculta em si claro resíduo de platonismo, não outra. Daí o termo haecceitas, que indi­
revelando-se pseudoproblema. Mais: falso ca a formalidade ou perfeição pela qual cada
problema, que também está presente em Aris­ ente é o que é e se distingue de todo outro
tóteles, assim como em Avicena e Averróis, ente.
fortemente influenciados pelo platonismo, Nesse contexto, é compreensível a
já que pressupõe que a verdade mais pro­ exaltação da pessoa humana. Com efeito,
funda seja a do universal, e que função es­ aqui, a individualidade, definida como re­
pecífica do filósofo seja a de explicar como pugnância à divisão, é personificada ou
o universal se torna particular. subjetivada, em polêmica com o averroísmo,
Se o problema é falso, com maior razão que, com a teoria do intelecto único, nega­
ainda são falsas as respostas. Com efeito, va-lhe seu traço mais próprio. Sugestivamen-
para Escoto, nem a matéria, essencialmente te descrita como ultima solitudo, a pessoa é
indeterminada, nem a forma, indiferente à ab alio, pode ser cum alio, mas non in alio.
Pode comunicar, condicionar e ser condi­
cionada, mas não perder a sua identidade.
O ente pessoal é um universal concreto, por­
que, em sua unicidade, não é parte de um
todo, mas sim um todo no todo, imperium
in império. No conceito bem determinado
■ H a e c c e ita s. Com este term o Duns de “ pessoa” o particular e o universal coin­
Escoto indica o p rin cíp io de in d iv i­ cidem. O homem — cada homem — não é
duação, que para a Escolástica era, determinação do universal. Enquanto reali­
ao invés, a m atéria qu a n titate sig- dade singular no tempo e irrepetível na his­
nata. tória, ele, na realidade, é supremo e origi­
nal, porque, graças à mediação de Cristo,
destina-se ao diálogo com o Deus uno e trino
da Escritura. [2l
285
Capítulo décimo sexto - j j o õ o Duns £ scoto

III. y \ c o n c e p ç ã o d o direito

• Escoto, para salvaguardar a transcendência e a centralidade de Deus,


reconduz a Ele e não ao ser a noção de bem, definindo-a como aquilo que Deus
quer e impõe. O que vale para Deus vale, nas devidas proporções, também para o
homem, razão pela qual o mal é derivado da vontade do homem e distinto do
intelecto. Uma coisa — diz Escoto — é o pecado, outra é o
erro; e com isso supera claramente as posições intelectualistas 0 direito
dos gregos. 51

1 O volun+aeismo implicam maldade inconciliável com o fim


último, do mesmo modo que seus opostos
e o dieei+o rvafural não incluem uma bondade que necessaria­
mente conduza ao fim último” .
Escoto tematiza o problema da ordem Quais são os preceitos necessários? São
e da liberdade com a intenção de combater, os contidos na primeira tábua mosaica, isto
a partir de outras perspectivas, o necessita- é, a unicidade de Deus e a obrigação de só a
rismo naturalista dos filósofos greco-árabes. ele adorar. Todos os outros não são absolu­
Se Deus é livre e, ao criar, quis os entes sin­ tos, ainda que em consonância com nossa
gulares em sua individualidade, e não suas natureza. O intelecto percebe a veracidade
naturezas ou essências, então a contingência dos preceitos da segunda tábua. Mas sua
não diz respeito apenas à origem do mun­ obrigatoriedade deriva apenas da vontade
do, mas também ao próprio mundo e a tudo legisladora de Deus, em cuja ausência ter-
o que está nele, não excluindo sequer as leis se-ia uma ética racional, cuja transgressão
morais. seria irracional, mas não pecaminosa. O mal
No plano moral, a idéia de bem como é pecado, não erro, como consideravam Só­
guia operativo não é dedutível da idéia do crates e, em geral, os filósofos gregos.
ser (ens et bonum non convertuntur), mas O necessitarismo pagão é superado em
somente do Deus infinito. O bem é o que Deus suas premissas mais remotas: “ Como Deus
quer e impõe. A única lei à qual Deus está podia agir diversamente, ele poderia ter esta­
vinculado é representada pelo princípio da belecido outras leis, que, se houvessem sido
não-contradição. Escoto se preocupa em sal­ promulgadas, seriam retas, porque nenhu­
vaguardar até as extremas conseqüências a ma lei é tal senão quando estabelecida pela
transcendência de Deus infinito, sem falsos vontade aceitante de Deus” .
compromissos. O que se disse sobre a vontade de Deus
O “ direito natural” reflete instâncias pode também, guardadas as devidas propor­
mais pagãs do que propriamente cristãs. ções, ser dito sobre a vontade do homem.
Como é possível chamar em causa a nature­ Duns Escoto destaca várias vezes o papel-
za humana para dar corpo ao direito natu­ guia da vontade, que atua sobre o intelecto,
ral quando, à luz de uma perspectiva histó­ orientando-o para certa direção e afastan­
rica, é preciso distinguir um status naturae do-o de outra. Se o intelecto opera sempre
institutae, um status naturae lapsae e um com toda a sua energia e, portanto, com ne­
status naturae restitutae? Ou não é verdade cessidade natural, postulada pela natureza
que Deus suspendeu leis que as transforma­ do objeto, a vontade é a única expressão ver­
das forças naturais, enfraquecidas pela cul­ dadeira da transcendência do homem sobre
pa, não estavam em condições de respeitar? o mundo das coisas.
Escreve Escoto na Ordinatio: “ Muitas Destacando a força-guia da vontade e
coisas que são proibidas como ilícitas po­ a sua autodeterminação, Escoto não cai no
deríam se tornar lícitas se o legislador as arbitrarismo. Como pode a vontade amar o
ordenasse ou, pelo menos, as permitisse, co­ que ignora? A luz do intelecto é necessária,
mo, por exemplo, o furto, o homicídio, o mas não determinante. Se para curar-me de
adultério e outras coisas do gênero, que não mal-estar é necessário que eu conheça os re­
286 Sexta parte - ; A C E scolástica k\o s é c u lo d é c im o terceiro

médios adequados, o ato de tomá-los não é Apesar dessa autonomia nos respecti­
necessário, mas livre, porque posso preferir vos campos, a liberdade da vontade conti­
a morte à vida. Se os tomo, o ato livre será nua sendo a perfeição suprema do homem,
também racional, no sentido de que alcanço com a qual subsiste ou decai a sua humani­
a meta com os meios que a ciência põe à mi­ dade. Conhecer para amar em liberdade —
nha disposição. Trata-se assim de conver­ essa é a mensagem de Escoto.
gência de duas atividades diferentes — in- Essa orientação substancialmente teo­
telectiva e volitiva — na direção de objetivo lógica deixa entrever uma espécie de duali­
único. dade entre filosofia, insuficiente e abstrata, e
Tal convergência não deforma a inte­ teologia. O Deus dos filósofos não é o mes­
lectualidade do ato intelectivo nem a li­ mo Deus dos teólogos, criador e salvador.
berdade do ato volitivo. Embora profunda, Muitas verdades são subtraídas ao domínio
a interferência nunca chega à identidade. da razão, como a origem temporal do mun­
O ato da vontade, que em si é perfeito, ain­ do e a imortalidade da alma, a propósito das
da que iluminado pelo intelecto, procede quais só se podem apresentar persuasiones,
sempre essencialmente da vontade, como mas não autênticas demonstrationes.
causa principal, assim como o ato do inte­ O equilíbrio entre razão e fé rompe-se
lecto, ainda que guiado pela vontade, pro­ em favor da segunda, mas no quadro de uma
cede sempre e intrinsecamente do inte­ tensão que ainda é a de Tomás e de Boa-
lecto. ventura.

Pintura de justo áe ii.iud


e Pedro Berruguete
(que viveram no sée. .XVj,
representando Duns Escoto.
Encontra-se em Urhiiio,
tia (íallcria Nazionale delle Marche.
Note-se como o jogo das mans
representa de modo esplêndido
seu modo coerente e agudo de raciocinar.
Capítulo décimo sexto - gjono lóuos tTisoofo 287

__ ...... intelecto
baccccitas é feito para conhecer
depois do esvaziam ento F.NTI: o ente u n ívo co ,
do u n ive rsal, e, po rtan to,
a verdade m ais profunda
UNÍVOCO sua extensão é ilim ita d a ,
é a do p a rtic u la r !■. o primeiro m as tam bém
(= haeceeitas); vOfkeno simples e uimoco. de uma genericidade ilimitada ,
esta é a realid ad e últim a Estendendo a distinção modal porque prescinde da riqueza
de um ente M'fo é. presundindu e varied ade específica das coisas.
e não pode ser deduzida de iodos os modos específicos Por isso
nem da m atéria m i que se atua) o conhecim ento filosérfico
nem da form a p.ir.l todos os» enies tem necessidade
se obtém o eiue univoco. das ciências p articu lares
<>liotnem e J)eiis são emes, ■da teologia
mas o primeiro
o é no modo finito
e e evidente,
n ou(ro e inhnno
bem * v dc\e M.*r demonstrado /
lustam ente porque pessoa
o conhecim ento filo só fico da re va lo rização
do ente é g enérico, do in d ivid u al deriva
não se pode d eduzir a cen tralid ade da pessoa,
dele o bonum. ente que não pode ser
L\, p o rtan to , reduzido a ou tro.
o bonum H um u n iversal con creto,
não e um tran scen d en tal, ou seja, na pessoa se id entificam
mas aq uilo in d ivid u al e u n iversal.
que Deus quer e im põe. A pessoa é um todo no todo
b ns et bonum Deus e não uma parte do todo
non eonvertunlur Se o m undo existe
é tam bém possível ( - p ro d u tível).
Q u a l é o fundam ento desta possibilidade?
N ão é o nada nem p ró p rias coisas,
mas um ser d istin to do ser produ tível (possível)
que existe e age por si
e não é por sua vez pro d u tível.
Se as coisas são possíveis,
tam bém este ente é possível.
M as é apenas possível ou é tam bém real?
É real e em ato, porque se não existisse
nem seria possível (p ro d u tíve l),
porque ninguém
está em grau de produ zi-lo.
O ente primeiro ,
sc é possível , e real
288
Sexta parte - A < £ s c o l á s t i c a v\o s é c u lo d é c i m o t e ^ c e i^ o

nós formamos da criatura, mas em um conceito


unívoco a ele e à criatura. F para que nõo haja
D uns E sco to
questão sobre o nome de univocidade, eu cha­
mo conceito unívoco aquele que em tal medido
é uno que sua unidade basta paro o contradi­
ção, quando ele seja afirmado e negado o res­

D fl univocicJodc do ente peito da mesmo coisa. F provo de três modos a


univocidade assim entendida. €m primeiro lu­
gar assim: todo intelecto que está certo de um
conceito e duvidoso de diversos outros tem um
Fl tese do univoddode pretende captor conceito daquilo de que está certo, diverso dos
aquilo que une a s criaturas entre si e com conceitos daquilo de que está duvidoso; mas o
Deus, sem porém negar suas distinções, fí sujeito inclui o predicado, e o intelecto do ho­
diferença entre nós e Deus nõo está no foto mem watorpode estar certo a respeito de que
de que ele é e nós nõo somos. Deus é e nós Deus seja ente, duvidando apenas se é ente
somos. Sob este perfil nõo há diferença algu­ finito ou infinito, criodo ou incriado; portanto, o
ma entre nós e Deus. O ente é unívoco, por­ conceito de ente a respeito de Deus é diverso
que exprime tudo aquilo que está foro do deste ou daquele conceito, e assim o conceito
nada. Fl noção d e ente é um dado positivo de ente não é por si nem este nem aquele,
elementar, porque representa aquele mínimo mas está incluído em ambos e, portanto, é
pelo quol todas as coisas — finito e infinito, unívoco. [...]
substância e acidente, atuaI e possível— sõo €m segundo lugar assim.- nenhum conceito
objetivamente algo e se opõem ao nada. F real é causado naturalmente no intelecto do
um conceito simples. M as nõo é o único. O homem viator a não ser a respeito daquelas
intelecto pode, através de uma operação ana­ coisas que podem naturalmente mover nosso
lítico, abstrair "deste ser" ou 'daquele bem " intelecto; mas tais coisas são o fantasma, ou
ou "daquele verdadeiro", isto e aquilo, eterá seja, o objeto que resplandece no fantasma,
o ente, o bem, o verdadeiro, privados dos e o intelecto agente; portanto, no estado pre­
modos concretos em que sõ o realizados. sente nenhum conceito simples existe natural­
Sõ o conceitos elementares ou primá­ mente em nosso intelecto a não ser aquele
rios, nõo comutáveís entre si, e exprimem a que pode ser causado por forço desses. Ora,
área da univocidade. um conceito que não fosse unívoco a um obje­
fípenas o ente, porém, é um conceito to que resplandece no fantasma, mas inteira­
universalmente unívoco, porque está em to­ mente diverso e antecedente, com o qual este
dos o s outros noções, uma vez que tem um possuísse analogia, não poderio causar-se por
conteúdo mínimo, correspondente à realida­ força do intelecto agente e do fantasma. [...]
de do se r algo. Fl univocidade do ente, por­ Portanto, jamais se poderá ter naturalmente
tanto, alude àquilo que torna comum, e nõo no intelecto do homem viator aquele conceito
àquilo que divide. Fxiste uma notura entis, com diverso, dito análogo, e assim não se poderá
um conteúdo definido, graças ao qual é p o s­ ter naturalmente um conceito de Deus, o que
sível raciocinar sobre todo ser, atual ou p o s­ é falso. [...]
sível. Sem dúvida, fora da operação analítica €m terceiro lugor assim : toda busca
do intelecto nõo se verifica a nõo se r a oposi­ metafísica o respeito de Deus procede deste
ção daquilo que é ao nada, sobre que tal modo, isto é, considerando a razão formal de
operação encontra seu fundamento, nõo p o ­ alguma coisa, e tirando daquela razão formal a
rém o "ente unívoco". imperfeição que comporta nas criaturas, e con­
Na realidade s e dó ou o finito ou o in­ servando aquela razão formal e dando-lhe ab­
finito, que sõo os dois "modos" nos quais tal soluta perfeição, e atribuindo-a assim a Deus.
conceito s e encontro realizado. O modo da íxemplo a partir da razão formal da sabedoria
finitude admite uma multiplicidade de graus; ou do intelecto, ou da vontade: a razão formal
o modo da infinidade, oo contrário, nõo ad­ primeiramente se considera em si e por si, e
mite nenhum deles. Fls criaturas sõo muitas, uma vez que a razão destes não inclui formal­
apenas Deus é uno. mente uma imperfeição ou limitação, dela se re­
movem as imperfeições que a acompanham nas
criaturas, e, conservando a mesma razão da sa ­
Deus é apreendido não apenas em um bedoria e da vontade, estas depois são atri­
conceito análogo ao conceito de criatura, isto buídas a Deus de modo perfeitíssimo. Portanto,
é, um conceito inteiromente diverso daquele que toda busca de Deus pressupõe que o intelecto
289
Capítulo décimo sexto - J o ã o D u n s S - s c o to

Imagem da Grã-Bretanha e da Irlanda tirada de um códice do Quatrocentos da Geographia de Ptolomeu,


conservado na Biblioteca Queriniana de Bréscia. Aparece também a Escócia, pátria de Duns Escoto.

tenho um mesmo conceito unívoco, que d e­ ças que restringem pressupõem o mesmo con­
preende dos criaturas. [...] ceito de ente comum, que restringem.1 2 [...]
[M as p o d e -se perguntar] qual é a Conforme foi demonstrado que Deus não
univocidade do ente, e a quem ela se re­ é naturalmente cognoscível por nós se o ente
fere? [...] não for unívoco ao criado e ao incriado, também
Digo que o ente, quanto à qüididade, não se pode demonstrar da substância e do aciden­
é unívoco a tudo aquilo que é inteligível por te. Com efeito, uma vez que a substância não
si, porque desta forma não é unívoco nem às produz imediatamente em nosso intelecto o co-
últimas diferenças nem às paixões próprias
do ente.1
[Porém] as coisas a respeito das quais o 1Rs diferenças últimas são os modos intrínsecos do ente,
ente não é unívoco na qüididade estão incluí­ como o modo finito e o modo infinito, em que concretomente
das naquelas em que o ente é unívoco em tal se encontro realizado. êstes se distinguem formalmente do
ente, no sentido de que suo consistência lógico é diferente
modo, [e estas são] todos [...] os gêneros e as
em relação ò consistência lógico de ente. Posso conhecer o
espécies e os indivíduos, e todas as partes ente sem os modos, e os modos sem o ente. Rs paixões do
essenciais dos gêneros, e o ente incriado, [as ente, ou propriedades transcendentais, são o unidode, a
quais] incluem o ente qüiditativamente. [...] verdode, o bondade, e estos não incluem, em suo essência,
Acontece, com efeito, que o intelecto esteja cer­ o noção de ente, e vice-versa, motivo pelo quol uma não
pode dizer-se formolmente do outro: o ente na máximo ab s­
to de que cada um [destes] conceitos qüidi- tração não está contido no verdode, concebido por suo vez
tativos seja ente, duvidando apenas das dife­ no máximo indeterminoção. Uma não é o outra.
renças que restringem o ente a tal conceito, se 2R univocidade foge o todo acusação de ponteísmo: o
é ou não tal ente, e assim o conceito de ente ente não é concebido à maneiro dos gêneros no árvore de
Porfírio, isto é, do quol se posso derivar o essêncio criado
enquanto convém àquele conceito é diverso
e o essêncio incriado, como determinações específicas ul-
daqueles conceitos inferiores a respeito dos teriores. O ente põe-se como tal em toda realidade e em
quais o intelecto está duvidoso e^incluído em todo momento do realidade. O ente finito e o ente infinito
ambos os conceitos inferiores, pois as diferen­ não são especificações, mos modos intrínsecos do ente.
290
Sexta parte - p \ « S s c o ló s t ic a na s é c u lo d é c i m o t e r c e i r o

nhecimento de si, mas apenas o acidente sensí­ 1. R substância material por sua natureza
vel, segue-se que não poderemos ter nenhum não é por si esta, porque então [...] o intelecto
conceito qüiditativo dela se não houver um con­ não podería compreendê-lo em seu oposto,
ceito qüiditativo que possa ser abstraído do con­ caso não compreendesse seu objeto segundo
ceito de acidente; mas nenhum conceito qüidi­ uma razão de entendimento, repugnante à ra­
tativo pode ser abstraído do conceito de acidente zão de tal objeto [...]. Na coisa há uma unidade
a não ser o conceito de ente; portanto etc.3 [...] real sem qualquer operação do intelecto, me­
€m suma; o ente é unívoco a todos, mas nor que a unidode numeral, ou seja, do que a
aos conceitos não simplesmente simples é unidade, própria do singular, cuja unidade é
unívoco quanto à qüididode, enquanto aos con­ unidade de natureza por si, e segundo esta
ceitos simplesmente simples é unívoco enquanto unidade própria da natureza enquanto é natu­
determinável ou denominável, e não enquanto reza, a natureza é indiferente à unidade da sin­
é predicado deles qüiditativamente, porque isso gularidade. Portanto, não é por si una de tal
inclui contradição. modo por aquela unidade, isto é, pela unida­
João Duns €scoto, Ordinotio, I, de da singularidade. [...] 6 não apenas a pró­
sob a direção de C. Bolic, pria natureza é por si indiPerente a estar no in­
em Grande Antologia Filosófica, Marzorati. telecto e a estar em particular, e por isso a ser
universal e singular, mas mesmo tendo ela o
ser no intelecto, não tem por si primigeniamente
a universalidade. Com ePeito, embora posso
compreender-se na universalidade, como modo
de entendê-la, todavia a universalidade não é
O princípio de individuação parte de seu conceito primeiro, porque não é
conceito do metoPísico, mas do lógico. [...] €
como segundo aquele ser, a natureza não é
Cm nome do que os seres se distinguem
universal por si, mas a universalidade quase
entre si?Poro que o "natureza humana", que
sobrevêm àquela natureza segundo sua primei­
nos torna comuns, s e torne e ste homem,
ra razão, segundo a qual se torna objeto, a s­
João, Tiago etc., do que tem necessidade?C
sim também na coisa extramental, onde a na­
o problem a que o s Cscolásticos chamam
tureza é conjunta com a singularidade, aquela
"princípio d e individuação".
natureza não tem por si como termo a singulari­
Duns Cscoto afirmo que para resolver o
dade, mas é antecedente naturalmente àquela
problema é preciso recorrer a um particular
razão que a restringe àquela singularidade; e
modo d e ser, a um incremento de se r que
investe todos o s componentes, contraindo- enquanto é antecedente naturalmente àquilo
que o restringe, não lhe repugna ser sem isso.
os e subtraindo-os à indeterminação; ou tam­
bém a uma espécie de intensificação do ser, C como o objeto no intelecto segundo o sua
entidade e universalidade tem verdadeiramen­
graças ò qual uma realidade é esta e não
te um ser inteligível, também na natureza das
aquela (haec-haecceitas). Para que não mo­
coisas segundo aquela entidade tem um ver­
difique os elementos constitutivos — não é
dadeiro ser real. Poro da alma. 6 segundo tal
um elemento essencial — o "haecceitas" é
entidade tem uma unidade proporcionável a si,
olgo d e absolutamente original, graças à
que é indiPerente à singularidade, de modo que
qual o indivíduo s e reconhece intrinsecamente
não repugna por si àquela unidade ser aPirma-
singular e absolutamente irrepetível.
da com qualquer unidade de singularidade [...].
Com tal tese Cscoto pretendeu demons­
2. Uma vez que nos entes há algo de indi­
trar que o indivíduo é mais perfeito do que a
visível em partes subjetivas, isto é, algo ao qual
espécie à qual pertence e, porque tem um
repugna formalmente ser dividido em mais coi­
maior grau de ser, não é funcional ò e sp é ­
sas singulares em que cada uma seja ele mes­
cie, como paro o mundo pagão, mas único
termo do oto volitivo. mo, pergunta-se, não porque Pormalmente isso
lhe repugna — uma vez que assim a repugnân­
cia repugna Pormalmente a si — mas por que
como fundamento intrínseco esta repugnância
3Digci-se do conhecimento do substância o que s e disse nela se encontra. Portanto, o sentido da ques­
do conhecimento d e Deus. S e entre os ocidentes e o subs­ tão nesta matéria é: o que há na pedra pelo
tância nõo houvesse nado em comum, do conhecimento dos que, como por um fundamento próximo, lhe re-
acidentes nunca poderiamos chegar ao conhecimento do
substância, isso é falso, porque conhecemos a s substâncias
pugne simplesmente dividir-se em mais coisas
finitas partindo de seus acidentes . Portanto, entre estes e singulares em que cada uma seja ela mesma;
aquela deve existir uma ponte, e esta é o ente equívoco. tal divisão em partes subjetivas é própria a todo
291
Capítulo décimo sexto - [ J o ã o D u u s É s coto

