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TRILHANDO O CAMINHO DA ORAÇÃO COM JESUS

Introdução à
Vida Espiritual

BRANT PITRE
Autor de O Caso de Jesus
Introdução à
Vida Espiritual
TRILHANDO O CAMINHO DA ORAÇÃO COM JESUS

BRANT PITRE

I
Image | Nova York
Copyright © 2021 por Brant Pitre
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DO CONGRESSO
Nomes: Pitre, Brant James, autor.
Título: Introdução à vida espiritual / Brant Pitre.
Descrição: Primeira edição. | Nova York: Imagem, 2021.
Identificadores: LCCN 2021012930 (imprimir) | LCCN 2021012931 (e-
book) ISBN 9780525572763 (capa dura) | ISBN 9780525572770 (ebook)
Assuntos: LCSH: Vida espiritual - Igreja Católica. | Formação espiritual – Igreja
Católica.
Classificação: LCC BX2350.3.P564 2021 (imprimir) | LCC BX2350.3 (e-
book) | CDD
248,4/82—dc23
Registro LC disponível em https://lccn.loc.gov/ 2021012930
Registro de e-book LC disponível em https://lccn.loc.gov/ 2021012931
Ebook ISBN 9780525572770
coroapublishing.com
Design do livro de Virginia Norey, adaptado para e-book Arte da capa:
Way to Emmaus, de Robert Zünd
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CONTEÚDOS
INTRODUÇÃO......................................................................................................................... 5
ORAÇÃO................................................................................................................................. 12
1- ORAÇÃO VOCAL ............................................................................................................. 12
2 MEDITAÇÃO ...................................................................................................................... 19
3 CONTEMPLAÇÃO ............................................................................................................ 29
O CAMINHO ESPIRITUAL................................................................................................. 37
4 O PRIMEIRO PASSO ........................................................................................................ 37
5 OS DEZ MANDAMENTOS ............................................................................................... 45
6 AS TRÊS TENTAÇÕES ..................................................................................................... 53
7 JEJUM .................................................................................................................................. 60
8 ESMOLA .............................................................................................................................. 67
9 A ORAÇÃO DO SENHOR ................................................................................................. 74
VÍCIOS E VIRTUDES........................................................................................................... 83
10 OS SETE PECADOS......................................................................................................... 83
11 ORGULHO VS. HUMILDADE ....................................................................................... 90
12 INVEJA VS. MISERICÓRDIA ....................................................................................... 99
13 IRA VS. MANSIDÃO...................................................................................................... 107
14 AVAREZA VS. GENEROSIDADE ............................................................................... 114
15 LUXÚRIA VS. CASTIDADE ......................................................................................... 121
16 GULAA VS. TEMPERANÇA ........................................................................................ 130
17 PREGUIÇA VS. DILIGÊNCIA ..................................................................................... 137
18 TRISTEZA VS. PACIÊNCIA ........................................................................................ 145
FAZENDO PROGRESSO ................................................................................................... 153
19 EXAME DO CORAÇÃO................................................................................................ 153
20 LECTIO DIVINA E A ESCADA DE JACÓ .................................................................. 162
21 A BATALHA DA ORAÇÃO .......................................................................................... 171
22 A NOITE ESCURA ......................................................................................................... 179
23 A ÁGUA VIVA ................................................................................................................ 187
AGRADECIMENTOS ......................................................................................................... 196
NOTAS................................................................................................................................... 198
SOBRE O AUTOR ............................................................................................................... 250
5

INTRODUÇÃO
Se alguém tem sede, venha a mim e beba.
—Jesus de Nazaré (João 7:37)
HÁ MUITOS ANOS, UM AMIGO se ofereceu para me dar alguns livros
gratuitos de sua biblioteca teológica pessoal. Na época, eu era um jovem professor
com um novo doutorado e uma montanha de dívidas estudantis. Escusado será
dizer que aceitei. Mal sabia eu que por “alguns” ele queria dizer bem mais de mil.
No final, ele me enviou mais de cinquenta caixas grandes, cheias de livros sobre
o Antigo Testamento, o judaísmo antigo, o Novo Testamento e o cristianismo
primitivo — todos tópicos que estudei durante meu programa de doutorado na
Universidade de Notre Dame.
Várias caixas, no entanto, continham livros sobre teologia espiritual – um
assunto sobre o qual eu não sabia quase nada. Estes incluíam obras de antigos
escritores cristãos como João Cassiano e João Clímaco; místicos medievais como
Catarina de Siena e Tomás de Kempis; e mestres espirituais modernos como
Inácio de Loyola, Teresa de Ávila e João da Cruz.
Depois que comecei a ler os clássicos espirituais, não consegui parar. Era
como beber água de um poço depois de passar anos no deserto. Comecei a
aprender pela primeira vez sobre meditação, contemplação, os sete pecados
capitais, suas virtudes opostas e outros temas. Naquele ano, quando me pediram
para ministrar uma disciplina eletiva, soube imediatamente que s eria sobre
teologia espiritual. Contudo, como minha pesquisa de doutorado foi em estudos
bíblicos, optei por focar nas raízes bíblicas da espiritualidade cristã.
Até hoje, esse curso continua sendo a experiência mais poderosa que já tive
em sala de aula. 1 Estudar os fundamentos bíblicos da vida espiritual não era
apenas informativa; foi transformador. Isso me mudou. Também pareceu ter um
impacto semelhante em meus alunos. Mais de uma vez eles perguntaram: “Por
que nunca ouvimos isso antes?” Juntos, percebemos que estávamos provando algo
precioso, que o próprio Jesus chama de “a única coisa” que é “necessária” (Lucas
10:42).2 Durante esse tempo, fiz várias descobertas que lançaram as bases para
este livro.
TRÊS TIPOS DE ORAÇÃO
A primeira coisa que aprendi foi que existem diferentes tipos de oração.
Crescendo como católico, sempre presumi que a oração envolvia simplesmente
dizer as palavras de certas orações memorizadas, como o Pai Nosso. Porém, assim
6

que comecei a ler os clássicos espirituais, descobri rapidamente que a vida


espiritual envolve muito mais. Embora a oração vocal seja essencial, existem pelo
menos três formas principais de oração:
1. Oração vocal: orar com palavras, sejam elas memorizadas ou
espontâneas.
2. Meditação: orar com a mente, especialmente lendo e refletindo sobre as
Escrituras e entrando em diálogo com Deus.
3. Contemplação: rezar com os “olhos” do coração, com desejo amoroso
de “ver” o rosto de Deus.
Cada uma delas é profundamente bíblica. O próprio Jesus ensina aos seus
discípulos uma oração vocal quando lhes dá a Oração do Pai Nosso (ver Mateus
6:9–13). Da mesma forma, o livro dos Salmos começa abençoando quem
“medita” nas Escrituras “dia e noite” (Salmos 1:1–2). Finalmente, o livro do
Êxodo dá uma descrição clássica da contemplação quando descreve a prática de
Moisés de orar no Tabernáculo. Ali “o Senhor falava com Moisés face a face”
(Êxodo 33:11). Segundo os clássicos espirituais, a vida de cada discípulo de Jesus
deveria envolver todos os três tipos de oração.

AS ETAPAS DO CRESCIMENTO ESPIRITUAL


A segunda coisa que descobri foi que a vida espiritual consiste em certos
estágios de crescimento. Quando eu era mais jovem, tendia a pensar na minha
vida espiritual como uma espécie de “porta giratória”. De um lado estava o pecado
grave, ou “pecado mortal”.
Do outro lado estava o arrependimento e o perdão, ou um “estado de graça”.
Meu objetivo principal era morrer do lado direito da porta! Por muitos anos, senti
como se estivesse andando em círculos espiritualmente. Nunca tive a sensação de
estar progredindo. Na verdade, eu sentia que estava constantemente retrocedendo.
Para minha surpresa, não era assim que os grandes escritores espirituais
descreviam a vida cristã. Em vez disso, assim como a vida biológica de uma
pessoa normalmente passa por certos estágios – infância, adolescência e idade
adulta – também a vida espiritual de uma pessoa normalmente passa por estágios
de crescimento. Ao longo dos séculos, esses estágios foram descritos por alguns
escritores espirituais como três “vias” ou caminhos:
7

1. O Caminho Purgativo: o caminho da infância espiritual, focado em


guardar os mandamentos, erradicando os pecados capitais (daí “purgativo”), e
aprender a orar ao Pai e praticar a meditação.
2. O Caminho Iluminativo: o caminho da adolescência espiritual, centrado
numa compreensão mais profunda dos mistérios da vida de Cristo (daí
“iluminativo”), crescendo em virtudes e contemplação.
3. O Caminho Unitivo: o caminho da idade adulta espiritual, centrado na
união com Deus (portanto “unitivo”) através do poder do Espírito Santo e da
perfeição da fé, esperança e amor.
Embora esta terminologia exata tenha levado algum tempo para ser
desenvolvida, a ideia básica dos três estágios de crescimento espiritual está
enraizada na Bíblia. Por exemplo, o apóstolo Paulo contrasta os “filhos”
espirituais em Cristo com aqueles que atingiram a “masculinidade madura”
(Efésios 4:13–14). Da mesma forma, o apóstolo João distingue três “eras”
espirituais na Igreja: “crianças” são os iniciantes, “jovens” são aqueles que
fizeram progresso espiritual, e “pais” são os adultos espirituais (1 João 2:12–13).3
Ao longo dos séculos, diferentes escritores espirituais deram vários nomes
a essas etapas da vida interior. No entanto, a identificação de três fases – o início,
o meio e o fim – pode ser encontrada em escritores espirituais antigos, medievais
e modernos, tanto no cristianismo oriental como ocidental.4 Juntos, eles testificam
que a vida espiritual não é uma porta giratória, mas um processo de crescimento.
Dito isso, é importante ter em mente que a experiência de cada pessoa nesse
processo será única. Pois no final das contas, a vida espiritual de cada alma
humana é um mistério. 5
Ao mesmo tempo, no Sermão da Montanha, o próprio Jesus descreve uma
única “via” ou “caminho” (grego, hodos) sobre o qual todos os seus discípulos
devem caminhar (Mateus 7:14). Esta imagem de caminho pressupõe um ponto de
partida e progresso em direção a um destino final. Também reflete o fato de Jesus
descrever os seus seguidores como “discípulos” ou, mais literalmente,
“estudantes” (do grego mathētai).6 Isto significa que ele espera que eles aprendam
os seus ensinamentos e caminhem juntos no caminho do seu mestre espiritual e
rabino. (ver Mateus 10:24–25; 23:8–10).7 Pois, segundo Jesus, o seu caminho é o
“caminho” que “conduz à vida eterna” (Mateus 7:14; 19:16–17).
8

O CHAMADO UNIVERSAL À SANTIDADE


Terceiro, e talvez o mais importante, descobri, para minha surpresa, que
todos os cristãos – inclusive eu – são chamados a ser santos. Bem, não me lembro
de alguém ter dito que a santidade era inatingível para um leigo como eu. No
entanto, em algum momento ao longo do caminho, adquiri a ideia de que, embora
monges, freiras, padres, bispos e papas possam ser chamados à contemplação e à
união com Deus, o melhor que eu poderia almejar seria a mediocridade espiritual
e (espero) não ir para o inferno. No entanto, quanto mais estudava os clássicos
espirituais, mais percebia que cada pessoa – velho ou jovem, homem ou mulher,
solteiro ou casado – é chamada à verdadeira santidade. 8
Agora, isso não deveria ter sido uma surpresa. Afinal, no Sermão da
Montanha, Jesus diz: “É necessário que vocês sejam perfeitos, como é perfeito o
vosso Pai celestial” (Mateus 5:48). Com estas palavras, Jesus alude ao chamado
de Deus para o povo de Israel: “Sereis santos; porque eu, o Senhor teu Deus, sou
santo” (Levítico 19:2). Da mesma forma, o apóstolo Paulo diz que os coríntios –
que eram todos ex pagãos e leigos – são todos “chamados para serem santos” (1
Coríntios 1:2). Finalmente, a carta aos Hebreus chama os seus leitores à
“santidade sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hebreus 12:14). Talvez o
exemplo mais bonito do convite universal à santidade venha do encontro de Jesus
com a mulher samaritana junto ao poço:
Chegou uma mulher samaritana para tirar água. Jesus disse-lhe:
“Dá-me de beber.”… A mulher samaritana disse-lhe: “Como é que tu, judeu,
me pedes de beber, uma mulher samaritana?” Pois os judeus não têm
relações com os samaritanos. Jesus lhe respondeu: “Se você conhecesse o
dom de Deus e quem é que lhe diz: ‘Dá-me de beber’, você lhe pediria, e ele
lhe daria água viva”. A mulher lhe disse: “Senhor, tu não tem com que tirar,
e o poço é fundo; onde tu consegue essa água viva?”… Jesus lhe disse: “Todo
aquele que beber desta água terá sede novamente, mas quem beber da água
que eu lhe der nunca mais terá sede; a água que eu lhe der se tornará nele
uma fonte de água a jorrar para a vida eterna”. A mulher lhe disse: “Senhor,
dá-me desta água, para que não tenha sede, nem venha aqui tirar”. (João 4:7,
9–11, 13–15)
Teremos mais a dizer sobre a imagem da “água viva” mais tarde. 9 Por
enquanto, o ponto principal é que Jesus não está se referindo à água comum. Ele
está falando sobre saciar a sede espiritual da mulher, dando-lhe o dom do Espírito
Santo. Como Jesus diz em outra parte do Evangelho de João:
9

Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Aquele que crê em mim, como diz
a escritura: “Do seu coração fluirão rios de água viva”. Ora, isto ele disse
sobre o Espírito que aqueles que nele cressem deveriam receber. (João 7:37–
39)
À primeira vista, a mulher samaritana pode parecer uma candidata
improvável ao dom do Espírito Santo. Por um lado, ela não é judia. Os
samaritanos descendiam de pagãos que haviam invadido a Terra Santa séculos
antes (ver 2 Reis 17:24–41). Embora aceitassem o Deus de Israel, os samaritanos
rejeitaram o Templo de Jerusalém (ver João 4:19–24). Por outro lado, a mulher
samaritana está num estado de pecado grave. Ela não apenas foi casada cinco
vezes, mas atualmente mora com um homem que não é seu marido (ver João 4:17–
18). Num antigo contexto judaico, isto a colocaria num estado público e
permanente de fornicação. No entanto, nada disto impede Jesus de lhe oferecer o
dom do Espírito Santo.
Aparentemente, o pecado dela não é uma barreira ao chamado de Jesus.
Com certeza, assim que ela pedir a ele que lhe dê essa água, a primeira coisa que
ela precisará fazer é abordar o pecado em sua vida. É por isso que Jesus diz: “Vá,
chame o seu marido e venha aqui” (João 4:16). No entanto, é Jesus quem espera
por ela junto ao poço. É ele quem primeiro lhe pede uma bebida. A razão para isto
é simples: o convite de Jesus à santidade – a sua oferta do dom do Espírito Santo
– é universal. Não é apenas para alguns, mas para todos. Em outras palavras, não
importa quem você é ou o que você fez, se você está espiritualmente sedento,
então Jesus está convidando você a ir até ele e beber.

JESUS E AS RAÍZES JUDAICAS DA ESPIRITUALIDADE


Isso me leva à quarta e última coisa que descobri. Quanto mais eu lia, mais
percebia que os maiores escritores espirituais não estavam inventando seus
ensinamentos do nada. Eles os estavam extraindo da Bíblia - especialmente os
Evangelhos. Considere as linhas iniciais da obra clássica de Tomás de Kempis, A
Imitação de Cristo:
Se realmente queremos ser iluminados…, então que o nosso estudo principal
seja a meditação na vida de Jesus Cristo. A doutrina de Cristo supera todas
as doutrinas dos santos.10
10

Em outras palavras, no final, o próprio Jesus é o mestre supremo da vida


espiritual. Ele é o mestre e modelo de toda espiritualidade cristã. Como Jesus diz:
“Vocês têm um só Mestre, o Cristo” (Mateus 23:10). 11
Mas existem alguns problemas. Por um lado, os ensinamentos espirituais
de Jesus nem sempre são fáceis de entender. Para dar apenas um exemplo: o que
Jesus quis dizer quando disse: “Sede perfeitos, como é perfeito o vosso Pai
celestial” (Mateus 5:48)? Isso é possível? Por outro lado, quando Jesus deu pela
primeira vez os seus ensinamentos, ele falou para um público judeu, usando
palavras e imagens profundamente enraizadas nas Escrituras Judaicas. Contudo,
muitos cristãos hoje simplesmente não conhecem o Antigo Testamento tão bem
quanto gostariam. Para realmente compreendermos as palavras e ações de Jesus,
precisamos situá-las no seu antigo contexto judaico. É isso que faremos neste
livro. Vamos explorar Jesus e as raízes judaicas da vida espiritual.
Antes de começarmos, quero enfatizar que tudo o que direi nas páginas
seguintes baseia-se diretamente em clássicos espirituais cristãos antigos,
medievais e modernos. Os leitores interessados em se aprofundar nessas obras são
incentivados a estudar as notas finais. O texto principal, no entanto, focará nos
fundamentos bíblicos de tópicos-chave da espiritualidade cristã, incluindo:
• Oração Vocal, Meditação e Contemplação.
• Três grandes tentações e três remédios
• Exercícios Espirituais: Oração do Senhor, Jejum e Esmola
• Os Sete Pecados Capitais e as Sete Virtudes Opostas
• Lectio Divina: Como meditar nas Escrituras
• A noite escura da alma 12
Devo também enfatizar que este não é um estudo abrangente de todo o
caminho espiritual. É uma introdução ao primeiro estágio do crescimento
espiritual – comumente conhecido como caminho purgativo. Cada capítulo
começará com uma breve visão do que os clássicos espirituais dizem sobre cada
tópico antes de explorar o que o próprio Jesus tem a dizer sobre isso. Depois
concluiremos com algumas implicações práticas, recorrendo à sabedoria dos
clássicos espirituais. Você pode pensar neste livro como uma espécie de “roteiro
bíblico da vida espiritual”, tendo Jesus como guia principal. O objetivo final é
lançar luz sobre os primeiros passos do “caminho” espiritual ensinado pelo
próprio Jesus (ver Mateus 7:14).
Concluindo: se você, assim como eu, cresceu pensando que a vida espiritual
consistia principalmente em fazer suas orações e torcer para não ir para o inferno;
11

ou se você já começou a orar, mas desistiu depois de sentir secura ou distração;


ou se você já tentou ler os escritos dos místicos, mas se sentiu perdido ou confuso
com o que eles diziam; ou mesmo se você conhece bem os clássicos espirituais,
mas está curioso sobre as raízes bíblicas de seus ensinamentos - seja você quem
for, onde quer que esteja na jornada - se você está sedento pela “água viva” que
só Jesus pode dar, então este livro é para você. Assim como Jesus falou
diretamente à mulher junto ao poço nos Evangelhos, ele ainda fala conosco hoje.
Mas como exatamente falamos com Deus? Para responder a esta pergunta,
precisamos começar a nossa jornada pelo caminho espiritual de Jesus voltando-
nos para o tema da oração.
12

ORAÇÃO
1- ORAÇÃO VOCAL
Ao orar, dizei: “Pai, santificado seja o teu nome”.
—Jesus de Nazaré (Lucas 11:2)
O CORAÇÃO PULSANTE DA vida espiritual é a oração. Ao longo dos
séculos, os escritores espirituais cristãos frequentemente destacaram três formas
principais: oração vocal, meditação e contemplação. 1 Antes de começarmos a
percorrer o caminho espiritual que Jesus ensinou aos seus discípulos, é necessário
primeiro definir os nossos termos e esclarecer o que a Bíblia ensina sobre cada
um deles. Começamos com oração vocal.
No seu nível mais básico, a oração vocal pode ser definida como o uso de
palavras para comunicar-se com Deus. Ao longo dos séculos, os escritores
espirituais cristãos enfatizaram frequentemente o uso de palavras faladas na
oração. Considere, por exemplo, as seguintes declarações dos tempos antigos,
medievais e modernos:
A oração é por natureza um diálogo... com Deus.
—João Clímaco (século VII)2

A oração é…o pedido de coisas boas a Deus.


—João Damasceno (século VIII)3

Na oração vocal, a mente e o coração devem estar atentos ao que você diz.
—Teresa de Ávila (século XVI)4
Visto que os seres humanos têm alma e corpo, a tradução de pensamentos
e sentimentos interiores em palavras exteriores é uma forma natural de
comunicação. Por esta razão, a oração vocal sempre foi considerada uma parte
essencial da vida espiritual. No século XVI, a grande mística espanhola Ter esa de
Ávila descreveu certa vez a oração vocal – quando proferida do coração – como
“a porta de entrada” para a vida interior da alma. 5
Por que orar com palavras é tão importante? Por que não simplesmente
pular a oração vocal e ir direto para a meditação ou contemplação silenciosa? A
resposta: o próprio Jesus, seguindo as Escrituras Judaicas, usava palavras quando
orava. Além disso, quando seus discípulos pediram que os ensinassem a orar,
13

Jesus deu-lhes palavras específicas para dizerem na Oração do Pai Nosso (ver
Lucas 11:1–4). Neste capítulo, dedicaremos alguns momentos para examinar
Jesus e as raízes judaicas da oração vocal.

AS RAÍZES JUDAICAS DA ORAÇÃO VOCAL


Para compreender o ensinamento de Jesus sobre a oração vocal, temos que
começar examinando a oração vocal nas Escrituras Judaicas.
Oração Vocal nas Escrituras Judaicas
No Antigo Testamento, o uso de palavras para se comunicar com o Deus
do universo remonta ao início da história humana. No Jardim do Éden, Adão usa
palavras para falar com Deus quando o ouve aproximar-se: “Ouvi a tua voz no
jardim, e Tive medo, porque estava nu; e me escondi” (Gênesis 3:10). Da mesma
forma, Abraão usa palavras para interceder por Ló e pelo povo de Sodoma: “Eis
que me encarreguei de falar ao Senhor, eu que sou apenas pó e cinza” (Gênesis
18:27). Quando Deus aparece a Moisés na sarça ardente, Moisés usa palavras para
dizer a Deus: “Aqui estou” (Êxodo 3:4).
Às vezes, a oração vocal pode ser feita tão baixinho que fica praticamente
silenciosa, como quando Ana, a mãe de Samuel, implora a Deus que lhe dê o
presente de um filho: “Ana falava no seu coração; apenas os seus lábios se
moviam, e a sua voz não foi ouvida” (1 Samuel 1:13). Quando seu pedido é
atendido por Deus, Ana responde com uma das orações vocais mais famosas de
todas as Escrituras Judaicas, conhecida como “Canção de Ana”:
O meu coração exulta no Senhor;
a minha força é exaltada no Senhor.
Minha boca zomba de meus inimigos,
porque me alegro na tua salvação.
(1 Samuel 2:1)
Observe que em ambos os casos Ana fala com Deus de “coração”. No
contexto, isso não se refere a um órgão do corpo dela. Nas Escrituras Judaicas, o
“coração” (hebraico leb) refere-se à parte mais profunda do ser humano, o centro
oculto, a pessoa interior. 6 Na concepção hebraica de ser humano, o “coração” não
é apenas a sede das emoções; é também a sede de memórias, pensamentos e
decisões. Acima de tudo, é o coração que escolhe amar. Assim, falar com o
coração é a essência da verdadeira oração vocal.
14

O Livro dos Salmos: Obra-Prima da Oração Vocal


O livro dos Salmos é a obra-prima indiscutível da oração vocal nas
Escrituras Judaicas. Na verdade, nada mais é do que uma coleção de 150 orações
vocais. No original hebraico, esses “salmos” são chamados de “louvores”
(hebraico tehilim) porque muitas delas são orações de ação de graças, adoração e
louvor.7 Os salmos explicam não apenas o que é a oração vocal, mas como deve
ser praticada.
Por exemplo, o livro dos Salmos deixa claro que a definição mais básica de
“oração” (hebraico tephillah) é falar “palavras” a Deus:
Ouve a minha oração, ó Deus;
dá ouvidos às palavras da minha boca.
(Salmo 54:2)
Ao mesmo tempo, o Saltério enfatiza que a verdadeira oração vocal envolve
não apenas os lábios, mas também o coração:
Que as palavras da minha boca e a meditação do meu coração sejam
agradáveis aos teus olhos, ó Senhor, minha rocha e meu redentor. (Salmo 19:14)
Finalmente, o livro dos Salmos chega ao ponto de descrever a oração vocal
como uma espécie de sacrifício oferecido a Deus todas as manhãs e todas as
noites:
...desde a manhã; escutai a minha voz, porque, desde o raiar do dia, vos
apresento minha súplica e espero. (Salmo 5:3)
Que minha oração suba até vós como a fumaça do incenso, que minhas mãos
estendidas para vós sejam como a oferenda da tarde. (Salmo 141:1–2)

De acordo com a Bíblia Judaica, a oração vocal é algo que deve ser feito
todos os dias. Cada dia deve começar e terminar oferecendo a “alma” de volta ao
Deus que a deu em primeiro lugar (Salmo 86:3-4).

JESUS E A ORAÇÃO VOCAL


Quando passamos da oração vocal nas Escrituras Judaicas para a vida de
Jesus, rapidamente descobrimos que o próprio Jesus praticava a oração vocal e
instruía seus discípulos a seguirem seu exemplo.
15

Jesus Rezou Os Salmos


Na época de Jesus, o livro dos Salmos era o “livro de orações” fundamental
do povo judeu. 8 Como judeu do primeiro século, Jesus saberia os Salmos de cor
ao cantá-los durante festivais como a Páscoa. Ele também teria usado as palavras
dos Salmos em sua própria oração vocal. Para dar apenas um exemplo: no final
da sua vida, enquanto morre na cruz, Jesus clama a Deus,
“Pai, em suas mãos entrego meu espírito!” E tendo dito isso ele deu seu
último suspiro. (Lucas 23:46)
Com estas palavras, Jesus oferece a sua vida ao Pai. Este é o exemplo
supremo de oração vocal como sacrifício. No entanto, isso não é tudo que Jesus
está fazendo. Ele também está citando o livro dos Salmos:
Nas tuas mãos entrego o meu espírito;
tu me redimiste, ó Senhor, Deus fiel.
(Salmo 31:5)
Jesus não só sabe de cor as palavras do Salmo 31, mas também as torna
suas na última oração que pronuncia. No entanto, enquanto o próprio salmo é
dirigido ao “Senhor” (do hebraico YHWH), Jesus dirige a sua oração ao “Pai” (do
grego patēr). Um dos aspectos mais distintivos da oração de Jesus é a sua repetida
insistência para que os seus discípulos se dirigissem a Deus como seu Pai.
Jesus orou com suas próprias palavras
Além das orações vocais memorizadas, Jesus também ora usando suas
próprias palavras. Em mais de uma ocasião, Jesus ora ao Pai em público, onde
todos podem ouvi-lo (ver Lucas 10:21–22; João 11:41–42). Durante a Última
Ceia, Jesus pronuncia a oração vocal mais longa registada nos Evangelhos – a
chamada “oração sumo sacerdotal” – na presença dos seus discípulos escolhidos
quando ora pela unidade (ver João 17:1–26). Talvez o mais comovente de tudo
seja a oração durante a sua agonia no Getsêmani:
Jesus foi com eles para um lugar chamado Getsêmani e disse aos seus
discípulos: “Sentem-se aqui, enquanto eu vou lá rezar”. prostrou-se com o
rosto no chão e orou: “Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; no
entanto, não como eu quero, mas como Tu queres. E ele foi até os discípulos
e os encontrou dormindo…. Novamente, pela segunda vez, ele foi e orou,
“Meu Pai, se isto não puder passar sem que eu beba, seja feita a Tua
vontade.” E novamente ele veio e os encontrou dormindo, pois seus olhos
16

estavam pesados. Então, deixando-os novamente, foi e orou pela terceira vez,
dizendo as mesmas palavras. (Mateus 26:36, 39–40, 42–44)
Observe bem que Jesus usa palavras para orar, mesmo quando está sozinho.
Obviamente, ele não precisa fazer isso, mas escolhe fazê-lo. Observe também que
Jesus até se repete quando ora, “dizendo as mesmas palavras” (Mateus 26:44).
Sua oração é plenamente humana. Na agonia do Getsêmani, Jesus molda
para seus discípulos a importância da oração vocal espontânea e persistente ao
Pai, feita com o coração.
Jesus Ensinou A Seus Discípulos Uma Oração Vocal
Finalmente, quando os seus discípulos pedem a Jesus que os ensine a rezar,
ele lhes dá certas palavras para dizer, na forma do Pai Nosso:
Ele estava orando em determinado lugar, e quando terminou, um dos seus
discípulos disse-lhe: “Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou aos seus
discípulos”. E ele lhes disse: “Quando vocês orarem, digam: ‘Pai, santificado
seja o Teu nome. Venha o Teu reino. Dá-nos cada dia o pão nosso de cada
dia; e perdoa-nos os nossos pecados, pois nós mesmos perdoamos a todo
aquele que nos deve; e não nos deixe cair em tentação.” (Lucas 11:1–4)
Examinaremos mais de perto a versão mais longa da oração do Pai Nosso
mais tarde (ver Mateus 6:9–13). Por enquanto, o ponto principal é que quando os
discípulos de Jesus lhe pedem para ensiná-los a orar, ele lhes dá certas palavras
para dizerem – a primeira das quais é “Pai”. Ao fazer isso, ele está começando a
ensiná-los a orar como ele ora. Ao proferir o Pai Nosso, Jesus mostra que é ao
mesmo tempo o mestre e o modelo da oração vocal.

ORAÇÃO VOCAL NA TRADIÇÃO CRISTÃ


Já deveria estar claro que Jesus, seguindo as Escrituras Judaicas, considera
a oração vocal uma parte essencial da vida espiritual de seus discípulos.
Várias implicações práticas decorrem deste fato.
Oração Vocal Memorizada E Espontânea
Se o próprio Jesus orou orações vocais memorizadas (como os Salmos) e
orações vocais espontâneas (como sua oração no Getsêmani), então os discípulos
de Jesus deveriam praticar ambas. Como diz o próprio Jesus:
17

O discípulo não está acima do seu mestre, nem o servo acima do seu mestre;
basta que o discípulo seja como seu mestre e o servo como seu mestre.
(Mateus 10:24–25)
Em outras palavras, os seguidores de Jesus deveriam começar imitando a
oração do seu mestre espiritual. Algumas pessoas se sentem muito confortáveis
recitando orações memorizadas, mas praticamente nunca falam com Deus com
suas próprias palavras.
Outros ficam muito confortáveis em fazer orações espontâneas, mas
desprezam as orações memorizadas como palavras vazias. Nenhum dos extremos
é bíblico. Por um lado, se vamos falar com Deus Pai da mesma forma que Jesus,
precisamos orar usando as nossas próprias palavras. Por outro lado, se nunca
orarmos as palavras dos Salmos ou do Pai Nosso, então estaremos escolhendo não
orar como o próprio Jesus orou. Se Jesus é verdadeiramente o modelo e mestre da
oração cristã, então devemos seguir o seu exemplo, escrevendo as palavras dos
Salmos e do Pai Nosso nos nossos corações, para que possam nos ensinar como
orar e o que dizer.
Falando do Coração
Quaisquer que sejam as palavras que usemos, devemos sempre nos esforçar
para falar com Deus de coração. Em outras palavras, precisamos dizer o q ue
queremos dizer e dizer o que dizemos.
Mas e quanto ao problema da distração durante a oração vocal? Como
evitamos dizer as palavras da oração enquanto pensamos em algo completamente
diferente? Como salientou há séculos atrás o grande teólogo medieval Tomás de
Aquino: “Mesmo os homens santos às vezes sofrem de uma divagação mental
quando rezam”. 9
Por esta razão, o primeiro passo prático é sempre começar as nossas orações
reservando um momento para nos colocarmos na presença de Deus. Nas palavras
do escritor cristão do século XVII, Francisco de Sales: Comece todas as suas
orações, sejam mentais ou vocais, na presença de Deus. Mantenha esta regra sem
nenhuma exceção e você verá rapidamente como ela será útil. 10
O segundo passo é este: quando você começar a falar, lembre-se de que
você não está apenas dizendo palavras, mas falando com alguém – Deus. Como
escreve Teresa de Ávila:
Quando você se aproxima de Deus, então, tente pensar e perceber a quem
você está prestes a se dirigir e continue a fazê-lo enquanto se dirige a ele….
18

Não, eu lhe imploro, não se dirija a Deus enquanto estiver pensando em


outras coisas.11
Ao desenvolvermos o hábito de nos colocarmos na presença de Deus antes
de começarmos a orar, e lembrarmos a quem estamos orando, a nossa oração vocal
pode ser transformada de um monólogo distraído com nós mesmos em um diálogo
sincero com o Deus vivo.
O Caminho para a Meditação e Contemplação
Finalmente, quando Jesus ensina seus discípulos a orar, ele começa dando-
lhes palavras para dizer. Embora algumas pessoas possam ficar tentadas a pular a
oração vocal no desejo de começar a praticar formas “elevadas” de oração, como
meditação ou contemplação, isso seria um erro. Na verdade, segundo Teresa de
Ávila, a oração vocal bem dita pode conduzir diretamente à contemplação:
Pode parecer a quem não conhece o assunto que a oração vocal não
acompanha a contemplação; mas eu sei que sim. Perdoe-me, mas quero dizer
isto: sei que há muitas pessoas que, enquanto rezam em voz alta... são
elevadas por Deus à contemplação sublime, sem se esforçarem por nada ou
sem entender como. É por isso que eu insisto tanto… sobre você recitar bem
sua oração vocal. 12
Em suma, se o próprio Jesus falou com Deus Pai usando palavras, e se
ensinou os seus discípulos a fazer o mesmo, então a oração vocal é uma parte
essencial da vida espiritual de um cristão. É também o início do caminho para a
meditação e a contemplação.
É claro que a oração vocal é apenas uma forma de oração. De acordo com
a Bíblia, também precisamos aprender a orar com a mente. Precisamos aprender
a meditar.
19

2 MEDITAÇÃO
Amarás o Senhor teu Deus...com todo o teu entendimento.
—Jesus de Nazaré (Marcos 12:30)
A SEGUNDA FORMA PRINCIPAL DE Oração – meditação – pode ser
definida como orar com a mente, especialmente lendo e ponderando em espírito
de oração a palavra de Deus. Assim como a oração vocal usa palavras para se
comunicar com Deus, a meditação usa pensamentos para refletir sobre Deus. E
assim como a oração vocal envolve o corpo, a meditação envolve a mente. (Por
esta razão, alguns escritores espirituais referem-se à meditação como “oração
mental”). E assim como a verdadeira oração vocal é proferida com o coração,
também o objetivo da meditação não é apenas o crescimento no conhecimento,
mas a transformação do coração.
Na história da espiritualidade cristã, a importância da meditação -
especialmente a meditação nas Escrituras – tem sido repetidamente enfatizada.
Considere as seguintes citações de escritores cristãos antigos, medievais e
modernos:
Meditar nas [Escrituras] deve consumir todos os dias e noites de nossa vida. —
João Cassiano (século V)1

Que nosso estudo principal seja a meditação na vida de Jesus Cristo.


— Tomás de Kempis (século XV)2

A meditação é a base para adquirir todas as virtudes, e realizá-la é uma questão


de vida ou morte para todos os cristãos.
—Teresa de Ávila (século XVI)3
Isso não é um pouco forte demais? A meditação é realmente uma questão
de vida ou morte para todos os cristãos? Afinal, a palavra “meditação” nunca
ocorre no Novo Testamento. Por que os clássicos espirituais insistem nisso?
A resposta está na própria Bíblia. Em mais de uma ocasião, as Escrituras
Judaicas são absolutamente inequívocas de que a pessoa que ama a Deus também
deve amar a palavra de Deus e meditar nela dia e noite.
Da mesma forma, embora o próprio Jesus nunca tenha usado a palavra
“meditação”, quando interpretamos as suas palavras sobre o maior mandamento
20

e a Parábola do Semeador no seu antigo contexto judaico, descobrimos que Jesus


é igualmente enfático sobre a necessidade de meditar na palavra de Deus. Neste
capítulo, vamos dedicar alguns momentos para explorar Jesus e as raízes judaicas
da meditação.

AS RAÍZES JUDAICAS DA MEDITAÇÃO


Para compreender o ensinamento de Jesus sobre meditação, temos que
começar observando o que as Escrituras Judaicas nos ensinam sobre a prática da
meditação. Nesse sentido, duas passagens se destacam como de suprema
importância: a ordem de amar a Deus de todo o coração, alma e força, comumente
conhecida como Shemá (ver Deuteronômio 6:4-6), e o livro dos Salmos, que
começa declarando “bem-aventurado” qualquer um que “medita” na palavra de
Deus “dia e noite” (Salmos 1:1-2).
Moisés e o Shemá
O primeiro grande exemplo de meditação nas Escrituras Judaicas é talvez
a passagem mais conhecida de todo o Antigo Testamento. Estou falando aqui das
palavras de Moisés dadas ao povo de Israel no final do êxodo do Egito:
Ouve, ó Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor; e amarás ao Senhor
teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças.
E estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração; e tu os ensinarás
diligentemente a teus filhos, e falarás deles quando estiveres sentado em tua
casa, e quando andares pelo caminho, e quando te deitares, e quando te
levantares. (Deuteronômio 6:4–7)
Na tradição judaica posterior, a primeira parte desta passagem passou a ser
conhecida como Shemá, a partir da primeira palavra: “Ouve (hebraico shema’), ó
Israel” (Deuteronômio 6:4). Na época de Jesus, o Shemá era recitado por judeus
devotos várias vezes ao dia como a oração diária fundamental. 4 Como veremos
em breve, o próprio Jesus identifica o Shemá como o maior mandamento (ver
Marcos 12:28–30).
Para nossos propósitos aqui, porém, é a segunda metade da passagem que
se destaca. Como exatamente alguém ama a Deus com todo o “coração”, “alma”
e “vontade”? De acordo com Moisés, ao escrever as suas “palavras” no coração,
ao ensiná-las diligentemente aos filhos, ao falar delas em todo lugar (seja em casa
ou viajando) e pensando nelas todos os dias (manhã e noite). Em outras palavras,
de acordo com a Bíblia, uma das principais formas de amar a Deus é meditando
21

em sua palavra. E observe aqui que Moisés está falando a todo o povo de Israel –
incluindo pais e famílias. De acordo com as Escrituras Judaicas, lembrar, discutir
e ponderar a palavra de Deus deveria ser uma parte diária da vida familiar comum.
O Livro dos Salmos e a Meditação Diária
O segundo grande exemplo de meditação nas Escrituras Judaicas vem das
primeiras linhas de um dos livros mais populares e conhecidos da Bíblia:
Abençoado é o homem
que não anda segundo o conselho dos ímpios,
nem trilha o caminho dos pecadores,
nem se assenta na roda dos escarnecedores;
mas o seu prazer está na lei do Senhor,
e na sua lei medita dia e noite.
(Salmo 1:1–2)
De acordo com o livro dos Salmos, qual é a chave para ser “abençoado” –
ou, mais literalmente, “feliz” (hebraico ‘asher)? Não apenas lendo a “lei”, mas
“deleitando-se” e meditando nela. Significativamente, a palavra “meditar”
(hebraico hagah) vem de uma palavra hebraica que também significa “suspirar”
ou “gemer” de saudade. 5 Na antiga versão grega da Bíblia, foi traduzida como
“pensar sobre” ou “meditar” (grego meletaō) (Salmo 1:2 LXX).6 De qualquer
forma, a meditação envolve a mente. E observe bem quantas vezes a Bíblia diz
que a meditação deve ser praticada: “dia e noite” (Salmos 1:3).
Finalmente, observe seus efeitos positivos. Uma pessoa que medita
regularmente é como uma “árvore” que não apenas dá frutos, mas cujas folhas
nunca secam porque suas raízes bebem constantemente (Salmo 1:3). De acordo
com as Escrituras Judaicas, a meditação é o antídoto para a secura espiritual.

JESUS E A MEDITAÇÃO
Quando passamos do Antigo Testamento para os ensinamentos de Jesus,
descobrimos rapidamente que Jesus em nenhum lugar usa a palavra “meditar”.
No entanto, em duas ocasiões importantes, Jesus usa exatamente as mesmas
passagens das Escrituras Judaicas que acabamos de estudar para ensinar aos seus
discípulos a importância de amar a Deus com a mente, guardando a sua palavra
no coração.
22

O Maior Mandamento
O primeiro ensinamento de Jesus que enfatiza a importância da meditação
nas Escrituras chega até nós na sua famosa resposta à pergunta de um escriba
judeu sobre qual dos mandamentos bíblicos é o maior:
Aproximou-se um dos escribas e ouviu-os discutir entre si e, vendo que lhes
respondia bem, perguntou-lhe: “Qual mandamento é o primeiro de todos?”
Jesus respondeu: “O primeiro é: ‘Ouve, ó Israel: O Senhor nosso Deus, o
Senhor é o único; e amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de
toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças.’”
(Marcos 12:28–30)
Observe aqui que Jesus responde à pergunta citando o Shemá: “Ouve, ó
Israel…” (Deuteronômio 6:4). À primeira vista, sua resposta parece o
ensinamento judaico padrão. Contudo, como qualquer judeu do primeiro século
teria notado, Jesus também fez algo notável. Ele acrescenta uma nova ordem:
“Amarás o Senhor teu Deus… com todo o teu entendimento” (Marcos 12:30).
Esta linha não está presente nas Escrituras Hebraicas.7 A palavra que Jesus usa
para “mente” (grego Dianoia) refere-se à “inteligência” ou “entendimento”8 de
uma pessoa.
Em outras palavras, Jesus espera que seus discípulos amem a Deus não
apenas com o coração, a alma e a força, mas também com o intelecto. Ele espera
que seus discípulos amem a Deus pensando nele. Além disso, como o próprio
Shemá está especificamente focado em amar a Deus, escrevendo suas “palavras”
no “coração” (Deuteronômio 6:6), Jesus dá a entender que seus seguidores
também devem amar o único Deus do universo, lembrando-se e ponderando sua
palavra -todo dia e toda noite.
A Parábola do Semeador
Outro importante ensinamento de Jesus que enfatiza a meditação vem da
sua famosa Parábola do Semeador. Embora a parábola seja bem conhecida, é
importante lê-la com atenção, concentrando-se nos quatro diferentes tipos de solo:
Quando uma grande multidão se reuniu e pessoas de cidade em cidade
vieram até ele, ele disse numa parábola: “O semeador saiu para semear a sua
semente; e enquanto semeava, uma parte caiu à beira do caminho e foi
pisada, e as aves do céu a devoraram. E uma parte caiu na rocha; e à medida
que crescia, secou, porque não tinha umidade. E algumas caíram entre
espinhos; e os espinhos cresceram com ela e a sufocaram. E algumas caíram
23

em solo bom e cresceram, e renderam cem vezes mais.” Ao dizer isso, ele
gritou: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. (Lucas 8:4–8)
Qual é o significado desta parábola? E o que isso tem a ver com meditação?
Se tudo o que tivéssemos fosse a própria parábola, talvez não
conseguíssemos ver nenhuma conexão. Felizmente, Jesus também dá aos seus
discípulos uma explicação da parábola. Para maior clareza, organizei a explicação
de Jesus de acordo com cada um dos quatro diferentes tipos de solo:
Agora a parábola é esta: A semente é a palavra de Deus.
[1] Os que estão no caminho são aqueles que ouviram; então vem o diabo
e tira a palavra dos seus corações, para que não creiam e sejam salvos.
[2] E os que estão sobre as rochas são aqueles que, ao ouvirem a palavra, a
recebem com alegria; mas estes não têm raiz, creem por um tempo e na hora da
tentação desistem.
[3] E quanto ao que caiu entre os espinhos, esses são aqueles que ouvem,
mas ao seguirem seu caminho são sufocados pelos cuidados, riquezas e prazeres
da vida, e seus frutos não amadurecem.
[4] E quanto ao solo bom, são aqueles que, ouvindo a palavra, a retêm com
um coração honesto e bom, e produzem frutos com paciência. (Lucas 8:11–15)
De acordo com Jesus, toda a Parábola do Semeador trata de quatro respostas
diferentes à “palavra de Deus” (Lucas 8:11). 9
Quatro Respostas À Palavra
O primeiro grupo de pessoas ouve a palavra de Deus, mas o diabo vem e a
tira “dos seus corações” (Lucas 8:12), então eles param de acreditar.
O segundo grupo de pessoas ouve a palavra de Deus e fica feliz no início,
mas porque a sua fé é tão superficial – não tem “raiz” (Lucas 8:13) – eles
acreditam apenas por um tempo. Assim que surge a tentação, eles acabam se
afastando.
O terceiro grupo de pessoas ouve a palavra de Deus e até começa a produzir
alguns “frutos” espirituais. No entanto, com o passar do tempo, a palavra de Deus
é sufocada até a morte pelos “cuidados” e pela busca de “riquezas” e “prazeres”
terrenos (Lucas 8:14). Observe que Jesus não diz nada sobre pecados como
adultério ou assassinato. A ansiedade em relação aos cuidados mundanos e a
busca de riqueza e prazer são mais que suficientes para sufocar a vida da alma.
24

O quarto e último grupo de pessoas também ouve a palavra de Deus, mas


faz algo diferente. Elas “mantêm-na firme” em seus corações (Lucas 8:15).
É significativo que a palavra para “manter firme” (em grego katechō)
também significa “manter na memória”. 10 (Deste termo deriva a palavra inglesa
para “catequese”.) Por outras palavras, estas pessoas respondem à palavra de Deus
memorizando-a e escrevendo-a nos seus corações – a parte mais profunda de si
mesmas, onde encontram a Deus.11 Meditação é exatamente isso: ponderar a
palavra de Deus com a mente e armazená-la no coração para crescer no amor a
Deus.
Os Frutos Da Meditação
Observe como isso afeta a alma de uma pessoa. Não apenas seu coração se
torna “honesto e bom” (Lucas 8:15), mas ela também começa a produzir
resultados superabundantes “fruto” – até cem vezes mais (ver Lucas 8:8, 15)! Ao
usar esta imagem de dar frutos, Jesus está aludindo ao que o livro dos Salmos
ensina sobre meditação:
Bendito seja o homem…
[cujo] prazer está na lei do Senhor,
e na sua lei medita dia e noite.
Ele é como uma árvore
plantada perto de riachos de água,
que dá o seu fruto na sua estação.
(Salmo 1:1–3)
De acordo com as Escrituras Judaicas, a chave para ser “abençoado” – ou,
mais literalmente, “feliz” (hebraico ‘asher) – é a meditação diária na palavra de
Deus. Uma pessoa que medita regularmente nas Escrituras é como uma “árvore”
que produz muitos “frutos” espirituais porque suas raízes bebem constantemente
da água viva da palavra de Deus.
Em suma, embora Jesus nunca tenha usado a palavra “meditação”, ele
espera claramente que os seus discípulos amem a Deus com as suas mentes e
armazenem a palavra de Deus nos seus corações. Por outras palavras, Jesus insiste
que os seus discípulos meditem, para não correrem o risco de se tornarem como
os três primeiros tipos de solo infrutífero da Parábola do Semeador.
25

A MEDITAÇÃO NA TRADIÇÃO CRISTÃ


A esta altura já deve estar claro que não precisamos recorrer às obras
clássicas da espiritualidade cristã para descobrir a importância da meditação na
palavra de Deus. A Lei de Moisés ensina isso. O livro dos Salmos ensina isso.
O próprio Jesus ensina isso. Ao mesmo tempo, escritores espirituais
cristãos posteriores nos deram alguns conselhos práticos úteis sobre a meditação
diária a partir do coração, incluindo como fazê-la.
Reserve Um Tempo Todos Os Dias Para Meditação
A primeira coisa que precisa ser dita é que a meditação com oração na
Bíblia leva tempo. Não pode ser apressada. Exatamente quanto tempo varia de
pessoa para pessoa, dependendo do estado de vida, idade, saúde, ocupação e
deveres familiares ou profissionais. Contudo, o ensinamento comum dos clássicos
espirituais é cerca de uma hora de oração e meditação por dia.
Por exemplo, na sua adaptação dos Exercícios Espirituais para
trabalhadores comuns, o escritor espanhol do século XVI, Inácio de Loyola,
recomenda que “uma pessoa que esteja envolvida em assuntos públicos ou em
ocupações urgentes” deva dedicar “uma hora e meia por dia” à oração e meditação
nas Escrituras. 12 Na mesma linha, considere o conselho do clássico Introdução à
Vida Devota de Francisco de Sales, que foi escrito explicitamente para os cristãos
“comuns” que vivem no mundo:
Aconselho-vos especialmente a praticar a oração mental, a oração do
coração… Reserve uma hora todos os dias antes do almoço, se possível, de
manhã cedo, quando sua mente estiver menos distraída e mais fresca após o
descanso noturno. 13
Claramente, tanto Inácio como Francisco esperam que os cristãos comuns
que levam a sério o progresso espiritual façam mais do que apenas “fazer as suas
orações” antes das refeições ou antes de irem para a cama à noite. Assim como
uma pessoa que deseja aumentar a força corporal precisará dedicar pelo menos
uma hora por dia ao exercício físico regular, o mesmo acontece com qualquer
pessoa que realmente queira crescer espiritualmente. É por isso que o próprio
Inácio começa seu famoso livro Exercícios Espirituais afirmando que “assim
como caminhar, viajar a pé e correr são exercícios corporais, assim chamamos de
Exercícios Espirituais toda forma de preparar e dispor a alma para livrar -se de
toda desordem e apegos desordenados” e, após a sua remoção, de procurar e
26

encontrar a vontade de Deus na disposição da nossa vida para a salvação da nossa


alma”. 14
E, tal como acontece com o exercício físico, se precisarmos de começar
com apenas trinta minutos de oração por dia e depois gradualmente aumentarmos
até uma hora, tudo bem. O importante é ler a Bíblia e meditar nela todos os dias,
sem falta. É claro que isso implicará usar bem o nosso tempo, evitando distrações
inúteis. Nas palavras de Tomás de Kempis: Se você evitar conversas
desnecessárias e visitas ociosas, bem como a preocupação com notícias e
reportagens diversas, encontrará tempo suficiente e apropriado para boas
meditações.15
Muitas vezes, muitos de nós que pensamos ser impossível reservar uma
hora a sós com Deus todos os dias, facilmente passaremos uma ou duas horas (ou
mais!) Na internet, nas redes sociais ou em entretenimento pessoal. É
simplesmente uma questão de priorizar o nosso tempo de oração: pois onde
estiver o nosso tempo, aí estará também o nosso coração.
Seja Fiel À Meditação E Decida Continuar
Mas o que faremos se perdermos a meditação matinal por algum motivo?
Francisco de Sales continua:
Se acontecer de toda a manhã passar sem que você tenha passado algum
tempo em oração mental, seja porque esteve ocupado ou por qualquer outro
motivo – você não deve permitir que isso aconteça, na medida do possível – tente
compensar essa omissão depois da refeição do meio-dia…. Com tudo isso, tome
a firme determinação de praticar a oração mental diária no dia seguinte. 16
Em outras palavras, comprometa-se a meditar na palavra de Deus todos os
dias. E se acontecer de você perder a meditação matinal, faça-a naquela noite ou
comece novamente no dia seguinte. Aconteça o que acontecer, não pare de
meditar. Como o próprio Jesus diz aos seus discípulos, se você “se apegar” à
“palavra” em seu coração, você “dará frutos com paciência” (Lucas 8:15).
Comece com a oração do Pai Nosso e os Evangelhos
Finalmente, alguns leitores podem estar se perguntando: por onde começo?
Que partes da Bíblia devo ler e meditar primeiro? De acordo com os clássicos
espirituais, dois lugares excelentes para começar são (1) as palavras do Pai Nosso
(Mateus 6:9–13) e (2) a vida de Jesus nos quatro Evangelhos.
27

Por exemplo, no século XVI, o fundador dos Jesuítas, Inácio de Loyola,


recomendou meditar lentamente cada uma das palavras da Oração do Senhor da
seguinte maneira:
Pode-se ajoelhar-se ou sentar-se, conforme for mais adequado à sua
disposição e mais propício à devoção. Ele deve manter os olhos fechados ou
fixos em uma posição, sem permitir que eles vaguem. Então deixe-o dizer:
“Pai”, e continue meditando nesta palavra enquanto encontrar vários
significados, comparações, prazer e consolo na consideração dela. O mesmo
método deve ser seguido com cada palavra do Pai Nosso…. Deve continuar
por uma hora da maneira descrita, percorrendo todo o Pai Nosso.17
Uma das razões pelas quais esta forma de meditar no Pai Nosso é um bom
lugar para começar é porque muitas pessoas já sabem de cor as palavras da oração.
(Pode até ser a passagem mais conhecida das Escrituras em toda a Bíblia.) Além
disso, como veremos no capítulo 9, embora a Oração do Pai Nosso seja curta,
quando explicada à luz das Escrituras Judaicas, cada linha da oração é cheia de
significado e mistério.
No que diz respeito à meditação sobre os Evangelhos, como vimos
anteriormente, Tomás de Kempis inicia a sua obra clássica A Imitação de Cristo
afirmando em termos inequívocos que “se queremos verdadeiramente ser
iluminados”, o nosso “estudo principal” deveria ser “meditação sobre a vida de
Jesus Cristo.”18 Seguindo linhas semelhantes, no final do século XIX, Teresa de
Lisieux – talvez a escritora espiritual mais popular dos tempos modernos -
destacou os quatro Evangelhos como tendo um lugar de destaque em sua vida
espiritual:
Mas são sobretudo os Evangelhos que me sustentam nas horas de oração,
pois neles encontro o que é necessário para a minha pobre alma. Estou
constantemente descobrindo neles novas luzes, significados ocultos e
misteriosos. 19
Por que é tão importante focar nos Evangelhos? Porque se quisermos seguir
o caminho espiritual de Jesus, precisamos refletir sobre os seus ensinamentos, que
se encontram sobretudo nos Evangelhos. Além disso, a prática de meditar na sua
vida não só forma as nossas mentes, mas também transforma os nossos corações.
Afinal, quando amamos alguém, passamos um tempo pensando nessa pessoa. 20
Como diz Inácio de Loyola, ao meditarmos nos Evangelhos, devemos pedir a
Deus “um conhecimento íntimo” de Jesus para que possamos “amá -lo mais e
segui-lo mais de perto”. 21
28

Teremos mais a dizer sobre a meditação nas Escrituras mais adiante neste
livro, quando examinarmos a antiga prática cristã conhecida como lectio divina.
Por enquanto, precisamos nos voltar para a terceira forma principal de oração, que
é especialmente focada no coração: a contemplação.
29

3 CONTEMPLAÇÃO
Uma coisa é necessária. Maria escolheu a boa parte.
—Jesus de Nazaré (Lucas 10:42)
A TERCEIRA FORMA PRINCIPAL DE Oração – contemplação – deriva
seu nome do verbo latino contemplor, que significa “olhar”, “contemplar” ou
“olhar atentamente.”1 Enquanto a oração vocal utiliza palavras exteriores para
falar com Deus, e a meditação utiliza pensamentos interiores para pensar em
Deus, a contemplação, na sua forma mais básica, é um “olhar de amor” entre a
alma e Deus. Na oração contemplativa, a pessoa reserva um tempo para ficar a
sós com Deus pelo simples desejo de estar na sua presença, de ouvir a sua voz e
de procurar a sua “face”.
Ao longo dos séculos, os escritores espirituais cristãos forneceram uma
variedade de descrições da oração contemplativa.2 Considere, por exemplo, as
seguintes descrições de clássicos espirituais antigos, medievais e modernos:

O Senhor…colocou o bem maior não na realização de algum trabalho, por mais


louvável que seja, mas na contemplação verdadeiramente simples e unificada
dele.
—João Cassiano (século V)3

A contemplação diz respeito ao simples ato de contemplar a verdade.


—Tomás de Aquino (século XIII)4

O que há de mais tranquilo do que um simples olhar dirigido somente a Deus?…


Perdidos na contemplação, [vemos] que Vós, o Criador de tudo, não tem igual
entre as criaturas.
— Tomás de Kempis (século XV)5

O simples olhar da contemplação…difere da meditação, que quase sempre é


feita com dificuldade, trabalho e raciocínio.
—Francisco de Sales (século XVII)6
30

Observe a ênfase nestas definições no desejo amoroso de “ver” a face de


Deus. Tomados em conjunto, levam à conclusão de que a oração contemplativa
talvez seja melhor descrita como “um olhar de fé fixo em Jesus, uma atenção à
Palavra de Deus, um amor silencioso”. 7
De onde tiraram os escritores espirituais a ideia de contemplação? Embora
a palavra em si nunca ocorra na Bíblia, o mistério da contemplação é uma
característica central da vida espiritual tanto no Antigo como no Novo
Testamento. Neste capítulo, dedicaremos alguns momentos para examinar Jesus
e as raízes judaicas da oração contemplativa.

AS RAÍZES JUDAICAS DA CONTEMPLAÇÃO


Quando abrimos as páginas das Escrituras Judaicas, três exemplos clássicos
de oração contemplativa se destacam: a prática de Moisés de estar a sós com Deus
na oração “face a face” (Êxodo 33–34); o “único” desejo de Davi de ver a “face”
do Senhor e estar com ele para sempre no Templo (Salmo 27); e o famoso
encontro de Elias com a “voz mansa e delicada” de Deus (1 Reis 19). Vejamos
agora cada um deles.
Oração “Face a Face” de Moisés com Deus
O primeiro exemplo de contemplação das Escrituras Judaicas vem da vida
de Moisés.8 Embora muitos leitores da Bíblia hoje em dia tendam a pensar em
Moisés principalmente como um legislador, ele também é um homem de oração
contemplativa.
Consideremos, por exemplo, a prática de Moisés de entrar regularmente
sozinho na misteriosa “tenda da reunião” para falar com Deus face a face:
Moisés costumava pegar a tenda e armá-la fora do acampamento, longe do
acampamento; e ele a chamou de tenda da reunião. E todo aquele que
buscava ao Senhor saía para a tenda da reunião, que estava fora do
acampamento…. Quando Moisés entrava na tenda, a coluna de nuvem descia
e ficava à porta da tenda, e o Senhor falava com Moisés…. Assim o Senhor
falava com Moisés face a face, como qualquer homem fala com seu amigo.
(Êxodo 33:7, 9, 11)
Observe aqui que Moisés arma a tenda de reunião – uma espécie de
santuário portátil – fora do acampamento para que ele possa ficar a sós com Deus.
Observe também que sempre que Moisés entra na tenda do encontro, a “coluna
de nuvem” a cobre como um sinal visível da presença de Deus. O mais importante
31

de tudo é que quando Moisés entra na tenda, Deus fala com ele de uma forma
única: “face a face” (Êxodo 33:11). No contexto, isso não significa que Moisés
veja a face invisível de Deus com seus olhos humanos. Apenas alguns versículos
depois, o próprio Deus diz a Moisés: “Você não pode ver meu rosto; porque o
homem não me verá e viverá” (Êxodo 33:20). O que isso significa é que quando
Moisés ora, ele entra na presença de Deus. Em hebraico, as palavras para “face”
(hebraico panim) e “presença” (hebraico panim) são as mesmas. “Face a face”,
portanto, também pode significar “presença a presença”. 9 Por outras palavras, a
comunicação de Moisés com Deus é íntima e pessoal, mais como a de um amigo
do que de um súdito ou servo. Na verdade, a oração de Moisés é tão poderosa que
até muda a sua aparência: “A pele do seu rosto brilhava porque falava com Deus”
(Êxodo 34:29). Segundo a Bíblia, Moisés não fala apenas com Deus; ele fala com
Deus de uma forma que o transforma.
O único desejo do Rei David
O segundo exemplo clássico de oração contemplativa nas Escrituras
Judaicas vem do livro dos Salmos. 10 No Salmo 27, o Rei Davi declara que seu
único anseio – seu desejo mais profundo – é estar com Deus no Templo, ver sua
face, ouvir à sua voz:
Uma coisa pedi ao Senhor,
isso buscarei;
para que eu habite na casa do Senhor
todos os dias da minha vida,
contemplar a beleza do Senhor,
e para perguntar em seu templo….
Ouve, Senhor, quando clamo em voz alta,
tenha misericórdia de mim e me responda!
Você disse: “Busque minha face”.
Meu coração diz para Vós,
“Tua face, Senhor, eu procuro.”
Não esconda seu rosto de mim.
(Salmo 27:4, 7–9)11
32

No centro deste salmo está o desejo amoroso de Davi por “uma coisa”: estar
na presença de Deus no Templo para sempre. Ali, Davi deseja tanto “contemplar”
ou “contemplar” Deus quanto “perguntar” a ele (Salmos 27:4). 12 A primeira
expressão refere-se ao desejo de David de contemplar a beleza de Deus, enquanto
a segunda refere-se ao seu desejo de ouvir a voz de Deus. Assim como Moisés
entrava regularmente na tenda do encontro para ficar a sós com Deus “face a
face”, Davi também deseja habitar na “casa do Senhor” — para sempre. Observe
aqui que Davi não quer apenas pedir coisas a Deus usando palavras (como na
oração vocal) ou apenas pensar em Deus usando sua mente (como na meditação).
Seu desejo mais profundo é ver a “face” de Deus – isto é, a “presença” santa
e misteriosa de Deus (hebraico panim) (Salmo 27:8). Este é o cerne da oração
contemplativa: o desejo amoroso de estar com Deus para sempre, face a face.
Elias E A Voz Mansa E Delicada De Deus
Um terceiro grande exemplo de contemplação vem da figura de Elias. Mais
uma vez, embora muitos leitores contemporâneos da Bíblia pensem em Elias
principalmente como um milagreiro ou profeta, na história da espiritualidade
cristã, ele foi amplamente considerado, antes de mais nada, como um homem de
oração.13 Em nenhum lugar isto é mais claro do que no famoso relato de Deus
falando com Elias em silêncio no Monte Sinai:
Lá ele chegou a uma caverna e ali se hospedou; e eis que a palavra do Senhor
veio a ele…. “Saia e fique no monte diante do Senhor.” E eis que o Senhor
passou, e um grande e forte vento rasgou as montanhas e quebrou as rochas
diante do Senhor, mas o Senhor não estava no vento; e depois do vento um
terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto; e depois do terremoto um
fogo, mas o Senhor não estava no fogo; e depois do fogo uma voz mansa e
delicada. E quando Elias ouviu isso, envolveu o rosto no manto, saiu e ficou
à entrada da caverna. (1 Reis 19:9, 11–13)
Dois aspectos deste encontro são importantes para a compreensão da oração
contemplativa. Primeiro, observe que Elias, assim como Moisés e Davi, sobe o
Monte Horebe para ficar a sós com Deus. Isto é diferente dos tipos de orações
oferecidas pelo povo de Israel a Deus como uma comunidade quando se reúnem
em adoração. Segundo, quando Deus fala com Elias, ele não o faz de uma forma
visível e tangível através do vento, do terremoto ou do fogo, mas em “uma voz
mansa e delicada” (1 Reis 19:12). Em hebraico, esta expressão pode ser traduzida
como “uma vozinha silenciosa”. 14 Em outras palavras, Deus “fala” com Elias em
absoluto silêncio. A troca entre eles transcende as palavras humanas.
33

JESUS E A CONTEMPLAÇÃO
Com este contexto bíblico em mente, podemos agora voltar-nos para a vida
de Jesus.
Embora o próprio Jesus nunca tenha usado a palavra “contemplação”, desde
os tempos antigos, um episódio em particular foi apontado repetidamente ao longo
dos séculos como o exemplo clássico de oração contemplativa.15 Estou falando
aqui do famoso relato de Marta, Maria e “a única coisa… necessária” (Lucas
10:38–42).16
Marta, Maria E A Única Coisa Necessária
Embora a história de Jesus, Marta e Maria seja muito conhecida,
precisamos examiná-la com atenção para entender por que é tão frequentemente
interpretada como um excelente exemplo de vida contemplativa:
Enquanto seguiam seu caminho, ele entrou em uma aldeia; e uma mulher
chamada Marta o recebeu em sua casa. E ela tinha uma irmã chamada Maria,
que se assentava aos pés do Senhor e ouvia os seus ensinamentos. Mas Marta
estava distraída com muito serviço; e ela foi até ele e disse: “Senhor, tu não
te importas que minha irmã me tenha deixado para servir sozinha? Diga a ela
então para me ajudar. Mas o Senhor lhe respondeu: “Marta, Marta, você está
ansiosa e preocupada com muitas coisas; uma coisa é necessária. Maria
escolheu a boa parte, que não lhe será tirada”. (Lucas 10:38–42)17
Para ver a relação entre Maria e a oração contemplativa são necessários
vários pontos.
Quando Maria se senta aos pés de Jesus, ela assume a postura de um
discípulo judeu ouvindo atentamente o ensinamento de um rabino. 18 Considere,
por exemplo, as palavras de uma antiga tradição judaica fora da Bíblia:
Deixe sua casa ser uma casa de reunião para os Sábios e sente-se no meio da
poeira de seus pés e beba suas palavras com sede.
(Mishná, Ambo 1:4)19
Num contexto judaico do primeiro século, o ato de Maria sentar-se aos pés
de Jesus não é um relaxamento negligente. Pelo contrário, Maria está concentrada
em olhar para Jesus e em ouvir as suas palavras, com atenção bebendo-os. Pelo
próprio ato de ficar quieta, Maria está fazendo o “trabalho” de uma estudante e
trilhando o “caminho” de um discípulo.
34

Quando Marta se dedica a “servir” Jesus, ela assume o papel de anfitriã,


muito provavelmente preparando a comida para uma refeição. Num antigo
contexto judaico, o “servir” (grego diakonia) de Marta era um ato de hospitalidade
que teria sido considerado necessário e importante.20
Ao contrário do que muitos leitores supõem, Jesus não repreende Marta por
servi-lo.21 Se você voltar e ler o Evangelho com atenção, verá que ele a repreende
por estar distraída e ansiosa. A palavra grega para “distraído” significa
literalmente “ser puxado/arrastado para longe”. 22 Por outras palavras, a ansiedade
de Marta em servir Jesus está literalmente a afastá-la dele. Isso a está tornando
incapaz de concentrar sua atenção no próprio Jesus e ouvir suas palavras em
silêncio, como fez sua irmã Maria. O problema dela não é que ela o esteja
servindo, mas que ela está “ansiosa e preocupada com muitas coisas” (Lucas
10:41).
A Boa Porção = O Próprio Deus
Finalmente, quando Jesus diz a Marta que só há “uma coisa” necessária, ele
está se referindo ao ato de Maria de escolher ficar quieta e ouvi-lo. Assim como
o “único” desejo do rei Davi era entrar na presença de Deus no Templo,
contemplar sua beleza e indagar sobre a palavra de Deus (Salmo 27:4), também a
única coisa necessária para um discípulo de Jesus é sentar-se a seus pés, olhar para
seu rosto e ouvir suas palavras. É por isso que ele diz que Maria escolheu a “boa
porção” (Lucas 10:42). Pois no livro dos Salmos, a boa porção escolhida por Davi
é o próprio Deus:
Digo ao Senhor: “Tu és meu Senhor;
Não tenho nada de bom além de Vós” …
O SENHOR é a minha porção escolhida.
(Salmo 16:2, 5)23
Em outras palavras, Jesus está ensinando Marta a colocar o olhar para ele e
ouvi-lo acima de fazer coisas para ele. Embora servir Jesus através das obras seja
bom, a contemplação amorosa de Jesus e de suas palavras é melhor.

