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LADARIA
A TRINDADE
Mistério de comunhão

Edições Loyola
Theologico
Publicações de Teologia, sob a responsabilidade da
Faculdade de Teologia
FAJE — Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
31720-300 — Belo Horizonte, MG
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LUIS F.

LADARIA

A TRINDADE
Mistério de comunhão

Tradução
A lda da Anunciação M achado

Edições Loyola
Título original:
La Trinidad, mistério de comunión
Autor: Luis F. Ladaria
© Ediciones Secretariado Trinitario, 2002
Filiberto Villalobos, 80
37007 — Salamanca — Espanha
ISBN 84-88643-79-9

Preparação: Maurício Balthazar Leal


Diagramação: Miriam de Melo
Revisão: Iranildo Bezerra Lopes

Edições Loyola
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04216-000 São Paulo, SP
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escrita da Editora.

ISBN 978-85-15-03598-4
© ED IÇÕ ES LO YO LA, São Paulo, Brasil, 2009
Sumário

Introdução.............................................................................. 7

Cap ítu lo 1 A relação entre a Trindade econômica e a


Trindade imanente................................................. 11
1. A formulação do "axioma fundamental" por Karl Rahner................ 11
2. O axioma fundamental em teologia — cristologia —
antropologia, documento da comissão teológica internacional........ 14
3. Algumas reflexões conclusivas................................................................ 62

Cap itu lo 2 As "três pessoas" divinas na unidade da essência.... 65


1. Alguns dados históricos............................................................................ 65
2. A discussão moderna................................................................................ 92
3. Algumas reflexões conclusivas................................................................ 118
Apêndice: a "comunicação" em Deus em alguns autores místicos e
espirituais espanhóis do século XVI........................................................... 131

C ap itu io 3 Deus Pai. Alguns aspectos da teologia


siste m á tic a r e c e n t e .................................................................. 135
1. É o pai o Deus uno?.................................................................................. 136
2. A pessoa do pai em relação com o Filho e o Espírito Santo................ 143
3. K énosis intratrinitária? Um caso extremo nas relações entre
"teologia" e "econom ia"....................................................................... 163
Capitulo 4 O Espírito do Pai e do Filho..................
1. 0 Espírito e Cristo..............................................................
2. Da economia à teologia. O Espírito Santo na Trindade

Conclusão.............................................................

índice de autores.......................................................
Introdução

O presente volume vem a ser, de certo modo, uma continuidade do


manual que veio à luz há alguns anos, O Deus vivo e verdadeiro. O Mistério
da Trindadel, e pressupõe o conteúdo nele apresentado. Todavia, responde a
uma preocupação distinta. A obra anterior teria de oferecer uma panorâmica
dos problemas da teologia trinitária, tanto do ponto de vista histórico como
do sistemático. Trata-se agora de abordar apenas alguns aspectos da doutrina
acerca da Trindade que nos últimos tempos foram objeto de debate e ainda o
são. Todos eles constituem temas estudados na obra precedente; então, porém,
a exposição devia limitar-se necessariamente ao essencial e não era possível
entrar em uma reflexão mais detalhada. Propus-me agora a tratar deles mais
detidamente. Na escolha das questões, deixei-me levar pelo interesse pessoal;
não se pretende, pois, uma visão de conjunto, nem mesmo uma sistematiza­
ção exaustiva dos problemas suscitados no diálogo teológico acerca do Deus
uno e trino. Donde o caráter fragmentário das reflexões propostas. Acredito,
contudo, que se possa descobrir um fio condutor que une os diferentes temas
objeto de estudo. É o que procuro enfatizar mediante o título que, após certas
hesitações, dei ao livro: A Trindadeymistério de comunhão. Explico brevemente
o porquê.
As tentativas de renovação da teologia trinitária às quais teremos de nos
referir insistiram fortemente neste aspecto; tomanram como ponto de referência

1. Edições Loyola, São Paulo, 2005.

7
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

o que, provisoriamente, podemos chamar de modelos “sociais” , sem dúvida


mais acordes com a mentalidade de nossos tempos do que algumas interpre­
tações demasiado rígidas dos modelos “psicológicos” inspirados, de maneira
mais ou menos direta, em santo Agostinho, ou os intentos de sair ao encalço
dos perigos de triteísmo que alguns dos grandes teólogos do século XX (K.
Barth e K. Rahner) viram na aplicação à teologia trinitária do conceito moderno
de “pessoa”. Dedicamos a este problema o segundo capítulo, o mais extenso
da obra. O problema é antigo e nunca será resolvido. 0 que significa falar
de “três pessoas” em Deus? O nós divino, e não somente o eu que se repete,
foi geralmente aceito na teologia católica dos últimos tempos. Não faltam,
para tanto, boas bases na tradição. Sem dúvida, a noção da comunhão ajuda
a teologia trinitária. Unidade e trindade são em Deus dois dados primários,
uma não ocorre sem a outra. A unidade máxima é compatível com a máxima
distinção. A unidade divina não significa reduzir ao máximo a distinção dos
três em suas propriedades irrepetíveis.
Todavia, se a unidade divina não é um dado sucessivo à trindade das
pessoas, é porque ambas têm sua fonte na pessoa do Pai. Assim, dedicamos
o capítulo 3 a alguns problemas em torno da teologia do Pai. O Pai é a fonte
e a origem da divindade, mas ele o é somente enquanto é Pai, isto é, em sua
relação com o Filho e com o Espírito Santo. Na condição em que a paternidade
de Deus significa doação total, o fato de que a divindade tenha no Pai sua
fonte não implica inferioridade alguma nem para o Filho nem para o Espírito
Santo. A doutrina das processões divinas não significa motivo para subordi-
nacionismo, nem é, por conseguinte, um obstáculo para a plena comunhão
entre as pessoas. Mais ainda, esta plena comunhão não pode encontrar melhor
fundamento que a doação total do Pai que encontra para si, no Filho e no
Espírito Santo, a plena resposta de amor.
Dedicamos o último capítulo a alguns aspectos da teologia do Espírito
Santo como Espírito do Pai e do Filho, amor e comunhão de ambos. A pre­
sença do Espírito é essencial na vida terrena de Cristo, especialmente em sua
ressurreição. Jesus, como Filho encarnado, é precisamente o Cristo, o Ungido,
o lugar da presença do Espírito Santo no mundo. A encarnação do Verbo e a
unção de Cristo no Espírito estão em íntima relação, ainda que não possam ser
confundidas. A presença do Espírito em Jesus deu lugar a diversas hipóteses
sobre a relação Filho-Espírito no seio da Trindade imanente. Examinaremos
os propósitos que propugnam uma ação do Espírito Santo na geração do Filho.
São movidos pelo desejo bem justificado de não relegar o Espírito Santo a um
lugar “ inferior” no seio das relações trinitárias. Entretanto, a doutrina agosti-
niana sobre o Espírito como amor d o Pai e do Filho permite fazer ver como

8
INTRODUÇÃO

as duas primeiras pessoas podem sê-lo somente na relação com o Espírito de


ambos, que com eles vive na unidade perfeitíssima da Trindade, sem que haja
necessidade de alterar a ordem tradicional das processões divinas.
Estes três capítulos são precedidos por um estudo da discussão em torno
das relações entre a Trindade econômica e a Trindade imanente a partir do
“axioma fundamental” formulado por Karl Rahner, e do qual a Comissão
Teológica Internacional fez proveitoso e amplo uso em seu documento intitu­
lado Teologia - Cristologia - Antropologia. A reflexão prévia sobre estes temas
fundamentais ser-nos-á de ajuda na abordagem dos problemas dos capítulos
seguintes, que tratam mais diretamente dos problemas de conteúdo. Há apenas
uma questão da teologia trinitária na qual não nos achamos em confronto
com a primeira parte do axioma: é somente a partir da economia da salvação
que podemos nos adentrar, com temor e tremor, no que Deus é em si mesmo.
Entretanto, somente se cremos que Deus se revelou e comunicou-se em Jesus
Cristo de maneira definitiva tem sentido pensar que anuímos a ele em virtude
de sua ação salvadora. As duas partes do axioma se sustêm mutuamente. Nos
capítulos 2, 3 e 4 teremos de nos empenhar na aplicação desse conceito em
toda a sua complexidade.
A obra é dedicada preferencialmente a problemas de teologia sistemá­
tica, porém sem renunciar a indicações da história do dogma e da teologia,
a partir das quais podem ser melhor entendidos os problemas atuais ou
também adquiridos critérios para sua solução. Uma grande parte do volu­
me é dedicada ao diálogo com autores contemporâneos, católicos em geral,
porém não exclusivamente, que determinaram de modo decisivo a discussão
teológica acerca dos temas que nos ocupam. Seguindo o fio da exposição do
pensamento destes teólogos, procuro desenvolver as reflexões pessoais. Sou
de opinião que todos os autores estudados proporcionaram contribuições de
interesse, e que, portanto, o estudo de seu pensamento torna-se enriquecedor,
muito embora em alguns pontos não me considere em total sintonia com eles.
Uma vez que não pretendi escrever uma monografia sobre nenhum teólogo,
nem antigo nem moderno, prescindi em grande parte, muito embora não de
todo, de bibliografia secundária. Citei principalmente a que surgiu nos últimos
anos. De modo especial, evitei repetir, quando não me pareceu necessário ou
muito conveniente, as referências já apresentadas na obra anterior. A esta me
reporto, pois, para ulteriores detalhes. Assim se abrevia o presente volume.
Por outro lado, não é difícil, nos tempos que correm, recorrer a repertórios
para completar a informação.
Capitulo 1

A relação entre a Trindade econômica


e a Trindade imanente

1. A formulação do "axioma fundamental" por Karl Rahner


Embora não tenha sido o primeiro a apreender a relação entre a Trindade
econômica e a Trindade imanente, K. Rahner encontra-se na origem da discus­
são acerca do que ele próprio denominou o axioma fundamental da teologia
trinitária: a identidade da Trindade econômica com a Trindade imanente e
vice-versa1*IV
,. A preocupação fundamental que o faz chegar ao conhecido princí­
pio é mostrar que a Trindade é um mistério salvador (mais ainda, é o mistério
salvador por excelência). Só assim se justifica o axioma. E isto nos coloca no
centro do mistério da salvação do homem e da graça que Deus lhe outorga,
a saber, que é Deus mesmo quem se dá ao homem tal como é e que não se
limita a criar nele uma realidade nova, por sublime que a possamos imaginar.

1. El Dios trino como fundamento trascendente de la historia de la salvación, MySal II/1,


Madrid (1969) 359-449 [370]: “A tese fundamental... que põe em relevo a Trindade como
mistério salvífico para nós (em sua realidade> não como doutrina), poderia ser assim formu­
lada: A Trindade ‘econômica’ é a Trindade imanente, eao inverso”. K. Rahner havia antecipado
suas idéias em Advertências sobre el tratado dogmático “de Trinitate”, in Escritos de Teologia
IV, Madrid, 1964, 105-136; enunciado do princípio, 117. Será encontrada informação abun­
dante em M. GONZÁLEZ, La relación entre la Trinidad económica y la Trinidad inmanente.
El “axioma fundamental” de Karl Rahner y su recepción. Líneas para continuar la reflexion,
Roma, 1996. Especificamente, para outras formulações do princípio, cf. 63-73. Sobre a teologia
trinitária de K. Rahner, cf. também o recente estudo de G. J. SARAZAGA, Trinidady comunión.
La teologia trinitária de K. Rahner y la pregunta por sus rasgos hegelianos, Salamanca, 1999,
espec. 123-162.

11
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

A salvação do homem está no dom de si que Deus lhe faz. Esta comunicação
se produz em Cristo e no Espírito. As pessoas divinas atuam nesta doação de
maneira diferenciada. Só podemos chegar à afirmação de que Deus é uno e
trino porque se nos manifestam em sua distinção na economia salvadora. Na
tradição, insistiu-se muito na ação unitária de Deus nas atuações ad extra. Isto,
porém, não significa que cada pessoa não atue na obra comum segundo sua
propriedade pessoal. Existe um caso em que esta distinção é uma verdade de
fé: a encarnação do Filho. Só ele, e não o Pai nem o Espírito Santo, assumiu
a humanidade. Existe, portanto, uma “missão”, uma presença salvífica divina
no mundo, própria e específica de uma pessoa divina. A partir desta missão
do Filho, chegou-se, no desenvolvimento dogmático da Igreja, à idéia da pro­
cessão eterna do Filho. Temos aqui um caso de identidade, ou talvez, melhor
dizendo, poderíamos falar em correspondência entre a Trindade econômica
e a Trindade imanente.
Do fato de que somente o Filho tenha se encarnado não se deduz que as
outras pessoas estejam excluídas deste acontecimento. Sabemos bem que o que
ocorreu foi totalmente o oposto. Este fato, no entanto, confirma a verdade do
que estamos dizendo: se o Pai envia o Filho, é evidente a existência de uma
distinção na ação de um e de outro. Deste fato claro, Karl Rahner deduz que
é falso o princípio segundo o qual nada existe na história da salvação que
não se possa pregar do mesmo modo do Deus trino como um todo e de cada
pessoa em particular2. O axioma fundamental tem sentido na mente de Karl
Rahner, conforme já insinuamos, como fundamentação do caráter salvador
do mistério trinitário, em sua conexão irrenunciável com os mistérios da
encarnação e da graça — o mistério da graça entendido no sentido amplo da
comunicação que Deus faz de si mesmo aos homens em Cristo e no Espírito3.
Neste sentido, a preocupação de Rahner é mais dar ênfase à comunicação de
Deus aos homens do que refletir sobre o mistério da Trindade imanente. Daí
o fato de que a segunda parte do axioma, “ao inverso”, formulada com ffe-
qüência neste e em outros contextos, não receba praticamente esclarecimento
algum no conjunto de sua obra4. O que o autor alemão, sem dúvida, afirma

2. Cf. El Dios trino... 370-371. Não nos interessa expor a doutrina de Karl Rahner em detalhe.
No entanto, quis recordar brevemente estes princípios fundamentais, por serem necessários
para a exposição que virá a seguir.
3. K. Rahner salientou repetidas vezes em sua obra a inseparabilidade e a mútua conexão
destes três mistérios centrais; à guisa de exemplo, Sobre el concepto de mistério en teologia
católica, in Escritos de teologia IV, 53-101 [91 ]; Reflexiones fiindamentales sobre antropologia
y teologia en el marco de la teologia, MySal II/1, 454-468 [458].
4. Assim foi justamente constatado por M. GONZÁLEZ, La relación entre la Trinidad
económica y la Trinidad inmanente, 103. Pode-se ver também K. RAHNER, El concepto de
mistério..., 97.

12
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

com precisão, em determinadas ocasiões nas quais insiste em que a comunica­


ção da Trindade divina na economia da salvação é real, é que esta comunicação
é efetuada de maneira livre e por pura graça5. Por conseguinte, mesmo que
Rahner não tenha insistido no conteúdo do “ao inverso” (umgekehrt) de seu
axioma fundamental, é preciso ter presente esta importante afirmação para
uma adequada interpretação de seu pensamento. A comunicação que Deus faz
de si mesmo em Cristo e no Espírito é totalmente livre, não devida e gratuita
(“graciosa”). Esta precisão, creio eu, nem sempre foi tomada na devida consi­
deração pelos críticos de Rahner. Em nossa exposição subseqüente, voltaremos
a abordar este particular.
Agora, no entanto, não iremos nos deter no estudo direto do pensamento
rahneriano. Interessava-nos tão-somente recordar as origens e a razão de ser
do “ axioma fundamental”, que tanta importância teve na teologia católica e
também na protestante dos últimos tempos6, com o objetivo de um aprofun­
damento sobre seu conteúdo. Na realidade, sua aceitação na teologia católica
foi tão geral, pelo menos no que tange à primeira parte do axioma, porque
vem nos lembrar de uma verdade elementar, que de um modo ou de outro
sempre esteve presente na consciência da Igreja. Somente a partir da economia
da salvação e da revelação que nela Deus faz de si mesmo podemos aquiescer
ao mistério da vida íntima do Deus uno e trino7. Enquanto Deus, por sua
vez, sai de si e se dá a conhecer a nós na economia, se nos torna evidente
que este Deus já existe e, portanto, que na Trindade imanente está a fonte
e a origem, ao mesmo tempo que o necessário pressuposto, da economia
da salvação. Esta, simplesmente, não teria podido ter lugar sem a existência

5. El Dios trino..., 380: “Deus se comporta conosco de um modo trinitário, e esse mesmo
comportamento trinitário (livre, e não devido) para conosco é não apenas uma imagem ou
analogia da Trindade interna, mas é esta mesma, comunicada de maneira livre e gratuita [frei
und gnadenhaft]. . . ”; cf. ibid., 417; e também Advertências..., 127.
6. Não nos esqueçamos de que, muito embora K. Rahner tenha sido o grande popularizador
deste axioma, seu homônimo K. Barth havia enunciado já com prioridade um princípio seme­
lhante, apesar de fazê-lo de um modo menos chamativo: “Seguimos a regra — e a consideramos
fundamental — de que as afirmações sobre a realidade dos modos de ser divinos ‘antes de tudo
em si mesmos’ não podem ser distintas quanto ao conteúdo daquelas que é preciso efetuar
precisamente sobre sua realidade na revelação” (Kirchliche Dogmatik 1/1, München, 1935, 503;
cf. também 352). Do texto, parece poder-se deduzir que a Trindade econômica é o ponto de
partida para o conhecimento da imanente.
7. JOÀO PAULO II, encíclica Fides et Ratioy 93: “O objetivo fundamental que a teologia
persegue é apresentar a compreensão da revelação e o conteúdo da fé. Assim, o verdadeiro centro
da sua reflexão será a contemplação do próprio mistério de Deus Uno e Trino. E a esse chega-se
refletindo sobre o mistério da encarnação do Filho de Deus”.

13
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

prévia do ser divino que ama o homem que criou: Deus, com efeito, amou
tanto o mundo que deu o seu Filho, o seu único... (Jo 3,16). A economia
da salvação permite e nos leva de fato a fazer afirmações com sentido sobre
Deus em si mesmo (cf. Jo 1,1-2), sem que o mistério desapareça. O axioma
fundamental e o debate em torno dele permitiu destacar o consenso que
ocorre em muitos pontos teológicos de primeira importância, a começar pela
relevância, mais ainda, pelo lugar central que o mistério da Trindade ocupa
na vida cristã e, por conseguinte, o caráter salvador que o caracteriza. Dá-se
como certa a impossibilidade de chegar a ele por caminhos que não sejam os
da revelação e da doação que Deus faz de si mesmo em Cristo e no Espírito.
Com isso, fica claro que Deus nos revela a profundidade de seu ser somente
na medida em que nos introduz nele e nos faz partícipes de sua vida. Não é
em vão que o batismo que nos perdoa os pecados e nos confere a dignidade
de filhos de Deus é administrado em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo (cf. Mt 28,19).

2. 0 axioma fundamental em teologia — cristologia — antropologia,


documento da comissão teológica internacional
O uso que dele faz a Comissão Teológica Internacional em seu documento
Teologia - Cristologia - A ntropologia , de 1981», nos dá fé da importância e da
acolhida do axioma fundamental de Karl Rahner. Trata-se, sem dúvida, de um
dos documentos de maior elevação teológica produzidos pela Comissão e que,
apesar dos anos transcorridos, merece um estudo atento. Nós o seguiremos
em alguns de seus capítulos89 nos quais se oferece, a meu ver, uma excelente
pauta para desenvolver os problemas suscitados em torno do axioma funda­
mental. Deixar-nos-emos conduzir pelo texto da Comissão para tratar destas
diferentes questões.
A relação entre a cristologia e a revelação da Trindade é o marco no qual
a Comissão Teológica aborda nossa questão. É-nos lembrado que, no acon­
tecimento da encarnação de Jesus Cristo e no dom do Espírito Santo, Deus
se revelou a nós como é. A economia é a única fonte da teologia trinitária;

8. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Documentos 1969-1996, ed. C. Pozo,


Madrid, 1998, 243-264; citarei por esta edição quando não for indicado algo diferente. O texto
latino será encontrado em Gregorianum 64 (1983) 5-24; usarei esta edição ao citar o texto oficial
latino; e também COMMISSIO THEOLOGICAINTERNATIONALIS, Documenta (1969-1985)y
Cidade do Vaticano, 1988, 352-418; também no Enchiridion Vaticanum, texto latino com tra­
dução italiana, Bologna, 1984, 344-399.
9. Especialmente, o tópico I C), 248-250 da tradução espanhola.

14
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

só nela pôde ter origem a reflexão sobre o que Deus é em si. Porém, por sua
vez, a Trindade econômica pressupõe sempre, necessariamente, a Trindade
em si mesma10. A partir destes princípios geralmente aceitos, a Comissão toma
posição de modo direto em favor do “axioma fundamental”, inspirando-se,
ainda que com notáveis precisões, nas conhecidas formulações de Karl Rahner:
“Por isso, o axioma fundamental da teologia atual expressa-se muito bem com
as seguintes palavras: a Trindade que se manifesta na economia da salvação
é a Trindade imanente, e a mesma Trindade imanente é a que se comunica
livre e gratuitamente na economia da salvação”11.
As coincidências com o modo de se expressar de Karl Rahner são claras.
No fundo, o que se aceita é sua intuição. Mas existem também algumas mudan­
ças. Em lugar da Trindade econômica, fala-se da “Trindade que se manifesta
na economia da salvação”. É uma formulação mais bem-sucedida. Todavia,
não se pode passar por cima do fato de que a segunda parte do axioma de
Rahner, o “ao inverso”, recebe aqui um conteúdo concreto. Seja como for, a
Comissão serve-se da linguagem de Rahner para preencher com conteúdos
esta segunda parte do axioma. Antes de tudo, diz-se, a Trindade se comunica.
K. Rahner cunhou o termo Selbstmitteilung, comunicação de si mesmo12, que
teve muita aceitação na teologia católica, principalmente na teologia da graça.
Além disso, esta comunicação é feita “livre e gratuitamente” . Já observamos
que o próprio Rahner se serve desta expressão13. Com a maior precisão de
termos apresentada pela Comissão, ela não se afastou nem do espírito nem da
letra de quem formulou o axioma pela vez primeira na teologia católica. Os
três nomes divinos de Pai, Filho e Espírito Santo estão na teologia tal como
estão na economia da salvação14. O documento faz eco à antiga distinção pa­
trística entre “teologia” e “economia”, com o fim de salientar a íntima relação
entre as duas. Se a segunda nos permite o acesso à primeira, esta constitui o
necessário princípio e fundamento da economia da salvação.
Todavia, mais interessante ainda que esta aceitação, em termos gerais,
do axioma fundamental é o desenvolvimento que dele se faz em seguida.
Inspirando-se na terminologia clássica do Concílio de Calcedônia, a Comissão
prossegue afirmando que é preciso evitar toda separação entre a cristologia e

10. Cf. IC ) 1.1; 1,2 (249).


11. Ibid.,1 C) 2 (249).
12. Cf. El Dios trino..., 374; 380, entre muitas outras passagens.
13. Cf. a nota n. 5.0 texto oficial latino (10) diz: “libere et graciose sese in salutis oeconomia
communicat”.
14. Cf. C) 1.2 (10): “qualia sunt tria nomina divina in salutis oeconomia, talia sunt in
‘teologia’”.

15
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

a doutrina trinitária, já que o mistério de Jesus Cristo se insere na estrutura


da Trindade. A Comissão indica que pode haver duas formas desta separação
entre cristologia e doutrina trinitária. Uma neo-escolástica e outra moderna15.
Trataremos delas separadamente, comentando as afirmações do documento.

A. A separação neo-escolástica entre a Trindade e a cristologia


Esta forma de separação é caracterizada nestes termos: “Os autores da
chamada neo-escolástica isolavam, às vezes, a consideração da Trindade do
conjunto do mistério cristão e não a tinham suficientemente em conta para
entender a encarnação ou a deificação do homem. Por vezes, não se mostrava
em absolutamente a importância da Trindade no conjunto das verdades da fé
ou na vida cristã” 16. Não precisamos nos esforçar para justificar tais afirmações
da Comissão Teológica. A primeira e a segunda parte do texto que acabamos
de citar completam-se e iluminam-se mutuamente. Na realidade, o fato de
que a Trindade ficava em segundo plano no entendimento da encarnação ou
da divinização do homem equivale a não lhe atribuir a devida relevância no
conjunto da fé e da vida cristãs. Não é necessário, pois, que nos detenhamos
muito nesta afirmação geral. Já que em todo este fragmento ressoa a proble­
mática da teologia trinitária de Karl Rahner, será suficiente nos reportarmos
a suas indicações sobre o isolamento da Trindade na piedade e na teologia
escolar17. Este isolamento atingiria o grau máximo nos dois casos explicita­
dos pela comissão: a encarnação e a divinização do homem. Parece também
muito provável que ressoem aqui os problemas suscitados por Rahner em
torno da possibilidade da encarnação de qualquer uma das divinas pessoas e
na questão das relações próprias ou apropriadas com cada uma das pessoas
divinas. Iremos nos deter em cada um destes problemas.

A possibilidade da encarnação das três pessoas divinas


É conhecida a tese de Karl Rahner sobre a impossibilidade da encarnação
do Pai ou do Espírito Santo, porque, no caso em que isto assim se desse, a

15. Cf. C) 2.1.


16. Ibid.
17. Cf. El Dios trino..., 361-365. Além dos casos da encarnação e da graça, aos quais, a
seguir, faremos referência mais demoradamente, Rahner sugere que o Pai-nosso seja dirigido
às três pessoas da Trindade, que a elas se ofereça com igualdade o sacrifício da missa, que se
conceba a possibilidade de uma ação redentora atribuída às três pessoas divinas, que não se
trate da Trindade em relação com a criação etc. Evidentemente, muitos destes problemas são já
história no estado atual da teologia católica. Porém, vale a pena tê-los presentes para entender
o contexto em que se move o documento da Comissão Teológica.

16
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

economia da salvação não nos diria nada da Trindade em si mesma18. Efetuar-


se-ia uma dissociação entre as “processões” e as “ missões”, provocando uma
ruptura da relação entre umas e outras, que se encontra na melhor tradição
teológica19.

0 problema da época patrística

Podem se encarnar as três pessoas? Provavelmente a própria pergunta


seja ociosa. O melhor é averiguar a coerência interna, no contexto da sal­
vação e da revelação de fato acontecidas, da encarnação do Filho. Na época
patrística, o assunto, em geral, não foi posto em discussão. Partiu-se dos fatos.
Mais ainda, à medida que a teologia pré-nicena considera que a geração do
Filho está em função da mediação criadora, torna-se coerente o fato de que
a salvação seja realizada por aquele que desde o princípio mediou entre o Pai
e os homens, aquele que sempre está presente no gênero humano, em última
instância, no mundo criado com sua mediação20. Por essa razão, é natural que,
desde Justino, todas as manifestações divinas do Antigo Testamento sejam
atribuídas ao Filho21. É o Filho quem dá a conhecer o Pai, é o conhecimento
do Pai, segundo Ireneu22, e, além disso, somente porque o Filho de Deus

18. Cf. ElDios trino..., 372-383. Conforme já indicamos, não é nosso objetivo, no momento,
expor o pensamento de K. Rahner.
19. Na seqüência, deveremos entrar em alguns detalhes sobre a questão. Sobre a relação
entre processões e missões, cf. SANTO TOMÁS, STh I 43,1: “Missio igitur divinae personae
convenire potest, secundum quod importat processionem ab alio”. Y. CONGAR, El Espíritu
Santo, Barcelona, 1983, 211, faz eco a esta tradição quando escreve: wQue o Verbo e o Espírito
venham não significa que se desloquem; significa que fazem existir uma criatura em uma relação
nova com eles. Significa que a processão que os coloca na eternidade da Unitrindade acaba livre
e eficazmente em um efeito criado”.
20. Poderíamos multiplicar as citações. IRENEU DE LIÃO, Adv. Haer. III 18,1 (SCh 211,
342): “ ... Verbum existens apud Deum, per quem omnia facta sunt, qui et semper aderat generi
humano, hunc in novissimis temporibus secundum praefinitum tempus a Patre unitum suo
plasmati...”. O texto une a mediação criadora com a encarnação, a união a seu plasma, pas­
sando pela proximidade permanente do Logos ao homem; ver também V 16,1 (SCh 153,214):
“ab initio usque ad finem format nos et coaptat in vitam et adest plasmati suo”. Sobre a perene
proximidade do Filho em relação ao homem, cf., além disso, ibid. III 16,6 (312); IV 6,7 (SCh
100,454); IV 20,4 (634-636); IV 28,2 (758), etc.
21. Cf. JUSTINO, Ap. I 62-63 (Wartelle, 184-186) e principalmente Dial. Tryph. 56-60
(Marcovich, 161-174); TEÓFILO DE ANTIOQUIA, Ad Aut. II22 (BAC 116,814); TERTULIANO,
Adv. Marc. II 27 (CCL 1,505-507); Prax. XIV-XVI (Scarpat, 178-190); IRENEU, Adv. Haer. IV
6,1-9,1 (SCh 100, 436-458); Demonstr. 12 (FP 2,81-82).
22. IRENEU, Adv. Haer. IV 6,1 (SCh 100,436): wquia ipse est Verbum qui agnitionem
Patris facit”; 6,3 (442): “Agnitio enim Patris est Filii manifestatio: omnia enim per Verbum

17
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

se fez homem, nós, homens, podemos ser feitos filhos de Deus, segundo o
conhecido princípio do intercâmbio que Ireneu formulou pela primeira vez23.
Evidentemente, a encarnação do Filho convém, se o homem há de ser feito
filho de Deus. Revelação do Pai, filiação divina do homem como salvação,
tudo isso no âmbito da mediação universal do Logos por quem tudo foi feito
são as razões que impõem, quase espontaneamente, a encarnação do Filho de
Deus. Todavia, a pergunta explícita sobre a conveniência ou necessidade da
encarnação da segunda pessoa não parece ter sido proposta expressamente.
Uma reflexão um pouco mais explícita sobre o tema, apesar de não se
haver ainda posto a questão nos termos claros dos autores medievais, encontra-
se em santo Atanásio. Assim diz o bispo de Alexandria:
Depois, ele próprio [o autor da carta aos Hebreus] dá a razão pela qual não
devia ser outro quem se fez homem, senão o Filho de Deus. “Convinha de fato
àquele para quem e por quem tudo existe, e que queria conduzir à glória uma
multidão de filhos, levar à consumação, por meio de sofrimentos, o promotor
da salvação deles” (Hb 2,10). Com estas palavras, quer significar que não era
próprio de outro tirar os homens da corrupção que havia surgido, mas do
Verbo de Deus, mediante o qual no princípio haviam sido criados24.

Combinando a carta aos Hebreus com uma citação implícita de João


1,3.10, Atanásio estabelece uma íntima relação entre a mediação criadora do
Logos e a salvação levada a efeito por Cristo, que pressupõe sua encarnação.
Se a criação foi levada a efeito pelo Filho, também a salvação deve ser realiza­
da pela segunda pessoa. Põe-se em relevo a unidade do desígnio divino, que
abraça a criação e a recriação do homem. Mais ainda. Competem ao Filho a
encarnação e a salvação do homem, porque ele é o modelo segundo o qual
os homens foram criados. Se o homem foi criado à sua imagem, compete
também a ele renová-lo:

manifestantur”; 6,6 (448-450): “Et per ipsum Verbum visibilem et palpabilem factum Patrem
ostendebatur... invisibile etenim Filii Pater, visibile autem Patris Filius”. Mais detalhes em A.
ORBE, Espiritualidad de san íreneoy Roma, 1989, 241-258.
23. Cf. abundantes exemplos em L. F. LADARIA, Teologia dei pecado original y d e l a grada,
Madrid, 32001, 151. Mais adiante, retornaremos a esta questão; cf. nota 59.
24. De Incarn. Verbi 10 (SCh 199,300); a mesma doutrina em Contra Arianos II 53 (PG
26,260): “Porque ele é diferente de suas obras, ou melhor, porque é seu criador, era conveniente
que fosse ele quem realizasse a renovação nele... Ele recria em si mesmo todas as coisas; fez-se
homem para renová-las.

18
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

De igual maneira, o Filho santíssimo do Pai, que é a imagem do Pai, veio


a nossas regiões para renovar o homem feito segundo ele e para tornar a
encontrá-lo, quando estava perdido, mediante a remissão de seus pecados,
como diz ele próprio nos evangelhos: “O Filho do Homem veio procurar e
salvar o que estava perdido” (Lc 19,10)25.

Em outras passagens, também do mesmo contexto, repete-se a idéia do


Verbo como o modelo segundo o qual o homem foi criado. Trata-se, segundo
as linhas clássicas da escola alexandrina, certamente do Verbo eterno, não do
Filho enquanto se há de encarnar26. A resposta estaria muito mais clara ainda
a partir do pensamento de santo Ireneu e de Tertuliano, uma vez que para
eles o modelo a partir do qual o homem é criado é o Filho “incarnaturus
à sua imagem, e na previsão do futuro, o homem foi plasmado. O que está
em primeiro plano é o desígnio original da encarnação, não aparecendo tão
imediatamente a questão de definir se esta encarnação deva corresponder a
determinada pessoa divina. A pergunta não é formulada pela obviedade da
resposta. Seja como for, Ireneu não está de todo alheio ao delineamento que
vimos com maior clareza em Atanásio. Segundo o bispo de Lião, o Filho
devia salvar o homem que havia sido feito à sua imagem e semelhança, ou
seja, Adão27.
Atribui-se ffeqüentemente a Agostinho a responsabilidade pela mudança
de perspectivas e a afirmação da possibilidade da encarnação das três pessoas
divinas28. A atribuição não parece ser correta, embora a opinião neste sentido
seja antiga, remontando, no mínimo, a santo Alberto Magno29. De qualquer
maneira, é preciso ter presente que Agostinho deu certo passo nesta direção
ao afirmar, contrariamente à tradição que remonta a Justino, que qualquer
pessoa poderia tomar aparência visível nas teofanias do Antigo Testamento,
muito embora tenha especial cuidado em dizer que, no caso em que fosse o Pai
quem se manifestasse visivelmente, não se poderia dizer que tivesse sido enviado

25. De Incam. Verbi 14,2 (315).


- 26. Ibid. 3,1 (270-272); 11,3 (304); 13,7-14,2 (212-314); e também Contra Gentes 8 (PG
25, 16D).
27. IRENEU DE LIÃO, Adv. Haer. III 23,1 (SCh, 211,444): “ ilium ipsum hominem salvare
qui factus fuerat secundum imaginem et similitudinem eius, hoc est Adam...”.
28. O mesmo sucede, repetidamente, com K. RAHNER, El Dios trino..., 362; Grundkurs
des Glaubens, Freiburg/Basel/Wien, 1976, 213; e também H. U. VON BALTHASAR, Theologik
II, Einsiedeln, 1985, 155. Cf., no sentido oposto, G. LAFONT, Peut-on connaître Dieu en Jésus
Christ?, Paris, 1969, 219, corrigindo já escritos anteriores de K. Rahner.
29. Cf. adiante a nota 40.

19
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

nem pelo Filho nem pelo Espírito Santo30. Agostinho, porém, não efetuou o
passo das teofanias para a encarnação. Existe uma diferença fundamental entre
ambos os eventos. Mais ainda, sem que seja delineada diretamente a questão
de que tratamos, é sensível a correspondência entre a Trindade econômica e a
Trindade quando, ao falar da encarnação do Filho, afirma que, considerando
que é o Pai quem gera, e o Filho é o gerado, é congruente o fato de que seja
o Pai quem envia e o Filho, o enviado31.
Depois de Agostinho, encontramos alusões em alguns autores ocidentais
ao fato que constituirá mais tarde o problema medieval, evidentemente sem
expô-lo de maneira expressa. A coerência entre a filiação eterna e a tempo­
ral, entre o ser, como Deus, Filho do Pai e, como homem, filho de Maria, é
objeto específico de reflexão. É outro ponto de vista que coloca em destaque
a relação entre economia e teologia. Genádio de Marselha desenvolveu este
pensamento em uma linda página:
Não foi o Pai quem assumiu a carne, nem o Espírito Santo, mas somente o
Filho; de tal modo que aquele que na divindade era Filho de Deus Pai, ele
mesmo, na humanidade, se fizera filho de uma mãe humana [ipse fieret in
homine hominis matris filius] e assim o nome de filho não passaria para
outro que não fosse Filho por causa da geração eterna. Portanto, o Filho de
Deus se fez filho do homem, nascido de Deus como Filho de Deus segundo
a verdade da natureza, e segundo a verdade da natureza filho do homem
[nascido] do homem [ex homine hominis filius]. De tal maneira que aquele
que foi verdadeiramente gerado [veritas generationis] tivesse o nome de Filho
não por adoção nem por denominação, mas pelo fato de nascer segundo um
e outro nascimento, e o verdadeiro Deus e verdadeiro homem fosse um só
Filho, Deus e homem [Deum et hominem unum filium]32.

30. AGOSTINHO, Tritt. II 18,35 (CCL 50,126): “Per subiectam vero creaturam, non solum
filium, vel spiritum sanctum, sed etiam patrem corporali specie sive similitudine mortalibus sen-
sibus significationem sui dare potuisse credendum est”; III 11,26 (157):“ ... in quibus angeliserat
utique et pater, et filius, et spiritus sanctus; et aliquando pater, aliquando filius, aliquando spiritus
sanctus, aliquando sine ulla distinctione personae deus per illos figurabatur”; cf. II 11,27 (158);
IV 21,32 (205): “quia etiam si voluisset deus pater per subiectam creaturam visibiliter apparere,
absurdissime tarnen aut a filio quem genuit, aut a spirito sancto, qui de illo procedit, missus
diceretur”. Cf. também a Ep. 11,2.4 (CSEL 34,26-28), que insiste, em termos não muito precisos,
na unidade de ação das três pessoas divinas, mas não diz que as três possam se encarnar.
31. Tritt. IV 20,29 (199): “Sicut ergo pater genuit, filius genitus est, ita congruet pater misit, fi­
lius missus est”; 20,28 (198): “ ab illo mittitur de quo natum est; mittitur quod genitum est”.
32. GENÁDIO DE MARSELHA, De eccl dogmatibus 2 (PL 58,981AB); cf. F. NERI, Cur
Verbum capax hominis. Le ragioni delYincamazione della seconda persona delia Trinità fra teologia
scolastica e teologia contemporânea, Roma, 1999, 58-59.

20
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

A encarnação de quem não é, como Deus, eternamente Filho teria pouco


sentido. Um só Filho é Deus e homem verdadeiro, filho enquanto Deus e en­
quanto homem. Para Genádio, pareceria que, em outro caso, não se salvaria a
unidade da pessoa que se encarnasse. Com a encarnação do Filho, aquele que
é verdadeiro Deus e verdadeiro homem é um só Filho. “ Deum et hominem
unum filium”, sem dúvida uma formulação cristológica profícua.
Poucos anos depois, Fulgêncio de Ruspa dá uma resposta em termos
muito semelhantes à questão que não é proposta explicitamente:

Portanto, do mesmo modo que, conforme aquela divindade na qual o Pai, o


Filho e o Espírito Santo são uma só coisa, não cremos que o Pai tenha nascido,
nem mesmo o Espírito Santo, mas somente o Filho, igualmente a fé católica
crê e anuncia que somente o Filho nasceu segundo a carne. Pois tampouco
seria próprio naquela Trindade o fato de somente o Pai não haver nascido,
mas haver gerado um só Filho (nem seria próprio exclusivamente do Filho
o não haver gerado, mas haver nascido da essência do Pai; nem próprio do
Espírito Santo nem haver nascido nem haver gerado, mas ser o único que
procede da eternidade imutável do Pai e do Filho), se Deus Pai, que segundo
a natureza divina não nasceu de nenhum Deus, nascesse, não obstante, da
Virgem segundo a carne. Pois, se o Pai nascesse da Virgem, uma só pessoa
seria Pai e Filho. Ainda que esta única pessoa, pelo fato de não haver nascido
de Deus, mas somente da Virgem, não seria chamada em verdade Filho de
Deus, mas somente filho do homem33.

As formulações são semelhantes às de Genádio. A razão da encarnação do


Filho, que em Atanásio era mais histórico-salvífica, a de recompor a imagem
por parte daquele que é o modelo dela, neste momento está mais relacionada
com as características das pessoas em sua vida imanente e sua repercussão na
economia: aquele que foi eternamente gerado deve sê-lo também no tempo, o
que é Filho enquanto Deus deve sê-lo também enquanto homem. Esta corres­
pondência não ocorreria com as demais pessoas. Concretamente, haveria certa
contradição se o Pai se encarnasse, que seria ao mesmo tempo Pai e Filho.
Suas características “imanentes” são, portanto, as que excluem sua encarnação,
do mesmo modo que tornam congruente a do Filho. Fulgêncio, porém, não
somente se detém na exclusão da encarnação do Pai, mas também dá razões
para mostrar que não seria congruente a do Espírito Santo:

33. FULGÊNCIO DE RUSPA, De Fide ad Petrum 7 (II) (CCL 91 A,716); cf. também ibid.,
7-8 (717).

21
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Do mesmo modo, se não houvesse nascido da Virgem aquele que é propriamente


o Filho unigénito de Deus Pai, mas o Espírito Santo, a santa Igreja não creria
no coração para a justiça, nem confessaria com a boca para a salvação (cf. Rm
10,9-10) o mesmo Filho nascido de mulher, nascido sob a lei (cf. G1 4,4), do
qual se diz no símbolo nasrído do Espírito Santo de Maria virgem. Entretanto, se
o mesmo Espírito Santo, que é o Espírito do Pai e do Filho, houvesse recebido
a forma de servo (cf. F12,7), não teria vindo do céu o próprio Espírito sobre si
mesmo enquanto feito homem, na forma de uma pomba (cf. Mc 1,10 par.)34.

Estas razões, como se pode facilmente constatar, não são de tanto peso
quanto as que excluem a encarnação do Pai. Não existe alusão alguma a m o­
tivos da vida intratrinitária. Simplesmente, a confissão de fé não seria a que é,
não poderíamos professar que o Filho nasceu por obra do Espírito Santo da
virgem Maria, não poderíamos confessar sua ressurreição de entre os mortos
(cf. Rm 10,9)35. Igualmente o Espírito Santo não poderia ter descido em forma
de pomba sobre si mesmo feito homem como desceu sobre Jesus, o Filho. A
brevidade do comentário não permite apreender o alcance, na concepção de
Fulgêncio, da descida do Espírito sobre Jesus. Como também não é possível
quanto à significação do inciso “qui Patris et Filii Spiritus est”. Considera ele
que a salvação não poderia ter sido realizada de outro modo, mais do que com
as missões do Filho e do Espírito, tal como aconteceram de fato? Relaciona
a ordem das missões com a das processões? É possível que assim seja, uma
vez que é clara em Agostinho a relação entre o Espírito como dom do Pai e
do Filho e sua processão dos dois. Seja como for, temos a impressão de nos
encontrar perante uma tentativa de excluir a possibilidade da encarnação do
Espírito Santo, apesar de que as razões desta exclusão não pareçam representar
um peso significativo, nem se tenha discorrido muito sobre elas36.
Não parece, portanto, que santo Agostinho tenha defendido a tese da
possibilidade da encarnação das três pessoas, ainda que em alguns extremos

34. Ibid., 9 (717-718).


35. O texto não se refere diretamente a este aspecto, que é essencial na passagem de Romanos
10,9-10 a que se faz alusão.
36. Neste sentido, as razões de Genádio parecem melhor elaboradas. Genádio insiste mais
nas razões de conveniência da encarnação do Filho, isto é, na congruência de que a mesma
pessoa seja Filho enquanto Deus e enquanto homem. Fulgêncio, ao contrário, centra-se na
dificuldade da encarnação do Pai, no qual uma única pessoa seja, por sua vez, Pai e Filho. O
nome do Espírito Santo não suscita esta dificuldade tão claramente, e talvez por este motivo
utilizam-se argumentos distintos para a exclusão do Pai e do Espírito Santo, ao passo que em
Genádio, a partir das razões positivas para a encarnação do Filho, o mesmo argumento valia
para os dois casos.

22
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

possa ter se aproximado dela. De igual maneira, esta opinião não se generalizou
imediatamente após ele, nem sequer em círculos que receberam sua influência.
Ou melhor, vemos testemunhos do contrário. Entretanto, o mais provável é
que a influência da doutrina trinitária de Agostinho tenha determinado certa
mudança na hora de justificar a necessidade ou conveniência da encarnação
do Filho. Têm mais peso os motivos da “teologia” que os da “economia” e,
concretamente, desaparece o da imagem de que o Filho devia restaurar, uma
vez que já na criação inicial do homem era o modelo. Para Agostinho, como
se sabe muito bem, a alma humana é imagem da Trindade por inteiro. Por
outro lado, nota-se também certa evolução nos últimos autores citados, no
sentido de que se dão razões não apenas positivas em favor da encarnação do
Filho, mas também negativas para excluir a das outras pessoas.

A teologia medieval

Antes, portanto, que a escolástica propusesse a questão da possibilidade


da encarnação das três pessoas, encontramos em alguns autores a resposta
a ela, sem que alguém tenha formulado a pergunta explícita. Não devemos
entrar em um estudo muito extenso destas questões na teologia medieval,
investigadas já de maneira quase exaustiva37. Um resumo da evolução em
poucas linhas será o suficiente.
A questão explícita foi proposta pela primeira vez por santo Anselmo e
encontrou uma resposta negativa. Também ele, como Genádio e Fulgêncio,
considera inconveniente que se faça filho na economia quem não o é na vida
imanente. Da encarnação de outra pessoa decorreriam, portanto, inconvenien­
tes, e em Deus, segundo Anselmo, qualquer inconveniente equivale à impos­
sibilidade. Como razões positivas, o bispo de Cantuária assinala que a pessoa
encarnada deve interceder pelos homens diante de Deus; é mais justo que o
Filho interceda junto ao Pai do que o inverso. Em relação ao Filho, imagem
de Deus, fez-se a injustiça principalmente quando o diabo e Adão quiseram
tornar-se semelhantes a Deus com um roubo (per rapinam), e é evidente que
ninguém castiga mais justamente o culpado do que o ofendido38. Porém, se
Anselmo se inclina pela resposta negativa à questão, Pedro Lombardo será o
primeiro que se inclinará pela solução positiva, não sem haver antes indicado

37. Podemos nos reportar à obra de F. NERI, Cur Verbum capax hominis (cf. nota 32), 49-
207. A razão pela qual me detive um pouco mais nos autores mais antigos está em que estes
encontram menos espaço na investigação de F. Neri.
38. Cf. ANSELMO, Epistola de Incamatione Verbi (Opera Schmitt 2, 25-28); cf. NERI, Cur
Verbum capax hominis, 59-62.

23
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

as razões de conveniência da encarnação da segunda pessoa: em primeiro


lugar, é a sabedoria criadora mediante a qual tudo foi feito e, portanto, pode
reconduzir o homem à imagem do Pai. Em segundo lugar, deve haver uma
correspondência entre a geração e a missão; Agostinho, cujo pensamento co­
nhecemos, é aqui a grande autoridade. Por último, é coerente que quem é Filho
na vida eterna de Deus o seja também como homem39. Todavia, imediatamente
após fazer eco destas razões tradicionais, Lombardo assinala que, se o Filho se
encarnou, o Pai e o Espírito Santo poderiam e podem fazer o mesmo. Parece
insinuar-se a onipotência divina como razão desta afirmação, que o Mestre
das Sentenças não se preocupa em fundamentar explicitamente40.
Tomás e Boaventura complicarão mais a questão, porque às razões po­
sitivas em favor da encarnação do Filho irão acrescentar as razões aparentes
que favorecem a encarnação do Pai e do Espírito e os motivos que iriam
opor-se a estas hipóteses. Prescindiremos destes problemas em nossa exposição,
limitando-nos às razões positivas em favor da conveniência da encarnação do
Filho, por um lado, e às razões em favor da possibilidade da encarnação das três
pessoas, por outro41.
Para santo Tomás, no Comentário às Sentenças, as razões em favor da
grande conveniência da encarnação do Filho42 são a restauração da imagem
criada (o homem) por parte da incriada (o Filho de Deus); a correspondên­
cia entre a filiação eterna e a filiação temporal de tal maneira que por meio
daquele que é Filho por natureza nós, homens, pudéssemos receber a filiação
de adoção; o Filho, ao ser o Verbo, a Palavra, é mais idôneo para a revela­
ção do Pai; aquele que é a pessoa “ intermédia” na Trindade é o que melhor
pode mediar entre Deus e os homens43. Razões estritamente “teológicas”
harmonizam-se com outras que mostram a coerência da história da salvação.

39. Cf. PEDRO LOMBARDO, Sent. III d. 1. c. 1.


40. Ibid., III, d. 1, c. 2. Neste parecer, o Mestre das Sentenças segue santo Alberto Magno, o
qual, além disso, atribui a mesma opinião a Agostinho. Assim escreve em In III Sent. d. 1 C, a.
10 (Opera 29,15-16): “Dicendum cum Magistro, et Augustino, quod Pater et Spiritus Sanctus
potuerunt et possunt incamari; sed non congruit, nec necesse fiiit...”. Nenhuma referência
ou citação de Agostinho há no texto que possa justificar a atribuição desta opinião ao doutor
de Hipona.
41. Para todo este conjunto, podemos reportar-nos novamente a F. NERI, Cur Verbum
capax hominiSy 104-162.
42. In Sent. III d. 1, q.2, a.2: “Ergo et incarnatio convenientissime Verbum aeternum
decuit”.
43. Cf. TOMÁS DE AQUINO, In Sent. ibid. Outras razões a partir das “apropriações” seriam
a restauração de tudo pela Sabedoria criadora; aquele que é o poder de Deus (cf. ICor 1,24)
vence o diabo; aquele que é a beleza restaura a imagem enfeada pelo pecado.

24
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

Entretanto, apesar de todas estas razões, Tomás aceita e explica por conta
própria a hipótese de Pedro Lombardo sobre a possibilidade da encarnação
das outras pessoas: a encarnação de outra pessoa não implicaria em si mesma
contradição alguma nem significaria uma diminuição do poder daquela que
se encarnasse; tampouco apresentaria em si mesma nenhum inconveniente;
as dificuldades surgiriam somente se fosse considerada a ordem livremente
instituída por Deus, não sendo, portanto, decisivas44.
Na Summciy de modo significativo, santo Tomás muda a ordem das ques­
tões. Afirma primeiramente a possibilidade da encarnação de qualquer pessoa,
para passar depois à conveniência da ordem estabelecida por Deus. Quanto
ao que tange ao primeiro ponto, assinala-se que o poder divino é possuído
igualmente pelas três pessoas, e é também a mesma a “ratio personalitatis”,
embora sejam distintas as propriedades pessoais. Assim sendo, a onipotência
divina podia unir a natureza humana à pessoa do Pai ou à do Espírito Santo
como a uniu à do Filho45. Devemos notar neste contexto um ponto de clara
procedência agostiniana: na hipótese da encarnação do Pai, este não seria en­
viado, como o foi o Filho46. Santo Tomás introduz as razões da conveniência
da encarnação do Filho, indicando, como já fizera em sua obra de juventude,
que foi “convenientíssimo” que se encarnasse a segunda pessoa47. Estas razões
de suma conveniência estão no fato que o Verbo é o exemplar de toda criatura
e é particularmente a Sabedoria da qual deriva a sabedoria humana; por isso
era mais conveniente que se unisse à criatura, especialmente à criatura huma­
na. A predestinação dos homens é a filiação divina; foi, portanto, conveniente
que mediante aquele que é Filho por natureza os homens participassem pela

44. Ibid. III d , 1, q.2, a.3.


45. STh III 3,5.
46. Cf. ibid., ad 3. E principalmente I 43,4: “cum Pater non sit ab alio, nullo modo convenit
sibi mitti; sed solum Filio et Spiritui Sancto, quibus convenit esse ab alio”. Cf. os textos citados
na nota 19.
47. STh III 4,8: “Respondeo dicendum quod convenientissimum fuit personam Filii in-
carnari”. Talvez seja esta a razão, unida ao que indicamos nas notas 19 e 46, pela qual H. C.
SCHMIDBAUR, Personarum Trinitas. Die trinitarische Gotteslehre des heiligen Thomas von Aquin,
St. Ottilien, 1995, 651, afirma que segundo santo Tomás, por causa das processões trinitárias,
somente o Filho podia se encarnar, “«wr dem Sohn zukommen könne, die menschliche Natur
anzunehmen”; cf. também a p. 660. Estas afirmações explícitas parecem muito fortes e dificil­
mente justificáveis à luz da STh III 4,5, onde o “sed contrayparece não deixar lugar a dúvidas:
“ quidquid potest Filius potest Pater: alioquin non esset eadem potentia trium. Sed Filius potuit
incarnari. Ergo similiter Pater et Spiritus Sanctus”; cf. o restante do artigo. Seja como for, são
dignas de apreço as razões dadas por Schmidbaur para mostrar que as propriedades pessoais
de cada uma das pessoas divinas constituem-nas em “sujeitos incomensuráveis”.

25
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

adoção da semelhança desta filiação. Por último, no paraíso o homem pecou


porque quis possuir a ciência do bem e do mal; era conveniente que fosse
reconduzido a Deus pelo Verbo da verdadeira sabedoria48. Com relação ao
Comentário às Sentenças, chama a atenção na Summay além da mudança de
ordem das questões, o fato de que as razões da conveniência da encarnação
do Verbo têm um menor desenvolvimento. Concretamente, desapareceram
a da revelação e também a da restauração da imagem. Sem dúvida, as duas
têm uma base no Novo Testamento (cf., entre outras passagens, Jo 1,18; 14,8;
Rm 8,29; ICor 15,49) e um forte apoio na tradição. Não deixa de chamar a
atenção que em sua obra da maturidade santo Tomás tenha dado este passo
na linha de um maior distanciamento da base positiva, apesar de que o pas­
so se torna de alguma forma atenuado, devido ao fato de que mantém sua
acentuação da suma conveniência da encarnação do Filho, já presente no
Comentário às Sentenças.
De modo não muito diverso procedeu também são Boaventura, que já
no Comentário às Sentenças alterou a ordem das questões no mesmo sentido
em que o fará santo Tomás na Summa. A possibilidade da encarnação de
qualquer das três pessoas funda-se em que a distância que separa a criatura
das três pessoas é a mesma; diga-se o mesmo quanto à dignidade das pessoas.
Para que se produza a encarnação são necessários dois extremos suscetíveis
de ser unidos, uma pessoa na qual a unidade se realize e um poder capaz de
unir os dois extremos. Todos os requisitos estão presentes no Pai e no Espírito
Santo, como o estavam no Filho. Por último, o Seráfico pergunta a si mesmo
se o Filho se encarnou enquanto pessoa ou enquanto Filho. É o Filho do Pai,
não da criatura, que assume. Portanto, não se encarnou enquanto Filho, mas
enquanto pessoa; por conseguinte, o Pai e o Filho poderiam igualmente ter se
encarnado49. As razões positivas para a encarnação do Filho consistem em que,
sendo o Filho imagem do Pai, era conveniente que se unisse ao homem, que
poderia ser assumido precisamente em virtude de sua condição de imagem de
Deus. O Verbo eterno, a Palavra, é escutado assim também na carne humana.
Era mais conveniente que o Filho, que foi gerado como Deus desde a eternidade,
fosse gerado também como homem50. Outras razões voltadas mais diretamen­
te para a redenção dos homens são as de que competem ao Filho, enquanto
primeiro ofendido no pecado dos que quiseram usurpar a imagem de Deus, o
castigo e o perdão. Por outro lado, cabe ao Filho obedecer ao Pai e interceder

48. Cf. STh III 4,8.


49. BOAVENTURA, In Sent. III, d. 1, a. 1.
50. Cf. ibid. III, d.l, a. 2, q. 3.

26
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

junto dele mais do que o inverso. Compete também ao Filho introduzir-nos


na relação filial com o Pai51. Em outra ocasião, esquecido Boaventura de pro­
blemas escolásticos e de hipóteses de pura especulação, resumiu em um belo
texto as razões que mostram que a encarnação convém ao Filho:
A mediação convém ao Filho de Deus, a ele convém também a encarnação.
Porque é próprio do mediador ser meio entre o homem e Deus e reconduzir o
homem ao conhecimento de Deus, à semelhança e à filiação divina. Todavia, a
ninguém convém ser meio mais do que à pessoa que cria e é gerada e exerce a
mediação entre as pessoas. A ninguém, melhor que ao Verbo, compete recon­
duzir o homem ao conhecimento de Deus, o Verbo no qual o Pai se manifesta
e pode unir-se à carne, como a palavra à voz. A ninguém convém reconduzir
o homem à semelhança com Deus mais do que àquele que é a imagem do Pai;
a ninguém convém reconduzir à filiação adotiva mais do que ao Filho natural
e, por isso mesmo, a ninguém convém fazer-se filho do homem mais do que
ao próprio Filho de Deus52.

Algumas considerações finais

O Filho é o revelador do Pai, por ele foi gerado e dele saiu, é sua palavra
e sua imagem. Deus criou todas as coisas por meio dele e por meio dele nos
salva. À sua imagem, os homens foram criados, segundo a antiga teologia
da Igreja, e é a imagem de Jesus Cristo ressuscitado que somos chamados a
reproduzir (cf. ICor 15,49; Rm 8,29); cabe a ele reparar a imagem deteriorada
e devolver-nos a semelhança perdida. Se ele é o Filho único por natureza,
compete a ele tornar-nos participantes de sua condição filial. Estes e outros
motivos que encontramos na tradição (o Filho como a Sabedoria, a beleza etc.)
mostram-nos a congruência da encarnação do Filho. Se Deus se manifestou
a nós dessa forma, é preciso pensar que isto não é simplesmente casual, mas
corresponde ao que Deus é em si mesmo, que é congruente com sua pró­
pria vida divina. Existe ainda espaço para questões hipotéticas? Não parece.
Provavelmente a própria pergunta seja ociosa. Deus não nos revelou até onde
chega sua onipotência, na misteriosa relação entre sua natureza e sua liberdade
a que faremos referência em breve; nem tampouco todas as características da
profunda congruência, que sem dúvida devemos postular, entre seu ser e seu
agir. Por outro lado, também não sabemos onde termina o que é próprio de
cada pessoa divina, uma noção que usamos e que certamente teremos de usar,

51. Cf. ibid.


52. Breviloquium IV 2,6.

27
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

porém sempre com a consciência de que é a necessidade de não calar que


nos obriga a utilizar este termo para referir-nos ao Pai, ao Filho e ao Espírito
Santo53. Diversas vozes advertiram na teologia católica dos últimos tempos
contra um uso demasiado unívoco do conceito de pessoa em sua aplicação a
Deus54. Por outro lado, o Novo Testamento nos diz que o Verbo se fez carne,
mas não conhece um conceito abstrato de encarnação. O desenvolvimento
conceituai, sem dúvida legítimo, não nos deve fazer esquecer a fonte de onde
provém. A especulação escolástica a que fizemos algumas poucas alusões deveria
nos advertir quanto ao que pode acontecer quando a especulação teológica se
desliga demasiado de sua base positiva55. Deixemo-nos ficar com as razões que
nos falam da coerência da encarnação do Filho. Acreditamos que convenha a
sua propriedade pessoal irrepetível este modo de manifestação e autodoação;
e o mesmo se pode dizer do modo de doação do Espírito Santo em nossos
corações, na relação intrínseca que existe entre encarnação do Filho e dom do
Espírito para nossa salvação. A “economia” não só nos remete à “teologia”,
mas é a única via legítima de acesso a ela.
A cristologia não pode ser separada da doutrina trinitária, e esta há de
ser considerada ao se falar da teologia da encarnação. Jesus é o Filho de Deus
feito homem, e não simplesmente “uno de Trinitate”. A condição filial de
Jesus, e não somente sua divindade, é fundamental para a cristologia. É esta
condição filial, a relação com o Pai que Jesus nos mostra em sua vida, que
possibilitou à tradição da Igreja falar da geração eterna do Filho, do Pai como
fonte e princípio da divindade etc., e também do Espírito Santo como dom do
Pai e do Filho. A Trindade econômica é a Trindade imanente, embora desde
o primeiro instante, também em relação com a primeira parte do “axioma
fundamental”, devamos assinalar que a economia salvadora nos remete a um
mistério sempre maior e mais profundo.

53. Cf. AGOSTINHO, Trin. V 9,10 (CCL 50,217); VII 4,7 (255).
54. Cf. H. U. VON BALTHASAR, Theologik II. Die Wahrheit Gottes, Ensiedeln, 1987, 137; K.
RAHNER, El Dios trino..., 373s.; 433; H. MÜHLEN, Der Heilige Geist als Person in der Trinität ,
in der Incarnation und im Gnadenbundy Münster, 1963, 106s.; as pessoas, como pessoas, não
têm nada em comum. O que têm em comum é a divindade, o ser pessoal as distingue.
55. Pode-se escarmentar em cabeça alheia, ainda que seja nas cabeças dos mais velhos. Para
defender a possibilidade da encarnação das três pessoas, e concretamente do Pai, tanto santo
Tomás como são Boaventura terão de defrontar-se com a objeção de que neste caso haveria
em Deus duas pessoas que seriam “filhos”. Respondem dizendo que, neste caso, a encarnação
não ocorreria por meio de um nascimento: o Pai poderia formar para si mesmo um corpo,
como no caso de Adão (TOMÁS, Sup. Sent III, d. 1, q.2, a.3); mais genericamente, é falso
que Deus não possa assumir a carne mais que a tomando de uma mulher como de uma mãe
(BOAVENTURA, In Sent. III, d. 1, a.l, q. 4). A semelhança que estas possíveis “encarnações”
teriam com o que o Evangelho nos narra é nula.

28
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

Na encarnação do Filho enviado pelo Pai, feito homem em virtude do


poder do Espírito Santo, dá-se um caso de especial correspondência entre
a Trindade econômica e a Trindade imanente. Esta correspondência assim
seria mesmo que nos deixássemos ficar nos motivos de mera conveniência
da encarnação do Verbo. Na economia da salvação, as pessoas divinas agem
inseparavelmente, porém, ao mesmo tempo, cada uma de acordo com aquilo
que lhe é próprio5657. Não podemos pensar que a encarnação seja uma exceção
a esta regra, pois constitui muito melhor o caso paradigmático no qual toda a
atuação de Deus ad extra encontra seu ápice e da qual recebe o sentido último,
começando pela criação (cf. lT m 2,5; Cl 1,15-20; ICor 8,6; Jo 1,3; Hb 1,2-3).
Para a comunicação da vida divina aos homens, é de importância decisiva a
encarnação do Filho. A cristologia e a doutrina trinitária não podem, portanto,
ser separadas.

A Trindade e a divinização do homem


No texto objeto de nosso estudo, a Comissão Teológica Internacional
assinala uma segunda “separação” entre a doutrina trinitária e a cristologia:
na explicação da divinização do homem, a Trindade não foi suficientemente
levada em conta. As doutrinas sobre a encarnação e sobre a divinização são dois
aspectos inseparáveis de um mesmo mistério. A divinização significa adoção
filial, participação na filiação divina de Jesus pelo dom de seu Espírito (cf. G1
4,4-6; Rm 8,14-16). Somente seguindo o ensinamento de Jesus, o filho feito
homem, podemos chamar a Deus “Pai” (cf. Mt 6,9; Lc 11,2). Do mesmo modo,
não podemos separar a divinização do homem do desígnio divino para o qual
fomos predestinados, a conformação com a imagem do Filho, o “primogênito
de uma multidão de irmãos” (Rm 8,29; ICor 15,49; Ef 1,3-10). A divinização
do homem (cf. 2Pd 1,4) só pode ser considerada em relação com a filiação,
mais ainda, somente à luz desta é bem entendida. Podemos ser divinizados na
medida em que participamos da condição filial de Jesus5'. Precisamente em
Gálatas 4,6, onde nos é falado da filiação divina do homem, está o germe da
teologia patrística do intercâmbio: como o Filho de Deus compartilha nossa
condição humana, nós podemos compartilhar sua condição divina sendo
filhos nele. Não ter presente a importância do mistério da Trindade para a

56. Cf. CCC 256, com citação do segundo concílio de Constantinopla (cf. DH, 421).
57. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 7,23 (SCh 405,240): “ Devo ser sepultado com Cristo,
ressuscitar com ele, ser co-herdeiro de Cristo, ser feito filho de Deus, e até mesmo deus”; a
idéia se repete em Or. 14,23 (PG 35,888).

