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IV/3

A IGREJA
3. As propriedades da Igreja

JOHANNES FE1NER
MAGNUS LOEHRER
MYSnfflM SALlinS
COMPÊNDIO DE D O G M Á TIC A
HISTÓRICO-SALVÍFICA

é uma obra em vários volumes que tenta, pela vez


primeira nesse século, fazer uma suma do saber
teológico. Teólogos de todas as procedências
colaboraram para que o empreendimento conservasse
caráter verdadeiramente católico, por um lado
enraizado na experiência da fé que nos vem das
Sagradas Escrituras e da Tradição e, por outro,
abrindo horizontes novos conquistados em contacto
com o espírito da modernidade.

Volume I / publicado:
TEOLOGIA FUNDAMENTAL
Tomo 1 — Conceito de História da Salvação e Revelação
Tomo 2 — Escritura e Tradição
Tomo 3 — Revelação e igreja
Tomo 4 — Revelação de Deus e Resposta do Homem

Volume II / publicado:
A HISTÓRIA SA LV IFIC A ANTES DE CRISTO
Tomo 1 — Deus Uno e Trino
Tomo 2 — A Criação
Tomo 3 — Antropologia Teológica
Tomo 4 — Angelologia e Teologia na História Pré-Crlstã

Volume III / publicado:


O EVENTO CRISTO
Tomo 1 — Cristo e a Santíssim a Trindade
Tomo 2 — A CristoJogia do Novo Testamento
Tomo 3 — A Cristologia na História dos Dogmas
Tomo 4 — Cristologia Sistemática
Tomo 5 — Os Mistérios da Vida de Jesus
Tomo 6 — Mysterium Paschale
Tomo 7 — Atuação Saivífica de Deus em Cristo
Tomo 8 — O Evento Cristo como Obra do Espírito Santo

Volume IV / no prelo
A SGREJA (e m s e is SamesJ
Tomo 1 — Eclesioiogia Bfbllca
Tomo 2 — Igreia, povo de Deus e Sacramento Radical
Tomo 3 — As Propriedades da Igreja
I
Volume V / a sair
A MORAL CRISTA E A CONSUMAÇAO DA H ISTÓRIA SA LV IFIC A

LA N Ç A M E N T O D A

EDITORA VOZES LTDA.


MYSTERIUM SALUTIS
VOLUME IV
MYSTERIUM SALUTIS
Compêndio de Dogmática Histórico-Salvífica
Editado por

JOHANNES FEINER
E
MAGNUS LOEHRER

EDITORA VOZES LTDA.


Petrópolis, RJ
1976
FUNDAMENTOS DE DOGMÁTICA
HISTÓRICO-SALVÍFICA
A Igreja
VOLUME IV/3
3. As Propriedades da Igreja

Colaboração de:

YVES CONGAR
PIETRO ROSSANO

EDITORA VOZES LTDA.


Petrópolis, HJ
1976
Título do original alemão:
MYSTERIUM SALUTIS

Grundriss heilsgeschichtlicher Dogmatik

( © ) by Benziger Verlag
Einsiedeln, Zürich, Köln
1972

Supervisão de:
DR. PE. FR E I LEONARDO BOFF, O.F.M.

Tradução de:
LU IZ JOÃO GAIO

IM PRIM ATUR

Imprimi potest
Petropoli, die 15 Januarii 1971
Mons. Francisco Gentil Costa
Vigário Geral

© 1975, da tradução portuguesa


Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25.600 Petrópolis, RJ
Brasil
CAPITULO V

PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Una, santa, católica e apostólica: estes quatro termos foram acres­


centados ao artigo da Igreja no Símbolo de Constantinopla, no ano de
381.1 Sem dúvida, foram tirados do Símbolo de Santo Epifânio, o qual,
por sua vez, teria utilizado o de São Cirilo de Jerusalém. Quem quiser
compreender o que é a Igreja deverá perguntar-se, antes de tudo, o què
significa a confissão do Símbolo: «Creio na Igreja, una, santa, católica
e apostólica». Este capítulo versará sobre estas quatro notas ou proprie­
dades essenciais da Igreja. O fato de termos escolhido as quatro men­
cionadas no Símbolo corresponde a uma problemática histórica e de
conteúdo, de que falaremos a seguir.

Indicações preliminares sobre as propriedades essenciais da Igreja

1. Vocabulário

O termo mais corrente na Idade Média é conditio. Esta palavra


designa o estado ou a qualidade que fundamenta, numa determinada
realidade, a verdade de um predicado que se lhe atribui. S. Tomás
emprega a expressão em seu comentário ao Símbolo; Tiago de Viterbo,
em seu De regimine christiano; 2 João, o Monge, e Guido Vemani utili­
zam-no em seu comentário à bula Unam sanctam.8 A expressão é a
que utilizam os tratados De Ecclesia suscitados pelo hussitismo e pelo
movimento conciliar na primeira metade do século X V : João Stojkovic
de Ragusa (1431) e João de Torquemada (D e Ecclesia, I, 6). A expres­
são aparece também em Pedro de Soto, em 1555 e 1557 (signa atque
conditiones), e em Du Perron, em 1620, embora em sentido um pouco

1 D z 86; D S 150. Cf. X N . D. K e l l y , E a rly Christian Creeds, Londres, 1950,


296-331; A. M. R i t t e r , D a s Konzil von Konstantinopel und sein Symbol,
Göttingen, 1965; G. L. D o s s e t t i , H Simbolo di N icea e di Constantinopoli,
edição crítica, Roma, 1967.
2D e regimine christiano,- parte I, cap. 2 (ed. A rquillière), 100s.
* Sobre João, o Monge, cf. J. R i v i è r e, Le P roblem e de I’Ég1ise et de
l’E tat au temps de Philippe le Bel, Lovaina, 1926, 151s; Guido Vem ani, ed.
M. Grabm ann = S A M (1934), 144s, ou ed. B. de Lapparent = A H M A 13 (1940-
42), 120-151. Äs quatro condições do Símbolo Guido acrescenta: «extra Eccle-
siam nulla salus... nulla remissio peccatorum».
6 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

diferente, que leva o autor a dar o nome de «sinais» àquilo que enten­
demos por «notas».4
Nos séculos X V e X V I eneontra-se igualmente o termo signa,B
próximo daquele de nota e, às vezes, associado a ele.“ No século X V I
encontram-se os termos qualitates, índoles, ratio, praerrogativa, com
mais freqüência proprietates (Catecismo romano), tomado às vezes como
equivalente de notae, e, finalmente, nota (João Eck, Belarmino).’ Estes
últimos termos são os que prevaleceram.
Todavia, estes dois termos não são equivalentes.8 E ’ verdade que
a princípio distinguiram-se mais as duas coisas : assim aconteceu no
século X V I e, às vezes, ainda no século X V II.0 Foi a necessidade de
criticar os sinais reivindicados pelos protestantes, e depois a diferença
de argumentação, segundo esta fosse dirigida contra os protestantes ou
os libertinos, que levou à distinção entre sinais, propriedades e notas.
Estas últimas deviam preencher as seguintes condições: ser mais conhe­
cidas do que a Igreja, acessíveis a todos os espíritos, ser próprias da
verdadeira Igreja e inseparáveis dela. As propriedades, por seu lado,
são certamente próprias da Igreja, mas não servem para tormá-laconhe­
cida como instituição divina daqueles que a vêem de fora. Entre estas
propriedades encontram-se geralmente a de ser uma sociedade desigual
ou hierárquica, a visibilidade, a necessidade (para a salvação), a plena
independência de vida («sociedade perfeita»), a indefectibilidade, a
infalibilidade e, por último, nossas quatro notas, que primeiro são pro­
priedades. Efetivamente, as notas não são mais do que propriedades
capazes de notificar ou de fazer reconhecer a Igreja.
Não é preciso ser especialista em história das doutrinas eclesioló-
gicas para perceber até que ponto a enumeração «clássica» das proprie­
dades está ligada aos desenvolvimentos característicos do século X IX,
que se prolongaram no ensino escolar até a época pré-conciliar.

2. Breve resumo histórico da problemática das notas

A elaboração de um tratado apologético De Ecclesia é um fato


moderno que supõe a discussão das teses hussitas e, sobretudo, protes-

*Réplique à la Response du Sérénissime R oy de la Grande-Bretagne, 1»


observação, cap. II. Entre as «condições» enumera: visível, sociedade original,
permanente; no cap. V caracteriza a «nota» por «ser mais conhecida do que
aquilo que deve fazer conhecer, inseparável desta realidade». Os Aphorismes
de controverse ou Instruction catholique... dédiées au R o y de la Grande-
Bretagne, Colônia, 1687, 12s, falam também «de sinais (m arques) da Igreja».
5 Thomas Netter, chamado W aldensis, Pedro de Soto, etc.
6Assim, em Tomás de Aquino, sem aplicação à Igreja, Com. in Ephes.,
c. 3, lect. i ; em João Gropper, Francisco Horantius (1568), Estanislau Soko-
lowski.
’ Cf. G. T h i 1s, Les notes de l ’Eglise dans l ’apologétique catholique depuis
la Réform e, Gembloux, 1937, 5, 25, n. 2, e, sobretudo, S. Frankl, Doctrina
Hosii de notis Ecclesiae in luce saec. X V I considerata, Roma, 1934.
“ Cf. I. O t t i g e r , Theologia Fundamentalis, II, Friburgo, 1911, 238s; G.
T h i l s , op. cit., 320s; Ch. J o u r n e t , L ’Église du V erbe incarné, II, Paris, 1951,
1193a.
9 Cf. G. T h i l s , op. cit., 1-55.
INDICAÇÕES PRELIMINARES 7

tantes. Fora disto, podemos ver esboçar-se uma argumentação pela apos-
tolicidade contra as seitas anti-eclesiásticas, no século X II e início do
século X I I I . 10 Na época patrística só se encontram argumentações par­
ticulares, adaptadas a um adversário ou a uma conjuntura concreta:
recurso à sucessão apostólica e à legitimidade dos pastores em Ireneu
e Cipriano,31 à catolicidade em Agostinho, ” à universalidade e à anti­
guidade em Vicente de Lérins.13
A questão das notas foi levantada quando a controvérsia eclesio-
lógiea se desenvolveu contra os hussitas e, sobretudo, contra os refor­
madores protestantes, em correspondência com os elementos de comunhão
constitutivos da Igreja. Para os reformadores, o definitivo era a palavra
do evangelho e os sacramentos nele testificados.11 Alguns acrescentavam
a isso mais algum e le m e n to .P o r vezes, os teólogos protestantes ado­
taram o quadro dos quatro atributos enunciados no Símbolo. “ O critério
protestante encontrou-se, evidentemente, com a crítica dos apologistas
católicos: estes julgavam que tais critérios não correspondiam à defi­
nição de uma nota, sinal ou distintivo, que comporta o ser próprio da
Igreja verdadeira, facilmente perceptível por todos e mais imediatamente
cognoscível do que a própria Igreja. ”
Oa próprios apologetas abriram, às apalpadelas, o caminho da apo­
logética sobre a Igreja «via notarum»: João Eck já em 1521, Estanis-
lau Hosius em 1553, Belarmino, que enumerava quinze notas (em 1591,
depois de dez anos de trabalho, Bózio enumerava nada menos do que
cem). Alguns catecismos contavam ainda quatorze ou dezenove notas
no século X V III, quando Toumély já tinha fixado, em 1726, para mais
de um século, o esquema da apologética pelas quatro notas.58 No decor­
rer do século X IX deu-se conta da dificuldade que supunha manejar
eficazmente a argumentação das notas. Por isso, alguns (Dechamps)
acrescentavam a esta argumentação, ou mesmo preferiam a ela, a via
empírica (a Igreja como milagre moral por sua fecundidade em toda
classe de bens); 39 de outro lado, não poucos autores consolidavam a

“ Cf. Y . C o n g a r , L ’Èglise. D e saint Augustin à 1’époque moderne, P a ­


ria, 1970, 205s.
11 Cf. Cipriano, Ep. 43.
“ Assim, Contra Ep. Parm ., I, 4, 6 ; D e vera rei., 12. Cf. Y. C o n g a r ,
Introduction générale aux Traités antidonatistes = O S A 28, Paris, 1963, 83ss.
Agostinho propõe também outros critérios: Contra Ep. Man. quam vocant
fundam. ( P L 42, 175).
MCommonitoiium, 2.
14 Confessio Augustana, 7; Melanchthon, Apologia, art. 7s; Brenz, Confessio,
Frankfurt, 1561, 38, 264s; Calvino, Inst., IV , 4, 9 (C R 30, 753s); Conf. Scotica
1560, art. 18; Conf. GaUicana, art. 28; Conf. H elv. post. 1561, art. 17. Cf. o
art. 20 dos T rinta e nove artigos anglicanos, e S. Frankl, op. cit., 44s.
“ Assim, Melanchthon: «obedientia ministro debita iuxta E vangelium »;
Bucer: «cu ra et disciplina pauperum »; as Centúrias de M agdeburgo: «con-
fessio, constantia, perseverantia».
18Cf. G. T h i 1s, op. cit., 300; U. V a l e s k e , Votum Ecclesia«, Munique,
1962, parte I, 102, n. 296.
31 Cf. G. T h i 1s, op. cit., 9, 30ss.
18 P a ra toda esta história, cf. S. Frankl e G. Thils, op. cit.; para o século
X V III, M. R a m s a u e r , D ie Kirche in den Katechismen: Z kT h 73 (1951),
129-163.
13Cf. Vat. I, cons. D ei Filius, cap. 3 (D z 1794; D S 3013s); G. T h i l s op.
cit.; F. G r i v e c , D e via empirica notarum Ecclesiae: «Antonianum » 36 (1961),
395-400 (apresentação de lim estudo de Th. Tseng publicado em H ong-K ong).
8 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

prova pelas notas com o argumento da «romanidade» (Perrone, 1842, e


os autores que o seguiram: Mazzella, 1890).”
Poder-se-ia perguntar se o N T não indica outras notas, como o amor
fraterno, a realização de milagres, o zelo apostólico, o fato de sofrer
perseguição. De fato, os donatistas invocavam este último sinal, e Santo
Agostinho dedicou-se a responder-lhes.21 Basta dizer — e é uma res­
posta que encontraria respaldo na autoridade de Newman“ — que a
vida pessoal dos católicos não constitui uma nota da Igreja? Na reali­
dade, o problema já supõe uma concepção da Igreja. E ’ esta uma simples
congregado iidelium, assembléia de fiéis, ou é também uma instituição
que responde à iniciativa do Senhor? Mas, sob pena de cair no idea­
lismo, não se pode separar a instituição do povo dos fiéis. Se os sinais
evangélicos do verdadeiro discípulo não constituem notas autônomas
de verdadeira Igreja, contudo, interessam realmente sua verdade. A
perseguição por causa do evangelho interessa a autenticidade da suces­
são dos apóstolos, se esta última for tomada em toda sua plenitude.
Os apologetas católicos, sobretudo a partir de Perrone, insistiram
cada vez mais na romanidade. Será que esta constitui uma nota da
Igreja de Jesus Cristo? O título de «Igreja católica romana» aparece
com freqüência já no Gelasianum (Dz 166; DS 354), mas sobretudo
nas profissões de fé, desde que se levantou criticamente a questão de
saber onde se encontra a verdadeira Igreja.“ A reflexão sob o ponti­
ficado de Pio IX deu à qualificação de «Igreja romana» um sentido
não puramente polêmico, mas eclesiológico positivo.24 Mas quando os
Padres do Concílio de 1869-70 viram, no cabeçalho da constituição Dei
Filius, os termos «sancta romana catholica Ecclesia credit. . . » , reagi­
ram, “ alguns, pertencentes à minoria, porque viam nisso um adendo
do papismo; outros, porque a expressão, sobretudo traduzida para o
inglês, podia dar pé à idéia das duas Igrejas. A dificuldade foi resolvida
intercalando a palavra apostolica entre catholica e romana, e reconhe­
cendo em «romana» um complemento descritivo de «catholica» (cf.
Dz 1782; DS 3001).

“ G. T h i l s , op. cit., 77, 94 (n. 1), 133, 145, 197s, 204, 282.
“ E p. 93, 8, e 185, 9s. E ’ necessária, dizia ele, a perseguição pela ju s tiç a ...
" C arta de 19 de abril de 1874 a seu sobrinho J. B. Mozley, em W .
W a r d , I i f e of Card. Newm an, II, 572s.
“ D a í os três grandes grupos de testemunhos: 1) Confissão de Inocêncio
m para os valdenses reintegrados n a comunhão católica (D z 423; D S 792; cf.
a nota sobre o título do documento), texto tanto mais significativo pelo fato
de a palavra Rom anam não figu rar na profissão enviada por Leão I X a Pedro
de Antioquia, e que serviu de modelo para a profissão dos valdenses (D z 347;
D S 684). Cf. Inocêncio III, Reg., X I, 196; Moneta de C r e m o n a , Contra
Caíharos et Valdenses, livro V, cap. 2 (ed. Ricchini, Roma, 1743, 409), e Bento
de A l i g n a n o , Tractatus fidei (ca. 1260). 2) N o contexto da união com os
gregos e do Concílio de Florença (D z 703; D S 1330). 3) Frente à crítica da R e ­
form a: profissão de fé de Pio I V (D z 994 e 999; D S 1862 e 1868); poder-se-iam
citar Canísio, Belarm ino e numerosos catecismos a partir do século X V H .
M E ’ característica a alocução Singulari quadam, de 9 de dezembro de
1854 (D z 1647; falta em D S ).
“ Cf. M ansi 51, 105ss, 179-200, 351, 394-424; Th. G r a n d e r a t h , Constitu-
tiones dogmaticae S. Oec. Concilii Vaticani, Friburgo, 1892, 29-32; id., Geschichte
des Vatikam schen Konzils, II, Friburgo, 1903, 411-414, 464s; V. C o a z e m i u s
(ed.), Briefwechsel Dõlling-er-Acton, II, Munique, 1965, 311, 319 (Strossmayer),
324.
INDICAÇÕES PRELJ MINARES 9

Eclesiologicamente falando, pensar-se-ia antes numa precisão mais


em relação à apostolicidade. Porque no termo «romano» se trata do
ofício que Cristo quis para Pedro e de uma função de Pedro, assim
como da relação que esta função realiza, senão com a cidade como tal,
ao menos com a sede de Roma, onde Pedro deu seu testemunho e tem
seu túmulo. «Assim, pois, quem vê por que exata razão o verdadeiro
papa é romano, vê igualmente por que a verdadeira Igreja é realmente
romana».26 Falando em sentido eclesiológico, o adjetivo não significa
outra coisa senão a aceitação da Igreja tal como o Senhor a estruturou,
com a função pastoral nascida de Pedro. Evidentemente, isso não signi­
fica que Roma seja toda a Igreja nem que esta não seja indígena em
todos os lugares onde se encontra.27

3. Relação das notas entre si


e com o mistério de Cristo e da Igreja

As notas, que antes de mais nada são propriedades, não estão


reunidas somente por causa da unidade do sujeito a que dizem respeito,
como ser um grande músico, pai de quatro filhos, mas são atributos
reunidos na mesma pessoa. As notas emanam da própria natureza da
Igreja, como a famosa «capacidade de rir» emana da natureza do ho­
mem (os nervos e os músculos que intervêm no sorriso já estão for­
mados no feto). Embora seja evidente que isso não passa de uma
analogia. As propriedades da Igreja são ainda mais íntimas, mais idên­
ticas à própria essência da Igreja, da qual só se distinguem pela análise.
Por isso também não são separáveis entre si. Não se poderia afirmar
uma santidade que não fosse católica, isto é, aberta, uma pureza que
recusasse a plenitude.88 Mas também não se pode afirmar uma catoli-
cidade aberta a qualquer coisa. Seria um mau sincretismo. A catolicidade
está ligada à unidade e à apostolicidade, isto é, à obra de Jesus Cristo.
Na realidade, existe uma espécie de presença e de interioridade mútua,
de «circuminsessão» das notas entre si, um pouco como as diversas funções
de Cristo não são mais do que as emanações de sua unção pelo Espírito
Santo e de sua plenitude de graça, de maneira que sua realeza é profética
e sacerdotal; seu sacerdócio, profético e real; seu profetismo, real e
sacerdotal.
A unidade é apostólica; assim é que se relaciona visivelmente com
Cristo. E ’ católica, não limitada a um lugar ou a uma raça, a uma
classe ou a um segmento da história (a cristandade medieval, por
exemplo), mas chamada à missão universal e de si apta para abarcar
a totalidade do desenvolvimento humano no tempo e no espaço. A uni­

26Ch. J o u r n e t , I/Église du Verbe incamé, I, Paris, 1941, 530. O autor


acrescenta que «rom an a» é para a Ig re ja «um nome de humildade, mas tam­
bém de m ilagre».
-7 Observação de W . H. van de P o l , H e t christelijb Di l e mma . . Amster-
dam, 1948, 393.
“ Nesta linha, H. Schmidt propunha distinguir a Ig re ja da seita numa
obra que ainda merece ser lida: D ie K irc h e ... in ihrem Unterschiede von
Sekte und Háresie, 1884.
10 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

dade, finalmente, é santa: realiza-se para lá de toda organização humana


pela ação do Espírito Santo, que é princípio de comunhão.
A santidade é católica: realiza-se numa variedade imensa de voca­
ções; é apostólica: procede da vinda histórica de Deus em nossa carne;
é una: pelo Espírito Santo.
A catolicidade é una, a ponto de não se esgotar sua noção ao falar
de expansão ou dilatação da unidade, porque o Espírito Santo realiza
as vocações e os contributos pessoais numa comunhão. A catolicidade
é apostólica, não aberta a qualquer sincretismo. E ’ santa, sendo de Deus
e para Deus.
Finalmente, a apostolicidade é una, católica, chamada à missão
universal até o fim dos tempos. E ’ santa, por proceder da própria ação
do Senhor e de seu Espírito, para além de toda segurança humana ou
histórica de continuidade. Cremos na Igreja apostólica, como a cremos
una, santa e católica, acima de toda evidência ou aparência.
Devido a esta unidade essencial e a esta interioridade mútua das
propriedades da Igreja, não se pode, como fizemos demasiado esque­
maticamente no livro Cristãos desunidos, reservar o qualificativo de
«dinâmica» à santidade e à catolicidade. As quatro propriedades essen­
ciais são, ao mesmo tempo, dadas e por realizar. Toda a Igreja é
missionária, toda a Igreja é dinâmica.
O Símbolo enumera as propriedades da Igreja na ordem que co­
nhecemos. Tem esta ordem valor teológico ou é acidental? Embora as
propriedades sejam realmente idênticas à essência da Igreja, dão-na
a conhecer sob diferentes aspectos, e pode-se pensar que um destes as­
pectos a dê a conhecer de forma mais radical ou que seja suposto pelos
demais como seu fundamento lógico. De fato, alguns teólogos dão como
propriedade logicamente primeira a santidade, ao passo que outros
propõem a unidade.29 Logicamente, a unidade é a primeira, visto que
é preciso ser unum («indivisum in se, divisum ab aliis») antes de ser
isto ou aquilo. Mas a santidade qualifica o próprio ser da Igreja: não
se pode tratá-la como um atributo, que viria qualificar um ser já cons­
tituído. Será mister, pois, afirmar como fundamento lógico a unidade e
a santidade, que seriam seguidas da apostolicidade (continuidade neste
ser) e da catolicidade. Mas a apostolicidade não é só continuidade
nesse ser, mas é também sua fonte e seu meio. Assim, pois, não é pos­
sível estabelecer uma prioridade lógica que seja indiscutível e satisfa­
tória.
Se as propriedades dão a conhecer a essência da Igreja com a
qual se identificam, revelam além disso a relação íntima que a Igreja
mantém com o mistério de Cristo. Na realidade, existe uma continui­
dade entre a Igreja e Cristo: a própria palavra «mistério», em seu

23 Perrone seguia e justificava a ordem dada no Símbolo. Foi o padre


P o u l p i q u e t ( L ’E glise catholique, Paris, 1923, 147-190, obra póstuma) quem
levantou esta questão de form a nova, propondo a santidade como nota funda­
mental, já que é aquela que aponta o fim, que realizado coincide com a forma.
O Padre Gardeil, mestre do P adre Poulpiquet, sustentava que a unidade é
a nota fundamental. N o mesmo sentido, R. S c h u l t e s , D e Ecclesia catholica,
Paris, 1925; cf. G. T h i l s, op. cit., 117s.
INDICAÇÕES PRELIMINARES 11

uso paulino, engloba os dois.80 Assim, é todo o mistério de Cristo que


se reflete na Igreja, sua esposa e seu corpo. Mas poder-se-iam consi­
derar nossas quatro propriedades como a expressão, a conseqüência e
o fruto da única mediação de Cristo no sentido em que fala dela lTim
2,l-6a: unidade, porque existe um só mediador; santidade, porque nos
restabelece e nos introduz na comunhão com o Deus santo; catolicidade,
porque é o sacramento eficaz do amor salvífico de Deus para todos os
homens e para todo o homem (cf. lT im 2,4); apostolicidade, porque
tudo procede de Jesus Cristo «homem que se entregou como resgate
por nós». Verdadeiramente, na Igreja se realiza e se revela o desígnio
benévolo de Deus de que fala a carta aos Efésios (1-3; cf. Rom 16,
25-27).

4. Apreciação do uso apologético das propriedades-notas.


Verdade da Igreja

A apologética das notas constituiu-se e desenvolveu-se numa con­


juntura de competição confessional. Nas escolas e na teoria não era
difícil construir uma demonstração que chegasse a conclusões vitoriosas.
Mas a confrontação real revelou certas dificuldades e leva a expressar
precisões, restrições, que às vezes davam a impressão de serem uma
marcha à ré. Assim aconteceu com a própria definição das notas como
claras e fáceis de serem percebidas por todos, «obviae omnibus, etiam
rudioribus»,81 ou com a idéia das notas como exclusivamente próprias
da verdadeira Igreja. Os apologetas explicaram que o eram «saltem
collective», ao menos se eram tomadas em conjunto;32 depois recorre­
ram a uma distinção entre notas positivas e negativas, aplicando esta
distinção de modo que lhes permitisse concluir no sentido desejado.38
Nas notas, a santidade, por exemplo, privilegiavam-se os elementos que
se julgavam faltarem aos demais, mesmo que estes elementos fossem
afetados de historicidade e de relatividade. * Com relação aos ortodoxos
reduzia-se a apostolicidade (que era impossível negar-lhes) à legitimi­
dade da missão apostólica formal, incluída a romanidade.35 Numa pala­
vra: os critérios foram modelados em função da conclusão a que se
queria chegar. O fato é reconhecido pelos teólogos.® Finalmente, ten­
dia-se a concentrar tudo na romanidade.
Mas este mesmo valor tornou-se difícil de manejar. Efetivamente,
foi questionado imo de maneira total e polêmica como o era nos pri­
meiros enfrentamentos, mas num molde positivo e irênico, em nome
da exegese e da história ou naquele de uma visão eclesiológica de

” Cf. M.-J. L e G u i l l o u , I * Christ et 1’Jflglise. Théologie chi mystère,


Paris, 1963, e P. S m u l d e r s , A Ig re ja como sacramento de salvação, em G.
B a r a ú n a , A Ig re ja do Vaticano II, Petrópolis, 1965, 396-419.
31 Cf. G. T h i l s , op. cit., 38s.
:B Cf. G. T h i l s , op. cit., 43.
“ Cf. G. T h i l s , op. cit., 47ss.
|3í Cf. G. T h i l s , op, cit., 147 e 136.
“ Cf. G. T h i l s , op. cit., 247s,283.
83Cf. G. T h i l s , op. cit., 288s.
12 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

conjunto. Um reconhecimento mais inteligente e mais leal da historici­


dade da instituição romana não impede que se lhe reconheça nm valor
eclesiológico decisivo, mas já não permite a simplicidade dos triunfos
da apologética clássica.
Em nossa época enveredou-se por outro caminho. Começou-se a
renunciar à argumentação, à discussão, às «provas»; procurou-se desen­
volver de forma positiva e persuasiva uma descrição animada por uma
experiência e uma visão interiores: falava-se do gênio do cristianismo,
do anglicanismo, etc.; do verdadeiro rosto do catolicismo; do espírito
(ou da mística) da ortodoxia... Ou, simplesmente, do catolicismo, da
ortodoxia (S. Boulgakov), do protestante francês (V . Léonard), etc.
Este era um caminho interessante na época da fenomenologia que se
ligava, para além da conjuntura cultural ou filosófica, a valores teoló­
gicos profundos da eclesiologia.
Voltava-se ao papel que desempenhavam as propriedades, emana­
ções e expressões da natureza profunda da Igreja, de fazer conhecer ou
de notificar sua essência. Mais do que uma apologética de demonstra­
ção, podia-se desenvolver uma apologética de revelação ou, se se nos
permite a palavra, de «fania».
A apologética clássica, que argumentava a partir das notas, era
uma apologética de escola, apta para fabricar estudantes confessional-
mente muito seguros e capazes de responder bem nos exames. Tal
apologética quase nem se podia chamar de instrumento de conversão,
já que esta supõe um encontro, a revelação de um mundo de valores
e, por conseguinte, uma chamada que este mundo nos dirige. A con­
versão é um segundo nascimento que realiza a ontologia do encontro
e todo um conjunto de valores pessoais que a filosofia moderna elaborou.
Deste modo, nos parece poder-se-iam reduzir quase todos os elementos,
tomados separadamente, com um pouco de história, de sociologia, de
psicologia, de sociologia do conhecimento, etc. Mas o conjunto como tal
conserva sua coerência e sua densidade, e é significativo e capaz de
dar sentido. As objeções, nesta perspectiva, são, mais do que refutadas,
superadas. As dificuldades particulares que se poderia ter talvez não
sejam resolvidas, mas já não afetam pessoalmente porque se passou
para um plano diferente: aquele de uma revelação global de sentido.37
Isto explica o fato da função que podem desempenhar algumas expe­
riências nas quais o aspecto sensível ou estético ocupa um lugar im­
portante: contacto com um mosteiro, com os mosaicos de Ravena, com
a catedral de Chartres.35 Trata-se de algo muito diferente do estetismo;

mTe m grande profundidade, a este respeito, a expressão de P a u ] Claudel


«de repente, tive o sentimento dilacerante da inocência, da eterna infância
de Deus, um a revelação in efável... Minhas convicções filosóficas continuavam
intactas. Deus as havia deixado desdenhosamente onde estavam . .. O edifício
de minhas opiniões e de meus conhecimentos continuava de pé e eu não via
defeito algum nele. Aconteceu somente que eu tinha saído dele» (M a conversion,
em Th. M a i n a g e , Les íémoins du renouveau catholique, Paris, 1917, 66).
w Conta-se que Napoleão ao entrar nela disse: «U m ateu não estaria à
vontade aqui». Cf. M.-T. B u 11 e a u, Mor.ograpiiie de Ia cathédrale de Chartres,
Chartres, 1887-1907.
INDICAÇÕES PRELIMINARES 13

trata-se de uma experiência. Esta pode ser materialmente trivial e,


contudo, revelar um mundo diferente. *
Por isso a propriedade da Igreja que se apresenta como mais eficaz
é também a que melhor a revela: a santidade. Esta é também a mais
inquestionável e, quando aparece, a mais imediatamente perceptível."
Não se trata (embora não se exclua este raciocínio) de provar a origem
divina da Igreja pela necessidade de recorrer a uma eficiência sobre­
natural. Trata-se de oferecer uma percepção da ordem do reino de
Deus que existe na Igreja. Trata-se de uma manifestação, de uma
experiência espiritual: a Igreja como hagiofania.
Neste ponto, evidentemente, surge toda uma série de perguntas:
será que a Igreja parece tão santa?, não tem em seu rosto muitas
rugas e em suas mãos abundantes manchas, talvez até mesmo manchas
de sangue?, a terrível frase de Proudhon: «glória a Cristo, vergonha
a Roma e ao clerQ»,*1 não expressa, porventura, o pensamento de muitos?
Já em nossos dias, não clamou um Charles Davis sua conclusão de que
a Igreja já não é a fonte dos valores que os melhores cristãos veneram
nem a encarnação da verdadee do amor, mas, preocupada em defender
seu prestígio, se converteu «numa atmosfera de mentira, impregnada
de uma indiferença total para com a verdade»?“
O caso de Charles Davis é particular, visto que procede de uma
experiência amarga. Ninguém que tenha uma experiência interior, hu­
milde e paciente da vida na Igreja subscreverá juízos tão acrimoniosos,
já que sabe não haver necessidade de sair da Igreja para viver segundo
o evangelho e que, no meio de tantas imperfeições e mediocridades,
«nossa Igreja é a Igreja dos santos» . a Os próprios santos que sofre­
ram mais do que nós por estas mediocridades são os que se mostraram
menos acusadores. Mas nós renovaremos em nós mesmos o fervor e a
intransigência de um propósito de verdade e de antenticidade. A pró­
pria apologética nada ganha desconhecendo estes fatos. « A pedra com
que batemos no peito é uma a menos para lançar contra nossos acusa­
dores» (G. Papini). Um programa de hagiofania exige ainda mais
imperiosamente aquilo que nossa honradez de homens e de cristãos
exige: um esforço de verdade e de transparência sem o qual a Igreja
simplesmente não é digna de fé .41 Nesta matéria, o homem de hoje
tem exigências que não podem ser recusadas em nome do evangelho.
Louvado seja Deus se, embora a preço de um esforço sobre-humano
para o qual não nos faltará a graça do Espírito Santo, a Igreja de
hoje é forçada a ser mais pura e mais verdadeiramente ela mesma:
a Igreja do Senhor!
39 Sirva como exemplo o caso de um rapaz que não tinha feito mais do
que participar de um a refeição com um a equipe d a missão de P aris: Dieu,
pour quoi faire? (Jeunesse de l’É glise), 73.
“ Cf. A. L i é g é , P o u r une apologétique du miracle: R S P h T h 35 (1951),
249-254.
a Janeiro de 1840. Citado por P . H a u p t m a n n , P.-J. P r o u d h o n , Genèse
d’un anti-théiste, Paris, 1969, 120.
42 Ch. D a v i s , Une question de conscience, Paris, 1968, 14, 76s, 79, 121, etc.
43 Cf. a última pagina do romance de G. B e r n a n o s , Jeanne, relapse et
sainte.
44Exigências incansavelmente expressas por H. K i i n g , L e Concile, épreuve
de l ’Église, Paris, 1963, 193; E tre vrai. L ’avenir de l’Église, Paris, 1968.
SECÇÃO I

A IGREJA É UNA

I. TEOLOGIA DA UNIDADE

A Ig reja 1 só pode ser retamente compreendida partindo da esca-


tologia, isto é, começando pelo ponto a que deve chegar ao realizar-se
em total perfeição. O estado de perfeição da Igreja é-nos conhecido
graças à Escritura: «Eis aqui a mansão de Deus com 09 homens» —
trata-se de uma cidade santa, a nova Jerusalém, formosa como uma
jovem desposada ornada para seu esposo. — «Ele terá sua mansão
com eles; eles serão seu povo, e ele, Deus com eles, será seu Deus»
(Apc 21,2-3). Neste texto está reunida a maior parte das imagens ou
das noções de que se serve a revelação para apresentar a Igreja:
mansão (que compreende as idéias de edificação e de templo santo),
cidade, Jerusalém, esposa, povo de Deus. A estas seria necessário acres­
centar as de vinha ou plantação de Deus, iamília, rebanho e, sobretudo,
a de corpo (de Cristo). Convém anotar que nestas diversas expressões
e no seu uso bíblico o que se salienta principalmente é Deus, termo
soberano de referência cuja unidade e unicidade se comunica à casa
ou ao templo que habita, à cidade da qual é o príncipe e o princípio,2
à esposa da qual é o esposo e ao povo que ele chama à existência e
se consagra para si criando desta forma sua unidade. Em última aná­
lise, a Igreja é una e única porque Deus é uno e único em si mesmo.3
Os Padres gostam de apresentar a Igreja como «o povo unido eom a
unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo».4 O primeiro princípio

‘ Sobre a unidade da Igreja, sobretudo em seu aspecto ecumênico, pode-se


encontrar um a abundante bibliografia em H . K ü n g, L a Iglesia, Barcelo­
na, 1968.
3 F. B. W e s t c o t t (The Epistíe to the H ebrews, Londres, 1902, 386-392)
mostra muito bem que, ao contrário d a idéia grega ou estóica, a noção judia
e bíblica de jtóÀiç se fundamenta na soberania do senhor d a cidade, Deus: o
que constitui o cidadão e a cidade é sua relação com Deus.
3 Cf. E f 4,4-6. Eco desta doutrina encontramos nos Padres: Clemente de
Roma, 1 Ciem 46,6; Ireneu, Adv. haer., IV , 6,7 e 9,3; V, 18,2 e final (P G
7,990.998.1173.1224); Clemente de Alexandria, Pedag., I, 6,42, 1: « õ m aravilha
cheia de mistérios. U m é o P a i de todas as coisas, um é o Logos de todas
as coisas e o Espírito Santo é um e o mesmo em todos os lugares. H á tam­
bém um a só virgem e mãe. Gosto de chamá-la Igreja».
4 Cipriano, D e Orat. Dom., 23 (PL. 4,553; Hartel, 285); Ep. 75,3; além dos
textos citados na nota precedente, cf. Orígenes, In Jesu N ave hom., V II, 6 ;
Epifânio, Ancor., 118,3 (G C S Epiphan. I, 146,3ss); Gregório Nazianzeno, Oratio
SECÇÃO I: A IGREJA fi UNA 15

de unidade da Igreja e a razão fundamental de sua unicidade tem sua


raiz na unidade e unicidade de Deus.
Mas esta unidade reflete-se, em primeiro lugar, na unidade da
natureza humana, a qual deve ser percebida como fazendo parte da
unidade do mundo. Estes são dados cuja percepção renovaram pode­
rosamente as ciências modernas, más dos quais os Padres já tiveram
uma consciência muito aguda.3 A humanidade forma uma unidade;
como tal Deus a criou e como tal a continua tratando. «O corpo místico
é a elevação ao estado sobrenatural da união que existe entre todos
os seres finitos com relação ao ser infinito».6 O corpo místico repre­
senta a forma que a unidade da natureza humana assume quando reflete
perfeitamente a unidade^ de Deus pelo fato de ter sido assumida pelo
Filho único de Deus, assunção que, realizada em Cristo, é aplicada
aos homens pelos sacramentos da incorporação, que são o batismo e a
eucaristia. Neste nível os Padres situam o fundamento da unidade da
Igreja.,
Esta unidade deve consumar-se escatologicamente. A intimidade da
mesma é expressa por São Paulo nestes termos: «Deus será tudo em
todos» (IC or 15,28). Não é possível afirmar interioridade maior. W a
unidade perfeita de sujeitos que continuam sendo sujeitos pessoais:
unidade ao mesmo tempo de comunhão íntima ao nível pessoal e de
vida coletiva exterior; mas a unanimidade social e suas expressões
externas procedem da interioridade de cada um e das próprias pessoas.
O social nada tem, pois, de coativo. Não há mais poder público nem
mais autoridade do que aquela de uma realidade, que é para cada
pessoa vida íntima e plenitude interior.
Já na existência social de nível humano a unidade procede de um
objeto admitido e de um fim aceito por vários. O objeto e o fim criam
a união entre os membros na medida em que o vínculo que eles cons­
tituem vai sendo interiorizado, personalizado, assimilado pelos princípios
pessoais de vida, e deste modo progride nas formas de vida social
desde a simples sociedade por pressão externa e desde a simples asso­
ciação até a comunidade e a comunhão. Na definitiva unitas plena
atque completa, 8 o Deus possuído e que nos possuirá perfeitamente
será o princípio, interior a cada um e comum a todos, de nossa co-

X X III, 3; V I, 13,21 (P G 35,1153 e 740, 748); X X X V I, 11 (36,265); Agostinho,


Sermo 71, 20, 33 ( P L 38,463s); João Damasceno, Adv. Ieonocl., 12 (P G 96,
1358D) ; const. Lum en Gentium, n. 4, final.
5 Ler-se-á com grande proveito E. M e r s c l i , L e Christ, l’homme et l’univers,
Paris, 1962, e, certamente, Teilhard de Chardin. Entre os teólogos do século
X IX , cf. especialmente Staudenmaier.
“ E. M e r s ch, Corps mystique: D S A M I I (1953), 2380; id., Théologie du
Corps mystique, II, Bruxelas, 1954, 374.
’ Cf. H. de L u b a c , Catholicisme, Paris, 1938, 3s, 13-14; 1965, F V 13, 25-26,
31; para Agostinho, cf. J. W a n g Tch’ang T s c h e , St. Augustin et la vertu
des païens, Paris, 1938, 167s. Doutrina assumida por Pio X II, disc. aos pá­
rocos e pregadores de quaresma, 18-2-1958 (A A S 50 [1958], 163s) ; alocução
aos ferroviários (172s), à Ação Católica Italiana (215) ; radiomensagem de
Páscoa, 6-4-1958 (263) ; alocução à Federação Italiana das Congregações Ma-
rianas, 26-4-1958 (321s).
8 Expressão de Agostinho, em In Ev. loan., X X V I, 17 ( P L 35,1605).
16 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

munhão. Santo Agostinho fala de uma «societas fruendi Deo et invicem


in Deo».*
A cidade de Deus se prepara e começa no povo de Deus ainda
itinerante na terra." Esta condição terrena caracteriza-se por um «já »
e um «ainda não» simultaneamente verdadeiros. O povo de Deus (ou
a Igreja) já é aquilo que é chamado a ser; nós já somos filhos de
Deus (lJ o 3,1; Rom 8,14-17; cf. Jo 1,12; E f l,5s; Col l,13s). Espera­
mos, todavia, a liberdade gloriosa dos filhos de Deus e a libertação
de nossos corpos (Rom 8,21ss). Não possuímos senão as primícias
do Espírito (Rom 8,23; 2Cor 1,22; 5,5; E f 1,14): é mais do que uma
simples promessa, mais até do que um penhor; é um começo da rea­
lidade definitiva; mas somente um começo.
Esta situação dialética e paradoxal da Igreja durante sua etapa
itinerante confere-lhe uma estrutura igualmente dialética, caracterizada
por uma dualidade que corresponde a este já-ainda não, que pode ser
designada, em termosde origem agostiniana bem conhecidos na teo­
logia dos sacramentos, como sacramentum et res, mediação (sensível)
exterior e realidade.
O próprio Cristo se apresenta como aquele que assegura para os
seus uma e outra coisa. Ele une seu povo numa realidade de graça
que permanecerá, mas para isso dispôs de alguns meios externos que
passarão: enunciados doutrinais e preceitos de ação transmitidos de
forma escrita ou não escrita, mas exterior; sacramentos; autoridade
pastoral que regule a vida social dos seus. Tudo isso representa um
conjunto de meios destinados a conduzir à unidade os filhos de Deus
e permitir-lhes viver nela.11
Mas entre o meio e a realidade que este busca ou alimenta existe
uma homogeneidade e uma continuidade asseguradas pela identidade
do princípio que, tendo instituído e garantido o meio, opera através
dele aquilo de que ele mesmo será a fonte permanente. A Palavra
pronunciada, se for recebida, e graças à operação de Deus por ela,
gera a fé .12 O batismo incorpora a Cristo morto e ressuscitado (cf.
Rom 6,3-11; ICor 12,13; Gál 3,27); a eucaristia é comunhão com o
corpo de Cristo (cf. ICor 10,16s); estes dois sacramentos maiores

'B e Civ. Dei, X IX , 13 ( P L 41,640); cf. X IX , 10 e 17 ( P L 41,636.646).


Agostinho escreve também: «H o c bonum (adhaerere D eó) quibus commune
est, habent et cum illo cui adhaerent et inter se sanctam societatem et sunt
una civitas D ei eademque vivum sacrifieium eius vivumque templum eius»:
X II, 9, 2 (PL. 41,557).
10 Tom ás de Aquino, que conhece o tema d a cidade de Deus e procura
interpretá-lo em termos de bem comum (cf. Q. disp. D e virt. in. com., a. 9;
D e caritate, a. 2; Com. in ICor., c. 13, lect. 4 no fim ; Com. in Eph., c. 2, lect.
6 ), define assim o «povo de Deus», seguindo Agostinho, que, por sua vez,
toma a definição de popuius de Cícero: «Sicut dicit Augustinus [D e Civ. Dei,
II, 21; X IX , 21 e 24: P L 41,67.648.655], popuius est coetus multitudinis, iuris
consensu et utilitatis communione sociatus. Quando ergo consentiunt in ius
divinae legis, ut sint ad invicem utiles et tendant in Deum, tunc est popuius
Dei. Ipsi popuius eius e r u n t ...» (Com. in Hebr., c. 8, lect. 3). O ius divinae
legis era a nova lei da caridade, o amor do bem comum divino. Cf. refer.
dadas supra.
“ Cf. aquilo que Tomás de Aquino diz da nova lei: S. Th., I-II, q. 106, a. 1 e 2.
“ Cf. entre outros textos R om 10,14.17; Jo 17,20; IP d r 1,23; T g 1,21.
SECÇÃO I: A IGREJA & UNA 17

unem-nos e nos identificam misticamente com o corpo imolado e


vivo de Jesus Cristo. Seguindo a Escritura, os Padres viram que a
unidade que os fiéis formam entre si e sua uniãocom Deus brota,
através dos sacramentos, da encarnação pela quel Deus se uniu à
natureza humana.13 Mas os Padres estendem este valor sacramental
aos ministros, presidentes das comunidades; não no sentido de que eles
comunicam a união com Cristo, como fazem o batismo e a eucaristia,
mas pelo fato de que representam Jesus Cristo, a quem Deus con
princípio de unidade entre ele e nós e entre todos nós.11
Assim, na etapa terrena da Igreja, a unidade pode ser considerada
em dois planos: aquele dos meios externos e aquele da realidade inte­
riorizada. Os meios estão dispostos em ordem à realidade íntima. O
ideal consiste em obter a plenitude de realidade íntima utilizando a
plenitude dos meios dispostos por Deus para consegui-la. Desta forma,
a união é ao mesmo tempo carnal e espiritual, externa e interna,
segundo a expressão de Inácio de Antioquia.15 Só assim se responde
plenamente ao desígnio de Deus. Só assim se efetua em toda sua ple­
nitude a unidade da Igreja. Efetivamente, esta é ao mesmo tempo
unidade de comunhão espiritual ou de graça, isto é, salvação,16 e uni­
dade dos meios que proporcionam esta vida e esta salvação. ” Mas o
caráter dialético da condição terrena da Igreja encerra a possibilidade
de uma distância e até mesmo de uma separação entre o plano dos
meios e o da realidade interior. Porque, se em Cristo a condiçãode

33Cf., por exemplo, Ireneu, Adv., haer., III, 18, 1 e 7 (P G 7,932.937);IV


20, 4 (1034); V, 2, 2 (1124s); Hilário, D e Trinitate, V III, 13 ( P L 10,246): a
eucaristia nos torna partícipes da união com a divindade, que se realizou
na natureza humana de Cristo unida a esta divindade; Leão Magno, Serm.
63, 6 (P L 54,356): o nascimento de Cristo, realizado por obra do Espírito
Santo, continua verificando a união de todos os homens num só povo pelo
batismo.
14 Cf. Inácio de Antioquia: « . . . estar profundamente unidos (a vosso
bispo), como a Ig re ja o está a Jesus Cristo e Jesus Cristo ao Pai, a fim de
que todas as coisas estejam de acordo na unidade» (Ig n E f V, 1). «Assim,
pois, da mesma m aneira como o Senhor não fez nada, nem por si mesmo
nem por seus apóstolos, sem seu P a i (cf. Jo 5,19.30; 8,28), com quem ele é
um a mesma coisa, assim também vós nada façais sem o bispo e os presbí­
t e ro s ...: um a só oração, uma só súplica, um sóespírito, uma só esperança
na caridade, na alegria irrepreensível, isto é Jesus Cristo, a quem nada é
preferido. Acudi todos e reuni-vos como num só templo de Deus, como em
torno de um só altar, no único Jesus Cristo que saiu do P a i único e que
era único nele e p ara ele partiu» (Ign M agn V I I ). «Tom ai cuidado, pois, de
não participar mais do que numa eucaristia; porque não há mais do que
um a carne de Nosso Senhor Jesus Cristo, e um só cálice para unir-nos em
seu sangue, um só altar, como um só bispo com o presbitério e os diáconos,
meus companheiros de serviço. Assim, tudo aquilo que fazeis, fazei-o segundo
Deus» (Ign F ld I V ). Cipriano: «N e c enim ignoramus unum Deum esse et
unum Christum esse dominum quem confessi sumus, unum Sanctum Spiritum,
unum episcopum in catholiea Ecclesia esse debere» (Ep. 49, 2, 4). Didascalia dos
Apóstolos, X X V : «Episcopus in typum D ei praesidet vobis».
“ IgnM agn X III, 2. A. Lelong traduz «exterior e interior»; P.-Th. Camelot,
«carnal e espiritual». H á um a alusão à carne de Cristo e ao Espírito.
“ Cf. IC or 1,9; Rom 8,29s; Col 3,15; lJ o 1,3.
1?Expressão feliz do Cardeal D u P e rro n : « A form a essencial d a Ig re ja
— entendo form a essencial analogicamente, como aquela dos supostos cons­
tituídos por agregação — é a unidade com os meios do chamamento à
salvação» (Réplique à ia Response du Sér. R oy de la Grande Bretagne,
Paris, 1620, 1* observ., cap. V I, 27, desenvolvido no capítulo V III, 36, e capí­
tulo seguinte).
18 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

mediador e a de cabeça coincidem e, portanto, a santidade e a media­


ção se identificam, a Igreja, ao contrário, não é princípio; ela é so­
mente mediação. Nela os dois aspectos não coincidem necessariamente»
Deve conformar-se aos meios — enunciados de fé, preceitos, sinais sa­
cramentais, submissão à autoridade — sem entrar na vida da qual
eles são instrumentos. Mas já veremos como também é possível chegar
a esta vida sem passar pelos meios estabelecidos para procurá-la.
Cristo, por seu lado, é a vida inteira, tanto do ponto de vista da vida
comunicada como dos meios de transmiti-la. A Igreja em sua pleni­
tude é também as duas coisas; mas nela existe uma distinção entre
os operários que trabalham na vinha e a unidade de seiva ou de vida.
Por isso, como o mostra a história, da Igreja foi possível desen­
volver tanto um conceito puramente jurídico, que só a considera a
partir de fora, como um conceito puramente espiritual. Em ambos
os casos isolava-se e privilegiava-se um dos dois aspectos, que, ao
contrário, é preciso unir sem deixar de distinguir.

1. v4s formas da unidade

Os Atos oferecem-nos a seguinte descrição da primeira comuai-


dade dos discípulos: «E eram perseverantes no ensino dos apóstolos, na
comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações» (2,42).“ Se, pois,
os discípulos não tinham senão um coração e uma alma (cf. 4,32), isto
não se reduzia ao plano sentimental, mas traduzia-se em algumas estru­
turas das quais Lucas enumera três elementos, de acordo com uma
ordem que por si só constitui um ensinamento: a) Unidade pela acei­
tação do ensinamento apostólico, graças ao qual se realiza esta unani­
midade de fé e de confissão que Paulo exige: ICor 1,10; Rom 15,6;
E f 4,14s. b ) Unidade no plano da vida social ou da comunidade fra­
terna, que se traduz numa forma de vida comum (A t 2,44-47), a
comunidade facultativa dos bens (A t 4,32-37; Hbr 13,16), a união
profunda de sentimentos (A t 4,32; Flp 2,2s). Se podem compartilhar
o pão, e em primeiro lugar o pão da eucaristia, é precisamente porque
convivem fraternalmente (cf. Mt 5,23-24; 18,19-20). c ) União na cele­
bração do culto, que comporta, juntamente com a oração realizada
então no âmbito da comunidade judia (A t 2,46; 3,1; 5,12)/ a cele­
bração da fração do pão pela qual se consuma a união dos fiéis com
Cristo e dos fiéis entre si (IC or 10,16-17).
A esta análise das formas de unidade referem-se sempre, de uma
forma ou de outra, os textos dos teólogos e até mesmo do magistério.
Distinguem-se estas formas de unidade: unidade de fé, de vida social,
de culto e de sacramentos. Às vezes, contudo, agrupam-se fé e sacra­
mentos, ou estes são reduzidos à fé; nestes casos costuma-se desen­
volver em duas secções diferentes a unidade de sociedade, por sub-

18Cf. L. C e r f a u x , L a communauté apostolique, Paris, 1953, 24-59 =


L a puissance de la foi, F V 93, 24-59; Ph. H. K e n o u d , L a vie de l’Église
naissante = Cahiers théol. 31, Neuchâtel-Paiis, 1952; B. R e i c k e , d a u b e -
und Leben der TJrgemeinde, Zurique, 1957, 56s.
SECÇÃO I: A IGREJA fi UNA 19

missão ao mesmo regime, e a unidade de caridade ou de comunhão.


Outros teólogos agrupam estas duas formas sob a mesma rubrica:
a da unidade da vida social. Assim, encontramo-nos diante de duas
grandes formas de distribuir os tipos de unidade:
1) Fé (e sacramentos); sociedade regida pelo mesmo governo ;
caridade, comunhão. Se se aceita esquematizar um pensamento muito
profundo, poder-se-ia reduzir a esta trilogia a análise que faz Caetano
da unidade que vem romper o cisma.19 Esta classificação aparece esbo­
çada no século X I I 20 e utilizada mais adiante pelos apologetas, pelos
irmãos Walenburch21 e por vários autores modernos.22 Os documentos
do magistério pontifício às vezes enumeram estes três elementos,23 mas
com freqüência insistem na unidade externa pela profissão da mesma
fé e submissão ao mesmo governo, referindo a profissão da mesma
fé à submissão ao magistério.24
2) Fé; sacramentos; vida social sob os mesmos pastores. Divisão
expressa às vezes em termos de vinculum symbolicum, vinculum iitur-
gicum, vinculum socisle ou hierarchicum. Trata-se, em última análise,
dos elementos de A t 2,42, com a inversão do segundo e terceiro. Estes
elementos traduzem tão perfeitamente a natureza das coisas, que não
se deve estranhar encontrá-los até mesmo em lugares onde não aparece
nenhuma tentativa de sistematização. * Esta distribuição é freqüente­
mente seguida pelos apologetas e os teólogos modernos. Fundamental­
mente, é aquela usada por Roberto Belarmino em sua famosa definição
da Igreja, adotada pela totalidade dos autores até o século X IX : «A
Igreja é a sociedade dos homens a caminho sobre esta terra, unida
pela profissão da mesma fé e a participação dos mesmos sacramentos
sob o governo dos pastores legítimos e, em primeiro lugar, do romano
pontífice».26 Os mesmos três elementos de comunhão aparecem enume-

18 Cayetano, Com. in II-II, q. 39, a. 1. Cf. o comentário de Ch. Journet,


I/Église du V erbe Incarné, II, Paris, 1951.
“ Assim, entre os canonistas, Rufino (Sum m a Decretortim, p. II, c. 1, q. 1
[ed. H. Singer, Paderborn, 1902, 212]), Sicardo de Cremona (Sum m a super
Decretam [citado por A. Landgraf, D T h (1948), 303, n. 1 ]), Alano de Lille
(Liber de distinctione diction. theol. [P L 210,771]).
-1Controv., Colonia, 1669, tract. IX : D e unione Ecdesiae, em Migne,
Cursus theoL, I, col. 1223s.
22Cf., por exemplo, T. Z a p e 1e n a, D e Ecclesia Christi, pars apolog.,
Roma, 4194ö, 384-ä.
23Assim, Pio X II, enc. Orientalis Ecclesiae decus, por ocasião do cente­
nário de Cirilo de Alexandria, 3-4-1944 (A A S 36 [1944], 132). A este mesmo
esquema podem ser reduzidos muitos outros textos: cf. G. B a u m , L ’imité
chrétienne d’après la doctrine des Papes de Léon. XIII® à R e X I Ï e, Paris,
1961, 19-3?.
24Cf. Leão X III, enc. Satis cognitum, 29-6-1896 (D z 1956-1959; D S 3300-
3306).
25Assim, em Bernardo de C l a r a v a l , In Cant. Sermo 25, 2: «Sive enim
propter sacramenta Ecclesiae quae indifferenter cum bonis suscipiunt; sive
propter fidei aeque communem confessionem; sive ob fidelium. corporalem
saltem societatem: seu etiam propter spem salutis futurae a qua oranino non
sunt, quamdiu hie vivunt, vel tales desperandae, quantumlibet vivant desperate:
non incongrue filiae Jerusalem nominantur». Cf. Tomás de Aquino, Quod!.,
X II, 19: «E adem est numero Ecclesia quae tunc erat et quae nunc est: quia
eadem fides et eadem fidei sacramenta, eadem auctoritaa, eadem professio».
“ Controv., lib. I l l : D e Ecclesia militante, c. 2: Opera, II, 23a. E m outro
lugar diz Belarmino, nos mesmos termos: «Ecclesia est quaedam convocatio
20 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

rados na mesma ordem nos apologetas católicos dos séculos X V II,


X V III e X I X 21 e em numerosos manuais modernos.28
Cada uma destas formas de unidade pode ser vivida no plano
externo somente ou simultaneamente no profundo plano externo e in­
terno, no qual a unidade encontra sua verdade plena. Mais adiante
veremos em que condições pode ser vivida exclusivamente em sua
realidade externa, ao menos a primeira destas formas e também, até
certo ponto, as outras duas. A situação normal é aquela em que o
aspecto interior corresponde ao exterior. E’ verdade que se levantamos
a questão de saber quem pode ser contado entre os membros da Igreja,
ou se falamos desta Igreja no sentido aparente, devemos contentar-
nos com uma consideração dos elementos externos. Nesta perspectiva
situava-se Belarmino em suas Controvérsias. Com excessiva freqüência,
os autores que o seguiram contentaram-se em transladar as respostas
dadas nestas condições a uma definição do ser da Igreja em sua natu­
reza profunda e dos princípios de unidade que correspondem a esta
natureza. A resposta neste segundo plano já não é válida. E ’ possível
deíiair o ser do corpo de Cristo sem incluir nesta definição a caridade
do Espírito Santo? O Concílio Vaticano I I não o crê; por isso se lê
nele: «Estão plenamente incorporados à sociedade da Igreja aqueles
que, possuindo o Espírito de Cristo . .. (aqui seguem os elementos de
comunhão antes enumerados)» (Lumen Gentium, n. 14,2). Levando
em conta as observações anteriores, vamos tratar sucessivamente de
cada uma das formas de unidade da Igreja, seguindo a ordem dos
Atos e incluindo no estudo da primeira e da segunda um estudo dos
pecados contra elas: a heresia e o cisma.

a) Unidade de fé

Os escolásticos definiam a Igreja como congregatio íidelium. Tomás


de Aquino, concretamente, faz sua esta fórmula com ligeiras variantes
(collectio, coetus, societas..., íidelium), de modo que pode ser consi­
derada expressão consciente e lúcida de seu pensamento mais profundo.29

et congregatio hominum baptizatorum, qui eamdem fidem et legem Christi


sub Rom ani Pontificis oboedientia profitentur» (Christianae doctrinae Iatior
explicatio, Kempten, 1718, 57).
K N o século X V I I : B o s s u e t, Prem ière Instr. Pastorale sur les promesses
de l’Église, §§ 4 e 5; Conférences snr la matière de l’É glise (ef. D ThC XV/2
[19501, 2205, art. Unité de l’É glise). Num erosas referências em G. T h i l s , Les
notes de l’É glise dans l’Apologétique cathol. depuis la Réform e, Gembloux, 1937,
191. N o século X V I I I : Alexander N a t a l i s , D e Symbolo, art. 9 (Migne,
Cursus theol. V I, 307s); cf. G. Thils, op. cit., 194 (nota 3), 196s. N o século X IX :
J. P e r r o n e , D e Ecclesia et Romano Pontífice Rom a, 1842; cf. G. Thils,
opw cit., 200.
28Assim, por exemplo, Tanquerey, Synopsis Theol. Dogm., I, 600s; Lercher,
Inst. Theol. Dogm., I, 416s, etc.
®Cf. A. D a r q u e n n e s , L a définition de l’É glise d’après Saint Thom as
d’Aquin, em Études présentées à la commission internat, pour l’Histoire des
Assemblées d’états, V I I : L ’organisation corporative du Moyen-Age à la fin
de l ’Ancien Régime, Lovaina, 1943, 1-53. Textos principais: I V Sent., d. 20,
q. 1, a. 4, sel. 1; t 'e V e r., q. 29, a. 4, obj. 4; C. Genfc, IV , 78; S. Th., I, q. 117,
a. 2, obj. 1; Xn ÎCor., c. 12, lect. 3; In Hebr., c.3, lect. 1, pelo meio; In loan.,
SECÇÃO I: A IGREJA Ê UNA 21

Nesta definição, congregatio — ou as expressões semelhantes, incluída


a de corpus — designa uma multidão de seres vivos dotados de inte­
ligência, congregados ou reunidos por um princípio de vida, ou ao me­
nos de ação, comum a todos eles. Toda sociedade, toda corporação,
é uma congregatio, coetus ou corpus. No caso da Igreja, este princípio
é a fé. A fé não se reduz a um simples «ter como verdadeiras» algumas
proposições cuja demonstração não seria comunicada e até escaparia
à nossa razão. A fé é a realidade sobre a qual se realiza a aliança
entre Deus e nós. A aliança é um intercâmbio de fidelidade; por isso
a Escritura vê nela uma espécie de esponsais (Os 2, etc.). A fé é, por
parte do homem, a abertura pela qual acolhe a ação de Deus, supe­
rando toda busca de apoio em si mesmo para apoiar-se na veracidade
e fidelidade de Deus; é a abertura pela qual o homem, entregando-se
inteiramente, a começar por seu espírito, se compromete a ser total­
mente para Deus. Por parte de Deus, a fé é o ato pelo qual começa
a comunicar-se a nós dizendo-nos o que quer ser para nós e, por con­
seguinte, dizendo-nos algo daquilo que é para si mesmo. Mas esta
comunicação de palavra é acompanhada interiormente de uma comu­
nicação de espírito e de certeza. Quando Tomás de Aquino fala da fé
como primeiro princípio de existência e de unidade da Igreja, não
insiste na imperfeição da fé como regime provisório de conhecimento,
mas na continuidade entre o povo dos crentes e o povo dos bem-aven­
turados; entre um e outro existe a mesma relação como entre o im­
perfeito e o perfeito; mas se trata, em última análise, do mesmo
povo. Por isso Cristo, que já está em estado de glória, continua sendo
o chefe do povo fiel em estado itinerante. “
Em determinados cristãos, a fé pode ser «informe», e neste caso
falta-lhe algo na linha da própria fé; mas na Igreja como tal sempre
possui a plenitude: nela, a fé une o povo da aliança com o Deus da
aliança por meio do laço eficaz e total da caridade.81
A fé é fundamental e central na Igreja. Os sacramentos a supõem
e expressam sem deixar de contribuir com sua eficácia específica;
os sacramentos são sacramenta fidei, protestationes íidei. Toda a orga­
nização e a vida social da Igreja são um serviço da fé viva. A fé
não é só princípio de existência pessoal; é, além disso, o primeiro
princípio de comunhão para as pessoas e de unidade para a Igreja.

c. 14, lect. 1, no princípio; S. Th. III, q. 8, a. 4, obj. 2 e ad 2; In Symb.,


a. 9; I n I am Decretalem Expos., c. 3 (Opera, ed. Vivès, t. X X V II, 432);
In liam Decretalem Expos., c. 1 (ibid., 435); Compend. TheoL, I, 147: «G u ber-
natio rerum, et specialiter creaturarum rationalium ... quantum ad effectum
supem aturalis cognitionis, quam per fidem in hominibus Deus facit, dicitur
sanetam Ecclesiam Catholicam, nam Ecclesia congregatio fidelium est». Cf.
Catarina de Sena, segundo a qual a Ig re ja é «o corpo universal daqueles que
participam da luz da santa fé » (C arta 282 a Nicolau de Osimo).
80Cf. D e Veritate, q. 29, a. 8 ad 4. Sobre tudo isso, cf. A. Darquennes,
loc. cit.
81A fé da Ig re ja como tal é sempre «fo rm ada» pela caridade: Tomás de
Aquino, I I I Sent., d. 25 q. 1, a. 1; S. Th., II-II, q. 1, a. 9 ad 3. A substância
do corpo místico é a fé viva: In Galat., c. 6, lect. 4, no fim ; S. Th., II-II,
q. 124, a. 5 ad 1; III, q. 80, a. 2c e ad 2 e 3; a. 4; In Ioan., c. 7, lect. 7;
I V Sent., d. 9, q. 1, a. 2, sol. 4. O pecador só é membro do mesmo «secundum
quid»: S. Th., III, q. 8, a. 4 ad 2.
22 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA

A fé é princípio de união entre as pessoas porque todas crêem


a mesma coisa, tal como se comunica no testemunho único da Escri­
tura, dos apóstolos e da missão de ensinamento que perpetua na
Igreja o ensinamento dos apóstolos. A fé é, pois, princípio de união
e de unidade interior e exteriormente.
E ’ princípio interior de unidade porque, compartilhando da mesma
fé, aderindo à mesma palavra do mesmo Deus e do mesmo Cristo,
todos os fiéis têm como termo de seu conhecimento e de sua adesão
ou consagração de fé a mesma realidade, a mesma idêntica e numeri­
camente. Esta realidade não é só objeto de conhecimento — a Igreja
nesse caso se assemelharia a uma academia, — é o princípio e o fim
de nosso destino e do universo inteiro, que não se oferece a nosso
conhecimento e a nossa adesão só de maneira objetiva, mas em situa­
ção de sujeito ativo que se dá a conhecer, atrai para si e eleva aqueles
que aceitam esta ação a um nível de existência novo e sobrenatural.
Já antes do cristianismo e fora dele, os membros de uma comunidade
religiosa, os que compartilhavam a mesma fé e o mesmo culto, cha-
mavam-se «irmãos»; assim sucedia no judaísmo, na antiguidade pagã
e ainda sucede em nosso tempo no islamismo. “ Os cristãos adotaram
este costume: nos Atos e em São Paulo, o termo àÔsXtpóç, áôsXcpoí, apli­
cado com freqüência aos judeus nos discursos apostólicos, é o título
próprio que se aplica aos cristãos enquanto estreitamente associados
pela mesma fé .50 A comunidade de fé, e a de culto, que dela deriva,
assemelha-se a uma comunidade de origem e de sangue, de teto, de
mesa e de vida cotidiana, como aquela que levam os irmãos. E ’, numa
palavra, uma comunidade nas fontes da vida.
Tomás de Aquino expressa esta unidade radical que a fé realiza
dizendo que os que crêem coincidem num único e mesmo objeto nume­
ricamente uno, e que, desta forma, estão ligados uns aos outros. Aque­
les que crêem são um por este contacto e relação mútua que opera
entre eles, pela qual estão relacionados a um mesmo e único objeto:
unum continuatione, per colligationem eorum ad invicem, in quantum
colligata sunt ad invicem per iidem, quia sic continuantur in uno
credito. M A fé é nos fiéis a realização (ou o começo da realização)
de uma mesma forma de vida.
A fé é também princípio externo de união, por comportar, na
presente economia, uma estrutura determinada de mediações externas.
A revelação não é dada a cada um pessoalmente na intimidade de
sua consciência, mas publicamente, a uma coletividade, por meio de
ministros chamados para isso e encarregados de uma missão, como
são os profetas, apóstolos, redatores da Sagrada Escritura e o ma-

82 Cf. referências em W . B a u e r , Griechisch-Deutsches W örterbuch zu den


Schriften des N .T .: àSstapóç, Berlim, s1937, 26.
“ Cf. os textos em algumas concordâncias; cf. Soden, T h W I, 145-146.
Uso continuado na patrística: Agostinho se explicou sobre este fato a pro­
pósito dos donatistas, cf. em particular En. in Ps. 32, 2, 29 ( P L 36,299);
Sermo 357, 4 (39,1584-1585). Cf. J. R a t z i n g e r , D ie christliche Brüderlichkeit,
Munique, *1970.
34H I Sent., d. 13, q. 2, a. 2, sol. 2; d. 23, q. 2, a. 4, sol. 2.
SECÇÃO I: A IGREJA fi UNA 23

gistério da Igreja. Tudo isso constitui o organismo de mediação para


a comunicação do objeto da fé. Somente o objeto de fé é sua regra,
mas as mediações humanas ligadas na economia divina à sua comu­
nicação, e por isso condicionaram nossa fé, têm pela mesma razão certo
valor normativo para aqueles que devem receber esta fé. Tal valor
normativo é absoluto no que se refere à Escritura, devido à sua con­
dição de inspirada, que faz dela uma palavra de Deus (da qual Deus
tomou a iniciativa e a responsabilidade). Por isso os Padres insistem
em que a Igreja se constrói sem cessar pela Escritura e pregação,
que é seu anúncio vivo.35 Mas a Escritura não desempenha este papel
a não ser quando em sua letra, e através dela, manifesta seu ver­
dadeiro sentido. Este, segundo o testemunho unânime de todos os
tempos, só é acessível na tradição e na pregação vivas da Igreja.38
A- iniciativa reveladora de Deus suscita, ao mesmo tempo, um teste­
munho escrito sobre os fatos nos quais se inscreve — a Escritura -—
e uma missão acreditada, coextensiva à duração e ao espaço nos
quais a fé deve ser anunciada (cf. Mt 28,19-20). Existe assim um
corpo único de testemunho e de ensinamento que corresponde à uni­
cidade e à universalidade da missão, sem detrimento da diferença entre
as primeiras testemunhas oculares, os apóstolos, e seus sucessores. A
doutrina autêntica que emana deste corpo tem valor de regra para
a fé da Igreja, de modo que nela sempre seja honrada a advertência
do apóstolo Paulo: «Que não haja divisões entre vós; permanecei
unidos no mesmo espírito e no mesmo pensamento» (IC or 1,10). No
plano da vida da Igreja como tal, isso só é possível se a regra da
crença tem uma forma efetiva propriamente eclesiástica. Por isso To­
más de Aquino, que reivindicou com grande força o caráter estrita­
mente teologal da f é ," especifica, contudo, este motivo quando se trata
de nossa fé: seu motivo é a verdade primeira (incriada) tal como
nos é proposta na Escritura segundo o ensinamento da Igreja, que
dispõe de sua reta compreensão: «propter veritatem primam proposi-
tam nobis in Scripturis secundum doctrinam Ecclesiae intelligentis
sane».33 Nossa fé na Santíssima Trindade não tem por regra exclu-

05 Cf. H l de L u b a c , H istoire et Esprit. L ’intelligence de l ’ficritnro


d’après Origène, Paris, 1950, 366; id., Exégèse médiévale, 1/2, Paris, 1959, 671.
Ambrôsio, In Lue., 6, 33, chama as Escrituras «corpo de Cristo», da mesma
form a que a Ig re ja ( P L 15,1763) ; Gregório fa la de «aedificatio sanctae prae-
dicationis» (Reg. past., c. 34 [ P L 77,117-118]); Rabano M auro ( P L 208,1207A B );
Tomás de Aquino chama as Escrituras «fidei fundamentum» (S. Th., n i , q.
55, a. 5) ; Boaventura, «fundam ento da Ig re ja e da hierarquia eclesiástica»
(Collât. de donis Spir S., IV , 14s [ed. Quaracchi, V, 476s]). Os autores con­
temporâneos preferem frisar que a palavra cria e constitui a Igreja : K . H.
S c h e 1k 1e, Jüngerschaft und Apostelamt, Friburgo, 1957, 70. H. S c h l i e r ,
W o rt Gottes, W urzburgo, 1958, 28; R. S e h n a c k e n b u r g , L ’Église dans le
N.T., Paris, 1964, 40ss; R. L a t o u r e l l e , É glise et Parole de D ieu: «Sciences
ecclésiast.» 14 (1962), 195-211, etc.
38Cf. T. C o n g a r , L a Tradition et les traditions, I: E ssai historique; II:
E ssai théologique, Paris, 1960 e 1963.
37 Seu «motivo form al» é «nihil est aliud quam Veritas P rim a»: I I I Sent.,
d. 24, a. 1, sol. 1; d. 25, q. 1, a. 1, q .a 1 ad 4; D e Veritate, q. 14, a. 2 e
8 ; S. Th., H -II, q. 1, a. 1; q. 5, a. 1 e 3; In loan., c. 4, lect. 5, n. 2.
38 S. Th., II-II, q. 5, a. 3c e ad 2; cf. q. 6, a. 1; q. 11, a. 1; Q. disp. de
Caritate, a. 13 ad 6 ; «Porm alis ratio obiecti est Veritas P rim a per doctrinam
Ecclesiae manifestata».
24 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

siva a Escritura, cujos textos não impediram Ario de fazer do Filho


um intermediário criado, mas o dogma de Nieéia, ato da Igreja em
seu magistério extraordinário, e a profissão que a liturgia constante­
mente expressa, «principal didascalia» ordinária da Igreja. Geralmente
é nas celebrações da Igreja que os fiéis menos cultos conhecem os
mistérios. Por isso Tomás de Aquino precisa a obrigação de uma fé
objetivamente explícita, para estes fiéis, ao falar dos mistérios «de
quibus Ecclesia festa facit». *
A fé é professada na celebração dos sacramentos e em toda liturgia.
E ’ professada em primeiro lugar no batismo, que é o próprio sacramento
da fé e ao mesmo tempo a transmissão, a profissão de fé e sua eficácia
no sacramento com vistas à incorporação a Cristo e à Igreja. Mas o ba­
tismo é, em tudo isso e por tudo isso, a entrada na comunidade dos
fiéis para participar de seu culto e sua vida; é a agregação à comu­
nidade de todos aqueles que, desde os apóstolos, creram em Cristo e
viveram dele. 40 Nestas condições, compreende-sei que a teologia da
Igreja não seja freqüentemente nos Padres mais do que uma espécie
de desenvolvimento da teologia do batismo: a Igreja não é mais do
que o «nós» dos batizados. a
Falamos da fé, do testemunho apostólico, do magistério, do ba­
tismo e dos sacramentos (como profissão da fé). Estes são, efetiva­
mente, os meios pelos quais se realiza a primeirar unidade da Igreja,
aquela da adesão de muitos discípulos à mesma verdade. Mas não
podemos fazer uma idéia exata de tal unidade se não consideramos
também querti a realiza. Em tudo isso Deus atua, por uma operação
de graça apropriada à pessoa do Espírito Santo e que Deus realiza
com a cooperação da humanidade santa de Cristo. Cristo, a quem a
carta aos Hebreus chama «autor e consumador de nossa fé » (12,2),
é a medida e o autor da vida de fé da Igreja. Ele é sua medida, pois
que todo nosso conhecimento de Deus é uma participação do conhe­
cimento que Cristo possuiu e possui,uma participação da consciência
perfeita que, em sua alma de homem, Cristo teve e tem do desígnio
de Deus, daquilo que Paulo chama de forma global «o mistério». ®
Mas Cristo é, além disso, o autor deste conhecimento, porque todo dom
de Deus em ordem à nossa salvação passa por sua inteligência, sua
vontade, seu mérito e sua oração.“
D e Veritate, q. 14, a. 11, sol., no fim.
“ Cf. T . C o n g a r , op. cit., II : E ssai théologique, Paris, 1963, 21s; H . F.
D o n d a i n e , L e Baptêm e est-il encore le sacrament de la foi?: M D n. 6
(1946), 76-87; G. G e e n e n , Fidei sacramentian. Zin, waarde, bronnenstudie
van deu uitleg eener patristische doopselbenaming b ij S. Thomas van A quin o:
«B ijd ragen » 9 (1948), 248-270; P. C a m e l o t , Spiritualité du baptême, Paris,
1960; L ê. V i l l e t t e , F o i et Sacrement, 2 vols., Paris, 1959-1965; Tomás de
Aquino, S. Th., U I , q. 70, a. 1; q. 71, a. lc.
“ A lém dos estudos citados, cf., por exemplo, A. W enger, introdução às
Catéchèses baptismales de João Crisóstomo, Paris, 1957; K . D e l a h a y e ,
Ecclesia M ater chez les Pères des trois premiers siècles.. Paris, 1964 (pró­
logo de Y . M.-J. Congar).
® Idéia bem presente na síntese de M. B 1 o' n d e I. Cit. também E .
M e r s c h , L e Théologie du Corps mystique, I, Paris-Bruxelas, 1944, 93s; J.
N o u r o u x , L e mystère du temps. Approche théologique, Paris, 1962, 100-120.
• Tom ás de Aquino, S. Th., III, q. 8, a. 5 ad 1; cf. In Ephes., c. 4,
lect. 5; « A capite Christo in membris ut augmententur spiritualiter influitur
SECÇÃO I: A IGREJA £ UNA 25

Todo dom salvífico procede da paixão de Cristo; não só os dons


que Cristo infunde diretamente nas almas nas quais opera por seu
Espírito Santo, mas também aqueles que passam pelo sinal exterior
dos sacramentos. Estes, com efeito, não operam mais do que em vir­
tude da paixão de Cristo, segundo a verdade dogmática. Os sacra­
mentos não são ritos mágicos; é necessário que estejam ligados às
causas divinas das quais recebem sua eficácia, e o estão por meio
da fé da Igreja que associa o sinal sacramental à eficácia do Deus
vivo que se comprometeu com Jesus Cristo para nossa salvação, e
à virtude da paixão de Cristo. Assim, pois, a fé não é somente prin­
cípio de unidade para a Igreja como começo da realização de uma
forma sobrenatural de vida comum a todos os seus fiéis; é também
princípio de unidade como meio que une a Igreja com o princípio do
qual esta recebe sua existência e sua vida. A explicação desta tese
pertence ao tratado dos sacramentos.

b) Unidade no culto e pelos sacramentos

a) O culto. A fé situa-nos em face de Deus numa relação de culto;


ela mesma é o princípio de toda uma vida que tem valor de culto e,
se é oferecida, valor de sacrifício. Na medida em que se expressa
externamente, a fé dá lugar a um culto exterior que por sua natureza
se presta a ser social. Tomás de Aquino não deixa de relacionar o
culto à fé caracterizando-o como «protestatio fidei», como expressão
e profissão da fé .44 Todo exercício social do culto é para o grupo
que o realiza princípio de unidade. No culto efetua-se não só a reunião
cultual, o uso dos mesmos gestos e dos mesmos símbolos, a realização
comunitária de uma atividade importante, já que tudo o que nele
tem lugar, pelo fato de supor grande densidade de sentimentos, forma
de maneira comum a consciência e a sensibilidade. Nisto vimos um
modo privilegiado de ação da tradição, que expressa muito bem o uso
cristão clássico do termo imbueze, empregado para designar a doutri­
nação obtida pela participação na liturgia e nos sacramentos.® Mas

virtus actualiter operandi. U nde dicit: secundum mensuram uniuscuiusque


membri augmentum corporis facit, quasi dicat: non solum a capite nostro
Christo est membrorum Ecclesiae compactio per fidem, nec sola connectio
vel colligatio per mutuam subministrationem earitatis, sed certe ab ipso est
actualis membrorum operatio sive ad opus motio secundum mensuram et
competentiam cuiuslibet membri».
44A fé, raiz ou princípio: I V Sent., d. 13, q. 2, a. 1 ad 4; In Boet. de
Trin., q. 3, a. 2; S. Th., II-II, q. 101, a. 3 ad 1. O culto, protestatio fidei:
I V Sent., d. 13, q. 2, a. 1, q.a 4 (ed. Moos, n. 134); d. 17, q. 3, a. 1, q.a 2
(n. 366); S. Th., I-II, q. 99, a. 3; q. 100, a. 4 ad 1; q. 101, a. 2; q. 102,
a. 5 ad 1; q. 103, a. 2c; II-II, q. 124, a. 5; III, q. 66, a. 1 ad 1; q. 61, a.
3 e 4; q. 63, a. 4c e ad 3; q. 70, a. 1 e 4; q. 71, a. 1; q. 72, a. 5 ad 2;
In Galat., c. 2, lect. 3. Toda a vida cristã como culto e sacrifício espiritual:
S. Th., I-II, q. 99, a. 3; q. 124, a. 5;In Hebr., c. 3, lect. 1. Toda a ordem
cultual representa ecomunica o «mysterium Christi»: S. Th., I-II, q. 101,
a. 3c; q. 102, a. 6.
45Cf. Y . C o n g a r , L a Tradition et les traditíons, I I : E ssa i théolog., P a ­
ris, 1963, 111-136, 183s; sobre imbuere, cf. 24 e 267 (nota 47).
26 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

o cristianismo é muito mais do que uma religião e do que um culto.


Já Agostinho observava isso. O cristianismo é antes de tudo fé, e
esta fé, por mais implicações teóricas e até metafísicas que comporte,
tem em última análise como centro a pessoa de Jesus Cristo, particular­
mente no ato em que se constitui nosso salvador, que é o ato de sua
páscoa. O culto cristão é inteiramente uma expressão desta fé. Como
tal não une só por sua natureza de culto, mas por seu conteúdo, já
que dá a cada um dos «fidei cultores», e a todos, o mesmo centro
e o mesmo princípio de vida, ao mesmo tempo que o mesmo mestre.
Í3) Os sacramentos. Esta natureza do culto cristão realiza-se da
forma mais plena nos sacramentos, que são sua parte mais importante.
Os sacramentos não são só sinais pelos quais, ao expressar nossa fé,
nos unimos a Jesus Cristo salvador. Não traduzem somente nosso mo­
vimento para Deus, mas, comprometendo profundamente a atividade
da fé, superam os limites, que a mantêm no âmbito do intencional.
No uso efetivo dos sacramentos sucede algo diferente e mais profundo
do que uma união de intenção com esse Cristo que representa o ato
supremo total e definitivo de Deus por nossa salvação; nos sacramen­
tos opera-se um laço corporal, através de um meio corporal, que a
partir de Deus e Cristo, e por uma vontade e uma intenção formais
suas, prolonga o ato supremo total e definitivo pelo qual Deus mesmo
se fez meio corporal de nossa salvação. Não há dúvida de que os
Padres, tanto latinos como gregos, e os grandes escolásticos, e em par­
ticular Tomás de Aquino,46 entendem os sacramentos desta forma.
A Igreja é a Igreja do Verbo encarnado, que não procede somente
de uma palavra ou de uma chamada que congreguem um povo de
Deus na fé e pela fé. A Igreja procede de um dom e de uma comu­
nicação de vida divina feita a partir do alto por meios tomados de
nosso mundo e adequados à nossa natureza, isto é, por meios corporais.
A Igreja procede em primeiro lugar da descida de Deus ao mundo,
a nossa carne e a nossa condição de pecadores, e não ao próprio pecado.
A encarnação é esta descida que vai até a cruz. A tradição viu,
unanimemente, na água e no sangue que saíram do lado de Jesus
transpassado pela lança o símbolo dos sacramentos pelos quais se
prolongaria até nós a vinda corporal de Deus para nossa salvação. "
Por eles — não certamente em virtude de uma eficácia pertinente a
uma realidade corporal criada, mas em virtude da intenção e da ins-

46 Cf. sobretudo C. Gent., IV , 56 e 72; S. Th., I-II, q. 108, a. 1; III, q. 62,


a. 5; cf. q. 80, a. 5c («sacram enta humanitatis eiu s»); Leão M agno: «Quod
Redemptoris nostri conspicuum fuit, in sacramenta transivit» (Sermo 74, 2
[P L 54,398]). Fundamentação exegética desta visão das coisas em Ph.
M e n o u d , L a définition du sacrement selon le N .T .: R T h P h 38 (1950), 138-
147; id., M iracle et sacrement dans le N .T .: «V erbu m C aro» 6 (1952), 139-154;
R. B r é c h e t , D u Christ à l’Êglsse. L e dynamisme de l’Incarnation dans l’Év.
selon S. Jean: D T h 56 (1953), 67-98; O. C u l l m a n n , L ’Évangile johannique
et l’Histoire du Salut: «N e w Test. Studies» 11 (1965), 111-122.
47 Encarnação-descensão. Cf. Y . C o n g a r, Dum visibiliter Dcum cognos-
cimus, em Les voies du D ieu Vivant, Paris, 1962, 79-108; id., Jésus-Cfarist,
notre Médiateur, notre Seigneur, Paris, 1965, 9-50. A gu a e sangue que ma­
nam do lado de Cristo: inúmeros textos. Cf. S. T r o m p , D e nativitate Eccle-
siae e Corde Jesu: G r 13 (1932), 488-527; H . Barré, em «B ull, de la Soc.
Française d’Études m ariales» 13 (1955), 61-97.
SECÇÃO I: A IGREJA Ê UNA 27

tituição divina — entramos em contacto corporal com o acontecimento


histórico único com o qual Deus realizou nossa salvação comprome­
tendo-se de maneira definitiva e eficaz na salvação de todos. Não é
este o lugar de explicar a natureza deste contacto nem como se realiza;
isso é feito no tratado dos sacramentos.48 Mas cabe ao tema do qual
estamos tratando assinalar a relação que existe entre os sacramentos
assim compreendidos e a unidade da Igreja.
Trata-se de algo muito diferente de um princípio sociológico de
unidade e de uma união intencional num termo pessoal único. Trata-se
de uma unidade de ser e de existência que deriva de uma fonte única.
7 ) A eucaristia. Se tudo o que foi dito anteriormente pode ser
afirmado de todos os sacramentos, deve ser afirmado de modo par­
ticular da eucaristia. A tradição sustenta unanimemente que a euca­
ristia é 0 sacramento da unidade e que seu efeito espiritual é a unidade
do corpo místico.48 A teologia explica isso, em primeiro lugar, no
contexto clássico de sua doutrina sacramental.
O efeito dos sacramentos corresponde a seu simbolismo, à signi­
ficação do sinal sacramental. Ora, na eucaristia este sinal consiste
numa comida, numa nutrição. Pela conversão do pão e do vinho
oferecidos no corpo e no sangue de Jesus Cristo, o alimento
que nos é dado é o próprio Verbo de Deus, o alimento celestial, o
pão escatológico daqueles a quem Deus une consigo numa comunhão
divinizadora de vida. Aqui aparece claramente a diferença e a dis­
tância entre o batismo e a eucaristia. No batismo, como nos demais
sacramentos, o cristão fica ligado a Cristo e à sua paixão somente
em virtude de sua eficácia; na eucaristia, o cristão se une ao próprio
Cristo substancialmente presente e é a ele unido sob a forma de ali­
mento. O apóstolo Paulo, a propósito da eucaristia, não fala somente de
comunhão com Cristo, mas de comunhão com seu corpo e seu sangue. “
" O debate sobre a causalidade dos sacramentos continua aberto e a
bibliografia é considerável. Exposição das teorias por A. Michel, D T h O
X r v / l (1939), 614-624. Cf. H. B o u é s s é , L a causalité efficiente instrumen­
tale de 1’Hum anité du Christ et des sacrecments chrétiens: RThom 42 (1934),
370-393; J.-H. N i c o l a s , L a causalité des sacrements: ibid. (1962), 517-570.
49 Cf. M. de la T a i l l e , Mysterium Fidei, Paris, 1921, especialmente 557-
568; G. G a s q u e , L ’Eucharistie et le Corps mystique, Paris, 1925; A. M.
R o g u e t, I/Unité du Corps mystique dans la charité, R es sacramenti de
rEucharistie: M D n. 24 (1950), 20-45; P. P u z o , L a unidad de la Iglesia en
función de la eucaristia (Est. de TeoL B ib i.): G r 34 (1953), 145-186 (biblio­
g rafia ) ; J. A u e r , E inheit und F lied en als Frucht der eucharistischeäi
MahiGemeinschaft, em M. Schmaus (ed.), Aktuelle Fragen zur Eucharistie,
Munique, 1960, 110-155; H . F r i e s , D ie Eucharistie u. die Einheit d. Kirche,
em P ro M undi Vita, Munique, 1960, 165-180; P. N e u e n z e i t , D as Herrenmahl
= St. z. A T u. N T I, Munique, 1960, 201-219; P. B l ä s e r , Eucharistie 11.
Einheit der Kirche in der Verkündigung des N T .: ThG l 50 (1960), 419-432;
J. L e s c r a u w a e t , Eucharistie eredienst en kerkelijke eenheid: «B ijd ragen »
25 (1964), 117-142. Do ponto de vista histórico, além de H. de Lubac (cit.
infra, nota 52), cf. P. Th. C a m e l o t , Realismo et symbolsime dans la doctrine
eucharistique de St. Augustin: R S P h T h 31 (1947), 394-410; A. L a n g , Zur
Eucharistielehre des hl. Albertus M a g n u s ...: D T h 46 (1932), 110-142; F.
Holböck, D e r eucharistische u. der mystische L eib C h risti... (Früli-
scholastik), Roma, 1941.
m Tom ás de Aquino, TV Sent., d. 10, q. 1, a. 1; d. 45, q. 2, a. 3, sol. 1;
S. Th., III, q. 62, a. 5; q. 64; a. 3; q. 66, a. 3 ad 1 («bonum commune
spirituale totius Ecclesiae continetur substantialiter.. . » ) ; q. 73, a. 3 ad 3
(diferença entre influência e união íntima).
28 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA

O batismo é o sacramento do novo nascimento, que, por ser pessoal,


é adquirido de uma vez para sempre. O alimento é cotidiano e garante
a manutenção e a intensidade da vida. De outro lado, se se insiste
na consideração desta idéia de geração como faz Tomás de Aquino,51
observa-se que aquele que gera, mesmo quando gera à sua semelhança,
não assemelha o gerado à sua própria substância; na nutrição, pelo
contrário, a união vai mais além da realizada pelo influxo de causa­
lidade e pelo efeito de semelhança, até uma assimilação substancial.
Tal assimilação deve naturalmente ser compreendida de forma que
respeite a distância entre a criatura e Deus e a distinção das exigên­
cias pessoais: não existe, pois, fusão física entre o que comunga e
Cristo. Dá-se, contudo, assimilação mística ao corpo de Cristo pelo
ato de comer seu corpo sacramentado: assimilação espiritual, mas real,
que permite falar de «corpo» em virtude desta lógica profunda que
une, já no nível da revelação da Escritura, as três realidades ou os
três momentos, que são o corpo pessoal de Cristo, oferecido, imolado,
ressuscitado e glorificado; o corpo sacramental de Cristo, e seu corpo
de comunhão ou eclesial, chamado «místico» desde meados do século
X II. “ Com freqüência aplicou-se ao ato de comer o corpo sacramental
de Cristo o texto agostiniano sobre a verdade: «Não és tu que me
mudarás em ti, como o alimento de teu corpo ; sou eu quem te mudará
em m im ».53 Aquilo que é comido é mais vivo e mais forte, e por isso
nos assemelha a si. Pela eucaristia opera-se uma «conversio hominis
in Christum» que permite ao fiel exclamar: «Vivo, já não sou eu, é
Cristo quem vive em mim» (Gál 2,20).51Mas isto acontece com um
grande número e até mesmo, de direito, com todos os fiéis. Todos,
ao comer o mesmo pão, são assimilados ao mesmo Cristo. Assim, pois,
opera-se não só a «transformatio hominis ad Christum», mas tam­
bém a «unio populi christiani ad Christum» : 55 «Porque há um só pão,

“ Com. in ICor., c. 11, lect. 5: «E s t autem notandum quod generans non


coniungitur genito secundum substantiam, sed solum secundum virtutem; sed
cibus coniungitur nutrito secundum substantiam. Unde in sacramento baptismi
quo Christus régénérât ad salutem, non est ipse Christus secundum suam
substantiam, sede solum secundum suam virtutem. Sed in sacramento eucha-
ristiae quod est spirituale alimentum, Christus est secundum suam substan­
tiam ». Cf. também C. Gent., IV , 61; S. Th., III, 73, a. 3c e ad 3; q. 79, a.
5c e ad 1 («sicut nutrimentum unitur nutrito») ; In loan, c. 6, lect. 7.
“ E sta coordenação dinâmica das três realidades às quais a Sagrada E s­
critura d á o nome de «corpo» (C. F. D. M o u l e , Sanctuary and Sacrifice in
the Cliurch of the N T .: JThs [1950], 29-41) foi compreendida assim pela
tradição: cf. H. de- L u b a c , Corpus mysticum. L ’Eucharistie et l ’E glise au
Moyen-Âge, Paris, 1944 (obra muito esclarecedora). Que a unidade dos cris­
tãos seja cham ada «corpo de Cristo» em razão da eucaristia, sacramento do
corpo de Cristo, é admitido por exegetas como A. E. J. Rawlinson, P. Benoit,
etc. Já Alberto M agno o observava: D e Eucharistia, d. III, tract. 1, c. 5,
n. 5 (Opera, ed. Borgnet, X X X V III, 257).
53Confessiones, V II, 10. Assim, também n a Idade M édia Guilherme de
Auxerre (cf. O bras de Boaventura, ed. Quaracchi, IV , 187, nota 6), Boaven-
tura (I V Sent., d. 11, p. 2, a. 1, q. 1 ad 6 : IV , 225), Tomás de Aquino, (I V
Sent., d. 9, q. 1, a. 2, sol. 4; d. 12, q. 2, a. 1. sol. 1; S. Th., q. 73, a. 3
ad 2; In loan., c. 6, lect. 7, n. 3); cf. H . de Lubac, op. cit., 205, n. 53; E.
M e r s c h, Théologie du Corps mystique, II, Paris, 1944, 328.
54Tom ás de Aquino, I V Sent., d. 12, q. 2, a. 1, sol. 1.
55 «Transform atio (unio) hominis ad Christum» (Tom ás de Aquino, IV
Sent., d. 12, q. 2, a. 2, sol. 3). «U n io populi christiani ad Christum » (S. Th.,
q. 74, a. 6). «M ulti unum in Christum» (S. Th., q. 82, a. 2 ad 3).
SECÇÃO I: A IGREJA Ê UNA 29

nóa, embora muitos, somos um só corpo, visto participarmos todos


do único pão» (IC or 10,17).
Tudo o que ficou dito explica o efeito de união realizado pela
eucaristia, a partir da significação eficaz do sinal sacramental como
tal: pão e vinho transubstanciados tomados como alimento. A esco­
lástica e a teologia ocidental clássica desenvolveram sobretudo este
ponto de vista e sublinharam uma série de simbolismos que nem por
serem secundários na ontologia do sacramento carecem de valor expres­
sivo e que até possuem grande poder evocador e são pedagogica­
mente eficazes, tais como o simbolismo dos numerosos grãos de trigo
e dos grãos de uva triturados,56 ou aquele da água misturada com
vinho no cálice.57 A Idade Média e o catolicismo dela surgido não
tinham dificuldade em pensar a partir das missas privadas. Atualmente
divisamos o sinal sacramental não somente nos elementos, mas na cele­
bração comunitária como tal, que é comida fraternalmente compar­
tilhada, festa e promessa de reconciliação universal, da qual Cristo,
entregue por todos em sua páscoa, é a garantia porque contém em si
a reconciliação e a comunica.
Para além desta reflexão, que já nos proporcionou incontáveis
riquezas, é preciso contemplar o efeito da eucaristia em relação com a
realidade contida no sacramento e que, visando a produzir um efeito,
não no próprio sacramento, mas nos fiéis («res non contenta» dos
escolásticos), continua sendo um momento do processo e do dinamismo
sacramental: «res et signum» ou «res et sacramentum», como dizem
os escolásticos. Esta realidade é Cristo como realmente presente; ainda
mais: «Christus passus», como precisa Tomásde Aquino,58 isto é, o
Cristo que padeceu e que agora vive glorioso. Todavia, a escolástica
limitou-se a considerar as relações ontológicas entre Cristo, sacrificado
e glorioso, e os fiéis, no contexto da análise do fato sacramental que
seguia os momentos clássicos do sacramentum tantum -* res et sacra­
mentum res tantum. 69 A escolástica não considerou suficientemente
o conjunto da história da salvação e as circunstâncias históricas sig­
nificativas assumidas pelo Cristo contido no sacramento. A reação de
O. Casei foi motivada, em grande parte, pelo desejo de assumir no
sacramento e em sua significação dinâmica os dados significativos da
história da salvação enquanto assumidos na páscoa de Cristo, conside­
rada como centro de toda esta história. O fato de Casei não ter utili-