CONTEMPLAÇÃO NA TRADIÇÃO CRISTÃ


Neste capítulo apenas arranhamos a superfície do mistério da oração
contemplativa. Teremos mais a dizer ao longo do nosso estudo. Por enquanto,
quero concluir com alguns pontos práticos.
35

A Única Coisa Necessária


Embora a oração vocal e a meditação sejam essenciais, ao longo dos
séculos, os escritores espirituais identificaram a oração contemplativa como “a
única coisa… necessária” mencionada por Jesus (Lucas 10:42). Considere, por
exemplo, as palavras do escritor Gregório, o Grande, do final do século VI:
Maria estava realmente ouvindo a palavra do nosso Redentor enquanto
estava sentada aos seus pés, enquanto Marta estava ocupada com seu
serviço…. O que significa Maria, que está sentada e escuta as palavras do
Senhor, senão a vida contemplativa? O que Marta, que está ocupada com
serviço externo, significa senão a vida ativa? A solicitude de Marta não é
censurada, mas o papel de Maria é louvável. Grande é, de fato, o valor da
vida ativa, mas a contemplação é melhor, por isso diz-se que o papel de
Maria nunca será retirado. Enquanto as obras da vida ativa desaparecem com
o corpo, as alegrias da contemplação aumentam com o fim desta vida.24
Com estas palavras, Gregório adverte os seguidores de Jesus contra a
tentação perene de abandonar a oração silenciosa e contemplativa em prol de boas
obras ou atividades que, embora virtuosas em si mesmas, podem facilmente
tornar-se uma desculpa para não passar tempo a sós com Jesus.
O Olhar Silencioso Do Amor
Na mesma linha, se a contemplação na sua forma mais simples é um olhar
de amor entre a alma e Deus, então é importante enfatizar que não temos que dizer
nada, fazer nada ou pensar em nada em particular durante a oração contemplativa.
Não há necessidade de ficar ansioso em fazer muitas coisas para Jesus durante a
oração (como Marta estava). Basta olhá-lo silenciosamente com amor e ouvi-lo
(como fez Maria). Nas palavras de Teresa de Ávila:
Não estou pedindo agora que você pense N’ele, ou que forme numerosas
concepções D’ele, ou que faça meditações longas e sutis com seu
entendimento. Estou pedindo apenas que você olhe para Ele. Pois quem
pode impedir você de voltar os olhos da sua alma (só por um momento, se
não puder fazer mais) para este Senhor? Você é capaz de olhar para coisas
muito feias e repugnantes: você não pode, então, olhar para a coisa mais bela
que se possa imaginar? Seu cônjuge [Jesus] nunca tira os olhos de você. 25
Observe aqui que a oração contemplativa envolve duas pessoas: você olha
para Jesus e ele olha de volta para você. Afinal, Jesus é Deus. Ele não apenas
pode ver você, mas também está olhando para você – agora mesmo. Tudo o que
36

é necessário é olhar para ele. Como diz o livro dos Salmos: “Aquietai-vos e sabei
que eu sou Deus” (Salmo 46:10).
O Poder Transformador Da Contemplação
Por último, mas certamente não menos importante, a última razão pela qual
a oração contemplativa é tão importante é porque ela tem o p oder de realmente
nos mudar – e para melhor. Quando Moisés desce da montanha depois de estar
com Deus por quarenta dias, sua própria face se altera; está radiante com a luz de
Deus (ver Êxodo 34:29). Da mesma forma, se concentrarmos regularmente a
nossa oração na face de Cristo, nós também seremos transformados. Como diz o
próprio apóstolo Paulo:
Todos nós, com o rosto descoberto, contemplando a glória do Senhor,
estamos sendo transformados à sua semelhança, de um grau de glória para
outro. (2 Coríntios 3:18)
Quando amamos alguém e passamos tempo com ele ou ela, tendemos a nos
tornar cada vez mais parecidos com essa pessoa. Nas palavras de João da Cruz:
A contemplação…é um conhecimento infundido e amoroso de Deus, que ilumina
a alma e ao mesmo tempo a inflama de amor, até que ela se eleve, passo a passo,
até Deus, seu Criador.26
Com efeito, na medida em que a contemplação está enraizada no desejo do
coração de “ver” a face de Deus, a oração contemplativa é uma espécie de
antecipação ou “vislumbre” da vida eterna. Como o próprio Jesus diz no Sermão
da Montanha: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”
(Mateus 5:8).
É claro que antes de podermos ver a face de Deus, nossos corações
precisarão ser purificados do pecado. Para que isso aconteça, pr ecisamos
realmente começar a trilhar o caminho espiritual indicado pelo próprio Jesus. O
primeiro passo nesse caminho é o arrependimento.
37

O CAMINHO ESPIRITUAL
4 O PRIMEIRO PASSO
Há alegria diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende.
—Jesus de Nazaré (Lucas 15:10)
SE HÁ UMA COISA com a qual os clássicos espirituais concordam é que
uma pessoa não irá muito longe no caminho espiritual de Jesus sem tomar uma
decisão consciente de se arrepender – isto é, de se afastar do pecado e se voltar
para Deus. Considere, por exemplo, as seguintes palavras de escritos espirituais
antigos, medievais e modernos:
O início do arrependimento é o início da salvação.
—João Clímaco (século VII)1

Se você deseja fazer progresso espiritual… Aplique-se ao arrependimento de


coração e você encontrará devoção.
— Tomás de Kempis (século XV)2
A penitência interior consiste na tristeza pelos próprios pecados e no firme
propósito de não cometêlos nem cometer outros. A penitência exterior é fruto da
primeira.
—Inácio de Loyola (século XVI)3

Mas por que o arrependimento é tão necessário? E será que alguém que
viveu uma vida de pecado realmente tem o poder de mudar tão radicalmente?
Para responder a estas perguntas, precisamos examinar cuidadosamente o
que a própria Bíblia diz sobre o arrependimento. Como veremos, o conceito de
arrependimento nas Escrituras Judaicas é muito mais rico do que a palavra inglesa
sugere, e o próprio Jesus começa a sua proclamação do evangelho convidando as
pessoas a abandonarem o pecado e a regressarem a Deus.

AS RAÍZES JUDAICAS DO ARREPENDIMENTO


Para compreender adequadamente a mensagem de arrependimento de
Jesus, primeiro precisamos dar uma breve olhada no arrependimento nas
38

Escrituras Judaicas e no ensino do mais famoso pregador judeu de arrependimento


da história: João Batista.
Afastando-Se Do Pecado E Voltando Para Deus
Em inglês, a palavra “arrepender-se” é comumente definida como “sentir
arrependimento” ou “remorso” por ter feito algo errado. 4 Do ponto de vista
bíblico, esta definição é parcialmente correta, mas não capta a plenitude d o que
significa arrependimento autêntico nas Escrituras Judaicas. 5
Em hebraico, a palavra comumente traduzida como “arrepender -se”
significa literalmente “virar-se” (hebraico shūb).6 Pode ser usada de duas
maneiras. Por um lado, arrepender-se significa “afastar-se” do pecado. Como
Deus diz ao povo de Israel:
Arrependa-se e afaste-se [hebraico shūb] de todas as suas transgressões….
Afastem de vocês todas as transgressões que cometeram contra mim e
obtenham um novo coração e um novo espírito! (Ezequiel 18:30–31)
Por outro lado, arrepender-se significa “retornar” a Deus. Consideremos,
por exemplo, as palavras do Rei David no livro dos Salmos, nas quais ele se
arrepende de ter cometido adultério:
Cria em mim um coração limpo, ó Deus,
e coloque um espírito novo e correto dentro de mim….
Então ensinarei aos transgressores os seus caminhos,
e os pecadores retornarão [hebraico shūb] para Vós.
(Salmo 51:10, 13)
Observe que ambas as passagens associam o arrependimento com um
“novo coração” e um “novo espírito”. Do ponto de vista bíblico, o arrependimento
não é apenas uma escolha humana; é um dom do espírito de Deus que realmente
muda o coração humano. É Deus quem dá ao ser humano o poder de se afastar do
pecado e voltar para ele. Não é algo que eles possam realizar sem o poder
transformador da sua graça.
O Batismo de Arrependimento de João
Com este conceito judaico de arrependimento em mente, podemos
compreender melhor a mensagem do precursor de Jesus, João Batista:
39

João Batista apareceu no deserto, pregando um batismo de arrependimento


para o perdão dos pecados. E saíram a ter com ele toda a terra da Judéia e
todo o povo de Jerusalém; e foram batizados por ele no rio Jordão,
confessando os seus pecados…. E ele pregou, dizendo: “Depois de mim vem
aquele que é mais poderoso do que eu, cujas correias das sandálias não sou
digno de me abaixar e desamarrar. Eu vos batizei com água; mas ele os
batizará com o Espírito Santo”. (Marcos 1:4–5, 7–8)
Três aspectos do ministério de João Batista precisam ser destacados aqui. 7
Primeiro, o batismo de João é explicitamente chamado de
“arrependimento”. Como já vimos, nas Escrituras Judaicas, o arrependimento
envolve afastar-se do pecado e retornar a Deus. No entanto, a palavra grega para
“arrepender-se” (grego metanoeō) tem uma camada adicional de significado:
significa literalmente “mudar de ideia”. 8 Assim, o batismo de João está sendo
oferecido àqueles que mudaram de ideia sobre o pecado e desejam ser perdoados.
Segundo, o batismo de João envolve tanto a lavagem com água quanto a
confissão verbal dos pecados. 9 Num antigo contexto judaico, a lavagem enfatiza
que é Deus quem perdoa os pecados e tem o poder de “limpar” o coração de uma
pessoa. Como o Rei David disse a Deus depois de ter cometido adultério: “Lava-
me completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado!” (Salmo
51:2). Por outro lado, a confissão enfatiza que a pessoa também assume a
responsabilidade pelo seu próprio pecado. Como diz a Torá judaica: “Quando um
homem ou mulher cometer qualquer um dos pecados que os homens cometem…,
ele confessará o seu pecado” (Números 5:6-7).
Finalmente, como aprendemos em outro lugar, as pessoas que vêm a João
não são pagãs; eles são companheiros judeus que quebraram um ou mais
mandamentos. Eles incluem pessoas como “cobradores de impostos” e
“prostitutas” (Mateus 21:32). Num cenário judaico do primeiro século, ambos os
grupos teriam sido vistos como pecadores – isto é, pessoas que violaram pública
e repetidamente dois dos Dez Mandamentos: “Não cometerás adultério” e “Não
roubarás” (Êxodo 20 :14–15). São homens e mulheres que querem mudar de vida
e voltar para Deus.
40

JESUS E AS BOAS NOVAS DO ARREPENDIMENTO


Quando passamos de João Batista para Jesus, descobrimos algo
extremamente significativo: assim que ele começa a pregar, a primeira coisa que
Jesus faz é convidar as pessoas a se afastarem do pecado e voltarem para Deus:
Depois que João foi preso, Jesus veio para a Galiléia, pregando o evangelho de
Deus e dizendo: “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo;
arrependam-se [do grego metanoeō] e creiam no evangelho [do grego
euangelion]”. (Marcos 1:14–15)
À luz destas palavras, pode-se dizer verdadeiramente que, para Jesus, não
há verdadeira evangelização – nenhuma partilha do “evangelho” (grego
euangelion) – sem o apelo ao arrependimento. Para ilustrar isso, dedicaremos
alguns momentos para examinar três das parábolas mais famosas de Jesus, todas
focadas no arrependimento: a ovelha perdida, a moeda perdida e o filho pródigo
(Lucas 15:4-32).
A Parábola Da Ovelha Perdida
A primeira parábola de arrependimento de Jesus é a famosa história da
ovelha perdida:
Qual dentre vós é o homem que, tendo cem ovelhas, e perdeu uma delas, não
deixa as noventa e nove no deserto, e vai atrás daquela que está perdida, até
encontrá-la? E quando a encontra, ele a coloca sobre os ombros, regozijando-
se. E quando chega em casa, reúne seus amigos e vizinhos, dizendo-lhes:
“Alegrai-vos comigo, pois encontrei minha ovelha que estava perdida”. Da
mesma forma, eu lhes digo: haverá mais alegria no céu por um pecador que
se arrepende do que por noventa e nove justos que não precisam de
arrependimento. (Lucas 15:4–7)
A chave para entender esta parábola está na última linha, quando Jesus
revela que o pastor representa Deus e a ovelha perdida representa um pecador que
“se arrepende”. Ambas são imagens padrão nas Escrituras Judaicas. 10 Uma vez
claro isto, a parábola revela várias verdades fundamentais: tal como a ovelha
perdida se separa do rebanho e do pastor, também o pecado separa uma pessoa
dos outros e de Deus. E assim como o pastor vai atrás da ovelha perdida e não
descansa até encontrá-la, também é Deus quem inicia a busca pelas que estão
perdidas; ele não vai parar até encontrá-los. 11 Observe aqui que o pastor carrega
nos ombros a ovelha perdida para casa; assim também é a graça de Deus que leva
o pecador de volta para casa. Ele ou ela não pode fazer isso sozinho. Finalmente,
41

assim como o pastor se alegra com os seus amigos quando encontra a ovelha
perdida, também há “alegria no céu” quando até mesmo “um pecador” se
arrepende e retorna para Deus.
A Parábola Da Moeda Perdida
A segunda parábola de arrependimento de Jesus é a história da moeda
perdida:
Que mulher, tendo dez moedas de prata, se perder uma moeda, não acende
uma lâmpada, varre a casa e procura diligentemente até encontrá-la? E
quando a encontra, ela reúne seus amigos e vizinhos, dizendo: “Alegrai-vos
comigo, pois encontrei a moeda que havia perdido”. Da mesma forma, eu
lhe digo, há alegria diante dos anjos de Deus por um pecador que se
arrepende. (Lucas 15:8–10)
Mais uma vez, a chave para a compreensão desta parábola é a última linha,
onde Jesus revela que a mulher representa Deus, os seus amigos são os anjos e a
moeda é “um pecador que se arrepende”. Uma vez que isto fica claro, várias
verdades emergem: assim como “uma moeda” é valiosa para a mulher, mesmo
que ela tenha outras nove, também o “único pecador” é precioso para Deus.12 E
assim como a mulher procura diligentemente até que ela encontre a moeda
perdida, assim também é Deus quem busca o pecador perdido e não irá parar até
encontrá-lo.
Finalmente, assim como a mulher se alegra com os seus amigos e vizinhos,
também o próprio Deus se alegra quando até mesmo “um pecador… se
arrepende”.13
A Parábola Do Filho Pródigo
A terceira parábola de Jesus sobre o arrependimento é a mais famosa de
todas: a história do filho pródigo. Por uma questão de espaço, focarei aqui apenas
na primeira metade da parábola:
Havia um homem que tinha dois filhos; e o mais novo deles disse ao pai:
“Pai, dá-me a parte dos bens que me cabe”. E ele dividiu seus bens entre eles.
Poucos dias depois, o filho mais novo reuniu tudo o que tinha e partiu para
um país distante, onde desperdiçou sua propriedade vivendo de maneira
desregrada. E quando ele gastou tudo, surgiu uma grande fome naquele país,
e ele começou a passar necessidade. Então ele foi e juntou-se a um dos
cidadãos daquele país, que o enviou aos seus campos para alimentar porcos.
E ele teria se alimentado de bom grado das vagens que os porcos comiam; e
42

ninguém lhe deu nada. Mas quando voltou a si, disse: “Quantos empregados
contratados por meu pai têm pão suficiente e de sobra, mas eu morro aqui de
fome! Levantar-me-ei e irei ter com meu pai e lhe direi: ‘Pai, pequei contra
o céu e diante de ti; Já não sou digno de ser chamado de teu filho; trata-me
como um dos teus empregados.’” E ele se levantou e foi para seu pai. Mas
estando ele ainda longe, seu pai o viu e teve compaixão, e correu, abraçou-o
e beijou-o. E o filho lhe disse: “Pai, pequei contra o céu e diante de ti; não
sou mais digno de ser chamado de seu filho.” Mas o pai disse aos seus servos:
“Trazei depressa a melhor roupa e vesti-o; e pôs-lhe um anel na mão e
sapatos nos pés; e trazei o bezerro cevado e matai-o, e comamos e nos
alegremos; porque este meu filho estava morto e reviveu; ele estava perdido
e foi encontrado.” (Lucas 15:11–24)
Embora Jesus não use a palavra “arrependimento”, quando olhamos para o
Filho Pródigo à luz da Ovelha Perdida e da Moeda Perdida, a realidade do
arrependimento e do perdão está no seu cerne.
Longe de o fazer feliz, o pecado do filho pródigo isola-o, contamina-o e
enche-o de vergonha. Isso o isola, levando-o para “um país distante” — isto é, um
território pagão. Isso o contamina, levando-o a viver entre “porcos”, que as
Escrituras Judaicas identificam como um animal “impuro” (Levítico 11:7-8).14 E
isso o enche de tanta vergonha que ele nem mesmo se sente “digno” de ser
chamado filho de seu pai.
O arrependimento do filho pródigo envolve mudar de ideia, voltar para o
pai e confessar o que fez. Observe que o momento do seu arrependimento ocorre
quando “ele voltou a si” e se lembrou de quem ele realmente era (Lucas 15:17).
Essa compreensão é o início de seu arrependimento. 15 É claro que não basta
apenas mudar de ideia. Ele tem que se levantar e começar a caminhar para casa.
Ao chegar, faz a sua confissão de forma simples, sem desculpas nem explicações:
“Pai, pequei contra o céu e diante de ti” (Lucas 15:21).
O mais importante de tudo é que o pai responde ao arrependimento do filho
com compaixão e alegria. Não só o pai o vigia enquanto ele ainda está distante,
mas assim que vê o filho voltar, o pai não espera, mas corre, abraça -o e beija-o.
Por que tanta alegria? Porque aos olhos do pai, o filho pródigo fez muito mais do
que apenas arrepender-se. Ele voltou à vida. Ele voltou para casa. “Este meu filho
estava morto e voltou à vida; ele estava perdido e foi achado” (Lucas 15:24).
No final, é por isso que Jesus coloca a pregação do arrependimento no
centro do seu evangelho. Porque se o pecado realmente mata, se realmente leva à
43

perda, então os pecadores não precisam apenas de um bom professor. Eles


precisam de um salvador. E esse é o objetivo da missão de Jesus. Como ele diz
em outro lugar: “O Filho do homem veio buscar e salvar o perdido” (Lucas 19:10).
O verdadeiro arrependimento não apenas nos traz de volta a nós mesmos; ele nos
leva para casa, para Deus.

O ARREPENDIMENTO NA TRADIÇÃO CRISTÃ


Dada a importância do arrependimento nas Escrituras Judaicas e para João
Batista e para o próprio Jesus, não é surpreendente que ele também seja central
no Cristianismo posterior. Assim como Jesus começa pregando o evangelho do
arrependimento, também o apóstolo Pedro termina seu primeiro sermão no
Pentecostes com o chamado ao “arrependimento” (grego metanoeō) (Atos 2:38).
Da mesma forma, o apóstolo Paulo descreve sua pregação como um chamado às
pessoas para “se arrependerem e se voltarem para Deus” (Atos 26:20).
Finalmente, a carta aos Hebreus descreve o “arrependimento” (grego metanoia)
como o “fundamento” da vida espiritual (Hebreus 6:1–2).
O Fundamento da Vida Espiritual
É claro que o arrependimento pode parecer diferente para pessoas
diferentes. Para aqueles que ainda não foram batizados, abandonar uma vida de
pecado normalmente leva ao recebimento do perdão no batismo. Como Pedro
continua dizendo: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de
Jesus Cristo, para perdão dos vossos pecados” (Atos 2:38).
Para aqueles que violaram os mandamentos após o batismo, o
arrependimento normalmente requer a confissão dos pecados. Como diz o
apóstolo João: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo, para perdoar
os nossos pecados e nos purificar de toda injustiça” (1 João 1:9). Da mesma forma,
a carta de Tiago ensina: “Confessem os seus pecados uns aos outros e orem uns
pelos outros, para que sejam curados” (Tiago 5:16).
De qualquer forma, o verdadeiro arrependimento consiste tanto no remorso
quanto na resolução de evitar o pecado no futuro. Nas palavras de Francisco de
Sales:
Qual é o seu estado de alma em relação ao pecado mortal? Você está
firmemente decidido a nunca cometê-lo por qualquer motivo?… Nesta
resolução consiste o fundamento da vida espiritual. 16
44

Francisco está certo sobre isso? Como ele pode dizer que a resolução de
nunca cometer um “pecado mortal” é realmente o “fundamento da vida
espiritual”?
A resposta é simples: se você quebrou algum dos Dez Mandamentos e ainda
não se arrependeu, então você nem sequer começou a jornada de volta para a casa
do Pai. Você está preso no caminho ou (mais provavelmente) retrocedendo. Com
certeza, não importa o que você tenha feito, você ainda é filho dele e ele ainda é
seu pai. Mas, tal como o filho pródigo, você tem que “cair em si” e mudar de ideia
sobre quem você é e quem é Deus. Você tem que se levantar e começar a caminhar
para casa, para o Pai. Ele já está observando e esperando por você. E quando você
fizer isso, como Jesus disse, haverá “alegria no céu” (Lucas 15:7).
Claro, isso nos deixa com a questão de saber exatamente o que é um pecado
mortal e de onde ele vem na Bíblia. Para responder a esta pergunta, temos que nos
voltar para o nosso próximo tópico: os Dez Mandamentos.
45

5 OS DEZ MANDAMENTOS
Se você quiser entrar na vida, guarde os mandamentos.
—Jesus de Nazaré (Mateus 19:17)
APÓS A NECESSIDADE DE SE Afastar do pecado, talvez o segundo
ponto mais amplamente aceito seja que a pessoa que deseja seguir o caminho
espiritual de Jesus não pode fazê-lo sem guardar os Dez Mandamentos. Se o
arrependimento é o fundamento da vida espiritual, os mandamentos são a porta
de entrada. Considere as seguintes palavras de escritores espirituais antigos,
medievais e modernos:
O primeiro passo da humildade é dado quando um homem obedece a todos os
mandamentos de Deus.
—Bento de Núrsia (século VI)1
Bendita a simplicidade que... segue o caminho claro e seguro dos mandamentos
de Deus.
— Tomás de Kempis (século XV)2

É função da caridade permitir-nos observar todos os mandamentos de Deus em


geral e sem exceção.
—Francisco de Sales (século XVII)3

Por que os Dez Mandamentos são tão importantes? Não são apenas um
conjunto de regras? E, além disso, não pertencem ao Antigo Testamento? Por que
os seguidores de Jesus e da nova aliança deveriam guardá-los?
Neste capítulo, focaremos no papel dos Dez Mandamentos na vida
espiritual. Embora muitas pessoas provavelmente estejam familiarizadas com
listas memorizadas dos mandamentos, se quisermos realmente compreender o
ensino de Jesus, precisamos olhar cuidadosamente para a forma bíblica dos Dez
Mandamentos nas Escrituras Judaicas. Como descobriremos, longe de serem
apenas um conjunto de regras, os Dez Mandamentos são um caminho espiritual
que leva ao amor e não ao ódio, à vida e não à morte.
46

AS RAÍZES JUDAICAS DOS DEZ MANDAMENTOS


Quando abrimos as páginas das Escrituras Judaicas, vários aspectos dos
Dez Mandamentos se destacam como cruciais para a compreensão do seu papel
no ensino espiritual de Jesus. 4
As Dez Palavras
A primeira coisa a notar é que a própria Bíblia nunca usa a frase "os dez
Mandamentos." Nas Escrituras Judaicas, elas são chamadas de “dez palavras”
(hebraico ‘asereth ha-debarim) (Êxodo 34:28). 5 Considere, por exemplo, o que
Moisés disse ao povo de Israel:
Do meio do fogo, o Senhor vos falou. Ouvistes o som de suas palavras, mas
não víeis no entanto nenhuma forma, somente uma voz. Ele vos deu a
conhecer a sua aliança, e ordenou-vos que a observásseis: as dez palavras
que escreveu nas duas tábuas de pedra. (Deuteronômio 4:12–13)
Nesta passagem, as “dez palavras” não são um conjunto arbitrário de regras.
Elas são proferidas diretamente, pelo próprio Deus, em meio a uma teofania (uma
aparição de Deus) no Monte Sinai. O contexto da aparição de Deus é o êxodo do
Egito, logo depois de Deus conduzir Israel através do Mar Vermelho (ver Êxodo
1–15). Assim, quando Deus fala as “dez palavras” a Israel, ele já demonstrou o
seu amor por eles, salvando-os da escravidão ao Faraó. Agora, no Monte Sinai,
Deus os convida para um relacionamento especial com ele, conhecido como
“aliança”.6 Como todos os relacionamentos, esse relacionamento tem certas
regras. No contexto, o propósito das “dez palavras” é mostrar-lhes como
permanecer em aliança com Deus.
O Chamado à Santidade
Igualmente importante, Deus dá os Dez Mandamentos a Israel no contexto
de chamá-los para serem “santos”:
Se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis o meu povo
entre todos os povos; … e sereis para mim um reino de sacerdotes e uma
nação santa. (Êxodo 19:5–6)
No hebraico antigo, a palavra “santo” (hebraico qadosh) significa
literalmente “separado”.7 Tem duas conotações distintas.
Por um lado, “santidade” significa ser “separado” do mal. Como Deus diz
em outro lugar: “Sereis santos; porque eu, o Senhor teu Deus, sou santo” (Levítico
19:2). Assim como Deus está totalmente separado do mal, Israel é chamado a
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evitar o pecado, guardando os mandamentos de Deus. Ao mesmo tempo,


“santidade” também significa ser “separado” para Deus. Como Deus diz em outro
lugar: “Sereis santos para mim; porque eu...separei-vos dos povos, para que sejais
meus” (Levítico 20:26). Em outras palavras, Deus dá os Dez Mandamentos a
Israel para que eles possam ser separados do pecado e separados para um
relacionamento de aliança com ele.
As Duas Tábuas: Amor a Deus e ao Próximo
Observe também que existem duas tábuas de mandamentos. Embora
existam diferentes tradições sobre como contar exatamente cada um dos Dez
Mandamentos, desde os tempos antigos, os intérpretes concordaram que a
primeira tábua se concentra no amor a Deus, enquanto a segunda tábua se
concentra no amor ao próximo. 8 Para ver claramente este duplo amor, temos que
olhar atentamente para a forma bíblica original dos mandamentos. Na primeira
tábua, Deus diz que aqueles que praticam a idolatria “o odeiam”, enquanto aqueles
que guardam os seus mandamentos “o amam” (Êxodo 20:5-6). Da mesma forma,
na segunda tábua, o foco muda para a expressão “teu próximo”, que ocorre quatro
vezes em alguns versículos curtos (Êxodo 20:16–17).
Tábua 1: Amor de Deus Tábua 2: Amor ao Próximo
1. Idolatria: “Não terás outros Deuses." 4. Honrar os Pais: “Honre o seu
pai e sua mãe.”
2. Blasfêmia: “Não tomarás o nome do 5. Assassinato: “Não matarás”.
Senhor… em vão.”
3. Descanso Sabático: “Lembre-se do 6. Adultério: “Não cometerás
dia de sábado, para santificá-lo”. adultério."
7. Roubo: “Não roubarás”.
8. Falso Testemunho: “Não prestar
falso testemunho contra o seu
próximo."
9–10. Cobiça: “Não cobice... qualquer
coisa que seja do seu próximo."
(Êxodo 20:1–11) (Êxodo 20:12-17)
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Tomadas em conjunto, o resultado destas duas tábuas é claro: aqueles que


amam a Deus irão adorá-lo somente, evitarão tomar o seu nome em vão e
manterão o dia de sábado “santificado” – ou “separado” para Deus – descansando
do trabalho.
Da mesma forma, aqueles que amam o próximo honrarão os seus pais e
evitarão o assassinato, o adultério, o roubo, o falso testemunho e a cobiça do
cônjuge ou dos bens do próximo. Longe de serem organizados aleatoriamente, os
Dez Mandamentos fornecem as regras básicas para viver a vida num
relacionamento amoroso com Deus e outros seres humanos. No fundo, as “dez
palavras” de Deus são sobre amor.
Os Dez Mandamentos: Um Caminho para a Vida
Finalmente, os Dez Mandamentos não são apenas regras. Eles são um
caminho espiritual que leva à vida. Considere mais uma vez as palavras de
Moisés, depois que ele deu os mandamentos a Israel pela segunda vez:
Andarás em todo o caminho que o Senhor teu Deus te ordenou, para que vivas, e
tudo te corra bem, e para que tenhas longa vida na terra que possuirás.
(Deuteronômio 5:33)
Quando Moisés fala em andar no “caminho” dos mandamentos de Deus, a
palavra hebraica significa literalmente um “caminho” ou “estrada” (hebraico
derek).9 Assim, Deus dá os mandamentos para que Israel possa saber “o caminho
que deve andar” (Êxodo 18:20). Deste ponto de vista, os mandamentos são uma
espécie de roteiro espiritual que ensina Israel não apenas como amar, mas também
como ter vida espiritual, e tê-la em abundância. Como diz o livro dos Salmos: “O
caminho” dos “mandamentos” de Deus enche a alma de “deleite”, e as “palavras”
de Deus são “mais doces que o mel” (Salmos 119:35, 103).
Uma razão pela qual esta ideia dos Dez Mandamentos como um caminho
espiritual para a vida é importante é porque nos ajuda a compreender melhor o
conceito bíblico de pecado. Segundo a Bíblia, uma das principais razões pelas
quais Deus dá os Dez Mandamentos é para que Israel possa evitar o “pecado”
(Êxodo 20:20). Embora muitas pessoas hoje em dia pensem no pecado
principalmente como quebrar uma regra ou violar uma lei, nas Escrituras Judaicas,
a palavra “pecado” (hebraico chata’) significa literalmente “errar o alvo” ou “errar
o caminho”.10 Considere os seguintes exemplos, nos quais a mesma palavra para
“pecado” é usada para descrever alguém que se perde:
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Não tema, pois Deus veio para provar você... para que você não peque
[hebraico chata’]. (Êxodo 20:20)

Aquele que se apressa com os pés perde [hebraico chata’] o seu caminho.
(Provérbios 19:2)
Por outras palavras, na Bíblia Hebraica, pecar ao quebrar um dos
mandamentos é “errar o caminho” – desviar-se do caminho de Deus que conduz
à vida.
Nas Escrituras Judaicas, esta ligação entre guardar os Dez Mandamentos e
ter vida era bastante literal. Quebrar um dos Dez Mandamentos era, literalmente,
um pecado “mortal”: era punível com a morte. Embora os leitores modernos às
vezes presumam que nos tempos do Antigo Testamento uma pessoa poderia ser
condenada à morte por praticamente qualquer coisa, isso não é verdade. De acordo
com a Bíblia, apenas as violações graves dos Dez Mandamentos – como
sequestro, assassinato ou adultério – eram crimes capitais.11 Em suma, aqueles
que quebram os mandamentos “pecam” porque literalmente “erram o caminho”
que leva à vida. Em vez de agirem de maneira amorosa e vivificante, eles agem
de maneira egoísta e que traz a morte.

JESUS E OS DEZ MANDAMENTOS


Quando passamos das Escrituras Judaicas para a vida de Jesus, vemos dois
lugares-chave nos quais ele enfatiza a necessidade absoluta de guardar os Dez
Mandamentos.12
A Porta Para A Vida Eterna
Primeiro, quando um jovem rico pergunta a Jesus que boa ação fazer para
ter a vida eterna, Jesus lhe diz para guardar os mandamentos:
[Jesus] disse-lhe: “… Se queres entrar na vida, guarda os mandamentos”. Ele
lhe disse: “Qual?” E Jesus disse: “Não matarás, não cometerás adultério, não
roubarás, não dirás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe e amarás o teu
próximo como a ti mesmo”. (Mateus 19:17–19)
Observe aqui que quando Jesus fala sobre “vida”, ele não está falando sobre
a vida terrena comum. Ele está respondendo à pergunta do jovem sobre a “vida
eterna” (Mateus 19:16). Observe também que quando Jesus fala dos
“mandamentos”, ele lista os da segunda tábua, que se concentra no amor ao
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próximo. O mais importante de tudo é que Jesus descreve o cumprimento dos


mandamentos como uma espécie de porta ou entrada para a vida eterna. Em outras
palavras, os Dez Mandamentos são o ponto de partida, não o objetivo . Na
verdade, no Sermão da Montanha, Jesus chama os seus discípulos a fazerem muito
mais do que apenas evitar quebrar os mandamentos. Ele os chama a ser “perfeito”
como Deus é “perfeito” (Mateus 5:48) – falaremos mais sobre isso em breve. No
entanto, Jesus afirma em termos inequívocos que guardar os mandamentos é um
primeiro passo necessário no seu caminho espiritual.
Os Dois Maiores Mandamentos
Em segundo lugar, a razão pela qual Jesus diz que guardar os Dez
Mandamentos é necessário para a salvação é porque ele sabe que, no fundo, os
mandamentos são sobre amor. Considere sua famosa conversa com um escriba
judeu:
Um dos escribas aproximou-se e ouviu-os discutir entre si e, vendo que lhes
respondia bem, perguntou-lhe: “Qual é o primeiro de todos os
mandamentos?” Jesus respondeu: “O primeiro é: ‘Ouve, ó Israel: O Senhor
nosso Deus, o Senhor é o único; e amarás o Senhor teu Deus de todo o teu
coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as
tuas forças.' O segundo é este: 'Amarás o teu próximo como a ti mesmo.' Não
há outro mandamento maior do que estes.” (Marcos 12:28–31)
Dada a importância dos Dez Mandamentos, seria de esperar que Jesus
identificasse a proibição da idolatria por parte de Deus como o “primeiro”
mandamento (Êxodo 20:2-3). No entanto, Jesus cita outras duas passagens das
Escrituras Judaicas: a ordem de amar a Deus com todo o coração, alma e força
(Deuteronômio 6:4-5) e a ordem de amar o próximo como a si mesmo (Levítico
19:18). Ao fazer isso, Jesus não está rejeitando os Dez Mandamentos. Em vez
disso, ele está resumindo a essência dos mandamentos: o amor a Deus e o amor
ao próximo.13
Em apoio a isto, recordemos a famosa exortação de Jesus aos seus
seguidores para serem “perfeitos” (grego, telios) como Deus é “perfeito” (Mateus
5:48). É certo que a palavra grega usada aqui é difícil de traduzir: pode significar
“perfeito”, bem como “irrepreensível”, “inteiro” ou “completo”. 14 No Sermão da
Montanha, porém, Jesus chama claramente os seus discípulos para o caminho da
“perfeição” espiritual que exige que amemos aqueles que não nos amam, da
mesma forma que Deus o faz. 15 Veja as suas palavras no contexto:
51

Ouvistes o que foi dito: “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo.”
Mas eu vos digo: Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os
perseguem, para que vocês sejam filhos de seu Pai que está nos céus; porque
ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e
injustos. Pois se você ama aqueles que o amam, que recompensa você terá?
Os cobradores de impostos não fazem o mesmo? E se você saúda apenas
seus irmãos, o que mais você está fazendo do que os outros? Os gentios não
fazem o mesmo? Você, portanto, deve ser perfeito, assim como seu Pai
celestial é perfeito. (Mateus 5:43–48)
Em outras palavras, a essência de guardar os mandamentos — e o cerne do
caminho espiritual ensinado por Jesus — é aprender a amar nossos inimigos como
o Pai celestial ama.

OS DEZ MANDAMENTOS NA TRADIÇÃO CRISTÃ


Com tudo isto em mente, podemos encerrar a nossa discussão com alguns
breves pontos sobre o papel dos Dez Mandamentos na espiritualidade cristã.
A Necessidade de Guardar os Mandamentos
Tal como Jesus antes deles, os cristãos posteriores ensinam
consistentemente que a fidelidade aos Dez Mandamentos não é opcional. É um
elemento essencial da vida espiritual. Considere, por exemplo, as palavras dos
apóstolos Paulo e João:
Nem a circuncisão vale nada, nem a incircuncisão, mas sim a observância
dos mandamentos de Deus. (1 Coríntios 7:19)

Este é o amor de Deus: que guardemos os seus mandamentos. (1 João 5:3)

Como os mandamentos eram uma parte indispensável da vida com Deus,


qualquer violação deles era vista como um “pecado mortal” — isto é, um pecado
que leva à morte espiritual. Como afirma o apóstolo João: “Há pecado que é
mortal” (1 João 5:16). Em outras palavras, se os Dez Mandamentos são
verdadeiramente o caminho que leva à vida eterna, então a violação deliberada e
grave deles não tem lugar na vida de um seguidor de Jesus.
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Os Mandamentos e o Exame de Consciência


Por esta razão, com o tempo, tornou-se habitual que os cristãos
examinassem regularmente as suas vidas para ver se desviaram- se do caminho da
vida por quebrarem algum dos mandamentos. Esta prática, conhecida como
“exame de consciência”, é famosa e belamente descrita pelo escritor espanhol do
século XVI, Inácio de Loyola:
Peço a Deus nosso Senhor a graça para saber como falhei na observância dos
Dez Mandamentos, e também graça e ajuda para corrigir o futuro. Suplicarei
uma perfeita compreensão deles para melhor observá-los e glorificar e louvar
mais a Divina Majestade. Neste primeiro método de oração devo considerar
e refletir sobre o Primeiro Mandamento, perguntando-me como o observei e
em que falhei…. Este mesmo método será seguido com cada um dos Dez
Mandamentos.16
Examinar-se de acordo com os Dez Mandamentos é especialmente
importante nos estágios iniciais da vida espiritual. Como vimos anteriormente,
após o batismo, qualquer violação grave dos mandamentos exigirá
arrependimento e confissão para permanecer no caminho que conduz à vida (ver
1 João 1:9).
É claro que tudo isto levanta outra questão: Porque é que os seres humanos
pecam? Para responder a esta pergunta, temos que examinar atentamente as razões
do primeiro pecado cometido na Bíblia. Temos que voltar à queda de Adão e Eva.
53

6 AS TRÊS TENTAÇÕES
Quando o diabo acabou com todas as tentações, ele se afastou dele.
— O Evangelho de Lucas (4:13)
NOS DOIS ÚLTIMOS CAPÍTULOS, consideramos o arrependimento
como o fundamento da vida espiritual e os mandamentos como a porta de entrada.
Mas assim que começamos a trilhar o caminho, surge um problema: mesmo
depois de nos arrependermos e decidirmos guardar os mandamentos, a tentação
de pecar permanece. Porque isto é assim? Por que é tão fácil pecar, mesmo depois
de decidir se afastar do pecado?
Para responder a esta pergunta, precisamos olhar para a origem da
pecaminosidade humana e compreender exatamente como o próprio Jesus vence
a tentação e dá o poder para vencê-la aos seus discípulos. Como veremos, é
impossível compreender plenamente as boas novas da salvação sem primeiro
compreender as más notícias da tentação de pecar.
Quando se trata das causas profundas do pecado humano, os escritores
espirituais ao longo dos séculos apontaram três tentações específicas. Desde os
tempos antigos, os cristãos notaram que Adão e Jesus são tentados por três
tentações que parecem corresponder uma à outra. Considere os seguintes
exemplos:
[Jesus] teve que ser tentado pelas mesmas paixões pelas quais Adão também
foi tentado…. Por estes três vícios, então, lemos que o Senhor, o Salvador,
também foi tentado.
—João Cassiano (século V)1

Nosso antigo inimigo se levantou contra o primeiro ser humano [Adão],


nosso ancestral, em três tentações…. Mas os meios pelos quais ele venceu o
primeiro homem [Adão] foram os mesmos que o fizeram ceder quando
tentou o segundo [Jesus].
—Gregório, o Grande (século VI)2
Neste capítulo, examinaremos mais de perto o que a Bíblia diz exatamente
sobre essas três tentações e como elas se correlacionam com as três principais
tentações enfrentadas por todo ser humano caído.
Isto significará estudar o que veio a ser conhecido como “a tripla
concupiscência” – o desejo humano desordenado de prazer, posses e orgulho.3 O
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Novo Testamento refere-se a estas três tentações como “a concupiscência da


carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (1 João 2:16). Como
veremos, esses três desejos desordenados são a chave para a compreensão de
todos os pecados humanos, bem como da salvação que Jesus traz ao vencê-los.

AS TRÊS TENTAÇÕES NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Para compreender como Jesus vence a tripla tentação, precisamos voltar às
Escrituras Judaicas e examinar cuidadosamente o papel destas tentações na queda
de Adão e Eva. Começamos com uma pergunta comum: se o primeiro homem e
a primeira mulher foram criados “muito bons” (Gênesis 1:31), então por que eles
pecam? Qual é a razão da Queda?
As três razões para a queda de Adão e Eva
De acordo com Gênesis, depois que Deus colocou Adão no Jardim do Éden,
ele lhe ordenou explicitamente que não comesse o fruto da “árvore do
conhecimento do bem e do mal”, sob pena de morte (Gênesis 2:8, 15–17). Então,
por que Adão desobedece? Um fator-chave é porque Eva ouve as palavras da
“serpente”, que lhe garante que ela e o marido não “morrerão” mas “serão como
Deus” ou – mais literalmente, “como deuses” (hebraico ‘elohim) (Gênesis 3:1–5).
No entanto, o que às vezes é esquecido são as três razões pelas quais Eva cedeu à
sugestão da serpente:
Quando a mulher viu que a árvore era boa para comida, e que era uma delícia
para os olhos, e que a árvore era desejável para tornar alguém sábio, ela
pegou do seu fruto e comeu; e ela também deu um pouco ao marido, que
estava com ela, e ele comeu. (Gênesis 3:6)4
De acordo com as Escrituras Judaicas, existe uma tripla motivação para o
primeiro pecado.
A razão pela qual Adão e Eva desobedeceram a Deus é o prazer de provar
o fruto (“bom para comida”), o desejo de possuí-lo assim que o virem (“uma
delícia para os olhos”) e o desejo orgulhoso de ser “sábio” como Deus, mas
desobedecendo-lhe (“desejou tornar alguém sábio”).
É importante ressaltar que, por si só, esses três desejos são bons. 5 O desejo
pelo prazer da comida é bom. Afinal, o próprio Deus deu a Adão e Eva “toda
planta” e “toda árvore com… seus frutos… por alimento” (Gênesis 1:29). Da
mesma forma, o desejo de possuir coisas criadas é bom.
55

O próprio Deus dá a Adão e Eva “domínio” sobre tudo no mundo: os peixes,


os pássaros, o gado e toda a terra (Gênesis 1:26, 28). Finalmente, até o desejo de
ser como Deus é bom. O próprio Deus faz o homem e a mulher à sua própria
“imagem” e “semelhança” (Gênesis 1:26-27). Em outras palavras, toda a razão
pela qual Deus criou o homem e a mulher é para que eles possam compartilhar o
que é bom (“bom para comida”), e belo (“uma delícia para os olhos”), e verdadeiro
(para ser “como Deus”). O problema é que Adão e Eva tentam adquirir essas três
coisas abusando da sua liberdade e desobedecendo a Deus. Eles querem ser como
Deus, mas separados de sua vontade.
Ao escolherem livremente desobedecer a Deus, Adão e Eva transformaram
esses três bons desejos em três desejos desordenados – prazer, posses e orgulho.
Estas são as três razões do primeiro pecado humano.

JESUS E AS TRÊS TENTAÇÕES


Quando passamos da queda de Adão e Eva para a vida de Jesus,
descobrimos um paralelo surpreendente entre as três razões do primeiro pecado e
o misterioso relato das três tentações de Jesus no deserto.
As Tentações de Jesus no Deserto
Imediatamente após ser batizado por João no rio Jordão, Jesus vai para o
deserto e jejua durante quarenta dias, durante os quais sofre três tentações. Para
maior clareza, enumerei-os:
[1] O diabo lhe disse: “Se tu és o Filho de Deus, manda que esta pedra se
transforme em pão”. E Jesus lhe respondeu: “Está escrito: 'Nem só de pão viverá
o homem.'”
[2] E o diabo o levantou, e mostrou-lhe num momento todos os reinos do mundo,
e disse-lhe: “A ti darei toda esta autoridade e a sua glória; porque me foi entregue,
e eu o dou a quem quero. Se você, então, me adorar, tudo será seu. E Jesus lhe
respondeu: “Está escrito: ‘Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele servirás’”.
[3] E levou-o a Jerusalém, colocou-o no pináculo do templo e disse-lhe: “Se tu és
o Filho de Deus, atira-te daqui para baixo; pois está escrito: ‘Ele dará aos seus
anjos ordens sobre você, para protegê-lo’, e ‘Eles o sustentarão nas mãos, para
que não tropece em alguma pedra’”. E Jesus respondeu-lhe: “Está dito: ‘Não
tentarás o Senhor teu Deus’”. E quando o diabo acabou com todas as tentações,
ele se afastou dele até um momento oportuno. (Lucas 4:3–13)
56

Assim como o livro de Gênesis diz que o fruto proibido era agradável ao
paladar, uma delícia aos olhos e desejável para tornar Adão e Eva “como deuses”
(Gênesis 3:5), agora o diabo tenta Jesus com o prazer de comer, o desejo de
possuir a “glória” de todas as riquezas e poder deste mundo, e o orgulho de se
exaltar realizando um milagre onde todos pudessem ver. Considere o gráfico na
página oposta.
Desde os tempos antigos, os escritores cristãos reconheceram que os
paralelos entre a queda de Adão e as tentações de Jesus no deserto mostram que
ele não é apenas o Messias. Ele também é o novo Adão. 6 Enquanto Adão cedeu
às tentações do prazer, das posses e do orgulho, e trouxe o pecado e a morte ao
mundo, Jesus triunfou sobre todos os três. Por outras palavras, as tentações de
Jesus no deserto mostram que a sua missão não é apenas salvar a humanidade do
pecado, mas também vencer o poder das próprias tentações que, para começar,
mergulharam a humanidade no pecado.

Queda de Adão Jesus no deserto Três tentações


1. Bom para comida Pedra em pão Prazer
Todos os reinos do
2. Delícia para os olhos Posses
mundo
Se és o filho de
3. Para tornar sábio Orgulho
Deus
(Gênesis 3:6) (Lucas 4:3, 5–7, 9)

AS TRÊS TENTAÇÕES NA TRADIÇÃO CRISTÃ


Caso haja alguma dúvida sobre a importância de compreender que Jesus
vence o pecado ao vencer as três tentações de Adão, basta recorrermos aos escritos
dos apóstolos e à tradição cristã posterior.
Jesus, o Novo Adão
Por exemplo, na sua carta aos Romanos, o apóstolo Paulo diz o seguinte
sobre o paralelo entre Adão e Jesus:
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Assim como pela desobediência de um homem muitos foram feitos


pecadores, assim pela obediência de um homem muitos serão feitos justos.
(Romanos 5:19)
Segundo Paulo, Jesus salva a humanidade não apenas através da sua morte
na cruz; ele salva a humanidade através da sua obediência, pela qual desfaz a
desobediência de Adão diante da primeira tentação.
O Apóstolo João e a Tripla Luxúria
Considere também as palavras do apóstolo João, que descreve
especificamente o pecado humano como uma tripla “concupiscência”:
Tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne e a concupiscência dos
olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas é do mundo. E o mundo passa,
e a sua concupiscência; mas aquele que faz a vontade de Deus permanece
para sempre. (1 João 2:16–17)
Para entender esta passagem, é importante enfatizar que embora a palavra
“luxúria” em inglês normalmente se refira a um desejo desordenado de prazer
sexual, em grego ela pode se referir a qualquer “desejo” desordenado (grego
epitímia).7 Da mesma forma, a palavra traduzida aqui como “orgulho” significa
literalmente “arrogância” (do grego alazoneia).8
Queda de Adão Jesus no Deserto Tripla Luxúria Três Tentações
1. Bom para
Pedra em pão Luxúria da carne Prazer
comer
2. Prazer em Todos os reinos
Luxúria dos olhos Posses
olhar do mundo
3. Para tornar Se você é o Filho
Orgulho da vida Orgulho
sábio de Deus
(Lucas 4:3, 5–7,
(Gênesis 3:6) (1 João 2:16– 17)
9)

Assim, de acordo com João, a tripla “concupiscência” consiste em um


desejo pecaminoso pelos prazeres da carne (por exemplo, comida, bebida, prazer
físico), pelos anseios dos olhos (por exemplo, posses, riqueza) e pela “arrogância”
de exaltar-se sobre os outros. Estes três desejos correspondem precisamente às
três tentações de Adão e de Jesus.
58

A Tríplice Raiz de Toda Pecaminosidade Humana


À luz de tais paralelos surpreendentes, os escritores espirituais cristãos
posteriores enfatizariam repetidamente que estas três tentações estão na raiz de
todo pecado e do mal que dele resulta. Consideremos, por exemplo, as palavras
do grande bispo norte-africano Agostinho de Hipona e do místico espanhol João
da Cruz:
Estes são os três, e além do desejo da carne, ou do desejo dos olhos, ou da
ambição do mundo, você não encontrará nada que p ossa tentar o egoísmo
humano.
—Agostinho de Hipona (século V)9

A concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida…


dão origem a todos os outros apetites.
—João da Cruz (século XVI)10

Se recuarmos por um momento e refletirmos, não demorará muito para


percebermos que tudo isso é verdade. Todo pecado concebível que faz parte deste
mundo caído decorre de alguma forma dessas três tentações.
Pensemos, por exemplo, no incalculável sofrimento, quebrantamento e dor
vividos por indivíduos, famílias e comunidades devido à embriaguez, ao abuso de
drogas, à pornografia, ao tráfico de seres humanos e à violação. O que está na raiz
de tudo isso? A “concupiscência da carne” – o desejo egoísta de prazer físico.
Pensemos também na violência inestimável e nos danos causados à vida humana
por causa da escravatura, do roubo, da fraude, da corrupção, da poluição e da
exploração dos pobres, dos idosos, dos doentes e dos fragilizados. Qual é a causa
de tudo isso? A “concupiscência dos olhos” – o desejo egoísta de adquirir riqueza
a qualquer custo.
Finalmente, imagine o oceano do mal que varreu a história humana devido
à arrogância de reis, rainhas, príncipes, presidentes e políticos que se exaltam às
custas daqueles que os rodeiam. Quantas guerras foram travadas, quanto sangue
foi derramado, por causa do “orgulho da vida”?
E nem precisamos olhar para a tragédia da história humana. Precisamos
apenas olhar para nossos próprios corações. Lá descobriremos rapidamente
nossos próprios desejos desordenados de prazer, posses e orgulho egoísta.
59

Jesus Dá Aos Seus Discípulos Três Remédios


Então, como os seguidores de Jesus lutam contra a tripla concupiscência?
Quem entre nós tem poder para superá-lo?
Como veremos ao longo dos próximos três capítulos, no Sermão da
Montanha, Jesus dá aos seus discípulos três exercícios espirituais que são
remédios para a tripla concupiscência que habita em cada coração humano.
Considere o seguinte:
Sermão da
Queda de Adão Jesus no Deserto Tripla Luxúria
Montanha
1. Bom para
Pedra em pão Luxúria da carne Jejum
comida
2. bom para os Todos os reinos
Luxúria dos olhos Esmola
olhos do mundo
3. Para tornar Se tu és o Filho
Orgulho da vida Oração
sábio de Deus
(Lucas 4:3, 5–7, (Mateus 6:2, 5,
(Gênesis 3:6) (1 João 2:16–17)
9) 16)

Como esses paralelos deixam claro, Jesus não venceu a tentação para que
seus seguidores não precisassem fazê-lo. Ele venceu a tentação para que possamos
vencê-la também.
Para ver isso claramente, entretanto, teremos que examinar com mais
cuidado, nos próximos três capítulos, cada um desses remédios espirituais.
Começaremos com o antídoto para a concupiscência da carne: o jejum.
60

7 JEJUM
Quando você jejuar... lave o rosto, para que o seu jejum não
seja visto pelos homens, mas por seu Pai que está em segredo.
—Jesus de Nazaré (Mateus 6:17–18)
NO SERMÃO DA MONTANHA, Jesus dá aos seus discípulos três
exercícios espirituais – oração, jejum e esmola – como antídotos para “a
concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (1 João
2:16). Neste capítulo, vamos nos concentrar no jejum como remédio para “a
concupiscência da carne” – o desejo desordenado de prazer físico. Como veremos,
Jesus ensina seus discípulos a desenvolver o hábito do jejum secreto – abster-se
da comida em particular para se aproximarem do Pai.
Nos tempos contemporâneos, a prática do jejum não é algo que muitas
pessoas identificariam como essencial ao Cristianismo. No entanto, ao longo dos
séculos, muitos escritores espirituais descreveram-no como uma parte central da
vida cristã:

Você descobrirá que o jejum guiou todos os santos a um estilo de vida piedoso.
—Basílio, o Grande (século IV)1

O autor da nossa morte [Adão] quebrou os mandamentos ao comer o fruto da


árvore proibida…. Vamos nós, que nos afastamos das alegrias do paraíso através
da comida, nos levantarmos para elas novamente... através do jejum.
—Gregório, o Grande (século VI)2

O inimigo tem mais medo de nós quando vê que podemos jejuar.


—Francisco de Sales (século XVII)3

Esta ênfase na importância do jejum não deveria ser uma surpresa. Afinal,
no Sermão da Montanha, Jesus assume que o jejum será uma parte regular da vida
espiritual dos seus seguidores: “Quando jejuares, unge a cabeça e lava o rosto”
(Mateus 6:17). É significativo que Jesus diga: “Quando você jejuar...”, e não “Se
você jejuar...” Jesus não considera o jejum opcional.
61

Mas qual é a razão do jejum? Afinal, a comida é necessária para a vida


humana. Então, por que Jesus espera que seus seguidores às vezes se abstenham
secretamente de comer? Neste capítulo, nós examinaremos onde o jejum é
encontrado na Bíblia, por que Jesus exige que seus discípulos o pratiquem e como
o jejum é um antídoto para a concupiscência da carne.

AS RAÍZES JUDAICAS DO JEJUM


Quando abrimos as páginas das Escrituras Judaicas, descobrimos vários
aspectos importantes da prática bíblica do jejum. 4
Jejum e a Queda de Adão e Eva
Primeiro, pode-se argumentar que a prática do jejum remonta ao Jardim do
Éden. Embora o primeiro mandamento de Deus seja “sede fecundo e multiplicai-
vos” (Gênesis 1:28), o segundo mandamento envolve explicitamente a abstenção
de alimentos:

O Senhor Deus ordenou ao homem, dizendo: “Você pode comer livremente


de toda árvore do jardim; mas da árvore do conhecimento do bem e do mal
não comerás, porque no dia em que dela comeres, morrerás”. (Gênesis 2:16–
17)

Muito antes de Deus dizer: “Não matarás” (Êxodo 20:13), ele diz: “Não
comereis” (Gênesis 2:17). 5 Por outras palavras, Adão comete o primeiro pecado
ao não controlar o seu desejo de comer. Se ele tivesse “jejuado” da árvore do
conhecimento, não teria sido expulso do Éden. No entanto, porque a árvore é “boa
para alimento”, ele cede ao seu desejo e come (Gênesis 3:6). Como resultado, não
apenas Adão e Eva foram banidos do Éden (Gênesis 3:22-23), mas todos os seres
humanos nasceram neste mundo caído com um desejo desordenado pelo prazer
da comida, que o apóstolo João chama de “a concupiscência da carne” (1 João
2:16). Vista sob esta luz, a prática bíblica do jejum trata, em primeiro lugar, de
reverter os efeitos da Queda, treinando os desejos do corpo para obedecer à
vontade da alma. Se uma pessoa aprender a controlar o desejo por coisas boas,
como comida, é mais provável que seja capaz de controlar o desejo por coisas
más, como o pecado.
62

Preparação Para Entrar Na Presença De Deus


Nas Escrituras Judaicas, o jejum também é feito para nos prepararmos para
entrar na presença de Deus. Considere os exemplos de Moisés no Monte Sinai:

[Moisés] esteve ali com o Senhor quarenta dias e quarenta noites; ele não
comeu pão nem bebeu água…. Quando Moisés desceu do Monte Sinai, …
Moisés não sabia que a pele do seu rosto brilhava porque ele estava
conversando com Deus. (Êxodo 34:28-29)
Na mesma linha, o profeta Elias jejua por “quarenta dias e quarenta noites”
(1 Reis 19:8) antes de subir o Monte Horebe e encontrar-se com Deus:

Ali [Elias] chegou a uma caverna e se hospedou ali…. E eis que o Senhor
passou, e um vento forte e forte rasgou as montanhas… mas o Senhor não
estava no vento; e depois do vento um terremoto, mas o Senhor não estava
no terremoto; e depois do terremoto um fogo, mas o Senhor não estava no
fogo; e depois do fogo uma voz mansa e delicada. (1 Reis 19:9, 11–12)
Em ambos os casos, o jejum de comida e bebida prepara Moisés e Elias
para encontrarem Deus e ouvirem a sua voz.
Um Sinal De Arrependimento Interior
Finalmente, nas Escrituras Judaicas, o jejum também é praticado como um
sinal exterior de arrependimento interior. Considere as palavras do profeta Joel:
Por isso, agora ainda – oráculo do Senhor –, voltai a mim de todo o vosso
coração, com jejuns, lágrimas e gemidos de luto. Rasgai vossos corações e
não vossas vestes; voltai ao Senhor, vosso Deus, porque ele é bom e
compassivo...
Tocai a trombeta em Sião: publicai o jejum, convocai a assembleia, reuni o
povo;16santificai a assembleia, agrupai os anciãos, congregai as crianças e
os meninos de peito; saia o recém-casado de seus aposentos, e a esposa de
sua câmara nupcial. (Joel 2:12–13, 15–16)
Observe aqui que todos os israelitas – homens, mulheres e crianças – são
chamados a participar do jejum como forma de se afastarem do pecado e
retornarem a Deus de todo o coração (Joel 2:12). Esta ligação entre o jejum
exterior e o arrependimento interior era muitas vezes representada por ações
exteriores, como usar “saco” e “cinzas” (Isaías 58:3–5). Na verdade, uma vez por
63

ano, no Dia da Expiação, todo o povo de Israel “se afligiria”, uma expressão
hebraica para abster-se de comida e bebida (Levítico 16:29). 6 Em suma, a prática
bíblica do jejum tem tudo a ver com afastar-se do pecado e voltar-se para Deus. 7

JESUS E O JEJUM SECRETO


Quando passamos das Escrituras Judaicas para a vida de Jesus, descobrimos
mais três características importantes do jejum.
Jesus É O Modelo Para O Jejum
Primeiro, depois de ser batizado e conduzido ao deserto pelo Espírito Santo,
o próprio Jesus jejua:
Então Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo diabo.
E jejuou quarenta dias e quarenta noites, e depois teve fome. (Mateus 4:1–2)
Durante o seu ministério público, Jesus era obviamente conhecido por
“comer e beber” com os pecadores como parte do seu esforço “para procurar e
salvar os perdidos” (Mateus 11:19; Lucas 15:1–2; 19:10). No entanto, quando
chegou a hora de lutar contra a tentação, Jesus jejuou. Desta forma, o próprio
Jesus torna-se o “principal exemplo” de jejum para os seus discípulos.8
O Poder Da Oração E Do Jejum
Segundo Jesus, quando a oração é combinada com o jejum, ela é
especialmente poderosa. Considere as palavras de Jesus aos seus discípulos depois
de curar um menino com um espírito mudo que eles não conseguiram expulsar
(ver Marcos 9:14–27).
Mais tarde, eles perguntam a ele em particular, “Por que não pudemos
expulsá-lo?” E ele lhes disse: “Este tipo não pode ser expulso por nada além
de oração e jejum”. (Marcos 9:28–29)9
É significativo que Jesus não diga que foi o pecado dos discípulos que os
tornou espiritualmente fracos. Acontece que eles não estavam jejuando. Por si só,
a oração é poderosa. Mas em situações especialmente difíceis, precisa ser
combinada com o jejum. 10
Jesus Ensina Seus Discípulos A Jejuar Em Segredo
Finalmente, no Sermão da Montanha, Jesus ensina seus discípulos a
praticar o jejum secreto:
64

Quando você jejuar, não pareça desanimado, como os hipócritas, pois eles
desfiguram o rosto para que o jejum seja visto pelos homens. Em verdade
vos digo que eles receberam a sua recompensa. Mas quando você jejuar, unja
a cabeça e lave o rosto, para que o seu jejum não seja visto pelos homens,
mas por seu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te
recompensará. (Mateus 6:16–18)
Observe aqui que Jesus está se referindo ao jejum privado de seus
discípulos, e não ao jejum público do povo judeu como um todo. Como vimos
acima, a própria Bíblia ensina o povo de Israel a usar cinzas em dias solenes de
jejum e arrependimento em toda a comunidade (ver Isaías 58:3–9). Aqui, Jesus
está ensinando seus discípulos a fazer mais do que observar os dias anuais de
jejum público, como o Dia da Expiação. Ele os está ensinando a desenvolver o
hábito do jejum secreto. Esta ênfase no sigilo visa salvaguardar os discípulos
contra fazer a coisa certa (jejuar) pela razão errada (buscar elogios humanos). 11
Além disso, porque só Deus pode ver isso, o jejum secreto ajuda a
aproximá-los do “Pai que está em segredo”. Em suma, Jesus exorta os seus
discípulos a fazerem da abstinência privada de alimentos uma parte regular das
suas vidas espirituais.

JEJUM NA TRADIÇÃO CRISTÃ


Quando passamos dos ensinamentos de Jesus para a tradição cristã
posterior, descobrimos que – não importa quão longe se retroceda – o jejum era
tratado como uma característica central da vida cristã.
Jejum Comunitário E Adoração Cristã
Por exemplo, desde os primeiros dias da Igreja, o jejum por toda a
comunidade era praticado em conjunto com o culto. Como nos diz os Atos dos
Apóstolos,
Na igreja de Antioquia… eles estavam adorando ao Senhor e jejuando.
(Atos 13:1–2)
Esta combinação de liturgia e jejum é extremamente importante, uma vez
que o culto na Igreja apostólica girava em torno do “partir do pão” (Atos 2:42).
Aparentemente, assim como Moisés e Elias jejuaram para se prepararem para
entrar na presença de Deus, e assim como os antigos judeus jejuaram em
preparação para a Páscoa (Mishna, Pesahim 10:1), também o antigo jejum cristão
65

era ligado à participação no “corpo de Cristo” e no “sangue de Cristo” na Ceia do


Senhor (cf. 1 Coríntios 10:16; 11:20). 12
Jejum Privado e a Paixão de Jesus
Além disso, os primeiros cristãos também praticavam jejum privado em
dias especiais da semana. Por exemplo, vários escritos cristãos antigos instruem
os crentes a jejuar às quartas e sextas-feiras (Didaqué 8:1; Vidas dos Padres do
Deserto 8.58; Constituições Apostólicas 5.15). 13 Em particular, o jejum de sexta-
feira estava ligado às palavras de Jesus aos discípulos:
Podem os convidados do noivo jejuar enquanto o noivo está com eles? …
Virão dias em que o noivo lhes será tirado, e então jejuarão naquele dia.
(Marcos 2:19–20)
Deste ponto de vista, o jejum na sexta-feira é uma forma de recordar a
crucificação – o dia em que Jesus foi levado embora. Assim como qualquer pessoa
que já perdeu um cônjuge ou ente querido não apenas se lembra do dia em que o
ente querido morreu, mas também mantém esse dia solene e sagrado, também os
cristãos jejuam às sextas-feiras como forma de lembrar sua paixão e compartilhar
os sofrimentos de Jesus.
Na Idade Média, esta ligação entre o jejum e os sofrimentos de Jesus fez
parte do clássico espiritual de Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo:
[Jesus] encontra muitos companheiros à mesa, mas poucos no jejum. Todos
desejam alegrar-se com ele, mas poucos estão dispostos a sofrer algo por ele
e com ele. 14
Visto sob esta luz, o jejum não é apenas algo para fazer imitando Jesus.
Trata-se da união com Jesus. O jejum cristão é uma forma de estar com Jesus
enquanto ele está sozinho no deserto e sofrendo na cruz. Desde a antiguidade, os
cristãos jejuavam durante os quarenta dias da Quaresma como forma de se unirem
ao “mistério de Jesus no deserto”. 15
Um Remédio Para A Luxúria Da Carne
Por último, mas certamente não menos importante, se tivermos problemas
em ceder aos desejos da nossa carne, então precisamos começar a jejuar. Pois o
jejum é um remédio para “a concupiscência da carne” (1 João 2:16). Considere as
palavras do antigo escritor cristão Basílio, o Grande:
Se o jejum presidisse a nossa vida… teria ensinado todas as pessoas não só
a controlarem-se em relação à comida, mas também a evitarem
66

completamente e a afastarem-se completamente da avareza, da ganância e de


todo o tipo de vício. 16
Hoje em dia, as pessoas às vezes sugerem que, em vez de jejuar de comida,
os cristãos deveriam apenas “jejuar” de pecados e maus hábitos. Isto parece bom
a princípio, mas se não conseguimos controlar os desejos da nossa língua por
comida e bebida, o que nos faz pensar que seremos capazes de controlar os nossos
desejos por fofocas, obscenidades, grosserias e insultos? Se, por outro lado,
formos capazes de desistir voluntariamente de coisas boas como a comida, então
seremos mais provavelmente capazes de resistir voluntariamente a coisas más,
como o pecado. A capacidade de controlar o corpo e a alma andam de mãos dadas.
Dito isso, é fundamental lembrar que, quando se trata da prática do jejum,
precisamos pedir a Deus a graça de crescer no autocontrole. Como o próprio Jesus
diz aos seus discípulos na Última Ceia, “Sem mim vocês não podem fazer nada”
(João 15:5).
Com isto em mente, podemos agora voltar a nossa atenção para o remédio
para a concupiscência dos olhos que Jesus dá no Sermão da Montanha: a esmola.
67

8 ESMOLA
Quando você der esmola, não deixe a sua mão esquerda saber o que
tua mão direita está fazendo, para que a tua esmola esteja em segredo.
—Jesus de Nazaré (Mateus 6:3–4)

O SEGUNDO EXERCÍCIO ESPIRITUAL que Jesus dá aos seus discípulos


no Sermão da Montanha é a esmola – a prática de dar dinheiro ou bens aos pobres
e necessitados. Assim como o jejum é um remédio espiritual para o desejo
desordenado de prazer (“a concupiscência da carne”), a esmola é um remédio
espiritual para o desejo desordenado de posses (“a concupiscência dos olhos”). E
assim como Jesus ensina os seus seguidores a praticarem o jejum secreto que só
Deus pode ver, também ele os exorta a praticar a esmola secreta – dando dinheiro
ou outros bens de forma discreta e voluntária aos necessitados.
Durante dois mil anos, houve inúmeros exemplos cristãos de esmola e amor
pelos pobres (pense aqui em Madre Teresa de Calcutá).
Uma razão para isso é que os escritores espirituais antigos, medievais e
modernos consideravam a prática de dar regularmente aos pobres não apenas
como aconselhável para os cristãos, mas como necessária para a salvação.
Considere as seguintes afirmações:
É impossível, embora realizemos dez mil outras boas ações, entrar nos portais
do reino sem dar esmolas.
—João Crisóstomo (século IV)1

Alguns são punidos eternamente por omitirem dar esmolas.