29
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

teologia da encarnação e da divinização equivale a não ter presente a relação


íntima entre estes dois últimos mistérios entre si. Somente a partir da dou­
trina trinitária é possível iluminar o nexo entre eles. No documento objeto
de nosso estudo, a Comissão Teológica referiu-se à teologia da divinização e
do intercâmbio relacionando-as explicitamente com a encarnação e a filiação.
Podemos, portanto, supor que tem este problema presente quando se referiu
à separação neo-escolástica entre a doutrina trinitária e a da divinização do
homem. A relação entre ambas passa necessariamente pela encarnação58.
Somente mediante a referência ao mistério trinitário podemos determinar o
significado da encarnação do Filho e, ao mesmo tempo, o da atuação de cada
uma das pessoas segundo sua propriedade pessoal na obra comum da salvação.
Somente assim se pode contemplar a possibilidade de relações próprias e não
apenas apropriadas com cada uma das pessoas. Com efeito, se estivermos em
relação com a Trindade considerada apenas em sua unidade, não chegaremos
a entender o valor de nossa inserção na vida trinitária. Nossa divinização não
tem sentido sem a filiação, do mesmo modo que, de forma ainda mais radical,
não podemos separar a divindade de Cristo de sua filiação divina: ele é Deus
Filho, é Deus enquanto recebeu tudo do Pai, enquanto na geração o Pai lhe
comunicou sua divindade. Com a encarnação do Filho e o dom do Espírito
derramado em nossos corações, realmente nos é mostrado algo da Trindade
imanente. Somente com esta referência trinitária que parte de Jesus Filho, a
Palavra e a imagem perfeita do Pai, entendemos o sentido da encarnação, que

58. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Teologia - Cristología - Antropologia I


E) 1 (253): “‘O Verbo de Deus se fez homem para que o homem se fizesse Deus (ATANÁSIO,
Oratio de Incarnatione Verbi 54,3). Este axioma da soteriologia dos Padres, sobretudo dos Padres
gregos, é negada em nossos tempos por várias razões. Alguns pretendem que a deificação
seja uma noção tipicamente helenista da salvação que conduz à fuga da condição humana e à
negação do hom em ...”; ibid. 3 (254): “O homem, que foi criado à imagem e semelhança de
Deus, é convidado à comunhão de vida com Deus, o qual é o único que pode preencher os
desejos mais profundos do homem. A idéia da deificação alcança seu auge na encarnação de
Jesus Cristo: o Verbo encarnado assume nossa carne mortal para que nós, libertados do pecado
e da morte, participemos da vida divina. Por Jesus Cristo, no Espírito Santo, somos filhos e
assim também co-herdeiros (cf. Rm 4,17), ‘em comunhão com a natureza divina (2Pd 1,4). A
divinização consiste nesta graça, que nos liberta da morte do pecado e nos comunica a própria
vida divina: somos filhos e filhas no Filho”; ibid. 4 (254): “O sentido verdadeiramente cristão
de nosso adágio se torna mais profundo pelo mistério de Jesus Cristo. Do mesmo modo que
a encarnação do Verbo não muda nem diminui a natureza divina, assim também a divindade
de Jesus Cristo não muda nem dissolve a natureza humana, mas sim a consolida mais ainda e
a aperfeiçoa em sua condição original de criatura... Quanto mais profundamente Jesus Cristo
se abaixa na participação da miséria humana, tanto mais alto sobe o homem na participação
da vida divina” .

30
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

tem lugar “propter nos homines et propter nostram salutem” . É preciso que
isto seja tomado em consideração para entender a doutrina do “intercâmbio”,
que se encontra nos Padres com formulações distintas. Em muitas ocasiões,
fala-se em termos mais ou menos genéricos de divindade e humanidade, porém,
em outras, é explicitada a idéia da filiação, a de Cristo e a dos homens59. Uma
vez que não se pode separar a Trindade imanente da Trindade econômica,
também não podem ser separadas a cristologia e a doutrina trinitária porque,
como nos recordava a Comissão Teológica Internacional, “o mistério de Jesus
Cristo se insere na estrutura da Trindade”60.
É preciso reconhecer que neste momento o problema que a Comissão
Teológica assinalava há dois decênios não é muito atual na teologia católica.
Em certo sentido, já não o era quando o documento a que nos referimos foi
publicado. Os princípios nos quais se inspirava foram amplamente recebidos
na teologia católica. Entretanto, a relação entre teologia e economia continua
e continuará sempre a suscitar problemas, uma vez que não podemos pensar
que a economia salvadora esgote o mistério de Deus. Na consciência da Igreja
sempre esteve o fato de que no acontecimento de Jesus Cristo e no dom de
seu Espírito Deus se revela a nós como é; todavia, a maior proximidade desta
revelação nos mostra um Deus muito maior e misterioso61. A outra separa -

59. Assim, por exemplo, encontra-se muito claramente em IRENEU DE LIÃO, Adv. Haer. III
19,1 (SCh, 211,374): tt... o Filho de Deus se fez homem para que o homem, unido ao Verbo de
Deus e recebendo a adoção, se fizesse filho de Deus... Porque de que maneira poderíamos nos
unir à incorrupção e à imortalidade se antes da incorrupção e da imortalidade não se houvesse
feito o que somos nós?” . Cf. também ibid. III 10,2 (116-118): “ [Deus] qui per legem et prophe-
tas promisit Salutarem suum facturum se omni cami visibilem, ut fieret Filius hominis ad hoc
et homo fieret filius Dei”. Ireneu, o primeiro que formulou este princípio de modo explícito,
insistiu como vemos explicitamente na filiação divina, e não se contentou com formulações mais
genéricas sobre a divinização. Os dois elementos devem andar juntos. Encontramos o mesmo
em época muito mais tardia em AGOSTINHO, Sertno 185 (PL 38,999); LEÃO MAGNO, Ser. 26,
6 in Nat. Domini (PL 54, 213). Neste sentido, não é tão completa a fórmula de Atanásio citada
pela CTI (cf. nota anterior). Outras indicações sobre o motivo patrístico do intercâmbio serão
encontradas em L. F. LADARIA, Teologia dei pecado original y de la grada (cf. nota 23).
60. Teologia - Cristologia - Antropologia I C) 1.2 (249).
61. JOÃO PAULO II, Fides et Ratioy 13: “Entretanto, não se pode esquecer que a Revelação
permanece envolvida no mistério. Jesus, com toda a sua vida, revela seguramente o rosto do Pai,
porque ele veio para manifestar os segredos de Deus; e contudo o conhecimento que possuímos
daquele rosto está marcado sempre pelo caráter parcial e limitado de nossa compreensão”;
ibid.: “ Em resumo, o conhecimento da fé não anula o mistério, torna-o apenas mais evidente e
apresenta-o como um fato essencial para a vida do homem”; isto não significa que a revelação
não seja autêntica e que “a palavra de Deus, que é sempre palavra divina em linguagem humana,

31
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO

ção entre cristologia e doutrina trinitária assinalada pela Comissão Teológica


aponta precisamente para a reta compreensão deste mistério.

B. A separação moderna entre a Trindade e a cristologia

A Comissão Teológica toma em consideração outra separação: a separação


por ela denominada “moderna”. Com esta expressão, refere-se ao “ agnosti­
cismo” em face da revelação cristã, como se esta não oferecesse ao homem o
verdadeiro conhecimento de Deus uno e trino e a participação em sua vida:
A separação moderna coloca uma espécie de véu entre os homens e a Trindade
eterna, como se a revelação cristã não convidasse o homem ao conhecimento
do Deus trino e à participação em sua vida. Conduz, assim, com relação à
Trindade etema, a certo “agnosticismo” que não se pode aceitar de modo
algum. Pois, ainda que Deus seja sempre maior do que o que dele podemos
conhecer, a revelação cristã afirma que este “maior” é sempre trinitário62.

A teologia cristã deverá evitar sempre o risco de considerar que a reve­


lação do Deus uno e trino esgota seu mistério, Deus sempre maior63, porém
ao mesmo tempo haverá de ficar claro que, verdadeiramente, em Jesus vemos
o Pai e, por conseguinte, um apofatismo total há de ser igualmente excluído.
Não podemos nos contentar com a afirmação de que “ninguém jamais viu a
Deus” sem acrescentar ao mesmo tempo que “ Deus Filho único, que está no
seio do Pai, no-lo revelou” (Jo 1,18)64. Se a separação neo-escolástica parece
não constituir problema hoje no campo da teologia, em contrapartida adquire
agora uma grande atualidade esta advertência contra o “agnosticismo” que
algumas vezes se pretende justificar também em nome da revelação e da teo­
logia cristã. A Comissão Teológica não nos oferece nenhuma indicação acerca

não seria capaz de exprimir nada sobre Deus”; cf. ibid., 84-85; H. U. VON BALTHASAR,
Teodramática 3. Las personas dei drama. El hombre en Cristo, Madrid, 1993,465: MSe o princípio
divino, o Pai, se desdobra real e até exaustivamente no Filho feito homem, então o mistério
santo se torna público e manifesto, porém sem deixar de ser mistério, porque são necessários
sempre a iniciação, o dom do Espírito e os ‘olhos da fé’ para perceber o mistério desvelado”;
ibid., 486: “Não é porque Deus se revela que é menos Deus e menos incompreensível”.
62. Ibid. 2.1 (249). Cf. também o concílio Lateranense IV (DH 804).
63. AGOSTINHO, En. in Ps. 62,16 (CCL 39,804): “Semper enim ille maior est, quantumque
creverimus”. Também aqui podemos citar o concílio Lateranense IV (DH 806): “Quia inter
creatorem et creaturam non potest tanta similitudo notari, quin inter eos maior sit dissimili-
tudo notanda”.
64. Cf. E. JÜNGEL, Dios como mistério dei mundo, Salamanca, 1984, 303-307.

32
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

das posições a que se refere ao falar desta separação moderna. Todavia, não
existe dúvida de que sua advertência revestiu-se de atualidade nos últimos
decênios, durante os quais se desenvolveram tendências teológicas que na
fase da redação do documento estavam apenas começando a se insinuar. São
algumas das hipóteses propostas pelo chamado “pluralismo” na teologia cristã
das religiões. Não nos cabe agora entrar em detalhes sobre o particular; para
nosso propósito, serão suficientes algumas pequenas indicações65.
Trata-se de buscar uma interpretação teórica da pluralidade religiosa
tendo em conta as riquezas espirituais que se descobrem no diálogo com as
diferentes religiões. A partir desta experiência, pode se tornar difícil continuar
afirmando a superioridade do cristianismo. Ao contrário, este encontro leva a
pensar que nas grandes religiões há uma mescla m ais ou menos uniforme de
bem e de mal, de valor mais ou menos equivalente como respostas salvadoras
para a transcendência. Do ponto de vista cristão, tais hipóteses fundam-se na
cristologia e na doutrina sobre Deus. Uma vez que, conforme se diz, Deus é
inabarcável e incognoscível, nenhuma figura reveladora pode dá-lo a conhecer
plenamente. Por outro lado, insiste-se no teocentrismo de Jesus (indiscutido e
indiscutível), que nos remete sempre ao Pai, diante do qual está sempre total­
mente aberto. A fé cristã na encarnação não exclui que o Logos presente em
Jesus o esteja também em outros homens eleitos. Na pluralidade de mediações,
permanece sempre o único amor de Deus como único mediador. Quanto ao
que diz respeito à doutrina sobre Deus, a fé cristã afirma sua incompreensibi-
lidade; Deus é inabarcável, sempre supera nossos conceitos. Daí, porém, não
se infere que Deus não tenha se revelado; é preciso sustentar precisamente o
contrário. Deus se revelou em toda a história, não apenas em um fragmento
seu, segundo as capacidades próprias dos homens. Como estes são diferentes,
a revelação aconteceu em formas diversas; e, assim, deu origem a diferentes
experiências religiosas; para explicá-las, os homens se serviram dos conceitos
e nomes que tiveram à sua disposição em cada tempo e em cada contexto.
Tais explicações são todas válidas, porque têm na raiz a revelação comum que

65. Tomo como exemplo uma contribuição relativamente recente, na qual, além disso, se
encontra abundante informação sobre o tema: P. SCHMIDT-LEUKEL, Was will die pluralistische
Religionstheologie?, Münchener Theologische Zeitschrift 49 (1998) 307-334. Reporto-me a este
artigo para o que segue. Entre os escritos já clássicos nesta linha: J. HICK (Ed.), The Myte of
God Incarnate, London, 1977, e especialmente a contribuição do próprio editor, Jesus and the
World Religions, in ibid., 172-184; ID., Problems of Religious Pluralism, London, 1985; ID., The
Methafor of God Incarnate, London, 1993; P. F. KNITTER, No Other Name? A Critical Surwey
of Christian Attitudes Toward the World Religions, Maryknoll/New York, 1996; J. HICK, J. P.
KNITTER (Ed.), The Mythe of Christian Uniqueness, Maryknoll/New York, 1988.

33
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

Deus faz de si mesmo à humanidade. Donde se pode extrair a conseqüência


segundo a qual este Logos deu lugar a múltiplas mediações salvadoras na
história, uma das quais é Jesus Cristo; este é decisivo para os cristãos; todavia,
outros grupos religiosos podem ser beneficiários de outras manifestações do
amor divino e de outras mediações de salvação66. Nas posições mais extremas
desta linha, propõe-se até mesmo o problema da divindade de Jesus Cristo.
Nestes casos, é evidente que nem sequer poderia ser suscitada a questão da
Trindade, nem no ser de Deus em si mesmo, nem tampouco na economia
da salvação. O único fato de falar da “Trindade econômica” pressupõe que
Jesus e o Espírito Santo são Deus como o Pai e consubstanciais com ele.
Outros autores, de forma muito mais matizada, procuram dar razão do
pluralismo religioso e do valor das religiões não-cristãs para explicar sobretu­
do a universalidade da salvação. Não se nega nem se questiona a encarnação
como evento único realizado em Cristo, nem o caráter definitivo da revelação
que ele nos traz. Sustenta-se, no entanto, que a particularidade histórica de
Jesus impõe certas limitações à significação do evento Cristo. Não podemos
pensar que a manifestação histórica de Jesus de Nazaré seja absoluta, já que
não pode sê-lo nenhuma singularidade histórica. Toda criatura pode encon­
trar a Deus também fora de Jesus em nossa história. Deus, em Jesus Cristo
e no Espírito, nos remete a si mesmo, como criador e redentor, ao Deus da
humanidade inteira. Deus é absoluto, mas nenhuma religião o é. Por isso, a
manifestação de Deus em Jesus não conclui a história da religião67. Se, por um
lado, o Logos tomou forma de modo único na encarnação, por outro toda a
criação está cheia do Logos divino. Assim sendo, pode-se afirmar, em uma
linha semelhante, que a economia do Verbo encarnado pode ser considerada
o sacramento de uma economia mais vasta, que é a do Verbo eterno de Deus,

66. A CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, decl. Dominus Iesusy9, assim descreve
estas posições: “Na reflexão teológica contemporânea é freqüente fazer-se uma aproximação de
Jesus de Nazaré, considerando-o uma figura histórica especial, finita e reveladora do divino de
modo não exclusivo mas complementar a outras presenças reveladoras e salvíficas. O Infinito,
o Absoluto, o Mistério último de Deus manifestar-se-ia assim à humanidade de muitas formas
e em muitas figuras históricas: Jesus de Nazaré seria uma delas. Mais concretamente, seria
para alguns um dos tantos vultos que o Logos teria assumido no decorrer dos tempos para se
comunicar em termos de salvação com a humanidade”; cf. também ibid. 4;6.
67. Cf. E. SCHILLEBEECKX, Umanità. Storia di Dioy Brescia, 1992, 219-220: “Deus é de­
masiado rico... para poder deixar-se esgotar em sua plenitude por uma tradição experiencial
religiosa, sempre determinada e por isso limitada”; afirma-se claramente, por outro lado, que
a singularidade de Cristo e sua divindade em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da
divindade (Cl 2,9). Esta “corporeidade”, porém, caracteriza a forma contingente e limitada da
aparição do Filho de Deus na terra.

34
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

que coincide com a história religiosa da humanidade68, e que o cristianismo


não exclui outros modos de presença de Deus na história, porque do contrário
seria confundida a particularidade histórica de Jesus com a plenitude do Deus
invisível69. A dificuldade que estas opiniões e outras similares podem suscitar
do ponto de vista que agora nos interessa está em se aceitar em todo o seu
realismo a encarnação do Filho, de tal maneira que este, a partir do momen­
to em que se faz homem, existe somente unido à humanidade que assumiu
“segundo a hipóstase”70. Na prática, parece sustentar-se uma ação salvadora
do Verbo eterno de validade mais universal que a do Verbo encarnado. Não
se torna fácil entender de que modo, a partir de algumas destas posições, se
possa afirmar que, “com a encarnação, todas as ações salvíficas do Verbo de
Deus são sempre feitas em união com a natureza humana que ele assumiu
para a salvação de todos os homens”71.
Não é o caso de nos determos em mais particularidades que por ora não
nos incumbem diretamente. Que eu saiba, este problema do “pluralismo religio­
so” ou, se assim o quisermos, o da unicidade e da universalidade da mediação
salvadora de Jesus Cristo não foi posto em relação direta com a questão da
trindade econômica e da trindade imanente. É evidente, porém, que a relação
entre os dois problemas é muito grande. Se Jesus é apenas uma das figuras
mediadoras, juntamente com outras que pode haver, e se todas são colocadas
no mesmo nível, o próprio conceito da encarnação — e, por conseguinte, o da
Trindade — fica em interdito. Se outras figuras de salvação são possíveis junto
a Jesus, e complementares com ele, temos indubitavelmente uma separação
entre a Trindade econômica e a Trindade imanente, já que esta, envolta em
seu mistério transcendente, não se comprometeu “definitivamente” no evento

68. Cf. CL. GEFFRÉ, La singolarità dei cristianesimo nelletà dei pluralismo religioso, Filosofia
e Teologia 6 (1992) 38-58, espec. 53; cf. também, La théologie des religions non chrétiennes
vingt ans après Vatican II, Islamocristiana 11 (1985) 115-133, 132; Pour un christianisme
mondial, Recherches de Science Religieuse 86 (1998) 53-75; defende-se a insuperabilidade de
Cristo e da revelação cristã, embora se faça presente a limitação histórica; fala-se também da
presença escondida do mistério de Cristo em outras tradições religiosas, com o que se expressa
sua significação universal; c f p. 67; 72.
69. Cf. ID., La vérité du christianisme à Fâge du pluralisme religieux, Angelicum 74 (1977)
177-191, 182. Indica-se, ao mesmo tempo, a necessidade iniludível do anúncio de Cristo.
70. Refletiremos mais adiante sobre a incidência que este fato tem nas relações entre a
Trindade econômica e a Trindade imanente.
7\. Dominas Iesusy10. Imediatamente em continuação, diz-se: “O único sujeito que opera nas
duas naturezas — humana e divina — é a única pessoa do Verbo. Portanto, não é compatível
com a doutrina da Igreja a teoria que atribui uma atividade salvífica ao Logos como tal em sua
divindade, que se realizasse ‘à margem’ e ‘para além’ da humanidade de Cristo, também depois
da encarnação” . C f também ibid. 9; 13-15.

35
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

de Jesus72. A partir destes pressupostos, é possível afirmar que a Trindade


econômica é a imanente? Em última palavra, insistindo tão fortemente na
incognoscibilidade de Deus, o próprio conceito de economia fica em interdito.
Dever-se-ia, em vez disso, falar de “economias”. E considerado o pressuposto
da impossibilidade de conhecer a Deus, assim como a multiplicidade de suas
manifestações, dificilmente teria sentido falar da Trindade, quando esta form a
trinitária seria apenas uma das possíveis manifestações divinas; por outro lado,
não estaria garantido que nesta forma se fosse encontrar a revelação mais
plena e perfeita. Conforme já indicamos, é difícil saber se são estas as teorias
que a Comissão Teológica tinha presentes em 1980, uma vez que, embora
houvessem já começado a ser expostas, não haviam ainda sido divulgadas.
Todavia, à distância de anos, as afirmações do importante documento que nos
serve de guia mostram-se perfeitamente aplicáveis também a estes problemas
que surgiram nos últimos decênios. Certas posições “ pluralistas” na teologia
das religiões colocam-se nos antípodas da preocupação de Karl Rahner e dos
autores que o seguiram na formulação e subseqüente discussão em torno do
“axioma fundamental” , incluída a Comissão Teológica. Com efeito, o axio­
ma funda-se na revelação de Deus que se efetuou definitivamente em Cristo,
único salvador de todos os homens, de tal maneira que o teocentrismo e o
cristocentrismo não podem ser considerados de modo algum alternativos ou
incompatíveis entre si; antes, implicam-se mutuamente73.

72. Ibid. 11: M... deve crer-se firmemente na doutrina de fé sobre a unicidade da economia
salvífica querida por Deus Uno e Trino, em cuja fonte e em cujo centro se encontra o mistério
da encarnação do Verbo...” ; 14: “Deve crer-se firmemente como verdade de fé católica que a
vontade salvífica universal de Deus Uno e Trino é oferecida e realizada de uma vez para sempre
no mistério da encarnação, morte e ressurreição do Filho de Deus”.
73. CTI, Teologia... C) 1 (248-249): “A economia de Jesus Cristo revela o Deus trino; Jesus
Cristo só pode ser conhecido em sua missão se corretamente entendida a presença singular,
nele, de Deus mesmo. Por essa razão, teocentrismo e cristocentrismo iluminam-se e postulam-
se mutuamente” . Sobre esta questão, e sem a pretensão de ser exaustivos, cf. COMISSÃO
TEOLÓGICA INTERNACIONAL, El cristianismo'y las religionesy in Documentos (cf. nota 8),
357-604; entre a abundante bibliografia sobre o assunto, cf. K. H. MENKE, Die Einzigkeit Jesu
Christi im Horizont der SinnfrageyEinsiedeln/Freiburg, 1995; M. DE FRANÇA MIRANDA, O
cristianismo em face das religiões, São Paulo, 1998; M. SCHULZ, Anfragen an die pluralistische
Religions-theologie: Einer ist Gott, nur Einer auch Mittler, Münchener theol. Zeitschrift 51 (2000)
125-150; G. IMMARRONE, La dottrina del primato assoluto e della signoria universale di Gesü
Cristo nel dibattito attuale sul valore salvifico delle religioni, in I. SANNA (a cura di), Gesü
Cristo speranza del mondo. Miscellanea in onore di Marcello Bordoni, Roma, 2000, 339-408;
G. L. MÜLLER, M. SERRETTI (Hrsg.), Einzigkeit und Universalität Jesu Christi im Dialog mit
dem Religionen, Einsiedeln, 2000; M. DHAVAMONY, The uniqueness and universality o f Jesus
Christ, Studia Missionalia 50 (2001) 179-216.

36
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

É convicção cristã o fato de que aquele que viu Jesus viu o Pai (cf. Jo
14,9) e, do mesmo modo, que só por Jesus se vai a ele (cf. Jo 14,6)74. Por
conseguinte, só a partir da revelação de Deus, que nele atinge sua plenitude
e se realiza, temos acesso ao mistério da vida do Deus trino:
A distinção de vários sujeitos em Deus não é possível do ponto de vista cristão
senão a partir do comportamento de Jesus Cristo. Somente nele abriu-se para
nós e tomou-se acessível a Trindade... Do Pai, do Filho e do Espírito Santo
como “pessoas” divinas, só sabemos graças à figura e ao comportamento de
Jesus Cristo. É preciso, então, aprovar o princípio, ffeqüentemente aplicado
hoje, segundo o qual não podemos conhecer a Trindade imanente e nem nos
aventurar em afirmações a respeito a não ser pela Trindade econômica75.

C. A segunda parte do axioma fundamental: "a própria Trindade


imanente é a que se comunica livre e gratuitam ente na economia da
salvação"76
O caráter definitivo e insuperável da revelação e da salvação levadas a
efeito em Cristo leva-nos à segunda parte do axioma de Karl Rahner, rece­
bido também pela Comissão Teológica. É o famoso “vice-versa”, que tantas
discussões suscitou. Não apenas a Trindade econômica é a imanente, mas a
Trindade imanente é também a que se comunica livre e gratuitamente na eco­
nomia da salvação. Não se trata, evidentemente, de situar as duas afirmações
no mesmo nível. A economia da salvação fimda-se na vida interna de Deus,
a salvação que se manifesta a nós em Cristo não teria sentido nem seria tal
se não se fundasse em Deus mesmo e se não fosse realmente a comunicação
de sua própria vida. A economia da salvação é absolutamente dependente

74. Não se excluem, com isto, as “mediações participadas”; cf. VATICANO II, const. Lumen
Gentium, 60; 62; JOÂO PAULO II, Redemptoris missioy5; CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA
DA FÉ, decl. Dominus Iesus, 14.
75. H. U. VON BALTHASAR, Teodramática 3. Las personas dei drama: El hombre en Cristo,
Madrid, 1993, 466. Von Balthasar adverte neste mesmo contexto quanto à extrema cautela que
se requer ao aplicar à Trindade analogias de fora do cristianismo. Estas analogias carecem de
base “econômica”, não provêm da revelação de Cristo, razão pela qual não são acessos válidos
ao mistério. Ou são simples adições de princípios cosmológicos, com o que não fugiriam do
triteísmo, ou manifestações ou aspectos do Uno, caso em que se trataria de doutrina do tipo
“modalismo”. Outras alusões de von Balthasar ao Grundaxiom serão encontradas em ibid., 150;
Teodramática 4. La accióny Madrid, 1995, 295-304; Theologik II. Wahrheit Gottesy Einsiedeln,
1985, 123-125. Voltaremos a nos reportar a von Balthasar quando abordarmos a segunda parte
do axioma fundamental.
76. CTI, Teologia - Cristología - Antropologia, C) 2 (249).

37
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

da Trindade imanente77. É claro que não podemos dizer o mesmo do aao


inverso”78, a Trindade imanente não depende da economia. Não se trata de
uma identidade perfeita entre as duas partes do axioma. Na segunda parte
dele é somente a soberana liberdade divina que conta; assim indica com cla­
reza a Comissão Teológica, e Rahner já o havia salientado com as palavras
“livre e gratuitamente” (frei und gnadenhaft), as quais, com o já comentamos,
foram reproduzidas pela Comissão Teológica. O “ao inverso” suscitou forte
oposição quando foi entendido no sentido de uma total correspondência e
reciprocidade entre as duas partes do axioma. Todavia, esta interpretação
parece desmedida79 e, de qualquer maneira, não é a única possível. Não creio
que as palavras “ ao inverso”, interpretadas com todos os matizes necessários,
possam ser anuladas sem mais nem menos. Se assim se fizesse, poder-se-ia

77. H. U. VON BALTHASAR, Teodramática 3, 466-467: “Na Trindade revelada por Cristo
aparecem as duas coisas ao mesmo tempo: que Deus como Pai, Filho e Espirito se ocupa do
mundo, e isso para sua salvação — o dogma da Trindade, em sua entranha mais profunda, é
portador de um cunho soteriológico —, todavia ocupa-se do mundo enquanto Deusy que não
se converte ‘no amor’ pelo fato de ter o mundo como seu ‘tu’ e seu ‘partenaire\ mas por ser já
em si mesmo e acima do mundo ‘o amor’” .
78. Cf. W. KASPER, Der Gott Jesu Christi, Mainz, 1982, 336: “Se o axioma da identidade da
Trindade imanente e econômica há de levar à fundamentação e não à dissolução da Trindade
imanente, então não se pode entender essa identidade no sentido da fórmula tautológica A =
A. O ‘é* neste axioma não pode ser entendido no sentido de uma identidade, mas no sentido de
uma presença não-dedutível, livre, gratuita e histórica da Trindade imanente na econômica”.
79. G. LAFONT interpretou neste sentido a segunda parte do axioma, em uma das primeiras
tomadas de posição significativas sobre ele, muito pouco tempo depois que tinha sido publicado
o artigo de K. Rahner em Mysterium salutis; cf. sua obra Peut-on connaître Dieu en Jésus-Christ?,
Paris, 1969,212; indica-se ai que Rahner quer estabelecer uma “reciprocidade perfeita” entre as
duas partes do axioma. Não me consta que Rahner tenha afirmado semelhante coisa, e Lafont
não cita texto algum a respeito. K. Rahner disse que se Deus, livremente, quer comunicar-se,
tem de fazê-lo deste modo, porém a reciprocidade perfeita é uma interpretação que vai mais
além da letra do autor alemão. B. FORTE critica também o vice-versa em termos, a meu ver,
excessivamente lancinantes em Teologia delia StoriayCinisello Balsamo, 1991, 54-55: “O ‘vice-
versa’ não pode ser aceito: não obstante todas as precisões possíveis, ele corre o risco de resol­
ver o divino no mundo e, portanto, de reconduzir a teologia da revelação a uma filosofia da
revelação, caracterizada pela necessidade, intrínseca em Deus mesmo, do ato da revelação”; cf.
também A. STAGLIANÒ, Il mistero dei Dio viventey Bologna, 1996, 490, para quem a segunda
parte do axioma não enquadra apropriadamente o tema da liberdade divina. Esta liberdade
foi, como vimos, claramente afirmada por K. Rahner e pela Comissão Teológica Internacional.
Do ponto de vista da teologia protestante, interpretou-se também o “ao inverso” de K. Rahner
no sentido de uma correspondência estrita; assim, B. OBERDÖRFER, Filioque. Geschichte und
Theologie eines ökumenischen Problems, Göttingen, 2001, 197; 261s.; 571. Oberdofer, como eie
próprio assinala explicitamente, inspira-se na teologia trinitária de W. Pannenberg, segundo a
qual, efetivamente, a correspondência entre a Trindade imanente e a econômica é muito forte.
Teremos oportunidade de tratar deste problema no capítulo 3.

38
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

questionar a própria revelação do mistério trinitário. Jesus nos revela o Pai e


deste modo o Deus trino, porém, ao mesmo tempo, em Jesus, Deus diz sua
palavra última e definitiva aos homens: “És tu ‘Aquele que vem’ ou devemos
esperar outro?” (Mt 11,3). Em Cristo verifica-se a plenitude e o auge da re­
velação, nele é Deus mesmo quem executa a obra para a salvação de todos os
homens. Não existe outro nome no qual os homens possam ser salvos (cf. At
4,12); ele é o único mediador entre Deus e os homens (cf. lTm 2,5); Jesus é o
Filho que Deus enviou para que o mundo se salve por meio dele (cf. Jo 3,16-
17); ninguém vai ao Pai se não for por meio dele (cf. Jo 14,6); nele subsistem
todas as coisas e nele todas foram reconciliadas com o Pai (cf. Cl 1,15-20); é
ele quem tira o pecado do mundo (Jo 1,29); nele o Pai reconciliou o mundo
consigo (2Cor 5,19). É Deus mesmo quem, em Cristo e no dom do Espírito,
realiza a salvação e estabelece a aliança nova e definitiva com os homens. Sem a
segunda parte do axioma, a própria primeira parte pode ficar vazia de sentido.
Com efeito, por que afirmamos que a economia da salvação nos revela Deus
se este não se comunica a nós precisamente nesta economia? A economia
não somente nos remete à teologia (momento ascendente e, de nosso ponto
de vista, o primeiro na ordem do conhecer), mas também, naquela, é Deus
mesmo quem se faz presente na história de um modo definitivo e insuperável
(momento descendente, o primeiro na ordem do ser).
Existe, portanto, um “ao inverso” segundo a formulação de Karl Rahner,
ou, com mais matizes, segundo o formulado pela Com issão Teológica
Internacional, pelo que se há de dizer que “a própria Trindade imanente é a
que se comunica livre e gratuitamente na economia da salvação”. Observemos
a prudência da formulação: não se diz simplesmente que a Trindade imanente
é a Trindade econômica, mas que a Trindade imanente é a que se comunica
livre e gratuitamente na economia da salvação. Podemos acrescentar, com a
mesma Comissão Teológica, que Deus se comunica “definitivamente”80 no
evento Cristo com toda a liberdade de seu amor. Sabemos que este evento
inclui o dom de seu Espírito, que universaliza, atualiza e interioriza nos homens
de todos os tempos e lugares o acontecimento salvador de Jesus81. Não pode
haver outra economia da salvação além da que encontra em Cristo seu cum­
primento. Nesta economia, o próprio Deus se comprometeu e fez-se realmente
presente, nela mostrou de maneira insuperável seu amor sem reservas pelos

80. Teologia - Cristología - Antropologia, C) 3 (250), no acontecimento de Cristo “Deus se


revela e comunica-se absoluta e definitivamente”.
81. Cf. O. GONZÂLEZ DE CARDEDAL, Jesus de Nazaret. Aproximaáón a la cristología,
Madrid, 1975, 558.

39
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

homens, dando seu Filho para a salvação do mundo (Jo 3,16; cf. ljo 4,8-11).
Portanto, não se trata exclusivamente do fato de que a economia da salvação
nos remeta à Trindade em si mesma, mas também de assegurar que é esta
mesma Trindade que se faz realmente presente na economia da salvação. Em
minha opinião, é este, e não outro, o significado da segunda parte do axioma
fundamental, que, prescindindo da formulação concreta de Karl Rahner, a
Comissão Teológica Internacional fez sua, na forma matizada que já vimos.
A Trindade imanente é a Trindade econômica, ou seja, é a que se com u­
nica livre e gratuitamente na economia de salvação. Existe uma identidade,
todavia já nos deparamos em diferentes ocasiões com a necessidade de matizar
seu alcance. Impõem-se dois esclarecimentos evidentes, e foram geralmente
aceitos na teologia recente: por um lado, a Trindade não se constitui na eco­
nomia da salvação e, por outro, também não se exaure nela82. Daí, portanto,
que se tenha de estabelecer uma distinção necessária, não adequada, entre a
Trindade imanente e a econômica83. Na diferenciação necessária da econo­
mia e da teologia existe uma “ correspondência”84. Assim como ocorre uma
correspondência entre o modo como a Trindade se revela e seu ser íntimo,
assim a própria Trindade se expressa e se comunica livre e gratuitamente,
e ao mesmo tempo verdadeira e definitivamente (o que não quer dizer de
maneira exaustiva) na revelação de Cristo. Assim, as duas partes do axioma
sustentam-se mutuamente. A primeira parte, por si mesma, levaria apenas a
dizer que na revelação cristã temos uma manifestação verdadeira de Deus,
mas não que Jesus leve a cumprimento e aperfeiçoe a revelação e confirme
com o testemunho divino que Deus está sempre conosco (DV 4, “... reve-
lationem complendo perficit ac testimonio divino confirmat, Deum semper
nobiscum esse...” ). O acontecimento de Cristo nos remete verdadeiramente
à Trindade imanente somente se nele esta mesma se fez presente de maneira
insuperável no éon atual.
Desse ponto de vista é preciso ter presente e sem dúvida se há de acolher
a afirmativa de W. Kasper: “Na autocomunicação histórico-salvífica está pre­
sente de um modo novo a autocomunicação intratrinitária: em palavras, sinais

82. Cf. as reflexões de Y. CONGAR, El Espíritu Santo, Barcelona, 1983, 454-462; La parola
e il soffio, Roma, 1985, 131.
83. Cf. K. RAHNER, El Dios trino..., 371; H. U. VON BALTHASAR, Teodramática 3, 466.
84. Falar de correspondência já na primeira parte do axioma deixa talvez mais aberto o mistério
do Deus em si mesmo do que o simples “é”. Já nos anos 1930, esta expressão foi usada por A.
STOLZ, De Sanctissima Trinitate, Freiburg, 1939, 130: “ ... oiconomiae internae correspondere
oiconomiam externam”. Devo este dado a A. CORDOVILLA, La creaáón en Cristo en la teologia
de Karl Rahner y Hans Urs von Balthasar, Roma, 2002, 47 (tese inédita de doutorado).

40
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

e fatos históricos e, em último termo, na figura de Jesus de Nazaré. Trata-se


de salvaguardar, diante da Trindade imanente, o caráter livre e gratuito, e ao
mesmo tempo quenótico, da Trindade econômica e com isso fazer justiça
ao mistério imanente de Deus na (e não atrás da) revelação de si mesmo”85.
A distinção há de ser assegurada pelo caráter livre e gratuito da economia da
salvação (K. Rahner, CTI), e pelo caráter quenótico dela (CTI, Y. Congar)86. Ao
mesmo tempo, porém, e este é o ponto ao qual, neste momento, interessa dar
ênfase, o mistério da Trindade imanente está na Trindade econômica, e não
“atrás” dela. De maneira semelhante, o documento da Comissão Teológica,
em uma das passagens que comentamos, falava-nos do “véu” que não exis­
te entre Deus e os homens. No mistério de Cristo, patenteia-se o mistério
do Deus uno e trino, não se oculta. Desvela-se em seu caráter misterioso.
Porém, a presença definitiva de Deus acontece em Cristo, e não atrás dele.
Nele habita toda a plenitude da divindade (cf. Cl 2,9), e quem o vê vê o Pai
(cf. Jo 14,8). A Trindade não se esconde atrás da economia de salvação, mas
nela se faz presente. Em Jesus, Deus se comprometeu com os homens de um
modo irrevogável (cf. 2Cor 1,20). A economia da salvação leva-nos a Deus na
segurança de que este é o caminho, não um caminho entre outros, isto é, que
por meio da revelação de Cristo se alcança verdadeiramente a Deus, porque
Deus mesmo veio a nós em Jesus e no dom de seu Espírito.
O compromisso definitivo de Deus com a humanidade em Cristo mostra-
se nos numerosos textos do Novo Testamento que apresentam Jesus como
o enviado definitivo do Pai, e a salvação como uma realidade já presente
neste mundo (cf. Mc 1,2; Mt 11,3; Lc 19,9; Jo 5,24; Cl 3,1 etc.). Entretanto,
esta comunicação definitiva de Deus, como acabamos de recordar, tem duas
características: é livre e gratuita e, por outro lado, tem um caráter quenótico.
A seguir deverão ser abordados estes dois aspectos.

85. W. KASPER, Der Gott Iesu Christi> 336.


86. Teologia - Cristología - Antropologia I C) 3 (250): “A economia da salvação manifesta
que o Filho eterno assume em sua própria vida o caráter ‘quenótico' do nascimento, da vida
humana e da morte na cruz”. Y. CONGAR, El Espíritu Santo, 461, funda-se precisamente neste
aspecto para fazer ver a necessidade de que o uso da segunda parte do axioma seja “discreto”:
“Se a forma servi constitui parte do que é Deus (com as devidas distinções), a forma Dei pertence-
lhe igualmente. Esta, porém, aqui embaixo nos foge em uma medida impossível de ser deter­
minada. O modo infinito, divino, em que são realizadas as perfeições que afirmamos escapa à
nossa compreensão. Isso deve nos tornar discretos quando dizemos ‘e vice-versa’”. Ibid., 457:
“Podemos nós afirmar que Deus compromete e revela todo o seu mistério na ‘auto comuni­
cação’ que faz de si mesmo?”. Somente na consumação escatológica terá lugar a plena comunicação
que Deus fará de si mesmo; cf. ibid., 450.

41
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

A liberdade da autocomunicaçâo divina. O problema da liberdade


e da necessidade em Deus
Continuando com o documento da Comissão Teológica, que de algum
modo nos serve de guia, temos de salientar que, após haver excluído a se­
paração entre a cristologia e a doutrina trinitária (a economia nos remete
à teologia), exclui também toda confusão entre elas (a Trindade imanente
comunica-se livre e gratuitamente na economia). A maneira diferente como
a liberdade e a necessidade incidem na vida interna de Deus e na economia
salvadora é precisamente o critério de distinção entre a Trindade imanente e
a Trindade econômica:
É preciso evitar igualmente toda confusão imediata entre o acontecimento
de Jesus Cristo e a Trindade. A Trindade não se constituiu simplesmente na
história da salvação pela encarnação, pela cruz e ressurreição de Jesus Cristo,
como se Deus necessitasse de um processo histórico para chegar a ser trino.
É preciso, portanto, manter a distinção entre a Trindade imanente, na qual
a liberdade e a necessidade são idênticas na essência eterna de Deus, e a eco­
nomia trinitária da salvação, em que Deus exerce sua liberdade de maneira
absoluta, sem necessidade alguma por parte da natureza87.

A distinção entre a Trindade imanente e a economia da salvação é, sim­


plesmente, a distinção entre Deus e o mundo. Não parece compatível com
a transcendência divina atestada pela revelação cristã a implicação de Deus
no processo e na evolução da história, de tal maneira que neles se constitua
ou se aperfeiçoe88. Deus se compromete efetivamente na história humana, a

87. Teologia - Cristologia - Antropologiay I C) 2.2 (250).


88. H. U. VON BALTHASAR, Teodramática 3, 466: “Do ponto de vista cristão, a Trindade
econômica aparece realmente como a interpretação da Trindade imanente que, não obstante
ser o princípio em que se funda a primeira, não pode ser simplesmente identificada com ela.
Porque neste caso a Trindade imanente e eterna corre o risco de ser reduzida à Trindade
econômica; mais claramente, Deus corre o risco de ser absorvido no processo do mundo e de
não poder chegar a si mesmo senão através de dito processo”; cf. também ID., Teodramática
4y 296: “O Filho carregado com o pecado e com tudo o que significa franca e sinceramente o
contrário a Deus parece ter perdido o Pai em meio a seu abandono; pois bem, a partir daqui,
precisamente, mostra-se como se esta revelação da Trindade econômica houvesse conseguido
conduzir agora à sua consumação toda a gravidade contida na Trindade imanente. Tal é, como
se sabe, a razão pela qual Hegel incorpora o processo do mundo na história interna de Deus,
porque a verdadeira vida do espírito não é a que se protege limpamente da morte e da deso­
lação, mas a que olha de frente a própria negação. Alguns teólogos, na hora de determinar a
relação entre a Trindade imanente e a econômica, parecem dar à segunda uma preeminência
tal, que a Trindade imanente, no caso em que continue sendo distinguida da primeira, acaba

42
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

partir, porém, de sua transcendência. Somente esta é a garantia de que Deus


pode salvar o mundo. Se Deus necessitasse de algum modo da história para
aperfeiçoar-se, ficaria encerrado na finitude, e assim não poderia haver salva­
ção para o homem. Não é preciso que nos detenhamos especificamente neste
ponto89. Na economia da salvação em Deus, não podemos falar de necessidade
nem de aperfeiçoamento de tipo algum (quanto ao que se refere à liberdade
da criação, cf. Vaticano I, const. Dei Filius> DH 3002; 3025).

Liberdade e necessidade na Trindade imanente

A relação entre liberdade e necessidade em Deus foi objeto de discussão


nos tempos antigos. É fato sabido que a teologia pré-nicena estabeleceu, para
os parâmetros posteriores, uma relação demasiado estreita entre a criação e
a geração do Filho. Com isso, colocou o acento justamente na economia da
salvação, porém com o perigo de criar certa confusão entre teologia e eco­
nomia. Orígenes foi talvez o autor que mais explicitamente falou da vontade
na geração do Filho: “Dizemos que a Palavra e a Sabedoria, excluindo toda
paixão corporal, foi gerada de Deus invisível e incorporai, como a vontade
procede da inteligência. E não pode parecer absurdo, já que é chamado filho
da caridade (cf. Cl 1,13), pensar que é também filho da vontade”90. O Filho é,
portanto, da vontade do Pai; embora tenha sido gerado de sua substância,

por converter-se em uma espécie de condição prévia para a revelação e doação de Deus em seu
sentido mais próprio e verdadeiro” . Entre estes teólogos estão K. Rahner e ). Moltmann. Cf. a
discussão de suas teses em ibid., 295-304. Não entramos agora na questão do acerto de Balthasar
nesta discussão. Retornaremos mais adiante (cap. 2) a tratar da teologia trinitária de K. Rahner
e das críticas que foram feitas. Sobre a discussão do problema do hegelianismo em K. Rahner, cf. G.
J. ZARAZAGA, Trinidad y comunión. La teologia trinitaria de K. Rahner y la pregunta por sus
rasgos Hegelianos, Salamanca, 1999, onde são assinaladas, parece-me que com muita razão, as
diferenças que o separam do pensador idealista.
89. Em alguns teólogos protestantes notáveis delineia-se este problema de uma plenitude
escatológica de Deus (mesmo que seja por uma decisão do próprio Deus) em seu modo de abor­
dar a relação entre Trindade econômica e Trindade imanente. Cf. W. PANNENBERG, Teologia
sistemática /, Madrid, 1992,325-363; J. MOLTMANN, Trinität und Reich Gottes. Zur Gotteslehre,
München, 1980, 166-178; Der gekreuzigte Gott. Das Kreuz Christi als Grund und Kritik christli­
cher Theologie, München, 1972,222-236. Cf. adiante capítulo 3. Sobre a teologia trinitária de W.
Pannenberg, podemos desde já reportar-nos ao estudo de K. VECHTEL, Trinität und Zukunft. Zum
Verhältnis von Philosophie und Trinitätstheologie im Denken Wahlfhart Pannenbergs, Frankfurt
am Main, 2001. Partindo de outro ponto, P. Schoonenberg considera que a plena personalização
do Filho e do Espírito só tem lugar a partir da encarnação. Deste ponto de vista, a rigor, não se
podería falar de uma Trindade imanente sem a economia da salvação; cf., entre outras publicações,
Der Geist, das Wort und der Sohn. Eine Geist-Christologie, Regensburg, 1992.
90. ORÍGENES, Princ. IV 4,1 (SCh 268,400-402); cf. I 2,6 (SCh 252,122).

43
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

não vem do nada. Estes dois extremos foram incompatíveis na teologia dos
primeiros séculos cristãos. No entanto, a crise ariana obrigou a um redelinea-
mento profundo deste e de outros pontos de vista. É Deus Pai simplesmente
porque quer? Não significaria isto que ele, o Filho, não é Deus igual? A
partir do Concílio de Nicéia, efetuou-se uma clarificação sobre o significado
da vontade e da liberdade em Deus, em relação com sua natureza. Atanásio
foi talvez o primeiro a formular o problema de modo preciso: a questão da
voluntariedade ou da involuntariedade não se delineia em Deus nos mesmos
termos que entre os homens:
Se o Filho é por natureza e não por vontade, pode não ter sido querido pelo Pai,
e existe contra sua vontade? Absolutamente não. O Filho é querido pelo Pai...
Pois do mesmo modo que sua bondade não começou por vontade, mas ao
mesmo tempo não é bom sem vontade nem desígnio... igualmente, a existência
do Filho, embora não tenha começado por vontade, não é involuntária nem
lhe falta o consentimento. Pois, da mesma maneira que o Pai quer sua própria
hipóstase, quer a do Filho, que é própria de sua essência91.

Gregório de Nazianzo formula a mesma pergunta92. Tampouco santo


Agostinho é alheio ao problema, que resolve de maneira similar à de Atanásio
e talvez referindo-se a ele:
Por isto, se há de rir da dialética de Eunômio, que sendo impotente para en­
tender e não querendo crer que o Filho de Deus, mediante o qual foram feitas
todas as coisas, é por natureza Filho de Deus, ou seja, gerado da substância
do Pai, dizia que não era Filho de sua natureza, substância ou essência, mas
filho da vontade de Deus, queria assim afirmar que vontade com a qual gerou
o Filho era para Deus um acidente.

91. ATANÁSIO, C. Arianos III 66 (PG 26,451). Cf. os cap. prévios, 61ss. Fides Damasi (DH
71): “Pater Filium genuit, non voluntate, nec necessitate, sed natura” ; Concílio XI de Toledo,
ano 675 (DH 526): “quem [Filium] Deus Pater nec voluntate nec necessitate genuisse credendus
est, quia nec ulla in Deo necessitas capit, nec voluntas sapientiam praevenit” .
92. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 29,6-9 (SCh 250,188-192): “Porque, dizem, se o gerou
sem desejá-lo, foi obrigado; todavia, quem sujeitou sua vontade? E como pode ser Deus quem
foi obrigado? E, se o gerou querendo-o, o Filho, então, é filho da vontade. Como pode então
proceder do Pai?... Deus criou todas as coisas querendo ou sem querer? Se o fez obrigado, temos
aqui um ato de tirania... E, se criou com livre vontade, também as criaturas se vêem |>rivaclas
de seu Deus e, antes de todas, tu... porque ao pôr a vontade no meio, separa-se as criaturas de
seu Criador... O Pai é Deus porque quer sê-lo ou o é contra sua vontade?... E por que não é
também ele, segundo teus pressupostos, um produto de sua vontade? E se é Deus sem querê-lo,
quem o forçou a ser Deus?... Grande coisa é para ti saber que foi gerado. Quanto ao modo, não
consentimos sequer que os anjos o entendam; muito menos que o entendas tu. Porém, como queres
que te explique o modo? Pois tal como o conhecem o Pai que gerou, e o Filho que foi gerado”.

44
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

Alguém respondeu com agudeza a um herege que perguntava com muita astúcia
se Deus gerou o Filho querendo ou sem querer; porque se houvesse respondido
wsem querer”, seguia-se em Deus uma muitíssimo absurda miséria; e se houvesse
respondido “querendo”, o herege teria concluído imediatamente com razões
invencíveis que o Filho não era da natureza, mas da vontade. Por isso aquele,
muito precavido, perguntou-lhe por sua vez se Deus Pai era Deus querendo
ou sem querer. De tal maneira que, se respondesse “sem querer”, seguir-se-ia
aquela miséria que é grande loucura crer em Deus. E se dissesse “querendo” lhe
teria respondido por sua vez que o próprio Deus o é por sua vontade e não pela
natureza. Que saída lhe restava senão calar-se, se não quisesse ver-se amarrado,
por causa de sua própria pergunta, com um laço impossível de ser desfeito?93.

A alternativa liberdade ou necessidade em Deus não tem sentido. De modo


incompreensível para nós, ambas são idênticas à essência divina, em sua suma
simplicidade. Podemos formular esta idéia da tradição nestes termos: Deus é
como quer ser (liberdade), porém, quer ser como é (necessidade). A diferen­
ça fundamenta] entre a Trindade imanente e a econômica está em que nesta
última não se pode de modo algum falar de necessidade. Tudo sucede pelo
libérrimo desígnio do amor divino. Deus não necessita dos homens nem do
mundo, apesar de na liberalidade de seu amor não ter querido ser sem nós:
A Trindade deve ser entendida como aquela autodoação eterna e absoluta que
faz com que Deus apareça, já em si, como o amor absoluto, e é precisamente
a partir daqui donde se chega a compreender a livre doação ao mundo como
amor, sem que Deus tenha a menor necessidade, para seu próprio sobrevir (para
sua “automediação”), de implicar-se no processo do mundo e da cruz94.

A liberdade da economia da salvação

A própria Comissão Teológica explica, em parte, o alcance da liberdade e


da gratuidade que é preciso sustentar necessariamente na economia da salvação

93. AGOSTINHO, De Trinitate XV 20,38 (CCL 50,516); também ibid. 19 37 (514), o Filho
de seu amor é o Filho gerado de sua substância. E também Dial sexaginta quinque quaes. Q.7
(PL 40,736): “Voluntate genuit Pater Filium, an necessitate? Nec voluntate, nec necessitate”.
Já HILÁRIO DE POITIERS, Syn. 58 (PL 10,520): “Nec dissimilem sui edidit natura naturam,
sed ex substantia Dei genitus naturae secundum originem attulit, non secundum creaturas,
voluntatis essentiam”; ibid. 59: “Cum non ex voluntate, ut caetera, Filius subsistere doceretur,
ne secundum voluntatem tantum, non etiam secundum naturam haberet essentiam...”. Sto.
Tomás, STh I, 41,2, discute ainda o problema em termos semelhantes. Os atos de noção não
são voluntários, embora caiba entender a voluntariedade no sentido de que o Pai quer ser Deus
e, portanto, quer gerar o Filho. Cf. também Contra gentiles IV 11.
94. H. U. VON BALTHASAR, Teodramática 4, 299-330.

45
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

e na Trindade econômica: esta economia não é necessária à Trindade para


constituir-se e, podemos acrescentar, nem para aperfeiçoar-se.
Um dos primeiros críticos do Grundaxiom> G. Lafont95, mostrou temores
de que uma identificação demasiado grande entre a Trindade imanente e a
Trindade econômica, no modo como poderia ser expressa, segundo ele, no
“vice-versa”, poderia levar a uma indulgência excessivamente grande com
a teologia pré-nicena e, portanto, a pensar que na economia salvadora a
Trindade constitui-se como tal. Evidentemente, a teologia pré-nicena nunca
pensou na possibilidade da encarnação do Pai (nem tampouco do Espírito
Santo), porém isso à custa de certa inferioridade do Filho e do Espírito Santo
em relação ao Pai. Com efeito, a este corresponderia a incompreensibilidade e
a invisibilidade, e o Filho, compreensível e visível, em contrapartida, teria em
si a possibilidade da encarnação que haveria de ser negada ao Pai. A precisão
progressiva da noção da consubstancialidade do Pai e do Filho, depois do
Concílio de Nicéia, obrigou certamente a purificar certas noções. O Filho pode
nos revelar o Pai precisamente porque é igual a ele, é sua imagem perfeita, e
porque é uma só coisa com ele. Assim sendo, muitas das intuições básicas da
teologia pré-nicena não se encontram desautorizadas de modo algum, antes
recebem maior luz. O Filho é o visível do Pai enquanto é igual a ele. Pode-se
perfeitamente sustentar, sem nenhum indício de subordinacionismo, que o fato
de ser o Filho aquele que na encarnação nos revela o Pai, e não o contrário, é
algo que está misteriosamente enraizado no ser mesmo de Deus. Das missões
ad extray chegou-se à teologia das processões.
A história da salvação, até o Concílio de Nicéia, foi vista como muito
ligada à doutrina trinitária. E, por outro lado, esta doutrina não alcançou, nos
primeiros séculos, seu desenvolvimento definitivo, comparada com a evolução
dogmática posterior: nem sempre fica claro que a geração do Filho seja eterna,
fazendo-se depender da vontade do Pai, e não poucas incertezas acompanham
ainda a teologia do Espírito Santo na vida eterna de Deus. Paradoxalmente,
quando a teologia da Trindade se harmoniza dogmaticamente, em pontos cuja
relevância para a salvação do homem está fora de qualquer dúvida, afasta-se
dela esta vinculação com a economia da salvação. Não deixa de ser estra­
nho, por menos que pareça, que uma “teologia” sem dúvida mais elaborada
em muitos aspectos decisivos se afaste da “economia”. A teologia trinitária
dogmaticamente mais definida e elaborada não pode ser fundada senão na
revelação que Deus faz de si mesmo. Este Deus que na economia da salvação
(nem sequer na criação) não se constitui nem se aperfeiçoa cria-nos e vem

95. G. LAFONT, Peut-on connaître Dieu en Jésus-Christ (cf. nota 79), 201 ss.

46
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

a nós com liberdade total e a partir da plenitude de sua vida. A doação que
Deus faz de si mesmo mostra-se como mais plena se consideramos a igual
dignidade das três pessoas. A “correspondência” entre a Trindade econômica
e a imanente e o fato de acentuar que esta última, livre, porém realmente,
se expressa e se comunica na economia da salvação não têm por que trazer
consigo a volta a estágios que o desenvolvimento dogmático superou. Uma
concepção mais profunda da liberdade de Deus coloca-nos em condições de
relacionar melhor a teologia e a economia. Não nos parece, por conseguinte,
que tenhamos a temer que o axioma fundamental deva nos induzir a formu­
lações que ponham em risco o dogma trinitário.
Deus se comunica livre e gratuitamente. Todavia, é evidente que, se decide
livremente comunicar-se, há de fazê-lo de maneira que esta comunicação seja
real. Esta comunicação gratuita e livre não pode ser feita senão no Filho e no
Espírito; só existe esta correspondência entre a “autocomunicação” econômica
de Deus e a imanente que dá origem às pessoas divinas pela comunicação que
o Pai faz de sua divindade se efetuada uma autêntica revelação e comunicação
do próprio Deus. Karl Rahner assim se expressa:
Como o que se comunica é precisamente o Deus pessoal trinitário, e igualmente
a comunicação (que é feita à criatura por pura graça), se tem lugar livremente,
só pode ter lugar na forma intradivina das duas comunicações da essência
divina do Pai ao Filho e ao Espírito, porque outra comunicação distinta não
poderia comunicar de modo algum o que se comunica aqui, as pessoas divinas,
não sendo estas algo distinto de seu próprio modo de comunicação96.

Se a comunicação livre e gratuita que Deus faz de si mesmo há de ser


tal, não pode ser mais do que no Filho e no Espírito Santo. Em caso contrário,
não se poderia falar de uma comunicação da Trindade, de uma verdadeira
comunicação de Deus. Neste ponto, é preciso dar razão a Karl Rahner. Por
outro lado, no entanto, uma vez estabelecido este princípio geral, o mais

96. K. RAHNER, El Dios trino..., 380-381. E imediatamente antes, 380: “Deus se porta co­
nosco de uma forma trinitária, e este mesmo comportamento trinitário (livre, e não devido)
para conosco não é apenas uma imagem [Abbild] ou uma analogia da Trindade interna, mas
é esta mesma, comunicada de maneira livre e gratuita \frei und gnadenhaft)”. Talvez seja esta
uma das poucas passagens nas quais K. Rahner explica algo do “ao inverso” da segunda parte
de seu axioma. Por um lado, insiste-se na identidade entre a Trindade imanente e a econô­
mica, porém, por outro, afirma-se que o comportamento para fora não é somente “ imagem
e analogia” . Não se exclui, portanto, este elemento de distinção, junto ao mais enfatizado da
identidade. Já fizemos referência à distinção “não adequada” entre a Trindade econômica e a
Trindade imanente (cf. o texto referente à nota 83).

47
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

razoável parece ser renunciar a ulteriores determinações. Sabemos que a eco­


nomia da salvação não esgota o mistério de Deus, parecendo, portanto, uma
especulação inútil e sem fundamento pretender estabelecer os limites do que
Deus, na profunda conseqüência consigo mesmo, houvesse podido ou não
fazer. Devemos afirmar a liberdade de Deus na comunicação de si mesmo e
nas características concretas com que esta comunicação trinitária teve lugar.
Entretanto, uma vez afirmado isto, devemos insistir na coerência do modo
que Deus escolheu para revelar-se e operar nossa salvação. Quando santo
Tomás se pergunta pela necessidade da encarnação para a redenção do ho­
mem, distingue dois tipos de necessidade: uma é a necessidade absoluta, sem
a qual não se pode de maneira alguma obter o fim que se pretende. Todavia,
diz-se também que algo é necessário quando é o modo pelo qual, melhor e
mais convenientemente, se chega ao fim. A encarnação, diz o Aquinate, não
foi necessária na primeira das acepções da palavra. Foi-o, porém, no segundo
sentido do termo97. Embora não possamos falar de uma necessidade absoluta,
e também neste caso é preciso salvaguardar a liberdade divina, certamente não
conhecemos outra maneira concreta e precisa pela qual esta comunicação da
vida divina possa chegar até os homens. A encarnação é, portanto, neste sen­
tido lato, necessária para a comunicação da vida divina aos homens, por ser
o modo melhor e mais conveniente. A teologia patrística do “intercâmbio” a
que já fizemos referência, e segundo a qual o fato que o Filho de Deus tenha
compartilhado nossa condição humana é determinante, não salientou outra
coisa. Deixando, pois, claro que Deus é sempre maior e que, portanto, nenhu­
ma forma de aparição histórica pode esgotar suas capacidades infinitas, fica
o fato da grande conveniência da encarnação, que para santo Tomás chegava
a ser “ necessidade” no sentido lato indicado. Ainda que não se tenha posto
tão claramente em destaque na tradição, a grande conveniência da encarna­
ção acompanha a do dom do Espírito Santo como dom de Jesus98. O Deus

97. STh III, 1,2: “Ad finem aliquem dicitur aliquid esse necessarium dupliciter: uno modo,
sine quo aliquid esse non potest, sicut cibus est necessarium ad conservationem humanae vitae;
alio modo, per quod melius et convenientius pervenitur ad finem, sicut equus necessarius est
ad iter. Primo modo Deum incamari non fuit necessarium ad reparationem humanae naturae:
Deus enim per suam omnipotentem virtutem poterat humanam naturam multis aliis modis
reparare. Secundo autem modo necessarium fuit Deum incarnari ad humanae naturae repa­
rationem”; cf. também ibid. 1,1. Todos estes problemas já se encontram na base do Cur Deus
homo? de santo Anselmo.
98. Neste ponto, mesmo reconhecendo uma parte de verdade, provavelmente é preciso matizar
as críticas de G. LAFONT, Peut-on connaître..., 222-223, a K. Rahner. Aceitando o princípio
da liberdade divina e que não podem ser excluídas a priori outras possibilidades, é preciso ter
também presente a conveniência do caminho escolhido por Deus. Em ibid., 224, afirma-se que,

48
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

sempre maior, lembrava-nos a Comissão Teológica Internacional, é sempre


o Deus uno e trino e, portanto, trinitária deverá ser em qualquer hipótese
sua manifestação, no caso em que realmente queira dar-se a nós. O modo
de revelar-se e nos salvar que Deus escolheu convém ao mesmo tempo a ele
e à nossa salvação. A primeira conveniência é a determinante, porque nossa
salvação não é mais que a participação em sua vida divina e fomos criados
de tal maneira que esta participação seja possível.

O caráter quenótico da economia da salvação


Se a salvação que Cristo nos traz é já uma realidade segundo o Novo
Testamento, não podemos esquecer que outras passagens dele nos falam da
salvação no futuro (cf. Mc 4,3-8 par.; 4,30-32; 8,38; Lc 12,8; lTs 4,15; ICor
1,8; 2Cor 1,22; 5,5; Ef 1,14; Rm 8,23, entre muitas outras). Este futuro está
certamente ligado a Jesus e não a nenhum outro, porém com isso se demons­
tra que não estamos ainda na plena manifestação do Senhor. Jesus ainda não
veio na plenitude de sua glória (cf. Mt 25,31), e não foi ocasionada ainda a
sujeição total de tudo a Cristo, para que Deus seja tudo em todas as coisas
(cf. ICor 15,24-28)".
Também este aspecto da kénosis, como vimos, é posto em relevo pela
Comissão Teológica. O mistério de Deus mantém-se na economia da salvação,
antes de tudo porque é inabarcável, e também porque a plena manifestação de 9

segundo K. Rahner, “si Dieu décide de créer, il faut que 1’homme Dieu apparaisse, en sort que
tout homme doive être defini au niveau de sa puissance obedientielle à Tlncamation” (destaque
do autor). Simplesmente é preciso dizer que a interpretação do pensamento de R. neste ponto
é incorreta. Se é justo o último inciso, não o é a primeira parte do texto. Dada a criação, não se
segue para K. Rahner a necessidade da encarnação. Ao contrário, para o autor alemão, poderia
haver homens sem a encarnação do Filho, embora não sem sua possibilidade. Esta possibilidade
basta-lhe para definir o homem a partir do poder de obediência para a encarnação, contando
com a própria encarnação. Assim em Para la teologia de la encarnación, in Escritos de Teologia
IV, Madrid, 1962, 129-157, 152: “Existem homens, sem dúvida, que não são o Logos mesmo.
Naturalmente, poderia também haver homens se o Logos não se houvesse feito homem, do
mesmo modo que pode ocorrer o menor sem o maior. Apesar de que o menor se baseia sempre
na possibilidade do maior, e não o inverso” . Cf. também as mesmas idéias em ID., Grundkurs
des Glaubens, Freiburg, 1976, 221.
99. Ao fazer uso deste último texto, não me associo à posição daqueles que, de um ou de
outro modo, se servem dele para pensar em uma plenitude da Trindade que se produziria no
final dos tempos (confusão entre a economia e a teologia). A manifestação plena de Deus, ligada
à parusia do Senhor segundo o Novo Testamento, é a manifestação do Deus que desde sempre
existiu, e que em suma gratuidade chama os homens à participação de sua vida.

49
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Deus terá lugar na consumação escatológica100. A isto se há de acrescentar que


o Filho de Deus se nos deu a conhecer na forma de servo. Y. Congar assinala
que, “se a forma servi faz parte do que é Deus (com as devidas distinções), a
forma Dei pertence-lhe igualmente. Esta, porém, se nos foge aqui embaixo,
em uma medida impossível de determinar. O modo infinito, divino, em que
são realizadas as perfeições que afirmamos escapa a nossa compreensão. Isso
deve nos tornar discretos quando dizemos ‘e vice-versa’” 101.
Vale a pena refletir um pouco sobre a condição quenótica da revelação
do Filho, feito obediente até a morte, e morte de cruz. No modo concreto
como se realizou a economia da salvação, entram as conseqüências do pecado
humano. A correspondência entre a economia da salvação e a vida íntima de
Deus torna-se mais misteriosa, porque a forma como Jesus, o Filho eterno,
vive neste mundo a obediência ao Pai é determinada por uma modalidade
concreta da “condescendência” de Deus: o Filho não somente quis compartilhar
a condição humana, mas também sofrer as conseqüências de nosso pecado.
A assunção da condição de criatura abre já uma profunda distância entre o
que é Deus em si mesmo e a economia da salvação102, aumentada ainda mais
se consideramos Jesus feito pecado por nós, para que nós viéssemos a ser
justiça de Deus nele (2Cor 5,21). A referência do Filho em relação ao Pai há
de ser articulada na economia da salvação em uma forma de obediência que
comporta voltar atrás os passos de Adão, que quis ser como Deus, rebelando-
se à ordem de seu Criador. Em troca, Jesus assume até o extremo a forma de
servo. Deus revela-se a nós nesta forma, mas estamos bem conscientes de que

100. Cf. Y. CONGAR, El Espíritu Santo, 457; 460.


101. Ibid., 461. Como se vê, Congar advoga um uso prudente e discreto da segunda parte
do axioma fundamental, não sua abolição. Neste ponto, não se pode deixar de lhe dar razão
em princípio, prescindindo do maior ou menor acerto em sua interpretação do pensamento
de K. Rahner.
102. A possibilidade da encarnação do Filho funda-se e é o reflexo da distinção intratrinitária,
que torna possível que o Filho de Deus possa despojar-se de si mesmo e assumir a forma de
servo. Assim pode devolver o pecador à comunhão com Deus, indo buscá-lo onde se encontra,
isto é, no estado de “alienação” de Deus. Cf. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL,
Cuestiones selectas de Cristología, in Documentos (cf. nota 8), 220-242, 239: “A liberdade criada
não é tão autônoma que não requeira sempre a ajuda de Deus: uma vez que se afastou de Deus, não
pode voltar a ele por suas próprias forças. Além disso, o homem foi criado para integrar-se em
Cristo, e por ele na vida trinitária, e sua alienação de Deus, embora grande, não pode ser tão
grande como é a distância entre o Pai e o Filho em seu aniquilamento quenótico (F1 2,7) e no
estado em que foi Abandonado' pelo Pai (cf. Mt 27,46). Trata-se aqui do aspecto econômico da
relação entre as divinas pessoas, cuja distinção (na identidade de natureza e do amor infinito)
é máxima”. Para um comentário sobre este texto, cf. L. F. LADARIA, El Dios vivo y verdadero.
El mistério de la Trinidad, Salamanca, 22000, 84-85.