o universal, (intendida a questão desse modo, tidade]: a substância existente em ato, não
provo que um indivíduo formalmente não exis­ mudada por uma transformação substancial, não
te por uma negação ou privação [...], porque pode mudar-se desta em não-esta, pois tal sin­
nada repugna a algum ente simplesmente pela gularidade — conforme se disse — não pode
privação nele apenas, mas por olgo de positi­ se tornar outra e outra na mesma substância
vo nele. [...] Portanto, é necessário que por a l­ permanecendo ela a mesma, não mudada subs­
guma coisa de positivo intrínseco a esta pedra, tancialmente; mas a substância existente em
como por uma razão próprio, repugne ser dividi­ ato, não intervindo nela alguma mutação subs­
da em partes subjetivos, e aquele positivo será tancial ou não tendo mudado, pode sem con­
aquilo que se diz ser por si causo de indivi- tradição existir sob outra e outra quantidade e
duação, e por individuação entendo esta indivi­ qualquer acidente absoluto; portanto, por ne­
sibilidade ou repugnância à divisibilidade [...]. nhuma maneira similar é formalmente tal subs­
3. A substância material [não é] indivíduo tância determinada por esta singularidade [...].
ou razão de individuação de alguma outra coi­ 5. [A substância material não é esta e
sa pela existência atual [...], uma vez que o que indivíduo pela matéria;] a matéria pertence à
não é por si distinto ou determinado não pode essência do substância composta, por exem­
ser o primeiro que distingo ou determine o ou­ plo, do homem, e tal composto não é precisa­
tro; ora, o ser de existência, à medida que se mente a essência do forma. Portanto, como
distingue do ser da essência, não é por si dis­ aquele composto não pode por si ser este [...]
tinto ou determinado. Com efeito, o ser de exis­ assim também nem a matéria — que é parte
tência não tem as próprias diferenças, diversas daquele — pode ser por si esta, uma vez que
das diferenças do ser da essência, porque en­ o composto não pode ser comum e da mesma
tão seria necessário admitir uma própria coorde­ razão em coisas diversas, sem que tudo aquilo
nação de existências, diversa do coordenação que pertence à sua essência possa ser da mes­
das essências, mas é determinado precisamen­ ma razão com aquelas coisas. Além disso [...] a
te a partir da determinação do outro; portanto, matéria é a mesma no gerado e no corrompi­
ele não determina alguma outra coisa. Sobre do, portanto tem as mesmas singularidades no
isso se pode argumentar de outra forma: aqui­ gerado e no corrupto.
lo que pressupõe a determinação e a distinção 6. [Que a substância material seja] in­
de outro não é a razão de determinação ou de divíduo por uma entidade positiva por si, que
distinção do mesmo; mas a existência enquan­ determina a natureza à singularidade [...], pro­
to determinada e distinta pressupõe uma or­ va-se assim: como a unidade em comum suce­
dem e uma distinção de essências; portanto etc. de por si à entidade em comum, também qual­
[...] Como no gênero se dá o supremo conside­ quer unidade por si sucede a certo entidade;
rando-o precisamente sob o aspecto da essên­ portanto, a unidade enquanto simples, como a
cia, assim se dão gêneros intermediários e e s­ unidade da indivisão ([...], istoé, àqual repug­
pécies e diferenças, e se dá também o ínfimo, na uma divisão em mais partes subjetivas, e à
isto é, o singular sem alguma existência atual, qual repugna não ser esta coisa determinada,
aquilo que aparece evidentemente, pois "este se está nos entes, como de resto isso supõe
homem" não inclui formalmente mais a existên­ cada uma das diversas opiniões), sucede por
cia atual do que "o homem". si a certa entidade. Mas não sucede por si à
4. Cxponho aquilo que entendo por indi­ entidade de natureza, pois dessa há uma uni­
viduação ou unidade numeral, ou seja, singular: dade própria e real por si [...]; portanto, suce­
não entendo certamente a unidade indeter­ de a outra entidade, esta sim, determinante, e
minada, segundo a qual todo coisa em uma esta entidade formará o uno por si com a enti­
espécie é dita una de número, mas a unidade dade de natureza, pois o todo ao qual perten­
determinada como esta, de modo que, assim ce esta unidade é perfeito em si. Além disso,
como já dissemos que é impossível que o indi­ toda diferença das coisas que diferem se reduz
víduo se divida em partes quantitativas, e se a algumas coisas inicialmente diversas, pois de
busca a razão desta impossibilidade, também outra forma não haveria um termo fixo nas coi­
digo que é impossível que o indivíduo não seja sas que diferem; mas os indivíduos diferem pro­
determinado com esta singularidade, e se bus­ priamente, pois, embora havendo algo de idên­
ca a causa não das singularidades em geral tico, são entes diversos; portanto, sua diferença
mas desta singularidade determinada em par­ se reduz a algumas coisas que são inicialmen­
ticular, isto é, determinada enquanto é determi- te diversas. Gstas coisas inicialmente diversas
nadamente esta. Cntendendo de tal modo a não são a natureza nesta coisa e a natureza
singularidade [demonstro que a substância naquela coisa, porque não é a mesma coisa
material não é indivíduo ou singular pela quan­ aquela pela qual algumas coisas convêm for­
292
Sexta parte - A Éscolóstica n o s é c u lo d é c im o te ^ c e in o

malmente entre si e aquela pela qual diferem seu oposto. € como o composto enquanto na­
realmente, embora uma mesma coisa possa ser tureza não inclui sua entidade pela qual é for­
realmente distinto e também realmente conve­ malmente isto, assim também nem a matéria
niente. Com efeito, pouco importa ser distinto enquanto natureza inclui sua entidade pela qual
e ser aquilo pelo qual alguma coisa primeira­ é esta matéria, nem a forma enquanto nature­
mente é distinta. Portanto, assim acontecerá za inclui sua entidade. Portanto, esta entidade
com a unidade. Por isso, além da natureza não é a matéria ou a forma ou o composto en­
neste e naquele, há algumas coisas inicialmen­ quanto cada um destes é natureza, mos é o
te diversas pelas quais este e aquele primei­ última realidade da entidade que é matéria ou
ramente diferem, e precisamente uma coisa que é forma ou que é composto, de modo que
nesta coisa e outra naquela; e aquilo pelo qual toda entidade comum e todavia determinável
os coisas diferem não podem ser negações pode ainda ser distinta, pelo fato de ser uma
[...], nem acidentes [...]: portanto, serão algu­ coisa só, em mais realidades formalmente dis­
mas entidades positivas por si, que determi­ tintas, das quais esta não é formalmente aque­
nam a natureza [...]. la: e esta é formalmente entidade singular, e
7. aquela é formalmente entidade de natureza;
C se perguntas qual é a entidade indi­
vidual da qual se depreende a diferença indivi­ nem podem estas duas realidades ser coisa e
dual — é talvez a matéria, ou a formo, ou o coisa, como o podem ser a realidade da qual
com posto? — resp o n d o : toda e n tid a d e se extrai o gênero e a realidade da qual se
qüiditotiva, tanto parcial como total, de qual­ extrai a diferença (das quais deriva a realida­
quer gênero, é por si indiferente, enquanto en­ de específica), mas sempre em uma mesma
tidade qüiditotiva, a esta e àquela entidade, entidade, tanto parcial como total, são realida­
de modo que, enquanto entidade qüiditotiva, des da mesma coisa, formalmente distintas.
é naturalmente antecedente àquela entidade
João Duns Bscoto,
enquanto é esta; e enquanto é antecedente Ordinatio, sob o direção de C. Balic,
naturalmente, como não lhe convém ser esta, em Grande Rntologia Filosófica,
também não lhe repugna segundo sua razão o Marzorati.
A ESCOLASTICA
NO SÉCULO
DÉCIMO QUARTO
■ A ruptura do equilíbrio entre razão e fé

“Deus está em todas as criaturas enquanto têm


uma essência e, ao mesmo tempo, está acima
delas. E ele que está em todas as criaturas é o
mesmo que está acima delas, uma vez que aquilo
que é um em muitas coisas, deve necessariamen­
te estar acima das coisas. ”
“Com isto não tirei de Deus o ser, mas o enobrecí. ”

M estre Eck h art


Capítulo décimo sétimo

Guilherme de Ockham,
os Ockhamistas e a crise da Escolástica

Capítulo décimo oitavo

Últim as figuras e fim do pensamento medieval


(S a p ít u lo d é c im o sé tim o

£^\uilke.rme d e O c k k a m ,
os O c k k a m i s t a s
e a c r is e d a Ê s c o lá s + ic a

I. ÍMuilke^me d e O c k k a m

• As verdades de fé não são evidentes por si mesmas, nem


são demonstráveis e nem aparecem como prováveis: isso signi- Autonomia de fé
fica que o âmbito das verdades reveladas é estranho ao reino e razão
dos conhecimentos racionais. Em lugar dos vínculos impostos -> § 3
pela metafísica, Ockham (1280-1349) põe o princípio da supre­
ma onipotência de Deus. Conseqüentemente, a ligação entre os entes individuais
singulares — aos quais de fato se reduz o mundo — brota de um puro ato de
vontade divina, sem que nenhuma força metafísica seja necessária.

• A ciência se ocupa apenas dos entes individuais e não . .


dos universais; o primado do indivíduo implica o primado da é d°^nd/V/dua/°
experiência. ç4

• O conhecimento se distingue em complexo (relativo a pro­


posições compostas de termos) e não-complexo (relativo aos ter­
mos singulares); este por sua vez pode ser abstrativo e intuitivo; Subdivisões
o intuitivo, enquanto capta a existência ou não existência dos do conhecimento
objetos, pode ser tanto sensível quanto intelectual. O abstrativo, 5
depois, baseia-se sobre o intuitivo e pode significar conhecimento
daquilo que é abstrato ou conhecim ento que abstrai (que prescinde) de certas
características.

• A realidade inteira é individual, razão pela qual o uni­


Os universais
versal não é real: ele é um termo de alcance apenas lógico. Se
não são mais
toda realidade é singular, segue-se que os conhecimentos são que sinais
singulares e os universais não são mais que sinais abreviativos abreviativos
para indicar a repetição de múltiplos conhecimentos semelhan­ -^§6
tes, produzidos por objetos semelhantes. Esta é uma forma par­
ticular de nominalismo.

• O rigor que caracteriza nosso filósofo no âmbito da críti- A "navaiha


ca ao conhecimento passou para a história como "navalha de ockham "
Ockham": os entes não se devem multiplicar se não for neces- _> § 7
sário. Sob a lâmina dessa navalha caem inumeráveis princípios
da metafísica clássica e escolástica: o de substância, de causa eficiente, de intelec­
to possível.

• A prevalência dada ao indivíduo, tanto em lógica como


em metafísica, e também as teses nominalistas, permitem a
Ockham separar a lógica da realidade e elaborar nova lógica, A n°g3 ogica
fundada sobre uma sintaxe mais rigorosa e sobre uma clareza §
maior na definição dos termos, em relação à realidade designada.
296 Sétima parte - y \ C S s c o l ó s t i c a n o s é c u l o d é c i m o cjwct^+o

• No que se refere ao conhecimento de Deus, Ockham nega


A prova
que se possa conhecer Deus intuitivamente e afirma que ne­
da existência
de Deus baseada
nhuma das provas a posteriori precedentemente elaboradas
sobre causas seja convincente: neste caso, mais que falar de causas eficien­
conservantes tes (que fazem as coisas ser ou não ser), deveriamos falar de cau­
^§9 sas conservantes (que conservam ou não conservam), graças às
quais é fácil inferir, da existência em ato do mundo, a existên­
cia de Deus.

• O conhecimento que a razão pode obter de Deus é de fato escasso, enquanto


de outro porte é o que a fé consegue obter por meio da revelação. Desse modo, por
causa da manifesta incapacidade do pensamento de afirmar algo de significativo so­
bre Deus, não há mais razão de continuar na busca de uma cola-
"Credo boração entre fé e razão; o equilíbrio entre fé e razão fora um dos
et intelligo" principais problemas de todo o pensamento medieval. A síntese
-> $ 9 do pensamento de Ockham não será, portanto, nem intelligo ut
credam, nem credo ut intelligam, mas credo et intelligo.

• A convicção da superioridade do indivíduo sobre o universal levou Ockham a


redimensionar em âmbito político o poder temporal do Pontífice e a demitizar o
caráter sagrado do Império. Mas também o poder espiritual do
Alguns temas Pontífice deveria ser delimitado, porque a verdade não é sancio­
inspiradores nada nem pelo Papa, nem pelo Concilio, mas pela Igreja como
da Reforma comunidade livre dos fiéis, no decorrer de sua tradição histórica;
->S 10 esta doutrina antecipa os temas inspiradores da Reforma.

1 situação kistóeico-social
do séc. XÍV

O Trezentos é o último século da Idade


Média. O séc. XII se conclui com a figura de
Gregório VII, cujo Dictatus papae é sem dú­
vida a magna carta do catolicismo romano
e, ao mesmo tempo, do papado político e da
concepção teocrática. O século XIII abre-se
com a triunfante teocracia de Inocêncio III,
que leva a cabo o ideal do “ domínio cristão
do mundo” . Com ele, a Igreja romana alcan­
ça poder e prestígio, através da solução auto­
rizada dos conflitos políticos, da criação de
tribunais supremos e da exclusividade de seu
magistério. O século XIV, por seu turno, abre-
se com afirmações teocráticas e gestos deci­
didos e de repercussão por parte de Bonifácio
VIII, mas em contexto social e cultural já
pouco disposto a compartilhar tal política.
O perdão jubilar de 1300 — o primei­
ro jubileu da história — foi o grande gesto
de Bonifácio VIII, que quis assim celebrar a Bonifácio VIII é retratado no ato de proclamar o Itihilcn.
função carismática da Igreja e tentar des­ A bula pontifícia U n a m S a n c t a m de I 102
pertar e, ao mesmo tempo, potencializar o permanecera a ultima tentativa da Igreja católica
anseio de salvação coletiva, que alimentara de afirmar o princípio teocrático.
CupltU-lo décim o SCtimo - C ã u i l k d e CDc\d\cxvv\r o s O k k a m i s f a s . . .
297

toda a expectativa escatológica do séc. XIII, mãos dos monarcas franceses. A época da
agrupando em torno das instituições eclesiás­ teocracia secular e espiritual estava em via
ticas, além da alma popular, também o po­ de extinção.
der temporal dos Estados. Na realidade, es­ Em contexto mais geral, com implica­
ses objetivos só foram alcançados de modo ções de caráter socioeconômico, mas com
provisório, pela mudança das exigências conotações de evidente anticlericalismo, de­
sociais, religiosas e culturais. Com efeito, o vemos recordar três revoltas populares: a
dissídio e a tensão religiosa do Duzentos, que Jacquerie, na França, a revolta dos peque­
se expressaram nas muitas formas de vida re­ nos artesãos de Ciompi, na Toscana, e a re­
ligiosa, algumas perseguidas como heréticas, volta dos Lollards, na Inglaterra. O objetivo
outras acolhidas e favorecidas, estavam se leigo em relação à Igreja era o de subtrair-
reduzindo, resolvendo-se em parte por uma lhe todo poder temporal e submetê-la à au­
espécie de afastamento dos ideais religiosos, toridade do Estado no que se refere às ques­
que se revestiam agora de formas exaspera­ tões mundanas. A salvação é fato interior e
das de ascetismo, da parte dos ideais de vida espiritual, não tendo necessidade de estru­
leiga. Estes últimos, embora conservando tura de bens e poder, o que, ao contrário,
íntima religiosidade própria, foram se con­ constitui forte impedimento, posicionando-se
figurando na forma das novas exigências da em contraste com as orientações do Evan­
vida social, tanto econômica como política. gelho. Significativa dessa espiritualidade con-
Além disso, começava a se afirmar uma testatária popular foi a longa controvérsia que,
ruptura radical entre a Igreja e os nascentes nos séculos XIII e XIV, dividiu a ordem
Estados nacionais, com tentativas de desfor­ franciscana em relação à questão da pobre­
ra e predominância de uma e de outra par­ za. Para alguns, os chamados “espirituais”,
te. Nesse sentido, é significativo o conflito a fidelidade a essa virtude devia ser rigoro­
entre Bonifácio VIII e Filipe, o Belo. Porém, sa, enquanto, para outros, podia ser flexível,
mais significativo ainda nesse sentido é o ca­ porque se trataria de simples instrumento,
tiveiro de Avignon, como também, mais tar­ sendo portanto adaptável às circunstâncias
de, a façanha de Ludovico, o Bávaro, que, históricas da evangelização. Essa polêmica,
em 1326, recebeu a coroa imperial no Capi­ porém, não se circunscrevia só à ordem
tólio, não mais na igreja e não mais do papa. franciscana, atingindo também a Igreja, con­
Como o papa João XXII não quis reconhecer vidada a livrar-se das vestes do poder e da
Ludovico como imperador, a dieta de Frank­ riqueza.
furt, em 1338, proclamou a aprovação pon­ Do ponto de vista mais propriamente
tifícia como supérflua, assim como faria cultura], o Trezentos vive à sombra das vá­
mais tarde Carlos IV, em 1356. A Alema­ rias condenações de que foi objeto, a partir
nha começava a realizar no campo político de fins do Duzentos, o aristotelismo aver-
aquele afastamento da Igreja católica que roísta e tomista, tanto em Paris como, sobre­
depois Lutero reforçaria e justificaria no cam­ tudo, em Oxford. Às condenações do bispo
po doutrinário. Estêvão Tempier, de 1277, que não tinham
Esses conflitos constituíam os sinais do efeito fora da universidade e da diocese de
iminente crepúsculo de uma política e de Paris, seguiram-se no mesmo ano, em Ox­
uma concepção de poder. Os ideais e o po­ ford, por parte de Roberto Kilwardby, as
der que se encarnavam nas duas figuras proibições das teorias tomistas da geração,
teocráticas, do pontífice romano e do impe­ da passividade da matéria, da introdução de
rador germânico, entraram em decadência novas formas no corpo humano após a mor­
na consciência dos mais atentos aos novos te e da unidade da forma. Essas proibições
fenômenos sociais. Em consequência do de­ foram reafirmadas e ampliadas em Oxford
senvolvimento econômico e, portanto, da pelo franciscano John Peckham, em dezem­
ascensão da burguesia, os grandes Estados bro de 1284 e, depois, em abril de 1286.
nacionais independentes, que consolidavam Se, além dessas condenações, recordar­
suas estruturas financeiras e seus instrumen­ mos as polêmicas entre os seguidores de
tos militares, tornavam-se os verdadeiros pro­ Boaventura e Tomás e, depois, entre os par­
tagonistas da história européia. Apesar das tidários de Escoto e Tomás, não será difícil
disputas e lutas, Petrarca com toda razão perceber a queda da tensão criadora que
define o Império como “vão nome sem su­ caracterizara o Duzentos e a crise em que se
jeito” e a Igreja, no “cativeiro de Avignon” , debatiam a razão e a filosofia, antes consi­
como um cômodo instrumento de poder nas deradas subsídios necessários à fé e agora
298 Sétima pilrtc - y \ C 7 s c o !á s tic a no s é c u lo d é c im o q u a r fo

freqüentemente transformadas em inúteis dinatio e os Quodlibetales. Em 1324, Ockham


instrumentos de vãs disputas. Aliás, a duali­ transferiu-se para o convento franciscano de
dade entre filosofia e teologia, acentuada por Avignon, onde o papa João XXII o convo­
Escoto em total benefício da segunda, no cou para responder à acusação de heresia.
Trezentos se amplia ainda mais, em conso­ Com efeito, o ex-chanceler da Universidade
nância com o clima de crescente dissolução de Oxford redigira longa lista de pontos
da concepção unitária da sociedade huma­ extraídos dos escritos de Ockham, conside­
na, que se dividia sempre mais em temporal rados suspeitos de heresia. Depois de três
e espiritual — e, no que se refere ao espiri­ anos de estudo, a comissão nomeada pelo pa­
tual, evidenciando queda do seu caráter po­ pa para examinar os escritos condenou sete
pular e coletivo, porque sempre mais inte­ pontos como heréticos, trinta e sete como
rior e individual. falsos e quatro como temerários. Nesse pe­
ríodo Ockham concluiu suas obras maio­
res, a Summa logicae e o Tractatus de sa-
cramentis.
éTiuilkerme de OcUkam: Nesse meio tempo, sua posição se agra­
a figura e as obtias vara ainda mais, porque na polêmica surgida
no interior da ordem franciscana, sobre o
problema da pobreza, Guilherme se alinha­
A figura que mais do que qualquer ou­ ra com a ala intransigente, que rejeitava as­
tra representa as múltiplas instâncias com peramente a orientação moderada do papa.
que se encerra a Idade Média e se abre o Assim, prevendo severas sanções, em maio
século XIV é o franciscano Guilherme de de 1328, Guilherme foge de Avignon e se
Ockham. Conhecido como “ o príncipe dos
nominalistas” , no passado ele era lembra­
do o mais das vezes como teórico de vãs su­
tilezas, privadas de qualquer contato com a
realidade. Logo, porém, sua originalidade
emergiu novamente nas várias vertentes do
saber lógico, científico, filosófico e teológi­
co. Além de suas contribuições lógicas, tam­
bém se destacam suas teorias físicas e, so­
bretudo, a concepção do conhecimento
físico de natureza especificamente empírica,
bem como a separação entre a filosofia e a
teologia; no campo político-religioso, a au­
tonomia do aspecto temporal em relação ao
espiritual, com suas conseqüências políticas
e institucionais. O espírito “ laico” , mas não
“ laicista” , se inicia com ele, porque, com
sua doutrina e sua vida, ele encarna a inci­
piente afirmação dos ideais de dignidade de
cada homem, do poder criador do indiví­
duo e da cultura em expansão, livre de cen­
suras, idéias que a nova época do Renasci­
mento desenvolverá.
Nascido no condado de Surrey, na al­
deia de Ockham, a vinte milhas de Londres,
pelo ano de 1280, Guilherme ingressou na
ordem franciscana com pouco mais de vin­
te anos de idade. Realizou seus estudos uni­
versitários em Oxford, onde comentou as
Sentenças de Pedro Lombardo, conseguin­ Ockham (por 12SOO OOI
do o título de Baccalaureus sententiarum em cm uma preciosa ilustração
1318. Entre 1317 e 1324, escreveu a Lectura conservada em I mnlres,
libri sententiarum, a Expositio aurea e a Ex- em manuscrito do llrilish Museum.
positio super physicam, como também a Or- h o pensador nuns significativo da t.scolasiica tardia.
Capitulo décimo sétimo - C Ã w \ k e r m e d e O c k K a m / o s O k k a m i s + a s . ..
299