—Tomás de Aquino (século XIII)2

Frequentemente, desista de algumas de suas propriedades, dando-as com um


coração generoso aos pobres. —Francisco de Sales (século XVII)3

Isso é verdade? É realmente impossível entrar no reino de Deus sem dar


esmolas? Dar aos pobres é realmente necessário para a salvação? Deveriam os
cristãos realmente dar esmolas com frequência, ou apenas ocasionalmente?
68

Neste capítulo, examinaremos as raízes bíblicas da esmola, com foco


particular em como ela é um remédio para a concupiscência dos olhos – o desejo
humano desordenado de possuir o que vemos. Além disso, como descobriremos,
é o próprio Jesus quem afirma, em termos inequívocos, que a esmola é necessária
para a salvação.

AS RAÍZES JUDAICAS DA ESMOLA


Nas Escrituras Judaicas, há duas passagens clássicas dedicadas à prática da
esmola: o mandamento de Moisés de dar generosamente aos pobres
(Deuteronômio 15), e o livro de Provérbios que ensina sobre a esmola como um
“empréstimo” a Deus (Provérbios 19: 17). Vamos dedicar alguns momentos para
examinar cada uma delas.4
O Mandamento De Dar Aos Pobres
Quando abrimos as páginas das Escrituras Judaicas, a primeira coisa que
descobrimos é que, de acordo com a Torá de Moisés, dar aos pobres e necessitados
não é uma sugestão, mas um mandamento:
Os pobres nunca deixarão de sair da terra; portanto eu te ordeno: Abra a mão
para o seu irmão, para o necessitado e para o pobre. (Deuteronômio 15:11)
Observe aqui que Moisés ordena aos israelitas que deem aos necessitados.
Isto é extremamente significativo. De acordo com a Torá, a esmola não é
opcional. O dever de dar aos pobres é um “mandamento” (mitsvá em hebraico)
(Deuteronômio 15:5) – exatamente a mesma palavra hebraica usada para os Dez
“Mandamentos” (mitsvoth em hebraico) (Êxodo 20:6). Observe também que os
israelitas são ordenados a dar generosamente: eles “abrirão bem” as mãos para
qualquer pessoa necessitada.
Quem Dá Aos Pobres Empresta A Deus
A segunda passagem chave vem do livro de Provérbios, que vai ainda mais
longe do que a Lei de Moisés. 5 De acordo com Provérbios, quem dá esmola aos
pobres na verdade “emp resta” dinheiro a Deus:
Quem é bondoso com os pobres empresta ao Senhor e receberá
integralmente. (Provérbios 19:17)6
Vale ressaltar aqui que a palavra para ser “gentil” (hebraico chanan) para
com os pobres será mais tarde traduzida como “misericórdia” (gr ego eleōn)
(Provérbios 19:17 LXX). Como veremos em breve, em grego, a palavra para
69

“esmola” (do grego eleēmosynē) vem da palavra “misericórdia” (do grego eleos).
Também é importante enfatizar que quando Provérbios diz que quem dá aos
pobres “empresta” (lei em hebraico) ao Senhor (19:17), este é o termo técnico
para dar um “empréstimo” que será reembolsado. 7 Por outras palavras, de acordo
com a Bíblia Judaica, quando você dá esmolas aos pobres, você na verdade os
“empresta” a Deus, que acabará por lhe “retribuir” pela bondade demonstrada aos
necessitados.8

JESUS E A ESMOLA SECRETA


Quando passamos do Antigo Testamento para os ensinamentos de Jesus,
descobrimos quão profundamente enraizadas estão as suas palavras nas crenças
judaicas sobre a esmola.
O Sermão da Montanha e a Esmola Secreta
Assim como Moisés ordena aos israelitas que deem aos pobres, também no
Sermão da Montanha, Jesus ordena aos seus discípulos que d eem a quem lhes
pedir.
Dê a quem lhe pede e não recuse aquele que lhe pede emprestado. (Mateus 5:42)
Além disso, como acontece com a oração e o jejum, Jesus os ensina a dar
esmolas secretamente, e não por causa do louvor:
Assim, quando deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como
fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem elogiados pelos
homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a sua recompensa. Mas,
quando deres esmola, não deixe a tua mão esquerda saber o que faz a direita,
para que a tua esmola fique em segredo; e teu Pai, que vê em secreto, te
recompensará. (Mateus 6:2–4)
Mais uma vez, observe bem que Jesus não diz: “Se você der esmola...” mas
“Quando você der esmola...” Jesus assume que “dar esmola” ou “atos de
misericórdia” (do grego eleēmosynē) será uma parte regular da vida espiritual de
seus seguidores. Observe também que, assim como no livro de Provérbios, Jesus
promete que Deus “recompensará” – ou, mais literalmente, “reembolsará” (grego
apodidōmi) – qualquer pessoa que praticar a esmola, desde que seja feita em
segredo. Por que dar secretamente é tão importante? A resposta é simples, mas
significativa: se os discípulos dão esmolas para serem elogiados e não para
mostrar misericórdia, eles fazem do orgulho, e não do amor, o principal motivo
70

para fazer exercícios espirituais que deveriam ser remédios (não causas) pelo
pecado.
A Esmola E O “Tesouro” No Céu
Além disso, assim como o livro de Provérbios descreve a esmola como um
“empréstimo” a Deus, Jesus também descreve a esmola como o armazenamento
de um “tesouro” num banco celestial:
Venda seus bens e dê esmolas; munii-vos de bolsas que não envelheçam, de
um tesouro nos céus que não se acabe, onde nenhum ladrão se aproxima e
nenhuma traça destrói. Pois onde estiver o seu tesouro, aí estará também o
seu coração. (Lucas 12:33–34)
Segundo Jesus, a forma como uma pessoa acumula “tesouros nos céus” é
precisamente doando tesouros na terra. Para este fim, Jesus descreve a prática da
esmola usando a impressionante imagem de encher uma “caixa do tesouro” ou
“arco do tesouro” celestial (grego thēsauros) (Lucas 12:33).9 Por que ele faz isso?
Para mostrar que a esmola tem o poder de mudar o coração humano. Afinal, as
pessoas colocam apenas coisas que lhes são preciosas em baús de tesouro. Ao
ordenar aos seus discípulos que deem aos pobres, ele os ensina a amar o próximo
mais do que os seus bens.
A Parábola Das Ovelhas E Dos Cabritos
Finalmente, e mais importante de tudo, o próprio Jesus ensina claramente
que dar aos pobres é necessário para a salvação. Em nenhum lugar isso fica mais
claro do que em sua famosa parábola das ovelhas e dos bodes (ver Mateus 25:31–
46). Esta parábola é uma descrição detalhada da Segunda Vinda de Jesus e do
Julgamento Final da humanidade.
Embora a parábola das ovelhas e dos cabritos seja demasiado longa para
ser citada na íntegra aqui, o ponto principal para nós é que a principal diferença
entre as ovelhas e os cabritos é se deram aos pobres. Considere as seguintes
palavras de Jesus:
As ovelhas (= Aqueles que dão As cabras (= aqueles que não o
Esmolas) fazem)
Eu estava com fome e me deste de Eu estava com fome e não me deste
comer de comer
Eu estava com sede e me deste de Eu estava com sede e não me deste de
beber beber
71

Eu estava nu e me vestiste Eu estava... nu e não me vestiste


Como fizeste isso a um dos Como não fizeste isso a um dos
menores… menores…
Foi a mim que fizestes. Foi a mim que não fizestes.
[ide] para a vida eterna. Ide para o castigo eterno.
(Mateus 25:34–36, 40, 46) (Mateus 25:41–43, 45–46)

Surpreendentemente, Jesus nunca disse que os cabritos cometeram


idolatria, adultério ou assassinato. Ele não dá nenhuma pista de que eles
quebraram um dos Dez Mandamentos.
Eles simplesmente falharam em cuidar dos pobres. Eles pecaram por
omissão.
Igualmente surpreendente é o fato de que enquanto Provérbios diz que
quem dá aos pobres empresta a Deus (Provérbios 19:17), Jesus diz que quem
cuida dos pobres cuida Dele (Mateus 25:40). Com estas palavras, Jesus coloca-se
no lugar de Deus. Em última análise, é por isso que a esmola é necessária para a
salvação. Porque deixar de amar os pobres é deixar de amar Jesus. E se Jesus é
Deus, então recusar amar os pobres é recusar amar a Deus.

DOAÇÃO DE ESMOLAS NA TRADIÇÃO CRISTÃ


Caso haja alguma dúvida sobre a necessidade da esmola cristã, precisamos
apenas recorrer aos escritos dos apóstolos, à prática da Igreja primitiva e à tradição
cristã posterior.
Esmola Semanal na Igreja Primitiva
Por exemplo, na sua primeira carta aos Coríntios, Paulo instrui os crentes a
reservarem dinheiro para os pobres todos os domingos:

Quanto à contribuição para os santos: (…) No primeiro dia de cada semana,


cada um de vocês deve reservar algo e armazená-lo. (1 Coríntios 16:1–2)
72

Observe aqui que Paulo espera que todos – não apenas os ricos – reservem
“alguma coisa” para “os santos” – que é o termo de Paulo para “os pobres” que
vivem em Jerusalém (Romanos 15:26; Gálatas 2:10).
A Fé Sem Esmola Está Morta
Talvez ainda mais impressionante seja o ensino da carta de Tiago. Embora
muitas pessoas estejam familiarizadas com a famosa passagem em que Tiago
declara que a “fé” sem “obras” está “morta” (Tiago 2:17), o que muitas vezes
passa despercebido é que quando Tiago fala sobre “obras”, ele está falando
principalmente sobre a esmola:
Se um irmão ou uma irmã estiver mal vestido e carente do alimento diário, e
um de vós lhe disser: “Vá em paz, aqueça-se e sacie-se”, sem lhe dar as coisas
necessárias para o corpo, que aproveita isso? Assim, a fé por si só, se não
tiver obras, está morta. (Tiago 2:15–17)
No contexto, Tiago está ensinando claramente que a fé sem “obras” de
caridade está morta (Tiago 2:17). O tipo de “fé” que fecha os olhos aos pobres –
especialmente aos irmãos e irmãs cristãos – não tem o poder de “salvar” (Tiago
2:14). Por outras palavras, se dissermos que temos fé, mas não damos aos pobres,
então a nossa fé está morta.
A Esmola E O Lar Cristão
Também importante: se a esmola é realmente necessária para a salvação,
então não deveria ser algo ocasional, mas sim uma parte regular da vida espiritual
dos seguidores de Jesus. Considere, por exemplo, as palavras do escritor João
Crisóstomo, do século IV:
Portanto… vamos arrecadar dinheiro em casa com o propósito explícito da
esmola…. Desta forma, portanto, que a casa de todos se torne uma igreja que
terá dinheiro sagrado armazenado dentro dela. Onde quer que o dinheiro seja
guardado para os pobres, esse lugar é inacessível aos demônios; e o dinheiro
arrecadado para a esmola fortalece os lares cristãos mais do que um escudo,
uma lança, armas, força física e multidões de soldados.10
Ao cultivarmos o hábito de reservar dinheiro para os pobres, as nossas casas
serão verdadeiramente transformadas naquilo que Crisóstomo chama noutros
lugares de “pequena igreja” (em grego mikra ekklēsia) e naquilo a que Agostinho
se referiu como “igreja doméstica” (em latim, Ecclesia domestica). 11
73

Um Remédio Para A Luxúria Dos Olhos


Por último, mas certamente não menos importante, assim como o jejum
secreto é um remédio espiritual para “a concupiscência da carne” – o desejo
desordenado de prazer – também a esmola secreta é um remédio espiritual para
“a concupiscência dos olhos” – o desejo de possuir o que vemos (mesmo que não
precisemos disso). Nas palavras de Francisco de Sales:
Frequentemente desista de algumas de suas propriedades, dando-as com um
coração generoso aos pobres…. Oh, quão santa e quão rica é a pobreza
provocada pela esmola! Amai os pobres e amai a pobreza, pois é através
deste amor que vos tornais verdadeiramente pobres.12
Em outras palavras, se lutamos contra desejos desordenados por dinheiro,
posses, luxos e outras “coisas”, a melhor maneira de enfraquecer esse desejo é
distribuí-los regularmente. Essa esmola não é apenas um ato de misericórdia, mas
também ajuda os nossos corações a crescer no amor pelos pobres e, através deles,
no amor a Deus.
É claro que nem o jejum nem a esmola terão valor espiritual se não
estiverem unidos à oração. Assim, voltamo-nos agora para o remédio que Jesus
dá para a soberba da vida – a oração.
74

9 A ORAÇÃO DO SENHOR
Quando você orar, vá para o seu quarto e... ore então, assim: Pai Nosso…
—Jesus de Nazaré (Mateus 6:6, 9)
O TERCEIRO E ÚLTIMO exercício espiritual que Jesus dá aos seus
discípulos no Sermão da Montanha é a oração. Dos três, Jesus dedica mais atenção
à oração. Assim como Jesus ensina os seus seguidores a jejuar e a dar esmolas
secretamente, também lhes ordena que pratiquem a oração secreta – entrando no
seu “quarto” e falando com o seu “Pai que está em secreto” (Mateus 6:6). Além
disso, Jesus não só ensina aos seus discípulos como orar, mas também lhes diz o
que dizer, dando-lhes as palavras da Oração do Pai Nosso, comumente conhecida
como Pai Nosso (latim Pater Noster) (Mateus 6:9-13).
Por mais de mil anos, os escritores espirituais cristãos têm trabalhado para
desvendar o significado da Oração do Senhor. Considere as seguintes palavras de
comentaristas ao longo dos séculos:
Um resumo de todo o Evangelho pode ser encontrado na oração [do Pai Nosso].
—Tertuliano de Cartago (século III)1

O Pai Nosso é a mais perfeita das orações…. Nela pedimos não apenas todas as
coisas que podemos desejar corretamente, mas também na sequência em que
devem ser desejadas.
—Tomás de Aquino (século XIII)2

No Pai Nosso o Senhor nos ensinou todo o método de oração…. Nas suas poucas
palavras estão consagradas toda a contemplação e perfeição, de modo que, se o
estudarmos, nenhum outro livro parece necessário.
—Teresa de Ávila (século XVI)3
Estas são afirmações impressionantes. Segundo esses escritores, o Pai
Nosso nada mais é do que o resumo do Evangelho e a maior de todas as orações.
Mas o que realmente significam as palavras do Pai Nosso? Além disso, por
que Jesus insiste que seus discípulos entrem em seu “quarto” para orar a Deus, o
Pai, “em segredo”? Para responder a estas perguntas, precisaremos examinar mais
de perto a única oração feita aos seus discípulos pelo próprio Jesus.
75

AS RAÍZES JUDAICAS DA ORAÇÃO DO SENHOR


Praticamente todas as palavras da Oração do Senhor estão profundamente
enraizadas nas Escrituras Judaicas. 4 Para os nossos propósitos aqui, contudo,
queremos começar simplesmente focando na instrução de Jesus aos seus
discípulos para chamarem Deus de “Pai”. (Mateus 6:9).
Oração ao Pai nas Escrituras Judaicas
Nas Escrituras Judaicas, de longe o nome mais comum para Deus é
“SENHOR” (hebraico YHWH). Por exemplo, o livro dos Salmos refere-se a Deus
como “SENHOR” quase setecentas vezes. 5 Em hebraico, o nome “SENHOR” —
que significa “Aquele que É” – é revelado por Deus a Moisés no Monte Sinai,
junto com o nome divino “EU SOU” (Êxodo 3:13–15).
No contexto, ambos os nomes enfatizam a natureza transcendente e eterna
de Deus. Ele não tem começo nem fim. Ele simplesmente é.
Por outro lado, as Escrituras Judaicas às vezes se referem a Deus como
“Pai”. Por exemplo, no livro dos Salmos, Deus é chamado de “Pai” (hebraico ‘ab)
cerca de três vezes. 6 Este nome enfatiza a relação de Deus com o seu povo como
seu criador e salvador. Considere o seguinte:
Não é ele teu Pai, teu Criador,
que te fez e te estabeleceu?
(Deuteronômio 32:6)

Sois vós, Senhor, o nosso pai, nosso Redentor


desde os tempos passados.
(Isaías 63:16)

Ao chamar Deus de “Pai”, as Escrituras Judaicas enfatizam que ele não é


apenas o Deus transcendente do universo, mas também aquele que salva seus
filhos da escravidão no Egito porque os ama e os vê como “a menina dos seus
olhos” (Deuteronômio 32:10).
Jesus e a Paternidade de Deus
Assim, antes mesmo de chegarmos à oração do Pai Nosso em si, a primeira
coisa que salta à nossa mente no ensino de Jesus sobre a oração é a sua repetida
76

insistência em dirigir-se a Deus como “Pai” (Mateus 6:9; Lucas 11:2). Embora a
oração a Deus como “Pai” não seja inédita nas Escrituras Judaicas,
definitivamente não é a norma. No entanto, só no Sermão da Montanha, Jesus
refere-se a Deus como “Pai” dezessete vezes. 7 E nos quatro Evangelhos como um
todo, Jesus refere-se a Deus como “Pai” mais de 170 vezes!
Claramente, uma das primeiras coisas que Jesus quer que os seus discípulos
aprendam é a falar com Deus não apenas como o “Senhor” do universo, mas como
o seu “Pai” (Mateus 6:9; Lucas 11:2). Desta forma, Jesus enfatiza a intimidade
com que devem falar com Deus na oração.

JESUS E A ORAÇÃO DO PAI NOSSO


Com este contexto em mente, podemos agora examinar mais de perto o que
Jesus ensina aos seus discípulos sobre a oração no Sermão da Montanha.
Jesus Ensina Seus Discípulos A Orar Em Segredo
Antes de dizer-lhes o que dizer, Jesus começa ensinando seus discípulos a
orar — em segredo:
Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas
sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em
verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa. Quando orares, entra no
teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num
lugar oculto, te recompensará. (Mateus 6:5–6)
Com estas palavras, Jesus não está proibindo toda oração pública. Afinal,
ele próprio ora em voz alta em público (ver Lucas 10:21–22; João 11:41–42).
Em vez disso, Jesus está proibindo a oração motivada pelo orgulho – o
desejo de ser exaltado aos olhos dos outros. Como antídoto para a oração
orgulhosa, Jesus ensina seus discípulos a praticar a oração secreta. Este tipo de
oração os protege da tentação de orar simplesmente para serem vistos pelos
outros.
Eles devem ir para o seu “quarto interior” ou “quarto” e falar com Deus no
privado.8 É também assim que o próprio Jesus frequentemente escolhe orar — “a
sós” com Deus (Lucas 9:18). 9
77

Jesus Ensina Seus Discípulos A Orar Com Simplicidade


A seguir, Jesus ensina seus discípulos a falar de forma simples e concisa ao
orar:
Nas vossas orações, não multipliqueis as palavras, como fazem os pagãos
que julgam que serão ouvidos à força de palavras. Não os imi-teis, porque
vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes que vós lho peçais. (Mateus 6:7–
8)
Mais uma vez, Jesus não está proibindo toda repetição na oração. Ele
mesmo repete “as mesmas palavras” quando ora durante sua agonia no Getsêmani
(Mateus 26:44). Em vez disso, Jesus está rejeitando o tipo de “frases vazias” ou
“balbucios” (grego battalogeō) encontrados em encantamentos pagãos, que
muitas vezes eram concebidos para forçar um deus ou deusa a agir através de
métodos de repetição mecanicistas.10 Como antídoto para essas palavras vazias,
Jesus ensina seus discípulos a praticar a oração simples. Jesus quer que seus
discípulos falem com o Pai de coração. A verdadeira oração não é manipulação,
mas comunicação.
As Três Primeiras Petições: Focadas Em Deus
O exemplo supremo de simplicidade na oração é o próprio Pai Nosso, que
consiste em sete petições notavelmente breves. Os três primeiros começam
focando em Deus:
Pai Nosso que estais no céu,
Santificado seja o teu nome.
Venha o teu reino,
Seja feita a tua vontade,
Na terra como no céu.
(Mateus 6:9–10)

Na primeira petição – traduzida mais literalmente como “Santificado seja o


teu nome” – Jesus ensina os seus discípulos a orar para que o nome do Pai seja
tratado como santo. Isso é o que a palavra “santificado” (grego hagiazō) significa.
É uma oração para que o mundo inteiro pare de usar o nome de Deus em vão e
comece a tratá-lo como sagrado.
78

Na segunda petição — “venha o teu reino” — Jesus ensina seus discípulos


a orar para que o reino eterno de Deus desça à terra.
Embora Jesus certamente inaugure o reino de Deus através dos seus
milagres e da sua missão, ele também diz que a vinda final do reino ocorrerá
apenas no Juízo Final. Naquele dia, como ele diz mais tarde, “o Filho do homem”
“se assentará no seu trono glorioso” e dirá: “Vinde, ó benditos de meu Pai, possuí
por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo” (Mateus
25:31, 34). É uma oração pelo advento final da “vida eterna” (Mateus 25:46).
Na terceira petição — «seja feita a tua vontade, assim na terra como no
céu» — Jesus ensina os seus discípulos a rezar pela salvação do mundo. Como
Jesus deixa claro em outro lugar: “Não é a vontade de meu Pai que está nos céus”
que mesmo “uma” alma “pereça” (Mateus 18:14). Ao mesmo tempo, fazer a
vontade do Pai é essencial para a salvação: “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor,
Senhor’, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que
está nos céus” (Mateus 7:21).
As Últimas Quatro Petições: Focadas Em Seres Humanos
A segunda metade da Oração do Pai Nosso consiste em mais quatro
petições, nas quais o foco muda para as necessidades dos discípulos. Observe que
toda petição usa o plural “nós”. Desta forma, Jesus transforma cada petição num
ato simultâneo de intercessão por toda a humanidade:
O pão nosso de cada dia nos dai hoje;
E perdoe-nos nossas dívidas,
Assim como nós perdoamos aos nossos devedores;
E não nos deixe cair em tentação,
Mas livrai-nos do mal.
(Mateus 6:11–13)
Na quarta petição, Jesus ensina seus discípulos a pedir ao Pai o “pão de
cada dia”. A palavra grega traduzida como “diariamente” (do grego epiiousious)
é ambígua.11 Por um lado, pode significar apenas “pão para o dia” – embora Jesus
em outro lugar diga aos seus seguidores para não ficarem ansiosos com comida e
bebida terrenas (Mateus 6 :25–33). Por outro lado, pode ser traduzido como “pão
para o dia que vem” ou “pão sobrenatural”. Num contexto judaico antigo,
qualquer um deles evocaria o milagroso maná do céu, que Deus deu a Israel
durante sua peregrinação pelo deserto (ver Êxodo 16:1–31).12 Se isto estiver
79

correto, as implicações são enormes, uma vez que Jesus mais tarde se identificará
– em particular, a sua “carne” – como o verdadeiro “pão que desceu do céu” (João
6:48-51). Vista sob esta luz, a primeira coisa que Jesus ensina os discípulos a pedir
na oração do Pai Nosso é o dom do “pão” que Ele “dará pela vida do mundo”
(João 6:51).
Na quinta petição, Jesus ensina seus discípulos a pedir ao Pai que perdoe
suas “dívidas” – uma antiga forma judaica de se referir aos “pecados” (Mateus
6:13; compare com Lucas 11:4).13 Curiosamente, esta é a única petição na Oração
do Pai Nosso que é condicional. Este ponto é tão importante que Jesus o repete
imediatamente:
Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai
celestial vos perdoará; mas se vocês não perdoarem aos homens as suas
ofensas, também o seu Pai não perdoará as suas ofensas. (Mateus 6:14–15)
Estas podem muito bem ser as palavras mais aterrorizantes do Evangelho.
Pois Jesus afirma aqui em termos inequívocos que o perdão de Deus depende
inteiramente de seus discípulos perdoarem os outros. 14
Na sexta petição – “não nos deixeis cair em tentação” – Jesus ensina os seus
discípulos a pedir ao Pai que não os deixe ser provados além das suas forças. Ao
contrário do que muitas pessoas supõem, esta frase não significa que Deus tenta
as pessoas a pecar. Por um lado, no hebraico antigo, um verbo causal pode ser
usado com um significado permissivo: assim, “Não nos deixe cair em tentação”
significa “Não nos permita cair em tentação”. 15 Além disso, o Novo Testamento
afirma claramente que “Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a
ninguém tenta” (Tiago 1:13). No entanto, em grego, as palavras para “tentação” e
“prova” são as mesmas (grego peirasmos).
Aqui, Jesus está instruindo seus discípulos a pedir ao Pai que seja
misericordioso diante de sua própria fraqueza, não permitindo que caiam em
tentação.
Na sétima petição – “livra-nos do mal” – Jesus ensina os seus discípulos a
pedir a Deus que os liberte do poder de Satanás. No original grego, a palavra
“mal” significa literalmente “o maligno” (grego ho ponēros).
Vista sob esta luz, a linha final não é uma oração por proteção contra o
sofrimento e a morte, mas contra o poder do mal. Para Jesus, a oração não é apenas
um exercício espiritual; faz parte de uma grande batalha espiritual entre o bem e
o mal.
80

Jesus, o Mestre e Modelo de Oração


Finalmente, com as palavras do Pai Nosso, Jesus ensina os seus discípulos
a rezar ao Pai com as mesmas palavras que ele mesmo usa. Para ver isso
claramente, compare as palavras do Pai Nosso com as orações de Jesus:
O Pai Nosso As Orações de Jesus
Pai Nosso Meu pai
Santificado seja o teu nome Guardai-os em Teu nome
Seja feita a tua vontade Não a minha vontade, mas a tua, seja
feita
Perdoai as nossas dívidas Pai, perdoe-os
Não nos deixes cair em tentação Orai para não cairdes entre em
tentação
Livrai-nos do mal Proteja-os do maligno
(Mateus 6:9–10, 12–13) (Mateus 26:39, 41; Lucas 22:42;
23:34; João 17:11, 15)

Que paralelos impressionantes! Como eles deixam bem claro, o Pai Nosso
não é uma oração comum. Com as suas palavras, Jesus torna-se verdadeiramente
“o mestre e o modelo da nossa oração”. 16

A ORAÇÃO DO PAI NOSSO NA TRADIÇÃO CRISTÃ


Dado o fato de o próprio Jesus dar aos seus discípulos a oração do Pai
Nosso, não é surpreendente que ela rapidamente se tenha tornado central no
cristianismo primitivo. No primeiro século, era costume os cristãos rezarem o Pai
Nosso “três vezes ao dia” (Didaqué 8:3), bem como nos batismos e na
Eucaristia.17
Encerraremos com alguns conselhos práticos sobre a oração em geral e o
Pai Nosso em particular.
Oração Secreta e Intimidade com Deus
Em seu contexto original, Jesus ensinou seus discípulos a rezar o Pai Nosso
em segredo.18 Isto é absolutamente crucial. Não basta orar em público. Jesus
81

queria que seus discípulos orassem sozinhos precisamente para que pudessem
cultivar um relacionamento com Deus como seu Pai. Como disse um antigo
escritor cristão: “A oração é intimidade com Deus”.19 Da mesma forma, Teresa
de Ávila destacou há muito tempo:
Quando você nunca se comunica com uma pessoa, ela logo se torna um
estranho para você e você se esquece de como falar com ela; e em pouco
tempo, mesmo que ele seja um parente, você sente como se não o
conhecesse, pois tanto o parentesco quanto a amizade perdem sua influência
quando a comunicação cessa. 20
Em outras palavras, se a única vez que falamos com Deus é em público,
então provavelmente não temos um relacionamento real com ele. Por outro lado,
quando conversamos frequentemente com ele em particular, iremos realmente
conhecê-lo. Esta intimidade com Deus que se desenvolve naturalmente durante a
oração secreta é essencial para a vida espiritual.
Como Evitar Distrações
Ao mesmo tempo, é fácil recitar as palavras do Pai Nosso de maneira
mecânica. Todos nós nos distraímos. Então o que nós podemos fazer? Por um
lado, devemos resistir à tentação de nos apressarmos. Como escreve Francisco de
Sales:
Não tenha pressa... procure falar com o coração. Um único Pai Nosso dito com
sentimento tem maior valor do que muitos ditos rápida ou apressadamente.21
Em seguida, também precisamos lembrar com quem estamos falando.
Como diz Teresa de Ávila:
Se quiseres recitar bem o Pai Nosso, uma coisa é necessária: não deves sair
do lado do Mestre que te ensinou…. O melhor remédio que encontrei para
[a distração] é tentar fixar minha mente na Pessoa por quem as palavras
foram ditas pela primeira vez. Tenha paciência, então, e tente transformar
essa prática necessária em um hábito. 22
Ao desenvolver este hábito de fixar a mente em Jesus antes de começar a
dizer o Pai Nosso, tomamos o lugar do discípulo que primeiro lhe pediu
humildemente: “Senhor, ensina-nos a orar” (Lucas 11:1).
Um Remédio Para O Orgulho Da Vida
Finalmente, assim como o jejum é um remédio para a “concupiscência da
carne” e a esmola é um remédio para a “concupiscência dos olhos”, também a
82

oração secreta é um remédio para a “orgulho da vida” (1 João 2). :16). Pois é
preciso humildade para um ser humano se ajoelhar quando está sozinho e implorar
a ajuda de Deus:
A humildade é a base da oração. Somente quando reconhecemos
humildemente que “não sabemos orar como convém”, estamos prontos para
receber gratuitamente o dom da oração. “O homem é um mendigo diante de
Deus.” 23
Em outras palavras, se lutamos contra um amor desordenado por nós
mesmos, o melhor antídoto é a oração humilde. Ao escrever as palavras do Pai
Nosso em nossos corações, aprenderemos a rezar como o próprio Jesus rezou,
desde as profundezas infinitas de sua própria humildade divina. Nas palavras de
um antigo escritor cristão, “Quando fizermos a nossa oração, deixe o Pai
reconhecer as palavras do seu próprio Filho. Que aquele que vive dentro do nosso
coração esteja também na nossa voz.” 24
Agora que examinamos atentamente as três tentações que todo ser humano
caído experimenta e os três remédios espirituais dados por Jesus no Sermão da
Montanha, é hora de examinar mais de perto algumas maneiras pelas quais essa
“tríplice concupiscência” se manifesta na vida humana. Na próxima secção,
começaremos a analisar atentamente como identificar e erradicar os sete pecados
capitais e como desenvolver as suas virtudes opostas.
83

VÍCIOS E VIRTUDES
10 OS SETE PECADOS
Então ele vai e traz consigo outros sete espíritos mais malignos do que ele.
—Jesus de Nazaré (Mateus 12:45)
COMO VIMOS NOS últimos quatro capítulos, de acordo com a Bíblia, a
queda da humanidade foi provocada por três tentações que mais tarde vieram a
ser conhecidas como a “tripla concupiscência”: o desejo humano desordenado de
prazer, posses e orgulho (cf. (Gênesis 3:6; 1 João 2:16). Agora que esclarecemos
as origens da pecaminosidade humana, precisamos nos voltar para exemplos
específicos de pecados que precisam ser remediados por aqueles que estão
começando a trilhar o caminho espiritual de Jesus.
Desde os tempos antigos, os escritores cristãos destacaram sete pecados
específicos que precisam ser erradicados, especialmente nos estágios iniciais da
vida espiritual.1 Por exemplo, no século VI, o Papa Gregório, o Grande, escreveu
sobre os “sete vícios principais”. 2 Na época medieval, Tomás de Aquino
padronizou a lista dos “sete vícios capitais”. 3 No período moderno, o escritor
espanhol do século XVI, Inácio de Loyola, considerava que evitar os “Sete
Pecados Capitais” era um componente essencial da primeira fase do crescimento
espiritual. 4
A razão pela qual estes sete vícios ou pecados são chamados de “capital” é
porque eles estão na “cabeça” (latim caput) ou origem de muitos outros pecados.
Eles podem ser listados da seguinte forma:
1. Orgulho
2. Inveja
3. Ira
4. Avareza (também conhecida como ganância)
5. Luxúria
6. Gula
7. Preguiça
Definiremos cada um deles com mais detalhes posteriormente. Por
enquanto, vale ressaltar que existem diferentes formas de contar e identificar os
pecados capitais.
84

Já no século VII, o famoso escritor cristão oriental João Clímaco salientou


que, embora alguns afirmassem que havia “oito pecados capitais”, na sua opinião,
“na verdade o número é sete”. 5 Este debate sobre como contar os pecados capitais
acontece em parte porque alguns escritores distinguem entre dois tipos de orgulho
(orgulho e vanglória), enquanto outros distinguem entre dois tipos de preguiça
(preguiça e acídia). Neste capítulo, seguirei a lista acima, que se tornou padrão no
Cristianismo Ocidental. 6
Aqui e nos capítulos seguintes, exploraremos os pecados capitais do
orgulho, da inveja, da ira, da avareza, da luxúria, da gula e da preguiça —
juntamente com seus remédios. Por enquanto, precisamos começar fazendo uma
pergunta preliminar: de onde na Bíblia os escritores espirituais cristãos tiram a
ideia dos sete pecados capitais?

OS SETE PECADOS NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Em contraste com as duas listas dos Dez Mandamentos (Êxodo 20;
Deuteronômio 5), as Escrituras Judaicas não contêm nenhuma lista explícita dos
sete pecados capitais. No entanto, o livro de Provérbios estabelece o fundamento
bíblico para a tradição posterior de duas maneiras principais: falando de “sete
abominações” que habitam no coração humano (Provérbios 26:25) e ensinando
explicitamente contra cada um dos sete pecados capitais.
As Sete Abominações do Coração
Notavelmente, o livro de Provérbios refere-se a “sete abominações”
(hebraico sheba' to'ēbōth) que habitam um coração humano pecaminoso.
Considere tanto o texto original hebraico quanto a antiga tradução grega de
Provérbios:
Aquele que odeia, dissimula com os lábios e guarda o engano no coração;
quando ele fala graciosamente, não acredite nele, porque há sete
abominações no seu coração. (Provérbios 26:24–25)

Se o seu inimigo implorar com grande voz, não fique persuadido; pois sete
vícios estão em sua alma. (Provérbios 26:25 LXX)7
Nas Escrituras Hebraicas, a palavra “abominação” (em hebraico to‘ebah) é
frequentemente usada para se referir a algo ritual ou moralmente ofensivo a Deus.8
No contexto, Provérbios aqui usa o sentido moral da palavra para se referir aos
85

sete pecados do coração. Pelo menos foi assim que a antiga tradução grega de
Provérbios interpretou a expressão. Existem “sete vícios” ou “sete males” (grego
hepta ponēriai) dentro da “alma” humana (Provérbios 26:25 LXX). 9
Significativamente, foi precisamente esta passagem de Provérbios que
levou o escritor cristão do século IV, João Cassiano, a falar da “fonte sétupla do
vício” na alma humana. 10
Os Sete Pecados em Provérbios
Notavelmente, o livro de Provérbios também contém ensinamentos
detalhados sobre todos os sete vícios principais – bem como sobre suas virtudes
opostas. Considere o seguinte gráfico:
Os Sete Pecados Capitais e as Sete Virtudes Opostas em Provérbios
1. Orgulho 1. Humildade
(Provérbios 6:16–17; 21:24) (Provérbios 15:33; 29:23)
2. Inveja 2. Misericórdia
(Provérbios 24:19–20; 27:4) (Provérbios 14:21, 31; 19:17)11
3. Ira 3. Mansidão
(Provérbios 15:18; 19:19; 27:4) (Provérbios 16:32; 19:11; 29:8, 11)
4. Avareza 4. Generosidade
(Provérbios 11:1; 15:27; 20:10, 23; (Provérbios 19:6, 17; 28:27)
25:14)
5. Luxúria 5. Castidade
(Provérbios 6:24–29) (Provérbios 5:15–20)
6. Gula 6. Temperança
(Provérbios 20:1; 23:19–21, 29–35) (Provérbios 23:1–3, 6–8)
7. Preguiça 7. Diligência
(Provérbios 6:9–11; 24:30–34; 26:13– (Provérbios 6:6–8; 10:4–5; 13:4–5;
16) 28:19; 31:27)

Examinaremos cada um desses vícios e virtudes com mais detalhes nos


próximos capítulos. Por enquanto, o ponto principal é que a identificação destes
vícios específicos como pecaminosos é profundamente bíblica.
86

JESUS E OS SETE PECADOS


Quando passamos das Escrituras Judaicas para os ensinamentos de Jesus,
descobrimos que ele também nunca fornece uma lista exata dos sete pecados
capitais.
No entanto, dois aspectos de seus ensinamentos também estabeleceram as
bases para a tradição espiritual posterior.
A Parábola Dos Sete Espíritos Malignos
Numa de suas parábolas mais misteriosas, o próprio Jesus fala de “sete”
espíritos malignos que podem habitar na alma de uma pessoa:
Quando o espírito imundo sai de um homem, ele passa por lugares áridos em
busca de descanso, mas não encontra nenhum. Então ele diz: “Voltarei para
minha casa de onde vim”. E quando chega, encontra-a vazia, varrida e
arrumada. Então ele vai e traz consigo outros sete espíritos piores do que
ele, e eles entram e habitam lá; e o último estado desse homem torna-se pior
que o primeiro. (Mateus 12:43–45; cf. Lucas 11:24–26)
Nesta parábola, Jesus está descrevendo a alma de uma pessoa como uma
“casa” que pode ser purificada do pecado pelo arrependimento (“varrida e
colocada em ordem”) ou habitada por espíritos imundos (que a enchem de “mal”).
Para nossos propósitos aqui, o que mais importa é o seguinte: assim como
Provérbios falou de “sete males” que habitam a “alma” humana (Provérbios 26:25
LXX), também Jesus fala de “sete” espíritos de “maus” que pode habitar na “casa”
da alma de uma pessoa (Mateus 12:44–45).
Mais uma vez, foi precisamente a Parábola dos Sete Espíritos Malignos que
levou os antigos escritores cristãos a falar dos “sete vícios” 12 ou da “fonte sétupla
do vício”. 13 Observe aqui que as palavras de Jesus podem ser usadas para apoiar
o número sete ou o número oito, dependendo de se colocar ênfase na enumeração
de Jesus dos “sete” espíritos malignos (= sete pecados capitais) ou na combinação
dos sete com o “espírito imundo” original (sete + um = “oito vícios”). 14 De
qualquer forma, Jesus descreve a tendência humana para pecar como muito mais
do que apenas más escolhas. Em vez disso, a tentação faz parte de uma batalha
espiritual invisível pela alma e se ela se permitirá tornar-se a “casa” dos espíritos
malignos.
Jesus e os Sete Pecados Capitais
Jesus nunca dá uma lista explícita dos sete pecados capitais. Contudo, tal
como o livro de Provérbios, ele apresenta parábolas e ditos que abordam cada um
87

dos sete pecados capitais – bem como as suas virtudes opostas. Considere o
seguinte gráfico:
1. Orgulho 1. Humildade
(Marcos 7:22; Lucas 18:9–14) (Mateus 5:3; 18:1–4; Lucas 14:7–
11)
2. Inveja 2. Misericórdia
(Lucas 15:25–32) (Mateus 5:7; Lucas 6:32–36)
3. Ira 3. Mansidão
(Mateus 5:21–26) (Mateus 5:5; 5:38–40)
4. Ganância 4. Generosidade
(Mateus 6:19–24; Lucas 12:13–21) (Mateus 5:42; Lucas 6:30–31; 14:12–
14; Atos 20:35)
5. Luxúria 5. Castidade
(Mateus 5:27–30) (Mateus 5:8; cf. 5:28)
6. Gula 6. Temperança
(Mateus 24:45–51; Lucas 16:19– 31; (Mateus 5:6; 6:25–33)
21:34–35)
7. Preguiça 7. Diligência
(Mateus 25:14–30) (Mateus 24:44–46; Marcos 13:33–
36)

Qualquer que seja a interpretação da Parábola dos Sete Espíritos Malignos,


uma coisa é absolutamente clara: em várias ocasiões, Jesus ensina explicitamente
contra o orgulho, a inveja, a ira, a ganância, a luxúria, a gula e a preguiça.
Passaremos os próximos capítulos examinando atentamente o que Jesus tem a
dizer sobre cada um desses vícios capitais.

OS SETE PECADOS NA TRADIÇÃO CRISTÃ


Por enquanto, podemos terminar esta breve introdução aos sete pecados
capitais com três ideias-chave da tradição cristã posterior.
88

A Porta De Entrada Para Uma Infinidade De Vícios


Primeiro, a razão pela qual identificar e compreender os sete pecados
capitais é tão importante é porque eles são as causas profundas de muitos outros
vícios específicos. 15
Eles são portais para uma multidão de pecados. Considere as palavras
clássicas de Gregório, o Grande, no final do século VI:
[Esses] sete vícios principais produzem de si mesmos uma multidão tão
grande de vícios que, quando atingem o coração, trazem, por assim dizer, os
bandos de um exército atrás deles. 16
Por exemplo, o pecado da inveja dá origem a outros vícios, como o ódio, a
fofoca e a calúnia. Da mesma forma, o pecado da avareza dá origem à fraude, ao
perjúrio e à violência frequentemente associada ao roubo. Finalmente, o pecado
da luxúria dá origem ao egoísmo, à infidelidade e até ao ódio a Deus. 17 Nos
capítulos seguintes, veremos exemplos específicos dos tipos de vícios que cada
um dos sete pecados capitais leva. Por enquanto, o ponto principal é este: se os
sete pecados capitais são realmente a raiz dos vícios, então, ao nos concentrarmos
em erradicá-los, seremos capazes de erradicar outros pecados mais específicos
que fluem diretamente deles.
A Falha Predominante
Em segundo lugar, nem todos são afetados por estes pecados capitais da
mesma forma. A maioria de nós tem o que os escritores espirituais chamam de
falha predominante – isto é, um dos pecados capitais que estamos mais inclinados
a cometer. Considere as palavras dos antigos escritores cristãos João Cassiano e
João Clímaco:
Embora estes... vícios perturbem toda a raça humana, ainda assim eles não
atacam a todos da mesma maneira. Em uma pessoa o espírito de luxúria é
dominante, em outra a ira é atropelada... e em outra ainda o orgulho domina.
E embora seja uma evidência de que todos somos atacados por tudo isso,
cada um de nós sofre de maneiras e maneiras diferentes. 18

Mantenha uma vigilância especial para o espírito que infalivelmente ataca


você, quer você fique de pé, ande, sente-se, mexa-se, levante-se, ore ou
durma. 19
89

À medida que analisamos cada um dos pecados capitais nos próximos


capítulos, convido você a se perguntar: Qual desses pecados capitais esto u mais
inclinado a cometer? Qual destas é minha principal falha? Preste muita atenção
ao que acontece em seu coração ao ler sobre cada um dos sete pecados capitais.
Se você se sentir especialmente desconfortável ou condenado ao ler um
determinado capítulo, isso pode ser um sinal de que você precisa se concentrar
mais nesse vício específico. Se, no final do nosso estudo, você ainda não
conseguir identificar a sua falha predominante (pois muitas vezes somos cegos
para ela), pode ser aconselhável perguntar à família ou amigos que o conhecem
melhor – especialmente aqueles que vivem com você – o que eles pensam. A
identificação da nossa falha predominante é um passo crucial para começar a
erradicar os nossos vícios e começar a crescer na virtude.
As Sete Virtudes Opostas
Terceiro e último, à medida que começamos a reconhecer e a erradicar a
nossa falha predominante, é também crucial identificar e cultivar a virtude oposta.
Aqui podemos colocar em prática os conselhos valiosíssimos de Inácio de Loyola
e de Francisco de Sales:
Para melhor compreender as faltas cometidas que se enquadram nos Sete
Pecados Capitais, consideremos as virtudes contrárias. Assim também, para
melhor evitar esses pecados, deve-se resolver esforçar-se, por meio de
exercícios devotos, para adquirir e reter as sete virtudes contrárias a eles.20

Quando atacados por algum vício devemos praticar o máximo que pudermos
a virtude contrária e referir a ela todas as outras. Desta forma venceremos o
nosso inimigo e ao mesmo tempo avançaremos em todas as virtudes. 21
Em outras palavras, não basta tentar esvaziar nossos corações de qualquer
vício contra o qual mais lutamos. Também precisamos começar a preenchê-lo
com a virtude oposta. Com isto em mente, podemos agora começar o nosso estudo
de cada um dos pecados capitais e das suas virtudes contrastantes. Começaremos
com o principal pecado de todos: o orgulho.
90

11 ORGULHO VS. HUMILDADE


Todo aquele que se exalta será humilhado.
—Jesus de Nazaré (Lucas 18:14)
PARA COMPREENDER O primeiro pecado capital – o orgulho – é
importante começar dizendo o que ele não é. Em inglês, costumamos usar a
palavra “orgulho” para descrever a admiração pelas realizações de um ente
querido (por exemplo, “Estou orgulhoso da minha esposa”) ou afeição pela pátria
ou pelo povo (por exemplo, “Estou orgulhoso de ser americano"). Na Bíblia e na
tradição espiritual cristã, o orgulho não tem nada a ver com nenhuma destas
definições.
Em vez disso, “orgulho” pode ser definido como um amor próprio
desordenado ou um desejo irracional de auto exaltação. No grego antigo, a palavra
“orgulho” (grego hyperēphania) vem de um verbo que significa “superar o brilho”
ou “brilhar demais” (grego hyper-phainō) que outros.1 Da mesma forma, no latim
antigo, a palavra “orgulho” (latim superbia) pode ser traduzido como
“arrogância” ou “superioridade”. 2 Vista sob esta luz, envolve um desejo de ser
exaltado acima dos outros. Em última análise, o pecado do orgulho decorre de
amarmos a nós mesmos mais do que amamos o nosso próximo, e ainda mais do
que amamos a Deus.
Ao longo dos séculos, os escritores espirituais cristãos não deixaram
margem para dúvidas de que o orgulho é o primeiro e o pior de todos os pecados
capitais. As citações a seguir são apenas uma pequena amostra:

Não há outro vício… que reduza a nada todas as virtudes e despoje e empobreça
um ser humano de toda a justiça e santidade, como faz o mal do orgulho.
—João Cassiano (século V)3

O orgulho, a rainha dos pecados, … é o começo de todo pecado.


—Gregório, o Grande (século VI)4

Orgulho…é o começo e o fim de todo mal.


—João Clímaco (século VII)5
91

Não importa qual seja o seu estado de vida, é essencial matar esse amor egoísta
que existe em você.
—Catarina de Siena (século XIV)6

Estas são palavras fortes. Se o orgulho é de fato a “rainha dos pecados”,


então precisamos examinar bem de perto o que a Bíblia diz exatamente sobre isso,
por que Jesus se esforça tanto para alertar seus discípulos contra isso e quais
remédios existem para curá-lo.

O ORGULHO NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Quando abrimos as páginas das Escrituras Judaicas, há pelo menos três
passagens principais que ajudam a desenvolver uma compreensão bíblica do
pecado do orgulho: o pecado de Adão e Eva (Gênesis 3), a queda de Lúcifer (Isaías
14) e a descrição do orgulho no livro de Provérbios como uma “abominação”
(Provérbios 16).
Vamos dedicar alguns momentos para examinar cada um.
O Orgulho de Adão e Eva
Embora a palavra “orgulho” nunca seja usada no relato bíblico da queda de
Adão e Eva, ela está no cerne da história. Depois que Eva disse à serpente que
Deus os proibiu de comer do fruto proibido da árvore sob pena de morte, lemos:
“Oh, não! – tornou a serpente – vós não morrereis! Mas Deus bem sabe que,
no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses,
conhecedores do bem e do mal.” (Gênesis 3:4–5)
Observe aqui o desejo pecaminoso de exaltação própria. Quando a serpente
diz que eles serão como “Deus” (hebraico ‘elohim), o hebraico original pode
significar “ser como Deus” (singular) ou “ser como deuses” (plural). De qualquer
forma, descreve a tentação de ser exaltado ao status divino desobedecendo à
ordem de Deus.7 Note também que este desejo de estatuto divino é irracional.
De acordo com Gênesis, Deus cria o homem e a mulher à sua “imagem” e
“semelhança” (Gênesis 1:26) e os torna “muito bons” (Gênesis 1:31).
No entanto, eles ainda são apenas criaturas. Não faz sentido que Adão e
Eva acreditem na afirmação da serpente de que poderiam tornar-se divinos
desobedecendo ao Criador. 8
92

Por outras palavras, o primeiro pecado, a queda de Adão e Eva, ocorre


devido a um desejo irracional de ser como Deus – mas separado de Deus e no
lugar de Deus. Visto sob esta luz, o orgulho de Adão e Eva é uma espécie de
idolatria. Mais tarde na Bíblia, quando Deus dá os Dez Mandamentos a Moisés, o
primeiro mandamento dirá: “Eu sou o Senhor teu Deus…. Não terás outros deuses
diante de mim” (Êxodo 20:2–3). Na tentativa de Adão e Eva de se tornarem como
deuses desobedecendo a Deus, eles efetivamente quebraram o primeiro
mandamento precisamente por se colocarem no lugar de Deus. No fundo, o
orgulho é auto adoração.
O Orgulho de Lúcifer
O segundo grande exemplo de orgulho nas Escrituras Judaicas vem de um
oráculo do profeta Isaías sobre a queda do céu de uma figura misteriosa chamada
“Estrela da Manhã”, também conhecida como “Lúcifer”:
Como você caiu do céu,
Ó Estrela da Manhã, filho da Aurora!…
Você disse em seu coração,
“Eu subirei ao céu;
acima das estrelas de Deus
Porei o meu trono nas alturas; …
Subirei acima das alturas das nuvens,
Eu me tornarei semelhante ao Altíssimo.”
(Isaías 14:12–14)
No seu contexto original, este oráculo é explicitamente falado contra “o rei
da Babilônia” (Isaías 14:4). No entanto, desde os tempos antigos, tem sido
interpretado com referência à queda de um anjo chamado “Estrela da Manhã”
(latim Lúcifer) (Isaías 14:12 Vulgata).9 Uma razão para esta interpretação angélica
é que nas Escrituras Judaicas, os reis pagãos maus são frequentemente descritos
como estando sob o poder de “deuses” perversos ou anjos maus. 10 Além disso, o
oráculo descreve coisas que o próprio rei da Babilónia nunca fez de fato – como
cair do céu.
Por tais razões, os escritores cristãos há muito interpretam esta passagem
como uma descrição da queda do anjo Lúcifer, que procurou exaltar-se acima de
todos os outros anjos (“as estrelas de Deus”) e até mesmo acima do próprio Deus
93

(Isaías 14:13 –14). Deste ponto de vista, o pecado do orgulho não é apenas a razão
da queda dos primeiros humanos. É também a razão da queda de Satanás.11
O Pecado do Orgulho em Provérbios
O terceiro e último exemplo de orgulho nas Escrituras Judaicas vem de dois
ditos bastante chocantes:
Todo aquele que é arrogante é abominável ao Senhor; tenha certeza, ele não
ficará impune. (Provérbios 16:5)12

O orgulho precede a destruição, e um espírito altivo antes da queda.


(Provérbios 16:18)
De acordo com as Escrituras Judaicas, o orgulho não é apenas pouco
atraente; é uma “abominação”. A mesma palavra hebraica é usada para descrever
a idolatria, que também é “uma abominação ao Senhor” (Deuteronômio 7:25).
Significa algo moralmente repugnante para Deus. 13 Tal como o pecado da
idolatria, o orgulho é uma abominação precisamente porque – tal como a idolatria
– coloca uma criatura no lugar do Criador.

JESUS E O ORGULHO
Quando nos voltamos das Escrituras Judaicas para Jesus, encontramos a
mesma oposição radical ao pecado do orgulho. Como já vimos, Jesus alerta
repetidamente seus discípulos para não realizarem exercícios espirituais “para
serem vistos” por outros (Mateus 6:1–2, 5, 16, 18). A razão é simples, mas
importante: se uma pessoa ora, jejua ou dá aos pobres para ser exaltada aos olhos
dos outros, então ela acaba cometendo o pecado do orgulho no próprio ato de fazer
obras que deveriam ser remédios para o pecado.
Além desta advertência básica, há duas passagens principais nos
Evangelhos nas quais Jesus identifica explicitamente o orgulho como pecado.
O Mal do Orgulho
Para começar, quando Jesus dá uma lista dos principais vícios, o orgulho
está bem no centro:
De dentro, do coração do homem, vêm os maus pensamentos, a fornicação,
o roubo, o assassinato, o adultério, a cobiça, a maldade, o engano, a
94

licenciosidade, a inveja, a calúnia, o orgulho, a tolice. Todas essas coisas más


vêm de dentro e contaminam o homem. (Marcos 7:20–23)14
Voltaremos a esta lista mais de uma vez no nosso estudo dos pecados
capitais.
Por enquanto, o ponto principal é que, segundo Jesus, o orgulho não é
apenas uma falha de personalidade. É um amor próprio desordenado que sai do
coração humano e contamina moralmente a pessoa. Para Jesus, o orgulho não é
apenas pouco atraente. O orgulho é mau.
O Fariseu E O Cobrador De Impostos
Dito isto, nenhum ensinamento de Jesus ilustra melhor o pecado do orgulho
do que a sua famosa parábola do fariseu e do publicano:

[Jesus] também contou esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos,


dizendo que eram justos e desprezavam os outros: “Dois homens subiram ao
templo para orar, um fariseu e o outro cobrador de impostos. O fariseu
levantou-se e orou consigo mesmo: ‘Deus, agradeço-te porque não sou como
os outros homens, extorsores, injustos, adúlteros, nem mesmo como este
publicano. Jejuo duas vezes por semana, dou o dízimo de tudo o que ganho.'
Mas o publicano, parado de longe, nem sequer erguia os olhos para o céu,
mas batia no peito, dizendo: 'Deus, tenha misericórdia de mim pecador!” Eu
lhe digo, este homem desceu justificado para sua casa e não o outro; pois
todo aquele que se exalta será humilhado, mas quem se humilha será
exaltado.” (Lucas 18:9–14)
Para compreender esta parábola, é fundamental enfatizar três pontos.
Primeiro, ao contrário do que muitos leitores cristãos do Novo Testamento
poderiam supor, na época de Jesus, os fariseus eram amplamente respeitados pela
sua integridade na observância dos mandamentos e na prática dos “ideais mais
elevados”, como o jejum regular e o dízimo. Assim, num contexto judaico do
primeiro século, o fariseu normalmente teria sido visto como uma figura positiva
e não negativa. 15 Em contraste, os cobradores de impostos eram amplamente
desprezados como ladrões e extorsionistas que regularmente violavam o
mandamento “Não roubarás”. (Êxodo 20:15).
Em segundo lugar, embora muitas traduções inglesas digam que o fariseu
orou “consigo mesmo”, o grego diz literalmente que ele orou “para si mesmo”
(grego pros heauton) (Lucas 18:11). 16 Terceiro e último, observe que o fariseu
95

elogia a si mesmo enquanto ora sobre duas coisas – jejum e esmola – que Jesus
insiste que seus discípulos façam em segredo, para evitar elogios (ver Mateus 6:1–
18).
Com estes pontos em mente, podemos ver que Jesus está us ando esta
parábola para derrubar as expectativas comuns sobre a virtude e o vício e para dar
um exemplo de orgulho espiritual. Ao focar na diferença entre as orações dos dois
homens, ele mostra que um é orgulhoso e o outro humilde:

A Oração do Fariseu A Oração do Coletor de Impostos


1. Autocentrado 1. Focado em Deus
(“orou para si mesmo”) (ora a “Deus”)
2. Julga os outros 2. Julga a si mesmo
(“extorsionários, injustos, adúlteros”) (“tenha misericórdia de mim”)
3. Cego ao seu pecado
3. Sente pelo seu pecado
(“Eu não sou como os outros
(ele “batia no peito”)
homens”)
4. Orgulhoso 4. Humilde
(“exalta-se”) (“se humilha”)
5. Não perdoado 5. Perdoado
(Não justificado") (“desceu para a casa dele justificado”)
(Lucas 18:11, 14) (Lucas 18:13–14)

Lembre-se da definição de orgulho com a qual começamos este capítulo:


um desejo pecaminoso de exaltação própria. É precisamente por isso que Jesus
termina a parábola avisando que todo aquele que “exalta” ou “eleva” (grego
hypsoō) a si mesmo será humilhado, enquanto quem “humilha” ou “abaixa”
(grego tapeinoō) será exaltado (Lucas 18:14). Dificilmente se pode pensar num
exemplo mais claro de alguém que se coloca no lugar de Deus do que a descrição
que Jesus faz do fariseu como alguém que orava “para si mesmo”. Na verdade,
tudo o que Jesus diz aqui é um aviso para aqueles que confiam “em si mesmos” e
não na graça de Deus (Lucas 18:9) – o que é uma espécie de idolatria.17
96

O REMÉDIO PARA O ORGULHO: HUMILDADE


Então, o que fazemos a respeito dessa tendência de amar a nós mesmos
acima de todos os outros e até mais do que a Deus? Que remédio existe para nós
se o vício do orgulho é a nossa culpa predominante?
Humildade para com Deus
Em primeiro lugar, precisamos fazer um esforço consciente e concertado
para cultivar a humildade para com Deus. Como diz a carta de Tiago:
“Deus se opõe aos orgulhosos, mas dá graça aos humildes.” Sujeitem-se,
portanto, a Deus…. Humilhe-se diante do Senhor e ele o exaltará. (Tiago
4:6–7, 10)
Uma maneira de cultivar tal humildade é ajoelhar-nos em oração no “chão”
(latim húmus) – de onde vem a palavra “humildade” – e reconhecer que Deus é
Deus e nós não.
Outra maneira é nos esforçarmos com todas as nossas forças para evitar
quebrar os mandamentos de Deus. Por exemplo, nos seus Exercícios Esp irituais,
Inácio de Loyola enumera “três tipos de humildade”, dos quais guardar os
mandamentos de Deus é o mais fundamental:
O primeiro tipo de humildade. Isto é necessário para a salvação. Consiste
nisto: na medida do possível, eu me sujeito e me humilho a ponto de obedecer
à lei de Deus, nosso Senhor, em todas as coisas, de modo que nem mesmo
eu fosse feito senhor de toda a criação, ou para salvar minha vida aqui na
terra., eu consentiria em violar um mandamento, seja divino ou humano, que
me obriga sob pena de pecado mortal. 18
Na Bíblia, esse temor e reverência a Deus são conhecidos como “o temor
do Senhor”, que é “o princípio do conhecimento” (Provérbios 1:7). 19 Humilhar-
nos diante de Deus, recusando-nos a quebrar os mandamentos, é a primeira
batalha na guerra contra o orgulho.
Humildade Para Com O Próximo
Além de mostrar humildade para com Deus, também precisamos mostrar
humildade para com o próximo. Na prática, humildade significa desenvolver o
hábito de não nos colocarmos acima dos outros e procurar deliberadamente o que
há de bom em cada pessoa que encontramos. Nas palavras de Thomas de Kempis:
Não se considere melhor do que os outros, pois você pode ser considerado
pior aos olhos de Deus que conhece todos os corações humanos…. Se você
97

tem algo de bom, acredite que os outros têm melhor; desta forma, você
permanece humilde. Não lhe fará mal nenhum considerar-se o pior de todos,
mas lhe fará mal preferir-se a qualquer outra pessoa. Os humildes vivem em
paz contínua. 20
Embora possa ser um pouco mais fácil ser humilde para com Deus – afinal,
ele é o Criador do universo – pode ser muito difícil praticar a humildade para com
o próximo. No entanto, é o único caminho para a paz e a felicidade.
Felizes São Os Pobres De Espírito
Finalmente, precisamos pedir a Deus que nos dê a virtude da humildade.
Esta virtude é tão fundamental que logo no início do Sermão d a Montanha é a
primeira coisa de que Jesus fala:
Ele subiu na montanha…. E ele abriu a boca e os ensinava, dizendo: “Bem-
aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”. (Mateus
5:1–3)
Para compreender esta bem-aventurança, é importante perceber que a
palavra traduzida como “bem-aventurado” significa literalmente “feliz” (do grego
makarios).21
Além disso, quando Jesus fala de ser “pobre de espírito”, esta é uma antiga
forma judaica de se referir à humildade. 22 Considere o seguinte:
É melhor ser humilde de espírito com os pobres do que dividir o despojo com
os orgulhosos. (Provérbios 16:19)
O orgulho de um homem o abaterá, mas aquele que é humilde de espírito
obterá honra. (Provérbios 29:23)
Por outras palavras, Jesus começa o Sermão da Montanha ensinando aos
seus discípulos que a virtude da humildade – o oposto do orgulho – não é apenas
necessária para entrar no reino dos céus, mas é também a chave para a felicidade.23
Embora os orgulhosos pensem que serão felizes exaltando-se acima dos outros e
diante de Deus, estão redondamente enganados. No final, o orgulho isola -nos de
Deus e dos outros e torna-nos infelizes.24 Assim, cultivar a virtude da humildade
é um dos primeiros passos no caminho espiritual que Jesus deu aos seus discípulos
quando os ensinou a ser felizes.
Infelizmente, o pecado do orgulho não se contenta em ficar sozinho. O amor
próprio desordenado muitas vezes dá origem a outros vícios, outros pecados. No
98

próximo capítulo, examinaremos mais de perto a doença espiritual do coração


conhecida como inveja.
99

12 INVEJA VS. MISERICÓRDIA


De dentro, do coração do homem, vem os mal
pensamentos, … cobiça, … inveja.
—Jesus de Nazaré (Marcos 7:21–22)
O SEGUNDO PECADO CAPITAL – INVEJA – pode ser definido como
uma tristeza irracional pela boa sorte de outra pessoa e um desejo cobiçoso de
possuir o que por direito pertence a outra pessoa. A inveja é uma dor oculta que
enche o coração de tristeza por causa da falsa crença de que a felicidade de outra
pessoa de alguma forma ameaça a nossa. É um desejo pecaminoso roubar do
próximo o que é dele por direito. É uma doença espiritual que devora lentamente
a alma por dentro.
Na história da espiritualidade cristã, vários escritores descreveram a inveja
como um pecado especialmente destrutivo – uma espécie de ferida auto infligida.
Considere as seguintes palavras de autores antigos, medievais e modernos:
Assim como a ferrugem desgasta o ferro, a inveja corrói a alma que habita.
—Basílio, o Grande (século IV)1

Nenhuma alegria por si só agrada a alma angustiada, ferida pela sua própria dor;
a felicidade de outra pessoa o atormenta…. Uma vez que a inveja infecta a
mente, ela elimina todas as boas obras que encontra.
—Gregório, o Grande (século VI)2

A inveja é a dor pela boa sorte dos outros.


—João Damasceno (século VIII)3

A inveja…é totalmente contrária à caridade, que, como diz São Paulo, se alegra
com o bem.
—João da Cruz (século XVI)4
Os escritores espirituais estão corretos? A inveja é realmente tão mortal?
Por que os seres humanos muitas vezes respondem à felicidade ou à prosperidade
de outras pessoas ficando tristes e procurando tirar o que não lhes pertence?
100

Neste capítulo, responderemos a essas perguntas examinando o que a Bíblia


tem a dizer sobre a inveja. Como veremos, uma das razões pelas quais a inveja é
tão séria é porque ela não só leva à miséria, mas também é o oposto direto do
amor ao próximo.

