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BÍBLICA

LOYOLA 60
Bíblica Loyola
Sob a orientação da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
Belo Horizonte — MG
José ou a invenção
da fraternidade
Leitura narrativa e antropológica de Gênesis 37–50

André Wénin

Tradução
Johan Konings
A meus irmãos,
Jean-Marie e Jacques.
Sumário

Prefácio...................................................................................................... 11

Introdução.................................................................................................. 15

1. Família impossível (37,1-12)........................................................... 25


“Os engendramentos de Jacó” (37,1-4).............................................. 26
Os sonhos de José (37,5-12)............................................................... 36

2. Os desejos de Jacó e de José (37,12-17).......................................... 43


José e o desejo de Israel (37,12-14)................................................... 45
O homem e o desejo de José (37,15-17)............................................ 48

3. Os irmãos e a venda de José (37,18-30).......................................... 53


Complô inicial e intervenção de Rubem (37,18-22).......................... 54
Chegada de José e proposta de Judá (37,23-27)................................. 59
Venda e desaparecimento de José (37,28-30).................................... 63

4. Jacó diante do desaparecimento de José (37,31-36)........................ 69


A túnica levada a Jacó (37,31-32)...................................................... 69
Jacó e a túnica de seu filho (37,33-35).............................................. 73
José no Egito (37,36).......................................................................... 76
5. Judá e a lição de Tamar (38,1-30).................................................... 79
Judá e os seus (38,1-11)..................................................................... 81
O desejo de Tamar e de Judá (38,12-23)............................................ 85
A vida prevalece (38,24-30)............................................................... 89

6. A sabedoria de José (39–41)............................................................ 93


José e a mulher de seu senhor (39,1-19)............................................ 94
A sabedoria de José (39,20-23).......................................................... 103
A promoção do sábio (40–41)............................................................ 106
Conclusão: Judá e José (38–41)......................................................... 112

7. Reencontro no Egito (42,1-17)........................................................ 117


A família em Canaã (42,1-4).............................................................. 120
Primeiro encontro (42,5-17)............................................................... 123

8. Segundo encontro entre irmãos (42,18-28)..................................... 135


Nova prova para os irmãos (42,18-20)............................................... 136
Confissão e lágrimas (42,21-24a)...................................................... 140
A partida dos irmãos (42,24b-28)...................................................... 145

9. O retorno dos irmãos a Jacó (42,29-38).......................................... 151


O relato dos irmãos (42,29-34).......................................................... 152
Reações de Jacó (42,35-38)................................................................ 155

10. Jacó, seus filhos e Benjamim (43,1-14).......................................... 163


Última resistência de Jacó (43,1-7).................................................... 164
Judá convence Jacó (43,8-14)............................................................ 169

11. Novo encontro com José (43,15-34)................................................ 179


Para a casa de José (43,15-25)........................................................... 180
Encontro com José (43,26-31a).......................................................... 185
A refeição com José (43,31b-34)....................................................... 191

12. A partida interrompida (44,1-13).................................................... 197


A acusação de José (44,1-6)............................................................... 199
A taça no saco de Benjamim (44,7-13).............................................. 206

13. A prova da fraternidade (44,14-34)................................................. 213


A confissão de Judá (44,14-16)......................................................... 213
A resposta de José (44,17)................................................................. 219
A súplica de Judá (44,18-34)............................................................. 221
14. “Eu sou José, vosso irmão” (45,1-15)............................................. 237
José se dá a conhecer (45,1-4)............................................................ 238
Verdade de José e futuro da família (45,4-15)................................... 242

15. José reencontra Jacó (45,16… 49,27).............................................. 253


Jacó no Egito (45,16… 47,27)........................................................... 255
Balanço de Jacó (49).......................................................................... 261

16. Após a morte do pai (50,15-21)....................................................... 265


A iniciativa dos irmãos (50,15-18)..................................................... 266
A reação de José (50,19-21)............................................................... 272
Um epílogo para o Gênesis................................................................ 281

Conclusão................................................................................................... 285

Anexo......................................................................................................... 295

Bibliografia (obras citadas)........................................................................ 297


Prefácio

Esta obra é fruto de uma longa e paciente leitura do texto do Gênesis, mas
isto me seria impossível realizar sozinho. Muito recebi de numerosas pessoas
com as quais li a história de José do Egito e às quais quero agradecer aqui.
Em particular, agradecemos a Axelle e Donatienne Cassiers, Michel Cautaerts,
Marie-Thérèse Dewez, Benoît Hauzeur, Nadine Karelle, Jean-Marie Legrand,
Geneviève Monnoye, Marguerite-Marie Nicaise e Geneviève van Thienen,
com todos aqueles e aquelas que se reuniram com eles, durante um tempo,
no grupo “Joseph”, de Bruxelas. Seu interesse e a tenacidade em elaborar
pacientemente sua própria leitura da história de José tornaram-me mais atento
à própria narrativa e a seu sentido polifônico.
Citarei, igualmente, os estudantes das Faculdades de Teologia da
Universidade Católica de Lovaina [*Louvain-la-Neuve]1 e da Universidade
Gregoriana de Roma, bem como os estudantes do Centro de Estudos Teológicos
e Pastorais de Bruxelas, com os quais tentei partilhar minhas descobertas. Há
ainda todas aquelas pessoas que, durante várias sessões, trabalharam comigo

1. A notação [*…] indica acréscimos do tradutor.


As citações bíblicas, em conformidade com o texto francês, foram traduzidas de modo
literal do original hebraico.

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José ou a invenção da fraternidade

sobre este assunto. De diferentes maneiras, todos souberam estimular-me por


sua escuta, suas questões e sugestões.
Evidentemente, a leitura proposta aqui deve muito à leitura dos trabalhos
dos exegetas. Fui particularmente alimentado e estimulado por alguns estudos
aos quais devo reconhecimento especial (inclusive porque, para não avolumar
o texto, reduzi o número de notas e citei os autores somente quando me ser-
vi deles diretamente). O primeiro é o ensaio de Luis Alonso Schökel sobre
a fraternidade no Gênesis: ¿Donde está tu hermano? Textos de fraternidad
en el libro del Génesis2. Sua abordagem literária é estimulante e, mesmo se
algumas vezes elas mereceriam maiores aprofundamentos, suas abundantes
intuições sempre fizeram-me pensar. O livro de Meir Sternberg The Poetics
of Biblical Narrative, infelizmente, não tomou como um todo a história de
José. Mas as análises que propõe de certas partes (particularmente Gn 39 e
41–45) têm a delicadeza e a minúcia de um guia notável em todos os pontos.
Da mesma forma, Robert Alter estuda alguns textos em L’art du récit biblique
(Gn 37–39; 42 e 44): por mais sintéticas que sejam, suas páginas não são
menos luminosas.
Quatro estudos sucintos contribuíram para forjar a perspectiva global
da leitura proposta neste livro. Cito, na ordem em que os pude ler: Adrian
Schenker, “Réconciliation”, em seu Chemins bibliques de la non violence;
o opúsculo de Jean-Marie Auwers Joseph ou la fraternité retrouvée; e os
artigos de James S. Ackerman, “Joseph, Judah and Jacob”, e Georg Fischer,
“Die Josefsgeschichte als Modell fur Versöhnung”. Nem sempre partilho suas
perspectivas, e o corte de seus estudos os leva a deixar na sombra muitas
questões importantes. Mas de toda maneira traçaram para mim caminhos
fecundos para abordar este pequeno romance bíblico, tanto no plano literário
quanto em nível de interpretação.
Não faltam obras estimulantes que propõem uma abordagem literária da
história de José, sobretudo em inglês. Entre as que retiveram meu interesse,
menciono sobretudo quatro. O primeiro estudo importante é o de W. Lee
Humphreys, Joseph and His Family. A Literary Study. Em particular, sua ex-
ploração sistemática das dimensões narrativas da história do Gênesis fornece
referências excelentes ao leitor. Mais criativa, a obra de Barbara Green, “What

2. Valencia, Institución San Jerónimo, 1985. Habitualmente, cito segundo a edição italiana
indicada na bibliografia. Para as coordenadas completas dessa obra e das seguintes, consulte-se
a lista bibliográfica no final deste volume, precedida das abreviações utilizadas para remeter aos
instrumentos de trabalho. Quando um texto é citado, é em francês [*nesta tradução: em português];
se não foi traduzido anteriormente, a tradução é minha [* = do autor].

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Prefácio

Profit for Us?” Remembering the Story of Joseph, faz uma análise paciente,
atenta e cheia de delicadeza, seguindo a história passo a passo. Não partilho
sua interpretação de conjunto, mas não posso ignorar o que ela trouxe de
subsídio para mim. Por suas dimensões éticas e antropológicas, o ensaio de
Theo L. Hettema, Reading for Good. Narrative Theology and Ethics in the
Joseph Story from the Perspective of Ricoeur’s Hermeneutics, não carece
de originalidade. Desenvolve, com efeito, uma perspectiva deliberadamente
interpretativa e traça, assim, caminhos para uma leitura que não se mantém
somente na observação da arte narrativa da história. Enfim, um livro mais
recente, de Ron Pirson, The Lord of the Dreams. A Semantic and Literary
Analysis of Genesis 37–50, é sem dúvida uma obra de juventude, mas não
lhe falta intuição. Quanto às análises detalhadas, frequentemente são bem
conduzidas, portanto preciosas para os outros leitores.
Nenhum exegeta hoje pode preterir os comentários. No que concerne
à análise narrativa, decerto, raras vezes são diretamente pertinentes. Mas a
quantidade de informações que reúnem ou as qualidades de leitor demonstradas
por seus autores os tornam às vezes bastante úteis. De minha parte, recorri
com frequência aos “clássicos”, quais sejam: Hermann Gunkel, Gerhard von
Rad e Claus Westermann, mas igualmente apreciei o comentário de Victor P.
Hamilton, por suas qualidades filológicas e seus rápidos apanhados de questões
difíceis; assim como os de Nahum M. Sarna, Gordon J. Wenham e Robert
Alter, aos quais uma fina sensibilidade literária permite intuições frequente-
mente interessantes. Enfim, uma lista bibliográfica no final retoma todos os
trabalhos citados nesta obra. Nas notas, estes livros ou artigos são citados de
maneira abreviada, enquanto os comentários do Gênesis são citados somente
pelo nome de seu autor.

Para facilitar a leitura das partes comentadas do Gênesis, o comentário é


acompanhado por uma tradução pessoal, em layout diferenciado. Ela visa à lite-
ralidade em relação à língua hebraica, pois, com exceção das versões francesas
de Edmond Fleg, André Chouraqui e Henri Meschonnic, as Bíblias existentes
nem sempre permitem ao leitor dar-se conta das asperezas do texto e de certos
detalhes ou jogos de palavras significativos. Na tradução, o tipo itálico assinala
as palavras pronunciadas pelos personagens. Do ponto de vista da verdade da
narrativa, elas não gozam, com efeito, do mesmo status que as intervenções
do narrador, confiável e onisciente com relação àquilo que ele narra.

O apoio do Sr. Vincent Aucante, conselheiro cultural da Embaixada da


França junto à Santa Sé de Roma, assim como a acolhida na Universidade

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José ou a invenção da fraternidade

Gregoriana permitiram-me efetuar uma estada na Cidade Eterna, onde pude


consagrar o tempo necessário à redação de grandes partes deste livro. Men-
ciono ainda o apoio discreto e tenaz de Jean-Pierre Sonnet, editor da coleção
que acolhe esta obra, que não parou de me encorajar para levar adiante este
trabalho há muito começado. Sua leitura atenta e estimulante do manuscrito
foi-me bem preciosa. Enfim, este estudo foi beneficiado pelos comentários,
sugestões e observações de Roland Meynet, Nadine Karelle, Elena di Pede e
Françoise Mirguet, que assegurou uma última releitura. A todos eles, meus
agradecimentos calorosos.

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Introdução

A história de José é uma verdadeira joia da arte narrativa. Ela conserva,


decerto, as características da maior parte das histórias do Primeiro Testamento:
o narrador não se perde em detalhes supérfluos, mas alveja o cerne da história
com extraordinária economia e um notável recato afetivo. Mas, à diferença de
muitas histórias do mesmo corpus, esta história desdobra-se, com uma exten-
são incomum, numa espécie de pequeno romance onde tudo é organizado de
modo a exercer um efeito máximo sobre o leitor que aceita empenhar-se na
interpretação daquilo que lê. Com efeito, o princípio da economia, típico da
narrativa bíblica, tem uma contrapartida: quanto menos o narrador faz para
orientar o leitor, mais este é solicitado pela narrativa a entender o que ela fala.
E, quanto mais o narrador é discreto em sua forma de destilar as indicações
que conduzem ao sentido daquilo que narra, menos o leitor pode entregar-se
à falta de atenção. Essa maneira de narrar tem uma bela virtude, que não é
o aspecto menos charmoso desta história: dá maior espaço ao leitor para que
se exponha ao risco da interpretação.

O ângulo particular sob o qual eu gostaria de abordar esta longa narra-


tiva é o tema da fraternidade. Ela é central neste texto, a ponto de podermos
considerar a história de José como uma espécie de reflexão narrativa sobre

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José ou a invenção da fraternidade

a fraternidade entre as pessoas humanas1. Mas o que é fraternidade? Inicial-


mente, é uma relação imposta, não escolhida, devida ao simples fato de ter os
mesmos pais dos quais é preciso compartilhar o amor — isto é pelo menos
o que acontece do lado dos irmãos, muitas vezes de modo inconsciente. Em
geral, os pais amam cada um de seus filhos “de igual modo”. Em todo caso,
é o que dizem, sem necessariamente dar-se conta de que amar de igual modo
seres diferentes implica amá-los de maneira diferente. Ora, sabemos que os
humanos têm uma estranha tendência a perceber as diferenças em termos
de menos ou de mais, o que está na origem de bom número de tensões. A
fraternidade é, portanto, um dado factual, que pode ser a base de uma soli-
dariedade admiravelmente forte, por vezes, mas também, e talvez antes de
tudo — por que escondê-lo? —, de tensões, conflitos, ciúmes e ódios, às
vezes ferozes e tenazes.
Na realidade, no ponto de partida, a fraternidade apresenta-se mais como
um problema. O irmão mais velho que vê nascer um irmão confronta-se com
a dificuldade de partilhar com ele seu espaço, seu tempo e, principalmente, o
amor de sua mãe. Por seu lado, à medida que chegam, os mais novos devem
tentar encontrar um lugar numa área já ocupada e, portanto, impor-se de algu-
ma forma. Para fazer isso, apoiam-se no amor dos pais. É assim que irmãos
encontram desde o início tantas razões para não se amar. Mas, para agradar a
seus pais e receber deles o amor que esperam, não devem eles se amar, seja
apenas por aparência? E também isto pode consistir em um problema para
esses irmãos que aprendem a viver no meio dessas relações potencialmente
conflitantes. Na fraternidade, portanto, nada é dado de antemão, a não ser o
mesmo sangue e os mesmos pais, e interesses opostos devidos ao desejo de
ser amado e de encontrar um lugar. Sobre esta base bastante problemática,
a fraternidade apresenta-se como uma relação a construir, a menos que sim-
plesmente seja deixada vegetar, ou pior, seja destruída. A primeira história de
irmãos na Bíblia é a história de um mais velho que nunca se torna irmão: com
efeito, se Caim tem um irmão (Gn 4,2), nunca Caim é chamado de “irmão”
de Abel2… Mais do que de ser um irmão tratar-se-ia, pois, de se tornar um

1. Esta temática não é a única que a narrativa aborda. Estão presentes também as questões
da filiação, da relação com o estrangeiro, da bênção, da sabedoria e do bom governo, mas
concernem menos diretamente ao enredo principal da narrativa. No entanto, o fato de que a
palavra ’ah. (“irmão”) é usada exatamente cem vezes em Gênesis 37–50 é o suficiente para
sugerir a importância do tema (J. P. Fokkelman chamou minha atenção para este fato).
2. Em Gênesis 4,1-16 Abel chama Caim sete vezes de “irmão” (v. 2, 8 [bis], 9 [bis], 10 e 11),
mas nunca este último é chamado irmão daquele que, ao contrário, eliminou.

16
Introdução

— o que, se devemos crer na narrativa de abertura do Gênesis, é tudo menos


evidente. Nesse sentido, um provérbio bíblico dá a pensar (Pr 17,17):

Em todo tempo, o amigo ama,


mas um irmão nasce para a angústia.

Esta máxima pode ser entendida de duas maneiras: ou ela fala deste elo
indissolúvel entre irmãos que nunca se abandonam na provação, mesmo naquela
que desencorajaria um amigo; ou ela fala da fraternidade que, ao contrário da
amizade, é fonte de adversidade, de angústia e de desgraça…

Eu me limitarei aqui a essas considerações deliberadamente sumárias e


pouco especificadas. Elas me parecem suficientes, de fato, para mostrar as
grandes linhas da problemática sobre a qual o narrador da história de José,
nos capítulos 37 a 50 do Gênesis, construiu boa parte de sua narrativa3. No
entanto, é importante guardar em mente essas reflexões — e também as que,
certamente, provocarão no espírito do leitor destas linhas — na hora de abordar
a narrativa bíblica. Com efeito, quando começa a ler um texto, e precisamente
um texto de ficção, o leitor o faz sempre com pré-compreensões enraizadas
em sua experiência. Elas abrem ao leitor o sentido do texto, que, em con-
trapartida, vem questionar tais pré-compreensões e deslocá-las, chamando a
atenção para outros aspectos da realidade, cuja compreensão é alimentada por
este fato. Desta forma, é estabelecido um vaivém incessante entre o leitor e o
texto no qual se desvelará progressivamente um horizonte de sentido, de novas
possibilidades e de valores inéditos que o leitor é convidado a fazer seus, se
quiser4. A interpretação vai de par com a implicação do leitor na construção
de um sentido que é ao mesmo tempo o do texto e o seu próprio.
Mas, para que o sentido seja antes de tudo o do texto, é necessário permitir
que este resista às garras do leitor. Portanto, um método se faz necessário.
O método que serve de base para a leitura proposta neste livro é a análise
narrativa, cuja atenção é antes de tudo dirigida sobre a maneira como a his-
tória é contada, sobre a observação do modo como o narrador desdobra uma

3. A relação fraternal pode servir como uma metáfora para outras relações impostas entre
iguais, quando tal ligação se deve à necessidade e não é objeto de uma escolha inicial. Assim, o
Deuteronômio chama “irmãos” aos membros do povo, enquanto o Gênesis induz o caráter fraterno
da relação entre os humanos quando descreve todos eles como descendentes dos três filhos de Noé,
portanto de três irmãos.
4. A este respeito, ver, por exemplo, P. Bühler, La mise en intrigue de l’interprète, 99-107. É
baseado no trabalho hermenêutico de Paul Ricoeur.

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José ou a invenção da fraternidade

estratégia de comunicação que permite ao leitor entrar no mundo da história


narrada. Com efeito, tal leitura atenta à materialidade do texto e às particula-
ridades da narrativa parece-me uma excelente porta de entrada. A atenção que
ela requer força o leitor a deixar ao texto todas as chances de surpreendê-lo e
de levá-lo a uma experiência nova, dirigindo-o numa direção que, inicialmente,
talvez não imaginasse. Não desdobra a leitura toda a sua magia quando o leitor
descobre a sua própria realidade com novos olhos, porque o texto como que
lhe impôs olhá-la de modo novo ou lhe revelou o que ele não conseguia ver?
Ler é também uma experiência. “Compreender é compreender-se diante do
texto. Não impor ao texto sua própria capacidade finita de compreender, mas
expor-se ao texto e receber dele um eu mais amplo.”5

Ora, antes de discutir a história de José, convém lançar um rápido olhar


sobre o que o Gênesis diz a respeito da fraternidade antes da longa narrati-
va que a “enclausura”. Como mencionei, grosso modo, os traços gerais do
problema da fraternidade humana nas frequentes dificuldades entre irmãos
colocados em cena no Gênesis têm vínculos estreitos com as relações que os
pais mantêm entre si6. A história de Caim e Abel oferece de imediato uma
bela ilustração disso.
“O Humano conheceu Eva, sua mulher” (Gn 4,1a). Que relação descre-
vem estas palavras? Um homem que é sujeito e uma mulher objeto de posse
(“sua mulher”), um ato de dominação que, no capítulo anterior, a serpente
chamou característico do divino: “conhecer” (3,5). É assim que se concretiza
o que Adonai Deus disse à mulher após a desobediência: “Teu homem é que
dominará sobre ti” (3,16b)7. Qual é a reação de Eva? Conforme Adonai Deus
também disse em 3,16b, sua cobiça a leva para “seu homem”. Mas, surpreen-
dentemente, esse homem é seu filho Caim, de quem Eva disse quando lhe
deu o nome “Adquiri (qaniti) um homem, com Adonai” (4,1b). Uma mãe em
posição de sujeito e um filho objeto, uma relação de posse, o marido excluído,
substituído pelo filho como homem e por Deus como pai. Eva dá, assim, a
Caim um nome que o designa como o objeto que cumpre seu desejo. Destarte,
num movimento no qual ela retribui ao seu marido o que ele lhe fez, ela o
exclui de seu lugar de sujeito e de ator. Assim, movidos pela inveja e pelo

5. P. Ricoeur, Du texte à l’action, 116-117.


6. Para o essencial do que se segue, inspiro-me em duas sínteses publicadas alhures: A. Wénin,
La question de l’humain, 13-15 e 22-26, e sobretudo Des pères et des fils, 13-26.
7. Para uma argumentação detalhada, ver A. Wénin, Caïn, 38-41. Neste sentido, M. Balmary,
La divine origine, 185-188.

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Introdução

medo da carência subjacente à inveja, um põe a mão no outro, que se deixa


prender neste jogo, antes de reproduzi-lo por sua vez.
Nestas circunstâncias, será de admirar que Caim, por sua vez, se torne
presa de uma cobiça invejosa que o leva a expulsar um irmão que constitui,
a seus olhos, um obstáculo a seu domínio sobre tudo? E isso enquanto Abel,
“Vapor, Fumaça”, não recebe em seu nascimento nenhuma palavra parental
que o imponha como “terceiro” em face daquele do qual é o irmão. Caim
vê-se assim mantido na posse materna até o momento em que Adonai vem
impor-lhe Abel como “terceiro”, voltando seu olhar para ele e sua oferta, ao
passo que não olha para Caim (4,4b-5a). É a este último, porém, que a atitude
divina visa principalmente. Com efeito, a atenção prestada a Abel dá-lhe uma
consistência real aos olhos de Caim. É deste modo que Adonai procura ajudar
este filho, Caim, cuja mãe era o seu tudo, a contar com um terceiro humano
e a aceitar uma alteridade real. Ele cumpre a função paterna que consiste em
“colocar algo de terceiro” para abrir o filho a uma outra realidade diferente
do desejo de sua mãe.
Assim, na medida em que ela abre uma brecha na confusão em que Eva
aprisiona seu filho primogênito, o favor de Deus por Abel representa para Caim
uma real chance de vida, uma abertura a relações mais justas, mais amplas.
Mas para Caim, como para todo ser humano, é difícil assumir o luto pela perda
da totalidade e não se deixar levar pela cobiça, que é precisamente o desejo do
todo (4,7). E quem não consegue atravessar esta crise dolorosa tranca-se para
o mundo da fraternidade. É isto o que acontece a Caim: marcado pela infeliz
opção pela cobiça feita por seus pais ao escutarem a serpente, ele se encontra
diante de uma animalidade interior que toma conta dele8. O ciúme o devora.
Adonai o convida então a “tornar bom” aquilo que vivencia mal. Ele evoca
um pecado agachado à porta de Caim — à imagem de uma fera à espreita,
que o ameaça com sua voracidade e que Deus o convida a dominar (4,7).
Mas, incapaz de comandar seu animal interior, Caim torna-se um assassino9.
Porque, efetivamente, o animal é que o domina, quando, em vez de tomar a
palavra para humanizar o que está vivenciando, Caim dirige-se contra Abel
e o assassina10. Ele mesmo se mergulha, assim, na maldição e vota-se à vida
errante de quem se perde por não conseguir encontrar-se (4,11-12).

8. A este respeito, ver M. Balmary, La divine origine, 184-190, e A. Wénin, Adam et Ève.
9. Ver P. Beauchamp, Le récit, la lettre e le corps, 263-264; Id., Parler d’Écritures saintes,
82-85.
10. Já a Epístola de Judas, versículos 10-11, parece interpretar assim.

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José ou a invenção da fraternidade

No final desta narrativa, o próprio Caim sublinha que tal falha é intolerá-
vel, pois vota o ser humano a vagar, desenraizando-o do húmus (ha‘adamah)
onde um humano (‘adam) pode desabrochar e entregando-o ao medo do outro
(4,14). Esta breve narrativa de Caim mostra, desde as primeiras páginas do
Gênesis, a questão de uma fraternidade difícil, desde o início comprometida
por antecedentes do lado parental e incessantemente ameaçada pela inveja e
pelo ciúme. Em todo caso, se tivesse querido alertar o leitor de que a frater-
nidade não vem naturalmente, porque, para ser construída, deve atravessar a
prova da cobiça — inveja e ciúme ao mesmo tempo —, o narrador não o teria
feito de outro jeito. Como escreve Paul Ricoeur, “o fratricídio, o assassinato
de Abel […] faz da própria fraternidade um projeto ético e não mais um
simples dado da natureza”11.
Se acreditamos nos capítulos iniciais do Gênesis, esse projeto ético inclui
entre suas prioridades a luta contra a cobiça, que é o que o desejo humano se
torna quando não consente com o limite que o estrutura em sua própria essência.
Sem um justo limite, de fato, o desejo tende a tomar todo o lugar, até invadir o
espaço do outro, abrindo o caminho a todos os tipos de conflitos (cf. Tg 4,1-2).
Visto de forma diferente, absolutizando-se, o desejo apaga a diferença do outro
para inscrevê-lo exclusivamente em sua própria lógica. Com efeito, quem é
tomado de cobiça vê no outro um objeto de posse, de manipulação, um instru-
mento do qual se utiliza para conseguir o que deseja, ou ainda um concorrente
que deve neutralizar, descartar ou, até, eliminar. O outro, negado assim como
sujeito, não pode ser parceiro de intercâmbio ou aliança. Deste modo, a cobiça
destrói as relações, porque mata o outro, ou, pelo menos, o sujeito que está nele.
Observamos, de resto, que ela não segue sem desrespeitar gravemente a palavra:
em vez de dizer ao outro que ele é um objeto que ele quer para si, aquele que
cobiça vai recorrer ao vocabulário do amor; em vez de dizer ao adversário
que ele é um mero instrumento a seu serviço, elogiará suas qualidades de co-
laborador modelo, enquanto o enganará para ter certeza de conseguir dele o que
quer. Em suma, talvez sem que o sujeito cobiçoso o perceba, a mentira apropria-
se de suas palavras para usá-las como instrumento de satisfação do desejo e da
submissão do outro. Como, nestas circunstâncias, a palavra poderia construir
uma relação justa e expansiva, uma relação “fraternal”? Como se quisesse tornar
o leitor atento ao perigo que ameaça o gênero humano, o Gênesis multiplica as
histórias que ilustram os malefícios da cobiça e sugerem saídas viáveis12.

11. P. Ricoeur, Le paradigme de la traduction, 13.


12. Ver a esse propósito A. Wénin, La question de l’humain, e também as duas primeiras partes
de Pas seulement de pain. Para o que se segue, recomendo essencialmente meu artigo Des pères
et des fils, 24-27.

20
Introdução

Na continuação do livro, com efeito, o narrador retorna, para explorá-las, a


diversas facetas da questão levantada pela narrativa de Caim, na qual é narrado
o fracasso da fraternidade. O problema apresenta-se de novo na história de
Abraão. Desde o desmame, Isaac é privado de seu irmão mais velho, quando
Sara exige que Ismael seja despedido com sua mãe (Gn 21,8-14) — mais uma
vez os ciúmes! Essa frustração criou um vazio? À primeira vista, não. Mas
depois o leitor atento percebe que Isaac estabelece sua residência próxima
ao poço de Laai-Roí (24,62; 25,11), lugar estreitamente ligado ao seu irmão,
pois é lá que seu nascimento e seu destino foram anunciados à sua mãe Agar
(16,11-14). Quando então se torna pai de gêmeos, Isaac prefere o mais ve-
lho, grande caçador dos campos como era seu irmão Ismael (25,27-28, veja
21,20-21), a menos que Esaú tenha se tornado caçador para responder a um
desejo inconsciente de seu pai. Tal como seu tio, Esaú desposará mulheres
estrangeiras (26,34), antes de casar, além delas, com uma filha de Ismael,
pensando agradar Isaac (28,6-9). Todos estes detalhes convergem para sugerir
que o carinho particular de Isaac por seu filho mais velho pode estar ligado
ao fato de que ele mesmo foi muito cedo privado de seu irmão mais velho.
Logo depois, Rebeca — de quem o narrador diz que Isaac foi consolado
com ela pela morte de sua mãe (24,67) — põe suas vistas no outro filho,
Jacó, assim como Sara, que tinha preferência pelo mais novo. Numa espécie
de ciúme de mãe pelo caçula, ela age do mesmo jeito que sua sogra e asse-
gura que seu preferido supere o mais velho, levando-o a privar seu irmão da
bênção do pai — ainda e sempre a cobiça! Isso resultará no conflito entre os
irmãos, que causará rapidamente sua separação (27,41–28,5). De fato, não
houvesse o respeito de Esaú por seu velho pai, a cena da história de Caim
ter-se-ia reproduzido (27,41).
A fuga de Jacó o conduz a Labão, seu tio materno. Ao chegar, encontra
Raquel, sobrinha de sua mãe e mulher bonita como ela (29,10.17 e 24,16)
e, além disso, filha mais nova, como também ele é o mais novo. Convidado
a permanecer e trabalhar com seu tio, Jacó apega-se a Raquel, e não à irmã
mais velha, Lia. Mas sua inclinação pela pastorinha não tem êxito: astucioso
como sua irmã, Labão engana Jacó por meio de sua filha Lia e em seu favor,
da mesma maneira que Rebeca enganou seu marido com seu filho amado e
em seu favor. Assim, Jacó cai num novo conflito com esse tio que se disse
“seu irmão” (29,15), enquanto suas duas mulheres — uma das quais despreza,
mas é fecunda, a outra que ama, mas é estéril — reapresentam a seu modo a
tensão que existia entre a avó Sara e sua rival Agar, incluindo a história das
servas utilizadas como “mães de aluguel” (29,31–30,24). É nesse contexto que

21
José ou a invenção da fraternidade

nascem os filhos de Jacó. Seus nomes, que recebem de suas mães, testemu-
nham a exacerbação da inveja que assombra as duas mulheres na concorrência
pelo marido e pelo filho. Entendemos que, por sua vez, estes irmãos viverão
relações marcadas pelo ciúme e pelo ódio, quando Jacó transferir sobre o filho
de Raquel a preferência que já mostrou por sua mãe, morta no momento em
que começa nossa história (37,1-11).
Este rápido percurso deixa entrever que, de uma geração para a outra,
os problemas de relacionamento se repetem, se deslocam, se ampliam13. No
entanto, o início do Decálogo o sugere: se o mal encontra os filhos na terceira
e na quarta gerações, como mostra a história dos patriarcas, é em razão do
pecado de um pai (Ex 20,5-6). Onde, então, se esconderia esta falta senão
no início da corrente, ou seja, nas circunstâncias do nascimento do primeiro
filho de Abraão, momento crucial que determina não somente o destino de
Ismael, mas também o de Isaac? Em Gênesis 16,1-6, impulsionada por seu
desejo de ser mãe, Sarai dá sua serva egípcia como esposa a seu marido14. Sem
dizer nada, Abrão deixa-se envolver numa relação a três, que rapidamente se
torna um inferno para Sarai. A meus olhos, ele comete três faltas. A primeira
é em relação a Deus. Abrão aceita a solução que Sarai lhe propõe e da qual
Adonai é excluído, embora ela o tenha responsabilizado pelo problema (16,2):
concordando com esta solução, Abrão deixa de ter confiança na promessa
selada por Deus com uma aliança (Gn 15); ele prefere ceder diante de Sarai
e adotar uma solução que evite um previsível confronto com ela e a prolon-
gada aquiescência à falta de um filho. A segunda falta de Abrão está num
erro relacional com respeito a Sarai, na medida em que não consegue resistir
ao desejo dela de tornar-se uma mulher tomando a criança de outra — numa
atitude típica da cobiça. Finalmente, Abrão comete uma falta em relação a
Agar, que ele entrega à veleidade de Sara: quando esta se dirige a ele, ele
não interfere para defender Agar, apesar de ela ter se tornado sua mulher e
de estar gestando o seu filho. Em vez disso, ele a deixa assumir sozinha as
consequências da fraqueza dele mesmo em relação a Sarai (16,6). Com a
volta de Agar, as coisas parecerão acalmar-se, mas quando se tornar mãe o
problema ressurgirá com força (21,1-10) e gerará a reação em cadeia acima
evocada, dificuldades que, a partir da exclusão de Ismael, afetarão os filhos
“durante três e quatro gerações”, como se diz no Decálogo.

13. J. S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob, 96-97, oferece uma intuição neste sentido, mas
não a desenvolve.
14. Para uma argumentação do que se segue, ver A. Wénin, Saraï, Hagar et Abram.

22
Introdução

Ao explorar essas diversas crises fraternais, como já falei, o Gênesis tam-


bém sugere maneiras de resolver os conflitos. Vou citar apenas duas, das quais
Jacó é um dos protagonistas15. Entre ele e Esaú, o tempo e a distância fazem
o seu trabalho. Depois de vinte anos de uma separação necessária para que a
morte não sancione de novo o trágico fracasso da fraternidade, a solução vem
de Esaú, quando Jacó retorna de sua longa permanência em Aram. Na ausên-
cia de seu irmão, Esaú prosperou, como ele mesmo o dirá antes que o narrador
o confirme (33,9, e veja 36,6-7). Com o tempo e a fortuna, sua raiva ciumenta
dá uma trégua. Vinte anos mais tarde, quando Jacó volta, cheio de medo, Esaú
parece feliz em reencontrá-lo. Ele corre ao seu encontro, lança-se ao seu pes-
coço e o beija. Ele recusa até mesmo os presentes pelos quais Jacó acreditava
dever aplacar aquele cuja chegada, a partir de seu sentimento de culpa, lhe
parecia uma ameaça mortal (33,4-9). Então, vendo seu irmão renunciar à vin-
gança, Jacó reconhece nele a imagem de Deus, e depois insiste em que aceite
uma parte da bênção roubada anteriormente (33,10-11). Uma vez reconciliados,
os irmãos seguirão cada um seu caminho: a fraternidade, na verdade, não
combina, forçosamente, com a promiscuidade (33,16-17; 36,6-7).
Uma solução positiva põe fim à outra briga entre irmãos na qual Jacó se
encontra envolvido — é, de fato, como “irmão” que, ao fugir da vendeta de
Esaú, ele é recebido por Labão, “o irmão de sua mãe” (29,14-15)16. Não vou
voltar ao conflito alimentado pela cobiça e pela mentira que os opõe e que
forçará Jacó outra vez a fugir (31,1-23); é mais interessante ver como as coisas
terminam. Desta vez, a palavra é que abre uma saída. Durante uma explicação
tempestuosa, os dois homens enchem-se mutuamente de repreensões, reve-
zando-se em atirar um sobre o outro sua própria verdade quanto à contenda
(31,25-42). Depois disso, eles passam a dar atenção aos interesses que os
ligam — as mulheres e seus filhos —, selando entre si um pacto de não
agressão. Por ser respeitosa para com cada um, a fraternidade, com efeito,
não pode existir sem a confiança, sem o compromisso que une simbolicamente
os parceiros, garantindo a cada um seu próprio espaço. Assim, embora vivendo
separados uns dos outros, cada qual em sua terra, os irmãos (31,52) terão
alguma coisa em comum: a palavra que se dão mutuamente, dando crédito
um ao outro. Ao deixar de mentir e de se evadir, eles constroem uma espécie
de defesa contra a inveja. Com efeito, no momento da proximidade entre eles,

15. Sobre este assunto, ver A. Wénin, Des chemins de réconciliation, 313-317.
16. Notar também 27,43; 28,5; 29,10 (bis).13, onde Labão é apresentado com insistência como
“o irmão da mãe” de Jacó, e 29,12, onde este se apresenta, ele próprio, a Raquel como “irmão”
de seu pai.

23
José ou a invenção da fraternidade

a cobiça era uma fonte de divisão e conflito. Agora, a pilha de pedras e a


estela, que ergueram e que os separam, testemunham seu acordo mútuo
(31,44–32,1).
Quanto à descrição do conflito entre os irmãos e, especialmente, à evoca-
ção da construção da fraternidade, a narração de José irá muito além dessas
primeiras histórias. É para explorar este tema que vamos seguir, passo a passo,
as peças de Gênesis 37–50 onde é implantado narrativamente.

24
Capítulo 1

Família impossível
(37,1-12)

A história de José começa com um episódio dramático, que abrange todo


o capítulo 37. Não será tempo perdido aprofundar este capítulo, porque aí o
narrador expõe em detalhes uma crise que a sequência de sua narrativa vai
resolvendo, aos poucos, e não sem deixar de mostrar, ao mesmo tempo, o
que está em jogo e a complexidade disso. É essencial para o leitor perceber
bem qual é o assunto em questão. Pois o narrador, ao apresentar ao leitor as
coisas com riqueza de detalhes como faz, contando a evolução trágica dos
relacionamentos entre os personagens, chama a atenção sobre elementos es-
senciais, enquanto envolve o leitor no mundo que, aos poucos, vai desenhando
ao longo da narrativa. Uma visão rápida do episódio mostra que a crise que se
abre é exclusivamente familiar. Os personagens são um pai e seus filhos; as
figuras secundárias intervêm só ocasionalmente (37,15-17.25-28.36). A crise
entre eles tem pelo menos dois lados, como anunciam as primeiras linhas: o
relacionamento especial entre o pai, Jacó, e seu filho, José, desemboca, no
final, em separação, graças ao ódio dos outros filhos contra o filho preferido,
ódio que gera infelicidade para todos.
Que a crise é essencialmente familiar, o vocabulário o confirma. A palavra
“irmão” aparece umas vinte vezes, sempre com um sufixo possessivo desig-

25
José ou a invenção da fraternidade

nando um irmão particular, sobretudo José1. Há ainda onze ocorrências da


palavra “pai”, sempre com o possessivo, e dez menções de “filho”, perfazendo
um total de vinte e uma2. Só este cálculo já confirma a onipresença do tema
familiar neste episódio no qual entraremos agora, passo a passo.

“Os engendramentos de Jacó” (37,1-4)


Habitou Jacó na terra onde seu pai vivera como migrante, na terra de Canaã
(37,1)3.

Liberto de seus conflitos com seu tio Labão (Gn 31) e com seu irmão
Esaú (Gn 33 e 36,6-8), uma vez passada a briga entre seus filhos e o povo de
Siquém (Gn 34), Jacó habita, enfim, na terra da promessa, Canaã (37,1). Ao
afirmar que “habitou” (yašav) na terra onde seu pai “vivera como migrante”
(gur), o narrador sugere uma tensão entre a não instalação de Isaac e o desejo
de seu filho Jacó de encontrar, enfim, certo repouso4. Mas esse desejo vai
logo conhecer uma mudança brusca.
“Eis os engendramentos de Jacó” (37,2a). Pela décima e última vez no
Gênesis, volta esta fórmula5, que indica, de modo geral, o tema global do livro:
a vida e sua continuidade através das gerações desde a criação. Na história dos
patriarcas, é utilizada três vezes em aberturas de relato (11,27; 25,19 e 37,2),
cada vez seguida pelo nome de um pai — Taré, Isaac e Jacó —, introduzindo,
porém, a história de seus filhos. Será que o narrador procura expressar assim
que “os acontecimentos se desenvolvem a partir de outros acontecimentos

1. “Seus irmãos”: versículos 2, 4 (bis), 5, 8, 9, 10, 11, 12, 17, 23; “teus irmãos”: versículos 10,
13 e 14; “meus irmãos”: versículo 16: as ocorrências dessas expressões referindo-se aos irmãos de
José cessam com a agressão contada no versículo 23b; “nosso irmão” aparece nos versículos 26 e
27. No versículo 19, o possessivo “seu irmão” remete os irmãos um ao outro em sua trama. Veja
também os irmãos de Judá, nos versículos 26 e 27, e os irmãos de Rubem no versículo 30.
2. Incluindo o “filho” do versículo 2a (filho de 17 anos). Sabendo que 21 é o número de letras
do alfabeto menos um, devemos ver neste número o sinal de que está faltando alguma coisa nas
relações familiares? Acrescente-se: “mulheres”, no versículo 2, e “filhas”, no versículo 35.
3. Normalmente, quando um único versículo é citado, a referência precede a citação. Se o texto
tem mais que um versículo, a numeração é inserida no próprio texto.
4. A ideia é de Rashi e retomada por A. Chouraqui, Entête, 329.
5. Cf. Gênesis 2,4 (terra e céu); 6,9 (Noé); 10,1 (filhos de Noé); 11,10 (Sem) para a história
das origens; 11,27 (Taré); 25,12 (Ismael); 25,19 (Isaac); 36,1.9 (Esaú) e 37,2 (Jacó) para a histó-
ria patriarcal. Uma fórmula ligeiramente diferente se lê em 5,1 (Adão). O tipo itálico nas referên-
cias indica as passagens onde a fórmula introduz uma simples lista genealógica. — [*Traduzimos
o francês engendrement por “engendramento”; o termo hebraico subjacente, toledot, indica o que é
gerado/engendrado por um patriarca ou clã, tanto os descendentes (gerações) quanto a história.]

26
Capítulo 1 – Família impossível (37,1-12)

como se fossem suas sementes”6? É até possível ser ainda mais preciso. Com
efeito, os três pais cujos nomes são citados parecem ter marcado seus filhos a
ponto de a vida destes ter algo de uma conquista de autonomia, de um longo
processo de “nascimento” de sua própria singularidade. Eles devem livrar-se
da influência — ainda que indireta — de seu pai e das interferências de sua
presença em suas vidas. Assim, Abrão deve deixar Taré para encontrar-se a si
mesmo7; da mesma forma, Esaú e Jacó devem desfazer os nós que a tensão
latente entre seu pai e sua mãe inscreveu neles desde a infância8. Desta sorte,
a narração da vida do filho contaria a história do “engendramento”, pelo pai,
de um filho que deve nascer para seu próprio existir.
Como observa Hettema9, o intuito dessas narrações é saber se a linhagem
patriarcal das crianças não será (inter)rompida por conflitos ou por situações
trágicas. Mas cabe precisar que essas crises são também “engendradas” pelos
pais. Assim, as “linhagens” de Taré e de Isaac realizam-se por aquilo que
Abraão e Jacó (e também Esaú) fazem para se libertar das amarras em
que seus pais os prendem e que dão origem a situações relacionais difíceis,
pesadas de suportar. Da mesma forma, a continuidade desses pais depende
não somente de sua capacidade de dar a vida, mas também da capacidade dos
filhos de livrar-se do peso que os laços paternos representam. Porque, se o
pai não incentiva o seu filho a “deixar seu pai e sua mãe” (cf. 2,24), cabe ao
filho afastar-se para que o engendramento se realize.
Neste sentido, a história dos filhos de Jacó é ainda a de Jacó, na medi-
da em que os filhos devem libertar-se de uma pesada hereditariedade para
poderem tornar-se filhos e irmãos de verdade. Com efeito, que poderia ter
“engendrado” um personagem como Jacó, imerso que estava num conflito
sem solução com seu irmão e em fortes tensões com seu tio e seu sogro,
senão filhos que, como seu pai — e como suas mães! —, conheceriam uma
história em que a inveja, o ciúme e a mentira iriam semear a violência?
Logo após esse “título” [*37,2a], a primeira palavra da narrativa é altamen-
te significativa a esse respeito: é o nome de José. Este não é o filho mais
velho de Jacó, o filho que se esperaria logo após uma fórmula que também
serve para introduzir as genealogias. É somente o mais velho de Raquel.
Contudo, ele afigura-se imediatamente no primeiro plano da narração. É

6. Janzen, 145.
7. De Gênesis 12,1-3 até o capítulo 20, onde presta contas com Abimelec (“meu pai é rei”). Ver
neste sentido o ensaio de M. Balmary, Le sacrifice interdit, 116-180.
8. Ver meu ensaio La question de l’humain, 21-26.
9. T. L. Hettema, Reading for Good, 223.

27
José ou a invenção da fraternidade

precisamente esta inversão de primogenitura que vai causar os desencontros


de Jacó e dos seus.
Tal leitura da fórmula “Eis os engendramentos de Jacó” influencia a
maneira de ver a intriga. Será que esta pode reduzir-se à história dos irmãos
se seu título a anuncia como sendo a do pai? Além disso, será o pai quem
estará em primeiro plano no último ato (47,27–50,26), da mesma forma que
engloba de algum modo o primeiro (37,2-4 e 32-35). Então, o que o leitor
está prestes a ler não é a história de José, como se costuma dizer, nem mesmo
a de José e de seus irmãos. É, antes, a de Jacó e de seus filhos, em dores de
engendramento. No mais, a exposição a seguir desenvolve-se em três breves
seções, nas quais a cada vez um personagem é sujeito dos verbos: José (37,2b),
Israel (v. 3) e os irmãos (v. 4). A partir de José, ele mostra três partes na fa-
mília e as apresenta, cada qual por sua vez, como atores no contexto de uma
crise latente que não vai tardar a agravar-se.

Os “engendramentos” de Jacó começam então com José, o primogênito


na preferência do pai, elemento que não vai tardar a aparecer10. No entanto,
para o narrador, sem dúvida, há algo mais fundamental: as relações fraternas,
com as quais começa a exposição. Suas primeiras palavras podem ser lidas
como uma prolepse escondida de toda a história (37,2):

José, filho de dezessete anos, estava apascentando [com] seus irmãos no re-
banho; ele era menino [e estava] com os filhos de Bala e os filhos de Zelfa,
mulheres de seu pai; e José fez vir [= chegar] a fama acerca deles [como] má
até o pai.

O nome de José, só por si, já é sugestivo para o leitor do Gênesis que


conhece toda a dificuldade da fraternidade. O primeiro irmão a nascer, como
vimos, foi Abel, designado, de início, em relação a Caim como “seu irmão”,
mesmo antes que seu nome fosse dado. Aliás, ele lhe é “acrescentado”, diz
o narrador, antecipando de longe o nome de José: “e ela [Eva] acrescentou
(wattosef ) a dar à luz seu irmão, Abel” (4,2). Assim “acrescentado”, Abel é
o protótipo do irmão, o primeiro a nascer como irmão e a impor-se como tal.
Porque, se Abel instaura a fraternidade sendo acrescentado ao primogênito,

10. Considerando, sem dúvida, os dados do Gênesis em conjunto, o cronista observa: “(Rubem)
era o primogênito (de Israel), mas quando profanou o leito de seu pai, seu direito de primogenitura
foi dado aos filhos de José, filho de Israel, e ele não foi mais contado para a primogenitura. Judá
prevaleceu sobre os seus irmãos, em vista de um príncipe vindo dele, mas a primogenitura era de
José” (1Cr 5,1b-2).

28
Capítulo 1 – Família impossível (37,1-12)

este recebe a fraternidade como incumbência, como desafio: conseguirá tornar-


se irmão, aceitará o outro como irmão?11. Caim não o conseguirá, apesar da
intervenção de Adonai; e o narrador ressalta assim, desde o início, a enorme
dificuldade que há no aceitar tornar-se irmão. É a esses inícios trágicos da
fraternidade que pode referir-se, no início da narração, o nome de José, li-
gado imediatamente à fraternidade e apresentado como pastor, assim como
Abel (4,2). “Acrescentado” aos outros, aos filhos das outras mulheres, será
recebido como irmão?
Em conexão com José, o narrador expõe alguns dados aos quais não volta
na continuação de sua narrativa. Servem para a apresentação inicial da perso-
nagem em sua relação com seus irmãos e é assim, sem dúvida, que devem ser
lidos. Em primeiro lugar, José tem dezessete anos12: ele é jovem ainda, sem,
contudo, ser uma criança. Pastor, ele exerce sobre os animais um controle sem
violência — um pastor não mata suas ovelhas, que são sua riqueza — em
vista de um intercâmbio no qual o pastor e seu rebanho encontram seu bem-
estar. Mas a simbólica impostada desde o início do Gênesis faz também do
pastor o tipo de ser humano capaz de controlar sua animalidade interior, as
forças de vida que o habitam e, às vezes, o agitam até à violência. A imagem
conota diversas atividades — guia, protetor, alimentador —, mas também os
valores de autoridade e de doçura13, mesmo se no Gênesis os pastores podem
revelar-se gananciosos e violentos (Jacó e Labão são dois exemplos disso).
A introdução do personagem de José como pastor poderia muito bem cons-
tituir uma antecipação do essencial de seu papel: por acaso não o veremos
cumprindo seu papel de “pastor” em relação com sua própria vida e a de seus
irmãos, mas também em favor do Egito? Esta forma de apresentar José per-
mite um duplo sentido14. Com efeito, a frase pode ser entendida da seguinte
maneira: “José […] estava apascentando seus irmãos no rebanho”, o rebanho

11. A este respeito, ver L. Manicardi, L’omicidio è un fratricidio, 18. Note-se que em Gênesis
4,1-16 jamais Caim chama Abel de “irmão”.
12. A precisão da idade é importante? É difícil dizer. Ela tem a ver com um relatório entre o
momento em que José é protegido por seu pai, em Canaã, e o momento em que ele o protege no
Egito; desde então, Jacó viveu 17 anos (ver 47,28). Queremos enfatizar o equilíbrio: José retribui a
seu pai o que tinha recebido dele (ver J. Eisenberg, B. Gross, Un Messie nommé Joseph, 54)?
13. A propósito do simbolismo do pastor, ver A. Wénin, Pas seulement de pain…, 29-31 e
101-175.
14. A partícula ’et pode ser vista como preposição significando “com” (então o objeto do ver-
bo é introduzido por b-, como em Sl 78,71) e como marca do objeto direto. Essa ambivalência é
ressaltada por D. L. Christensen, Antecipatory Paronomasia, 263, seguido por Hamilton, 406. O
papel “pastoral” de José diante de seus irmãos é conhecido pela tradição judaica (ver J. Eisenberg,
B. Gross, Un Messie nommé Joseph, 39, ou SARNA, 255).

29
José ou a invenção da fraternidade

sendo, portanto, um símbolo da família15. É, portanto, em relação à animali-


dade presente no interior da família que José pode ser pastor16. Além disso,
a expressão hebraica “apascentar/fazer pastar” (ra‘ah ’et) pode conotar uma
função de governo segundo a imagem pastoral do rei17. Aqui ainda, o que há
de se seguir mostrará como José a realizará.
Certamente, se há aqui uma antecipação do destino de José, ela permanece
totalmente criptografada para o leitor. Pois o controle “pastoral” de José sobre
a família entra, desde o início, em contradição com a posição desse jovem
pastor, “menino” junto aos os filhos de Bala e de Zelfa, as servas das duas
mulheres de Jacó. O termo “menino” (na‘ar), que significa às vezes “jovem
homem” e “servo”, coloca José em posição de dupla inferioridade em relação
a seus irmãos, mais exatamente os filhos das servas: ele é mais jovem que
eles e servo deles.
Por que o narrador especifica que José se encontra com os filhos das
servas e não com os de Lia, o que seria mais normal para este filho de
Raquel? Uma tradição judaica explica que, ansioso pela unidade do grupo
familiar, enquanto pastor de seus irmãos, José procura fazer a ligação entre
os dois grupos18. Talvez seja neste sentido que o narrador afirma que Bala e
Zelfa são “mulheres de seu pai”: ele os apresentaria na perspectiva de José19,
que consideraria então os filhos das servas como filhos, mesmo, a ponto
de juntar-se a eles e até de colocar-se a serviço deles. Contudo, uma outra
leitura é possível. Talvez porque os filhos de Lia o rejeitam, José trabalhe
com os filhos de Bala e Zelfa, que fazem dele seu empregado; neste sen-
tido, ele seria, realmente, o último de todos. Na realidade, as duas leituras
não se excluem mutuamente, e o narrador não será mais específico. Como
essa situação fica sem comentário, a narrativa apenas mostra o vestígio de
um problema latente, muito comum em tantas histórias de família. Quanto
à posição que concede a José, é ambivalente: combina superioridade e res-
ponsabilidade “pastorais”, por um lado, rejeição e inferioridade, devido a
sua idade e a seu estatuto, por outro lado. Tal situação dificilmente pode ser
confortável para um jovem.

15. Recordemos que as mães dos irmãos se chamam Lia, “vaca”, e Raquel, “ovelha”.
16. No final do capítulo, José será substituído por uma “pele de cabrito” supostamente rasgada
por uma fera (v. 31-33): seria esta uma obrigação do pastor para poder fazer viver o rebanho?
17. Veja 2 Samuel 5,2; 7,7 // 1 Crônicas 11,2 e 17,6: veja também Ezequiel 34. Também
Hamilton, 406.
18. Assim, Rashi deixa claro que ele confraterniza com os irmãos que os outros rejeitam.
19. Comparar a 35,22, onde, para Rubem, Bala é a “concubina de seu pai”, não sua esposa.

30
Capítulo 1 – Família impossível (37,1-12)

O final do versículo completa o quadro e o torna mais complexo. O que


José exatamente faz? A frase é muitas vezes incompreendida. O substantivo,
dibbah, significa “rumor, fofoca, difamação”20. Este rumor é aqui qualificado
de ra‘ah, “mal”, numa construção em que o adjetivo tem a função atributi-
va de objeto direto: “José fez chegar a fama acerca deles como má até o pai”21.
Como destaca Jan Fokkelman, “o texto não diz que circulavam fofocas mali-
ciosas, trazidas em seguida a Jacó por um relator mal intencionado. Que o
que se dizia dos irmãos fosse maldoso não é um fato objetivo. […] Isso faz
de José e de seu gesto menos que fraterno, enquanto verdadeiro informante,
a primeira causa do envenenado conflito familiar que virá a desenvolver-se
rapidamente”22.
Uma vez esclarecido o sentido do que fez José, será preciso ir mais longe
e perguntar-se a respeito das razões pelas quais ele se entregou a esse jogo
mesquinho. Tal como acontece com outros elementos que apresenta, o narrador
não se mostra explícito, contentando-se apenas em registrar o fato. Certamente,
a situação desconfortável do jovem pode estar na base de tal comportamento.
Ele poderia, por exemplo, denegrir seus irmãos para se valorizar aos olhos de
seu pai e compensar assim a depreciação que sofreu com eles. Mas o pai não
reage diante da atitude de José, nem diante do que ele escuta acerca de seus
filhos23. Nota-se que o narrador também não menciona a reação destes, como
se seu ódio, que logo vai ser o assunto, não dependesse em primeiro lugar
daquilo que José fez. Talvez até ignorem o seu comportamento? Se este é o
caso, a menção às fofocas tem como objetivo somente permitir ao leitor situar
a responsabilidade de José nas relações familiares difíceis que o envolvem.

Que o pai não reage quando José traz seus comentários explica-se pelo
que o narrador fala a seguir (37,3):

20. O verbo correspondente (dbb II) não é habitual em hebraico. O substantivo aparece com este
sentido, por exemplo, em Números 13,32; 14,36, Jeremias 20,10, Salmos 31,14, Provérbios 10,18;
25,10. A conotação é sempre negativa, destaca Wenham, 350.
21. Sem o artigo, o adjetivo não pode ser epíteto do substantivo determinado pelo sufixo pos-
sessivo. Nesse sentido, Jouon, § 126a, que cita especificamente o exemplo de Gênesis 37,2. Veja
também J. P. Fokkelman, Genesis 37 and 38, 156, e Hamilton, 403.
22. J. P. Fokkelman, Genesis 37 and 38, 156; neste sentido também, M. R. Jacobs, The con-
ceptual Dynamics of Good and Evil, 322. Não se trata, pois, da má reputação que os irmãos
espalham a respeito de José (Janzen, 148, para quem 37,4b repete 37,2b), nem da má reputação
que corre a respeito deles e que José conta a seu pai (Westermann, 36; A. Bonora, La storia di
Giuseppe, 40).
23. A frase seguinte [*v. 3] fala do pai, mas a ruptura sintática não permite estabelecer uma
ligação de sucessão (e a fortiori de causa e efeito) com o que [*no v. 2] se diz de José.

31
José ou a invenção da fraternidade

Israel amava a José mais que a todos os filhos seus, porque lhe era um filho
da velhice, e por isso mandou fazer para ele uma túnica adornada24.

José é, portanto, o objeto do amor preferencial de Israel. O narrador precisa


a razão: ele é o filho de sua velhice. A expressão remete o leitor às circuns-
tâncias do nascimento tardio de José, o filho da preferida de Jacó, que tanto
tempo esperou este filho. Ora, Raquel, a mãe de José, morreu tragicamente
ao dar à luz um segundo filho, Benjamim (cf. 29,30-31 e 35,16-19). O nar-
rador não julga os sentimentos do pai. Ele contenta-se em fornecer ao leitor
um elemento que lhe permite compreendê-los. Mas a compreensão para com
o velho homem não deve impedir de ver que tal preferência constitui uma
injustiça em relação aos outros filhos. Como observa Luis Alonso Schökel,
Jacó não parece ter aprendido as lições de sua própria história: será que as
preferências de seus pais não determinaram amplamente seu longo conflito
com Esaú (25,27-28)?25. E sua predileção por Raquel (29,30-31) não levou as
duas filhas de Labão a uma rivalidade com consequências duradouras?
Que Jacó é chamado aqui de Israel talvez não seja neutro. Israel, com
efeito, é o nome que ele recebe após a luta noturna que culmina numa bênção,
reconhecida como sendo de Deus (32,27-31); é esse nome que Deus confirma
quando, numa revelação em Betel, ele explicita o conteúdo da bênção (35,9-
12). É, pois, enquanto abençoado por Deus e enquanto eleito que Israel prefere
José a todos os seus filhos. Além disso, essa preferência está, sem dúvida,
ligada à herança das promessas que, desde Abraão, nunca esteve ligada ao
direito de primogenitura. No mais, este amor se concretiza26 numa vestimenta
simbólica oferecida a José, que assim é visivelmente posto à parte em relação
aos outros filhos, afastado de seus irmãos27.
Neste ponto, o leitor pode perguntar se não há nenhuma ligação entre
a preferência de Israel por José e os boatos que este traz sobre os seus

24. O termo (ketonet passim) é raro e seu sentido não está claro (status quaestionis em Hamilton,
407-409). A LXX tem “túnica colorida” (poikílos) e é seguida pela Vulgata (polymita). Em 2 Samuel
13,18-19, o termo refere-se a um vestido principesco usado pelas filhas do rei; neste ponto, a LXX
traduz karpopós (de karpós, “pulso”), daí a tradução “túnica de mangas compridas”, uma veste que
não permite trabalhar. Sobre esta questão, ver A. Da Silva, La symbolique des rêves, 39-40; com
Westermann, 37, destaca que a veste marca o status social da pessoa que a usa, 35.
25. L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 312. Da mesma forma Wenham, 359 e Hamilton,
407.
26. A forma verbal (weqatalti) pode sugerir que a coisa se repete: neste sentido, Gunkel, 404
(cf. 1Sm 2,19). Outros preferem ver aqui um simples Qatal coordenado, lembrando um fato passado
(“Ele lhe tinha feito uma túnica”): também Fokkelman, Genesis 37 and 38, 155.
27. Veja J.-M. Auwers, Joseph, 10-11.

32
Capítulo 1 – Família impossível (37,1-12)

irmãos. Talvez Jacó não reaja por causa do afeto pelo seu favorito. Ou ainda,
percebendo o descrédito de José aos olhos dos filhos de Lia e vendo em
suas fofocas uma forma desajeitada de reagir a esta injustiça, ele pode ter
manifestado pela túnica a plena dignidade do filho de Raquel. Fato é que o
narrador fica mudo sobre esses pontos28. Assim, o complexo pano de fundo
da situação problemática escapa ao leitor, como também, sem dúvida, aos
personagens. Talvez seja isso que a concisão do narrador procura sublinhar
aqui. No mais, não são a motivação de José e a de Jacó que interessam ao
narrador, mas as consequências da preferência visível do pai por um de seus
filhos (37,4).

E seus irmãos viram que era a ele que seu pai amava, mais que a todos os seus
irmãos, e eles o odiaram e não podiam falar a ele em paz29.

Aqui, o narrador muda de perspectiva e faz “ver” as coisas com os olhos


dos irmãos. O que eles veem na túnica é que seu pai prefere José a todos,
mesmo que este jogue um jogo que não favorece a paz familiar30.
À primeira vista, os irmãos enxergam bem. Não afirmou o próprio nar-
rador a realidade desta preferência? Contudo, a ordem das palavras na frase
revela que os irmãos percebem de um modo particular o afeto descrito.
Assim, o pronome que designa José, que não é nomeado, é posto em evi-
dência, antes do verbo. O que traduz bem o que os irmãos percebem: o filho
de Raquel é posto à frente, um filho cujo nome eles apagam em benefício
do pronome — primeiro sintoma do ódio, talvez. Em seguida, as duas ex-
pressões “seu pai” e “mais que a todos os seus irmãos” estão justapostas.
Mas, como a preposição comparativa min (“mais que”), que separa as duas
palavras, significa, em primeiro lugar, “longe de”, a frase sugere também a
distância entre o pai e seus filhos que a preferência do primeiro por José
provoca. Além disso, o termo de comparação não é “seus filhos”, como na
observação do narrador (37,3a), mas “seus irmãos”: será que os outros filhos
se sentem menos “filhos”, relegados ao nível de irmãos do filho?31. Além
disso, como o termo “irmãos” lembra o que os torna iguais a José, a

28. Para H. C. White, Narration and Discourse, 241, o narrador não fornece nenhum detalhe
que poderia desviar do essencial, “a paixão subjetiva [de Jacó] por seu filho menor”.
29. Ou “falar dele em paz”, ou ainda “para a/em prol da paz”.
30. T. L. Hettema, Reading for Good, 174, enfatiza que o ódio dos irmãos resulta da combinação
entre o comportamento de José e do amor de Jacó por ele.
31. Nos versículos 33-35, o único filho que parece ser considerado por Jacó é José; ainda mais
vendo que o narrador destacara que os outros são “todos seus filhos e todas suas filhas” (37,35a).

33
José ou a invenção da fraternidade

desigualdade de tratamento por parte de “seu pai” aparece a todos eles como
uma injustiça, uma injúria à fraternidade. Tudo é confirmado pela ordem das
palavras: entre “ele” e “seus irmãos” interpõe-se o amor do pai. A preferência
de Israel é, por conseguinte, um obstáculo à fraternidade, separando os irmãos
uns dos outros32.
Se é assim que os irmãos percebem as coisas, entendemos que se sentem
vítimas da falta de amor de seu pai e se alimentam de ódio: “e eles o odia-
ram…”. Mas quem é que eles odeiam afinal? O objeto direto pronominal
“o” (’oto) pode remeter a Jacó, o último citado, ou a José, mencionado
anteriormente pelo mesmo pronome. O contraste, ressaltado pelo quiasmo,
entre as duas frases “é a ele que amava o seu pai” e “e eles (todos os seus
irmãos) o odiaram” sugere que José seja o objeto; os irmãos retribuem com
seu ódio àquele que é objeto do amor do pai e acentuam, assim, a posição
contraditória de José. Mas isso não exclui que o pai também seja odiado33.
Ele até deveria sê-lo em primeiro lugar, já que está causando a injustiça da
qual os irmãos se sentem vítimas. Porém, se eles estão com ciúmes, é por-
que querem o amor de seu pai; então não podem odiá-lo conscientemente.
O ódio deles é, por isso, desviado para José, aquele que é obstáculo para
o desejo deles, rival afortunado, cumulado do amor do qual eles se sentem
privados34.
O mesmo mecanismo, como vimos, opera na história de Caim, cuja raiva
cai mais sobre Abel do que sobre Deus, embora este a tenha desencadeado
ao preferir o mais jovem e sua oferta35. Monta-se um cenário conhecido.
Especialmente porque imediatamente, como na história de Caim, a palavra
fica doente por causa do ódio. Como Caim, incapaz de falar com seu irmão
(cf. 4,8), os irmãos “não podiam falar a ele em paz”. Expressão curiosa esta
“falar (a) ele” (dabbero). O sufixo de terceira pessoa (-o) pode ser visto como

32. Em hebraico, pode-se mesmo reparar num jogo de palavras graças às ressonâncias: em “(é)
ele (que) amava o pai deles” (’oto ’ahav ’avihem), temos, nas extremidades, os pronomes (ele/deles)
separados pelo amor do pai. No centro, as consoantes ’hv (“amava”) são repetidas, mas com uma
inversão da palavra ’vih[m] (“[seu] pai”): o amor de Jacó por José seria, aos olhos dos irmãos, uma
deformação da paternidade?
33. Ver Hamilton, 409. Sobre o jogo amor/ódio, cf. Gênesis 29,31.33.
34. Westermann, 37, sublinha, com razão, a fineza psicológica do narrador, que mostra bem este
mecanismo de mudança do objeto, frequente no ódio com base no ciúme. Ver também B. Green,
“What Profit for Us?”, 38 e 42.
35. Correndo o risco de antecipar, devo acrescentar que o pai também sofrerá com o ódio de
que José é o objeto: incomodando-se com o bem-amado dele, não o atingem os irmãos naquilo
de que ele os priva: o amor? Em suma, ele será punido naquilo em que peca. Seu sofrimento será
ainda pior, pois deverá aguentar bem mais do que uma vingança direta poderia ocasionar.

34
Capítulo 1 – Família impossível (37,1-12)

um objeto direto (eles não podem falar dele em paz, em vista da paz), ou
como objeto indireto (eles não podem lhe falar…)36. Além disso, como na
frase anterior, o objeto pode referir-se tanto a José como a Jacó, ou, melhor
ainda, aos dois, já que ambos, como se sabe, se prestam a esse jogo de fofocas.
Alimentado, assim, de palavras indelicadas, o ódio acelera a deterioração da
palavra, a ponto de esta perder, gradualmente, qualquer chance de contribuir
positivamente para a construção de relações justas e vivificantes (o šalom)
entre os membros desta família.

Nestes quatro primeiros versículos, o narrador estabelece um quadro


sumário para sua narrativa, mas sobretudo apresenta os personagens. Quanto
ao tempo, a idade de José dá início a uma cronologia relativa ao conjunto
da história de Jacó. Além disso, os versículos 1b-2a especificam o local
(Canaã) e a atividade da família (a vida pastoril). Quanto aos personagens,
trata-se de uma família que tem pai e filhos, que o narrador já introduziu em
episódios anteriores. De repente, porém — e isso é um elemento novo —,
um dos filhos destaca-se do grupo de irmãos, o qual está dividido em dois
(os filhos das esposas e os das servas). Assim, a história começa com três
“personagens”: Jacó, seu filho mais novo, José, e o grupo dos outros filhos,
internamente dividido. Estes são os protagonistas de toda a história até o
fim (veja 50,15-21). No entanto, na perspectiva dos irmãos, parece que só
existem dois grupos: eles mesmos de um lado, José e Jacó do outro37. É
o que aparece particularmente na ambiguidade dos pronomes no final do
versículo 4.
Entre estes personagens apresenta-se de imediato uma crise. Todos estão
envolvidos nela ativamente, mas José e Jacó estão na raiz da crise. No centro
(37,3) está o amor de Jacó, o qual coloca José à margem de seus irmãos e,
por meio da túnica adornada, exibe o status especial de seu preferido, que,
no entanto, é quase o mais jovem dos irmãos. Tanto de uma parte quanto da
outra, a palavra fica em maus lençóis: às calúnias sobre os irmãos que José
leva a Jacó, que não diz nada (37,2b), corresponde a incapacidade dos irmãos
de conceber palavras de paz para José, mas também para Jacó (37,4). Na
verdade, o amor preferencial deste último cria neles um ódio que as palavras
não podem domar e que se alimenta de um ciúme que surge a partir de uma
visão parcial (e tendenciosa) das coisas.

36. Sarna, 256, propôs ler o sufixo como sujeito: “eles não puderam suportar seu discurso
amigável”.
37. Sobre as razões da crise, ver também B. Green, “What Profit for Us?”, 38-39.

35
José ou a invenção da fraternidade

Apesar de cada pessoa ter alguma responsabilidade pela situação tensa,


especialmente Jacó e José, as coisas não são simples38. Jacó tem boas razões
subjetivas para dedicar um amor especial a José, memória viva da mulher
amada, especialmente porque este, como “pastor”, poderia receber o cuida-
do da união fraterna. Quanto aos irmãos, o sentimento de serem vítimas de
injustiça é legítimo, e o leitor facilmente compreende sua reação e mesmo o
ódio. José, por seu lado, ocupa uma posição difícil: o fato de ser o mais novo
e sua posição como servo dos irmãos o colocam em desvantagem, enquanto
o amor do pai e seu papel de “pastor” lhe dão um status bem diferente. Essa
situação difícil reflete-se numa atitude contraditória: pastor a serviço dos filhos
das servas e, talvez, da unidade da família, ele joga junto ao pai que o adora
um jogo ambíguo, pouco favorável à paz.
Assim, desde o início, nesta família, o mal está entrelaçado com o bem,
e é essencial que percebamos isso antes de continuarmos a leitura. Por esse
mal, ninguém é responsável com exclusividade — e menos ainda culpado —,
mesmo que tenhamos a vaga sensação de que, espontaneamente, cada per-
sonagem enxergue antes de tudo seus próprios interesses — dinâmica típica
da cobiça, que as narrativas anteriores apontaram como causa incessante de
trágicos conflitos. Quanto ao sintoma do mal, o mais óbvio é provavelmente
aquele que afeta a palavra, visivelmente adoentada nesta família (37,2 e 4)39.
Mas não podemos esquecer que, no pano de fundo dessa situação tensa, todo
um passivo de conflitos familiares pesa sobre cada um dos personagens e
explica, em parte, sua maneira de ser e de reagir.

Os sonhos de José (37,5-12)


A primeira cena da “complicação” da narrativa agrava a crise familiar
que está latente na exposição que precede. Enquanto os irmãos são incapazes
de uma palavra amiga (37,4b), José fala com eles e conta seus sonhos40. Será
que ele não sentiu desconforto? Será que ele procura dialogar, tentando dar
uma chance à palavra? O narrador não diz nada a respeito, mas mostra de
imediato que, se esse é o propósito de José, sua tentativa é um grande fracasso.

38. Nesse sentido, J.-M. Auwers, Joseph, 9-10. Veja também H. C. White, Narration and
Discourse, 242, que enfatiza que não há aqui “nem herói, nem vilão”, na medida em que “as ações
de cada um são, por sua vez, compreensíveis e repreensíveis”.
39. Veja também J.-M. Auwers, Joseph, 11.
40. Nesta cena dos sonhos e de sua interpretação, ver meu ensaio: A. Wénin, Le Temps, 37-42
(com bibliografia nas notas).

36
Capítulo 1 – Família impossível (37,1-12)

O duplo fato de ter um sonho e falar dele aos irmãos provoca neles mais ódio
ainda, mesmo antes de conhecerem o conteúdo dos sonhos (37,5)41. E as coisas
pioram. O narrador indica isso escandindo a cena dos sonhos pela menção
repetida ao ódio crescente dos irmãos, que, no fim, mostra claramente seu
fundamento: o ciúme.
5
José sonhou um sonho e o relatou a seus irmãos e eles o odiaram ainda mais42.
6
E disse-lhes: “Escutai, pois, este sonho que eu sonhei: 7Eis: enfeixávamos
feixes no meio dos campos, e eis: o meu feixe levantou-se e ficava de pé, e
eis: rodearam-no os vossos feixes e prostraram-se para meu feixe”. 8E seus
irmãos lhe disseram: “Reinarás tu, reinarás tu sobre nós? Ou dominarás tu,
dominarás tu sobre nós?”. E o odiaram ainda mais por causa de seus sonhos
e de suas palavras.
9
E ele sonhou ainda um outro sonho e contou-o a seus irmãos, e disse: “Tive
outro sonho e eis: o sol e a lua e onze estrelas prostrando-se para mim”. 10E
ele o contou a seu pai e a seus irmãos, e seu pai o repreendeu e lhe disse:
“Que é esse sonho que sonhaste? Viremos, viremos nós, eu e tua mãe e os teus
irmãos prostrar-nos por terra para ti?”. 11Os seus irmãos tinham ciúme, mas
o seu pai guardou a palavra. 12E os seus irmãos foram apascentar o rebanho
de seu pai em Siquém.

Para começar, alguns comentários sobre a narrativa. O narrador auten-


tica o fato de que José sonha, mas o deixa ele mesmo contar seus sonhos.
Acompanhando o relato, vemos que José relata o primeiro sonho somente a seus
irmãos (37,5). Depois, ele conta outro sonho primeiro a seus irmãos e eles não
reagem (v. 9). Em seguida, conta-o a seu pai e a seus irmãos (v. 10), que ouvem
assim duas vezes a segunda narração43. O primeiro sonho está num contexto de
trabalho agrícola, o segundo num contexto cósmico. O único elemento formal
comum é a prostração diante de José ou diante de seu feixe44. Mas a forma
dos dois sonhos é diferente, o que poderia sugerir que seu significado não é o
mesmo. Talvez por isso o narrador assinale que o segundo é “outro”.

41. O verbo h.alam, “sonhar”, também pode significar “ser forte, poderoso” (cf. Halat, 307-308;
A. Da Silva, La symbolique des rêves, 63). Que o sonho seja um indício da potência do sonhador
pode explicar por que o simples fato de contar o sonho atiça o ódio dos irmãos (37,5).
42. Literalmente: “E eles acrescentaram ainda mais ódio…” (ver também 37,8b), expressão em
que a forma do verbo “acrescentar” (wayyosifu) contém um parônimo do nome de José (yosef ).
43. Nesse sentido, por exemplo, Sarna, 257.
44. O verbo h.awah no Hishtafel (ou šah.ah no Hitpael), seguido pela preposição le-, é a única
palavra comum às duas narrações, com o hinneh (“eis”) típico das narrativas de sonho com ele-
mentos visuais.

37
José ou a invenção da fraternidade

Se José conta, não é ele quem interpreta. São os irmãos e o pai que
leem os sonhos como premonições, anúncios, ou talvez como a expressão
de um desejo do sonhador. Essas interpretações são enunciadas na forma de
perguntas; os paralelos entre os dois enfatizam a constância desse recurso,
especialmente porque em hebraico os verbos são repetidos, a cada vez, no
infinitivo absoluto. No entanto, devemos estar atentos às diferenças entre as
duas leituras. Para os irmãos, o sonho anuncia a realeza e a dominação de
seu irmão sobre eles, a menos que seja uma expressão de um desejo de José a
este respeito45. Ora, nada impede prostrar-se diante de pessoas que não sejam
rei ou governante: não se prostrou o próprio Jacó diante de seu irmão Esaú
(Gn 33,3)? A interpretação dos sonhos é, portanto, excessiva em relação ao
conteúdo, sinal, sem dúvida, do estado de espírito dos irmãos, que, ao rea-
gir, atestam implicitamente a pretensão que atribuem a José (37,8). Mas não
será que projetam seu próprio medo em sua leitura do sonho?46 Seu questio-
namento, de fato, pode trair uma ironia inquieta em relação ao futuro, mas
também certa agressividade contra este irmão visto como um megalomaníaco.
Por sua vez, o pai retoma o tema do prosternar-se tal qual, interpretando a
figura dos astros que, em função de seu número, representam a seus olhos o
pai, a mãe e os irmãos. O fato de ele repreender José — em hebraico o verbo
ga‘ar indica uma forte repreensão, até com tom de ameaça — mostra, em
todo caso, que leva a situação a sério. Além disso, o narrador logo acrescenta
que ele “guarda” o assunto (37,11b).
Finalmente, o leitor irá notar que, embora as interpretações venham em
forma de perguntas dirigidas a José, ele não responde a elas. Ele não se mete
no diálogo que ele mesmo parece iniciar. Será que ele está confuso quanto
ao significado de seus sonhos? As perguntas retóricas dos irmãos e do pai
tiraram-lhe toda a vontade de responder? Seja como for, esses diálogos frus-
trados confirmam que a doença da palavra é bem real na família, mesmo
naquele que deseja romper o silêncio.

Com base nestas observações, algumas reflexões nos permitirão avançar


mais. A respeito dos sonhos de José, os comentaristas falam frequentemente

45. A expressão com infinitivo absoluto (empregado duas vezes pelos irmãos e uma vez pelo
pai) pode destacar uma ênfase no verbo (“tu reinarás verdadeiramente…”), seja uma nuance modal
do verbo: “desejar” na pergunta dos irmãos (“porventura gostarias de reinar?”, 37,8) e “dever” na
do pai (“deveremos nos prostrar?”, 37,10b). Neste sentido, as traduções de Osty e da TOB/TEB.
46. Nesse sentido, por exemplo, T. L. Hettema, Reading for Good, 174, e R. Pirson, The Lord
of the Dreams, 47-50.

38
Capítulo 1 – Família impossível (37,1-12)

em premonição, anúncio do futuro por parte de Deus47. Pode ter sido um aviso,
tudo bem. E talvez os irmãos e Jacó interpretem desta forma. Mas, se de um
lado temos esta possibilidade, de outro o narrador não dá a entender que Deus
esteja ligado a esses sonhos. Neste ponto, José difere dos sonhadores que o
precederam no Gênesis e que receberam de Deus mesmo o significado de seus
sonhos48. Aqui, o narrador deixa uma pergunta, que a forma interrogativa das
interpretações talvez sublinhe. E se o leitor quiser supor que Deus anuncia o
futuro através dos sonhos de José ele não pode ter certeza disso, já que falta
a confirmação do narrador. Ele deve esperar o que vai se seguir. Ora, neste
começo da narrativa nada lhe permite excluir que os sonhos sejam um simples
reflexo da vaidade do jovem49.
Talvez seja mais interessante explorar a possível ligação entre os sonhos e
a situação de José como descrita pelo narrador em suas primeiras linhas. Para
Freud, como sabemos, o sonho realiza um desejo inconsciente do sonhador — e a
interpretação dos irmãos poderia ir nessa direção, como vimos. Quanto a Resnik,
ele acrescenta que pode expressar “uma questão complexa e problemática, não
totalmente resolvida”50. Qual pode ser o desejo de José na situação delicada que é
a sua neste estágio da narrativa? Lembre-se que José está numa posição complexa.
“Pastor” dos irmãos, ele está, contudo, isolado deles e ameaça sua paz, pois a
preferência que seu pai lhe dedica provoca o ódio de seus irmãos, o que o coloca
em uma posição afetiva difícil. Além disso, se ele ocupa uma posição visivelmente
superior a eles pela eleição que a túnica visualiza, ele está em situação inferior
enquanto mais novo e enquanto servo. Portanto, que desejo pode animar José a
não ser que esta tensão complexa se dissipe, e em sua vantagem?
Se é assim, o primeiro sonho poderia realizar seu desejo de ver-se reco-
nhecido por seus irmãos, na posição que seu pai lhe reserva, como o centro

47. Gunkel, 405, e A. Schenker, Chemins bibliques de la non-violence, n. 17, 154, falando
da revelação providencial. Mas A. Da Silva, La symbolique des rêves, 42, mostra que na Bíblia o
sonho não é necessariamente uma mensagem divina: ver Deuteronômio 13,2.4, Jeremias 23,25.28,
Jó 20,8, Eclesiástico 34,1-8. Ver uma pequena referência em L. A. Turner, Announcements of
Plot, 143-144.
48. Cf. Gênesis 20,3.6 (Abimelec); 28,12-15 e 31,3.10-13 (Jacó); 31,24 (Labão).
49. Na esteira de Von Rad, 359, Hamilton, 410, destaca bem que a ausência de referência a
Deus confere aos sonhos um caráter ambíguo; o mesmo Sarna, 256, e Wenham, 351. L. Alonso
Schökel, Dov’è tuo fratello?, 313 e 317, vai mais longe quando se pergunta se o sonho vem de
Deus ou da fantasia de José. R. Vignolo, La paternità di Giacobbe, 15, atribui sem mais o sonho
à imaginação de José.
50. Para um breve resumo da teoria freudiana, ver P. Gibert, Le récit biblique de rêve, 23-29;
sobre Gênesis 37,2-12, ver 43-55. Eu cito Resnik segundo Gibert, 51. No mesmo sentido, por
exemplo, Sarna, 256.

39
José ou a invenção da fraternidade

do grupo de irmãos51. Mas por que no contexto do trabalho? Provavelmente


porque é aí que José ocupa uma posição inferior, como doméstico dos filhos
das servas, enquanto busca talvez aproximar os dois grupos de irmãos. Assim
se realizaria seu desejo de ser o primeiro, numa posição de força — desejo
frustrado por sua posição de “menino” (na‘ar) —, com o objetivo de unir os
irmãos ao redor dele. O segundo sonho revela talvez um desejo semelhante.
Desta vez, porém, José aparece pessoalmente no meio das estrelas que se
ajoelham diante dele. Como observa Gibert, esta poderia ser a marca de
um narcisismo que ele ainda não superou52. Aliás, não terá a interpretação
do primeiro sonho pelos irmãos estimulado o egocentrismo adolescente que
agora explode?
Mais adiante, deveremos ter esses sonhos na memória e observar se eram
premonitórios e, em caso afirmativo, em que medida. Valerá a pena perguntar
se o desejo de José, que neles parece exprimir-se, se realiza e, eventualmente,
de que forma isso acontece. Será útil também verificar em que o segundo sonho
é “outro” em relação ao primeiro. Será interessante, em seguida, verificar a
pertinência das interpretações dos irmãos e do pai. Com efeito, nada mostra
que eles sejam especialistas neste assunto, enquanto José, que se mostra um
hábil intérprete de sonhos, não se pronuncia aqui sobre o significado de seus
sonhos. Sob estas condições, é bem possível que esta cena tenha a função de
antecipação para a sequência da narrativa. Mas o duplo fato de que se trata de
sonhos não confirmados por Deus, nem pelo narrador, e de que as interpretações
dadas são duvidosas, convida o leitor a ser cauteloso, embora desperte seu
interesse pela continuação da história53. Neste sentido, a forma interrogativa
das intervenções dos irmãos e do pai é particularmente apropriada. Porque,
se há aqui o projeto de um programa narrativo, ele permanece totalmente
misterioso, apesar de que — ou talvez porque — a leitura dos sonhos levanta
mais perguntas do que resolve.

Nesta cena, a reação dos familiares de José também merece um instante


de atenção. O narrador insiste particularmente na reação dos irmãos, tanto
que a reprisa três vezes, prolongando o tema do ódio trazido à tona desde o
versículo 4. Aqui também a narração antecipa o que há de se seguir, porém de

51. Nesse sentido, P. Gibert, Le récit biblique de rêve, 44-45. Quanto ao tipo de trabalho men-
cionado no sonho, o estilo de vida pastoral não impede uma atividade agrícola complementar desde
que o clã esteja fixo, como é o caso aqui (cf. Gn 37,1).
52. P. Gibert, Le récit biblique de rêve, 54.
53. Sobre este ponto, ver B. Green, “What Profit for Us?”, 43-44.

40
Capítulo 1 – Família impossível (37,1-12)

forma mais imediata. Ora, mais do que a constância da reação dos irmãos, o
que impressiona é a aparente insensibilidade de José e de Jacó. Assim, é sur-
preendente que José conte três vezes seus sonhos para seus irmãos, enquanto
o clima só vai piorando. Será que busca sinceramente reatar o diálogo se não
se cala a respeito do que lhe acontece? Será que busca prevenir sua família de
coisas graves que seus sonhos fazem pressentir? Ou estará agindo, ao contrário,
de forma ingênua, numa espécie de inocência sustentada pela consciência do
amor do pai? Será que se contenta em fanfarronar com ingenuidade ou estaria
provocando para tornar-se grande ante aqueles que o desvalorizam, desafiando-
os abrigado na proteção paterna? Poderia ser, no fundo, uma maneira bem
adolescente de procurar autoafirmar-se, para não ser oprimido pela situação
tensa em que se encontra. Quaisquer que sejam as intenções de José, passadas
sob silêncio pelo narrador, o mínimo que podemos dizer é que ele se mostra
pouco sensível às reações sempre mais rancorosas de seus irmãos54. O que é,
pelo menos, uma falta grave do ponto de vista relacional.
Na narração do segundo sonho, o único que lhe é dado ouvir, Jacó tem
uma reação mais complexa. Ele começa repreendendo energicamente José. Ao
colocar suas questões, ele cria certa distância de seu preferido55. Tais reações
traem seu ceticismo? Afinal, como Rashi já destacou, se o sonho menciona
a mãe de José, ele não poderá realizar-se, já que Raquel está morta. Neste
caso, a reação incrédula e suavemente irônica do pai poderia ser destinada
não só a acalmar o ímpeto do filho mais novo, mas também a tranquilizar os
irmãos, mostrando o absurdo do sonho56. Mas não podemos parar aí. O sonho,
na medida em que é entendido como Jacó o entende, levanta efetivamente
um grande problema: que pais se prostrem diante de seu filho constitui uma
inversão na relação das gerações, uma espécie de negação do pai enquanto
pai. Será que, diante deste sonho, Jacó pressente que sua preferência por José
poderia levar a uma negação de sua paternidade? Em todo caso, o que ele
compreende do sonho o faz tomar consciência de um grave problema, e sua
pergunta deixa adivinhar que o que o perturba diz respeito aos relacionamentos
no interior da família.

54. A coisa é sublinhada em particular por W. L. Humphreys, Joseph and his Family, 87.
55. Para além de seu sentido imediato, a primeira pergunta de Jacó pode ser a antecipação de
um intervalo. “Que é esse sonho que sonhaste?” é uma pergunta que acompanhará o leitor em sua
exploração da narrativa, especialmente a partir do capítulo 42. Conferir B. Green, “What Profit
for Us?”, 40-42.
56. Neste sentido, J. Eisenberg, B. Gross, Un messie nommé Joseph, 81-82. R. Pirson, The
Lord of the Dreams, 51-52, questiona também a interpretação de Jacó.

41
José ou a invenção da fraternidade

Será que Jacó ultrapassa um simples pressentimento passageiro? Parece


que sim. O narrador acrescenta “o seu pai guardou a palavra”. A última palavra
(haddavar) refere-se, decerto, às palavras pronunciadas, mas provavelmente
também às reações não verbais, como o ciúme dos irmãos registrado na frase
anterior. Assim, os acontecimentos atraem a atenção de Jacó, que o narrador
chama aqui “seu pai”. Jacó é bem alertado enquanto pai de José, que sua
predileção coloca à parte de seus irmãos. Como se, pela primeira vez, ele
tomasse consciência do problema criado por sua preferência pelo filho de
Raquel. Mas se ele guarda na memória esta “palavra” é porque se sente incapaz
de agir imediatamente. Quando, após a saída dos irmãos, ele toma novamente
a palavra no versículo 13, é para enviar José para longe dele, dando-lhe uma
missão em relação aos irmãos. Existe uma ligação entre a perplexidade de
Jacó e o envio de José?
Quanto ao versículo 12, é geralmente apresentado como introdução do
resto da história. Ele o é realmente. Mas está ligado intimamente ao ódio dos
irmãos e à reação de Jacó ao sonho de José. Aos ouvidos dos irmãos, a resposta
de Jacó quanto ao sonhador deve soar bem fraca e despertar os ciúmes deles
— como ao menos sugere a sequência dos versículos 10-11a. Em seguida, os
dez retiram-se, com o rebanho do pai, deixando José com Jacó. Esta reação
tem algo de positivo: distanciar-se daqueles que odeiam e que os irrita impede
que o conflito exploda e rasgue, irremediavelmente, o tecido da família. Em
todo caso, esta é a solução adotada anteriormente por Abrão com relação a Ló
(13,7-12), defendida também por Rebeca e por Isaac para separar seus filhos
em conflito (27,42–28,5), mantida ainda por Jacó e Labão (31), depois por
Jacó em relação a Esaú (33,12-17). Mas ela é também uma espécie de fuga,
na medida em que consiste em eludir o problema sem o enfrentar.
No entanto, esta partida dos irmãos torna clara a separação da família. Ela
concretiza a crise que não cessou de crescer ao longo desta primeira cena57.
Ao mesmo tempo, marca uma pausa, pois as condições da vida familiar cria-
das pela partida temporária relaxam a tensão. Mas narrativamente a tensão se
mantém: o que será desta família agora dividida?.

57. Até então, na realidade, José era um pastor como seus irmãos (37,2). Nesse sentido, H. C.
White, Narration and Discourse, 247, e A. Bonora, La storia di Giuseppe, 41: “a separação física
(é) o sinal da distância interior”.

42
Capítulo 2

Os desejos de Jacó e de José


(37,12-17)

Depois que a partida dos irmãos esclareceu as coisas na família, a tensão


relaxa um pouco. Jacó está com José em Hebron, e os irmãos, com o gado
em Siquém. O fato de estarem neste lugar tem um significado: é, com efeito,
o lugar onde cometerão um crime odioso (34,25-29) e onde, de acordo com
as declarações de Jacó (34,30), eles causam sua desgraça1. Um retorno a
Siquém não anuncia nada que preste2. O narrador relata então duas cenas
curtas, elípticas: falando de irmãos pastores, de palavra, de paz, de relação entre
Jacó e José, de separação entre este e seus irmãos, elas fazem eco à primeira
cena da narrativa (37,1-4). Constituem, no entanto, um progresso considerável
para a ação, pois conduzem José a uma situação potencialmente arriscada: a
considerável distância do pai protetor — oitenta quilômetros separam Hebron
de Siquém — e junto de irmãos rancorosos e ciumentos.

E Israel disse a José: “Não estão os teus irmãos apascentando em Siquém?


13

Vai, eu te envio a eles”. E ele lhe diz: “Eis-me aqui!” 14E ele lhe diz: “Vai então,

1. Veja Rashi, seguido, por exemplo, por Cotter, 274, que acrescenta que a tríplice reprise do
nome da cidade chama a atenção do leitor.
2. Vocalizando de outra forma o verbo “para pastorear o rebanho…” (lir‘ot), podemos ler “para
infortúnios (lera‘ot) com o rebanho de seu pai em Siquém” — o rebanho simbolizando a família,
de acordo com a imagem do versículo 2.

43
José ou a invenção da fraternidade

vê a paz de teus irmãos e a paz do rebanho, e faze-me voltar uma palavra”.


E enviou-o desde o vale de Hebron e ele veio a Siquém. 15E um homem o
encontrou e eis que andava errante pelos campos, e o homem o interrogou
dizendo: “Que estás procurando?” 16E ele disse: “Aos meus irmãos [é que]
estou procurando; relata-me, pois, onde eles estão apascentando”. 17E o homem
diz: “Levantaram acampamento daqui e ouvi [pessoas] dizendo: Vamos para
Dotã”. E José foi atrás dos irmãos e os encontrou em Dotã.

Israel parece livre de desconfiança quando envia José para seus irmãos. Está
inconsciente, insensível à realidade, como é a opinião de Hamilton?3 Ou, pelo
contrário, está confiante, cego até, como um pai que não pode imaginar que algo
grave realmente poderia acontecer entre seus filhos? Será que age conscientemente,
medindo os riscos que toma? O narrador nada diz a respeito. Uma coisa a notar,
contudo, é a insistente repetição da palavra šalom nas palavras do pai, muitas vezes
traduzidas da seguinte forma: “Vai buscar notícias dos teus irmãos e notícias do
rebanho”. Na realidade, a palavra šalom soa meio mal depois do que o narrador
contou sobre o estado da família nesta fase da narrativa. Mas sua repetição poderia
muito bem indicar qual é, no momento, a maior preocupação de Israel4.
Quanto a José, nota-se que aceita, candidamente, a missão5, mas sua
pressa é surpreendente. Por que ele parte assim, sem nada dizer, rumo a seus
irmãos, longe do pai que o protege do ódio ciumento deles? José é insensível
ao profundo ódio que suscitou em seus irmãos? Seu apego a Jacó o torna in-
gênuo, cego ou confiante? Seus sonhos lhe deram uma segurança tal que está
inconsciente do perigo? Novamente, aqui, nada está explícito na narrativa,
enquanto o leitor se interroga ou se surpreende. Mas se o narrador não dá
destaque às questões é, sem dúvida, porque não importam muito. O essencial,
para ele, provavelmente, passa-se em outro nível, que é preciso trazer à luz.
O mesmo vale para o curioso encontro de José com o homem. Na super-
fície, esta cena não contribui para a intriga: Von Rad a considera uma peri-
pécia muito secundária no curso dos acontecimentos6. Na melhor hipótese,
serve para introduzir um ligeiro atraso no andamento da ação, contribuindo
para aumentar a tensão narrativa. Ela pode sugerir a inexperiência do jovem,

3. Hamilton, 413; ver também Von Rad, 360.


4. O paralelo entre os irmãos e o rebanho recorda o início da história, onde José é o pastor de
seus irmãos; aqui, o rebanho pode ser uma metáfora da família (ver acima, p. 29 s.).
5. T. L. Hettema, Reading for Good, 177, enfatiza a fidelidade a seu pai, mas também inge-
nuidade: se há alguém que não serve para cuidar do bem-estar da família, é José!
6. Von Rad, 360.

44
Capítulo 2 – Os desejos de Jacó e de José (37,12-17)

sua fidelidade à missão ou o perigo que corre ao andar assim sozinho7. Ela
pode reforçar a impressão de ingenuidade que emerge de José: mesmo tendo
um bom motivo — pois acabou não encontrando os irmãos —, não retorna
a Hebron, preferindo vagar em busca deles. No entanto, o fato de relatar a
cena e o modo em que isso se faz têm algo estranho. Por que esse misterio-
so desconhecido, essa rápida conversa? Por que não é José que encontra um
homem e se informa — o que seria natural —, mas o inverso? Dirigidas a
um estrangeiro, suas palavras têm sentido? Como é possível o homem saber
quem são os irmãos e onde eles se encontram?
Os silêncios do narrador e a estranheza de sua narração não se explicam,
decerto, pelas necessidades da história. Sobre o encontro com o homem nos
campos, Hermann Gunkel afirma que o narrador “conta com tal perfeição
que temos o direito de fazer a pergunta sobre a intenção mesmo de pequenos
traços narrativos, sem falar de uma seção que não é tão insignificante”8. Se
a função da passagem não aparece na superfície, será preciso prestar atenção
no nível da narrativa onde o narrador desdobra sua estratégia de comunicação
com o leitor. Pois, visto o sentido da economia narrativa que ele demonstra,
seria surpreendente ele se concentrar numa cena sem interesse maior para o
enredo se não há algum outro motivo para fazê-lo.

José e o desejo de Israel (37,12-14)


Se o narrador abre a cena por meio de uma transição em que o corte que
atravessa a família se materializa geograficamente, é sem dúvida a partir de
lá que se deve entender o diálogo entre Israel e José. Nesta situação de rup-
tura, depois do que aconteceu, qual pode ser o desejo do pai desses irmãos
separados? Lembremo-nos do final da cena anterior: a narração, por José, do
segundo sonho, despertou Jacó, chamando pela primeira vez sua atenção para
um problema de relacionamento envolvendo seu filho amado, problema grave
ligado, sem dúvida, à preferência que ele lhe reserva. Ele também testemunhou
o ciúme dos irmãos (37,11). As palavras que dirigia a José bem poderiam
refletir a nova percepção da situação, que adquiriu “guardando a palavra”,
depois desses acontecimentos, e, consequentemente, sua preocupação com o
bem-estar (šalom) da família.

7. Em relação a estes pontos, ver, por exemplo, Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 317,
Westermann, 40, e Hamilton, 415. Para Fokkelman, Genesis 37 and 38, 160, o tornar-se errante
fez que José perdesse sua confiança, suas certezas: o pastor (ro‘eh) torna-se errante (to‘eh).
8. Gunkel, 406.