66Inúmeros textos. Cf. Bidaché, IX , 4; Const. Apost., V II, 25, 3; Cipriano,


Ep., 63, 13; 69, 5; Agostinho, In loan. E v. tr., X X V I, 17; Sermo 227; 272;
na Pré-escolástica e na primeira Escolástica (J. R. G e i s e 1m a n n, Die
Eucharistielehre der Vorscholastik, Paderborn, 1926, 41, 50, 108, 123, 132, 190);
Decreto de Graciano, D e conseer., d. 2, c. 36; Pedro Lombardo, I V Sent.,
d. 8, c. 4; Tomás de Aquino, In ICor., c. 11, lect. 5, etc.
67 Cipriano, Ep. 63, 13 (ed. Hartel, 711); para a Ig re ja antiga, cf. Th.
Z a h n, B rot und W ein im Abendm ahl der alten Kirche, 1892; Atanásio (?) ,
De virg., (P G 28,265); João Crisóstomo, In ICor., X IV , 2 (P G 61,200); para
a Pré-escolástica, J. R. Geiselmann, op. cit., (cf. índices); para a primeira
Escolástica, F. Holboek, citado supra, (nota 49), 230; Tomás de Aquino, I V
Sent., d. 11, q. 2, a. 4, sol. 1; S. Th., III, q. 74, a. 6 e 8 ad 2.
53 S. Th., q. 73, a. 3 ad 3.
89 Cf. Tomás de Aquino, S. Th., III, q. 73, a. 1; q. 80, a. 4; D e artic.
Fidei et Eocl. sacr. (Opera, ed. Parm a, X V I, 121); In loan., c. 5, lect, 7.
30 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

zado categorias adequadas não tira a autenticidade de sua intenção, se


esta era a que acabamos de expor.
O. Casei * foi um dos teólogos cuja contribuição se mostrou deci­
siva para restaurar o sentido da Páscoa na Igreja de hoje, embora
estivesse pouco orientado biblicamente para levar a bom termo este
intento. Os estudos bíblicos, a redescoberta do AT, a recuperação da
idéia de povo de Deus e do sentido da história fizeram com que a
teologia e a liturgia pudessem recuperar em vinte anos a compreensão
da Páscoa. ”
O conteúdo da eucaristia, «res et sacramentum», enquanto produz
nos fiéis bem dispostos que o recebem na comunhão o efeito da uni­
dade do corpo celestial, é Cristo em sua páscoa: não segundo a realidade
propriamente histórica dessa páscoa, como poderiam dar a entender
algumas fórmulas de Casei, mas segundo o valor permanente que têm
já para nós alguns fatos realizados historicamente uma só vez, valor
que Cristo glorioso lhes confere. Assim, pois, aquilo que Cristo fez
e sofreu por nós na carne, isto é, os atos pelos quais ele operou a
nossa salvação e aos quais nos associam a fé e os sacramentos da fé
têm um valor permanente para nós (cf. os verbos com prefixo sua de
Paulo).® Mas nestes «acta et passa» Cristo realizou e assumiu todos
os momentos preparatórios da história da salvação encaminhados mais
ou menos de longe para a realidade de nossa união com Deus, de
nosso chamamento à sua comunhão, da reconciliação de nós pecadores
com ele. Tudo isso é essencial para nosso tema. A análise escolástica
não o valorizou suficientemente. O sentido dos grandes fatos da his­
tória da salvação, orientado para a constituição da aliança, aparece
assumido pela páscoa de Cristo cujo sacramento é a eucaristia; esta
assume toda essa significação, que, portanto, deve ser considerada
dentro da grande lei sacramental da significação dinâmica e indica qual
é o efeito específico da eucaristia.
Este efeito consiste, costuma-se dizer, no aumento e no fervor da
caridade, “ o que é certo contanto que se precise de que caridade se
trata; porque se trata dessa caridade precisamente caracterizada, que

* O padre Odo Casei, beneditino de M aria Laaeh (fl9 4 8 ), foi o grande


teórico e promotor da «doutrina do Mistério», que sustenta que no ato litúr-
gico se reproduz hic et nunc o momento redentor que comemora. A Páscoa
é naturalmente seu centro e germe e, como é lógico, a base e a razão de
ser de todo o viver cristão. Seus principais trabalhos sobre a Páscoa são
os seguintes: D ie römische Paschaliturgie in ihrem A u fba u und in ihrer
geschichtlichen Entwicklung, em D e r W e g der Kirche im heiligen Jahr,
Munique, 1926, 55-75; A rt lind Sinn der ältesten christlichen Osterfeier:
«Jahrbuch fü r Liturgiewissenschaft» 14 (1838), 1-78; vários capítulos em
N uestra Pascua, Eds. Cristiandad, Madrid, 1862; em Misterio de »a Cruz, Eds.
Cristiandad, Madrid, 1964, em Misterio de la Ekklcsia, Eds. Cristiandad,
Madrid, 1964 (N o ta do Editor Espanhol).
“ Balanço desta redescoberta em M D n. 67 (1961), sobretudo o artigo
de P.-M. Gy e D . J. Gaillard.
“ Isto é o que a teologia parece admitir da tese de Casei. Cf. referências
em nossa obra L a Tradition et les traditions, I I: E ssai tliéoL, Paris, 1963,
273-274 (nota 90).
“ Tomás de Aquino, I V Sent., d. 45, q. 2, a. 3, sol. 1; S. Th., III, q. 73, a.
3 ad 3; q. 74,a. 4 ad 3; q. 78, a. 3 ad 6 ; q. 86, a. 3, obj. 2 ; In ICor.,
c.ll. lect. 1.
SECÇÃO I: A IGREJA fi UNA 31

responde a toda a orientação do desígnio de Deus assumida e levada


a seu cumprimento na Páscoa do Senhor. ® A eucaristia é o sacramento
da caridade pascal. Ora, já a Páscoa de Israel, na antiga economia,
chegou à constituição de um povo como povo de Deus, na base de uma
renúncia ao Egito e de uma conversão a Deus. O mistério pascal resume
a totalidade do desígnio de Deus: curar os homens de seu pecado, de
seu egoísmo e de sua dispersão e levá-los a comungar todos juntos
de sua vida, para estar assim fraternalmente unidos. Já as circuns­
tâncias do êxodo ressaltavam determinados valores: banquete fraterno
e saída, sacrifício da páscoa do deserto, seguido de uma refeição fra­
terna, etc. As circunstâncias em que Cristo instituiu o sacrifício de
sua páscoa acumulam os gestos e as palavras significativas de amor,
de dom, de comunhão: a descida de Deus à nossa humanidade pela
encarnação do Filho consuma-se assim na oferenda de seu corpo, «que
é para vós», «entregue para vós». Mas a Páscoa de Jesus é a Páscoa
verdadeira. Trata-se do desígnio de Deus não em figura (cf. ICor 10,11),
mas em sua plena e definitiva realidade: desígnio que tem sua origem
no amor do Pai, como veremos no começo do parágrafo seguinte.
Trata-se da constituição do novo e definitivo povo de Deus pela en­
trada não numa simples terra prometida, mas no reino de Deus, na
cidade celeste, na comunhão e na herança dos filhos na família de
Deus. A caridade eucarística é a caridade que responde a este con­
teúdo do mistério pascal e às circunstâncias ou meios pelos quais
Jesus quis passar para realizar este programa: humilde serviço de
amor do lava-pés, banquete compartilhado, dom total de si pelo amor,
adesão à vontade do Pai e aceitação de tudo o que isso comporta:
morte corporal, vida pelo espírito, vida «para Deus». A caridade euca­
rística é aquela que nos une a Jesus em sua páscoa de amor e que
nos leva a dar-nos inteiramente, para além de todo o egoísmo, a Deus
e aos homens de forma inseparável, já que, para nós como para Jesus,
a aceitação amorosa da vontade do Pai compromete num dom total
de si aos homens e pelos homens.64 A caridade eucarística é exata­
mente aquela que responde ao mistério pascal do qual a eucaristia
é a celebração sacramental — «a nova aliança em meu sangue derra­
mado por vós», — isto é, a constituição de um novo povo de Deus
na base de uma entrega total a Deus e aos homens por Deus.
Os Padres gregos ou de pensamento grego, como Ireneu e Hilário,
não ignoram os simbolismos ligados ao sinal sacramental, mas o essen­
cial de seu pensamento sobre a eucaristia refere-se à res, Cristo verda­
deiro Deus e verdadeiro homem, considerado não tanto em sua páscoa
como em sua encarnação. Estes mesmos Padres consideram a encar­
nação no interior de sua grande síntese sobre a imagem de Deus
desfigurada no homem e restaurada em Cristo para toda a huma­
nidade, de maneira que a nova vida que esta restauração supõe nos

63Pode-se 1er, com relação ao que segue: H.-M. F é r e t , I<a messe, ras­
semblement de Ia communauté, em L a Messe et sa catéchèse, Paris 1947,
205-283; J.-M. R. T i l l a r d , I/Eueharistie I*âqne de l’Église, Paris, 1964.
64Cf. para Jesus H b r 10,õs; M t 18,14; Jo 6,38-40; Féret, ed. cit., 240-249.
32 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

é comunicada pelos sacramentos e de forma eminente pela eucaristia.03


Por isso a eucaristia é considerada na linha da encarnação que já
nos compreendia a todos e cujos benefícios estende aos homens.60 Da
mesma maneira que a encarnação leva à páscoa e à glorificação de
Cristo, assim a eucaristia nos conduz à ressurreição, à imortalidade
e à glória, e é divinizadora. Mas os próprios Padres consideram sem­
pre a encarnação atendendo a seu fim e a seu lugar na economia
orientada à divinização do homem; repetem constantemente o prin­
cípio do «admirável intercâmbio»: «ele se fez o que nós somos para
que cheguemos a ser o que ele é». A mesma lógica aplica-se igualmente
à eucaristia: Deus se comunica ao homem para divinizá-lo, para atraí-lo
a suas próprias condições de vida. Estes Padres falam da união que
se realiza com Cristo, com sua carne vivificadora, em termos que
superam a ordem de uma simples união de caridade e aos quais às
vezes se atribui o rótulo, certamente ambíguo em nossa língua, de
«união física».

c) Unidade de vida social orientada e governada pela caridade

Toda sociedade ou comunidade supõe em seus membros um amor


pelo mesmo objeto que una as vontades e as ações de diferentes pes­
soas numa comum operação e numa vida comum. A caridade — ágape
— é nos cristãos esse amor idêntico de seu bem absoluto, que é ao
mesmo tempo o bem absoluto de todos os homens e mesmo do uni­
verso. Pela caridade formamos um todo das pessoas que têm o mesmo
bem final e total.
Mas a situação da caridade entre os amores geradores de comu­
nidade é particular. Na ordem puramente humana ou natural tais amo­
res são concebidos pelos homens; a unidade que realizam não é mais
do que o resultado de sua convergência. A idéia do bem comum certa­
mente vive no espírito e na vontade do chefe, que a comunica aos
membros do grupo e distribui seu serviço entre eles; mas o chefe não
comunica o amor do bem comum e não dispõe os diversos membros
a servi-lo a não ser sob a forma de proposição, de influência e de
mandato; o chefe não pode inclinar seus súditos e animá-los a partir
de dentro com uma presença pessoal de tipo vital. Deus, ao contrário,

65 Encontram-se os textos em G. Gasque (op. cit., supra, nota 49) ou


em E. M e r s c h (L e Corps mystique du Christ, I, Paris, 21936): Ireneu,
Adv. haer., IV , 18, 5, e V, 2, 2s (P G 7,1028.1126s); Hilário, Com. in Mat.,
c. 4, n. 12 ( P L 9,935); D e Trin., V III, 13 e 15ss (10,246.247ss) ; João Crisós­
tomo, In Ioan., X L V I, 3 (P G 59,260); In IC or hom., 24, 2 (61,200); cf. E.
Mersch, op. cit., 464-476; Cirilo de Alexandria, In Ioan., lib. IV , c. 2 (P G
73,584); lib. X, c. 2 (74, 341), e E. Mersch, op. cit., 498s. Cf. também R.
E r n s t , E in L eib in Christo: Z A M 15 (1940), 21-29; J. B e t z , D ie Eucharistie
in der Zeit der griechiseîien Vater, 1/1, Friburgo, 1961.
“ Cf. João Crisóstomo, In M at. hom., 82, 5 (P G 57,743s). Ponto de vista
tirado de M. J. S c h e e b e n (Lo s mistérios dei cristianismo, Barcelona, 1950).
Cirijo de A lexandria tinha a preocupação de assinalar a diferença entre a
união pela eucaristia e pela encarnação: Com. in Lucam (P G 72,909); cf.
J. M a h é , L ’Eucharistie et Cyr. d’A l.: R H E 8 (1907), 677-696.
SECÇÃO X: A IGREJA fi UN A 33

pode fazê-lo e o faz. Deus nos faz participar do amor pelo qual ele
se ama a si mesmo e pelo qual nos ama, ao querer nossa proteção
e nossa felicidade.81 Porque, quem é este Deus? E ’ o Deus vivo sujeito
do amor no sentido do NT, isto é, sujeito desse amor pelo qual, tendo
criado o mundo, concebe e realiza-lhe um desígnio de salvação total,
salvação que contém, ao mesmo tempo, a glória de Deus e o cumpri­
mento pela criatura de seu ser e de sua tendência mais profunda. “
O amor comum às três pessoas é atribuído ou apropriado ao Es­
pírito Santo enquanto tem uma semelhança e uma conveniência par­
ticular com seu modo de processão, isto é, com a maneira pela qual
ele subsiste como Deus e que o constitui como terceira pessoa. Assim,
embora Deus seja inteiramente amor pode-se dizer que o Espírito
Santo é, mais propriamente, o amor. Por isso na unidade de Deus
vivo tripessoal pode-se atribuir à sua pessoa tudo aquilo que nos é
comunicado como amor sobrenatural.
Também se pode e se deve atribuir tudo aquilo que é comunicado
como amor sobrenatural à inteligência e à vontade humana de Jesus
Cristo, que coopera como instrumento inteligente e livre em tudo aquilo
que Deus realiza para a nossa salvação, de acordo com o que expli­
camos anteriormente.
Assim, o amor que une os cidadãos da cidade de Deus, os mem­
bros da Igreja, está difundido neles, é-lhes dado e comunicado a partir
de uma fonte viva e de um centro pessoal. Este amor não é princípio
de unidade somente em razão da unidade do objeto ou da finalidade,
razão de unidade já muito profunda tratando-se de um objeto; mas
como princípio de vida total e absoluto, de uma finalidade última e
universal, o é em razão da unidade pessoal do motor supremo. Não
se trata só de músicos que tocam uma partitura harmonizada nem
sequer de uma partitura idêntica, mas de um mesmo artista que
interpreta todo o concerto, observando sempre que os «instrumentos»
de que se serve para esta interpretação sejam plenamente pessoais e
livres e que sua própria transcendência permita uma imanência tal
neles, que respeite, ou melhor, confirme a liberdade das pessoas. E ’
Deus, é o Espírito Santo, quem, por Jesus Cristo, opera em nós o
querer e o fazer, difunde em nossos corações o amor e distribui a
cada um os dons mais diversos para a utilidade e a construção de
todo o corpo.69
07 Cf. Tom ás de Aquino, S. Th., II-II, q. 23, a. 2 ad 1; a. 3. ad 3; q. 24,
a. 7; In Rom., c. 5, lect. 1, final. Quando Inácio de Antioquia chama a
Ig re ja ágape, entende com isso que reproduz a imagem de Deus, que é
agápe; cf. J. C o l s o n , A gap è chez S. Ignace d’Antioche, em Studia Patrís­
tica, III/ l, Berlim, 1961, 341-355.
68Sobre esta coincidência da glória de Deus e a perfeição (ou a felici­
dade) da criatura, cf. M. B 1o n d e 1, I/Ëtre et les êtres, Paris, 1936; H. de
L u b a c , L e motif de la création dans « L ’Ê tre et les êtres»: N R T h 65 (1938),
220-225; J. H u b y , Salut personnel et gloire de D ieu: «Etudes» n. 204 (1930),
513-523; H. B o u ë s s é, Théologie et doxologie: « L ’Année théolog.» 11 (1950),
193-212, 289-303; O.A. R a b u t , V aleur spirituelle du Profane, Paris, 1963.
Sobre a realidade da salvação, cf. Y. C o n g a r, Vaste monde, m a paroisse.
Vérité et dimensions du salut, Paris, 1959; J.-P. Jossua, R S P h T h 54 (1970),
24-45.
69 Os textos bíblicos são muito numerosos. Cada um tem seu contexto
exegético próprio, mas o conjunto é coerente. Deus opera em nós: Elp 2.13:
34 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Assim, vemo-nos obrigados a distinguir dois aspectos no amor


enquanto princípio de unidade da Igreja ou do corpo de Cristo: em
primeiro lugar, é a força que reúne a multiplicidade na unidade pelo
fato de unir um grande número de pessoas na busca do mesmo bem
e de fazê-las cooperar em toda classe de serviço; em segundo lugar,
faz-nos participar da mesma raiz ou fonte de vida. De outro lado,
reduz a diversidade à unidade; em outras palavras, realiza de alguma
forma a difusão da unidade na diversidade.
Entre estes dois aspectos existe uma certa ordem. A primeira é
a participação de grande número de pessoas na mesma fonte de vida.
A Igreja não é um simples fato social de unidade por cooperação,
um simples todo operativo. A iniciativa e o dom de Deus tem. nela
uma prioridade absoluta. A unidade de vida, pela ação do mesmo
princípio, precede e suscita a unidade de cooperação e de serviço. Se
os fiéis estão obrigados ao serviço mútuo, seja entre todos eles, seja
servindo ao todo segundo seu lugar e sua função respectiva, é porque
o Espírito Santo os faz participar da vida e do bem de Deus, que é
amor. A caridade-serviço deriva da caridade-união. Se vivemos em
comunhão com todos os membros da sociedade divina, comunhão
que se expressa em forma de cooperação e de serviços mútuos, é por­
que a caridade nos une à vida desta sociedade divina.
a) A caridade-serviço. Toda a vida cristã é, por sua própria natu­
reza, serviço. Nos evangelhos, a condição de discípulo é concretamente
idêntica à de servidor.170 Isto vem do fato de que a vida cristã é,
em primeiro lugar, participação da vida de Cristo, que é o Servidor
que não veio senão para dar-se, para comunicar sua vida entregan-
do~a; ” em segundo lugar, uma vida social num mesmo corpo. P or
isso os membros se ajudam mutuamente. Na Igreja apostólica, a comu-
nidade-mãe de Jerusalém realizou de forma ideal, mas incompleta, a
comunhão dos recursos e das forças;m a unidade das demais comuni­
dades com ela tomou a forma da coleta de que fala Paulo como de
uma espécie de sacramento da comunhão.73
As imagens de que se serve a Escritura para exprimir a realidade
da Igreja ou do povo de Deus comportam a idéia de uma solidarie-

E f 2,10; A t 17,28. O Espírito dá o amor: Rom 5,5. Deus dá diversos dons


p ara a edificação do corpo: IC o r 12,4-11; E f 4,7s. N a d a sem Cristo: Jo
15,5; H b r 13,21 — que dá o Espírito: Jo 1,33; 20,22. ■ — Cf. L.. D e i m e !,
Leib Christi. Sinn und Grenzen einer Deutung des innerkircMiclien Lebens,
Friburgo de Br., 1940, 89s, 119s.
OTCf. L a Hiérarchie comme service..., em L ’Épiscopat et l’Église uni­
verselle, Paris, 1662, 67-132 (ou P o u r une Eglise servante et pauvre, Paris,
1964); T h W II, 83s, 529.
^ F a t o concentrado no momento supremo da Páscoa, onde está contida
a nova aliança: Jesus dá sua vida (Getsêmani e Cruz) e no-la dá (euca­
ristia).
raA t 2,44s; 4,32.34s. Cf. H.-M. F é r e t , Charité et vérité, em L ’Église
éducatrice de la charité. Congresso «Union des Oeuvres», Lyon, 1950; P a ­
ris, 1951, 53-106.
’’ R om 15,26. Cf. L. C e r f a u x , S. P a u l et l’imité de l’É glise: N R T h 55
(1926), 657-673; B. A l l o , L a portée de la collecte pour Jérusalem dans le
plan de S. P a u l: R B 43 (1936), 529-537 (e excursus X I I I do com. 2Cor).
Idéia tirada de O. C u 11 m a n n, Catholiques et Protestants. U n projet de
solidarité chrétienne, Neuchâtel, 1958.
SECÇÃO I: A IGREJA É UNA 35

dade e de uma cooperação para a realização dinâmica de um todo:


a Igreja é uma construção edificada pelos ministérios, mas na qual
também os fiéis se edificam uns aos outros (cf. ITes 5,11; Rom 14,
19; lP d r 2,5; Jd 20).14 Tomás de Aquino fala muitas vezes de uma
«subministratio ad invicem», desses intercâmbios e serviços mútuos,
freqüentemente ignorados até mesmo por aquele que os realiza, me­
diante os quais os membros da Igreja não cessam de servir-se mutua­
mente, de sustentar-se e de fazer-se progredir
Para designar tais atividades o N T emprega o termo diakonia,
que significa comumente «serviço», mas que significa também, mais
especificamente, «ministério». Isto nos leva a ampliar esta noção de
ministério, reduzida na prática ao âmbito dos ministérios instituídos
ou hierárquicos, concebidos ordinariamente como autoridade e poder
mais do que como serviço. E ’ preciso restabelecer a perspectiva do N T
segundo a qual existe toda uma gama de ministérios utilizada pelo
próprio Senhor (IC or 12,4-5) que vai desde os apóstolos até a prática
dos dons mais simples enumerados por Paulo juntamente com outros
menos ordinários (como os dons de consolação, de presidência, etc.).
Tudo isso entra na «obra do ministério», que é a construção do corpo
de Cristo e que, segundo o Apóstolo, incumbe a todos os santos, isto é,
a todos os cristãos, obra que o ofício dos ministérios hierárquico®
ou instituídos tem a missão de «organizar» (E f 4,12).
|3) Caridade-comunhão ou comunicação. O amor do mesmo bem
absoluto e de tudo aquilo que este amor abarca cria entre todos aque­
les que estão animados por este amor uma unidade de vida, devido
ao fato de todos terem o mesmo objeto determinante de vida. Na
medida em que este amor é comunicado pelo próprio Espírito Santo
e pelo próprio Cristo, a unidade pelo objeto vê-se reforçada por uma
unidade de sujeito, de raiz ou de fonte. Desta forma, entre os mem­
bros do corpo de Cristo realiza-se uma comunidade de vida análoga,
positis ponendis, àquela que existe dentro do corpo individual. E di­
zemos positis ponendis porque se trata de um corpo «místico»
cujos membros ou células são pessoas. Apesar disso, esta unidade é
real em razão do princípio transcendente que é o Espírito Santo ou,
sob outro aspecto, o próprio Cristo. Por isso existe entre os membros
uma verdadeira comunicação: cada um atua sobre o outro e, dentro

74Cf. Ph. V i e l h a u e r , Oikodome. D as BiSd vom Bati in der christlichen


Literatur vom N . T. bis Clemens Alexandrinus, Heidelberg, 1939; Michel,
art. oixoç, oíxoôojxéco : T h W V, 122s ; L. C e r f a u x, L a théologie de l'Eglise
suivant S. Paul, Paris, 1942, 195-196 (trad. espanhola: L a Igíesia en san Pablo,
Bilbao, 1963) ; P. B o n n a r d , Jésus-Christ édifiant son Église. L e concept
d’édification dans le N . T. = Cahiers théol. Act. Prot. 21, Neuchâtel, 1948.
Mohler diz acertadamente que o termo edificar designa no N T « a totali­
dade das influências cristãs recíprocas: IC o r 8,10 e Rom 14,19» (Unité, App.
X III, 290; ed. original: D ie E inheií in der Kirche oder das Prinzlp des
Katholizismus, Mogúncia, a1925). Sobre os ministérios e os carismas repar­
tidos entre os fiéis e pelos quais se constroem as comunidades eelesiais,
cf. H. S c h ü r m a n n , Os dons espirituais da graça, em G. B a r a ú n a ,
A Ig r e ja do Vaticano II, Petrópolis, 1965, 596-622 (bibliografia) ; Y. C o n g a r,
L e diaconat dans la théologie des Ministères, em Diacre dans L ’Église et le
monde d’aujourd’hui, Paris, 1966, 121-141; G. H a s e n h ü t t l , em L ’apostolat
des laïcs, Paris, 1970, 203-214.
36 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA

de certoa limites, uns podem atuar por outros. E ’ o que chamamos


comumente «comunhão dos santos».75
Esta está essencialmente ligada à caridade como à forma que a
torna nossa e ao Espírito Santo como a seu primeiro princípio, e é
a condição daqueles que vivem na caridade e da caridade. Neles, a
caridade não é uma a mais com uma unidade específica, se a conside­
rarmos em sua realidade entitativa de hábito; mas como força e
como amor, sob o aspecto da intenção com que anima todos e cada
um, a caridade é única em todos. E é também única do ponto de
vista de sua raiz ou de seu sujeito radical, o Espírito Santo. Nesta
perspectiva, não há mais do que um amor que encontra uma exis­
tência em muitos, e todos aqueles nos quais existe este amor estão
unidos por ele e pelo Espírito Santo com todos os que vivem a mesma
vida, segundo aquilo que são ou fazem em caridade, isto é, «no Espí­
rito Santo». Com todos, a começar por Jesus Cristo, membro capital
deste corpo, se é que pode ser chamado membro, já que ele sozinho
é a totalidade deste corpo e sua perfeição.78 Mas os que vivem desta
mesma vida estão unidos com Cristo em tudo aquilo que é realizado
«in Christo», de maneira que, pela caridade, se realiza uma interio­
ridade entre os membros e entre o todo e cada um deles. A caridade
é realmente o laço que faz os cristãos serem cristãos, levando à sua
perfeição a unidade de todos eles.77 Mas a caridade é inseparável dos
dois princípios pessoais dos quais depende a realização da Igreja: o
princípio divino originário, que é o Espírito Santo, e o princípio hu­
mano que lhe está unido, a consciência (ou o coração) de Jesus Cristo,
habitada e movida pelo Espírito. Isso faz com que inúmeras pessoas
diferentes formem um «nós», uma unidade plural de comunhão pro­
funda. 78
73 «N ih il est enim aliud sanctorum comrnunio, quod nemo ignorat, nisi
mutua auxilii, expiationis, preeum, beneficiorum communicatio inter fideles
vel caelesti patria potitos vel igni piaculari addictos vel adhuc in terris
peregrinantes in unam coalescentes civitatem ouius caput Christus, cuius
form a caritas» (Leão X III, enc. M irae Caritatis, 28-5-1902: A S S 34 [1902],
649). Existem vários estudos históricos. N a teologia especulativa podemos
citar Bernard, D T h C I I I / l (1923), 429-454; Ch. J o u r n e t , L ’ÍJglise du Verbe
Incam é, II, Paris, 1951, 544-561, 659-667; A. Michel, L a Communion des
Saints: «Doctor Communis» 9 (1956), ls ; A. P i o l a n t i , H mistero delia
Communione dei San ti nella Rivelazione e nella Teologia, Roma, 1957; E.
L a m i r a n d e , L a Communion des Saints, Paris, 1962.
™Cf. Tom ás de Aquino, Expos. in Symb., a. 10. Sobre o sentidoem q
Cristo pode ser chamado membro do corpo místico, cf. IV . Sent., d. 49, q.
4, 3 ad 4. Tiramos de Ch. Journet (p. 560) este magnífico texto de Tauler:
«A ssim posso tornar-me rico com todo o bem que se encontra em todos
os amigos de Deus, no eéu e na terra, e com o bem daquele que está
na cabeça. Todo o bem que pertence à cabeça e aos membros no céu e
na terra, aos anjos e aos santos, correria real e essencialmente por mim
se, sob a nobre cabeça, o amor me conformasse segundo a vontade de Deus,
como aos demais membros deste corpo espiritual» (Sermons, II, 208).
77 T al é, segundo A. Fridrichsen, o sentido de Col 3,14: « A caridade na
qual se unifica a perfeição» (Charité et perfection. Observation sur Col III,
14 = Symbolae Osloenses 19 [1939], 41-45). Segundo ele, o que a caridade
une não são as virtudes, mas os fiéis, de m aneira que form am a totalidade
divina perfeita do corpo de Cristo. Exegese, p ara dizer a verdade, criticada
por J. D u p o n t, Gnosis. L a connaissance religieuse dans les ÍJpitres de S.
Paul, Paris, 1949, 395s, que relaciona nosso texto com o contexto de IC or 13.
,s Tomás de Aquino: «O m nia membra corporis mystici habent pro ultimo
complemento Spiritum Sanctum qui est unus numero in omnibus» ( I I I Sent.,
SECÇÃO I: A IGREJA Ê UNA 37

O ser e o ter do cristão são o ser e o ter de membro. ” Até mesmo


o que ele é, o que tem de mais íntimo e de mais pessoal, o tem e o é
no corpo, no todo do qual cada pessoa vive o mistério integral — a
pessoa não é uma parte do todo como as partes de um todo físico, —
mas só enquanto membro deste todo e comportando-se como tal. O
fiel é um ser em comunhão. Se adotasse um comportamento contrário
e nele se obstinasse, sairia da unidade cometendo o pecado de cisma
ao qual nos referiremos mais adiante.
y) Participação na vida da comunidade dos cristãos. Não existe só
uma regra interior nas pessoas nem só uma regra puramente objetiva;
existe, além disso, uma realidade propriamente eclesiástica.
O momento de interiorização total da regra será o reino final:
Deus tudo em todos. Aqui na terra vivemos na «carne», isto é, atraídos
por compartimentos egoístas, tomando egoísmo no sentido de espírito
particularista que lhe dá J. A. Möhler no livro sobre a Unidade na
Igreja. Quando se estuda quais são os meios de realização da unidade
segundo o N T ,80 aparecem realidades objetivas inseparáveis de um
condicionamento eclesiástico : o evangelho, que supõe alguns pregadores
e uma missão (cf. Rom 10,10) ; o batismo, que supõe uma catequese
e introduz numa comunidade cujas regras devem ser observadas; a
eucaristia, que comporta exigências análogas; aparece, além disso, o
serviço apostólico, que se reflete nos ministérios locais. E se, entre
estes ministérios, os carismas têm uma grande parte, o exercício dos
dons espirituais está sujeito à moderação dos apóstolos ou dos chefes
enviados ou instituídos por eles.
A autoridade apostólica e as autoridades dela derivadas têm na
Igreja a missão, isto é, a tarefa e o poder, de promover e regular a
vida de comunhão dos fiéis. E ’ uma tarefa análoga à que exerce
a autoridade em toda sociedade; cabe-lhe velar pela «paz». E a paz
externa na cidade temporal tende a favorecer uma situação e uns
intercâmbios de amizade entre os homens. Na Igreja trata-se de uma
comunhão espiritual de caridade e dos serviços mútuos que esta cari­
dade comporta. Finalmente, todo exercício da autoridade na Igreja
é regido pelo serviço da caridade que consuma todo o desígnio de Deus.
O amor é o fim da lei e de tudo quanto se realiza na Igreja. Assim,
pois, se estabelece uma cooperação e uma correspondência entre a
operação secreta da graça do Espírito interiormente e a organização
ou a conduta da vida social externamente; organização e conduta não
são mais do que um serviço pelo qual se procura dispor da melhor

d. 13, q. 2, a. 2, q.a 2, sol e ad 1; cf. a. 1 ad 2; a. 2 q.a 3 ad 1;


D e verit. q. 29, a. 4; Com. in E v. Io an., c. 1, lect. 10). Cf. E. V a u t h i e r ,
L e Saint-Esprit, principe d unité de l ’Eglise d’après S. Thom as d’A .: «M élanges
de Sc. relig.» 5 (1948), 175-196; 6 (1949), 57-80; H. M ü h l e n , U n a mystica
persona, Paderborn, 31968; id., D e r Heilige Geist als Person in der Trinität,
bei der Inkarnation und im Gnadenbund, Münster, s1968.
^ Verdade desenvolvida pelo padre E. Mersch, que esboçou um a formu­
lação da moral à luz da doutrina do corpo místico: M orale et Corps mystique,
2 vols., Bruxelas, 1937, 21949.
80Cf. H. S c h l i e r , Die Einheit der Kirche nach dem N T : Cath 14 (I960),
161-177 (trad. francesa: L ’unité de l'Eglise d’après le N T , em E ssais sur le
Nouveau Testament, 205-223).
38 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

maneira possível todas as coisas, de forma que o amor de Deus e do


próximo floresça nos homens, em dependência do mestre interior, único
capaz de dá-lo.81 A Igreja que estabelece as regras de direito é um
serviço da Igreja que existe e se unifica pelo amor, e não há duas
Igrejas, mas uma e a mesma.
Por isso, se se quer considerar os princípios de unidade da Igreja
não na abstração da análise, mas em sua verdade existencial, é mister
vê-los modalizados por sua condição propriamente eclesial. Sem esque­
cer que o Espírito, graça incriada, não está ligado às instituições
eclesiásticas como a mediações necessárias,82 é preciso atender àquilo
que pode ser chamado a eclesiologia dos princípios de existência da
Igreja. Tal é a verdade que Ch. Journet expressou, num vocabulário
pouco feliz, ao falar da unidade de orientação que completa a unidade
de conexão ou caridade sacramental e orientada como forma última
de unidade e de vida da Igreja.85

2. A Igreja é uma comunhão81

A unidade da Igreja não é, não pode ser, uniformidade. Não há


dúvida de que às vezes se verificou na Igreja, sobretudo em Roma,
e já desde a época patrística, uma tendência visando confundir estas
duas coisas, tendência que deve ser criticada. A redução da unidade
à uniformidade é excluída tanto por parte de Deus, causa eficiente
suprema da Igreja, como por parte dos homens, sujeito receptor ou
causa material desta mesma Igreja, que existe, efetivamente, de Trini-
tate e ex hominibus.
No que se refere a Deus, essa redução está excluída, em primeiro
lugar, porque Deus não atua por necessidade, como uma causa física
determinada, mas livremente. Trata-se de sua graça, e ele distribui
seus dons como quer. Em segundo lugar, Deus é transcendente e não
pode ser representado e refletido, mesmo em sua unidade, senão por
uma pluralidade de participações, numa diversidade que concorre para
a formação de uma unidade mais rica.
No que se refere aos homens, a redução à uniformidade deve ser
excluída porque Deus não os trata como coisas, mas como pessoas

“ Cf. Tomás de Aquino, S. Th., I-II, q. 106, a. 1 e 2: textos de uma


força incomparável que esboçam os princípios de um a teologia de toda a
ordem externa d a Igreja ; C. Gent., IV , 21s; C. errores Graec., lib. II, c. 32:
«Sim ilis autem error est dieentium Christi vicarium, Rom anae Ecclesiae
Pontificem noa habere universalis Ecclesiae primatum, errori dieentium
Spiritum a Filio non procedere. Ipse enim Christus Dei Filius suam Eeclesiam
consecrat, et sibi consignât Spiritu Sancto, quasi charactere seu sigillo. E t
similiter Christi vicarius suo primatu et providentia universam Eeclesiam
tam quam fidelis minister Christo subiectam conservât» (ed. de Parm a, 15).
82Cf. L e Saint-Esprit et Xe corps apostolique, réalisateurs de l’oeuvre du
Christ, em Esquisse du mystère de l’Église, Paris, 21953, 129-179.
83Op. cit., 830s. P a ra outros textos patrísticos no mesmo sentido, cf. S.
T r o m p , Corpus Christi quod est Ecclesia, I, Roma, 21946, 146.
84Cf. T . C o n g a r , D e la communion des Églises à une ecclésiologie de
l’É glise universelle, em L ’Ëpîscopat et l’É glise universelle, Paris, 1962, 227-
260.
SECÇÃO I: A IGREJA 35 UNA 39

livres. Quer se trate de pessoas individuais, ou destas personalidades


morais tão reais como são as comunidades humanas naturais ou os
povos, os dons de Deus, mesmo se idênticos em sua raiz e em sua
natureza profunda, são recebidos em sujeitos vivos que têm uma his­
tória, uma alma própria. Uma pessoa ou quase pessoa desta natureza
reage aos dons de Deus. Daí as diversas expressões de realidades fun­
damentalmente idênticas: as teologias, os ritos, as devoções, os cos­
tumes, aa espiritualidades. Tudo isso voltará a aparecer quando tratar­
mos da catolicidade, mas é indispensável anotar desde agora que a
unidade total abarca estas diversidades e até se constrói com elas.
A unidade é, além disso, realizada em unidades parciais nas quais
se reflete e até mesmo se realiza a natureza do todo. Porque os prin­
cípios de unidade da Igreja não são outros senão os princípios de
sua existência, que são, ao mesmo tempo, os princípios de toda exis­
tência cristã, incluída a pessoal. Isto é válido sobretudo se se consideram
os princípios que procuram ou alimentam imediatamente a vida: fé,
amor, sacramentos. Por isso os Padres e os escritores antigos, que
consideravam sobretudo este aspecto, não cessaram de repetir que toda
alma é a Igreja.85 Para eles, como vimos, a Igreja é o «nós» dos
cristãos. O que se pode dizer destes pode-se também dizer daquela.
O mesmo podemos ler no NT, onde se diz, por exemplo, que a Igreja
total é esposa (E f 5,23s; Apc 19,7; 21,2; 22,17) e o mesmo se diz
da comunidade local (2Cor 11,2-3) e de cada fiel (IC or 6,15.17). O
mesmo se poderia dizer da condição de templo (cf. E f 2,21-22; ICor
3,10.11.16; 6,16; 6,19), da maternidade espiritual, etc.; as parábolas
dos evangelhos sobre o reino de Deus aplicam-se tanto a cada discípulo
como à Igreja total. No N T o nome de Igreja se aplica indiferente­
mente ao nível local ou à escala universal. Nos Padres, o primeiro é
a Igreja; mas todo membro enquanto membro possui a plenitude
dos atributos da Igreja: unidade, catolicidade ou ecumenicidade, apos-
tolicidade, santidade. Isto introduz em cada membro e em cada comu­
nidade particular uma tensão bastante delicada. São Paulo diz que,
em Cristo, já não há homem nem mulher, nem grego nem bárbaro,
nem escravo nem livre, mas que todos são um só (Gál 3,26-28; Col
3,9-11). Daí poder-se-ia tirar a conclusão de que a diferença entre
homem e mulher, grego e bárbaro — e, portanto, a de oriental ou
ocidental e tantas outras — se não unicamente no plano do carnal e,
por conseguinte, não intervêm na realização do corpo místico, mas
devem ser esquecidas ou negadas. Mas se assim fosse, não se poria
«in Christo» mais do que uma espécie de resíduo ou de denominador
comum sem substância verdadeira. A unidade deve realizar-se contando

83 O tema deve muito a Orígenes, de quem passou a Am brósio e a Jerô-


nimo: cf. C. C h a v a s s e , The B ride of Christ, Londres, 1940, 83s, 172s. E ’
um lugar comum d a patrística e da Idade Média. Podem ver-se alguns textos
em H. de Lubac, Catholicisme, Paris, 1938, 151s; 1965, F V 13, 129ss; Histoire
et Esprit, Paris, 1950, 148s, 165, 346-355. A Escolástica mística (Boaventura,
por exemplo) conserva o tema em sua form a original; a Escolástica dialé­
tica e técnica o expressa na idéia da Ig re ja como corpo ou um todo homo­
gêneo: «fideies in quantum fideies, sunt unius naturae» (por exemplo, Caye-
tano, D e comparata auctoritate F ap ae et Concilii, c. 5).
40 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA

com estas diferenças. Isto introduz nela uma tensão entre o particular
e o total, o local e o universal. Porque o fato de que cada parte con­
tenha a totalidade não faz com que ela seja esta totalidade; o fato
de que as comunidades ou igrejas locais sejam homogêneas com rela­
ção ao todo não as exime de estar no todo e de concorrer para reali­
zá-lo mediante aquilo que há em cada uma delas de singular e de
diferente. O mesmo se pode dizer das pessoas individuais.
A solução não é a uniformidade, como também não pode ser a
dispersão e o esfacelamento, o que suporia a vitória do egoísmo. A
solução deve ser procurada, em primeiro lugar, numa teologia da comu­
nhão e, em segundo lugar, numa eclesiologia da Igreja universal em
sua condição itinerante.

a) Uma teologia da comunhão“

E ’ certo que no N T a realidade afirmada em primeiro lugar é a


da ekklesia única — como Deus é único e Cristo é único, — que não
está ligada a nenhum lugar à qual pertencem todos aqueles que res­
pondem pela fé ao chamamento de Deus, onde quer que estejam e de
onde procedam. Esta realidade é, pois, virtualmente e de si, universal.
Em Paulo (E f 4,1-6), no Símbolo e nos Padres-repete-se, constante­
mente, este tema decisivo: um só espírito, uma sófé, um só batismo,
um só pão, uma só Igreja; creio eiç 'éva 0sóv, eíç evo. Kúewv, elç fiíav
êjodtiôíav.87 Um fiel é incorporado por seu batismo a esta Igreja uni­
versal; da mesma maneira um bispo, por sua consagração, toma-se
membro do colégio dos pastores, bispo da Igreja católica. Mas torna-se
tal, recebendo uma sede ou um «título» local, assim igualmente, o fiel
é agregado a uma comunidade ou a uma ekklesia local. E ’ bem conhe­
cida a dedicatória das duas cartas de Paulo aos coríntios, extraída da

88 Sobre esta questão, cf. E. Dublanchy, art. Cocmmunion dans la foi:


D T h C m/l, (1923), 419-429; artigo fundamental de L. Hertling, Communio
und Prim at, em X enia P ian a = Miscellanea Historíae Pontificiae V II, 9,
Roma, 1943, 4-48. Cf. também B. B o 11 e, Presbyterium et Ordo Episcoporum:
«Irenikon» (1956), 5-27; indiretamente, P.-M. G y , L es rites de la commimion
eucharistiqiie: M D n. 24 (1950), 154-160. Depois, tratando diretamente de nosso
tema, W . E 1e r t, Abendm ahl und KircUengemeinschaft in der alten Kirche
(Koinonia. Arbeiten des ökumenischen Ausschusses der Vereinigten evangelisch­
lutherischen Kirche Deutschlands), Berlim, 1957; G. d ’E r c o l e , Communio,
Collegialitä, Prim ate e Sollicitudo Omnium Ecclesiarum dai V angeli a Cos-
tantino, Roma, 1964; do ponto de vista real, J. A. M ö h l e r , Die Einheit in
d er Kirche, Mogúncia, “1925; S. L. G r e e n s l a d e , Schism in the E a rly Church,
Londres, 1953, sobretudo, cap. V I I I ; F. E. B r i g h t m a n , Term s of Com-
munion on the Ministration o f the Sacraments in E a rly Times, em H . B.
Swete (ed.), Essays on the E a rly H istory o f the Church and the Ministry,
Londres, 1918, 313-406.
87 Símbolo de Epifânio, logo depois de Nicéia-Constantinopla (cf. D z 9 e
86; D S 41 e 150). Cf. J. D a n i é l o u , M ia êwdtioía chez les Pères grecs des
Premiers sièdes, em I/Eglise et les Eglises, I, Chevetogne, 1954, 129-139;
Concílio romano de 382; «Quam vis universae per orbem catholicae diffusae
Ecclesiae unus thalamus C h ris t i...» (M irbt, Quellen zur Geschichte des
Papsttums, n. 191). A antiguidade cristã é totalmente dominada pela idéia
da unidade; cf. M. S p a n n e u t , Quelques aspects du thème de 1’unité dans
la pensée chrétienne autour du I I e siède, em Oikoumene. Studi paleociistãani
in onore dei Concilio Ecuménico Vaticano II, Catânia, 1964, 193-221.
SECÇÃO I: A IGREJA É UNA 41

carta de Clemente aos próprios Coríntios, da de Policarpo aos Fili-


penses, do Martyrium Polycaipi, de Dionísio de Corinto: «a Igreja
de Deus que está e m ...», traduzido geralmente seguindo K. L. Schmidt:
<a Igreja de Deus enquanto está e m ...».
Mas no N T e no cristianismo antigo conhece-se uma aplicação do
termo ekklesia às assembléias locais dos fiéis: ITes 2,14; 2Tes 1,4;
ICor 16,1 e 19; 2Cor 8,1; A t 15,41; 16,5; 18,22; 20,37s. A palavra
existia no vocabulário helénico para designar a assembléia dos cida­
dãos: Paulo serviu-se de uma transposição para designar a assembléia
dos cristãos ou a comunidade concreta que eles formam num lugar
determinado. E ’ verdade que em tais comunidades ou assembléias se
realizava o povo de Deus único com possibilidade de ser universal.
Mas isso não quer dizer que não existiam igrejas locais com sua estru­
tura própria de igreja local pela celebração da eucaristia, os minis­
térios, uma atividade missionária, isto é, pela realização nela do mistério
ou da obra de Cristo. Existia, pois, entre a Igreja única, virtualmente
universal, e as igrejas múltiplas, concretamente locais, uma unidade
ao mesmo tempo que uma diferença e, portanto, uma tensão. Como se
resolvia esta tensão? Como realizava a conciliação?
Pode-se procurar essa conciliação em três direções: a federação,
a organização unitária, a comunhão. Deixemos de lado a federação,
que é alheia tanto aos dados do cristianismo antigo como às exigências
profundas da essência do cristianismo. Na história encontramos as ou­
tras duas soluções, obtidas não de forma exclusiva, mas com predomí­
nio de uma sobre a outra de acordo com os diferentes tempos e lugares.
O regime de comunhão deu-se sobretudo na Igreja antiga e continuou
predominando na eclesiologia oriental. Esta atende primeiro às igrejas
e depois estabelece entre elas uma série de laços que fazem de todas
uma comunhão. O regime de organização unitária ou de uma Igreja
que constitui um só corpo com uma estrutura, inclusive visível, de povo
único, é aquele ao qual desde muito cedo tendeu o papado. E ’ o regime
cuja teoria foi geralmente elaborada pela eclesiologia católica latina.
Poder-se-iam seguir as etapas e designar os fatores históricos de seu
desenvolvimento.68 Vejamos a doutrina em seu estado perfeito de for­
mulação, tal como aparece, por exemplo, em Tomás de Aquino: «As
comunidades se diversificam, certamente, segundo as dioceses e as ci-

88 Cf. nosso etudo citado supra, nota 84. Recordemos os seguintes fatores:
a teologia agostiniana da catolicidade (contra o particularismo donatista);
o predomínio do papado a partir do século IX , e mais adiante a reform a
gregoriana, com suas conseqüências e as idéias que prolongaram sua ideo­
logia; a existência e a eclesiologia dos Mendicantes no século X I I I ; a vitória
sobre as tendências conciliaristas, galicanas e episcopalistas; a crítica da
eclesiologia de comunhão proposta por Jurieu (cf. G. T h i l s , Les notes de
1’Ê g lis e ..1 6 7 -1 8 5 , 193s); o desenvolvimento d a teologia ultramontana e seu
triunfo sob Pio IX . O resultado último deste desenvolvimento na teologia
moderna foi um verdadeiro desconhecimento da qualidade eclesial das igre­
jas locais: estas seriam apenas «sociedades imperfeitas», que carecem dos
meios necessários para realizar seu fim, que é a salvação eterna do homem.
Assim, L. B i l l o t , D e Ecclesia Christi, Roma, 61927, 451; Lercher-Schlagen-
haufen, Institutiones theologiae dogmaticae, I, Barcelona, 1945, 241; W . Bedard,
TTnitas Sacerdotalis: «Theol. Studies» 13 (1952), 583-587; Ch. Joumet, op. cit.,
II, 485.
42 CAP. Y: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

dades. Todavia, da mesma forma como existe uma só Igreja de Deus,


deve existir um só povo cristão. Assim, pois, da mesma forma como
é preciso que haja um só bispo na comunidade de uma única Igreja,
na qual deve ser o chefe de toda a comunidade, assim também é pre­
ciso que haja um só chefe de toda a Igreja para a totalidade do
povo cristão».88
O Concílio Vaticano I e, a partir dele, dezenas de documentos
pontifícios expressaram o tema do «unus grex sub uno pastore». * Vê-se
facilmente como a afirmação do primado papal está ligada à teologia
da Igreja universal no sentido de um povo ou de um corpo uno e único.
O unus populus, unum corpus reclama o sub uno capite. E ’ verdade
que o chefe único é sempre e em primeiro lugar Cristo, mas trata-se
do chefe visível, no plano da vida social da Igreja, dentro da unidade
de fé, de culto e de ajuda mútua de que falamos anteriormente.
Esta teologia da unidade expressa um aspecto importante da rea­
lidade, mas não expressa toda a realidade. Já vimos que não indica
o lugar que ocupam dentro da unidade as diferenças que fazem com
que tal unidade seja católica.
Do ponto de vista dos elementos geradores da Igreja, esta dou­
trina não manifesta adequadamente as condições de sua operação. Com
efeito, um povo se constitui pela comunicação do mistério de Cristo,
que se opera sobretudo pelos sacramentos e de forma eminente pela
eucaristia, na qual, diz Tomás de Aquino, está contido todo o bem co­
mum da Igreja. Ora, isto se realiza já na igreja local, a qual, do
ponto de vista da comunhão sacramental no mistério de Cristo, realiza
a totalidade do cristianismo. As igrejas locais não devem sua existên­
cia ao simples fato de uma divisão uniforme em porções manejáveis,
mas à realização local do mistério da Igreja pela realização daquilo
que a constitui, e, sobretudo, da eucaristia. Tal é a doutrina do Con­
cílio: « A diocese, ligada a seu pastor, reunida no Espírito Santo graças
ao Evangelho e à eucaristia, constitui uma Igreja particular na qual
está presente e atua a Igreja de Cristo una, santa, católica e apos­
tólica». 61

89 C. Gent., IV , 76 (não é preciso dizer que Tomás de Aquino oferece


simplesmente um a razão que explica um fato, estabelecido, por outra parte,
como fato) ; cf. I V Sent., d. 24, q. 3, a. 2, q.a 3; S. Th., II-II, q. 39, a. 1.
Cf. o continuador da Summa: «Cum tota Ecclesia sit unum corpus, oportet,
si ista unitas debet conservari, quod sit aliqua potestas regitiva respectu
totius Ecclesiae supra potestatem qua unaquaeque specialis Ecclesia regitur:
et haec_ est potestas papae» (Suppl., q. 40, a. 6) ; Humberto de Romanis,
Opns tripartitum, composto com vistas ao Concílio de Lião de 1274, pars 2,
c. 2 ad 4 (em Brown, Fascic. rer. expect. et fugien., II, 208s) ; João de Paris,
D e potestati regali et papaîi, cap. 3 (ed. J. Leclercq, Paris, 1942, 180) ; Alvaro
P e 1 a y o, D e Statu et Flanctu Ecclesiae, I, art. 40, par. C (ed, Lião, 1517,
fol 13). E m todos estes textos e em muitos mais passa-se espontaneamente
de una Ecclesia a unus populus.
“ Vaticano I, sess, IV , c. 3 (D z 1827; D S 3060). Cf. também Leão X III,
ene. Satis cognitum, 1896. Sobre o uso de Jo 10,16 nos documentos pontifícios
recentes, cf. o estudo citado na nota 83, 258.
“ Decreto Christus Dominus, 11; cf. Lum en Gentium, 26. Sobre a teo­
logia das igrejas particulares, cf. B. N e u n h e u s e r , Ig re ja universal e Ig re ja
local, em G. Baraúna, op. cit. (nota 74), 650-674; E. L a n n e , L ’E glise locale:
sa catholicité et son apostolicité: «Istin a» 14 (1969), 46-66; J. D. Z i z i o u l a s ,
SECÇÃO I: A IGREJA É U N A 43

Por isso o padre Nicolau Afanassieff, seguido hoje por grande núme­
ro de teólogos ortodoxos, opõe aquilo que chama uma eclesiologia euea-
rísitica a uma eclesiologia da Igreja universal.82 Trata-se de uma ecle­
siologia das igrejas locais que deveria prolongar-se numa eclesiologia
de sua comunhão. Mas se é verdade que é preciso manter as conside­
rações positivas desta teologia sobre a igreja local como comunidade
eucarística, também é verdade que se deve superar a oposição crítica
estabelecida nela entre as duas eclesiologias : eucarística e universal.
Manter a primeira com exclusão da segunda representaria para a ecle­
siologia um recuo, da mesma forma como ver só a segunda e esquecer
a primeira suporia um grave empobrecimento.
A esta eclesiologia eucarística, na medida em que se opusesse a
uma eclesiologia chamada universalista com o intuito de excluí-la, cre­
mos dever propor três críticas mais importantes:
1) A pluralidade ou multiplicidade das igrejas locais constitui,
queiramos ou não, um todo que contém suas exigências próprias como
tal modo; a eucaristia e a caridade possuem, por natureza, uma inten­
ção universal e criadora de uma comunhão que tende à universalidade.
Um todo, uma comunhão universal tem suas exigências próprias, que
exigem determinadas estruturas. A história mostra que os meios locais
de comunhão nem sempre foram suficientes para conservar a unidade
entre as partes, como já experimentara o próprio bispo Cipriano. A
totalidade introduz outra realidade além das sacramentais consideradas
no âmbito das igrejas locais. Existem dados eclesiológicos próprios
da Igreja total como tal.
2) Existe de fato uma tradição fundada na Escritura que vê na
função de Pedro, da qual é herdeira a sede de Roma, a principal peça
de uma estrutura ecumênica da Igreja enquanto Igreja universal. O
sucessor de Pedro é, como o foi tantas vezes Pedro, segundo os evan­
gelhos e os Atos, uma expressão e uma espécie de personificação da
totalidade dos discípulos ou dos apóstolos. Também isso faz parte da
eclesiologia. Por isso o Concílio Vaticano II, que fala de maneira tão
positiva da igreja local e aplica às demais comunhões o título de
igrejas ou comunidades eclesiais, diz também que a Igreja, cuja direção
Cristo entregou a Pedro e aos demais apóstolos, «subsiste na» Igreja
governada pelo sucessor de Pedro e os bispos, que se encontram em
comunhão com ele (Lumen Geiitium, 8). A história mostra que em
Bizâncio a função de estruturar a vida social da Igreja no plano ècumê-

L a communauté eucharistique et la Catholicité de l’Église: ibid., 67-88; H.


L e g r a n d , N atu re de l’É glise particulière et rôle de l’évêque dans l’Église,
em L a charge pastorale des évêques, Paris, 1969, 103ss.
S2N . A f a n a s s i e f f , L a Cène du Seigneur, Paris, 1952 em ru sso ); L ’apôtre
Pierre et l’Évêque de Éom e: «Theologia» (1955), 465-475 e 620-642 (em fran­
cês); L e sacrement de l ’assemblée: «Internat. Kirchl. Zeitschr.» 46 (1956),
200-213; L a doctrine de la Prim auté à la lumière de l’ecclésiologie orthodoxe:
«Istin a» 4 (1957), 401-420; L ’Église qui préside dans l’amour, em Prim auté
de Pierre dans l’Église Orthodoxe, Neuchâtel, 1960, 7-64. Sobre a postura
deste escritor, cf. B. S c h u l t z e , Eucharistie und Kirche in der russischen
Théologie der Gegenwart: Z K T h 77 (1955), 257-300. Outros teólogos ortodoxos;
J. M e y e n d o r f f , Sacrements et Hiérarchie dans l’Église: «D ieu vivant»
n. 26 (1954), 81-91; P . E v d o k i m o v , L ’Orthodoxie, Neuchâtel, 1959, 128-135.
44 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

nico foi freqüentemente exercida pelo imperador e que tal função às


vezes lhe foi reconhecida pelos teólogos e canonistas e confiada pelos
homens de Igreja. A eclesiologia ficou truncada, porque, perfeitamente
atenta ao aspecto mistérico e sacramental da Igreja, à sua conformi­
dade e comunhão com o mistério celeste, descuidou seu aspecto de
sociedade; o populus christianus como tal teve seu estatuto no âmbito
do império e não propriamente no da Igreja ou da eclesiologia.
3) Fazendo sua a eclesiologia eucarística e opondo-a de maneira
exclusiva a uma eclesiologia universalista, escrevia Alexandre Schme-
mann: « A falha fatal da eclesiologia romana consiste em transpor o
caráter orgânico da Igreja local, fundamento da unidade eclesiástica,
para a Igreja universal, depois de ter transformado esta última numa
única e imensa igreja local».93 De nossa parte desejaríamos, se não
devolver a censura, ao menos levantar uma questão inversa. E ’ um
fato que fora da Igreja católica não se reconhece uma estrutura ecle-
siológica própria da Igreja universal. Para os protestantes, a assem­
bléia local (Gemeinde) tem certamente uma organização visível, que o
Novo Testamento aliás não precisa; mas a Igreja total (K iich e ) é
uma entidade espiritual, objeto só da fé .94 Segundo nosso modo de ver,
esta posição foi uma conseqüência das seitas: transferiram para a seita
os atributos da Igreja; desse modo se absolutizou, o que toma suma­
mente difícil a reunião ecumênica, que constitui em última análise
uma busca de unidade do povo de Deus universal. Numa situação
eclesiológica diferente, não seria o caso de assinalar igualmente o pe­
rigo na Igreja ortodoxa de identificar pura e simplesmente a Igreja
com a Igreja local e condenar assim as igrejas locais ao isolamento?
No fundo da oposição, que nós criticamos, entre uma pura ecle­
siologia eucarística (da igreja local) e uma eclesiologia universalista de
um povo único está, polemicamente, toda a questão papal, mas estão
também, teologicamente, duas concepções diferentes da catolicidade, que
nos recusamos separar. Haveria, de um lado, uma concepção universa­
lista quantitativa da catolicidade vista só como soma e extensão da
unidade, e por outro, uma concepção puramente qualitativa da presença
do todo em cada parte. Esta concepção deve ser sem dúvida conser­
vada, e é um mérito não pequeno dos teólogos ortodoxos ajudar-nos a
compreendê-la mais adequadamente. Mas tal concepção deve levar a
uma síntese que incorpore também a primeira da forma seguinte:
Existe uma presença mútua da Igreja total na igreja particular,
porque o mesmo mistério se realiza em ambas, e da igreja particular
na Igreja total, porque a primeira deve trazer suas numerosas contri­
buições à segunda, e nesse sentido, «a Igreja universal é composta de
numerosas igrejas» (Agostinho). Esta reciprocidade traduz-se no plano
dos bispos, que presidem as igrejas e as representam. Um bispo é con­
sagrado ao mesmo tempo para o serviço de uma igreja particular e

L e Patriarche Oecuménique et 1’JÊglise orthodoxe: «Istin a» 1 (1954),


30-45 (a citação na p. 36).
MCf., por exemplo, W . H i l d e b r a n d , D as Gemeindeprinzip der christ-
lichen Kirche, Zurique, 1951, 24s.
SECÇÃO I: A IGREJA Ê UN A 45

para ser membro do colégio episcopal, e é consagrado por outros bis­


pos que representam a colegialidade ou a comunhão universal. Tanto
a fé como a eucaristia, a caridade e os dons espirituais (carismas no
sentido mais amplo, no sentido de Paulo), e as graças dos ministérios,
todas estas realidades espirituais têm uma intenção universal. Em vir­
tude do dinamismo do espírito que confere todos estes dons e os re­
gula a partir de cima, todos eles tendem a edificar uma só Igreja,
povo de Deus e corpo de Cristo, dentro do Espírito Santo. Tais dons
não são só a presença do todo em cada parte, mas implicam também
a ordem das partes com o todo; aqui é o lugar onde se situa uma
teologia plena da comunhão.
«Comunhão», transcrição do latim communio, deriva de communis,
que por sua vez procede de cum moenus, ter uma defesa, uma muralha
comum, ou de cum munus, ter um cargo comum. A primeira idéia con­
tida no termo é a de estar ligados à mesma tarefa, ao mesmo combate,
cada um em seu lugar. Mas o termo «communio» tem um sentido eclesial
que supera seu valor etimológico. Na realidade, é tradução do grego
xowanrá, que já era empregado no grego clássico (como na análise da
amizade por Aristóteles), mas que tem principalmente um uso cristão,
sobretudo no apóstolo Paulo. K No sentido mais geral, wivmía significa
a situação de quem toma parte com outro numa coisa qualquer. Funda­
mentalmente, trata-se da comunidade que os crentes formam com Cristo;
posteriormente, será a comunidade dos fiéis cristãos: a fé, o corpo e
o sangue de Cristo (IC or 10,16s), o Espírito (2Cor 13,13); por último,
trata-se da comunidade formada por todos os cristãos em razão de todo
o anterior: tendo parte ou comunhão com Deus, os cristãos têm parte
ou comunhão uns com os outros (cf. IJo 1,3.6-7). A comunhão é, pois,
a situação de plena vida cristã. Pode ser subjetivamente mais ou menos
intensa, porque comporta mais de um elemento dotado de forma mais
ou menos ativa, mas de per si é indivisível. Está-se ou não se está em
comunhão. Por isso na linguagem dos cristãos empregam-se os termos
xowwvet-v, communicare, de maneira absoluta: «communicantes», dizemos
no cânon da missa romana.
A comunhão tem um conteúdo espiritual e moral e alguns meios
de realização ou de expressão.
O espírito de comunhão consiste em comportar-se como solidário
do todo mais pleno que é a Igreja universal, embora o cristão leve o

95Cf. J. Y. C a m p b e l l , Koinonia and its Cognâtes in the N X : «Joum . of


Biblioal Literature» 51 (1932), 352-380; H . S e e s e m a n n , D e r B e g riff Koinonia
im N . T., Giessen, 1933; P. Hauck, art. j í o i v ó ç , m h v c o y ó ç » ' / o i v ü í v Ú / . • T h W III,
789-810; L. S. T h o r n t o n , The Common L ife in the Body of Christ, W est­
minster, 1942 ; A. Raymond G e o r g e , Communion with God in the N T ,
Londres, 1953; J. G. D a v i e s , Members One of Another, Londres, 1958; Ph.
M e n o u d , L a vie de l’Êglise naissante, Neuchâtel, 1952, 22-34. P a ra os usos
eclesiásticos, cf. H. B. S w e t e, The H oly Catholic Church, Londres, 1915,
152s, 161, 186; W . E i e r t , op. cit., nota 86; L. Hertling, cit. ibid.; L. E i z e n h ö f e r,
Te igitur und Communicantes im römischen Messkanon: S E 8 (1956), 14-75
(citado aqui não por sua tese de história litúrgica, mas pela documentação
patrística relativa à idéia e ao vocabulário da comunhão) ; J. G a u d e m e t ,
Note snr les formes anciennes de l’excommunication: R S R (1949), 64-77;
A. M a t e l l a n e s , E l contenido de Ia comunión eclesial en S. C ipriano:
«Communio» (G ran ad a) 1 (1969), 19-64 e 347-401.
46 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

todo em si mesmo: «agere ut pars», como diz Cayetano. m E ’ regular


a própria fé de acordo com a da Igreja universal por meio dos bispos,
«catholicae et apostolicae fidei cultores», em comunhão recíproca uns
com os outros e todos com o sucessor de Pedro.07 E ’ cultivar a «con­
córdia», isto é, a disposição que nasce do fato de que cada um leva
todos os outros em seu coração e existe por sua vez no coração de
todos,98 não no plano dos sentimentos, mas no plano de uma presença
espiritual e de comportamento prático. O cristão deve aprender a ciência
da harmonia, consonantiae disciplina, como dizia Orígenes.89 Para evi­
tar o cisma, continua dizendo Orígenes, é preciso «seguir os cânones
eclesiásticos».300 O direito vem em auxílio do espírito, mas o principal
é o espírito de comunhão.
A comunhão dispôs tradicionalmente de meios, auxílios ou expres­
sões.101 Com freqüência isso se referia diretamente ao clero e até aos
bispos: a comunhão das igrejas locais expressava-se ou se exercia atra­
vés dos chefes destas igrejas. Para isso existiam as profissões de fé,
as epístolas sinodais, as correspondências e epistolares entre hierarcas
por ocasião das diferentes festas1® e, além disso, as informações mútuas.
De alguma forma, as encíclicas papais seguiram a mesma linha: as
cartas são um meio de realizar a comunhão, a unanimidade,103 e estão
de acordo com a situação nova de uma Igreja que se propaga em
escala planetária e militante num mundo que pede sem cessar respostas
e definições, embora procedam também de um regime e talvez também
de uma concepção mais universalista-centralista da unidade; na mesma
linha da expressão da unidade situam-se as cartas de comunhão dadas
por uma igreja (por seu bispo) a um membro dessa igreja para que
seja recebido em todas as partes como um verdadeiro irmão: litterae
ioimatae (ou canonicae), litterae communicatoriae; 101 os encontros e as

80Com. in II-II, q. 39, a. 1.


87 Cf. Epifãnio, Ancoratus, n. 14 e 120 (P G 43.41B e 233AB). Cf. J. A.
Mõhler; «N ã o é o todo, e, contudo, o todo está nele, o quelhe permite conhe­
cer o que o todo conhece» (Unité, § 31, Paris, 1938, 93).
88Cf. o que diz Cipriano a propósito da oração: D e orat. dom., 8 ( P L 4,
523s). B o s s u e t : «A g ir pelo espirito de toda a Ig re ja » (Oeuvres orat., ed.
Lebarcq, V, 117). M õ h l e r : O fiel individual não está ao abrigo do erro
«a não ser pensando e querendo no espírito e no coração de todos» (Symbolik,
Mogúncia, 91884, 336).
” In Num er. hom., 26, 2 (ed. Baehrens, 245) ; cf. outras referências em
H. de L u b a c , Catholicisme, Paris, 1938, 46, nota 3; G. d’E r e o l e , Consor­
tium disciplinae. L e sanzioni nell’ordinamento canonico precostantmiano, I,
Roma, 1955 (exclusivamente jurídico e não fa la mais do que do poder coativo).
100In ICor. hom. (ed. J eík ins): J T H S 9 (1908), 34; cf. D. van den E y n d e ,
Les normes de l ’enseignement chrétien..., Gembloux, 1933, 305.
1OTN ão falamos de tais regras. Segundo W . E l e r t , op. cit. (nota 86),
46s, era o episcopado, o cânon das Escrituras, a regula fidei. Seria preciso
completar esta enumeração falando também do papel da sede romana (cf.
L. H ertling) e a tradição.
103Cf. W . Elert, op. cit., 122s; M. J u g i e , L e Schisme by zan tin ..., P a ­
ris, 1941, 56, 343s; M. F. A. B r o k , À propos des lettres f estales; «Vigiliae
Christ.» 5 (1951), 101-110.
11)3Cf. F. N a u, Une source doctrinale. Les encycliques. E ssai sur l’aucto-
rité de leur enseignement, Paris, 1952,
304Testemunhos patrísticos reunidos em F. 0 1 1 i g e r, Theologia i ’unda-
mentalis, II, Friburgo, 1911, 428s; W . Elert, op. cit., 103s; P. B a t i f f o l ,
L e Catholicisme de S. Augustin, Paris, 1921, lOlss; id., Cathedra Pétri, Pa-
SECQÃO I: A IGREJA É UN A 47

atividades colegiais dos bispos e, em primeiro lugar, os concílios; as


visitas e a hospitalidade, equivalentes a atos da vida eclesial e de
testemunho de unidade:105beijo de paz,108concelebração para a consa­
gração de um novo bispo ou na celebração eucarística;107 nesta cele­
bração, os ritos de comunhão tais como o do fermentumm ou o do envio
de pão consagrado a pessoas ou comunidades distantes;108 acrescente­
mos, finalmente, a lei formal, freqüentemente não observada mas recor­
dada, do caráter indiviso e universal da comunhão, ou de seu contrário,
a exclusão da comunhão. A comunhão é indivisível: quem a tem em
sua igreja, que se supõe ser a ortodoxa, deve tê-la em todas;baste
recordar os termos emotivos do epitáfio de Abércio. Quem foi excluído
legitimamente da comunhão em sua igreja não deve ser recebido nessa
comunhão em nenhuma outra parte. ™ Esta regra mostra que a Igreja
não é local, mas que é um todo de si universal e homogêneo de um
extremo a outro. As dificuldades inerentes à observação desta lei ilus­
tram também a necessidade de um centro de comunhão que exerça
uma espécie de magistratura universal, católica, da unidade e de suas
possíveis dificuldades.
Em tudo isso, não há mais do que expressões ou quando muito
formas de unidade. Os princípios de unidade são aqueles que já vimos:
a unidade de fé, de sacramentos, de vida e ação em comum. E ’ o que
Tertuliano exprimia ao falar daqueles «com quem partilhamos ( com-
municamus) a disciplina de paz e o título de irmãos. Única é sua fé
e a nossa, único nosso Deus; temos o mesmo Cristo, a mesma espe­
rança, os mesmos mistérios batismais; numa palavra: somos uma mes­
ma Igreja. Assim, tudo quanto possuem os nossos é também nosso».“
Mas o princípio mais profundo de unidade, em virtude do qual somos
realmente parte de um todo único, não é só especificamente uno, um
princípio de reunião por semelhança, mas é um princípio pessoal vivo:
o Espírito Santo. Este é, para cada um dos cristãos e para todos,
numericamente único, o princípio último de atuação de tudo quanto

ris, 1938, 111, 114, 116, «F o rm ata» significava «documento» ou «passe» (cf.
A. D o 1d, «F o rm a » und «Form ata». Zw ei liturgiscfae B egriffe aus alten lateini-
schen Bischof sweihe-Riten : «Scriptorium » 5 [1951] 214-221).
ias T e r t u l i a n o : «Proban t unitatem communicatio pacis et appellatio
fratem itatis et contesseratio liospitalitatis. .. » (Praesc., 20, 8). Cf. W . Elert,
op. cit., 47, nota 1; D. G o r c e , Les Voyages, l ’hospitalité et le port des
lettres dans le monde chrétien des I V e et Ye siècles, Paris, 1925. Vejam-se
em K nos. 491 e 492 os cân. 1 e 2 do Concílio de Antioquia de 341.
1<KCf. J. D a n i é l o u , B ible et Liturgie, Paris, 1951, 182 (trad. espanhola:
Sacramentos y culto según los Santos Padres, Eds. Cristiandad, Madrid, 1964).
“ 'C f. W . Elert, op. cit., 131s; A. F r a n q u e s a, L a concélébration, rite
de l ’hospitalité ecclésiastique: «Paroisse et Liturgie» 37 (1955), 169-176; id.,
L a concelebración. Nuevos testimonios?, em Liturgica, I (Hom . Card. Sehu-
ster), Montserrat, 1956, 67-90.
103Cf. L. V o e 1k 1, ApophoretujïV. Eulogie und Fermentum al s Ausdrucks-
formen des friihchristJichen Communio, em Miscellanea Giorgio Beîvederi, V a ­
ticano, 1954^55, 391s; J. A. J u n g m a n n , Fermentum. E in Symbol kirchlicher
Einheit und sein Nachleben im Mittelalter, em Colligite fragm enta (Hom. A.
Dold), Beuron, 1932, 185-190. H á muitos outros estudos.
109Cf. L. Voelkl, cit. em nota precedente ; W . Elert, op. cit., 136.
110 Cf. o cân. 5 de N icéia e seu conteúdo em W . B right (Oxford, 1892);
Jean Launoi, Opera, 5/1, 72s; W . Elert, op. cit., 56 e 103s; Y . Congar, Schisme:
DThC XIV/1 (1939), 1288.
111 Tertuliano, D e virg. vel., 2 (Oehler, I, 885).
48 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA

eles fazem in Christo, não só daquilo que é semelhante, mas até mesmo
daquilo em que são diferentes. O Espírito é o motor último e o regu­
lador da comunhão que inclina os cristãos, através de cada princípio
interno da caridade, a não comportar-se como mônadas isoladas, mas
de acordo com a presença mútua e o serviço recíproco que convém a
membros do mesmo corpo.
E ’ preciso chegar até o termo desta verdade sublime. Este espírito
é o mesmo que opera pessoalmente em Cristo para a salvação da hu­
manidade, isto é, para sua reunião em Deus, na unidade pela comunhão
das três pessoas. Porque Jesus, concebido do Espírito, cheio do Espí­
rito, levou a cabo pelo Espírito toda a sua obra messiânica. ™ O Espí­
rito, que é o princípio sempre atual de nossa comunhão, é também
o mesmo que conduziu os apóstolos na fundação das igrejas, que faz
os santos e habita para sempre neles como em seu templo. E ’ o Espírito
que opera nos sacramentos e particularmente em nossas eucaristias.113
E ’ o Espírito que une todas as igrejas numa só.114 E ’ o Espírito, o
único e o mesmo Espírito que, termo da comunicação de vida em
Deus, é o princípio de toda a santidade nas criaturas, de toda vida,
de toda divinização, como o mostram Basílio ou Gregório Nazianzeno.135
Se seguirmos a teologia agostiniana do Espírito, laço de amor entre
o Pai e o Filho, poderemos dizer, com Agostinho, que Deus nos une
a si mesmo e entre nós pelo laço que une a sociedade das pessoas
divinas, arqüétipo, princípio e fim da Igreja.118 Qualquer que seja a
teologia trinitária que se adote, a unidade das três pessoas divinas é
para a Igreja fonte, modelo e fim: Ecclesia de Trirtitate, «de unitate
Patris et Pilii et Spiritus Sancti plebs adunata» ; ™ «que eles sejam um
como nós somos um» (Jo 17,22; cf. lJo 1,3); «undique vocatur in

112 Concebido do Espírito Santo (H t 1,18.20; L c 1,35), cheio do Espírito


(Ia 11,2; Jo 3,34); o Espírito presente no batismo de Jesus, que é sua con­
sagração para o ministério (M t 3,16; M c 1,10; Lc 3,22; Jo l,32s); guiando
Jesus nos primeiros passos deste ministério (M t 3,16); cooperando com ele
para a eleição dos apóstolos (A t 1,2) ; em sua luta contra o demônio (L c
4,ls; M t 12,28); n a Paixão (a missa rom ana diz «cooperante Spiritu Sancto»;
H b r 9,14 talvez não fale de Espírito Santo); mais tarde agente da glorificação
de Jesus (R o m 1,4). O Espírito Santo dado por Jesus quando foi glorificado
(Jo 7,39; A t 1-2); Jesus efunde o Espírito sobre a Ig re ja (Jo 19,30; 20,22)...
113 Sobre este ponto, cf. J. M. R. T i 11 a r d, L'Eucharistie, Pâque de l’Eglise,
Paris, 1964.
U1 Textos dos Padres em S. Tromp, Corpus Christi quod est Ecclesia, I,
Roma, “1946, 142.
1:" B a s í l i o , D e Spiritu Sancto, 16,38-40 ( P G 32,136s; P . Pruche, SC 17,
174-183); Gregório N a z i a n z e n o , V Discurso teológico, 4 (P G 36,137).
nii E sta teologia em Agostinho, Serm., 71, 12, 18, 29; 20, 33 ( P L 38,454,
461, 463s) ; D e Trin., V I, 5, 7; X V , 21, 41 ( P L 42,928 e 1089); In E v. Ioli. tr.,
X IV , 9 ( P L 35,1508). Cf. D e fide et Symb., 9, 19 ( P L 40,191). Teologia ligada
ao Filioque (sem que esta palavra se encontre em Agostinho). N ão se en­
contra já no pensamento de Tertuliano (montanista) ? Com efeito, este escreve;
«Ip sa Ecclesia proprie et principialiter ipse est Spiritus, in quo est Trinitas
unius divinitatis: Pater et Filius et Spiritus Sanctus. Illam Ecclesiam congregat,
quam Dominus in tribus posuit» (Pudic., 21 [P L 2,1026; C S E L 20,271]).
117 Cipriano, D e orat. ãomin., 23 (Hartel, 285): «D icit Dominus: E go et
Pater unum snmns; et iterum de Patre et Filio et Spiritu Sancto scriptum
est: E t hi tres unum sunt; et quisquam crédit hanc unitatem de divina
firmitate venientem, sacramentis caelestibus cohaerentem, scindi in Ecclesia
posse?» (D e Cath. EccL unitate, 6 [H artel, 215]).
SECÇÃO I: A IGREJA fi UNA 49

Trinitate». “ A Igreja é uma manifestação visível na terra da santa


sociedade das três pessoas, que se consuma no Espírito, de forma que
J. A. Jungmann pode ler uma evocação da Igreja no «in unitate Spiritu
Sancti» de. nossas coletas,“8 que significaria: «na Igreja», enquanto a
Igreja não é outra coisa senão um organismo cujo princípio único
de unidade e de vida é o Espírito Santo.

b) A unidade eclesial na história do mundo

Esta teo-logia da unidade — uma consideração a partir de Deus


— parecerá sem dúvida excessivamente sublime àqueles que têm difi­
culdades para viver a unidade da Igreja e que não têm uma experiên­
cia eucarística ou espiritual tão elevada. Em todo caso, resta mais
do que um problema concreto que interessa também à teologia. Refe­
rimo-nos somente a dois deles e de maneira sucinta:
1) Enquanto tem uma forma humana concreta, a unidade da Igreja
sempre está por fazer. Seria mais fácil concebê-la como uma baliza
perfeitamente traçada e fixa de uma vez para sempre. Mas isso seria
desconhecer a verdade daquilo que deve receber e assumir dos homens,
de seus dons e carismas e de suas iniciativas. Tudo isso introduz na
vida da Igreja, sobretudo das igrejas locais, um aspecto de busca
e também de pluralismo que a unidade deve assumir, não ignorando-o
ou reduzindo-o pela força àquilo que já é conhecido, mas aceitando a
busca e as tensões da vida.
2) O Concílio Vaticano I I declarou que «a Igreja é em Cristo como
que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus
e da unidade de todo o gênero humano» . m Assim, a unidade da Igreja
não termina em si mesma. Não se limita a uma união com Deus, mas
aponta para a unidade do gênero humano, da qual é sinal e meio.
Esta idéia situa nossa questão num âmbito de referência mais amplo,
o do desígnio de Deus e de sua economia de salvação.
Tudo se situa dentro de um desígnio único, cuja realização tem
lugar em dois momentos diferentes do mesmo princípio, que é o Verbo
de Deus. O Salvador é o mesmo que o Criador. O Verbo, como salvador
e, portanto, em sua kenosis de servo sofredor, cuja vitória é coroada
pelo Pai que o ressuscita e o associa a seu reino; este Verbo, feito
em Jesus o primogênito de uma multidão de irmãos, é aquele por
quem Deus criou todas as coisas, que já habita no mundo como luz
que ilumina todo homem. A segunda vinda, histórica, condicionada
ao uso pecaminoso que o homem fez de sua liberdade, é uma reas-

118Agostinho, En. in Ps., 86, 4 ( P L 37,1104).


J. A. J u n g m a n n , In der Einheit des H L Geistes, em Gewordene
Xiiturgie, Innsbruck, 1941, 190-205; M issarum sollemnia» II, Viena, 21949, 321,
e o apêndice de 1958, 592ss; In unitate Spiritus Sancti: Z K T h 72 (1950), 481-
486. Interpretação _ discutida por B. Botte, M D n. 23 (1950), 49-53.
_ “ Lnm en Gentium, 1; cf. 9: «E ste povo messiânico, e m b o ra ...' com fre­
qüência pareça um a pequena grei, é, contudo, para todo o gênero humano
um germe seguríssimo de unidade, de esperança e de salvação». Cf. igual­
mente A d Gentes, 8 ; Gaudium et Spes, 92.
50 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

sunção definitiva da intenção criadora, que assegura seu êxito apesar


do peso do pecado; isto é, a salvação. A segunda vinda assegura esta
salvação de forma gratuita, para além das possibilidades da natureza
por uma reassunção que vai mais longe do que a primeira entrega:
mirãbilius reformasti, vocação a ser filho de Deus in Filio. Em sua
vinda histórica de encarnação e de páscoa, o Verbo-Cristo se constituiu
em sacramento universal dessa salvação para um mundo chamado a
compartilhar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Por seus acta,
dieta et passa, por tudo quanto fez, disse e sofreu, Cristo deixou no
mundo sua «Igreja», como sua esposa e seu corpo, de forma que esta
Igreja é, depois dele e por ele, graças ao dom de seu Espírito, o sinal
pobre e a humilde mediadora da salvação conseguida em Cristo. m Ora,
há dom conjuntos de males que causam a angústia da criatura: tudo
aquilo que faz obra de morte em todos os âmbitos, e as exterioridades
que dividem o homem e o alienam. Entre estas conta-se tudo aquilo
que mantém a divisão entre os homens: divisão de línguas e de cultu­
ras (Babel), guerras nacionais e sociais, ódios raciais e tribais, ambi­
ções e tentativas de dominação, menosprezo dos fracos e dos pobres,
etc. Mas o gênero humano é uno; existe neste sentido uma natureza
humana comum a todos e que cada um só pode desenvolver plena­
mente em comunhão com tudo aquilo que é próprio do homem. Como
disse Tennyson poeticamente, não se poderá exclamar: «a obra está
acabada; o homem está feito», a não ser no fim de um nascimento
da humanidade — é a comparação neotestamentária, — que é por
isso mesmo formação de unidade, não de pobreza e de solidão, mas de
plenitude e de comunhão.“ Não foi em vão que o anúncio da salvação
messiânica às vezes tomou a forma de uma promessa de reunião, e o

“ E sta doutrina é expressa em Lum en Geiitíum, 48, nestes termos: «A


Igreja, para a qual somos todos chamados em Cristo Jesus e na qual pela
graça de Deus adquirimos a santidade, r.ó se consumará na glória celeste,
quando chegar o tempo da restauração de todas as ccisas (A t 3,21). E com
o gênero humano também o mundo todo, que intimamente está ligado com
o homem e que por ele chega ao seu fim, será perfeitamente restaurado em
Cristo (cf. E f 1,10; Col 1,20; 2Pdr 3,10-13).
Porque Cristo, levantado d a terra, atraiu todos a si (cf. Jo 12,32 gr.).
Ressurgindo dos mortos (cf. Rom 6,9), enviou aos discípulos o Seu vivifi­
cante Espírito, e por Ele constituiu seu Corpo, que é a Igreja, como sacra­
mento universal da salvação. Estando assentado à direita do Pai, opera
continuamente no mundo para conduzir os homens à Ig re ja e por ela ligá-los
mais estreitamente a Si e fazê-los participantes de Sua vida gloriosa nutrin-
do-os com o próprio Corpo e Sangue. P o r isso a prometida restauração
que esperamos já começou em Cristo, é levada adiante na missão do Espírito
Santo e por E le continua na Igreja, na qual pela fé somos instruídos tam­
bém sobre o sentido de nossa vida temporal, enquanto com esperança dos
bens futuros levamos a termo a obra entregue a nós no mundo peio P a i
e efetuamos a nossa salvação (cf. F lp 2,12 ).
Portanto a era final do mundo já chegou até nós (cf. IC o r 10,11) e a
renovação do mundo foi irrevogavelmente decretada e de um certo modo
real já é antecipada nesta terra. Pois já na terra a Ig re ja é assinalada
com a verdadeira santidade embora imperfeita».
“ T e n n y s o n , The M aking of Man, em The Deatíi of Oenone and
other Poeins, 18Î2. Cf. Y . C o n g a r, Unité de l’humanité et vocation des.
peuples, em Sainte Église, Paris, 1963, 163-180.
SECÇÃO I: A IGREJA fi UNA 51

termo da obra de Deus é apresentado como uma cidade «na qual tudo
forma um corpo»: Jerusalém, visão de paz.128
A Igreja, «povo messiânico» (Lumen Gentium, 9), é sinal e ins­
trumento deste aspecto da salvação e do reino que se anuncia e começa
aqui na terra e que as palavras «unidade do gênero humano» expressam.
A Igreja o é, naturalmente, em seu plano próprio, que é o religioso e
sobrenatural. Mas deve sê-lo para o mundo, já que a salvação com­
preende isso. E ’ claro que a Igreja trabalha neste sentido. Mas toda
realização humana, histórica, exige mediações proporcionadas de eficá­
cia. A história conheceu neste sentido mediações sobretudo políticas e
jurídicas: as do Império e da cristandade tais quais conceberam e pro­
moveram um João V III, um Inocêncio III. No Oriente esta mediação
tem sido sobretudo o Império. Tais mediações desapareceram; seus
longínquos ecos modernos mostraram-se pouco operativos; hoje em dia
tudo isso está superado. As mediações para o futuro devem ser as do
desenvolvimento econômico e cultural, que evidentemente encerra im­
plicações políticas e jurídicas. O «povo messiânico» não pode deixar
de inscrevê-las em suas agendas se a Igreja quer ser eficazmente, em
Cristo, sinal e meio de unidade de todo o gênero humano.

II. AS RUPTURAS DA U N ID A D E 1

E ’ um fato reconhecido pelos historiadores2 que a Igreja antiga


não distinguiu precisamente entre cisma e heresia. Podem-se citar, e
nós os evocaremos mais adiante, alguns textos que insinuam tal dis­

123A salvação como reunião: Jer 29,4; 30 e 31; E z 34,12s; Is 43,5s, etc.
Sobre o tipo e o mito escatológico de Jerusalém há numerosos estudos:
K. L. Schmidt, «E ran os Jahrbuch» 18 (1950), 207-248; A. Gelin, L. Bouyer,
O. Rousseau, V S 86 (1953) ; respectivamente, 353-366, 367-377, 378-388; K .
Werniemer, G u L 31 (1958), 331-340; J. C. Y o u n g , Jerusalem in the N T . T h e
Significance o f the City in the H istory of Redemption and in Escliatology,
Kampen, 1960; Fr. W u lf, G u L 34 (1961), 321-325; B. van Iersel, «Getuígenis»
6 (1961-62), 263-275; H . J u n k e r , Sancta civitas, Jerusalem nova, em Kkidesia
(Horn. M. W eh r), Tréveris, 1962, 17-33; R. Poelman, V S 108 (1963); G. W i n t e r ,
The N e w Creation as 'Metropolis, N o v a York, 1963; J. S c h r e i n e r , Sion-
Jerusalcm Jahwes Königssite;, 3 vols., Munique, 1963s.
1 Estudos de conjunto: J. A. M ö h l e r , D ie Einheit in der K ir c h e ..., ed.
por J. R. Geiselmann, Colônia, 1957; H. H e i l e r , Altkirchliciie Autonomie
und päpstlicher Zentralismus, Munique, 1941; C. H. T u r n e r , T h e P a tte m of
Christian Truth. A Study in the Relations between Orthodoxy and Heresy in
the E a rly Church, Londres, 1955.
2 J. de G u i b e r t , L a notion d’hérésie chez Saint Augustin: B L E (1920),
368-382 (cf. 370s); E. B u o n a i u t i , Scisma ed eresia nella primitiva letteratura
cristiana: «Atheneum » (1916) (repr. em Saggi sul cristianesimo, Città di Cas-
tello, 1923, 274-285) ; mas, sobretudo, S. L. G r e e n s 1a d e, Schism in the E arly
Church, Londres, 1953, 16-34 (nova edição em 1964 com a resposta à crítica
de B. C. B u tler); Ch. S a u m a g n e , D u mot aïoeoiç dans l’édit lieinien de 313:
Th Z 10 (1954), 376-387.
O cristianismo antigo concebia a separação da Igreja, a ruptura da uni­
dade, mais na ordem espiritual e mística do que intelectual e social. A uni­
dade da Ig re ja é considerada sobretudo como uma unidade na ordem da
santidade. O cismático é aquele que rompe a santidade da comunhão, que
falta à pureza da fé, à santidade da Igreja. N esta perspectiva, as condições
da ortodoxia e aquelas da comunhão eclesiástica estão mais fundidas do
que nos parece. A infalibilidade doutrinal é concebida no interior d a santidade
52 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA

tinção. De modo geral, todavia, cisma e heresia são tratados conjunta­


mente num mesmo processo de separação. Os dois são, efetivamente,
separação: a heresia é considerada sobretudo como cisma porque a fé
é concebida não tanto como um conjunto de proposições quanto como
um depósito indivisível, análogo ao da vida, que se transmite na Igreja
e só se transmite nela. A Igreja, em sua realidade concreta e visível,
é o lugar único e indivisível da salvação. O importante é estar nela;
a forma em que se sai dela pouco importa; a catástrofe e o escândalo
çstá em sair da Igreja, em romper ou perder a comunhão. O cisma
exclui a pessoa da Igreja da mesma forma como a heresia. Situam-se
entre os hereges tanto os quartodecimanos como os montanistas (Hipó-
lito, Philos, 7, 18, 19) ou Novaciano (Cipriano, Ep. 55, 24, 1) : são,
em última análise, todos aqueles que celebram o culto de maneira di­
ferente. Foi sobretudo a partir de Constantino e de Teodósio que (nos
limites do império cristão, no qual os dogmas passaram a ser leis do
Império e a fé definida pelos concílios se converteu em estatuto de
sua unidade) a heresia, castigada de forma particular, começou a ser
objeto de uma definição precisa e a ser nitidamente distinguida do
cisma. As estruturas da comunhão ou do sacramentam eclesial se haviam
delineado, distinguindo-se melhor as faltas cometidas contra a unidade
eclesiástica enquanto tal.
No judaísmo, onde existiam diferentes escolas, chamavam-se aípéosiç
os partidos correspondentes a nossas diferentes escolas: saducetis (cf.
A t 5,17) fariseus (15,5; 26,5). Num primeiro momento, os cristãos
foram considerados membros de um novo partido heterodoxo (cf. 24,
5,14; 28,22). Mas quando Paulo protesta contra a constituição de par­
tidos na Igreja (IC or 11,19; Gál 5,20), não parece pensar especial­
mente em divergências e oposições doutrinais. Quando fala destas últi­
mas não emprega o termo olgeaiç (cf. Rom 16,17; Gál 1,7 ; cf., todavia,
T it 3,10). Ao contrário, em 2Pdr 2,1, que é um texto mais tardio, a
palavra é utilizada para designar a difusão de falsas doutrinas.8
2 xiaß,a tinha o sentido concreto de cisão — por exemplo, o rasgo
de um vestido (cf. Mt 9,16; Mc 2,21) — ou de divisão — por exemplo,
divisão do casco de alguns animais. — Daí que a palavra fosse empre­
gada espontaneamente para designar a divisão de maneiras de ver (cf.
Jo 7,43; 9,16; 10,19) e as divergências ou oposições das quais nascem
as sedições ou simplesmente as divisões dentro de uma mesma socie­
dade: ICor 1,10; 11,18; 12,25; cf. Didaché, 3,4; Bamabé, 19,11; Iná­
cio, Fil, 3,3. Logo mais, em Clemente de Roma, a palavra adquirirá
sua densidade eclesiológica: Cor., 46,9; ao passo que em outras passa­

da Ig re ja como um a propriedade ou um efeito desta santidade; o cismático


é um homem que, faltando à santidade da comunhão, se expõe a faltar à
pureza da fé. O herege faltou à doutrina por ter faltado à comunhão.
3 Sobre «heresia» e «cism a» no N T , cf. P. A. van S t e m p w o r t , Eenheid
en Schisma. E en structureel onderzoek van het deel, de Geemente van Korinthe,
volgcns I Kor., ten behoeve van het geheel, de oecumenische Gemeent, Nijkerk,
1950; L . G o p p e l t, Kirche und H äresie bei Paulus, em Beitr. z. hist. u. syst.
Theol. (Hom . W . E iert), Berlim, 1955, 9-23; M. M e i n e r t z , oxiofia und
aiQ^OLç im N T ; B Z (1957), 114-118; J. D u p o n t , L e schisme d’après St. P aul:
1054-1954, em L ’Eglise et les Eglises, I, Chevetogne, 1954, 111-128.
SECÇÃO I: A IGREJA E UNA 53

gens o termo conserva um sentido moral menos definido (49,5; 54,2).


Poder-se-iam citar numerosos textos antigos nos quais quase não se
percebe a fronteira entre o cisma e a heresia e nos quais não se vê
claramente o critério em virtude do qual alguém é qualificado de he­
rege.4 Todavia, a partir do momento em que a Igreja encontrou diante
de si teologias verdadeiramente heterodoxas começou a distinguir. Ire-
neu, mesmo nos lugares em que tende a assemelhar o sentido dos dois
termos, esboça uma distinção entre cisma e a heresia, hereges e cismá­
ticos.5 A elaboração e a aplicação da distinção foram exigidas sobre­
tudo pela necessidade de pronunciar-se sobre a validade dos batismos.
Estes incluíam uma profissão de fé. Mas, e quando a fé era a mesma?
No Ocidente, tal foi o caso do donatismo: Optato de Mileve força o
donatista Parmeniano a reconhecer «inter schismaticos et haereticos
quam sit magna distantia». Os hereges, ao adulterarem a verdadeira
fé (trinitária e cristológica), estão completamente fora da Igreja e não
procedem dela de maneira alguma; seus sacramentos são nulos. Os
cismáticos, que procedem verdadeiramente da Igreja como de sua mãe,
separam-se dela ao romper a paz e a comunhão, mas levam consigo
a fé e os sacramentos da Igreja que dela receberam e aprenderam. *
Tal é a teologia sacramental que Agostinho fundará numa síntese ecle-
siológica profunda e numa dialética dos sacramentos e da caritas. ’
Neste ponto Agostinho propõe uma clara distinção: «Haeresis est diversa
sequentium secta; schisma vero eadem sequentium separatio».8 Mas o
bispo de Hipona, querendo aplicar aos donatistas irredutíveis o edito
de união de Honório, que os assemelha aos hereges, aproxima de
novo os dois qualificativos (de resto, ele tem uma idéia bastante ampla
da heresia): «Schismatis crimen, quam etiam haeresim male perseve­
rando fecistis»; * «Dicitur schisma esse recens congregationis ex aliqua
sententiarum diversitate dissentio... haeresis autem, schisma invete-
ratum». “

* Cipriano constantemente une as palavras schismaticus e haereticus: Ep.