50
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

esta revelação é sub contrario. A partir do acontecimento da cruz de Cristo,


surge um novo conceito cristão de “teologia negativa” que não significa ape­
nas que Deus, em sua majestade, está acima de toda experiência e de todo
conceito humano, mas também que na cruz a contradição do pecado passa
a fazer parte da lógica do amor trinitário, não para encontrar ali um lugar,
mas para ser condenado na carne do Filho103. A carta aos Hebreus coloca, de
modo implícito, a diferença entre a primeira e a segunda vinda de Cristo,
sua manifestação na glória, precisamente no fato de que a primeira vinda
está em relação com o pecado, o que não ocorre na segunda: "... Cristo foi
oferecido uma só vez para tirar os pecados da multidão (ls 53,12), e aparecerá
uma segunda vez, sem mais relação com o pecado, aos que o aguardam para
a salvação” (Hb 9,28). Sem que queiramos entrar, por motivo algum, na ve­
lha questão dos motivos da encarnação, cumpre-nos afirmar que, de fato, na
vinda do Filho na carne mortal existe uma relação com o pecado, que se põe
de manifesto já no momento mesmo de sua concepção no seio de Maria (cf.
Mt 1,21 ) 104. Na história da salvação, acontece a revelação de Deus que é em
si mesmo misterioso, na forma de servo que o Filho assume por nós e por
nossa salvação. O Novo Testamento fala-nos também do Senhor glorificado
em sua ressurreição, e é claro que neste momento acontece a revelação máxima
do Deus uno e trino105. Porém, só temos acesso ao conhecimento do Senhor
ressuscitado na fé, que não é ainda a visão106. Continua valendo, portanto,
que em nosso peregrinar na terra não podemos ter uma idéia clara do que
significa a existência na forma de Deus.
Tudo o que acontece na economia da salvação tem na vida interna de
Deus sua condição de possibilidade, e é a Trindade em si mesma que se dá a
conhecer realmente na história da salvação, porém sem exaurir seu mistério.
Para a criatura e para o pecador, a maior proximidade de Deus mostra-o maior
e mais misterioso. Sirva tudo isto para matizar o “ao inverso” e evitar interpre­
tações dele incompatíveis com a fé, porém, ao mesmo tempo, para manter sua

103. Cf. H. U. VON BALTHASAR, Theologik II. Wahrheit Gottes, Einsiedeln, 1985, 297.
104. ID., Gloria. Una estética teológica I. La percepción de la forma, Madrid, 1985, 465: “Só
a culpa dos homens obriga o Filho a revelar-se ao mundo à maneira de ocultação”.
105. Cf. L. F. LADARLA, El Dios vivo y verdadero, 89-93.
106. A fé entra também na própria experiência dos discípulos no encontro com o Senhor
ressuscitado; sabemos que em várias ocasiões o reconhecimento do Senhor, quando este apa­
rece, não é imediato; cf. Mateus 28,17; Lucas 24,19-32.36-33; João 20,11-18. De Tomé, diz-se
expressamente que creu depois de ter visto o Senhor (cf. Jo 20,29; cf. também Jo 20,8); cf. J.
CABA, Resucitó Cristo, mi esperanza. Estúdio exegético, Madrid, 1986,373-376; O. GONZÁLEZ
DE CARDEDAL, Cristología, Madrid, 2001, 135-136.

51
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

estrita necessidade, se quisermos sustentar que, no acontecimento de Cristo,


Deus realmente se comunica a nós, revelando-se para a salvação da humanida­
de inteira. Não somente a história da salvação nos remete a um Deus sempre
maior, mas também este comunicou-se nela “absoluta e definitivamente”107.
Já nos referimos ao difícil equilíbrio entre os dois extremos formulados
no prólogo do evangelho de João, sem que nos seja dito exatamente como
haveremos de harmonizá-los: “Ninguém jamais viu a Deus, Deus Filho único,
que está no seio do Pai, no-lo revelou” (Jo 1,18). Não podemos pensar que
a segunda parte anule a primeira, porque é evidente que ainda não vimos
a Deus face a face; nem que a primeira anule a segunda, porque em Jesus
Deus se deu a conhecer realmente. Não podemos encerrar Deus em nossas
categorias, nem podemos defender o apofatismo de modo tal que a verdade
de Deus fique separada de sua manifestação na pessoa de Jesus, o Cristo, o
Filho de Deus feito homem.

D. A economia da salvação e a Trindade imanente

Existe ainda outra dimensão do “ao inverso” ou da segunda parte do


axioma fundamental, “a Trindade imanente é a que se comunica livre e gra­
tuitamente na economia da salvação” , que deve ser tratada com sumo cuidado:
tem a economia da salvação algum “efeito” na Trindade imanente, ou, em
outras palavras, fica esta “ afetada” de algum modo por aquela? Deve ficar
claro que a proposição desta pergunta não significa de modo absoluto pôr
em dúvida o que até agora se afirmou: Deus não se realiza nem se aperfeiçoa
no processo do mundo, não cria para aumentar sua felicidade108, nem começa
a ser amor quando no-lo mostra. A Trindade eterna vive desde sempre na
plenitude de sua vida, à qual, a rigor, nada se pode acrescentar. Voltemos,
porém, ao texto da Comissão Teológica:

A economia da salvação manifesta que o Filho eterno assume em sua própria


vida o acontecimento “quenótico” do nascimento, da vida humana e da morte

107. Cf. CTI, Teologia... IC ) 3 (250); CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÊ, decl.
Dominus Jesus, 15: w... pode-se e deve-se afirmar que Jesus Cristo tem, para o gênero humano
e sua história, um significado e um valor singular e único, somente dele próprio, exclusivo,
universal e absoluto. Jesus é, com efeito, o Verbo de Deus feito homem para a salvação de
todos”; cf. todo o n. 15.
108. CONC. VATICANO I, const. Dei Filius (DH 3002): “Hic solus verus Deus... non ad
augendam suam beatitudinem nec ad adquirendam... si mul ab initio temporis utramque de
nihilo condidit creaturam, spiritualem et corporalem...” .

52
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

na cruz. Este acontecimento, no qual Deus se revela e comunica-se absoluta e


definitivamente, afeta, de algum modo, o ser próprio de Deus Pai enquanto
ele é o Deus que realiza estes mistérios e os vive como próprios e seus com o
Filho e o Espírito Santo. Pois Deus Pai não só se revela e se comunica a nós
livre e gratuitamente no mistério de Jesus Cristo, mas também o Pai, com o
Filho e o Espírito Santo, conduz a vida trinitária de modo profundíssimo e —
ao menos segundo nossa maneira de entender — quase novo, sob o aspecto
de que a relação do Pai com o Filho encarnado na consumação do dom do
Espírito é a mesma relação constitutiva da Trindade109.

A encarnação afeta realmente o Filho desde o momento em que este assu­


me o acontecimento quenótico de sua vida humana com todas as vicissitudes
dela. Desde o momento em que Jesus vem ao mundo, o Filho eterno de Deus
é o Filho encarnado. Um e o mesmo, é o Filho eterno e o que se encarnou
no seio de Maria, é Deus e homem, sem que as naturezas se confundam, mas
também sem que possam se separar. Não é cabível pensar que a encarnação
afete apenas parcialmente o Filho de Deus, ou que alguns aspectos de seu ser
não sejam tocados pela assunção da natureza humana, de tal modo que o Filho
possa de alguma forma continuar agindo como se a encarnação não houvesse
tido lugar ou “mais além” dela110. São Leão Magno assinalou claramente que
cada uma das naturezas — enquanto cada uma delas é princípio de atuação
do único sujeito, a pessoa do Logos — faz o que lhe é próprio em comunhão
com a outra, de tal maneira que nem as ações divinas se fazem sem o homem,
nem sem Deus as humanas111. É o Filho quem se encarna, quem, na obediência
ao Pai, morre na cruz e aquele que ressuscita; não é “sua humanidade”, por
mais que se trate certamente do Filho enquanto homem112. Desde o momento

109. CTI, Teologia... I C) 3 (250). De outro ponto de vista, JOÃO PAULO II, Tertio Millenio
Adveniente, 10: “Em Jesus Cristo, Verbo encarnado, o tempo se faz uma dimensão de Deus,
que em si mesmo é eterno” .
110. Cf. L. F. LADARIA, II Logos incarnato e lo Spirito Santo nelFopera delia salvezza,
Osservatore Romanoy20 set. 2000, 4-5; ID., Jesús y el Espíritu Santo en la obra de la salvación.
En tomo a la declaración “Dominus Iesus”, Revista Espanola de Teologia 61 (2001) 321-330.
111. Assim diz o Tomus ad Flavianum (DH 294): “Agit enim utraque forma cum alterius
comunione quod proprium est”; do mesmo, Promisse me memini ao imperador Leão (DH 317):
“ Quamvis itaque ab illo initio, quo in utero Virginis Verbum caro factum est, nihil unquam
inter utramque formam divisionis exstiterit, et per omnia incrementa corporea unius personae
hiermit totius temporis actiones.. (DH 318): “ ... in tantam unitatem ab ipso conceptu Virginis
deitate et humanitate consorta, ut nec sine homine divina, nec sine Deo agerentur humana”.
112. Podemos remeter aos textos do Concílio de Éfeso, DH, 250ss. Cf. também as precisões
de Leão Magno, Promisse me memini (DH 318): “ ... qua ilium, sicut Doctor gentium dicit,

53
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

em que o Verbo se fez carne e uniu a si hipostaticamente a humanidade, não


podemos contemplá-lo à margem ou mais além desta última. Santo Tomás
afirmava que, enquanto subsiste nas duas naturezas, o Filho é uma “ pessoa
composta” 113. Sua humanidade não lhe é “estranha” em sentido algum. A
humanidade glorificada do Filho entrou de modo definitivo na plenitude da
vida trinitária. O Filho não se desprende dela ao passar deste mundo para o
Pai. É evidente, portanto, que a economia salvadora “afeta” a pessoa do Filho,
muito embora, ao mesmo tempo, se deva afirmar que isto não produz nele
nenhum crescimento ou aumento de perfeição. Os únicos beneficiários de
sua assunção da humanidade somos nós.
Se o Filho eterno assume em sua própria vida o acontecimento quenó-
tico de sua encarnação e de sua morte, não podemos pensar que este evento
não afete outras pessoas, dadas as relações que as constituem. A assunção da
humanidade por parte do Filho não pode deixar as outras pessoas divinas
“ indiferentes”, uma vez que neste acontecimento, como já observamos, Deus
se revela e se comunica absoluta e definitivamente. Nele, portanto, quem se
compromete é Deus. Deus Pai é quem tem a iniciativa da economia da salvação,
é ele quem “realiza estes mistérios e os vive como próprios, seus, com o Filho
e o Espírito Santo” . A relação do Pai com o Filho e vice-versa é agora com o
Filho encarnado; uma vez que este uniu a si a humanidade segundo a hipós-
tase, a humanidade de Jesus entrou na vida interna da Trindade de maneira
irreversível. Por essa razão, a vida trinitária é agora conduzida pelas divinas
pessoas “de modo profundíssimo e — pelo menos segundo nossa maneira de
entender — quase novo, sob o aspecto de que a relação do Pai com o Filho
encarnado na consumação do dom do Espírito é a mesma relação constitutiva
da Trindade”114. A formulação é certamente muito prudente, todavia é clara,
principalmente se considerada no contexto. A encarnação não constitui nem
aperfeiçoa a Trindade, Deus não fica, absolutamente, aprisionado ao processo
do mundo (não pode haver confusão entre a doutrina trinitária e a cristologia,
isto é, existe uma clara distinção entre as duas). Ao mesmo tempo, porém,

exaltavit Deus et donavit illi nomen, quod super omne nomen excellit (cf. Fl 2,9s), ad eandem
intellegimus pertinere formam, quae ditanda erat tantae glorificationis augmento. In forma
quippe Dei aequalis erat Filius Patri...”. Também santo Atanásio falou da exaltação no mesmo
sentido: C. Arianos I 41-46 (PG 26,96-108).
113. Cf. STTiIIl 2,4.
114. O texto latino diz: "... etiam Pater cum Filio et Spiritu Sancto vitam trinitaríam modo
profundíssimo et — saltem ut nos intelligimus — quasi novo gerit, inquantum relatio Patris
ad Filium incarnatum in Spiritus doni consummatione ipsa relatio constitutiva Trinitatis est”.
Cf. Gregorianum 64 (1983) 11.

54
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

na liberdade soberana que caracteriza toda a comunicação de si mesmo, não


se pode dizer que a economia da salvação seja indiferente para Deus mesmo
e não tenha nenhum efeito na vida divina. A humanidade do Filho está inte­
grada para sempre na vida trinitária115. A correspondência entre a Trindade
econômica e a imanente, da qual já falamos, tem também, de algum modo,
seu “vice-versa”: enquanto Deus vive os mistérios da economia como próprios,
também estes produzem na Trindade imanente certa novidade, que não é, e
não nos cansaremos de repeti-lo, nem perfeição nem constituição da Trindade.
A assunção da humanidade criada por parte do Filho não pode, propriamente,
acrescentar nada a Deus. Estamos diante de magnitudes incomensuráveis de
todos os pontos de vista.
A Comissão Teológica prossegue na continuação do texto a que acaba­
mos de nos referir: “ Portanto, os grandes acontecimentos da vida de Jesus
expressam manifestamente para nós e tornam eficaz, de um modo novo, o
colóquio da geração eterna, em que o Pai diz ao Filho: ‘Tu és meu filho; eu,
hoje, te gerei’ (SI 2,7; cf. At 13,33; Hb 1,5; 5,5; e também Lc 3,22)” 11617.
Os mistérios da economia da salvação são, por conseguinte, a revelação
dos mistérios da Trindade imanente e constituem, por sua vez, um modo novo
de eficácia deles. Os textos neotestamentários mencionados, nos quais é citado
o Salmo 2,7, referem-se, com exceção de Lucas 3,22*17, à ressurreição de Jesus.
Este é o momento em que se faz visível, com maior clareza, este “modo novo”
da vida trinitária e do colóquio paterno-filial da geração eterna e, portanto,
também o momento em que se evidencia que Deus se comunicou absoluta e
definitivamente no evento salvador de Jesus.
Algumas referências patrísticas podem nos ajudar a encher de conteúdos
concretos estas afirmações e nos farão ver como estas asseverações da Comissão
Teológica Internacional têm precedentes na tradição. Iremos ocupar-nos, antes
de tudo, de uma passagem de Hilário de Poitiers que se refere diretamente à
ressurreição de Jesus:
Nisto, porém, está o ápice da economia da salvação [summa dispensationis],
em que o Filho inteiro, vale dizer, enquanto homem e enquanto Deus [ut

115. O. GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cristología> Madrid, 2001, 489: “ Deus... só existe


relacionado com essa humanidade do Filho, que fica integrada na realização do mistério tri-
nitário”; ibid.: “A validade e a permanência eternas de Cristo, como Deus-homem, são o sinal
da validade e da permanência eternas do homem”.
116. CTI, Teologia... I C) 3 (250).
117. Uma variante deste versículo (a voz do céu no batismo de Jesus) incorpora a citação
do Salmo 2,7.

55
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

totus nunc Filius, homo scilicet et Deus]118, em virtude da condescendência da


vontade do Pai, estivesse unido à natureza do Pai, e que enquanto permanecia
no poder da natureza divina, permanecesse também no modo de ser desta
natureza. Pois isto é o que se outorga ao homem: o poder de Deus. Entretanto,
o homem assumido não podia de modo algum existir na unidade com Deus
se não chegasse à unidade de natureza com ele pela unidade da divindade. E
pelo fato de que Deus Verbo existia na natureza de Deus (cf. F1 2,6), também
a Palavra que se fez carne (Jo 1,14) podia, por sua vez, existir na natureza de
Deus. Assim o homem Jesus Cristo podia estar na glória de Deus Pai (F12,11)
se a carne estava unida à glória da Palavra.
Então a Palavra que se fez carne podia voltar à unidade da natureza do Pai
também enquanto homem, porque a carne assumida havia alcançado a glória
da Palavra. Tinha de lhe ser devolvida pelo Pai a unidade com o mesmo, para
que o Filho que havia nascido de sua natureza voltasse a ser glorificado nele
(cf. Jo 13,32). Porque a novidade da economia da salvação havia posto um
obstáculo à unidade [dispensationis nouitas offensionem unitatis intulerat],
e esta não poderia ser tão perfeita quanto era antes se a carne assumida não
fosse glorificada junto ao Pai119.

O texto requer um comentário pormenorizado para poder ser interpre­


tado em seu justo valor. A plenitude da economia salvadora devia consistir
em que o Filho feito carne pudesse ter junto ao Pai a glória que tinha antes
que o mundo existisse (cf. Jo 17,5), concretamente aquela de que gozava antes
da encarnação120. Para isso, era necessário que o Filho inteiro (totus filius),
ou seja, também enquanto assumiu a humanidade, que já lhe pertence de
um modo irrevogável, estivesse na perfeita comunhão com o Pai, na plena
unidade que deriva da natureza divina. O Filho, certamente, nunca se des­
pojou da natureza de Deus, mas sim da “condição”, da forma divina (cf. F1
2,6-7), isto é, daquela situação que seria a correspondente à natureza divina
do Filho121. A esta situação, o Filho agora encarnado tinha de voltar, também

118. Depois da ressurreição, o Filho encarnado é homem e Deus inteiramente; HILÁRIO


DE POITIERS, de Trinitate IX 6 (CCL 62A, 376): “Sed si Iesus Christus et homo et Deus, et
neque cum homo tum primum Deus, neque turn cum homo tum non etiam et Deus, neque
post hominem in Deo non totus homo totus Deus... Ut cum aliud sit ante hominem Deus,
aliud sit homo et Deus, aliud sit post hominem et Deum totus homo totus Deus”.
119. Ibid., IX 38 (CCL 62A,412).
120. Cf. ibid. IX 39; 54 (413-414; 431-432).
121. Ibid. IX 38 (411): “Sed dispensatione adsumptae carnis et per exinanientis se ex Dei
forma oboedientiam, naturae sibi nouitatem Christus homo natus intulerat, non uirtutis* na-
turaeque damno, sed habitus demutatione”.

56
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

enquanto homem. Por conseguinte, a ressurreição significa a glorificação, a


“divinização” da humanidade de Jesus. Esta não desaparece nem se deixa ficar
absorvida pela divindade, mas participa plenamente da glória desta última,
existe na “forma de glória”, depois da ressurreição que pôs fim à forma de
servo. E então, também sob o aspecto da humanidade assumida, Jesus está na
perfeita comunhão e união com o Pai. Mais ainda, dada a irreversibilidade da
assunção da carne, o Filho não pode existir na perfeita unidade com o Pai que
lhe cabe por sua condição filial, se a humanidade não participa plenamente
da glória da divindade. Na encarnação, a unidade do Pai e do Filho não havia
desaparecido, porém a condição de servo em que se encontra o Verbo, por
causa da humanidade assumida, significou de algum modo um “obstáculo”
(offensio unitatis) para esta perfeita com unhão122. Quando da entrada da
humanidade de Jesus na plenitude da glória de Deus Pai, remove-se este
obstáculo. Somente com a carne plenamente glorificada pode o Filho existir
na perfeita unidade com o Pai.
A economia, como vemos, tem uma repercussão na Trindade imanente.
A relação Pai-Filho é agora uma relação com o Filho encarnado. Uma vez
que o Filho assumiu a natureza humana, a unidade das pessoas divinas só se
pode efetuar se nesta relação está plenamente integrada a natureza humana
de Cristo. Como teve lugar a encarnação, a “geração” da ressurreição é uma
conseqüência inevitável da geração eterna. Sem a nova “geração” que tem
lugar na ressurreição, sempre a partir do pressuposto da encarnação, fundada
somente no amor e na liberdade divinos, a própria geração do Filho eterno
poderia ficar vazia de sentido. Como vemos, para santo Hilário, na ressurreição
do Senhor prossegue e se manifesta o diálogo da geração eterna “Tu és meu
filho; eu, hoje, te gerei” (SI 2,7)123. Por um lado, os mistérios da vida de Cristo,
e particularmente sua ressurreição e sua glorificação, manifestam os mistérios
da vida de Deus ad intra. Por outro, porém, a presença da humanidade glori­
ficada de Cristo no seio da Trindade faz que a vida divina desta seja conduzida

122. Também ibid. IX 39 (413-414): “Ut enim in unitate sua maneret ut manserat, glorifi-
caturus eum apud se Pater erat (cf. Jo 17,5), quia gloriae suae unitas per oboedientiam dispen­
sations excesserat; scilicet ut in ea natura per glorificationem rursus esset, in qua sacramento
erat diuinae natiuitatis unitus”.
123. ID., Tr. Ps. 2,27 (CCL 61,56): "... ut, quia antea Dei Filius, tum quoque et hominis
Filius esset, id, quod tum hominis filius est ad perfectum Dei Filium, id est ad resumendam
indulgendamque corpori aeternitatis suae gloriam per ressurrectionis potentiam gigneretur...
Precatur id se quod ante erat esse, gigni scilicet ad id quod suum fuit”; cf. todo o n. 27 (56-
57). Sobre a geração na ressurreição (cf. SI 2,7; At 13,33), cf. ibid. 2, 30 (58). Para uma análise
ulterior destes textos e outros paralelos, cf. L. F. LADARIA, La cristología de Hilário de Poitiersy
Roma, 1989, 223-264.

57
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

pelas três pessoas “de modo quase novo”. É a novidade da encarnação, que
culmina no momento da ressurreição, quando a humanidade é plenamente
introduzida na vida divina. Os mistérios da economia da salvação não são
estranhos a Deus, que livremente e só por amor os realiza.
As passagens que acabamos de citar referem-se diretamente à humanidade
de Jesus, muito embora insinuem que, com ela, entram também de alguma
forma na vida divina todos os homens. Em outros lugares, esta “ inclusão”
aparece mais em primeiro plano. O que acontece em Jesus oferece vantagem
e é proveitoso somente para nós124. A humanidade assumida “afeta” a vida do
Filho eterno em sua relação com o Pai e o Espírito Santo. E não somente a
humanidade assumida hipostaticamente, pois “afeta” também a vida do Filho
glorificado e, portanto, de algum modo, também toda a Trindade, a vinculação
com Cristo de toda a humanidade (cf. GS, 22). Tudo quanto agora dissemos
coloca-se, evidentemente, em um nível muito distinto do que indicamos
até agora. A união do Filho a toda a humanidade e a cada um dos homens,
certamente real e bem testificada na tradição, tem características diversas da
união hipostática absolutamente irrepetível.
Esta questão aparece em algumas conhecidas passagens de Orígenes,
que tomam como alvo a dor de Jesus por nossos pecados, os quais, segundo
o Alexandrino, mesmo ressuscitado, continuam afetando-o até que tudo lhe
seja submetido no fim dos tempos:
Meu salvador se aflige também agora por meus pecados. Meu salvador não pode
experimentar alegria, porque eu permaneço na iniqüidade... Como poderia
beber o vinho da alegria (cf. SI 104[103],15) aquele que é advogado por meus
pecados (cf. ljo 2,1), quando eu o entristeço pecando? Como poderia estar
na alegria aquele que se aproxima do altar em propiciação por mim, pecador,
aquele a cujo coração chega continuamente a tristeza por meus erros?
Aquele que tomou sobre si nossas feridas e sofreu por nossa causa como mé­
dico de nossas almas e de nossos corpos, esquecer-se-ia agora da corrupção

124. HILÁRIO DE POITIERS, Tritt. XI 49 (CCL 62A, 576-577): “Quod itaque Deus erit
omnia in omnibus (lCor 15,28), adsumptionis nostrae profectus est. Qui enim, cum esset in
Dei forma, repertus est in forma serui (cf. Fl 2,6-7), rursum confitendus est in gloria Dei Patrie
(Fl 2,11): ut non ambiguë in eius forma manens intellegatur, in cuius erit gloria confitendus.
Dispensatio itaque tantum est, non demutatio: in eo enim est in quo erat. Sed cum médium
est quod esse coepit, id est, homo natus, totum ei naturae quae antea Deus non fuit adquiritur,
cum Deus esse omnia in omnibus post sacramentum dispensationis ostenditur. Nostrae haec
itaque lucra sunt et nostri profectus, nos scilicet conformes efficiendi gloriae corporis Dei...
Ceterum nos in hominis nostri conformem gloriam proficiemus. In agnitionem Dei renouati
ad creatoris imaginem reformabimur”.

58
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

de nossas chagas?... “Não beberei deste fruto da videira até o dia em que o
beber, de novo, convosco...” (Mt 26,29). Espera, portanto, que nós nos con­
vertamos, que imitemos seu exemplo, que sigamos suas pegadas, para gozar
então conosco e beber conosco o vinho no reino de seu Pai (cf. Mt 26,29)...
Irá bebê-lo de novo mais tarde, quando todas as coisas lhe houverem sido
submetidas (cf. ICor 15,28), e estando todos salvos e destruída a morte do
pecado, não será necessário oferecer vítimas pelo pecado125.

Naturalmente, é preciso interpretar estes textos com a máxima cautela.


Devemos ter presente que Jesus vive glorificado na plenitude de sua vida divi­
na. Porém, por outro lado, não podemos desautorizar sem motivo a intuição
presente na base das afirmações de Orígenes. Jesus intercede por nós diante do
Pai (idéia freqüente no Novo Testamento: Jo 16,23-26; ljo 2,1; Rm 8,34; Hb
7,25; 9,24). Temos um Sumo Sacerdote que, tendo sido provado no sofrimento,
pode “compadecer-se” de nossas fraquezas (cf. Hb 2,17-18; 4,14-16). Nesta
“compaixão” , portanto, em um modo para nós misterioso, Jesus continua
carregando sobre si nossas debilidades e fraquezas. Até o momento da consu­
mação final, não lhe podem ser indiferentes a dor da humanidade, cujas chagas
veio sanar, e os pecados dos homens, pelos quais ainda intercede diante de seu
Pai. As afirmações explícitas de Mateus 25,31-46 sobre a identificação de Jesus
com os que sofrem hão de ser consideradas, como já fez santo Agostinho126.
Neste sentido está claro, em virtude das próprias palavras do evangelho, que
o próprio Jesus glorificado, de modo certamente misterioso, não está alheio
à dor dos seus no mundo enquanto são membros de seu corpo; só no final
seu gozo será completo. E, segundo o próprio Orígenes, não somente o Filho,
mas também o Pai sofre a “paixão da caridade”, toma também sobre si, como
fez o Filho, nossa maneira de ser e com isso coloca-se em uma situação que
não corresponde à magnitude de sua natureza127. Corresponde, porém, por

125. ORÍGENES, Hom. Lev. 7,2 (SCh 286,308-314); mais informações sobre a questão de
Cristo médico, em S. FERNÁNDEZ, Cristo médico según Orígenes. La actividad médica como
metáfora de la acción divina, Roma, 1999, 250-251.
126. Sermo mai. 98, de Ascensione Domini, 1 (PLS 2,494): “Ille iam exaltatus est super coe-
los, patitur tamen in terris quidquid laborum nos tamquam eius membra sentimus. Cui rei
testimonium perhibuit desuper damans: Saule, Saule, quid me persequeris? (At 9,4); et: Esurivi,
et dedistis mihi manducare (Mt 25,35)”; idéias semelhantes em En. in Os. 60,1-3 (CCL 39,765-
766): “In Christo autem nos omnes unus homo quia huius unius hominis caput est in caelo et
membra adhuc laborant in terra, et quia laborant uidete quod dicat: Exaudi, Deus, deprecationem
meam... Et quare clamat hoc? Dum angeretur cor meum. Ostendit se esse per omnes gentes toto
orbe terrarum in magna gloria, sed in magna tentatione”.
127. ORÍGENES, Hom. Ez. 6,6 (SCh 352,229-231): “Em primeiro lugar, [o Filho] sofreu
porque baixou e se manifestou. Qual é, portanto, esta paixão que sofreu por nós? A paixão da

59
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

outro lado, a esta última, enquanto é amor128. Não queremos entrar agora nas
questões do sofrimento de Deus129, a não ser na medida em que o problema se
relaciona com nosso tema, a saber, enquanto a economia da salvação “afeta” o
ser de Deus. Deixa acaso o Pai indiferente o fato de que o Filho tome sobre si
nossas dores e nossas culpas? O texto de Orígenes que citamos parece insinuar
que a compaixão de Deus Pai por nosso sofrimento funda-se no fato de que o
Filho compartilhou nossa condição. Porém, independentemente da exegese do
texto origenista, existem boas razões para pensar que, se no envio de seu Filho
ao mundo se mostra todo o amor do Pai por nós, não se pode pensar em uma
manifestação desse amor que não seja reflexo desta mostra de amor supremo e
não receba dela seu sentido mais profundo. Deus nos ama com amor de Pai somente
enquanto é o Pai de Jesus. Nossa filiação divina é participação da filiação de
Cristo. Também aqui cabe pensar na “mediação” de Jesus, em quem o Pai nos
ama e por intermédio do qual pode compartilhar nossos sentimentos. Este as­
pecto não é, certamente, tão radical nem tão decisivo quanto o da encarnação
do Filho que, a partir daquele momento, não existe senão unido segundo a
hipóstase à humanidade assumida. Mas mostra também que a economia sal­
vadora, livre e gratuita, na qual Deus se manifesta e se comunica aos homens
sem constrição de gênero algum, significa um compromisso tão radical com a
humanidade que não pode deixar Deus indiferente.
A Comissão Teológica Internacional, no documento que nos serviu de
guia, ocupou-se também da questão130. As referências à paixão de Jesus Cristo

caridade. E o próprio Pai, Deus do universo, cheio de indulgência, de misericórdia e de pieda­


de, não é verdade que sofre de algum modo? Ou, ao invés, ignoras que, quando se ocupa de
assuntos humanos, experimenta uma paixão humana? Deus toma sobre si teus modos de ser, o
Senhor teu Deus, como um homem toma seu filho sobre si (cf. Dt 1,31). Deus toma, portanto,
sobre si nossos modos de ser como o Filho de Deus tomou nossas paixões. Mesmo o Pai não é
impassível. Se lhe rogamos, tem piedade, compadece-se, experimenta uma paixão de caridade,
e se coloca em uma situação incompatível com a magnitude de sua natureza e, por nós, toma
sobre si as paixões humanas”. Cf. outras referências em M. FÉDOU, La ‘‘souffrance de Dieu”
selon Origène, in E. A. LIVINGSTONE (ed.), Studia Patrística XXVI, Leuven, 1993, 246-250.
128. Cf. ORÍGENES, Sel. in Ez. 16 (PG 13,812): “ Deus se compadece tendo misericórdia,
pois não carece de entranhas”. Orígenes fala também da “paixão de misericórdia”. Cf. H. DE
LUBAC, Histoire et Esprit. L intelligence de l’Écriture d’après Origène, Paris, 1950, 243.
129. Cf. sobre esta questão, recentemente, TH. G. WEINANDY, Does God Suffer?, Notre
Dame, Indiana, 1999. Weinandy se opõe justamente a certos exageros sobre o sofrimento divino
que praticamente podem equivaler à negação da transcendência divina. Contudo, podemos nos
perguntar se a “compaixão” de Deus de que nos falam a Escritura e a tradição não pode ser
expressa em termos mais decididos do que os que são usados, por exemplo, na página 164.
130. CTI, Teologia..., II B) 4.2 (262): “A afirmação da impassibilidade de Deus pressupõe
e inclui esta compreensão da imutabilidade, todavia não se há de concebê-la de modo que
Deus permaneça indiferente aos acontecimentos humanos. Deus, que nos ama com amor de

60
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

mostram que só a partir deste acontecimento é que podemos nos aproximar


deste mistério. A “participação” de Deus na dor dos homens não pode ser
separada da assunção da fraqueza humana pelo Filho. É, por conseguinte, a
economia da salvação que dá sentido à compaixão de Deus por seus filhos.
Entretanto, na reflexão sobre estes temas, nunca se pode esquecer a ressurreição
de Cristo, primícia da dos homens131.
Algumas passagens da encíclica Dominum et vivificantem refletem tam­
bém a preocupação em mostrar ao homem a proximidade de Deus em sua
compaixão misericordiosa que tem na vida humana de Jesus sua manifestação
mais plena:
O “convencer quanto ao pecado” (cf. Jo 16,8-9), portanto, não deveria significar
também revelar o sofrimento, revelar a dor, inconcebível e inexprimível, que,
por causa do pecado, o Livro Sagrado, na sua visão antropomórfica, parece
entrever nas “profundezas de Deus” e, em certo sentido, no próprio coração
da inefável Trindade?... A concepção de Deus, como ser necessariamente
perfeitíssimo, exclui, por certo, em Deus, qualquer espécie de sofrimento,
derivante de carências ou feridas; mas nas “profundezas de Deus” há um
amor de Pai que, diante do pecado do homem, reage, segundo a linguagem
bíblica, até o ponto de dizer: “Estou arrependido de ter criado o homem” (cf.
Gn 6,6-7)... Mas o Livro Sagrado, mais ffeqüentemente, fala-nos de um Pai
que experimenta compaixão pelo homem, como que compartilhando a sua
dor... E nos lábios de Jesus Redentor, em cuja humanidade se concretiza o

amizade, quer que se lhe responda com amor. Quando seu amor é ofendido, a Sagrada Escritura
fala da dor de Deus e, ao contrário, se o pecador se converte a ele, fala de sua alegria (cf. Lc
15,7). ‘A saúde da dor está mais próxima da imortalidade que o pasmo daquele que não sente*
(AGOSTINHO, Enarratio in Ps 55,6)”; ibid. 5.1: “A piedade cristã sempre recusou a idéia de
uma Divindade à qual de modo algum chegaram as vicissitudes de sua criatura; além disso,
era propensa a admitir que, como a compaixão é uma perfeição nobilíssima entre os homens,
também existe em Deus, de modo eminente e sem imperfeição alguma, a mesma compaixão,
isto é, ‘a inclinação [...] da comiseração, não a falta de poder* (LEÃO I, Tomus ad Flavianumy
DS 293). Os Padres denominaram esta misericórdia perfeita em relação às desgraças e dores
dos homens ‘Paixão de amor*, de um amor que na Paixão de Jesus Cristo levou a cumprimento
e venceu os sofrimentos”. Cf. toda a seção B) (259-263).
131. Ibid. II B) 5 (263): “Segundo a Sagrada Escritura, Deus criou o mundo livremente,
conhecendo em sua presciência eterna — não menos eterna que a geração do Filho — que o
sangue precioso do Cordeiro imaculado Jesus Cristo (cf. lPd l,19s.; Ef 1,7) seria derramado.
Neste sentido, o dom da divindade do Pai ao Filho tem uma correspondência íntima com o
dom do Filho ao abandono da cruz. Todavia, já que também a ressurreição é conhecida no
desígnio eterno de Deus, a dor da “separação” é sempre superada no gozo da união, e a com­
paixão de Deus trino na paixão do Verbo entende-se propriamente como uma obra de amor
perfeitíssimo, com a qual é preciso alegrar-se”.

61
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

“sofrimento de Deus”, ressoará com freqüência uma palavra em que se mani­


festa o Amor eterno e cheio de misericórdia: “Misereor” (tenho compaixão)
(Mt 15,32; Mc 8,2)132.

A realidade da compaixão divina não pode ser interpretada de modo


algum como limitação ou debilidade de qualquer tipo. Somente a partir da
transcendência Deus pode nos salvar. Quis, porém, fazê-lo compartilhando
em Cristo nossa condição e na profunda compaixão por nossa dor e nosso
sofrimento.

3. Algumas reflexões conclusivas


Uma vez estabelecida a realidade da revelação e da comunicação que
Deus faz de si mesmo no acontecimento de Cristo, cabe-nos pensar que esta
revelação nos remete à Trindade imanente e que corresponde realmente a
ela. A Trindade econômica é a Trindade imanente. Esta primeira parte do
“axioma fundamental” encontrou ampla aceitação na teologia católica. Não
creio que faça sentido levantar hipóteses sobre outras possibilidades para a
entrada de Deus na história, decidida em sua liberdade soberana. O modo
como se realizou responde ao que Deus é em si, ainda que não esgote seu
mistério. Desde antigamente, viu-se uma relação entre as processões internas
e as missões divinas. Somente estas últimas permitiram chegar às primeiras.
Contudo, esta remissão da economia à Trindade imanente e, por conseguinte,
o é da primeira parte do axioma, já nos abre ao mistério divino. A economia
da salvação remete-nos inevitavelmente a um Deus “sempre m aior” . Este
Deus inabarcável é sempre o Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Este é um dado
fundamental da revelação cristã. Não existe em Deus nada mais profundo do
que sua vida trinitária. Neste sentido, devemos afirmar que, em Cristo, Deus
se comunicou a nós realmente e nos revelou seu ser íntimo. Do contrário,
não podemos falar de revelação e autodoação verdadeiras.
Já a primeira parte do axioma, como dissemos, nos coloca de sobreaviso
contra uma interpretação demasiado estrita do é. Esta necessidade aumenta
quando consideramos a segunda parte do axioma. A comunicação de Deus é,
antes de tudo, livre e gratuita. Deus se revela somente na pura gratuidade de
seu amor. Esta liberdade é total quanto ao que diz respeito ao an sit, e neste
ponto não pode caber discussão alguma. A questão do quomodo sit assume
outras características. Porém, já dissemos que também aqui é inútil perder-

132. JOÃO PAULO II, Dominum et vivificantem, 39.

62
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE

nos em hipóteses. É claro que Deus não se exaure na economia, por mais que
insistamos na verdade de sua revelação e de sua doação a nós. Ademais, esta
revelação concreta se dá em Jesus, que se esvaziou de si e assumiu a forma de
servo. Contemplamo-lo em um caminho de obediência que o leva à cruz, e
só com os olhos da fé o vemos ressuscitado e glorificado e exaltado à direita
do Pai. Caminhamos na fé e não na visão. Esta é outra dimensão da gran­
deza de Deus, que se manifesta com tanto maior evidência quanto mais nos
aproximamos na pequenez e na humildade.
Entretanto, estas não são razões para rechaçar a segunda parte do axioma,
por mais que nos convidem a uma interpretação prudente dela. A Trindade
imanente comunicou-se “absoluta e definitivamente” no acontecimento de
Jesus Cristo. Nele, e não em outro homem ou em outra ocasião, Deus se
comprometeu irrevogavelmente com todos os homens e estabeleceu com eles
uma aliança nova, universal e imperecível. Não nos é permitido, neste ponto,
deixar-nos ficar no “agnosticismo” acerca do caráter definitivo da revelação de
Cristo. Além disso, Deus, que não se aperfeiçoa nem cresce de maneira algu­
ma com a economia da salvação (neste ponto, nunca insistiremos bastante),
a partir dela conduz sua vida trinitária de um modo, segundo nossa maneira
de entender, “quase novo”. É a conseqüência da assunção da humanidade por
parte do Filho. As relações constitutivas da Trindade são agora relações das
outras pessoas com o Filho encarnado. E, tendo-se feito o Filho irmão dos
homens, a todos eles se estende a “compaixão” divina.
As duas partes do axioma sustêm-se mutuamente. É evidente que sem a
primeira a segunda não tem sentido. Mas tampouco a primeira sem a segun­
da. Se não existir certo “ao inverso”, não poderemos dizer que a Trindade
econômica seja a imanente. Remeter-nos-ia apenas a um Deus sempre maior
que se podería crer presente na revelação de Cristo, o qual, porém, poderia
revelar-se de outros modos e em outros acontecimentos. Por outro lado, a
liberdade e a transcendência de Deus, que é preciso pôr em destaque na reta
interpretação da segunda parte do axioma, nos previnem contra uma inter­
pretação demasiado unívoca do primeiro “ e \ O ser trinitário de Deus nos
é revelado na economia da salvação e não se constitui nela. Uma vez que a
revelação de Deus ou é a revelação da Trindade ou não é, podemos pensar,
sempre com referência ao mistério, que as relações entre as pessoas que apa­
recem na economia “correspondem” às que existem na Trindade imanente133.

133. Falar de “correspondência” entre a economia e a teologia pode ser mais adequado que
falar de simples identidade, porque expressa melhor o “excesso” de Deus em si mesmo. Cf. a
nota 84. Esta terminologia é usada, entre outros, por K. VECHTEL, Trinität und Zukunft. Zum

63
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

É o que, de algum modo, fez a tradição quando, a partir das características da


manifestação econômica das pessoas, lhes determinou a “táxis” ou a ordem.
Isto, naturalmente, não significa querer determinar o grau desta correspon­
dência134. Tudo isto faz que o axioma fundamental, que podemos considerar
claro em suas linhas gerais, ofereça dificuldades na hora de sua aplicação aos
diferentes problemas concretos da teologia trinitária. Teremos oportunidade
de comprová-lo nos capítulos seguintes.

Verhältnis von Philosophie und Trinitätstheologie im Denken Wolfhart Pannenbergs, Frankfurt


am Main, 2001, 203-207, entre outras passagens. Parece mais adequado usar este termo para a
primeira parte do axioma, menos para a segunda, porque a Trindade imanente, a primeira na
ordem do ser, não pode, a rigor, “corresponder” à sua manifestação econômica posterior.
134. W. KASPER, Der Gott Jesu Christi, Mainz, 1982, 336-337, adverte contra o perigo das
extrapolações fáceis.
Capítulo 2

As "três pessoas"
divinas na unidade da essência

Não é nosso propósito nas páginas a seguir nem um estudo exaustivo


da questão, nem, menos ainda, propor uma nova definição da pessoa divina.
Procuramos apenas refletir sobre o mistério da comunhão entre as pessoas
divinas como um aspecto importante na aproximação do tema da unidade e
da trindade em Deus. A relação entre as pessoas, indicada em seus próprios
nomes, foi um elemento decisivo para iluminar a articulação da unidade e
da trindade divinas, já antes que o próprio conceito da relação fizesse sua
aparição como termo técnico. No decurso de nossa reflexão, teremos presente
este aspecto de maneira especial.

1. Alguns dados históricos

A. A época patrística

Os primeiros séculos cristãos


O Pai, o Filho e o Espírito Santo aparecem muitas vezes juntos no Novo
Testamento (cf. Mt 28,19; ICor 12,4-6; 2Cor 13,13; G14,4-6 e um longo et coete-
ra\ achamos também abundância de textos triádicos nos Padres apostólicos e
apologéticos1). Com sua ação conjunta é levada a cabo a salvação do homem.

1. Alguns poucos exemplos serão o suficiente: I Ciem. 44,6 (FP 4,130); 58,2 (144); INÁCIO
DE ANTIOQUIA, Mag. 13,1-2 (FP 1,136); Efes. 9,1 (112); JUSTINO, / Apol. 13,1-3 (Wartelle,
112); 60,5-7 (180); 65,3 (188-190).

65
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Todavia, é bem sabido que não encontramos nos escritos neotestamentários,


nem dos primeiros tempos da teologia patrística, nenhum conceito genérico
que abranja os três. Hipólito usou a expressão “duo prósopa”, referindo-se ao
Pai e ao Filho2. Com este termo, quer-se pôr em relevo a distinção entre os
dois no seio da divindade. O Pai e o Filho não são o mesmo, embora estejam
unidos na potência3. O termo prósopon, com características e significados di­
ferentes, não estava ausente na Bíblia4 e nos escritores eclesiásticos anteriores,
concretamente em Justdno5. Com Tertuliano, entra já claramente o termo pessoa
no mundo cristão latino, com um significado trinitário (podemos deixar de
lado a questão de até que ponto era usado com anterioridade); com Orígenes,
surge o termo “ hipóstase” no mundo grego. Expressa-se com estas palavras,
embora de um modo ainda implícito e incipiente, a originalidade irrepetível
que caracteriza a substância tanto do Pai como do Filho e do Espírito Santo.
Ao afirmar que os três são pessoas, dizemos que não são intercambiáveis, ape­
sar de que inicialmente isto não acontece de maneira explícita. Um primeiro
aspecto na diferenciação progressiva será o de que não podem ser confundidas
as vozes dos que falam. O uso do termo pessoa em Tertuliano está em relação
com a consciência desta distinção refletida no seio da divindade, conforme
aparece na Escritura. Assim se mostra a “distinctio trinitatis”6. Distinguem-se

2. Cf. Contra Noetum 7,1; 14,2.3 (Simonetti 166; 176). Não se usa ainda o termo para o
Espírito Santo.
3. Cf. ibid. 7,1. A unidade e a distinção entre o Pai e o Filho vêem-se refletidas em João
10,30: “Eu e o Pai somos um”; o texto será usado constantemente nos séculos posteriores com
esta mesma finalidade. A menção à unidade na potência recorda ATENÁGORAS, Legaúoy 10
(BAC 116, 660-661), onde encontramos duas vezes expressões similares.
4. Evidentemente, nada existe que faça pensar em um sentido técnico trinitário. No NT o
termo prósopon aparece muitas vezes. Junto à significação normal de “rosto”, “face”, encon­
tramos o termo nas frases nas quais se indica que Deus (Cristo) não olha as (não faz acepção
de) “pessoas”: cf. Mt 22,16; Mc 12,14; Lc 20,21; G1 2,6. Com este sentido, usa-se na LXX; cf.
Deuteronômio 1,17. Usam-se outros termos derivados de prósopon em Atos 10,34; Romanos 1,11;
Efésios 6,9; cf. Colossenses 3,25. Também no sentido de pessoa, indivíduo, 1 Coríntios 1,11.
5. São Justino conhecia o termo, que serve para a distinção dos que participam em um
diálogo, ou identificação do personagem que fala; assim, por exemplo, os profetas falam “em
pessoa” (= em nome) do Pai ou do Filho; cf. Apol 1,36,1.2; 37,1.3.9; 38,1; 49,1; Tryph. 42,3;
88,6. Orígenes, Hipólito, Clemente de Alexandria conhecem também este uso, que irá adquirir
novas conotações para a teologia trinitária em Tertuliano; cf. A. MI LANO, Persona in teologia.
Alie origini dei significato di persona nel cristianesimo antico, Roma, 21996, 69-70.
6. Adv. Prax. 11,4 (Scarpat 168): "... non posse unum atque eundem uideri qui loquitur
et de quo loquitur et ad quem loquitur”; 11,9-10 (170): “His itaque paucis tamen manifeste
distinctio trinitatis exponitur. Est enim ipse qui pronuntiat Spiritus et Pater ad quem pronun-
tiat et Filius de quo pronuntiat. Sic et cetera quae nunc a Patre de Filio uel ad Filium, nunc a
Filio de Patre uel ad Patrem, nunc a Spiritu pronuntiantur, unamquamque personam in sua

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AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

na Escritura as “pessoas” do Pai e do Filho e do Espírito Santo, no sentido


de que não são um e o mesmo aquele que fala, aquele a quem este se dirige e
aquele de quem se fala. Daí, é fácil a passagem do sujeito que fala, do simples
personagem do diálogo, para o sujeito em si mesmo, à “pessoa” em nosso
sentido do termo, acepção já conhecida, embora não enriquecida ainda com
as conotações que com o tempo irá adquirindo7.
É a distinção em Deus, a distinção que dá lugar à trindade o que se
quer expressar com o conceito de pessoa. Uma distinção dentro da unidade,
mais ainda, da unidade da substância que a economia (também intradivina)
“dispõe” na trindade das pessoas8. Tendo presentes as afirmações bíblicas e na
controvérsia com o patripassianismo, a existência de um só Deus será sempre
o ponto de partida e o pressuposto irrenunciável. Daí a insistência na unidade
da substância divina. O modo desta unidade é o que se haverá de explicar. A
distinção das pessoas não se lhe opõe como um obstáculo. Com o correr do
tempo, vai se cunhar e repetir a fórmula “unitas in Trinitate” (cf. DH 441; 501;
546)9. Salientar o caráter irrepetível de cada uma das três, e por conseguinte
sua distinção, não pode levar, portanto, a esquecer a unidade que se dá entre
elas e que constitui um dado igualmente primário. A afirmação, por sua vez,
destes dois extremos da unidade divina e da distinção das pessoas será a tarefa
sempre inconclusa da teologia trinitária.
No esforço por harmonizar a unidade e a distinção em Deus, tropeçamos
muito rapidamente com dois dados correlacionados, sobre os quais se vai re­
fletir lentamente, de maneira cada vez mais explícita: por um lado, os nomes
de “pai” e “filho” mostram a distinção dos dois, impedem uma identificação
pessoal de Jesus com Deus Pai como sustentavam os sabelianos. Porém, ao
mesmo tempo, toma-se consciência de que estes termos se implicam mutua­
mente. Os nomes que o Novo Testamento dá às pessoas, principalmente às duas

proprietate constituunt”. O Espírito Santo fala nos textos do Antigo Testamento, sobretudo
nos salmos. Cf. todo o contexto.
7. Cf. A. MILANO, Persona in teologia, 61-68; J. MOIGNT, Théologie trinitaire de Tertullien,
Paris, 1966, II, 589ss.
8. TERTULLANO, Adv. Prax. 2,4 (146): “Quase non sic quoque unus sit omnia dum ex uno
omnia per substantiae scilicet unitatem et nihilominus custodiatur oikonomiae sacramentum,
quae unitatem in trinitatem disponit”. No Filho e no Espírito Santo, Deus não se divide nem se
dispersa; ibid. 3,5 (148): “Quale est ut Deus diuisionem et dispersionem pati uideatur in Filio
et in Spiritu sancto, secundum et tertium sortitis locum, tarn consortibus substantiae Patris
quas non patitur in tot angelorum numero...” .
9. Santo AGOSTINHO, Conf XII 7,7 (CCL 27,219): “Et aliud praeter te non erat unde
faceres ea, Deus una trinitas et trina unitas”. Cf. mais matéria em L. F. LADARIA, El Dios vivo
y verdaderoy369.

67
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

primeiras, mostram que estas não podem existir uma sem a outra. Antes que se
começasse a usar de modo reflexo a categoria da relação e outras equivalentes,
notou-se já que não pode existir um pai sem um filho, nem vice-versa, pois
os dois se exigem um ao outro. Por isso, no caso em que ainda não se explica
em termos claros a eternidade da geração do Filho, pode-se duvidar também
da eternidade da paternidade divina101. Orígenes foi o primeiro a constatar de
modo explícito que, dada a imutabilidade divina, Deus não pode “ converter-se”
em Pai, mas desde sempre gerou, de modo misterioso, seu Filho unigénito11. 0
fato de ser em relação distinguirá as pessoas, porém, por sua vez, as mostrará
unidas na referência mútua, sem a qual não podem existir12.

A reflexão posterior ao Concílio de Nicéia


No pensamento teológico posterior ao Concílio de Nicéia, houve um
maior aprofundamento sobre a “verdade” dos nomes de Pai e Filho, em face
da concepção ariana que considerava o Filho uma criatura. Isso obrigará a
dar um passo adiante na reflexão acerca da implicação mútua do Pai e do
Filho, que já não dependerá só da vontade do Pai, mas também, como tivemos
oportunidade de averiguar, da própria natureza divina. Desta maneira, dá-se
muito mais ênfase à referência mútua das pessoas divinas. A paternidade de
Deus corresponde a sua natureza, não é apenas questão de sua vontade, e por
isso tem necessariamente um Filho. A eternidade da geração do Filho prova-
se, para Atanásio, no fato de que a natureza do Pai foi sempre perfeita. Seria
contraditório se existisse a luz sem o resplendor, ou que a fonte estivesse seca.
Onde está o Pai, está o Filho, como onde está a luz, está o resplendor13. Além

10. TERTULIANO, Adv. Prax, 7,1 (156): w... exinde eum Patrem sibi faciens, de quo pro­
cedendo Filius factus est”; sobre a mútua exigência dos dois, ibid. 10,2-3 (164): “Atquin pater
filium facit et patrem filius et qui ex alterutro fiunt a semetipsis sibi fieri nullo modo possunt,
ut pater se sibi filium faciat et filius se sibi patrem praestet. Quae instituit Deus, etiam ipse
custodit. Habeat necesse est pater filium ut pater sit, et filius patrem ut filius sit. Aliud est
autem habere, alium esse...”.
11. ORlGENES, Princ. I 2,2 (SCh 252,114): “ Propter quod nos semper deum patrem no-
vimus unigeniti filii su i...”; I 2,3 (116): MQui autem initium dat uerbo dei uel sapientiae dei,
intuere ne magis in ipsum ingenitum patrem impietatem suam iactet, cum eum neget semper
patrem fuisse et genuisse uerbum et habuisse sapientiam in omnibus anterioribus temporibus
uel saeculis”.
12. Ibid. I 2,10 (132): “Quemadmodum pater non potest esse quis, si filius non sit, neque
dominus esse quis potest sine possessione uel seruo”.
13. Cf. ATANÄSIO, C. Arianos I 14 (PG 26,42B). Se o Filho não fosse eterno, a Trindade
teria sido imperfeita; cf. ibid. 17ss. (48ss). Nas reflexões de Atanásio sobre a luz e o resplendor,
é visível a influência de ORÍGENES, De princ. I 2,7 (SCh 252,124), entre outras passagens.

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AS "TRÉS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

disso, o Pai não pode estar privado de sua sabedoria e de sua força, que é o
Filho (cf. ICor 1,24)14. Próprio do ser do Pai é o ser do Filho15. Pai e Filho,
portanto, exigem-se um ao outro. A distinção pessoal ocorre somente na relação
mútua. Hilário de Poitiers não abordou a questão de outro modo:
Porém, onde existe o Pai, existe também sempre o Filho. Se conheces ou pensas
em um Deus ao mistério de cujo conhecimento pertence o ser Pai, e que não
é sempre Pai do Filho gerado, conheces e afirmas também que não é Filho o
que foi gerado. Porém, se pertence sempre ao Pai o ser eternamente Pai, faz-se
mister que sempre pertença ao Filho o ser etemamente Filho16.

Do fato da relação paterno-filial se depreende com clareza, nos tempos


da luta antiariana, a natureza divina comum do Pai e do Filho. Se os nomes
correspondem à realidade, é impossível que os dois não tenham a mesma
natureza17. Os nomes relativos de Pai e Filho mostram-se, por conseguinte,
como um caminho para afirmar a consubstancialidade das pessoas, sem negar
a distinção entre elas.
A reflexão tornar-se-á mais explícita quando o conceito de “relação”
(ox€Oi<;) entrar diretamente na discussão teológica. Basílio de Cesaréia é o
primeiro a introduzi-lo. Existem nomes, diz-nos o bispo de Cesaréia, que se
enunciam de maneira absoluta e se aplicam a algo considerado em si mesmo;
existem, porém, outros que não nos dizem diretamente o que um ser é em
si mesmo, mas nos fazem conhecer somente a relação com os outros seres a
propósito dos quais é mencionado. Se, por exemplo, homem, cavalo ou boi
são nomes absolutos, isto é, pertencem à primeira categoria, outros, como
filho, escravo ou amigo, são relativos, pertencendo, pois, à segunda. A pessoa
é sempre filha, escrava ou amiga de alguém; com esses nomes, indica-se ne­
cessariamente uma relação com outro. A essa mesma categoria corresponde
também o nome “ rebento” (yqmipa), então usado por Eunômio para aplicá-lo

14. Cf. C. Arian. I 11 (36); 17 (48); II 34 (220).


15. Cf. ibid. Ill 3.5-6 (328; 329-333); e também III 18 (360).
16. HILÁRIO DE POITIERS, Tritt. XII 23 (CCL 62A, 596-597); ibid. II 3 (39): “Numquid
corrumpi ueritas potest, cum Patris nomen auditur? Numquid natura Filii non continetur in
nomine? Numquid Spiritus sanctus non erit qui nuncupatur”. Outros textos serão encontrados
em L. F. LADARIA, Dios Padre en Hilário de Poitiers, Estúdios Trinitarios 24 (1990) 443-479;
ID., “ ... Patrem consummat Filius”. Un aspecto inédito de la teologia trinitaria de Hilário de
Poitiers, Gregorianum 81 (2000) 775-788.
17. Um exemplo que pode valer por muitos, HILÁRIO, Tritt. II3 (39): “ ... ut quod Pater est
Patri adimant, dum uolunt Filio auferre quod Filius est. Adimunt autem quando cum his non
de natura fit Filius... Neque enim Filius est, cui alia ac dissimilis erit a Patre substantia. Pater
autem quomodo erit, si non quod in se substantiae atque naturae est, agnoscat in Filio?”.

69
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

ao Filho, já que, assinala Basílio com razão, o rebento o é sempre de algum ou


de alguém. Ser “rebento” não é, portanto, a substância do Filho. A diferença
entre o Filho e os outros seres não está em ser “rebento” (neste caso, todos
os rebentos teriam a mesma substância, o que é um absurdo manifesto), mas
em sua substância, que é a mesma de Deus Pai18. A relação paterno-filial vem
a ser, portanto, o ponto de apoio para afirmar a consubstancialidade do Pai
e do Filho. Uma vez que esta relação existe em razão do fato da geração eterna
do Filho, a unidade de substância entre eles é um dado tão primário quanto
o de sua distinção pessoal.
Gregório de Nazianzo também conhece o termo e usa-o no mesmo sen­
tido: “O nome de Pai não é nem de substância nem de ação, mas de relação, e
do modo como o Pai se refere ao Filho ou o Filho ao Pai. E, assim como entre
nós estas denominações dão a conhecer a origem e o parentesco, mostram
também a identidade de natureza do gerado com aquele que o gerou”19. Nesta
passagem de Gregório, os nomes relativos Pai e Filho são, explicitamente, um
argumento a favor da consubstancialidade. A relação que distingue as hipós-
tases também as une na mesma natureza. O que vimos presente em autores
precedentes vem agora mais claramente à luz. A relação paterno-filial não seria
tal sem a unidade da essência. A relação faz que a distinção em Deus não seja
um obstáculo à unidade divina, porém ao mesmo tempo assegura a unidade
da essência na pluralidade das pessoas. Acentua-se, segundo os casos, um ou
outro destes aspectos. A última perspectiva parecia prevalecer em Basílio, ao
passo que em Gregório, que insiste mais na unidade divina, encontramos
também exemplos que se movem mais na outra direção20.
Os nomes Pai e Filho, exceto, por razões evidentes, o do Espírito Santo,
obrigaram a ver, desde o começo da reflexão trinitária, que em Deus as três
hipóstases existem na relação mútua. O Pai e o Filho, a partir da analogia com

18. Cf. BASÍLIO DE CESARÉIA, Contra Eunomium II 9-10 (SCh 305, 36-40). Sobre o
pensamento de Basílio, cf. H. V. DRECOLL, Die Entwiklung der Trinitátslehre des Basilius
von Càsarea, Gõttingen, 1996; B. SESBOÜÉ, Saint Basile et la Trinité. Um acte théologique au
IVe siècle. Le rôle de Basile de Césarée dans Télaboration de la doctrine et du langage trinitaire,
Paris, 1998.
19. Or. 29, 16 (SCh 250, 210); ibid. 31,7 (288): "... o Filho é Filho segundo uma relação
mais elevada, já que nós não podemos expressar de outro modo que é de Deus e que lhe é
consubstanciaF’.
20. Assim, por exemplo, Or. 31,9 (290): “A distinção da manifestação ou, se assim se pode
dizer, a relação entre eles cria a diferença de nomes; assim é salvaguardada a distinção das três
hipóstases na única natureza e a única dignidade da divindade”. Notemos que, à diferença dos
textos anteriores, o Espírito Santo é contemplado aqui junto ao Pai e ao Filho no tecido das
relações intratrinitárias.

70
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

a realidade humana, devem ser da mesma natureza, se estas denominações


hão de ter um valor. As três hipóstases não existem somente na unidade da
essência divina, segundo a fórmula que os capadócios popularizaram, mas
esta unidade é, antes, uma unidade na relação.

Santo Agostinho
Um passo decisivo na conexão mais explícita entre as noções de pes­
soa e relação será dado na contribuição de santo Agostinho. Recolhendo e
aprofundando algumas das intuições dos capadócios, também o Doutor de
Hipona fará a distinção entre o que em Deus se diz “ad se” ou “ad aliquid”.
Tudo o que se diz “ad se”, diz-se de Deus enquanto uno21. Referimo-nos a
cada uma das pessoas somente quando usamos os nomes relativos que as
caracterizam. E estes não indicam substância diversa22. Os nomes de Pai e
Filho não oferecem problemas, porém na Escritura encontra-se também
para o Espírito Santo um nome relativo: o de dom de Deus23. Pode-se, as­
sim, estender ao Espírito Santo o que se diz do Pai e do Filho. Somente no
plano da relação, e não no da substância ou do que se diz “ad se”, cabe em
Deus a distinção das pessoas. Esta não se pode dar enquanto se fala de Deus
em si mesmo, mas somente no plano da relação. Precisamente por isso, não
constitui obstáculo à unidade divina, que se dá na substância. Além disso, é
preciso acrescentar que a relação não é em Deus acidental, porque, dada a
simplicidade e a imutabilidade divinas, em Deus os acidentes são totalmente
excluídos24. Em Agostinho, seguindo a linha que víamos insinuada em certas
passagens de Gregório, e à diferença de outros textos deste autor e sobretudo
de Basílio, as relações, mais que garantir a unidade de substância das pessoas,
garantem que a distinção em Deus não atenta contra aquela. As perspectivas
de são Basílio e de santo Agostinho, como facilmente se depreende, não são
exatamente as mesmas. Certamente não é aceitável uma distinção radical
entre os esquemas grego e latino da Trindade; também segundo este último,

21. Cf. Trin. V 8,9 (CCL 50,215-216); VII 3,6 (254) etc.
22. Trin. V 7,8 (214): “quod relative pronuntiatur, non indicat substantiam”.
23. Ibid. 11,12 (219): “sed ipsa relatio non apparet in hoc nomine; apparet autem cum dicitur
donum Dei”. Cf. todo o parágrafo (218-220).
24. Ibid. 5,6 (211):“ ... quamuis diuersum sit Patrem et Filium esse, non est tamen diuersa
substantia: quia hoc non secundum substantiam dicuntur, sed secundum relativum; quod
tamen relativum non et accidens, quia non est mutabile”. Cf. Também, para o que segue, L.
F. LADARIA, Persona y relación em el De Trinitate de San Augustin, Miscelânea Comillas 30
(1972) 245-291.

71
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

e para Agostinho em particular, que tanto contribuiu para forjá-lo, o Pai é


expressamente o único princípio de toda a divindade25. É evidente, porém,
que a insistência inicial na unidade da essência divina é mais intensa em
santo Agostinho, e que neste sentido o conceito de relação é usado, antes de
tudo, porque permite afirmar em Deus uma distinção que não atenta contra
esta unidade da substância. Apesar dessa insistência na unidade divina, não
podemos pensar que toda a teologia trinitária de Agostinho tenda a reduzir
ao máximo a distinção das pessoas. Sua doutrina do Espírito como am or do
Pai e do Filho abre certamente a porta a outros delineamentos26.
Há, porém, uma novidade decisiva no pensamento do Doutor de Hipona.
Pela vez primeira, Agostinho se propõe a questão que indaga se as pessoas
divinas estão relacionadas simplesmente de fato ou se a noção mesma de
pessoa em Deus implica a relação. À primeira vista, a questão pode parecer
fútil. Se dizemos simplesmente que em Deus há três pessoas, mais para não
calar do que para dizer algo positivo quando somos interrogados27, não basta
dizer que o Pai, o Filho e o Espírito Santo estão relacionados entre si? Por
que temos de nos perguntar pelas características do conceito de pessoa? Vale
a pena interrogar-nos sobre a questão, antes de tudo porque o próprio santo
Agostinho o faz. Mas não é só isso: da resposta dada à pergunta depende a
coerência interna da posição do Doutor de Hipona. A pergunta sobre o caráter
absoluto ou relativo da “ pessoa” traz consigo o inquirir se o ser do Pai, do Filho
ou do Dom (Espírito Santo) se identifica com seu ser Pai, Filho ou Dom de
ambos. Ou, em outras palavras, se as três pessoas são antes (não por suposição
em sentido cronológico) de ser Pai, Filho ou Espírito Santo, isto é, se temos
de afirmar que existe algo que se prega acerca de Deus “ad se” três vezes.
É bem conhecida a resposta do Doutor de Hipona à pergunta que ele
próprio se formulou: “ad se quippe dicitur persona”28. Por essa razão, Agostinho
vê-se obrigado a admitir uma exceção a seu princípio segundo o qual tudo o
que em Deus se diz “ad se” diz-se no singular29. Por baixo do aspecto relacional

25. AGOSTINHO, Trín. IV 20,29 (CCL 50,200): “Totius divinitatis, vel si melius dicitur deitatis
principium pater est”. Cf. os concílios de Toledo VI, XI e XVI (cf. DH 490; 525; 568).
26. Trataremos desta questão no capítulo 4.
27. Trin. V 9,10 (217): ‘Tarnen cum quaeritur quid tres, magna prorsus inopia humanum
laborat eloquium. Dictum est tarnen tres personae, non ut illud diceretur, sed ne taceretur” ; VII
4,7 (255): “ Et cum intelligitur saltem in aenigmate quod dicitur, placuit ita dici, ut diceretur
aliquid cum quaereretur quid tria sint, quae tria esse fides vera pronuntiat”. Cf. também VII
6,11-12 (261-267).
28. Trin. VII 6,11; cf. todo o parágrafo (261-265).
29. Cf. ibid.; também Trin. VIII proem. 1 (268); IX 1,1 (293).