45
José ou a invenção da fraternidade

“Não estão os teus irmãos apascentando em Siquém?” (37,13). Em he-


braico, a frase começa com duas palavras que, isoladas, podem levantar a
questão da fraternidade: “Não estão teus irmãos?” (halo’ ’ah.eka). Essas pessoas
que apascentam em Siquém e José, que ficou com seu pai, não são, de fato,
irmãos? Nota-se que Israel não fala aqui de “seus filhos”. O que ele enfatiza
são os irmãos, dos quais José agora está separado, em parte porque sua pre-
ferência por ele o tem colocado à parte do grupo. Mas por trás da solicitude
pelo grupo de irmãos há o desejo de se mostrar pai: um homem que alimenta
o ciúme e a divisão entre seus filhos é realmente um pai? Se é assim, com-
preende-se melhor por que ele envia José a seus irmãos: “Vai, eu te envio a
eles”. O primeiro verbo que ele utiliza (halak) fala de afastamento: enviado,
José deve deixar seu pai, como Abraão, Isaac e o próprio Jacó. É interessante
notar que o narrador denomina Israel aquele que se exprime assim. Desta
forma, retoma o nome usado no versículo 3, onde a questão foi a escolha
preferencial por José, que comprometeu o equilíbrio da família, coisa de que
Jacó agora tem consciência. Não seria, portanto, para compensar esta primeira
escolha e permitir que a fraternidade se constitua como tal que Israel corre o
risco de se separar do filho amado para enviá-lo a seus irmãos?
“Vê o šalom dos teus irmãos e o šalom do rebanho, e faze-me voltar uma
palavra” (37,14a). Os termos da missão que Israel confia a José conduzem
o leitor ao versículo 4, onde está em questão uma “palavra de šalom”, que o
ódio aceso pelo amor de Israel por José tornou impossível; mas também ao
versículo 2, onde José “faz vir” a seu pai boatos maldosos sobre seus irmãos9.
Essas comparações com a situação inicial permitem melhor o alcance da mis-
são de José. Por um lado, seu pai convidou-o a ver e, portanto, constatar que
o šalom, o bem-estar, está faltando entre os irmãos e na família (o rebanho),
mas também a ver como instaurar esse bem-estar. Por outro lado, ele pede para
“fazer voltar”, para o bem do pai, uma palavra (davar), lá onde ela se tornou
impossível; ela deve ser diferente das calúnias que ele trazia no passado e
que contribuíram para a erosão do bem-estar familiar. Em suma, fazer voltar
uma palavra de paz entre os irmãos e, depois, para o pai parece ser a missão
de José10. Neste nível de significado, o leitor perceberá imediatamente, ao
reler, a força antecipatória dessas palavras, onde se enuncia uma vocação que
o enviado cumprirá no resto da narrativa.

9. Nesse sentido, por exemplo, H. C. White, Narration and Discourse, 248.


10. Sarna, 258, nota também que em outros lugares, além de no versículo 14, os temas duplos šalom
e davar aparecem invertidos em relação ao versículo 4. Indício da inversão desejada por Jacó?

46
Capítulo 2 – Os desejos de Jacó e de José (37,12-17)

A missão de José não se inscreve, portanto, fora do conflito familiar, de


que Israel e ele são os primeiros a carregar a responsabilidade. Ao contrá-
rio, ela tem como objetivo inverter a tendência à desagregação da família e
devolver ao šalom suas chances. Mas para alcançar este objetivo não é ne-
cessário neutralizar o fator de divisão e ódio? Não deve Israel então afastar
de si seu bem amado e enviá-lo a seus irmãos, na esperança, confusa talvez,
de que, com eles, ele constitua uma fraternidade da qual Israel seja o digno
pai? Então, José não deixa de ser o eleito. Pelo contrário. Mas a partir daqui
sua eleição encontra-se investida no conflito que ele criou, como se coubesse
ao eleito a incumbência de encontrar uma saída, consentindo em encontrar-se
no centro mesmo da crise.
José, assim como Abrão, deve deixar seu pai para ir a Siquém, primei-
ra etapa cananeia do primeiro eleito (12,6)11. Desde então, porém, Siquém
tornou-se um lugar de ódio e violência para a família. Jacó, com certeza, o
sabe (Gn 34). E portanto é para lá que ele envia José em vista do šalom.
Mas de imediato surge um problema. Assim que Israel lhe diz “Vai!”,
enviando-o, José responde: “Eis-me aqui!”. Claro, sua disponibilidade é total.
Mas enquanto se expressa desta forma José se aproxima de Israel. Ele não
“vai” para seus irmãos; ele adere, antes, à vontade de seu pai12. Como poderia,
nestas circunstâncias, unir-se a seus irmãos? Eis, sem dúvida, por que Israel
repete sua ordem, reforçando-a por meio da partícula deprecatória: “Vai, por
favor” (lek-na’)13. Mas na formulação da sua sequência o narrador sugere que
José continua apegando-se ao desejo de seu pai. “E [Israel] enviou-o desde o
vale de Hebron, e ele veio a Siquém”: nenhum lapso de tempo entre o envio
de Israel e a vinda de José a Siquém. O narrador nem mesmo nota a mudan-
ça de sujeito de um verbo para outro: será que quer insinuar que, nesta fase,
José não existe como sujeito, porque é pura obediência ao desejo de Israel, a
ponto de que, se vem a Siquém, é como se seu pai tivesse chegado? Aliás, o
verbo que descreve o deslocamento sugere que, mesmo cumprindo a ordem,
José não obedece exatamente ao seu pai. Por duas vezes, de fato, Israel lhe

11. O duplo “Vá!” (lekah… lek-na’) em 37,13-14 leva a pensar na ordem divina de Abrão em
12,1 (lek-lekah). Outros, dando novo sentido a 22,2 (lek-lekah), dizem que Jacó passa pelo mesmo
teste de Abraão ao mandar José partir: ver E. Wiesel, Célébration biblique, 140-141. R. S. Wallace,
The Story of Joseph, 12-13, vai na mesma direção, mas a partir do “eis-me” de José que aproxima
de Gênesis 22,1.7 e 11.
12. Da mesma forma, Coats, 270, observa que, ao contrário da cena típica do diálogo de missão,
não há aqui objeções da parte do enviado.
13. Nesse sentido, por exemplo, G. Fischer, Die Josefsgeschichte, 245.

47
José ou a invenção da fraternidade

manda ir (lekah… lek), isto é, afastar-se dele, assim como aconteceu com seus
irmãos (37,12). Mas José “vem”: o verbo que descreve seu movimento (bo’)
indica aproximação, não distanciamento; José não vai, portanto, para longe
de Israel, mas vem para onde pensa que seu pai quer14.
Assim, José coincide com o querer de Israel. Nada de surpreendente nisso:
não está ele, desde o início, ligado ao seu pai por múltiplos laços? Mesmo
seus sonhos parecem revelar sua aspiração a ocupar o lugar central que Israel
lhe concede, como também seu desejo de reconciliar a família. Assumindo a
vontade de Israel, José não faz nada que já não fez. Além disso, enrosca-se
numa contradição: para deixar seu pai, ele deve ir; mas, se vai, ele não se
desliga realmente, porque adere ao desejo dele. Ora, enquanto colado a seu
pai, José poderá encontrar seus irmãos, ele que foi afastado deles exatamente
pelo desejo do pai? Eis o que dá um significado muito mais profundo à errân-
cia que o narrador logo registra: nas condições em que se encontra, José pode
fazer outra coisa senão vaguear?

O homem e o desejo de José (37,15-17)


Enquanto José fica vagueando, um encontro vai lhe permitir reencontrar
seus irmãos. O narrador o insinua pela bela inclusão que enquadra esta breve
cena: “E um homem o encontrou e eis que andava errante … E José foi atrás
dos irmãos e os encontrou …” (37,15a e 17b). Assim, apesar de seu caráter
insignificante, este intermezzo, localizado bem no meio do capítulo, poderia
muito bem ser o ponto culminante da história: ele separa o “José-com-seu-pai”
e o “José-para-seus-irmãos”, o adolescente que conta seus sonhos de grandeza
e a vítima silenciosa mergulhada na infelicidade15. Ele também narra o único
momento em que José se encontra solitário, longe dos outros protagonistas.
Assim isolado, José perambula como se tivesse perdido seus pontos de
referência. Não só porque está encerrado na contradição, como mencionei
acima, mas também porque, até aqui, sempre se situou em relação aos outros:
seus irmãos e seu pai (37,2-4). Mesmo em seus sonhos, nos quais se exprime,
sem dúvida, seu próprio desejo, José existe em função de outros que o colocam
no centro e o honram; ele aspira a ser alguém em benefício de outros — para

14. José chegou a Siquém? O texto não é claro sobre este ponto, porque a maneira utilizada (o
sufixo de direção -ah) indica somente que José tomou essa direção; para esclarecer que José chegou
a seu destino, a preposição be- teria sido mais adequada, como no versículo 17b, onde José encontra
seus irmãos em Dotã (bedotan).
15. Essa ideia foi destacada por J. P. Fokkelman, Genesis 37 and 38, 160.

48
Capítulo 2 – Os desejos de Jacó e de José (37,12-17)

unir a família — e à frente deles — ele é o centro —, mas jamais em benefício


de si mesmo. Compreendemos assim que, em sua solidão, José está perdido.
Incapaz de encontrar quem quer que seja — muito menos a si mesmo —, ele
só pode ser encontrado por um terceiro, que o tirará dessa errância. Eis, para
mim, o essencial desse encontro que o narrador aqui relata.
Um “homem” o encontra, então, e lhe interroga: “Que estás procurando?”16.
Se o que faz José vaguear é a adesão à vontade de seu pai e a procura de um
referencial fora de si mesmo, a pergunta acerta em cheio. Porque ao interro-
gar José sobre o seu desejo, remetendo-o a si mesmo, o homem convida-o a
esquecer o que seu pai quer dele, para exprimir o que ele mesmo quer. Isto
é o que José faz quando responde: “Aos meus irmãos eu estou procurando”.
Note-se que, para expressar seu desejo, José desloca a pergunta: o seu desejo
não é um objeto (“o quê?”) como o šalom ou a palavra que Israel mencionou,
ou ainda a preeminência na família que seus sonhos evocavam. Seu desejo
refere-se a pessoas: seus irmãos. Em seguida, ecoa o “eu” (’anoki) de José:
pela primeira vez na história ele apresenta-se como sujeito capaz de formular
um desejo que seja próprio dele. Certamente, sua aspiração une-se, quanto à
essência, à de Israel, como se a retomasse para prolongá-la. Mas ele a exprime
na primeira pessoa, de forma autônoma, sem qualquer alusão a seu pai17.
Dito isto, não escapará a quem relê estas cenas de transição, cujo teor
altamente antecipatório já vimos, o alcance considerável daquilo que será a
última palavra de José no episódio do capítulo 37. José expressa aí a busca
que o guiará ao longo da história e que se junta ao desejo profundo, divisado
de forma enigmática já no primeiro sonho: unir a família, não em torno do
pai, mas em torno de si mesmo, de forma que os irmãos conheçam o šalom,
mesmo na ausência do pai. Não é algo deste gênero que acontecerá na história
que lemos em 50,15-21? Mas para chegar lá José deverá ir além da vontade
de Israel e seguir seu próprio desejo de fraternidade, aquele que José exprime
na resposta ao homem que o interroga.
Tendo assim expressado sua curiosidade, José pede ajuda: “Relata-me,
pois, onde eles estão apascentando”18. Este pedido de José tem alguma coisa

16. Em hebraico, o tempo do verbo (Yiqtol) denota uma ação que dura (por isso o tempo presente
em francês [*e em português]), mas pode denotar também uma ação futura (“O que tu procurarás?”).
José irá responder conforme o primeiro sentido (particípio ativo).
17. A. Chouraqui, Entête, 397, observa isso expressamente.
18. Ele destaca aqui o uso do verbo “relatar” (higgid), já encontrado nos versículos 5a-6. Aqui,
José relatava a seus irmãos seu primeiro sonho, que o mostra com eles no campo (como em breve
será o caso). Esse relato aumentou o ódio dos irmãos (37,5b). Aqui, com o homem, as coisas se

49
José ou a invenção da fraternidade

de incongruente: como pode um desconhecido saber quem são os irmãos dos


quais ele fala e onde eles se encontram? Na verdade, o pedido de José trai
seu desejo de saber onde estão os irmãos, pois eles não estão no lugar onde
o pai disse que estariam (37,13a). Seu desejo de encontrá-los vai muito além
do desejo de Israel. Em sua resposta, o homem incentiva José a seguir esse
desejo, e o faz com uma infinita discrição, sem dar qualquer ordem ou exprimir
algum desejo — como se não quisesse correr o risco de interferir no de José.
Ele indica apenas que os irmãos devem ter se mudado, uma vez que eles não
estão lá. Se, então, seu desejo é juntar-se a seus irmãos, José deve ir até eles.
O homem dá uma orientação de direção, falando como se tivesse certeza.
Sua frase é vaga em hebraico: “Ouvi [pessoas] dizendo”; em todo caso, ela
não especifica que essas pessoas são os irmãos de José. Em suma, o homem
sugere um caminho, dando um pequeno impulso ao desejo que se exprime no
pedido de José. O recato na cabeça desse homem é admirável: toma o maior
cuidado de não impor nada a seu interlocutor, como se o convidasse, com
toda a simplicidade, a seguir somente seu próprio desejo.
Orientado assim, “José foi atrás dos seus irmãos”. O verbo halak, “ir,
andar”, que se esperou em vão na cena anterior, depois das palavras do pai
(37,13-15), finalmente ressoa. E o nome de José, que não ouvimos mais desde
a interpelação de Israel no versículo 13a, reaparece, desta vez em posição de
sujeito. Assim, o narrador pode observar que aqui José “vai”, afastando-se
realmente de seu pai, e que ele é o sujeito desta ação. Se ele cumpre por duas
vezes a ordem, dada por Israel, de deixá-lo para ir até seus irmãos (37,13 e
14), ele não o faz por causa da injunção — como poderia deixá-lo, se ape-
nas obedece? Certamente, sua escolha realiza o que Israel quer, mas agora
é ao seu próprio projeto que José dá andamento. A intervenção do homem
o cortou assim, simbolicamente, de seu pai, permitindo-lhe aceder ao seu
próprio desejo. E se o narrador se esforça por repetir que José se dirige ao
lugar que o homem indicou, Dotã — uns bons vinte quilômetros ao norte de
Siquém — é sem dúvida para destacar que ele se distancia claramente de seu
pai, indo mais longe do que este havia pedido. José age aqui de acordo com
seu próprio desejo.
Último elemento significativo: quando ele deixa seu pai, José encontra
seu justo lugar entre os irmãos. Como diz o narrador, quando ele “vai”, ele

invertem. Foi José quem pediu que lhe fosse relatado onde estão os irmãos. Já não se coloca no centro
a si mesmo, mas aos irmãos; e sua palavra já não os distancia, mas busca sua proximidade.

50
Capítulo 2 – Os desejos de Jacó e de José (37,12-17)

está “atrás de seus irmãos”, assumindo o lugar do mais jovem19. Eis um efeito
bem indireto quanto à intervenção do homem: seguindo seu próprio desejo e
distanciando-se de Israel, José simbolicamente renuncia ao lugar privilegiado
para onde o desejo paterno o havia promovido. E quando ele, assim, assume
seu lugar, a distância daquele que o privilegiava, José finalmente encontra
seus irmãos. Sem dúvida, ele está pronto para a fraternidade.
Mas quem pode ser esse homem que encontrou José e que lhe permitiu
“se dizer”, expressando seu desejo de fraternidade? Quem é esse que separa
José de seu pai para que siga seu próprio caminho e se junte a seus irmãos?
Em virtude de sua intervenção, discreta e eficaz, não teria ele alguma ligação
com o Deus que o narrador põe em cena desde a primeira página do Gênesis,
um ser cuja palavra “faz ser”, e com isso opera separações, de forma que
possam surgir relações justas20? Seria este “homem” Deus? Seu enviado?
Não é proibido pensá-lo, e os exegetas judeus não deixaram de fazê-lo21.
Este personagem misterioso, então, assemelhar-se-ia aos “homens” que se
aproximaram de Abraão em Mambré (Gn 18,1) e ao “homem” que luta à
noite com Jacó na beira do Jaboc (32,25). Nessas cenas, é verdade, a iden-
tificação com Deus é feita pelo narrador (18,1) ou pela pessoa em questão
(32,31). Mas precisamente por causa destas cenas o leitor do Gênesis pôde
familiarizar-se com figuras enigmáticas deste tipo, que intervêm para acom-
panhar as viradas maiores no percurso dos patriarcas. O narrador pode então
presumir que o leitor tem o conhecimento suficiente para adivinhar, aqui,
de quem se trata. E se isso não basta outro indício pode ajudá-lo. Para
introduzir a cena, o narrador usa a frase que aparece em 16,7 para iniciar
um encontro semelhante. Quando, depois de fugir de Sarai, Agar fica va-
gando pelo deserto, o mensageiro divino “a encontra”, da mesma forma
que o homem vai fazer com José, perguntando o que está fazendo ali, e lhe

19. D. Nocquet, Genèse 37, 17, sugere que a expressão hebraica “ir atrás” “marca o compromisso
de José em relação a seus irmãos” nesse lugar da narrativa.
20. Sobre esta imagem de Deus no Gênesis, ver A. Wénin, Au delà des représentations, “Dieu”,
34-41.
21. Para Rashi, por exemplo, é o anjo Gabriel; para outros, Rafael. Distinção significativa, uma
vez que Rafael é o anjo do amor e da cura, enquanto Gabriel é o da força, do rigor. Assim, se Deus
provoca o reencontro dos irmãos, é em nome de seu amor e de sua exigência? Ver J. Eisenberg, B.
Cross, Un Messie nommé Joseph, 116-118, e A. Chouraqui, Entête, 397. R. Alter, Genesis, 211,
mostra reservas quanto a esta identificação. Janzen, 150, fala de um “sinal anônimo da presença
oculta de Deus ao lado de José, numa viagem que afunda mais e mais no perigo”; ele refere-se
também ao sonho misterioso de Jacó no momento em que sai da casa de seu pai para escapar da
vingança de seu irmão (cf. 28,10-20).

51
José ou a invenção da fraternidade

permite dizer “eu” (’anoki, 16,8), antes de orientá-la para seu próprio
destino22.
De qualquer forma, após a interpretação proposta, ninguém pode negar
o caráter providencial do encontro, que permite a José ir para seus irmãos
em Dotã e, mais tarde, reencontrá-los no šalom, para além do crime. Se o
narrador deixou intocado o enigma da identidade do personagem, talvez seja
para provocar o leitor a correr o risco de uma interpretação ou para deixar a
um personagem da história o cuidado de falar um pouco mais a respeito.

Uma observação atenta desse pequeno intermezzo narrativo aparentemente


anódino, em 37,12-17, mostra seu alcance determinante tanto para a economia
de toda a narrativa, antecipada com discrição e eficácia, quanto para a evo-
lução do personagem de José, decisiva para o futuro. Se essas poucas linhas
não fazem avançar a intriga, elas fornecem, em compensação, importantes
chaves de leitura para o resto da história: o desejo de šalom de Israel na si-
tuação conflitiva pela qual passa sua família e a missão que confia àquele
entre seus filhos que seu amor elegeu; o profundo desejo de fraternidade no
coração de José, desejo esboçado nos sonhos, ainda que de modo ambíguo,
e seu acesso à autonomia, que faz dele um homem que “deixou seu pai” e
que, forte por causa de um desejo afirmado, parece disposto correr o risco
da aventura da fraternidade.

22. Eu acrescentaria que o desconhecido que encontra José também surpreendeu os irmãos
discutindo e tomando a decisão de se encontrarem em Dotã (37,17). É indiscreto ou onisciente?

52
Capítulo 3

Os irmãos e a venda de José


(37,18-30)

Esta longa cena da agressão e da venda de José muitas vezes é considerada


complexa e confusa. A intervenção de dois irmãos, Rubem e Judá, a presença
de dois grupos de comerciantes, os ismaelitas e os madianitas, bem como
alguns problemas literários fazem os comentaristas procurar soluções pelo
lado da história do texto1. Porém, deve ser possível ler a narrativa tal como
se apresenta. Desde o início, de fato, o narrador mostra-se bom contador de
histórias e o leitor dificilmente o vê tornar-se, de repente, incoerente ou con-
traditório. Se a história segue aqui um rumo mais complexo, talvez seja
precisamente porque o enredo se complica2; e então cabe ao leitor mostrar
sua inteligência.

1. Von Rad, 360, por exemplo, pressupõe o entrelaçamento das duas narrações, enquanto
Westermann, 40, inclina-se para a inclusão de uma variante. Para L. Alonso Schökel, Dov’è tuo
fratello?, 318-319, que se situa numa perspectiva sincrônica, trata-se de uma cena dupla, de acordo
com uma técnica frequentemente utilizada pelo narrador nesta história.
2. Com outros, como A. Schenker, Chemins bibliques de la non-violence, 17-20, J. P. Fokkelman,
Genesis 37 and 38, 160-165, opta por ler o relato num só fôlego e apela para sua unidade a partir
do estudo estrutural dos versículos 18-33, cujo final corresponde ao desenlace.

53
José ou a invenção da fraternidade

Complô inicial e intervenção de Rubem (37,18-22)


Após uma cena esclarecedora, na qual, levantando uma pontinha do véu,
deu a entender os desafios da história, o narrador continua sua narrativa e
responde à curiosidade do leitor, que, desde a partida de José, se pergunta
como seus irmãos vão recebê-lo. Antes disso, ele muda a perspectiva de sua
narrativa, colocando o leitor ao lado dos irmãos que veem José chegar. Aliás,
ele realiza um breve flashback em relação ao versículo anterior: com efeito,
ao encontrar seus irmãos, José parecia ter chegado ao final de sua viagem,
mas os irmãos ainda estão longe dele3. Assim, depois de ter constatado que
“José os encontrou em Dotã…”, o narrador continua (37,18-20):
18
… e viram-no de longe, e, antes que ele se aproximasse, tramaram contra
ele para fazê-lo morrer. 19E diziam cada qual a seu irmão: “Eis o senhor dos
sonhos; é ele que vem! 20E agora, ide, matemo-lo e joguemo-lo num dos bu-
racos4, e diremos: ‘um animal feroz o devorou’, e veremos o que serão seus
sonhos!”.

Se José ainda está longe de seus irmãos, eles têm tempo para pensar no
que fazer. Mas por meio de que o reconhecem? O narrador não o diz, reser-
vando a surpresa para o momento do reencontro (37,23). Aí vamos ficar sa-
bendo que José veste a túnica adornada que o torna tão reconhecível a seus
olhos e que, precisamente, o distancia deles a ponto de despertar-lhes ime-
diatamente o ódio.
Com efeito, desde que o enxergam, começam a tramar seu assassínio5. O
próprio narrador o diz, antes de levar ao conhecimento o pérfido projeto, desta
vez em forma cênica. Transpira aqui o ódio acumulado contra José. Uma
agressividade, também, que reflete sem dúvida a violência da qual eles se
sentem vítimas e que talvez explique uma discreta mudança na narrativa. Até
agora, de fato, o narrador sempre usou a palavra “seus irmãos” para designar
os dez em relação a José6. Isto já não acontece depois do complô, exceto no
versículo 23, onde, prolongando o versículo 17, a chegada do jovem é contada

3. Ver A. Bonora, La storia di Giuseppe, 41: “Ele procura os irmãos, mas encontra inimigos
mortais”.
4. O primeiro sentido deste termo, aqui, é “cisterna”, mas eu selecionei, deliberadamente, um
termo mais geral, em razão do sentido metafórico do termo hebraico. Veja também 40,15.
5. O verbo nak-al é pouco utilizado. No Qal, significa “ser astuto, enganador” (Ml 1,14); no
Piel, “enganar” (Nm 25,18); no Hitpael, “intrigar, agir com perfídia” (aqui e Sl 105,25), supondo
uma tramitação.
6. Ver os versículos 2, 4 (bis), 5, 8, 9, 10, 11, 12, 17.

54
Capítulo 3 – Os irmãos e a venda de José (37,18-30)

a partir da perspectiva dele. O narrador não usará mais o termo “seus ir-
mãos”, a não ser para falar das relações internas entre os dez, sendo José
excluído desta fraternidade7. Dito isto, as palavras trocadas entre irmãos (“cada
qual a seu irmão”) revelam, simultaneamente, o motivo do complô, a opor-
tunidade que estão a fim de aproveitar, o projeto do assassínio, a intenção de
agir em segredo e também o objetivo almejado.
As palavras que os irmãos se dizem revelam o distanciamento que o
narrador acaba de registrar: não é seu “irmão” que veem, mas o “senhor dos
sonhos” (ba‘al hah.alomot). Eis o que realmente os distancia dele: os sonhos. A
formulação é cheia de ironia ou sarcasmo em relação a José. A palavra ba‘al
tem, de fato, dois sentidos principais: proprietário e senhor. Assim, José não
só é aquele que tem sonhos e deles se beneficia; ele é também, em seus so-
nhos, aquele que se vê como senhor8. Eis o que evoca, em poucas palavras, o
motivo do complô: o ódio e a inveja, cuja agravação tem a ver com os sonhos
de José (37,5-11), o senhor dos sonhos, “ele que vem”. Aquele que os irmãos
veem chegar é o mesmo que representa para eles uma ameaça em razão de
tais sonhos. Que oportunidade! O preferido do pai afastou-se daquele que, até
lá, o protegia do ódio deles. Agora, ele está aqui: o que poderia impedi-los
de desenfrear o ressentimento deles?
Desta forma, eles fomentam seu projeto assassino: matar José e dar um
sumiço em seu cadáver, jogando-o numa cisterna; depois, esconder o crime,
forjando uma versão “oficial” de seu desaparecimento sem vestígios, numa
dupla dissimulação: a do corpo e a da verdade. Mas para quem inventariam
essa fábula de José devorado por um “animal feroz” senão para Jacó? Este,
portanto, seria implicitamente o alvo do complô, e isso indica que eles têm
ódio também dele e que a palavra está realmente doente nessa família, visto
que os filhos pensam em utilizá-la contra seu pai. Mas acontece, muitas vezes,
que a mentira revela algo da verdade que procura esconder. Porventura não
é, neste caso, um animal feroz que leva os irmãos a matar José? Falando com
Caim (4,7), Deus compara seu ódio ciumento, que o leva a matar o irmão, a
um animal agachado9 que domina o assassino transformando-o numa fera.
Homo homini lupus… Se é assim, ao pôr seu crime na conta de uma fera, os

7. Veja os versículos 19 (entre si), 26 e 27 (em relação a Judá, com 38,1), 30 (em relação a
Rubem).
8. Deve-se notar aqui que o verbo “sonhar” (h.alam) conota o poder sexual (ver acima p. 37, nota
41). José seria o “marido” nos sonhos, que possui o “falo”, cuja representação é o feixe erguido
(P. Gibert, Le récit biblique de rêve, 45).
9. A este respeito, ver, por exemplo. A. Wénin, Adam et Ève, 5, ou Caïn, 46-48.

55
José ou a invenção da fraternidade

irmãos admitem, sem saber, que é a inveja que os torna ferozes contra
seu irmão10, a ponto de quererem matá-lo e fazê-lo desaparecer por completo.
Além disso, jogar o corpo num buraco (bor) equivale a sepultamento desrespei-
toso, insolente. O verbo é, efetivamente, utilizado diversas vezes nesse sentido11.
O buraco onde os irmãos querem jogá-lo representa, logo, o túmulo.
Quanto ao objetivo do complô, é claro. Voltando à questão dos sonhos
— um motivo decididamente forte nestas palavras —, os irmãos pretendem
desmentir definitivamente seu augúrio: “veremos o que serão seus sonhos”.
Para impedir que se realizem — portanto, para se libertar da escravidão que,
em seu entender, anunciam —, a solução radical é fazer desaparecer José12.
Se ele morrer, eles não correrão mais o risco de ter que prestar homenagem a
este “senhor”. Se eles o mergulharem na escuridão do poço, como as estrelas
se inclinarão diante dele?13 Na realidade, o narrador prepara-se para dirigir
contra os irmãos a ironia da qual eles fazem prova no encontro com José14.
Pois a tentativa deles de anular os sonhos, que consideram uma predição fatal
para eles, abrirá o caminho para a realização desses sonhos num sentido que
fica a ser especificado. Um dia, os irmãos “verão o que serão os sonhos” de
José — e que ele será, mesmo, um “senhor”. Mas para que isto aconteça é
preciso que o projeto assassino não vá para a frente. É isso que conta o resto
da narrativa, onde é relatada uma dupla modificação do projeto inicial, por
Rubem em primeiro lugar, por Judá em seguida.

A intervenção de Rubem representa, sem dúvida, uma virada na narrativa.


Mal os irmãos voltam ao silêncio, o narrador sinaliza que um entre eles não
concorda com o complô: “E Rubem ouviu”. O narrador sugere com isto que
o mais velho do grupo não está de acordo com aqueles que já se congratulam
com a vingança. Em vez disso, Rubem traz uma proposta da qual o narrador
imediatamente anota o caráter libertador15. O discurso de Rubem é composto
cuidadosamente. A estrutura da passagem coloca em evidência, de ambos os

10. Neste sentido, J. Eisenberg, B. Gross, Un Messie nommé Joseph, 129-130.


11. Veja 2 Samuel 18,17 (Absalão), 2 Reis 13,24 (anônimo) e Jeremias 41,9 (vítimas). Além
disso, em Gênesis 21,15 (para Ismael) e em Jeremias 38,6 (para o profeta), o mesmo verbo descreve
o fato de lançar uma pessoa viva no lugar que se supõe ser seu túmulo; como será o caso de José
(cf. Hamilton, 417).
12. Para L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 318, a única maneira de neutralizar o mundo
enigmático dos sonhos e dos destinos é essa contemplada pelos irmãos.
13. Cf. T. L. Hettema, Reading for Good, 177.
14. Nesse sentido Gunkel, 407, que enfatiza que este motivo é comum na literatura popular.
15. Essas palavras são na verdade um resumo que antecipa o conjunto da proposta de Rubem:
J.-L. Ska, Sommaires proleptiques, 525-526. Ver Wenham, 253-254.

56
Capítulo 3 – Os irmãos e a venda de José (37,18-30)

lados do centro, a intenção predominante de Rubem quando interfere no plano


tramado pelos outros: ele quer livrar José da morte e devolvê-lo a seu pai. No
centro, está o anúncio, propriamente, de seu plano alternativo, no qual retoma
parte do primeiro, porém sutilmente modificado.
E Rubem ouviu e livrou-o da mão deles,
21

e disse: “Não lhe golpeemos a vida [lit. alma]!”


22
E Rubem disse-lhes: “Não derrameis sangue [’al-tišpeku-dam].
Lançai-o no buraco que está no deserto,
mas uma mão, não a mandeis contra ele [’al-tišleh-u-vo]”
— a fim de livrá-lo da mão deles
para fazê-lo voltar16 a seu pai.
C. Westermann observa, acertadamente17, que as três sugestões negativas
que Rubem direciona a seus irmãos vão, claramente, no mesmo sentido,
o que o narrador destaca repetindo, no início e no fim do discurso, a expressão
“livrá-lo da mão deles”. “Não lhe golpeemos a vida!… Não derrameis san-
gue!… Não mandeis a mão contra ele!”: a insistência de Rubem bate bem na
mesma tecla: livrar José de uma morte imediata. Nesta fase, isso é capital.
Mas é preciso que um irmão — o mais velho, neste caso — faça-se “guardião
de seu irmão”, como bem disse Alonso Schökel18. Além disso, a passagem do
“nós” para o “vós” na segunda palavra de Rubem indica claramente que este
se dissocia do grupo, embora falando inicialmente em “nós” talvez procure
lograr os outros por meio de uma captatio benevolentiae.
Esse distanciamento não transparece apenas na linguagem. A mentira e
a dissimulação, que estavam presentes no complô dos irmãos, não estão au-
sentes do discurso de Rubem, porém voltadas contra aqueles que as querem
utilizar. O que os outros devem entender, ao ouvir Rubem, é que, em vez de
assassinar José levantando a mão contra ele, é melhor jogá-lo num buraco
sem que precisem derramar sangue, tornando-se culpados de uma violência
que clamaria por vingança19. Exteriormente, portanto, Rubem rejeita apenas
a primeira parte do plano, já que as três sugestões negativas nada mais fazem
que contestar o “matemo-lo”. Quanto ao resto, ele parece concordar com o
projeto; dando eco a seus irmãos, aconselha: “Lançai-o no buraco que está
no deserto” (centro da simetria, v. 21-22).

16. Ou “fazendo-o voltar”.


17. Westermann, 41.
18. L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 319.
19. Veja Gênesis 4,10 e 9,5-6. Assim: Hamilton, 418.

57
José ou a invenção da fraternidade

Entretanto, mudanças sutis afetam o modo em que Rubem retoma o plano


coletivo e traem de alguma forma seu próprio projeto oculto. Em suas pala-
vras, com efeito, a indicação “naquele buraco que está no deserto” substitui o
vago “um dos buracos” de que falavam os outros. Esta precisão prepara o que,
graças à sua onisciência, o narrador revela em seguida a respeito da intenção
de Rubem: ele agiu “a fim de livrá-lo das mãos deles para fazê-lo voltar a
seu pai”. Assim, enquanto os outros vão acreditar que José está morrendo
lentamente em um buraco distante, Rubem vai aproveitar o isolamento do
lugar que designou para resgatar seu irmão e reconduzi-lo a Jacó20. Assim, a
quebra do acordo dos irmãos e a mentira inteligente de Rubem vão impedir
que a negação da fraternidade e a mentira astuta dos outros espalhem morte
e desgraça. Tudo se passa como se a salvação da fraternidade periclitante
devesse passar por outras faltas de solidariedade, por outras palavras enga-
nosas… Eis o que o narrador, provavelmente, pretende enfatizar, apelando
aqui à sua onisciência.
Mas o que motiva Rubem a querer salvar José sem o conhecimento de
seus irmãos? Segundo o narrador, sua preocupação pelo pai é determinante21.
Rubem, de fato, é o mais velho do grupo. Como tal, ele substitui o pai em sua
ausência, é responsável pelo grupo diante dele e deve defender os interesses
dele se ameaçados. Este é o papel que ele assume ao querer ajudar José22. No
entanto, ainda há outro motivo para querer salvar seu irmão mais novo, que o
suplantou na qualidade de mais velho: o sentimento de culpa23. Como o leitor
sabe, logo após a morte de Raquel, Rubem violentou a escrava dela, Bala, que
era concubina de Jacó. Seu pai descobriu-o e guarda ressentimento (35,22; ver
49,4). Seu lugar de primogênito, portanto, arrisca escapar-lhe. Mas quem sabe: se
por acaso trouxesse José são e salvo para Hebron poderia salvar seu lugar?
Dito isso, enquanto o narrador apresenta a intenção secreta de Rubem,
o leitor pode se perguntar se ela não é uma maneira errada para realizar o
desejo profundo de Jacó. O que ele pediu a José é que fizesse voltar a ele não

20. Sobre este ponto, ver também R. Pirson, The Lord of the Dreams, 64, Hamilton, 419, e
já Gunkel, 407, que acrescenta que, para os irmãos, a cisterna isolada é ruim para José, porque
ninguém vai ouvi-lo.
21. Já presente em Esaú (27,41), este desejo de poupar o velho pai está claramente no centro
do discurso de Judá no capítulo 44.
22. Nesse sentido, já Gênesis Rabba e Rashi, retomados por A. Berlin, Poetics and Interpretation,
121, ou J. P. Fokkelman, Genesis 37 and 38, 162. Observe a expressão “seu pai”, onde o possessivo
refere-se a José, mas também a Rubem.
23. Isto é sugerido, por exemplo, por J. S. Ackerman, Joseph, Judah, and Jacob, 99-100, J.-M.
Auwers, Joseph, 14, e Turner, 162.

58
Capítulo 3 – Os irmãos e a venda de José (37,18-30)

um filho, mas uma palavra no tocante ao šalom entre os irmãos24. A intenção


de Rubem, certamente, não atende a esse desejo. Ela visa, antes, ao restabe-
lecimento do statu quo, quando José estava com seu pai, separado de seus
irmãos. Adaptada à situação anterior, ela não o é à situação que se criou após
a partida dos irmãos. Também do lado de José, as boas intenções de Rubem
soam um tanto falsas depois do encontro com o homem. Reconduzir José a
seu pai, isso seria realmente livrá-lo? Não seria antes reconduzi-lo para trás e
impedi-lo de realizar seu próprio desejo, o de encontrar irmãos? No versículo
30, Rubem fala de José chamando-o de a criança (hayyéled), como se não
tivesse saído da dependência de seu pai.

Chegada de José e proposta de Judá (37,23-27)


E quando José veio a seus irmãos, eles o despojaram de sua túnica, a túnica
23

adornada que estava nele, 24e eles o pegaram e o lançaram no buraco, e o buraco
estava vazio, não havia água nele. 25aE instalaram-se para comer o pão25.

À chegada de José, os irmãos, sem adivinhar a intenção de seu irmão mais


velho, colocam seu plano em ação (37,24). Mas o leitor não o fica sabendo
de imediato. O narrador, com efeito, dá prioridade a um ato altamente sim-
bólico: os irmãos arrancam de José sua túnica. Antes de analisar esse gesto,
constatemos como a cena é relatada. O narrador considera os fatos sem se
preocupar com José e com sua reação26. Ele registra as ações dos irmãos com
uma objetividade fria, sem insistir minimamente em seus sentimentos de ódio
ou na violência do tratamento deferido a José, violência que se esperava de-
pois dos propósitos assassinos deles27. Mas o narrador se previne de destacar
qualquer aspecto pessoal ou afetivo, atendo-se apenas a descrever uma série
de gestos de forte alcance simbólico.
Quando José chega ao termo de seu caminho (cf. 37,17b), “eles o despo-
jaram de sua túnica, a túnica adornada que estava nele”. Ele se encontra assim
sem a vestimenta que sinaliza sua identidade singular e sua posição no seio do
grupo familiar28. De fato, sinal do amor do pai, a túnica visualizava seu lugar

24. Cf. 37,14, onde Jacó utiliza o mesmo verbo šuv, também no Hifil.
25. Literalmente “para comer pão”; esta expressão volta em 43,25 e 32.
26. Lá irá mais longe com os irmãos: ver 42,21.
27. Eu não vejo aqui traço algum da “brutalidade horrível da narração”, da qual fala Von Rad,
316. Se o fato é violento, a narração que o narrador faz não o é de forma alguma.
28. A. Da Silva, La symbolique des rêves, 76, enfatiza bem este aspecto do simbolismo das
vestes. Veja também Brueggemann, 365.

59
José ou a invenção da fraternidade

privilegiado entre os irmãos assim como o status especial que é evocado em


seus sonhos, fonte do ódio dos irmãos. O primeiro gesto deles consiste, pois,
em privar José do sinal desse status especial. Longe do pai, entre os irmãos,
não há eleição que se confirme! Se o narrador narra o gesto de forma fria,
talvez seja para convidar o leitor a olhar de forma objetiva. Afinal, se é para
construir uma fraternidade comprometida pela predileção do pai por José, não
é necessário que este seja despido de sua túnica, para perder a posição privi-
legiada que gera ódio, ciúme e rupturas entre os irmãos? Não deve o eleito se
tornar igual a seus irmãos, inferior até, ainda que seja só por um tempo?
Neste sentido, uma curiosa repetição do narrador chama a atenção: “sua
túnica, a túnica adornada que estava nele”. À primeira vista, a redundância
serve, sem dúvida, para identificar a túnica que Israel deu a José, enquanto
a proposição relativa assinala que este a está usando naquele dia, provocação
para os outros que, por este sinal, o reconheceram de longe. Mas, aparente-
mente sem importância, a repetição poderia esconder um significado mais
profundo e mostrar que a túnica adornada só podia ser a de José (“sua túnica”),
porque alguém a pusera “nele”. Seria uma forma discreta para lembrar que o
status especial de José foi, de alguma forma, imposto por Israel. E neste caso
arrancar de José sua túnica é uma forma paradoxal de libertá-lo daquilo que
lhe resta da influência de seu pai. Se é assim, o gesto de arrancar a túnica é
paradoxalmente dar um passo em direção à fraternidade e, também, à reali-
zação daquilo que, desde os versículos 13 a 17, o leitor conhece como desejo
profundo de Israel e de José.
No momento, porém, uma vez despojado da túnica, José encontra-se
reduzido a uma nudez frequentemente associada, no Primeiro Testamento, à
morte e à maldição (Os 2,5; Dt 28,47-48; Ez 16,39), mas também à escravidão
e à deportação (Is 20,3-4). De fato, esta sorte não tardará a ser a de José, que,
depois de viver uma morte simbólica no buraco onde é jogado, será deportado
como escravo ao Egito29. Na verdade, ele é pego e jogado “no” buraco, com o
artigo referindo-se, claramente, ao buraco indicado por Rubem (Gn 37,22a).
Então, o narrador introduz uma informação que permite saber um pouco mais
sobre o porquê de Rubem ter designado aquele buraco: a cisterna está vazia,
informa-nos o narrador, insistindo no fato de ela não conter água (37,24b).
Uma cisterna vazia pode provavelmente servir de prisão — o mesmo termo
é usado com o sentido de “calabouço” em 40,15 e 41,14. No pensamento de
Rubem é bem isso que deve acontecer: ele tem em vista uma prisão provisória

29. Ver A. Da Silva, La symbolique des rêves, 76-81.

60
Capítulo 3 – Os irmãos e a venda de José (37,18-30)

num buraco que protegerá José da violência dos outros. Quanto à insistên-
cia do narrador, ela se compreende. O fato de a cisterna estar vazia permite
que José não se afogue, mas o fato de que não há água sugere que aconteça
uma intervenção salvadora urgente, pois José poderia rapidamente morrer de
sede.
Ora, assim como em relação à túnica, a insistência do narrador pode su-
gerir um significado simbólico. Uma cisterna vazia é também, no Primeiro
Testamento, um lugar simbólico da morte, e da morte dissimulada30. Este
sentido provavelmente prevalece na mente dos irmãos enganados por Rubem,
mas também na de José, que deve temer a morte. No entanto, a cisterna o
protege da morte e lhe permite permanecer vivo, ao contrário do que previa
o plano inicial dos irmãos. Este lugar de morte é, paradoxalmente, um lugar
de vida para José — paradoxo que marcará também a continuação desta his-
tória (Gn 39–41)31. Entretanto, aos olhos dos irmãos, José está bem morto.
Na realidade, porém, a partir do momento em que eles o veem chegar, ele é
considerado apenas um objeto: objeto de seu ódio assassino, objeto que não
conta mais32. Sem dúvida, esse é mais um sinal da morte simbólica de José,
e a continuação do episódio confirmará isso, já que aí José só aparece como
objeto das ações e das palavras dos outros personagens.
Além disso, a insensibilidade dos irmãos é ainda evidenciada quando o
narrador diz que, uma vez José lançado na cisterna, “instalaram-se para comer
pão” (37,25a). Indiferença sem remorso?33 Cinismo cruel? Sinal da boa cons-
ciência das pessoas que acreditam ter colocado um fim à injustiça? Pacto selado
pelo pão? O narrador nada diz. É possível que mire um alvo mais distante
com esta primeira menção ao pão. Enquanto José está aí, os irmãos têm pão
para comer. Um dia, eles deverão ir até ele para encontrar com que fazer o
seu pão e o comerão com ele (Gn 42–43). Aqui, o tema é apenas esboçado,

30. Ver A. Da Silva, La symbolique des rêves, 81-82: o buraco é uma prisão em Isaías 24,22 e
Jeremias 38,6, o local da morte (muitas vezes em paralelo com šeol) em Salmos 28,1; 30,4; 88,4-5;
143,7, Provérbios 1,12; 28,17, Isaías 14,15.19; 38,18, Ezequiel 26,20; 31,14.16; 32,18.23-25.29.30.
Esses são os dois sentidos bem representados pelo francês “trou” [*e pelo português “buraco”].
31. Nesse sentido, D. A. Seybold, Paradox and Symmetry, 61, seguido por B. Green, “What
Profit for Us?”, 48.
32. Além disso, o leitor vai aprender que José chorou (42,21). Mas os irmãos são insensíveis
a esses gritos, e o narrador, que conta aqui as coisas a partir deles, não diz nada. Como disse
Westermann, 41, “faz parte do crime ignorar o sofrimento e as súplicas da vítima”.
33. A coisa é sublinhada por muitos. Para L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 319, é,
sobretudo, um sinal de que eles são aliviados de um fardo: o de seu irmão ou o de ter que cometer
um assassinato.

61
José ou a invenção da fraternidade

mas retornará, com força, mais tarde34. No imediato, porém, acontece algo
imprevisto que irá mudar o curso dos acontecimentos (37,25b).
E eles levantaram os olhos e viram, e eis, uma caravana de ismaelitas vinda
de Galaad, e seus camelos carregando goma, bálsamo e ládano; eles andavam
para fazer descer [isso] ao Egito.
Enquanto os irmãos estão comendo, uma caravana passa pela rota inter-
nacional que liga a Síria ao Egito, através de Galaad e da planície de Jezreel,
onde está localizado Dotã. O aparecimento dessa caravana dá uma ideia a Judá:
tirar vantagem da situação com a venda de José. Ele propõe a seus irmãos
que modifiquem mais uma vez o projeto comum.
E Judá disse a seus irmãos: “Qual a vantagem se matarmos nosso irmão e
26

cobrirmos o seu sangue? 27Ide, vendamo-lo aos ismaelitas, mas nossa mão,
ela não esteja sobre ele, pois é nosso irmão, nossa carne”. E os irmãos
ouviram.
A proposta de Judá se enxerta no que ele entendeu do projeto alternativo
de Rubem: em sua opinião, este plano consiste em eliminar José deixando-o
morrer no buraco, de modo que não derrame sangue. É este plano que Judá
quer modificar — mas também podemos creditar-lhe a salvação de José35.
Judá age sem segunda intenção em relação a seus irmãos, não tendo nada a
esconder, ao contrário de Rubem36. Sua linguagem é direta, dando nomes aos
bois: o que eles estão fazendo é nada mais nada menos que matar seu próprio
irmão, metendo a mão nele, enquanto escondem sua cara diante dessa reali-
dade, dissimulando o crime, inclusive a seus próprios olhos (“se cobrirmos
seu sangue”). Ora, isso não lhes proporciona vantagem alguma, ao passo
que ao vender José eles podem tirar proveito da situação, sem desistir de seu
objetivo: impedir que os sonhos se realizem, já que o pretenso senhor será
vendido como escravo.
Quanto à razão dada por Judá para salvar José, é dupla. Não é, como no
caso de Rubem, a consideração ao pai, mas ao irmão. Não termina Judá seu
discurso invocando a fraternidade como razão para não matar José? Além
disso, desde o início, ele excluiu a ideia de matar seu irmão. Este motivo é,

34. Nesse sentido, Sarna, 260.


35. Daí, sem dúvida, os elementos reprisados no discurso inicial dos irmãos e naquele de Rubem,
enfatizados por A. Berlin, Poetics and Interpretation, 119: ide, matemo-lo (37,20) e ide, vendamo-lo
(v. 27); uma mão, não a envieis contra ele (v. 22) e nossa mão, ela não esteja sobre ele (v. 27).
36. Este detalhe é bem observado por T. L. Hettema, Reading for Good, 178.

62
Capítulo 3 – Os irmãos e a venda de José (37,18-30)

pois, objeto de uma inclusão que o enfatiza fortemente. Porém, não deixa
de ser um tanto cínico, na medida em que Judá está animado por uma outra
intenção, que também transparece duas vezes, a saber um interesse mercantil
que suas primeiras palavras traem — “Qual a vantagem?”37 — e a proposta
concreta que ele faz: “Ide, vendamo-lo…” (centro do discurso). Permanece,
apesar do lado perverso, o respeito pela fraternidade, que, por duas vezes na
boca de Judá, ressoa na palavra “nosso irmão”, a segunda marcada mais ainda,
no final, pelo aposto “nossa carne”38.
Assim, à intenção oculta de Rubem de salvar José e devolvê-lo a Jacó
opõe-se a intenção declarada de Judá de salvar José da morte tirando proveito
dele, protegendo-se ao mesmo tempo do risco de vingança que um fratricídio,
mesmo maquiado, representaria para eles (ver Gn 4,10-11 e 9,5-6). Os dois
irmãos contribuirão assim para “salvar” José. Mas, enquanto Rubem “tem
realmente tentado evitar o assassinato”, Judá “só quis evitar as consequências.
Este crime é sua obra, na própria forma que ele lhe conferiu”39.

Venda e desaparecimento de José (37,28-30)


Uma vez que Judá se cala, o narrador relata, com grande sobriedade, a
reação dos irmãos: “E seus irmãos ouviram”. Se Rashi viu isso como sinal
do acordo dos irmãos, devemos reconhecer que, neste ponto, ele vai longe
demais. Anteriormente, de fato, no versículo 21, o narrador diz que Rubem
“ouve” os outros. Mas, evidentemente, ele não concorda com eles, pois vai se
opor ao projeto deles40. O sentido pode ser o mesmo aqui, pois a menção ao
ouvir, sem mais, sugere antes a inação dos irmãos. Em todo caso, nada indica
que executem a proposta que acabam de ouvir. Por isso, a narração da venda
de José suscita um problema. O texto que lemos em hebraico é surpreendente,
inesperado — pelo menos em comparação com o que se pensa saber sobre a
história, pois quem nunca ouviu a expressão “José vendido por seus irmãos”?

37. A palavra hebraica bes.a‘ tem, muitas vezes, um significado negativo (jarra de vinho,
Ex 18,21; ganho injusto, Jz 5,19 e Mq 4,13; benefício egoísta, Ml 3,14; positivo em Jó 22,3): ver
Hamilton, 420.
38. Segundo Janzen, 150, o apelo para a fraternidade pode refletir o desejo de aliar os outros
à sua ideia, mas também pode ter algo de sincero. E acrescenta que, em tal situação, as motivações
são muitas vezes misturadas. Ver também R. Alter, Genesis, 214.
39. J.-M. Auwers, Joseph, 14-15.
40. Ver A. Berlin, Poetics and Interpretation, 119, que sublinha com razão a relação entre essas
duas reações. R. Pirson, The Lord of the Dreams, 68, também se refere a Gênesis 35,22, onde o
ouvir de Jacó certamente não constitui um endosso.

63
José ou a invenção da fraternidade

Com efeito, se tudo leva a pensar, até aqui, que os irmãos poderiam vender
José segundo o conselho de Judá, não é isso que o narrador conta a seguir.
Enquanto os irmãos escutam Judá, o narrador introduz mercadores madiani-
tas. Por que o faria? Pois, se são os irmãos que vendem José, esse novo grupo
não desempenha papel algum. Mas vamos reler a história tal como o texto
hebraico a propõe (37,28-30).
28
Passaram homens madianitas, mercadores, e tiraram e fizerem subir José
fora do buraco e o venderam aos ismaelitas por vinte [moedas de] prata, e eles
fizeram vir José ao Egito. 29E Rubem voltou para o buraco, e eis que José não
estava aí no buraco! E ele rasgou suas vestes. 30E ele voltou a seus irmãos,
exclamou: “A criança não está lá! E eu, onde venho eu?”.

No versículo 28, o narrador diz que são os mercadores madianitas41 que


tiram José da cisterna para vendê-lo aos ismaelitas. Os irmãos não parecem
envolvidos na venda — e se foi Judá que teve a ideia eles não se beneficiaram
dela. Se o narrador queria envolvê-los claramente, ele os teria mencionado
como sujeitos dos verbos tirar, fazer subir e vender, o que não faz42. A conti-
nuação da história vai no mesmo sentido. No versículo 29, com efeito, Rubem
volta à cisterna — presumivelmente, a fim de frustrar o mais rápido possível
o plano de Judá, caso os irmãos decidam executá-lo. Uma vez lá, porém, ele
constata a ausência de José. Então, desesperado ao ver que seu plano falhou,
volta para anunciar aos outros uma notícia que o tortura.
Esta leitura é coerente com a narração tal como se lê no hebraico, mas
também no grego da Septuaginta43. Subsistem algumas dificuldades, mas não
são insuperáveis. A primeira é que, mais tarde, José conta para seus irmãos

41. Literalmente, “os homens madianitas”. A precisão serviria para aproximar o homem do ver-
sículo 15? Estes “homens” são, na verdade, os atores das duas intervenções inesperadas em favor
de José. Agradeço a J.-P. Sonnet pela sugestão.
42. [*O sujeito são os madianitas, não os irmãos de José.] No hebraico bíblico, a passagem de
um sujeito a outro, sem menção explícita, não é incomum (J. P. Fokkelman, Genesis 37 and 38,
164), mas no presente caso cria ambiguidade, por causa da introdução dos madianitas, que não teria
sentido se eles não vêm fazer nada, como destaca R. PIRSON, The Lord of the Dreams, 72.
43. É a leitura de Jacob, 706 s., que se junta a vários intérpretes judeus. Também dão esse
sentido para o significado final da história, por exemplo, J. S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob,
92 e 99, T. Römer, Joseph approche, 77 e 81, e D. M. Carr, Reading the Fractures, 384. Para T. L.
Hettema, Reading for Good, 179, essa leitura é possível, mas o texto é ambíguo. Ver R. Pirson,
The Lord of the Dreams, 69-79, que defende uma posição semelhante à minha. — Gostaria de
acrescentar que fazer dos irmãos os vendedores de José não é fácil. Temos de admitir, com efeito,
que Rubem deixou o grupo e está ausente da venda, caso contrário não compreendemos por que
esteja surpreso e desesperado ao encontrar a cisterna vazia. Mas o narrador não informa o leitor

64
Capítulo 3 – Os irmãos e a venda de José (37,18-30)

que é ele a pessoa que venderam no Egito (45,4-5). Notamos imediatamente


que essa é a perspectiva de um personagem, não a do narrador, o único a ser
inteiramente confiável neste tipo de narrativa. José exprime sua maneira de
ver os acontecimentos, a partir de sua própria perspectiva limitada. Quando
os madianitas o tiraram da cisterna onde seus irmãos o jogaram, acreditou
que estes o haviam vendido para tais comerciantes, que, depois de tirá-lo do
buraco, venderam-no, em seguida, para os ismaelitas. Além disso, diante dos
servos do rei do Egito, presos com ele, José propôs uma outra versão
dos acontecimentos — ele tinha sido roubado (40,15) — que concorda melhor
com a intervenção dos madianitas que José testemunhou.
Segunda dificuldade: se eles não venderam José, do que os irmãos se
sentiram culpados depois? Na realidade, eles mesmos o dizem em 42,21:
eles não se culpam por terem vendido seu irmão, mas por não terem ouvido
suas súplicas e terem permanecido indiferentes a seu sofrimento. Tal remor-
so corresponde melhor ao tratamento que deram a José na ocasião de sua
chegada — quando o prenderam, desnudaram e jogaram na cisterna vazia —
do que a uma eventual venda. Aliás, não é porque os irmãos não venderam
José que lhes faltem motivos para se sentir culpados: a decisão de matar um
irmão, a agressão ao jovem desarmado, o projeto incontestado da venda, o
desaparecimento que se segue e a mentira a seu velho pai são tantas razões
para sérios remorsos.
Uma última dificuldade surgirá no versículo 36 do capítulo 37: o narrador
conta que os madianitas venderam José ao Egito. Assim, parece contradizer-se,
pois no versículo 28 esta transação é realizada, conforme ele mesmo diz, pelos
ismaelitas. Mas talvez essa contradição seja significativa no final do episódio.
Na verdade, a primeira parte do versículo 36 é um sumário: o narrador toma o
essencial do que aconteceu com José: vendido, depois trazido ao Egito. Neste
contexto, a menção aos madianitas poderia recordar, ironicamente aliás, que
os maiores beneficiados pela venda não são os irmãos, mas os comercian-
tes que lhes puxaram, por assim dizer, o tapete de sob seus pés. Além disso,
voltando a José em 39,1, o narrador recorda esses dados, mencionando desta
vez como intermediários da venda os ismaelitas.
Mas no versículo 36 acontece uma curiosa mudança no nome madianitas
que parece muito significativa. O texto hebraico, na verdade, tem medanim no
lugar do midyanim do versículo 28. A mudança pode ser esclarecida pelo uso

deste elemento, que é, no entanto, essencial. Além disso, se os irmãos venderam José, sua lembrança
disso é surpreendentemente vaga (ver 42,21): veja a seguir.

65
José ou a invenção da fraternidade

destas duas palavras no livro dos Provérbios. De fato, a palavra midyanim, que
aqui designa os madianitas, em Provérbios 18,18-19 significa “querelas”. A
alusão refere-se precisamente à nossa narração, como evidencia o paralelismo
do provérbio citado: “Um irmão ofendido é mais [*resistente] que um baluarte,
e as querelas são como as trancas da cidadela” (Pr 18,19). Este sentido de
“querela” é também o significado comum do termo medan, utilizado no plural
em Gênesis 37,36 (medanim). Assim, em Provérbios 6,14.19: “Adonai odeia
quem suscita as querelas entre os irmãos”; ou ainda em Provérbios 10,12, uma
frase que soa como um resumo de nossa história: “O ódio abrasa querelas,
mas o amor cobre todas as faltas”.
Tal aproximação sugere um possível trocadilho em nosso texto44. Poderia
explicar a curiosa perífrase de Gênesis 37,28: os “homens madianitas, merca-
dores”, evocariam os homens-querelas, ou seja, os próprios irmãos de José45.
Assim, os madianitas assumiriam uma dupla função narrativa. De um lado,
eles seriam a figura desses homens que viraram “mercadores” ao vender seu
irmão, após as querelas que envenenaram a situação da família, o que destaca
o narrador no versículo 36: foram as “querelas” que levaram à venda de José
no Egito. Por outro lado, como atores da história, eles privam os irmãos do
lucro esperado por Judá, uma forma tão clara quanto sutil de sugerir que o
crime não compensa.
Tudo isso pode indicar que, se o autor não quer culpar os irmãos claramente
pela venda de José, ao menos mantém certa confusão em torno do aconte-
cimento. Hettema propõe ler isso como sinal de uma causalidade múltipla:
“O narrador refere-se a fatores e a causas múltiplas quanto à ação que narra,
porque ele tem a intenção de criar um desenlace complicado para a intriga e
um efeito sutil sobre seus leitores”46. De fato, a inclareza que ele entretém é,
sem dúvida, carregada de sentido. Mesmo que os irmãos não tenham vendido
José, somente a intenção de fazê-lo ou o fato de não se oporem à proposta
de Judá podem ser suficientes para que pese sobre eles a falta, especialmente

44. Isto é mais relevante para mim que as tentativas de mostrar, com base em Juízes 8,22-24, que
madianitas e ismaelitas são um só e mesmo grupo: por exemplo, Gunkel, 409, A. Berlin, Poetics
and Interpretation, 119-120, ou A. Schenker, Chemins bibliques de la non-violence, 155.
45. Nesse sentido, T. L. Hettema, Reading for Good, 180, que acrescenta: “Não faz isso alusão
à rivalidade ou aos conflitos entre irmãos?”. Ver ainda Hamilton, 429: “No coração do mal, em
Gênesis 37, há a discórdia entre os irmãos, medanim”.
46. T. L. Hettema, Reading for Good, 180. Neste sentido, também, mais ou menos, A. Bonora,
La storia di Giuseppe, 42.

66
Capítulo 3 – Os irmãos e a venda de José (37,18-30)

porque foram eles que deram um tom violento à querela de família que teve
como resultado direto o desaparecimento de seu irmão47.
Ainda algumas observações quanto à venda de José. Se olhamos para
Levítico 27,5, vemos que as vinte moedas de prata pagas pelos ismaelitas
correspondem ao valor de um jovem entre cinco e vinte anos. Conforme Êxodo
21,32, é menor que o preço de um escravo, fixado em trinta moedas de prata.
José foi talvez vendido abaixo do preço. Mais significativo: os ismaelitas
levam José para o Egito. Ele faz parte, por assim dizer, da preciosa carga
descrita no versículo 25. A goma alcatira, o bálsamo (ou resina) e o ládano
são realmente produtos de valor, apreciados pelos egípcios, que, de acordo
com Gunkel48, os reservam para diversos fins: medicamentos, colas, perfumes,
fragrâncias e também para o embalsamamento dos mortos. Assim, em sua
deportação, José está acompanhado de produtos exóticos e luxuosos, impor-
tantes para o cuidado pessoal, a saúde e a beleza dos egípcios. Não sugere
isto alguma coisa a respeito do José que está chegando ao Egito?
Uma vez José levado para o sul, o primeiro a descobrir seu desapareci-
mento é Rubem. Diante do buraco vazio, onde José não está mais, ele rasga
suas roupas como o fará em breve Jacó (v. 34). Seu gesto é visto como um
sinal de raiva, tristeza, cólera, indignação ou luto. Em todo caso, na medida
em que a roupa diz algo sobre a pessoa que a veste, rasgá-la sinaliza o esta-
do afetivo de alguém gravemente dilacerado em si mesmo. Aliás, a palavra
utilizada pelo narrador nos informa a respeito desse dilaceramento interior. A
frase em hebraico reproduz o som de uma reclamação balbuciante (hayyeked
’enennu wa’ani ’an ah ’ani va’49). Já pelo ouvir se percebe um Rubem de-
sesperado, perdido. Mas a formulação da frase convida a cavar mais fundo. A
repetição do pronome “eu” (’ani) pode indicar que Rubem está especialmente
preocupado com sua própria sorte. Se José era para ele o meio de se acertar
com Jacó, seu desaparecimento arrisca, ao contrário, piorar a situação, tanto
mais porque ele é o primogênito50. Assim, Rubem não sabe mais para onde
ir. Como ousaria comparecer perante seu pai? Pode ser neste sentido que ele

47. Notemos ainda que os atores que intervêm para deixar José no Egito são todos descendentes
de Abraão, filhos de Ismael (Gn 16,15-16) e de Madiã (filho de Abraão e Cetura: 25,2.4). Tudo
acontece em família.
48. Gunkel, 408, e Sarna, 260. Ver também a nota da TOB/TEB em 37,35.
49. L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 320. R. Alter, Genesis, 214, acrescenta que a
palavra ’enennu (“não existe”) é ambígua: “pode ser um eufemismo para a morte ou simplesmente
indicar um desaparecimento”.
50. Assim, Janzen, 151, ou L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 320, o qual insiste na
responsabilidade de Rubem diante do pai. Veja também Westermann, 42.

67
José ou a invenção da fraternidade

usa o termo “criança” (hayyéled), que não é apropriado para José, a menos
que Rubem o veja como acredita que seu pai o considera.
Esses detalhes parecem confirmar que sua intenção de salvar José pro-
cedia, sem dúvida, de um forte desejo de voltar à graça, desejo que ele vê
frustrado agora. Disto resulta a consternação quando transmite aos outros a
notícia do desaparecimento de José. Este sentimento não encontra, porém,
nenhum eco nos outros, cuja reação será exclusivamente pragmática. Pois,
se Rubem falhou em seus esforços de levar José para o seu pai, é justamente
para este que os outros vão se voltar a fim de executar o que seu plano ori-
ginal já estava prevendo.

68
Capítulo 4

Jacó diante do desaparecimento de José


(37,31-36)

Quando estavam conspirando contra José que se aproximava deles, os


irmãos, como vimos, pensavam sem dúvida já em seu pai, enquanto inventa-
vam, como “versão oficial” sobre a morte de seu filho, que um animal feroz
o teria destroçado. A figura do pai está também no horizonte da intervenção
de Rubem para salvar José e de seu pranto rasgado diante da cisterna vazia.
Assim, a atenção volta-se naturalmente para Jacó no final deste episódio. A
cena final conta como os irmãos fazem que Jacó seja inteirado do essencial do
que aconteceu. Em si, poderiam fazer de conta de não saberem do acontecido.
Afinal, se alguma coisa aconteceu a José no caminho, nada mais natural que o
desconhecimento dos irmãos. No entanto, não é esta a solução que preferem.
Ao invés disso, como tinham previsto ao forjar seu complô, tomam agora a
iniciativa de informar seu pai. Vamos ver como.

A túnica levada a Jacó (37,31-32)


Eles tomaram a túnica de José, eles degolaram um cabrito e molharam a túnica
31

no sangue. 32E eles enviaram a túnica adornada e a fizeram vir ao pai deles e
disseram: “Achamos isto. Constata, pois: é a túnica de teu filho ou não?”.

69
José ou a invenção da fraternidade

Relatando esta breve cena, o narrador mostra-se preciso ao detalhar ges-


tos e palavras dos irmãos (37,31-32): será que agindo desta forma os irmãos
demonstram uma intenção escondida em relação a Jacó? Não é impossível,
mas nada é explicitado, nem por eles, nem pelo narrador. Contudo, o leitor
tem algumas pistas para imaginar o que se passa com eles. Com efeito, uma
vez resolvida a questão de José, os irmãos têm ainda, como nos lembramos,
um problema com esse pai, cuja preferência por José lhes suscitou ódio, inveja
e depois maldade. Será que eles não desejariam fazê-lo pagar a humilhação
que ele os fez sofrer? Pois dificilmente podem ignorar que mandar para Jacó
a túnica ensanguentada de José vai criar uma incerteza cruel que o tornará
infeliz — e o sabe melhor ainda o leitor, que imagina o velho Jacó esperando
José voltar com uma palavra de paz (ver 37,14).
O procedimento dos irmãos revela, sem dúvida, o que eles têm em men-
te. Para dar a notícia de que uma desgraça aconteceu a José, usam a túnica
que tinha despertado o ódio deles (cf. 37,3-4). A insistência é grande: três
vezes o narrador menciona essa vestimenta (“a túnica de José”, “a túnica”,
“a túnica adornada” em 37,31-32a), os irmãos citam duas vezes o que vão
dizer a Jacó (“isto”, “a túnica de teu filho”: v. 32b), e Jacó reconhece (“a
túnica de meu filho”, v. 33). É possível que, retornando precisamente essa
vestimenta para o seu doador, os irmãos, vítimas que se transformam em
executores, queiram punir o pai por meio do objeto pelo qual ele os fez
sofrer1. Neste sentido, percebe-se nas palavras que acompanham a túnica,
“teu filho”, a distância que os irmãos põem entre eles e José, enquanto,
sutilmente, lembram a Jacó sua preferência paternal que, para eles, está na
origem de todo o problema.
Os filhos se dão ao trabalho de fazer um breve comentário na forma de
uma pergunta, convidando Jacó a reconhecer, espontaneamente, o objeto que
recebe e a decodificar a mensagem que transmite. A pergunta é maquiavélica.
É uma meia-verdade, na qual a mentira (“achamos isto”) esconde uma omissão
muito pior, porque põe Jacó numa pista falsa, levando-o ainda para mais longe
da verdade. Pois os irmãos sabem melhor do que ninguém que a túnica é de
José. Sim, eles sabem muito mais, e é isso que procuram esconder de seu pai,
fingindo não terem certeza do que “encontraram”, insinuando que eles não
são testemunhas do que aconteceu. Jacó mesmo deve interpretar o sinal no

1. Nesse sentido, L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 321. B. Green, “What Profit for
Us?”, 52-53, fala da reprovação dirigida a Jacó por seus filhos. Aliás, se Jacó acredita que José
morreu durante sua viagem, ele pode se sentir culpado por tê-lo mandado, sozinho, à procura dos
irmãos.

70
Capítulo 4 – Jacó diante do desaparecimento de José (37,31-36)

sentido que os irmãos, de maneira dramática, sugerem, com ar de quem não


sabe2. Tal processo não é de uma crueldade refinada?
É, portanto, uma forma de revide que opera no gesto dos irmãos quando
transformam uma marca visível do amor preferencial num sinal de ódio
dissimulado sob uma palavra destinada a esconder o crime3. Talvez, aliás,
seja uma insinuação velada — encoberta como tudo nesta cena — de que,
em última instância, aos olhos dos irmãos Jacó é o responsável pela morte
de seu preferido4: afinal, além do envio arriscado de José, a causa última das
desgraças deste é a preferência que seu pai lhe havia dedicado e da qual a
túnica era e continua a ser o sinal evidente.

Mas é este o único objetivo dos irmãos quando tomam a iniciativa de levar
esta mensagem ao pai? Se eles invejavam odiosamente José, provavelmente foi
porque os distanciava do amor de Jacó (37,3-4). Agora que ele desapareceu,
poderão esperar que Jacó estenda seu amor a todos eles e que a família possa
encontrar-se, depois do luto inicial, em torno de um pai, daqui por diante,
sem preferido? “Uma vez que o irmão mal-amado tenha sido rejeitado pela
família, e o pai, enganado pelo subterfúgio, o círculo da família pode se re-
constituir”, escreve A. Schenker5. Talvez por essa razão os irmãos queiram
que o pai seja informado sobre o desaparecimento de José, porque, para que
possa considerar uma vida de família sem ele, desta forma, é preciso que saiba
que seu preferido não está mais presente6.
Um detalhe da narrativa parece apoiar esta leitura. Antes de devolver a
túnica de José a Jacó, os irmãos a mergulham no sangue de um cabrito dego-
lado, um gesto que lembra o projeto original. Quando planejaram o assassinato
de José, combinaram o seguinte: “Diremos: ‘Um animal feroz o devorou’”
(37,20). Além da estratégia de sugerir ao pai a ideia da morte violenta de José,
o comportamento dos irmãos poderia ganhar um significado mais profundo.
Pois o sangue do cabrito na túnica é suposto ser o sangue de José, ao menos
aos olhos de Jacó — e será isso que concluirá ao vê-lo. Sob essas condições,
o cabrito degolado é uma figura de José, vítima de um assassinato simbólico

2. Nas palavras acertadas de Hamilton, 462, “o poder de sugestão é maior que o poder de
explicação”. Sobre esta “mentira verdadeira”, ver também B. Green, “What Profit for Us?”, 52.
3. Esta ideia é sugerida por T. L. Hettema, Reading for Good, 181.
4. Esta interpretação é de J. Eisenberg, B. Gross, Un Messie nommé Joseph, 166-168.
5. A. Schenker, Chemins bibliques de la non-violence, 21.
6. O sinal enviado para Jacó constitui uma atestação legal da morte de José: ver Coats,
270-271.

71
José ou a invenção da fraternidade

da parte de seus irmãos7. Não pretendiam eles matá-lo? Então, o que os irmãos
querem dar a entender ao pai é, mesmo, a sua “morte”.
Mas pode haver mais ainda a descobrir. A expressão se‘ir ‘izzim empregada
aqui pelo narrador — a única no livro do Gênesis — designa normalmente um
dos animais comumente imolados num sacrifício de reconciliação com Deus
após o pecado (leh.at.t.a’t)8. Em particular, em Levítico 16,5, ela designa os dois
bodes utilizados no ritual do Yom Kippur. Um dos dois é carregado com os
pecados da comunidade e “enviado para o diabo” Azazel, sendo levado por um
homem para o deserto “a uma terra separada” (Lv 16,10.21-22), semelhante a
José levado ao Egito através do deserto (Gn 37,28.36). Quanto ao outro bode,
ele é abatido (šah.at) em sacrifício pelo pecado e seu sangue é oferecido (ba’,
Hifil) para permitir a reconciliação de Israel com Deus (Lv 16,9.15-19), como
o cabrito que os irmãos abateram (šah.at) para apresentar (ba’, Hifil) a Jacó o
seu sangue impregnado na túnica (Gn 37,32). Se este paralelo está correto9,
a narração mostra como José, assim como o bode expiatório — no sentido
bíblico do termo —, é afastado dos seus, carregando o pecado de todos, en-
quanto os irmãos, enviando a seu pai o sangue do cabrito imolado, esperam
obter dele a reconciliação familiar, a reintegração dos culpados10.
A túnica ensanguentada é, pois, enviada a Jacó. Usando o termo “enviar”,
o narrador entende que os irmãos utilizam um intermediário que enviam para
evitar um confronto direto, que poderia ser perigoso, já que estão mentindo
para seu pai11. Depois ele acrescenta — o que parece contraditório — que eles
“fazem vir” (wayyavi’u) a túnica ensanguentada, como se a apresentassem
eles mesmos e contassem o acontecido ao pai12. Esta dificuldade do texto me
parece significativa. Por um lado, a contradição pode enfatizar o jogo duplo
dos irmãos, que vêm sem vir, que ficam lá se escondendo atrás do homem
que enviaram. Por outro lado, o uso do segundo verbo (wayyavi’u) faz eco

7. Ver Hamilton, 426. Esta funcionalidade se junta ao simbolismo animal já utilizado para
evocar a família e seus membros no início deste capítulo 37.
8. O uso é corriqueiro (27 vezes no AT): ver especialmente Levítico 4 e Números 7. Este
aspecto do simbolismo de Gênesis 37,31 também é notado por A. Da Silva, La symbolique des
rêves, 88, e D. Nocquet, Genèse 37, 22.
9. O laço está claramente estabelecido no livro dos Jubileus 34,18-19. Sobre isso, ver meu
artigo recente: A. Wénin, La tunique ensanglantée de Joseph.
10. Tal é um dos sentidos do “sacrifício pelo pecado”, de acordo com C. Grappe, A. Marx,
Le sacrifice, 34-39.
11. Nesse sentido Hamilton, 425, e T. L. Hettema, Reading for Good, 181, contra Westermann,
43, que corrige o texto hebraico.
12. Alguns corrigem e leem o verbo no Qal, como Gunkel, 409, e a BHS, que propõe ler
wayyavo’u-, “e eles vieram”. Veja a discussão em Westermann, 43.

72
Capítulo 4 – Jacó diante do desaparecimento de José (37,31-36)

à ação de José que, no início do episódio, “fez vir” a Jacó os rumores sobre
seus irmãos, apresentando-os como maus (37,2). Agora, com a túnica, os
irmãos “fazem vir” para Jacó uma palavra que criará um falso rumor sobre
José. Assim, as duas causas da crise da família — a túnica e as palavras
distorcidas — são devolvidas pelos irmãos a Jacó em um único e mesmo
movimento. Mas, desta vez, túnica e palavra são carregadas dos sinais de
violência que produziram — violência dos irmãos contra José, decerto, mas
também contra o pai.

Jacó e a túnica de seu filho (37,33-35)


Nas mãos dos irmãos, a veste que significava o amor de Jacó por José
torna-se o instrumento da desgraça de Jacó — de sua punição, vendo do
ponto de vista deles. Jacó não se contenta em reconhecer a túnica, mas ainda
exprime a interpretação do que vê, já que está manchada de sangue. Seu grito
lancinante está todo centrado em José. Não somente sua lamentação termina
com o nome do filho amado, mas as três partes da frase são pontuadas no
final por uma referência a ele (“meu filho”, “o” [*ele], “José!”):
33
E ele [Jacó] a reconheceu e disse:
“A túnica de meu filho!
Um animal feroz devorou-o!
Ele foi dilacerado, dilacerado, José!”

Notamos que a leitura que Jacó faz do sinal da túnica concorda com a
ideia que seus filhos tiveram de início para explicar o desaparecimento de
seu irmão: “Diremos: ‘Um animal feroz o devorou’” (37,20). A estratégia
funciona perfeitamente: a sutil manipulação conseguiu fazer Jacó enganar-se
a si mesmo, cegado, sem dúvida, pela dor13.
O leitor do Gênesis não deixa de ver como nesta família a história se
repete de geração em geração. Os filhos de Jacó enganam seu pai por meio
de um cabrito abatido e de uma peça de roupa que foi um sinal distintivo do
filho preferido. É exatamente o que Jacó fez com seu pai Isaac, que ficou
cego com o passar dos anos: ele o enganou utilizando as roupas do filho
preferido, Esaú, ao levar-lhe dois cabritinhos (gedaye ‘izzim) para comer,
enganando-o com palavras falsas (Gn 27). Ele separou seu velho pai de seu
filho querido, de modo que este não poderia receber a bênção que lhe fora

13. Assim J. P. Fokkelman, Genesis 37 and 38, 165, ou B. Green, “What Profit for Us?”, 52.

73
José ou a invenção da fraternidade

destinada. Agora, é ele que se vê separado de seu filho amado14. Retorno


justo das coisas?
Mas não se deve excluir outra possibilidade. Quando envia José a
seus irmãos em Siquém, Jacó, como vimos, está ciente do conflito entre
os irmãos e também do risco que corre ao tomar tal iniciativa. Vendo que
seus filhos lhe reenviam a túnica ensanguentada do irmão, não duvidaria
de nada? Se ele se lembra de sua própria história com seu pai e seu irmão,
vendo-a acontecer novamente, às suas custas desta vez, não seria possível
que alimentasse algumas suspeitas quanto à franqueza de seus filhos? 15
Jacó é astuto, e longa é sua experiência de mentiras e dissimulações de
todos os gêneros. Além disso, ele guarda na memória o ciúme rancoroso
dos irmãos em relação a José16. Sob essas condições, ao ouvir Jacó se la-
mentar sobre a morte de José estraçalhado pelos dentes da fera, o leitor tem
o direito de perguntar se sua palavra não tem o duplo sentido mencionado
acima, a propósito do versículo 20. Falando do animal feroz responsável
pela morte de José, o pai denunciaria seus filhos em termos encobertos:
os animais ferozes são eles!17 Foi a fera do ciúme, já testemunhada por ele
antes (37,11), que os levou à última violência, que consistiu em “devorar”
seu irmão. Desta forma, Jacó estaria respondendo à meia-mentira dos irmãos
com uma verdade expressa em meia-palavra: à palavra destes últimos que
lhe imputa indiretamente a responsabilidade pela sorte infeliz de seu filho
ele responderia no mesmo tom, apontando indiretamente seus filhos como
os verdadeiros culpados18.
34
E Jacó rasgou suas vestes e pôs um saco sobre seus rins e se pôs em luto
por seu filho, muitos dias. 35E todos os seus filhos e todas as suas filhas se
levantaram para consolá-lo, e ele recusou de se consolar e disse: “Sim! Eu
descerei até o meu filho, em luto, ao Xeol!” E seu pai o chorou.

Depois deste reconhecimento, trágico por várias razões, Jacó manifesta por
um gesto visível seu dilaceramento interior, assim como Rubem o tinha feito

14. Essa aproximação é frequentemente sublinhada: ver, por exemplo, L. Alonso Schökel,
Dov’è tui fratello?, 320, ou A. Schenker, Chemins bibliques de la non-violence, 21 e nota 29, ou
Sarna, 262.
15. J. Eisenberg, B. Gross, Un Messie nommé Joseph, 169, fazem uma pergunta análoga, e
para eles as dúvidas de Jacó se refeririam à realidade da morte de José.
16. Ver H. C. White, Narration and Discourse, 254.
17. Ver D. Nocquet, Genèse 37, 18 (note 14).
18. O narrador não explicita nada de tudo isso. Mas não é possível que ele jogue com o leitor
um jogo semelhante ao dos personagens?

74
Capítulo 4 – Jacó diante do desaparecimento de José (37,31-36)

diante da cisterna vazia (37,29b)19. Depois, ele substitui sua roupa rasgada por
um saco, em sinal do luto que inicia para “muitos dias”. Jacó instala-se assim
na infelicidade da perda de “seu filho”. No entanto, sua atitude é bastante
complexa. Por um lado, ele se mostra dilacerado pelo pensamento da morte
presumida de José e assume o luto; por outro lado, recusa se deixar consolar
por seus filhos, e mesmo pelas filhas, das quais não poderia suspeitar de
qualquer responsabilidade no desaparecimento de José20.
Esta tentativa de consolar o velho pai não deve ser vista como puro ci-
nismo por parte dos irmãos. Ela manifesta, sem dúvida, o desejo deles, que
já se notou, de ver seu pai fazer o luto do filho preferido para poder retomar,
depois, uma vida familiar normal. Se é assim, a resistência de Jacó adquire
outro sentido. Ao rejeitar o consolo, ele mostra que não se decide por “en-
terrar” seu filho21, e essa recusa decidida significa a frustração da estratégia
dos filhos, que não somente esconde o desejo de punir um pai injusto, mas
também seu desejo positivo de encontrar a paz familiar depois de ter eliminado
aquele que, a seus olhos, a estragava. Mas Jacó, que à sua maneira também
deseja a paz da família (veja v. 13-14), se opõe a tal atalho: mesmo morto,
um filho — principalmente um filho como José — deve guardar um lugar
para que a unidade familiar e a fraternidade não se baseiem na negação do
outro, na mentira e na hipocrisia.
É isso, a meu ver, o que Jacó lembra implicitamente a seus filhos ao
guardar viva a ferida da ausência de José, mantendo-se em sua lembrança
dolorosa e continuando a pranteá-lo: não há šalom possível se este deve se
alimentar de esquecimento, de negação do conflito, de mentira. Seria possível
uma reconciliação familiar enquanto os irmãos estão unidos por um segredo
que os distancia, irremediavelmente, de seu pai e do qual se pode pensar que
é também causa de desconfiança entre eles? Os filhos, que parecem formar
novamente um grupo compacto, guardam-se bem de afastar as dúvidas de seu
pai revelando-lhe a verdade sobre José. Como, nessas condições, reencontra-
riam o amor de um pai que continua amarrado a “seu filho” desaparecido,

19. Um trocadilho pode enfatizar que o reconhecimento de si mesmo é devastador para Jacó
(37,33: wayyakkirah, “e ele a reconheceu”, e 37,34: wayyiqra‘, “e rasgou”).
20. Esta é, a meu ver, a função narrativa das filhas de Jacó, que nunca foram mencionadas
até aqui. Para alguns comentadores, essas filhas são Dina e as noras de Jacó: ver Sarna, 262, ou
Hamilton, 427.
21. Se Jacó viu a túnica ensanguentada de José, ele não viu o corpo dele. Assim, pode duvidar
da realidade de sua morte. Daí a atitude aparentemente contraditória: “Ele entra em luto como se
José estivesse morto; ele recusa a consolação, como se José estivesse ainda vivo” (J. Eisenberg, B.
Gross, Un Messie nommé Joseph, 169).

75
José ou a invenção da fraternidade

a ponto de desejar estar unido a ele na morte: “Sim! Eu descerei até o meu
filho, em luto, ao Xeol!”22.

José no Egito (37,36)


O episódio termina com um breve retorno sobre o destino de José, que
ainda vive, ao contrário do que pode crer seu pai.

Ora, os medanitas o haviam vendido no Egito, a Putifar, funcionário do Faraó,


36

comandante dos guarda-costas23.

O narrador começa recordando o que ele já havia relatado anteriormente,


nomeadamente a venda de José no Egito24. Já simbolicamente privado de sua
vida e de sua verdade — uma vez que todos pensam que ele esteja morto,
exceto os irmãos obrigados ao silêncio por sua mentira —, ele está também
privado de sua liberdade e de sua dignidade, pois foi vendido como escravo.
Aliás, no capítulo seguinte José desaparece da narrativa, como se sua história
terminasse na casa do oficial do Faraó. No indefinido.
A informação sobre a venda de José retoma a seu modo outro dado da
narração que termina. Desde que os irmãos viram José chegar e conspiraram
contra ele, o narrador o mostra como um personagem passivo: ele narra o que
os outros fazem com ele, sem dizer nada de suas reações e de seus sentimentos.
José toma, pois, as características da vítima que, puramente passiva, não faz
nada senão sofrer o que os outros lhe infligem. A não ser que este silêncio e
a falta de reação sejam uma confissão implícita da culpabilidade em relação
aos irmãos. Afinal, José deve saber agora que os irmãos têm razões para estar
zangados e que não é sem motivo que o fizeram sofrer. Se, na época de seus
sonhos, ele pôde ignorá-los ingenuamente, já não o pode fazer depois do que
fizeram com ele. A passagem pelo sofrimento silencioso teria transformado
o jovem provocador do início da narrativa? Ele teria razão em seu desejo de
fraternidade, do qual falavam seus sonhos e que ele exprimia na resposta ao
homem de Siquém? O leitor deve aguardar seu regresso ao palco, no capítulo
39, para ter a resposta a esta questão.

22. Ver, neste sentido, H. C. White, Narration and Discourse, 254. Eu acrescento que aqui uma
questão se coloca para o leitor do Gênesis: enquanto Abraão e Isaac são enterrados por seus filhos
reunidos (25,8-9 e 35,29), será esse o caso para Jacó? O fim da narrativa tranquiliza o leitor sobre
este ponto. A este respeito, ver J.-P. Sonnet, The Book within the Book, 203-204.
23. Ou “dos açougueiros”. Ver Wenham, 357.
24. Sobre o caráter recapitulativo do início desse versículo, ver acima p. 65-66.

76
Capítulo 4 – Jacó diante do desaparecimento de José (37,31-36)

Em suma, este primeiro episódio da história é antes desolador. No final,


com efeito, todo mundo sofre nesta família. Isso parece claro, no fim, para
José, vítima muda do ódio ciumento de seus irmãos. É também o caso de Jacó,
enganado pela dissimulação de seus filhos e atingido por um luto do qual se
recusa a sair, quando ele havia esperado a volta do šalom entre os seus. Mas
também os irmãos são afetados, na medida em que sua esperança de recon-
ciliação fica frustrada e eles devem sofrer as consequências do irremediável
rompimento familiar que provocaram25.
Mas, se todo mundo sofre, cada um tem uma responsabilidade no con-
flito e na infelicidade que este engendrou. Ninguém pode retirar sua ficha
do jogo. Jacó e seu filho preferido de jeito nenhum são estranhos ao drama
que se desenrolou e do qual saem como vítimas da violência dos outros. Eles
são, mesmo, os primeiros responsáveis: ao levar notícias, José jogou, sem
dúvida, o jogo da preferência paterna e, qualquer que tenha sido sua inten-
ção, machucou seus irmãos pelo relato dos sonhos que tinha. Jacó, por sua
parte, exibia uma preferência talvez compreensível, porém chocante para os
outros. Quanto ao grupo de irmãos, se no final do episódio aparece como o
clã dos violentos porque sua ferocidade e seu cinismo estouram em relação
a seu irmão e seu pai, sua conduta não é sui generis. Ela encontra sua fonte
no comportamento anterior de suas vítimas: esses homens sofrem por se
sentirem desvalorizados dentro de seu contexto familiar e desenvolvem um
sentimento de injustiça, sentimento que se alimenta normalmente da inveja e
do ódio. Em suma, com eles se verifica o que já constatamos com Caim: o
criminoso é um pobre infeliz, que age como se fosse se livrar de seu infortú-
nio deslocando-o sobre outros — uma reação que não faz senão acrescentar o
mal ao mal. Aliás, é isso que também acontece com Jacó e José: agindo como
o fazem, não obrigam eles os irmãos a assumir as dificuldades que eles têm
para ser e os pesos que lhes tornam a vida pesada? Como se sabe, cada um
tem boas razões subjetivas para fazer o que faz: o pai está arrasado com a
morte de sua esposa amada e o jovem José vive uma posição familiar difícil.
No entanto, a maneira como ele reage impõe aos irmãos um fardo que não é
deles e do qual vão desejar se livrar.
Há solução? Uma saída seria, sem dúvida, a palavra. Mas já vimos que ela
está profundamente doente, e isso desde o início do processo (37,2.4). Longe
de oferecer uma oportunidade de intercâmbio entre parceiros, na verdade ela é
falseada, do início ao fim — exceto, sem dúvida, no coração da narração em

25. Neste sentido, G. Fischer, Die Josefsgeschichte, 245.

77
José ou a invenção da fraternidade

que um verdadeiro diálogo ocorre entre o homem de Siquém e José (37,15-17).


As fofocas deste último e as narrações de seus sonhos provocantes, as ordens
unilaterais do pai a seu filho, os complôs sucessivos dos irmãos, a mentira de
Rubem para os outros, as palavras enganadoras que acompanham a túnica,
as consolações hipócritas dos filhos, a recusa final do pai que nega aos seus
a realização de seu desejo: todas essas palavras estão relacionadas com a
violência da qual se fizeram o instrumento ou a ocasião. Assim, o leitor não
estranha que nenhum diálogo normal seja relatado. Inicialmente, ele assiste
a conversas curtas, mas as respostas são sintomáticas da incapacidade de um
verdadeiro intercâmbio, quer porque os irmãos e o pai contestam a pretensão
de José que conta seus sonhos (37,6-10), quer porque este último adere sem
reserva à vontade paternal (37,13-14). Depois, as palavras permanecem sem
eco naqueles a quem se dirigem: a conspiração entre irmãos contra José (37,19-
20), a proposta de Rubem posta em execução sem contestação, reduzindo José
ao silêncio (37,22), a proposta de venda feita por Judá (37,26-27), o grito
desesperado de Rubem (37,35) e a recusa final do pai enclausurado em seu
luto (37,25). O ápice da disfunção da palavra, o breve diálogo, se assim se
pode chamá-lo, entre o pai e os filhos pelo mensageiro interposto (37,32-33),
atinge uma perversidade requintada: a verdade só avança mascarada sob as
meias-mentiras de um e de outro.
O leitor, que sabe que a história não acabou, pode imaginar quão longo
será o caminho até uma palavra justa, capaz de conduzir ao verdadeiro šalom
essas pessoas que, essencialmente, se estraçalham mutuamente através da pa-
lavra. No horizonte, de fato, permanece a missão dada por Jacó a seu eleito:
garantir o šalom dos irmãos e fazer voltar uma palavra, missão tragicamente
interrompida em Dotã. Será o que José realizará efetivamente mais tarde. Mas,
antes de contar como, o narrador abre um longo desvio, pelo qual convém
segui-lo.

78
Capítulo 5

Judá e a lição de Tamar


(38,1-30)

Os episódios que se seguem depois dos inícios trágicos da história de


José confundem o leitor. Quando ele descobre as aventuras de Judá em Canaã,
antes de reencontrar José engajado numa nova vida no Egito, pode pensar
que a família de Israel explodiu definitivamente e que os únicos irmãos ainda
dignos de interesse são aqueles que estão afastados dela. Porque, no momento
em que a vítima é excluída da irmandade segundo um cenário elaborado por
Judá (mesmo que os irmãos não o tenham realmente executado), este tam-
bém a abandona1. Contudo, o longo interlúdio que assim começa revelar-se-á
importante mais tarde. Não é de estranhar que o narrador faça uma parada
para contar as aventuras dos dois irmãos que, mais tarde, serão os principais
arquitetos do reencontro da família. Especialmente porque o que lhes acontece
irá transformá-los, preparando-os para enfrentar, em novas bases, a crise que
levou a família ao impasse.
Ainda assim, o leitor está intrigado com a interrupção inesperada da nar-
rativa, que apenas começou. Com efeito, o início do capítulo 38 transporta-o
para um mundo bem diferente, do qual José está totalmente ausente, como

1. O narrador enfatiza o paralelo recorrendo ao mesmo verbo para reintroduzir os dois irmãos:
“Por esse tempo, Judá desceu…” (38,1) e “E José foi descido para o Egito…” (39,1). Note-se que o
distanciamento de Judá é voluntário (verbo ativo), ao contrário do de José (verbo passivo).

79
José ou a invenção da fraternidade

que esquecido junto a seu amo no Egito (37,36)2. As primeiras palavras do


capítulo 39, reintroduzindo José, alterarão ainda mais o horizonte da narrativa
acerca da família. Enquanto isso, os outros irmãos desaparecem, como que
eclipsados primeiro por Judá, que já havia se destacado ao propor a venda de
José, e depois pelo irmão que eles não queriam mais ver. Esse fato sórdido
teria abortado a história da família? A tristeza do patriarca inconsolável teria
sido um luto pela morte do clã? Esta impressão será reforçada pelo grande
lapso de tempo que decorre no capítulo 38 — duas gerações — e, depois,
pela história movimentada da ascensão de José no Egito (39–41).
No entanto, paradoxalmente, o leitor sente-se em território familiar: o da
enganação3. Assim, Judá, que, com os outros, enganou seu pai, por sua vez
é enganado por seu filho Onã (38,8-9). Então ele joga um jogo duplo para
tentar enganar sua nora Tamar e salvar seu filho, como Rubem fez com seus
irmãos na esperança de arrancar José da morte (38,11, ver também 37,22).
Depois, é a vez de Tamar iludir seu sogro com uma roupa, convidando-o, em
seguida, a reconhecer uma peça de identificação, como os irmãos fizeram
para enganar o pai a propósito do desaparecimento de seu filho (38,14-19.25-
26, ver também 37,31-334). Esta série continua com José no Egito: depois de
tentar enganar o marido com o jovem escravo estrangeiro, a esposa de Putifar
o engana, a ele e sua gente, apresentando uma peça de roupa como prova para
identificar o homem que ela acusa de tentativa de estupro (39,7.13-19). Pela
segunda vez José será privado de sua verdade por meio de sua roupa, encon-
trando-se, novamente, no fundo do buraco (cf. 40,15)5.
Mas é preciso entrar mais a fundo nestes dois episódios para tentar es-
clarecer o que está em jogo quanto aos dois personagens principais — Judá e
José —, pois é deles que ele trata aqui. Com efeito, no nível da intriga geral
da história de José, o que importa mais é, sem dúvida, a caracterização destas
duas figuras capitais6. Eis o propósito deste capítulo e do próximo.

2. Veja Von Rad, 364.


3. Falando dos modelos (padrões) e das simetrias na história de José, D. A. Seybold, Paradox
and Symmetry, 59, fala de Gênesis 38 como de um “espelho” do conjunto da narração. Veja também
W. L. Humphreys, Joseph and his Family, 37.
4. Comparar em particular os momentos de identificação 37,32-33 e 38,25-26. Nota-se também
a presença de um caprino (bode ou cabrito) nos dois estratagemas enganosos. Esta correspondência
já foi notada no Midrash Rabbá e é retomada por muitos modernos. Ver, por exemplo, R. Alter,
L’art du récit biblique, 19-23.
5. Para uma comparação mais profunda entre Gênesis 37, 38 e 39, ver A. Wénin, L’aventure
de Juda, 8-19.
6. Neste sentido, G. Fisher, Die Josefsgeschichte, 245-247, e Cotter, 266, 277-279 e 288;
para Gênesis 38 em particular, ver A. J. Lambe, Judah’s Development, 67-68.

80
Capítulo 5 – Judá e a lição de Tamar (38,1-30)

Judá e os seus (38,1-11)7


Por esse tempo, Judá desceu de junto de seus irmãos e estendeu [sua tenda]
até junto de um homem odolamita, de nome Hira.

No início, o narrador situa a ação “por esse tempo”, isto é, na época quando
Jacó pranteia o desaparecimento de José, não sabendo que foi vendido para o
Egito. Neste contexto, observando que “Judá desceu de junto de seus irmãos”,
ele se refere, sem dúvida, a algo mais do que um deslocamento. Não foi Judá,
de fato, quem propôs se desfazer de José vendendo-o (37,26-27)? Sentindo-
se mais culpado do que os outros, ele está se afastando das testemunhas e
cúmplices de seu crime. Autopunição? Desejo de esquecer, de fugir da crítica
coletiva e permanente que constitui a dor inconsolável de Jacó? O narrador
não faz questão de enfatizar o que apenas sugere, justapondo os fatos, ainda
que se preocupe em explicar para onde Judá vai: Odolam, cujo nome, muito
provavelmente, significa “esconderijo, refúgio”. O que vai fazer Judá neste
lugar? Uma experiência muito estranha de pai em uma nova família: a sua
própria.
Na primeira parte da narração (38,1-11) Judá é o protagonista. Está presente
em todo o sumário de máxima brevidade que mostra como ele se constitui uma
família (38,1-6), bem como no igualmente rápido relato do drama repetido que
se abate sobre ele (38,7-11). Por isso, é importante observar cuidadosamente
estas poucas linhas que desenham em grandes linhas o personagem.
Afastando-se dos seus, Judá “estendeu [*sua tenda] até junto de” um
estrangeiro de Odolam. Privado de seu complemento (“a tenda”), o verbo
sublinha a vontade que Judá tem de romper com seu clã de origem, ruptura
consumada quando desposa a filha de um cananeu8. Certamente, Judá deseja
virar a página refazendo sua vida em outro lugar. Mas o narrador não se detém
e continua em um ritmo desenfreado.
2
E ali, Judá viu a filha de um homem cananeu de nome Sué, e ele a tomou e
veio até ela. 3E ela engravidou e deu à luz um filho, e ele chamou seu nome
Er. 4E ela engravidou ainda e deu à luz um filho e ela chamou seu nome Onã.
5
E ela continuou ainda e deu à luz um filho, e ela chamou seu nome Sela — e
ele estava em Quezib quando ela o deu à luz.

7. Este estudo de Gênesis 38 é a revisão de uma parte do artigo publicado na Science et Esprit:
A. Wénin, La ruse de Tamar.
8. A sequência “Ele viu… e ele tomou…” é típica da cobiça (cf. Gn 3,6; 6,2; 10,15; 34,2). A
história do casamento de Judá não é descrita de forma muito positiva. Veja Turner, 164.