43, 7, 2; 45, 3, 2; 49, 2, 4; 51, 1, 1; 52, 4, 2; 59, 5, 1 e 9, 2; 66, 5,
1; 69, 1, 1; 74, 7, 3, e 8, 4; D e EccL Cath. unit., c. 19, Cf. Y . Congar, Schi
D T h C X IV/1 (1939), 1289; E. A l t e n d o r f , Einheit und Heiligkeit der Kirche.
Untersuchung z. Entwicklung d. altclir. Kirchenbegrlffs im Abendland v. Ter-
tullian bis zu den antidonat. Schriften Augustins, Berlim, 1932, 94s. Critérios
incertos para fa la r de heresias cf. T h R v 37 (1938), 333.
‘ Cf. Adv. haer., IV , 26, 2 («vel qui haereticos et m alae sententiae, vel
quasi scindentes et elatos sibi placentes. . . E t haeretici. . . , qui autem scindunt
et sep aran t.. . » [P G 7,1054]). N o capítulo 33, depois de ter mostrado o homem
espiritual diante das diferentes heresias, mostra-o julgando «et eos qui schi-
smata operantur» (nos. 1-7 [P G 7,1072-1076]).
«L ib . I, c. 10s ( P L ll,905ss; C S E L 26,12ss). Cf. P. B a t i f f o l , Catholicisme
de St. Augustin, Paris, 1920, 92s.
’ Cf.nossa introdução geral aos escritos antidonatistas de Agostinho =
O SA 28, Paris, 1963, 9-133 (bibliografia).
8Contra Crescon., II, 3, 4 ( P L 43,469), em 406s; Quaest. 17 in M t 11, 2:
«Schismatici quid ab haereticis distent?... quod schismaticos non fides diversa
faciat, sed communionis disrupta societas» ( P L 35,1367), em 397-400; D e fide
et symbolo, 10, 21: «Haeretici, de Deo falsa sentiendo, ipsam fidem violant,
schismatici autem discissionibus iniquis a fraterna caritate dissiliunt, quamvis
ea credant quae credimus» ( P L 40,193), em 393.
9Ep. 87, 4 ( P L 33,298), entre 405 e 411.
“ Contra Crescon., II, 3, 9 ( P L 43,469). Cf. DThC/1 (1939), 1290s. D e qual­
quer forma, tanto Agostinho como Cipriano relacionam freqüentemente «schi-
54 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Todavia, a distinção já era nítida em outros lugares. Atanásio dis­


tinguia claramente o caso dos melecianos cismáticos do dos arianos
declarados hereges e excluídos da Igreja por decisão de um concílio
ecumênico.u Basílio, pelo ano de 374, numa resposta a Anfilóquio, na
qual procurava explicar quais eram os batismos válidos, distinguia três
categorias de dissidentes: na heresia está-se inteiramente separado e
chega-se a ser estranho quanto à fé; no cisma há uma dissensão sobre
certos pontos e certas questões que não seriam irremediáveis; as «paras-
sinagogas» são assembléias irregulares convocadas por sacerdotes ou
bispos indisciplinados.“ Todavia, no Concílio de Constantinopla, no ano
de 381, os cismáticos eram situados na categoria mais ampla dos hereges,
aos quais se negava o direito de acusar um bispo.13 Mas a distinção
já estava aceita em princípio, como também estavam assinaladas as
conexões. Assim, num texto de São Jerônimo, freqüentemente repro­
duzido, podemos 1er: «Inter haeresim et schisma hoc esse arbitrantur
quod haeresis perversum dogma habeat, schisma propter episcopalem
dissensionem ab Ecclesia separetur; quod quidem in principio aliqua
ex parte intelligi potest. Caeterum nullum schisma non sibi aliquam
eonfingit haeresim, ut recte ab Ecclesia recessisse videatur» . 14 Para
justificar a própria dissidência, a pessoa vê-se obrigada a procurar ra­
zões doutrinais.
A unidade da Igreja esteve ameaçada desde o princípio. Jesus
advertiu os discípulos contra os falsos profetas, os maus pastores, as
provas e tribulações que haviam de vir de fora,“ Os apóstolos expe­
rimentaram a verdade de tais palavras. Seus escritos os mostram com­
batendo os falsos doutores ou semeadores de divisão: judeu-cristãos,
partidários de uma gnose, homens carnais e falsos irmãos. No fim
de sua carreira vemo-los prevendo os perigos que começavam a amea­
çar a pureza da f é e a unidade das igrejas: assim procede Paulo com
relação aos anciãos de Mileto “ e também em suas grandes epístolas,17
nas do cativeiro18 e nas chamadas epístolas pastorais;“ assim faz tam­
bém Judas (Cf. 17-19), o autor de 2Pdr (2,1-3.18.19; 3,3.17), e João
em suas epístolas e no Apocalipse.20
De fato, quando se considera a complexidade e a fragilidade da
unidade eclesial compreende-se que fosse freqüentemente atacada, com­
prometida e violada. Ao pôr em jogo tantos elementos delicados, a

sm ata et haereses». Cf. Ch. M o h r m a n n , B ie altchristl. Sonderspraehe in


den Sermones des hl. Augustinus, I, Nim ega, 1932, 149 e 152.
“ Eplst. ad eplsc. Aegyptii et Libyae, 22 (P G 25,589).
“ Ep., 188, 1 (P G 32,655). Cf. D T h C X IY/1 (1939), 1298; J. H a m e r , L e
baptême et l’E glise: «Irénikon» 25 (1952), 142-164, 263-275.
“ Can. 6 (M ansi 3, 561 [g re g o ] ou 562 [la tim ]).
“ l u Epist. ad Titum, c. 3 ( P L 26,598), em 386s. P a ra a história deste
texto na Idade M édia e no Ocidente: D T h C XIV/1, 1293.
13Cf. M t 7,15; 13,24; M c 13,5s; L c 21,8.
“ A t 20,29s; cf. J. D u p o n t , L e Discours de Milet, testament pastoral
de St. P aul, Paris, 1962, 206-219, que cita os principais textos sobre o tema
dos perigos.
" R o m 16,17s; IC o r ll,2ss; G ál 1,6s.
* E f 4,14; 5,6.
“ IT im 1,3s; 4; 6,2bs; 2Tim 2,14.16ss; 3,1; 4,1-8; Ti 3,9ss.
« l J o 2,18s; 4,1-6; 2Jo 7; Apc 13; 19,20.
SECÇÃO I: A IGREJA Ê UNA 55

unidade eclesial encontra-se finalmente confiada e entregue à liberdade


dos homens sem que, por tratar-se de uma matéria de consciência,
possam intervir eficazmente as pressões externas ou as necessidades
econômicas (e graças a Deus que nunca intervieram). A história da
Igreja é marcada por contínuas cisões e heresias. Nossa tarefa aqui é
estudá-la teologicamente, mas não só nos limites de uma espécie de
plano ideal, mas também em sua realidade concreta tomada em seus
aspectos gerais.

1. O cisma“

a) Em que consiste o ato do cisma

Podemos distinguir dois grandes momentos na teologia católica do


cisma, que se estendem, respectivamente, ao longo da época patrística,
a qual, do ponto de vista eclesiológico, chega até fins do século X I
e ao longo da época aberta pela reforma gregoriana e pela Escolástica.
De resto, entre estes dois momentos a continuidade é mais profunda
do que as diferenças.
a) Época patrística. O cisma é uma ruptura da comunhão ao nível
da Igreja como comunidade de homens (ecclesia congregata) reunidos
pelo uso dos meios de salvação (instituição, ecclesia congregam) e
sobretudo da eucaristia, cujo ministro e presidente é o bispo. Por isso
o ato do cisma é designado freqüentemente pelo fato de «erguer altar
contra altar»,22 expressão que remonta ao A T .23 O altar é, efetivamente,
o lugâr e o sinal da unidade do sacrifício eucarístico, que é a fonte
visível de nossa união com Cristo para formar um só corpo. O altar
é, juntamente com a cátedra de onde ensina, o lugar a partir do qual
o bispo reúne e forma a Igreja que preside. É, pois, o sacramento da
comunhão eclesiástica. Esta é considerada, portanto, em primeiro lugar,
no limite da igreja local e com referência ao bispo que a preside.“
0 cisma se realiza antes de tudo contra o altar e o bispo.“ Todavia,

“ Além dos estudos citados supra, notas 1-3, cf. nosso artigo Schisme:
D T h C X IV /1 (1939), 1286-1312 (bibliografia até 1938); M. P o n t e t , L a notion
de schisme d’après St. Augustin: 1054-1954, em L ’E glise et les Eglises, I,
Chevetogne, 1954, 163-180; J. P. K e l c h e r , Saint Augustine’s notion o f Schism
in the Donatist Controversy, Mundelein, 1961.
'■“ Cf. já Inácio de Antioquia: há um só altar como há um só bispo (Ign F il
4; Ign M agn 7, 2 ); depois, formalmente, Cipriano, Ep. 43, 5; 68, 2, 1 (Hartel,
594, 745) ; cf. D e Cath. Éccle. unit., 17 («hostis altaris, adversus sacrifieium
Christi rebellis»); Cânones apostoL ( = Const. Ap., V III, 47), c. 31 (ed. Punk,
1 [1905], 572: indica como fonte o Concílio de Antioquia do ano 341, can. 5);
Optato, 1, 15 e 19 (C S E L 26,18,5, e 26,21,13) ; Concílio de Antioquia de 341,
c. 5 (M ansi 2,1309s); Agostinho, Ps. adv. part. Donati, w . 23, 30, 80, 116, 174,
195 («altare sibi separare») ; Contra ep. Farm ., II, 5, 10 («altare sui schismatis
erexerunt») ; Ep. ad cath. de unit., 20, 54s; Pelágio I, Ep. 2 ad Narsetem ( P L
69,395, reproduzida em Graciano, c. 42, c. X X II, q. 5).
** Episódio de Coré, D atan e A biram (N ú m 16,1-33), freqüentemente evo­
cado pelos Padres (D T h C XIV/1, 1305); o das tribos transjordanas sob Josué
(Jos 22,10s) ; e do altar ereto por Jeroboão em Betei (1RS 12,26-13, 5), amal­
diçoado pelos profetas (A m 3,14) e finalmente destruído por Josias (2 R s 23,15).
24Cf. nosso artigo Schisme: D T h D XIV/1 (1939), 1288s.
33D e fato, nas inúmeras rupturas da unidade que o cristianismo conheceu
as separações começaram e se consumaram em relação com os «sacramentos».
56 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

a comunhão que se obtém desta forma é de si e virtualmente universal


(cf. supra 40ss) ; os bispos estão em comunhão mútua; um fiel em
comunhão com seu bispo está também em comunhão com a Igreja e
pode participar em todos os lugares do mesmo altar. Nem há lugar
para se falar de «intercomunhão» entre as igrejas. Este termo, criado
pelos anglicanos para exprimir sua teologia da unidade, não aparece na
antiguidade cristã. Esta desconhece o próprio fato que este termo sig­
nifica. Existe simplesmente uma comunhão de si indivisa e universal.
Este aspecto da universalidade da comunhão foi desenvolvido par­
ticularmente por Agostinho contra os donatistas, pars donati, os quais
pretendiam que a Igreja não se tinha conservado pura mais do que
em seu grupo, na África. Desde então penetrou-se cada vez mais na
consciência católica.
Cada bispo é em sua igreja centro e critério de comunhão. A
comunhão universal dos bispos e das igrejas locais tem entre si um
centro e um critério? A menos que seja miraculoso, este critério não
pode ser mais do que interno à própria comunhão, e é a observância
de suas regras e de seus elementos que todos estão de acordo em lhe
reconhecer. O concílio geral é o órgão mediante o qual se expressa
de maneira indiscutível a consciência eclesial. Junto ao concílio geral
exercem a mesma função, em menor escala, os concílios locais. Mas
Se reconhece também um valor especial às igrejas apostólicas, isto é,
as fundadas pelos apóstolos ou aquelas com as quais mantiveram
relações particulares.M Entre estas igrejas apostólicas, a de Roma, que
acumula o padroado de Pedro e Paulo e possui a cathedra petri, desem­
penhou desde o princípio uma função de modelo e de autoridade mode­
radora. A Igreja de Roma reivindicou, e com muita freqüência se lhe
reconheceu, o direito de julgar em última instância os casos de litígio,
mesmo que já tivessem sido julgados por concílios, e o direito de
excluir de sua comunhão e da comunhão católica.27 Evidentemente, à
medida que Roma intervinha desta forma e afirmava sua vocação a
exercer esta função, o valor universal e indiviso da comunhão ficava
cada vez mais marcado.
(3) O momento decisivo dos Séculos X I e X II. Oriente e Ocidente
romperam a comunhão: o Ocidente seguiu seu desenvolvimento próprio

Quantas vezes se suprimiu o nome do papa ou de um patriarca dos dípticos!


E m última análise, se se pergunta em que momento se consumou tal separa­
ção — por exemplo, a das reformas do século X V I, — deve-se responder que
foi no dia em que se rompeu toda comunhão sacramental e se criou um
novo culto: supressão da missa nas regiões protestantes, novo batismo dos
anabatistas, consagração de ministros para a Am érica por John W esley, etc.
“ Cf. D T h C XIV/1, 1292.
21Cf., além disso, J. A. M õhler (supra, nota 1, e Symbolique, § X U H [trad.
francesa: H, 83]), apesar das inexatidões sobre este ponto; P. B a t i f f o l ,
série de estudos sobre L e Catholicisme des origines â St. Léon e Cathedra
Petri. Etudes d’Histoire ancienne de l’Église, Paris, 1938; L. H e r t l i n g ,
Communio und Prim at, em X enia Piana, Roma, 1943, 4-48; G. d’E r c o l e ,
Communio interecclesiastica e valutaæione giuridica del Prim ato del Vescovo
di R om a nelle testimonianze patristiche del prim i tre secoli: «Apollinaris» 35
(1962), 25-75 (não estamos de acordo com a interpretação de alguns textos,
em particular do «prim atus Petro datur» de Cipriano) ; J. C o 1 s o n, L ’épiscopat
catholique. Collégialité et Prim auté dans les trois premiers siècles de l’Église,
Paris, 1963. W . E lert não diz uma palavra sobre este aspecto d a questão.
SECÇÃO I: A IGREJA fi UN A 57

marcado por estes dois traços característicos da Idade Média latina:


o crescimento do papado e o triunfo da Escolástica.
Trata-se do papado tal como começa a afirmar-se depois da re­
forma gregoriana, com uma teologia do papa como «episcopus univer-
salis». “ Esta teologia apoiava-se freqüentemente nos textos das Falsas
Decretais (meados do século IX ) senão nos próprios papas, os quais
raramente se referiam a ela; apoiava-se, não há dúvida, nos canonistas
curiais. Ora, as Falsas Decretais, sem criar um direito inteiramente
novo, atribuem aos papas e mártires prestigiosos dos primeiros tempos
o regime, só posteriormente instaurado, de intervenções diretas na
vida das Igrejas; além disso, estendem praticamente a estas igrejas o
regime inicialmente utilizado só na jurisdição metropolitana do bispo
de Roma; por último, estas Decretais supõem uma concepção da Igreja
universal segundo a qual esta é una não só como mistério espiritual
único, idêntico a si mesmo em todos os lugares, mas também como
realidade sociológica juridicamente una e submetida a uma autoridade
reguladora única.29
O papado que vem depois da reforma gregoriana não é somente
o papado desta teologia e deste direito; é também o que preside a vida
de um mundo em que as comunicações e as viagens se tomam mais
fáceis e se instaura um novo sentimento de sociabilidade. E ’ também
o papado que, tendo superado as pretensões do Império, preside uma
cristandade da qual as Cruzadas são uma das atividades mais repre­
sentativas.
A Escolástica começa no mosteiro de Bec com Anselmo e a escola
de Laon, e depois, com Abelardo. É, como seu nome indica, um fenô­
meno de escola; logo atingirá seu apogeu nas Universidades. Trata-se
de uma técnica de análise e de dialética. Os espíritos que nela se inte­
gram preferem a análise e as definições precisas à captação global e
sintética que facilmente se expressa em símbolos. Mais ou menos na
mesma época cria-se a ciência canônica. O direito eclesiástico, senão
no próprio Graeiano, ao menos nos glosadores, começa a ser mais do
que um direito sacramental, um direito da Igreja como sociedade. Sob
o influxo combinado destas circunstâncias, a atenção muda um pouco
de orientação. No capítulo tão importante da eucaristia vai-se mais
longe na consideração global que ligava diretamente a comunidade,
corpo «verdadeiro» de Cristo, à celebração de seu corpo «místico» ou
sacramental; chama-se corpo «verdadeiro» o corpo eucarístico, o corpo
da presença real, e corpo «místico» o corpo eclesial. " Ambos estão
sempre unidos: a unidade do corpo místico ou eclesial é a res da euca­
ristia, «res non contenta», isto é, não dada ipso facto com o sacra­
mento e no sacramento, mas que para ser obtida exige um novo ato

28D er Platz des Papsttum s in der Kirchen!römmi gkeit der Reform er des
1L Jahrhunderts, em Sentire Ecclesiam (Hom. H . R ah ner), Priburgo, 1961,
196-217.
28C f. G. H a r t m a n n , D e r P rim at des römischen Bischofs bei Pseudo-
Isidor, Stuttgart, 1930. Parece-nos que esta obra resiste às críticas que lhe
foram dirigidas.
30C f. H. de L u b a c , Corpus mysticum. L ’Eucharistie et l'Église au Moyen-
Age, Paris, 21949.
58 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

por parte daquele que comunga. Necessariamente, o laço de união


entre a Igreja e o sacramento eucarístico, embora continue sendo muito
profundo, ver-se-á um pouco distendido.
y) Teologia escolástica do cisma. Na realidade, vamos limitar-nos
à teologia de Tomás de Aquino, exposta na Suma Teológica, II-II, q.
39, a. 1 (cf. q. 14, a. 2 ad 4). A uma primeira leitura, dois traços
causam estranheza: o cisma não é considerado no âmbito sacramental;
não se faz alusão alguma à eucaristia31 (Tomás de Aquino tem uma
noção prevalentemente sociocorporativa da Igreja visível). O cisma tam­
bém não é considerado no âmbito da igreja local, mas da Igreja uni­
versal. Recordando os lugares em que Tomás de Aquino emprega um
duplo vocabulário, ecclesia e populus Dei, entendendo por ecclesia a
realidade mística e por populus Dei a forma de sociedade segundo a
qual existe a ecclesia,52 pode-se dizer que o cisma é considerado como
ruptura do povo de Deus ou da Igreja como povo social. Veremos a
seguir que isto não priva a teologia do cisma que se nos propõe de
sua grande profundidade.
Tomás de Aquino considera o cisma como um pecado. Não trata
dele, pois, como uma realidade histórica ou social como o donatismo
ou o «cisma grego», mas como um ato mau que se comete. A Idade
Média não separava grandes realidades como a paz, a guerra, o ensino,
o ministério da atividade dos indivíduos que as realizavam. Tomás de
Aquino situa algumas destas realidades entre os pecados contra a cari­
dade. Alguns se opõem diretamente a esta virtude e a seu objeto (por
exemplo, o ó d io ); outros se opõem a estes atos secundários ou a seus
efeitos próprios, que são a alegria, a paz, a beneficência e a correção
fraterna. Os pecados opostos à paz enquanto efeito da caridade podem
ser de pensamento, como a discórdia; de palavra, como a disputa,
contentio, e, por último, por obra, como o cisma, a guerra, a rixa e a
rebelião, seditio. O ato de cisma é, pois, um ato mau que tem direta,
própria e essencialmente por objeto uma coisa contrária à comunhão
eclesiástica, isto é, a essa unidade que é entre os fiéis o efeito próprio
da caridade.83
Esta unidade é uma unidade de ordem ou de relação, não uma
unidade substancial. Ora — e este é um princípio geral aplicável em
outros âmbitos sociais ou cosmológicos, onde quer que exista uma uni­
dade de ordem, M — as relações constitutivas desta forma de unidade
são de dois tipos: do tipo de relações de membro a membro e do tipo
das relações de membro a chefe. No primeiro tipo entram todos os

mQue Tom ás de Aquino conhece a relação existente entre a eucaristia e


a unidade eclesiástica vê-se por S. Th., III, q. 73, a. 4 e 6, ou pela teologia
exposta supra.
32Cf. C. Genfc, IV , 76, «manifestum est»; cf. I V Sent., d. 20, q. 1, a. 1, sol. 1.
33Notem-se estas advertências precisas: o pecado do cisma opõe-se não
ao objeto da caridade, mas a seu efeito social. P o r isso nem todo ato con­
trário à caridade é um pecado de cisma, e, por outro lado, pode-se cometer
este pecado tendo já perdido a caridade; com efeito, o cisma atenta contra
um efeito social d a caridade, que existe objetivamente, com independência
da caridade atual dos membros d a Ig re ja (não d a Ig re ja como tal). Cf.
Cayetano, in loc., n. 3.
* Cf. D T h C XIV/1, 1800; S. Th., I-II, q. 100, a. 5c.
SECÇÃO I: A IGREJA fi UNA 59

atos de comunhão que estudamos; no segundo, os comportamentos


pelos quais alguém consente em deixar-se dirigir e ordenar pelo chefe
de um corpo, e em nosso caso, por Cristo, enquanto ele procura a
unidade viva da Igreja, e pelo papa, que representa visivelmente Cristo
à testa de sua Igreja.
Assim, pois, se passa do cisma definido no âmbito da igreja local
ao cisma definido no âmbito da Igreja universal. Este movimento da
teologia católica corresponde ao que observamos na própria concepção
da unidade. E ’ um movimento normal que encontra sua forma extrema
entre os inquisidores, que, mais atentos ao delito facilmente constatá-
vel do que à teologia, consideram o cisma exclusivamente no âmbito
da Igreja universal e em relação com o papa. *
Qual é, pergunta-se Cayetano (fl5 3 4 ), a unidade a que se opõe
o cismático, incapaz, de resto, de destruí-la em si mesma, mas destrui­
dor dela nele pelo fato de subtrair-se a ela? A resposta do grande
comentador ilumina de forma notável a natureza da unidade eclesial
e da comunhão.
Esta unidade não é somente a que resulta do fato de que todos os
fiéis dispersos pelo mundo têm a mesma fé e praticam os mesmos sa­
cramentos. Isto, diz Cayetano, só os faria semelhantes, similes. Na rea­
lidade, a vontade «formal» de Cayetano leva-o a diminuir o alcance desta
«semelhança», já que não se trata só de orientações objetivas ou «inten­
cionais» paralelas e semelhantes, mas de uma vida tirada de uma fé
e de alguns sacramentos pelos quais o homem se acha em comunhão
com todos aqueles que vivem dos mesmos objetos. Em todo caso, nas
melhores fórmulas de uma teologia da unidade por comunhão, tais como
as que podemos encontrar nos anglicanos, e anteriormente nos galica-
nos e até em Bossuet,86 falta alguma coisa. A Igreja é apresentada
como uma comunhão, não estritamente como uma única Igreja, um
único povo.
Este resultado também não será obtido, prossegue Cayetano, só pelo
fato de que todos os fiéis obedecem ao mesmo governo; isso o faria
estar sub uno (capite). A história conheceu não poucas uniões de povos
realmente diferentes sob um mesmo chefe: Ãustria-Hungria, Noruega
e Suécia até 1905, o Império de Carlos V, o Império britânico, etc.
Mais uma vez, todavia, uma consideração puramente «formal» das
coisas pode trair a realidade, já que a ação do poder, quando é aceita,
imprime nas pessoas sujeitas a ele um movimento que as leva a agir
como partes de um todo, o todo que o próprio chefe abarca e modera.
E ’ justamente aqui que Cayetano quer chegar: sese gerere ut partem,
esse partem unius numero populi. Isto se realiza quando se regula a
própria oração, o pensamento, a ação e todo o comportamento como
o comportamento da parte num todo e não como o comportamento de
uma mônada autônoma e autárquica. O cismático é aquele que quer

35Cf. D T h C X IV / l, 1296.
30 Cf. Chrétiens désunis. Principes d’un Oecuménisme catohlique, Paris, 1987,
239s. P a ra Bossuet, cf. Hist. des Variations, lib. X V , § 70; Catéch. de Meaux,
I I parte, lec. IX .
60 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA

pensar, orar, agir e viver, não na Igreja e segundo a Igreja, como uma
parte regulada pelo todo e pela autoridade que preside este todo, mas
como um ser autônomo. E isso não deve ser entendido só em relação
com o todo que é atualmente a Igreja, mas em relação com o todo
que a Igreja forma segundo sua existência histórica e a continuidade
de sua vida no tempo.17 Cayetano acrescenta — e isto é decisivo,
embora nós não insistamos neste ponto por tê-lo desenvolvido ante­
riormente — que não se deve procurar outra causa para o movimento
que impulsiona interiormente os fiéis a agir ut partes, a não ser o
Espírito Santo, que é o agente pessoal da unidade pela comunhão de
todos, de acordo com a vocação de cada um.

b) Como se produz um cisma e como se conserva a unidade

Sempre houve germes de divisão. Os apóstolos os conheceram e


previram que, depois deles, os perigos de divisão haveriam de recru­
descer. A história do cristianismo é, desgraçadamente, em grande parte,
a história dos cismas e das heresias. Os protestantes, para os quais não
se deve esperar uma tradução terrena adequada da unidade, que só
existe em Jesus Cristo, gostam de mostrar esta ausência de unidade
em todos os momentos da história, desde a própria Igreja antiga, essa
«Igreja indivisa» que, segundo eles, não é mais do que um mito.88 O
princípio deste mito estaria, segundo os protestantes, na idéia de «corpo
de Cristo» ou «corpo místico» compreendido no sentido eclesiástico
ou social. Jamais se verificou, acrescentam, a unidade de tal corpo a
não ser pela aplicação de meios jurídicos de unificação, seja no âmbito
do Império cristão, com o pouco êxito que todo mundo conhece, seja
no catolicismo papal, à custa de pressões nada desejáveis. De resto,
este catolicismo deixa fora de si uma grande parte do cristianismo.
Notemos de passagem que o catolicismo realizou, apesar de tudo,
na medida em que isso é possível na terra, uma unidade universal, espi­
ritual e, ao mesmo tempo, visível. Anotemos a parte do papado cuja
vocação é justamente a de ser o órgão dessa realização e traduzir no
plano visível e histórico a unidade sobrenatural do reino de Deus, do
povo de Deus, do corpo de Cristo, de seu rebanho, unidade que é im­
possível reservar pura e simplesmente à escatologia, visto que a esca-
tologia já começou e está em ação, e que, de qualquer forma, o sentido

mPonto de vista expresso por M öhler: cf. J. R . Geiselmann, J. A. Möhler,


D ie Einheit der Kirche und die Wiedervereinigung: der Konfessionen, Viena,
1940, 49s, 52s.
88Encontrar-se-ão estas idéias expressas, por exemplo, em W . B a u e r ,
Kechtgläubigkeit und Ketzerei im ältesten Christentum = B H T h 10 Tubinga,
1934; 2» ed. por G. Strecker em 1964 (observações críticas de H. D. Altendorf,
T h L Z 91 [1966], 192s, e «Zeitschr. f. Kireheng.» 80 [1969], 61-74); E. W o l f ,
Communio sanctorum. E rw ägungen zum Problem der Komanisierung des
K irchenbegriffs: «Theol. B lätter» 21 (1942), 12s; id., Verlorene Einheit: E v T h
8 (1948-49), 141-151; S. L. Greenslade, op. cit. (nota 2 ); Schneemelcher, Sardika
342: E v T h n. esp., Ecclesia semper reform anda (Hom . E . W o lf) (1952), 83-104;
W . Eiert, op. cit., 460. Referências católicas: J. L o r t z , Evangelische K ritik
am katholischen B e g r iff der Einheit: T T h Z 68 (1959), 211-228; B. C. B u t l e r ,
The Idea of the Church, Londres, 1962.
SECÇÃO I: A IGREJA Ë UN A 61

da história mesmo terrena e, a íortiorí, da história da salvação é


tender à escatologia. E ’ um fato certo que sempre houve na Igreja
diferenças, tensões, possibilidades de divisão. Mas vima coisa é constatar
isto e outra é admitir que a Igreja tenha reconhecido outra concepção
a não ser a de uma unidade interna de fé, de vida sacramental e de
comunhão social, unidade virtualmente universal em sua extensão. As
tendências mais ou menos divergentes que a Igreja conheceu nunca
constituíram nela uma pluralidade de organismos eclesiais nem foram
admitidas como tais.
Depois de reconhecer que os fatos se verificaram como acabamos
de descrevê-los, é preciso apreciá-los teologicamente, isto é, eclesiolo-
gicamente. Para esta tarefa encontramos um apoio em Mõler.38 Sua
teologia é dominada pelo sentido da própria unidade da Igreja, uma
unidade ao mesmo tempo íntima e humana. Divina em virtude das
comunicações que procedem do próprio Deus, segundo uma «economia»
que, por sua vez, segue a ordem da «Theologia» (ou pessoas da Trin­
dade). Isto significa que a Igreja não procede simplesmente de Deus
enquanto monarquia (P ai) nem mesmo enquanto imagem e forma (Ver­
bo), mas procede de Deus enquanto amor que une as pessoas (Espírito
Santo). Do ponto de vista de seu próprio princípio divino, a unidade
não é, pois, monárquico-monolítica, como a do Islamismo, que impõe
uma lei sem assumir as livres iniciativas pessoais, mas uma unidade
de comunhão que engloba e assume as iniciativas. E ’ uma unidade
suficientemente rica e forte para isto. Quanto mais alto se situa um
ser vivo na escala dos viventes, mais diferenciada é sua unidade. Mas
estas iniciativas ou «projetos» são de pessoas íinitas, cujas percepções
são limitadas, fragmentárias e progressivas. De si, estas iniciativas te­
riam necessidade de ser complementadas por outras e completadas com
o tempo. E ’ o que acontece quando as tendências e os projetos, até
mesmo os mais diversos, se propõem e se desenvolvem numa unidade
que os contém, impedindo que se convertam em particularismos incon­
ciliáveis. Mas estas pessoas não são só finitas, mas também pecadoras.
Nelas com freqüência dominam os comportamentos de egoísmo, de or­
gulho, de impaciência, de endurecimento, de oposição aos demais, à
autoridade, às regras. Nestes casos, os projetos que estas pessoas con­
cebem, os recursos que põem em prática, seguem a regulação exclusiva
de sua lógica interna, isto é, em lugar de estar contidos num todo,
de ser compensados e equilibrados por outros valores, seguem uma
pura lógica de diferenciação, de oposição e de divergência.
O que a partir desse momento é considerado como heresia, como
tendências inconciliáveis, já existia na Igreja; mas enquanto era com­
preendido em sua unidade e vivido na comunhão, se apresentava so-

MDie Einheit in der Kirche, § 46. Ch. Journet propõe traduzir Gegensatz
e W iderspruch por contraste e contradição, respectivamente (L'É glise du Verbe
Incarné, I, 59). Cf. sobre esta doutrina em Mohler, J. R. Geiselmann, op. cit.,
(nota 37), 143s, 146-166, e sua edição da Symboïik, 1958, (102)-(126). Cf. tam­
bém Y. C o n g a r , V raie et fausse réforme dans l'Église, Paris, 1950 (21969),
231-246 (trad. espanhola: Falsas y verdade ras reform as de la Iglesia. Madrid,
1953).
62 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

mente como diversidade, contraste e, em última análise, riqueza. Desen­


volvido de forma autárquica, egoísta, sem referência à unidade nem
aos outros valores, manifesta-se como separação e, eventualmente, como
heresia. A Igreja não é, de forma alguma, complexio oppositorum, no
sentido de que sua unidade se obtém somando montanismo e gnosticismo,
Pelágio e Gottschalk, Khomiakov e Maurras. A Igreja é, na comunhão
e na unidade, a riqueza que permite a existência das diversas tendências
ou correntes, cujos limites, imperfeições e ambivalências poderão con­
verter-se em desvios, mas que enquanto estão contidas nela estão com­
pletadas e sanadas.
«Como a Igreja encerra em sua unidade todas as diferenças, e esta
unidade é integral, daí resulta que tenha afinidade com todas estas
diferenças. Por isso podiam nascer em seu seio dois partidos tão dife­
rentes como os gnósticos e os montanistas... Isto mostra que a Igreja
continha em si todas as verdades cristãs das duas partes opostas, as
quais, de resto, tinham bebido estas verdades na vida da Igreja para
levá-las ao separar-se. Mas o que as fazia heréticas não se encontrava
na unidade da Igreja; do contrário, não haveria razão alguma para a
separação. A Igreja formava assim a unidade inconsciente de todas
as heresias antes da separação e a unidade consciente depois da sepa­
ração; durante a separação, a Igreja estava em oposição com todas as
heresias, como elas o estavam entre si. O que constituía o gnosticismo
e o montanismo como tais nada tinha de cristianismo, nem em seu
conteúdo nem em sua forma. Por isso estes elementos não eram dife­
renças do cristianismo e não podiam ser admitidos na unidade da vida
cristã». *
S. L. Greenslade distribui seu estudo das causas do cisma nos
seguintes capítulos: disposições pessoais, nacionalismo, influências eco-
nômico-sociais, rivalidades das Sedes, disputas em matéria litúrgica,
problemas de disciplina e uma concepção puritana da Igreja. Há, pois,
causas de cisma baseadas em situações objetivas que superam as dis­
posições particulares das pessoas concretas. A causa mais comum é, infe­
lizmente, o sentimento nacionalista. “ Começando com o cisma de Jero-
boão em Israel, já que a ruptura entre as dez tribos do Norte de uma
parte, e Judá e Benjamim de outra, não se baseou a causa somente
na ambição de um homem que reforçou a separação política com um
cisma religioso, mas que teve suas raízes no fato de que as tribos do
Norte não haviam aceito, em momento algum, a unificação do país
sob o comando de Davi, da tribo de Judá, comando que Salomão tor­
naria mais pesado.42 Poi demonstrado que no donatismo houve um
velho foco de resistência das populações númidas não só à romanização
triunfante em Cartago, mas também às estruturas constantinianas liga­
das a esta romanização e aceitas pela Igreja católica. ® Não há dúvida

® J. A. M o h i e r , Di e Ei nhei t . . § 46.
“ D õ l l i n g e r observa isso no começo de I/Êglie et les Églises; S. L.
Greenslade, op. cit., cap. III, 58-73.
“ Cf. Considérations sur le schisme d’Israël dans la perspective des divi­
sions chrétiennes: «Proche Orient Chrét.» 1 (1951), 169-191, reproduzido em
Chrétiens en dialogue, Paris, 1964, 185-210.
48Cf. nosso etudo citado supra (nota 7), 11-70.
SECÇÃO I: A IGREJA fi U N A 63

de que no donatismo se dá também um caso típico de resistência sem


compromisso possível, com a obstinagão que nestes casos podem acar­
retar homens simples que pouco lêem e não raciocinam. Deste último
encontramos um exemplo comovedor em nossos dias na pequena igreja
da Vendéia e de Deux-Sèvres. Com freqüência demonstrou-se como as
Igrejas da Pérsia e da Armênia se viram religiosamente separadas por
se encontrarem, politicamente, fora dos limites do Império.44 A passa­
gem da igreja do Egito e da igreja siro-jacobita ao monofisismo (ao
menos nominal) foi causada, em boa parte, pela oposição à dominação
bizantina, que se converteu em oposição à cristologia da Igreja impe­
rial ou melquita. No Ocidente, o hussitismo é tanto um movimento de
patriotismo tcheco contra Roma como um movimento de reformismo
religioso. Um dos artigos deste reformismo era o direito, para todos
os fiéis, de comungarem do cálice. Assim, como observava no próprio
momento dos acontecimentos Nicolau de Cusa, os partidários deste
movimento preferiam separar-se da Igreja a renunciar à sua iniciativa,
julgando tirar mais proveito de beber do cálice por ocasião da separa­
ção do que de comer o Cordeiro pascal na unidade e na paz.“ O velho
espírito hussita, o sentimento nacionalista tcheco, certamente não são
alheios ao cisma tcheco dos anos 1920 e seguintes. Antes de Huss
havia aparecido Wyclef na Inglaterra, em cuja ação o sentimento na­
cional desempenhou seu papel, como o desempenhou em Lutero e no
êxito de seu fermento reformador.46 Citemos, finalmente, entre os cis­
mas da época quase contemporânea, o de Gregório Alipay, nas ilhas
Filipinas, em 1902, inspirado por uma oposição ao clero espanhol e
aos brancos.
Tais rupturas, surgidas de motivações ou conotações nacionais,
convertem-se facilmente em cismas eclesiásticos, que acarretam a cons­
tituição de uma nova «Igreja» por afetar as estruturas de unidade da
Igreja como organismo público.
Causou estranheza, às vezes, a rapidez e a aparente facilidade com
que uma numerosa população passa à dissidência. Dir-se-ia que não se
atendeu a exigências muito antigas e que com a separação se vinga
um longo desprezo. No movimento hussita entrou, sem dúvida, este
elemento. Em outros casos, dir-se-ia que, sob aparências intactas, o
sentido católico se encontrava gravemente debilitado. Como se explica
que a Inglaterra tenha aceito subtrair-se à união com a Sé Romana
e com o resto da Igreja católica se sua fidelidade era exemplar desde
quase um milênio? O sentido católico da Igreja havia sido sacudido
pela sujeição à coroa, pela situação malsã do ockamismo, do Grande

44Cf. F. D v o r n i k , National Churches and the Church Universal, W est-


minster, 1944; S. L. Greenslade, op. cifc, 62-69.
’3«Potius eligentes abscindi ab Ecclesia, quam a renovatione desistere. Ubi
haec egistis putantes plus utilitatis nos ex bibitione calicis in separatione quam
esu A gni paschalis tantum in unitate et pace consequituros. . . » (Ep. II, de
usu conammionis ad Bohemos [Opera, Basiléia 1565, 832]).
'“'C f. The Cam bridge M odem History, II, cap. V (N ational opposition to
Home in Germany, por A. F. P o lla r d ); H. R ô h r, U lrich von Hutten une! das
WersSen des deutschen Nationalbewusstsems, H am burgo, 1936; H. L e i s e g a n g ,
LiUÍ’:cr ais deutscher Geist, Berlim, 1934.
64 GAP. V : PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA

Cisma, do wyclefismo." A história conhece, pelo contrário, situações


em que as possibilidades de cisma são evidentes, mas a ruptura não
se efetua: no momento em que se tomou consciência das exigências
da comunhão com as demais igrejas, e em primeiro lugar com a Igreja
romana, a vontade profunda de unidade, o espírito de agete ut pars
unius numero populi triunfou sobre o desejo de conservar até mesmo
particularidades que não se queria degenerassem em particularismo.
Nestes casos chegou-se a sacrificar privilégios legítimos: assim, a cris­
tandade celta, primeiro isolada do movimento geral da Igreja no Oci­
dente e que gozava de particularidades disciplianres e litúrgicas (data
da Páscoa, etc.), mas que não tinha espírito cismático;48 este foi tam­
bém o caso de Hinemaro, arcebispo de Reims, no século IX, cujo espí­
rito tornou a aparecer em tantos homens de igreja galicanos e no
próprio Bossuet. Os galicanos sempre sustentaram que recusar a sub­
missão à Sé Romana seria um cisma e que eles não queriam cair nele. “
Pelo contrário, parece incompreensível a diferença com que os homens
do século X V I aceitaram esta ruptura.
Oa Padres (João Crisóstomo,50 Agostinho51) e a Igreja católica
sempre viram no orgulho, com a rigidez que ele comporta, a causa dos
cismas. Um homem crê e quer ter razão contra os demais, contra a
autoridade. E é verdade que às vezes tem algumas razões a seu favor.
A rigidez de uma autoridade que não quer ouvir também foi causa
de cismas: as responsabilidades históricas freqüentemente estão divi­
didas. Outras vezes, temperou-se ou até mesmo evitou-se a reação severa
justamente para evitar o cisma, de acordo com um princípio tradicional
de caridade e de prudência pastoral. “ Nas grandes crises dogmáticas
dos séculos IV e V os defensores mais lúcidos e valorosos da ortodoxia
fizeram concessões quanto às fórmulas a partir do momento que se
conseguisse o acordo sobre o fundo da questão.53 Agostinho não se

®Cf . P. J a n e l l e , L ’Angieterre catholique à la veille du schisme, P a ­


ris, 1S3S.
“ Cf. F. Heiler, op. cit. (nota 1), 130s e 153s.
“ Cf. V. M a r t i n , hes origines du Gallicanisme, Paris, 1939, I, 31, 226;
II, 132; A. G. M a r t i m o r t , L e Gallicanisme de Bossuet, Paris, 1953, 117s.
“ Cf. In lípli., c. 4, hom. X I, 4 (P G 62,85); sobre este ponto, A. Moulard,
St. Jean Chrys., 115.
“ Psalm us in partem Donati, w . 22, 55, 90, 123, 149, 213; Sermo 46, 18
( P L 38,280); En. in Ps. 118, 26,' 4 ( P L 37,1578). Cf. Tertuliano, D e b ap t, 17;
Tomás de Aquino, S. Th., II-II, q. 11, a. 1. A superbia é, p ara Agostinho, o
grande motor d a história, pelo qual os homens se opõem ao reino de Deus.
Cf. E. B e r n h e i m , Mittelalterliche Zeitanschauungen in ihrem Einfluss auf
Politik und Geschichtsschreibung, I, Tübingen, 1918, Aalen, 1964.
5Í Agostinho, Contra Ep. Pairn., III, 2, 13 ( P L 43,92); Tomás de Aquino,
S. Th., II-II, q. 43, a. 7 ad 1; L. B u i s s o n , Potestas und Caritas. D ie päpstliche
Gewalt im Spätmittelalter, Colônia, 1958. Exemplos históricos: no Concílio de
Constantinopla de 869-870 R om a aceita a posição de Constantinopla como se­
gunda sede para o bem da comunhão. E m 1111, Pascal I I aceita, para evitar
o cisma, a investidura real pelo báculo e o anel. Alexandre I I I não sustenta
Tomás Becket até o fim e oferece numa carta de 10 de setembro de 1170 a
seguinte explicação: «Tim uim us etiam ne si maior scissura fieret in Ecclesia,
nostrae posset duritiae deputari». Alexandre V I I I evitou pronunciar uma con­
denação solene dos artigos galicanos de 1682 com o fim de evitar o cisma, etc.
“ Assim, na doutrina trinitária de Atanásio, Hilário, Basílio (cf. J. A.
Möhler, Athanase, III, 177, 181, 218, respectivamente); em cristologia, Cirilo
de Alexandria, ao passo que Severo de Antioquia tem um comportamento
SEOÇÂO X: A IGREJA Ê U N A 65

cansou de mostrar aos donatistas, que se apoiavam na autoridade de


Cipriano, que o grande bispo mártir soubera permanecer como homem
de unidade, não querendo por isso romper a comunhão com aqueles
mesmos cuja má conduta desaprovava.“

a) História da idéia66

Sempre se entendeu por heresia, objetivamente falando, uma falsa


doutrina, e subjetivamente, o fato de obstinar-se em professá-la (cf.
DThC VI, 2219). Mas esta noção comum é vaga, de extensão bastante
indeterminada; de fato, foi compreendida e aplicada de maneira bas­
tante diversa no transcurso dos séculos. Nos dois primeiros, os crité­
rios da heresia ainda não estavam bem estabelecidos. No fundo, como
muito bem viu Möhler, julgava-se herético aquilo que a Igreja sentia
trair, de alguma forma, seu instinto profundo, sua coesão íntima.
No princípio, e durante todo um milênio, teve-se uma noção da
heresia mais eclesiológica do que propriamente dogmática. A Igreja
e sua unidade eram consideradas o lugar ou o sacramento fundamental
da salvação. Tudo que levasse alguém a separar-se delas — tanto idéia
como comportamento, — tudo que não concordasse com a maneira de
fazer ou de pensar da comunidade era herético (cf. J. Brosch e J. A.
Möhler). Podia tratar-se tanto de uma divergência doutrinal, — e não
seria difícil citar numerosos textos dos Padres que caracterizam assim
a heresia,67 — como também de qualquer singularidade, de qualquer
«novidade»68 com relação àquilo que se observa na Igreja. De outro

mais sectário (cf. G. Bardy, em Fliche-Martin [e d s j, Histoire de l ’Eglise, TV,


309s; Ch. Moeller, R H E 48 [1953], 258, 260).
51Cf., por exemplo, Contra Ep. Parm ., III, 2, 8ss, e o estudo citado supra
(nota 7), 69s.
55Os principais estudos consagrados à noção de heresia relacionam-se com
a história (cf. nota seguinte). Cf. A. Michel, D T h C VI/2 (1920), 2208-2257;
J. B r o s c h , D as W esen der Häresie, Bonn, 1936; K. R a h n e r , Qué és
herejía?, em Escritos de Teologia. .V, Madrid, 1964, 513-560; id., H äresien in
der Kirche heute?, em Schriften, IX , 453-478.
“ Principais estudos: Th. R ü t e r , D ie eine Kirche und die H äresie bei
Klem ens von Alexandrien: Cath 12 (1958-59), 37-50; J. de G u i b e r t , L a notion
d’hérésie chez St. Augustin: B L E (1920), 368-382; J. M a d o z , L a pertinacia»
rasgo característico de la herejía en los primeros siglos de la Iglesia: E E 12
(1933), 503-514; A . B o r o s , Doctrina de haereticis ad mentem S. Gregorii,
Rom a, 1935; J. L e c l e r c q , Simoniaca haeresis, em Studi Gregoriani, I, Roma,
1947, 523-530; P. de V o o g h t , L a «Sim oniaca haeresis» selon les auteurs
scolastiques: E T h L 30 (1954), 65-80; C. P o z o , L a noción de «h erejía» en el
derecho canónico medieval: E E 35 (1960), 235-251; Y . C o n g a r , L ’hérésie,
déchirement de 1’unité (d ’aprcs M öhler), em L ’E glise est une (Hom . J. A.
M öhler), Paris, 1939, 255-259 (reproduzido em Esqui sses. . Paris, 1941, 149-
165); H . K ü n g , L ’figlise, Paris, 1968, 332-357 (ed. espanhola: L a Iglesia,
Barcelona, 1969).
Assim, Ireneu, citado supra, nota 5; Jerônimo, In Ep. ad Tit.: «Inter
haeresim et schisma hoc arbitrantur; quod haeresis perversum dogma habeat,
schisma propter episcopalem dissentionem ab Ecclesia separetur» ( P L 26,598);
Agostinho, citado supra, nota 8.
“ Cf. T h R v 37 (1938), 333. P a r a Agostinho, cf. J. de Guibert, arfc. cit., 370s,
C f. as observações de E. Am ann a propósito da condenação do papa Honório
66 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

lado, fala-se com freqüência das heresias, designando com este termo
todas as «seitas», as separações causadas pelo espírito de orgulho e de
obstinação.58 E ’ normal que no princípio a fronteira entre aquilo que
posteriormente pareceu e é paia nós ortodoxia e heresia tenha sido às
vezes flutuante. Essa é a parte de verdade do livro de W. Bauer (cf.
nota 38). Mas parece-nos mais acertado C. H. Turner quando fala de
zona intermédio, de franja, de penumbra.
No clima e na ideologia da reforma gregoriana no Ocidente, quando
toda a vida eclesiástica estava relacionada à autoridade papal como à
sua norma, dava-se com freqüência o nome de heresia a toda desobe­
diência a esta autoridade. Não só se utilizava amplamente a idéia de
«simoniaca haeresis» (cf. J. Leclercq, cit. nota 56), mas atribuía-se a
Ambrósio a fórmula tão repetida: «Haereticum esse qui se a romanae
ecclesiae in aliquo subtraxerit dictione».60 Pensava-se igualmente que o
anátema sancionava sempre uma heresia, o que evidentemente supunha
iima noção ampla de heresia.£1 Bastava que o anátema excluísse da
Igreja por um comportamento caracterizado por insubordinação. Esta
noção ampla de heresia, com ou sem referência à autoridade ponti­
fícia, estava muito difundida na Idade Média. Nela dificilmente se dis­
tinguia a heresia como negação de um ponto de fé da insubordinação
ou das faltas contra a disciplina da Igreja. “

como «herético» (D T h D V II/ I [1922], 119). Tertuliano emprega novitas no


sentido de heresia (Adv. Prax., 2; Adv. Marc., 4, 11; Adv. Herm., 1); tam­
bém Gregório, Mor., 18, 26, 39; 20, 2, 3; 31, 17; 35, 8, 18. Cf. J. B. Franzelin,
D e div. Trad. et Script., Roma, 21875, 77ss, e p ara a Idade Média, «H is t Jahrb.»
50 (1930), 299s; J. de Ghellinck, Neotericus, neoterici: «Archiv. Lat. Medii
A ev i» 15 (1940), 113s.
“ Cf. Agostinho, D e util. cred., I, 1: «Haeretieus est, ut mea refert opinio,
qui alicuiua temporalis commodi et maxime gloriae principatusque sui gratia
falsas ac novas opiniones vel gignit, vel sequitur» ( P L 42,65). Os hereges são
aqueles que «resistunt contumaciter»: D e Civ. Dei, X V III, 51, 1 ( P L 41,613);
D e Gen. ad litfc, V II, 9, 13 ( P L 35,160); D e bapt., IV , 16, 23 (P L 43,169); Ep.
43, 1, 1 ( P L 33,160).
m T al é a fórm ula da Bonifácio de Sutri, Lib. ad Amicum, V I (Libelli de
Lite, I, 591); cf. D e vita chrisííana, I, 2 (ed. Mai, N o v a Patr. Bibl., VII/3, p. 1,
Roma, 1854); o próprio Gregório V I I diz: «Dicente quoque B. Ambrosio:
Eretlcum esse constat qui romanae Ecclesiae non concordat» (Keg,, V II, 24
[ed. Caspar, 504]); cf. Dictatus Papae, X X V I: «Quod catholicus non habeatur
qui non concordat romanae Ecclesiae» (ibid., 207), e os Dictatus de Avranches,
c. 2: «Q u i decretis sedis apostolicae non consenserit haeretieus habendus est».
Anselmo de H avelberg ainda invocava a autoridade de Ambrósio em suas
conversações com os gregos em 1136 (D ia i, III, 12 P L 188,1226A). Cf., na
mesma época, Gerhoh de Reichersberg, D e aedificio D ei (Libelli âe L ite), III,
174). N ão se encontra esta fórm ula em Ambrósio. Caspar envia a Kp. I, 11
( P L 16,986B), mas K. H ofm ann (D e r «Dictatus P a p ae » Gregors V II, Paderbom
1933, 63) cita mais acertadamente como possível referência D e poen., I, 7, 3
( P L 16,496: «N o n enim habent Petri haereditatem qui Petri sedem non habent
quam im pia divisione discrepant»), Cf., além disso, sem referência formal,
Ambrósio, Pedro Damião, Op. V (Act. Med.: Sermo ad populum [ P L 145.91CD];
Ep., I, 20 ad Cadaloum ( P L 144,241A ).
01Cf. os protestos de Pedro Dam ião diante de Alexandre I I (Ep. I, 12
[ P L 144,215]). P . Huizing nota (Studia Graíiana, III, 284) que a excomunhão
estava tão estreitamente unida com a heresia que todos os excomungados
eram chamados hereges, ao menos no sentido lato (ref. aos decretístas, nota
16). Tomás de Aquino mostre-se mais minucioso: In Gai., c. 1, lect. 2.
10Texto eucarístico: A bbcn de Fleury, Apologeticus: «Quicumque de Deo,
de religione, de communí statu sanctae Ecclesiae aliter credit quam Christus
docuit, aut sub sanctis Apostolis catholica Ecciesia tenuit, suisque successoribua
secção I: A IGREJA É U N A 67

Os inquisidores proliferaram neste mesmo sentido. Todo homem pe­


cador que não se submetesse à ação da Igreja para emendar-se era
suspeito de heresia e, se persistisse em sua atitude, tratado como herege.
Isto não basta para distinguir uma heresia disciplinar, na concepção
dos inquisidores, de uma heresia teológica, ® já que em todo o mundo,
incluídos entre os teólogos, se verificava certa imprecisão, e os próprios
inquisidores distinguiam vários graus de heresia.64 Até mesmo os teó­
logos que davam uma definição precisa do pecado de heresia tomavam
íides e, portanto, haeresis, no sentido que por extensão abarcava a
íides mediata e tudo aquilo que pertence à integridade na conformidade
à doutrina comum da Igreja, sem que se tratasse em todos os casos
de fé formal e definida.® A cláusula de anátema está longe de quali­
ficar sempre uma doutrina herética.“ Até nos cânones do Concílio de
Trento anathema e íides podem aplicar-se, não só à fé definida, mas
também ao proximum íidei, ao theologice certum e a uma lei eclesiástica
universal (cf. P. Fransen, cit. nota 66).
Todavia, é certo que a noção ampla e até mesmo um pouco con­
fusa de heresia foi criticada por Tomás de Aquino, o qual — preci­
sando que a simonia, por exemplo, não é heresia a não ser de maneira
analógica,67 — estende a noção de heresia a toda desobediência para
com a Igreja romana.68 Preocupa-se muito em qualificar com exatidão
os erros, sobretudo à medida que vai conhecendo melhor os testemunhos
da tradição e particularmente as atas dos concílios; assim, em suas
últimas obras, vê na tese do assumptus-homo uma heresia condenada pela
Igreja nos concílios.69 Todavia, não é necessário, segundo Tomás de
Aquino, que um ponto esteja expressamente definido para que seja
possível a heresia com relação a ele; basta que as exigências da fé

tenendum tradidit, non catholicus vel fidelis, sed plane haeretieus existit» (PL.
139.462B ).
63Como o propôs L. G a r z e n d, L ’Inquisition et Hiéresie. Distinction de
l’hérésie théologique et de l’hérésie inquisitoriale. Ä propos de l’affaire Galilée,

“ Sobre este último ponto, cf. D T h C VI/2 (1920), 2214.


m Cf. A. L a n g , D ie Gliederung und die Reichweite des Glaubens nach
Thomas von A quin und den Thomisten: D T h 20 (1942), 207-236 ; 21 (1943),
79-97; id., D ie conclusio iheologica in der Problemstellung der Spätscholastik:
D T h 22 (1944), 257-290; id., D e r Bedeutungswandel der B eg riffe «íid e s» und
«haeresis» und die dogmatische W ertung der Konzilsentscheidimgen von Vienne
und Trient: M T h Z 4 (1953), 133-146; C. P o z o , L a noción de «h erejía» en el
derecho canónico medieval: E E 35 (1960), 235-251; P. F r a n s e n , Problèm es
d’autorité, Paris, 1962, 93-100.
® Acrescentem-se aos estudos anteriores R. F a v r e , Les condamnations
avec anathème: B L E (1946), 236-241; (1947), 31-48; H. L e n n e r z, N o tu læ
Tridentinae: G r 27 (1946), 136-142; P. F r a n s e n , D ie Form el «S i quts d ix erit.. . » :
«Scholastik» 25 (1950), 492-517.
81I V Sent., d. 13, q. 2, a. 1 ad 3; S. Th., II-II, q. 100, a. 1 ad 1.
68Quodl., V II, 18 ad 5.
® S. Th., III, q. 2, a. 6. Cf. H. D o n d a i n e , Qualifications dogmatiques
de la théorie de FAssumptus-homo dans les oeuvres de St. Thom as: R S P h T h
2S (1941-42), 163-168. Correções muito precisas, feitas sobre o manuscrito Vat.
lat. 781 de D e veritate em matéria de qualificações teológicas, são um a das
múltiplas provas que atestam que este manuscrito representa o texto ditado
pessoalmente por Tomás de Aquino a seus secretários (H . D o n d a i n e , St.
Thomas d’A quin et ses secrétaires, Roma, 1956).
68 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

tenham sido suficientemente manifestadas.TOFinalmente, Tomás de Aqui-


no define a heresia como uma espécie de infidelidade, pecado ou vício
diretamente oposto à fé não por simples ausência, mas por contrarie­
dade. O ato herético é aquele pelo qual se falta em geral contra aquilo
que constitui formalmente a fé, não por se recusar a crer em Jesus
Cristo — a heresia só pode ser pecado de cristãos, e inclusive de bati­
zados, 71 — mas por não se querer escolher e seguir o caminho verda­
deiro do ensinamento de Cristo, isto é, as formas autênticas deste ensi­
namento. O herege é aquele que segue uma interpretação própria esco­
lhida a seu arbítrio: «Intendit quidem Christo assentire, sed déficit in
eligendo ea quibus Christo assentiat, quia non eligit ea quae sunt vere
a Christo tradita, sed ea quae sibi própria mens suggerit».72

b) Definição da heresia

Durante séculos a fé e a heresia foram consideradas de um ponto


de vista moral, e a heresia como aquilo que é contrário ao sentimento
da Igreja; daí o sentido amplo de sua noção. Depois de Ockam, e
sobretudo depois da Reforma, a questão da heresia é considerada princi­
palmente do ponto de vista noético, quase epistemológico. Procura-se
determinar o que se deve aceitar de iiáe; classificam-se as diversas
espécies de verdades católicas. Para Bánez, por exemplo, é herética
somente a negação daquilo que é formalmente de fé. Deste modo, che­
gou-se a definir a heresia como «uma doutrina que se opõe imediata,
direta e contraditoriamente à verdade revelada por Deus e proposta
autenticamente como tal pela Ig re ja ».73 Cada um dos termos desta
definição traz uma precisão, e o conjunto de todos eles é necessário
para que haja heresia em sentido próprio.
Todavia, esta definição é deduzida inteiramente do objeto espe­
cífico, e caracteriza a heresia objetivamente e em si. Se se considerasse
a heresia no homem que a comete e enquanto pecado, como faz Tomás
de Aquino, seria necessário considerar o ato não só em seu objeto,
mas também em sua motivação; a heresia suporia então o apego à
própria opinião por orgulho.74 Atinge-se assim a questão da psciologia
do herege e da forma em que se chega à heresia, questão que estuda­
remos no parágrafo seguinte.
A tradição teológica acrescenta de maneira unânime uma precisão
decisiva. Não basta enganar-se em matéria de fé para cometer um pe-

™Cf. S. Th., I, q. 32, a. 4, a propósito das «noções divinas». Cf. S. Th.,


II-II, q. 11, a. 2.
" C f . C IC c. 1325,2: «P o st receptum baptismum si quis, nomen retinens
christianum, pertinaciter aliquam ex veritatibus fide divina et cathollca cre-
dendis denegat aut de ea dubitat, haereticus (est)».
” S. Th., n-II, q. 11, a. 1. Cf. «A m i du C lergé» (1952), 267-271.
75A. Michel, D T h C VI/2 (1920), 2211: explica a seguir os termos desta
definição.
” Tom ás de Aquino, Ioc. cit., ad 2, que assume o conteúdo do texto de
Agostinho citado supra, nota 59. Cf. C. S p i c q, L a malice propre du péché
d’hérésie: D T h (P ) 32 (1929), 143-159.
SECÇÃO I: A IGREJA É UNA 69

cado de heresia; ao erro é preciso acrescentar a períinacitas, a perti­


nácia, 75 ou a contumacia, a obstinação.16 Como observa Cayetano, uma
proposição pode ser em si mesma falsa ou contrária à fé, mas não é
em si mesma herética. No sentido preciso do termo, esta qualificação
depende da atitude e da situação de quem mantém tal proposição.
Não há pecado de rebeldia a não ser quando alguém, ao professar um
erro em matéria de doutrina, recusa deixar-se ensinar e corrigir pela
igreja e se obstina em manter sua opinião pessoal contra o juízo da
Igreja.

c) Como se chega à heresia?

O que dissemos anteriormente sobre a maneira pela qual surgem


os cismas pode aplicar-se, com as devidas transposições, às heresias.
O comportamento contrário ao agere ut pars se torna aqui juízo pró­
prio, e o papel especial do nacionalismo se converte em apego a uma
filosofia particular ou a um meio particular de pensamento.
« ) Ao menos desde Tertuliano, é costume sublinhar o valor etimo­
lógico da palavra: «Haereses dictae graeea voce ex interpretatione elec-
tionis qua quis maxime sive ad instituendas sive ad suscipiendas eas
utitur».77 Assim fazem Clemente de Alexandria,78 Jerônimo,79 Agos­
tinho, 80 Isidoro de Sevilha,81 Rabano Mauro,82 Tomás de Aquino,83 os
autores dos séculos X V I e X V I I 84 e particularmente Bossuet.85

75Cf. J. Madoz, citada supra, nota 56. Cf. Agostinho, Ep. 43 1 ( P L 33,160);
D e Civ. Dei, X V III, 51 ( P L 41,613): texto citado por Graciano; Tomás de
Aquino, S. Th., I, q. 32, a. 4; II-II, q. 2, a. 6 ad 2; q. 5, a. 3; a. 4 ad 1;
q. 11, a. 2, sed c. et ad 3; D e Maio, q. 8, a. 1 ad 7; In GaL, c. 1, lect.2;
Alberto Magno, I Sent., d. 11, q. 6; «E rr o r est dicere Spiritum Sanctum non
procedere a Filio, at defendere haeresis est». P a ra os autores modernos,cf.
D T h C VI/2,2223. P o r isso aqueles que estão dispostos a corrigir-se, caso to­
mem consciência, não podem ser tidos como hereges: Agostinho, Ep. 43, 1
( P L 33,160); D e bapt., IV , 16, 23 ( P L 43,169); E n. in Ps., 30, 8 ( P L 36,244);
Contra mend., I l l, 4 ( P L 40,52).
™Agostinho precisa que p ara chegar a ser herege é necessário resistir
«contumaciter»: a mesma referência como na nota precedente e D e Gen. ad
litt., V II, 9,13 ( P L 35,160). João de Salisbury escreve no século X I I : «H aere-
ticum namque facit non ignorantia veri sed mentis elatio contumatiam
pariens et in contentionis et scismatis praesumptionem erumpans» (Hist. Pont.,
c. 9 [ed. R. L. Poole, Oxford, 1927, 22]). Cf. A. G o m m e n g i n g e r , Bedeutet
die Exkom m unikation Verlust der Kirchengliedschaft? Z k T h 73 (1951), 420.
” Praesc., 6, 2. O padre Refoulé (SourcesChr 46 [1957], 95, nota 2) dá estas
referências: Praesc., 42, 8; D e res. carnis, 40; Adv. Marc., I, Is (Oehler, III,
292, 3, e 236, 2).
™Strom., V II, 16 (P G 9,536).
Comm, in E p. ad Gal., 5, 20 ( P L 26,417): «AEdeoiç ab electione dicitur,
quod scilicet earn sibi unusquisque eligat disciplinam quam putat esse meliorem.
Quicumque igitur aliter Scripturam intellegit quam sensus Spiritus Sancti
flagitat, quo conscripta est, licet de Ecclesia non recesserit, tamen haereticus
appelari potest et de carnis operibus est, eligens quae peiora sunt»; A d Tit.,
1, 11 ( P L 26,518).
80D e bapt., V, 16 ( P L 43,186s); o texto do Contra Faustum foi freqüen­
temente citado: «Q ui in Evangelio quod vultis creditis, quod non vultis non
creditis, vobis potius quam evangelio creditis» (c. X V II, 3 [ P L 42,342]). Cf.
também J. de Guibert, art. cit. (supra, nota 56), 372, que indica Contra
Eaustum man., I, 32, c. 17 ( P L 42,507); In J®., 5, 19, tr. 18 ( P L 35,1536). A
heresia como obstinação no erro, inclusive puramente interior: D e bapt., I, 4,
n. 23 ( P L 43,169).
81Etymol., V III, 3, 2ss ( P L 82,296C), que toma os termos de Tertuliano.
53D e clericomm instifc, lib. II, c. 58 ( P L 107,371).
70 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Os heresiarcas foram precisamente em muitos casos espíritos me­


díocres.80 Pode-se concordar com W. N igg que, com freqüência, foram
ou teriam podido ser homens dotados de grande dinamismo cristão e
religiosamente criadores.87 Isso nos permite justamente adivinhar o «lu­
gar» da dificuldade, que é o de uma articulação entre o princípio pessoal
e o princípio comunitário, entre as capacidades pessoais de criação e
as regras sociais da tradição : «Nihil innovetur nisi quod traditum est».88
O problema dos possíveis hereges é lançar mão de recursos e satisfazer
exigências que superam o ordinário, dentro da comunhão da Igreja e
sem romper com a tradição. E ’ um problema de comunhão no espaço
e no tempo. Ê, no fundo, o problema que estudamos em Ivraie et fausse
réforme dans l’Église (Paris, 1950; 21969).
O herege é aquele que segue sua idéia até desenvolvê-la teorica­
mente sem que o detenha o fato de situar-se em contradição com a
Igreja e sua tradição. O herege não segue a tradição; às vezes delibe­
radamente não tem interesse em informar-se sobre ela, confiando em
sua própria mente. E ’ o que o historiador Sócrates nos diz de Nestó-
rio,89 e o bispo Basílio dos neumatômacos, a quem combateu.80 Por isso
costuma-se censurar aos hereges o fato de viverem sem pais, começando
por si mesmos. ” Pelo contrário, fazem-se pais de uma nova seita, que
denuncia sua ilegitimidade e falsidade para sempre ao adotar o nome
de seu iniciador: fala-se de maniqueus, de sabelianos, de arianos, de
nestorianos. . . ; 92 esta é uma triste paternidade oposta à dos homens

« I V Senti., d. 13, q. 2, a. 1; S. Th., II-II, q. 5, a. 3, e q. 11, a. 2;


In 1 Cor., c. 1, lect. 2, e c. 11, lect. 4; In Tit., c. 3, lect. 2.
" Cf. referências em DTh.C VI/2,2210s.
65Histoire des variations, prólogo: « E ’ próprio do herege, isto é, daquele
que tem uma opinião particular, apegar-se a seus próprios pensamentos; o
característico do católico, isto é, do universal, é preferir o sentimento comum
de toda a Ig re ja a seus própiios sentimentos». Prem ière Instruction Pastorale
sur les promesses de l’Ëgrlise: «P o r ai se entende claramente a verdadeira
origem de católico e de herege. O herege é aquele que tem uma opinião:
isso é o que a palavra manifesta. Que significa ter um a opinião? E ’ seguir
seu próprio pensamento e seu sentimento particular» (Oeuvres, ed. Lachat,
X V II, 112).
m Jerônimo escreve com um pouco de exagero : «N ullu s potest haeresim
struere nisi qui ardentis ingenii est es habet dona naturae, quae a Deo
artifice sunt creata» (In Os., lib. II, c. 10, c. 1 [P L 25,902] ) ; Agostinho aplica
aos heresiarcas a palavra montes (In Jo., tr. I, 3 [P L 35,1381)]) e escreve:
«N o n putetis, fratres, quia potuerint fieri haereses per aliquas parvas animas.
N on fuerunt haereses nisi magni h o m in es...» (En, in Ps., 126, 5 [ P L 37,1652]).
81W . N i g g , D as B u oh der Ketzer, Zurique, 1948, 18s. N ão seguiríamos
este autor no otimismo com que procura reabilitar numerosos hereges.
88Célebre fórm ula de Estêvão I: cf. Dz 46; D S 110. Seguimos a interpre­
tação de P. J. D olger («A nt. u. Chr.» 1 [1929], 79s e 319: que não se renove
(o batismo) ; é mister ater-se à tradição.
** Hist. Eccl., V II, 32, 8 ( K 865).
” « Os ensinamentos dos Padres são desprezados; as tradições apostólicas,
tidas em conta de nada; são os descobrimentos de homens amantes de novi­
dades os que gozam do favor das igrejas. Já não há teólogos, mas apenas
lógicos polemistas. Os verdadeiros pastores foram expulsos e os lobos m alfei­
tores introduzidos no redil» (Basílio, Ep., 90, 2 [P G 32,473B]).
M «N ossas idéias foram transmitidas de pais a filhos, mas que pais têm
os arianos p ara suas opiniões?» (Atanásio, Decr. Nic. Syn., 25ss [P G 26, 480s]).
“ Cf. Justino, Dial., 35, 4 e 6; Clemente de Alexandria, Strom., V II, 17
(Stãhlin, III, 75) ; Orígenes, Hom. in Luc., X V I (Bauer, 109) ; Bernardo (a
propósito dos neomaniqueus tolosanos), In Cant., 66, 2 ( P L 183,10940. Cf.
infra, nota 110.
SECÇÃO I: A IGREJA fi UN A 71

tradicionalmente chamados «Padres», e sobretudo à dos Padres da


Igreja, que foram tais precisamente por não criarem uma escola nova,
mas por interpretarem mais claramente aquilo que eles mesmos tinham
recebido na Igreja e da Igreja. Agostinho não é padre da Igreja como
iniciador do agostinismo; pode-se mesmo dizer que o é apesar disto,
por ter ensinado à Igreja o que dela havia aprendido, como ele mesmo
diz,98 com a profundidade de seu gênio, de sua santidade. Ario, pelo
contrário, não tem outra paternidade afora a do arianismo. E ’ o chefe
de uma escola que traz seu nome. E ’ próprio do herege inaugurar uma
escola de pensamento fora daquele que o único Mestre tem em sua
Igreja.84
Sempre se caracterizou o herege, se é verdadeiramente culpado do
pecado de heresia, como o homem que introduz seu prórpio modo de
ver e suas próprias idéias nos dogmas da Igreja,93 Ao fazê-lo, o herege
substitui a fé divina por uma opinião humana não só quanto ao con­
teúdo objetivo, mas também quanto ao motivo de adesão pelo qual a
fé se distingue. O herege não crê realmente porque a verdade absoluta
se revelou assim segundo os caminhos instituídos por ela para esta reve­
lação, mas porque ele mesmo vê deste modo as coisas, no termo de
seus raciocínios e interpretações.96 Com isso, perdendo a fé seu caráter
propriamente divino perde-o também todo o edifício espiritual cons­
truído a partir dela, para passar a ser um puro empreendimento hu­
mano. A Igreja de Deus, vinculada pelas missões temporais do Verbo
e do Espírito ao princípio da estabilidade e da vida divina (cf. supra,
47s), foi substituída por uma construção humana que o fogo do Juízo
destruirá (cf. ICor 3,10-17). E como o fim corresponde ao princípio,
a heresia como tal não comunica a salvação que vem de Deus; é
estéril para a vida e só gera para a morte. Todavia, nem tudo é negação
na heresia; se assim fosse, estaria totalmente fora do âmbito do cris­
tianismo. O herege é um cristão que começou vivendo na Igreja. Sua
intenção não é o erro como tal, coisa absolutamente impossível. O herege
começou por enganar-se e logo se obstinou em seu erro. Mas no prin­
cípio desenvolveu o que julgava ser a verdade a partir de certa percep­
ção da verdade que reputava, às vezes com razão, pouco desenvolvida
na Igreja. Os autores que mais profundamente refletiram sobre o pro-

03 o p u s imp. c. Jul., I, 117 ( P L 44,1125). Cf. Y. C o n g a r , L a Tradition


et Ses traditions, I I : E ssai théologique, Paris, 1963, 201; id., L ’esprit des Pères
d’après Möhler, em Esquisses du mystère de l’Église, Paris, 1941, 129-148.
“ Cf. J. A. Möhler, E in h e it..., § 34.
35A expressão de João Crisóstomo, In Gen., hom. 9 e 12 (P G 53,76B. 100);
H uit Catéchèses baptismales inédites = SourcesChr 50, Paris, 1957; Cat., I, 24.
x Cf. Tomás de Aquino, S. Th., II-II, q. 5, a. 3: «Form ale obiectum fidei
est veritas prim a secundum quod manifestatur in Scripturis sacris et in
doctrina Ecclesiae quae procedit ex veritate prima. Unde quicumque non
inhaeret sieut infailibili et divinae regulae doctrinae Ecclesiae quae procedit
ex veritate prim a in Seripturis sacris manifestata, ille non habet habitum
fidei, sed ea quae sunt fidei allô modo tenet quam per f i dem. . . , quae vult
tenet et quae non vult non tenet et iam non inhaeret Ecclesiae doctrinae
sieut infailibili regulae, sed propriae voluntati». Cf. I I I Sent, d. 23, q. 3, a.
3, q.a 2; D e ver., q. 14, a. 10 ad 10; Quodi, V I, a. 6; Quest. disp. de Caritate,
a. 13 ad 6; Agostinho, C. Faust., cit. supra, nota 80; O. K arrer, art. H erejia:
C F T II, Eds. Cristiandad, Madrid, 1966, 203-213.
72 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

cesso da heresia, partindo sobretudo do fato protestante, insistiram na


idéia de que a heresia se forma a partir da percepção viva de um ele­
mento de si verdadeiro, mas que é isolado dos demais e desenvolvido
de maneira apressada, sem conservar suas conexões com o conjunto.
Newman, sobretudo, mostrou claramente este fato,87 e dele, sem dúvida,
tirou Loisy a idéia de que as heresias «nasceram de deduções levadas
avante num sentido único a partir de um princípio de tradição ou de
ciência isolado de todo o resto, erigido em verdade absoluta, e do qual
se deduziram, por meio de raciocínios, conclusões incompatíveis com a
harmonia geral da religião e do ensinamento tradicional».98 Não se deve
simplificar esta visão das coisas. A heresia não consiste na percepção
de um elemento verdadeiro posto simplesmente de lado e ao qual se
acrescentaria, como que a partir de fora, uma negação ou qualquer
outra idéia falsa; neste caso, algo em si mesmo verdadeiro se conver­
teria em errôneo como por acidente. Também não se deve simplificar
a idéia freqüentemente proposta por Pascal: «Ordinariamente acontece
que, não podendo conceber a relação de duas verdades opostas e crendo
que a afirmação de uma comporta a exclusão da outra, confessam uma
e excluem outra e crêem que nós fazemos o contrário. A exclusão é a
causa de sua heresia e a ignorância de que também nós afirmamos
aquilo que eles afirmam, a causa de suas objeções. Jesus Cristo é Deus
e homem. Os arianos, não podendo conciliar estas duas afirmações, que
crêem incompatíveis, dizem que é homem; nisto são católicos. Mas ne­
gam que seja Deus; nisto são hereges... Todos erram tanto mais peri­
gosamente pelo fato de seguir cada um alguma verdade. Seu erro não
está em afirmar algo falso, mas em não seguir outra verdade».99
A verdade é que nas percepções mais vivas existe um perigo de
ambigüidade. Nós homens só vemos as coisas sucessivamente e de ma­
neira perspectivista, e corremos o risco de determo-nos aí a sancionar
nossa certeza pela negação ou exclusão de outra coisa cuja verdade
deveria ser igualmente mantida. Todo o mundo, num dado momento, se
encontra nesta situação. Por isso, nos doutores católicos, mesmo nos
santos, encontram-se proposições que, materialmente, se assemelham às
que se imputam aos hereges como errôneas. Não seria difícil mostrar
esta semelhança comparando algumas formas canonizadas com outras
condenadas. Exemplos:

— homousios em Paulo de Samósata e em Atanásio;


— enunciados, que poderiam ser pelagianos, em João Crisóstomo
(cf. intra, nota 102) ; pelo contrário, a Idade Média leu os comentários

81 Cf. H . Bremond, Newm an, I, 63; Newm an, Apologia, trad. de Michelin-
Deümoges, Paris, 1939, 294; Papiers New m an-Perrone: G r 16 (1935), 420 (n.
12), 443s; J. G u i t t o n , t a Philosophie de Newm an, Paris, 1933, 79s, 103s,
114s. Pode-se ver no mesmo sentido E . A. de P o u l p i q u e t , L e dogme,
source d'unité, Paris, 1912, 35, nota 1; A. R a d e m a c h e r , D ie W iederverelni-
gung der christlichen Kirclien, Bonn, 1937, 62s; A. A d a m , Spannungen und
Harmonie, Nurem berg, 1940 (21948), 21s, 60s.
ML ’É vangile et l’Église, 143; 21903, 187.
“ Pensées, ed. Brunschvicg, notas 862s. Textos muito numerosos no mes­
mo sentido. Cf. J. G u i t to n, Pascal et Leibniz, Paris, 1951, cap. IV .
SECÇÃO I: A IGREJA É UN A 73

de Pelágio sobre Paulo com olhar inocente, crendo que eram de Jerô-
nimo;
— a fórmula mia physis em Cirilo de Alexandria e nos monofisitas;
— os textos de Agostinho sobre a ecclesia praedestinatorum, no
próprio Agostinho e em João Huss (cf. o que dizia Torquemada: Mansi
30, 1009);
— o cânon 22 do I I Concílio de Orange e as proposições 25 e 27
condenadas de Bayo (Dz 195 e 1025, 1027; DS 392 e 1925, 1927).

Será que, como escrevia Pio IX, «a mesma proposição é católica na


boca de um católico e herética na boca de um herege»?”0 Assim é,
efetivamente, já que não são palavras, mas o sentido que se lhes dá,
que constitui o pecado.™ Não se pode tomar um conjunto de palavras
em sua pura materialidade, porque isso seria pura abstração. As pala­
vras só têm seu sentido num contexto, e este não se limita às poucas
linhas que o precedem ou o seguem, mas consiste no conjunto de um
pensamento e dos atos que o expressam. Este pensamento, por sua vez,
chegou ao espírito como uma flor a seu caule. Pode ser que seja insu­
ficiente em tal ou qual ponto concreto; mas num autor católico, na
comunhão de toda a Igreja, esta insuficiência é compensada pela inten­
ção e pela realidade de toda a vida e do próprio pensamento. Isto é o
que Agostinho explicava aos donatistas a propósito do bispo Cipriano
e aos pelagianos, referindo-se a alguns textos de João Crisóstomo que
invocavam em seu favor: «Falando no seio da Igreja católica, não
pensava ser compreendido de outra forma e em outro sentido que não
fosse católico. Ainda não tínheis suscitado vossas disputas e ele falava
com con fian ça...».“ 2 Nos homens que vivem na comunhão, um espírito
no qual nada é duvidoso recobre e protege o que pode haver de duvi­
doso nas fórmulas.103
Existe uma correspondência profunda entre o fato de estar na
verdade total e o de estar na comunhão total. As palavras de Ivan
Kireevski são profundas e traduzem perfeitamente o sentimento da tra­
dição: «Para a verdade total é necessária a totalidade do ser».304 Não
pode cada um encontrá-la, nem sequer para si mesmo, dada sua limi­
tação, a não ser pela comunhão com todos, no espaço e no tempo,
dentro da Igreja. Não se perde esta comunhão sem perder, na ordem
da crença, o sentido da relação dos elementos entre si, o sentido da

lm Breve de 3 de junho de 1877 à Companhia de Jesus: «E ad em propositio


in ore catholici est catholica, et in ore haeretiei est haeretica».
m «Sensus, non sermo, facit crimen» (H ilário de Poitiers, B e Trm., I I
[P L 10,50s]). Tom ás de Aquino adverte a propósito de um a opinião de Pedro
Lom bardo e H ugo de São Víctor: «Dicentes quidem verba errónea, sed
sensum erroris non habentes in fide» (S. Th., III, q. 50, a. 4).
102Contra Iul., I, 22 ( P L 44,656). P a ra Cipriano ef. os textos de D e bapt.,
no apêndice de E in h e it..., de Mohler. Cf. nosso estudo citado supra, nota 93.
™ Ambrósia, Ep. 48, 6, ao papa Siricio: «Si verba alicubi movent, non
praeiudicant fidei: etenim sermonem dubium mens non dubia obumbrat et
defendit a lapso» ( P L 16,1153).
1MCit. por A. G r a t i e u x, A. S. Khoiuiakov et le Mouvement slavophile,
I, L es hommes, Paris, 1939, 74.
74 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

relação dos elementos com o centro de tudo e o sentido do conjunto.105


Quando isso sucede, as próprias verdades, exorbitadas, podem perder
sua orientação, e aquele que as sustentava, entregar-se a um desenvol­
vimento rígido, solitário e aberrante das mesmas. «O espírito está pron­
to»; pode compreender facilmente e de maneira rápida, pela via dia­
lética, uma conseqüência lógica, uma diferença ou uma oposição. Pelo
contrário, para alcançar uma plenitude, é necessário muito tempo, muita
paciência, humildade e abertura aos demais. A heresia procede em
grande parte de uma percepção puramente intelectual de um elemento,
percepção que é, por isso mesmo, um ato solitário e impaciente.
A heresia revela a ambigüidade ou a insuficiência de determinadas
fórmulas que alguns doutores católicos haviam empregado de boa-fé.
Não se podem adotar sem mais, quando se levantou uma questão e se
denunciaram determinados erros, formas de falar ou atitudes e maneiras
de comportar-se, mesmo que estas se encontrem entre doutores cató­
licos que - viviam inocentemente na comunhão da Igreja. “ * A mesma
comunhão não pode ser mantida hoje a não ser que se integrem as
precisões que com o correr do tempo foram adquiridas. E ’ isso que
toma ambíguas algumas tentativas de repristinação: de Berengário de
Tours em matéria eucarística ou a dos jansenistas nas questões sobre
a graça e sobre a disciplina penitencial.
De resto, existe um perigo no processo necessário pelo qual a orto­
doxia se precisa contra os desvios. Se a heresia é um unilateralismo,
a declaração dogmática que esta heresia tomou necessária pode impor
à Igreja de tal forma a afirmação contrária que comporte igualmente,
a seu modo, um novo unilateralismo; este não será nocivo na mesma
medida, já que a afirmação dogmática de si não nega nada; a totali­
dade do ensinamento católico está contida na Igreja, nos tesouros de
sua tradição e de sua prática litúrgica. Todavia, são freqüentes os
casos de uma fixação tal do ensinamento e, às vezes, da pregação cor­
rente em sentido contrário ao erro combatido, que alguns elementos
da tradição parecem um tanto desvirtuados na consciência dos dou­
tores. Bastem estes dois exemplos: a reação contra o arianismo e o
semi-arianismo comportou, para além de uma insistência na divindade
de Cristo, conseqüências muito amplas na ordem do culto, a concepção

105Recordem-se os textos onde Ireneu mostra que os hereges não têm


uma visão de conjunto, systema (Adv. haer., IV , 33, 8 [P G 7,1017; Harvey,
II, 262]), e que são como uma pessoa que, com as pedras de um mosaico
que representa um rei, recompõe a figura de um cachorro. P a ra reunir os
pedaços de m aneira que se veja um rei é preciso conhecer a idéia do mo­
sai co. . . : Adv. haer., II, 28, 3 (P G 7,805; H arvey, I, S52); cf. Tertuliano, D e
Praesc., 39, 4s, com a nota de R. F. Refoulé, SourcesChr 46, Paris, 1957, 143,
nota 4.
a« freqüentem ente expresso por Agostinho, D e bapt., I, 7, 9 ( P L 43,114); II,
5, 6 ( P L 43,129s); II, 7, 12 a 9, 14 ( P L 43,133ss); V II, 53, 102 ( P L 43,243), e
supra, nota 102; D e praed. sanct., 14, 27 ( P L 44,380). É, além disso, 03 textos
de Agostinho sobre a idéia de que não se podem adotar, depois de ser susci­
tada e definida um a questão, fórmulas que antes poderiam ter sido usadas
de boa-fé: D e bapt., I, 6, 10 ( P L 43,202). Cf. também Tomás de Aquino, S. Th.,
I, q. 32, a. 4; Contra errores graecorum, proem.
SECÇÃO I: A IGREJA E UNA 75

da função do sacerdote, a apresentação da economia cristã, etc.; 101 a


Contra-reforma trouxe consigo uma insistência unilateral na definição
da Igreja como sociedade e em sua estrutura hierárquica e visível.
As reações, com seu correspondente unilateralismo, produzem-se
em cadeia. Observou-se com freqüência que as rupturas se condicionam
mutuamente; a do século X V I poderia ter-nos sido poupada se se tivesse
evitado a ruptura secular entre Oriente e Ocidente. Em todo caso, é
evidente que o desenvolvimento quase monstruoso do aparelho clerical
e de certas práticas externas nos séculos X IV e X V ocasionou a Re­
forma, a qual é, por sua vez, um caso monumental de unilateralismo
que provocou o unilateralismo da Contra-reforma e de um ultramon-
tanismo exasperado por outras reações (jansenismo, galicanismo). Re­
cupera-se a saúde com a atual volta às fontes da Escritura, a liturgia,
os Padres gregos e os latinos, ao mistério cristão em sua pureza e em
sua plenitude viva. Procura-se sair dos unilateralismos, e o diálogo
ecumênico dá todo seu alcance a este movimento. Coisas das quais já
não se falava, nem praticamente se podia falar, voltam a se apresentar
à consciência católica, que de novo merece ser assim chamada com
toda a verdade.
ß) Da mesma forma como sublinhamos a importância do naciona­
lismo nos cismas, assim devemos agora assinalar o papel que o abuso
da filosofia desempenhou nas heresias. E ’ um tema que aparece cons­
tantemente desde IreneuJ0S e Hipólito em seus Philosophoumetia, “ pas­
sando por Tertuliano, que coloca nisso certa virulência e qualifica os
filósofos de «patriarcas dos hereges», ““ e depois por Epifânio com seu
Panarion, Jerônimo m e Isidoro. “ A aproximação entre filosofia e heresia
era facilitada pelo fato de que entre os Padres antigos se dava às escolas
de filosofia o nome de «heresia» e com freqüência as seitas heréticas,
em particular as gnósticas, foram chamadas «escolas». “ Poder-se-ia
pensar que nestes autores existe uma desconfiança de princípio frente
à filosofia. Mas tanto Atanásio como Gregório Nazianzeno fazem cen­
suras semelhantes aos arianos, e os estudos históricos modernos mos­
traram a parte da filosofia, a de Platão como a de Aristóteles e dos

lw Cf. a expo3Íção, na verdade um pouco reconstruída e unilateral, mas


muito sugestiva, de J. A. J u n g m a n n, D ie A bw eh r des germanischen A ria­
nismus und der Um bruch der religiösen K ultu r im Fruhmittelalter: Z kT h 69
(1947), 36-99 (repioduzido em Liturgisches E rb e und Pastorale Gegenwart,
Innsbruck, 1960, 3-138); id., Die Stellung Christi im liturgischen Gebet, Münster,
19215.
loaAdv. haer., II, 14 (P G 7,74Ss; Harvey, I, 287s).
™ Cf. Com. in Dn, IV , 20 (ed. Bonwetsch, 234), e as dissertações prelimi­
nares reproduzidas em P G 7,45s.
130 Cf. JPraesc., 7 (com as notas de R. F. Refoulé, SourcesChr 46, Paris,
1957, 97s); Adv. Marc., 5, 19, 7; Apol., 46, 18; D e an., 2, 2s («philosophis. ..
patriarchis, uí ita dixerim, haereticorum »); Adv. Herrn., 8, 3:«Philosophi,
patriarcliae haereticorum», expressão aprovada por Jerônimo, Ep. 133, 2 (P L
22,1148). A s heresias não têm pai legitimo: supra, nota 92.
111C f. nota precedente e In N ah, 3, 17 ( P L 25,126SC).
m Orig., 8,3,2-3, e 6,22-23; c f. J. F o n t a i n e , Isidore de Séville et la
culture classique dans 1’espace wisigothique, Paris, 1959, 594s.
m Cf. referências no artigo atpsoiç do T h W II, 183, com as notas 13s.
76 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA

estóicos, ” * nos sistemas gnósticos, ™ na corrente monarquiana116 e, de­


pois, no arianismo, w no nestorianismo,318 etc.
O abuso não é motivo para que se impeça o uso, mas não deixa
de constituir uma advertência. De resto, a filosofia só está aqui em
litígio por ser a atividade mais elevada da razão. O que origina as
heresias é certa independência da razão quando esta deveria manter-se
submissa e em comunhão.

3. Situação dos hereges e dos cismáticos


em relação a Igreja

O pecado de heresia destrói a virtude sobrenatural da fé e faz


perder a graça santificaate. O pecado de cisma destrói a caridade, mas
deixa, de si, subsistir a fé e a esperança informes. Quais são os efeitos
destes pecados? Em que situação colocam aquele que os comete com
relação a este corpo social visível de instituição divina que é a Igreja?
Para os Padres não há dúvida: hereges e cismáticos estão fora da
Igreja. Não podem ser chamados membros dela. “ A teologia moderna
distingue o caso daqueles que cometeram pessoalmente o pecado de
cisma e o dos que somente nasceram ou cresceram numa comunhão
religiosa surgida da heresia ou do cisma.

a) Batizados que cometeram pessoalmente


o pecado de cisma ou de heresia.

a) Pode tratar-se de um pecado oculto, isto é, puramente moral e


interior. As opiniões estão divididas.120 Belarmino, seguido pela maior

™Cf . R. A r n o u , art. Platonisme des Pères: D T h C X II/2 (1935), 2319s;


P . H a d o t, Typus. Stoïcisme et monarchianisme au I V e siècle d’après Candide
l’A rien et M arius Vietorinus: R T h A M 18 (1951), 177-187; A. G r i l l m e i e r ,
D u Symbolum à la Summa, em É glise et Tradition, Lião, 1963, 115.
M. M. S a g n a r d , L a Gnose valentinienne.. Paris, 1947; R . A m ou,
art. cit., 2319.
™ Eusébio o assinala em Hist. Eccl., V , 28, 13. Cf. para este ponto e
os seguintes J. de G h e 11 i n c k, U n aspect de l ’Opposition entre Hellénisme
et Christianisme. L ’attitude vis-à-vis de la dialectique dans les débats trinitaires,
em Patris tique et Moyen-Âge, III, Bruxelas, 1948, 245-310; G. B a r d y , «Ph ilo­
sophie» et «Philosophe» dans le vocabulaire chrétien des premiers siècles : R A M
25 (1949), 97-108.
™Cf . R. Am ou, a r t cit., 2319s; P. H a d o t , L a philosophie comme hérésie
trinitaire: R H P h R 37 (1957), 236-251; C. H . Turner, op. cit. (nota 1).
138Cf. R . A r n o u , Nestorianisme et Néoplatonisme. L ’unité du Christ et
l’unité des «intelligibles»: G r 17 (1936), 115-131. Nestório contentava-se com
um a união muito menos estreita, união de atividades sobretudo, entre o Filho
de Deus e o Filho de M aria, união que Porfírio reconhecia entre os seres
incorporais.
119Cf. o índice do Enchiridion Patristicum, n. 45; D T h C VI/2 (1924), 2228.
*” Cf. em D T h C os artigos Église (IV , 2162s) e Schisme (X IV , 1306s) ;
Th. Spacil, D e m cm bris Ecclesiae: «Bogoslovni V estnik» 6 (1926), 11-19; G.
Philips, Quaestiunculae quaedam de membris Ecclesiae: «R ev. Eccl. de Liège»
21 (1930) 235-241; S. Fraghi, D e membris Ecclesiae, Koma, 1937; F. X . Lawlor,
Occult Heresy and M embership in the Church: «Theol. Studies» 10 (1949);
K. Rahner, L a incorporaciôn a la Iglesia segûn la encíclica de Pio X I I «M ys-
tici Corporis Christi», em Escritos, II, Madrid, 1961, 9-94.
SECÇÃO I: A IGREJA É U N A 77

parte dos teólogos, sustenta que a maioria dos cismáticos e dos hereges
ocultos continuam sendo membros da Igreja. Efetivamente, embora te­
nha perdido atualmente a raiz interior da vida sobrenatural, o herege
secreto continua socialmente dentro desse corpo que é a Igreja, segundo
a estrutura sacramental e jurídica do mesmo. Outros teólogos, ao con­
trário, seguindo Suárez, pensam que não só o herege, mas o próprio
cismático oculto se excluiu dos membros da Igreja. E ’ verdade que
sua qualidade de membro sofreu consideravelmente; mas, a menos que
não se chame Igreja a Instituição pública e visível, de natureza ao
mesmo tempo sacramental e jurídica, à qual estes pecadores ainda estão
unidos segundo a ordem externa que rege esta instituição, deve-se-lhes
ainda reconhecer o caráter de membros desta instituição.
P) Tratando-se de cismáticos ou heréticos notórios, os teólogos,
unanimemente, declaram que deixaram de ser membros da Igreja, mes­
mo continuando unidos a ela pelo caráter batismal, o que lhes permite
serem sujeitos de censuras e de discriminações canônicas, mas também
possíveis sujeitos de reconciliação e de reintegração. Geralmente, os
teólogos pensam até que não se requer um pecado formal de cisma
ou de heresia, isto é, com plena advertência da gravidade do ato,
mas que basta o pecado material. m

b) Batizados que não cometeram pessoalmente o pecado de cisma


ou de heresia, mas pertencem a uma comunhão cristã surgida
de uma ruptura da unidade por heresia ou por cisma

O caso destes é diferente. Eles crêem de boa fé pertencer à Igreja


de Cristo, embora seja objetivamente falsa. Tal é o caso da imensa
massa daqueles que chamamos irmãos separados ou irmãos desunidos,
no princípio denominados «irmãos errantes». Aplicou-se-lhes, às vezes,
a distinção entre hereges (carismáticos) materiais e hereges (cismá­
ticos) formais. 123
Os Padres ignoraram esta distinção,123 mas alguns autores moder­
nos a estabelecem em benefício de nossos irmãos ortodoxos ou protes­
tantes.524 A distinção quer traduzir uma diferença muito real de situa­
ção, mas a traduz inadequadamente. A teologia moral católica conhece
certamente uma distinção entre pecado material (sem plena advertên­
cia) e pecado formal (com plena advertência). Mas, no caso em que
se aplica aqui a distinção, não há sequer pecado material de cisma
ou heresia. Dá-se apenas uma situação de fato: o nascimento, o cres-

10 Cf. D T hC VI/2 (1S21), 2228; K . Rahner, op. cit., 17s, 21 (nota 18).
F ragh i (op. cit., 89s) mantém aqui, como em outros pontos, uma posigão
mais estrita.
N ão conhecemos um estudo que indique a origem d a distinção. Bento
X I V a utiliza, por exemplo, p ara justificar que se pode prestar culto a santos
mortos no cisma: D e serv. D e i ..., lib. III, c. 20, n. 7 (Opera, III, 201, n. 7).
M Cf. S. Fraghi, op. cit., 85s.
321Assim, por exemplo, J. U r b a n , D e iis quae theologi catholici praestare
possint ac debeant erga Ecclesiam russicam, em A cta I Cone. V e le h ra d ...,
Praga, 1908, 13-35; J. B. S á g m i i l l e r , Lehrbuch des katholischen Kirchen-
rechts, 1/1, Friburgo, *1925, 119.
78 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

cimento, o exercício de uma vida cristã numa comunhão dissidente.


Não se pode chamar cismáticos ou hereges, nem sequer materiais, os
membros atuais de uma comunhão desta classe. Podem citar-se teste­
munhos que mostram como os Padres ou os papas evitaram fazê-lo.125
Por isso é melhor falar simplesmente de «dissidentes», com uma pala­
vra que expressa a situação de fato sem prejulgar a situação moral
dos indivíduos. "*
Podem estes «dissidentes» ser chamados «membros da Igreja»?
Pode-se levantar a questão a partir do cânon 87 do Código latino de
Direito Canônico: «Baptismate homo constituitur in Ecclesia Christi
persona», no qual os eanonistas contemporâneos dizem que não se deve
introduzir a distinção, ignorada pelo Código, entre «membro» e «su­
jeito». O sentido do cânon, dizem os eanonistas, é o seguinte: o batismo
dá a situação de membro na Igreja, com todos os direitos e deveres
inerentes.127 Só que alguns foram batizados, cresceram e vivem fora da
comunhão católica e, portanto, não se beneficiam nem de todos os
direitos nem de todos os laços inerentes a esta comunhão. Seu caráter
de membros conhece, pois, alguns limites: não são católicos..., não
cumprem os deveres de membros, não só no plano da vida pessoal —
0 que infelizmente acontece também com muitos católicos, — mas nem
sequer no nível no qual os membros estão unidos visivelmente ao orga­
nismo sacramental e jurídico no qual é dado ao mundo o sinal da
vinda de Deus e de sua aliança.328
O Concílio Vaticano II e, mais tarde, Paulo V I adotaram neste
ponto uma teologia bem definida: aquela da Igreja como comunhão
total na plenitude dos dons salvíficos de Deus. Todos os cristãos, mes­
mo «desunidos» (seiuncti a nobis), tomam-se pelo batismo membros
do povo de Deus e, portanto, da Igreja. Entre eles e nós não existe
a comunhão total, mas já existe uma comunhão imperfeita que o es­
forço por restaurar a unidade (unitatis redintegratio) procura restabe­
lecer em sua plenitude.