72
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

das três pessoas, Pai, Filho e Dom, parece existir ainda para Agostinho um
“substrato” absoluto sobre o qual esta relação se apóia. Com efeito, o Doutor
de Hipona, reagindo contra algumas idéias que conhecemos, expressas, entre
outros, por Atanásio, assinala que o Pai não pode ser sábio pelo Filho, mas
que o é por si mesmo; caso contrário, dada a simplicidade divina (o ser e o ser
sábio, bom etc. identificam-se), o Pai também “seria” pelo Filho. Isto, porém,
para Agostinho significaria uma contradição, porque equivaleria a dizer que
o Pai não é nada em si mesmo, mas que tudo o que é, ele o é em relação ao
Filho: “O Pai não seria nada em si mesmo, e não somente seu ser Pai, mas em
absoluto tudo o que é, dir-se-ia em relação ao Filho. E como seria da mesma
essência o filho cujo pai, a respeito de si mesmo, não é nem essência, nem
absolutamente nada?”30. Agostinho parece pensar que a relação deve apoiar-se
em um substrato absoluto. Do contrário, não se pode efetuar. Assim, chega
à conclusão de que o Pai tem de ser algo em si mesmo, para que se possa
pregar a seu respeito que é Pai por sua relação com o Filho; do mesmo modo
que se um homem não fosse homem em si não podería ser chamado senhor
em relação a seu servo31. Por isso, a conclusão a que é preciso chegar é que as
pessoas divinas são primeiramente pessoas, que se diz “ad se”, “antes” , logi­
camente falando, de estarem relacionadas entre si como Pai, Filho e Dom de
ambos. Donde a aporia de Agostinho, à qual, pouco acima, fazíamos alusão:
tem-se de pregar três pessoas em Deus, ou seja, é preciso usar o plural para
o que se diz “ad se” . É uma exceção à regra formulada, que se deve à neces­
sidade de responder o que são os três quando nos é perguntado. Somente
“pela necessidade do debate [propter disputandi necessitatem]” admite-se
este plural que não é relativo. E, neste caso, é preciso evitar toda distância ou

30. Trin. VII 1,2 (246). Interessante também a continuação do texto (246-247): “Neuter ergo
ad se est, et uterque ad invicem relative dicitur: na pater solus non solum quod pater dicitur, sed
omnino quidquid dicitur relative ad filium dicitur; ille autem dicitur et ad se? Et si ita est, quid
dicitur ad se? Na ipsa essentia? Sed patris essentia est filius, sicut patris virtus et sapientia, sicut
verbum patris et imago patris: aut si essentia dicitur ad se filius, pater autem non est essentia,
sed genitor essentiae, non est autem ad se ipsum, sed hac ipsa essentia quam genuit, sicut hac
ipsa magnitudine magnus quam genuit; ergo et magnitudo dicitur ad se filius, ergo et virtus,
et sapientia, et verbum et imago. Quid autem absurdius, quam imaginem ad se dici?— Restat
itaque ut etiam essentia filius relative dicatur ad patrem. Ex quo conficitur inopinatissimus
sensus, ut ipsa essentia non sit essentia... Homo ergo cum dominus dicitur, ipse homo essentia
est, dominus vero relative dicitur; homo enim se dicitur, dominus ad servum; hoc autem unde
agimus, si essentia ipsa relative dicitur, essentia ipsa non est essentia. Hue accedit, quia omnis
essentia qui relative dicitur est etiam aliquid excepto relativo... Quapropter si et Pater non est
aliquid ad se ipsum, non est omnino qui relative dicitur ad aliquid”.
31. Cf. ibid.

73
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

dessemelhança entre as pessoas32. A relação, aqui, mais que unir, distingue,


sem que a unidade fique comprometida. E, quando se chega ao limite e tem-se
de admitir que neste caso da pessoa é preciso pregar em Deus um plural £<ad
se”, é lógico o esforço por reduzir ao mínimo a distinção; com efeito, levando
até o fim o raciocínio, esta ameaçaria a unidade divina.

Severino Boécio
A tentativa de reunir sob um conceito unívoco as pessoas divinas, hu­
manas e angélicas não ajuda a contemplar os problemas específicos da dou­
trina trinitária quando se trata da noção de pessoa. A definição de Boécio,
“naturae rationalis indivídua substantia”33, não inclui explicitamente a relação
nas características da pessoa divina. Todavia, também ele, em pura linha
agostiniana, assinala que “substantia continet unitatem, relatio multiplicat
trinitatem”34. A relação é, por conseguinte, o fator que cria a distinção, sem
que a unidade da essência divina fique afetada. Refere-se a esta unidade tudo
quanto se diz de Deus “ad se”. O relativo, em Deus, não indica que os termos
sejam diferentes; no caso de Deus, a relação se estabelece entre os que são
o mesmo, porém não o mesmo35. Pbr isso o Pai, o Filho e o Espírito Santo
não diferem senão na relação36. Se Boécio pensa, conforme parece ocorrer
também com Agostinho, em um substrato absoluto sobre o qual se funda a
relação, tal idéia não se deixa entrever a partir de suas breves páginas sobre
a Trindade, nas quais se fala muito das relações e, no entanto, dá-se pouca
atenção ao termo “pessoa”37.

32. Trin. VII 6,12 (267): “Aut si iam placet propter disputandi necessitatem, etiam exceptis
nominibus relativis, pluralem numerum admittere, ut uno nomine respondeatur, cum quaeritur,
quid tria, et dicere tres substantias sive tres personas, nulla moles aut intervalla cogitentur, nulla
distantia quantulaecumque dissimilitudinis...”.
33. Liber de persona et duabus naturis 3 (PL 64,1343).
34. De Trin. 6 (PL 64,1255). Ibid., imediatamente antes (1254-1255): “ ... facta quidem est trinita-
tis numerositas, in eo quod est praedicatio relationis: servata vero unitas in eo quod est indifferentia
vel substantiae vel operationis vel omnino eius quae secundum se dicitur praedicationis”.
35. Cf. ibid. (1255s). E também ibid. 5 (1254): “Differentiae vero ubi absunt, abest pluralitas,
adest unitas: nihil autem aliud gigni potuit ex Deo, nisi Deus, et in rebus numerabilibus repetitio
unitatum non facit modis omnibus pluralitatem. Trium igitur idonee constituta est unitas” .
36. Ibid. 5 (1254): “Quodcirca si Pater et Filius ad aliquid dicuntur, nihilque aliud, ut dictum
est, differunt, nisi sola relatione, relatio vero non praedicator quasi ipsa sit et secundum rem de
qua dicitur, non facit alteritatem rerum, de qua dicitur, sed, si dici potest, quo quidem modo
id quod vix intelligi potuit, interpretatum est personarum”.
37. Cf. na nota anterior um dos raros exemplos do uso de “pessoa” neste escrito. Algum texto
parece sugerir uma distinção na linha agostiniana: ibid. 5 (1254): “Neque accessisse dici potest

74
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

Na linha de Agostinho, Boécio falou da impossibilidade de aplicar o


plural a Deus. Não existe número na substância divina, não temos em Deus
uma repetição de unidades: “Donde, não existe nenhuma diferença, não existe
pluralidade de modo algum, nem, tampouco, número; portanto, só existe
unidade. Assim sendo, pelo fato de que Deus se repete três vezes quando é
chamado Pai, Filho e Espírito Santo, as três unidades não constituem uma
pluralidade pelo fato de serem elas mesmas”38. Introduz-se, aqui, uma distinção
sutil, de não fácil compreensão: o número pode ser entendido em um duplo
sentido: por um lado, os números de que nos servimos para contar. Temos,
porém, outro sentido da palavra, que se refere às coisas que podem ser con­
tadas39. No primeiro sentido, posso dizer, por exemplo, dois, e o resultado é
o mesmo quer se trate de dois homens ou de duas pedras. Se consideramos o
segundo sentido, existe dualidade, porque a unidade se repete, porém não são
coisas diferentes os dois homens ou as duas pedras: “No número das coisas,
a repetição da unidade não constitui uma pluralidade [non facit pluralitatem
unitatis repetitio]”. Se eu digo três vezes “sol”, nem por isso há três sóis.
Se digo pontiagudoy gladius, ensis, usei três palavras para designar a mesma
coisa, mas não está dito que se trate de três espadas. Algo semelhante ocorre
quando dizemos Pai, Filho e Espírito Santo: não fazemos três deuses. Fica
assim demonstrado que nem toda repetição de unidades faz um número
e uma pluralidade”. No entanto, fica claro que o Pai, o Filho e o Espírito
Santo, sendo o mesmo, não são o mesmo. A repetição das unidades não cria
pluralidade em todos os sentidos. A unidade, porém, é constituída por três40.
Dá a impressão de que a tendência a minimizar a distinção entre as pessoas,
presente já em Agostinho, se torna ainda mais aguda. A relação é a categoria
que permite uma distinção em Deus, embora não se perceba diretamente que
esta relação contribua de algum modo para a unidade das pessoas.

O Concílio XI de Toledo
Muitas destas idéias foram recolhidas na confissão de fé do Concílio
XI de Toledo, do ano 675 (cf. DH 525-532 para a parte trinitária). O gênero

aliquid Deo, ut Pater fieret; non enim coepit esse imquarn Pater, eo quod substantialis quidem
ei est productio Filii, relativa vero praedicatio Patris”. O interesse primordial é a insistência em
que a condição de Pai não começou em determinado momento.
38. Ibid. 3 (1251).
39. Cf. ibid. (1251). Todos os textos que são citados em continuação pertencem a este
capítulo 3.
40. Cf. o final do texto citado na nota 35.

75
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÄO

literário de um documento conciliar não é o de uma exposição detalhada


própria de um tratado teológico. Todavia, vale a pena deter-nos brevemente
neste documento, que foi considerado ponto obrigatório de referência por
diferentes teólogos nos últimos tempos41. Assinalamos algumas das afirmações
mais importantes para o nosso propósito.
A Trindade em que cremos, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, é o Deus
uno42, de uma só substância, majestade e poder. O Pai, que não tem origem
de ninguém, é a fonte e a origem de toda a divindade: “ Fons ergo ipse et
origo totius divinitatis”43 (DH 525). Porém, apesar disso, o Pai e o Filho se
requerem mutuamente, de tal maneira que não existe Pai sem Filho nem
Filho sem Pai. Os dois existem em uma relação recíproca, porém isto não
quer dizer que as posições de um e de outro possam intercambiar-se: “E,
não obstante, não como o Filho do Pai, assim o Pai do Filho, porque não foi
o Pai que recebeu a geração do Filho, mas o Filho do Pai” . Isto, porém, não
significa que o Filho não seja igual ao Pai, wpois o Filho é em tudo igual a
Deus Pai”, consubstanciai a ele, porque não vem de outra substância, mas da
do Pai, “ do seio do Pai” (cf. SI 110,3). Dada a referência mútua sem a qual
o Pai e o Filho não podem existir, o Filho o é por natureza, não por vontade
nem por necessidade (DH 526)44.
A categoria da relação é usada de maneira explícita, na linha de santo
Agostinho:
Tampouco se pode dizer retamente que em um só Deus se dá a Trindade [ut
in uno Deo sit Trinitas], mas que o único Deus é a Trindade. Porém, nos
nomes relativos das pessoas, o Pai se refere ao Filho, o Filho ao Pai, o Espírito
Santo a um e a outro. E, mesmo que se digam três pessoas pela relação, crê-
se em uma só natureza ou substância... Porque o que o Pai é, não o é com
relação a si, mas ao Filho; e o que é o Filho, não o é com relação a si, mas ao
Pai; e de modo semelhante o Espírito Santo não se refere a si mesmo, mas

41. Deve ser citado, antes de tudo, o exemplo significativo de K. BARTH, Die Kirchliche
Dogmatik, I/I, München, 1935, 368; 373; 390; 414; recentemente, L. SCHEFFCZYK, Der Gott
der Offenbarung. Gotteslehre, Aachen, 1996, 281-282; L. F. MATEO-SECO, Dios uno y trinoy
Pamplona, 1998, 297-300.
42. A afirmação se repete diversas vezes no documento; cf. DH 528; 529; 530: “Haec sancta
Trinitas, quae unus et verus est D eus...”. E também o concílio toledano III, de 589, Symbolum
Recaredi regis (DH 470): “Haec enim sancta Trinitas unus est Deus, Pater et Filius et Spiritus
Sanctus” .
43. Cf. acima a nota 25.
44. Cf. capítulo 1, Liberdade e necessidade na Trindade imanente, p. 43.

76
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

relativamente ao Pai e ao Filho, uma vez que se afirma que é o Espírito do


Pai e do Filho (DH 528).

Não se pode depreender destas breves insinuações se os autores deste


símbolo pensam — como, ao que parece, fazia Agostinho — em um substrato
absoluto da relação. Dificilmente encontraremos indicações que permitam
decidir-nos por uma ou outra opção. É claro, de qualquer maneira, que as
três pessoas, enquanto Pai, Filho e Espírito dos dois, estão em referência umas
às outras. As três pessoas dizem-se relative. Não se pode excluir um passo
adiante sobre Agostinho na consideração das pessoas enquanto tais como
relativas45, ou, com outras palavras, que se esteja a caminho da superação da
idéia segundo a qual o Pai, o Filho e o Espírito são “antes” de ser em relação.
O número, o fato de serem “três” , não indica mais que a relação das pessoas,
o fato de que são aà invicem:
Assim, pois, esta santa Trindade, que é o único e verdadeiro Deus, uma vez
separada do número nem cabe no número. Porque o número se vê na relação
das pessoas; porém, na substância da divindade, não se compreende o que se
houver numerado. Logo, só indicam número enquanto estão relacionadas entre
si, e carecem de número enquanto são em si. Porque de tal sorte a esta santa
Trindade lhe convém um só nome de natureza, que nas três pessoas não pode
haver plural... E não porque tenhamos dito que estas três pessoas são um só
Deus, podemos dizer que o mesmo que é Pai é Filho, ou que é Filho o mesmo
que é Pai, ou que seja Pai ou Filho o que é Espírito Santo..., não obstante o
Pai seja o mesmo que o Filho, o mesmo o Filho que o Pai, o mesmo o Pai e
o Filho que o Espírito Santo, isto é, um só Deus por natureza (DH 530).

Em tudo o que em Deus se diz “ad se” não cabe o número; o plural só
tem sentido se consideramos a relação das pessoas entre si; a relação distingue,
porém por sua vez mostra a referência, o fato de que os três estão em refe­
rência um ao outro. Evita a confusão, mas não separa46. Esta função de unir
as pessoas que corresponde à relação se expressa ainda com maior clareza na
continuação: “não se conhece o Pai sem o Filho nem se reconhece o Filho sem
o Pai. Com efeito, a mesma relação que se expressa no nome pessoal proíbe
separar as pessoas; mesmo quando o nome não as designa em uma só vez,
em uma só vez as insinua. Pois ninguém pode ouvir nenhum destes nomes

45. Cf. SCHEFFCZYK, Der Gott der Offenbarung, 282.


46. DH 531: “Tres ergo illas unius atque inseparabilis naturae personas, sicut non confun-
dimus, ita separabiles nullatenus praedicamus”.

77
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

sem que tenha de entender forçosamente o outro” (DH 532). A relação não
somente mostra a distinção, mas também proíbe a separação. Embora não se­
jam nomeadas de uma só vez as duas pessoas, a menção do Pai implica a do
Filho. E o mesmo caberá afirmar do Espírito Santo, mesmo que não se diga
expressamente, uma vez que é o Espírito do Pai e do Filho. Nomeando uma
pessoa, implicitamente faz-se menção das outras. A Trindade não é una apesar
das relações que distinguem as pessoas, mas sim nelas. A mesma relação que,
ao que parece, as constitui impede de separá-las. A relação entre as pessoas
tem a ver, portanto, com a unidade divina, e não só com a distinção daquelas.
Assim, a unidade de Deus em três pessoas é o modo mais alto de unidade que
se possa imaginar. O Concílio não pretende definir em nenhum momento a
pessoa, mais ainda, deixa entrever a dificuldade deste conceito47.
Os textos deste concílio toledano despertam um grande interesse. Seguem
de perto santo Agostinho, mas talvez com mais clareza que este nos mostrem
os dois aspectos das relações entre as pessoas divinas: ao mesmo tempo que
as distinguem, unem-nas. A unidade da essência divina é a um só tempo e
inseparavelmente a unidade dos três.

B. Alguns autores da Idade Média

Anselmo de Cantuária
Iniciaremos nosso breve itinerário com alguma referência à teologia da
pessoa na concepção de Anselmo, que mostrou uma grande preocupação com
insistir na unidade de Deus. O que é preciso explicar não é a unidade dos
três, mas sim a “trindade do uno”. A maneira como o problema é proposto
no capítulo 79 do Monologion é já expressiva: “Três ‘que’ se pode chamar de
algum modo a suma essência”. As dificuldades do conceito de “pessoa” apa­
recem imediatamente, já que na inefável “trina unitas” e “una trinitas” que
encontramos em Deus a unidade funda-se na única essência, porém a trindade
em três “ não sei que”. Porém, por necessidade, é possível afirmar que “aquela
suma trindade ou trindade una é chamada uma essência em três pessoas ou três
substâncias [subsistências]”48. Anselmo empenhou-se em deduzir as pessoas

47. DH 531: “Tres igitur personae istae dicuntur, iuxta quod maiores definiunt, ut agnos-
cantur, non ut separentur”. Não se pode dizer sem mais nem menos que se trate de um conceito
genérico.
48. Ibid. (SCHM1TT I, 85-86). Cf. o desenvolvimento de todo o capítulo. A dificuldade
vem do conceito boeciano de pessoa. Se em Deus não existe pluralidade de substâncias, não

78
AS "TRÊS PESSOAS" DMNAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

da essência espiritual: o sumo espírito se conhece e se ama a si mesmo, e este


conhecimento e este amor identificam-se com o Filho e o Espírito Santo. As
ressonâncias agostinianas são claras49. Cada um tem a essência do outro e a
oposição entre os três se dá somente na oposição das relações: “Opõem-se de
tal maneira pelas relações que um nunca recebe o que é próprio do outro. De tal
maneira são concordes na natureza, que um sempre mantém a essência do
outro. Assim, são diversos, porque um é Pai e o outro Filho... e do mesmo
modo são o mesmo pela substância, de tal maneira que a essência do Pai está
sempre no Filho e, no Filho, a essência do Pai”50.
Anselmo trata da geração do Verbo (usa preferencialmente esta denomi­
nação no Monologion) seguindo de perto a doutrina de santo Agostinho. O
Pai gera, o Verbo é gerado51, e assim são dois, porém ambos a mesma coisa52.
O amor é a essência divina, e este amor se identifica com o “summus spiri-
tus”, a “summa essentia”, o que são o Pai e o Filho e o amor dos dois, que
é o Espírito Santo53. Tem-se a impressão de que é a mesma essência divina
enquanto “summus spiritus” a que se conhece e ama a si mesma54. Na me­
mória do “sumo espírito”, reconhece-se o Pai, no entendimento do mesmo,
o Filho55. Não se podem ignorar os traços “pessoais” atribuídos de modo
mais ou menos explícito à essência divina. É por isso conseqüente com o que
até agora vimos, isto é, a afirmação de que o Espírito Santo não procede do
Pai e do Filho por aquilo pelo que são dois, mas por aquilo pelo que são um:
“Pois não pelas relações, pelas quais são d ois... mas de sua própria essência, que
não tolera pluralidade, o Pai e o Filho fazem sair ao mesmo tempo um bem
tão grande”56. Não se insiste, portanto, no amor dos dois, possível somente
enquanto existe distinção de pessoas, mas no que têm em comum. Por isso,
são uma essência suma o Pai, o Filho e o amor dos dois, o Espírito Santo.
As pessoas são, acima de tudo, “pontos de cristalização” da realização da

pode haver tampouco pluralidade de pessoas. A rigor, também não se pode falar de substância
onde não há acidentes.
49. Conforme assinalado pelo próprio Anselmo no prólogo da obra (ibid. 8).
50. Ibid. 43 (ibid. 60); cf. De proc. Spiritus sancti (SCHMITT II, 180-181).
51. Cf. Mon. 38-41 (56-58).
52. Ibid. 43 (59): “Et cum ita sit alius ille et alius ille, ut omnino pateat quod duo sunt: sic
tarnen unum et idipsum est id quod est ille et ille, ut penitus lateat quid duo sunt” . Aparece
novamente a dificuldade da noção de pessoa.
53. Ibid. 53 (66).
54. Ibid. 49 (64): “Amat ergo seipsum summus spiritus, sicut sui meminit et se inteOigit”.
55. Cf. ibid. 51 (64).
56. Ibid. 54 (66).

79
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

essência suma57. Neste sentido, são atributos, funções do único sujeito divino
que se identifica com a essência comum, o sumo espírito que são os três. A
essência divina é incompreensível e, por conseguinte, não se pode explicar
“ como se sabe ou se diz a si mesma e se, ao dizer-se a si mesma, o Pai gera
e o Filho é gerado, ‘quem se preocupa com os da sua geração?’ (Is 53,8)”58.
De maneira semelhante, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, embora cada um
deles fale, não são três “ falantes” , mas um só, e ao mesmo tempo não se diz
mais que uma única coisa, a essência comum. Por isso, uma só é a sabedoria
que “neles” diz, e uma só a substância que neles é dita59. É, portanto, ao que
parece a essência divina que, nas pessoas, pronuncia e é pronunciada, gera,
é gerada e procede.
No começo destas linhas, fazíamos alusão às dificuldades de Anselmo
com o conceito de “pessoa” em Deus. Não se podem desconhecer os traços
“pessoais” que, em diversos momentos de sua exposição, a essência divina
comum adquire. Não é fácil, a partir destes pressupostos, integrar um discurso
coerente sobre as três pessoas divinas. A própria vacilação terminológica é
boa prova disso. Naturalmente, é preciso ter presente que a preocupação do
bispo de Cantuária era demonstrar a compatibilidade com a razão da doutri­
na trinitária. Explica-se, neste sentido, a forte acentuação da unidade divina,
que não exclui a vida interna de Deus no dom de si, que é a característica
do Espírito supremo. Não obstante isso, formularam-se juízos muito severos
sobre a doutrina trinitária de Anselmo tal como foi expressa sobretudo no
Monologion60.

57. Cf. H. C. SCHMIDBAUR, Personarum Trinitas. Die militärische Gotteslehre des heiligen
Thomas von Aquin, St. Ottilien, 1995, 292; pode-se ver o conjunto do cap.: 280-299.
58. Mon. 64 (75): “Nam si superior consideratio rationabiliter comprehendit incomprehen-
sibile esse, quomodo eadem sum a sapientia sciât ea quae fecit...: quis explicet quomodo sciât
aut dicat scipsam, de qua aut nihil aut vix aliquid ab homine scire possibile est? Ergo si in eo
quod seipsam dicit, generat pater et generatur filius: ‘generationem eius quis enarrabit’ ”.
59. Mon. 63 (73): “necesse est ut, quemadmodum singulus pater et singulus filius et singulus
eorum spiritus est sciens vel intelligens, et tarnen hi très simul non sunt plures scientes aut
intelligentes, sed unus sciens, unus intelligens ita singulus quisque sit dicens, nec tarnen omnes
simul très dicentes, sed unus dicens. Hinc illud quoque liquide cognosci potest quia, cum hi très
dicuntur vel a seipsis vel ad invicem, non sunt plura quae dicuntur. Quid namque ibi dicitur
nisi eorum essentia? Si ergo ilia una sola est, unum solum est quod dicitur. Ergo si unum est
in illis quod dicit, et unum quod dicitur — una quippe sapientia est quae in illis dicit, est una
substantia quae dicitur — , consequitur non ibi esse plura verba sed unum”.
60. Cf. SCHMIDBAUR, Personarum Trinitas, 296, segundo a qual a diferença que haveria
entre Agostinho e o desenvolvimento de sua teologia por Anselmo seria a que separa Agostinho
do modalismo; cf. ibid. 298. Um quadro mais matizado em P. GILBERT, Dire ITneffabie. Lecture
du “ Monologion” de s. Anselme, Paris/Namur, 1984, 207-246.

80
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

Todavia, para ter dela um panorama mais completo, devemos estudar de


que modo o bispo de Cantuária encarou problemas semelhantes em sua obra
acerca da processão do Espírito Santo. Se fazemos referência a esta obra, não é
porque o problema da processão do Espírito nos interesse agora diretamente,
mas porque neste exemplo aparece com clareza a representação que Anselmo
faz para si mesmo da unidade e da trindade divinas. Deve-se notar, antes de
tudo, que as relações em Deus unem-se com a pluralidade e não com a uni­
dade divina. A oposição da relação nasce do fato de que Deus é “de Deus” de
dois modos diversos (o Filho e o Espírito Santo são ambos “ Deus de Deus” );
torna-se assim impossível atribuir aos outros o que é próprio de cada um
dos três. As consequências da unidade e da relação haverão de se equilibrar
de tal maneira que nem a pluralidade que se segue à relação se traslade para
a simplicidade da unidade divina, nem a unidade impeça a pluralidade onde
existe a relação. Por isso, nem a unidade deixa de ser tal onde a oposição da
relação não é obstáculo, nem a relação perde o que lhe corresponde onde a
unidade inseparável não se opõe61. Unidade e oposição relativa corrigem-se,
por assim dizer, mutuamente. A relação impede que a unidade possa ser
interpretada no sentido de que o Filho e o Espírito Santo sejam “pais” como
o é a primeira pessoa. O mesmo se pode dizer das propriedades das outras
pessoas. E, entrando concretamente no problema da processão do Espírito
Santo, Anselmo começa dizendo que se o Filho e o Espírito vêm do Pai, como
é comumente admitido, isto quer dizer da essência do Pai, segundo a qual
é uno com o Filho e o Espírito Santo. Portanto, se o Espírito Santo vem do
Pai, se o Pai e o Filho são o mesmo Deus, há de seguir-se daí que procede
também do Filho “segundo a mesma unidade da divindade”62. Esta linha de
forte acentuação da unidade divina e da redução da “oposição” ao mínimo
será a que vai ser seguida por Anselmo em toda a sua obra.
Com efeito, Anselmo irá perguntar-se, após haver repetido que se o
Espírito procede de Deus procede também do Filho, se o Espírito vem do
Pai porque vem de Deus, ou vice-versa. Só a primeira resposta é correta. Do
contrário, o Espírito não procederia da divindade do Pai, mas da relação. Vem

61. Cf. De proc. I (SCHMITT 2, 180-181): “Quatenus nec unitas amittat aliquando suum
consequens, ubi non obviat aliqua relation is oppositio, nec relatio perdat quod suum est,
nisi ubi obviat unitas inseparabilis”. Sabe-se que a primeira parte deste texto, não a segunda,
inspirou de perto o concílio Florentino, decreto pro Iacobitis (cf. DH 1330). Sobre a processão
do Espírito em Anselmo, cf. S. BONANNI, II “Filioque” tra dialettica e dialogo. Anselmo e
Abelardo: posizioni a confronto, Lateranum 64 (1998), 49-79.
62. Ibid., 183.

81
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

da “divindade” e não da “paternidade”, se assim podemos nos expressar63.


Sendo o Filho tão Deus quanto o Pai, e vindo o Espírito do Pai enquanto é
Deus, deve-se considerar que procede dos dois igualmente64. Somente se o
Espírito procede igualmente do Filho enquanto é Deus pode-se dizer que é
dele65. O Espírito procede da essência comum ao Pai e ao Filho, que o Filho
recebe por sua vez do Pai; Anselmo distingue receber a essência divina por
parte do Filho de receber o Espírito Santo:
Porque não é a mesma coisa receber do Pai a essência, da qual procede o
Espírito Santo, que receber do Pai o Espírito Santo. Quando se diz que recebe
do Pai a essência da qual procede o Espírito Santo, não se mostra nenhuma
indigência do Filho. Porém, ao dizer que o Filho recebe do Pai o Espírito
Santo, que não tem de per si como o tem o Pai, parece dizer-se que o Filho
tem algo menos do que tem o Pai66.

Deixando de lado o problema da indigência do Filho, que neste contexto


nos interessa menos, mostra-se claramente a tendência a diminuir ao máxi­
mo a relação, neste contexto concreto da processão do Espírito. Este vem da
essência do Pai, que é a mesma que a do Filho, que é em tudo igual a ele. É
a identidade da essência que justifica, em último termo, o Filioque: “quando
lerem [os gregos] que [o Espírito Santo] procede do Pai (cf. Jo 15,26), de
quem o Filho diz: ‘Eu e o Pai somos um ’ (Jo 10,30), confessem conosco que,
em razão da identidade essencial do Pai e do Filho, procede, sem dúvida,
também do Filho”67.
Com esta concepção da unidade da essência, diante da qual a distinção
pessoal é reduzida ao mínimo, nem sequer existe espaço para uma compre­
ensão do “a Patre per Filium” . Uma vez que o Pai e o Filho não diferem na
unidade da divindade, e o Espírito Santo procede da divindade do Pai, se o
Filho tem a mesma divindade, não se entende como pode o Espírito Santo

63. Seja como for, mesmo que disséssemos que vem da relação, não havendo nenhuma
relação do Pai que não seja do Filho, deveríamos dizer também que vem dos dois. Cf. De proc.
II (189-190).
64. De proc. II (190): “Non autem magis est pater deus quam filius, sed unus solus verus
deus pater et filius. Quapropter si spiritus sanctus est de patre, quia est de deo qui pater est,
negari nequit esse quoque de filio, cum sit et de deo qui est filius”; afirmações semelhantes em
ibid. III (190-191); V (194); VII (198-199) etc.
65. De proc. I (183); IV (193). É evidente a influência de SANTO AGOSTINHO, Trin. IV
20,29 (CCL 50,199); XV 26,45 (524).
66. De proc. IV (193).
67. Ibid. VII (199). Ibid. III (191): “Quid apertius quam de solo vero deo, qui est pater et
filius, procedit spiritus sanctus, cum dicitur a patre procedere?”.

82
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

proceder da divindade do Pai mediante a divindade do Filho. A não ser que se


diga que não procede da divindade do Pai, mas da paternidade, nem por meio
da divindade do Filho, mas de sua filiação68. Esta possibilidade, porém, já foi
descartada. A mediação criadora universal do Filho (cf. Jo 1,3 etc.) é entendida
por Anselmo à luz de João 5,19: “o que o Pai faz, o Filho o faz igualmente”.
Por isso, tudo o que se faz mediante o Verbo foi feito pelo mesmo Verbo. Do
mesmo modo, ainda que digamos que o Espírito procede do Pai mediante o
Filho, na realidade estamos dizendo que procede do Pai e do Filho, uma vez
que este faz similiter tudo o que faz o Pai69. À mesma conclusão se chega a
partir da antiga metáfora, que tem suas origens em Hipólito e Tertuliano, da
fonte e do rio, e — para Anselmo — do lago que deles provém. Para o bispo
de Cantuária, a rigor, o lago não procede da fonte, mas da água que está na
fonte e no rio. Ou seja, não provém daquilo em que a fonte e o rio diferem,
mas do que têm em comum. Por conseguinte, o Espírito vem daquilo pelo
que o Pai e o Filho são uma só coisa: a divindade dos dois70. Assim, são ambos
um só princípio, porque não são “outro” Deus71. Encontramos na Escritura
numerosos casos nos quais devemos entender como dito das outras pessoas
o que se afirma de uma só. Embora nos seja dito que o Espírito Santo pro­
cede do Pai, devemos entender que também procede do Filho, uma vez que
é da mesma essência dos dois72. E já que esta é possuída do mesmo modo
por ambos (também pelo Espírito Santo, porém é preciso manter a ordem
das processões), não tem sentido dizer que o Espírito Santo procede do Pai
mediante o Filho. A distinção das pessoas reduz-se ao mínimo. E assim como

68. Ibid. IX (201).


69. Ibid. (203): “Quae facta sunt a patre per verbum (cf. Jo 1,3), facta sunt ab ipso verbo...,
quaecumque enim [pater] fecerit haec et filius similiter facit (Jo 5,19). Dicamus igitur quia
spiritus sanctus, cum procedit a patre per filium, procedit a filio similiter, sicut quae facta sunt
a patre per verbum, facta sunt similiter ab ipso verbo”.
70. Cf. ibid. (204-205). Também XIV (212): “Constat inexpugnabili ratione spiritum sanctum
esse de filio, sicut est de patre, nec tarnen esse quase de duobus diversis, sed quase de uno. Ex
eo enim quod pater et filius unum sunt, id est, de deo, et spiritus sanctus, non ex eo unde alii
sunt ab invicem. Sed quoniam deus de quo est spiritus sanctus est pater et filius, idcircovere
dfcitur esse de patre et filio qui duo sunt”.
71. Ibid. X (206): “ ... sicut non credimus alium deum patrem de quo est filius, et alium
deum patrem et filium de quo spiritus sanctus est”.
72. Ibid. XI (207): “ Multa huiusmodi in sacra scriptura legimus, ut quod de una persona
singulariter dicitur, indifferenter de tribus intelligitur... Quapropter cum credimus spiritum
sanctum de patre procedere, quoniam deus de deo, id est essentia spiritus sancti de essentia
patris, qua una est tribus esse intelligitur: necesse est ut de filio eum similiter esse confiteamur,
si filius non est de illo. De hoc enim est spiritus sanctus, quod est filius et quod est pater”.
Outros exemplos escrituristicos em ibid. (208-209).

83
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

todo propósito de ver uma distinção na atuação das pessoas no “Patre per
Filium” de alguns orientais é rechaçado em seu plano, igualmente é reduzida
ao mínimo a significação do prinápaliter de santo Agostinho. Efetivamente,
não existe inconveniente em usar esta expressão, porque o Filho tem do Pai o
que é e, portanto, também o que dele seja o Espírito Santo. Entretanto, não se
deve dizer que o Espírito Santo seja principalmente do Pai, como se fosse mais
do Pai que do Filho, “já que, assim como o Pai não é mais Deus que o Filho,
embora o Filho tenha seu ser do Pai, igualmente o Espírito Santo não é mais
do Pai que do Filho, embora o Filho tenha do Pai que dele venha o Espírito
Santo”73. Mais que do Pai e do Filho enquanto são ad invicemyo Espírito Santo
procede da essência divina comum aos dois; o Espírito Santo é de dois, porém
enquanto são um só Deus. As relações não podem introduzir na unidade a
pluralidade que lhes é própria, nem vice-versa74. A relação é assim a categoria
que distingue dentro da unidade, e que assim se “opõe” a esta última. O exemplo
eloqüente da processão do Espírito mostra uma teologia trinitária na qual a
significação da distinção pessoal se reduz notavelmente. Neste sentido, Anselmo
pôde dar motivo à reprovação que se formula às vezes contra a teologia latina
por colocar a unidade da essência divina adiante das distinções pessoais. Os
juízos globais podem pecar por precipitação. Certo é que nem santo Agostinho
nem santo Tomás levaram as coisas a estes extremos. A essência divina chega
a aparecer aqui com caracteres quase pessoais. De certo modo, e com muitas
matizações necessárias, encontramo-nos diante de um precedente do que, no
século XX, será a linha desenvolvida principalmente por Karl Barth, à qual
nos referiremos neste mesmo capítulo. Todavia, não devemos esquecer que
Anselmo em outros contextos está bem consciente do valor da distinção das
pessoas em Deus e do caráter irrepetível delas. Referimo-nos já a sua resposta
à questão sobre a possibilidade da encarnação das três pessoas divinas.

Ricardo de São Vítor


A doutrina trinitária de Ricardo de São Vítor suscitou discussões desde os
antigos tempos e continua a provocá-las hoje em dia. Não entraremos nestes
detalhes75. Interessa-nos, antes de tudo, observar que sua definição da pessoa

73. Ibid. XIV (213).


74. Cf. ibid. XV (216).
75. Cf. entre a última bibliografia, M. SCHNIERTSHAUER, Consummatio caritatis. Eine
Untersuchung zu Richard von Sankt Viktors De Trinitate, Mainz, 1996; P. CACCIAPUOTI,
“Deus existential amoris”. Teologia della carità e teologia delia Trinità negli Scritti di Riccardo

84
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

divina, com a introdução do termo exsistentia76y coloca as processões divinas


e, conseqüentemente, as relações de origem como um elemento central. A
substituição da substância da definição boeciana pelo novo termo se justifica
porque em Deus as três pessoas compartilham a mesma essência divina. A
noção de “ex-sistência” leva-nos à distinção das pessoas como baseada uni­
camente nas relações de origem, já que em Deus há unidade “iuxta modum
essendi” e a distinção se produz somente “iuxta modum existendi”77. A exis­
tência incomunicável indica a irrepetibilidade, um quis ou aliquis78 próprio e
insubstituível, a propriedade pessoal impossível de intercambiar, em relação
permanente, como já assinalamos, com a distinção que vem da origem.
Pois bem, em íntima conexão com a “processão” das pessoas está a aná­
lise do amor e, concretamente, do amor entre as pessoas divinas, que Ricardo
leva à finalização. Se, por um lado, a “existência” distingue, por outro as re­
lações de origem fundam-se no amor em que as pessoas divinas estão unidas.
Pressupõe-se em Deus, sumo bem, a plenitude da perfeição, o que significa
que seu próprio bem é ele mesmo (se tivesse de buscá-lo em outro, já não
seria ele próprio o sumo bem )79. Onde existe a bondade suma, não pode faltar
a caridade perfeita, uma vez que não existe nada melhor nem mais perfeito
que a caridade: “ nihil caritate melius, nihil caritate perfectius”80; nada existe,
tampouco, mais doce e gozoso que ela, “nihil caritate dulcius, nihil caritate
iucundius”81. Por outro lado, o amor deve tender para outro, não se diz a
ninguém que tem caridade se ama a si mesmo: “ É preciso que o amor tenda
para o outro, para que possa ser caridade”82. Porém, para isto, é necessário
que aquele a quem a caridade se dirige seja digno dela, seja “condigno”. No
caso de Deus, só outra pessoa divina será verdadeiramente digna deste amor.

di San Vittore (t 1173), Brepols, 1998; M. D. MELONE, Lo Spirito Santo nel De Trinitate di
Riccardo di San Vittore, Roma, 2001.
76. De Trinit. IV 22 (SCh 63,280): a pessoa divina é “divinae naturae incomunicabilis existen-
tiae”, adaptação à pessoa divina da definição geral de pessoa, “naturae rationalis incomunicabilis
existentia”, ibid. IV 23 (282).
77. Cf. ibid. IV 15 (260).
78. Ibid. IV 7 (242s). Em contrapartida, santo Agostinho falava da pessoa como um “aliquid”:
Trin. VII 6,11 (CCL 50, 263).
79. Ibid. II 16 (138): “Constat itaque de omnipotente quod ipse sit summum bonum, et
quod consequens est, quod ipse sit sibi suum bonum”; cf. Ill 2 (168s).
80. Ibid. Ill 2 (168).
81. Ibid. Ill 4 (174).
82. Ibid. Ill 2 (168). Texto inspirado em Gregório Magno, In Ev. Horn. I 17,1 (PL 76,1139):
“Minus quam inter duos caritas haberi non potest. Nemo enim proprie ad se ipsum habere
caritatem dicitur, sed dilectio in alterum tendit ut esse caritas possit”.

85
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

A lógica pede, portanto, a existência de uma pluralidade de pessoas em Deus83.


A vida divina aparece já com estes pressupostos como uma comunicação de
amor, que não se pode dar sem a existência da pluralidade e da distinção.
Todavia, temos de chegar ainda à Trindade. Esta aparece quando, junto ao
primeiro objeto do amor, o “ condigno”, surge a necessidade do “condilecto”,
imprescindível para que possam ser comunicadas as delícias do gozo do
amor. Assim, da caridade verdadeira, pode-se passar à caridade consumada84.
Ricardo faz amplo uso de termos que indicam a comunhão no amor: con­
córdia^ consortiunij sodalitas. .. e seus derivados85. O verdadeiro “condilectio”
existe quando um terceiro é amado de maneira concorde por dois, é amado
em uma comunidade de amor e o afeto dos dois une-se no incêndio de um
terceiro amor. Esta será a “condilectio” perfeita86.
Um passo decisivo no desenvolvimento da teologia trinitária de Ricardo
será a fenomenologia do amor, na tripla distinção de amor gratuito, amor
devido, amor ao mesmo tempo devido e gratuito87. Não é difícil, a partir desta
fenomenologia, chegar às três pessoas divinas, caracterizadas precisamente a
partir destas três formas de amor. No amor sumo e eterno ocorre esta distinção
e a pessoa divina, de acordo com este ponto de vista, é definida como “o amor
sumo, que se distingue por esta propriedade”88. Ou, o que significa a mesma

83. Cf. ibid. Ill 2 (170). Para nosso propósito, podemos prescindir do valor das ‘Tationes
necesariae” para a explicação da existência da Trindade. Podemos pensar que somente são tais
à luz da fé.
84. Ibid. Ill 18 (208): “ in sola geminatione persone non esset cui posset quivis duorum prae-
cipuas inconditatis sue delicias communicare”; ibid. 13(198): “Caritas autem ut esse vera possit,
personarum pluralitatem exigit; ut vero consummata sit, personarum Trinitatem requirit” .
85. Alguns exemplos: ibid. Ill 20 (212): “Ecce quomodo ex tertie persone consodalitate in
ilia Trinitate agitur ut concordialis caritas et consocialis amor ubique nusquam singularis inue-
niatur”; III 11 (192): “plenitudo bonitatis esse non possit, ubi voluntatis nel facultatis defectus
dilectionis consortem praecipuique gaudii communionem excludit. Summe ergo dilectorum
summeque diligendorum uterque oportet ut pari voto condilectum requirat, pari concordia
pro voto possideat”.
86. Ill 19 (208s): “Condilectio autem iure dicitur, ubi a duobus tertius concorditer diligitur,
socialiter amatur et duorum affectus tertii amoris incêndio in unum conflatur... Non enim de
qualicumque, sed de summa condilectione loquimur et qualem creatura a Creatore nunquam
meretur, nunquam digna invenitur” .
87. Tritt. V 16 (344): “Constat autem quia verus amor potest esse aut solum gratuitus, aut solum
debitus, aut ex utroque coniunctus, id est, ex uno debitus et ex alio gratuitus. Amor gratuitus est,
quando quis ei a quo nihil muneris accipit gratanter impendit. Amor debitus est, quando quis ei
a quo gratis accipit nihil nisi amorem rependit. Amor es utroque permixtus est, qui altematim
amando et gratis accepit et gratis impendit” ; cf. também V 19 (350); esta tripla distinção encontra-
se já em De verbis Apostoli 9; notado por P. CACCIAPUOTI, “Dews existential amoris”, 163.
88. Trin. V 20 (352): “ Nihil aliud est ibi persona ista quam dilectio summa hac proprietate dis-
tincta; nec aliud aliquid est persona tertia quam dilectio summa tertia proprietate distincta”.

86
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

coisa, cada pessoa é o mesmo que seu amor e por isso exclui-se a possibili­
dade de que em Deus haja mais de três pessoas89. O terreno está preparado
para passar à terminologia mais estritamente trinitária que caracteriza cada
uma das três pessoas divinas segundo a forma de amor que lhe é própria90. É
comum, porém, às três pessoas o sumo amor e a suma dileção; mais ainda,
a distinção das três propriedades se dá no sumo amor91. Nada substancial
acrescenta a este esquema o quanto se diz sobre as processões, a geração do
Verbo e a processão do Espírito Santo. O Pai quer ter um condigno para dar-
lhe seu amor e dele recebê-lo, e para comunicar as riquezas de sua grandeza,
e quer ter um “condilecto” para ter o consórcio de amor e para ter a quem
comunicar as delícias de sua caridade. A comunhão da majestade é a causa
da primeira processão; a do amor, a da segunda92.
O pensamento do Vitorino nos coloca diante de um modelo que res­
ponde a preocupações diversas das de santo Anselmo. A teologia de Ricardo
move-se, com certeza, no terreno especulativo, porém não se pode esquecer
que a história da salvação é o que dá a possibilidade de pensar em Deus como
comunicação de amor. O amor é a capacidade de estabelecer a diversidade, em
primeiro lugar em Deus mesmo, mas também fora dele, na criação93. Em Deus,
o amor parece coincidir com a essência divina, uma vez que o amor sumo
é o que é comum aos três. Para ser tal, este amor, como já vimos, necessita
de pluralidade, mais ainda, da Trindade. Se a unidade divina é fundada no
amor, supõe a distinção das pessoas. Neste sentido, unidade e distinção em
Deus iluminam-se mutuamente. E não pode ser de outro modo, se Deus não
pode deixar de ser, para si mesmo, o sumo bem. Volta-se a encontrar aqui
o problema da liberdade e da necessidade de Deus, que Ricardo não delineia
explicitamente. A comunicação do amor não pode ser imposta, porém, por
outro lado, dificilmente se pode pensar que não se realize. O próprio Ricardo
esforça-se por descobrir as “ rationes necessariae” que conduzem da unidade
divina ao conhecimento da Trindade. Somente a partir da noção da caridade ou
do amor pode a Trindade ser o lugar da comunicação, do gozo, da concórdia
e do amor “consocial”. Para isso, não basta a noção abstrata de substância ou
essência divina, é preciso recorrer também à noção bíblica do Deus amor (cf.

89. Ib. “ Quoniam ergo quelibet persona, ut diximus, est idem quod amor suus... sicut
quartam proprietatem, sic quartam personam nullatenus ibi invenire poterimus”.
90. Cf. ib id VI 14(412).
91. V 19 (350): “Ecce in amore summo trina proprietatum distinctio, cum sit tamen una
cademque in omnibus, utpote summa et vere eterna dilectio”.
92. Cf. ibid. VI 6 (386s).
93. Cf. P. CACCIAPUOTI, “Deus existential amoris'\ 229ss.

87
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

ljo 4,8.16)94. O amor cuja fonte é o Pai, o amor gratuito que constitui sua
pessoa é a raiz da comunicação da essência divina e, portanto, do fato que
“ ex-sistam” eternamente as outras duas pessoas divinas. Creio seja necessário
colocar na pessoa do Pai, em seu amor gratuito, e não na substância divina
que seria o próprio amor, a raiz do intercâmbio de amor que é a vida do
Deus uno e trino. Não parece haver lugar em Ricardo para uma unidade que
“ preceda” o amor do Pai como fonte. Outro fato é o de que sua exposição
parte da unidade divina, como primeiro dado que se impõe à razão humana
na reflexão sobre o mistério de Deus. Não parece que se possa buscar outra
unidade senão a que se dá no amor sumo, comum às três pessoas divinas, e
que tem sua raiz e sua origem na “comunicação” do Pai como fonte95.
A comunicação de amor do Pai e do Filho é intercâmbio e concórdia,
e conduz necessariamente à expansão no “condilectus”. Pareceria que uma
pura lógica racional deveria levar a uma multiplicação de pessoas divinas.
Entretanto, o dado revelado regula o pensamento e o ilumina a partir de
seu próprio interior. A caracterização dos três tipos de amor e, em último ter­
mo, do modo de “ex-sistir” toma impossível pensar em um número ilimitado
de pessoas. Assim, a “ex-sistencia” vem a determinar a “incomunicabilidade” das
pessoas ao estabelecer um modo irredutível do amor. Embora não se tenha
apenas uso específico do conceito de relação, este, indiretamente, está muito
presente na reflexão do Vitorino. O amor que caracteriza cada uma das três
pessoas divinas tem as outras duas como destinatários. Inevitavelmente, o
modo de “ex-sistir” determina também um modo de “ser ad” , dada a íntima
conexão entre o receber e devolver o amor. A unidade e a distinção em Deus
fundam-se, por conseguinte, no amor que, por um lado, é comum aos três
e, por outro, manifesta-se em formas e modos distintos. Embora faça uso
de outro vocabulário, Ricardo se coloca, de certo modo, na linha que vai de
Agostinho a Tomás, que contempla as pessoas cada vez com maior clareza,
não só como relacionadas, mas como relação em si mesmas. Sem dúvida, não
é preciso fazer leituras de Ricardo que antecipem o que somente um século
depois dele será formulado claramente, nem, por outro lado, deve ser julgado
a partir dos critérios que somente em tempos posteriores encontrarão uma
expressão mais precisa.

94. Já santo Agostinho havia reconhecido no amor a essência divina, cf. Tritt. XV 6,10 (CCL
50,472); 17,28-29 (502-504; 19,37 (513-514).
95. Muito influenciado por Ricardo de São Vítor, BOAVENTURA usa a noção da “comu­
nicação” por parte de Deus; Breviloquium 1, 2,3. “Et ideo ut altissime et piissime sentiat, dicit,
Deus se summe communicare, aeternaliter habendo dilectum ac condilectum, ac per hoc Deum
unum et trinum”.
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

Tomás de Aquino
Faz-se necessário insistir especialmente na definição de santo Tomás da
pessoa divina como a “relação subsistente”. Em qualquer natureza, a pessoa é o
que é distinto “ naquela natureza”. Em Deus, seguindo a doutrina agostiniana,
a distinção não se faz senão pelas relações. Por isso a partir destas ter-se-á de
buscar a definição da pessoa divina:
Ora, em Deus, [...] só há distinção em razão das relações de origem. [...]
a relação em Deus não é como um acidente que existe num sujeito; ela é a
própria essência divina. Por conseguinte, é subsistente como a essência divina.
Portanto, assim como a deidade é Deus, do mesmo modo também a pater­
nidade divina é deus Pai, isto é, uma pessoa divina. Assim, a pessoa divina
significa a relação enquanto subsistente96.

As pessoas distinguem-se também pela origem, porém mais ainda pela


relação. A origem não pode constituir a hipóstase ou a pessoa, porque esta
origem, em sentido ativo, significa a processão de uma pessoa subsistente; logo,
a pressupõe. Se entendida em sentido passivo (como a natividade), significa a
via para a pessoa subsistente, todavia ainda não constituída:
Portanto, é preferível dizer que as pessoas ou hipóstases se distinguem por
suas relações do que pela origem. Embora elas se distingam de um e de ou­
tro modo. É, no entanto, primeiro e principalmente pelas relações, segundo
nosso modo de entender. — Daí vem que o nome Pai significa a hipóstase,
e não somente a propriedade; e o Genitor, ou 0 que Gera, significa somente
a propriedade. Com efeito, Pai significa a relação que distingue e constitui a
hipóstase; porém, O que Gera ou o Gerado significa a origem, que não distingue
nem constitui a hipóstase97.

96. STh 129,4. Ib. 32,2, ad 1: “ Relatio quam significai hoc nomen Pater, est subsistens persona.
Unde supra dictum est quod hoc nomen persona in divinis significat relationem ut subsistentem
in divina natura”; 42,4: “Eadem essentia quae in Patre est patemitas, in Filio est filiatio”.
97. STh 140,2. Sobre a identidade e a distinção entre as propriedades e as pessoas, ibid. 40,1.
É também importante para esta questão De Potentia q. 10, a.3.: wPrius secundum intellectum est
persona quam actio personalis. Relationes autem sunt constitutivae personarum, processiones
sunt quase personales. Ergo prius secundum intellectum sunt relationes quam processiones...
Processio... distinctionem in divinis requirit. Distinctio autem non est in divinis nisi per re­
lationes. Ergo processiones in divinis supponunt relationes”. Porém, é interessante também a
distinção que o próprio santo Tomás estabelece em ibid.: “Est ergo alius modus intellegendi quo
intelligitur relatio ut constitutiva divinae personae, et alius quo intelligitur relatio ut relatio est.
Unde nihil prohibet quod quantum ad unum modum intelligendi, relatio presupponat proces-
sionem, quantum verum ad alium sit e converso. Sic ergo dicendum est, quod si consideretur

89
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Em Deus, a “substância individual” , isto é, distinta e incomunicável, da


definição boeciana é a relação. Por isso no divino esta significa muito mais
que no humano. Por conseguinte, Tomás distingue muito claramente neste
ponto a pessoa divina da pessoa humana. As pessoas divinas distinguem-se
somente enquanto se relacionam. A distinção é, precisamente, relação, não
separação. O ser irrepetível de cada uma das pessoas não significa, portanto, o
isolamento, a escuridão, mas a relação mútua; poderíamos dizer, a doação da
pessoa às outras, embora esta noção não apareça explicitada em santo Tomás.
De qualquer maneira, fica claro que as pessoas divinas só o são enquanto se
relacionam. Não existe nas três pessoas um substrato prévio a seu ser na mútua
referência. Não “são” antes de entrar em relação, mas são enquanto se relacio­
nam, as relações as constituem e as distinguem ao mesmo tempo98. O alcance
e a importância desta profunda intuição de santo Tomás dificilmente poderão
ser supervalorizados. A relação é considerada por santo Tomás, assim como
por santo Agostinho, antes de tudo o elemento de distinção em Deus. Dado
que a unidade divina é um princípio fundamental, a distinção em Deus deve
ser mínima99. Não podemos considerar estas afirmações sem o contrapeso de
outras nas quais são salientadas as propriedades das pessoas e a impossibilidade
de intercambiar-se entre si. Ao constituir e distinguir as pessoas, a relação as
considera referidas uma à outra. A distinção e o “ esse ad”, a referência mútua
das pessoas, são, portanto, duas faces inseparáveis da mesma moeda. Distinção
não significa separação nem isolamento. Por outro lado, santo Tomás é sensível

relatio ut relatio est, presupponit processionis intellectum; si autem consideretur constitutiva


personae, sic relatio constitutiva personae, a qua est processio, est prior secundum intellectum
quam processio; sicut paternitas inquantum est constitutiva personae Patris est prior secundum
intellectum quam processio; sicut paternitas inquantum est constitutiva personae Patris est prior
secundum intellectum quam generatio. Relatio autem quae est constitutiva personae procedentis
etiam inquantum est constitutiva personae, est posterior secundum intellectum quam processio,
sicut filiado quam nativitas; et hoc ideo quia persona procedens intelligitur ut terminus proces­
sionis”; cf. H. C. SCHMIDTBAUR, Personarum TrinitasySt. Otdlien, 1995, 358-361.
98. Cf. STh I 40,3: “Remota proprietate personali per intellectum, rollitur intellectum hy­
postasis. Non enim proprietates personales sic intelliguntur advenire hypostasibus divinis, sicut
forma subiecto praeexistenti; sed ferunt secum sua supposita, inquantum sunt ipsae personae
subsistentes, sicut paternitas est ipse Pater: hypostasis enim significat aliquid distinctum in di­
vinis, cum hypostasis sit substantia indivídua. Cum igitur relatio sit quae distinguit hypostases
et constituit eas... relinquitur quod, relationibus personalibus remotis per intellectum, non
remaneant hypostases”.
99. STh I 40,2: “Quanto distincrio prior est, tanto propinquior est unitati. Et ideo debet esse
minima. Et ideo distincrio personarum non debet esse nisi per id quod minimum distinguit, sci­
licet per relationem”. A distinção primeira, mais próxima da unidade, é a distinção em Deus.

90
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

também à idéia da comunhão entre as pessoas divinas quando assinala que


Deus não é solitário100, e que requer a trindade das pessoas divinas para excluir
nele a solidão, que não poderia eliminar a consociatio [associação] dos anjos
e dos bem-aventurados101. A importância da comunhão pessoal foi, portanto,
tomada em consideração por santo Tomás de modo explícito, muito embora
o tema não se encontre muito desenvolvido102.
Este breve percurso pela história dos conceitos de pessoa e relação nos
fez ver como esta última foi usada de modos muito diversos. Pode-se pôr a
ênfase na união das pessoas distintas, que em virtude da relação que as une
mostram-se como consubstanciais. Pode-se também insistir em que a distinção
em virtude da relação não afeta a unidade de natureza, ponto que é tomado em
consideração em primeiro lugar. Porque, efetivamente, a insistência em um
ou outro aspecto dependerá em certa medida do ponto de partida que for
adotado na teologia trinitária. Tem-se a impressão de que na escolástica pre­
valeceu a segunda linha, porém não faltam indícios de que também a outra
direção foi tomada em consideração. Devemos ter presente que o tratamento
inicial do Deus uno não significa necessariamente dar prioridade à essência
divina sobre as pessoas, sendo que aqui desempenha também um papel o
“ordo cognoscendi” . Voltaremos a encontrar, com outras chaves, posições
semelhantes na discussão moderna.

100. O motivo do Deus que não está só nem é solitário é conhecido na patrística; cf.
TERTULIANO, Adv. Prax. V 2 (Scarpat, 152); HILÁRIO DE POITIERS, Trin. 117 (CCL 62,17);
I 38 (37); IV 17,18.19 (120-122), entre outras passagens.
101. STh I, 31,3: “ Licet angeli et animae sanctae semper sint cum Deo, tamen si non esset
pluralitas personarum in divinis sequeretur quod Deus esset solus vel solitarius. Non enim
tollitur solitudo per associationem alicuius quod est extraneae naturae. Consociatio angelorum
et animarum non excludit solitudinem absolutam in divinis” .
102. H. CH. SMIDBAUR, Personarum Trinitasyinsiste muito fortemente no “personalismo”
de santo Tomás e na importância decisiva que nesta concepção tem a relação. Para Tomás,
está excluído que as pessoas possam ser constituídas e diferenciadas pelo que lhes é comum,
a essência divina. Nem a essência divina nem o ato da processão como tal podem constituir a
pessoa; não fica mais que a relação como o elemento que constitui a pessoa, aquela categoria
que tinha parecido até aquele momento demasiado “débil” para sustentar o ser da pessoa.
Cf. ibid. 668-669; e também 542, entre outros muitos lugares. G. EMERY, Essentialisme ou
personnalisme dans le traité de Dieu chez saint Thomas d'Aquin, Revue Thomiste 98 (1998)
5-38, com algumas discrepâncias com Smidbaur sobre o papel da essência divina subsistente
na constituição da pessoa, pensa que a comunhão das três pessoas é a meta a que quer con­
duzir a teologia trinitária de Tomás (cf. p. 17). Também ele dá ênfase ao caráter fundamental
da relação na interpretação do personalismo trinitário. Não devemos esquecer tampouco este
aspecto ao considerar a doutrina do Espírito Santo como amor do Pai e do Filho, da qual
trataremos no capítulo 4.

91
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

2. A discussão moderna

A. As dificuldades do conceito de pessoa divina

Karl Barth

As questões da unidade e da distinção em Deus, nos últimos tempos,


são delineadas em termos distintos. Suscitaram discussão as novas propostas
terminológicas de Karl Barth e Karl Rahner, que não são simples tentativas
de mudar uma terminologia tradicional, mas supõem contextos teológicos
muito articulados, a partir dos quais recebem seu sentido. Podemos considerar
aqui bem conhecidas as razões pelas quais a terminologia das três pessoas lhes
parece, a ambos, propícia a mal-entendidos.
Barth parte do fato de que, em uma unidade indissolúvel, a revelação
cristã nos mostra o Deus que se revela, o acontecimento da revelação e o
efeito desta no homem. Com efeito, a pergunta pelo Deus que se revela recebe
sempre resposta no que ouvimos sobre o fato de sua revelação como tal, e em
seu revelar-se aos homens. Este Deus não é apenas o mesmo, mas também
o fato de sua revelação, já que esta é um predicado de Deus completamente
idêntico a Deus m esm o103 e, além disso, o que opera nos homens: “ É Deus
mesmo, em indissolúvel unidade, o mesmo Deus que segundo a compreensão
bíblica da revelação é o Deus que se revela, no acontecimento da revelação,
e seu efeito no homem” 104. Não existe nenhuma tentativa na Bíblia, continua
dizendo o autor suíço, de unificar estas três figuras (Gestalten) de seu “ser
Deus”, nem tampouco de eliminar o que na revelação as distingue, de reduzi-
las a um “quarto” e “próprio” (Viertes und Eigentliches) sintético. Portanto,
o mesmo Deus, que em unidade indestrutível é o revelador, a revelação e o
ser revelado, se lhe atribui também, em uma irredutível diferença, esta tripla
maneira de ser.
A partir desta unidade e diferença de Deus em sua revelação, tal como
é atestada na Escritura, encontramo-nos diante do problema da doutrina
trinitária. Porque precisamente devemos nos perguntar pelo Deus que faz
santa a Escritura, e não principalmente por esta. É a doutrina trinitária que
faz que o ensinamento sobre Deus seja cristão. Daí a necessidade de tratá-la
ao falar da revelação. Barth viu muito claramente o problema do “lugar” da

103. Kirchliche Dogmatik 1/1, München, 1935, 315: “A revelação é certamente um predicado
de Deus, porém de tal maneira que este predicado é totalmente idêntico com Deus mesmo”.
Também ibid. 313, no fato de revelar-se e no modo de fazê-lo é completamente ele mesmo.
104. Ibid. 315. Cf. também a continuação para o que segue.

92
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

doutrina trinitária. Temos de deparar com ela quando dirigimos à Bíblia a


pergunta pela revelação:
Deparamos com o problema da doutrina sobre a Trindade na pergunta que
dirigimos à Bíblia sobre a revelação. Quando perguntamos: quem é o Deus
que se revela?, então a Bíblia nos responde de tal maneira que nos convida a
refletir sobre a Trindade de Deus. Também as outras perguntas: o que faz e
o que opera este Deus?, respondem-se em primeiro lugar, como vimos, antes
de tudo com novas respostas à primeira pergunta: quem é ele? O problema
destas três respostas, iguais e não obstante distintas, distintas e não obstante
iguais, a essas perguntas é o problema da doutrina trinitária105.

Quando nos aproximamos do que a Sagrada Escritura atesta como reve­


lação, deparamos portanto, com o problema da Trindade. Por que o conceito
cristão da revelação inclui a Trindade? Na revelação, é Deus quem fala. Na
revelação de Deus, a palavra divina é idêntica ao próprio Deus. Isto se pode
dizer exatamente só da revelação mesma, não da Escritura ou do ensinamento
da Igreja, porque nestes casos efetuam-se mediações; a identidade com Deus é
apenas indireta, tanto a Escritura como o ensinamento da Igreja reportam-se
à revelação. Esta repousa sobre si mesma, não tem um fundamento ulterior
sobre o qual se baseia. A revelação de Deus tem seu fundamento ôntico e
noético em si mesma. Tanto em si mesma como para nós é por ela mesma.
A Escritura e a proclamação da Igreja têm de se fazer palavra de Deus, são
remetidas à revelação. A revelação é a palavra de Deus, não tem de converter-
se em tal. Na revelação repousa e vive a plenitude do ser original da palavra
de Deus, que se fundamenta em si mesma106. Isto se resume na frase: Deus
se revela como o Senhor. Divindade, na Bíblia, significa liberdade, auto-
suficiência. O Senhor tem o domínio na condição de livre, e assim se revela.
A revelação do domínio é uma característica da divindade, que fala como
um eu, e dirige-se ao outro como a um tu: assim anuncia Deus seu reinado,
mostrando-se e revelando-se a si mesmo, já que não é possível que outro o
revele. Em sua revelação ele está conosco, e este fato é o acontecimento da
revelação. Esta revelação é a raiz da doutrina trinitária; muito embora Barth
indique com precisão que o ensinamento concreto sobre a Trindade é uma
obra da Igreja, é uma interpretação do que se encontra na revelação. Esta é a
raiz da doutrina trinitária, não, evidentemente, da Trindade em si mesma107.

105. Ibid. 319.


106. Cf. ibid. 322.
107. Sem o pressuposto da Trindade, não se pode falar das propriedades nem da essência
de Deus; cf. ibid. 329.

93
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Esta doutrina trinitária reza, sempre segundo o teólogo suíço, que “o Deus
que, segundo o testemunho da Escritura, se revelou é, em uma indestrutível
unidade, ele mesmo três vezes de modo diverso” 108. Como passa Barth da
reflexão formal inicial sobre esta “trindade” de revelador, revelação e efeito
dela para os conteúdos concretos da doutrina trinitária que tem na revelação
seu próprio fundamento?
A problemática da doutrina trinitária acha-se já preparada na revelação
de Deus como o Senhor a quem já nos referimos. Porém, a partir deste m o­
mento, diz expressamente Barth, já não se procede com o esquema de sujeito,
predicado, complemento, ou, o que neste caso vem a ser o mesmo, de revela­
dor, revelação, ser revelado. Este esquema devia somente aclarar o que e até
que ponto (dass unà inwiefem) a própria revelação nos leva ao problema da
Trindade109. Parece já com esta indicação que o ponto de partida no conceito
mesmo de revelação nos aproximava de um esquema melhor dito formal, que
em um primeiro momento deixa de lado os conteúdos da revelação, e que ne­
cessariamente tem de dar passagem à forma concreta da revelação bíblica e da
doutrina trinitária. A aproximação que parte do esquema revelador, revelação,
ser revelado corresponde à ordem lógico-objetiva da revelação bíblica e da
doutrina trinitária. Porém, se de fato vemos como da revelação se passou à
doutrina trinitária da Igreja, se nos apresenta antes de tudo Cristo, a seguir
Deus e por último o Espírito Santo. É a ordem de 2 Coríntios 13,131101.
Barth, porém, ao que parece, continua fazendo uso do esquema lógico.
Nas narrações da Bíblia, continua nos dizendo, encontramos que Deus se deu
a conhecer. Deus é Deus-conosco, tem uma figura111. O fato de sua revelação
mostra uma diferenciação de Deus em si mesmo; em uma primeira forma de
ser (Seinsweise) oculta, pode ser também para nós. O fato da revelação mostra
que lhe é próprio o distinguir-se de si mesmo, ou seja, ser Deus oculto em
si mesmo, e ao mesmo tempo ser revelado, isto é, ser igualmente Deus na
figura daquilo que ele não é em si mesmo112. Deus pode fazer-se homem, isto
é, tem a capacidade de fazer-se desigual a si mesmo. Com isso nos é revelado
o que, segundo sua essência, não pode ser conhecido pelo homem. Deus é e
será sempre mistério. Revela-se a nós como Pai do Filho na medida em que

108. Ibid. 324.


109. Ibid. 331.
110. Cf. ibid. 332. Retornará sobre esta ordem em 351-352. É importante a conclusão de
que a Trindade há de ser entendida não só como econômica, mas também como imanente.
Cf. ibid. 352.
111. Cf. ibid. 333.
112. Cf. ibid. 334.