81
José ou a invenção da fraternidade

A união de Judá é seguida rapidamente pelo nascimento dos filhos Er,


Onã e Sela. O leitor atento notará as variações significativas. O mais velho
é o único a receber seu nome de Judá (38,3). Será o único que conta a seus
olhos ou quer destacar claramente quem é o primogênito? Com efeito, depois
de Er, é a esposa que se preocupa com os outros dois; Judá, inclusive, está
ausente na ocasião do nascimento do terceiro: “ele estava em Quezib quando
ela o deu à luz” (38,5b). Observe como o narrador foge à regra da extrema
concisão típica do resumo para prender-se ao detalhe que é, aparentemente,
insignificante. Voltaremos ao assunto.
Pulando, então, vários anos, a narração chega sem transição ao casamento
do primogênito e às suas consequências trágicas (38,6-11).
6
E Judá tomou para Er, seu primogênito, uma mulher de nome Tamar. 7Mas Er,
o primogênito de Judá, foi mau aos olhos de Adonai9, e Adonai o fez morrer.
8
E Judá disse a Onã: “Vem à mulher de teu irmão, para cumprir teu dever de
cunhado10 para fazer surgir uma semente para teu irmão”. 9E Onã soube que
não seria para ele a semente, e quando vinha à mulher de seu irmão, derramava
por terra, para não dar semente a seu irmão. 10O que ele fazia desagradava a
Adonai, e ele o fez morrer também. 11E Judá disse a Tamar, sua nora: “Fica
viúva na casa de teu pai até que tenha crescido meu filho Sela”, ele dizia [a
si mesmo]: “por medo de que também ele morra como seus irmãos!” E Tamar
foi e ficou na casa de seu pai.

“Judá tomou para Er, seu primogênito, uma mulher” (38,6). A coisa parece
normal. Contudo, não deixa de ser surpreendente: no Gênesis, onde as his-
tórias de família são numerosas, nenhum pai escolhe pessoalmente a esposa
de seu filho. Mesmo Abraão não o faz. Se ele manda seu servo procurar uma
esposa para Isaac, ele deixa a Adonai e a seu servo a tarefa da escolha. Então,
se Judá decide o casamento de Er, não é um sinal de que ele quer manter o
controle sobre o destino do filho? Além disso, o narrador toma o cuidado de
salientar que Er é “seu primogênito”, como para enfatizar que, arrumando o
casamento, é com sua linhagem que Judá está preocupado.
Na realidade, esta iniciativa paternal intempestiva é a primeira de uma série.
Judá, de fato, não deixa de impor suas decisões aos outros. É como se tentasse

9. Para substituir o Tetragrama YHWH, utilizo o costume da leitura judaica. Adonai significa
literalmente “(meu) Senhor”.
10. Ele faz menção aqui ao costume (ou à lei) do “levirato”, que diz que um irmão deve dar
descendência ao seu irmão falecido fecundando sua viúva (cf. Dt 25,5-6).

82
Capítulo 5 – Judá e a lição de Tamar (38,1-30)

manter a família sob controle11, talvez para evitar a desgraça em que seu pai se
meteu por não ter respeitado as regras relacionadas aos primogênitos e por não
ter conseguido conter seus filhos. Assim, depois de ter escolhido Tamar para
Er (38,6), preocupando-se com o mais velho, ele ordena a Onã submeter-se à
regra do levirato (38,8). Após sua morte, temendo pela vida de Sela, ele manda
Tamar de volta para sua família (38,11a). Certamente, é a preocupação pelos seus
que estimula Judá a esse comportamento. Mas ainda assim ele age afirmando
sua autoridade. Assim, ambas as vezes em que o narrador se dá ao trabalho de
informar as palavras que Judá dirige a outrem, trata-se de uma ordem que dá,
e o pai não imagina que possa ser desobedecido (38,8 e 11). No entanto, essas
ordens jamais o envolvem: é sempre aos outros e a suas vidas que pretende
controlar, como se ele tivesse o direito de dispor como quisesse.
No entanto, o mínimo que se pode dizer é que, apesar dessa autoridade, as
coisas fogem do controle de Judá e de seus conhecimentos. Mal tinha arranjado
o casamento de seu filho mais velho, este morre: “Mas Er, o primogênito de
Judá, foi mau aos olhos de Adonai, e Adonai o fez morrer” (38,7). Sublinhando
novamente que Er é “o primogênito de Judá”, o narrador insinua que é nesta
qualidade que ele é “mau” aos olhos do Senhor, esse Deus que, desde o início
do livro, opera e garante justas separações para que a fusão não sufoque a vida,
mas, ao contrário, as justas relações possam se estabelecer12. Quando quebra
brutalmente a ligação tão mal estabelecida entre Judá e “seu” primogênito, não
envia Adonai uma mensagem ao pai, mensagem semelhante à que os irmãos
enviaram a Jacó, privando-o de seu filho preferido? Se é isso, Judá não capta
o sinal, pois, para garantir uma descendência a Er, ele tenta exercer a mesma
influência sobre Onã. Mas este se rebela e o engana: ele dá a entender que
aceita sua cunhada, mas lhe recusa seu sêmen. Essa recusa da fraternidade e
da vida o leva à morte pela mão de Adonai (38,8-9), o que confirma que este
intervém lá onde o “mal” perverte as relações familiares.
Numa análise mais atenta, percebe-se que os dois filhos que Adonai fez
morrer refletem algo de seu pai. Er, como vimos, está intimamente associado

11. A ideia é de D. M. Gunn, D. Nolan Fewell, Narrative in the Hebrew Bible, 36, que des-
tacam bem essa ideia relacionada à figura de Judá. Em qualquer caso, é só ele quem toma todas
as decisões (Westermann, 52).
12. Desde Gênesis 1, Deus separa os elementos do universo e os seres vivos em vista de rela-
ções justas e fecundas. Veja também 2,18-22 (separação entre homem e mulher); 10,1-11,9 (entre
os povos); 12,1-3; 21,12-13 e 22,1-19 (entre pai e filho); 24,50-52 e 31,14-16 (entre pai e filhas);
13,5-13 e 31,3.51-53 (entre tio e sobrinho); 26,14-33 (entre aliados). Não parece necessário supor
que Er tenha cometido uma falta moral, como pensam R. Alter, Genesis, 218, e Cotter, 281.

83
José ou a invenção da fraternidade

à forma autoritária em que Judá vive sua paternidade. Quanto a Onã, enga-
nando seu pai e negando qualquer futuro para o irmão falecido, reproduz o
que Judá fez, como filho e irmão, com Jacó e José. Nestas circunstâncias, a
morte dos dois filhos contém, para Judá, uma advertência discreta de que o
caminho que está seguindo, como filho, irmão e pai, leva à morte. Mas ele não
entende. Não se faz nenhuma pergunta quando da morte de seus filhos. Nem
mesmo parece imaginar que a morte de Onã possa ser uma consequência de
seu comportamento — o que o leitor sabe —; é como se se recusasse a consi-
derar, nem mesmo por um momento, que seu filho pudesse ter desrespeitado
sua autoridade e que é seu comportamento inadequado como filho, irmão e
pai (faltoso) que o precipita na morte. A única reação de Judá é ir em frente,
continuar a impor suas vontades, como alguém que prefere não voltar a si e
a seu passado, e que pensa que, se as coisas vão mal, a razão disso deve ser
buscada fora dele, alhures. Além disso, embora pareça crucial para ele, a face
oculta da morte de seu filho lhe escapa totalmente, embora pense conhecê-la,
suspeitando que Tamar seja a culpada (38,11a).
Mas não é demais repetir que, se Judá tenta controlar tudo e acredita que
consegue, o que rege sua ação e suas decisões é claramente um desejo de vida.
O que leva alguém a se casar, ter filhos e vê-los tomar uma mulher senão
certo desejo de vida? Esse também é o motivo pelo qual Judá manda que Onã
assegure uma descendência para o seu irmão. Esse mesmo desejo de vida o
impele ainda a proteger seu terceiro filho, distanciando-o daquela que crê ser
a que provoca a morte de seus maridos. Neste estágio, portanto, fica claro que,
com Judá, o desejo de vida se estreita ou se perverte em medo da morte.
Mas, se se pode compreender o medo de Judá de ver Sela acabar como
seus irmãos, sua falta de respeito por Tamar é surpreendente. Sem tentar ve-
rificar se ela é ou não responsável pela morte de seus filhos, Judá a abandona
em sua viuvez. Ele a manda, com efeito, esperar que Sela cresça, mas não
se percebe como o tempo possa acalmar o medo que o leva a despedir sua
nora13. Por que essa mentira por omissão para com “sua nora”, como a chama
o narrador (38,11a), se ele guarda em relação a ela um dever? Certamente, o
narrador, ao revelar-nos o pensamento de Judá, insinua que este acredita que
a mulher seja culpada das mortes anteriores. Mas não só o tema, também o
modo de apresentá-lo fala alto. Com efeito, após a morte de Er, Judá mostrou
quanto vale para ele o respeito a costumes e regras. No momento presente,
ele faz Tamar acreditar que cumprirá com suas obrigações quando Sela estiver

13. Veja Von Rad, 366.

84
Capítulo 5 – Judá e a lição de Tamar (38,1-30)

com idade suficiente, mas esconde seu motivo inconfessável e continua a


apresentar-se como um pater familias honrado14, cumpridor dos costumes
legais, ao passo que, conscientemente ou não, conta, sem dúvida, com o
tempo que passa para que o esquecimento se instale — como será sugerido
a seguir (38,13-14). Sua duplicidade é um reflexo da de Onã: exteriormente,
ele engana, fingindo respeitar a ordem, mas secretamente ele a transgride,
porque vai contra seus interesses; aliás, também como Onã, ele se recusa a
dar sua “semente” (no sentido de “descendência” aqui), sem respeito pelas
mulheres, seus desejos e seus direitos.
Aqui o leitor lembra-se do nome do lugar em que Judá estava no nasci-
mento de seu filho que hoje tenta proteger: Quezib. O nome que o narrador
mencionou sem nenhuma razão aparente deve, sem dúvida, ser aproximado
do verbo kazav, “mentir, enganar”. Pode designar um córrego intermitente
que flui em tempo de chuva, águas de fluxo não confiável, decepcionantes
(em hebraico ’akzav)15. Não é isso que o leitor descobre de Judá, quando se
mostra não confiável, ao tentar proteger da morte a Sela, que pela força das
circunstâncias se tornou seu primogênito?

O desejo de Tamar e de Judá (38,12-23)


Quando Tamar, viúva em espera, volta para seu pai, o narrador não diz
nada sobre o que ela sente. Limita-se a fornecer algumas informações que
obviamente não são irrelevantes para a ação futura (38,12).

E multiplicaram-se os dias, e morreu a filha de Sué, mulher de Judá, e Judá


se consolou; e subiu para a tosquia de seu rebanho, ele e Hira, seu amigo, o
odolamita, a Tamna.

“E multiplicaram-se os dias”: esta citação temporal é importante, antes


que o narrador conte a iniciativa de Tamar, que, com o tempo, se sente

14. Esse apego à sua imagem se verifica novamente mais tarde. Quando, depois de estar com a
prostituta (zonah), Judá deve encontrá-la para pagá-la e acertar seu salário, ele não o faz, mas delega seu
amigo. Além disso, após ter se satisfeito com uma prostituta, parece sentir-se constrangido, porque ele
fala de uma prostituta sagrada (qedešah, pelo menos é a palavra que seu amigo empregará), dissimulando
atrás de uma causa sagrada um ato que provavelmente não o deixou particularmente orgulhoso. É que
ele não quer expor-se (38,23). Nesse sentido, por exemplo, Westermann, 54, e Hamilton, 447.
15. Cf. Jeremias 15,18, onde o adjetivo ’ak-zav tem como paralelo lo’-ne’eman (não confiável).
Eu emprestei essa ideia para D. M. Gunn, D. Nolan Fewell, Narrative in the Hebrew Bible, 35;
ver também Sarna, 266 e Janzen, 152 e 153, que retomam da tradição judaica a imagem do leito
de um rio intermitente.

85
José ou a invenção da fraternidade

definitivamente negligenciada. Ela exerceu paciência, deu o tempo necessário


para Sela crescer. Mas nada aconteceu quando o prazo fixado por Judá expirou
(38,14b, ver também v. 10). Depois sobreveio a morte da filha de Sué, mulher
de Judá, e o período de luto que se segue. Esta morte precisava ser relatada
por duas razões pelo menos. De um lado, Judá, uma vez morta sua esposa,
não poderá mais ter outros filhos da mesma linhagem que Sela. A morte invade
ainda mais o campo das relações familiares. Por outro lado, como Judá está
viúvo e o luto terminou, sua atração por uma prostituta surpreenderá menos.
Finalmente, a tosquia do rebanho proporciona um quadro natural para a es-
trepolia que Judá vai se permitir, mas também um quadro simbólico que será
útil ao leitor16. Porque, para pastores, essa grande festa é também a da ferti-
lidade do rebanho17.

E foi comunicado a Tamar: “Eis que teu sogro sobe a Tamna para a tosquia
13

das ovelhas”. 14E ela tirou seus vestidos de viúva de cima de si e cobriu-se com
o véu, e disfarçou-se e foi sentar-se em Peta-Enaim [“Porta de duas fontes”],
que está no caminho de Tamna; pois vira que Sela havia crescido, e que ela
não lhe tinha sido dada por mulher.

Tamar chega, pois, a saber da passagem de “seu sogro” — a precisão


lembra ao leitor que, aos olhos da mulher e do informante anônimo, este tem
ainda obrigações que se referem a ela. Também é informada de seu itinerário,
bem como da ocasião festiva de sua chegada na região. Então, a viúva sai da
posição reservada à qual estava confinada. Vemo-la disfarçar-se para tornar-se
irreconhecível e seguir para um lugar onde Judá deve passar para ir a Tamna.
O que ela vai fazer? Qual é sua intenção? O leitor não sabe. A única coisa
que o narrador lhe diz em segredo é que ela faz isso porque “vira que Sela
havia crescido, e que ela não lhe tinha sido dada por mulher” (38,14b). Judá
não tinha mantido sua palavra, e Tamar está ainda privada de filho18. É a razão
pela qual ela o espera no meio do caminho.
Se o narrador esforça-se para especificar o nome do local certo onde
Tamar deve ficar, “a porta de duas fontes” — ou, mais literalmente, “abertura
de dois olhos” —, isto não deve ser por simples atenção aos detalhes. Este
nome pode sugerir mais de um sentido. A primeira conotação possível é a da
esperança que sustenta o encontro de Tamar, ela que está sem filho, mas tem

16. Nesse sentido, Hamilton, 439.


17. Veja detalhes sobre esta festa dada incidentalmente em 1 Samuel 25,7-8 e 2 Samuel 13,23-28.
18. Nesse sentido já, Gunkel, 415.

86
Capítulo 5 – Judá e a lição de Tamar (38,1-30)

o direito de desejar um do mesmo sangue que Er, seu falecido marido. Aos
olhos do leitor, na verdade, o lugar onde ela vai ficar não é neutro. Depois
dos capítulos 24 e 29, o leitor do Gênesis já não ignora que o encontro entre
um homem e uma mulher perto de águas próximas a uma aldeia pode anun-
ciar uma união fecunda, a princípio19. O símbolo da fonte, um buraco de onde
brota a vida, pode reforçar esse sentido. Assim, especificando o nome deste
lugar, o narrador poderia insinuar discretamente que é um desejo de fecundi-
dade que incentiva Tamar a agir.
Mas há também a ironia mordaz à custa de Judá, um procedimento que o
narrador — apelando à sua onisciência — usa para aproximar o leitor de Tamar,
a ponto de não se escandalizar quanto ao que vai ler sobre seu personagem.
A ironia surge do contraste entre os “olhos abertos” de Tamar, que “vira que
Sela havia crescido” sem que ela lhe tivesse sido dada por mulher (38,14b),
e a cegueira de Judá, que achava que sabia tudo, mas agora está prestes a ser
desmascarado, sem que o saiba, por Tamar. A ironia vai aumentar, depois, na
oposição entre os dois protagonistas. Enquanto Tamar, espiando pelo véu que
a encobre, gerencia perfeitamente a situação a seu favor, seu sogro, apesar dos
olhos bem abertos, não a reconhece e não se dá conta de nada até o final, até
que Tamar o arranque de sua cegueira20.
Assim, Tamar espera Judá à beira do caminho.

E Judá a viu e a tomou por uma prostituta, porque seu rosto estava coberto.
15

Ele inclinou-se a ela no caminho e disse: “Deixa, por favor, que venha junto
16

de ti” — pois não sabia que ela era sua nora. E ela disse: “Que me darás por
vires junto de mim?”.17E ele disse: “Eu te mandarei um cabrito do rebanho”.
E ela disse: “Darás um penhor, até que o mandes”. 18E ele disse: “Qual é o
penhor que te darei?”. E ela disse: “Teu anel de sinete, teu cordão e teu cajado
que tens nas mãos”. Ele [os] deu e veio junto dela, e ela engravidou dele/para
ele. 19E ela levantou-se e foi-se. Ela tirou seu véu de cima de si e vestiu-se
com seus vestidos de viúva. 20E Judá mandou o cabrito prometido, pela mão
de seu amigo odolamita, a fim de receber o penhor da mão da mulher, mas
não a achou. 21E interrogou os homens do lugar dela, dizendo: “Onde está a

19. Veja o tipo de cena estudada em R. Alter, L’art du récit biblique, 73-88. Em Gênesis 16,7-14,
o reencontro nos poços entre Agar e o mensageiro do Senhor enseja uma promessa de fecundidade
cujo primeiro sinal é o nascimento de uma criança. Nesse sentido, Turner, 166, e Cotter, 284.
20. A ironia desta história é explorada com sutileza por J. L. Ska, L’ironie de Tamar. Turner,
166, destaca por sua parte a relação com a esperteza de Labão e Lia em relação a Jacó em 29,9-10.
Sobre o “abrir os olhos”, ver Hamilton, 440.

87
José ou a invenção da fraternidade

prostituta sagrada que estava em Enaim, sobre o caminho?”. E eles disseram:


“Não houve [nunca] aqui prostituta sagrada!”. 22E ele voltou para junto de
Judá e disse: “Não a achei, e mesmo os homens do lugar disseram: ‘Não houve
[nunca] aqui prostituta sagrada!’”. 23E Judá disse: “Que ela tome [o penhor]
para si, de medo que sejamos objeto de desprezo. Eis: eu mandei este cabrito,
mas tu não a encontraste”.
Judá toma, pois, sua nora, encoberta por um véu, por uma prostituta
(38,15)21. Será isso o que Tamar queria? O leitor o pode imaginar, embora o
narrador não o explicite, preferindo concentrar-se em Judá, que se engana a
si mesmo, enganando-se a respeito da mulher encoberta. O narrador, aliás,
insiste: quando Judá vai com ela para propor-lhe uma relação, ele repete que
“não sabia que era sua nora” (38,16). Evidentemente, essa interpolação escusa
Judá, destacando que, sem querer, ele solicita uma relação que na realidade
é incestuosa; mas ela também lembra a cegueira persistente do homem que
continua a “ver” sem “saber”.
Neste ponto — e como o narrador, já desde o encontro, chama a atenção
para a cegueira de Judá —, impõe-se a pergunta de como ele pode tão facil-
mente equivocar-se e solicitar, cegamente, os serviços de uma prostituta. Aqui,
o leitor pode recordar que o narrador tem o cuidado de localizar o incidente
imediatamente após a morte da esposa de Judá (38,12). Essa terceira morte
e o luto que ele teve de fazer poderiam ter reavivado nele o sentimento da
ameaça de extinção que paira sobre seu clã. Nesse sentido, sua abordagem
da prostituta poderia ser o indicativo de um desejo frustrado, diretamente li-
gado à relação sexual que atrai Judá: o de uma fecundidade para si, fecundi-
dade que as mortes sucessivas comprometeram e que ele mesmo prejudicou
ao recusar Sela a Tamar. Em todo caso, tal motivação inconsciente se encai-
xaria perfeitamente com o desejo de vida que, desde o início, é o de Judá,
embora neutralizado por um medo da morte mais forte que ele.
Em tal contexto, a iniciativa de Tamar adquire um significado mais amplo.
Se ela ouve seu próprio desejo de vida, ela conta também com o desejo que se
pode presumir em Judá. Não é, com efeito, esse o desejo que ela viu em ação,
em casa, quando ele ordenou Onã a unir-se com ela, e depois, quando tentou
afastá-la de Sela? Além disso, quando ela se cobriu para o esperar nas duas
fontes, na esperança de um encontro, não é somente o seu próprio desejo de
fecundidade que ela procura satisfazer, mas também o antigo desejo de Judá

21. Westermann, 53, sublinha, com razão, a sobriedade da narração: nenhum julgamento é
relatado pelo narrador, que se contenta em mostrar como o plano de Tamar se desenvolve.

88
Capítulo 5 – Judá e a lição de Tamar (38,1-30)

de ter uma descendência para seu filho primogênito (38,8), desejo frustrado
pelo medo da morte e pela vontade de salvar sua cara. Neste sentido, o véu
que cobre Tamar não tem por único objetivo permitir-lhe enganar seu sogro.
Ele visa também a evitar que ele ceda ao medo que o faz manter Sela longe
dela, trapaça que pode ser menos destinada a enganá-lo do que a enganar seu
medo. Fruto de um intenso desejo de vida, o mesmo desejo que em Judá se
encontra momentaneamente paralisado. Então, é realmente “para” ele, e não
apenas por meio dele, que Tamar concebe (38,18b)22.
Se assim é, compreende-se que a mulher não precisava do cabrito de Judá.
De acordo com a simbólica animal no início do capítulo 37, o jovem caprino do
rebanho que ela reclama a Judá poderia ser uma metáfora da criança do sangue
dele que ela deseja. Uma vez grávida, Tamar tem o que ela quer. Mas ela ainda
precisa de um penhor para poder identificar aquele com quem ela procriou.
Portanto, ela guarda essas peças de identificação que inteligentemente pediu, a
fim de mostrar a Judá que ele é o pai de seu filho23. Àquele que pensava estar
livre de sua dívida, dando um cabrito do rebanho, Tamar dará dois filhos para
sua casa, enquanto a verdadeira dívida de Judá com ela estará, enfim, paga.

A vida prevalece (38,24-30)


A intriga encontra um desfecho rápido três meses depois. A voz anôni-
ma, que avisou Tamar de que Judá ia passar por lá, denuncia agora o estado
da mulher, acusando-a, por duas vezes, junto ao sogro, de ter se prostituído
(38,24a).

Passaram-se uns três meses, e foi relatado a Judá nestes termos: “Ela se
24

prostituiu, Tamar, tua nora; e mesmo: eis que está grávida de sua prostitui-
ção”. E Judá disse: “Fazei-a sair, que seja queimada!”. 25Enquanto a faziam
sair, ela mandou dizer a seu sogro: “É de/para um homem a quem pertencem
estas coisas que estou grávida”. E ela disse: “Reconhece, por favor, de quem
são este anel de sinete, estes cordões e este cajado”. 26E Judá reconheceu e
disse: “Ela está em seu direito contra mim24, pois, de fato, não a dei a Sela
meu filho, e ele não tem continuado a conhecê-la”25.

22. A preposição utilizada pelo narrador pode ter os dois sentidos em hebraico.
23. A coisa é destacada por Gunkel, 416, Westermann, 53, e R. Alter, Genesis, 220.
24. Tradução a partir de Gunkel, 418. Literalmente: “Ela é mais justa do que eu”.
25. De preferência a “E ele (Judá) não continuou a conhecê-la”, em seguida a J. P. Fokkelman,
Genesis 37 and 38, 172-174: nada justifica entre Judá e Tamar outras relações sexuais, cuja narração
supõe o caráter ilícito (38,15-16). Essa cláusula está no fim do discurso de Judá para explicar as

89
José ou a invenção da fraternidade

No início da cena, o narrador faz entender a Judá o que o leitor já sabe


desde o versículo 18: a gravidez de Tamar. Ele focaliza a atenção do leitor
não sobre o conteúdo de uma notícia que já conhece, mas sobre a forma com
que Judá vai reagir: ouvindo falar de prostituição, será que vai lembrar-se da
cena que ele preferiu esquecer por medo do ridículo (38,23)? Pelo jeito, não.
E tanto a rapidez quanto a concisão de sua sentença mostram que ele não
tem a mínima consciência de estar implicado no escândalo público de que
sua nora é objeto (38,24). Pois Judá decide o caso sem hesitação ou piedade.
Duas palavras são suficientes para enviar ao fogo esta nora cujo pecado foi
descoberto. Judá estaria com pressa para se livrar de uma mulher incômoda
e, por conseguinte, libertar Sela para um casamento menos perigoso?26
Em seguida, o narrador mostra em grandes linhas como Tamar, por or-
dem de Judá, é conduzida à fogueira e acaba exibindo os sinais suscetíveis
de confundir aquele que o narrador chama novamente de “seu sogro”, como
para sugerir em que qualidade ela o interpela. Pois o homem que a condena
sem piedade é seu sogro. Como tal, ele não está livre para com ela, se bem
que a falta que ele carrega fica escondida. No entanto, Tamar não pronuncia
nenhuma acusação contra ele. Vemo-la discreta, até mesmo na maneira de lhe
enviar os sinais de identificação do genitor — e beneficiário — de seu filho
(38,25)27. Respeitosamente, mas com firmeza, ela convida Judá a reconhecer
uma verdade à qual ele até agora se recusou, preso à sua falsa imagem de
homem impecável, por medo de ser envergonhado. Fazendo isto, ela corre o
risco de colocar nas mãos de seu sogro sua própria sorte, mas também a da
criança que está para nascer, condenada a morrer com ela. Em suma, apela
para o sentido de responsabilidade e de justiça dele, embora possa ter todos
os motivos para duvidar desse sentido.
Diante da evidência que o deixa confuso, porém não constrangido, e con-
vidado a optar entre a vida e a morte, Judá escolhe a vida. Reencontrando a

consequências de ter se recusado a dar Sela a Tamar: este, após a morte de Onã, era incapaz de
continuar a satisfazer a mulher em vista de suscitar uma descendência a seu irmão falecido. Ver
neste sentido também Cotter, 286.
26. A ideia é D. M. Gunn, D. Nolan Fewell, Narrative in the Hebrew Bible, 42.
27. Temos notado que ela contata Judá por um intermediário, como os irmãos fizeram para
enganar Jacó (37,32); suas palavras, “reconhece, por favor”, são as mesmas que os irmãos dirigi-
ram a seu pai em 37,32; esta relação é destacada por R. Alter, L’art du récit biblique, 20-21, que
remete à tradição judaica. Para outras relações, consulte A. Wénin, L’aventure de Judá, 9-13. Além
disso, o narrador relata as coisas como se tudo fosse disputado entre Judá e Tamar, na ausência
de qualquer público suscetível de fazer pressão sobre ele. Neste sentido, Sarna, 270. Este tipo de
comportamento mostra quanto Tamar é justa.

90
Capítulo 5 – Judá e a lição de Tamar (38,1-30)

capacidade de dizer as coisas como elas são (cf. 37,26-27), ele sai da mentira
atrás da qual se escondia e, finalmente, confessa a culpa escondida que Tamar
adivinhara (38,11 e 14). Suspendendo a sentença que havia emitido, ele se
reconhece como o verdadeiro culpado (38,26). Junto com sua culpa reconhece
a inocência profunda de Tamar, justificando pelo próprio fato a conduta dela.
E ele se explica: ela fez isso porque ele falhou com seu dever por não a ter
dado ao seu filho Sela, que, por isso, não pôde conhecê-la depois de Onã a
fim de suscitar uma descendência para seu irmão28. Porque ele, em seu medo
da morte, quis preservar a vida, Tamar teve que enfrentar a morte na esperança
de que a vida prevalecesse. É nisto que ela é justa, e ele, culpado.
É uma lição de vida que Judá recebe aqui de sua nora, que o leva final-
mente a reconhecer que não se salva a vida protegendo-a timidamente da
morte — pelo contrário, é o meio mais seguro de perdê-la —, mas arriscando
e com coragem. Num primeiro momento, enquanto implementava seu plano,
Tamar já se recusava a se resignar diante do medo de Judá e também diante
de seu próprio medo. No momento final, ela não teve medo de o enfrentar
e de confrontá-lo com sua verdade, e isso sem saber se ele não persistiria na
mentira e aproveitaria a oportunidade para eliminar essa sua nora incômoda
e comprometedora. Por essa dupla audácia, Tamar força o impasse do me-
do e permite o triunfo da vida ao mesmo tempo que o da verdade.
É isso o que destaca o epílogo que relata brevemente o nascimento dos
gêmeos, sinal de que uma abundância de vida está garantida a quem recusa
resignar-se diante da morte e ceder à mentira que a esconde e ao medo que
ela inspira.
E chegou o tempo de ela dar à luz, e eis, gêmeos em seu ventre. 28E enquanto
27

dava à luz um deles estendeu uma mão, e a parteira [a] pegou e atou em sua mão
um [fio] escarlate, dizendo: “Este saiu primeiro”. 29E recolhendo ele sua mão,
eis que saiu o irmão dele, e ela disse: “Ah, como abriste uma brecha contra ti!”.
E ele o chamou com o nome de Farés [Brecha]. 30E depois saiu seu irmão que
na mão tinha o [fio] escarlate, e ele o chamou com o nome de Zara [Brilho].
Observe-se a mudança desde o início da história. Enquanto Judá deixou à
sua mulher a incumbência de dar os nomes aos dois filhos mais novos deles
(38,4-5), ele mesmo dá os nomes aos filhos nascidos de Tamar, reconhecendo-
os como seus próprios (duas vezes “e ele o chamou”, em 38,29b e 30b). Esses
nomes próprios não marcam somente as circunstâncias do nascimento dos

28. Westermann, 55: “Ele vê sua conduta (de Tamar) justificada pela sua própria injustiça”.

91
José ou a invenção da fraternidade

irmãos, o que destaca o narrador nos versículos de 28 a 30. Ao atribuí-los,


Judá pode também estar lembrando o essencial de sua história com a mãe. Pois
cada nome, à sua maneira, demonstra que a vida teve de superar o impasse
para nascer de novo: Farés (Peres.) significa brecha e transbordamento, e Zara
(Zerah.) evoca o esplendor do sol, seu brilho quando emerge da noite. Neles,
Judá encontra a evidência de que Tamar não é portadora da morte como ele
pensou por um tempo, e de que, pelo contrário, graças a ela, a vida prevalece.
Testemunhas disso são os gêmeos que nascem como para substituir seus dois
filhos que faleceram. Tanto Judá como o leitor são postos diante da vida que
recomeça para além da morte, do medo e da mentira, vida que desabrocha
nesses dois filhos, “Brecha” e “Brilho”.
Graças a Tamar, Judá é um homem transformado. Certamente, o leitor
não sabe se é para sempre. Mas no final deste episódio ele presencia uma
reviravolta inesperada do personagem que vira as costas para o que ele era
até aqui, ao enxergar que sua maneira de ser — vontade de dominar coisas
e pessoas, resultando em injustiça, mentira e preocupação com sua imagem
— arrasta a morte em sua esteira. Ele não pôde reconhecê-lo diante do luto
dilacerante de seu pai causado pelo desaparecimento de José: ele preferiu,
então, se distanciar. Ele tinha ficado cego quando Adonai fez morrer seus
filhos, enviando-lhe, por duas vezes, uma mensagem discreta nesse sentido.
Ele preferiu continuar. Mas Tamar, por meio de sua astúcia, conseguiu abrir-
lhe os olhos, convidando-o, com tato, a escolher finalmente a verdade e a vida
que dela brota, para derrotar a morte gerada pela ambição e pela mentira.
Resta descobrir o impacto desta narrativa no leitor quando ler o resto da
história29. Pois não é somente Judá que sai transformado da aventura vivida com
Tamar. O leitor também, sem o perceber, recebe aqui importantes chaves de
leitura para decifrar o enigma da narrativa que se segue, no que concerne tanto
a Judá quanto a Tamar. Com efeito, se Judá tiver de reviver mais tarde alguns
momentos desta aventura, a sabedoria astuciosa que Tamar põe à obra para
fazer triunfar a vida prepara o leitor para outros acontecimentos que descobrirá.
Além disso, a breve narrativa do capítulo 38 lhe servirá quase de lupa quando a
vítima de outra injustiça, José, em vez de procurar se vingar, escolherá — como
Tamar — conduzir passo a passo aqueles que lhe fizeram violência a reconhecer
por si mesmos o mal que lhe infligiram e a mudar de caminho30.

29. Sobre a evolução de Judá e o lugar de Gênesis 38 na intriga da história de José, ver E. Fox,
The Five Books of Moses, 178-180, seguido por Cotter, 227-278.
30. A este respeito, ver J. P. Sonnet, Leurs yeux s’ouvrirent, 53 (nota 7).

92
Capítulo 6

A sabedoria de José
(39–41)

Se o episódio anterior relata a metamorfose de Judá graças a Tamar,


também as cenas que se seguem falam de uma transformação: a de José.
Mas não se trata de uma meia-volta. O narrador quer antes mostrar como a
sabedoria de José se afirma sempre mais e o leva, de escravo comprado, no
início (39,1), a ocupar a cúpula do poder no Egito (41,55). Ele alcança isso
em três etapas. A primeira situa-se na casa de Putifar, alto funcionário egípcio
que o comprou. Em pouco tempo, graças a Adonai, José leva prosperidade
à casa de Putifar por meio de uma administração sábia. Assim, torna-se o
homem de confiança de seu amo. Mas a esposa deste consegue, por suas ca-
lúnias vingativas, mandá-lo para a prisão (39,1-20). Novamente assistido por
Adonai — segunda etapa —, José ganha os favores do chefe da prisão, que o
faz seu braço direito e lhe confia os outros detentos de marca. Nesta ocasião,
José se revela excelente intérprete de sonhos. Mas o esquecimento ingrato de
um funcionário régio, a quem tinha anunciado sua reabilitação, o mantém na
prisão (39,21–40,23). Terceira etapa: dois anos depois, os misteriosos sonhos
do Faraó despertam a memória do funcionário. Tirado de seu buraco, José
interpreta os sonhos e dá conselhos cheios de sabedoria para impedir a grave
crise que se anuncia. o Faraó o nomeia, então, primeiro-ministro e lhe confia
a administração da crise, tarefa que José executa com lealdade e, sobretudo,
com eficácia (41,1-53).

93
José ou a invenção da fraternidade

Onde José adquiriu essa sabedoria que fez dele um sábio administrador,
um intérprete perspicaz dos sonhos, um conselheiro ímpar? Na realidade, a
história não o diz, como também não justifica explicitamente por que Adonai
está ao lado de José na casa de seu mestre, Putifar (39,1-5), e depois, em sua
prisão (39,21-23). No entanto, na cena que se segue à história de Judá e lhe faz
eco, o narrador talvez deixe transparecer algum elemento da resposta, graças
às repetições. Além disso, como no caso de Judá, é na confrontação com uma
mulher que José vai mostrar quanto mudou desde a época em que — jovem,
fanfarrão e complicado — contou seus sonhos para seus irmãos ciumentos.

José e a mulher de seu senhor (39,1-19)1


Comprado por Putifar dos ismaelitas que o haviam levado ao Egito
(39,1), José conhece uma ascensão meteórica na casa de seu amo. É assim,
pelo menos, que o narrador compõe a cena inicial, criando a impressão de
uma ascensão rápida e sem obstáculos, explicada pela presença de Adonai
ao lado de José. Nisso, o destino de José se opõe, logo de cara, ao de Judá,
que Adonai golpeia e adverte indiretamente através da morte de seus filhos
(39,1-6, ver também 38,7-10).
1
E José foi, pois, descido para o Egito, e Putifar, eunuco do Faraó, chefe da
guarda, homem egípcio, comprou-o da mão dos ismaelitas, que para lá o tinham
descido. 2E Adonai estava com José, e ele era um homem que prosperava, e
estava na casa de seu senhor egípcio. 3E seu senhor viu que Adonai [estava]
com ele e que tudo o que fazia, Adonai o fazia prosperar em sua mão. 4E José
encontrou graça a seus olhos e o servia; e ele o pôs à frente de sua casa, e tudo
o que era seu, ele lho deu na mão. 5E desde que o pusera à frente de sua casa e
sobre tudo o que era seu, Adonai abençoou a casa do egípcio por causa de José,
e a bênção de Adonai estava sobre tudo o que era seu, na casa e no campo. 6E
ele deixou tudo o que era seu na mão de José e, com ele, nada conhecia a não
ser o pão que comia2. E José era belo de estatura e belo de semblante.

Como para antecipar toda a ascensão de José no Egito, sua evolução na


casa de Putifar se desenrola em três fases: de início, Adonai está com José,

1. Esta seção inspira-se em A. Wénin, Joseph et la femme de Putiphar, 124-130.


2. Segundo a tradição judaica, o pão é um eufemismo para falar da esposa, domínio reservado
para o senhor, como o diz José no versículo 9, usando a mesma frase “nada… a não ser…”. Ver o
Targum, Genesis Rabba 86, e Sarna, 272. Westermann, 64, está certo ao pensar, com L. Ruppert,
que aqui o pão indica de forma geral os assuntos privados.

94
Capítulo 6 – A sabedoria de José (39–41)

que se mostra um servo eficaz, a ponto de poder trabalhar como doméstico


no interior da casa (39,2). Vendo, então, que Adonai faz prosperar tudo o que
José empreende, Putifar lhe concede seu favor e lhe confia as responsabili-
dades de mordomo, de gerente de seus bens (39,3-4). Enfim, como a bênção
divina desce sobre a casa e todas as propriedades de Putifar, este faz de José
uma espécie de plenipotenciário, que goza de sua confiança cega (39,5-6a)3.
A ascensão de José chega a uma posição que sua descida para o Egito e sua
venda como escravo não deixaram prever.
Há mais: no versículo 5, o narrador insiste por duas vezes no fato de que
a bênção de Adonai passa por José para permanecer sobre seu amo estrangeiro
que lhe concede sua consideração e sua confiança, pois reconhece nele um
homem por meio do qual Adonai dá prosperidade e bem-estar. No contexto
do livro do Gênesis, essa insistência ganha um relevo singular. Salienta, com
efeito, que, exilado numa nação estrangeira, José realiza ali a promessa feita por
Adonai a Abraão no início da aventura dos patriarcas (12,1-3). José, tal como
seu bisavô, depois de ter “deixado sua terra, sua parentela e a casa de seu pai”,
torna-se uma bênção para o estrangeiro que o reconhece. Por esses detalhes, o
narrador descreve José como o herdeiro da eleição e da bênção divina que lhe
está ligada4, posição que não deixará de ocupar em benefício do Egito.
A isso o narrador acrescenta uma nota sobre a beleza de José (39,6b),
como se sugerisse que seu desenvolvimento transforma até sua aparência,
tornando-a tão encantadora quanto a de sua mãe, Raquel (cf. 29,17). Esta sua
beleza, tanto quanto seu sucesso, sem dúvida, atraem a atenção (39,7).
Depois destes fatos, sucedeu que a mulher de seu senhor levantou/pôs nele os
olhos e lhe disse: “Deita-te comigo!”.
O olhar que a esposa de Putifar lança sobre José é marcado pela sofreguidão
que a leva a expressar sem rodeios nem equívoco o desejo que o jovem lhe
desperta. O pedido “deita-te comigo!” é tão cru quanto imperativo, e também
claro quanto às intenções da mulher, que se coloca no centro e pretende atrair
José para si, num gesto típico da cobiça.
A resposta de José não poderia ser mais categórica em face daquela em
que vê “a esposa de seu senhor”. Às duas palavras da mulher, ele responde
com uma negação firme (“e ele recusou”), que argumenta assim (39,8-9):

3. Ver também Gunkel, 422-423, Sarna, 271-272, e Cotter, 290-291.


4. Ver, por exemplo, Wenham, 358, e Hamilton, 459-461. Esta característica é mais evidente
quando comparada com a primeira descida para o Egito, no Gênesis, a de Abraão, o qual, cheio de
cobiça, leva para os egípcios maldição em vez de bênção (12,10-20).

95
José ou a invenção da fraternidade

8
E ele recusou e disse à mulher de seu senhor: “Eis: meu senhor não conhece
nada na casa, e tudo o que é seu, ele o deu em minha mão. 9Ele não é, nesta
casa, maior do que eu, e ele não guardou nada longe de mim a não ser a ti,
porque tu és sua mulher. E como eu cometeria este mal tão grande e pecaria
contra Deus?”.
No início da argumentação, José fala da total confiança que seu amo
lhe deu, entregando-lhe todos os seus bens e confiando cegamente nele.
Ultrapassando o que foi dito pelo narrador, ele mesmo diz como ele vê sua
posição na casa: seu amo não lhe é superior em nada, e, portanto, somente
a esposa faz a diferença. Na realidade, este argumento poderia motivar uma
escolha diferente diante do convite da mulher: visto que o amo “não conhece/
sabe nada (do que se passa) na casa”, José poderia enganá-lo com sua esposa,
tornando-se superior a seu senhor5. Mas ele não come deste pão! Nem mesmo
considera a possibilidade de se envolver em tal abuso de confiança. Em vez
disso, recusa terminantemente a transgressão que consistiria em apoderar-se
da mulher, o único limite que distingue dele o seu senhor. Ele quer respeitar o
fato de Putifar ser seu senhor, em vez de aproveitar a oportunidade para usurpar
seu lugar. Assim, longe do jogo ambíguo que jogava com seus irmãos, José
não procura se impor nem ocupar o primeiro lugar, mesmo que a possibilidade
lhe seja franqueada. Este é um primeiro indício de sua transformação6.
Como apoio à sua rejeição, José cita a figura de Deus, aquele que garante
os limites que permitem a todos dispor de um lugar próprio. Pois desde a cria-
ção (Gn 1) é para o “bem” que os limites são definidos, de sorte que podem
se estabelecer relações harmoniosas e expansivas. Com Adão e Eva, o leitor
viu a que desgraça leva a cobiça, que induz a negar os limites da criação. É
a este “mal”, que seria para ele um “grande pecado contra Deus”, que José
diz “não” quando rejeita a mulher. Portanto, ele assume, nesta cena, o papel
de anti-Adão. Como este último, com efeito, ele recebeu tudo na mão, exceto
uma coisa “para comer” (39,6a; cf. 2,16-17)7. Mas, ao contrário do humano
do Éden, José respeita o limite que lhe é colocado, pois acredita que este lhe
é garantido da parte de Deus como baluarte contra o mal. Ele se recusa, por-
tanto, a ceder à tentação da cobiça à qual a mulher o convida. E enquanto ela

5. Veja Sarna, 273, e Janzen, 157.


6. Nesse sentido, Cotter, 292, insiste no fato de que José não incrimina a mulher nem lhe
falta com o respeito. Sobre essa palavra de José, ver também Von Rad, 372-373.
7. Que o limite diz respeito ao pão para comer aproxima estreitamente as duas narrativas,
na medida em que a restrição sobre a mulher é evocada de início pela metáfora (maior) do pão
(39,6).

96
Capítulo 6 – A sabedoria de José (39–41)

o assedia todos os dias ele persiste na recusa, a ponto de o narrador destacar


que ele não a ouve, mas permanece surdo a suas seduções, não consentindo
deitar a seu lado e ficar com ela.

E, como dia após dia ela falasse a José, ele não a ouvia para se deitar com
10

ela, para estar com ela. 11E naquele dia ele veio para casa para fazer seu tra-
balho, e não estava nenhum dos domésticos da casa, em casa. 12E ela o pegou
por sua veste e disse: “Deita-te comigo!”; e ele deixou sua veste na mão dela
e fugiu e saiu para fora.

Finalmente, a mulher encontrou a ocasião que, sem dúvida, esperava:


um belo dia, “aquele dia” (39,11), ela está sozinha na casa quando José vem
trabalhar. Ela aproveita a oportunidade para fazer uma nova pressão sobre
ele. Junta, neste momento, o gesto à palavra: ela aborda José, que manifesta
sua recusa através de seu gesto: foge, mas, para poder escapar da casa onde
o sucesso lhe sorriu, deixa seu manto na mão da mulher8. José é o homem
que, até o fim, terá dito não à cobiça da mulher que o convidava a usurpar
um lugar que não lhe competia. A este respeito, é significativo que o narrador
repita duas vezes que José abandona seu manto (39,12 e 13). Ele se encontra
nu9, como quando seus irmãos o despojaram de sua túnica antes de usá-la
contra ele — o que a mulher não hesitará em fazer por sua vez (37,23.31-34).
Como então, sua nudez mostra que ele é uma vítima da cobiça de outros que
lhe tomam tudo, até o sinal do que ele é, e de sua dignidade como segundo na
ordem. Decerto, com seus irmãos, ele foi em parte responsável por seu próprio
infortúnio: sua túnica, pois, lhe foi arrancada. Aqui, porém, ele abandona sua
túnica nas mãos da mulher, num gesto de liberdade que mostra quanto ele é
irrepreensível. Além disso, o motivo implícito da nudez prolonga o contraste
com Adão. Uma vez sem a túnica, José não é parecido com o humano do
Éden antes do pecado? Porque aqui tudo se passa como se, por ter respeitado
os limites fundadores, recusando-se até o fim à cobiça, ele pudesse mostrar
em sua nudez o sinal de sua inocência.
Podemos ir mais longe na compreensão da negação de José diante dos
avanços da mulher de seu amo. Desde sua chegada ao Egito, José experimenta
uma situação lamentável. Longe de sua terra e de seu pai, rejeitado e

8. A expressão “deixar… na mão de” já é usada no versículo 6, para dizer que Putifar confiou
toda a sua casa a seu jovem mordomo. “A primeira [ocorrência], no versículo 6, reflete a confiança
de Putifar em José. A segunda, no versículo 11, reflete a fidelidade de José a Putifar”, escreve
justamente Hamilton, 465.
9. Assim Von Rad, 374.

97
José ou a invenção da fraternidade

maltratado por seus irmãos, ele foi vendido como escravo, quando se achava
eleito por seu pai e destinado, talvez, a um grande futuro. Portanto, ainda que
tenha êxito na casa de seu amo e goze de sua estima, sua situação mantém
um aspecto doloroso10. Ora, na leitura do capítulo 37 vimos o seguinte: quando
os seres humanos sofrem um infortúnio, é comum que procurem fugir dele
ou descontá-lo nos outros11. O que Judá faz quando envia Tamar de volta para
seu pai é outro exemplo. Na maioria das vezes, isso acontece sem que o infeliz
se dê conta do que realmente está acontecendo por meio dele. Mas o que se
observa aqui é que José deliberadamente dá as costas a esse modo de proceder,
embora tenha conhecido de perto um grande infortúnio. Mesmo quando a
mulher lhe dá uma oportunidade de vingar-se do destino e satisfazer seus
sonhos de dominação, ele se recusa a fazer o jogo dela, porque seria em de-
trimento de um amo que ele respeita, enquanto poderia entrar em competição
com ele.
Rejeitada, a mulher volta contra José toda a força de seu desejo. Sua ati-
tude muda completamente, mas o que a inspira, mais uma vez, é a cobiça que
faz do outro um objeto, um rival, um obstáculo a remover ou um instrumento
para alcançar seus fins. Desde que José se recusa a ser para a mulher um
objeto de posse ou um instrumento de prazer, ele representa para sua cobiça,
daqui em diante, o obstáculo que ela terá que eliminar. Assim, mesmo que o
comportamento dela se torne radicalmente diferente, o motor é idêntico. É
apenas outro mecanismo que entra em jogo, redobrado agora pelo desejo de
vingança. Pois a retidão e a rejeição da cobiça da parte de José opõem-se à
sedução da mulher e lhe põem diante dos olhos, como num espelho, a imagem
de sua concupiscência e a repreensão que a justiça constitui para todo apetite
desordenado. Portanto, para não ver esta imagem de si mesma, a mulher tenta
quebrar o espelho e se livrar de José.
E aconteceu que ela viu que José deixara a veste na mão dela e que fugira
13

para fora, 14e ela chamou/gritou12 pelos homens de sua casa e disse: “Vede,
ele fez vir a nós um homem hebreu para brincar conosco! Veio aqui para se
deitar comigo, e eu gritei em alta voz; 15e quando ouviu que eu elevava a
minha voz e gritava, deixou sua veste a meu lado, fugiu e saiu para fora”. 16E

10. José o enfatizará ainda, alguns anos mais tarde, uma vez chegado ao ápice da glória no
Egito: veja 41,51.
11. Em especial ver acima, p. 77-78.
12. O verbo hebraico qara’ significa “chamar”, mas também “gritar”: que o chamar aconteça
num grito não é indiferente para o resto da história (cf. 39,14-15 e 18). De onde a escolha de uma
tradução redundante.

98
Capítulo 6 – A sabedoria de José (39–41)

ela repousou a veste dele ao seu lado até que o senhor dele viesse para casa13.
17
E ela falou-lhe segundo estas palavras, dizendo: “Veio a mim o servo hebreu
que fizeste vir a nós para brincar comigo. 18E como elevasse a minha voz e
gritasse deixou sua veste a meu lado e fugiu para fora”. 19E quando o senhor
dele ouviu as palavras que sua mulher lhe falava, dizendo: “É segundo estas
palavras que teu servo fez comigo!”, ele se encolerizou14.

A astúcia que a mulher usa é acusar o outro de seu próprio desejo culpado15,
um truque tão velho quanto o mundo. Ela o emprega com uma perversidade
consumida, ilustrando mais uma vez o que os capítulos anteriores já salientaram:
infeliz porque seu desejo é frustrado, ela faz José pagar mandando desgraça
sobre ele — a diferença com Jacó e seus filhos é que aqui a mulher age com
plena consciência. Assim, usando a vestimenta de José16 para o acusar por
meio de uma mentira três vezes repetida (39,14-15.17b-18 e 19), transforma
em seu oposto o sinal de sua cobiça que a fez colocar a mão em José e pegar
a veste dele, sinal também da inocência de José, que fugiu deixando a veste
na mão dela. Além disso, ainda não contente de acusar o servo, ela culpa in-
diretamente seu marido por ter trazido este homem para dentro de casa. Não
haverá aí um eco da cena no jardim do Éden, onde, depois de ceder à cobiça,
o homem tenta desculpar-se, apontando não só sua mulher, mas também a
Deus que lha deu (Gn 3,12b)? E, como já aconteceu com a serpente, a mentira
vem em socorro da cobiça para fazer triunfar a injustiça e o mal.
Na verdade, a habilidade da mulher é de um refinamento raro. Ela se dirige,
primeiro, aos servos da casa, levando-os a testemunhar não o que viram, mas
o que ela vai lhes fazer ver (“Vede!”) por meio de uma história para explicar
como a túnica dele foi parar em sua mão. Levando em conta o conjunto da
cena, sua estratégia é clara: se a mulher conseguir convencer os servos de que
ela foi vítima de uma odiosa agressão por parte de José, será bem difícil para
seu marido recusar-se a acreditar e não punir o culpado. Mas se ela age desta
maneira é porque deve pressentir que não será fácil convencer seu marido do
erro do servo no qual ele tem inteira confiança. Assim, vemos que ela monta
cautelosamente a cena que deve tornar críveis suas falsas alegações (39,14a.16)

13. Aqui e em 39,19, trata-se do senhor de José: o sufixo é masculino em hebraico.


14. Literalmente “sua narina queimou”.
15. Assim, Sarna, 274.
16. Aqui reencontramos a roupa que serve para enganar (37,1-32: a túnica de José; 38,14: o
véu de Tamar). Aqui, a palavra hebraica para veste é beged, que também significa “engano, traição”
(cf. Jr 12,1; Is 24,16); o verbo correspondente, bagad, significa “enganar”, “mentir”. Dificilmente
encontra-se um trocadilho mais significativo. Nesse sentido, Sarna, 274, e Hamilton, 465.

99
José ou a invenção da fraternidade

e trabalha a arte do enganar, modelando a apresentação das coisas em função


de seus interlocutores, para estar segura de derrubar José17.
Diante dos domésticos, ela começa a evocar seu marido: sem nomeá-
lo, ela o apresenta como um cúmplice “objetivo” do servo estrangeiro que
trouxe: “ele fez vir a nós um homem hebreu para brincar conosco!”, ou
seja, convosco e comigo: gozação para “convosco”, os servos, pelo que esse
estrangeiro hebreu suplantou a todos para se tornar o mordomo, agora não
mais escravo, mas “homem”; gozação para “comigo”, a mulher, que acabo
de sofrer uma tentativa de estupro por parte desse mesmo “homem”. Assim,
para trazê-los para o seu lado, ela trabalha logo com a oposição entre senhor
e escravos, mas também com o ressentimento ciumento que estes deviam ter
em relação a esse hebreu que, por causa do carinho de seu amo, deixou de
ser um deles para se tornar de algum modo o senhor deles18. Então, a mulher
insiste no crime, jogando com as palavras: a frase “veio a mim” é ambígua, na
verdade, porque tanto pode descrever um simples movimento de aproximação
como se referir à relação sexual19. É só quando a mulher acrescenta “para se
deitar comigo” — outra expressão que denota o coito, como se fosse preciso
insistir — que o pessoal compreende que José não conseguiu realizar seu
intento. Pois a mulher o interrompeu com os gritos que ouviram (39,14a) e
que provam sua inocência, uma vez que pode apresentar a veste abandonada
na fuga pelo homem perturbado. Note-se que, para induzir os servos ao erro, a
mulher modifica um pouquinho o que o narrador contou. Ela omite a primeira
coisa que fez: agarrar José. Ela muda um detalhe sobre a roupa: José não a
abandona “na mão dela”, que o agarra (cf. 39,12-13), mas “ao seu lado” e,
portanto, num gesto voluntário. Ela modifica, enfim, o momento do grito,
porque ela não gritou antes de José abandonar sua veste para escapar, mas
depois. Assim, com algumas pequenas alterações astuciosas, ela transforma
a verdade em mentira perfeitamente crível.
A mulher retoma então sua pose e aguarda o retorno do “senhor” de José20,
para que também ele possa constatar os fatos. Ela lhe repete a mesma mentira,

17. Para o que se segue, inspiro-me na análise perspicaz de R. Alter, L’art du récit biblique,
149-153, seguido por Hamilton, 467-468. Mas veja também Gunkel, 425, que acrescenta: “A pri-
meira mentira, que surge imediatamente e pela qual a mulher espera encontrar testemunhas, torna
mais provável a segunda”.
18. Nesse sentido, por exemplo, Westermann, 67, e Sarna, 274.
19. Ver, por exemplo, em Gênesis 38,2.8.9.16.18. Sobre o efeito causado pela declaração da
mulher, ver R. Alter, Genesis, 226, e Turner, 171.
20. Curiosamente, no versículo 16 o narrador não diz que a mulher espera “seu marido”, mas
“o senhor dele”, isto é, o senhor de José, o único que tem o poder de punir.

100
Capítulo 6 – A sabedoria de José (39–41)

em uma versão ligeiramente adaptada, que o narrador cita in extenso para que
o leitor, identificando os pequenos retoques, seja testemunha de seu requinte
perverso. Ela começa forte. Empregando de forma ambígua uma expressão
que pode significar a relação sexual, ela acusa aparentemente José de um ato
que não cometeu: “Veio a mim o servo hebreu…”. Ao contrário dos servos,
para quem a mulher tinha eliminado a ambiguidade de imediato (39,14b), o
senhor permanecerá na incerteza concernente ao que José fez à sua esposa,
até que ela dirá que fugiu de seus gritos, ou seja, no final do relatório. A
acusação é grave, e ela está destinada a incitar o marido, cuja honra ficará
necessariamente manchada se sua esposa tiver sido objeto de uma agressão
sexual da parte de um servo21. Notamos, de passagem, que a mulher não fala
mais de “homem” (’iš), mas de “servo” ou de escravo (‘eved) a propósito de
José. Para convencer os domésticos de sua casa, ela destacou que “o homem
hebreu” havia abandonado sua condição inferior; diante de seu marido, ela
fala de seu agressor como de um servo, uma vez que, tendo sido traído por um
inferior, obviamente aumenta a vergonha do senhor ridicularizado assim.
A acusação é mais grave ainda por induzir que o marido talvez não seja
estranho ao que a mulher sofreu, pois foi ele quem trouxe esse escravo para
a casa. Aqui, a ambiguidade da sintaxe destacada por Robert Alter é eficaz22.
Ao contrário da frase perfeitamente clara que a mulher utilizou com os ser-
vos no versículo 14, a formulação para o marido pode ser entendida de duas
maneiras, conforme a extensão que se dá à proposição relativa que qualifica
o servo. Se o marido ouve: “Veio a mim o servo hebreu, que fizeste vir a nós,
para brincar comigo”, ele se sentirá atacado moderadamente: a mulher o acusa
apenas de um erro de julgamento ao falar com ele sobre o servo estrangeiro.
Mas se ele entende: “Veio a mim, o servo hebreu que fizeste vir a nós para
brincar comigo”, ele percebe que sua mulher o acusa de ter deliberadamente
trazido para casa um homem perigoso para ela. A sutileza — e a astúcia — da
mulher consiste, obviamente, em pôr em dúvida o papel exato de seu marido,
no próprio momento em que lhe está falando. Posto assim em suspeita, o ma-
rido estará ansioso para mostrar, infligindo ao traidor um castigo exemplar,
que ele não é responsável pelo que aconteceu23.
Se o marido está sujeito a repreensões mais ou menos graves, a mulher,
por sua parte, apresenta-se como perfeitamente irrepreensível. Na nova versão

21. Nesse sentido, Sarna, 275 e Hamilton, 469.


22. R. Alter, L’art du récit biblique, 151-152, e Hamilton, 469.
23. Ver nesse sentido Gunkel, 425.

101
José ou a invenção da fraternidade

dos fatos, sua virtude parece bem evidente. Diante dos servos, ela insiste for-
temente em sua inocência, apresentando seus gritos de alarme e seu pedido
de ajuda como uma ação independente (“eu gritei em alta voz”) e reprisando
o tema ao mencionar a fuga de José (“quando ouviu que eu elevava a minha
voz e gritava”). Diante do marido, no entanto, ela lembra o grito como que
de passagem, numa frase subordinada, dando a entender que o mínimo que
uma esposa fiel (de um marido menos irrepreensível que ela) poderia fazer
era gritar energicamente24. Ela prefere destacar, indiretamente, a eficácia de
seu grito, que assustou tanto o agressor que acabou abandonando sua veste
durante a fuga precipitada.
A mulher consegue, assim, reunir todas as vantagens a seu lado: segura
com o apoio dos servos, põe o marido contra a parede, mas ela se mostra
bastante inteligente em não sugerir nada quanto ao castigo do traidor. Seu
marido entendeu: a ele toca decidir! Então, aparentemente enganado pela as-
túcia de sua esposa, Putifar dirige-se contra o culpado e lança José à prisão.
No entanto, a narração é curiosa. Algumas pistas deixadas pelo narrador levam
a crer que o senhor poderia estar ciente do que aconteceu na realidade e só
pune José porque a mulher o pegou numa armadilha maquiavélica. Assim,
no versículo 19, o narrador sugere que a mulher deve ter repetido suas acusa-
ções25: “Quando o marido ouviu as palavras que sua mulher lhe falava, dizendo:
‘É segundo estas palavras que teu servo fez comigo!’, ele se encolerizou”.
Devemos entender que o senhor de José não reagiu imediatamente, deixando
assim sua mulher repetir sua história e acrescentar a frase, explicitamente
mencionada pelo narrador, pela qual ela procura autenticar seu discurso? Se
esse é o caso, pode-se duvidar quanto à natureza e ao objeto daquele que o
narrador apresenta como o amo de José antes que como marido da mulher
— o que tem por efeito o aproximar mais do primeiro do que da segunda.
Sua ira é emoção refletida contra o servo ou cólera fria contra a mulher26, da
qual percebeu a astúcia, mas sem poder escapar, de tão ruim que ela é? Se é
assim, compreendemos melhor que sua punição seja tão branda, pois, como
enfatiza a maioria dos comentadores, em tais casos se esperaria a pena de
morte antes que uma mera prisão, mesmo em cárcere especial (39,20)27. Esta

24. Ver R. Alter, L’art du récit biblique, 152.


25. Ver, por exemplo, Gunkel, 425, e Westermann, 67, para quem o senhor toma tempo para
refletir.
26. Assim, Cotter, 293; Von Rad, 374-375, menciona esta possibilidade, mas não a mantém.
27. Ver em Deuteronômio 22,23-27 a punição para o adultério e em Gênesis 38,24 a sentença
pronunciada por Judá contra Tamar. — Segundo 40,3-4 (cf. 41,10-12), o comandante da prisão

102
Capítulo 6 – A sabedoria de José (39–41)

leitura alternativa parece difícil de ser descartada, sem proibir a outra. Assim,
é melhor manter a ambiguidade da narrativa e não excluir que o marido possa
ter percebido alguma coisa suspeita no jogo de sua mulher, e permanecer tal-
vez na indecisão28, o que se refletiria, no leitor, na impossibilidade de saber
exatamente como foi.

A sabedoria de José (39,20-23)


Seja como for, após as manobras da mulher e da reação do senhor, José
cai ainda mais fundo: de escravo que era no início ele termina prisioneiro29.
20
E o senhor de José o pegou e o pôs na casa da rotunda, o lugar onde são
aprisionados os presos do rei, e ele ficou lá na casa da rotunda. 21E Adonai foi
com José e estendeu até ele misericórdia e o fez encontrar graça30 aos olhos do
chefe da casa da rotunda. 22E o chefe da casa da rotunda pôs na mão de José
todos os presos que estavam na casa da rotunda, e tudo o que lá faziam, era
ele que o fazia. 23O chefe da casa da rotunda não olhava nada [que estivesse]
na mão dele, porque Adonai estava com ele, e o que ele fizesse, Adonai o
fazia prosperar.

O cenário do aprisionamento é o mesmo daquele com os irmãos. Nas


mãos de uma pessoa dominada pela cobiça e pelo desejo de dissimulação, a
veste de José fala contra ele e o priva de sua verdade diante de um homem de
autoridade — o pai, o amo — de quem tinha logrado o favor e a confiança e
do qual era o secundante. Assim despojado, ele é jogado num lugar fechado
com ar de morte — mais tarde, José e o narrador o chamarão de “buraco”
(40,15; 41,14). Assim, ele sofre, por duas vezes, da maldade dos outros. Uma
diferença é notável, no entanto: a crueldade dos irmãos era compreensível: não
incitou José o ódio e o ciúme deles, levando boatos a Jacó ou vangloriando-se
de seus sonhos? A crueldade da mulher, ao contrário, parece gratuita. Aparece
como pura vingança de um ser cuja perversidade não aguenta ser desvendada

está às ordens de Putifar, “chefe da guarda” (sar hat..tabbah.im: cf. 37,36 e 39,1; ver também “seu
senhor” em 40,7): assim Wenham, 377, e Turner, 173. Se é assim, colocando José na prisão Putifar
o guarda ainda a seu serviço, porém distanciando-o de sua esposa.
28. Assim, Sarna, 275.
29. A diferença é assinalada no texto: José mudou-se da casa de seu senhor (v. 2; a palavra
casa é repetida seis vezes na introdução, v. 1-6) para a casa da rotunda (ver v. 20-23, seis vezes no
total). No relato propriamente (v. 7-19), o termo bayit é repetido sete outras vezes, da quais três no
versículo 11 para situar o lugar do drama (estes são os três empregos centrais no capítulo).
30. Literalmente: “ele deu favor por ele aos olhos de…”.

103
José ou a invenção da fraternidade

no contato com uma pessoa justa. Malgrado essa diferença, a reação de José
não varia: ele se cala, apesar de que teria o direito de se defender das calúnias
da mulher. Não faz nada, preferindo guardar o silêncio.
É muito delicado interpretar um silêncio. Mas, uma vez que esta é a
maneira com que José, por duas vezes, reage à violência que se desencadeou
contra ele31, pode ser importante tentar compreender o que está acontecendo
aqui, levando em conta a semelhança entre as duas cenas. Ainda mais porque
José não se comporta como os outros infelizes da narrativa, que, como vimos,
jogam sobre outros o peso de seu infortúnio. Confrontado com a mulher que,
repetidamente, o acusa, José adota uma atitude que, em minha opinião, é um
sinal de sabedoria e de justiça. Por um lado, ele não procura acusar a mulher
para se defender. Ele evita entrar num conflito que poderia ser improdutivo,
porque, com toda a probabilidade, se daria mal. Com efeito, seria palavra contra
palavra, mas as evidências estão a favor da mulher, que conseguiu colocar a
seu lado os servos, aliados de peso. Além disso, apesar de sua posição, José
é apenas um servo e não tem nenhuma prova a favor de sua boa-fé. Seu silên-
cio parece, portanto, testemunhar um realismo pleno de sabedoria. Por outro
lado, não entrando no jogo de acusação da mulher, José testemunha também
a recusa que ele opõe ao mal.
Com efeito, acusar é muitas vezes uma maneira de acrescentar o mal ao
mal. E “escolher por inclinação natural o lugar do acusador é escolher cair
na armadilha armada para o malvado, para sua perdição”, escreve, com razão,
Paul Beauchamp32. Como temos visto, muitas vezes o malvado é, antes de
tudo, um infeliz. José fez a terrível experiência disso com seus irmãos que,
decepcionados por se verem suplantados pelo caçula, deixaram desencadear-
se contra ele a malícia alimentada neles pela inveja e pelo ódio33. Neste caso,
contentar-se em acusar o malvado é não reconhecer nele a pessoa ferida e
sofredora. Por isso, o sábio recusa-se a esse jogo, preferindo viver em sua
verdade, com a esperança de que um dia, talvez, esta verdade seja reconhecida.

31. Sarna, 275-276, o destaca também. Em todo caso é o que sugere o silêncio do narrador
sobre qualquer reação de José diante de seus irmãos. Mais adiante, o leitor ficará sabendo da boca
deles que José lhes suplicou (42,21). Antes dessa informação, seu suposto silêncio contribui para
moldar o personagem de José.
32. P. Beauchamp, Psaumes nuit et jour, 65. Veja também seu desenvolvimento a esse propósito
em 64-69.
33. José também viveu essa mesma experiência, quando fez mal a seus irmãos, tentando escapar
do mal-estar em que sua situação o mergulhou. Da mesma forma, ele pôde ver que a viuvez infeliz
de Jacó o levara a uma escolha que se mostrou dolorosa para seus irmãos. Por sua vez, o leitor
ainda tem testemunhado o mesmo processo em Judá, no capítulo 38.

104
Capítulo 6 – A sabedoria de José (39–41)

E, como entende o processo da escalada do mal, evita reproduzi-lo, de modo


a não tornar infelizes os outros na tentativa desesperadora de escapar da in-
felicidade que sofreu. Será que não é isso exatamente o que José faz aqui,
instruído por uma experiência anterior, sobre a qual ele teve tempo de refletir
depois que os irmãos o jogaram no buraco? Naquela primeira vez, ele mere-
cera, em parte, sua sorte, o que talvez explicasse seu silêncio. Agora ele si-
lencia de novo: não será porque se deixou instruir por sua experiência passada
e porque aprendeu a lição, para entrar numa sabedoria que lhe tinha cruel-
mente faltado em Canaã? Isso explicaria como José adquiriu a sabedoria que
ele vai mostrar agora.
Resumindo: aqui, o silêncio que José opõe à acusação da mulher de seu
amo poderia revelar um homem que se tornou justo e sábio, e que, ao con-
trário dos outros personagens da narrativa, não se subtrai a rechaçar o mal,
mesmo quando ele o está sofrendo. Ele não tenta vingar-se dos outros por
causa do sofrimento que o atingiu, mas busca detê-lo dentro de si, em vez
de lhe dar chances de proliferar. Ele se encontra na prisão, justo entre os
malvados. Em seguida, diz o narrador, Adonai aproxima-se dele. O cenário
paralelo estende-se novamente: tendo assumido em silêncio e com dignidade
o infortúnio que sofre da parte de próximos cheios de cobiça e de mentira,
José é assistido por Adonai (39,21-23, e veja v. 2-5). Há uma ligação oculta
entre, por um lado, a forma de José assumir seus problemas e, por outro, seu
sucesso graças a Adonai? Em todo caso, a sequência impressiona pela repe-
tição34. Tudo acontece como se a presença divina confirmasse que a justiça e
a sabedoria de José sejam a escolha certa diante do mal. A luta contra o mal
consistiria, então, em recusar o uso das armas do mal, para escolher outro
caminho, provavelmente mais lento e menos espetacular, porém mais seguro.
Em todo caso, a confiança que o chefe da prisão demonstra em José bem pa-
rece uma atestado de inocência, uma reabilitação, mesmo se não o tira de seu
sofrimento pouco invejável. Quanto a José mesmo, ele continua a combater
o infortúnio com o coração firme, permitindo a seu novo senhor fazer bom
proveito de sua experiência e de seu sucesso.
Neste ponto, o leitor talvez possa compreender por que o narrador aplica
tanto cuidado em descrever o maquiavelismo da mulher e seu impacto nos
eventos subsequentes. Desde o início da história (Gn 37–38), o leitor cons-
tatou como a cobiça e a mentira se aliam para produzir o infortúnio. Antes

34. A repetição enfatiza o fato de que Adonai se une a José e o favorece na adversidade e não para
poupar-lhe a adversidade: ver M. R. Jacobs, The Conceptual Dynamics of Good and Evil, 328.

105
José ou a invenção da fraternidade

mesmo de ler, na continuação, acontecimentos de outro registro, ilustrando


amplamente a sabedoria do jovem herói, o leitor descobre um último episódio
no qual explodem o poder e a perversidade do engodo preparado pela cobiça
e pelo ódio. Com este incidente diante dos olhos, ele pode avaliar melhor o
poder terrivelmente destrutivo da mentira, mas também seu caráter diabólico
no sentido amplo do termo — “serpentino”, poderíamos dizer, em referência
à primeira figura do mal no Gênesis (Gn 3). Sua força é tal que se revela
capaz de neutralizar a boa-fé de José, ao qual a mulher não deixa nenhuma
chance, mas também, talvez, a boa vontade de um amo que só pode reagir
submetendo-se, de modo espontâneo ou porque, pego na armadilha, ele é for-
çado a condenar. O narrador faz o leitor perceber melhor o inimigo que José
deverá enfrentar mais tarde, quando tentará dar-lhe o xeque-mate inventando
caminhos de fraternidade.
Mas, se a leitura acima proposta está correta, vale a pena detalhar esta cena,
porque sugere habilmente como José mudou desde que seus irmãos o colocaram
no buraco. Iniciaremos assim o tema da sabedoria de José, que vai dominar a
continuação de seu percurso no Egito. Na verdade, quanto mais ele cai na miséria
e chega ao ínfimo degrau da escala social, José parece crescer em sabedoria e
humanidade, qualidades que brilharão à luz do dia quando, amadurecido por sua
experiência de vida, colher os frutos. Então, como acréscimo, receberá o que
recusou lograr se tivesse cedido ao desejo da mulher: um poder superior e uma
esposa (Gn 41). A este respeito, provavelmente não é sem razão que o narrador
precisa o nome do pai da mulher que José recebe do Faraó: Asenet é a filha de
Poti Fera, sacerdote de On. Mesmo que este homem não seja o antigo amo de
José — como mostra a diferença das funções —, o leitor não pode se impedir
de aproximá-los, por causa da similaridade de seus nomes35. Porventura esta
aproximação não sugere, simbolicamente, que José recebe a filha do homem
que ele não quis privar de sua esposa cedendo aos desejos desta?

A promoção do sábio (40–41)


Eu não me demorarei nos dois capítulos seguintes, apesar de seu interesse
pelo personagem principal. Preciso, contudo, identificar rapidamente os sinais

35. Em hebraico, a diferença entre os nomes do sogro de José e seu primeiro senhor é mínima:
Potifar (37,36 e 39,1) e Poti-Pera‘ (41,45.50 e 46,20). De acordo com Westermann, 61, essas são
duas formas do significado de um mesmo nome “Aquele que Rá dá” (ver também Sarna, 263).
Cada ocorrência dos dois nomes é seguida por um título: o senhor é o chefe dos guardas, e o sogro,
sacerdote de On.

106
Capítulo 6 – A sabedoria de José (39–41)

da sabedoria que penso ter detectado em José, mesmo que seja apenas para
reforçar a argumentação desenvolvida anteriormente a este respeito. Além
disso, é graças a esta sabedoria que José vai ver sua posição radicalmente
modificada e que atingirá o auge do poder. Esta será sua posição quando
encontrar seus irmãos por ocasião da crise alimentar que é mencionada no
fim do capítulo 41 e fornece o quadro do reencontro.
Tornando-se um homem da confiança do carcereiro-mor (39,21-23), que
parece depender de Putifar36, José é designado para servir a duas pessoas pró-
ximas do faraó durante sua detenção: o padeiro-mor e o copeiro-mor (40,1-4).
Paradoxalmente, quanto mais José desce na escala social, mais ele se aproxima
do Faraó. Os sonhos perturbadores que os dois ilustres presos têm fornecem-lhe
a ocasião de mostrar sua arte de interpretar os sonhos, habilidade que pro-
vém de sua sabedoria (cf. 41,8)37. José se revela mais sábio ainda porque
se guarda de toda bajulação complacente quando, apesar da expectativa do
padeiro-mor, ele acaba não dando uma interpretação favorável de seu sonho,
embora não faltem semelhanças com o de seu amigo, o copeiro-mor. Esta cena
revela a perspicácia com que José distingue as sutis nuances da linguagem dos
sonhos, ao mesmo tempo em que confirma sua honestidade infalível.
Outro elemento vai na mesma direção. Mesmo antes de os servos do Faraó
contarem seus sonhos, José lhes declara: “Não é a Deus que pertencem as
interpretações?”. Aqui também utiliza sua sabedoria com grande habilidade.
Na verdade, ele se declara ciente de que a clarividência dos sábios não é um
apanágio que ele tenha em propriedade; ele coloca sua escuta dos sonhos
sob o signo de Deus, que talvez procure manifestar-se por meio deles. Mas,
ao mesmo tempo, ao falar dessa maneira, José está preparando-se para ser
considerado, aos olhos dos funcionários do Faraó, depositário de uma ciência
divinamente inspirada, o que poderá, se for o caso, favorecer sua libertação38.
Com efeito — e isto se soma ao ativo de sua inteligência —, José parece
aproveitar a chance que assim recebe para tentar sair do buraco no qual foi
jogado. Apoiando-se habilmente na interpretação positiva que deu ao sonho do
copeiro, ele se recomenda modestamente à sua memória e à sua gratidão, em
vista de sua libertação pelo Faraó. Afinal — assim conclui discretamente —,

36. Em 40,4 é o “chefe da guarda”, ou seja, Putifar (conforme 37,36 e 39,1), que afeta José no
serviço dos dois funcionários reais aprisionados. Ver acima nota 27, p. 102.
37. No mundo antigo os sonhos têm um aspecto potencialmente maléfico, porque revelam forças
que poderão voltar-se contra o sonhador, se ele não os dominar ou não os domar. Daí a importância
de explicar os sonhos, de traduzi-los (ver J. M. Husser, Le songe et la parole, 243).
38. Neste sentido, mais ou menos, H. C. White, Narration and Discourse, 257.

107
José ou a invenção da fraternidade

ele não é inocente? Além disso, seu infortúnio de exilado involuntário justi-
ficaria que um homem importante como o copeiro-mor mostrasse clemência
para com aquele que lhe vaticinou a reabilitação (40,15).
Mas, quando os fatos confirmam a perspicácia do intérprete, o copeiro-mor
tem memória curta. Reabilitado, ele se esquece de José, que passa por uma nova
provação, pois continua confinado no buraco em que foi jogado apesar de sua
inocência. Novamente, o narrador não menciona a reação de José: como nos
anteriores golpes do destino, ele permanece em silêncio. A sequência lhe dará
razão: o esquecimento ingrato constituirá, em última análise, uma oportunidade
inesperada para ele, pois o motivo que vai tirá-lo da prisão lhe proporcionará
ao mesmo tempo uma oportunidade para alcançar o topo. Enquanto isso, a
relegação silenciosa, durante a qual ele aprofunda sua sabedoria, prolonga-se,
como para forjar um pouco mais a humildade daquele que deverá permanecer
sábio quando receber, enfim, o lugar e o poder que merece.

Os sonhos, que perturbam muito o Faraó porque nenhum especialista egíp-


cio é capaz de decifrá-los, preparam em seguida o terreno para a chegada de
José. Esta será o resultado imediato da lembrança do copeiro — e, portanto,
também da sagacidade de José dois anos antes. O relato bastante detalhado do
funcionário (41,9-13) proporciona, mas também acaba atrasando, um pouco, a
entrada em cena daquele que o copeiro-mor apresenta como “um jovem hebreu,
servo (ou escravo) do chefe dos guardas” (41,12), mas também como um sábio e
inteligente intérprete de sonhos. Então, num versículo rápido e condensado, José,
por ordem do Faraó, é retirado do buraco (bor) e aparece diante dele, barbeado
e vestido (41,14). O leitor não pode deixar de se lembrar da cena em que a
esposa de Putifar despoja José de sua veste e provoca sua prisão, bem como da
cena em que seus irmãos rasgam sua túnica e o jogam no buraco39. Finalmente
acontece a inversão esperada. Cabe a José aproveitar sua chance…
Ele o fará brilhantemente. Diante do Faraó, ele mostra novamente sua
sabedoria com firmeza extraordinária. No início, ele corrige a afirmação do
rei que elogiou suas qualidades de intérprete de sonhos, remetendo o dom a
Deus, que é sua fonte: “Eu não conto, Deus dará uma resposta de paz (šalom)
ao Faraó” (41,16). Com estas palavras, sem dúvida sinceras, ele se torna imune
a uma possível falha e prepara o Faraó para vê-lo como alguém tocado pela
graça de Deus. Mas também adapta sua fórmula à perturbação que agita seu

39. A inversão é clara em relação a 37,23-24, onde José estava despido e jogado na cisterna
(bor), e comparado a 39,12-20, onde, nu, ele é colocado na prisão, que ele nomeará “cova” (bor)
mais adiante (40,15). Veja G. Fischer, Die Josefsgeschichte, 248.

108
Capítulo 6 – A sabedoria de José (39–41)

interlocutor régio, dando a entender que deseja vê-lo reencontrar sua sere-
nidade. Escuta, em seguida, a narração dos sonhos e decodifica-a, tendo o
cuidado de enfatizar a referência a Deus. Por três vezes, no início, no meio e
no final de sua interpretação, ele ressalta que o duplo sonho é uma mensagem
de Deus, que anuncia ao Faraó o que decidiu e está prestes a levar a cabo,
sem demora (41,25.28.32).
Ora, a perspectiva que se anuncia é grave: trata-se da vida de todo o
país e da legitimidade do rei, responsável pela vida de seu povo. Então, com
sua aura de sábio capaz de decifrar as mensagens enigmáticas do alto, José
continua seu discurso por sua própria iniciativa. Ele acrescenta uma série de
conselhos práticos para uma gestão de governo preventiva em face da crise
anunciada. Implícita e habilmente, apresenta-se de facto como o “homem sá-
bio e prudente”, referindo-se a si mesmo (41,33) como um sábio conselheiro
que, apesar de estrangeiro (cf. 41,12), se preocupa com o bem-estar do Egito
e com a estabilidade do trono, enquanto todos os sábios do Egito se revelaram
ineficazes (41,8)40. Entendemos que tal discurso seduz o Faraó e sua corte, a
ponto de reconhecer em José a presença eminente do espírito de Deus e afirmar
que a revelação que recebe o distingue entre todos como “o homem inteligente
e sábio” (41,38-39), o ser providencial capaz de assegurar a sobrevivência do
país durante a crise alimentar. José, em seguida, é considerado o segundo,
depois do Faraó, que o supera apenas quanto ao trono (41,39-41). Assim ele
obtém, numa nova “casa”, a mesma posição que detinha quando estava com
seu pai ou com Putifar e, depois, com o carcereiro-mor.
Mas a sabedoria de José tem outro aspecto, ao qual aludi brevemente acima.
É evidente que nas circunstâncias em que é subitamente colocado o jovem
prisioneiro tenta uma saída, aproveitando a oportunidade que lhe é oferecida.
Da mesma forma, é difícil não pensar que, ouvindo o duplo sonho do Faraó
e anunciando sua realização, José pense em seus próprios sonhos e diga a si
mesmo que é agora ou nunca o momento de ver realizar-se a elevação que
evocavam41. Também o vejo colocar todas as chances de seu lado, com uma
lucidez e uma coragem surpreendentes. E, se José — sem o dizer, pois isso
seria loucura! — pensou em si quando sugeriu ao Faraó procurar um homem
inteligente e sábio para antecipar-se à crise, provavelmente seria também um
indício de sua sabedoria. Pois esta consiste num saber-ser e num saber-fazer
que não excluem, em quem os possui, nem a avaliação justa das qualidades

40. Veja Turner, 176.


41. A ligação com os sonhos de José é frequentemente salientada pelos comentaristas.

109
José ou a invenção da fraternidade

reais que são suas, nem o desejo de encontrar um meio de pô-las em obra em
prol do bem comum. Pelo contrário! Ao agir como faz, José mata dois coelhos
com uma cajadada só: ele salva o Egito salvando-se a si mesmo, enquanto
garante a legitimidade do poder daquele que vai comparti-lo com ele. O Faraó
demonstra, pois, bom juízo quando o faz reconhecer por todos como “homem
inteligente e sábio”. A sequência dos acontecimentos no Egito lhe dará razão,
como o narrador não tarda muito a demonstrar (41,46-57)42.
No mais, a sequência mostra como o destino de José e o do Egito estão
interligados. Durante os anos de colheitas abundantes, também José tornou-se
fecundo com sua esposa egípcia (41,52). As palavras que ele profere ao pôr
o nome em seus filhos são um último sinal daquilo que a sabedoria realiza
nele, desta vez para sua vida pessoal. É o seu passado que José evoca quando
um novo porvir se abre diante dele. Já quando se abriu ao copeiro aprisionado
com ele, tinha evocado uma primeira vez os infortúnios vividos em Canaã e
depois no Egito (40,15):

“Eu fui roubado, roubado da terra dos hebreus,


e também aqui nada fiz para me colocarem no buraco”.

Nenhuma amargura, nenhum ressentimento nestas sóbrias palavras, cujo


tom não parece nem pranto nem reivindicação, se bem que José as pronuncie
na esperança de ver sua inocência reconhecida.
Semelhante serenidade marca o momento em que dá nome a seus filhos
(41,51-52):
51
José chamou o primogênito com o nome de Manassés,
“porque Deus me fez esquecer [naššani] todo o meu fardo,
e toda a casa de meu pai”.
52
Ao segundo chamou-o com o nome de Efraim,
“porque Deus me fez fecundo [hifrani]
na terra de minha humilhação”.

42. O grito de homenagem dos egípcios, ’avrek (41,43), é muitas vezes considerado intraduzível.
Está próximo, porém, de uma forma do verbo abençoar: ’avarek, “eu abençoarei”, o que me parece
sugestivo. Lembramo-nos da promessa que Deus fez a Abraão de abençoá-lo e de abençoar as nações
através dele e de sua descendência (12,2.3; 22,17), desde que elas o abençoem. No momento em que
essa promessa está prestes a se realizar para José e os egípcios, estes abençoam o eleito por meio
do qual vão receber a vida, depois que o Faraó o reconheceu como homem de Deus. Isso inverte
o fracasso do primeiro encontro entre o eleito e os egípcios em Gênesis 12,10-20. A este respeito,
ver 39,5 (ver acima, p. 105 e 106).

110
Capítulo 6 – A sabedoria de José (39–41)

Assim, José não fala de vingar-se, o que seu cargo no Egito possibilitaria.
O que ele se tornou graças à intervenção de Deus permitiu-lhe, ao contrário,
superar o mal sofrido, enquanto o Egito, onde pôde aplicar toda a sua sabe-
doria e toda a sua eficiência, permitiu que esquecesse a casa de seu pai. Da
mesma forma, quando dá o nome a Efraim, José não fala da glória e do poder
que ganhou lá mesmo onde conheceu a humilhação. Ele prefere enfatizar a
fecundidade que Deus lhe presenteou. Em suma, na evocação de seus infor-
túnios, José não parece ter guardado nenhum rancor nem animosidade para
com aqueles que o fizeram sofrer. Ele se limita a evocar o fardo que a casa
de seu pai lhe impôs43 e a humilhação que conheceu no Egito, inicialmente
como escravo e em seguida como prisioneiro. Ele também relata um tipo de
evolução que aconteceu com ele, ao falar primeiro do esquecimento e depois
da fertilidade, e detectando neste progresso a ação constante de Deus, que
transformou seu sofrimento em bem maior. No mais, o esquecimento do qual
fala é paradoxal, pois o proclama por meio de um nome destinado a permanecer,
como se nunca pretendesse esquecer44. Ora, há uma profunda sabedoria no fato
de não apagar os vestígios de um esquecimento, de guardar a memória das
lesões que conseguimos superar e dos impasses que a vida teve de atravessar
para encontrar a fecundidade.
Inútil em si, esta pequena cena que precede imediatamente a eclosão da
dupla crise — a fome e o problema familiar — parece-me ser essencial. Ela
não só testemunha a profunda sabedoria que José adquiriu, mas também in-
forma o leitor sobre a maneira com que assume seu passado depois que soube
fazer um caminho para a sabedoria e o sucesso. Ela confirma ainda o caráter
religioso desse homem, que lê em sua aventura a ação de Deus45. O fato de
que essas palavras sejam pronunciadas em privado e, portanto, sem nenhum
outro envolvimento senão pessoal as eleva acima de qualquer suspeita. É sua
alma que José entrega, lá, no momento em que inscreve o nascimento de seu
filho em sua própria história familiar, sublinhando por vez a continuidade e a
ruptura que fizeram dele um homem novo, pronto doravante para enfrentar uma
dupla crise: aquela que anunciara e preparara, a saber, a fome, e aquela que vai
envolvê-lo de imprevisto, por ocasião da escassez, a saber, a crise da família.

43. A frase “todo o meu fardo e toda a casa de meu pai” é lida como uma hendíadis: assim,
Sarna, 289, e Hamilton, 512.
44. Também B. Green, “What Profit for Us?”, 119-120, sublinha o paradoxo.
45. Sobre este último ponto, ver R. S. Wallace, The Story of Joseph, 57, e R. Pirson, The
Lord of the Dreams, 93.

111
José ou a invenção da fraternidade

Conclusão: Judá e José (38–41)


Que podemos concluir desses dois episódios justapostos pelo narrador,
um tanto à margem da intriga principal? Dois elementos importantes para a
continuação parecem emergir. O primeiro diz respeito à evolução dos perso-
nagens de Judá e José. O segundo tem a ver com a artimanha à qual aludi
anteriormente, que estabelece uma ligação estreita entre estes episódios, mas
também com o início da história da família no capítulo 37.
Os capítulos 38 e 39 contribuem para caracterizar dois personagens que
eram importantes na introdução da intriga (Gn 37): de um lado, Judá, que
propôs vender José, um “mau”, mas não tão mau assim, mesmo sendo soli-
dário com os irmãos na mentira que abalou Jacó; de outro lado, José, vítima
de seus irmãos, mas que pode não ser completamente inocente. Dois irmãos
que, como deve ser enfatizado novamente, desempenharão mais tarde um
papel determinante na reconciliação da família (Gn 42–45).
Isolados do resto da família, os dois irmãos se encontram em posições
similares46. Os dois são enganados por uma mulher astuciosa que utiliza uma
peça que lhes pertence para os envolver num delito de sexo. Judá está em
vantagem, mesmo que tenha cometido muitos erros e que a cobiça o tenha
guiado durante muito tempo. Em contrapartida, o inverso acontece com José,
embora tenha resistido até o fim ao desejo da mulher. Mais profundamente,
porém, nesse caso, ambos têm uma experiência semelhante: eles descobrem,
cada um à sua maneira, que as aparências enganam e que, portanto, cabe ser
cauteloso, especialmente quando a cobiça entra no jogo: alguém que passa por
inocente pode ser o verdadeiro culpado, como Judá e a mulher de Putifar, em
quem a cobiça está agindo; e aquele cuja culpabilidade as evidências parecem
demonstrar pode ser inocente, como Tamar e José, vítimas da hábeis mentiras.
Mais tarde, esta experiência será útil para os dois irmãos, como veremos.
Aliás, o narrador recorre a estas aventuras para prosseguir a caracterização
dos dois filhos de Jacó iniciada no capítulo 37. Assim Judá, que enganou seu
pai, por sua vez é um pai enganado por seu filho, Onã, antes de tentar iludir
sua nora. Mas nestas três situações de mentira um infortúnio bate de frente:
com seus irmãos, ele não pode confortar seu pai, cuja recusa de fazer o luto
de José mantém o esfacelamento familiar; a rebelião oculta de Onã provoca
a morte de seu segundo filho; e o afastamento de Tamar ameaça sua estirpe

46. D. A. Dorsey, The Literary Structure, 62-63, destaca o paralelismo global dos dois
capítulos.

112
Capítulo 6 – A sabedoria de José (39–41)

de extinção. Compreende-se que, na quarta vez, quando Tamar desmascara


sua mentira duplicando-a astuciosamente, Judá opta por sair da engrenagem
mortífera em que se viu preso — a da cobiça e da mentira — para agir se-
gundo a verdade e constatar, em seguida, que ela produz inesperados frutos
de vida (38,27-30). Neste ponto, a evolução de Judá é enorme em comparação
ao que ele era no capítulo 37. Constatamos também, de passagem, que Judá
aprende o que pode significar para um pai o desaparecimento de dois filhos
e o medo de perder o mais jovem, a ponto de não ousar soltá-lo, num ato de
desconfiança que põe a vida em perigo e do qual somente correndo o risco
de morte é possível sair. Ele aprende ainda que aceitar fazer sua autocrítica,
quando confrontado com sua verdade oculta, é uma escolha realmente difícil,
mas que permite à vida prevalecer sobre a morte que a ameaça.
Em contraste com seu irmão, que muda ao contato com Tamar, José mostra
mais constância. Largado no buraco por Putifar como por seus irmãos, sua
reação é a mesma que aquela que o narrador registrou durante a agressão em
Dotã: ele fica em silêncio, e seu silêncio reflete um realismo pleno de sabedoria
e de justiça, porque continua a recusar o mal quando é vítima e não quer se
vingar dos outros por causa do sofrimento que suporta. Ele prefere tomar o
mal sobre si. Embora o narrador não o diga explicitamente, a presença ativa de
Adonai a seu lado, inicialmente com Putifar (39,2-5) e em seguida na prisão
(39,21-23), está, sem dúvida, relacionada com essa atitude. Em todo caso, a
repetição da mesma sequência é impressionante47. Tudo acontece como se a
presença de Adonai viesse confirmar que a justiça e a sabedoria de José cons-
tituem a escolha certa contra o mal. Novamente, a caracterização que emerge
das repetições entre os capítulos 37 e 39 constitui uma preparação da história
a seguir. Acrescenta-se que, diante da mulher de Putifar, José experimenta a
perversidade da mentira, cuja força é tal que pode neutralizar completamente
a verdade. E o leitor sabe, por ter visto como Tamar agiu com Judá, que, para
que a verdade prevaleça, é importante que o mentiroso confesse sua culpa,
se puder. E também sabe que, para chegar a isso, pode ser preciso enganar a
mentira para pegá-la em sua própria armadilha. Para tanto, a sabedoria é es-
sencial. Mas José não carece dela, conforme ilustram amplamente os episódios
que se seguem, pois é ela que o leva, pouco a pouco, ao topo do Egito, onde
ele exercerá uma sabedoria portadora de vida para todos (Gn 40–41).

47. Também o fim do capítulo 40 retoma certos aspectos disso, quando José não reage ao
esquecimento de que é vítima.

113
José ou a invenção da fraternidade

Ao lado das experiências semelhantes e diferentes dos dois irmãos, os


episódios têm em comum um ponto essencial que retoma e amplia o capítulo
de abertura. Uma mesma intriga ardilosa se repete48. Um homem em posição
dominante — o pai Jacó, o sogro Judá ou o amo Putifar — é levado a se deixar
enganar por próximos que o manipulam habilmente. Eles o fazem com a ajuda
de uma veste que serve como prova, em vista de estabelecer a identidade de
alguém e um fato relacionado à pessoa assim identificada. Enfim, uma pa-
lavra do enganador provoca uma tomada de posição daquele ao qual engana.
Assim, Jacó é enganado por seus filhos a propósito do destino de José com
a ajuda de sua túnica ensanguentada e de uma palavra que o engana sobre
o destino de seu filho (37,31-33). Em seguida, Judá é embrulhado por sua
nora Tamar, que esconde seu rosto atrás de um véu para esperá-lo na estrada
e levá-lo a se enganar a seu respeito (38,14-19); mais tarde, exibe o anel, o
cordão e o cajado de Judá, convidando-o com uma palavra a reconhecer que
ele é o pai da criança que ela carrega (38,25-26). Finalmente, Putifar deixa-se
enganar por sua esposa, que utiliza a roupa abandonada por José para fazê-
lo acreditar numa tentativa de estupro, que ele pune metendo o acusado na
prisão (39,16-20).
Essa aproximação coloca em evidência os sutis contrastes que o leitor pode
descobrir graças ao narrador. Assim, o discurso que acompanha a túnica de José
combina a verdade e a mentira para enganar Jacó. As acusações da esposa de
Putifar inspiram-se nos fatos ocorridos, mas em vista de enganar seu marido
ou, em todo caso, encurralá-lo. Tamar, ao contrário, diz a verdade quando de-
signa o pai da criança mediante os objetos que apresenta, e leva Judá a dizer a
verdade sobre seus pecados secretos. Assim, o engano não é sempre negativo.
Esse é também o caso quando Rubem tenta enganar seus irmãos pedindo-lhes
que não matem José, mas o joguem vivo num buraco — o narrador revela,
com efeito, sua intenção secreta de libertar seu irmão e de devolvê-lo a Jacó
(37,21-22). Da mesma forma, quando Judá tenta enganar Tamar reenviando-a
a seu pai, o narrador revela-nos seu jogo duplo, que consiste em deixar Tamar
crer que Sela lhe será dado enquanto Judá pensa que ela é a causa da morte
de seus filhos. Além disso, mesmo que sua iniciativa seja malvista, a intenção
dele é salvar um filho que acredita estar ameaçado de morte (38,11).
Finalmente, o contraste entre as duas artimanhas usadas pelas mulheres
contra Judá e José, respectivamente, convida o leitor à reflexão. Na verdade, o

48. Para mais detalhes, ver meu artigo L’aventure de Juda, especialmente 9-12 e 15-17; isso
prepara a continuação da história de José: veja 19-24.

114
Capítulo 6 – A sabedoria de José (39–41)

estratagema de Tamar tem por resultado transformar em verdade e em vida a


mentira de Judá; ora, essa mentira o aprisionava na morte, enquanto seu medo
da morte o afastava da vida que parecia desejar. Em contraste, as manobras
desleais e enganosas da esposa de Putifar fazem passar o servo justo e honesto
por um pervertido infame e, além disso, ingrato. A esperteza de suas calúnias é
tão perversa que consegue tirar toda a força à justiça. Portanto, a artimanha —
que joga com as aparências enganosas — parece capaz de transformar o bem
em mal ou o mal em bem, a verdade em mentira ou a mentira em verdade, a
vida em morte ou a morte em vida. Uma acusação falsa pode esconder uma
culpabilidade verdadeira, para conseguir a condenação do inocente, como
quando a esposa do amo acusa José (39,14-18); mas ela também pode fazê-la
aparecer, como quando Judá, depois de ter condenado injustamente Tamar,
reconhece, de verdade, sua falha (38,24-26).
Mas o que distingue, fundamentalmente, um estratagema do outro?
Não seriam sua origem e sua finalidade, de que depende também o modo
de implementá-los? A astúcia da egípcia nasce de sua cobiça frustrada e de
seu desejo de vingança; ela procura proteger-se do julgamento de outrem,
voltando-o contra José para a sua destruição pelo mesmo homem que o
elevou em sua casa; ela recorre à dissimulação e a mentiras que não deixam
nenhuma chance ao outro e à sua verdade. Em contrapartida, a artimanha de
Tamar tem sua fonte em seu desejo de justiça e de vida; ela procura fazer
triunfar a vida que foi presa na armadilha de um passado infeliz, do medo da
morte e da mentira; ela se desdobra na discrição e com muito tato em relação
àquele cujos medos devem ser superados. Esta artimanha requer na pessoa
que a utiliza uma verdadeira “sabedoria”, ou seja, um hábil saber-fazer; ela
não funciona sem a coragem que a leve a correr riscos indispensáveis, pelo
fato de renunciar a forçar a mão ao outro, para respeitar sua liberdade.
Aos olhos do narrador, levar o leitor a considerar essas realidades era,
sem dúvida, necessário antes de abordar o que vai se seguir. Da mesma forma,
ele considerou essencial ilustrar longamente a amplidão e a clarividência da
sabedoria de José, antes que este encontre seus irmãos por ocasião da cares-
tia. Pois lá onde a fome está espalhando a morte a sabedoria de José é uma
fonte de vida para todos. E isto o leitor deve saber antes de enfrentar o resto
da história.