125Agostinho escrevia: «Q u i sententiam suam, quamvis falsam atque per-


versam, nulla pertinaci animositate defendunt, praesertim quam non audacia
praesumptionis suae pepererunt, sed a seduetis atque in errorem lapsis
parentibus acceperunt, quaerunt autem cauta sollieitudine veritatem, corrigi
parati cum invenerint, nequaquam sunt inter haereticos deputandi» (Ep. 43,
1 [ P L 33,1601). O pi’óprio Pio I X suprimiu, a pedido de Inácio Spencer, a
palavra «herética» das orações pela conversão da Inglaterra e a substituiu
pelo termo canônico geral (não muito melhor) de «acatólica».
™Cf . Ch. J o u r n e t , U n problème de termlnologie: schisme, hérésie,
dissidence: «N o v a et V etera» 23 (19-18), 52-84; id., I/Église du Verbe incamé,
II, Paris, 1951, 708s.
O batismo confere a condição de membro d a Igreja com todos os d
reitos e deveres inerentes: K . M ö r s d o r f , D ie Kirchengliedschaft im Lichte
der kirchlichen Rechtsordnung: «Theol. u. Seelsorge» (1944), 115-131; W .
Onclin, Considerationes de iurium subiectivo rum in Ecclesia fundamento et.
natura: «E ph . Iur. Can.» 8 (1952), 9-23; Eiehmann-Mörsdorf, Lehrbuch des
Kirchenrechts, I, Paderborn, 1959, 185s; B. Poschmann, D ie Kirehenglied-
schaft: «Z. f. Miss. Rel. W iss.» 39 (1955), 177-194 e 257-268; K . Algermissen,
Aktuelle Gliedschaft in der Kirche und die gnadenliafte Zugehörigkeit bzw.
Ilinordnung zu ihr: ThG l 46 (1956), 260-275; L. Bender, Persona in Ecclesia-
membrmn Ecclesiae: «A pollinaris» (1959), 1-15.
r a R. B r u n e t, L es dissidents àe bonne fo i sont-ils mestíbres de lÉ glise?
em Problem ! scelti di Teologia contemporanea, Roma, 1954, 199-218.
SECÇÃ.O I: A IGREJA Ê UN A 79

4. As heresias na vida da Igreja


e na história da salvação

«Oportet haereses esse» (IC or 11,19): o apóstolo São Paulo não


pensava exatamente nas heresias no sentido técnico e dogmático do
termo. O enunciado é circunstancial. Trata-se das divisões que a cele­
bração da Ceia do Senhor ocasiona entre os coríntios. Mas estas divi­
sões convertem-se em partidos, atacam a unidade da êjodriaía em seu
fundamento (a doutrina) e em seu coração (a eucaristia). A expressão
do Apóstolo supera, pois, o nível dos simples desacordos. De outro
lado, reveste-se de uma forma solene com um ôei: é preciso, é necessá­
rio. Alguns pensaram que esta expressão encobrisse uma alusão a um
ágraphon. “ Vários autores antigos poderiam apoiar a hipótese, mas
sem exigir mais do que uma referência a diferentes advertências con­
tidas em nossos evangelhos canônicos e que teriam sido resumidas
numa fórmula sintética. Deixemos esta hipótese. A expressão ôeí, oportet,
tem uma significação bastante determinada no N T .131 Não se refere
a uma necessidade procedente da natureza, como no paganismo, mas
ao cumprimento da vontade de Deus no mundo, vontade que se refere
à salvação do mundo e que em Jesus Cristo, sobretudo em sua morte
e sua ressurreição, iniciou o processo escatológico da salvação. O termo
contém, pois, uma conotação escatológica. J. Dupont (cf. nota 3) o
relaciona com seu uso em ICor 15,25 e 53.
Ora, o anúncio dos perigos procedentes de falsos doutores tem
também uma referência escatológica: a heresia na passagem de Paulo
que nos interessa é uma realidade escatológica no sentido de que é a
negação e a antítese do ato escatológico pelo qual Deus suscitou sua
Igreja como sacramento de sua aliança definitiva e de sua salvação.“
E ’ preciso (ôeí) que haja divisões em relação àquilo que une o povo
de Deus e o constitui o corpo de Cristo para que se revelem as dispo­
sições íntimas (cf. Lc 2,35) diante do juízo final. A própria eucaristia
tem um valor escatológico (cf. v. 26). «Por isso, quem come o pão
ou bebe o cálice do Senhor indignamente deverá responder pelo corpo
e pelo sangue do Senhor» (v. 27), e também por sua palavra e por
sua fé que tiver pregado (cf. ICor 3,10-17), segundo o rigoroso para­
lelismo e a conexão dasi duas formas do pão da vida.133
Na tradição patrística e teológica, o oportet haereses esse foi expli­
cado, em relação às heresias em sentido dogmático da palavra, em
duas direções, que, de resto, não se excluem.
Em primeiro lugar, em razão da necessidade de provar a fé dos
verdadeiros fiéis, é o sentido diretamente paulino que aparece em
m Assim, Resch, segundo Alio. A s indicações a este respeito podem ser
encontradas em E. B u o n a i u t i , Saggi sul cristianesimo primitivo, Città di
Castello, 1923, 276.
a í Justino, Dial., 35, 3; Didascalia siríaca, 118, 35. Cf. J. Dupont, op. cií.,
(citado supra, nota 3), 125.
131Cf. W . Grundmann, ôeí: T h W II, 21-25. O artigo não cita nosso texto.
“ Cf. H. Schlier, aígsotç: T h W I, 182.
Cf. sobre isto Les deux form es d a P a in de vie dans M ívangile et dans
la Tradition, em Sacerdoce et laícat devant leurs tâches d’évan^élisation et
de civUisatton, Paris, 1962, 123-159.
80 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Tertuliano: «Não devemos inquietar-nos com as heresias; nem por sua


existência — que foi predita — nem pelo fato de que façam sucumbir
a fé de alguns, já que não tem outro fim senão o de provar a fé
submetendo-a à tentação».1S1 Cipriano via na discriminação assim pro­
vocada uma antecipação do juízo, «a frumento paleae separantur»,135 idéia
da qual abusaram os donatistas, forçando Agostinho a restabelecer a
perspectiva escatológica desta separação se a tomarmos no sentido
material. Esta é, talvez, uma das razões pelas quais Agostinho parece
ter explicado raras vezes nosso texto neste sentido.136 Vicente de Lérins
volta a utilizar a idéia de prova ou de tentação providencial com uma
feliz alusão a Dt 1 3 , 1 - 3 . Para que haja verdadeira vitória é preciso
que exista combate, dificuldade a superar. O Ocidente medieval parece
ter seguido sobretudo Agostinho na visão mais otimista dos frutos
suscitados na Igreja pelo choque da heresia. O aspecto dramático e
de prova encontra-se desenvolvido, segundo nosso modo de ver, não
tanto na grande tradição teológica como na abundante literatura, fre­
qüentemente apocalíptica, relativa aos períodos da história do mundo
e à interpretação das grandes crises vividas pela cristandade. O Con­
cílio de Constança faz seu o tema da prova dos verdaderios fiéis na
introdução de sua condenação dos erros de W ycleff (4 de maio de
1415).158 A tradição oferece-nos uma nova consideração: as heresias
obrigam os católicos a um exame mais atento e mais «.curado das
Escrituras; assim contribuem indiretamente para o progresso do co­
nhecimento dogmático. Orígenes diz isso com um otimismo cujo alcance
só é apreciado realmente ao pensar que se tratava de Marcião: «Se
a doutrina eclesiástica fosse simples e não tivesse sido atacada de todos
os lados pelos dogmas heréticos, nossa fé não teria podido ser tão clara
nem profunda. Quem saberia que a luz é boa se não sentisse os limites da
noite? A doutrina católica é assaltada pelas contradições de seus ini­
migos para que nossa fé não durma na ociosidade, mas seja fortalecida

“ Desde que escrevemos estas páginas (publicadas em «Istin a» [1964],


133-178), vários estudos abordaram a história e a interpretação do texto pau-
lino: H. Grundmann, Oportet et haereses esse. D as Problem der Ketzerei im
Spiegel der anittelalterlichen Exegese: «A rchiv f. Kulturgesch.» 45 (1863), 129-
164; P. Stegmüller, Oportet haereses esse: 1 K o r 11, 19 in der Auslegung der
Reformationszeit, em Reform ata reform anda (Hom . H. Jedin), I, Münster,
1965, 330-364; I. Pérez Fem ández, «Oportet haereses esse»: « L a Ciência To-
mista» 92 (1965), 291-311.
133D e cath. Eccl. unitate, 10: «Assim é que os fiéis se dão a conhecer;
assim é que as pessoas sem fé são descobertas; assim é que, desde este
mundo, antes do dia do juízo, se opera um a discriminação entre os justos e
os injustos e a palha é separada do trigo».
™ Cf. D e cat. rud., 24, 44, sem citar nosso texto: «Oportebat autem ut
eadem vitis, sicut a Domino identidem praedictum erat, putaretur, et ex ea
praeciderentur infructuosa sarmenta (Jo 15,2), quibus haereses et schismata
per loca facta sunt, sub Christi nomine, non ipsius gloriam, sed suam
quaerentium, per quorum adversitates magis magisque exerceretur Ecclesia, et
probaretur atque illustraretur et doctrina eius et patientia» ( P L 40,341).
1KCommonitoriujn, 10, 15 (ed. Jülicher, p. 14), 20, 25 (p. 30): «H o c est
enim quod in prim a ad Corinthios scribit: oportet, inquit, et haereses esse,
ut probati manifesti fiant in vobis; ac si diceret: ob hoc haereseon non statim
divinitus eradicantur auctores, ut probati manifesti fiant, id est: ut unusquis-
que, quam_ tenax et fidelis et fixus catholicae fidei sit amator, appareat».
138Concilíorum oecumenicoram Decreta, ed. Centro di Documentazione, B o­
lonha, 1962, 387.
SECÇÃO I: A IGREJA Ê UNA 81

pelo exercício. Por isso dizia o Apóstolo: «Convém que haja heresias».”“
Esta atitude é otimista. Orígenes é sensível ao aspecto de «escola»
como meio de conhecimento mais perfeito. A Celso, que apontava a
falta de unidade entre os cristãos, Orígenes responde que é bom que
haja na Igreja diferentes escolas (aloéoeiç), como há diferentes escolas
em medicina; é um sinal e um meio de enriquecimento.140
Se a heresia nos faz conhecer melhor a verdade, isso não significa
que a verdade não possa ser compreendida por si mesma, observa o
bispo Hilário.141 Isto é verdade, mas — repete constantemente Agostinho
— os católicos correriam o risco de dormir sobre o tesouro da Escritura
se as heresias não os forçassem a estudá-las. 142 Agostinho volta com
muita freqüência a este ponto. Deus não quer as heresias, mas tira o
bem do mal.143 As heresias são ocasião para aprofundar, precisar e
esclarecer melhor a verdade.144 De resto, se Agostinho se interessa sobre­
tudo por este aspecto, até o ponto de entender o probatis de Paulo no
sentido de provar, pôr à prova,145 mais do que no sentido de aperfeiçoar,
conhece também este aspecto e sabe relacioná-lo com o precedente.148
A idéia agostiniana da heresia providencialmente permitida em or­
dem a um melhor conhecimento da verdade aparece freqüentemente
durante a Idade Média; por exemplo, em Haimão de Auxerre e em
Hincmaro em meados do século I X , 141 em Mangold de Lauterbach em
fins do século X I , 148 em Ruperto de Deutz149 e Hugo de São V íctor159
no século X II. Em plena Reforma protestante, um dos melhores pole­
mistas católicos, o franciscano Gaspar Schatzgeyer, dizia que do erro
luterano haviam saído muitos bons frutos, na medida em que os cató­
licos se tinham visto forçados a ler mais assiduamente a Escritura,
a pregar coisas mais sérias e a voltar ao essencial do cristianismo.1®
Tomás de Aquino e Bossnet, espíritos tradicionalistas e sintéticos,
uniram os dois motivos cujo desenvolvimento acabamos de seguir. To*

In N m , hom. 9, 1 (P G 12,625; Baehrens, 55).


^ Contra, Celsum, 3,12s íKoetschau, 212).
145D e Trin., 7, 4 (P L 10,202).
143D e Gen. o. Man., 1, 2 CPL 34,173«0; En. in Ps., 7, 15 ( P L 36,106).
“ En. in Ps., 7, 15; 9, 20 ( P L 36,106.126).
144Os textos são muito numerosos e alguns deles foram reunidos por J. A.
Mohler, Einheit. . ap. X ; cf. J. H o f m a n n , D e r Ktrchenfoeg-iff des hl.
Augustinus, Munique, 1933, 306s. A ordem cronológica tem aqui muito pouca
importância. Todavia a. seguiremos: D e vera rei., 8, 15 (PL, 34,129); 25, 47
(142); Conf., V II, 19, 25 (PL. 32,746); D e Gen. c. Man., loc. cit. (nota 142);
D * Civ. Dei, X V I, 2, 1. e X V III, 51 (PL, 41,477.613); En. in Ps., 7, 15 (PL, 36,
106); 8, 20 (126); 54, 22 (643: um dos textos mais explícitos); 67, 39 (836s);
106, 14 (PL, 37,1429); Sermo 51, 11. Com Agostinho relaciona-se Salviano, de
um otimismo excessivo com relação aos bárbaros germânicos. Cf. P. L e b e a u,
Hérésie et Proviüence selon Salvien: N R T h 85 (1963), 160-175.
145Cf. En. in Ps., 106, 14 (PL, 37,1429).
143Cf. s«pra, nota 136, e En. in Ps., 7, 15 (PL, 36,106); 9, 20 (126).
147Haim ão, Exp. in Ep. Pau li ( P L 117,569; Hincmaro, D e una. . . deit.
( P L 125.482A). Extraím os esta. referência e a seguinte de H. de Lubac, Exé-
gèse méí*iévale, 1/1, Paris, 18R). 62s.
ms i n j>S] 7 e 54 ( P L 93,521C.770C). H. de Lubac acrescenta uma referência
a W ern e r de Saint-Blaise, Beflorationes, lib. I I (P L 157,105CC).
145In Num., lib. II, c. 13 (P L 167,891s).
M In Thren. ( P L 175.304BC): probatiores, no sentido de mais perfeitos.
131 E. I s e r l o h , D ie Eucharistie in der Darstellung des Johannes E c k . .
Münstez, 1950, 11.
82 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

más de Aquino precisa: não se pode dizer que sejam necessárias as


heresias do ponto de vista do ato, repreensível e por si mesmo catas­
trófico, que o herege pratica; mas pode-se assegurar que o são do
ponto de vista da intenção de Deus, que o permite porque sabe ordenar
o mal para o bem. O resultado é duplamente bom: «primo, ad maiorem
declarationem veritatis; secundo, ad manifestandam infirmitatem fidei
in his qui recte credunt», ou também: «dum constantia fidelium com-
probatur».352
Se se quiser resumir de forma concreta a contribuição das heresias
na história da Igreja poder-se-ia responder, segundo nosso modo de
ver: delas derivaram não somente os dogmas dos grandes concílios,
mas também os ensinamentos dos Padres. Quando se lêem estes últimos
—• Ireneu, Atanásio, Hilário, Basílio, Agostinho, — compreende-se como
se saiu de uma espécie de indistinção ou de semiconfusão a que se
refere W. Bauer. Eles consagraram seu tempo e seu esforço em obter
o verdadeiro sentido da Escritura de alguns textos, muitos dos quais
apresentavam dificuldades bem reais. Naquele tempo não era fácil dis­
cernir a linha da fé. Esta foi sua obra. Quando se contempla a
Synopsis scriptorum Ecclesiae antiquae do padre G. Dumeige (Ucde,
1956), tem-se uma vista impressionante daquilo que o acontecimento
patrístico supôs; por ele foi como que gerada de novo a Igreja de nossa
fé. Isto foi, em grande parte, resultado das heresias.
Mas hoje, que dispomos de melhor conhecimento das totalidades
históricas, da concatenação e do desenvolvimento das idéias, seríamos
igualmente sensíveis àquilo que as exigências dos «hereges» (daqueles
que foram declarados tais) podiam denunciar de insuficiência por parte
das posições ortodoxas. Isto se nos impõe sobretudo se se trata de
reações da consciência cristã, que foram ter, para além de negações
ou de erros particulares, numa nova leitura de conjunto do fato cristão.
Isto nos convida a fazer nossa e a prolongar a interpretação tradicional
do oportet haereses esse em condições e com recursos novos, tanto por
parte das realidades em causa como pela consideração que lhes pres­
tamos.

5. Heresias antigas e heresia4 de tipo « Reforma»

Tudo o que acabamos de dizer, com freqüentes referências aos


Padres da Igreja, aplica-se plenamente às heresias antigas que esses
Padres conheceram e combateram. Cremos que a realidade exige hoje
outras considerações. Antes de propô-las queremos fazer duas adver­
tências:
1) Condenamos com a Igreja tudo o que é herético enquanto tal.
Pensamos que nos enunciados da Reforma do século X V I se encon-

153In I ad Cor., c. 11, lect. 4; S. Th., II-II, q. 11, a. 3 ad 2. Cf. também


D e perf. vitae spir., c. 28: «N ulio modo melius quam contradicentibus resis-
tendo aperitur veritas et falsitas confutatur, secimdtim illud Salomonis 28, 7:
F erram ferro acuitur, et homo exacuit faciem amlci sui». P a r a Bossuet, cf.
IV * Lettre à une Demoiselle de Mete, nos. 13s; Prem ière Instruction pastorale
sur les promesses de lTSglise, §§ X I V e X X X IV ss.
SECÇÃO X: A IGREJA Ê U N A 83

travam, objetivamente, várias negações e várias fórmulas que, ao


menos tomadas materialmente, são heréticas e com as quais não que­
remos transigir.
2) Falamos aqui das grandes dissidências cristãs e principalmente
das comunhões surgidas das reformas do século X VI. Por isso, com
a intenção de simplificar a expressão, falamos com freqüência da Re­
forma. Tome-se isso por uma espécie de sinédoque. Nosso texto irá
apresentando razões objetivas sérias para distingui-las das seitas
modernas que saem do cristianismo. Consideramos estas comunhões
cristãs como fatos históricos e como fatos sócio-religiosos atendendo a
seu nascimento e à sua atualidade. Trata-se, pois, aqui de sua realidade
existencial concreta, que não pode reduzir a pontos heréticos even­
tualmente presentes em suas doutrinas.
Observemos, por último, que a tradição da Igreja tende a aprovar
e a conservar tudo que pode haver de bom nas heresias tomadas como
complexo existencial que supera a tese herética propriamente dita.w
Mais ou menos rapidamente, com maior ou menor atraso, termina-se
vendo que determinadas deficiências na Igreja se não justificaram, ao
menos explicaram, a reação que eventualmente degenerou em heresia.

a) Diferença entre as heresias de tipo «Reforma»


e as heresias antigas

a) Toda heresia afeta a verdade da relação religiosa que a reve­


lação, comunicada e interpretada na tradição da Igreja, nos faz conhe­
cer. A verdade desta relação, base da salvação, comporta dois elementos
principais. Em primeiro lugar, em Jesus Cristo o mistério de Deus
foi revelado e comunicado aos homens; em segundo lugar, na Igreja
e por ela, e no ministério eelesial instituído por Cristo, os homens
são colocados em relação viva com Cristo,354 e, por ele, com o próprio
mistério de Deus. A Igreja é ao mesmo tempo — estes são seus dois
aspectos principais — meio para pôr em relação de vida com Jesus
Cristo pela fé (viva) e pelos sacramentos da fé (Ecclesia congregans;
sacramento eelesial) e realidade de comunhão com Cristo ou assem­
bléia dos homens que vivem da comunhão com Cristo (Ecclesia con-
gregata).
Os Padres enfrentaram heresias relativas ao primeiro momento da
relação religiosa, o que acarretava eventualmente, e como conseqüên-

®*Cf. Agostinho, D e bapt., II, 19, 28 ( P L 43,154): «H aru m et talium rerum


consideratione patres nostri, non solum ante Cyprianum vel Agrippinum, sed
etiam post saluberrimam consuetudinem tenuerunt, nt quidquid divinum atque
legitimum in aliqua haeresi vel schismate integrum reperirent, approbarent
potius quam negarent: quidquid autem alienum, et erroris illius vel dissen-
tionis proprium, veraciter arguerent et sanarent».
““ P a ra estas reflexões servimo-nos do livro original — e que mereceria
ser tirado do esquecimento — do teólogo luterano H . Schmidt D ie Kirche.
Ihre biblische Idee und die Form ihrer geschichtlichen Erscheinung in ihrem
Unterschiede von Sekte und Häresie. Eine dogmatische und dogmengeschicht­
liche Studie, Leipzig, 1884. O autor ofereceu um resumo de suas idéias no
apêndice de seu Symbolik, Berlim, 1890, §§ 141s.
84 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

cia, uma adulteração do segundo momento. Tal era o caso da gnose,


a heresia talvez mais total com que se tenha defrontado o cristianismo.
O marcionismo, mais tarde o arianismo, o nestorianismo e o monofi-
sismo atacavam a verdade do primeiro momento, absolutamente funda­
mental, da relação religiosa. Estas heresias antigas eram heresias essen­
cialmente dogmáticas. Para refutá-las era suficiente que os Padres e
os grandes concílios precisassem e proclamassem o dogma pelo qual
ficaria restabelecida a verdade do ponto a propósito do qual era ques­
tionado o fundamento da relação religiosa: por Jesus Cristo, homem
verdadeiro (Calcedônia) e verdadeiro Deus (Êfeso), somos postos em
relação com a realidade de Deus Pai, Pilho e Espírito Santo (Cons­
tantinopla e Nicéia). Por isso os quatro primeiros concílios têm na
tradição cristã um valor fundamental para sempre.165
A partir daquele momento apareceram muitas outras heresias par­
ticulares. Cada uma delas se referia, deturpando-o, a algum artigo
particular da relação religiosa: montanismo, diferentes variedades de
heresias trinitárias (modalismo, etc.), maniqueísmo, pelagianismo, revi-
viscência das heresias cristológicas (monotelismo, iconoclasmo), predes-
tinacianismo de Gottschalck, espiritualismo eucarístico de Berengário,
neomaniqueísmo dos cátaros, síntese panteizante de David de Dinant
e de Amaury de Bêne, agostinismo exagerado dos jansenistas. .. Todas
estas, como as heresias fundamentais dos séculos IV e V, tinham a
particularidade de referir-se a um dogma concreto e não à situação
global da Igreja num momento histórico determinado. Eram heresias
teológicas relativas a algo intemporal.
A situação muda com as heresias populares do século X II às quais,
segundo nosso modo de entender, nem de longe se lhes atribui a im­
portância que merecem. Por não estarem representadas por teólogos e
carecerem de técnica teológica, não foram levadas a sério; além disso,
tratando-se de movimentos que punham em questão a ordem da socie­
dade cristã, foram reduzidos por meios políticos, sem proceder à inter­
rogação que exigiam. Pela primeira vez, ao menos de maneira ampla,
o lugar da heresia não era o raciocínio dos teólogos, mas a consciência
cristã. Pela primeira vez, elementos importantes da relação religiosa,
sobretudo no segundo momento dos dois que distinguimos, eram ques­
tionados partindo de uma crítica e de uma rejeição de todo um estado
de coisas que de fato era tipicamente medieval e fundamentalmente
caracterizado pelos traços tipicamente medievais do catolicismo oci­
dental: desenvolvimento do poder papal, afirmações ou reivindicações
temporais, sistemas pesadamente feudais, crescimento de certas práticas
exteriores do aparelho clerical, importância crescente dos doutores e
da Escolástica...
As heresias populares do século X II estavam desprovidas de teó­
logos e de apoios poiíticos. Por medíocre que fosse a teologia de
W ycleff e de Huss, ao menos não lhes faltavam títulos acadêmicos e
força social ou política, como também não faltaram a Lutero e à maior

150Cf. Y. C o n g a r , L a primauté des quatre premiers concites oecuméniques,


em L e Concile et les conciles, Paris, 1860, 75-109.
SECÇÃO I: A IGREJA É UN A 85

parte de seus êmulos do século X VI. As reformas protestantes podem


comportar em seus enunciados confessionais negações heréticas de tipo
teológico, mas como movimento de conjunto são algo inteiramente
diferente. Tais reformas situam-se na continuidade das heresias popu­
lares pelo fato de procederem de um movimento da consciência cristã
que, em nome do cristianismo genuíno e da autêntica relação religiosa,
questionam as formas que esta relação religiosa havia assumido em
seu desenvolvimento medieval de tipo papal, clerical, feudal, eclesiás­
tico e devocional. A Reforma tem um elemento notável: não ataca a
verdade da relação religiosa tomada em seu primeiro momento. Isso
não significa que não haja nada a observar nela neste plano: as
coisas são tão estreitamente solidárias que se toma impossível pôr
seriamente em litígio a instituição eclesial sem nada tocar no nível
das doutrinas cristológicas e talvez trinitárias.120 E ’ impossível rein-
terpretar radicalmente o segundo momento da relação religiosa sem
tocar a plena verdade cristã de seu primeiro momento, que é a união
do divino e do humano em Jesus Cristo. Nisto nos aproximaríamos
da heresia mais radical. Todavia, a Reforma quis manter os dogmas
fundamentais e relacionou-lhe a ruptura ao segundo momento da rela­
ção religiosa, àquele que se refere ao estatuto (eclesial) de nossa
união com Cristo. A Reforma pôs em questão as mediações sacramentais
e eclesiásticas e o próprio estatuto da Igreja.
Ainda neste ponto, todavia, a Reforma não procedeu da mesma
maneira que as antigas heresias teológicas. E ’ verdade que, em última
análise, chegou, como estas, a uma interpretação da Escritura; mas
esta era essencialmente orientada para a crítica de uma determinada
situação da Igreja, inseparável da história secular desta Igreja. A este
respeito, o caso da Reforma pode ser comparado com o do «Cisma
oriental». Em ambos os casos foi decisiva a referência a uma situação
histórica; a ruptura realizou-se em nome da verdade de elementos afir­
mados como autênticos e que a Igreja romana, de acordo com as
acusações, havia traído. Lutero, inicialmente, acreditou dever reivindi­
car contra a Igreja coisas fundamentalmente católicas. Esta é a con­
clusão de uma visão católica da história, tal como se encontra em
Lortz, nós a sustentamos e tal como a expõem, cada vez mais clara­
mente, todos aqueles que estudam esta história com o desejo de com­
preender o que realmente aconteceu.
P) No Ocidente desapareceram as antigas heresias teológicas. No
Oriente ainda existem corpos eclesiásticos, às vezes importantes, cujas
origens remontam às rupturas ocasionadas pelas heresias dos séculos
IV e V. Estas comunhões sobreviveram, e isto tem sua importância.
Por vezes conheceram momentos de atividade bastante intensa (recor­
dem-se, por exemplo, as missões nestorianas na China), resistiram ao
Islamismo (coptas «monofisitas») e tiveram seus teólogos e homens

158Cf. no volume D a s Konzil vou Chalkedon. Geschichte und Gegenwart,


III, W urzburgo, 1954, os estudos sobre a cristologia de Lutero (Y . Congar,
457-486), Calvino (J. L. Witte, 487-529), B arth e Brunner (H . Volk, 613-673),
etc. P a ra nosso estudo da cristologia de Lutero, cf. as observações acrescen­
tadas em Chrétiens en dialogue, Paris, 1964, 486-489.
86 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

espirituais. Assim, pois, o esquema apologético antigo um tanto fácil,


segundo o qual os cismas e as heresias seriam como ramos cortados
da árvore, sem seiva e sem fecundidade, m não vale adequadamente,
nem sequer aplicado àquilo que subsistiu das antigas separações; a
menos que se diga que este esquema tem sua verdade se tomado for­
malmente: a heresia, em quanto heresia, é estéril, não produz frutos
de salvação. Já vimos como isto tem fundamento dogmático. Mas «os
pedaços separados de uma rocha aurífera também contêm ouro».168
Em sua realidade existencial, as comunhões surgidas de uma heresia
ou de um cisma não são nem pura «heresia» nem puro «cisma» e podem
ser fecundas naquilo que têm de cristão, já que a própria heresia em
seu sentido formal é um ato de um cristão, retento nomine christiano.
Todavia, as antigas heresias produziram comunhões que quase não
desenvolveram novos valores no cristianismo. Com a Reforma não
acontece o mesmo. E ’ verdade que, infelizmente, a Reforma — sobre­
tudo seus teólogos ■— acumulou as negações e as dúvidas, mas ninguém
que a conheça verdadeiramente em sua realidade existencial negará
hoje que a Reforma desenvolveu valores que, naquilo que têm de
autêntico, pertencem pura e simplesmente ao cristianismo. Para só citar
coisas das quais temos experiência pessoal, mencionemos uma atitude
atenta e grave diante da palavra de Deus, um intenso trabalho bíblico,
uma ética de seriedade pessoal e de lealdade, o sentimento da sobe­
rania de Deus e o da ação de graças, uma concepção comunitária da
Igreja e determinadas formas de culto, a prática da responsabilidade
cristã diante da Ig r e ja ... Até mesmo em matéria de doutrina nem
de longe se pode dizer que tudo é falso ou aberrante na teologia
da Reforma. Não se pode considerar tudo, em bloco, como condenável
ou como algo que deva ser relegado ao esquecimento. Há muita coisa
positiva que é válida e que de direito pertence à catolicidade da Igreja,
que é uma realidade dinâmica sempre em vias de realizar-se.
Y ) Quer se trate das antigas «heresias» ou das comunhões sur­
gidas da Reforma, todas, com bem poucas exceções, apresentam hoje
um traço novo devido à sua participação no movimento ecumênico:
uma espécie de votum Ecclesiae e de votum catholicitatis. Na medida
em que este voto é verdadeiro e não exclui uma condição necessária
para que seja tal — esta exclusão o destruiria, por mais intensos
que fossem o calor e o lirismo dos sentimentos, — na medida em
que abre aa comunhões cristãs a uma vontade eficaz de revisão teo­
lógica e de reforma interior, exonera estas comunhões da suspeita
de pertinácia que, como vimos, caracteriza formalmente a heresia. Este
voto de catolicidade inerente ao ecumenismo revela nas comunhões dissi­
dentes a presença de um elemento positivo orientado para o futuro,

3151Assim, Cipriano, D e cath. EccL unitate, 23; Ep. 44, 1; 73, 2; Optato,
II, 9 («intelligite vos esse filios impios, vos esse fractos ramos ad arbore,
vos esse abscissos palmites a vite, vos rivum concisum a fo n t e ...» [ P L 11,962;
C S E L 26,45]); Agostinho, Ps. contra partem Donatá, w . 234-237; Oontra Cresc.,
IV , 60, 79 ( P L 43,588); In Jo, tr. X III, 16 ( P L 35,1501), etc. Retórica usada
em nosso tempo por J. de Maistre, D a pape, lib. II, cap. I ; lib. IV .
m Pio X I, alocução de 9-1-1927 à Federação de Universitários Católicos
Italianos.
SECÇÃO X: A IGREJA B UN A 87

como tudo aquilo que pertence à catolicidade. Isto acontece no mo­


mento preciso em que, por outras razões, nos vemos convidados a situar
nossa consideração das grandes dissidências cristãs, ao menos daquelas
que deram testemunho de vitalidade, numa nova visão das realidades
cristãs; porque são, efetivamente, realidades cristãs.

b) Razão e sentido de uma nova visão das coisas

Se os fatos de dissidência atualmente apresentam traços novos


comparados àqueles que os Padres conheceram, temos também atual­
mente, quando se trata de compreender seu sentido, um ponto de vista
novo ou renovado e recursos mais amplos.
A consideração doutrinal continua sendo imprescritivelmente válida,
mas hoje somos convidados a acrescentar a esta consideração um
esforço de pensamento histórico. O histórico chegou a ser uma dimen­
são do pensamento: não no sentido de relativização, como se tudo
fosse uma questão de momento e o que era verdade ontem pudesse
deixar de sê-lo hoje, mas no sentido de que, juntamente com uma
apreciação intemporal da verdade, há lugar para uma visão das coisas,
das próprias idéias e de suas fórmulas dentro da trama de um devir
plenamente histórico. Atualmente vemos melhor que a temporalidade
é uma dimensão do ser das coisas e que compreendê-la em seu devir,
isto é, em sua situação entre algo anterior e algo posterior, uma
realidade de onde elas procedem e outra à qual se dirigem, é um
meio de inteligibilidade original e fecundo. A temporalidade não é
um valor puramente negativo do qual seja mister libertar-se, já que,
não devendo permanecer, não é na realidade (Agostinho), mas é a con­
dição do homem em sua situação carnal, que implica sucessão, percep­
ções fragmentárias, sucessivas, progressivas.
O próprio Eterno entrou nesta lógica para estabelecer sua aliança
conosco. A revelação não só seguiu caminhos humanos, históricos desde
Abraão até João Batista, em Jesus Cristo, na obra dos apóstolos, mas
nem se completa, enquanto manifestação do mistério, a não ser na
Igreja na história e pela história que já não é inspirada nem revela­
dora do sentido estrito, mas que possui valor revelador. O mistério
da Santíssima Trindade, por exemplo, o da divindade pessoal do Espí­
rito Santo, não se revelam plenamente (na ordem do conhecimento
que convém à nossa situação de desterro e à nossa situação itinerante)
a imo ser graças à ação de Atanásio e de Nicéia, de Basílio e do
Concílio de Constantinopla.
Ê, pois, inteiramente certo que toda a história do cristianismo
comporta um valor positivo em relação com aquilo que Deus quer
desvendar e realizar. «A Igreja católica vive da convicção de que o
dom do Espírito não consiste numa luz independente da manifestação
histórica do sentido da Escritura, e de que esta manifestação histó­
rica se confunde com a própria existência da Igreja. Assim, a desco­
berta deste sentido da Escritura não pode operar-se independentemente
88 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

da totalidade desta história na qual se realiza nem da instituição


hierárquica que garante sua autenticidade».159
Tudo é orientado para um termo de manifestação e de realização.
A escatologia será o termo deste processo, termo no duplo sentido da
palavra: conclusão e aperfeiçoamento. O histórico aponta, para além
de si mesmo, em direção a um estado não-histórico que é seu termo
no duplo sentido de abolição do histórico e de seu resultado obscura­
mente procurado. Assim, pois, o que a história tiver realizado será
conservado para além da história em tudo aquilo que houver sido
positivo e válido: esta é sua salvação. A história é, pois, um caminho
e, em algum sentido, um meio de salvação; mas um caminho e um meio
cheios de ambigüidade. Em razão de sua historicidade e de sua condi­
ção carnal, o homem não pode, para ampliar seu conhecimento da
verdade, evitar certo número de tentativas falidas, de becos sem saída,
de erros e de alternâncias de teses diferentes, às vezes até opostas:
este é o caráter dialético do progresso. Em nossos próprios destinos
individuais a salvação será adquirida para além do histórico, através
das tentações, da fragilidade, dos desfalecimentos, das quedas, dos
pecados e de tudo aquilo que não é válido e que se mescla com o
que construímos de bom em nossa situação histórica. «E segundo
alguém constrói sobre este alicerce (Cristo) com ouro, prata, pedras
preciosas, madeira, feno, ou palha, a obra de cada- um tomar-se-á,
no seu tempo, manifesta, porque a tomará conhecida aquele dia que
se revela com o fogo, e o fogo avaliará a qualidade do trabalho de
cada um. Aquele, cuja obra construída sobre o alicerce resistir, esse
receberá a sua paga; aquele, pelo contrário, cuja obra for queimada,
esse há de sofrer-lhe o prejuízo; ele próprio, porém, poderá salvar-se,
mas como que através do fogo» (IC or 3,12-15).
Tudo isso não se aplica somente às pessoas individuais, mas a
todas as realidades históricas. Nesta perspectiva orientada para a esca­
tologia é que se deve ver toda a história do cristianismo, e não
somente a da Igreja, mas também a das heresias e dos cismas, que,
de resto, pertencem a esta história. 160 Efetivamente, pode-se seguir de
duas formas a história daquilo que a partir de Cristo, que é seu alia,
caminha para o termo querido por Deus, isto é, para o ômega da
história, que é também Cristo, mas com tudo aquilo que na huma­
nidade e em sua história é dele e para ele. Pode-se limitar a visão
e a investigação àquilo que foi produzido e desenvolvido dentro dos
lim ite da Igreja católica na qual perdura a Igreja fundada por Cristo

300R. M a r l é , L e problème théologique de 1’herméneutique, Paris, 1963,


122 (existe tradução espanhola). Cf. Y . C o n g a r , A H istória d a Igreja, «lu gar
teológico», em «Concilium» n. 57 (1970), 886-894.
160A idéia de englobar a história das heresias na história da Ig re ja não
foi mantida, pelo que nos consta, a não ser por historiadores protestantes:
J. C h a m b o n , W a s ist Kirchengeschichte? Massstäbe und Einsichten, Göt­
tingen, 1957; E. B e n z , Kirchengeschichte in ökumenischer Sicht, Leiden, 1961
(com apresentação e um juízo sobre a história universal das missões por
K . S. L ato u rette); na França, E. G. L e o n a r d , H is t du Protestantisme et
Eoclésiologie: «Istin a» 9 [1963], 319-330). M.-J. L e Guillou traçou um a síntese
teológica em cujas perspectivas se poderia situar esta concepção d a história
do cristianismo: L e Christ et 1’Église. Théologie du mystère, Paris, 1963.
SECÇÃO I: A IGREJA É UNA 89

e pelos apóstolos. Mas pode-se ou poder-se-ia buscar também aquilo


que, mesmo fora deste âmbito visível, trabalha em última análise para
o reino de Deus e a plenitude da colheita.O empreendimento seria
muito difícil; talvez seja até impossível de ser levado a bom termo;
mas ao menos pode-se traçar seu programa formal e definir seu
eventual projeto. E ’ impossível levar a bom termo, porque para isso
seria necessário ver as coisas como a sabedoria de Deus as vê, o que
só é possível ou pela visão reservada ao céu ou porque Deus nos
revela tais coisas, o que de fato não se verifica. Mas se, reservando
a Deus a condição de Senhor dessa história, pensarmos que esta his­
tória é real, podemos tentar adivinhar seu estatuto geral.
Isto supõe que nos situemos no ponto de vista escatológico. Ora,
já vimos que, para o apóstolo Paulo, o fato das heresias e a espécie
de necessidade de sua existência possuem uma referência escato ló­
gica. São Paulo não entende esta referência só em relação com a
utilidade de provar os verdadeiros fiéis, porém, mais amplamente,
na economia divina relativa ao final dos tempos. A tradição, instruída
pelos fatos, estendeu a apreciação da utilidade das heresias ao âmbito
da vida dogmática da Igreja e do progresso na manifestação dos mis­
térios revelados. Os Padres e Tomás de Aquino dizem constantemente
que se Deus em sua sabedoria permite as heresias é porque pode
tirar bem do mal; é, pois, por um fim inteiramente positivo. «Deus
escreve direito por linhas tortas», diz o provérbio freqüentemente
citado pelo padre Portal e no qual O. Cullmann reconheceu a lei que
preside a economia salvífica: não é este o único caso em que a expe­
riência histórica da Igreja a leva a superar a letra da escritura que
só fala em evita d o herege e em tomar as precauções mais absolutas
com relação a ele (pense-se, por exemplo, nas relações com o mundo,
na atividade dentro da sociedade). Hoje temos uma experiência mais
ampla do que os antigos. Temos um sentido histórico mais vivo.
Podemos apreciar em qualquer nível a gênese e o sentido histórico,
por exemplo, do «Cisma oriental», das heresias populares da Idade
Média, da Reforma. Tudo isso nos convida e, em nossa opinião, nos
autoriza a procurar um sentido positivo possível às rupturas e às
heresias enquanto realidades históricas concretas em relação com a
escatologia.
Falou-se, e com rasão, da ambivalência da história. Mostrou-se
como se desenrolou ao mesmo tempo dois processos: um de precisão
e de qualidade cada vez maiores, outro de separação e obscurecimento:
« A história se encaminha, ao mesmo tempo, por um duplo movimento
que a rompe interiormente, em busca de mais luz e mais trevas, e
prepara o duplo advento e o conflito supremo do anticristo e de
Cristo».K1 A idéia certamente é válida e convém conservá-la, mas pa­
rece-nos incompleta. Toda ela é concebida com referência à instituição

“ Cli, J o u r n e t , L ’Église du V erbe Incarné, II, Paris, 1951, 428s; cf.


também a conclusão, 1289s, e L a définition solennelle de l’Assomption, Saint-
Maurice, 1950, 36s. A idéia já tinha sido esboçada por J. Th. R o 11 e 1s,
Gottes Erziehung des menschlichen Geschlechtes in der Weltgeschichte durcli
Chiistus, Mogúncia, 1859.
90 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

eclesial visível e a seu organismo dogmático e não se dá conta de


maneira adequada de toda a realidade histórica concreta e das here­
sias. Em primeiro lugar, nem tudo é positivo e benéfico no processo
de dogmatização com a precisão progressiva que o acompanha. Os
Padres, embora julgando necessário este processo por causa dos erroa,
sublinharam ao mesmo tempo seu caráter perigoso: « A heresia nos
força assim — diz Hilário — a illicita agere, ardua transcendere,
ineífabilia loqui». ”* A necessidade de excluir o erro acarreta às vezes
a desgraça e a eliminação de noções ou de temas dos quais o erro
se havia utilizado abusivamente deturpando-os, mas que anteriormente
haviam tido e deviam conservar um lugar dentro do pensamento
católico. E ’ um dos caminhos pelos quais surgem regressões na cons­
ciência teológica ou pastoral, regressões cuja existência é reconhecida
por todos os historiadores das doutrinas ou pelos teóricos do desen­
volvimento dogmático.163 Este fato exige reformas e voltas às fontes
às quais não é alheio o choque provocado pelos heterodoxos. As
próprias heresias, em sua realidade histórica concreta e em sua per­
sistência, não são puras trevas nem mera negação, ao contrário, como
vimos, desenvolvem certos valores, provavelmente mesclados, mas po­
sitivos. A este respeito, e considerando as coisas em relação com a
escatologia, ocasião em que se procederá a separação da palha e do
trigo, dos bons e dos maus peixes, ** deveremos aplicar a estas rea­
lidades históricas o tema das preparações desenvolvido pelos Padres
a propósito de algumas grandes realidades do paganismo. No seio de
grandes realidades históricas muito ambíguas houve certamente pre­
parações da primeira vinda do Filho de Deus. Existem igualmente
preparações de sua segunda vinda e da escatologia. A Igreja católica
não é a única que trabalha neste sentido. Não há somente, de uma
parte, um processo de luz que iria se afirmando e que seria idêntico
à vida da Igreja, e de outra, um processo de entenebrecimento que
iria se adensando cada vez mais e cuja sede estaria nas heresias e
nos cismas.
O que acontece é que o bem e a verdade estão de permeio nas
dissidências e ameaçados não só, como ocorre na Igreja, devido à
debilidade e às faltas dos homens, mas também por alguns princípios
inerentes a estas dissidências como tais. A verdade é que tudo, para
ser assumido no reino, deverá conhecer uma Páscoa, passar por uma
morte e uma ressurreição. Mas isso também sucede com a Igreja ca­
tólica.

c) O dever de uma atitude ecumênica

Tudo o que acabamos de dizer exige esta conclusão: a Igreja,


que também prepara o reino, e de maneira mais plena e direta, já que

M D e Trin., II, 2 ( P L 10,51). Deve-se dogmatizar somente em caso de


necessidade; cf. Y. C o n g a r, L a fo i et la théologie, Toum ai, 1962, 48.
M Y. Congar., op. cifc, 112.
164Tem a que Agostinho não se cansa de repetir (pensando nas pessoas
mais do que nas idéias e nas realidades coletivas); cf. nossa introdução (ci­
tada supra, nota 7).
SECÇÃO I: A IGREJA E UNA 91

é, por seus próprios princípios, sua célula germinal e seu sacramento,


deve ter desde este mundo a preocupação de integrar ou de assumir
tudo o que é válido onde quer que germine e produza fruto. Não são
só as dissidências que devem redimir-se de alguma forma, por uma
vontade de ecumenicidade. A Igreja, para ser fiel à sua lei de cato-
licidade e à sua vocação de preparar e até de começar o reino, deve
pôr-se à procura da ecumenicidade; deve fazê-lo ao mesmo tempo em
que exclui o ermo e passa, portanto, ao ato de dogmatização. Isto
supõe, por sua parte, um esforço de discernimento e uma coragem
para enfrentar a novidade que são muito difíceis. E ’ mais fácil recusar
tudo; mas não conviria apressar-ee muito em julgar e conldenar.
Uma proposição só desenvolve seus aspectos mais profundos com o
passar do tempo. A menos que exista um perigo imediato, é preciso
ir devagar para compreender estas novidades. Pense-se, por exemplo,
no hesicasmo, na inspiração profunda de Lutero. De fato, a história
mostra que atualmente a Igreja está quase inteiramente absorvida
pela preocupação de resistir ao erro, de opor-se a ele e de vencê-lo.
O discernimento só costuma dar-se em alguns homens dos quais geral­
mente se suspeita que pactuam com o mal; somente depois, demasia­
damente tarde, se generaliza esse discernimento, num momento em
que se formaram os grupos e se opuseram entre si. Será que não
é possível agir melhor?
Em todo caso, existe para a Igreja o dever de empreender um
processo de reintegração, que só se consumará escatologicamente. E ’
algo muito diferente da reunião dos «errantes» à força de apologética
e controvérsia. E ’ um empreendimento a prazo muito longo, coexten-
sivo à própria história da Igreja e que, exigindo dela um duplo
esforço para a pureza e para a plenitude, a compromete num amplo
empreendimento de volta às fontes, de abertura e de diálogo, de
reforma e de alargamento. E ’ evidente que a Igreja em nosso tempo
é chamada de maneira particular a esta tarefa.
SECÇÃO II

A IGREJA É SANTA

1. A santidade na Escritura e na história1


«Santa» foi o primeiro atributo que se uniu ao termo «Ig re ja ».2
Encontramo-lo no começo do século I I na carta de Inácio de Antioquia
aos tralianos, no Martyrium Polycarpi e depois três vezes no Pastor
de Hermas. A epístola chamada dos Apóstolos, composta na Ásia Me­
nor pelos anos de 160-170, menciona a santa Igreja entre os cinco
artigos simbolizados pelos pães de Mc 6,39.3 Não há dúvida de que
o atributo «santa» foi aplicado à palavra «Igreja» no símbolo romano
do batismo, ao menos nos primeiros anos do século I I I . 1 Se admitirmos
as conclusões de P. Nautin, a fórmula introduzida por Hipólito era:
«Crês no Espírito Santo na santa Igreja?». O atributo da santidade
encontrava-se no Símbolo do batismo de Jerusalém pelo ano de 348
(DS 41); no de Epifânio (DS 42), e passou ao Símbolo de Nicéia, tal
como foi completado em Contantinopla no ano de 381 (DS 150).
As origens da expressão são certamente bíblicas, como o são tam­
bém seu sentido e seu conteúdo fundamental. De um estudo da noção
de santidade e dos usos da palavra «santo» na Escritura6 deduz-se que
1Existem poucos estudos dedicados à santidade d a Ig re ja fo ra das expo­
sições apologéticas ou artigos de dicionários (D T h C XIV/1 [1939], 841-870: A.
Michel) ; os estudos existentes inscrevem-se geralmente num contexto mais
amplo. Cf. Ch. J o u r n e t, D u problème de la sainteté de l’Église au pro­
blème de la nature de l’É glise: «N o v a et V etera» 9 (1934), 27ss; id., R em ar­
ques sur la sainteté de l ’E glise militante: ibid., 299s; id., l'Église du V erbe
Incam é, I I : Sa structure interne et son unité catholique, Paris, 1951; S.
T y s k i e w i c z , L a sainteté de l’Église christieonforme. Ebouche d’une ecclé-
siologie unioniste, Roma, 1945; K. R a h n e r , L a Iglesia de los santos, em
Escritos, III, Madrid, 1967, 109-123. Do ponto de vista apologético, além de
G. Thils, citado infra, cf. R. D. S m i t h , The M a rk of Holiness, W estminster
(Estadoa U n id o s).
2Cf. sobre este ponto histórico P. K a t e n b u s c h , D as Apostolische
Symbol, 2 vols., 1894 e 1900; H B. Swete, The H oly CathoUc Church: The
Communion of Saints. A Study in the Apostles’ Creed, Londres, 1915; P.
N a u t i n , Je crois à l ’Esprit-Saint dans la Sainte Église pour la Résurrec­
tion de la chair, Paris, 1947 ; J. N . D. K e l l y , Initiation à la doctrine des
Pères de l’Église, Paris, 1968, 199ss; I. Ortiz de U r b i n a , «A n eine h eilige...
Kirche». Seit w ann?: «O rientalia christ, period.» 29 (1963), 446ss.
3D S 1.
4Cf. a form ula de Hipólito (D S 10; P. Nautin, op. cit.,) e Tertuliano,
Adv. Marc., 5, 4: «Q uae est m ater nostra, in quantum repromisimus sanctam
ecclesiam».
5Cf. H. D e l e h a y e , Sanctus. E ssai sur le culte des saints dans l’Antiquité,
Paris, 1927, 1-59; K. G. K uhn e O. Procksch, art. â-yioç: T h W I (1932), 87-116;
A. J. F e s t u g i è r e , L e sainteté, Paris, 1942; P . Nautin, op. cit., 57s.
SECÇÃO IX: A IGREJA Ë SANTA 93

a noção e o uso que dela se faz no N T se apoiam no A T e devem


ser compreendidos a partir dele. Ora, é verdade que no A T «santidade»
significa separação e pureza, embora se possa e se deva superar este
ponto de vista próprio da história geral das religiões, já que no A T a
santidade aparece mais profundamente como a propriedade de Deus.
Deus é santo (cf. Is 6,3).6 Não cabe perguntar por que Deus é santo
e por que motivo, por referência a que outro conceito, se poderia ex­
plicar que Deus deva ser chamado santo. Não há razão alguma: a
santidade é sua ordem própria de existência, seu mistério. Dizer «Deus»
é o mesmo que dizer «santo». Inversamente, não se pode atribuir o
qualificativo de saíito a uma realidade a não ser na medida em que
está em relação com Deus, dele procede, a ele pertence ou lhe é con­
sagrado. De fato, o povo de Deus é santo, constitui «uma nação santa»
(Êx 19,6), porque é de Deus ou para Deus.7 Igualmente, os manda­
mentos são santos,e a terra é santa,8 o templo é santo,10 Jerusalém é
santa,11 os sacerdotes são santos,12 porque são de Deus e para Deus,
e em geral é também santo tudo aquilo que está em contacto com o
culto.13 Por isso o povo consagrado nunca é mais «santo»do que quan­
do é convocado e reunido para o culto de Deus santo numa «santa
assembléia».14 Estes valores e afirmações no N T são transferidos para
a Igreja, mas através de uma referência a realidades novas, que cons­
tituem precisamente o povo de Deus em sua novidade: Cristo e Espírito
Santo comunicado por ele. Cristo, com efeito, é santo, já que tem sua
existência do Espírito e da virtude do alto (Lc 1,35), e sua consagra­
ção ao ministério, de uma nova manifestação celestial e do Espírito
(3,22). Jesus é «o santo de Deus». “ Ele é toda a realidade da vinda
de Deus a nós: o lugar em que Deus desceu,“ sua palavra,11 o templo
em que habita e onde nós o encontramos,18 o sacerdote, o sacrifício e
o culto.19 Numa palavra: é a verdade de todas as realidades santas.
Por isso Cristo passa a ser a origem e o centro de todo um novo povo
consagrado e santo.

6Cf. L ev 11,44; 19,2; 20,7.26; 21,8; 22,32s; Jos 24,19; Dan 4,5; Os 11,9;
Javé é «o Santo de Israel»: Is 10,20; 17,7; 54,5. Também o nome de Deus
é santo: Am 2,7; E z 36,20, etc. Para Deus, jurar por sua santidade = jurar
por seu nome = jurar por si mesmo: cf. Am 2,7; 4,2; SI 89,35; 60,8; 108,8;
Ez 20,39; L ev 20,3.
’ Cf. D t 7,6; 14,2; 26,19; 28,9; Is 62,12; 63,18; Jer 2,3; Am 3,2; cf. Sab 17,2.
“ Cf. SI 105,42; Jer 23,9.
“ Sab 12,3.7; o lugar onde Deus se manifesta é santo: Gên 28,16s; Ê x
3,5; 10,12 ; L ev 17,1.
10SI 5,8; 11,4; 28,2; 65,5; 79,1; 138,2; Dan 3,53; Jon 2,5.8; Mal 3,1; Eclo 49,14.
11Sião, a montanha sagrada: SI 2,6; 43,3; Is 56,7.
13SI 132,B.16; o sumo sacerdote: Êx 28,36.
“ Cf. Ê x 30,29; Núm 18,9. E também os tempos do culto: Ê x 16,23; L e v 23,4.
“ Cf. Êx 12,16; L ev 23,2a (nove vezes); Núm 23,25. Cf. L. C e r f a ux ,
L a Théologie de l’Eglise suivant St. Paul, Paris, 1942, 95s (trad. espanhola:
L a Iglesia en San Pablo, Bilbao, 1863).
K Mc 1,24; Lc 1,35; 4,34; Jo 6,69; A t 3,14; 4,27.30; lJo 2,20; Apc 3,7.
MJo 1,51 (cf. Gên 28,10-17).
« J o 1,14.
18Jo 1,14; 2,21; 4,21s; Apc 21,22. E ' do lado de Jesus, como do lado
direito do templo (E z 47,1), que biota a água q te vivifica: Jo 7,37ss; 18,34.
Cf. Y. C o n g r .r , L e mystère du temple, Paris, 1S58 (21E63) (trad. espanhola:
E l m isteiio dei templo, Barcelona, 1£62).
“ Cf. H br; por exempîo, 7,26; 10,1-14.
94 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

O que foi realizado para nós em Cristo é-nos comunicado pelo


Espírito (que é, efetivamente, princípio de comunicação20) a partir do
batismo no Espírito Santo.“1 Com referência a Cristo, de quem tudo
procede, e ao Espírito Santo, que é comunicação, os fiéis e o povo
por eles formados são um templo santo, “ um sacerdócio santo,23 e
podem oferecer sacrifícios espirituais, santificados no Espírito.*4 Como
Israel no deserto, em virtude da eleição de Deus e da aliança, estes
fiéis constituem «uma nação santa» (lP d r 2,9). Este povo novo come­
çou em Jerusalém e nas comunidades da judéia, cujos membros são
chamados com prioridade «os santos». ® Mas a graça da vocação e da
aliança foi estendida aos gentios: todos os membros da comunidade
merecem por esta razão o nome de «santos» M — são «santos por voca­
ção». 27 Por esta vocação à qual corresponderam a fé e o batismo, todos
eles se converteram em concidadãos dos santos, membros ao mesmo
tempo da Jerusalém santa (cf. Is 4,3) e da cidade celestial (Col 1,12;
E f 2,19). Todos eles terão parte com os santos na herança celestial
(cf. A t 20,32; E f 1,18). A santidade da Igreja fica assim compreen­
dida entre o batismo, que é seu fundamento, e sua realização escato-
lógica: «Cristo amou sua Igreja. Entregou-se por ela a fim de santí-
ficá-la, purificando-a com o banho de água pela palavra para apresentá-la
a si mesmo resplandecente, sem mácula nem ruga nem coisa parecida,
santa e imaculada» (E f 5,25-27).
O primeiro valor que encontramos na afirmação da santidade da
Igreja deriva daquilo que faz desta Igreja a pertença de Deus: eleição,
vocação, aliança, consagração, habitação; a Igreja é o lugar onde se
presta a Deus o culto que ele deseja. Tomás de Aquino mantém-se,
pois, muito próximo das fontes bíblicas quando explica o atributo
sanctam do Símbolo na linha da santidade de um templo purificado
e consagrado, santificado pela união e depois pela habitação de Deus,
no qual é invocado e se lhe presta culto.28
Quer seja situada no fato da pertença a Deus quer na consagração
ao culto de Deus, esta santidade fundamental exige um exercício ético
de uma vida santa. «Sede santos, porque eu sou santo». “ O indicativo

" C f . 2Cor 13,IS; R om 5,5.


“ Cf. A t 1,5; 2,38; IC or 12,13; M t 3,11; M c 1,8; L c 3,16; Jo 1,33.
“ E f 2,21; IC or 3,16s. Cf. p ara os indivíduos IC or 6,19.
*• lP d r 2,5.
24Rom 15,16; 12,1.
“ Cf. IC o r 14,33; 16,1; 2Cor 8,4; 9,ls; R om 15,25.26.31; L. C e r f a u x ,
«L es Saints» de Jérusalem: E T h L 2 (1925), 510-529 = Recueil Lucien Cerfaux,
II, Gembloux, 1954, 389-413; cf. também do mesmo I^a Théologie de ITÊglise
suivant St. Paul, Paris, 1942, 95-117.
“ Primeiramente os fiéis d a Palestina (A t 9,13.32.41; Rom 15,26.31; IC or
15,1.15; 2Cor 8,4; 9,1.12); depois, os de todas as Igrejas: Rom 8,27; 12,13;
16,2.15; IC o r 6,ls; 14,33; 2Cor 13,12; E f 1,15; 3,18; 4,12; 6,8; Flp 4,21s; Col
1,4; IT im 5,10 F lp 5.7; H b r 6,10; 13,24; Jd 3.
* R o m 1,7; IC or 1,2; cf. Col 3,12; E f 1,4; 2Tim 1,9. Freqüentemente
notou-se o paralelismo com a santa comunidade do A T = M iqrâ qodes, L X X :
vJ.v(ir\ ó.7 Úa: E x 12,16; L ev 23,2s; N úm 28,25; J1 2,16, etc.
*“ Expos. in Symbolum, a. 9 (Opnsc., ed. Lethielleux, IV , 379); cf. S. Th.,
III, q. 72, a. 11.
23L ev ll,44s; 17,1; 19,2; 20,7.26; cf. lP d r 1,16; lJo 3,3. Cf. Lev 21,6 e
N ú m 15,40.
SECÇÃO II: A IGREJA £ SANTA 95

aplicado a Deus ou à sua ação torna-se imperativo em relação ao ho­


mem. O fiel de Deus escolheu seu caminho; deve converter-se da im­
pureza 30 e «conservar brilhante o selo de seu batismo».31 Por isso,
ao longo de sua vida, é chamado a ser uma hóstia agradável a Deus.
Toda a vida do cristão é vista como um culto cuja lei é a pureza.33
A Igreja não é só santa sob a forma em que, personificada, é como
tal a esposa de Cristo (E f 5,26-27); é também a Igreja dos santos,
isto é, dos homens que se esforçam por viver fiel e generosamente sua
consagração batismal e sua condição de membros do corpo de Cristo.
A época apostólica e a antiguidade cristã situaram bem alto o nível
destas exigências de vida santa. Todavia, tanto uma como a outra
conheceram não poucas misérias. Alguns pecados comportavam a exclu­
são da comunidade,33 mas outros encontravam a misericórdia da Igre­
ja. 31 Chegam a causar admiração a amplidão e a longanimidade que
alguns textos dos apóstolos supõem: “ a Igreja era uma Igreja de peca­
dores. Porventura Jesus não tinha deixado para o último dia a sepa­
ração do joio e do trigo misturados no campo (M t 13,24-40), a do
trigo e da palha na pá do ceifador (M t 3,12 e 25,31-41), a dos bons
e dos maus peixes pescados na mesma rede e que só serão separados
na praia (M t 13,47-50)? Apesar de tudo, não deixou de desenvolver-se
uma tendência rigorista. Tertuliano é o protótipo de um espírito carac­
terizado pela rigidez na recusa de todo compromisso com o mundo,
espírito que reaparece nos donatistas, aplicado, senão às faltas comuns
contra a moral, ao menos às que eles julgavam faltas contra a pureza
da Igreja. “ Mas foi a eclesiologia de Agostinho que se impôs nesta
matéria, como na matéria da penitência se impôs a doutrina da Igreja
romana (edito de Calisto).
Este fato tem grande transcendência eclesiológica. A Igreja se
reconhecia definitivamente como uma Igreja de pecadores; mais tarde
este ponto seria confirmado contra diversas tentativas que pretendiam
concebê-la somente como Igreja dos santos.m Evidentemente, na medida
em que a Igreja se reconheceu constituída de pecadores chamados à
conversão, teve que desenvolver uma teologia da penitência, com suas
instituições correspondentes. Também isso acarretou importantes conse­
qüências eclesiológicas (teologia do poder sacerdotal).
® Cf. Ti 2,12ss; 2Tim 2,19, e todo o tema dos dois caminhos, com tanta
freqüência desenvolvido no judaísmo e tomado pela Viãaehé.
31Tem a grato às primeiras gerações cristãs: Pastor de Hermas, Vis.,
I, 3, 4; Sim., 8, 6, 3; IX , 16, 5 (Funck, 422, 566, 568, 610); 2 Ciem 7t, 6;
Epitáfio de Abércio.
a Rom 12,1; 15,16; lP d r 2,5.9; O. Procksch, art. cit., 109s; Ph. Seiden-
sticker, Lebendiges O pfer (B o m 12, 1) . . . , Mimster, 1954.
“ IC o r 5,5; H b r 10,26-31 fa la da apostasia, para a qual nenhuma peni­
tência é possível.
*2 C o r 2,7s.
“ Pensamos no que diz Paulo dos coríntios, dos gálatas (G ál l,6s; 3,1;
5,4), no que revelam as cartas às igrejas, do Apocalipse. E, contudo, era
a I g r e j a . ..
K Cf. nossa introdução geral ao volume I dos Traités antidonatistes =
O SA 28, Paris, 1963, 55s.
'"Condenação de enunciados que reduzem ou parecem reduzir a Igreja
aos justos que vivem d a graça: D S 2474-2478 (Q u esn el); 2615 (sentido possí­
vel de uma fórm ula de Pistóia), ou aos predestinados: 1201-1206 e 1220-1224
(H u s s ); 2408 (Q uesnel); 3803 (doutrina da Mystici Corporis, 1943).
96 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

2. Em que sentido a Igreja é santa


Na medida em que é de Deus, a Igreja é absolutamente santa.
Mas a Igreja é constituída de homens e por isso inclui essencialmente
a resposta livre que os «santos por vocação» dão ao chamamento de
Deus e ao oferecimento de sua graça. Há mais chamados do que esco­
lhidos. “ Existe, pois, na Igreja, do ponto de vista da santidade, uma
dialética entre aquilo que é dado por Deus e aquilo que é recebido e
realizado pelos homens. Pode-se ver nisso uma aplicação da dialética
do já e do ainda não que constitui o próprio estatuto de existência
da Igreja em sua etapa itinerante. Isto introduz na Igreja uma tensão
em virtude da qual deve tender sem cessar a adequar-se ao dom de
Deus. Este dom já está à disposição e assegurado à Igreja em virtude
da fidelidade de Deus à sua aliança. Quando a teologia católica afirma
uma segurança da operação divina nos elementos e nos momentos em
que estão comprometidas as estruturas da aliança, não deposita a con­
fiança na atividade do homem, nem liga a livre graça de Deus a um
empreendimento humano, como querem os protestantes,33 mas afirma
e confessa a fidelidade de Deus à sua aliança. E ’ Deus quem se obrigou
a si mesmo. «Afirmar a santidade da Igreja não é excluir o pecado
dela, é proclamar a indissolubilidade da união de Cristo com a Igreja» . 40
Mas isto pressupõe que não se reduza a Igreja ao conjunto ou
à coleção de indivíduos que a compõem; que não seja vista somente
como «povo de Deus», assim equecendo que este povo é estruturado
e que vive de alguns dons que lhe foram entregues como os bens da
aliança sobre a qual está constituído. Neste sentido diziam os escolás­
ticos que a Igreja está constituída pela fé e os sacramentos da fé ,41
ao que se acrescentará a instituição dos ministérios derivados do mi­
nistério apostólico. São os elementos da instituição que constituem a
Ecclesia como congregans, logicamente anterior à Ecclesia como con-
gregata, para adotar uma distinção proposta por H. de Lubac.42 Este

38M t 22,14. Já no A T, entre os profetas do tempo do deserto, que reve­


laram a exigência de conversão pessoal, vê-se que se todos são chamados
(E z 18 e 33; Is 55,1; mesmo os gentios: 55,4s; 56,6s), há alguns que res­
pondem ao oferecimento de salvação (Is 66,9-13.22) e outros que dela se
excluem e não correspondem (66,4; 65,1-3.12).
Assim, A. Finet pergunta: «Acreditais que um homem pode comprome­
ter de tal form a a liberdade de Deus soberano que, segtndo nua boa von­
tade, sempre justa e benévola, escolhe, mas que pode também rejeitar?»
(«R éform e», 22-1-1949); A. Visser’t H ooft: «T e r por certo que Deus atua
necessariamente de uma fo im a determinada e num determinado momento
faz-nos correr o risco peiigoso de não escutá-lo quando fala e de enganar­
mo-nos a nós mesmos acreditando tê-lo ouvido quando não fa la » (L e Catho-
licisme non-romain, Paris, 1633, 122).
40Dois pastores protestantes, em M. V i 11 a i n, Introduction à 1’Oecumé-
nisme. Paris, 1958, 132. Cf. a alocução do cardeal L. Jaeger no encontro de
jornalistas católicos e protestantes (M aria Laach, 1E-22-VI-1S53) a propósito
da acusação de pretender «dispor do Espírito Santo» («Doc. cathol.» [1959], 951).
“ Assim, Tomás de Aquino: «Ecclesia corisíituiiu*., íab .ieaair (IV Eesit.,
d. 18, q. 1, a. 1, sol. 1; S. Th., III, q. 64, a. 2 ad 3), fundatur (IV Sent.,
d. 17, q. 3, a. 1, sol. 5), instituitur (S. Th., I, q. 92, a. 3), consecratur (In
Jo, c. 19, lect. 5, n. 4) per fídem et ficei sacramenta». Cf. também In
Heb, c. 3, lect. 3.
42 Méditation sur TEglise, Paris, 1953, 78-85. O padre do Lubac (op. cit.,
87s) aplica esta distinção à questão do pecado e da santidade na Igreja. Cf. Y.
SECÇÃO II: A IGREJA É SANTA 97

autor sugere outras maneiras de formular a mesma descrição: comuni­


cação e comunhão, redil e rebanho, mãe e povo, seio materno e frater­
nidade, e mesmo reino e reinado.
O pensamento protestante tende a desconhecer este aspecto da Igre­
ja como realidade suprapessoal e a excluir a idéia de instituição do
conceito de povo de Deus. Isto aparece nos reformadores, que perten­
ciam a um mundo mental penetrado de nominalismo, e em nossos dias,
num E. Brunner.43 Para isso recorrem ao uso neotestamentário da pa­
lavra êv.yJ.rjaía, que designa somente uma comunidade de pessoas e à
qual não se poderia equiparar o termo Kiiche, Igreja, em sua acepção
atual.
Poder-se-ia discutir este ponto, senão no plano da exegese, ao
menos no da teologia do N T . u Além disso, tocamos aqui num dos
pontos em que aparece que a Scriptura sola não pode ser tomada como
norma positiva sem mais. A teologia da Igreja não só supera o em­
prego formal das palavras que podem designar a Igreja — é evidente
que tudo que São Paulo pôde dizer do batismo, da eucaristia e da
vita in Christo lhe interessa, — mas supera o texto da Escritura como
tal. E não pensamos tanto na maior plus valia da tradição oral quanto
na transmissão da própria realidade da Igreja ou, se quisermos, na
tradição como comunicação de realidades. Antes que existisse qualquer
escrito apostólico, e para além de todo escrito, a realidade do mistério
da Igreja foi transmitida e vivida. Foi compreendida em relação com
o mistério de Cristo, experimentado também como realidade que supera
as palavras que o expressam.
Os reformadores e o pensamento protestante tendem a assemelhar
a condição do povo de Deus sob a nova disposição à condição que
conheceu sob a antiga aliança.œ Não vêem suficientemente — com
exceção de alguns que pensam a realidade da Igreja à margem da sis­
tematização e fugindo à estreiteza da eclesiologia protestante tradicio­
nal“ — como a missão e a encarnação do Filho de Deus e depois a
missão do Espírito Santo mudaram esta condição : o povo de Deus
sob a nova aliança é corpo de Cristo, e não se realiza como povo de

C o n g a r , Jalons pour une théologie du Laïcat, Paris, “1954, cap. I I (am bas as
obras estão traduzidas para o espanhol).
“ P a ra os ref ormadores, cf. Y. C o n g a r, V raie et fausse réforme dans
l ’Eglise, Paris, 1950 (21968), I I I parte; E. B r u n n e r , D as Missverständnis
der Kirche, Zurique, 1951; id., Dogmatik, I I I : Die Lehre von der Kirche, vom
Glauben und von der Vollendung, Zurique, 1960.
44Pode-se muito bem fa la r de uma realidade, mesmo se não temos a
palavra. Ekklesia não se encontra em lP d r, nem em Jo, nem em lJo, nem
propriamente em H b r (C. Spicq, L ’Ép. aux Héb., Vol. I, 151). M as existem,
no N T , outras noções que interessam à eclesiologia: reino, esposa, mãe, mis­
tério (no sentido p au lin o ). .. A Ig re ja é revelada também em imagens:
vinha, casa, cam po...
45Y . C o n g a r, V raie et fausse réforme, 467s. H. K ü n g, L a Iglesia, B ar­
celona, 1969, parece-nos mostrar certa debilidade na visão d a Ig re ja como
mistério e realidade sacramental, em dependência do «mistério» de Cristo.
Cí. R S P h T h 53 (1969), 700s.
* Pensamos, por exemplo, em algumas páginas de L. N e w b i g i n ,
L ’Eglise, Peuple des Croyants, Corps du Christ, Temple de l’Esprit, Neuchâtel,
1958 (cf. 69s, 78s, 99), ou de J. J. von A i l m en, Prophétisme sacramentel,
Neuchâtel, 1963 (por exemplo, 134).
98 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Deus senão sendo corpo de Cristo. Isto transforma inteiramente a pos­


sibilidade de prevaricação e de infidelidade bem conhecida de Israel. ”
Os reformadores e o pensamento protestante não conseguiram com­
preender a Igreja como realidade de tipo sacramental estabelecida pelo
ato que predestina Jesus Cristo como salvador universal, completa sua
missão mediante a missão do Espírito, e associam uma instituição de
salvação na dependência destas duas missões. E ’ disso que se trata em
Rom 16,25-26; E f 1 e 3. Esta realidade é o objeto de nosso ato de fé
quando dizemos: credo Ecclesiam, depois de ter dito: credo in unum
dominam Jesum Christum et in Spiritum Sanctum. * Esta realidade
compreende aquilo que constitui o sacramento ao mesmo tempo visível
e espiritual da salvação: o depósito da fé e a tradição no sentido real
e cumulativo, o depósito dos sacramentos da fé, os ministérios que lhes
correspondem, com a promessa de que o Espírito atuará nestas estru­
turas da aliança para conservá-las e vivificá-las.
Afirmamos, pois, que a Igreja é santa primeiramente em seus prin­
cípios formais, isto é, naquilo que recebeu e recebe de Deus para ser
Igreja, sacramento universal de salvação. Estes princípios formais são
o depósito da fé, os sacramentos da fé e os ministérios correspondentes.
Estas realidades são santas em si mesmas por proceder de Deus e apon­
tam para a santidade. São, de si, instrumentos pelos quais Deus santi­
fica. Fala-se, às vezes, a propósito deles, de santidade objetiva.
O Espírito Santo não pode ser contado entre as causas formais
ou como causa formal da Igreja; ele não entra em composição com
os elementos mencionados nem com os crentes de maneira que estes
sejam a causa material correspondente. A propósito dele não se pode
falar de encarnação, e o próprio Manning, que foi quem mais se apro­
ximou desta idéia, resguardou-se de entendê-la em sentido rigoroso.
No sentido estrito, não se pode dizer que o Espírito Santo é a «alma
da Igreja», como se tem feito, com base em vários Padres e, em par­
ticular, em Agostinho. Os papas fizeram sua esta idéia, que a consti­
tuição Lumen Gentium do Concílio Vaticano I I também adota nestes
termos prudentes: «Para que n’Ele incessantemente nos renovemos (cf.
E f 4,23), deu-nos seu Espírito, que, sendo um só e o mesmo na Cabeça
e nos membros, de tal forma vivifica, unifica e move todo o corpo
que seu ofício pôde ser comparado pelos santos Padres com a função
que exerce o princípio da vida ou a alma no corpo humano». *

■" Já não se pode estabelecer uma tese eclesiológica a partir de textos ou


de episódios como lR s 19,18 (os sete mil que não dobraram os joelhos diante
de Baal). Cf. T. C o n g a r , V raie et fausse reforme, 467-482, ou Le mystère
du temple, Paris, 1958, apêndice III, 337s. Assinalemos aqui que os próprios
profetas anunciaram uma nova aliança, na qual não aconteceria como anti­
gamente porque Deus teria dado seu Espírito: cf.M. H o e p e r s , D er neue
Bim d bei den Propheten . .., Friburgo, 1833, 85s.
48Cf. J. N. D. K e l l y , Initiation à la doctrme des Pères de 1’Êglise,
Paris, 1968, 243ss (ed. original: E arly Ciiristlan Creeds, Londres, 1950, 155s).
43 Cap. I, n. 7, com estas referências, que facilmente se poderiam multi­
plicar: Leão X III, enc. Divinum IJlud, 9-5-1897: A SS 29 (1896-1897), 650; Pio
X II, enc. Mystici Corporis, 29-6-1943: A A S 35 (1S43), 219s (DS 3807). Agos­
tinho, Sermo 268, 2 (P L 38,1232) e em outros lugares; João Crisóstomo, In
Eph. Hom ., 9, 3 (P G 62,72); Dídimo de Alexandria, Trin., 2, 1 (P G 39,449s);
Toinás de Aquino, In Col 1, 18, lect. 5 (Marietti, II, n. 46): «Sicut coustituitur-
SECÇÃO IX: A IGREJA Ê SANTA 99

A alma está no homem, habita o corpo e anima suas atividades;


a alma entra em composição com o corpo e forma com ele um só ser
físico. O Espírito Santo não entra em composição com a instituição
eclesial, mas está somente unido a ela com uma união de aliança,®
Além disso, o corpo ao qual o Espírito está unido está, enquanto corpo
concreto e histórico, sujeito, nos homens que o compõem, às debilidades
da carne, no sentido bíblico do termo (cf. Rom 8; ICor 10,3; Gál 5,17).
Por isso nem todos os atos da instituição eclesial são automaticamente
atos do Espírito Santo. Entre esse corpo que é a Igreja e sua alma
transcendente persiste uma certa tensão; a Igreja deve tender à fide­
lidade total e o Espírito Santo a incita a isso e a ajuda.“ Por isso o
Espírito não entra, propriamente falando, em composição com a ins­
tituição eclesial, mas a habita e a anima. E’ realmente seu princípio
de existência e de operação, coisa que não é de maneira alguma para
as realidades do mundo, mesmo se acontece operar nelas.
O Espírito Santo habita, pois, a Igreja, que é seu templo santo.
Por ele Cristo realiza nela as operações santas e santificantes: a pre­
gação das testemunhas e a fé dos crentes, a direção pastoral e a vida
das comunidades, a santificação dos sacramentos. Nos atos decisivos
do ministério de testemunho e de celebração dos sacramentos, nos quais
intervêm seguramente as estruturas da aliança, a intervenção do Espí­
rito Santo é certa. Reunidos no sínodo de Jerusalém, os apóstolos
puderam dizer: «Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós» (A t 15,28).
Assim, pois, a santidade, enquanto é assegurada às estruturas e
às operações decisivas da instituição eclesial e enquanto por meio des­
tas a Igreja não deixa de produzir santos e frutos de santidade, deve
ser relacionada, como à sua causa transcendente, ao Espírito Santo.
E’ o que fazia Hipólito (cf. os textos em Nautin, citado supra, nota 2) ;
é o que expressa com vigor Alberto Magno quando mostra que todo
efeito histórico da economia deve ser referido a um artigo da teologia,
e que professar que se crê na Igreja, na realidade, é professar que
se crê no Espírito Santo, que (unifica, faz católica e apostólica e)
santifica a Igreja.52

unum corpus ex unitate animae, ita Ecclesia ex unitate Spiritus» ; A consti­


tuição Lum en Gentium fala, no n. 4, do Espírito Santo como santificador
d a Igreja. Cf. S. T r o m p , D e Spiritu Sancto A nim a Corporis m ystid, I:
Testim. selecta e Patribus graecis, Roma, 1932 (s1948) ; II: Testim. selecta e
Patribus latinis, Roma, 1932, (21952).
60Cf. L e Saint-Esprit et le Corps apostolique, réalisateurs de l’oeuvre du
Christ, em Y . C o n g a r, Esquisse du mystère de l’Église, Paris, :1953, 129-179.
61Const. Lum en Gentium, cap. 2, n. 9: «Andando, porém, através de ten­
tações e tribulações, a Igreja é confortada pela força d a graça de Deus pro­
metida pelo Senhor, para que na fraqueza da carne não decaia d a perfeita
fidelidade, mas permaneça digna esposa de seu Senhor e, sob a ação do Espí­
rito Santo, não deixe de renovar-se a si mesma, até que pela cruz chegue
à luz que não conhece ocaso».
ra «Respiciens ad hoc quod Spiritus Sanctus datur et mittitur ad sancti-
ficandam creaturam, quae sanctitas nunquam fallit in Ecclesia, sed nonnun-
quam fallit in personis, dixit: ‘Sanctam Ecclesiam’. E t quia omnis articulus
fundatur in divina et aeterna veritate... iste articulus sic resoivendus est
ad proprium opus Spiritus Sancti, hoc est ‘Credo in Spiritum Sanctum’, non
tantum secundum se, sicut dicit praecedens articulus, sed etiam in eum credo
secundum proprium opus eius, quod est quod sanctificat Ecclesiam quam
sanctitatem perfundit in sacramentis et virtutibus et donis quae dat ad
100 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Evidentemente, não é preciso deter-se no âmbito desta santidade


objetiva. Com efeito, a instituição é para propiciar a santidade e a
salvação dos homens. E ’ um serviço aos santos com vistas à sua santi­
ficação. " A Igreja é santa, além disso, no sentido de que é a Igreja
dos santos. Por suas operações próprias não cessou e não cessa de
suscitar, de educar e de alimentar inúmeros santos. A santidade cató­
lica é de tal forma resplandecente que continua a ser um dos motivos
de credibilidade e um dos argumentos apologéticos mais poderosos. E ’
clássico observar a parte que a vida religiosa tem nesta santidade
vivida.
A própria santidade vivida é um serviço e um meio de santidade
num corpo em que todos são solidários e todos são chamados a crescer
juntos até constituir esse homem perfeito, na força da idade, que rea­
liza a «plenitude de Cristo» (E f 4,13). Já no plano natural, os homens
oferecem uns aos outros uma ajuda múltipla com vistas à realização
de seu destino comum. No plano sobrenatural, na comunhão dos san­
tos, isso é ainda mais verdadeiro. As pedras sustentam-se mutuamente,
observa Gregório Magno.54 E ’ uma afirmação bíblica e tradicional
constante que os fortes sustentam os fracos e os santos, os pecadores.®
Assim, os fiéis exercem, a seu modo, uma maternidade santa: por sua
caridade, sua oração, suas satisfações e também pelo exercício destes
dons espirituais ou carismas outorgados «para a utilidade comum» (IC or
12,7). Toda a vida da Igreja é um gerar e um educar na santidade.
Assim, a Igreja é santa não só porque atualiza os meios de santidade
cujo depósito e ministério recebeu ( Ecclesia congregans; santidade
chamada objetiva), mas, além disso, porque é formada de santos e de
homens que ou não conhecem o pecado ou se esforçam por não pecar
mais, segundo as palavras de Ambrósio56 (Ecclesia congregata; san­
tidade chamada subjetiva). Por ser uma instituição e uma comunidade
de conversão, a Igreja é, como diz K. Rahner, «Igreja santa dos peca­
dores».

3. Pecado e misérias na Igreja


Todos sabemos, todos admitimos que existem faltas e pecados na
Igreja. O que há de fato são diferenças entre vários autores quanto à
sanetitatis perfectionem, et tantum in. miraculis et donis gratis d a t is ...»
(D e Sacrifício missae, III, 9, a. 9 [Opera, ed. Borgnet, X X X V III, 64s]). Cf.
Tomás de Aquino, I I I Sent., d. 25, q. 1, a. 2 ad 5; S. Th., II-II, q. 1, a. 9 ad 5,
etc.; Alberto Magno, I I I Sent., d. 24B, a. 6, e os demais escolásticos; por
exemplo, Alexandre de Hales, Summa theol., p. III, inq. II, tr. 2, q. 2, t. 2
(ed. Quaracchi, IV , 1135).
“ Cf. E f 4,12; a ôuxxovía toiç (f.YÍoic;■ R om 15,25; IC or 16,15; 2Cor 8,4; 9,1;
H b r 6,10.
“ Hom. in Ez., lib. II, hom. 1, 5 ( P L 76,939).
MCf. R om 15,1; G ál 6,ls; Metódio de Filipos (fim do século I I I ) , Symp.,
III, 8 (G C S X X V II, 37); Agostinho, En. in Ps., 47, 1 ( P L 36,532s); Sermo 76,
3, 4 e 4, 6 ( P L 38,480s); D e Civ. Dei, X V III, 51 ( P L 41,614); Gregório, Mor.,
X II I , 7 ( P L 75,1021: os fortes são como os ossos do corpo); In Ez, lib. II,
hom. 3, 4 ( P L 76,964s); Bernardo, In Cant., 27, 12ss, e 44, 2 ( P L 183,920.996);
cí. Tom ás de Aquino, S. Th., II-II, q. 1, a. 9 ad 3.
M «D e duobus constat Ecclesia: ut aut peccare nesciat, aut peccare desinat»
(In Lc, lib. V II, c. 11 [ P L 15,1724]). Cf. K . R a h n e r , O pecado n a Igreja,
em G. B araúna (ed.), A Ig re ja no Vaticano II, I, Petrópolis, 1965, 453-469.
SECÇÃO H: A IGREJA Ë SANTA 101

maneira de explicar este fato. Para isso nem todos usam as mesmas
categorias e idêntico vocabulário.
O cardeal Ch. Joumet manteve com intransigência a posição se­
gundo a qual «a Igreja não existe sem pecadores, mas é sem pecado».07
Só se poderia atribuir algum pecado à Igreja se fosse considerada ma­
terialmente, não formalmente ou segundo aquilo que a constitui em
sentido próprio. A Igreja como tal é sem pecado, já que se define e
é constituída pela união com Deus e os meios desta união. O pecado
não pertence senão aos membros da Igreja e, mais propriamente, en­
quanto são infiéis à sua condição de membros e conservam em si algo
que não é da Igreja. Efetivamente, todos nós estamos como que divi­
didos entre o que em nós é Igreja e o que ainda é mundo. Só a Vir­
gem Maria realizou adequadamente em sua pessoa a santidade da
Igreja. Por isso ela é o tipo perfeito, seu «ícone e sc a to ló g ic o ».F o ra
da Virgem, «a Igreja não retém em seu seio mais do que aquilo que
de bom possa encontrar-se em seus membros e deixa fora de seu re­
cinto tudo quanto possa existir de mau».59
Censurou-se, às vezes, esta explicação pelo fato de supor uma «v i­
são substancialista», quase platonizante, da Igreja.“ Mas é certo que
não se pode dizer que a «Igreja» seja o sujeito de pecados propria­
mente ditos no sentido de que ela mesma os tenha cometido: tal
sujeito só pode ser uma pessoa individual. E ’ igualmente certo que a
Igreja, por seus princípios formais e constitutivos, é inteiramente pura.
Mas basta considerá-la em seus princípios formais? A Igreja é uma
realidade histórica concreta; os homens são a matéria desta realidade
e eles são pecadores, espiritualmente cegos e duros, imperfeitos de mil
formas diferentes. O cardeal Joumet não o nega de forma alguma,
mas acrescenta: «Enquanto tais, não são Igreja; é preciso vê-los como
verticalmente separados e divididos entre a Igreja e o mundo». Mas
isso não é reificar um ponto de vista formal? Os homens não estão
dicididos verticalmente em duas partes: simplesmente a irradiação da.
santidade está, neles e na Igreja histórico-concreta, refratada e limi­
tada. Os pecadores — e somos todos nós — pertencem inteiramente
à Igreja, mas com uma vida cristã ou uma santidade muito imper­
feita. Seus pecados como tais estão fora da Igreja, mas aqueles que
os cometem estão na Igreja; e a ela pertencem em sua condição de
pecadores, ligados pela fé à instituição de graça, abertos à penitência
e à santificação. Quanto à Igreja, inteiramente santa em si mesma,;
pura em seus princípios formais e decidida, por sua orientação pro­
funda, a chegar à pureza total, é conduzida por seus membros a rea­
lizações históricas e concretas imperfeitas daquilo que ela é profunda­
mente e daquilo que aspira chegar a ser.

mCh. J o u r n e t , L ’fîglise du V erbe Incarné, II, Paris, 1951, 904; id.,


Théologie de l’Eglise, Paris, 1958. 236.
158Form ula feliz de L. B o u y e r , L e culte de la M ère de Dieu, Chevetogne,
1950, 33; id., L e Trône de la Sagesse, Paris, 1957, 188.
53Ch. J o u r n e t , L ’É glise du V erbe Incam é, II, 489; cf. 914s; id., Théo­
logie de l’Eglise, 244.
Assim, H . K ü n g , D ie Kirche, Friburgo, 1967, 382ss.
102 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Esta doutrina é fundamentalmente a dos Padres, “ a dos grandes


escolásticos“ e a do magistério.63 As categorias e as expressões certa­
mente diferem de um documento para outro. As afirmações dos Padres
devem ser situadas em seu contexto e em suas perspectivas próprias;
devem ser interpretadas e traduzidas em relação com nossa forma de
levantar os problemas. Todavia, cremos poder resumir sua posição com
estes termos:
A Igreja é santa. Se considerarmos a Igreja em si, isto é, em seus
elementos intemporais, é ela totalmente santa. Os pecadores não são
do corpo de Cristo enquanto este significa comunhão de graça.
A Igreja, ou o corpo de Cristo, contém pecadores. A situação
destes é expressa de diferentes maneiras. 64
Fala-se, às vezes, da Igreja, considerada dentro do aspecto his­
tórico concreto, como Esposa de Cristo que apresenta sua beleza em­
panada e que só na escatologia será perfeitamente pura e bela. A fir­
ma-se também que é penitente e deve purificar-se sem cessar A
constituição dogmática Lumen Gentium está perfeitamente na linha
dos Padres quando diz (n. 8 ): «Mas enquanto Cristo, «santo, inocente,
imaculado» (Hbr 7,26), não conheceu o pecado (2Cor 5,21), mas veio
para expiar apenas os pecados do povo (cf. Hbr 2,17), a Igreja, reu­
nindo em seu próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa e
sempre na necessidade de purificar-se, busca sem cessar a penitência
e a renovação».
Todavia, nos Padres aparece freqüentemente uma idéia a que hoje
parece prestar-se pouca atenção: Cristo encontrou a Igreja pecadora e
a fez santa, recebeu-a manchada e a purificou.65 Os Padres, ao falar
assim, pensam na natureza com a qual o Verbo se uniu ao encamar-se,
realizando assim com a Igreja uma união que selou na cruz e que

“ Muitos de seus textos podem ser encontrados em S. Tromp, Corpus


Christi quod est Ecclesia, Roma, “1946, 128-141; Ch. J o u r n e t , I/Eglise du
V erbe Incam é, II, 1115s; Y . C o n g a r , V raie et fausse réforme dans lTEglise,
Paris, 1950, 80-86.
“ Cf. Tom ás de Aquino, I I I Sent., d. 13, q. 2, a. 3, sol. 2; S. Th., II-II,
q. 108, a. 1 ad 3; III, q. 8, a. 3. P a ra a história destas questões na Idade
Média, cf. A. L a n d g r a f , Sünde und Gliedschaft am geheimnisvollen L e ib :
L an d graf D IV/2, 48-99; H. R i e d l i n g e r , D ie Makellosigkeit der Kirche in
den lateinischen Hoheliedkommentaren des Mittelalters = B G P h M A 38/3,
Münster, 1958.
63Cf. Concílio de Trento, Sess. V I, c. 7 (D S 1530); condenação de Bayo
(D S 1963s); de Quesnel (D S 2472-2478); Pio X II, enc. Mystici Corporis: A A S
35 (1943), 203s (D S 3803).
61Os pecadores estão na Igreja, mas não são d a Ig re ja (Agostinho, às
vezes; H ugo de São V ic to r); são da Ig re ja quanto ao corpo, não quanto à
alma, «num ero non m erito»; são membros de form a equívoca (Tom ás de
Aquino, Sent.), ou «secundum quid, non simpliciter» (Tom ás de Aquino,
Summa).
“ Textos muito numerosos, referidos às vezes ao Cântico dos Cânticos
(n igra sum ). Cf., para Orígenes, os textos reunidos por K. Rahner, R S R 38
(1950), 253, ou por H . U . von B a l t h a s a r , E sprit et feu, H , Paris, 1960,
199ss; para os Padres gregos, L. W e l s e r h e i m b, D a s Kirchenbild der
griechischen Väter. Kommentare zum Hohen Lied : Z kT h 70 (1948), 393-449;
João Crisóstomo, Hom. in Eutropium, 6 (P G 52,402); Ambrósio, In Lc, IV , c.
60 ( P L 15,1632BC); D e Mysteriis, nos. 18, 35, 39 (ed. B. Botte, SourcesChr
25,113.119s); Agostinho, Sermo 188, 4 ( P L 38,1005); 191, 3 (1010); 213, 7 (1963s);
364, 2 ( P L 39,1640), etc.
SECÇÃO IX: A IGREJA E SANTA 103

consumará no reino vindouro. Os Padres vêem a Igreja simbolizada


nas mulheres de que fala a Escritura, as quais, com exceção da Virgem
Maria, tipo perfeito e «ícone escatológico» da Igreja, são pecadoras
perdoadas: Raab, Tamar, Maria Madalena, etc. A Igreja só é santa
porque foi arrancada do pecado. Por si mesma, por sua «causa mate­
rial», que é a natureza humana, a Igreja é pecadora. Só é santa porque
está sendo purificada sem cessar por Cristo, sua cabeça.68 Em resumo,
os Padres falam da Igreja não no plano dogmático intemporal, mas
no âmbito da história da salvação, tendo em mente textos como os
de Oséias (cap. 2) e Ezequiel (cap. 16).
Nesta perspectiva de história da salvação os Padres incluem o
horizonte escatológico: a Igreja será perfeitamente esposa, a Igreja
será perfeitamente pura,® não só no sentido, defendido por Agostinho
contra os donatistas, de que então se realizará a separação entre os
bons e os maus, mas também no sentido de que aquilo que se fez na
carne para o céu deverá ser purificado daquilo que fica de terreno e
de inculto. Para os Padres, como para E f 5,26-27, o tema da santidade
da Igreja está expressamente ligado ao de sua união esponsal com o
Verbo de Deus. Os Padres geralmente distinguem três momentos nesta
união: a encarnação, na qual o Verbo se uniu à natureza humana; a
cruz, na qual se vinculou à Igreja pela fé e pelo amor, e a escatologia,
na qual se unirá a ela na glória. O Apocalipse nos mostra a esposa
descendo neste terceiro momento do céu, de junto de Deus, toda for­
mosa (21,2). A Igreja não será total e perfeitamente santa a não ser
quando conhecer sua páscoa, a morte à carne e a ressurreição segundo
o espírito.

4. Deíeitos e reformas na Igreja

Os pecados, formalmente, são pessoais. Todavia, por sua impor­


tância, por sua acumulação, pela situação determinante de quem os
comete, acabam por ter repercussões sobre a saúde do corpo inteiro e
por criar na Igreja situações malsãs. Outros defeitos, que não são
necessariamente pecado, podem operar no mesmo sentido. Assim, por
exemplo, o caráter interesseiro de homens de Igreja sem verdadeira

m O bispo H ilário havia escrito: «U b i peccati confessio est, ibi et iustifi-


catio a Deo est» (Tract. in P s 125; in P s 14 [ P L 9,690.305]). Agostinho aplicou
esta idéia à Igreja : En. in P s 60, 6 ( P L 36,871); 85, 4 ( P L 37,1084); 8, 5
(1085); 103 sermo I, 4 (1338); Sermo 138, 6 ( P L 38,766). Cf. também o simbo­
lismo da lua: Y . C o n g a r, V raie et fausse réforme, 80s.
mE ’ bem conhecido o seguinte texto de Agostinho: «Ubicum que autem in
his libris commemoravi Eccíesiam non habentem maculam aut rugam, non
aic accipiendum est quasi iam sit, sed quae praeparatur ut sit, quando
apparebit etiam gloriosa. N une enim propter quasdam ignorantias et infirmi-
tates membrorum suorum habet unde quotidie dicat: Dimitte nobis debita
nostra» (Betract., II, 18 [P L 32,637s]). Cf. Bernardo de Claraval, em textos
muito significativos para nosso tema: Dornin. I» post oct. lipiphaniae, sermo
1, 3 ( P L 183.155D-156A); sermo 2, 2 (159); In P s Qui habitat, sermo 17, 6
(253); D e diversis serm., 33, 8 (994); Ep. 126, 6 ( P L 182.275C); Tomás de
Aquino, S. Th., III, q. 8, a. 3 ad 2. A expressão Ecclesia peccatrix encontra-se
nos Padres: por exemplo, Hilário, Tr. Mysteriis, H , 9 (C S E L 65,35; citado
por P . C a m e l o t , L e sens de FEglise chez les Pères latins: N R T h 93 [1961],
367-381, esp. 369).
104 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA

vocação, unido a um sistema beneficiai ou ligado a estruturas feudais,


pôde levar em certas ocasiões a graves negligências no exercício doa
encargos pastorais e em particular do ministério da pregação. O espí­
rito carnal, favorecido pelo próprio regime jurídico, desencadeou uma
série de abusos e uma decadência tais, nos institutos religiosos, que
se fazia necessária uma reforma. A vida da Igreja está toda ponti­
lhada por movimentos de reforma. Tais movimentos entram, de certa
forma, na penitência da Igreja, já que as misérias e os defeitos que
os exigem estão ligados com os pecados dos membros da Igreja.
Mas enquanto estes pecados são pessoais — mesmo se diminuem a rea­
lização atual da santidade a que é chamada a Igreja, — tais misérias
e defeitos afetam realmente a Igreja em sua vitalidade.
O vocabulário patrístico utiliza amplamente os termos renovatio,
reformatio, mas num sentido diferente daquele que lhe damos quando
falamos de reformas ou de renovações para a própria Igreja. Nos Pa­
dres, o sentido é propriamente antropológico; não é eelesiológico senão
como conseqüência.® Trata-se de reconfiguração, segundo a semelhança
de Deus, da imagem rota e empanada em nós pelo pecado. Este sen­
tido de antropologia espiritual tem, contudo, um alcance eelesiológico.
Com efeito, a Igreja, segundo os Padres, é composta de homens que
se convertem ao evangelho: é congregatio iidelium, ecclesia sanctorum
(iustorum). A renovação dos fiéis e da Igreja coincidem. -De fato, as
reformas monásticas ou canonicais que surgiram antes de meados
do século X I foram de natureza essencialmente ética e espiritual.
Tais reformas mostraram-se insuficientes. Pelos meados do século
XI, os homens mais clarividentes do monacato da Lorena, e mais tarde
os que rodeavam os papas reformadores (Leão IX, Gregório V II), con­
venceram-se de que sem reforma profunda das estruturas jurídicas não
se acabaria com a simonia e o «nicolaísmo» (incontinência dos cléri­
gos). A reforma chamada gregoriana, tendente a restabelecer a libertas
ecdesiae, isto é, a independência do sacerdócio, foi uma reforma jurí­
dica e canônica, apoiada num desdobramento e numa afirmação da
autoridade papal. Mas tal reforma continuava sendo mística em suas
raízes espirituais, e foi isso que lhe deu sua força, já que as reivindi­
cações gregorianas se apoiavam numa elevada idéia de Deus e das
exigências de seu serviço.®
Na medida em que a «santa Igreja» goza na Idade Média de uma
situação privilegiada, multiplicam-se os abusos e começa-se a reclamar
uma reforma «na cabeça e nos membros», segundo a fórmula lançada
por Guilherme Durando. Naquele tempo a reforma era concebida como
uma melhor regulamentação de suas instâncias internas de autoridade
e a aplicação efetiva de uma disciplina de vida mais estrita para clé-

® C f. G. B. L a d n e r , The Idea o f Reform . Its Iswpact on Christian


Thought and Action in the A ge o f the Fathers, Cambridge (U S A ), 1959.
Sobre este ponto, ef. especialmente A. N i t s c h k e , D ie W trksam keit
Gottes In der W e lt Grego rs V I I . . . , em Studi Gregoriani, V, Roma, 1956, 115-
219, e também G. T e l l e n b a c h , Libertas. Kirche und W eltordnung ím
Zeitalter des Investiturstreites, Stuttgart, 1936. Sobre a reform a gregoriana,
cf. os estudos de A. Fliche, H . X. Arquíllière, etc., e as histórias da Igreja.
SECÇÃO H: A IGREJA É SANTA 105

rigoa e monges. Geralmente, esta obra, muitas vezes empreendida e


outras tantas recomeçada, é ligada à reunião de um concílio como
fundamento da cristandade.
Lutero e os reformadores protestantes do século X V I levaram
suas exigências de reforma a outro terreno: o da doutrina teológica e
da pregação. Em nome do evangelho, os reformadores criticaram o
ensinamento corrente. Ao defrontar-se com a oposição dos teólogos e
das autoridades eclesiásticas não só puseram radicalmente em questão
as estruturas hierárquicas da Igreja e até o sacerdócio particular dos
ministros, e depois as formas da vida eclesiástica e do culto e (com
exceção do batismo) dos sacramentos (missa-sacrifício), mas questio­
naram também as próprias regras da crença: magistério, valor das
tradições (e através delas, quase fatalmente, o da tradição) e inter­
pretação comum da Escritura. Os reformadores deram um sentido e
um alcance novos ao antigo princípio da suficiência (material) da Es­
critura. Ao colocar uma palavra de Deus (escrita), que julga sem
cessar a Igreja como norma superior e externa à mesma, puseram o
fundamento daquilo que passará a ser um lugar comum na teologia
protestante: Ecclesia sempet reíormanda. A idéia de reforma da Igre­
ja sofreu uma mudança profunda: já não se tratava de uma revisão
de certas formas da vida da Igreja, mas punham-se em questionamento
suas próprias estruturas no tríplice âmbito da doutrina, dos sacramentos
ou do culto, dos poderes e ordenação hierárquica do ministério,
pretensão totalmente inaceitável, contrária à consciência eclesial de
sempre.
A necessidade de reforma nem por isso deixa de ser algo normal
na Igreja: a constituição dogmática Lumen Gentium o reconhece. n
Esta necessidade não pode ser aplicada às estruturas essenciais, às quais
a fidelidade de Deus para com sua aliança assegura a imunidade frente
aos ataques do inferno (M t 16,18). Esta necessidade de reforma refe­
re-se, evidentemente, aos abusos e às deficiências da ordem ética ou
disciplinar. Todavia, entre estes dois âmbitos, o primeiro dos quais é
demasiadamente profundo para poder ser tocado e o segundo muito
trivial para não dizer óbvio, situa-se aquilo que se pode chamar estado
de coisas que exigem revisões mais ou menos profundas no tríplice
âmbito do ensinamento ou da pregação, da vida litúrgiea, das organi­
zações e disposições que regulam a vida e a ação da Igreja. Uma re­
forma ou uma renovação bastante séria pode ser exigida em todos
os âmbitos, tanto para uma melhor compreensão do sentido, do equi­
líbrio e das exigências do evangelho e, — de maneira mais geral, da

™Parece que esta fórm ula é de Voetius, teólogo holandês de estrita obser­
vância calvinista, no Sínodo de Dordrecht, 1618-19. Exposição e crítica da
noção protestante de reform a e de suas implicações: Y . C o n g a r , V raie et
fausse réforme dans 1’Êglise, Paris, 1950, I I I parte.
n Cap. II, n. 9: «P e r tentationes vero et tribulationes procedens Ecclesia
virtute gratiae D ei sibi a Domino promissa confortatur, ut in infirmitate
cam is a perfecta fidelitate non deficiat, sed Domini sui digna sponsa remaneat,
et sub actione Spiritus Sancti seipsam renovare non d esin at...». Cf. supra,
nota 51. O decreto sobre o ecumenismo, promulgado em 21 de novembro de
1964, fa la também expressamente de reformatio et renovatio (n. 6).
106 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

revelação divina, da qual a Escritura é memorial e a tradição canal


de transmissão viva — como pelas exigências do tempo.
Ambas as motivações estão unidas em nosso tempo, no qual expe­
rimentamos vivamente tanto as necessidades de uma autêntica e pode­
rosa volta às fontes bíblicas, patrísticas e litúrgicas, como os apelos
e as exigências de uma época difícil para a missão evangélica, dentro
de um mundo em transformação, dominado por um humanismo sem
Deus, absorvido pelo conforto material e pelo ritmo trepidante do tra­
balho, um mundo crítico e submetido àquilo que às vezes é chamado
de extraordinária aceleração da história. Por isso, nesta época em que
a Igreja é mais pura do que nunca o foi desde o tempo dos mártires,
empreendeu um aggiornamento, do qual o Concílio Vaticano II, alme­
jado para este fim por João X X III, foi o instrumento. Desta forma,
redescobriu-se não só o sentido medieval das coisas que ligava as re­
formas ao Concílio, mas também seu sentido patrístico. Com efeito,
João X X III repetia freqüentemente que esperava a reforma de um
movimento profundo de renovação da vida cristã: vida de oração (li­
turgia), ensinamento, família, testemunho e apostolado. A eclesiologia
redescobre suas implicações antropológicas.
As reformas são empreitadas difíceis. Homens impacientes, sem
muito senso da tradição e cujas idéias particulares estão acima de
tudo, correm o risco de fazê-las degenerar em movimentos sectários.
E ’ necessária uma série de condições para que uma reforma seja levada
a bom termo sem cisma:12 primazia da caridade e da utilidade pastoral
sobre o espírito de sistema e de pura dedução intelectual; preocupação
pela comunhão com o todo, o que obriga a procurar o controle dos
órgãos moderadores centrais e a superar eventualmente posições man­
tidas atualmente, mas inadequadas às exigências de uma plena tradição
católica; a paciência, que evita o ultimato e a pressa em querer ter
tudo imediatamente; a procura de uma verdadeira renovação pela apli­
cação viva dos princípios a uma situação nova e não a substituição
mecânica de algumas formas de pensar ou de fazer por outras; o
senso comum.
A volta às fontes bíblicas, que lhe asseguram constantemente
sua pureza e que a sustentam em seu princípio (o alia do dado nor­
mativo), e a resposta às exigências do tempo, pela qual a Igreja
procura crescer em direção à plenitude dos tempos à qual é chamada
(em direção ao ponto ômega da estatura perfeita de Cristo: E f 4,13),
estes são os dois motivos de uma reforma que será santa se observar
as condições anteriormente expressas.