94
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

toma figura por nós em sua liberdade de ocultar-se ou revelar-se. Parece que,
mais do que partir do fato da relação paterno-filial que se mostra na vida de
Jesus, que certamente não nega, nosso autor se funda no fato da distinção em
Deus mostrada pela revelação, partindo da unidade do sujeito que se distin­
gue a si mesmo113. Esta impressão se reforça a partir das reflexões de Barth
sobre a unidade divina que a doutrina da Trindade nem nega nem põe em
dúvida: “O Deus que, segundo a Escritura, se revela é um em três maneiras
próprias de ser [Seinsweisen] que existem em suas relações mútuas: Pai, Filho
e Espírito Santo. Assim é ele o Senhor, ou seja, o Tu, que sai ao encontro
do Tu humano e se comunica como o sujeito indissolúvel, e assim, e neste
modo, se revela ao homem como seu Deus” 114. Não deixa de ser significativa
a clara acentuação da unidade do sujeito e do fato de que o Deus Pai, Filho e
Espírito Santo é o Senhor, o Tu, um só, que sai ao encontro do eu humano
e a ele se revela. Em virtude desta unidade, a fé que se expressa nas fórmulas
triádicas da Igreja não tem três objetos, porque, se assim fosse, se trataria de
uma fé em três deuses. A unidade divina se dá na trindade. Evidentemente,
não existem três deuses, nem tampouco três partes da divindade, mas sim, que
“o nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo diz que Deus é o Deus uno em
uma tripla repetição [dreimalige Wiederholung], e isto de tal maneira que esta
repetição está fundada em sua mesma divindade, e portanto... que só nesta
repetição é o único D eu s...”115. À unicidade da essência divina, que não pode
multiplicar-se por três, pertence a “personalidade”. Em Deus tudo é pessoal,
nada é “neutro”, porém não podemos dizer que haja três “personalidades” .
A “personalidade” nada tem a ver inicialmente com a questão das pessoas em
Deus. Assim se esclarece o que significa a “ repetição” em Deus com a qual
acabamos de deparar: “ Não se fala de três ‘Eus' divinos, mas três vezes do
único Eu divino” 116.
Não existe antagonismo entre unidade e trindade. Uma unidade de Deus
sem a distinção das pessoas tornaria impossível a revelação divina na alteri-
dade como verdadeira presença de Deus. Por outro lado, se a revelação tem
de ser levada a sério, não pode haver hipóstases subordinadas. A revelação e o
ser revelado devem ser iguais ao revelador. Só a igualdade de essência de Cristo

113. Ibid.: “Já o fato de sua revelação diz isto: que lhe é próprio distinguir-se de si mesmo,
isto é, ser em si mesmo Deus ocultamente e ser, ao mesmo tempo, de modo completamente
distinto, isto é, ser revelado, e isto significa ser igualmente Deus na forma daquilo que ele
mesmo não é”.
114. Ibid. 367.
115. Ibid. 369.
116. Ibid. 370.

95
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

e do Espírito com o Pai são compatíveis com o monoteísmo11718. É novamente


o esquema formal da revelação que está presente, para garantir a igualdade
das três pessoas divinas. É evidente, por outro lado, que é preciso considerar
fora de dúvida que a realidade da revelação, tal como o Novo Testamento a
entende, exclui o subordinacionismo.
A revelação do Deus uno não exclui, mas sim inclui uma disposição
e um a ordem (dispositio, oeconomia) das três pessoas ou, como Karl Barth
prefere dizer, das três “ formas de ser” em Deus (der drei Seinsweisen)m. Por
que prefere Barth esta terminologia à tradicional das pessoas? Algo já nos
foi indicado ao assinalar que nada tem a ver com as três pessoas em Deus a
“personalidade” que atribui a Deus. O conceito de pessoa, continua dizendo,
não se aclarou suficientemente nos começos de seu uso, nem tampouco nos
tempos posteriores. A introdução do conceito moderno de pessoa não fez
mais do que criar confusão neste assunto. Da doutrina trinitária, segue-se,
contudo, que Deus não é um poder impessoal, não se nos mostra só como
poder, mas também como “pessoa” , isto é, “como um Eu que é em si e para
si, com um pensamento e uma vontade que lhe são próprios. Assim sai ao
nosso encontro em sua revelação. Assim é três vezes Deus como Pai, Filho e
Espírito” 119. É consciente ou inconsciente o processo pelo qual o conceito de
“pessoa” se desloca dos “ três”, como se usou na tradição, para o Deus uno,
e ao mesmo tempo com as características do conceito moderno, a posse do
próprio pensamento e querer? O Pai, o Filho e o Espírito Santo são Deus, cada
um a seu modo (je in besonderer Weise)120; não os distingue a participação na
única essência divina porque esta é comum aos três. O Deus uno, o único Deus
pessoal, não o é somente em uma forma, mas na forma de ser do Pai, do Filho
e do Espírito Santo. As diferenças com que aparecem entre si na revelação, e
que não podemos reduzir a um denominador comum, remetem à distinção
na Trindade imanente e a seu ser uno precisamente neste ser distintos121.
As distinções entre as pessoas ou “formas de ser” derivam das relações de
origem que se dão entre elas. Somente os nomes neotestamentários de Pai,
Filho e Espírito mostram esta distinção fundada nas processões. Delas, e não
das tríades fundadas no conceito de revelação, são deduzidas estas distinções,

117. Ibid. 372.


118. Ibid. 374. Em algumas das citações anteriores, já deparamos com o uso deste termo.
119. Ibid. 378. O próprio Barth esclarece que, se usou o termo pessoa aplicado aos três, foi
somente como abreviatura prática e pelo sentido da continuidade histórica; cf. ibid., 379.
120. Ibid. 379.
121. Cf. ibid. 382.

96
AS "TRÊS PESSOAS" DMN AS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

nestas relações se fundamenta a trindade na unidade. Todavia, esta distinção


é novamente formulada em termos que soam a unipessoais: “Ele [Deus] é
seu próprio produtor* [Hervorbringer] e em um duplo e diferente aspecto seu
próprio ‘produzido* [Hervorgebrachtes]**122.
Fomos observando, à medida que avançamos na exposição, os acentos
que Karl Barth vai colocando precisamente para evitar que as três pessoas
da Trindade sejam concebidas como três “personalidades**. Um só “eu** que
se repete, que é o único “tu” do homem, três vezes Deus como Pai, Filho e
Espírito Santo, o caráter pessoal de Deus parece tender à unipersonalidade,
um eu com seus próprios pensamento e vontade, Deus que é o que se produz
a si mesmo e o produzido. Na linguagem tradicional isto se diz das pessoas,
não, porém, do Deus uno123. A própria importância dada ao esquema formal
da revelação de Deus (revelador, revelação, ser revelado), que vem antes dos
nomes bíblicos de Pai, Filho e Espírito Santo, mostra uma insistência muito
grande na unicidade do sujeito divino. Sem que se possa manter a acusação de
modalismo contra Karl Barth, já que é claro que a distinção em Deus existe na
trindade imanente e é prévia à economia da salvação, não resta dúvida de que
a distinção entre as três “ formas de ser” relacionadas fica pouco explicitada,
e o caráter pessoal delas muito esfumado. Seja como for, vimos em algum
momento insinuada a idéia das relações entre as “pessoas”. Assinala-se, além
disso, que a unidade de Deus consiste na “trindade” das pessoas124125. Por outro
lado, não deixa de chamar a atenção que se exclua em Deus a “solidão”, com
uma citação de Hilário de Poitiers: “a profissão de uma companhia exclui [em
Deus] a idéia da singularidade e da solidão” l2\

122. Ibid. 384. As aspas são minhas. W. Pannenberg notou a subordinação da doutrina
trinitária em K. Barth a uma idéia pré-trinitária da unidade divina ligada à subjetividade na
revelação; cf. Teologia Sistemática I, Madrid, 1992, 324-325.
123. Bastará citar como exemplo o concílio IV de Latrão (DH 804): “ ... sed est Pater qui
generat, et Filius qui gignitur, et Spiritus Sanctus qui procedit”. É verdade que o concílio se opõe
à posição que diz que é a essência de Deus que gera ou é gerada, o que K. Barth não diz. Com
estas citações, pode-se talvez entender por que dizíamos que, embora com grandes diferenças,
a posição de Barth recorda de algum modo a de santo Anselmo.
124. Kirchliche Dogmatik 1/1, 369: "... sua unidade consiste na trindade das ‘pessoas’”.
125. Ibid. 373: “sustulit singularitatis ac solitudinis intelligentiam professio consortii”. O
texto parece tomado de HILÁRIO, De Tritt. IV 17 (falta em Barth a indicação do capítulo),
embora na edição de Migne faltem as palavras ac solitudinis e encontremos professione em
lugar de professio (cf. PL 10, 110-111; a mesma leitura na moderna edição de CCL 62, 120;
as variantes de Barth não aparecem no aparato). Em todo o contexto, Hilário insiste em que
Deus não é solitário.

97
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Karl Rahner
A influência de Karl Barth na teologia trinitária de Karl Rahner e, con­
cretamente, em sua doutrina acerca das pessoas divinas é evidente. Também
para Rahner o termo “pessoa” , em sua acepção moderna, oferece dificuldade
quando o aplicamos às três pessoas divinas. Com efeito, falar de “três pessoas”
em Deus pode induzir a pensar em três centros distintos de consciência e de
atividade, o que facilmente levaria ao triteísmo. Devemos ter presente que as
palavras evoluem em seu sentido, e nem a Igreja, nem seu magistério podem
controlar tal evolução. Isto teria ocorrido com o conceito de pessoa, identifi­
cada com o “campo de consciência”. Neste contexto, Rahner recorda como,
de acordo com numerosas declarações magisteriais, em Deus há somente um
poder, uma vontade, um único ser em si, um único obrar, uma única felici­
dade etc.126. Rahner não propugna simplesmente uma substituição do termo
“pessoa” . Ele mesmo diz clara e expressamente o contrário127. Não obstante,
porém, insiste na aporia do conceito de pessoa128. De algum modo, ele retorna
à dificuldade já encontrada anteriormente por santo Agostinho: quem são estes
três? Quando dizemos que em Deus há três pessoas, obrigados a responder
a esta pergunta, “ generaliza-se e soma-se precisamente o que não se pode
somar, porque o único elemento verdadeiramente comum no Pai, no Filho
e no Espírito Santo é a divindade única, e não existe um aspecto que esteja
realmente acima deles, sob o qual pudessem ser somados como Pai, Filho e
Espírito” 129. Efetivamente, neste caso não podemos pensar que a essência se
multiplique, como ocorre, por exemplo, se falamos de três homens. É evi­
dente que esta dificuldade surge em todos os outros casos em que usamos os
números para falar de Deus (duas processões etc.)130.
Em Deus, conforme já víamos, não sucede a existência de mais que um
poder, uma vontade, um único ser em si. A consciência de si mesmos que

126. Cf. El Dios trino como principio e fundamento transcendente de la historia de la salva-
ción, MySal II/l, 359-449 [411]; cf. no n. 78 abundantes referências de textos magisteriais.
127. Cf. ibid. 387; 441; 436: “Portanto, a única coisa que resta ao teólogo particular em nos­
sos dias é empregar também o conceito de pessoa na doutrina trinitária, procurando, segundo
suas forças, livrá-lo das falsas interpretações às quais se vê atualmente tão exposto. Porque,
se o magistério lhe proíbe abandonar esses conceitos por sua própria autoridade, ao mesmo
tempo obriga-o a explicá-los”.
128. Cf. ibid. 432; também ibid. 434: “Se falamos hoje de pessoa no plural, dada a com­
preensão atual do termo, vemo-nos quase obrigados a pensar em vários centros espirituais de
atividade, em várias subjetividades e liberdades espirituais. Não obstante, não ocorrem em Deus
três centros de atividade, nem três subjetividades e liberdades”.
129. Ibid. 433.
130. Ibid. 434.
AS "TRÊS PESSOAS" DMNAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

o Pai, o Filho e o Espírito Santo possuem é dada pela essência divina e, por
conseguinte, comum aos três; a consciência é um aspecto das pessoas concretas,
porém, para o autor alemão, não é um aspecto constitutivo do ser “pessoa”
que se diferencie da essência divina131. Por esta razão, “a consciência não é um
aspecto que distinga as ‘pessoas’ divinas entre si, mesmo quando cada ‘pessoa’
divina em sua concreção possuísse uma consciência. Por conseguinte, temos
de separar cuidadosamente do conceito de ‘pessoa’ tudo o que possa significar
três ‘subjetividades’” 132. Segue-se daí, para Rahner, uma conseqüência que deu
origem a muitas discussões: “Tampouco ocorre, por isso, ‘intratrinitariamente’,
um ‘tu’ recíproco. O Filho é a auto-expressão do Pai, porém, por sua vez, não
pode ser concebido como ‘pronunciando’, o Espírito é o ‘dom’ que já não dá
por sua vez. João 17,21, Gálatas 4,6, Romanos 8,15 pressupõem um ponto de
partida criado do ‘tu’ com relação ao Pai”133. Destas afirmações de Karl Rahner,
não se podem, com certeza, tirar conseqüências precipitadas e não deveriam
dar lugar a extrapolações excessivas. De fato, e quanto ao que diz respeito às
processões trinitárias, o Filho é o pronunciado e o Espírito é o que é dado, sem
que haja lugar, de modo algum, para o processo contrário. É possível que Karl
Rahner se refira somente a este aspecto da questão134. De qualquer maneira,

131. Cf. ibid. 41 ls., nota 78.


132. Ibid. 41 ls.
133. Ibid. 412, nota 79. K. Rahner se refere a B. LONERGAN, De Deo Trino II, Roma, 1964,
196. Rahner faz afirmações semelhantes em El Dios trino..., 434: “Não obstante, em Deus não
há três centros de atividade, nem três subjetividades ou liberdades. Tanto porque em Deus só
se dá uma essência e, por conseguinte, só um ser em si absoluto, como também porque só há
uma autopronunciação do Pai, o Logos, que não é o que pronuncia, mas o pronunciado, e
não se dá propriamente um amor recíproco (que iria pressupor dois atos) entre o Pai e o Filho,
mas uma auto-aceitação amorosa que fundamenta a diferença por parte do Pai (e do Filho)
em razão da iá£iç de conhecimento e am or)”.
134. Cf., neste sentido, M. SCHULZ, Sein und Trinität. Systematische Erörterungen zur
Religionsphilosophie G.W.H. Hegels im ontologiegeschichtlichen Rückblick auf J. Duns Scotus
und I. Kant und die Hegel-Rezeption in der Seinsauslegung und Trinitätstheologie bei W.
Pannenberg, E. Jüngel, K. Rahner und H. U. von Balthasar, St. Ottilien, 1997,668. Neste sentido,
não ocorreria em Deus, segundo K. Rahner, um sujeito absoluto, porque ele tem presentes as
relações — ibid. 669. Cf. K. RAHNER, El Dios trino..., 411: “o próprio Pai tem um modo de
dar-se e, portanto, um ‘modo de existência’ que o diferencia do Filho e do Espírito, mas que
não é propriamente anterior à sua relação com o Filho e o Espírito”. Uma possível fonte de
inspiração de K. Rahner acerca do Verbo que, por sua vez, não pronuncia, pode ser encontrada
talvez em SANTO TOMÁS, STh I 34, 1, ad 3: “Sicut Verbum non est commune Patri et Filio
et Spiritui sancto, ita non est verum quod Pater et Filius et Spiritus sanctus sint unus dicens...
Sicut ergo uni soli personae in divinis convenit dici eo modo quo dicitur Verbum... Pater
enim, intellegendo se et Filium et Spiritum sanctum, et omnia alia quae eius scientia continen-
tur, concipit Verbum. Ut sie tota Trinitas Verbo dicatur... Sed dicere importat principaliter

99
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

delineia-se o problema segundo o qual se pressupõe uma realidade criada, a


da humanidade do Filho e dos homens agraciados, para que se dê um “tu”
do Filho e do Espírito com relação ao Pai. Não se estará então supondo um
aperfeiçoamento ou desenvolvimento da Trindade na economia da salvação?
É possível que da afirmação justa pela qual, no que diz respeito às processões
divinas, só um na Trindade é o que “diz” se passe demasiadamente rápido
à negação do “ tu” recíproco e de um amor mútuo na vida interna de Deus.
Todavia, as duas coisas podem, certamente, ser bem diferenciadas.
O que leva Karl Rahner a esta conclusão é a exclusão de três centros de
subjetividade e de liberdade em Deus. Por um lado, porque em Deus só se
dá uma essência e é, portanto, um só ser absoluto; por outro, porque só o
Pai se pronuncia e se expressa a si mesmo, e esta expressão é o Logos. Este
último não é o que pronuncia, mas o pronunciado, e por isto mesmo é o que
aceita o amor mais do que aquele que o devolve ao Pai, em razão da táxis de
conhecimento e amor*135. O que denominamos três pessoas é algo consciente
em Deus, “o que, porém, não implica três consciências, mas sim que a cons­
ciência única subsiste de uma tripla maneira; ocorre somente uma consciência
real em Deus, possuída de maneira distinta em cada caso pelo Pai, pelo Filho
e pelo Espírito. Por conseguinte, a tripla subsistência não é qualificada por
três consciências” 136. A partir destes pressupostos, Rahner quer ir em busca da
possibilidade de outras formas de expressão do que na teologia clássica se quis
significar com a palavra “ pessoa”. Para isso, volta a seu axioma fundamental,
já por nós conhecido. A questão é formulada nestes termos:
A autocomunicação única do Deus único tem lugar em três formas distintas,
nas quais se nos dá em si mesmo o Deus uno e idêntico... Deus é o Deus

habitudinem ad verbum conceptum: nihil enim est aliud dicere quam proferre Verbum... Et
sic sola persona proferens Verbum est dicens in divinis”.
135. Cf. K. RAHNER, ElDios trino. .., 434, texto já citado na nota 133. Para R., o problema está
em que o amor recíproco teria pressuposto dois atos, o que ele quer excluir a todo custo.
136. Cf. 435. Cf. na mesma página a nota 118, na qual K. Rahner cita novamente B.
LONERGAN, De Deo Trino II, 193: “Et ideo relinquitur quod tria subiecta sunt invicem
cônscia per unam conscientiam quae aliter et aliter a tribus habetur” . Lonergan, porém, fala
sem reparos de “tria subiecta”, ao passo que Rahner, depois de haver negado que se dêem
três subjetividades, vê-se de algum modo forçado a falar de três sujeitos, porém coloca estas
palavras entre aspas: “Isto, porém, não significa que os ‘três sujeitos' em Deus tenham três
consciências distintas graças às quais sejam em si originariamente conscientes. Cada uma das
‘pessoas’ divinas está ‘consciente’ das outras duas..., porém, isto é, por um lado, o resultado
da identidade da essência divina... no Pai, no Filho e no Espírito e, por outro, é conseqüência
de que todo actus notionalis (idêntico à essência divina) como consciente (e relativo) toma os
demais atos juntamente conscientes” .

100
AS "TRÊS PESSOAS" DMNAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

concreto em cada uma dessas formas de dar-se, que naturalmente têm rela­
ções mútuas entre si, sem fundir-se com o modalismo. Se traduzimos isto
na expressão da Trindade “imanente”, temos como resultado: o Deus único
subsiste em três formas distintas de subsistência [Subsistenzweisen]. Nesse
caso, “distintas formas de subsistência” seria o conceito explicativo não para a
pessoa, que significa o que subsiste diferenciado, mas para a personalitas, que
é o que faz com que a realidade concreta de Deus, que nos sai ao encontro de
maneiras distintas, se nos apresente precisamente desta maneira; e esta forma
de apresentar-se é algo próprio do mesmo Deus. A “pessoa” única (em Deus)
seria, nesse caso, Deus existindo e saindo a nosso encontro nessas formas
determinadas e distintas de subsistência137.

É claro que se parte da Trindade econômica, na qual Deus se nos dá


como Pai, Filho e Espírito Santo. Deus aparece diante de nós nestes m odos ou
formas, porque isto responde a seu ser imanente, isto é, não podemos pensar
em uma fusão modalista dos três. As maneiras distintas como Deus nos sai
ao encontro são algo próprio do mesmo Deus. Rahner parte da “personali­
tas”, o modo como Deus nos sai ao encontro, nas “formas de ser” do Pai,
do Filho e do Espírito Santo. Trata-se, em primeiro lugar, do modo como se
nos manifestam; donde, em um passo ulterior, chegar-se-á ao que estes três
são em si mesmos. São-nos mostrados em Deus estes três distintos, que são
designados como distintas “formas de subsistência” 138; nestas, sai-nos ao en­
contro a “personalitas” de Deus. A expressão “‘pessoa’ única” em Deus pode
criar dificuldade, muito embora, provavelmente, o que Rahner quer dizer seja
uma só subjetividade139. Na realidade, e não é uma novidade o fato de colocá-
lo aqui em destaque, Rahner usa o conceito moderno de pessoa não para as
“pessoas”, mas para Deus em sua unidade. É evidente que este procedimento
não parece de todo afortunado.
Todavia, isto não significa que o caráter “subjetivo” das três desapareça
de todo em sua perspectiva. A consciência de si, segundo o autor alemão, não
pode ser identificada com a subsistência absoluta da essência, mas constitui,

137. Ibid. 437.


138. Cf. ibid. 439; a noção de pessoa diz-nos mais que “distinctum subiectum”, e a fórmula
“forma de subsistência” oferece a vantagem de que não insinua a multiplicação da essência e
da subjetividade.
139. Já vimos como tende a evitar tudo o que em Deus possa ser entendido como “três
subjetividades”. Notemos, além disso, que a palavra “ pessoa” vai entre aspas. De qualquer ma­
neira, parece desafortunado o uso de uma terminologia tão oposta à da tradição. Cf., contudo,
TOMÁS DE AQUINO, STh III 3,3 ad 1. Cf. a nota 207.

101
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

isto sim, um momento da pessoa concreta140. Seja como for, não deixa de ser
verdade que o caráter subjetivo dos três modos de subsistência não está devi­
damente iluminado141. Por outro lado, Rahner indica que a expressão “formas
de subsistência” mostra que existe uma união entre os três que subsistem deste
modo distinto, um elemento que a noção de pessoa não daria142. Aqui apare­
ce o limite da noção de pessoa usada por Rahner. Nela, não entra a relação.
Seguiu de preferência o conceito que ele denomina “moderno” (movido pela
preocupação de evitar os mal-entendidos e de não cair no triteísmo vulgar), e
não o da tradição teológica em que a relação teve um papel tão relevante. Há
de se notar também que a dimensão da relação constitui, igualmente, parte
do conceito moderno de pessoa, com o que, do mesmo modo, se abre assim
uma possibilidade de tornar acessível a nossos contemporâneos o conceito
clássico da teologia trinitária. Por outro lado, os três modos de subsistência
indicam, com efeito, talvez mais claramente, que neles subsiste o Deus uno,
porém não aparece claramente pelo próprio uso do termo como se articulam
unidade e trindade, tal como com o conceito de pessoa associado à relação se
produziu ao longo dos séculos143.
Voltemos, porém, às formas de subsistência: Karl Rahner apóia-se na
proposição destes termos, por um lado no ipÓTToç if|<; uTrápxcojç dos capadócios
e, por outro, na definição da pessoa como “ subsistens distinctum in natura
rationali” de santo Tomás144. 0 que, concretamente, significa subsistir ilumina-
se a partir daquele “ponto da própria existência no qual nos encontramos com
o primeiro e último desta experiência, com o concreto, irredutível e insubsti­
tuível. Precisamente isso é o subsistente. Aqui se confirma novamente nosso
axioma fundamental: sem a experiência histórico-salvífica do Espírito-Filho-Pai
não se poderá conceber nada como o Deus único em seu subsistir distinto”145.
A divindade não é prévia a estas “formas de subsistência”. A primeira delas
constitui Deus como Pai, como princípio sem origem da autocomunicação e

140. Cf. El Dios trino..., 411-412, nota 78. M. SCHULZ, Sein und Trinitàt, 670, observa
justamente que para K. Rahner existem atos das pessoas.
141. Cf. ibid., 678.
142. Cf. K. RAHNER, El Dios trino..., 438.
143. K. Rahner mostra que as fórmulas clássicas usadas na doutrina trinitária com a palavra
“pessoa” podem ser também usadas com a expressão “formas de subsistência”, porém creio
que seja mostrado também que com esta última expressão não se vai mais além do que com
o termo pessoa; cf. ibid. 440. K. Rahner, por outro lado, não esqueceu o conceito trinitário da
“relação” e põe em guarda contra o perigo de usar esta categoria para reduzir o alcance das
distinções em Deus, dizendo que estas são unicamente relativas; cf. ibid. 431-432.
144. Cf. ibid. 433; 437; 447s. Para os Capadócios, cf. 410, nota 76.
145. Ibid. 437-438.

102
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

da automediação divinas, de tal maneira que não existe um “ Deus” anterior


a esta primeira forma de subsistência146. Karl Rahner, que quer ser fiel aos
delineamentos da “teologia grega”, parte do Pai como origem e fonte da di­
vindade que comunica ao Filho e ao Espírito Santo a essência divina147. Assim
como não existe um Deus anterior às três formas de subsistência, também
entre elas a “primeira” é claramente o Pai. A partir dele, estabelecem-se as
distinções no interior da Trindade.
Por isso, ainda que o ensinamento sobre a Trindade imanente na teologia
de Rahner permaneça de algum modo pouco desenvolvido, não se pode dizer
que não nos tenha sido dito nada a respeito dela148. Provavelmente, não era fácil
para ele, desde o momento em que se propunha delinear o acesso à Trindade
(claramente a posteriory não a priori) a partir das estruturas do homem ao qual
se dirige a autocomunicação de Deus149. Neste sentido, a atenção se coloca mais
na maneira como Deus se comunica ao homem, de maneira coerente com a
estrutura do ser humano que ele mesmo criou, do que na vida interna deste
último que se autocomunica. A justa preocupação soteriológica que contempla
Deus tal como se dirige a nós não deveria impedir a consideração sobre Deus
em si mesmo, porém neste caso leva de fato a que a atenção se centre menos
neste ponto150. Neste contexto é preciso destacar, para uma justa avaliação da

146. Cf. ibid. 439.


147. Na realidade, também a tradição latina parte do mesmo princípio.
148. Cf. El Dios trino..., 431-432: “ Em Deus, existe de seu a diferença real entre o Deus único
e idêntico enquanto é ao mesmo tempo e necessariamente o ser sem origem que exerce a função
de mediador consigo mesmo (Pai), o pronunciado para si com verdade (Filho), e o recebido e
aceito por si mesmo com amor (Espírito)... Esta diferenciação real é constituída por uma dupla
autocomunicação do Pai, mediante a qual o Pai, por um lado, se comunica a si mesmo, e por
outro (por esta mesma autocomunicação), precisamente como quem pronuncia e recebe, esta­
belece sua diferença real com o pronunciado e recebido. O comunicado, enquanto por um lado
converte a comunicação em uma verdadeira autocomunicação e, por outro, não suprime a diferença
real entre Deus como comunicador e como comunicado, recebe justamente o nome de divindade e
é, portanto, a ‘essência’ de Deus”; cf. também 380; 382-383. O próprio H. U. VON BALTHASAR,
Teodramática 4. La acàónyMadrid, 1995, 297, cita El Dios trino..., 431: “Em Deus existe de seu a
diferença real entre o Deus único e idêntico enquanto é ao mesmo tempo e necessariamente o ser
sem origem que exerce a função de mediador consigo mesmo (Pai), o pronunciado para si com
verdade (Filho) e o recebido e aceito por si mesmo como amor (Espírito), e assim é aquele que
pode autocomunicar-se ‘para fora’ com liberdade”. De qualquer maneira, pôde-se notar certa
ambigüidade no uso do conceito de autocomunicação na Trindade econômica e na imanente;
cf. G. J. ZARAZAGA, Trinidaã y comunión. La teologia trinitaria de Karl Rahner y la pregunta
por sus rasgos hegelianos, Salamanca, 1999, 265-267.
149. Cf. El Dios trino...y416-429.
150. Cf. W. KASPER, Der Gott Jesu Christi, Mainz, 1982, 367-369. K. Rahner teria pensado
demasiado na Trindade só como pressuposto da teologia da graça; a subjetividade do homem
constitui um tema, mas não se chega a pensar sobre a Trindade no modo da subjetividade.

103
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

doutrina trinitária de Rahner, sua repetida insistência nas relações próprias e


não meramente apropriadas com as três pessoas divinas e a correspondência
entre a maneira de manifestar-se a nós das pessoas divinas e o que são estas
em si mesmas151. Especialmente, criou dificuldade a negação do “tu” e do amor
recíprocos na vida interna da Trindade; isto levaria logicamente à conclusão
de que este “tu recíproco” constitui a economia da salvação e, portanto, de
que a Trindade se realizaria ou se aperfeiçoaria nesta última. Por esta mesma
razão, em algumas ocasiões a crítica a este aspecto particular de seu docu­
mento repercutiu também no repúdio ao “ axioma fundamental” , quando
na realidade se pode distinguir perfeitamente o que o axioma afirma em si
mesmo do modo como se desenvolve depois, concretamente, na doutrina da
Trindade. Certamente, como indicamos, estas afirmações de Rahner podem
ser entendidas em um sentido restrito e não geral, porém é igualmente certo
que o autor alemão não explicitou esta distinção152. Neste sentido, será útil
recordar também o que observaram os estudiosos de Rahner já há tempo, a
saber, sua preferência pelo título “ Logos” e o escasso uso que faz do título
“Filho”; este, na menção implícita que encerra do Pai, o teria ajudado a ver
com mais clareza o caráter recíproco da relação. Sem dúvida, uma maior con-
seqüência com seu próprio axioma fundamental, um ponto de partida mais
decidido na economia da salvação e concretamente na relação filial de Jesus
com o Pai, o teria levado provavelmente a mover-se em outra direção153. Seja
como for, penso que se possa dizer que certos juízos muito severos sobre a
teologia trinitária de Karl Rahner pecaram algumas vezes por exagero. Sem
desconhecer as dificuldades que possa conter, essa teologia não foi avaliada
sempre de modo diferenciado154. Fica sempre o problema do único sujeito que

151. Cf. ibid. 364-365; 379-383, entre outras muitas passagens.


152. W. KASPER, Der Gott Jesu Christi, 365, faz a distinção, a meu ver de modo muito
acertado, entre relações recíprocas e relações não-intercambiais no seio da Trindade. Não ter
visto com clareza esta distinção é talvez o problema de Karl Rahner. O fato de que as posições
das pessoas no seio da Trindade não possam ser intercambiadas não é razão para que não se
possa falar de um tu ou de um amor recíprocos, ou para que as relações devam ser em um
sentido único. Também G. LAFONT, Peut-on connaître Dieu em Jésus-ChrisU Paris, 1969, 155,
assinala que não é impossível encontrar uma noção de pessoa que dê mais valor à correlação
do que ao sentido irreversível da reciprocidade.
153. G. J. ZARAZAGA, Trinidad y comunión, 323, já observou este mesmo problema.
154. Não é agora nossa missão entrar no julgamento detalhado destas críticas. G. J.
ZARAZAGA, Trinidad y comunión, passim, dá conta das dificuldades delineadas e as discute
com equilíbrio. De minha parte, limito-me a alguns juízos formulados por alguns teólogos de
primeira linha; assim Y. CONGAR, El Espíritu Santo, Barcelona, 1988,459, nota 9, segundo o qual
Rahner pensa na Trindade eterna “ modalmente”, como, por outro lado, faz P. Schoonenberg. Não
parece que se possa aceitar passivamente que Schoonenberg tenha simplesmente desenvolvido a
teoria de K. Rahner, embora ele assim o afirme. Para H. U. VON BALTHASAR, Teodramática

104
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

se autocomunica, o Pai, sem que apareça dara a correspondência intratrinitária


do Filho e do Espírito a esta comunicação. Sem dúvida, algumas aporias da
“trindade psicológica”155, mudadas de chave, fazem-se presentes. Não é dada
a devida ênfase ao aspecto “pessoal” das formas de subsistência. Mas Rahner
foi também capaz de escrever que “ uma ‘apologética’ da Trindade ‘imanente’
não pode partir do pressuposto de que o modo mais perfeito do ser do ente
absoluto é uma identidade sem vida, um ser absolutamente não mediado.. .” 156.
Resta o fato da falta de desenvolvimento da teologia da Trindade imanente,
o que novamente obriga à prudência na hora de julgar esta reserva. Devemos
lembrar também neste contexto que a economia da salvação é, para Rahner,
a comunicação livre e gratuita do Deus uno e trino.
Prescindindo do julgamento que em si mesmas possam merecer, as pro­
postas de Barth e Rahner não encontraram grande acolhida nem no campo
protestante nem no católico. Além disso, em certas ocasiões, de modo mais
ou menos declarado, as tentativas propostas colocam-se explicitamente em
contraposição à linha de pensadores que acabamos de estudar. Tiveram m ui­
to mais êxito, nos últimos tempos, os modelos “sociais” ou de comunhão
interpessoal.

B. As analogias a partir da comunhão interpessoal

Na teologia protestante: Jürgen Moltmann


Entre os autores protestantes, merece especial atenção Jürgen Moltmann,
porque foi um dos primeiros a propor um modelo fundado na analogia das
relações interpessoais. Já no ponto de partida, coloca-se nos antípodas dos
autores anteriores. Se Barth e Rahner, cada qual a seu modo, viam como
sendo o problema a que deviam fazer frente o possível “ triteísmo” , Moltmann
indica muito claramente que o inimigo que sempre existiu para a teologia
trinitária é o modalismo, e que, na realidade, os desejos de opor-se ao perigo
do triteísmo são escusas precisamente para encobrir o modalismo. Os teólogos
citados receberam só parcialmente a noção moderna de pessoa, porque não

IV, 297, a autocomunicação divina só ad extra adquiriria verdadeira consistência; talvez seja
excessivo, embora Rahner insista muito neste ponto e seja parco sobre a Trindade imanente;
cf. os textos que reproduzimos na nota 148.
155. Criticada, por outro lado, por K. RAHNER, El Dios trino...y441-444.
156. Ibid. 432. O texto continua: u... para depois libertar-se da dificuldade ocasionada por
este pressuposto (ao delinear falsamente a ‘simplicidade’ de Deus) recorrendo à explicação de
que a diferença que se dá em Deus é ‘somente’ relativa”.

105
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

tiveram presente o elemento relacional, que também constitui um aspecto de


importância primordial do conceito moderno de pessoa. É um erro pensar no
“ eu” sem um “tu” que se lhe contraponha; o eu implica a relação. Não existe
personalidade sem relação. Se partirmos da idéia da subjetividade absoluta
em Deus, não chegaremos mais que ao monoteísmo157. De onde se haverá
de partir, então, para fundar a unidade dos três, que é um dado do qual não
podemos prescindir?
A alternativa que se nos apresenta é, segundo Moltmann, a seguinte: ou
bem o Pai, o Filho e o Espírito Santo são “ uma só coisa” (eins ) na posse da
igual substância divina, ou são “ um” (einer ) no mesmo sujeito divino. No
primeiro caso, a unidade das três pessoas distintas apóia-se na homogeneidade
da substância divina que lhes é comum, no segundo funda-se na identidade
ou mesmidade do único sujeito divino. No primeiro caso, se há de pensar
na unidade de Deus como um neutro, como tendem a fazer os conceitos de
ousía ou de substantia. No segundo caso, poder-se-ia falar, a rigor, somente de um
Deus uno, como exige o conceito de um sujeito absoluto158. Se seguirmos
o primeiro modelo, o que aparecerá em primeiro plano será a trindade das
pessoas, e a unidade da substância ficará no fundo. Se nos inspirarmos no
segundo, acontecerá o contrário. Na primeira hipótese, ficaremos expostos
ao perigo do triteísmo, na segunda ao do modalismo. Este segundo modelo,
sempre conforme o autor alemão, parte da lógica filosófica. O primeiro, em
contrapartida, ao pôr como dado inicial as pessoas, está mais próximo do
dado bíblico, uma vez que, se partimos da história de Cristo, aparecem-nos
em primeiro lugar o Pai, o Filho e o Espírito159. Este é o ponto de partida
razoável. É a unidade das três pessoas o que terá de justificar se o ponto de
partida é do dado evangélico, não da distinção, que é evidente. J. Moltmann
prossegue:
A unidade do Pai, do Filho e do Espírito é a questão escatológica pela plenitude
da história trinitária de Deus. Consequentemente, a unidade das três pessoas
desta história deve ser entendida como uma unidade comunicável e como
, ,
uma unidade aberta que convida suscetível de integração. A homogeneidade
da substância divina pode ser pensada com dificuldade como comunicável
e aberta ao outro, porque então já não seria homogênea. A mesmidade e
identidade do sujeito absoluto tampouco é comunicável ou completamente

157. Será preciso entender um monoteísmo que não tenha em conta a trindade das pessoas.
A fé em Deus uno e trino é monoteísta, mais ainda, é a forma mais elevada do monoteísmo.
158. Cf. Trinität und Reich Gottes. Zur Gotteslehre, München, 1980, 166.
159. Cf. ibid. 166-167.

106
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

aberta ao outro, porque então estaria gravada com a não-identidade e dife­


rença. Ambos os conceitos da unidade são exclusivos, como o é o conceito
monádico da unidade, não inclusivos. Se buscamos um conceito da unidade
que corresponda ao testemunho bíblico do Deus tri-uno, que se unifica
consigo mesmo, ficam excluídos tanto o conceito da única essência como o
do sujeito idêntico. Só resta a união das três pessoas umas com outras, ou a
unidade do Deus tri-uno160.

Surge novamente o problema da relação entre a “Trindade econômica”


e a “Trindade imanente”. A unidade a que aqui nos referimos é a unidade
escatológica na plenitude da história trinitária de Deus. Entretanto, ao que
parece, esta unidade não pode ser realizada sem os homens, porque, de outro
modo, a Trindade imanente não ficaria verdadeiramente comprometida na
história da salvação. Uma vez que nem a unidade da substância divina nem
o sujeito absoluto podem ser considerados “abertos” ou “ comunicáveis”, é
preciso buscar a unidade divina no ser uno dos três. Todavia, esta unidade
do Pai, do Filho e do Espírito Santo há de ser considerada uma noção “aber­
ta”, na qual possa ter um lugar a história da salvação. A unidade a que nos
referimos tem de ser, portanto, a unidade das três pessoas, que há de ser vista
principalmente em seu estar (ou ser) unidas (Einigkeit), mais que no fato
de que sejam uma só coisa. Somente desta maneira esta unidade poderá ser
aberta, capaz de integração e de participação dos outros. A própria noção da
substância divina, deste ponto de vista da união entre as pessoas, tornar-se-ia
de algum modo supérflua:
Porque somente o conceito do estar unidos [Einigkeit] é o conceito de uma
unidade comunicável e aberta. O Deus uno é um Deus unido [einiger]. Isto
pressupõe uma autodiferenciação pessoal de Deus, não somente modal, pois
somente as pessoas podem estar unidas [einig sein] e não as formas de ser ou
de subsistência. A união da “tri-unidade” já está dada pela comunhão mesma
do Pai, Filho e Espírito. Não é necessário que seja assegurada ainda mais por
um ensinamento específico da unidade da substância divina nem pelo ensi­
namento especial do único reinado de Deus161.

Em virtude de sua personalidade, as pessoas divinas são distintas e ao


mesmo tempo estão relacionadas. Personalidade e relação com o outro são
dois aspectos da mesma realidade. O conceito de pessoa traz em si, portanto, o

160. Ibid. 167.


161. Ibid.

107
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

da unidade divina como, ao revés, o conceito da unidade de Deus deve trazer


em si mesmo o das três pessoas. A unidade de Deus não pode ser fundada,
a partir do que foi dito até agora, nem na homogeneidade de uma natureza
comum, nem no sujeito absoluto, nem em uma das pessoas, mas nas três
pessoas e sua inabitação [in-habitação] mútua. Se assim não se fizer, tanto o
sabelianismo quanto o arianismo serão sempre ameaças inevitáveis à teologia
cristã162. Esta perichoresis ou mútua inabitação mostra os três como iguais, pois
em Deus não existe subordinacionismo163.
Encontramo-nos diante de uma proposta que se opõe por completo à
de Karl Rahner. Se lá o perigo era que o Deus uno aparecesse como o único
sujeito e, portanto, o caráter pessoal dos três ficasse diminuído, aqui se há
de explicar em que consiste a unidade divina quando o ponto de partida está
nas três pessoas relacionadas entre si; não se entende como tal unidade possa
ser um dado primário e original e não venha a ser dada em um segundo mo­
mento, por mais que esta não tenha sido a intenção do autor. Não estamos
diante de uma unidade que haverá de ser construída, e que será plena uni­
camente no final da história? O ponto de partida tão radical nas três pessoas
torna difícil continuar pensando no Deus uno se não é como o “resultado”
da comunhão do Pai, do Filho e do Espírito. A noção de pessoa divina deter­
mina esta concepção da unidade em Deus. Moltmann rejeita a definição de
santo Tomás da pessoa divina como a relação subsistente. Imagina que esta
concepção, no fundo, seja modalista, porque parece insinuar uma redução
do conceito da relação a uma relação de Deus consigo mesmo164. As pessoas,
primeiramente constituídas, entram em relação e são determinadas por esta,
porém não são constituídas pela mesma relação165. Tem-se a impressão de
que o conceito de relação é aqui usado para expressar a união que se produz
entre as pessoas já de algum modo existentes, não para “distingui-las”. O
problema está em se este modelo garante a unidade divina, se não se aplica
demasiado facilmente o modelo social inter-humano para a unidade de Deus.
Com a profunda diferença dos delineamentos teológicos de um e de outro,
e certamente com um conceito muito distinto da unidade divina, podemos
nos perguntar se não subjaz em Moltmann um problema semelhante àquele

162. Cf. ibid. 167-168.


163. Cf. ibid. 191.
164. Cf. ibid. 189.
165. Ibid. 189: “Não se pode dizer que a pessoa seja relação, ou que a relação constitui a
pessoa. Certamente o Pai é determinado por sua paternidade a respeito do Filho, porém não
constitui sua existência, mas sim a pressupõe”. Cf. a continuação: pessoa e relação devem
entender-se em sua relação recíproca, em sua complementaridade. Não existem pessoas sem
relações nem relações sem pessoas.

108
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

com que tropeçou santo Agostinho: as pessoas estão certamente relacionadas,


porém esta relação se apóia em um substrato absoluto delas. Agostinho depa­
rava com o problema do plural em um nome que se diz “ad se”, Moltmann
vê-se obrigado a distinguir a “subsistência” da “existência” das pessoas166. Não
se pode tampouco passar por cima do problema da perfeição desta união na
consumação escatológica, ou seja, o tema da consumação da história trinitária
em Deus mesmo. Somente quando Deus for tudo em todos (cf. ICor 15,28), a
história trinitária estará completa, Deus será glorificado na criação e esta será
glorificada em D eus167. Está até este momento in fieri a unidade divina? Não
é acaso excessivo o efeito da economia salvífica sobre o ser mesmo de Deus?
Embora sejam exageradas as acusações de triteísmo, não deixa de ser verdade
que a interpretação da unidade divina e da constituição dela não redunda tão
clara como seria de desejar. Se em Barth e Rahner prevalece excessivamente
o “eu” divino, em Moltmann prevalece o “nós” em uma forma que não se
toma de todo fácil explicar se queremos considerar a unidade divina um dado
primário e realizado desde sempre no ser de Deus168.

Alguns planos na teologia católica


Devido à grande influência que exerceu nas últimas décadas, devemos
considerar brevemente a posição de H. Mühlen, a quem cabe o mérito de ter
introduzido na teologia católica a categoria do “nós” intratrinitário169, antes
mesmo que Moltmann desenvolvesse suas teses.
Mühlen pergunta a si mesmo se em relação com as pessoas divinas pode­
mos falar do “número” no mesmo sentido em que o fazemos ao referir-nos às
pessoas humanas. Seguindo santo Tomás170, nega essa possibilidade. O concílio

166. Ibid.: “A constituição das pessoas e sua manifestação nas relações são duas faces da
mesma coisa. O conceito de substância reflete a relação da pessoa com a natureza divina co­
mum. O conceito de relação reflete a relação das pessoas entre si. São dois pontos de vista que
haverão de ser distinguidos. As pessoas trinitárias subsistem na natureza divina comum, existem
em suas mútuas relações” .
167. Cf. ibid. 178. Víamos como a unidade de Deus era considerada aberta, comunicável;
de algum modo, portanto, parece incluir também a nós.
168. Em nosso próximo capítulo, dedicado à teologia do Pai, iremos nos ocupar das tenta­
tivas de W. Pannenberg, que, embora com notáveis diferenças, têm alguns pontos de contato
com as de J. Moltmann.
169. Cf. principalmente sua obra Der Heilige Geist als Person in der Trinität, bei der Inkarnation
und in Gnadenbund: Ich-Du-WiryMünster, 21967, sobretudo 100-169. O desenvolvimento se
resume em suas passagens essenciais em 167-169.
170. Cf. STh I 30,4 ad.3; 42,4 ad.3, a pessoa não é um universal em Deus.

109
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

XI de Toledo, que já conhecemos, assinalou que em Deus o número sugere


unicamente que as pessoas divinas são “ad invicem”, na relação mútua, mas
que carecem de número enquanto são “ad se” . As pessoas divinas são idênti­
cas enquanto possuem a mesma natureza divina, porém enquanto “pessoas”
não têm nada em comum, cada uma é precisamente enquanto não é a outra,
distinguindo-se pela relação. Neste sentido, “ pessoa”, em Deus, não é um
universal171. Desse modo, Mühlen faz eco às dificuldades que a linguagem das
“três pessoas” em Deus suscitou em muitos momentos da história.
Santo Agostinho seguiu a via da distinção entre a inteligência e a vontade
para iluminar de algum modo a distinção entre as pessoas. Ricardo de São
Vítor seguiu a linha do amor interpessoal. Mühlen entende que se deva buscar
uma síntese de ambas as posições que, pelo menos em parte, já foi realizada
por santo Tomás. Para aproximar-se do mistério, o autor alemão se serve dos
diferentes tipos de relação interpessoal. Estes tipos são substancialmente dois:
o modelo “eu-tu” e o “nós” 172. São diferenças mais acentuadas do que as que
se dão entre a inteligência e a vontade. Estes dois modos originais de relação,
irredutíveis um ao outro, são caracterizados respectivamente pela reciprocidade
e pela comunidade. No primeiro dos modos, o eu e o tu colocam-se frente a
frente, salienta-se a distinção entre um e outro. No segundo momento, não
se salienta a distinção, mas o momento da comunidade, não se está diante do
outro, mas com o outro. O “nós” é assim o plural do eu e do tu, da primeira
e da segunda pessoa, não só da primeira, que, a rigor e por razões evidentes,
não admite o plural; meu “eu” é único e irrepetível.
Segundo este esquema, a relação Pai-Filho responderia ao modo fun­
damental da relação eu-tu. O Pai é constituído como pessoa por sua relação
pessoal de conhecimento e amor para com o Filho (geração ativa). Pode ser
designado como a relação do “eu”. O Pai caracteriza-se por ser não-gerado e
por sua paternidade. Pelo fato de não ter sido gerado, o Pai pode ser chamado
“eu”, porque este pronome pessoal não pressupõe ninguém, como tampouco
pressupõe outro o que é não-gerado. A relação eu-tu tem início com seu primeiro
termo: o Pai, enquanto não é gerado, é o princípio do Filho. O Pai é constituído
por esta relação. Diante do “eu”, que não pressupõe ninguém, o “tu” é alguém
a quem se interpela e que responde pessoalmente. O Filho seria assim o “tu”

171. Ibid. 106: “As pessoas divinas, enquanto são pessoas, não têm nada em comum”; cf.
ibid. 100-107: a diferença entre as pessoas divinas é a coisa maior em que se possa pensar. Dada
esta diferença, Mühlen acredita que seja sumamente improvável que o Espírito Santo houvesse
podido manifestar-se sustentando uma natureza criada; cf. 113ss.
172. Cf. a descrição e análise destes dois modos fundamentais em ibid. 59-80.

110
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

constituído pela relação com o Pai em conhecimento e amor, relação que é


resposta. Enquanto “tu” que responde ao Pai, o Filho é a segunda pessoa. Se
a relação do Pai com o Filho é a do “eu” ao “tu”, a do Filho ao Pai é a de um
“tu a um tu”. É claro que também o Filho é um “eu”, a relação eu-tu entre o
Pai e o Filho é intercambiável, ocorrendo também o mesmo com sua mútua
perichoresis fundada na relação de origem, “como tu, Pai, estás em mim e eu em
ti” (Jo 17,21). Fica, porém, a salvo a primazia do Pai, que é o “eu” original173.
O modelo do “nós” , também originário como o anterior, seria o da
relação do Pai com o Filho a respeito do Espírito Santo. O fim do amor di­
vino é Deus em si mesmo; não é como o de nosso amor, que se projeta fora
de nós mesmos. Inspirando-se de algum modo no “condilectus” de Ricardo de
São Vítor, Mühlen quer mostrar como o círculo do amor divino se completa
com o Espírito Santo, conforme este segundo modo fundamental de relação;
seguindo também de algum modo Ricardo, nosso autor dirá que, não havendo
outro modelo fundamental de relação interpessoal, é preciso excluir em Deus
processões ulteriores. Também aqui, como em Ricardo, encontramo-nos diante
de uma reflexão teológica que pressupõe o dado da fé e procura de algum
modo dar conta dele. O Pai e o Filho produzem juntos o Espírito Santo, em
um só ato comum, que em ambos é uno e o mesmo ato. Como é comum,
tem o caráter de um ato do “nós”. Dois são os que espiram (duo spirantes),
porém os dois são um só princípio (unus spirator), que leva a efeito um só
ato. Neste sentido, a relação do Pai e do Filho com o Espírito Santo é a do
“ nós” para com o “tu”. O Espírito Santo é constituído como pessoa por sua
relação pessoal, que inclui o amor e o conhecimento do Pai para com o Filho.
Assim, como terceira pessoa, é a relação do “ nós”. Mühlen estabelece uma
analogia com a união matrimonial: esta, para os cônjuges, é “nossa”, não é
tua nem minha; como também ocorre com o filho, que é nosso, ao mesmo
tempo do pai e da mãe, como concreção da aliança em uma terceira pessoa174.
Igualmente, do ponto de vista do Pai e do Filho, o Espírito Santo é “nosso” ,
porque é a união dos dois, é “nossa” união. É o ato do nós subsistente. Para
o Pai e o Filho, o Espírito Santo não é um “ ele”, mas o “nós em pessoa” .
Do ponto de vista do Espírito Santo, sua relação com o Pai e o Filho é uma
relação do “eu” com o “vós”. Ao mesmo tempo, a inabitação mútua do Pai,
do Filho e do Espírito Santo é a plenitude do nós intratrinitário. Entretanto,
se a perichoresis do Pai e do Filho é a de uma pessoa em outra, quando entra

173. Cf. ibid. 116-136.


174. Cf. ibid. 157; previamente, já em 71-72; 76-78. Em relação aos filhos, os pais têm uma
relação comum. Esta analogia é aplicada por Mühlen à processão do Espírito.

111
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÀO

o Espírito Santo é uma pessoa em duas. É a proximidade absoluta de duas


diferenças. Donde a fórmula pneumatológica que Mühlen preconiza: uma
pessoa em duas pessoas; ou, com outras palavras, o nós em pessoa, uma pessoa
numericamente idêntica nas duas175. A esta fórmula intratrinitária corresponde
a fórmula eclesiológica que atesta a presença do Espírito em Cristo e em nós:
uma pessoa em muitas pessoas176.
Mühlen fala claramente do “eu” do Pai e do Filho, embora com as
diferenças que assinalamos; e também do “eu” do Espírito Santo, enquanto
se refere ao Pai e ao Filho177. A equiparação do “ nós” do Pai e do Filho com
a terceira pessoa deu lugar a críticas, como se o caráter pessoal do Espírito
Santo houvesse ficado diminuído ou esfumado. Não parece ser este o caso em
seu todo, já que este nós, como acabamos de indicar, não elimina seu “eu”.
Os pronomes aplicam-se de preferência a cada uma das pessoas, mas não
exclusivamente, como às vezes se censurou também o autor. A intenção de
Mühlen com o uso dos diversos pronomes pessoais é fazer ver precisamente
como o caráter “ pessoal” dos três é distinto178. Neste sentido, seu propósito
é de notável valor, ainda que o uso preferencial dos pronomes, sobretudo do
“nós”, nem sempre dê razão desta intenção última. Por outro lado, Mühlen
tem muito cuidado em observar que a unidade da essência divina não significa
que as pessoas se unem umas com as outras, formando assim uma unidade.
A diferença das pessoas não é o fundamento de sua unidade. Dever-se-ia
dizer, melhor, que a unidade da natureza divina, muito mais intensa do que
possamos imaginar, é o fundamento da distinção, também inimaginável,
entre as pessoas179. Deste ponto de vista, a distância com relação à posição
de Moltmann é evidente. A unidade entre as pessoas não é um segundo
momento em relação à distinção delas. Todavia, essa distinção determina
também o modo da unidade. O fundamento da perichoresis entre as pessoas
não é só a unidade da natureza divina, mas esta natureza tem também, por sua
vez, a característica do “ nós”; por esta razão, pode ser o fundamento de que
as pessoas que a possuem existam umas em outras180.

175. Cf. ibid. 136-167.


176. Idéia amplamente desenvolvida em H. MÜHLEN, Una mystica persona. Die Kirche als
das Mysterium der heilsgeschichtlichen Identität des heiligen Geistes in Christus und in den
Christen: eine Person in vielen Personen, München/Paderborn/Wien, 31968.
177. Cf. Der Heilige Geist..., 158-159, onde aparece claramente que o Espírito Santo é o
terceiro “eu” na Trindade.
178. Cf. principalmente ibid. 107-108; e também 159, sobre as dificuldades do plano.
179. Cf. ibid. 162. Podemos, com certeza, perguntar-nos se é possível assinalar uma priori­
dade entre a unidade e a trindade divinas.
180. Ibid. 163-164. Mühlen fala da “Wirhaftigkeit” da natureza divina.

112
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

Alguns dos temas insinuados por H. Mühlen foram propostos de forma


diversa por H. U. von Balthasar, principalmente no segundo volume de seu
Theologikm. Também ele pretende um equilíbrio entre a linha agostiniana e
a que segue mais de perto a analogia do amor entre as pessoas. Para come­
çar, devemos notar que o autor suíço está bem consciente da dificuldade que
encerra um uso unilateral desse modelo social ou “ interpessoal”: “O modelo
interpessoal não pode alcançar a unidade substancial de Deus, o modelo ‘intra-
pessoaf não pode apresentar o ‘frente a frente’ [Gegenüber] real e permanente
das hipóstases em Deus” 1882. Para o autor suíço, o “eu” humano não pode ser
mais que uma débil imagem de Deus, uma imagem da vida divina trinitária
que, em último termo, redunda essencialmente frustrada183.
O esboço de Ricardo de São Vítor, que já conhecemos, aponta para o amor
como plenitude do ser, idéia certamente não desconhecida para Agostinho,
que não a aprofundou. E mesmo que entre estes dois autores existam no­
táveis diferenças Von Balthasar observa que existe também uma profunda
semelhança. As idéias de imago em Agostinho e Ricardo, no fundo, acabam
por coincidir, no sentido de que para ambos a imagem só consegue refletir o
modelo como per contrarium. Enquanto no modelo de Agostinho a imagem
das três pessoas se dá em uma só, Ricardo salienta que em Deus existe uma
pluralidade de pessoas em uma substância e, no homem, uma pluralidade de
substâncias na unidade da pessoa184.
Von Balthasar se pergunta por que, quando se falou da lógica trinitá­
ria, a relação dos pais com o filho foi sempre deixada de lado185. Pode ter
desempenhado um papel o fato de que o matrimônio pôde ser considerado
um fenômeno inffalapsário, de qualquer maneira um estado inferior ao da
virgindade. Talvez tenha podido influenciar também o fato de que já na na­
tureza infra-humana se dá a fecundidade, e por isto não se poderia ver nesta

181. Theologik 11. Wahrheit Gottes, Einsiedeln, 1985.


182. Ibid. 35. Devemos ter presente que santo Agostinho, e também santo Tomás, além da
doutrina “psicológica” da Trindade, desenvolveram também o ensinamento acerca das relações
divinas e, portanto, do ad invicem em Deus. Vimos como em suas obras não faltam alguns
elementos interpessoais.
183. Cf. ibid. 37.
184. Cf. ibid. 39; von Balthasar refere-se a AGOSTINHO, Tritt. XV 23,43, e a RICARDO,
Tri«. III 9: “Ecce quomodo natura humana atque divina videntur se mutuo, et quasi ex oppo-
sito respicere, alterutra alteri velut per contrarium respondere. Sie invicem respicere habent,
et mutuo respondere debent natura creata et natura increata” .
185. Recorda neste contexto, Theologik II, 54, que santo Agostinho rejeita a analogia fami­
liar para falar da imagem de Deus; refere-se explicitamente a Trin. XII 5,5. Agostinho repete
a idéia em In foh. 99,9.

113
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

uma imagem adequada da vida da Trindade. Fala-se, outras vezes, da relação


e da distância entre homem e mulher como um fenômeno originário, sem
levar em conta a fecundidade orgânica e pessoal dos dois. Todavia, permanece
sempre, continua Von Balthasar, a experiência cotidiana dos pais, “que expe­
rimentam a aparição do filho quando este já se encontra aí, e rapidamente se
manifesta como uma terceira pessoa espiritual autônoma, como um milagre
incompreensível e fonte de felicidade, talvez até mesmo quando antes tenta­
ram impedir seu nascimento”186. Quando se fala tanto do diálogo na teologia
e na filosofia, e o acontecimento interpessoal da palavra se relaciona com o
Logos divino, talvez seja também adequado considerar a ação deste último na
fecundidade do encontro que, no plano humano, enquanto significa a aparição
de um sujeito espiritual, é mais que um simples processo natural. Esta relação,
complemento necessário da relação dialogai apesar das diferenças evidentes,
é a mais adequada imagem da Trindade inserida na criatura:
Supera não somente a nebulosidade do eu do conceito agostiniano, mas tam­
bém faz brotar, a partir de dentro da concepção do amor, precisamente como
sua fecundidade, o “condilectus” que no esboço de Ricardo é trazido de fora;
evita assim o perigo dos dialógicos de deixar que o inter-humano se reduza
a um mero duplo monólogo... É a prova constante da estrutura triádica da
lógica concreta de criatura...187.

O autor suíço retornou outras vezes a esta analogia da relação familiar


e insiste em que ao amor pertence também o fruto dele, e precisamente por
isso o perfeito amor da criatura pode ser imagem da Trindade188.
As insuficiências do modelo agostiniano são igualmente postas em des­
taque por Von Balthasar. Para santo Agostinho, o espírito tem de se colocar
diante de si mesmo para conhecer-se e, uma vez conhecido, para amar-se.
Anselmo o formulou com a máxima clareza: Deus se conhece a si mesmo, e
assim tem lugar a processão do Logos; Deus se ama a si mesmo e com isso se

186. Theologik II, 56.


187. Ibid. 56-57; ibid. 130: “ Esta reciprocidade do amor [relationis oppositio] é tão inimaginável
que de sua fecundidade sai o Espírito Santo, para cuja hipóstase não encontramos nenhuma
outra denominação adequada mais do que, outra vez, amor; e, por sua vez, o fruto objetivado
e a chama interior, a máxima objetividade e a subjetividade da gratuidade do amor trinitário
idêntico à essência de Deus”.
188. Cf. Theologik III. Der Geist der Wahrheit, Einsiedeln, 1987, 146-147; e também ibid. 129.
Estas imagens familiares tendem principalmente a ilustrar a processão do Espírito. A geração do
Filho parece, à primeira vista, ficar fora da perspectiva de von Balthasar. Seja como for, não se
vê como se possa enquadrar de modo coerente na analogia familiar. Isto pode significar uma
limitação deste modelo.

114
dá a processão do Espírito Santo. Como já tivemos oportunidade de constatar
por nós mesmos, neste último autor é suscitado o problema de descobrir se, na
origem das processões do Filho e do Espírito, se encontra a Pessoa do Pai ou
a essência divina. Este primado da essência sobre a pluralidade das hipóstases
seria ocasionado quando entre estas últimas não se dariam mais que relações;
entre outros motivos, porque a relação, do ponto de vista ontológico, possui
a consistência mais frágil e, por isso mesmo, o perigo de ameaçar a unidade
divina seria menor189. Para Von Balthasar, porém, seguindo santo Tomás, a
pessoa não é apenas a relação, mas o que com ela se estabelece de maneira
terminante. Este resultado viria do próprio conceito da relação190.
Não temos necessidade de retornar às passagens de santo Tomás nem de
santo Anselmo191. Para nosso propósito, é suficiente, neste momento, assinalar
como a partir das missões do Filho e do Espírito não se pode chegar, em caso
algum, a falar de uma fecundidade da essência divina. Ao Pai, e somente
ao Pai, pertence a fecundidade em sua fonte. Cristo se sente apenas devedor
do Pai, nunca da divindade fecunda no Pai192. Não existe nada no Pai anterior
à paternidade, a rigor não existe alguém que gera “antes” da geração.
Segundo Von Balthasar, santo Agostinho, a partir da analogia do espírito
humano, não pode chegar realmente às três pessoas em Deus, uma vez que as
atividades do interior do espírito não podem levar a ver em Deus três sujeitos.
Para santo Tomás, a “pessoa” é a preocupação fundamental. Em sua definição
dela como “subsistens distinctum in natura rationali”, com o acento primeiro
no “distinctum” e a seguir no “subsistens in” , designa o subsistir comum das
hipóstases na essência divina. Estas hipóstases não se distinguem mais que
pelas relações que, por sua vez, derivam das processões. Já que estas têm lugar
no espírito divino, podem ser reais sem dividir a divindade. Com o podem as
atividades espirituais dar lugar às pessoas? Por um lado, as processões em Deus
não podem ser acidentais, e devem identificar-se com a essência divina. Por
outro, a categoria da relação é a única que não afeta diretamente a substância
à qual “adere”, mas cria um vínculo entre as pessoas e significa uma direção,
um “para”. O ser, por um lado, idênticas à essência divina, e a existência, por
outro lado, deste “para” , deste “sentido” permitem a definição das hipóstases
como relações subsistentes; na relação está o único de cada pessoa, enquanto
subsistentes são idênticas à essência divina. E se a relação não é mais que a união

189. Cf. Theologik //, 120.


190. Ibid.
191. Cf. a citação de Monologion 65, em ibid.
192. Theologik //, 123.

115
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÀO

entre dois termos como pode ser considerada o fundamento para a hipóstase?
Tanto a existência real das hipóstases em seu ser, cada uma diante das outras,
como o fato de que as três são um só Deus, nós os conhecemos por revelação.
Só no equilíbrio destas duas afirmações, cuja síntese não podemos alcançar, é
possível resolver especulativamente este problema193. Este é o balanço que faz
Von Balthasar de sua análise da posição de santo Tomás que reproduzimos
brevemente. Mesmo com a aceitação fundamental da definição da pessoa
como “ relação subsistente” , não parece ficar satisfeito com ela. Como já antes
insinuou e também nós observamos, tende, antes, a definir a hipóstase como
o que se constitui de maneira terminante por meio de uma relação194.
Pode-se pensar que a idéia do término da relação se encontra em co­
nexão com a da fecundidade do amor divino, que encontraria sua expressão
no Espírito Santo, fruto do amor do Pai e do Filho. A reflexão sobre o amor
é precisamente o caminho escolhido por Von Balthasar para sair da dificul­
dade apresentada pela concepção clássica de Agostinho e Tomás. Não é a
essência divina que é ativa nas processões, porém a essência divina é a que o
Pai comunica ao Filho na geração e ambos ao Espírito Santo na processão. O
doar-se do Pai ao Filho e de ambos ao Espírito Santo não é nem necessidade
nem vontade arbitrária, mas corresponde à natureza. Se é assim que sucede,
esta natureza não pode ser mais que o amor. Se o fator que move a doação
econômica do Filho e do Espírito pelo Pai é claramente o amor, para tanto
tem de haver uma pressuposição na essência do Deus uno e trino:
A essência divina, assim considerada, seria não apenas co-extensiva com o
acontecimento das processões eternas, mas também co-determinada pela
participação nela, única em cada caso, do Pai, do Filho e do Espírito Santo...
E já que todas as pessoas são hipóstases da única natureza divina concreta,
à qual cada uma delas é idêntica, sua unidade na essência pode também ser
descrita como seu ser no outro, seu “circumincessio”, por meio do qual for­
mam juntas o único, livre e “pessoal” rosto de Deus195.

Porém, em todo momento, fica a salvo para Von Balthasar a doação


original própria do Pai. “A impossibilidade humana de pensar em Deus é
a mesma coisa que a impossibilidade de pensar no Pai, que nunca foi uma
pessoa fechada em si mesma, onisciente e onipotente, mas o que desde sempre
se ‘desapropria* de si em sua entrega ao Filho, e não tem bastante com isto:

193. Cf. ibid. 123-124.


194. Ibid. 121-122, com citação de Tomás. De Potentia q.10, a.3.
195. Ibid. 127; cf. 126-127 para o que precede.

116
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

e com o Filho e mediante ele se entrega ao Espírito Santo”196. O que sempre


se mantém nestas processões é a essência divina, a doação de si. É preciso
partir desta doação do Pai. No Filho e no Espírito, ela se realiza no modo
da resposta ao amor do Pai. A doação deste é o fundamento último pelo
qual Deus é incompreensível e vai mais além do que pode abraçar qualquer
conceito finito: o amor absoluto, o que carece de qualquer outro fundamen­
to, e que é a propriedade mais característica de Deus197. Do amor trinitário,
devem receber seu sentido e sua “cor” todos os atributos divinos; todos eles
são manifestações do amor que só se entende a partir da Trindade divina198.
Von Balthasar resume com clareza seu pensamento sobre o mistério do amor
dos três nas seguintes linhas:
Em todas as propriedades divinas... fundadas pelas três hipóstases, é preciso
igualmente tomar em consideração estes dois fatores: a ordem das processões
e a igualdade das hipóstases divinas... A igual eternidade das processões do
Filho e do Espírito tem seus efeitos, sem alterar a ordem das processões, na
origem; a igualdade com o Pai faz que participem na mesma medida que ele
nas propriedades e [nos] modos de atuação do único Deus, as hipóstases, em
seu “circumincessio”, determinam o que Deus é, quer e faz. Não esqueçamos
de que em Deus não pode existir um conceito genérico, sob o qual se inclua
um conceito unívoco de pessoa, nem tampouco que o fato de se falar dos “três”
nele não tenha nada a ver com o que se pode numerar quantitativamente, uma
vez que significa uma plenitude que corresponde ao único ser eterno de Deus
em sua transcendência199.

A pluralidade das pessoas não tem nada a ver com uma contingência,
mas é, antes, a expressão mais alta da plenitude ilimitada do ser divino, que
não poderia ser esgotada em uma pessoa só; necessita, de algum modo, do
êxtase das pessoas em sua mútua contraposição; só assim pode manifestar-se
como amor absoluto e como, simplesmente, a verdade200.