A INVEJA NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Quando se trata do pecado da inveja, diversas passagens nas Escrituras
Judaicas mostram que é um pecado capital particularmente destrutivo.
A inveja de Caim
O primeiro exemplo de inveja na Bíblia vem do famoso relato de Caim e
Abel:
Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz Caim, e disse:
“gerei um homem com a ajuda do Senhor”. E deu em seguida à luz Abel,
irmão de Caim. Abel tornou-se pastor de ovelhas e Caim, lavrador. Passado
algum tempo, ofereceu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor. Abel, de
seu lado, ofereceu dos primogênitos do seu rebanho e das gorduras dele; e o
Senhor olhou com agrado p ara Abel e para sua oblação, mas não olhou para
Caim, nem para os seus dons. Caim ficou extremamente irritado com isso, e
o seu semblante tornou-se abatido. O Senhor disse-lhe: “Por que estás irado?
E por que está abatido o teu semblante? Se praticares o bem, sem dúvida
alguma poderás reabilitar-te. Mas se procederes mal, o pecado estará à tua
porta, espreitando-te; mas, tu deverás dominá-lo”. Caim disse então a Abel,
seu irmão: “Vamos ao campo”. Logo que chegaram ao campo, Caim atirou-
se sobre seu irmão e o matou. (Gênesis 4:1–8)5
Por que Deus aceita a oferta de Abel e não a de Caim? Gênesis não diz.
A explicação mais provável é que Abel dá suas melhores ovelhas a Deus
(os “primogênitos”), enquanto Caim apenas dá “uma oferta” – não suas primícias
(Gênesis 4:3–4).6 Com isso em mente, observe a resposta de Caim: ele ficou
“muito irado” e seu “rosto abatido” (Gênesis 4:5). Veremos a ira de Caim no
próximo capítulo. Aqui nosso foco está na tristeza de Caim.
Se definirmos a inveja como uma “tristeza irracional ao ver os bens do outro
e o desejo imoderado de tê-los para si”,7 então Caim é o exemplo bíblico perfeito.
Por um lado, no contexto, a tristeza de Caim é totalmente irracional. Na verdade,
Abel não fez nada para prejudicar Caim. O descontentamento de Deus com Caim
não tem nada a ver com Abel. Como Deus diz, se Caim tivesse agido bem e
101

apresentado a Deus uma oferta aceitável, Deus teria ficado satisfeito (Gênesis
4:7). Além disso, a tristeza de Caim provém do seu orgulho – da sua falta de
vontade de se culpar pela sua própria incapacidade de agradar a Deus. Ele fica
irritado com Abel porque a bondade de Abel faz Caim ficar mal.
Em vez de sentir tristeza pelo seu próprio pecado, o que o teria levado ao
arrependimento, Caim sente tristeza pela boa sorte de Abel – a própria definição
de inveja. Por fim, a tristeza de Caim o leva a cobiçar os elogios que Abel possui.
Se Caim não puder receber o louvor de Deus, então ele roubará o louvor de Abel
tirando a vida de seu irmão. No final, a inveja de Caim leva diretamente ao ódio
por Abel – um ódio que resulta no primeiro assassinato da Bíblia. Por tais razões,
desde os tempos antigos, os intérpretes cristãos reconheceram que “foi a inveja
que corrompeu Caim” e o levou a matar aquele “que ele odiava por ser melhor do
que ele”. 8
O Mandamento Contra A Cobiça
O segundo ensinamento chave sobre a inveja nas Escrituras Judaicas vem
das palavras finais dos Dez Mandamentos. Ali, Deus proíbe o seu povo de cobiçar
os cônjuges ou os bens uns dos outros:
Não cobiçarás a casa do teu próximo; não cobiçarás a mulher do teu próximo,
nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem
qualquer coisa que seja do teu próximo. (Êxodo 20:17)
Neste mandamento, a palavra “cobiçar” ou “desejo” (hebraico chamed)
refere-se a um “desejo desordenado, desgovernado e egoísta de adquirir” o que
pertence por direito a outra pessoa. 9 Note que a cobiça é um pecado interior.
Todos os outros mandamentos envolvem ações externas, como idolatria,
blasfêmia, assassinato e assim por diante. Por outro lado, o mandamento contra a
cobiça concentra-se no que acontece no coração. Embora a inveja possa levar a
ações externas, como adultério ou roubo, ela começa como um desejo que vem de
dentro.
Talvez essa seja uma das razões pelas quais o livro de Provérbios descreve
o “ciúme” dos outros como um tipo de doença que causa o apodrecimento dos
ossos:
A mente tranquila dá vida à carne, mas o ciúme apodrece os ossos.
(Provérbios 14:30)10
Na antiga tradução latina de Provérbios, a palavra “ciúme” (hebraico
qin’ah) foi traduzida como “inveja” (latim invidia) (Provérbios 14:30 Vulgata).
102

Foi este mesmo versículo que levou um antigo escritor cristão a descrever
a inveja como uma doença interior da alma: “Salomão disse corretamente: ‘Um
coração saudável significa a vida da carne, mas a inveja significa ossos podres.”11
A Inveja Do Diabo
O terceiro e último exemplo de inveja no Antigo Testamento vem da
Sabedoria de Salomão. Embora este livro não esteja nas Bíblias judaicas ou
protestantes contemporâneas, desde os tempos antigos ele foi reconhecido como
Escritura pelos cristãos católicos e ortodoxos. Como vimos no capítulo anterior,
segundo Isaías, foi o orgulho que levou “Lúcifer” a cair do céu (Is aías 14). De
acordo com o livro da Sabedoria, foi a “inveja” (grego phthonos) que levou o
diabo a tentar Adão e Eva:
Deus criou o homem para a incorrupção e o fez à imagem de sua própria
eternidade, mas através da inveja do diabo a morte entrou no mundo, e
aqueles que pertencem ao seu partido a experimentam. (Sabedoria de
Salomão 2:23–24)
Com estas palavras, a Sabedoria de Salomão reflete a antiga tradição
judaica de que o diabo inveja Adão e Eva porque possuem o estado de “justiça” e
“incorrupção” que ele próprio perdeu. 12 Embora o diabo já não possa possuí-la
para si mesmo, ele ainda cobiça os dons da graça de Deus que Adão e Eva
receberam. Tal como aconteceu com Caim, esta inveja espiritual leva o diabo a
cometer assassinato – provocando a morte espiritual do primeiro homem e da
primeira mulher.

JESUS E A INVEJA
Quando abrimos os Evangelhos em busca do que Jesus diz sobre a inveja,
duas passagens se destacam: sua inclusão da “inveja” e da “cobiça” na lista dos
males que vêm do coração de uma pessoa (Marcos 7:21-23), e a história da inveja
do irmão mais velho na segunda metade da parábola do filho pródigo (Lucas
15:25–32). Vamos dedicar alguns momentos para examinar cada um.
O Mal Da Inveja
Tal como acontece com o orgulho, o mesmo acontece com a inveja: Jesus
inclui-o numa pequena lista de vícios especialmente malignos:
De dentro, do coração do homem, vêm os maus pensamentos, a fornicação, o
roubo, o assassinato, o adultério, a cobiça, a maldade, o engano, a licenciosidade,
103

a inveja, a calúnia, o orgulho, a tolice. Todas essas coisas más vêm de dentro e
contaminam o homem. (Marcos 7:21–23)
Nesta passagem, a palavra “cobiça” (grego pleonexia) pode ser definida
como “o estado de desejar ter mais do que é devido”. 13 A palavra “inveja”
significa literalmente “mau-olhado” (grego oftalmos ponēros) – uma antiga
expressão judaica que se refere a “uma atitude de inveja, ciúme ou mesquinhez”.14
Ambos os termos estão intimamente relacionados à avareza (também conhecida
como ganância), que discutiremos em um capítulo posterior. Por enquanto, o
ponto principal é que Jesus, tal como as Escrituras Judaicas antes dele, identifica
tanto a “cobiça” como a “inveja” como pecados especialmente interiores, que
saem do coração de uma pessoa. A inveja não é apenas prejudicial; ela é má.
A Inveja Do Filho Mais Velho
Assim como o principal exemplo de inveja nas Escrituras Judaicas envolve
a história de dois irmãos – Caim e Abel – o mesmo ocorre na Parábola de Jesus
do Filho Pródigo. No capítulo 4, concentramo-nos na primeira metade da
parábola, que conta como o filho mais novo tomou a sua parte na propriedade do
pai e desperdiçou-a numa “vida dissoluta” antes de se arrepender e voltar para
casa (ver Lucas 15:11–24). Passamos agora para a segunda metade, que descreve
a resposta do filho mais velho:
O filho mais velho estava no campo. Ao voltar e aproximar-se da casa, ouviu
a música e as danças. Chamou um servo e perguntou-lhe o que havia. Ele lhe
explicou: Voltou teu irmão. E teu pai mandou matar um novilho gordo,
porque o reencontrou são e salvo. Encolerizou-se ele e não queria entrar, mas
seu pai saiu e insistiu com ele. Ele, então, respondeu ao pai: Há tantos anos
que te sirvo, sem jamais transgredir ordem alguma tua, e nunca me deste um
cabrito para festejar com os meus amigos. E agora, que voltou este teu filho,
que gastou os teus bens com as meretrizes, logo lhe mandaste matar um
novilho gordo! Explicou-lhe o pai: Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o
que é meu é teu. Convinha, porém, fazermos festa, pois este teu irmão estava
morto, e reviveu; tinha se perdido, e foi achado”. (Lucas 15:25–32)
Qualquer judeu do primeiro século que ouvisse esta parábola de Jesus
captaria facilmente os ecos da história de Caim e Abel: um irmão mais velho que
fica zangado com o irmão mais novo porque o irmão mais novo recebe o favor do
pai. 15 Não é de admirar que, na parábola de Jesus, a resposta do filho mais velho
exemplifique o pecado da inveja de várias maneiras.
104

Por um lado, o filho mais velho recusa-se a alegrar-se com a boa sorte do
arrependimento do seu irmão. Assim como Caim, em vez de ficar feliz, ele está
“zangado” com seu irmão mais novo (Lucas 15:28). Ele tem inveja da matança
do bezerro cevado e da comemoração feita pelo pai. Além disso, assim como
aconteceu com Caim, a inveja do filho mais velho é irracional. Afinal, o filho mais
novo ficou com apenas “a parte da propriedade” que era dele por direito (Lucas
15:12).
Ele não levou nada que pertencesse ao irmão mais velho. No entanto, o
filho mais velho vê o favor do pai para com o filho mais novo como uma ameaça
para ele – embora isso também não lhe tire nada. Como diz seu pai: “Tudo o que
é meu é seu” (Lucas 15:31). Finalmente, observe como a inveja do filho mais
velho está enraizada no orgulho. Ele está totalmente focado em si mesmo, em suas
realizações e em seus desejos. Ele se exalta acima de seu irmão mais novo,
divulgando como ele é muito melhor: quantos “anos” ele serviu e “nunca
desobedeceu” ao seu pai (Lucas 15:29). Ele nem se importa que seu próprio irmão
— que estava espiritualmente morto e perdido em pecado — foi restaurado à vida.
Ele está totalmente entregue a si mesmo. A inveja encheu seu coração de raiva e
amargura.
Em suma, de acordo com as Escrituras Judaicas e com Jesus, o pecado da
inveja ou da cobiça, embora profundamente escondido no coração de uma pessoa,
é tão mortal e destrutivo como outras violações mais visíveis dos Dez
Mandamentos. O que começa como tristeza pela boa sorte de outra pessoa pode
eventualmente se transformar em ódio – o desejo de que coisas ruins aconteçam
com ela. Da mesma forma, os feios vícios de fofoca, calúnia e difamação – revelar
desnecessariamente as falhas de outra pessoa – estão frequentemente enraizados
na inveja.
Finalmente, quando a boa sorte dos outros nos deixa tristes ou zangados em
vez de alegres, o único “prazer” que nos resta é a nossa capacidade de lhes infligir
dor, destruindo as suas reputações.16

O REMÉDIO PARA A INVEJA: MISERICÓRDIA


Mas como podemos nos livrar da inveja? Se já contraímos esta doença
cardíaca, qual é a cura? Quando se trata do vício da inveja, qual é a virtude oposta?
Aqui a resposta é um pouco menos direta do que no caso do orgulho.
105

Por um lado, alguns escritores espirituais cristãos identificam a caridade –


isto é, o amor ao próximo – como contrária à inveja. 17 Isto é certamente verdade.
No entanto, pode-se argumentar que o amor se opõe a todos os pecados capitais.
Por isso, focaremos aqui em outra sugestão: a virtude da misericórdia. 18
Enquanto a inveja consiste na tristeza pela boa sorte de outra pessoa, a
misericórdia consiste na compaixão pelo infortúnio de outra pessoa. A primeira
está enraizada no orgulho e a segunda no amor. Considere o seguinte:
Inveja Misericórdia
Lamenta-se por causa da boa sorte de Lamenta-se por causa do infortúnio
outra pessoa de outra pessoa
Enraizado no amor por si mesmo Enraizado no amor ao próximo

Por esta razão, como diz o escritor espiritual medieval Tomás de Aquino:
“Os invejosos não têm misericórdia… nem o homem misericordioso é
invejoso”.19 (Pense aqui no filho mais velho, que certamente não mostrou
misericórdia para com o irmão mais novo.) Com esta ideia básica em mente,
podemos agora fazer a pergunta: O que faremos se a nossa culpa predominante
for a inveja?
Livre-Se De Toda Inveja
A primeira coisa a fazer se lutamos contra a tristeza pela boa sorte de outras
pessoas é, como acontece com todos os vícios, fazer um esforço consciente e
concertado para expulsar a inveja dos nossos corações.
Por exemplo, o apóstolo Pedro ordena aos cristãos que “deixem de lado
toda... inveja” (1 Pedro 2:1). O verbo grego para “pôr de lado” aqui também pode
ser traduzido como “livrar-se de”.20 Implica a remoção completa de algo da vida
de alguém. A razão para desenraizar radicalmente a inveja do coração é simples:
o apóstolo Paulo lista a “inveja” (em grego, phthonos) como uma das “obras da
carne” que excluirão uma pessoa do “reino de Deus” (Gálatas 5:19, 21). Tal como
acontece com os outros Dez Mandamentos, quando a inveja envolve assuntos
graves – como cobiçar o cônjuge ou o sustento do próximo – é um pecado mortal.
O que começa como tristeza pela boa sorte de outra pessoa (inveja) pode
facilmente se transformar no desejo de que coisas ruins aconteçam a essa pessoa
(ódio).
106

Felizes São Os Misericordiosos


Igualmente necessário, precisamos pedir a Deus que nos ajude a cultivar a
virtude da misericórdia. Mais uma vez, Jesus destaca a importância desta virtude
logo no início do Sermão da Montanha, na quinta bem-aventurança:
Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
(Mateus 5:7)
Neste versículo, a palavra “misericordioso” (do grego eleēmōn) pode ser
definida como “compassivo”. 21 Como vimos num capítulo anterior, esta palavra
vem da mesma raiz que “esmola” (do grego eleēmosynē). Em outras palavras,
Jesus não está falando aqui apenas sobre sentir compaixão pelos necessitados; ele
está falando sobre fazer algo por eles. Como ele diz em outro lugar:
Se amais os que vos amam, que recompensa mereceis? Também os
pecadores amam aqueles que os amam. E se fazeis bem aos que vos fazem
bem, que recompensa mereceis? Pois o mesmo fazem também os pecadores.
Se emprestais àqueles de quem esperais receber, que recompensa mereceis?
Também os pecadores emprestam aos pecadores, para receberem outro tanto.
Pelo contrário, amai os vossos inimigos, fazei bem e emprestai, sem daí
esperar nada. E grande será a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo,
porque ele é bom para com os ingratos e maus. Sede misericordiosos, como
também vosso Pai é misericordioso. (Lucas 6:32–36)
Observe aqui que, para Jesus, o amor não consiste em sentir-se bem com os
outros, mas em fazer o bem a eles – quer eles mereçam ou não. Observe também
a ênfase de Jesus em realizar atos de caridade – emprestar sem esperar retorno.
Assim, num só fôlego, Jesus desenraíza tanto o ódio como a cobiça que fluem
diretamente do vício da inveja.
Vista sob esta luz, a virtude da misericórdia – especialmente a misericórdia
para com os nossos inimigos – é o antídoto definitivo para a inveja. Assim que
sentirmos os primeiros movimentos de tristeza em nossos corações pela sorte dos
outros, devemos parar imediatamente e pedir a Deus que os abençoe ainda mais.
Se, através da graça de Deus, conseguirmos desenvolver o hábito de mostrar
misericórdia para com os outros, especialmente através da esmola, acabaremos
por extrair dos nossos corações o veneno mortal da inveja.
Com tudo isto em mente, podemos agora examinar o terceiro pecado
capital, que está intimamente ligado à inveja. Precisamos olhar para o pecado da
ira.
107

13 IRA VS. MANSIDÃO


Todo aquele que se irar com seu irmão estará sujeito a julgamento.
—Jesus de Nazaré (Mateus 5:22)
PARA COMPREENDER O terceiro pecado capital – a ira – é importante
afirmar antecipadamente que nem toda raiva é errada. Em si, a raiva é apenas um
sentimento de resistência contra uma ofensa ou injustiça. Como emoção, pode ser
boa ou má.1 Por esta razão, a Bíblia descreve tanto as formas boas como as más
de ira. A ira justa (às vezes chamada de “zelo”) é uma resistência razoável ao mal,
à injustiça ou ao pecado. Deseja corrigir uma ofensa não para causar dano, mas
para preservar a justiça. Ela flui do amor e do desejo do bem. Não reage
exageradamente nem pune injustamente. A raiva pecaminosa (às vezes chamada
de “ira”), por outro lado, é uma reação irracional a uma ofensa percebida. Deseja
ferir o ofensor e causar danos por vingança. Ela flui do orgulho e da impaciência.
Reage exageradamente e pune excessivamente. 2
Com esta distinção entre ira justa e pecaminosa em mente, os escritores
espirituais desde os tempos antigos até os tempos modernos são muito claros que
esta última não tem lugar no coração de um cristão:
A raiva despertada pela impaciência é uma coisa, mas a raiva formada pelo zelo
é outra. A primeira é fruto do vício, a segunda, da virtude.
—Gregório, o Grande (século VI)3

O veneno mortal da raiva… deve ser totalmente arrancado das profundezas da


nossa alma.
—João Cassiano (século V)4

Não há maior obstáculo à presença do Espírito em nós do que a raiva.


—João Clímaco (século VII)5

Afirmo absolutamente e não faço exceção, não fique zangado se isso for
possível. Não aceite nenhum pretexto para abrir a porta do seu coração à
raiva…. Aqueles que aparecem em público como anjos, mas são demônios
em suas próprias casas, falham muito.
—Francisco de Sales (século XVII)6
108

Neste capítulo, exploraremos o que a Bíblia ensina sobre a raiva, como


saber a diferença entre a raiva justa e a injusta e qual é o antídoto para o “veneno
mortal” da ira pecaminosa.

A IRA NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Como vimos com orgulho e inveja, a ira pecaminosa é descrita nas
primeiras páginas do Gênesis, ligada a um dos Dez Mandamentos, e contra a qual
alertamos no livro de Provérbios. Vamos dedicar alguns momentos para ver o que
as Escrituras Judaicas ensinam sobre esse vício.
A Ira de Caim
O primeiro exemplo de ira pecaminosa nas Escrituras Judaicas vem mais
uma vez da história de Caim e Abel:
...e o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua oblação, mas não olhou
para Caim, nem para os seus dons. Caim ficou extremamente irritado com
isso, e o seu semblante tornou-se abatido. O Senhor disse-lhe: “Por que estás
irado? E por que está abatido o teu semblante? Se praticares o bem, sem
dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se procederes mal, o pecado estará
à tua porta, esprei-tando-te; mas, tu deverás dominá-lo”. Caim disse então a
Abel, seu irmão: “Vamos ao campo”. Logo que chegaram ao campo, Caim
atirou-se sobre seu irmão e o matou. (Gênesis 4:4–8)
Este é um retrato perfeito da ira pecaminosa. Por um lado, a resposta de
Caim é excessiva. Embora o inglês diga que Caim estava “muito zangado”, o
hebraico diz literalmente que ele “queimou muito [hebraico charah]” (Gênesis
4:5).7 Em outras palavras, Caim não está apenas chateado; ele está furioso. Além
disso, Caim está fora de controle. É por isso que Deus compara o pecado de Caim
a uma besta que ele deve se esforçar para dominar. Uma vez que o fogo da raiva
é aceso, como uma fera selvagem, ele facilmente sai do controle. Finalmente, a
resposta de Caim é irracional e injusta. Afinal, Abel não fez nada p ara prejudicá-
lo. No entanto, Caim “castiga” Abel com uma morte violenta. Desta forma, a ira
de Caim leva à primeira violação da lei que Deus dará mais tarde a Moisés nos
Dez Mandamentos: “Não matarás” (Êxodo 20:13).
O Pecado Da Ira Em Provérbios
Quando passamos de Gênesis para o livro de Provérbios, descobrimos mais
insights sobre a natureza da ira pecaminosa. Considere os seguintes ensinamentos
das Escrituras:
109

Quem é tardio em irar-se tem grande entendimento, mas quem tem


temperamento precipitado exalta a loucura. (Provérbios 14:29)

Um homem de temperamento explosivo provoca conflitos, mas quem é


tardio em irar-se acalma a discórdia. (Provérbios 15:18)

A ira é cruel, a raiva é avassaladora. (Provérbios 27:4)


Observe aqui que a raiva pecaminosa está ligada a um temperamento
precipitado e à loucura. Em outras palavras, é rápida de acender e muitas vezes
imprudente. Quando as pessoas cedem à raiva, elas “perdem o controle”
temporariamente e fazem coisas que nunca fariam se estivessem calmas. Isto é
muito mais claro no hebraico antigo, em que a palavra para “raiva” (hebraico
‘aph) é a mesma palavra que “narina” (hebraico ‘aph) (Provérbios 14:29; 15:18).
Essa imagem vívida decorre do fato de que, quando as pessoas começam a dilatar
as narinas no calor da raiva, provavelmente já estão começando a perder o
controle. 8
Observe também que a raiva inevitavelmente leva a “disputas” ou
“querelas” (Provérbios 15:18). Esta é uma acusação muito séria, que não deve ser
encarada levianamente. Pois em outro lugar Provérbios ensina que uma pessoa
que “semeia discórdia” entre irmãos é uma “abominação” para Deus (Provérbios
6:16, 19). Em outras palavras, a ira pecaminosa é repulsiva para Deus – como a
abominação da idolatria. Pessoas revoltadas estão constantemente em guerra com
todos ao seu redor – muitas vezes incluindo as suas próprias famílias. No fim,
assim como Caim acaba sendo “um fugitivo e errante pela terra” por causa de sua
raiva (Gênesis 4:14), também aqueles que abusam de suas famílias ou vizinhos,
reagindo à menor ofensa com ira, acabarão por acabar isolados e sozinho com sua
raiva.

JESUS E A IRA
Quando passamos das Escrituras Judaicas para a vida de Jesus,
encontramos imediatamente exemplos de ira justa (que o próprio Jesus
demonstra) e ira pecaminosa (que Jesus rejeita completamente).
110

A Ira Justa de Jesus


Em diversas ocasiões, o próprio Jesus demonstra ira justificada. O exemplo
mais óbvio disso é seu famoso ato de derrubar as mesas dos cambistas no Templo
de Jerusalém (ver João 2:13–17). Aqui a ação de Jesus é motivada pelo seu “zelo”
(do grego zēlos) pelo Templo como “casa de seu Pai” (João 2:16-17). Ele fica
ofendido em nome de Deus pela presença sacrílega de comerciantes no Templo e
procura corrigir esse erro expulsando-os. Outro exemplo é o ato de Jesus de curar
no sábado o homem com a mão atrofiada (ver Marcos 3:1–5). Neste caso, o
Evangelho de Marcos afirma explicitamente que Jesus sente “ira” (grego orgē)
pela “dureza de coração” daqueles que não querem que ele cure o homem (Marcos
3:5).9 Em ambos os casos, a ira de Jesus não é irracional, excessiva ou injusta. Ao
contrário da ira pecaminosa, que brota do orgulho e procura fazer mal, a ira de
Jesus brota do seu amor a Deus e ao próximo e procura curar.
A Ira Pecaminosa e a Prisão da Geena
Dito isto, quando se trata de ira pecaminosa, Jesus deixa absolutamente
claro que ela não tem lugar no coração dos seus discípulos. No Sermão da
Montanha, Jesus proíbe não apenas o assassinato, mas também a própria raiva:
Vocês ouviram que foi dito aos homens da antiguidade: “Não matareis; e
quem matar estará sujeito a julgamento.” Mas eu vos digo que todo aquele
que estiver irado com seu irmão estará sujeito a julgamento; quem insultar
seu irmão será responsabilizado perante o conselho, e quem disser: “Seu
tolo!” estará sujeito à Geena de fogo. (Mateus 5:21–22)10
Para interpretar adequadamente esta passagem, três pontos são essenciais.
Primeiro, Jesus começa seu ensinamento contra “ficar irado” (grego orgizō)
citando os Dez Mandamentos: “Não matarás” (Êxodo 20:13). Esta citação mostra
que, no contexto, Jesus está falando sobre a raiva pecaminosa – do tipo que leva
ao assassinato – e não sobre o zelo justo que ele próprio demonstra em outros
lugares.
Segundo, Jesus proíbe seus discípulos de usarem palavras iradas. Mesmo
insultos, como “cabeça vazia” (grego raka) e “idiota” ou “tolo” (grego mōros),
não têm lugar nos lábios de seus discípulos (Mateus 5:22). 11
Terceiro, e talvez o mais impressionante de tudo, Jesus ensina que quem
insulta o seu próximo estará sujeito não apenas ao julgamento de Deus, mas
também à “Geena de fogo” (Mateus 5:22). Para compreender este ditado, é
importante lembrar que a palavra “Geena” originalmente se referia ao “vale de
111

Hinom” (hebraico gē-hinnom), localizado nos arredores de Jerusalém e conhecido


por ter sido um lugar de idolatria e sacrifício humano (veja 2 Reis 23:10; Jeremias
32:35). Na época de Jesus, “Geena” havia se tornado um nome comum para o
reino dos mortos sobrenatural, no qual os pecadores são punidos com fogo.
Embora a palavra “Geena” nunca ocorra no Antigo Testamento, nos antigos
escritos judaicos fora da Bíblia, ela é descrita como um lugar de punição
permanente para alguns e punição temporária para outros.12
Jesus parece usar “Geena” nos dois sentidos. Em alguns lugares, ele fala da
Geena como um lugar de punição permanente (ver Mateus 10:28; Marcos 9:43–
48). Aqui, no seu ensinamento sobre a ira, no entanto, Jesus parece descrever a
Geena como uma “prisão” de devedores, da qual uma pessoa será libertada
quando tiver pago a dívida do seu pecado. Logo após declarar que aqueles que
usarem palavras raivosas estarão sujeitos à Geena, Jesus afirma:
Se estás, portanto, para fazer a tua oferta diante do altar e te lembrares de que
teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e
vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; só então vem fazer a tua oferta.
Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás em
caminho com ele, para que não suceda que te entregue ao juiz, e o juiz te
entregue ao seu ministro e sejas posto em prisão. Em verdade te digo: dali
não sairás antes de teres pago o último centavo. (Mateus 5:23–26)
Em outras palavras, Jesus exorta seus discípulos a se reconciliarem agora
com qualquer pessoa a quem ofenderam através da raiva ou dos insultos. Caso
contrário, eles não sairão da prisão da Geena até que tenham pago por “cada
palavra descuidada” (Mateus 12:36). Segundo Jesus, não basta evitar a violência
ou o assassinato. Ele quer extirpar toda a raiva do coração dos seus discípulos, o
que primeiro significa tirá-la da boca deles.

O REMÉDIO PARA A RAIVA: MANSIDÃO


Então, o que devemos fazer com essa tendência pecaminosa de reagir
exageradamente às ofensas e perder o controle de nós mesmos? Que remédio
existe para nós se o vício da raiva é a nossa culpa predominante?
Não Deixe O Sol Se Pôr Sobre Sua Raiva
A primeira coisa a fazer é um esforço consciente e consistente para
erradicar toda a raiva pecaminosa dos nossos corações e das nossas vidas. Como
o apóstolo Paulo adverte o povo de Éfeso:
112

Irai-vos, mas não pequeis; não deixe o sol se pôr sobre a sua raiva e não dê
oportunidade ao diabo…. Sejam afastados de vós toda a amargura, e cólera,
e ira, e clamor, e calúnia, bem como toda a malícia, e sede bondosos uns para
com os outros, compassivos, perdoando-vos uns aos outros, como Deus vos
perdoou em Cristo. (Efésios 4:26–27, 31–32)
Observe aqui que Paulo não proíbe toda ira (“Irai-vos”) – apenas a ira
pecaminosa (“mas não pequeis”). Como podemos saber a diferença? Se o dia
terminou e ainda estamos furiosos, então provavelmente é do tipo pecaminoso. Se
isso leva à amargura e ao “clamor” da discussão, então é definitivamente mau.
Seja Lento Para Se Irritar
Então, qual é o remédio? Escolhendo perdoar aqueles que nos feriram –
assim como Deus nos perdoou em Cristo. 13 Na verdade, quem somos nós para
ficarmos furiosos com os outros quando o próprio Deus foi paciente conosco e
nos perdoou tantas vezes? Como ensina a carta de Tiago:
Que todo homem seja rápido para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar,
pois a ira do homem não opera a justiça de Deus. Portanto, deixem de lado
toda vulgaridade e malícia excessiva e recebam com mansidão a palavra
implantada, que é capaz de salvar suas almas. (Tiago 1:19–21)14
Tal como os outros pecados capitais, a raiva é uma porta de entrada para
outros vícios, tais como brigas, xingamentos, abuso verbal, abuso físico e até
mesmo derramamento de sangue. 15
Qualquer pessoa que tenha sofrido abusos nas mãos de alguém consumido
pela ira saberá muito bem o dano causado por este pecado em particular.
Felizes São Os Mansos
Outra coisa que precisamos fazer é pedir a Deus que nos dê a virtude da
brandura, também conhecida como “mansidão”. 16 Mais uma vez, é o próprio Jesus
quem coloca a mansidão na vanguarda do Sermão da Montanha:
Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. (Mateus 5:5)
Para compreender esta bem-aventurança, três pontos são necessários.
Primeiro, como observado acima, a palavra comumente traduzida como
“abençoado” significa literalmente “feliz” (grego makarios). Em segundo lugar,
a palavra “manso” (do grego praus) não significa “fraco”. 17 Refere-se, em vez
disso, aos “gentis” – isto é, aqueles que se recusam a ser vencidos pela raiva
113

porque confiam em Deus. Considere, por exemplo, como o livro dos Salmos
descreve os mansos:
Abstenha-se da raiva e abandone a ira! …
Porque os ímpios serão exterminados;
mas aqueles que esperam no Senhor possuirão a terra.
Ainda um pouco, e os ímpios não existirão mais...
Mas os mansos possuirão a terra.
(Salmo 37:8–11)
Terceiro, quando Jesus diz que os mansos herdarão “a terra” – ou “a terra”
(grego gē) – ele não está falando sobre a terra prometida terrena.
Em vez disso, ele está falando sobre a terra prometida celestial da nova
criação (ver Mateus 19:28).
Por outras palavras, Jesus começa o Sermão da Montanha mostrando aos
seus seguidores que a virtude da mansidão – o oposto da raiva – é outra chave
para a felicidade neste mundo e para a vida eterna no próximo. Embora os irados
pensem que ficarão satisfeitos infligindo punição para aqueles que os feriram, a
realidade é que a raiva apenas gera mais de si mesma. Por outro lado, aqueles que
se recusam a ceder à ira pecaminosa neste mundo um dia experimentarão a paz
da vida no mundo vindouro. Começar a erradicar o vício da raiva e a cult ivar a
virtude da gentileza é mais um passo crucial no caminho espiritual que Jesus deu
aos seus discípulos e a nós.
Agora que analisamos os três pecados capitais que estão enraizados num
desejo desordenado de poder – orgulho, inveja e raiva – podemos em seguida
voltar a nossa atenção para o pecado capital enraizado num desejo desordenado
de posses – a avareza.
114

14 AVAREZA VS. GENEROSIDADE


Não podeis servir a Deus e a Mamom.
—Jesus de Nazaré (Mateus 6:24)
O QUARTO PECADO CAPITAL – AVAREZA (também conhecido como
ganância) – pode ser definido como um desejo irracional ou imoderado de
adquirir dinheiro ou bens. A avareza é um desejo desordenado que afasta a pessoa
do céu e se volta para as coisas da terra. Quando a avareza enche o coração
humano, ela eventualmente expulsa o amor a Deus e o amor ao próximo. Quando
leva ao roubo, fraude ou falso testemunho, torna-se um pecado mortal. Segundo
Jesus, a avareza é um dos vícios espiritualmente mais perigosos.
Seria fácil encher uma pequena biblioteca com muitos sermões, tratados e
livros que foram escritos sobre avareza, cobiça e ganância. 1
Aqui estão apenas algumas citações de escritores espirituais ao longo dos
últimos dois mil anos:
A avareza, que podemos chamar de amor ao dinheiro…transforma-se na “raiz de
todos os males”, fazendo brotar os rebentos de muitos vícios.
—João Cassiano (século V)2

A avareza é uma adoração de ídolos e é fruto da incredulidade.


—João Clímaco (século VII)3

A cobiça [latim avaritia] … é definida como “amor imoderado de possuir”.


—Tomás de Aquino (século XIII)4

A avareza é uma febre violenta…. Você é verdadeiramente avarento se desejar,


ardente e ansiosamente, possuir bens que não possui, mesmo que diga que não
gostaria de adquiri-los por meios injustos.
—Francisco de Sales (século XVII)5

Isso não é um pouco forte demais? Afinal, os seres humanos não precisam
de dinheiro e bens para sobreviver? Por que a avareza é tão perigosa? E é
realmente semelhante à idolatria e “a raiz de todos os males”?
115

Neste capítulo, responderemos a essas perguntas examinando brevemente


o que as Escrituras Judaicas, o ensino de Jesus e as cartas dos apóstolos têm a
dizer sobre os perigos da riqueza e do amor ao dinheiro. Como veremos, a razão
pela qual a avareza é tão perigosa espiritualmente é a forma como afeta o coração
humano.

A AVAREZA NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Para compreender o ensino de Jesus sobre os perigos da riqueza e o pecado
da avareza, é importante examinarmos três passagens das Escrituras Judaicas.
O Mandamento Contra A Cobiça
O primeiro deles são os Dez Mandamentos. Embora a palavra “ganância”
não ocorra no Decálogo, ela é implicitamente proibida pelo mandamento contra a
cobiça dos bens do próximo:
Não cobiçarás a casa do teu próximo; não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem
o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem qualquer
coisa que seja do teu próximo. (Êxodo 20:17)
Lembre-se de que a palavra “cobiçar” (hebraico chamadod) pode ser
definida como um “desejo desordenado, desgovernado e egoísta”. 6 Em outros
lugares, o termo é usado especificamente para descrever o desejo cobiçoso de uma
pessoa por tesouro ou dinheiro (ver Josué 7:21; Jó 20:20). Como veremos daqui
a pouco, é esse desejo desordenado por posses que está na raiz d o pecado da
avareza.
Avareza E O Mau-Olhado
A segunda passagem chave é o mandamento bíblico de dar dinheiro aos
pobres e necessitados (Deuteronômio 15:7–11). Vimos essa passagem
anteriormente em nosso estudo sobre a esmola (ver capítulo 8). Por enquanto,
queremos simplesmente nos concentrar no uso da imagem do “mau-olhado”:
Cuidado para que… o teu olho não seja mau para o teu irmão pobre, e não lhe dês
nada, e ele clame ao Senhor contra ti, e haja pecado em ti. (Deuteronômio 15:9)7
Embora algumas traduções falem de um olho “hostil” (RSV), o hebraico
diz literalmente “mau-olhado” (hebraico ra'ah ‘ayin). Em algumas línguas
europeias modernas, “o mau-olhado” é uma expressão usada para se referir a
maldições ou azarações, mas não é assim que é usada nas Escrituras Judaicas. Na
Bíblia, o “mau-olhado” pode ser usado para descrever tanto (1) uma pessoa
116

invejosa que olha com um “olho” cobiçoso para o que pertence a outros, ou (2)
uma pessoa gananciosa que desvia o seu “olho” dos pobres e se recusa a dar -lhes
qualquer coisa. Aqui em Deuteronômio, o último tipo de ganância não é apenas
pouco atraente; é explicitamente chamado de pecado.
A Avareza Nunca Consegue o Bastante
A terceira passagem, do livro de Provérbios, também utiliza a imagem do
“mau-olhado” para descrever alguém cuja avareza o leva a passar a vida correndo
atrás de dinheiro e negligenciando a própria família:
Um homem com mau-olhado corre atrás da riqueza,
e não sabe que a necessidade virá sobre ele….
Aquele que rouba seu pai ou sua mãe
e diz: “Isso não é transgressão”,
é o companheiro de um homem que destrói.
Um homem ganancioso provoca conflitos,
mas aquele que confia no Senhor será enriquecido.
(Provérbios 28:22, 24–25)

Em hebraico, a palavra “riqueza” (hebraico hōn) é o mesmo que a palavra


“suficiente” (hebraico hōn) (Provérbios 30:15–16), e a palavra para “ganancioso”
significa literalmente “amplo apetite”. 8 Por outras palavras, as pessoas avarentas
são insaciáveis: nunca se fartam. O seu desejo de possuir é quase infinito; nunca
pode ser satisfeito por qualquer ganho material. Além disso, se a ganância leva as
pessoas a não conseguirem sustentar o seu próprio pai ou mãe, elas não são
melhores do que “um homem que destrói” – isto é, um assassino. No final, ao
depositarem a sua confiança no dinheiro, os avarentos falham tanto no amor a
Deus como no amor ao próximo.

JESUS E A AVAREZA
Ao abrirmos as páginas dos Evangelhos, encontramos duas passagens
clássicas em que Jesus aborda o pecado da avareza: seu ensino sobre o dinheiro
no Sermão da Montanha (Mateus 6:19-24) e a Parábola do Rico Insensato (Lucas
12:13–21). Vamos dedicar alguns momentos para examinar cada uma.
117

O Mau-Olhado E O Amor De Mamom


Muitos estão familiarizados com a declaração de Jesus sobre acumular
“tesouros” no céu e servir a Deus em vez de “mamon”. O que às vezes passa
despercebido, porém, é que – bem entre esses dois ditos famosos – Jesus usa a
metáfora judaica do “mau-olhado” para ilustrar como a ganância lança a alma na
escuridão espiritual:
Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem consomem
e onde os ladrões minam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros no céu,
onde nem a traça nem a ferrugem consomem e onde os ladrões não minam
nem roubam. Pois onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso
coração.
O olho é a lâmpada do corpo. Assim, se os seus olhos estiverem sãos, todo o
seu corpo estará cheio de luz; mas se o seu olho for mau, todo o seu corpo
ficará em trevas. Se então a luz em você são trevas, quão grandes são as
trevas!
Ninguém pode servir a dois mestres; pois ou ele odiará um e amará o outro,
ou se dedicará a um e desprezará o outro. Você não pode servir a Deus e a
Mamom. (Mateus 6:19–24)9
Durante anos, quando lia estas palavras, simplesmente ignorava a intrigante
afirmação de Jesus sobre o “olho” como “a lâmpada do corpo”. No entanto,
quando descobri que o “mau-olhado” era uma antiga metáfora judaica para a
ganância, percebi que todos os três ensinamentos andam juntos.10 No primeiro
ditado, Jesus está alertando seus discípulos contra o acúmulo de dinheiro e posses
(“tesouros na terra"). A razão não é porque eles sejam maus em si mesmos, mas
sim porque os humanos estão inclinados a amar tudo o que consideram precioso.
“Onde estiver o seu tesouro, aí estará também o seu coração” (Mateus 6:21).
No segundo ditado, Jesus usa a metáfora judaica do “mau-olhado” para mostrar
como as posses amorosas enchem a alma de trevas. Considere o seguinte gráfico:
1. Olho bom 1. Olho mau
(= Generosidade) (= Ganância)
2. Enche o corpo de luz 2. Enche o corpo de escuridão
(= bondade interior) (= mal interior)
118

Na sua terceira frase, Jesus revela por que o amor de “mamom” (uma
palavra aramaica para “dinheiro”) é tão perigoso. A avareza expulsa o amor a
Deus do coração. De acordo com Jesus, uma pessoa amará o dinheiro e odiará a
Deus ou será devotada a Deus e desprezará o dinheiro. Não há meio termo. É por
isso que Jesus em outro lugar lista explicitamente “cobiça” ou “avareza” (grego
pleonexia; latin avaritia) como uma das “coisas más” que saem do coração
humano e o contaminam (Marcos 7:22-23). Não podemos amar a Deus e amar o
dinheiro ao mesmo tempo.
A Parábola Do Rico Insensato
Jesus também usa a parábola do rico insensato para ilustrar quão irracional
e espiritualmente perigosa é a ganância:
[Jesus] disse a [seus discípulos]: “Tende cuidado e guardai-vos de toda a
cobiça; pois a vida de um homem não consiste na abundância dos seus bens.”
E contou-lhes uma parábola, dizendo: A terra do rico produziu
abundantemente; e ele pensou consigo mesmo: ‘O que devo fazer, pois não
tenho onde armazenar minhas colheitas?’ E ele disse: ‘Eu farei isto:
derrubarei meus celeiros e construirei outros maiores; e ali armazenarei todos
os meus cereais e os meus bens. E direi à minha alma: Alma, tens em
depósito muitos bens para muitos anos; relaxe, coma, beba e divirta-se.’ Mas
Deus lhe disse: ‘Insensato! Esta noite sua alma é exigida de você; e as coisas
que preparaste, para quem serão?’ Assim é aquele que para si ajunta tesouros
e não é rico para com Deus.” (Lucas 12:15–21)
É importante notar que a palavra “cobiça” (do grego pleonexia) refere-se a
um desejo insaciável de adquirir bens. 11 Foi eventualmente traduzida para o latim
como “avareza” (latim avaritia) – o nome padrão para o quarto pecado capital.
No contexto, também se refere a um desejo irracional de acumular riquezas
terrenas. É por isso que Deus chama o homem rico de “tolo” ou “insensato” (grego
aphrōn) (Lucas 12:20). Mesmo do ponto de vista terreno, não faz sentido dedicar-
se a acumular tantas riquezas quando sua vida pode acabar a qualquer momento.
Do ponto de vista eterno, sua avareza é ainda mais tola, pois ao acumular tesouros
terrenos “para ele mesmo”, ele falhou em ser “rico para com Deus” (Lucas
12:21).12 Quando se trata de sua “conta bancária” celestial – que nada mais é do
que a caixa do “tesouro” de seu “coração” (Lucas 12 :34) - o homem rico está
espiritualmente falido.
119

O REMÉDIO PARA A AVAREZA: GENEROSIDADE


Então, como curamos a doença da avareza? O que devemos fazer se um
desejo desordenado por posses for nossa culpa predominante?
O Amor Ao Dinheiro
A primeira coisa a fazer é arrancar completamente de nossos corações
qualquer amor por dinheiro ou posses. Como diz o apóstolo Paulo: “Mortificai,
pois, o que há de terreno em vós: … a cobiça, que é idolatria” (Colossenses 3:5).13
Observe que, para Paulo, os gananciosos quebram os mandamentos contra
a idolatria e a cobiça simultaneamente, transformando as coisas em Deus. É por
isso que Paulo inclui os “gananciosos” em sua lista daqueles que “não herdarão o
reino de Deus” (1 Coríntios 6:9–10). Não importa quanto dinheiro eles tenham
acumulado na terra, de acordo com Paulo, eles não têm “herança no reino de
Cristo” (Efésios 5:5). Como ele afirma em outro lugar:
Pois o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males; é através deste desejo que
alguns se afastaram da fé e perfuraram os seus corações com muitas dores.
(1 Timóteo 6:10)
Observe que Paulo fala aqui do “amor ao dinheiro” (grego filargiria) – e
não apenas do desejo por ele – como a raiz de todos os males. Se isso parece
exagerado, pergunte-se: quantos assassinatos foram cometidos porque as pessoas
amavam mais o dinheiro do que os outros seres humanos? E quanto ao tsunami
de roubo, corrupção, mentira, extorsão, chantagem, escravatura, tráfico de seres
humanos e guerra que se abateu sobre as costas da história humana? 14
Infelizmente, as palavras de Paulo são muito verdadeiras. Além disso,
mostram-nos que o pecado da avareza é na verdade um problema cardíaco. É uma
questão de amor desordenado. Nenhuma quantidade de riqueza finita, por mais
vasta que seja, jamais satisfará plenamente o desejo do coração humano pelo amor
infinito de Deus.
Então, como sabemos se permitimos que o amor ao dinheiro se infiltrasse
em nossos corações? Uma maneira fácil de saber é se ficamos com raiva ou
chateados quando perdemos dinheiro sem culpa nossa. Consideremos as palavras
de Francisco de Sales:
Se você acha seu coração muito desolado e angustiado pela perda de bens,
acredite, … você ama demais. A prova mais forte de amor por um objeto
perdido é o sofrimento pela sua perda. 15
120

Não importa quem somos ou qual é o nosso estado de vida – clérigos ou


leigos, casados ou solteiros, jovens ou velhos – nunca devemos permitir que o
dinheiro ou os bens tenham lugar nos nossos corações.
Felizes São Aqueles Que Dão
Outra coisa a fazer se lutamos contra a avareza é pedir a Deus que nos dê a
virtude da generosidade. Já vimos brevemente como cultivar o hábito da
generosidade no nosso capítulo sobre a esmola. Contudo, é importante notar que
Jesus também fala disso em outra de suas bem-aventuranças. Neste caso, a bem-
aventurança não se encontra no Sermão da Montanha, mas sim no final do
discurso de despedida de Paulo à igreja de Éfeso, quando lhes recorda “as palavras
do Senhor Jesus”, que disse:
É maior felicidade dar que receber. (Atos 20:35)
Tal como acontece com as outras bem-aventuranças, a palavra para “bem-
aventurado” aqui é “feliz” (grego makarios). Assim, Jesus está ensinando aos seus
discípulos que o caminho para a verdadeira felicidade não é acumular coisas, mas
através da generosidade. Portanto, se lutamos contra um desejo desordenado por
dinheiro ou posses – e todos nós o fazemos porque somos seres humanos decaídos
– a melhor maneira de erradicar isso é desenvolver o hábito de dá-los. Ao fazê-lo,
não só evitaremos sucumbir ao vício da avareza e acabar como o rico tolo, mas
também teremos descoberto mais um dos segredos de Jesus para a felicidade neste
mundo e o tesouro celestial no próximo.
Com tudo isto em mente, podemos agora voltar a nossa atenção para os
pecados capitais enraizados num desejo desordenado de prazer físico.
Começamos com o que pode ser o mais infame de todos os vícios: a luxúria.
121

15 LUXÚRIA VS. CASTIDADE


Todo aquele que olha para uma mulher com desejo já
cometeu adultério com ela em seu coração.
—Jesus de Nazaré (Mateus 5:28)
O QUINTO PECADO CAPITAL – LUXÚRIA – pode ser definido como
um desejo desordenado de prazer sexual. Segundo a Bíblia, por si só, o prazer da
união conjugal é bom. Afinal, as primeiras palavras ditas por Deus ao homem e à
mulher são “Crescei e multiplicai-vos” (Gênesis 1:28). Além disso, a união “uma
só carne” de marido e mulher faz parte da criação – antes mesmo de o primeiro
pecado ser cometido (Gênesis 2:24).
Contudo, após a Queda, este desejo originalmente bom de união conjugal
— assim como outros bons desejos humanos — torna-se desordenado, inclinado
ao pecado e difícil de controlar. Por definição, luxúria é o desejo de usar mal ou
abusar do prazer sexual que Deus criou para a união de marido e mulher e para a
procriação de filhos (Gênesis 1:28). 1 Como veremos, o próprio Jesus descreve a
“imoralidade sexual” (grego porneia) como uma das “coisas más” que saem do
“coração” humano (Marcos 7:21, 23). Em última análise, a luxúria não é apenas
um problema físico. Como outros pecados, no seu nível mais profundo, a luxúria
é um problema cardíaco.
Quando olhamos para o que os escritores espirituais cristãos sobre os
pecados capitais têm a dizer, descobrimos que eles são muito realistas sobre a
experiência humana universal do desejo sexual desordenado e a dificuldade
envolvida em evitar o vício da “imoralidade sexual” (grego porneia) ou
“fornicação” (latim fornicatio). Considere o seguinte:

Nossa segunda luta…é contra o espírito de fornicação. Esta guerra selvagem é


mais longa que as outras.
—João Cassiano (século V)2

Todos os demônios tentam obscurecer nossas mentes…. Mas o demônio da


fornicação se esforça mais do que todos os outros.
—João Clímaco (século VII)3
122

É vaidade ceder aos desejos da carne e envolver-se em coisas pelas quais mais
tarde será severamente punido.
—Thomas de Kempis (século XV)4

A luxúria é realmente tão séria? Precisamos realmente travar uma “guerra”


contra ela? E se sim, quais são os remédios para esse vício específico?
Neste capítulo, examinaremos cuidadosamente o que as Escrituras
Judaicas, o ensino de Jesus e os escritos dos apóstolos têm a dizer sobre a luxúria.
Como veremos, uma das razões pelas quais a luxúria é tão prejudicial
espiritualmente é porque ela corrompe e distorce a nossa capacidade de amar
corretamente o nosso próximo.

A LUXÚRIA NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Para compreender o ensino de Jesus a respeito da luxúria, pelo menos três
passagens-chave das Escrituras Judaicas exigem nossa atenção: as leis contra o
adultério e a cobiça nos Dez Mandamentos, a história do adultério do rei Davi
com Betsabeia e os ensinamentos de Provérbios. Vamos dedicar alguns momentos
para examinar cada um.
Dois dos Dez Mandamentos
Embora existam apenas Dez Mandamentos, dois dos dez – ou seja, 20 por
cento – centram-se na questão do desejo sexual ilícito:
Não cometerás adultério. (Êxodo 20:14)
Você não deve cobiçar a… esposa do seu próximo. (Êxodo 20:17)
Observe aqui que o mandamento contra o “adultério” proíbe o ato físico de
ter relações com o cônjuge de outra pessoa, enquanto o mandamento contra a
“cobiça” proíbe o ato interior de desejar cometer adultério. 5 Embora este último
seja dirigido aos homens, as Escrituras Judaicas esclarecem em outro lugar que
também se aplica às mulheres (ver Levítico 20:10). Ambas as leis pertencem à
segunda das duas tábuas dos Dez Mandamentos. Assim, embora a cobiça e o
adultério sejam muitas vezes justificados como atos de “amor”, numa perspectiva
judaica antiga, ambos são violações do amor ao próximo.6
123

A Luxúria do Rei Davi


Outra passagem das Escrituras Judaicas envolve aquele que é sem dúvida o
exemplo mais famoso de luxúria na Bíblia: o ato de adultério do Rei Davi com
Betsabeia:
Na primavera do ano, época em que os reis saem à guerra, Davi enviou Joabe,
e com ele os seus servos, e todo o Israel; e eles devastaram os amonitas….
Mas David permaneceu em Jerusalém. Aconteceu, certa tarde, quando Davi
se levantou do sofá e caminhava pelo telhado da casa do rei, quando viu do
telhado uma mulher tomando banho; e a mulher era muito bonita. E Davi
mandou perguntar pela mulher. E alguém disse: “Não é esta Betsabeia, filha
de Eliam, mulher de Urias, o hitita?” Então Davi enviou mensageiros e a
prendeu; e ela veio até ele, e ele se deitou com ela. (2 Samuel 11:1–4)
Observe bem que Davi não tropeça simplesmente no ato de adultério.
Existem várias etapas preliminares:
(1) Passo 1: Ociosidade. O relato começa com Davi enviando seus exércitos
para a guerra enquanto ele próprio permanece em Jerusalém. No antigo Israel, era
costume o rei liderar as suas tropas na batalha. 7 Mas o que é que David está a
fazer? Descansando e dormindo até tarde. A preguiça de Davi é o primeiro passo
em direção ao seu pecado de luxúria.
(2) Etapa 2: Recusa em desviar o olhar. Em seguida, do telhado de sua casa,
Davi vê Betsabeia tomando banho — provavelmente em um pátio ao ar livre.
Neste momento, Davi é um homem casado e Betsabeia é uma mulher casada (ver
2 Samuel 6; 11:3).
Mesmo assim, Davi prefere não desviar o olhar da esposa do vizinho.
(3) Passo 3: Curiosidade Cobiçosa. Pelo contrário, David começa a
perguntar sobre a identidade da mulher que está olhando. Isto não é curiosidade
vã. Há um desejo cobiçoso que impulsiona a investigação de Davi e um propósito
adúltero por trás dela.
(4) Passo 4: Adultério. Finalmente, David age de acordo com seus desejos.
Ele convoca Betsabeia e comete o ato físico de adultério com ela. Como resultado,
Betsabeia concebe e Davi acaba tramando o assassinato de seu marido, Urias, para
que seu pecado não seja exposto (2 Samuel 11:5–27). No final, a concupiscência
de David leva-o a violar não um, não dois, mas três dos Dez Mandamentos. Assim
é a luxúria. Rapidamente fica fora de controle.
124

O que começa com Davi quebrando o mandamento contra a cobiça termina


com Davi cometendo adultério e assassinato (ver Êxodo 20:13–14, 17).
O Fogo da Luxúria
Como livro de instrução para iniciantes espirituais, um dos principais
objetivos de Provérbios é alertar os seus leitores contra a cobiça e o adultério. 8
Considere apenas um exemplo:
Pode um homem carregar fogo no peito
e suas roupas não serão queimadas?
Ou alguém pode andar sobre brasas
e seus pés não serão queimados?
Assim é aquele que se casa com a mulher do seu próximo;
ninguém que a toque ficará impune….
Quem comete adultério não tem juízo;
quem faz isso se destrói.
(Provérbios 6:27–29, 32)
Quando se trata de luxúria, o livro de Provérbios – assim como os Dez
Mandamentos – adverte tanto contra o desejo desordenado (o “fogo” da luxúria)
quanto contra a ação externa (aquele que “comete adultério”). Aqueles que
pensam que podem cometer adultério sem quaisquer consequências negativas
“não têm sentido”. Por esta razão, como acontece com outros pecados, a luxúria
é irracional. Não faz sentido. Muitas vezes está enraizado em fantasias irrealistas
sobre as consequências das ações humanas. Pois no final, o adúltero “se destrói”.
Como disse um comentador: “O adultério mata.”9 É claro que isto é exatamente o
que acontece ao Rei Davi. Embora Davi se arrependa e seja perdoado por Deus
(ver Salmo 51), seu pecado ainda tem consequências assassinas para Urias e
consequências trágicas para ele e sua família (ver 2 Samuel 12:5–18).
De acordo com as Escrituras Judaicas, não podemos brincar com o “fogo”
da luxúria sem nos queimarmos.

JESUS E A LUXÚRIA
Com tudo isso em mente, estamos em melhor posição para entender o que
Jesus tem a dizer sobre a luxúria em duas passagens principais: sua descrição da
125

“imoralidade sexual” como má (Marcos 7:21) e sua advertência contra cometer


“adultério” no coração (Mateus 5:27–30).
O Mal da Porneia
Para começar, Jesus inclui ações sexuais ilícitas em sua lista de vícios que
contaminam espiritualmente uma pessoa:
O que sai do homem é o que o contamina. Pois de dentro, do coração do homem,
vêm os maus pensamentos, a imoralidade sexual, o roubo, o assassinato, o
adultério, a cobiça…. Todas essas coisas más vêm de dentro e contaminam o
homem. (Marcos 7:20–23)10
Embora algumas traduções em inglês tenham aqui a palavra “fornicação”
(por exemplo, RSV) em vez de “imoralidade sexual”, a palavra grega original é
porneia – de onde deriva a palavra inglesa “pornografia”11. No grego antigo,
porneia tem um significado mais amplo do que apenas relações ilícitas entre
pessoas solteiras. No contexto judaico do primeiro século, porneia pode referir-
se a qualquer ato sexual fora da união procriativa entre um homem e uma mulher
casados.12
Por outras palavras, embora os Dez Mandamentos proíbam explicitamente
apenas o “adultério” (moicheia em grego), Jesus vai mais longe: descreve todos
os atos de porneia como atos moralmente “maus” que “contaminam”
espiritualmente o coração humano (Marcos 7:23).
O Olhar Lascivo E O Adultério No “Coração”
Ainda mais impressionante, Jesus não condena apenas atos lascivos. Ele até
condena olhares lascivos:
Vocês ouviram o que foi dito: “Não cometerás adultério”. Mas eu vos digo que
todo aquele que olhar para uma mulher para cobiçá-la já cometeu adultério com
ela no coração. Se o seu olho direito o faz pecar, arranque-o e jogue-o fora; é
melhor que você perca um dos seus membros do que todo o seu corpo seja lançado
na Geena. E se a tua mão direita te faz pecar, corta-a e lança-a fora; é melhor que
você perca um dos seus membros do que todo o seu corpo vá para a Geena.
(Mateus 5:27–30)13
Para compreender este ditado corretamente, quatro pontos são cruciais.
Primeiro, Jesus começa seu ensinamento contra olhares lascivos citando os
Dez Mandamentos: “Não cometerás adultério” (Êxodo 20:14). Esta citação
mostra que Jesus considera a natureza ilícita do “adultério” um dado adquirido.
126

Afinal, ele é judeu. Não deveria nos surpreender que os Dez Mandamentos
estabeleçam o contexto para tudo o que Jesus dirá sobre a luxúria no coração. 14
Segundo, algumas traduções em inglês referem-se a todos que olham para
uma mulher “com luxúria” (Mateus 5:28, RSV) ou “com desejo” (NAB).
Contudo, no original grego, Jesus está na verdade citando o mandament o contra
a cobiça.15 Uma tradução mais literal seria “Todo aquele que olhar para uma
mulher com o objetivo de cobiçá-la [grego epithymēsai] já cometeu adultério com
ela em seu coração” (Mateus 5:28). 16 Esta é a mesma palavra usada na antiga
tradução grega conhecida como Septuaginta: “Não cobiçarás [grego epithymēseis]
a mulher do teu próximo” (Êxodo 20:17 LXX).
Por outras palavras – e isto é importante – Jesus não está a falar sobre
experimentar sentimentos involuntários de atração por causa da beleza física de
outra pessoa. Em vez disso, ele está falando sobre olhar deliberadamente para
alguém com o desejo de cometer pecado com ela. (Pense aqui no olhar de Davi
para Betsabeia).
Terceiro, caso haja alguma dúvida sobre isso, basta olharmos para a
imagem de Jesus de cometer “adultério” no “coração” (Mateus 5:28). Nas
Escrituras Judaicas, o “coração” é mais do que apenas a sede da emoção humana.
É o lugar da decisão, onde a pessoa escolhe fazer o bem ou o ma l.17 O
coração decide quem ou o que vamos amar. Como diz a Bíblia: “Amarás ao
Senhor teu Deus de todo o teu coração” (Deuteronômio 6:5). Assim, Jesus não
está falando sobre sentir um desejo desordenado de prazer ilícito, mas sobre
escolher consentir com ele. É precisamente porque a luxúria entra tão facilmente
no coração humano que Jesus insiste que ela não tem absolutamente nenhum lugar
na vida dos seus discípulos: eles devem “arrancar” e “cortar” completamente
qualquer coisa nas suas vidas que os faça pecar através da luxúria. (Mateus 5:29–
30). Caso contrário, segundo Jesus, correm o risco de ficarem para sempre
separados de Deus na Geena. Em suma, Jesus leva o pecado da luxúria muito,
muito a sério.

O REMÉDIO PARA A LUXÚRIA: CASTIDADE


Então, o que uma pessoa deve fazer? Qual é o remédio para a luxúria?
Como alguém pode vencer a batalha contra esse vício, quando os desejos que o
motivam são tão fortes e tão difíceis de controlar?
127

Luxúria E Santidade São Incompatíveis


A primeira coisa a fazer é evitar colocar-nos em situações de tentação.18
Nunca cultivaremos a virtude da castidade se não fizermos nenhum esforço para
eliminar ocasiões de luxúria de nossa vida. Devemos recusar a tentação de dizer
a Deus, como fez Agostinho de Hipona quando era mais jovem: “Concede-me a
castidade e a continência, mas não ainda!”19
Nessa linha, o apóstolo Paulo lista a “imoralidade sexual” (em grego
porneia) como uma das “obras da carne” que impedirão uma pessoa de herdar “o
reino de Deus” (Gálatas 5:19, 21). Por outras palavras, todos os atos sexuais fora
da união conjugal entre marido e mulher são gravemente pecaminosos. 20 Segundo
Paulo, a luxúria e a santidade são incompatíveis:
Esta é a vontade de Deus, a vossa santidade: que vos abstenhais da
imoralidade sexual; que cada um de vocês saiba controlar seu próprio corpo
em santidade e honra, não na paixão da luxúria como os pagãos que não
conhecem a Deus. (1 Tessalonicenses 4:3–5)21
Como vimos anteriormente, santidade significa ser separado do pecado e
ser separado para Deus. Segundo o Novo Testamento, cada pessoa é chamada à
santidade. Por esta razão, nem os atos externos de “imoralidade sexual” (grego
porneia), nem os atos internos de “luxúria” (grego epitímia) têm qualquer lugar
na vida de um seguidor de Jesus. 22 Não podemos servir a Deus e a porneia ao
mesmo tempo. Ou amaremos um e odiaremos o outro ou nos dedicaremos a um e
desprezaremos o outro.
Os Três Estágios Da Tentação
Por outro lado, também é essencial compreender a diferença entre
simplesmente sentir a tentação (que não é pecaminosa) e deleitar-se nela ou
consentir nela (que são pecaminosas). 23 Desde os tempos antigos, os
comentadores cristãos das palavras de Jesus no Sermão da Montanha distinguiram
três etapas da tentação sexual: sugestão, prazer e consentimento. 24 Consideremos
a explicação dada por Francisco de Sales:
1. Tentação: “o pecado é proposto à alma” (não pecaminoso)
2. Deleite: “[a alma] fica satisfeita ou descontente”
3. Consentimento: “ou [a alma] dá consentimento ou recusa.”25
Como Francisco continua a explicar, a mera tentação de “qualquer pecado”,
por mais forte que seja, não é em si pecaminosa, “desde que não tenhamos prazer
128

nele e não lhe dêmos consentimento”. 26 Como vimos anteriormente, o próprio


Jesus foi tentado no deserto com “todas as tentações” (Lucas 4:13), mas
permaneceu sem pecado (ver Hebreus 4:15). 27 A razão: porque Jesus não gostou
nem consentiu nas tentações que lhe eram propostas. O mesmo se aplica a nós na
batalha contra a luxúria. “Não importa quanto tempo dure uma tentação, ela não
pode nos prejudicar enquanto nos desagrada” e nos recusamos a ceder. 28
Felizes os Puros de Coração
Além disso – e isto é crucial – é necessário pedir a Deus que nos conceda o
dom da castidade. Como deixam claro as advertências de Jesus contra cometer
“adultério” no “coração”, a virtude da castidade não consiste apenas em abster-se
de certos atos corporais (Mateus 5:28). A verdadeira castidade se encontra no
coração humano. Mais uma vez, como diz Jesus no Sermão da Montanha:
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. (Mateus 5:8)
Embora a palavra “puro” (do grego katharos) possa ter uma variedade de
significados, o exemplo mais famoso de “pureza de coração” nas Escrituras
Judaicas vem do Salmo 51, a oração atribuída ao Rei Davi depois de ele ter
cometido adultério com Betsabeia:
Lava-me completamente da minha iniquidade,
e purifica-me do meu pecado!…
Cria em mim um coração puro, ó Deus,
e coloque um espírito novo e correto dentro de mim.
(Salmo 51:2, 10)29
Observe aqui que Davi percebe que um “coração puro” (grego kardian
katharan) é algo que somente Deus pode “criar”; Davi não pode alcançá-lo apenas
com seu próprio poder. Somente Deus pode dar a liberdade e a felicidade que
acompanham o dom da castidade.
Jejum, Meditação e Trabalho Manual
Por último, mas certamente não menos importante, como enfatizarão os
escritores espirituais cristãos posteriores, existem certas maneiras práticas de
combater o vício da luxúria que pode ser praticado por todo cristão. Nas palavras
de João Cassiano:
O jejum por si só não é suficiente para obter e possuir a pureza da castidade
perfeita; … deve haver meditação constante nas Escrituras… bem como
129

trabalho manual árduo, que restringe e recorda as divagações irresponsáveis


do coração; … antes de tudo, deve ter sido lançada uma base de verdadeira
humildade, sem a qual nunca poderá haver uma vitória sobre qualquer
vício.30
Se através do jejum pudermos aprender a controlar os nossos desejos por
comida, também aprenderemos a controlar os nossos desejos por outros prazeres
físicos.31 Se disciplinarmos os nossos corpos através de trabalho físico regular,
cresceremos em autocontrole e autodomínio em outras áreas. Se lutamos com
pensamentos e imagens lascivas em nossas mentes, então precisamos preencher
nossa imaginação com a beleza das Escrituras, memorizando-as e meditando nelas
diariamente.32 Como diz o livro dos Salmos:
Como pode um jovem manter puro o seu caminho?
Guardando-o de acordo com a sua palavra….
Guardei a tua palavra no meu coração,
para que eu não peque contra Vós.
(Salmo 119:9, 11)
No final, nenhum de nós pode vencer a batalha contra a luxúria pelo nosso
próprio poder. Precisamos de humildade para pedir a Deus – o criador dos
corações – que crie em nós um “coração limpo” (Salmos 51:10).
Como acabamos de ver, a luxúria não é o único pecado capital enraizado
num desejo desordenado de prazer físico. Há outro vício do qual muitas vezes não
se fala, ou mesmo se considera pecaminoso. Estou falando aqui de gula. Para ela
é que voltamos agora a nossa atenção.
130

16 GULA VS. TEMPERANÇA


Vigiem-se, para que seus corações não fiquem sobrecarregados com excesso de
comer e embriaguez.
—Jesus de Nazaré (Lucas 21:34)1
O SEXTO PECADO CAPITAL – GULA – pode ser definido como um
desejo desordenado ou imoderado pelo prazer de comer ou beber. Para entender
corretamente a gula, é importante ressaltar que a comida e a bebida, por si só,
fazem bem. Por exemplo, de acordo com o livro de Gênesis, Deus cria todas as
plantas e frutos da terra e os dá ao homem e à mulher “como alimento” (Gênesis
1:29). Ele também lhes permite explicitamente “comer livremente de toda árvore
do jardim” – com a única exceção do fruto proibido (Gênesis 2:16-17).
Contudo, após a queda de Adão e Eva, o desejo originalmente bom por
comida torna-se desordenado, inclinado ao pecado e difícil de controlar. Os seres
humanos agora experimentam desejos de abusar de comida e bebida. Como outros
desejos pecaminosos, esses desejos tendem a ser irracionais e excessivos. A gula
anseia por mais comida ou bebida do que o necessário para sustentar a vida,
apenas para aumentar o prazer. Na sua forma mais grave, a gula leva ao excesso
de comida e à embriaguez – até ao ponto de prejudicar a saúde ou perder o
autocontrole. A gula, como outros pecados, é uma ferida auto infligida, que abusa
fisicamente do corpo e fere espiritualmente a alma. Via de regra, a gula enfraquece
o coração humano, tornando-o incapaz de orar e impotente diante das tentações.
Quando nos voltamos para os escritos cristãos sobre os pecados capitais,
descobrimos que a gula era amplamente considerada como uma das primeiras que
precisavam ser combatidas:2
A menos que primeiro dominemos o inimigo que habita dentro de nós,
nomeadamente o nosso apetite guloso, nem sequer nos levantaremos para nos
envolvermos no combate espiritual.
—Gregório, o Grande (século VI)3

Controle seus apetites antes que eles controlem você.