5. A santidade como argumento da verdadeira Igreja


para a apologética ,a
A nota de santidade ocupa um lugar modesto no conjunto de ar­
gumentos apologéticos em favor da verdade da Igreja católica. Com
“ Resumimos aqui a seguinte parte de V raie et fausse réforme.
?* Cf., do ponto de vista histórico, G. T h i 1s, !Les notes de l’E glise dans
l’Apologétique catholique depuis la Réforme, Gembloux, 1937, sobretudo 121-
SECÇÃO II: A IGREJA fi SANTA 107

muita freqüência omitem-na os apologetas do século X VI. " De outro


lado, fez-se, às vezes, uma apresentação e um uso triunfalista insus­
tentáveis desta propriedade.15 A este uso, todavia, dever-se-ia ter oposto
uma dificuldade, a de aplicá-la unicamente à Igreja católico-romana.
E ’ evidente que existiu e existe santidade em outros lugares que não
na Igreja (Cristo e seu Espírito operam por todo o mundo), e, como
é lógico, não somente a Igreja católica foi revestida dessa santidade.
Não temos a menor dificuldade em reconhecê-lo. Mesmo quando se
trata, por exemplo, das Igrejas ortodoxas, admitimos que esta santi­
dade apresenta certo valor de nota, no sentido técnico da palavra.70
A primeira lei de toda argumentação apologética, nesta matéria como
em outras, será a de não exigir mais do que exige a teologia. Ora,
esta, de maneira cada vez mais precisa, admite a existência de ver­
dade e de graça fora dos limites visíveis ou assinaláveis da Igreja
católica.
Vai-se impondo de forma cada vez mais clara a idéia de que a
Igreja de Cristo, como instituição positiva de salvação e como povo
de Deus, não se situa como uma cidade toda ela, e somente ela, lumi­
nosa num mundo vazio e em trevas; o mundo está cheio da presença
ativa de Deus, de seu Cristo e de seu Espírito. Mas também de forma
cada vez mais clara aparece a Igreja como o sinal dinâmico, e neste
sentido, sacramento, da presença ativa e salvadora perfeita de Deus,
que quer fazer de todos os homens seu povo, o corpo de Cristo, o
templo do Espírito Santo. Nestas condições a teologia assinala à apolo­
gética um caminho que corresponde justamente não só aos fatos, mas
também ao sentido que os homens têm das coisas. O cristianismo apa­
rece na Igreja católica como plenitude da presença santiiicadora de
Deus. Somente em relação a Jesus Cristo, em relação aos santos e
aos místicos católicos se pode avaliar e apreciar a santidade, da qual
se encontram testemunhos irrecusáveis para além dos limites visíveis
da Igreja. " A santidade católica, tanto por parte da sancta como por

153. Sobre esta problemática, cf. R. Garrigou-Lagrange, L a sainteté de l ’Eglise,


em M. B rillant e M. Nédoncelle (eds.), Apologétique, Paris, 1937, 600-642; K.
K e m p f , Die H eiligbeit der Kirche im 19. Jahrhundert. E in B eitrag zur Apo­
logie der Kirche, Einsiedeln, 1928 (estudo de 109 processos de canonização) ;
R. D. Smith, citado supra, nota 1.
" E m particular a escola de Lovaina: cf. G. Thils, op. cit., 102, 128 (nota
4) ; S. F r a n k 1, lioctrina Hosii de Notis Ecclesiae in luce saeculi X V I consi-
derata, Roma, 1934, 70s.
™Assim, por exemplo, o padre Monsabré, Carême 1881, 53® conferência
(206s).
78Cf. G. Thils, op. cit., 45, 91, 95, 338s; M. J u g i e , Où se trouve le
Christianisme intégral?, Paris, 1947, 254; Y . C o n g a r , Chrétiens en dialogue,
Paris, 1964, 289-311; I. K o l o g r i v o f , E ssai sur la sainteté en Russie,
Bruges, 1954. P o r isso alguns cristãos ortodoxos que escreveram aos Padres
do Concílio reivindicaram com justiça para sua Ig re ja o sinal de santidade:
cf. Inform. cath. intern., 1-10-1965, 16-37. Cf. também W . B a r t z, Heroische
Heiligkeit und M artyrium ausserhalb der Kirche, em Einsicht und Glaube
(Hom . G. Sõhngen), Friburgo, 1962 (=1964), 321-331.
n Cf. H. B e r g s o n , L es deux sources de la M orale et de la Religion,
Paris, 1932. Cf. card. Dechamps, Oeuvres, I, 415s. U m místico muçulmano,
Ibn A ra b i (t 1240), considerará Jesus como o selo da santidade universal,
concedendo-lhe um papel de certo modo trans-histórico inigualável (M . Hayer,
Le Christ de l’Islam, Paris, 1959, 19). Outro tanto se pode dizer, positis
ponendis, da santidade da Igreja.
108 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

parte dos sancti (e sanctae), seria, pois, uma espécie de primeiro ana-
logado por referência ao qual se apreciaria toda outra santidade. Do
ponto de vista apologético, tratar-se-ia, pois, de entrar num processo
de argumentação relativa e comparativa que vários apologetas no pas­
sado já seguiram.ra
Mas esta forma de proceder só se impõe se se quiser argumentar
partindo da santidade como milagre moral para mostrar que a Igreja
católica, não podendo explicar-se a não ser por uma intervenção ou
uma instituição formal de Deus, está justificada em sua pretensão de
ser a única Igreja verdadeira, instituída por Deus para ensinar aos
homens a verdade salvadora. Este é o ponto de vista da apologética
clássica. Existe, contudo, outro caminho no qual a nota de santidade
encontra não só toda a sua eficácia, mas também uma espécie de
primazia.
Neste caminho já não se trata de provar mostrando que só o poder
de Deus permite explicar fatos considerados como um milagre moral.
Trata-se antes de revelar uma aproximação de Deus, em Jesus Cristo
e na Igreja, que corresponda à necessidade e ao desejo profundo do
homem e que exorte energicamente à fé. O milagre já não é consi­
derado como efeito do poder de Deus que obrigue a concluir a exis­
tência da causa, mas como sinal da presença e do chamado divino que
nos convida à conversão. Nesta perspectiva, a Igreja é uma hagiofania,
que revela a existência de outro mundo no qual se pode entrar por
meio de um novo nascimento. A apologética é mais ostensiva do que
probativa.
Este caminho oferece grandes vantagens que conduzem eficazmente
à fé. Em primeiro lugar, a de encontrar no homem uma espécie de
convicção secreta. Os homens não se enganam a propósito da santidade.
Reconhecem-na logo, como que por instinto, e são por ela atraídos. A
santidade é sua própria prova sem argumentação crítica. De forma
direta e espontânea, da santidade deduzem a verdade do evangelho,
que suscitou e alimentou esta santidade. Isto sucede — é a segunda
vantagem — porque existe homogeneidade objetiva entre a santidade,
o evangelho e Deus. Já quando se trata dos milagres físicos aparece
algo semelhante: Deus não faz «prodígios» como os faquires; os mi­
lagres que ele realiza têm uma relação com seu amor para com os
homens. M. Blondel sublinhou com acerto este fato. Mas, tratando-se
de milagres morais e de santidade, a relação é direta, total, imedia­
tamente evidente.79 Se se trata não de um fato isolado, mas do conjunto
coerente dos fatos de santidade que aparecem na Igreja católica (sancti
e sanctae) e que nela se apresentam ligados a uma instituição (sancta),
este conjunto mostra que a Igreja não só é sacramento universal de
salvação, mas o sacramento do encontro, pelo qual se realiza a aliança
em plenitude. Sem necessidade de uma argumentação comparativa, este
fato apóia na razão a passagem à fé pelo novo nascimento.

raCf. G. Thils, op. cit., 49, 147s.


” Cf. P. A. L i é g é, Kéflexions pour une apoio gétlque du m irad e: R S P h T h
34 (1951), 249-254.
SECÇÃO III

A IGREJA Ë CATÓLICA1
I. CATOLICIDADE DA IGREJA

1. Perspectiva histórica

a) Origem e valor da expressão*

A palavra «católico» não se encontra nem na versão dos L X X


nem no NT. Portanto é necessário informar-se sobre o sentido que
tinha no grego profano. Em Aristóteles (sêc. IV aC), » 8 ’ õXov significa:
segundo o conjunto, em geral; trata-se de proposições universais. Ze-
não (séculos IV -III aC) escreve um tratado dos universais, m0oteá:
são «católicos» os princípios universais. Políbio (século I I aC) fala
de história universal e comum, Trjç waôokxijç xaí itoivfiç Icrtooíaç. Em

‘R Moureau, D T h C II/2 (1923), 1999-2012; H . Leclercq, D A C L II/2


(1910), 2624-2639; A. de P o u l p i q u e t , E ssai sur la notion de catholicité:
R S P h T h 3 (1909), 17-36; id., L ’Église catholique, Paris, 1923, 179-186, 271-304;
A . D. S e r t i l l a n g e s, L ’Église, 2 vols., Paris, 1919; Y . C o n g a r , Chrétiens
désunis, Paris,_ 1937, cap. I I ; id., Sainte Église, Paris, 1963, 155-180; H . de
L u b a c , Catholicisme. Les aspects sociaux du dogme, Paris, varias reedições;
B. P l a n c k , Katholizität und Sobomost, W ürzburg, 1960; J. Salaverri, L T h K
V I (1961), 90ss; J. L. W i t t e , Die Katholizität der Kirche. E ine neue Inter­
pretation nach alter Tradition: G r 42 (1961), 193-241; J. N e u n e r , D ie W elt­
kirche, die Katholizität der Kirche im Missionswerk, em P. Holböck e Th.
Sartory (eds.), Mysterium Kirche, Salzburgo, 1962, 815-889; A. A u e r , Kirche
und W elt, ibid., 479-570;; M. J. Le G u i l l o u , Mission et unité, 2 vols., P a ­
ris, 1960; id., L e Christ et l’Église. Théologie du Mystère, Paris, 1964; E.
M e r s c h , L e Christ, l’Homme et l’Univers. Prolégomènes à la théologie du
Corps mystique, Bruges, 1962; S. T r o m p , Corpus Christi quod est Ecclesia,
3 vols., Roma, 1936 (21946, 31960) ; W . B e i n e r t, U m das dritte Kirchenat­
tribut. D ie Katholizität der Kirche im Verständnis der evangelisch-lutherani-
schen und römisch-katholischen Theologie der Gegenwart, 2 vols., Essen,
1964j; «Istin a» 14 (1949), 1-190 (comunicação apresentada à comissão mista
«Catholicité et Apostolicité») ; H. K ü n g, D ie Kirche, Friburgo, 1967, 353-378.
Sobre a história do conceito: A. G ö p f e r t , D ie Katholizität. E ine dogmen­
geschichtliche Studie, Würzburg:, 1876; A. S ö d e r , D e r B e g riff der Katho­
lizität der Kirche und des Glaubens nach seiner geschichtlichen Entwicklung
dargestellt, W ürzburg, 1881. Exposições protestantes: H. Asmussen e W .
Stählin (eds.), D ie Katholizität der Kirche, Stuttgart, 1957; H. B e r k h o f ,
Die Katholizität der Kirche, Zurique, 1964.
“ P a ra a história do emprego d a palavra, cf. O. Rottmanner, Catholica:
R B én 17 (1900), 1-9; F. K a t t e n b u s c h , D a s Apostolische S y m b o l..., n,
Leipzig, 1909, 920-927; G. B a r d y , L a théologie de l’Église de S. Clément de
Home à S. Irénée, Paris, 1945, 64-67 ; E. C. B 1a c k m a n, M arcion and his
Influence, Londres, 1948, apêndice I, 15-19; J. N . D. K e l l y , Initiation à la
doctrine des Pères de l’Église, Paris, 1968, 411ss ; A. G a r c i a d i e g o ,
Katholikè Ekklesia. E l significado del epiteto «catholica» aplicado a «Iglesia»
desde S. Ignacio de Antioquía hasta Orígenes, México, 1953 ; E. F a s c h e r,
Ökumenisch und katholisch: T h L Z 85 (1960), 13-20; M. B r i e k , D e vocis
«catholica» origine et natura: «Antonianum » 38 (1963), 263-287.
110 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Fílon (século I dC), »aOokxóç significa «geral», em oposição a «par­


ticular»; os deuses astrais da Síria eram chamados mOoXtxoí.
Aplicado à Igreja, o termo aparece pela primeira vez pelo ano
de 110 em Inácio de Antioquia: «Onde aparece o bispo esteja a co­
munidade, da mesma forma que onde está Cristo Jesus está a Igreja
católica». Os intérpretes têm opiniões divergentes sobre o sentido exato
da expressão. Alguns, considerando o paralelismo entre a igreja local,
presidida pelo bispo, e a Igreja «católica», cuja cabeça é Cristo, en­
tendem o termo no sentido de universal, de totalidade da Igreja
(assim, H. Hemmer, H. de Lubac, G. Bardy, P. Th. Camelot, J. N. D.
Kelly, E. C. Blackman, W. Beinert). Todavia, de uma parte, Inácio
quer afirmar que à margem do bispo não há legitimidade, não há ver­
dadeira Igreja; por outra, convém considerar a relação estreita de
representação e continuidade que Inácio coloca entre a Igreja terrena
e a verdade celeste; há um bispo absoluto, supremo, que é invisível
(o Pai, Cristo), e a dignidade do bispo visível procede do fato de que
é sua imagem. Nestas condições, a expressão «Igreja católica» não
significa somente um valor de totalidade, mas, além disso, um valor
de verdade, de autenticidade. Por isso alguns autores que recente­
mente se ocuparam da questão (Garciadiego, Briek) advogam a prio­
ridade do sentido: Igreja total, perfeita (na verdade e na união com
Cristo), inclusive no sentido de única verdadeira.3 A partir do fim do
século II, «católica» aparece freqüentemente aplicada à Igreja no sen­
tido de verdadeira Igreja.
A persistência de uma dupla interpretação mostra que não se pode
manter um sentido com exclusão do outro. De resto, depois de Inácio
aparece «católica» como epíteto da Igreja quatro vezes no Martyiium
Polycarpi (posterior ao ano 156): na conclusão e em XIX, 2, e talvez
mesmo em V III, 1, a expressão pode significar universal; mas em XVI,
2, não há dúvida de que o termo se refere à verdadeira Igreja, em
oposição a outros grupos que se chamam Igreja, mas não o são.
Ireneu, que tão claramente usa a idéia,4 não emprega a expressão
«Igreja católica». Aparece, ao contrário, em Clemente de Alexandria,
no sentido de Igreja verdadeira, em oposição às seitas heréticas,5 e em
Tertuliano, mais freqüentemente sob a forma elíptica de catholica. *
Na mesma época, o cânon de Muratori emprega Ecclesia catholica co­
mo uma expressão para distinguir a Igreja autêntica das seitas. A
partir do século III, este sentido fica solidamente estabelecido: o epí­
teto «católica» designa a Igreja verdadeira através de todo o mundo

3Assim, F. Kattenbusch, op. cit., 922; D e r Quellort der Kirchenidee (Hom.


H arnack), Tübingen, 1921, 148 e nota 1.
4 Cf. P. G a l t i e r , «A b hís qvii sunt u tid iq u e ...» (Irénée, Adv. haer.,
III, 3,3): E H E 44 (1949), 411-428.
5 Strom., V II, 17, 106s (P G 9,547.551).
“ Cf. Pvaesc., 26, 9; 30, 2, com o sentido de verdadeiro, autêntico (Sources
Chr 46, Paris, 1857, 123 e nota, 126); Adv. Marc., IV , 4: «catholicae Ecclesiae
contulit» (C S E L 47,429).
SECÇÃO III: A IGREJA E CATÓLICA 111

ou uma, comunidade local que se encontra em comunhão com essa


Igreja. ’
A expressão não foi logo assumida nos Símbolos. Se o Símbolo
de Nicéia não a emprega (veja-se, contudo, a nota anterior), o Sím­
bolo batismal das constituições egípcias menciona já «baptismum unum
in sancta Ecclesia catholica et apostolica»,8 e a expressão é admitida
no decurso do século IV : papiro litúrgico de Dêr-Balyzeh (DS 1),
Símbolo comentado por Cirilo de Jerusalém por volta de 348,* Símbolo
de Epifânio de 374,10 do qual se aproxima muito o texto chamado
Símbolo de Nicéia-Constantinopla (DS 150). No Ocidente, nossa fór­
mula aparece no século V em Nicetas de Remesiana (DS 19).

b) Breve história da idéia de catolicidade

Desde o começo, os cristãos, mesmo quando não passavam de


pequenos grupos dispersos, tiveram a consciência de pertencer a um
corpo único de extensão universal; havia irmãos em todo o universo
e com eles formava-se um mesmo povo, uma mesma família. ” A par­
tir do momento em que a fé se disseminou de fato praticamente por
todos os lugares, os cristãos tiveram a viva percepção da maravilha
que significava uma Igreja que chegava aos confins do mundo, con­
servando sua unidade entre os mais diversos povos. “ O fato nos causa
hoje menos estranheza, já que realmente aconteceu, mas os pagãos da
época a consideravam como uma pretensão impossível.M Mas a pre-

’ Algum as referências: D. S t o n e, The Christian Church, Londres, ’1915,


137; Cipriano Epp. 44; 45; 46; 48,3; 55,1; 66,8 ; Atanásio, Ep. Enc., 5; ÁpoL c.
Arianos, 28; Ep. Heort., X I, 11; Cirilo de Jerusalém, Catech., X V III, 23,26;
Gregório Nazianzeno, Exemp. Test.; Agostinho, Ep. 52,1; C. ep. Manich., 5;
Concílio de Nicéia, cân. 8, 9 e 19, e a fórm ula de anátema que segue a
expositio fidei: «A o s que d izem ..., a estes a Ig re ja católica e apostólica
declara anátema».
8Const. Egypt., X V I, 13 (ed. Funk, II, 110).
BTexto em D S 41; cf. Catech., X V III, 23,26 (P G 33,1044.1048s).
“ D S 42.44 (Ancoratus, cc. 118s [P G 43,232.236]).
11 Clemente de R om a deseja a graça àqueles que foram chamados de
todas as partes (lC le m 45,2); a Didaché roga p ara que a Ig re ja seja reunida
dos confins da terra, dos quatro ventos (IX , 4, e X , 5); o M artyrium Poly-
carpi diz que o santo tinha o costume de rezar por todas as Igrejas esten­
didas por toda a terra (V , 1).
12Cf. em G. B a r d y , L a théol. de l’Église de S. Irénée au concile de
Nicée, Paris, 1946, 15s, os testemunhos do Pastor de H erm as (Sim., IX , 17),
de Justino (BiaL, 117), de Ireneu (A d. haer., I, 10, 2 s ): «E sta predileção,
esta fé (dos apóstolos) é a que a Ig re ja recebeu, e, embora a Ig re ja esteja
difundida por todo o mundo, a conserva cuidadosamente como se habitasse
num a só casa, e nela crê unanimemente como se não tivesse mais do que
uma alm a e um co ração ... A s línguas são certamente diferentes nas diversas
partes do mundo, mas a força da tradição é una e idêntica. A s igrejas fun­
dadas na Germ ânia não têm outra fé nem outra tradição; nem as igrejas
estabelecidas entre os ibercs e entre os celtas, ou no Oriente, no Egito, na
L íb ia ou no centro do m u n d o ...» (P G 7,551s; cf. Adv. haer., II, 31, 2; III, 4,
1, e 11, 8 ; IV , 20, l s ) ; cf. também os testemunhos de Tertuliano.
13 «Se fosse possível que todos os povos que habitam a Europa, a Âsia, a
Africa, tanto gregos como bárbaros, até os confins do mundo, estivessem
unidos pela comunidade de um a mesma fé, talvez uma tentativa como a vossa
teria probabilidades de êxito; mas isso é uma p u ia quimera, dada a diver-
112 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

tensão vingou, e por isso não é de estranhar que os Padres, desde


o século III, vissem no caráter universal da comunhão na mesma fé
um sinal distintivo da verdadeira Igreja, em oposição a heresias,
sempre particulares.“ Este foi o grande argumento de Agostinho con­
tra os donatistas: à «pars Donati» Agostinho não deixa de opor a
catholica. * Na África encontram-se os donatistas, mas não os euno-
mianos; no Oriente existem estes últimos, mas não os donatistas; a
Igreja católica encontra-se na África com os donatistas, no Oriente
com os eunomianos; a Igreja católica enche o mundo como uma
vinha... M Agostinho não se cansa de citar e de agrupar os textos
da Escritura que anunciam a expansão universal da Igreja: se a esta
é dado o nome de «católica», nome que não pode ser aplicado a
nenhuma outra comunhão, é porque se estende a toda a terra.17 Os
donatistas opunham a esta concepção geográfica da «catolicidade» uma
concepção qualitativa e sacramental: é «católica» a Igreja que conser­
vou a pureza das origens e celebra os sacramentos.18 Desta forma,
manifesta-se no começo do século V a dualidade permanente impli­
cada num epíteto que, desde o princípio, havia significado ao mesmo
tempo universal e verdadeira ou ortodoxa.
Estes dois sentidos nunca deixaram de coexistir e com freqüência
foram reconhecidos juntamente pelos mesmos autores. “ Poderíamos
apresentar aqui uma considerável documentação para mostrar que «ca­
tólica», em todas as épocas, significou verdadeira, autêntica, ortodoxa.
Todavia, não se pode negar que a idéia de extensão, de universali-

sidade de populações e de seus costumes. Quem concebe semelhante idéia


só por isso dá mosti'as de ser cego» (Orígenes, Contra Celsum, V III, 72).
11 Cf. Cirilo de Jerusalém, Catech., X V III, 26 (P G 33,1048: R 839); Agos­
tinho, D e vera relig., 7, 12 ( P L 34,128); Eusébio, Hist. Eccl., IV , 7, 13 (P G
20.320B) ; SourcesChr 31, Paris, 1952, 169).
15 Em prego desta palavra como substantivo 240 vezes, de 388 a 429 ou
430; cf. O. Rottmanner, citado supra, nota 2; cf. também P. Batiffol, L e
Catholicisme de S. Augustin, Paris, 1922; Agostinho, Traités antidonatistes =
O S A 4» série, em particular o vol. I, Paris, 1963, com nossa introdução, 77-80
e 83ss.
“ Sermo 46, 8, 18 ( P L 38,280s). Poder-se-ia comparar Cirilo de Jerusalém
(supra, nota 14) ; Nicetas de Remesiana (D e symbolo, 10 [ P L 52,871] ) ; Ilde-
fonso de Toledo (D e cognit. bapt., 73 [P L 76,138], etc.).
11 «Katholike graece appellatur quod per totum orbem terrarum diffun-
ditur» (E p. 52, 1 [ P L 33,194]). Cf. Sermo 46, 18 (ed. C. Lambot, R B én 63
[1953], 187). Pode-se encontrar grande número de outros textos citados em
M. P o n t e t , L ’exégèse de S. Augustin prédicateur, Paris, 1945, 419-446; P.
H o f m a n n, D e r K irchenbegriff des hl. Augustinus, Munique, 1933, 198s.
“ Cf. nossa introdução citada supra (nota 15), 77, nota 2 («cum hoc sit
catholicum nomen quod sacramentis plénum est, perfeetum, quod immacula-
tum, non ad gen te s...», dizia Gaudêncio na reunião de 411: Coll. Carthag.,
III, 102 [ P L 11,1381]). Cf. supra, 33s. Segundo os donatistas, a universalidade
predita havia sido realizada e depois perdida; Agostinho esforça-se por re­
fu tar tal idéia: Sermo 46, 14, 33; Ep. de unitate Eccl., 13, 32; 19, 51; En. in
Ps. 101, II, 8.
“ Assim, Cirilo de Jerusalém (Catech., X V III, 23) e o próprio Agostinho
(cf. Chr. Mohrmann, Die altchristl. Sondersprache in der Sermones des hL
Augustinus, I, Nim ega, 1932, 91 e 131s; G. Mártil, L a tradición en S. Agustín,
M adrid, 1943, 143s). A inda na Idade Média, tanto no Ocidente (por exemplo,
Alberto Magno, I I I Senfc, d. 24, a. 6 [Borgnet, 28, 457b]) como no Oriente
(por exemplo, Simeâo de Tessalonica, 1 1429 [P G 155,796]). Ler-se-á com
proveito H . Marot, Note sur l’expression «Episeopus É cd esiae catholicae»:
«Irénikon» 37 (1964), 221-226.
SECÇÃO III: A IGREJA Ê CATÓLICA 113

dade antropológica ou geográfica com freqüência dispensou atenção


especial à compreensão da catolicidade. Cirilo de Jerusalém concede-
lhe a prioridade, mesmo se a completa imediatamente com a idéia
de plenitude da verdade, de universalidade antropológica e de totali­
dade na ordem do perdão dos pecados e da virtude.20 A idéia de uni­
versalidade geográfica foi ressaltada, como vimos, por Agostinho e,
anteriormente, por Optato de Mileve.21 Posteriormente o será igual­
mente por todos os autores que se encontram sob a influência de
Agostinho“ e por um Isidoro de Sevilha, que oferece a seguinte de­
finição de sabor nitidamente agostiniano: «Catholica universalis quasi
xaO’ õkrv, id est secundum totum. Non enim sicut conventicula haereti-
corum in aliquibus regionum partibus coarctatur, sed per totum orbem
terrarum dilatata diffunditur».23
A insistência sobre o valor de expansão universal viu-se favore­
cida de maneira geral pelos diferentes simbolismos utilizados pelos
Padres para exprimir a idéia de catolicidade. Aqui estão os principais:
a ) O nome de Adão, que seria composto pela primeira letra das pala­
vras que significam em grego as quatro regiões do mundo ou os quatro
pontos cardeais, e, portanto, a totalidade: àwcoMi, õúaiç, Sçxtoç, h«ctih-
Peía.24 b ) O tema de Adão, fragmentado, disperso, mas depois reunido
em Cristo.25 c ) A imagem da túnica multicor que Jacó deu aJosé:26

20Cf. Catech., X V III, 23 (P G 33,1044; latim, col. 1043): «Catholica enim


vero vocatur (Ecclesia), eo quod per totum orbem ab extremis terrae finibus
ad extremos usque fines diffusa est; et quia universe et absque defectu
docet omnia quae in hominum notitiam venire debent dogmata, sive de
visibilibus et invisibilibus, sive de coelestibus et terrestribus rebus; tum etiam
eo quod omne hominum genus recto cultui subiciat, principes et privatos,
doctos et imperitos; ac denique, quia generaliter quidem omne peccatorum
genus, quae per animam et corpus perpetrantur, curat et sanat; eadem
vero omne possidet, quovis nomine significetur, virtutis genus, in factis et
verbis et spiritualibus cuiusvis speciei donis». Observar-se-á o uso da maneira
bíblica de expressar a totalidade por evocação de realidades contrastantes:
doutos e ignorantes, em fatos e palavras, etc. U m pouco mais adiante (n. 27,
col. 1049), Cirilo escreve: enquanto os reis não têm poder senão sobre uma
região, a Ig re ja tem um poder sem limites.
21 Cf. P. Batiffol, op. cit. (nota 15), 96-100.
“ Assim, por exemplo, Fausto de Riez, Tract. de symb., (em Caspari,
Alte und Neue Quellen, 1879, 272s, citado por J. N . D. Kelly, op. cit., 386:
«Que é a Ig re ja católica senão o povo consagrado a Deus, que está disperso
pelo mundo inteiro?»), e o sermão 242, 4, falsamente atribuído a Agostinho
( P L 39,2193).
23Etymol., V III, 1, 1 ( P L 82,293s); cf. também V II, 14, 4, e D e eccl. off.,
I, 1, 3 ( P L 83,739); Sent., I, 16, 6 ( P L 83,572, com as notas).
24 Simbolismo admitido pelo judaísmo. Cf. W . D. D a v i e s, P a u l amd
R abbinic Judaism, Londres, 1948, 54 (R a b i Eliezer, sem alusão às letras
gregas), 55 e 57 (2 Hen, 30, 13; Oráculos Sibilinos); Pseudo-Cipriano, D e
montibus Sina et Sion, 4 (Hartel, 107s); Agostinho, In Io, tr. IX , 14 e X I, 12
( P L 35,1465.1472s); En. in P s 95, 15 ( P L 37,1236); Severiano de Gabala, D e
creatione, V, 3 (P G 56,474); Beda, In Gn, c. 4 ( P L 91,216C); Miguel Glycas,
(P G 158.160AB); Rabano Mauro, D e laudibns sanctae crucis, 12® figu ra ( P L
107,195-198.277); Honório de Autun, Gemina animae, U I, 42 ( P L 172,654s);
Sacramentarium, 4 ( P L 172,741); Elucidariuin ( P L 172,1117A); D e imag. mundi,
I, 86; Ruperto de Deutz, In Io, I I I ( P L 169,301AB); Sicardo de Cremona,
Mitrale, V I, 4 ( P L 213,254).
“ Orígenes, Fragm . in Os (P G 13,828); Agostinho, In Io, tr. IX , 14, e X,
l i s ( P L 35,1465.1470); En. in P s 95, 15 ( P L 37,1236); cf. também H. de
Lubac, Catholicisme, Paris, 1938, 10s.
23Cipriano, D e cath. Eccl. unitate, 7 (H artel, 216); Bernardo, Apologia,
3, 5s ( P L 182,901s).
114 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

na mesma linha, encontra-se a freqüente aplicação à Igreja do ver­


sículo 10 do salmo 44: «Adstitit regina in vestitu deaurato, circum-
data varietate».21 d ) A visão de Pedro em Jope de uma toalha que
continha toda classe de animais puros e impuros.28 e ) O milagre das
línguas do dia de Pentecostes: a Igreja, como os apóstolos, fala simul-
tanamente as línguas de todos os povos.29 f ) O simbolismo dos núme­
ros 12 e 72: 12, número dos filhos de Jacó, dos quais saíram as tribos
de Israel, ou dos apóstolos, dos quais procede o novo povo de Deus,
vem da multiplicação de três por quatro e significa a fé nas três
divinas pessoas espalhada pelas quatro partes do mundo;30 72 (70)
sempre significou no AT, na tradição judia, no N T (os discípulos) e
na tradição cristã, a totalidade dos povos e a idéia de universalidade.“
A literatura patrística e eclesiástica está cheia destes diferentes sim­
bolismos. O duplo valor da expressão a que nos temos referido —■
universalidade-ortodoxia — permaneceu vivo durante a Idade Média.
A Escolástica desde os primórdios e em sua maturidade ligou a idéia
de catolicidade à de fé. Este uso chegou-lhe da tradição, e, mais par­
ticularmente, de Boécio, que, no começo de seu De Trinitate, abundan­
temente lido e comentado, havia escrito: «Ea fides (christianae reli-
gionis) pollet maxime ac solitarie, quae cum praeter univtersalium
praecepta regularum, quibus eiusdem religionis intelligatur auctoritas,
tum propterea quod eius cultus per omnes pene mundi términos emana-
vit, catholica et universalis vocatur».32 A categoria de fides catholica
fazia-se com utilização de outras referências, como o símbolo Quicumque
e mais de um cânon conciliar, mas certamente é a referência a Boécio
que autoriza Abelardo e sua escola a falar da fides catholica como

” Agostinho, En. in P s 44, 24s ( P L 36,509s) ; Rabano Mauro, B e Universo,


X X II, 3 ( P L 111,598); Fulberto de Chartres, Ep. 3 ( P L 141,192). Texto fre ­
qüentemente citado pelos papas contemporâneos a propósito da beleza que a
Ig re ja católica recebe da variedade de costumes e ritos: Bento X V (A A S
11 [1919], 98); Pio X I (A A S 15 [1923], 581); Pio X II, Orientalis Ecclesiae
(A A S 35 [1943], 138).
28Cf. A t 10,l i s ; Agostinho, En. in F s 30; 98; 103, 2 ( P L 36,242 ; 37,1261.
1359); D e c a t rud., 22, 39 ( P L 40,338); B e un. Eccl., 11, 30 ( P L 43,413);
Sermo 4, 18; 149, 5 ( P L 38,43.802). Cf. C. C o u t u r i e r , «Sacram entam » et
«M ysterium » dans l’oeuvre de S. Augustin, em Études aiïgustinieimes, P a ­
ris, 1953, 241; M. Pontet, op. cit. (nota 17), 430. O papa Nicolau I, Ep. 86,
ao imperador Miguel (P L 119,951D-952B). Cf. também H. R a h n e r , Naviciiia
Petri: Z kT h 61 (1947), 3-20, 30s.
Cf. Paciano de Barcelona, Ep. 2, 4 (P L 13,1059) ; Agostinho, En. in P s
147, 19 ( P L 37,1929); M. C o m e au, S. Augustin, exégète du IVe Évangile,
Paris, 1S30, 348; textos patrísticos em Hurter, SS. Patrum Opusc. seL, vol.
27, 187. Cf. Y . Congar, Pentecôte, Paris, 1956, 130s; H. de Lubac, Catholi­
cisme, cap. II, 28s; J. T r a v e r s , L e mystère des langues dans l'É glise:
M D n. 11 (1947), 15-38.
® Agostinho, En. in P s 86, 4 (P L 37,1104) ; Gregório Magno, Mor., I, 14-19
( P L 75.535B). Cf. H. de L u b a c , Exégèse médiévale, IV , Paris, 1964, 24.
31 Ireneu, Adv. Jiaer., III, 22, 3 (P G 7.958A). Cf. E. P e t e r s o n , D a s
Problem des Nationalismus îïüï alten Christentum: T h Z 7 (1951), 81-91.
“ D e T ri«., I ( P L 64,124ß). Sobre a grande difusão dos Opuscul» sacra
de Boécio, cf. W . J a n s e n , D e r Kommentar des Clarenbaldus von A rras zu
Boethius «D e Trinitate», Breslau, 1926, 15-31; M.-D. C h e n u , L a Théologie
au X ÏIe siècle, Paris, 1957, 142-158 (sobretudo 154s).
SECÇÁO n i: A IGREJA Ê CATÓLICA 115

Caracterizada por estes dois traços de universalidade: impõe-se a todos


e estende-se a todas as partes. 33
Os grandes escolásticos seguiram este caminho. Referimo-nos aqui
sobretudo a Alberto Magno e a Tomás de Aquino. Para eles, «católico»
significou, em primeiro lugar, não um valor de ordem quantitativa,
numérica, mas a plenitude do pão de vida que é Cristo e que a Igreja
comunica pela fé e pelos sacramentos da fé. “ A catolicidade está na
essência profunda da Igreja antes de aparecer em sua extensão. A
Igreja e a fé têm nisto as mesmas propriedades, já que a Igreja é
a «congregatio fidelium». Ora, a fé é uniyersalis, especificada pela
totalidade; de um lado, porque se dirige a todos e de fato é pregada
em todos os lugares; a fé não é nem uma ideologia particular nem
o princípio de um culto particular, limitado a um povo. De outro,
a fé enuncia a verdade da relação religiosa com o Deus verdadeiro,
princípio e fim de todas as coisas, e tem em si com que responder,
no plano das respostas últimas, à totalidade das aspirações do homem.
«E t ideo regulae eius universales dicuntur, utpote totam vitam hominis
et omne quod ad ipsam quolibet modo pertinet, continentes et ordi-
nantes» (Tomás de Aquino, In Boet.). Que esta plenitude esteja con­
tida em Cristo, sabedoria de Deus e salvador universal, é algo que
Tomás de Aquino não deixa de proclamar e que expõe na I I I parte
da Summa.33 Voltaremos a isto.
Nos séculos X IV e X V estes temas foram tratados, seguindo
Ockam, mais do que num âmbito teológico, no da epistemologia teo­
lógica das «veritates catholicae», isto é, das verdades que é universal­
mente necessário crer e cuja negação suporia separação e heresia.®’
Todavia, ao longo de toda a Idade Média, e inclusive ainda nesta
última época de crise e decadência, a idéia de Ecclesia univerÿalis
continuava presente em todas as mentes. Tal idéia procedia da convic­
ção neotestamentária, tão freqüente entre os Padres, de que existe
uma Igreja única, destinada a todos os homens, como existe um só
Deus, um só Cristo, uma só salvação.31 Esta idéia tinha sido formu­

33Pedro Abelardo, Introd. ad Tiieol., I, 4 ( P L 178,9860: é preciso corrigir


«catholicorum» por «haeretlcorum ») ; Rolando Bandinelli (Alexandre I I I ) : Cf.
A. G i e t l , D le Sentenzen Kolands, Friburgo, 1891, 14; «Scholastik» 12 (1937),
7, e o próprio Pedro Lombardo. Sem esquecer o comentário de Gilberto de
la Porrée sobre de D e Trin. ( P L 64,1261CD).
84Cf. J. D. L a b r u n i e, L es principes de la catholicité d’après S. Thomas:
R S P h T h 17 (1S28), 633-658. Os principais textos de Alberto M agno são:
I I I Sent., d. 24, a. 6 (Borgnet, 28,457); D e sacrifício missae, II, a. 8, n. 5;
a. 9; III, a. 6 (38, 60; 65; 103; Com. in Mt, 16, 19 (20, 64b); lu L e (23,348,
universalidade no tempo, e 478, universalidade no espago). Principais textos
de Tomás de Aquino: I V Sent., d. 13, q. 2, sol. 1; in Boet. de Trin., q. 3,
a. 3; In I am Deere t., c. 1; In Symb., a. 9; In Eph, c. 4, lect. 2; finalmente,
os textos sobre a graça capital de Cristo, cf. infra.
35 A este propósito, do ponto de vista d a síntese tomista, subscrevemos
o que expôs com profundidade M.-J. L e G u i l l o u , L e Christ et l’Église.
Théologie du Mystère, Paris, 1963, que utiliza cm particular os comentários
escrituristicos de Tomás de Aquino e seus prólogos, onde se expressa esta
síntese.
30 Cf. Y . C o n g a r , L a Tradition et les traditions, I: E ssai historique,
Paris, 1960, 129s (normas p. 172) ; J. B e u m e r, L a Tradition orale, Paris,
1967, 112s.
“ Cf. supra, 40ss.
116 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

lada no Ocidente sobretudo por Gregório Magno e gozara de grande


favor na época carolíngia, mas se encontra no pano de fundo da
idéia da Igreja compartilhada por todos.38 Podia-se dar o nome de
Igreja — ou corpo místico39 — à totalidade dos homens salvos ou,
numa palavra, a todo o âmbito da redenção enquanto efetivamente
recebida. A catolicidade da Igreja era a mesma que a da graça e a
da redenção. Trata-se, pois, de uma noção de catolicismo mais cristo-
lógica do que eclesiológica.
O conceito de catolicidade tomou-se mais estritamente eclesioló-
gico na apologética antiprotestante e no ensino escolar que dela derivou.
No começo, ao menos, era natural que se apresentasse contra a Re­
forma a antiga idéia do caráter particular da heresia frente a uma
Igreja estabelecida em todos os países e que, neste mesmo momento,
conhecia, além dos mares, uma nova expansão missionária. Os pri­
meiros apologetas católicos insistiram, pois, na universalidade moral
que implicava ao mesmo tempo o grande número de fiéis, a transcen­
dência em relação às particularidades nacionais e a perpetuidade no
tempo.40 A catolicidade qualitativa da fé estava então bastante esque­
cida, se excetuarmos Suárez. Nos séculos X V II e X V III insiste-se na
universalidade local, à qual Toumély chega a reduzir a catolicidade.
Mais uma vez, para obter uma apologética eficaz, entende-se esta nota
no sentido de uma universalidade moral e relativa, isto é, superior
à que atualmente realiza qualquer outra comunhão cristã. As dificul­
dades encontradas levaram os apologetas modernos a tratar desta nota,
como da santidade, de maneira negativa. a
As dificuldades de uma prova apologética e, sobretudo, mais pro­
fundamente, as exigências de uma eclesiologia mais teológica e cristo-
lógica provocaram no início do século X X a volta a uma concepção
mais essencial e mais qualitativa da propriedade de catolicidade. Esta
linha foi seguida por A. de Poulpiquet, Y. Congar, H. de Lubac, S.
Tyszkiewicz, Ch. Joumet. “ Em nossos dias trata-se menos de apologé­
tica e mais de cristologia. Não se procura demonstrar aos outros que
temos razão diante deles, mas compreender e manifestar o mistério
da Igreja. Esta não é abordada somente como sociedade («tão visível

38A ind a não se escreveu a história completa. Cf. S. T r o m p, Corpus


Christi quod est Ecclesia, I, Roma, 21946, 102s (Gregório M agno) ; Y. C o n ­
g a r , Eeclesia ad Abel, em Abhandlungen über Theologie und Kirche (Hom.
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B edas d. E h rw .: «Scholastik» 28 (1953), 40-56; Y. C o n g a r , Ecclésiologie
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and its Bearing on the Medieval Theory of Sovereignty, em Miscellanea
H istoriae Ecclesiasticae, Lovaina, 1961, 32-49. M as a história desta idéia é,
na realidade, coextensiva à da eclesiologia entre os séculos V I e X V I.
“ Cf. Tomás de Aquino. S. Th., III, q. 8, 3.
40 Cf. G. T h i 1s, Les notes de l'Église dans l’apologétique catholique depuis
la Réform e, Gembloux, 1937, 212s.
11 G. Thils, op. cit., 247s.
42 Cf. G. Thils, op. cit., 250s ; S. J a k i, L e s tendences nouvelles de
FEcclésiologie, Roma, 1957.
SECÇÃO m ; A IGREJA E CATÓLICA 117

e perceptível como a república de Veneza ou o reino de França», como


diria Belarmino), mas como realidade sui generis, que é preciso ver
na dependência de suas causas divinas, como faz a constituição Lumen
Gentium (cap. I). A idéia de catolicidade, de puramente exterior e
sociológica, está voltando a ser interior e cristológica.
A consideração exclusiva ou dominante da universalidade local ou
numérica não levava a perceber a catolicidade senão como a extensão
da unidade. Uma catolicidade do ponto de vista qualitativo levará mais
em conta a contribuição das pessoas e os aspectos de diversidade.
Exige tudo isto uma época como a nossa, caracterizada pelo renasci­
mento missionário e depois pela redescoberta do Oriente e pelo ecume­
nismo. Nesta linha buscaremos os estímulos para uma teologia da ca­
tolicidade.

2. Teologia da catolicidade

Deve tratar-se verdadeiramente de uma teo-logia. Para os Padres


não significa somente uma propriedade fonética da Igreja considerada
como sociedade que se manifesta na história humana; trata-se de um
predicado que pertence à Igreja em razão da natureza profunda que
recebe de suas causas divinas e de seu Senhor, Jesus Cristo. Devemos
seguir esta linha tradicional de reflexão, adotada também pela cons­
tituição conciliar Lumen Gentium. Todavia, a própria natureza da ca­
tolicidade exige que lhe reconheçamos uma fonte do alto e outra da
terra: a Trindade de Deus e a natureza humana.

a) As fontes da catolicidade na Trindade

Quando Paulo convida os cristãos a uma oração católica e pro­


clama que existe em Deus uma vontade universal de salvação, justi­
fica sua afirmação pela unicidade de Deus e de seu mediador: ITim
2,1-5; cf. Rom 3,29-30; 10,12; E f 4,4-6. Por ser Deus único, por ser
ele a razão única soberana acima de todas as coisas, seu desígnio é
universal. Se Deus faz algo à sua imagem, fá-lo-á ao mesmo tempo
uno e universal. Convém que sigamos a realidade deste desígnio no
âmbito das apropriações a cada uma das pessoas divinas.
a) «Deus», com cujo nome a Escritura designa o Pai, quer um
mundo que chegue a seu término. Seu projeto, enquanto procede dele,
é que todos os homens consigam seu fim na vida. Desde que este
desígnio entra no terreno da realização efetiva, encontra-se com a
livre vontade dos homens, capaz de resistir-lhe. Deus quer, pois, com
uma vontade efetiva e que chamamos conseqüente,“ a salvação real
daqueles que não recusam sua aliança. O tempo da história é um
tempo votado ao exercício da liberdade dos homens e marcado pela
paciência de Deus (2Pdr 3,9). Deus quer igualmente, com a mesma

43 Cf. João Damasceno, D e fide orth., II, 29 (P G 94,968s); Tom ás de Aqui-


no, I Sent., d. 46, q. 1; D e verifc, q. 23, a. 2; S. Th., I, q. 19, a. 6 ad 1.
118 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

vontade pela qual mantém seu desígnio de êxito final apesar do pe­
cado, o meio universal de salvação que é Cristo e, pelo mesmo dina­
mismo com que realiza a missão do Verbo encarnado, quer a Igreja
e a dota de tudo o que é necessário para que seja eficazmente o sacra­
mento universal de um êxito que, depois do pecado, se deve chamar
redenção e salvação.
P) Jesus Cristo, com efeito, é por natureza (união de uma natu­
reza humana individual com a hipóstase da segunda pessoa) e é cons­
tituído por designação divina princípio universal de salvação. Que
significa «de salvação»? Significa «de redenção» do pecado.44 Deus
mantém seu desígnio de aliança apesar do pecado, e este desígnio de
aliança abrange o mundo inteiro, por meio dos homens, que arrastam
o cosmos em seu destino. Mas a salvação não é só «salvamento» da
perdição. Significa que a criatura atinge a meta para a qual foi feita;
significa a consumação daquilo a que aspira sendo incapaz de dá-lo
a si mesma. Natureza e graça não podem ser separadas; é justamente
a natureza o que a graça cura e eleva; é a natureza que o dom
gratuito e «sobrenatural» faz chegar àquilo que esta natureza deseja
obscuramente sem poder dá-lo a si mesma. Não se pode separar a
salvação sobrenatural dos filhos de Deus pela graça e a consumação
do cosmos conforme seu anelo profundo: cf. Rom 8,19-23.
Em Cristo e por Cristo Deus se comprometeu definitivamente a
propiciar à totalidade da humanidade e do mundo, apesar do pecado
que exige satisfação, a plenitude do cumprimento de suas aspirações
profundas. Por isso Paulo fala da missão da obra de Cristo em termos
de totalidade: «Porque aprouve a Deus fazer habitar nele toda a ple­
nitude e reconciliar por ele todas as coisas (tà jtávra), na terra e nos
céus, pacificando-as pelo sangue de Jesus» (Col 1,19-20) ; «o mistério
de sua vontade ( . . . ) : recapitular em Cristo todas as coisas (xò. jtávra)
tanto celestes como terrenas» (E f 1,9.10). Este processo, cujo fim é
a própria escatologia, já começou e está definitivamente comprome­
tido em Jesus Cristo.®
A realeza sacerdotal de Cristo é total; de seu exercício pleno
surgirá o reino. Essa realeza só se exerceu na terra parcialmente,
primeiro no plano espiritual, entre os homens que a acolheram na fé,
e no plano cósmico, de maneira miraculosa, como sinal da verdade
da promessa, que nos foi feita, de uma restauração universal.48 A
Igreja participa do poder real de Cristo segundo sua condição terrena;
participa segundo aquilo que lhe foi dado e só enquanto mediadora,
ao passo que Cristo, mesmo quando não exerce a plenitude de seu

44Cf. Is 53,10ss; M c 10,45; M t 26,28. P o r muitos = por todos: 2Cor 5,14s;


IT im 2,6; 4,10; lJo 2,ls; J. Jeremias, jtoUoí: T h W V I, 356-545.
* P a ra isto e para o que segue permitimo-nos remeter a nossos dois es­
tudos: L e Christ, chef invisible de l’E glise visible, d’après S. Paul, em P ro ­
blèmes actuelles de Christologie, Bruges, 1965, 367-395, e L a Seigneurie du
Christ sur l’Église et sur le monde: «Istin a» 4 (1959), 131-166. Os dois repro­
duzidos em Jésus Christ, notre Médiateur, notre Seigneur, Paris, 1965, 145-
247. Cf. igualmente A. F e u i l l e t , L e Christ, Sagesse de D ieu d’après les
Epîtrès paulinieimes, Paris, 1966.
« C f . A t 3,21; R om 8,19; 2Pdr 3,13; Apc 21,1.27; Is 65,17; 66,22.
SECÇÃO III: A IGREJA ® CATÓLICA 119

poder, é princípio e fonte, cabeça e senhor. Tratando-se do próprio


Cristo, a diferença que acabamos de exprimir entre o exercício efetivo,
provisoriamente limitado, de seu poder, e a extensão absolutamente
universal deste, aparece até na maneira pela qual se expressa Paulo.
O Apóstolo fala sempre de Cristo como cabeça, xEtpaX-ri, mas exprime
a relação que a Igreja tem com ele por meio da categoria de corpo,
otõjja, e a relação que tem com ele o cosmos como tal, por meio da
categoria de nM|p«>ntt, plenitude ou totalidade. m Em todo caso, a reve­
lação, interpretada e sistematizada desde o século X II no capítulo
de Christo capite, afirma que Deus pôs em Cristo a plenitude das
energias pelas quais o mundo pode chegar a ser de novo um mundo
do Pai, um mundo filial, desenvolvido, vivo e em comunhão. A Igreja,
corpo de Cristo, é a comunhão dos homens, que, tendo aceito Crisito
como seu mestre pela fé, se uniram a seu corpo pascal de morte e
ressurreição, seu corpo sacrificado e glorificado pelo batismo e, sobre­
tudo, pela eucaristia. O princípio da transfiguração total dos homens
atua na Igreja: é o próprio princípio de sua existência. O cosmos
será transformado por uma nova intervenção de Cristo, o Senhor.
Com relação a ele, a Igreja não tem senão uma promessa, um germe,
e isso na graça pascal e, sobretudo, na eucaristia. Quanto aos ho­
mens, há na Igreja, na verdade que lhe foi entregue, — nos sacra­
mentos, nos três ministérios: profético, real e sacerdotal (cuja rea­
lidade supera sua forma hierárquica), — meios com os quais fazer
plenamente de todo homem um filho de Deus, orientado para a ressur­
reição corporal e para a glória.

" Os estudos realizados sobre estes termos, especialmente sobre o se­


gundo, não encerraram a discussão; a referência a estes estudos pode ser
encontrada em nossos artigos anteriormente citados (nota 45) e em Witte,
mencionado supra, nota 1. A idéia subjacente à palavra jtXrKHojKt procede da
gnose (H . Schlier), do estoicismo (J. Dupont, P. Benoit, que recorre também
ao A T ) ou dos escritos sapienciais do A T (A . Feuillet) ? Do ponto de vista
que aqui nos interessa, o debate refere-se sobretudo às relações entre o
lAriQtojAa cósmico e o oãfia eclesial. P . Benoit acentua a diferença e mesmo
a distância que existe entre os dois. J. L. Witte, depois de ter interpretado
o jtXriQírtuxx de Col 1,19 referindo-o não à presença criadora de Deus, mas à
plenitude de graça, diminui muito a distância e até a diferença entre a
relação que Cristo mantém com o mundo e a que mantém com a Igreja:
o mundo não está cheio somente da presença criadora de Deus, ao passo
que a Ig re ja só estaria cheia d a graça de Cristo. Conseqüentemente, W itte
outorga um a grande homogeneidade entre a catolieidade da Ig re ja e a pleni­
tude que existe para o mundo em Cristo. Concede um caráter corporal à
graça, sem explicá-lo claramente, em virtude do qual a totalidade de graça,
desta graça corporal, chegaria já neste mundo, particularmente através da
eucaristia ao cosmo. A plenitude da graça de Cristo chega ao mundo e o
enche completamente por meio da Igreja. A catolieidade é a participação da
Igreja no poder dinâmico que Cristo, cheio da plenitude do divino, pode
exercer sobre a humanidade inteira e sobre o cosmo p ara recapitulá-los.
W itte tem o mérito de haver criticado com razão a form a que um certo
número de distinções poderiam degenerar indevidamente em separações e
oposições; assim, a distinção entre jtXriQtóna e orâjMX, plenitude de Cristo e
catolieidade ontológica da Igreja, transformação espiritual e transformação
corporal, condição terrena e condição celeste (réino) d a catolieidade. Suas
afirmações possuem, pois, a verdade e o interesse de um a reação contra
possíveis insuficiências. M as não aproxima excessivamente estas realidades que,
com razão, não quer dissociar e opor?
120 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Tudo isso procede de Cristo, dotado por Deus das energias com
as quais pode ser, para a humanidade inteira e, a seu modo, para
todo o cosmos, tà jcávxa, um princípio de existência conseguida segundo
o plano de Deus, no natural e no sobrenatural. Em Cristo e por Cristo
foi constituída uma espécie de tesouro objetivo de existência salva­
dora. Cristo é, por sua plenitude de graça, por seu poder real e sa­
cerdotal, por seu caráter de novo Adão e de cabeça, o fundamento da
catolicidade da Igreja.
7 ) O Espírito Santo foi enviado aos apóstolos e dado à Igreja
como sua alma. Não realiza uma obra diferente da de Cristo, mas a
leva a termo dentro de cada pessoa. O Espírito, idêntico em todos,
concede a cada um a riqueza de Cristo e faz com que os diversosi dons,
as iniciativas de cada um e de todos colaborem na unidade. O Espírito
não só coloca no interior de cada um o tesouro de vida constituído
segundo Deus em Jesus Cristo e nas «relíquias» eclesiais de sua encar­
nação redentora, mas proporciona aos demais membros, fazendo-os
confluir para a construção de todo o corpo, os dons pessoais de todos
e de cada um, mesmo daqueles que não pertencem visivelmente ao corpo
eclesial; porque o Espírito penetra o mundo inteiro e suscita nele a
verdade e o bem.48 Assim, pelo Espírito Santo a catolicidade assume
as particularidades sem destruí-las; a catolicidade é, pois, mais do
que a extensão indefinida de uma unidade monista; é a assunção dos
frutos da pluralidade dos indivíduos pelo caminho da comunhão. Pelo
Espírito Santo, a fonte da catolicidade deste mundo se encontra e se
une com sua fonte que vem do alto.

b) A fonte da catolicidade na natureza humana e no cosmos

A plenitude que está em Cristo não se comunica a uma humani­


dade vazia e inerte. Existe uma fonte de riqueza no homem, na natu­
reza humana. Ao falar de «natureza humana» não adotamos nenhuma
concepção sistemática de «natureza»; basta que exista um dado co­
mum a todos os homens, de tal maneira que, por existirem e se rea­
lizaremsegundo este tipo, possam ser chamados homens, isto é, se
reconheçam entre si como seres que compartilham a humanidade.
Este dado comum é uno e, todavia, extraordinariamente variado
e se personaliza em numerosos indivíduos particularmente, cada um
dos quais tem seus projetos, seus sentimentos e suas idéias, suas rea­
lizações, seus valores próprios, sua herança e seus tesouros, quer se
trate de sujeitos individuais, pessoais no sentido rigoroso do termo,
quer se trate de sujeitos coletivos, grupos étnicos, lingüísticos ou
culturais, que como tais também são criadores e portadores de valores.
Esta é a imensa variedade de formas adotadas pelo homem e que

• A tradição e a liturgia aplicam ao Espírito Santo o escrito sobre a


sabedoria: Sab 7,22-8,7. Pedro Dam ião escreve: «O s membros da Ig re ja estão
unidos entre si por uma conexão tão estreita de caridade, que a Igreja,
por seu mistério, aparece una em muitos e inteira em cada um deles» (Opusc.,
X I : Dom inus vobiscum, cap. 5 [P L 145,235]).
SECÇÃO H l: A IGREJA É CATÓLICA 121

representa a riqueza de uma humanidade única. Todavia, a humani­


dade como tal, o homem como unidade,49 não se enriquece com esta
profusão de valores a não ser que entre as pessoas que são suas
portadoras se produza um intercâmbio, uma comunhão. Há necessi­
dade de uma totalização não de tipo mecânico, na qual os indivíduos
seriam sacrificados, mas à maneira de comunhão. Do ponto de vista
religioso, tudo isso deve ser relacionado a Deus, e — visto que Deus
realizou seu projeto de aliança em Cristo e na Igreja, tudo isso deve
chegar a ser a plenitude deste corpo da aliança: «ut in Abrahae filios
et in israeliticam dignitatem totius mundi transeat plenitudo». “
Esta humanidade é cósmica e histórica. Cósmica no sentido de
que está ligada ao universo total, da mesma maneira que este uni­
verso está vinculado com ela. Os dois são solidários na realização à
qual seu dinamismo os orienta. Com efeito, de um lado, o universo
tende para o homem. No homem, a matéria do cosmos, do qual é
feito seu corpo, acede à consciência, à liberdade, à qualidade hipos-
tática ou pessoal da existência, que é a forma mais alta de ser. Assim,
no homem e pelo homem, a matéria do cosmos alcança a possibilidade
da adoração e do sacrifício. E ’ uma ascensão impressionante que
percorre todos os graug do ser e da vida. As plantas se alimentam
das substâncias minerais inanimadas, que nelas se tornam vida. Os
animais se alimentam das plantas, que lhes dão sensibilidade e movi­
mento. O homem se alimenta dos animais e das plantas; nele, o mundo
se transforma em consciência, amor, oração. O mundo tem seu sen­
tido no homem e pelo homem. Mas o homem não pode realizar a
plenitude daquilo cuja possibilidade leva dentro de si e ao qual é
chamado a não ser que se alimente sem cessar do mundo, tanto inte­
lectual como fisicamente. Superando como pessoa o cosmos material,
o homem continua, todavia, ligado a ele. O homem não se realiza a
não ser que viva sem cessar do mundo e humanizando-o, atraindo-o
a si e a seu uso pela ciência, técnica e trabalho.
A revelação bíblica manifesta de um extremo a outro o mais vivo
e o mais completo sentimento desta união existente entre o cosmos
e o homem. Esta união é tal que o homem arrasta o mundo em seu
destino espiritual; enquanto pecador, leva-o à corrupção; como filho
de Deus chamado à glória, eleva-o à liberdade e à paz. Por isso o
programa de aliança que a revelação nos faz conhecer refere-se ao
mundo inteiro; Cristo, que é o centro da realização deste programa,
é princípio de renovação para o mundo inteiro.“ Nesta vida começa

49Verifica-se a sentença de Pascal: « A sucessão inteira dos homens, du­


rante o transcurso de tantos séculos, deve ser considerada como um mesmo
homem que subsiste sempre e que aprende continuamente» (Fragm ent d’un
Traité du Vide [ed. Brunschvicg, 801). A idéia, quanto ao fundo, é tradicio­
nal: Hipólito, D e Christo et Aiiti-ciiristo, cap. 3; Agostinho, D e vera relig.,
27, 50; Iiib. de div., quaest. 83, q. 53; Tomás de Aquino, In Rom, c. 5, lect. 3;
S. Th., I-II, q. 81, a. 1. Cf. infra, nota 68.
60Oração depois da quarta profecia no antigo rito d a vigília pascal ;
cf. const. Lum en Gentium, 13.
51 Sobre este aspecto cósmico d a redenção de Cristo e, positís ponendis,
da própria Igreja, cf., entre muitos outros estudos: E. D r i n k w e l d e r ,
Vollendung in Christus, Paderborn, 1934; Th. M i c h e l s , D a s H eilswerk der
122 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

a restauração de todas as coisas pelo homem e não afeta diretamente


mais do que a ele, mas esta restauração pertence imprescritivelmente
à orientação da iniciativa de aliança da qual Cristo e, atrás dele, a
Igreja são garantia.
A humanidade é também histórica, o que significa que se está
realizando constantemente, animada por um permanente dinamismo de
buscas e de realizações. Assim, não basta cristianizar o mundo de
uma época ou de um lugar determinados, posto que deve ser assumida
em Cristo uma humanidade que muda e avança sem cessar (sem que,
de fato, todo avanço signifique um progresso moral). E ’ preciso incor­
porar ao segando e escatológico Adão toda a substância em expansão
do primeiro.
Vê-se assim como é impossível compreender a catolicidade por
uma referência exclusiva a algo de fora e de cima. Cristo é plenitude
da Igreja, mas por ela também alcança sua plenitude.52 Agostinho
une os dois pontos de vista quando comenta o salmo 19: Accepisti
dona in hominibus, que Paulo (E f 4,8) cita sob a forma aparente­
mente divergente: dedit dona hominibus.63 Ambas as expressões unidas
são verdadeiras. Cristo nos enche com sua plenitude; mas é comple­
tado ou plenificado por nós no corpo místico, que deve crescer até a
plenitude (E f 4,13). Portanto, Cristo recebe dos homens e da criação.
O conteúdo de seu mistério é revelado pela Igreja (E f 3,8-12).
Esta verdade teológica, ligada a posições filosóficas corretas, tem
conseqüências da maior importância na maneira de considerar as rea­
lidades terrenas, a vida e a obra do homem na história, a relação da
Igreja com o mundo.64 Portanto, será preciso estar aberto ao esforço

Kirche. E in B eitrag zu einer Theologie der Geschichte, Salzburgs, 1935; O.


B a u h o f e r , D ie Heim holung der W elt, Friburgo, 1936; F. M e i s t e r , Die
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1940; A. F r a n c k -D u q u e s n e, Cosmos et G lo ire ..., Paris, 1947; G. T h i l s ,
Théologie des réalités terrestres..., I, Paris, 1947; A. D. G a l l o w a y , The
Cosmic Christ, Londres, 1951; M. T h i e l , Anteil der vemunftlosen Geschöpfe
an der Gottesverherrlichung des Menschen: D T h 30 (1952), 185-200; F.
M u s s n e r , Christus, das A ll und die Kirche, Tréveris, 1955; V. W a r n a c h ,
Kirche und Kosmos, em Enkainia (Miscelânea comemorativa do oitavo cen­
tenário da A b ad ia de M aria L aach), Düsseldorf, 1956, 170-205; E. B e a u c a m p ,
L a Bible et le sens religieux de 1’Univers, Paris, 1959; E. M e r s c h e A.
A u e r, op. cit., 496s (citados supra, nota 1); outras referências em nosso
Jésus-Christ (cf. supra, nota 45), 237s (teólogos não-católicos).
Sobre a exegese de Rom 8,19-22, cf. também A . Viard, R B 59 (1952),
337-354; A. M. Dubarle, R S P h T h 38 (1934), 445-465.
“ Cf. E f 1,23: xav jtÁriQouuivon. Os exegetas não estão de acordo nem em
precisar qual é o sujeito exato, isto é, quem enche (Deus: H. Schlier; Cristo:
P. Benoit), nem se o sentido é passivo ou ativo. A maioria opta pelo passivo:
Cristo é também cheio, plenificado; assim, J. Arm itage Robinson (Ephesians,
42s), J. Dupont (Gnosis, 1949, 419s), P. Benoit (R B [1956], 42), G. T. Mon-
tague, (G row th in Christ, 1961, 109), etc., sem contar a enc. Mystici Corporis.
03En. in P s 67, 25 ( P L 36,829s), e sobretudo D e Trim., X V , 19, 34 (P L
42,1084): «Ipse ergo Christus, et dedit de coelo, et accepit in t e r r a ...». Cf.
tam bém João Crisóstomo, In Eph, c. 1, hom. 3, 2, e In Col, c. 2, hom. 6, 2
(P G 62, 26 e 339).
51Ler-se-á com proveito Testis ( = M. Blondel), L a Semaine sociale de
B ordeaux et le Monophorisme, extrat, dos «Annales de Philos. Chrét.», P a ­
ris, 1910. E ’ interessante salientar, na linha de um franco reconhecimento da
SECÇÃO III: A IGREJA É CATÓLICA 123

humano, às iniciativas do homem, aos valores terrenos, a fim de re­


feri-los a Deus, recapitulando-os em Cristo, segundo o programa de
E f 1,10. Todo cristão tem esta ambição (tal era o lema de Pio X ).
Mas uma sólida convicção no sentido que estamos explicando exige
o respeito e a estima pela obra humana e pelas realidades terrenas
em si mesmas, não só em sua referência formal a Deus. E ’ certo que
as coisas devem ser recapituladas em Cristo e dirigidas a Deus; assim,
pois, não devem encontrar seu termo em si mesmas nem a testemunha
de Cristo deve contentar-se em reconhecê-las e cultivá-las. Mas para
serem referidas a Deus é preciso primeiro que existam em si mesmas
e sejam respeitadas como tais. Não há nada menos «católico» do que
certa pressa apostólica, um clericalismo, ainda que inconsciente, um
confessionalismo estrito, um espírito «triunfalista» e, por último, o afã
paternalista de tudo reger e uniformizar.

3. A realização da catolicidade

A catolicidade deve realizar-se pelo encontro da plenitude de ener­


gias salvíficas dada em Cristo e operante na Igreja, com a plenitude
potencial, progressivamente desenvolvida, contida no homem, insepa­
ravelmente unida ao cosmos. Já que Cristo é por direito a cabeça
da plenitude do mundo, é preciso que o seja também de fato, e para
isso, que os homens lhe submetam sua vida, suas criações, seu uso
do mundo. Isto se consegue pela fé e por esta consecratio rmindi, que
é algo inteiramente diferente de um gesto ritual, e que consiste no
uso pleno do mundo, mas segundo Cristo.
Diante deste programa, a Igreja é católica e não o é ainda; aqui
aparece de novo o estatuto do «já e ainda não» que caracteriza toda
sua vida no estádio terreno. A Igreja já é católica em virtude de sua
instituição, em seus princípios formais, enquanto Ecclesia congregans.
Não o é ainda, e deve estar constantemente com vias de sê-lo em sua
vida histórica, enquanto Ecclesia congregata. Em ambos os casos a
Igreja não possui nem a propriedade de «Senhor», que pertence a
Cristo, nem a de «cabeça»; a Igreja não tem mais do que aquilo que
seu Senhor lhe permite, e exerce um ministério ou uma mediação,
segundo o tríplice ofício messiânico do profetismo, da realeza e do
sacerdócio. A catolicidade é, pois, uma propriedade ao mesmo tempo
atual e virtual, é uma distinção dinâmica, dada e imposta como com­
promisso (Gabe e Auigabe, «dom» e «tarefa»).
Por isso a catolicidade corresponde à Igreja mesmo quando esta
ainda está reduzida a ser aparentemente algo muito pequeno, como
diz a constituição Lumen Gentium: «Populus ille messianicus, quamvis
universos homines actu non comprehendat, et non semel ut pusillus
grex appareat, pro toto tamen genere humano firmissimum est germen
unitatis spei et salutis» (n. 9). A catolicidade é um atributo de toda a

contribuição dos sujeitos, o pensamento de Nicolau de Cusa, sobre o qual


cf. E. G i l s o n , Les Métamorphoses de la Cité de Dieu, Paris, 1952, 154-181.
124 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Igreja, até mesmo local. Mais ainda: cada fiel é «católico». Isto su­
põe, evidentemente, para uma comunhão verdadeira, ativa e profunda,
uma presença do universal e do todo em cada realização particular do
único cristianismo (vejam-se as referências dadas na página 39, nota
85). Esta relação ao universal distingue a Igreja da seita, porque o
que constitui a seita não é o número reduzido como tal; algumas, com
efeito, têm meios muito superiores aos da Igreja. O que constitui a
seita é a falta de referência à totalidade: falta de referência de textos
bíblicos particulares ao conjunto e ao centro da revelação, segundo a
«analogia da fé » ; não se situam alguns fatos particulares da vida
numa estrutura de conjunto; a relação entre a Igreja não é observada
como ordem sagrada de santidade e de salvação, com o mundo, a
cultura, a história humana, que se procura assumir e salvar. Existe
certa tensão na Igreja entre as exigências da santidade, que a situam
à parte, e a chamada ao universalismo, que exige viver no mundo,
pelo mundo e, em certo sentido, para o mundo.15 A seita sacrifica esta
segunda realidade à primeira, geralmente interpretada de maneira dis­
cutível. A Igreja aparece sempre, toda ela, como instituição santa, onde
quer que exista, e com um dinamismo de alcance universal. A Igreja
sabe-se chamada à totalidade. Isto é que se exprime de forma cada
vez mais clara na idéia, assumida pela constituição Lumen Gentium,
da Igreja como sacramento universal de salvação. “ Assim, pois, a
Igreja, quer esteja em situação de diáspora ou de permanência, de
começo ou de presença longa e fecunda, é sempre um germe de vocação
universal.
A expansão universal entre todos os povos foi-lhe prometida nos
anúncios proféticos do A T ,67 e foi-lhe designada como tarefa pelo Se­
nhor ressuscitado.“ Tal universalidade está sempre em vias de reali­
zação, já que a humanidade não deixa de cresecr e de revelar, como
o próprio mundo, novas dimensões, profundidades ainda não explora­
das. Isso mostra que, quanto à sua matéria, a catolicidade qualitativa

“ Ponto exposto de m aneira interessante por H. Schmidt, Die Kirche.


Ihre biblische Idee und die Form en ihrer geschichtlichen Erscheinung in
ihrem Unterschiede von Sekte und Häresie, Leipzig, 1884. Aqui realmente não
tratamos do problema d a distinção entre Ig re ja e seita, questão que deveria
ser focalizada a partir de diferentes pontos de vista e que deu lu gar a uma
bibliografia considerável.
58 Idéia exposta em Lum en Gentium, 1, 8, 17, e patrocinada particular­
mente por O. Semmelroth, D ie Kirche als Ursaferament, Francfort, 1953 (trad.
espanhola: !La Iglesia como sacramento original, San Sebastián, 1965); H.
de Lubac, Méditation sur l’Èglise, Paris, 1953, 157s; K. Rahner, Kirche und
Sakramente, Friburgo, 1960 (trad. espanhola: l.a Iglesia y los sacramentos,
Barcelona, 1967); E. Schillebeeckx, D e sakramentale Heilseconomie, 1952; id.,
Cristo, sacramento del encuentro com Dios, San Sebastian, 1965. Cf. B.
W illem s, D e r sakramentale Kirchenbegriff: F Z P h T h 5 (1958), 274-296; Y .
Congar, L ’Eglise, sacrement universel du salut: «E glise vivante» 18 (1966)
(repr. em Cette Eglise que j ’aime, Paris, 1968, 41-63) ; P . Smulders, A Ig re ja
como sacramento de salvação, em G. Baraúna, A Ig re ja do Vaticano II,
Petrópolis, 396-419.
'"A b ra ã o (Gên 22,18, com vistas a Cristo; Gál 3,16s), Isaac (G ên 26,4)
e Jacó (Gên 28,14). Cf. Is 2,2a; 54,ls ; M iq 4,ls; Zac 8,20ss; M al 1,11. Textos
mais formalmente messiânicos: SI 2,7s ( = H b r 1,2), freqüentemente invocado
por Optato e Agostinho contra os donatistas; SI 72 (71), 8.17; Is 49; D an 2,35.
58M t 28,18ss; M c 16,15.17s; L c 24,44-49; A t 1,8.
SECÇÃO III: A IGREJA Ê CATÖLICA 125

e a quantitativa são indissociáveis. Não se pode opô-las; é preciso


mantê-las juntas. O mesmo acontece se se considera a catolicidade
por parte da própria Igreja: sua expansão universal não é possível
porque ela é autenticamente a instituição surgida da encarnação do
filho de Deus e do Pentecostes.

a) A incorporação de povos e culturas.


Catolicidade e missão.59

No parágrafo que a constituição dogmática Lumen Gentium con­


sagra à noção de catolicidade (n. 13) lê-se que o povo de Deus recebe
seus cidadãos de todos os povos da terra. Como o reino de Deus não
é deste mundo, mas o transcende por seus princípios, a Igreja não
entra em concorrência com os povos da terra e não priva nenhum
deles de parte alguma de seu patrimônio temporal, «sed e contra
faeultates et copias moresque populorum, quantum bona sunt, fovet et
assumit, assumendo vero purificat, roborat et elevat». Nisto, «a Igreja
recorda o dever de recolher com o rei, a quem foram dadas em he­
rança as nações (Cf. SI 2,8), e para cuja cidade as nações devem levar
seus dons e seus presentes (cf. SI 71,10; Is 60,4-7; Apc 21,24)».
Eis aí um magnífico programa que o apostolado católico tem cons­
ciência cada vez mais clara de dever realizar.60
Isto está ligado ao pleno reconhecimento da qualidade de sujeitos
às pessoas individuais ou coletivas chamadas a entrar no povo de Deus.
Se forem tratadas praticamente como objetos, não se lhes pedirá mais
do que obediência e receptividade; tende-se, assim, a confundir uni­
dade e uniformidade e a impor de cima, em todos os lugares, normas
nas quais não teve ocasião de expressar-se, em momento algum, o
caráter próprio das pessoas em sua aproximação de Deus. E ’ um fato
que esta foi com freqüência no passado a tendência de Roma.61 E ’
certo que em tal tendência se exprime certo «tueiorismo» paternalista
ao qual quase nunca faltam razões aparentes. Expressa-se nesta ten­
dência a verdadeira catolicidade? Pode-se duvidar disto. Por isso a
tradição autêntica não fala neste sentido, ao contrário, sempre pro-

59 P a ra o que segue, cf. Ch. Bourgeois, L ’appel des races au Catholicisme:


«X averian a» (janeiro e outubro de 1933); J. N euer e Y. Congar, citados supra,
nota 1; A. Rétif, Catholicisme = Je sais, je crois, Paiis, 1956; Pio X II,
IVÉglise et les cultures: «Église vivante» 10 (1958), 444-452 (texto s); V. C.
Vanzin, L ’evangelizzazione delle culture, Parm a, 1958; Catolicidad y responsa-
bilidad misionera: «Misiones E xtranjeras» 9 (1962), 3-109; U. Valeske, Votam
Ecclesiae, Munique, 1962, 180s (bibliografia).
®>Cf. o decreto do Vaticano I I sobre a atividade missionária da Igreja,
números 9 e 19-22.
raA tendência de uniformização é sensível no fim do século IV . Cf. S.
L. Greenslade, Schism in the E arly Church, Londres, 1953, 97s; P. Heiler,
Altkirchliche Autonomie und päpstlicher Zentralismus, Munique, 1940. A lgu ­
mas referências: Sirício, Ep. 10 ad Gail., ep. 2, 7 ( P L 13,1887s); Inocêncio I,
Ep. 25, 1, a Decêncio, em março de 416 ( P L 20,551); Leão M agno (Heiler,
218), Zacarias (Heiler, 232). Tendência freqüentemente apoiada pelos concí­
lios locais (por exemplo, Vannes, 463; I V de Toledo) ou pelos príncipes
(Pepino, o Breve, Carlos M agno).
026 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

clamou que, salva a unanimidade da fé, era preciso respeitar uma


ampla diversidade nos costumes. “ Não deixa de ser notável que apa­
reça uma diversidade considerável até mesmo na expressão do tes­
temunho apostólico (os quatro evangelhos; João e P a u lo ...), nos cos­
tumes observados pelos apóstolos (veja-se o que diz Ireneu até mesmo
a propósito da data da celebração pascal, apesar de ser esta o sinal
clássico da unidade),63 na organização e no regime das igrejas. Se
a unidade, como a santidade e a apostolicidade da Igreja devem ser
católicas, «segundo o todo», sua lei não pode ser a de uma uniformi­
dade niveladora e empobrecedora, mas a de uma comunhão na qual
cada um continua sendo e oferecendo o que ele é. “ Isto supõe, de
um lado, uma pneumatologia que evite a censura um pouco maciça
de «cristomonismo» que nos dirigem os ortodoxos, e de outra, uma
teologia das igrejas locais, da qual estes últimos anos nos ofereceram
valiosas contribuições.65
E ’ evidente que, «salvo iure eommunionis», o espaço deixado a
eventuais variações se estende a tudo aquilo em que se exerce a con­
tribuição dos sujeitos individuais ou coletivos: costumes e disciplinas,
ritos de oração e liturgia, inclusive teologia. O decreto conciliar sobre
o ecumenismo precisa a este propósito aquilo que já insinuava clara­
mente a constituição Lumen Gentium. “ Do ponto de vista de uma teo-

“ Cipriano: Concílio de Cartago, 256 (Hartel, I, 435), resumido assim por


Agostinho: «Censuit Cyprianus, licet, salvo iure eommunionis, diversum sentire»
(D e bapt., III, 3, 5 [PL, 43,141s]); o próprio Agostinho, Ep. 54, 3, e 55, 18
( P L 33,200.220s) ; Gregório Magno, freqüentemente, por exemplo, em abril de
591; Ep. I, 41; «In una fidei nil officit sanctae Ecclesiae consuetudo diversa»
( P L 77,497; MonGermHist, ep. I, 57); Tomás de Aquino (citado por Leão
X III, Providentissimus, [cf. D S 32891), I I Sent., d. 2, q. 1, sol. 3: «In his
quae de necessitate fidei non sunt, licuit sanctis diversimode opinari, sicut
et nobis». Tradição seguida pelos papas modernos: Leão X III, OrlentaXinm
dignitas, 30-10-1894; Pio X II, Orientales Ecclesias, 9-4-1944; João X X III, A d
Petri cathedram, 29-6-1959, que cita o axioma atribuído a Agostinho, embora
seja de origem protestante, anglicana ou luterana: «In necessariis u n ita s...».
Cf. J. Vodopivec, Unity in Diversity. The Problem of Reunion in Missionary
Perspective: «Euntes Doeete» 13 (1960), 495-512; E. Lanne; Les différences
compatibles avec Puni té dans la tradition de l’Eglise ancienne: «Istin a» 6
(1961-62), 227-253; id., Pluralism e et unité: possibilité d’une diversité de typo­
logies dans une même adhésion ecclésiale: «Istina» 14 (1969), 171-190.
03Ireneu, em Eusébio, Hist. Eccle., V, 24, 9-18 (P G 7,1229s ou 20,498s:
K 97-100).
“ Const. Lum en Gentium, 13: «E m virtude desta catolicidade cada uma
das partes traz seus próprios dons às demais partes e a toda a Igreja. Assim
o todo e cada uma das partes aumentam, comunicando entre si todas as
riquezas e aspirando à plenitude na unidade». Leia-se a este propósito J.
L e c l e r c q , Catholica unitas, em L a Communion des Saints = Cahiers de YS,
Paris, 1945, 38s.
65 Sobre a pneumatologia, cf. Y. C o n g a r, Pneumatologie et «christomo-
nisme» dans la tradition latine: E T h L 45 (1969), 394-416, e H . M ü h l e n ,
D e r Heilige Geist als Person in der Trinität, bei der Inkarnation und im
Gnadenbund: Ich-D u-W ir, Münster, a1968; id., ü n a mystica Persona^ P a ­
derborn, 31968 (trad. francesa: L ’Esprit dans l’Eglise, 2 vols., Paris, 1969).
P a ra a teologia d a Ig re ja local, cf. W . B e i n e r t, D ie U n a Catholica und
die PartLkularkîrcîien: T hP h 42 (1967), 1-21; E. L a n n e , L ’Eglise locale: sa
catholicité et son apostolicité: «Istin a» 14 (1969), 46-66; J. D. Z i z i o u i a s
(ortodoxo), L a communion eucharistique et la catholicité de l’Eglise: ibid.,
67-88; H. L e g r a n d, Nature de l’Eglise particulière et rôle de î’évêque dans
l’Eglise, em Vatican II. L a charge pastorale des évêques, Paris, 1969, 103s.
“ Cf. Decreto sobre o ecumenismo, 4, 14-18, sobretudo 16s; Lum en Gentium,
13 e 23 no fim, que indica ao mesmo tempo as exigências d a unidade. Cf.
SECÇÃO III: A IGREJA Ê CATÓLICA 127

logia da catolicidade, é preciso manter, ao mesmo tempo, o que per­


mite a transcendência e o que exige a imanência. Os princípios de
unidade da Igreja e, em primeiro lugar, a fé (cujos dados a teologia
elabora e sistematiza) são transcendentes a suas traduções históricas,
mas traduzem-se nestas formas históricas concretas. A Igreja, diz Bento
X V ,67 não é nem latina, nem grega, nem eslava; é católica, mas sua
catolicidade realiza-se no espaço humano da latinidade ou do mundo
grego. Isso implica, de um lado, a impossibilidade de identificar a
catolicidade com alguma de suas formas particulares; mas implica tam­
bém, de outro lado, na impossibilidade de reduzi-la a uma espécie de
denominador comum vazio de substância; a Igreja, transcendente com
relação às formas particulares, compreende-se e deve assumi-las em
toda a sua possibilidade. A aplicação destas idéias à teologia exigiria
algumas revisões particulares. Tomada em abstrato, esta aplicação não
oferece em princípio maiores dificuldades.® Na conjuntura atual, a
desintegração dessa espécie de koiné doutrinal representada pela Esco­
lástica durante muito tempo e depois, de maneira mais geral, a explo­
são da cultura, assim como a menor influência do magistério no
próprio momento em que muitas coisas são questionadas, fazem com
que o pluralismo teológico apareça ao mesmo tempo como uma neces­
sidade e até mesmo como um bem e como algo muito delicado se se
quer preservar a unidade da fé, a possibilidade de exercício do magis­
tério e a da catequese e pregação.
O programa da catolicidade como algo por realizar está no pró­
prio centro de toda teologia da missão ou das missões no sentido
habitual deste plural. Trata-se de que o reino de Cristo pela fé seja
já neste mundo o menos inadequado possível à realeza sacerdotal que
Cristo recebeu do Pai e conquistou na cruz. Trata-se de dilatar a Igreja
na medida de tudo aquilo que deve ser posto sob o domínio de Cristo,
restaurado e salvo por ele no homem, na complexa substância de
Adão. Trata-se, finalmente, de realizar a intenção última do plano de
Deus anunciada desde o princípio no «façamos o homem à nossa ima­
gem e semelhança». Porque na revelação bíblica o fim corresponde ao
princípio e, se a verdade das coisas se manifesta no fim, já desde o
princípio está no propósito de Deus; o «façamos o homem à nossa
imagem» tem seu cumprimento nas bodas do cordeiro de que fala o
Apocalipse. Trata-se de realizar, em Cristo e por seu Espírito, a uniplu-
ralidade da natureza humana, de uma única natureza hipostasiada em
numerosas pessoas, como a natureza divina está em três. O decreto
do Vaticano I I sobre a atividade missionária da Igreja diz: «Este

Decreto sobre as Igrejas orientais, 2, com citação em nota de 19 documen­


tos pontifícios escalonados entre os séculos X I e X IX , e também os números
5 e 6.
m«M otu proprio» D ei Providentis, 1-6-1917 (A A S 530); cf. P io X I, enc.
Vigilamti cura, 14-3-1937, n. 4.
68Cf. Y. C o n g a r , L a Foi et la Théologie = Le Mystère chrétien 1, P a ­
ris, 1962, 197-206; H. Koster observa que na reivindicação de um a teologia
«chinesa», «hindu», etc., não se trata simplesmente de um a «acomodação»,
mas d a vitalidade da própria teologia: Akkommodation oder Theologie?:
T h Q 139 (1959), 259-269.
128 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

(o Pai) o enviou para do gênero humano todo formar o único povo


de Deus, reuni-lo no único corpo de Cristo e coedificá-lo no único
templo do Espírito Santo. Tudo isto redunda em fraterna concórdia,
anelo íntimo de todos os homens. Desta forma chegará à plena rea­
lização o desígnio do Criador, que fez o homem à sua imagem e seme­
lhança, quando todos que participam da natureza humana, regenera­
dos em Cristo pelo Espírito Santo, contemplando com os mesmos
sentimentos a glória de Deus, puderem dizer: «Pai Nosso».®

b) Ecumenismo e catolicidade

Não se pode assemelhar a ação ecumênica à atividade missionária


mesmo se, em seu fundo teológico, o ecumenismo procede da mesma
intenção: realizar a plena catolicidade da única Igreja do Senhor, já
que a divisão dos cristãos diminui a realização desta catolicidade,
como reconhece o decreto do Concílio Vaticano I I sobre o ecumenismo:
«As divisões entre os cristãos impedem a Igreja de realizar a plenitude
de catolicidade que lhe é própria naqueles filhos que, embora incorpo­
rados pelo batismo, estão separados da sua plena comunhão. E até
para a própria Igreja se torna difícil exprimir na realidade da vida
e sob todos os aspectos a sua plena catolicidade».10 O Concílio fala
com prudência: não é que a Igreja de Cristo perca sua propriedade
essencial de catolicidade; o que se vê afetado pela desunião é a reali­
zação dessa catolicidade. Todavia, a obra a realizar neste aspecto se
apresenta com outras condições que não aquelas da atividade propria­
mente missionária.

69E m nota citam-se vários dos textos patrísticos seguintes: Ireneu e sua
doutrina d a recapitulação (cf. G. N y g r e n, Manniskan och Incarnationem
enlight Ireneus, Lund, 1947 trad, inglesa: M an and the Incarnation. A Study
in file Biblical Theology of Irenaeus, Edimburgo, 1959); Hipólíto, D e Anti-
christo, 3: «Omnes volens omnesque salvare desiderans, omnes Dei filios
praestare volens sanctosque omnes in unum hominem perfectum v o c a n s ...»
(P G 10,732); Benedictiones Iacob, c. 7 (T U 38/1, p. 18, linhas 4 s ); Origenes,
In Io, tom. I, n. 16: «Turn enim cognoseendi Deum una erit actio eorum
qui ad Deum pervenerint, duce eo Verbo quod est apud Deum : ut sic sint
in cognitione Patris formati omnes accurate filii, ut nunc solus Filius novit
Patrem » (P G 14.49D); Gregório de N issa disse que ao criar Adão, Deus
tinha em mente o Cristo total (D e hominis opificio, 22, e In Os, tr. II, 9
P G 44,205A-208A e 528A). «O que foi é o que será» (In Eccl., I P L 44,632D-
633C); um a razão p ara admitir a apocatástase é que, sem isso, a
ficaria imperfeita e o corpo de Cristo jamais conseguiria sua plenitude (In
íllud: Tunc ipse Filius subicietur P L 44,1313A-1320A). Agostinho, D e sermone
Dom ini in monte, I, 41: «D iligam us quod nobiscum potest ad illa regna
perduci, ubi nemo dicit: Pater meus, sed omnes uni Deo: Pater noster»
( P L 34,1250). Cirilo de Alexandria, In Io, I: «Sumus enim omnes in Christo
et communis humanitatis persona in ipsum reviviscit. N am et novissimus
A dam idcirco nuneupatus est. . . H abitavit enim in nobis, qui per naturam
Pilius est ac Deus ideoque in eius Spiritu clamamus: Abba, Pater! Habitat
autem Verbum in omnibus in uno templo scilicet quod propter nos et ex
nobis assumpsit, ut omnes in seipso habens, omnes in iino corpore, sicuti
Paulus ait, reconciliaret P a tri» (P G 73,161C; 161D-164A).
70N . 4, § 10. E ’ a mesma tese de nossa obra CSirétiens desunis. Príncipes
d’un «oecuménisme» catholique, Paris, 1937. Cf. também as duas obras de
M. J. L e Guillou citadas na nota 1.
SECÇÃO III: A IGREJA Ê CATÕLICA 129

O mundo certamente já está cheio de verdades (ao menos par­


ciais) e de graças que procedem de Cristo e de seu Espírito e que
atuam para a salvação, mesmo de muitos homens que ainda não per­
tencem visivelmente à Igreja. Um dos fins da missão é integrar inteira­
mente ao corpo de Cristo tudo aquilo que o preanuncia antes do anún­
cio explícito do evangelho. De resto, a missão não se limita a isto,
mas realiza contribuições imensas no plano da verdade e da graça
salvíficas. Quando se trata de cristãos separados da comunhão cató­
lica não só nos encontramos na presença de graças ou de verdades
(ao menos parciais), mas também de meios de graça que procedem da
instituição positiva da salvação, dessa iniciativa pela qual Deus pro­
jetou a salvação dos homens com uma revelação positiva, pela con­
vocação de um povo na encarnação de seu Filho, pelo batismo, pelos
sacramentos, pelos ministérios; numa palavra: pela Igreja. As comu­
nhões cristãs separadas possuem (às vezes deteriorados ou feridos)
certo número de meios de salvação, cujo conjunto como tal em seu
estado perfeito pertence à única Igreja de Cristo. Trata-se de realizar
o desígnio de Deus, contemplado tanto a partir da unicidade da ins­
tituição salvífica, que ele quis e fundou (Ecclesia congregans), quanto
a partir da unicidade e unidade de seu povo (Ecclesia congregata), e,
por último, do ponto de vista da realização da plenitude de Cristo:
o «mistério» de que fala Paulo.
Aqui não podemos entrar na descrição do trabalho ecumênico nem
de seu método. Basta tê-lo situado em relação à propriedade de cato-
licidade, inseparável por sua vez das demais propriedades.