abriga junto a Ludovico, o Bávaro, em Pisa, prováveis, porque parecem falsas para os
ao qual parece ter dito: Tu defendes me gla- que se servem da razão natural. O âmbito
dio, ego defendam te calamo. Seguindo o das verdades reveladas é radicalmente sub­
imperador, estabeleceu-se depois em Muni­ traído ao reino do conhecimento racional.
que da Baviera, onde morreria em 1349, A filosofia não é serva da teologia, que não
vítima de epidemia de cólera. é mais considerada ciência, mas sim um
Durante esse período, no qual não es­ complexo de proposições mantidas em vin-
creveu mais sobre filosofia, produziu muitas culação não pela coerência racional, e sim pe­
obras polêmicas de tema político-religioso. la força de coesão da fé.
Recordemos o Opus nonaginta dierum e o Com- Nesse contexto e em tal direção, Ockham
pendium errorum papae Johannis XXII, transformou outra verdade cristã, a supre­
onde defende um conceito rigoroso de po­ ma onipotência de Deus, em instrumento de
breza contra a postura conciliatória do Pon­ dissolução das metafísicas do cosmo que se
tífice; o Breviloquium de potestate papae e haviam cristalizado nas filosofias ocidentais
o Dialogus (originalmente em três partes, de inspiração aristotélica e neoplatonizante.
mas que chegou até nós incompleto), onde Se a onipotência de Deus é ilimitada e o
fala da possibilidade de depor o Papa no ca­ mundo é obra contingente de sua liberdade
so de ele tornar-se herético e das relações en­ criadora, então, diz Ockham, não há nenhu­
tre o Papa, o Concilio e o Imperador. Além ma vinculação entre Deus onipotente e a
disso, também o Tractatus de jurisdictione multiplicidade dos indivíduos finitos, singu­
in causis matrimonialibus e o De imperato- larmente, além do laço que brota de puro
rum et pontificum potestate. ato de vontade criadora da parte de Deus e,
portanto, não tematizável por nós, mas co­
nhecido apenas por sua sabedoria infinita.
Então, o que são os sistemas de exem­
3 «UiadepervdêkAcia da f é plares ideais, de formas platônicas ou de
em relação a r a z ã o essências universais, propostos por Agosti­
nho, Boaventura e Escoto como intermediá­
rios entre o Logos divino e a grande multi­
Mais do que ninguém, Ockham tinha plicidade das criaturas, senão resíduos de
consciência da fragilidade teórica da harmo­ razão soberba e pagã?
nia entre razão e fé, bem como do caráter O mesmo se diga das doutrinas da ana­
subsidiário da filosofia em relação à teolo­ logia, das causas e, antes, da metafísica do
gia. As tentativas de Tomás, Boaventura e ser de Tomás de Aquino, que instituem re­
Escoto no sentido de mediar a relação entre lações reais ou de alguma continuidade en­
razão e fé com elementos aristotélicos ou tre a onipotência de Deus e a contingência
agostinianos, através da elaboração de com­ das criaturas. Essas metafísicas pertencem
plexas construções metafísicas e gnosioló- a um reino que está a meio caminho entre a
gicas, pareciam-lhe inúteis e danosas. O pla­ fé e a razão, incapaz de alimentar uma e
no do saber racional, baseado na clareza e sustentar a outra.
evidência lógica, e o plano da doutrina teo­
lógica, orientado pela moral e baseado na lu­
minosa certeza da fé, são planos assimétri­
cos. Não se trata apenas de distinção, mas 4 , O empieismo
de separação. Escreve Ockham na Lectura e o p r 'm \ a d o do indivíduo
sententiarum: “ Os artigos de fé não são prin­
cípios de demonstração nem conclusões, e
nem mesmo prováveis, já que parecem fal­ A clara distinção entre Deus onipoten­
sos para todos, ou para a maioria ou para te e a multiplicidade dos indivíduos, sem
os sábios, entendendo por sábios os que se nenhum laço além do que pode ser identi­
entregam à razão natural, já que só de tal ficado com o puro ato da vontade divina
modo se entende o sábio na ciência e na fi­ criadora, racionalmente indecifrável, é tão
losofia” . clara a ponto de induzir Ockham a conce­
As verdades de fé não são evidentes por ber o mundo como conjunto de elementos
si mesmas, como os princípios da demons­ individuais, sem nenhum laço verdadeiro
tração; não são demonstráveis, como as con­ entre si e não ordenáveis em termos de na­
clusões da própria demonstração; não são tureza ou de essência. A exaltação do indi-
300 Sétima parte - < S s c o l á s t i c « n o s é c u l o d é c i m o c|ua^+o

víduo é tal que Ockham nega até mesmo a O conhecimento intuitivo perfeito se
distinção interna entre matéria e forma no tem quando o objeto, por exemplo, da arte
indivíduo, distinção que, se fosse real, com­ ou da ciência, é uma realidade presente; ele
prometería a unidade e a existência do indi­ é, ao contrário, imperfeito, quando se refe­
víduo. re a qualquer realidade do passado.
Eis, então, as duas conseqüências fun­ O conhecimento intuitivo pode ser tan­
damentais do primado absoluto do indiví­ to sensível (conhecer esta mesa) como intelec­
duo. Antes de mais nada, em contraste com tual, enquanto o intelecto conhece também
as concepções aristotélicas e tomistas, segun­ seus próprios atos e os movimentos da alma,
do as quais o verdadeiro saber tem como como o amor, a dor ou o prazer. Portanto, o
objeto o universal, Ockham considera que empirismo de Ockham é sem dúvida radi­
o objeto próprio da ciência é constituído cal, mas absolutamente não sensístico.
pelo objeto individual. A segunda é que todo O conhecimento abstrativo deriva do
o sistema de causas necessárias e ordena­ conhecimento intuitivo e pode ser entendi­
das, que constituíam a estrutura do cosmo do de dois modos: de um lado, quando se
platônico e aristotélico, cede seu lugar a um refere a algo abstraído de muitos singula­
universo fragmentado em inúmeros indiví­ res; por outro lado, enquanto faz abstração
duos isolados, absolutamente contingentes da existência e não-existência das coisas con­
porque dependentes da livre escolha divina. tingentes.
Nesse contexto, pode-se compreender a Conseqüentemente, o objeto de ambos
irrelevância dos conceitos de ato e potên­ os conhecimentos é idêntico, mas captado sob
cia, bem como de matéria e forma, nos quais aspectos diversos: o intuitivo capta a exis­
baseava-se há mais de um século a proble­ tência ou a inexistência de uma realidade,
mática metafísica e gnosiológica ocidental. ao passo que o abstrativo prescinde desses
dados. Os dois conhecimentos são intrinse-
camente distintos porque cada qual tem o
seu próprio ser: o primeiro diz respeito a
é3 or\kecimer\to intuitivo juízos de existência, o segundo não; o pri­
e conkecimento akst^ato meiro está ligado à existência ou não de uma
coisa (por exemplo, este livro sobre a mesa),
o segundo prescinde disso; o primeiro é cau­
O primado do indivíduo leva ao prima­ sado pelo objeto presente, o segundo o pres­
do da experiência, na qual se baseia o conhe­ supõe e é posterior à sua apreensão; o pri­
cimento. A esse respeito, é necessário distin­ meiro trata de verdades contingentes, o
guir entre conhecimento não-complexo, segundo de verdades necessárias e univer­
relativo aos termos singulares e aos objetos sais. Mas em que sentido o conhecimento
que eles designam, e conhecimento comple­ abstrato persegue verdades necessárias e uni­
xo, relativo às proposições resultantes, com­ versais?
postas de termos. A evidência de uma pro­
posição deriva da evidência dos termos que
a compõem. Não havendo esta, não pode ha­
ver aquela. 6 O univeesal e o taondnalismo
Daí a importância do conhecimento
não-complexo, que pode ser intuitivo e
abstrativo. Em muitas oportunidades e sem vaci-
O conhecimento intuitivo se refere à exis­ lações, Ockham afirmou que o universal não
tência de um ser concreto e por isso move-se na é real. A realidade do universal, portanto, é
esfera da contingência, porque atesta a exis­ contraditória, devendo ser total e radicalmen­
tência ou não de uma realidade. A importân­ te excluída. A realidade é essencialmente in­
cia do conhecimento intuitivo consiste antes dividual. Os universais são nomes, não uma
de mais nada no fato de que é o conhecimen­ realidade, nem algo com fundamento na rea­
to fundamental, sem o qual os outros tipos lidade, A realidade, portanto, é essencialmen­
de conhecimento não seriam possíveis. Com te individual.
o conhecimento intuitivo chegamos a saber se Dessa forma cai por terra o problema
uma coisa existe ou não existe, e assim o inte­ do princípio de individuação, que tanto preo­
lecto julga de modo imediato sobre a reali­ cupara a mente dos clássicos, porque se con­
dade ou irrealidade de qualquer coisa. sidera infundada a passagem da natureza es­
Capitulo décimo sétimo - ( G u i l h e r m e de Ockham, o s O k k a m i s + a s . ..
301

pecífica ou essência universal ao indivíduo sin­ um universo de coisas individuais e múlti­


gular. Mas, juntamente com esse problema, plas, não correlatas por nexos imutáveis e
cai por terra também o problema da abstração necessários. [T]
como tematização da essência específica.
Como ficam então o conhecimento abs-
trativo e o caráter universal de suas proposi­
ções? Se ele não é real nem tem fundamento 7 A "n cw o W x a de Ocl<kam,,
na realidade, é lícito falar ainda de univer­ e a dissolução
sal? Os universais não são res existentes fora da metafísica teadicioual
da alma, nas coisas ou entes das coisas. Eles
são simplesmente formas verbais por meio das
quais a mente humana estabelece uma série Nesse contexto de extrema fidelidade
de relações de exclusiva dimensão lógica. O ao individual não é difícil captar as impli­
que é então o conhecimento abstrativo? É si­ cações do preceito metodológico, simples na
nônimo do conhecimento extraído de mui­ enunciação, mas fecundo em conseqüências,
tos objetos individuais (Cognitio abstractiva assim formulado: “Não se deve multiplicar
non est aliud quam cognitio alicuius univer- os entes se não for necessário” (Entia non sunt
salis abstrabibilis a multis). Se cada realida­ multiplicanda praeter necessitatem). Conhe­
de singular provoca um conhecimento tam­ cido como a “ navalha de Ockham” , esse câ-
bém singular, a repetição de muitos atos de non tornou-se arma crítica contra o plato-
conhecimento relativos a coisas semelhan­ nismo das essências e contra os aspectos do
tes entre si gera no intelecto conceitos que aristotelismo em que se percebe mais a pre­
não significam uma coisa singular, mas uma sença de elementos platônicos. Em rápida
multiplicidade de coisas semelhantes entre seqüência, vejamos como, na filosofia de
si. Como sinais abreviatórios de coisas se­ Ockham, caem por terra os pilares da meta­
melhantes, tais conceitos são chamados uni­ física e da gnosiologia tradicional.
versais, não representando, portanto, nada Antes de mais nada, é fundamental a
mais que a reação do intelecto à presença rejeição da metafísica do ser analógico de
de realidades semelhantes. Assim, se o nome Tomás e do ser unívoco de Escoto, em nome
“ Sócrates” se refere a determinada pessoa, do único laço entre finito e infinito, consti­
o nome “ homem” é mais genérico e abstra­ tuído pelo puro ato da vontade criadora de
to, porque se refere a todos os indivíduos Deus, ato que não é passível de nenhuma
que podem ser indicados pela forma geral e tematização racional.
abreviatória típica daquele conceito, que por Juntamente com o conceito metafísico
isso é chamado de universal. de ser analógico, cai também o conceito de
Mas, se não existe uma natureza co­ substância. Nós só conhecemos das coisas as
mum nem se pode considerar real o univer­ qualidades ou os acidentes que a experiên­
sal, como fica então a ciência que, segundo cia revela. O conceito de substância repre­
os aristotélicos e os agostinianos, não tem senta apenas uma realidade desconhecida,
por objeto o singular, mas sim o universal? arbitrariamente enunciada como conhecida.
Naturalmente, as premissas de Ockham ex­ Nenhum motivo milita em favor de tal enti­
cluem um sistema de leis universais e, mais dade, cuja admissão viola o princípio da
ainda, uma estrutura hierárquica e sistemá­ economia da razão.
tica do universo. Mas será que a queda des­ O mesmo se diga da noção metafísica
sa construção metafísica prejudica todo sa­ de causa eficiente. Aquilo que é cognoscível
ber? Segundo o príncipe dos nominalistas, empiricamente é a diversidade entre causa e
tal tipo de saber metafísico cristaliza dano­ efeito, ainda que no constante suceder-se
samente o saber. Para ele, é suficiente um deste àquela. E possível enunciar as leis que
tipo de conhecimento provável, que, basean­ regulam o decurso dos fenômenos, mas não
do-se em repetidas experiências, permite um pretenso vínculo metafísico e, portanto,
prever que o que aconteceu no passado tem necessário entre causa e efeito. E o que se
alto grau de possibilidade de acontecer tam­ diz da causa eficiente vale também para a
bém no futuro. Abandonando, portanto, a causa final. Quem afirma que ela atua en­
confiança aristotélica e tomista nas de­ quanto querida e desejada fala metaforica­
monstrações metafísico-físicas, ele teoriza mente, porque o desejo e o amor não impli­
certo grau de probabilidade derivada da cam ação efetiva. Ademais, não é possível
pesquisa e, ao mesmo tempo, a estimula em demonstrar que um evento qualquer tenha
302 Sétima parte - A Ê s c o l á s t i c a oo s é c u lo d é c im o quanto

causa final. Não tem sentido dizer que o fogo cluir do mundo e da ciência os entes e con­
queima em função de um fim, uma vez que ceitos supérfluos, a começar pelos entes e
não é necessário postular um fim para que conceitos metafísicos, que imobilizam a rea­
se tenha tal efeito. lidade e a ciência, configurando-se como
No que se refere à gnosiologia, com norma metodológica que mais tarde seria
suas implicações metafísicas, o discurso é definida como rejeição das “ hipóteses ad
mais simples. Diante do tema de se é ou não boc”. Por outro lado, tal crítica parte do pres­
necessário distinguir o intelecto agente do suposto de que não é necessário admitir
intelecto possível, tão debatido entre aristo- nada fora dos indivíduos, bem como, por
télicos e averroístas e aristotélicos-tomistas, fim, de que o conhecimento fundamental é
Ockham afirma que essa é uma questão ocio­ o conhecimento empírico.
sa. Ele não apenas nega essa distinção como
supérflua, mas afirma com decisão a unida­
de do ato cognoscitivo e a individualidade
do intelecto que o realiza. A suposta neces­ 8 A mova lógica
sidade de categorias e de princípios univer­
sais, que levara à distinção entre intelecto
agente e intelecto possível, é considerada ar- Nesse quadro de uma linha essencial­
tificiosa e completamente inútil para a con­ mente crítica à construção metafísica tra­
cretização efetiva do conhecimento. Se o dicional, como se configura a lógica, cujas
conjunto das operações cognoscitivas é úni­ regras devem ser respeitadas por qualquer
co, também único deve ser o intelecto que o discurso científico? O objetivo que o francis-
realiza. Se nem a memória nem o conheci­ cano inglês se propõe é o de libertar nosso
mento conceituai devem nos afastar do con­ pensamento da fácil confusão entre entida­
tato imediato com o mundo empírico, então des lingüísticas e entidades reais, entre os
todo recurso a entidades mais complicadas elementos do discurso e os elementos da rea­
e mediadoras deve ser rejeitado como su­ lidade.
pérfluo. Substancialm ente, o que Ockham
O mesmo se pode dizer das species defende é que não devemos atribuir aos si­
como imagens intermediárias entre nós e os nais, necessários para descrever e comuni­
objetos. Elas são inúteis para explicar a per­ car, nenhuma outra função senão a de repre­
cepção dos objetos. Com efeito, o valor cog­ sentação ou símbolo, cujo significado está
noscitivo da espécie é nulo, porque, se o em assinalar ou indicar realidades diversas
objeto não fosse captado imediatamente, a deles.
espécie não poderia torná-lo conhecido e, E, portanto, evidente a intenção de
se o objeto está presente, então ela se torna Ockham de dar à lógica estatuto autônomo
supérflua. e mais rigoroso que o dado por seus ante­
Tal sequência de críticas à construção cessores. O importante a destacar é a cons­
metafísica e gnosiológica com a qual Ock­ tante negação de qualquer objetividade aos
ham se defronta nos sugere duas observações. termos, no sentido de que sua função é sem­
Antes de mais nada, a “navalha de Ockham” pre a de indicar algo diverso de si mesmos.
abre caminho para um tipo de considera­ Trata-se de separação radical entre lógica e
ção “ econômica” da razão, que tende a ex- realidade, entre termos e res, entre plano con­
ceituai e plano real.
E qual seria a fecundidade dessa dis­
tinção?
Em primeiro lugar, a separação clara
entre lógica e realidade permite a Ockham
■ N avalha de O ckham . Com esta me­ tratar os termos como se fossem puros sím­
tá fo ra O ckham quer e xp rim ir um bolos e relacioná-los entre si sem se ocupar
princípio antiplatônico, segundo o da realidade designada. Desse modo, ele se
qual não é necessário m ultiplicar os posiciona em condições de oferecer uma
entes e construir um mundo ideal de impecável teoria da demonstração lógica,
essências: de fato , não é preciso ir evidente e rigorosa em si mesma, porque
além dos indivíduos. constituída por puros símbolos. À luz dos
resultados a que chegou a moderna lógica
simbólica, sobretudo com a distinção entre
Capitulo décimo sétimo - Cãuilkei*me d e O c k k a m , o s O k k c i m i s + a s , ..
303

“ sintática” e “ semântica” , é fácil perceber guinte: a realidade da causa conservante é


a genialidade dessa intuição. tal no ato em que expressa a potência que
Depois, o convite a precisarmos de que faz ser e não ser, que conserva e não con­
modo nos servimos de certos termos e, por­ serva; por isso, a certeza de sua existência
tanto, das proposições, não consideradas em está ligada à existência em ato do mundo,
si mesmas, mas sim em relação com a reali­ que necessita a cada instante ser mantido
dade que designam, nos mostra que Ockham no ser.
dá forte impulso à tradição experimental Se o âmbito da razão humana é tão res­
como meio para controlar a nossa referên­ trito no que se refere a Deus, pode-se então
cia à realidade. compreender que o âmbito da fé torna-se
O conjunto revela tanto o rigor da lin­ mais amplo, já que esse é o âmbito das ver­
guagem como o rigor do discurso científi­ dades conhecidas por meio da Revelação, a
co. Com efeito, a validade de uma ou mais partir do Deus superiormente bom ao Deus
proposições baseia-se no pressuposto de uno e trino, simples e absolutamente per­
que sujeito e predicado não significam coi­ feito. Pois bem, também a propósito dessas
sas diferentes entre si em um contexto equí­ verdades teológicas a razão humana deve
voco, mas sim indicam claramente a reali­ abandonar a mania de argumentar, de de­
dade designada. A fidelidade à suposição monstrar ou de explicitar. A razão não tem
lógica, em suas várias formas, induz a des­ nenhuma função de relevo nesse âmbito,
cartar expressões aproximativas e indicar mas não porque as verdades teológicas se­
com precisão aquilo de que se está falan­ jam todas e somente de índole prática e não
do, evitando assim danosas obstruções lin- cognoscitiva. Com efeito, há afirmações de
güísticas. Em suma, trata-se de construção caráter especulativo, como “Deus criou o
lógica que põe ordem no pensamento, traz mundo” , “ Deus é uno e trino” etc. Entre­
clareza à linguagem e exige realismo no tanto, o lado especulativo dessas verdades é
saber. tal pela natureza específica de suas afirma­
ções, que não têm atinência com a práxis,
sendo, portanto, chamadas especulativas, e
não porque o seu conteúdo constitua uma
9 O p forma de saber certo e demonstrado pela
da existência de Deus razão. No que se refere a Deus, a razão tem
papel irrelevante, superada pela intensa lu­
minosidade da fé.
No contexto das exigências lógicas, Juntamente com a construção metafí­
bem como da teoria do conhecimento, deve- sica da escolástica, Ockham obviamente
se dizer que Ockham exclui toda intuição derruba também toda uma série de pre­
de Deus e, no que se refere ao conhecimen­ tensões da razão. Para ele, a verdadeira
to abstrativo (que parte dos entes do mun­ função do teólogo não é a de demonstrar
do), ele destaca toda a incerteza deste. Fa­ pela razão as verdades aceitas por fé, mas
lando da possibilidade de conhecimento sim, da altura daquelas verdades, demons­
intuitivo de Deus, ainda na Lectura senten- trar a insuficiência da razão. Desse modo,
tiarum, afirma com muita decisão que não Ockham pensa instituir um conceito de ra­
é possível ao homem conhecer Deus intuiti­ zão mais rigoroso, reduzindo-a aos seus
vamente por via puramente natural. Quan­ legítimos limites, ao mesmo tempo em
to ao conhecimento a posteriori, ele critica que salvaguarda a especificidade e a alteri-
as provas de Tomás e de Escoto, persuadi­ dade (em relação à razão) das verdades
do de que nenhuma delas é de fato satisfa­ de fé.
tória. Os ditames da fé estão presentes como
Fazendo cair a metafísica do ser, ele puros “ dados” da Revelação na sua beleza
considera que, mais do que em causas “efi­ original, sem os ouropéis da razão. Sua acei­
cientes” , é preciso se basear nas causas “con­ tação deve-se exclusivamente ao dom da
servantes” , ou seja, sobre as causas que man­ fé. A fé é o fundamento da vida religiosa,
têm as coisas em seu ser, as quais levam a assim como o é da verdade cristã. Enquan­
Deus justamente como primeira e suprema to o esforço da escolástica moveu-se na di­
causa conservante. reção da conciliação entre fé e razão, com
A razão pela qual Ockham prefere es­ mediações e construções de diversas dimen­
se tipo de argumentação parece ser a se­ sões, o esforço de Ockham se orienta no
304 Sétima parte - ; A ( S s c o l é s + i c a n o s é c u l o d é c i m o qucu*+o

sentido de derrubar tais mediações, apre­ livre de fiéis, que, no curso de sua tradição
sentando como separados, mas com todo histórica, sanciona as verdades que consti­
o seu peso, o universo da natureza e o uni­ tuem sua vida e seu fundamento. A que se­
verso da fé. Não mais intelligo ut credam, ria reduzida a presença do Espírito Santo
nem mais credo ut intelligam, e sim credo na comunidade dos fiéis se a função de san­
et intelligo. cionar leis ou impor verdades coubesse ao
papa e ao Concilio? A teocracia e a aristo­
cracia não têm lugar na Igreja. E preciso
abrir espaço para os fiéis, para todos os fiéis,
éSorvfra a teocracia, membros efetivos da Igreja, cuja comuni­
a favor do pluralismo dade é a única à qual compete a infalibili­
dade.
Podemos perceber aí a aspiração à re­
Ockham foi um dos mais inteligentes forma, que se acentuaria ainda mais no sé­
intérpretes da decadência, na consciência co­ culo seguinte, até desembocar na distante
letiva, dos ideais e dos poderes universais Reforma protestante. Os germes foram lan­
encarnados pelas duas figuras teocráticas: çados, mas seu florescimento não é prelúdio
o imperador e o pontífice romano. A defesa ao retorno à unidade medieval, e sim à afir­
intransigente do “ indivíduo” como única mação daquele pluralismo que, primeiro
realidade concreta, a tendência de basear com Wyclif e depois com Lutero, tornar-se-
o valor do conhecimento na experiência di­ ia divisão e dispersão.
reta e imediata, bem como a separação A época da unidade e da harmonia en­
programática entre a experiência religiosa trou em ocaso. A acentuação do indivíduo
e o saber racional e, portanto, entre fé e — no interior da Igreja, na ordem fran-
razão, não podiam deixar de conduzi-lo à ciscana e também na sociedade civil — leva
defesa da autonomia do poder civil em re­ ao nascimento do direito subjetivo e, por­
lação ao poder espiritual e, portanto, à exi­ tanto, à noção moderna de liberdade indi­
gência de profunda transformação da es­ vidual e de sua autonomia, tendo por resul­
trutura e do espírito da Igreja. Trata-se de tado o nascimento da ciência do direito civil,
projeto que, pelo que se pode ver a partir como também do direito eclesiástico.
destes últimos elementos, atinge todos os Tais são as conseqüências últimas da
fundamentos da cultura medieval, lançan­ tese fundamental da separação entre razão
do os pressupostos da cultura humanista- e fé, entre a ordem espiritual e a ordem mun­
renascentista. dana, resultando sobretudo no primado do
Envolvido no conflito entre o papado e indivíduo sobre qualquer universal.
o império, Ockham pretende redimensionar Com Ockham, a escolástica chega ao
o poder do pontífice e demitizar o caráter fim. No Trezentos, depois dele, não surgem
sagrado do império, interessado mais no mais grandes personalidades nem grandes
primeiro do que no segundo. sistemas. Nascem as escolas, o Tomismo,
Se o papa tivesse recebido de Cristo tal o Escotismo e o Ockhamismo que lutam en­
plenitude de poderes e se comportasse em tre si, repensando e freqüentemente pole­
conseqüência, submeteria a si todos os cris­ mizando sobre as afirmações de seus res­
tãos. Teríamos então uma escravidão pior do pectivos mestres. Diante do Tomismo e do
que a antiga, porque diria respeito a todos Escotismo, que representavam a via antiqua,
os homens. Trata-se então de uma tese não o Ockhamismo se impõe como a via moder­
apenas contrária ao Evangelho, mas tam­ na, enquanto é programaticamente crítico
bém às exigências fundamentais da convi­ em relação à tradição escolástica. Apesar
vência humana. das proibições e condenações, tal orienta­
Na realidade, seu poder é limitado. O ção vai corroendo lentamente os antigos
papa é ministrator, não dominator; deve ser­ sistemas e fazendo emergir instâncias e prin­
vir, não sujeitar. Seu poder foi instituído em cípios que lentamente se reuniríam em nova
benefício dos súditos e não para que lhes visão de mundo. Em 25 de setembro de 1339,
fosse retirada aquela liberdade que está na a leitura de Ockham é proibida em Paris,
base do ensinamento de Cristo. E tal poder proibição reafirmada em 29 de dezembro
não cabe ao papa, nem ao Concilio, porque de 1340 no que se refere às suas teses prin­
ambos são falíveis. Não é o papa, nem o cipais. Apesar disso o Ockhamismo con­
Concilio, e sim a Igreja, como comunidade quista terreno nas maiores universidades,
Capitulo deam o sétimo - Cãui Ihe mu1de Oc\<\\an\, os é3l<hcimisfos... 305

com homens dedicados a mostrar a incon­ roso, como Nicolau de Autrecourt (1350)
sistência da cosmologia aristotélica, como e o próprio João Buridan e, por fim, a de­
Jo ão Buridan (1290-1358) e Nicolau de fender a necessidade de reforma radical da
Oresme (falecido em 1382), a mostrar a Igreja, como o inglês João Wyclif (em tor­
inconciliabilidade da fé com a razão em no de 1328-1384) e o boêmio João Huss
nome de um conceito de ciência mais rigo­ (1369-1415).