—João Clímaco (século VII)4
131

Gula denota não qualquer desejo de comer e beber, mas um desejo desordenado.
—Tomás de Aquino (século XIII)5

Neste capítulo, veremos brevemente o que a Bíblia ensina sobre a gula.


Como veremos, embora hoje em dia o abuso de comida e bebida seja
frequentemente visto como uma questão de saúde meramente física, segundo
Jesus, a gula e a embriaguez são ambas questões de vida e morte espirituais.

A GULA NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Para compreender o ensino bíblico sobre o vício da gula, é importante
começar por salientar que nas Escrituras Judaicas, a gula e a embriaguez são quase
sempre tratadas em conjunto, como duas faces da mesma moeda.
Um Glutão E Um Bêbado
Quando nos voltamos para a Lei de Moisés, descobrimos que ela trata tanto
a gula como a embriaguez com a maior seriedade. Por exemplo, no antigo Israel,
quando estes vícios ficavam tão fora de controle que representavam uma ameaça
para a família, podiam na verdade atingir o nível de um crime capital:
Se um homem tem um filho teimoso e rebelde, que não obedecerá a voz de
seu pai ou a voz de sua mãe, e, embora o castigam, não lhes derem ouvidos,
então seu pai e sua mãe o agarrarão e o levarão aos anciãos de sua cidade…,
e dirão aos anciãos da sua cidade: “Este nosso filho é teimoso e rebelde, não
obedecerá à nossa voz; ele é um glutão e um bêbado.” Então todos os homens
da cidade o apedrejarão até morrer; assim expurgarás o mal do meio de ti; e
todo o Israel ouvirá e temerá. (Deuteronômio 21:18–21)
No contexto, a dupla descrição do filho rebelde como “glutão e bêbado”
não se refere a gostar de uma boa refeição ou de uma taça de vinho de vez em
quando. A palavra “glutão” (hebraico zōlel) refere-se a alguém que desperdiça seu
dinheiro em uma vida de festas. (Pense aqui na parábola do filho pródigo.) Da
mesma forma, a palavra “bêbado” (hebraico sōbe’) refere-se a alguém que bebe
excessivamente a ponto de perder o controle. 6 De acordo com a Lei de Moisés,
ambos são “maus” (Deuteronômio 21:21), especialmente quando levam alguém a
violar o mandamento “Honra a teu pai e a tua mãe” (Êxodo 20:12) – como tantas
vezes acontece. Frequentemente, são os familiares mais próximos os primeiros a
serem feridos pelos vícios da gula e da embriaguez.
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Gula e Embriaguez em Provérbios


É precisamente por isso que o livro de Provérbios adverte repetidamente os
iniciantes no caminho da justiça contra a associação com pessoas que abusam da
comida e da bebida:
Ouça, meu filho, e seja sábio,
e direcione seu coração no caminho.
Não esteja entre os bêbados,
ou entre os glutões comedores de carne;
porque o bêbado e o glutão cairão na pobreza,
e o sono vestirá o homem de trapos. (Provérbios 23:19–21)7
Observe como a gula e a embriaguez mais uma vez andam juntas. Ambas
resultam de um desejo excessivo de prazer físico. Significativamente, a palavra
“comilão” significa literalmente “aquele que desperdiça carne” (hebraico zalal
basar) (Provérbios 23:20). Em outras palavras, a gula envolve o desperdício de
comida. Como diz Provérbios em outro lugar: embora no início o vinho “desça
suavemente”, quando é abusado, “morde como uma serpente e pica como uma
víbora” (Provérbios 23:31–32). Como todo pecado, o vício da gula começa com
prazer, mas termina com dor. Por esta razão, de acordo com Provérbios, um dos
primeiros passos na jornada da “via” ou “caminho” espiritual envolve afastar-se
de ambos os vícios. 8

JESUS E A GULA
Quando passamos das Escrituras Judaicas para os ensinamentos de Jesus,
três passagens envolvendo gula e embriaguez se destacam.
Jesus É Acusado De Ser “Glutão E Bêbado”
Por um lado, durante o seu ministério público, o próprio Jesus é falsamente
acusado de ambos os vícios:
[Jesus disse:] “João veio sem comer nem beber, e dizem: ‘Ele tem demônio’;
veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e dizem: ‘Eis aqui um glutão e
um beberrão, amigo de publicanos e pecadores!’” (Mateus 11:18–19; cf.
Lucas 7:34)
Num contexto judaico do primeiro século, a dupla acusação de ser “um
glutão e um bêbado” evoca diretamente a descrição bíblica do “filho rebelde”
133

sobre a qual acabamos de ler (Deuteronômio 21:18-21). Em outras palavras, como


Jesus passava tempo comendo e bebendo com pecadores para compartilhar com
eles o evangelho do arrependimento, algumas pessoas o acusaram de violar a Lei
de Moisés.
Jesus Adverte Seus Discípulos Contra Ficarem Bêbados
Claro, as acusações são falsas. Na verdade, não há dúvida de que Jesus
bebia vinho. Pense aqui na milagrosa transformação da água em vinho por Jesus
durante as bodas de Caná (João 2:1–11) ou no uso do vinho na Última Ceia
(Mateus 26:26–28).9 Por outro lado, Jesus em outro lugar adverte solenemente
seus discípulos contra o abuso do álcool:
O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão. Mas tomem
cuidado para que seus corações não fiquem sobrecarregados com a comida,
a embriaguez e os cuidados desta vida, e esse dia não venha sobre vocês
repentinamente como uma armadilha; pois virá sobre todos os que habitam
na face de toda a terra. (Lucas 21:33–35)10
Observe aqui que Jesus não proíbe o álcool; ele proíbe a “embriaguez”
(grego methē).11 Observe também a ligação que Jesus estabelece aqui entre a
embriaguez, o peso do coração e os cuidados desta vida. Ele sabe muito bem que
muitas vezes as pessoas ficam bêbadas não apenas por prazer, mas também para
se automedicarem. Tanto a embriaguez como a alimentação excessiva parecem
oferecer fugas ao sofrimento interior e aos fardos da vida. Tal como acontece com
os outros pecados capitais, portanto, no seu nível mais profundo, a gula não é
apenas um problema físico. Desejos desordenados fluem da dor do coração
humano partido.
A Parábola de Lázaro e do Homem Rico
Finalmente, não há exemplo mais claro de gula no ensino de Jesus do que
a famosa parábola de Lázaro e do Rico. 12 Aqui nos concentraremos na primeira
metade da parábola, tendo em mente o ensino bíblico sobre a gula:
Havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e que todos
os dias festejava suntuosamente. E à sua porta jazia um pobre chamado
Lázaro, cheio de feridas, que desejava ser alimentado com o que caía da mesa
do rico; além disso, os cães vinham e lambiam suas feridas.
O pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão. O homem rico
também morreu e foi enterrado; e no Hades, estando em tormentos, ergueu
os olhos e viu ao longe Abraão e Lázaro no seu seio. E ele gritou: “Pai
134

Abraão, tem misericórdia de mim e manda Lázaro molhar a ponta do dedo


na água e refrescar-me a língua; pois estou angustiado nesta chama.” Mas
Abraão disse: “Filho, lembra-te de que durante a tua vida recebeste as tuas
coisas boas, e Lázaro, da mesma maneira, as coisas más; mas agora ele está
consolado aqui, e você está angustiado. E além de tudo isso, um grande
abismo foi estabelecido entre nós e você, para que aqueles que passariam
daqui para você não possam, e ninguém possa passar de lá para nós. (Lucas
16:19–26)13
O cerne desta parábola gira em torno do que acontece com Lázaro e o
homem rico depois que eles morrem. Por um lado, Lázaro é levado pelos anjos
para descansar na paz do “seio de Abraão”. Esta expressão reflete a imagem
bíblica da morte como sendo “reunida” aos antepassados. 14 Em contraste, o
homem rico vai para o “Hades” – um lugar de fogo e tormento. Na época de Jesus,
a palavra grega Hadēs era frequentemente usada para descrever o reino
sobrenatural de punição para os pecadores (por exemplo, Eclesiástico 21:9–10).
Como o próprio Jesus diz em outro lugar, é o oposto do céu: “E você, Cafarnaum,
será exaltada ao céu? Você será levado ao Hades” (Lucas 10:15).
Com isto em mente, a razão pela qual o homem rico foi condenado ao
Hades não é porque ele quebrou explicitamente algum dos Dez Mandamentos.
Jesus nunca o descreve como idólatra, ladrão ou assassino. Em vez disso, tudo o
que sabemos é que ele era um “homem rico”, usava roupas caras e “festejava
suntuosamente” todos os dias (Lucas 16:19). Não, o rico vai para o Hades porque
a sua vida de gula o levou a negligenciar o sofrimento e a fome do próximo. Na
verdade, quando Jesus diz que Lázaro “desejava ser alimentado”, ele usa a mesma
expressão grega usada para o filho pródigo, que “desejava ser alimentado” com a
comida dos porcos (Lucas 15:16). 15 Em outras palavras, Lázaro está morrendo de
fome na porta do homem rico, enquanto este festeja todos os dias. Qual é o
resultado da gula do rico?
A separação eterna de Deus e do próximo, bem como a dor das chamas que
queimam a sua língua – a mesma parte do seu corpo que alimentou a sua gula e a
sua incapacidade de amar o próximo que estava necessitado.

O REMÉDIO PARA A GULA: TEMPERANÇA


Então, o que devemos fazer? Como lutamos contra as tentações de abusar
da comida ou da bebida? Qual é o remédio para a gula?
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Embriaguez, Folia E Paganismo Antigo


A primeira coisa que todo seguidor de Jesus deve fazer é erradicar
completamente quaisquer tendências ou hábitos de abuso de comida ou bebida.
Considere as palavras do apóstolo Pedro:
Baste-vos que no tempo passado tenhais vivido segundo os caprichos dos
pagãos, em luxúrias, concupiscências, embriaguez, orgias, bebedeiras e
criminosas idolatrias. Estranham eles agora que já não vos lanceis com eles
nos mesmos desregramentos de libertinagem, e por isso vos cobrem de
calúnias. Eles darão conta àquele que está pronto para julgar os vivos e os
mortos. (1 Pedro 4:3–5)16
É importante lembrar aqui que muitos dos primeiros cristãos foram
convertidos do paganismo gentio. Em contraste com as Escrituras Judaicas, que
descrevem a gula e a embriaguez como gravemente pecaminosas (Deuteronômio
21:18-21), o mundo gentio em geral não tinha tais inibições. Os festivais pagãos
muitas vezes envolviam excessos alimentares e embriaguez - bem como muitos
outros pecados que ocorrem quando as pessoas ficam bêbadas. 17 Na verdade, os
gentios tinham até divindades específicas dedicadas aos mesmos vícios que os
judeus consideravam pecaminosos - como Dionísio, o deus do vinho e Komos, o
deus da folia.18
De acordo com Pedro, embora os cristãos possam ter se envolvido em tais
ações no “passado”, elas não têm mais lugar nas suas novas vidas (1 Pedro 4:3).
Os seguidores de Cristo devem renunciar a tais atividades – mesmo que isso
signifique serem julgados pelos próprios amigos com quem costumavam festejar.
A razão para isto é simples: de acordo com o Novo Testamento, embriagar-se
deliberadamente é um pecado mortal. Como ensina o apóstolo Paulo, aqueles que
se envolvem em embriaguez e folia “não herdarão o reino de Deus” (Gálatas 5:19,
21). Como a embriaguez envolve uma perda de autocontrole, muitas vezes leva a
outras ações física e moralmente depravadas, às quais Pedro se refere como
“devassidão” (1 Pedro 4:4). Tal como os outros pecados capitais, não tem lugar
na vida de um cristão.
Felizes São Aqueles Que Têm Fome E Sede
Outra coisa a fazer na batalha contra a gula é pedir a Deus a virtude da
temperança – isto é, a força para controlar os nossos apetites pelo prazer da
comida e da bebida. 19
136

Como discutimos anteriormente, a principal forma de desenvolver a virtude


da temperança é começar a praticar o jejum (ver capítulo 7). Além de abster-se
voluntariamente de comida ou bebida, porém, também é importante cultivar um
“apetite” pela nutrição espiritual. Mais uma vez, Jesus dá um testemunho
poderoso sobre este ponto no Sermão da Montanha:
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão
satisfeitos. (Mateus 5:6)
Lembre-se mais uma vez que a palavra “bem-aventurado” significa
literalmente “feliz” (grego makarios). Uma das grandes ironias da gula e da
embriaguez é que, no final, nenhuma delas satisfaz. Nenhum dos vícios jamais fez
ninguém feliz.
O prazer passageiro que proporcionam desaparece rapidamente, muitas
vezes sendo substituído por um desejo ainda mais forte de mais – não importa a
que custo. Quando esse desejo se transforma em vício, acabamos escravos de
nossos próprios impulsos, resultando em todos os tipos de danos físicos e
espirituais auto infligidos.
Na quarta bem-aventurança, Jesus dá-nos uma chave espiritual para quebrar
o ciclo do vício, afastando os nossos corações dos prazeres mundanos e
ensinando-os a ter fome e sede de Deus. Nas palavras do antigo escritor cristão
João Cassiano:
Nunca seremos capazes de desprezar os prazeres de comer aqui e agora se a
nossa mente não estiver fixada na contemplação divina e se não se deleitar,
em vez disso, no amor à virtude e na beleza das coisas celestiais. 20
Ou seja, para vencer a batalha contra a gula não basta esvaziar o estômago.
Também temos que encher nossos corações de verdade, bondade e beleza.
Precisamos ler a Bíblia todos os dias e desenvolver um “gosto” pelos escritos dos
grandes santos e pelos clássicos espirituais.
Quando fizermos isso - quando direcionarmos nossos desejos para longe
das coisas terrenas e para Deus - começaremos a descobrir a verdade que Jesus
pronunciou no meio de sua própria batalha contra a tentação: “Não só de pão
viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mateus 4:4).
Dito isto, podemos ser tentados a pensar que esgotamos o nosso tratamento
dos pecados capitais enraizados na “concupiscência da carne”. Mas ainda não
discutimos o sétimo pecado capital – um pecado que muitas pessoas podem nem
considerar um pecado – a preguiça.
137

17 PREGUIÇA VS. DILIGÊNCIA


“Por que dormis? Levantai-vos, orai, para não cairdes em tentação”.
—Jesus de Nazaré (Lucas 22:46)
O SÉTIMO PECADO CAPITAL – PREGUIÇA – pode ser definido como
uma inclinação desordenada à apatia ou preguiça no cumprimento dos deveres.
Quando envolve ociosidade física, negligência dos deveres mundanos e recusa de
trabalhar, é muitas vezes referida simplesmente como “preguiça”. Quando
envolve ociosidade espiritual, negligência na oração e negligência dos deveres
religiosos, é comumente referida como “acídia” – da palavra grega que significa
“cansaço” ou “apatia” (grego Akedia).1
Uma razão pela qual esta distinção entre preguiça física e preguiça
espiritual é importante é porque é inteiramente possível que uma pessoa seja
muito diligente no trabalho terreno e, ainda assim, muito negligente nos exercícios
espirituais – e vice-versa. Em essência, a preguiça implica evitar o esforço exigido
pelo trabalho físico ou espiritual. Habitualmente corta atalhos na oração, foge da
dificuldade do trabalho e escolhe sempre o caminho mais fácil. A todo custo, a
preguiça evita fazer qualquer coisa que possa interferir nos prazeres do conforto,
da tranquilidade e do entretenimento. A preguiça decorre do orgulho e do
sentimento de direito de desfrutar dos frutos do trabalho de outras pessoas. Como
veremos, segundo Jesus, quando a preguiça leva alguém a negligenciar graves
obrigações espirituais para com Deus ou para com o próximo, isso pode ser um
pecado mortal.
Na história da espiritualidade cristã, o pecado da preguiça tem sido tema de
numerosos tratados. 2 As citações a seguir são apenas uma amostra:
Uma vez que [akēdia] tenha tomado posse de uma mente miserável… isso o
torna preguiçoso e imóvel diante de todo o trabalho a ser feito.
—João Cassiano (século V)3

O desânimo ou akēdia…é uma paralisia da alma…uma negligência dos


exercícios religiosos.
—João Clímaco (século VII)4
138

A preguiça… é uma tristeza opressiva, que… pesa tanto na mente do homem


que ele não quer fazer nada.
—Tomás de Aquino (século XIII)5

Com relação à preguiça espiritual, os iniciantes… acham cansativo quando são


ordenados a fazer algo que não lhes agrada….
Eles fogem impacientemente de tudo que é difícil.
—João da Cruz (século XVI)6

Em outras palavras, a preguiça – seja física ou espiritual – não é apenas


uma infeliz falha de caráter. É uma “doença” da vontade que lentamente torna a
pessoa incapaz de perseverar no “difícil” e “estreito” caminho espiritual de Jesus
(Mateus 7:13–14).7
Neste capítulo, daremos uma breve olhada no que a Bíblia ensina sobre a
preguiça e a acídia. Como veremos, compreender e evitar ambas as formas de
preguiça é um passo absolutamente crucial para fazer progresso espiritual.

A PREGUIÇA NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Talvez o exemplo mais famoso de preguiça nas Escrituras Judaicas seja a
ociosidade do Rei Davi, que – como vimos no capítulo 15 – foi o primeiro passo
no seu caminho para o adultério (ver 2 Samuel 11:1-27). Contudo, nenhum livro
das Escrituras Judaicas dedica mais atenção ao ensino contra a preguiça do que o
livro de Provérbios.
O Caminho Do Preguiçoso
A palavra “preguiçoso” ou “ocioso” (do hebraico ‘atzel) ocorre quatorze
vezes no livro de Provérbios — e em nenhum outro lugar nas Escrituras
Hebraicas.8 Claramente, a exortação para evitar a preguiça é especialmente
importante para os iniciantes espirituais. Repetidamente, Provérbios adverte
contra a tentação da ociosidade, especialmente na forma de dormir demais:
Até quando você ficará aí deitado, ó preguiçoso?
Quando você acordará do seu sono?
(Provérbios 6:9)
139

O caminho do preguiçoso está cheio de espinhos,


mas o caminho dos justos é uma estrada plana.
(Provérbios 15:19)

Assim como uma porta gira nas dobradiças,


o mesmo acontece com o preguiçoso em sua cama.
O preguiçoso enfia a mão no prato;
fica exausto trazê-lo de volta à boca.
O preguiçoso é mais sábio aos seus próprios olhos
do que sete homens que possam responder discretamente.
(Provérbios 26:14–16)
Vários aspectos desses ditos merecem destaque. Primeiro, observe a estreita
ligação entre a preguiça e o sono. Como uma porta que balança lentamente nas
dobradiças, o preguiçoso vira-se na cama, recusando-se a levantar-se porque não
está disposto a enfrentar o trabalho do dia. 9 Ele até come de modo preguiçoso -
mal conseguindo levar a mão à boca! Em segundo lugar, Provérbios pinta um
forte contraste entre dois caminhos espirituais. O caminho da pessoa preguiçosa
está coberto de sarças e, portanto, é impossível progredir, enquanto o caminho do
virtuoso é reto e nivelado. Finalmente, Provérbios estabelece uma ligação direta
entre o vício da preguiça e o orgulho. Apesar da sua inatividade, “aos seus
próprios olhos”, o preguiçoso é mais sábio do que qualquer outra pessoa. Com
direito ao lazer, ele se considera tão inteligente que não precisa despender o
esforço envolvido no aprendizado. 10

JESUS E A PREGUIÇA
Quando passamos das Escrituras Judaicas para a vida e os ensinamentos de
Jesus, duas passagens lançam luz sobre o vício da preguiça: a Parábola dos
Talentos (Mateus 25:14-30) e a sonolência dos apóstolos no Getsêmani (Marcos
14:32). – 42). Vamos dedicar alguns momentos para examinar cada um deles de
perto.
140

A Parábola dos Talentos


Embora a Parábola dos Talentos seja um pouco longa, vale a pena lê-la com
atenção, pois é o principal lugar onde Jesus aborda explicitamente a seriedade da
preguiça:
[O reino dos céus] será como quando um homem, em viagem, chama seus
servos e lhes confia seus bens; a um deu cinco talentos, a outro dois, a outro
um, a cada um segundo a sua capacidade. Então ele foi embora. Aquele que
recebera os cinco talentos foi imediatamente e negociou com eles; e ele
ganhou mais cinco talentos. Assim também quem tinha dois talentos ganhou
mais dois talentos. Mas aquele que recebera um talento foi, cavou na terra e
escondeu o dinheiro do seu senhor. Depois de muito tempo, o senhor
daqueles servos veio e acertou contas com eles.
E aquele que recebera os cinco talentos apresentou-se, trazendo mais cinco
talentos, dizendo: “Senhor, entregaste-me cinco talentos; aqui ganhei mais cinco
talentos”. Seu senhor lhe disse: “Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco,
sobre muito te colocarei; entre na alegria do seu mestre. E também aquele que
tinha os dois talentos se apresentou, dizendo: “Senhor, entregaste-me dois
talentos; aqui ganhei mais dois talentos.” Seu senhor lhe disse: “Muito bem, servo
bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre muito te colocarei; entre na alegria do seu
mestre. Também aquele que recebera um talento apresentou-se e disse: “Mestre,
eu sabia que és um homem duro, que colhe onde não semeaste e recolhe onde não
joeiraste; então tive medo e escondi o seu talento no chão. Aqui você tem o que é
seu.
Mas seu senhor lhe respondeu: “Servo mau e preguiçoso!
Você sabia que eu colho onde não semeei e recolho onde não joeirei? Então você
deveria ter investido meu dinheiro com os banqueiros, e na minha vinda eu
deveria ter recebido o que era meu com juros. Então tire dele o talento e dê-o
àquele que tem os dez talentos. Porque a todo aquele que tem, será dado mais, e
terá em abundância; mas àquele que não tem, até o que tem lhe será tirado. E lance
o servo inútil nas trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes.”
(Mateus 25:14–30)11
Para sentir a força desta parábola, são necessários três pontos.
Primeiro, na época de Jesus, um “talento” (grego talanton) era uma moeda
de ouro ou prata que valia cerca de 6.000 dias de salário – ou quinze anos de
trabalho!12 Em outras palavras, o mestre da parábola confia aos seus servos um
141

presente incrivelmente valioso. A um ele dá cinco talentos (salário de 30.000


dias), a outro dois talentos (salário de 12.000 dias) e ao último, um talento (salário
de 6.000 dias). Embora os servos não recebam as mesmas quantias, todos recebem
uma quantia incrível de dinheiro.
Segundo, o senhor dá livremente os talentos aos servos. Eles não fazem
nada para ganhá-los. Contudo, o presente não é incondicional. Os servos são
obrigados a usar os dons que lhes foram dados gratuitamente. 13 Com certeza, o
primeiro servo dobra sua doação para dez talentos (= 60.000 dias de salário).
Da mesma forma, o segundo dobra sua doação para quatro talentos (=
24.000 dias de salário).
Por outro lado, o terceiro servo recusa-se a fazer o esforço para multiplicar
o dom que lhe foi dado. Em vez disso, ele simplesmente o enterra e o oferece de
volta no dia do acerto de contas. Isto leva a um forte contraste entre a resposta do
mestre a cada servo:
Primeiro Servo Segundo Servo Terceiro Servo
5 → 10 talentos 2 → 4 talentos 1 → 1 talento
Muito bem/bom Muito bem/bom Malvado
Fiel Fiel Preguiçoso
Entra na alegria do Entra na alegria do Lançado nas trevas
mestre mestre exteriores

Como mostra este gráfico, não basta receber o presente. O senhor espera
que o servo multiplique o que recebeu para que o senhor possa obter o retorno do
seu investimento quando for “acertar contas”.
Com tudo isto em mente, lembre-se que a Parábola dos Talentos, como a
maioria das parábolas de Jesus, é realmente sobre o reino dos céus. O mestre
representa Deus, enquanto os servos nos representam. Os talentos são as dádivas
de graças incrivelmente caras que recebemos, e o dia do acerto de contas é o Juízo
Final.
Embora não tenhamos que fazer nada para ganhar os dons iniciais da graça,
uma vez que eles são nossos, Deus exige que trabalhemos para multiplicá-los. Se
nos recusarmos a fazê-lo porque somos “preguiçosos” ou “ociosos”, seremos
lançados fora do reino e nas “trevas exteriores” (Mateus 25:30). 14 De acordo com
Jesus, se formos preguiçosos – por exemplo, se não multiplicarmos os dons
142

espirituais que recebemos compartilhando o evangelho com outras pessoas, então


nós também teremos que prestar contas no dia do julgamento por que não fizemos
nada com o que nos foi dado.
Os Apóstolos No Getsêmani
Outra passagem chave que ilustra o perigo da preguiça envolve a falha dos
apóstolos em vigiar durante a agonia de Jesus no Getsêmani:
Eles foram para um lugar chamado Getsêmani; e disse aos seus discípulos:
“Sentem-se aqui enquanto eu oro”. E levou consigo Pedro, Tiago e João, e
começou a entristecer-se e a angustiar-se muito. E ele lhes disse: “Minha
alma está profundamente triste até a morte; ficai aqui e vigiai.” E indo um
pouco mais longe, ele caiu no chão e orou…. E ele veio e os encontrou
dormindo, e disse a Pedro: “Simão, você está dormindo? Você não poderia
vigiar uma hora? Vigiai e orai para que não entreis em tentação; o espírito,
na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.”
E novamente ele foi e orou, dizendo as mesmas palavras. E novamente ele
veio e os encontrou dormindo, pois seus olhos estavam muito pesados; e eles
não sabiam o que responder-lhe. E ele veio pela terceira vez e disse-lhes:
“Vocês ainda estão dormindo e descansando? É o suficiente; chegou a hora;
o Filho do homem é entregue nas mãos dos pecadores”. (Marcos 14:32–35,
37–41)
Para entender como esta passagem se relaciona com o pecado da preguiça,
é crucial reconhecer que quando Jesus diz aos discípulos para “vigiarem” ou
“manterem-se despertos” (grego grēgoreō) (Marcos 14:34), ele está se referindo
ao Costume judaico de ficar acordado para orar na noite de Páscoa: “Esta… é uma
noite de vigília mantida ao Senhor por todos os filhos de Israel ao longo das suas
gerações” (Êxodo 12:42). Em outras palavras, os discípulos falham em empregar
o esforço físico e espiritual necessário para manter vigília com Jesus. 15 É por isso
que Jesus os repreende quando os encontra dormindo e diz: “Mantenham-se
despertos e orem para que não caiam em tentação; o espírito, na verdade, está
pronto, mas a carne é fraca” (Marcos 14,38). 16 Com estas palavras, ele convoca
os discípulos a lutar contra a fraqueza e o cansaço da sua carne.
Infelizmente, além de adormecerem novamente, o que é ainda pior, depois
que Jesus foi preso, eles “o abandonaram e fugiram” (Marcos 14:50). O que
começa como mera preguiça e frouxidão na oração termina na traição e abandono
de Jesus. A preguiça, como os outros pecados capitais, é uma ladeira escorregadia.
143

O REMÉDIO PARA A PREGUIÇA: DILIGÊNCIA


Então, o que devemos fazer? Qual é o remédio para o pecado capital da
preguiça?
Não Leve Uma Vida De Ociosidade
Em primeiro lugar, quaisquer hábitos de ociosidade física (preguiça) e
frouxidão espiritual (acídia) não devem encontrar lugar na vida de um seguidor
de Jesus.17 No que diz respeito à preguiça, é o apóstolo Paulo quem escreve o
ensino cristão clássico:18
Mesmo quando estávamos com vocês, demos-lhes esta ordem: Se alguém
não quiser trabalhar, não coma. Pois ouvimos dizer que alguns de vocês
vivem na ociosidade, como meros intrometidos, sem fazer nenhum trabalho.
Agora, ordenamos e exortamos essas pessoas no Senhor Jesus Cristo a
fazerem seu trabalho em silêncio e a ganharem seu próprio sustento. (2
Tessalonicenses 3:10–12)19
É importante sublinhar que Paulo não está a falar aqui de recusar dar
esmolas a mendigos desempregados.20 Ele está a falar de pessoas dentro da igreja
que são capazes de trabalhar, mas se recusam a fazê-lo.21 Estes são parasitas
cristãos que se alimentam do trabalho da congregação sem contribuir com nada.
Dito isto, é importante notar que estes preguiçosos não são totalmente inativos.
Desperdiçam o tempo que deveriam usar para cumprir as suas obrigações para
com Deus e o próximo, seguindo a sua curiosidade ociosa e investigando assuntos
que não lhes dizem respeito. Paulo adverte solenemente esses “desocupados” ou
“intrometidos” para trabalharem silenciosamente e ganharem seu próprio
sustento. Como cristãos, o seu dever é trabalhar e não se cansar de fazer o bem.
Felizes São Os Diligentes
Outra coisa que precisa ser feita é pedir a Deus a virtude da diligência, tanto
no trabalho diário como na oração diária.
Ao contrário das outras virtudes, Jesus não parece falar de diligência nas
bem-aventuranças do Sermão da Montanha. Contudo, nas parábolas gêmeas do
Retorno do Mestre e do Administrador Fiel (Lucas 12:35-48), ele dá duas bem-
aventuranças adicionais para os discípulos que são vigilantes na oração e
diligentes no dever:
Bem-aventurados os servos a quem o senhor achar vigiando, quando vier!
(Lucas 12:37)
144

Feliz daquele servo que o senhor achar procedendo assim, quando vier!
(Lucas 12:43)
Mais uma vez, a virtude da diligência não consiste apenas em evitar o
julgamento divino. É mais um segredo dado por Jesus a quem deseja ser “bem-
aventurado” ou “feliz” (do grego makarios).
Trabalho Manual e Lectio Divina
Talvez seja por isso que o pai do monaquismo cristão ocidental do século
VI, Bento de Núrsia, especifica o trabalho manual e a meditação nas Escrituras
como o duplo remédio para a preguiça:
A ociosidade é inimiga da alma. Portanto, os irmãos devem ocupar-se em
determinados momentos no trabalho manual, e novamente em horas fixas na
leitura sagrada. 22
Observe aqui que Bento insiste em determinados horários fixos para
trabalho e oração. Isto é absolutamente crucial. Não se engane: nunca faremos
progresso na vida espiritual se não reservarmos consistentemente tempo para
ambos.
“Não podemos orar ‘em todos os momentos’ se não orarmos em momentos
específicos, desejando isso conscientemente.” 23 Observe também que quando
Bento fala de oração vigilante, ele se concentra em particular na “leitura sagrada”
(latim lectio divina) – isto é, meditação nas Escrituras. 24 Examinaremos mais de
perto a lectio divina no capítulo 20. Por enquanto, a questão é que a meditação
nas Escrituras requer tempo e esforço.
Em suma, a batalha contra a preguiça significa escolher todos os dias
acordar do sono e trabalhar em silêncio, com fidelidade e sem reclamar. Também
significa fidelidade absoluta em passar algum tempo todos os dias tanto na oração
vocal quanto na meditação. Se, pela graça de Deus, continuarmos a trabalhar e a
orar diligentemente – mesmo quando estamos cansados – então nós também um
dia ouviremos as palavras “Muito bem, servo bom e fiel” (Mateus 25:21).
145

18 TRISTEZA VS. PACIÊNCIA


Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.
—Jesus de Nazaré (Mateus 5:4)
NO CRISTIANISMO OCIDENTAL, a lista medieval dos sete pecados
capitais muitas vezes termina com a preguiça. 1 Contudo, nem sempre foi assim.
Como mencionei anteriormente, nos tempos antigos, alguns escritores cristãos
falaram de oito pecados capitais, incluindo um que ainda não discutimos – a dor
(também conhecida como “tristeza”). 2 Em homenagem a esta antiga tradição
cristã, encerraremos a nossa discussão sobre os vícios e virtudes olhando para um
oitavo pecado capital – “tristeza” (grego lypē; latim tristitia). Embora muitas
pessoas nem sequer pensem na tristeza como um pecado – muito menos como um
pecado capital – como veremos, de acordo com a Bíblia, a tristeza pecaminosa
pode, de fato, ser espiritualmente mortal.
Para compreender este vício específico, é crucial começar por enfatizar que
nem toda tristeza é pecaminosa. Como outras emoções, a tristeza em si é apenas
um sentimento. No nível da mera emoção, não é bom nem mau. A Bíblia, no
entanto, faz uma distinção clara entre dois tipos de tristeza: (1) “tristeza segundo
Deus”, que é boa, e (2) “tristeza mundana”, que é má (2 Coríntios 7:10). 3
Por um lado, a tristeza segundo Deus é uma resposta razoável ao mal, ao
sofrimento ou à perda – especialmente ao mal do pecado. Deseja mudar as coisas
para se conformar à vontade de Deus. Está enraizada no amor a Deus e ao
próximo. Não exagera, mas enfrenta o mal ou a perda de forma direta e realista.
A tristeza segundo Deus leva ao arrependimento, à confiança em Deus e à vida
eterna. Por outro lado, a tristeza mundana é uma resposta irracional ao mal, ao
sofrimento ou à perda. Está enraizada no orgulho e num amor desordenado pelas
coisas deste mundo. Reage exageradamente à perda de bens terrenos e à frustração
dos desejos mundanos. Não leva ao arrependimento, mas ao arrependimento
devido as coisas não terem corrido de acordo com a nossa vontade. 4 Quando a
tristeza mundana se transforma em desespero — a perda completa de confiança
na providência de Deus — pode ser um pecado mortal. Como diz o apóstolo
Paulo, a “tristeza mundana” leva à “morte” (2 Coríntios 7:10).
Com esta distinção em mente, considere o que vários escritores espirituais
disseram sobre a tristeza pecaminosa ao longo da história cristã: 5
146

A tristeza deve ser igualmente rejeitada como algo mundano e mortal, e deve ser
imediatamente expulsa de nossos corações.
—João Cassiano (século V)6

A tristeza do coração supera qualquer ferida externa…. De todas as paixões da


alma, a tristeza é a mais prejudicial.
—Tomás de Aquino (século XIII)7

A tristeza maligna perturba e aborrece a alma, desperta medos excessivos, cria


aversão à oração.
—Francisco de Sales (século XVII)8

Neste capítulo, veremos o que a Bíblia tem a dizer sobre a tristeza


pecaminosa. Como veremos, por um lado, o próprio Jesus experimenta tristeza
quando lamenta o pecado e a morte. Ao mesmo tempo, a Bíblia adverte
claramente contra o tipo de tristeza que brota de um amor desordenado por este
mundo passageiro e leva à recusa de seguir Jesus, custe o que custar.

TRISTEZA NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Embora Paulo seja o primeiro escritor bíblico a distinguir explicitamente a
tristeza segundo Deus e a tristeza mundana, as Escrituras Judaicas contêm
exemplos importantes de ambos os tipos na história de Jó e no livro de Provérbios.
A tristeza de Jó e sua esposa
O livro de Jó começa descrevendo-o como um homem “inculpável e reto”
e tremendamente abençoado (Jó 1:1–3). Por um lado, Deus deu a Jó sete filhos e
três filhas. Além disso, Jó é dono de milhares de ovelhas, camelos, bois e burros,
bem como senhor de muitos servos. Ele é tão rico que é chamado de “o maior de
todos os povos do Oriente” (Jó 1:3). No entanto, por inspiração de um anjo
chamado “Satanás”, Deus permitiu que Jó perdesse quase tudo o que tinha.
Primeiro, seus bois são mortos por invasores, suas ovelhas são mortas por uma
tempestade e seus camelos e servos são mortos à espada. A seguir, enquanto
festejavam juntos, todos os filhos de Jó foram mortos numa tempestade.
147

Finalmente, o próprio Jó é atingido por uma doença que cobre seu corpo com
“feridas repugnantes, desde a planta do pé até o alto da cabeça” (Jó 1:13 –2:7).
Imagine perder quase todos os seus bens. Se você é pai ou mãe, imagine
perder não apenas um dos seus filhos, mas todos eles – no mesmo dia.
Por fim, imagine viver com a dor constante dos furúnculos que cobrem todo
o seu corpo. Como você responderia? Eis como Jó e sua esposa respondem:
Então Jó se levantou, e rasgou o seu manto, e raspou a cabeça, e prostrou-
se por terra, e adorou. E ele disse: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu
voltarei; o Senhor deu, e o Senhor tirou; bendito seja o nome do Senhor.”
Em tudo isso Jó não pecou nem acusou Deus de algo errado. (Jó 1:20–22)
Então sua esposa lhe disse: “Você ainda mantém firme a sua integridade?
Amaldiçoe a Deus e morra.” Mas ele lhe disse: “… Receberemos o bem das
mãos de Deus e não receberemos o mal?” Em tudo isso Jó não pecou com os
seus lábios. (Jó 2:9–10)
Observe aqui que Jó experimenta profunda tristeza. Nas Escrituras
Judaicas, rasgar as roupas e raspar a cabeça são sinais habituais de extremo pesar.9
Ao mesmo tempo, a tristeza de Jó não o leva a pecar. Ele nunca acusa Deus de
fazer algo “errado” (Jó 1:22). Em vez disso, a tristeza de Jó o leva a orar. Jó
agradece a Deus por suas bênçãos e aceita humildemente o sofrimento que Deus
permitiu. Em total contraste, a tristeza da esposa de Jó a leva à blasfêmia. Suas
palavras infames – “Amaldiçoa a Deus e morre” (Jó 2:9) – podem ser a descrição
mais clara da tristeza pecaminosa em qualquer lugar da Bíblia.10 A esposa de Jó
não está apenas tomada pela tristeza; ela também desistiu de Deus. Sua tristeza a
levou ao desespero e ao ódio a Deus.
Tristeza Pecaminosa em Provérbios
Uma vez clara a distinção bíblica entre a tristeza segundo Deus e a tristeza
maligna, podemos entender melhor por que o livro de Provérbios adverte contra
esta última:
Um coração alegre torna um rosto alegre,
mas pela tristeza do coração o espírito fica quebrantado.
(Provérbios 15:13)

Um coração alegre é um bom remédio,


148

mas o espírito abatido seca os ossos.


(Provérbios 17:22)

Como uma mariposa numa roupa e um verme numa árvore,


então a tristeza prejudica o coração.
(Provérbios 25:20 LXX)11

No segundo provérbio, a palavra “quebrado” ou “doloroso” (do hebraico


nake’) será posteriormente traduzida como “pesar” (do grego lypē) ou “tristeza”
(do latim tristitia) – o nome clássico para este pecado capital. De acordo com
Provérbios, a tristeza maligna quebranta o espírito de uma pessoa e corrói o
coração como um verme dentro de uma árvore.
Não é saudável, mas prejudicial. Eventualmente, a tristeza pecaminosa
mata uma pessoa por dentro.

JESUS E A TRISTEZA
Quando nos voltamos para a vida e o ensino de Jesus nos Evangelhos, dois
exemplos-chave da diferença entre a tristeza segundo Deus e a tristeza mundana
se destacam: a tristeza de Jesus no Getsêmani (Mateus 26:36-44) e a tristeza do
jovem rico que escolheu não seguir Jesus (Marcos 10:19–22).
A Tristeza Piedosa De Jesus No Getsêmani
Durante sua agonia no Getsêmani, Jesus experimenta tristeza diante de seu
próprio sofrimento e morte:
Jesus foi com eles para um lugar chamado Getsêmani e disse aos seus
discípulos: “Sentem-se aqui, enquanto eu vou lá orar”. E levando consigo
Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-se.
Então ele lhes disse: “Minha alma está profundamente triste até a morte; ficai
aqui e vigiai comigo.” E indo um pouco mais adiante, prostrou-se com o
rosto em terra e orou: “Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; no
entanto, não como eu quero, mas como Tu queres. E, chegando aos
discípulos, encontrou-os dormindo; e ele disse a Pedro: “Então, você não
poderia vigiar comigo por uma hora? Vigiai e orai para que não entreis em
tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.”
149

Novamente, pela segunda vez, ele foi e orou: “Meu Pai, se isto não pode
passar a menos que eu beba, seja feita a tua vontade”. E novamente ele veio
e os encontrou dormindo, pois seus olhos estavam pesados. Então, deixando-
os novamente, foi embora e orou pela terceira vez, dizendo as mesmas
palavras. (Mateus 26:36–44)
Quando Jesus diz que sua alma está “entristecida [no grego, perilypos], até
a morte” (Mateus 26:38), está muito próxima da palavra que mais tarde será usada
para o pecado capital da “tristeza” (no grego lypē). Então, por que a tristeza de
Jesus não é pecaminosa? Por causa de como Jesus responde – orando. Compare
isso com as ações dos discípulos no Getsêmani: eles estavam “dormindo de
tristeza” (Grego lypē) (Lucas 22:45). Enquanto a tristeza de Jesus o leva a orar
com tanto fervor que ele sua sangue, a tristeza dos discípulos os domina e eles
deixam de orar. 12 Além disso, apesar da sua tristeza, Jesus aceita humildemente
qualquer sofrimento que seja necessário para a salvação: “Meu Pai, se isto não
pode passar sem que eu o beba, faça-se a tua vontade” (Mateus 26:42). Desta
forma, a dor de Jesus aproxima-o realmente do Pai.
A Tristeza Mundana Do Jovem Rico
Compare a tristeza orante de Jesus com a tristeza mundana do jovem rico.
As duas são completamente diferentes. Num capítulo anterior, examinamos a
primeira metade do encontro de Jesus com este jovem, enquanto ele o instruía
sobre a necessidade de guardar os Dez Mandamentos (ver Mateus 19:17–19; cf.
Marcos 10:17–19). Agora considere a segunda metade:
E ele disse a [Jesus]: “Mestre, tudo isso tenho observado desde a minha
juventude”. E Jesus, olhando para ele, amou-o e disse-lhe: “Falta-te uma
coisa; vá, venda o que você tem, e dê aos pobres, e você terá um tesouro no
céu; e venha, siga-me. Desanimado com a palavra, ele foi embora triste; pois
ele tinha grandes posses. (Marcos 10:20–22)13
Observe a mudança dramática que ocorre quando Jesus o convida a
renunciar aos seus bens. O jovem não apenas fica “desanimado” ou “triste”, mas
ele se vira e vai embora “triste” ou “entristecido” (grego lypoumenos) (Marcos
10:22). Por que? Porque ele tinha “grandes posses”. Este é um exemplo perfeito
de como a tristeza mundana está enraizada num amor desordenado pelas coisas
deste mundo.14 Em outras palavras, a razão pela qual o jovem está triste é porque
ele ama mais os seus bens do que ama Jesus. Tal como os outros pecados capitais,
a tristeza é um problema do coração. No final, isso leva o jovem rico a se afastar
150

e a se recusar a seguir Jesus. Tragicamente, isso o torna incapaz de viajar para


onde Jesus quer levá-lo – para a “vida eterna” (Marcos 10:17).

O REMÉDIO PARA A TRISTEZA: PACIÊNCIA


Então, o que devemos fazer? Qual é o remédio para a tristeza pecaminosa?
Você Ficará Triste
A primeira coisa que todos os seguidores de Jesus devem fazer é perceber
que experimentarão tristeza. Neste vale de lágrimas, a tristeza é inevitável.
Ninguém sai vivo deste mundo e ninguém sai sem se ferir. Como o próprio Jesus
diz aos seus discípulos:
Em verdade, em verdade vos digo: vocês chorarão e lamentarão, mas o
mundo se alegrará; você ficará triste, mas sua tristeza se tr ansformará em
alegria. (João 16:20)
A questão, claro, é como respondemos: podemos escolher entre a “tristeza
segundo Deus” que leva à “salvação” ou a “tristeza mundana” que leva à “morte”
(2 Coríntios 7:10).
Como podemos saber a diferença? Se um espírito de tristeza se apodera de
nós e nos leva a parar de orar, então é definitivamente do tipo pecaminoso. Nas
palavras de Francisco de Sales:
Se você alguma vez for pego por esse tipo maligno de tristeza, … a oração é
um remédio soberano, pois eleva a alma a Deus, que é nossa única alegria e
consolo…. Embora possa parecer que tudo o que você faz neste momento é
feito com frieza, tristeza e lentidão, você deve perseverar. 15
Sempre que estivermos diante do precipício do sofrimento ou
experimentarmos o colapso total de como pensávamos que nossas vidas seriam,
devemos tomar as palavras de Jesus quando ele estava triste e torná-las nossas:
“Pai, se for possível, deixe-nos passe de mim este cálice; contudo, não seja
como eu quero, mas como tu queres” (Mateus 26:39).
A Virtude Da Paciência
A segunda coisa a fazer é pedir a Deus a virtude da paciência – pela qual
suportamos os sofrimentos e os males desta vida sem ceder à amargura.16
151

Desde os tempos antigos, os escritores espirituais cristãos identificaram “a


virtude da paciência” como sendo diretamente oposta à tristeza. 17 Na verdade, a
palavra “paciência” (latim patientia) vem da mesma raiz de “sofrer” (latim pati).18
Como a paciência protege o coração de abandonar Deus, ela tem sido
chamada de “raiz e guardiã de todas as virtudes”. 19 Talvez mais do que qualquer
outra virtude, os escritores espirituais insistem que a paciência deve ser dada por
Deus; não é algo que possamos alcançar com nosso próprio poder. 20
Pensando nisso, não é por acaso que o Novo Testamento aponta Jó como
modelo desta virtude:
Como exemplo de sofrimento e paciência, irmãos, tomem os profetas que
falaram em nome do Senhor. Eis que chamamos de felizes aqueles que foram
firmes. Você já ouviu falar da firmeza de Jó. (Tiago 5:10–11)
A felicidade de Jó não veio da ausência de dor, mas de sua confiança no
“propósito do Senhor” (Tiago 5:11). Em outras palavras, a verdadeira paciência
está, em última análise, enraizada no amor. Como escreveu certa vez Agostinho
de Hipona: “Quanto maior é a caridade de Deus que os santos possuem, mais eles
suportam todas as coisas por Aquele a quem amam”. 21 Ou, como Paulo disse: “O
amor é paciente…. O amor tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1
Coríntios 13:4, 7).
Eles Serão Consolados
Finalmente, quando sentimos tristeza, é crucial manter os olhos fixos na
esperança da vida eterna. Mais uma vez, Jesus diz no Sermão da Montanha:
Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. (Mateus 5:4)
À primeira vista, esta pode ser a mais paradoxal de todas as bem-
aventuranças de Jesus.
Como podem aqueles que choram ser “felizes” (grego makarios)? A
resposta: porque eles veem seus sofrimentos de uma perspectiva eterna. Porque
sabem que um dia serão consolados. Nas palavras de João Cassiano:
Seremos capazes de superar todo tipo de tristeza... quando estivermos
sempre nos regozijando ao ver as coisas eternas... e quando permanecermos
firmes e não formos abatidos pelos acontecimentos presentes nem levados
pela boa sorte, vendo ambos como vazios e prestes a passar. 22
152

Não é por acaso que foi o jovem rico que se afastou triste de Jesus. A razão
é porque ele amou as coisas deste mundo mais do que amou o Deus que as deu a
ele. Ele não percebeu que tudo o que possuía não era nada em comparação com a
“vida eterna” (Marcos 10:17).
Uma Oração Por Paciência
Assim, para superar a tristeza pecaminosa, devemos lembrar que tudo nesta
vida, por melhor que seja, inevitavelmente passará.
Considere a famosa e bela oração de Teresa de Ávila:
Não deixe nada te incomodar
Não deixe nada te assustar
Tudo passa
Deus nunca muda
A Paciência Obtém tudo
Quem tem Deus
Não quer nada
Só Deus basta. 23
Somente quando nos apaixonarmos pelo Deus que não passa seremos
capazes de suportar todas as coisas, acreditar em todas as coisas, esperar todas as
coisas e suportar todas as coisas – com paciência.
153

FAZENDO PROGRESSO
19 EXAME DO CORAÇÃO
Cada árvore é conhecida pelo seu fruto.
—Jesus de Nazaré (Lucas 6:44)
AGORA QUE CONCLUÍMOS nossa pesquisa sobre vícios e virtudes, o
que fazemos com o que aprendemos? Cada um de nós experimenta tentações de
todos os pecados capitais uma vez ou outra. No entanto, não afetam todas as
pessoas da mesma forma ou no mesmo grau. Numa pessoa, o orgulho ou a raiva
podem predominar, enquanto em outra, a luxúria ou a gula podem ser mais fortes.
O objetivo dos últimos oito capítulos foi aprofundar a nossa compreensão de cada
um dos pecados capitais e das suas virtudes opostas, para que pudéssemos vê-los
mais claramente em nós mesmos, identificar a nossa falha predominante e crescer
no autoconhecimento.
Nestes capítulos finais, vamos nos concentrar em vários passos importantes
para progredir na vida espiritual. O primeiro passo é o exame regular das
inclinações ao vício ou à virtude em nossos corações.
Ao longo da história da Igreja, vários clássicos espirituais usaram a imagem
de uma árvore e seus frutos para representar o coração humano e seus desejos de
vício ou virtude. Considere as palavras dos seguintes escritores cristãos antigos,
medievais e modernos:
Estes [pecados capitais] devem ser combatidos…. Pois uma árvore cuja
largura e altura são prejudiciais murchará mais facilmente se as raízes que a
sustentam forem expostas e cortadas previamente.
—João Cassiano (século V)1

Pense na alma como uma árvore feita para o amor e que vive apenas pelo
amor…. Esta árvore, tão deliciosamente plantada, produz flores de virtude com
muitas fragrâncias.
—Catarina de Siena (século XIV)2

Nossos corações são árvores, afetos e paixões são galhos, e obras ou ações são
frutos.
—Francisco de Sales (século XVII)3
154

Em outras palavras, assim como uma árvore enraizada em solo pobre com
galhos doentios produzirá frutos podres, também um coração enraizado no
orgulho que cultiva desejos malignos produzirá vícios. E assim como uma árvore
enraizada em solo rico e com galhos fortes produzirá bons frutos, também um
coração enraizado no amor a Deus e ao próximo que cultiva bons desejos
produzirá virtudes.
Neste capítulo, exploraremos brevemente as raízes bíblicas desta antiga
tradição de comparar a alma e os seus vícios ou virtudes a uma árvore e os seus
frutos. O objetivo final é fornecer um método de exame de consciência útil e
baseado nas Escrituras, a fim de nos ajudar a erradicar o pecado e crescer no amor.
Como veremos, a imagem de duas árvores – uma boa e uma má – vem diretamente
das Escrituras Judaicas. Na verdade, o próprio Jesus usa as duas árvores para
ensinar aos seus discípulos a necessidade do autoconhecimento e do exame do
coração.

AS DUAS ÁRVORES NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Para entender a comparação feita por Jesus do coração e suas obras com
uma árvore e seus frutos, é importante começar com duas seções principais do
Antigo Testamento: o relato das duas árvores no Éden (Gênesis 2:7–9) e a
descrição da sabedoria como “árvore de vida” (Provérbios 3:18; 11:30).
As Duas Árvores No Éden
Nas Escrituras Judaicas, a história da salvação começa com o relato de duas
árvores – uma boa e uma má – no Jardim do Éden:
Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas
narinas o fôlego de vida; e o homem se tornou um ser vivente. E o Senhor
Deus plantou um jardim no Éden, no oriente; e ali colocou o homem que
havia formado. E da terra o Senhor Deus fez crescer toda árvore agradável à
vista e boa para alimento, a árvore da vida também no meio do jardim, e a
árvore do conhecimento do bem e do mal. (Gênesis 2:7–9)
Compare e contraste as principais características dessas duas árvores:
Árvore do bem Árvore do mal
1. Árvore da “vida” 1. Árvore do “conhecimento”
2. Adão foi autorizado a comer seu 2. Adão foi proibido de comer seu
fruto fruto
155

3. Quem come “viverá para sempre" 3. Quem come vai “morrer”


(Gênesis 2:9, 16; 3:22) (Gênesis 2:9, 17)

Estas não são árvores comuns, pois a escolha entre elas é uma questão de
vida ou morte sobrenatural. De acordo com Gênesis, a árvore da vida não fornece
apenas alimento corporal comum. Quem comer do seu fruto viverá para sempre.
Da mesma forma, a árvore do conhecimento não traz apenas a morte física.
Quem comer do seu fruto será separado de Deus e perderá a imortalidade
que poderia ter sido obtida ao provar o fruto da árvore da vida. 4 Como Adão e Eva
escolheram comer o fruto proibido, foram afastados da presença de Deus no Éden.
Em vez de se tornarem sábios como Deus, eles simplesmente tomaram
consciência do seu próprio pecado. Tendo conhecido uma vez o que era ser “bom”
– pois foi assim que Deus os criou (Gênesis 1:31) – eles agora ganham um
conhecimento em primeira mão do mal, precisamente quebrando a ordem de Deus
e agindo como se tivessem o poder de decidir para si o que é bom e o que é mau. 5
A Árvore da Vida em Provérbios
Fora do livro de Gênesis, a árvore do conhecimento não é mencionada nas
Escrituras Judaicas. O livro de Provérbios, porém, menciona a árvore da vida,
quando a utiliza como símbolo de sabedoria e entendimento:
Feliz é o homem que encontra a sabedoria,
e o homem que entende….
Ela é uma árvore de vida para aqueles que a alcançam;
aqueles que a seguram firmemente são chamados de felizes.
(Provérbios 3:13, 18)

O fruto do justo é uma árvore de vida, mas a iniquidade tira vidas.


(Provérbios 11:30)
De acordo com Provérbios, assim como Adão e Eva, todos os seres
humanos podem escolher entre o bem e o mal. Se escolherem seguir seus desejos
para o bem e trilhar o caminho da sabedoria, saborearão os frutos da paz e da
felicidade. Se, no entanto, escolherem seguir os seus desejos pelo mal e trilhar o
caminho da tolice, colherão os frutos da ilegalidade e da morte:
156

Árvore boa Árvore do mal


1. Árvore da vida = Sabedoria 1. Árvore = Loucura (implícita)
2. Ramos = desejos justos 2. Ramos = desejos sem lei
3. Fruto = vida 3. Fruto = morte

De acordo com Provérbios, então, a sabedoria não é apenas uma virtude. É


uma nova “árvore de vida” (Provérbios 3:18). 6 Em outras palavras, a prática da
virtude é uma forma de retornar ao Éden. Da mesma forma, boas obras não
consistem apenas em seguir regras ou cumprir deveres. São o “fruto” da
sabedoria, que dão paz e felicidade a quem dela participa. Através da imagem da
árvore da vida, Provérbios revela que o segredo para uma vida feliz é escolher a
virtude ao invés do vício, o bem ao invés do mal.

JESUS E AS DUAS ÁRVORES


Com este contexto judaico em mente, podemos compreender melhor o uso
que Jesus faz da imagem de duas árvores para iluminar o mistério do coração
humano e a sua inclinação para o vício ou a virtude. Ele faz isso em três passagens
principais.
A Árvore do Coração
No chamado Sermão da Planície (Lucas 6:17-49), Jesus usa a imagem de
uma árvore e seus frutos para descrever o coração humano:
Nenhuma árvore boa dá frutos ruins, nem uma árvore má dá frutos bons.;
pois cada árvore é conhecida pelo seu próprio fruto. Porque não se colhem
figos dos espinhos, nem se colhem uvas dos espinheiros. O homem bom, do
bom tesouro do seu coração tira o bem, e o homem mau, do seu mau tesouro
tira o mal; porque a boca fala do que há em abundância no coração. (Lucas
6:43–45)7
Isto não é uma mera metáfora. O contraste de Jesus entre o fruto de uma
árvore boa e uma árvore má ecoa claramente as duas árvores do Éden. Até mesmo
sua referência aos figos e espinhos lembra as folhas de figueira que Adão e Eva
usaram para se cobrir e os espinhos que brotaram após a Queda (ver Gênesis 3:7,
18). Através destas alusões ao Gênesis, Jesus revela que a escolha entre o bem e
o mal ocorre, em última análise, na parte mais profunda da pessoa: o “coração”
(do grego kardia). Assim, quando Jesus diz que “cada árvore é conhecida pelo
157

seu próprio fruto” (Lucas 6:44), ele está enfatizando a necessidade de reconhecer
os movimentos do próprio coração em direção ao vício ou à virtude. 8
Em suma, ele está usando a imagem das duas árvores para falar sobre
autoconhecimento espiritual.
O Poder De Escolher O Bem Ou O Mal
Da mesma forma, na sua advertência àqueles que o acusaram de estar
possuído (Mateus 12:22-34), Jesus também usa as duas árvores para enfatizar que
cada indivíduo tem o p oder de escolher livremente o bem ou o mal:
Ou dizeis que a árvore é boa e seu fruto bom, ou dizeis que é má e seu fruto,
mau; porque é pelo fruto que se conhece a árvore. Raça de víboras, maus
como sois, como podeis dizer coisas boas? Porque a boca fala d o que lhe
transborda do coração. (Mateus 12:33–34)
Também aqui há ecos do Éden. Jesus não apenas fala mais uma vez de uma
árvore boa e de uma árvore má, mas até usa a imagem de uma “raça de víboras”.
Isto traz à mente o misterioso oráculo de Gênesis sobre a guerra futura entre a
“semente” ou “descendência” da serpente e a “descendência” da “mulher”
(Gênesis 3:15).9 De acordo com Jesus, assim como Adão e Eva, cada ser humano
tem o poder de escolher livremente – de coração – fazer o bem ou fazer o mal.
Você Vai Conhecê-Los Pelos Seus Frutos
Finalmente, no Sermão da Montanha, Jesus usa a imagem das duas árvores
para enfatizar a necessidade de reconhecer virtudes e vícios nos outros.
Especificamente, ele adverte contra ser enganado por pessoas que parecem
virtuosas por fora, mas que por dentro são viciosas:
Guardai-vos dos falsos profetas. Eles vêm a vós disfarçados de ovelhas, mas
por dentro são lobos arrebatadores. Pelos seus frutos os conhecereis.
Colhem-se, porventura, uvas dos espinhos e figos dos abro-lhos? Toda
árvore boa dá bons frutos; toda árvore má dá maus frutos. (Mateus 7:15–17)
À primeira vista, pode parecer que Jesus se contradiz com estas palavras.
Apenas alguns versículos antes, ele ordenou a seus discípulos: “Não julgueis, para
que não sejais julgados”, e os adverte contra verem o “cisco” no “olho de seu
irmão” enquanto não percebem a “trave” em seus próprios olhos (Mateus 7:1–5).
Na realidade, porém, os dois ensinamentos se encaixam perfeitamente. Pois
são precisamente aqueles que carecem de autoconhecimento que muitas vezes são
rápidos em condenar os outros e são facilmente enganados por charlatões
158

espirituais. Por um lado, é importante que os seguidores de Jesus não desprezem


os outros por faltas menores (o “cisco”) e ao mesmo tempo não consigam ver os
principais vícios (a “trave”) em seus próprios corações.
É a isso que Jesus se refere quando diz aos seus discípulos para não
“julgarem” (do grego krinō) – uma palavra que no contexto é sinônimo de
“condenar” (do grego katakrinō).10 Por outro lado, é igualmente importante não
ser enganado por fraudes e predadores que parecem virtuosos exteriormente
(“peles de ovelha”), mas interiormente maus (“lobos vorazes”). Jesus quer que os
seus discípulos evitem tanto o orgulho espiritual como a ingenuidade espiritual
que muitas vezes resultam da incapacidade de ver claramente o bem e o mal nos
seus próprios corações.

O EXAME DO CORAÇÃO
Com tudo isto em mente, podemos agora colher os frutos do nosso estudo
e aplicá-los na forma como nós também podemos crescer no autoconhecimento,
especialmente através da prática conhecida como “exame de consciência”. 11 À luz
das palavras de Jesus sobre a “árvore” do coração humano, também podemos nos
referir a isso como o “exame do coração”. No que diz respeito a esta prática, vários
pontos são importantes.
O Exame de Consciência
A primeira coisa que precisa ser dita é que a prática básica do auto exame,
especialmente antes de participar da Ceia do Senhor, remonta aos tempos do Novo
Testamento.12 Por exemplo, o apóstolo Paulo adverte:
Portanto, quem comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será
culpado de profanar o corpo e o sangue do Senhor. Examine-se o homem a
si mesmo, e assim coma do pão e beba do cálice. (1 Coríntios 11:27–28)
Seguindo o exemplo de Paulo, os escritores espirituais cristãos ao longo da
história têm insistido que os seguidores de Jesus desenvolvessem o hábito de
examinar frequentemente as suas consciências.13 Considere as seguintes palavras
dos tempos antigos, medievais e modernos:
Ao examinar a nossa consciência, examinando o nosso pensamento e
considerando o que fizemos de certo neste dia e o que fizemos naquele dia…
[descobriremos] quanta melhoria alcançamos em nossas paixões.
—João Crisóstomo (século IV)14
159

De manhã tome uma resolução e à noite examine como você se saiu. Veja o que
você disse, fez ou pensou para descobrir se ofendeu a Deus ou ao próximo.
—Thomas de Kempis (século XV)15

Peça [ao Espírito Santo] luz e visão para que você possa alcançar um
conhecimento perfeito de si mesmo…. O conhecimento do nosso progresso
espiritual depende de um exame deste tipo.
—Francisco de Sales (século XVII)16

Em suma, de acordo com as Escrituras e com a tradição cristã, o exame


regular da consciência, especialmente antes de participar da Ceia do Senhor, é
uma parte básica da vida de qualquer discípulo que queira progredir no caminho
espiritual.
As Duas Árvores Dos Vícios E Das Virtudes
Mas exatamente, como fazer isso? Como seria de esperar, existem vários
métodos.17 Talvez o mais comum seja a prática de examinar a consciência de
acordo com os Dez Mandamentos. No entanto, como os Mandamentos se
concentram em pecados especialmente graves, como idolatria, assassinato e
adultério, às vezes pode ser difícil aplicá-los diretamente à nossa vida cotidiana.
Assim, é importante notar que escritores espirituais como Inácio de Loyola
também recomendam examinar a consciência de acordo com os pecados capitais
e suas virtudes opostas:
Para compreender melhor as faltas cometidas que se enquadram nos Sete
Pecados Capitais, consideremos as virtudes contrárias. Assim também, para
melhor evitar esses pecados, deve-se resolver esforçar-se, por meio de
exercícios devotos, para adquirir e reter as sete virtudes contrárias a eles. 18

Como auxílio a este tipo de exame, os sete vícios e as suas virtudes opostas
(juntamente com a oitava acrescentada por alguns escritores espirituais) são
representados no diagrama das “Duas Árvores”. 19
160

Observe neste diagrama que os três ramos principais da árvore do mal são
idênticos aos três desejos desordenados da tripla luxúria. Se decidirmos cultivar
nossos desejos desordenados de exaltação própria, produziremos os frutos da
inveja, da ira e do orgulho. Se cultivarmos nossos desejos desordenados de prazer
físico, produziremos os frutos da luxúria, da gula e da preguiça. Finalmente, se
cultivarmos os nossos desejos desordenados por posses mundanas, produziremos
os frutos da avareza e da tristeza.

Observe também que os três ramos principais da boa árvore são idênticos
aos três exercícios espirituais dados por Jesus no Sermão da Montanha: oração,
jejum e esmola. Se perseverarmos na oração secreta ao Pai, cresceremos nas
161

virtudes da humildade, da misericórdia e da mansidão. Se praticarmos o desapego


das posses, dando discretamente aos pobres, cresceremos nas virtudes da
generosidade e da paciência. Finalmente, se praticarmos o autocontrole por meio
do jejum privado, cresceremos nas virtudes da castidade, da temperança e da
diligência.
Em suma, quando examinamos os nossos corações de acordo com os
pecados capitais e as suas virtudes opostas, provavelmente descobriremos que
temos muito trabalho a fazer para cortar os ramos maus e os seus frutos e cultivar
os ramos bons e os deles.
Concentre-Se Em Uma Falha E Sua Virtude Oposta
Finalmente, ao praticar o exame de consciência, é útil estar especialmente
atento a qual dos pecados capitais é a nossa culpa predominante.
Às vezes, isso pode ser determinado por qual dos vícios em que caímos com
mais facilidade e frequência. Uma vez identificada a nossa falha predominante,
devemos concentrar as nossas energias em erradicar este vício específico e
desenvolver a sua virtude oposta. Nas palavras de Francisco de Sales:
Considere de vez em quando quais paixões predominam em sua alma.
Quando você as descobrir, adote um modo de vida que será completamente
oposto a elas em pensamento, palavra e ação.20
Uma razão para focarmos em nossa falha predominante é para não ficarmos
desanimados ou sobrecarregados ao tentar fazer tudo de uma vez. Além disso, os
clássicos espirituais concordam que o crescimento em apenas uma das virtudes
leva ao crescimento em todas elas. Nas palavras de João da Cruz:
Através da prática de uma virtude, todas as virtudes crescem, e da mesma
forma, através do aumento de um vício, todos os vícios e seus efeitos
crescem. 21
Segundo Jesus, nossos corações são como “árvores”. Mas que tipo
plantamos? Que frutos estamos cultivando? Somente tomando consciência de
nossas falhas é que poderemos fazer um esforço deliberado para combatê-las. Se
estivermos cegos para o pecado em nossas vidas, nunca faremos progresso na
virtude.
No entanto, ao examinarmos regularmente os nossos corações,
começaremos gradualmente a crescer no autoconhecimento e a perceber a verdade
do ensinamento de Jesus de que “cada árvore se conhece pelo seu próprio fruto”
(Lucas 6:44).
162

20 LECTIO DIVINA E A ESCADA DE JACÓ


Você verá o céu aberto e os anjos de Deus
subindo e descendo sobre o Filho do homem.
—Jesus de Nazaré (João 1:51)
UMA SEGUNDA CHAVE PARA progredir na vida espiritual é a prática
regular da meditação nas Escrituras, conhecida no Ocidente como lectio divina
(latim para “leitura divina”). 1 Quando se trata do processo de crescimento
espiritual, ao longo da história, os escritores cristãos concordaram em dois pontos.
O primeiro é que a prática de orar com as Escrituras é essencial para fazer
progresso espiritual. Considere as seguintes citações de escritores antigos,
medievais e modernos:
Você deve se esforçar em todos os aspectos para se dedicar assiduamente e até
constantemente à leitura sagrada.
—João Cassiano (século V)2

A perfeição da vida abençoada está contida nestes quatro passos


[da lição divina].
—Guigo, o Cartuxo (século XII)3

A meditação é a base para adquirir todas as virtudes, e realizá-la é uma questão


de vida ou morte para todos os cristãos.
—Teresa de Ávila (século XVI)4
O segundo ponto de concordância é que a história bíblica da escada de Jacó
(ver Gênesis 28:10-17) é a imagem padrão do progresso espiritual feito pela alma
em sua jornada para o céu. 5 Considere o seguinte:
A escada de Jacó era uma figura de... ascensão pela virtude, pouco a pouco...
pela emenda e correção dos hábitos.
—João Crisóstomo (século IV)6
163

Estes [degraus da lectio divina] constituem uma escada para os monges, pela
qual eles são elevados da terra ao céu.
—Guigo, o Cartuxo (século XII)7

Esta escada de contemplação…é prefigurada por aquela escada que Jacó viu
enquanto dormia.
—João da Cruz (século XVI)8
De longe, o exemplo mais famoso é o do antigo escritor cristão João
Clímaco – isto é, “João da Escada” (grego klimakos). Sua obra clássica sobre a
vida espiritual, A Escada da Ascensão Divina, consiste em trinta e três “degraus”
baseados na imagem bíblica da escada de Jacó. 9
À primeira vista, a ligação entre a lectio divina e a história da escada de
Jacó pode não ser aparente. No entanto, quando interpretamos este episódio
misterioso no seu antigo contexto judaico e à luz das palavras de Jesus,
descobriremos uma ligação profunda entre as duas. Como veremos, a
interpretação que Jesus fez da escada de Jacó lançará as bases para a prática cristã
de meditação nas Escrituras e nos fornecerá uma ilustração útil dos passos
envolvidos no aprendizado de como praticar a lectio divina.