196. Ibid. 127.


197. Cf. ibid. 127-128. Outras menções da essência divina como amor em ibid. 130, 137,
além dos textos que já citamos. Sobre o mistério do Pai, que nunca é onipotente e onisciente
sem o Filho, cf. também ibid. 163: a falsa alternativa do Pai que gera o Filho para reconhecer-se
como Deus, ou que precisamente porque se reconhece como tal o gera, redundando em assinalar
que o que o faz Pai não é o conhecimento, mas o amor. A alternativa reflete de algum modo
a diferença de posições no problema de se o Pai é sábio pelo Filho que é sua sabedoria, ou se
o é em si. Santo Atanásio tendeu à primeira posição — cf. C. Arian. I 19-20 (PG 26,49-53);
Agostinho inclinou-se pela segunda — cf. Trin. VII 1,1-3,6 (CCL 50, 244-254).
198. Cf. ibid. 128-138.
199. Ibid. 137.
200. Cf. ibid. 165.

117
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

No equilíbrio que von Balthasar tenta manter, é evidente que suas prefe­
rências se inclinam para insistir no modelo do amor interpessoal, com o uso
da analogia familiar, em que H. Mühlen201 o havia precedido, e também M.
J. Scheeben, a quem o autor suíço se refere explicitamente202. Nesta mesma
linha, é preciso situar também a insistência na noção da pessoa divina não
só como a relação subsistente, mas também como o resultado dessa relação.
Tudo isso há de ser visto também em conexão com a definição da essência
divina como amor. Também Von Balthasar haverá de ser situado entre os que
defendem um “nós” intratrinitário mais que um “eu” . Porém, à diferença de
outros modelos que privilegiam a comunhão interpessoal que, por temor do
subordinacionismo, tendem a reduzir o caráter fontal do Pai, Von Balthasar,
como tivemos oportunidade de constatar, insiste em que o mistério de Deus
e o mistério do Pai vêm a ser equivalentes; este último é, em sua doação
original, a fonte única e a origem da divindade. Esta doação é o fundamento
do mistério divino. Junto a esta ordem das hipóstases há de ser mantida de
qualquer maneira a igualdade delas. A essência divina é determinada assim
mediante as hipóstases203, com o que o caráter “pessoal” destas últimas põe-se
de manifesto204. Todavia, em última instância, todos os modelos extraídos da
criação são inadequados; já o indicamos no início de nossa breve exposição;
além disso, Von Balthasar acrescenta uma razão mais decisiva: Jesus não os
usou em sua interpretação do divino em sua pessoa205.

3. Algumas reflexões conclusivas

A. A categoria do "n ó s" em Deus


J. Ratzinger notou que, como conseqüência da teologia trinitária de
Agostinho, a distinção pessoal em Deus ficou circunscrita ao âmbito intradi-
vino; dessa maneira, o Deus trino, em sua atuação para fora, converteu-se em

201. Embora este último insista, como vimos, no fato de que o Espírito Santo, à diferença
do filho na realidade humana, não é um “ele” para o Pai e o Filho, mas o “nós” de ambos.
202. Cf. Theologik II, 55-57; cf. M. J. SCHEEBEN, Die Mysterien des Christentums, Freiburg
im Br., 1865, 173-181.
203. Cf. Theologik II, 137.
204. Isto é patenteado nas indicações de von Balthasar acerca do caráter pessoal do Deus
uno, que aparece na mútua inabitação das pessoas; também enquanto assinala acerca das
“apropriações”, ibid. 137; o que se apropria a cada uma das pessoas poderia ser entregue por
esta às outras, à divindade, como bem comum. Cf. G. GRESHAKE, Der dreieine Gott. Eine
trinitarische Theologie, Freiburg/BaselAVien, 1997, 214-216.
205. Cf. Theologik 77, 61.

118
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

um “eu”, e com isso a dimensão do “nós” perdeu-se na teologia206. Ainda mais


determinante para o afiançamento desta linha pôde ser, segundo o próprio
autor, o fato de que santo Tomás tenha considerado legítimo falar de Deus
como de uma pessoa207. Em nosso breve percurso anterior, deparamos com
a questão em que a categoria do weu” se aplica a Deus também no âmbito
intratrinitário (embora em uma tripla repetição) e que o vocabulário que
abrange a “pessoa” única em Deus foi utilizado também em tempos recentes.
Sabemos muito bem que a noção cristã de Deus concede à trindade a mesma
dignidade que à unidade. Não existe no cristianismo um princípio de diálogo
baseado somente na relação eu-tu. Não existe por parte do homem um eu
isolado, porque cada um de nós tem seu lugar na continuidade histórica do
povo de Deus, um “nós” que nos abrange. Mas tampouco existe isso por
parte de Deus, porque nos encontramos com o nós do Pai, do Filho e do
Espírito Santo. Em nenhuma das duas partes existe um “eu” isolado208. O
“ nós” interno de Deus manifesta-se também na economia salvadora, aperfei­
çoa e suscita o “ nós” humano, faz do homem um “ser eclesial”209. Existe em
Deus um “nós” , na vida divina e na manifestação exterior. Um bom número
de teólogos o evidenciam, embora em alguns casos a unidade divina apareça
com dificuldade como um dado primário da teologia trinitária. Contudo, não
há por que ser necessariamente assim. A unidade de Deus é a da Trindade,
e esta não se realiza mais do que na unidade210. Todavia, se não existe outra
unidade mais que a da Trindade, esta não pode ser considerada a unidade de
uma coletividade, como muitos homens são um povo ou muitos fiéis formam

206. Cf. J. RATZINGER, Zum Personverstàndnis in der Théologie, in ID., Dogma und
Verkündigungy München/Freiburg Br., 1973, 205-223, 223. Na nota 12 desta mesma página,
suaviza o juízo formulado no texto, uma vez que os fatores da tradição contribuem para equi­
librar a chamada doutrina psicológica da Trindade.
207. Cf. ibid. 223, nota 12. Ratzinger reporta-se à STh III 3,3 ad 1. O texto em questão diz
assim: “Sicut igitur nunc, positis proprietatibus personalibus in Deo, dicimus très personas: ita,
exclusis per intellectum proprietatibus personalibus, remanebit in consideratione nostra natura
divina ut subsistens, et ut persona”. Interessantes as precisões sobre este texto de G. EMERY,
Essentialisme ou personnalisme..., 33. O conhecimento de certa personalidade de Deus é algo
acessível fora da fé cristã; não se trata aqui, portanto, da consideração da realidade de Deus
tal como a fé ensina.
208. Cf. J. RATZINGER, Zum Personverstàndnis. .., 222; cf. Também, ID., Introducción al
CristianismOy Salamanca, 1971, 151-153.
209. Cf. o título da edição francesa da obra de J. ZIZIOULAS, Vêtre ecdésiaU Genebra,
1981.
210. Símbolo Quicumque (DH 75): “ Fides autem catholica haec est, ut unum Deum in
Trinitate et Trinitatem in unitate confitemur”; em diferentes documentos magisteriais da Igreja
antiga usam-se expressões similares; cf. DH 441; 501; 546.

119
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

uma Igreja211. Trata-se de um dado primário. O “nós” divino dá-se na unidade


da essência, uma unidade a que só muito de longe podemos nos aproximar
analogicamente a partir das realidades criadas. Pertence a esta mesma essência
divina única nas três pessoas o ser possuída em plenitude, e ao mesmo tempo
pelas três, cada uma delas com características próprias.

B. O Pai, o Filho e o Espírito Santo são o único Deus


Em Deus, unidade e trindade são, evidentemente, dois dados igualmente
primários. Por outro lado, é igualmente evidente que, dada a limitação hu­
mana, não podemos aquiescer à verdade levando em conta, a um só tempo,
todas as suas implicações. Temos necessidade de distinguir o que se dá em
Deus na simplicidade suma. Muitas podem ser as aproximações válidas ao
mistério divino e nenhuma pode reivindicar para si a exclusividade. Santo
Tomás, quando ainda não havia se realizado a distinção entre fdosofia e
teologia tal como agora a conhecemos, optou por tratar primeiro do Deus
uno, o dado que pode ser conhecido pela razão humana, para depois con­
tinuar com a Trindade212. A escolástica o seguiu e sabemos que não foram
poucos os esforços realizados na segunda metade do século XX para resgatar
toda a significação teológica do tratado “de Deo uno”. Admitindo, com certeza,
a legitimidade de outras opções, entendo que, no caso de uma aproximação
teológica, é mais adequado e coerente partir da economia da salvação e, con­
cretamente, do Novo Testamento. Na vida de Jesus, e especialmente em seu
mistério pascal, nos é revelado o Deus uno e trino. Jesus vai ao Pai do qual
saiu; uma vez glorificado pelo Pai, envia-nos, juntamente com ele, o Espírito
Santo, o Espírito que repousou previamente sobre o próprio Jesus. Diante
do olhar do leitor do Novo Testamento, aparecem em primeiro lugar estes
“três”, certamente unidos na realização da obra salvadora. De algum modo,
é preciso dar razão desta unidade, uma unidade que, sem dúvida, antecede o
envio do Filho e do Espírito ao mundo por parte do Pai e que se reflete nestas
missões. A existência dos três na distinção, e por sua vez na relação mútua,
nos é mostrada como um dado claro. Quando, segundo o quarto evangelho,
Jesus diz “ Eu e o Pai somos um ” (Jo 10,30), pressupõe sua existência e a do

211. Cf. Concílio Lateranense IV (DH 803).


212. PEDRO LOMBARDO, Liber I Sententiarum, usou uma sistemática muito diferente.
Põe como título do primeiro capítulo da distinção II, com a qual começa a tratar de Deus, De
Trinitate et Unitate. Os títulos dos capítulos seguintes referem-se à Trindade sem menção da
unidade divina.

120
AS “TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

Pai213. A unidade dos dois, na estrutura gramatical da frase, é o predicado.


A existência do Pai e do Filho, e podemos acrescentar a do Espírito Santo, é
o dado do qual se parte. Não se pode falar de um unum que não seja o des­
tes três. Esta parece ser a aproximação do mistério que nos sugere o Novo
Testamento. Deste ponto de vista, o ponto de partida será a trindade que se
dá na unidade trinitas in unitate, a unidade que se dá na trindade, unitas in
trinitate será, melhor dizendo, o ponto de chegada.
A partir da missão por parte do Pai, do Filho e do Espírito, podemos
remontar ao Pai, de quem o Filho e o Espírito Santo procedem na eternidade.
Não podemos duvidar de que os três apareçam na economia da salvação com
características “pessoais”, de “sujeitos” ativos e operantes. Isto não oferece
dúvida alguma nos casos do Pai e do Filho, porém, mesmo com referência ao
Espírito Santo, o Novo Testamento é suficientemente claro a esse respeito214.
Na teologia dos últimos tempos, insistiu-se mais do que na época da neo-
escolástica no caráter “próprio” das atuações das pessoas dentro do marco da
ação comum dos três; antecedentes desta doutrina seriam já encontrados em
santo Tomás215. Devemos pensar — e é este o problema que constatamos ser
proposto na teologia de Karl Rahner — que este caráter do “eu”, na recipro­
cidade com um tu, só se adquire na economia da salvação?
Este caminho não parece ser viável. Se na economia da salvação não pode­
mos duvidar de seu caráter de subjetivo, de “eu”, das três “pessoas”, da mesma
forma havemos de pensar que o possuem, de um modo certamente misterioso,
na vida imanente de Deus. Caso contrário, caímos na concepção de Deus que
se “faz” comunhão pessoal na encarnação216. Podemos partir, portanto, como
faz majoritariamente a teologia católica de nossos dias, do fato de que o Pai,

213. A propósito deste texto, diz TERTULIANO, Adv. Prax. 22,11 (Scarpat, 208): “Non per-
tinet ad singularitatem, sed ad unitatem, ad similitudinem, ad coniunctionem, ad dilectionem
patris qui filium diligit et ad obsequium Fili qui voluntati Patris obsequitur” .
214. Cf. L. F. LADARIA, El Dios vivo y verdadero. El mistério de la Trinidad, Salamanca,
22000, 105-107.
215. Cf. H. C. SCHMIDBAUR, Personarum Trinitas. Die trinitarische Gotteslehre des heiligen
Thomas von Aquin, St. Ottilien, 1995, 488-501, 537-544.
216. S. JOÃO DAMASCENO, De fide orth. 17 (PG 94,805), fala em termos muito “pessoais”,
no sentido moderno, do Filho e do Espírito. Assim diz do Filho: “ ... tem consistência substan­
cialmente, é dotado de vontade livre, é eficaz e onipotente”; e do Espírito (também à semelhança
do Filho), diz-se pouco depois: “ ... é considerado uma pessoa própria e por si, procede do Pai
e descansa no Filho, ele mesmo se declara e expressa a si mesmo; não pode ser separado nem
de Deus em quem está, nem do Filho de quem é companheiro, nem, por último, sua maneira de
se dilatar é tal que deixe de estar em todas as partes; mas que, à semelhança do Logos, existe
segundo a hipóstase, é vivente, quer livremente, move-se a si mesmo, é eficaz, quer sempre
o bem, e para tudo o que decidiu tem o poder juntamente com a vontade...”. Tudo isso não

121
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

o Filho e o Espírito Santo se nos apresentam no Novo Testamento como


três “pessoas” distintas em sua mútua relação, que estão conscientes e que se
autopossuem. Estas idéias certamente se fizeram mais freqüentes nos tempos
recentes; todavia, já não podemos pensar que a teologia clássica se propunha
apenas o problema da distinção dos três na unidade de natureza, por mais que
esta possa ser a perspectiva dominante217. Se, segundo o significado moderno
da palavra, três pessoas significam três conscientes, também este aspecto pode
nos ajudar a compreender os dados acerca da unidade divina que a tradição
da Igreja nos transmite. Pode-se, então, compartilhar a seguinte afirmação:
A consciência de si, exercida por cada uma das pessoas em Deus, é, para cada
uma delas, a consciência de ser Deus, e isto em comum com as outras pessoas,
e a consciência de si como distinta das outras, porém em uma relação de toda a
existência própria ao outro e, portanto, na comunhão de uma total reciprocida­
de interpessoal. Isto significa uma vida divina vivida por cada uma das pessoas
divinamente, isto é, unicamente, infinita e totalmente para o outro218.

Cada pessoa tem consciência de seu “eu sou” vivendo na outra e para a
outra. Além da distinção e da consciência, a “personalidade” implica outro
elemento: a relação com o outro, que é a razão de ser da intersubjetividade219.
O que dá sua individualidade às pessoas opostas na relação é precisamente
o caráter mútuo das relações; total comunicação recíproca na plenitude da

obsta que toda a Trindade seja “uma substância, uma divindade, uma força, uma vontade, um
poder, um princípio, um poder, uma dominação, um reino...”; ibid. I 8 (809).
217. Cf. F. BOURASSA, La Trinità, in K. H. NEUFELD (a cura di), Problemi e prospettive di
teologia dogmática, Brescia, 1983, 337-372, esp. 35ls. Bourassa assinala neste contexto como,
na realidade, a teologia medieval também havia se preocupado em indicar que as relações
são o que une, e a “oposição” das relações é, antes de tudo, reciprocidade; SCHMIDBAUR,
Personarum Trinitas..., 542: “Não é precisamente que a única consciência divina sustenha
três ‘eus\ mas o contrário: três ‘eus’, sujeitos incomensuráveis, são portadores da consciência
divina à qual, de outra forma, não corresponde de maneira alguma uma subsistência absoluta.
Porém, isto só se capta a partir do complexo transfundo, não fácil de perceber, da ‘doutrina
da dupla relação’ do Aquinate; segundo ela, não é a essência divina como tal a que subsiste de
modo triplo, mas somente as relações mesmas como ‘esse-in’, que são realmente idênticas às
da essência divina” .
218. BOURASSA, La Trinità, 352-353. Ibid. 353: “Esta consciência ‘pessoal’ de uma existência
vivida para o outro, em uma reciprocidade tão total e infinita, é o ‘ápice’ da Unidade. Longe
de contradizê-la, esta implica, ao contrário, a unidade essencial da consciência e do amor e,
portanto, a unidade de substância”.
219. Ibid. 354. Cf. também dele: Personne et conscience em théologie trinitaire, Gregorianum
55 (1974) 471-493, 677-720. Inspiro-me nele, em parte, nas considerações que seguem, espe­
cialmente 717-720.

122
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

substância divina que possuem e compartilham também plenamente. O “eu”


divino de cada um dos três é infinito, e por isso pode ser também total co­
municação de sua infinitude, tendo sempre em conta a ordem das processões.
Assim a comunicação do Pai ao Filho gera este em sua plenitude, como único
Deus infinito juntamente com o Pai. O mesmo podemos dizer do Espírito
Santo, amor do Pai e do Filho. A pessoa é constituída de tal modo que só
existe na intercomunicação e na doação segundo o modo de ser Deus ou, o
que é a mesma coisa, o m odo do amor, que lhe é próprio. Cada uma é livre e
consciente na propriedade pessoal que a caracteriza, porém sempre na posse
da única consciência infinita. A perfeita comunicação de cada pessoa que a
constitui em seu ser significa a completa harmonia, a unidade, a plenitude
do amor na liberdade. A comunicação pessoal recíproca significa a máxima
abertura, opõe-se à cerração ou ao isolamento, porém, ao mesmo tempo, não
é causa de que os três se limitem mutuamente. Totalmente ao contrário, a
comunicação de amor é expansão levada ao infinito, tanto maior quanto maior
for a doação ao outro. Cada pessoa divina é consciente de si, é consciente de
que é Deus, tem consciência da divindade comunicada ou recebida no amor.
Por isso, essa consciência, a mesma possuída por três “eus” divinos, há de ser
consciência de comunhão, possuída e exercida por cada um na perfeita unidade
com as outras pessoas. “ Unidade interior em Deus infinitamente consciente e
plenitude de amor, unidade não inerte e solitária em uma pessoa única, mas
comunidade de vida do Pai e do Filho que é seu único amor”220. Uma unida­
de, em última instância, infinitamente mais plena que a que poderia ter um
Deus unipessoal. A unidade do Deus trino, que encerra em si a pluralidade
intrínseca, é a forma suprema da unidade221.
Do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que são três “pessoas” , devemos
pregar que são o único Deus222, e isto não apesar de, mas na riqueza da co­

220. Ibid. 719. O consenso no ponto da unicidade da consciência compartilhada por três
conscientes parece ser geral na teologia católica; cf. os dados recolhidos em L. F. LADARIA, El Dios
vivoy verdadero, 289; 293. Cf., além disso, H. MÜHLEN, Der heilige Geist..., 163; 165-166.
221. BOAVENTURA, Quest. Dis. De Trin. II, II: “Perfectior est unitas, in qua cum unitate
naturae manet unitas caritatis... Ergo si unitas divina est perfectissima, necesse est quod habeat
pluralitatem intrinsecam”; já GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 25,16 (SCh 284,194): “nem
caiamos, à maneira judaica, em um só princípio, estreito, invejoso e impotente”; cf. também
ibid. 17 (198); L. SCHEFFCZYK, Der Gott der Offenbarung. Gotteslehre, Aachen, 1996, 344: “A
fé cristã na Trindade sempre entendeu a si mesma como a forma mais elevada da fé em um
só Deus”.
222. Símbolo Clemens Trinitas (DH 73): “Clemens Trinitas est uma divinitas”; Fides Damasi
(DH 71): “Patrem, Filium et Spiritum Sanctum unum Deum colimus et confitemur” ; cf. SANTO
AGOSTINHO, Trin. I 2,4 (CCL 50,31); XV 5,7 (468).

123
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

munhão interpessoal e do ser o um no outro. Na comunhão está a unidade,


dizia são Basílio Magno223. E se, como veremos a seguir, a unidade da essência
divina se contempla cada vez mais na unidade do ser no amor, este caminho
se revela necessário. A relação, nas pessoas divinas, é tanto um aspecto da
unidade divina como um fator de distinção entre as pessoas. Estas se distin­
guem enquanto se relacionam. Não existe razão alguma para procurar reduzir
ao máximo a distinção em Deus no intuito de salvaguardar sua unidade. Em
Agostinho foi possível o predomínio dessa tendência, marcadamente presente
também na Idade Média, até moldar-se no axioma “em Deus todas as coisas
são um, donde a oposição da relação não é obstáculo”224. Todavia, vimos
também que não esteve ausente na tradição a perspectiva oposta, ou melhor,
complementar. Não temos por que buscar um denominador comum o mais
amplo possível, que abranja as pessoas divinas como tais. Enquanto estão na
posse plena da essência divina, as três pessoas são um a só coisa, são um só
Deus. Porém, enquanto são pessoas, existem na distinção maxima. Os três
sujeitos em Deus são “incomensuráveis”225. Acabamos de ver que teólogos
de tendências e talantes diversos, como K. Rahner, H. U. von Balthasar e H.
Mühlen, coincidem na insistência em que o conceito de pessoa em Deus não é
genérico, de tal maneira que, enquanto pessoas , os três nada têm em comum.
Não há por que tenha de ser a mesma a rutio pcrsonulitutis dos tres; era esta
uma das idéias-mestras de Rahner na formulação de seu axioma fundamental,
por mais evidente que seja que o carater pessoal das tres formas de subsis­
tência” não venha a ser suficientemente atestado. As relações intradivinas que
constituem as pessoas, ao mesmo tempo em que as distinguem, unem-nas entre
si na perfeita comunhão. Em uma unidade muito mais intensa de quanto nos
é dado imaginar, a distinção entre as pessoas divinas é também máxima226. A

223. BASÍLIO DE CESARÉ1A> De Spir. Sancto 18,45 (SCh 17 bis,406): “Na comunhão
(KOivuwia) da divindade está a unidade”.
224. Concílio de Florença, Decreto para os jacobitas (DH 1330): “ ... omniaque sunt unum,
ubi non obviat relationis oppositio”. Como se sabe, o princípio vem de santo ANSELMO, De
processioneSpiritusSancti, 1 (Schmitt2,180-181):“Quatenusnecunitasamittataliquandosuam
consequentiam, ubi non obviat aliqua relationis oppositio, nec relatio perdat quod suum est,
nisi ubi obsistat unitas inseparabUis”. A formulação de Anselmo é mais equüibrada que a do
concílio de Florença, apesar da clara linha de acentuação da unidade divina que caracteriza o
bispo de Cantuária.
225. SCHMIDBAUR, Personarutn Trinitas..., 542; 543, coloca-o em relevo para santo Tomás,
com numerosas citações. O autor dá ênfase à “incomensurabilidade” das três pessoas, isto é, à
impossibilidade de medi-las juntas.
226. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Cuestiones seiectas de cristología PV 8,
in Documentos 1969-1996, Madrid, 1998, 239: “O homem foi criado para integrar-se em Cristo
e, por ele, na vida trinitária, e sua alienação de Deus, embora grande, não pode ser tão grande

124
AS “TRÊS PESSOAS" DM NAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

unidade e a distinção divinas não se opõem nem se limitam uma à outra. Deus
não é menos uno pelo fato de ser trino. Mais ainda, em Deus, a unidade e a
distinção crescem em proporção direta227. Assim sendo, não temos por que
nos esforçar por reduzir tanto quanto possível as diferenças entre as pessoas
relacionadas. Quanto mais forem acentuadas ao mesmo tempo a unidade e
a distinção no Deus uno e trino, que conhece em si mesmo a alteridade no
grau máximo na unidade mais profunda, mais clara aparecerá a capacidade
divina de abraçar e de acolher em si o homem livremente criado, distinto de
Deus, sem que ocorra nenhuma confusão entre Criador e criatura.

C. O ser de Deus, eterno intercâmbio de am or


A unidade das pessoas divinas é dada pela essência divina, que podemos
identificar como a perfeição do ser no amor228. Toda a plenitude do ser que é
característica da essência divina, e que o Novo Testamento — especialmente
os escritos de João — expressa nos simbolismos da luz, da vida, do espírito,
recebe seu sentido definitivo e mais profundo a partir de 1 João 4,8.16. Não
porque Deus seja primeiro em plenitude e depois seja amor, mas porque o
ser amor determina e dá forma a seu ser em plenitude. Uma plenitude que
no fimdo se tornaria contraditória se ocorresse na obscuridade ou no isola­
mento. A essência divina, a que podemos nos referir como sendo a plenitude
do ser no amor, traz em si esta característica da união, do nós229. Isto assim é

quanto o é a distância entre o Pai e o Filho em seu aniquilamento quenótico (F1 2,7) e no
estado em que foi ‘abandonado’ pelo Pai (Mt 27,46). Trata-se aqui do aspecto econômico da
relação entre as divinas pessoas, cuja distinção (na identidade de natureza e do amor infinito)
é máxima”. A Comissão Teológica reflete explicitamente sobre a relação entre a economia da
salvação e a Trindade imanente. O “abandono” do Filho na paixão leva a considerar a distinção
interna em Deus que o torna possível (notemos a mudança de terminologia, “distância” para a
economia salvadora, “distinção” na Trindade imanente). Esta distinção é a que permite a Deus
abraçar em seu seio o pecador que se distanciou dele; isto é possível em virtude da obediência
de Jesus que, por amor e em obediência ao Pai, se despoja de sua categoria, podendo assim
experimentar na paixão a angústia e a obscuridade, o “abandono” de Deus.
227. Cf. K. H. MENKE, Stellvertretung. Schlüsselbegriff christlichen Lebens und theologische
GrundkategorieyEinsiedeln/Freiburg, 1991, 434; ibid. 450: “A unidade de Deus é absoluto dar-
se (Pai), absoluto receber-se (Filho), na infinita unidade da infinita distinção do dar-se e do
receber-se (Espírito Santo)”.
228. BERNARDO DE CLARAVAL, Dediligendo Deo 12,35 (PL 182,996): “Quid vero in summa
et beata illa Trinitate summam et ineffabilem conservat unitatem nisi caritas? Lex erit ergo, et lex
Domini caritas, quae Trinitatem in unitate quodammodo cohibet et colligat in vinculo pacis”.
229. Referimo-nos já a H. MÜHLEN, Der heiligeGeist..., 163-164,que falada “Wirhaftigkeif
da natureza divina enquanto tal, que seria a razão pela qual as pessoas são umas nas outras.

125
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

enquanto a divindade tem no Pai a fonte única, e o Pai não existe mais que na
relação com o Filho e o Espírito, na doação e na entrega sem reservas230. Razão
pela qual não parece de todo adequado estabelecer dois níveis de unidade em
Deus: a unidade da essência divina e a do amor231. O próprio ser de Deus é
amor232, mais precisamente “ intercâmbio de am or”233. Um intercâmbio que,
como Ricardo de São Vítor assinalava, pressupõe uma “condignidade” entre
o amante e o amado que responde a este amor. Sem alteridade não pode ha­
ver verdadeiro amor, este não tem lugar naquele que só se ama a si mesmo;
como já indicava são Gregório Magno: é preciso que o amor tenda ao outro
para poder ser caridade234. Contemplado de nosso ponto de vista, o amor de
Deus está na origem de sua livre ação criadora, faz surgir o outro, a criatura,
e a mantém em seu ser distinto de Deus. E, acima de tudo, envia-nos seu
Filho e o Espírito Santo para nos fazer filhos seus. Por isso podemos pensar
que o amor do Pai que se identifica com sua natureza divina está na origem

Se a essência divina se identifica com a plena posse no amor, mostra-se claro o porquê desse
”nós” inserido nela.
230. HILÄRIO DE POITIERS, Trin. IX 61 (CCL 62A, 440): “Nescit autem Deus aliud ali-
quando quam dilectio esse, neque aliud quam pater esse. Et qui diliget non inuidet; et qui pater
est, non etiam non pater totus est. Non enim admittit hoc nomen portionem, ut ex aliquo pater
sit et ex aliquo pater non sit...”.
231. Mesmo assim H. MÜHLEN, Der heilige Geist..., 165: “As pessoas divinas não são
somente uma só coisa em virtude da unidade da natureza divina, mas também em virtude da
unidade do amor”. Fundamenta esta distinção em santo Tomás, Super Joannem c. 17.1ec.5,2:
“In Patre et Filio est duplex unitas, scilicet essentiae et am oris...”. Mühlen, porém, assinala
que estas duas formas de unidade estão intrinsecamente relacionadas. Podemos pensar que a
relação é tão íntima que chegam a identificar-se.
232. Cf. o material extraído em L. F. LADAR1A, El Dios vivo y verdadero, 374-376, e que não
temos por que reproduzir. No entanto, acrescento alguns dados de que a idéia esteve presente
na tradição: assim GREGÓRIO DE NISSA, De anima et resurectione (PG 46,96): “A vida da
natureza de cima é amor, a vida divina é atuada mediante o amor”; LEÃO MAGNO, Sermo 92,3
(PL 54,454): “sic enim caritas ex Deo est, ut Deus ipse sit caritas”; JOÃO DA CRUZ, Romances
sobre el evangelio “In principio erat Verbum”, acerca da Santíssima Trindade (Obras, Salamanca,
1992, 41-42): “Três pessoas e um amado/entre todos três havia/e um amor em todas elas/e um
amante as fazia:/e o amante é o amado/em que cada qual vivia... Este ser é cada uma,/e este só
as unia/em um nó inefável/que dizer não se sabia;/pelo que era infinito/o amor que as unia,/
porque um só amor três têmVque sua essência se dizia...”.
233. Assim se expressa o CEC, n. 221: “ipsum Dei Esse est amor. Filium Suum unigenitum
et Spiritum amoris in plenitudine temporum mittens, Deus suum summe intimum revelat
secretum. Ipse aeterne est amoris commercium: Pater, Filius et Spiritus Sanctus, nosque des-
tinavit ut huius simus participes”.
234. Hom. In Evang. I 17,1 (PL 76,1139), texto citado na nota 82. Já AGOSTINHO, Trin. VIII
10,14 (CCL 50,290): “Quid est ergo amor, nisi quaedam vita duo aliqua copulans vel copulare
appetens, amantem scilicet et quod amatur”.

126
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

da processão do Filho e do Espírito, e os faz surgir também como distintos


dele, na plena posse da divindade única. Neles se dá a “condignidade” que
não podemos reivindicar para nós. Só no Deus amor na plenitude da vida
divina pode encontrar seu sentido pleno a “ definição” da primeira carta de
João. Um mesmo amor que é a essência dos três, que em cada um deles as­
sume características próprias e que não podem ser intercambiadas. Deve ficar
claro que com esta definição de Deus como amor não se questiona o fato,
constantemente afirmado na tradição e atestado em importantes documentos
magisteriais, de que a essência divina seja inefável e incompreensível235. Com
efeito, o amor divino excede nossa capacidade de compreender e não pode­
mos expressá-lo com palavras. Podemos pensar que a incompreensibilidade
da essência divina tem algo a ver com a incompreensibilidade da plenitude
do ser no total intercâmbio de amor.
A partir desta idéia do Deus amor, podemos retornar à que já indicamos:
não parece ter muito sentido a tentativa de distinguir o menos possível as
pessoas divinas umas das outras. O amor não pode tender de modo algum à
uniformidade, nem a eliminar ou reduzir as diferenças. É o amor o que cria
em Deus a distinção e faz surgir a criatura precisamente como aquele algo
diferente de Deus. O Pai e o Filho (e o Espírito Santo) não são uma só coisa
de maneira tal que se confundam entre si236. O am or pode existir porque
se dirige ao outro, só pode dar-se no estar “frente a frente”. Cada uma das
pessoas é sempre ela mesma, pois não são intercambiáveis entre si, todavia o
é apenas na doação total às outras duas; nesta doação não se dá, por sua vez,
uma mescla entre as três, mas somente nela consiste a identidade irrepetível
de cada uma das pessoas237. Por isso, a unidade de que se trata será tanto mais
evidente quanto mais clara for a distinção das pessoas, e vice-versa. Não se há

235. Cf., entre outros, DH 800; 804; 3001.


236. Cf. JOÃO DAMASCENO, De fide orth., I 8 (PG 94,829): as pessoas estão umas nas
outras, não para serem confundidas, mas para se conterem umas nas outras na perichoresis,
sem contradição e sem mescla.
237. J. RATZINGER, Der Gott )esu Christi. Betrachtungen über den Dreieiniger Gott,
München, 1976, 28: “O Pai e o Filho não são uma só coisa de tal maneira que se dissolvam
um no outro. Permanecem um em frente ao outro, pois o amor se funda no ‘frente a frente’
que não é absorvido. Assim sendo, que cada um dos dois continua sendo o mesmo e não se
eliminam um ao outro, sua unidade não pode consistir em que cada um exista para si, mas na
fecundidade, na qual cada um se presenteia a si mesmo ou é em si mesmo. São uma só coisa
por esta razão, porque seu amor é fecundo, porque vai mais além deles próprios. No terceiro,
naquele em que eles próprios se presenteiam, no dom, são cada qual ele próprio e ao mesmo
tempo uma só coisa”. O texto se refere especificamente à processão do Espírito Santo, mas ao
mesmo tempo ilustra muito bem o sentido da unidade divina. Também o Espírito entra nesta

127
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

de afirmar nenhum dos dois extremos à custa do outro. A unidade divina é a


da total comunhão das pessoas, que não exclui, mas afirma a existência de três
“eus”, porém ao mesmo tempo elimina radicalmente a possibilidade de um
“teu” e um “ meu” (cf. Jo 16,15; 17,IO)238; significa, portanto, a total comunhão
do “nós”, que se faz impossível um teu e um meu (exceto nos diálogos entre
Jesus e o Pai, “ Pai meu” , ou, “Tu és meu Filho”, a partir dos quais se desenvol­
veu a doutrina das relações constitutivas das pessoas) é porque pressupõe não
um só “eu” , mas um “ nós” dos três levado à plenitude máxima. Todavia, este
“ nós”, por sua vez, não pode consistir na eliminação dos três “eus” , porque o
mesmo “nós” deixaria de ser tal. Mais intensa e real será a comunhão do nós
quanto mais cada uma das pessoas se distinguir das demais.
A expressão máxima da unidade entre as pessoas foi vista na mútua
inabitação ou perichoresis delas, da qual se fala no evangelho de João (cf. Jo
10,28; 14,10-11.20; 17,21-23239) e na mais antiga tradição240. Não é possível
estabelecer uma fronteira entre a unidade da essência divina e a unidade da
mútua perichóresis entre as pessoas; é a unidade mais íntima que se possa
imaginar, fundada não só no esse adyo ser em relação ao outro e com o ou­
tro, mas na intimidade ainda m aior do esse in, do ser no outro, o amante no

unidade e é o terceiro nesta comunhão como aquele que é o mesmo na doação do amor que,
respondendo ao Pai e ao Filho, sela a comunhão dos dois. Cf. mais adiante o capítulo 4.
238. “Tudo o que é meu é teu” (Lc 15,31), diz o pai do filho pródigo a ele. A comunhão
divina pode ser participada, por graça indevida, aos homens.
239. Nesta última passagem, mostra-se com clareza a relação entre o ser uno do Pai e do
Filho e a mútua inabitação: “Que todos sejam um. Como tu, Pai, em mim e eu em ti... Para
que sejam um como nós somos um [êv]; eu neles e tu em m im ...”, desta unidade devem ser
participantes também os homens, como já indicávamos na nota anterior.
240. Cf. ATENÁGORAS, Legatio pro Christianis, 10 (BAC 116,660). São interessantes, deste
ponto de vista, algumas observações de X. ZUBIRI, El problema teologal dei hombre: cristia­
nismo, Madrid, 1997, 140-145, sobre a mútua implicação das pessoas, a compenetração entre
elas, e a vida pessoal de Deus; assim em ibid. 141: “A respectividade trinitária não é questão de
TiepixópEOtc; de natureza, mas de implicação do que é seu, isto é, dos caracteres pessoais da pessoa
enquanto tal... Inegavelmente, existe uma circulação de natureza, porém é como consequência
desta unidade estrutural das pessoas” ; ibid. 144: “se entendemos a vida de um ponto de vista
pessoal, então a vida pessoal não é composta unicamente de uma pessoa. Ao invés, a plenitude
da vida pessoal de Deus é composta por várias pessoas. E entre as várias pessoas, pessoalmente
distintas, constituem uma só vida pessoal, que não é numericamente uma, mas possui uma
unidade intrínseca de respectividade... Existe em Deus uma unidade que não é numérica... mas
de pessoas que, em sua distinção, constituem uma só vida trinitária, que é real e efetivamente a
vida de Deus”; “Em Deus existe uma vida, uma unidade puramente respectiva e não numérica,
como a que pode haver entre várias pessoas que em sua distinção de pessoas, não obstante,
vivem uma vida pessoalmente una. Reciprocamente, a vida pessoal divina na Trindade mesma
é essencialmente vivida em três pessoas distintas. Há em Deus uma vida trinitária 'una’, que
tem uma estrutura de certo modo unitária com unidade de respectividade”.

128
AS "TRÊS PESSOAS" DM NAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

amado, e vice-versa. Sem pensar, certamente, que esta inabitação seja mera­
mente estática, mas com toda a dinamicidade do movimento que implica a
perichóresis grega. Poderíamos dizer que o ser em relação ao outro leva por
sua própria dinâmica interna ao ser no outro, ao entrar no outro, suprema
aspiração do amor que quer unir o diverso sem anulá-lo. A manifestação e
realização máxima da unidade do Pai e do Filho é o Espírito dos dois, que é
por sua vez o fruto desta mesma unidade. Unidade e fruto dela, porque só
neste fruto, precisamente no Espírito dos dois, realiza-se a unidade na qual
não existe nem teu nem meu. O Espírito é por sua vez um “eu” , uma pessoa,
que compartilha em plenitude tudo o que é do Pai e do Filho. Notemos que
o Espírito vem do Pai e do Filho, e não só do que têm em comum (unidade
da essência), mas também do amor dos dois (que parte sempre do amor cuja
fonte é o Pai), que pressupõe a distinção entre um e outro. No capítulo 4,
haverá oportunidade de voltar mais demoradamente a este particular.

D. A unidade da essência divina


Em Deus, devemos falar, portanto, de três “pessoas” , três “sujeitos”
distintos, no sentido de que os três se autopossuem241, mas que, em sua dis­
tinção máxima, têm tudo em comum, inclusive a consciência única. Já nos
referimos ao consenso, neste ponto, da teologia católica dos últimos tempos.
Estas novas formulações respondem a problemas que não foram propostos
nestes mesmos termos em tempos passados. Acredito, no entanto, que se co­
loquem em continuidade com as afirmações clássicas, extraídas de numerosos
documentos magisteriais, que insistem em que as três pessoas divinas têm em
comum tudo o que se diz de Deus em si mesmo. Podemos citar alguns destes
textos. O chamado Tomus Damasiy do ano 382, apresenta um notável elenco
do que o Pai, o Filho e o Espírito Santo têm em comum: “uma só divindade,
potestade, majestade e potência, uma só glória e dominação, um só reino
e uma só vontade e verdade” (DH 172); mais sóbrio, o segundo concílio
de Constantinopla (do ano 553): “ ... uma só natureza ou substância, uma
só virtude e potestade..., uma só divindade em três hipóstases ou pessoas”
(DH 421); a Fides Pelagii papae, do ano 557, acrescenta uma curiosa menção
à felicidade única das três pessoas: “ ... três substâncias de uma só essência

241. Melhor falar de três que compartilham uma mesma autopossessão do que de três
autopossessões, precisamente para dar maior relevância tanto à distinção como, ao mesmo
tempo, à unidade. Cf. A. GONZÁLEZ, Teologia de la práxis evangélica. Ensayo de uma teologia
fundamental, Santander, 1999, 401.

129
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

ou natureza, de uma só força, de um só operar, de uma só beatitude e de


uma só potência” (DH 441); na confissão de Miguel Paleólogo no segundo
concílio de Lião, de 1274, fala-se da Trindade consubstanciai “ ... de um a só
vontade, poder e m ajestade...” (DH 851). Todas estas propriedades divinas
são possuídas em plenitude pelos três, por cada um segundo sua propriedade
pessoal que não se pode confundir nem intercambiar.
Por outro lado, se há de afirmar que cada uma das pessoas é o único
Deus verdadeiro, pleno e perfeito (DH 851). Cada pessoa é Deus inteiramente,
e este não é a soma dos três242. A santa Trindade é uma só coisa que não se
multiplica nem aumenta com o número243. Isto quer dizer que o ser das três
pessoas na relação e na inabitação mútua não pode de modo algum significar
que haja nelas qualquer carência nem limitação alguma. A comunhão das pes­
soas, por mais que pertença a sua natureza, não é uma necessidade que venha
da imperfeição, mas do transbordamento da própria plenitude. Não pode ser
de outra maneira, se a essência de Deus se identifica com o ser em plenitude
no amor e com o eterno intercâmbio dele. Se faltasse às pessoas algo para a
perfeição, esta seria o resultado da unidade das três e seria, portanto, algo
“posterior” à trindade das pessoas. Somente a soma destas últimas constituiria
a divindade plena. Às pessoas divinas, no entanto, não lhes falta nada, porque
são Deus inteiramente, e nem sequer falta a cada uma delas ter a proprieda­
de pessoal das outras duas, porque o não tê-la não é uma carência; nada se
acrescentaria a cada uma delas, nem à perfeição da divindade que possuem,
se, por uma eventualidade impossível, se lhes desse esta comunicação das
propriedades das outras pessoas244. Segundo o concílio XI de Toledo, Deus

242. Assim, a Fides Pelagii Papaeya que acabamos de nos referir (DH 441): “ ... et omnes tres
simul unus verus perfectus sit Deus, videlicet ex plenitudine divinitatis nihil minus in singulis,
nihil amplius intelligatur in tribus”.
243. Papa HORMISDAS, Inter eas quae ao imperador Justino, ano 521 (DH 367): “ Unum
est sancta Trinitas, non multiplicatur numero, non crescit aumento”; Concílio IX de Toledo
do ano 675 (DH 529): “Singulariter ergo, et unaquaeque persona plenus Deus et totae tres
personae unus Deus confítetur et creditur: una illis vel indivisa atque aequalis Deitas, maiestas
sive potestas, nec minoratur in singulis, nec augetur in tribus; quia nec minus aliquid habet,
cum unaquaeque persona Deus singulariter dicitur, nec amplius, cum totae tres personae unus
Deus enuntiatur” .
244. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or., 31,9 (SCh 250,290-292): “O que falta ao Espírito...
para ser Filho?... Por outro lado, também ao Filho não lhe falta nada para ser o Pai, porque
a condição de Filho não significa uma carência, e não por esta razão é o Pai... Estas palavras
não significam uma carência nem uma diminuição segundo a essência, enquanto ele não ter
sido gerado, o haver sido gerado e o proceder indicam o primeiro o Pai, o segundo o Filho,
o terceiro aquele que se chama precisamente o Espírito Santo, de maneira que se conserve
sem confusão a distinção das três hipóstases em uma única natureza e na única dignidade da

130
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

não se separa do número, embora tampouco possa ser contido por ele245. Só
existe na comunhão inefável das três pessoas, e as três juntas não são “ mais”
do que cada uma delas. É Trindade, e não triplo246. Temos de continuar falan­
do das três pessoas, embora insistamos na “originalidade” de cada uma delas
e na dificuldade de usar um conceito comum. Porém, ainda que seja “para
não calar” , como dizia santo Agostinho, não podemos deixar de pensar que
existe algo, por mínimo que seja, que não nos permite que nos afastemos do
número; contudo, ao mesmo tempo, há de ficar claro que Deus não se deixa
compreender no número e que a originalidade do Pai, do Filho e do Espírito
Santo não pode ser deixada de lado quando dizemos “três pessoas”.
A unidade divina na comunhão das pessoas não é um dado “posterior”
à distinção destas últimas, porque tem no Pai sua raiz e seu fundamento. O
mistério de Deus e o mistério do Pai vêm a coincidir, dizia-nos Von Balthasar.
Precisamente porque o Pai não é mais que Pai, a natureza divina que tem nele
sua única fonte e origem, carrega em si a dimensão da comunhão, do “nós” . Para
a reta compreensão de quanto dissemos até aqui, não podemos, portanto, pres­
cindir da teologia do Pai. A ela dedicamos nossa atenção no capítulo seguinte.

Apêndice: a "comunicação" em Deus em alguns autores místicos e


espirituais espanhóis do século XVI
Nunca será supérfluo para a teologia dedicar atenção aos santos e aos
autores espirituais. Mesmo que estejamos bem conscientes da diferença dos
gêneros literários, a voz dos que tiveram uma profunda experiência de Deus
é uma fonte para enriquecer a reflexão crente sobre o mistério. Não criou
nenhum problema para alguns grandes autores espirituais do século XVI
falar da comunicação e do intercâmbio profundos entre as pessoas divinas.
Pressupõe-se o “nós” em Deus. Ofereço alguns poucos exemplos.
Cito, antes de tudo, uma bela página de santa Teresa de Jesus sobre o
intercâmbio de amor e a comunicação das três pessoas divinas:
Representaram-se a mim três Pessoas distintas, pois a cada uma se pode ver e
falar individualmente. E depois pensei que só o Filho tomou carne humana, o

divindade. O Filho não é o Pai, pois o Pai é um só, porém é a mesma coisa que o Pai; nem o
Espírito é o Filho pelo fato de provir de Deus, porque um só é o Unigénito, porém é a mesma
coisa que o Filho. Os três são um só ser quanto à divindade, e o único ser são três quanto às
propriedades”.
245. Cf. DH 530.
246. Cf. DH 528.

131
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

que prova essa verdade. Essas pessoas se amam, comunicam-se e se conhecem.


Mas, se cada uma existe por si só, como podemos dizer que as três são uma
mesma essência, e acreditar nisso, tomando-a por grande verdade, sendo eu
capaz de morrer por ela mil vezes? Em todas essas três Pessoas não há senão
um querer, um poder e um domínio, de modo que nada pode uma sem a
outra: de quantas criaturas há, é só um o Criador...247.

Não deixa de ter seu interesse a idéia de santa Teresa segundo a qual cada
pessoa pode contemplar e falar por si e, além disso, amam-se, comunicam-
se e se conhecem. Estamos de algum modo diante de uma antecipação dos
problemas da teologia moderna. O intercâmbio de amor entre as três pessoas
divinas é algo que vem espontaneamente à mente da santa. Que cada um a tem
um m odo de agir que lhe é próprio (pode olhar e falar por si) confirma-se no
fato de que só o Filho se encarnou. A distinção das pessoas é tão importante
quanto a unidade da essência a que alude imediatamente depois. Nos três, não
existe mais que “um querer, um poder e um domínio”, expressões que pare­
cem inspiradas nos textos magisteriais que citamos. Esta unidade de essência,
de poder e de vontade não é, portanto, incompatível com a comunicação e o
intercâmbio de amor entre elas.
São João da Cruz, em seus Romances, finge diálogos cheios de sabor entre
o Pai e o Filho na preparação da encarnação248. Santo Inácio, nos Exercícios
Espirituais, convida-nos a contemplar o que fazem e dizem as três divinas
pessoas em sua decisão de salvar o mundo. Pressupõe-se também um diálogo
etemo entre elas249. Muito interessante é também uma passagem de são João de
Ávila, onde também a noção de comunicação desempenha um grande papel,
em relação com a fecundidade e a generosidade divinas, já que Deus não é

247. Relaciones 33,3. (Obras completas, Burgos, 1984, 1461).[Citado da ed. br.: Relações, in
Obras completas — Teresa de Jesus, São Paulo, Loyola/Carmelitanas, 22002, 820.]
248. Cf. Romances 2-4; 7 (Obras completas, Salamanca, 1992, 42-45;47-48); reproduzimos
alguns versos deste último: “Nos amores perfeitos/esta lei se requeria:/que se fizesse semelhante/o
amante a quem queria:/que a maior semelhança/mais deleite continha;/o qual, sem dúvida, em
tua esposa/grandemente cresceria/se viesse a ser semelhante/na carne que tinha./Minha vontade
é a tua/— o Filho lhe respondia — /e a glória que eu tenho/é tua vontade ser minha...”. Cf.
Hebreus 10,5-10, onde parece pressupor-se este diálogo eterno do qual nasce a encarnação.
249. Exercidos Espirituais, n. 102: "... como as pessoas divinas olhavam toda a planície ou
redondeza de todo o mundo...”; 107: “ ... o que dizem as pessoas divinas é, a saber: ‘Façamos
redenção do gênero humano’...”. Pressupõe-se claramente um “nós” divino, não somente um
eu. Cf. também ibid. 108. A mediação do Filho em face do Pai ocupa um lugar central, tanto
nos EE (cf. n. 63; 148; 156; 168) como no Diário Espiritual (cf. n. 8; 15; 23; 24; 27; 63, com
referência à unidade da inabitação mútua; 77 etc.).

132
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA

avarento; poder-se-ia encontrar uma semelhança com o motivo patrístico da


falta de inveja em Deus:
E, pois, é melhor que em Deus haja comunicação suma, pois à suma bondade
convém suma comunicação e, se esta há de haver, há de ser comunicando sua
mesma e total essência, e assim terá em Deus suma fecundidade, como a Deus
convém, e não esterilidade, que é coisa muito alheia a ele, segundo diz por
Isaías: Acaso abriria eu passagem à vida para não fazer dar à luz? (Is 66,9).

E mesmo que Deus se comunique, criando anjos e homens e o universo, reali­


zando mercês, no entanto, nem esta é fecundidade nem comunicação de bem
infinito, porque ele não lhes dá sua essência, mas lhes dá o ser e virtudes que
eles têm, nem deixaria Deus de ser Deus solitário, por muitas criaturas que o
acompanham, pois delas a ele existe distância infinita; assim como também
não deixaria Adão de ser solitário, por muitos animais e outras criaturas que
no mundo havia, embora as tivesse muito próximas de si (cf. Gn 2,18-20). E,
para que o homem não estivesse só, Deus lhe deu companheira que tivesse
semelhança e igualdade com ele. E assim Deus não é solitário, pois na unidade
da essência há três pessoas divinas; nem é estéril e avarento, pois há comuni­
cação de deidade infinita250.

A bondade suma não pode existir mais do que na comunicação suma.


Esta pode existir porque em Deus é preciso excluir tanto a esterilidade como
a avareza, isto é, o não poder ou o não querer dar-se completamente251. Deus
Pai, porém, quer e pode comunicar inteiramente a essência divina ao Filho
e ao Espírito, e assim Deus não é solitário. Parece, portanto, pressupor-se a
comunicação interpessoal na inefável unidade da essência divina.

250. Audi filia (II) 39,3 (Bac maior 64, 619-620). Sobre a fecundidade divina, SANTO
TOMÁS, STh 127,5, ad 3: “ ... est in eo solum unum verbum perfectum, ut unus amor perfectus.
Et in hoc eius perfecta fecunditas manifestatur”; a influência de santo Tomás parece também
patentear-se nas considerações sobre a solidão de Deus e a de Adão; cf. STh I 31,3, que citamos
na nota 101; sobre o Deus não-solitário, cf. nota 100.
251. Retornaremos a este tema no capítulo seguinte.

133
Capítulo 3

Deus Pai. Alguns aspectos


da teologia sistemática recente

O estudo sobre Deus Pai coloca-nos no próprio coração da noção cristã


do Deus uno e trino1. É inevitável que todas as questões que abordam a uni­
dade e a trindade divinas se reflitam na hora de tratar da primeira pessoa da
Trindade, que, segundo a tradição da Igreja, é a fonte, o princípio, a raiz e a
causa de toda a divindade2. A originalidade da noção cristã acerca de Deus se
apóia precisamente no fato de que, por ser Pai, não é um Deus “solitário”,
pois desde toda a eternidade tem consigo o Filho, igual a ele e ao Espírito
Santo. A teologia, já desde os primeiros tempos, foi aprofundando progres­
sivamente na idéia de que Deus não está só3. Os temas tratados no final do

1. Este capítulo constitui uma reelaboração do artigo publicado com o mesmo título em
Estúdios Trinitarios 32 (2000) 263-295, e também no volume Dios Padre enviô al mundo a su
Hijo, Salamanca, 2000, 163-195.
2. Cf., entre outros textos, TERTULIANO, Adv. Prax, 8,5-7 (Scarpat, 160); GREGÓRIO
DE NAZ1ANZO, Or. 2,38 (SCh 247,140); 30,7 (SCh 250,240); AGOSTINHO, Trin. IV 20,29
(CCL 50,200): “totius divinitatis vel si melius dicitur deitatis principium pater est”. Diferentes
documentos magisteriais salientaram esta verdade; assim os símbolos dos concílios de Toledo
VI, XI e XVI; DH 490 “Patrem ingenitum, increatum, fontem et originem totius divinitatis”; cf.
525; 568. Cf. F. A. PASTOR, “Principium totius deitatis”. Mistério inefable y lenguaje eclesial,
Gregorianum 79 (1998) 247-294. Sobre a paternidade de Deus na tradição, cf. E. ROMERO POSE,
Apuntes sobre Dios Padre en la teologia primitiva, in Dios Padre envió al mundo a su Hijoy73-109;
L. F. LADARIA, La fede in Dio Padre nella tradizione cattolica, Lateranum 66 (2000) 109-128.
3. TERTULIANO, Adv. Prax. 5,2 (152): “Ante omnia enim Deus erat solus, ipse sibi et
mundus et locus et omnia. Solus autem quia nihil aliud extrinsecus praeter ilium. Ceterum ne
tunc quidem solus; habebat enim secum quam habebat in semetipso rationem, suam sicilicet”.

135
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO

capítulo anterior encontram aqui não apenas sua continuação, mas também
seu fundamento. Nas antigas alusões ao Deus não-solitário encontra-se já
certo esboço, certamente bem distante, dos problemas que se apresentaram
nos últimos tempos.
Se Deus não é solitário e o Filho é Deus como ele, delineia-se o problema
da unicidade divina. Não significa isso falar de “outro” Deus? A questão foi
proposta já nos primeiros tempos do cristianismo*45. O problema da unidade
e da trindade divinas, que têm no Pai seu fundamento último, vai significar
sempre um desafio para o pensamento teológico. Não é somente um interesse
especulativo o que leva ao estudo do mistério da Trindade. Santo Tomás justifica
a necessidade da disciplina teológica pelo fato de que Deus, cuja compreensão
excede a razão humana, é o fim último do homem. Somente com o conheci­
mento de Deus pode ordenar a ele suas intenções e ações\ A reflexão sobre a
pessoa do Pai enquanto princípio e fonte da divindade é essencial para a teologia
cristã. Proponho-me, neste capítulo, a repassar alguns dos problemas sistemáticos
que nestes últimos anos foram debatidos e se debatem ainda hoje no âmbito da
teologia, sobretudo católica. Não podemos, evidentemente, abordar todos os
problemas propostos, nem tampouco levar em conta o pensamento de todos
os autores dignos de nota que os abordaram. Farei referência a apenas três pon­
tos: à questão de quem é o Deus uno, ao debate recente acerca da importância
das processões divinas, e portanto da condição de origem da divindade que
corresponde ao Pai, e, por último, farei uma breve alusão à teoria da “ kénosis
originária” do Pai na geração do Filho e na processão do Espírito Santo.

1. É o pai o Deus uno?


O problema é complexo e está, sem dúvida, correlacionado com a divisão
tradicional de matérias dos tratados “de Deo uno” e “ de Deo trino”, atualmente

HILÁRIO DE POITIERS, Trin. I 38 (CCL 62,37): “ ... ita Deum et te celebrare, ne solum, et
eum praedicare, ne falsum”; VII 3 (262): “Non enim unum Deum pie possumus praedicare,
si solum, quia non erit Deus filius in solitarii fide... Et eiusdem periculi res est unum Deum
negare, cuius est solitarium confiteri” ; VIII 36 (349): "... unum utrumque significat, non ad
solitudinem singularis, sed ad spiritus unitatem”. Cf. TOMÁS DE AQUINO, STh I 31,4, ad 3.
Texto citado na nota 101 do capítulo 2.
4. Assim, por exemplo, em são JUSTINO, Dial Tryph. 50,1 (Marcovich, 152); 55,1 (161).
À expressão na boca de Trifon, de que a Escritura não conhece “outro Deus”, Justino responde
que a Escritura chama Deus a outro, além do criador do universo; cf. ibid. 56,4 (161-162).
Cf. PH. HENNE, Pour Justin, Jésus est-il un autre Dieu, Revue des Sciences Philosophiques et
Théologiques 81 (1997) 57-68.
5. Cf. STh I 1,1.

136
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

em revisão. Procurarei, contudo, não entrar diretamente no assunto da dis­


tribuição sistemática6 e limitar a exposição ao problema de fundo.
Como bem se sabe, a discussão dos últimos tempos parte do conhecido
artigo de Karl Rahner “Theos no Novo Testamento”, onde se constata o dado
comumente aceito de que na maioria dos casos em que o Novo Testamento
fala de Deus não se refere às três pessoas em sua essência e divindade comum,
mas à pessoa do Pai7. Identifica-se com ele o Deus do Antigo Testamento, que
no Novo se dá a conhecer de modo incomparavelmente mais profundo como
o Pai de Jesus. Cabe a Deus, de maneira muito especial e própria, o nome de
Pai (cf. Mt 23,9; Ef 3,14s.). O mesmo uso lingüístico do Novo Testamento é
observado nos primeiros séculos da Igreja, e não só no Oriente, mas também
no Ocidente8. Foi e continua sendo o uso secular da liturgia, e concretamente
da liturgia romana, que dirige normalmente à primeira pessoa a oração oficial
da Igreja9. wDeus”, neste sentido, é antes de tudo o Pai. O dado é substancial­
mente indiscutível. Todavia, no artigo que acabamos de citar, Karl Rahner faz
algumas considerações, servindo-se dos esquemas de Th. De Régnon101, que
vão além da simples constatação de um uso lingüístico e apontam já para
conclusões sistemáticas:
A concepção latina parte da unidade da essência divina... como suposto de
toda a doutrina trinitária. A concepção chamada grega, ao contrário, fixa-se
primeiro nas três pessoas — que possuem a mesma essência divina — ou,
melhor dizendo, no Pai, que faz proceder de si o Filho e, mediante o Filho,
o Espírito. A unidade e a mesmidade da essência divina são conceitualmente
a conseqüência de que o Pai comunique toda a sua essência. Segundo esta
concepção grega da Trindade, o Pai é considerado o Deus ícaí k£oxr\vn.

6. Veja-se já o tratamento da questão por K. RAHNER, El Dios trino como principio y


fundamento trascendente de la historia de la salvación, MySal II/I, 360-449, espec. 365-370;
permito-me reportar a L. F. LADARIA, Ei Dios vivo y verdadero..., 17-21; 365-370; pode-se ver
também L F. MATEO-SECO, Dios Uno y Trino, Pamplona, 1998.
7. K. RAHNER, Theos en el Nuevo Testamento, in Escritos de Teologia I, Madrid, 1963,
93-167; alguns matizes às conclusões de K. Rahner, em G. GALOT, Le mystère de la personne
du Père, Gregorianum 11 (1996) 5-31.
8. Cabe a Deus, de maneira especial, o nome de Pai: TERTULIANO, De paenitentiay
8 (CCL 1,335): “Quis ille nobis intellegendus pater? Deus scilicet: tarn pater nemo, tarn pius
nemo”; no contexto, refere-se à parábola do filho pródigo.
9. Cf. B. NEUNHAUSER, MCum altari adsistitur semper ad Patrem dirigatur oratio”. Der
Kanon 21 des Konzils von Hippo 393yAugustinianum 25 (1985) 105-119.
10. Cf. TH. DE RÉGNON, Etudes de théologie positive sur la Sainte Trinitéy Paris, 1892-
1898, 4 V.
11. K. RAHNER, Theos en el Nuevo Testamento, 165. Rahner usa a terminologia de
Régnon, consciente de sua inadequação; cf. ibid. Na realidade, os textos da tradição latina

137
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Não é somente isso. Há também o fato de que o Deus que podemos


conhecer pela razão natural é o Pai: “é necessário que ‘este Deus’ no qual
havemos de pensar que subsiste necessariamente a essência divina seja o Pai,
ainda que nós não o conheçamos como tal” 12. O Pai é, portanto, a subsistência
absoluta a que podemos chegar pela razão.
A teologia natural não conhece só uma divindade, mas justamente um Deus13;
a essência divina tem de subsistir de maneira necessária em uma ausência de
origem absoluta em todo aspecto14. Pois bem, o ser assim conhecido é o Pai
e somente o Pai. A necessidade de uma total ausência de origem em Deus,
sob qualquer aspecto imaginável e possível, pode ser afirmada pela teologia
natural, embora de maneira completamente formal. Porém, a teologia natural
desconhece em absoluto que esta origem concreta de toda realidade, carente
totalmente de origem, é também origem, por comunicação, da essência divina,
e não só por criação do nada. Ignora, pois, que existe um “outro” que também
possui a essência divina. E portanto que tal ser, absolutamente sem origem,
não possui a essência divina e sua própria ausência absoluta de origem mais
que dentro de... uma relação com seu Filho. Ignora, em conseqüência, que
em tudo o que procede de Deus pertence à realidade finita do criado. Isto,
porém, não modifica em nada o fato de que, quando a teologia natural conhece
o princípio primeiro sob qualquer aspecto de toda a realidade — não apenas
contingente —, conhece o Pai... A necessidade formal ontológica de uma
ausência de àpxf| que seja absolutamente àvocpxóç refere-se a priori e de maneira
formal a uma carência de origem em contraposição não só a uma origem por
criação, mas a qualquer origem possível, real ou hipotética15.

Esta idéia foi seguida e desenvolvida por não poucos autores. Muitos dão
como certo que a doutrina do Deus uno é a doutrina acerca do Pai, muito
embora, por razões evidentes, ainda não possa aparecer nela como tal. Entre

que citamos nas notas precedentes mostram que o Pai é considerado também no Ocidente o
princípio da Trindade.
12. K. RAHNER, Theos, 152.
13. K. Rahner assinala em outro lugar que se opinou que bastaria escrever um tratado
De divinitate una, “muito filosófico e abstrato e muito pouco histórico-salvífico e concreto”. El
Dios trino como principio..., 367. Ter-se-á de tratar, portanto, do Deus uno, não simplesmente
da “divindade una”.
14. À luz da doutrina trinitária o Pai, que não tem origem, não pode ser pensado mais
que em relação com o Filho e o Espírito. A ausência de origem absoluta de que aqui fala K.
Rahner não significa, portanto, que se considere o Pai uma “pessoa absoluta” .
15. K. RAHNER, Theos, 151.

138
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

os manuais mais influentes nos últimos tempos, o de W. Kasper16 é um dos


que mais decididamente tiraram esta conclusão sistemática que, sem dúvida,
vai além das afirmações de K. Rahner. Kasper trata da essência de Deus no
capítulo dedicado a Deus Pai, ainda que, para ser precisos, é preciso reconhecer
que no final da obra se encontra um tratamento sistemático da unidade e da
trindade divinas17. Não podemos nos deter agora nos conteúdos concretos
desenvolvidos, que certamente não coincidem com os clássicos do “de Deo
uno”, estudados em outras partes da obra18. Contudo, é interessante a união
entre a teologia do Pai e a questão pela essência de Deus (que também irá
tratar em outros momentos com desenvolvimentos muito interessantes sobre
o Deus amor19). Justifica sua opção de maneira muito semelhante à de Karl
Rahner: “A questão filosófica acerca do fundamento último (ápxf|) de toda
realidade e a mensagem bíblica acerca de Deus Pai, isto é, da origem pessoal e
da fonte da realidade da criação e da redenção, encontram-se, apesar de todas
as diferenças, em uma íntima correspondência”20.
Não faltam boas razões para essa aproximação do problema, e os autores
citados deram-lhes a devida ênfase. Contudo, também não faltaram as críticas,
centradas em grande parte na questão do Deus cognoscível filosoficamente,
princípio de tudo, ao Pai origem da Trindade, que implica a relação com
outras pessoas e, portanto, não pode ser “absoluto”21 em todos os sentidos.
Sem negar os pressupostos do vocabulário do Novo Testamento em que se
funda esta opção sistemática, podem-se-lhe opor, e de fato se lhe opuseram,
outras considerações. Se está claro que o Deus do Antigo Testamento se
identifica pessoalmente com o Pai de Jesus, não é igualmente evidente que
na revelação “natural” ou na do Antigo Testamento somente o Pai (embora
nunca como tal) seja conhecido. O Pai é o único princípio da divindade, mas
o é somente enquanto relacionado com o Filho e o Espírito Santo, e somente
com eles, e em relação a eles é o princípio de todas as coisas. Não é dema­
siado precipitada a passagem da ausência de origem e do princípio absoluto
para a paternidade?22 Assinalamos o problema suscitado em relação com um

16. W. KASPER, Der Gott Jesu Christi> Mainz, 1982.


17. Cf. ibid. 187-198; 354-383.
18. Cf. ibid. 92-150; 291-297.
19. Cf. ibid. 371-377.
20. Ibid. 187.
21. Sobre este debate, cf. D. KOWALCZYK, La personalità in Dio. Dal método trascendentale
di Karl Rahner verso un orientamento dialógico in Heinrích Oíf, Roma, 1999, 199-206.
22. Nos tempos da controvérsia ariana, Eunômio negava a verdadeira paternidade divina
em nome precisamente da “inascibilidade”. Cf. EUNÔMIO, Apologia 7-9; 14-15 (SCh 305,
244-250; 260-264).