Pagina de um códice
que contém a
Summa totius logicae
de Ockham,
conservado na Biblioteca Vaticana.
306 Sétima parte - A S s c o l á s + i c a n o s é c u l o d é c i m o c|warto

OCKHAM
A TEORIA DO CONHECIMENTO

CONHECIMENTO
x “ a navalha”
entia non su n t m u ltip lica n d a p rae te r necessitatem .
E o critério do conhecimento.
Depois da sua aplicação,
cai o conceito de substância
(nós conhecemos as qualidades e não a substância),
a causa eficiente e a causa final.
Por conseguinte, também o universal não é real;
mas sinal abreviativo de coisas semelhantes:
n o m in alism o

O conhecimento
se distingue em:

...... . .... A ..... A.

não-complexo
/ complexo \
quando se baseia
j quando se baseia sobre elementos simples
\ sobre um complexo de elementos /

____ . __r \
/ intuitivo N .... .. . - A.....
sensível ... { (diz se uma coisa existe
ou não) x / abstrativo
\ prescinde da existência
\ ou não de uma coisa /

> \
1 ..
inteligível ;
no sentido
de abstrair
y dos singulares
.. /
perfeito no sentido
1, (do presente) de fazer abstração \
da existência
T. ou não
das coisas
imperfeito
(do passado) ,
Capítulo décimo sétimo - C ã u il h e f m Ê d e O c k h a m, o s O k k a m i s + a s . . .
307

II. O c k k a m
e a ciência dos O c k k a m is fa s

• Ockham e seus discípulos, além das teses de caráter filosófico, elaboraram


também novo modo de pesquisa científica, baseado sobre o conhecimento expe­
rimental. Isso deslocou a atenção do problema metafísico so­
bre o que são os fenômenos, para o problema físico de como Características
eles se verificam, e levou a libertar a física de todo pressuposto da ciência
metafísico. ockhamista
Mas também da teoria da contingência do mundo e da ^ § 1'3
sua redução a um complexo de indivíduos brota uma metodo­
logia de pesquisa original: a da multiplicidade das hipóteses explicativas. Com
efeito, se o mundo não é necessariamente uno e nem aquilo que é, é possível
tomar em exame outras hipóteses além das que a evidência solicita.
É justamente a admissão de pluralidade de hipóteses que permitiu refutar
por parte dos ockhamistas a necessidade da não-existência do vazio, ou os princí­
pios da física aristotélica ligados à teoria dos projéteis (ou seja, corpos atirados no
espaço), ou fez formular hipóteses sobre a rotação da terra, por obra de João
Buridan e Nicolau de Oresme.

1 O novo método de análise e de crítica. Obrigando a preci­


sar em lugar de qual realidade os termos
da pesquisa científica
entram em uma ou mais proposições, a ló­
proposto pcm (D c\< l\a vn gica nos convida a relacionar o conteúdo
das afirmações à efetiva realidade dos in­
divíduos.
U I Eidelidade à experiência Pois bem, esta fidelidade ao concreto
leva Ockham à rejeição de qualquer hipos-
Os cânones da pesquisa científica, enu- tatização de tipo metafísico de entidades
cleáveis a partir das muitas obras dedicadas como o movimento, o espaço, o tempo, o
ao estudo da natureza (Expositio super Pbysi- lugar natural etc. Dessa forma, por exem­
cam, Quaestiones in libros Physicorum e Phi- plo, ele não considera o movimento uma
losopbia naturalis), estão intimamente ligados entidade distinta das coisas reais que estão
à nova lógica e à crítica da cosmologia tradi­ em movimento. Além dos corpos móveis
cional. Se, como se disse, o mundo é essen­ não há nada. Com os instrumentos da ló­
cialmente contingente, criado pela absoluta gica devemos nos perguntar o que se enten­
liberdade de Deus onipotente, não é lícito de com o termo “ movimento” . E a resposta
partir do pressuposto de que o mundo esteja é que tal termo está em função ou está no
estruturado segundo relações necessárias co­ lugar de indivíduos singulares e conota a mo­
nhecidas por meio de um processo metafísico. dalidade de mudança de suas posições re­
Além da multiplicidade dos indivíduos não é cíprocas. Os processos reais se resolvem,
preciso admitir outra coisa. Se isso é verdade, portanto, em uma série de estados, distin­
o fundamento do conhecimento científico só tos por sua quantidade, no sentido da mu­
pode ser o conhecimento experimental. dança de posição de algo em relação a ou­
Daí, portanto, o primeiro cânone: pode­ tro algo. A estrutura temporal dos eventos
mos conhecer cientificamente apenas aqui­ físicos se reduz a uma série de stationes,
lo que é controlável por meio da experiên­ cada uma das quais substitui a precedente.
cia empírica. A perspectiva qualitativa, típica da mecâni­
E à fidelidade ao mundo real impele ca aristotélica, é substituída pela quantita­
também a lógica, instrumento lingüístico tiva.
308 Sétima parte - P s c o l á s t i c a n o s é c u lo d é c im o gua^to

K S p rec iso bu scan n ão a e s sê n c ia E U P a r a uma co n ce p ç ã o


m a s a fu n ção d o s fenôm enos d o universo co m o h o m o g ê n e o

Estas reflexões nos levam ao segundo Finalmente, pela extrema fidelidade ao


cânone fundamental do método de Ockham: dado e em razão de sua “navalha” , Ockham
mais do que se preocupar com q u e c o i s a são nega que entre o sistema celeste e a esfera
os fenômenos, é melhor preocupar-se com sublunar exista a diversidade substancial de­
o c o m o se verificam, não a n a t u r e z a , por­ fendida por Aristóteles: um incorruptível, a
tanto, mas a f u n ç ã o . outra corruptível. Não é lícito admitir tal diver­
Da metafísica se passa, deste modo, sidade radical entre partes do mesmo universo.
para a física, física como disciplina mo­ Dessa forma, a superação da divisão
derna, cujas implicações encontrarão de­ entre a ordem das coisas corruptíveis e os
pois grande desenvolvimento nos séculos se­ céus imutáveis abre o caminho para a idéia
guintes. de um universo homogêneo em seus elemen­
Estas idéias, com efeito, levarão à ma- tos estruturais.
tematização da ciência e, portanto, à apli­ Daqui se seguirão a rejeição da “ ani­
cação dos métodos do cálculo matemático mação” dos céus, e também da indivisibi­
para a inteligência das diversas fases dos fe­ lidade das substâncias celestes, e a redução
nômenos. integral das esferas celestes à natureza mate­
O caminho da física moderna começa rial da esfera terrestre.
a substituir o caminho da indagação aristo- Destes acenos ao método e a algumas
télica, que é físico-metafísica. Com efeito, a teses ockhamistas parece que estamos no fim
visão hierárquica do universo é superada da “ciência” medieval e no prelúdio de uma
pela visão dele como um conjunto de indi­ nova física. A queda do sistema de causas ne­
víduos, nenhum dos quais constitui o centro cessárias e ordenadas que constituíam a es­
ou pólo dos outros. trutura do universo aristotélico, e também
a superação da hipostatização de entidades
K E fl V a lo riz aç ã o d e hipóteses como tempo, espaço, movimento, lugar natu­
e x p licativ as ral etc., sobre a qual se fundava grande parte
da reflexão medieval, confirmam que com
A este respeito é bom acrescentar um Ockham se fecha um período e se abre outro.
relevo ulterior, indicativo da nova direção
da física. Persuadido de que o mundo é um
complexo de indivíduos e que ele é, no seu
conjunto, essencialmente contingente, isto 2 CDs O c k k a m is + a s
é, privado de uma legalidade metafísica uni­ e a c iê n c ia an is+o+élica
versal dada como pressuposta, Ockham não
considera possível promover a pesquisa cien­
tífica com princípios definidos ou com es­ E f i l P a r a um n o v o p arad igm a
truturas necessárias. cien tífico q u e u l t r a p a s s a o a r i s t o t e l i s m o
Enquanto se permanece no campo da
física aristotélica, segundo a qual tudo se Como conseqüência da profunda trans­
desenvolve segundo leis imutáveis, uma vez formação operada por Ockham na filosofia
que este mundo é fruto de necessidade e e nas ciências, durante as primeiras décadas
não de liberdade, isso se justifica e se com­ do século XIV tem início nova concepção
preende. Todavia, no contexto do mundo do saber científico, que dominaria incon-
criado pela absoluta liberdade de Deus, é trastavelmente a cultura européia ao longo
possível, até legítimo, tomar em exame to­ de cerca de dois séculos, acabando por in­
das as h i p ó t e s e s e x p l i c a t i v a s , porém per­ fluir positivamente sobre a revolução cien­
manecendo firme a obrigação de controlar tífica de Galileu. Inicialmente em Oxford,
tais hipóteses com os dados experimentais mas depois também em Paris e no resto da
oferecidos pelo conhecimento intuitivo sen­ Europa, as concepções científicas de Aristó­
sível. teles foram submetidas a severa crítica, de
Entrevemos aqui um método, indubita­ vários pontos de vista.
velmente apenas embrional, fundado sobre No que se refere ao método, os segui­
um procedimento p e r i m a g i n a t i o n e m , des­ dores de Ockham opõem à concepção aris­
tinado a ter desenvolvimentos fecundos. totélica do conhecimento científico, carac­
Capitulo décimo sétimo - C ã u ilk e **m e d e O c k k a m , o s O k k a m i s t a s ...
309

terizada pela universalidade e pela necessi­ vais chegam a resultados francamente ori­
dade (com o termo epistéme, precisamente, ginais envolve um princípio basilar da teo­
Aristóteles entendia um tipo de saber uni­ ria física de Aristóteles, que prevê a ação di­
versal e necessário), o conhecimento cien­ reta e contínua de um motor para explicar
tífico do particular e o probabilismo. Mas, qualquer tipo de movimento local, incluin­
na realidade, todo o sistema científico do do o dos objetos arremessados com força.
grande filósofo grego já parecia vacilar dois Ora, no lançamento dos “ projéteis” é ne­
séculos antes de Galileu, golpeado por cessário admitir a presença de um motor
impiedosa crítica nos seus próprios prin­ diverso daquele que produziu inicialmente
cípios. o movimento (por exemplo, a mão que se
As críticas dos mestres medievais têm separa da pedra depois de tê-la arremessa­
por base um princípio de origem neopla- do). Para contornar essa dificuldade, Aris­
tônica e uma convicção religiosa clara, se­ tóteles viu-se obrigado a introduzir em sua
gundo a qual tudo o que é verdadeiramente teoria uma explicação acessória, que, no
possível pode ser realizado no futuro ou em entanto, chocava-se claramente com o que
algum outro mundo imaginário que Deus, pode ser experimentado, isto é, ele consi­
em sua onipotência, poderia criar. derava que a pedra arremessada com força
Diante das argutas imaginationes dos pela mão continuava a se mover porque o
medievais, o universo aristotélico, finito, ar, criando vórtices em torno da pedra, a
fechado e com todos os seus aspectos já mantinha em movimento.
determinados, mostra-se terrivelmente es­
treito. Para Aristóteles, por exemplo, não
pode existir vácuo na natureza, porque é W lSM (C rític a s d e B u f id a n
contrário às suas leis físicas, mas os físicos a ^A ristó te le s c o m o m é to d o

medievais tratam longamente também do d a fa lsific a ç ã o e m p ír íc a


vácuo, embora não estejam em condições
de fornecer nenhuma experiência direta João Buridan, físico parisiense de mea­
dele, já que, dizem eles, poderia ser pro­ dos do século XIV, contesta essas explica­
duzido pela absoluta potência divina. Para ções de Aristóteles, utilizando o método da
Aristóteles, o universo é único, não po­ falsificação empírica, do seguinte modo: se
dendo haver outros mundos, mas isso está é por meio dos vórtices de ar que um corpo
claramente em contraste com a concepção é mantido em movimento depois do impul­
dos cristãos, que não fixa limites à onipo­ so inicial, então um corpo cuja extremida­
tência do Criador. E eis assim legitimadas de posterior fosse plana deveria permane­
e encorajadas todas as considerações rela­ cer mais longamente em movimento do que
tivas a uma concepção infinita do universo um corpo com ambas as extremidades em
e à existência de outros mundos além do ponta, porque os vórtices de ar têm menos
nosso. efeito sobre estas; no entanto, isso não acon­
Trilhando esse caminho, também sem tece; logo, a explicação de Aristóteles está
rejeitar completamente as doutrinas aristoté- errada.
licas, os mestres medievais acabam por pro­ Esse raciocínio sobre possíveis expe­
por um paradigma científico novo, que pre­ riências (com efeito, não nos consta que
tende explicar todas as situações possíveis, Buridan tenha efetivamente realizado tal ex­
tanto reais como puramente hipotéticas. Há perimento) é suficiente para o físico pari­
consciência clara de que os fenômenos po­ siense rejeitar a explicação de Aristóteles (o
dem ser salvos, embora com explicações di­ ar não ajuda de modo algum o movimento,
ferentes das apresentadas por Aristóteles. ao contrário, o impede, por meio do atrito)
Esse modo de proceder puramente conjec­ e afirmar que os “ projéteis” não são manti­
tural e hipotético, próprio dos homens de dos em movimento pelo ar, mas sim pelo
ciência ligados às doutrinas de Ockham, não impetus ou força que se imprimiu ao corpo
deixaria, porém, de dar importantes resul­ no momento do arremesso. Essa força im­
tados, tanto no que se refere às concepções pressa é proporcional à quantitas materiae
cosmológicas (infinitude do mundo, rotação do corpo (os corpos mais pesados, com vo­
da terra etc.) como no que diz respeito a lume igual, são lançados mais longe), sendo
algumas leis físicas específicas. uma qualidade que perdura no corpo até
O primeiro e mais importante ponto que a resistência do ar e a gravidade da ter­
sobre o qual as críticas dos físicos medie­ ra não anulem o movimento.
310 Sétima parte - A G s c o lá s ti c n n a s á c u lo P téaim a q uarto

Assim concebido, o impetus é utilizado 3* O s C Vl<l\t unishis


por Buridan e por seus discípulos para ex­
e a ciência de úâalileu
plicar grande número de fenômenos, que vão
do movimento do malho do ferreiro ao dos
corpos que oscilam, de uma bola ricoche- Não está claro o quanto essas doutri­
teando ao movimento dos corpos celestes, nas podem ter influído sobre o pensamento
estendendo, portanto, um único tipo de ex­ posterior, mais precisamente sobre a revo­
plicação do mundo terrestre ao mundo ce­ lução copernicana. Elas parecem ter exerci­
leste. do maior influência sobre Galileu Galilei,
particularmente sobre a mudança de pers­
K m O u + ^ o s c o n t r i b u t o s sig n if i c a t i v o s pectiva que lhe permitiu formular novas leis,
a começar pela famosa lei de queda dos gra­
Outras importantes contribuições cien­ ves. A propósito dessas leis, podemos dizer
tíficas dos físicos medievais são o teorema com Thomas Kuhn, epistemólogo e histo­
de Tomás Bradwardine, que corrige as cor­ riador contemporâneo da ciência, “ que a
respondentes leis aristotélicas sobre as re­ genialidade de Galileu consiste na utiliza­
lações entre força e resistência, e a lei de ção que ele fez das possibilidades perceptivas
Merton (do famoso College universitário de tornadas disponíveis por mudança de para­
Oxford), que fornece critério rigoroso para digma ocorrida na Idade Média” .
medir o movimento uniformemente acele­ A título de exemplificação, vejamos es-
rado. quematicamente a mudança que tornou pos­
As especulações dos medievais, que só sível a formulação exata da lei de queda dos
raramente se baseiam em dados empíricos, graves. Na concepção aristotélica, um cor­
consideram por vias puramente hipotéticas po que cai é corpo que se dirige para o seu
até a possibilidade de rotação da terra. “ lugar natural” (para os corpos pesados, é
A investigação relativa a essa questão, o centro da terra) com velocidade diretamen­
tal como é conduzida por João Buridan e te proporcional ao seu próprio peso e inver­
por seu discípulo Nicolau de Oresme (já samente proporcional à resistência do meio
mencionado), orienta-se no sentido de de­ que deve atravessar. Tal velocidade perma­
monstrar que a rotação da terra não produ­ nece constante durante o período da queda,
ziría nenhum inconveniente para os conhe­ a menos que intervenha uma força ou uma
cimentos astronômicos e astrológicos então resistência agregada para mudá-la. Já para
aceitos e que, por isso, todos os fenômenos os medievais, um corpo que cai é inicialmen­
celestes estariam igualmente salvos se essa te impelido unicamente pela força da gravi­
nova hipótese fosse introduzida no lugar da dade, mas logo depois imprime-se no corpo
rotação dos céus. uma força ou impetus, devida precisamente
Uma vez estabelecida a equivalência, à velocidade inicialmente adquirida, que
do ponto de vista das explicações empí­ acelera o seu movimento. Tal aceleração, por
ricas, das duas teorias (a teoria aristotélico- seu turno, dá origem a novo impulso que,
ptolemaica, que mantém a terra firme e faz acrescentado ao anterior, aumenta ainda
o céu se mover, e a teoria tardio-medieval, mais a velocidade do corpo que cai e assim
que faz a terra se mover mantendo o céu por diante. Ou seja, com a teoria do impe­
fixo), os dois físicos medievais introduzem tus, os físicos medievais podem olhar cor­
o famoso princípio de economia ou navalha retamente para os corpos que caem como
de Ockham, segundo o qual, entre duas teo­ corpos que aumentam de velocidade de
rias rivais, é sempre preferível aquela que modo constante em momentos sucessivos de
consegue explicar os fenômenos do modo tempo.
mais simples. Ora, embora Buridan e Ores­ Tal modo de ver os corpos que caem
me tivessem claro que a rotação da terra guiaria também as investigações de Galileu
era uma operação muito mais simples do sobre a queda dos graves. Com efeito, pre­
que a rotação de toda a volta celeste, eles, cisamente graças às inovações feitas pelos
por excessivo respeito para com a concep­ físicos medievais, Galileu, em 1604, estaria
ção aristotélica, não expressam abertamen­ em condições de formular exatamente a fa­
te sua preferência pela nova teoria, limi­ mosa lei sobre a queda dos graves, calcu­
tando-se a propô-la ao lado da antiga teoria lando a velocidade em relação ao quadrado
e deixando livre a escolha da melhor das dos tempos, embora tal fórmula dependes­
duas. se de idéia equivocada, isto é, de que a velo-
Capitulo dccilTIO sétimo - Cãuilhei*me d e OckKamy o s O k k a m is + a s...
311

cidade é proporcional ao espaço percorrido “ afortunado” por conseguir alcançar uma


e não ao tempo empregado pelo corpo para lei exata a partir de princípio equivocado.
tocar na terra. Mas isso que Galileu chamava “fortuna”
Nessa mesma época, o paradigma me­ nada mais era do que o paradigma científi­
dieval também guiava os cálculos de René co do impetus (a aceleração da velocidade
Descartes na formulação de uma lei quase depende dos impulsos que se sucedem em
idêntica à de Galileu, incluindo o erro. En­ instantes distintos do tempo e não em rela­
tretanto, apenas Galileu, mais tarde, em ção ao espaço percorrido), que o havia guia­
1639, corrigiria a formulação anterior e, ao do, sem que ele tivesse inteira consciência
dar conhecimento oficial de suas pesquisas, disso, nas observações que realizou sobre
chegaria a declarar que havia sido muito os corpos em queda.