A ESCADA DE JACÓ NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Um dos episódios mais memoráveis do Antigo Testamento vem do relato
da visão misteriosa que o patriarca Jacó teve uma noite:
Jacó…chegou a um determinado lugar, e ficou lá naquela noite, porque o sol
havia se posto. Pegando uma das pedras do local, colocou-a debaixo da
cabeça e deitou-se naquele local para dormir. E sonhou que havia uma escada
posta na terra, e o topo dela chegava ao céu; e eis que os anjos de Deus
subiam e desciam sobre ela! E eis que o Senhor estava acima dela e d isse:
“Eu sou o Senhor…. Eis que estou contigo...”
Então Jacó acordou do seu sono e disse: “Certamente o Senhor está neste
lugar; e eu não sabia disso.” E ele ficou com medo e disse: “Quão incrível é
este lugar! Isto não é outro senão a casa de Deus, e esta é a porta do céu.”
(Gênesis 28:10–13, 15–17)
Vários aspectos desta história são importantes para destacar.
164

Jacó E A Escada Para O Céu


A primeira coisa que precisa ser dita é que a “escada” que Jacó vê
provavelmente não é o tipo de escada comum com degraus com a qual estamos
familiarizados hoje, mas sim uma escada (Gênesis 28:12). 10 Essas escadas eram
usadas pelos sacerdotes para subir e descer antigas montanhas de templos
conhecidas como zigurates. 11 Assim, você pode imaginá-la da seguinte forma:

É por isso que Jacó chama o lugar de “casa de Deus” (Gênesis 28:17) – um
nome padrão para o Templo. É também por isso que, quando Jacó olha para cima,
ele vê o próprio “Senhor” parado no topo da escada (Gênesis 28:13).
Jacó não está apenas tendo uma visão do céu; ele está tendo uma visão de
Deus.
Finalmente, quando Jacó acorda, ele fica tão impressionado com o encontro
que também chama o lugar de “porta do céu” (Gênesis 28:17). Em suma, a visão
de Jacó é a de uma escada sagrada que não só liga o céu e a terra, mas também
lhe permite experimentar um encontro pessoal com o Deus do universo.

JESUS E A ESCADA DE JACÓ


Com este contexto bíblico em mente, podemos voltar-nos para a forma
como Jesus interpreta a história da escada de Jacó. Embora seja fácil não perceber
se você não estiver lendo com atenção, no Evangelho de João, Jesus revela que
ele mesmo – o “Verbo” feito “carne” (João 1:14) – é a verdadeira escada para o
céu.
Natanael, A Figueira E A Escada De Jacó
Muitos estão familiarizados com a famosa conversa entre Jesus e Natanael
no Evangelho de João:
165

Jesus viu Natanael vindo até ele e disse dele: “Eis um verdadeiro israelita,
em quem não há dolo!” Natanael lhe perguntou: “Como você me conhece?”
Jesus respondeu-lhe: “Antes de Filipe te chamar, quando você estava
debaixo da figueira, eu te vi”.
Natanael respondeu-lhe: “Rabi, tu és o Filho de Deus! Tu és o rei de Israel!”
Jesus lhe respondeu: “Porque eu te disse: te vi debaixo da figueira, você
acredita? Você verá coisas maiores do que estas.” E ele lhe disse: “Em
verdade, em verdade te digo que você verá o céu aberto e os anjos de Deus
subindo e descendo sobre o Filho do homem”. (João 1:47–51)
Para entender esta conversa, dois pontos são cruciais para enfatizar.
Primeiro, nas Escrituras e na tradição judaica, a imagem de “sentar -se”
debaixo de uma “figueira” estava associada tanto à vinda do Messias 12 como à
prática da meditação nas Escrituras. 13 Se esta antiga tradição judaica está por trás
do ato de Natanael sentar-se “debaixo da figueira” (João 1:48), isso pode sugerir
que ele também estava lendo as Escrituras quando Jesus o viu. Se assim for, isto
forneceria uma explicação plausível de como Natanael é capaz de passar tão
rapidamente do ceticismo ao discipulado, identificando Jesus não apenas como
seu “Rabi”, mas também como o “Filho de Deus” e “Rei de Israel” (João 1:49).
A resposta: o estudo das Escrituras por Natanael preparou-o para receber a
revelação da identidade de Jesus. 14
Jesus, A Escada Viva Para O Céu
Em segundo lugar, Jesus responde a esta confissão de fé declarando que
Natanael verá coisas muito maiores do que isto: ele verá “o céu aberto, e os anjos
de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem” (João 1:51).
Quando recordamos a história da escada de Jacó e o fato de Jesus usar
frequentemente a expressão “o Filho do homem” para se referir a si mesmo (João
9:35-37), a implicação destas palavras é simplesmente impressionante. Assim
como Jacó viu os anjos “subindo e descendo” pela escada para o céu (Gênesis
28:12, 17), também Natanael um dia verá os anjos “subindo e descendo” sobre o
próprio Jesus (João 1:51). Em outras palavras, Jesus está revelando que ele mesmo
é a verdadeira “escada” para o céu. Você pode imaginar desta forma:
166

Uma razão pela qual a identificação de Jesus como a Escada de Jacó é tão
importante é porque Jacó descreve o lugar onde ele teve a visão como a “casa de
Deus” – isto é, a morada de Deus na terra (Gênesis 28:17). Outra razão é porque
o Evangelho de João nos diz que Jesus não é apenas o Messias, mas o “Verbo”
(grego logos) feito “carne” (João 1:14). Em suma, o próprio Jesus é o verdadeiro
Templo – a morada de Deus na terra. Ele é a escada viva do Paraíso.

OS QUATRO PASSOS DA LECTIO DIVINA


Com tudo isto em mente, podemos agora passar da Bíblia para a tradição
cristã posterior da lectio divina.15 Embora haja uma variedade de métodos de
meditação nas Escrituras, nos concentraremos aqui na famosa descrição dos
“quatro passos” da lectio divina no breve mas belo tratado conhecido como A
Escada do Paraíso. 16
Lectio Divina E A Escada De Jacó
No final do século XII, um monge cartuxo chamado Guigo II escreveu o
que é amplamente considerado a explicação medieval clássica da meditação nas
Escrituras. 17 Nela, ele usa a escada de Jacó como imagem para os quatro degraus
básicos da lectio divina:
Um dia, quando estava ocupado trabalhando com as mãos, comecei a pensar
em nosso trabalho espiritual e, de repente, quatro estágios do exercício
espiritual me vieram à mente: leitura, meditação, oração e contemplação.
Estes constituem uma escada para os monges, pela qual eles são elevados da
terra ao céu. Tem poucos degraus, mas seu comprimento é imenso e
maravilhoso, pois sua extremidade inferior repousa sobre a terra, mas seu
topo perfura as nuvens e toca os segredos celestiais. 18
167

Na Escada do Paraíso, os quatro degraus da lectio divina têm o mesmo


poder de elevar a alma ao céu que a escada de Jacó. Você pode imaginar da
seguinte maneira:

Desta perspectiva, a Bíblia é muito mais do que apenas um antigo livro


sagrado ou um guia confiável sobre como viver uma vida boa. Sempre que os
seguidores de Jesus praticam a lectio divina, o céu se abre para eles e o Deus do
universo fala. Desta forma, a própria Escritura se torna uma verdadeira escada
para o céu.
As Quatro Etapas Explicadas
Mas o que exatamente cada uma dessas quatro etapas envolve? Felizmente,
Guigo as define (para maior clareza, eu as enumerei):
(1) Ler é o estudo cuidadoso das Escrituras, concentrando nela todas as forças. (2)
A meditação é a aplicação intensa da mente para buscar, com a ajuda da própria
razão, o conhecimento da verdade oculta. (3) A oração é a volta devotada do
coração a Deus para afastar o mal e obter o que é bom. (4) Contemplação é quando
a mente é de alguma forma elevada a Deus e mantida acima de si mesma, de modo
que saboreia a alegria da doçura eterna. 19
Vamos dedicar alguns momentos para explicar cada etapa:
Passo 1: Leitura: O primeiro e mais essencial passo da lectio divina é a
“leitura” (latim lectio). Isto significa abrir a Bíblia e ler as suas palavras lenta e
cuidadosamente – sem folhear ou apressar-se.
Passo 2: Meditação: Embora a lectio divina como um todo seja uma forma
de meditação, o segundo passo – “meditação” (latim meditatio) – refere-se
especificamente ao ato de ponderar sobre o que foi lido. Envolve usar a mente
para buscar a verdade oculta contida nas Escrituras.
168

Passo 3: Oração: Quando se trata do terceiro passo – “oração” (latim oratio)


– mais uma vez, significa algo muito específico. Depois de ler as palavras das
Escrituras e pensar sobre elas, o próximo passo é conversar com Deus de coração
sobre elas. De certa forma, a oração transforma a meditação das Escrituras num
diálogo entre a alma e Deus. Como disse um antigo escritor cristão: “Nós falamos
com ele quando oramos, nós o ouvimos quando lemos os oráculos divinos.” 20
Passo 4: Contemplação: O quarto passo é “contemplação” (latim
contemplatio). Já lemos que a contemplação pode ser definida como um tipo
especial de oração em que os “olhos” do coração se fixam em Deus num “olhar”
de amor (ver capítulo 3). A principal coisa que queremos enfatizar aqui é que nos
três primeiros passos da lectio divina agimos – lendo a Bíblia, pensando sobre ela
e conversando com Deus sobre ela. No quarto passo, porém, é Deus quem age:
“elevando” a alma a si mesmo e deixando-a saborear a “doçura” da sua presença.
Em outras palavras, para este quarto passo, não precisamos fazer nada, exceto
ficar quietos e “olhar” para Deus, descansando tranquilamente em sua presença.
Às vezes, na lectio divina, Deus, através da sua graça, pode “elevar” a alma na
terra “acima de si mesma”, para que ela desfrute da doçura da sua presença
celestial. 21
Em suma, a lectio divina envolve quatro passos simples: ler a Bíblia, pensar
sobre o que lemos, falar com Deus sobre isso e descansar tranquilamente na sua
presença.
Todas As Quatro Etapas Caminham Juntas
À luz de tudo o que vimos, já deveria estar claro por que Guigo afirma que
o “exercício espiritual” de um cristão deveria “girar em torno” dos quatro passos
da lectio divina.22 Por um lado, todos os quatro passos trabalham juntos para
ajudar nossas orações a evitar que se tornem infrutíferas, mornas ou mesmo
espiritualmente perigosas. Como ele afirma:
Leitura sem meditação é estéril, meditação sem leitura é passível de erro,
oração sem meditação é morna, e meditação sem oração é infrutífera, a
oração quando é fervorosa ganha a contemplação, mas obtê-la sem oração
seria raro, mesmo milagroso. 23
Em outras palavras, se apenas lermos as palavras das Escrituras sem nunca
pensar nelas, nossas orações acabarão invariavelmente secas e sem vida. Por outro
lado, se gastarmos todo o nosso tempo pensando em questões profundas, mas
nunca recorrermos às Escrituras em busca de respostas, inevitavelmente
acabaremos cometendo todos os tipos de erros.
169

Se tudo o que fizermos for conversar com Deus sem parar para pensar no
que ele disse em sua Palavra, então nossas orações provavelmente acabarão sendo
monólogos mornos, em vez de uma conversa vinda do coração. Finalmente, se
passarmos todo o nosso tempo ponderando as Escrituras sem nunca pedir a Deus
que nos dê os dons espirituais que descobrimos nas suas páginas, então a nossa
meditação nunca produzirá frutos espirituais.
Em suma, se a nossa vida de oração parece estéril, morna ou infrutífera,
então precisamos praticar a lectio divina. Se a meditação orante nas Escrituras é
realmente uma “escada” para o céu e um encontro pessoal com o Verbo feito
carne, então deveria ser uma parte diária da vida espiritual de cada cristão.
Lectio Divina e a Liturgia
Finalmente, gostaria de encerrar o nosso capítulo sugerindo um paralelo
entre os quatro passos da lectio divina e a liturgia.
Desde os tempos antigos, o culto cristão consiste em quatro partes básicas:
(1) a leitura das Escrituras, (2) a explicação das Escrituras na homilia, (3) a oração
eucarística e (4) comunhão. Considere, por exemplo, uma das descrições mais
antigas do culto cristão primitivo que possuímos (para maior clareza, enumerei as
etapas):
No dia que chamamos de dia do sol, todos os que moram na cidade ou no
campo se reúnem no mesmo lugar.
(1) As memórias dos apóstolos e os escritos dos profetas são lidos, tanto
quanto o tempo permite.
(2) Quando o leitor termina, aquele que preside os reunidos os adverte e os
desafia a imitar essas coisas belas.
(3) Então todos nos levantamos juntos e oferecemos orações por nós
mesmos….
Terminadas as orações trocamos o beijo.
(4) Então alguém traz pão e um copo de água e vinho misturados ao que
preside os irmãos.
Ele os acolhe e oferece louvor e glória ao Pai do universo, através do nome
do Filho e do Espírito Santo e por um tempo considerável dá graças (em
grego: eucharistian) por termos sido julgados dignos desses dons.
Terminadas as orações e as ações de graças, todos os presentes dão voz a
uma aclamação dizendo: “Amém”.
170

Quando aquele que preside deu graças e o povo respondeu, aqueles que
chamamos diáconos dão aos presentes o pão, o vinho e a água “eucaristados”
e os levam aos ausentes.
—Justino Mártir (século II)24
Com esta estrutura quádrupla básica em mente, consideremos os seguintes
paralelos entre a liturgia cristã e a lectio divina:

Que paralelos notáveis! Se pararmos para pensar sobre isso, entretanto, eles
não deveriam ser uma surpresa. Afinal, se Jesus é realmente a verdadeira “escada”
para o céu (ver João 1:51) e se a “comida” e “bebida” que ele nos dá é realmente
“o pão vivo que desceu do céu” (João 6: 51, 55), então faz sentido que o ato
supremo da lectio divina seja aquele que acontece na liturgia. Vista sob esta luz,
a prática da meditação orante nas Escrituras deveria naturalmente levar-nos a uma
fome mais profunda do alimento espiritual dado por Cristo na Eucaristia. 25
Em suma, mesmo que nunca tenhamos praticado a lectio divina em privado,
se tivermos participado com atenção e oração na liturgia eucarística, então já
começamos a subir a Escada do Paraíso. Na verdade, se tanto Jesus como as
Escrituras são verdadeiramente a Palavra de Deus, então cada vez que lemos e
meditamos nas Escrituras, encontramos a pessoa do próprio Cristo – a escada viva
para o céu.
171

21 A BATALHA DA ORAÇÃO
Ele lhes contou uma parábola, no sentido de que deveriam orar sempre e não
desanimar. —O Evangelho de Lucas (18:1)
ALÉM DO exame REGULAR do coração e da meditação diária nas
Escrituras, uma terceira chave para progredir na vida espiritual é a perseverança
na oração, mesmo em meio a dificuldades e distrações.
Repetidamente, os clássicos espirituais testemunham em uma só voz que a
oração é tanto um dom da graça de Deus quanto uma batalha que exige esforço. 1
Considere o seguinte:
A oração é uma guerra até o último suspiro.
—Abba Agathon do Egito (século IV)2

Não pode haver lugar para a vitória sem a adversidade de uma luta.
—João Cassiano (século V)3

Existe luta maior do que o esforço para superar a si mesmo?


—Thomas de Kempis (século XV)4

Por que a oração é uma batalha? E contra quem e contra o que exatamente
é a luta? Por que travar esta batalha é tão importante para progredir na vida
espiritual?
Já analisamos a batalha contra o vício no nosso estudo dos pecados capitais
e das suas virtudes opostas. Neste capítulo, vamos nos concentrar em uma batalha
diferente, na qual o adversário às vezes somos nós mesmos, às vezes o inimigo e
às vezes — aparentemente — Deus. Longe de estar livre de todas as dificuldades,
como descobriremos: “A ‘batalha espiritual’ da nova vida do cristão é inseparável
da batalha da oração…. Não há santidade sem renúncia e batalha espiritual.”5

A BATALHA DE ORAÇÃO NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Quando se trata do tema da batalha espiritual, as Escrituras Judaicas estão
repletas de exemplos. Para os nossos propósitos aqui, de longe o exemplo mais
marcante e significativo da batalha de oração vem da enigmática e inesquecível
172

história da luta noturna de Jacó com um misterioso “homem” que também parece
ser Deus.
Jacó Luta Com Deus
O episódio acontece durante a viagem de Jacó da casa de seu sogro Labão
em Harã (localizada na atual Turquia) de volta para casa, até a terra prometida de
Canaã (ver Gênesis 31). Antes de cruzar o rio Jaboque, localizado a leste de
Canaã, Jacó vivencia uma luta misteriosa e transformadora:
Foi, pois, o presente adiante dele, e ele ficou aquela noite no acampamento.
Naquela mesma noite, ele se levantou com suas duas mulheres, suas duas
servas e seus onze filhos e passou o vau do Jaboc. Tomou-os, e os fez passar
a torrente com tudo o que lhe pertencia. Jacó ficou só; e alguém lutava com
ele até o romper da aurora. Vendo que não podia vencê-lo, tocou-lhe aquele
homem na articulação da coxa e esta deslocou-se, enquanto Jacó lutava com
ele. E disse-lhe: “Deixa-me partir, porque a aurora se levanta”. “Não te
deixarei partir – respondeu Jacó – antes que me tenhas abençoado.” Ele
perguntou-lhe: “Qual é o teu nome?”. “Jacó.” “Teu nome não será mais Jacó
– tornou ele – mas Israel, porque lutaste com Deus e com os homens, e
venceste.” Jacó pediu-lhe: “Peço-te que me digas qual é o teu nome”. “Por
que me perguntas o meu nome?” – respondeu ele. E abençoou-o no mesmo
lugar. Jacó chamou àquele lugar Fanuel, “porque – disse ele – eu vi a Deus
face a face, e minha vida foi poupada”. O sol levantava-se no horizonte,
quando ele atravessou Fanuel. E coxeava de uma perna. (Gênesis 32:22–31)
Vários aspectos desta passagem são importantes.
Primeiro, observe que todo o encontro ocorre à noite. Na verdade, a
impressão é que Jacó passa a noite inteira lutando com o homem - até o
amanhecer. A luta retratada entre os dois é extremamente intensa. Na verdade, a
palavra hebraica para “lutar” (hebraico ’abaq) é a mesma palavra que “pó”
(hebraico 'abaq), o que implica que eles lutaram no chão a noite inteira. 6
Segundo, observe que a identidade da pessoa com quem Jacó lut a é
ambígua. Por um lado, as Escrituras dizem que é “um homem”. Por outro lado, o
próprio Jacó identifica a pessoa com quem ele luta como “Deus” (hebraico
‘elohim). É por isso que ele chama o lugar de Fanuel (em hebraico para “face de
Deus”), porque ele “viu Deus face a face” (Gênesis 32:30). 7 Se assim for, isso
ajudaria a explicar por que o oponente de Jacó exige que ele o deixe ir antes do
amanhecer. Enquanto for noite, o rosto do oponente de Jacó estará (pelo menos
um pouco) velado. Como Deus declara em outro lugar, “o homem não me verá e
173

viverá” (Êxodo 33:20). Ainda assim, Jacó tem uma experiência “face a face”, na
medida em que encontra a presença de Deus.
Por último, quando Deus vê a recusa obstinada de Jacó em deixá-lo ir, Deus
o fere, desmembrando sua “coxa”. 8 Assim, Jacó sai do encontro com Deus tendo
recebido uma bênção e uma ferida. A bênção parece ser que Deus lhe deu um
novo nome.9 Em vez de ser conhecido como Jacó (que significa “suplantador” em
hebraico), ele agora será conhecido como Israel (que significa “aquele que luta
com Deus”).10 Em ambos os sentidos, Jacó deixa a luta noturna com Deus um
homem mudado. Ele foi exaltado pela dádiva do nome e humilhado pela ferida
permanente que recebeu, que o deixa mancando pelo resto da vida.
Em suma, porque Jacó é o pai das doze tribos de Israel, ele é também um
modelo para o povo de Israel que leva o seu nome. Sob esta luz, segue-se que
aqueles que levam o seu nome – os israelitas – também serão definidos de alguma
forma, não apenas pelo fato de terem sido escolhidos por Deus para receber a
bênção divina, mas também pelo fato de que eles também irão “lut ar com Deus”
na oração.11 Na verdade, todo o livro dos Salmos consiste em oração após oração
do coração que se esforça e muitas vezes luta com Deus.

JESUS E A BATALHA DA ORAÇÃO


Como já vimos, há muitos lugares nos Evangelhos em que Jesus descreve
a batalha contra o pecado e o mal que os seus discípulos terão de enfrentar. Aqui,
porém, simplesmente quero concentrar-me numa famosa parábola em que Jesus
descreve a própria oração como uma espécie de batalha ou luta com um Deus que
parece pouco inclinado a responder.
A Parábola da Viúva Persistente
Se existe alguma parábola que retrata o drama da oração como uma batalha
de fé, é a famosa Parábola da Viúva Persistente:
Ele lhes contou uma parábola, no sentido de que deveriam orar sempre e não
desanimar. Ele disse: “Em certa cidade havia um juiz que não temia a Deus
nem respeitava os homens; e havia naquela cidade uma viúva que vinha ter
com ele e dizia: ‘Vindica-me contra o meu adversário.’ Por algum tempo ele
recusou; mas depois ele disse a si mesmo: 'Embora eu não tema a Deus nem
tenha consideração pelos homens, ainda assim, porque esta viúva me
incomoda, eu a defenderei, ou ela me cansará com sua vinda contínua.'" E o
Senhor disse: "Ouça o que diz o juiz injusto. E Deus não justificará os seus
174

eleitos, que clamam a Ele dia e noite? Ele vai demorar muito com eles? Eu
lhe digo, ele os justificará rapidamente. Contudo, quando o Filho do homem
vier, encontrará fé na terra?” (Lucas 18:1–8)
Vários aspectos desta parábola precisam ser destacados.
Primeiro, neste caso, o evangelista Lucas começa contando-nos exatamente
do que se trata o resultado da parábola: a oração que é ao mesmo tempo contínua
e persistente. Os seguidores de Jesus devem orar “sempre” ou “em todos os
momentos” (grego pantote) e não “perder o entusiasmo”, “desanimar” ou
“desistir” (grego engkakeō).12
Em segundo lugar, a parábola gira em torno de dois personagens: um juiz
injusto que não guarda os mandamentos nem mostra qualquer preocupação pelos
outros, e uma viúva persistente, que continua vindo ao juiz para exigir que ele lhe
faça justiça. Num antigo contexto judaico, tal juiz seria considerado
especialmente perverso, uma vez que estava violando a Lei de Moisés, que ordena
o cuidado das viúvas: “Não afligirás nenhuma viúva ou órfão. Se você os afligir,
e eles clamarem a mim, certamente ouvirei o seu clamor” (Êxodo 22:22–23).13
A Viúva “Socadora”
Terceiro, embora o juiz injusto se recuse a responder aos apelos da viúva
“por um tempo” (Lucas 18:4), ele eventualmente cede. Embora seja difícil de ver
em inglês, no original grego, não é apenas a persistência da viúva que leva o juiz
injusto a agir. É também a possível ameaça de levar um soco dela. O verbo grego
traduzido como “desgastar” (RSV) significa literalmente “bater sob o olho” – um
termo retirado do boxe antigo. 14 Assim, uma tradução mais literal seria esta:
Porque esta viúva me incomoda, vou justificá-la, para que no final ela não venha
e me dê um olho roxo! (Lucas 18:5)15
Vista sob esta luz, esta história talvez devesse ser chamada de Parábola da
Viúva que Soca! Ela não é apenas persistente; ela é pugilista. Ela não irá parar
diante de nada, incluindo bater no rosto do juiz, até que sua petição seja atendida.
E este, claro, é o objetivo da parábola. Jesus não está apenas ensinando seus
discípulos a serem persistentes na oração. Ele não está apenas ensinando-os a orar
constantemente. Ele os está ensinando a orar com desespero e tenacidade. Ele os
está ensinando a orar como a viúva que dá um soco, que se recusa
terminantemente a desistir – não importa quão impotentes ou infrutíferas possam
parecer suas tentativas. Ele os está ensinando, como Jacó, a se recusarem a
175

abandonar Deus em oração até que recebam uma bênção, mesmo que sejam
feridos no processo.
Para fazer isso, Jesus usa um antigo argumento judaico padrão de “do
menor para o maior”. 16 Se até mesmo um juiz perverso fizer justiça à oração
persistente de uma viúva humilde, então quanto mais o bom Deus ouvirá as
orações do seu povo amado, que “clama a ele dia e noite” (Lucas 18:7)? Na
verdade, de uma perspectiva judaica antiga, se Deus não respondesse às orações
de uma viúva, ele estaria violando a sua própria lei sobre cuidar das viúvas nas
suas aflições. Assim, Jesus declara: “Eu vos digo que ele os justificará
rapidamente” ou “em breve” (Lucas 18:8). 17
Dito isto, Jesus termina com uma nota um tanto sinistra quando afirma: “No
entanto, quando o Filho do homem vier, encontrará fé na terra?” (Lucas 18:8).
Estas palavras revelam que toda a Parábola da Viúva Persistente trata, em última
análise, da virtude da fé. Embora tendamos a usar a palavra “fé” em inglês para
nos referirmos principalmente à “crença” de que algo é verdadeiro, no grego
antigo, “fé” (grego pistis) também significa “fidelidade”. 18 Por outras palavras,
Jesus está a usar a viúva como modelo de fidelidade à oração – mesmo quando
parece que Deus, tal como o juiz, é surdo ou indiferente.

A BATALHA DA ORAÇÃO
Tanto as Escrituras Judaicas como Jesus são bastante claros: na medida em
que a oração envolve um relacionamento com Deus, envolve muito mais do que
apenas palavras, gestos ou mesmo experiências de consolação e iluminação. No
fundo, como todos os relacionamentos, a oração é uma luta. É uma batalha contra
nós mesmos e contra os outros, a colisão de duas vontades que se amam, mas
cujos desejos e planos nem sempre correspondem exatamente. Com isto em
mente, encerraremos este capítulo destacando vários aspectos da batalha da
oração que são cruciais para o progresso espiritual.
A Batalha Para Levantar E Orar
Não é por acaso que Jacó lutou com Deus durante a noite, quando estava
sozinho — e não quando estava com sua família viajando no caminho. A primeira
batalha que terá de ser travada todos os dias, dia após dia, envolve o compromisso
absolutamente infalível de se levantar todas as manhãs a uma hora fixa, não
importa o que aconteça, e de passar algum tempo em oração. Nas palavras de João
Clímaco:
176

Dê as primícias do seu dia ao Senhor, pois ele determinará o resto do dia.


Certa vez, um excelente servo do Senhor me disse algo que vale a pena ouvir:
“Posso dizer pela manhã como será o resto do dia”. 19
Fique tranquilo, esta é a primeira luta a ser travada. A única maneira de
progredir na vida espiritual é decidir levantar-nos como Jacó e Jesus nas trevas,
onde podemos ficar sozinhos e lutar com Deus. Como ensina Thomas de Kempis,
isso significa lutar contra a tentação de perder tempo que poderíamos estar
gastando em oração:
Se você evitar conversas desnecessárias e visitas ociosas, bem como a
preocupação com notícias e reportagens diversas, encontrará tempo
suficiente e apropriado para boas meditações…. Qualquer pessoa que tenha
decidido progredir espiritualmente fará bem em passar algum tempo longe
da multidão, como Jesus fez. 20
Em outras palavras, decida acordar todos os dias e fazer com que passar um
tempo a sós com Deus seja uma prioridade máxima. Ao fazer isso, aprenderemos,
como Jacó, quão fracos e fortes realmente somos. 21
A Luta Contra A Distração
Mesmo que vençamos a batalha para nos levantarmos e orarmos, assim que
o fizermos, outra batalha nos aguarda: a guerra contra a distração. Qualquer
pessoa que já tenha lutado contra a distração durante a oração achará a descrição
de João Cassiano muito familiar:
O que quer que nossa alma estivesse pensando antes do momento da oração,
inevitavelmente nos ocorre quando oramos…. Pois a mente em oração é
moldada pelo estado em que se encontrava anteriormente e, quando
mergulhamos na oração, a imagem dos mesmos atos, palavras e pensamentos
se desenrola diante de nossos olhos. 22
Então, o que devemos fazer? O que não fazer é começar a perseguir cada
distração. Em vez disso, tudo o que precisamos fazer é gentilmente voltar nossos
corações para Deus. Siga o conselho de João Clímaco:
Lute sempre com seus pensamentos e chame-os de volta quando eles se
afastarem. Deus não exige daqueles que estão sob obediência que seus
pensamentos estejam totalmente livres de distrações quando oram. E não
desanime quando seus pensamentos forem roubados. Apenas permaneça
calmo e constantemente chame sua mente de volta. 23
177

De certo ponto de vista, algumas distrações durante a oração podem


realmente ser úteis, pois “uma distração nos revela aquilo a que estamos
apegados. ”24
Vistos sob esta luz, eles podem dar-nos a oportunidade de pedir
humildemente a Deus que desvie os nossos corações das ansiedades e ninharias
mundanas e voltemo-nos para Aquele a quem devemos amar acima de todas as
coisas. Ao mesmo tempo, precisamos de ter a certeza de não provocar distrações,
tentando combinar outras tarefas com o nosso tempo de oração. 25
O Problema Da Oração “Não Respondida”
A terceira e última batalha da oração envolve o assunto de que Jesus fala
na Parábola da Viúva Persistente: o problema da oração não respondida.
Esta é a batalha que ocorre quando pedimos a Deus repetidamente por
alguma coisa aparentemente boa – seja o dom de alguma graça ou a libertação de
algum sofrimento ou mal – e a única resposta é… silêncio.
A decepção, às vezes esmagadora, de não sermos respondidos de acordo
com a nossa própria vontade levanta a eterna questão: “De que adianta orar?” 26
Isto é o que alguns podem chamar de “escândalo” ou “pedra de tropeço” da
oração. Por sentirem que não estão sendo ouvidas, muitas almas, tragicamente,
param completamente de orar.
Como vencemos esta batalha? Por que Deus permite que sejamos como a
viúva que chora dia e noite, mas não ouve resposta e não recebe justiça?
Considere o conselho do antigo escritor cristão Evagrio do Ponto e
Francisco de Sales:
Não se preocupe se você não receber imediatamente de Deus o que lhe pede;
pois ele deseja fazer algo ainda maior por você, enquanto você se apega a ele
em oração. 27

Se acontecer de você não encontrar alegria ou conforto na meditação…,


peço-lhe que não seja perturbado…. Repita as palavras de Jacó: “Senhor, não
te deixarei ir até que me abençoe”. 28

Em outras palavras, não pare de orar! Mesmo que as nossas petições exatas
nunca nos sejam atendidas nesta vida, o próprio fato de que a oração não
respondida nos leva a passar mais tempo nos aproximando de Deus e implorando-
178

lhe por libertação é em si um dom da graça. Pela perseverança na oração, nossos


corações tornam-se gradualmente mais e mais conformados com a vontade de
Deus – seja ela qual for. Como Jesus no Jardim do Getsêmani, que pediu ao Pai
que tirasse dele o “cálice” do sofrimento, se fosse possível, a oração sem resposta
nos ensina a aprender a dizer com ele: “Não a minha vontade, mas a sua, seja
feita” (Lucas 22:42).
Este não é um presente pequeno, pois nestas sete palavras está escondido o
segredo da santidade e da felicidade.
179

22 A NOITE ESCURA
De noite a minha mão se estende sem se cansar; minha alma se recusa a ser
consolada.
—O Livro dos Salmos (77:2)
UMA QUARTA CHAVE PARA progredir nos primeiros estágios do
crescimento espiritual é estar ciente de duas experiências espirituais muito
diferentes, mas muito comuns.
Por um lado, os clássicos espirituais concordam que, após a conversão, os
iniciantes muitas vezes experimentam doçura espiritual, luz e um forte sentimento
da presença de Deus durante a oração. Por exemplo, um antigo escritor cristão
descreve o momento logo após a conversão como “aquele calor inicial e feliz” 1.
Da mesma forma, um místico medieval fala do “dom” da “doçura sensível”
ou do “consolo espiritual” que Deus muitas vezes dá àqueles que estão apenas
começando o caminho.2 Por fim, os escritores espirituais modernos enfatizam que
“todos os que começam a servir a Deus” comumente experimentam “o sabor doce
da devoção sensata” e “a luz agradável que os convida a avançar apressadamente
no caminho que leva a Deus”. 3
Por outro lado, os clássicos espirituais também concordam que depois de
uma alma ter vivido fielmente uma vida de oração, exame do coração, meditação
e evitação de vícios, normalmente acontece que as luzes espirituais “se apagam”.
Em algum momento, essas experiências de consolação são eliminadas e
substituídas por secura espiritual, escuridão e um sentimento de ausência de Deus
durante a oração. 4 Considere as seguintes citações:
Às vezes ele os torna secos e estéreis, lentos na oração, sonolentos e pouco
iluminados... fazendo-os pensar... que estão apenas regredindo.
—João Clímaco (século VII)5

Quando o consolo for tirado de você, não se desespere imediatamente…. Nada


disso é novo ou desconhecido para aqueles que têm experiência nos caminhos de
Deus.
—Thomas de Kempis (século XV)6
180

A noite dos sentidos é comum e chega a muitos: estes são os iniciantes…. Quando
eles realizam esses exercícios espirituais com o maior deleite e prazer, e quando
acreditam que o sol do favor divino está brilhando mais intensamente sobre eles,
Deus transforma toda essa luz deles em trevas.
—João da Cruz (século XVI)7
Na sua obra clássica, Noite Escura da Alma, o grande místico espanhol João
da Cruz refere-se a esta experiência como a “noite escura dos sentidos”. 8 Ele
destaca três sinais desta noite escura: (1) secura na oração; (2) desejo de servir a
Deus, mas falta de prazer em fazê-lo; e (3) dificuldade crescente em continuar a
meditar. 9 Observe que esta “noite” não é o mesmo que depressão, doença ou
tragédia. Nem deve ser confundido com aquele vazio que surge quando caímos
novamente no pecado ou porque relaxamos na oração por causa da acídia (ver
capítulo 17). Pelo contrário, a noite escura dos sentidos é algo que acontece
quando um cristão vive fielmente uma vida espiritual, mas começa a perder todo
o consolo ao fazê-lo.
Por que Deus permite que isso aconteça? Qual é o propósito desta “noite
escura”? E onde é que os escritores espirituais encontram esta ideia na Bíblia?
Neste capítulo, examinaremos mais de perto o que as Escrituras dizem sobre essa
experiência comum de desolação espiritual e como se comportar em meio a ela.

A NOITE ESCURA NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Se há algum lugar nas Escrituras Judaicas onde a experiência de secura
espiritual, escuridão e ausência de consolo está em plena exibição, é no livro dos
Salmos. Para nossos propósitos, dois em particular – o Salmo 77 e o Salmo 143 –
destacam-se como exemplos importantes da noite escura dos sentidos.
Salmo 77: A Noite Escura da Alma
A primeira destas duas pode ser a descrição mais explícita da noite escura
dos sentidos em toda a Bíblia. Atribuído a Asafe, um dos principais cantores do
Rei Davi no Templo (1 Crônicas 6:31–39), o Salmo 77 descreve a desolação de
uma alma que continua a orar e meditar, mas não ouve nada de Deus:
Eu clamo em voz alta a Deus,
em voz alta a Deus, para que ele me ouça.
No dia da minha angústia busco o Senhor;
de noite a minha mão se estende sem se cansar;
181

minha alma se recusa a ser consolada.


Penso em Deus e gemo;
Eu medito e meu espírito desmaia….
Comungo com meu coração durante a noite;
Eu medito e busco meu espírito:
“O Senhor rejeitará para sempre,
e nunca mais ser favorável?…
Deus se esqueceu de ser gracioso?
Ele, com raiva, calou sua compaixão?” …
Meditarei em todo o seu trabalho,
e medite sobre seus feitos poderosos.
(Salmo 77:1–3, 6–9, 12)
Observe aqui a linguagem explícita de uma “noite” espiritual escura
(hebraico laylah) da “alma” (hebraico nephesh) (Salmo 77:2). Esta pode muito
bem ser a origem do título da obra-prima espiritual de João da Cruz. 10 Observe
também que o problema do salmista não se concentra em provações e tribulações
exteriores.
Pelo contrário, o seu sofrimento é interior: a sua alma recusa ser consolada
durante a sua meditação. 11 Ele implora a ajuda de Deus, uma e outra vez, mas no
final, o seu espírito ainda está fraco e abatido. Embora fiel à oração, ele se sente
rejeitado por Deus e se pergunta se Deus está zangado com ele.
Apesar de tudo isso, ele não para de clamar a Deus. A sua resposta à
experiência da ausência de Deus e às trevas da desolação é continuar a orar.
Salmo 143: Desolação E Secura Espiritual
O segundo exemplo chave da noite escura dos sentidos vem do Salmo
143.12 Este salmo, atribuído ao próprio Rei David, descreve vividamente a
experiência de secura e escuridão durante a meditação:
Ouve a minha oração, ó Senhor;
dai ouvidos às minhas súplicas!…
Pois o inimigo me perseguiu;
ele esmagou minha vida;
182

ele me fez sentar nas trevas como aqueles que morreram há muito tempo.
Por isso o meu espírito desfalece dentro de mim;
meu coração dentro de mim está desolado….
Eu medito em tudo o que fizeste….
Estendo minhas mãos para Vós;
minha alma tem sede de Vós como uma terra seca.
Apressa-te em responder-me, Senhor!…
Não esconda de mim seu rosto,
para que eu não seja como os que descem à cova.
Deixe-me ouvir pela manhã sobre seu amor inabalável,
pois em Vós eu coloquei minha confiança.
(Salmo 143:1, 3–8)13
Observe mais uma vez que a “escuridão” (hebraico machshak)
experimentada por Davi está diretamente ligada à sua “meditação” (hebraico
hagah) (Salmo 143:3, 5). Quando ele fala de um “inimigo” (Salmo 143:3), ele
não parece estar se referindo à perseguição externa, mas sim ao sofrimento interior
– um “entorpecimento do coração” que o deixa esp iritualmente esmagado e nas
trevas. 14 Além disso, durante esse período, Davi também experimenta tal secura
que compara sua alma a um deserto sem água. Finalmente, há também o
sentimento da ausência de Deus: parece que Deus desviou o seu “rosto” (panim
em hebraico) de David – uma palavra hebraica que também significa “presença”.
Em vez disso, ele confia em Deus de que as trevas acabarão por dar lugar à luz da
“manhã” (Salmo 143:8).

JESUS E A NOITE ESCURA


Pelo que posso dizer, Jesus nunca descreve diretamente a experiência de
secura espiritual, escuridão e ausência divina, mais tarde conhecida como a “noite
escura dos sentidos”. 16 Contudo, há uma parábola de Jesus que descreve o tipo de
oração que é necessário praticar durante a noite escura dos sentidos. Estou falando
aqui da parábola do amigo à meia-noite (Lucas 11:5–13).
Vamos dedicar alguns momentos para examinar atentamente esta passagem
muito importante.
183

A Parábola Do Amigo À Meia-Noite


No Evangelho de Lucas, Jesus conta aos seus discípulos três parábolas
principais sobre oração: o fariseu e o cobrador de impostos (Lucas 18:9 –14), a
viúva persistente (Lucas 18:1–8) e a seguinte:
Qual de vocês, que tem um amigo, irá procurá-lo à meia-noite e lhe dirá:
“Amigo, empreste-me três pães; pois um amigo meu chegou de viagem e não
tenho nada para lhe apresentar”; e ele responderá de dentro: “Não me
incomode; a porta está fechada e meus filhos estão comigo na cama; Não
posso me levantar e te dar nada”? Eu lhe digo, embora ele não se levante e
lhe dê nada porque é seu amigo, ainda assim, por causa de sua importunação,
ele se levantará e lhe dará tudo o que ele precisa. E eu vos digo: Pedi, e dar-
se-vos-á; Procura e acharás; bata, e ela será aberta para você. Pois todo
aquele que pede recebe, e quem busca encontra, e a quem bate será aberto.
Qual dentre vós pai, se o filho pedir um peixe, em vez de um peixe lhe dará
uma serpente; ou se ele pedir um ovo, lhe dará um escorpião? Se vós, que
sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais o Pai
Celeste dará o Espírito Santo a quem lhe pedir! (Lucas 11:5–13)
Para compreender como as palavras de Jesus podem ser aplicadas à
experiência da noite escura dos sentidos, são necessários quatro pontos.
Primeiro, ao situar a história à meia-noite, Jesus está mais uma vez aludindo
à prática da oração secreta. Pois nas Escrituras Judaicas, a meia-noite é apontada
como um momento especial de oração, quando a alma pode estar a sós com Deus:
À meia-noite levanto-me para te louvar, por causa das tuas justas
ordenanças. (Salmo 119:62)
Assim como o salmista ora a Deus na escuridão da meia-noite, também o
amigo da parábola faz seus pedidos conhecidos na privacidade e na intimidade da
noite. 17
Segundo, Jesus está ensinando seus discípulos a pedir descaradamente ao
Pai tudo o que precisam. Embora algumas traduções inglesas falem da
“persistência” (NAB) ou “importunidade” (RSV) do amigo à meia-noite, o grego
diz literalmente que ele está “sem vergonha” (grego anaideia) (Lucas 11:8). 18 Ao
fazer seu pedido, ele não está preocupado com sua aparência, mas está totalmente
focado em conseguir o que precisa.
Terceiro, Jesus está ensinando seus discípulos a orar com absoluta
confiança de que o Pai os ouvirá e responderá. Depois de usar sua fórmula padrão
184

para fazer uma declaração solene — “Eu vos digo” — Jesus dá aos seus discípulos
três ordens (Lucas 11:9):
1. Peça: “e isso lhe será dado”
2. Procure: “e você encontrará”
3. Bata: “e será aberto para você”
Estas não são sugestões. Jesus ordena aos seus discípulos que orem com
confiança em serem ouvidos. Esta confiança não está enraizada no seu próprio
esforço ou mérito, mas na promessa solene de Jesus e na bondade de Deus.
Afinal, se um ser humano pecador dá ao seu amigo tudo o que ele precisa
porque ele quer voltar a dormir, e um pai humano pecador dá bons presentes aos
seus filhos, então quanto mais o Pai celestial – que nunca dorme que é
perfeitamente bom – responderá às orações dos discípulos que oram com fé?
Finalmente – e isto é importante – Jesus termina relacionando tudo o que
acabou de dizer sobre a oração ao “dom supremo, o Espírito Santo”. 19 A
experiência mostra que os seres humanos muitas vezes pedem a Deus presentes
materiais – como dinheiro, bens, saúde física e sucesso — isso não
necessariamente os ajudará no caminho para a vida eterna. 20 Jesus não dá
nenhuma garantia de que o Pai atenderá a tais pedidos mundanos. Ele não está
ensinando aos seus discípulos que o Pai lhes dará tudo o que quiserem, mas que
lhes dará tudo o que precisarem. Não importa quão profunda seja a escuridão, eles
podem estar completamente confiantes de que, se pedirem a Deus o dom do
Espírito Santo, certamente o receberão. 21 Pois Jesus, que não mente, dá a sua
palavra solene: “Eu vos digo: pedi, e dar-se-vos-á” (Lucas 11:9).

A NOITE ESCURA NA TRADIÇÃO CRISTÃ


Com tudo isso em mente, encerramos este capítulo com alguns pontos
práticos, mas importantes, da tradição cristã posterior.
Não Se Surpreenda Com A Secura E As Trevas Espirituais
A primeira coisa que precisa ser dita é que os seguidores de Jesus que estão
se esforçando para viver uma vida de oração não devem se surpreender quando –
e não se – eles começam a sentir aridez e dificuldade na oração. Como diz João
da Cruz:
A noite dos sentidos é comum e chega a muitos: estes são os iniciantes….
Normalmente, não se passa muito tempo depois de seu início antes que eles
185

entrem nesta noite de sentidos; e a grande maioria deles de fato entra nele,
pois geralmente serão vistos caindo nesta aridez. 22
Ou seja, a noite escura dos sentidos não é uma experiência rara, reservada
a poucos. É algo comum, vivenciado por muitos.
Portanto, não há razão para que isso nos pegue desprevenidos.
Não Pare De Orar
Igualmente importante: se começarmos a sentir secura e escuridão
espirituais durante a oração, devemos continuar seguindo o caminho espiritual.
Não devemos voltar atrás. Como ensina Francisco de Sales:
A devoção não consiste na doçura, no deleite, no consolo e na ternura
sensível… [que acontecem] quando realizamos vários exercícios
espirituais…. Muitas almas experimentam esses sentimentos ternos e
consoladores, mas ainda permanecem muito cruéis…. A verdadeira devoção
consiste numa vontade constante, resoluta, pronta e ativa de fazer tudo o que
sabemos ser agradável a Deus. 23
Em outras palavras, fazer progresso espiritual não significa sentir-se bem
durante a oração; trata-se de crescer em virtude. Muitas pessoas partilham o
equívoco generalizado de que as consolações espirituais são o cerne da oração e
da adoração. Por isso, como lamenta João da Cruz, muitas almas abandonam
tragicamente o caminho espiritual assim que a sua oração seca:
Estas almas voltam atrás nesse momento se não há quem as compreenda;
abandonam o caminho ou perdem a coragem; ou, pelo menos, são impedidos
de ir mais longe pelo grande esforço que enfrentam para avançar no caminho
da meditação e do raciocínio. 24
Como Asafe no salmo, quando a oração se torna árida e sombria,
rapidamente presumimos que algo está errado ou, pior, que Deus nos abandonou.
Mas nada poderia estar mais longe da verdade. Tal como o Rei Davi, devemos
continuar a orar, mesmo no meio da noite.
Fique Quieto E Saiba Que Ele É Deus
Terceiro, se continuarmos a sentir dificuldades crescentes na meditação,
não devemos forçá-la. A este respeito, João da Cruz dá instruções cruciais:
A maneira como devem se comportar nesta noite dos sentidos é não se
dedicarem de forma alguma ao raciocínio e à meditação, já que este não é o
momento para isso, mas sim permitir que a alma permaneça em paz e
186

sossego, embora possa Parecer-lhes claro que não estão fazendo nada e
desperdiçando seu tempo, … contentando-se apenas com uma atenção
pacífica e amorosa em direção a Deus. 25
Em outras palavras, se tentarmos meditar, mas acharmos que é impossível,
não deveríamos insistir em “fazer alguma coisa”. Agora é a hora de permitir que
Deus faça sua obra na alma. Como diz o livro dos Salmos:
“Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus” (Salmos 46:10).
O Propósito Da Noite Escura
Finalmente, e talvez o mais importante de tudo, a razão pela qual Deus
permite que a noite escura dos sentidos aconteça é para que possamos crescer em
virtude. 26
Por exemplo, a experiência da aridez na oração ajuda-nos a crescer em
diligência, ensinando-nos a orar não porque nos faz sentir bem ou porque tiramos
algum proveito disso, mas porque amamos a Deus. Da mesma forma, a
experiência de dificuldade em meditar ajuda-nos a crescer em diligência,
ensinando-nos a fazer o que é certo, mesmo quando isso exige esforço. A
experiência da desolação ajuda-nos a crescer em paciência à medida que sofremos
voluntariamente e esperamos que Deus nos liberte. 27 Acima de tudo, a experiência
da escuridão espiritual ajuda-nos a crescer em humildade, fazendo-nos perceber
quão fracos realmente somos e que tudo o que recebemos é um dom da graça de
Deus.28
Com efeito, segundo João da Cruz, é precisamente durante a noite escura
dos sentidos que a alma “adquire as virtudes opostas” aos pecados capitais 29 e
começa a produzir os “frutos do Espírito Santo” 30 mencionados pelo apóstolo
Paulo:
O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade,
fidelidade, mansidão, domínio próprio. (Gálatas 5:22–23)
Em suma, se quisermos que as árvores dos nossos corações cresçam nas
virtudes capitais e comecem a dar o fruto sobrenatural do Espírito Santo, devemos
estar dispostos a deixar Deus nos transformar enquanto passamos pela secura e
desolação da noite escura dos sentidos. Jesus deu-nos a sua promessa solene: se
nós, como o amigo da meia-noite, formos persistentes na nossa oração, Deus nos
dará tudo o que precisamos – acima de tudo, o dom do Espírito Santo. Pois depois
do inverno chega a primavera. Depois da escuridão, o amanhecer surge.
187

23 A ÁGUA VIVA
Senhor, dá-me desta água, para que eu não tenha sede.
—A Mulher Samaritana (João 4:15)
A QUINTA CHAVE PARA progredir na jornada espiritual — e aquela
com a qual encerraremos este livro — é a compreensão de que, no final, até a
própria oração é uma dádiva de Deus. Sendo o encontro do coração humano com
o Deus infinito do universo, a oração não é apenas algo que escolhemos fazer; é
algo que Deus faz em nós, através da graça do Espírito Santo.
Ao longo dos séculos, os santos e doutores da vida espiritual tiveram plena
consciência de que a própria oração – especialmente a oração contemplativa – é
um dom.
Considere, por exemplo, as palavras de escritores cristãos antigos,
medievais e modernos:
A palavra Espírito é o nome que Paulo dá a [este] tipo de graça e à alma que a
recebe…. O homem espiritual…tem o dom da oração.
—João Crisóstomo (século IV)1

Quando Deus lhe der consolação espiritual, receba-a com ação de graças, mas
reflita que é uma dádiva de Deus e não fruto do seu mérito.
—Thomas de Kempis (século XV)2

Deus não nos permite beber desta água da contemplação perfeita sempre que
quisermos: a escolha não é nossa; esta união divina é algo bastante
sobrenatural, visto que pode purificar a alma.
—Teresa de Ávila (século XVI)3
Como isso pode ser? Depois de tudo o que aprendemos sobre a batalha da
oração e o esforço necessário para progredir espiritualmente, como pode s er que
a oração também seja algo que Deus faz em nós?
Para responder a estas perguntas, terminaremos o nosso estudo voltando ao
ponto de partida: o encontro de Jesus com a mulher samaritana junto ao poço. Ao
longo da história, muitos escritores espirituais apontaram esta passagem como
uma espécie de ícone do que acontece na alma durante a oração. 4 Como veremos,
188

Jesus dá-nos a chave para compreender a oração como um dom da graça quando
se oferece para dar à mulher samaritana o misterioso “presente” da “água viva”.

A ÁGUA VIVA NAS ESCRITURAS JUDAICAS


Para compreender as palavras de Jesus, primeiro precisamos fazer alguns
breves comentários sobre a imagem da “água viva” no Antigo Testamento.
A Água Que Purifica Do Pecado
Num nível literal, “água viva” (hebraico mayim hayyim) significa
simplesmente “água corrente” – em oposição à água estagnada mantida numa
cisterna. 5 Nas Escrituras Judaicas, apenas a água viva poderia ser usada como
“água para a impureza, para a remoção do pecado” (Números 19:9). Essa água
preparava uma pessoa para entrar na morada de Deus e adorá-lo no Tabernáculo:
Para os impuros eles tomarão algumas cinzas do holocausto pelo pecado, e
água viva será adicionada em um recipiente; então uma pessoa limpa tomará
hissopo, e o mergulhará na água, e aspergirá sobre a tenda, … e sobre as
pessoas que ali estavam. (Números 19:17–18)6
Observe aqui que a água viva é combinada com as cinzas de um sacrifício
para purificar o povo do pecado. Observe também que um ramo de “hissopo” é
usado para aspergir a água viva. Este é o mesmo tipo de ramo usado para aspergir
o sangue sacrificial do cordeiro pascal quando Deus redime Israel (ver Êxodo
12:22). Em outras palavras, “água viva” é a água sacrificial que torna uma pessoa
pecadora capaz de entrar na presença de Deus.
A Água Viva: O Próprio Deus
Em mais de uma ocasião nas Escrituras Judaicas, o próprio Deus é descrito
como “água viva”, o único que pode saciar a sede espiritual do seu povo.
Considere o seguinte:
Como um cervo anseia
para riachos que fluem,
tanto anseia minha alma
por Vós, ó Deus.
Minha alma tem sede de Deus,
para o Deus vivo.
189

(Salmo 42:1–2)7

Assim diz o Senhor:…


“[Meu povo] me abandonou,
a fonte de águas vivas,
e cavaram cisternas para si,
cisternas quebradas,
que não pode reter água.”
(Jeremias 2:5, 13)
Em ambas as citações, o próprio Deus é descrito como o único que pode
saciar a sede espiritual do seu povo. O salmista anseia por satisfazer a sua sede de
Deus entrando na sua presença na “casa de Deus”, isto é, no Templo (Salmos
42:4).8 E embora o povo de Israel tente saciar a sua sede com a água sem vida de
“cisternas” – isto é, com outras coisas além de Deus – no final, essas realidades
terrenas não podem satisfazer. 9
A Água Que Flui Do Templo
Por último, nas Escrituras Judaicas, os profetas descrevem a era vindoura
da salvação como um tempo em que um rio de “água viva” fluirá do novo Templo
em Jerusalém para purificar o mundo do pecado e dar vida a tudo o que ela toca.
Por exemplo, o profeta Ezequiel teve uma visão de um rio de água “que
desce abaixo da extremidade sul da soleira do templo, ao sul do altar” (Ezequiel
47:1). Embora comece pequeno, esse riacho rapidamente se torna um rio enorme
que dá vida a tudo que toca (Ezequiel 47:3–12). Da mesma forma, o profeta
Zacarias prediz que no mesmo dia em que uma figura misteriosa for condenada à
morte, uma fonte de “águas vivas” fluirá de Jerusalém:
Quando olharem para aquele a quem traspassaram, lamentarão por ele….
Naquele dia haverá uma fonte aberta para a casa de Davi e os habitantes de
Jerusalém, para purificá-los do pecado e da impureza…. Naquele dia, águas
vivas fluirão de Jerusalém. (Zacarias 12:10; 13:1; 14:8)
Embora Zacarias não use a palavra “Messias”, desde os tempos antigos,
aquele que foi “transpassado” foi identificado como o rei tão esperado.10
190

Assim, de acordo com as Escrituras Judaicas, no dia em que o futuro rei


davídico for morto, uma fonte incessante de “águas vivas” fluirá de Jerusalém
para cobrir o mundo inteiro e purificá-lo do pecado.

JESUS E A ÁGUA VIVA


Com este contexto em mente, podemos agora regressar à oferta de “água
viva” de Jesus à mulher samaritana e compreendê-la no seu antigo contexto
judaico:
[Jesus] teve que passar por Samaria…. O poço de Jacó estava ali, e então
Jesus, cansado como estava da viagem, sentou-se ao lado do poço. Era por
volta da hora sexta.
Chegou uma mulher samaritana para tirar água. Jesus lhe disse: “Dá-me de
beber”. …A mulher samaritana disse-lhe: “Como é que tu, judeu, me pedes
de beber, uma mulher samaritana?” Pois os judeus não têm relações com os
samaritanos. Jesus lhe respondeu: “Se você conhecesse o dom de Deus e
quem é que lhe diz: ‘Dá-me de beber’, você lhe pediria, e ele lhe daria água
viva”. A mulher lhe disse: “Senhor, não tens com que tirar, e o poço é fundo;
onde você consegue essa água viva?”… Jesus lhe disse: “Todo aquele que
beber desta água terá sede novamente, mas quem beber da água que eu lhe
der nunca mais terá sede; a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de
água a jorrar para a vida eterna”. A mulher lhe disse: “Senhor, dá-me desta
água, para que não tenha sede, nem venha aqui tirar”. (João 4:4, 6–7, 9–11,
13–15)
Muitas páginas foram escritas sobre esse rico e belo episódio. 11 Para nossos
propósitos aqui, algumas observações serão suficientes.
A Água Viva = o Espírito Santo
Quando Jesus promete dar “água viva” à mulher samaritana, ele não está
falando de água corrente comum. Ele está falando sobre a água espiritual que
brota dentro das pessoas e as leva à vida eterna. Como ele diz mais tarde, enquanto
falava no Templo:
Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Aquele que crê em mim, como diz
a escritura: “Do seu coração fluirão rios de água viva”. Agora, isto ele disse
sobre o Espírito, que aqueles que acreditaram nele deveriam receber; porque
o Espírito ainda não havia sido dado, porque Jesus ainda não havia sido
glorificado. (João 7:37–39)
191

Uma vez que sabemos que nas Escrituras Judaicas o próprio Deus é
identificado como a “fonte de águas vivas” (Jeremias 2:13), então a oferta de Jesus
de “água viva” à mulher samaritana começa a fazer sentido. Em suma, Jesus
convida-a a acreditar nele para que possa receber o dom da vida eterna através da
habitação do Espírito de Deus, o único que é capaz de satisfazer a sede espiritual
do coração humano. 12 Mais tarde, durante a Última Ceia, Jesus revelará
explicitamente aos seus discípulos que lhes vai dar “o Espírito da ver dade”, que
não só habitará “com” eles, mas também estará “dentro” deles (João 14). :16–17).
Embora a mulher samaritana claramente ainda não compreenda plenamente
o que Jesus lhe oferece, as suas palavras, no entanto, levam-na a pedir-lhe que lhe
dê este presente: “Senhor, dá-me desta água, para que não tenha sede, nem venha
aqui tirar”. (João 4:15). 13
A Água Viva e a Crucificação
Mas quando exatamente Jesus dá o dom da água viva? Com certeza, é
somente depois da Ressurreição que Jesus sopra sobre os discípu los e diz
explicitamente: “Recebei o Espírito Santo” (João 20:22). No entanto, se olharmos
para a Crucificação à luz das Escrituras Judaicas, descobrimos que a água viva da
salvação começa a fluir pela primeira vez no dia da morte de Jesus:
Jesus, sabendo que tudo estava consumado, disse (para cumprir a Escritura),
"Tenho sede." Uma tigela cheia de vinagre estava ali; então colocaram uma
esponja cheia de vinho sobre o hissopo e levaram-na à boca dele. Quando
Jesus recebeu o vinho, disse: “Está consumado”; e ele inclinou a cabeça e
entregou o seu espírito….
Mas um dos soldados perfurou-lhe o lado com uma lança e imediatamente
saiu sangue e água…. Estas coisas aconteceram para que se cumprisse a
Escritura: “Olharão para aquele a quem traspassaram”. (João 19:28–30, 34,
36–37)14
Assim como Zacarias predisse que no dia em que o Messias fosse
“transpassado”, uma fonte de “águas vivas” seria aberta em Jerusalém para
purificar o mundo do “pecado” (Zacarias 12:10–14:8), também agora o sangue e
a água purificadores fluem do lado trespassado de Jesus crucificado. E assim
como o profeta Ezequiel predisse que um dia uma corrente de água vivificante
fluiria do lado do novo Templo (Ezequiel 47:1–2), agora uma corrente de sangue
e água flui do lado de Jesus— cujo “corpo” é o “templo” de Deus (João 2:21). E
assim como Jesus se levantou no Templo e declarou que a “água viva” fluiria de
192

seu “coração”, agora, em seu último suspiro, ele inclina a cabeça e entrega “seu
espírito” (João 7:38; 19:30). 15
Em suma, é aqui, aqui no Calvário, que Jesus finalmente responde ao
pedido da mulher samaritana: “Dá-me desta água” (João 4:15). Em apoio a este
ponto, observe três paralelos marcantes entre as duas cenas:
Jesus ao lado do poço A crucificação
“a hora sexta” “a hora sexta”
“Dê-me de beber” "Tenho sede"
"água Viva" “água” flui do coração de Jesus
(João 4:6–7, 10) (João 19:14, 28, 34)

Quando vemos essas conexões, percebemos que quando Jesus pede de


beber à mulher samaritana, ele não está apenas com sede de água terrena. Ele tem
sede da salvação dela – e da salvação do mundo inteiro – que começará quando a
água viva começar a fluir do templo do seu corpo e do altar do seu coração
sagrado.16 Ele está sedento pelo dia em que o Espírito Santo começará a lavar o
mundo num dilúvio de graça, para purificá-lo do pecado e fazer novas todas as
coisas através do dom da vida eterna.