139
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

dos textos citados de Karl Rahner23. O não ter origem de seu não constitui a
pessoa; o princípio sem princípio não poderia, portanto, identificar-se com
tanta facilidade com o Pai, o qual, como o próprio Rahner indica, possui
sua essência e seu ser absolutamente não derivado de outro só em relação ao
Filho (e ao Espírito Santo). Os problemas do princípio e os da paternidade
estão certamente relacionados, porém, deveriam ser distinguidos24. É a linha
que H. U. von Balthasar procurou seguir. Segundo ele, deve-se manter uma
maior correlação na revelação das três pessoas; existe já uma certa revelação
da Trindade implícita na revelação da pessoa do Pai:
A idéia de uma revelação sucessiva das três pessoas divinas é absurda, pois
são elas essencialmente imanentes umas às outras; na relação pré-cristã com
Deus, somente o Deus vivo (trinitário) pode ter sido revelado, embora não
formalmente em sua Trindade, como os Padres da Igreja (pelo menos de
Ireneu em diante)25 o confirmam; o fato de que no momento da encarnação
do Filho no Novo Testamento seja em primeiro lugar o Pai quem o envia do
céu, o que é invocado como “Deus” não quer dizer nada em contrário, pois
naturalmente o Filho e o Espírito remetem sempre ao Pai, o Deus da Antiga
Aliança, a partir de agora interpretado de maneira totalmente nova embora
sempre idêntica, o Deus que enviou desde sempre seu Verbo e seu Espírito, e
que sem eles não teria podido estabelecer nenhuma aliança com os homens.
O Verbo, no entanto, não havia dado ainda o passo definitivo até a esfera dos
homens, com o que não era possível conhecê-lo como pessoa divina; e este
era o caso do Espírito, que, embora repousando nos homens, ainda não havia
penetrado definitivamente em seu coração26.

23. Cf. a nota 14.


24. É preciso assinalar que K. Rahner reage contra a tendência a repelir toda idéia da
preparação da revelação trinitária no Antigo Testamento; cf. El Dios trino como principio y
fundamento, 369. W. KASPER, Der Gott Iesu Christi, 295-297, afirma mais diretamente esta
preparação. Estes autores não estão, portanto, alheios à preocupação de relacionar a revelação
do Deus uno e trino.
25. Von Balthasar poderia ter já mencionado Justino neste contexto. Com efeito, ele é o
primeiro que, antes de Ireneu, assinala que as teofanias do Antigo Testamento são, enquanto
preparação para a encarnação, manifestações do Filho; cf. Apologia /, 63 (Wartelle, 184-188);
Dial Tryph, 56-62 (Marcovich, 161-178). Cf. capítulo 1, nota 21.
26. Teodramática 3. Las personas dei drama: el hombre en Cristo, Madrid, 1993, 470. Cf.
também W. PANNENBERG, Teologia sistemática I, Madrid, 1992, 353s., onde assinala que do
fato de que a palavra de Deus no Novo Testamento designe o Pai não se segue que a doutrina
da unidade da essência divina na Trindade de pessoas tenha de ser a doutrina sobre Deus Pai.
Porém, a divisão seguinte nos mostrará alguns dos pressupostos a partir dos quais Pannenberg
faz esta afirmação.

140
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

Em uma linha muito semelhante, antes de H. U. von Balthasar, R. Schulte


já se expressara, no artigo dedicado à preparação da revelação trinitária no
Antigo Testamento no segundo volume de Mysterium Salutis. Schulte dá como
certo que não existe uma revelação da essência divina prévia à da Trindade;
neste ponto, o acordo parece total e não são necessárias ulteriores explicações.
Também não deveriam ser considerados apenas uma preparação à revelação
trinitária os aspectos que mantêm alguma relação com o número das pessoas
divinas:
Melhor se poderia dizer que andam em sentido paralelo a revelação da pleni­
tude da essência divina “comum” e a revelação de Deus como Pai, como Filho
(Palavra) e como Espírito Santo. Ou, melhor dizendo, ambas as revelações
formam uma unidade, crescem a um só tempo em uma mesma compreensão,
pois constituem a única manifestação — que cresce ao longo da história até
sua plenitude — de Deus uno Pai, Filho e Espírito Santo... Portanto, uma vez
que Deus é uno e único e, por conseguinte, dado que a manifestação progres­
siva deste Deus uno e único é também uma e única na história da salvação
da antiga e nova aliança, todo “progresso” do conhecimento sobre Deus “em
si” (“essência”) é também progresso no conhecimento da fé sobre o mistério
“especial” deste Deus que se manifesta, definitivamente, como tripessoal. E,
ao inverso, em todo conhecimento de uma “diferenciação pessoal” em Deus,
amplia-se também, ao mesmo tempo, o conhecimento da essência divina27.

Poderíamos mesmo acrescentar que, se o conhecimento de Deus pela


razão natural se dá a partir das coisas criadas (cf. DH 3004), também neste
caso não é legítimo (sem dúvida, a posteriori) prescindir completamente das
relações trinitárias e considerar somente o Pai o princípio da criação. Insistiu-se
muito, nos últimos tempos, na criação como obra da Trindade, e não somente
do Deus uno28. Na realidade, nem mesmo Karl Rahner se mostra insensível
a estes problemas, de algum modo os encara até mesmo de um modo mais
radical, quando coloca a criação não só na dependência da Trindade, mas
também da possibilidade da encarnação do Verbo. Poderia haver criação sem
encarnação, mas não sem sua possibilidade, porque o menor pode existir sem o
maior, mas não sem sua possibilidade. E, vice-versa, é a possibilidade do maior

27. R. SCHULTE, La preparación de la revelación trinitária, MySal II/2, 77-116 [87].


28. Já Tomás de Aquino viu a relação: STh I 45,6: “Et secundum hoc processiones per-
sonarum sunt rationes productionis creaturarum, inquantum includunt essentialia attributa,
quae sunt scientia et voluntas”. Sobre alguns desenvolvimentos na teologia dos últimos tempos,
cf. L. F. LADARIA, Antropologia teológica, Roma/Casale Monferrato, 1995, 64-69.

141
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

que funda a possibilidade do menor29. Por esta razão, não parece que possam
ser identificados, sem maiores razões, o Deus uno e o Pai. O Pai, princípio
da divindade, só o é em relação com o Filho e o Espírito, somente enquanto
relacionado com eles é princípio das criaturas, como somente enquanto rela­
cionado com eles pode dar-se a conhecer na atuação do Antigo Testamento.
A revelação da unidade divina e da Trindade andam juntas. Seria demasiado
simplista dizer que o Antigo Testamento nos apresenta o Deus uno e o Novo
Testamento, o Deus trino. Precisamente a revelação neotestamentária, enquanto
revelação da Trindade, significa um aprofundamento insuspeitado do mono­
teísmo, da unidade divina. Pode-se afirmar a identificação pessoal do Deus
do Antigo Testamento com o Pai. Todavia, a posteriori, podemos dizer que
só em virtude de sua condição de “Pai” pode manifestar-se como o faz. Na
consideração cristã do Deus uno, não podemos, portanto, prescindir das três
pessoas30, embora, por razões evidentes, seja o Pai enquanto princípio quem
apareça em primeiro lugar. Mas o Pai é princípio de tudo enquanto é “Pai”
ou seja, é princípio da realidade criada enquanto o é do Filho e do Espírito
Santo. Por esta razão também eles, embora não possam ser reconhecidos em
sua propriedade pessoal sem a revelação cristã, participam da condição de
princípio das criaturas. O Deus uno e trino, Pai, Filho e Espírito Santo, é um
só princípio da criação. O Novo Testamento no-lo indica de algum modo
quando nos fala da mediação do Filho ou do Logos na criação. Exatamente
porque chamamos a Deus “Pai”, não podemos pensar nele sem sua relação
com o Filho e o Espírito. A partir do momento em que usamos este nome
relativo, implica certa contradição o fato de considerá-lo somente o Deus uno.
Por definição, o Pai é o Deus não-solitário. Por isso, não é incompatível pensar
que, por um lado, a Trindade é o Deus uno e que, ao mesmo tempo, o Pai é
o que aparece em primeiro lugar diante de nosso olhar quando nos referimos
a Deus princípio de tudo e, concretamente, ao Deus do Antigo Testamento
que se identifica pessoalmente com ele31.

29. Cf. K. RAHNER, Grundkurs des Glaubens. Einführung in den Begriff des Christentums,
Freiburg/Basel/Wien, 1976, 187-221.
30. AGOSTINHO, Tritt. I, 2,4 (CCL 50,31): " ... quod Trinitas sit unus et solus et verus
Deus”; XV 5,7 (468): "... unum Deum, quod est ipsa Trinitas”; DH 73: “Clemens Trinitas est
una divinitas”. TERTULIANO, Adv. Prax. 31,2 (Scarpat 236): “Sic Deus voluit novare sacra-
mentum, ut nove unus crederetur per Filium et Spiritum”. Não deixa de ser interessante esta
última formulação. No Novo Testamento, crê-se no Deus uno de modo novo. Cf. outros textos
neste sentido nas notas 42 e 211 do capitulo 2.
31. Neste sentido, deve-se reconhecer um aspecto de verdade na idéia de Gregório de
Nazianzo sobre a revelação sucessiva das pessoas. Cf. Orario 31,26 (SCh 250,326): “O Antigo

142
DEUS PAJ. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

2. A pessoa do pai em relação com o Filho e o Espírito Santo


O tópico anterior já nos colocou na pista deste segundo. Víamos, com
efeito, que em uma das passagens de Rahner que citamos propunha-se o pro­
blema de qual é o sentido em que o Pai é “absoluto” . A ausência de origem
do Pai, dizíamos, não pode ser considerada absoluta em todos os sentidos,
porque sua inascibilidade está necessariamente em relação com a geração do
Filho e com a espiração do Espírito Santo. Todavia, o caráter absoluto da
pessoa do Pai foi afirmado ultimamente a partir de outros pontos de vista.
Temos de nos ocupar de algumas dessas tentativas.

A. O Pai, pessoa absoluta?


Jürgen Moltmann foi um dos primeiros a abordar este problema. No
capítulo anterior, já nos dedicamos ao estudo de seu pensamento. Fazemos
agora alusão a ele a partir de outro ponto de vista. O teólogo alemão, como
sabemos, considera que a definição de santo Tomás da pessoa divina como
relação subsistente é, no fundo, modalista. Esta idéia é coerente com a concep­
ção da unidade divina que Moltmann propugna; esta unidade não é somente
algo que sucede desde o princípio, mas uma união ou unificação (Einigkeit,
Vereinigung) aberta e que pode ser participada32. A crítica ao conceito de pessoa
como relação subsistente torna-se mais aguda em relação com a pessoa do Pai,
enquanto fonte e origem da divindade. Por essa razão, a primeira pessoa não
pode ser constituída a partir de relação alguma. O Pai há de ser “constituído
por si mesmo”33. À primeira vista, esta idéia parece coerente com a posição que
a tradição atribui ao Pai no seio da Trindade. Se dele procedem as outras duas
pessoas, não será conseqüente considerá-lo “independente” delas? Deixamos
para mais adiante a resposta à interrogação, que, na realidade, já antecipamos,
em parte, no tópico anterior. Sem especial insistência no tema, Y. Congar
formulou também, de passagem, esta afirmação: “o Pai é a fonte da divindade
antes (falando logicamente) de ser pólo de oposição pessoal. É o que confessa o
símbolo: Creio em Deus (fonte da divindade), Pai onipotente”34. Parece tornar-

Testamento anunciou manifestamente o Pai e, de um modo mais obscuro, o Filho. O Novo Tes­
tamento deu a conhecer abertamente o Filho e fez entrever a divindade do Espírito. Agora o
Espírito está presente no meio de nós e nos concede uma visão mais clara de si m esmo...”
(trad. J. R. Díaz Sanchez-Cid, in GREGÓRIO DE NAZIANZO, Los cinco discursos teológicos,
Madrid, 1995, 254).
32. Cf. MOLTMANN, Trinität und Reich Gottes. Zur Gotteslehre, München, 1980, 167.
33. Ibid. 182.
34. Y. CONGAR, La Parola e il SoffioyRoma, 1985, 138.

143
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

se inevitável a pergunta: pode-se distinguir a divindade fontal da paternidade?


A divindade fontal é precisamente a paternidade, e não outra coisa. Parece
certamente legítima a insistência na posição única e primordial do Pai no seio
da Trindade. O problema é a maneira como esta se explica se, de algum modo,
é considerada prévia à relação com o Filho e com o Espírito Santo.
Em termos semelhantes, embora, com certeza, mais matizados, expressa-
se G. Gironés em sua interessante monografia sobre o Pai: “A origem de tudo
é o Pai, não a Trindade em si mesma como círculo fechado de sua própria
reciprocidade. Isso quer dizer que o Pai explica e justifica sua existência por
si mesmo, sem referência ao Filho e ao Espírito Santo”35. O mesmo autor faz
referência à dupla condição do Pai de princípio fontal e de relação, uma vez
que este caráter de princípio é comunicação, é abertura. E, assim sendo, “o
Pai eterno é princípio de tudo de uma dupla maneira, absoluta e relativa. É
o princípio absoluto enquanto sua pessoa é a identidade original com a di­
vina essência; é o princípio relativo enquanto livremente quis comunicar-se,
constituindo os ‘Outros’ como termo de relação”36. Conhecemos já o antigo
problema da liberdade e da necessidade nas processões divinas, que aqui
aparece sob uma nova forma. Sabemos que a solução tradicional está em
que estas não se devem nem à necessidade, nem à vontade, mas à natureza37.
A idéia da pessoa absoluta aplicada ao Pai aparece também em W. Kasper,
porém em um contexto diverso. Não se trata diretamente do Pai em relação
com as outras pessoas, mas da especial identificação com sua pessoa, enquanto
princípio sem princípio, da essência da divindade38.
Encontramo-nos diante de uma linha de pensamento interessante, que
dá ênfase à relevância da pessoa do Pai, fonte, raiz e origem da divindade. Tais
acentos podem ser bem-vindos na teologia ocidental, pois na teologia oriental
talvez sejam mais freqüentes. Contudo, fica a interrogação: Está a igualdade
das três pessoas divinas salvaguardada? Não fica o Pai em um plano superior,

35. G. GIRONÉS, La divina arqueologia, Valência, 1991, 25; ibid. 31: “A pessoa do Pai é
constituída por sua livre abertura a toda comunicação (de amor), a toda relação com outro. Tem
esta faculdade originariamente (sem dependência alguma), porém não se lhe teria reconheci­
do se não a houvesse expressado em um diálogo com o Filho e o Espírito e com as próprias
pessoas da Criação”.
36. Ibid. 43. Alguns teólogos ortodoxos falam do Pai em termos à primeira vista seme­
lhantes; cf. Y. SPITERIS, La dottrina trinitaria nella teologia ortodossa. Autori e prospettive,
in A. AMATO (ed.), Trinità in contesto, Roma, 1993, 45-69.
37. Tratamos amplamente da questão no capítulo 1, na seção dedicada a “liberdade e
necessidade na Trindade imanente” .
38. Cf. Der Gott Jesu Christi (cf. nota 14), 192; 195-196. Na realidade, deparamos com o
mesmo problema que aparecia quando se tratava da identificação do Pai com o Deus uno.

144
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

porquanto, em algum aspecto, estaria por cima de suas relações com o Filho
e com o Espírito, que têm nele seu princípio? Precisamente com a intenção
de garantir esta igualdade e de evitar que o caráter de princípio sem princípio
que corresponde ao Pai seja obstáculo à plena comunhão entre as três pessoas
surgiram, na teologia dos últimos anos, tendências que procuram atribuir
somente um valor relativo às processões divinas e, com isso, o papel do Pai
como raiz e fonte da divindade. Colocam-se, neste sentido, nos antípodas das
posições que acabamos de mencionar.

B. A importância relativa das processões divinas.


A reciprocidade das relações

Seriam um obstáculo contra a igualdade das três pessoas divinas não


só o “privilégio” do Pai de ser uma pessoa absoluta, mas também o fato das
processões divinas, entendidas no sentido tradicional, que têm no Pai sua
origem? A pergunta formulada proveio da dúvida de alguns teólogos. Conta-
se entre eles W. Pannenberg, que se referiu à questão no primeiro volume de
sua Teologia sistemática. Em sua opinião, o Novo Testamento deixa em aberto
o problema de como se relacionam a divindade do Filho e do Espírito Santo
com a do Pai, pois nele não são dadas indicações precisas sobre este assunto.
A patrística entendeu que a divindade do Filho e a do Espírito Santo deviam
ser explicadas a partir da divindade do Pai. Assim o fizeram tanto a teologia
do Oriente como a do Ocidente:
É o caminho seguido não só pela patrística grega, com sua definição do Filho
e do Espírito a partir do Pai, a quem entende como sendo a origem e a fonte
da divindade, mas também pela teologia ocidental, que, ao abrigo das analo­
gias trinitárias de Agostinho, interpreta o Filho e o Espírito como expressões
da autoconsciência e da auto-afirmação do Pai. Em ambos os casos, trata-se
de interpretações especulativas globais que integram as diversas afirmações
bíblicas em uma visão de conjunto que não se encontra desenvolvida deste
modo na Escritura... Os problemas começam quando nos perguntamos até
que ponto pôde ser concluída dita tarefa sistemática, dada a tendência das
concepções tradicionais a subordinar, por um lado, a divindade do Filho e do
Espírito à do Pai e, por outro, a reduzir essas pessoas à pessoa do Pai como
sujeito único da divindade39.

39. W. PANNENBERG, Teologia Sistemática I, Madrid, 1992, 328s.

145
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Para fundamentar realmente a doutrina da Trindade no conteúdo da


revelação de Deus em Jesus Cristo, teremos de partir da relação de Jesus com
o Pai expressa em sua mensagem sobre o Reino de Deus. Porque as afirmações
do Novo Testamento sobre a divindade de Jesus pressupõem sua filiação divina
e, portanto, em última palavra, baseiam-se na relação filial de Jesus com o Pai.
Da filiação vai-se à divindade, não o inverso. O Espírito Santo, como terceira
figura, pode aparecer neste panorama como conseqüência da diferenciação de
Jesus em relação ao Pai, como Filho, e ao mesmo tempo de sua união com ele.
A partir desta diferenciação de Jesus, pode aparecer também o Espírito Santo
como diferenciado do Pai; esta é uma novidade do cristianismo, uma vez que
na tradição judaica não se dava uma diferenciação semelhante do Espírito em
relação a Deus. Da doutrina da Trindade como interpretação da relação de
Jesus com o Pai e com seu Espírito derivam-se conseqüências para entender
a relação entre as pessoas divinas.
A doutrina trinitária das processões e das missões, com as conhecidas
diferenças entre Oriente e Ocidente que não cabe agora abordar, tiveram jus­
tificação, segundo Pannenberg, na lógica da linguagem, embora não a tenham
na exegese bíblica. De fato, o conceito central de geração do Filho refere-se
no Novo Testamento ao batismo de Jesus e a sua ressurreição, não, porém,
à geração eterna. Pannenberg afirma claramente que as relações entre o Pai,
Jesus e o Espírito não são somente históricas, mas pertencem também ao ser
eterno de Deus. Porém, isso não quer dizer que só possam ser descritas com
os conceitos tradicionais de processão, geração e espiração40.
O caminho que o autor alemão empreende é o da “autodistinção” mútua
do Pai, do Filho e do Espírito41. Segundo os evangelhos, Jesus fala do Pai no
contexto de sua pregação sobre a iminência do Reino, convida os homens a
subordinar ao futuro de Deus qualquer outro interesse, reconhecendo assim
o Pai como Deus. A missão de Jesus é exercida completamente a serviço da
glória do Pai (cf. Jo 17,4), vive para essa missão: procurar a realização do Reinado
do Pai entre os homens. Mostra-se, assim, como o Filho, que está a serviço da
vontade do Pai e submetido a ela. Deixa que o Pai decida, não quer decidir
sobre si. Jesus mostra assim sua filiação divina, diferenciando-se a si mesmo
do Pai e deixando, assim, lugar para sua divindade. Esta autodiferenciação do
Pai enquanto homem constitui sua comunhão com o Deus eterno, ao contrário
do que ocorreu com Adão, que, querendo ser como Deus (cf. Gn 3,5), foi

40. Cf. ibid. 330-333.


41. Cf. ibid. 334-346, também em relação ao que segue.

146
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

precisamente o modo como se separou dele42. Esta distinção que se mostra na


vida humana de Jesus, para Pannenberg, é ao mesmo tempo constitutiva do
Filho eterno em sua relação com o Pai. Pai e Filho o são desde a eternidade,
de modo semelhante àquele em que se realiza esta relação na história. Se esta
autodistinção é necessária para que nos demos conta de que há em Deus eterno
alguns interlocutores, podemos pensar que, assim como Jesus se distingue em
relação ao Pai, também o Pai se autodistingue do Filho, e que a relação do
Espírito com os dois repousará sobre uma autodistinção do mesmo tipo.
Esta autodistinção não afeta o Pai somente enquanto pessoa unida ao
Filho na vida divina, mas também se refere ao Pai enquanto é Deus; é dele que
Jesus se diferencia a si mesmo. Se Jesus recebe sua divindade do Pai no ato de
autodistinguir-se dele, não pode acontecer o mesmo ao Pai em sua relação com
Jesus? Segundo a tradição, o Pai é a única das três pessoas que carece de princípio
e é, portanto, a origem da divindade do Filho e do Espírito. Só ele é Deus por
si mesmo sob todos os pontos de vista. Porém, esta perspectiva parece excluir
que possa haver uma verdadeira reciprocidade de relações entre as pessoas. E,
não obstante, o grande argumento de Atanásio contra os arianos foi que o
Pai não seria o Pai sem o Filho43. Com isso, a dependência é mútua. Porém,
o Filho não gera nem envia o Pai. Estas relações continuarão sendo irreversíveis.
É preciso buscar outro caminho para concretizar um modo de dependência
do Pai em relação ao Filho que vá além da relatividade de ser Pai e estabeleça
o fundamento de uma autêntica reciprocidade nas relações trinitárias.
O fundamento desta reciprocidade, Pannenberg o encontra no fato de que
o Pai deu todo poder ao Filho (cf. Mt 28,18), e este o devolverá no momento
final, segundo 1 Corindos 15,24-28:
Na entrega do poder do Pai ao Filho, e na devolução pelo Filho, aparece
uma reciprocidade de relações da qual carece a idéia de geração. O Pai, ao
entregar seu poder ao Filho, faz depender sua própria realeza de que o Filho

42. O destino do homem é chegar a ser como Deus, todavia, os homens erram quando
querem apoderar-se avidamente da igualdade com Deus (cf. F1 2,6). Com o despojamento de
Jesus da forma de Deus, temos o reflexo “econômico” desta autodiferenciação do Filho em
relação ao Pai; os homens se tomam participantes da comunhão do Filho com o Pai enquanto
se conformam com aquele nesta autodiferenciação; cf. W. PANNENBERG, Teologia sistemática
II, Madri, 1996, 250-251.
43. Na realidade, o caráter relativo dos nomes Pai e Filho foi reconhecido desde as pri­
meiras etapas da tradição. E na época posterior a 325 não só Atanásio, mas todos os partidários
da ortodoxia nicena argüiram a partir desta reciprocidade para afirmar a divindade do Filho
e a impossibilidade de que o Pai exista sem ele. Já nos referimos a este ponto no capítulo 2.
Retornaremos a ele na seqüência.

147
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

o glorifique e de que, cumprindo sua missão, torne realidade o domínio do


Pai. De modo que o Pai não diferencia a si mesmo do Filho somente quando
o gera, mas, além disso, wentregando-lhe tudo”, até o ponto de que seu reino e
sua divindade passam a depender do Filho. Pois o domínio, o Reinado do Pai,
não é algo tão extrínseco a sua divindade que o Pai pudesse continuar sendo
Deus também sem seu Reinado. O mundo, enquanto objeto de seu domínio,
não pertencerá necessariamente à divindade de Deus, pois sua existência tem
sua origem na liberdade criadora de Deus, porém, uma vez que existe, seria
incompatível com a divindade de Deus que Deus não tivesse domínio sobre
ele. O Reinado é, por isso, parte integrante da divindade de Deus44.

Neste contexto, trata-se também da relevância da cruz para a doutrina


trinitária. Nela, o Pai e o Filho dependem da ação do Espírito, que será quem
ressuscita Jesus dentre os mortos. Encontramos assim a dependência mútua
dos três, que Pannenberg vê também nas afirmações joaninas da glorificação
do Filho pelo Espírito (cf. Jo 16,14). Parece, no entanto, que podemos nos
perguntar se está tão claro que não haja certa precedência do Pai, precisamente
à luz de algumas afirmações do quarto evangelho: “E agora, Pai, glorifica-me
junto de ti, com a glória que eu tinha junto de ti antes que o mundo existisse”
(Jo 17,5). Não procede do Pai a glória que Jesus teve desde o princípio?
Agostinho caracterizou o Espírito Santo como o amor eterno que une o
Pai ao Filho. A partir desta idéia, é compreensível, assinala Pannenberg, que o
Espírito tenha sido considerado o “nós” da comunhão dos dois45, ainda que possa
ser justa a crítica de que com este proceder se volatiliza a pessoa do Espírito.
Não se deixa espaço para a diferenciação que Jesus faz de si mesmo com re­
lação ao Pai e ao Espírito. A idéia agostiniana encerra, porém, uma verdade
mais profunda, já que Jesus, segundo os evangelhos, estava cheio do Espírito
do Pai e, portanto, o Espírito é a condição de possibilidade e o meio da união
do Pai e do Filho. Por esta razão, Pannenberg aprova a idéia agostiniana do
Espírito como vínculo de união do Pai e do Filho. Mas não pode segui-lo na

44. W. PANNENBERG, Teologia sistemática 1,339-340. Surge evidentemente o problema


de responder se é possível Deus Pai renunciar à plenitude de sua vida divina e de sua onipo­
tência e tomar-se de algum modo dependente da história e do mundo para a plenitude de sua
divindade. Cf. K. VECHTEL, Trinität und Zukunft. Das Verhältnis zwischen Philosophie und
Trinitätstheologie im Denken Wolfhart Pannenbergs, Frankfurt am Main, 2001,188-197. A ques­
tão se relaciona com a da entrega do reino ao Filho, que por sua vez há de devolvê-lo ao Pai. Só
assim se garantiria a mútua “dependência” . Entretanto, mais adiante veremos como a doutrina
tradicional das processões é capaz de garantir a reciprocidade das relações trinitárias.
45. Referência às teses, que já conhecemos, de H. MÜHLEN, Der Heilige Geist als Person,
Münster, 1967, 157ss.

148
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

doutrina de sua processão do Pai e do Filho, porque, neste caso, as relações


entre as pessoas estariam fundadas nas relações de origem. Para Pannenberg,
porém, como já indicamos, isto não está de acordo com os dados da Escritura.
Tem para ele mais peso que a passagem clássica de João 15,26 (“o Espírito
da verdade, que procede do Pai” ) o fato de que Jesus recebe o Espírito e o
transmite aos seus. Todavia, neste contexto, o próprio autor retorna, ao que
parece, às relações de origem: “Tudo isso, porém, não obsta que a origem do
Espírito esteja no Pai, de quem procede”46.
O Pai, o Filho e o Espírito Santo relacionam-se trinitariamente na forma
da mútua autodistinção. As relações de origem não são negadas, mas sua im­
portância é diminuída: “A autodiferenciação recíproca pela qual se definem
as relações das três pessoas não permite que tais relações sejam reduzidas a
relações de origem, no sentido da teologia tradicional”47. Porque o Pai não só
gera o Filho, mas lhe dá o Reino para dele recebê-lo de novo; o Filho não só é
gerado, mas glorifica o Pai. O Espírito Santo também cumula o Filho e des­
cansa sobre ele e, por sua vez, glorifica o Filho e o Pai. Estas relações “ativas”
são de primordial importância:
Não se pode tratar das relações ativas do Filho e do Espírito a respeito do
Pai, atestadas na Escritura, como se não fossem constitutivas de suas res­
pectivas identidades por pensar que são somente as relações de origem que
constituem as pessoas. Nenhuma daquelas relações ativas é secundária para
o Filho ou para o Espírito, sendo todas parte integrante da peculiaridade das
pessoas trinitárias e da comunhão existente entre elas... Com efeito, as pes­
soas não são mais do que são em suas relações mútuas, por meio das quais se
diferenciam e entram, a um só tempo, em comunhão entre si. Nenhuma de
cada uma das pessoas pode ser reduzida a uma única relação, como tentou
fazer, especialmente, a teologia trinitária ocidental... As pessoas não podem
ser identificadas simplesmente por estas relações48. Porque cada uma delas é,
antes, um foco de diversas relações. Com tudo isso, no entanto, propõe-se a
questão que indaga se é possível descrever com precisão ainda maior esta rede
de relações da perichoresis e qual é sua relação com a unidade da vida divina,
unidade que a doutrina capadócia queria assegurar simplesmente com a idéia
da origem do Filho e do Espírito no Pai49.

46. W. PANNENBERG, Teologia sistemática I, 344.


47. Ibid. 347.
48. Geração do Filho e espiração do Espírito.
49. Ibid. 347.

149
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

A autodistinção mútua de cada uma das pessoas é diversa em cada caso


e mostra as características de cada uma delas. Diferente é a forma com que
cada qual diferencia a si mesma das demais. O Filho fundamenta sua di­
vindade na do Pai, do qual se distingue a si próprio. O Espírito mostra sua
divindade reconhecendo e ensinando a reconhecer o Filho como o Kyriosyou
seja, reconhecendo e confessando a divindade de outra pessoa. Porém, para
o Espírito, o Filho não é o único que é Deus — é Kyrios somente como Filho
do Pai — e sua obra não se esgota na doxologia, porque já havia sido dado ao
Filho. Temos, portanto, no Filho e no Espírito formas diversas de diferenciar-
se. Características mais diversas ainda são as que possui a autodistinção do
Pai com relação ao Filho e ao Espírito. O Pai não reconhece em seu Filho o
único Deus (à diferença do que faz o Filho com relação a ele), mas entrega-lhe
seu poder para tornar a possuí-lo novamente. No caso do Pai, é preciso falar
também de uma autodistinção em relação ao Filho e ao Espírito no que tange
à divindade, porque a revelação da divindade e do poder do Pai depende da
obra do Filho e do Espírito50. E Pannenberg prossegue:
Da reciprocidade entre as pessoas da Trindade e de sua dependência mútua,
não só a respeito de sua identidade pessoal, mas também a respeito da di­
vindade mesma, não se infere de modo algum a destruição da monarquia do
Pai. Totalmente ao contrário: o Reino do Pai, sua monarquia, é implantado
na criação por meio da obra do Filho, e se aperfeiçoa mediante a obra do
Espírito, que confirma o Filho como plenipotenciário do Pai, glorificando
assim o próprio Pai. O que o Filho e o Espírito fazem não é senão estar a
serviço da monarquia do Pai, de sua colocação em prática. Porém, sem o
Filho, o Pai não possui seu Reino: só por meio do Filho e do Espírito Santo
tem sua monarquia. E isto não vale somente quanto ao acontecimento da
revelação, mas, com base na relação histórica de Jesus com o Pai, temos de
afirmá-lo também quanto à vida interna do Deus trinitário. O ponto de vista
da autodistinção volta aqui a ser decisivo: o Filho não está ontologicamente
subordinado ao Pai, porém ele próprio se submete a ele. Assim sendo, desde

50. Cf. ibid. 348-349. Pannenberg recorre novamente a Atanásio, C Arian. I 20, que,
fundando-se em João 14,6, assinala que, se o Filho não tivesse sido gerado, a verdade não teria
estado sempre em Deus. Ibid. 349: “Com estas idéias ousadas, Atanásio punha radicalmente
em questão a compreensão habitual da divindade do Pai, segundo a qual esta divindade não
está sujeita a condição alguma... Mas não, a divindade do Pai está condicionada ao Filho; é
este quem nos é mostrado como único Deus verdadeiro. Atanásio falava também do Pai como
‘fonte’ da sabedoria, porém de tal maneira que sem o Filho, que procede de dita fonte, não se
pode chamar o Pai de fonte” .

150
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

toda a eternidade, o Filho é o lugar da monarquia do Pai e uno com ele pelo
Espírito Santo. A monarquia do Pai não é o pressuposto, mas o resultado da
ação conjunta das três pessoas51.

Entretanto, não existe somente uma mútua dependência das pessoas no


que diz respeito à sua divindade e, concretamente, um condicionamento pelo
Filho e pelo Espírito da monarquia do Pai, mas abre-se também o problema
de até que ponto a unidade da essência divina não está, por sua vez, “condi­
cionada” pela relação de Deus com o mundo:
Como a monarquia do Pai e seu conhecimento estão condicionados pelo Filho,
torna-se imprescindível incluir a economia das relações divinas com o mundo
na questão da unidade da essência de Deus. Ou seja, que a idéia da unidade
de Deus não se esclareceu ainda ao dizer que seu conteúdo é a monarquia
do Pai. Se a monarquia do Pai não se realiza diretamente como tal, mas só
por meio do Filho e do Espírito, a essência da unidade do Reinado de Deus
estará também em dita mediação. Ou, mais ainda, é esta mediação [do Filho
e do Espírito] que define o conteúdo da monarquia do Pai52.

Nos textos que vimos citando, ter-se-á facilmente observado uma cons­
tante passagem da Trindade econômica para a Trindade imanente: fala-se
da necessidade do Filho e do Espírito para que o Pai seja Deus, porém, ao
mesmo tempo, da necessidade da devolução do Reino para que o Pai tenha
sua “monarquia”. Aqui, novamente, as relações de Deus com o mundo de­
vem ser incluídas na questão da unidade da essência de Deus. Pannenberg vê,
certamente, a necessidade de distinguir a Trindade econômica da imanente53,
porém insiste mais ainda na unidade das duas, em termos que não redundam
em sentido inequívoco: Assim, “ resta ainda pela frente, à divindade eterna
do Deus trinitário, tanto quanto à verdade de sua revelação, seu crédito na
história”54; e também:

51. Ibid. 352-353. Cf. também a continuação do texto.


52. Ibid. 354. E um pouco antes do texto citado: “A questão da unidade do Deus trinitário
não pode ser esclarecida com os olhos postos em uma Trindade apenas imanente”. Cf. o que
já foi dito na nota 44.
53. Ibid. 358: “Com o dito, rejeita-se a idéia de um devir de Deus na história, que imagina
que o Deus trinitário não chegaria a ser realidade mais do que na consumação escatológica da
história como resultado de um processo histórico...”. Cf. também 359s.
54. Ibid. 359. Sobre a teologia da história de Pannenberg, que está em relação íntima
com estas idéias sobre o “crédito” da verdade de Deus, podem ser vistos, entre outros escritos:
W. PANNENBERG, La revelaáón como historia, Salamanca, 1977; Der Gott der Geschichte.
Der trinitarische Gott und die Wahrheit der Geschichte, in Grundfragen systematischer

151
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

É preciso desenvolver uma idéia de Deus capaz de abranger na unidade de


um único conceito não só o mais além da essência divina juntamente com
sua presença no mundo, mas também a eterna identidade de Deus consigo
mesmo, junto com a problemática situação de sua verdade no transcurso da
história e com o fato de que seja a consumação final da história o que decide
sobre tal verdade55.

Nestas afirmações do teólogo alemão estão implicados dois níveis de


problemas. Por um lado, a relação entre a Trindade econômica e a Trindade
imanente. Não se faz, de fato, com que a segunda dependa da economia
salvífica? A entrega do Reino por Jesus ao Pai e a glorificação do Espírito
manifestam ou realizam a unidade do Deus trino?56 O segundo nível está
profundamente implicado no anterior: a dependência mútua das pessoas,
incluído o Pai, não implica, para ser Deus, uma unidade que se realize em um
segundo momento, uma unidade resultado de um processo, precisamente do
processo histórico-salvífico? De fato, podemos nos perguntar se o modelo de
unidade “pericorética” que Pannenberg propugna não coloca o conceito da
essência divina em certa dependência da relação entre as pessoas57. Fica cer­
tamente clara a reciprocidade trinitária. Não se negam as relações de origem,
mais ainda, são expressamente mencionadas, todavia no decurso da exposi­
ção, em muitos momentos, são deixadas um pouco à margem. Implicam as
processões, necessariamente, subordinação? É suficiente ver as relações entre

TheologieyGöttingen, 1980, v. 2,112-128; cf. o estudo crítico de M. SCHULZ, Sein und Trinität.
Systematische Erörterungen zur Religionsphilosophie G.W.F. Hegels im ontologiegeschichtlichen
Rückblick auf J. Duns Scotus und I. Kant und die Hegel-Rezeption in der Seinsauslegung und
Trinitätstheologie bei W. Pannenberg, E. jüngel, K. Rahner und H. U. v. Balthasar, St. Ottilien,
1997, 468-474; 480-486.
55. W. PANNENBERG, 360; também ibid. 424: “Com a criação de um mundo, a divin­
dade de Deus e mesmo sua existência tornam-se dependentes da realização plena do destino
de tal mundo, com a presença do Reinado de Deus”.
56. Ibid. 361: “O tratamento desta idéia há de mostrar se é possível pensar que o Deus
uno seja de tal maneira transcendente e esteja, ao mesmo tempo, de tal modo presente no
curso da história de salvação que os acontecimentos históricos signifiquem realmente algo para
a identidade de sua pessoa eterna”.
57. Ibid. 361-362, continuação imediata do texto citado na nota anterior: “E terá de mos­
trar também se é possível pensar no conceito da essência divina como o compêndio sintético
[Inbegriff] das relações entre Pai, Filho e Espírito, à diferença daquela outra idéia ontológica
de essência que Agostinho se acreditava obrigado a pressupor”. Existe certamente muito de
aproveitável na idéia de Pannenberg, mas surge a dúvida sobre se, com o esquecimento das
processões, esta unidade não se realiza em um segundo momento. Cf. os textos a que se referem
as notas 51 e 52.

152
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

as pessoas como autodistinção mútua e não, principalmente no que se refere


ao Pai, como amor e doação da plenitude do ser que, por ser tal, pode ser
inteiramente comunicada ao Filho e ao Espírito? Mais adiante, procuraremos
responder a estas interrogações, embora se faça necessário desde já assinalar
que, ao menos do ponto de vista da teologia católica, se formularam objeções
quanto à noção da “autodistinção” entre as pessoas. O que caracteriza as rela­
ções entre as pessoas parece ser, antes, a entrega mútua e a doação total, mais
do que a distinção em relação às outras. O Pai há de ser caracterizado antes
de tudo como aquele que se dá de todo ao Filho mais do que como aquele
que se autodistingue dele58.
A partir de um ponto de vista algo distinto, delineia-se também a questão
do valor teológico da doutrina das processões trinitárias na teologia católica. Um
exemplo significativo é a obra monumental de Gisbert Greshake Der dreieine
Gott[O Deus trino]59, que alcançou ampla difusão. Sem entrar no espinhoso
problema das relações da Trindade com a história, também Greshake considera,
e talvez em termos mais radicais ainda que Pannenberg, que a doutrina das
processões e das relações de origem constitui um obstáculo à consideração
da Trindade como comunhão; impediría igualmente ver a unidade divina
como unidade na relação, e não como algo prévio a ela. Daí ser posto em
questão, ao menos aparentemente, o axioma segundo o qual o Pai é o princípio
da divindade. Greshake insiste, por sua vez, em que o ser é “acontecimento da
autocomunicação [Geschehen der Selbstmitteilung]”60. Assim, a essência divina
é também a realização da comunidade pericorética das pessoas:

58. Cf. M. SCHULZ, Sein und Trinitäty496: “Não se pode pensar nada maior que esteja
além do amor do Pai que gera... e nenhuma dependência acrescentada com relação ao Filho
faz aumentar, absolutamente, a forma de doação (a relação) do Pai; o Pai, por assim dizer,
não necessita de nada disso. O amor verdadeiro cria liberdade e autonomia, não relações de
dependência. Não se pode falar, portanto, de uma subordinação do Filho”. Schulz critica
também a noção da “dependência” recíproca das pessoas tal como Pannenberg a entende;
considera-a conseqüência de uma concepção absoluta e não relacional das pessoas, que se deve
corrigir depois com o recurso a este conceito. Uma concepção relacional das pessoas confere
melhor ênfase à plenitude do ser e da doação mútua que sempre caracteriza as relações entre
as pessoas divinas; ibid. 490-495; cf. também J. O ’DONNELL, Panenberg’s Doctrine o f God,
Gregorianum 72 (1991) 73-98; J. A. MARTÍNEZ CAMINO, Vechselseitige Selbstunterscheidung?
Zur Trinitätslehre Wohlfhart Pannenbergs, in H. L. OLLIG, O. J. WIERTZ (hrsg.), Reflektierter
Glaube (Festschrift Erhard Kunz), Egelsbach/ Frankfurt Main/München, 1999, 131-149; K.
VECHTEL, Trinität und Zukunft, 224-237.
59. GRESHAKE, Der dreieine Gott. Eine trinitarische Theologie, Freiburg/Basel/Wien,
1997.
60. Ibid. 184.

153
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Communio. Assim é a essência divina, a natureza divina, communio. Existe


somente no intercâmbio de Pai, Filho e Espírito. Cada uma das três pessoas
existe extaticamente voltada para as outras, e isto de maneira correlativayna
medida em que ao mesmo tempo dá e recebe; o Pai realiza seu próprio ser
enquanto se dá completamente ao outro que é o Filho, e assim “possui” sua
divindade “só como presenteada”61, porém precisamente assim recebe dele
o ser Pai62; o Filho, enquanto se aceita a si mesmo completamente do Pai
e lhe dá glória; o Espírito, enquanto se recebe a si mesmo como o terceiro
da relação do Pai e do Filho e, por sua vez, glorifica a ambos. Assim as três
pessoas não têm em Deus nenhum ser próprio o um em face do outro, mas
só do outro, com o outro e para o outro [voneinanderhery miteinander and
aufeinanderhin}6\

Se partim os desta concepção da comunhão e entendem os que o


Deus tripessoal é um acontecimento de amor interpessoal (interpersonales
Liebesgeschehen), não existe nenhum prius lógico entre a pessoa ou pessoas e a
essência comum; esta não é prévia às pessoas nem vem depois do intercâmbio
de amor como resultado dele. Deus é a vida em comunhão das pessoas64. Se,
uma vez estabelecido isto, alguém se pergunta de onde vêm estas pessoas, isto
é, propõe a si mesmo o problema de sua constituição, ocasiona-se um sem
sentido, o mesmo que seria ocasionado se na concepção clássica se pergun­
tasse de onde vem a inascibilidade do Pai. Todo o complexo do acontecer do
amor interpessoal em Deus é “inascível”. Por isso, a unidade de Deus não
é aquilo que se pode manter apesar das diferenças, mas sim o fato de que
estas constituem um momento integral da realização da unidade65. Greshake
tem consciência de que esta idéia de Deus pôde suscitar animadversão na
história em razão do perigo de triteísmo que nela se pôde observar. Faz sua a
resposta de J. Moltmann a esta objeção: a polêmica contra o triteísmo serve
de fato para ocultar o próprio modalismo66. Em contrapartida, à diferença de
Moltmann e do próprio Pannenberg, Greshake adere à definição tradicional

61. Citação de H. U. von Balthasar, Theologik II, 126.


62. Ibid. 186, n. 498: “Assim sendo, a ‘monarquia’ do Pai não é pressuposto, mas resultado
da atuação pericorética conjunta”. Referência a W. PANNENBERG, Teologia sistemática 1,347.
A influência de Pannenberg é muito visível nestas páginas de Greshake, ainda que ocorram
também diferenças, às quais iremos fazendo alusão.
63. GRESHAKE, Der dreieine Gott, 185-187. Os destaques são do autor. Greshake usa a
linguagem da doação, e não a da autodistinção.
64. Cf. ibid. 188-189.
65. Cf. ibid. 189.
66. Cf. ibid. 191; cf. J. MOLTMANN, Trinität und Reich Gottes, 161.

154
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

da pessoa divina como relação subsistente, de tal maneira que cada uma delas
é enquanto está em relação com as outras duas pessoas. A pessoa tem seu ser
só a partir do outro e para o outro. A unidade que se estabelece a partir do
tecido destas relações é a maior que se possa imaginar67.
Outra dificuldade que se pode contrapor a esta concepção a partir da
doutrina tradicional está na doutrina das processões. A pluralidade, assinala
nosso autor, foi vista tradicionalmente como uma “queda” de uma unidade
originária. A pluralidade é deficiência, diminuição no ser. A doutrina trini-
tária teve de defender-se desta concepção, muito embora, ao fazê-lo, tenha
se movido nas coordenadas da mentalidade dominante. A teologia teve de
esforçar-se por mostrar que a processão dos muitos não significa uma queda
nem uma diminuição. Por isso, a pluralidade que vem da unidade (da subs­
tância divina ou do Pai) é uma sucessão, ordenada hierarquicamente, porém
de pessoas divinas que possuem uma mesma dignidade. Existe uma ordem
entre elas, porém com isso não se cai no subordinacionismo, nem tampouco
na manifestação modalista de um “ uno”. Pois bem, a partir do momento
em que se trata da constituição das pessoas, esta, ainda que não se queira e
mesmo que se negue, funda-se em representações temporais de um antes e um
depois. Para Greshake, estas dificuldades aconselham a renunciar à idéia das
processões que constituem as pessoas a partir do uno e à das relações que daí
resultam. Estes conceitos eram necessários no horizonte unitário próprio de
outros tempos, porém agora esta concepção tradicional pode ser abandonada
porque temos outras possibilidades, a partir do acontecimento interpessoal,
para pensar na unidade e na trindade68. A unidade na comunhão inclui já
originariamente as diferenças, e por isso não é o resultado de algo exterior,
é uma unidade que se realiza precisamente na pluralidade; os dois aspectos
são igualmente originários. A pluralidade não é uma diminuição da unidade,
mas o m odo como esta se realiza. Deus é a mais alta unidade porque esta
se realiza no intercâmbio de amor de três pessoas. Não há uma essência
divina que não seja a que se realiza na comunhão das diversas pessoas69.

67. Cf. GRESHAKE, Der dreieine Gotty 191. Neste contexto, Greshake cita Ricardo de
São Vítor e Hegel. Ao menos para o primeiro, é evidente que o que define a pessoa é sua
“ex-sistência”, isto é, sua processão. Greshake, como veremos a seguir, tem, em contrapartida,
grandes dificuldades com esta idéia. É igualmente evidente que para santo Tomás, o criador
da fórmula da relação subsistente, as processões divinas estão fora de qualquer discussão. As
processões, portanto, não deveriam constituir um obstáculo para a plena viabilidade de rela­
cionamento das pessoas divinas.
68. Cf. GRESHAKE, Der dreieine Gott, 195.
69. Cf. ibid. 196-200. Na página 199, n. 547, citam-se alguns textos de são Boaventura. Um
deles é de particular interesse: QD de Myst. Trin. II, II (já citado na nota 221 do capítulo 2).

155
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

Evidentemente, Greshake está bem consciente de que os nomes Pai, Filho e


Espírito (de ambos) estão aí, e algo devem indicar. São, porém, nomes que
se referem à Trindade econômica. Podem ser trasladados em um segundo
momento para a Trindade imanente, enquanto Deus na economia salvífica
nos mostra verdadeiramente quem é. Todavia, não podem ser trasladados
para a vida divina imanente aqueles aspectos da revelação que se realizam nas
condições da história, ou seja, em formas, figuras, categorias e representações
finitas. Assim, o Filho de Deus é só Jesus, ao passo que o Logos que alienou
de si não é o mero homem Jesus, nem o Logos eterno como tal70. Seja como
for, Greshake conclui que, se Deus se revelou assim na história, seu ser Pai,
Filho e Espírito na economia deve ter uma correspondência real e não só
metafórica em sua vida imanente71. Qual é, porém, essa correspondência? A
confissão de fé coloca outros elementos junto à geração: “Deus de Deus, luz da
luz..., gerado, não criado”; mesclam-se afirmações com negações. Nenhuma
imagem é suficiente, todas são inadequadas, e por isso se haverá de utilizar
muitas delas. Tomás fala de Filho, resplendor, imagem, verbo. Não se pode
falar um nome para designar todas essas coisas72.

70. Cf. ibid. 201. Greshake cita neste contexto uma passagem de W. SIMONIS, Trinität
und Vernunft, Frankfurt am Main, 1972, 135.136s: “Os conceitos ‘PaF e ‘Filho’... só podem
ser aplicados à Trindade imanente com consideráveis restrições... Nem o Logos eterno como
tal, nem Jesus como mero homem, nem o Logos como aquele que de algum modo se possui
como alienado, mas Jesus como o Logos que se possui como alienado de si, que foi tomado
em posse e deste modo foi introduzido no ser relacional de Deus é o Filho do Pai” . O texto
não deixa de suscitar alguma dificuldade. É claro, por um lado, que não podemos, sem maio­
res motivos, trasladar a Deus em sua vida íntima nossos conceitos, e é igualmente claro que o
Novo Testamento fala de Jesus como do Filho. Porém, segundo o Novo Testamento, a mesma
pessoa do Filho preexiste à encarnação. Jesus nos revela, portanto, uma relação eterna com o
Pai. Surpreende, por outro lado, a “prudência” com que se aplica ao preexistente o título de
Filho e, em contrapartida, com toda a naturalidade o de Logos. Também este título se aplica
ao preexistente porque o conhecemos feito carne, e também o uso deste título na Trindade
imanente necessita forçosamente da analogia. Greshake, que se declara de acordo com esta
passagem, toma, em contrapartida, as distâncias do contexto em que estes pensamentos se
expressam. Cf. GRESHAKE, Der dreieine Gott, 201, n. 552, e 146-147.
71. Cf. ibid. 201, imediatamente após o texto de Simonis, citado na nota anterior.
72. Cf. TOMAS DE AQUINO, STh I 34,2, ad 3, cit. por GRESHAKE, Der dreieine
Gott, 203. No entanto, convém citar o texto de santo Tomás: “ Ipsa enim nativitas Filii, quae
est proprietas personalis eius, diversis nominibus significatur, quae Filium attribuuntur ad
exprimendum diversimode perfectionem eius... Non autem potuit unum nomen inveniri,
per quod omnia ista designarentur” . É claro que todas estas perfeições são do Filho e a ele se
aplicam as diversas denominações para expressá-las. O título do artigo em questão é “ Utrum
Verbum sit proprium nomen Filii” . Patenteia-se, por conseguinte, que Filho é o nome pessoal
por excelência da segunda pessoa.

156
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

A tradição teológica foi muito unilateral quando das missões passou


para as processões eternas, esquecendo outros aspectos da economia salvífica.
De maneira concreta, se há de dar ênfase à presença do Espírito em Jesus, e
como o conduz e o impele (cf. Mc 1,12; Mt 4,ls.; Lc 4,14). Estes aspectos não
foram tomados em consideração quando do desenvolvimento da doutrina
das processões. Com evidente influência de Pannenberg, também Greshake
assinala a reciprocidade das relações do Pai e do Filho com os exemplos da
glorificação mútua e da entrega do Reino ao Pai pelo Filho (cf. Jo 17,1-5;
ICor 15,24). Todas estas relações recíprocas da historia salutis não haviam
sido devidamente valorizadas quando se falou da comunhão entre as pessoas
na Trindade imanente73. Conclui-se, portanto, que as pessoas não podem ser
caracterizadas somente a partir das relações de origem. Daí o caminho pelo
qual se pretende avançar: “Se a essência divina é literalmente o amor, ou seja,
é o intercâmbio pericorético do amor, a diferença entre as pessoas deverá ser
determinada precisamente a partir deste intercâmbio”74. A partir deste princípio
do intercâmbio de amor, pretende Greshake estabelecer as diferenças entre as
pessoas, sem fundar-se na doutrina tradicional das processões, embora sem
deixá-la tampouco completamente de lado. Tenta assim uma caracterização
das três pessoas divinas.
O Pai, no ritmo do amor, é o dom original ( Ur-Gabe). E na medida
em que, neste ritmo, é o mistério inabarcável do ser dom, é aquele que dá
fundamento e consistência (Grund und Halt) à communio, a mantém como
uma unidade e a sustém, de maneira que as outras duas pessoas vêem nele
seu centro (Mitte), o qual, nos é advertido, não é voltar a um processo ge­
nético. Pois este “centro” paterno é impensável se não o for em relação com
os outros. Para dar uma base a esta visão, serve-se de alguns fundamentos
histórico-salvíficos e de analogias a partir da criação. Encontramos entre os
primeiros: o Pai é o fundamento do amor para Jesus, a quem amou antes da
criação do mundo (cf. Jo 17,24), e também para o Espírito e os homens. Ele
escolheu um povo, dele vêm todos os dons (cf. Tg 1,17); é ele quem enviou
o Filho e o Espírito. O Pai é o fim último da criação, para o qual tudo cami­
nha (cf. ICor 15,28). Entre as analogias extraídas da criação, indica-se que,
nas sociedades humanas, se encontra com fireqüência alguém que é o ponto

73. Cf. ibid. 200-207. De quaJquer maneira, é preciso ter presente que a glorificação
mútua foi vista como uma prova da perfeita divindade do Filho e de sua eternidade com o
Pai, que não pode existir sem ele. Assim, por exemplo, HILÁRIO DE POITIERS, Trin. III 12;
IX 23 (CCL 62, 83s; 394-396).
74. GRESHAKE, Der dreieine Gott> 205. Cf. também o que segue.

157
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

de cristalização de toda a comunidade, d o qual todos sabem que constitui o


centro da comunhão. A ele cabe a iniciativa, porém não está fora da rede de
relações e por elas é também constituído75.
Não vale a pena deter-nos tão extensamente nas características do Filho
e do Espírito Santo76. O Filho, no ritmo do amor, é o “ser com o acolhida”
(Dasein ais Empfang). Recebe o dom, devolve o amor e o transmite. É a ten­
são para fora. Se o Pai é o meio e aquele que funda e sustém, o Filho é o que
é sustentado, palavra e expressão do Pai. Segundo o Novo Testamento, é o
revelador do Pai, o que o dá a conhecer. Por ele foi enviado e realiza a mis­
são que lhe encomendou (cf. Cl 1,15; Jo 14,9). O Filho se diferencia do Pai,
maior que ele (cf. Jo 14,28)77. No mundo criado, temos a experiência de um
frutuoso “ser outro” do tu que complementa o eu, sobretudo quando atinge
o extremo das possibilidades de comunhão.
No ritmo trinitário, o Espírito Santo é, por um lado, o puro receber,
enquanto se compraz no dom do Pai e do Filho e, de sua parte, corresponde
em amor, em ação de graças e em glorificação ao Pai e ao Filho. Por outro
lado, é o vínculo de amor do Pai e do Filho, que os faz ser uno; deste modo,
constitui a unidade na diferença do Pai e do Filho e, com ela, a identidade e
a diferença da comunhão divina de amor. Ao mesmo tempo que vínculo, é
também o fruto do amor do Pai e do Filho. O Espírito Santo é, na história da
salvação, o “êxtase” de Deus, que eleva a criação, chegando mesmo a ressuscitar
os mortos (cf. Ez 37). Segundo o Novo Testamento, recebe do que é de Jesus
(cf. Jo 16,14), e assim se abre para os crentes a totalidade do acontecimento de
Cristo; com efeito, pelo Espírito são levados ao seguimento, à missão, ao amor.
A analogia com a criatura que se descobre no Espírito seria o carisma da mãe
na família: levar os corações dos pais aos filhos e vice-versa (cf. Ml 3,24). Na
diferença do pai e do filho, a mãe realiza a união, o nós de ambos. Na relação
com a mãe, o pai e o filho estão por sua vez diferenciados e unidos.
Se me detive no exame das idéias destes autores, é porque acredito valer
a pena aproveitar o muito que existe de bom nesses esforços, e que merece ser
recebido e integrado na teologia trinitária. A igualdade das três pessoas é um
dado fundamental da tradição cristã, e o ensinamento das relações divinas (e
de modo concreto a definição de santo Tomás da pessoa divina como relação
subsistente) serviu essencialmente para sustentar este aspecto essencial da fé.

75. Cf. ibid. 207-208.


76. Cf. ibid. 207-214 para o que segue.
77. Encontramos aqui, ao que parece, uma influência direta do pensamento de W.
Pannenberg.

158
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

A doutrina das processões não pode ser considerada isolada da doutrina das
relações. De fato, Tomás dá mais importância às relações que às processões
divinas78. Por essa razão, a doutrina do Pai como fonte e princípio de toda
a divindade não pode ser contemplada independentemente da de suas rela­
ções com o Filho e o Espírito que o constituem, de tal maneira que não se
pode pensar nele sem essas relações79. Porém, precisamente por isso, surge a
pergunta: É imprescindível, para manter esses princípios, deixar de lado toda
a longa tradição das processões divinas, a partir da qual se desenvolveu e se
aprofundou a especificidade do monoteísmo cristão? No Novo Testamento,
o Pai é aquele do qual tudo provém e para o qual tudo se dirige, é aquele
diante do qual Jesus ressuscitado intercede por nós (cf. Hb 7,25; 9,24; Rm
8,34; ljo 2,1). Na liturgia, como já assinalamos, dirigimo-nos habitualmente
ao Pai por meio do Filho. Faz-se, então, justiça a estes dados, a esta relevân­
cia da primeira pessoa com uma concepção simplesmente pericorética da
unidade divina, na qual este caráter de princípio do Pai não aparece com
tanta clareza? Não deixa de surpreender que entre as analogias fundadas na
criação enumeradas por Greshake para explicar o lugar das pessoas no seio
da Trindade imanente não apareçam a paternidade e a filiação humanas, que
a própria linguagem neotestamentária sugere imediatamente e nas quais se
fundou toda a tradição. É a analogia usada por Jesus. A referência mútua e a
igualdade das pessoas entre si e a característica do Pai como princípio andam
juntas na tradição80. Quanto ao mais, no fato de que só o Pai é sem princípio

78. STh I 40,2: “Melius dicitur quod personae seu hypostases distinguantur relationibus
quam per originem”; cf. também I 40,4.
79. Conhecemos já o texto do concflio XI de Toledo que acabamos de citar: “Quod enim
Pater est, non ad se, sed ad Filium est; et quod Filius est, non ad se, sed ad Patrem est; similiter
et Spiritus Sanctus non ad se, sed ad Patrem et Filium relative referitur: in eo quod Spiritus
Patris et Filii praedicatur” (DH 538). Greshake cita em parte este texto em Der dreieine Gotty
188, nota 185.
80. Assim sucede no mesmo concílio XI de Toledo que acabamos de citar: “Quia nec Pater
sine Filio, nec Filius aliquando exsistit sine Patre. Et tarnen non sicut Filius de Patre, ita Pater de
Filio, sed Filius a Patre generationem accepit...” (DH 526). TOMÁS DE AQUINO, STh I 33,1 ad
2: “Quia licet attribuamus Patri aliquid auctoritatis ratione principii, nihil tarnen ad subiectionem
vel minorationem quocumque modo pertinens, attribuimos Filio vel Spiritui Sancto”. Responde
a esta mesma preocupação a interpretação que os autores nicenos do século IV dão de João 14,28
(“o Pai é maior que eu”), a que Greshake se refere um tanto sumariamente em Der dreieine Gott,
192, n. 518. Cf. HILÁRIO DE POITIERS, Trin. III 12; Dí 54, IX 56 (CCL 62,83; 432-433,435-436);
Syn. 64 (PL 10,524); ATANÁSIO, Contra Ar. I 58 (PG 26,133); BASlLIO DE CESARÉIA, Contra
Eunômio I 25 (SCh 299,262); GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 30,7 (SCh 250,240); e ainda
AGOSTINHO, Trin. IV 20,27; VI 3,5 (CCL 50,195.233). O Pai é maior enquanto Pai, enquanto
princípio, porém o Filho não é menor enquanto o Pai lhe dá tudo o que ele é.

159
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO

fundou-se a unicidade divina81. Não se deve cair no simplismo de acusar de


triteístas os defensores deste modelo de unidade “pericorética”. Entretanto,
se todas as tentativas de aproximação do mistério trinitário têm suas limi­
tações, sem dúvida nesta se torna difícil de explicar como a unidade não é
um segundo momento, posterior à trindade das pessoas. Ver o Pai como o
“ dom original”, doação tão total e perfeita de si que dele faz nascer o Filho
e proceder principaliter o Espírito, iguais em tudo a ele, não é talvez o modo
mais convincente de fundar a igualdade e a comunhão entre as pessoas? Não
é o receber do Pai o ser divino em igualdade perfeita a maneira mais plena de
ser o Filho “ser em acolhida” ? Quanto ao que diz respeito ao Espírito Santo, o
próprio Greshake assinala acertadamente seu caráter de fruto do amor do Pai
e do Filho. Creio que valha a pena um aprofundamento na relação intrínseca
entre a teologia do Pai como princípio da Trindade, sempre em relação com
o Filho e o Espírito82, que entende as processões não como superioridade,
mas como total doação, e a perfeita comunhão e igualdade das pessoas em suas
relações recíprocas. Fundar a teologia da Trindade no Pai, levando-se em conta
tudo o que na tradição significou e significa este nome, não significa em nada
diminuir o Filho nem o Espírito Santo, mas a melhor maneira de evitar o tri-
teísmo, o subordinacionismo e o sabelianismo. Dou como certo que algumas
unilateralidades às quais se presta a teoria “psicológica” de santo Agostinho e
de santo Tomás terão de ser afastadas83. É claro também que o que dizemos

81. TOMÁS DE AQUINO, STh I 33,4 ad 4: “ Ponere igitur duos innascibiles, est ponere
duos deos, et duas naturas divinas”. Cita, entre outros, HILÁRIO DE POITIERS, Syn. 60 (PL
10,521B): “Cum ergo unus Deus sit, duos innascibiles esse non possunt”. Em STh 39,8, Tomás
assinala que o Pai se apropria da unidade pelo fato de ser “principium non de principio”. Cita
AGOSTINHO, Dedoctr. Christ. 5 (PL 34,21): “In Patre est unitas, in Filio aequalitas, in Spiritu
sancto unitatis aequalitarisque concordia”; também Boaventura cita este texto em Breviloquium
I 7,3; cf. também I 7,1; cf. PEDRO LOMBARDO, Sent. I d. 31, c. 2.
82. É preciso insistir no caráter relativo do Pai como princípio. J. Moltmann, a cuja
opinião acerca do Pai como “princípio absoluto” da Trindade já nos referimos (cf. notas 32-
33), é ao mesmo tempo um defensor muito decidido da unidade “pericorética”. Cf. Trinitat
und Reich Gottes, 179-182; 187-193. W. PANNENBERG, Teologia sistemática I, 352, censura
sua inconseqüência neste ponto.
83. Acredito que algumas vezes seja ocasionada uma confusão entre a doutrina das pro­
cessões divinas enquanto tais e as teorias “psicológicas” de santo Agostinho e santo Tomás. É
evidente que estas últimas nunca foram adotadas pelos documentos oficiais da Igreja e podem
ser, por conseguinte, objeto de livre discussão teológica. Não se pode dizer o mesmo, a meu
ver, das processões divinas, das quais se fala já no Concílio de Nicéia (geração do Filho pelo
Pai) e que constituíram ensinamento constante nos tempos posteriores. Cf. GRESHAKE, Der
dreieine Gotty 205. Quanto ao mais, as imagens da Trindade na alma humana não constituem
o conjunto da doutrina trinitária destes autores, mas apenas um de seus aspectos.

160
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

das processões divinas é analógico com relação ao proceder e à causalidade


que conhecemos no mundo criado.
O sentido último da unidade e da trindade divinas está em relação direta
com a reflexão sobre a teologia do Pai. Se, por um lado, não podemos, sem
mais razões, considerar que o Pai seja, com exclusividade, o Deus uno, nem,
conseqüentemente, podemos fazer dele um princípio absoluto, também não creio
que haja razões convincentes para abandonar a doutrina tradicional que o vê
como princípio e fonte da divindade. Somente assim, creio eu, se faz justiça às
afirmações neotestamentárias que, no âmbito histórico-salvífico, o apresentam
a nós como origem e fim de tudo e, principalmente, nos mostram Jesus enviado
por ele, obediente a ele em sua vida mortal e, uma vez glorificado, intercedendo por
nós diante dele. A ele é dirigida a oração oficial da Igreja na grande maioria das
ocasiões, a ele, e somente a ele, nós, cristãos, chamamos “Pai” , em virtude do
ensinamento de Jesus e da força de seu Espírito. A perfeita igualdade e comu­
nhão entre as pessoas em suas relações recíprocas nem por isso sofre detrimento.
Mais ainda, pode encontrar um fundamento mais sólido, pois em último termo
baseia-se na infinita capacidade de doação e de amor que caracteriza a pessoa do
Pai. Este amor infinito e esta doação suscitam a igualdade e a comunhão perfeita
das pessoas na perfeita reciprocidade das relações. Se, por um lado, o Pai gera o
Filho, por outro este último o aperfeiçoa em seu ser de Pai e, por conseguinte,
em seu ser em absoluto, de tal maneira que o Pai não pode ser sem o Filho. Vale
a pena transcrever uma página luminosa de Hilário de Poitiers:
Deus, em cada momento, sabe ser somente amor, somente Pai. E o que ama
não tem inveja e o que é Pai o é por completo. Este nome não admite dis­
tinções, como se fosse pai em algum aspecto, e em outro, não. 0 Pai o é em
tudo quanto nele existe, é inteiramente possuído naquele para o qual não é Pai
somente em parte. Não é que seja pai do que tem para seu proveito, mas em
tudo aquilo que ele é, é inteiramente Pai para aquele que tem dele seu ser...
Em Deus não existem elementos corporais, mas perfeitamente simples; não
existem partes, mas uma totalidade que tudo abrange; não existe nada que
tenha recebido a vida, mas tudo é vivo, tudo é o vivente e tudo é o Deus por
completo, pois não é composto de partes, pois é perfeito por sua simplicidade;
por esta razão, é necessário que, em virtude de sua paternidade, seja em tudo
inteiramente Pai para o que gerou de si mesmo, pois o perfeito nascimento
do Filho o faz Pai perfeito em tudo o que é [dum eum Patrem exsuis omnibus
natiuitas Fili perfecta consummat]84.

84. HILÁRIO DE POITIERS, Trin. IX 61 (CCL 62A,440-441). Cf. também GREGÓRIO


DE NAZIANZO, Or. 25,16 (SCh 284,196): o Pai não o é como os pais humanos, porque o é
inteiramente.