“ Aritmética" c "Geom etria"


em duas imagens alegóricas
dos inícios do sée XVI.
URiÇmetvica òu 2)íe nmttfan »tl3«íi .TDft&ií ftmtí 3 nova concepção ockbamista
d?entmbijeletOOntnl ju fame flcíeri *2>«ôftcbt matt «rt bt da ciência imprime um caráter
faitirn JMend2ftif <Sieíffm wot.Bep fiefinwrt fint “empírico" e "operativo"
«jertígmac^f! buwih Sc^mawigtm coí.^c^ tyin bíct>ge a pesquisa que, em certo sentido,
Vin bit Utt ícl> bícíj pi ietet 25o^ccíu0jrtfutí3«fTtfl*^fl9 antecipa características
que serão desenvolvidas
ten w tl. b’j hfc funff etn meífíer p tfl.______
pela revolução científica.
312
Sétima pavtc - ^ s c o l á s + i c a n o s é c u lo d é c i m o q u a n t o

acepção, nenhum universal é singular, a partir


do momento que qualquer universal destina-se
G u il h e r m e d e O ckham
a ser sinal de mais coisas e a ser predicado de
mais coisas. Por conseguinte, chamando univer­
sal algo que não é uno de número — acepção
que muitos atribuem ao universal — , eu afirmo
que nada é universal, a não ser talvez por abu­
R lógica dos termos so deste vocábulo, dizendo que o povo é um
universal, porque não é um só indivíduo mas
mais indivíduos; mas isto seria pueril.
Ockham porte do comentário dos obros A preciso então afirmar que qualquer uni­
clássicos d e lógica, Organon, d e Flristóteles, versal é uma coisa singular que, portanto, não
e Isagoge, d e Porfírio, introduzindo numero­ é universal a não ser por significação, a partir
so s novidades, que dizem respeito à próprio do momento que é sinal de mais coisas. 6 isto
disposição do lógico tradicional. é aquilo que diz flvicena no livro Vda Metafísica:
"Uma forma no intelecto está relacionada com
uma multiplicidade, e segundo esta relação é
universal, a partir do momento que esta mes­
1. Universal e singular
ma é uma intenção do intelecto, cuja relação
fl partir do momento que uma descrição com este ser não varia, seja o que for que seja
too geral dos termos não é suficiente poro o tomado como termo dessa relação". € continua:
lógico, mas é necessário estudar os termos de "Asta forma, embora seja universal pela sua
modo mois específico, justomente por esto ra­ relação com os indivíduos, é, todavia, individual
zão, depois de ter trotado dos divisões gerais em relação à alma singular na qual está im­
entre os termos, é preciso continuar examinan­ pressa. Com efeito, ela mesma é uma das for­
do oquilo que está contido sob algumas des­ mas que estão no intelecto". Quer dizer que o
tas subdivisões. universal é uma intenção singular da próprio
Am primeiro lugar devemos trator dos ter­ alma, destinada a ser predicada de mais coi­
mos de segundo intenção, em segundo lugar sas, de modo que pelo fato de que se destina
dos termos de primeiro intenção, foi dito que a ser predicada de mais, não por si mas por
os termos "universal'', "gênero", "espécie" etc., aquela multiplicidade de coisas em lugar das
são de segundo intenção, e portanto é preciso quais está, ela se diz universal; enquanto pelo
falar dos que são considerados como os cinco fato de que é uma forma, existente real mente
universais. Todavia, primeiro se deve falor do no intelecto, diz-se singular. € assim o termo
termo comum "universal" que se predico de todo "singular" no primeiro sentido exposto pode ser
universal, e do termo comum "singular" o ele predicado do universal, mas não no segundo
oposto. sentido; no mesmo modo em que dizemos que
Primeiromente é preciso saber que "sin­ o sol é causa universal, e todavia é verdadei­
gular" pode ser entendido de dois modos. Am ramente umo realidade particular e singular, e
um sentido o nome "singular" significo tudo aqui­ por conseguinte é verdadeiramente uma causa
lo que é uno e não mais. A neste sentido aque­ singular e particular. O sol, com efeito, diz-se
les que sustentam que o universal é umo quali­ causa universal, porque é causa de mais seres,
dade da mente predicável de mais coisas, não, isto é, de todos os seres geráveis e corruptí­
porém, por si, mas por aquela pluralidade de veis deste mundo. Diz-se além disso causa par­
coisas em lugar das quais está, devem dizer ticular, porque é uma só causa e não mais cau­
que qualquer universal é verdadeira e realmente sas. Assim uma intenção da alma se diz universal
singular: porque como qualquer palavra, em­ porque é um sinal predicável de mais realida­
bora comum por instituição, é verdadeira e real­ des; mas se diz também singular, porque é uma
mente singular e una de número, uma vez que só e não mais coisas.
é umo só e não mais, também a intenção da Na verdade, devemos saber que o univer­
alma, que significa mais realidades extramen- sal pode ser duplo. Algum universal é universal
tais, é verdadeira e realmente singular e una por natureza, no sentido que é naturalmente
de número, porque é uma só coisa e não mais um sinal predicável de mais coisas, do mesmo
coisas, embora signifique mais entidades. modo em que, proporcionalmente, o fumaça
Am um segundo sentido o nome "singu­ significa naturalmente o fogo, e o gemido do
lar" entende-se por tudo aquilo que é uno e doente a dor, e o riso uma alegria interior. A
não mais, e não se destino a ser sinal de mais este universal não é mais que uma intenção da
coisas. £ entendendo "singular" segundo tal alma, de modo que nenhuma substância extra-
313
Capítulo décimo sétimo - <C\uilke.>-me d e Ockham, o s O k k o m i s + a s ...

mentol nem qualquer acidente extramentol pode poderio existir sem elas, pois em virtude da
ser tol universal. £ do universal ossim falarei potência divina toda coisa que é naturalmente
nos parágrafos seguintes. O outro é o univer­ anterior em relação a uma outra pode existir
sal por instituição voluntária. £ assim a palavra, sem esta última, mas o que resulta é absurdo.
que é verazmente uma qualidade numerica­ Além disso, se esta opinião fosse verda­
mente una, é universal, pois é um sinal instituí­ deira, nenhum indivíduo poderio ser criado se
do voluntariamente para significar mais coisas. outro indivíduo preexistisse, porque não rece­
Portanto, como a palavra é dita comum, assim bería todo o seu ser a partir do nado, se o uni­
pode ser dito universal; todavia, isso não pro­ versal que nele existe tivesse existido antes em
vém da natureza do coisa, mas apenas da von­ outro indivíduo. Pela mesma razão, seguir-se-
tade de quem a instituiu. ia também que'Deus não poderio aniquilar um
só indivíduo desta substância sem destruir tam­
2. O universal não é algo extramental bém todos os outros indivíduos, porque se des­
truísse um indivíduo, destruiría tudo aquilo que
fl partir do momento que não é suficiente se refere à essência deste indivíduo, e por con­
expor estas coisas, caso não sejam provodas seguinte destruiría aquele universal que está
com uma argumentação explícita, aduzirei en­ nele e nos outros, e portanto não subsistiríam
tão algumos argumentações para sustentar coi­ os outros, pois não poderíam subsistir sem este
sas ditas anteriormente, e as confirmarei com universal que é posto como uma parte deles.
autoridades. Além disso, tal universal não poderio ser
Com efeito, que nenhum universal seja posto como algo de totalmente extrínseco à
uma substância existente fora da alma pode essência do indivíduo; com efeito, pertencería
ser provado de modo evidente. Primeiramente à essência do indivíduo, e por conseguinte o
alguém assim argumento: nenhum singular é indivíduo seria composto de universais, e a s­
substância singular e una de número. Se, com sim o indivíduo não seria mais singular que uni­
efeito, se sustentasse esta posição, seguir-se- versal.
ia que Sócrates seria um universal, pois não há Além disso, seguir-se-ia que algo que
uma razão pela qual um universal seja uma pertence à essência de Cristo seria mísero e
substância singular mais do que outra. Na rea­ danado, porque tal natureza comum, existente
lidade, nenhuma substância singular é um uni­ realmente em Cristo e em algum indivíduo da­
versal, mas toda substância é una de número e nado, seria ela mesma danada, pois se encon­
singular, porque toda substância ou é uma só tra em Judas. Isso, em todo caso, é absurdo.
coisa e não mais coisas, ou é mais coisas. Se e Poderíam ser acrescentadas muitas outras
uma só coisa e não mois, é una de número, argumentações, que deixo de lado por brevi­
isso é com efeito chamado por todos uno de dade, e corroboro a mesma conclusão por au­
número. Se ao invés alguma substância consis­ toridade.
te em mais coisas, ou é mais coisas singulares Cm primeiro lugar pode-se coníirmar gra­
ou mais coisas universais. Se se verifica o pri­ ças àquilo que Aristóteles diz no livro VII da
meiro caso, segue-se que uma substância se ­ Metafísica, onde, querendo saber se o univer­
ria mois substâncias singulares, e por conse­ sal é uma substância, demonstra que nenhum
guinte, pela mesma razão, feríamos que uma universal é uma substância. Cie diz, com efeito:
substância qualquer seria mais homens: e en­ "C impossível que a substância seja um dos ter­
tão, embora o universal seja distinto do indiví­ mos universais, seja ele qual for".
duo particular, todavia não se distinguiria dos Além disso, no livro X da Metafísico, afir­
porticulores. Se, ao invés, umo substância con­ ma: "£ assim, se não é possível que um univer­
sistisse de mais coisas universais, eu tomo uma sal seja uma substância, conforme foi dito nos
só destas coisas universais e me pergunto: ou trotados sobre a substância e sobre o ente,
é mois coisas ou umo só e não mais. Se se dá (quando precisamos que) o próprio ser não
o segundo caso, segue-se que é singular; se pode ser uma substância no sentido que se
se dá o primeiro caso, pergunto: ou é mais coi­ identifica com determinada unidade existente
sas singulares ou mais coisas universais. £ a s­ fora do múltiplo".
sim, ou haverá um processo ao infinito ou se Dessas afirmações emerge que segundo
estabelecerá que nenhuma substância que não a intenção de Aristóteles nenhum universal é
seja ao mesmo tempo singular é universal; dis­ uma substância, embora suponha substâncias.
so resulta que nenhuma substância é universal. Além disso, o Comentador, no livro VII da
Além disso, se um universal fosse uma só Metafísica, comentário 44, afirma: "No indiví­
substância, existente nas substâncias singula­ duo não hó outra substância a não ser o maté­
res mas distinta destas últimas, seguir-se-ia que ria e a forma particular, da qual é composto".
314 Sétima parte - y \ < Ascolás+ ica n o s é c u l o d é c i m o q u a n to

Além disso, no mesmo lugar, comentário mitem que todo universal é predicóvel de mais
45, se lê: "Dizemos então que é impossível que coisas; mas apenas uma intenção da olmo ou
alguma das coisas que se dizem universais seja um sinal instituído convencionalmente, e não
a substância de uma coisa, embora exprima a uma substância qualquer, destina-se a ser pre­
substância das coisas". dicado; portanto, apenas uma intenção da alma
Além disso, no mesmo texto, comentário ou um sinal arbitrário é um universal. Mas ago­
47, sustenta: "€ impossível que estas sejam ra não adoto o termo "universal" para indicar
partes de substâncias existentes por si". um sinal instituído convencionalmente, mas para
Além disso, no livro VIII do Metafísico, co­ indicar aquilo que é universal por natureza. C
mentário 2, afirma: "O universal não é nem uma claro que uma substância não se destina a ser
substância nem um gênero". predicada, pois, se assim fosse, seguir-se-ia
Além disso, no livro X da Metafísica, co­ que uma proposição seria composta de subs­
mentário ó, diz: "Uma vez que universais não tâncias particulares, e por conseguinte o sujei­
são substâncias, é claro que o ser comum não to poderio estar em Roma e o predicado na
é uma substância existente fora da alma". Inglaterra, o que é absurdo.
Das precedentes autoridades e de mui­ Além disso, uma proposição só pode exis­
tas outras podemos concluir que nenhum uni­ tir ou na mente, ou na linguagem, ou na escrita;
versal é uma substância, em qualquer modo o portanto, suas partes não existem a não ser na
consideremos. Portanto, o consideração do in­ mente, ou na linguagem, ou na escrita; estas,
telecto não faz com que algo seja ou não uma na verdade, não são as características das subs­
substância, embora o significado do termo faça tâncias particulares. Consto, portanto, que ne­
com que delas se predique, sem substituí-lo, o nhuma proposição pode ser composta por subs­
nome "substância". Assim, se o termo "cão" na tâncias. Mas uma proposição é composto de
proposição "o cão é um animal" está para o universais; por conseguinte, os universais não
cão que ladra, então a proposição é verdadei­ podem ser de algum modo substâncias.
ra; se, ao invés, supõe para a constelação,
então a proposição é falso. Todavia, que uma 3. Opinião a respeito do ser do universal:
mesma coisa segundo um modo de considerar de que modo existe fora do mente?
seja uma substância e segundo outra não o Contra Duns €scoto
seja, é impossível.
Portanto, é preciso simplesmente admitir Cmbora a muitos seja evidente que o uni­
que nenhum universal é uma substância, seja versal não é uma substância extramental, exis­
qual for o modo como seja considerado. Qual­ tente nos indivíduos, realmente distinta deles,
quer universal é mais uma intenção da alma, todavia, para alguns parece que o universal
que segundo uma opinião provável não difere existe de algum modo fora da mente nos indi­
do ato de entender. Dizem até que a intelec- víduos, não como algo de realmente distinto,
ção, com a qual eu entendo "homem", é um si­ mas apenas formalmente distinto. Cstes susten­
nal natural que significa homens no modo em tam, portanto, que em Sócrates há uma nature­
que o choro é um sinal natural da doença, da za humana, que é unida a Sócrates por uma
tristeza ou da dor; e este sinal é tal que pode diferença individual, que não se distingue da­
estar para os homens em uma proposição men­ quela natureza realmente, mas formalmente. Por
tal, como a palavra pode estar no lugar das conseguinte, não são duas coisas, mas formal­
coisas na proposição oral. Com efeito, que o mente uma não é a outra.
universal seja uma intenção da alma Avicena o Mas esta opinião parece-me inteiramen­
exprime suficientemente no livro V da Metafísica, te improvável. Cm primeiro lugar, porque nas
onde afirma: "Digo, portanto, que o universal se coisas criadas não pode jamais haver uma dis­
diz de três modos. Dizemos, com efeito, univer­ tinção, seja qual for, fora da alma, a não ser
sal aquilo que é predicado em ato de mais coi­ onde as coisas são distintas; se então houves­
sas, como "homem”, e dizemos universal a in­ se uma distinção qualquer entre esta natureza
tenção que é possível predicar de mais coisas". e esta diferença, seria necessário que elas fos­
€ continua: "Dizemos também universal a inten­ sem coisas realmente distintas. Provo o assun­
ção que nada proíbe de pensar que não se to com forma silogística: esta natureza não é
predique de mais coisas". formalmente distinta dela mesma; esta diferença
Destas e de muitas outras afirmações apa­ individual é formalmente distinta desta nature­
rece claro que o universal é uma intenção da za; portanto, esta diferença individual não é esta
alma destinado a ser predicada de muitas coisas. natureza.
C isso pode ser confirmado também com Além disso, uma mesma coisa não é co­
argumentações de razão; com efeito, todos ad­ mum e própria; mas, segundo esses, a diferen­
315
Capitulo décimo sétimo - Caiailk e ^ m e d e O c k k a m , o s O k K o m i s f a s . ..

ço individual é própria, enquanto o universal é esta diferença individual não é formalmente


comum; portanto, nenhum universal é a mesma distinta da diferença individual; esta diferen­
coiso que a diferença individual. ça individual é a natureza; portanto, a natureza
Rlém disso, corocterísticas opostas não não é distinta formalmente da diferença indi­
podem convirá mesmo realidade; ora, o comum vidual. Se, portanto, se verifica que a diferença
e o próprio são opostos; portanto, uma mesmo individual não é a natureza, obtém-se o inten­
coisa não é comum e própria. E isso todavia se to procurado; com efeito, pode-se inferir: a
seguiria, caso diferença individual e natureza diferença individual realmente não é a nature­
comum fossem a mesma coisa. za, portanto a diferenço individual não é o na­
Rindo, se o natureza comum fosse real­ tureza, a partir do momento que do oposto do
mente idêntica à diferença individual, então ha­ conseqüente segue o oposto do anteceden­
vería tantas naturezas comuns quantas são as te, conforme o raciocínio seguinte; a diferença
diferenças individuais e, por conseguinte, ne­ individual é a natureza; portanto, a diferença
nhuma delas seria comum; mas cada uma seria individual é realmente a natureza. Esta conse-
própria da diferença à qual é realmente idên­ qüência resulta evidente, porque de um termo
tica. determinável, tomado com uma determinação
Rlém disso, cada coisa se distingue da­ que não o anula nem o restringe, pode-se in­
quilo de que se distingue por si mesma ou por ferir vai idamente outro determinável tomado
algo que lhe é intrínseco; mas a humanidade em absoluto. Mas "realmente'' não é uma de­
de Sócrates é outra em relação à de Platão; terminação que restringe nem que diminui.
portanto, elas se distinguem por si mesmas e Portanto, pode-se inferir: o diferença individual
não pelas diferenças acrescentados. é realmente o noturezo, e portanto a diferença
Rlém disso, conforme o pensamento de individual é a natureza.
Aristóteles, todas as coisas que diferem por E preciso então dizer que nas coisas cria­
espécie, diferem por número; mas a natureza das não existe nenhuma distinção formal des­
do homem e a noturezo do asno se distinguem se tipo, mas aquilo que é distinto no mundo
especificamente; portanto, distinguem-se por das criaturas é realmente distinto, e são coisas
número; por conseguinte, cada uma delas é por distintas se cada uma é verdadeiramente uma
si mesma una de número. coisa. Portanto, como jamais se devem refutar,
Rlém disso, aquilo que não pode por ne­ em relação ao mundo das criaturas, os modos
nhuma potência convirá mais coisas, por nenhu­ de argumentar do tipo "isto é a, isto é b, por­
ma potência é predicável de mais coisas; mas tanto b não é o", nem tais "isto não é o, isto é
tal natureza, se fosse realmente idêntica à di­ b, portanto b não é a", também não se deve
ferença individual, não poderio por nenhuma jamais negar que coisas criadas sejam distin­
potência convir a mais, porque de nenhum mo­ tas, toda vez que os predicados contraditórios
do pode convirá outro indivíduo; portanto, não se verificam a respeito delas, excetuando no
pode ser predicável por nenhuma potência de coso em que alguma determinação ou algum
mais, e, por conseguinte, não pode ser univer­ sincotegorema seja a causa da verificação dis­
sal para nenhuma potência. so, coisa que não se deve pôr no assunto. Por­
Rlém disso, entendo aquela diferença in­ tanto, devemos dizer com os filósofos que em
dividual e a natureza que restringe e pergunto: uma substância particular não há nada de ver­
ou entre si hó uma distinção maior que entre dadeiramente substancial a não ser a forma
dois indivíduos ou então diferença menor. particular, a matéria particular ou algo que é
Não há uma diferença maior, porque não d i­ composto destes dois. E, portanto, não é preci­
ferem realmente, enquanto os indivíduos dife­ so imaginar que haja em Sócrates a humanida­
rem realmente. Nem uma menor, porque então de, ou então a natureza humana distinta de al­
seriam do mesma natureza, como dois indiví­ gum modo de Sócrates, à qual se acrescente
duos são da mesma natureza, e por conseguin­ uma diferença individual, que contrai aquela
te, se um é por si uno de número também o natureza, mas tudo aquilo que se pode imagi­
outro será por si uno de número. nar de substancial que existe em Sócrates é ou
Rlém disso, pergunto; ou a natureza é a matéria particular ou a forma particular ou algo
diferença individual ou não o é. Se é, argu­ de composto por ambas. E, portanto, todo e s­
mento com um procedimento silogístico assim: sência e qüididade e tudo aquilo que é do subs­
esta diferença individual é própria e não co­ tância, se está realmente fora da alma, é ou
mum; esta diferença individual é a natureza; simplesmente e absolutomente matéria ou for­
portanto, a natureza é própria e não comum. E ma ou um composto delas, ou então é uma
este é o intento que quero demonstrar. De substância imaterial abstrata, conforme o ensi­
modo similar argumento de modo silogístico: namento dos Peripatéticos.
316 Sétima parte - y\ Ê s c o l ó s + i c a no s é c u lo d é c im o quanto

4. Solução das dúvidas bém a este universal que é a categoria da qua­


que podem ser movidas lidade.
contra os coisas ditas anteriormente A favor desta opinião são aduzidas tam­
bém outras argumentações racionais de autori­
£ uma vez que a solução dos dúvidas é o dade, que por brevidade por ora omito, mas que
manifestação da verdade, então é preciso le­ exporei sucessivamente em diversos pontos.
vantar objeções contra as afirmações anterio­ Começo a responder a estas argumenta­
res, a fim de resolvê-las. Com efeito, a muitos ções. A primeira concedo que Sócrates e Platão
homens de não pouca autoridade parece que convenham realmente e difiram realmente, uma
o universal existe de algum modo fora da alma vez que realmente eles convêm especificamen­
e pertença à essência das substâncias particu­ te e realmente eles diferem numericamente. C
lares. Para provar isso estes aduzem algumas convêm especificamente e diferem numerica­
argumentações de razão e alguns testemunhos mente pela mesma coisa, justamente como os
de autoridade. outros devem sustentar que a diferença indivi­
Dizem que quando coisas convêm real­ dual pela mesma coisa convém realmente com
mente e diferem realmente, elas concordam por a natureza comum e dela difere formalmente.
algo e por outra coisa diferem. Ora, Sócrates e € caso se objete que a'causa da concor­
Platão convêm realmente e realmente diferem; dância e da diferença não é a mesma, deve-se
e é, portanto, por coisas distintas que convêm responder que é verdade que a mesma coisa
e diferem; mas concordam na humanidade, e não é a causa da concordância e da diferença
também na matéria e na forma; por conseguin­ oposta àquela concordância, mas não é este o
te, eles incluem além destes elementos outras argumento em questão; de fato, entre a con­
coisas, pelas quais eles se distinguem. € é isso cordância específica e a diferenço numérica não
que estes chamam de diferenças individuais. há nenhuma oposição radical. Deve-se então
Além disso, Sócrates e Platão convêm mais admitir que Sócrates para a mesma coisa con­
do que concordam Sócrates e um asno; portan­ vém especificamente com Platão e difere dele
to, Sócrates e Platão concordam em algo em numericamente.
que Sócrates e um asno não convêm; mas não Também a segunda objeção não se sus­
convêm em algo de numericamente uno; então tenta: com efeito, não se pode inferir; "Sócrates
aquilo em que eles convêm não é uno de nú­ e Platão convêm mais do que concordam
mero; portanto, é algo de comum. Sócrates e um asno, portanto convêm mais em
Além disso, no livro X da Metafísico, afir­ algo", mas é suficiente que convenham por si
ma-se que em todo gênero há algo de primeiro mesmos de forma maior. Portanto, digo que
que é medida de todas as outras coisas que Sócrates pela sua alma intelectiva convém mais
estão naquele gênero. Mas nenhum singular é com Platão do que com um asno, e que por
medido de todos os outros, pois não é a medi­ tudo o que é em si mesmo concorda mais com
da de todos os indivíduos da mesma e sp é ­ Platão do que com um asno. Por causa do sig­
cie, portanto existe algo de diferente além do nificado próprio e rigoroso dos termos não se
indivíduo. deve admitir que Sócrates e Platão convenham
Além disso, tudo aquilo que é mais geral em algo que pertence à sua essência, mas de­
pertence à essência daquilo que é menos ge­ vemos sim conceder que eles convêm por algo,
ral, portanto o universal pertence à essência porque concordam por suas formas e por si
da substância; mas a não-substância não per­ mesmos; mas se por uma hipótese contradi­
tence à essência da substância; portanto, a l­ tória existisse neles uma só natureza, eles con-
gum universal é uma substância. viriam nela, como se — por hipótese contradi­
Além disso, se nenhum universal fosse tória — Deus fosse insensato, governaria mal
uma substância, então todos os universais se ­ o mundo.
riam acidentes, e por conseguinte todas as ca­ A outra objeção é preciso responder que,
tegorias seriam acidentes, e assim a categoria embora um só indivíduo não seja a medida de
da substância seria um acidente, e disso se- todos os indivíduos do mesmo gênero ou da
guir-se-ia que algum acidente seria por si mais mesma espécie especialíssima, todavia, um
geral que a substância. Portanto, seguir-se-ia mesmo indivíduo pode ser a medida de indiví­
que uma mesma coisa seria mais geral do que duos de outro gênero ou de muitos indivíduos
si mesma, uma vez que se aqueles universais da mesma espécie, e isso é suficiente para e s­
fossem acidentes poderiam encontrar-se ape­ clarecer a intenção de Aristóteles.
nas no gênero da qualidade e, por conseguin­ A outra objeção é preciso dizer que, fa­
te, a predicação da qualidade seria comum a lando a partir do significado rigoroso das pala­
todos os universais; portanto, seria comum tam­ vras e do significado próprio das frases, deve-
317
Cãpítulo décimo sétimo - d T u ilk e * *m e d e O c k k a m , o s O k k a m i s t a s . . .