AO LADO DO POÇO COM JESUS


Com tudo isso em mente, podemos encerrar nossa jornada juntos. Antes de
fazer isso, porém, quero reiterar que neste livro nos concentramos apenas no início
do caminho espiritual de Jesus – comumente conhecido como caminho purgativo.
Há muito, muito mais que poderia ser dito sobre Jesus e as raízes bíblicas dos
caminhos iluminativo e unitivo. Por enquanto, terminaremos com algumas
reflexões finais que brotam do encontro entre Jesus e a mulher junto ao poço e
iluminam o mistério do dom da oração.
O Espírito Derramado em Nossos Corações
Em primeiro lugar, através da fé e do batismo, os seguidores de Jesus foram
cheios da água viva do Espírito Santo. Nas palavras do apóstolo Paulo:
Por um Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo - judeus ou gregos,
escravos ou livres - e todos bebemos de um Espírito. (1 Coríntios 12:13)
193

O amor de Deus foi derramado em nossos corações através do Espírito Santo


que nos foi dado. (Romanos 5:5)
Observe aqui que em ambas as palavras, Paulo descreve o Espírito Santo
como água viva que tem o poder de saciar nossa sede espiritual e encher as fontes
de nossos corações com o amor sobrenatural de Deus.
O Espírito Nos Ajuda Em Nossas Fraquezas
Segundo, se o Espírito Santo foi realmente derramado em nossos corações,
então sempre que oramos de coração, não é apenas algo que fazemos por conta
própria. Pelo contrário, o Espírito Santo que habita conosco reza conosco e por
nós.
A água viva que nos foi dada brota em nossos corações e nos enche do amor
de Deus. Nas inesquecíveis palavras de Paulo:
Outrossim, o Espírito vem em auxílio à nossa fraqueza; porque não sabemos
o que devemos pedir, nem orar como convém, mas o Espírito mesmo
intercede por nós com gemidos inefáveis. E aquele que perscruta os corações
sabe o que deseja o Espírito, o qual intercede pelos santos, segundo Deus.
(Romanos 8:26–27)
Se você já sentiu, ao tentar orar, que não sabia o que estava fazendo, então
anime-se. Você não está sozinho. Como diz Paulo, porque só Deus pode realmente
compreender o mistério de cada coração humano, só o Espírito Santo pode
verdadeiramente orar em nós e por nós de maneiras que vão infinitamente além
das palavras humanas. Isto significa admitir humildemente que precisamos do
Espírito de Deus para nos ensinar, para nos guiar e para orar em nós. Precisamos
que a água viva do Espírito Santo brote dentro de nós e regue a “árvore” dos
nossos corações para que possamos crescer em virtude e dar frutos. Pois assim
como Jesus é o modelo da oração cristã, “o Espírito Santo é o mestre da vida
interior”. 17
Jesus Ainda Está Esperando No Poço
Finalmente, e o mais importante de tudo, se formos até a fonte da oração
— todos os dias, pelo resto de nossas vidas — descobriremos algo belo e
misterioso. Tal como a mulher samaritana junto ao poço, descobriremos que Jesus
já está ali, à nossa espera. Considere estas palavras lindas e inesquecíveis:
“Se você conhecesse o dom de Deus!” A maravilha da oração revela-se junto
ao poço onde vamos buscar água: ali Cristo vem ao encontro de cada ser
humano. É ele quem primeiro nos procura e nos pede de beber. Jesus tem
194

sede; seu pedido surge das profundezas do desejo de Deus para nós. Quer
percebamos ou não, a oração é o encontro da sede de Deus com a nossa.
Deus tem sede para que tenhamos sede dele. 18
É verdade: Jesus ainda espera junto ao poço. Hoje, agora mesmo. Neste
exato momento, Jesus está esperando ao lado do poço do seu coração – e do meu.
Ele está esperando que venhamos até ele, nos sentemos com ele e conversemos
com ele em oração. Ele está esperando que levemos a ele nossa sede, que levemos
a ele nossas tristezas, que levemos nossos corações a ele. Ele espera que
simplesmente olhemos para ele, no mistério silencioso do amor.
Acima de tudo, espera que lhe peçamos, como fez uma vez a mulher
samaritana, que nos dê a água viva que nos dará forças para continuar no caminho
que conduz à vida eterna. Pois, como nos ensina Teresa de Lisieux, Jesus ainda
tem sede:
O mesmo Deus que declara que não precisa nos avisar quando está com
fome, não teve medo de pedir um pouco de água à mulher samaritana. Ele
estava com sede. Mas quando Ele disse: “Dá-me de beber”, era o amor da
Sua pobre criatura que o Criador do universo procurava. Ele estava sedento
de amor. 19
Teresa tem razão. Jesus ainda está com sede. Ele tem sede do teu amor e do
meu, da tua salvação e da minha, e a sua sede não será saciada até ao último dia,
quando a última alma na terra lhe disser: “Senhor, dá-me esta água, para que eu
não tenha sede”.
195

Para Hannah Rose


Hannah também orou e disse:
“Meu coração exulta no Senhor.”
—1 Samuel 2:1
196

AGRADECIMENTOS
Devo começar agradecendo ao Pe. Dennis Dinan, por seu ato extremamente
generoso de esmolas teológicas para comigo quando eu era um jovem professor
que estava apenas começando. Este livro não existiria se ele não estivesse disposto
a doar-me tantos volumes de teologia espiritual numa fase tão formativa da minha
vida. Sou eternamente grato.
Eu também não poderia tê-lo escrito sem o feedback dos alunos que
participaram daquele primeiro curso que ministrei sobre a Bíblia e a vida
espiritual há tantos anos no Colégio Nossa Senhora da Santa Cruz (hoje
Universidade de Santa Cruz), bem como versões posteriores do curso no
Seminário Notre Dame em Nova Orleans e na Escola de Pós -Graduação em
Teologia do Augustine Institute. Obrigado a todos por me ajudarem a refletir
sobre as raízes bíblicas da espiritualidade cristã e por compartilharem ideias de
suas próprias jornadas.
Também sou profundamente grato aos meus editores da Image Books,
Keren Baltzer e Ashley Hong. Seu entusiasmo, incentivo e apoio a este projeto
desde o início me deram coragem para continuar e concluir o livro em tempo hábil
em meio ao ano infame que foi 2020! Da mesma forma, estou muito grato ao meu
querido amigo Gary Jansen, que foi o primeiro a pensar que este livro seria uma
boa ideia. Obrigado, irmão, por tudo que você fez por mim nos últimos dez anos.
Também quero agradecer de coração a vários amigos e colegas que leram
vários rascunhos do livro e discutiram comigo os detalhes mais sutis da teologia
espiritual: Dr. Michael Barber, Pe. Michael Champagne, CJC, Irmã Julia
Darrenkamp, FSP, Dr. Josh Johnson, Matthew Leonard, Pe. Jeffrey Montz, Dr.
Mitch Semar e Dr John Sehorn. Seu feedback foi absolutamente inestimável.
Uma palavra especial de gratidão vai para o Arcebispo Alfred C. Hughes
por generosamente reservar tempo para ler o manuscrito e partilhar a sua
sabedoria adquirida em décadas de ensino e de vivência da vida espiritual cristã.
Obrigado por ser um bom pastor para mim e minha família. Mais uma vez, estou
profundamente grato aos amigos – clérigos, religiosos e leigos – que me apoiaram
com as suas orações.
Em particular, quero agradecer às Carmelitas Descalços de Lafayette,
Louisiana, que prometeram rezar por mim enquanto eu escrevia este livro.
Obrigado pelo seu testemunho de Cristo, pela sua alegria e por serem minhas
irmãs. Espero ter citado carmelitas suficientes para fazê-las felizes!
197

Não posso terminar sem expressar minha gratidão e amor por minha esposa,
Elizabeth, e por nossos filhos: Morgen, Aidan, Hannah, Marybeth e Lillia.
Elizabeth, que é uma escritora muito melhor do que eu, lê (e critica!) tudo
o que escrevo e sempre me ajuda a melhorar. Mas nunca tivemos tantas conversas
maravilhosas sobre um manuscrito como tivemos sobre este livro. Obrigado, Liz,
por percorrer o caminho de Jesus comigo todos esses anos. Por fim, de forma
muito especial, este livro é dedicado à minha filha Hannah. Em hebraico, seu
nome significa “graça”. Que você seja cheia da graça de Deus todos os dias da
sua vida para que você também possa cantar o antigo cântico de Hannah: “Meu
coração exulta no Senhor” (1 Samuel 2:1).
15 de outubro de 2020
Memória de Santa Teresa de Ávila,
Virgem e Doutora da Igreja
198

NOTAS
Introdução
1. Ver Brant Pitre, Spiritual Theology: Christian Prayer and the Three Stages of
the Spiritual Life (disponível em www.brantpitre.com) para uma gravação de
áudio editada das palestras originais.
2. Salvo indicação em contrário, todas as traduções de Lucas 10:42 aqui contidas
são traduções do autor.
3. Em relação a ambas as passagens, Orígenes de Alexandria escreveu: “Penso
que ninguém pode duvidar que João aqui usa os termos 'crianças', 'jovens' ou
'jovens' e 'pais' de acordo com a idade da alma e não do corpo…. E [Paulo] usa a
expressão ‘bebê em Cristo’ sem dúvida, segundo a idade da alma e não segundo
a da carne”. Orígenes, Comentário ao Cântico dos Cânticos, Prólogo, em Uma
Exortação ao Martírio, Oração e Obras Selecionadas, trad. Rowan A. Greer,
Clássicos da Espiritualidade Ocidental (Mahwah, NJ: Paulist, 1979), 221.
4. No antigo cristianismo oriental, veja Orígenes de Alexandria, que liga os livros
de Provérbios, Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos com a “infância”, “juventude”
e “masculinidade madura” espiritual (Orígenes, Comentário sobre o Cântico dos
Cânticos , Prólogo 2). Dionísio, o Areopagita, é o primeiro a falar explicitamente
de três estágios de “purificação, iluminação e perfeição” (Dionísio, o Areopagita,
Hierarquia Celestial, 3.2). João Clímaco também descreve a vida espiritual em
termos de três estágios: “o começo”, “o estágio intermediário” e “perfeição” (João
Clímaco, Ladder of Divine Ascent, 28). No Ocidente de língua latina, Agostinho
fala de “caridade” como sendo “nutrida” na infância, “fortificada” na adolescência
e “aperfeiçoada” na idade adulta (Agostinho, Homilias sobre 1 João, 5.4), e
Gregório, o Grande, fala de “três etapas de conversão”: “o começo, o meio e a
perfeição” (Gregório, o Grande, Morals in Job, 24.11.28).
No cristianismo oriental medieval, Niketas Stethatos fala de “três estágios”: “o
purgativo, o iluminativo e, finalmente, o místico, que é a própria perfeição”
(Niketas Stethatos, Capítulos Gnósticos, 41).
No cristianismo ocidental medieval, Boaventura de Bagnoregio escreve um
tratado inteiro sobre os três estágios de “purgação, iluminação e perfeição”
(Boaventura, O Tríplice Caminho, prólogo 1), e Tomás de Aquino fala de t rês
“graus de caridade”: que de “iniciantes”, que estão principalmente ocupados em
“evitar o pecado”, “os proficientes”, cujo objetivo principal é fazer “progresso no
199

bem”, e “os perfeitos”, que desejam “a união e o desfrute de Deus” (Thomas


Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, q. 24, art. 9; cf. I-II, q. 102, art. 3).
Catarina de Sena também fala dos “três graus” ou “estágios da alma”: o
“imperfeito”, o “mais perfeito” e o “mais perfeito” (Catarina de Sena, O Diálogo,
56). Nos tempos modernos, Inácio de Loyola liga a “Primeira Semana” e a
“Segunda Semana” dos seus Exercícios Espirituais com “o caminho purgativo” e
o “caminho iluminativo” (Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, nº 10), e João
de Loyola a Cruz escreve extensivamente sobre “os três es tados”: “o caminho
purgativo”, “o caminho iluminativo” e “o caminho unitivo” (João da Cruz, O
Caminho Espiritual).
Cântico, tema 1–2). Mais recentemente, João Paulo II descreve a vida cristã como
um caminho que consiste em “três etapas”: “o caminho purgativo, o caminho
iluminativo e o caminho unitivo” (João Paulo II, Memória e Identidade, 6.2-6).
Para as citações acima, veja Orígenes, Exortação ao Martírio, 220; Pseudo-
Dionísio, As Obras Completas, trad. Colm Luibheid e Paul Rorem, Clássicos da
Espiritualidade Ocidental (Mahwah, NJ: Paulist, 1987), 155;
São João Clímaco, A Escada da Ascensão Divina, rev. Ed. (Boston: Mosteiro da
Sagrada Transfiguração, 2019), 235–36; Santo Agostinho, Homilias sobre a
Primeira Epístola de João, trad. Boniface Ramsey, ed. Daniel E. Doyle, OSA, e
Thomas Martin, OSA, vol. 1 (Hyde Park, NY: New City Press, 2008), 79;
Gregório, o Grande, Reflexões Morais sobre o Livro de Jó, trad. Brian Kerns,
OCSO, vol. 5 (Collegeville, Minnesota: Liturgical Press, 2019), 91 (salvo
indicação em contrário, todas as traduções desta edição); John Anthony
McGuckin, trad., O Livro dos Capítulos Místicos: Meditações sobre a Ascensão
da Alma, dos Padres do Deserto e Outros Contemplativos Cristãos Primitivos
(Boston: Shambhala, 2002), 117;
Robert J. Karris, OFM, ed., Obras de São Boaventura, vol. 10, Escritos sobre a
Vida Espiritual (São Boaventura, NY: Instituto Franciscano, 2006), 90;
São Tomás de Aquino, Summa Theologica: Edição completa em inglês em cinco
volumes (repr.; trad. Padres da Província Dominicana Inglesa; Allen, Tex.:
Christian Classics, 1981), 3.1275 (salvo indicação em contrário, todas as
traduções da Summa Theologica aqui contidos são desta edição);
Catarina de Siena, O Diálogo, trad. Suzanne Noffke, OP (Mahwah, NJ: Paulist,
1980), 111 (salvo indicação em contrário, todas as traduções de The Dialogue
aqui contidas são desta edição); Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio,
200

Prefácio de Avery Dulles, SJ, trad. Luís J. Puhl, S.J. (Nova York: Vintage Books,
2000), 7 (salvo indicação em contrário, todas as traduções dos Exercícios
Espirituais aqui contidas são desta edição);
As Obras Coletadas de São João da Cruz, trad. Kieran Kavanaugh, O.C.D., e
Otilio Rodriguez, O.C.D., 3ª ed. (Washington, DC: ICS Publications, 1991), 477;
Papa João Paulo II, Memória e Identidade: Conversas no Amanhecer de um
Milênio (Nova York: Rizzoli, 2005), 28–29.
5. Ver, por exemplo, Jordan Aumann, O.P., Spiritual Theology (London:
Continuum, 1980), 116: “Os três estágios ou graus da caridade nada mais são do
que divisões que caracterizam de maneira geral a infinita variedade de aspectos
da caridade. Vida cristã. O caminho da vida sobrenatural é sinuoso e seus estágios
oferecem uma variedade de transições e níveis que variam de acordo com cada
indivíduo. Nunca devemos pensar que os três estágios básicos são
compartimentos independentes e que aqueles que estão num determinado
momento em um estágio nunca participarão das atividades de outro estágio.”
6. Ver Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo
Testamento e Outra Literatura Cristã Primitiva, 3ª ed. (Chicago: University of
Chicago Press, 2000), 609–10. A palavra hebraica para “discípulo” (talmid em
hebraico), também derivada do verbo “aprender” (lamad em hebraico), ocorre
uma vez nas Escrituras Judaicas (ver 1 Crônicas 25:8). Veja Richard N.
Longenecker, ed., Patterns of Discipleship in the New Testament (Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans, 1996), 2.
7. Para mais informações sobre a identidade messiânica de Jesus, ver Brant Pitre,
The Case for Jesus: The Biblical and Historical Evidence for Christ (Nova Iorque:
Image, 2016).
8. Por exemplo, entre os cristãos antigos, João Clímaco escreve: “Alguém
envolvido nos assuntos do mundo pode progredir, se estiver determinado. Mas
não é fácil” (Escada da Ascensão Divina, 1.20). Na Idade Média, Tomás de
Aquino argumentou que a essência da santidade cristã consiste em guardar os dois
maiores mandamentos: o amor a Deus e ao próximo, algo que pode ser feito por
leigos que não fizeram votos de pobreza, castidade ou obediência. Ver Tomás de
Aquino, Summa Theologica, II–II, q. 184, art. 3-4. No século XVII, Francisco de
Sales insistia que “É um erro, ou melhor, uma heresia, querer banir a vida devota
do regimento de soldados, da oficina mecânica, da corte dos príncipes, ou do lar
dos casados… . Onde quer que estejamos, podemos e devemos aspirar a uma vida
perfeita” (Introdução à Vida Devota, 1.3). Finalmente, e talvez o mais
201

significativo de tudo, no século XX, o Concílio Ecuménico Vaticano II ensinou


solenemente que “todos os fiéis, qualquer que seja a sua condição ou estado, são
chamados pelo Senhor – cada um à sua maneira – a essa perfeita santidade pela
qual o próprio Pai é perfeito”. Vaticano II, Constituição Dogmática sobre a Igreja,
Lumen Gentium no. 11, citado pelo Papa Francisco, Exortação Apostólica sobre
o Chamado à Santidade no Mundo de Hoje, Gaudete et Exsultate, n. 10. Salvo
indicação em contrário, todas as traduções para o inglês de João Clímaco aqui
contidas são de João Clímaco, The Ladder of Divine Ascent, trad. Colm Luibheid
e Norman Russell, Os Clássicos da Espiritualidade Ocidental (Mahwah, NJ:
Paulist, 1982). Por uma questão de especificidade, contudo, seguirei o sistema de
numeração de parágrafos encontrado em Saint João Clímaco, The Ladder of
Divine Ascent, rev. Ed. (Boston: Mosteiro da Sagrada Transfiguração, 2019).
Além disso, salvo indicação em contrário, todas as traduções de Francisco de
Sales aqui contidas são de Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, trad. JK
Ryan (Nova York: Imagem, 2014).
9. Ver capítulo 23 e Brant Pitre, Jesus the Bridegroom: The Greatest Love Story
Ever Told (Nova Iorque: Image, 2014), 55–81.
10. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 1.1. Salvo indicação em contrário,
todas as traduções da Imitação aqui contidas são de Thomas de Kempis, The
Imitation of Christ, ed. Mary Lea Hill, FSP, trad. Maria Nazarena Prestofillipo,
F.S.P. (Boston: Pauline Books, 2015).
11. Papa João Paulo II, Memória e Identidade, 30.
12. Aqui estou usando a terminologia geral retirada do título da obra clássica de
João da Cruz, Noite Escura da Alma. Nesse livro, João realmente distingue entre
duas “noites escuras” da alma: (1) a “noite dos sentidos”, que é a transição entre
os caminhos purgativo e iluminativo (Noite Escura da Alma, Livro 1.1–14) e (2)
a “noite do espírito”, que é a transição entre os caminhos iluminativo e unitivo
(Noite Escura da Alma, Livro 2.1–25).
Como nosso estudo está focado na via purgativa, trataremos apenas da primeira
das duas “noites”. Salvo indicação em contrário, todas as traduções de Dark Night
of the Soul contidas aqui São de João da Cruz, Dark Night of the Soul: A
Masterpiece in the Literature of Mysticism, trad. E. Allison Peers (Nova York:
Image/Doubleday, 2005).
202

1 Oração Vocal
1. Para uma discussão sobre oração vocal, meditação e os vários graus de oração
contemplativa, ver Aumann, Spiritual Theology, 316–57.
Para o uso de uma tríade semelhante na espiritualidade cristã oriental, ver Tomas
Spidlik, S.J., The Spirituality of the Christian East: A Systematic Handbook, trad.
Anthony P. Gythiel (Collegeville, Minnesota: Liturgical Press, 2008), 317: “De
acordo com o que foi dito sobre a oração em geral, há três graus distintos para esta
oração [a oração de Jesus]: oral, mental e do coração” (cf. ibid., 311–12).
Ver também O Catecismo da Igreja Católica (2ª ed.; Cidade do Vaticano: Editora
Vaticano, 1997) (doravante citado como CCC) no. 2699: “A Tradição Cristã
manteve três expressões principais de oração: vocal, meditativa e contemplativa.”
2. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 28.1.
3. João Damasceno, A Fé Ortodoxa, 3.24. Citado no CCC nº. 2559.
4. Teresa de Ávila, O Caminho da Perfeição, 21.10. Nas Obras Completas de
Santa Teresa de Ávila, trad. Kieran Kavanaugh, OCD, e Otilio Rodriguez, OCD,
vol. 2 (Washington, DC: Publicações ICS, 1980), 121.
5. Teresa de Ávila, Castelo Interior, 1.1.7. Em Teresa de Ávila, Castelo Interior,
trad. e Ed. E. Allison Peers (Nova York: Image, 2004), 7.
6. Ver F. Brown, S. R. Driver e C. A. Briggs, A Hebrew and English Lexicon of
the Old Testament (2ª ed.; Oxford: Clarendon, 1977), 524–25.
7. É importante notar aqui que as orações vocais podem ser cantadas, e não apenas
recitadas.
O maior exemplo disso é o próprio Saltério, que é uma coleção de 150 cânticos
de oração, chamados “louvores” (hebraico tehillim) ou “salmos” (grego psalmoi).
O próprio nome do Saltério é baseado diretamente na palavra para “harpa” (grego
psaltērion) porque os salmos foram originalmente concebidos para serem orações
cantadas, acompanhadas por instrumentos de cordas.
8. Ver Judith H. Newman, “Psalms, Book of”, em The Eerdmans Dictionary of
Early Judaism, ed. John J. Collins e Daniel C. Harlow (Grand Rapids, Michigan:
Eerdmans, 2010), 1105–7, que afirma que o livro dos Salmos é às vezes descrito
como “o ‘Cancioneiro do Segundo Templo’”.
9. Tomás de Aquino, Summa Theologica, II–II, q. 83, art. 14. Tomás de Aquino
prossegue estabelecendo uma distinção importante entre a falta deliberada de
203

atenção e a distração não intencional que ocorre quando a mente de alguém “vaga
pela fraqueza”.
10. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 2.1.5 (grifo nosso). Francisco
imediatamente prossegue apresentando algumas maneiras específicas de fazer
isso (ver ibid., 2.2).
11. Teresa de Ávila, O Caminho da Perfeição, 22.7, 8 (grifo nosso).
Salvo indicação em contrário, todas as traduções desta obra são de Teresa de
Ávila, The Way of Perfection, trad. e Ed. E. Allison Peers (Nova York: Imagem,
2004).
12. Teresa de Ávila, O Caminho da Perfeição 30.7 (grifo nosso). Nas Obras
Completas de Santa Teresa de Ávila, Volume 2, 152.
2 Meditação
1. João Cassiano, Conferências, 11.15. Salvo indicação em contrário, todas as
traduções das Conferências de Cassiano aqui contidas são de João Cassiano o, As
Conferências, trad. Boniface Ramsey, OP, Ancient Christian Writers 57
(Mahwah, NJ: Paulist, 1997).
2. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 1.1.
3. Teresa de Ávila, O Caminho da Perfeição, 16.3. Nas Obras Completas de Santa
Teresa de Ávila, trad. Kieran Kavanaugh, OCD, e Otilio Rodriguez, OCD, vol. 2
(Washington, DC: Publicações ICS, 1980), 94.
4. Ver Kim Huat Tan, “Jesus and the Shemá”, em Handbook for the Study of the
Historical Jesus, ed. Tom Holmén e Stanley E. Porter, 4 vols. (Leiden, Holanda:
Brill, 2011), 3:2677–707; E. P. Sanders, Judaísmo: Prática e Crença, 63 aC-66
d.C. (Minneapolis: Fortress, 2016), 321: “Os rabinos mishnaicos simplesmente
consideravam isso um dado adquirido, como algo que não exigia debate ou prova,
que todo judeu dizia o Shemá ' (juntamente com orações diárias) duas vezes por
dia.” Para uma descrição do primeiro século dos judeus orando “duas vezes por
dia” que provavelmente se refere ao Shemá, consulte Josefo, Antiquities, 4.212–
13. Em Josefo, Antiguidades Judaicas, Livros IV-VI, trad. H. St. J. Thackeray e
Ralph Marcus (Loeb Classical Library 490; Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 1930), 103. Nos séculos posteriores, o Shemá se expandiu e se
desenvolveu para incluir Deuteronômio 6:8–9; 11:13–21; e Números 15:37–41.
Veja Mishná, Berakoth 2:2.
204

5. F. Brown, S. R. Driver e C. A. Briggs, Um Léxico Hebraico e Inglês do Antigo


Testamento (Oxford: Clarendon, 1977), 211.
6. Ver Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo
Testamento e Outra Literatura Cristã Primitiva, 3ª ed. (Chicago: University of
Chicago Press, 2000), 627.
7. Ver Adela Yarbro Collins, Mark: A Commentary, Hermeneia (Minneapolis:
Fortress, 2007), 574: “A frase ‘com toda a sua mente…’ é adicionada.”
8. Danker, Léxico Grego-Inglês, 234.
9. Ver Joseph A. Fitzmyer, S.J., O Evangelho segundo Lucas, 2 vols., Anchor
Bible 28–28A (Nova York: Doubleday, 1983–85), 1:712–13.
10. Ver Danker, Léxico Grego-Inglês, 533. Cf. 1 Coríntios 15:2.
11. Fitzmyer, Evangelho segundo Lucas, 1:714: o “coração” é “o termo para a
sede da reação humana a Deus e seus sussurros”.
12. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 19.1–2. Esta é a famosa “décima
nona anotação”, na qual Inácio adapta a versão de retiro de trinta dias de seus
Exercícios Espirituais para pessoas que só conseguem fazer os exercícios no meio
do dia a dia. Em George E. Ganss, SJ, Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio
(Chicago: Loyola, 1992), 27–28.
13. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 2.3.
14. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 1.
15. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 1.20.1.
16. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 2.1.9. Em Francisco de Sales,
Introdução à Vida Devota, trad. Missionários de São Francisco de Sales
(Bangalore, Índia: SFS Publications, 2020), 57 (grifo nosso).
17. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, nos. 252–53 (ênfase adicionada).
18. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 1.1.
19. Teresa de Lisieux, História de uma Alma, capítulo 8, 83v. Em História de uma
Alma: A Autobiografia de Santa Teresinha de Lisieux, trad. John Clarke, TOC
(Washington, D.C.: ICS Publications, 1996), 258. Salvo indicação em contrário,
todas as traduções da História de uma Alma aqui contidas são desta edição. Ver
também Teresa de Ávila, O Caminho da Perfeição, 21.4: “Sempre gostei das
palavras dos Evangelhos e encontrei neles mais recordação do que nos livros mais
cuidadosamente planeados.”
205

20. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 3.48.5: “Estou onde quer que esteja
o meu pensamento, e isso tantas vezes é onde quer que esteja aquilo que amo.”
21. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 104 (ênfase adicionada).
3: Contemplação
1. Charlton T. Lewis e Charles Short, Um Dicionário Latino (1879; repr., Oxford:
Oxford University Press, 1998), 445.
2. Ver, por exemplo, Gregório de Nissa, The Lord’s Prayer, 1.7: “A oração é
intimidade com Deus e contemplação do invisível”. Em São Gregório de Nissa,
O Pai Nosso, as Bem-Aventuranças, trad. Hilda C. Graef, Ancient Christian
Writers 18 (New York: Newman, 1954), 24. Salvo indicação em contrário, todas
as traduções de Gregório de Nissa aqui contidas são deste volume.
3. João Cassiano , As Conferências, 1.8.1.
4. Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, q. 180, art. 3.
5. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 31.1.
6. Francisco de Sales, Sobre o Amor de Deus, 6.6. Tradução em São Francisco de
Sales, Sobre o Amor de Deus (2 vols .; trad. John K. Ryan; Nova York: Image,
1963), 1.283–84.
7. CIC nº. 2724 (ênfase adicionada).
8. Para Moisés como modelo bíblico clássico de contemplação, ver Gregório de
Nissa, The Life of Moses, trad. Abraham J. Malherbe e Everett Ferguson
(Mahwah, NJ: Paulist, 1978).
9. Ver William H. C. Propp, Exodus, 2 vols., The Anchor Bible 2–2A (New York:
Doubleday, 2006), 2:600: “Face a face” significa um “encontro direto”.
10. Ver, por exemplo, Agostinho, Sobre os Salmos, Segundo Discurso sobre o
Salmo 26.9: “Agora você vê, diz o salmista, por que desejo habitar na casa do
Senhor todos os dias da minha vida. Eu já te contei o motivo: para que eu possa
contemplar as delícias do Senhor…. Contemplá-lo será minha felicidade.” Em
Santo Agostinho, Sobre os Salmos, trad. Scholastica Hebgin e Felicitas Corrigan,
antigos escritores cristãos 29 (Westminster, Maryland: Newman, 1960), 269. Ver
também Francisco de Sales, On the Love of God, 6.1, que cita o Salmo 27:7 como
um exemplo de contemplação ou “teologia mística”.
11. RSV, ligeiramente alterado.
206

12. Ver Artur Weiser, Os Salmos, trad. Herbert Hartwell, The Old Testament
Library (Philadelphia: Westminster, 1962), 248–49, que aponta que a linguagem
de “contemplar” descreve uma espécie de “teofania” – uma aparição de Deus –
que assume a forma da “experiência e certeza da proximidade e realidade do Deus
Vivo”. Na antiga tradução grega dos Salmos, este versículo foi traduzido como o
desejo de “contemplar [grego theōreō] as delícias do Senhor” (Salmo 27:4 LXX),
que vem da mesma raiz daquela que era frequentemente usada pelos antigos
escritores cristãos para “contemplação” (grego theōria).
13. Ver Jane Ackerman, Elias: Profeta do Carmelo (Washington, D.C.: Instituto
de Estudos Carmelitas, 2002).
14. Ver Mordechai Cogan, 1 Kings, Anchor Bible 10 (New York: Doubleday,
2001), 453, que favorece a tradução “som de puro silêncio” (NRSV).
15. Veja Orígenes, Fragmentos sobre Lucas, no. 171: “Você pode razoavelmente
considerar Marta como representante da ação e Maria como contemplação.” Em
Orígenes, Homilias sobre Lucas, trad. Joseph T. Lienhard, SJ, Padres da Igreja 94
(Washington, DC: Universidade Católica da América, 1996), 192.
16. RSV, ligeiramente adaptado.
17. RSV, ligeiramente adaptado.
18. Joseph A. Fitzmyer, S.J., O Evangelho segundo Lucas, 2 vols., Anchor Bible
28–28A (Nova York: Doubleday, 1983–85), 2:893: “Sua posição é a de uma
discípula que escuta.” Compare o apóstolo Paulo, que é descrito como sendo
criado “aos pés” do Rabino Gamaliel (Atos 22:3).
19. Herbert Danby, The Mishnah (Oxford: Oxford University Press, 1933), 446
(ligeiramente adaptado).
20. Compare, por exemplo, o famoso exemplo de hospitalidade demonstrado aos
três convidados por Abraão e Sara (ver Gênesis 18:2–8; Josefo, Antiquities,
1.196).
21. François Bovon, Lucas 2, trad. Donald S. Deer, Hermeneia (Minneapolis:
Fortress, 2013), 71: “Qualquer crítica que possa ter havido a Martha não foi
dirigida nem a ela nem a hospitalidade dela ou seu desejo de servir, mas sim seu
excesso de atividade e as preocupações que o ocasionaram”. Ver também Teresa
de Lisieux, História de uma Alma 11 [C 36r]: “Não são nas obras de Marta que
Jesus critica…. Foi apenas a inquietação de Sua ardente anfitriã que Ele quis
corrigir.”
207

22. Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo Testamento


e Outra Literatura Cristã Primitiva, 3ª ed. (Chicago: University of Chicago Press,
2000), 804.
23. Veja também Salmos 119:57: “O Senhor é a minha porção; Prometo manter
suas palavras.”
24. Gregório, o Grande, Morals in Job, 6.61. Tradução em Gregório, o Grande,
Reflexões Morais sobre o Livro de Jó, Volume 2: Livros 6–10 (trad. Brian Kerns,
OCSO; Cistercian Studies 257; Collegeville, Minnesota: Liturgical Press, 2015),
87.
25. Teresa de Ávila, O Caminho da Perfeição, 26.3.
26. João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 2.18.5.
4 O Primeiro Passo
1. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 26.65 (ver também 5.1).
2. Thomás de Kempis, A Imitação de Cristo, 1.21.1. Em Thomas à Kempis, A
Imitação de Cristo, trad. Joseph N. Tylenda, SJ. (Nova York: Random House,
1998), 29.
3. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 82.10.
4. C. Soanes e A. Stevenson, eds., Concise Oxford English Dictionary, 11ª ed.
(Oxford: Oxford University Press, 2004), s.v. "arrepender-se."
5. Ver David Lambert, “Arrependimento”, em The Eerdmans Dictionary of Early
Judaism, ed. John J. Collins e Daniel C. Harlow (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans,
2010), 1134–35, que define arrependimento como “retornar a um compromisso
anterior, desviar-se de um caminho de comportamento, mostrar arrependimento
ou remorso por erros cometidos, e mudar de ideia.”
6. F. Brown, S. R. Driver e C. A. Briggs, Um Léxico Hebraico e Inglês do Antigo
Testamento (Oxford: Clarendon, 1977), 996.
7. Para uma discussão completa, ver Robert L. Webb, John the Baptizer and
Prophet: A Sociohistoric Study (Londres: Sheffield Academic Press, 1991), 179–
213.
8. Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo Testamento
e Outra Literatura Cristã Primitiva, 3ª ed. (Chicago: University of Chicago Press,
2000), 640. Na Septuaginta grega, metanoeō pode ser usado para falar de
arrependimento do pecado (por exemplo, Jeremias 8:6 LXX), mas é mais
208

comumente usado para se referir a uma “mudança da mente." Veja J. Lust, E.


Eynikel e K. Hauspie, A Greek-English Lexicon of the Septuagint, 2 vols.
(Estugarda: Deutsche Bibelgesellschaft, 1992), 2:300.
9. Danker, Léxico Grego-Inglês, 351.
10. Ver Amy-Jill Levine e Marc Zvi Brettler, eds., The Jewish Annotated New
Testament, 2ª ed. (Oxford: Oxford University Press, 2017), 147: Deus é retratado
como um pastor no Salmo 23; 78:52; 80:1; 100:3, e as pessoas são retratadas como
ovelhas perdidas em Jeremias 50:6; Ezequiel 34:15–16; Salmo 119:176.
11. Ver Joseph A. Fitzmyer, S.J., O Evangelho segundo Lucas, 2 vols., Anchor
Bible 28–28A (Nova York: Doubleday, 1983–85), 2:1077: é “a iniciativa do amor
divino em busca de o pecador perdido.”
12. Curiosamente, Fitzmyer, Evangelho segundo Lucas, 2:1081, observa que a
palavra “moeda” (grego dracma) refere-se a uma moeda de prata grega de valor
substancial, apenas “o suficiente para comprar uma ovelha”.
13. Veja Fitzmyer, Evangelho segundo Lucas, 2:1081: quando Jesus diz “há
alegria diante dos anjos de Deus” (Lucas 15:10), ele provavelmente quer dizer “o
próprio Deus na presença dos anjos”, não o contrário.
14. Fitzmyer, Evangelho segundo Lucas, 2:1088: “Este detalhe sugeria a
degradação a que o jovem filho foi levado.” Em apoio a isto, ele cita um ditado
rabínico posterior que diz: “Maldito o homem que cria porcos” (Talmud
Babilônico, Baba Kamma 82b).
15. Fitzmyer, Evangelho segundo Lucas, 2:1088.
16. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 5.4.
5 Os Dez Mandamentos
1. Bento de Núrsia, A Regra, 7. Na Regra de São Bento, trad. Anthony C. Meisel
e ML del Mastro (Nova York: Image, 1975), 57. Veja também João Clímaco,
Ladder of Divine Ascent, 1.17: “Todo louvor àqueles que desde o início guardam
os mandamentos de Deus.”
2. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 4.18.2.
3. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 1.1.
4. Ver Hindy Najman, “Decálogo”, no Dicionário Eerdmans do Judaísmo
Primitivo, ed. John J. Collins e Daniel C. Harlow (Grand Rapids, Michigan:
Eerdmans, 2010), 526–28.
209

5. A seguir, adaptei os “dez mandamentos” do RSVCE para as “dez palavras”


mais literais. Obtemos a palavra inglesa “Decálogo” da antiga tradução grega de
“dez palavras” (grego deka logous) (Êxodo 34:28 LXX). Veja também Oséias
4:2; Jeremias 7:9; Ezequiel 18:5–9.
6. Ver John Bergsma e Brant Pitre, Uma Introdução Católica à Bíblia: O Antigo
Testamento (San Francisco: Ignatius, 2018), 64: “Uma aliança pode ser definida
como… um vínculo familiar sagrado: (1) um vínculo, porque une dois partidos de
forma permanente; (2) família, porque as partes unidas tornam-se parentes; (3)
sagrado, porque o relacionamento é solenizado e reforçado por juramentos feitos
em nome de Deus.”
7. F. Brown, S. R. Driver e C. A. Briggs, A Hebrew and English Lexicon of the
Old Testament (Oxford: Clarendon, 1977), 872. Para uma discussão recente que
enfatiza o significado hebraico de santidade como “consagração” ou “devotação”
para Deus, consulte Peter J. Gentry, “O significado de 'Santo' no Antigo
Testamento”, Bibliotheca Sacra 170 (2013): 400–417.
8. Ver James L. Kugel, Tradições da Bíblia: Um Guia para a Bíblia como Ela Era
no Início da Era Comum (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1998),
638–45. Por um lado, as tradições judaica, ortodoxa e protestante seguem Êxodo
20:1-17 e separam o mandamento contra outros deuses (Êxodo 20:3) e a proibição
de ídolos (Êxodo 20:4) em dois mandamentos, enquanto combinam a proibição
de cobiçar esposas e propriedades em uma só (Êxodo 20:17). Por outro lado, as
tradições católica e luterana seguem Deuteronômio 5:7-21, tratando a proibição
da adoração de outros deuses e da idolatria como um único mandamento
(Deuteronômio 5:7-10) e distinguindo o mandamento contra cobiçar a esposa de
alguém (Deuteronômio 5 :21a) do mandamento contra a cobiça da propriedade de
alguém (Deuteronômio 5:21b). Aqui sigo as tradições católica e luterana, que
remontam a Agostinho de Hipona, Perguntas sobre o Êxodo 71.1-6. Veja Santo
Agostinho, Escritos sobre o Antigo Testamento, ed. Boniface Ramsey (As Obras
de Santo Agostinho I/14; Hyde Park, NY: New City Press, 2016), 121–24.
9. Brown, Driver e Briggs, Hebrew and English Lexicon, 202. Ver também Moshe
Weinfeld, Deuteronômio 1–11, Anchor Bible 5 (Nova York: Doubleday, 1991),
327: “'O caminho' como metáfora do direito comportamento é muito comum na…
literatura bíblica.” Veja, por exemplo, Gênesis 18:19; Deuteronômio 10:12; 1 Reis
8:58; Jeremias 7:23.
10. Brown, Driver e Briggs, Hebrew and English Lexicon, 306. Ver também
Hannah K. Harrington, “Sin”, no Eerdmans Dictionary, 1230–31: “A raiz
210

significa ‘estar enganado, considerado deficiente ou deficiente; ser culpado; ou


perder um gol ou marca específica.’” Para um estudo completo, ver Gary A.
Anderson, Sin: A History (New Haven: Yale University Press, 2009).
11. Ver, por exemplo, Êxodo 21:15–16; 22:20; 31:15; Deuteronômio 19:18–19;
22:22.
12. Paula Fredriksen, Sin: The Early History of an Idea (Princeton, N.J.: Princeton
University Press, 2012), 16: “Jesus definiu viver corretamente como viver de
acordo com a Torá, conforme resumido nos Dez Mandamentos;… ele definiu
pecado como quebrar os mandamentos de Deus;… ele definiu 'arrependimento'
como (re)tornar a esta aliança.”
13. Adela Yarbro Collins, Mark: A Commentary, Hermeneia (Minneapolis:
Fortress, 2007), 577: “O duplo comando de amor de Jesus expressa uma
compreensão genuinamente judaica da Lei” (ênfase adicionada).
14. Ver J. Lust, E. Eynikel e K. Hauspie, A Greek-English Lexicon of the
Septuagint, 2 vols. (Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1992), 2.471, e
Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo Testamento e
Outra Literatura Cristã Primitiva, 3ª ed. (Chicago: University of Chicago Press,
2000), 995.
15. WD Davies e D. C. Allison, Jr., O Evangelho segundo São Mateus, 3 vols.,
International Critical Commentary (Londres: T&T Clark, 1988–97), 1:561–63:
“Sem dúvida, 'perfeição moral' é o significado em [Mateus] 5.48a…. Para
obedecer às palavras de Jesus, à sua lei, é, portanto, amar totalmente…. E nisto
reside a perfeição: o amor à bússola desenfreada não falta em nada. É católico,
inclusivo. É perfeito."
16. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, nos. 240–41.
6 As Três Tentações
1. João Cassiano, Conferências, 5.6.1.
2. Gregório, o Grande, Homilias sobre os Evangelhos, 14. Salvo indicação em
contrário, todas as traduções das homilias de Gregório sobre os Evangelhos são
de Gregório, o Grande, Quarenta Homilias Evangélicas, trad. Dom David Hurst,
Estudos Cistercienses 123 (Kalamazoo, Michigan: Cisterciense, 1990).
3. Cf. CIC não. 377.
4. Ligeiramente adaptado. (Adicionei “quem estava com ela”, pois está presente
no hebraico, mas por algum motivo está faltando na tradução em inglês.)
211

5. Tomás de Aquino, Summa Theologica, I–II, q. 84, art. 4: “O bem do homem é


triplo. Pois, em primeiro lugar, existe um certo bem da alma, que obtém seu
aspecto de apetitibilidade, meramente por ser apreendido, viz. a excelência da
honra e do louvor, e esse bem é buscado desordenadamente pela vanglória. - Em
segundo lugar, há o bem do corpo, e isso diz respeito à preservação do indivíduo,
por ex. carne e bebida, cujo bem é perseguido desordenadamente pela gula, - ou
pela preservação da espécie, por ex. relação sexual, cujo bem é buscado
desordenadamente pela luxúria. - Em terceiro lugar, existe o bem externo, viz.
riquezas, às quais se refere a cobiça.”
6. Por exemplo, Gregório, o Grande, Homilias sobre os Evangelhos, 14: "Ele [o
diabo] o tentou [Jesus] pela gula quando disse: 'Dize a estas pedras que se
transformem em pães.' Ele o tentou pela vã glória quando disse: 'Se você é filho
de Deus, derrube-se.' Ele o tentou com um desejo avarento de posição elevada
quando lhe mostrou todos os reinos do mundo, dizendo: 'Eu lhe darei tudo isso se
você cair e me adorar'” (grifo nosso).
7. Ver Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo
Testamento e Outra Literatura Cristã Primitiva, 3ª ed. (Chicago: University of
Chicago Press, 2000), 372: quando usado negativamente, “luxúria” (grego
epitímia) significa “um desejo por algo proibido ou simplesmente desordenado,
desejo, luxúria”. É por isso que a antiga Bíblia latina de Jerônimo traduziu o grego
como “saudade” ou “concupiscência” (latim concupiscentia) (1 João 2:16–17
Vulgata). Esta é a origem bíblica da frase posterior, a “tríplice concupiscência”.
8. Danker, Greek-English Lexicon, 40. Mais uma vez, a tradução latina
“vainglória” (latim superbia) capta bem o significado (1 João 2:17 Vulgata).
9. Agostinho, Homilias sobre 1 João, 2.14 (ênfase adicionada e ligeiramente
adaptada).
10. João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, 1.13.8. Nas Obras Completas de
São João da Cruz, trad. Kieran Kavanaugh, O.C.D., e Otilio Rodriguez, O.C.D.,
3ª ed. (Washington, DC: Publicações ICS, 1991), 149.
7 Jejum
1. Basílio, o Grande, Primeira Homilia sobre o Jejum, 6. Em São Basílio, o
Grande, Sobre Jejum e Festas, trad. Susan R. Holman e Mark DelCogliano,
Patrística Popular 50 (Yonkers, NY: St Vladimir’s Seminary Press, 2013), 62.
2. Gregório Magno, Homilias sobre os Evangelhos, 14.
212

3. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 3.23.


4. Ver Noah Hacham, “Jejum”, no Dicionário Eerdmans do Judaísmo Primitivo,
ed. John J. Collins e Daniel C. Harlow (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans,
2010), 634–36.
5. Há séculos, Basílio, o Grande, sublinhava isto: «O jejum é tão antigo como a
humanidade: foi legislado no paraíso. Foi a primeira ordem que Adão recebeu:
‘Não comerás da árvore do conhecimento do bem e do mal’ (Gn 2:17). ‘Não
comereis’ legisla o jejum e o autocontrole. Se Eva tivesse jejuado da árvore, não
precisaríamos deste jejum agora…. Foi porque não jejuamos que fomos banidos
do paraíso. Portanto, jejuemos para que possamos voltar a ele” (Basílio, o Grande,
Primeira Homilia sobre o Jejum, 3).
6. Ver Jacob Milgrom, Levítico 1–16, Anchor Bible 3 (New Haven: Yale
University Press, 1998), 1054.
7. Basílio, o Grande, Primeira Homilia sobre o Jejum, 10: “O verdadeiro jejum é
ser estranho ao vício.”
8. Basílio, o Grande, Primeira Homilia sobre o Jejum, 9: “Nosso Senhor é o
principal exemplo… [do jejum]. Somente depois de jejuar para fortalecer a carne
que assumiu para nosso bem é que ele a recebeu nos ataques do diabo. Nisto,
ele…instruiu-nos a jejuar a fim de nos prepararmos e treinarmos para lutar contra
a tentação.”
9. RSV, ligeiramente adaptado (ver nota RSV em Marcos 9:29). É importante
notar que embora a maioria dos manuscritos gregos antigos contenham as palavras
“e jejum”, elas estão faltando em algumas das cópias mais antigas. Para uma
discussão das questões textuais-críticas envolvidas, consulte Adela Yarbro
Collins, Mark: A Commentary, Hermeneia (Minneapolis: Fortress, 2007), 434, e
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 2ª ed.
(Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1994), 85. Para nossos propósitos aqui,
nós os incluímos devido ao enorme impacto que este versículo teve na prática do
jejum no cristianismo antigo.
10. Veja Noah Hacham, “Jejum”, no Dicionário Eerdman, 635, que aponta que
no judaísmo antigo, “Juntamente com a oração, o jejum serve como um meio de
convencer Deus a responder aos pedidos e efetuar a libertação das dificuldades”,
citando Jeremias. 14:12; Mishná, Ta’anith 4:3; Talmud de Jerusalém, Ta'anith
65a. Na tradição cristã posterior, ver Basílio, o Grande, Primeira Homilia sobre o
213

Jejum, 7, 9: “O jejum envia a oração ao céu…. O jejum é uma arma usada na luta
contra os demônios.”
11. W. D. Davies e D. C. Allison, Jr., O Evangelho segundo São Mateus, 3 vols.,
International Critical Commentary (Londres: T&T Clark, 1988–97), 1:617: “O
que conta não é a exibição externa, mas a humildade.”
12. Ver Craig S. Keener, Atos: Um Comentário Exegético, 4 vols. (Grand Rapids,
Michigan: Baker Academic, 2012–15), 2:1991, que aponta que a palavra para
“adoração” (grego leitourgeō) usada em Atos 13:2 é usada nas Escrituras para se
referir a “adoração sacerdotal, cúltica” como aquela que ocorre no Templo
Judaico (por exemplo, 1 Crônicas 6:32; 16:4; 2 Crônicas 31:2 LXX). Com relação
ao jejum judaico e à Páscoa, veja Mishná, Pesahim 10:1: “Na véspera da Páscoa,
por volta da hora da Oferenda Vespertina, o homem não deve comer nada até o
anoitecer.” Em Danby, Mishná, 150.
13. “Você deve jejuar na quarta e na sexta” (Didaquê 8:1). Em Michael W.
Holmes, trad., The Apostolic Fathers: Greek Texts and English Translations, 3ª
ed. (Grand Rapids, Michigan: Baker Academic, 2007), 355. “'Os jejuns
canônicos', [Abba Apollo] disse, 'não devem ser quebrados, exceto sob extrema
necessidade. Pois o Salvador foi traído numa quarta-feira e crucificado numa
sexta-feira.’” Em The Lives of the Desert Fathers, trad. Norman Russell
(Kalamazoo, Michigan: Cistercian Publications, 1981), p. 78. “Ele [Jesus]
ordenou-nos que jejuássemos no quarto e sexto dias da semana; o primeiro por ter
sido traído, e o segundo por sua paixão” (Constituições Apostólicas 5.15; cf.
também 5.18). Em Alexander Roberts e James Donaldson, eds., Ante-Nicene
Fathers, 12 vols. (Peabody, Mass.: Hendrickson, 1994), 7:445.
14. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 2.11.1.
15. CIC nº. 540.
16. Basílio, o Grande, Segunda Homilia sobre o Jejum, 5.
8 Esmola
1. João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de João #23. Em Gary A.
Anderson, Caridade: O Lugar dos Pobres na Tradição Bíblica (New Haven: Yale
University Press, 2013), frontispício.
2. Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, q. 32, art. 5.
3. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 3.15.
214

4. Ver Kyong-Jin Lee, “Almsgiving”, no Dicionário Eerdmans do Judaísmo


Primitivo, ed. John J. Collins e Daniel C. Harlow (Grand Rapids, Michigan:
Eerdmans, 2010), 324–25.
5. Para uma discussão completa de Provérbios 19:17, veja especialmente
Anderson, Charity, 35–52. 6. Tradução em Anderson, Charity, capa.
7. F. Brown, S. R. Driver e C. A. Briggs, Um Léxico Hebraico e Inglês do Antigo
Testamento (Oxford: Clarendon, 1977), 531. Compare Provérbios 22:7.
8. Ver também João Crisóstomo, Homilias sobre Arrependimento e Esmola,
7.6.23: “Quem tem misericórdia dos pobres empresta a Deus. Emprestemos a
Deus esmolas para que possamos receber dele clemência em troca”. Salvo
indicação em contrário, todas as traduções das homilias de Crisóstomo sobre
arrependimento e esmola são de São João Crisóstomo, Sobre Arrependimento e
Esmola, trad. Gus George Christo, Padres da Igreja 96 (Washington, DC: Catholic
University of America Press, 1997).
9. Compare Tobias 4:7–11; Eclesiástico 29:9–12.
10. João Crisóstomo, Homilias sobre Arrependimento e Esmola, 10.4.15.
11. João Crisóstomo, Homilias sobre Efésios 20: “Se assim regularmos as nossas
próprias casas, seremos também aptos para a gestão da Igreja. Pois de fato uma
casa é uma pequena igreja.” Em Philip Schaff, ed., Pais Nicenos e Pós-Nicenos,
Primeira Série, 14 vols. (Peabody, Mass.: Hendrickson, 1994), 13:148. Agostinho
de Hipona, Carta 14.1: “Sei o quanto amais a Cristo e que toda a vossa casa é a
sua família, tal como o Apóstolo fala de uma 'igreja doméstica'.” Em Santo
Agostinho, Cartas, Volume VI (1—29), trad. Robert B. Eno, SS; Fathers of the
Church 81 (Washington, D.C.: Catholic University of America Press, 1989), 112.
A expressão de Agostinho parece ser derivada da tradução latina da referência de
Paulo às “igrejas” nas “casas” das pessoas (cf. Romanos 16:5).; 1 Coríntios
16:19).
12. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 3.15.
9 A Oração do Pai Nosso
1. Tertuliano, Sobre a Oração, 1. Em Tertuliano, Cipriano e Orígenes, Sobre a
Oração do Senhor, trad. Alistair Stewart-Sykes, Patrística Popular 29 (Yonkers,
NY: St Vladimir’s Seminary Press, 2004), 42.
2. Tomás de Aquino, Summa Theologica, II–II, q. 83, art. 9. Citado no CIC nº.
2763.
215

3. Teresa de Ávila, O Caminho da Perfeição, 37.1. Para maior clareza, inverti a


ordem das duas frases.
4. Para um estudo exegético aprofundado da Oração do Pai Nosso, consulte Brant
Pitre, Jesus and the Last Supper (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 2015),
159–93.
5. Veja, por exemplo, Salmos 5:1–3; 6:1; 7:1; 8:1, etc.
6. Veja Salmos 68:5; 89:26; 103:13.
7. Mateus 5:16, 45, 48; 6:1, 4, 6 (2x), 8, 9, 14, 15, 18 (2x), 26, 32; 7:11, 21.
8. Para o uso do termo “quarto interno” (do grego tameion) como o cômodo mais
interno de uma casa ou “quarto de dormir”, ver Gênesis 43:30; Êxodo 8:3; Juízes
15:1; Isaías 26:20.
9. Veja, por exemplo, Marcos 1:35; 6:46; 14:32–42; Lucas 5:16; 6:12; 9:18, 28–
29.
10. Pense aqui nos profetas do deus cananeu Baal, que “delirantes” durante horas,
cortando-se com espadas, tentando fazer com que Baal respondesse (1 Reis
18:20–29). Compare isso com o ato simples e direto de oração e sacrifício do
profeta Elias, ao qual Deus responde imediatamente (1 Reis 18:36–40).
11. Ver Pitre, Jesus and the Last Supper, 171–75, para uma discussão completa.
12. Ver Brant Pitre, Jesus e as raízes judaicas da Eucaristia: desvendando os
segredos da Última Ceia (Nova York: Image, 2011), 77–115.
13. Ver Gary A. Anderson, Sin: A History (New Haven: Yale University Press,
2009), 27–39.
14. De acordo com o escritor do século IV, João Cassiano, alguns cristãos antigos
recusavam-se a fazer em voz alta a petição do Pai Nosso sobre o perdão durante
a liturgia eucarística! “Algumas pessoas temem isso, e quando esta oração é
recitada em conjunto na igreja por toda a congregação, elas passam por esta linha
em silêncio, para que, com suas próprias palavras, não se obriguem, em vez de se
desculparem.” João Cassiano, Conferências, 9.17.4.
15. Ver W. D. Davies e D. C. Allison, Jr., O Evangelho segundo São Mateus, 3
vols., International Critical Commentary (Londres: T&T Clark, 1988–97), 1:613:
“Em vez disso, mē eisenengkēs [“não nos conduz”], refletindo talvez um causativo
semita, tem força permissiva: 'Não nos deixemos ser vítimas.'” Em apoio a esse
uso permissivo de um verbo causativo, Davies e Allison citam a frase
surpreendentemente semelhante de uma oração rabínica posterior: “Não me
216

tragas… ao poder da tentação” (Talmud Babilônico, Berakoth 60b). Ver também


Papa Francisco, Pai Nosso: Reflexões sobre a Oração do Senhor, trad. Matthew
Sherry (Nova York: Image, 2018), 94, que enfatiza que esta linha da oração
significa “Não me deixe cair em tentação”.
16. CIC nº. 2775.
17. Michael W. Holmes, trad., Os Padres Apostólicos: Textos Gregos e Traduções
para o Inglês, 3ª ed. (Grand Rapids, Michigan: Baker Academic, 2007), 355, 357.
18. Teresa de Ávila, O Caminho da Perfeição, 24.4: “Agora, em primeiro lugar,
você sabe que Sua Majestade ensina que esta oração deve ser feita quando estamos
sozinhos, assim como Ele muitas vezes estava sozinho quando orava.”
19. Gregório de Nissa, O Pai Nosso, Sermão 1.
20. Teresa de Ávila, O Caminho da Perfeição, 26.9. Para maior clareza, atualizei
o uso arcaico da palavra “relação sexual” por E. Allison Peers com “comunicar”,
seguindo a tradução de Kieran Kavanaugh, O.C.D., e Otilio Rodriguez, O.C.D.,
em The Collected Works of Saint Teresa of Ávila, vol. 2 (Washington, DC:
Publicações ICS, 1980), 136.
21. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 2.1.6 (grifo nosso). 22. Teresa
de Ávila, O Caminho da Perfeição, 24.6, 7 (grifo nosso).
23. CIC nº. 2559, citando Romanos 8:26 e Agostinho, Sermão 56.6, 9 (ênfase
adicionada).
24. Cipriano de Cartago, Sobre a Oração do Pai Nosso, não. 3. Em Tertuliano,
Cipriano e Orígenes, Sobre a Oração do Pai Nosso, 66. Meus agradecimentos a
John Sehorn por trazer esta passagem à minha atenção.
10 Os Sete Pecados
1. Ver Jeffrey P. Greenman, “Seven Deadly Sins”, em Dicionário de Escrituras e
Ética, ed. Joel B. Verde e outros. (Grand Rapids, Michigan: Baker Academic,
2011), 717–18. Apesar da centralidade dos sete pecados capitais no cristianismo
católico e ortodoxo, Greenman salienta que “a sua importância diminuiu
dramaticamente para os protestantes após a Reforma, em parte devido à sua falta
de fundamento bíblico” (ibid., 718). Esperamos que este capítulo (e os que se
seguem) mostrem que o seu “fundamento bíblico” dificilmente falta.
2. Gregório, o Grande, Morals in Job, 31.87. Veja São Gregório Magno, Moralia
in Job, trad. James Bliss e Charles Marriott, 3 vols. (Londres: JGF e J. Rivington,
1850; repr., Ex Fontibus, 2012), 3:453.
217

3. Tomás de Aquino, Summa Theologica, I–II, q. 84, art. 3, 4: “Um vício capital
é aquele do qual surgem outros vícios... [Existem] sete vícios capitais, a saber,
vanglória, inveja, raiva, avareza, tristeza, gula, luxúria” (latim vã glória, inveja,
raiva, avareza, tristeza, gula, luxúria).
4. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 18: “Que lhe seja dado durante meia
hora todas as manhãs o método de oração sobre os Mandamentos e sobre os
Pecados Capitais.” Cf. ibid., não. 245: “Para melhor compreender as faltas
cometidas que se enquadram nos Sete Pecados Capitais, consideremos as virtudes
contrárias.”
5. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 22.1: “[Alguns] afirmam que
existem oito pecados capitais. Mas contra isto está a opinião de Gregório, o
Teólogo, e de outros professores, de que na verdade o número é sete. Eu também
defendo essa opinião” (grifo nosso).
6. Ver, por exemplo, CIC nº. 1866.
7. Ken M. Penner, ed., The Lexham English Septuagint (Bellingham, Washington:
Lexham Press, 2019), 763.
8. F. Brown, S. R. Driver e C. A. Briggs, Um Léxico Hebraico e Inglês do Antigo
Testamento (Oxford: Clarendon, 1977), 1073. Cf. Levítico 18:22, 26–29;
Provérbios 3:32; 8:7; 13:19; 16:12; 21:27; 28:9; 29:27; Isaías 1:13.
9. Veja Albert Pietersma e Benjamin G. Wright, eds., A New English Translation
of the Septuagint (Nova York: Oxford University Press, 2007), 644: “Há sete
iniquidades em sua alma” (Provérbios 26:25 LXX) .
10. João Cassiano, Conferências, 25.2: “No Livro dos Provérbios, Salomão
também fala desta fonte sétupla de vício desta forma: 'Se o seu inimigo lhe
perguntar em voz alta, não ceda a ele, pois há sete males em sua alma.'”
11. Embora as traduções inglesas de Provérbios usem palavras diferentes para
misericórdia ou compaixão, na antiga tradução grega conhecida como
Septuaginta, todos esses três versículos traduzem o verbo hebraico que significa
“ser misericordioso” ou “compassivo” (hebraico chanan) como “tende piedade”
(grego eleeō) (Provérbios 14:31; 19:17). Veja Brown, Driver e Briggs, Hebrew
and English Lexicon, 335–36; Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-
Inglês do Novo Testamento e Outras Literaturas Cristãs Primitivas, 3ª ed.
(Chicago: University of Chicago Press, 2000), 315.
12. Agostinho, Perguntas sobre os Evangelhos, 1.8: “O homem não terá apenas
aqueles sete vícios que são contrários às próprias sete virtudes espirituais.” Em
218

Santo Agostinho, O Novo Testamento I e II, ed. Boniface Ramsey, OP (Hyde


Park, NY: New City Press, 2014), 365.
13. Ver João Cassiano, Conferências, 5.25.1–2, onde Cassiano oscila entre falar
dos “oito vícios” (5.25.1) e da “fonte sétupla do vício” (5.25.2), dependendo se
ele está enfatizando Mateus 12:45 ou Provérbios 26:25.
14. João Cassiano, Conferências, 5.25.1: “Estes oito vícios são mencionados no
Evangelho desta forma: ‘Quando um espírito imundo sai de uma pessoa…’”
15. João Cassiano , Conferences, 5.16.2, 5: “[Numerosas] paixões carnais
[procedem] deste tronco sétuplo e raiz dos vícios.”
16. Gregório, o Grande, Morals in Job, 31.88. Em São Gregório Magno, Moralia
in Job, 3:454.
17. Veja a famosa passagem de Gregório, o Grande, Morals in Job, 31.88:
“Mas esses vários pecados têm cada um seu exército contra nós. [1] Porque da vã
glória surgem a desobediência, a jactância, a hipocrisia, as contendas, as
obstinações, as discórdias e a presunção de novidades. [2] Da inveja brotam o
ódio, os sussurros, a difamação, a exultação pelos infortúnios do próximo e a
aflição pela sua prosperidade. [3] Da raiva são produzidos conflitos, inchaço da
mente, insultos, clamores, indignação, blasfêmias. [4] Da melancolia surgem a
malícia, o rancor, a covardia, o desespero, a preguiça no cumprimento dos
comandos e a divagação da mente em objetos ilícitos. [5] Da avareza nas cem a
traição, a fraude, o engano, o perjúrio, a inquietação, a violência e a dureza de
coração contra a compaixão. [6] Da gula se propagam a alegria tola, a grosseria,
a impureza, o balbucio, a estupidez dos sentidos na compreensão. [7] Da luxúria
são gerados a cegueira mental, a falta de consideração, a inconstância, a
precipitação, o amor próprio, o ódio a Deus, a afeição por este mundo presente,
mas o pavor ou desespero pelo que está por vir. Porque, portanto, os sete vícios
principais produzem de si mesmos uma multidão tão grande de vícios, quando
atingem o coração, trazem, por assim dizer, os bandos de um exército atrás deles.
Mas destes sete, cinco são espirituais e dois são carnais.” Em Gregório, o Grande,
Moralia in Job, 3:454.
18. João Cassiano, Conferências, 5.13.
19. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 27.72.
20. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 245 (ênfase adicionada).
21. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 3.1 (grifo nosso).
219

11 Orgulho vs. Humildade


1. Ver Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo
Testamento e Outra Literatura Cristã Primitiva, 3ª ed. (Chicago: University of
Chicago Press, 2000), 1033.
2. Charlton T. Lewis e Charles Short, A Latin Dictionary (1879; repr., Oxford:
Oxford University Press, 1998), 1804: “altivez, arrogância, orgulho, arrogância”.
3. João Cassiano, Institutos, 12.3.1. Todas as traduções das Institutas de Cassiano
aqui contidas são de João Cassiano , The Institutes, ed. Dennis D. McManus, trad.
Boniface Ramsey, OP, Escritores Cristãos Antigos 58 (Nova York: Newman,
2000).
4. Gregório, o Grande, Morals in Job, 31.87. Em Gregório, o Grande, Moralia in
Job, 3:453. 5. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 22h45.
6. Catarina de Sena, O Diálogo, 56.
7. Victor P. Hamilton, The Book of Genesis, 2 vols., The New International
Commentary on the Old Testament (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1990,
1995), 1:189: “A desobediência trará bênçãos positivas. O consumo do fruto
proibido tornará a mulher semelhante a um deus…. [A declaração da serpente]
deve ser entendida como predicativa – ‘sereis como Deus’”.
8. Ver João Cassiano, Institutas, 12.5: “Este [orgulho] é a causa da primeira queda
e a origem última da doença que… se infiltrou no primeiro homem e produziu as
fraquezas e os recursos de todos os vícios. Pois em sua crença de que poderia
alcançar a glória da Divindade por sua própria vontade e esforço, ele perdeu até
mesmo aquilo que era seu pela graça do Criador.”
9. Ver Joseph Blenkinsopp, Isaías 1–39, Anchor Bible 19 (New York: Doubleday,
2000), 288, que liga esta passagem a outras descrições proféticas da “queda em
desgraça de divindades rebeldes (cf. Ezequiel 28:11– 19; Sl 82:6-7)” e aponta para
ele como a origem da posterior “doutrina da queda de Lúcifer (a tradução da
Vulgata de Hêlēl).”
10. Ver Isaías 36:18–20; Daniel 10:13–14.
11. Ver João Cassiano, Institutas, 12.4.1: “Vemos que aquele anjo que, por causa
de seu grande esplendor e beleza, foi chamado Lúcifer, foi expulso do céu por
nenhum outro vício além deste, e que, tendo sido ferido pelo dardo do orgulho,
caiu do bendito e sublime posto dos anjos no inferno.”
220

12. Neste provérbio, a palavra “arrogante” significa literalmente “alto” ou


“exaltado” (hebraico gaboah). Eventualmente, é traduzido para o grego como
“coração altivo” (grego hypsēlokardios) e para o latim como “arrogante” (latim
arrogans) (Provérbios 16:5 LXX e Vulgata).
13. F. Brown, S. R. Driver e C. A. Briggs, Um Léxico Hebraico e Inglês do Antigo
Testamento (Oxford: Clarendon, 1977), 1073.
14. No original grego, a palavra para “orgulho” é hiperēphania. Mais tarde, é
traduzido para o latim como superbia (ver Vulgata Marcos 7:22).
15. Ver Josefo, Antiguidades, 18.12, 15: “Os fariseus…são…extremamente
influentes entre os habitantes da cidade; e todas as orações e ritos sagrados do
culto divino são realizados de acordo com a sua exposição. Esta é a grande
homenagem que os habitantes das cidades, praticando os mais elevados ideais
tanto no seu modo de viver como no seu discurso, prestaram à excelência dos
fariseus”. Em Josefo, Antiguidades Judaicas, Livros 18–19, trad. Louis H.
Feldman, Loeb Classical Library 433 (Cambridge, Mass.: Harvard University
Press, 1965), 11, 13. Para um corretivo útil à tendência de estereotipar
negativamente os fariseus e ignorar sua popularidade, ver especialmente
Lawrence H. Schiffman, “Pharisees”, em Amy-Jill Levine e Marc Zvi Brettler,
eds., The Jewish Annotated New Testament, 2ª ed. (Oxford: Oxford University
Press, 2017), 619–22.
16. François Bovon, Lucas 2, trad. Donald S. Deer, Hermeneia (Minneapolis:
Fortress, 2002), 546: “Ele orou para si mesmo.”
17. Na Bíblia, a palavra “pecado” significa literalmente “errar o alvo” (grego
hamartia). Quando uma pessoa aponta a flecha do amor para si mesma, em vez
de para seu Criador, ela erra infinitamente o alvo. É por isso que o orgulho –
colocar-se no lugar de Deus – é na verdade o pior pecado.
18. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 165 (ênfase alterada).
19. Ver Michael V. Fox, Provérbios, 2 vols., Anchor Bible 18–18A (New Haven:
Yale University Press, 2000–2009), 1:69: “O substantivo yir'ah (medo) e o verbo
yare' [temer] pode referir-se a tudo, desde o pavor do perigo (1Sm 12:18) até o
gentil temor e respeito, como o que alguém sente pelo Deus misericordioso (Sl
130:4) ou pelos seus pais (Lv 19:3).”
20. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 1.7.3.
21. Danker, Greek-English Lexicon, 610. Na verdade, a palavra “bem-
aventurança” vem da antiga tradução latina deste versículo: “Felizes (latim beati)
221

os pobres de espírito” (Mateus 5:3 Vulgata). Dito isto, o tipo de felicidade


implícito aqui não é um sentimento transitório de euforia, mas a alegr ia
sobrenatural de uma vida vivida de acordo com a vontade de Deus. Para uma
discussão sobre a dificuldade de traduzir makarios para o inglês, consulte
Jonathan T. Pennington, The Sermon on the Mount and Human Flourishing: A
Theological Commentary (Grand Rapids, Mich.: Baker Academic, 2017), 41–67.
22. Ver W. D. Davies e D. C. Allison, Jr., O Evangelho Segundo São Mateus, 3
vols., International Critical Commentary (Londres: T&T Clark, 1988–97), 1:443:
“A referência primária [de ptōchos] é à pobreza econômica…. Mas já no AT,
especialmente nos Salmos, a palavra grega e seus equivalentes hebraicos referem-
se àqueles que têm necessidade especial da ajuda de Deus.” Veja Salmos 12:5;
37:14; 70:5; 86:1.
23. Ver Gregório de Nissa, As Bem-Aventuranças, Sermão 1: “Parece-me que por
pobreza de espírito o Verbo [Jesus] entende a humildade voluntária…. Visto,
portanto, que o vício da arrogância está enraizado em quase todos os que
partilham a natureza humana, o Senhor inicia as Bem-aventuranças com isto. Ele
remove o orgulho, a raiz do mal, de nosso caráter, aconselhando-nos a imitar
Aquele que se tornou pobre por Sua própria vontade” (grifo nosso).
24. Considere o perfil de João Cassiano, do século IV, de uma pessoa arrogante:
“Ele será desprovido de paciência, sem amor, rápido em infligir abusos, lento em
aceitá-los, relutante em obedecer, exceto quando seu desejo e antecipar o assunto,
implacável em receber exortações, fraco em restringir sua própria vontade, muito
inflexível quando submetendo-se aos outros, lutando constantemente em nome de
suas próprias opiniões, mas nunca aquiescendo ou cedendo às dos outros” (João
Cassiano, Institutes, 12.29.2–3).
12 Inveja vs. Misericórdia
1. Basílio, o Grande, Sobre a Inveja, Homilia 11. Em São Basílio, Obras
Ascéticas, trad. M. Monica Wagner, CSC, Padres da Igreja 9 (Washington, DC:
Catholic University of America Press, 1950), 463.
2. Gregório, o Grande, Morals in Job, 5.85. Em Gregório, o Grande, Reflexões
Morais sobre o Livro de Jó, Volume 1: Prefácio e Livros 1–5 (trad. Brian Kerns,
O.C.S.O.; Cistercian Studies 249; Collegeville, Minnesota: Liturgical Press,
2014), 385–86.
222