4. A nota de catolicidade. Uso apologéticon

A propriedade essencial de catolicidade pode, quando é captada


por observadores de fora, maniíestar-lhes a verdadeira Igreja, a Igreja
que corresponde à vontade de Deus e pode assim reivindicar uma ins­
tituição divina. O estabelecimento de uma prova de vera Ecclesia par­
tindo da catolicidade pode ser levada a cabo nas três etapas seguintes:
a) Mostrar que a Igreja católica realiza as profecias e responde
ao tipo de comunidade messiânica querida por Deus, segundo o teste­
munho do A T e do NT. E ’ o caminho seguido por Agostinho em seus
argumentos contra os donatistas. A expansão missionária da Igreja
ocupa um lugar preponderante nesta primeira etapa.
b) Mostrar que a expansão universal da Igreja católica, relativa
de fato, basta para garantir seu valor de universalidade absoluta e
sua pretensão de ser «o sacramento universal de salvação». Esta ex­
pansão respeita as particularidades assumindo-as, já que deriva de
um princípio transcendente. As demais religiões, inclusive as Igrejas

71 Cf. os tratados escolares D e Ecclesia; por exemplo, os de T. Zapelena,


Roma, 1940, I, 337s, 406s; de A. M. Vellico, Roma, 1940, 508s. Cf., além disso,
A. C z e k , D as Missionswerk der Kirche ais Siegel ihrer Katholizitat: «Zeitschr.
f. Missionswiss.» 26 (1936), 263-274; J. P I a t e r o, Papel de la catolicidad
dentro de las notas de la Iglesia como prueba de la divinidad de Ia Iglesia
rom ana: «Misiones E xtranjeras» 1 (1948-49), 78-87.
130 CAP. Y: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

restantes, sempre apresentam algum aspecto de particularidade: todas


elas estão ligadas com o que, num pensamento religioso, num tempe­
ramento, é particular e, portanto, separa dos demais.” A Igreja cató­
lica deu e continua dando provas de que seu princípio de unidade,
com possibilidade de valor universal, não procede do homem, mas de
Deus. O argumento pela catolicidade remete aqui ao fato do milagre
moral que testemunha a intervenção de Deus. Esta via, chamada às
vezes «empírica» ou «de transcendência», foi utilizada com particular
preferência pelos apologetas do século X IX .ra
E ’ preciso confessar que para nós sua realização é mais delicada.
Hoje somos mais sensíveis às terríveis imperfeições que a história re­
vela na realização deste programa ideal. Hoje captamos mais dura­
mente as implicações desta pretensão de ser o «povo messiânico»
sacramento universal de salvação e germe de unidade para todo o gê­
nero humano. Trata-se de uma tarefa diante da qual a consciência
de nossa insuficiência deve curar-nos de todo triunfalismo.
c) Criticar não só a pretensão de outras comunhões cristãs de
realizar a catolicidade, mas também a concepção de catolicidade que
elas propõem. Já não se pode, como se acreditou poder fazer ante­
riormente, recusar às grandes comunhões separadas da Igreja romana
todo valor de catolicidade. Portanto é preciso proceder a uma avaliação
relativa. Como para as outras notas, e em particular para a santidade,
observa-se que os esforços feitos pelas demais comunhões para apre­
sentar-se realmente como «católicas» dão testemunho da noção e da
realidade romanas da catolicidade.
Expor e criticar a noção de catolicidade protestante, anglicana ou
vétero-católica superaria evidentemente o objeto e os limites deste ca­
pítulo. De resto, em virtude da observação anterior, muitos dos ele­
mentos destas diferentes noções são válidos. ” E isto vale ainda mais

72Pode-se aplicar à Ig re ja católica o que A. von H arn ack escreveu do


cristianismo em geral: «Que força de prova mostrou esta religião desde sua
mais tenra infância! Sai de tua pátria e de tua fam ília para ir ao país que
eu te m ostrar e farei de ti um grande povo. O Islamismo, nascido na A rábia,
continuou sendo sempre uma religião árabe: a força de sua juventude foi
também a de sua idade madura. A religião cristã, pelo contrário, quase
imediatamente depois de seu nascimento foi expulsa de seu próprio povo;
assim, desde suas primeiras horas devia aprender a distinguir entre o miolo
e a casca» (Die Mission und Ausbreitung des Christentums in den ersten
drei Jahrhunderten, I, Leipzig, “1906, 56).
73 Cf., por exemplo, os textos do padre Lacordaire em L'É glise dans:
l ’oeuvre du Père Lacordaire, Paris, 1963, sobretudo 56-61 e 73-88.
74Cf. Y . Congar, op. cit. (nota 70), e Le Guillou, op. cit. (nota 1). Biblio­
grafia: U. Valeske, op. cit. (nota 59), 108s. Algum as referências. Protestan­
tismo: R. N . F l e w e R. E. D a v i e s , The Catholicity of Protestantism,
Londres, 1950; KathoHzität oder römisch-katholisch:«H erd er Korresp.» 1
(1957-58),338-341; H. B e r k h o f , D ie Katholiciteit der Kerk, Nim ega, 1962
(trad. alemã: Die Katliolizität der Kirche, Zurique, 1964); E. S o m m e r l a t h ,
Die Katlioiizität der Kirche, em Stat Crux dum volvitur Orbis (Hom . H.
L ilje), Berlim, 1959, 148-158. Anglicanismo: G. T a v a r d , L a poursuite de la
Catholicité. Étude sur la pensée anglicane, Paris, 1965; O. T o m k i n s , The
W holenes of the Church, Londres, 1949. Vétero-católicos: K . P u r s ch, Die
wahre Katholizität: «Intern, kirchl. Zeitschr.» 47 (19571, 6-20. Ortodoxos: V.
L o s s k y , D u troisième attribut de l’É glise: «D ieu vivant» n. 10 (1948), 79-89;
SECÇÃO III: A IGREJA fi CATÓLICA 131

para a concepção ortodoxa da catolicidade, mesmo quando é sistema­


tizada de forma às vezes polêmica na noção de soboinost, que é uma
concepção de grande profundidade cristã. Não há crítica eficaz se não
se assume a parte de verdade das posições que se criticam; a apolo­
gética também deve ser «católica». No fundo, a verdadeira apologética
é o ecumenismo.
Y VES CONGAR

II. TEOLOGIA D A MISSÃO

1. Origem e fundamento da missão

A catolicidade da Igreja se expressa e se realiza em sua missão


a todos os povos. Mais ainda: por ser uma semente com destino uni­
versal, a Igreja só poderá compreender e expressar eoncretamente sua
natureza e catolicidade na medida em que estabelecer contacto e co­
munhão com toda a família humana. A missão se apresenta, pois, como
um constitutivo essencial da Igreja, a qual é por sua natureza mis­
sionária. 1 E é de notar que manifestaram esta convicção a um tempo,
por caminhos próprios e diferentes, tanto o Concílio Vaticano I I como
o Conselho Mundial das Igrejas.“ Isto constitui, sem dúvida, uma da3
maiores conquistas da eclesiologia do século XX, a qual adquiriu maior
consciência de seus elementos particulares, tal como aparecem no NT,
dos evangelhos às cartas dos apóstolos, dos Atos ao Apocalipse.8

B. Z e n k o w s k y , D as B ild vom Mensehen in der Ostkirche, Stuttgart, 1951,


sobretudo 30-48 (tradução francesa: «D ieu vivant» n. 27 [1956], 91-104); N . A.
N i s s i o t i s , Die qualitative Bedeutung der Katiiolizitat: T h Z 17 (1S61), 259-
280; V. L o s s k y , A l’im age et à la ressemblance de Dieu, Paris, 1967.
10 N T não emprega o termo «m issão» no sentido em que o entende
a teologia contemporânea; contudo, o verbo àjtooxéX?-o), relacionado com «após­
tolo», _ tem um significado bastante amplo e um a indubitável referência à
«missão». U m a alusão mais concreta acha-se implícita n a expressão k o q sw |x* voi
(-0ÉvTgç) XTiQÚaasTs (M t 10,7; M c 16,15; M t 28,19). A tradição latina adotou,
juntamente com o verbo mittere, o termo apostolatus. São Jerônimo emprega
Christum praedicare; a Idade Média, praedicatio apostolica, propagatio fidei,
evangelii, praedicatio christianae religionis. O vocábulo missio no sentido mo­
derno aparece no século X V I, nos ambientes religiosos jesuítas e carmelitas:
cf. Th. O h m , Machet zu Jim gem alie Vòlker, Friburgo de Br., 1962, 37ss.
2Isto é universalmente reconhecido no mundo católico depois d a publi­
cação do decreto A d Gentes (7-12-1965) do Vaticano II. N o campo das Igrejas
cristãs separadas, a fusão, efetuada em 1961, do Conselho Internacional de
Missões com o Conselho Ecumênico das Igrejas foi interpretada como um
chamamento de todas as Igrejas à missão: cf. M. S p i n d 1 e r, L a mission
combat pour Christ, Neuchâtel, 1967, 31. Sobre a natureza missionária da
Igreja, cf. L. M. D e w a i l l y , Envoyés du Père. Eléments de théologie et de
spiritualité missionnaires, Paris, 1963, 16-24; J. D o u r n e s , L e P è re m’a envoyé,
Paris, 1985; T. P e d e r i c i , Il popolo di Dio in missione: «S acra Doctrina»
41 (1966), 115-139; J. R o s s e l , Mission dans une société dynamique, Genebra,
1967, 65-112.
3 Th. Preiss explica a ausência do termo «m issão» no N T pelo fato de
que «no N T quase não existia a dualidade Igreja-m issão». A Ig re ja não
tinha a consciência de exercer um a dupla ação, um a dirigida aos de «den­
tro» e outra aos de «fo ra». A Ig re ja era missionária e irradiava naturalmente
em torno de si: L ’E glise et la mission, em L a lumière des nations, Neuchâtel,
1944, 15. N a realidade, é preciso distinguir diversos momentos e problemas
n a consciência d a Ig re ja no N T ; mas a relação entre a natureza d a Igrega
132 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

De outro lado, é inegável que um dos fatores que moveram e


convidaram a Igreja a definir sua missão no mundo foi o desenvolvi­
mento da cultura contemporânea, que desde a época do Iluminismo
até hoje fixa, cada vez com maior intensidade, o olhar no homem
e na história, suspirando pela criação de uma sociedade na qual o
sujeito humano possa desenvolver-se plenamente. Daí as perguntas mais
e mais insistentes: para que serve a Igreja?, que proporciona à huma­
nidade?, que atividade e que papel pode e tem direito de desempenhar
numa sociedade racionalizada e orientada para a secularizaçâo?
Diante deste violento exame crítico a que a Igreja é submetida
pelo homem contemporâneo, é natural que ela se pergunte mais inten­
samente do que no passado sobre o fundamento de sua missão e veri­
fique sob todos os aspectos as motivações que a impulsionam não só
a percorrer os caminhos do mundo, mas a interpelar os homens e as
religiões para anunciar a mensagem de Cristo aos indivíduos e às
massas em busca da libertação e do absoluto.4
1) O motivo primordial e inderrogável da missão é e será sempre
o mandato missionário que Jesus Cristo deu aos apóstolos e aos dis­
cípulos no termo de sua existência terrena. E’ um ato de obediência
fundamental que a Igreja deve prestar, até o fim da história, à von­
tade estatutária de seu autor. Como é sabido, este mandato não apa­
rece no fim da obra de Cristo como uma novidade. Já durante sua
atividade na Galiléia e Judéia, Jesus tinha designado alguns colabora­
dores aos quais confiara parte de sua própria missão no serviço da
palavra e dos prodígios. Os «discursos missionais» recolhidos por Mc
6,7-11; Lc 9,1-5; 10,1-12 e Mt 10,5-42, embora possam refletir alguns
elementos da experiência missionária posterior, não deixam dúvidas a
respeito. Embora a missão terrena de Jesus apareça fundamentalmente
reservada aos israelitas, não há dúvida de que ele persegue um plano
misterioso que compartilha com o Pai e se estende a todos os homens.
Dois jtQcáwv marcam as etapas deste plano: antes Oecõwv, Mc 7,27)
deve realizar-se o anúncio aos judeus, e depois, antes ( k q w w v , M c 13,10)
da consumação universal, será anunciado o evangelho a todas as gen­
tes.5 Jesus sente pessoalmente, em sua própria consciência, a missão
de Servo de Javé, que é enviado antes a seu povo (Is 49,6) e depois
às nações. * Mas o destino universal de sua obra é evidente (cf. Mc

e a missão foi logo percebida (cf. as cartas do cativeiro e as pastorais),


quando se tom ou agudo o problema d a missão aos judeus e aos pagãos:
cf. F. H a h n, D as Verständnis der Mission im N T , Neukirchen, 1963, 146.
Sobre a missão no A T , cf. R. M artin-A c h a r d, Israel et les nations, Neuchâtel,
1959; F. H a h n , op. cit., 12-18.
4 Cf. J. R o s s e l , op. cit., 7-64; D. T. N i l e s , Sur la te rre ... L a mission
de Dieu et de son ÉgUse, Genebra, 1965, 13-23. E ’ sabido que o Vaticano I I
colocou a «m issão da Igreja, no mundo» no centro de suas reflexões; e é
fácil prever que a teologia do futuro se referirá cada vez mais a ela.
5 F. H a h n , op. cit., 32ss; J. S c h m i d , E l evangelio según San Mateo,
Barcelona, 1969; J. K u h l , Die Sendung Jesu und der Kirche nach dem
Johannesevangelium, Kaldenkirchen, 1967; W . B i e d e r , Gottes Sendung und
der missionarische A u ftra g der Kirche nach Mt, JJs, P I und Jo = ThSt 82,
Zurique, 1964.
6 Cf. J. J e r e m i a s , jtalç Oeoü: T h W V, 653-713.
SECÇÃO m : A IGREJA fi CATÓLICA 133

10,45), e a realização é confiada aos apóstolos logo que acaba de cum­


prir-se a carreira terrena de Jesus. Por isso o fim de Mt é a culminação
de todo o evangelho: «Foi-me dado todo o poder no céu e na terra.
Ide, pois, ensinai a todas as gentes, batizando-as em nome do Pai e
do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar tudo o que
vos mandei. E eis que estou convosco até o fim do mundo» (M t 28,
18ss). São conhecidos os lugares paralelos de Lc 24,47 (cf. A t 1,8);
Mc 16,15s; Jo 20,21ss (cf. 17,18s).
Contrapor estas palavras de Cristo ressuscitado ao comportamento
do Cristo pré-pascal significa fechar os olhos ao universalismo implí­
cito em sua atividade terrena e não compreender o progresso registra­
do na história da salvação com a morte e a ressurreição de Jesus.
Considerá-las como não históricas por terem sido pronunciadas pelo
Cristo glorioso significa não compreender a consciência universalista
da Igreja primitiva, onde a missão entre os pagãos foi considerada
imediatamente como um imperativo fundamental, mesmo se surgiam
dúvidas sobre o modo de acolher os pagãos na comunidade cristã:
se deviam ou não aceitar, além da fé e do batismo, as prescrições
da lei mosaica.
O próprio Jesus vincula explicitamente o mandato missionário à
missão que recebeu do Pai. A tarefa, a autoridade e o poder (èÇmxría)
que derivam do mistério da Santíssima Trindade são transmitidos por
Cristo aos apóstolos (M t 28,18); a missão conferida ao Filho no plano
eterno do Pai é inserida e continuada na história por meio de seus
discípulos (mGròç ÒOTÉowtlxév pis ó jmxr\ot %&yá> jtéjuH» tiuãç: Jo 20,21).
Deste modo, a missão da Igreja se origina e se apóia, através da me­
diação histórica de Cristo, na riqueza transcendente do mistério trini-
tário., As «missões» de que sempre falou a teologia trinitária consti­
tuem o fundamento e a razão última da missão da Igreja. E ’ uma
idéia típica da teologia católica e que foi salientada pelos padres do
Vaticano I I com particular complacência e consolo (cf. AG 2,3,4, etc.).
Também a teologia protestante recuperou este precioso tema: « A mis­
são da Igreja entre os povos — escreve L. Newbigin — consiste numa
participação na obra da Trindade, na qual Cristo prolonga sua ativi­
dade pondo os homens diante da decisão com vistas a seu verdadeiro
destino».8
Nesta trajetória que une o tempo à eternidade insere-se, como
todo um símbolo, o texto de lJo 1,1-4, que reflete a consciência mis­
sionária da Igreja primitiva: «O que existia desde o princípio, o que
vimos com nossos olhos, o que contemplamos e tocamos com nossas
mãos, ou seja, o Verbo da Vida, porque a vida apareceu e nós a vi­

7 A origem trinitária da missão da Ig re ja foi analisada sistematicamente


por A . R é t i f, L a mission. Eléments de théologie et de spiritualité mission-
naires, Paris, 1963, esp. 16-24; cf. A. A. van E u l e r , Theologie van het
Apostolaat, N ijkerk, 1954.
8L. N e w b i g i n , Missionarische Kirche m weltlicher W elt, B ergen-
Enkheim bei Frankfurt, 1966 (trad. italiana: h a chiesa missionaria nel mondo
moderno, Roma, 1968, 79); J. R o s s e l , op. cit.; J. S p i n d l e r , op. cit.,
passim.
134 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

mos e, por isso, atestamos e vos anunciamos a Vida eterna, que estava
junto do Pai e nos apareceu, o que vimos e ouvimos, anunciamo-lo
também a vós, para estardes, vós também, em comunhão conosco. A
nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo; e vos
escrevemos isso, para que a nossa alegria seja completa». Nesta pas­
sagem encontra-se o germe de toda a missão no panorama de seu
desenvolvimento. «O que existia desde o princípio» (ân’ áoxnç) não é
senão o «Logos da vida», presente desde a eternidade no mistério
de Deus uno e trino. Num ponto do tempo, a Palavra se manifestou
(êqxxveeíóôri), veio ao mundo (Jo 1,9), foi «enviada» pelo Pai (AjtÉaxsitev,
Jo 3,17; 11,42; 17,8.21.23.25; etc.) e transmitiu sua missão aos apósto­
los (cf. Jo 17,18; 20,21), os quais, depois de terem sido testemunhas
de vista, ouvidos e outros sentidos, a anunciam (ã m . y y É k lo i J , E v ) aos ho­
mens para que, aceitando-a, participem da vida eterna (Çarrv rfrv alómo-v)
e cheguem a ter comunhão (wwvwvmx) com os apóstolos e entre si por
meio de Jesus Cristo, que os une com o pai: assim poderão sair da
solidão existencial e pregustar já nesta vida o «gozo» de uma comu­
nhão humana e divina.9 A eternidade e a história estão unidas por
uma ponte cujas arcadas são a missão do Filho e a missão dos após­
tolos. Através desta ponte transmite-se à humanidade a promessa de
Deus de que fala toda a Bíblia, desde a vocação de Abraão até a
última página do Apocalipse.
Assim, pois, o Vaticano I I situa-se perfeitamente nesta linha quan­
do baseia a ação missionária da Igreja no colégio dos bispos, suces­
sores dos apóstolos, «sob a direção de Pedro» (cf. AG 38,6; LG 22;
CD 6).
2) No texto citado da primeira carta de São João, o dom divino
que se comunica recebe o nome de «vida eterna». No A T designa-se
com os termos «bênção», «promessa», «luz», «salvação», «libertação»,
«redenção», etc. Mas é fácil perceber que a bênção e a promessa outor­
gadas a Abraão são destinadas a «todas as famílias da terra» (Gên
12,3), porque Abraão é chamado a ser «pai de uma multidão de povos»
(Gên 17,5; Eclo 44,19-22). O misterioso Servo de Javé, mediador das
promessas divinas, é «constituído em aliança para o povo (de Israel)
e em luz para as nações, a fim de que abra os olhos dos cegos e
liberte do cárcere os prisioneiros, da prisão os que habitam nas trevas»
(Is 42,6s). Porque «E ’ pouca coisa que sejas meu Servo para restaurar
as tribos de Jacó e conduzir os supérstites de Israel; mas eu te ponho
para farol das nações, para levares a minha salvação até os confins
da terra» (Is 49,6). A tradição profética anuncia para o fim dos
tempos a peregrinação e a subida dos povos à nova Jerusalém: ali
tomarão parte, junto com o Israel renovado e purificado, no banquete
da salvação (cf. Is 25,6ss), caminharão na luz de Deus (Is 60,3) e
o invocarão todos juntos (cf. Is 66,23; SI 65,4; Sof 3,9). E’ certo que
não se trata de uma missão no sentido estrito, mas é evidente o movi­
mento «centrípeto» para Deus, provocado pelo próprio Deus, no qual

“ Cf. R. Schnackenburg, Die Johannesbriefe, Friburgo de Br., 1963,


42-57.
SECÇÃO III: A IGREJA fi CATÓLICA 135

todos são admitidos a participar na plenitude da revelação outrora


concedida a Israel, a receber e compartilhar a comunhão com o Eterno.10
Na pregação de Jesus, tal como aparece nos sinóticos, esta doa­
ção misteriosa é designada com a expressão «reino de Deus» (fkxaú.zía
wü 0EOÏ). E não há dúvida de que o reino tem um destino universal.
Se já as parábolas do grão de mostarda e do fermento (M t 13,31.33)
permitem entrever este destino universal do reino, outras afirmações
de Jesus na redação de Mateus dizem abertamente que o reino será
tirado aos contemporâneos incrédulos para ser concedido aos gentios
(21,43; cf. 8,l i s ). São Paulo prefere ao termo «reino» os de dom
gratuito (x<k>«TjMx), amor de Deus (àvrátri), salvação («o-rneía), redenção
( o o t o M j t ç « k h ç ) , reconciliação (ÒMikhxyi]) , justificação ( ô i m i r o o ú v r i ) , filiação

divina (uioftecía). Em São João, o dom de Deus é designado preferen­


temente com os binômios luz e vida (1,4), verdade e graça (1,17) e
com o termo impressionante «glória» (ôó|a) : «Dei-lhes a glória que
me deste, para que sejam um como nós somos um» (Jo 17,22). Em
todo caso, tanto no anúncio profético como nas palavras de Jesus e
na teologia dos apóstolos, trata-se de uma doação divina escatológica,
que Deus concede na plenitude dos tempos através da obra mediadora
de seu enviado, isto é, a vida, a morte e a ressurreição de Jesus. Esta
doação, que culmina com a colação do próprio Espírito Santo no Pen­
tecostes (A t 2), tem um objetivo universal e mobiliza aqueles que a
recebem para uma missão universal. Assim chegamos ao segundo fun­
damento da missão, que surgiu no mesmo dia em que nasceu a Igreja.
Como conclui Blauw, «não há outra Igreja a não ser a Igreja enviada
ao mundo, nem há outra missão afora a da Igreja de Cristo». “
Já os Padres da Igreja viram no relato de Pentecostes a contra­
partida do episódio da torre de Babel. E ’ possível que o próprio autor
de A t tivesse em mente esta confrontação. O certo é que no dia de
Pentecostes se resolveu a tensão inerente a Gên 10-12. Ao desígnio
universal de Deus, que havia disposto uma multidão ordenada de po­
vos (Gên 10), contrapôs-se o orgulho humano de criar uma sociedade
em contraste com Deus; mas Deus a dispersou (Gên 11) e se compro­
meteu a renovar a unidade e a verdade da família humana mediante
a bênção outorgada a Abraão, em cuja descendência — isto é, em
Cristo (cf. Gál 3,16) — «serão benditas todas as gerações da terra»
(Gên 1 2).“ Tomando a palavra depois da experiência de Pentecostes,
Pedro dá início à missão universal da Igreja, a qual, a partir daquele
momento, se converte em pregoeiro e testemunho não só em obediên­
cia ao mandato de seu Fuadador, mas por ter compreendido à luz do

10 Sobre este tema, cf. J. J e r e m i a s , Jesu Verheissung fü r die Vôlker,


Stuttgart, 1959; D. S. A m a l o r p a v a d a s s , Purpose and Motivation of
M issionary Acttvity, Bangalore, 1970, 7ss; E. L i p i n s k i , L a royauté de Jahvé
dans la poésie et le culte de l ’ancien Israel, Bruxelas, 1965.
11J. B l a u w , Gottes W e rk in dieser W elt. Grundzüge einer biblischen
Theologie der Mission, Munique, 1961, 136; cf. H . R. B o e r , Pentecost and
Missions, Londres, “1961; W . B i e d e r , D a s Mysterium Christi und die Mission,
Zurique, 1964.
“ Cf. G. von R a d , Theologie des A T , I, Munique, 1962, 174-178 (trad.
espanhola: Teologia del A T , Salamanca, 1971).
138 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Espírito o destino universal do dom de Deus e a função salvadora de


Cristo para todos os homens indistintamente: «Porque não há outro
nome dado aos homens sob o céu no qual possamos obter a salvação»
(A t 4,12).
3) Os Atos dos Apóstolos aludem em três ocasiões à imagem da
comunidade primitiva (2,42-47 ; 4,32-35; 5,12-16), assinalando explici­
tamente a unidade, a comunhão e o crescimento, como características
essenciais da nova realidade aparecida no mundo. Todo o livro dos
Atos está penetrado por uma tensão universalista que leva a Igreja
a romper as barreiras das observâncias judaicas e a estender-se e
enraizar-se em todo o mundo conhecido. Pedro, cabeça da comunidade,
aparece logo como chefe da missão entre os judeus. Paulo recebe o
encargo de pregar o evangelho entre os gentios de todo o mundo. Sua
própria vocação e conversão estão ordenadas para esta finalidade.
Logo surgem dificuldades para a coexistência dos judeu-cristãos com
os pagão-cristãos, mas nem por isso diminui a convicção de que o novo
povo, o Israel de Deus, «nação santa, povo que Deus adquiriu para
si a fim de proclamar suas grandezas (lP d r 2,9), deve estender-se
a todos os gentios. Algumas passagens das cartas de Paulo permitem
captar ao vivo o dinamismo expansivo das comunidades cristãs. A par­
tir da pequena comunidade de Tessalonica «a palavra do Senhor ressoa
em toda a Macedônia e Acaia, e a fama da fé se difunde por todas
as partes» (IT es 1,8). E o Apóstolo escreve aos romanos que dá «gra­
ças a Deus mediante Jesus Cristo por todos vós, porque vossa fé é
celebrada em todo mundo» (Rom 1,8). Existe a convicção de que o
evangelho deve chegar aos confins da terra, de acordo com a pro­
messa e as indicações programáticas de Jesus que aparecem como lema
no começo dos Atos: «Quando o Espírito Santo tiver descido sobre vós,
recebereis vigor e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém, co­
mo em toda a Judéia e Samaria, e até às extremidades da terra» (A t
1,8). Um irrefreável instinto missionário nasce assim da própria natu­
reza da Igreja, considerada como povo, organismo ou comunidade que
traz em si a lei do crescimento.“ Boa parte das imagens com que
o N T alude à Igreja — imagens que foram reconhecidas pelo Vati­
cano I I nos capítulos I e I I da Constituição dogmática sobre a Igreja
— evidenciam esse impulso vital expansivo: a Igreja é o redil ao qual
devem ser conduzidas as «outras ovelhas» que ainda se encontram
distantes; é o edifício que deve elevar-se e estender-se sobre o funda­
mento dos apóstolos e profetas para chegar à sua coroação; a cidade
santa que acolhe os povos de toda língua e nação, e sobretudo o corpo
«cuja cabeça é Cristo, graças ao qual todo o corpo, bem ajustado e
solidamente coeso por meio de todas as junturas de comunicações,

13 Cf. L. C e r f a u x, L a théologie de l ’É glise suivant saint Paul, Paris,


“1948, 184ss (trad. espanhola: L a Iglesia en San Pablo, Bilbao, 1963); R.
S c h n a c k e n b u r g , Die Kirche im Neuen Testament, Friburgo de Br., 1961
(trad. espanhola: L a Iglesia en el N T , M adrid, 1965). E sta obra contém im­
portantes análises sobre a missão d a Ig re ja (p. 46-51, 122-126, 156-164) e um
estudo sobre as figuras d a Ig re ja no N T (p. 128-155) ; cf. também Y . C o n g a r,
L a mission dans la théologie de l ’Église, em Repenser la mission, Lovaina,
1963, 51-74.
SECÇÃO III: A IGREJA ÉS CATÓLICA 137

segundo a atividade proporcionada a cada um dos membros, realiza


o seu crescimento e vai se edificando na caridade» (E f 4,15s). O cres­
cimento do corpo, com seus processos vitais de assunção e assimilação,
já permite ver o modo pelo qual se efetua a catolicidade da Igreja:
no encontro da plenitude operante nela com a plenitude potencial e
progressivamente desenvolvida no homem e na história. Efetivamente,
é evidente, para citar um exemplo tão antigo como expressivo, que a
Igreja, depois da missão de Paulo nas províncias da Ásia, Macedônia
e Acaia, era mais universal e católica do que antes, no berço da Pales­
tina e de Jerusalém. Seja qual for a perspectiva escolhida, a Igreja
implica a missão como o fogo a chama.
4) Mas devemos assinalar ainda, entre os fundamentos da missão,
o dinamismo do amor e da comunicação. O Decreto sobre a atividade
missionária da Igreja (A G 2) põe a fonte primeira da missão no
«amor fontal», isto é, no amor do Pai, que, refluindo eternamente no
Filho e no Espírito Santo, é derramado, por cima das barreiras da
transcendência, sobre os homens, convidando-os à comunhão entre si
e com Deus. E prossegue: «Assim como Deus nos amou com amor
desinteressado, assim também os fiéis, em sua caridade, devem preo­
cupar-se com o homem, amando-o com o mesmo sentimento com que
Deus o procurou. Porque como Cristo percorria as cidades e as al­
deias..., assim também a Igreja, por meio de seus filhos, se une
a todos os homens de qualquer condição, mas especialmente aos po­
bres e aos aflitos, dedicando-se a eles prazerosamente» (n. 12). Nesta
perspectiva, a missão da Igreja não é senão seu movimento de cari­
dade para ío ra ." Desde os primeiros dias de sua existência, a Igreja
sentiu a urgência desta comunicação impulsionada pelo amor. Paulo
é também aqui o modelo exemplar: «E ’ que o amor de Cristo nos
impele, ao pensamento de que um morreu por todos, e, portanto, to­
dos morreram, e que morreu por todos, a fim de que os que vivem
já não vivam para si mesmos, senão para aquele que morreu e ressus­
citou por eles» (2Cor 5,14s). Neste incêndio de caridade efusiva, que
tem sua raiz na experiência da comunicação, se encontra a mola fun­
damental de sua vida e de sua atividade apostólica: «E ’ um dever
este que me incumbe, e ai de mim se não pregasse!» (IC or 9,16).
A comunicação de amor que o cristão recebeu de Deus enquanto
era «pecador e inimigo» (Rom 5,8.10) não se sujeita a ser encerrada
no recinto da subjetividade e tende a efetuar sua própria epifania na
história. Já lP d r pede a cada um dos cristãos que seja manifestação
da bondade e da mansidão de Cristo como instrumento eficaz de mis­
são numa sociedade hostil e indiferente (lP d r 2,12; 3,ls). Todavia
mais do que reunir aqui um mostruário de testemunhas interessa-nos
examinar em seu conjunto os últimos motivos psicológicos que move­
ram a missão cristã desde a época exemplar do N T até nossos dias.15

14Cf. sobre este tema J. H a s s o n , I/«Am our-Source» moteur et form e


de toute mission, em A cta Congressiis Intem ationalis de theologia Concilii
Vaticanl I I (26-9/1-10-1966), Roma, 1968, 389-407.
15 P a ra um a rápida exposição desta temática, cf. M. S p i n d 1 e r, !La mission
Cftiríbat pour Dieu, Neuchâtel, 1967, 9-102; W . F r e y t a g , V o m Sinn der
138 CAP. Y: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Paulo já reagia vigorosamente contra todas as motivações terrenas ou


puramente humanas que lhe atribuíam seus adversários ou outras pes­
soas: não o movia nenhum afã de domínio, nem vontade de poder,
nem ânsia de dinheiro, nem orgulho nacional, nem sede de glória,
nem muito menos um simples sentimento de filantropia; o Apóstolo
acumula até o paradoxo as imagens a fim de exprimir a urgência da
caridade interior: como um pai, uma mãe, uma nutriz — escreve aos
Tessalonicenses (IT es 2,3-12) — lhes transmitiu o evangelho de Deus.
E não se concede repouso até que seus destinatários se convençam
de que o motivo interior de sua atividade missionária não é mais do
que o amor em busca de comunicação. O Decreto sobre a atividade
missionária do Vaticano I I expressou com fórmula feliz esta lei vital
para toda a Igreja: «Os membros da Igreja são impelidos a desen­
volver a atividade missionária pela caridade com que amam a Deus
e pela qual desejam compartilhar com todos os homens os bens espi­
rituais da vida presente e da futura» (A G 7). Isto prova de maneira
evidente que a missão da Igreja não depende só de um mandato
recebido no princípio, mas que brota perenemente da participação no
amor glorioso de Deus, que se comunica à Igreja para difundir-se
sobre a humanidade inteira. Esta dupla origem, ontológica e jurídica,
da missão torna a Igreja essencialmente missionária.“ A Igreja, com
efeito, não foi fundada para si mesma, ao contrário, semelhante em
tudo ao Servo de Javé e ao Verbo encarnado, existe «para nós homens
e para nossa salvação» e é enviada para a salvação de todos os ho­
mens, a qual é inseparável da glória de Deus.
5) A missão não é, pois, mais do que a realização histórica da
catolicidade da Igreja. Mas assim como a catolicidade da Igreja tem
uma raiz na natureza humana e no cosmos, assim também a missão
encontra uma raiz e um aliciente poderoso na situação existencial em
que se encontra a humanidade diante de Deus e diante da Igreja. Este
aspecto da missão aparecerá com maior clareza quando falarmos de
seus destinatários e de seu fim. Aqui nos limitaremos a assinalar, en­
tre os motivos da missão, alguns elementos de antropologia sobrena­
tural que o Vaticano I I recolheu em vários contextos, valorizando
assim um grande filão de pensamento patrístico e utilizando o resul­
tado de investigações teológicas contemporâneas. Adotando uma ter­
minologia às vezes neotestamentária ou patrística e às vezes elementar,
o Vaticano I I confronta o mistério da Igreja com as realizações hu­
manas no campo espiritual e religioso não em termos de antítese e
condenação, nem em termos de identidade mais ou menos evidente,
mas em termos de tensão e «ordenação» (cf. LG 16: «ordinantur»).
Comparando o universo da criação, ferido pelo pecado, com a riqueza
da encarnação, libertadora e salvífica, não duvida em assinalar que na
humanidade, particularmente em sua cultura ética e religiosa, há «ele-

Weltmission (1950), em Reden und Aufsätze, 2, Munique, 1961, 207-217 (ava­


liação critica dos motivos da missão).
“ Sobre a relação ontológico-jurídica na missão, cf. Y . C o n g a r, 1 »
mission dans Ia théologie de 1’Êglise, loc. cit.
SECÇÃO III: A IGREJA fi CATÓLICA 139

mentos de verdade e de graça» devidos a uma «secreta presença de


Deus» (A G 9), «coisas boas e verdadeiras» nascidas por disposição de
Deus» (O T 16), «sementes da palavra que constituem as riquezas dos
pagãos» (A G 11), «preciosos elementos humanos e religiosos» (GS 92),
«elementos de bem e de verdade» que constituem uma «preparação
evangélica» (LG 16), «germes de contemplação» (A G 18), «tentativas
religiosas» que, embora imperfeitas e com necessidade de iluminação
e correção, «podem considerar-se como pedagogia para Deus ou prepa­
ração evangélica» (A G 3). Deus sempre teve um cuidado paternal
com a humanidade, à qual nunca deixou de dar um «testemunho perene
de si» (D V 3 ); por isso nas religiões humanas existem «elementos
verdadeiros e santos que com freqüência refletem um raio da verdade
que ilumina todo homem» (N A 2). Tudo isso, segundo a linguagem
imaginativa mas realista do Concílio, comporta um chamamento, um
convite. Assim como a semente tende à árvore e o germe ao desen­
volvimento, assim o elemento envia ao conjunto, o raio ao centro da
luz, o fragmento à totalidade. Os padres conciliares, depositários da
visão cristã da humanidade, não ocultaram os desvios, os obscureci­
mentos, as insuficiências e perversões devidas ao mistério do mal e ao
mau uso da liberdade entre os homens, e confirmaram expressões tra­
dicionais e enérgicas como «contágio do maligno», «império do diabo»,
«poder das trevas e de Satanás»(A G 3,9) para aludir a inúmeros
desvios e culpas da humanidade.17 Por isso a Igreja se faz missionária,
«para que tudo o que há de bom no coração e namentedos homens
ou nos ritos e culturas dos povos não só não pereça, masseja sanad
elevado e aperfeiçoado ad gloriam Dei, confusionem daemonis et bea-
titudem hominis» (LG 17; cf. AG 9). Nesta perspectiva adquire par­
ticular relevo, entre os motivos da missão, a misteriosa e secreta
expectação da humanidade refletida no A T e o N T : «A s ilhas (ou as
nações) esperam sua doutrina» (Is 42,4; Mt 12,21; cf. A t 16,9). E ’
lógico, pois, que o Concílio, consciente do convite à missão que emana
dos valores germinais e confusamente intuídos nas religiões, depois
de declarar o respeito e a estima da Igreja católica para com as
religiões não-cristãs, prossiga: «Mas a Igreja anuncia e está obrigada
a anunciar continuamente a Cristo, que é o caminho, verdade e vida
(Jo 14,6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa
e em quem Deus reconciliou consigo todas as coisas» (N A 2).

2. Destinatários e modo da missão

A missão da Igreja é universal, e seus destinatários são todos os


homens que ainda não chegaram a um contacto existencial com o
evangelho. Ainda que já nas origens e depois no decorrer dos séculos
surgissem dúvidas sobre o modo de realizar tal universalidade, esta
sempre ressoou na consciência e na voz da Igreja como uma conse-

17E sta tarefa d a missão é objeto de um exame especial em M. S p i n d l e r ,


op. cit., 165-209.
140 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

qüência das explícitas palavras de Cristo: «Ensinai a todas as nações»


(M t 28,18), «pregai a todas as criaturas» (Mc 16,15), «sereis minhas
testemunhas até os confins da terra» (A t 1,8), «o evangelho será pre­
gado em todo o mundo para ser testemunho entre todas as nações»
(M t 24,14). A estas palavras acrescentam-se as referentes à vocação
e missão de Paulo: «Serás minha testemunha diante de todos os ho­
mens» (A t 22,21); cf. 9,15; 26,17s; Gál 1,16; Rom 1,1).
Se nunca existiram dúvidas sobre a universalidade «extensiva»,
o mesmo não acontece com a universalidade «intensiva», relativas às
dimensões do sujeito humano destinatário da missão. A evolução da
cultura contemporânea e sua ênfase na preeminência do sujeito ho­
mem hoje induzem mais do que nunca a Igreja a fixar o olhar nas
dimensões peculiares de seus interlocutores e na situação existencial
destes no mundo. Se a missão da Igreja se dirige antes de tudo ao
homem para resolver-se num encontro salvífico com ele, ao pensar
na missão é mister levar em conta a densidade ontológica da pessoa
humana, isto é, sua consistência e dignidade, sobre as quais a reve­
lação bíblica — particularmente a cristã — tem algumas idéias bas­
tante concretas que se encontram na origem da sensibilidade perso­
nalista de nosso tempo.58 De acordo com esta tendência de pensamento,
o eu humano é uma realidade inefável e irredutível em sua identidade,
mas ao mesmo tempo aberta aos demais mediante um intercâmbio de
verdade e de amor que contribui decisivamente para a formação da
personalidade própria e alheia. Não somente a subsistência individual
e racional, mas também a relação intersubjetiva se apresentam como
uma estrutura fundamental do humano, surgindo como uma exigência
e um dever que fazem o eu sair de sua subjetividade oculta e abrir-se
ao tu, de modo que assume a verdadeira existência do outro, reco­
nhecendo-se aí a si mesmo como em um espelho. Além disso, segundo
a antropologia cristã, tanto o eu como o tu têm sua origem e a fonte
de sua dignidade transcendente na pessoa de Deus, de quem recebem
sua sacralidade e certos direitos que nenhuma potência terrena pode
eliminar.19 Assim surge e se consolida o direito à liberdade e à espon­
tânea adesão ao bem, e em particular à inviolabilidade da consciência
pessoal no que se refere aos valores supremos e religiosos. Ao mesmo
tempo, em virtude do reflexo do absoluto reverberado nele, o sujeito
humano se percebe como um ser infinitamente aberto, intimamente
predisposto a uma comunicação com o infinito, como alguém que ouve
uma palavra diferente“ e se levantam questões ilimitadas. Em nossos
18P o r isso, hoje parece intolerável designar os não-cristãos, destinatários
da missão, como «objeto da missão», segundo ainda se lê na obra clássica de
Th. O h m , M achet zu Jünger alle Völker, Friburgo, 1962, 470-479.
“ Cf. A. H a l d e r-H. V o r g r i m l e r , Ich-Du-Beziehim g: L T h K V (1960),
595-598: A. H a i d e r , Person: L T h K V I I I (1963), 287-290; M. T h e u n i s s e n ,
Ich-Du-Verhältnis: R G G I I I (1959), 553-556; id., D e r Andere. Studien zur
Sozialontologie der Gegenwart, Berlim, 1965; B. C a s p e r , D a s dialogische
Denken, Friburgo, 1967; B. L a n g e m e y e r , D e r dialogische Personalismus in
der evangelischen und katholischen Theologie, Paderborn, 1963; A. López
Q u i n t á s , Pensadores cristianos contemporâneos, Madrid, 1968.
M K. R a h n e r , H ö rer des W ortes, Munique, 1963 (trad. espanhola: Oyente
de la palabra, Barcelona, 1968); P. R o s s a n o, I/uomo e la religione, em
Religioni, Fossano (Cuneo), 1970, 9-79.
SECÇÃO III: A IGREJA É CATÓLICA 141

dias tudo isso costuma ser indicado com a expressão homo religiosus;
mas é evidente que a dimensão religiosa inscrita no sujeito humano se
dá necessariamente na categoria da historicidade e socialidade, a qual
subsiste objetivada nos grandes sistemas cultuais e religiosos que dis­
tinguem a humanidade desde as origens da história. A esta espessa
trama histórico-cultural, pela qual os homens vivem mais do que nunca
em mútua companhia e dependência, acrescenta-se, de um lado, a rela­
ção física com o cosmos (em virtude do corpo), e de outro, uma pro­
jeção essencial para o futuro, de modo que o homem não encontraria
forças para viver se não pudesse «pensar» no amanhã.21 O sujeito
humano é realmente um nó de relações cujo desenvolvimento harmo­
nioso dá lugar à perfeição e beleza da pessoa.
Mas não se esgota aqui a dimensão do sujeito humano enquanto
destinatário da missão da Igreja. A revelação dos dois Testamentos
e a reflexão teológica dos últimos decênios, que está ligada a impor­
tantes filões patrísticos e medievais, pôs em destaque os componentes
sobrenaturais da antropologia. A humanidade jamais existiu in puris
naturalibus. Na origem do eu humano está a palavra criadora de Deus,
em virtude da qual o homem passa à existência como «imagem de
Deus», «estirpe divina», criado em Cristo e destinado à comunhão com
Deus uno e trino. “
A vocação cristã está inscrita no próprio chamamento de todo
homem ao ser. O Vaticano I I não duvidou em empregar afirmações
como «secreta presença de Deus», «participação no mistério pascal»,
«influxo do espírito de Deus» em todo homem comprometido existen-
cialmente com uma realidade última que, tirando-o de si, o faz «ser
para» um Absoluto que o transcende. No âmbito destas afirmações,
os autores da presente obra geralmente estão de acordo em admitir
que entre os existenciais permanentes do homem se dá uma autêntica
comunicação sobrenatural, embora seja absolutamente diferente dos cons­
titutivos essenciais da natureza humana. Esta comunicação divina, al­
cançando o horizonte da consciência, imprimiria aos dinamismos psico­
lógicos do homem, em sua projeção para o termo último, o caráter de
uma fé, uma esperança, uma caridade «implícita», que eu preferiria
chamar inicial, incoativa, germinal. Agindo em sintonia com ela, todo
homem tem certamente a possibilidadede receber uma justificação
que o habilita para a comunhão final com Deus (ef. LG 16).
Mas a imagem do sujeito não-cristão ficaria incompleta, — su­
jeito que é destinatário da missão, — se não tivéssemos a coragem
de reconhecer e denunciar que nele se observa também o poder nefasto
e devastador do pecado. O domínio universal do pecado, consignado
com toda a clareza no A T e no NT, pesa gravemente sobre a huma-

21 Cf. J. R a t z i n g e r , V om Sina des Christseins, Munique, “1966; A.


B r u n n e r , L a personne incamée, Paris, 1947. Quanto à existência como
preocupação, cf. M. H e i d e g g e r , Sein und Zeit, Tübingen, “ 1967, 191-196.
(E m espanhol: E I ser y el tiempo, México, 1951).
“ Cf. M. P 1i c k-Z. A l s z e g h y , Fondamenti di un’antropologia teologica,
Florença, 1970. P a ra um a confrontação das posições católicas com a teologia
dialética, cf. H . K ü n g , Reclitfertigung, Einsiedeln, 1957.
142 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

nidade não-cristã e reflete-se em suas estruturas culturais até a de­


sintegração destas. As religiões não-cristãs não estão livres de tal
situação de pecado apesar dos valores que contêm. “ De resto, dá-se
não raras vezes o caso, assinalado pelos historiadores das religiões,
de homens pessoalmente melhores do que seus sistemas.M Mas tam­
bém no melhor dos casos o sujeito não-cristão sofre a condição do
status naturae lapsae e da vulneratio in naturalibus, que o faz pobre
e sumamente necessitado de redenção, o inclui no «tempo da ignorân­
cia» (A t 17,30) e da «paciência de Deus» (Rom 3,26) por ter substi­
tuído o Criador pela criatura (cf. Rom 1,25).
Portanto, deve-se afirmar que uma das maiores aquisições antro­
pológicas de nosso tempo consiste em ter dado relevo à dimensão
pessoal de subjetividade, liberdade, religiosidade e graça sobrenatural
existente nos interlocutores da Igreja, seja qual for seu matiz etno­
lógico. “ Mas o elemento religioso específico que caracteriza estes su­
jeitos não floresce espontaneamente neles, mas se expressa necessaria­
mente nas formas e estruturas em que vivem. Tais estruturas, que
com freqüência se sobrepõem como tradições acumuladas («cumulated
traditions») à fé espontânea da pessoa («personal faith»), a alimentam,
a especificam, a condicionam e, às vezes, a reprimem. " Não existe
nenhum homo religiosus isolado, mas sempre inserido numa estrutura
sócio-cultural. Por isso, a missão cristã deve dirigir-se não só aos indi­
víduos concretos, mas também às culturas e às religiões como estru­
turas culturais que respondem às interrogações existenciais e apontam
para a salvação. Missionar as religiões significa buscar sua inspiração
profunda, romper os círculos imanentistas em que freqüentemente estão
encerradas, destacar e desenvolver com inteligente ação maiêutica os
germes que subsistem em estado latente ou embrionário. Na linguagem
do Vaticano II, que faz eco aos vaticínios proféticos, as religiões
não-cristãs formam parte das «riquezas dos povos», e é tarefa dos
cristãos conhecê-las, exorcizá-las dos «contágios malignos», «saná-las»,
«elevá-las», «iluminá-las com a luz evangélica e levá-las de novo ao
serviço de Deus Salvador» (A G 9,11).
São muitas e não estão todas resolvidas as interrogações teoló­
gicas que se apresentam à missão da Igreja em seu encontro com os
cristãos e suas respectivas religiões. Mas o nó ainda intacto e mis
rioso da questão é a relação que existe entre a economia salvífica ope­
rante na Igreja e a presença e ação universal de Deus na vida e nas

33H . H e i s l b e t z , Theologische Gründe der nichtehristlichen Eeligionen,


Friburgo de Br., 1967, 144-168; M. S p i n d l e r , op. cit., 181-184.
24A observação é de A. j . P e s t u g i è r e , L ’idéal religieux des Grecs et
l’Évangile, Paris, 1932, 72, a propósito dos estóicos e especialmente de Epitecto.
28Isto se deve também, ao desenvolvimento dos estudos bíblicos e da
história das religiões; cf. L. D e b r u y n e , L e païen: un chrétien qui s’ignore?:
«É glise vivante» (1970), 426-444. Sobre o perigo de anular teologicamente o
homem na teologia dialético-existencialista, cf. L. W i e d e n m a n n , Mission
und Eschatologie, Paderborn, 1965, 196.
m A s categorias «personal faith» e «cumulated traditions» foram adotadas
como critério heurístico por C. S m i t h , The E n d and M eaning o f Religion,
N o v a Iorque, 1964; p ara um a avaliação crítica, cf. C. F. H a 11 e n c r e u t z,
Çïew Approaches to M en of other Faiths, Genebra, 1970, 83-89.
SECÇÃO u i: A IGREJA É CATÓLICA 143

tradições religiosas dos povos, assim como a conexão entre a atividade


missionária da Igreja e a ação universal de Deus na história. Certa­
mente, o Deus uno e trino que se manifestou em Jesus Cristo e foi
proclamado no testemunho do Espírito Santo é o mesmo que governa
toda a estrutura da história e das religiões. Mas todas as respostas
dadas até agora ao problema das relações entre ambas as economias,
entre a história particular e a história universal da salvação, desde
a teoria dialética da descontinuidade até aquela da profunda identi­
dade transcendental — em virtude da qual a diferença consistiria na
relação de implícito-explícito, ineonsciente-consciente, não-categorial-ca-
tegorial, — mostram-se insuficientes tanto do ponto de vista bíblico
como histórico-fenomenológico.27 Talvez se poderia tentar aprofundar
na «diversa ordenação» das religiões não-cristãs à Igreja (cf. LG 16:
«diversis rationibus ordinantur») mediante a categoria de participação
na aliança e dos diferentes graus de tal participação. Nesta perspec­
tiva, toda a família humana aparece marcada pela imagem de Deus,
e os dois pólos extremos iriam da imago oòscuraía no pecador não-
cristão à imagem luminosa de Deus que brilha no rosto de Cristo.
Entre estes dois pólos situa-se o estado de todos os não-cristãos e
dos próprios cristãos.
Se se reconhece ao destinatário da missão toda sua dignidade de
sujeito humano dotado de possibilidades religiosas e inserido num con­
texto espiritual portador de valores, e se — como é necessário — se
respeita nele o mistério do amor divino que o precede e o acompanha,
o modo do encontro e o método da missão se apresentarão profunda­
mente transformados. O N T permite-nos entrever alguns casos signi­
ficativos a respeito: Pedro diante de Comélio, Paulo e Bamabé diante
dos homens religiosos de Listra, a pregação de Paulo em Lídia, Paulo
diante da assembléia do Areópago. O reconhecimento da singularidade
do outro e de sua vocação pessoal, com base em alguns valores reli­
giosos que lhe competem na ordem natural e sobrenatural, determina
antes de tudo no homem de Igreja o dever de ouvir e compreender
a subjetividade do interlocutor.® Fica excluída qualquer exigência de
passividade completa, lesando seus direitos qualquer objetivação de
sua pessoa. A fenomenologia e a moderna filosofia do encontro inter-
subjetivo evidenciaram uma série de elementos que não podem ser
descuidados, sob pena de mistificar a missão. Todo encontro intersub-
jetivo fundamenta-se no respeito ético. Tal atitude tem sua origem
bíblico-cristã. A missão é um encontro interpessoal que seria falaz se

Veja-se uma relação das principais posições protestantes e católicas


sobre este problema no volume citado de C. F. H a l l e n c r e u t z , N e w
A pproaches.. . ; cf., além disso, H . K r a e m e r , L a foi dirétienne et les
religions non chrétiennes, Neuchâtel, 1956, 49-86; H . R . S c h l e t t e , Die
Religionen ais Th&ma der Theologio, Friburgo de Br., 1964, 21-42; P. R o s s a n o ,
Religioni non cristiane, em Dizionario dei Concilio Ecuménico Vaticano I I
(E C ), Roma, 19S9, 1963-1703. N ã o estou plenamente de acordo com a posiçã.o
sustentada por A. D arlap no começo da presente obra.
28 Sobre esta temática, de origem claramente kierkegaardiana, c f. E.
D u c c i, L a maieutica kierkegaardiana, Turim, 1968.
144 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

a palavra não fosse acompanhada do amor. “ Isto, que é certo no


plano da fenomenologia humana, o é mais ainda na ordem existencial
sobrenatural: toda missão é um encontro com o Espírito de Deus, que
já opera no sujeito não-cristão. Portanto, não há possibilidade de mis­
são sem ouvir e compreender previamente o interlocutor. E não tem
sentido pensar que o outro nos compreende se não nos esforçamos
para compreendê-lo. Assim, pois, teologicamente falando, o primeiro
passo da missão deve ser descobrir o que Cristo já realizou no sujeito
que está pela frente. A experiência de ouvir-se mutuamente, já ensaia­
da no movimento ecumênico, deve estender-se aos não-cristãos a fim
de entabular um verdadeiro diálogo com os homens de outras religiões.
A convicção de que Jesus Cristo é seu único redentor não deve ser
obstáculo para procurar as pegadas da multiforme sabedoria de Deus,
que se compraz em habitar com os homens (Prov 24,6) e se manifestou
em Cristo e na Igreja (cf. ICor 1,30). A relação dialogai instaura-se
em nível de paridade existencial e tende a uma edificação recíproca,
pondo fim a todo tipo de encontro puramente unidirecional. Seu obje­
tivo é koinopoyético enquanto tende a estabelecer uma comunhão exis­
tencial que é, ao mesmo tempo, premissa e conseqüência de uma autên­
tica ação maiêutica, destinada a gerar uma nova realidade. A este
propósito podemos recordar as análises de Kierkegaard sobre a edi­
ficação e sobre a «comunicação direta e indireta». A primeira reduz-se
à comunicação de saber; a segunda é comunicação existencial de po­
der, na qual o maieuta atua com todo o peso de sua convicção e
experiência sobre a capacidade receptiva e dinâmica de seu interlocutor
para induzi-lo ao ato libertador e elevante da decisão pessoal.® Ebner
frisou a necessidade do amor para uma comunicação autêntica entre
o eu e o tu; a simples comunicação de palavras, se não for sustentada
pelo amor, toma-se automaticamente ilusória e hipócrita.31 São Paulo,
esboçando de maneira magistral um tema que será desenvolvido sob
diversos aspectos pela Constituição Dei Verbum do Vaticano II, refe­
re-se à apresentação do evangelho mediante palavras e fatos, mediante
a força vital de seu exemplo e a sinceridade de suas palavras. «Estas
duas formas de testemunho são de tal sorte complementares que seria
falso conceder prioridade de uma sobre a outra ou separá-las. Palavras
e atos, proclamação e serviço são como que os dois focos de uma
elipse». ® E ’ preciso, pois, analisar a temática paulina do -nWç ou
«forma exemplar»: suas palavras estão de tal modo encarnadas em
sua vida, que não duvida em apresentar-se como o «tipo» que deve
ser imitado, assim como ele se refere pessoalmente ao «tipo» de
Cristo. Este tipo, que se oferece no amor e no serviço eé acompanhad

29Cf. P. E b n e r , D as W o rt ist der W eg, Viena, 1949, 118; E. D u c c i ,


11 rapporto io-tu nella persuasione, em Pedagogia e vita, Brescia, 1970.
30Cf. E . D u c c i , L a maiêutica kierkegaardiana, 79-134. Neste contexto
pode-se citar a célebre expressão polêmica do teólogo dinamarquês: «O cris­
tianismo não é uma doutrina, mas uma comunicação de existência» (P ap irer
1848-1849, IX , A 207 = 1524). Deve-se destacar neste contexto a ação «peda­
gógica» da comunicação divina (jraiôevovaa f]|xãç: T i 2,12).
31 Cf. W o rt und Liebe, Viena, 1935.
82 Cf. J. R o s s e 1, Mission dans une société dynamique, Genebra, 1967, 101.
SECÇÃO n i : A IGREJA Ê CATÓLICA 145

pela palavra de Deus, estimula a imitação, e os imitadores por sua


vez convertem-se em modelo para seus próprios compatriotas (cf. ITes
1,5-9). Mediante esta comunicação existencial edificante difunde-se o
evangelho, que não é «só palavra», mas «energia, Espírito e plenitude
de vid a ».33 Toda a missão se realiza neste encontro entre a plenitude
de energias salvíficas presentes em Cristo e operantes na Igreja e a
plenitude vital que se desenvolve secretamente no homem sob a ação
do Espírito de Deus. A missão inclui estes quatro termos reais: o eu,
0 tu, um elemento básico comum e um «plus» ou crescimento a que
são chamados tanto o autor da missão como seu interlocutor não-
cristão. Pensando bem, é este o processo apresentado pelos Atos tanto
na missão aos judeus como na missão aos gregos e romanos.
Mas é evidente que a função dialogai ou maiêutica, embora neces­
sária e fundamental, não esgota a tarefa da missão, a qual culmina
na evangelização e no anúncio do kerygma, cuja natureza paradoxal
não pode evitar o escândalo nem impedir dores e rupturas. Assim se
chega ao momento decisivo do salto qualitativo na ordem da fé e da
aceitação da palavra de Deus, a única que pode introduzir no conheci­
mento da sabedoria de Deus, que é estupidez para os homens (IC or
l,23ss); mas isto não se realiza sem a metanóia e a conversão,M as
quais abrem o acesso ao mistério a que Deus chama os homens.
O kerygma completa-se depois na catequese e no dogma, e é pro­
clamado e comunicado vitalmente à assembléia eclesial cristã por meio
da liturgia, como ficou amplamente ilustrado nesta obra. Aqui só po­
demos aludir brevemente aos meios com que a Igreja efetua sua
missão de participar na atividade salvífica de Deus na terra. Se o
protótipo da missão é o Servo de Javé no AT, que encontra sua rea­
lização na vida e na obra de Jesus Cristo e sua prolongação nos
apóstolos e na Igreja,35 a missão comporta a pregação e o esforço,
a dor e a perseguição, a oração, o serviço e a perseverança confiante.
à luz de tudo isso compreendem-se facilmente alguns princípios
fundamentais reafirmados pelo Vaticano I I (cf. AG 10,22; GS 44,58),
de acordo com os quais o protótipo de toda missão é a Encarnação
e sua lei fundamental é a assimilação aos homens; assim se compreen­
de a lei da «indigenização», a fim de que cada qual realize autentica­
mente sua subjetividade «com a ajuda de outro»,36 e se manifesta com
toda sua urgência a necessidade da hermenêutica e da tradução da

33Cf. P. R o s s a n o , L,a P a ro la e lo Spirito. Riflessioni su 1 Thess 1,3 e


1 Cor 2,4-5, em Mélanges Bibliques (Hom. B éd a R igau x), Gembloux, 1970,
437-444.
310 termo «conversão» ainda precisa ser estudado a fundo. O primeiro
estudo, promovido pelo Conselho Mundial das Igrejas, foi publicado sob o
título Conversion to God and Men. A Study Document on the Biblical
Concept of Conversion (W C C / D W M E 60-90, Londres). Seu autor, P. Loeffler,
conclui citando L. N ew bigin: « A conversão é um a mudança em ordem a
participar pela fé de um a nova realidade que é o futuro de toda criação»
(IR M , abril de 1965, 159); cf. J. R o s s e 1, op. cit., 95s.
33A figura do Servo de Javé se projeta sobre a vida de Paulo desde o
momento de sua conversão, influindo em sua consciência durante toda a
sua atividade; cf. A t 9,16.
• Sobre esta expressão kierkegaardiana, cf. E. D u c c i, op. cit., 87ss.
146 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

palavra cristã numa linguagem acessível ao interlocutor de diferente


origem cultural. Também não se deve descuidar do problema da busca
de contacto*1 e da tangência entre a mensagem cristã e o homem que
a recebe; e não é menos importante uma séria reflexão para descobrir
e esclarecer o que se requer no interlocutor para receber e compreen­
der o evangelho.38 Tudo isso é tarefa da teologia e da práxis da ati­
vidade missionária, que alcançará seu primeiro objetivo fundamental
quando conseguir implantar, ao menos em germe, uma Igreja local com
todas as estruturas necessárias para a sua existência (ef. AG 6,19ss;
LG 17).*

3. Finalidade da missão

Se a Igreja é missionária por natureza, o fim da missão coincide


substancialmente com a razão de ser da Igreja no mundo; e se a
missão é em sua raiz prolongação da missão de Cristo na história,
suas metas se identificam com os objetivos da Palavra entre os ho­
mens. O Vaticano II, em duas passagens paralelas (LG 17; AG 9),
indica estes dois objetivos fundamentais: cooperação da Igreja na
realização do plano de Deus, a salvação, que inclui a eliminação do
pecado, a elevação e o aperfeiçoamento de todas as possibilidades hu­
manas, o dom do Espírito Santo e um novo significado para a vida
do indivíduo e da sociedade até a plenitude de Cristo, para a glória
de Deus e a felicidade do h ome m . N e s t a s linhas refletem-se os tra­
ços essenciais do messianismo, que aflora nas primeiras páginas do
Génesis e culmina na luz da Jerusalém celeste no fim do Apocalipse.
A injeção desta temática bíblica na teologia da missão fortaleceu as
estruturas da missionologia católica e dilatou seus horizontes. “
Pode-se dizer que até a véspera do Vaticano I I a teologia católica
da missão era representada praticamente por duas posições: a escola
de Münster (J. Schmidlin, Th. Ohm) punha o significado da missão

37 Sobre o «ponto de contacto», cf. H . K r a e m e r , op. cit., 162ss.


33Cf. J. R o s s e l , op. cit., 138-141.
33Sobre a plantatio Ecclesiae como objetivo primário da missão, podem-
se ver as obras do padre Charles citadas na bibliografia.
* A descrição da missão que aparece nos documentos conciliares se
aproxim a notavelmente d a sustentada pelas Igrejas d a Reform a. Sirva como
exemplo desta a definição do biblista F. Hahn, op. cit, 155, e a do mis-
sionólogo holandês J. H . B a v i n c k , Xnleiding ia de Zendingswetenschap,
Kampen, 1954, 57s; « A missão é a grande obra de Jesus Cristo, graças à
qual, depois de ter realizado na terra sua obra de mediador, atrai todos
os povos à sua salvação e lhes comunica as graças que obteve para eles».
A divergência consiste na diferente concepção da função e do ministério d a
Ig re ja no exercício da missão. Veja-se, contudo, a interessante definição de
M. Spindler, que, omitindo toda a referência à Igreja, indica a finalidade
da missão com expressões que coincidem com as do Vaticano II : « A missão
é o modo pelo qual Cristo prossegue até o fim dos tempos e até os confins
do mundo sua missão: glorificar a Deus, combater as potências, salvar os
homens» (op. cit., 101). Cf. J. H. W a l g r a v e , U n salut aux dimensions du
monde, Paris, 1970, £6.
“ Sobre a contribuição do Vaticano I I como síntese de cinqüenta anos
de missionologia, cf. J. M a s s o n , L o Missioni nel Vaticano II, Turim, 1966,
22-29; J. S e h ü t t e , Mission nach dem Koiizil, Mogúncia, 1967; A. S a n t o s ,
Decreto sobie la actividad misional de la Iglesia, Madrid, 1966.
SECÇÃO III: A IGREJA fi CATÓLICA 147

principalmente na conversão dos «pagãos» (finis operis primarius), ao


passo que a dilatação da Igreja seria somente o finis operis secundarius.
Com respeito a ela, a escola de Lovaina, chefiada pelo padre Charles,
assinalava como fim específico da missão a plantatio Ecclesiae e a
«constituição visível em todos os lugares em que ainda não está cons­
tituída». Mas é preciso reconhecer que sob esta discussão teológica
se encontrava a convicção secular de que o motivo último da missão
era a salvação do indivíduo e de sua alma diante da ruína eterna.**
Evidentemente, o Vaticano I I não podia deixar de recolher estas duas
vozes e pôr conjuntamente o «fim da missão na evangelização dos
não-eristãos e na implantação da Igreja» (A G 6), relacionando as
coisas com a vontade salvífica de Deus (AG 7). Mas, como dissemos,
toda a temática sobre os objetivos da missão se fortaleceu e ampli­
ficou na confrontação do evangelho com o mundo contemporâneo,
recorrendo profundamente à Bíblia e às conquistas dos últimos decê­
nios no campo da antropologia religiosa.
Devemos reconhecer que a missionologia protestante, tanto ger­
mânica como anglo-americana, precedeu a católica, durante a primeira
metade deste século, na investigação científica da natureza e do fim
da missão.43 Tal investigação passou por uma gama de experiências
e oscilações que exerceram um forte estímulo nas fileiras católicas,
contribuindo de maneira decisiva para o incremento da consciência
ecumênica. Mestre indiscutido da missionologia protestante no início
do século foi Gustav Wameck, cuja tese fundamental sobre a missão
era a cristianização do mundo mediante a implantação e organização
da Igreja em todos os povos, uma Igreja que penetrasse e unificasse
todas as entidades nacionais, como passo preliminar para a integração
de uma grande Igreja mundial.
Esta tese, sob certos aspectos não muito diferente da que preva­
leceu na Conferência Mundial Missionária de Edimburgo (1910), que
afirmava a coincidência entre o evangelho e a civilização («social
gospel»), entrou em crise depois da guerra mundial de 1914-1918 sob
os golpes unidos da teologia dialética, do existencialismo teológico e
do escatologismo exegético. Todas as aspirações civilizadoras e ecle-
siocêntricas da missão desvaneceram-se rapidamente diante da apari­
ção da fórmula «missio Dei», segundo a qual o princípio, o autor e
o fim da missão é Deus e só Deus, que a realiza por meio de sua
palavra como e onde quer, segundo os desígnios inexcrutáveis e o
beneplácito de sua vontade. Já não se fala, como nos tempos de

42Sobre o problema da salvação dos infiéis e sua relativa evolução his­


tórica, com claras repercussões missionológicas cf. L. C a p é r a n , L e problème
du salut des infidèles, Toulouse, “1934; id., L ’appel des non chrétiens an salut,
Paris, 1962; A. S a n t o s , Salvación y paganismo, Santander, 1960; L. D e -
b r u y n e , L e paien? L e salut?, Lovaina, 1971. A encíclica M axim um E lu d
indicava o fim d a ação missionária com as palavras: «L ibertar esta multi­
dão de almas d a orgulhosa tirania dos demônios» (A A S 11 [1919], 453).
43Sobre a evolução da missionologia protestante no século X X , cf. L.
W i e d e n m a n n , Mission und Eschatologie, Paderbom , 1S65; e, além das
obras citadas de K r a e m e r , C. F. H a l l e n c r e u t z e G. H. A n d e r s o n ,
The Theology of Mission Am ong Protestants in the Twentietá Centuiy, em
The Theology of the Christian Mission, N o v a Iorque, 1961.
148 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Wameck, de construir uma Igreja mundial sobre a terra. A única


perspectiva é a escatológica do juízo e do fim do mundo; a ação de
Deus é krisis, ou seja, juízo sobre o homem pecador, o qual, diante
da palavra que Deus lhe dirige nestes «últimos tempos», pode tomar
a decisão que o liberta do mundo (Entweltlichung) e do estado de
queda em que se encontra. As ações e palavras procedentes dos ho­
mens de Igreja não representam mais do que uma ocasião para a
ação decisiva de Deus, que chama à decisão desmundanizante.44
à medida que se foram modificando as posições da escola esca­
tológica operou-se uma notável correção de tal perspectiva. Os defen­
sores da «escatologia atual», que vêem já presente na era da Igreja
a realidade dos últimos tempos, consideram a missão como um acon­
tecimento escatológico, no qual Cristo ressuscitado, diante da iminên­
cia de sua parusia, chama os gentios à obediência da fé, oferecendo-
lhes as primícias e uma antecipação do reino futuro. * Ao contrário,
os autores que consideram a escatologia como o horizonte último da
história da salvação e concebem o ser cristão como uma tensão entre
um «já » de salvação e um «ainda não» de realização plena preferem
ver na missão a atividade de Cristo glorioso, que no decurso da his­
tória prepara a humanidade para a sua vinda, oferecendo a cada
homem a riqueza do reino futuro já na comunidade eclesial da terra. “
Percebe-se, pois, um deslizamento de uma posição estritamente
escatológica para uma posição mais histórica e temporal; a perspec­
tiva missionária tende a coincidir o mais possível com o plano de Deus,
que, depois de se ter realizado plenamente em Cristo, continua rea-
lizando-se na história mediante a pregação da Igreja e orientado para
o futuro. A missão e o chamamento inserem-se na tensão que existe
entre o «já » destes últimos tempos e o «ainda não» do fim, no qual
Deus proclama sua soberania sobre o mundo e reúne seu povo.47 Mas
aconteceu que, depois de tanto falar de interioridade e escatologia, a
missionologia protestante voltou polemicamente (na quarta assembléia
do Conselho Mundial das Igrejas, Upsala, 1968) a posições «encar-
nacionistas» e sociais, afirmando que o verdadeiro objetivo da missão
se encontra na «humanização», pois tal seria o significado do messia­
nismo bíblico na sociedade moderna. Termos bíblicos e tradicionais,
como kerygma, diakonia, koinonia, são empregados hoje pela termino­
logia protestante para designar a missão da Igreja no mundo; esta
atividade está destinada à conquista da «paz» (shalom), entendida
numa linha estritamente horizontal, que implica o desenvolvimento do


“ E sta concepção dialético-eseatológica da missão aparece substancialmente
em K . Barth, K. Hartenstein, H . Kraem er, W . Holsten e outros. Cf. L.
W iedenm ann, op. cit., 191s.
43 A esta tendência pertencem exegetas como E. Lohmeyer e J. Jeremias,
e teólogos como G. Rosenkranz e P. Althaus. Cf. L. W i e d e n m a n n ,
op. cit., 193.
* Assim, entre os exegetas, O. Cullmann, H. Schlier; entre os teólogos,
K . Hartenstein e W . Freytag.
* Como tentativas de tais sínteses podem ser consideradas as principais
obras de W . Andersen, H . J. M argull e G. Vicedom. Cf. L. Wiedenmann, 194.
SECÇÃO H l: A IGREJA fi CATÓLICA 149

homem e o advento de uma nova sociedade de justiça, de verdade e


amizade sobre a terra.48
Esta breve síntese da teologia protestante da missão permite-nos
entrever a evolução que se pode esperar da missionologia católica revi­
talizada pelo Vaticano I I e as possibilidades de colaboração ecumênica
neste setor. Dado que o fim da missão é cooperar no plano divino
de salvação, suas metas devem coincidir com as de Deus na comuni­
cação com a humanidade. Tais metas estão especialmente indicadas
no N T mediante vocábulos altamente significativos que servem de cen­
tros semânticos em torno dos quais se reúnem espontaneamente outros
termos e expressões complementares. O decreto AG (5,9) e a consti­
tuição LG (17) assinalam alguns, embora nem todos, que podem ser­
vir de pontos de referência para uma reflexão sistemática.
No frontispício de todo o N T lê-se o termo clássico e global
«o-cTieía salvação. 49 O próprio nome de Jesus está relacionado com a
«salvação dos pecados» dos homens (M t 1,21). O Evangelho de São
João apresenta a sotería como o fim primário da missão de Jesus (Jo
3,17; cf. ITes 2,16). Prescindindo dos aspectos físicos e morais da
sotería (também presentes no NT, ainda que de maneira secundária
e simbólica), seu significado abre-se em duas direções fundamentais.
Aparece antes de tudo o anúncio da sotería como libertação do pecado,
da culpa, da influência do Maligno, da servidão à carne e à lei, dos
«ninhos de víboras» ocultos no homem e ruinosos para a sociedade e
o cosmos. Por isso, toda a mensagem de sotería implica um choque
e uma reação de resistência de dentro para fora. A eliminação do
pecado e a reconciliação com Deus supõem um pesado preço e exigem
um adequado compromisso existencial. Paulo anuncia o evangelho para
a sotería, e para ela convergem todos os esforços de sua atividade
missionai (cf. ITes 2,16; ICor 10,33; Rom 10,1). Mais importante e
inaudito, porém, é o conteúdo positivo da sotería e a polivalência de
suas dimensões no NT. A sotería é individual e social, relaciona-se
com a alma e o corpo; já está presente e aindaé futura, tem um
centro humano e uma projeção cósmica. Está enraizada e apoiada
unicamente em Cristo (cf. A t 4,12; Hbr 5,9) e transforma intima­
mente o homem que se aproxima dele numa relação pessoal de fé
e amor: «Cristo em vós esperança da glória», tal é em síntese, com
a expressão lapidar de Paulo (Col 1,27), o fim e o conteúdo da
missão. Nesta relação desdobram-se sobre o homem as profundidades
dos abismos divinos: cura, libertação, nascimento do alto, adoção, res-

® Cf. D rafts fo r Sections, Preparated fo r the Fourth Assem bly o f the


W orld, TJppsala, Sweden 1968, Genebra, 1968; toda a segunda secção é dedi­
cada à «renovação d a missão»; J. W i t t e , Fourth Assem bly o f the W o iid
Council o f Churches: G r 50 (1969), 83ss. Particularmente representativa desta
orientação «hum anizante» é a chamada «escola de Shalom», cujo p ai é o
calvinista dinamarquês J. H. H oekendijk; p ara um a exposição e avaliação
crítica, cf. J. López G a y , L a nueva escuela dei «Shalom » : «Misiones E x t ran­
geras» 16 (1969), 417-430. Cf. também M. S p i n d l e r , op. cit., 224ss.
“ Sobre o significado do termo no N T , cf. Forster-Fohrer, oó>Ç<o, <XùTrtQWt;
T h W V I, 966-1024; cf. M. S p i n d l e r , op. cit., 235ss; J. H . W ; a l g r a v e ,
op. cit., 91.
150 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

surreição, vida eterna, reconciliação, justiça, santidade, ágape, ilumi­


nação, sabedoria, gozo, dom do Espírito, etc. « A iniciativa desta nova
relação é de Deus, e não se trata de uma relação solitária, mas é, in­
clusive, comunitária, eclesial». “ Nesta perspectiva, diga-se de passa­
gem, não há mais razão para a apreensão daqueles que, ao não ver
afirmada como motivo fundamental da missão a «salvação das almas»,
temem por uma debilitação do zelo missionário da Igreja. E ’ verdade
que se oferece a todas as pessoas uma possibilidade de salvação e que
só uma culpa pessoal pode anular tal possibilidade (LG 16; AG 7),
mas é evidente que a missão confere a esta possibilidade uma situação
decididamente mais favorável e um conteúdo incomparável já desde
esta vida, manifestando ao homem o significado de sua existência e
de suas atividades e oferecendo-lhe os meios individuais e sociais para
realizá-la plenamente.
Esta plenitude, “ é outro centro semântico em tomo do
qual gravitam outras indicações da missão de Cristo e, portanto, da
Igreja. Este termo é empregado com freqüência pelo Vaticano I I quan­
do se propõe descrever a relação entre Cristo e a humanidade e o
objetivo da missão cristã no mundo (cf. AG 3,9; LG 17,45; N A 2,
etc.), Tal plenitude, que cumula a humanidade gloriosa de Cristo (cf.
Col 1,19; 2,9; Jo 1,14), é comunicada mediante o ministério da Igreja
a todos aqueles que entram em comunhão com ele para formar um
só corpo, chamado a crescer até a plenitude ideal de sua cabeça (E f
1,23; 4,13; Col 2,10). Mas o crescimento e o aperfeiçoamento (oniljrioiç,
TstóüMTtç) não são uma aquisição autônoma do homem, mas são con­
feridos do alto e recebidos através de uma generosa colaboração pes­
soal. A eles se dirige a atividade dos ministros do NT, e o aguilhão
da consciência missionária de Paulo, empenhado na geração espiritual
de seus filhos, tende a seu crescimento até a formação de Cristo neles
(Gál 4,19), com vistas a um estado de perfeição irrepreensível que
possa confrontar-se sem temor com a manifestação do Senhor na pa-
rusia (IC or 1,8; ITes 5,23). Se levarmos em conta que a dotação
espiritual de todo homem (o chamado «existencial sobrenatural») se
apresenta — segundo uma linha de pensamento já conhecida pelos
Padres e ratificada pelo Vaticano II ■—■ como um germe, um começo,
um reflexo, a tarefa da missão facilmente se configurará num compro­
misso pelo crescimento espiritual de cada homem e de toda a família
humana a fim de alcançar a plenitude do plano de Deus. De outro
lado, o mistério da encarnação e da sacramentalidade da Igreja parece
insinuar que a graça de Deus, que quer realmente a salvação dos ho­
mens, tende a encarnar-se, a exprimir-se externamente e, conseqüente­
mente, por sua natureza, a expressar-se na catolicidade da Igreja a grande
família dos filhos de Deus. De onde se segue que a missão e o mis­
sionário estão ao serviço deste dinamismo encarnacionista e expansivo
da graça“ até realizar a plenitude da perfeição que tem seu modelo
60M. S p i n d l e r , L a mission combat pour Dieu, 238s.
51 Cf. D e l l i n g , jtXr|0<ojm: T h W IV , 197-304.
62Cf. as observações de K . R a h n e r, II cristianesimo anonimo e il com­
pito missionário delia Chiesa: ID O C 10 (15-5-1970), 58s.
SECCAO IU : A IGREJA fi CATÓLICA 151

em Deus: «Sede perfeitos como é perfeito vosso Pai que está nos
céus» (M t 5,48).
Os traços desta plenitude que descrevemos revelam uma dimensão
essencialmente comunitária. Já o paralelo lucano de Mt 5,48, «sede mi­
sericordiosos, como misericordioso é vosso Pai» (L c 8,36), aponta para
o horizonte da perfeição evangélica pondo-o na entrega aos homens;
mas Paulo é ainda mais taxativo no tema: «O vinculo da perfeição
é o ágape» (Col 3,14). Assim chegamos a outro termo indicativo da
missão cristã, a xowmno. ou comunhão. Da mesma forma que o exis­
tente analisado no Dasein heideggeriano, orientado para o desespero
e a morte, é elevado à soteria, e da mesma forma que o indivíduo
descrito por Jaspers como «existência possível» aberta à transcendência
é chamado à «plenitude de Deus» (E f 3,19), assim o sujeito humano,
em sua constitutiva dimensão interpessoal, é introduzido pela missão
cristã numa comunhão perfectiva que lhe é oferecida pela Igreja. A
superação da solidão e a unidade na comunhão não são simplesmente
o desejo secreto de todo homem, mas o objetivo do plano de Deus.
E também o eixo desta comunhão é a pessoa de Cristo ressuscitado:
o cristão é chamado à comunhão com ele (IC or 1,9), uma comunhão
espontaneamente compartilhada com os irmãos (cf. A t 2,42). Trata-se
de uma comunhão que não elimina a distância do Senhor em frente
à sua criatura, mas que é princípio de uma relação nova, de um
intercâmbio que gera vida, alegria, força. Esta relação funda-se na
participação. E durante todo o tempo da história encontra seu «cume
e fonte» no sacramento da e u ca r i st i a . E st a comunhão vivida na
Igreja não nega nem debilita os vínculos humanos, mas os assume
e fortalece, sendo elemento sustentador de toda forma de comunhão
e germe de fraternidade humana universal a que o mundo de hoje
aspira. A consciência do dever de promover a unidade e a concórdia
entre os homens induziu os padres do Vaticano I I a olhar para além
da atividade missionária propriamente dita no intuito de fomentar o
diálogo e a disponibilidade da Igreja diante de todas as religiões (cf.
LG 13; N A 1).
Outra tarefa da missão é a liberdade (ètevfteeía), cuja mensagem
se inscreve na mais típica temática messiânica anunciada pelos pro­
fetas no A T e repetida por Jesus e pela Igreja: «O Espírito do Se­
nhor está sobre mim, porque me conferiu a unção; a anunciar a boa-
nova aos pobres me enviou, a anunciar a libertação aos cativos, e o
dom da vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, a promulgar
um ano de graça da parte do Senhor» (L c 4,18-19). Como o servo
de Javé, Jesus continua na Igreja o anúncio da liberdade. Paulo a
reivindicou sobretudo diante da economia da Lei; o Apocalipse, em
face do império teomorfo; as primeiras gerações cristãs, na linha da
tradição profética, lutaram para libertar o mundo das imagens do
divino imanentes ao mesmo, desmitizando-o em nome da criação e da

53 A expressão «culmen et fons» aplicada à eucaristia pertence ao V ati­


cano I I (SC 10); cf. J. R o s s e 1, op. cit., 96.
152 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

liberdade responsável do homem.“ Esta função é conatural e coexten-


siva à missão da Igreja em todos os tempos e comporta o efeito de
revelar o homem a si mesmo e a seus irmãos e torná-lo consciente de
sua responsabilidade na história.
Como se vê, não é fácil responder univocamente a propósito do
significado e da finalidade da missão no mundo. O caminho mais sim­
ples e seguro, ao que parece, é ater-se à linguagem da revelação e
ao teor da própria palavra de Deus. Fora dela corre-se o risco de
cair na fragmentação das diversas escolas e tendências teológicas, que
desde o começo deste século não deixam de opor-se. Entre os termos
que designam o fim da missão podemos assinalar outros, não menos
sugestivos e expressivos, como eíerrvT) (paz), èhtíç (esperança), xami
x t ü o iç (nova criatura), evloyía. (bênção), wxwòç òcv 0 qomh>ç (homem novo),
ijLo0£oía (filiação de Deus), àYrárri (amor), 'Çoirj a í orno ç (vida eterna),
ôóça (glória),® «recapitulação de tudo em Cristo» (E f 1,10), «revela­
ção do mistério de Deus» (E f 3,9), etc.
Mas nesse ponto levanta-se uma questão inevitável: qual é o sig­
nificado autêntico destes vocábulos?, que dimensão existencial — his­
tórica, jurídica, institucional — incluem e onde deve deter-se a missão
própria da Igreja? Surge, pois, a instância hermenêutica que deve
servir de critério para examinar a missão. Para limitar-nos a algumas
indicações essenciais (exposições mais amplas podem ser encontradas
em outros lugares desta obra), baste recordar que a missão da Igreja
é a continuação da missão de Cristo. Portanto, a hermenêutica deve
remontar além da Igreja e situar-se diante da própria pessoa de seu
fundador. Ora, a interpretação mais autorizada e solene que jamais
se deu de Cristo foi a do Concílio de Calcedônia, que afirmou nele a
coexistência de duas naturezas, humana e divina, perfeitas em seus
respectivos atributos, indivisas mas não confusas, distintas mas não
separadas, unidas no mesmo Cristo Filho de Deus. Pelo fato de brotar
de tal raiz, a missão da Igreja é, ao mesmo tempo, humana e divina,
pertencente à esfera do histórico e do eterno, do visível e do invisível,
do natural e do sobrenatural. Assim, pois, situar-se-ia automaticamente
fora da linha da Igreja, que é Cristo, quem pretendesse coartar ou
restringir a missão a uma tarefa particular com exclusão da outra,
tanto no caso de ser reduzida a um empreendimento puramente filan­
trópico como no caso de ser isolada da sociedade e da história para
reservá-la a uma angélica e invisível mediação divina.
Mas não é só. Como a missão deve alcançar os homens em sua
dimensão histórico-existencial para torná-los participantes da comuni­

54 A qui se aplica a célebre expressão de Ireneu (A dv. haer. III, 15,3 P G


7,919) a propósito dos apóstolos: «V eritatis fuerunt praedieatores et apostoli
libertatís», texto citado em A G , nota ao n. 8. Sobre a repercussão social e
política d a mensagem evangélica basta aludir aos escritos dos apologetas e
à literatura m artirológica dos primeiros séculos. Sobre os aspectos modernos
desta temática, recolhidos pela chamada «teologia política», cf. M. X h a u f-
f 1a i r e, Feuerbach et la théologie de Ia sécularisation, Paris, 1970, 348.
K Sobre o conceito de &ó|a (glória) como princípio e objeto da missão,
cf. A. Y a n n o u l a t o s , The Purpose and M otive of Mission: IR M (1965),
281-297; id., Mission aus der Sicht eines Orthodoxen: N Z M 26 (1970), 241-252.
SEOÇAO III: A IGREJA E CATÓLICA 153

cação divina, exige não só uma reta hermenêutica que vise o passado
mas também o futuro, isto é, que pressuponha uma reta inteligência
do homem. Isto obriga a Igreja a um estudo e a uma atenção incan­
sáveis a todas as formas e manifestações do sujeito humano. Segundo
uma expressão de Paulo V I , 58 incumbe à Igreja o dever de ser «ex­
perta em humanidade»; nada do que é humano lhe pode ser alheio.
Só com esta condição poderá descobrir a inesgotável densidade de
significado inscrita na mensagem bíblica em forma humana e será
uma dispensadora idônea dos mistérios de Deus. Se, como aconteceu,
o conhecimento do sujeito humano avançou neste último século, a
Igreja deve levar em conta estas aquisições com vistas à sua missão.
Uma concepção equivocada ou insuficiente do homem tiraria a missão
de sua passagem e a impediria de alcançar sua meta, esterilizando-a
em formas abstratas e alheias à vida. Se a imagem contemporânea do
homem — enraizada, além disso, nas mais puras fontes da tradição
clássica e cristã — conta entre seus componentes não somente o binô­
mio alma e corpo, vontade e inteligência, eternidade e tempo, fini-
tude e infinitude, necessidade e liberdade, mas também os elementos
de consciente e inconsciente, subjetividade e alteridade, identidade e
comunhão, passado e futuro, independência diante do cosmos e imersão
nele, criatividade de estruturas e dependência com relação a elas; toda
esta gama de relações e polaridades deve estar presente sempre que
se pensar em termos bíblicos referentes à missão ou se pretender pro-
jetá-los diretamente sobre a existência. Qualquer opção unívoca e anti-
tética tem como conseqüência o descuido de algum aspecto da reve­
lação e termina por repercutir negativamente sobre o próprio homem,
desprezado em sua viva complexidade, debilitando — quando não
desviando — o sentido e o fim da missão.
Mas não poderíamos terminar estas notas sobre o fim da missão
sem aludir ao horizonte último que ela persegue ao colaborar na rea­
lização do plano de Deus.07 Segundo a carta aos Efésios, a obra da
criação, encarnação e missão da Igreja culmina no «louvor da glória
da graça de Deus» (E f 1,6).® Paulo, com um olhar profético sobre
o significado da presença operativa de Cristo na história, assinala co­
mo seu fim «a presença de Deus em todos e em tudo»: iva r\ ó 0eòç t «
rama êv jrâmv (IC or 15,28). Os capítulos 21 e 22 do Apocalipse revelam
«in mysterio» o fim último da missão da Igreja. A segunda carta de
Pedro considera a ação cristã como «a espera e o apressuramento da
parusia» (2Pdr 3,12). Embora este tema tenha sido organizado e de­
senvolvido univocamente pela escola escatológica protestante, visto em
sua integridade está muito longe de ser alheio à missão da Igreja na
época que precede a parusia. A esperança cristã não implica um conhe­
cimento do futuro da história nem as palavras da revelação permitem

66 E sta expressão foi pronunciada no discurso diante d a Assem bléia d a


O N U em N o v a Iorque, no dia 4 de outubro de 1965; cf. A A S 57 (1965), 878.
K A este propósito podemos citar a expressão de Santo Agostinho: «N o n
est enim aliud D ei mysterium, nisi Christus» (E p. 187, 34 [ P L 38,8451).
68Este tema recebe particular ênfase nos escritos de H . U. von B althasar;
cf., por exemplo, o cap. I I I de G lanbhaft ist nur die Iie b e , Einsiedeln, 1965.
154 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

entrever como se efetuará o crescimento e o desenvolvimento do reino


de Deus na humanidade até a hora decisiva em que aparecerem os
«novos céus» e a «nova terra». A interpretação da economia divin
em termos de história pertence a estas formas de secularismoque
encontraram seus símbolos contrastantes, mas procedentes das mesmas
raízes, em Hegel e em Marx. Na realidade, os dados do A T e do NT,
no claro-escuro e na complexidade da linguagem apocalíptica, fazem
brilhar imagens bastante mais atormentadas e dramáticas. O mistério
do reino de Deus defronta-se até o fim dos tempos com o «mistério
da iniqüidade». Assim, pois, a missão cristã não pode apoiar-se numa
teologia do futuro da história, mas na certeza do infinito no finito,
do eterno no tempo: «Eu estarei convosco até o fim dos séculos»(M
28,20).® Não obstante, a missão faz parte do plano de Deus nahis
tória que vai da ressurreição de Cristo à sua manifestação gloriosa;
constitui sua estrutura básica e lhe dá sentido. A missão representa a
vida e a razão de ser da Igreja, a expressão dinâmica de sua cato-
licidade. Trabalhar na missão significa, pois, preparar os homens para
o encontro final com Deus. Graças à missão, o chronos, a duração anô­
nima do tempo, se converte para todo o ser humano em kairós, o tempo
oportuno e salutar para a decisão do encontro com Cristo. A soma
destes kairoi constitui a verdadeira história da salvação e o resultado
da missão, na qual a Igreja «anuncia a morte do Senhor e proclama
a sua ressurreição na espera de sua vinda».
PIE T R O ROSSANO

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SECÇÃO IV

A IGREJA É APOSTÓLICA
A apostolicidade1 é a propriedade mercê da qual a Igreja conserva
através dos tempos a identidade de seus princípios de unidade como
os recebeu de Cristo na pessoa dos apóstolos e são indicados em Mt
28,19s e A t 2,42. Estes princípios são os mesmos que estudamos no
capítulo da unidade: unidade pela comunhão na doutrina, nos sacra­
mentos e na forma social da vida na Igreja sob a direção dos pastores,
que herdaram seu ministério dos apóstolos.

I. A APOSTOLICIDADE D A IGREJA

1. O «apóstolo» segundo o Novo Testamento

A noção de «apóstolo» e tudo o que se refere a ela nos escritos


do N T foi estudada muito pormenorizadamente nestes últimos anos.3
Os trabalhos sublinharam aspectos muito interessantes, mas manifes­
taram também grande diversidade de interpretações e pareceres.
Todavia, há um primeiro ponto sobre o qual parece que se con­
seguiu certa unanimidade: os textos dos sinóticos que falam dos «após­
tolos» são redacionais e não permitem afirmar que o próprio Jesus
lhes havia atribuído este título.8 Isto supõe o testemunho sobre a Res-
1J. M. K a u f m a n n , D ie Einheit, Katholizität und Apostolizität der
Kirche dogmatisch und historisch nachgewiesen, Sulzbach, 1858 (sobre a
apostolicidade, 187-258); J. B a i n v e l , D T h C 1 (1903), 1618-1631; G. T h i 1s,
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nhola: L a Iglesia en el N T , Madrid, 1965); H. K ü n g, Strukturen der Kirche
= Q D 17, Friburgo de Br., 1962; id., D ie Kirche, Friburgo de Br., 1967, 408-425
(trad. espanhola: L a Iglesia, Barcelona, 1968). A isso deve-se acrescentar: 1) os
tratados (geralmente apologéticos) d a Igreja: F r a n z e l i n , Theses de Ecclesia
Christi, 1887, th. X I V e X V ; A. de P o u 1p i q u e t, L ’E glise catholique, Paris, 1923,
219-270; H. d ’H e r b i g n y , Theologica de Ecclesia, 2 vols., Paris, 31927;
estudos sobre o princípio de sucessão apostólica: cf. Infra, nota 28.
3 Poder-se-á ter um a idéia lendo E. M. K r e d e 1, D e r Apostelbegriff in
der neueren Exegese: Z kT h 78 (1956), 169-193, 257-305; J. R o l o f f , Apostolat-
Verkündigung-Kirche. Ursprung, Inhalt und F unktion des kirchlichen Apo­
stelamtes nach Paulus, Lukas und den Pastoralbriefen, Gütersloh, 1965; R.
S c h n a c k e n b u r g , L ’apostolicité: état de recherche: «Istin a» 14 (1969), 5-
32 (bibliografia). A exposição de H. K ü n g (cf. nota 1), insuficente para uma
teologia da apostolicidade e sobretudo d a «sucessão apostólica», apresenta um
bom status quaestionis ao nível dos textos do N T . Cf. também P. V. D i a z ,
Vielfalt der Kirche in der V ielfalt der Jünger, Zeugen und Diener, Friburgo,
1968, 161s (os Doze), 212s (os apóstolos) e bibliografia.
3 Cf., entre outros, J. D u p o n t, L e nom d’Apötres a-t-il été donné au s
Douze par Jésus?, Lovaina, 1957.
158 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

surreição e o Pentecostes. Mas o que é certo é que Jesus separou e


escolheu um grupo de doze dentre seus discípulos: «E constituiu os
doze» (Mc 3,13s). Se não se admite este fato não se pode explicar
os testemunhos mais certos de nossas testemunhas, nem a designação
de Judas como «um dos doze» (Mc 14,10.43), nem a eleigão de Matias
(A t l,25s), nem a famosa enumeração de Paulo (IC or 15,5ss).4 Jesus
enviou estes doze em missão durante seu próprio ministério: Mc 6,7s;
Lc 9,1-12. Mas é mais tarde, como fruto de uma reflexão inspirada
nas estruturas da Igreja surgida de Pentecostes e da atividade de
Paulo, que o genial evangelista Lucas definiu um apostolado institu­
cional, identificando «os apóstolos» com os Doze e atribuindo o feito
de Paulo e das Igrejas fundadas por ele na gentilidade a esta insti­
tuição fundamental.B O próprio Paulo falava de seu apostolado com
matizes diferentes; mas ao reivindicar para si o caráter de «apóstolo»
confirmava a seu modo o caráter fundamental dos Doze com os quais
se identificava e que, em última análise, o aceitavam (cf. ICor 9,ls.5;
15,8; 2Cor 11; Gál l,17ss; 2,8).
De tudo isso deduz-se que, histórica e criticamente, se pode iden­
tificar sem mais «os apóstolos» e «os Doze». Isso levanta o problema
dos sentidos e do conteúdo exato que tem no N T o termo «apóstolo».
A palavra «apóstolo» aparece 79 vezes no N T ; 34 vezes nos escritos
paulinos, incluídas as cartas pastorais; 34 em Lucas (6 no Evangelho
e 28 nos A to s ); o termo praticamente não se encontra no quarto
evangelho. Os dois grandes grupos de textos, o paulino e o de Lucas,
representam dois usos, não contrários mas diferentes, do termo. Lucas
tende a identificar os apóstolos com os Doze, tendência que o Apoca­
lipse (cf. 21,14) confirmará e parece testemunhada antes de Lucas e
no próprio Paulo (cf. Gál 1,17), mas sem que este uso seja sistemático
nem exclusivo. Em primeiro lugar está o fato transcendente de o
próprio Paulo ser apóstolo não por vontade dos homens, mas da de
Deus, a menos que tenha conhecido Cristo segundo a carne e, por­
tanto, correspondido às condições enunciadas por Lucas para a eleição
de Matias (A t l,21s). Todavia, Paulo é «apóstolo» porque viu Cristo
ressuscitado e recebeu do Senhor o mandato de pregar o evangelho.
Mas mesmo para os predecessores de Paulo, que haviam acompanhado
Jesus desde o batismo de João, a missão de Cristo ressuscitado e a
missão recebida dele eram decisivas como fundamento de seu apos­
tolado. 6 Realmente não há apostolado nem apóstolos até depois de

4Cf., nas bibliografias, os trabalhos de A. Verheul, L. Cerfaux, B. R igaux


(D ie «Z w ö lf» in Geschichte und Kerygm a, em H . Ristow-K. Matthiae (eds.),
D e r historische Jesus und der kerygmatische Christus, Berlim, 1961, 468-
486), R. Schnaekenburg, P. V. Díaz, etc. Acrescente-se S. F r e y ne, The
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A u x Origines de lTEglise (Rech. Bibi. V I I ) : D D B (1965), 51-64.
5A contribuição própria de Lucas foi destacada sobretudo por G. K l e i n ,
Die Z w ö lf Apostel. U rsprung und Gehalt einer Idee, Göttingen, 1961. Cf. a
recensão de F. Dreyfus em R S P h T h 48 (1964), 329-333.
6Cf. IC or 9,1; 15,3-11; Rom 1,5 e G ál 1,1; M t 28,16-20; M c 16,14s; L c
24,47s e A t 1,8; Jo 20,21. E ’ verdade que 03 testemunhos não-paulinos são
de redação mais tardia e exprimem um a interpretação e, se se quiser, uma
SECÇÃO IV: A IGREJA ffi APOSTÓLICA 159

Pentecostes. Numa teologia integral não é possível opor nem sequer


separar a instituição por Jesus e a atualidade de sua intervenção
espiritual. Ambas as coisas estão unidas na eleição de Matias.
Mas em Paulo, e uma vez até mesmo nos Atos (14,4.14), o
qualificativo de apóstolo é dado a outras pessoas que não os Doze. ’
E ’ atribuído aos enviados ou delegados das Igrejas (2Cor 8,23; Flp
2,25) ou aos ministros que edificam a Igreja (IC or 12,28; E f 4,11;
cf. 3,5 e talvez 2,20); estes são citados em tais casos em primeiro
lugar, segundo sua prioridade evidentemente qualitativa. Se conside­
rarmos a data respectiva dos textos paulinos e lucanos, não parece
que o título de apóstolo tenha sido reservado inicialmente aos Doze
e mais adiante estendido a outros. O que aconteceu foi antes o con­
trário. Em todo caso, constatamos mais uma vez que não é possível,
com certeza, nem encontrar no N T uma indicação rigorosa sobre a
estrutura ministerial da Igreja nem dirimir as questões que esita
estrutura suscita baseando-nos unicamente no vocabulário.
A Igreja continuou simplesmente em sua vida aquilo que em suas
origens havia recebido do Verbo encarnado e da ação do Espírito
Santo. Somente com o tempo precisou e unificou, até mesmo em pontos
que nos parecem decisivos, relativamente suas estruturas, o que não
deixa de impor-nos uma noção ampla e elástica do «direito divino»
aplicado a estes pontos.8 Ao se defrontar com exigências que punham
em questionamento sua autocompreensão — o que aconteceu sobretudo
com as correntes gnóstieas do século II, — imediatamente adquiriu
uma consciência mais explícita de que tudo o que possuía de válido,
tudo o que nela e para ela era normativo, estava ligado aos apóstolos,
e por eles a Jesus Cristo, já que por apóstolos se designavam as tes­
temunhas de Jesus, Verbo encarnado, e aqueles que haviam transmitido
tudo aquilo que ele havia estabelecido para nossa salvação. Nesse mo­
mento levantou-se a questão da «sucessão apostólica» como ponto ne­
vrálgico da apostolicidade da Igreja. Existe, como veremos, mais do
que um ponto de apoio para esta idéia nos últimos anos da própria
época apostólica (cartas pastorais, Clemente).
Assim, pois, a questão dogmática da apostolicidade é relativamente
independente das discussões que se possam entabular sobre a extensão
do qualificativo «apóstolo».