50 admitir qu© nenhum universal pertence à não acidentes. €, portanto, devemos conceder
essência de uma substância qualquer. Com efei­ que algum acidente, isto é, aquele que é sinal
to, todo universal é uma intenção da alma ou apenas das substâncias, é por si mais geral do
um sinal instituído voluntariamente, e nada dis­ que a substância. € isto não é mais inconve­
so pertence à essência de uma substância, e, niente do que dizer que uma palavra é o nome
por conseguinte, nenhum gênero, nenhuma e s­ de muitas substâncias.
pécie, nenhum universal pertence à essência de Mas uma coisa pode de fato ser mais geral
uma substância qualquer, mas, falando mois do que si mesma? Podemos responder não,
propriamente, devemos de preferência dizer porque, a fim de que uma coisa seja mais geral
que o universal exprime ou explica a natureza do que outra, se requer que uma seja distinta
da substância, isto é, a natureza que é a subs­ da outra. €, portanto, podemos dizer que nem
tância. C isto é o que diz o Comentador no livro todos os universais são por si mesmos menos
VII da Metafísico: impossível que uma das gerais do que o termo comum "qualidade",
coisas ditas universais seja a substância de embora todos os universais sejam qualidade,
algo, embora elas manifestem as substâncias e todavia não é menos geral do que ele mes­
das coisas". Portanto, todas as autoridades que mo, mas é simplesmente ele mesmo.
afirmam que os universais pertencem à essên­ € se disséssemos: o mesmo termo não se
cia das substâncias ou estão nas substâncias pode predicar de diversas categorias, então a
ou são partes das substâncias, devem ser en­ qualidade não é comum a diversas predicações;
tendidas no sentido de que tais autores que­ é preciso salientar que, seja que o mesmo ter­
rem unicamente dizer que tais universais decla­ mo se predique, seja que não se predique de
ram, exprimem, explicam, designam e significam diversas predicações quando são tomadas sig­
as substâncias das coisas. nificativamente, todavia, quando aquelas pre­
C se objetas que os nomes comuns, como dicações subsistem e supõem de modo não sig­
"homem", "animal", e assim por diante, signifi­ nificativo não é inconveniente que o mesmo
cam coisas substanciais e não significam subs­ termo seja predicado de diversas categorias.
tâncias singulares, porque neste último caso Portanto, se na proposição "a substância é uma
"homem" significaria todos os homens, coisa que qualidade" o sujeito permanece materialmente
parece falsa, então tais nomes significam subs­ ou simplesmente pela intenção, a proposição
tâncias diferentes em relação às substâncias é verdadeira. C do mesmo modo a proposição
singulares; devemos responder que tais nomes "a quantidade é uma qualidade" é verdadeira
significam apenas coisas singulares. Com efei­ se o termo "quantidade" não convém signifi­
to, o nome "homem" não significa nada mais cativamente: e, assim, o mesmo termo é pre­
que o homem singular, e, portanto, jamais su­ dicado de diversas predicações. Como as duas
põe uma substância a não ser quando a supõe proposições "substância é uma palavra" e
para um homem particular. Por conseguinte, é "quantidade é uma palavra" são verdadeiras
preciso admitir que o nome "homem" significa se os sujeitos supõem materialmente e não sig­
diretamente e com o mesmo título todos os ho­ nificativamente.
mens particulares, e todavia nem por isso re­ . € se dizes: a qualidade espiritual é mais
sulta que o nome "homem" seja uma palavra geral do que qualquer outra predicação, pelo
equívoco, a partir do momento que embora sig­ fato de que se predica de todas as outras ca­
nifique mais coisas diretamente e com o mes­ tegorias, e nenhuma categoria se predica de
mo título, todavia as significa em virtude de uma todas as categorias.
única disposição, e ao significar aquela multi­ C preciso responder que a qualidade e s­
plicidade está subordinado a um só conceito e piritual não se predica de todas as predicações
não a mais conceitos, e por isso é predicado tomadas significativamente, mas apenas toma­
deles univocamente. das como sinais, e por isso não resulta que seja
A última objeção, aqueles que sustentam mais geral do que qualquer outra predicação.
que as intenções da alma são qualidades da Com efeito, o ser mais ou menos geral de um
mente devem responder que todos os univer­ termo deve-se ao fato de que um termo toma­
sais são acidentes. Todavia, nem todos os uni­ do significativamente pode ser predicado de
versais são sinais dos acidentes, mas alguns mais coisas em relação o outro termo, igual­
são sinais apenas das substâncias e aqueles mente tomado significativamente. Csta é a mes­
que são sinais apenas das substâncias consti­ ma dificuldade que se encontra a propósito do
tuem a categoria da substância, os outros cons­ nome "palavra"; com efeito, este nome é um
tituem as outros predicações. 6 preciso então termo que faz parte dos nomes; na realidade,
admitir que a categoria da substância é um aci­ o nome "palavra" é um nome; e todo nome não
dente, embora ela exprima as substâncias e é o nome "palavra". Todavia, o nome "palavra"
318
Sétima püYte - ; A é E is c o lá s f i c a n o s é c u lo d é c im o <11u\rto

em olgum modo mais geral em relação a todos uma espécie especialíssima em relação às bran­
os outros nomes, incluído o nome "nome", com curas, porque embora por vezes uma só bran­
efeito todo nome é uma palavra, mas nem toda cura convenha mais com outra brancura do que
palavra é um nome. com a terceira, como duas brancuras igualmen­
Rnalogamente parece que um mesmo ter­ te intensas parecem concordar mais do que uma
mo possa ser mais geral e menos geral em re­ brancura de grande intensidade e de uma fra­
lação a um mesmo termo. € esta dificuldade ca intensidade, todavia, uma dessas brancuras
pode ser resolvida, dizendo que o argumento convém sempre com alguma porte da outra tanto
seria conclusivo se os termos supusessem de quanto cada uma das duas brancuras convém
modo uniforme em todas as proposições com com a outra. 6 por esta razão, "brancura", em
que se prova a conclusão. Contudo, no caso relação às brancuras, é uma espécie espe-
presente é diferente. Se, todavia, se dissesse ciolíssima e não um gênero.
que um termo é menos geral do que outro, en­ Na verdade, todavia, é preciso notar que
quanto do termo menos geral, tomado segun­ tanto o gênero quanto a espécie podem ser
do certo modo de supor, e de muitos outros, se entendidos em dois sentidos, um amplo e um
predica outra coisa, também se esta coisa não estrito. £m sentido estrito se diz gênero aquilo
se predicasse universalmente do primeiro se ela com o qual se responde corretamente à pergun­
supusesse de modo diverso: pode-se, então, ta "o que é", posta ao sujeito de uma coisa que
conceder que um termo pode ser mais ou me­ se indica graças a um pronome demonstrativo.
nos geral em relação ao mesmo, mas neste caso Como, por exemplo, no caso em que se per­
"mais geral" e "menos geral" não são opostos, guntasse "o que é isto?", indicando Sócrates, se
mas simplesmente diversos. [...] respondería corretamente, dizendo que é um
animal ou um homem, e assim por diante com os
outros gêneros. O mesmo vale para a espécie.
5. Os cinco universais
Cm sentido amplo, ao invés, se diz gêne­
e a suficiência de seu número
ro ou espécie tudo aquilo com que se respon­
Tendo explicado o que é o universal, é de corretamente à pergunta "o que é?" posta
preciso ver quantas são as espécies de univer­ com um nome conotativo, e não apenas abso­
sal. Propõem-se cinco universais, cuja suficiên­ luto. Por exemplo, se se pergunta "o que é o
cia e número podem ser aceitos pelo raciocínio branco?", se respondería corretamente que é
seguinte. Todo universal é predicável de mui­ algo colorido. C todavia, se quem põe a per­
tas coisas: portanto, ou é predicado in q uidóe gunta "o que é" usasse um pronome demons­
muitas coisas ou não. Se se predica in quid, de trativo, não se poderio jamais responder corre­
modo que graças a ele é possível responder tamente através da expressão "colorido". Com
corretamente à pergunta "o que é?" posta a efeito, qualquer coisa que fosse indicada com
respeito de algo, isso é possível de dois mo­ o pronome "isto", perguntando "o que é isto?",
dos. Uma vez que ou as coisas múltiplas das não se daria uma resposta correta dizendo que
quais é predicado são todas semelhantes, de é "algo colorido". Pois colocando a pergunta
modo que todas convêm por sua essência, deste modo ou indicas o sujeito da brancura, e
exceto se uma coisa não for composta por mais então é claro que não respondes corretamen­
coisas igualmente semelhantes, e tal é a espé­ te; ou indicas a brancura, e é manifesto que
cie especialíssima; ou então nem todas as coi­ não respondes corretamente com "colorido",
sas das quais é predicado concordam no modo porque a brancura não é colorida: ou mostras
indicado, mas é possível encontrar duas coisas um agregado, e é manifesto que não respon­
que são absolutamente dessemelhantes tanto des de modo correto, porque aquele agrega­
em sua totalidade como em suas partes, se têm do não é colorido, como será exposto mais
partes, como no caso de "animar. Com efeito, adiante; ou indicas o termo, e é manifesto que
“animar se predica do homem e do asno, e a aquele termo não é colorido. Cmerge então, que
semelhança substancial é maior entre dois ho­ à pergunta "o que é o branco" se responde
mens do que entre um homem e um asno. Da convenientemente com "colorido", e que por
mesma forma, para "cor" em relação à brancura esta expressão "colorido" pode ser dito gêne­
e ao negrume; com efeito, nem este negrume ro, entendendo gênero em sentido amplo. Uma
nem algumas de suas partes concordam com vez que, todavia, com "colorido" não se respon­
esta brancura ou com alguma parte desta bran­ de convenientemente à pergunta "o que é"
cura tanto quanto umo brancura convém com posta com um pronome demonstrativo, então
outra, e por isso uma intenção predicável da não é um gênero, assumindo a palavra "gêne­
brancura e do negrume não é a espécie e s­ ro" em sentido estrito. € o mesmo vale, propor­
pecialíssima, mas o gênero. Mas a brancura é cionalmente, para a espécie.
319
Capitulo décimo sétimo - óTu ilkerm e d e O c k k a m , o s O k h o m i s t a s . . .

Gsto distinção é indispensável, porque sem coisas. A respeito de "uno", ao invés, o caso é
elo não se podem salvar sem contradição mui­ diferente, porque "uno" pode ser considerado
tos argumentos autorizados de Aristóteles e de um acidente ou um próprio.
outros autores; mas se devem expor através Ao segundo argumento pode-se respon­
de tal distinção, porque muitas regras são en­ der que o termo comum "universal" é um gêne­
tendidas a respeito do gênero e da espécie ro, e portanto o gênero se predica do espécie,
tomados no primeiro sentido, regras que não não por aquilo que é, mas por causa da espé­
são entendidas nos outros sentidos, como re­ cie que significa.
sultará claro em continuação.
Se ao invés se predica tal predicável in
6. O indivíduo contido sob os universais
quid, isso acontece ou porque exprime apenas
uma parte da coisa e não outra, sem exprimir Uma vez estabelecidas estas coisas so­
nada de extrínseco, e assim se tem a diferen­ bre os universais, é preciso falar de cada um
ça. Como "racional", se é a diferença que con­ dos cinco universais de modo específico. Gm
vém ao homem, exprime uma parte do homem, primeiro lugar, porém, é preciso falar do indiví­
isto é, a forma e não a matéria. Ou então por­ duo que está contido sob qualquer universal.
que exprime, ou remete a, algo que não é par­ A primeira coisa que se deve saber é que
te da coisa, e então se predica de modo con­ para os lógicos os nomes "indivíduo", "singu­
tingente ou de modo necessário: se se predica lar", "suposto" são conversíveis, embora para
de modo contingente, então se chama aciden­ os teólogos "indivíduo" e "suposto" não se con­
te, se se predica de modo necessário, se cha­ vertem, porque para estes apenas a substân­
ma próprio. cia é um suposto, enquanto o acidente é um
Na verdade, todavia, é preciso saber que indivíduo. Mas neste capítulo é preciso usar
por vezes o extrínseco ao qual remete pode estes nomes conforme a acepção usada pelos
ser uma proposição sem a verdade da qual não lógicos.
se pode predicar verdadeiramente a existência Para os lógicos "indivíduo" pode ser en­
de algo, como, segundo a opinião de quem tendido de três modos. Com efeito, em um pri­
sustenta que a quantidade não é outra coisa meiro sentido se chama indivíduo tudo aquilo
em relação à substância e à qualidade, o nome que é uma só coisa de número e não mais, e
"quantidade", quando se predica de algo, indi­ deste modo se pode admitir que qualquer uni­
ca que a proposição "isto tem as partes distan­ versal é um indivíduo. Gm outro sentido se cha­
tes umas das outras” é verdadeira, se for for­ ma indivíduo uma realidade extramental, que é
mulada. uma só e não mais, e não é o sinal de alguma
G preciso também saber que, segundo nu­ coisa; e assim qualquer substância é um indiví­
merosas opiniões, o mesmo termo pode ser um duo. Gm um terceiro sentido se chama indivíduo
gênero, entendido em sentido amplo, em rela­ o sinal próprio de uma só coisa, que se chama
ção a certas coisas, e um próprio ou um aciden­ termo discreto; e neste sentido Porfírio diz que
te em relação o outras coisas, como a quanti­ o indivíduo é aquilo que se predica de uma só
dade em relação a algumas é um gênero, por coisa. Gsta definição em todo caso não pode
exemplo em relação ao corpo, à linha, à super­ ser entendida a propósito das coisas existen­
fície e assim por diante, e todavia, segundo tes fora da mente, por exemplo de Sócrates e
quem sustenta que a quantidade não é outra de Platão, e assim por diante, porque tal coisa
coisa em relação à substância e à qualidade, é não se predica nem de um só nem de mais;
um acidente ou um próprio em relação à subs­ portanto, é necessário que se entenda esto
tância e à qualidade. Mas isto é impossível em definição como a de um sinal que é próprio de
relação ao gênero, entendido em sentido estri­ uma só coisa, que não pode ser predicado a
to. G é preciso dizer a mesma coisa a propósito não ser de uma só coisa, isto é, não se predica
da espécie. de modo conversível de um termo, que pode
G se dizes: o ente é um universal, e igual­ supor para mais coisas na mesma proposição.
mente o uno (é um universal), e todavia não é Tal modo de ser indivíduo pode ser ex­
um gênero. presso em modo tríplice. Porque por vezes um
De modo semelhante, o nome comum "uni­ indivíduo é o nome próprio de alguém, como o
versal" é um universal, e todavia não é nem um nome "Sócrates" e o nome "Platão". Outras ve­
gênero nem uma espécie. zes é um pronome demonstrativo, como "isto é
Ao primeiro destes argumentos pode-se um homem", indicando Sócrates. Outras vezes
responder que aquela é uma divisão válida paro ainda é um pronome demonstrativo tomado com
os universais que não se predicam de todas as um termo comum, como "este homem", "este
coisas, enquanto "ente" se predica de todas as animal", "esta pedra", e assim por diante.
320
Sétima pavte - / \ é S s c o l á s t i c a n o s é c u lo d é c im o q u a n t o

€ como se fazem estos distinções relati­ de um termo comum os pronomes demonstrati­


vamente oo nome "indivíduo", assim se podem vos tomados com o mesmo termo comum; en­
fazer do nome "singular" e do nome "suposto". quanto os nomes próprios e os pronomes de­
Portanto, também para os antigos, como aprendi monstrativos são ditos supostos por acidente
em minha infância, os supostos de um termo do mesmo termo. 6 há uma grande diferenço
comum soo de dois tipos, isto é, por si e por entre uns e outros destes indivíduos ou supos­
acidente. Como os supostos por si do termo tos, porque é impossível que um dos contrários
"bronco" são "este branco", "aquele branco", seja predicado verdadeiramente do suposto por
também os supostos por acidente são Sócrates, si do outro contrário; com efeito, a proposição
Platão e este asno. € isso não pode ser enten­ "este branco é negro" é impossível; ao contrá­
dido a não ser tomando o nome "suposto" para rio, do suposto por acidente de um contrário se
os indivíduos que são sinais das coisas; por­ pode predicar o outro contrário, embora não
que falando do suposto que existe no realida­ seja naquele momento o seu suposto, como se
de extramental e não é o sinal de algo, é im­ agora Sócrates fosse o suposto do branco, en­
possível que alguns sejam suposto por si de tão a proposição "Sócrates é negro" seria im­
um termo e outros o sejam por acidente. Mas, possível, e isto porque a mesma coisa pode
considerando o suposto de outro modo, isto é, ser suposto por acidente de dois contrários su­
como o termo próprio de uma só coiso, que é cessivomente, embora não o possa ser contem-
chamado suposto porque um termo comum é poraneamente.
predicado daquele não por aquilo que é mas Ockham,
pelo seu significado, são ditos supostos por si Lógico dos termos.
CC a p ítu lo d é c im o o ita v o

Ulti m as -pi0 uras


e jim do p en sa m en to medi aval

~ I. O p c o b le m a ----------------
d o ^primado^ político

• Se Ockham negava ao papa a plenitudo potestatis tanto .


em âmbito político quanto espiritual, Egídio Romano era fautor
das teses opostas, isto é, que toda forma de autoridade tem QU jmpérj0?
origem divina, e portanto deriva do papa. Sobre as posições de $1 '
Ockham, mas com uma orientação filo-imperial encontrava-se
Dante. Sobre esta temática no conjunto, a posição mais significativa e meditada é
a de Marsílio de Pádua.

• No Defensor pacis Marsílio de Pádua (1275/1280-1342/1343) parte do pres­


suposto que o Estado é uma communitas perfecta, isto é, auto-suficiente, e total­
mente humana. Portanto, no que se refere à vida terrena, a
soberania cabe ao Estado e não à Igreja. O verdadeiro legisla­ O Estado
dor no Estado é a coletividade dos cidadãos ou a parte melhor é uma
dela, e as leis que emana são tais porque têm caráter coativo. communitas
No Estado, portanto, é a soberania popular que decide e san­ perfecta
ciona as leis, mas depois são as leis, e não as pessoas, que são -^§2
soberanas: onde as leis não são soberanas não existe Estado.

1 £gíd io Romano de sua vida religiosa, reconhece e fixa as ver­


dades que estão em sua base. É a Igreja que é
e jjoão de PaHs: infalível, não o papa ou o Concilio. E, sendo
tem peim a c io a C7geeja o poder do papa ministrativus e não domi-
ou o J7mpéeio? nativus, também é insustentável para Ockham
a pretensão do papado de Avignon no sentido
de que o poder do imperador derivaria de
Na obra política de Ockham, vimos Deus apenas através do papa. Na opinião de
como ele combatia o primado político do Ockham, Cristo e os apóstolos nunca pre­
papado. Contra o absolutismo do papa, tenderam estabelecer um reino temporal: sua
Ockham se remete à lei de Cristo, que é lei missão tinha por objetivo a salvação espiri­
de liberdade. O papa não pode pretender a tual. O império — aquele império que pas­
plenitudo potestatis nem no âmbito espiritual sou dos romanos para Carlos Magno e de­
nem no campo político. Na realidade, a pre­ pois à nação germânica — já existia antes de
ocupação básica de Ockham era com os Cristo e não esperou pelo papa para desen­
direitos da Igreja, que é “ a multidão de to­ volver suas funções. Em suma, para Ockham,
dos os católicos que viveram desde os tem­ substancialmente, vale a teoria proposta pela
pos dos profetas e dos apóstolos até hoje” . E primeira vez pelo papa Gelásio I (492-496),
é a tradição histórica da Igreja que, no curso segundo a qual o poder do papado e o do
322 Sétima parte - ( A s c o lá s + ic a no s é c u lo décimo q u a r+ o

império são independentes. Entretanto, en­ colástica, a obra política de Marsílio de Pá-
quanto o papa Gelásio formulava a teoria das dua destaca-se como um dos pontos mais
“ duas espadas” , porque, na época, ela estava significativos, representando claramente o
em função da reivindicação de autonomia da fim do pensamento medieval e o início da
Igreja em relação à política, mais tarde, em época moderna. E isso pelo fato de que as
um contexto histórico e político diferente, teorias políticas e jurídicas de Marsílio co­
especialmente com Inocêncio III (1198-1216), locam-se fora do âmbito em que se desen­
avançou decididamente a teoria do primado volvera a polêmica dos medievais: com efei­
do poder da Igreja sobre o do império. Daí to, Marsílio elabora sua doutrina sem levar
todas as polêmicas posteriores sobre o pre­ em conta o direito natural divino que, de
domínio de um ou de outro poder. um ou de outro modo, constituira um dos
O defensor da tese curial foi Egídio Roma­ pilares do pensamento medieval.
no (de Colonna), nascido em Roma em 1247,
aluno de santo Tomás em Paris, defensor do
tomismo contra a condenação de Estêvão
Tempier e de Roberto Kilwardby, mestre em 2 CDDefensor pacis cie
Paris depois da morte de Tempier, sagrado jMai^sílio de IPádua
arcebispo de Burges por Bonifácio VIII e
morto em Avignon em 1316. No seu De eccle-
siastica potestate, que é de 1302, Egídio Ro­ Marsílio Maierardini nasceu em Pádua
mano alinha-se em favor da tese curial, afir­ entre 1275 e 1280, indo mais tarde para Pa­
mando que tanto a autoridade política como ris, onde ensinou e onde, entre 1312e 1313,
qualquer poder derivam da Igreja ou através foi reitor da universidade. Em Paris, ele so­
da Igreja. E a Igreja se identifica com o papa. freu a influência do averroísmo latino, que
Nessa época, o mais tenaz opositor das separava claramente a razão da fé e, com a
teses do papista Egídio Romano foi João de doutrina da dupla verdade, eliminava os
Paris (1269-1306), que, no De potestate re­ obstáculos para o caminho do racionalismo
gia et papali, afirmou o direito dos indiví­ radical. Também averroísta era João de Jan-
duos à propriedade, negou que o papa pu­ dun, que se diz ter colaborado com Marsílio
desse se arrogar a plenitudo potestatis e lhe na elaboração de sua obra maior, que é o
atribuiu unicamente a função de adminis­ Defensor pacis, concluído em 1324. Mor­
trador dos bens da Igreja. reu entre 1342 e 1343. ;
Dante (1265-1321), no De monarchia, Examinemos as teses de fundo do De­
também se preocupou em defender o império fensor pacis. Pois bem, para Marsílio, o Es­
em relação às pretensões do papado. Segundo tado é uma communitas perfecta, uma co­
ele, as duas instituições visam a objetivos di­ munidade natural auto-suficiente, que se
ferentes: o império trata dos bens que pode­ ergue com base na razão e na experiência
mos conseguir nesta terra; a Igreja cuida da dos homens, servindo-lhes para “viver — e
bem-aventurança celeste. Assim, dadas as suas viver bem” . O Estado de que fala Marsílio
diferentes finalidades, as duas instituições são não é mais o Império universal, mas sim o
irredutíveis uma à outra. Mas, querendo-se Estado nacional, a comuna ou o magistra­
discutir o primado de uma das duas, então, do, isto é, o Estado de sua época. E, para
considerando que só o império pode assegu­ ele, esse Estado é construção humana, que
rar a paz e a justiça, tal primado cabe ao im­ responde a finalidades humanas, não haven­
perador, já que, pela perfeição da convivência do vínculos de natureza teológica.
humana, “convém ser um, como timoneiro, Fé e razão são distintas, como o são a
que, considerando as diversas condições do Igreja e o Estado. E este não deve se subme­
mundo, entre os diversos e necessários ofícios, ter àquela. Ao contrário, no que se refere à
tenha o bastão do universal e imbatível ofício vida terrena, é a Igreja que deve se subme­
de comandar [...]” . E essa figura é o impera­ ter ao Estado.
dor: “E ele o mandante de todos os manda­ Naturalmente, há a lei religiosa, que tem
mentos e o que ele diz é lei; por todos deve ser por fim a glória ou a pena “in saeculo
obedecido e todo outro mandamento é do seu venturo ”. E a lei mosaica, a evangélica, como
mandamento que adquire vigor e autoridade” . também a de Maomé e a dos próprios persas.
Em uma visão de conjunto, não é difí­ Mas, além dessa lei religiosa, há também a
cil constatar que, no panorama geral dos lei que constitui o critério do justo e do útil
autores citados e dos outros autores da es- no plano puramente humano e social. E essa
323
Capítulo décimo oitavo - Ú ltim a s figu ra s...