115
Capítulo 7

Reencontro no Egito
(42,1-17)

“Os sete anos de fome começaram a vir, como havia dito José…” (41,54).
O narrador apressa-se a esclarecer que o flagelo anunciado não se abate so-
mente sobre o Egito. Atinge também “todas as terras”, “toda a face da terra”
(41,54.56). Estas poucas linhas são escandidas por um refrão que introduz
uma insistência que faz o leitor sentir a dureza da fome (41,54.56[bis].57). A
partir daí, a previdência implementada por José começa a dar frutos: depois
dos egípcios, que vão a José por conselho do Faraó para dele receber seu
alimento (41,55-56), toda a terra desce ao Egito com o intuito de comprar
cereais com José (41,57). Esta transição inteligente do narrador prepara o
retorno à cena de um grupo particular entre esses estrangeiros que a ameaça
de morte leva ao Egito (42,1-3).
1
E Jacó viu que no Egito havia grão. E Jacó disse a seus filhos: “Por que olhais
uns para os outros?” 2E ele disse: “Eis, ouvi dizer que há grão no Egito. Descei
até lá e comprai grão para nós, dali, para que vivamos e não morramos”. 3E
dez dentre os irmãos de José desceram para comprar trigo do Egito…
… um produto vendido exatamente por José (41,57). Tudo está pronto para o
reencontro dele com esses homens que, como mostrou o início da narrativa,
não carecem somente de pão, mas também de uma palavra que abra entre eles
um caminho para a fraternidade. E a fome, que serve como pano de fundo

117
José ou a invenção da fraternidade

para esta narrativa, funciona um pouco como metáfora da fome de fraternidade


que angustia ocultamente o clã de Jacó.
Na realidade, começa aqui uma longa sequência narrativa, e precisamos de
uma parada para dela dar uma visão geral, antes de retomá-la cena por cena.
Ela conta a lenta “invenção” da fraternidade, invenção no sentido de criação,
mas também de descoberta de alguma coisa oculta — como o dinheiro que
José vai esconder na bagagem de seus irmãos e a taça que dissimulará no
saco de Benjamim. Este processo ocorre por iniciativa de José, que no iní-
cio da narrativa tem sido apresentado tanto como primeiro responsável pelo
fracasso da fraternidade (37,2) quanto como sua principal vítima (37,18-30).
Entre os dois momentos, ele aceitou a missão de Jacó de ir a seus irmãos
para o šalom e para fazer voltar uma palavra, antes de descobrir, quando da
conversa com o desconhecido de Siquém, seu próprio desejo de encontrar
seus irmãos (37,13-17). Isto é o que se realiza, pelo menos à primeira vista,
na longa série de cenas que aqui se abre.
A sequência narrativa desdobra-se em três fases, correspondentes a igual
número de viagens dos irmãos para o Egito e de encontros (amiúde dupli-
cados) com José. Ela é pontuada por frequentes indícios de espaço e tempo,
que salientam a continuidade entre os episódios e cenas. As duas primeiras
vezes — que terminam com o regresso dos irmãos ao pai — têm desdobra-
mentos paralelos1.
1. A primeira viagem (Gn 42) começa com uma cena em Canaã: Jacó
envia seus filhos para comprar grão no Egito, mas guarda Benjamim consigo
(42,1-4). Evocam-se então dois dias: o da chegada, quando os irmãos encontram
José pela primeira vez (42,5-16), e depois o da partida, que inicia com uma
outra entrevista com José (42,18-28); entre os dois, os irmãos ficam presos
por três dias (42,17). Chega, enfim, o dia do retorno junto a Jacó, a quem os
irmãos relatam os acontecimentos, antes que a questão de Benjamim volte à
tona (42,29-38).
2. A segunda viagem é objeto de um tratamento mais longo: todas as cenas
são como divididas em duas, em comparação com a narrativa do capítulo 42,
enquanto, repetidamente, o narrador dá voz aos personagens para discursos
às vezes bastante longos (43–45). Este episódio recomeça com Jacó, quando,
novamente, se trata de ir buscar grão e de deixar partir Benjamim (43,1-14 —
um diálogo em duas fases: v. 2-7 e 8-14). Quando os irmãos chegam ao Egito

1. A ideia foi proposta por W. L. Humphreys, Joseph and his Family, 97-99, e é reprisada, por
exemplo, por Wenham, 419 (mas veja, antes dele, Gunkel, 441). Eu a modifico um pouco.

118
Capítulo 7 – Reencontro no Egito (42,1-17)

(43,15), os fatos desenrolam-se em dois dias. No primeiro dia, prepara-se a


reunião com José, por ordem deste, mediante um contato entre seu mordo-
mo e os irmãos (43,16-25); ela consiste numa refeição comum (43,26-34).
No dia seguinte, o cenário repete-se: José dá ordens a seu mordomo, o que
provoca um novo contato entre tal mordomo e os irmãos (44,1-13), para pre-
parar o reencontro decisivo em que um discurso apaixonado de Judá força
José a dar-se a conhecer (44,14–45,15). Precedido por preparativos bastante
longos (45,16-24), o retorno dos irmãos a Jacó é centrado somente em José,
enquanto a relação dos acontecimentos é objeto de uma evocação mais que
sucinta (45,25-28).
3. A terceira e última viagem envolve toda a família (46,1-30). Uma pri-
meira cena acontece em Canaã, em Berseba, onde Jacó oferece um sacrifício
a Deus antes da partida (46,1-6). Em seguida vem o que eu proporia ler como
uma evocação do cortejo que acompanha Jacó ao Egito, a saber, a longa lista
organizada dos membros do clã que o patriarca leva para encontrar-se com
José no Egito, lista em que ele e sua família vêm no fim (46,7-27). Finalmente,
o reencontro, contado de maneira densa e sucinta, entre José e seu velho pai
(46,28-30). Em seguida acontece a instalação da família no Egito, mas esta
é outra história.
Duas observações gerais serão, sem dúvida, úteis antes de entrar numa
leitura passo a passo. A estrutura descrita acima já atrai a atenção sobre a
gestão do tempo nesta longa sequência. No fundo, o narrador escolhe relatar
essencialmente uma série de encontros, nos quais se detém às vezes longamen-
te. O ritmo da narração é, por isso, muito lento, breves transições facilitando
a passagem de uma cena para outra2. No conjunto, o tempo necessário pa-
ra a narração acompanha de perto o dos acontecimentos narrados — um
ritmo que concentra a atenção do leitor em alguns momentos cruciais nos
quais se operam mudanças. Nota-se também que a própria sequência é muito
longa — ela ocupa, sozinha, entre um quarto e um terço do total da história
de José — para narrar os acontecimentos de apenas dez dias, agrupados em
dois períodos bastante resumidos (duas viagens entre Canaã e o Egito, com
breve estada aí, das quais a segunda é seguida de uma rápida ida e volta).
O ritmo lento é devido, em grande parte, à opção do narrador por certo tipo
de narração. Ele opta por seguir uma forma de contar que, mais que captar o

2. Ver, por exemplo, 42,3 (viagem ao Egito), 17 (três dias na prisão), 29a (chegada a Canaã);
43,1-2a (certo tempo de fome), 15 (viagem ao Egito), 25 (aguarda-se o almoço); 44,3-4 (o começo,
no dia seguinte), 13 (retorno à cidade).

119
José ou a invenção da fraternidade

essencial dos acontecimentos de maneira sintética3, procura mostrá-los como


se desenvolvendo em cena, sob os olhos do leitor. Típicos desta maneira de
trabalhar, a oração direta e o diálogo são frequentemente privilegiados nessas
páginas, implicando quase sempre todos os membros da família — as únicas
exceções são o mordomo agindo segundo as ordens de José, nos capítulos
43–44, e o Faraó, em 45,17-20. Particularmente notáveis a esse respeito são
os longos discursos de Judá e de José (44,16–45,13), onde o narrador faz do
leitor a testemunha de todas essas cenas decisivas, e também, ao inverso, a
estranha ausência de diálogo durante a refeição que os irmãos recebem na
casa de José (43,31-34). Esta opção narrativa não facilita o trabalho do leitor.
Pelo contrário: quanto menos o narrador se envolve em sua narrativa para
guiar o leitor, mais este deve se engajar para entender os acontecimentos que
se desenrolam e os personagens que evoluem sob os seus olhos.

A família em Canaã (42,1-4)


As primeiras linhas deste longo ato são importantes. Trata-se de uma cena
brevíssima entre pai e filho. Além de iniciar uma nova ação, na verdade elas
informam sucintamente o leitor sobre o estado da família de Jacó vinte anos
depois da morte de José e do início do luto de seu pai. A situação permaneceu
a mesma, depois de todo esse tempo? Ocorreram alterações significativas
entre os irmãos ou entre o pai e seus filhos? Seja como for, o leitor precisa
ser informado para poder compreender o que vai acontecer. Portanto, desde
o início, o narrador mergulha o leitor novamente na atmosfera dessa famí-
lia problemática, e retoma sua narrativa referindo-se insistentemente, como
veremos, à crise criada no capítulo 37. Reatando assim com uma situação
conhecida, o leitor pode esperar uma evolução no momento em que reen-
contrar — como José vai fazer logo mais — essas personagens há muito
desaparecidas de seu horizonte.
O narrador continua sua narrativa lembrando uma iniciativa de Jacó
ao ouvir dizer que há alimento no Egito. Mas antes de enviar seus filhos ao
Egito Jacó questiona a passividade deles: “Por que estais a olhar uns para os
outros?”. Visivelmente, ele recuperou sua liderança sobre os seus. E enquanto
ele vê que há cereais no Egito eles parecem nem se dar conta disso, ocupados
como estão em “ver-se”, em olhar uns para os outros. A mudança é clara em
relação ao capítulo 37: tão ativos e criativos quando se tratava de tramar o

3. Este é o caso, por exemplo, em 42,24a ou em 43,24-26.34b.

120
Capítulo 7 – Reencontro no Egito (42,1-17)

mal (37,18-35), os irmãos agora ficam inertes, enquanto a sobrevivência da


família está em jogo. Jacó, ao contrário, que tinha se fechado em seu luto e
falava em descer ao Xeol para junto de seu filho desaparecido, está atento à
vida dos seus e toma a iniciativa4. Incapazes de reconstruir uma família sem
José, porque a recusa de seu pai não o permitia, os irmãos parecem paralisa-
dos ou cegos. Em todo caso, eles não veem o que fazer. Mas seu pai, que só
pensava em morte, é agora animado, mais do que nunca, por uma vontade de
viver da qual falará explicitamente em breve (42,2).
Mas por que a interpelação de Jacó está voltada mais para a maneira como
os irmãos se olham do que para sua inação, ressaltada, com razão, pela maior
parte dos comentaristas? Afinal, ele poderia culpá-los por não tomar inicia-
tiva para lidar com a fome. Será que só usa este verbo para opor o que ele
vê — a possibilidade de viver — (42,1a) ao que seus próprios filhos veem:
a si mesmos (42,1b)? Ora, vendo/olhando-se uns aos outros, eles se fecham
dentro do círculo familiar, o que nas atuais circunstâncias pode levar à morte.
E mais: podemos excluir a ideia de que esses olhares sejam de suspeita?5 Os
irmãos podem muito bem estar se espionando mutuamente a fim de impedir
a quebra do segredo que os une diante de Jacó. Esta é uma simples hipótese,
mas não altera em nada o fato de que as críticas de Jacó a seus filhos denun-
ciam um mal-estar do lado deles.
Os filhos não respondem à interpelação de seu pai — como também não
dirão nada à pergunta que vem a seguir. Não seria isso um sinal de que há um
problema sério de diálogo entre pai e filhos? Então, Jacó toma a palavra para
especificar o que espera deles (42,2)6. De início, ele lhes informa o que sabe
por ter ouvido: há grão no Egito. Depois acrescenta: “Descei até lá e comprai
trigo dali ”, uma ordem onde o jogo entre os advérbios “até lá” (šammah) e
“dali” (miššam) sugere um retorno, cuja rapidez é provocada pela ausência
do verbo que indica o retorno. Finalmente, ele explicita com insistência o
objetivo da operação: “a fim de que vivamos e não morramos”.
Na realidade, essa breve intervenção de Jacó é menos trivial do que pa-
rece à primeira vista. Sua formulação a carrega de insinuações que, sem o
conhecimento dos atores, remetem o leitor à crise familiar do início. Assim, a

4. Veja Sarna, 292, e B. Green, “What Profit for Us?”, 117.


5. Em outras partes da Bíblia, a utilização desta forma rara (Hitpael) do verbo ra’ah (“ver”)
tem um sentido nitidamente agressivo: cf. 2 Reis 14,8.11 e seu paralelo em 2 Crônicas 25,17.21.
6. A retomada “E ele disse que” após a pergunta feita assinala que ela permanece sem resposta.
Ver R. Alter, Genesis, 244.

121
José ou a invenção da fraternidade

forma e o conteúdo fazem esta ordem semelhante à que fora dada a José em
37,13-14: uma constatação concernente a alguma coisa distante (os irmãos
em Siquém; grão no Egito), a missão de ir para lá e de voltar, para trazer de
volta a Jacó alguma coisa vital para a família (uma palavra de paz; alimento
para viver). Aliás, o leitor já sabe que, sem que Jacó tenha consciência, sua
segunda ordem provocará o que a primeira tinha em vista, ou seja, a união dos
irmãos, numa época em que ela está ameaçada por uma carência essencial: há
vinte anos, quando do envio de José, o šalom fraternal; hoje, o alimento. No
mais, tratar-se-á, para os irmãos de José, de reencontrá-lo fazendo o mesmo
caminho que ele fez: descer ao Egito (42,2-3, ver 39,1). Mas com que resul-
tado desta vez?
No contexto destas implicações, um jogo de palavras revela seu sentido.
Para descrever o alimento disponível no Egito, o narrador recorre, no versí-
culo 1, ao termo šever, “grão”. Jacó o retoma e dá sua ordem empregando o
verbo šavar, que designa de forma genérica o comércio de grãos (vender e
comprar)7. Mas este substantivo e este verbo são homônimos de termos mais
corriqueiros: um, do substantivo šever, que significa “ruptura, quebra”; o
outro, do verbo correspondente šavar. Para o leitor que o percebe, o segundo
sentido refere-se novamente aos acontecimentos do capítulo 37, à desagregação
familiar, que ocorre especificamente no contexto de venda e compra à vista,
mesmo que os irmãos não tenham se enriquecido. Que acontecerá por ocasião
dessa venda, que não pode deixar de acontecer, porque é o irmão vendido
que deve fornecer a seus irmãos o grão necessário à vida (41,56-57)? Assim
começa um nível de duplo sentido: a fim de que “vivamos e não morramos”,
como Jacó o deseja, a família certamente precisa do pão necessário para a
sobrevivência. Mas ela não precisa também da fraternidade?8
Este segundo problema não demora a aparecer. Contando como os filhos
obedecem ao pai, o narrador os apresenta como “dez dentre os irmãos de José”

7. No capítulo 41, para designar os alimentos armazenados e distribuídos por José, encontra-
mos sucessivamente as palavras ’okel (“alimentos”: 41,48, três vezes), bar (“trigo”: v. 49), leh.em
(“pão”: v. 54.55); o verbo šavar (“compra-venda de grãos”) descreve no final (v. 56.57) a atividade
comercial de José. O narrador introduz assim progressivamente a palavra usada por Jacó e que se
lê sete vezes em 42,1-10 (duas vezes o substantivo šever em 42,1-2, cinco vezes o verbo šavar em
42,2.3.6.7 e 10).
8. Talvez o jogo de palavras se prolongue no versículo 3, onde o narrador conta que os irmãos
partiram “para comprar trigo do Egito”. O termo “trigo”, bar, não designa também o filho em he-
braico (cf. Sl 2,12; Pr 31,2 — sob a influência, provavelmente, do aramaico)? “Dez dos irmãos de
José”, aqueles que desejaram vender o filho de Jacó, iriam, sem saber, “comprar um filho” dando
ouvido à palavra de seu pai?

122
Capítulo 7 – Reencontro no Egito (42,1-17)

(42,3), provavelmente para relembrar o elo que, apesar de tudo, os une àquele
que logo mais vão encontrar. Em seguida, ele interrompe sua narrativa para
voltar atrás e mencionar Benjamim, que Jacó mantém consigo (42,4).
3
Desceram, pois, dez dentre os irmãos de José, para comprar trigo do Egito.
4
Mas a Benjamim, o irmão de José, Jacó não [o] enviara com seus irmãos,
pois dissera: “com medo de que lhe aconteça uma desgraça”.

Em “dez”, os irmãos não estão completos para a viagem. Falta “Benjamim,


o irmão de José” — observe o singular (“o irmão”) que o distingue dos outros,
mas também, provavelmente, explica o que se segue. Como José anteriormente
(37,12), seu irmão fica com seu pai, por iniciativa deste último. Eis o que
completa a cena familiar: José desapareceu, e o outro filho de Raquel parece
ter herdado a preferência do velho Jacó, que o isola de “seus irmãos” como
tinha feito com José9.
Porém, há mais aí do que um simples retorno à posição inicial. O narrador
o ressalta, indicando a motivação de Jacó com suas próprias palavras: “com
medo de que lhe aconteça uma desgraça”. Se Jacó se faz de pai protetor do
caçula é, provavelmente, por desconfiança dos outros filhos, principalmente
depois do desaparecimento de José10. Quando enviou José aos seus irmãos
(37,13-14) não lhe aconteceu uma desgraça? Pois é exatamente isso que Jacó
no presente momento deve sentir a respeito de Benjamim. Assim, sua reação
revela uma regressão em consequência da desgraça que conheceu. Ele, que
havia assumido o risco de enviar José na esperança de construir a fraternidade,
já não mostra a mesma coragem com Benjamim. Por mais compreensível que
seja, essa regressão representa uma recaída no mundo da cobiça, como con-
firma a desconfiança mal disfarçada de Jacó. Isso pode muito bem se tornar
obstáculo ao desejo de vida que ele expressou de início (42,2).

Primeiro encontro (42,5-17)


São, portanto, dez filhos que, mais influenciados por seu pai do que pela
fome em Canaã, se unem com outras pessoas para ir comprar grãos no Egito.
O narrador os chama aqui de “filhos de Israel” (42,5): será para enfatizar
que o que escondidamente está em jogo é o futuro da bênção da qual Israel

9. Gunkel, 442, especifica que essa informação é necessária para o que se segue. Veja também
Westermann, 105, e B. Green, “What Profit for Us?”, 118.
10. Assim H. C. White, Narration and Discourse, 261, e Turner, 178.

123
José ou a invenção da fraternidade

é portador e José parece ser o herdeiro — o que a obra de sua vida no Egito
tende a confirmar? Mas é preciso ler a cena inteira (42,5-17).
5
E os filhos de Israel vieram comprar grão no meio dos que vinham, pois havia
a fome na terra de Canaã. 6Ora, José era governador da terra, era ele que ven-
dia o grão a todo o povo da terra. E os irmãos de José vieram e se prostraram
por ele com o rosto por terra. 7E José viu seus irmãos e os reconheceu, e se
fez de estranho para eles e lhes falou duramente, e lhes disse: “Donde vin-
des?”. Eles disseram: “Da terra de Canaã, para comprar alimento”. 8E José
reconheceu seus irmãos, mas eles não o reconheceram. 9E José se lembrou dos
sonhos que sonhara para eles e lhes disse: “Vós sois espiões! Viestes para ver
a terra em sua nudez”. 10Responderam-lhe: “Não, ó meu senhor! Teus servos
vieram para comprar alimento. 11Todos nós somos filhos de um único homem.
Somos honestos: teus servos não foram [nunca] espiões!” 12E ele lhes disse:
“Não. Viestes para ver a terra em sua nudez!” 13E eles disseram: “Teus servos
são doze; nós somos filhos de um único homem na terra de Canaã; e eis que
o menor está com nosso pai, e o único não está”. 14E José lhes disse: “É ele
de quem lhes falei quando disse: vós sois espiões! 15Nisto sereis submetidos
à prova: pela vida do Faraó, não saireis daqui enquanto vosso irmão menor
não vier aqui. 16Mandai um único dentre vós, que tome vosso irmão — en-
quanto vós ficareis presos — para que vossas palavras sejam postas à prova:
a verdade está convosco? Se não, pela vida do Faraó, vós sois espiões!” 17E
ele os reuniu sob guarda por três dias.

No momento em que os irmãos chegam ao Egito, o narrador dirige a


atenção para José e o mostra da maneira como seus irmãos podem vê-lo:
“Ora, José era governador da terra, era ele que vendia o grão a todo o povo
da terra” (42,6). O reencontro é inevitável, e o narrador o aponta, sem de-
mora, mostrando desde o início os irmãos prostrados diante de José “com
o rosto (lit. narinas) por terra”, como se costuma fazer diante de um pode-
roso, a fortiori se é um estrangeiro que, como o egípcio, detém um po-
der de vida ou de morte. Observe-se que, nesta breve descrição, o narrador
retoma o verbo-chave da cena dos sonhos de José (“prostrar-se para”: ver
37,7.9), assim como vários termos da interpretação do segundo sonho por
Jacó (“vir, prostrar-se para, por terra”: ver 37,10). Ele aponta assim, sem o
dizer, que a interpretação que o pai deu ao sonho de José encontra um esboço
de realização, num contexto que não deixa de lembrar o sonho dos feixes
também. Mas isto é apenas um começo, porque são somente dez irmãos
ainda, enquanto o irmão deles, embora revestido com o poder de governador

124
Capítulo 7 – Reencontro no Egito (42,1-17)

(šallit.), não reina como eles então tinham imaginado — pelo menos não
sobre eles11.
“E José viu seus irmãos e os reconheceu, e se fez de estranho para eles
e lhes falou duramente.” O narrador anota cuidadosamente a assimetria entre
um e os outros. “Se fez de estranho para eles”: José se configura à visão que
os irmãos têm dele12. Ele se dirige a eles duramente (42,7). Ele tem algum
plano na cabeça? Está esperando para ver se reconhecerão sua voz, já que não
conseguiram olhar além de sua aparência enganosa? O leitor não sabe nada
disso. A única coisa que sabe é que José impede que o reconhecimento seja
mútuo, como que pressentindo que isso seria fácil demais13 ou inadequado,
dado o que aconteceu no passado, tornando-os estranhos uns aos outros. Talvez
espere que, enquanto ele se esconde, eles abram os olhos? Na verdade, ao
longo das cenas que se seguem até o momento em que José se fará reconhecer
(45,1), o narrador se guardará de revelar diretamente ao leitor qualquer coisa
das intenções ocultas de José, confrontando-o assim — um pouco como os
irmãos, embora em medida menor, já que está mais informado do que eles —
com um mistério bem difícil de perscrutar14. Cabe, pois, ao leitor descobrir
o jogo de José.
Aqui, no entanto, o narrador parece fornecer uma indicação discreta
ao leitor para lhe sugerir a lógica inicial da reação de José. Meir Sternberg
destaca com sutileza15: por sua sonoridade e sua situação narrativa, o verbo
wayyitnakker, que assinala aqui que José “fez-se (de) estranho” diante de seus
irmãos desde o momento em que aparecem em sua presença, é muito próximo
de wayyitnakkelu, outro verbo raro que o narrador empregou em 37,18 para
descrever o complô que os irmãos fomentaram quando viram José chegar. Por
este jogo de palavras, o narrador poderia sugerir uma retaliação por parte de
José, o início do que seria para ele uma vingança do crime dos irmãos. Mas

11. Em sentido diferente, mas convergente, P. Beauchamp, Joseph et ses frères, 7: “o sonho
se realiza […], mas neutralizado: eles se prostram diante do invólucro [*la coquille] de José, não
diante de José”.
12. B. Green, “What Profit for Us?”, 119.
13. A este respeito, ver J. P. Sonnet, Leurs yeux s’ouvrirent, 48-49.
14. O narrador registra cuidadosamente as respectivas posições dos personagens: José está bem
acima de seus irmãos quanto ao conhecimento. No entanto, o leitor não tardará a constatar que ele
mesmo fica inferior a José, na medida em que ignora tanto suas motivações quanto suas intenções.
Note-se, porém, que José logo será parcialmente dependente de seus irmãos, porque sabe menos que
eles sobre a situação da família em Canaã. Sobre esta questão, ver, por exemplo, W. L. Humphreys,
Joseph and his Family, 44, 89 e 114-115, e J. P. Sonnet, Y a-t-il un narrateur?, 23-24.
15. M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 228. Veja J. S. Ackerman, Joseph, Judah
and Jacob, 90, e Sarna, 293.

125
José ou a invenção da fraternidade

essa vingança seria punitiva, como afirma Sternberg? Nesta fase, as coisas
não parecem claras, ainda que o narrador avise o leitor de que na conversa
que virá a seguir as palavras de José serão duras.
De fato, na história do capítulo 39 o leitor viu José recusar-se a se compro-
meter com o mal, preferindo agir como homem sábio e justo, atitude da qual,
em seguida, recolheu os frutos. Daí, não espera vê-lo entregando-se à vingança
vil, deleitando-se em atormentar seus irmãos. Talvez paire ainda uma dúvida
na mente do leitor: será que, diante de Putifar e sua mulher, José agiu como
fez porque sua posição inferior não lhe deixou outra escolha? E será que, agora
que tem poder, ele revela diante dos seus sua verdadeira cara de homem duro?
Afinal, ao ver José esconder-se e despistar seus irmãos, o leitor pode se perguntar
que tipo de estratagema ele usa. O narrador, na verdade, tem apresentado até
agora diversos tipos de estratagemas, com seus respectivos motivos e resultados.
Se, como a mulher de Putifar, José usa um estratagema por ódio e desejo de
vingança, o leitor terá toda a razão em recear que isso se revele terrivelmente
destrutivo. Se, ao invés, José, como Tamar, recorre à dissimulação esperando
promover a verdade e a vida para além da morte e do medo, então podemos
esperar o melhor. Mas aqui os irmãos se veem na posição de Judá, incapaz de
reconhecer Tamar por causa de sua aparência disfarçada16, apesar das palavras
que trocaram. E, assim como no capítulo 38 o leitor não podia perceber de
imediato o que levou Tamar a enganar — ela poderia ter querido vingar-se de
Judá —, ele precisará de certo tempo antes de adivinhar o que anima José e a
finalidade que ele persegue em relação a seus irmãos. Essa comparação com
Tamar, cuja fraude se revelou portadora de vida, predispõe o leitor favoravel-
mente em relação ao que vê José fazer. Mas será preciso verificar.

Na cena do reencontro, as coisas não acontecem sem ambiguidade, pelo


menos inicialmente17. Mas as palavras duras — que no futuro imediato têm
pelo menos o valor de manter o contato entre os irmãos e José e de permitir,
pela primeira vez, uma troca entre eles — constituem também o início de um
processo longamente contado (Gn 42–44), no qual, pouco a pouco, mas con-
tinuamente, a pressão exercida de forma constante pelo senhor egípcio leva

16. Veja J. S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob, 104.


17. Nesse sentido, M. R. Jacobs, The conceptual Dynamics of Good and Evil, 324-325; no en-
tanto, ele acredita que a incerteza continua, sublinhando que “a ambiguidade narrativa […] também
pode ser indicativa da ambiguidade de seus sentimentos [de José] para com seus irmãos” (325). Para
Brueggemann, 406, ao mostrar-se severo e vingativo José paga a seus irmãos o mal que ele sofreu
por causa deles. Ver também Gunkel, 440 e 443, que fala em punição. Para Westermann, 107, no
entanto, José tem, desde o começo, a intenção de curar a ruptura que ocorreu no início da história.

126
Capítulo 7 – Reencontro no Egito (42,1-17)

os irmãos a assumir a verdade a respeito de si e de seu passado, a tocar o mal


que produziram e, em seguida, a mostrar como seu comportamento familiar
mudou. É impossível que o sábio José não se dê conta disso, e isso desde os
primeiros momentos do encontro, como veremos. É possível, também, que a
dureza que José, sob várias formas, manifesta sem cessar em relação a seus
irmãos seja animada por uma vontade calculada que poderia ser chamada de
pedagógica18; tal é a hipótese que eu gostaria de sustentar aqui.
A primeira impressão que me vem à mente quanto ao início da conversa
relatada em 42,7-16 é que José improvisa19 e que sua dureza não é muito re-
fletida, como se procedesse, impulsivamente, de um velho rancor, despertado
talvez pelo desapontamento de não ter sido reconhecido de imediato pelos
seus. Mas será que, conversando com eles asperamente, José não leva as
coisas para onde estavam em 37,4-11, quando cada palavra de paz se fazia
impossível entre os irmãos?20 Nisto, sua atitude, mesmo em sua aspereza, não
é sem justiça nem sabedoria.
Mas voltemos ao início da conversa deles. O tom abrupto da primeira
pergunta de José parece produzir um efeito imediato. Em vez de se ater ao
que lhes é perguntado e dizer simplesmente de onde vieram, os irmãos acres-
centam que estão aí “para comprar alimento” (42,7). Para que essa precisão,
completamente inútil na situação, senão porque estas pessoas sentem a ne-
cessidade de justificar sua presença? Não é este um sinal discreto de que a
atitude ríspida do senhor egípcio consegue, desde o início, desestabilizá-los e
inquietá-los? Eis por que, decerto, os irmãos não reconhecem José, agora que
ouvem sua voz e se reencontram no clima tenso que marcou seu relacionamento
duas décadas atrás. O narrador o registra com uma precisão quase notarial:
“E José reconheceu seus irmãos, mas eles não o reconheceram” (42,8). Ele
destaca também o flagrante contraste entre ele e seus irmãos: o primeiro se
teria feito de desconhecido na esperança de que os outros o reconhecessem
por si mesmos?21 Se foi assim, sua esperança ficou bem frustrada.

18. Para R. Lack, Letture strutturaliste, 100, José foi envolvido numa “terapia da palavra”. De
qualquer forma, para que a pedagogia seja eficaz, é necessário que os irmãos ignorem que estão
lidando com José. Se eles o soubessem, o comportamento dele seria mera vingança. J. P. Sonnet,
Leurs yeux s’ouvrirent, 49-50, prefere falar de uma “psicanálise familiar”.
19. Nesse sentido, R. Lack, Letture strutturaliste, 113.
20. Observou-se com razão que as primeiras frases do diálogo no Egito constituem um diálogo
de surdos, uma vez que cada um se repete: ver 42,9-12. Sobre a relação entre as palavras duras de
42,7 e de 37,4, ver J. S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob, 90.
21. Bem marcado pela dupla repetição do verbo, o paralelismo entre o versículo 7 (“E José viu
seus irmãos e os reconheceu/e se fez de estranho para eles”) e o versículo 8 (“E José reconheceu

127
José ou a invenção da fraternidade

Mas, curiosamente, é aqui, e só aqui, que o narrador registra o fato de


que José se lembra de seus sonhos (42,9)22. Não seria possível ter lembrado
isso mais cedo, quando seus irmãos se prostraram diante dele? Lá, com efeito
(42,6b), o narrador escolheu palavras capazes de chamar a atenção do leitor
quanto à sua semelhança com a cena do capítulo 37, mas José parecia não se
lembrar de nada. É só aqui que a recordação lhe volta, ao mesmo tempo em
que se manifesta a cegueira de seus irmãos. Não é este um sinal de que, de seus
sonhos, José não reteve em primeira instância a prostração e que, portanto, para
ele o essencial é outra coisa? Talvez o narrador deixe uma pista nesse sentido
quando, revelando indiretamente o pensamento de José, enfatiza que eram “para
eles” os sonhos de que se lembra agora. Portanto, o que consegue se lembrar
de seus sonhos não seria antes o desejo “para eles” — para si para e para eles
— de uma irmandade reunida em torno dele, sonho que de forma inesperada
se torna novamente possível, apesar de estar comprometido pela incapacidade
dos dez homens de reconhecer neste egípcio que lhes fala o seu irmão?
Se é assim, a conversa que se segue deve ser lida a esta luz. Se a dureza
das respostas de José talvez dê a impressão de que ele se deixa levar à retalia-
ção, convém desconfiar dessa impressão e pô-la à prova. Há de se perguntar
se por trás das aparências de durão as palavras de José não dizem algo sobre
seu desejo, decepcionado num primeiro momento, de ser reconhecido e — por
que não? — de construir a fraternidade. Como se José hesitasse entre a sede
de vingança e o desejo de fraternidade que, como vimos, talvez esteja por
baixo dos sonhos, tendo se tornado seu quando do encontro com o homem
perto de Siquém (37,16). É este desejo que, aos poucos, parece prevalecer,
como mostra a narração a seguir.
Ao responder à pergunta sobre sua origem, os irmãos, como vimos, houve-
ram por bem acrescentar uma precisão inútil concernente ao propósito de sua
viagem, como se esta carecesse de tal justificação. Isso basta a José para agarrar
a chance e negar a afirmação deles23: não vieram para comprar comida, mas
como espiões, para ver a terra em sua nudez24 (42,9b). Certamente, a acusa-

a seus irmãos/mas eles não o reconheceram”) sugere uma correspondência entre o jogo de José e
seu não reconhecimento por parte dos irmãos.
22. Muitos comentaristas ligam a recordação dos sonhos à prostração. Isto não é o que conta
o narrador, que diz, aliás, que é de seus sonhos que José se lembra, não das interpretações que
foram dadas.
23. Para J. P. Fokkelman, Jacob as a Character, 15, José tira proveito da velha culpabilidade
que se revela para colocá-los sob pressão.
24. A “nudez” (‘erwah) simboliza aqui, metaforicamente, os “pontos fracos” (“o que deve
permanecer escondido aos olhos de um estrangeiro”, como escreve R. Alter, Genesis, 246). Este

128
Capítulo 7 – Reencontro no Egito (42,1-17)

ção é tão fácil como falsa, mas difícil de desfazer! Um espião é alguém que,
por trás de uma fachada de honesto (comprar trigo), esconde projetos e ações
de qualquer tipo (explorar os pontos fracos de um país). Portanto, uma vez
acusado de espionagem, como provar que se é honesto, já que existe a suspeita
de intenções secretas e ações ocultas, coisas inverificáveis por natureza?
No início, portanto, os irmãos se veem em apuros — e José com certeza
sabe disso, já que viveu uma situação semelhante quando a esposa de seu
senhor o acusou falsamente sem que ele pudesse se justificar25. Acaso coloca
os irmãos nesta situação para os fazer sofrer o que ele sofreu ou porque ele
sabe que, em tal postura, o acusado não tem senão a verdade para se defender
e porque, intuitivamente, José tenta provocar neles tal reação? Além disso,
a situação deles pode ser mais difícil ainda, na medida em que tal acusação,
falsa nas atuais circunstâncias, talvez não seja totalmente desprovida de ver-
dade quanto ao que aconteceu vinte anos antes. Não usa um espião, em toda
boa consciência, a duplicidade acima evocada para servir a seus interesses
e aos dos seus, e isso em detrimento dos outros, se não simplesmente para
prejudicá-los? Um espião não é por essência um desconfiado, hábil em ex-
plorar as aparências para se esconder e enganar os outros? Ora, tal foi o jogo
que os irmãos jogaram no passado em relação a José e o pai deles. O lei-
tor que se lembrar disso será capaz de captar a pertinência oculta da acusa-
ção de José, mesmo não tendo certeza de que ele tem consciência desse as-
pecto de suas alegações26.
Em face desta acusação infundada, mas perniciosa, que os pega de surpresa,
o que podem fazer os irmãos senão refutar a alegação do egípcio, reafirman-
do, educadamente mas com força, sua verdade com relação ao objetivo da
viagem? “Não, ó meu senhor! Teus servos vieram para comprar alimento …
teus servos não foram [nunca] espiões!” (42,10.11b). Mas no centro, entre
a afirmação inicial e a negação conclusiva, está o essencial. De fato, para
protestar de sua boa-fé, os irmãos introduzem uma declaração, incongruente
à primeira vista, a propósito de seu estado civil: “Todos nós somos filhos de
um único homem. Somos honestos” (42,11a). A lógica subjacente é que sua
pertença a uma mesma família é, a seus olhos, um argumento que comprova

é, pelo menos, o sentido de superfície, como assinalam os comentaristas. Von Rad, 391, vai mais
longe ao falar de uma “conspiração para fraudar, uma violação”.
25. Coats, 286, faz a conexão. Ver também B. Green, “What Profit for Us?”, 120.
26. R. Pirson, The Lord of the Dreams, 95, sustenta que a lembrança dos sonhos também
lembra a José que ele, naquele momento, brincava de espião em relação a seus irmãos. Esse fato
lhe sugeriria a acusação que usa contra eles.

129
José ou a invenção da fraternidade

sua honestidade: seria provável que dez espiões fossem todos irmãos?27. Mas
o leitor deve ter notado, por acaso, que não se dizem irmãos, mas “filhos de
um único homem”, como se reconhecessem implicitamente que, por si, “todos
eles” não constituem uma fraternidade. Assim, a acusação parcialmente falsa
de José leva os irmãos a dizer alguma coisa de sua verdade, coisa salientada
também por seu protesto de honestidade, a única coisa que ouvimos de sua
boca28. Seu ponto de partida em suas entrevistas com José é a boa consciên-
cia a toda prova de pessoas convencidas de sua completa inocência. Uma
convicção que José vai sacudir.
Vendo que seus irmãos, ao rejeitar a acusação de espionagem, encontra-
ram para se defender somente sua verdade familiar, mas que esta verdade é
apenas esboçada, José parece estar querendo ir até o fim. Será que espera
obter, assim, informações sobre seu pai e seu irmão? O fato é que, fazendo
eco à sua negação inicial, ele repete: “Não. Viestes para ver a terra em sua
nudez!” (42,12). Sintaxicamente, desta vez a ênfase cai sobre a “nudez” da
terra, e o fato de que José traz os irmãos de volta a este ponto desta maneira
chama a atenção. Após a invocação da família, com efeito, essa insistência
sobre a nudez bem poderia ser, da parte de José, uma tentativa de fazer seus
irmãos se lembrarem daquele cuja nudez viram antes de jogá-lo num buraco
na terra29. Eis, pois, o que seria — ou deveria ser — para José o verdadeiro
propósito da vinda dos irmãos: ver o nu que abandonaram na terra! Seu desejo
de ser reconhecido voltaria à tona nesta segunda resposta, embora só possa
expressar-se de forma velada. Se é assim, parece que, após ter inicialmente
reagido “a calor”, José encontra gradualmente sua compostura e começa a
“trabalhar” a boa consciência dessas pessoas, que só podem acreditar-se “ino-
centes”, como disseram, se esqueceram seu crime de que José foi a vítima.
Afinal, até mesmo uma acusação (pela metade) falsa é capaz de revelar a
culpabilidade enterrada.
A resposta dos irmãos é ágil no jogo entre acusação e defesa. Se o egípcio
apenas pode repetir sua acusação, sem apresentar qualquer prova, é porque a

27. Assim, Wenham, 407, e, um pouco diferente, Westermann, 108. O leitor irá notar que
esse argumento atinge o significado oculto da acusação de José, que, sem o saber, evoca a figura
do pai em relação a quem, precisamente, eles fazem o papel de espiões. Tudo acontece como se um
sentido oculto percorresse o diálogo sem o conhecimento dos personagens.
28. José “cria uma ficção, uma mentira, que aponta para a verdade mais profunda”. Quanto aos
irmãos, “eles caem na armadilha, cegamente, precisamente porque querem […] esconder a mentira
que está no centro de sua existência” (H. C. White, Narration and Discourse, 261).
29. A ideia não é nova: ver, por exemplo, R. Alter, L’art du récit biblique, 222, Hamilton,
520, seguido por R. Pirson, The Lord of the Dreams, 95.

130
Capítulo 7 – Reencontro no Egito (42,1-17)

defesa deles foi eficaz. Eles não têm por que tentar outra coisa. Continuam,
portanto, na mesma linha, repetindo e precisando sua primeira declaração.
Assim dão mais um passo em direção à sua verdade (42,13). Desta vez, fa-
lam de doze30 irmãos, explicando que o caçula está com seu pai, enquanto o
único não está, ou não está mais. Na realidade, constatamos que, sem saber,
eles evocam várias vezes o “nu” em questão. Fazem isso indiretamente, em
primeiro lugar evocando a irmandade: eles são irmãos, o que é verdade, já
que são doze; mas eles se retomam imediatamente, como se reconhecessem
implicitamente que não formam uma irmandade, mas somente o grupo dos
“filhos de um único homem”. Em seguida, evocam a “nudez” diretamente ao
falar dos “dois” ausentes: por um lado, eles mencionam o caçula que ficou
com o pai e que é, como vimos, o irmão e substituto de José (21,4a); de outro
lado, eles citam o “único”, dizendo, numa expressão bastante vaga, que “não
está” ou que “não está mais”. Esta expressão retoma a de Rubem anunciando
aos outros o desaparecimento do “nu”, em 37,30 (’eyne-nnu-), refletindo ade-
quadamente a ignorância dos irmãos quanto ao que se passou realmente31. No
entanto, enquanto mencionam José para falar da ausência dele — que está
presente “a olhos vistos” —, eles ainda não o reconhecem, decepcionando
novamente, decerto, o desejo dele. O efeito da ironia à custa dos irmãos salta
aos olhos do leitor. Mas o que dizer de José?
Sua resposta começa, de maneira surpreendente, por um anacoluto.
Literalmente: “É ele (de) quem32 lhes falei quando disse: vós sois espiões!”
(42,14). A seus irmãos que acabam de falar do único que não está aí, José
responde começando com um pronome pessoal que designa este único33. Será
que ele pensou por um momento em deixar a máscara cair? Será um ato falho
devido à precipitação, mas indicativo do desejo de ser reconhecido? O fato
é que, sem demora, ele muda de ideia, tendo encontrado uma ideia melhor,
retomando-se, consciente do erro que ia cometer. Em seguida, ele continua
sua frase retornando à sua ideia de espionagem, alargando-a de modo natural,

30. Literalmente “dois dez”, segundo a expressão normal em hebraico. Além dos dez presentes
(ver 42,3), eles mencionam dois outros dos quais, portanto, terão que dizer algo.
31. Não tendo vendido José, não sabem o que aconteceu com ele. Ver R. Alter, L’art du récit
biblique, 223-224, e B. Green, “What Profit for Us?”, 121-122.
32. O pronome relativo é invariável em hebraico (’ašher) e seu significado é normalmente escla-
recido pela própria frase relativa ou por uma expressão pronominal, o que não é o caso aqui.
33. Quanto ao que se segue, eu me inspirei em R. Pirson, The Lord of the Dreams, 97-98, que
usa a imagem de alguém que “engole suas palavras”: “José poderia ter chegado a ponto de dizer:
‘É aquele que vos disse: sois espiões’, revelando assim sua identidade, o que ele consegue evitar
em tempo. José parece dividido entre suas emoções (desejo de se revelar) e sua razão (abster-se de
se dar a conhecer a seus familiares)”.

131
José ou a invenção da fraternidade

enquanto, pela dupla menção ao nome do Faraó, enfatiza a distância entre o


egípcio que ele é e esses estrangeiros. Mas por que agir deste modo se quer ser
reconhecido? Decerto porque não acha mais necessário ser reconhecido, agora
que seus irmãos mencionaram que o “menor” ficou com o pai — primeira
informação verdadeiramente nova que seus irmãos lhe levam. Doravante é a
este que ele vai dedicar seu interesse. Na verdade, em vez de lhes falar de si
mesmo — o que parecia ser seu primeiro impulso — ele dirige sua atenção
para Benjamim, aproveitando a oportunidade que os irmãos lhe oferecem sem
saber (42,14-16).

vós sois espiões!


15
Nisto sereis submetidos à prova:
pela vida do Faraó,
não saireis daqui
enquanto vosso irmão menor não vier aqui.
16
Mandai um único dentre vós, que tome vosso irmão
— enquanto vós ficareis presos —
para que vossas palavras sejam postas à prova: a verdade está
convosco?
Se não, pela vida do Faraó,
vós sois espiões!

Após o início hesitante que viram, o discurso de José se precisa através


de repetições e deslocamentos, talvez sinal de uma ideia que germina len-
tamente: José parece improvisar em torno do desejo de ver seu irmão mais
novo, que os dez disseram estar com seu pai e que, portanto, pode estar em
perigo, como ele antes. Ouvindo isso, o leitor compreende que o teste que ele
impõe aos irmãos não é só sobre a fiabilidade de suas palavras. O que está
em questão, mais profundamente, é a fraternidade, especialmente a relação
com seu irmão caçula. Na verdade, a resposta aparentemente sincera dos dez
pode despertar em José o desejo de ver seu irmão, mas também, talvez, de
verificar se Benjamim não sofreu o mesmo destino que ele. Tal desconfiança
não careceria de fundamento para ele, nem aos olhos do leitor, que já viu os
irmãos mentirem descaradamente sobre o desaparecimento de um filho de
Raquel34. No mais, se eles são incapazes de provar que seu irmão está vivo,
José tem razão: eles são realmente espiões, ou seja, “um bando de bandidos

34. Nesse sentido, R. Alter, L’art du récit biblique, 224-225, e M. Sternberg, The Poetics of
Biblical Narrative, 289-292.

132
Capítulo 7 – Reencontro no Egito (42,1-17)

cúmplices”35 que se fazem passar por gente honesta, o que estão longe de ser.
José parece assim abandonar a ideia de fazer-se reconhecer por seus irmãos,
para adotar outra estratégia que ainda não aparece claramente. Então, se
ele apresenta um cenário para fazer vir Benjamim — enviar um deles para
buscar o caçula e manter os outros na prisão —, curiosamente não passa ao
ato, preferindo colocar todos os seus irmãos na prisão por três dias (42,17).
É como se a ideia que lhe veio enquanto ele ainda falava tivesse evoluído
ou como se, antes de colocar em prática seu plano improvisado, quisesse ter
tempo para refletir — três dias.
Para descrever a prisão dos irmãos, o narrador recorre a uma expressão
pouco comum, wayye’esof ’otam ’e-l-mišmar, “e ele os confinou sob custódia”
— o que significa, sem dúvida, que foram presos. É provável que a escolha
do verbo não tenha sido por acaso; como ’asaf faz jogo de palavras com o
nome de José (yosef), poderíamos transpor: “ele os josefizou”36. Isso, mui
provavelmente, para chamar a atenção do leitor para certa analogia entre os
irmãos e José. Pondo-os na prisão, ele os faz viver o que ele mesmo sofreu
por causa deles. A analogia é clara, com efeito. É verdade que os dois termos
utilizados nos versículos 16 e 17 (’asar Nifal, “ser prisioneiro”, e mišmar,
“prisão, guarda”37) conotam outro gênero de detenção que aquele que José
conheceu depois de jogado no buraco; eles associam antes a sorte presente
dos irmãos à dos funcionários do Faraó colocados em detenção preventiva
(ver as mesmas palavras em 39,20 e 40,3). Haveria, pois, certa moderação
na dureza de José para com seus irmãos. Ainda assim, eles, como ele antes38,
estão privados de sua liberdade, de forma aparentemente arbitrária e injusta,
e forçados a viver durante certo tempo em cruel incerteza a respeito de seu
porvir, forçados também a revolver o passado familiar que acabam de evocar
(“o único que não está”) e que contesta os protestos de inocência daqueles
que fizeram seu irmão sofrer a mesma sorte que eles sofrem agora. Mas não
foi essa a experiência que permitiu a José amadurecer através do sofrimento?
Assim é permitido perguntar se é correto falar, sem mais, de retaliação ou
vingança. E, se este aspecto não deve ser excluído do projeto de José, deveria

35. A expressão é de J. M. Auwers, Joseph, 21.


36. É um dos dois jogos de palavras utilizados por Raquel para explicar o nome de José: Gênesis
30,23 (o outro era yasaf: 30,24). Nesse sentido, Wenham, 407-408.
37. Estas duas palavras encontram-se, em uma única expressão, em 42,19, na reformulação
do projeto por José.
38. José passou uma segunda vez por esta experiência, mas no Egito (39,20). A ideia é de J.
S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob, 91.

133
José ou a invenção da fraternidade

ser chamado de retaliação calculada. Não é impossível, no fundo, que José


queira ver seus irmãos meditarem sobre o que lhes acontece, enquanto ele
também vai refletir sobre o que fazer39.
Três dias passam então sem que o narrador diga nada. É que ele prefere
deixar o leitor ver sem demora os resultados deste período de reflexão para
todos, após o primeiro contato, que foi bastante rude.

39. Segundo J. S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob, 90 e M. Sternberg, The Poetics of
Biblical Narrative, 288, José, para se vingar, faz a seus irmãos o que ele mesmo experimentou no
Egito, aprisionando-os depois de acusá-los falsamente (cf. 39,19-20); Turner, 180, também vai
nesse sentido. Mas nesta fase José parece-me ter ultrapassado o simples desejo de vingar-se: parece
mais guiado pelo processo da verdade no qual os irmãos entraram.

134
Capítulo 8

Segundo encontro entre irmãos


(42,18-28)

“O terceiro dia…”. Para o leitor, essas palavras têm um ar de déja vu,


especialmente porque há acusados aguardando julgamento na cadeia. O leitor
se lembra imediatamente da história do padeiro e do copeiro (Gn 40), que
também foram soltos depois desse prazo, de acordo com o que José anuncia-
ra1. Para um, a boa sorte, para o outro, não: a libertação depois de três dias
resulta em vida ou morte. Essa aproximação é certamente apta para ressaltar
o que estará em jogo na próxima cena, quando José declarar que a atitude dos
irmãos será para eles uma opção de vida ou morte. Estas palavras, de fato,
enquadram seu discurso: “Fazei isto, e vivereis… não morrereis” (42,18.20).
Exprimem, sem dúvida, o desejo oculto de José, desejo que, estranhamente,
se junta ao de Jacó: no momento em que envia seus filhos para o Egito, não
lhes disse que deveriam descer até lá “para que vivamos e não morramos”
(42,2)?.

1. A expressão “três dias” de 42,17 aparece quatro vezes no capítulo 40 (v. 12, 13, 18 e 19),
enquanto “o terceiro dia” (42,18) se lê em 40,20.

135
José ou a invenção da fraternidade

Nova prova para os irmãos (42,18-20)


O novo plano que José comunica a seus irmãos reflete um amadurecimento
geral em comparação com o primeiro, no qual, porém, claramente se inspira2.
Parece muito mais desenvolvido, mais refinado. Desta vez, sua formulação
não conhece hesitação nem repetições. Ela é perfeitamente linear, apesar de
sua estrutura concêntrica propícia a retomadas. Agora, José sabe obviamente
aonde quer chegar. E, embora o narrador continue a dissimular as intenções
dele, é claro que a improvisação acabou.

E disse-lhes José no terceiro dia:


18

“Fazei isto
para que vivais — eu temo a Deus:
19
se sois honestos,
que vosso irmão, um único,
fique preso na casa onde estais sob guarda,
e vós, ide, fazei vir grão [para] a fome de vossas casas;
20
E vosso irmão, o menor,
o fareis vir a mim
para que sejam verificadas vossas palavras,
e vós não morrais”.
E fizeram assim/honestamente.

Primeira modificação em relação ao plano original: em vez de invocar o


Faraó no desejo de fortalecer sua identidade egípcia, José, para apoiar seu dis-
curso, fala de Deus e de seu temor a ele — ele levanta o véu de uma dimensão
até agora ausente do processo. Seu temor de Deus está mais diretamente ainda
ligado a seu desejo de vida para seus irmãos3, pois sugere, liminarmente, que
as instruções que lhes dá lhe são ditadas pelo respeito que tem por Aquele
que quer a vida4. Em sinal desse desejo, José lhes dá o grão para suas casas,
após lhes ter anunciado que os libertará a todos, exceto um. A mudança em

2. Aqui mais que em 42,7, creio eu, José começou a escrever o roteiro para a continuação da
história (cf. H. C. White, Narration and Discourse, 259). Ou, como escreve J. P. Sonnet, Leurs
yeux s’ouvrirent, 49, José, que não escolheu a via fácil do reconhecimento imediato, “decide fazer
a intriga dar um salto, orientando-a para um reconhecimento de fundo ético, prelúdio para qualquer
outro reconhecimento”. Assim, ele vai fazer seus irmãos entrarem na verdade de sua história.
3. As duas últimas vezes que José falou de Deus estavam relacionadas com a vida, quando
do nascimento de seus filhos (41,51-52).
4. Veja Westermann, 109; B. Green, “What Profit for Us?”, 122, destaca de sua parte que,
após o que precede (cap. 39–41), o leitor não tem nenhuma razão para suspeitar da sinceridade de
José sobre este ponto.

136
Capítulo 8 – Segundo encontro entre irmãos (42,18-28)

comparação com o que disse três dias antes é notável: demonstra a bondade e
a confiança que José, ao que parece, decidiu usar para com seus irmãos. Mas,
se sua vontade de vida e seu temor de Deus parecem bem reais, não se pode
excluir que sua declaração a esse respeito esconda uma forma de desafio implí-
cito: “Eu temo a Deus. E vós?”. Os irmãos darão uma resposta a esta questão
pela atitude concreta que adotarem: se optarem por fazer o que é preciso para
viver, ou seja, o que José sugere (“fazei isto para que vivais”), será porque eles
também temem a Deus. José coloca, assim, Deus no seu lado, para exercer nova
pressão sobre os seus irmãos — embora bem mais discreta, desta vez.
No entanto, a benevolência que José demonstra tem um aspecto medonho.
Na verdade, segurando um irmão prisioneiro no Egito e reenviando somente
nove, faltando “um único”, José os obriga a voltar a seu pai nas mesmas
condições que depois de seu próprio desaparecimento, vinte anos antes. E
a ausência de um irmão no retorno despertará, inevitavelmente, lembranças
daquele outro que desapareceu5. Assim, depois de conhecer durante três dias
a angústia daquele que eles tinham jogado no buraco, eis que os irmãos terão
de reviver um outro momento do drama de então, enfrentando mais uma vez
o sofrimento de seu pai — pai que José parece evitar mencionar, talvez para
não se dar a conhecer, mas sobretudo para deixar esta lacuna preencher-se por
si mesma na imaginação dos irmãos, o que será bem mais eficaz. Assim, sem
dar a impressão de tocar no assunto, José parece querer reavivar nos irmãos,
sucessivamente, a lembrança de suas duas vítimas6.
Mas com que intuito José revela assim a lembrança do mal? Sua intenção
é fazer seus irmãos sofrerem? O leitor não pode saber. Mas o que ele sabe,
lembrando-se da história de Tamar, é que, quando se reaviva a memória do
mal sofrido para fazer surgir a verdade da desgraça que ele gerou, restituem-
se as chances para a vida, que tem tudo a perder pela negação do mal e da
mentira obstinada. Assim, o leitor pode levar José a sério quando ele diz a seus
irmãos “para que vivais … e não morrais”. Mexer na ferida, com efeito, pode
ser benéfico, se é na esperança — cirúrgica, digamos — de retirar o pus que
gera a gangrena7. Confrontado com a acusação da mulher de seu amo, José

5. Assim, Von Rad, 392, e Wenham, 408.


6. Veja J. S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob, 90-91, G. Fischer, Die Josefsgeschichte,
249, e R. S. Wallace, The Story of Joseph, 59-60.
7. Com o significado da fórmula que lhe é própria, P. Beauchamp, Cinquante portraits, 56,
escreve: “Os irmãos de José são levados por ele a passar novamente por seu crime para ficarem
curados dele”. B. Green, “What Profit for Us?”, 132, sugere que a volta ao passado abre aos irmãos
a oportunidade de “decidir o que farão no futuro”.

137
José ou a invenção da fraternidade

viu que força a mentira confere ao mal e quão gravemente os dois ameaçam
a vida quando ganham espaço. Naquela ocasião, ele pôde compreender que
o trabalho da verdade é realmente o caminho mais seguro para combater o
mal e privá-lo de suas armas de morte. O leitor que leu a história de Tamar
entenderá que, se José vê as coisas assim, ele não está errado em agir desta
forma. Especialmente porque seu comportamento misterioso pode muito
bem ser o de alguém que, como Tamar, opta por dissimular-se e enganar a
mentira, na esperança — quem sabe? — de superar a miséria de uma vida
minada pela morte8.
Que o intuito de José seja produzir a verdade não tem nada de hipótese
gratuita. Ele o diz explicitamente a seus irmãos. Na realidade, seu objetivo
último é fazer viver, evitar que a morte prevaleça: esse objetivo literalmente
enquadra seu discurso. Mas, por isso, é importante entrar na verdade; é o
que dá a entender, dizendo: “para que sejam verificadas vossas palavras —
averiguadas como confiáveis — e vós não morrais”9. Na atual situação, isso
dificilmente acontecerá sem dor. Assim, se, aos olhos de Jacó, o que dá vida
e evita a morte é comer, coisa essencial em sua ordem (42,2), para José há
outra coisa igualmente vital para que a vida não se abisme na morte: a verdade
de palavras confiáveis em que é possível se apoiar — para retomar a imagem
do verbo hebraico utilizado por José (’amen).
Mas o que irá determinar a verdade da palavra dos irmãos? Nada senão a
fraternidade que demonstrarão trazendo a José o irmão mais novo. De fato, a
presença de Benjamim provará, não que eles não sejam espiões — essa acusa-
ção nunca foi real na cabeça de José —, mas que o que dizem de sua família
é confiável, a saber, que eles podem efetivamente considerar-se “irmãos”,
“filhos de um único homem” (42,13). Eles o farão de duas maneiras: por um
lado, a vinda de Benjamim (“vosso irmão menor”) demonstrará que eles lhe
têm poupado a sorte antes infligida a José, e isso sem que a atitude paterna
tenha mudado neste ponto — pois, entendendo que Benjamim ficou com Jacó,
José deve ter imaginado que o velho pai reproduziu em relação a seu irmão
mais novo o jogo de preferência que fora a fonte de seu próprio drama10. Por

8. Sobre este ponto ver J. L. Ska, J. P. Sonnet, A. Wénin, L’analyse narrative, 56-57. Veja
também acima p. 126-127.
9. Hamilton, 526, observa que se esperaria antes “… e que o refém não morra”. Mas José
mira mais longe com sua expressão curiosa.
10. Nesta linha, a prova imposta por José é também destinada para a descoberta sobre o que
ele ignora quanto a Jacó e Benjamim, mencionados por seus irmãos (42,13): ver J. P. Sonnet, Y
a-t-il un narrateur?, 25.

138
Capítulo 8 – Segundo encontro entre irmãos (42,18-28)

outro lado, retornando assim ao Egito, os nove mostrarão que são realmente
solidários com o irmão que José manterá refém (“vosso irmão, um único”) e
que eles não o abandonam à sua prisão egípcia como fizeram com José vinte
anos antes11.
Poderíamos ainda acrescentar o seguinte, embora seja apenas um coro-
lário que nada nas palavras de José explicita: mostrando sua disposição para
a fraternidade, os irmãos vão demonstrar que são verdadeiros filhos. Pois
se trouxerem Benjamim é que tiveram que abordar com seu pai o problema
que desestruturou a convivência fraterna, a saber, a preferência de Jacó pelos
filhos de Raquel; será sinal de terem conseguido que, apesar de tudo, ele lhes
desse confiança.
Em suma, José utiliza um recurso que irá revelar se os dez estão dispostos
a se tornar irmãos. Se realmente mostrarem respeito por seus outros dois ir-
mãos — Benjamim e o prisioneiro —, assim como a capacidade de falar com
seu pai do problema que impediu, anteriormente, a fraternidade de acontecer,
e se pelo mesmo fato provarem que suas palavras são fiáveis e críveis, então
serão cumpridos os requisitos mínimos para encarar um convívio realmente
fraterno e gozar a vida que este permite. Neste momento, porém, eles serão
doze, longe do pai, nas mesmas condições em que deveriam estar quando
reunidos perto de Siquém, depois que Jacó enviou José para seus irmãos em
vista do bem-estar (šalom) da família (37,14). Tudo se passa, pois, como se
nesta nova decisão bem amadurecida José reatasse com a tarefa que tinha
assumido antes, para a fazer sua em condições bem diferentes, mas sempre
conforme ao seu próprio desejo: “procurar seus irmãos” (37,16). Mas, antes
de fazer voltar uma palavra a Jacó (no sentido de lhe enviar uma mensagem,
desta vez), José deve ver como está o šalom entre seus irmãos, testando sua
capacidade de falar a verdade — pois se não renunciam à dissimulação e à
mentira a fraternidade não tem nenhuma chance — e a capacidade para se
tornar na verdade o que dizem ser: irmãos.
Ora, assumindo novamente a missão que seu pai lhe confiou, José tem
consciência de que vai causar-lhe sofrimento, exigindo que consinta ver partir
novamente seu filho amado e assumindo o risco de abandoná-lo aos outros
filhos? Aparentemente, não — mas sabemos que o narrador não entrega nada
dos pensamentos secretos de José. Na verdade, já destaquei antes: José não
menciona Jacó para seus irmãos. Certamente, como sublinhei, há um aspecto
retórico nessa omissão. Mas no que ele diz José avança exclusivamente o

11. Ver Wenham, 412, e A. Bonora, La storia di Giuseppe, 44-45.

139
José ou a invenção da fraternidade

imperativo da verdade e da fraternidade. Em todo caso, não chama a atenção


para a figura de Jacó, no qual o leitor já não pensa, curioso como está para
saber qual será a reação dos irmãos ao enfrentarem esta nova prova.
A reação deles não será uma resposta. Mas, afinal, o que acaba de lhes dizer
o senhor egípcio é peremptório, e qualquer comentário — ou pior, qualquer
tentativa de contestação — seria fora de propósito. Assim, o narrador conclui
com um resumo que anuncia o que vai se seguir: “e fizeram assim” (42,20b)12.
Ele retoma as primeiras palavras de José (“Fazei isto”) para antecipar com
duas palavras a atitude que os irmãos vão adotar: agir de acordo com o que
José disse. Mas ele o diz introduzindo um duplo sentido: o advérbio ao qual
recorre, ken, “assim”, também pode significar “honestamente”13, referindo-
se então a outra palavra de José desafiando seus irmãos a demonstrar sua
honestidade14. Ele introduz a reação dos irmãos destacando sua integridade
e sua adequação, para esclarecer de antemão o que vai acontecer. Tal hones-
tidade, aliás, transparece nas palavras que eles trocam entre si logo após ter
escutado José.

Confissão e lágrimas (42,21-24a)


Depois de ter conhecido, como José em sua cisterna, a agonia das vítimas
aparentemente inocentes, porém forçadas a meditar sobre sua própria respon-
sabilidade oculta na desgraça que as atinge, os irmãos passam a entender que
a verdade é para eles um caminho de vida. Eles também se encontram diante
da perspectiva assustadora de ter que enfrentar em breve a dor de um pai mais
uma vez privado de um de seus filhos, o que não deixará de reavivar nele a
terrível lembrança da perda de José. Isto é provavelmente suficiente para que
os irmãos, trabalhados do lado da culpabilidade e brutalmente reenviados ao
seu passado, comecem — finalmente — a conversar disso entre si e a revisitá-
lo com lucidez, a partir do que estão vivendo (42,21)15:

12. A este respeito ver J. L. Ska, Quelques exemples de sommaires proleptiques, 315-318.
13. O narrador poderia ter dito “eles fizeram isso”, em resposta ao convite de José. Ele prefe-
re usar outra palavra com sentido ambíguo. Para o adjetivo ken usado aqui, no sentido adverbial,
com o verbo ‘asah, “fazer”, ver, por exemplo, Eclesiastes 8,10. Com outros verbos, Juízes 12,6,
1 Samuel 23,17.
14. Os irmãos disseram: “somos honestos (kenim)” (v. 11); José lhes avisou previamente sobre
a prova: “se sois honestos (kenim)” (v. 19), e o narrador relata: “e agiram honestamente (ken)”
(v. 20).
15. Ver B. Green, “What Profit for Us?”, 122-123.

140
Capítulo 8 – Segundo encontro entre irmãos (42,18-28)

E eles disseram cada um a seu irmão: “Verdadeiramente, somos culpados16


contra nosso irmão, do qual vimos a angústia de sua alma quando implorava
graça de nós e não o atendemos! É assim/honestamente que veio a nós esta
angústia”.
Pela primeira vez, eles falam de José dizendo “nosso irmão”17, reco-
nhecendo-o como tal no momento mesmo em que admitem a falta cometida
contra ele. O leitor notará também que o narrador tem o cuidado de intro-
duzir a confissão deles do mesmo modo como introduziu sua cumplicidade
em 37,19: “disseram cada um a seu irmão”. Lá, eles queriam ser “irmãos”,
excluindo de seu círculo o “senhor dos sonhos”. Aqui, falam como irmãos,
reintegrando José como um deles.
A falta que evocam consiste em não ter dado atenção ao sofrimento de
José, em ter permanecido insensíveis e sem piedade diante de quem lhes pedia
graça. Eles evocam isso como explicitamente ligado à angústia que os fere
agora. Indiretamente, eles mostram que conhecem do interior o que fizeram
com sua vítima — o que foi, sem dúvida, o intuito secreto de José —, e isso
lhes permitiu perceber quanto eles anteriormente tinham sido intratáveis. Os
violentos veem sua violência voltar-se contra eles e atingi-los, e isso a revela
a eles18. O estágio na cadeia parece ter dado frutos: os irmãos não apenas
percebem a desgraça que impuseram a seu irmão, mas veem ainda que não é
sem motivo que vivem agora a mesma agonia.
Porém, o leitor não deixará de notar que, por meio dessa confissão dos
irmãos, o narrador preenche um vazio que havia deixado em sua narração
dos acontecimentos do capítulo 37. Ali, de fato, ele não disse nada de qualquer
reação de José contra a agressão de seus irmãos, preferindo apresentá-lo como
mera vítima. Acima de tudo, queria contar as coisas a partir da perspectiva
dos irmãos. E como eles não ouviam as súplicas de José, como eram indife-
rentes à sua angústia — o que agora confessam —, o narrador não tinha
nenhuma razão para mencioná-lo, realçando a impressão de que trataram José
como um objeto vil. O narrador, em seguida, aguarda pacientemente que esse
elemento reprimido volte à consciência dos irmãos para que, uma vez que

16. Ou “Nós pagamos nossa falta por nosso irmão”: o verbo ’ašem tem vários significados: ser
culpado, pagar por um crime, ser punido. Veja os léxicos, e Sarna, 295.
17. Só Judá falou de José nestes termos, em 37,26-27. Os outros falaram do “senhor dos so-
nhos” (37,19), de “teu filho” (37,32) e finalmente do “único”, mas isso, já entre os irmãos (42,13),
primeiro efeito da verdade resultante da pressão de José. Nesse sentido, A. Bonora, La storia di
Giuseppe, 44.
18. Veja Westermann, 110.

141
José ou a invenção da fraternidade

tenham os ouvidos abertos por causa de seu próprio sofrimento, confessem


seu crime, informando eles mesmos ao leitor um fato essencial, que José por
sua parte não ignora19. A eficácia narrativa é de uma força rara, pois é da boca
dos torturadores arrependidos que o leitor aprende, no mesmo instante que
José, o que eles percebem a respeito de sua verdadeira falta: não, em primeira
instância, a agressão contra um irmão, mas a negação da fraternidade, revelada
pela insensibilidade deles ao sofrimento mortal que lhe impuseram20.
Como os irmãos assim recordam seu crime contra José, não é surpreen-
dente ver Rubem voltar a lembrar sua posição que o distanciou dos outros
naquela ocasião (42,22).

Rubem respondeu-lhes, dizendo: “Não vos disse, dizendo: ‘não pequeis contra
a criança!’, mas não me ouvistes, e agora, seu sangue, eis que está sendo
cobrado de nós”.

O verbo pelo qual o narrador introduz a intervenção de Rubem é traduzido


habitualmente por “responder”. Ele tem, porém, conotações específicas em
contexto de julgamento e de declaração de culpa, significando então “defender-
se” ou “testemunhar contra, acusar”21, o que é particularmente relevante para o
nosso contexto. Será que Rubem não toma a palavra para se justificar, acusando
os outros de não tê-lo ouvido, quando, com justiça muito maior, eles se culpam
por não ter atendido seu irmão em perigo? Não os critica indiretamente porque
ele é (injustamente) envolvido na causa no momento do acerto das contas?
É claro: Rubem está antes de tudo preocupado consigo mesmo, como estava
quando tentou salvar José, na esperança implícita de ter como se mostrar bom
primogênito diante de seu pai e de se reabilitar assim aos seus olhos22.
Mas o leitor deve ter notado: Rubem não tem uma visão dos fatos confor-
me ao que o narrador contou no capítulo 3723. De acordo com sua versão, ele

19. Assim, R. Lack, Letture strutturaliste, 114.


20. A. Berlin, Poetics and Interpretation, 49-50, acrescenta que esta abordagem torna os irmãos
simpáticos ao leitor, enquanto o julgamento teria sido totalmente negativo se o próprio narrador
tivesse mencionado o sofrimento da vítima deles durante a agressão.
21. P. Bovati, Ristabilire la giustizia, indica que, no vocabulário do tribunal, ‘a-na-h designa
uma atestação jurídica da parte da acusação, ou mesmo uma acusação (62, 276-277: por exemplo,
Ex 23,2; Dt 21,7, Gn 30,33), mas também a resposta do acusado que se defende (307: por exemplo,
2Sm 22,14; Jó 9,3; 23,5).
22. Nesse sentido, B. Green, “What Profit for Us?”, 123-124, e R. Pirson, The Lord of the
Dreams, 96.
23. Não deixa o narrador, aqui, a Rubem o cuidado de revelar ao leitor outro elemento da
agressão de José, que ele teria silenciado, pelo mesmo motivo (também os irmãos não ouviram o

142
Capítulo 8 – Segundo encontro entre irmãos (42,18-28)

teria se oposto claramente aos seus irmãos. Mas estes nem tiveram consciên-
cia disso, uma vez que o essencial de seu plano lhes permaneceu oculto; eles
ouviram até, pois fizeram o que ele lhes propôs (ver 37,22a.24). Será que o
tempo alterou a memória de Rubem? Será deliberada esta distorção pela qual
Rubem se dessolidariza da culpa? Será, antes, um mecanismo inconsciente da
culpabilidade que leva alguém a denegrir os outros para se aliviar a si mesmo
de um fardo demasiadamente pesado? Pois Rubem pode imaginar que será
dele, o primogênito, que Jacó pedirá contas quando retornarem em nove, em
vez de dez, e isso arriscaria agravar seu caso em relação ao pai. Aliás, não se
pode descartar que Deus seja aquele que pede conta do sangue24, e Rubem
talvez não ouse mencionar seu nome no final de sua intervenção.
23
Mas eles não sabiam que José ouvia — pois havia o intérprete entre eles.
24a
E ele se afastou e chorou.

O leitor é surpreendido por esta nova volta para trás (42,23). Até aqui,
com efeito, o narrador omitiu especificar este detalhe concreto do diálogo
entre José e seus irmãos. A presença de um intérprete faz os irmãos crerem
que o egípcio não compreende sua língua25 — um dos meios que José usa
para se esconder desde o início. Quando começa o diálogo entre os irmãos,
esse estrangeiro encarna a separação deles e a dificuldade de comunicação
depois que o ódio tornou impossível qualquer palavra de paz entre eles (cf.
37,2-4), mas, paradoxalmente, também encarna a possibilidade de iniciar um
diálogo, embora tenham ficado estranhos uns para os outros. Mas se esse
detalhe é potencialmente portador de tal significância, por que foi silencia-
do até aqui? Certamente porque aqui sua introdução produz um efeito mais
poderoso, proporcionando ao leitor um elemento de compreensão que muda
completamente a situação neste momento do diálogo. Procedendo assim, o

mais velho tentar interferir)? Não acho que a lógica da história seja esta. Na verdade, o narrador
mostrou como Rubem se opôs aos irmãos escondendo-se deles. Ora, esta estratégia clandestina
ficaria comprometida se tentasse intervir para impedir a solução que ele próprio havia proposto, ou
seja, jogar José vivo na cisterna no deserto. Especialmente porque, desde a intervenção intempestiva
que agora evoca, não poderia deixar de despertar as suspeitas dos outros contra ele. Neste sentido,
B. Green, “What Profit for Us?”, 123-124.
24. A aproximação a Gênesis 9,5, onde Deus diz que vai pedir conta do sangue do irmão
assassinado, pode fazer a alusão bastante clara para o leitor (ver também 4,9-10). Se essa intuição
estiver correta, Rubem estaria aqui fazendo eco à questão implícita de José sobre o temor de Deus
(42,18b).
25. Para Gunkel, 445, este elemento é raro em narrativas bíblicas e revela uma arte narrativa
bastante sofisticada. Hamilton, 527-528, acrescenta que, em outros lugares do Gênesis (cap. 12,
21, 26 e 29–31), o narrador não menciona a diversidade de línguas ou de traduções.

143
José ou a invenção da fraternidade

narrador enfatiza o fato de que José, graças à superioridade que o anonimato


lhe confere, capta palavras que não lhe são dirigidas, embora tenham a ver
com ele em primeira instância e sejam capazes de perturbá-lo26. Mas também
sugere que não é por se saberem desmascarados que os irmãos admitem sua
culpa. Eles são espontâneos, sinceros, sem que ninguém lhes tenha arrancado
essa confissão; eles tomaram consciência de sua culpa, daquilo que sua vítima
viveu e do que eles lhe infligiram.
Assim, como testemunha indiscreta, José recolhe os primeiros frutos do
que acaba de fazer27: falando-lhes, por duas vezes, da verdade e da vida que
esta torna possível, permitiu que surgisse entre eles uma palavra de verdade,
que lhe restitui simbolicamente sua qualidade de irmão, após a falta que
consistiu em negá-la a ele com violência. Por esta confissão, os irmãos vêm,
de algum modo, completar e coroar a anamnese da história familiar iniciada
três dias antes, anamnese à qual faltava uma explicação decisiva: a razão
pela qual o único não está mais (ver 42,11 e 13). Então, por sua intervenção
intempestiva, Rubem — ainda que involuntariamente, e apesar da deforma-
ção, intencional ou não, do assunto ao qual se refere — ensina a José dois
detalhes que este certamente ignorava: sua família acredita que está morto28
e, o mais importante talvez, os irmãos não estavam unânimes contra ele: um
deles, pelo menos, o mais velho, tinha se dessolidarizado dos outros — uma
chance para a fraternidade, sem dúvida.
O narrador recorre em seguida à sua onisciência para relatar ao leitor um
acontecimento oculto aos irmãos: José se retira para chorar (42,24a). Fazendo
apenas uma alusão, o narrador não se preocupa em explicar as coisas. Essas
lágrimas, que significam na verdade? Obviamente, é difícil dizer, porque
muitas vezes nas lágrimas entrelaçam-se diversas emoções, eventualmente
contraditórias. Aqui o leitor veria facilmente colidir, nas lágrimas de José, a
lembrança do sofrimento e a alegria de se ver finalmente reconhecido como
irmão, a sensibilidade ao sofrimento que os irmãos atravessam e a emoção
de vê-los entrar na verdade, a alegria também de saber que, apesar das apa-
rências, ele não estava completamente abandonado; e, por que não, a raiva

26. Pode-se notar também a ironia do narrador: enquanto os irmãos dizem que não ouviram
José (42,21) e que Rubem vem culpá-los por não ter escutado seu discurso em favor de José
(42,22), este os escuta, ouve e entende (três sentidos simultâneos do verbo šama‘ usado no v. 23).
Essa ironia reforça a impressão da superioridade de José, no momento em que vai reagir como
irmão, chorando.
27. Nesse sentido, Westermann, 106-107.
28. Quando fala de “pedir conta do sangue”, Rubem dá a entender, indiretamente, que ele
acredita estar José morto. Ver B. Green, “What Profit for Us?”, 161.

144
Capítulo 8 – Segundo encontro entre irmãos (42,18-28)

por causa da humilhação que sofreu. Mais simplesmente — mas com tanto
maior pertinência à narrativa, sem dúvida —, essas lágrimas servem para
sugerir ao leitor alguma coisa da tensão interna de José, que, desejoso de
ver-se reconhecido, se retém de se dar a conhecer prematuramente29. E tudo
acontece como se esperasse que seus irmãos abrissem os olhos, ou como se o
teste que José montou a propósito de Benjamim confirmasse o avanço rumo
à fraternidade que acaba de se produzir sob os seus olhos.
Assim, o narrador, que teimosamente se recusa a revelar ao leitor as pro-
fundezas do coração de José, levanta contudo uma ponta do véu30: por trás
da máscara exigente e dura do senhor egípcio esconde-se um José sensível e
emocionalmente vulnerável, que, no jogo que se propôs jogar e que tem dado
seus primeiros “frutos de verdade”, se submete a uma pressão emocional que
precisa relaxar, ainda que só por um momento, para não “falhar” diante de seus
irmãos31. Mas por que assume, em público, um personagem? Não seria em função
de uma pedagogia que escapa ao leitor, que deve esperar, para descobri-la, até
que ela se invente pouco a pouco à medida que José se adapta às circunstâncias?
Quanto à finalidade de tal pedagogia, não consistiria em tentar sair da mentira
usando de astúcia com ela (como Tamar), para que a verdade torne possível a
fraternidade? Sem dúvida, ao mostrar José retirando-se para chorar, o narrador
tranquiliza o leitor sobre a natureza positiva de suas intenções escondidas32.

A partida dos irmãos (42,24b-28)


Depois de ter assinalado que José esconde de seus irmãos o excesso de
emoção que o domina, o narrador conta como ele volta para falar com eles,
para não deixar sem resposta as palavras que eles acabam de compartilhar.
Acaso a palavra começa a abrir caminho entre eles, agora que a verdade
ganhou pontos33?

29. Como diz L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 335, as lágrimas revelam um personagem
dividido: aquele que finge e aquele que sofre por ter que fingir. Nesse sentido, Wenham, 423 (a pro-
pósito de 43,30). Talvez mais profundo, P. Beauchamp, Cinquante portraits, 56, confirma: “O médico
José, que tem a coragem de infligir esse sofrimento, chora em segredo pela dor que causa”.
30. Ver W. L. Humphreys, Joseph and his Family, 89.
31. A ideia é frequentemente enfatizada. Ver, por exemplo, R. Alter, L’art du récit biblique, 227.
32. M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 290, vai claramente neste sentido, seguindo
Gunkel, 445; ver também H. C. White, Narration and Discourse, 259-260. Agora, essas crises de
lágrimas pontuam a narrativa, marcando cada vez um novo avanço no sentido da fraternidade (cf.
43,30; 45,2.14-15; 46,29; 50,17): ver R. Alter, L’art du récit biblique, 227-228. De acordo com
Coats, 286, essas lágrimas ocorrem nos momentos em que a tensão emocional é mais forte.
33. O leitor lembra-se da condição deplorável da palavra no início da história (cap. 37).

145
José ou a invenção da fraternidade

E ele voltou para eles e lhes falou. E tomou Simeão de junto deles e o apri-
24b

sionou sob os olhos deles. 25E José deu ordem — e encheram suas bagagens
de trigo — e de retornar o dinheiro deles, cada um no seu saco, e de lhes dar
provisões para o caminho. E ele fez para eles assim/honestamente.

Sem tardar, José coloca em ação o projeto que expôs aos seus irmãos
(42,18-19) e ao qual eles não reagiram diretamente: aprisiona um deles como
refém, cuidando que todos sejam testemunhas. Que sua escolha caia sobre
Simeão talvez não seja por acaso. Várias razões podem tê-la determinado.
Em primeiro lugar, depois do que ouviu, José dificilmente poderia reter o
mais velho, Rubem — seja por querer poupar aquele que tentou intervir em
seu favor, seja por ter entendido que, por causa de seu sentimento de culpa-
bilidade, ele poderá desempenhar um papel crucial quando do retorno a Jacó,
seja ainda por achar que será o melhor defensor de Benjamim caso os outros
desejem hostilizá-lo. Nestas circunstâncias, é compreensível que José tome o
seguinte na ordem da primogenitura, ou seja, Simeão34.
Mas essa escolha pode ter outras ressonâncias. Assim, José falou do
futuro refém dizendo: “vosso irmão, o único” (42,19); ora, se o segundo de
uma série corresponde ao penúltimo, Simeão ocupa uma posição simétrica à
do primeiro “único”, ou seja, José, chamado assim pelos próprios irmãos em
42,13. A coisa, evidentemente, não é irrelevante se se trata de reviver o drama
ocorrido vinte anos atrás35. Não será também significativo, talvez, o nome de
Simeão, depois do que acabamos de ouvir? Por duas vezes, na admissão dos
irmãos e, em seguida, nas palavras de Rubem (42,21-22), a culpa é descrita
como a recusa de ouvir, enquanto José ouviu e entendeu o que foi dito pelos
irmãos (42,23). Esta repetição do verbo šama‘ (“ouvir, entender, compreen-
der”), ao qual Šim‘on deve seu nome36, poderia ser bem significativa. Não
resumiria a situação nesta fase da história? José ouve a angústia que seus
irmãos ligam ao fato de eles não terem ouvido quando se tratava dele. Será
surpreendente, portanto, que José mantenha com ele o irmão cujo nome lhe
lembra que ouviu a confissão de seus irmãos e conheceu a emoção que o
narrador acaba de assinalar?

34. Segundo Gunkel, 445, Simeão é, aos olhos de José, o mais velho dos culpados.
35. F. Rossier, L’intercession de Juda, 24-25, avança outra solução. Retendo Simeão, o segundo
filho de Lia, José mostra que lhe interessa Benjamim, o segundo filho de Raquel. Neste sentido,
Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 291, e Wenham, 409.
36. Veja o jogo de palavras sobre este verbo explicando seu nome em Gênesis 29,33. R. Lack,
Letture strutturaliste, 114, aponta a proximidade significativa entre o verbo e o nome de Simeão.

146
Capítulo 8 – Segundo encontro entre irmãos (42,18-28)

Uma vez trancado o refém, resta a José apenas despedir os irmãos.


Mas ele lhes reserva outra surpresa. A frase do versículo 25 está um pouco
prejudicada em hebraico, várias ações de personagens diferentes como que
esmagadas uma sobre a outra — refletindo talvez a pressa da partida. Em
todo caso, as ordens de José vão bem além daquilo que ele anunciou: ao
trigo prometido (42,20) faz acrescentar provisões para o caminho, e a todos
restitui o dinheiro do trigo. O gesto teria qualquer coisa de malicioso? As
consequências, de toda maneira, não vão tardar a revelar-se pesadas para os
irmãos, a tal ponto que, ao ler a sequência, o leitor possa suspeitar que José
tenha intenções tortas… Também, antes de narrar estes acontecimentos, o
narrador — usando a mesma expressão de duplo sentido que no versículo
20b a respeito dos irmãos — imediatamente aponta que, agindo assim, José
mostra-se tão honesto quanto os irmãos37. Ele ainda acrescenta que ele o fez
“para eles”. Seu gesto, portanto, não lhe seria ditado por alguma duplicidade
perversa, mas pela integridade que o leva a agir com justiça para com eles.
Mas, se as provisões para o caminho são um sinal de generosidade, em que a
restituição do dinheiro é adequada em relação à situação? O leitor, mais uma
vez, deve tentar entender a partir do contexto38.
Na realidade, quando manda repor secretamente o dinheiro nos sacos, José
assinala, a cada um de seus irmãos, que guardam para com ele uma dívida
oculta e, portanto, não podem se considerar quites. Mas o dinheiro do trigo
que continuam devendo é apenas o vestígio concreto de uma dívida de outro
tipo, que nenhuma transação comercial pode extinguir. O que os dez devem a
José é a verdade, a fraternidade, a vida, aquilo de que o havia privado, antiga-
mente, a venda da qual ele foi o objeto39. Com efeito, se a fraternidade falha
porque, não se fazendo toda a verdade, o encontro aborta, José permanece na
morte — só viverá o governador Safnat-Panéah (ver 41,45) —, uma morte
ainda coberta pela mentira. Essa dívida que os irmãos reconheceram ter com

37. Se a expressão não tem aqui o sentido forte de “agir honestamente”, que sentido a observação
do narrador poderia ter? As traduções usuais, do tipo “e é isso que se lhes fez”, são desajeitadas em
relação ao hebraico e correspondem ao que entenderam as versões antigas (Septuaginta e Vulgata),
colocando o verbo no plural impessoal.
38. Para outras hipóteses de leitura, ver Wenham, 409. Eu devo a intuição desenvolvida aqui a
uma participante de um seminário que eu animei, há vários anos, sobre a história de José.
39. Sobre este último ponto, ver B. Green, “What Profit for Us?”, 125, que afirma que o
dinheiro funciona agora como um lembrete da culpa (115); no entanto, é desconhecido para José.
Aliás, o leitor ficará sabendo, mais adiante (45,4-5), que José acreditava ser possível que seus
irmãos o tivessem vendido, mesmo que esta não seja a única hipótese que ele tinha em mente (ver
40,15, onde falou em sequestro).

147
José ou a invenção da fraternidade

José quando se declararam culpados, só hão de pagá-la quando se tornarem


irmãos. Assinalar isso, mantida a pressão que os ajudou a dar os primeiros
passos na verdade, não é isso agir com integridade, em adequação à verdade
das coisas?
Subsidiariamente, este dinheiro será um novo teste de fraternidade. Se
os irmãos são honestos — o que o narrador deu a entender ao leitor, mas
que José ignora (ver 42,20b) —, o desejo de devolver o dinheiro será mais
um motivo para retornarem rapidamente ao Egito, além do desejo de libertar
Simeão. Mas, se a ganância prevalece sobre o sentimento de fraternidade,
não preferirão guardar o dinheiro e abandonar seu irmão? No pensamento de
José — que, como ficaremos sabendo, acredita que eles o tenham vendido
(cf. 45,4-5) —, eles seriam perfeitamente capazes disso. Mas José sabe: eles
terão de voltar, porque a fome durará ainda muito tempo. Além disso, quando
retornarem, este dinheiro será para ele outra forma de verificar a autenticidade
da mudança que acaba de tomar início em sua presença40.
Assim termina este encontro que inicia o longo caminho para a fraternidade.
Agora, aos olhos do leitor, é bastante claro que José não avança no escuro,
mas antes parece agir como Tamar. Sua sabedoria parece ter prevalecido, e
ele, no que se refere si próprio, deveria usar sua tripla superioridade em re-
lação aos seus irmãos (como detentor do poder, do trigo e da sabedoria) para
fazer surgir a verdade e abrir as portas para a fraternidade. Sua intuição, em
primeiro lugar, e seu fino saber-fazer, em seguida, já renderam frutos positivos
neste sentido. Sua acusação meio falsa acordou, por etapas, a culpabilidade
enterrada; levou os irmãos a refletir sobre sua falta em relação a ele, enquanto,
no início, a certeza da inocência ditou-lhes um protesto precipitado demais
para não ser sutilmente revelador de um mal-estar. Assim, em seu caminho
da anamnese, eles, primeiro, evocaram sua família, em seguida falaram de
uma estranha ausência que explicaram indiretamente, evocando mutuamente
sua responsabilidade no assunto, ao modo de uma confissão. Mas isso só é
esboçado, pois, enquanto falam de José, eles se limitam a enunciar essa culpa
entre si, sem mesmo se dirigir a ele, guardando em relação a ele uma dívida
de vida.

E carregaram seu grão sobre seus jumentos e foram embora dali. 27E um
26

[deles] abriu seu saco para dar forragem a seu jumento, no lugar de pernoite,
e viu seu dinheiro: ei-lo, na boca do saco. 28E ele disse a seus irmãos: “Meu

40. Ver M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 293-294, seguido por Hamilton, 529.

148
Capítulo 8 – Segundo encontro entre irmãos (42,18-28)

dinheiro foi retornado!41 sim, ei-lo, no meu saco de transporte!” E seu coração
saiu e tremeram cada um junto a seu irmão, dizendo: “Que é que Deus lá fez
para nós?”.

Após as ordens bem detalhadas, a partida é assinalada de maneira ao


mesmo tempo rápida (“e foram embora”) e precisa (“dali”), como para suge-
rir a pressa que os irmãos têm de se distanciar do lugar onde a angústia caiu
sobre eles. Mas por que complicar a transição mencionando o carregamento
dos jumentos? O narrador faz questão de insistir que realmente carregam o
grão (ver acima 42,25)? Ou será que ele quer retomar o jogo de palavras no
início do episódio anterior, quando do envio dos irmãos por Jacó (42,1-2)?42
Quando aqui eles “carregam seu grão” (šivram), não se trataria somente do
grão, mas também de “sua ruptura” (šever), que os irmãos levam consigo ao
sair do Egito, uma ruptura que subsiste porque eles não reencontraram José.
Se o narrador sugere em sua narrativa com leveza a sensação da pressa
da partida, o leitor imagina facilmente o alívio desses homens. Para eles, a
pressão cai um pouco, mesmo que estejam cientes de que a trégua é tempo-
rária e de que haverá outros momentos difíceis pela frente. Só que a trégua
é muito menor do que esperavam: desde a noite, na hora do descanso, as
coisas se complicam. Até o leitor fica surpreso. Em matéria de viagem, ele
tem sido habituado pelo narrador a se contentar com resumos que mencionam
apenas a partida e a chegada43. Ele pensa, portanto, ver os irmãos chegarem
rapidamente junto a Jacó e está todo ansioso para ver o que vai acontecer
em seguida. Decerto, ele espera ver o dinheiro sair dos sacos onde José o
mandou colocar com toda a discrição, mas não tão cedo assim! Ele partilha,
pois, o espanto dos irmãos, quando descobrem um primeiro efeito da estranha
iniciativa de José.
Em torno de um gesto bem banal, a tensão aumenta de repente, poderosa.
A narrativa intensa faz perceber alguma coisa do espanto do irmão quando
aparece a bolsa de dinheiro na boca de seu saco de transporte. Então, como
para enfatizar, o narrador cita suas palavras: as primeiras traem sua incom-
preensão, enquanto a continuação soa como uma resposta ao silêncio incrédulo
dos outros, que imaginamos pasmados, com os nervos supersensíveis depois

41. Literalmente: foi devolvido.


42. Veja acima, p. 122. O substantivo šever foi utilizado apenas uma vez desde 42,2, no versí-
culo 19, por José: “Fazei vir o trigo para a fome de vossas casas”, uma expressão na qual não se
pode excluir um duplo sentido.
43. Ver, por exemplo, 37,12.14b.32; 38,1; 39,1; 41,46, 42,3. Assim Cotter, 308.

149
José ou a invenção da fraternidade

do encontro com o egípcio, a prisão, o despertar da culpabilidade, a angústia


e finalmente a prisão de Simeão. O acontecimento é tão inesperado quanto
cheio de mistério. Daí a ansiedade subitamente reavivada, a agitação interior,
o tremor coletivo e a palavra que dizem entre si: será que Deus está metido
neste assunto? Há pouco, José lhes disse que teme a Deus (42,18). De modo
mais implícito, mas ainda fazendo eco a isso, Rubem sugere que Deus pode
estar exigindo prestação de contas (42,22). Quem mais poderia ter colocado
o dinheiro do trigo dentro do saco? Não o diz o irmão em questão quando
utiliza a voz passiva? Obviamente, a ideia ganha terreno entre os irmãos que
vemos aqui entrar no temor de Deus no modo do tremor diante do mistério.
Pois o enigma é tanto mais inexplicável porque sua perturbação os impede
de vislumbrar as consequências.
Mas de repente aparece um branco neste lugar do texto. Nada é dito sobre o
que os outros fazem com os sacos deles: só mais tarde o leitor vai entender que
eles não os abriram (ver 42,35). Será que a angústia de ter a mesma surpresa
fez passar toda a curiosidade? O narrador não diz nada. Provavelmente, prefere
mostrar os irmãos, apreensivos por causa do mistério e do medo, meditando
em pesado silêncio a questão que eles acabam de evocar: “Que é que Deus
lá fez para nós?” Em todo caso, o caminho de volta não oferece aos irmãos
o alívio esperado. Ele os força a terminar sua viagem perseguidos por uma
interrogação angustiante.

150
Capítulo 9

O retorno dos irmãos a Jacó


(42,29-38)

Depois de ter enfrentado, sem o saber, sua primeira vítima, os irmãos


vão agora se apresentar diante da outra vítima: seu pai. As condições da volta
até ele levam a pensar que ele vai se encontrar de novo na posição de uma
vítima que não sabe o que se passou entre seus filhos, nem, portanto, a causa
do sofrimento que o assalta1. Os irmãos voltam sem Simeão e devem lhe
reclamar o outro filho de Raquel, se ao menos desejam mostrar-se irmãos. É,
efetivamente, o que vão tentar fazer, e a cena que se abre mostra assim seu
desejo de fraternidade. Mas como fazer isso? Eles devem suspeitar, na verdade,
que não será fácil convencer um homem já sobrecarregado pelo sofrimento
e cujo apego a Benjamim já conhecem. O leitor, em todo caso, o suspeita e
permanece curioso por saber até onde irá o desejo de fraternidade dos nove
que voltam do Egito e qual será a reação de seu pai. Com efeito, visto o que
já viveu antes, ele poderia representar um obstáculo a esse desejo.

1. A esse respeito, P. Beauchamp, Cinquante portraits, p. 56, escreve que os irmãos, “apre-
sentando-se diante de Jacó para lhe requisitar Benjamim, veem-se, finalmente, na mesma situação
em que estavam quando lhe anunciavam a morte de José”.

151
José ou a invenção da fraternidade

O relato dos irmãos (42,29-34)


A chegada dos irmãos junto a Jacó, “seu pai”, leva rapidamente ao relato
sobre “tudo o que lhes aconteceu”. “Tudo”, diz o narrador, antes de fazer ouvir
o relatório que, certamente, não diz tudo — maneira, sem dúvida um tanto
irônica, de chamar a atenção do leitor para a breve narrativa que se segue2.
Na realidade, em vez de dizer com suas próprias palavras o que aconteceu
no Egito, os irmãos preferem recorrer ao modo cênico e relatar uma conversa
entre eles e aquele que chamam “o homem, o senhor da terra”. Esta opção
narrativa está longe de ser neutra. Na verdade, esta abordagem enfatiza a im-
pressão de objetividade no ouvinte — Jacó, neste caso —, já que cria nele a
sensação de estar assistindo à cena relatada praticamente de forma imediata, os
narradores intervindo o menos possível na narração (em itálico, os discursos
citados pelos irmãos).
30
“O homem, o senhor da terra, nos falou com dureza e nos tomou por espiões
da terra. 31E nós lhe dissemos: ‘Somos honestos, não somos espiões; 32somos
doze irmãos, filhos de nosso pai; um deles não está, e o menor está hoje com
seu pai, na terra de Canaã’. 33E o homem, o senhor da terra, nos disse: ‘Por
isto saberei que sois honestos: vosso irmão, o um, deixai[-o] comigo e, [para]
a fome de vossas casas, tomai e parti. 34Depois fazei vir vosso irmão me-
nor a mim, para que eu saiba que não sois espiões mas que sois honestos.
Vosso irmão eu vos darei, e na terra podereis comercializar’”.