2. História da idéia

E ’ possível que a idéia da apostolicidade no sentido que tem em


Ireneu e Tertuliano fosse conhecida antes deles: podem-se encontrar

teologia; mas é um a teologia inspirada e, portanto, doutrinalmente norma­


tiva para nós.
’ Cf. IC o r 9,5 e 15,7. B arnabé: A t 14,414 (e a litu rgia); Tiago: Gál 1,19:
Andrônico e Junias: R om 16,7, que também se poderia traduzir «perto dos
apóstolos»; Apoio: IC or 4,6.9; Silvano e Timóteo: IT es 2,7 em relação oom 1,1.
8Cf. K. R a h n e r, Sobre ei concepfco de «iu s divinum» e a su compreen-
sión católica, em Escritos, V, 247-273. Os Concílios de Trento (ses. X X III,
can 6) e Vaticano I I (Lum en Gentium, 18, 20, 21 [fin a l], 28) falam com
prudência e discreção da instituição divina d a hierarquia e de seus graus.
160 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

indícios não desprezíveis em abono desta suposição.9 A idéia fundamen­


tal de uma espécie de fluxo de missões que partem do Pai e chegam
à Igreja, passando por Cristo e os apóstolos, já se encontra no N T ; “
logo aparecem em Clemente de Roma e implicitamente em Inácio de
Antioquia, antes de ser utilizada por Tertuliano.11 E ’ igualmente um
fato que «antes de Ireneu, Hegesipo havia estabelecido listas de bispos.
O que quer que se determine sobre a exatidão destas listas, Hegesipo
não as havia inventado e, sem dúvida, dão testemunho de um fato:
as Igrejas apostólicas tinham consciência de sua continuidade e esta
continuidade lhes parecia garantida pelos bispos, que, desde sua fun­
dação, se sucediam na direção delas».12 O princípio da apostolicidade
existia, desde a origem, segundo concepção que se tinha da Igreja
como comunidade começada com os apóstolos, mas chamada a uma
expansão e a uma duração indefinida, de modo que a Igreja já não
se apresenta como a dilatação, por assim dizer, do primeiro núcleo
apostólico.
Esta é a concepção da Igreja que aparece nos Atos, onde sem
cessar se apresentam novos crentes que aderem à primeira comunidade:
2,41.47; 5,14; 11,24; 17,4. Da mesma forma que o povo de Israel era
como a posteridade, a expansão e a multiplicação dos doze filhos de
Jacó, assim a Igreja, novo Israel, novo povo de Deus, outra coisa
não era senão a posteridade e o desenvolvimento dos doze apóstolos.
O próprio Senhor havia relacionado a eleição dos Doze com as doze
tribos: Mt 19,28; Lc 22,30; o Apocalipse mostra a cidade celeste edi­
ficada sobre doze pedras fundamentais nas quais estão inscritos os
nomes dos doze apóstolos do Cordeiro (21,12ss). Esta correspondência
entre o termo e o princípio aparecem perfeitamente na linha da men­
talidade bíblica. Com efeito, biblicamente o começo aponta para o fim,
e o fim indica o que já estava apontado no começo. A noção bíblica
de verdade é dinâmica e orientada para um cumprimento na história,
do ponto de vista escatológico. Com freqüência se sublinhou o caráter
escatológico dos Doze, chamados a sentar-se sobre doze tronos para
julgar as doze tribos de Israel (Lc 22,30). Os apóstolos julgarão as
doze tribos sobre sua fidelidade àquilo que foi estabelecido e comuni­
cado no começo (importância do «fundamento»), pois o que foi tra­
zido por Cristo, A lfa e Ômega, e comunicado pelos apóstolos é a
substância da nova e eterna aliança. Em Cristo, Deus se comprometeu

8 Cf. a introdução de R . F. R e f o u l é ao Tratado da Prescrição de Ter­


tuliano = SourcesChr 46, Paris, 1957, 58s.
10E ’ a lógica de todo um conjunto de textos: Jo 17,7a; 20,21; M t 28,18ss;
Rom 10,13-17; lJo l,ls s; 2Tim 2,2; Ti 1,5.
u lClerii 42,ls ; IgnM agn 6; Ig n E f 3s; Tertuliano, Praescr., 21,4: «Id sine
dubio tenentem quod ecclesiae ab apostolis, apostoli a Christo, Christus a
Deo accepit»; cf. 37,1.
32 B. B o t t e , Histoire et Théologie. A propos du problème de l’Église :
«Istin a» 4 (1957), 389-400 (p. 393). Sobre as listas de sucessão, cf. o artigo
Bischofslisten: R A C II, 407s. Desde que os cristãos escreveram sua história,
viram esta como continuidade de um movimento de comunicação d a vida
divina, que, começada em Deus, se propagou pela terra, a partir de Cristo,
através dos apóstolos e da sucessão dos bispos. Assim, Eusébio: cf. S a l a r
v e r r i, Ee idea de tradición en la H istoria Eclesiástica de Eusebio Cesa-
riense: G r 13 (1932), 211-240.
SECQÃO IV: A IGREJA fi APOSTÓLICA 161

definitivamente com os homens e revelou e entregou os bens últimos


para a salvação. Pentecostes, quinquagésimo dia da Páscoa, assinala
a entrada nos tempos escatológicos (cf. A t 2,17). O apostolado, a apos-
tolicidade são precisamente o que une — interior e visivelmente —
a Jerusalém da Páscoa, na qual tudo teve seu começo (ef. Lc 24,46;
A t 1,4.8), com a Jerusalém celestial. O apostolado e a apostolicidade
enchem o tempo intermediário entre as duas vindas de Cristo e asse­
guram, pela graça do Espírito Santo, que os acompanham como sua
alma, a continuidade, a unidade do princípio e do termo.18 Aqui rea­
parecem idéias já evocadas a propósito da catolicidade, inseparável da
apostolicidade, como esta o é daquela. Trata-se sempre de realizar ou
de atingir a plenitude ou totalidade de Cristo. Desde agora podemos
pressentir que a apostolicidade não consiste numa pura estrutura ex­
terna, isto é, na identidade de doutrinas e instituições, mas, do mesmo
modo que a unidade da Igreja, no fato de a apostolicidade ter como
princípio interior o Espírito Santo.
Entre os numerosos textos antigos nos quais a Igreja se apresen­
tava como uma espécie de prolongamento dos apóstolos, citemos este
de Tertuliano antes de cair no montanismo:
« . . . Foi primeiramente na Judéia que eles (os apóstolos escolhi­
dos e enviados por Jesus) estabeleceram a fé em Cristo e começaram
a instalar igrejas. Depois se dispersaram pelo mundo e anunciaram às
nações a mesma doutrina e a mesma fé. Em cada cidade fundaram
igrejas, das quais a partir desse momento as outras igrejas receberam
o enxerto da fé, a semente da doutrina, e continuam a recebê-la todos
os dias para converter-se em igrejas. Por isso mesmo são consideradas
como apostólicas dado que são filhas das igrejas apostólicas. Todas
as coisas devem ser necessariamente caracterizadas por sua origem.
Por isso estas igrejas, por numerosas e grandes que sejam, não são
mais do que a primitiva igreja apostólica da qual todas procedem...,
a única tradição de um mesmo mistério».14

w Algum as referências para todo este parágrafo. Idéia bíblica, dinâmica,


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préhension de l’apostolicité de l’É glise: «Istin a» 14 (1969), 154-170. Sobre o
aspecto pneumatológico: segundo os antigos Padres, a apostolieidadr ou trans­
missão do ministério hierárquico é acompanhada de um a espécie de trans­
missão do Espírito Santo e, neste sentido, de «apostolicidade» pentecostal.
Cf. lC lem 42,3s; IgnF il 7; Ireneu, Adv. haer., III, 4, 2, e 24, 1 (P G 7,855.966;
SourcesChr 5,115ss e 398ss) ; Demonstr., 41 (SourcesChr 62, 96) ; Hipólito,
Philosophouanena, I, pról. 6 ( Y. C o n g a r, L a Tradition et les traditions, I:
E ssai historique, Paris, 1961, 52 e 102 [nota 52]; I I: E ssai théologique, Paris,
1963, 108s), e a oração para a consagração de um bispo: Trau. apost., 3.
Cf. também E. P e t e r s on, D ie Kirche, Munique, 1929; P . N a u t i n, Je
crois à l’Esprit-Saint dans la sainte Église pour la résurrection de la cilair,
Paris, 1947 ; Y . C o n g a r, Esquisses du mystère de l'Eglise, Paris, 21953,
129-179 (o Espírito Santo e o colégio apostólico realizadores d a obra de
Cristo).
“ T e r t u l i a n o , D e Praesc., 20, 4-7 e 9; cf. cap. 32; D e virg. veL, 2;
Scorp., 9. Cf. I r e n e u , Adv. haer., I, 10, l s (P G 7,549-533 [gre g o ] ; H arvey,
1, 90-93); III, 12, 7 (col. 901BC) ; V, 18, 2, e 20, 1 (col. 1173 e 1177), onde a
162 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

O termo «apostólico» foi inicialmente empregado em sentido mo­


ral, «conforme os apóstolos», como veremos mais adiante. Ireneu foi
o primeiro a expressar sistematicamente contra os gnósticos a idéia
já esboçada por Clemente de Roma de que a verdadeira doutrina devia
ser buscada na tradição recebida dos apóstolos pelos bispos ou pres­
bíteros estabelecidos por estes e que a transmitiram a seus sucessores
até ao presente.“ A idéia foi depois adotada por Tertuliano, que ba­
seia nela seu argumento de prescrição,“ e posteriormente pelo bispo
Cipriano, argumentando contra Novaciano," e, por último, pelos Pa­
dres dos séculos IV e V . 33

Ig re ja é comparada a uma semente que se propaga. Cf. também Clemente


de Alexandria, Strom., I, 1 (P G 8,702); Hipólito, Philosophoumena, pról.:
«Todos estes erros não têm outra refutação a não ser o Espírito Santo di*
fundido na Igreja, este Espírito, identicamente o mesmo, que os primeiros
apóstolos receberam e comunicaram aos que tinham a verdadeira fé. N ós
fomos constituídos seus sucessores, participantes do mesmo dom espiritual
do sacerdócio supremo e da doutrina, e como eles, guardiães da Ig re ja »;
Cipriano, Ep., 45, 3: «Unitatem a Domino et per apostolos nobis successoribus
traditam » (Hartel, 602); D e unitate, 5: «R am os suos in universam terram
copia ubertatis extendit, profluentes largiter rivos latius pandit, unum tamen
caput est et origo una».
Encontra-se a mesma idéia nos Padres dos séculos I V e V ; por exemplo,
Agostinho, Ep., 232, 3: «Praecisos a radice christianae societatis quae per
sedes apostolorum et successiones episcoporum certa per orbem propagatione
diffunditur» ( P L 33,1028), e também em Agostinho, a constante evocação de
Lc 24,47: incipiendo ab Hierosolyma. Cf. também Leão Magno, Sermo 64, 1
( P L 54,358B). Seria necessário citar também alguns dos textos patrísticos
que apresentam a missão como propagatio ou plantatfc» Ecclesiae. Estes
textos traduzem em geral a idéia de um a planta única, um a vide, por
exemplo, que se multiplica pela plantação de seus próprios sarmentos. Cf.
textos em A. S e u m o i s, L ’implantation de FÉglises particulières ou 1’idée
de mission chez les Pères grecs, em N ovella Ecclesiae Germina, Nim ega,
1963, 13-23.
A ind a na Idade Média, particularmente na luta contra as heresias anti-
eclesiásticas do século X II, se apresentava a Ig re ja como um a extensão da
fé apostólica: Pedro, o Venerável, Contra Petrobrusianos ( P L 189,738s); B er­
nardo, In Cant., sermo 30, 3 ( P L 183,934), uma vide única que se propaga
e se estende.
15«Traditionem itaque apostolorum in toto mundo manifestatam, in omni
ecclesia adest respicere omnibus qui vera velint videre; et habemus ennume-
rare eos, qui ab apostolis instituti sunt episcopi, et successores eorum usque
ad nos, qui nihil tale docuerunt neque cognoverunt, quäle ab his deliratur.
Etenim si recôndita mysteria scissent apostoli, quae seorsim et latenter a
reliquis perfectos docebant, his vel maxime traderent ea, quibus etiam ipsas
ecclesias com m ittebant.. . » (Adv. haer., III, 3, 1 [P G 7,848; Harvey, I I 8 ]).
«Iis qui in ecclesia sunt presbyteris oboedire oportet, his qui successionem
habent ab apostolis, sicut ostendimus; qui cum episcopatus successione cha­
risma veritatis certum secundum placitum Patris acceperunt; reliquos vero,
qui absistunt a principal! successione et quocumque loco eolligunt, suspectos
habere» (IV , 26, 2 [P G 7,1053; 236]). «Agnitio vera est apostolorum doctrina,
et antiquus ecclesiae status, in universo mundo, et character corporis Christi
secundum successiones episcoporum, quibus illi eam quae in unoquoque loco
est ecclesiam tradiderunt; quae pervenit usque ad nos custoditione sine fic-
tione scripturarum tractatio plenissima, neque additamentum neque ablatio-
nem recipiens; et lectio sine falsatione, et secundum scripturas expositio
legitima, et diligens, et sine periculo et sine blasphemia; praecipuum dilèc-
tionis munus, quod est pretiosius quam agnitio, gloriosius autem quam pro-
phetia omnibus autem reliquis charismatibus supereminentius» (IV , 33, 8
[P G 7,1077 ; 262]).
M]?raesc., 32 ( P L 2,44; Preuschen, 24).
” Cf. Ep., 69, 3 (Hartel, 752); outras referências em D T h C I, 1629.
13Cf. Optato de Mileve, II, 3 ( P L 11,947; C S E L 26,36); Atanásio, Ep. ad
Dracontium, 2-4 (P G 25,252s); Crisóstomo, In Eph, hom. 11, 5 (P G 62,86);
SECQÄO IV: A IGREJA É APOSTÖLICA 163

Somente neste momento aparece nos Símbolos o adjetivo «apostó­


lico» como uma das quatro propriedades da Igreja. O termo não apa­
rece no Símbolo batismal, do qual procede nosso «Símbolo dos apósto­
los», nem no de Nicéia,10 embora figurasse naquele tempo. E ’ encontrado
depois em Epifânio e no Símbolo que o Concílio de Calcedônia (451)
atribui àquele de Constantinopla (381).™
O fato de o Símbolo dos apóstolos não mencionar a apostolicidade
provavelmente permite explicar por que primeiro a Idade Média, de­
pois os reformadores do século X V I e mesmo os apologetas que lhes
responderam ou os catecismos da mesma época, falaram relativamente
pouco desta propriedade, já que ordinariamente seguiam o texto deste
Símbolo.
Todavia, a Idade Média tinha realmente uma idéia muito firme
daquilo que nós chamamos a apostolicidade, quer expressando-a, como
faz Tomás de Aquino, sob o nome de iiimitas, permanência e solidez
da Igreja constituída pela fé viva, pelo fato de ensinar a mesma dou­
trina dos apóstolos;“ quer insistindo sobre a apostolicidade do minis­
tério apresentada como a continuação na Igreja de certo tipo de minis­
tério. No século X II começa a se esboçar uma argumentação em favor
da Igreja católica baseada na nota de apostolicidade contra as seitas
antieclesiásticas. Nesse momento aparecem as primeiras tentativas, na
verdade bastante débeis, de uma argumentação apologética de vera
Ecclesia. “ E ’ sabido que no Ocidente, como no Oriente, o que levou
a criar tratados separados sobre a Igreja foi a necessidade de enfren­
tar as heresias.
Os reformadores protestantes e as novas confissões de fé não men­
cionaram no início a apostolicidade. “ Também os catecismos católicos
não o fizeram até o chamado do Concílio de Trento. “ Os apologetas
católicos, pelo contrário, primeiro timidamente e depois de maneira de-

Agostinho, Contra ep. quam vocant fuiulamenti, 4 ( P L 42,175); C. Eaustum,


X I, _2, e X X V III, 2 ( P L 42,246.485); Pelágio I I (em 585 ou 586), Ep. Dilec-
tionis vestrae ( P L 72,713s; D S 486s). Cf. outras referências em M. d’Herbigny,
op. cit. (nota 1), 196s.
m Encontra-se no decreto do concílio sobre o batismo dos hereges (D S
127). E já na carta de Alexandre de Alexandria, pouco antes do concílio,
a Alexandre de Teasalonica; texto de Teodoreto, Hist. Eccl., I, 3 (P G 82,887-
910). Cf. L. M. Dewailly, R S P h T h 32 (1948), 7.
“ Epifânio, Ancoratus, 118s (D S 42 e 44); concílio(D S 150). O Concílio
de Constantinopla não redigiu uma nova fórm ula de fé, mas parece ter
tomado, como expressão da fé de Nicéia, um texto diferente do de 325 e
próximo do Credo de Jerusalém e de Antioquia, texto que Calcedônia recebeu
como Símbolo do Concílio de Constantinopla. Cf. N . D. K e 1ly, E a rly
Christian Creeds, Londres, 1950, 296-331.
21Cf. Y. C o n g a r, fap o sto licité de M g lis e selon St. Thomas d’Aquin:
R S P h T h 44 (1960), 209-224.
- Ibit^., 211. Acrescente-se H u go de R u ão (de Am iens), D e Ecclesia
eiusque ministris, II, 1 ( P L 192,1276); Eckberto de S c h ö n a u , Sermones
contra Catíiaros, X ( P L 195,69s); Moneta de C r e m o n a , Summa adv. Ca-
tharos et Valdenses, V (ed. Ricchini, Roma, 1943, 402s). Cf. Y . C o n g a r ,
Histoire des doctrines ecclésiologiques. D e St. Angustin à nos jouis, Paris,
1970, 205s.
* Cf. J. Bainvel, D ThC I, 1322. Tam bém Calvino na Institution chrét
de 1541 (cap. 4; ed. Budé, II, 121s).
í4Cf. M. R a m s a u e r , D ie Kirche in den Katechismen: Z kT h 73 (1951),
129-169, 313-346.
164 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

cidida e sistemática, encontraram na apostolieidade um argumento mui­


to sólido contra as comunhões surgidas da Reforma.E Começa-se por
distinguir e salientar simultaneamente três aspectos: a apostolieidade
de origem, de doutrina, de sucessão hierárquica. Com o tempo, deixou-
se em segundo plano a apostolieidade de origem, tratou-se da doutrina
mais como uma nota negativa (sublinhando os pontos em que os refor­
madores não concordavam com a doutrina da antiguidade) e se pre­
feriu a argumentação pela apostolieidade de sucessão, insistindo cada
vez mais na sucessão romana.
Este argumento baseado na apostolieidade demonstrou-se freqüente­
mente eficaz. Os protestantes não conseguiram evitá-lo sem sacrificar
não pouco a visibilidade iormal da Igreja. Os que aceitam esta visi­
bilidade formal e conservaram ou recuperaram a idéia de uma insti­
tuição de salvação e de um ministério dos meios de graça, ligado aos
apóstolos e ao Verbo encarnado por uma descendência contínua e per­
ceptível, são sempre sensíveis ao argumento de apostolieidade. Mesmo
a prova de prescrição, ligada ao anterior, conserva seu valor.M Os
protestantes, atacados no século X V II por uma argumentação que se
referia não somente à apostolieidade de ministério, mas também à dou­
trina (recordemos as Perpetuidades e a História das Variações de Bos-
suet), haviam acabado por devolver a este último argumento ao cato­
licismo denunciando suas mudanças. E ’ sabido como Newman, depois
de ter compartilhado estas objeções, respondeu a elas com a idéia do
desenvolvimento. A partir deste momento, o argumento da apostoliei­
dade, isto é, pela identidade da doutrina através dos tempos, recuperou
toda a sua força. A conversão de Newman se deve essencialmente a
este argumento, ao mesmo tempo que ao da catolicidade. Desde então,
além disso, a identidade necessária para a apostolieidade de doutrina
estava libertada da insustentável obrigação de ser uma identidade ma­
terial de todas as formas externas.

3. Teologia da apostolieidade

Não nos deteremos na apostolieidade de origem, já que o mais trans­


cendente desta idéia aparece na apostolieidade de doutrina e de minis­
tério. A apostolieidade de origem era a forma que freqüentemente
assumia a argumentação elaborada contra os protestantes nos séculos
X V I e X V II: sua Igreja remontava a Lutero, a Calvino..., ao passo
que a verdadeira Igreja remontava aos apóstolos, tendo sido fundada
por eles. E ’ evidente, contudo ■— e o erro dos protestantes não estava
em responder a isto, — que não basta uma descendência e uma conti­
nuidade puramente histórica e material; há necessidade de uma homo­
geneidade formal, para a qual, em última análise, é condição indispen-

25Cf. J. B a i n v e l , D T h C I, 1623; G. T h i l s , op. cit. (nota 1), 255-286.


26Cf. L. B r u g è r e , D e Ecclesia, Paris, “1877, 134; A. de P o u l p i q u e t ,
op. cit. (nota 1), 249s; E. Carton de W i a r t , L ’Eglise. Sa n a tu re ... Sa
hiérarchie, Bruxelas, 1931, 29; Ch. J o u r n e t , L ’Église du V erbe incarné, I,
Paris, 1941, 650-667.
SECÇÃO IV: A IGREJA fi APOSTÓLICA 165

sável a apostolicidade de doutrina. Toda a teologia da apostolicidade


é dominada pelas relações que é preciso reconhecer entre sucessão pura­
mente histórica e apostolicidade de ministério de uma parte, e fidelidade
ou apostolicidade de doutrina de outra. E ’ por isso que a questão está
tão estreitamente ligada e aparentada com a da tradição.27 Como se
exprime com muito acerto J. Ratzinger, a sucessão é a forma da tra­
dição; a tradição é o conteúdo da sucessão.

a) A sucessão apostólica™

O que dissemos até aqui e o que falta dizer mostra que a apos­
tolicidade da Igreja não se reduz ao problema da sucessão apostólica.
Todavia, ambas as coisas estão estreitamente associadas. Não há dú­
vida de que o ponto nevrálgico do atual debate ecumênico tem sua
raiz no lugar em que se articula esta associação. Assim, pois, abordar
o problema da sucessão apostólica na perspectiva da apostolicidade
é ir ao fundo do problema.
Que os bispos sejam «os sucessores dos apóstolos» é um fato afir­
mado de tal forma pela tradição e pelo magistério extraordinário, que
se impõe como um dado de fé .a Todavia, a fórmula exige algumas
precisões, de resto comumente admitidas pela teologia católica.

“’ Cf. Y. C o n g a r , L a Tradition et les traditions, I: E ssai historique;


II : E ssai théologique, Paris, 1961 e 1963.
28Abundante bibliografia. Citemos somente K. E. K i r k (ed.), The Apos­
tolic Ministry, Londres, 1946; L. M. D e w a i l l y , Mission de I’JSglise et Apos-
tolicité: R S P h T h 32 (1948), 3-37 (reproduzido em Envoyés du Père. Mission
et Apostolicité, Paris, 1960); A. E h r h a r d t , The Apostolic Succession in the
F irst two Centuries o f the Church, Londres, 1953; H . von C a m p e n h a u s e n ,
Kirchliches A m t und geistliche Vollmacht in den ersten drei Jahrhunderten,
Tübingen, 1953; O. K a r r e r , Apostolische N achfolge und Prim at. Ihre bibli­
schen Grundlagen im Lichte der neueren Theologie: Z kT h 77 (1955), 129-
168; A. M. J a v i e r r e , L e thème de la succession des Apötres dans la
littérature chrétienne primitive, em L ’Episcopat et M g lis e universelle, P a ­
ris, 1962, _ 171-221; id., E l tema literário de la sucesión, Zurique, 1963; id.,
Orientación de la doctrina clásica sobre la sucesión apostólica: «Concilium»
n. 34 (1968), 19-30; J. S a l a v e r r i , Sucesión Apostólica y singularidad de
misión de «los D oce»: R E T 27 (1967), 245-269.
29A idéia já se encontra (sem a p alavra) em lC lem 42; com Ireneu já
estamos muito próximos d a expressão (Adv. haer., III, 3, 1 [P G 7,848; Harvey,
II, 81): «eos qui ab apostolis instituti sunt episcopi, et sucessores eorum
usque ad nos», onde os sucessores são os sucessores dos bispos, mas dos
bispos instituídos pelos apóstolos; cf. a propósito de Policarpo, IH , 3, 4 (P G
7,851; H arvey, II, 12); isso permite fa la r de uma «successio ab apostolis»
(IV , 26, 2 [P G 7,1053; H arvey, II, 236]). P a ra Ireneu, os apóstolos instituíram
bispos; assim, Policarpo em E sm im a: Adv. haer., III, 3, 4 (P G 7,851; Harvey,
II, 12). Tertuliano, Praesc., 32: «E volvan t ordinem episcoporum suorum, ita
per successiones ab initio occurrentem, ut primus ille, episcopus aliquem ex
apostolis, vel apostolicis viris, qui tamen cum apostolis perseveraverit, habue-
rit auctorem et antecessorem. . . » ( P L 2,44); Preuschen, 24). Hipólito, Philoso-
phoumena, I, pról. 3: os bispos «diadocos»; Trad. Aposfc, 3: SourcesChr
(Botte) 27s, com a evocação de At, 1,24. Proliferam em Cipriano testemu­
nhos que chegam a insinuar um a identidade de função: «apostolos, id est
episcopos» (E p. 3, 3 [H artel, 471]); «Christi, qui dicit ad apostolos ac per
hoc ad omnes praepositos, qui ab apostolis viçaria ordinatione succedunt»
(E p. 66, 4 [729]); «ordinatione succedanea» (Ep. 69, 5 [602, 1 9 ]); cf. Claro
de M ascula no Concílio de Cartago, de setembro de 256: «quibus successimus
eadem potestate ecclesiam Dei gubem antes» (Sent. 79 [H artel, 275]), e F ir-
miliano de Cesaréia: «episcopis qui eis (apostolis) ordinatione viçaria succes-
166 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

A primeira precisão é exigida por aquilo que dissemos sobre os


diferentes usos neotestamentários da palavra «apóstolo». Trata-se dos
Doze e de Paulo, que foi equiparado a eles sem deixar de ser um caso
singular cheio de significação; trata-se daqueles aos quais o Senhor
confiou o encargo e a missão pelos quais, de simples testemunhas do
Ressuscitado — propriedade que compartilhavam com mais de quinhen­
tos irmãos (IC or 15,6), ■— passaram a ser os fundamentos da Igreja
(Apc 21,14).

b) Diferenças entre apostolado e episcopado®’

a) Os apóstolos cumpriram duas funções: 1) Foram testemunhas


daquilo que o Senhor Jesus fez por nossa salvação, são especiais teste­
munhas de sua ressurreição; como tais, receberam o encargo de fundar
igrejas mediante a pregação do evangelho. A tarefa de ser testemu-

serunt» (em Cipriano, Ep. 75, 16 [821]); Orígenes conhece a referência do


poder de ligar e desligar à sucessão dos apóstolos: D e orat., 28, 8 íKoetschau,
381) ; Basílio, Ep. 197 (P G 32,709) : Ambrósio foi elevado pelo Senhor à cá­
tedra dos apóstolos; Crisóstomo une a seu comentário da eleição de Matias
um breve «espelho do bispo» (In Act, hom. 3, 4s [P G 60,38-42] ) ; Epifânio,
Adv. haer., 27, 6 (P G 41,372s). Jerônimo, Ep. 41 e 146 ( P L 22,476.1194); In
Mich., I, 2 ( P L 25,1172), e Agostinho, En. in P s 44, 32 ( P L 36,313), aplicam
aos bispos o Salmo 44,17: «pro patribus tuis nati suntr tibi filii», exegese
aceita pelo Pseudo-Jerônimo (Paulo Diácono [? ], Brev. in P s [P L 26,1018A])
e também por Pedro Crisólogo (Sermo 130 [P L 52,356s]). Paulino de N o la
escreve a Alípio, nomeado bispo de Tegaste em 396: «te principalem cum
principibus populi sui sede apostolica merito conlocavit» (E p. 3, 1 [H artel,
14]). Sobre os papas do século V, cf. R S P h T h 19 (1965), 400s. Cf. também
Isidoro, D e eccles. off., II, 5, 6 ( P L 83,782). Tomás de Aquino em prega fre­
qüentemente a expressão «episcopi successores apostolo rum: I V Sent., d. 7,
q. 3, a. 1, qa. 2; Quodl., X I, 7; S. Th., III, q. 67, a. 2 ad 1; q. 72, a , 11a;
C. Impugn., c. 4; D e perfect, vitae spir., capítulos 16, 18, 26. Textos do ma­
gistério: Concílios de Paris (829), cap. 4 (Mansi, 14,538); de Florença (D S
1318) ; de Trento, ses. X X III, cap.4 (D S 1768) ; Vaticano I, ses. IV , cap. 3
(D S 3061); Vaticano II, Lum en Gentium, 18 e 20 (que cita Leão X I I ) ; Pio
X II, Mystici corporis (A A S 35 [1943], 209 e 212).
“ Im plícita já em Ireneu; cf. E. L a n n e, L e ministère apostolique dans
l’oeuvre de St. Irénée: «Irénikon» 25 (1952), 113-141. A distinção é clássica
e foi freqüentemente evocada pelo Concílio Vaticano I. Pode-se ver, por
exemplo, entre os teólogos antigos, Belarmino, D e Rom. Pontífice, I, c. 9,
I l s ; IV , c. 23ss; Suárez, D e S. Pont., sect. 1-4, c. 13, n. 9 (Opera, X X I V
[ed. Vivès, 1858], 270). N o século X IX , Passagflia e Schrader (cf. W .
K a s p e r , Die Lehre von der Tradition in der Römischen Sehule, Friburgo>,
1962, 318); Mons. Place (cf. Mansi, 51, 946C). Entre os contemporâneos, cf.
B. Bartm ann, Dogm atik, I I (81932), 157; Ch. J o u r n e t , L ’É glise du Verbe
incarné, I, Paris, 1941, 135s, 463s, 466s, 582; id., Prim auté de Pierre dans la
perspective protestante et dans la perspective catholique, Paris, 1953, 65s; O.
K a r r e r , U m die Einheit der Christen. D ie Petrusfrage, Francfort, 1953,
143; F. J i m é n e z , Fundamentos teológicos de la distinción de potestades
de los apostoles en ordinarias y extraordinarias y de por que los obispos
suceden en unas y no en otras, em X V I Semana E spanola de Teologia»
Problem as de actualidad sobre la sucesión apostólica, Madrid, 1957, 275-343;
G. M a r t e l e t, Eléments transmissibles et intransmissibles dans la succession
apostolique: «V erbu m C aro» 15 (1961), 185-198; P. G r e l o t , L a vocation mi­
nistérielle au service du peuple de Dieu, em J. G i b l e t e outros, A u x origines
de l’Église = Rech. Bibi. V II, Paris, 1965, 159-173 (cf. 164)_. Poderíamos citar
mais de um testemunho de teólogos protestantes que estão de acordo com
os anteriores; assim, Ph.-H. M e n o u d , L ’É glise et les ministères selon le N T ,
Neuchâtel, 1949; W . Pannenberg, op. cit. (nota 13), ou os trabalhos do Con­
selho Ecumênico (Relatório da Secção européia sobre Cristo e a Igreja,
preparada com vistas à Conferência de Fé e Constituição, Montreal, 1963).
SECÇÃO IV: A IGREJA S APOSTÓLICA 167

nhas está vinculada ao elemento histórico, único e concreto da encar­


nação do Filho de Deus. Com vistas ao encargo de fundar a Igreja,
essa tarefa está unida aos carismas extraordinários da revelação e da
inspiração. 2) Os apóstolos foram mestres e pastores das igrejas por
eira fundadas.
Quanto à primeira função, os bispos não são sucessores dos após­
tolos. Esta tarefa estava ligada às pessoas dos apóstolos, ao fato irre-
petível da encarnação e à vida terrena das testemunhas. A sucessão
dá-se somente na segunda função, mas sem que haja identidade total.
No sentido estrito, os bispos não são tanto os sucessores dos apóstolos
como tais quanto os primeiros ministros postos pelos próprios após­
tolos (ou por um deles) para reger (apascentar) as igrejas por eles
fundadas. Esta é, sem dúvida, a razão pela qual as mais antigas listas
episcopais não contam o apóstolo fundador como primeiro bispo.81 Se
Turtuliano insinua que a lista da sucessão romana começa com Pedro“
e Hipólito diz que o papa Víctor era o décimo terceiro bispo «a partir
de Pedro»,33 é porque desde aquele momento a atenção se dirige à
função e à autoridade episcopal como tal. Em Cipriano sublinha-se
fortemente a colegialidade da autoridade dos bispos e dos apóstolos. “
Assiste-se assim a uma clara mudança de acento com relação às afir­
mações mais antigas. De qualquer forma, sejam quais forem as vicis­
situdes pelas quais tenha passado a idéia ao longo da história, é
doutrinalmente certo que a sucessão episcopal não se baseia na função
própria do apostolado de fundar novas igrejas, mas numa autoridade
de ministério orientada para a direção pastoral das igrejas fundadas.
Tal autoridade deriva da dos apóstolos (M t 28,18ss),. que incumbiram
os primeiros ministros de tal tarefa.
P) Nem sequer este ministério é totalmente igual ao dos apóstolos.
Os bispos, mesmo considerados como colégio, com o sucessor de Pedro
à testa, não possuem o carisma de revelação que permitia aos apósto­
los constituir uma tradição normativa. Os bispos estão sujeitos à tra­
dição. De resto, é preciso distinguir: se se considera cada bispo iso­
ladamente, excetuado o caso particular do Bispo de Róma, não goza,
como acontecia com os apóstolos, do carisma pessoal de infalibilidade
no ensinamento e no testemunho, nem de uma autoridade de governo
de extensão universal. Pelo contrário, o corpo ou colégio dos bispos
tem, como o colégio dos apóstolos, a plenitude da autoridade sobre

a Adv. haer., III, 3, 3: «Depois de ter fundado e edificado a Ig re ja (é


a prim eira função dos apóstolos), os bem-aventurados apóstolos (Ped ro e
P a u lo) transmitiram a Lino o cargo do episcopado. . . Anacleto lhe sucedeu.
Depois dele, em terceiro lu gar a partir dos apóstolos, recaiu em Clemente a
Ejjiskopé» (P G 7,849; Harvey, II, 9). U m pouco antes, Ireneu falou de Pedro
e Paulo evangelizando e fundando a Ig re ja em R om a ( U I , 1, 1 [P G 7,844;
p. 2: temos estas duas passagens em g re g o ]). Cf. também E. L a n n e , L e
ministère apostolique dans 1’oeuvre dTrénée: «Irénikon» 25 (1952), 113-141.
“ Praesc., 32, cerca do ano 200 (PL. 2,44; Preusehen, 24; Kroymann,
CSELi 70, p. 49, 1, 10s).
“ Citado por Eusébio, Hist. EccL, V , 21, 3.
51Cf. textos citados supra, nota 29. Sobre as listas posteriores d a suces­
são romana, que incluem. Pedro n a lista como primeiro e já não falam de
Paulo, cf. P. B a t i f f o 1, Cathedra Petri, Paris, 1938, 169s, 173.
168 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

a Igreja universal, e nos atos em que julga ou ensina formalmente


uma verdade como pertencente ao depósito da revelação também goza
de infalibilidade.
y) Finalmente, nenhum bispo individualmente sucede a um apósto­
lo em particular — salvo o Bispo de Roma a Pedro, e no sentido
histórico da sucessão, alguns bispos, como o de Jerusalém a Tiago,
o de Alexandria a Marcos, etc., — já que a sucessão (na autoridade
do ministério) é uma sucessão de colégio a colégio, de grupo estável
e estrutural a grupo constituído.05 Por isso cada bispo (na ordem do
ministério ou pastoral) é sucessor dos apóstolos.
ô) Procuremos interpretar em conjunto a relação entre bispos e
apóstolos e para isso consideremos sua relação respectiva com o Se­
nhor Jesus. Jesus é a realidade e a plenitude do nome de Deus; não
uma simples promessa, não meramente Palavra de Deus, mas a Pala­
vra feita carne, cheio de graça e de verdade. E ’ sabido que esta rea­
lidade é a que os Padres designaram com o nome de «evangelho».
Orígenes define este termo como «tudo aquilo que estabelece a vinda
de Cristo e organiza sua presença, tornando-o efetiva para as almas
que aceitam receber o Verbo de Deus quando se detém à sua porta,
chama e quer entrar nela».133 Toda a revelação, toda a Escritura
estão relacionadas com Jesus Cristo: o que é próprio do evangelho
é anunciá-lo e comunicá-lo como já vindo.
Mas este Cristo que já veio deve vir ou vir de novo: vir para
onde ainda não chegou; voltar de novo para julgar o mundo e ofe­
recer ao Pai tudo, uma vez que esta totalidade lhe tenha sido sub­
metida (IC or 15,28). Durante sua vida no mundo vemos Jesus enviar
os 72 discípulos aos lugares aos quais ele mesmo devia vir (L c 10,1).
E ’ verdade que nesta passagem não se trata dos apóstolos, mas o
que procuramos no texto é a simples referência a uma idéia. A missão
é relativa à vinda de Jesus. Depois da glorificação do Senhor, a missão
será relativa, ao mesmo tempo, à sua vinda já realizada e à segunda
vinda para todo o mundo. O episcopado e o apostolado têm em co­
mum o fato de corresponderem a uma missão e de se referirem a
uma condição ao mesmo tempo de presença e de ausência. Um e
outro devem tomar presente o Senhor ausente depois que ele veio de
alguma forma e com vistas à sua volta. Trata-se em ambos os casos
de realizar a presença ativa do Senhor ausente: é um vicariato, o exer­
cício de uma mesma autoridade, de uma mesma ação, de uma mesma
missão, mas por meio de outras pessoas." Todavia, o apostolado e

35E ’ a doutrina ensinada pelo Vaticano I I : L u m e s Gentlum, 22. Que a


doutrina não é nova pode-se ver por estas duas amostras, entre outras mui­
tas: A. von H a r n a c k , Christus praesens. Viearius Christi = S A B 34 (1927),
415-446 (cf. p. 429: « N a equação ‘Cristo = apóstolos = bispos’ os dois últi­
mos membros devem ser entendidos em sentido co le tiv o ...»). M. d’Herbigny,
op. cit. (nota 1), tes. Xs, 170-202.
“ Com. in Jo, I, 4 (6) (P G 14,31s; GCS 26,9). Cf. o que Ireneu diz sobre
a «potestas evangelii» (Adv. haer., III, pról.). Cf. E. L a n n e , loc. cit. (nota
31).
31Isto é o que implica de form a evidente o final de M t 28,18ss. P o r
isso causa estranheza que K . H . Rengstorf tenha podido escrever um inte-
SEOÇAO IV: A IGREJA Ê APOSTÓLICA 169

o episcopado se nos apresentam em condições diferentes, e o próprio


episcopado toma formas diversas, segundo seja considerado na época
dos apóstolos ou depois de sua morte.
O apostolado realiza a presença do Senhor, que veio cheio de
graça e de verdade, mas que atualmente está na glória: o apostolado
põe Jesus Cristo como fundamento (cf. ICor 3,10). Para isso foram
escolhidos, consagrados e enviados os apóstolos pelo próprio Senhor.
Os bispos, por seu lado, são-no através de uma mediação. Durante a
vida dos apóstolos, os bispos foram eleitos, consagrados e instituídos
por eles, com a cooperação da comunidade e, de modo especial, do
Espírito Santo. Devia representar o apóstolo ou apóstolos durante
sua ausência à testa das comunidades fundadas por eles; por essa
missão eram responsáveis diante do apóstolo. As cartas pastorais,
assim como ascartas do Apocalipse e mesmo a terceira carta de João,
dão testemunho deste estado de coisas. O N T, por sua própria natu­
reza, não conhece nenhuma outra situação. Pedir-lhe que fale de algo
que se deu depois do desaparecimento dos apóstolos, e portanto depois
de sua própria composição, é buscar num texto aquilo que não pode
dar ou tomar os escritos circunstanciais do N T por um texto jurídico-
constitucional quando não são mais do que testemunhos de situações
concretas.
Depois do desaparecimento dos apóstolos, os bispos realizam a
presença do ministério apostólico — e, através dele, do próprio Se­
nhor — à testa das comunidades, que presidem em lugar dos apósto­
los, necessariamente ausentes até que voltem com o próprio Senhor
para julgar, separar, coroar na glória (cf. Mt 19,28; Lc 22,30; Apc
20,4). Portantoos bispos são, por sua vez, portadores da presença
ativa do Senhor durante sua ausência física. Por isso não é estranho
que, a partir do final do século IV, primeiro no Oriente e depois em
Roma e nas Gálias, a imposição do livro dos evangelhos sobre o novo
eleito expressasse o sentido profundo da consagração de um bispo.38

c) Prova histórica e escriturística da «sucessão apostólica»

Pretendeu-se, às vezes, assinalar uma origem grega à idéia de


sucessão apostólica. Tal pretensão significava desconhecer o fato, posto
hoje em evidência de todos os pontos de vista, da continuidade exis­
tente entre a Igreja e as idéias e instituições judias. Houve quem

ressante estudo, do qual nos servimos aqui em parte, sem evocar este
texto: W . Zoellner e W . Stahlin (eds.), D a s W o rt Gottes und die apostolische
Sukzession, Berlim, 1937, 187-203. Sobre esta idéia de representação e viea-
riedade (to m ar presente e ativo), cf. A. von H arnack, op. cit. (nota 35).
Observar-se-á que não recorremos à noção, bastante controvertida, de saliah.
A parte certa de verdade que comporta inscrever-se-ia, evidentemente, aqui:
o enviado representa (to m a presente) quem o enviou. A s expressões patrís-
ticas e medievais vicem agere, agere in persona, etc., têm o mesmo valor.
Seriam necessárias muitas páginas para dar as referências a este propósito.
Remetemos somente ao começo do estudo de M. M a c c a r r o n e , V icaiius
Christi. Storia dei titolo papale, Roma, 1952.
38Referências em Y . C o n g a r , Tradition, I I (nota 27), 45, 276s.
170 CAP. Y: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

quisesse ver nela uma idéia tirada da gnose; de fato, as expressões


«tradição dos apóstolos» e «por via de sucessão» aparecem pela pri­
meira vez pelo ano de 165 na carta de Tolomeu a Flora.® De acordo
com isso, os doutores cristãos (Ireneu) simplesmente tinham tirado
suas armas de seus adversários. Pode-se admitir que a necessidade
de responder à pretensão dos gnósticos de ensinar uma doutrina rece­
bida por tradição dos apóstolos incitasse Ireneu a formular sua teo­
logia da sucessão e da apostolicidade. Mas não se pode esquecer dos
dois relevantes fatos seguintes: 1) A idéia de transmissão por suces­
são era corrente tanto no mundo pagão (escolas de filosofia, cons­
tituições políticas) como no judeu, a ponto de se apresentar à mente
como uma categoria normal. 40 2) Como vamos ver logo, esta idéia
estava implicada nos fatos e nos textos desde os próprios apóstolos.
Isto explica um terceiro fato, que também tem seu valor: ninguém
jamais pôs em discussão’ o princípio da sucessão apostólica — de
tal modo parecia inscrito na própria trama do cristianismo — antes
de ser formulado como um de seus princípios constitutivos.c A rea­
lidade precedeu a fórmula e a teoria.
No tempo dos apóstolos deve-se distinguir entre um período, no
qual se julgava iminente a volta do Senhor, de maneira que quase
não existia a preocupação de prever e organizar o futuro das igrejas,
e outro em que os apóstolos, conscientes de que logo iriam morrer
e já se vislumbrava a ameaça de divisões e de falsas doutrinas, esta­
beleceram estruturas ministeriais capazes de assegurar, depois deles,
a permanência de sua obra.42 Dispomos de indicações suficientes a
este respeito embora a documentação esteja cheia de lacunas e só
seja realmente conhecida para o tempo que mais nos interessa a ati-

® E m Epifânio, Adv. haer., 33,7 (P G 41.568BC ; ed. e comentário de G.


Quispel, SourcesChr 24, Paris, 1949). E sta explicação é patrocinada atual­
mente por H . von C a m p e n h a u s e n , Kirchliches A m t und geistliche V oll­
macht in den ersten drei Jahrhunderten, Tübingen, 1953.
40A informação sobre estes antecedentes, que constituem um a espécie de
meio ideológico, foi realizada por A. M. J a v i e r r e, E l tema literário de la
sucesión en el judaísmo, helemsmo y cristianismo primitivo = Bibl. Teol.
Sales. 1, Zurique, 1963. Tínhamos já, sobre os antecedentes judeus, E. K o h l -
m e y e r, Z u r Ideologie des ältesten Papsttums, em Sukzession und Tradition
(Hom. P. Kattenbusch), 1931, 230s; id., K arism a oder Recht? V om W esen
des ältesten Kirchenrechts: «Zeitschr. f. Rechtsgesch.» 69, K a n Abt. 28 (1952),
ls. A. Ehrhardt destacou o precedente da sucessão do sumo sacerdote judeu
(op. cit., nota 28).
41Cf. H. B urn-M u r d o c h, Church, Continuity and Unity, Cambridge, 1945,
77s, 113s, 150.
42P a ra o seguinte, cf. J. C o 1s o n, L es fonctions ecclésiales aux deux
premiers siècles, Paris, 1956; id., L a succession apostolique au niveau du 1 er
siècle: «V erbum C aro» 15 (1961), 138-172; id., L e ministère apostolique dans
la littérature chrétienne p rim itive..., em L ’Épiscopat et l'Église universelle,
Paris, 1962, 135-169; A. M. J a v i e r r e , op. cit. (nota 40); id., L a sucesión
primacial y apostólica en el Evangelio de M a t e o ...: «Salesianum » 20 (1958),
27-71 (e folheto: estuda M t 16,18s e 18,18s) ; id., Cuestiones debatidas hoy
entre católicos y protestantes en tom o de la sucesión de los apostoles, em
X V I Semana Espanola de Teologia, M adrid, 1957; id., 1 « thème de la succes­
sion des Apôtres dans la littérature chrétienne primitive, em L ’Êpiscopat et
l ’Église universelle, 171-221. Entre os protestantes: Ph. H . M e n o u d, L ’Église
et les ministères selon le N T , Paris, 1949; P, B o n n a r d , L e N T connaît-il
la transmission d’une fonction apostolique?: «V erbu m C aro» 15 (1961), 132-137.
SECÇÃO IV: A IGREJA É APOSTÓLICA 171

vidade de São Paulo, circunstância que faz com que só se possa obter
uma relativa claridade a partir dos textos do NT. Repitamos, de resto,
esta observação importante: os textos do N T procedentes dos após­
tolos logicamente só nos falam da situação existente durante sua
vida. Procurar neles enunciados formais sobre posteriores situações
seria tomá-los como textos constitucionais, coisa que não são, e pedir-
lhes indicações que naturalmente não podem dar. A aplicação neste
caso de um princípio como a Scriptura sola é fatalmente decepcionante
em virtude da própria natureza das coisas que se ventilam. Em todo
caso, os católicos sustentamos que a realidade supera os textos, so­
bretudo quando estes são tão ocasionais como as epístolas. Operou-se
uma transmissão total da realidade dos ministérios que estruturam a
Igreja, para além daquilo que os textos possam indicar-nos sobre o
tema. Esta transmissão se realizou, como ainda se verifica agora,
segundo um modo real, que pertence mais à tradição do que à Escri­
tura. 43
Qualquer que seja a data em que foram fixados, os textos de
Mt 28,18ss e A t 1,8 traduzem a consciência que a Igreja tinha de
realizar uma missão recebida nos Doze e mais tarde de modo par­
ticular também em Paulo por um mandato do Senhor. O mandato ou
a missão comporta uma tarefa a realizar, acompanhada dos meios
necessários para seu cumprimento. Estes meios estão fundamentados
no poder (êlouoía) de Cristo e em sua presença com os apóstolos. A
presença durará até o fim da história, já que a tarefa supera o espaço
e o tempo. Quais seriam este espaço e este tempo? Mesmo se o tempo
tivesse que ser breve, o espaço exigiria uma multiplicação da autori­
dade pastoral. Assim vemos que Paulo estabelece presbíteros nas co­
munidades que funda em Listra, Icônio, Antioquia (A t 14,23) e talvez
também em Éfeso (20,17.28). Vemo-lo também cuidar de que alguns
ministros supervisionem o andamento de um conjunto de comunidades
locais em nome e no lugar do Apóstolo, de quem estes ministros são
associados e delegados. Tal parece ser a função de Tíquico, de Arte-
mas, de Epafras, de Tito em Creta e de Timóteo em Éfeso.41

“ Sobre isto cf. Y . C o n g a r, op. cit. (nota 27), sobretudo II, 111-136.
Repitamos mais um a vez uma observação importante. O princípio da Scriptura
sola dá forçosamente e com prioridade a palavra aos exegetas. Estes certa­
mente têm muito a nos ensinar. Todavia, estão apegados às palavras e cor­
rem o risco de não querer nada além das próprias palavras. Ora, às vezes
sucede que uma realidade está presente sem a palavra pela qual a desig­
namos: «g ra ç a » ('/ápiç) nunca aparece nos evangelhos, nos lábios de Jesus;
«Ig r e ja » não se encontra em l P d r . .. Assim, por exemplo, K . H . R e n g s t o r f ,
op. cit. (nota 37), não cita M t 28,18ss a propósito de nosso problema: as
palavras não se encontram no texto, mas sim na realidade.
1,4«Parece que a presença de um ou outro destes delegados apostólicos
é indispensável, já que Tito não poderá deixar seu posto em Creta e reunir-
se com Paulo a não ser quando Ãrtemas ou Tíquico tiverem vindo para
substituí-lo (T i 3,12), e Paulo, ao chamar Timóteo paxa que se reúna com
ele, tem o cuidado de enviar Tíquico em seu lugar a Éfeso (2Tim 4,9.12).
Notemos tam bém que E pafras, companheiro de serviço (oúvôouXoç) de Paulo
e que ajuda ou supre o Apóstolo entre os colossenses (Col 1,7), vela tam­
bém sobre as comunidades de Laodicéia e de Hierápolis (Col 4,12s). Já é o
embrião de um a função geral na linha de Timóteo, Tíquico ou Ártemas.
D a mesma forma, o autor d a carta aos Hebreus, colega de Timóteo (13,23),
172 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Mas chega um momento em que os apóstolos (Paulo) conside­


ram mais ou menos próximo seu desaparecimento. Vêem chegar e
crescer, ao mesmo tempo, os perigos de falsas doutrinas, de dissensões,
de provas temíveis.45 Portanto, outros deverão assumir depois de sua
morte a tarefa que eles haviam desempenhado na direção das comu­
nidades e na conservação da norma e pureza de seu ensinamento (Rom
6,17; ITim 1,13). São os bispos ou presbíteros de Éfeso que Paulo
convoca em Mileto, convicto de que não os tomará a ver (A t 20,17-35),
e, sobretudo, Tito e Timóteo, a quem o próprio Paulo havia imposto
as mãos com todo o colégio dos presbíteros (2Tim 1,6; ITim 4,14).
Estes não só terão que permanecer pessoalmente firmes na sã doutrina
e «conservar o depósito»,48 mas além disso deverão assegurar a con­
tinuidade da obra apostólica: instituir presbíteros locais (T i 1,5) apoian-
do-se numa autoridade superior à sua própria (IT im 5,17-22), trans­
mitir-lhes a doutrina (2Tim 2,2), escolhendo pessoas capazes de trans­
miti-la também retamente (T i 1,9; 2,1.15): «O que aprendeste de
mim com o testemunho de numerosas testemunhas confia-o a homens
seguros, capazes por sua vez de instruir outros». Esta instituição se
realizará pela imposição das mãos, como se havia feito com o próprio
Timóteo (IT im 5,22 e 4,14). Podemos concluir com Ph. Menoud: «Sen­
do o apostolado também o ministério da edificação da Igreja, deve
ter continuidade, como prova o exemplo de um Timóteo ou um Tito
e o dever prescrito a Timóteo de assegurar-se sucessores».47
As cartas pastorais datam de 65-67, se foram redigidas por ditado
de Paulo; se foram redigidas mais tarde sob a forma em que as pos­
suímos, datarão de fins do século I. E ’ historicamente legítimo rela­
cionar com elas as conhecidas e capitais passagens de Clemente de
Roma, que foram escritas por volta do ano de 96:
1 Ciem 42: 1. «Os apóstolos nos anunciaram a boa-nova dia
parte de Jesus Cristo. Jesus Cristo foi enviado por Deus». 2. «Cristo
vem, pois, de Deus e os apóstolos de Cristo. Assim, pois, esta dupla
missão, com sua ordem, procede da vontade de Deus». 3. «Providos
das instruções de Nosso Senhor Jesus Cristo, plenamente convencidos
por sua ressurreição, e confirmados em sua fé na palavra de Deus,
os apóstolos iam, cheios de segurança que o Espírito Santo dá, anun­
ciar por todas as partes a boa-nova da vinda do reino dos céus».
4. «Por aldeias e cidades, os apóstolos proclamavam a palavra, e assim
obtiveram suas primícias, e, depois de ter comprovado qual era seu
espírito, os bispos e diáconos dos futuros crentes». . .

não fa la como simples presbítero: dá mostras de um a autoridade apostólica


e impõe aos destinatários de sua carta a obediência aos dirigentes de sua
comunidade local (13,17ss). O autor da terceira carta de João, se não é o
filho de Zebedeu, é um ‘ancião’ (João, o Presbítero), no sentido amplo do
termo, que tem autoridade espiritual sobre a comunidade local na qual
Diotrefes ocupa um lugar que tem todos os traços do episcopado monár­
quico» (R . P a q u i e r, I/Épiscopat dans la síructure institutioimelle de
TEglise: «V erbu m C aro» 13 [1959], 29-62).
“ IT im 1,3-7; 4; 2Tim 4,3ss.
" IT im 4,12-16; 6,20; 2Tim l,13s; 2,15; 3,14-4,5.
K Op. cit. (nota 42), 54.
SEOÇÃO IV: A IGREJA £ APOSTOLICA 173

1 Ciem 44: 1. «Também nossos apóstolos souberam que haveria


discussões a propósito da dignidade do episcopado». 2. «Por isso, co-
nheeendo muito bem o que ia suceder, constituíram os ministros de
que falamos e depois estabeleceram a norma segundo a qual, depois
de sua morte, outros homens provados lhes sucederiam em suas fun­
ções». 3. «Aqueles que receberam assim sua missão dos apóstolos ou,
mais tarde, de outras pessoas eminentes, com o assentimento de toda
a Igreja, se serviram o rebanho de Cristo de maneira irrepreensível,
com toda a humildade, sem desordem nem mesquinhez, se deram bom
testemunho desde há muito tempo, pensamos que seria contrário à
justiça excluí-los de seu ministério». 4. «E não seria pequena falta
destituir do episcopado homens que apresentam a Deus as oferendas
com uma piedade irrepreensível».18
Depois de Clemente encontramos os testemunhos de Ireneu, Ter-
tuliano e Hipólito, citados anteriormente. A sucessão já é coisa adqui­
rida e começa-se a estabelecer sua teoria. Mas ela é homogênea com
os textos bíblicos ou extrabíblicos do século I? Que temos estabelecido
em conceito: a sucessão apostólica ou simplesmente a sucessão de um
ministério instituído pelos apóstolos? Os protestantes reconheceriam
o segundo, mas observariam que este não constitui uma sucessão apos­
tólica. Mas será que eles não têm desta última uma imagem que o
dogma católico não nos impõe?
A interrogação poderia ser formulada nos seguintes termos: será
que o ministério episcopal tem na Igreja uma autoridade derivada da
dos apóstolos, a qual — graças ao reconhecimento do apostolado de
Paulo pelos Doze (cf. Gál l,18ss; A t 9,26-29) e à sua equiparação
a eles —^ recebe força do mandato recebido pelo Senhor (M t 28,18ss)?
Para os protestantes, toda a autoridade apostólica parece investida nos
escritos dos apóstolos, cuja autoridade, de outro lado, não tem seu
fundamento neles, mas na palavra de Deus. Dentro em breve voltare­
mos a encontrar esta opinião. Mas existe, e é o essencial para nós, a
unidade de missão e de função. Tito, Timóteo, os homens provados
de que fala Clemente, íazem o que haviam feito os apóstolos, tanto
no ministério de edificação como no pastoral. Mais ainda: fazem o
que os apóstolos lhes mandaram fazer. Isto significa unidade de mis­
são, de mandato e de função na ordem pastoral e naquele da edifi­
cação sobre os fundamentos que estão estabelecidos de uma vez para
sempre. Não cremos que a doutrina tradicional e católica exija mais,
sempre que se precise que a missão e função comportem uma autori­
dade e se mantenha o caráter sacramental desta imposição das mãos
que comunica a graça (2Tim 1,6). Acrescentamos que por autoridade
entendemos o direito de determinar algo na vida de outro; em nosso

48Sobre este texto, cf., além dos estudos citados supra (nota 42): A. M.
J a v i e r r e , E s apostólica Ia prim era «diadochè» de la Patrística (1 Cl 44,2)?:
«Salesianum » 19 (1857), 83-113; id., L a prim era «diadochè’ de la prim era par-
trística y los «ellógim oi» de Clemente Romano, Turim, 1958. Discute-se a quem
sucedem os homens provados de 42,2 (ellógimoi), aos apóstolos ou aos
ministros estabelecidos por estes. N esta perspectiva em que nos situamos e
com as explicações que seguem, basta a resposta minimalista (sucessão do
episcopado local). E sta é a resposta que Javierre admite.
174 CAP. Y: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

caso, em sua vida cristã, segundo as estruturas da nova e definitiva


aliança, em relação às quais os ministérios, na Igreja, não fazem mais
do que assegurar um serviço. Evidentemente, tal autoridade não se
encontra nos apóstolos e em seus sucessores a não ser por uma comu­
nicação de Deus, que se realiza ao mesmo tempo de forma vertical
ou atual («acontecimento») e horizontal («instituição»), pela fideli­
dade de Deus às estruturas que deu a sua aliança: porque «se nós
somos infiéis, ele permanece fiel, já que não pode desdizer-se» (IT im
2,13).
Ora, para os Padres dos séculos I I e III, a autoridade exercida
pelos bispos em seu ministério é a que foi dada aos apóstolos, do
mesmo modo que o Espírito que lhes é comunicado em sua ordenação
é o mesmo Espírito do qual foi investido Cristo e de que ele enviou
em Pentecostes. E ’ o que exprime com grande força o primeiro texto
litúrgico que possuímos, a oração de consagração contida na Tradição
Apostólica de Hipólito: «Comunica agora o poder que vem de ti: o
Espírito soberano (SI 50,14) que deste a teu Filho muito amado Jesus
Cristo e que ele comunicou aos santos apóstolos, que construíram tua
Igreja no lugar de teu santuário... Concede, Pai, que conheces os
corações, a teu servo, que escolheste para o episcopado..., que desate
todo laço em virtude do poder que deste aos apóstolos...».49 A refe­
rência contida aqui alude, sem dúvida, a Jo 20,21ss, mas também a
Mt 16,19, já que se mantém firme — Cipriano é testemunha disso —
e se manterá através da Idade Média que o episcopado tem sua fonte
em Pedro, o que atesta sua unidade indivisa ao mesmo tempo que
sua apostolicidade. “

d) Os componentes da sucessão apostólica:


apostolicidade de ministério e de doutrina.
A «tradição segundo a sucessão»

a) O que não é a sucessão apostólica. Não é o simples fato da


não-interrupção na ocupação de uma sede.61 Isto seria, quando muito,
uma sucessão material e histórica, que se verificaria até mesmo no
caso de usurpação ou heresia. Pelo contrário, algumas igrejas podem
permanecer sem bispos por um período mais ou menos longo52 sem

“ C. 3: L a Tradition Apostolique de St. Hippolyte. E ssai de reconstruction


= L Q F 39, Münster, 31966, 8 e 10.
50Cf. P. B a t i f f o l , «Petru s initium episcopatus» ©t «P rim a cathedra
episcopatus», em Cathedra Pétri, Paris, 1938, 95-121. P a ra a Idade Média, cf.
Y . C o n g a r , Notes sur le destin de l’idée de Collégialité épiscopale en Occi­
dent au Moyen-Âge ( Y I I - X V I ' siècles), em L a Collégialité épiscopale, Paris,
1965, 99-129.
61Como P. H a i 1e r admitiu algum ;tempo, Evangelisehe Kaitholizitat,
Munique, 1926, 219s, sob a influência de N . S o d e r b l o m (cf. Die Hoch-
kirche, 1931, 302).
5:1H . P i r e n n e nota (segundo L. D u c h e s n e , Fastes épiscopaux de
l’ancienne Gaule) que grande número das sedes ficaram sem titular na Gália,
sobretudo no sul, entre os anos 680 e 800, aproximadamente: Maliomet et
Charleanagne, ’1937, 174s.
SECÇÃO IV: A IGREJA É APOSTÓLICA 175

que se interrompa nelas a sucessão apostólica, que nesses casos sub­


siste no colégio dos bispos e pode ser atualizada de novo no lugar
onde faltava somente o sujeito concreto. Os ortodoxos, que têm o vivo
sentimento de uma existência meta-históriea da Igreja e o da onto­
logia colegial da Igreja (sobornost), confessam às vezes interessar-se
eó muito limitadamente pela continuidade histórica: o que importa,
o que realmente constitui a sucessão apostólica, é o fato de que uma
Igreja adira aos princípios da Igreja e receba por isso do Espírito
Santo a graça dos sacramentos. Este ponto de vista explica a atitude,
para nós desconcertante, das Igrejas ortodoxas, que reconhecem «se­
gundo a economia» algumas ordenações aparentemente inválidas.53 Isso
não significa que a «instituição» seja sacrificada ou subordinada ao
«acontecimento»; significa que a própria instituição é considerada a
partir de duas perspectivas: uma histórica e outra meta-histórica, es­
tando a primeira subordinada à segunda.
A sucessão apostólica não é um simples fato de validade sacra­
mental. Os «tractarianos» do movimento de Oxford orientaram seus
pensamentos neste sentido, mas sem satisfazer todas as exigências da
questão.51 A sucessão é considerada, nesta perspectiva, como uma es­
pécie de fluido que passaria do corisagrante validamente consagrado
ao consagrado, ou como uma espécie de transferência física de energia
que teria lugar sem necessidade de outras exigências mais pessoais.
Esta falsa idéia aparece realizada pelas consagrações que, desde há
um século, levam a cabo os episcopi vagantes, os quais não passam
de lastimáveis atos de irresponsáveis.53 Esta idéia é uma caricatura
miserável, uma imitação burlesca da verdadeira sucessão apostólica.
Não é um simples fato de consagração. Aquele a quem se sucede desa­
pareceu e se é consagrado por outros que representam o colégio e a
comunhão universal. A função destes consiste em habilitar um novo
sujeito para que assuma a função, o encargo e a missão, os mesmos
identicamente que seus predecessores haviam assumido desde o pri­
meiro da série. A sucessão apostólica é sucessão na tarefa e consiste
formalmente na identidade da função; sua primeira condição é a iden­
tidade da fé. Isso aparecia mais claramente quando se evitavam as
ordenações absolutas, isto é, feitas sem referência direta ao serviço
de uma comunidade. A sucessão se apresentava como ligada à função,
e não tanto como uma qualidade concedida à pessoa e que esta levaria
consigo onde quer que fosse. Na disciplina antiga das ordenações

83Ouvimos pessoalmente vários teólogos ortodoxos d a emigração russa ex­


por estas idéias. M as a posição dos teólogos ortodoxos não é uniforme. A lgu ­
mas indicações sobre os gregos em Hierom. Pierre [D um ont], Économie
ecclésiastique et réitération des sacrements: «IrénUcon» 14 (1937), 228-247, 339-
362.
51Cf. a crítica de E. M o 11 a n d, Irenaeus og successio apostolica (Hom.
Jens N orregoard ), Copenhague, 1947, 157-176 (cf. K H E 43 [194S], 783s); L e
développement de l ’idée de succession apostolique: R H P ’a R 34 (1954), 1-29, e,
de outro ponto de vista, a crítica de L. B i l l o t , D e E c d e sia Christi, Prato,
=1909, 349.
63O fenômeno é estudado por H. R. T. B r a n d r e t h, Episcopi Vagantes
and the Anglican Church, Londres, 21&61, e por P. F. A n s o n, Bishops at
Large, Londres, 1964.
176 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

distinguiam-se e se relacionavam duas coisas: a consagração e a ta­


refa a ser realizada numa comunidade; a primeira não era considerada
completa se não fosse unida à segunda.K Ora, o encargo de uma
comunidade supõe ou exige a comunhão com toda a Igreja, cujo mis­
tério cada comunidade realiza localmente. Todas as heresias antigas
procuraram para si hierarquias eaparências de «sucessões apostólicas»:
assim, Marcião57 e Novaciano. O papa Comélio conta como este se
fez outorgar a consagração;68 esta, embora válida no plano do rito,
não constituía uma sucessão apostólica. Para isso teria sido necessário,
como sublinhava Cornélio,58 a comunhão com toda a Igreja, por meio
da comunhão com o episcopado indiviso que cada bispo realiza intei­
ramente em comunhão com o colégio, como cada Igreja é Igreja em
comunhão com a católica, sendo esta comunhão a garantia de que
este bispo era verdadeiramente recebido e consagrado por Deus.® Te­
ria sido necessária, concretamente, a comunhão com o centro e a
cúpula da ordem episcopal, isto é, com o bispo de Roma, sucessor de
Pedro, que, desde o século II, constitui o centro de referência, a con­
dição e o critério da comunhão eclesiástica assegurada pela comunhão
hierárquica. ®
|3) A sucessão apostólica opera-se, certamente, pela consagração e
a imposição das mãos. Esta, que não é testemunhada expressamente
por Ireneu nem por Cipriano, o é por Hipólito e por Comélio.62 A
sucessão supõe a consagração. Ser estabelecido no episcopado é ser
eleito e ordenado. " Tanto mais que a sucessão não tem como fim

68Cf. o sexto cânon de Calcedônia, e V. P u c h s, D e r Ordinationstitel


von seiner Entstehung bis au f Innozenz I I I . . . , Bonn, 1930 (reimpressão,
Amsterdam, 1963).
51Cf. G. B a r d y, L a théologie de l’Église de St. Irénée au Concile de
Nicée, Paris, 1947, 44.
=s C arta a Pábio de Antioquia, em Eusébio, Hisfc EccL, V I, 43, 7-10 (P G
20,617s; ed. Schwartz, 616s).
saEp. 55,24,2s, na qual voltam as expressões «eum sit a Christo una
ecclesia per totum mundum in multa m em bra divisa, ita episcopatus unus
opiscoporum multorum concordi numerositate diffusus», «ecclesiastiei corporis
compaginem».
“ Cornélio, loc. cit., n. 8: «usurpar o episcopado que não lhe havia sido
dado do alto . . . »
61 Pato sublinhado por P. B a t i f f o l , T/Êglise naissante. L a P a ix cons-
tantinienne. L e Siège Apostolique, Paris, 1908, 1914, 1924; id., Cathedra Pétri,
Paris, 1938, e por L. H e r t l i n g , Communie und Prim at, em Miscellanea
Histoviae Pontificiae, V I I : X en ia Piana, Roma, 1943, 1-48 (reeditado à parte,
Eoma, 1961). A constituição dogmática Lum en Gentimn ensina: «A lguém é
constituído membro do corpo episcopal pela consagração sacramental e pela
hierárquica comunhão com o chefe e os membros do Colégio» (22; cf. 20).
“ Hipólito, Trad. apost., 2; Comélio, loc. cit., n. 10. Cf. D ThC XI/2 (1932),
1244s. Talvez haja, contudo, um a alusão a um a ordenação em Ireneu, Adv.
haer., IV , 26, 2.
®‘ Tertuliano, Praesc., 32, 2: «Clementem a Petro ordinatum est», onde
ordinari parece significar ser instituído num ofício por consagração. Cf. o
«viçaria ordinatione» de Cipriano e Firmiliano (supra, nota 29) ; Cipriano,
Ep. 33, 1, 1: «Dom inus n o ster... episcopi honorem et ecclesiae suae rationem
disponens in evangelio loquitur et dicit Petro: E go dico tib i... (M t 16,18s).
Inde per temporum et succesionum vices, episcoporum ordinatio et ecclesiae
ratio d ecu rrit.. . » (Hartel, 566); 69, 3, 2: «(C ornélius) qui Pabiano episcopo
legitima ordinatione successit» (p. 752). Sobre os papas do século V , cf. os
textos em R S P h T h 49 (1965), 393 (nota 87), 395 (nota 98), 398 (nota 118).
Sobre os séculos I I I e V, cf. L. M o r t a r i, Consacrazione episcopale e Collé­
gialité. L a testimonianza deila Chiesa antica, Florença, 1969.
SECÇÃO IV: A IGREJA É APOSTÖLICA 177

único assegurar a pureza e a identidade da doutrina, mas também


o verdadeiro culto sacramental. As igrejas cristãs têm dois centros:
a cátedra e o altar (cf. infra, nota 67). Temos que superar a ruptura
que tendemos a estabelecer entre a ordem do conhecimento e da
celebração simbólico-real dos sacramentos. Para os Padres, a fé era
professada e dada no batismo e nos demais sacramentos. Inácio de
Antioquia e Ireneu chamam ao batismo «fé » e à eucaristia «caridade». “
O ministério destas virtudes é essencialmente sacerdotal.
Y ) Todavia, a sucessão apostólica é constituída, como apostolici-
dade formal, pela conservação da doutrina transmitida desde os apóstolos.
Os textos das Cartas Pastorais falam da guarda e da transmissão da
verdadeira doutrina (2Tim 2,2). Os bispos e os presbíteros, que formam
a cadeia da sucessão, ocupam um lugar ou uma tarefa de ensinamento:
«locus magisterii», diz Ireneu,® que assegura exercer o mesmo, seguin­
do o Verbo de Deus, a «administratio sermonis».66 A sucessão é essen­
cialmente sucessão numa cátedra. Desde o século II, a palavra «cáte­
dra» designa o episcopado, a função e o poder que um bispo possui
na Igreja em virtude da sucessão apostólica." Até Constantino, a
cátedra foi o único sinal exterior da dignidade episcopal; sentar-se
nela era privilégio do bispo. A idéia permaneceu através de ulteriores
desenvolvimentos: um manuscrito espanhol do século X diz: «Prima
(sedes) est Roma, de doctrina B. Petri composita».68 Para a Idade Mé­
dia, suceder aos apóstolos é suceder a praedicatores e a doctores.65
O formal da sucessão apostólica é a unidade de missão, e o coração
desta é a unidade de doutrina, já que a Igreja é essencialmente a
assembléia dos fiéis, e sua identidade subsiste na identidade de fé.
Com razão observava Tertuliano que as igrejas recentes, que não se
podem dizer fundadas por um apóstolo, nem por isso são menos apos­
tólicas graças à sua «consagüinidade de doutrina» (Praesc., 32).
“ Cf. Ign T rall V III, 1; Ireneu, Adv. haer., 26, 5 (P G 7,1056A; H arvey, II,
238; cf. N a u t i n , op. cit. [nota 13], 53). Cf. também Y. C o u g a r , Tradition
(nota 27), II, 19-27.
K Adv. haer., III, 3, 1 (P G 7,848; H arvey, II, 8). Sobre a relação entre
sucessão e tradição, que deve ser transmitida intacta, cf. J. R a t z i n g e r,
Prim at, Episkopat und Successio apostolica, em Episkopat und Prim at =
QD 11, Friburgo, 1961, 37-59 (trad, espanhola: Episcopado y primado, B a r­
celona, 1965).
68Ádv. haer., V, pról. (P G 7,1119; Harvey, II, 314); cf. também IV , 26,4.
67O M uratoriano diz que H erm as escreveu o Pastor «sedente in cathedra
urbis Rom ae ecclesiae Pio episcopo fratre eius». Cf. também Tertuliano,
Praesc., 36, 3: «Percurre ecclesias apostolieas, apud quas ipsae adhuc cathe­
drae apostolorum suis locis praesident»; Cipriano, Ep. 17, 2 (Hartel, 522);
52, 1 (p, 616); 59, 14: «navigare audent ad Petri cathedram» (p. 683), e o
cap. I V do D e cath. eccl. imitate, versão longa (Hartel, 212). Cf. A. von
H a r n a c k , Mission und Ausbreitung, I, 332s; E. S t o m m e l , D ie bischöfliche
K athedra im christlichen Altertum : M T h Z 3 (1952), 17-32; M. M a c c a r r o n e ,
«Cathedra P e tri» und die Entwicklung der Idee des päpstlichen Prim ats vom
8. bis 4 Jh.: «Saeculum » 13 (1962), 278-292; W . T e l f e r , The Office o f a
Bishop, Londres, 1S63, 203s. A s igrejas cristãs ordenadas em tomo dos dois
pólos da cátedra e do altar: A. G. L u i k s , Cathedra en meus a. D e plaats
van preckstoel en avondmalstafel in bet oud christelijk kerkgebouw volgens
de opgravingen in N oord-Afrika, Fraaeker, 1955.
* Descrito por J. L e c l e r c q , H ispania sacra, 1949, 93.
- 60H. de L a b a e , Exégèse médiévale, 1/2 = Théoolgie 41, Paris, 1959,
670; P. M a n d o n n e t , H. V i c a i r e , R. L a d n e r , St. Dominique. I/idée,
l’homme et oeuvre, II, Paris, 1938, 13, 19, 50s, 54.
178 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Por isso, toda função de autoridade na Igreja exige que se realize


primeiro uma profissão de fé .70 Sem isso, ninguém pode ser ordenado;
sem isso ninguém toma posse de um novo encargo pastoral ou de
uma cátedra de ensino; sem isso não se entra num concílio... O envio
pelo papa e pelos demais patriarcas de cartas sinodais por ocasião
da eleição de um bispo tinha também este significado: verificar se
a fé e a pregação do novo eleito concordavam com as da Igreja e,
portanto, com a tradição recebida e transmitida desde os apóstolos.
Com efeito, o ensinamento dos bispos constitui certamente uma
regra para os fiéis,“ mas ele também está submetido a esta regra.
A função comporta a autoridade, mas não é por si mesma seu pró­
prio critério; ela está condicionada por sua fidelidade à tradição dos
apóstolos, viva e atualizada na história pelo Espírito Santo. Os fiéis
deveriam separar-se dos pastores que se desviaram de sua autêntica
sucessão. ” Qual é, então, o critério da ortodoxia? Imediatamente e
em plano local, o bispo recebeu o «charisma veritatis certum secundum
placitum Patris»; 73 entretanto, o critério último será o acordo com
as demais igrejas — por isso cada bispo devia ser consagrado por
vários bispos de outras igrejas” — e principalmente com a Igreja de

™Cf. Th. G o t t l o b , D e r kirchliche Amtseid der Bischöfe, Bonn, 1936


(reprodução anastática, Amsterdam, 1963).
71«Presbyteris oboedire oportet, his qui successionem habent ab apostolis»
(Ireneu, Adv. haer., 26, 2 [P G 7,1053; Harvey, II, 236]).
72O texto citado na nota precedente continua: «reliquos vero, qui absistunt
a principali successione et quocumque loco colligunt, suspectos habere»;
mais adiante: «a b omnibus igitur talibus absistere oportet» (cf. 26, 5 [P G
7,1056A; Harvey, II, 238]). Cf. Y. C o n g ' a r , Apostolicité de ministère et
apostolicité de doctrine, em V o lk G ottes... (Hom . J. H ö f er), Friburgo, 1967,
84-111.
Ireneu, loc. cifc; existem três interpretações principais deste charisma
veritatis: 1) U m a graça de infalibilidade, recebida com a sucessão n a orde­
nação. E sta interpretação é ainda corrente entre os católicos: recentemente,
L. L i g i e r, L e charisma veritatis certum des évêques. Ses attaches liturgi-
ques, patristiques et bibliques, em L ’homme devant D ieu (Hom. H . de Lubac),
I, Paris, 1964, 247-268. E sta interpretação tem a seu favor, além de sua har­
monia com um amplo contexto, a relação que o próprio texto parece esta­
belecer entre a consagração e um a graça que seria efeito da mesma. M as
tal interpretação tem algumas dificuldades: a) um enunciado tão formal
seria um hápax; b ) isto suporia um automatismo que outros textos excluem:
cf. supra, nota 72, e Adv. haer., III, 3, 1 (P G 7,848): «lapsis autem summa
calam itas»; c) a teologia da tradição de Ireneu reclama um sentido objetivo
para veritas. 2) P o r isso vários autores entendem por charisma veritatis o
dom espiritual da verdade, no sentido objetivo da palavra, isto é, a tradição
em sentido objetivo. Assim, D. van den Eynde, H. von Campenhausen. 3)
M as o estudo dos usos feitos por Ireneu e outros autores depois dele sobre
o charisma leva a entender este termo no sentido dos dons espirituais pes­
soais. O sentido d a expressão seria então o seguinte: obedecer aos presbíteros
que Deus chamou ao episcopado, o que ficou bem evidente pelo fato de que
sua consagração foi precedida eacompanhada de dons espirituais, em par­
ticular o de um a fidelidade irrepreensível à tradição dos apóstolos. Cf. Adv.
haer., IV , 26, 5: «U b i igitur charismata domini posita sunt, ibi discere
oportet veritatem apud quos est ea quae est ab apostolis ecclesiae successio»
( P G 7,1056; Harvey, II, 238). Assim interpretam o texto E. Flesseman-van
L e e r , Tradition and Scripture in the E a rly Church, Assen, 1954, 119-122; R. P.
C. H a i s o n , Tradition in the E arly Church, Londres, 1962, Í59s. E sta interpreta­
ção coincide com a idéia muito viva na antiguidade cristã de que Deus colabora
na designação dos ministros: cf. supra, nota 60.
MA disposição segundo a qual um bispo deve ser consagrado por outros
três bispos é de origem apostólica, segundo H. Bum -Murdoch, op. cit. (nota
41), 65, 70. E sta disposição foi codificada pelo Concílio de Aries no ano de-
SECÇÃO IV: A IGREJA S APOSTÓLICA 179

Roma, à qual aflui e na qual se concentra toda a catolicidade, «in


qua semper ab his qui sunt undique conservata est ea quae est ab
apostolis traditio».75 A apostolicidade converge para a catolicidade da
mesma maneira como aparece ligada à ação santificadora de Deus.
Por isso, também o depósito da fé está ligado aos ministérios e aos
sacramentos que a Igreja celebra sem cessar.
Neste contexto situa-se o aspecto comunitário que caracteriza a
designação dos ministros: participação do presbitério, ” «assentimento
de toda a ecclesia» : 77 « A verdadeira gnose é a doutrina dos apóstolos
e o sentir antigo da Igreja propagada pelo mundo inteiro, e o selo
do corpo de Cristo é reconhecido na sucessão dos bispos, aos quais
os apóstolos entregaram as diversas igrejas locais». ” A sucessão apos­
tólica é inseparável da apostolicidade da Igreja: ambas as notas se
condicionam e se garantem mutuamente.
A tese da apostolicidade de toda a Igreja encontra-se privilegiada
na dogmática protestante.78 Essa tese não só está ligada nela ao
desejo de recusar o valor de uma «nuda successio», isto é, a absolu-
tização do rito, visto que — e nós concordamos com isso — a suces­
são é condicionada pela fidelidade ao ensinamento dos apóstolos. "
A posição protestante é, além disso, solidária com. um certo rebaixa­
mento (poderíamos dizer depreciação?) do ministério entre os ele­
mentos constitutivos da Igreja. Dos três aspectos que temos reconhe­
cido na unidade de comunhão menciona-se a confissão e o sacramento
e omite-se com freqüência o ministério. Mas as coisas às vezes são
menos simples do que poderia fazer pensar a exposição que oferece­
mos. Uma preocupação semelhante aparece nos documentos de Fé e
Constituição. 81 Os ortodoxos podem sentir-se à vontade com eles, ape­
sar de sua doutrina positiva e totalmente católica em relação aos
ministérios e sua sacramentalidade, graças à inspiração profunda de
uma eclesiologia da comunidade orgânica e da sobornost.82

314, cân. 20. Os cânones apostólicos, redigidos pelo ano de 400 (eân. 1 =
Const. apost., V III, 47), exigem dois ou. três (a restrição a dois inspira-se,
sem dúvida, em Hipólito, Trad. apost., 2). A constituição Sacramentam Or-
dinis, de 30-11-1944, precisa que estes bispos são verdadeiramente co-consa-
grantes; a constituição do Vaticano I I sobre a liturgia estende esta possibi­
lidade de co-consagrar a todos os bispos presentes (76). A constituição dog­
mática Lum en Gentium vê nesta disposição tradicional um sinal de colegia-
lidade episcopal (22). Cf. L. Mortari, op. cit. (nota 63).
75Adv. haer., III, S, 2 (P G 7,848; Harvey, II, 9).
™IT ím 4,14; Hipólito, Trad. apost., 2.
w lC lem 44,3.
78Ireneu, Adv. haer., IV , 33, 8 (P G 7,1077; H arvey, II, 262). Sobre a inser­
ção da sucessão local na continuidade de toda a Igreja, cf. B. Botte, art.
cit., em nota 29.
78E. S c h l i n k , Die Apostolische Sukzession, en D e r kommende Christus
und die K iichlichea Traditionen, Gottingen, 1961, 160-195.
80 Cf. L. M. D e w a i 11 y, L a personne du ministre ou l ’objet du ministère?:
R S P h T h 46 (1962), 650-657; U . V a l e s k e , Votxun Ecclesiae, I, Munique, 1962,
147 ; J. J. von A 11 m e n, L e saint ministère selon la conviction et la volonté
des Réform és du X V I e siècle, Neuchâtel, 1968, 192s.
“ Cf. o Relatório de Montréal de 1963 sobre «Cristo e a Ig re ja »: «V erbum
Caro» (1964), 1-29.
œCf., por exemplo, P. E v d o k i m o v , L ’Orthodoxie, Neuchâtel, 1965, 133.
180 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

A redescoberta destes mesmos valores entre nós e a eclesiologia


conciliar do povo de Deus permitem-nos reconhecer, melhor do que
nos últimos séculos, o fato inegável de que toda a Igreja é apostólica
e de que, num sentido autêntico, mesmo «o leigo é, como o bispo,
um sucessor dos apóstolos».83 Segundo o Concílio, a Igreja inteira e
como tal participa dos três ofícios de Cristo.84 O Espírito Santo «é
para a Igreja inteira, para todos e para cada um dos crentes o prin­
cípio de sua reunião e de sua unidade na doutrina dos apóstolos, na
comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações»; K todos os fiéis
conservam o depósito sagrado da palavra de Deus, «de maneira que
para conservar, praticar e professar a fé transmitida prevalece um
acordo único entre os bispos e os fiéis».86 A missão de propagar o
evangelho é, pois, confiada igualmente a toda a Igreja; todos os fiéis
têm parte nela. A Igreja inteira, povo de Deus organicamente estrutu­
rado, é o «sacramento universal de salvação».81
A apostolicidade de toda a Igreja realiza-se, certamente, nesta
ordem da permanência na fé e na sua comunicação. Este é um aspecto
decisivo, por ser o princípio primeiro da identidade da Igreja, e nenhu­
ma sucessão no ministério é válida à margem desta apostolicidade da
fé. H. Kiing acrescenta a ela uma sucessão nos serviços e ministérios,
sucessão da qual as igrejas do tempo dos apóstolos, sobretudo as
igrejas paulinas (únicas que conhecemos relativamente bem), nos ofe­
recem exemplos.88 Não se pode, diz este autor, reduzir esta «sucessão»
à das funções hierárquicas, o que suporia cair no clericalismo e juri-
dismo. H. Küng reivindica particularmente o lugar dos carismas e a
sucessão nas funções de profeta e doutor.
A noção de «sucessão apostólica» neste caso não tem inteiramente
o sentido clássico da expressão. Estaríamos mais próximos da forma
medieval de conceber a apostolicidade como fidelidade na reprodução
da imagem dos tempos apostólicos (ao menos como eram imaginados
então). Isto certamente pertence à apostolicidade global. Küng tem
razão ao reagir contra um monopólio clerical indevido, contra uma
concepção mecânica das coisas; tem razão ao insistir na conformidade
de fé e de serviço. Mas, evidentemente, não convém reduzir os após­
tolos à função de testemunhas primitivas únicas, esquecendo o aspecto
de «poderes», nem reduzir a presença do testemunho apostólico atual
aos escritos do NT, esquecendo a tradição real no sentido em que a
explicamos em outro lugar.

83Fórm ula atribuída ao papa Paulo V I por J. G u i t t o n , Diálogos con


F ablo V I, Eds. Cristiandad, Madrid, 1967, S92. Cf. sobre esta questão «Con­
cilium» n. 34 (1968), sobretudo 40-57: J. R e m m e r s , L a sucesión apostólica
de la Iglesia universal.
81Lum en Gentium, 10-12, 33-35.
85Lum en Gentium, 13.
80D ei Verbum , 10; cf. 8.
SI C f. Lum en Gentium, 1, 5, 10,13, 17; A d Gentes, 1, 5, 15, 21, 36s, 41;
Apostolicam Actuositatem, passim; Unitatis Kedintegratio, 1, etc.
88Cf. H. K ü n g , Strubturen der Kirche, Friburgo, 1962, 161-195; id., D ie
Kirche, Friburgo, 1967, 423s, 495s; id., Algunas tesis sobre la naturaleza de
la sucesión apostólica: «Concilium» n. 34 (1968), 31-39.
SECÇÃO IV: A IGREJA É APOSTÕLICA 181

ô) Apostolicidaâe de doutrina e apostolicidade de ministério devem


ser mantidas juntas na teologia da apostolicidade. Ainda somos víti­
mas das dissociações introduzidas no século X V I e já preparadas pela
crítica dos séculos X IV e XV. Havia-se perdido demasiadamente o sen­
tido litúrgico, que é o sentido de uma ontologia sobrenatural e de uma
interioridade mútua das coisas, e havia sido substituído pelo gosto pela
alegoria e pelas cerimônias. Havia-se desenvolvido, de um lado, um
magistério de tipo escolar e doutoral, e de outro, uma autonomia do
jurídico, chegando a atribuir um caráter absoluto ao exercício das
estruturas de autoridade. Os reformadores reagiram contra esta situa­
ção, mas sem proceder a um retorno paciente à tradição mais profunda.
Seu retomo à Escritura viu-se afetado por esta deficiência. Hoje nós
redescobrimos a interioridade da fé no sacramento.88 Este trabalho foi
realizado, sobretudo, no que se refere ao batismo, que sempre foi como
o sacramento tipo. Seria necessário fazer o mesmo com a consagração
sacerdotal e episcopal. Redescobrir-se-ia, então,plenamente — e a
orientação do Vaticano I I nos convida a isso — a relação entre missão
e consagração, entre pregação e atividade cultual. Se o fiel é batizado
em sua profissão de fé, e de tal forma que se mantém consagrado à
fé, o sacerdote e o bispo são ordenados em sua consagração ao minis­
tério apostólico e com vistas a este ministério. Este consiste em estru­
turar e edificar a Igreja pelos meios de graça da nova aliança no
exercício dos três ofícios, dos quais não é difícil encontrar uma indi­
cação em M t 28,18ss; não só o ofício da doutrina, como nas suces­
sões dos rabinos, mas também o do sacerdócio, dos sacramentos e do
governo pastoral.
Os apóstolos foram fonte; seus sucessores não o são. Estes en­
tram numa corrente da qual não foram iniciadores. Transmitem na
medida em que recebem. Por isso, como vimos, a consagração pela
qual se entra na cadeia da sucessão supõe a profissão da fé dos
apóstolos. Se a sucessão está ligada à ordenação, o está à ordenação
legitima, na comunhão católica. "
A ordenação, por sua vez, faz com que não haja simplesmente
um mestre com alguns discípulos, mas uma Igreja. A quem a recebe
ela constitui no cargo e na autoridade de um chefe do povo de Deus,
com a graça correspondente: as orações de consagração exprimem isto
unanimemente.M Portanto, o ensinamento do bispo não é simplesmente
o ensino proposto por um doutor. E ’ verdade que ele permanece ligado
às Escrituras canônicas, ao Símbolo, à tradição dos apóstolos; mas
não se pode —■ e este é o erro do protestantismo — propor a regra
de fé fora da Igreja, que a julgaria a partir de fora. Existe uma

80Cf. L. V i 11 e 11 e, F o i et Sacrement, 2 vols., Paris, 1959 e 1964; Y.


C o n g a r , Tradition (nota 27).
60Cipríano, Ep. 69, 3 (cf. nota 63), e 5, 1.
01Cf. Chanoines de M o n d a y e , I/évêque d’après les prières d'ordination,
em I/fipiscopat et l’Eglise universelle, Paris, 1962, 739-780; J. A. M o h i e r ,
Symbolik, 48; id., Neue U ntersuchungen..., 20; J. L é c u y e r , Epïscopat et
presbytérat dans les écrits dTBEppolyte de Rom e: R S R 41 (1953), 34s; id.,
L a grâce de la consécration épiscopale: R S P h T h 36 (1952), 389-417.
182 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

conjunção do critério objetivo e da instituição ou da função. Tal con­


junção não está assegurada em todos os casos particulares, mas o está
na Igreja como tal e nos atos que a comprometem de forma decisiva.
E o está pela instituição do Senhor, que dispôs as estruturas de sua
aliança de forma que seu povo viva na verdade e que prometeu e
deu seu Espírito para isso.
Por isso a conservação da tradição e a profissão da verdadeira
fé se apóia no ministério instituído. João, depois de ter dado um
critério objetivo de autenticidade: confessar Jesus Cristo que veio na
carne, acrescenta que se reconhece o espírito de verdade e o espírito
de erro segundo se escute ou não os apóstolos, a Igreja. “ Mais uma
vez, os textos neotestamentários não podem falar mais do que os após­
tolos, mas a aplicação à Igreja e à sucessão dos bispos esboça-se nas
cartas pastorais, e a teoria dessa aplicação começa a ser formal a
partir de Ireneu: a transmissão sem alteração da tradição está asse­
gurada pela sucessão, jweá&ooiç mrà Siaôo/j|v.93

4. Sentido da apostolicidade

Do ponto de vista puramente formal, o pensamento grego já havia


reconhecido perfeitamente a razão do princípio da sucessão como tal.
Fílon o havia aplicado aos dados bíblicos, particularmente comentando
a idéia de gênese. Deus, diz Fílon, não egra e não é gerado, é imortal
e eterno. Mas os homens nascem e morrem: a humanidade se perpetua
pela sucessão das gerações.94 Existe dependência literária, ou partici­
pação num fundo comum de idéias, ou encontro da mesma verdade
sobre a natureza das coisas? Os cristãos dão a mesma razão: «Senhor
todo-poderoso, Deus nosso, que criaste todas as coisas por Cristo e que
por ele as conservas: aos seres imortais, simplesmente conservando-os;
aos seres mortais, pela sucessão (Siaôoxií).. .». *
Do ponto de vista do conteúdo, trata-se antes de tudo de con­
servar — através do espaço, que não pode ocupar uma mesma pre­
sença corporal, a através do tempo, que nossa caducidade não domina
— a identidade da missão apostólica, isto é, do encargo acompanhado

82 Cf. lJ o 4,3.6. Paulo l’emete à autoridade dos ministros tanto para jul­
gar os espíritos na Ig re ja (IC o r 14,37s) como para pôr de sobreaviso as
comunidades contra os perigos do erro: A t 20-28-31; E f 4,11-16; IT im l,3s; 4;
6,2bs; 2Tim 2,14; 4,1-8; Ti 3,9ss; cf. Apc 2. Diante destes perigos, a reação
dos apóstolos é exortar à vigilância aqueles que têm o encargo da èiaomitr).
“ Cf. Ireneu, de quem é a fórm ula: Adv. haer., III, 3, ls (P G 7,848);
H arvey, II, 8s; Sagnard, lOlss; Tertuliano, Praesc., 20, 2ss ( P L 2,32; Preu-
schen, 15); 32 (P D 2,44; Preuschen, 24); Cf. outros textos de Hipólito, Ci-
priano, Eusébio, Agostinho, etc., em A. M. J a v i e r r e , loc. cit. (nota 42), em
L ’É piscopat.. 185-188, 208ss. Cf. também os estudos de alguns anglicanos
como H. B. S w e t e , The H o ly Catholic Church, Londres, 1915, 41-49; P.
C a r r i n g t o n , The E a rly Christian Church, I, Cambridge, 1957, 464.
01 A. M. Javierre reuniu um a documentação exaustiva sobre este princípio
form al de sucessão no pensamento e na sociedade pré-cristã: II tema (nota
40) ; sobre Fílon, 274s.
85Const. Apost., V III, 16, 3 (Funk, 522) ; citado por A. M. J a v i e r r e ,
L ’Épiscopat et l’Eglise universelle, 210 (nota 2).
SECÇÃO IV: A IGREJA E APOSTÓLICA 183

dos poderes e dos carismas necessários para cumpri-lo que foram da­
dos para isso aos apóstolos: Mt 28,18ss; A t 1,8; cf. Mt 16,19; 18,18;
Jo 20,23. Aqueles que foram enviados podem e devem enviar outros
depois de si. Porque a missão devia durar, ao passo que o próprio
João devia morrer (Jo 21,22s). Se a missão se limitasse à pessoa dos
apóstolos, nós nem sequer deveríamos batizar, observava já Paciano
de Barcelona ( ca. 390).96 O que foi confiado aos apóstolos só pode
realizar-se por meio dos ministérios herdados ou derivados do seu.
Da mesma forma, constitui-se um só corpo, uma só realidade, uma
só pessoa moral de missão e de poder sagrado, a «hierarquia»: «Unum
corpus propter unitatem iuris» . m Os homens passam, a missão e a
autoridade permanecem idênticas: «O rei morreu. Viva o rei!» A mes­
ma idéia da identidade de um mesmo sujeito de direito que permanece
no transcurso dos anos foi freqüentemente expressa em termos de
herança.118 De fato, nós dizemos «uma sucessão» para designar uma
herança; é praticamente o mesmo. De um ponto de vista um pouco
diferente, é também o que tem de válido a idéia judia do saliah, que
traduz o princípio da identidade da missão, cuja autoridade passa de
quem envia a quem é enviado.“ Este princípio certo tornará a apare­
cer em nossa reflexão ulterior.
Com a apostolicidade trata-se, em última análise, de chegar aos
homens e ao mundo através da imensidade de sua dilatação espacial
e temporal para relacioná-los com o único evento Cristo, no enviado
único do Pai, em quem se realiza a passagem de Deus aos homens

80Ep>. 1, 6 ( P L 13,1057): «E rg o et baptizare solis (apostolis) licet, Spiritum


Sanctum dare solis, et solis gentium peccata purgare; quia totum hoc non
aliis quam apostolis imperatum est. Quodsi uno in loco et resolutio vinculorum
et sacramenti potestas datur, aut totum ad nos ex apostolorum form a et
potestate deductum est, aut nec illud ex decretis relaxatum e s t ...». Agosti­
nho mostra igualmente que a realização do unum ovile, unus Pastor (Jo 10,
16) se opera pelos ministros a quem Cristo confiou esta missão: In Jo, tr.
47, 4, 49, 27 (PL, 35,1735.1758); Sermo 138, 10 (P L 38,769). A propósito d,o
«eu estou co n vosco...» (M t 28,20), Tomás de Aquino observa: «H o c autem
non intelligitur tantum de apostolis, quia omnes mortui sunt et adhuc sae-
culum non est consummatum» (QuodI., X II, 19).
:>I E ’ um a idéia desenvolvida particularmente pela Escola Rom ana do
século X I X : Perrone, o faz, de um a form a mais rígida que corre o risco
de desconhecer a importância única do testemunho ocular dos apóstolos;
Passaglia e Schrader são mais minuciosos: cf. W . K a s p e r , D ie Lehre von
der Tradition in der Kõmischen Schule, Friburgo, 1962; sobre Perrone, 31,
39, 77, 87, 107, 132; sobre Passaglia e Schrader, 287, 299-321.
“ Cf. Tertuliano, Praesc., 37, 5: «E g o sum heres apostolorum»; Leão M ag­
no se designa a si mesmo como herdeiro de Pedro: Sermo 2, 2; 3, 4; 5, 4;
cf. também K . D. S c h m i d t, P a p a : Petrus ipse: «Zeitschr. f. Kirchengesch.»
54 (1935), 271-276.
83 Aplicação a Jesus: M t 10,40; M c 9,37; L c 9,48; 10,16; aos apóstolos:
M t 10,40; Jo 13,16s; 17,18; 20,21. Cf. 2Cor 5,20; IT es 2,13; cf. K . H.
R e n g s t o r f , ràto<rréX.Xí0 . .. àitcxrtoXoç: T h W I, 397-448. Depois dele, G. D i x ,
The Apostolic Ministry, Londres, 1946, e J. C o l s o n , art. cit. (nota 42), uti­
lizaram amplamente a noção de saliah na questão de que nos ocupamos e
oferecem as principais referências. A documentação e a bibliografia d a discus­
são são consideráveis. E m vocabulário escolástico, falar-se-á, com o cardeal
Joumet, de imediação de virtude na mediação dos supostos. D a í as fórmulas
clássicas, das quais Tomás de Aquino não tem o monopólio: «Sacerdos novae
legis in persona ipsius (Christi) operatur» (S. Th., m , q. 22, a. 4 ): in persona
Christi = auctoritate Christi; sendo Cristo o autor através da ação de seu
ministro consagrado (In 2 Cor, c. 2, lect. 2).
184 GAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

e dos homens a Deus (Jo 1,18; 1,51; Gên 28,10-17; ITim 2,5). A
economia salvífica exige que fatos ocorridos uma vez, num ponto con­
creto da terra e da história, sejam comunicados a todos os homens,
para os quais estes fatos constituem graça e verdade com vistas à
salvação, que consiste na comunhão com Deus. A comunhão com Deus
realiza-se por meio de Jesus Cristo ; a comunhão com Jesus Cristo, por
meio dos apóstolos (lJ o l, ls s ): daí a comunicação de missão por cuja
evocação começamos. Não se trata de introduzir um princípio legalista
no evangelho da graça, mas de realizar justamente este evangelho nas
condições em que Deus realmente o deu aos homens.
Essas condições são as da entrada na história pelo caminho da
encarnação, isto é, tomando um corpo nessa história. A palavra fez-se
carne. Cristo constituiu um corpo eclesial estruturado cuja formação
ele mesmo começou a partir dos apóstolos e através de seu ministério
acompanhado da ação de seu Espírito. E ’ verdade que Cristo continua
agindo do alto do céu, e a tradição mais eclesiástica é apresentada
por São Paulo como procedente do Senhor.“ ° Não há continuidade
histórica, horizontalidade, instituição que não seja acompanhada de uma
atualidade, de uma ação vertical, de «acontecimentos» espirituais. As
consagrações segundo a sucessão no ministério provocam uma inter­
venção atual de Deus; assim ocorre com as eleições, a designação dos
ministros e todas as ações sacramentais, as decisões absolutas em ma­
téria de doutrina, de culto ou de costumes. Para todas elas é neces­
sária uma «epiclese» e uma vinda do Espírito Santo que a teologia
refere às «missões divinas». A atribuição de tudo isso a Deus como a
seu sujeito supremo e decisivo e a idéia de um perpétuo atualismo
de sua ação constituem a parte de verdade contida no protesto dos
reformadores do século X V I e até a construção, de resto insustentável,
de um R. Sohm. Respiguemos, de uma documentação considerável que
reunimos sobre o atualismo da operação divina, este texto tirado da
fórmula de profissão de fé de um arcediácono romano eleito e consa­
grado papa: «Sanctae tuae Ecclesiae quam hodie tuo praesidio regendam
suscepi, quod verae fidei rectitudine, Chrísto autore tradente, per succes-
sores tuos. . . » . m Todavia, a economia dos dons de Deus segue uma
lógica diferente, não consiste de acontecimentos espirituais que caíssem
em gotas do céu onde Cristo reina. O que se atualiza no tempo de­
pende inteiramente, ao mesmo tempo, do Cristo glorificado e do Cristo
encarnado, morto e ressuscitado. A questão pendente entre a Reforma
e a Igreja primitiva é a de saber como estamos vinculados, hoje e
todos os dias até o íim do mundo, ao iato único da encarnação e da
morte redentoras de Jesus Cristo. A visibilidade da Igreja é somente
material, dependente dos homens que a compõem, ou iormal, chegando
mesmo àquilo que a constitui como Igreja, isto é, aos meios de sal­
vação e aos ministérios que derivam do Verbo encarnado?
A continuação é, positis1 ponendis, homogênea a seu princípio. A
Igreja é um corpo, o corpo de Cristo, constituído por um elemento

m 2Cor 11,23: cf. Y. C o n g a r , Tradltion, I (nota 27), 23.


m L ib er D ium us, form. 83 (ed. Sickel, Viena, 1889, 90s).
SECÇÃO XV: A IGREJA É APOSTÓLICA 185

humano e elementos de graça, de origem sobrenatural e divina.“ 2 E ’


uma realidade posta na história e histórica ela mesma, ainda que sua
fonte e seu fim sejam meta-históricos. Assim, a Igreja corresponde
inteiramente àquilo que a tradição chama «mistério» ou realidade de
tipo sacramental.102 Este corpo de Cristo, místico ou sacramental e
histórico, possui a propriedade da apostolicidade. Esta corresponde à
sua própria natureza, toda ela relativa ao mistério de Cristo, Filho
de Deus feito homem, «entregue à morte por causa de nossos pecados
e ressuscitado para a nossa justificação».™ Não é em vão que a litur­
gia romana nos ordena a leitura freqüente do texto de E f 2 na festa
dos apóstolos. Também não é por acaso que Ireneu faz da sucessão
dos bispos «o selo do corpo de Cristo» (cf. supra, nota 78). Todo o
sentido do fato hierárquico, com sua lei de sucessão, consiste em rea­
lizar e significar que tudo procede do Verbo encarnado, morto e res­
suscitado. Um sistema segundo o qual poder e missão estariam na
comunidade eclesial como tal, a qual discerniria os que o Senhor chama
ao ministério, parece-nos não manter a continuidade da missão dos
poderes e dos carismas recebidos pelos apóstolos como tais, sem pre­
juízo da animação de todos os discípulos pelo Espírito.
Do ponto de vista da história do cristianismo, a consciência da
apostolicidade e a insistência nela manifestar-se-ão vivamente no sé­
culo I I . 103 Então se sublinha cada vez mais o adjetivo «apostólico» :
« A partir daí fala-se das Escrituras apostólicas, do ministério apos­
tólico, do Símbolo dos apóstolos que a Igreja defende... Os termos
antigos paradosis (tradição) e kerygma (pregação) são qualificados e
exaltados como apostólicos: o primeiro por Hipólito, que escreve uma
obra sobre a Tradição Apostólica; o segundo por Ireneu, que escreve
outra sobre a Demonstração da pregação apostólica».IM Neste mesmo
contexto seria necessário evocar o esforço realizado para fixar o cânon
das Escrituras do NT, de acordo com o critério de sua origem apos­
tólica. Finalmente, e sobretudo, seria mister recordar que a sucessão
apostólica encontra então seu doutor no grande Ireneu. Que aconteceu
nessa época para que se assista de repente a esta busca da aposto­
licidade?
O fundamental não está em que as recordações exatas do tempo
dos apóstolos tenham começado a se esfumar e se experimentasse a
urgência de fixar normas precisas de crença e de vida, senão em que

Cf. Lum en Gentium, 8.