lei é tal porque é um mandamento coativo, vis humanos, sob ameaça de pena ou suplí­
ao qual está ligada “ uma punição ou uma cio terreno” .
recompensa a ser atribuída neste mundo” . A lei e o Estado, portanto, são coisas e
Desse modo, para Marsílio, a lei não construções humanas, encontrando sua jus­
tem um fundamento divino, nem um supor­ tificação unicamente no fato de serem esta­
te ético, nem se baseia no direito natural. belecidos pela vontade humana. E a lei que
Escreve ele no Defensor pacis: “Nós dize­ é soberana, não o indivíduo ou o governo,
mos que o legislador, isto é, a causa efetiva que o povo trata de controlar precisamente
primeira e própria da lei, é o povo, ou seja, por meio da lei, já que, juntamente com
a coletividade (universitas) dos cidadãos ou Aristóteles, Marsílio está convencido de que
a sua parte mais importante (valentior pars), “ onde as leis não são soberanas, não há ver­
que, por sua escolha, ou seja, por vontade dadeiro Estado” .
expressa em palavras na reunião geral dos Soberania popular e Estado de direito:
cidadãos, ordena, ou melhor, determina fa­ eis, portanto, os dois pilares inovadores da
zer ou omitir uma coisa relativa aos atos ci­ original teoria política de Marsílio de Pádua.

* * O P V S 1N S1GN E CV Ii
T I T V L V M jj‘LCi T A V r O R I i. NSOULM P AO> .
quod quvítioncm tii.imüm tjlimcoiiüniH-rl.imJ Vpotcíbíe na
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luecm piÍBian* ardúum.pcr quàmcaiugatc cc ditgewo'. tlsml
ucro conrin* a<,mck x oúcndic qui
prxfai luoern fcquitur.

Prontispício da primeira
edição impressa
do Defensor pacis
de Marsílio de Pádua
(Basiléia, 1522).
324 Sétima parte - A Ê s c o l ó s + i c a no sécwlo d é cim o qwaWo

II. D ois ^efoTmadoTes pTe-lu+eTanos:


J o ã o Wyclif- e 3 o ã o ■ hl uss

Dois precursores da Reforma foram o inglês João Wyclif e o boêmio João


Huss.
O primeiro, influenciado pelo determinismo teológico de
João Wyclif: Tomás Bradwardine (Deus é causa determinante dos atos hu­
o homem é manos voluntários), se dedicou a eliminar toda mediação entre
súdito de Deus Deus e os fiéis: o homem é súdito de Deus e não de outros, de
e não do papa modo que a comunidade dos fiéis tem como chefe diretamente
-+§ 1 Cristo e não o papa. Esta comunidade de fiéis tem pouco a ver
com a Igreja visível, rica e poderosa, e se identifica, ao contrá­
rio, com a Igreja invisível dos predestinados à salvação, cujo sinal de reconheci­
mento é a pobreza e a graça.

João Huss: • Sobre posições análogas às de Wyclif encontrava-se tam ­


reforma religiosa bém João Huss, que conjugou os temas de reforma religiosa
e liberdade com forte componente nacionalista (a liberdade da Boêmia con­
nacional tra o Império e a Igreja).
-^§2

1 3 °ão Wyclif' João Wyclif (1320-1384) estudou em


Oxford, onde sofreu influência das teorias
de Escoto e de Ockham, mas, sobretudo, das
concepções de Tomás Bradwardine (faleci­
Ockham e Marsílio definiram a dou­ do em 1349).
trina da oposição ao poder monárquico do M ais escotista do que ockhamista,
papado e, ao mesmo tempo, delinearam a Bradwardine fora professor em Oxford, ten­
doutrina da supremacia do Concilio. do escrito muitas obras, como De aritbme-
Essas idéias logo entraram em simbiose tica speculativa, De arithmetica pratica, De
com os interesses políticos de muitos sobe­ geometria speculativa, De velocitate mo-
ranos europeus, que queriam constituir múl­ tuum e Tabulae astronomicae. Mas a sua obra
tiplas Igrejas nacionais. mais conhecida é o tratado De causa Dei
A ação dos reinos e estados autôno­ contra Pelagium et de virtute causarum.
mos alcançou os efeitos desejados, também Partindo do axioma de que Deus é prin­
e sobretudo devido ao fato de que o papado cípio absoluto de tudo e suprema causa de
se encontrava em uma situação verdadeira­ todo acontecimento, Bradwardine, proce­
mente dramática. Durante o cativeiro de dendo matematicamente, deduz de modo
Avignon, fora reduzido a instrumento da rigoroso que a vontade divina não apenas é
política francesa e, sob João XXII, havia causa suficiente, mas também é a causa de­
perdido cada vez mais seu prestígio, trans­ terminante dos atos humanos voluntários.
formando-se em uma máquina financeira E isso, na sua opinião, significa que Deus
que se enriquecia à custa e nas costas das pode determinar a vontade humana no cum­
diversas regiões européias. Daí a revolta de primento de atos livres. Pois bem, seguindo
todos os que, distinguindo o poder civil do as pegadas de Bradwardine, Wyclif profes­
poder religioso, queriam levar a Igreja de sou rígido determinismo teológico. Foi du­
volta para o espírito do Evangelho. rante muitos anos professor de teologia em
Caminhava-se, na verdade, em direção Oxford, que se tornou centro da difusão de
à Reforma. E os dois pensadores mais re­ suas concepções.
presentativos da Europa pré-luterana são o Com base na idéia central de que a von­
inglês João Wyclif e o boêmio João EIuss. tade divina realiza e exerce um total domí­
Capítulo décimo oitavo - Ú l t i m a s figu m s...
325

nio sobre as ações humanas, Wyclif opôs à


autoridade do papa e do clero a autoridade
da Bíblia; negou a presença real de Cristo
na Eucaristia; negou a eficácia dos sacra­
mentos; rejeitou os ritos, em favor da
interioridade do ato de fé pessoal.
A partir de tais concepções, Wyclif par­
ticipou na controvérsia entre o papado e a
coroa inglesa sobre as candentes questões
jurisdicionais e fiscais da época. E, em luta
aberta contra a Igreja, assumiu o papel de
líder de um vasto movimento de rebelião
antieclesiástica.
Wyclif escreveu suas obras de nature­
za político-religiosa entre 1374 e 1384. Ela­
boradas depois de suas obras filosóficas (De Vista de Praga no séc. XVII,
em um entalhe da época
ideis e Tractatus de lógica), são elas: o De (Biblioteca Nacional, Praga).
dominio divino, o De officio regis e o De
potestate papae.
As teses principais que ele sustenta em
tais obras são as seguintes. O homem — vida e morte se fundiram com as reivindica­
cada homem — é imediata e diretamente ções que a Boêmia defendia (e continuou de­
súdito de Deus. Não há intermediários en­ fendendo) contra o Império e a Igreja.
tre Deus e cada homem. Ademais, a Igreja é Defensor da Igreja invisível dos eleitos,
a comunidade dos predestinados, comuni­ crítico feroz do luxo da Igreja e das injusti­
dade que tem Cristo por chefe e não o papa. ças sociais, fautor das teorias de Wyclif so­
A hierarquia e o aparato organizativo ex­ bre a paridade entre o clero e o laicato e da
terno só conseguem degradar a vida espiri­ urgência de pregar na língua nacional, João
tual, já que a verdadeira Igreja é a comuni­ Huss, em uma pregação feita diante da uni­
dade dos justos, que é a única soberana dos versidade em 1410, sustentou que a verda­
bens temporais coletivos. À Igreja visível, deira Igreja santa e católica era o corpo mís­
rica, hierarquizada e dedicada ao culto ex­ tico dos crentes unidos a Cristo e não aquela
terior e às guerras, Wyclif contrapõe a Igre­ instituição visível, hierarquizada e corrup­
ja invisível, a Igreja mística dos escolhidos ta, que deveria ser submetida ao contínuo
por Deus para a salvação. E como, precisa­ juízo da lei de Deus.
mente, a predestinação é vontade de Deus Wyclif e Huss delinearam doutrinas
e, portanto, mistério, para Wyclif a pobre­ que a Reforma levará à expressão mais ma­
za é o signum da pertença à verdadeira Igreja dura e conseqüente.
e da graça, muito embora as obras não se­
jam suficientes para a salvação, que perma­
nece como dom gratuito e misterioso da
vontade divina.
Com sua pregação, Wyclif difundiu
suas idéias entre o povo, que procurou tam­
bém aproximar da leitura direta da Bíblia.
E a tal movimento religioso ligaram-se es­
treitamente os anseios de reformas sociais
das camadas populares às quais Wyclif se
dirigia. Os “ Lollard” nele se inspiraram.

2 3oão f-luss
Na imagem João Huss (1369-1415),
reformador religioso boêmio,
As idéias de Wyclif também exerceram colocado na fogueira.
influência sobre a concepção teológico-po- No fundo da miniatura pode-se notar o papa,
lítica de João Huss (1369-1415), cuja obra, os cardeais e os bispos do concilio de Constança.
326 Sétima parte - A Ê sco ló s+ ica iao sécu lo décim o q u a H o

~ III. JV Icsfre £^ckkat*f ------


e a mística e s p e c u l a t i v a a l e m ã

• Sobre diretivas análogas a Wyclif e Huss, mas desenvol­


O misticismo
vidas com conteúdos totalm ente diversos, coloca-se Mestre
especulativo
de Mestre Eckhart
Eckhart. Também Eckhart se propôs a restabelecer o contato
-^§1 entre homem e Deus, tornando-o o mais direto possível, mas
escolhe para este escopo a via do misticismo sustentado pela
estrutura doutrinai dos neoplatônicos (razão pela qual se fala de misticismo
especulativo).

Deus é uno • O que Mestre Eckhart procura é uma relação direta en­
em todas as coisastre a criatura e o Criador, é justamente a unificação dos dois.
e acima O mundo e o homem sem Deus são nada, e a idéia do
de todas as coisasmundo está presente ab aeterno em Deus. Deve-se então afir­
- >§2 mar que em Deus coincidem pensamento e ser e que seu ser
puríssimo consiste justamente na capacidade de dar o ser às
coisas. Deus é também uno e princípio de unidade e como tal "desce totalmente
em todas as coisas", determinando a essência de cada uma, mas "o que é uno em
todas as coisas deve estar necessariamente sobre as coisas" (isto é, acima do ser).

• Neste quadro metafísico, o homem, se quer encontrar a


A volta a Deus si mesmo, deve remontar à origem de seu ser — ou seja, até
-^§3
Deus — pelo desapego das realidades mundanas e pela identi­
ficação com a vontade de Deus.

• É totalmente evidente que o pensamento de Eckhart,


O fim
do pensamento com sua volta ao neoplatonismo, se firma — embora com moti­
escolástico vações filosóficas totalmente diversas — no de Ockham ao de­
—>§ 4 cretar o fim do pensamento escolástico medieval de inspiração
aristotélica.

ram precisamente os discípulos de Alberto


■ l í ! •7^ 's r a z ° e s Magno que acentuaram os elementos neo­
da mística especulativa
platônicos. Assim, por exemplo, Guilherme
de Moerbecke, que traduziu Aristóteles por
santo Tomás, em 1268 aprontou a tradu­
À crise da teologia racional, com sua ção da Elementatio tbeologica de Proclo.
estrutura racional do séc. XIV, se empare­ Além disso, o Pseudo-Dionísio e o Liber de
lhou uma reemergência de instâncias místi­ causis (que é extrato dos Elementos de teo­
cas inspiradas no neoplatonismo. Na reali­ logia de Proclo) estavam bem presentes na
dade, a presença de Platão nunca deixou de escola de Colônia. E também não devemos
existir durante a Idade Média. Mesmo quan­ esquecer os Comentários ao Timeu e ao Par-
do o interesse por Aristóteles tornou-se qua­ mênides platônicos, também traduzidos por
se hegemônico, em princípios do século XIII, Guilherme de Moerbecke.
o neoplatonismo nunca esteve ausente. E Para dizer a verdade, também nos maio­
isso sobretudo na Alemanha, onde primei­ res escolásticos não falta nunca — de modo
ro a presença de Alberto Magno e depois mais ou menos forte — certa veia mística,
sua influência não permitiram a instaura­ já que, por mais longe que a razão possa ir,
ção de forte tradição tomista nem, da mes­ aquilo que conta mais do que qualquer ou­
ma forma, de forte tradição escotista. E fo­ tra coisa e antes de mais nada para o crente
Capítulo décimo oitavo - Ú l t i m a s figu ra s...
327

é o retorno a Deus e a união com Deus. Colônia, como mestre no Studium geral dos
Entretanto, quando a dissolução das preten­ dominicanos, tendo entre seus discípulos
sões da escolástica (dissolução iniciada com Henrique Suso. Eckhart é autor de um Opus
Duns Escoto e levada a conclusões mais con- tripartitum, de Quaestiones, de Pregações e
seqüentes por Ockham) minou a confiança de Tratados, estes últimos escritos em ale­
de que a razão pudesse pelo menos alcan­ mão. Morreu pelo ano 1327.
çar os preambula fidei, então a questão da A obra de Eckhart pode ser vista como
fé emergiu novamente, mais aguda do que busca significativa de justificação daquela
nunca, e o caminho do misticismo apareceu fé que, como apontamos, ficou sem o su­
como o único praticável para ligar o homem porte da razão. Seu pensamento está centra­
com Deus. De fato, o problema parecia mais do na idéia de unidade entre Deus e o ho­
premente do que nunca: se a fé não encon­ mem, entre o sobrenatural e o natural. Sem
tra nenhum suporte na razão, não sendo ela Deus, o homem e o mundo natural não te-
demonstrável, nem fundamentável, nem plau­ riam nenhum sentido e nada seriam.
sível por força da razão, não será ela então Escreve Eckhart: “ O ser e o conhecer
puro arbítrio, uma loucura a mais? coincidem realmente em Deus (...)” . Por
Era essa, portanto, a missão mais pre­ isso, desde sempre está presente em Deus a
mente que, em seu crepúsculo, a escolástica idéia das criaturas e a vontade de criar. Con-
punha diante dos homens de fé: restabele­ seqüentemente, as coisas estão ab aeterno
cer o contato entre o homem e Deus. no intelecto do próprio Deus, “porque Deus
E foi exatamente essa a questão enfren­ é intelecto e conhecimento e o seu conhecer
tada pela corrente constituída pelo misticis­ é o fundamento do próprio ser” . A esse res­
mo especulativo alemão. Misticismo porque peito, Eckhart referia-se ao Evangelho de
insiste no fato de que Deus está além de toda João: “No princípio era o Verbo e o Verbo
a nossa possibilidade conceituai e porque estava com Deus e o Verbo era Deus” . E
sustenta que o homem, afastado de Deus, comenta: “ O evangelista não diz: ‘No prin­
não é nada. Especulativo pelo fato de que cípio era o ente e Deus era o Ente’. Ora, o
está entremeado de filosofia, alimentando- Verbo refere-se totalmente ao intelecto, exis­
se sobretudo com as doutrinas neoplatônicas tindo nele como ato que diz ou como pala­
de Proclo e do Pseudo-Dionísio e assumin­ vra dita, encerrando em si o ser ou o não-
do como base central aquela teologia nega­ ser. E por isso que o Salvador diz: ‘Eu sou a
tiva que, por exemplo, em Tomás constituía Verdade’ ” . Deus, portanto, não é o ser, pois
apenas um elemento do seu sistema filosó- é ele quem cria o ser.
fico-teológico. Todavia, nós também podemos dizer
Pois bem, o mestre dominicano Eckhart que Deus é o ser, com a condição de que
foi o expoente principal desse movimento com isso não entendamos o ser enquanto
de pensamento místico-especulativo. E dele criatura, mas sim o ser pelo qual todas as
devemos falar agora. coisas existem: “ Se o ser convém às criatu­
ras, ele não está em Deus senão como na
causa: por isso, em Deus não está o ser, e
sim a pureza do ser” .
2 A d e stre éúckkaM-: Além disso, “Deus é caridade” . Ele o é
o komem e o mundo porque o amor unifica e se difunde. Deus é
são nada sem Deus
caridade e é uno; com efeito, é “ impossível
que existam dois infinitos” . De fato, “o uno
desce totalmente a todas as coisas que são
Mestre Eckhart (Equardus) nasceu em exteriores, múltiplas e numeradas; ele não
Hochheim, próximo a Gota, na Turíngia, se divide em cada uma das coisas, mas sim,
por volta de 1260. Ingressando no conven­ permanecendo uno incorrupto, insufla todo
to dos dominicanos de Erfurt, estudou de­ número e enforma com sua unidade” .
pois em Estrasburgo e em Colônia. Tornou- Deus, portanto, está em todas as cria­
se professor de teologia em 1302; ensinou turas: sem Deus, elas são nada. Mas o Deus
em Paris de 1302 a 1304. Exerceu cargos “ que está em todas as criaturas é o mesmo
na ordem dominicana. De 1311 a 1314, mo­ que está acima delas, pois aquilo que é uno
rou novamente em Paris. Em 1314, foi para em muitas coisas deve estar necessariamen­
Estrasburgo, onde se dedicou à pregação. A te acima das coisas” . As coisas são tais por­
partir de 1320, estabeleceu-se novamente em que têm uma essência, a qual não existiría
328 Sétima parte - A Ç tsco lá s+ ica no s é c u lo d é c im o q u a r to

se Deus não a houvesse pensado, se ela não ele queira derramar sobre nós vergonhas,
estivesse em Deus: “Deus está em todas as cansaços ou dores, (pois a coisa melhor é)
criaturas, pois elas têm uma essência, e nem aceitar tudo isso com prazer e reconhecimen­
por isso deixa de estar acima delas. E ele, to, deixando-se guiar por Deus ao invés de
que está em todas as criaturas, é o mesmo perturbar-se” . Naturalmente, o homem “ de­
que está acima delas, pois aquilo que é uno ve se exercitar nas obras, que são o fruto
em muitas coisas deve estar necessariamen­ das virtudes (...)” , e, no entanto, “é preciso
te acima das coisas” . aprender a ser livre mesmo em meio às nos­
Deus-está-acima-do-ser. O ser pode ser sas obras” .
conhecido, mas Deus é inefável. Livres também para a morte: “ O ho­
Concluindo, o grande conceito (expres­ mem verdadeiramente perfeito deve habi­
so por Platão na República e depois difun­ tuar-se à morte, sair de si e transformar-se
dido largamente pelos neoplatônicos) do de tal modo em Deus que a sua única bem-
Princípio supremo acima-do-ser predomina aventurança seja não saber mais nada de si
em nosso filósofo. E, afirma Eckhart, quan­ e de qualquer outra coisa, mas apenas de
do digo que Deus não é o ser, mas está aci­ Deus, não conhecendo outro querer senão
ma do ser, “com isto não lhe tirei o ser; ao o querer de Deus e conhecer a Deus como
contrário, eu o enobreci” . ftffglT l Deus o conhece, conforme o que diz são
Paulo” .
O retorno do homem a Deus exige a
alma “ livre e despojada de toda coisa cria­
3 i CD retomo do kometn a Peus da” . Somente assim é que a alma “capta
Deus e está em Deus, una com Deus, vendo
Deus face a face” . E a alma que está em Deus
Tudo aquilo que existe, existe por obra está “ pronta a receber todo ataque, toda
do Ser divino, que “ ama necessariamente” . provação, contrariedade ou dor, suportan­
Assim, as coisas e o próprio homem, sem do-os de bom grado, com espírito alegre e
Deus, são nada. Essa é a razão pela qual o sereno (...), repousando tranqüilamente na
homem deve voltar para Deus: somente riqueza e na comunhão da inefável sabedo­
retornando a Deus é que o homem encon­ ria superior” . Com efeito, a dor é insupor­
trará a si mesmo. E nós “ captamos Deus na tável quando o homem sofre por si mesmo,
alma, que possui uma gota da razão, uma mas, se sofre por Deus, então o sofrimento
centelha, um germe” . não dói, “ já que Deus suporta o peso” : “ Se
Novamente, é a razão que deve ser cap­ me fosse posto um peso de quatro arrobas
turada por Deus e se aprofundar nele. Mas, sobre os ombros, mas outro carregasse o
para tanto, o homem deve tornar-se um es­ peso, de bom grado me submetería a um ou
pírito livre: “ Espírito livre é aquele que não a cem quilos, já que não me seria pesado
se preocupa com nada e a nada se liga, não nem me faria mal” .
se vincula de modo algum ao seu interesse e
não pensa em si mesmo nem em nada, já
que se aprofunda na amantíssima vontade
de Deus, renunciando à própria vontade” . 4 Oposições suscitadas
Eckhart afirma que aquele que é reto por éccLckart
tem verdadeiramente Deus em si. E quem
e seus discípulos
tem Deus “ o tem em todos os lugares, nas
ruas e entre as pessoas, da mesma forma
que na Igreja, na solidão ou na cela. Se ele A condenação de dezessete teses de
o possui verdadeiramente e o possui sem­ Eckhart como heréticas e de onze como te­
pre, ninguém poderá perturbá-lo” . Como merárias feita por João XXII é significati­
nada pode perturbar a Deus, também nada va. Suas idéias têm alcance demolidor de
pode perturbar o homem que “ leva Deus alguns dos eixos que sustentavam o pensa­
em todas as suas obras e em todo lugar” , mento medieval, e seu neoplatonismo dissol­
já que “toda obra sua é muito mais obra ve os pilares do aristotelismo e sua media­
de Deus” . ção sintética não aparece mais possível como
Assim, é preciso “ precaver-se de si fora, ao invés, em Tomás de Aquino.
mesmo” e ser “ livre dos desejos” . O que im­ Foram discípulos de Eckhart João Tau-
porta é abandonar-se em Deus, “mesmo que ler (1300-1361) e Henrique Suso (1296-1366).
329
Capítulo décimo oitavo - Úl+í m a s f i g u r a s . ..