Quanto ao essencial, os irmãos dão um eco bastante correto do conteúdo


das duas conversas entre José e eles3. Eles ressaltam imediatamente a dure-
za das palavras de seu interlocutor (42,30a) e a acusação contra eles (42,30b);
resumem seus protestos de inocência e seu argumento de defesa (42,31-32)
antes de mencionar o teste imposto pelo egípcio para provar a honestidade
deles (42,33-34). Antes de entrar em detalhes, notamos que os irmãos unem as
duas entrevistas em um só diálogo e evocam uma só vez tudo o que foi repe-
tido na narrativa do narrador: uma só acusação, um só protesto de inocência,

2. A partir daqui, torna-se frequente os próprios personagens contarem aos outros os aconteci-
mentos anteriores relatados pelo narrador. Como o leitor conhece os fatos, sua atenção é atraída
pela maneira de contar, que é reveladora das intenções, das motivações e da estratégia retórica do
personagem que conta. Sobre este assunto, ver B. Green, “What Profit for Us?”, 141-152.
3. Para Sarna, 296, os irmãos “dizem apenas o que é necessário para explicar a ausência
de Simeão e insistir na importância do envio de Benjamim”. Hamilton, 534-535, enumera as
diferenças entre a história do narrador e a dos irmãos. Para Turner, 182, omissões e adições são
mais reveladoras.

152
Capítulo 9 – O retorno dos irmãos a Jacó (42,29-38)

uma só proposta de prova da verdade — para citar apenas o mais óbvio. Esta
simplificação não é sem efeito. Porque, apagando as voltas que os contatos
fizeram entre eles e o egípcio, os irmãos criam a impressão de que foi uma
entrevista “simples”, nada de muito assustador. Eis uma narrativa que, se
respeita o conteúdo dos fatos, curiosamente remove todo páthos, tanto pela
forma da narração quanto pela simplificação dos acontecimentos.
Mas é preciso entrar um pouco nos detalhes do relacionamento dos filhos.
Quando mencionam a figura de José, insistem por duas vezes: para eles, é
“o homem, o senhor da terra”. Nota-se que, antes de ressaltar seu poder e
sua qualidade de senhor, o descrevem de início como um “homem”: não se-
ria para insistir sobre o caráter humano do personagem, antes de apresentá-
lo como um egípcio importante, cuja acusação é grave e cuja exigência se
lhes impõe com autoridade? Tendem a amenizar excessivamente a figura do
senhor: visivelmente, eles temem pôr em pânico o velho Jacó. Assim, silen-
ciam a primeira proposta do teste — muito pior que a segunda — e, claro, a
prisão coletiva que durou três dias. Quando “relatam” as palavras do senhor
impondo-lhes a prova, preferem dizer que é para demonstrar sua honestidade
e evitam cuidadosamente destacar que o egípcio fez disso uma questão de
vida ou morte. Mas não se esquecem de mencionar sua preocupação com as
condições de vida de seus familiares que permaneceram no país.
O mais notável é o fim, quando se trata de Simeão e Benjamim. A prisão
do primeiro se apresenta como uma mera formalidade: ele foi “deixado”4
na companhia do homem, até que eles tragam seu irmão menor. Quanto à
chegada deste último, ela servirá só para provar que eles não são espiões. Uma
vez cumprida essa condição — e, nesta apresentação das coisas, não se vê o
que poderia impedi-lo — Simeão retornará, e eles estarão livres para comer-
cializar na terra do Egito. Observe que, no final, eles acrescentam elementos
reconfortantes, sem dúvida destinados a fazer que o velho Jacó esqueça as
palavras duras do começo.
Tudo nesta narrativa vai na mesma direção: a forma narrativa que pri-
vilegia a citação das palavras dos atores, a simplificação extrema dos fatos,
a apresentação implícita do senhor da terra, a adaptação da realidade que o
narrador tem relatado — sem falar, obviamente, do silêncio dos irmãos sobre
o avivar de sua culpabilidade ou sobre o dinheiro encontrado no saco de um
deles. Tudo tende a edulcorar os eventos, para minimizar a gravidade. Como

4. Ao verbo hebraico não falta suavidade: poderia ser traduzido por “depositado, deixado
em paz”.

153
José ou a invenção da fraternidade

não pensar que os filhos manipulam seu relatório de modo a evitar ao máximo
assustar Jacó? E, se fazem isso, é provável que seja com um objetivo duplo:
primeiro, para poupar seu pai, que, depois de já ter sofrido muito, sobretudo
por causa deles, ainda perdeu um filho, mas também para se darem uma
chance de obter dele a permissão de partir com Benjamim sem demora5. Dito
isso, o leitor pode ver aqui como a viagem para o Egito já transformou os
irmãos. Se eles recorrem de novo à astúcia quando devem pôr seu pai a par
de acontecimentos que ignora (cf. 37,32), não é para fazê-lo sofrer. Pelo con-
trário, é para poupá-lo de mais sofrimento e de outras angústias, mas também
na esperança de reencontrar sua confiança para o futuro. Evidentemente, a
escolha não é inteiramente gratuita, mas o progresso é considerável.
Dito isso, um detalhe da formulação do relatório dos irmãos é suscetível
de fazer Jacó desconfiar. Há, de fato, um paralelo entre as palavras que dizem
e uma frase que emprestam ao egípcio: sua dupla asserção6, “um deles não
está e o menor está hoje com seu pai” (42,32b), é reprisada na exigência do
senhor: “vosso irmão, o um, deixai[-o] comigo e … fazei vir vosso irmão
menor a mim” (42,33b.34a). Eis o que, às orelhas do pai, pode soar estranho.
Com efeito, cada vez “o único” está ausente — eu indiquei acima como José e
Simeão se espelham pelo lugar que cada um ocupa na irmandade —, enquanto
Jacó está entregue à palavra dos outros para ficar sabendo o que aconteceu
com esse ausente. E quanto ao “menor”, que até aí está com seu pai (42,32),
ele deveria ser trazido para o homem que já detém um de seus filhos (42,34),
correndo o risco de desaparecer por sua vez… Se Jacó opera essa ligação,
explica-se melhor o silêncio com o qual ele reage ao ouvir o relatório, como
se alguma coisa o deixasse perplexo.
Além disso, o leitor atento irá saborear sem dúvida, no final da narração dos
irmãos, uma pitada de ironia que lhe é reservada e o mantém a distância deles.
Ao narrar a seu pai as palavras de José, em vez de mencionar especificamente
Simeão, falam dele genericamente, como o senhor egípcio tem feito diante
deles. Mas eles insistem, a propósito dele, sobre “vosso irmão, o um” (42,33)7,
o que, após a evocação da figura de José, o único desaparecido (42,32: “um

5. Sobre a manipulação dos fatos e seus motivos, ver M. Sternberg, The Poetics of Biblical
Narrative, 297.
6. Em comparação com o que disseram a José em 42,13b, observamos uma dupla inversão: se,
diante do egípcio, a evocação de José vinha em último lugar, diante do pai eles evocam primeiro,
rapidamente, a figura do desaparecido — algo que poderia acordar a dor do pai — antes de falar
do mais jovem, atraindo assim a atenção de Jacó sobre aquele que será objeto do pedido.
7. Lá onde José falava de “vosso irmão, um” (42,19), eles falam “vosso irmão, o um” (42,33).

154
Capítulo 9 – O retorno dos irmãos a Jacó (42,29-38)

não está”), associa estreitamente os dois ausentes. Ora, na conclusão atribuem


a José uma frase reconfortante: em caso de sucesso da prova, ele disse: “vosso
irmão vos darei” (42,34). Conscientemente, para eles, o irmão em questão é
Simeão. Mas o leitor, que tem percebido algo do desejo de José, sabe que
é outro de seus irmãos que José lhes pode “dar”: não só Simeão, mas a si
mesmo. E aquele que relê poderá certamente ouvir no final (“na terra podereis
comercializar”) uma antecipação do que virá a ser o fruto efetivo da fraterni-
dade. Os personagens da história não têm acesso a esse duplo sentido, mas,
não obstante, lembram ao leitor a questão de fundo daquilo que está lendo.

Reações de Jacó (42,35-38)


Voltemos a Jacó, que ainda não reagiu ao relato de seus filhos. Há des-
confiança de sua parte? Se há, o narrador não se interessa. Continua com o
caso do dinheiro nos sacos. Este “detalhe”, o leitor não o perdeu de vista, ao
contrário dos irmãos, aparentemente (42,35). Ele pode até pensar, constatan-
do os esforços retóricos dos irmãos para preparar Jacó a aceitar a exigência
de José, que essa omissão poderá embotar, se não destruir, a eficácia de seu
discurso8. Com efeito, no paralelismo geral que se constata entre a narrativa
dos acontecimentos no Egito pelo narrador, de um lado (42,9-22), e o que
acontece no retorno dos irmãos junto a Jacó, de outro lado (42,29-35)9, a
descoberta do dinheiro diante de Jacó (v. 35) é a contrapartida da confissão
de culpa dos dez (veja v. 21-22), após o anúncio de que um deles seria preso
e da exigência de trazer Benjamim (v. 19-20, reprisados nos v. 33-34). O
paralelo não deve ser fortuito: o efeito da descoberta do dinheiro poderia ser
demonstrar aos olhos de Jacó a culpabilidade de seus filhos em relação a ele.
Aliás, é ele, desta vez, quem vai acusá-los. Sem rodeios (42,35).
E enquanto esvaziavam os seus sacos, eis: cada um [com] sua bolsa de di-
nheiro em seu saco. E eles viram as bolsas de seus dinheiros, eles e seu pai,
e temeram.
Para os irmãos, o reaparecimento do dinheiro reproduz o que aconteceu
no lugar de pernoite. Mas o narrador precisa: o pai vê as bolsas ao mesmo
tempo que eles, cada um encontrando a sua própria antes de ver as dos outros.
A reação é idêntica em todos: pânico. É provável, no entanto, que a natureza

8. Assim, Hamilton, 535.


9. O paralelismo é fornecido em grande parte pelo relato dos irmãos que contam o que acon-
teceu na cena anterior.

155
José ou a invenção da fraternidade

deste pânico não seja a mesma nos filhos e no pai10. Para aqueles, com efeito,
o medo é semelhante ao que experimentaram uma primeira vez na noite da
saída do Egito (42,28): o que aconteceu naquele momento não foi, pois, um
erro isolado, uma infeliz coincidência. Todos estão envolvidos no mistério,
pelo que se verifica o sombrio presságio que então os reteve de abrir os sacos;
e ainda devem estar apreensivos quanto à reação de seu pai. Ora, para este, o
medo tem um alcance bem diferente. Após o relatório edulcorado dos filhos, a
descoberta do dinheiro, tão repentina quanto imprevista, produziu em Jacó um
efeito devastador. Toda a arte que os filhos usaram para tranquilizá-lo sobre
suas experiências no Egito e dar-lhe confiança quanto à pessoa de Benjamim
transforma-se em sombra de golpe diante da aterradora descoberta. Esta impõe,
por assim dizer, uma outra leitura a Jacó. E o narrador precisa logo que é “seu
pai” que os acusa, apresentando-se como a vítima deles (42,36):
Jacó, seu pai, lhes diz:
“A mim é que privais de filho!
José não está,
e Simeão não está,
e Benjamim, vós [o] tomais…
É contra mim que são todas essas coisas”.
No momento em que — finalmente! — o diálogo entre pai e filhos é
retomado, as palavras do pai marcam por seu caráter conciso, sacudido,
agressivo até11. Isso não é apenas um sintoma da dificuldade de comunicação;
sobretudo, dá ao discurso uma rara eficácia em sua sobriedade mesma, pois
a alusão reina. Assim, a primeira das cinco curtas frases justapostas oferece
uma chave de leitura: mostra-se clara a maneira como Jacó compreende a
situação presente e suas retroações. A partir daí, ele ordena suas observações
sugerindo apenas relações de causa e efeito12. O dinheiro acaba de reaparecer,
mas Simeão não está. Será que compraram o grão em troca de seu irmão?
E se esse dinheiro explicasse da mesma forma o desaparecimento do outro
ausente, José?13 Nessas condições, que golpe imaginam ainda pedindo-lhe
Benjamim? Se eles mentem hoje sobre Simeão — como anteriormente pode

10. Nesse sentido, por exemplo, Wenham, 410-411.


11. Constatamos no início e no fim da frase uma inversão de ordem normal da construção,
pondo em destaque o “eu” de Jacó. Ver R. Alter, Genesis, 250.
12. O que segue baseia-se em grande parte em Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 298.
13. Recordamos que em 37,33-35 Jacó provavelmente não está completamente enganado
quanto à túnica ensanguentada (veja acima, p. 73-74). Nesse sentido, H. C. White, Narration and
Discourse, 254.

156
Capítulo 9 – O retorno dos irmãos a Jacó (42,29-38)

ter acontecido no caso de José —, do que não serão capazes? Daí a ladainha
das três “vítimas”, acusação tanto mais terrível por ser um pai que fala a seus
filhos: vocês querem levar meus filhos; é contra mim que são dirigidas todas
essas maquinações!
Nota-se aqui a fineza de Jacó, que, para falar da ausência de José e de
Simeão, empresta dos irmãos a expressão que eles usaram em seu relato
para evocar diante dele o desaparecimento do único que “não está” (42,32:
’eynennu14). Além disso, repetindo esta palavra a respeito dos dois ausentes,
ele sugere que, em sua opinião, ambos tiveram um destino análogo. E isto
é verdade, em parte: não estão ambos no Egito, Simeão preso, como José o
foi anteriormente? E o paralelo com o verbo “tomar”, usado em seguida para
falar de Benjamim, esclarece provavelmente a razão pela qual eles não estão
mais lá. Assim, Jacó sugere que não é nada impossível que José tenha sido
vendido, como parece ser o caso de Simeão. Mesmo que seja a partir de uma
dedução errada, o pai cheira aqui algo da verdade, já que é a venda de José
que os irmãos tinham planejado, acatando a proposta de Judá. Finalmente,
seguindo a ordem cronológica mais que a lógica de suas deduções, ele “coloca
a vítima presente (Simeão) em sanduíche entre uma retrospectiva impossível
de esquecer (José) e uma perspectiva impensável (Benjamim)”15. Porque esse
é bem o ponto — indireto — a que visa sua intervenção: recusar o pedido que
os irmãos formularam, implicitamente, ao contar sua história.
Assim, a descoberta do dinheiro destrói em Jacó todos os efeitos da mu-
dança que os irmãos viveram no Egito. Lá, eles começaram a elaborar aos
poucos a verdade sobre sua família e seu passado. Imersos na angústia, toma-
ram consciência de sua insensibilidade diante da desgraça alheia. Eles então
se lembraram de sua falta oculta. Daí, uma vez de volta, seu comportamento
em relação a seu pai não é mais o mesmo: o cinismo da mentira acabou. E se
adaptam a verdade é para que tudo corra bem. Mas quando aparece o dinhei-
ro sua mentira explode: eles certamente não disseram tudo, e Jacó lhes dá o
troco, por assim dizer. Também, depois de terem sido confrontados com sua
própria verdade no Egito, eles são postos brutalmente diante da verdade de seu
pai, que os acusa do mal que sofre e se coloca como vítima inocente de suas
tramoias. Não foi só a José que impuseram o sofrimento, mas também a seu
próprio pai! E, mesmo que sem querer, continuam a fazê-lo. Ainda assim, a

14. A mesma palavra foi usada por Rubem ao constatar o desaparecimento de José (37,30) e
pelos irmãos ao falarem sobre a ausência inexplicável de José (42,13).
15. M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 298. Veja também neste sentido J.-M.
Auwers, Joseph, 24.

157
José ou a invenção da fraternidade

verdade está progredindo. Finalmente, Jacó foi capaz de dizer como ele viveu
esse drama; enfim, os filhos puderam ouvi-lo e medir, por suas palavras, os
danos sempre atuais de seu ódio passado. Não apenas o pai está abatido, mas
sua resposta arrisca bloquear a situação, pois está claro que agora os irmãos
dificilmente poderão fazer o que lhes pediu o senhor egípcio.
É precisamente esta perspectiva que parece suscitar uma reação de Rubem
(42,37).

E Rubem diz a seu pai, dizendo: “Meus dois filhos poderás matar se eu não
o fizer vir a ti. Dá-o em minha mão e eu, eu o farei voltar a ti!”.

Ao ouvir essas palavras, o leitor compreende que Rubem, como provavel-


mente também os outros, pretende voltar sem demora ao Egito para esclare-
cer a acusação e reencontrar o irmão aprisionado, em conformidade com as
exigências de José. É que ignoram que a fome deve ainda durar longos anos
e que, de toda forma, os obrigará a descer de novo ao Egito. A inquietante
descoberta do dinheiro não teve, portanto, um efeito dissuasivo sobre eles. O
que quer que seu pai acredite, a verdade e a fraternidade parecem ter ganhado
considerável terreno junto a eles.
Ao reagir como faz, Rubem tenta opor-se à decisão implícita de seu pai
de não permitir “tomar” Benjamim, mas também à ideia deturpada que ele
tem de seus filhos. Por outro lado, Rubem tem consciência de que este quadro
não é totalmente falso. Mesmo que Jacó esteja enganado ao pensar que eles
venderam Simeão, não está muito longe da verdade sobre José. Mas é possível
contestar a grave acusação do pai sem admitir essa verdade ou se envolver
em novas contraverdades?16 É bem verdade que uma primeira mentira gera
outra que a encoberta e assim por diante, enquanto não se faz jus à verdade17.
Por isso, Rubem troca de terreno. E, sentindo-se inocente em comparação aos
irmãos (cf. 42,22), tenta sair do jogo diante das acusações que acaba de ouvir
e mostrar a Jacó sua boa-fé — ele tem outras razões para tentar se reabili-
tar, como vimos. Não, não quer privar seu pai de seus filhos, em particular
Benjamim: que ele lhe confie seu irmão menor, e verá que nele Jacó pode
confiar com toda a segurança de que o trará de volta18.

16. A ideia foi sugerida por Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 299. Ver também
R. S. Wallace, The Story of Joseph, 61.
17. Wenham, 412, vai neste sentido.
18. Rubem utiliza em 42,37b a expressão (“fazê-lo vir para [Jacó]”) que o narrador emprega
em 37,22b para mostrar o objetivo de sua oposição ao projeto mortífero dos outros: J. S. Ackerman,
Joseph, Judah and Jacob, 102.

158
Capítulo 9 – O retorno dos irmãos a Jacó (42,29-38)

Na realidade, sua formulação destaca a maneira como pretende demonstrar


a seriedade de seu compromisso. Ele está tão certo de trazer Benjamim — não
o disse duas vezes? — que oferece a Jacó a vida de seus dois filhos em troca,
caso quebre a promessa. E sua maneira de falar mostra que ele gosta de seus
filhos e jamais os deixará sofrer tal sorte. A intenção boa e generosa de Rubem
está fora de dúvida. Porém, a materialidade de sua proposta tem um aspecto
extravagante, deslocado. Espontaneamente, para ele — como para muitos, aliás
— a vingança parece poder tomar o lugar da consolação. Mas como a morte
de dois de seus netos menores poderia consolar o avô da perda de seus dois
filhos, José e Benjamim?19 E, sobretudo, que ideia se faz de Jacó para pensar
que esse gênero de represálias poderia aliviar seu sofrimento de pai?
Diante dessa incongruência, é possível, sem dúvida, uma leitura mais
profunda20. Com efeito, é a “seu pai”, que acaba de o acusar junto com os
outros, que Rubem responde — e o leitor sabe que, mais que os outros, ele se
sente culpado em relação a este pai. Talvez por isso suas palavras traiam essa
culpabilidade. Basicamente, o que Rubem propõe não é senão autopunição:
se ele priva seu pai de seus filhos, ele pagará como pai, sendo privado de seus
próprios filhos. Percebe-se bem a ironia: ao querer mostrar suas retas intenções
e o respeito que ele tem por seu pai, Rubem faz transparecer a culpabilidade
que o habita, a mesma que, provavelmente, já guiou sua reação diante de seus
irmãos na presença de José (42,22). Decididamente, Rubem pouco mudou desde
o início desta história: sua culpabilidade em relação a Jacó torna ambíguas
suas iniciativas mais generosas e mais fraternas — desde a vontade de salvar
José do ódio assassino dos irmãos até a vontade de recuperar Simeão e de
proteger Benjamim do egípcio que o reclama. Certamente é por isso que esse
discurso o desqualifica, a ele, o primogênito. Desde agora, não intervirá mais
na narrativa. Jacó, aliás, não responderá à sua proposta21, preferindo dirigir-se
a todos como se ignorasse deliberadamente o que acaba de ouvir (42,38):

E ele [Jacó] disse: “Meu filho não descerá convosco, pois seu irmão morreu, e
ele, só ele restou. Se lhe acontecer um acidente no caminho onde ireis, fareis
descer minhas cãs, em aflição, ao Xeol”.

19. Neste sentido, Westermann, 113, W. L. Humphreys, Joseph and his Family, 84, e Hamilton,
536.
20. Esta dúvida me foi inspirada pelas considerações de M. Sternberg, The Poetics of Biblical
Narrative, 299-300.
21. Nesse sentido, Cotter, 309; para B. Green, “What Profit for Us?”, 127, “se Rubem por
duas vezes fracassou em suas responsabilidades de primogênito, por que deveria suceder numa
terceira tentativa?”

159
José ou a invenção da fraternidade

A rejeição de Jacó é categórica, definitiva e sem apelo. Ele fecha a porta


a toda negociação, sem deixar nenhuma esperança — como seus filhos, ele
não sabe que a fome o forçará a organizar uma nova viagem ao Egito. O ve-
redicto está claramente fundamentado, mesmo que guarde o caráter alusivo já
presente na primeira intervenção de Jacó (cf. 42,36). O principal argumento
aflora desde as primeiras palavras: quando fala de Benjamim dizendo: “meu
filho”, o pai sugere que sua decisão é ditada por seu apego preferencial a es-
se filho. O motivo é depois desdobrado segundo a ordem cronológica. Primeiro,
a experiência passada com José, que Jacó chamou “seu irmão”, em referência
ao filho de que fala — o que liga estreitamente os dois filhos de Raquel22: ele
está morto, diz ele, dando um caráter definitivo ao desaparecimento que antes
só evocava. Depois, a realidade atual: depois dessa morte, Benjamim é o único
que resta. Ao destacá-lo, Jacó confirma as suspeitas do leitor que, no momento
da saída para o Egito, tinha entendido que havia transferido para o menor a
afeição preferencial que antes tinha por José (cf. 42,4). Finalmente, há o temor
pelo futuro próximo, se Benjamim se distanciasse dele: uma desgraça poderia
cair sobre ele. Uma preocupação idêntica já o havia feito reter seu filho da
primeira partida, e o leitor pressentiu então que essa atitude poderia encobrir
desconfiança em relação aos outros filhos23. Aqui, apesar do lado alusivo do
discurso, as coisas se esclarecem. O que ele diz temer, na verdade, Jacó não
o situa no Egito, mas “no caminho pelo qual ireis”, mostrando que mais teme
seus filhos do que o suposto senhor do Egito, que teria se mostrado ameaça-
dor para eles. O que se segue o confirma: se alguma desgraça acontecesse a
Benjamim, seriam eles os culpados da morte de seu pai — “terminando assim
o trabalho iniciado com a eliminação de José”, como disse Sternberg, em
função da ligação entre esta última palavra de Jacó e o que ele disse no final
do episódio inicial (37,35)24. Assim, é também por si mesmo que Jacó teme,
na medida em que a perda de Benjamim apressaria a hora de sua morte.

22. Observe-se que, dos três filhos que Jacó citou acima pelo nome (42,36), ele só menciona
ainda o primeiro (José) e o último (Benjamim): Simeão parece estar fora de suas preocupações.
23. Ver acima, p. 122-123. As expressões são as mesmas em 42,4 e 42,38: pen-yiqra’ennu ’ason
(“de medo de acontecer uma desgraça”) e uqera’ahu ’ason (“se acontecer uma desgraça”). Mas
o que Jacó dizia a si mesmo, agora o diz abertamente: ver R. Alter, Genesis, 251, e B. Green,
“What Profit for Us?”, 127.
24. Com este pensamento, M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 299, conclui um
desenvolvimento sobre a desconfiança de Jacó em relação a seus filhos. A utilização da expressão
“descer em aflição ao Xeol” assegura uma identificação entre 37,35 e 42,38. Notemos a mudança
entre a expressão neutra “eu descerei” (37,35) e a acusação “vós fareis descer” (42,38), que incri-
mina claramente os filhos.

160
Capítulo 9 – O retorno dos irmãos a Jacó (42,29-38)

Agora, o que o leitor farejou desde o início do capítulo 42 fica claro: embora
a pedagogia de José já tenha dado frutos de verdade e os irmãos pareçam ter
mudado — o leitor é testemunha (cf. 42,21.29-34) —, Jacó não está curado de
sua forma própria de cobiça. Ele está ainda muito mais ligado ao segundo filho
de Raquel do que estava a José, e seus infortúnios passados deram origem a um
isolamento radical, a ponto de ele “negar” implicitamente aqui “todo vínculo
fraterno entre os filhos de Lia e os de Raquel”25. Este homem ferido não tem
nada a ver com o pai cheio de audácia que, lúcido quanto à situação alarmante
criada por sua promoção de José, enviou este ao encontro de seus irmãos com
o desejo de ver o šalom acontecer entre eles (cf. 37,12-13). Deste lado, a crise
antes se agravou, porque o pai não pode imaginar sua vida sem Benjamim, de
cuja vida depende a sua. Ele o detém, monopoliza-o, enquanto desconfia dos
outros, nos quais vê uma grave ameaça — e não é sem razão. A cobiça ainda
domina o patriarca, o que resulta em mergulhar a família num impasse total.
O antigo ódio velado dos irmãos por seu pai, assim como sua mentira cínica
do passado, agora pode privá-los de qualquer chance de salvação26.
Neste ponto, surge um novo aspecto da prova imposta por José a seus
irmãos. Ficou em segundo plano até aqui, e diz respeito ao papel do pai nes-
ta história. No primeiro episódio, no início do capítulo 37, é evidente que a
afeição preferencial que Jacó demonstrava pelo primeiro filho de Raquel foi
em grande parte responsável pela crise da família, já que provocou o ódio
invejoso dos irmãos (37,3-4). Quando eles voltam do Egito, fica claro que,
vinte anos depois, esta dimensão da crise ainda é atual. Ora — e será que
José pensou nisso ao constatar a ausência de Benjamim e sendo informado
de que ele estava com seu pai? —, o teste imposto aos irmãos atinge com
toda a força este aspecto do problema. Para levar seu irmão mais novo ao
Egito, os irmãos devem separá-lo de seu pai, e, portanto, enfrentar este numa
questão crucial, que gerou a crise da família e prejudicou a fraternidade, a
saber, a preferência pelos filhos de Raquel, uma predileção com forte gosto
de cobiça. Assim, a prova imaginada por José não somente testa a capacidade
da fraternidade de seus irmãos, mas coloca também à prova a atitude paterna
de Jacó, provocando o psicodrama familiar que já conhecemos. Mas, mesmo
que a teimosia compreensível do pai levasse todo mundo ao impasse e evitas-
se que os filhos voltassem para o Egito a curto prazo, o leitor já viu como
esse confronto tem feito progredir a verdade entre pai e filhos, porque obriga
os irmãos a tocar com o dedo os efeitos desastrosos de sua mentira.

25. Wenham, 411. Nisso, Jacó constitui um obstáculo maior ao surgimento da fraternidade.
26. Nesse sentido, Brueggemann, 405.

161
José ou a invenção da fraternidade

Os irmãos, de fato, são forçados a notar, aqui, que o olhar com que seu pai
os olha não evoluiu nada e que, a este respeito, continuam sofrendo as sequelas
de suas faltas passadas. Sua imagem de pessoas odiosas e falsas está à flor da
pele, continuando a perseguir e alimentando a desconfiança e o medo de Jacó
em relação a Simeão, se os irmãos o venderam, e em relação a Benjamim, se
viessem a vendê-lo. O que eles ignoram, mas o leitor já conhece, é que isso
se verifica também do lado de José, que alimenta desconfiança legítima a
propósito de Benjamim, se eles o eliminarem, e de Simeão, caso venham
a abandoná-lo na prisão egípcia27. Não se apaga da noite para o dia um trauma-
tismo de vinte anos. Entrar na verdade, fazendo sua autocrítica, não é suficiente
para curar as cicatrizes abertas pela violência e pela mentira28. Além disso,
o caminho ainda é longo, porque a mudança interna não é tudo: falta ainda,
para que as relações justas sejam possíveis, que os sinais dessa modificação
superem com sucesso uma desconfiança mais do que justificada.
O episódio termina, pois, num impasse, com Jacó recusando o sinal que
José exige29. Mas, afinal, se ele esbraveja contra seus filhos (42,36), se muda
o tom de sua recusa (42,38), talvez seja porque pressente que seus filhos não
são mais exatamente os mesmos e que não poderá continuar indefinidamente
em sua posição. Esta cena comovente tem, pelo menos, o mérito de esclarecer
a situação. Agora, o destino da família está suspenso a uma decisão de Jacó,
à sua capacidade de deixar seu filho partir, de correr o risco da morte — o
risco de renunciar uma vez mais à cobiça e à desconfiança.
Observe-se que nesta cena situada em Canaã, como também na seguinte,
José é onipresente nos discursos, seja como vítima sempre ausente e lamen-
tada por seu pai, seja como esse estrangeiro que sacode a família com suas
exigências. Entre estas duas figuras aparentemente heterogêneas a ligação é,
contudo, forte: graças ao teste do senhor egípcio, os irmãos estão a caminho
da fraternidade, portanto rumo a seu irmão perdido, um caminho no qual
surge um obstáculo: a cobiça de Jacó. É esse ponto de resistência que a cena
seguinte vai abordar.

27. M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 299, escreve com raro acerto: “A retribuição
está, em grande parte, ligada à velha imagem de um ofensor (offender) que faz sombra ao homem
novo que ele se tornou: essa mensagem emerge sem dificuldade das duas sequências […] onde a
aparição do grupo [dos irmãos] diante de um pai, na ausência de um irmão esperado, desperta um
medo secreto no que concerne ao destino do ausente e ao futuro de seu substituto”.
28. O leitor se lembrará, aqui, do capítulo 37, onde a mudança de Jacó e de José em relação
à crise da família (cf. v. 12-17) não tem tempo para alcançar os irmãos. Por conseguinte, eles
mantiveram-se em seu ódio ciumento, que determina seu comportamento em relação a seu irmão.
29. Para Turner, 183, o bloqueio reproduz a situação final do capítulo 37.

162
Capítulo 10

Jacó, seus filhos e Benjamim


(43,1-14)

No final da cena anterior, como vimos, a ação ficou bloqueada, paralisada


pela terminante recusa de Jacó em permitir que Benjamim parta com seus
irmãos. Estes estão então resignados a abandonar Simeão à sua sorte? É o que
se pode pensar. De fato, eles não insistiram mais, porém ignoram que a fome
não está para terminar1. Capitularam diante do apego excessivo de seu pai
aos filhos de Raquel, cederam à sua chantagem de morte, talvez por causa
da culpabilidade. Assim, todos — pai e filhos, cada um a seu modo — são
responsáveis por prolongar o cativeiro de Simeão. Mas não é isso que faz que
a ação seja retomada. A fome, sim. O narrador dirige imediatamente a aten-
ção do leitor para este ponto: “A fome pesava na terra” (43,1). A história não
terminou, em breve a fome obrigará pai e filhos a se confrontarem de novo
por causa de Benjamim, porque, sem isso, a ausência do šalom familiar —
situação tão “pesada” quanto a fome — será ratificada por todos, Jacó tendo
anestesiado o desejo de fraternidade que os irmãos manifestaram em relação
a Simeão. No dia em que terminam as reservas trazidas do Egito, o problema
volta à ordem do dia para Jacó, que, ao contrário do leitor, deve ter esperado
que o fim da fome pusesse um fim a todo esse problema.

1. Ver L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 336, e G. Fischer, Die Josefsgeschichte, 250.

163
José ou a invenção da fraternidade

A primeira cena do novo episódio acontece em Canaã, entre o pai e seus


filhos (43,1-14). A cena é relativamente longa: é preciso tempo para forçar o
impasse no qual a recusa obstinada de Jacó ameaça a família inteira com tanta
gravidade quanto a fome. E, como o leitor podia esperar, esta cena consiste
num diálogo entre Jacó e seus filhos a propósito de Benjamim2.

Última resistência de Jacó (43,1-7)


Quando a fome recomeça a colocar em perigo a vida da família, Jacó
toma uma nova iniciativa.
1
A fome, entretanto, pesava sobre a terra. 2Quando, pois, acabaram de consumir
o grão que tinham feito vir do Egito, disse-lhes o pai: “Voltai, comprai-nos um
pouco de alimento”. 3Judá respondeu-lhe: “O homem conjurou-nos solenemente,
dizendo: ‘Não vereis a minha face sem o vosso irmão convosco!’ 4Se mandares
nosso irmão conosco, desceremos e compraremos alimento para ti; 5mas se
não o mandares, não desceremos, porque o homem nos disse: ‘Não vereis a
minha face sem o vosso irmão convosco!’ ”.
O que faz Jacó decidir a voltar a falar com seus filhos é a fome, o medo
de uma morte mais certa que aquela que disse temer, uma espécie de instin-
to de sobrevivência onde continua a se aninhar, escondido mas tenaz, o desejo
de uma vida enfim digna deste nome. No entanto, o discurso de Jacó ao en-
viar novamente seus filhos ao Egito tem um tom bem diferente do primeiro.
Lembramo-nos de um Jacó enérgico, que sacudia a inércia dos filhos antes
de especificar o que esperava deles (42,1-2). Aqui, ele parece ter perdido toda
a segurança e sua expressão “um pouco de alimento” diz bastante sobre seu
medo de tratar com aspereza os filhos ou de ver voltar à tona um assunto
doloroso3.
Tudo se passa como se Jacó quisesse ignorar o problema, a menos que
o considere resolvido. Porque a inércia dos irmãos, que pouco insistiram em
resgatar Simeão, pode ter mantido nele a suspeita de mentira a este respeito.
Se eles desistiram tão depressa diante da recusa do pai, talvez tenham vendido
realmente seu irmão. Neste caso, será que não tentaram enganar seu pai Jacó,
mais uma vez, na esperança de um novo benefício — redobrado com uma

2. Como destaca B. Green, “What Profit for Us?”, 141, Benjamim nunca foi um personagem
no sentido próprio nesses capítulos, mesmo que surjam muitas questões sobre ele.
3. J. S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob, 102. Para Wenham, 420, Jacó toma cuidado para
não machucar seu filho, porque sabe que é seu veto que os atrasa.

164
Capítulo 10 – Jacó, seus filhos e Benjamim (43,1-14)

vingança contra o filho de Raquel? Mas, então, ele teria sido assaz inteligente
para não mais se deixar prender e poder imaginar o caso resolvido. Se for as-
sim, seu “esquecer” os acontecimentos do retorno dos irmãos poderia trair sua
esperança secreta. Mas o medo continua presente: fica quase palpável na timidez
da exigência. Como se, levado pela necessidade, Jacó tivesse consciência de
estar andando sobre ovos, arriscando reabrir o dossiê com sofrimento, com a
apreensão de quem sabe que não tardará a ser encarado. E, de fato, a resposta
é imediata, e ela traz à tona, maciçamente, a questão de Benjamim. Ela vem
de Judá (43,3-5). Enfatizo no formato do texto a repetição e a insistência:
“O homem conjurou-nos solenemente, dizendo:
‘Não vereis a minha face sem o vosso irmão convosco!’
4
Se mandares nosso irmão conosco, desceremos
e compraremos alimento para ti. [cf. v. 2]
5
Mas se não o mandares, não desceremos,
porque o homem nos disse:
‘Não vereis a minha face sem o vosso irmão convosco!’ ”.
A linguagem de Judá é perfeitamente clara, e seu raciocínio, límpido
como é a construção de seu discurso. Quem fala é um homem determinado,
dirigindo-se a seu pai, olhos nos olhos, com a frieza das pessoas lúcidas. Já
quando ele interveio para propor a venda de José o leitor percebeu nele a
disposição a ver as coisas de forma direta e a chamar as coisas pelo nome
(37,26). Se, por um tempo, o medo o levou para a mentira, ele não hesitou
em voltar à verdade quando posto diante da evidência por Tamar (38,25). No
entanto, aqui Judá talvez acrescente algo por conta própria. Ao argumentar,
no início e no final do discurso, sobre uma exigência absoluta do “homem”,
ele talvez vá além do que o egípcio disse, ao citar duas vezes as palavras
dele4, como se quisesse fazer seu pai ouvi-las diretamente. O termo que ele
usa para apresentá-los também poderia sugerir que pesa contra os irmãos uma
acusação no quadro de um litígio pendente5, de acordo, aliás, com o que os
irmãos disseram quando de sua volta a respeito da acusação de espionagem,
que deverá ser refutada pela vinda de Benjamim (42,33-34).

4. Vou abordar esta questão no capítulo 13, onde Judá repete a mesma coisa antes de José (44,23).
Veja abaixo, p. 227-228.
5. O sentido habitual do sintagma hebraico empregado aqui (verbo ‘wd no Hifil com a preposição
be) é “citar como testemunha contra, testemunhar contra” (cf. Ex 19,21-23; Dt 4,26; 30,19). Veja
os léxicos ou P. Bovati, Ristabilire la giustizia, 277, que afirma que este testemunho contra ele,
“vindo antes do delito, não é propriamente uma acusação mas, por assim dizer, sua antecipação
condicional”.

165
José ou a invenção da fraternidade

Se Judá radicaliza as coisas, talvez à custa de distorcer a verdade, certo é


que exerce sobre seu pai uma pressão máxima para deixar Benjamim partir.
No centro de suas palavras, com efeito, explicando as consequências do que
o homem disse, ele coloca Jacó diante de uma alternativa decidida que lhe
impõe uma escolha: ou ele retém o caçula, e então não irão ao Egito — a
viagem seria em vão —, ou eles irão. Disso depende o alimento que Jacó
reclama para si (“para ti” no centro). Em outras palavras, os irmãos não têm,
neste caso, margem de manobra. Jacó é quem detém a chave de tudo, e a
realização de sua vontade — ter alimento (43,2) para “viver e não morrer”
(cf. 42,2) — depende exclusivamente dele6. O mínimo que podemos dizer é
que o discurso é claro, e pode-se notar o contraste gritante com a estratégia
paliativa dos irmãos (42,30-34) e com a recente intervenção de Rubem (42,37).
No entanto, Judá mostra certa contenção. Afinal, ele poderia ter dito a seu pai
que mandar seus filhos ao Egito, sem Benjamim e ele mesmo, resultaria em
mandá-los à prisão e, portanto, em sacrificá-los a Benjamim e a si mesmo,
privando todo o clã dos víveres necessários. Ao fazer isso, ele teria desafiado
Jacó em sua preferência por Benjamim, o que não parece querer fazer, pre-
ferindo confrontá-lo com a realidade nua. Assim, Judá opta por insistir nesse
ultimato do egípcio, sem que o leitor saiba se é real ou inventado7.
Mas, verdadeiro ou falso, esse ultimato tem uma vantagem enorme: ajuda a
esclarecer as responsabilidades de cada um e as apostas evidentes das escolhas
que deverão ser feitas num futuro imediato. Especialmente porque, se Judá se
detém no essencial e evita explicitar as implicações profundas do que diz —
porque isso ofenderia o pai —, estas vêm à tona assim mesmo. Basicamente,
o argumento de Judá se resume a isto: sem Benjamim, não haverá comida, daí
a morte em curto prazo. Novamente se lê de forma clara a ligação entre pão
e fraternidade, e a lógica subjacente é que os dois são necessários para que
eles possam viver: será, pois, que o pensamento de Judá se une ao de José
neste ponto? Pois o que ele espera de Jacó pedindo-lhe para “mandar8 nosso
irmão conosco” é que ele mostre sua confiança na capacidade de fraternidade
deles — lembramos que Jacó tinha dito: “Meu filho não descerá convosco”
(42,38). Em outras palavras: que ele se mostra pai de todos, renunciando a

6. Neste sentido, Hamilton, 541.


7. Para Westermann, 121, a inclusão aqui serve para reforçar a afirmação.
8. O verbo šalah., utilizado por duas vezes em 43,4-5, é o mesmo que, em 37,13-14, serviu
para o envio de José por seu pai. Aqui, porém, ele está sendo utilizado em outra conjugação (Piel),
com a nuance de “deixar partir, permitir ir” ou mesmo “liberar”. No entanto, o leitor não deixará
de fazer a aproximação.

166
Capítulo 10 – Jacó, seus filhos e Benjamim (43,1-14)

ser o pai de um só. Então ele poderá viver e fazer viver. Vê-se claramente:
Judá explicita, com precisão, porém contida, o que implica para seu pai a
prova que José imaginou. A fraternidade só poderá ser construída na medida
em que se levante a hipoteca que Jacó faz pesar sobre ela em razão de sua
preferência pelos filhos de Raquel e de sua desconfiança em relação aos
outros, atitude que, precisamente, é responsável pelo bloqueio que Judá quer
eliminar. Se o pai não renunciar a esta forma de cobiça por medo da morte
(cf. 42,38), então a fome o matará, a ele e a sua família. E a fome é também
a falta de fraternidade.
Dito isto, é possível perceber o que impulsiona, profundamente, esta
intervenção de Judá? O leitor se lembra: o filho que pronuncia este discurso
para seu pai foi encontrado, um dia, como pai, numa situação semelhante
àquela em que Jacó se encontra hoje. Após a morte de seus dois primeiros
filhos, ele deveria ter dado o mais novo a Tamar, esposa de Er. Mas, em seu
medo de vê-lo morrer por sua vez, não teve a coragem de deixá-lo (38,11).
Ele conhece, pois, por dentro o drama que atualmente está enfrentando seu
pai, que, depois de ter perdido dois filhos, José e Simeão (42,36), está com
medo de se ver privado de seu caçula ao permitir que parta com seus irmãos.
Assim, Judá está no lugar adequado para falar com seu pai9.
Mas, em virtude de sua experiência passada, ele deve também estar cons-
ciente de que é urgente falar com Jacó, porque sabe, por experiência vivida, o
que tem de mortífero uma recusa na base do medo, ditada pela desconfiança
dos outros e pelo medo da morte. A única chance de ver a vida atravessar o
impasse exige que se ouse, como Tamar, vencer o medo, assumindo os riscos
necessários, e desafiar a morte. Não foi isso que Judá disse a seu pai quan-
do ele sugeriu por meia-palavra que, se não deixasse Benjamim ir com eles,
seria ele o responsável pela morte de todos? Judá é o único dos irmãos que
pode falar com essa firmeza e essa clareza que não excluem a moderação
cheia de compreensão e até mesmo de carinho10. Além disso, o leitor poderá
notar também tudo o que Judá aprendeu com Tamar. Com efeito, para fazer
seu pai renunciar à sua lógica de morte, ele age um pouco à maneira dela:
usa de fina astúcia a fim de enganar não o outro, mas o medo que este tem,
de modo que o conduza para escolhas de vida, abrindo-lhe os olhos para as
responsabilidades reais.

9. Ver R. Pirson, The Lord of the Dreams, 98-99, e A. J. Lambe, Judah’s Development, 62-63,
que acrescenta que a experiência de Judá lhe servirá também quando se interpor por Benjamim.
10. A ideia me é sugerida por M. Sternberg, Time and Space, 130-131, e por A. J. Lambe,
Judah’s Development, 63-64 e 65, nota 37.

167
José ou a invenção da fraternidade

À alternativa implacável de lucidez enunciada por Judá, Israel opõe


uma última resistência, deixando falar uma vez ainda sua amargura. De toda
maneira, ele fica encurralado11. Tendo percebido nas palavras de Judá um
questionamento implícito de sua recusa como causa da desgraça para todos,
tenta repelir a acusação fazendo-se de vítima (43,6-7).
6
Israel então exclamou: “Por que me fizestes mal, revelando àquele homem
que tínheis mais um irmão?”12. 7E disseram: “O homem perguntou muito sobre
nós e nossa parentela: ‘Vive ainda vosso pai? Tendes outro irmão?’, e nós lhe
relatamos em resposta a essas palavras. Podíamos saber que ele diria: ‘Fazei
descer vosso irmão’?”.

A resposta de Jacó culpa os filhos, acusando-os de lhe terem causado mal.


Ela ignora completamente a explicação dada no retorno: não disseram os nove a
seu pai que eles falaram de Benjamim para responder à acusação de espionagem,
a fim de provar sua honestidade e mostrar que não eram mal-intencionados
(42,31-32)? Portanto, não agiram com o intuito de lhe causar dano.
No entanto, apesar das aparências, não é sem razão que Jacó toca neste
ponto: de fato, não lhe fazem mal seus filhos, faz vinte anos já, precisamente
pela aparência de honestidade que pretendem manter a todo custo, recusando
admitir sua culpa na morte de José? Mais uma vez, inesperadamente, uma
acusação materialmente falsa é portadora de uma verdade oculta que vem à
tona: os irmãos são realmente culpados do mal que Jacó sofreu. Não é porque
falaram de Benjamim ao egípcio, mas porque deixaram um pai dilacerado
pela cruel incerteza quanto ao destino de seu filho José — uma incerteza que
reside precisamente na questão crucial expressa de maneira um tanto curiosa:
“Tendes outro irmão?” (43,7). Seja como for, na circunstância atual é Jacó
quem faz o mal para seus filhos. Sua desconfiança em relação a eles os co-
loca sob a ameaça mortal da fome. É certamente um sinal de que, como não
estamos livres da cobiça e da mentira, o sofrimento infligido aos outros — e
a si mesmo — continua a envenenar as relações.
A resposta dos irmãos é sintomática. Procuram se desculpar, tendo em
vista, decerto, enganar Israel ou acalmá-lo13. Fazem isso com a inabilidade

11. Westermann, 121: “Depois das palavras de Judá, o pai sabe que deve ceder. Mas é humano
que não possa fazê-lo imediatamente”.
12. Formulada como uma pergunta direta para os irmãos, a segunda parte da frase é estranha.
Antes se esperaria: “… relatando ao homem que tendes ainda um irmão”. Veja a explicação que
esboço no parágrafo seguinte.
13. Westermann, 121, diz acertadamente que eles apoiam, assim, o pedido de Judá.

168
Capítulo 10 – Jacó, seus filhos e Benjamim (43,1-14)

característica de quem sente que na acusação feita contra ele não falta a
verdade (43,7): “O homem perguntou muito […] e nós lhe relatamos […].
Podíamos saber que ele diria […]?”. Na realidade, em sua autojustificação
eles prolongam o jogo de esconde-esconde com o pai. A mentira é evidente:
eles atribuem ao homem uma insistência e questões que jamais foram as
dele — ao mesmo tempo em que introduzem uma nota de solicitude para
com o pai, o que abranda as feições do egípcio14. Na realidade, diante deste,
os filhos falaram do pai e de Benjamim espontaneamente, no afã de provar
sua boa-fé e de responder, como o fazem agora, a uma acusação simulta-
neamente verdadeira e falsa (42,13). Aliás, é esta a versão que apresentaram
ao pai quando voltaram (42,32). Mas, com o intuito de acalmá-lo e manter
chances de dobrá-lo, eles não querem servir uma mentira, inclusive porque o
núcleo de sua argumentação não é falso: seu objetivo não era prejudicar seu
pai, e eles não podiam prever que suas afirmações teriam esse efeito. Mas,
muito tempo atrás, eles se envolveram numa lógica em que mesmo as boas
intenções ou as belas palavras acabaram fazendo mal. Não é isso que se ve-
rifica novamente agora? Pois os irmãos, para se livrar, encontram-se forçados
a acomodar a verdade ou a silenciar uma parte, porque, se ela aparecesse
sem maquiagem, o mal seria pior ainda. Eis o que salienta, mais uma vez, a
urgência da verdade.

Judá convence Jacó (43,8-14)


É neste sentido que Judá retoma a palavra. Será que viu que um debate
sobre a culpabilidade de cada um só podia dar em nada, porque nunca resol-
veria a verdadeira questão vital para todos? Será que entendeu que, por trás do
medo do pai, ainda se esconde um desejo de vida, como quando este queria
proteger Sela da morte (cf. 38,11)? Em todo caso, independentemente do que
ouviu, ele volta ao que disse para esclarecer e completar o propósito. Mais
uma vez, o texto reflete sua clara visão e sua determinação (43,8-10).
8
E Judá disse a Israel, seu pai: “Manda o menino comigo. E levantemo-nos e
vamos, para que vivamos e não morramos, e nós, e tu, e também os nossos
brotos! 9Eu me torno garante por ele: de minha mão poderás reclamá-lo. Se
eu não o fizer vir a ti e não o colocar em tua presença, terei uma falta contra

14. O narrador implanta aqui um efeito irônico, porque José fará mais tarde a seus irmãos as
perguntas que eles, aqui, lhe atribuem; mas o tom de José, então, longe de ser inquisitorial, mani-
festará acima de tudo a solicitude (43,27 e 29, 45,3).

169
José ou a invenção da fraternidade

ti [por] todos os dias. 10Mas, se não tivéssemos tardado tanto, sim, agora te-
ríamos voltado duas vezes!”

Desta vez, Judá prefere, ao arrazoado desenvolvido anteriormente, a inter-


pelação direta. Ele pede abertamente a Israel, a quem se dirigiu chamando-o de
“seu pai”, que mande o menino (hanna‘ar) com ele. Sua maneira de designar
Benjamim é notável. Ele não fala “teu filho” ou “nosso irmão”, mas situa-o
como um jovem que não pertence nem a seu pai nem a seus irmãos. Mas,
enquanto assim ninguém pode reivindicar esse menino como seu, a vida de
todos depende dele. Este aspecto, escondido em sua primeira intervenção,
Judá o esclarece aqui: se Israel deixa o menino, os irmãos podem partir (cf.
43,4) e todos terão sua vida garantida: eles mesmos, mas também o pai e o
resto da família.
Na realidade, Judá permanece calmo, apesar de tudo, como se desejasse
evitar pesar demais sobre seu pai. Retomando a alternativa que propôs no
início, limita-se ao lado positivo, evitando explicitar o lado negativo que
ressoaria assim: se, como pai possessivo, tu guardares teu filho contigo, não
haverá pão para ninguém e todos morrerão, inclusive as mulheres e as crian-
ças (43,8). (O leitor terá reconhecido, de passagem, a lição da aventura vivida
com Tamar15: tentar reter a vida por medo da morte é condená-la à morte.) Em
outras palavras, a vida ou a morte de todos depende de ti: tu serás um pai que
faz viver ou um homem sem coração, que semeia a morte entre os seus? Mas
Judá é ainda mais fino. Ao pronunciar as palavras “para que vivamos e não
morramos”, ele retoma literalmente o que Jacó disse a seus filhos enviando-os
ao Egito pela primeira vez (42,2). Ele remete, portanto, o pai a seu próprio
desejo de vida: se deseja que este se realize para todos, deve consentir em
deixar seu filho, objeto de seu desejo para si mesmo, ele deve concordar em
dizer não à cobiça e à desconfiança.
Falando assim, Judá recorda certamente também o compromisso assumido
pelo egípcio de lhes dar vida: “fazei isto para que vivais … e não morrais”
(42,18-20)16. Assim, três condições essenciais para a vida são enunciadas,
sucessivamente, por três personagens principais: ansiosos pela sobrevivência,
Jacó fala em comer (42,2); por ter aprendido com Putifar os terríveis efeitos

15. Sobre este ponto ver G. Fischer, Die Josefsgeschichte, 260.


16. Observa-se amiúde a aproximação entre 42,2 e 43,8b (ver, por exemplo, J. S. Ackerman,
Joseph, Judah and Jacob, 105, Westermann, 121 e Turner, 184). Os autores parecem não ter
percebido que o mesmo desejo foi expresso por José a seus irmãos (42,18a.20b). Veja contudo a
referência de B. Green, “What Profit for Us?”, 149.

170
Capítulo 10 – Jacó, seus filhos e Benjamim (43,1-14)

mortais da mentira, José afirma que viver supõe falar a verdade e mostrar-se
confiável (42,18-20); e, finalmente, Judá, que conheceu o medo antes de ver
a audácia de Tamar, acrescenta que a vida supõe também não tentar retê-la a
toda força por medo da morte (43,8). É esta terceira condição que ele exibe
aqui abertamente diante de seu pai: querer guardar Benjamim para si por
medo de morrer (cf. 42,38) resulta em condenar todos à morte, incluindo a si
próprio e a seus filhos17. A cobiça de um só pode provocar a morte de todos:
não é esta a lição que Judá tirou de sua própria experiência de pai temeroso e
medroso? Que Israel, pois, aceite o risco de perder tudo — de morrer, como
disse (42,38) —, e todos encontrarão uma chance de vida. E se o fizer será
verdadeiramente o pai de todos, pois todos lhe deverão a vida.
Indiretamente, como vemos, Judá sugere a Israel o caminho da verda-
deira paternidade — como se um pai tivesse que aprender de seu filho o que
significa ser pai. É que um pai digno desse nome não sufoca um de seus
filhos, aprisionando-o em sua carência e suas angústias, como Jacó o faz com
Benjamim, pouco importa a legitimidade de suas motivações. Um verdadeiro
pai confia nas palavras de seus filhos e em sua capacidade de fraternidade,
ou, em todo caso, não os encerra irremediavelmente em seus erros passados.
Enfim, um verdadeiro pai está preocupado com a vida de cada um, mesmo
quando deve deixar seus filhos seguirem o próprio caminho deles. Em suma,
Judá respeita seu pai, dirigindo-se a ele de homem para homem, distante e
próximo ao mesmo tempo18, e lhe mostra de forma clara a responsabilidade
dele, mas nem por isso se subtrai à sua própria. Com efeito, ele se compro-
mete a trazer seu irmão de volta, assumindo a tarefa que lhe é própria: a
de se mostrar irmão. Ao fazê-lo, inverte a atitude de Caim, porque se torna
guardião de seu irmão.
Judá, portanto, não pede ao pai um engajamento unilateral. Também ele
assume um engajamento, e de modo solene, tornando-se pessoalmente19 garante
pelo menino e autorizando Israel a lhe pedir contas, se for o caso. Se, no mo-
mento presente, o pai ainda acha que seus filhos podem estar tramando uma
cilada contra Benjamim, ele deve saber que pelo menos um deles — talvez

17. Neste sentido, M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 300, seguindo Rashi. Ver
também R. Alter, Genesis, 253.
18. Eu desenvolvo isso em outro lugar, mostrando em que a atitude de Judá ilustra perfeitamente
a palavra que ordena ao homem honrar seu pai, em A. Wénin, Des pères et des fils, 30-31.
19. A forma do discurso de Judá é significativa neste ponto. Quando ele mencionou a viagem
para o Egito, todos os irmãos estão em causa (43,8b e 10, “nós”); mas quando fala de Benjamim
o faz em primeira pessoa (43,8a e 9), sinal de que o compromisso aqui é muito pessoal. Ver espe-
cialmente a acumulação, no versículo 9, de seis marcas da primeira pessoa.

171
José ou a invenção da fraternidade

dois até, se se lembra da tentativa canhestra de Rubem (42,37) — pretende


opor-se, intervindo para defender o irmão. Mas, longe da lógica de retaliação
que estava por trás da fantasia de Rubem, Judá não propõe a Jacó vingar em
pessoas inocentes o que ele eventualmente viesse a sofrer, tomando dois fi-
lhos — um por Benjamim e outro por José — para infligir a si, o pai deles,
o que este teria infligido a seu pai. Ele se envolve na situação tomando sobre
si a falta e interpondo-se em pessoa, finalmente, para pôr fim a essa cadeia
de infortúnios. Ao fazer isso, ele obriga seu pai a realmente confiar nele, sem
outra garantia que a palavra dada. Uma palavra verdadeira fica sem efeito se
não encontra nos outros a confiança que ela merece.
Além disso, nestas palavras de Judá aparece uma nova alusão ao capítulo
38, indicada pelo emprego do verbo ‘arav, “empenhar-se”, ecoando o “pe-
nhor” (‘aravon) dado a Tamar (ver 38,17.18.20). A ligação é clara, mas sua
interpretação o é menos20. Eu penso no seguinte: o penhor dado por Judá a
Tamar testemunhou que, involuntariamente, ele tomou o lugar de seu filho
Sela para cumprir a regra do levirato e reparar seu erro para com a mulher que
prejudicara gravemente privando-a injustamente de seu filho mais novo — e
de filhos pura e simplesmente (ver 38,26). Agora, diante do pai ao qual privou
injustamente de seu filho (cf. 42,36), Judá se compromete voluntariamente
a tomar o lugar de seu irmão mais novo, com o intuito de reparar essa falta
cometida em relação a seu pai21. Nesta linha, também, não se pode excluir um
duplo sentido, porque, afinal, “o menino” que Judá “fará vir” a seu pai não é
somente Benjamim, mas também José. Assim, Judá expurgará efetivamente
sua primeira falta contra seu pai22.
Por fim, Judá acrescenta um toque de otimismo, não sem voluntarismo.
Parece que ele está tentando comunicar a sua confiança a todos — incluindo
seu pai — já evocando o retorno, como se quisesse dissipar qualquer hesitação,
demonstrando confiança e se mostrando certo de que tudo vai correr bem23.
Essa segurança não pode deixar de alertar o leitor sobre o que no Egito espera
os irmãos, se Israel permitir levar Benjamim. Pois, ao contrário de Judá, que
não tem uma pista, o leitor sabe quem é o homem cujas exigências causam

20. Ver, por exemplo, G. Fischer, Die Josefsgeschichte, 260, ou J. P. Fokkelman, Genesis 37
and 38, 169 (e 180-181), onde é esboçada a leitura que proponho.
21. Diante de José, Judá honrará esse compromisso, recordando-o de forma explícita (44,32).
22. Jacó reconhecerá isto implicitamente quando pedir a Judá que prepare seu reencontro com
José (46,28).
23. Para B. Green, “What Profit for Us?”, 149-150, as últimas palavras de Judá não estão
longe de uma crítica sutil ao pai, cujas tergiversações têm paralisado a situação.

172
Capítulo 10 – Jacó, seus filhos e Benjamim (43,1-14)

a discussão na família, permitindo que a verdade progrida, mesmo que esse


“egípcio” ignore tudo o que acaba de se desenrolar.

A resposta do pai é surpreendente. Em primeiro lugar, não se destina


apenas a Judá, como se poderia esperar depois do discurso muito pessoal
que ele fez. Ele se dirige a todos, e é em sua posição de pai (“Israel, seu
pai”) que fala. Então, apesar de suas instruções serem muito claras, ele não
diz mais uma palavra sobre o grão de que precisam e que o levou a pedir
que seus filhos descessem ao Egito novamente: ele se concentra totalmente
no próximo encontro com o homem. Finalmente, parece atrasar o máximo
que pode o momento no qual dirá o que decidiu a respeito de Benjamim, ao
invocar Deus, pela primeira vez, explicitamente, desde do início desta histó-
ria (43,11-14).
11
E Israel, seu pai, disse-lhes: “Se [for] assim/honesto, então fazei isto: tomai em
vossas bagagens o que se canta24 da terra, para fazer descer ao homem como
presente: um pouco de bálsamo e um pouco de mel, goma e ládano, pistácias
e amêndoas. 12E dinheiro em dobro, tomai-o em vossa mão — e o dinheiro
que foi devolvido na boca dos vossos sacos de transporte, devolvei-o em/por
vossa mão: talvez seja um engano25. 13E vosso irmão, tomai-o e levantai-vos,
retornai àquele homem. 14Que El Shadai dê entranhas para vós na presença
do homem para que mande de volta para vós o vosso outro irmão e Benjamim!
Mas eu, como estou privado de filho, estou privado de filho!”
Ouvindo seu pai dizer “Se for assim/honesto” (’im-ken), “fazei isto” (zo’t
.
‘asu), os irmãos ouvem novamente as palavras que já ouviram uma primeira
vez da boca do egípcio: “Fazei isto para que vivais … se sois honestos…”
(42,18-19). Assim, as palavras do pai ecoam, sem ele saber, as de José: como
este, Israel espera que o que acaba de ser dito seja palavra de pessoas honestas.
Por isso lhes indica o modo de proceder para satisfazer os requisitos do “ho-
mem”. O querer deste e o do pai convergem portanto. Todavia, Israel formula
suas indicações de forma tal que mantenha em seus filhos, assim como no
leitor, algum suspense sobre o que fará com Benjamim após a intervenção

24. O termo zimrah é muito raro. Segundo os léxicos e Sarna, 299, significa “força”, mas
também conota a música, pois o verbo zamar significa “cantar, tocar um instrumento”. O Targum
vai nesse sentido: “aquilo que é louvado no país”. Esta é a tradução de E. Fleg, Le livre du com-
mencement, 174. Veja também Westermann, 122.
25. O hebraico faz aqui um jogo de palavras entre mišneh (“duplo”) e mišgeh (“ação cometida
por engano”, de onde “engano”): seria a primeira palavra que sugere a Jacó a explicação que dá à
devolução do dinheiro?

173
José ou a invenção da fraternidade

lúcida e firme de Judá. Suas primeiras palavras expressam ainda dúvida (“se
for assim…”). No entanto, podemos adivinhar que Israel, ao ouvi-los, como
que tocado por aquilo que foi dito a Judá, não está longe de o crer honesto
e sincero, e deve estar pronto para correr o risco da confiança. Mas ainda há
um “se…”. E, embora seu discurso continue num tom que não tem mais os
acentos plangentes das palavras faladas depois do retorno dos irmãos, o leitor
está surpreso por não ver Israel chegar mais rápido ao ponto e, ao contrário,
ouvi-lo multiplicar as precisões sobre pontos que são, afinal, marginais.
Com efeito, Jacó começa a detalhar para seus filhos o que devem levar
consigo. Há, para começar, as especialidades da terra de Canaã, como presente
para o homem. Na lista que Israel elenca, o leitor reconhece os bens de luxo
que os ismaelitas estavam transportando para o Egito quando compraram José
e o levaram para lá: bálsamo, goma e ládano — especialidades certamente
apreciadas pelos egípcios, já que as importavam (ver 37,25). Sua menção à
carga do comboio dos irmãos recorda assim a partida de José para o Egito, o
que suscita no leitor — e talvez nos irmãos — a questão se também Benjamim
fará parte da caravana, como um outro José26. Além desses produtos, Israel
também oferece comida, guloseimas na realidade: mel, pistácias e amêndoas.
Verdadeiro luxo em tempos de fome, esses doces estarão destinados a adoçar
o homem?
Em seguida, Jacó centra-se no dinheiro. Entrega aos irmãos uma porção
dupla, incluindo o dinheiro misteriosamente reaparecido nos sacos, argu-
mentando que eles podem ter sido beneficiados por um erro por descuido ou
engano. Se foi assim — o resultado está implícito — eles devem ser capazes
de restituir o dinheiro para provar sua honestidade, ou pior, para evitar pas-
sar por ladrões infames, no caso de os egípcios terem percebido a falta de
pagamento. Aliás, Israel insiste: devem guardar o dinheiro “em mão” (duas
vezes) — como se desejasse evitar qualquer nova complicação.
Mas por que Israel procura apaziguar o egípcio? Que proveito teria ao
desejar que os filhos possam provar sua honestidade? Neste ponto de seu
discurso, havendo no segundo plano sua recusa categórica de ver Benjamim
partir, a longa lista de presentes e as instruções sobre a quantidade do dinhei-
ro a levar podem sugerir que Jacó está desenvolvendo uma manobra para
evitar que Benjamim parta. Porventura, em tempos idos, retornando a Canaã

26. J. S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob, 92, sugere um significado diferente para essa
aproximação: os irmãos assumem aqui “o papel dos ismaelitas, dirigindo o outro filho de Raquel
a um destino incerto”, no Egito.

174
Capítulo 10 – Jacó, seus filhos e Benjamim (43,1-14)

depois de vinte anos de ausência, ele não tentou convencer seu irmão Esaú
cumulando-o de presentes (ver 32,14-22; 33,8)?27 Será que pensou em fazer o
mesmo hoje com o senhor do Egito? O dinheiro demonstraria claramente que
seus filhos não são ladrões, e poderia ser o suficiente para satisfazer o homem
que, de acordo com a narração que os filhos fizeram, não exige deles senão
a demonstração de sua honestidade fundamental, o que provará que eles não
são espiões (ver 42,31.33-34) e lhes permitirá recuperar Simeão. Neste caso,
ainda é útil enviar Benjamim?
Este sentido possível indicaria que Israel ainda hesita quanto à decisão a
tomar em relação a Benjamim — as primeiras palavras deixando já alguma
dúvida, antes que as disposições concretas levem a pensar que poderia ter
outra ideia? Não é impossível, de fato, embora seja difícil de verificar28. Mas,
neste mesmo sentido, a frase seguinte, em que um terceiro “tomai” coloca
fim ao suspense, parece que foi arrancada de Israel. É o efeito produzido pela
rápida sucessão de três imperativos que dão à frase um ritmo marcado, pela
concisão inesperada depois dos longos períodos anteriores, e pelo aspecto
inacabado que causa uma aparência áspera: “Vosso irmão, tomai-o e levantai-
vos, retornai àquele homem”29.
Assim, tudo balança numa espécie de parto difícil, enquanto o leitor vê
com satisfação que um mínimo de confiança conseguiu instalar-se no pai.
Portanto, retrospectivamente, o caso do dinheiro aparece a uma outra luz: apesar
de sua ambiguidade, a palavra de Israel (43,12) já mostrou que uma tendência
significativa está agindo nele. Com efeito, vendo reaparecer o dinheiro, ele
havia deduzido que devia ser o resultado da venda de Simeão (42,36). Mas
eis que agora ele apresenta a coisa como se começasse a acreditar no relato
de seus filhos. Este primeiro sinal de confiança, indireto e ainda ambíguo,
encontra-se confirmado quando Israel, designando “seu filho” (cf. 42,38) como
“vosso irmão” (43,13)30, deixa enfim Benjamim partir com os outros. Todas as
precauções precedentes, e que traíram a desconfiança do velho pai, contudo
não se tornaram obsoletas: elas serão bem-vindas, pois servirão de garantia

27. Ver Janzen, 93, e Wenham, 421 e 431.


28. Em vista do relato de Gênesis 22,1-19, tal atitude não pode ser excluída: lá também há um
pai que reluta até o fim, até quando consente nos fatos em cortar os laços que ligam seu filho a
ele. Ver A. Wénin, Isaac ou l’épreuve d’Abraham, 69-70.
29. Em hebraico: we’et-’ah.ikem qah.u wequmu šuvu ’el-ha’iš. Para Hamilton, 545, a ordem
daquilo que os filhos devem levar destaca a dificuldade de Jacó.
30. A expressão “vosso irmão” demonstra o desapego de Jacó e a confiança que ele finalmente
põe em seus filhos (B. Green, “What Profit for Us?”, 142); segundo Sarna, 300, e R. Alter,
Genesis, 254, ela sublinha também a responsabilidade dos irmãos por Benjamim.

175
José ou a invenção da fraternidade

para proteger Benjamim, o melhor possível, da arbitrariedade do homem, que,


segundo disseram os irmãos, poderia mostrar-se durão.
Que esta decisão foi difícil para Israel nota-se na oração que vem em
seguida. É um tipo de voto no qual invoca El-Shaday e onde transparece de
novo algo da desconfiança em relação a seus filhos no próprio momento
de se confiar a eles, bem como do medo desse homem exigente para o qual
ele deixa Benjamim partir. Com efeito, a expressão de Israel dá à sua invo-
cação uma significação ambígua. Seu desejo é que “para seus filhos” Deus
— literalmente — “dê entranhas” (rah.amim), inspire piedade ou misericórdia
“diante do homem”. O que quer dizer isto? Espontaneamente — e não é er-
rado — compreendemos que ele pede a Deus que seu filho ache graça aos
olhos do egípcio, para que este os trate com bondade e lhes devolva seus dois
irmãos. Mas a frase poderia significar também que Israel espera que, uma vez
que seus filhos estejam na presença do homem, Deus inspire a eles piedade
em relação a seus dois irmãos e, sem dúvida, em relação a seu velho pai (a
sequência insistirá nisso). Percebemos aqui mais uma vez a insistente descon-
fiança de Jacó em seus filhos, mas também, provavelmente, sua confiança em
El-Shadai, que ele parece acreditar capaz de transformá-los em irmãos.
No entanto, sabendo que “o homem” que Israel teme é também o irmão dos
outros, o leitor percebe uma sutileza de que Israel não pode estar consciente.
Quando se fala de “vosso outro irmão”, antes de mencionar Benjamim, ele não
pode, obviamente, estar referindo-se senão a Simeão, que o homem deveria
libertar depois de verificar a presença do mais novo. Mas o leitor dificilmente
poderá deixar de pensar também que “o outro irmão” que Israel espera ver
liberto com Benjamim possa ser o próprio José31, ao qual, como vimos, a fi-
gura de Simeão remete mais de uma vez. Mesmo se Israel o ignora, torna-se
efetivamente possível a esperança, há muito esmorecida nele, de rever José,
a partir do momento em que ele desiste de reter Benjamim para si — como
o leitor bem sabe32. Mas que sua renúncia lhe será mais que dolorosa, suas
últimas palavras o destacam ainda uma vez33.
Esta cláusula final é também ambígua: “Mas eu, como estou privado
de filho, estou privado de filho!”. Em consonância com o acima exposto,
especialmente neste momento em que Jacó acusa diretamente seus filhos de

31. Assim J. S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob, 89.


32. Ver também M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 85, ou J. Eisenberg, B.
Gross, Un Messie nommé Joseph, 377-378.
33. Ver Von Rad, 396.

176
Capítulo 10 – Jacó, seus filhos e Benjamim (43,1-14)

privá-lo de filhos (42,36)34 e, mais em geral, na linha da desconfiança que


subsiste no pai, podemos ler aqui uma forma de crítica oblíqua aos filhos
diante de quem esta palavra é pronunciada e que, por duas vezes, estiveram
envolvidos no desaparecimento de um dos filhos de Israel, mesmo que este
ignore o papel exato que tiveram. Mas esta frase também ressoa como uma
queixa, uma prece de lamento que Israel dirigiria indiretamente a seus filhos:
depois de ter invocado a piedade de Deus, ele suplicaria também a eles, evo-
cando simplesmente seu sofrimento, que dilacera um velho pai, privado de
seus filhos — último esforço para torná-los sensíveis à sua situação.
Mas, em si, essas palavras soam de início como uma constatação: ao con-
trário da acusação anterior (42,36), os filhos não são mais o sujeito do verbo
[*“privar de”] na voz ativa: agora é o próprio Israel, que por duas vezes, é o
sujeito do verbo usado como expressão de estado. Portanto, qualquer que seja
o efeito que esta constatação produza no contexto concreto em que é enun-
ciada, fato é que Israel não mais acusa seus filhos de causar sua desgraça,
limitando-se a expressar seu estado de alma, agora que deixa Benjamim partir.
No entanto, o passo é crucial, na medida em que Israel realmente renunciou
à cobiça que o levou a reter para si um filho para assegurar sua velhice — e
note-se, de passagem, que ele também se esqueceu de recorrer à chantagem
da morte (veja 42,38)35. Se ele fica agora privado de seu filho, é porque
consentiu com a partida de Benjamim. Isso era tudo que podia fazer — mas
precisou fazê-lo — para nunca mais bloquear a vida e para dar uma chance à
fraternidade, prejudicada desde o início por sua preferência por José. Mesmo
relutando, Jacó mudou, e José não tardará em constatar o resultado.
Considerando o que foi dito, provavelmente não é impossível arriscar uma
explicação para a escolha de dois nomes próprios que figuram na cena. O
primeiro é o nome El-Shadai que Israel invoca. Durante sua história, o velho
patriarca ouve esse nome duas vezes: no momento de deixar seu pai, ele tinha
recebido dele, em nome de El-Shadai, a bênção prometendo fecundidade e
numerosa descendência (28,4); e vinte anos depois, em seu retorno a Canaã,
Deus viera em pessoa confirmar essa bênção numa aparição (35,9-11)36. Ora,
em sua primeira ocorrência (17,1-2), El-Shadai é o nome sob o qual se apre-

34. O verbo utilizado, šakal, é o mesmo daqui, mas na forma Piel.


35. Neste sentido, G. Fischer, Die Josefsgeschichte, 261.
36. Posteriormente, Israel vai usar esse nome duas vezes: quando, em 48,3-4, conta a José a
aparição de 35,9-12, depois em 49,25, na bênção dirigida a José. Nos dois casos, o nome El-Shadai
está mais diretamente relacionado com a bênção garantindo vida e fertilidade. Não há nenhum outro
uso deste nome no Gênesis além de em 17,1.

177
José ou a invenção da fraternidade

senta o Deus da Aliança e da circuncisão, no momento em que pede a Abrão,


o eleito, demonstrar sua recusa a uma lógica da cobiça, consentindo em uma
perda simbólica, para assim se abrir à Aliança que permite o ressurgimento
da vida. Desta forma, não deve ser coincidência que Jacó invoque sob este
nome o Deus de sua bênção no momento mesmo em que aceita correr risco de
vida — a privação do filho, a perda do fruto da bênção — para que a cobiça
não tenha direito à vida.
O outro nome próprio é “Israel”, que o narrador usa com insistência nas
transições narrativas desse diálogo (cf. 43,6.8.10). O nome sob o qual jus-
tamente Jacó recebe a bênção de Deus em 32,29-30 e 35,10-11, o narrador
o tinha reservado, no início da história, para falar do amor privilegiado de
Israel por seu “filho da velhice” (37,3) e para o momento de enviar José a
seus irmãos (37,13). Ao retomá-lo aqui, não estará o narrador insinuando
que, ao ceder aos esforços repetidos de Judá e ao atravessar em si todas as
resistências, Israel está reatando com esse pai confiante que enviava seu bem-
amado para seus irmãos? Não estaria sugerindo que, deixando-se convencer
a confiar Benjamim a seus irmãos, estaria a caminho de se tornar o pai de
todos, permitindo também a eles inscrever-se na bênção que ele próprio re-
cebera sob este nome?37

37. A expressão “filho de Israel” aparece em 42,5 no momento da chegada do primeiro grupo
de irmãos no Egito. Não vejo a lógica narrativa desse nome, mas como diz a tradição judaica antiga
ele pode ser entendido em conjugação com a liberação desses mesmos “filhos de Israel” no livro
do Êxodo (verificar, por exemplo, Ex 12,40-42).

178
Capítulo 11

Novo encontro com José


(43,15-34)

Seguramente, a cena a que o leitor irá assistir representa um primeiro


desbloqueio na crise familiar. Sob a ameaça de morte para todos, cedendo à
pressão de Judá — mas também, inconscientemente, à de José, que imaginou
a prova sem talvez saber o que ia provocar —, Israel finalmente renuncia a
separar o filho de Raquel de seus irmãos por mero interesse de seu próprio
bem-estar. Mas, embora esta seja uma ação decisiva, para o leitor a tensão
narrativa continua, pois, mesmo se um dos obstáculos para a fraternidade é
eliminado, ela ainda está para ser construída. Já na cabeça dos irmãos não
é assim. Quando, como relatado pelo narrador (43,15), eles levam os presentes
para o egípcio, o dobro em dinheiro e ainda Benjamim, e quando se levantam
e partem para se apresentar a José, eles provavelmente têm a impressão de
que tudo está prestes a terminar nos melhores termos: não satisfazem eles
as exigências que ele lhes tinha feito? Porventura não têm o necessário para
agradá-lo e para se defender de uma eventual acusação de roubo? Mas o
leitor, só por conhecer a verdadeira identidade do senhor estrangeiro, já sabe
que esse cenário é muito simples. Tendo adivinhado em José o desejo de se
ver reconhecido e preparando-se para presenciar seu reencontro com o irmão
menor, que José exigiu, o leitor aguarda ainda outra coisa, mesmo se espera
que o caminho da fraternidade agora seja mais rápido e menos acidentado.
Isto, porém, não é o que vai acontecer.

179
José ou a invenção da fraternidade

Para a casa de José (43,15-25)


O narrador parece gostar, aqui, de retardar a ação à medida que nos
aproximamos do confronto decisivo. Todo o episódio relatando o que se
passa no primeiro dia da chegada (43,15-34) é contado em ritmo muito lento.
Em particular, a cena do mordomo (43,16-25), na qual se multiplicam as
explicações dos personagens em pontos relativamente menores, causa um
atraso que põe à prova a paciência do leitor — como também a dos irmãos.
Na cena da refeição (43,25-34), após um momento de intensa emoção
durante a conversa demasiadamente breve entre José e seus irmãos, o nar-
rador parece perder-se em detalhes visuais cuja relevância não se percebe
à primeira vista. Porventura o narrador joga com o leitor assim como José
com seus irmãos?1

E os homens tomaram este presente; e um dobro de dinheiro, eles [o] to-


15

maram em sua mão, e Benjamim; e levantaram-se e desceram ao Egito e se


mantiveram na presença a José. 16E José viu, com eles, Benjamim, e disse
ao que estava sobre sua casa: “Faze vir os homens para a casa, e abate um
animal 2 e prepara [a refeição], pois é comigo que os homens comerão ao
meio-dia”. 17E o homem fez como José dissera e o homem fez vir os homens
para a casa de José.

Lendo essas linhas, o leitor é surpreendido pela forma incomum de de-


signar os irmãos: “os homens” (ha’anašim)3. Se entende por que José fala
desta forma com seu mordomo, não é o caso quando o narrador mantém
essa mesma designação. No episódio anterior, por duas vezes ele designou os
“filhos de Israel” (42,5) como sendo “os irmãos de José”: à sua partida para
o Egito e à sua chegada lá (42,3.6). Aliás, são os “seus irmãos” que José vê
e reconhece (42,7 e 8a). Mas desde o momento em que eles não reconhecem
seu irmão (42,8b) o narrador para de chamá-los assim. Se usa o termo “seus
irmãos” nos versículos 21 e 28 é para marcar as relações entre eles e não em
relação a José. Em seguida, mais nada: ao relatar os acontecimentos com o
pai (42,39–43,14)4, o narrador passa a usar os pronomes. Desde os preparati-
vos da segunda partida, os irmãos passam a ser chamados “os homens”. Este

1. Sobre tudo isto, ver M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 301.
2. Literalmente: “abate um abate”.
3. B. Green, “What Profit for Us?”, 139-140, chama a atenção para a forma como os perso-
nagens são nomeadas pelo narrador: essa “naming” fornece informação ao leitor sobre o ponto de
vista a partir do qual o narrador apresenta os personagens nos vários momentos da ação.
4. Observe-se que isso é entre a menção a Deus (42,28) e a El-Shadai (43,14).

180
Capítulo 11 – Novo encontro com José (43,15-34)

apelativo será usado até 44,145, onde serão novamente chamados de “irmãos”
em relação a Judá, mas o narrador só os chamará de irmãos em relação a José
depois que este se der a conhecer a eles, no final de 45,1.
A mera constatação destes dados sugere algo lógico na escolha do narrador.
Quando os irmãos se mostram incapazes de reconhecer José, sua qualidade de
irmãos é colocada entre parênteses. Mas quando entram na verdade, uns em
relação aos outros (42,21), esse avanço da fraternidade entre eles fica registrado
na forma de designá-los. O retorno a Jacó é, como vimos, um momento crítico
que marca uma mudança profunda. Quando, depois de terem se confrontado
com seu pai, partem com Benjamim, eles se tornam “homens”, pessoas que
o narrador designa em função daquilo que são, e não mais em relação a seus
laços familiares. Sua maneira de resistir ao egoísmo medroso de seu pai e de
forçar sua confiança, deixando de ceder à sua chantagem que evoca culpabi-
lidade e morte, permitiu-lhes conquistar a autonomia, por assim dizer. Mas,
quando estes que agora são “homens” optarem por se mostrar solidários para
com seu irmão ameaçado e com o engajamento de Judá, então poderão ser
chamados de “irmãos”: irmãos de Judá, de início (44,14), irmãos de José em
seguida (45,1-2). Resumindo, nessas cenas, a nomeação modulada dos irmãos
parece balizar as etapas do caminho para a fraternidade, caminho que, aqui,
começa com uma justa autonomia das pessoas.
Voltemos então aos “homens”. Ao relatar seus gestos, o narrador sublinha
que cumprem as palavras de Israel na ordem exata: levam, sucessivamente,
o presente, o dobro do dinheiro e, depois, Benjamim. Este vem em último
lugar, introduzido por uma ruptura sintática que torna a construção um tanto
elíptica6, como se os irmãos hesitassem um instante em separá-lo de Israel.
Notamos, imediatamente a seguir, que os três objetos que os homens levaram
reaparecerão, mas em ordem inversa: depois que José tiver visto Benjamim
— este é para ele o ponto decisivo — o narrador trará à tona, cada qual à sua
vez, a questão do dinheiro e das precauções a esse respeito (43,18-23), e os
presentes de Jacó para o egípcio (43,25-26). Falaremos sobre isto depois.

5. Veja 43,15.17.18.24.33 e 44,3 (narrador); 43,16 e 44,1.4 (José falando com o mordomo).
Notemos, em particular, que em 43,33 a expressão do distributivo “homem para seu irmão”, utilizado
até aqui na narrativa (37,19; 42,21 e 28), é abandonada pelo narrador em favor de uma expressão
equivalente, “o homem a seu companheiro”, que evita justamente o termo “irmão”.
6. Comparado com a ordem de Israel, onde o verbo laqah. (“tomar”) retorna três vezes como
imperativo (43,11.12.13), notamos que aqui o verbo aparece apenas duas vezes e já não é empregado
em relação a Benjamim. Um índice de respeito, quando se refere aos irmãos? Em 21,14 e 22,3,
quando se trata de Abraão deixar partir seus filhos Ismael e Isaac, o nome do filho também vem
em último em 21,14 com uma ruptura sintáxica.

181
José ou a invenção da fraternidade

Terminados os preparativos ordenados por Israel, os homens se levantam e


partem para junto do egípcio. Em sua chegada, é para Benjamim que se volta
imediatamente a atenção de José: o jovem irmão está realmente com eles. O
sinal é, sem dúvida, encorajador: eles não eliminaram Benjamim, mas respei-
taram o filho de Raquel, apesar da provável preferência de Jacó por ele. É esta
constatação que faz que José convide os homens? Apenas viu Benjamim e já
manda seu mordomo trazer essas pessoas à casa e preparar o almoço que terá
com eles. É difícil imaginar que o cenário assim montado seja improvisado:
depois do primeiro encontro, José teve muito tempo para refletir sobre o que
fazer quanto ao regresso dos irmãos, com ou sem Benjamim. Assim, quando
o leitor vê José dar, sem tardar, ao chefe da casa instruções específicas, ele
compreende onde ele quer chegar. Ele pode até adivinhar sua intenção de
acolhê-los, não como clientes ou espiões, mas como hóspedes particulares,
visto que lhes oferece a honra de recebê-los. Aparentemente, tudo se passa
como se, em resposta ao sinal positivo da presença de Benjamim, José desse
um passo em direção a outro tipo de relação — fraternal, por que não?
Ora, o modo de proceder de José não vai nesse sentido, de modo que o
leitor se pergunta aonde ele quer chegar. José mantém cuidadosamente dis-
tância de seus irmãos, deixando entre eles e si o mordomo, que fica no lugar
anteriormente ocupado pelo intérprete. A dissimulação se prolonga e, com
ela, a prova dos irmãos, que são levados à casa de José segundo as instruções
(43,17). Com efeito, José parece intencionalmente abster-se de convidá-los
pessoalmente. Ele os mergulha numa incerteza que, visto o que aconteceu
na primeira visita, não pode deixar de alarmá-los e de provocar-lhes uma in-
quietação bastante compreensível. Pela maneira como acontece, este convite,
positivo em si mesmo, é percebido como enigmático e faz voltar de imediato
a pressão sobre os irmãos (43,18-23). Será que José tem dúvidas, pensando
que a fome é que trouxe os irmãos e não o desejo de libertar Simeão?
18
E os homens temeram, porque foram feitos vir à casa de José, e diziam: “É
por causa do dinheiro retornado em nossos sacos de transporte, no início, que
somos feitos vir para dentro, para que rolem sobre nós e caiam sobre nós e
nos tomem como escravos, a nós e nossos jumentos”. 19E aproximaram-se do
homem que estava à frente da casa e disseram, na entrada da casa: 20E disse-
ram: “Por favor, meu senhor, nós descemos, sim, descemos, no início, para
comprar alimento. 21E aconteceu que, ao virmos ao pouso, abrimos nossos
sacos de transporte, e eis o dinheiro de cada homem na boca de seu saco de
transporte, o nosso dinheiro em seu peso; também o fizemos voltar em nossa
mão. 22E fizemos descer outro dinheiro em nossa mão para comprar alimento.

182
Capítulo 11 – Novo encontro com José (43,15-34)

Não sabemos quem pôs nosso dinheiro nos sacos de transporte”. 23E ele disse:
“Paz a vós! Não tenhais medo! É vosso Deus e o Deus de vosso pai que vos
deu um tesouro em vossos sacos! Vosso dinheiro chegou até mim”.

Antes desta acolhida bastante inesperada, os homens, acreditando provar


sua honestidade, recuperar Simeão, comprar grãos e retornar às pressas, ficam
em pânico. O narrador o diz claramente. Aproveitando o tempo do deslocamento
até a casa de José, faz o leitor ouvir diretamente da boca dos irmãos o motivo
desse medo e qual o conteúdo. É o dinheiro reencontrado que está em causa
para eles. De fato, a presença de Benjamim acabou provando que eles não são
espiões. O que poderia então levá-los a ser torturados e escravizados, como
imaginam que acontecerá? À primeira vista, esses detalhes não são necessá-
rios. Mas será que só servem para pôr à prova a paciência do leitor? Não são
eles que fornecem informações indiretas sobre os irmãos? Com efeito, vemos
novamente que o que eles temem, no fundo, é sofrer a terrível sorte que José
conhecera por causa deles: por terem roubado alguma coisa do outro (como
José “roubara” o amor de Jacó), serem agredidos e terminarem como escravos
no Egito, apesar de se julgarem inocentes. Assim, de um lado, eles temem,
mesmo que não saibam se há algo a temer e mesmo que, na realidade, não haja
o que temer; por outro lado, a ameaça que eles imaginam pairar sobre eles é
exatamente a de receber o mesmo destino de sua vítima de antigamente. Que
é, pois, que tais fantasias revelam a respeito deles senão que o sentimento de
culpa está ainda presente e que, para lá da situação imediata, a velha história
de José continua a atormentá-los interiormente?
No entanto, os homens não se resignam, pois têm como provar sua ino-
cência. Assim, antes de entrar na casa — será que sabem à casa de quem estão
chegando? — eles abordam o homem que os trouxe e lhe falam com franqueza.
Que seu discurso é uma autojustificação detalhada confirma, se ainda preciso,
que a culpabilidade despertou neles7. Mas notemos também que esta justificação
é, ao mesmo tempo, precisa e globalmente correta, apesar de esquemática8. A
única omissão que poderia deixar suspeitas é quanto à acusação de espiona-
gem. Mas esta poderia ser considerada extinta, pois a presença de Benjamim
basta para provar a verdade das palavras deles. Eles se apressam, portanto, em
prevenir a acusação de roubo que esperam, contando o que lhes aconteceu e

7. Não diz o provérbio latino: “excusatio non petita, accusatio manifesta”?


8. A narração dos irmãos embute a primeira descoberta, no lugar de pernoite, na segunda, ao
chegar junto ao pai. Era melhor evitar esse tipo de detalhe, que poderia gerar admiração e, portanto,
perguntas. Ainda assim, o relatório é bastante confiável (compare 42,27-28 e 35).

183
José ou a invenção da fraternidade

dizendo, espontaneamente, que vieram devolver o dinheiro. Se acrescentam


que eles têm, além disso, o necessário para comprar mantimentos — ouvimos
aqui o eco do que disse Israel (43,12) —, é para que não se possa suspeitar
que procuram enganar o egípcio. Eles têm o dinheiro necessário para pagar sua
dívida e comprar os grãos. Finalmente, admitem sua ignorância: não sabem
o que aconteceu. A formulação é neutra e parece evitar falar de um erro por
inadvertência como fez Israel: seria arriscar inutilmente indispor o mordomo.
Ao mesmo tempo, a mensagem é clara: não foram eles mesmos que fizeram
isso. Lembramo-nos, de fato, de que no lugar de pernoite eles levantaram uma
hipótese que evocava a ação misteriosa de Deus (42,28). Mas aqui eles não
falam disso, confessando, antes, sua perplexidade ao mordomo.
Em sua resposta, o chefe da casa parece perfeitamente natural. Fala como
alguém que não sabe nada do acontecido, o que não deixa de ser verdade.
Portanto, observando o medo de seus interlocutores lá onde não há o que
temer, tenta tranquilizá-los: “Paz a vós, não tenhais medo”, ele diz antes de
se alegrar com eles pelo milagre de que em seu entender eles são beneficiá-
rios. Sua resposta procura transmitir-lhes uma sensação de segurança, o que
confirmam suas últimas palavras: “Vosso dinheiro chegou a mim”. No entanto,
sua explicação benévola do mistério que os homens relataram reforça-o: “É
vosso Deus e o Deus de vosso pai que vos deu um tesouro em vossos sacos
de transporte!”. Acreditando tranquilizá-los, ele os remete, na realidade, ao
mistério que lhes havia causado susto quando, no lugar de pernoite, um deles
encontrou o dinheiro (42,28). De qualquer forma, não lhes tira totalmente o
medo. Talvez por isso é que não se alegrarão quando Simeão lhes for devol-
vido. A tensão permanece menos forte, decerto, porém mais difusa, ligada ao
mistério de uma possível ação oculta de Deus na história deles.
Pode-se excluir que a interpretação do mordomo também tenha um duplo
sentido que somente o leitor possa saber? Claro, trigo gratuito e dinheiro salvo
em tempos de fome são um tesouro oculto, como insinua o termo utilizado
aqui9. Mas a palavra não teria uma conotação mais rica? Não poderia signi-
ficar também o “tesouro” da fraternidade, já descoberto, em parte, por esses
homens, mas ainda enterrado lá onde se encontra o grão, o tesouro encoberto
pelo dinheiro que simboliza a dívida a pagar a José? Neste sentido, também
a invocação de Deus encontraria uma ressonância mais profunda: o Deus que
deseja a vida e inspira a sabedoria de José é também aquele que deseja que

9. O substantivo mat.mon (“tesouro”) designa essencialmente alguma coisa oculta, na realidade


muitas vezes um tesouro (Is 45,3; Pr 2,4), mas também as provisões ocultas (Jr 41,8).

184
Capítulo 11 – Novo encontro com José (43,15-34)

nasça a fraternidade. E, na medida em que os irmãos já mudaram e deram seus


primeiros passos em direção à fraternidade, este Deus, de algum modo, tornou-
se o Deus deles — “vosso Deus”, diz o chefe da casa. Mas é também “o Deus
de vosso pai”, o qual, ao aceitar a separação de Benjamim, foi progredindo
nos caminhos de Deus e em breve receberá dele um “tesouro” escondido.
Se as palavras trazidas pelo mordomo contribuem para entreter a in-
quietação dos homens, o que faz em seguida certamente deve dar-lhes mais
serenidade (43,23b-25):
E ele fez sair para eles Simeão. 24E o homem fez entrar os homens na casa
23b

de José e deu-lhes água, e lavaram os pés, e ele deu forragem para seus ju-
mentos. 25E eles prepararam o presente, antes que viesse José, ao meio-dia,
porque tinham ouvido que ali tomariam a refeição10.
A soltura de Simeão é claramente um sinal de que agora a inocência
deles está estabelecida. O narrador, no entanto, apenas registra a soltura dele,
nada mais. Então, como para aliviar o medo que sentiram (cf. 43,18), em vez
de serem presos como escravos, agora eles são servidos como convidados
importantes, enquanto seus jumentos são alimentados em vez de confisca-
dos11. Decididamente, eles não são espiões nem ladrões. Assim os vemos,
aparentemente calmos, preparar os presentes à espera do senhor, última
etapa de um percurso, tanto no espaço como nos sentimentos, que prepara o
encontro: no caminho para a casa, o medo ressurgiu, de repente (43,17-18);
à entrada da casa, eles enfrentaram o medo falando com o mordomo, que
procurou tranquilizá-los (43,19-23); e uma vez o problema esclarecido eles
são introduzidos na casa e a acolhida que recebem os tranquiliza (43,24-25).
No entanto, o narrador não relata nenhum alívio neles: será que seu silêncio
sugere que a preocupação deles não se dissipou completamente?

Encontro com José (43,26-31a)


Neste ponto, o leitor reconhece quanto a hospitalidade reservada aos
irmãos é diferente da que experimentaram na primeira vez. Será porque José
considera seu regresso com Benjamim como um sinal de mudança? Afinal,
mesmo que seu atraso seja talvez um sinal de que eles preferiram o dinheiro

10. Literalmente, “que lá comeriam pão” (cf. 37,25 e 43,31).


11. Os gestos de hospitalidade descritos aqui foram ilustrados anteriormente no Gênesis: Abraão
acolhe os três “homens” em Mambré (18,1-8), Ló, dois anjos (19,1-3), enquanto o servo de
Abraão se beneficia com a acolhida por Rebeca e Labão (24,23-25.31-33).

185
José ou a invenção da fraternidade

a Simeão, eles não fizeram mal ao filho de Raquel. Além disso, eles foram
capazes de convencer Jacó para que o deixasse partir com eles. Mas não teria
José uma vaga esperança de ser reconhecido por seus irmãos, uma vez que
Benjamim está presente? Pois compartilhar sua refeição é sinal de proximi-
dade, de intimidade até. Além disso, o leitor se lembrará, ao ler a expressão
“comer pão”, que o narrador já a utilizou para evocar a refeição: aquela que
os irmãos tomaram enquanto José apodrecia na cisterna onde o haviam jogado
(37,25a). A refeição que José se prepara a oferecer-lhes não seria para ele
uma maneira de “encontrar seus irmãos”, para além daquela outra refeição
da qual o excluíram violentamente (ver 37,17b-23a)?
26
E José chegou à casa, e eles lhe apresentaram o presente que estava em suas
mãos e se prostraram diante dele por terra. 27E ele os interrogou a respeito de
paz e disse: “Há paz para o vosso velho pai que dissestes? Está vivo ainda?”.
28
E eles disseram: “Paz para teu servo, para nosso pai, ele está vivo ainda”. E
se ajoelharam e prostraram-se. 29E ele levantou o olhar e viu Benjamim, seu
irmão, filho da mãe dele, e disse: “É este vosso irmão menor que me disses-
tes?”. E disse: “Que Deus te conceda graça, meu filho!”. 30E José se apressou,
pois suas entranhas ardiam em relação a seu irmão, e ele procurou onde chorar,
e entrou no quarto obscuro e aí chorou. 31aE ele lavou seu rosto e saiu.

À chegada de José, os irmãos encontram-se todos reunidos, pela primei-


ra vez, e estão em casa — o narrador insiste, como a enfatizar o ambiente
íntimo do encontro. Os irmãos começam a oferecer ao senhor o presente que
trouxeram para ele de Jacó, embora não mencionem sua proveniência. Então
se prostram no chão. Esta introdução é sugestiva porque traz, desde o início,
para o primeiro plano dois elementos bem do começo da história: o presente
precioso dado por Jacó a José e a prostração dos irmãos. Seus primeiros gestos
espontâneos reativam, assim, dois acontecimentos que haviam alimentado seu
ódio e sua inveja contra José: a doação da túnica, sinal da preferência do pai,
e os sonhos colocando em cena a prostração, interpretados pelos irmãos em
termos de vontade de poder. Aqui, então, desde o início do encontro o leitor
volta ao problema inicial. Quanto aos irmãos, não sabendo com quem estão
lidando, são incapazes de decodificar suas próprias ações. No entanto, a pros-
tração, registrada pontualmente pelo narrador com o vocabulário dos sonhos e
da interpretação de Jacó em 37,7-10, deveria lembrá-los de alguma coisa12.

12. Apenas Jacó, em sua leitura do segundo sonho de José, fala em “prostrar-se por terra diante
dele” (37,10), expressão que é retomada aqui.