103Sentido explicado nos admiráveis estudos de H. de L u b a c , Corpus
Mysticum, Paris, 1944, e L. E o u y e r , Mystique: V S Supl. (m aio de 1949),
3-23. E ’ «místico» (adjetivo do substantivo «m istério») o que é relativo à con­
sumação do desígnio de Deus, isto é, ao «m istério» de Cristo, no sentido
paulino d a expressão. U m a boa exposição em B. L a m b e r t , D e Rom e à
Jérusalem, Paris, 1964; M. J. L e G u i l l o u , L e Christ et l ’Eglise. Théologie
du Mystere, Paris, 1963.
104Rom 4,25: este texto anima interiormente a obra do recentemente fale­
cido bispo de Cantuária, M. R a m s e y, The Gospel and the Catholic Chureh,
Londres, 1936, na quai se exprime um pensamento muito em consonância
com o que explicamos aqui (sobre a sucessão apostólica, cf. p. 82).
105Cf. A. B e n o i t , L ’Apostolieité au I I « siècle: «V erbu m C aro» 15 (1961),
173-184.
108G. D i x , L e ministère dans l ’E glise ancienne, Neuchâtel, 1955, 41s.
186 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

as heresias — em primeiro lugar a gnose - - puseram em perigo a


autenticidade da relação religiosa.3"1 E isso por duas razões e em dois
níveis, já que a gnose punha em dúvida a dupla (e única) continui­
dade da Igreja com a encarnação e da encarnação com a vida do
próprio Deus. A gnose, na tradição dos espirituais, é considerada em
contacto com uma série de intermediários procedente de uma série
degradada de emanações. A Igreja estava diante da obrigação de
afirmar: 1) que Jesus Cristo é Deus, de modo que nele temos acesso
ao próprio Deus e por ele podemos ser divinizados; 2) que temos,
— por uma sucessão originada dos apóstolos, por uma tradição dos
sacramentos e dos ministérios, que remonta ao Cristo histórico, sa­
bedoria de Deus encarnado, — contacto com Jesus Cristo, a quem se
refere toda a «mística» cristã. Assim, o sentido histórico da afirmação
da apostolicidade e da sucessão apostólica responde a seu sentido
teológico; ambas coincidem perfeitamente.
Do ponto de vista da história da salvação, isto é, do cumprimento
da economia, a apostolicidade (e a sucessão apostólica) é como que
a armadura do edifício, a coluna vertebral do corpo. Seu ofício con­
siste em ligar o Alfa com o ômega, Cristo como princípio de tudo,
que fez tudo por nós, com Cristo «plenificado, tudo em todos» (E f
1,23): porque tudo vem do Cristo encarnado, morto e ressuscitado,
e tudo se orienta para a «construção do homem perfeito, na força
da idade, que realiza a plenitude de Cristo» (4,13). Mas tudo aquilo
que, de nossa parte, deve constituir esse homem deve ser tomado de
Cristo, que nasceu e sofreu (cf. supra, nota 103). A apostolicidade da
fé, dos sacramentos, dos ministérios faz com que isso seja verdade,
cooperando com o Espírito Santo, o qual enche também com sua ação
o espaço intermediário que separa as duas vindas de Cristo (cf. supra,
nota 13).
Assim, voltamos a encontrar o valor escatológico da apostolici­
dade; o que se realiza no ínterim é para o fim, vale para o fim. E ’
preciso conservar o que se recebeu de Cristo até à sua volta ou, como
dizem as Pastorais, sua aparição (IT im 6,14; 2Tim 1,10-13; 4,1). E
é preciso e possível fazê-lo porque em Jesus Cristo, na nova e eterna
aliança realizada em seu sangue, os bens últimos e definitivos nos
foram dados, ao menos como «arras» e de forma misteriosa.
Mas «conservar» não significa enterrar e deixar estéril: «quem
não recolhe comigo, dispersa» (L c 11,23; cf. 19,20-26). Biblicamente
falando, «conservar» é fazer ou cumprir (cf. Mt 28,20; Jo 8,51; 12,47;
14,21.24; 15,10; lJo 2,4; etc.). A apostolicidade, ao unir o Alfa e o
Ômega, atravessa todo o espaço intermediário e opera nele a obra
do apostolado, tornando nele ativa a missão confiada pelo Senhor aos
Doze, para o qual é dado o Espírito ao longo de toda a históriai.
Ireneu, mais uma vez, mostra Cristo fazendo-se carne e sangue para

1010 fato histórico é bem conhecido: estudos de M. Sagnard, A. Benoit,


etc. P a ra a interpretação teológica utilizamos a obra de H. S c h m i d t ,
D ie Kirche. Ihre biblische Idee und die Form en ihrer geschichtlichen Erschei­
nung in ihrem Unterschiede von Sekte und Häresie, Leipzig, 1884, 113s, 146s.
SEOQÃO IV: A IGREJA fil APOSTÓLICA 187

«recapitular» toda carne, toda a sucessão de gerações de carne que


tem seu princípio em Adão e, para além dele, no barro da terra.
Que visão da apostolicidade e da sucessão apostólica! Que programa!
De acordo com a origem, ser contemporâneo de todos os momentos
do tempo para reunir tudo em Cristo, Alia e ômega da história.
Apostolicidade e apostolado. Até a época moderna, o adjetivo
«apostólico» designava uma propriedade pela qual algo é relacionado
com os apóstolos.109 Um homem apostólico era alguém que vivia à
maneira dos apóstolos: assim, Policarpo (M art. Polyc., 16, 2) ; tradi­
cionalmente, falar-se-á também de «vida apostólica». Mais do que
uma seita da Idade Média, que pretendia voltar ao estilo de vida dos
apóstolos, foi denominada «apostólica». Já vimos que, a partir de Ter-
tuliano, se falava de igrejas apostólieas, designando com este nome
aquelas cuja origem remontava aos apóstolos. Era «apostólico» aquilo
que se referia aos bispos em razão da sucessão; mais adiante, a ex­
pressão foi reservada quase exclusivamente ao papa, a partir de Gre-
gório Magno. Mas desde a época patrística alguns leigos a serviço
da Igreja eram qualificados às vezes de «apostólicos» (Constantino).
Era uma espécie de abertura para o sentido que a palavra tomará na
época moderna, na qual «apostólico» significará zeloso pela causa de
Deus. Nesse sentido, diz-se atualmente de alguém: «é um verdadeiro
apóstolo». O termo seeularizou-se e desvalorizou-se. Na hospedaria de
Sainte-Beaume pode-se 1er um ex-voto redigido nestes termos: « A . . . ,
apóstolo do ciclismo».
Esta evolução semântica tem seus inconvenientes, mas exprime
a seu modo uma verdade: existe uma relação profunda entre apos­
tolicidade e apostolado. Os próprios apóstolos foram especialmente
enviados para dar testemunho desde Jerusalém até os confins da terra
(A t 1,8). Podem ser considerados como fundamento, como colunas e
como missionários dedicados à conquista: ™ apostolicidade e aposto­
lado. Ambas as coisas estão estreitamente ligadas. Roma está fundada
sobre Pedro e Paulo: a estabilidade da forma e o zelo missionário.
O apostolado enche o espaço intermediário entre as duas vindas de
Cristo para, conservando a forma do Alia, fazer crescer tudo para a
plenitude. De resto, a Igreja se estende pela fundação de novas igre­
jas locais, que não existem como tais a não ser recebendo das igrejas
apostólicas «o enxerto da fé, a semente da doutrina», «e por isso mes­
mo estas igrejas serão consideradas como apostólicas enquanto ‘brotos’
das igrejas apostólicas».m Sua apostolicidade consumar-se-á pela im­
plantação de uma hierarquia nativa (sucessão apostólica). Agostinho
com razão fala da sociedade dos cristãos, que se difunde através do

108Adv. h æ r., V, 14, ls (P G 7,1161s; Harvey, II, 361).


109H istória d a expressão: L. M. D e w a i l l y , Note sur l ’histoire de l’adjec­
tif Apostolique: «Mél. de Sc. Rel.» (1948), 141-152; H. H o l s t e i n , L ’évolution
du mot «apostolique» au cours de l’histoire de l’Eglise, em L ’Apostolat, P a ­
ris, 1957, 41-62; F. K l o s t e r m a n n , D as christliche Apostolat, Innsbruck,
1962, 93-128 (história da palavra «apóstolo»), 139-172 (história da palavra
«apostólico»).
110Cf. A. S e u m o i s, L ’Apostolat. Structure théologique, Roma, 1961, 66-79.
111Tertuliano, Praesc., 20, 5s ( P L 2,32; Preuschen, 15).
188 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

mundo pelas sedes apostólicas e pelas sucessões dos b i s p o s . A apos-


tolicidade está no princípio e no término da missão, mas a missão
jamais está terminada, porque o velho Adão prolifera mais rapida­
mente do que o novo, o qual, todavia, deve recapitulá-lo em si para
fazê-lo conseguir seu destino em Deus.

II. PRIMADO E EPISCOPADO

Na sucessão apostólica, o Bispo de Roma ocupa uma posição par­


ticular e até mesmo privilegiada. A sucessão apostólica, efetivamente,
é permanência de um ofício, apesar do desaparecimento daqueles que
sucessivamente o desempenham. Ora, entre as tarefas confiadas aos
apóstolos existe uma, de si durável, que foi confiada singularmente
a Pedro, o qual terminou sua vida em Roma, onde tem seu túmulo
juntamente com Paulo.
Já vimos que é preciso distinguir entre poderes e carismas con­
cedidos aos apóstolos, no princípio, na qualidade de fundadores de
Igrejas e mesmo, de certa forma, fundadores da Igreja (carisma de
revelação), e os poderes confiados aos apóstolos como chefes de igrejas
fundadas, isto é, na ordem de ministérios que deviam durar tanto
quanto a própria Igreja, a qual tinham que estruturar como povo da
nova aliança. E’ nessa segunda ordem que há sucessão, já que esta
não é senão o meio para a permanência da Igreja na forma de regime
e de vida que recebeu de seu divino fundador. Esses poderes são
expressos nos evangelhos em textos como Mt 18,18; 28,18ss; Jo 20,
21ss; Lc 22,19; ICor ll,24s.
Tais poderes foram entregues, juntamente com a missão que su­
põem, ao conjunto ou colégio dos apóstolos como tal. Por isso o dom
do poder de perdoar os pecados não é dado de novo ao apóstolo Tomé
quando, oito dias depois, Cristo o vê com os outros dez, aos quais
havia conferido tal poder em sua ausência; da mesma forma, Matias
tomou-se partícipe dos poderes apostólicos pelo simples fato de «ser
contado no número dos doze apóstolos» (A t 1,26) ou, como diz a
liturgia romana, ser associado ao colégio dos apóstolos. Este é um
ponto esquecido pela Idade Média, pelos apologetas do papado contra
as seqüelas do conciliarismo (Cayetano), contra a Reforma (Roberto
Belarmino), e mesmo pelos mais eminentes teólogos que continuaram
a obra destes apologetas até a época contemporânea (cf. infra, nota
139). O Concílio Vaticano I I e os trabalhos que suscitou restauraram
uma idéia justa da colegialidade apostólica e episcopal. Sua doutrina,
juntamente com a do Vaticano I e da tradição, ajuda-nos a compreen­
der melhor a lei da sucessão apostólica; mas para isso é necessário
observar que o colégio apostólico, e depois o colégio dos pastores,
está estruturado pela vontade de Cristo, que privilegiou o apóstolo
Pedro fazendo dele a cabeça não só do colégio dos apóstolos, mas

“ E p. 232, 3 ( P L 32,1028; citado por A. Seumois, op. cit., 98, nota 31).
SEOCAO IV: A IGREJA E APOSTÓLICA 189

também da Igreja. Se a apostolicidade de ministério consiste em con­


servar na Igreja a mesma forma de autoridade, assim como a apos­
tolicidade de doutrina consiste em conservar a mesma forma de fé,
no plano da sucessão apostólica no episcopado deverá aparecer a mes­
ma estrutura que o Senhor dispôs no plano do apostolado enquanto
os apóstolos foram os primeiros chefes da Igreja.

1. A função de Pedro segundo o Novo Testamento

Os textos são bem conhecidos, e foram objeto de tantos estudos


que a enumeração deles já daria para encher um volume. m Estes es­
tudos puseram a descoberto uma série de dificuldades reais em seu
plano: diferenças, ausência de concordância entre os textos redigidos
em épocas diferentes por homens que tinham diferentes maneiras de
ver e de construir as coisas; transbordamento daquilo que pode ser
qualificado de historicamente certo nas palavras e nas perspectivas
de Jesus para aquilo que a vida da Igreja pós-pascal e pós-pentecostal
desenvolveu (missão limitada a Isreal e missão universal; escatologia
de um reino de Deus iminente e desenvolvimento de uma Igreja na
história.. . ) .

113 Seleção de alguns títulos numa imensa bibliografia, à qual todos os


anos são acrescentados novos títulos. Citemos em primeiro lugar as obras
de apologética, que acumulam argumentos nos quais se encontra mais do que
um a observação interessante. Cf., entre outros, H. D i e c k m a n n , D e Ecclesia,
2 vols., Friburgo, 1925; M. d ’H e i b i g n y , Theologica de Ecclesia, 2 vols.,
Paris, 1913 (várias reedições); P. A. S u l l i v a n , D e Ecclesia Tract. A pol.,
Roma, 1861; ou os artigos de dicionários: M é d e b i e l l e , Église : D B S I I
(1934), 487-691, sobretudo 545s. A seguir, por ordem cronológica: V. M c N a b b ,
The N e w Testament Witness to St. Peter, Londres, 1927; P. M. B r a u n ,
Aspects nouveaux du problème de l’Église, Priburgo, 1941; E. S t a u f f e r ,
Z u r V or- und Frühgeschichte des Prim ates Petri; «Zeitschr. f. Kirchengesch».
62 (1943-44), 3-34; J. L e s s e i , Christi vicarius. Christus, petra — Petrus,
petra: V D 24 (1944), 15-24, 55-61; R. G r ä b e r , Petrus der Fels. Fragen um
den Prim at, Ettal, 1950; O. C u l l m a n n , Saint Pierre, Disciple-Apötre-Martyr,
Neuchâtel, 1952; O. K a r r e r , U m die Einheit der Christen. Die Petrusfrage,
Francfort, 1953; id., Apostolische N achfolge und Plim at. Ihre biblischen
Grundlagen im Licht der neueren Theologie: Z kT h 77 (1955), 129-168; P.
B e n o i t , l.a primauté de Pierre selon le N T : «Istina» 2 (1955), 306-334; A.-M.
Dubarle, L a primauté de Pierre dans M t 16,17-19: ibid., 335-338; P.
D r e y f u s , L a primauté de Pierre à la lumière de la théologie biblique du
reste d’ïsrael: ibid., 338-346; A. V ö g t l e , D er Petrus der Verheissung und
der E rfü llun g: zum Petrusbuch von O. Cullmann: M T h Z 4 (1954), 1-47; id.,
Messiasbekenntnis und Petrusverheissung: B Z 1 (1957), 252-272 ; 2 (1958), 85-
103; P. G a e c h t e r , Petrus und seine Zeit. NO. Studien, Innsbruck, 1958; os
trabalhos católicos e protestantes reunidos em M. Roesle-O. Cullmann (eds.),
Begegnung der Christen, Stuttgart, 1959, sobretudo os de E. F i n c k e e A.
V ö g t l e (sobre Jesus e a Igreja, 35-54 e 54-81), de J. R i n g g e r e J.
S c h m i d (sobre o texto de M t 16,18s, 271-347 e 347-359), de K. H o f s t e t t e r
(sobre o primado de Pedro na Ig re ja dos séculos I e II, 373-389) ; J. B e t z,
Christus-petra-Petrus, em Église et Tradition, Le Puy, 1963, 13-34; S. P o r ú b ­
e a n, The Conseiousness of Peter’s Prim acy in thé N T : «Arehivum Historíae
Pontificiae» 5 (1967), 9-40. Sobre o enfoque do tema nos Padres, cf. A.
R i m o 1d i, L ’apostoio San Pietro, fondamento deîla Chiesa, principe degli
Apostoli ed ostiario celeste nella Chiesa primitiva dalle origini al Conciiio
di Calcedonia = A G 96, Roma, 1958. Sobre a situação depois do livro de O.
Cullmann, cf. M.-J. L e G u i l l o u , Chronique biblique. L a primauté de Pierre :
«Istina» 9 (1964), 93-102-; R. R e f o u l é , Prim auté de Pierre dans les Évangiles:
R S R . 38,! (1964),; 1-Æ.-:.
190 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

As dificuldades sublinhadas não se referem somente aos textos


relativos a Pedro ou à missão dos discípulos ainda que comportem
elementos próprios em relação a estes capítulos. Várias destas difi­
culdades são «mediatizáveis» (por exemplo, aquelasl que resumimos
no último parêntese). Em todo caso, nós não conhecemos Jesus se­
não através do testemunho dos discípulos. Nossos textos só nos per­
mitem chegar imediatamente à fé das comunidades cujo tratamento
da mesma realidade cristã difere de um grupo a outro, de um meio
a outro, de um redator a outro. Nossa situação é a mesma quando
se trata de fatos tão decisivos como a ressurreição ou o Pentecostes.
A Igreja primitiva respeitou a diferença dos tratamentos e dos tes­
temunhos sem ver neles uma contradição para sua fé. Â luz destas
observações, vamos abordar os episódios e os textos mais importantes
relativos ao lugar e à missão de Pedro.
a) Cronologicamente, o primeiro texto é de Paulo, por volta da
Páscoa do ano 57, talvez até do ano 55: «Transmiti-lhes primeira­
mente o que eu mesmo tinha recebido, a saber: que Cristo morreu
por nossos pecados. .. , que ressuscitou ao terceiro dia segundo as Es­
crituras, que apareceu a Cefas e depois aos D o ze .. .» (IC or 15,3ss).
Paulo refere-se àquilo que lhe foi transmitido; remete-nos, sem discus­
são possível, a afirmações completamente primitivas, anteriores a toda
redação das recordações apostólicas. Paulo dá neste texto a Pedro
o nome de Cefas, com o qual o designa sempre, com exceção da
passagem polêmica de Gál 2,8.114 Paulo enumera uma série de aparições
segundo certa ordem, que parece mais qualitativa do que cronológica:
«Apareceu a Cefas; em seguida, aos Doze». Se se recorda que o tes­
temunho sobre a ressurreição de Cristo é um elemento constitutivo
da condição de apóstolo, *“ embora para isso seja necessária também
uma vocação e uma missão recebidas de Cristo, — e que a incorpora­
ção de Tiago, irmão do Senhor (cf. v. 7), ao grupo dos apóstolos,
radica naquela extraordinária aparição, como também o primado par­
ticular de que gozou à testa da Igreja de Jerusalém, — se admitirá
que a prioridade ou o primado na visão de Cristo ressuscitado supõe
e fundamenta um certo primado de Pedro no apostolado e na condi­
ção de apóstolo. Onde e quando situar esta protovisão de Pedro, cuja
prioridade não é cronológica, mas qualitativa na ordem do testemu­
nho apostólico? Alguns pensam naquilo que anuncia Mc 16,7, e que
a continuação de Mc não desenvolve, ou melhor em Jo 21,15ss, que
seria talvez o relato daquilo que anunciava o anjo em Mc. Outros
pensam no relato de Lc 24,33s, no qual se trataria de Simão Pedro.
Assim, teríamos uma primeira ocasião em que Pedro aparece,
como em tantos outros episódios evangélicos, recebendo como pri­
meiro e de modo particular aquilo que depois foi dado aos demais.
Efetivamente, Pedro exerceu este primado, determinando por seu tes­
temunho — que ele é o primeiro a dar, sem isolá-lo dos demais após­
tolos1” — a fé criadora da primeira comunidade de discípulos.
114Cf. Gál 1,18; 2,9.11.14; IC or 1,12; 3,22; 9,5; 15,5.
115Cf. A t 1,22 (também 2,32; 4,2.33; 17,18); IC or 9,1.
316Cf. A t 2,41 (2,32.36; 3,13; 4,10). Sem isolá-lo: A t 2,32; 3,15; 10,40s.
SECÇÃO IV: A IGREJA & APOSTÓLICA 191

b) O apostolado não supõe somente a visão do Senhor ressusci­


tado, mas também a eleição e a missão. Nos evangelhos temos dois
tipos de vocação apostólica: a vocação-atração, que termina no fato
de seguir Jesus e permanecer com ele. O Evangelho de João ofere-
ce-nos um exemplo dela na vocação de André e de outro discípulo,
que é provavelmente o próprio João (1,35-42); a vocação constitutiva
do apostolado, que termina na entrega de uma função ou de uma
missão. A este respeito, os três primeiros evangelhos concordam em
designar Pedro como primeiro chamado e primeiro enviado: Mc 1,16-20;
Mt 4,18s e 10,2 ( n e S - i o ; ~2íjic o v ò kgyóprvoç Í I é t q o ç ) ; Lc 5,1-11 tem o
mesmo sentido: Pedro aparece como personagem principal, sendo Tiago
e João chamados com ele e como associados seus. Todas as listas dos
apóstolos começam por Pedro e terminam por Judas, qualquer que
seja a ordem dos outros nomes: cf. Mt 10,2ss; Mc 3,16-19; Lc 6,14ss;
A t 1,13.
 vocação de Pedro está ligada uma mudança de nome: Mc 3,16;
Jo l,áls, corroborados por Lc 6,14; Mt 16,18 e pelo uso de Paulo
(supra, nota 115). Nossos textos não concordam quanto ao momento
em que Jesus chamou Simão de «Rocha» (como também não concor­
dam, por exemplo, quanto ao momento do logion decisivo sobre o tem­
plo e a purificação deste), mas a atribuição por Jesus do nome de
Cefas não oferece dúvida alguma. E ’ sabido que na antiguidade, em
geral, o nome estava estreitamente associado à natureza ou à essência
das coisas; entre os assírio-babilônios, chamar uma coisa por seu
nome era conferir-lhe a realidade que o nome designava de uma
forma estável. Na Bíblia, o fato de que Deus chame um homem por
seu nome traduz o ata soberano de Deus,que escolhe quem quer e,
por sua livre eleição, cria aquilo que quer e diz. Jesus chama Simão
de «Rocha». Não da mesma maneira como chama familiarmente Tiago
e João «filhos do trovão». 'Isto correspondia perfeitamente à sua
condição; mas a alcunha não permaneceu, o que prova que era oca­
sional e pessoal. O nome de «Rocha» permaneceu no caso de Simão,
sobrepondo-se inclusive a seu nome pessoal. Simão era por natureza
exatamente o contrário de um rochedo: homem impulsivo, espontâ­
neo e impressionável. Da mesma maneira que Deus, por graça, havia
mudado o nome de Abrão em Abraão (Gên 17,5), o de Sarai em Sara
(v. 15), e de Jacó em Israel (32,29) — são os únicos casos em que
o próprio Deus muda um nome; sua mudança comporta cada vez
uma promessa e trata-se da construção do povo de Deus em seus
fundamentos, — assim muda o nome de Simão e o acompanha de um
novo nome por eleição e por graça (cf. Mt 16,17s): no novo povo
de Deus, na Igreja que Deus edificará, Simão Pedro terá o ofício
de primeiro fundamento de pedra,
c) A autenticidade literária de Mt 16,13-19 é geralmente reco­
nhecida na atualidade, inclusive por quase metade dos exegetas pro­
testantes. 117 A principal dificuldade contra sua autenticidade histórica

™ P a ra os de língua alemã, cf. F. O b r i s t, Echtheitsfragen und Deutung


der PrimatsteUe M t 16,18f in der deutschen protestantischen Theologie der
192 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

provinha da pretensa falta de verossimilhança que Jesus tivesse fa­


lado de «minha Igreja». E ’ o único lugar em que se lhe atribui este
termo do vocabulário paulino e o único lugar em que este termo
aparece com seu sentido pleno nos evangelhos. Isto o toma suspeito,
tanto mais que evoca o futuro histórico de uma comunidade, de sorte
que Jesus falava da vinda eminente do reino de Deus. Ignoramos
qual seja a palavra aramaica empregada por Jesus (existem pelo
menos três possibilidades). Mas a realidade significada pelo nome de
Igreja não está presente sob outras formas na pregação de Jesus,
como a do rebanho do qual é pastor e ao qual promete o reino (Lc
12,32)? O tema do pastor tinha todo um contexto vétero-testamentá-
rio (E z 34; Miq 5,3) que lhe empresta uma densidade comunitária.
O mesmo acontece com a imagem do templo que ele reconstruirá em
lugar do templo judaico (Mc 14,58; Jo 2,19); finalmente, com o fato
de ter constituído, embora no âmbito judeu, um grupo de discípulos
portador do dinamismo do reino de Deus. Jesus pensou em reunir a
assembléia messiânica e a inaugurou em seus apóstolos, dos quais
Pedro é o primeiro. A existência da comunidade de Qumran, em plena
tensão para a escatologia, mostra que a perspectiva escatológica não
se opõe à constituição de uma comunidade messiânica. Compreendem-
se melhor as relações entre a Igreja e a escatologia quando se tira
da objeção um valor que já não tem desde o momento em que se escla­
receu o fundo vétero-testamentário dos evangelhos (idéia de povo de
Deus, etc.).
Mateus situa o episódio num momento decisivo e significativo de
seu relato. E ’ verdade que os demais evangelhos não acrescentam à
confissão de Pedro a solene promessa que a acompanha em Mt, mas
também situam esta confissão mais ou menos na metade do relato
(Mc 8,27-33; Lc 9,18-22; Jo 6,67s). Quanto a Mt, o lugar que deu
a este episódio corresponde à sua catequese cuja intenção devemos
reconhecer e respeitar. Até este momento Jesus queria sobretudo mos­
trar que era o Messias; a partir do ponto decisivo da confissão de
Pedro, da transfiguração e do anúncio da paixão, Jesus se empenha
em mostrar que tipo de Messias deve ser ele: um Messias na linha
do Servo sofredor. Depois de um momento de acolhida favorável e
de relativo êxito entre o povo da Galiléia, a palavra de Jesus encontra
a oposição cada vez mais dura nos escribas, fariseus e sumos sacer­
dotes. Jesus sabe e diz que vai para a morte («subimos a Jerusalém»).

letzten dreissig Jahre = Ntl. Abh. 21, Münster, 1960, onde mostra que a
metade dos exegetas protestantes alemães admite a autenticidade do logion.
A maior parte deles reconhece que Pedro recebeu uma verdadeira «Vorm acht-
stellung, mas de ordem pessoal, e que lhe conferiu um a autoridade moral,
limitada no tempo e intransmissível. O livro de O. Cullmann (ef. nota 113)
não superou o tratamento excessivamente negativo que os protestantes da­
vam a nosso texto a não ser estabelecendo uma nova form a de recusar aa
conseqüências eclesiológicas que os católicos tiram do texto. Levantou-se uma
última dificuldade, relativa não ao conjunto da passagem, mas aos versículos
18s: Justino e Ireneu os ignoram, ao passo que Tertuliano e Orígenes os co­
nhecem. Portanto, diz-se, teriam sido introduzidos pelo ano de 190. M as onde,
por quem e como? GE. W . ; L, D u í i è r e , L a .péricope súr le «P o u voir des
clés»: « L a Nouvelle Cllo» 6 (1954);,'íQ-90.-
SECÇÃO IV: A IGREJA S APOSTÕLJCA 193

E ’ então que, anunciando sua morte, que não deve ser um fim, mas
um germe, dá a entrever o porvir de sua obra. E é no meio da in­
compreensão das massas e da oposição dos notáveis, que suscita e recebe
o primeiro ato de fé; vê aflorar o primeiro alicerce do edifício que
deve ser sua comunidade messiânica.
Por isso declara Jesus a Pedro, que confessa sua messianidade e,
profeticamente, sem ainda dar às palavras seu sentido pleno, sua filia­
ção divina: «Tu és Rocha, e sobre esta rocha edificarei a minha
Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela». Existe
grande número de antecedentes bíblicos, rabínicos e, atualmente, essê-
nios que permitem ilustrar a idéia do templo ou da comunidade mes­
siânica edificados sobre a rochada verdade: Abraão, o crente, era
assim um rochedo, um alicerce sobre o qual descansava o povo esco­
lhido. 118 Nessa construção, a solidez que cabe à comunidade da ver­
dade (cf. os usos do verbo ’aman) será como que a continuação e a
irradiação desse primeiro apoio na verdade graças à qual, crendo (sem­
pre o verbo ’aman), Pedro foi declarado Rocha. O próprio Jesus tinha
comparado aquele que escuta a palavra e a põe em prática a um
homem que não edifica sua casa sobre areia, mas sobre pedra: Mt
7,24-27; Lc 6,47ss. Estamos no âmbito de uma solidez que um edifí­
cio recebe daquilo sobre o qual se apóia: a Igreja terá a solidez
daquilo que Cristo edificar sobre este rochedo que é Pedro no momento
em que, por uma graça recebida do alto, este confessa sua fé em
Jesus Messias e Filho de Deus.
Os apóstolos poderão ser chamados «fundamentos da Igreja» (E f
2,20; Apc 21,14): Pedro é designado, em razão de sua fé, como
sendo o solo rochoso sobre o qual repousam os próprios alicerces.
Isto qualifica de maneira singular sua própria condição de apóstolo.
Mas o texto continua: «Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que
ligares sobre a terra será ligado no céu e o que desatares sobre
a terra será desatado no céu».
As chaves significam a autoridade de administração de uma casa
ou de um território. Se se trata de uma casa, será a função de mor­
domo ou administrador; se se trata de um reino, a de primeiro mi­
nistro ou vizir. A referência clássica para este caso é a história de
Seba, substituído em seu cargo de vizir por Eliaquim, a quem é en­
tregue «a chave da casa de Davi: se ele abre, ninguém fechará;
se ele fecha, ninguém abrirá» (cf. Is 22,19-22). Portanto, as chaves
designam o poder que um lugar-tenente recebe de seu senhor para
administrar sua posse em seu nome e lugar (cf. no NT, em resposta

118Antecedente bíblico: Is 28,16; cf. Y. C o n g a r , L e M ystère du Temple,


Paris, 1958, 165; antecedente rabinico: as especulações, sobre a pedra funda­
mental do templo (cf. J. J e r e m i a s , Golgotha u. der hL F e l s .. . : «Aggelos,
Archiv. f. Ntl. Zeitgesch. u. Kulturkunde» 2 [1926], 74-128; R. G r a b e r ,
Petrus der Fels, 27s; O. K a r r e r , tfm die Einheit der Christen, 97, 102), ou
sobre Abraão, a partir de Is 51,1 (cf. J. Jeremias, loc. cit., 114); antecedente
essênio: O. B e t z , Felsenmaim und Felsengemeinde (E ine Farallele zu M t
in den Q um ranpsalm en): Z N W 48 (1957), 49-77; R . S c h n a c k e n b u r g ,
D ie Kirche im N T = Q D 14, Friburgo, 1962, 54s. Cf. também O. Cullmann,
T liW V I, 96s e 105s.
CAP. V : P R O P R IE D A D E S E S S E N C IA IS DA IG R E J A

a uma pergunta de Pedro, Mt 24,45s; compare-se com este texto


Lc 12,41 e Mc 13,34). A referência a Hbr 3,2s serviria de apoio ao
paralelismo freqüentemente estabelecido pelos Padres e pela arte pa-
leocristã entre Pedro e Moisés.
Numerosos exegetas católicos pensam que o logion sobre atar e
desatar pertence a outro contexto: com o paralelo de Mt 18,18 per­
tenceria à entrega do mandato apostólico feito pelo Senhor ressusci­
tado; o trecho paralelo de Jo 20,23 teria conservado sua verdadeira
localização. ™ Separado da entrega das chaves, o texto não conferiria
diretamente nenhum privilégio a Pedro; este, instituído pelas chaves
administrador da casa de Deus, possuiria, todavia, as chaves de uma
forma superior e privilegiada. As palavras «atar e desatar» não expri­
mem só uma idéia de totalidade, mas, segundo numerosos paralelos
rabínicos,320 a de uma autoridade sobre dois pontos:
1) por suas determinações magisteriais, os rabinos podiam decla­
rar uma coisa lícita ou proibida, e dessa forma ligar ou desligar as
consciências ;
2) os rabinos podiam condenar ou absolver e, portanto, excluir
da comunidade ou integrar nela. Assim, em nosso texto (e os de Mt
18,18; Jo 20,23), «o poder de atar e desatar indica o perdão dos pe­
cados, mas não pode limitar-se a ele: designa toda uma atividade de
decisão e de legislação, tanto na doutrina cõmo na conduta prática,
que não é outra coisa senão a administração espiritual da Igreja em
geral. m
As conclusões imediatas de nosso breve estudo de Mt 16,13-19,
tal como aparecem a uma simples leitura do texto, podem ser formu­
ladas assim: 1) Pedro é o começo da Igreja que será edificada sobre
a fé que ele foi o primeiro a confessar. Na função apostólica de
fundamento, está qualificado por sua fé como primeiro alicerce de
pedra. 2) Pedro é o administrador da casa de Deus e exerce um mi­
nistério tal que abre e fecha o acesso ao reino de Deus. 3) Pedro
tem oque terão os discípulos, a saber: a autoridade espiritual, e
talvez recebida ao mesmo tempo que eles. Todavia, por ser o primeiro
no apostolado e o administrador que abre e fecha o acesso ao reino,
possui esta autoridade de forma principal.
Depois de um primeiroverbo no presente («tu és Rocha»), os
verbos desta perícope estão no futuro : exprimem uma promessa. A
passagem está assim em perfeita consonância com o conjunto da re­

119Cf. A. V ö g t l e , Messiasbekenntnis und Petrusverheissung (cf. nota 113>


e Jesus und die Kirche (cf. nota 113). Aceitaram esta idéia E. Boismard, C.
Spicq, P . Benoit, J. Sehmid.
““ Cf. J. J e r e m i a s , yj.síç: T m W III, 743-753; P. B i i c h s e l , ôéto: T h W
II, 59s; id„ 1-6(0: T h W IV , 337s; K . A d a m , Zum ausserkanonischen und
kanonischen Sprachgebrauch von Binden und Lösen: ThQ 96 (1914), 49-64;
161-197 = Ges. Aufsätze, Augsburgo, 1936, 17-52; O. M i c h e l , Binden und
Lösen: R A C I I (1952), 374-380, e, é claro, Strack e Billerbeck, I, 738-747. H.
V orgrim ler propõe outra interpretação, m as que, do ponto de vista eclesio-
lógico, leva aos mesmos resultados, por um a referência ao poder demoníaco:
Matthieu 16,18s et le Sacrement de pénitence, em L ’homme devant D ieu (Hom.
H . de L u b ac), I, Paris, 1963, 51-61.
“ P. Benoit, R B 60 (1953), 576.
SECÇÃO IV: A IGREJA Ê APOSTÓLICA 195

velação ou da história da salvação, marcada pela coneatenação e pro­


messa e cumprimento. A promessa fundamenta o cumprimento, mas
este revela o conteúdo da promessa, que não aparecia num simples
enunciado. Pode-se pensar a priori que os fatos esclarecerão o texto.
Todo o mundo o admitirá se se trata dos fatos da história pessoal
de Pedro tal como no-la descrevem os Atos dos Apóstolos. Os cató­
licos pensam, além disso, que estas promessas têm um alcance e um
valor para toda a história da Igreja, contra a qual jamais prevale­
cerão as portas do inferno e na qual deverão exercer-se o ministério
das chaves e aquele de atar e desatar, dos quais Pedro singularmente
e depois todos os apóstolos foram investidos. A promessa de não
sucumbir ao ataque do anti-reino é dirigida diretamente à Igreja; só
indiretamente esta promessa pode ser aplicada a um ministério par­
ticular: na medida em que este ministério tem valor escatológico e
tende a conservar a Igreja na fidelidade de fé a seu Senhor até que
este volte.
d) Em Lc 22,31s tenderíamos a ver, à primeira vista, apenas uma
alusão a uma circunstância e a relações pessoais entre Pedro e Jesus,
sem alcance eelesiológico. Olhando mais de perto, contudo, aparece
melhor o valor escatológico desta passagem: o contexto imediato re­
fere-se ao destino dos apóstolos e ao futuro da obra messiânica. A
idéia de um assalto de Satanás contra os santos era bem conhecida:
Zacarias o mostrava acusando o sumo sacerdote Josué (3,ls). Zac 3,
ls e 13,7 (a que se referem Mt 26,31 e Mc 14,27) eram utilizados
nos meios essênios (comunidade da nova aliança no país de Damasco
e em Qumran) para falar de um momento em que Satanás teria licen­
ça para tentar sacudir os fiéis que formavam a comunidade messiâ­
nica. Jesus alude a esse tipo de assalto. Como protegerá Jesus os seus?
Rogando pela fé de Pedro, que, segundo Mt 16,17ss, era o fundamento
de uma comunidade contra a qual não podiam prevalecer os poderes
infernais. Existe um notável paralelismo entre os dois textos:122

Mt Lc
As portas do inferno (lutam) Satanás vos procurou para vos joeirar
Eu te digo Eu roguei por ti
Tu és pedra A fim de que tua fé não desfaleça
E sobre esta pedra Tu, uma vez convertido,
Edificarei minha Igreja Confirma teus irmãos

E ’ verdade que Jesus rogou também pelos demais apóstolos e


inclusive por todos os fiéis que haviam de crer em sua palavra (Jo
17,9s.20). Aqui, pois, encontramos uma estrutura semelhante à das
outras passagens: uma coisa que é dada a todos dá-se particularmente
a Pedro, seja o poder de ligar e desligar (M t 16,19; 18,18), ou a con­
dição de fundamento (M t 16,17; E f 2,20; Apc 21,14), ou a de pastor
(Jo 21,15ss; lP d r 5,2 e A t 20,28); em todos estes casos Jesus participa

“ Cf. E. P . S u t c l i f f e , «E t tu aiiquando conversus»: St. lA tk e 22,32:


C B Q 15 (1953), 305-310.
196 CAP. V : P R O P R IE D A D E S E S S E N C IA IS DA IG R E J A

uma coisa primeiro a um só indivíduo e depois a todos, segundo uma


lei constante de comunicação hierarquizada. Isto não significa que os
demais o recebam de Pedro; também eles o recebem do Senhor, mas
Pedro, no meio deles, recebe por primeiro e de uma forma singular.
Voltemos ao relato dos acontecimentos da Páscoa em Lc. Os após­
tolos haviam considerado tagarelice o que as mulheres lhes haviam re­
ferido (24,11) e estavam completamente desanimados (v. 21). Mas
quando os dois viajantes de Emaús voltaram à noite, encontraram o
grupo absolutamente tranqüilizado e segunro, dizendo: «E ’ verdade. O
Senhor ressuscitou e apareceu a Simão» (w . 34s). Pedro havia confir­
mado seus irmãos.
e) Os quarenta dias que transcorreram entre a ressurreição do
Senhor e esta última aparição que chamamos sua ascensão formam
uma passagem e um laço de união entre o que Jesus havia feito por
nós durante seus dias na carne e o que fez na vida da Igreja, pelo
apostolado e pelo Espírito, depois de seu retorno ao Pai. Durante este
tempo, Jesus falou do reino de Deus (A t 1,4) e pronunciou as palavras
constitutivas do mandato apostólico.123 A célebre perícope de Jo 21,15ss
pertence às disposições que precisam este mandato apostólico. A auten­
ticidade canônica do capítulo, que de resto figura em todos os nossos
manuscritos do Evangelho de João, está fora de dúvida, quer o capítulo
21 fosse primitivamente o último deste evangelho, tendo sido introdu­
zido posteriormente o primeiro final de 20,30 (como pensava M. J. La-
grange, observando que, se se prescinde deste versículo, o texto con­
tinua perfeitamente), quer o cap. 21 tenha sido acrescentado depois,
por um discípulo ou por João.
O texto fala por si mesmo. Trata-se do ofício pastoral, isto é, do
cargo (mandato e poderes correspondentes) de uma solicitude eficaz
exercida com autoridade. O termo «apascentar» tinha no A T um sen­
tido muito rico. O próprio Javé era o primeiro e o verdadeiro pastor
de seu povo; mas seu enviado Jesus, filho de Davi, devia sê-lo por
sua vez (Miq 5,1-5; Mt 2,6). E, efetivamente, o foi (cf. Jo 10; Mt
26,3) e continuaria a ser sempre pastor (IP d r 2,25; 5,4). Mas neste
momento Jesus instituía outros para apascentar visivelmente seu re­
banho durante o tempo de sua ausência corporal. E ’ verdade que na
Igreja haveria numerosos pastores (E f 4,11; A t 20,28), mas Jesus sepa­
rava e instituía um deles cujo ofício pastoral seria universal, esten­
dendo-se a tudo aquilo que pertencia, cordeiros ou ovelhas, ao rebanho
do Senhor. “ 4

123Segundo nossos evangelhos, Jo 20,21ss; M t 28,18ss; M c 16,15-18; L c 24,


47ss; A t 1,8. A. Vògtle pensa que o verdadeiro lugar de M t 16,19b; 18,18 é
esse momento das aparições de Cristo ressuscitado: Ekklesiologische Auftrags-
worte des Auferstandenen, em Sacra Pagina, II, Paris, 1959, 280-294.
121Cf. T h W V I, 497. Se — como supõe O. C u l l m a n n (op. cit., 34s,
40) — Pedro, depois de ter sido chefe da Ig re ja incipiente em Jerusalém,
teve a direção d a missão judeu-cristã, a afirmação, em Jo 21,15ss, de um a
missão pastoral sobre a totalidade do rebanho indicaria que a missão par­
ticular de Pedro não acarretou nenhuma restrição no encargo que Jesus lhe
havia confiado (cf. O. Cullmann, 56).
SECÇÃO XV: A IG R E J A £ A PO S TÓ LIC A 197

Alguns apenas vêem neste texto um episódio referente à pessoa


de Pedro, uma forma de perdão à sua tríplice negação ou, pelo con­
trário, um chamamento dirigido a todos através da pessoa de Pedro.
Desta forma, tiram a força do texto. Outros dão ao texto não só uma
plenitude, mas também uma precisão de sentido excessiva: segundo R.
Graber, a passagem, escrita na época em que João era o único sobre­
vivente do colégio apostólico, teria procurado evitar que os fiéis jul­
gassem que João era o chefe da Ireja e orientá-los para a autoridade
que tinha a sucessão de Pedro. A famosa carta de Clemente de Roma
à Igreja de Corinto, aproximadamente contemporânea da redação deste
texto, constituiria uma espécie de ilustração do mesmo. Sem negar que,
como pensam vários exegetas, o fato de passagens como Mt 16,13-19
e Jo 21,15ss terem sido inseridas nos evangelhos depois da morte de
Pedro tenha algum valor para sugerir que Pedro deveria ter um suces­
sor em suas funções, dificilmente se pode atribuir a este texto um sen­
tido imediato tão preciso, que responda de forma tão clara a níossa
preocupação. De qualquer forma, trata-se do vicariato de Cristo-Pastor
concedido a Pedro. Mais uma vez, Pedro recebe pessoalmente, de ma­
neira singular e de certo modo numa plenitude ilimitada, o mesmo
que será dado a outros. Os diferentes textos petrinos têm esse mesmo
ritmo e essa mesma estrutura; a convergência tem também como tal
seu valor, que é acrescentado ao valor intrínseco de cada uma das
passagens.
f) A função de Pedro segundo os Atos e outras passagens dos
evangelhos: Pedro é nomeado 114 vezes nos evangelhos e 57 vezes nos
Atos; João, que é omais mencionado depois dele, aparece 38 e 6 vezes,
respectivamente. Com freqüência Pedro é mencionado como represen­
tante de todos os apóstolos e de toda a Igreja (cf. Mt 17,24-27; Mc
14,26-31.34.37; Lc 5,4-11). Muitas vezes Pedro expressa as questões
levantadas pelos discípulos (M t 18,21; Lc 12,41; Mc 10,28 par.), ou
um evangelista atribui a Pedro a questão levantada por eles (cf. Mc
7,17 e Mt 15,15; Mt 21,20 e Mc 11,21). As pessoas de fora tomam
Pedro como representante do grupo (M t 17,24): os demais às vezes
são chamados «os que estão com Pedro» (Mc 1,36; Lc 8,45; 9,32; cf.
A t 2,14; 5,21 e final breve de Mc). De outro lado, embora compreen­
dido no número dos Doze, Pedro freqüentemente é nomeado à parte
(Mc 16,7; A t 2,14.37; 5,29; ICor 9,5), e vimos que recebe em particular
e em toda a sua amplitude títulos que serão também dados aos outros.
Tudo isso significa que Pedro tem no colégio apostólico algumas fun­
ções de representação e de iniciativa. Esta função é a que o vemos
exercer nos Atos, ao menos nos doze primeiros capítulos, que nos

123N ão negamos, evidentemente, que a tríplice pergunta possa estar rela­


cionada com a tríplice negação, ainda que a tríplice repetição seja um a
fórm ula freqüente nos relatos bíblicos. U m a alusão à negação de Pedro não
tira nada do alcance positivo do texto; pelo contrário, situa-o em sua ver­
dadeira ordem, que é a da graça e não a das disposições naturais. H á um
Simão Pedro segundo a carne, que é débil e que até foi «pedra de escândalo»
(M t 16,23), e um Pedro segundo a promessa, que é forte pela vontade da­
quele que o elegeu. Os três textos relativos a Pedro que aqui analisamos
mencionam a debilidade de Pedro, ligada à afirmação de seus privilégios.
198 CAP. V : P R O P R IE D A D E S E S S E N C IA IS DA IG R E J A

falam dele, já que o plano de São Lueas nos Atos comporta uma dis­
tinção de funções entre Pedro e Paulo, de maneira que, salvo no cap.
15, não se fala mais de Pedro depois do misterioso v. 17 do cap. 12.
De nossa parte, pensamos — e o testemunho mais tardio de escritos
não-canônicos“6 poderia confirmar esta convicção — que Pedro conti­
nuou sendo, depois de sua partida «para outro lugar», o que tinha
sido até então: um apóstolo qualificado pela representatividade e ini­
ciativa, isto é, um chefe no apostolado. Em todo caso, os doze primeiros
capítulos dos Atos no-lo mostram assim. Pedro preside, levanta-se,
fala (1,15; 2,14; 15,7); sua palavra é a do testemunho (cf. 2,41);
Ananias e Safira depositam seus haveres «aos pés dos apóstolos» (5,
12), mas é Pedro quem os castiga. Mencionam-se os milagres dos
apóstolos, mas ainda aqui dirige-se a atenção para Pedro (5,15). Ele
é impelido pelo Espírito Santo, antes de qualquer outro, a abrir a porta
da Igreja aos pagãos, e quando o assunto é discutido sinodalmente,
depois de um longo debate (15,7), Pedro fala e a «assembléia fica em
silêncio» (v. 12).
g) Como aparece Pedro nas cartas de Paulo? Não insistamos no
testemunho que dariam de sua autoridade passagens como ICor 1,12
(cf. 3,3-8.22) e detenhamo-nos em Gál 1,12-2,14, onde alguns admiti­
ram ver um dos mais decisivos testemunhos do primado de Pedro, m
ao passo que outros encontraram enunciada uma situação que exclui
a verossimilhança de tal primado.
Não que o «incidente de Antioquia» (Gál 2,11-14) cause realmente
•dificuldade. Na medida em que estamos bem informados por Lucas (que
tende a atenuar as divergências) é evidente que Pedro e Paulo man­
tinham a mesma doutrina: ambos pensavam que, para o bem das almas
e da paz, era preciso realizar compromissos e fazer concessões. Ne­
nhum apóstolo estava teologicamente tão próximo de Paulo como Pe­
dro. KS Eclesiologicamente, Pedro estava de acordo com Paulo sobre a
evangelização dos gentios e sua entrada na Igreja por meio unicamente
do batismo;120 no fundo, este acordo se estendia às atitudes práticas
que deviam ser mantidas em matéria de pureza ou de contaminação
pelas carnes oferecidas aos ídolos ou por qualquer outra prática rela­
tiva aos alimentos.1™ Mais: Paulo, que havia proclamado: « A circun­
cisão para nada serve», circuncidará Timóteo «por causa dos judeus»

“ Cf. os apócrifos cristãos e judeu-cristãos e os testemunhos pagãos


agrupados por A. von H a r n a c t , Petrus im Urteil der Kirchenfeinde des
Altertums (Hom. K . M üller), Tübingen, 1922, 1-6; A. R i m o l d i , op. cit.
(nota 113), 236s.
™ Assim, X. R o i r o n , Saint P a u l témoin de la primauté de saint Pierre:
R S R 4 (1913), 489-531; J. C h a p m a n , Saint P a u l and the Revelation to
Saint Petei- M t X V I, 17: R B én 29 (1912), 133-147. Estes autores insistem no
fato de que o exemplo de Pedro por si só tem uma autoridade tal («tu
obrigas os gentios a judaizar») que supõe a primazia.
338Cf. A. S c h l a t t e r , Petrus und Paulus nach dem ersten Petrusbrief,
Stuttgart, 1937; P. B o n n a r d , Jésus-Christ construisantson Église, Neuchâtel,
1949, 43s; O. C u l l m a n n , op. cit., 57s.
“»C f. A t 2,38s; 3,26; 10,28.34s.45; 11,ls ; 15,7s.
130Cf. A t 10,lls; 11,2s; 15,11 (com G ál 2,15-21;3,22-26; Rom 11,32; E f 2,
1-10). Cf. também IC or 8; Rom 14,19-15,2.
SECÇÃO IV : A IG B E J A É A P O S T Ó LIC A 199

(A t 16,3); Paulo se fará judeu com os judeus (IC or 9,20) e chegará


a fazer ao clã de Tiago a concessão de unir-se a quatro homens
que haviam feito voto de nazireato e encarregar-se dos gastos dos
ritos que deviam realizar-se (A t 21,23-27). Simplesmente, na conjuntura
de Antioquia, Paulo achou que a concessão feita por Pedro era ambí­
gua e estava cheia de graves perigos: tal concessão chegava a ceder
à pressão do clã de Tiago e levava fatalmente os pagão-cristãos a
quererem passar pelas práticas judias. Paulo se opôs assim a Pedro.
Uma dificuldade mais séria supõe a espécie de distribuição de cam­
pos de apostolado que parece supor Gál 2,7-9, corroborado pelo plano
do livro dos Atos: a Pedro corresponderia a evangelização dos circun­
cidados, a Paulo a dos não-circuncidados. Mas ver aí uma divisão de atri­
buições é introduzir no texto uma idéia preconcebida que não se en­
contra nele. O texto fala de carisma que autentica um apostolado. De
outro lado, vemos Paulo começar por dirigir-se aos judeus na medida
em que isso é possível e Pedro tentar a evangelização dos pagãos.
Distribuir as duas funções em dois âmbitos diferentes teria sido con­
trário ao ideal de São Paulo (cf. E f 2,14-18). Na realidade, o prece­
dente raciocínio da carta aos Gálatas propõe-se reivindicar para Paulo
a qualidade de apóstolo tal como Pedro.
A dificuldade mais séria contra a idéia de um primado de Pedro
não procede de um texto particular, mas do conjunto da teologia de
Paulo tal como se exprime sobretudo na carta aos Gálatas. Para Paulo,
toda a relação religiosa salvífica procede da morte e da ressurreição
de Cristo, princípio de uma vida segundo o Espírito. O que se situa
antes é carnal e foi sepultado na morte de Cristo para deixar lugar
a uma ordem. nova. Nesta ordem Paulo foi constituído apóstolo dire­
tamente pelo Senhor e pelo Pai, que o ressuscitou dos mortos (Gál
1,1). Que podia representar nesta perspectiva a autoridade «daqueles
que eram apóstolos antes (1,17), dos «notáveis»? «Deus não faz acep­
ção de pessoas» (2,6). Que podia representar uma apostolicidade en­
tendida como continuidade dos «acta Christi in carne»? A teologia de
Tiago e do clã que o rodeava em Jerusalém era muito diferente. Estes
permaneciam nos quadros de um judaísmo que tinha recebido e reco­
nhecido seu Messias na pessoa de Jesus. Tão ligados estavam a este
Jesus segundo a carne, que Tiago, de quem se pode pensar que não
era um dos Doze, tinha chegado a ser chefe da comunidade-mãe de
Jerusalém em sua qualidade de «irmão do Senhor», e outro parente,
Simeão, filho de Cléofas, lhe sucederia em seu posto. E’ evidente que
a situação estava ameaçada por uma crise da qual a Igreja nascente
conheceu o maior dos perigos para a sua unidade.
Mas se os homens do clã de Tiago e Jerusalém terminaram por
abrir um acesso aos gentios sobre a base paulina da fé, sem passar

131 P a ra Pedro, cf. A t 2,38s; 10; 11,5-18; 15,7s; lP d r 1,1; 2,10. O «como
Pedro da circuncisão» de Gál 2,7 tem, segundo A. Vogtle, um simples sentido
de anterioridade. Paulo reivindica ter, p ara os pagãos, um a vocação análoga
à que se viu Pedro exercer entre os judeus: D e r Petrus der Verheissung
und der E rfü llun g: M T h Z 5 (1954), 1-47 (esp. 40s).
200 CAP. V : P R O P R IE D A D E S E S S E N C IA IS DA IG R E J A

pelas condições do judaísmo, Paulo fez tudo quanto pôde para conser­
var a unidade, respeitando sua condição de apostolicidade tal como
esta era representada sobretudo por Cefas. De outra forma, ele o reco­
nhecia, teria corrido em vão (cf. Gál 2,2; 1,18) : œ «A seguir, depois
de três anos (na ‘Arábia’ e em Damasco), subi a Jerusalém para visitar
Cefas e permaneci com ele quinze dias». Haviam dito a Paulo que
era preciso estar de acordo com Pedro, que, mais uma vez, incorporava
ou representava o apostolado. Jerusalém, a cidade dos apóstolos e dos
«santos», continuaria a ser para Paulo uma espécie de norma concreta
(cf. ICor 11,16; 14,33b; ITes 2,14); entre as comunidades pagão-
cristãs e estes «santos», a coleta de que Paulo tanto se preocupou seria
um sinal tangível da comunhão e de certa distensão. ™ As apreensões
de São Paulo sobre a acolhida que se prestará à sua oferenda (cf.
Rom 15,31), os termos que emprega para falar dela, indicam a medida
da importância e do sentido que ele lhe dava. Tratava-se em tudo
isso de sua comunhão de apóstolo (no estilo do Vaticano I I falar-se-ia
de «comunhão hierárquica») com o apostolado e a instituição surgidos
da encarnação.
Que podemos concluir do conjunto dos textos rapidamente estuda­
dos? 1) Em primeiro lugar, que o corpo ou colégio apostólico dos
Doze está estruturado. Tem uma cabeça, um «corifeu».134 Pedro é o
primeiro naquilo mesmo que constitui o apostolado. 2) E ’ o primeiro
não só nas prerrogativas intransmissíveis dos apóstolos, como a de
ser testemunha da ressurreição, mas também na autoridade, que con­
verte os apóstolos em chefes da Igreja: poder de ligar e desligar, tes­
temunho ou ensinamento sobre Cristo, ofício pastoral; portanto, em
tudo aquilo para o qual Cristo está com os apóstolos até o fim dos
332Paulo tem interesse em assinalar a conformidade de seu ensinamento
com o dos apóstolos: IC or 15,11. Todavia, não se deve exagerar o alcance
de Gál 1,18, onde krtogfjaai significa «conhecer a».
133Sobre este alcance eclesiológico d a coleta, cf. L. C e r f a u x , I*es
«saints» de Jérusalem: E T h L 2 (1925), 510-529 = Recueil L. Cerfaux, II, Gem-
bloux, 1954, 389-413; id„ S t P a u l et l’unité de 1’É glise: N R T h 53 (1926), 657-
673; B. A l i o , L a portée de Ia collecte pour Jérusalem dans les plans de
saint P a u l: R B 45 (1936), 529-537; F. R e f o u l é , Saint P a u l et l’unité de
l’Église: «Irénikon» 28 (1955), 5-18; J. D u p o n t , Saint Paul, témoin de la
collégialité apostolique et de la primauté de saint Pierre, em L a Collégialité
épïscopale, Paris, 1965, 11-39.
Eusébio, Hist. B cd ., II, 14: «o poderoso e grande entre os apóstolos,
aquele que por sua virtude é o porta-voz de todos os dem ais»; E frém (cf.
a citação em Bento X V , enc. Principi Apostolorum, 5-10-1920 [A A S 457s] );
Cirilo de Jerusalém, Cat., II, 19: «o corifeu e o primeiro dos apóstolos» (P G
33,408); X I, 3: «Pedro, o primeiro dos apóstolos, e o arauto-corifeu da Ig re ja »;
X V II, 27; Epifânio, Haer., L I, 17; Archegos; L IX , 7: Koryphaiôtatos; Gre-
gório Nazianzeno, D e Seipso, 222: «Pedro, cabeça dos discípulos»; Crisósto­
mo, In Jo, hom. 88, 1: «sê o chefe de teus irm ãos» (P G 59,478) ; In Act.
Apost., hom. 3, 1: «Pedro levantou-se no meio dos irmãos e disse com vee­
mência, como aquele a quem Cristo confiou o rebanho e como o primeiro do
coro» (P G 60,33); In illud hoc scitote, 4: «Pedro, corifeu do coro, boca de
todos os apóstolos, cabeça dessa fraternidade, príncipe de toda a oikum ene.. . » ;
m ais textos em Batiffol, Cathedra Petri, Paris, 1938, 185 (nota 24), e sobre­
tudo A. Rimoldi, op. cit. (nota 113), 307s; Nicéforo de Constantinopla, ApoL
pro S. Imag., c. 25 e 36. Os papas às vezes em pregaram o termo «corifeu»;
por exemplo, Gregório I I na carta ao imperador de Constantinopla (cf. P.
Dvom ik, citado in fra [nota 136], 83). P a ra outros títulos ainda mais fortes
dados a Pedro (princips, principatus, etc.), cf. A. Rimoldi, op. cit. (nota 113),
301-309.
SECÇÃO IV: A IGREJA £ APOSTÓLICA 201

tempos (M t 28,20). Por outro lado, não se deve separar muito, embora
seja preciso distinguir, o transmissível e o intransmissível na pessoa
apostólica de Pedro. O importante para nosso tema é que, no colégio
dos Doze, Pedro foi colocado pelo Senhor na posição de cabeça.
Isto significa que, se a apostolicidade é a permanência da Igreja,
não só na doutrina dos apóstolos, mas também na forma de ministério
herdada deles, o que se realiza na sucessão apostólica, esta comportará
uma estrutura colegial na qual a função de Pedro como o primeiro,
como representante do corpo, conhecerá uma permanência. 'No N T a
Igreja é considerada como uma adesão de numerosos fiéis aos apósto­
los (A t 2,41s.47); a Igreja consiste em estar com eles. Mas eles mes­
mos são apresentados várias vezes como os que estão com Pedro (cf.
supra, nota 118): tal é a estrutura de unidade que realiza uma aposto­
licidade também estruturada. E ’ verdade que não se fala expressamente
de uma sucessão de Pedro em sua posição de primeiro quanto à ini­
ciativa e representação. E ’ preciso deduzi-la mediante um raciocínio;
os textos que fundamentam esta prerrogativa de Pedro apontam para
um futuro e entram no estatuto de promessa e cumprimento que é
próprio da economia salvífica. Trata-se em tudo isso da duração da
Igreja, como se pode inferir de Jo 21,15-17 e, mais expressamente ainda,
de Mt 16,18 («as portas do inferno não prevalecerão contra ela»).
Outros dogmas fundamentais também supõem um raciocínio, como o
da divindade pessoal do Espírito Santo. E ’ necessário admitir que a
revelação se explicita na Igreja. E ’ a história, guiada por Deus, que
constitui o lugar onde se revela a lei de fé e de vida da Igreja.
Durante os últimos decênios realizou-se um progresso considerável
no sentido de um amplo acordo entre católicos e protestantes em
terreno exegético. Mas subsiste uma diferença de alcance geral: en­
quanto os católicos descobrem, nas palavras do Senhor, uma intenção
institucional, os protestantes não vêem nas mesmas passagens mais do
que um episódio de alcance simplesmente histórico e pessoal. Ambas
as posições parecem dar por resolvida uma questão prévia: Jesus quis
e fundou uma Igreja? Ou, pelo contrário, a Igreja é obbra do Espírito
Santo?

2. O bispo de Roma, sucessor de Pedro

a) Breve resumo histórico

Compreender-se-á que deixemos de expor aqui a história da função


de Pedro na apostolicidade da Igreja. Só podemos indicar as grandes
linhas no desenvolvimento dezenove vezes secular, no plano de conclu­
sões de um estudo cuja documentação nos dispensamos de dar.
Roma sempre teve consciência de possuir, para a totalidade da
Igreja, uma função de solicitude, com o direito correspondente de in­
tervir para conservar a tradição da fé e moderar a vida eclesiástica
cada vez que esta se via em perigo de uma forma ou de outra, quer
se recorresse a ela, quer tomasse ela a iniciativa. As intervenções de
202 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

Roma assumiam, pois, a forma de uma ajuda e eventualmente de um


juízo. Essas intervenções tendiam a conservar a unidade e, para isso,
as condições de sua vida eclesiástica sadia. Para isso Roma referiu-se
desde cedo aos textos evangélicos que privilegiaram o apóstolo Pedro,“ 5
assim como ao fato de que Pedro e Paulo, que haviam morrido por
Cristo em Roma, continuavam estando presentes nela por suas relíquias,
sua graça e sua autoridade. A Igreja romana tinha a sucessão de Pedro
e Paulo: a de Pedro, no plano da autoridade de que ele mesmo havia
gozado, por vontade do Senhor, no seio do colégio dos apóstolos.
Fora de Roma, as igrejas geralmente reconheceram algo de um
privilégio da sede de Roma. Todavia, muitas delas não puseram nesse
privilégio aquilo que a própria Roma punha nele. Tal é em particular
o caso da África e do Oriente. Na África, a consciência eclesiológica
estava ligada à idéia da própria, ecclesia e de sua unidade. No Oriente,
a autoridade que se reconhecia à sede romana não era tratada isolada­
mente da que se reconhecia a outras sedes e ao consentimento das
igrejas expresso nos concílios; além disso, esta autoridade não estava
fundada nos privilégios concedidos pelo Senhor a Pedro: Basílio, João
Crisóstomo e posteriormente João Damasceno falam magnificamente de
Pedro, mas passam em silêncio seus sucessores romanos. Não é que este
passo não seja dado no Oriente, sobretudo no século V I I . 1,8 Mas no
Oriente a monarquia religiosa do imperador tornava difícil um pleno
e franco reconhecimento de uma autoridade de jurisdição do bispo de
Roma, sucessor de Pedro.
No Ocidente, pelo contrário, aceitou-se em conjunto esta autori­
dade e chegou-se a aceitá-la no sentido de que Roma tinha consciência
de possuí-la e querer exercê-la. Infelizmente foi sobretudo durante o
conflito endêmico entre a autoridade sacerdotal suprema do papa e a
dos imperadores e reis que se formulou, na Idade Média, a autoridade
pontifícia. Roma era a campeã e o sustentáculo da libertas ecclesiae.
Até mesmo as expressões puramente eclesiológicas dos privilégios que
o bispo de Roma tinha pela sucessão de Pedro se ressentiram do fato
de que sua reivindicação se realizou como a de uma monarquia sacer­
dotal frente à monarquia imperial ou às pretensões de autonomia por
parte dos príncipes. Isto é muito claro na ideologia de um Gregório
V II («Quaecumque ligaveris super terram»), dos papas do século X II,
de Inocêncio I I I («Vicarius Christi», «Plenitudo Potestatis»), de Boni­
fácio V III (bula Unam Sanctam). O elemento jurisdicional e jurídico

183Encontramos esta referência no papa Calisto, em seu famoso edito


de indulgência (pelo ano de 220): P. B a t i f f o l , I/Église naissante, 350
(nota 1 ); P. H e i l e r , Altkirchliche Autonomie und päpstlicher Zentralismus,
Munique, 1941, 9 (nota 45a), com referência a E. Caspar. Segundo A. Rimoldi,
op. cit. (nota 113), 80 e 323, a união entre o tu es Petrus e a Ig re ja romana
teria sido instaurada por Tertuliano e depois por Cipriano: a carta de
Firm iliano de Cesaréia faz pensar que o papa Estêvão a invocava, m as A.
von H am a c k pensava que o papa Victor podia ter-se referido já a ela
em sua intervenção a propósito d a questão d a Páscoa: Ecclesia P e tri propinqua.
Z u r Geschichte der Anfän ge des Prim ats des römischen Bischofs, 1927, 141;
id., Christus praesens. Vicarius-Christi. E ine kirchengeschichtliche Skizze: S A B
34 (1924), 433.
im Qj- p D v o r n i k, Byzance et la Prim auté romaine, Paris, 1964, 79, 81.
SECgÃO IV : A IGREJA Ë APOSTÖLIOA 203

do primado assumiu por este motivo uma supremacia absoluta, ao


passo que, por diversas razões, os aspectos propriamente eclesiológicos
de comunhão, colegialidade, sacramentalidade, ofício pastoral missioná­
rio, Igreja local de Roma foram pouco desenvolvidos. O primado foi
reivindicado como autoridade sobre, sem a complementaridade de um
primado em. As correntes ideológicas que se inspiravam numa consciên­
cia deste segundo aspecto (pré-galicanismo, conciliarismo, galicanismo,
episcopalismo), argumentando freqüentemente com elementos verdadei­
ramente tradicionais, desconheciam o elemento do primado sobre e da
plenitudo potestatis. Tais correntes foram progressivamente eliminadas.
As correntes de oposição mais radical saíram da comunhão católica
(Oriente, reformas protestantes) ou morreram por extinção (ideologia
africana). Roma tomou-se senhora do terreno.
O dogma papal foi solenemente afirmado nos Concílios de união
de Lião (1274: sem verdadeira representação da Igreja oriental) e de
Florença (1439: com uma autêntica participação dos gregos) e, final­
mente, foi definido no Concílio Vaticano I (1870), ao qual o Vaticano
I I trouxe o complemento necessário de uma doutrina do episcopado e
da colegialidade (21 de novembro de 1964).w Grande número de estu­
dos teológicos aplicaram-se desde então a elaborar esta doutrina, har­
monizando-a com o dogma do primado e da infalibilidade papais.198 A
história fez muito para que se chegasse a este ponto. Estamos conven­
cidos de que tem ainda muito a dizer antes que os cristãos possam
pôr-se de acordo sobre a questão do papado e de seu verdadeiro lugar
na Igreja de Jesus Cristo.

b) Ponto de vista teológico

A Igreja continua em seus ministérios as estruturas do colégio


apostólico enquanto os apóstolos foram chefes da Igreja (parte trans-

œ Profissão de fé do imperador M iguel Paleólogo (6-7-1274 [D S 861]);


bula de união Laetentur Caelx (6-7-1439 [D S 1307]); Vaticano I, const Pastor
A etem us (18-7-1870 [D S 3053-3075]); Vaticano II, const. IiUmen Gentium, cap.
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Sobre a história da noção (além de Colson e Léeuyer), cf. A . M. S t a n ­
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204 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA

missível e transmitida de sua tarefa e de seus poderes). Este princípio,


que orienta nosso tratamento do problema, leva a estabelecer duas
afirmações antinômicas e complementares:
a) A sucessão apostólica nos poderes do ministério não só de Pe­
dro, mas do colégio. A este propósito, a autoridade do papa é uma
autoridade no colégio. Pensamos que aqueles que, seguindo Cayetano
e Belarmino (cujas posições, de resto, não coincidem inteiramente), se
deixaram dominar por uma idéia abstrata da condição de «vigário de
Cristo» própria do sucessor de Pedro e chegaram assim a afirmar uma
monarquia pontifícia esquecem a realidade do colégio apostólico e a
do colégio episcopal. No fundo, para Cayetano, e mais ainda para
Belarmino e Suárez, não há sucessão que derive dos apóstolos e de
seu colégio quanto à jurisdição: para eles não há sucessão no poder
de governar a Igreja universal a não ser a partir de Pedro.159 Tal
posição sacrifica a realidade do colégio a uma monarquia papal que
não encontra fundamento nos textos do N T nem nos fatos e teste­
munhos da história antiga da Igreja; trata-se de uma dedução da
escolástica medieval, que ignorava a eolegialidade e que não soube
tomar posição em favor do poder papal contra as teses conciliaristas
a não ser levando a idéia de «vigário de Cristo» até uma concepção
monárquica, inteiramente inadequada para exprimir a realidade em ques­
tão. Isto levaria a não ver mais do que uma sucessão apostólica de
Pedro e desconhecer a dos demais apóstolos.
(3) Todavia, a sucessão de Pedro não é a mesma que a dos demais
apóstolos: 1) A de Pedro é pessoal, porque tinha pessoalmente uma
tarefa específica dentro do colégio apostólico; a sucessão de Pedro
assegura a seu sucessor o privilégio de chefe que Pedro tinha recebido
no colégio dos ministros apostólicos. A sucessão dos demais apóstolos
é colegial. Não se enganava Cayetano ao observar que não há sucessor
de um privilégio pessoal de João, Tiago ou de Paulo; mas, como se
fazia na Idade Média, Cayetano considerava os apóstolos isolados e
não em seu colégio, e esquecia assim a sucessão colegial dos bispos
em relação com o colégio apostólico. 2) Pedro recebeu pessoalmente,
independentemente dos demais apóstolos, o privilégio das chaves e da
função pastoral universal, que o constitui não somente chefe do colé­
gio, mas também chefe da Igreja e, se há interesse em empregar este
título — a nosso modo de ver um pouco ambíguo, — «vigário de
Cristo». Isto é o que se deduz dos textos neotestamentários que estu-

ziali tra U X V I e il X I X secolo, Roma, 1964; G. Medico, R S P h T h 49 (1965),


369-402; L. M o r t a r i , Consacrazione episcopale e Collegialità, Florença, 1969.
139 P a ra Cayetano, o poder foi dado aos apóstolos de form a estritamente
pessoal e estava limitado a eles: não há sucessor de João, de Tiago ou de
Paulo na autoridade de governar a Ig re ja universal. Cf. D e comparatione
auctoritatis P apae et Concilii (ed. Pollet), Roma, 1936, c. 3, n. 39, p. 28.
Isto é verdade quanto à sucessão pessoal individual, mas não quanto a um a
sucessão do colégio dos bispos em relação aos apóstolos. Sobre este ponto,
Belarm ino sustentou a mesma posição: D e romano pontífice, lib. I, c. X I ;
lib. I V ; cf. Suárez, D e fide, disp. 10, sect. 1, n. 4. Textos citados por Ch.
J o u r n e t , f f i g l i s e du V erbe incamé, I : L a Hiérarchie apostolique, Paris,
1941, 159 e 467; posição expressa de novo num artigo de «N o v a et V etera»
(1965), 121-131.
SECÇÃO IV: A IGREJA E APOSTÓLICA 205

damos. Este último título tem, entre outros inconvenientes, o de fal­


sear a relação existente entre o sucessor (representante e, neste sentido,
«vigário») de Pedro e os demais apóstolos; com efeito, este título
tende a transpor esta relação do plano da responsabilidade e dos
poderes apostólicos, no qual Pedro é considerado no colégio, ao plano
das relações entre Cristo e os apóstolos. E ’ verdade que Pedro é «cori­
feu» ou «chefe» no colégio apostólico e que por isso recebeu pessoal­
mente o poder pastoral, mas Pedro não está acima dos demais como
a fonte da qual deriva seu poder. O poder pastoral supremo e universal
é dado por Cristo ao colégio, mas a um colégio estruturado de tal
forma que nele há um chefe. Dizer, como diz Cayetano,140 que os de­
mais apóstolos são em relação a Pedro como ovelhas «sub illius cura»
não parece corresponder à verdade de um único poder pastoral supremo
e universal confiado ao colégio dos apóstolos e estruturado como dis­
semos. Todavia, o fato de que Pedro recebesse pessoalmente o poder
pastoral supremo que fundamentava e assinalava sua posição de chefe
fundamenta ao mesmo tempo a possibilidade de incorporar pessoalmente
e de representar o conjunto do colégio. Por isso o papa só pode tomar
uma decisão vinculante para toda a Igreja, incluídos os bispos, em
matéria de fé, de costumes ou de disciplina.
V) A fé é una, a missão é una, o povo reunido na fé e pela
pregação é uno. Por isso o corpo dos pastores, estruturado eomo dis­
semos, está unido numa comunhão de fé, de amor e de trabalho. As
tarefas nele não são idênticas: trata-se de um organismo no qual o
chefe incorpora pessoalmente o poder supremo e universal.
Os bispos residenciais têm in solidum e colegialmente a responsa­
bilidade de toda a Igreja, mas têm pessoalmente a reponsabilidade de
uma Igreja particular. Nela exercem uma autoridade que é verdadeira­
mente sua: «Exercem um poder que lhes é próprio e se chamam com
toda verdade responsáveis pelo povo que dirigem».1“ Os bispos exer­
cem assim, sob sua própria responsabilidade, o cuidado cotidiano e
habitual pela porção do povo de Deus que lhes é confiada. Todavia,
os bispos residenciais, e com eles todos os membros do episcopado
católico e mesmo aqueles que não governam ordinariamente a sede
cujo título possuem (bispos titulares), formam um colégio único, estru­
turado como dissemos e que, sob a autoridade de seu chefe, sucessor
de Pedro, tem solidariamente o encargo pela Igreja inteira. Já não
se trata aqui, ordinariamente, de exercer a autoridade de governo :

140Op. cit., c. 3, n. 23, p. 23.


141Lum en Gentium, cap. 3, n. 27, com referência a P io IX , carta aos
bispos d a Alem anha (12-3-1875) e alocução consistorial (15-3-1875) (D S 3112-
3117); Leão X III, enc. Satis Cognitum (29-6-1896): A S S 28 (1895-96), 732; ep.
Officio Sanctissimo (22-12-1887): A S S 20 (1887), 264. Acrescente-se Vaticano I,
P asto r Aetem us, cap. 3: «ordinariae et immediatae illi episcopalis iurisdic-
tionis potestati... veri pastores» (D S 3061). E ’ preciso citar também a decla­
ração dos bispos alemães de fevereiro de 1875, aprovada publicamente por
Pio IX . Cf. O. Rousseau, «Irénikon» 29 (1956), 121-150, e em I/Êpiscopat et
rülglise universelle (nota 138), 709-736; D S 3112-3117. Sobre o sentido do poder
papal como vere episcopaUs-pastoralis, cf. as explicações de Mons. Pie e de
ÏÆons. Zinelli, em 1870 (Mansi, 52, 32.589.1106), e como ordinaria = ligada ao
ofício, o estudo de G. T h i 1s em I/Épiscopat et l ’église universelle, 689-707.
206 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

este exercício, efetivamente, supõe que exista um laço definido de união


entre tais subordinados e tal pastor. Trata-se de uma responsabilidade
real, mas não juridicamente definida, pela causa do evangelho no mundo
inteiro e do bem geral do povo de Deus. Esta responsabilidade se
precisa e toma a forma de uma autoridade de magistério e de governo
no sentido estrito quando o colégio dos bispos é chamado a dicidir
colegialmente, o que se produz em sua assembléia em concílio ecumê­
nico e supõe a intervenção da cabeça do colégio, sucessor de Pedro,
seja por ser ele quem convoca o concílio e lhe submete as questões
sobre as quais este decidirá, seja porque, em situações extraordinárias,
ele «recebe» e confirma uma decisão tomada em princípio sem sua
participação, mas que, para ser verdadeiramente colegial, supõe sempre
seu acordo, já que não existe colégio sem o papa, cabeça deste colégio.142
O bispo é assim um mediador vivo entre a Igreja universal e as
igrejas particulares; ele representa aquela diante destas, com as exi­
gências da comunhão universal e os imperativos da catolicidade, assim
como representa as igrejas particulares no seio da Igreja universal,
em especial no concílio ecumênico e no sínodo.143
Para que alguém pertença ao colégio dos bispos é necessário o
cumprimento de duas condições: a consagração válida e a comunhão
hierárquica, isto é, a comunhão com o chefe e com os membros do
colégio.144 As explicações dadas oficialmente na terceira- sessão do Con­
cílio Vaticano II, tanto pelo relator da comissão doutrinal1® como pela
própria comissão antes do voto do capítulo relativo a estas questões,M

143Lum en Gentium, cap. 3, n. 22.


143Cf. H. L e g r a n d, N atu re de l’Église particulière et rôle de l’évêque
dans l’Église, em V atican II. L a charge pastorale des évêques, Paris, 1969,
103-176.
144« A consagração episcopal, juntamente com o ofício de santificar, con­
fere também os ofícios de ensinar e de reger; todavia, por sua própria na­
tureza, só podem ser exercidos em comunhão hierárquica com a Cabeça e
os membros do Colégio» (Lum en Gentium, cap. 3, n. 21). «A lguém é consti­
tuído membro do Corpo episcopal em virtude da consagração sacramental
e_ pela comunhão hierárquica com a Cabeça e com os membros do Colégio»
(ibid., 22). P a ra o testemunho que dá a este respeito a Ig re ja antiga, cf.
L. Mortari, op. cit. (nota 138).
145Mons. Parente, arcebispo de Tolemaida, diz : «vi consecrationis sacrae
potestatis Christi habitualiter participes fiunt», de m aneira análoga como o
sacerdote recebe, em sua ordenação, o poder de absolver os pecados, e,
todavia, não pode exercê-lo normalmente sem a permissão do bispo. Este
poder recebido na consagração não é um a simples potência obediencial, mas
um a potência ativa ou um a disposição virtual.
146Trata-se da N ota explicativa praevia. Aqui está o texto de seu n. 2:
«In consecratione datur ontologica participatio sacrorum munerum, ut indubie
constat ex traditione, etiam liturgica. Consulto adhibetur vocabulum mune­
rum, non vero ‘potestatum’, quia haec ultima vox de potestate ad actum
expedita intelligi potest. U t vero talis expedita potestas habeatur, accedere
debet canônica seu iuridica determinatio per auctoritatem hierarchicam. Quae
determinatio potestatis consistera potest in concessione particularis officii vel
in assignatione subditorum, et datur iuxta normas a suprema auctoritate
adprobatas. Huius modi ulterior norm a ex natura rei requiritur, quia agitur
de muneribus quae a pluribus subiectis, hierarchice ex voluntate Christi
cooperantibus, exerceri debent. Evidens est quod haec «communio» in vita
Ecclesiae, secundum adiuncta temporum, applicata est, priusquam in iure
velut codificata fuerit.
Quapropter signanter dicitur, requiri hierarchicam communionem cum
Ecclesiae Capite atque membris. Communio est notio quae in antiqua Ecclesia
SECÇÃO IV: A IGREJA fi APOSTÓLICA 207

não dirimem os problemas teológicos levantados por esta doutrina em


todos os seus detalhes, mas os precisam suficientemente. Delas se de­
duz que a consagração dá por si mesma um múnus — encargo e poder
radical — que, para ser exercido atualmente, requer não só a comunhão
hierárquica, mas também a missão canônica pela qual são determinadas
precisamente as condições de exercício do encargo e do poder confe­
ridos radicalmente.
O papa é, em primeiro lugar, o bispo de Roma, isto é, de uma
igreja particular, mas que, por ser a sede de Pedro, tem uma posição
e um carisma especial entre as demais igrejas. João X X III renovou
o ofício do papa como bispo de Roma. Durante os primeiros séculos,
a ecc/esia romana ocupava um lugar na eclesiologia. Depois, no começo
do segundo milênio, esta idéia se desvaneceu, deixando seu lugar à
da autoridade do pontífice como tal. Um Agostinho Triumphus ( f 1328)
pôde sustentar que, sendo o papa «vicarius Christi» e «nomen iurisdic-
tionis», pouco importava que fosse ou não bispo (de Roma). Hoje
dispomos de uma teologia do episcopado e das igrejas locais mais ade­
quada. Mas o papa é também pastor em relação à totalidade do rebanho,
sobre o qual tem um poder pleno, supremo, ordinário, imediato e ver­
dadeiramente episcopal.147 Isto não significa que o papa deva, nem
sequer que possa (com liceidade moral), substituir os bispos residen­
ciais para a administração de suas dioceses, isto é, para o exercício
desse «múnus pastorale seu habitualis et cotidiana cura ovium suarum»
de que fala o Vaticano II. Isto significa que o papa sempre pode (com
liceidade jurídica e moral) intervir em toda a Igreja para exercer sua
tarefa própria, que não consiste em ser um bispo de Milão ou de
Estrasburgo, por exemplo, mas em ser o pastor supremo, que «preside
na caridade» e tem a responsabilidade superior da unidade e do bem
do conjunto.148 Isso mesmo não implica, contudo, forçosamente (embora
possa fazê-lo) que o papa supervisione constantemente, que determine
de algum modo a vida ordinária de todas as igrejas. Seu ofício pas­
toral universal não tem este sentido; ao contrário, tem o sentido de
uma solicitude geral, em união com os bispos e por eles,no plano
daa exigências da comunhão, de uma promoção da missão e de uma
«confirmação» fraterna na fé. Esta tarefa foi exercida na história
sobretudo nas seguintes grandes linhas:
1) Uma função de «presidência na caridade».148 Bem depressa a
Igreja de Roma se tornou para as demais igrejas um modelo e um
critério para a fé. Bem depressa manifestou a consciência de exercer

(sicut etiam hodie praesertim in Oriente) in magno honore habetur. N on


intelligitur autem de vago quodam affectu, sed de realitate organica, quae
iuridicam form am exigit et simul caritate animatur. Unde Commissio, fere
unanimi eonsensu, scribendum esse statuit: ‘in hierarchica communione'.
Documenta recentiorum Summorum Fontifieum circa iurisdictionem Epis-
coporum interpretanda sunt de hac necessaria determinatione potestatum».
Vaticano I, const. Pastor Aetem us, cap. 3 (D S 3060 e 3064).
348Cf. G. T h i 1s, Prim auté pontificale et prérogatives épiscopales. «Potes-
tas ordinaria» au Concile du Vatican, Gembloux, 1961; id., Potestas ordinaria,
em L ’Êpiscopat et l’É glise universelle, 1862, 689-708; iü., Unité catholique ou
centralisation à outrance?, Lovaina, 1969 (um tanto polêmico).
lds Cf. a dedicatória d a carta de Inácio de Antioquia aos Romanos.
208 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA

uma solicitude universal. Desde antes da paz constantiniana, numa


época em que a Igreja ainda não estava em condições de organizar
livremente sua vida ecumênica, o bispo de Roma intervinha, por pró­
pria iniciativa ou a pedido de outros bispos, para dirimir casos nos
quais a paz da Igreja estava em perigo. Mais tarde falar-se-á das
causae maiores, entre as quais se encontram os protestos ou os juízos
referentes aos bispos. O primado romano exerceu-se primeiro sob a
forma de solicitude universal, de vinculum unitatis, de critério de orto­
doxia, de arbitragem da comunhão, de vigilância sobre a observação
das regras tradicionais. Os fatos e as declarações neste sentido são
abundantes.551 Mais tarde este ofício será canonizado em fórmulas ju­
rídicas, cujo desenvolvimento foi parcialmente condicionado pela riva­
lidade entre o papado e o império ou a luta necessária contra a hege­
monia leiga.
2) O papa poderá, se houver necessidade, substituir um bispo no
caso em que este falte ou responder a uma situação de crise assumindo
tarefas que normalmente seriam da competência das autoridades locais.
3) O papa sustenta e corrobora, por sua autoridade superior, a
autoridade dos bispos locais, que por sua própria situação, falta de
distância ou a insuficiência de meios poderiam estar impedidos de
desempenhar perfeitamente os deveres de seu ofício. Que bispo, que
episcopado poderia dar o equivalente do ensinamento pontifício em
matéria social? Como se obteria, sem a autoridade superior e universal
do papa, a unanimidade em tantos temas de que seu magistério ordi­
nário tratou? E que dizer das situações de crise? Não há dúvida de
que a autoridade papal corroborou eficazmente a dos bispos locais nos
anos da separação na França, frente ao racismo nazista (P io X I),
frente ao comunismo ateu.
4) O papa sempre pode, em virtude de sua plenituâo potestatis,
fazer em toda a Igreja aquilo que não é contrário à fé, ao estatuto
fundamental da Igreja, ao direito divino e ao direito natural. O papa
não está juridicamente limitado pelas determinações que intervieram
anteriormente, mas é seu dever moral, segundo uma tradição constante,
procurar conservar e fazer observar as determinações tomadas anterior­
mente.152 Também isso pertence à sua função de moderador da comu­
nhão e de servidor da paz.
YVES CONGAR
150Exemplos: o papa Victor na questão pascal (Eusébio, Hist. EccL, V,
23s); Cipriano chegou a solicitar do papa Estêvão que depusesse M arciano
na G ália (E p. 68 [H artel 744s]); talvez se deva classificar nesta categoria
a carta de Clemente aos Coríntios.
™Cf . P. B a t i f f o l , op. cit. (nota 135); id., Cathedra Petri, Paris, 1938,
passim e 105-121; L. H e r t l i n g , op. cit., 207 (nota 61); J. C o l s o n , op. cit.
(nota 138); W . B e r t r a m s , op. cit. (nota 138); M. M a c c a r r o n e, L a
dottrina dei Prim ato papale dal I V a lT V III secolo nelle relazioni con le
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551Cf. Y . C o n g a r, L a Tradition et les traditions, I: E ssa i historique,
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BIBLIOGRAFIA

A s notas deste capítulo já contêm um a bibliografia abundante. A qui ofe­


recemos um a seleção das obras mais importantes.

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ÍNDICE

Capítulo V : Propriedades essenciais da Igreja 5

Indicações preliminares sobre as propriedades essenciais da Igreja 5

1. Vocabulário 5
2. Breve resumo histórico da problemática das notas 6
3. Relação das notas entre si e com o mistério de Cristo e da Igreja 9
4. Apreciação do uso apologético das propriedades-notas. Verdade da
Igreja 11

Secção I : A Igreja é una 14

I. Teologia da unidade 14

1. As formas da unidade 18

a. Unidade de fé 20
b. Unidade no culto e pelos sacramentos 25
c. Unidade de vida social orientada e governada pela caridade 32

2. A Igreja é uma comunhão 38

a. Uma teologia da comunhão 40


b. A unidade eclesial na história do mundo 49

II. As rupturas da unidade 51

1. O cisma 55
a. Em que consiste o ato do cisma 55
b. Como se produz um cisma e como se conserva a unidade 60

2. A heresia 65

a. História da idéia 65
b. Definição da heresia 68
c. Como se chega à heresia? 69
214 ÍNDICE

3. Situação dos hereges e dos cismáticos em relação à Igreja 76

a. Batizados que cometeram pessoalmente o pecado de cisma ou de


heresia 76
b. Batizados que não cometeram pessoalmente o pecado de cisma ou
de heresia, mas pertencem a uma comunhão cristã surgida de uma
ruptura da unidade por heresia ou por cisma 77

4. As heresias na vida da Igreja e na história da salvação 79


5. Heresias antigas e heresias de tipo «Reforma» 82

a. Diferença entre as heresias de tipo «Reforma» e as heresias antigas 83


b. Razão e sentido de uma nova visão das coisas 87
c. O dever de uma atitude ecumênica 90

Secção II : A Igreja é santa 92

1. A santidade na Escritura e na história 92


2. Em que sentido a Igreja é santa 96
3. Pecado e misérias na Igreja 100
4. Defeitos e reformas na Igreja 103
5. A santidade como argumento da verdadeira Igreja para a apologética 106

Secção II I : A Igreja é católica 109

I. Catolicidade da Igreja 109

1. Perspectiva histórica 109

a. Origem e valor da expressão 109


b. Breve história da idéia de catolicidade 111

2. Teologia da catolicidade 117

a. As fontes da catolicidade na Trindade 117


b. A fonte da catolicidade na natureza humana e no cosmos 120

3. A realização da catolicidade 123


a. A incorporação de povos e culturas. Catolicidade e missão 125
b. Ecumenismo e catolicidade 128

4. A nota de catolicidade. Uso apologético 129

II. Teologia da missão 131

1. Origem e fundamento da missão 131


2. Destinatários e modo da missão 139
3. Finalidade da missão 146
ÍNDICE 215

Bibliografia 154

Secção IV : A Igreja é apostólica 157

I. A apostolicidade da Igreja 157

1. O «apóstolo» segundo o Novo Testamento 157


2. História da idéia 159
3. Teologia da apostolicidade 164

a. A sucessão apostólica 165


b. Diferenças entre apostolado e episcopado 166
c. Prova histórica e escriturística da «sucessão apostólica» 169
d. Os componentes da sucessão apostólica: apostolicidade de minis­
tério e de doutrina. A «tradição segundo a sucessão» 174

4. Sentido da apostolicidade 182

II. Primado e episcopado 188

1. A função de Pedro segundo o Novo Testamento 189


2. O bispo de Roma, sucessor de Pedro 201

a. Breve resumo histórico 201


b. Ponto de vista teológico 203

Bibliografia 209

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