A influência de Eckhart se fez sentir sobre o te publicada pela primeira vez por Lutero
holandês João de Ruysbroeck (1293-1381) entre 1516 e 1518.
e na obra mística que se tornou famosa, Ockham e Eckhart, em sentido opos­
intitulada Teologia alemã, escrita em Frank­ to, exprimem do modo mais significativo o
furt por um dominicano anônimo na segun­ fim do pensamento escolástico e da Idade
da metade do século XIV, e significativamen­ Média.

Colônia em uma incisão


da Idade Média tardia.
A presença dos dominicanos
na cidade teve grande
relevância cultural.
Aqui estudou
Tomás de Aquino
na escola de Alberto Magno.
Aqui se formou
também Mestre Eckhart,
cuja mística especulativa
ultrapassa o horizonte
cultural da Escolástica.
330
Sétima patte - 7A é E é c o lé s t i c a n o s é c u lo d é c i m o q u a r t o

o homem verdadeiro e a Verdade, para o justo


M estre E ckhart e a Justiça, para o sábio e o Sabedoria, para o
Filho de Deus e para Deus Pai, para tudo aqui­
lo que nasceu de Deus e não tem pai sobre a
terra, no qual nada se gera que seja criado e
que não seja divino, no qual não há nenhuma
imagem, mas apenas Deus puro e simples. Diz,
Dl Ver Deus nos criaturas com efeito, são João em seu Cvangelho que "o
poder de se tornar filho de Deus foi dado àque­
e as criaturas em Deus les que não do sangue, nem da vontade da
é fonte de verdadeira carne, nem da vontade do homem, mas de Deus
consolação e apenas de Deus nasceram".
Por "sangue" ele entende tudo aquilo que
Primeiramente é preciso saber que o sá ­ no homem não está submetido ao querer do
bio e o Sabedoria, o homem verdadeiro e a homem. Por "vontade da carne" entende tudo
Verdade, o justo e a Justiça, o homem bom e a aquilo que no homem está submetido à sua
Bondade se referem um à outra e que tal é sua vontade, mas com repugnância e rebelião está
reloçõo recíproca: a Bondade não é nem cria­ inclinado aos desejos carnais, que pertence
do, nem feito, nem gerada: ela é antes gera­ tanto à alma quanto ao corpo e não reside
dora e gera o homem bom, o qual, enquanto apenas na alma: eis por que estas faculdades
tal, não é nem produzido, nem criado, mas é se cansam, adoecem e envelhecem. Por “von­
gerado, prole e filho do Bondade. B Bondade tade do homem" são João entende as mais a l­
gera a si mesma e tudo aquilo que elo é, no tas potências da alma, cuja natureza e cuja ati­
homem bom: ser, conhecer, amar, operar, tudo vidade não se misturam com a carne e são, na
ela efunde no bom, e o bom recebe todo o seu pureza da alma, separadas do tempo e do es­
ser, o seu conhecimento, o seu amor e a sua paço e de tudo aquilo que com o tempo e o
operação do coração e do íntimo da Bondade, espaço tem ainda certa relação e certo simpa­
e apenas dela. O homem bom e o Bondade tia, que não têm nada em comum com outro e
não são mais que uma só bondade, com a dis­ nas quais o homem é formado à imagem de
tinção que existe entre o gerar e o ser-gerado: Deus, é da raça de Deus e da parentela de
e, todavia, o gerar da Bondade e o ser-gerado Deus. F todavia, uma vez que elas não são o
do homem bom são absolutamente um só ser, próprio Deus mas criadas (geschoíFen) na alma
uma só vida. Tudo aquilo que pertence ao bom, e com a alma, é necessário que sejam despo­
ele o recebe da Bondade e na Bondade: aqui jadas de si mesmas e transformadas apenas
ele existe, vive e habita: aqui ele se conhece, em Deus e geradas em Deus e por Deus, a fim
e tudo aquilo que conhece e ama, aqui o co­ de que apenas Deus seja o Pai: é assim com
nhece, ama e opera com a Bondade, na Bon­ efeito que elas são também nascidas de Deus
dade, e a Bondade realiza com ele e nele to­ e são o Filho unigênito de Deus. Uma vez que
das as suas obras, conforme tudo o que está sou filho de tudo aquilo que me forma e me
escrito — e é o Filho que o diz: "O Pai que está gera semelhante a si e em si mesmo. Tal ho­
em mim e habita em mim realiza os obras". "O mem, filho de Deus, bom porque filho da Bon­
Pai age até agora, e também eu ajo". Tudo dade, justo porque filho da Justiça, é unicamente
aquilo que pertence ao Pai é meu, e tudo aqui­ seu filho, enquanto ela gera sem ser gerada, e
lo que pertence a mim é do Pai: o seu dar é o o filho que ela gera possui o mesmo ser da
meu receber". Justiça e entra em posse de todas as proprie­
fllém disso, é preciso saber que quando dades da Justiça e da Verdade.
dizemos "bom", o nome, a palavra não significa e Fm toda esta doutrina, que está escrita
não implica em si nada mais, e nem mais nem no santo Fvangelho e é reconhecida com certeza
menos, que a simples e pura Bondade: assim na luz natural da alma racional, o homem en­
mesmo ela se dá. Quando dizemos que alguém contra a verdadeira consolação para toda dor.
é "bom", entendemos que sua bondade lhe é Santo Agostinho diz: "Fm Deus não há nem
dada, infusa e gerada pela Bondade ingene- distância, nem extensão (lane). Se queres que
rada. Por isso o Fvangelho diz: "Como o Pai tem a nada seja para ti longínquo ou extenso, refu­
vida em si mesmo, assim deu ao Filho ter tam­ gia-te em Deus, porque nele mil anos são como
bém a vido em si mesmo". Cie diz "em si mesmo" o dia de hoje". Por isso eu digo: em Deus não
e não "por si mesmo", pois é o Pai que lha deu. há nem tristeza, nem dor, nem aflição. Se que­
Isso que eu disse até agora a respeito do res ser livre de toda tribulação e sofrimento,
homem bom e da Bondade vale também para dirige-te a Deus e apega-te a ele somente.
331
Capítulo décimo oitavo - Ú l t i m a s fig u r a s ...

Indubitavelmente toda dor provém do foto de ânimo imperturbável na paz de seu coração, é
que não tendes o Deus e apenas o Deus. Se então verdadeiro aquilo que eu disse: que nada
fosses formado e gerado unicamente pela Jus­ daquilo que lhe ocorre pode perturbar o justo.
tiça, nada verdadeiramente poderio fazer-te Mas se, ao invés, ele é perturbado pelos ma­
sofrer, como a Justiça não pode fozer sofrer o les exteriores, é verdadeiramente justo e cor­
próprio Deus. Salomão diz: "Nada do que pode reto que Deus tenha permitido que a adversi­
acontecer pode fazer o justo sofrer". G e não dade aconteça a este homem que queria ser
diz "o homem justo", ou "o anjo justo", nem isto justo e se iludia de sê-lo, enquanto coisas tão
nem aquilo. G e diz: "o justo". Rquilo que per­ mesquinhas podiam perturbá-lo. Se este é o
tence a certo indivíduo justo e faz com que a direito de Deus, este homem na verdade não
justiça seja sua propriedade e ele seja justo, é deve se entristecer mas gozar disso mais que
o fato de que ele é filho e tem um poi sobre a da própria vida, da qual na realidade cada um
terra e é criatura feita e criada, pois seu pai é se alegra e que é para todo homem mais pre­
criatura feita e criada. Mas aquele que é abso­ ciosa do que o mundo inteiro: com efeito, de
lutomente justo enquanto não tem um pai feito que serviria ao homem o mundo inteiro se ele
e criado, não pode ser atingido por sofrimen­ não existisse mais?
tos e dores, assim como Deus não pode ser fl terceira palavra que podemos e deve­
atingido por eles, pois Deus e a Justiça são umo mos saber é esta: segundo a verdade natural,
só coisa e apenas a Justiça é o pai deste justo. apenas Deus é a fonte e manancial de todo
R Justiça não pode fazê-lo sofrer, pois a Justiça bem, de toda verdade essencial e da consola­
é toda amor, olegria e delícia,- e depois, se a ção, e tudo aquilo que não é Deus tem em si
Justiça causasse dor ao justo, ela a causaria natural amargura, desconforto e dor, e não
também a si mesma. Nada de dessemelhante acrescenta nada à bondade que vem de Deus
e de injusto, nenhuma coisa feita ou criada po­ e é Deus; pelo contrário, minimiza, cobre e e s­
derio fazer o justo sofrer, pois toda coisa criada conde a doçura, o conforto e a suavidade que
está longe sob ele, como está longe sob Deus, Deus dá.
não exerce nenhuma impressão nem influência Rlém disso, digo que toda pena deriva
sobre o justo e não nasce nele, que tem como do amor por aquilo que a adversidade me ti­
pai apenas Deus. Por isso, o homem deve fa­ rou. Portanto, se a perda de coisas exteriores
zer de modo a destacar-se de si mesmo e de me provoca sofrimento, isto é sinal certo de que
todas as criaturas e reconhecer apenas Deus amo as coisas exteriores, isto é, que amo ver­
como Pai. Éntõo nada pode acarretar-lhe dor e dadeiramente a dor e a aflição. Que maravi­
aflição, nem Deus nem a criatura, nem coisa cria­ lha, portanto, se sofro, a partir do momento que
da nem incriada; e todo o seu ser, vida, conhe­ amo e busco o sofrimento e o desconforto? Meu
cimento, saber e amor é de Deus, em Deus e coração e meu amor atribuem à criatura a Bon­
Deus. dade que é propriedade de Deus. £u me dirijo
Há ainda outra coisa que devemos saber, para a criatura de onde provém naturalmente a
ou seja, aquilo que consola igualmente o ho­ aflição, e me afasto de Deus do qual flui todo
mem em todas as suas adversidades. Isto é, conforto. Por que então me admiro se me en­
que o homem justo e bom goza certamente de tristeço e sofro? Na verdade, é impossível a
modo incomparável e também inexprimível da Deus e ao mundo inteiro que o homem encon­
obra da Justiça, mais do que ele próprio ou o tre a verdadeira consolação quando a busca
anjo mais elevado possam gozar em sua essên­ nas criaturas. Mas quem amasse apenas a Deus
cia natural e em sua vida. Gs por que os santos nas criaturas e as criaturas apenas em Deus
deram com alegria sua vida pela Justiça. encontraria em todo lugar uma consolação ver­
Rgora eu digo: se ao homem bom e justo dadeira, justa e imutável.
acontecem a partir de fora coisas desagradá­ Mestre tEckhart,
veis e ele todavia permanece com o mesmo Tratados e predicas.
B i b l i o g r a f i a d o volume II

Obras de caráter geral go em paralelo, sob a direção de G. Girgenti, Rus­


coni, Milão, 1995.
S. Vanni Rovighi, La filosofia patristica e medievale,
em W . AA., Storia delia filosofia, sob a direção de Atenágoras: La supplica per i Cristiani. Delia
C. Fabro, Coletti Editore, Roma, 1954; A.C. Crom- resurrezione dei morti, texto, introdução, tradução
bie, Da S. Agostino a Galileo. Storia delia scienza e notas sob a direção de P. Ubaldi e M. Pellegrino,
dal V al XVII secolo, Feltrinelli, Milão, 1970,19822; Sei, Turim, 1947.
W. Kneale - M. Kneale, Storia delia lógica, Einaudi, Teófilo: S. Teófilo Antioqueno, I tre libri ad Auto-
Turim, 1972; E. Gilson, La filosofia dei Medioevo. lico, sob a direção de S. Frasca, Turim, 1939.
Dalle origini patristicbe alia fine dei XIV secolo, La Carta a Diogneto: A Diogneto, introdução, tradu­
Nuova Italia, Florença, 1973; M. Grabmann, Storia ção e notas de S. Zincone, Borla, Roma, 1981.
dei Medioevo scolastico, 2 vol., La Nuova Italia, Flo­
Clemente de Alexandria: II Protrettico. II Pedagogo,
rença, 1980; J. Quasten, Patrologia, vol. I: I primi
sob a direção de M.G. Bianco, Utet, Turim, 1971.
due secoli (II e III); vol. II: I Padri greci (secoli IV e
V); vol. III: I Padri latini (secoli IV e V), Marietti, Orígenes: Commento al Vangelo di Giovanni, sob
Turim, 1980; B. Altaner, Patrologia, Marietti, Turim, a direção de E. Corsini, Utet, Turim, 1968; Contro
1981; G. Vasoli, La filosofia medioevale, Feltrinelli, Celso, sob a direção de A. Colonna, Utet, Turim,
Milão, 19826 (cf. as pp. 501-683, onde se encontra 1971; I Principi, sob a direção de M. Simonetti, Utet,
uma bibliografia geral ampla e sistemática). Turim, 1979.
Gregório de Nissa: La vita di Mosè, sob a direção
de C. Brigatti, Città Nuova, Roma, 1966; L’anima
Primeira parte (cap. 1) e la resurrezione, sob a direção de S. Lilla, Città
A revolução espiritual da mensagem bíblica Nuova, Roma, 1981; La grande catechesi, sob a
direção de M. Naldini, Città Nuova, Roma, 1982;
Textos La vita di Mosè, sob a direção de M. Simonetti,
Para o Antigo e o Novo Testamento: Bíblia de Jeru­ Mondadori, Milão, 1984.
salém, Paulus, São Paulo, 2002. Pseudo-Dionísio Areopagita: Tutte le opere, tradu­
ção de P. Scazzoso, introdução, prefácio, paráfrase
Literatura e notas de E. Bellini, Rusconi, Milão, 1981.
C. Moeller, Saggezza greca e paradosso cristiano, Máximo o Confessor: H.U. von Balthasar, Liturgia
Morcelliana, Bréscia, 1961; J. Quasten, Patrologia, cósmica. Uimmagine delPuniverso in Massimo il
cit., vol. I-III, passim; B. Altaner, Patrologia, cit., Confessore, Ave, Roma, 1976; M.L. Gatti, Massimo
passim. il Confessore, Vita e Pensiero, Milão, 1987.
Literatura
Segunda parte (caps. 2-4)
J. Quasten, Patrologia, cit., vol. I, pp. 175-194,202­
A Patristica na área cultural de língua grega 222, 287-368; vol. II, pp. 257-299; B. Altaner, Pa­
trologia, cit., pp. 67-80,194-211,313-318,538-561.
Textos
Fílon de Alexandria: UErede delle cose divine, pre­
fácio, tradução e notas de R. Radice, introdução de Terceira parte (caps. 5-6)
G. Reale, Rusconi, Milão, 1981 (cf. também a tra­ A Patristica na área cultural de língua latina.
dução dos 19 tratados do Commentario allegorico, Santo Agostinho.
sob a direção de G. Reale, C. Kraus Reggiani, C.
Mazzarelli, R. Radice, Rusconi, Milão, 1981-1988). Textos
Escritos gnósticos: Gli Apocrifi dei Nuovo Testa­ Minúcio Félix: Ottavio, sob a direção de E. Paratore,
mento, sob a direção de M. Erbetta, 3 vols. em 4 Laterza, Bari, 1971.
tomos, Marietti, Turim, 1966-1981. Tertuliano: Apologetico, tradução de E. Buonaiuti,
Justino: Le apologie, introdução, tradução e notas introdução, revisão e comentário de E. Paratore,
de L. Rebuli, Pádua, 1982; Apologie, con texto gre­ Laterza, Bari, 1972.
334 B i b l io g r a f ia d o volume I!

Agostinho: na “Nuova Biblioteca Agostiniana” Cap. 10


(Città Nuova), a partir de 1965, estão aparecendo Abelardo e a grande controvérsia
as obras de Agostinho em tradução italiana com sobre os universais
texto latino em paralelo, sob a direção de A. Trapé.
Entre estas mencionemos: vol. I: Le Confessioni, sob
a direção de C. Carena, Roma, 1969; vol. III: Textos
Dialoghi, sob a direção de D. Gentilini, Roma, 1970­ Pedro Abelardo: Scritti di lógica, sob a direção de M.
1976; vol. IV: La Trinità, sob a direção de G. Dal Pra, La Nuova Italia, Florença, 1969; Conosci
Beschin, Roma, 1973. Vejam-se também: La città te stesso o Etica, sob a direção de M. Dal Pra, La
di Dio, sob a direção de C. Borgogno, 2 vols., Edi- Nuova Italia, Florença, 1976; Storia delle mie dis-
zioni Paoline, Roma, 1947, diversas vezes reeditado; grazie. Lettere d’amore di Abelardo a Eloisa, sob a
Le Confessioni, sob a direção de O. Trescari, Sei, direção de F. Roncoloni, Garzanti, Milão, 1979;
Turim, 1956; De Trinitate, instrodução de A. Landi, Teologia dei Sommo Bene, com texto latino em pa­
tradução e notas de C. Borgogno, Edizioni Paoline, ralelo, sob a direção de M. Rossini, Rusconi, Mi­
Roma, 1977; La città di Dio, introdução, tradu­ lão, 1996.
ção e notas de L. Aliei, Rusconi, Milão, 1984;
Amore assoluto e “terza navigazione”, com texto Literatura
latino em paralelo, sob a direção de G. Reale, Rus­ E. Gilson, Abelardo e Eloisa, Einaudi, Turim, 1970;
coni, Milão, 1994; Sulla bugia, com texto latino M.T. Beonio-Brocchieri Fumagalli, Introduzione a
em paralelo, sob a direção de M. Bettetini, Rusconi,
Abelardo, Laterza, Roma-Bari, 1974; A. Crocco,
Milão, 1994; La natura dei bene, com texto latino
Abelardo. Ualtro versante dei Medioevo, Liguori,
em paralelo, sob a direção de G. Reale, Rusconi,
Nápoles, 1979.
Milão, 1995.

Literatura
Sexta parte (caps. 12-16)
J. Quasten, Patrologia, cit., vol. I, pp. 414-421,493­
574; vol. III, pp. 325-434; B. Altaner, Patrologia,
A Escolástica
cit., pp. 148-166, 429-474. no século décimo terceiro.
Tomás de Aquino,
Boaventura de Bagnoregio,
Quarta parte (caps. 7-8) João Duns Escoto
Gênese da Escolástica.
Boécio e Escoto Eriúgena Textos
Textos Tomás de Aquino: La Sommna teologica, com
texto latino em paralelo, sob a direção dos Do­
Severino Boécio: Consolazione delia filosofia, com minicanos italianos, 34 vols., Salani, Florença,
texto latino em paralelo, sob a direção de L. Ober- 1949ss; Ente ed essenza, com texto latino em pa­
tello, Rusconi, Milão, 1996. ralelo, sob a direção de P. Porro, Rusconi, Milão,
Literatura 1995.
Cf. as obras de caráter geral citadas no início; para Boaventura de Bagnoregio: Itinerário delPanima a
Escoto Eriúgena: M. Dal Pra, Scoto Eriúgena, Dio, com texto latino em paralelo, sob a direção de
Bocca, Milão, 1951; P. Mazzarella, II pensiero di L. Mauro, Rusconi, Milão, 1996.
G. Scoto Eriúgena, Cedam, Pádua, 1957; T. Gre- Roger Bacon: veja-se E. Bettoni, La scolastica pos-
gory, G. Scoto Eriúgena. Tre studi, Le Monnier, Flo- tomistica, em Grande Antologia Filosófica, Mar-
rença, 1963. zorati, Milão, 1954, vol. IV.
Duns Escoto: veja-se O. Todisco, La ragione nella
Cap. 9 fede secondo G. Duns Scoto, Centro di Studi Fran-
Anselmo de Aosta cescani, Roma, 1978.

Literatura
Textos
Além das obras de caráter geral citadas no início e
Anselmo de Aosta: Opere filosofiebe, sob a direção as obras críticas citadas entre os textos, remetemos
de S. Vanni Rovighi, Laterza, Bari, 1969; Monolo- a: E. Gilson, La filosofia di San Bonaventura, sob a
gion, com texto latino em paralelo, sob a direção direção de C. Marabelli, Jaca Book, Milão, 1995;
de I. Sciuto, Rusconi, Milão, 1995; Proslogion, com G. Fassò, Storia delia filosofia dei diritto, vol. I, II
texto latino em paralelo, sob a direção de I. Sciuto, Mulino, Bolonha, 1966; S. Vanni Rovighi, Intro-
Rusconi, Milão, 1996. duzione a Tommaso d’Aquino, Laterza, Bari, 1981
Literatura (destas obras foi tirada também a tradução de al­
Além das obras de caráter geral, veja-se S. Vanni guns trechos citados no texto). Cf. também: E.
Rovighi, S. Anselmo e la filosofia dei secolo XI, Bettoni, Duns Scoto filosofo, Vita e Pensiero, Mi­
Bocca, Milão, 1949. lão, 1966.
B i b l io g r a f ia do volume II
335

Cap. 17 Cap. 18
Guilherme de Ockham, Ultimas figuras
os Ockhamistas e a crise da Escolástica e fim do pensamento medieval

Textos Textos
Guilherme de Ockham: Filosofia, teologia, política, Marsílio de Pádua: Defensor pacis, sob a direção
sob a direção de A. Coccia, Andò, Palermo, 1966. de C. W. Previté-Orton, Cambridge, 1928.
Para os Ockhamistas: F. Bottin, La scienza degli Mestre Eckhart: Trattati e prediche, sob a direção
Occamisti, Maggioli Editore, Rimini, 1982. Veja- de G. Faggin, Rusconi, Milão, 1982.
se também Th. S. Kuhn, La struttura delle rivolu- Para os trechos de Dante Alighieri citados remete­
zioni scientifiche, Einaudi, Turim, 1969. mos a: Convívio, em Le opere di Dante, “ Società
Dantesca Italiana” , Florença, 19602.
Literatura
Além das obras de caráter geral citadas no início e Literatura
as obras críticas citadas entre os textos, remetemos Para Marsílio de Pádua: G. De Lagarde, Alie origini
a: G. De Lagarde, Alie origini dello spirito laico, 5 dello spirito laico, cit., vol. III.
vols., Morcelliana, Bréscia, 1964-1968 (Ockham é Para Mestre Eckhart: G. Faggin, Meister Eckhart e
tratado nos vols. IV e V); A. Ghisalberti, Introdu- la mistica tedesca preprotestante, Bocca, Milão,
zione a Guglielmo di Ockham, Laterza, Roma-Bari, 1946; A. Klein, Meister Eckhart. La dottrina mistica
1976. delia giustificazione, Mursia, Milão, 1978.

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