186
Capítulo 11 – Novo encontro com José (43,15-34)

Mas se não notam nada não seria sinal de que o egípcio não lhes aparece
como realizando a interpretação que deram ao sonho, no sentido de ele reinar
como senhor sobre eles? Na verdade, a reação de José não tem nada da soberba
de um “rei” que os “domina” (cf. 37,8). Seu primeiro impulso é, antes, mostrar
sua preocupação com seus convidados, perguntando notícias da família. Ora,
o que os irmãos não conseguem perceber é que José, pelo modo como age,
reata de alguma forma com a missão que lhe dera seu pai. Com efeito, após
o ódio e a inveja que provocaram a separação dos irmãos — o que lembram
indiretamente aqui o presente de Jacó e a prostração dos irmãos —, foi por
solicitude pelo šalom de todos que José fora enviado para os seus (37,12-14).
Significativa a este respeito é a tripla ocorrência da palavra šalom, na introdução
narrativa, na questão de José e na resposta dos irmãos (43,27-28), mesmo que
se veja aqui o šalom do pai. Dito isso, em suas palavras, José reconhece esses
homens como uma família completa, falando-lhes de seu velho pai, antes de
se voltar para o seu irmão mais novo. Aos olhos dos irmãos, o egípcio parece
ansioso em garantir a veracidade do que disseram na primeira visita, embora
com muita gentileza; e ele não deixa de relembrar por duas vezes o que eles
lhe disseram (“pai/irmão mais novo que [me] dissestes”, 43,27a e 29a). No
entanto, já em razão dos lembretes do capítulo 37, seria de admirar que tudo
isso só tivesse um sentido de superfície.
A primeira questão de José diz respeito, portanto, ao šalom de seu pai
— não é natural perguntar sobre aqueles que estão longe? Ora, o fato de José
falar do “velho” pai13 e perguntar explicitamente se ele ainda está vivo parece
criar certo mal-estar nele. Como ele não sabe nada do que se passou durante
a longa estadia deles na terra de Canaã, a presença de Benjamim poderia ser
um mau sinal em relação a Jacó. Será que José tomou consciência da prova
que impôs a seu pai exigindo a presença de Benjamim? Estaria preocupado
com a maneira como o pai suportou a separação? O fato de soltar o filho tão
amado não o teria matado ou deixado doente? Ou talvez os irmãos conse-
guiram trazer Benjamim porque Jacó está sofrendo ou, até, morto? Mas, se
este é o caso, será que José não deve recear por seu irmão? Depois de tê-lo
usado como garantia para se livrar da acusação, não poderiam lhe reservar um
mau destino quando partirem de novo? Ainda assim, a resposta imediata dos
irmãos certamente tranquiliza José sobre a forma como o pai passou por essa
provação, mesmo que não possa ter certeza de nada, ao contrário do leitor,

13. O leitor lembra que era por José ser, para Israel, um “filho da velhice” que ele o preferia
a seus irmãos (37,3).

187
José ou a invenção da fraternidade

que viu Jacó permitir que lhe arrancassem Benjamim, sem morrer como ele
havia dito que temia (cf. 42,38).
Pela segunda vez, os irmãos se ajoelham e se prostram. É por deferência
ao egípcio, que lhes mostra tanta solicitude? Ou em sinal de gratidão pela
misericórdia que manifesta, após as duras acusações do encontro anterior,
que ele tem a elegância de nem mencionar? Ou em nome de seu pai que
acabam de apresentar como “teu servo”? O narrador não diz nada disso, pa-
rece satisfazer-se em meramente mencionar a segunda prostração, porque ela
reforça a lembrança da cena dos sonhos. Efetivamente, o objeto da narração
dos dois sonhos não era outro que não esse ato de veneração. E assim como
havia dois sonhos, o segundo envolvendo o pai, conforme a interpretação dada
por Jacó, duas prostrações se seguem aqui, a segunda logo após a menção
ao pai. Pelo que fazem, os irmãos estão de fato dando corpo a esses sonhos,
sempre conforme a leitura que fez Jacó, e isso sem que José os obrigue a coisa
alguma. Apesar disso, eles parecem não se lembrar de nada.

Uma vez tranquilizado quanto a seu pai, José volta-se para Benjamim, a
quem desejava ver. O narrador segue seu olhar que se eleva, depois diz o que ele
vê: “Benjamim, seu irmão, filho da mãe dele”. É realmente seu próprio irmão.
Ele faz então aos irmãos a pergunta que os convida a identificar aquele de que
falaram quando de sua primeira visita: “É este vosso irmão menor que me dis-
sestes?”. Esta pergunta aparentemente banal é de uma profundidade estranha:
este em quem eu reconheço meu irmão, o filho de minha mãe, é também vosso
irmão menor — com a nuance afetiva que podemos suspeitar desse “menor”?
José silencia, deixando espaço para uma resposta dos irmãos, que não vem14.
Superficialmente, seu silêncio parece trair uma espécie de apreensão: será que
Benjamim não corre risco com esse egípcio que se interessa por ele? Mas em
relação ao significado mais profundo da questão a ausência de resposta pode
ser sintomática quanto à relação dos irmãos com o filho de Raquel. Para José,
que deve estar ciente do duplo sentido de sua pergunta, o silêncio dos irmãos
não deve ser de natureza a acalmar seus temores. Assim, ele retoma a palavra,
confiando Benjamim a Deus: “Que Deus te conceda graça, meu filho!”15.

14. Nos diálogos da narrativa bíblica acontece frequentemente que a repetição da introdução
narrativa do discurso (“e ele disse”) entre duas palavras de um mesmo personagem assinala que o
locutor toma a palavra depois de uma pausa que o interlocutor não tem utilizado para responder.
Ver, por exemplo, Gênesis 15,3; 16,9.10.11; 17,9.15.
15. A forma verbal pode ser um imperfeito ou um jussivo. Daí outro significado possível: “É
Deus que te concederá graça”. Neste caso, José expressa antes sua confiança em Deus.

188
Capítulo 11 – Novo encontro com José (43,15-34)

Mas o que significa essa estranha nomeação? Por que José chama de “meu
filho” a seu irmão, filho de sua mãe? Seria porque, ao reclamar sua vinda,
ele o arrebatou da posse ciumenta de Jacó — uma situação aprisionadora que
ele mesmo tinha conhecido16 —, assumindo, de algum modo, o papel de um
pai, permitindo-lhe libertar-se dessa prisão? Então se pode compreender que
ele invoca a Deus, que no Gênesis é o garante das separações criativas entre
pai e filho17 e que, agora, pode acordar sua graça ao jovem. Sem excluir esta
forma bastante pertinente aqui, a palavra hebraica, beni, também pode dar
a pensar. Pois o termo ben, “filho”, é o primeiro componente do nome de
Benjamim (“filho da direita”); além disso, incluindo o sufixo possessivo da
primeira pessoa, beni, corresponde às primeiras letras do nome. Em suma, José
usaria um tipo de diminutivo, a menos que tenha estado perto de pronunciar
inteiramente o nome de seu irmão. Neste caso, torna-se ainda mais claro por
que, neste exato momento, uma intensa emoção o assalta e o submerge.
Mas antes de abordar esta segunda cena de lágrimas um último traço
chama a atenção nesta cena. Na realidade, as duas palavras pronunciadas por
José em relação a Benjamim não deixam de lembrar sua própria figura. Assim
— ainda que José não o saiba —, os irmãos já ouviram o vocativo beni (“meu
filho”) pela boca de seu pai, quando ele reconheceu a túnica de seu filho e em
seguida recusou a consolação deles (37,33 e 35); depois disso, Jacó designou
Benjamim assim quando se recusou a deixá-lo ir para o Egito (42,38). Aos
ouvidos dos irmãos, o termo é suscetível de evocar ao mesmo tempo os dois
filhos de Raquel. Tanto mais porque, além do “irmão menor que disseram” ao
egípcio na primeira entrevista (43,29 cf. 42,13b), eles também mencionaram
José, o outro irmão ausente. Por trás de Benjamim está a sombra de José.
Depois deste pequeno desvio, chegamos à emoção que invade José, cujas
entranhas — literalmente — estão ardendo18 “em relação ao seu irmão”, uma
informação que o narrador fornece ao leitor usando sua onisciência. O emprego
da palavra “entranhas” (rah.amim) recorda claramente o desejo de Jacó no versí-

16. Veja 37,2-17 e acima, p. 47-50.


17. Ver, nesse sentido, Gênesis 12,1; 21,12-13; 22,1-19; 28,1-5. Todas essas separações entre pai
e filho são seguidas de uma história na qual Deus mostra sua graça ao filho separado.
18. O verbo kamar é um verbo de sentido passivo (Nifal), muito raro na Bíblia Hebraica.
A queimação que evoca pode ser aquela das entranhas de uma mãe cujo filho vai ser morto
(1Rs 3,26) ou a de Deus ferido pela idolatria do povo enquanto quer lhe fazer misericórdia
(Os 11,8 — as “entranhas” das traduções vêm da correção do texto já presente em siríaco e nos
targumim), ou ainda a da pele de alguém torturado pela fome (Lm 5,10). Em Gênesis 43,30,
há aliteração entre o verbo e o sujeito (nikmeru e rah.amayw têm duas consoantes idênticas, m
e r, e outra com o som bem próximo: k aspirado e h. duro).

189
José ou a invenção da fraternidade

culo 14: ele tinha manifestado o desejo de ver El-Shadai inspirar ao homem um
sentimento entranhado (rah.amim). Eis, então, o primeiro sentido que encontra
aqui sua realização, pelo menos em relação a Benjamim. Este não terá nada
a temer da parte do senhor egípcio — e a marcação do narrador é importante
para o leitor em vista dos acontecimentos dramáticos do próximo capítulo.
Mas que José se comove diante de Benjamim é um lembrete discreto do outro
sentido do voto de Jacó, a saber, que os irmãos também tivessem piedade de
seu irmão — lembrete igualmente útil em vista do que vai acontecer.
A extrema emoção de José arranca-lhe de novo lágrimas numa emoção
que com dificuldade consegue esconder, enquanto procura às pressas uma sala
obscura19 onde possa chorar. Impressionante pela concisão e pelo realismo —
algumas palavras bastam para mostrar esse homem repentinamente dominado
por seus sentimentos e tentando desesperadamente dissimulá-los —, essa
dramatização do narrador dá mais ênfase a esta cena que à anterior (42,24a).
Sem ser mais explícito do que antes, no entanto, destaca como, uma vez na
presença de Benjamim, a tensão cresce em José. Parece arder de vontade de
se revelar — e será que quase não o fez ao dirigir suas poucas palavras ao
irmão? —, mas se retém com todas as forças. Algumas dúvidas permanecem:
por que os irmãos tardaram a voltar ao Egito? Esqueceram Simeão? Não
existe o risco, portanto, de que eliminem Benjamim na volta, uma vez que o
ultimato de José não mais lhe servirá de proteção? Assim, as lágrimas libe-
radas no secreto do quarto mostram que José não quer vacilar, embora talvez
deva reduzir a tensão para poder continuar o encontro com uma aparência de
serenidade. É o que sugere o início do versículo 31: após ter lavado o rosto,
ele retorna, dominando-se (43,31a).
Mas as lágrimas de José podem ter uma outra dimensão, como parece
sugerir uma simetria cruzada com o capítulo 42. A sequência do final do pri-
meiro encontro é a seguinte: (a) José começa a chorar depois que a exigência
de trazer Benjamim levou os irmãos a evocar José na presença dele, sem que
o reconhecessem (42,18-24a); (b) depois, ele manda prender Simeão à vista
deles, sem que reajam (42,24b), (c) finalmente, após o encontro, ele faz sua
gente pôr o dinheiro nos sacos dos irmãos (42,25). No início do segundo
reencontro, esses três elementos são reprisados em ordem inversa: (c’) antes
do reencontro com José, a questão do dinheiro nos sacos é resolvida pelo
mordomo (43,18-23a); (b’) depois, Simeão é liberado e se une a seus irmãos
sem nenhuma reação da parte deles (43,23b-25); (a’) finalmente, José vê

19. Essa é a nuance corrente do substantivo h.eder.

190
Capítulo 11 – Novo encontro com José (43,15-34)

“seu irmão menor” e lhe fala, antes de se retirar para chorar (43,26-29). Tal
simetria pode levar a pensar que na origem da emoção de José há também o
fato de que, tal como seus irmãos na primeira vez, Benjamim não reconheceu
a ele, “o filho de sua mãe”.

A refeição com José (43,31b-34)


Seja como for, depois que José retomou o controle de suas emoções e
recompôs sua figura de senhor, as coisas parecem retomar seu curso: ele
retorna a seus irmãos e dá ordens para servir a refeição.
31
E ele [José] lavou seu rosto e saiu, e se conteve e disse: “Servi a refeição”20.
32
E eles serviram, para ele, a ele só, e para eles, a eles só, e para os egípcios
que comiam com ele, a eles só, pois os egípcios não podem tomar refeição21
com os hebreus, pois isso é uma abominação para o Egito. 33E sentaram-se
diante dele, o mais velho segundo sua velhice e o mais jovem segundo sua
juventude, e os homens hesitaram, cada qual [olhando] para seu companhei-
ro. 34E ele lhes trazia porções de diante dele, e a porção de Benjamim era
multiplicada por cinco em relação às porções de todos eles22. E beberam e se
inebriaram junto dele.
Para os homens, esta refeição parece sem dúvida um final feliz. Simeão
foi-lhes devolvido e agora está claro que não os consideram nem como espiões,
nem como ladrões. O senhor egípcio até se mostrou cordial com eles e não
ameaçou em nada seu irmão menor. Agora, ele os recebe para comer como
convidados especiais, partilhando seus pratos e cumulando especialmente
o prato daquele cuja vinda tinha exigido. Mas se o narrador, normalmen-
te parcimonioso em matéria de descrições, se atrasa em detalhar a disposição
das mesas e dos convivas (43,32-33) e depois relata as estranhas atitudes de
José durante o almoço, não é pelo prazer de manter o leitor em suspense.
Como essas disposições certamente foram arquitetadas por José, elas devem
ter uma significação. Ora, todos os detalhes vão na mesma direção: em con-
junto, mostram como José faz para dar sinais capazes de ajudar esses homens
a reconhecer nele o seu irmão. Mas para bem entender o significado dessa
estratégia temos de voltar atrás por um momento.

20. Literalmente, “pôr o pão”: ver 43,25.


21. Literalmente, “comer pão”.
22. Literalmente, “foi multiplicado, mais que as porções de todos eles, cinco mãos”.

191
José ou a invenção da fraternidade

Desde que José chegou, como destaquei anteriormente, vários traços re-
meteram o leitor, mas também os irmãos, ao início da crise da família contada
no capítulo 37. Há a prostração diante do senhor egípcio, depois da entrega
do presente do pai; aliás, José parece ter se lembrado do caso, uma vez que
reata com a missão que recebera de Israel antigamente. Mas há também a
solicitude que o estrangeiro manifestara pelo “velho pai” deles, fazendo-os
prosternar-se novamente, lembrando o segundo relato de sonho. Depois disso,
o acolhimento afável dedicado a Benjamim e o esboço de seu nome nos lábios
do egípcio, antes do transtorno repentino provocando sua saída apressada,
poderiam ter despertado a memória dos irmãos, se não conseguiram suscitar
o reconhecimento de Benjamim. Mas nada neste sentido acontece.
Ora, lembramo-nos de que, durante a primeira viagem, antes que os irmãos
lhe falassem do irmão menor, José parecia esperar, em seu jogo de esconde-
esconde, que seus irmãos o reconhecessem por si mesmos. Ele pôs um fim a
esse jogo quando mencionaram seu irmão menor, que disseram ter ficado em
casa com seu pai (a partir de 42,14): é como se a lembrança de Benjamim tivesse
transformado seu desejo e quisesse agora vê-lo, ao mesmo tempo verificando
a veracidade das alegações de seus irmãos23. E lembramo-nos de como ele
refinou seu teste para ter certeza da capacidade deles de se tornarem irmãos24.
Visivelmente, esse procedimento permitiu a José constatar a mudança de seus
irmãos. Também adota um novo comportamento, mais adequado para a situa-
ção, ainda se escondendo, certamente, porém demonstrando amplamente sua
benevolência a seu respeito. Mas, enquanto em tal contexto eles tiveram para
com ele atitudes que deveriam lembrar-lhes sua história comum, o passado
ainda não lhes veio à memória, e o filho de sua mãe não o reconheceu. Por
isso, José, que parece ter renovado a esperança de ser reconhecido por eles
como um irmão, irá acrescentar às primeiras reminiscências do passado diver-
sos sinais capazes de os levar a pensar que esse egípcio não é tão estrangeiro
quanto pensavam. É isso que o narrador descreve, com precisão incomum e
aparentemente inútil, por ocasião do almoço.
Há em primeiro lugar os grupos de convivas (43,32). O narrador distingue
três: o senhor come sozinho em uma mesa, os irmãos em outra e os egíp-
cios comensais do mestre em uma terceira. Tendo registrado essa disposição,
justifica-a invocando a regra, aparentemente conhecida, que proíbe os egípcios
de comer com os hebreus. Ora, o senhor está só, ele também comendo separado

23. Veja acima, p. 126-133.


24. Veja acima, p. 135-140.

192
Capítulo 11 – Novo encontro com José (43,15-34)

dos egípcios. O curioso isolamento não deveria surpreender os convidados


hebreus? Seu anfitrião não seria um estrangeiro também? Senão, por que
comeria à parte dos egípcios? E sua posição não o aproxima dos hebreus?
Tanto que logo ele lhes fará levar os alimentos que estão diante dele (43,34a).
Por outro lado, o senhor também não está com os irmãos. Ele os enfrenta
a distância (43,33a), situação que não é muito diferente da refeição que os
irmãos tomaram sem ele em 37,25a, quando estavam sentados a distância de
José para comer — aliás, as palavras do narrador o sublinham25. Decerto, o
isolamento de José é diferente hoje, em razão de sua superioridade evidente;
mas não o tinham jogado na cisterna exatamente por medo de que um dia
ocupasse tal posição? Seja como for, a separação assinala que, se o senhor
não é egípcio e é, talvez, próximo dos hebreus, ele não faz parte do grupo de
irmãos, a menos que aguarde ser integrado nele.
O segundo sinal diz respeito ainda aos lugares à mesa, mas somente no
grupo dos irmãos, desta vez. Ao se sentar — sem dúvida, nos lugares que
lhes foram designados26 — eles constatam que são classificados em ordem
de nascimento, o mais velho, em primeiro lugar e o mais novo em último. E
o narrador registra o espanto desses homens, que, quando tomam lugar, de-
monstram uma espécie de hesitação ao constatar esse fato estranho. Notemos
também que a ordem em questão, naturalmente, mostra que o grupo de irmãos
não está completo, porque falta ainda um dos doze, “o único”, do qual os
irmãos lembraram a ausência na outra vez (42,13). No entanto, essa hesitação
diante do mistério permanece sem consequência, embora os irmãos pudessem
suspeitar que somente alguém próximo poderia conhecer esse tipo de coisa.
É porque eles não notaram isso que o narrador aqui evita a palavra “irmão”
e prefere “companheiro” na expressão que marca a reciprocidade dos olha-
res hesitantes?27 “Os homens” que não deram a José seu lugar poderiam ser
chamados de “irmãos”?
Como o segundo sinal não deu em nada, José acrescenta mais um ofere-
cendo-lhes de sua refeição, sinal de um desejo de compartilhar, de comunhão

25. A frase utilizada em 37,25 pelo narrador para evocar esta refeição inclui três palavras em
hebraico, todas reprisadas da mesma forma aqui: “sentaram-se” (cf. 43,33a) “para comer pão”
(v. 43,32b, e já o v. 25). Neste sentido, Sarna, 302, e B. Green, “What Profit for Us?”, 140.
26. A tradição massorética leu o verbo no Qal (wayyeševu, “e eles sentaram-se”), como em
37,25a. Aqui, uma vocalização de Hofal wayyuševu poderá ser mais adaptada ao sentido: “e os
fizeram sentar-se” (literalmente, “e eles foram feitos sentar”). Com efeito, se os próprios irmãos
escolhessem seu lugar e se assentassem na ordem, o narrador não teria por que notar, em seguida,
a estranha hesitação deles.
27. Em outra parte, podemos ler a frase “cada um… seu irmão”: veja acima, p. 181, nota 5.

193
José ou a invenção da fraternidade

até. Além disso, aproveitando esse gesto, ele marca uma clara preferência por
Benjamim, regalando-o cinco vezes mais abundantemente que a todos os outros.
Eis, então, a fraternidade reconstituída, em ordem de nascimento, por alguém
que, como um pai, chamou Benjamim de “meu filho” e lhe concede agora uma
preferência exagerada, assim como Jacó tinha feito a José. Podemos imaginar
uma lembrança mais clara da situação inicial da crise familiar? Privilegiando
o mais novo, José tenta despertar nos dez o ódio e a inveja, na esperança de
que, revivendo esses sentimentos, lembrem-se dele? Mas, fechados para esses
sinais acumulados e cada vez mais claros, os homens se contentam em beber
com este que parecem ter apagado de suas memórias. Eles se permitem mesmo
ir até a embriaguez: será que desejam dissipar no bafo do álcool esses sinais
misteriosos28 que os remetem à sua triste história?

Que vai acontecer, agora que os irmãos não reconheceram José? Do ponto
de vista deles, sem dúvida, o que termina bem está bem. Mas e na perspectiva
de José? Enquanto sua presença e seus sinais literalmente estouram os olhos,
a cegueira deles vai desencorajá-lo de vez? Nada disso! José se aproveitará
daquilo que aconteceu durante a refeição sem que tenham percebido a evi-
dência. Pois, se estes homens são tão pouco irmãos que não o reconhecem,
apesar de tudo o que acaba de se passar, José tem toda a razão em temer por
Benjamim: o que vai acontecer com ele no caminho de volta, quando o álibi
deles não precisar mais ser mantido? Este ponto é que José deverá tentar ve-
rificar. E vai fazê-lo repetindo um cenário bem conhecido, que deverá provar,
sem sombra de dúvida, o grau da cura deles.
No fundo, o problema dos irmãos é que acreditam em seus olhos em vez
de confiar nas palavras e nos sinais. Eles não sabem que os homens podem
servir-se de seus olhos para esconder para si a verdade por trás da ilusão das
aparências. Assim, tudo o que acontece ao longo desses dois encontros, sob
o impulso, entre outros, de José — a prostração, a acusação de ter vindo para
ver a nudez (isto é, o que está exposto, aparente, em vez de oculto), a prisão,
a confissão da culpa em relação ao irmão, a exigência de ver Benjamim, o
aprisionamento de Simeão, o dinheiro encontrado nos sacos, o retorno com
os produtos lembrando José, as novas prostrações, a benevolência para com o

28. Pode-se perguntar por que o narrador não é mais explícito em relação ao alcance destes sinais
e à esperança de José que os monta um após o outro. Sem dúvida, porque o narrador trata o leitor
como José trata seus irmãos, na esperança de que o leitor se mostre mais perspicaz e mais lúcido
que os irmãos em matéria de decodificar sinais. Fazendo isso, ele coloca o leitor em uma posição
análoga à dos homens ocupados com o mistério…

194
Capítulo 11 – Novo encontro com José (43,15-34)

velho pai e o irmão menor, e, enfim, os detalhes da preparação da refeição —,


tudo isso poderia ter contribuído para ajudá-los a levantar o véu das aparências.
Mas eles não viram diante de si senão o senhor da terra, o homem, o egípcio…
assim como Judá tomou sua nora coberta de véu por uma prostituta. Assim,
eles fazem eco ao desejo de José que talvez só se faça de estrangeiro, desde o
início, porque espera que eles acabem por reconhecê-lo por si mesmos. Mas,
ao mesmo tempo que o desejo de reconhecimento de José, cresce a tensão no
leitor, que, apreensivo, aguarda a continuação.

195
Capítulo 12

A partida interrompida
(44,1-13)

Se para os irmãos, como vimos, a refeição com o senhor egípcio con-


firma a completa reabilitação, José, no entanto, tem todos os motivos para
estar profundamente decepcionado com a atitude deles. Por isso, o leitor não
se surpreende ao vê-lo tomar imediatamente uma nova iniciativa. Ele monta
um cenário de encontro que o leitor descobre gradualmente, fascinado pelos
“golpes” sucessivos de José, que — até certo ponto — parece desenvolver
uma estratégia consciente, mas também pelas reações, esperadas ou surpreen-
dentes, dos irmãos colocados sob pressão ainda mais que em sua primeira
viagem. Antes de chegar à primeira cena desse novo encontro, é útil fazer um
reconhecimento da estratégia de José e de suas consequências imediatas (ou
seja, de todo o capítulo 44).
A estratégia de José desenvolve-se repetindo o esquema do cenário do dia
anterior1. Em primeiro lugar, ele dá a seu mordomo instruções em relação aos
“homens”: ele o faz em duas fases, desta vez, enquanto o mordomo executa

1. A coisa é notada por Von Rad, 399. — São explorados alguns acontecimentos do passado:
a refeição, no fim da qual um irmão pôde roubar a taça de José; os lugares na mesa, que anunciam
o argumento de adivinhação; o favor concedido a Benjamim, preparando sua acusação; a atmosfera
descontraída, que leva os irmãos a abaixar a guarda e a se deixar levar, o que aumenta o efeito de
surpresa e a pressão. Será que isto significa que tudo é planejado com antecedência? R. S. Wallace,
The Story of Joseph, 69-70, pensa assim; veja também Sarna, 300.

197
José ou a invenção da fraternidade

como antes (43,16-17; 44,1-6a). Para os irmãos, no entanto, este encontro com
o servo egípcio é o oposto do primeiro. Ontem, crendo que seriam falsamente
incriminados de roubo, tentaram justificar-se para que não fossem capturados
como escravos. O mordomo tinha-os tranquilizado: nenhuma acusação pesava
sobre eles. Enquanto estavam entrando na casa do senhor passaram do pâni-
co para certa serenidade (43,18-25). Hoje, porém, tendo partido em toda a
tranquilidade, são pegos de surpresa e acusados de roubo. Eles argumentam
tentando provar sua inocência com base na conversa do dia anterior; e, se
forem considerados culpados, estão dispostos a sofrer o castigo que temiam:
ser feitos escravos. Ou, ao contrário do que acreditavam, ei-los pegos com a
mão na cumbuca, depois das palavras bem menos tranquilizadoras do mor-
domo. A consternação sucede assim à calma da partida, quando voltam, por
si mesmos, desta vez, à casa do egípcio (44,6b-14). Em comparação com os
acontecimentos anteriores, as coisas simplesmente se inverteram.
Será que José agiu como fez na primeira vez, acusando falsamente para
que a verdade da família pudesse novamente vir à tona (cf. 42,9-16)? Em
todo caso, parece ter planejado seu cenário de modo a provocar um novo
face a face entre si e seus irmãos, certamente na esperança de obter outro
resultado que no dia anterior. E é o que vai acontecer. No dia anterior, a troca
de saudações relatada pelo narrador limitou-se a um breve contato inicial,
centrado sobre a questão da vida e do bem-estar do velho pai e sobre a pes-
soa do irmão mais novo, ao qual José desejava a graça de Deus. Isto gerou
uma intensa emoção em José, que teve de sair para esconder as lágrimas. E,
embora seja difícil imaginar que a refeição, a partir daí, tenha continuado no
maior silêncio, o narrador não relatou nenhuma palavra, como se nada do que
foi falado merecesse ser mencionado. Só mereceram sua atenção os sinais
que José multiplicava em direção a eles, mas que não produziram nenhum
diálogo — pois o narrador não teria deixado de relatá-lo (43,26-34). Aqui, no
entanto, os irmãos se veem forçados a dar uma explicação, como da primeira
vez, quando o egípcio os tinha acusado falsamente — e José devia saber
que o fariam. O contraste com os fatos do dia anterior, já observado na cena
com o mordomo, prolonga-se: o diálogo, tão estranhamente discreto durante
aquele almoço, ocupa agora todo o espaço. No entanto, como o breve bate-
papo do dia anterior, o novo diálogo incidirá gradualmente sobre o futuro do
irmão mais novo e sobre a vida e o bem-estar do pai, precisamente em sua
relação com Benjamim. Isto provoca em José uma emoção ainda mais acen-
tuada do que no dia anterior, mas desta vez ele a partilhará com seus irmãos
estupefatos: não há mais estratégia que fique de pé, José já não pode mais se

198
Capítulo 12 – A partida interrompida (44,1-13)

conter como no dia anterior2. E também ele vai falar-lhes muito de seu pai e
de Benjamim (44,15–45,15).
Este breve resumo do episódio decisivo confirma as incríveis qualidades
de cenarista que José demonstrou nas páginas anteriores, seja na improvisação
a que se entrega no primeiro contato, seja no teste da verdade que imagina
para seus irmãos e talvez para seu pai, seja no cenário do dia anterior, tão
preciso quanto inútil. Aqui, ele se organiza para obrigar os irmãos a repetir
as mesmas cenas do dia anterior, mas garantindo que desta vez a peça tome
um rumo diferente. Com efeito, ele é quem está no controle — pelo menos
até certo ponto, pois o cenário fica parcialmente dependente da reação dos
irmãos. Porém, mesmo nesse caso, no início do episódio, o leitor se pergunta
se José, qual hábil jogador de xadrez, não previu alguns “lances” alternativos,
antecipando os prováveis movimentos do adversário. O que espera obter assim?
O leitor deverá novamente tentar adivinhar… Será que ele deseja representar
novamente os fatos do passado para despertar a memória dos irmãos, na
esperança de que enfim o reconheçam? Ou transformou-se em manipulador
maquiavélico que procura se vingar deles por terem lhe recusado a fraterni-
dade, imitando assim a mulher de Putifar, que o fez pagar amargamente sua
cruel decepção? Ou será que ele é tão refinado como Tamar, que recorre à
dissimulação para dar chances à verdade e manipula o outro para conduzi-lo
a escolhas de vida? Mas, graças à colaboração inesperada de Judá, que faz a
peça evoluir numa direção que José talvez não tivesse previsto, o resultado
será o mesmo que Tamar obteve — aquele que José, talvez, desejasse.

A acusação de José (44,1-6)


Após seus vãos esforços anteriores, José toma a iniciativa dando uma
ordem cuja intenção não aparece em lugar algum. A única coisa de que o
leitor tem certeza é que José não entregou as armas e que procurou um plano
alternativo (44,1-2).
1
E ele [José] ordenou ao que estava sobre sua casa, dizendo: “Enche os sacos
de transporte dos homens segundo [o que] são capazes de carregar e coloca
o dinheiro de cada homem junto à boca de seu saco de transporte. 2E a minha
taça de prata, coloca[-a] junto à boca do saco de transporte do menor, assim
como o dinheiro do seu grão”.

2. A reminiscência é muito clara em 45,1, onde o narrador retoma o verbo de 43,31. Veja
também a repetição da pergunta com a alteração que não poderia ser mais evidente: “Vosso pai…
vive ainda?” (43,27) e “Meu pai vive ainda?” (45,3).

199
José ou a invenção da fraternidade

José começa por fazer encher o saco de cada um até a boca e restitui
o dinheiro. O sinal é ambíguo, de imediato: ao lado de uma generosidade
digna de alguém que não mede sua doação, o dinheiro devolvido significa
sem dúvida que, aos olhos de José, a dívida dos irmãos está intacta, o que é
verdade na medida em que eles não lhe deram nem a verdade, nem a frater-
nidade, nem a vida3.
A instrução final ao mordomo intriga ainda mais o leitor4. José mandou
colocar sua taça no saco de Benjamim, e nós o ouvimos precisar que esta é
sua taça de prata. Aparentemente, Benjamim torna-se outra vez alvo de um
tratamento especial por parte de José, depois das múltiplas porções que lhe
foram servidas no almoço. Mas desta vez, provavelmente, não se trata de um
favor. Considerando o que aconteceu antes, o leitor compreende que, encon-
trado em posse desse objeto, Benjamim será acusado de um roubo tanto mais
hediondo porque parecerá um abuso de confiança em relação ao tão atencioso
anfitrião. Quanto ao dinheiro dos grãos de Benjamim, também é devolvido no
saco com a taça, sinal de que José estima que também este seu irmão tem uma
dívida para com ele. Certo, ele não era culpado, como os outros, da agressão
contra seu irmão, mas também ele não o reconheceu, privando-o assim do
tesouro da fraternidade. Em suma, sem o saber, Benjamim leva consigo algo
infinitamente precioso para José — aquilo que a taça simboliza. Talvez o
narrador explore aqui um possível jogo de sentidos em relação ao termo ke-
sef, “dinheiro”, que emprega por duas vezes em sua forma simples5. O verbo
kasaf significa “desejar ardentemente6”. Ora, não é exatamente o ardente de-
sejo de fraternidade de José que Benjamim leva consigo ao retomar a rota de
Canaã? Assim, é lógico que seu irmão deixe, em sinal de sua dívida, a “taça
de prata” e “o dinheiro de seu grão” ou “de sua ruptura” (šivro), conforme o
duplo sentido descrito acima7.
Quando o mordomo executa as ordens de José (44,2b), a intenção deste
permanece oculta ao leitor — o qual, porém, já está habituado a enigmas
deste tipo. José tem especificamente algo contra Benjamim ou deseja, ao

3. Veja o que digo sobre o assunto em 42,25 (acima, p. 47-48). Aqui, o sentido simbólico fica
ainda mais claro porque não se falará mais deste dinheiro adiante, enquanto poderia ter sido usado
para acusar a todos quando da investigação dos sacos.
4. Gunkel, 453, observa que o narrador não diz nada sobre as intenções de José. Isso contribui
para a tensão narrativa sempre mais forte à medida que a história avança.
5. Até agora, o termo sempre foi usado com o sufixo possessivo.
6. Ver Gênesis 31,30, Salmos 17,12; 84,3, Jó 14,15. Em Oseias 9,6, o substantivo correspon-
dente, um hápax, poderia designar o objeto desejado.
7. Consulte a explicação de 42,2, acima, p. 122.

200
Capítulo 12 – A partida interrompida (44,1-13)

contrário, isolá-lo de seus irmãos? O atraso da segunda viagem deve ter le-
vantado suspeitas em José: vieram para libertar seu irmão ou porque a fome
os obrigou? Ora, se esqueceram Simeão, ainda que não tivessem nenhuma
razão para o ódio ou o ciúme, o que acontecerá com Benjamim, o caçulinha
que não estará mais protegido pelo ultimato do egípcio? E o risco é ainda
tanto maior para ele, porque os favores ostensivos do senhor talvez tenham
suscitado o ciúme dos outros8.
3
De manhã, ao alvorecer, os homens foram despedidos, eles e seus jumentos.
4
Eles haviam saído da cidade, não estavam muito distantes, quando José disse ao
que estava sobre sua casa: “Levanta-te, persegue atrás dos homens e alcança-os
e dize-lhes: ‘Por que devolvestes mal por bem? 5Não é disto que meu senhor
bebe e com isto que ele pode praticar a adivinhação? Fizestes mal aquilo que
fizestes’”. 6E ele os alcançou e lhes dirigiu essas palavras.
Habboqer ’or — “a manhã deu sua luz…”, ou mesmo “manhã, luz!”
Essas duas primeiras palavras, de certa forma, causam admiração9. Este tipo
de informação de tempo é rara na história de José. Anteriormente, apenas a
refeição com José tinha sido situada com precisão pelo narrador. Foi ao meio-
dia (43,16.25), hora do sol mais forte. Ora, foi precisamente nesse momento
que os sinais suscetíveis de reavivar a memória dos irmãos foram multiplicados
aos seus olhos obstinadamente cegos, ofuscados talvez por esta luz demasia-
damente forte. Agora, o narrador anuncia o despontar de um novo dia, uma
aurora luminosa que talvez anuncie a saída da noite10. Será que sugere ao
leitor situar numa luz positiva o episódio dramático que vai ler? Ou será que
só quer evocar algo do sentimento dos irmãos, para quem esse amanhecer é
particularmente ensolarado, pois deixam o Egito com Benjamim, livres da
suspeita que pesava sobre eles e aliviados do medo? Se é este o caso, o leitor
pressente que eles estão redondamente enganados, porque, enquanto os vê
sair da cidade e se distanciar, ele sabe que uma bomba-relógio se encontra
nas bagagens que seus jumentos levam.
Eles não irão longe — seu distanciamento é mesmo explicitamente ne-
gado, antes que o leitor fique sabendo, pela boca de José, a continuação do

8. A esse propósito, ver Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 302-303.


9. É o único lugar na Bíblia Hebraica onde o verbo ’or, “fazer-se dia, ser ou ficar claro”, é
empregado na forma que é também a do substantivo que significa “luz”.
10. Esta não é a primeira vez que o narrador do Gênesis usa este tipo de informação em sen-
tido simbólico. Ver, por exemplo, na história de Jacó: o sol se põe em Betel, logo após sua saída
(28,11), para nascer novamente para ele na manhã depois de sua luta com o homem, no momento
de retornar para sua terra (32,32).

201
José ou a invenção da fraternidade

cenário preparado com vistas a eles. O mordomo recebe a ordem de perseguir


os homens, de alcançá-los e de acusá-los de pagarem o bem recebido de José
com o mal, o que não foi muito inteligente, visto os dons de adivinhação que
eles deveriam ter percebido nele — pois, uma vez que não reconheceram seu
irmão, somente tal dom poderia explicar a disposição dos lugares à mesa. Mas
quando o leitor do Gênesis ouve esta ordem e imagina a perseguição que os
filhos de Jacó sofrem no momento em que saem de um país estrangeiro com
objetos preciosos que não lhes pertencem, quando pensa nas críticas que o
mordomo deve lhes dirigir, ele tem a impressão de um déja vu. A armadilha
criada por José se parece muito com algo que ele mesmo conheceu, pequeno
ainda, quando Jacó fugiu com sua família da casa de seu sogro Labão, de-
pois de vinte anos de exílio. Raquel — a mãe de José — roubou de seu pai
os deuses domésticos e os escondeu em sua bagagem (31,19). Constatando
o roubo, Labão persegue o grupo que sai às pressas, e ao alcançá-los acusa
Jacó de ingratidão, especialmente por ter roubado seus deuses (31,25-30).
Inconsciente do roubo, Jacó reclama, proclama sua inocência e desafia seu
sogro a provar suas acusações. Ele chega a dizer que o culpado “não viverá”,
convencido de seu direito, sem saber que esta palavra imponderada coloca
em perigo Raquel, sua esposa amada. Felizmente, esta consegue enganar seu
pai a ponto de a busca nas bagagens não dar em nada (31,33-35). E pouco
depois aquela que Jacó virtualmente condenou à morte morrerá ao dar à luz
Benjamim (35,19)11.
Se este cenário se verifica — o que será o caso, menos para o final —,
percebe-se melhor qual pode ser aqui o estratagema secreto de José: simular um
roubo para poder acusar seus irmãos. E como se trata de um golpe planejado
dificilmente pode falhar. Mas o que José quer fazer ao pegar seus irmãos na
armadilha? Espera ele que a repetição dessa cena, vivida em família, refres-
que a memória dos dez mais velhos? Espera vingar-se de todos, reservando
mesmo um “tratamento especial” a Benjamim, que então correria o risco de
morrer, como sua mãe? Ou quer, ao contrário, possibilitar o reencontro dos
dois filhos de Raquel, porque o “roubo” da taça por Benjamim lhe dará a
possibilidade de guardá-lo consigo? A menos que ele tenha simplesmente
escolhido retomar a tática que mostrou ser eficaz quando da primeira visita
dos irmãos: criar uma acusação de qualquer jeito, sabendo que os inocentes

11. A este respeito, ver a análise precisa de Y. Zakovitch, Through the Looking Glass, 141-143,
e A. Schenker, Le tribunal des femmes, 142-143. Alguns comentaristas, por exemplo Wenham,
425, ressaltam o paralelismo.

202
Capítulo 12 – A partida interrompida (44,1-13)

quase não poderão provar sua inocência (como, anteriormente, Jacó diante
de Labão), e que tentarão prová-la dizendo a sua verdade. Afinal de contas,
como a bondade demonstrada na véspera permaneceu improdutiva, talvez um
novo tratamento de choque seja benéfico. Vemos, mesmo que a linha geral
do cenário montado apareça já ao leitor, ela deixa abertos vários caminhos
para o futuro. Talvez seja um indício de que José procure possibilitar várias
saídas em vista de poder se ajustar, no momento oportuno, às reações de
seus irmãos.
Observe-se que, se o cenário é claro, menos claro é o objeto da acusação
de José, aquilo que repreende aos homens. Sua indefinição sugere que, mais
uma vez, José tenta manter uma margem de manobra. A palavra que o mor-
domo fielmente repete (44,6)12 requer certa atenção. Num primeiro nível de
sentido, na superfície da narrativa, a crítica deveria parecer enigmática aos
irmãos por ser tão geral: com efeito, “devolver mal por bem, fazer mal” não
é muito preciso. Mesmo a maneira de designar a taça é indireta: literalmente,
“disto que meu senhor bebe e com isto que ele pode praticar a adivinhação”13.
Sem dúvida, a expressão dessas duas ações lembra aos irmãos os detalhes
da refeição de que participaram no dia anterior: eles viram o senhor beber da
taça, e o fato de terem sido colocados por idade deveria tê-los sugerido um
dom de adivinhação, cujo instrumento seria a taça. Ora, eles beberam com o
senhor até à embriaguez (43,34): será que se aproveitaram da situação para
roubar a taça preciosa? De fato, a acusação é elíptica e não fala de roubo. Seu
tom alusivo parece calibrado para ser compreendido por pessoas que, com
conhecimento de causa, cometeram um crime e estão, portanto, plenamente
conscientes do mal ao qual se alude14. Se tal crítica fosse dirigida a pessoas
inocentes, responderiam perguntando ao acusador de que ele está falando…
A reação espontânea deveria, pois, revelar se os homens são ou não são justos
em seus passos.
Mas, novamente, a acusação inventada por José toca mais fundo. Sua estra-
nheza mesma parece indicá-lo. Como o sugere o primeiro verbo (šillamtem, v.
4), a acusação é de início sobre uma falta de šalom na atitude dos irmãos em
relação a José. Indo embora do modo como eles fazem, eles devolvem — ou

12. Para B. Green, “What Profit for Us”, 140, a perífrase que o narrador se obstina a empregar
para designar o mordomo (“aquele que está sobre sua casa”) é o sinal da confiabilidade total do
personagem em relação a José, inclusive no caso dos irmãos.
13. A Septuaginta esclarece as opções antes de adicionar esta frase: “Por que roubastes minha
taça de prata? Veja Westermann, 132.
14. Nesse sentido, L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 349, e Wenham, 424.

203
José ou a invenção da fraternidade

mesmo recompensam — o “bem” recebido fazendo o “mal”. É precisamente


isso que José deve pensar: enquanto por várias vezes ele lhes tem estendido o
braço na esperança de que o reconheçam como irmão, apesar de seus esforços
generosos e pacientes para dar à fraternidade sua chance, os irmãos não lhe
deram este presente. Então, José manda dizer-lhes que, se eles estão satisfeitos
com o rumo que os acontecimentos tomaram, esse resultado não o satisfaz
de modo algum: o que fizeram transforma em mal o šalom que ele esperava:
“Fizestes mal aquilo que fizestes”. Esta conclusão reflete exatamente a forma
em que José vê o que aconteceu, não na superfície das coisas, mas nesse lugar
mais profundo onde se trata do seu desejo de fraternidade.
Mesmo o objeto que a repreensão, alusivamente, tem na mira e que,
na superfície do texto, remete os irmãos à refeição da noite anterior, esse
objeto tão precioso e tão eminentemente pessoal, tem, sem dúvida, um
“fundo duplo”. Com esta taça, José bebeu na companhia desses homens em
sua casa; e eles devem pensar que com ela ele pôde adivinhar suas idades15.
Ora, foi por ser seu irmão que ele os admitiu em sua intimidade, chegando
a se embebedar com eles; é por ser seu irmão que ele sabe em que ordem
nasceram e de que preferência o pequeno é objeto nesta família. Assim, na
realidade, as virtudes que José parece atribuir à taça lhe são proporcionadas
pela fraternidade, de forma que, indiretamente, “isto com que bebe e pode
praticar a adivinhação” não é, em si, a taça de prata, mas a fraternidade,
esse bem que é desejável mais que tudo a seus olhos e de que eles o privam
ao ir embora.
Meu último comentário sobre a repreensão tal como é formulada por José:
para falar sobre sua suposta competência em adivinhação — uma invenção
plausível para os fins desejados — ele recorre de maneira enfática ao verbo
nah.aš, estranhamente próximo do substantivo homônimo que designa a “ser-
pente”. Ele evoca assim com insistência aquilo de que José se diz capaz16. O
duplo sentido é pouco velado ao leitor do Gênesis: que faz José senão jogar
com a serpente colocada em cena no início do livro? Um pequeno desvio por
Gênesis 2–3 deve esclarecer a aproximação.

15. Assim, por exemplo, Gunkel, 452.


16. Na expressão utilizada, o infinitivo absoluto reforça provavelmente aqui a nuança mo-
dal de “poder” do Yiqtol. Notemos também que, entre os diferentes verbos denotando uma atividade
de adivinhação (veja ‘anan no Polel, kašap no Piel e, sobretudo, qasam), nah.aš é o menos comum
na Bíblia Hebraica (além de Gn 44 e 30,27, somente em Lv 19,26, Dt 18,10, 1Rs 20,33, 2Rs 17,17
e 21,6 e seu paralelo em 2Cr 33,6). — A alegação de José fez correr muita tinta, mas Sarna, 304,
observa com razão que José só quer que seus irmãos acreditem que ele tem poderes mágicos.

204
Capítulo 12 – A partida interrompida (44,1-13)

(1) Desde sua estreia, a serpente “astuta” (‘arum) fala para confundir as
balizas do verdadeiro e do falso, jogando com a ambiguidade das aparên-
cias — notadamente, as da linguagem. Insinuando: “assim, Deus disse: ‘Não
comereis de todas as árvores do jardim …’” (Gn 3,1), ele diz a verdade: se
uma árvore está proibida, eles não podem comer de todas as árvores; porém,
sua frase induz algo falso, de forma que a mulher compreende: “Não come-
reis de nenhuma árvore”, e daí sua resposta. (2) É assim que a serpente leva
a mulher a tomar o mal pelo bem e inversamente. No final do diálogo de
Gênesis 3,1-5, onde a serpente se faz passar por boa e mostra Deus como
alguém mal-intencionado, comer da árvore é que parece bom aos olhos da
mulher (3,6), enquanto o mal consiste em dar razão a Deus. (3) Ora, a ser-
pente aparece à análise como o porta-voz da cobiça e do medo do carecer17,
que desperta na mulher a vontade de comer do fruto da árvore, recusando o
limite que estrutura o desejo. A inveja e o medo do carecer guiam ainda Eva
quando toma conta de Caim (“eu consegui”), o fruto do “conhecimento”,
fazendo dele “um homem” sobre quem ela põe a mão como se fosse o ob-
jeto de seu desejo, a tal ponto que ela não terá uma palavra para “seu irmão
Névoa” (4,1-2a). Sem querer, ela injeta assim em seu filho o veneno da inveja.
Também, o animal que Adonai vê à espreita do coração de Caim (4,7) não é
outro senão a serpente, esse desejo invejoso que ele não poderá dominar e o
levará a matar seu irmão18. Desde os primeiros irmãos, portanto, a serpente
é uma ladra da fraternidade!
Após esse desvio, voltemos a José. Quando ele fala de “serpentizar”,
não estaria entrando na armadilha da serpente? Fingindo ser bom e inocen-
te, não usa de astúcia ao acusar falsamente seus irmãos, como a serpente fez
com Deus e a mulher de Putifar com ele? Não se prepara, assim, a negar a
fraternidade aos irmãos que lhe impuseram a mesma carência cruel? Na fase
em que as coisas estão, não é proibido pensar assim; como vimos, faltam
ainda pontos de referência ao leitor. Mas também é possível que o inverso
seja verdadeiro: José, tendo percebido a serpente que cega seus irmãos, tenta
livrá-los. De fato, quando eles se creem quites, em šalom com o senhor egíp-
cio, porventura não se deixam enganar pelas aparências, tomando um mal por
um bem e acreditando-se bons eles mesmos, enquanto impõem o mal a um
irmão? Será que não estão, de fato, roubando-lhe a fraternidade — matando-o

17. Consulte já a leitura de Paulo em Romanos 7,7-13 e de Tiago em Tiago 1,13-15.


18. A serpente personifica em Gênesis 3 a ganância e o medo suspeitos: sobre isso, verifique
meu ensaio Pas seulement de pain…, 56-71. Em seu papel na história de Caim, ver os meus dois
artigos: Adam et Ève, 4-13, e Caïm, 38-41 e 46-47.

205
José ou a invenção da fraternidade

simbolicamente — sentindo-se bem felizes por estarem, por sua parte, salvos
do medo? É precisamente essa a obra da serpente.
Nesse sentido, a dupla acusação de José poderia ser uma nova tentativa
de fazer que este mal gere um bem: quem sabe se esta meia-mentira não
suscitará uma palavra de verdade, como da primeira vez? Se assim for, José
se mostraria cheio de sabedoria (‘arum), tentando derrotar a serpente virando
contra ela suas próprias armas — astúcia, meia-mentira, palavra dupla —, a
exemplo da justa Tamar. Porque, se a serpente toma cuidado para não dizer
nada de falso para salvaguardar as aparências da verdade, é possível que, sob
sua aparente duplicidade, a mentira de José diga algo de verdadeiro e consiga
dar sua chance à verdade e à vida, e, com elas, à fraternidade. Ainda assim, a
escolha é perigosa — enquanto o leitor deverá ficar atento ao jogo das apa-
rências, especialmente na linguagem.

A taça no saco de Benjamim (44,7-13)


Depois dessa preparação do cenário inicial — e do leitor — a narração
toma ritmo: apenas enviado, em uma palavra, o mordomo alcança os que
partiram e lhes transmite as palavras de José (v. 6). Sua resposta jorra ime-
diatamente (44,7-9):
7
E eles lhe disseram: “Por que o meu senhor fala segundo estas palavras?
Longe de seus servos agir segundo esta palavra! 8Eis: o dinheiro que achamos
na boca dos nossos sacos de transporte, nós o fizemos voltar a ti da terra de
Canaã; e como haveríamos de roubar da casa de teu senhor prata e ouro?
9
Aquele de teus servos com quem for achado morrerá; e também nós, nos
tornaremos escravos para meu senhor”19.

Após terem manifestado sua incompreensão, os homens se recompõem


diante da acusação, dizendo-se incapazes de agir desta forma: seria para eles
quase uma falta sagrada, uma profanação20. A prova é que, ainda no dia anterior,
mostraram provas de uma honestidade exemplar: como pessoas tão corretas
trairiam as leis da hospitalidade praticando um roubo na casa onde foram
bem-vindas? Aliás, eles estão prontos a uma punição mais que exemplar!

19. Por trás das palavras “servos” e “escravos”, há uma única palavra em hebraico (‘eved). Mas
o contexto parece exigir uma mudança no vocabulário entre a forma polida “teus servos” e a que
vai tornar seus irmãos culpados, os escravos.
20. A expressão h.alilah le- tem o sentido de partida, a primeira palavra é derivada do verbo
h.alal, “profanar”. Mas o uso comum provavelmente apagou esse primeiro sentido.

206
Capítulo 12 – A partida interrompida (44,1-13)

Por mais sinceros que sejam, esses protestos de inocência não estão li-
vres de ambiguidade. Em todo caso, os irmãos caem na armadilha preparada
por José: em vez de perguntar ao mordomo o que essas alusões escondem,
eles parecem entender por si mesmos e imediatamente de que os acusam
— eles falam explicitamente do roubo de objetos em metal precioso —, e
eles procuram por todos os meios desculpar-se, reação frequente no caso de
um culpado do qual se suspeitava sem prova. Aliás, nesta cena ocorre um
jogo semelhante àquele que a acusação de espionagem ensejou. Hoje como
então, os homens estão conscientemente convencidos de sua inocência, o que
mostram seus protestos tão intempestivos quanto imprudentes. Mas, se estão
tão confiantes em si, por que ficam se justificando, enquanto seria tão simples
propor imediatamente uma inspeção, como outrora fizera Jacó com seu sogro
(31,32) e como eles também farão, mas só depois da resposta do egípcio?
O simples fato de querer a toda força mostrar-se honesto às vezes esconde
um profundo mal-estar; é então, como já vimos, evidência de uma culpa latente,
endêmica, voltada a um erro que o sujeito algum dia reprimiu, culpabilidade
que uma outra acusação como que ressuscita, sobretudo, talvez, se é falsa.
Então a força que o sujeito empenha para defender sua inocência — real em
relação à acusação falsa — revela a medida da força que ele um dia investiu
para negar essa outra falta que, inconscientemente, ele teme voltar à tona.
Mas, como vimos, os próprios irmãos explicitam uma acusação que ficou
alusiva ao precisar que não roubaram nada. Ao dizer isso, não percebem que
colocam o dedo exatamente no crime reprimido de que ainda são culpados,
embora de forma latente. Claro, eles não roubaram o dinheiro do grão, nem
mesmo a prata de que é feita a taça — a palavra kesef (“dinheiro”) é repetida
duas vezes no versículo 8. Mas será então que não roubaram nada de precioso
de José? O verbo que usam para expressar a falta que não cometeram, ganav
(“roubar”), é o mesmo que José empregou, com insistência, falando com o
mordomo do Faraó: “Fui roubado, roubado da terra dos hebreus” (40,15).
Não foi isso que lhe roubaram? Não dinheiro ou ouro em sua casa, mas sua
identidade, sua verdade própria, que a seus olhos não é senão um senhor
egípcio? Não lhe roubaram, por acaso, até sua “casa”, a de seu pai, onde ele
poderia ter construído a fraternidade (cf. 41,52)?
Até o castigo revela indiretamente a falta antiga, e seu exagero serve para
mostrar como os homens estão seguros de sua inocência21. “Aquele de teus
servos em cujas mãos for achado” morrerá, dizem, e os outros se tornarão

21. Veja Westermann, 132, Sarna, 304, e Hamilton, 563.

207
José ou a invenção da fraternidade

escravos. Para o leitor, que tem em conta os efeitos retroativos do caso inteiro
e que sabe com quem se encontra a taça, o duplo sentido oculto aparece clara-
mente: como um novo José, o outro filho de Raquel se vê condenado à morte
por seus irmãos, enquanto aqueles que já foram reconhecidos culpados por
negar a seu irmão a fraternidade (ver 42,21) sofrerão o mesmo destino que ele
sofreu por causa deles: a escravidão no Egito22. Todos serão punidos, como se
todos fossem responsáveis pelo crime, sinal de que uma obscura consciência
do crime coletivo está produzindo aquilo que os irmãos dizem. Está claro: a
estratégia “serpentina” de José parece já dar frutos de verdade.
Esta proposição dos irmãos, tão intempestiva e imprudente quanto o protesto
de inocência, marca certo progresso no nível da fraternidade. A maneira de apon-
tar o culpado não o acusa de roubo, mas apenas de receptação (“aquele de teus
servos com quem for achado”), como se, em caso de roubo, todos carregassem
de certo modo uma parte da responsabilidade. Neste mesmo sentido, em relação
a Jacó que tinha proposto a Labão que somente o ladrão fosse punido (31,32),
nota-se que aqui todos permanecem solidários no castigo. Eles pretendem ficar
unidos na prova, pelo menos até certo ponto, visto que a justiça requer que uma
severidade maior atinja aquele que será flagrado. Esta distinção isola um deles
do grupo, e o leitor sabe que é Benjamim. A divisão inicial entre os irmãos está
a ponto de se reproduzir. Que farão os dez quando perceberem que aquele que
isolaram não é outro senão seu irmão menor, o protegido de Jacó?
Ouvindo a sentença severa, sem, evidentemente, saber o que ela esconde,
o mordomo pretende trazer as pessoas à razão: não se trata de vingança, mas
de sancionar uma falta real (44,10):

E ele disse: “Também agora, segundo vossas palavras, assim ele: aquele com
quem for achado será um escravo para mim, mas vós, vós ficareis quites”.

Esta contraproposta não é completamente estranha ao que foi dito, pois


mostra a distinção entre aquele que detém o objeto do delito e os outros. No
fundo, embora de forma mais leve, dá no mesmo, pelo que um será separado
dos dez, não por sua morte, mas pela partida dos outros. No entanto, a nova
proposta é diferente da dos irmãos pelo fato de quebrar o espírito de solida-
riedade que animou sua primeira reação23.
Dito isso, o leitor, que sabe mais do que os irmãos, apreciará a sutileza de
um jogo de sentido na marcação do mordomo. Para enfatizar, com certeza, que

22. Assim, R. Alter, Genesis, 261.


23. Eu apresento a ideia de L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 349.

208
Capítulo 12 – A partida interrompida (44,1-13)

reflete o espírito da proposta dos homens, ele diz literalmente: “Também agora,
segundo vossas palavras, assim ele!” (ken-hu’). Quem é este “ele”, sublinhado
em hebraico pela pausa? Provavelmente, é o culpado em questão e que sofrerá
sozinho a punição explicitada em seguida24. Mas, como vimos no capítulo 42,
a palavra ken pode significar tanto “assim” como “honesto/honestamente”.
Então a expressão significa igualmente: “honesto, ele” (ken-hu’). Em suma,
designando assim o culpado, o mordomo sugere ao mesmo tempo que ele o
sabe inocente: não foi ele mesmo quem colocou a taça no saco?
Apressaram-se e fizeram descer, cada um, seu saco de transporte e abriram,
11

cada um, seu saco de transporte. 12Ele os revistou: começou pelo mais velho
e terminou com o mais novo, e a taça foi achada no saco de transporte de
Benjamim. 13E eles rasgaram as suas vestes e carregaram cada um o seu ju-
mento e voltaram à cidade.
A revista dos sacos é descrita num ritmo muito rápido, assinalado, de
início, pelo verbo “apressaram-se”. Nenhum motivo de atraso: o leitor já sabe
qual será o resultado. Portanto, assim como está descrita — de um saco para
outro, até o último, de acordo com uma ordem sistemática —, a inspeção
deve levar algum tempo para os atores da cena. Pela pressa que essas pessoas
exibem para abrir seus sacos, o leitor os imagina apressados para acabar com
essa comédia e provar sua inocência. No entanto, eles são obrigados a supor-
tar uma longa busca — projetada por José, sem dúvida — que, alimentando
a esperança de ver o pesadelo terminar à medida que progride sem sucesso,
também aumenta sua ansiedade25. Quanto ao leitor, ele sabe, sem que saibam,
eles se encaminham para sua perda, o que acrescenta à breve narrativa um
toque de ironia — como se o narrador quisesse que o leitor mantivesse distância
dos irmãos. Quanto a eles, devem aguardar o último saco antes que a bomba
estoure, no momento preciso, quando, sem dúvida, eles se verão já libertos:
“E a taça foi achada no saco de transporte de Benjamim”.
Agora, tudo está no lugar, como José tinha calculado. Benjamim está
preso na armadilha, e os demais estão contra a parede. De acordo com o que
previu o mordomo, o irmão mais novo deve ser preso como escravo; quanto
a eles, estão livres para prosseguir sua viagem e regressar ao seu pai sem ele,
uma situação estranhamente semelhante ao que aconteceu outrora no caso de

24. Deve dar a entender a expressão no sentido de “ele, não vós”.


25. Sobre este ponto, ver Gunkel, 454, e F. Rossier, L’intercession de Juda, 27, que observa,
juntamente com E. I. Lowenthal, The Joseph Narrative, 93, que a ordem mantida destina-se a
evitar qualquer suspeita de conspiração.

209
José ou a invenção da fraternidade

José26. Revivendo, assim, um depois do outro, dois momentos críticos de seu


passado familiar — a acusação de roubo seguida de uma busca sistemática
e a perspectiva de um regresso em dez a Jacó, deixando um filho de Raquel
escravo no Egito —, será que suas lembranças de vinte anos atrás lhes virão,
finalmente, à memória, fazendo-os reconhecer o “cenógrafo” que os fez
reproduzir tão habilmente o passado? Não. Se alguma vez lhes surge uma
lembrança, em todo caso, permanecem cegos em relação a José.
Mas nada está perdido ainda, porque, na medida em que esta nova tentativa
de José para se fazer reconhecer, reenviando-os a seu passado, fica sem efeito,
os dez encontram-se agora numa situação de teste: o que farão daquele que
corre o risco de ser detido no Egito? Com Simeão, eles ficaram bem, porque
não o abandonaram à sua triste sorte. Mas, como temos dito, esse teste foi
fácil. Já não é a mesma coisa que agora está acontecendo com Benjamim. Pois
ele é o filho de Raquel, preferido de Jacó desde a morte de José; é aquele que
há apenas algumas horas conquistou em pouco tempo os favores do senhor
egípcio, a ponto de ser o objeto de suas atenções especiais durante a refeição.
Está aí tudo para repetir a cena do começo, em Dotã, quando os irmãos tive-
ram mais de uma razão para desejar livrar-se de Benjamim. Quanto a ele, em
posição de vítima e longe de seu pai, está completamente vulnerável diante
deles. Eles estão livres, portanto, para se livrar dele definitivamente, e em
boa consciência, uma vez que foi apanhado em flagrante delito de roubo27.
José jogou pesado: se negarem sua solidariedade a Benjamim, será obrigado a
observar para sempre o luto da fraternidade com eles. Só lhe restará o inocente
que detém o símbolo de seu desejo de fraternidade. Mas esta só será possível
entre os dois filhos de Raquel.
A reação dos irmãos não demora. Sem uma palavra, eles rasgam suas rou-
pas em sinal do dilaceramento interior que a descoberta no saco de Benjamim
provocou neles. Depois de ter crido no dia (ver 44,3a), mergulharam de vez
na noite mais escura. Seu gesto é o mesmo que o de Rubem consternado
diante do buraco vazio e do desaparecimento de José (37,29). É também o
gesto que tinham provocado em seu pai ao produzir uma prova, falsa no en-
tanto — a túnica de sangue —, que significava para ele a privação definitiva
de José (37,34). Agora é a vez deles de fazer esse gesto, diante da evidência
que vai privá-los para sempre de Benjamim, e isto porque eles não sabem

26. Veja J. S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob, 94.


27. M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 302-303, analisa a situação com uma
delicadeza notável. Mas veja já Von Rad, 401-402, e H. C. White, Narration and Discourse,
266-267.

210
Capítulo 12 – A partida interrompida (44,1-13)

que se trata de um golpe falso28. Não se sentindo envergonhados com Jacó,


quando eram culpados, agora se sentem dilacerados, embora inocentes, pelo
menos na aparência. Assim, depois de reviver a experiência de José, durante
sua estada na prisão, eles sofrem no interior algo da profunda dor imposta a
seu pai. Não viram eles, recentemente ainda, os sinais desoladores dessa dor
no momento de sua partida? Assim, o leitor não admira ao vê-los recarregar
seus jumentos e levar tudo para a cidade por iniciativa própria, apesar de o
mordomo ter-lhes dito claramente que os inocentes estariam quites.
Desta vez, portanto, a solidariedade fraterna parece estar presente no
teste, enquanto o leitor constata uma vez mais como os homens mudaram,
não abandonando seu irmão mais novo à sua triste sorte29 e retornando todos
para enfrentar de novo o senhor egípcio.

28. O paralelo com o fim do capítulo 37 é bem destacado por A. Da Silva, La symbolique
des rêves, 158. Acrescente-se que em ambos os casos o filho de Raquel é votado à escravidão no
Egito.
29. Ver J. S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob, 94, 96, 98; G. Fischer, Die Josefsgeschichte,
250.

211
Capítulo 13

A prova da fraternidade
(44,14-34)

Desde o instante em que Benjamim está sob a acusação que o impede


de retornar a seu pai com os outros, uma mudança se produz no grupo dos
irmãos: Judá toma resolutamente a liderança. O narrador o destaca de iní-
cio: “e Judá chegou, e [também] seus irmãos, à casa de José…” (44,14a)1.
O leitor constata assim, sem pensar duas vezes, que não foi em vão que
Judá se fez garante, diante de Jacó, pois agora ele toma as coisas em mãos,
preparando-se, sem dúvida, para enfrentar o egípcio para tentar honrar sua
palavra. Quanto aos outros, se o narrador os chama “seus irmãos”, certamente
é para sugerir que são solidários com sua iniciativa — notemos que também
eles são sujeitos do primeiro verbo. Será que a fraternidade está prestes a
nascer no coração mesmo da prova em que se repete o drama que foi a causa
de tanta infelicidade?

A confissão de Judá (44,14-16)


Judá então leva seus irmãos a José, que, como o leitor imagina, se manteve
na casa, aguardando o resultado de seu estratagema (44,14-16).

1. O verbo no singular sugere que a iniciativa tem tudo a ver com Judá: R. Alter, Genesis,
262.

213
José ou a invenção da fraternidade

14
E Judá chegou, e [também] seus irmãos, à casa de José, enquanto ainda
estava ali, e caíram por terra diante dele. 15E José lhes disse: “Que obra é
essa que fizestes? Não sabeis que um homem que é como eu pode praticar a
adivinhação?”. 16E Judá disse: “Que diremos ao meu senhor? Que declara-
remos e [como] nos justificaremos? Deus é quem descobriu o crime de teus
servos! Eis-nos, portanto, escravos de meu senhor, e nós, e aquele em cuja
mão foi achada a taça”.
Logo depois de chegarem, eles atiram-se a seus pés, numa prostração de
outro tipo que as que o narrador assinalou até aqui, pois denota antes a atitude
suplicante de quem implora misericórdia2. Resta que esta atitude dos irmãos
diante de José traz à mente do leitor os sonhos dele. Mas, se essa prostração
pode indicar que o momento da realização dos sonhos chegou, não se sabe
ainda em que sentido serão realizados. José vai esmagar seus irmãos sob seu
poder como eles fizeram outrora ou reunirá os irmãos em torno dele, o que
talvez tenha sido o maior desejo dele?3
É José quem está em questão. Ele chama os homens para que se expliquem,
fazendo uma pergunta geral baseada em uma fórmula usada ordinariamente
para culpar alguém pedindo-lhe que ele mesmo confesse seu crime4. Notamos
que a questão envolve todo o grupo, não apenas Benjamim. Da parte de José,
esse tipo de abordagem poderia responder a dois requisitos. De um ponto de
vista tático, em primeiro lugar, pretende testar a solidariedade fraterna: se
essas pessoas não são irmãos, acatarão a oportunidade para responder que,
Benjamim à parte, são todos inocentes5 — e será que ele não o sabe, já que
pratica a adivinhação? Mas, sobretudo, sua pergunta intencionalmente ampla
visa, além de ao mero roubo da taça, ao crime coletivo que diz respeito ao
que a taça simboliza: a fraternidade.
No mais, a nova alusão à arte da adivinhação que José diz dominar poderia
ser reveladora neste lugar — além de lembrar ao leitor que José está sempre
jogando com a serpente. Na superfície, a pergunta retórica pela qual José

2. A expressão não é mais aquela que figura nas histórias de sonhos, na interpretação de
Jacó e nas cenas de prostração anteriores (lehišttah.awot le-: 37,7.9.10; 42,6; 43,26.28). Aqui, em
44,14, assim como em 50,18 (veja mais abaixo), temos o sintagma napal lipney, “cair diante
da face de”. Para Speiser, 378, e Westermann, 133, a nova expressão é mais forte e expressa
a “submissão completa” (ver também L. A. Turner, Announcements of Plot, 153-154). Em
minha opinião, o que reforça a submissão é a consciência da falta cometida.
3. Veja acima, p. 37-40.
4. Ver, por exemplo, em Gênesis 3,13; 4,10; 12,18; 26,10 e 29,25. Sobre essa expressão jurídica,
ver P. Bovati, Ristabilire la giustizia, 63-64.
5. A ideia é de Sternberg, The Poetics Biblical Narrative, 305.

214
Capítulo 13 – A prova da fraternidade (44,14-34)

pontua a inculpação dos irmãos parece indicar-lhes como ele pôde adivinhar
sua falta e enviar o mordomo no encalço deles. Porém, baseado no que este
último disse aos homens sobre o objeto de que o senhor precisa para praticar
sua arte, surge um problema, porque a taça para adivinhar se encontrava na
bagagem de Benjamim. Como o senhor egípcio conseguiu saber que eles
cometeram um crime senão precisamente porque é seu irmão e sua vítima?
Mais uma vez — e isso é verdade, embora seja disfarçada — é a fraternidade
que lhe permite ver o que não é aparente.

As primeiras palavras da parte de Judá são de uma rendição incondicio-


nal. Diante de seu juiz que os convida a confessar o crime, Judá pleiteia culpa
em nome de todos. Literalmente, eles não têm nada a dizer em defesa deles,
nenhuma justificativa a alegar depois da evidência que a investigação trouxe.
Sua culpa está, na verdade, nua6. Supõe-se que o egípcio entenda que os irmãos
assumem coletivamente a responsabilidade pelo roubo da taça, Benjamim
sendo somente o receptor. Mas há algo mais profundo. Em primeiro lugar,
não é coincidência que Judá se exprima assim. Ao ouvi-lo falar como fala,
o leitor reconhece facilmente o homem que, confundido por Tamar, admitiu
seus erros de forma clara e inequívoca (cf. 38,26). Especialmente porque, a
partir da perspectiva de Judá, essa cena do passado é estranhamente semelhante
àquela que está vivendo. Na verdade, tendo aprendido, no caso de Tamar, a
desconfiar das aparências, ele não parece convencido da culpa de seu irmão
mais novo: por acaso não o designou como “aquele em cuja mão foi achada a
taça”, uma expressão que, embora se dobre diante da evidência, se detém no
fato e não tira conclusão alguma que incrimine Benjamim?7 Portanto, como
no final de sua aventura com Tamar, Judá vê agora que um inocente, Ben-
jamim (como antes Tamar), aparece como culpado, enquanto os verdadeiros
culpados, os irmãos (como ele era então), são inocentes em aparência, o que
a sentença de José sublinhará (44,17). Ora, Judá sabe, por tê-lo vivenciado no
caso de Tamar, que em tal situação a única maneira de salvar a vida de um

6. A frase multiplica os termos jurídicos. Depois do “que diremos?”, genérico, o verbo “declarar”
(davar no Piel) designa o fundamento do réu que apresenta sua defesa e tenta “se justificar” (s.adaq
no Hitpael), ou seja, provar sua inocência. Da mesma forma, “encontrar” (mas.a’) pode designar o
resultado de uma investigação que mostra a culpa do acusado e, portanto, a oportunidade de trazê-lo
a julgamento. Para o significado técnico desse vocabulário, ver P. Bovati, Ristabilire la giustizia,
96-98, 226-228 e 310.
7. A coisa é bem vista por W. L. Humphreys, Joseph and his Family, 85. Gostaria de acres-
centar que o reaparecimento misterioso do dinheiro — a primeira vez e também hoje — deve levar
Judá a pensar que há um novo mistério que, como os irmãos na primeira vez (42,28), ele atribui
a Deus (44,16).

215
José ou a invenção da fraternidade

inocente injustamente acusado é sair da mentira e da dissimulação para fazer


a verdade8. Passa, portanto, à confissão.
Mas o leitor pode estar impressionado com o caráter genérico da auto-
acusação de Judá, que certamente implica alguns subentendidos que o senhor
egípcio, supostamente, não deve captar, mas que José compreende perfeita-
mente. Qual é, na verdade, a culpa coletiva que Judá confessa, do modo como
fala? Sem dúvida, o crime que outrora cometeram contra o irmão deles9. Ao
falar com o mordomo, eles acabaram decretando a morte de um deles apenas.
Uma vez Benjamim desmascarado, isso deve lembrar-lhes que outrora tinham
decidido pela morte de outro filho de Raquel, de outro irmão inocente10. Deste
crime distante e escondido, todos são culpados, e eles têm consciência disso:
não disseram isso entre si, explicitamente, no final de sua primeira viagem
ao Egito (42,21)? Nisto, Judá é realmente o porta-voz de todos. Mas o crime
dos irmãos fez outra vítima, Jacó, que mergulhou no desespero por conta da
ausência de José. Isso também faz parte do crime. Seu pai não os lembrou,
faz pouco, quanto o entristeceram pela privação do mais novo e que, se
acontecesse algum mal ao menor, o último, eles carregariam na consciência
a morte do próprio pai (42,36.38)? Ora, a perspectiva assustadora de terem
que voltar sem Benjamim está prestes a se tornar realidade.
Neste nível de sentido, o caráter genérico da confissão de Judá também
tem um alcance irônico. Assim como, quando da primeira confissão, José
fazia de conta não compreender o diálogo entre os irmãos (42,21-23), aqui o
reconhecimento de culpa é tão genérico que o chefe egípcio não deveria captar
seu sentido. Para que, aliás? Não basta que os irmãos saibam de quem Judá
está falando e que, portanto, percebam que o mal pelo qual estão passando
não é imerecido? Mas José entende tudo, precisamente porque é um deles. E
ele constata que sua maneira de jogar, como a serpente, com as aparências,
com a mentira calculada, faz de fato progredir a verdade, exatamente como
na primeira visita dos irmãos.
Aliás, se é o crime cometido outrora contra José e contra seu pai que Judá
confessa, entendemos que acrescenta que é Deus quem o tem “encontrado”. O
crime deles que vem à tona estava escondido, de fato, protegido pelo silêncio

8. Ver neste sentido Cotter, 314-315.


9. Neste sentido, por exemplo, J. S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob, 89, e R. Alter,
Genesis, 262. Veja já Von Rad, 403, e Westermann, 134.
10. Esta ideia me é inspirada por J.-M. Auwers, Joseph, 32. Neste sentido, por exemplo, Wenham,
425 e 431. Para R. Lack, Letture strutturaliste, 100, “o velho crime coberto pela falsa evidência da
veste manchada de sangue é posto em evidência pela falsa prova da taça encontrada no saco”.

216
Capítulo 13 – A prova da fraternidade (44,14-34)

e mesmo reprimido neles até os acontecimentos recentes. Quem foi capaz de


desenterrá-lo senão Deus? Porque aos olhos deles, mesmo se o egípcio, como
bom adivinhador, foi capaz de perscrutar o roubo da taça, ele não pode estar
ciente dos erros do passado. Por trás dele, é a mão de Deus que opera. Mas,
nesta explicação, o caráter misterioso dos acontecimentos recentes tem tudo
a ver. Não se parece o que eles têm vivido extremamente com a cena pertur-
badora quando foi achado o dinheiro num saco no lugar de pernoite? Ainda
esta manhã, devem ter encontrado o dinheiro quando da vistoria! É surpreen-
dente, portanto, que pensem em esclarecer o milagre evocando novamente
Deus (42,28)? O que é ainda mais compreensível porque, no dia anterior, o
mordomo deu a mesma explicação para o dinheiro nos sacos (43,23).
Ao contrário de Judá e de seus irmãos, o leitor sabe por meio de José que
a chave de todos esses enigmas não é Deus — não diretamente, pelo menos —,
mas José e seu provável desejo de fraternidade. Se não for o recurso sobrena-
tural, José, que os irmãos ainda não reconhecem, é a única explicação plausível
de todos esses mistérios acumulados! Mas o que diz Judá talvez não seja errado:
se atribui a Deus o que na realidade vem de José, acaso não admite que Deus
esteja com seu interlocutor, sustentando seu desejo de fraternidade, cuja rea-
lização talvez deva passar pelo difícil reconhecimento do crime cometido? Isso
não é surpresa para o leitor, para quem o narrador multiplicou os acenos dis-
cretos nesse sentido nos episódios anteriores da narrativa. Talvez Deus já tenha
estado por trás dos sonhos, confirmando em José um desejo de fraternidade,
e também por trás daquele desconhecido de Siquém, que o convidou a expressar
esse mesmo desejo (37,5-17). Depois, Adonai estava com José quando ele
atravessou suas provações como homem justo e sábio (39,2-5.21-23); os sonhos
que decifrava com a ajuda de Deus se realizaram conforme sua interpretação
(40 e 41), a ponto de o Faraó não hesitar em reconhecer nele um homem cheio
do espírito de Deus, com discernimento e sabedoria incomparáveis (41,38-39).
Quanto a José, acaso não se mostrou próximo de Deus ao reler sua própria
aventura à luz da presença discreta deste (41,51-52) e ao falar, com seus irmãos,
de seu temor a Deus (42,18)? Mesmo que Judá se engane, ele diz algo de
verdadeiro11, que permitirá a José dizer em quais momentos ele crê que Deus
tenha estado com ele (45,5-9). Mas se José está realmente ligado a Deus seu
jogo astucioso tem, mesmo, o intuito de derrotar a serpente!
Judá conclui sua intervenção propondo um castigo que reflete em todo
caso sua solicitude pela fraternidade. Comparado com as sanções anteriores,

11. Ver a esse propósito F. Rossier, L’intercession de Juda, 28-29.

217
José ou a invenção da fraternidade

com efeito, sua intervenção constitui um progresso significativo em um pon-


to: a solidariedade entre todos. Tanto a ideia dos irmãos — todos escravos, o
culpado executado (44,9) — como a do mordomo — todos livres, o culpado
escravizado (44,10) — rompiam essa solidariedade, separando o culpado dos
outros. Nada disso com Judá: como todos são culpados, segundo disse, todos
serão solidários no castigo, e os irmãos permanecerão unidos. Se, como vi-
mos, o intuito de José foi, entre outras coisas, testar a solidariedade do grupo,
sugerindo aos “inocentes” abandonar o “culpado” e ir embora, a resposta de
Judá não pode ser mais categórica.
Mas se pode perguntar por que a sanção preconizada por Judá é a es-
cravidão. É por solidariedade com Benjamim que, conforme a sentença do
mordomo, deveria ser punido desta forma (cf. 44,10)? Talvez. Mas não é
difícil ver também que a punição tem aparência de retribuição, pois consiste,
nem mais nem menos, em fazer os culpados sofrerem a mesma sorte de sua
vítima. Como José, há mais de vinte anos, os irmãos serão escravos de um
“senhor”12 no Egito. Assim, esta sanção revela indiretamente a natureza do
crime dos irmãos, que Judá evocou de maneira muito geral. O castigo de
Judá é, portanto, o mais justo possível para aqueles que perpetraram o crime
contra José e Jacó. Mas desse crime Benjamim não é culpado; e contudo Judá
o absorve, por assim dizer, no crime e no castigo de todos!
Com efeito, ao propor a pena, Judá faz uma distinção entre “nós” e “aquele
em cuja mão for encontrada a taça”. Assim, ele sugere apenas uma diferença, mas
que é considerável e que ele conhece muito bem. Na realidade, esta diferença
afeta o crime e não a punição. Se os dez são culpados do delito que Deus acaba
de desenterrar em plena luz e que Judá confessa em nome de todos, Benjamim
era muito jovem para ser seu cúmplice. Além disso, como vimos, mesmo nas
atuais circunstâncias, Judá não parece convencido da culpa de seu irmão mais
novo, já que evita cuidadosamente incriminá-lo de qualquer modo na perífrase
descritiva pela qual o designa13. Apesar disso, não explica este ponto essencial: a
inocência fundamental de Benjamim, pouco importa o aparente flagrante delito.
Ao contrário, falando em geral sobre o “crime de teus servos” e propondo a
mesma punição para todos, ele escamoteia a singularidade de Benjamim, da
qual, no entanto, como sugerem suas últimas palavras, parece ter consciência.
Ele, que sem dúvida quer fazer a verdade, como no caso de Tamar, não fica
muito aquém das exigências da verdade? E esse jeito de absorver Benjamim

12. A palavra é a mesma que Putifar utiliza em 39,2-3 (’adon).


13. Veja Westermann, 134.

218
Capítulo 13 – A prova da fraternidade (44,14-34)

no crime dos outros não tem também tudo de uma negação da fraternidade,
exatamente quando Judá tenta se mostrar irmão? No mais, tal castigo assolaria
duramente Jacó, que se veria privado de seus filhos e dos alimentos. Também
isso, Judá não parece encará-lo no momento de falar.

A resposta de José (44,17)


A breve resposta de José é particularmente densa. De modo tão indireto
quanto Judá, ela volta aos dois problemas que a sentença emitida por seu irmão
evocou, a saber, a inocência de Benjamim e o esquecimento do pai. José passa
a bola para Judá, como se quisesse fazê-lo ver o que negligenciou (44,17).
E ele [José] disse: “Longe de mim fazer isso! O homem em cuja mão foi
achada a taça, esse será um escravo para mim. Quanto a vós, subi em paz
para junto de vosso pai”.
Inicialmente, o senhor egípcio se recompõe com as mesmas palavras que
os irmãos diante da acusação do mordomo (44,7b). Aceitar a proposta de
sanção de Judá seria um erro grave a seus olhos, e talvez até contra Deus que
foi invocado. Apenas um culpado reconhecido (o ladrão) pode ser punido, os
justos (os irmãos) devem ser postos em liberdade.
Isso quanto às aparências! Em um nível mais profundo, José certamente
o sabe, a pena proposta por Judá ignora a inocência de Benjamim, inclusive
quanto à taça — e se notará, de passagem, que ele retoma a perífrase de Judá,
evitando declarar Benjamim culpado. Neste caso, a solidariedade fraterna
que Judá reivindica tem algo de paródia desleal, na medida em que abole
a diferença entre culpados e inocentes, e a verdade que pretende dizer fica
severamente truncada. Por isso, José nega vigorosamente a solução injusta
preconizada por Judá14, esforçando-se para que a verdade apareça. Também
ele conhece a devastação que uma mentira pode causar, mesmo — e talvez
principalmente — quando aquele que a diz acredita, de boa-fé, estar certo. Se
há uma chance para a fraternidade, não poderá ser ao preço de uma injustiça
contra um dos irmãos, ao preço da negação de sua verdade.
Voltando à sanção do mordomo15, José anuncia que punirá o único culpado
do único crime que ele supostamente conhece, o roubo da taça. Ao fazê-lo, ele

14. M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 306, descreve particularmente bem a
situação.
15. Entre 44,10 e 17, muitos termos se correspondem: o culpado (“aquele com quem for en-
contrado”, tornando-se, após a inspeção bem-sucedida, “o homem em cuja mão foi encontrada a

219
José ou a invenção da fraternidade

provoca Judá, forçando-o a ver que, ao contrário do que disse, nem todos são
iguais no que diz respeito à culpa. Para demonstrar isso — sua sutileza aqui
é incomparável, e sua sabedoria, tão forte como a astúcia da serpente que ele
combate —, José fica no nível das aparências: o único culpado, Benjamim,
vai pagar; os outros, inocentes, estão livres para partir. Ora, José está ciente
de que Judá sabe, para além das aparências, que o oposto é verdadeiro, pois
ele confessou o crime dos dez: estes, na verdade, são os culpados e, portanto,
o único inocente será punido pelo crime dos outros. O véu das aparências
permite que José provoque Judá a, ele mesmo, fazer a verdade, caso contrá-
rio ele verá condenado à escravidão o único inocente do grupo. Assim, José
faz exatamente o contrário do que a serpente fez com a mulher no jardim e
desafia o animal sobre seu próprio terreno: lá onde a serpente jogava com a
verdade para seduzir a mulher a crer na mentira e escolher a morte, José usa
da mentira para levar seu interlocutor a gerar a verdade e a agir bem.
(Neste ponto, peço que se me permita antecipar um pouco. Pois Judá,
posteriormente, sem por isso proclamar a inocência de Benjamim — teria
ele a coragem de negar a evidência diante de tal homem? —, reconhece a
singularidade de seu irmão na relação com o pai e vai se entregar no lugar
do falso culpado, mostrando de alguma forma que ele é o menos inocente
de todos, porque pensou em vender seu irmão aos comerciantes que desciam
ao Egito, para fazê-lo escravo ali. Desta forma, ele assume pessoalmente sua
responsabilidade exata na falta comum. E, se por causa disto ele se tornar
escravo no Egito, será o verdadeiro culpado que terá pagado.)
Será possível que a clemência de José que liberta os irmãos para manter
só Benjamim como escravo seja uma nova prova da fraternidade, pelo que os
dez se veem oferecer a possibilidade de se livrar do preferido do pai que se
tornou como culpado de roubo, colocando em risco o grupo todo? Não está
excluído, embora José já não acredite que eles cairão nesta armadilha: não
se mostraram eles solidários com Benjamim, voltando com ele, enquanto o
mordomo lhes tinha permitido ir para casa? Além disso, no final da resposta,
o foco muda: José evoca diante dos irmãos a perspectiva de voltarem sem
Benjamim, mas “em paz” (lešalom), a seu pai. Evidentemente, não é o šalom
que lá os aguarda, e eles o sabem melhor do que José. Notando a ausência de
Benjamim durante a primeira visita dos irmãos, José deve ter compreendido
que seu pai transferiu sua preferência para o outro filho de Raquel e que agora

taça”) faz contraste com “vós”; o primeiro “será para mim um escravo”, ao passo que os outros,
declarados “quites” pelo mordomo, são convidados por José a voltar para casa.

220
Capítulo 13 – A prova da fraternidade (44,14-34)

ele deve temer o pior. José certamente imagina o que acontecerá quando o
pai vir chegar os dez sem Benjamim — e é sobre isso que Judá lhe vai falar
em seguida. Além disso, como vimos, ao propor que todos fiquem como es-
cravos no Egito, Judá parece ter perdido de vista seu velho pai: não será ele
o primeiro a sofrer pelo não retorno de sua família e, então, morrer pela falta
de alimento? A oferta de Judá, portanto, é bem injusta em relação a Jacó.
A esta luz, entendemos melhor por que José coloca o pai em primeiro
lugar. Pois, se os irmãos não são iguais quanto à culpa, também não o são em
relação a Jacó, que nunca escondeu sua preferência pelos filhos de Raquel.
Também, o esquecimento do pai e de suas preferências, que causaram a di-
visão entre os irmãos, é surpreendente no caso de alguém que, como Judá,
pretende demonstrar sua solidariedade fraterna16. Será que essa omissão
reflete a razão oculta da injustiça e da negação da verdade que ele acaba de
cometer em relação a Benjamim? Enfim, as últimas palavras de José, “subi
(sem Benjamim) em paz para junto de vosso pai”, redobram a provocação. E,
depois da separação de Benjamim e da declaração indireta de sua inocência,
são essas, sem dúvida, as palavras que farão Judá ir até o fim, a ponto de
entrar na verdade, precisamente, no que concerne à relação entre o grupo dos
irmãos e seu pai e ao amor preferencial deste último que os levou à inveja.
Inconscientemente, talvez, José levou Judá exatamente ao que, desde o início,
tem tornado impossível a construção da fraternidade, a saber, a preferência
de Jacó pelos filhos de Raquel.

A súplica de Judá (44,18-34)


18
E Judá aproximou-se dele e disse-lhe: “Por graça, meu senhor, deixa pois teu
servo declarar uma palavra aos ouvidos do meu senhor, e que tua cólera não
se acenda contra teu servo. Pois tal como tu és, tal é o Faraó!
19
Meu senhor interrogou seus servos, dizendo: ‘Tendes um pai ou um irmão?’
20
E nós dissemos a meu senhor: ‘Temos um pai velho e uma criança da velhice,
um menor; e seu irmão morreu e ele restou, só ele, de sua mãe, e seu pai o
ama’. 21E tu disseste a teus servos: ‘Fazei-o descer a mim para que ponha meus
olhos nele’. 22E nós dissemos a meu senhor: ‘O menino não poderá deixar seu
pai. Se abandonar o pai, este morrerá’17. 23E tu disseste a teus servos: ‘Se vosso
irmão menor não descer convosco, não continuareis a ver minha face’.

16. Ver também M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 306.


17. O final é ambíguo: a morte pode ser de Jacó, de Benjamim ou de ambos. Ver R. Alter,
Genesis, 264.

221
José ou a invenção da fraternidade

24
E quando subimos para junto de teu servo, nosso pai, relatamos-lhe as
palavras de meu senhor. 25E nosso pai nos disse: ‘Voltai para comprar um
pouco de alimento’, 26e nós dissemos: ‘Não poderemos descer; se nosso irmão
menor for conosco, nós desceremos, mas não poderemos ver a face do homem
se nosso irmão menor não estiver conosco. 27E teu servo, meu pai, nos disse:
‘Vós sabeis que dois [filhos] me deu à luz minha mulher. 28E um saiu de junto
de mim, e eu disse: ‘Certamente foi estraçalhado, estraçalhado’, e não o vi
até agora. 29Se me tirardes também este de minha presença e um acidente lhe
acontecer, fareis descer minhas cãs em mal ao Xeol’.
30
E agora, se eu chegar para junto de teu servo meu pai, enquanto o menino
não estiver conosco — ora, sua alma está ligada à alma dele —, 31quando ele
vir que o menino não está, morrerá, e os teus servos terão feito descer as cãs
de teu servo, em tristeza, ao Xeol.
32
E teu servo se pôs em fiança pelo menino diante de meu pai, dizendo: ‘Se
não o fizer vir a ti, terei cometido falta contra meu pai por todos os dias’. 33E
agora, que teu servo fique, te peço, no lugar do menino [como] escravo de
meu senhor, e que o menino suba com os seus irmãos. 34Pois como subiria eu
para junto de meu pai se o menino não está comigo? Que eu não veja esse
mal encontrar o meu pai”.

Este longo discurso de Judá se apresenta como uma súplica. Dando o


tom ao conjunto, suas primeiras palavras — “por graça, meu senhor!” (bi
’adoni) — introduzem habitualmente uma súplica dirigida a Deus, a um rei
ou a uma outra autoridade “que está em condição de conceder o perdão ou
um favor”18 — o que é o caso aqui porque, aos olhos de Judá, José é “como
Faraó”. É, portanto, uma súplica que vai pronunciar aqui. Em primeiro lu-
gar, Judá suplica a José que lhe permita apresentar uma defesa (“dizer uma
palavra”, dibber davar), apesar de admitir não ter nenhum direito, por ter se
declarado culpado (44,16). José poderia ficar com raiva por isso, daí o pedido
expresso do pleiteante. Na realidade, é uma causa que ele vai pleitear: sua
causa de culpado, para sofrer o castigo no lugar de seu irmão, mas também
a causa de seu irmão, e por consequência de seu pai, para que o juiz lhes
manifeste sua indulgência; daí o tom de súplica do conjunto. Judá permanece

18. Ver A. Da Silva, La symbolique des rêves, 159: as palavras são dirigidas a Deus (designado
como ’adonay) em Êxodo 4,10.13, Josué 7,8, Juízes 6,15; 13,8, a outros personagens (geralmente
com ’adoni): o anjo de Adonai em Juízes 6,13, o rei em 1 Reis 3,17.26, Moisés em Números 12,11, o
sacerdote Eli em 1 Samuel 1,26 e Davi em 1 Samuel 25,24. Para T. L. Hettema, Reading for Good,
199, bi pode ser traduzido: “a culpa está sobre mim”. Ver já 43,20-22, onde os irmãos suplicam ao
mordomo por causa do dinheiro encontrado.

222
Capítulo 13 – A prova da fraternidade (44,14-34)

no terreno judiciário das réplicas anteriores. Mas o faz de outra maneira, em


função do compromisso que assumiu ante seu pai, para tentar convencer o
juiz a deixá-lo sofrer o castigo no lugar do irmão condenado. Para conseguir
isso, ele joga essencialmente no registro afetivo, evocando em particular os
sentimentos que unem pai e filhos no contexto das relações familiares, onde
o amor filial e fraternal prevalece sobre os argumentos da mera justiça19. Mas
veremos que, sem parecer tocar no ponto e talvez sem pensar, Judá volta à
questão da culpabilidade. Ele o faz de novo, indiretamente, quando sugere,
no final, modificar a punição decretada por José.
Embora retomando e confirmando o veredicto do mordomo, a última
sentença de José tinha contornos mais claros. Doravante, o inocente Benjamim
é claramente condenado e separado de seus irmãos, que, culpados mas livres,
se veem reenviados a seu pai. Ao ouvir a longa resposta de Judá, o leitor com-
preende logo que o que a provoca é precisamente essa evocação, por José, de
Benjamim e Jacó, esses mesmos que esqueceu quando propôs a escravidão
para todos. De fato, de acordo com a sanção proposta por Judá, como vimos,
esses dois inocentes seriam os que sofreriam as consequências do crime dos
irmãos, crime por muito tempo escondido e que Judá acaba de confessar com
meias-palavras (44,16). É, portanto, lógico que seu discurso agora seja total-
mente centrado nos dois inocentes: se ele evoca os acontecimentos passados
dos quais o leitor ouviu o relato, é exclusivamente para falar de Jacó e de
Benjamim, e de sua relação privilegiada, com preterição de todos os outros
elementos do processo20. Assim, a escolha de revisitar toda a história é, sobre-
tudo, uma forma de insistir num elemento que o senhor egípcio supostamente
ignora e que, aos olhos de Judá, sem dúvida, é capaz de fazer que aceite seu
sacrifício em favor de Benjamim.
Na realidade, o leitor sabe que José entende muito mais do que Judá possa
imaginar. Por isso, deve tentar perceber não somente (1) a competência da
retórica de Judá com o egípcio, mas também (2) o eco que o discurso adquire
em José. Além disso, graças à sua posição superior, (3) o leitor poderá perceber
outros harmônicos no pano de fundo. Mas antes de examinar estes três níveis
de sentido não é perda de tempo observar, de início, alguns aspectos formais
desse notável exemplo de eloquência.
Primeira observação sobre a forma: de modo muito coerente, toda a súplica
é formulada em estilo de corte. É a primeira vez que isso se produz nos diálogos

19. M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 307, vai nesta direção.
20. Veja já Gunkel, 455.

223
José ou a invenção da fraternidade

entre os irmãos e o egípcio21, como se Judá quisesse marcar a distância na


linguagem, no momento em que ele se permite reduzi-la tornando-se próximo
à maneira de um suplicante. Assim, diante de “meu senhor”, ele se diz “teu
servo” — com seus irmãos “teus servos” —, enquanto fala de Jacó como de “teu
servo, meu (nosso) pai”. Além disso, após o exórdio (44,18), Judá se exprime
em nome de todos: ele diz “nós”, “teus servos”, apresentando-se implicita-
mente como o porta-voz dos dez, e Benjamim jamais está incluído nesse “nós”
(44,19-31). Ele sai do grupo somente no fim, quando evoca o compromisso
que assumiu pessoalmente como garante da vida de seu irmão (44,32-33)22.
Quanto à peroração, esta ressoa como um pungente grito do coração, que faz
Judá esquecer o estilo de cerimônia em favor de uma linguagem muito mais
direta, destinada a tocar o coração do senhor a quem ele implora (44,34)23.
Segunda observação: o tema principal da súplica de Judá volta três vezes
em seu discurso24. Ele tem dois componentes principais: de um lado, o carinho
especial de Jacó pelos filhos de Raquel, em particular Benjamim; por outro
lado, o caráter vital desta ligação, cuja ruptura causaria a morte do pai25. Em
torno deste tema, Judá revisita o passado recente e encara o futuro próximo
em quatro etapas: [1] em seu primeiro reencontro, os irmãos falaram para
José de seu pai e de seu filho amado, o “benjamim” da família, que depois
do desaparecimento de seu irmão ficou só. Judá precisa que, quando o se-
nhor pediu para ver o jovem, eles advertiram que seu pai morreria se acaso
o perdesse. Apesar disso, o senhor manteve sua exigência (44,19-23). [2]
Retornando para casa, os irmãos relataram a seu pai a ordem do egípcio; mas
o pai se lamentou, insistindo no filho de Raquel que ficou sozinho depois da
morte de seu irmão e afirmando que, se lhe acontecesse o pior, ele mesmo
morreria (44,24-29). [3] Finalmente, sem voltar aos acontecimentos recentes,
Judá antecipa o que vai acontecer “agora” que Benjamim foi condenado à
escravidão no Egito: voltando para o pai sem o irmão, os dez lhe causarão
uma aflição tal que o precipitarão na morte (44,30-31)26. [4] A quarta etapa

21. A coisa é bem observada por B. Green, “What Profit for Us?”, 147.
22. Esta implicação em primeira pessoa é iniciada no versículo 30a, onde Judá começa a con-
siderar o retorno próximo para seu pai diante do qual ele se engajou (“E agora, se eu chegar para
junto de teu servo meu pai…”).
23. Veja Westermann, 136.
24. R. Alter, L’art du récit biblique, 236, objetiva o tema central em poucas linhas.
25. Assim já Von Rad, 402-403. Está claro que o objetivo de Judá não é retomar a história
toda: ele prende-se apenas ao que diz respeito à sua principal preocupação.
26. Nessas três partes, as últimas palavras de cada frase, em que um dos dois temas se exprime,
são geralmente significativas, e esse traço é particularmente forte: [1] “seu pai o ama” (44,20) e

224
Capítulo 13 – A prova da fraternidade (44,14-34)

é um pouco diferente e percorre, novamente e de forma sucinta, o passado, o


presente e o futuro. Ontem, Judá prometeu trazer de volta seu irmão para o
pai, tornando-se garante dele. “Agora”, ele implora ao egípcio que lhe permita
manter sua palavra e que o faça escravo no lugar do menor, que retornará
com os outros. Amanhã, ele não suportaria ver a desgraça ferir seu pai de
morte — quarta insistência, indireta desta vez, sobre o apego vital de seu pai
a Benjamim (44,32-34)27.
Ao observar mais atentamente, verifica-se que as três cenas às quais Judá
se refere para descrever o amor de seu pai por seu irmão assumem este mesmo
tema a partir de três perspectivas diferentes. Na primeira vez, são os irmãos
que falam dessa afeição especial (44,20) e do risco de morte que a separa-
ção violenta entre o menino e seu pai traria consigo (44,22); apesar disso, o
senhor manteve sua ordem de lho trazer (44,21 e 23), exigência transmitida
pelos irmãos (44,26). Na segunda vez, Judá faz o próprio pai expressar seu
amor privilegiado por este filho, que um drama anterior tornou único (44,27-
28), e evocar a morte de que seus outros filhos seriam responsáveis caso
lhe acontecesse o pior (44,29). Finalmente, na terceira vez, o próprio Judá,
imaginando a iminente volta para junto do pai, recorda a ligação íntima deste
com seu jovem filho (44,30b), cuja ausência certamente o fará morrer (44,31);
foi esta a razão por que ele se tornou garante diante de seu pai (44,32), o que
explica que deseje substituir seu irmão (44,33), para não ver a morte de seu
pai (44,34). Vemos a que conclusão implícita essa variação significativa dá
ensejo: todos na família — o filho, o pai e Judá — estão de acordo para pro-
teger o amor preferencial do pai por seu último nascido; o senhor egípcio, de
quem atualmente depende a decisão, vai ser o único a quebrar isso ao rejeitar
o sacrifício de Judá, causando assim a morte do ancião?28
Essa poderosa insistência, com suas variações sutis, é inserida numa dinâ-
mica retórica bem elaborada. Num longo retorno, ocupando três quartos de seu
discurso (44,19-29), Judá lembra os retroatos daquilo que o leva a pleitear. O
tempo que, assim, ele gasta em repetições deve produzir certa impaciência no
ouvinte. No entanto, no final desta parte, um elemento importante ainda resta
esclarecer: se o pai opôs uma recusa ou ao menos uma extrema resistência à
exigência de trazer Benjamim (44,27-29), como se explica que no presente

“(seu pai) este morrerá” (44,22); [2, no fim] “em mal ao Xeol” (44,29b); [3] “sua alma está ligada
à alma dele” (44,30, expressão de duplo sentido) e “em mal ao Xeol” (44,31).
27. Sobre este ponto, ver Westermann, 135-136, ou Wenham, 426.
28. Para B. Green, “What Profit for Us?”, 151, a retórica de Judá é destinada a fazer o senhor
egípcio sentir que a família está a mercê de sua decisão.