3. João Damasceno, Sobre a Fé Ortodoxa, 2.14. Em Philip Schaff e Henry Wace,


eds., Nicene and Post-Nicene Fathers, Second Series, 14 vols. (Peabody, Mass.:
Hendrickson, 1994), 9:33.
4. João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 1.7.1.
5. RSV, ligeiramente adaptado.
6. Victor P. Hamilton, O Livro do Gênesis, 2 vols., O Novo Comentário
Internacional sobre o Antigo Testamento (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans,
1990, 1995), 1:223. 7. CIC nº. 2553.
8. Gregório Magno, Morals in Job, 5.46, 84: “Foi a inveja que corrompeu Caim a
ponto de cometer fratricídio; quando seu próprio sacrifício foi desconsiderado, ele
enlouqueceu contra aquele que lhe foi preferido, cuja oferta Deus aceitou, e aquele
a quem ele odiava por ser melhor do que ele mesmo, ele cortou, para pôr fim à
sua existência.” Em Gregório, o Grande, Reflexões Morais sobre o Livro de Jó,
Volume 1, 384.
9. F. Brown, S. R. Driver e C. A. Briggs, Um Léxico Hebraico e Inglês do Antigo
Testamento (Oxford: Clarendon, 1977), 326.
10. RSV, ligeiramente adaptado.
11. Gregório, o Grande, Morals in Job, 5.46.85. Em Gregório, o Grande,
Reflexões Morais sobre o Livro de Jó, Volume 1, 386. Ver também Michael V.
Fox, Provérbios, 2 vols., Anchor Bible 18–18A (New Haven: Yale University
Press, 2000–2009), 2 :584, que salienta que Provérbios enfatiza “os benefícios
psicossomáticos de um coração e espírito gentis e alegres” em outros lugares. Veja
Provérbios 17:22; 18:14.
12. Ver David Winston, The Wisdom of Solomon, The Anchor Bible 43 (New
York: Doubleday, 1979), 121–22, citando Josefo, Jewish Antiquities, 1.41: “A
serpente, vivendo na companhia de Adão e sua esposa, ficou com inveja (grego
pthonerōs) das bênçãos que ele supunha que lhes seriam destinadas se
obedecessem às ordens de Deus. Em Josefo, Antiguidades Judaicas, Livros 1–3,
trad. H. St. J. Thackeray, Loeb Classical Library 242 (Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 1930), 21 (ligeiramente adaptado). Para a tradição cristã
posterior sobre o papel da inveja na queda de Satanás, ver Gregório, o Grande,
Morals in Job, 5.46.84: “Só podemos invejar aqueles que pensamos serem
melhores do que nós em algum aspecto…. É por isso que o astuto inimigo roubou
o primeiro casal em sua inveja, porque ele havia perdido o estado abençoado e era
inferior à sua imortalidade.” Em Gregório, o Grande, Reflexões Morais sobre o
223

Livro de Jó, Volume 1, 384. Ver também Tomás de Aquino, Summa Theologica,
II–II, q. 36, art. 4: “Quando o diabo nos tenta à inveja, ele está nos seduzindo para
aquilo que tem o lugar principal em seu coração.”
13. Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo Testamento
e Outra Literatura Cristã Primitiva, 3ª ed. (Chicago: University of Chicago Press,
2000), 824.
14. Adela Yarbro Collins, Mark: A Commentary, Hermeneia (Minneapolis:
Fortress, 2007), 360. Ver, por exemplo, Eclesiástico 14:8–10.
15. François Bovon, Lucas 2, trad. Donald S. Deer, Hermeneia (Minneapolis:
Fortress, 2002), 422.
16. Ver Gregório, o Grande, Morals in Job, 31.45: “Da inveja brotam o ódio, os
sussurros, a difamação, a exultação pelos infortúnios de um próximo e a aflição
pela sua prosperidade.” Em Gregório, o Grande, Moralia in Job, 3:453. Veja
também Tomás de Aquino, Summa Theologica, II–II, q. 36, art. 4.
17. Tomás de Aquino, Summa Theologica, II–II, q. 36, art. 3: “A inveja…é
contrária à caridade…. Ora, o objeto tanto da caridade como da inveja é o bem do
próximo, mas por movimentos contrários, visto que a caridade se alegra com o
bem do próximo, enquanto a inveja se aflige com ele.” Veja também João da Cruz,
Noite Escura da Alma, Livro 1.7.1: “Com respeito à inveja, muitos [iniciantes]
estão acostumados a experimentar movimentos de descontentamento com o bem
espiritual dos outros…. Tudo isto é totalmente contrário à caridade, que, como diz
São Paulo, “alegra-se no bem” (1 Cor 13, 6).
18. Ver especialmente Tomás de Aquino, Summa Theologica, II–II, q. 36, art. 3:
“A inveja [latim invidia] … é diretamente contrária à misericórdia [latim
misericordiae], sendo seus principais objetos contrários um ao outro, uma vez que
o homem invejoso sofre p elo bem do próximo, enquanto o homem misericordioso
sofre pelo mal do próximo, de modo que o invejoso não tem piedade, como afirma
na mesma passagem, nem o homem misericordioso é invejoso” (tradução
ligeiramente adaptada). Veja também Gregório de Nissa, As Bem-aventuranças,
Sermão 5, que diz que se a “misericórdia” reinasse na sociedade humana, “a inveja
seria fútil” e todos os vícios que são “produtos da cobiça” desapareceriam.
19. Tomás de Aquino, Summa Theologica, II–II, q. 36, art. 3. Por uma questão de
clareza, traduzi o latim misericordes como “misericordioso” em vez de
“lamentável”.
224

20. O verbo grego para “retirar” é apotithēmi. Veja Danker, Léxico Grego-Inglês,
123.
21. Danker, Léxico Grego-Inglês, 316.
13 Ira vs. Mansidão
1. Ver CIC nºs. 1767, 1772: “Em si as paixões não são boas nem más. Elas são
moralmente qualificadas apenas na medida em que efetivamente envolvem a
razão e a vontade…. As principais paixões são amor e ódio, desejo e medo,
alegria, tristeza e ira.”
2. Ver Tomás de Aquino, Summa Theologica, II–II, q. 158, arts. 1–2: “Ficar com
raiva nem sempre é um mal…. Se alguém deseja que a vingança seja realizada de
acordo com a ordem da razão, o desejo de raiva é louvável e é chamado de 'raiva
zelosa' ordem da razão, por exemplo, se desejar a punição de quem não a mereceu,
ou além dos seus merecimentos, ou ainda contrária à ordem prescrita pela lei, ou
não para o devido fim, nomeadamente a manutenção da justiça e a correção de
inadimplência, então o desejo de raiva será pecaminoso, e isso é chamado de raiva
pecaminosa.”
3. Gregório, o Grande, Morals in Job, 5.82. Em Gregório, o Grande, Reflexões
Morais sobre o Livro de Jó, Volume 1, 382.
4. João Cassiano, Institutos, 8.1.1.
5. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 8.14.
6. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 3.8.
7. A mesma expressão é usada para descrever a resposta de Potifar quando José é
(falsamente) acusado de ter feito uma proposta à sua esposa: “sua ira se acendeu”
(hebraico charah) (Gênesis 39:19). Veja também Sabedoria de Salomão 10:3, que
afirma que Caim abandonou a sabedoria “em sua ira” e “em fúria ele matou seu
irmão”.
8. Ver também Michael V. Fox, Provérbios, 2 vols., The Anchor Bible 18–18A
(New Haven: Yale University Press, 2000–2009), 2:584, que aponta que a palavra
hebraica traduzida como “paciente” significa literalmente “narinas compridas”!
Eventualmente, a palavra hebraica neste provérbio é traduzida como “ira” (grego
orgē) ou “ira” (latim ira) (Provérbios 14:29 LXX e Vulgata), que são os nomes
clássicos gregos e latinos para o pecado capital.
225

9. Observe que esta é exatamente a mesma palavra usada por escritores cristãos
posteriores para descrever o pecado capital da “raiva” (grego orgē; latim ira)
(Marcos 3:5 Vulgata).
10. RSV, ligeiramente adaptado. Vale a pena notar aqui que muitos manuscritos
antigos dizem “todo aquele que se zanga com seu irmão sem causa (grego eikē)”
(Mateus 5:22), deixando assim espaço para “indignação justa”. Ver W. D. Davies
e D. C. Allison, Jr., O Evangelho segundo São Mateus, 3 vols., International
Critical Commentary (Londres: T&T Clark, 1988–97), 1:512; Bruce M. Metzger,
Um Comentário Textual sobre o Novo Testamento Grego, 2ª ed. (Estugarda:
Deutsche Bibelgesellschaft, 1994), 11.
11. Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo Testamento
e Outra Literatura Cristã Primitiva, 3ª ed. (Chicago: University of Chicago Press,
2000), 903.
12. Considere, por exemplo, as seguintes tradições rabínicas: “O julgamento dos
injustos na Gehenna durará doze meses” (Mishna, Eduyoth 2:10). Da mesma
forma, “A Casa do [Rabino] Shammai diz: ‘Existem três grupos, um para a vida
eterna, um para “vergonha e desprezo eterno” (Dan. 12:2) – estes são aqueles que
são completamente maus. Um grupo intermediário desce para a Geena e grita e
sobe novamente e é curado’” (Tosefta, Sinédrio 13:3). Em Danby, Mishná, 426;
Jacob Neusner, O Tosefta, 2 vols. (Peabody, Mass.: Hendrickson, 2002), 2:1188–
89. Veja também Joachim Jeremias, “géenna”, no Dicionário Teológico do Novo
Testamento, ed. Gerhard Kittel, trad. Geoffrey W. Bromily, 10 vols. (Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans, 1964), 1:657–58, que reconhece que a Geena tem
“um caráter purgatorial e também penal”.
13. Ver Gregório, o Grande, Morals in Job, 5.81: “[Uma] maneira de manter um
temperamento calmo é que, quando notamos as transgressões dos outros,
possamos nos lembrar de nossos próprios pecados e transgressões contra eles….
Assim como o fogo se apaga com a água, quando a raiva surge na mente, todos
devem lembrar-se da sua própria culpa, porque deveríamos ter vergonha de não
perdoar pecados quando nos lembramos que muitas vezes pecamos contra Deus
ou contra o próximo e necessitamos de perdão.” Em Gregório, o Grande,
Reflexões Morais sobre o Livro de Jó, Volume 1, 381–82.
14. RSV, ligeiramente adaptado.
15. Gregório, o Grande, Morals in Job, 31.88: “Da ira são produzidas brigas,
comoção, abusos, gritos, insultos, blasfêmias” (tradução do autor).
226

16. Gregório de Nissa, As Bem-Aventuranças, Sermão 2: “A ira se opõe à


gentileza.” Para uma visão semelhante na Idade Média, ver Tomás de Aquino,
Summa Theologica, I–II, q. 46, art. 5: “A gentileza (latim mansuētūdo) é contrária
à raiva.”
17. Danker, Léxico Grego-Inglês, 861.
14 Avareza vs. Generosidade
1. Ver João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 16 (Sobre a Avareza); Tomás
de Aquino, Summa Theologica, II-II, q. 118, arts. 1–8
2. João Cassiano, Institutos, 7.1–2.
3. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 16.
4. Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, q. 118, art. 2.
5. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 3.14.
6. F. Brown, S. R. Driver e C. A. Briggs, Um Léxico Hebraico e Inglês do Antigo
Testamento (Oxford: Clarendon, 1977), 326.
7. RSV, adaptado.
8. Michael V. Fox, Provérbios, 2 vols., Anchor Bible 18–18A (New Haven: Yale
University Press, 2000–2009), 2:831, que traduz “ganancioso” (hebraico rechab
nephesh) como “amplo apetite” ou “boca voraz”, também afirma: “A ganância é
um repúdio à confiança em Deus, pois quem confia em Deus aceita o que Deus
dá e não deseja mais”.
9. RSV, ligeiramente adaptado.
10. Ver W. D. Davies e D. C. Allison, Jr., O Evangelho segundo São Mateus, 3
vols., International Critical Commentary (Londres: T&T Clark, 1988–97), 1:640:
“Textos judaicos antigos frequentemente mencionam o 'insolente' olho', o 'olho
enganador' e o 'mau-olhado'.…Em todos esses lugares, ‘olho’ parece significar
‘intenção’.…O que está envolvido é a antítese da generosidade.” Veja, por
exemplo, Tobias 4:7; Eclesiástico 14:8; Mishná, Ambo 2:9, 11; 5:19.
11. Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo Testamento
e Outra Literatura Cristã Primitiva, 3ª ed. (Chicago: University of Chicago Press,
2000), 824.
12. Joseph A. Fitzmyer, S.J., O Evangelho segundo Lucas, 2 vols., Anchor Bible
28–28A (Nova York: Doubleday, 1983–85), 2:974, observa corretamente que ser
227

“rico” para com Deus envolve “o uso adequado dos bens materiais para outros” –
isto é, dar esmolas.
13. A palavra grega usada aqui é pleonexia; mais tarde é traduzido para o latim
como “avareza” (latim avaritia) (Colossenses 3:5 Vulgata).
14. Gregório, o Grande, Morals in Job, 31.88: “Da avareza brotam a traição, a
fraude, o engano, o perjúrio, a inquietação, a violência e a dureza de coração
contra a compaixão.” Em Gregório, o Grande, Moralia in Job, 3:453.
15. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 3.14 (grifo nosso).
15 Luxúria vs. Castidade
1. Ver, por exemplo, João Cassiano, Institutes, 6.1–23; João Clímaco, Escada da
Ascensão Divina, 15; Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, q. 153, art. 1:
“Luxúria [latim luxuria] é definida ‘como o desejo de prazer desenfreado’”; e
ibid., II-II, q. 154, art. 1: “O pecado da luxúria consiste em buscar prazeres
venéreos que não estão de acordo com a razão correta.” Veja também CIC nº.
2351: “A luxúria é o desejo desordenado ou o gozo excessivo do prazer sexual. O
prazer sexual é moralmente desordenado quando buscado por si mesmo, isolado
de seus propósitos procriativos e unitivos”.
2. João Cassiano, Institutos, 6.1.
3. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 15.83.
4. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 1.4.
5. William H. C. Propp, Exodus, 2 vols., Anchor Bible 2–2A (New York:
Doubleday, 2006), 2.180: “O décimo mandamento aborda o desejo como a raiz
emocional do crime, mais obviamente do adultério.”
6. Tomás de Aquino, Summa Theologica, II–II, q. 154, art. 2: “A fornicação é
contrária ao amor ao próximo.”
7. Compare a liderança militar do Rei Saul em 1 Samuel 14–15. Sobre a guerra
no antigo Israel, ver Roland de Vaux, Ancient Israel: Its Life and Institutions
(Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1997), 250–54.
8. Ver Provérbios 2:16–19; 5:1–23; 6:23–35; 7:1–5.
9. Michael V. Fox, Provérbios, 2 vols., Anchor Bible 18–18A (New Haven: Yale
University Press, 2000–2009), 1:227.
10. RSV, ligeiramente adaptado.
228

11. Ver Aline Rousselle, Porneia: Sobre o Desejo e o Corpo na Antiguidade, trad.
Felicia Pheasant (Londres: Basil Blackwell, 1988).
12. Ver Adela Yarbro Collins, Mark: A Commentary, Hermeneia (Minneapolis:
Fortress, 2007), 358: porneiai refere-se a “atos de relações sexuais ilegais” ou
“imoralidade sexual”. Para exemplos de formas proibidas de atividade sexual,
consulte o escrito judaico do primeiro século, Pseudo Phocylides 175–206. Em
James H. Charlesworth, ed., The Old Testament Pseudepigrapha, 2 vols., Anchor
Bible Reference Library (Nova York: Doubleday, 1983, 1985), 2.580–81.
13. RSV, ligeiramente adaptado.
14. Para antigas proibições judaicas semelhantes à luxúria, consulte W. D. Davies
e D. C. Allison, Jr., The Gospel segundo Saint Matthew, 3 vols., International
Critical Commentary (London: T&T Clark, 1988–97), 1:522, citando o
Testamento de Isaque 4:53: “Não olhe para uma mulher com olhos lascivos”, e
Pesiqta Rabbati 24:2: “Mesmo aquele que se visualiza no ato de adultério é
chamado de adúltero”.
15. Ver Jonathan T. Pennington, O Sermão da Montanha e o Florescimento
Humano: Um Comentário Teológico (Grand Rapids, Michigan: Baker Academic,
2017), 187.
16. Tradução do autor.
17. Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo Testamento
e Outra Literatura Cristã Primitiva, 3ª ed. (Chicago: University of Chicago Press,
2000), 508: o “coração” (do grego kardia) é o “centro e fonte de toda a vida
interior, w. seu pensamento, sentimento e volição” (grifo nosso). Veja também
Pennington, Sermão da Montanha, 93: “É o que sai do coração que revela a
qualidade de toda a pessoa interior…. A kardia bíblica se sobrepõe à ‘alma’, ao
‘raciocínio’ e à ‘mente’ e está definitivamente intimamente associada à sede das
faculdades mentais, muito mais amplas e profundas do que meras emoções”
(ênfase adicionada).
18. Ver João Cassiano, Institutas, 6.3: Uma pessoa com uma “mente doentia” deve
evitar “imagens” lascivas.
19. Agostinho, Confissões, 8.7.17. Nas Confissões de Santo Agostinho, trad. John
K. Ryan (Nova York: Imagem, 2014), 156.
20. Ver, por exemplo, CIC nº. 2390: “O ato sexual deve ocorrer exclusivamente
dentro do casamento. Fora do casamento constitui sempre um pecado grave e
exclui a pessoa da comunhão sacramental”.
229

21. RSV, ligeiramente adaptado.


22. Num contexto judaico, quando Paulo menciona “impureza” (grego
akatharsia), ele provavelmente está se referindo a atos lascivos especialmente
“sujos” (cf. Gálatas 5:19). Veja Danker, Léxico Inglês Grego, 34.
23. Inácio de Loyola distingue entre deleite e consentimento quando escreve: “É
um pecado venial se o mesmo pensamento de pecar mortalmente vem à mente e
por um curto período de tempo alguém presta atenção a isso, ou recebe algum
prazer sensorial, ou é um tanto negligente em rejeitá-lo. Existem duas maneiras
de pecar mortalmente: (1) A primeira é consentir com o mau pensamento com a
intenção de realizá-lo, ou de fazê-lo, se puder. (2) A segunda…é realmente
cometer o pecado para o qual foi dado consentimento” (Inácio, Exercícios
Espirituais, nºs 35–37).
24. Agostinho, O Sermão da Montanha do Senhor, 1.12.33. Agostinho deixa claro
que as palavras de Jesus não se referem simplesmente a “sentir cócegas no prazer
da carne”, mas antes referem-se ao “pleno consentimento ao prazer: o desejo
proibido não é controlado, mas, dada a oportunidade, seria gratificado” seu
desejo.” Em Santo Agostinho, O Sermão do Senhor na Montanha, ed. Johannes
Quasten, STD, e Joseph C. Plumpe, trad. John J. Jepson, S.S., Ancient Christian
Writers (Nova York: Paulist, 1948), 43. Ver também João Clímaco, Ladder of
Divine Ascent, 15.74: “Os Padres perspicazes definiram que agressão é uma coisa,
conversar outra, consentir outra. …. A agressão [é] uma concepção simples, ou
uma imagem de algo encontrado pela primeira vez, que entrou no coração.
Converse é conversa com o que se apresentou, acompanhada de paixão ou
desapego. E o consentimento é a inclinação da alma ao que lhe foi apresentado,
acompanhada de deleite.” Em São João Clímaco, A Escada da Ascensão Divina,
rev. Ed. (Boston: Mosteiro da Sagrada Transfiguração, 2019), 150–51.
25. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 4.3.
26. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 4.3.
27. Gregório Magno, Homilias sobre os Evangelhos, 14: “Devemos estar
conscientes de que a tentação se realiza de três maneiras: por sugestão, por deleite
e por consentimento…. [Jesus] pôde, portanto, ser tentado pela sugestão, mas
nenhum prazer no pecado tomou conta de seu coração.”
28. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 4.3.
29. RSV, ligeiramente adaptado.
30. João Cassiano, Institutos, 6.1.
230

31. Gregório, o Grande, Morals in Job, 31.89: “É claro para todos que a luxúria
brota da gula.” Em Gregório, o Grande, Moralia in Job, 3:454.
32. A experiência mostra que é quase impossível encher a nossa imaginação com
pensamentos lascivos e meditar regularmente nas Escrituras ao mesmo tempo.
Um dos dois vai embora.
16: Gula vs. Temperança
1. Tradução do autor.
2. Sobre a gula, veja João Clímaco, Ladder of Divine Ascent, 14 (On Gluttony);
Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, q. 148, arts. 1–6.
3. Gregório, o Grande, Morals in Job, 30.18.58. Citado em Tomás de Aquino,
Summa Theologica, II–II, q. 148, art. 1. Veja também João Cassiano, Institutes,
5.3: “A primeira competição na qual devemos entrar é contra a gula.”
4. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 18.
5. Tomás de Aquino, Summa Theologica, II–II, q. 148, art. 1. Ver também ibid.,
II–II, q. 148, art. 6.
6. Sobre a terminologia hebraica de “glutão” e “bêbado”, ver F. Brown, S. R.
Driver e C. A. Briggs, A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament
(Oxford: Clarendon, 1977), 272–73, 684– 85.
7. RSV, ligeiramente adaptado.
8. Michael V. Fox, Provérbios, 2 vols., Anchor Bible 18–18A (New Haven: Yale
University Press, 2000–2009), 2:735–36: “Esses vícios reforçam-se
mutuamente… [e] caracterizam os filhos rebeldes em Dt 21.20 (que usa as
mesmas palavras aqui) e parece representar comportamento dissoluto em geral”.
9. No que diz respeito às bodas de Caná, é importante sublinhar que a quantidade
de vinho que Jesus produz – cerca de 180 galões (ver Jo 2, 6) – não pretende
promover a embriaguez, mas ser um sinal da superabundância do vinho do
banquete messiânico (ver Amós 9:11–13; Joel 3:18; cf. 2 Baruque 29:1–5). Para
discussão, ver Brant Pitre, Jesus the Bridegroom: The Greatest Love Story Ever
Told (Nova Iorque: Image, 2014), 42–43. Ao mesmo tempo, as Escrituras
Judaicas também deixam claro que Deus dá “vinho” para “alegrar o coração” dos
seres humanos (Salmo 104:15).
10. RSV, ligeiramente adaptado.
231

11. A palavra “dissipação” (grego kraipalē) pode ser definida como “indulgência
desenfreada em uma festa com bebidas”. Frederick William Danker, ed., Um
Léxico Grego-Inglês do Novo Testamento e Outras Literaturas Cristãs Primitivas,
3ª ed. (Chicago: University of Chicago Press, 2000), 564. Fitzmyer também a
define como “intoxicação”. Joseph A. Fitzmyer, SJ, O Evangelho segundo Lucas,
2 vols., Anchor Bible 28–28A (Nova York: Doubleday, 1983–85), 2:1355.
12. Ver, por exemplo, João da Cruz, A Ascensão do Monte Carmelo, 3.25.5: “A
alegria nas delícias da comida gera diretamente a gula e a embriaguez... e a falta
de caridade para com o próximo e os pobres, como para com Lázaro por parte do
homem rico que comia suntuosamente todos os dias.”
13. RSV, ligeiramente adaptado.
14. Fitzmyer, Evangelho segundo Lucas, 2:1132, citando 1 Reis 1:21; 20:10;
11:21.
15. Fitzmyer, Evangelho segundo Lucas, 2:1131, salienta que quando Lucas diz
que Lázaro “ansiava por ser alimentado” (grego epithymōn chortasthēnai) (Lucas
16:21), é a mesma expressão usada para descrever como o filho pródigo filho
“ansiava por ser alimentado” (grego epethymei chortasthēnai) (Lucas 15:16).
16. RSV, ligeiramente adaptado.
17. Ver Walter Burkert, Greek Religion, trad. John Raffan (Cambridge,
Massachusetts: Harvard University Press, 1985), 99–107, 161–67.
18. Não é coincidência que a palavra “folia” (grego kōmos) usada por Pedro e
Paulo seja o verdadeiro nome de Komos, o deus grego da festa. Veja Danker,
Léxico Grego-Inglês, 580: “Orig. uma procissão festiva em homenagem a
Dionísio (cp. nosso festival de Mardi Gras) … num mau sentido, festa
excessiva… farra, folia Ro 13:13; Gálatas 5:21.”
19. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 14: “Devemos em todos os lugares
e em todos os momentos cultivar a temperança.” Veja também Tomás de Aquino,
Summa Theologica, II–II, q. 141, art. 2.
20. João Cassiano, Institutos, 14.3.
17 Preguiça vs. Diligência
1. J. Lust, E. Eynikel e K. Hauspie, Um Léxico Grego-Inglês da Septuaginta, 2
vols. (Estugarda: Deutsche Bibelgesellschaft, 1992), 1:15. Por exemplo, CIC nº.
1866 fala de “preguiça” (latim pigritia), em vez de “acedia”.
232

2. Ver João Cassiano, Institutas, 10.1–25; João Clímaco, Escada da Ascensão


Divina, 13; Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, q. 35, arts. 1–4; João da
Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 1.7.2–5.
3. João Cassiano, Institutes, 10.7.8: “a doença da preguiça”. Cassiano prossegue
falando nos termos mais fortes possíveis sobre “a gangrena da ociosidade”
(10.7.8), “o vício da ociosidade” (10.8.1).
4. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 13.1–2.
5. Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, q. 35, art. 1.
6. João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 1.7.2, 4.
7. João Cassiano, Institutas, 10.5: “O verdadeiro atleta de Cristo, que deseja
engajar-se legalmente na luta pela perfeição, deve esforçar-se para expulsar
também esta doença das profundezas de sua alma.”
8. Veja Provérbios 6:6, 9; 10:26; 13:4; 15:19; 19:24; 20:4; 21:25; 22:13; 24h30;
26:13–16. Para termos relacionados, consulte Provérbios 19:15; 31:27;
Eclesiastes 10:18.
9. Michael V. Fox, Provérbios, 2 vols., Anchor Bible 18–18A (New Haven: Yale
University Press, 2000–2009), 2:798: “Como uma porta que balança para frente e
para trás, o preguiçoso se vira em sua cama sem ir a lugar nenhum.”
10. Fox, Provérbios, 2:798: “O homem preguiçoso não é apenas desprovido de
energia e motivação, ele também é presunçoso e vaidoso.”
11. RSV, ligeiramente adaptado.
12. Ver Klyne R. Snodgrass, Histórias com Intenção: Um Guia Abrangente para
as Parábolas de Jesus, 2ª ed. (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 2018), 528;
Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo Testamento e
Outras Literaturas Cristãs Primitivas, 3ª ed. (Chicago: University of Chicago
Press, 2000), 988.
13. Snodgrass, Stories with Intent, 525: “A responsabilidade atribuída aos servos
dá-lhes uma obrigação” (ênfase adicionada). Para um estudo completo de como
os presentes no mundo antigo implicavam obrigações, consulte John M. G.
Barclay, Paul and the Gift (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 2015).
14. Neste versículo, a palavra “preguiçoso” ou “ocioso” (grego oknēros) (Mateus
25:26) é a mesma palavra usada para traduzir o hebraico “preguiçoso” (hebraico
'atzel) (ver Provérbios 6:9 LXX).
233

15. Ver Joel Marcus, Mark, 2 vols., Anchor Bible 27–27A (New Haven: Yale
University Press, 2009), 2:920: “Já que a Páscoa é chamada de noite de vigília
(lit. 'noite de vigília') em Êxodo 12:42, … pelo menos na época dos Tannaim,
alguns judeus tinham o hábito de ficar acordado a noite toda para comemorar.”
Veja, por exemplo, Tosefta, Pesahim 10:12. Compare também a tradução da
Vulgata de “manter acordado” (latim vigiar) (Marcos 14:34).
16. RSV, adaptado.
17. Ver João Clímaco, Ladder of Divine Ascent, 13.11, que descreve a acídia
como “o mais grave” de todos os “vícios capitais”. Em São João Clímaco, A
Escada da Ascensão Divina, rev. Ed. (Boston: Mosteiro da Sagrada
Transfiguração, 2019), 133.
18. Ver João Cassiano, Institutas, 10.7.1: “O abençoado Apóstolo, como um
médico verdadeiro e espiritual, há muito tempo viu esta doença, que brota do
espírito de acídia, se insinuando.” A maior parte do famoso tratado de João
Cassiano sobre a acídia é dedicada a uma exposição linha por linha das palavras
de Paulo em 2 Tessalonicenses 3. Ver ibid., 10.7-19.
19. RSV, ligeiramente adaptado.
20. Ver Nathan Eubank, First and Second Thessalonians (Grand Rapids,
Michigan: Baker Academic, 2019), 186: “A ordem de Paulo não é dirigida aos
‘desempregados’, aqueles que desejam trabalhar mas não conseguem encontrá-
lo…. É dirigido àqueles que poderiam ter um emprego remunerado, mas optam
por não o ter, aqueles que “não estão dispostos” a trabalhar…. [O] mandamento
de alimentar os famintos é uma obrigação grave à qual Jesus não faz exceções”
(ver Mateus 5:42).
21. Cf. Danker, Greek-English Lexicon, 148: “A maneira específica pela qual o
comportamento irresponsável se manifesta é descrita no contexto:
aproveitamento, esponja.”
22. Bento de Núrsia, A Regra, 48.1. Na Regra de São Bento, trad. Leonard J.
Doyle, O.S.B. (Collegeville, Minnesota: Liturgical Press, 2001), 109 (ênfase
adicionada).
23. CIC nº. 2697.
24. Para o original em latim, ver Georg Holzherr, O.S.B., The Rule of Benedict:
An Invitation to the Christian Life, trad. Mark Thamert, O.S.B. (Collegeville,
Minnesota: Liturgical Press, 2016), 363.
234

18 Tristeza vs. Paciência


1. Ver, por exemplo, CIC nº. 1866. Para um exemplo clássico medieval dos sete
pecados capitais, veja a Divina Comédia de Dante, Purgatório, Cantos I-XXXIII,
que descreve a “Montanha” do Purgatório como consistindo de sete níveis
correspondentes ao orgulho, inveja, raiva, preguiça, avareza, gula e luxúria. Para
um diagrama, veja Dante, A Divina Comédia, trad. C. H. Sisson (Oxford: Oxford
University Press, 2008), 198. Não é coincidência que estes sete pecados estejam
ligados aos sofrimentos do caminho purgativo (nesta vida) e do Purgatório (após
a morte).
2. Ver João Clímaco, Ladder of Divine Ascent, 22.1, que observa que, já no século
VI d.C., alguns escritores cristãos “afirmam que existem oito pecados capitais.
Mas contra isso está a visão de Gregório, o Teólogo [= Gregório, o Grande] e de
outros professores, de que na verdade o número é sete. Eu também defendo essa
opinião.” Aqui, Clímaco provavelmente está se referindo aos escritores do século
IV João Cassiano e Evágrio do Ponto, ambos os quais identificam oito pecados
capitais (ou oito “maus pensamentos”), ambos os quais incluem “tristeza” ou
“pesar” (grego lypē; latim tristitia) em suas respectivas listas. Veja João Cassiano,
Conferences, 5.1–27 (Sobre os Oito Principais Vícios) e Evágrio do Ponto, Sobre
os Vícios Opostos às Virtudes, 1–10, e Sobre os Oito Pensamentos, 1–8.
Para este último, veja Evagrius of Pontus, The Greek Ascetic Corpus, trad. Robert
E. Sinkewicz (Oxford: Oxford University Press, 2003), 60–90.
Significativamente, embora Gregório, o Grande, falasse apenas de sete pecados
capitais, ao contrário dos escritores cristãos medievais posteriores, Gregório
incluiu “tristeza” ou “melancolia” (latim tristitia) na sua lista dos “sete vícios
principais”. Veja Gregório, o Grande, Morals in Job, 31.87. Em Gregório, o
Grande, Moralia in Job, 3:453.
3. Tradução do autor.
4. Agostinho, Cidade de Deus, 14.6: “Quando nos afastamos daquilo que
aconteceu contra a nossa vontade, este ato de vontade é chamado de tris teza”. Em
Schaff, Pais Nicenos e Pós-Nicenos, Primeira Série, 2:266.
5. Para discussões sobre ambos os tipos de tristeza, ver João Cassiano, Institutes,
9.1–13; João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 7 (Sobre Luto); Tomás de
Aquino, Summa Theologica, I-II, qq. 35–39; Thomas de Kempis, A Imitação de
Cristo, 1.21.1–6; Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 4.12.
6. João Cassiano, Institutos, 5.12.
235

7. Tomás de Aquino, Summa Theologica, I–II, q. 35, art. 7; Q. 37, art. 4. Para
maior clareza, traduzi o latim tristitia como “tristeza” em vez de “melancolia”.
8. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 4.12.
9. Veja Gênesis 37:34; Isaías 22:12; Jeremias 7:29.
10. Embora o original hebraico aqui leia literalmente “Bendito seja Deus e morra”
(Jó 2:9), a palavra hebraica “abençoar” (hebraico barak) é usada como um
eufemismo para “amaldiçoar”, assim como é no início do livro, quando Jó se
preocupa que seus filhos possam ter “pecado e amaldiçoado [Hebraico barak]
Deus em seus corações” (Jó 1:5). Veja Marvin H. Pope, Job, Anchor Bible 15
(Nova York: Doubleday, 1965), 22.
11. Tradução do autor. Embora este versículo esteja faltando nas antigas cópias
hebraicas de Provérbios, eu o incluo aqui porque está presente na antiga
Septuaginta grega e teve um impacto direto sobre a tristeza nos escritores
espirituais cristãos orientais. Veja Albert Pietersma e Benjamin G. Wright, eds.,
A New English Translation of the Septuagint (Nova York: Oxford University
Press, 2007), 644.
12. Bovon aponta para uma expressão na Septuaginta grega: “Você adormecerá
em tristeza” (Isaías 50:11 LXX), como possível pano de fundo. François Bovon,
Lucas 3, trad. James Crouch, Hermeneia (Minneapolis: Fortress, 2012), 203. Ele
também aponta corretamente que, embora a tristeza às vezes possa levar à insônia,
o sono também pode se tornar “um refúgio e uma última proteção” contra a “dor”
profunda ou o “infortúnio” extremo.”
13. RSV, ligeiramente adaptado.
14. Adela Yarbro Collins, Mark: A Commentary, Hermeneia (Minneapolis:
Fortress, 2007), 480: “Faltava-lhe… o autodomínio para abandonar a sua riqueza
e escolher um bem maior.”
15. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 4.12. Um pouco mais adiante,
na mesma seção, Francisco escreve: “Em último lugar, entregue-se nas mãos de
Deus e esteja pronto para sofrer pacientemente esta tristeza angustiante…. Não
duvide que depois que Deus o julgar, ele o livrará deste mal.”
16. Tomás de Aquino, Summa Theologica, II–II, q. 136, art. 1: “'A paciência de
um homem é pela qual ele suporta o mal com uma mente igualitária', isto é, sem
ser perturbado pela tristeza”; e II-II, q. 136, art. 4: “Pertence à paciência ‘sofrer
com igual mente os males infligidos pelos outros’”. Na primeira passagem, Tomás
236

de Aquino cita Agostinho, On Patience, 2; no segundo, ele cita Gregório Magno,


Homilias sobre os Evangelhos, 35.
17. Ver, por exemplo, João Cassiano, Institutes, 9.7: “A perfeição do coração não
é alcançada pela separação dos seres humanos, mas pela virtude da paciência.”
Veja também Tomás de Aquino, Summa Theologica, II–II, q. 136, arts. 1–5
18. Agostinho, Sobre a Paciência, 1: “A paciência certamente tem o nome do
sofrimento (patiendo).” Todas as traduções deste tratado de Agostinho são de
Santo Agostinho, Tratados sobre Vários Assuntos, ed. Roy J. Deferrari, trad. Mary
Sarah Muldowney, RSM et al., Padres da Igreja 16 (Washington, DC: Catholic
University of America Press, 1952).
19. Gregório, o Grande, Homilias sobre os Evangelhos, 35.
20. Agostinho, Sobre Paciência, 15: “Há aqueles que atribuem isso [paciência]
aos poderes da vontade do homem…. Mas isso é um erro arrogante.” Gregório
Magno, Homilias sobre os Evangelhos, 35: «Nenhum de vós deve contar com a
possibilidade de levar a cabo esta [paciência] pelas suas próprias forças: procure-
a pelas suas orações, para que aquele que a ordena possa fornecê-la.»
21. Agostinho, Sobre Paciência, 17.
22. João Cassiano, Institutos, 9.13.
23. Teresa de Ávila, Poemas, 30. Citado no CCC n. 227.
19 Exame do Coração
1. João Cassiano, Conferências, 5.10.1–2.
2. Catarina de Sena, O Diálogo, 10. Ver também ibid., 31-32, em que Jesus diz a
Catarina: “Eu fiz deles árvores de amor através da vida de graça, que eles
receberam no santo batismo. Mas elas se tornaram árvores de morte, porque estão
mortas… Os frutos dessas árvores estão cheios de morte, pois seu suco vem da
raiz do orgulho…. Existem tantos frutos mortíferos nestas árvores da morte
quantos pecados” (grifo nosso).
3. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 4.13.3.
4. Ver James L. Kugel, Tradições da Bíblia: Um Guia para a Bíblia como Ela Era
no Início da Era Comum (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1998),
96–97, 136–39.
5. Ver Victor P. Hamilton, The Book of Genesis, 2 vols., New International
Commentary on the Old Testament (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1990),
237

1:166: “O que é proibido ao homem é o poder de decidir por si mesmo o que é do


seu interesse e o que não é. Esta é uma decisão que Deus não delegou aos
terráqueos. Esta interpretação também tem a vantagem de estar de acordo com
[Gênesis] 3:22, 'o homem tornou-se como um de nós, conhecendo o bem e o mal.'
O homem de fato se tornou um deus sempre que fez de si mesmo o centro, o
trampolim e o único quadro de referência para diretrizes morais.”
6. Ver Roland E. Murphy, O. Carm., A Árvore da Vida: Uma Exploração da
Literatura de Sabedoria Bíblica, 3ª ed. (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans,
2002), ix–x.
7. RSV, ligeiramente adaptado.
8. François Bovon, Lucas 1, trad. Christine M. Thomas, Hermeneia (Minneapolis:
Fortress, 2002), 252: “Aqueles que acreditam são chamados a extrair
continuamente a bondade do tesouro de seus corações.”
9. Para mais informações sobre o oráculo em Gênesis 3:15, consulte Brant Pitre,
Jesus and the Jewish Roots of Mary: Unveiling the Mother of the Messiah (Nova
York: Image, 2018), 14–40.
10. Ver WD Davies e D. C. Allison, Jr., O Evangelho segundo São Mateus, 3
vols., International Critical Commentary (Londres: T&T Clark, 1988–97),
1:668–69: “O imperativo mē krinete [' não julgue'], não pode referir-se a simples
julgamentos éticos, e os crentes não estão sendo instruídos a abster-se do
pensamento crítico…. Mē krinete implica que o indivíduo…está assumindo um
papel que não deveria desempenhar porque está reservado ao único juiz capaz,
Deus…. Assim, krinō [‘julgar’] é quase sinônimo de katakrinō = ‘condenar’ (cf.
[Mateus] 12.41-2; 20.18; Rom 2.1, 3) …. ‘Não julguem, para que não sejam
julgados’, significa: ‘Não julguem, para que não sejam condenados [por Deus no
julgamento final]’”.
11. Para uma descrição clássica do exame de consciência, ver Inácio de Loyola,
Exercícios Espirituais, nos. 24–43.
12. Joseph A. Fitzmyer, SJ, First Corinthians, Anchor Bible 32 (New Haven: Yale
University Press, 2008), 446: “O auto exame e o reconhecimento do status de
alguém devem preceder a participação na Ceia.”
13. Ver João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 4.39: “Percebi que ele [um
dos monges] tinha um pequeno livro pendurado no cinto, e aprendi que todos os
dias ele anotava seus pensamentos [grego logismoi] nele e mostrou-os ao pastor.
Descobri que muitos de seus irmãos faziam isso tão bem quanto ele.”
238

14. João Crisóstomo, Homilias sobre Gênesis, 11.7. Em São João Crisóstomo,
Homilias sobre Gênesis 1–17, trad. Robert C. Hill, Padres da Igreja 74
(Washington, D.C.: Catholic University of America Press, 1986), 146 (ênfase
adicionada).
15. Thomas à Kempis, A Imitação de Cristo, 4.7.1.
16. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 5.3; 7.1. Toda a seção sobre
este método de exame (ibid., 5.3-9) é extremamente útil.
17. Talvez o método mais famoso seja o de Inácio de Loyola, Exercícios
Espirituais, nos. 24–43.
18. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 244–25 (ênfase adicionada); cf.
não. 18.
19. Para um diagrama um pouco diferente das duas árvores de vícios e virtudes,
ver Reginald Garrigou-Lagrange, O.P., The Three Ages of the Interior Life:
Prelude of Eternal Life, Volume 2, trad. Irmã M. Timothea Doyle, OP (Londres:
B. Herder, 1948), 365–66.
20. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 4.10.
21. João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo Livro 1.12.5. Tradução em The
Collected Works of St. John of the Cross, 147 (ênfase adicionada).
20 Lectio Divina e a Escada de Jacó
1. Ver Duncan Robertson, Lectio Divina: The Medieval Experience of Reading,
Cistercian Studies 238 (Collegeville, Minn.: Liturgical Press, 2011).
2. João Cassiano, Conferências, 14.10.2. Cassiano continua dizendo: “Mas à
medida que nossa mente é cada vez mais renovada por este estudo, a face das
Escrituras também começará a ser renovada, e a beleza de uma compreensão mais
sagrada crescerá de alguma forma com a pessoa que está progredindo” (ibid..,
14.11.1).
3. Guigo II, A Escada do Paraíso, 13. Em Guigo II, “A Escada da Terra ao Céu”,
trad. Jeremy Holmes, em Letter and Spirit 2 (2006): 175–88 (aqui 186).
4. Teresa de Ávila, O Caminho da Perfeição, 16.3. Nas Obras Completas de Santa
Teresa de Ávila, trad. Kieran Kavanaugh, OCD, e Otilio Rodriguez, OCD, vol. 2
(Washington, DC: Publicações ICS, 1980), 94.
239

5. Ver, por exemplo, João Cassiano, Conferências, Prefácio 5; 5.23.1; 12.11.2. A


imagem remonta a Orígenes, Homilias sobre Gênesis, 15.3; Homilias sobre
Números, 11.4; Comentário ao Cântico dos Cânticos, Prólogo.
6. João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de João, 83.5. Em São João
Crisóstomo, Comentário sobre São João Apóstolo e Evangelista: Homilias 48–88,
trad. Tomás de Aquino Goggin, SCH, Padres da Igreja 41 (Washington, DC:
Catholic University of America Press, 1959), 416.
7. Guigo II, A Escada dos Monges, 2.1. Salvo indicação em contrário, todas as
traduções desta obra são de Guigo II, The Ladder of Monks and Twelve
Meditations, trad. Edmund Colledge, OSA, e James Walsh, SJ, Cistercian Studies
48 (Collegeville, Minnesota: Liturgical Press, 1979).
8. João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 2.18.1. Para outro exemplo, veja
João Cassiano, Conferences, 12.11.2.
9. Ver Kallistos Ware, “Introdução”, em João Clímaco, The Ladder of Divine
Ascent, trad. Colm Luibheid e Normal Russell (Mahwah, NJ: Paulist, 1982), 10–
11.
10. Ver Victor P. Hamilton, The Book of Genesis, 2 vols., New International
Commentary on the Old Testament (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1990),
2:239–40: “A palavra hebraica aqui é sullām, que ocorre apenas aqui na Bíblia
Hebraica. Muitos comentaristas relacionaram sullām com o verbo sālal,
‘amontoar’, e consequentemente sugerem para o substantivo algo como ‘rampa’
ou ‘pavimento semelhante a uma escada’. Sullām deve ser conectado (através de
metátese) com Akk. simmilitu, ‘escada’. [Nota: LXX klímax e Vulg. scala são
ambíguos – ambos podem significar “escada” ou “escada”.] … Esta interpretação
postula um paralelo entre a “escada” de Jacó e as escadas do zigurate na
Mesopotâmia.” O argumento de Hamilton aqui explica por que os tradutores
antigos usavam palavras que podem significar “escada” ou “escada” (grego
klimax; latim scala) (Gênesis 28:12, Septuaginta e Vulgata gregas).
11. Para uma foto de uma escada em zigurate em Ur, veja John H. Walton, ed.,
Zondervan Illustrated Bible Backgrounds Commentary, vol. 1, Gênesis, Êxodo,
Levítico, Números, Deuteronômio (Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2009),
107.
12. Por exemplo, o profeta Miquéias prediz que nos últimos dia s, quando o
“reino” finalmente viesse, o povo de Israel “assentaria cada um debaixo da sua
videira e debaixo da sua figueira” (Miquéias 4:1–8).
240

Da mesma forma, o profeta Zacarias prediz que quando o rei messiânico chamado
“o Renovo” finalmente chegar, “cada um de vocês convidará o seu próximo para
debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira” (Zacarias 3:8–10).
13. Ver Rudolf Schnackenburg, O Evangelho segundo São João, trad. Kevin
Smith, vol. 1 (Nova York: Herder & Herder, 1968), 317: “A explicação usual
apela à frase rabínica 'sentar-se debaixo da figueira' e ao costume dos doutores da
lei, de sentar-se debaixo de uma árvore para estudar as Escrituras.” Veja, por
exemplo, Gênesis Rabbah 62:2: “Rabi Akiba e seus discípulos costumavam
sentar-se e estudar debaixo de uma figueira.” Em Gênesis Rabbah, trad. H.
Freedman, 2 vols. (Londres: Soncino, 1983), 2:551.
Veja também Talmud de Jerusalém, Berakoth 2:8: “Uma vez…R. Aqiba e seus
associados estavam sentados discutindo a Torá sob uma certa figueira”, e
Eclesiastes Rabbah 5.11.2: “R. Akiba e seus discípulos estavam sentados e
estudando debaixo de uma figueira.” Em Jacob Neusner, ed., The Jerusalem
Talmud: A Translation and Commentary (Peabody, Mass.: Hendrickson, 2008),
loc. cit., e Ecclesiastes Rabbah (L. Rabinowitz; Londres: Soncino, 1983), 151.
Para essas referências, ver Craig S. Keener, The Gospel of John: A Commentary,
2 vols. (Peabody, Massachusetts: Hendrickson, 2003), 1:486.
14. Schnackenburg, Evangelho segundo São João, 317: “Natanael, então,
escondido dos olhos dos outros sob uma figueira protetora, estaria estudando as
Escrituras, especialmente as profecias messiânicas. Se assim for, a sua reação à
revelação de Jesus, o seu reconhecimento como o Messias, é ainda mais
compreensível” (ênfase adicionada).
15. Ver Mariano Magrassi, Orando a Bíblia: Uma Introdução à Lectio Divina,
trad. Edward Hagman, O.F.M. Boné. (Collegeville, Minnesota: Liturgical Press,
1998).
16. Os vários manuscritos do tratado de Guigo têm múltiplos títulos, como
“Escada do Paraíso” (latim Scala Paradisi) e “Escada dos Monges” (latim Scala
Claustralium). Aqui utilizarei o primeiro para enfatizar que os quatro passos da
lectio divina não são apenas para monges de clausura, mas pode ser usado por
todos os cristãos. Por exemplo, ver Bento XVI, Exortação Apostólica Pós-Sinodal
Verbum Domini (A Palavra do Senhor), n. 86-87, que se refere a estes quatro como
“os passos básicos” da lectio divina.
17. Robertson, Lectio Divina, 224, descreve a Escada de Guigo como “um resumo
didático de toda a tradição da lectio divina”.
241

18. Guigo II, A Escada do Paraíso, 2.


19. Guigo II, A Escada do Paraíso, 2.
20. Ambrósio de Milão, Nos Escritórios, 20/1/88. Em Ambrose, Nos Escritórios,
ed. Ivor J. Davidson, vol. 1, Introdução, Texto e Tradução (Oxford: Oxford
University Press, 2001), 169.
21. Guigo II, A Escada do Paraíso, 2.
22. Guigo II, A Escada do Paraíso, 14.
23. Guigo II, A Escada do Paraíso, 14.
24. Justino Mártir, 1 Apologia, 1.65–67. Citado no CIC nº. 1345.
25. Ver Bento XVI, Verbum Domini, n. 86: “O lugar privilegiado para a leitura
orante da Sagrada Escritura é a liturgia, e particularmente a Eucaristia… Em certo
sentido, a leitura orante da Bíblia, pessoal e comunitária, deve estar sempre
relacionada com a celebração eucarística. Assim como a adoração da Eucaristia
prepara, acompanha e segue a liturgia da Eucaristia, também a leitura orante,
pessoal e comunitária, prepara, acompanha e aprofunda o que a Igreja celebra
quando proclama a Palavra num ambiente litúrgico. Ao relacionarmos tão
estreitamente lectio e liturgia, podemos compreender melhor os critérios que
devem orientar esta prática no âmbito da pastoral e na vida espiritual do Povo de
Deus”.
21 A Batalha da Oração
1. Ver João Clímaco, Ladder of Divine Ascent, 1.8: “Violência e dor sem fim são
o destino daqueles que pretendem ascender ao céu com o corpo, e isto
especialmente nos estágios iniciais do empreendimento…. É difícil, realmente
difícil.”
2. Agathon, Ditos dos Padres, nº. 9. Em Benedicta Ward, SLG, trad., The Sayings
of the Desert Fathers: The Alphabetical Collection (Kalamazoo, Michigan:
Cistercian Publications, 1975), 22.
3. João Cassiano, Conferências, 18.13.4.
4. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 1.3.3. Ver também ibid., 25.3: “A
única coisa que impede muitos de avançar espiritualmente e de alterar
fervorosamente as suas vidas é o pavor das dificuldades e do trabalho árduo
exigido.”
5. CIC nº. 2.725, 2015 (grifo nosso).
242

6. Victor P. Hamilton, O Livro do Gênesis, 2 vols., O Novo Comentário


Internacional sobre o Antigo Testamento (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans,
1990), 2:329.
7. Esta ambiguidade sobre se os patriarcas encontram Deus, um anjo ou um ser
humano não é incomum nas Escrituras Judaicas (cf. Gênesis 18).
8. Como os estudiosos do Antigo Testamento demonstraram, a palavra “coxa”
(hebraico yarek) é usada em outros lugares como uma palavra para “lombos”,
como quando o servo de Abraão coloca a mão sob sua “coxa” (Gênesis 24:2, 9;
cf. 47:29) ou quando os setenta descendentes vierem da “coxa de Jacó” (Êxodo
1:5, tradução do autor). Em outras palavras, Deus encerra a luta desferindo um
golpe esmagador em Jacó. Veja S. H. Smith, “'Calcanhar' e 'Coxa': o conceito de
sexualidade nas narrativas de Jacó-Esaú”, Vetus Testamentum 40 (1990): 466–69;
Hamilton, Livro de Gênesis, 2:331–32. Embora à primeira vista isso possa nos
parecer cômico, o texto aborda uma questão bastante séria sobre a intensidade da
dor e a permanência das feridas que muitas vezes fazem parte da jornada
espiritual. Em João Cassiano, Conferências, 12.11.2, a luta de Jacó com Deus se
tornará um símbolo do triunfo da castidade na batalha espiritual.
9. Agostinho, Sermão 5.6: “E abençoou Jacó. Como? Mudando seu nome. Em
Mark Sheridan, ed., Gênesis 12–50, Comentário Cristão Antigo sobre as
Escrituras, Antigo Testamento II (Downers Grove, Illinois: InterVarsity, 2002),
220.
10. F. Brown, S. R. Driver e C. A. Briggs, A Hebrew and English Lexicon of the
Old Testament (Oxford: Clarendon, 1977), 975: a palavra hebraica sarah significa
“persistir, esforçar-se, perseverar”.
11. Ver Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 2.9: “Se acontecer de você
não encontrar alegria ou conforto na meditação…, exorto-o a não ser
perturbado…. Repita as palavras de Jacó: “Senhor, não te deixarei ir até que me
abençoe”.
12. Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo Testamento
e Outra Literatura Cristã Primitiva, 3ª ed. (Chicago: University of Chicago Press,
2000), 755, 272.
13. Para a atenção especial de Deus às orações das viúvas, veja também
Eclesiástico 35:13-15.
14. Ver Joseph A. Fitzmyer, SJ, O Evangelho segundo Lucas, 2 vols., Anchor
Bible 28–28A (Nova York: Doubleday, 1983–85), 2:1179.
243

15. Danker, Greek-English Lexicon, 1043: “Golpe sob o olho” ou “dar um olho
roxo”, “golpe no rosto”. Compare o uso que Paulo faz da mesma palavra em 1
Coríntios 9:26–27.
16. A expressão hebraica para este modo de argumentação é qal va chomer; o
latim, a fortiori.
17. Cirilo de Alexandria, Comentário sobre Lucas, Homilia 119: “A presente
parábola [da viúva persistente] assegura-nos que Deus inclinará os seus ouvidos
para aqueles que lhe oferecem as suas orações, não descuidadamente nem
negligentemente, mas com seriedade e constância.” Em Arthur A. Just Jr., ed.,
Luke, Ancient Christian Commentary on Scripture, New Testament III (Downers
Grove, Illinois: InterVarsity, 2003), 276.
18. Ver Danker, Léxico Grego-Inglês, 818–19.
19. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 26.104. Na mesma passagem,
Clímaco afirma que a batalha espiritual contra o mal começa ao acordar pela
manhã: “Há um demônio chamado precursor. Ele se apodera de nós assim que
despertamos e contamina nosso primeiro pensamento.” Em 19.2, Clímaco afirma:
“Assim como beber demais vem do hábito, também do hábito vem o excesso de
sono. Por esta razão, é preciso lutar contra isso, especialmente no início da vida
religiosa, porque um hábito antigo é difícil de corrigir”.
20. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 1.20.2 (ênfase adicionada).
21. Efrém, o Sírio, Comentário sobre Gênesis, 30.3: “[Jacó] aprendeu quão fraco
ele era e quão forte ele era.” Em Sheridan, Gênesis 12–50, 223.
22. João Cassiano, Conferências, 9.3.3. Veja também ibid., 1.13.2: “Quando o
tivermos perdido de vista, mesmo que brevemente, voltemos a nossa atenção para
ele, dirigindo os olhos do nosso coração como se fosse uma linha muito reta.”
23. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 4.92.
24. CIC nº. 2729 (ênfase adicionada).
25. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 19.7: “Ninguém deve realizar
qualquer tarefa adicional, ou melhor, distração, durante o tempo de oração.”
26. CCC nº. 2728.
27. Evágrio do Ponto, Sobre a Oração, no. 34. Citado no CIC nº. 2737 (ênfase
adicionada). 28. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 2.9.
244

22 A Noite Escura
1. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 1.12.
2. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 2.9.3.
3. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 4.15. Ver também Inácio de
Loyola, Exercícios Espirituais, n. 315: durante o caminho purgativo, é
“característica” do Espírito Santo dar “consolações” e “inspirações”, “facilitando
tudo... para que a alma prossiga na prática do bem”.
4. Ver, por exemplo, João Cassiano, Conferences, 4.2–6; João Clímaco, Escada
da Ascensão Divina, 4,58; Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 4.15:
“Quando Deus ordena que lhes seja tirada a alegria espiritual… pensam que não
estão nem no céu nem na terra e que permanecerão sepultados na noite eterna…
subitamente deixados num estado de aridez, privado de qualquer consolação e
mergulhado nas trevas interiores”; João Paulo II, Carta Apostólica Novo Millennio
Ineunte no. 33: “A grande tradição mística da Igreja do Oriente e do
Ocidente…mostra como a oração pode progredir…. É um caminho totalmente
sustentado pela graça, que exige, no entanto, um intenso compromisso espiritual
e não é estranho a purificações dolorosas (a ‘noite escura’)”.
5. João Clímaco, Escada da Ascensão Divina, 4.58. Embora o sujeito nesta frase
a que “ele” se refere seja “o diabo”, Cassiano imediatamente deixa claro que na
verdade é Deus quem permite a “retirada providencial” dos bens espirituais “que
parecem ser” para aumentar a humildade da alma.
6. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 2.9.4.
7. João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 1.8.1, 3 (ênfase adicionada).
8. Em Noite Escura da Alma, João da Cruz fala na verdade de duas “noites
escuras”, ambas com dimensões ativas e passivas.
A primeira noite, que João chama de “a noite dos sentidos”, acontece com muitos
iniciantes à medida que fazem a transição do primeiro estágio de crescimento
espiritual (que João chama de “caminho purgativo”) para o segundo (que ele
chama de “caminho iluminativo”). Para uma discussão completa da noite escura
dos sentidos em suas formas ativas e passivas, veja João da Cruz, A Subida do
Monte Carmelo, Livro 1.1–15 e Noite Escura da Alma, Livro 1.1–14. A segunda
noite, que João chama de “a noite do espírito”, acontece para aqueles que estão
mais avançados na vida espiritual, na transição entre a segunda etapa (o caminho
iluminativo) e a terceira (que ele chama de “o caminho unitivo”). Para uma
245

discussão completa sobre a noite escura do espírito em suas formas ativa e


passiva, veja João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, Livros 2.1–3.45 e Noite
Escura da Alma, Livro 2.1–25. Neste capítulo, concentro-me principalmente na
privação involuntária de consolo durante a oração, conhecida como noite passiva
dos sentidos.
9. Ver João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 1.9.1–9.
10. Em apoio a isto está o fato de que o próprio João interpreta este salmo como
a descrição em primeira mão do Rei Davi de “quando ele estava nesta noite” –
significando a noite dos sentidos (João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro
1.13). .6).
11. Ver Frank-Lothar Hossfeld e Erich Zenger, Salmos 2: Um Comentário sobre
Salmos 51–100, trad. Linda M. Maloney, Hermeneia (Minneapolis: Fortress,
2005), 277, que acertadamente aponta que “a noite” que está sendo descrita é “o
momento em que se fala ao próprio coração, o momento de reflexão, de busca
teológica” e que o salmista “volta-se para dentro” num “retiro para a
interioridade”.
12. Ver João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 1.11.1–2.
13. RSV, ligeiramente adaptado.
14. Frank-Lothar Hossfeld e Eric Zenger, Salmos 3: Um Comentário sobre
Salmos 101–150, trad. Linda M. Maloney, Hermeneia (Minneapolis: Fortress,
2011), 574.
15. Hossfeld e Zenger, Salmos 3, 575: o salmista pede “o fim da ocultação do
semblante de Deus, uma experiência de preocupação divina”.
16. É importante notar aqui que João da Cruz conecta o famoso grito de abandono
de Jesus na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mateus
27:46) – no qual ele cita o Salmo 22:1 – com a segunda das duas noites: a “noite
escura do espírito” (João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, Livro 2.7.11).
Como estamos focados aqui na noite escura dos sentidos experimentados pelos
iniciantes no caminho purgativo, uma explicação do Salmo 22 e do grito de
abandono de Jesus está além do escopo deste estudo.
17. Na antiguidade, a palavra “amigo” (grego philos) era normalmente usada para
descrever alguém que é “amado” ou “querido” – e não apenas um conhecido. Veja
Frederick William Danker, ed., Um Léxico Grego-Inglês do Novo Testamento e
Outra Literatura Cristã Primitiva, 3ª ed. (Chicago: University of Chicago Press,
2000), 1059.
246

18. Joseph A. Fitzmyer, S.J., O Evangelho segundo Lucas, 2 vols., Anchor Bible
28–28A (Nova York: Doubleday, 1983–85), 2:910: “A palavra grega de Lucas
para 'persistência' na verdade significa ' falta de vergonha.'” O termo vem de
“respeito próprio” ou “respeito” (do grego aidōs). O cenário idealizado é uma casa
de um único cômodo com todos os membros da família dormindo no mesmo
espaço, de modo que levantar-se para mostrar hospitalidade a um hóspede
inesperado perturbaria toda a família (ibid., 2:912).
19. Fitzmyer, Evangelho segundo Lucas, 2:914.
20. Ver Cirilo de Alexandria, Comentário sobre Lucas, Homilia 79: “Às vezes
oramos sem discernimento ou qualquer exame cuidadoso do que realmente é
vantajoso para nós e que, se concedido por Deus, seria uma bênção ou seria
prejudicial para nós se o recebêssemos…. Quando pedimos a Deus algo deste tipo,
de modo algum o receberemos.”
21. Fitzmyer, Evangelho segundo Lucas, 2:914.
22. João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 1.8.1, 4.
23. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 4.13.1.
24. João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 1.10.2 (ênfase adicionada).
25. João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 1.10.4. João esclarece mais tarde
que a pessoa só deve parar de meditar quando “não for mais possível”, pois
momentos de aridez podem alternar-se com momentos de consolação. Veja ibid.,
Livro 1.10.6; 1.14.5.
26. Ver João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 1.13.5: “Todas as virtudes…
são praticadas pela alma nestes tempos de aridez.” Veja também o Livro 1.11.4:
“Esta noite extingue dentro dela todos os prazeres, sejam de cima ou de baixo, e
torna toda meditação escura para ela, e concede-lhe inúmeras outras bênçãos na
aquisição das virtudes.”
27. Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, 4.15: “Nunca devemos perder
a coragem durante estas angústias interiores…. Durante a noite devemos esperar
pela luz.”
28. João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 1.12.2.
29. João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 1.13.7.
30. João da Cruz, Noite Escura da Alma, Livro 1.13.11.
247

23 A Água Viva
1. João Crisóstomo, Homilias sobre Romanos, 14 (sobre Romanos 8:27). Em
Gerald Bray, ed., Romanos, Comentário Cristão Antigo sobre as Escrituras, Novo
Testamento VI (Downers Grove, Illinois: InterVarsity, 1998), 230–31.
2. Thomas de Kempis, A Imitação de Cristo, 2.9.4.
3. Teresa de Ávila, O Caminho da Perfeição, 19.6.
4. Ver, por exemplo, Gregório de Nissa, Homilias sobre o Cântico dos Cânticos,
9: “O Senhor diz à mulher samaritana: 'Se conhecesses o dom de Deus...' Ela
contém o influxo dentro do poço da sua alma e assim se torna o depósito daquela
água viva.” Em Gregório de Nissa, Homilias sobre o Cântico dos Cânticos, trad.
Richard A. Norris, Jr., Writings from the Greco-Roman World 13 (Atlanta:
Society of Biblical Literature, 2012), 307, 309. Ver também Guigo II, The Ladder
of Monks, 13: “[Jesus] exigiu oração dela: 'Se conhecesses o dom de Deus... talvez
lhe pedisses águas vivas.'... Cheia de desejo, ela recorreu à oração, dizendo:
'Senhor, dá-me esta água'”; Teresa de Ávila, Vida, 30.19: “Oh, quantas vezes me
lembro da água viva de que o Senhor falou à mulher samaritana! Gosto muito
desse Evangelho. Eu o adoro desde que era criança… e costumava implorar ao
Senhor que me desse aquela água. Eu tinha uma imagem do Senhor junto ao poço,
que estava pendurada onde sempre pudesse vê-la, e trazia a inscrição: ‘Domine,
da mihi aquam’ [latim, ‘Senhor, dá-me desta água’].” Em Teresa de Ávila, A Vida
de Teresa de Jesus: A Autobiografia de Teresa de Ávila, trad. e Ed. E. Allison
Peers (Nova York: Imagem, 2004), 257–58.
5. Baruch A. Levine, Números 1–20, Anchor Bible 4 (New York: Doubleday,
1993), 468: “Mayîm hayyîm significa, com efeito, água doce de uma fonte, não de
uma cisterna ou algo semelhante (cf. Gn 26:19; Jr 17:13).
6. RSV, ligeiramente adaptado.
7. RSV, ligeiramente adaptado. Veja Johannes Beutler, SJ, Um Comentário sobre
o Evangelho de João, trad. Michael Tait (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans,
2017), 116.
8. Artur Weiser, Os Salmos, trad. Herbert Hartwell, The Old Testament Library
(Philadelphia: Westminster, 1962), 348: “O que ele deseja é única e
exclusivamente que lhe seja permitido aparecer diante da 'face' de Deus e,
entrando em contato próximo com ele, possa ter a comunhão mais íntima com
ele.”
248

9. Ver Jack R. Lundbom, Jeremias 1–20, Anchor Bible 21A (New Haven: Yale
University Press, 1999), 268.
10. Ver, por exemplo, John J. Collins, The Scepter and the Star: Messianism in
Light of the Dead Sea Scrolls, 2ª ed. (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 2010),
39.
11. Para uma discussão mais completa, ver Brant Pitre, Jesus the Bridegroom:
The Greatest Love Story Ever Told (Nova Iorque: Image, 2014), 55–81.
12. Como Marianne Meye Thompson, John: A Commentary, New Testament
Library (Louisville, Ky.: Westminster John Knox, 2015), 175–76, corretamente
aponta, o grego é ambíguo em relação exatamente a qual “coração” Jesus está se
referindo. aqui: o seu ou o do crente.
13. Beutler, Evangelho de João, 117.
14. RSV, ligeiramente adaptado.
15. Veja Beutler, Evangelho de João, 492.
16. Ver Beutler, Evangelho de João, 115: “No contexto de outros textos do Quarto
Evangelho, o pedido de Jesus pode ser visto como a expressão da sua sede pela
salvação do homem. Relevantes aqui são as palavras de Jesus imediatamente antes
de sua morte na cruz: “Tenho sede” (João 19:28). Eles também não são apenas
uma expressão da sede física de Jesus”.
17. CIC nº. 1995 (ênfase adicionada); cf. ibid., não. 2672: “O Espírito Santo… é
o Mestre interior da oração cristã.”
18. CIC nº. 2560, citando João 4:10 (ênfase adicionada).
19. Teresa de Lisieux, História de uma Alma, 9 1v (ênfase alterada).
249

Por Brant Pitre


Introdução à Vida Espiritual;
O caso de Jesus;
Jesus E As Raízes Judaicas Da Eucaristia;
Jesus E As Raízes Judaicas De Maria;
Jesus, O Noivo
250

SOBRE O AUTOR
DR. BRANT PITRE é distinto professor pesquisador
das Escrituras no Instituto Agostinho. Obteve seu doutorado
em teologia pela Universidade de Notre Dame, onde se
especializou no estudo do Novo Testamento e do Judaísmo
antigo.
Ele é o autor dos Best Sellers O Caso de Jesus, Jesus e
as Raízes Judaicas da Eucaristia, Jesus e as Raízes Judaicas
de Maria e Jesus, o Noivo. Dr. Pitre também produziu dezenas de estudos bíblicos
em vídeo e áudio nos quais explora as raízes bíblicas do cristianismo. Ele mora
na Louisiana com sua esposa, Elizabeth, e seus cinco filhos.
Mais informações sobre o trabalho do Dr. Brant Pitre podem ser
encontradas em:
www.BrantPitre. com.

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