225
José ou a invenção da fraternidade

momento este esteja aí? Judá deixa a questão suspensa, adiando a resposta
como para atrasar a principal revelação que ela deve fornecer e que esclarece
toda a sua súplica29. Ele aumenta ainda a curiosidade — e assim, a tensão
— evocando o que aconteceria se retornassem sem Benjamim (44,30-31). Só
então chega o elemento esperado que explica a presença de Benjamim: Judá
se engajou para ser garante dele em caso de problema, e foi isso que fez seu
velho pai se decidir a deixá-lo partir, de modo que, agora, está aí no meio de
seus irmãos. É esta palavra dada que Judá agora se esforça em manter, por
amor a seu pai que ele quer salvar dessa desgraça suplementar (44,32-34). O
que emerge, com efeito, no final do discurso é que, se Judá se oferece para
substituir seu irmão, não é só porque ele se engajou, mas acima de tudo por
amor a seu pai, por afeição a esse ancião, que uma nova desgraça certamente
levaria à morte30.
A serviço desta estratégia está também a arte narrativa que Judá desen-
volve. O leitor atento terá percebido a técnica utilizada para evocar os fatos
passados (44,19-29). Judá recorre, de forma sistemática e exclusiva, ao modo
cênico, mostrando os atores em diálogo31. Com essa técnica, dá a impressão
de se retirar, como narrador, por trás dos personagens que põe em cena, como
se não interviesse no relato, enquanto o acomoda amplamente em seu modo
de remodelar o conteúdo dos diálogos. Destarte, ele dá a seu ouvinte egípcio
a sensação de reviver os momentos que vivenciou, mas também de assistir
diretamente à cena entre os filhos e seu pai, fazendo entender detalhadamente
suas palavras, nas quais os irmãos se mostram comprometidos com seu velho
pai e com o filho de sua velhice (44,20 e 22), e depois também sua insistên-
cia para convencer o pai a deixar Benjamim partir (44,26); e sobretudo cria
nele a impressão de ser testemunha do lamento de seu pai e de sua reticência
em deixar livre o filho, de quem depende sua vida (44,27-29) — da mesma
forma que o narrador faz do leitor a testemunha “direta” de toda esta cena

29. Tomo a ideia de F. Rossier, L’intercession de Juda, 46.


30. Sobre este ponto, ver M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 308, ou F. Rossier,
L’intercession de Juda, 50. D. A. Seybold, Paradox and Symmetry, 71, compara essa atitude de
Judá com a de Tamar: como ela, ele esquece toda a consideração por si mesmo, para garantir o
bem-estar da família.
31. Para esta técnica, ver o relato dos irmãos para Jacó em 42,30-34. As intervenções narrativas
de Judá são limitadas aos detalhes encenados; na cena do Egito: “Meu senhor interrogou seus ser-
vos, dizendo” (44,19), “e nós dissemos a meu Senhor” (v. 20), “e tu disseste a teus servos” (v. 21),
“e nós dissemos a meu senhor” (v. 22), “mas tu disseste a teus servos” (v. 23). Judá, em seguida,
assegura a transição com a cena em Canaã (v. 24: “e quando subimos para junto de teu servo, nosso
pai, relatamos-lhe as palavras de meu senhor”), antes de encadear: “e nosso pai nos disse” (v. 25),
“e nós dissemos” (v. 26), “e teu servo, meu pai, nos disse” (v. 27).

226
Capítulo 13 – A prova da fraternidade (44,14-34)

depois do versículo 14. Assim, Judá consegue dotar sua narração de uma
surpreendente força dramática, que torna a situação pungente ao extremo,
antes de descrever a ameaça de morte que pesa agora sobre o seu pai (44,30:
“e agora”). Em seguida, passa ao discurso direto, reservando a citação para
destacar o elemento que muda tudo e que motiva sua súplica, ou seja, seu pró-
prio compromisso com seu pai (44,32b), compromisso que permite considerar
uma solução menos dramática se o senhor egípcio consentir.
Neste ponto, surge a questão de saber se Judá reescreve a história ou se
ele preenche partes deixadas em branco pelo narrador em seu relato da pri-
meira viagem ao Egito32. Há pouca dúvida de que ele distorce completamente
os fatos quando fala da exigência do senhor de trazer Benjamim (44,19-21).
Com efeito, o narrador contou em detalhes as acusações, a defesa improvi-
sada dos irmãos e a obrigação de trazer o irmão menor em vista de provar a
veracidade de suas palavras (42,9-20)33. Mas as coisas ficam menos claras lá
onde Judá repete, diante do senhor, o que antes disse a seu pai, a saber, que
sem o irmão eles não seriam mais admitidos na presença do senhor (44,23.26,
ver também 43,3.5). Será que ele retoma uma segunda vez aquilo que inven-
tou para convencer Jacó? Diante do senhor seria mais difícil mentir, ainda
que, pouco antes, Judá não tenha hesitado em manipular fatos em que seu
interlocutor estava envolvido. Resta que a objeção acerca do pai, ameaçado
de morte por causa da partida de Benjamim (44,22), pode ter sido levantada
pelos irmãos, por exemplo quando o egípcio os jogou na prisão após lhes ter
falado pela primeira vez em buscarem seu irmão em Canaã (42,17)34, e que
pode ter formulado a proibição de revê-lo sem esse irmão quando “ele lhes
fala” antes da partida (42,24). Se esse é o caso, José estava consciente do
sofrimento que ele impôs a seu pai ao exigir ver seu irmão e decidiu manter

32. Para alguns, Judá traz as informações anteriormente preteridas pelo narrador. Nesse sentido,
por exemplo, M. O’Brien, The Contribution of Judah’s Speech, 435. Para um estudo comparativo
entre os fatos narrados e o que Judá relata deles, ver F. Rossier, L’intercession de Juda, 38-46.
33. Em particular, Judá introduz a ideia de que, desde a primeira pergunta sobre a família, os
irmãos falaram do amor preferencial de Jacó por Benjamim, devido à morte de seu irmão (44,20): este
elemento é demasiado coerente com a retórica do discurso para não ser uma invenção oportuna.
34. Isto poderia explicar por que José não impõe sua primeira decisão (42,15-16) e dá um prazo
de reflexão de três dias aprisionando os dez. — No caso de esta hipótese estar correta, se no retorno
a Canaã os irmãos não falam da exigência é porque tentam suavizar o retrato do egípcio para não
assustar o pai (42,30-34). Mas quando ele os manda buscar alimentos no Egito então, sim, Judá
deve mencionar a ameaça do homem (43,1-5). Se o narrador silenciou esses elementos, talvez te-
nha sido para evitar sobrecarregar a narrativa da primeira reunião com elementos desnecessários à
compreensão imediata dos fatos relatados, introduzindo-os somente quando se tornam úteis (técnica
utilizada em 42,23b para introduzir o intérprete).

227
José ou a invenção da fraternidade

sua decisão com conhecimento de causa, certamente porque sabia — por tê-lo
vivido — como essa relação privilegiada representava um grande obstáculo
para a instauração da fraternidade. Porém, não temos certeza, e o narrador
não removerá a ambiguidade para o leitor, preferindo deixar Judá desdobrar
diante do egípcio uma estratégia de persuasão que já utilizou antes com seu
pai, estratégia que consiste em dizer a seu interlocutor que ele tem poder
sobre a vida e a morte e que sua decisão de guardar ou não Benjamim será
decisiva a este respeito35.
Estas características formais conferem uma força retórica pouco comum à
súplica. Visivelmente, Judá dá tudo de si para persuadir o senhor a lhe permitir
ficar lá, no lugar do menino. Sua estratégia consiste em suscitar a piedade,
contando-lhe os acontecimentos a partir de uma perspectiva nova, que torna
a situação ao mesmo tempo complexa e dramática do ponto de vista da famí-
lia36. Será que Judá se recorda do interesse que esse estrangeiro manifestou,
no dia anterior, em relação a seu “velho pai”, e da atenção especial que dis-
pensou ao “irmão menor” (44,20; 43,27-29)? Será que ele notou que essas
duas figuras não estavam alheias à emoção evidente do egípcio, que antes
do almoço teve que se retirar abruptamente depois de falar com Benjamim
(43,30)? Sem dúvida, esses fatos recentes são o pano de fundo do discurso
de Judá. Especialmente porque o senhor, pela sanção que propôs, trouxe ao
primeiro plano o irmão inocente e o sofrimento do pai. Com efeito, como
vimos, Judá usa uma insistência pouco comum em demonstrar ao senhor que
a vida e o bem-estar de seu velho pai, pelo qual se mostrou tão solícito, estão
nas mãos dele, submetidas à decisão que ele tomar em relação ao filho amado.
Por seu lado, tocado pela situação, Judá decidiu sacrificar-se para salvar seu
pai: porventura o senhor estrangeiro pode mostrar menos grandeza de alma
que esse hebreu que acaba de se confessar culpado?
Aliás, no início de seu discurso, Judá apresenta seu interlocutor positiva-
mente, remodelando completamente os fatos e preterindo aquilo que poderia
ofender. As circunstâncias nas quais o senhor exigiu a vinda do irmão menor
não são mais, aqui, a acusação agressiva de espionagem e o aprisionamento ar-
bitrário (44,19-23)37. É um encontro bem mais sereno, no qual, desde a primeira
entrevista com seus clientes estrangeiros, o egípcio se interessa gentilmente
por sua família. Se mandou trazer o irmão deles foi, aparentemente, para lhe

35. Para sua estratégia de convencimento de Jacó, ver 43,3-5.8-11.


36. Ver B. Green, “What Profit for Us?”, 147.
37. A ideia é de W. L. Humphreys, Joseph and his Family, 47.

228
Capítulo 13 – A prova da fraternidade (44,14-34)

demonstrar sua benevolência, como fez na noite anterior ao presente diálogo


(ver 43,29 e 34). Só a resistência dos irmãos [*44,22] o leva a mostrar mais
firmeza, o que, para um homem em sua posição, é antes qualidade que defeito.
Tanto, que as palavras que Judá lhe atribui não são em nada agressivas: “Se
vosso irmão menor não descer convosco, não continuareis a ver minha face”
(44,23). Percebe-se bem a extrema prudência de Judá. Mas, apresentando assim
a atitude do senhor quando da primeira viagem dos irmãos, sem dúvida prepara
o terreno para o final: como uma pessoa tão nobre e respeitadora poderia não
concordar com a proposta generosa daquele que lhe suplica?
No entanto, se Judá pretende poupar seu interlocutor, evitando qualquer
traço negativo suscetível de incomodá-lo38, ele também mostra como sua exi-
gência aparentemente legítima tem afetado o velho pai. Decerto, ele se guarda
de envolvê-lo diretamente: cabe a ele compreender! A ordem que o senhor
deu, a despeito da advertência dos irmãos prevenindo-o do perigo que causava
ao pai, tem produzido efeitos devastadores39. E citando o lamento pungen-
te do pai — na verdade, um discurso reconstruído a partir do que disse Jacó
ao se recusar a lhes confiar Benjamim, em 42,38, e de outras palavras tomadas
aqui e ali40 — Judá faz o egípcio sentir o sofrimento que ele provocou num
ancião pelo qual, aliás, ele tem mostrado toda a sua solicitude (44,27-29).
Será que ele não pode acabar com esta provação, já que tem tal poder?
Além da retórica, o leitor verá aí um sinal da genuína empatia que Judá
sente em relação a seu pai. Suas palavras pungentes fazem sentir toda a com-
preensão que ele tem do drama que Jacó vai viver se Benjamim não voltar.
Ora, se é capaz de dar conta com tal acuidade daquilo que seu pai está vivendo,
se ele é capaz de encontrar as palavras e o tom ao mesmo tempo acertados e
emocionantes, não será porque ele próprio, um dia, se encontrou na mesma
situação que seu pai, à beira de perder seu filho mais novo, depois de já ter
perdido outros dois e ter feito tudo para não o ver morrer?41 Não é compreen-
sível que ele, que testemunhou o sofrimento de seu pai após o desaparecimento
de José — suas próprias palavras referem-se a essa cena violenta (44,28) —,

38. Neste sentido, Von Rad, 402.


39. Conforme sugerido por B. Green, “What Profit for Us?”, 151, o contraste entre a família
quase idealizada e a firmeza do egípcio espelha para este a imagem de um homem duro. Esta é
obviamente uma requintada maneira de abrandá-lo.
40. Basicamente, Judá ecoa o que ouviu de seu pai em 42,38 (preferência pelo filho de Raquel,
desaparecimento de José, medo de uma calamidade para Benjamim que causaria a sua morte), mas
contém outros elementos, como seu grito desesperado de 37,33 (citado em 44,28), a expressão
“descer ao Xeol” de 37,35 e o medo de um acidente de 42,4 (em 44,29).
41. Consulte, por exemplo, Wenham, 364; A. J. Lambe, Judah’s Development, 64-65.

229
José ou a invenção da fraternidade

intervenha para poupá-lo de uma infelicidade da qual imagina a crueldade,


depois de sua experiência no caso de Sela? Uma sinceridade tão empática
só pode tocar o coração do egípcio42, especialmente porque Judá o fez tomar
consciência de que foi ele quem colocou esse ancião em agonia, à qual porém
poderá colocar um ponto final.

Dito isto, quem escuta a defesa é José e não o senhor egípcio sob cuja
máscara se esconde e que Judá tenta emocionar. Ora, José tem interesses que
Judá ignora, outras chaves também para captar aquilo que está em pauta no
discurso dirigido a ele. E enquanto Judá empenha toda a sua arte para suscitar
pena num estrangeiro e convencê-lo a deixar seu irmão ir, é um outro irmão
quem o ouve falar desse velho pai, que também é seu, e de seu afeto por um
filho que foi, por assim dizer, seu substituto — o filho da velhice, único de
sua mãe, menino amado por seu pai (44,20). Ouvindo Judá, e apesar das li-
berdades que este toma em relação aos acontecimentos, José descobre coisas
novas a respeito de sua família: os fatos que ignora até aquele momento, mas
sobretudo um novo estado de espírito.
Assim, pela boca de seu irmão43, José fica a par daquilo que seus pa-
rentes pensam sobre seu desaparecimento. Para os irmãos, ele poderia estar
morto (44,20). Quanto a seu pai, este imaginou que seu filho foi dilacerado
por um animal selvagem (cf. 37,33), mas só tem certeza de uma coisa: ele
não o reviu até agora (44,28). Será que ainda alimentava alguma esperança
de vê-lo novamente? Depois, indiretamente, José aprende a causa provável do
atraso da segunda viagem, não que esqueceram Simeão, mas principalmente
a obstinada resistência do pai à partida de Benjamim (44,24-29); somente
Judá, engajando-se pessoalmente, parece ter conseguido convencer o ancião
(44,32). Assim, José compreende a dor que seu teste provocou, sobretudo em
seu pai. A hipótese do apego do ancião ao segundo filho de Raquel era correta.
Qualquer que tenha sido a eventual vontade consciente de José, sua exigência
impôs a Jacó uma renúncia dolorosa à preferência que foi a origem da crise
da família: também o pai passou pela prova, e isso graças a seus filhos —
especialmente Judá —, que demonstraram sua capacidade de se posicionar
com clareza em face de seu pai.

42. Segundo W estermann , 135, Judá apela à sensibilidade da pessoa humana de seu
interlocutor.
43. Repito aqui elementos levantados por M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative,
308. Veja também Westermann, 136.

230
Capítulo 13 – A prova da fraternidade (44,14-34)

Mas neste discurso José pode também constatar quanto evoluiu, ao longo
das provações, a relação entre Judá — e sem dúvida os irmãos de quem é o
porta-voz — e os dois membros da família que este e os outros fizeram sofrer,
vinte anos antes: o pai e seu preferido, o filho de Raquel. Judá, como vimos,
destaca, muitas vezes com palavras cheias de ternura, que um laço privilegiado
une seu pai a seu irmão menor (44,20.22.27-29.30). Ele até admite que o pai
de todos eles diga: “Vós sabeis que dois [filhos] me deu à luz minha mulher”
(44,27) — e pode até ser ele mesmo quem inventa essas palavras. Mas, longe
de estar zangado com seu pai, ele repetidamente expressa seu carinho por ele
e seu respeito por aquilo que é. O amor aflorará claramente quando Judá se
puser a falar em primeira pessoa (44,30-31), e se torna comovente no final
(44,34), especialmente porque neste momento se traduz em atos, na fidelidade
à palavra dada. Assim, Judá demonstra que aceita seu pai tal como é, com sua
preferência pelos filhos de Raquel, preferência que, no início, havia justamente
inflamado o ódio nele e em seus irmãos, empurrando-os à violência extrema.
José deve ver claramente que Judá renunciou ao ciúme em relação ao irmão
privilegiado44. Este não concorda somente com a realidade da família; ele vai
ao ponto de se sacrificar no lugar do irmão mais novo para proteger a relação
preferencial da qual depende a vida de seu pai e guardar em liberdade um
irmão mais amado que ele45.
Essas informações, como vimos, não são neutras e, sem Judá ter conhe-
cimento, ainda ampliam os efeitos desejados pela retórica que ele desenvol-
ve. O simples fato de ouvir falar tanto e com bastante carinho desse “velho
pai”, pai de Benjamim, mas também “meu pai” e “nosso pai”46, já é capaz
de comover o filho que se esconde atrás do senhor egípcio, a ponto de ele
também arder de vontade de dizer “meu pai” (veja 45,3). No mesmo sentido,
a evocação constante de Benjamim e de sua relação privilegiada com seu pai
(em particular em 44,20 e 27, ver também o versículo 30b) só pode remeter
José à situação que ele mesmo viveu no passado. E, se a intenção de Judá é
informar o egípcio do carinho privilegiado do pai pelo mais novo — um aspecto

44. Como observado por F. Rossier, L’intercession de Juda, 40, a retomada por Judá, em 44,20,
de duas palavras-chave de 37,3, “criança” (ali está “filho”) da “velhice” (zequnim) e “amar” (’ahev),
sublinha que o que tem provocado o ódio dos irmãos (37,4) é fonte, aqui, do sacrifício de Judá. Ver
também R. Alter, Genesis, 263-264, e Westermann, 136.
45. A coisa foi seguidamente sublinhada pelos comentaristas. Consulte, por exemplo, R. Alter,
L’art du récit biblique, 236-237, M. Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 307.
46. O termo aparece catorze vezes: duas vezes “pai” (44,19 e 20), três vezes “seu pai” (de
Benjamim: v. 20 e 22 [bis]), sete vezes “meu pai” (de Judá: v. 24, 27, 30, 32 [bis] e 34 [bis]), duas
vezes “nosso pai” (v. 25 e 31): como é que José entende, particularmente, essas últimas palavras?

231
José ou a invenção da fraternidade

da situação cuja capacidade de tornar dramáticas as coisas esse estrangeiro


supostamente ignora —, seu discurso toca ainda mais José, porque desperta
nele lembranças e emoções que são as de um filho preferido e de um irmão
anteriormente odiado.
Ao mesmo tempo, José realiza que foi ele, conscientemente ou não, que
provocou o choque da família e que merece as reprovações que, de forma
sutil e indireta, Judá dirige ao senhor egípcio por causa de sua dureza. Tanto
que, pelo discurso de defesa de seu irmão, José é feito testemunha do cari-
nho dos filhos para com seu pai e Benjamim (44,20.22), do amor seletivo e
ciumento do pai pelos dois filhos de “sua mulher” (44,27-29.30b), bem como
do sacrifício que Judá quer assumir para não privar seu pai de seu preferido
(44,32-33). José, que já os fez sofrer com a prova que lhes impôs, poderia ele,
após isso, ser o único a querer truncar esse amor aceito por todos e a gerar
a infelicidade de seu pai e de seus irmãos? Em vista do que se sabe sobre
ele, seria uma grande surpresa. Ainda assim, mesmo que seja em parte sem
o conhecimento de Judá, que não pode perceber o que sua retórica provoca
em seu irmão, a pressão pesa agora totalmente sobre os ombros de José, e é
difícil entender como ele ainda consegue suportar. E, mesmo que o discur-
so de Judá pudesse ser suficiente para mostrar que agora ele e seus irmãos
estão prontos para a fraternidade, não é um raciocínio deste tipo que provoca
a reação de José, mas sim — o narrador é explícito — o excesso de emoção
que o impede de se conter por mais tempo (45,1). E isso o brilhante roteirista
que é José certamente não o tinha previsto!47

Mas antes de olhar mais de perto a reação de José devemos observar alguns
aspectos menos visíveis da súplica de Judá, que só o leitor é capaz de perceber,
porque, de certo ponto de vista, o narrador lhe deu uma posição superior em
relação aos personagens, inclusive José48. Um primeiro ponto diz respeito à
questão da culpabilidade, questão aparentemente deixada em suspense após
a última intervenção do egípcio, que contestava indiretamente o que Judá
sugeriu, a saber, que todos são igualmente culpados (44,17). Na realidade,
em sua defesa, Judá retorna a este ponto. Também ele o faz indiretamente,
na medida em que não aborda explicitamente o tema da responsabilidade e
da culpa. Com efeito, embora se permita algumas acomodações da verdade,

47. Ver J. P. Sonnet, Y a-t-il un narrateur?, 26.


48. Se o leitor continua a ignorar o pano de fundo do jogo que José tem jogado até agora, ele
conhece, em compensação, o papel que Judá desempenhou no desaparecimento de José, ao contrário
deste último, que se encontrava largado no buraco (cf. 37,24-28).

232
Capítulo 13 – A prova da fraternidade (44,14-34)

deixa transparecer várias vezes a verdade quanto à culpabilidade dos irmãos


e a inocência de Benjamim. Vamos ver como.
Quando Judá, no centro de sua súplica, recompõe as palavras do pai
(44,27-29), vem-lhe à mente o grito que ressoara, anteriormente, à notícia do
desaparecimento de José: “Ele foi dilacerado, dilacerado, José!” (37,33). Após
esta recordação, particularmente evidente, da cena em que os irmãos se tornaram
culpados em relação a seu pai, Judá coloca na boca de Jacó palavras que os
acusam de forma clara: “Se vós me tirardes também este de minha presença
e um acidente lhe acontecer, vós fareis minhas cãs descer em mal ao Xeol”.
O advérbio “também” (gam) é breve, mas eloquente: não reflete, em Judá, a
consciência de já ter tirado um primeiro filho de seu pai?49 Além disso, repe-
tindo as palavras de Jacó que refletiam seu desejo de morte após a perda de
José (42,38, ver também 37,3550), Judá parece conformar-se à ideia de que, se
voltarem sem seu irmão mais novo, eles serão culpados da morte de seu pai.
Além disso, ele reitera uma segunda vez, como por insistência: se o pai morre
por causa de ausência de Benjamim, é que “teus servos terão feito descer as cãs
de teu servo, em mal, ao Xeol” (44,31). Ele precisa que ele mesmo carregará
para sempre a culpa disso (44,32). Não é exatamente isso que propõe fazer
quando se oferece para sofrer o castigo prometido a Benjamim?
Ora, além da fidelidade à palavra dada e da afeição sincera pelo pai, essa
substituição, em realidade, não é mais que justiça. Se, de fato, conforme os
termos da sentença do senhor, ele é quem se torna escravo e o jovem é au-
torizado a “subir com seus irmãos” (44,33, veja v. 17), Judá ocupará o lugar
do culpado, deixando a Benjamim o do inocente. Em relação à falta antiga,
não é isso que é verdade? Não é Judá que, há mais de vinte anos, já tinha se
singularizado em relação aos outros, propondo vender seu irmão aos merca-
dores que desciam ao Egito, condenando-o provavelmente a ser escravo nessa
terra (cf. 37,26-27)? Se for ele quem vai pagar agora, realmente o culpado
terá recebido o castigo de sua falta e conhecerá o destino que antigamente
imaginara para sua vítima. Assim, o mal que um dia desencadeou retornará
sobre ele, e somente sobre ele51. Agora, o que fala assim aprendeu, algum dia,
graças a Tamar, que, ao se atrever a dizer a verdade para livrar um inocente

49. Talvez também a consciência de que seu pai saiba de alguma coisa (ver 42,36). Neste
sentido, F. Rossier, L’intercession de Juda, 45.
50. 42,38b: “Se lhe acontecer uma desgraça no caminho onde ireis, fareis meus cabelos brancos
descer, em aflição, ao Xeol”.
51. Veja a análise breve mas sugestiva de R. Alter, L’art du récit biblique, 236-237. Veja
também Y.-W. Fung, Victim and Victimizer, 42: “Quando se oferece a si mesmo como escravo para

233
José ou a invenção da fraternidade

de uma punição injusta que o ameaça, um culpado pode inverter a maré e


permitir que o mal que praticou dê lugar ao bem e à vida. Pois ele não vai
mais impor a Benjamim o que, da outra vez, pensou de maneira cínica infligir
a seu irmão José.
Assim, portanto, aquele que, com seus irmãos, tinha procurado eliminar
José, tirando proveito de sua venda como escravo, e que ainda havia se vin-
gado do pai deixando-o desamparado e à mercê de seu sofrimento, agora se
oferece como escravo para poupar a seu irmão esta sorte e para evitar afligir
ainda mais seu pai e levá-lo à morte. Assim, ele inverte radicalmente seu
modo de agir. De acordo com o desejo de seu pai, Judá recebeu — talvez do
próprio Jacó — “entranhas de misericórdia” para não privar seu pai de seu
bem-amado (43,14). Além disso, como verdadeiro culpado, ele se apresenta
para receber sua punição, assumindo a responsabilidade que lhe cabe, para
não comparecer diante de seu pai “sem o menino”, isto é, sem Benjamim —
mas também, como veremos, sem José, esse mesmo que Jacó evocara, sem
saber, ao falar de “vosso outro irmão” (43,14). É óbvio, neste momento, que
a última resposta de José (44,17) produz seu fruto de justiça, visto que, na
nova sanção que Judá agora propõe, só o mais culpado receberá a punição52,
salvando assim os dois inocentes aos quais José, discretamente, aludiu.
Tão adequada quanto os termos que usa para falar de seus irmãos e de
si próprio é a maneira em que Judá evoca Benjamim. Lembramos que, no
momento de reclamá-lo a seu pai, Judá o chamou de “o menino” (hanna‘ar,
43,8), preferindo esta designação neutra aos termos que designam o laço de
Benjamim com os outros membros da família (“meu filho”, 42,38; “nosso/
vosso irmão”, 43,3-7). A mesma tendência percebe-se na longa súplica. Quando
Judá evoca o passado (44,20-29), ele refere Benjamim a seu pai (“um filho
da velhice, um menor”, v. 20; “dois [filhos] para mim [de] minha mulher”,
v. 27) e a seus irmãos (“vosso/nosso irmão menor”, v. 23.26), e todas as suas
palavras reforçam a natureza emocional dessas relações. A única vez que,
neste contexto, Judá emprega o termo “o menino” (hanna‘ar) é quando fala
de seu distanciamento do pai (v. 22). Foi exatamente isto que aconteceu, visto
que Judá convenceu Jacó de deixá-lo ir com os outros. Assim, quando evoca
seu compromisso de ontem e, em seguida, o presente e o futuro, ele fala do
“menino” (seis vezes entre os versículos 30 a 34). Porque, quando ele quer

impedir a morte de seu pai, Judá derrota seu crime passado, ajudando seu pai e seu filho preferido
a escapar tanto da morte quanto da escravidão”.
52. Veja Sarna, 307, que acrescenta que assim se fecha um elo, visto que o culpado “torna-se
escravo de sua própria vítima”.

234
Capítulo 13 – A prova da fraternidade (44,14-34)

se substituir a seu irmão reclamado pelo egípcio como escravo (ver 44,17),
Judá reivindica um estatuto autônomo para “o menino”, como se, depois de
o ter arrancado de seu pai que o aprisionava em seu afeto, ele não queira que
outro senhor o prive de sua liberdade.
Por esse gênero de detalhe, como pelo conjunto do discurso, o leitor vê a
que ponto Judá mudou; e ele admira a justiça daquele que, em outra ocasião,
foi injusto a ponto de propor vender seu irmão como escravo a estrangeiros53.
Alter tem razão de escrever que “esse discurso nega, ponto por ponto, moral e
psicologicamente, o comportamento dos dez irmãos em suas relações fraternais
e filiais”54. Certamente, o leitor de hoje desejaria que tudo isso acontecesse de
forma transparente. No entanto, no fio de uma história que navega sem cessar
nas águas turvas de uma mentira com aparências de verdade e de uma verdade
mascarada sob a mentira, será realmente incongruente que o verdadeiro começa
a se abrir um caminho no lusco-fusco de um discurso que não está isento de
imprecisões? As aproximações, as semiverdades e os excessos retóricos de Judá
não impedem a autenticidade de sua renúncia à cobiça e da recusa decidida do
ciúme. Além disso, não é ilusão pensar que uma verdade transparente jamais
possa ser dita, uma vez que — como a história mostra a todo instante — o
sentido de nossas palavras nos escapa enquanto suas inevitáveis ambiguidades
entrelaçam permanentemente o verdadeiro com o falso?
Afinal, melhor do que um discurso escrupulosamente preocupado com a
exatidão dos detalhes, a palavra que exprime a mudança dando-lhe corpo é,
sem dúvida, mais justa e mais adequada. Ela reflete a verdade que trabalha
um homem para torná-lo novo. Certamente, Judá não entrou na luz plena. O
que ele diz sobre sua falta fica incompleto e talvez pare no limiar da cons-
ciência. Mas será que isso realmente importa, dada a transformação radical
de sua atitude interior? Não é esta o suficiente para despertar a esperança de
uma fraternidade finalmente possível, curada do ciúme e da inveja? É isso,
sem dúvida, o que José deve ter percebido, no escuro, no momento em que
experimentava a violenta emoção provocada por esta inesperada súplica.

53. Veja Von Rad, 405. Poderíamos acrescentar que em sua súplica Judá realiza o desejo mani-
festado por seu pai no momento de deixá-los partir: “Que El-Shadai vos dê entranhas na presença
do homem para que ele vos reenvie vosso outro irmão e Benjamim!”. Veja acima, p. 176-179.
54. R. Alter, L’art du récit biblique, 236.

235
Capítulo 14

“Eu sou José, vosso irmão”


(45,1-15)

O discurso de Judá levou a tensão narrativa à intensidade máxima. Para


os irmãos, é tudo ou nada: o egípcio vai necessariamente dar seu veredic-
to na sequência do apelo que ele acaba de ouvir. O leitor também espera,
perguntando-se como José reagirá às palavras pungentes de seu irmão e à
terrível pressão à qual ele se vê submetido por um Judá que ignora a quem
se dirige e qual o impacto efetivo de suas palavras. Acuado pelo senhor a se
mostrar irmão de Benjamim e a respeitar seu pai, Judá, ao propor a escravi-
dão para todos (ver 44,16), lança-se num discurso no qual dá amplo lugar a
todos aqueles que tinha esquecido. Talvez o pensar nesses dois inocentes que
José discretamente lhe trouxera à memória o tenha mudado, pouco a pou-
co, enquanto falava deles. Também não é impossível que sua súplica tenha
provocado em José um impulso que o levou a fazer o que o leitor espera há
algum tempo: dar-se a conhecer1. Seja como for, neste ponto da narrativa,
a tensão só pode entrar em declive. Resta saber como isso vai acontecer e se
este será o fim da história.

1. M. O’Brien, The Contribution of Judah’s Speech, 444-446, acredita que o discurso de Judá
transforma José; ver também T. L. Hettema, Reading for Good, 200. Em todo caso, é a força retórica
de Judá que faz José decidir-se a tirar a máscara: J. P. Fokkelman, Jacob as a Character.

237
José ou a invenção da fraternidade

O leitor assiste a um momento crucial da história fraterna, um primeiro


resultado, na realidade. Com efeito, a situação inverte-se radicalmente para
os personagens envolvidos: para José, que permite ser reconhecido e coloca
um ponto final em seu jogo de dissimulação, e muito mais para os irmãos.
A surpresa destes é total: enquanto aguardam o veredicto do senhor egípcio
quanto a Benjamim, de repente são informados de que esse estranho do qual
depende seu destino não é outro que seu irmão, sua ex-vítima, de quem tantas
vezes tiveram a oportunidade de se lembrar nos últimos tempos, sem, con-
tudo, o reconhecer. Mas também para o leitor é um desfecho. À medida que
os irmãos aprendem o que ele já sabe, já que vão ser informados do futuro
que seu irmão lhes reserva, o leitor verá, enfim, abrir-se uma janela sobre as
intenções de José, que o narrador tanto tempo deixou encobertas.

José se dá a conhecer (45,1-4)


1
E José não pôde mais se conter para todos os que o cercavam e gritou:
“Fazei sair todo mundo de junto de mim”. E ninguém mais estava perto dele,
quando José se deu a conhecer a seus irmãos. 2Ele levantou a voz num choro
e o ouviram [os d]o Egito, e o ouviu a casa do Faraó. 3E José disse a seus
irmãos: “Eu sou José! Ainda vive o meu pai!”. Mas seus irmãos não podiam
responder porque estavam perturbados diante dele. 4Disse então José a seus
irmãos: “Aproximai-vos de mim, por favor” — e eles se aproximaram — e ele
disse: “Eu sou José, vosso irmão […]”.
A maneira de proceder do narrador é surpreendente. Em vez de se pre-
cipitar na narração do resultado, ele segue o mesmo ritmo que José. Assim,
ele discorre sobre as preliminares, como que para dramatizar esse momento
crucial: introduz figurantes que desaparecem logo depois (45,1a), anuncia o
conteúdo da cena que vai narrar (45,2), evoca o efeito sonoro do choro de José
(45,2), antes de citar, enfim, suas primeiras palavras e a reação dos irmãos,
no silêncio que se segue (45,3). Causa assim para o leitor um atraso — não
totalmente gratuito, como veremos — quando os irmãos, angustiados diante
do acontecimento iminente, intrigados, em seguida, com a evolução inesperada
dos acontecimentos, devem esperar que todo mundo saia e que as lágrimas
do egípcio se contenham para ouvir uma palavra articulada.
Atendo-nos ao conteúdo desta breve cena, recolocamo-la no contexto mais
amplo. José esperou aparentemente muito tempo que seus irmãos o reconhe-
cessem por si mesmos. Desde o primeiro reencontro, ele se faz de desconhe-
cido, acreditando que não tardarão em desmascará-lo, a ponto de mencionarem

238
Capítulo 14 – “Eu sou José, vosso irmão” (45,1-15)

o irmão “único” com quem falam sem o saber. Mas desde que ele os ouve
falar de Benjamim José parece mudar de ideia: ver seu irmão torna-se agora
sua prioridade. Entretanto, põe os outros em situações que devem despertar
a memória deles: a prisão, o retorno para o pai sem um deles. No início da
segunda viagem, vendo Benjamim com os outros, José os recebe em sua casa
como íntimos e, depois de sua dupla prostração, oferece-lhes uma refeição
em que multiplica os sinais suscetíveis de lhes mostrar a pista. Mas nem
Benjamim o reconhece. A cena que ele imagina em seguida para segurá-los
é, de novo, feita com elementos que devem ressuscitar as lembranças do
passado: o objeto roubado encontrado no saco do filho de Raquel e a possi-
bilidade de se livrar dele como fizeram antigamente com José. Mas até mesmo
suas vestes rasgadas como outrora a do pai e a confissão geral de Judá do
crime tanto tempo oculto não lhes abrem os olhos. Aliás, seu pasmo depois
da revelação de José mostrará que, neste momento, estão ainda bem longe de
reconhecê-lo.
Em suma, neste ponto, a estratégia de José é um fracasso. Por outro
lado, seu plano é bem-sucedido de outra forma, embora o surpreenda. Uma
vez colocado numa situação que lhes facilita livrar-se do segundo filho de
Raquel, os irmãos mostram sua inteira solidariedade para com este. Por seu
sacrifício, Judá demonstra mesmo a José — involuntariamente, pois não
sabe com quem está negociando — que, se ele é incapaz de reconhecer no
egípcio o irmão que acredita morto, sua atitude profunda em face da relação
privilegiada entre seu pai e o filho de Raquel mudou completamente. Judá
está pronto para terminar seus dias como escravo no Egito, a fim de proteger
seu pai, no mesmo amor que o une ao filho de Raquel: essa revelação sur-
preende José e mexe com suas entranhas2. Nestas condições, ele tem razões
para se esconder?
Mas o narrador é claro: a emoção toma conta de José, incapaz de se
conter por mais tempo ainda. Após ter reencontrado Benjamim, José tem de
se retomar a fim de se manter firme diante de seus irmãos durante a refeição
(43,31). Pode-se ter ideia de sua tensão interior durante os acontecimentos
recém-ocorridos, especialmente porque, imaginando o que esse encontro teria
de decisivo, era preciso manter seu sangue-frio diante desses homens. Em tais
condições, qual efeito poderia produzir sobre ele a súplica tão emocionante
quanto inesperada de Judá senão o de tornar insuportável essa tensão que
já era forte? No entanto, uma vez que a todos dá ordem para sair de cena e

2. Veja Von Rad, 405.

239
José ou a invenção da fraternidade

lhes deixa o tempo para isso, José poderia optar por fazer como das outras
vezes: retirar-se para chorar e recompor-se (ver 42,24; 43,30-31). Portanto, se
coloca fim à sua estratégia de dissimulação, ele o faz deliberadamente. Quais
são seus motivos? Além do que foi dito sobre a transformação de Judá — e,
provavelmente, dos irmãos, dos quais este é o porta-voz e o líder na solidarie-
dade a Benjamim (ver 44,14a) —, outras razões podem motivar José a se dar
a conhecer: por exemplo, o desejo de pôr fim à angústia dos irmãos, que, uma
vez mudados, não merecem o que ele lhes inflige3. Também pode achar que,
após o que acaba de ouvir, ele já não tem muito a esperar de uma estratégia
de dissimulação4. O pungente retrato do pai esboçado por Judá, certamente,
deve pesar na balança, como indicam as primeiras palavras de José. Mas não
vamos nos antecipar.
Ao introduzir seu desenlace, o narrador traz, de repente, os figurantes
para o primeiro plano, para que José os faça sair. Assim dá a entender que é
por eles que José se contém ainda, como se já tivesse decidido que para seus
irmãos não há mais por onde. Mas, se o narrador relata a presença dos figu-
rantes apenas aqui5, é também para sugerir que ao ordenar a saída José reúne
pela primeira vez em torno de si os irmãos, todos eles, com exclusão das
outras pessoas6. A autor também o anota, imediatamente, no resumo que
antecipa a continuação: “quando José se deu a conhecer a seus irmãos”. Aliás,
sua insistência em chorar aos gritos tem uma função análoga. Na verdade, a
situação é paradoxal: enquanto José manda todo mundo sair, seu pranto é
escutado por todos, inclusive na casa do Faraó (45,2). O que os egípcios
ouvem não é outra coisa senão o eco da violenta emoção do senhor, o que
acentua, por um marcante contraste, o caráter privado da intimidade em
que José se dará a conhecer a seus irmãos (45,3), antes de lhes dirigir um
longo discurso (45,4-13)7. Se nas primeiras vezes José se escondeu dos irmãos
para chorar, agora é dos outros que ele se esconde para poder chorar com
liberdade diante deles8.

3. Como observa B. Green, “What Profit for Us?”, 168, ele conhece intimamente o que se
sente ao ser falsamente acusado sem poder defender-se adequadamente (ver cap. 39).
4. Ver, nesse sentido, Sarna, 308.
5. Ele já estava usando esta técnica de exposição protelada em 42,23, introduzindo o intérprete
somente onde era narrativamente necessário assinalar sua presença.
6. Westermann, 142, também o sugere, com H. C. White, Narration and Discourse, 267.
7. O contraste é realçado por B. Green, “What Profit for Us?”, 169.
8. Notemos também que há uma gradação da descrição das emoções de uma cena de lágrimas
para outra (42,24a; 43,30-31 e 45,1-2). Além disso, o fato de José querer ficar sozinho, sem sua
corte, significa que concorda em mostrar-se vulnerável a seus irmãos.

240
Capítulo 14 – “Eu sou José, vosso irmão” (45,1-15)

De imediato, José revela a seus irmãos quem ele é: “Eu sou José”, e ime-
diatamente acrescenta uma palavra sobre seu pai, cuja figura talvez se ligue
ao fato de os doze estarem reunidos9. Sua frase repete as primeiras palavras
que ele tinha dito aos homens no dia anterior, depois de tê-los acolhido em
sua mansão, quando lhes perguntou se seu pai estava saudável e se ainda vivia
(43,27). Porventura, não faz novamente a mesma pergunta? É o que supõe a
tradução corriqueira: “Meu pai ainda vive?” Será que José não acreditava em
seus irmãos, como dizem alguns?10 Isso seria muito surpreendente. Depois das
declarações deles no dia anterior (43,28) e, especialmente, depois que Judá
falou longamente de Jacó, chegando até a se oferecer no lugar de Benjamim
para lhe poupar a morte, José dificilmente podia duvidar que seu pai estivesse
vivo11. Além disso, o discurso que se segue mostrará que ele está convencido.
Então eu acho preferível traduzir por uma afirmação exclamativa: “Ainda
vive o meu pai!”12. No fundo, talvez seja isto o essencial que José guarda
da súplica de Judá, que terminou exatamente na palavra “meu pai” (44,34):
apesar da presença de Benjamim no Egito, Jacó ainda vive. Além disso, esta
exclamação de José — que assim faz eco a seu irmão — bem pode ser um
indício daquilo que o levou a se revelar: a perspectiva de reencontrar seu pai,
agora que encontrou seus irmãos13. Se isto não estiver muito claro ainda, a
sequência mostrará que esse é o propósito, mesmo, de José; eu voltarei a este
ponto essencial. No imediato, fazendo eco ao discurso de Judá, José reencon-
tra seu irmão no amor ao pai comum que, longe de ser ainda fonte de divisão
entre eles, vem, ao contrário, selar sua fraternidade.
A reação não tarda, mesmo não sendo, decerto, aquela que José esperava.
O narrador apresenta as coisas como se José parasse de falar para deixar os
irmãos responder. No entanto, eles permanecem mudos, aparentemente in-
capazes de falar sequer uma palavra. O narrador precisa que esse silêncio é
um sinal de seu estupor. O verbo que usa é muito forte: em outros contextos,

9. Veja a primeira apresentação da família pelos irmãos em 42,13: doze irmãos, filhos de um
só homem, dos quais dois, ausentes até então, agora fazem-se presentes.
10. Por exemplo, R. Pirson, The Lord of the Dreams, 110-111.
11. Sobre esse ponto, concordo inteiramente com W. L. Humphreys, Joseph and his Family, 49.
12. Do ponto de vista da língua, este sentido é perfeitamente possível. Alguns gramáticos e
lexicógrafos há muito tempo descobriram este uso exclamativo da partícula interrogativa ha- (“É
isso…?”). Assim GKC § 150e; Jouon § 161b; Zorell e HALAT, sub voce. Ver, por exemplo, Gênesis
27,36, Números 31,15, 1 Samuel 2,27, 1 Reis 18,7.17; 21,19; 22,3, Jeremias 7,9 (frases que muitas
vezes a Bíblia de Jerusalém traduz como “portanto” com ponto de exclamação).
13. Ver Wenham, 427. Para G. Fischer, Die Josefsgeschichte, 251, falando de seu pai, José
mostra qual é sua principal preocupação.

241
José ou a invenção da fraternidade

evoca o desespero diante da derrota certa e o terror de quem vê aproximar-se


a devastação do país ou sua própria morte14; ele evoca o terror dos ímpios
diante da intervenção punitiva de Deus e do piedoso ante a ausência dele
e ante o triunfo do mal15. Os irmãos estão estupefatos, como se o céu lhes
caísse sobre a cabeça. É a estupefação por ver que o senhor do Egito é nin-
guém menos que José? E por ver que, em vez de mostrar-lhes seu poder, ele
está chorando em sua presença como uma criança? Ou será, pelo contrário,
o medo da possível vingança de seu irmão diante do qual confessaram sua
culpa, vingança certamente pior do que a punição que esperavam por parte do
senhor egípcio? Trata-se do medo ante uma realidade inconcebível para eles?
Ou ainda do estupor de ver que era José que vinha sendo tão duro para com
eles e seu pai? O narrador não dirá mais nada: o sentimento que se abateu
sobre os irmãos deve ser tão indescritível quanto complexo. E José é quem
vai gerenciá-lo da melhor maneira possível.

Verdade de José e futuro da família (45,4-15)


Neste ponto, o leitor imagina os irmãos recuando, apavorados (45,3b). Então,
José os convida a se aproximar dele para acabar com o distanciamento espon-
tâneo. Assim como Judá se aproximou do senhor quando iniciou seu discurso
(44,18), da mesma forma José convida seus irmãos a se aproximarem, antes de
tentar tranquilizá-los, explicando-lhes sua própria situação (45,4a). Agora, ne-
nhum intérprete criará barreiras entre eles16. Os irmãos se aproximam então.
4
… e disse: “Eu sou José, vosso irmão que vendestes ao Egito. 5Mas agora
não fiqueis penados, e que não queime vossos olhos o ter me vendido para cá,
pois foi para a preservação da vida que Deus me mandou adiante de vós. 6Eis
dois anos de fome no seio da terra, e ainda cinco anos que não haverá plantio
nem colheita. 7E Deus me mandou adiante de vós para colocar para vós um
resto na terra e para fazer viver para vós, para grande salvamento. 8E agora,
não fostes vós que me enviastes para aqui, mas Deus; e Ele me colocou como
pai para o Faraó17 e como senhor para toda a sua casa e como dominador
de toda a terra do Egito.

14. Êxodo 15,15, Juízes 20,41, Jeremias 51,32, Salmos 83,18, 1 Samuel 28,21 e Isaías 13,8.
Wenham, 427, salienta que este é um terror que paralisa.
15. Salmos 6,11; 48,6 e 104,29, Jó 21,6 e 23,15-16.
16. A ideia é de B. Green, “What Profit for Us?”, 170. José insiste neste ponto, no versículo 12.
17. Veja Juízes 17,10; 18,19, 2 Reis 6,21 e 13,14, onde os sacerdotes e profetas são chamados de
“pai para”, pois “como verdadeiros pais, eles instruem seus ‘filhos’” aconselhando-os judicialmente

242
Capítulo 14 – “Eu sou José, vosso irmão” (45,1-15)

9
Apressai-vos e subi a meu pai e dizei-lhe: ‘Assim disse teu filho José: Deus
me colocou como senhor para todo o Egito: desce a mim, não demores. 10Ha-
bitarás na terra de Gossen, e estarás perto de mim, tu e teus filhos e os filhos
de teus filhos, e teu rebanho e teu gado e tudo o que é teu. 11E lá, eu proverei
o teu sustento — pois ainda haverá fome por cinco anos —, para que não
sejas desapossado, tu, e tua casa e tudo o que é teu’.
12
E eis que vossos olhos veem, e os olhos de meu irmão Benjamim: é bem a
minha boca que vos fala. 13E relatareis a meu pai toda a minha importân-
cia18 no Egito e tudo quanto vistes, e vos apressareis e fareis descer meu
pai para cá”.
14
E caiu ao pescoço de Benjamim, seu irmão, e chorou, e Benjamim chorou ao
pescoço dele. 15E ele beijou todos os seus irmãos e chorou [abraçado] neles;
e depois, assim/honestamente, seus irmãos falaram com ele.
Para seus irmãos atordoados, José começa a falar com o devido tempo,
apesar de sua agitação. O narrador observa cuidadosamente que ele chora
antes e depois de suas palavras (45,2 e 14-15), como para sublinhar a emo-
ção que reina ao longo do discurso. Além disso, ela se manifesta até no
aspecto repetitivo e, em parte, desordenado daquilo que diz19, mas também
no ritmo e na linguagem um tanto caóticos da primeira metade do discurso.
Certamente, as palavras de José não são tão patéticas quanto as de Judá,
porém não menos carregadas, por isso, de emoção, enquanto comunicam aos
irmãos numerosas informações sobre o passado de José e sobre a maneira
como ele vê o futuro. A estrutura do discurso é relativamente simples e evi-
dencia a repetição significativa dos temas fundamentais. A primeira parte
— ecoando as palavras de Judá — consiste essencialmente num olhar para
o passado, com uma releitura dos fatos vividos em comum, mas também
num partilhar de informações da parte de José (45,4b-8). A segunda é uma
mensagem para Jacó e concerne, especialmente, ao futuro que José considera
para a sua família (45,9-13).
A releitura do passado é bastante repetitiva: refere-se ao papel desem-
penhado, respectivamente, pelos irmãos e por Deus na chegada de José no
Egito. Cada tema é reprisado três vezes — a última vez numa frase sintética:

(ver Gn 41,25-41): Wenham, 428; bem como Hamilton, 577. Von Rad, 407, de sua parte, remete
a Isaías 22,21, onde Eliaquim é designado por esse título.
18. Literalmente. Em geral, esta palavra (kavod) é traduzida como “glória”.
19. Assim, por exemplo, as informações sobre o que ele se tornou não respeitam a cronologia:
a evocação da fome (45,6) vem antes da menção à elevação (45,8); ver ainda a curiosa interrupção
das instruções no versículo 12.

243
José ou a invenção da fraternidade

“não fostes vós que me enviastes para aqui, mas Deus” (45,8a)20. Quanto
aos irmãos, o deslocamento da perspectiva é claro: José primeiro afirma que
o venderam para o Egito (45,4)21, depois convida-os imediatamente a não
sofrer por isso nem ceder à cólera contra si mesmos (45,5a), antes de falar
simplesmente num envio (45,8a)22. O papel deles é, pois, apresentado de
diversas formas e progressivamente minimizado em favor de Deus. Observe-
se, no mesmo sentido, que José se abstém de qualificar moralmente a ação
dos irmãos, limitando-se por duas vezes a uma evocação descritiva: a venda.
Quanto ao papel de Deus, a descrição é consistente com a tríplice repetição
do verbo “enviar” (šalah-), mas ela é desenvolvida sob medida. Tendo breve-
mente mencionado, uma primeira vez, o propósito divino quando do envio,
a saber, a vida (45,5b), José o desenvolve depois de explicar em que a vida
está ameaçada (45,6-7), para concluir explicando a maneira que Deus usou
para pôr em ação a salvação através da promoção dele (45,8).
Será que este modo de proceder revela uma vontade de não sobrecarregar
os irmãos já abalados, insistindo o menos possível na reprovação, a ponto
de evitar uma qualificação moral do mal que lhe fizeram e de apresentá-lo
como instrumento da Providência? Em todo caso, tal é o efeito que isso deve
produzir neles, mesmo se, diante do temor que mostram, José é mais impul-
sionado talvez pela emoção do que por uma vontade consciente. Ainda que,
vendo a sequência, o leitor se pergunte se ele não age desta forma — espon-
taneamente, talvez — para evitar contrariar seus irmãos antes de lhes pedir
que levem seu pai para o Egito. Como no discurso de Judá, a primeira parte
parece inteiramente orientada para o pedido que está no centro da segunda e
diz respeito ao pai, isto é, para Judá, não fazê-lo morrer, e para José, fazê-lo
viver, trazendo-o até ele ao Egito.
Efetivamente, a segunda parte centra-se na pressa de José por rever Jacó,
e é certamente a isso que ele quer chegar: “Apressai-vos e subi a meu pai e
dizei-lhe… e vos apressareis e fareis descer meu pai para cá”: assim começa
e termina esta seção (45,9a e 13b). José começa fazendo de seus irmãos seus
embaixadores diante de Jacó, dando-lhes uma mensagem para ele (“Assim
disse teu filho José”, 45,9-11), antes de insistir sobre o fato de ser ele quem

20. O papel dos irmãos é mencionado, em primeiro lugar, duas vezes (45,4b.5a), e depois, duas
vezes o de Deus (45,5b.7a), antes da reprise final que os une intimamente, no versículo 8. Sobre a
repetição do tema, ver Brueggemann, 414.
21. A respeito dessa acusação permitida pela perspectiva limitada de José no caso de sua venda,
veja acima, p. 64-65.
22. Veja Sarna, 309.

244
Capítulo 14 – “Eu sou José, vosso irmão” (45,1-15)

lhes fala (45,12) e de resumir, em uma frase, o que os irmãos têm que fazer
(45,13). Aqui, o discurso é mais fluente, menos repetitivo. Em particular, a
mensagem enviada a Jacó é perfeitamente linear — será um indício de que
esta parte foi preparada? As diferentes precisões reforçam-se mutuamente
para realçar aos olhos de Jacó o atrativo de uma viagem ao Egito e, quanto ao
imediato, persuadir seus irmãos de que ele lhes quer bem: José é governador
do país, arrumou um lugar para se instalarem, o pai poderá estar próximo de
seu filho, vivendo com sua família e seus bens, o que lhe permitirá atravessar
cinco anos de fome “à custa da coroa”, sem tocar em seu patrimônio. Note
também que esta segunda parte retoma da primeira o que ali escapa à releitura
dos acontecimentos passados e abre a perspectiva sobre o futuro: a duração da
fome e a possibilidade de escapar dela (45,6-7 e 11), e isso graças à posição
de José no Egito. Este último tema, graças a uma clara repetição, garante a
ligação entre as duas partes do discurso (45,8 e 9) e será ainda retomado no
final (45,13), como se o peso (a “glória”, kavod) adquirido por José — tornar-
se “pai para o Faraó”, do qual salvou o trono e o poder — seja precisamente
o que permitirá convencer seu pai. Sua pressa deve ser grande!
Mas para trazer seu pai ele precisa superar o ceticismo que os rostos de
seus irmãos certamente ainda refletem. O narrador não diz nada de explícito a
respeito, mas após a descrição do versículo 3b a insistência de José no versículo
12 não se compreende se seus interlocutores deixaram de estar espantados. O
que ele lhes diz significa que podem acreditar no que veem e ouvem: é José
em pessoa que lhes dirige a palavra, e sem intérprete, desta vez; e ele até
chama “o seu irmão Benjamim”, outro sinal de que é ele mesmo que estão
vendo. Esta frase é também a contraparte de suas primeiras palavras. Lá, José
identificava-se com referência à falta passada; aqui, em referência ao discurso
que, no momento presente, eles ouvem de sua boca e que, longe de puni-los
ou de se vingar, fala sobre a vida e a unidade da família23. A próxima cena
segue, provavelmente, no mesmo sentido, na medida em que José se lança
em prioridade ao pescoço de Benjamim, antes de beijar todos os seus irmãos
(45,14-15). Porque, ao unir o gesto às palavras e às lágrimas, José lhes dá o
sentido da fraternidade, que ele lhes abre ao reconhecê-los, enquanto exte-
rioriza sua extrema emoção. Beijando-os, supera a distância que, apesar de
uma primeira reaproximação (45,4), os separava ainda. Assim, mais uma vez,
suas lágrimas marcam uma etapa no caminho da fraternidade. E se elas são

23. É interessante notar que José fala assim numa mensagem destinada a seu pai, tornando assim
presente alguém que contribuiu, em parte, para que a irmandade estivesse agora reunida.

245
José ou a invenção da fraternidade

tão abundantes e ruidosas é provavelmente um sinal de que para ele a etapa


é realmente decisiva.

Depois dessa primeira visão de conjunto, é necessário revisitar um ou outro


aspecto deste discurso importante, nomeadamente a ligação com os eventos
descritos no capítulo 37 e a interpretação teológica que envolve José. Quan-
to a este segundo ponto, tendo se mostrado hábil intérprete dos sonhos dos
outros, ele se faz agora hermeneuta de sua história pessoal24. Que ele o faça
afirmando em sua aventura a ação de um Deus da vida não surpreenderá muito
o leitor. Com efeito, depois que o narrador repetiu que Adonai acompanhava
José em sua provação no Egito, enquanto ele mesmo invocava Deus em apoio
à sua lealdade a seu amo (39,2-5.21-23 e versículo 10), o jovem hebreu tem,
mais de uma vez, feito menção a Deus. É a Ele que atribui, por duas vezes,
seu dom de interpretar sonhos (40,8 e 41,16.25), dom que os fatos a cada
vez confirmam (40,22 e 41,54), sem que o narrador fale de uma intervenção
divina: é o Faraó que reconhece de onde vem a sabedoria do jovem (41,38-
39). No nascimento de seus filhos, José interpreta sua história através da ação
de Deus que lhe faz esquecer a miséria vivida com sua família e que tornou
fecunda a terra de sua humilhação (41,51-52)25. Enfim, quando diante de seus
irmãos começa a desenvolver uma estratégia refletida, ele atribui toda a obra
ao temor de Deus presente dentro de si (42,18). Em tal contexto, o discurso
que dirige a seus irmãos parece apenas um pouco mais insistente.
Coloca-se a questão de saber se essa interpretação, por mais legítima que
seja em referência a um homem inegavelmente religioso, está verdadeiramente
fundamentada. Pois o narrador não confirma a leitura de José, nem aqui nem
em outro lugar. E mesmo se, anteriormente, os fatos parecem ter trazido uma
verificação para suas releituras teológicas resta que aqui o leitor não tem ga-
rantia da verdade. Decerto, baseado no relato da ascensão de José no Egito
(capítulos 39 a 41), ele pode aceitar a ideia de que Deus estava com José até
o lugar que é o dele agora (45,8b.9b). Quanto a saber se sua venda por seus
irmãos foi, verdadeiramente, um meio utilizado por Deus para salvar a todos,
e se este último o enviou em vista de garantir a vida, já é outra questão. Não
seria esta uma ideia para permitir que José excuse seus irmãos, para não os
afastar de si, enquanto os vê assustados depois que se deu a conhecer? Não

24. A aproximação é de L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 356. A respeito da inter-
pretação de José e da nova narrativa do passado que ela produz, ver H. C. White, Narration and
Discourse, 270-271.
25. Sobre o que precede, ver B. Green, “What Profit for Us?”, 158.

246
Capítulo 14 – “Eu sou José, vosso irmão” (45,1-15)

seria uma forma de poupá-los antes de lhes dirigir sua ordem de ir procurar
seu pai em Canaã? Mas, então, não passa rápido demais a esponja, na emoção
do reencontro, na crença de que tudo está bem quando termina bem e de que
ele pode enfim parar de prolongar o jogo duplo que se tornou insustentável?
Mais tarde, ao incentivar Jacó a ir para o Egito (46,3-4), Deus irá apoiar o
convite de José, confirmando assim a imagem que ele apresentou: a de um
Deus da vida, que zela pela salvação de seus eleitos (45,7). Porém, nem por
isso vamos ouvi-lo endossar a ideia de que a venda de José pelos irmãos tenha
sido o lugar de um “envio” divino.
A este respeito, não é impossível que, repetindo o tema do envio, José
interprete a intervenção do homem misterioso que, enquanto vagava pelos
campos de Siquém para onde seu pai o tinha enviado, o havia dirigido dis-
cretamente para esses homens, em quem agora encontra irmãos (37,15-17)26.
Esta não é, contudo, a única alusão nesta cena aos acontecimentos do início
da história. Vimos como, ao iniciar a conversa, José afirma por duas vezes
que seus irmãos o venderam, o que Judá efetivamente disse diante dos outros
(cf. 37,26-27). Outra ligação com este capítulo de abertura transparece na
insistência de José sobre aquele a quem sempre chama de “meu pai” (’abi,
45,3.9.13 [bis]), aquele para quem Judá chamou sua atenção. Em relação a
Judá, que apresentou também “seu pai” como o pai de Benjamim e de todos27,
o exclusivismo de José pode ofender. Ainda assim, ele reflete definitivamente
a situação de partida, ou seja, o laço privilegiado entre Jacó e José, laço que
Judá acaba de mostrar que os irmãos o aceitam agora. E o fato de que o pai
está no horizonte dos dois discursos sugere que os irmãos se encontram,
precisamente, porque os reúne a solicitude comum por aquele cujo amor,
antigamente, os havia dividido. Além disso, após este discurso, um momento
dos mais marcantes é, sem dúvida, o advento da palavra entre os irmãos, uma
palavra amiga impossível desde a situação inicial (37,4, verbo dibber). Com
efeito, depois que José insistiu no fato de que realmente é ele quem está fa-
lando (45,12)28, o narrador conclui a cena dos abraços servindo-se do mesmo
verbo para notar que “depois assim, seus irmãos falaram com ele” (45,15b).
Doente desde o início (37,2b.4.8b etc.), a palavra está em vias de cura29. Uma

26. Sobre esta cena, veja acima, p. 49-52.


27. Veja acima, p. 231, nota 46.
28. José já lhes tinha “falado”, após a primeira confissão em 42,24a, mas ainda sob a máscara
do senhor do Egito, enquanto o narrador não notava a resposta.
29. Ver R. Lack, Letture strutturaliste, 99, J. S. Ackermann, Joseph, Judah and Jacob, 95 e G.
Fischer, Die Josefsgeschichte, 253. Neste sentido, o segundo significado do advérbio ke-n (“assim/

247
José ou a invenção da fraternidade

nova história pode ser inventada: a dos irmãos que finalmente se falam, antes
de irem anunciar a boa notícia a seu pai.
No entanto, quando vê José dedicar a metade de seu discurso a reenviar
a Jacó seus irmãos portadores de uma mensagem, o leitor dificilmente pode
deixar de pensar na missão que Jacó confiou outrora a seu eleito, enviando-o
a seus irmãos: “Vai então, vê a paz de teus irmãos e a paz do rebanho30, e
faze-me voltar uma palavra” (37,14). Este desejo do pai que o enviava a seus
irmãos (37,13), José foi capaz de fazê-lo seu graças ao homem de Siquém
que o havia interrogado a respeito de seu próprio desejo: “Aos meus irmãos
é que estou procurando”, respondeu ele (37,16). Agora que ele os “encontrou”
e que o šalom tornou-se possível, ele pode levar a termo sua missão e fazer
voltar uma palavra para seu pai. E se, como Judá acaba de lhe repetir, Jacó
não está longe de uma morte que teme, as palavras que José lhe envia são
palavras de vida e de esperança.

Neste ponto, é permitido perguntar se o leitor não tem uma chave para
compreender retrospectivamente tanto o desejo como o projeto que sustenta a
atitude estranha de José ao longo de seus encontros com os irmãos, ao menos
depois que imaginou aquela prova, com três dias de prazo, após a cena do reen-
contro inesperado e improvisado (ver 42,18-20). O tema que unifica seu discurso
revela, efetivamente, o desejo que ele tem pressa para realizar: fazer viver os
seus, apesar da morte que reina (45,5 b-7), um “salvamento” que ele pode agora
concretizar para toda a família, reunindo-a em torno de si (45,10-11)31. Eis aí,
sem dúvida, o desejo, a impaciência que o animam durante todo o processo:
permitir à vida triunfar sobre a morte e reunir os familiares em torno de si.
Mas se, em sua relação com os seus, José é esse sábio que, no Egito,
se coloca a serviço da vida, podia ele se deixar levar, sem mais, por esse
desejo?32 Não. Ele devia escolher um caminho mais longo, mais lento, mais
eficaz sobretudo. O leitor já o podia pressentir a partir do teste da verdade
de José (42,18-20)33: o projeto subjacente à sua estratégia de pôr à prova

honestamente”) poderia ser significativo, pelo menos se se pode admiti-lo aqui para a expressão
idiomática de tempo ’ah.are-ken (“depois disso”). Na verdade, quando é estabelecido um relacio-
namento honesto e justo, torna-se possível a palavra autêntica.
30. Uma possível metáfora para a família, como vimos.
31. Nesse sentido, L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 356.
32. Vimos como na primeira reunião José não estava muito a favor de deixar cair a máscara do
desejo de ser reconhecido (cf. 42,14; veja acima, p. 131-132). Mas por que ele queria ser reconhecido?
Sem dúvida — o leitor vê aqui — para poupar a seu pai e aos seus os tormentos da fome.
33. Veja acima, p. 138-140.

248
Capítulo 14 – “Eu sou José, vosso irmão” (45,1-15)

os dez para ver se eles estavam a fim de ser irmãos ou, mesmo, para tentar
conduzi-los até lá, de modo a criar condições para uma vida autêntica, que
não precisa somente de pão (Jacó em 42,2), mas, sobretudo, de uma palavra
verdadeira e confiável, cimento da confiança que permite uma vida fraterna
juntos (José em 42,18-20)34; para isso, era preciso ainda que o pai reatasse
com a confiança que era sua quando enviava José a seus irmãos para reunir o
grupo fraterno (Judá em 43,8; ver 37,13-14). Os sinais que José dá, a seguir,
na esperança de que, reconhecendo-o, eles se entreguem à fraternidade, bem
como a última prova destinada a testar sua mudança de atitude em relação ao
filho de Raquel vão nesta mesma direção. Sim, a intenção de José era, sem
dúvida, instaurar as condições de um šalom fraterno, de acordo com a missão
recebida de seu pai. Neste sentido, pode-se pensar que ele agiu com um real
“temor de Deus”, desse Deus que deseja precisamente que a vida desabroche
nas relações justas entre as pessoas.
Quanto à tensão interior de José, que o narrador revela nas duas primeiras
cenas de lágrimas, ela se explica na melhor das hipóteses, me parece, pela
contradição entre esse desejo e esse projeto, enquanto o segundo não é levado
a termo. O desejo de beneficiar os seus com a fecundidade com que Deus o
cumulara (cf. 41,52), desejo cujo ardor se manifesta durante todo o discurso,
é provavelmente o sinal de sua afeição pela casa de seu pai, dele que esqueceu
a dor que tinha conhecido (ver 41,51). Quanto a seu projeto de estabelecer as
condições para um verdadeiro “bem-estar em conjunto” fraternal, sem dúvida
lhe é ditado pela sabedoria e pela justiça que são suas a partir de sua chegada
ao Egito e que o leitor pôde conhecer como portadoras de vida. Quando o
projeto se concretiza e o desejo de José finalmente se realiza, a tensão se
dissipa de vez. E a abundância e a violência das lágrimas mostram como esta
tensão foi forte no fim do discurso de Judá. Este, ao mostrar que o projeto
deu frutos, levou os sentimentos de José à incandescência, a ponto de ele ter
dado livre curso a seu desejo de fazer viver os seus e de reuni-los em torno
de si, ocultando, de passagem, o crime dos irmãos.

Este desejo de José, recordamos, estava já presente em seus sonhos de


juventude. A questão de seu significado preciso e de sua realização foi deixada
em suspense na análise da cena inicial da narrativa. Agora chegou a hora de
revisitar brevemente este assunto35.

34. Nesse sentido, ver H. C. White, Narration and Discourse, 260.


35. Veja acima, p. 39-41.

249
José ou a invenção da fraternidade

Como já relatado na época, o primeiro sonho, no qual José vê os feixes


dos irmãos se prostrarem diante do seu, realiza-se quando eles se prostram
diante dele, nas duas vezes que chegam ao Egito, em circunstâncias seme-
lhantes às do sonho, relacionadas com a safra de cereais que permitiu a José
estabelecer seu poder no Egito (42,6; 43,26.28)36. Na realidade, esta realização
se dá de acordo com a interpretação que Jacó deu do segundo sonho: os ir-
mãos, de fato, “vêm se prostrar” (ver 37,10b). Mas a interpretação que eles
tinham do sonho, em termos do poder de José sobre eles, prova ser falsa.
Talvez seja esta a razão por que suas prostrações não conseguiram despertar
neles a lembrança do passado, já que as coisas não aconteceram como eles
haviam imaginado. José, de fato, nunca “reina” (malak) sobre eles, nem os
“domina” (mašal, ver 37,8), enquanto o narrador sugere que o veem como o
governador do país (šallit., em 42,6)37. Quando ele se diz “dominante” (mošel,
45,8; ver 45,26), ele precisa imediatamente que o é sobre o Egito. Neste
momento, aliás, ele fala a irmãos e não a súditos. Acaso não acabou de re-
cusar, por duas vezes, que se tornem seus escravos (44,16-17 e, em vazado,
44,33) — coisa que ele confirmará também mais tarde (cf. 50,18-21)?
Mas, se a leitura dos irmãos está completamente errada, o primeiro sonho,
no entanto, se realiza ainda de outra maneira, que nem os irmãos nem o pai
imaginaram — somente um leitor atento pôde ter um vislumbre da coisa.
Depois que José recolheu os feixes durante os anos de fartura, seus irmãos
estão reunidos em torno dele, enquanto ele está preocupado em sustentá-los.
Se seu desejo oculto “revelado” por esse sonho é ser reconhecido por todos
no lugar que o pai lhe atribui no início, ou seja, o centro, então ele se realiza
agora38. Mas sua posição central não é a do rei dominador que seus irmãos
temiam. Ela permite, ao contrário, que José convide toda a família para se
reunir com ele para receber a vida. É, portanto, esse velho desejo secreto que
ele deseja realizar quando convida seu pai para vir até ele no Egito.
Quanto ao segundo sonho, no qual José viu o sol, a lua e as onze estrelas
se prostrarem diante dele, a situação é mais complexa. Na verdade, pouco
importa o que alega a interpretação de Jacó, não há provas de que os astros

36. Nesse sentido já Gunkel, 404, e depois A. Da Silva, La symbolisme des rêves, 68. Em 44,14
(e 50,18, tratado a seguir), embora a atitude dos irmãos seja semelhante, a expressão utilizada e seu
contexto são diferentes: trata-se de “cair diante”, de jogar-se aos pés de alguém para implorar sua
misericórdia depois de ter admitido a culpa. Veja acima, p. 214.
37. Diante de seu pai, os irmãos falarão de José, dizendo: “o homem senhor (’adon) da terra”
(42,30.33).
38. Veja a interpretação sugerida a partir de uma óptica freudiana, acima, p. 39-40.

250
Capítulo 14 – “Eu sou José, vosso irmão” (45,1-15)

que se curvam representem os membros da família. Além disso, a mãe de José


morreu, como destacamos39, e Jacó nunca se prostrará diante de seu filho,
enquanto o inverso é verdadeiro em 48,12 (no texto hebraico, pelo menos).
Se, em 47,31, o narrador diz que “Israel se inclinou sobre a cabeceira de seu
leito”, não é diante de José que ele o faz, embora este assista à cena; é dian-
te de Deus que ele se inclina, certamente em sinal de ação de graças40. Só
se realiza a “vinda” de que Jacó fala ao interpretar o sonho — mas o sonho
mesmo não fala disso! Além disso, essa vinda se efetuará num sentido bem
diferente daquele que Jacó lhe deu (ver 46,6-7). A situação é, no mínimo,
paradoxal: os irmãos realizam o primeiro sonho conforme a leitura que seu
pai fez do segundo, enquanto este nem parece se realizar, nem mesmo no
sentido que Jacó acreditava ver.
No entanto, o segundo sonho de José se realiza com a condição de inter-
pretar seu simbolismo por meio de outras chaves, sugeridas, aliás, pelo pró-
prio Gênesis. Depois de Gênesis 1,14-18, com efeito, os astros são sinais da
sucessão do tempo. E na interpretação, que depois se verificou, dos sonhos
dos funcionários régios e do Faraó José decodifica todos os números como
significando um lapso de tempo — três dias, sete anos (ver 40,12-13.18-19;
41,26-30). Diante disso, o fato de os astros, dois mais onze, prostrarem-se
diante de José não anunciará o que acontece quando ele prevê os tempos da
terra, como se se curvassem às suas palavras41, treze anos (11 + 2) após o sonho
(ver 41,53-54)? Quanto ao produto da multiplicação dessas duas cifras, 22,
corresponde ao número de anos que separam o primeiro sonho de sua reali-
zação, quando todos os irmãos se prostram diante de José, mas, sobretudo,
quando este realiza seu sonho: reunir a família em volta dele para celebrar a
vida. Neste caso, como nota R. Pirson, compreende-se que o narrador destaque
explicitamente, em 37,9, que o segundo sonho de José é “outro”, ao contrário
dos do Faraó, que são “um só” (41,25-26)42.

39. Raquel morreu em 35,16-19, e durante sua vida José só tinha dez irmãos, pois ela morreu
enquanto dava à luz Benjamim. Assim, a interpretação de Jacó é falsa, a menos que seja uma iro-
nia calculada, fruto do ceticismo paterno. Veja acima, p. 42. Neste sentido, ver por exemplo E. I.
Lowenthal, The Joseph Narrative, 20.
40. Nesse sentido já Rashi; veja Westermann, 183, e T. L. Hettema, Reading for Good, 206-
207, referindo-se a 1 Reis 1,47-48 para um gesto similar de Davi.
41. Ver Janzen, 149: “… o segundo (sonho) fala dele como o senhor do tempo e das estações
(cf. Gn 1,14-19)”. Neste sentido, D. Nocquet, Genesis 37, 16.
42. R. Pirson, The Lord of the Dreams, 56-59, a quem atribuo esta interpretação, especialmente
59, para o termo “outro” do segundo sonho. Veja também Id., The Sun, the Moon and Eleven Stars.
Para a cronologia relativa da história de José, ver o anexo no final do livro, a tabela retomada de
meu artigo publicado em Biblica: Le temps, 28-29.

251
José ou a invenção da fraternidade

Assim, considerando a história inteira, os sonhos de José são realmente


premonições. Mas se, para julgar, o leitor se baseou nas interpretações dadas
pelos familiares de José, foi amplamente induzido ao erro. Pois a realização
desses sonhos foi objeto da leitura restritiva dos irmãos que se deixaram levar
pelo ódio e pela inveja (37,8) e do pai que se deixou levar pela emoção alar-
mada (37,10). Na realidade, o resto da história mostra que o que se cumpre é
o desejo positivo de José, expresso pelos sonhos, graças ao próprio sonhador
— um desejo que não puderam perceber, então, os intérpretes fechados na
perspectiva estreita que seus sentimentos lhes ditavam. Se a cena dos sonhos
é um bom “programa narrativo” para o resto da história, como foi dito muitas
vezes, o é de uma maneira muito mais refinada e, sobretudo, menos mecâni-
ca do que geralmente se pensa. Só o leitor que tiver captado a ambivalência
dos sonhos a partir da narração feita por José e que, portanto, desconfia da
leitura dada por personagens de inspiração duvidosa, poderá aceitar que esse
“programa” continue criptografado até o momento em que o “senhor dos
sonhos” se encontre numa situação em que possa ver seus sonhos ganhar
corpo. Nesse momento, quando vir José se lembrar de seus sonhos, o leitor
estará curioso para ver em qual sentido ele vai “interpretá-los”, isto é, com-
preendê-los e implementá-los, como um músico interpretando uma partitura
(42,9)43. Só quando José convidar sua família para se reunir em torno dele o
leitor poderá vislumbrar a palavra final sobre o assunto.

Nessas considerações vimos que o discurso de revelação de José a seus


irmãos veio colocar um ponto final ao longo percurso narrativo que começa lá
onde José, reencontrando seus irmãos depois de vinte anos, se esconde deles,
antes de levá-los pouco a pouco a reunir as condições necessárias à eclosão da
fraternidade. Mas está bem claro que, nesta cena de desenlace, José é quem
tira suas próprias conclusões enquanto leva a termo a missão recebida de seu
pai: fazer voltar até ele uma palavra, depois de ter possibilitado o šalom entre
os irmãos. No entanto, a reação assustada destes últimos não parece permitir-
lhes dizer sua própria palavra acerca dos acontecimentos ou encontrar outro
lugar que não o designado por José, por causa de sua pressa de ver seu pai e
salvar sua família da fome. Assim, sem dúvida, trata-se de um final feliz do
lado de José, mas não é dito que o mesmo seja o caso de todos44. A sequência
nos dirá mais sobre esse ponto.

43. A intuição de um José compreendendo gradualmente seus sonhos à medida que guiam sua
ação é proposta por B. Green, “What Profit for Us?”, 168-169.
44. R. Alter, Genesis, 269, ressalta a dissimetria entre José e seus irmãos nesta altura.

252
Capítulo 15

José reencontra Jacó


(45,16… 49,27)

Apesar de seu caráter de desenlace, a reação de José ao discurso de Judá


não desfaz completamente a tensão narrativa. Com efeito, várias questões
permanecem em aberto após o que aconteceu. Elas é que irão guiar-me para
percorrer mais rapidamente a continuação da narração até o final, quando a
questão fraternal voltará à tona, após a morte e o sepultamento de Jacó.
Há, de início, uma pergunta fundamental acerca da relação que se cria
aqui entre José e seus irmãos. Com efeito, por mais compreensível que seja
nas condições que vimos, a ânsia de José demonstrada após o discurso de Judá
para se dar a conhecer, interpretar a história comum e descrever sua visão do
futuro dá pouco espaço para os irmãos, cuja perplexidade o narrador ressalta
de diferentes maneiras. Nota-se que apenas Benjamim abraça José chorando
com ele e, por assim dizer, comungando na emoção de seu irmão (45,14). Os
outros se contentam em se deixar abraçar (45,15a). E mesmo que o narrador
diga que “seus irmãos falaram com ele” (45,15b) não menciona suas palavras;
e o silêncio indica que, provavelmente, nada desta conversa vale a pena ser
relatado. O mínimo que podemos dizer é que, assim como os irmãos eram
transparentes para o leitor quando José se ocultava deles, da mesma forma
sua reação parece sufocada agora que José se revelou a eles.
Além disso, já mostrei que José só falou sobre o fato de ter sido vendido
por seus irmãos para se identificar diante deles (45,4) e para convidá-los a

253
José ou a invenção da fraternidade

não se preocupar com o que lhe fizeram, porque serviu para o desígnio de
Deus (45,5) e agora vai beneficiá-los1. Ora, que pensam os irmãos sobre
a negação desse fato do qual estão bem conscientes (ver 42,21 e 44,16)?
Além disso, José, assim como Judá, insiste tanto em seu pai e no ardente
desejo que alimenta de vê-lo são e salvo a seu lado que seus irmãos podem
legitimamente se perguntar se sua nova atitude não é encomendada por esse
desejo, enquanto eles mesmos devem sua importância ao papel de interme-
diários que poderão assumir. Certamente, José lhes oferece a possibilidade de
apagar a separação entre pai e filhos, que tinham anteriormente provocado2.
Mas não estão eles, enquanto pessoas, já embutidos, por assim dizer, na
relação, outrora odiosa, que José os obriga a assumir neste momento? Em
suma, não é certo que para seus irmãos tudo está tão claro quanto para José,
mesmo se foi dado um passo gigantesco, visto que não há mais nada que os
ameace e que a proteção de suas vidas está garantida. Talvez isso explique
sua falta de resposta sobre o mérito, após as palavras de seu irmão3.
Outras questões, mais imediatas desta vez, decorrem do projeto de José de
fazer descer ao Egito seu pai com toda a família — o que ele apresenta como
seu próprio modo de permitir que o projeto de Deus se realize. Essa ideia de
o eleito partir da terra prometida para o Egito, ao menos por certo tempo, é
realmente coerente com o que Deus quer? Em vista do anteriormente expos-
to no Gênesis, o leitor pode razoavelmente duvidar4. Além disso, é legítimo
perguntar como os atores humanos envolvidos vão reagir ao convite: o Faraó,
que já escutou rumores dos acontecimentos que envolvem José (45,2 e 16a),
aceitará que um clã de estrangeiros se instale no país de Gossen (45,9-10)?
Os irmãos, que, como vimos, não se mostram dispostos a aceitar este projeto,
imigrarão com suas famílias, enquanto há outras soluções viáveis? E, sobretu-
do, Jacó acreditará neles e aceitará deixar sua terra para ir se encontrar com
um fantasma? Nada disso é garantido, já que José não pode dispor de todas
essas pessoas sem o consentimento delas.

1. Para B. Green, “What Profit for Us?”, 190, fala do benefício sobre o qual Judá falava
em 37,26.
2. Emprestei a ideia de W. L. Humphreys, Joseph and his Family, 51.
3. Nesse sentido, ver H. C. White, Narration and Discourse, 271, que insiste sobre o fato de
o ponto de vista dos irmãos ter sido negligenciado no discurso de José.
4. Quando das duas anteriores crises de fome, fala-se em descer ao Egito. Em Gênesis 12,10-
20, a iniciativa é do patriarca e o resultado não é muito feliz (ver meu artigo Abram et Saraï en
Egipte). Quanto a Isaac, Deus o proíbe expressamente refugiar-se ali e lhe promete vida na terra
de Canaã (Gn 26,2-4).

254
Capítulo 15 – José reencontra Jacó (45,16… 49,27)

Jacó no Egito (45,16… 47,27)


Sobre essas últimas questões, o leitor não demora a ser informado, em primei-
ro lugar sobre a reação do Faraó. Este, percebendo a causa da agitação, alegra-se
espontaneamente com a chegada dos irmãos de seu vizir (45,16-20):

A voz foi ouvida na casa do Faraó dizendo: “Os irmãos de José chegaram”.
16

E foi bom aos olhos do Faraó e aos olhos de seus servos. 17E o Faraó disse a
José: “Dize a teus irmãos: ‘Fazei isto: carregai vossos animais e ide [embora],
vinde à terra do país de Canaã 18e tomai vosso pai e vossas casas, depois vinde
para mim e dar-vos-ei o de melhor da terra do Egito, e que comais da gordura
da terra’. 19E tu, tu recebes esta ordem: ‘Fazei isto: tomai daqui da terra do
Egito carros para vossas crianças e para vossas mulheres e levai/trazei vosso
pai e vinde. 20Não tenhais um olhar triste5 pelas vossas coisas, pois o melhor
de toda a terra do Egito será vosso’”.

Foi a voz do choro de José (45,2) que fez o Faraó saber o que se passa? Os
dois homens se puseram de acordo sobre o que fazer para a volta dos irmãos?6
Pois senão como poderia o Faraó conhecer a situação da família desses ho-
mens? Nada disso está explícito no relato do narrador, mas um acordo prévio
poderia explicar a firmeza de José ao expor seu projeto, de onde o aspecto
mais polido de seu discurso neste lugar7. Seja o que for — combinação ou
mera coincidência —, o rei ordena a José fazer o que este disse a seus irmãos,
apoiando assim com sua autoridade o plano exposto e fornecendo até carros
para transportar o pai, as esposas e as crianças. Além disso, se houve acordo,
isso mostraria como José puxou para seu lado todas as chances para trazer seu
pai. Neste caso, o que ele fez com os irmãos teria, estranhamente, ar de mani-
pulação. Para o bem e para a vida, decerto, mas tem ar de manipulação!
A continuação da narrativa responde a uma segunda interrogação: qual
será a reação dos irmãos, dos quais o leitor só percebeu o silêncio depois que
José se deu a conhecer (45,21-24)?

E os filhos de Israel fizeram assim/honestamente. E José lhes deu os carros,


21

por ordem do Faraó, e forneceu-lhes provisões para a viagem. 22E a todos eles

5. Literalmente: “que vosso olho não se arrependa…”. O olho é o órgão por onde começa
a cobiça.
6. Neste sentido, o Qal com sentido do passado do verbo s.uwweytah (literalmente: “tu foste
comandado”, 45,19) poderia referir-se a uma conversa anterior, não somente à ordem enunciada
nos versículos 17-18.
7. Veja acima a análise da forma e a estrutura do discurso, p. 244-245.

255
José ou a invenção da fraternidade

deu uma muda de roupa, mas a Benjamim deu trezentos [siclos] de prata e
cinco mudas de roupa. 23E para seu pai mandou assim: dez jumentos levando
do melhor do Egito, e dez jumentas levando trigo e pão e alimento para seu
pai, para o caminho. 24E despediu seus irmãos e partiram. E ele lhes disse:
“Não estremeçais no caminho!”.

O narrador registra, de início, que o acordo é executado pelos irmãos: eles


procedem como o Faraó lhes disse (falou-lhes por duas vezes “Fazei isto”,
45,17a e 19a). “E fizeram assim”… ou “honestamente”, segundo o duplo sentido
possível depois que o adjetivo ken foi utilizado para qualificar a atitude dos
irmãos em 42,11.19-20 e 33-34. Se o sentido pode ser mantido, isso significa
que eles não apenas executam ordens, mas o fazem com honestidade e sem
segundas intenções. No entanto, o narrador nos mostra novamente José em
ação, e os irmãos não fazem nada além de partir. A ênfase sobre o presente é
particularmente forte aqui: tudo o que ele faz por seus irmãos consiste em dar
(quatro vezes o verbo natan em 45,21-22): os carros do Faraó, as provisões
para o caminho8, uma troca de roupa para cada um e cinco para Benjamim.
Estas roupas novas, para substituir aquelas que rasgaram quando a taça foi
encontrada em posse de Benjamim (cf. 44,15), será que recordam discretamente
a túnica que os irmãos, antes, haviam tomado de seu irmão? Se é assim, o fato
de José enviá-los a Jacó com túnicas oferecidas por ele pode significar que
para ele o caso está encerrado, pois pagou o mal com o bem. Em sua opinião,
o melhor de seus sonhos está prestes a acontecer: reunir a seu redor seu pai
e seus irmãos para que todos tenham um porvir de vida. E, como se preten-
desse mostrar que a nova fraternidade, longe de excluir privilégios, é capaz
de integrá-los, dá a Benjamim trezentos siclos de prata — para compensar a
falsa acusação de furto de prata? — e cinco mudas de roupa.
Depois de ter cumulado seus irmãos de presentes, José manda também
presentes para seu pai, por meio deles (“mandou”… por seus irmãos que “des-
pediu”, 45,23-24). Trata-se aqui de bons produtos do país — uma amostra do
que o espera no Egito (cf. 45,18.20) — e de outras provisões para o caminho,
mas em grande quantidade, repartidos entre os irmãos com dez jumentos e
mais dez jumentas, além de seus próprios animais, sem dúvida. Estes são
os argumentos para convencer seu velho pai? Se os presentes têm o mesmo

8. Aparentemente, José não lhes dá grãos. Isso porque os grãos lembram sempre um golpe
durante a falsa partida? Ou será porque não precisam mais? Uma vez que vão voltar de imediato,
as abundantes provisões do caminho são suficientes (45,21b.23). Neste caso, a falta de alimentos
será um argumento de peso para convencer Jacó a partir!

256
Capítulo 15 – José reencontra Jacó (45,16… 49,27)

significado que os que Jacó enviou para aplacar o egípcio, isso não seria im-
possível. Em qualquer caso, é um novo sinal do desejo ardente de José para
ver seu pai se juntar a ele. Pois é possível que isso não aconteça. Como Jacó
vai reagir ao retorno dos filhos? José, portanto, os deixa ir, aconselhando-os
a não se agitar no caminho9.
Há, portanto, um outro personagem capaz de comprometer a realização
do sonho de José: o pai que permaneceu em Canaã (45,25-28).
25
E eles subiram do Egito e chegaram à terra de Canaã, a seu pai Jacó. 26E
anunciaram-lhe, dizendo: “José ainda vive, sim, e ele é dominante em toda a
terra do Egito!”; e o coração dele ficou frio, porque não acreditava neles. 27E
eles lhe repetiram todas as palavras que José lhes havia dirigido10, e ele viu
os carros que José mandara para trazê-lo, e o espírito de Jacó, o pai deles,
reviveu. 28E Israel lhes disse: “Basta! José meu filho ainda vive! Irei vê-lo
antes que eu morra!”.

O narrador cria um ligeiro atraso aqui, um último suspense, e o que o


provoca é significativo. Quando os irmãos anunciam a Jacó o essencial da
boa notícia — José vive ainda e domina em todo o Egito —, ele permanece
insensível. Ele não acredita neles, precisa o narrador. Aparentemente, a seus
olhos, a notícia não passa de uma nova mentira dos irmãos, e este traço mostra
a que ponto a desconfiança está enraizada nele e, portanto, quanto lhe custou
confiar-lhes Benjamim (ver 43,11-14). Mas, provavelmente, isso indica também
que o velho pai estava tão fechado “em seu pesar a propósito de seu filho
perdido” que não estava “pronto para receber a notícia de que ele está vivo e
no poder no Egito”11. Diante de seu pai, os irmãos não se desencorajam: eles
dão os detalhes, relatando-lhe todas as palavras de José. Mas, mesmo multi-
plicadas, as palavras não são suficientes. Somente à vista do sinal que prova
que dizem a verdade, os carros enviados por José por ordem do Faraó, Jacó
reencontra a vida, literalmente (45,27). Portanto, é mesmo José que dá a seus
irmãos a oportunidade de voltar em confiança a seu pai, a quem mentiram
tanto tempo, e que permite que seu pai saia de seu interminável luto. A cena
que narra o fato, aliás, é outro lembrete dos fatos de mais de vinte anos atrás:

9. O verbo ragaz tem um sentido amplo demais para que o conselho de José seja realmente
claro: ele traduz um tremor, um movimento contínuo ou uma excitação, e pode estar ligado a emo-
ções como o medo, a ansiedade, a alegria ou a tristeza. Veja HALAT, sub voce.
10. Literalmente: “eles lhe falaram todas as palavras que José lhes tinha falado”, com clara
ênfase sobre a “palavra”.
11. W. L. Humphreys, Joseph and his Family, 80.

257
José ou a invenção da fraternidade

os que fizeram seu pai acreditar que seu filho preferido estava morto anunciam
agora que ele ainda vive (37,32 e 45,26), mas desta vez José se une a eles
para que o pai, que desejou morrer para se ajuntar a ele, reencontre o gosto
pela vida e deseje viver o bastante para poder ver seu filho antes de morrer
(37,34-35 e 45,28). Esta reminiscência implícita do início da história mostra
que encontramos aqui um elemento do desenlace da crise familiar.
Enfim, o último obstáculo é removido quando Deus, consultado por Jacó,
incentiva a descida deste ao Egito (46,1-7).
1
E Israel partiu, e tudo o que era seu, e chegou a Berseba e ofereceu sacrifí-
cios ao Deus de seu pai Isaac. 2E Deus disse a Israel nas visões da noite; e
disse: “Jacó! Jacó!”. E ele disse: “Eis-me aqui”. 3E Deus continuou: “Eu sou
o Deus, o Deus de teu pai. Não tenhas medo de descer ao Egito, porque farei
de ti uma grande nação ali. 4Eu mesmo descerei contigo ao Egito e eu te farei
subir — sim, uma subida —, e José fechará teus olhos”12.
5
E Jacó levantou-se de Berseba, e os filhos de Israel levaram seu pai e seus
filhos e suas mulheres sobre os carros que o Faraó mandara para levá-lo. 6E
tomaram os rebanhos e as aquisições que haviam adquirido na terra de Canaã,
e foram para o Egito, Jacó e toda a sua descendência com ele: 7seus filhos e
os filhos de seus filhos, suas filhas e as filhas de seus filhos, e toda a sua
descendência, ele [os] fez vir consigo para o Egito.

Sem perda de tempo, Israel põe-se a caminho e chega a Berseba, onde


oferece sacrifícios “ao Deus de seu pai”. O local foi residência de seus pais
depois que Deus tinha impedido Isaac de descer ao Egito para escapar da
fome (Gn 26,23.33), lugar também que o próprio Jacó deixara por ordem
de seu pai para ir casar-se em Padã-Aram (28,1-5 e 10). Lá, ele foi para
oferecer um sacrifício a Deus no momento em que estava para deixar o país,
a terra cuja posse seu pai lhe havia anunciado (28,4), promessa confirmada
mais tarde pelo próprio Deus (35,12). Jacó está solicitando o consentimento
divino para o que vai empreender?13 De toda maneira, Deus lhe garante a
escolha que faz14. Ele renova a Jacó sua promessa de numerosa descendência
(28,2-3.14; 35,11) e garante, como da outra vez (ver 28,15), que estará com

12. É certamente este o sentido da expressão que, literalmente, soa: “José porá a mão sobre
teus olhos”.
13. Com J. S. Ackerman, Joseph, Judah and Jacob, 108, podemos lembrar que Isaac foi proibido
por Deus de fazer semelhante viagem durante uma fome local anterior (26,2-3).
14. R. Pirson, The Lord of the Dreams, 118-119, destaca, com razão, que a mensagem noturna
de Deus aproxima-se daquela que Isaac recebeu no mesmo lugar, à noite (26,24).

258
Capítulo 15 – José reencontra Jacó (45,16… 49,27)

ele no Egito para trazê-lo de volta, após sua morte, à qual José assistirá. E
enquanto anuncia a Israel que atualiza suas promessas15 e que é no Egito que
ele vai ter uma grande descendência, Deus, implicitamente, apoia a iniciativa
de José16, alimentando ao mesmo tempo em Jacó a esperança de rever seu
filho e de sobreviver à fome. Depois dessas palavras, é compreensível que
Israel não hesite mais em levar toda a sua família para se instalar no Egito,
de acordo com o que José e o Faraó lhe disseram por meio de seus irmãos
(46,5-7 e ver 45,9-10 e 19).
Finalmente, depois de fazer desfilar aos olhos do leitor o longo cortejo
daqueles que Jacó leva consigo para o Egito (46,8-27), o narrador lhe faz
assistir ao reencontro breve, mas intenso, entre o pai e seu filho bem-amado
(46,28-30).

E a Judá, [Jacó] o tinha enviado adiante dele a José para lhe informar [o
28

caminho]17 diante dele para Gossen, e chegaram à terra de Gossen. 29E José
atrelou seu carro e foi ao encontro de Israel, seu pai, em Gossen, e se fez ver a
ele e lançou-se ao seu pescoço e chorou ao seu pescoço, ainda. 30E Israel disse a
José: “Posso morrer desta vez, depois que vi tua face, porque ainda vives!”

Por iniciativa de Jacó, é Judá quem opera a união entre José e ele. Reconhece
Jacó, assim, que Judá estava certo quando o persuadiu a deixar Benjamim
partir? A história é por demais alusiva para afirmá-lo, e a desqualificação
de Rubem (35,22 e 42,37), após a de Simeão e Levi (34,30-31), poderia ser
suficiente para explicar que aos olhos do pai Judá é na verdade o mais velho
dos irmãos. Ainda assim, o papel que ele lhe confia cabe-lhe particularmente,
a ele que por seu discurso patético abriu o caminho ao que aqui se completa.
Além disso, é justo que seja aquele que pensou em separar José de seu pai
que prepara aqui o reencontro deles18 — sinal de que com esse reencontro a
história se encerra para Jacó e José.
O narrador mostra então José atrelando o carro, que simboliza sua importân-
cia no Egito (cf. 41,43), para “ir ao encontro de Israel, seu pai” e se apresentar

15. Comparando o presente discurso aos outros do mesmo gênero, R. Pirson, The Lord of the
Dreams, 119, conclui que “Deus tem aparentemente adaptado suas promessas anteriores” ao convite
lançado por José a seu pai.
16. Assim Turner, 193.
17. A expressão é curiosa e as versões mais antigas têm um texto mais simples. Em hebraico,
temos, literalmente, “para ensinar diante dele”. Veja a observação feita por Hamilton, 600, ou
Sarna, 318.
18. A ideia é de W. L. Humphreys, Joseph and his Family, 85. Veja também Sarna, 318.

259
José ou a invenção da fraternidade

a ele — momento que o velho Jacó espera desde que enviou José a seus irmãos
(37,13-14)19. O reencontro silencioso é pungente, novo momento de intensa
emoção. Pela quarta vez, José explode em prantos, abraçado ao pai agora, e
suas lágrimas duram, como salienta o narrador (“ainda”20). Para Jacó também
o momento é forte. E, se ele parece não poder reter-se de falar novamente
da morte, é para demonstrar sua alegria por ter visto seu filho vivo. Mas sua
declaração é surpreendente. Ele que, diante de seus filhos, muitas vezes ligou
sua morte ao desaparecimento de José e à partida de Benjamim (37,35; 42,38;
43,14, ver 44,22.29.34), agora parece dizer a José que é precisamente seu desa-
parecimento que o manteve vivo e que, agora que sua esperança impossível se
realizou, ele pode finalmente morrer21. Preocupado com o futuro dos seus, José
não reage a esta palavra. Aliás, Jacó voltará a ela antes de morrer, atribuindo
a Deus a realização de uma esperança que acreditava impossível22.
José volta-se resolutamente para o futuro e ocupa-se em organizar concre-
tamente a instalação da família, dos irmãos em particular, até que possa ver
a realização de sua promessa: alimentá-los durante todo o período de fome
(46,31–47,12). Observe-se que, enquanto os egípcios estão cheios de gratidão
a José porque os salvou e vendem pouco a pouco seus bens e suas pessoas
por pão (47,13-26), a família de Jacó recebe propriedades na melhor parte
do Egito e começa a multiplicar-se ali, segundo a promessa divina (47,11.27,
ver 46,3). Certamente, para José as coisas acabam como parece ter esperado.
Pois é seu desejo que se realiza. Ele disse a seus irmãos, quando lhes confiou
a mensagem para seu pai (45,10-11):
10
“Habitarás na terra de Gossen, e estarás perto de mim, tu e teus filhos e os
filhos de teus filhos, e teu rebanho e teu gado e tudo o que é teu. 11E lá, eu
proverei o teu sustento — pois ainda haverá fome por cinco anos —, para que
não sejas desapossado, tu, e tua casa e tudo o que é teu’.”

19. Assim Turner, 194; para a segunda aproximação, ver B. Green, “What Profit for Us?”,
180. A expressão utilizada para descrever o primeiro encontro entre José e seu pai, ra’ah (no
Nifal), seguido por ’el, “fazer-se ver a”, é surpreendente, na medida em que até aqui, no Gênesis,
ela introduz sempre uma aparição de Deus: cf. 12,7; 17,1; 18,1; 26,2.24; 35,1.9 (e 48,3, ver ainda
22,14; assim Von Rad, 412). José seria, aos olhos de Jacó, como um personagem divino (R. Alter,
Genesis, 277)? Mas o termo também é usado ocasionalmente para os seres humanos (por exemplo,
Lv 13,19; Jz 13,10; 1Rs 18,1).
20. Retomo aqui Westermann, 162.
21. A ideia é de B. Green, “What Profit for Us?”, 180, que assinala a este propósito a deli-
cadeza da caracterização de Jacó.
22. Ver 48,11: “Ver tua face, não havia contado com isso… e eis que Deus me fez ver também
tua descendência”.

260
Capítulo 15 – José reencontra Jacó (45,16… 49,27)

É o que acontece quando o narrador registra, no final da viagem e da


instalação (47,11-12):
E José fez habitar seu pai e seus irmãos, e deu-lhes uma propriedade na terra
11

do Egito, na melhor [parte] da terra, na terra de Ramsés, segundo ordenara o


Faraó23. 12E José sustentou seu pai e seus irmãos e a toda a casa de seu pai —
pão segundo a boca das crianças.
Ele ainda reiterou, acrescentando um eco da bênção do Criador para os
seres humanos (47,27, ver 1,28):
E Israel habitou na terra do Egito, na terra de Gossen, e aí adquiriram proprie-
dades, e frutificaram, e multiplicaram-se muito.

Balanço de Jacó (49)


O último ato gira em torno da morte de Jacó, no relato ao qual o narrador
chega a seguir, passando, sem transição, por cima de dezessete anos depois da
chegada da família ao Egito. A fome terminou doze anos antes, e está claro
agora que Israel e sua família permanecerão no Egito (47,28-30). Mas, antes
de ver como o conflito fraterno revive pela última vez depois desse falecimento
que é narrado com muitos detalhes, gostaria de ater-me à bela homenagem que
Jacó, antes de morrer, rendeu aos dois filhos sem os quais essa história não teria
conhecido o desfecho que teve: Judá e José24. Em seu discurso testamentário,
uma longa peça poética na qual o pai reúne simbolicamente os irmãos em torno
de si, depois de ter emitido um julgamento bastante negativo sobre Rubem,
Simeão e Levi (49,3-7), é a Judá que Jacó se dirige em seguida (49,8-12)25.
Ele começa anunciando que Judá estará à frente de seus filhos (49,8):
Judá, és tu! Teus irmãos te celebrarão [yoduka],
tua mão pesará sobre a nuca de teus inimigos,
se prostrarão diante de ti os filhos de teu pai.
As palavras surpreendem depois dos sonhos de José, embora se juntem,
no final da história, ao ceticismo que expressava a interpretação de Jacó26.

23. Veja 45,18-19.


24. Não é significativo que a última palavra que Jacó dirige em particular a José é para dar a
ele e a seus descendentes a terra de Siquém (48,22, consulte 37,13-17)?
25. Eu me atenho, a seguir, somente às passagens que fazem eco de modo bastante claro à
história fraternal.
26. Veja acima, p. 41. Neste sentido, R. Pirson, The Lord of the Dreams, 129.

261
José ou a invenção da fraternidade

Agora, não será mais diante de José que se inclinarão os irmãos, mas diante
de Judá, cujo lugar é o do líder: “O bastão não se afastará de Judá, nem o
cetro dentre seus pés” (49,10a). Jacó consagra assim a posição de líder que
o filho de Lia adquiriu pouco a pouco nessa história (ver 37,26-27; 43,3-10;
44,14-34 e 46,28)27. É, pois, a ele que cabe o bastão de comando — o ševet.
que ele deu a Tamar e que ela lhe devolveu com a possibilidade de se tornar
outro homem (cf. 38,18.25)28 — e é um cetro de comandante (meh.oqeq).
Mas por que dar esse lugar a Judá? Outro verso da palavra paternal sugere
talvez uma explicação que remete o leitor ao papel deste filho na narrativa
que acaba de ler29. O versículo 9 evoca uma mudança em Judá, que, de jovem
leão que era, renunciou à violência carniceira:

Um filhote de leão, Judá,


do dilaceramento [de] meu filho, subiste!
Ele se ajoelha, se agacha como um leão,
e como uma leoa — quem o fará levantar?

A palavra t.erep (“dilaceramento” ou “presa”) empregada aqui por Jacó


corresponde ao verbo duplicado com o qual, no grito dado diante da túnica
ensanguentada de “seu filho” (37,33), descreveu o destino de José atacado por
um animal feroz — a fera interior dos irmãos30. Ora, esse grito tinha ficado
nos ouvidos de Judá, que o havia lembrado em sua súplica perante o senhor
egípcio (44,28), sugerindo assim o que o levou a poupar seu pai e seu irmão.
Assim, “tendo subido da carnificina”, o jovem leão está bem agachado, qual
leão domesticado que é difícil de fazer se levantar. Se, como diz o final da
estrofe (49,12), o vermelho de seus olhos é o do vinho, não será porque re-
nunciou ao sangue? E não será pelo mesmo motivo que seus dentes são mais
brancos que o leite? Isso, sem dúvida, é o que Jacó reconhece quando atribui
o poder àquele que aprendeu a dominar sua violência para pôr sua força a
serviço da vida.

27. Neste sentido, R. De Hoop, Genesis 49, 352-353.


28. E. M. Good, The “Blessing” on Judah, 430, e C. M. Carmichael, Some Sayings in Genesis
49, 439-440.
29. Assim também R. Pirson, The Lord of the Drı-ams, 128.
30. Para esta interpretação, veja acima, p. 73-74. A ligação entre 37,33 e 49,9 já é feita por Rashi.
Veja também E. M. Good, The “Blessing” on Judah, 429, e C. M. Carmichael, Some Sayings in
Genesis 49, 439. A alusão é ainda mais precisa quando, em vez de ler na palavra seguinte “meu
filho” (benı-), como vocativo, este termo é entendido como o complemento do substantivo: “longe
do dilaceramento de meu filho”.

262
Capítulo 15 – José reencontra Jacó (45,16… 49,27)

Se Judá é colocado por Jacó à testa do grupo de irmãos, José recebe por
sua parte a bênção: após o anúncio “que Shadai te abençoe”, o substantivo é
utilizado cinco vezes num magnífico desdobramento (49,25-26).
25
pelo Deus de teu pai — sim, que ele te ajude —,
e com Shadai — sim, que ele te abençoe:
bênçãos do céu do alto,
bênçãos do Abismo encolhido embaixo,
bênçãos dos seios e do útero;
26
bênçãos de teu pai […]
que elas sejam para a cabeça de José,
para a fronte do distinguido entre seus irmãos!
Abençoando assim José, o velho Jacó lembra o papel preciso desempe-
nhado pelo “distinguido entre seus irmãos” na narração: não foi ele, de fato,
quem assegurou a bênção duradoura, e bem amplamente? E, visto que a obra
de José se tornou uma fonte de fecundidade, não é surpreendente ouvir aqui o
nome de Shadai31. Mas, assim como para Judá, a declaração é explicada pelas
escolhas de José nos momentos cruciais de sua existência (49,23-24)32.
23
E o fizeram amargo e atiraram,
trataram-no como adversário, os donos das setas;
24
E ele permaneceu constante, seu arco!
e flexíveis são os braços de suas mãos;
pelas mãos do Poderoso de Jacó:
daí: pastor, pedra de Israel
Esse verso poético refere-se à forma como José enfrentou a agressão dos
outros, a violência que o encheu de amargura — e o leitor, aqui, pensa não
somente nos irmãos, mas nos egípcios da casa de Putifar. Na adversidade, graças
ao apoio do Deus de seu pai, José tem controlado sua agressividade — seu arco
—, constante e fiel a si mesmo como um rio que nunca decepciona porque suas
águas jamais faltam33, o que exigiu dele uma bela “flexibilidade”. Eis como

31. Sobre o nome divino no Gênesis, veja acima, p. 177-178. Notemos que no capítulo 49 so-
mente a palavra dirigida a José menciona o nome de Deus (além da transição no versículo 18), de
acordo com o conjunto da narração, que liga Deus essencialmente a José.
32. Este é um dos significados possíveis desse texto difícil, que combina melhor, sem dúvida,
com o atual contexto da bênção de Jacó. Para um breve status quaestionis, ver Hamilton, 679-680
e 684-685.
33. Ao contrário dos wadis de fluxo intermitente. Para este quadro, ver, por exemplo, Amós
5,24 ou Salmos 74,15. Para o sentido figurado, ver, por exemplo, Números 24,21 (habitação firme),

263
José ou a invenção da fraternidade

ele aparece aos olhos de seu pai. Também merece, em sua solidez, ser procla-
mado “pastor de Israel”, que tem liderado a família para a vida, encontrando
o caminho da fraternidade e instalando os seus lá onde podia alimentá-los
durante a fome. Ele confirma assim o que o narrador anunciou de imediato,
apresentando José como “pastor” (ro‘eh) de seus irmãos34. E é como tal que,
abençoado, pode tornar-se fonte de bênção. Isso não lhe confere o primeiro
lugar entre os seus, como vimos, mesmo que seja e continue a ser aquele que
foi “destacado dentre seus irmãos” para ser bênção para todos. A última palavra
de Jacó sobre José confirma, pois, a escolha da primeira hora.
Assim, na hora de sua morte, Jacó enfatiza especialmente a ação dos dois
filhos cujo papel se revelou fundamental na história recente da família. Para
o leitor, este é um tipo de equilíbrio estabelecido por alguém que, mais do
que qualquer outro, pode ser grato aos que se mostraram justos para com ele,
porque justos consigo mesmos. Mas eu disse: se essas últimas palavras cons-
tituem para Jacó o desfecho, uma importante questão permanece em aberto
em relação aos irmãos. Sem dúvida, tudo está bem quando termina bem, para
José e Jacó. Mas e para eles?

Jeremias 5,15 (nação existente há muito tempo) e Jó 12,19 (pessoas estabelecidas). Mas observe-se
que o sentido da frase em Gênesis 49,24 é conjectural.
34. Veja acima, p. 28-30.

264
Capítulo 16

Após a morte do pai


(50,15-21)

Visto que tudo aconteceu conforme os projetos de José1 e que o pai,


depois de ter saudado os dois protagonistas da construção da família, morreu
em paz cercado por seus filhos, o leitor poderia pensar que chegou o epílogo,
quando vê os irmãos retornarem de Canaã, onde enterraram Jacó, conforme
os últimos desejos dele (49,33–50,14). Mas é então que a narrativa recome-
ça, num modo que o leitor não espera, se não percebeu os problemas que a
intervenção de José criou quando ele se fez reconhecer pelos irmãos ou se,
na euforia do êxito ou na serenidade da longa descrição dos ritos fúnebres
em torno da morte de Jacó, os esqueceu.
Na verdade, eu já disse acima, a cena do reencontro fraterno deixa em
aberto duas questões importantes. Por um lado, foi a preocupação com o pai
que permitiu aos irmãos (re)encontrar-se. Essa preocupação foi central na
súplica de Judá, que se substituiu a Benjamim exatamente para que Jacó não
morresse. Quanto a José, depois de ter-se dado a conhecer, ele havia expressado
essencialmente sua ânsia de rever seu pai; pelo menos era o que havia falado
de início (45,3). Mas, se foi o amor pelo pai que assim forjou a fraternidade,

1. Veja acima, p. 248-249, o desejo expresso em 45,10-11 e realizado em 46,1–47,12 e 47,27.

265
José ou a invenção da fraternidade

o que vai acontecer agora que ele morreu e foi enterrado?2 Por outro lado, na
forte emoção que sentiu com as palavras de Judá, decerto também, em parte,
para não comprometer suas chances de rever rapidamente seu velho pai, José
não tinha qualificado moralmente o mal que seus irmãos lhe infligiram. Se
duas vezes tocou no assunto da “venda”, foi para convidar seus irmãos a não
se afligir, já que a ação deles tinha servido ao plano divino de salvação. Além
disso, na terceira conversa, ele não falou mais em venda, mas apenas em envio.
Ao fazê-lo, enquanto os irmãos o ouviam num silêncio atordoado, José lhes
impôs de facto sua leitura dos acontecimentos; negou a culpa deles, sem abrir
um espaço onde eles pudessem expressar sua própria interpretação do passado,
de sua culpabilidade3. No entanto, “o perdão é muito mais do que um acerto de
contas e uma absolvição. Ele é cura mútua do ofensor e do ofendido”4. Nesta
perspectiva, levando em conta o que aconteceu quando do reencontro, José ainda
está longe do acerto, por causa de sua ânsia e de sua emoção. Ele fica devendo
aos irmãos percorrer o resto da distância que, assim, deixou entre eles.

A iniciativa dos irmãos (50,15-18)


Se há um tal “cadáver no armário”, José certamente não tem consciência
disso. Por um lado, como vimos, todo o assunto acabou conforme seus dese-
jos, e por outro lado, é ele que, pela sua posição no Egito, está em posição
superior: a cena do funeral em 50,1-14 ainda o mostrou: aí, ele desempenha
o papel principal, enquanto os irmãos são figurantes (50,8), exceto durante o
enterro em Macpelá (50,12-13). Assim, é só por parte dos irmãos que ainda
pode produzir-se algum sobressalto (50,15-17).
15
E os irmãos de José viram que/temeram porque seu pai estava morto e [se]
disseram: “Se José nos tratasse como adversários, e quisesse nos devolver
todo o mal com que nós lhe retribuímos…?” 16E mandaram/ordenaram dizer
a José: “Teu pai nos ordenou antes de sua morte, dizendo: 17‘Assim falareis a

2. Ver H. C. White, Narration and Discourse, 273, e G. Fischer, Die Josefsgeschichte, 261.
O leitor do Gênesis lembra-se de que Esaú tinha pensado em aguardar a morte de seu amado pai
antes de acertar sua conta com Jacó, que lhe havia roubado seu direito de primogenitura e sua
bênção (27,41, ver 27,36).
3. Neste sentido, Von Rad, 440. Ver Coates, 312, e Wenham, 489, que, com os outros, enfatizam
que os irmãos nunca foram capazes de pedir desculpas a José. Talvez esse último se contente com
a condenação que eles dirigiram a si mesmos sem pensar que ele os estivesse entendendo (42,21)
ou com a confissão genérica de Judá diante do senhor do Egito (44,16), embora este parecesse ter
percebido a inadequação em relação à verdade da falta. Mas isso é suficiente para os irmãos?
4. P. Beauchamp, Joseph et ses frères, 9.

266
Capítulo 16 – Após a morte do pai (50,15-21)

José: Ah, te peço: Perdoa, te peço, a rebelião de teus irmãos e sua falta, pois
[é] um mal [o que] te retribuíram5. E agora, perdoa, te peço, a rebelião dos
servos do Deus de teu pai’”. E José chorou quando lhe falaram.
Desde o retorno ao Egito após o enterro (50,14), a tensão torna-se forte
dentro do grupo dos irmãos. O narrador a faz sentir de duas maneiras: de iní-
cio, jogando com a ambiguidade da expressão wayyire’u ki, que pode significar
“eles viram6” ou “eles tiveram medo”: ele indica assim que, quando tomam
consciência, como “irmãos de José”, de que “seu pai” — o dele e deles —
desapareceu, o medo renasce. O autor lhes deixa então o cuidado de expressar,
primeiro entre eles, o que temem. Segundo as palavras deles, fica claro que
é “o mal” infligido a José que volta à tona, ou seja, o crime que ele ocultara
em sua ânsia de salvar os seus e reencontrar seu pai.
Não encarada como tal, a culpabilidade dos irmãos permaneceu intacta e,
uma vez Jacó desaparecido, ela reaparece, fantasma de uma memória enterrada7.
O leitor descobre assim que durante dezessete anos os irmãos viveram debaixo
das asas de seu pai, sem saber se o perdão de José fora motivado apenas pelo
desejo de poupar Jacó — inversão do início da história, quando José gozava
da proteção paterna diante da agressividade latente de seus irmãos. Levando
em consideração que o pai não está mais lá para interpor-se, eles temem que
José os trate como Jacó disse que o trataram anteriormente: como adversários8.
Eles temem que seu irmão reverta sobre eles todo o mal que perpetraram
contra ele, ou talvez lhe tenham retribuído9 — então exprimiriam a lembrança
de primeiro terem sido as vítimas da insolência de José, no começo da his-
tória. Em todo caso, o leitor pode bem imaginar que José não planeja nada
nesse sentido. Também entende que é a culpabilidade dos irmãos que, ao ser
despertada, é projetada sobre ele como desejo de vingança10. O crime passado

5. Muitos pensam que as palavras de Jacó terminam aqui, mas é possível que elas se prolonguem
até o final da palavra dos irmãos.
6. Aqui, o verbo “ver” tem o significado de “tomar consciência”: veja Hamilton, 702.
7. Neste ponto, veja L. Alonso Schökel, Dov’è tuo fratello?, 378, e R. Pirson, The Lord of
the Dreams, 137.
8. O verbo utilizado pelos irmãos para expressar o que eles temem em relação a José,
.
sat.am, é o verbo que eles ouviram em 49,23 da boca de seu pai, referindo-se à forma como José
foi tratado anteriormente.
9. O verbo gamal, “completar”, de onde “desacostumar”, também pode significar “recompen-
sa” quando se trata do bem e do mal. Nesse sentido, o léxico de Zorell cita, por exemplo, ao lado
de Gênesis 50,15.17, também 1 Samuel 24,18 e Isaías 63,7. Veja também o artigo de K. Seybold,
Zwei Bemerkungen zur gml/gmwl, 114-116.
10. A ideia é proposta também por Janzen, 201. O mesmo tipo de medo enraizado numa antiga
culpabilidade constrangiu Jacó em seu retorno a Canaã, quando, ao ouvir da chegada de seu irmão,

267
José ou a invenção da fraternidade

continua a assombrar seus corações. E como poderia ser de outra forma, visto
que até agora eles não puderam dizer nada disso à sua vítima?
As palavras que os irmãos dizem o mostram bem: dois problemas deixados
em suspenso na época do reencontro agora emergem das sombras, intrinseca-
mente ligados um ao outro na maneira como os irmãos percebem a situação.
Mas desta vez o medo não os paralisa. Desde a segunda estada no Egito,
aprenderam a enfrentar seus medos e a exorcizá-los falando a quem de direito
(cf. 43,18-22). No entanto, seu modo de proceder parece movido pelo medo, a
não ser que seja inspirado por alguma estratégia oculta. De fato, descrevendo
sua iniciativa em relação a José, o narrador assinala que eles encarregam uma
pessoa anônima de se tornar seu porta-voz. Será que temem afrontar seu irmão
ou agem como na época em que enviaram a túnica para seu pai, preferindo
não ser vistos, para não correrem o risco de ser desmascarados?11 Ainda assim,
eles imploram o perdão de seu irmão, mandando que se lhe transmita uma
ordem de Jacó. Mas o narrador nunca antes mencionou tal ordem. Assim, o
leitor tem o direito de perguntar se Jacó jamais a deu e, portanto, se os irmãos
não estão tentando enganar José para se defender.
O narrador relatou as palavras do pai antes de sua morte (entre 47,29 e
49,32), mas nada aí se parece com a ordem a que os irmãos se referem. Ele
não menciona qualquer reunião entre os filhos e o pai ocorrida sem a presença
de José. E por que Jacó teria dado essa ordem a seus filhos em vez de dirigi-la
pessoalmente ao interessado, uma vez que teve todas as oportunidades durante
suas conversas particulares (47,29-31; 48)? Além disso, após afirmar que o
medo motiva sua iniciativa e que a efetuam por um intermediário, o narrador
dá aos irmãos a inteira responsabilidade de suas palavras. Acrescentam-se
a isso a habilidade retórica da formulação — como mostrarei adiante — e
o fato de que os irmãos atribuem a seu pai uma expressão que chegaram a
usar quando falavam entre si (“retribuir o mal”, 50,15). Considerando todos
esses fatores, o leitor fica com sérias dúvidas12: os irmãos parecem inventar
de qualquer jeito uma palavra que lhes permita reivindicar para si a autori-
dade do falecido para se esconder novamente atrás dele e obter o perdão que

temia a vingança dele; mas logo ia descobrir que Esaú havia esquecido a história passada ou perdoou
sua falta contra ele (ver Gn 32,7-22 e 33,1-11).
11. O temor dos irmãos é destacado por Von Rad, 440; Westermann, 204, refere-se aos
presentes enviados por Jacó para apaziguar seu irmão Esaú em Gênesis 32.
12. Neste sentido, Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative, 379. Veja também Wenham,
490, ou B. Green, “What Profit for Us?”, 191. Von Rad, 440, não partilha esta opinião, enquanto
Hamilton, 703, mantém a ambiguidade.

268
Capítulo 16 – Após a morte do pai (50,15-21)

desejam, especulando que um filho amado não ousará transgredir a última


vontade de seu pai. Não exige o testamento de um morto mais respeito que
as ordens de quem vive? Se até então o pai protegeu os filhos da vingança de
José, sua palavra terá o mesmo efeito após sua morte. Tal deve ser o cálculo
dos irmãos, sua astúcia, sintoma do medo e da desconfiança que o vizir do
Faraó ainda lhes inspira.
Ora, a retórica é inteligente13. Ao apresentar a palavra do pai como ordem
recebida dele, os irmãos imediatamente sugerem que sua abordagem não foi
ditada pelas circunstâncias ou por qualquer sentimento — sem dúvida, uma
maneira de esconder o medo e a desconfiança. Além disso, a primeira e a
última palavra são idênticas: “teu pai” (‘avika). Eles enquadram literalmente
o discurso evocando a relação privilegiada que fez de José o único. Ora, é
precisamente com esta relação que os irmãos contam para convencer seu des-
tinatário, ao mesmo tempo protegendo-se dele, reinstalando assim a figura
paterna em seu duplo papel de unir os irmãos e de separá-los. Em pleno centro,
este pai os chama de “teus irmãos” (’aḥeyka), inserindo a palavra entre dois
termos que os designam como culpados: “a rebelião de” e “sua falta”. Em
resumo: o teu pai mandou dizer a ti que somos teus irmãos, apesar da rebelião
e da falta contra ti. Notamos ainda o uso insistente da partícula deprecativa
na’ (“te peço14”), assim como a ambiguidade do final, do qual não se sabe
exatamente se é o pai quem disse, designando desde então seus filhos como
servos de seu Deus, ou se é a súplica dos próprios irmãos repetindo as palavras
do pai. Aliás, a evocação de Deus certamente não é fortuita, pois é capaz de
tocar um ponto sensível no destinatário da mensagem: acaso os irmãos não
ouviram José, várias vezes, mencionar Deus, dizendo que utilizou a falta deles
em prol da vida (cf. 45,5-9)? Não reconhecera Jacó diante deles em Deus a
fonte da bênção de seu preferido (ver 49,25)? Em suma, três razões capazes
de levar José ao perdão são reunidas aqui em algumas linhas: a solicitação de
seu falecido pai, o possível arrependimento de seus irmãos e a invocação do
Deus do qual eles são os servos, o Deus do pai — e de José.
Mas se, novamente, os irmãos usam de astúcia, verdade é que, através
do que inventaram, dizem algo de sua verdade — o que já não surpreende o
leitor. Pela primeira vez confessam, claramente, ainda que indiretamente, pelo
menos no início da súplica, a José a falta deles, qualificando-a moralmente15.

13. Sobre este ponto, ver G. Fischer, Die Josefsgeschichte, 257.


14. A primeira vez, ’anna’, com insistência, aparentemente: ver Westermann, 204.
15. Ver G. Fischer, Die Josefsgeschichte, 257.

269
José ou a invenção da fraternidade

Certamente, os irmãos em 42,21-22 e Judá em 44,16 disseram-se culpados


(’ašemim), falando de sua culpa (h.at.t.a’t), de seu crime (‘awon). Mas, a seus
olhos, sua testemunha ou interlocutor de então era um estrangeiro. Não era
considerado capaz de entender, quer por causa do idioma (42,23), quer por
causa do caráter genérico da confissão (44,16). Desta vez, dirigindo-se a José,
insistem: foi uma rebelião/transgressão contra os laços de sangue (peša‘, duas
vezes), uma falta moral (h.at.t.a’t), um mal e um infortúnio (ra‘ah) que lhe
impuseram, que lhe retribuíram16. Além disso, manifestam por duas vezes o
desejo de serem perdoados: primeiro, relatando a suposta palavra de Jacó; em
seguida, de uma forma que pode ser entendida como seu pedido juntado ao
do pai: “e agora, perdoa, te peço, a rebelião dos servos do Deus de teu pai”17.
Em suma, se em sua desconfiança os irmãos agem de modo oblíquo, contudo
fazem obra de verdade, ao interpelar aquele que, negando a falta deles, também
lhes negou o perdão. Ao fazer isso, mostram a José que é a culpabilidade deles
que os afasta dele, e o sinal disso é, precisamente, o medo que eles têm.

Tal procedimento deve surpreender José, que acreditava que tudo estava
bem porque terminou bem. “Quando lhe falaram” — em vista da concisão e
do efeito narrativo, o intermediário não é mencionado — ele “chorou”. Ob-
servamos a precisão do narrador: o que provoca em José essa nova explosão
emotiva não é o fato de ouvir as palavras, mas o fato de que os irmãos as
falam. Será que ele se entristece por achar triste o cálculo e a astúcia que
traem a confiança a seu respeito ou, ao contrário, se emociona ao perceber
o progresso que consiste na confissão espontânea de sua falta? Sofre por ver
que eles se protegem dele, por trás da figura do falecido, porque receiam
nele um desejo de vingança? Ou será que ele se comove com o desejo deles
de serem perdoados, reconhecidos como irmãos com sua falta? A menos que
a atitude de seus irmãos não o conscientize de que, anteriormente, em sua
precipitação, ele fez vista grossa para a falta deles, tornando-se incapaz de
perdoar e mantendo-se aquém de uma fraternidade de que eles se mostram
ansiosos no momento presente…
O leitor não o saberá. Pois, sem transição, o narrador relata outra inicia-
tiva dos irmãos (50,18).

E seus irmãos também vieram e prostraram-se diante dele, e disseram: “Eis-


nos aqui para ti como escravos!”

16. Ver acima, p. 267, nota 9, para o duplo sentido do verbo gamal, uma vez mais usado aqui.
17. Sobre isso, ver Gunkel, 490, e Turner, 206.

270
Capítulo 16 – Após a morte do pai (50,15-21)

Próximos a José, “os irmãos prostraram-se diante dele” (wayyippelu lepha-


nayw), num gesto que os leva dezessete anos para trás. Com efeito, depois da
descoberta da taça no saco de Benjamim, tiveram exatamente a mesma atitude
ao se encontrarem com o senhor egípcio, “e prostraram-se diante dele por
terra” (44,14: wayyippelû lephanayw ’ars.ah). Naquele momento, Judá, depois
de ter, em nome de todos, reconhecido sua culpabilidade, declarou, como eles
fazem agora novamente: “Eis-nos, escravos de meu senhor” (44,16)18. A ana-
logia entre as situações é manifesta, as palavras da narração o sublinham: os
irmãos recolocam-se, diante de José, na posição exata em que se encontravam
diante do egípcio, pouco antes de Judá evocar longamente a figura do pai para
implorar por ele, por medo de lhe infligir uma morte trágica. Agora que essa
morte ocorreu, serena, eles se apresentam espontaneamente para receber a
punição da falta que acabam de confessar19. Eles refazem os gestos, redizem
as palavras que foram as deles na ficção encenada por José. Mas desta vez
tudo é verdadeiro: a falta, as pessoas e a proposta de sanção. No fundo, tudo
acontece como se para eles a punição tivesse sido temporariamente suspensa
em função do que sentem em comum em relação a seu pai: o remorso do
sofrimento imposto, um afeto sincero e o cuidado por sua vida. Agora que
tudo isso ficou sem objeto, eles vêm pagar pela falta confessada, forçando
José a tomar uma posição quanto à punição.
A inegável verdade e a provável sinceridade de seu procedimento não
impedem os irmãos de executá-lo com habilidade — “o cuchita mudará
de pele, o leopardo de pelagem?” (Jr 13,23). O cenário em duas fases que
parecem seguir aqui é estranhamente semelhante ao que montaram bem no
começo para anunciar a Jacó o desaparecimento de seu filho20. Em primeiro
lugar, preparar o terreno de longe, enviando através de um intermediário a um
familiar a quem fizeram mal — o pai naquele tempo, o irmão agora — uma
mensagem de astúcia refinada concernente ao ser amado — o irmão agora, o
pai naquele tempo (37,32; 50,16-17). Em seguida, eles mesmos apresentam-
se, com a esperança oculta de colher os frutos de sua iniciativa preliminar,
caindo nas graças do parente lesado: antes, em vista de levar uma vida familiar

18. As duas passagens caracterizadas pelo emprego de napal lipney (“cair diante”) distinguem-
se das outras prostrações na narração, apesar dos autores inclinados a privilegiar exclusivamente o
tema da realização dos sonhos (por exemplo, L. A. Turner, The Announcements of Plot, 153, ou
R. Pirson, The Lord of the Dreams, 137).
19. G. Fischer, Die Josefsgeschichte, 261.
20. A ideia foi proposta por W. L. Humphreys, Joseph and his Family, 85, que a desenvolve
pouco. Veja também a sugestão de J. Ebach, Ja, bin denn ich an Gottes Stelle?, 605.

271
José ou a invenção da fraternidade

normal, uma vez o pai consolado (37,35)21; hoje, para exorcizar o medo que
seu irmão lhes inspira, obtendo seu perdão (50,18, veja v. 16-17). No início
da narrativa, com o pai, eles inventaram uma mentira digna da serpente,
utilizando a verdade (a túnica de José) para induzir à mentira (a ideia de um
trágico acidente), com a intenção mais ou menos consciente de fazer o mal,
por ressentimento. Hoje, eles executam seu truque para tentar livrar-se do
que os assusta — na verdade, o fruto de sua culpabilidade —, confessando
indiretamente a verdade de suas faltas do passado e reconhecendo o caráter
merecido do castigo, na esperança de obter o perdão que os exonerará. Em
suma, usando de astúcia, eles tentam menos enganar José do que neutralizar
o próprio medo, medo que foi gerado neles pela culpabilidade negada até
então por sua própria vítima.
Mas ao fazê-lo, escondendo-se atrás da autoridade do pai e usando da
mentira para levar José a dizer uma palavra de verdade sobre sua falta passada,
não agem em relação a seu irmão como ele agiu com eles quando de suas
duas primeiras viagens ao Egito (42,9-22; 44,1-17)? Escondido atrás de
sua autoridade, usou de astúcia para com eles. Impulsionado pelo desejo
de fraternidade, utilizou de mentira e habilidade para levá-los à sua verdade
oculta e reaproximá-los dele, montando gradualmente as condições de uma
relação fraterna. Agora, em seu desejo de perdão, os irmãos fazem com ele
um jogo sutil, convidando-o, por sua vez, a dar o passo para superar a distância
que deixou subsistir, escondendo a responsabilidade deles em seu infortúnio22.
Cabe a ele, portanto, dizer como ficam essa falta e sua punição; cabe a ele
pronunciar-se sobre sua culpabilidade, que os distancia dele, que os torna
desconfiados e temerosos a seu respeito enquanto ele não diz sua verdade;
em suma, que barra ainda o caminho para uma relação verdadeiramente
compartilhada.

A reação de José (50,19-21)


Essa dupla recordação invertida — da mentira destinada a enganar Jacó
e da estratégia de José para levar os irmãos à verdade — faz o leitor sentir
que, desta vez, o epílogo já não deve estar muito longe. Mas, no ponto a que
as coisas chegaram, o resultado depende inteiramente de José, posto contra

21. Sobre a intenção dos irmãos em 37,35, veja acima, p. 70-73 e 75.
22. Para José, a manipulação dos irmãos foi facilitada por sua posição superior. A situação de
inferioridade dos irmãos faz a manobra mais difícil, por isso eles lançam mão de uma autoridade
moral superior a José.

272
Capítulo 16 – Após a morte do pai (50,15-21)

a parede, obrigado a se pronunciar sobre a punição de uma falta para a qual


tinha feito vista grossa há mais de dezessete anos, quando, após ter-se dado
a conhecer a seus irmãos, lhes falou de um Deus que tinha transformado sua
venda em envio. Sua resposta é curta. No entanto, é de extrema precisão e
exatidão (50,19-21).

E José lhes disse:


19

“Não temais!
[Será que] estou no lugar de Deus, eu?
20
Sim, vós planejastes um mal contra mim:
Deus transformou-o em bem,
para fazer como [n]este dia:
fazendo viver um povo numeroso.
21
E agora, não temais!
Eu vos alimentarei, a vós e vossos filhos”.
E consolou-os e falou-lhes ao coração.

Ao duplo “perdoa, te peço”, que pontuava o pedido que os irmãos atri-


buíram ao pai, José responde finamente com um duplo “não temais”. Parece
que percebeu que foi o medo que provocou a hábil abordagem deles, e por
isso empenha-se em apaziguá-lo. Mirando, porém, o medo, ele responde
também ao seu desejo de perdão, embora com simplicidade, indiretamente,
levando em conta o estado deles. Enquanto, para pagar o crime, os irmãos se
oferecem a José como “servos” (‘avadim), depois de se terem dito “servos do
Deus de teu pai” (‘avdey ’elohey ’avika), eles propõem implicitamente a seu
irmão o lugar de Deus, visto que se tornam para ele o que são para Deus. Na
pressa de responder que ele não ocupa este lugar, José rejeita implicitamente
a sanção sobre a qual falam: ele recusa fazê-los seus servos, seus escravos23.
Mas se ele se recusa a punir a falta, quando confessada, é porque de alguma
forma a perdoou.
Mas, enquanto José pronuncia essas palavras aos irmãos prostrados a seus
pés, como não lembrar da abertura da narrativa, do diálogo de surdos em torno
do primeiro sonho, no qual os feixes dos irmãos se curvam diante do feixe
de José? Ouviu-se ali a primeira palavra que seus irmãos lhe dirigiam — a
única por muito tempo, aliás. Em resposta ao relato de seu sonho, fizeram-lhe
uma pergunta retórica, quando interpretaram o sonho em termos de vontade
de poder: “Reinarás tu sobre nós? Dominarás tu sobre nós?” (37,8). Aqui, a

23. Neste sentido, J. Ebach, Ja, bin denn ich an Gottes Stelle?, 607.

273
José ou a invenção da fraternidade

última palavra dirigida por José a seus irmãos que, prostrados, se oferecem a
ele como escravos tem também a forma de uma pergunta retórica, e constitui
na realidade uma resposta negativa à sua pergunta de então. Dizendo: “[Será
que] estou no lugar de Deus, eu?” (50,19b)24, ele nega, de fato, qualquer de-
sejo de dominar. É assim que ele os absolve concretamente, incluído o ódio
que estava naquele tempo por trás da reação deles. Aliás, ele concluirá sua
resposta com uma promessa de alimentação, aparentemente banal, mas nas
entrelinhas pode-se ler que a recusa de ser servido por seus irmãos é coerente
com seu desejo de permanecer a serviço deles e de suas famílias. Nisto, ele
mostrará qual é seu lugar para eles: a de servo de um Deus que “faz viver
um povo numeroso”.
Note-se, também, que José se abstém de fazer referência a seu pai, como
se tivesse percebido que, nas palavras dos irmãos, este servia somente para
exorcizar o medo que os levava a interpô-lo entre si e ele. Esse medo era sem
objeto, pois a figura do pai, que desde o início da narrativa unia os irmãos,
protegendo-os ao mesmo tempo uns dos outros, pode agora desaparecer e dar
lugar ao encontro direto entre eles — e isso também devia mudar para que as
relações familiares se transformassem. Ficam então, nas palavras de José, o
“eu” e o “vós”, sob o olhar do Deus das legítimas separações, que requer que
toda relação seja justa. Mais uma vez, um breve retorno ao início da história
pode ser útil para sublinhar todo o alcance deste detalhe. José havia recebido
uma ordem de Israel: ir a seus irmãos em vista de seu bem-estar e de uma
palavra que voltasse até ele (37,13-14). Mas, para encontrar seus irmãos, ele
teve de ir para além de Siquém, para onde seu pai o enviara, depois de ter
descoberto, graças ao homem misterioso, seu próprio desejo: “procurar seus
irmãos” (37,15-17). Ele levou a bom termo a missão de seu pai, reenviando-
lhe por intermédio dos irmãos uma palavra de vida após seu encontro (cap.
45–46). Agora, independentemente do pai, doravante desaparecido, José realiza
seu próprio desejo: por meio das palavras, reúne-se a esses homens, lá onde
eles dizem lhe ter feito mal, e recusa-se a aceitar como escravos aqueles que
vieram encontrá-lo como irmãos (50,18: “seus irmãos também vieram…”).
Mas, se apenas sugere o perdão, porque vê no pedido dos irmãos o que
ele significa em primeiro lugar, o reflexo de seu medo, José não falta ao
encontro marcado com a culpabilidade deles. Ao contrário, ele qualifica

24. Em hebraico, as duas frases começam pela mesma partícula interrogativa. As cenas têm
um curso invertido: em 37,6-8, a palavra de José sobre a prostração dos feixes de irmãos, e depois
a resposta dos irmãos mediante uma pergunta; em 50,16-19, a palavra dos irmãos prostrados, e
depois a resposta de José a uma pergunta.

274
Capítulo 16 – Após a morte do pai (50,15-21)

claramente a falta dos irmãos, retomando uma de suas palavras: um “mal”


que causa “infelicidade”, segundo o duplo sentido do termo ra‘ah. “Sim, vós
planejastes um mal contra mim”, diz ele, designando-os como autores de um
mal do qual foi vítima, mas, sobretudo, reconhecendo sua intenção deliberada
de lhe fazer mal, de provocar sua infelicidade (cf. 37,19-20). Além disso, se os
irmãos dizem sua verdade, sugerindo (em 50,17) que veem seu “mal” como
“retribuição” pelo que experimentaram em primeiro lugar — e ninguém negará
que sofreram —, José responde que isso não diminui a premeditação culposa
deles, e nisso ele também está certo. Pois o leitor deve lembrar-se de que ali
está exatamente a culpa dos irmãos: se falaram de matar seu irmão e depois
pensaram em vendê-lo, não fizeram nem uma nem outra coisa (37,19-20 e
26-27)25. Dificilmente imagina-se esclarecimento mais breve, mais justo, mais
relevante! E se, nesta breve declaração, se encontram tantos ecos das primeiras
cenas da narrativa, e tantos traços que sugerem a saída, é que, certamente,
José está pronunciando a “palavra final”26.
Mas é preciso sublinhar este fato notável: é porque os irmãos tomaram a
iniciativa de intervir, por medo de seu irmão e também pelo desejo de perdão,
que José dá agora o passo em direção a eles, para reduzir a distância que sua
ânsia por rever seu pai, passando por cima da falta, deixou subsistir entre eles.
Assim, os irmãos pedem a José que os perdoe, selando desta forma a criação
da fraternidade. “O perdão é, por excelência, dom […] neste sentido, que é
dado àquele que perdoa”27.

Para fazer boa medida, José, uma vez que se tocou na falta, não deixa
de retomar o essencial da releitura teológica que ele, por assim dizer, havia
imposto a seus irmãos quando do reencontro. O que ele agora acaba de dizer
a respeito dessa falta lhe permite, porém, esclarecer e retificar o que naquele
momento havia declarado sob o forte efeito emocional que o constrangia.
Mostrei, anteriormente, a propósito do discurso de 45,4-13, que a interpretação
teológica de José foi inegavelmente pertinente28. Poderíamos, contudo, contestar
a leitura de sua venda pelos irmãos em termos de “envio” divino. Aqui, agora,

25. A este respeito, o verbo h.ašav, “calcular, planejar, pensar”, é revelador. Agradeço a Jean-
Marie Carrière por ter chamado minha atenção para este ponto. Minha tradução tenta mostrar de
alguma forma este aspecto, respeitando o trocadilho em hebraico.
26. J. Ebach, Ja, bin denn ich an Gottes Stelle?, 610, tem razão em sublinhar que esta breve
cena retoma todos os desenvolvimentos e todos os aspectos da história.
27. P. B eauchamp , Joseph et ses frères, 10; para ele, o processo escapa às intenções
humanas.
28. Veja acima, p. 246-248.

275
José ou a invenção da fraternidade

ele se abstém de retomar esse elemento e começa antes por reconhecer ao


mal de que os irmãos se tornaram culpados toda a sua consistência. Todavia,
é certo — e o presente permite constatá-lo — que desse mal um bem proveio,
a vida para além da crise: primeiro a de José, depois a do povo numeroso
que, graças à sua sabedoria, sobreviveu à fome, e enfim a da família, que deu
frutos e se multiplicou no Egito (47,27), família que está vivenciando agora
o desabrochar de uma nova relação fraterna. Neste vislumbre da vida no co-
ração do mal que lhe foi infligido, José reconhece a ação de Deus na vitória
sobre a serpente que transformou o bem em mal. Pois, se houve o mal e a
infelicidade, isso não conseguiu impedir Deus de trabalhar desde o interior
para que desse à luz o bem: a vida em abundância.
É lá que acontece, aliás, a experiência de José ao longo da história: os
lugares de morte tornam-se ninhos de vida29. A dominação de seu pai, que
aparecia como preferência, era uma prisão dourada, da qual, um dia, um
homem nos campos de Siquém lhe permitiu sair (37,13-17)30. Em seguida,
José conheceu o buraco no deserto, a escravidão no Egito, a prisão do Faraó,
a fome devastadora, o esquecimento dos seus, que nem o reconheceram. Mas
todas essas desgraças foram atravessadas e, por assim dizer, fecundadas pela
presença de Deus, uma bênção (cf. 39,5) com a qual José consentiu: não
é isso que, há pouco, o velho Jacó enfatizou, em seu leito de morte, aben-
çoando o “distinguido entre os seus irmãos”31? Poderíamos, portanto, proibir
José de ver por trás de tudo isso a mão de Deus? Não. José não se engana ao
propor tal interpretação, e o leitor não o deve suspeitar de recuperação fácil.
Subjetivamente pertinente, ela não é sem fundamento, como vimos, mesmo
se o narrador não a confirma aqui com sua autoridade e se o próprio José
destaca desde o início que seu ponto de vista é humano, afirmando que não
foi colocado no lugar de Deus.
Alguns reprovam José por dar de Deus a imagem de alguém que se serve
dos humanos e os manipula como marionetes, negando-lhes qualquer autono-
mia e toda responsabilidade, uma vez que qualquer coisa que façam pode ser

29. Von Rad, 441, salienta que “não são as verdades eternas que se exprimem aqui, mas uma
atitude tomada diante de um evento”.
30. Veja acima, p. 48-52. Será que a lembrança desse encontro com o personagem misterio-
so, que o encontrou vagueando, que o levou a dizer seu desejo e lhe sugeriu um caminho a fazer
(37,15-17), também está no horizonte da interpretação teológica de José? Nenhum indício positivo
leva a pensá-lo, mas nada o proíbe. Veja acima, p. 246-248.
31. Este desenvolvimento foi-me sugerido por uma ideia de A. Da Silva, La symbolique des
rêves, 172.

276
Capítulo 16 – Após a morte do pai (50,15-21)

transformada por Deus num bem a serviço de seu projeto32. Tal interpretação
parece ignorar o conjunto da narrativa. Não é certamente isso o que o narrador
conta quando mostra como essa salvação toma forma gradualmente na vida
concreta dos personagens. Nada de mágico aí, nenhum Deus ex machina33.
Sintetizemos as coisas com precisão. Onde é que o narrador descreve a
ação de Deus? Em apenas três lugares: Adonai golpeia de morte os filhos de
Judá, o qual descobre, assim, o que alguns comportamentos têm de mortífe-
ro (38,6-10)34; e ao fazer isso Deus inicia de alguma forma a transformação
de Judá, processo que Tamar levará a termo em seu intenso desejo de vida.
Depois, Adonai está ao lado de José na casa de Putifar e na prisão, quando,
vítima de uma desgraça injusta, ele se recusa a ceder à tentação do mal para
vingar-se de um destino desgraçado (39,2-5.21-23)35. Finalmente, Deus con-
firma o projeto de vida de José quando incentiva o velho pai Jacó a descer
e a juntar-se, com sua família, a ele no Egito (46,3-4)36, e repete a promessa
de crescimento, que se realiza quando o narrador constata que essa família é
cumulada de bênçãos (47,27, ver 1,28)37.
Isso quanto à ação de Deus38. O demais, na narração, os homens o reali-
zam, a começar por José, que se tornou justo e sábio através de sua provação
e graças à proximidade de Deus. Assim, ele encontra o meio adequado de sair
da prisão e, em seguida, de demonstrar sua sabedoria diante do Faraó, antes
de pôr-se a serviço da vida da população. Com esse sucesso, ele adquire o
recuo suficiente (41,51-52) para poder encarar em novas bases a crise familiar,
quando esta de repente reaparece em seu horizonte sob a forma dos irmãos
passando fome. Então, em seu temor de Deus (42,18), inventa com paciência
um caminho no qual os seus vão aprender a amar seu pai e a comportar-se
como irmãos, levando Jacó a agir como um pai, de modo que todos deixem
o caminho da morte e da infelicidade. Com sabedoria, ele consegue “conter-

32. Nesse sentido, por exemplo, D. B. Redford, The Story of Joseph, 74. W. L. Humphreys,
Joseph and his Family, 128, se opõe a essa interpretação.
33. Para Wenham, 432, a história fala de uma aliança entre “a soberania divina” e “a responsa-
bilidade humana”. Ver já nesse sentido Von Rad, 406, e Brueggemann, 415.
34. Veja acima, p. 82-85.
35. Veja acima, p. 94-97, 104-106. Lembramos que, pela segunda vez, diante da esposa de Putifar,
José explicitamente invoca Deus para apoiar sua rejeição do mal (39,8-9).
36. Jacó informa José sobre isso em seu leito de morte (48,11 e, implicitamente, 48,15).
37. Talvez Deus também esteja presente no Egito com o sábio intérprete de sonhos que recorre a
Ele como a única fonte de sua arte (40,8; 41,16.25-32). O Faraó o reconhece diante de seus servos
(41,38-39). No entanto, o narrador não confirma isso.
38. Notemos também que em 42,28b e 44,16 (Judá) os irmãos atribuem à ação de Deus um
fato misterioso resultante da ação secreta de José.

277
José ou a invenção da fraternidade

se”, adiando a realização do desejo que fomenta pelos seus, até que os outros
façam a prova de sua capacidade de tornarem-se irmãos. Finalmente, ele, em
particular, desafia a serpente no próprio terreno e mostra-se mais astucioso que
ela, utilizando as aparências criadas por uma mentira calculada para devolver
seu lugar à verdade e, com ela, à vida (44,1-17)39.
Mas então, não seria ele, José, que nesta história transformou o mal em
bem, vencendo o bote da serpente? Não realmente — e ele está absolutamente
certo quando salienta isso, por mais que tenha desempenhado um papel decisivo
nesta vitória. Não somente porque Deus estava ao seu lado quando, vendido
como escravo, teve de fazer escolhas decisivas. Mas, além disso, José não tem
feito tudo — sem Tamar, o que teria se tornado Judá, por exemplo? —, e o
que ele fez, não o fez sozinho. Muitas vezes, ele apenas abriu um caminho
para que outros pudessem avançar para sua salvação40. Assim, se José permitiu
que os irmãos levassem seu pai às renúncias necessárias para o advento da
fraternidade, Judá foi quem, enfrentando Jacó lucidamente, convenceu-o a
libertar Benjamim de seu apego desesperado e a ter confiança em tudo e contra
tudo. E se José conduziu seus irmãos, através das angústias do sentimento de
culpa, por caminhos de fraternidade, resta que são eles que os percorreram, e
de forma ousada: eles revisitaram sua falta, a lamentaram na consciência do
mal que ela produziu e afastaram-se dela, fazendo-se solidários com Benjamim
e estando prestes, como Judá, a suportar um castigo justo. Agora, entretanto,
são eles que levam José a dar os passos que requer a abolição da distância que
manteve entre eles, ignorando a culpabilidade deles. (Assim como nunca se
está protegido da serpente negadora da alteridade, mesmo quando se acredita
que foi vencida.)
Não, José não fez tudo: decerto, desde a chegada dos irmãos no Egito,
escreveu várias partes da peça e durante muito tempo foi o cenarista. Mas ele
apenas desempenhou seu papel, como o faz presentemente, quando se inclina
diante de Deus, que o tem assistido até que fosse confirmado na sabedoria e
na justiça. A vitória sobre a serpente foi uma obra conjunta de todos os pro-
tagonistas — como ainda comprova esta última cena. Ela é, pois, o resultado
da dinâmica da aliança, que é precisamente o oposto daquela da serpente,

39. Se — o que não podemos saber com certeza — José vê em seu sonho uma mensagem de
Deus e no personagem misterioso de 37,15-17 uma figura divina, então, novamente, o papel de Deus
se limita a despertar em José seu próprio desejo e fazê-lo reconhecê-lo. Depois, é José mesmo que
assume suas próprias responsabilidades.
40. Já no capítulo 41, ele não forçou a mão do Faraó, que livremente levantou à sua própria
categoria este homem que poderia lhe fazer sombra.

278
Capítulo 16 – Após a morte do pai (50,15-21)

uma dinâmica em que ninguém faz tudo, mas onde cada um, assumindo sua
responsabilidade, faz o que tem a fazer, permitindo aos outros realizar seu
desejo de vida. Mas quem deu o impulso inicial desse processo foi Deus;
sem ele, nada teria sido possível. Essa, pelo menos, é a leitura de José, que,
jovem escravo no Egito, viveu do interior a proximidade do Deus da bênção
(39,5 e 41,43). No presente, ele indica isso a seus irmãos, que já sabem tanto
quanto ele o que cada um deve aos outros, no momento em que o veem levar
a termo, em consequência do convite indireto, mas insistente, da parte de-
les, a obra comum da criação de uma fraternidade real. No final da narrativa,
José traz assim para o primeiro plano aquele que, discretamente, se retirara da
cena para dar aos humanos o espaço onde assumir a própria responsabilidade,
onde arriscar as escolhas que só eles eram capazes de conceber.
Dito isto, repito, o narrador deixa o leitor ao lado dos irmãos, por assim
dizer, diante de José, cuja interpretação teológica ele dá a entender. Ele não
força ninguém a partilhá-la, tão pouco quanto José obriga a isso seus irmãos41.
Ainda assim, devemos reconhecer que sua óptica lança uma nova luz sobre
a essência do que foi dito, sugerindo um nível de profundidade onde, no in-
terior dos corações — quem sabe? — Deus age misteriosamente, na retidão
e na culpabilidade, na verdade e na mentira, no ódio e na violência, no amor e
na sabedoria, e talvez até mesmo na cobiça incapaz de sufocar completamente
o desejo autêntico que ela fagocita42. Será que o leitor, então, deve dar razão
a José, quando este, sem o aval do narrador, diz ler em filigrana a assinatura
de Deus no local exato onde o mal, apesar de tudo, deu origem a um bem?
Isso depende do leitor. Mas ele precisa saber que, quando alguém como José
se arrisca a ler o traço de Deus em sua própria história, o narrador onisciente
escolhe a discrição mais extrema43, como para sugerir que ninguém jamais terá
autoridade suficiente para lhe dar razão ou não. Pois, nesta matéria, o homem
fica para sempre entregue à palavra dos irmãos e à sua interpretação crente.
Não lança a fé sua raiz antes de tudo na confiança na palavra de um outro,
que se arrisca a dizer Deus no coração de sua própria existência?
Depois de palavras de tal profundidade, o leitor poderá ficar desapontado
ao ouvir José terminar sua declaração com algo tão banal quanto inesperado:

41. Muitos autores salientam a neutralidade do narrador em relação à leitura de José. Ver, por
exemplo, P. D. Miscall, The Jacob and Joseph Stories, 31, ou R. Pirson, The Lord of the Dreams,
138.
42. Nesse sentido, por exemplo, A. Bonora, La storia di Giuseppe, 60.
43. Sobre a reserva do narrador neste ponto da narração, ver também J. P. Sonnet, Y a-t-il un
narrateur?, 26.

279
José ou a invenção da fraternidade

“Eu vos alimentarei, a vós e vossos filhos” (50,21). Não sabe o que dizer em
conclusão? Certamente não é isso. Antes, recorde-se que, na história anterior,
foram estabelecidas, sucessivamente, três condições para “viver e não morrer”:
alimentar-se (Jacó em 42,2), entrar numa palavra verdadeira e mostrar-se con-
fiável (José em 42,18-20), renunciar por atos à cobiça que deseja o outro e
à desconfiança em relação a ele (Judá em 43,8). Ora, agora, é evidente que
as duas condições essenciais para o florescimento de uma vida verdadeira-
mente humana foram realizadas. Há mais de dezessete anos o pai renunciou
ao controle sobre o filho de Raquel, e os irmãos, ao ciúme dele (Gn 43–44).
Agora, eles entraram na verdade de sua falta, fazendo José falar a verdade e
renunciar a toda cobiça em relação a eles, quando se recusa a levá-los como
escravos (50,15-20). Firmados esses dois elementos, porém, falta, para garantir
a vida, assegurar o pão sempre necessário. Além disso, José propõe-se dar a
alimentação que ele mesmo recebeu de Deus àqueles que lhe proporcionaram
levar a fraternidade à plena realização. A conclusão não tem, portanto, nada
de trivial: ela assinala, ao contrário, que tudo foi realmente dito.

Retomando a narrativa para dar sequência às palavras de José, o narra-


dor conclui falando de “consolação”, de “reconforto” (nah.am, Piel). Que
significa isso? Os irmãos estão tristes porque José deve consolá-los? Estão
tão desencorajados que ele precisa reconfortá-los? Na realidade, como eles
estavam com medo, devíamos esperar, antes, que ele os apaziguasse ou os
tranquilizasse. Infelizmente, o verbo hebraico não tem esse sentido. Seria
possível que, pela última vez, tivéssemos aqui um eco do início da narrativa,
a saber, da cena na qual os filhos de Jacó tentam em vão “consolar” o pai,
que se recusa obstinadamente a “deixar-se consolar”, privando assim os fi-
lhos da paz familiar à qual aspiram (37,35)?44 Por essa referência discreta, o
narrador poderia estar sugerindo que é das palavras que José lhes dirige que
os irmãos recebem, enfim, essa paz que desejavam desde então, num desejo
que os levou a intervir pela última vez aqui. Por isso, o narrador conclui: “e
falou-lhes ao coração”, usando uma expressão que conota menos a intimidade
do intercâmbio que a força de persuasão de José, que convence os seus de
que, doravante, não terão mais nada a temer45.

44. A comparação é feita também por Brueggemann, 449.


45. Para o sentido dessa expressão, cf. Gênesis 34,3, onde Siquém, depois de violentar Dina,
tenta convencê-la a corresponder ao seu amor, apesar da agressão que cometeu contra ela. Ou
Juízes 19,3, onde um levita, indo encontrar-se com sua esposa que retornou para seus pais depois
de uma disputa doméstica, fala-lhe ao coração para convencê-la a continuarem vivendo juntos. Ver

280
Capítulo 16 – Após a morte do pai (50,15-21)

Mas há, sem dúvida, mais, dada a importância do tema na história. No final,
o narrador assinala o fim do processo de cura da palavra, que os comentários
de José (37,2) e o ódio dos irmãos (37,4), desde o início, impediram de estar
a serviço da construção do šalom entre eles. De maneira insistente, o narrador
registrou os passos em direção ao desfecho. Sob a máscara do senhor egípcio,
lembramos, José falou duramente com os irmãos (42,7) antes de tomar com
eles outro tom, após terem reconhecido o irmão desaparecido, falando ao
mesmo tempo como um deles e como sua vítima (42,24). Em seguida, Judá,
embora, em nome dos irmãos, tenha confessado não ter nada a dizer por causa
da culpabilidade deles (44,16), toma a palavra para mostrar-se filho e irmão
(44,18). Instiga assim José a dar-se a conhecer, o que leva a uma palavra
recíproca (45,12.15). Mas aqui, depois que os irmãos disseram sua verdade e
levaram José a dizer a sua, a palavra é finalmente capaz de tocar o coração,
sinal de uma confiança doravante possível, prelúdio à paz que o narrador se
contenta em evocar com poucas palavras: “José habitou no Egito, ele e a casa
de seu pai”, bisavô realizado no meio dos seus (50,22-23).

Um epílogo para o Gênesis


Como vimos: a fraternidade que se torna possível no final da narração não
apaga o que fez dos personagens, nem suas lesões, seu caráter ou o estatuto
social que se tornou o deles. Mas, no final, uma palavra verdadeira abre para
todas essas pessoas a possibilidade de viverem juntas em paz, o que o início
da aventura jamais deixaria imaginar. Nisto, a história de José encontrou seu
epílogo. Mas não só ela. O último encontro entre José e seus irmãos consti-
tui igualmente um epílogo para o leitor do Gênesis. Não somente os irmãos
revisitam juntos os últimos problemas que ficaram pendentes, depois de seu
reencontro, até à morte desse pai que os unia e os separava ao mesmo tempo.
No entanto, esvaziando assim seus litígios com sua maneira bem própria de
dizer a verdade obliquamente, como se o corte da verdade arriscasse machucar
desnecessariamente e reacender o conflito, eles põem igualmente um fim a
velhos conflitos familiares46. Estes remontam à época em que Abrão cedeu ao
capricho de Sarai, que lhe pediu para ir à sua serva Agar (16,1-6). Desse velho
conflito — do qual falei na introdução —, os filhos de Jacó eram herdeiros,

ainda Isaías 40,2, onde o profeta quer convencer as pessoas que sua punição terminou, mas que
lhes falta converter-se, e Oseias 2,16, onde Deus diz que falará ao coração de sua “esposa” infiel
para persuadi-la a voltar para ele.
46. Ver G. Fischer, Die Josefsgeschichte, 261-263.

281
José ou a invenção da fraternidade

e a essa história é que eles impõem aqui um termo, com essa retidão que
consiste em fazer o que é verdadeiro, respeitando inclusive as peculiaridades
dos protagonistas. O conjunto do livro encontra um ponto de encerramento,
que não deixa de fazer eco ao início da narrativa, esse primeiro caso de ciú-
me fraternal gerado já pelo comportamento possessivo e cobiçoso dos pais:
a história de Caim47.
Quando, vendo Caim sofrer de um ciúme herdado desde seu nascimento,
Deus lhe propõe a alternativa entre “agir bem” e não o fazer (4,7), ele registra
um resvalo infeliz que se produziu — após a criação, em que tudo o que fizera
era “muito bom” (1,31) — quando os humanos obedeceram à serpente em
vez de dominar sobre ela, conforme a ordem de Deus (1,28b). Desde então,
é essencial para eles aprenderem a dominar o animal cuja cobiça os ameaça
desde o interior. Caso contrário, será o fracasso do plano de Deus e de sua
bênção, condição de sua vida e de seu pleno desenvolvimento (1,28a). Assim,
a inveja — esse desejo de assegurar para si o bem que é na verdade um desejo
equivocado, que mente a si mesmo porque crê desejar o bem no momento que
ele se torna mal —, esse desejo do ser humano introduz o mal, a violência
e a morte no mundo bom que o criador confiou à sua responsabilidade. Em
sua escolha, o homem, perdendo sua vocação primeira, realiza-se à imagem
do animal e não à de Deus, apesar do que disse a serpente mentirosa (“vós
sereis como Deus”48).
A continuação conta como o mal “se multiplica”, à medida que cresce a
humanidade, por causa das disposições desta: tal é a constatação que Deus
faz antes de decretar o dilúvio (Gn 6,1.5). “Toda a carne perverteu seu caminho
sobre a terra”, esse “caminho” que o Criador esboçava quando confiou à
humanidade a tarefa de dominar o animal (6,12)49. Após o arrependimento de
Deus, depois do dilúvio, surge uma pergunta: se a tendência ao mal é, co-
mo Deus o constata, inscrita no coração do homem desde a sua juventude
(8,21), como assegurar que o mal não prevaleça e não leve à ruína toda a
criação, como no dilúvio? Na realidade, para esse problema, Adonai inventa

47. Para a leitura de Gênesis 4,1-16 suposta pela retomada acima, ver minha Introdução, p. 18-
20, e meu artigo Caïn.
48. “Se o homem sucumbir à inveja que faz da imagem de Deus um objeto de cobiça e de
monopólio [ver 3,5], esta falta terá por efeito inverter sua posição, levando a imitar não mais Deus,
mas o animal, o que arruína sua missão de governar” (P. Beauchamp, Le récit, la lettre et le corps,
263-264).
49. Da leitura de Gênesis 6,12 “o leitor deve concluir que os animais se devoram e que o ho-
mem os imita nisso, tomando-os como modelos em vez de conduzi-los” (P. Beauchamp, Le récit,
la lettre et le corps, 264).

282
Capítulo 16 – Após a morte do pai (50,15-21)

uma saída quando chama Abrão para abençoá-lo de forma que, nele, todos
possam adquirir bênção para si (12,1-3)50. Um pequeno desvio por este co-
nhecido texto não será inútil para compreender a importância do epílogo de
nossa narração no nível do livro inteiro.
Ao chamar Abrão para deixar sua terra, Adonai pede-lhe que se livre de
suas ataduras para receber, na renúncia ao apego mortífero, a bênção que
Deus oferece à humanidade desde o início (1,28), mas de que os humanos
se privaram dando ouvido à serpente da cobiça (ver 3,17 e 4,11). No início,
a bênção é destinada a todos os clãs do solo, cada um podendo recebê-la na
medida em que, abençoando o eleito, vire as costas, também ele, à inveja e ao
ciúme, com a condição de que este último se abstenha de confiscar a bênção
a seu favor. Com a implementação desta disposição, Deus age de modo que,
se a vida e a bênção são propostas generosamente, elas só podem desabrochar
lá onde cada um concorda em articular o desejo e o limite, para que o desejo
não degenere em cobiça, mas respeite o limite que garante o lugar do outro e
de seu desejo. Neste sentido, a salvação aparece como um processo de aliança
em que cada um, à sua maneira, joga o mesmo jogo da vida e contribui para
a derrota da cobiça, da violência e da morte, cooperando, por suas opções,
para a salvação que recebe de Deus e dos outros ao mesmo tempo.
Neste jogo, Deus permanece em seu lugar de dispensador da bênção,
desprendendo-se de todo controle sobre a salvação na medida em que con-
vida as pessoas a implementar, por seu livre agir, suas condições de possi-
bilidade. Ele lhes dá assim sua inteira confiança, tanto ao eleito quanto aos
outros, escolhendo contar com eles e com o jogo das mediações humanas.
Ao assumir este risco, o próprio Deus manifesta sua recusa de jogar o jogo
da dominação e da concorrência, frutos da inveja. Este é o caminho de vida
que Deus projetou com a eleição: por trás da aparente preferência dada a um
eleito esconde-se, na verdade, seu amor por todos, num infinito respeito pela
liberdade de cada um, mas também sua esperança secreta de ver os homens
realizar juntos seu desejo de vida.
A este respeito, o epílogo da história de José constitui um desfecho impos-
sível de desejar mais adequado, já que José constata que, graças a Deus, mas
também, como vimos, graças à ação conjugada dos personagens humanos, o mal
deu à luz o bem: “Sim, vós tramastes um mal contra mim. Deus tramou-o para
bem, para fazer como [n]este dia: fazendo viver um povo numeroso” (50,20).

50. Eu argumento mais em meu artigo Abraham: élection et salut. Veja em particular a
conclusão.

283
José ou a invenção da fraternidade

Para José, o que Deus fez aqui é aliar-se ao eleito — desde sua chegada no
Egito (39,2-5) — para selar o fracasso da serpente que, no início do livro,
tinha transformado o bem em mal, usando de uma palavra de vida para levar
os humanos a desviar-se do caminho da vida, submetendo-se à animalidade
da cobiça (3,1-5): não foi apoiando-se em Deus que José conseguiu repelir o
desejo pela esposa de seu amo, assumindo a figura de antiAdão (39,10)?51. No
final do livro, José declara que Deus tem honrado o compromisso solene de
3,15, quando, declarando maldita a serpente da cobiça, prometeu lutar contra
ela, ao lado da descendência daquela que havia denunciado como enganosa
a serpente. José declara que o dispositivo de salvação implementado com a
eleição de Abrão tem realmente dado seu fruto. E esse fruto é vida para todos,
graças a cada um: graças a Deus, que abençoou José, o eleito de Jacó; graças
a José, que soube ludibriar a serpente, de maneira a derribar sua lógica de
falsidade e de morte e a privá-la de suas armas: a inveja e a mentira; graças
aos irmãos, que renunciaram ao seu ódio e à sua inveja que tinham trazido
morte e infortúnio; graças também a Jacó, que concordou em tornar-se pai,
desistindo do apego e dando confiança; graças aos irmãos, ainda que também
eles tenham usado a astúcia, a arma da serpente, para levar José à reconcilia-
ção completa e para colaborar com ele para a bênção do abismo, do terrível
caos das águas que, no início do livro, o Criador havia dominado para criar
os céus e a terra (Gn 49,25-26, ver 1,2.6.10)52.
Assim, o final do livro dá uma resposta aos que viram no Adonai dos
capítulos 2 e 3 um Deus tão ciumento dos humanos que lhes negou o direito
de “conhecer o bem e o mal”. Com efeito, Deus não só exige a coopera-
ção de cada um para que o bem triunfe sobre o mal e para que a vida se torne
vitoriosa. Mas ainda, deixando a José e seus irmãos a tarefa de destrinçar o
bem e o mal em sua própria história, Deus lhes permite — e, através deles,
o narrador permite ao leitor — aceder a esse conhecimento, porém a posteriori
e sem o possuir com cobiça, como se fosse dado de imediato53.

51. Veja acima, p. 95-97.


52. Sobre a temática do mal e de sua percepção na história de José, T. L. Hettema, Reading
for Good, 224-234, deu-me a pensar de modo peculiar.
53. As últimas palavras são de J. P. Sonnet, que me fez notar este ponto, na linha do que
escreveu no artigo Y a-t-il un narrateur?, 26 e nota 30.

284
Conclusão

Um significado “não pode existir senão ‘entre as linhas’ […] É, sem dúvida,
por isso que os textos bíblicos dão ao espírito mais exigente tanto a pensar,
sem jamais pensar em seu lugar”.
Paul Beauchamp1

O romance de José, no final do Gênesis, fala da fraternidade a partir de


uma história tão singular e com requinte tal que parece desafiar toda gene-
ralização, assim como põe fim a qualquer moralização. Ele não permite tirar
qualquer receita sobre como tornar-se um irmão, atravessando a violência
do desejo, o qual permite as relações humanas, mas também as compromete
desde o início. Longe de qualquer simplismo, propõe, antes, um mundo para
habitar. Lá, a partir dos horizontes que a narração abre, torna-se possível,
para o leitor que o quiser, interrogar-se, revisitar sua própria humanidade, sua
maneira de ser filho, irmão, pai — e, talvez, filha, irmã, mãe —, sua maneira
de tornar-se humano também, em particular diante do mal que nos afeta a
todos. É neste nível que a verdade pode provavelmente ser esboçada para o
leitor. Vamos tentar dizer uma palavra.

1. P. Beauchamp, Preface, in R. Meynet, L’analyse rhétorique, 11-12.

285
José ou a invenção da fraternidade

Esta narrativa começa falando sobre o mal (Gn 37). O maquinário descrito
é de uma precisão formidável: ódio, inveja e violência multiforme, explorando
também a mentira, tudo se entrelaça para fazer mal, num contexto em que o
passado preparou um terreno fértil para o amadurecimento do mal, para seu
crescimento. Mais precisamente, no início, a narrativa conta como o que alguns
vivem como um bem para si — Jacó preferindo José, por exemplo — pode
fazer muito mal para outros, um mal que, no final, gera sofrimento. Desde o
nascimento de Caim, aliás, o leitor do Gênesis sabe que a violência visível pode
enraizar-se numa violência que empresta a aparência de um bem, ou ao menos
de algo que faz bem a um ou outro. Em suma, desde o primeiro momento, a
história dos infortúnios da família de Jacó narra como é complexo este mal,
desde suas raízes enterradas até suas consequências inesperadas.
Nesta base, a narração mostra uma espécie de itinerário para a subversão
do mal, até a palavra final quando José destaca que o mal foi transformado
em bem pela ação divina, mas também, como vimos, pelas escolhas dos per-
sonagens humanos (50,20). Este itinerário não consiste em distanciar-se do
mal, em fugir para tentar encontrar lugares que ele não habite. “Se o mal foi
apagado, não foi senão por um traçado que repassou sobre o do mal”, escreveu
Paul Beauchamp2. O itinerário da narração de José leva, antes, a revisitar o
sofrimento e o mal que o produziu, para repassar lá onde “foi feito mal”, lá
onde algum bem — pelo menos “alguma coisa que tem feito bem” — deu
força a um mal. Um pouco como se fosse importante voltar lá, para permitir
ao bem que retome do mal a força da qual este o privou desviando-a em
proveito próprio.
Além disso, a perspectivação da história de José no contexto da ma-
cronarrativa do Gênesis permite ao leitor perceber que o que leva ao mal é
sempre a mesma coisa — aquilo que a serpente semeia no ser humano para
sua desgraça —, mas também que ele tem a faculdade de apresentar-se sob
várias formas, muito diferentes umas das outras, embora raramente hedion-
das. Isso torna difícil reconhecê-lo e evitar danos antes que apareça como tal.
(Aliás, não se pode pensar que essas histórias nos foram dadas exatamente
para despertar nossa atenção, aguçar nosso olhar, educar nossa intuição e nos
dar certa lucidez com relação ao mal oculto e suas aparências enganadoras?)
Mas a narração de José nos mostra claramente que a vida só pode prevalecer,
e o ser humano tornar-se humano, lá onde a serpente é mantida sob controle,
lá onde não se deixa a ela a última palavra. Para alcançar este objetivo, como

2. P. Beauchamp, Joseph et ses frères, 10.

286
Conclusão

mostra esta história, é preciso percorrer um longo caminho, no qual cada um


deve dar seus próprios passos para ir à vida, e isso porque cada um, queira ou
não, tem algo a ver com o mal do qual, desde o início, é vítima e cúmplice
ao mesmo tempo.

Lembramo-nos do primeiro episódio: cada personagem — Jacó, José e


seus irmãos — faz mal a outras pessoas enquanto procura um bem para si.
Jacó tem boas razões para amar mais José do que os outros, mas o que, assim,
faz bem ao pai faz mal aos filhos: aos dez irmãos, cujo desejo de ser amados
é frustrado por esta preferência percebida como injustiça, mas também a José
que, preso entre amor e ódio, é empurrado em direção ao pai por aqueles
que o detestam e semeia a discórdia por suas palavras, exatamente quando
parece aspirar à unidade de todos. O ódio ciumento, acumulado a ponto de
não mais se poder dizer — quando a palavra fica adoentada pelo ódio —,
gera a violência dos irmãos, infelizes que se tornaram maus que atacam aque-
les que lhes fizeram mal, ignorando que mudaram e estão desejosos, agora,
de šalom com eles. Mas do ponto de vista dos irmãos essa violência contra
José e Jacó é vista como um mal necessário em função do próprio bem dos
irmãos, notadamente seu desejo de uma vida familiar normal. Em suma, eles
também procuram o que é bom para eles, tentando libertar-se daquilo que lhes
faz mal ou do mal que os outros lhes fazem. No final, isso faz mal a todos,
como vimos em detalhe: José é agredido, vendido como escravo, privado de
si mesmo; Jacó vê-se dilacerado interiormente pelo desaparecimento de seu
filho amado; quanto aos irmãos, o interminável luto de seu pai os frustra
quanto à reconciliação da família, que certamente esperam.
Na análise da releitura de José, falando de um Deus que muda o mal em
bem, mostrei que, para encontrar uma saída para esta situação, cada um dos
protagonistas deverá investir algo de si. Mas antes disso o tempo passa. Vinte
longos anos de separação: tempo para confrontar-se com as consequências
dolorosas do mal; tempo para amadurecer em experiências dolorosas, como
acontece a Judá; tempo para cultivar a sabedoria e a justiça na rejeição de
infligir a outros o mal sofrido e na vontade de servir o bem, como José. Seria
preciso não ter pressa com o mal que um conflito gera, aprendendo a “fazer
com”, durante certo tempo ao menos? Deveríamos deixar esse tempo cicatrizar
as feridas e fazer esquecer o que deve ser esquecido, para que uma primeira
fecundidade encontre o seu caminho (38,26-27 e 41,51-52)?
Acontece que, depois de todo esse tempo, o reencontro será um lugar de
aprendizagem do bem. É essencialmente uma iniciativa de José, que, virando,

287
José ou a invenção da fraternidade

como Tamar, as costas para a vingança — esse mal que é adicionado ao mal,
indefinidamente —, prefere uma pedagogia que gradualmente cria condições
para a fraternidade, permitindo a seus próximos darem passos em direção a
si mesmos, e uns em direção aos outros. Guiados deste modo, eles aprendem
a levar o mal eles mesmos em vez de transferi-lo sobre os outros, seguindo
Judá, que tinha aprendido isso com Tamar.
Os irmãos revisitam assim a história dramática do início, fatos nos quais
julgavam agir para seu bem. Eles são, de fato, levados a experimentar em si
mesmos o sofrimento que impuseram às suas vítimas, antes de reconhecê-lo
como um mal do qual são culpados (42,21-22); eles aprendem a lamentar a
falta, colocando o dedo no mal que ela causou e continua causando, inclusi-
ve para si mesmos (42,36-43,14), enquanto Judá se engaja em carregar sua
própria falta, se o mal ocorrer (43,9); os dez desviam-se em seguida do mal
que tinham feito ao irmão e mostram-se solidários com aquele que o substitui
(44,10-14), antes que Judá se apresente para evitar que seu pai e seu irmão
sofram um mal que cabe a ele carregar (44,18-34). Finalmente, no fim do
caso, a culpabilidade faz os irmãos enfrentarem novamente seu pesado pas-
sado e solicitarem à sua vítima o perdão, descrevendo lucidamente sua falta;
mas eles mostram-se também dispostos a sofrer o castigo que mereceriam,
se isso fosse necessário para apurar o passado (50,15-18). Ao fazer isso, eles
mostram a José que este, não reconhecendo o mal que lhe fizeram, os apri-
sionou numa culpabilidade que os impede hoje de estar com confiança diante
dele. Ele fez o bem para si mesmo quando se deu a conhecer, mas isso lhes
barrou o acesso à fraternidade. Assim, ele deve dar o passo final, levantando
esse último mal que está hipotecando suas relações.
Quanto a Jacó, seu caminho é sem dúvida o mais doloroso, sobretudo por-
que o bem que busca para si — mesmo em detrimento dos outros — consiste
em tentar esquecer uma desgraça: a morte da esposa amada. Isso não impede
que também ele tenha que dar seus passos. Quando a fome se instala, ele deve
em primeiro lugar pôr seu luto entre parênteses para cuidar da vida dos seus.
Mas isso não é nada comparado ao que acontece em seguida com o segundo
filho de Raquel, sobre quem ele transfere a afeição privilegiada que dedicava
a José. Quanto a ele, deverá aceitar não mais carregar os outros com sua
dupla infelicidade: nem Benjamim, que ele mantém cativo de seu impossível
luto e de seu desejo de bem para si mesmo; nem os irmãos, a quem nega to-
da a confiança depois do desaparecimento de José e os quais prefere condenar
a sofrerem fome — até correrem o risco de morrer com suas famílias — em
vez de consentir no distanciamento de seu bem-amado. A este mal, que é

288
Conclusão

gerado por aquilo que lhe faz bem, Jacó renuncia por sua vez, consentindo
nessa perda em vista do bem de todos.
Como vimos, nesta história cada um é convidado a virar as costas ao que
era um bem para ele e a sacrificá-lo pelo bem dos outros, até descobrir que
o verdadeiro bem só pode existir compartilhado. Cada um inverte assim a
dinâmica que gerou tanto mal e infortúnio no início. Neste sentido percebe-se
melhor que sabedoria está operando em José quando ele não se dá a conhecer
de imediato a seus irmãos, em sua primeira visita ao Egito, mas os conduz por
caminhos mais íngremes. O sofrimento pelo qual ele se atreveu a conduzir os
seus — ele mesmo entrando nele, como vimos — nada tinha de gratuito: era
o caminho para que pessoas nas quais o costume do mal e da mentira, obra da
serpente, havia pervertido até o sentido do bem aprendam que o bem não é um
prazer solitário, mas vida que desabrocha pelo fato de ser compartilhada.
Mas façamos um breve raciocínio ex absurdo. Que é que José poderia ter
feito se se tivesse dado a conhecer desde o início do primeiro encontro? Se
tivesse punido severamente seus irmãos pelo mal que lhe fizeram, ele teria
realizado sua vingança, decerto, mas também teria se mostrado injusto na me-
dida em que lhes teria imposto todo o peso da falta3. Além disso, teria acaso
provocado neles outra coisa senão humilhação ou revolta, duas fontes dos males
ulteriores? Se, ao contrário, os tivesse perdoado logo de início, certamente
se teria mostrado muito “cristão”, mas falhado na sabedoria, esmagando os
seus sob a superioridade que confere tal magnanimidade: “Para que serviria
um perdoador que somente esmagasse o ofendido sob sua imagem de justo?”,
escreveu P. Beauchamp4. Além disso, esse perdão não teria correspondido a
nada nos irmãos; não teria, portanto, dado nenhuma garantia positiva para o
futuro, mas antes teria impedido todo avanço interior nos culpados e em seu
pai. Quando, vencido pela defesa de Judá, José se dá a conhecer, não escapa
completamente a esta armadilha, porque impõe aos irmãos sua visão das coisas,
enquanto seu “perdão” consiste, no fundo, em negar a falta deles. O final da
narração mostrará tudo o que tem de inadequado tal atitude.
Quando reencontra seus irmãos na primeira descida deles ao Egito, José
prefere tomar conhecimento da realidade e retomar a relação com eles lá onde
ela tinha ficado, presa a palavras duras que, ao mesmo tempo, exprimiam sua

3. H. C. White, Narration and Discourse, 259, considera uma outra possibilidade: retornar
a Jacó e dizer-lhe tudo; mas, diz ele, essa abordagem provocaria não a reunião da família, mas a
rejeição definitiva dos irmãos.
4. P. Beauchamp, Cinquante portraits, 56. Veja também H. C. White, Narration and Discourse,
267, e J. P. Sonnet, Leurs yeux s’ouvrirent, 51.

289
José ou a invenção da fraternidade

verdade e a impediam de evoluir. E se, de seu lado, ele tinha chegado próximo
deles em Dotã com seu desejo de fraternidade mal confirmado, ele havia cer-
tamente constatado que seus irmãos estavam longe de ser o que ele esperava.
Quando se apresentam diante dele, ele lhes fala com palavras duras e os trata
como espiões, pessoas que, sem parecer, desejam o mal a seus inimigos. Mas,
à imagem de Tamar, ele age de tal modo que a verdade pouco a pouco se
apodera dessa palavra e, assim, os dez tiram, eles mesmos, os obstáculos que
neles estorvam o caminho para a fraternidade e o bem partilhado. Certamente,
esse caminho faz mal. Mas onde é que faz mal? Não é exatamente no lugar
onde o desejo de um bem para si permitiu ao mal criar raiz nos corações e
nas relações? Não é no lugar onde foi enterrada a culpabilidade, reprimida
pelo desejo de não encarar sua verdade e de viver na ilusão da normalidade,
da inocência? No lugar onde, obcecada por si mesma, a pessoa recobriu o
mal infligido a outrem sob uma espécie de legítimo direito? Resumindo, no
lugar onde alguém se instalou na mentira para si mesmo, na negação da ver-
dade ainda mais poderosa porque lhe confiscou as aparências? Se é assim,
entendemos que isso faça mal, pois é precisamente para evitar sofrer o mal
— de ter que carregar esse mal — que se adotam esses comportamentos que
agridem outras pessoas.
Além disso, em sua sabedoria, José não poderia querer superar a distância
real que seus irmãos colocaram entre eles e o senhor dos sonhos sem privá-
los de sua liberdade e de sua responsabilidade, sem privá-los de si próprios,
de alguma forma — portanto, sem fazer o que eles lhe tinham infligido. Ora,
privar os outros de si próprios, de sua recusa, de sua falta, não é essa a me-
lhor maneira de tornar impossível toda relação justa? É o que se confirma no
final, quando os irmãos reivindicam, indiretamente, sua falta diante de José
e se apresentam para receber dele a punição que sua culpabilidade reclama,
permitindo ao senhor egípcio acabar com a distância que ele deixou aberta
quando escamoteou seu estatuto de culpados. Assim, são eles que oferecem
a José a fraternidade que este já desejava havia muito tempo.

Mas onde fica Deus nesta narrativa? No relato do drama familiar, no


capítulo 37, ele brilha por sua ausência. Ele não é nem colocado em cena
diretamente nem mencionado pelos personagens. Se pudermos reconhecer um
personagem divino neste misterioso homem que encontra José perambulando
não longe de Siquém, é impressionante que ele não seja identificado pelo
nome nem mesmo apresentado como mensageiro ou representante de Deus:
sua presença passa meio despercebida. Além disso, ele faz pouco, embora o

290
Conclusão

que faz seja essencial: questionar José sobre seu desejo, a fim de separá-lo
de seu pai e assim convidá-lo a descobrir um lugar mais justo; depois, com
uma leveza impressionante, sugerir-lhe para onde ir, se quer ver seu desejo
realizado. Mas ele não faz nada para impedir o mal de dar seus frutos de
violência. Ao contrário, parece mesmo levar José para sua infelicidade sem
dizer uma palavra. Tudo o demais acontece na cena familiar, onde as pessoas
se dilaceram mutuamente.
Por que Deus não faz nada para interferir nesse conflito humano que leva
à tragédia5? É uma pergunta que muitos fazem. Mas é relevante? Que ideia de
Deus ela pressupõe, de fato? Um Deus que deve consertar as coisas quando
elas correm mal, interrompendo os massacres, evitando as consequências dra-
máticas das escolhas desumanas? Mas ao fazê-lo ele não trataria os humanos
como crianças irresponsáveis, privando-os de conhecer as consequências de
suas ações e de fazer as escolhas necessárias para sair? Que Deus não interfere
no início de nossa narrativa para evitar as trágicas consequências do conflito
põe em xeque não apenas certa imagem que o leitor talvez tenha dele, mas
também o olhar que tem sobre a realidade.
Desde o início do livro do Gênesis, a narrativa que vai da criação ao dilúvio
retrata um Deus que renuncia às soluções autoritárias e violentas para derrotar
o mal, um Deus que se recusa a intervir, para detê-los, nos conflitos humanos
produtores da violência6. Essa distância garante a integridade do espaço de
liberdade e de responsabilidade dos humanos. Ela implica que Deus apostou
numa humanidade adulta e autônoma e correu o risco de ser posto em xeque
por ela. Daí o fato de que ele não intervém aqui neste conflito7.
Mas será que Deus não faz nada, portanto? As narrações em que ele in-
tervém para que a vida não se atole na morte (como, por exemplo, na história
de Abraão: 12,10-20; 16,7-14; 22,1-19), as orações dos homens que imploram
sua intervenção (como a intercessão do mesmo patriarca pela salvação de
Sodoma ou de Abimelec: 18,23-33 e 20,18-19) falam de um Deus que não
permanece inativo diante do mal. (É sobre a base de tais textos que o leitor

5. Ao contrário do que se passa com Caim, Deus intervém muito diretamente nas brigas entre
irmãos contadas no Gênesis: ver Gênesis 13; 25,27-34; 27,1–28,9 e 32–33. Às vezes ele age para
agravar as coisas (29,31-35), às vezes para acalmá-las (31,24.29).
6. Ver meu artigo De la violence à l’alliance. Un chemin éthique inspire des Écritures.
7. Esse fato releva, provavelmente, também da pedagogia narrativa que está à obra no livro:
“Gênesis […] gradualmente introduz o leitor a uma causalidade divina na história que é sempre
mais discreta e indireta” (J. P. Sonnet, Y a-t-il un narrateur?, 15). A este respeito, veja o caso es-
pecial de Gênesis 37,15-17, acima, p. 50-52.

291
José ou a invenção da fraternidade

espera que intervenha para impedir o mal!) O discurso bíblico, portanto, apre-
senta uma tensão paradoxal que se deve tentar manter. Mas, na realidade, se
Deus interferisse com autoridade contra os ímpios, não cometeria ele mesmo
violência contra eles? Onde ficaria então a salvação deles? Deus quer a morte
do pecador? O que o Gênesis conta com mais frequência é que, se ele intervém
contra o mal, é de tal forma que não aumenta o mal condenando aquele que
o comete. Ele permite que o homem conheça as consequências malignas do
mal que inflige aos outros, na esperança ou mesmo com a confiança de que
ele seja capaz de abrir os olhos para o seu mal e, livremente, se desvie dele,
como Abraão fez no capítulo 20, como Judá também no capítulo 38. Ele agirá
por uma palavra que designe o mal e sugira uma solução, procurando assim
tornar-se próximo, na esperança de tocar os corações daqueles que praticarão
o mal ou já o fazem: como Caim (4,6-7), Agar (16,7-14 e 21,15-19), Abimelec
(20,3-7) e Labão (31,24). Ele mantém-se próximo do infeliz em sua dificul-
dade — mesmo que esta não seja inocente — de modo que ela não gere um
novo mal, como visto com Jacó, no início de sua aventura (28,12-15), e com
José no Egito (39,2-5).
Este último modo de agir é amplamente ilustrado pela história de José.
Deus não se coloca, aí, diante do mal que a todos inflige infelicidade; não se
coloca contra ele para suprimi-lo, não interfere para disciplinar os culpados. O
narrador o mostra antes visitando esses lugares de infelicidade onde a violência
e a maldade humanas geram sofrimento. Este é talvez um dos significados da
presença furtiva do homem nas proximidades de Siquém em 37,15-17. Decerto,
ele nada faz para impedir a infelicidade. Mas por sua proximidade discreta
junto de José não trabalha em favor da justiça? Juntando-se ao jovem perdido
em suas contradições, separando-o da vontade de seu pai e permitindo-lhe
dizer seu desejo e assumir seu justo lugar em relação a seus irmãos, não faz
mais para a reconciliação do que se interviesse com autoridade? E a presença
discreta de Adonai ao lado do escravo hebreu e, depois, ao lado do prisioneiro
acusado injustamente (39,2-5 e 21-23) é, sem dúvida, da mesma ordem. E nós
vimos qual a importância que isso tem na evolução de José e no sentido que
ele reconhece em toda a sua aventura, uma vez chegada ao fim.
Não está aí a sabedoria de Deus? No início da crise familiar, com efeito,
vimos que os que sofrem agem como malvados, talvez apesar de si, e como eles
fazem sofrer outros, acreditando procurar seu próprio bem. Mas, se um homem
se torna mau devido a uma desgraça ou uma dificuldade de ser que o afeta,
não será uma injustiça intervir para condená-lo sem mais? Por um lado, com
efeito, seria tolo e injusto punir alguém que busca, mesmo desajeitadamente,

292
Conclusão

desfazer-se do mal que o oprime. Por outro lado, seria acrescentar um mal à
infelicidade, na medida em que o castigado achará sempre a sentença injusta
ou excessiva, considerando o que estava vivendo e onde, mais infeliz ainda,
corre o risco de ficar atolado em sua própria maldade. Além disso, para Deus,
seria um fracasso não poder salvar o “malvado”. Para que serve uma salvação
se somente os (eventuais) inocentes são salvos?
Que outro caminho a tomar, portanto, se o castigo do ímpio se mostrar
um beco sem saída? Como derrotar o mal e a morte sem destruir aqueles que
vão de um a outro, de infelicidade a maldade e de maldade a infelicidade? O
Deus da história de José parece optar por visitar a violência e o mal, colocar-
se discretamente ao lado da vítima, mesmo se ela não for completamente
inocente, de tal forma que ela possa inventar um caminho de reconciliação
que transforma a energia da violência e da maldade em dinamismo de vida e
de paz. É assim que Deus, como diz José, trabalha o mal de forma que possa
dar à luz um bem, é assim que ele visita o ódio e a morte na esperança de que
gerem o amor e a vida. Mas é também desta forma que ele desafia o homem
e sua liberdade, confiando nele para que o mal não tenha a última palavra.
Será que é isso que ele quer dizer quando anuncia que se aliará à descendência
da mulher para que um dia a serpente conheça a derrota, a cabeça esmagada
sob o calcanhar de seu adversário (ver 3,15)?

Para terminar, uma pequena palavra sobre duas instâncias da narrativa que
deixei na sombra até aqui nessa conclusão: o narrador e o leitor. O primeiro
desenvolve nesta narração uma arte consumada da reticência que impõe ao
leitor a tarefa de entrar nos bastidores da narrativa e de participar ativamente
na elaboração de seu sentido. E vimos com qual fineza e qual parcimônia o
narrador dispõe suas pistas para que o leitor atento possa ter acesso ao nível
de sentido onde se jogam as verdadeiras apostas daquilo que se desenrola entre
os personagens — um nível de sentido em que o próprio leitor se vê tocado
no coração de sua própria humanidade. Se alcança este nível, ele põe-se a
participar do seu jeito da aventura dos protagonistas, reconhecendo ao que
eles vivem toda a sua força de verdade, a ponto de que, sem ele, a narração
dessa aventura arriscaria permanecer nada mais que uma bela história. Assim,
se os irmãos e José são transportados para a sua própria verdade à medida que
a narrativa progride, isso deve-se também ao trabalho do narrador e do leitor.
Mas, dentro da narrativa, os personagens principais chegam à sua verdade
através da encenação que a astúcia de um outro inventa para eles — José
fazendo-se de senhor egípcio ou os irmãos inventando uma ordem de seu

293
José ou a invenção da fraternidade

pai Jacó. Da mesma forma, é pela encenação de sua história que o narrador
convida o leitor a participar do advento de uma verdade que seja, ao mesmo
tempo, a da narrativa e a sua própria. Eis o que implica certa imagem da
verdade: a que nasce no centro das relações à medida que alguém aprende a
se ajustar ao outro, a que permite um diálogo constantemente retomado em
que, através das tenazes ilusões das aparências, essa verdade se dá a ser lida
à medida que ela é feita.

294
Anexo

CRONOLOGIA RELATIVA DA HISTÓRIA DE JOSÉ


No quadro a seguir lemos, em itálico negrito, as idades dadas pelo narrador,
e, à direita, a idade de José situando os fatos dentro da cronologia. Na coluna
central, os textos que não são tirados do Gênesis estão em tipo itálico.

37,2 “José, filho de 17 anos…” 17


41,1 “Ao fim de 2 anos, o Faraó sonhou…” [28]
41,46 “José tinha 30 anos quando se apresentou diante do Faraó…” 30
47 “E a terra produziu durante os 7 anos da saciedade…”
50 “A José nasceram 2 filhos antes que viesse o ano da fome…”
41,53 “E acabaram os 7 anos da saciedade…” [37]
54 “e começaram a vir os 7 anos da fome…”
42,3 “e 10 irmãos de José desceram para comprar ao Egito…”1
O segundo encontro dos irmãos se dá no 2º ano da fome: José tem 38 [38]
anos:
45,6 “pois eis 2 anos de fome no seio do país,
e ainda 5 anos que não haverá plantio nem colheita”
11 “ainda haverá fome por 5 anos” — Jacó e seus filhos emigram para o
Egito
47,9 “Jacó diz ao Faraó:
‘Os dias de minhas migrações: 130 anos’”

1. O reencontro se dá depois de vinte anos de separação, como o de Jacó e Esaú em Canaã (ver
Gn 31,38).

295
José ou a invenção da fraternidade

47,28 “E Jacó viveu 17 anos na terra do Egito… — José tem 38 + 17= 55 [55]
anos
e os anos de vida de Jacó foram 147 anos.”
29 “Quando os dias da morte de Israel se aproximaram…”
50,22b “E José viveu 110 anos…” 110
26 “E José morreu com 110 anos” — portanto 55 anos depois de Jacó2. 110

Cinco momentos da narrativa são claramente situados no tempo: o momento


em que se dá o nó na crise familiar, quando José tem 17 anos (Gn 37); sua
elevação pelo Faraó aos 30 anos (Gn 41); as três descidas ao Egito relatadas
em uma narração contínua, bem delimitada no tempo (Gn 42–47); os últimos
dias de Jacó, em particular suas últimas palavras (47,48); e a morte de José
(50,22.26)3.

2. Observe-se que José vive a metade de sua vide enquanto vive o seu pai: primeiro, 17 anos em
Canaã, e no fim mais 17 anos no Egito. Eles ficaram separados durante 21 anos.
3. Este anexo é retomado de meu artigo Le temps, publicado em Biblica 83 (2002) 29.

296
Bibliografia
(obras citadas)

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