161
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO

A doação completa por parte do Pai de tudo o que é e possui é o que


constitui a geração do Filho. O Pai ama inteiramente, pode dar-se por completo,
porque dele está radicalmente excluída toda inveja que o impediria de dar ao
Filho sua própria plenitude85. Porém, ao mesmo tempo, sem esta geração, o
Pai não é Pai, pois só o nascimento do Filho o faz perfeito no que é. Ocorre,
portanto, nas relações entre o Pai e o Filho uma perfeita reciprocidade. O Filho
aperfeiçoa o Pai86. Há espaço para uma melhor fundamentação da igualdade e
da perfeita comunhão das três pessoas que o amor fontal do Pai, que é doação
total e suscita, portanto, essa mesma entrega total naqueles a quem comunica
o ser? Autopossessão e doação são, assim, o mesmo ato. Não devem “corrigir-
se” nem equilibrar-se mutuamente. As pessoas se relacionam no transborda-
mento do amor, mais do que em sua mútua “dependência” . O deixar que o
outro seja vem do amor que gera liberdade mais do que da autodistinção. E,
ao mesmo tempo, a unidade e a trindade divinas são dois dados igualmente
primários, porque as duas possuem sua razão última no Pai, que é princípio
único da divindade somente enquanto a comunica plenamente, enquanto é
inteiramente, e não apenas em parte, “ Pai” e princípio do Espírito. Em outras
palavras, enquanto faz surgir as outras pessoas iguais a ele que, como ele, exis­
tem e podem existir somente na relação e no amor mútuos. Existem muito
boas razões para ver a unidade divina como a perfeita comunhão de am or das
três pessoas que chega até a mútua inabitação, porém esta unidade perfeita
encontra seu melhor, seu único fundamento no amor fontal do Pai, “ fons et
origo totius divinitatis”, que comunica às outras pessoas a essência divina que
por esta razão possuem em plenitude. Do contrário, essa mesma comunhão
não aparece na plenitude de seu sentido. Um aspecto ou modo de expressar
a unidade divina não deve significar o desconhecimento dos demais, antes
implicam-se e relacionam-se mutuamente. Uma unidade e uma vida que são

85. O motivo da falta de inveja repete-se em Trin. VI 21 (220): "... non inuidum te
bonorum tuorum in unigeniti tui natiuitate esse confido”; GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or.
25,16 (SCh 284, 194-196): não se pode pensar que Deus seja invejoso ou fraco.
86. HILÁRIO DE POITIERS, Trin. VII 31 (298-299): “A fé apostólica não confessa dois
deuses porque não confessa dois pais nem dois filhos. Confessando o Pai, confessou o Filho,
ao crer no Filho, também creu no Pai, porque o nome de pai contém o de filho. O Pai não o
é mais que pelo Filho e a referência ao Filho é a demonstração do Pai, porque o Filho não vem
mais que do Pai. Na confissão de um só Deus não se fala de uma só pessoa, porque o Filho dá
ao Pai a plenitude [Patrem consummat Filius] e o nascimento do Filho é a partir do Pai. A
natureza não se transforma pelo nascimento, de modo que não seja a mesma na identidade de
seu gênero, mas é de tal maneira a mesma, que pelo nascimento e pela geração se há de confessar
que um e outro são uma só coisa, não um só”. Cf. sobre estes textos e outros semelhantes L.
F. LADARIA, "... Patrem consummat Filius” . Un aspecto inédito de la teologia trinitaria de
Hilário de Poitiers, Gregorianum 81 (2000) 775-788.

162
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

perfeitas desde toda a eternidade. A Deus, nada lhe acrescentam os homens;


por pura graça, nos faz participantes de sua plenitude (cf. Jo 1,16).

3. K énosis intratrinitária? Um caso extremo nas relações entre


"teologia" e "economia"
O tema da relação entre a Trindade econômica e a Trindade imanente
esteve presente, embora nem sempre de maneira evidente, em grande parte de
nossa exposição deste capítulo. A teologia cristã, já desde os primeiros séculos,
chegou à conclusão da geração do Filho pelo Pai a partir da missão do Filho e
com a reflexão sobre o valor dos termos que foram usados no Novo Testamento.
Algo semelhante podemos dizer da doutrina da processão do Espírito Santo, a
partir de sua missão pelo Pai e pelo Filho, embora saibamos que aqui os pro­
blemas foram e continuam sendo maiores. Mas, seja como for, manteve-se o
princípio da correspondência entre a iniciativa do Pai na história da salvação
e seu caráter de princípio da divindade toda. Em muitos dos problemas da
teologia trinitária, para não dizer em quase todos, temos de deparar com este
princípio fundamental, cuja aplicação requer muita prudência. Por um lado,
a passagem da “economia” para a “ teologia” faz-se necessária para manter o
sentido da própria economia. O esquecimento do fundamento transcendente
da história de salvação significa privá-la de seu significado. Torna-se, portanto,
necessária certa “correspondência” entre a Trindade econômica e a Trindade
imanente. Todavia, a distinção, não adequada, entre ambas deve ser também
salvaguardada. Deus é sempre maior que sua própria manifestação definitiva em
Cristo; nesta mesma o mistério não fica anulado, mas aparece mais claramente
em sua condição como tal. O traslado das categorias da Trindade econômica
às da Trindade imanente não é evidente em todos os casos.
No âmbito da discussão em torno destes problemas, H. U. von Balthasar
procurou mostrar como a Trindade é a doação que Deus faz de si mesmo
na eternidade, e a partir desta doação original pode-se compreender a livre
doação de Deus ao mundo por amor e sem necessidade alguma:
A Trindade deve ser entendida como aquela autodoação eterna e absoluta que
faz aparecer Deus, já em si, como o amor absoluto; e é precisamente a partir
daqui de onde se chega a compreender a livre autodoação ao mundo como
amor, sem que Deus tenha a menor necessidade para seu próprio devir (para
sua “automediação”) de implicar-se no processo do mundo e da cruz87.

87. H. U. VON BALTHASAR, Teodramática 4. La acciónyMadrid, 1995, 297. Sobre a pro­


posta e a intenção do autor neste ponto da teologia trinitária, cf. A. CORDOVILLA, Hans Urs von
Balthasar: una vocación y existência teológica, Salmanticensis 49 (2001) 41-79, espec. 68-73.

163
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Só porque Deus é amor em si mesmo pode manifestar-se como tal. A


partir deste princípio geralmente admitido, Von Balthasar dá um passo a mais.
Inspirado em S. Bulgakow, quer contemplar já na Trindade imanente a forma
radical do amor que nos é mostrado na economia, o esvaziamento de si do
Filho. Esta kénosis histórica do Filho considera-se fundada em uma kénosis
original das pessoas divinas, e particularmente do Pai, de tal maneira que a
geração do Filho viria a ser um despojamento ou esvaziamento de si por parte
do Pai. N a geração, Deus Pai se desapropria da divindade ao transmiti-la ao
Filho e compartilhar com ele tudo o que lhe pertence:
... cabe designar com Bulgakow a auto-expressão do Pai na geração do Filho
como uma primeira “kénosis” intradivina que tudo abarca. Com efeito, o Pai
se desapropria por completo de sua divindade e a transfere ao Filho; não a
reparte com ele, mas compartilha com o Filho tudo o que é seu: “Tudo o que
é teu é meu” Qo 17,10). O Pai, a quem não se há de conceber como existindo
“antes desta” autodoação, se revela como este movimento de doação totalmente
desinteressada, que não reserva nada para si88.

No amor do Pai ao gerar o Filho, continua nos dizendo Von Balthasar,


“existe uma renúncia absoluta a ser Deus para si só, um abandono do ser de
Deus”89. N o ato da geração do Filho, cria-se em Deus uma distância infinita,
na qual possam ter espaço todas as distâncias das criaturas. Em Deus está,
assim, a condição de possibilidade da dor do mundo, da dor de Cristo, do
que Deus mesmo chega a participar. Na entrega da divindade do Pai ao Filho,
revela-se em Deus uma separação insuperável, de tal maneira que toda divisão
possível, inclusive a mais amarga, não pode ter lugar mais que dentro desta
separação original no seio da divindade90. O amor não é tão forte quanto o
abismo, mas muito mais forte ainda, porque este só é possível no marco da

88. H. U. VON BALTHASAR, Teodramática 4. La acción> Madrid, 1995,300. Cf. também


a continuação do texto, 300-304. O autor volta ao tema em outras ocasiões; cf. Teodramática
4y 253; 289; Theologik II. Wahrheit Gottes, Einsiedeln, 1985, 163, além dos textos que iremos
citar. Cf. S. BULGAKOW, Le Verbe Incamé, Paris, 1943, fonte de inspiração imediata de von
Balthasar. Bulgakow fala também da kénosis do Espírito Santo na economia salvífica; cf. II
ParaclitOy Bologna, 1987, 484. Mais bibliografia sobre este particular será encontrada em L. F.
LADARIA, El Dios vivo y verdaderoySalamanca, 1998, 317. 319.
89. Cf. VON BALTHASAR, Teodramática 4, 300.
90. Ibid. 301: “Que Deus (como Pai) possa entregar assim sua divindade, que Deus (como
Filho) a receba, não como um simples empréstimo, mas possuindo-a ‘consubstancialmente’,
tudo isto está revelando uma ‘separação’ em Deus tão inconcebível e insuperável que toda di­
visão possível (mediada por ela), ainda que fosse a mais obscura e a mais amarga, não poderia
ocorrer além do que de dentro deste primeiro gesto de Deus” .

164
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

distinção entre o Pai e o Filho. Deus não poderia ser Deus senão nesta kénosis
intradivina91. Todo drama possível entre Deus e um mundo qualquer tem seu
lugar na distinção do Pai e do Filho, neste drama original e trinitário que está
acima do tempo92.
Distingue-se certamente com clareza essa kénosis originária do des-
pojamento histórico do Filho de que se nos fala em Filipenses 2,7. Porém,
de algum modo, constituiria sua condição de possibilidade. Porque não é
somente o Pai quem se despoja de si mesmo segundo H. U. von Balthasar,
mas a esta kénosis do Pai corresponde desde já uma kénosis intratrinitária do
Filho e do Espírito, na qual se funda o esvaziamento que Jesus fez de si na
encarnação: “Esta ‘kénosis da obediência’ (‘no depor a figura de Deus’ - F1
2,7) está baseada na eterna e recíproca kénosis das pessoas divinas. Como um
aspecto entre os infinitos aspectos sempre reais da vida eterna”93. A eterna
relação de amor entre as pessoas divinas é interpretada, portanto, em termos
de kénosis e esvaziamento de si mesmas. A geração do Filho seria, por assim
dizer, o primeiro momento e o princípio desta kénosis originária que desta
maneira teria o Pai como primeiro sujeito.
Que julgamento merece esta teoria? É preciso aceitar um aspecto irre­
nunciável de verdade na intuição de Von Balthasar: o esvaziamento de Cristo
na encarnação tem sua condição de possibilidade na vida interna de Deus: “O
elemento que exerce a função de mediação da missão entre Jesus e o Pai é a
forma econômica do acordo eterno entre Pai e Filho”94. A Trindade imanente
é, de fato, o “princípio e fundamento” (K. Rahner) da economia da salvação.
Tudo quanto nela sucede tem sua condição de possibilidade na vida íntima
de Deus: “Na vida interna de Deus está presente a condição de possibilidade
daqueles acontecimentos que, pela incompreensível liberdade de Deus, encon­

91. Cf. ibid. 301-302.


92. Em diversas ocasiões, fala-se deste drama que tem lugar na vida interna de Deus; ibid. 302:
“drama original que está acima do tempo”; 303: “O drama trinitário tem duração eterna”.
93. VON BALTHASAR, Teodramática 5. El último actoy Madrid, 1997, 118. Embora
com notáveis diferenças, em primeiro lugar terminológicas, pode-se observar talvez certa
semelhança entre a quenose intratrinitária de Von Balthasar e a autodiferenciação das pessoas
de W. Pannenberg.
94. ID., Teodramática 3. Las personas dei drama: el hombre en Cristo, Madrid, 1993, 468.
É possível que as afirmações de Von Balthasar sobre a quenose intratrinitária estejam em relação
com sua teologia do sábado santo; cf. VON BALTHASAR, El mistério pascual, MySal III/II,
Madrid (1971) 143,335, espec. 237-265. Suas afirmações na ordem da economia proporcionariam
talvez a base para a passagem para a teologia. Entretanto, a teoria do abandono não está isenta
de dificuldades; não é, portanto, absolutamente certo que possam oferecer base “econômica”
para estas especulações teológicas”. Cf. L. F. LADARIA, El Dios vivo y verdaderoy 72-89.

165
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

tramos na história da salvação do Senhor Jesus Cristo” 95. É também legítimo


afirmar que o “ espaço” intradivino possibilitado pela distinção entre as pessoas
é a condição de possibilidade da criação e do aniquilamento do Filho até a
paixão e a morte de cruz, na qual pode experimentar, na angústia de sua ago­
nia, a “distância” que o separa do Pai. Uma distância, por outro lado, sempre
superada pela obediência e pela entrega confiante, atitudes fundamentais de
Jesus diante do Pai no tempo de sua vida mortal. Todavia, uma vez estabele­
cidos estes princípios, devemos necessariamente nos perguntar pelo grau da
correspondência que devemos afirmar entre a teologia e a economia. O fato
de que na vida íntima de Deus esteja a condição de possibilidade do que se
realiza na história da salvação não significa que o que nela ocorre tenha de
ser uma realidade na Trindade imanente. Esvazia-se de si o Pai na geração
do Filho, quando seu ser é constituído pela paternidade, e não pode existir a
não ser nesta geração eterna?96 É despojamento a doação total que o Pai faz
ao Filho e ao Espírito no eterno intercâmbio de amor, sem o qual Deus não
é? A economia da salvação é totalmente livre e, além disso, em seu modo con­
creto de se realizar interveio a liberdade dos homens. Sem o pecado humano,
não se explica a morte na cruz, em que o despojamento do Filho chega à sua
expressão máxima. Se o analogatum princeps da noção é a kénosis histórica
de Jesus, não será preferível reservar a esta última o termo neotestamentário,
tão característico? De outro modo, corre-se o risco de ver na economia da
salvação a expressão temporal de um drama eterno do qual não parece ser
encontrado rastro na revelação divina. Fica evidente de qualquer maneira e
sem dúvida é preciso admitir o que se pretende mostrar com o conceito da
kénosis intratrinitária: o amor que é imanente em Deus não é menos total nem
menos radical que o que se mostra na economia da salvação. Mais ainda, este

95. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Teologia — Cristología— Antropologia


IC ) 3 (250); II A) 5 (258s): “Entre o Filho na vida eterna de Deus e o Filho na história terrestre
de Jesus efetua-se uma correspondência íntima; mais ainda, uma identidade real, que se nutre
da unidade e da comunhão filial de Jesus Cristo com Deus Pai”; cf. W. KASPER, Der Gott Jesu
Christi, Mainz, 1982, 244.
96. Segundo a tradição, o Pai, que somente o é enquanto gera o Filho, dando tudo o que
tem, não o perde. Mais ainda, é somente dando que o possui. A preocupação por manter a
integridade da divindade do Pai na geração do Filho parte de são Justino; cf. Dial Tryph. 128,3-4
(Marcovich, 292-293). Concílio Lateranense IV: (DH 805): wAc dici non potest, quod partem
substantiae suae illi dederit, et partim sibi ipse retinuerit, cum substantia Patris indivisibilis sit,
utpote simplex omnino. Sed nec dici potest, quod Pater in Filium transtulerit suam substan-
tiam generando, quase sie dederit eam Filio, quod non retinuerit ipsam sibi; alioquin desiisset
esse substantia”. O próprio Von Balthasar está bem consciente deste ponto; cf. Theologik II.
Wahrheit Gottes, 126.

166
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE

último tem no primeiro seu fundamento e sua razão de ser. O amor de Deus é
a primeira e a última palavra, tanto ad intra quanto ad extra, em sua identidade
eterna que não pode ser mudada por nenhum evento histórico. Na ordem do
ser, o amor de Deus ad intra é o primeiro analogado. É absolutamente prévio
ao pecado dos homens, e este não tem de modo algum o poder de determinar
internamente este amor ou de acrescentá-lo97. Com uma formulação não de
todo livre de ambigüidades, expressa-se uma verdade capital: o que aparece na
história da salvação tem na vida imanente de Deus seu fundamento último. A
entrega de Jesus na cruz é possível porque o amor do Pai, desde sempre, deu
tudo a seu Filho. A forma econômica que o amor adota na kénosis do Filho
tem sua razão de ser e sua possibilidade na própria Trindade, porém não é a
reprodução temporal da forma eterna do amor. Segundo meu ponto de vis­
ta, é melhor, portanto, renunciar a esta terminologia, antes de tudo porque
não parece precisa, além de poder dar ocasião a graves mal-entendidos. No
intercâmbio total de amor no seio da Trindade há doação plena das pessoas,
mas assim a vida de Deus se realiza no que lhe é mais próprio; neste sentido,
as pessoas divinas não se despojam de nada enquanto seu ser está em relação,
sua subsistência própria e sua doação aos demais são as mesmas98. O Pai é Pai
enquanto, na perfeita doação de seu amor, é princípio do Filho e do Espírito
que são Deus exatamente como ele99. “É o Pai na engendração infinita do
Filho infinito. Sua divindade é a paternidade sem limites.” 100 Tudo quanto

97. M. SCHULZ, Sein und Trinität (cf. nota 54): “Segundo a alusão de Von Balthasar
a Filipenses 2 como analogatum primarium para o discurso sobre a kénosis original em Deus,
deve-se negar na transposição ao ser divino o que pertence à pura semântica hamartiológica
das expfessões sujeitas a debate. Todavia, por esta abstração, o amor imanente de Deus não se
torna menor, ou menos ‘sério’, ou se dissolve em mero ‘jogo\ mas aparece antes do pecado
em sua identidade que não se pode manipular nem modelar. Dito de outra maneira: segundo a
ordem do ser, o analogatum primarium é o amor de Deus em si... O pecado não tem o poder
de determinar internamente este amor nem de acrescentá-lo”.
98.0. GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cristología, Madrid, 2001, 397-398: “Falar sem mais
preâmbulos de uma kénosis intratrinitária em sentido estrito carece de fundamento bíblico e é
uma aplicação indevida do princípio de reciprocidade entre a Trindade imanente e a Trindade
econômica. Deus revela e realiza no mundo o que é sua vida trinitária, porém a existência
encarnada do Filho tem elementos de novidade, liberdade e história que são conseqüência do
pecado humano, e que não preexistem nem têm seu fundamento na vida trinitária”. Cf. também
as reservas que já eram assinaladas por W. KASPER, Theologie und Kirche, Mainz, 1987, 222.
99. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 2,38 (SCh 247,140): “ [O Pai] seria princípio de
um modo pequeno e indigno se não fosse o princípio da divindade e da bondade que se con­
templa no Filho e no Espírito Santo”. A própria dignidade do Pai enquanto princípio depende,
portanto, da plenitude da divindade das outras pessoas.
100. F. X. DURWELL, Jesús Hijo de Dios en el Espíritu Santo> Salamanca, 1999, 113; cf.
ID., Le Père. Dieu en son mystère, Paris, 1988, 29-33.

167
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

aqui dissemos é colocado em continuação direta com a questão do sentido


das processões divinas que têm no Pai seu princípio.
Em outras tentativas, a distância entre a Trindade econômica e a imanente
parecia ser excessivamente acrescentada, a ponto de dar a impressão de que
a analogia que os nomes neotestamentários de Pai e Filho sugerem não teria
aplicação direta à Trindade imanente. A expressão da kénosis originária que
discutimos brevemente parece cair no extremo oposto: pode levar a pensar que se
atribui à Trindade imanente a figura concreta do amor que nos é mostrado
pelo Senhor crucificado. A correspondência entre a economia e a teologia não
pode ser levada a estes extremos, sob pena de que a primeira deixe de ser a
manifestação livre e gratuita da vida intradivina para converter-se na repro­
dução temporal de eventos eternos (inclusive de um eterno drama trinitário)
e seja minimizada a responsabilidade do pecado humano na morte do Senhor.
A cruz encontra-se desde sempre no desígnio divino101, porém este não deixa
de ser libérrimo eternamente. Se é simples a fórmula do Grundaxiom rahne-
riano, não o é sua justa aplicação. A relação entre a Trindade econômica e a
Trindade imanente não pode ser determinada com exatidão. Somente após
sucessivos ensaios poderemos nos aproximar do equilíbrio desejado e fazer
justiça a duas exigências igualmente primárias: Deus se revela a nós livremente
tal como é, e nesta revelação mantém seu mistério102.
É certamente o Deus uno, Pai, Filho e Espírito quem se manifesta a nós na
obra de nossa salvação. Todavia, as formulações neotestamentárias falam-nos
principalmente da revelação de Deus Pai pela qual Jesus é levado a efeito (cf.
Mt 11,27 = Lc 10,22; Jo 1,18; 14,6.9; 17,6.26 etc.). É ele o ponto de referência
constante em toda a sua vida. Uma reta teologia do Pai, o Deus de Jesus, do
qual Jesus vem e para o qual nos leva no Espírito que nos outorga, deverá
constituir sempre uma preocupação de primeira ordem em toda reflexão sobre
o Deus revelado por Jesus Cristo.

101. Sabemos que SANTO IRENEU chegou a falar da “crucifixão cósmica” do Verbo;
cf. Adv. Haer. V 18,3; 19,1 (SCh 153,244-246; 248); Demostr. 34 (FP 2,130-131). Cf. A. ORBE,
Teologia de San Ireneo II, Madrid, 1987,236-263; D. WANKE, Das Kreuz Christi bei Irenàus von
Lyon> Berlin/New York, 2000, 305-335. No entanto, encontramo-nos no terreno das relações
entre a criação e a salvação, tratando-se, concretamente, de assegurar que o criador e o redentor
são o mesmo, não se entrando no campo da Trindade imanente.
102. Recordemos o que dissemos no capítulo 1 sobre o caráter quenótico da economia
da salvação. Nós nos baseávamos neste caráter como um dos motivos para explicar por que o
mistério da Trindade imanente não pode exaurir-se na economia da salvação. Parece que esta
distância ficaria anulada se projetássemos já a kénosis no ser eterno de Deus. Aludíamos, já en­
tão, à relação com o pecado humano da forma concreta da economia da salvação e citávamos,
neste sentido, alguma passagem precisamente de H. U. von Balthasar.

168
Capítulo 4

O Espírito do Pai e do Filho

O Espírito Santo é chamado de diversas maneiras no Novo Testamento.


Em primeiro lugar, temos a denominação Espírito Santo (cf. Mt 28,19; Lc
1,35; Jo 20,22), fato tão peculiar nos escritos neotestamentários, se comparado
com o escasso uso da expressão no Antigo Testamento1. É também chamado
simplesmente de “Espírito”, Espírito de Deus (Rm 8,9.14, entre muitas outras
passagens), Espírito do Pai (cf. Mc 10,20), Espírito do Filho (G14,6), de Cristo
(Rm 8,9; lPd 1,11), de Jesus (At 16,7), de Jesus Cristo (F11,19); e nos escritos
de João, Espírito da verdade, Paráclito. Por outro lado, e prescindindo desta
pluralidade de denominações, temos o fato, à primeira vista surpreendente,
de que o Espírito, por um lado, desce e repousa sobre Jesus (cf. Mc 1,10 par.;
Jo 1,32-34), e depois da ressurreição e ascensão deste é enviado pelo próprio
Jesus, juntamente com o Pai que o ungiu no Jordão. A partir destes e de outros
dados do Novo Testamento, formou-se ao longo dos séculos a teologia cristã
do Espírito Santo. Como não podia deixar de ser, e como sucede em todos os
campos da teologia, suscitaram-se também problemas e não faltam questões
em debate. Infelizmente, algumas delas ainda pesam como obstáculos que se
opõem à plena unidade dos cristãos. Embora sem perder de vista os problemas
ecumênicos, neste capítulo proponho-me tratar de alguns problemas objeto de
discussão na teologia católica. Em primeiro lugar, alguns aspectos da relação
Cristo-Espírito Santo na vida de Jesus. Esta questão refere-se, antes, à “Trindade

1. A expressão aparece cerca de 70 vezes no NT, relativamente a apenas cinco no Antigo:


Salmo 51 [50], 13; Isaías 63,10.11; Sabedoria 1,4; 9,17.

169
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

econômica” . Em segundo lugar, o Espírito Santo nas relações trinitárias com


o Pai e o Filho. Os dois problemas mencionados estão em íntima relação.
A economia da salvação leva-nos à teologia, e somente a partir da primeira
temos acesso a esta última. Esta verdade fundamental também encontrará
aqui seu eco. Tanto em um como em outro caso, como já fizemos em alguns
capítulos anteriores, combinaremos o estudo da discussão atual com o olhar
voltado para a tradição. Buscaremos extrair dela critérios que nos ajudem no
estudo dos problemas propostos na atualidade. É evidente que em nenhum
dos casos pretendemos um tratamento exaustivo das questões.

1. O Espírito e Cristo
Não há por que insistir nos dados básicos do Novo Testamento.
Simplesmente os recordemos. Jesus é concebido por obra do Espírito Santo
(Mt 1,20; Lc 1,35); Jesus é ungido no Espírito Santo no batismo no Jordão (cf.
Mc 1,10 par.; Lc 4,18; At 10,38; Jo 1,32-34); é levado ao deserto pelo Espírito
Santo para ser tentado (cf. Mc 1,12 par., com significativas diferenças de matiz
entre os sinóticos, nas quais não nos deteremos); Jesus expulsa os demônios
em virtude do Espírito Santo (cf. Mc 3,22-30; M t 12,28); Jesus exulta no
Espírito Santo (Lc 10,21); em virtude de um Espírito eterno, oferece-se ao Pai
em sua paixão (cf. Hb 9,14); foi constituído Filho de Deus em poder segundo
o Espírito de santidade pela ressurreição dentre os mortos (Rm 1,4: cf. Rm
8,11). Não foi fácil para a teologia dar o justo valor a estes dados e, acima de
tudo, combiná-los com o dogma trinitário e cristológico desenvolvido nos
primeiros séculos da Igreja. Concretamente, o significado da presença do
Espírito em Jesus criou problemas. Começaremos com alguns dados sobre a
teologia do batismo e a unção de Cristo.

A. O batismo de Jesus. Alguns dados patrísticos


O sentido e a significação do batismo de Cristo delineia-se já em são
Justino2. Este episódio narrado pelos evangelhos cria dificuldades para os que
defendem a divindade e a preexistência de Jesus. É fácil para o adversário, o
judeu Trifão, afirmar que é preciso receber os dons do Espírito de que fala
Isaías (11,1-3) porque está necessitado deles. Como poderia neste caso ser

2. Cf. PH. HENNE, Pourquoi le Christ fut-il baptisé? La réponse de Justin, Revue des Sciences
Philosophiques et Théologiques 77 (1993) 567-583; A. ORBE, La unciôn del Verbo, Roma, 1961,
39ss.

170
0 ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

Deus preexistente como afirmam os cristãos? Justino responde que descem


sobre ele os poderes do Espírito porque nele haviam de encontrar descanso, de
tal maneira que já não haveria outros profetas em Israel. Cessando em Israel,
convertem-se em dons que partem de Cristo e se derramam sobre os que nele
crêem; com efeito, Jesus derrama seu Espírito depois de sua ascensão aos céus3.
Não insiste no problema da divindade e da preexistência a que Trifão aludiu,
embora pareça claro que as pressupõe. Não satisfeito de todo, ao que parece,
com esta primeira explicação, Justino volta a propor a questão em continuação,
desde o princípio: Cristo não estava falho de forças desde o princípio, como
mostra o fato de que os magos da Arábia foram adorá-lo; e não foi ao Jordão
porque tivesse necessidade de batismo, nem de que descesse o Espírito Santo
sobre ele, como tampouco nasceu nem morreu em proveito próprio. Faz tudo
por amor do gênero humano, caído na morte desde Adão. Jesus vai, portanto,
ao Jordão por causa dos homens; voa então sobre ele o Espírito, vem a voz
do céu, que na versão de Justino, a chamada versão “ocidental”, pode causar
algum problema: “Tu és meu filho; eu, hoje, te gerei” (SI 2,7; Lc 3,22). Com
efeito, estamos diante do problema da preexistência que já apareceu. Justino
segue adiante dizendo que “O Pai chama nascimento de seu Filho o momento
em que seu conhecimento ia chegar aos homens”4.
Justino assevera, assim, a preexistência daquele que é o Filho de Deus.
A vinda do Espírito Santo sobre ele não se opõe a ela. O Espírito desce sobre
Jesus e Cristo recebe a unção enquanto homem, não enquanto Deus. Tudo
isto pertence à ordem da economia, isto é, o fato tem lugar em função da
salvação dos homens. Justino não explicita de maneira concreta por que esta
vinda do Espírito sobre Jesus é benéfica para o gênero humano. Fala-se apenas
de maneira indireta por que a encarnação e a morte de Cristo têm um sentido
salvador5. De qualquer maneira, parece claro que somente enquanto homem
pode salvar os homens. Se tomamos em consideração o que de maneira breve
e de passagem disse Inácio de Antioquia6 e o que mais explicitamente dirá
Ireneu7, podemos pensar que o dom do Espírito que Jesus recebe, e de que

3. Cf. Dial Tryphj 87 (Marcovich, 220-222).


4. Ibid. 88,8 (224); cf. todo o capítulo para o que precede (222-224). Da adoração dos magos
já havia falado em 78,5.7 (205).
5. Ibid. 88,4 (223): “... como tampouco se dignou nascer e ser sacrificado porque o ne­
cessitasse, mas por amor ao gênero humano, que desde Adão havia caído na morte...”; 86,6
(220): “redimiu-nos nosso Cristo, a nós, manchados pelos pecados muito graves que havíamos
cometido, ao ser crucificado no lenho e ao purificar-nos pela água” .
6. Cf. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Aà Eph. 17,1; 18,2 (FP 1,121).
7. Cf. a continuação de nossa exposição.

171
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

pessoalmente não necessita, é, contudo, uma necessidade soteriológica. Somente


por meio de sua natureza humana cheia de Espírito podia comunicá-lo aos ho­
mens8. Não é expresso diretamente, porém a suposição não é arbitrária. Como
já tivemos oportunidade de observar, Justino nos disse que os dons do Espírito
cessam entre os judeus precisamente porque hão de descansar em Jesus. A partir
de sua humanidade glorificada, e concretamente depois de sua ressurreição e
ascensão (cf. E f 4,8), hão de ser comunicados aos que nele crêem. Não parece
fora de propósito supor que, se Jesus recebe os dons do Espírito sem necessidade
pessoal deles, mas sim no âmbito da economia na qual se encarnou e padeceu
por nós, a vinda do Espírito Santo sobre ele tenha como finalidade tornar
possível comunicá-lo aos homens seus irmãos. Não existe, depois de Cristo,
nenhum dom do Espírito que não provenha dele, de sua humanidade. Por isso,
nele descansam as graças espirituais que terminam entre os judeus9.
O que em Justino se encontra nas entrelinhas, porém com clareza suficien­
te, é explicitado em santo Ireneu. O bispo de Lião assinala com toda a clareza
alguns pontos que nos interessam: antes de tudo, o Verbo de Deus se fez carne
e sobre ele desce o Espírito que o unge e faz com que Jesus, o nome do Verbo
feito carne, seja constituído “Cristo” e, portanto, chamado Jesus Cristo101. Trata-
se, por conseguinte, da unção no Espírito que, por obra do Pai, o Verbo feito
carne recebe, e precisamente contanto que encarnado: “ Pois enquanto o Verbo
de Deus era homem da raiz de Jessé e filho de Abraão, enquanto tal descansava o
Espírito de Deus sobre ele e era ungido para evangelizar os humildes (cf. Lc 4,18;
Is 6 1 ,l)” n. Enquanto homem, Cristo tinha de ser ungido para poder cumprir
a missão recebida do Pai de evangelizar os pobres. Explica-se aqui melhor do
que em Justino a necessidade soteriológica da unção do Filho feito homem, a
partir do pressuposto do desígnio divino de salvar o gênero humano mediante

8. A. ORBE, La uncióti dei Verboy Roma, 1961, 41: “Pessoalmentey não tinha necessidade
alguma dos dons anunciados por Isaías, ordenados como estavam à salvação dos homens.
Recebeu-os, porém, enquanto homemyporque só enquanto homem podia salvar os homens, e
só mediante sua natureza humana previamente ungida com os dons do Espírito poderia Jesus
santificar ‘conaturalmente’ os homens” . Cf. também ibid. 42-60.
9. Cf. TERTULIANO, Adv. Marc. V 8 (CCL 1,598): “ ... quo floruisset in carne sumpta ex
stirpe David, requiescere in illo haberet omnis operatio gratiae spiritualis et concessare et finem
facere quantum ad Iudaeos”.
10. IRENEU DE LIÃO, Adv. Haer. III 9,3 (SCh 211,108): “Sed Verbum Dei, qui est Salvator
omnium, et dominatur caeli et terrae, qui est Iesus..., qui adsumpsit carnem et unctus est a
Patre Spiritu, Iesus Christus factus est”.
11. Ibid. III 9,3 (110): “Nam secundum id quod Verbum Dei homo erat ex radice lesse et
filius Abrahae, secundum hoc requiescebat Spiritus Dei super e um et ungebatur ad evangeli-
zandum humilibus” .

172
O ESPIRITO DO PAI E DO FILHO

a encarnação. Outra passagem vem confirmar esta dimensão soteriológica, ex­


plicitando também aqui alguma idéia que parecia insinuada em são Justino: “O
Espírito de Deus desceu sobre ele, o Espírito daquele que havia predito que o
ungiria para que nós fôssemos salvos ao receber da abundância de sua unção”12.
O motivo da unção de Jesus enquanto homem explica-se aqui com mais clareza.
De Jesus, o Espírito tem de passar para os homens. Em sua unção, de algum
modo, já se realiza a nossa. A idéia se completa ainda com a insistência na
necessidade da mediação da humanidade de Cristo, para que nossa comunhão
com Deus possa ser efetuada. Por essa razão, em Jesus, o Espírito se “habitua” a
habitar no gênero humano, para depois nos renovar intemamente na novidade
de Cristo13. O Espírito desce sobre o Filho humanado. A unção pressupõe a en­
carnação, porém não é um acréscimo inútil ou secundário; na força do Espírito,
Jesus cumpre sua missão de evangelizar os pobres; e a unção por ele recebida
dá-lhe a possibilidade de comunicar aos homens o Espírito que, habitando em
sua humanidade desde o momento do Jordão até o da ressurreição, adquiriu
familiaridade com o gênero humano.
Até um período bem avançado do século IV, o ensinamento acerca da
vinda do Espírito Santo sobre o Filho de Deus na condição de encarnado é
uma constante, não oferecendo dificuldades. Segundo Atanásio, o Espírito
Santo não vem sobre Jesus para que seja feito Deus, posto que o é desde a
eternidade. Diz-se que é ungido quando recebe o Espírito Santo como homem,
para que também nós possamos ressuscitar com ele e possamos ser também
morada do Espírito14. Cristo se santifica por nós (cf. Jo 4,17) quando, uma
vez feito homem, o Espírito desce sobre ele no Jordão; no mesmo instante, o
Espírito descia também sobre nós, porque Jesus leva todos nós em seu corpo.
Assim, quando era lavado no Jordão, também nós éramos lavados nele e a
partir dele. Quando recebia o Espírito, tornava-nos dignos de recebê-lo15. O
Espírito vem a Jesus enquanto homem, e esta doação, em última palavra, é
dirigida a toda a humanidade. A unção de Jesus com o Espírito é sucessiva à
encarnação (de fato, tem lugar no Jordão) e tem uma finalidade soteriológica
de primeira ordem: a doação do Espírito Santo, cujos destinatários seremos

12. Ibid. (110-112): “Spiritus ergo Dei descendit in eum, eius qui per prophetas promiserat
uncturum se eum, ut de abundantia unctionis eius nos percipientes salvaremur”. Cf. também
III 17,2-3 (330-336). Démons. 9 (FP 2,73); 53 (165).
13. Adv. Haer. III 17,1 (330): “unde et in Filium Dei filium hominis factum descendit, cum
ipso adsuescens habitare in genere humano et requiescere in hominibus et habitare in plasmate
Dei, voluntatem Patris operans in ipsis et renovans eos a vetustate in novitatem Christi”.
14. Cf. ATANÄSIO, Contra Arianos I 46 (PG 26, 108); 47 (109).
15. Ibid. 47 (108-109).

173
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

nós, depende da unção que o Verbo feito carne recebe em sua humanidade.
Encontramos idéias que já nos são conhecidas. Entretanto, Atanásio se afasta
da tradição precedente em um ponto importante: é o Filho enquanto Deus
quem unge a si mesmo como homem16. Perde-se assim uma dimensão tri-
nitária, para acentuar fortemente a divindade do Filho (que constatávamos
ser afirmada também pelos autores precedentes); entende-se claramente esta
preocupação no contexto da controvérsia ariana, porém, sem dúvida, é oca­
sionado um distanciamento dos dados do Novo Testamento.
Hilário de Poitiers é igualmente claro na afirmação na divindade de
Jesus que, como homem, e não com o Deus, recebe o batismo. A unção não
afeta sua natureza divina, na qual não cabe o “ progresso” . A unção batismal
é dada para que sua humanidade, que a partir da encarnação é a humanidade
do Filho, cresça na santidade, renasça e o Filho do homem se torne cada vez
mais Filho de Deus também enquanto homem:
Aquele que é Deus por geração não chegou a sê-lo por alguma razão depois
do nascimento, pois, ao nascer, por seu nascimento não é mais que Deus. E,
quando é ungido por algum motivo, o progresso produzido pela unção não
se refere àquele que não necessita de crescimento algum, mas àquele que, pelo
crescimento no mistério, necessita do progresso causado pela unção; ou seja,
Cristo é ungido a fim de que, mediante sua unção, seja santificado enquanto
é homem como nós17.

A unção do Jordão santifica, portanto, a humanidade assumida pelo Filho


que, em sua divindade, não se vê afetado por esta efiisão do Espírito. Também
para Hilário, a vinda do Espírito sobre Jesus no Jordão tem efeitos para todos
nós: “com a autoridade de seu exemplo, conduz à perfeição os mistérios da sal­
vação humana, santificando o homem pela assunção e pelo banho do batismo” 18.

16. Ibid. 46 (108): “Eu, que sou o Verbo do Pai, eu mesmo me dou o Espírito a mim feito
homem, e a mim feito homem santifico-me nele, para que depois todos se santifiquem em mim
que sou a verdade (cf. Jo 14,6)” ; cf. também ibid. 47 (109).
17. HILÁRIO DE POITIERS, de Trinitate XI 19 (CCL 62A 550); XI 18 (549): “Unctio enim
illa non beatae illi et incorruptae et in natura Dei manenti natiuitati profecit, sed corporis sacra­
mento et sanctificationis hominis adsumpti... Et quemadmodum in Spiritu Dei et uirtuti unctus
sit (cf. At 10,38) non ambiguum est tunc, cum ascendente eo de Iordane uox Dei Patris audita
est: Filius meus es tu, ego hodiegenui te (cf. Lc 3,22; SI 2,7), ut per hoc testimonium sanctificatae
in eo carnis unctio spiritalis uirtutis cognosceretur”; Tr. Ps. 2,29 (CCL 61,57-58): “Scriptum est
autem cum ascendisset ex aqua: Filius meus es tuyego hodiegenui te. Sed secundum generationis
hominis renascentis tum quoque ipse deo renascebatur in filium perfectum...”.
18. In Mt. 2,5 (SCh 254,110); é interessante o último inciso, “hominem et adsumptione
sanctificans et lauacro”, onde hominem indica a um só tempo a humanidade de Jesus e a
humanidade inteira.

174
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

Em sua encarnação, Jesus uniu-se, de alguma forma, a todo o gênero humano.


Assim, o que ocorre na cabeça tem efeitos para todo o corpo19.
Também em Hilário, como em Justino, deparamos com a citação do salmo
2,7, “Filius meus es tu, ego hodie genui te”, na voz do céu no batismo de Jesus
segundo Lucas 3,2220. Ocorre neste momento um “renascimento” de Jesus enquan­
to homem, por obra do Espírito; este renascimento é uma etapa no crescimento
humano do Senhor até chegar, na ressurreição, a ser Filho de Deus em plenitude
também quanto à humanidade assumida21. O momento do batismo no Jordão
tem uma significação para o próprio Jesus e ao mesmo tempo para a humanidade
toda, porque o Espírito que enche o Filho encarnado pode ser comunicado como
Espírito de adoção e pode fazer dos homens filhos de Deus.
Existe uma diferença e ao mesmo tempo uma relação entre a encarnação
e a unção de Jesus. O Filho preexistente encarnou-se no seio de Maria, e sobre
ele, enquanto homem, desceu o Espírito Santo. A distinção é clara. A distância
cronológica entre os dois eventos facilita essa distinção: a unção, com efeito,
tem lugar no Jordão, como também ocorre para o Novo Testamento (cf. Lc
4,18; At 10,38). Esta unção, que não acrescenta nada pessoalmente a Jesus,
porque desde sempre é o Filho de Deus, não é de modo algum acidental ou de
importância secundária para a realização de sua missão salvadora. Em virtude
desta unção, evangeliza os pobres e pode comunicar o Espírito de filiação
adotiva aos homens, seus irmãos. A encarnação e a unção constituem, assim,

19. Ibid. 2,6 (110): MNam baptizato eo, reseratis caelorum aditibus, Spiritus Sanctus emittitur
et specie columbae uisibilis agnosdtur et istius modi patemae pietatis unctione perfunditur.
Vox deinde de caelis ita loquitur... (Lc 3,22; SI 2,7). Filius Dei auditu conspectuque monstra-
tur... ut ex eis quae consummabantur in Christo cognosceremus post aquae lauacrum et de
caelestibus portis sanctum in nos Spiritum inuolare et caelestis nos gloríae unctione perfiindi
et paternae uocis adoptione Dei filios fieri, cum ita dispositi in nos sacramenti imaginem ipsis
rerum effectibus ueritas praefigurauerit” ; notamos já a mesma citação nos textos apontados
nas notas precedentes; mais informações sobre estas passagens em L. F. LADARIA, El Espíritu
Santo en san Hilário de PoitiersyMadrid, 1977,116-124; ID., La cristología de Hilário de Poitiers,
Roma, 1989, 105-118; 1D., La “unción de la gloria celeste”. Gloria y Espíritu Santo en Hilário
de Poitiers, Revista Catalana de Teologia 25 (2000) 131-140.
20. A. ORBE, La unción dei Verbo, 635: “Então [no Jordão], com efeito, teve lugar uma nova
geração, distinta da filiação natural divina, e explicitamente denunciada por uma variante de Lucas
3,22b: ‘Filius meus es tu, ego hodie genui te\ Muito mais que a extensão de tal variante entre
os primeiros escritores cristãos e seu signo de autenticidade discutível, interessa aqui a teologia
ingênua que encobre. No Jordão, Deus gera para uma nova vida a humanidade de Jesus, enquanto
cabeça da Igreja e manancial, para ela, da filiação adotiva. Jesus é humanamente adotado pelo Pai,
mediante o Espírito: não o era até então, e necessitava sê-lo em benefício de seus irmãos, como
cabeça deles e princípio de uma vida divina transferível aos homens...”. Cf. ibid. 634-637.
21. Cf. HILÁRIO DE POITIERS, Trin. III 16 (87-89); Tr. Ps. 2,27 (CCL 61,56-57).

175
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

dois momentos não apenas diferenciados, mas também relacionados: o Espírito


Santo enviado pelo Pai vem sobre Jesus, o Filho feito homem, como a seu lugar
próprio e natural. A unção segue-se à encarnação e é sua conseqüência22.
A luta contra os arianos e a controvérsia nestoriana não favoreceram a
manutenção desse equilíbrio e dessa relação entre a encarnação do Filho e sua
unção com o Espírito enquanto homem: por que necessita do Espírito aquele
que é Deus desde toda a eternidade? Ou, por outro lado, é o Filho de Deus,
pessoalmente, o homem que é ungido no Espírito? A importância cristoló-
gica da unção foi se debilitando progressivamente até chegar a ser absorvida
na encarnação ou união hipostática. Neste sentido, cita-se com freqüência
Gregório de Nazianzo:
É “Cristo” a causa de sua divindade: esta é a unção da humanidade que a
santifica, não por operação, como em outros “ungidos”, mas com a presença
total daquele que dá a unção, e por obra desta presença o ungido é chamado
homem e o que unge é chamado Deus23.

22. Vale a pena reproduzir algumas passagens de recapitulação de A. ORBE, La uncióti dei
Verboy 635-637: “O Salvador haverá de exercer sua ação integralmente, como Deus e como ho­
mem. A união hipostática, por si, não conaturaliza o Espírito ao homem. Conaturaliza-lhe a vida
íntima que o próprio Espírito provoca na alma e no corpo de Jesus, quando os invade com novos
conhecimentos, afetos e vivências. No Jordão, mudou radicalmente a vida humana de Jesus... Na
ordem da economia, a humanidade de Jesus foi habilitada muito em breve... para fazer milagres
e para ensinar. Empregou, não obstante, os XII meses de sua vida pública para tomar-se capaz de
infundir em outros seu próprio Espírito. Entretanto, o Espírito penetrava lentamente na alma e
na carne de Jesus. Mais que a assimilação do Espírito pela humanidade de Jesus, era a assimilação
de Jesus pelo Espírito. Na saúde da Igreja, nem o Verbo como tal nem a fortiori a humanidade
desembaraçada de Jesus podem operar eficazmente. O Verbo atuará como princípio do Espírito
— em favor dos homens — sob a condição de que o encontre já conaturalizado ao homem, com
essências humanas, adquiridas em Jesus. Em virtude de sua destinação aos homens, seu princípio
imediato será o Verbo Encarnado enquanto tal. O próprio Pai não o difunde direta e imediatamente
sobre os membros da Igreja. Só Jesus (Verbo feito homem) fez milagres e anunciou o evangelho
do Pai, só ele derramará o Espírito que recebeu por primeiro no Jordão”. 1D., En tomo a la en-
camacióriy Santiago de Compostela, 1985, 218-219: “A natureza humana de Jesus recebe, a modo
de qualidade, o Espírito Santo. E em sua virtude fica habilitada para atos espirituais; e inicia um
novo regime operacional... Era mister que, constituído mediador entre Deus e os homens, Jesus
atuasse no divino a partir de sua natureza humana. E para tal fim recebesse, a modo de crisma, em
sua humanidade, o Espírito Santo destinado a seus irmãos, os homens. Tal modo de apresentar o
Espírito Santo na Encarnação, e no Batismo, demonstra que sabiam distinguir entre o pessoal e
o dinâmico... Os eclesiásticos discorrem com maior simplicidade e clareza sem confundir nunca
a presença não-operativa do Verbo e a presença operativa do Espírito que, a modo de unção,
habilita na ordem salvífica a humanidade do Verbo a partir do batismo”.
23. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 30,21 (SCh 250,272); igualmente, ibid. 30,2 (228):
“a divindade é a unção da humanidade”. As idéias de Gregório tiveram influência em JOÃO

176
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

Diante de tal concepção, surge inevitavelmente a questão: sobra “espaço”


para uma ação do Espírito Santo na humanidade de Jesus? Tudo parece feito
já na assunção da humanidade24. A união hipostática marca a diferença entre
Jesus e os demais homens, nos quais parece estaria presente o Espírito Santo.
Tudo se contempla na relação entre humanidade e divindade, o Filho e a
humanidade que assume. De algum modo, prossegue-se a linha iniciada por
santo Atanásio, e dá-se um passo a mais: o Verbo unge sua humanidade não
lhe comunicando seu Espírito Santo no Jordão, mas unindo-a a si, com sua
presença total. Existe ainda necessidade de algo mais? Gregório, no entanto, teve
também presente que a obra de Jesus se realiza com a intervenção do Espírito
Santo: “Cristo é gerado, ele o precede. Cristo é batizado, ele dá testemunho.
Cristo é tentado, ele o reconduz [à Galiléia]. Cristo realiza prodígios, ele o
acompanha. Cristo sobe ao céu, ele o sucede”25. De qualquer maneira, não
se explicita o sentido desta ação do Espírito que sempre acompanha Jesus. O
contexto em que Gregório fala é o da defesa da divindade do Espírito Santo.
Já Basílio havia usado também o argumento da presença do Espírito em Jesus
para insistir em que não pode ser uma criatura:
Tudo o que foi realizado com vistas à vinda do Senhor na carne, tudo sucedeu
mediante o Espírito. Em primeiro lugar, esteve na própria carne do Senhor
convertido em unção e de maneira inseparável: “Aquele sobre o qual vires o
Espírito descer e permanecer sobre ele, é ele quem batiza no Espírito Santo”
(Jo 1,33; Lc 3,22). E também: “Jesus, oriundo de Nazaré, sabeis como Deus
lhe conferiu a unção do Espírito Santo" (At 10,38). E depois, toda a atividade
de Jesus foi levada a efeito com a presença do Espírito. Ele esteve presente
na tentação por obra do diabo, pois se diz: “Então Jesus foi conduzido pelo
Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo” (Mt 4,1). Esteve presente
de maneira inseparável quando Jesus realizava os milagres, pois este assim
afirma: “Se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios...” (Mt
12,28). Não abandonou o que ressuscitou dentre os mortos. E quando o
Senhor renovou o homem, e voltou a dar-lhe a graça que vem do sopro

DAMASCENO, Defide orthodoxa III3; 17; IV 14; 18 (PG 94,989; 1070; 1161; 1185); mais matizado
em IV 6.9 (1112; 1120). A idéia da unção da humanidade pela divindade encontra-se já presente em
ORÍGENES, Princ. II 6,4.6 (SCh 252,316; 322), porém não se trata da unção do Jordão, mas da
união da alma preexistente com o Verbo: “anima cum uerbo Dei Christus efficitur”.
24. A teologia do batismo de Jesus segundo Gregório tende a considerar a cena uma pre­
figuração do que acontece em nosso batismo; cf. Or. 39,1; 14-17; 20 (SCh 358, 151; 178-188;
194); Or. 40,29-30 (SCh 246-248).
25. Or. 31,29 (SCh 250,332).

177
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

de Deus, que havia perdido, quando soprou no rosto dos discípulos, o que
disse?: “Recebei o Espírito Santo...” (Jo 20,22-23)26.

Segundo Basílio, é o Espírito Santo quem se une, como unção inse­


parável, à carne do Senhor. Por outro lado, a citação combinada de João e
Lucas faz referência à descida do Espírito sobre Jesus no Jordão, com o que
se afasta a possibilidade de confusão com a encarnação. Ressoam aqui, mais
do que em Gregório de Nazianzo, os temas tradicionais. Por outro lado, é
sabido que Basílio, sempre em relação com a cena do Jordão, assinala que o
Pai é o que unge, o Filho é o ungido e o Espírito Santo é a unção27. Não se
perde, portanto, a dimensão trinitária, e a presença do Espírito em Jesus é
vista em sua distinção e em sua relação quanto à encarnação. No avanço da
segunda metade do século IV, Basílio mantém ainda a teologia clássica, sem
que a necessidade de defender a divindade do Filho e do Espírito o force às
mudanças de perspectiva de seu amigo Gregório.
Santo Agostinho delineou o problema antes de tudo do ponto de vista
cronológico. Como pôde Jesus receber o batismo quando contava já trinta
anos de idade? O que nos é narrado como acontecido no Jordão tem o senti­
do de nos dar a conhecer o que ocorre na Igreja. A unção de Jesus tem lugar
no momento em que o Filho assume a natureza humana no seio da Virgem.
Agostinho não diz que a encarnação e a unção sejam a mesma coisa. Parece até
mesmo dar a entender que não se identificam, embora coincidam no tempo28.
O sentido que a presença do Espírito possa ter para Jesus fica em aberto29.

26. De Spiritu sancto 16,39 (SCh 17bis, 386). Também ibid. 19,49 (418-420): “Também o
Espírito precede a vinda de Cristo. A presença de Cristo na carne não pode ser separada do Es­
pírito Santo. O poder dos milagres, os dons das curas realizaram-se mediante o Espírito Santo.
Os demônios eram expulsos no Espírito de Deus. O diabo foi aniquilado com a presença do
Espírito”.
27. Cf. ibid. 12,28 (344). Trata-se de uma citação de um conhecido texto de IRENEU, Adv.
Haer. III 18,3 (SCh 211,350-352). Adota-o também AMBRÓSIO DE MILÃO, De Spiritu sancto
I 3,44 (CSEL 79,33). Também para Ambrósio, o Espírito desce sobre Cristo enquanto homem,
para o cumprimento de sua missão evangelizadora e para que dele nós o recebamos; cf. De
Spiritu sancto I 8,93 (55); III 1,2.5 (150.151).
28. AGOSTINHO DE HIPONA, Trin. XV 26,46 (CCL 50A, 526-527): “Nec sana tunc
unctus est Christus spiritu sancto quando super eum baptizatum velut columba descendit;
nunc enim corpus suum, id est ecclesiam suam praefigurare dignatus est... Sed ista mystica et
invisibili unctione tunc intelligendus est unctus quando verbum Dei caro factum est (Jo 1,14),
id est quando humana natura sine ullis praecedentibus bonorum operum meritis deo verbo
est in útero virginis copulata ita ut cum filio fieret una persona... Absurdissimum est enim ut
credamus eum cum iam triginta esset annorum... accepisse spiritum sanctum”.
29. SANTO AGOSTINHO, In Joh. Ev. trac. V, 5 (CCL 36,43); Jesus é batizado no Jordão
para nos exortar a receber seu batismo, já que ele recebeu o batismo do servo. O significado

178
O ESPÍRíTO DO PAI E DO FILHO

A distinção entre a encarnação e a unção com o Espírito no momento


do batismo mantém-se em Cirilo de Alexandria. A recepção do Espírito por
parte de Jesus não afeta sua divindade, já que o Espírito é seu, mas o recebe
enquanto se fez homem por nós30. A vinda do Espírito Santo não pode dar
um momento de santificação nem de graça a Jesus enquanto Deus. Ele, que
não pecou, recebe o Espírito para poder dá-lo a nós, que nos afastamos da
graça. Recebe o Espírito nele para nós; o Espírito não vai embora de Jesus,
porque não tem pecado; nosso pecado, ao contrário, fez que se afastasse de
nós. Por conseguinte, em Jesus, o Espírito pode acostumar-se a habitar nos
homens31. O sentido do envio para o próprio Jesus enquanto homem não é
posto especialmente em relevo. É tudo para nós. Mesmo que seja o Pai quem
dá o Espírito a Jesus no Jordão, e ele o receba como um de nós, a rigor não
recebe nada para si, porque é o doador do Espírito32. Jesus preservou para
a humanidade a unção recebida de Deus Pai, a saber, o Espírito33. Jesus não
recebeu o Espírito para si mesmo, mas para toda a humanidade. Neste mesmo
contexto, o nome de Cristo se aplica a Jesus sem que se descubra uma relação
mínima com a unção do Espírito34. Nova prova de que esta significa pouco
para Jesus mesmo. O Espírito é próprio do Filho, este o recebe como homem
e para os homens, porém, ao que parece, sem nenhuma significação para sua
própria humanidade. Pode ter desempenhado um papel nesta concepção a
necessidade de opor-se a Nestório?
Escolhemos alguns autores significativos da Antiguidade para ver como,
em um movimento que não é de todo uniforme, o significado cristológico da
presença do Espírito em Jesus vai se esfumando. O exemplo máximo é talvez
Agostinho, para quem o comentário à descida do Espírito sobre Jesus se con­
verte em um tratado sobre o batismo (quanto ao mais, de grande interesse)
contra os adversários donatistas: o batismo dado pelos apóstolos não é o seu
próprio, mas o de Jesus, o batismo no Espírito, que só ele pode dar, mesmo
que se sirva do ministério dos homens. Dando maior ou menor relevância

cristológico da descida do Espírito sobre Jesus tal como é narrada em João 1,32-34 não preocupa
Agostinho nos trac. IV-VI In Joh. (CCL 36,31-67), que dedica a estes versículos; o ponto central
é que Jesus batiza no Espírito Santo. Vê no batismo de Jesus uma manifestação da Trindade;
trac. VI 5 (56): “Apparet manifestíssima Trinitas. Pater in voce, Filius in homine, Spiritus in
colomba” . Desaparece toda menção à unção que víamos em autores anteriores.
30. Cf. CIRILO DE ALEXANDRIA, In Joh. Ev. II (PG 73,196-210); Adv. Nestorium III3 (PG
76,148): “Quando o vês ungido pelo próprio Espírito, pensa na economia da carne” .
31. In Joh. Ev. II (208A); acolhe-se o motivo apontado por Ireneu, que já conhecemos.
32. Ibid. (205D).
33. Cf. ibid. V (752-757, espec. 753).
34. Cf. ibid. (753A); Cristo é o primeiro que recebe o Espírito.

179
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO

ao aspecto cristológico da presença do Espírito em Jesus, do que em geral


não se duvidou é de que este Espírito vem sobre Jesus que é o Filho de Deus
encarnado, e o afeta enquanto homem, não enquanto Deus. Deveremos reter
estes dados para momentos posteriores de nossa reflexão.

B. Santo Tomás
A teologia do batism o e da unção de Cristo continuou na Idade Média.
Iremos nos deter brevemente em algumas das principais afirmações de santo
Tomás. Para ele, a união do Verbo à humanidade não acontece mediante a
graça que se atribui ao Espírito Santo, porque a graça, na visão de Tomás,
é um “acidente”, e a união hipostática pertence à subsistência. O Espírito
Santo formou o corpo de Cristo. A graça da união é o mesmo ser pessoal
que se dá divinamente de maneira gratuita à natureza humana na pessoa
do Verbo. A graça habitual, que corresponde à santidade especial deste
homem, é a conseqüência da graça da união35. A “ graça” vem, portanto,
da união hipostática e é um efeito conseqüente desta. É este um ponto que
devemos reter e que se coloca, embora com uma chave diversa, na linha da
antiga tradição, que via a presença do Espírito Santo em Jesus como uma
conseqüência da encarnação. No tratamento dado por santo Tom ás à graça
de Cristo, não são freqüentes as menções ao Espírito Santo36. Não faltam,
porém, as passagens nas quais a graça habitual se relaciona diretamente com
o Espírito Santo, dando-se uma iluminação recíproca das missões trinitárias e
da articulação entre a graça da união e a graça habitual37. A união hipostática

35. TOMÁS DE AQUINO, STh III 6,6: “Gratia enim unionis est ipsum esse personale quod
gratis divinitus datur humanae naturae in persona Verbi: quod quidem est terminus adsump-
tionis. Gratiam autem habitualis, pertinens ad specialem sanctitatem illius hominis, est efifectus
quidam consequens unionem. Cf. todo o artigo.
36. Cf. ibid. ad 3. Cf. la q. 7, onde se fala da graça de Cristo sem menção especial ao Espírito
Santo. Curioso o conteúdo do art. 11, ad 1, comentário sobre João 3,34, segundo o qual Deus
não dá o Espírito Santo com medida; no comentário não é mencionado o Espírito Santo, mas
fala-se do dom eterno do Pai ao Filho, da natureza divina e do dom da união da pessoa divina
à humanidade.
37. Ibid. 7,13: “Principium enim unionis est persona Filii assumens humanam naturam...
Principium autem gratiae habitualis, quae cum caritate datur, est Spiritus Sanctus... Missio
autem Filii, secundum ordinem naturae, prior est missioni Spiritus Sancti: sicut ordine naturae
Spiritus Sanctus procedit a Filio et a Patre dilectio. Unde et unio personalis, secundum quam
intelligitur missi Filii, est prior, ordine naturae, gratiae habituali, secundum quam intelligitur
missio Spiritus sanctus”. Cf. a continuação: a graça vem da presença da divindade no homem,
e a presença de Deus em Cristo é, antes de tudo, a da divina pessoa na natureza humana. Como
conseqüência desta união, vem a graça habitual, como o esplendor se segue ao sol. Desapareceu

180
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

e a “unção” de Cristo, embora o termo não seja usado, distinguem -se e


relacionam-se. A santificação da humanidade de Cristo tem lugar no m e sm o
instante de sua concepção, e a abundância de sua graça santificante d eriva
da própria união do Verbo38. Desde o princípio de sua concepção, Jesus está
cheio da graça do Espírito Santo, e esta graça não pode crescer. Por isso foi
conveniente que fosse batizado com o batismo de João, que não batizava
no Espírito, mas somente na água (cf. Mt 3,11)39. A plenitude da graça do
Espírito Santo é consequência da graça da união. Novamente, também para
santo Tom ás fica em aberto, como víamos em santo Agostinho, o sentido
que esta presença do Espírito possa ter em ordem à ação salvadora que
Cristo há de levar a cabo. Todavia, a distinção e também a relação com a
união hipostática estão claras. Quanto ao mais, também se há de notar que
a própria graça que Cristo tem pessoalmente é aquela pela qual é cabeça
da Igreja. Por isso, da eminência da graça que Jesus recebeu, esta tem de ir
para os outros homens40.
Sabemos que a presença do Espírito em Jesus foi considerada algo se­
cundário nos tempos posteriores. Observamos que para santo Tomás vem
como conseqüência da união hipostática, porém não se concede muito espaço
à ação do Espírito em Jesus41. Em outras oportunidades, vimos que se fala
simplesmente da “graça”, sem menção ao Espírito Santo. Pode-se dizer que o
mistério da unção de Cristo, por razões que facilmente podem ser entendidas,
ficou em algumas ocasiões absorvido pelo da encarnação, em outras reduzido
em seu significado, se levamos em conta os dados do Novo Testamento e da
antiga tradição da Igreja.

aqui a menção ao Espírito Santo. Sobre a relação entre o Espírito Santo e a graça, em termos
mais genéricos, cf. I 43,3.
38. Cf. ibid. 34,1.
39. Ibid. 39,2: “Christus autem spirituali baptismate non indigebat, qui a principio suae concep-
tionis gratia spiritus sancti repletus fuit”. Cf. 39,6, sobre a descida do Espírito Santo em forma de
pomba. De modo conseqüente com o que se acaba de dizer, não se faz nenhuma alusão ao efeito que
a descida do Espírito possa ter para Cristo. Santo Tomás apóia-se na passagem de santo Agostinho
que já conhecemos. De Jesus cheio do Espírito Santo fala também em ibid. II.II, 14,1.
40. STh III 8,5: Min anima Christi recepta est gratia secundum maximam eminentiam.
Et ideo ex eminentia gratiae quam accepit, competit sibi quod gratia illa ad alios derivetur.
Quod pertinet ad rationem capitis” . Novamente, neste contexto, falta a menção ao Espírito
Santo.
41. Cf. STh II.II, 14,1; Jesus faz os milagres pela força do Espírito Santo e ao mesmo tempo
por força da natureza divina: tt... quae quidem agebat et per virtutem propriae divinitatis et
per operationem Spiritus Sancti, quo secundum humanitatem erat repletus”.

181
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

C A discussão recente
A presença do Espírito em Jesus foi posta em destaque em tentativas
diversas na teologia dos últimos decênios. Deixo de lado os propósitos de uma
simples substituição da teologia do Filho ou do Logos pela do Espírito, porque
não parece que tenham levado a resultados positivos. A impressão é, antes,
que tenham conduzido a um caminho morto, uma vez que se torna muito
problemática sua compatibilidade com o dogma trinitário e cristológico42.
Pode-se compartilhar sem dificuldade a opinião de que uma cristologia que
parte do Espírito leva ao adocionismo43. Jesus é o Filho de Deus feito homem.
Esta é sua identidade pessoal e, por conseguinte, o único ponto de partida
válido para abordar o problema da presença, nele, do Espírito Santo. A partir
desta base, abre-se um vasto campo para a discussão teológica, no intuito de
precisar cada vez mais a relação entre a encarnação e a unção de Cristo e a
obra do Espírito presente na humanidade do Salvador.

Encarnação e unção: Heribert Mühlen


É preciso que nos detenhamos brevemente na proposta de H. Mühlen,
que foi um ponto de partida de grande interesse para a discussão sobre este
tema na teologia católica dos últimos decênios do século XX. Mühlen44 move-
se por uma preocupação antes de tudo eclesiológica: evitar uma identificação
precipitada entre Cristo e a Igreja, esta última considerada a continuação da
encarnação do Filho. Este acontecimento é, certamente, irrepetível. A diferença
entre a encarnação e a Igreja tem uma origem trinitária, que se manifesta na ordem
das missões do Filho e do Espírito. Segundo o Novo Testamento, o Pai envia e
não é enviado, o Filho é enviado e por sua vez, juntamente com o Pai, envia
o Espírito Santo, e este é enviado, porém, por sua vez, não envia. Esta ordem
não pode ser mudada segundo o próprio arbítrio. Determina, por sua vez, a
ordem de nosso acesso a Deus: no Espírito, mediante o Filho, temos acesso

42. Cf., entre outros, G. W. H. LAMPE, The Holy Spirit and the Person of Christ, in S. W.
SYKES, S. P. CLAYTON (eds.), Christy Faith and HistoryyCambridge, 1972, 111-130; ID., God
as Spirity Oxford, 1976; H. BERGHOF, Theologie des Heiligen Geistesy Neukirchen, 21988; R.
HAIGH, Jesusy Symbol of GodyMariknoll, New York, 1999, espec. 424-492; ID., The Case for
Spirit Christologie, Theological Studies 53 (1992) 257-287.
43. Cf. W. PANNENBERG, Jesus, God and ManyPhiladelphia, 1968, 120-121, citado por H.
U. VON BALTHASAR, Theologik III. Der Geist der Wahrheity Einsiedeln, 1987, 33.
44. Cf. H. MÜHLEN, Una mystica Persona. Die Kirche ab das Mysterium der heibgeschichli-
tchen Identität des Heiligen Geistes in Christus und in den Christen München/Paderborn/Wien,
31968, espec. 189-200.

182
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

ao Pai (cf. Ef 2,18). A missão do Espírito pressupõe a do Filho, para nossa ida
ao Pai por meio de Jesus é necessária a prévia missão do Espírito Santo. Por
outro lado, somente Cristo é o mediador entre Deus e os homens (cf. lTm
2,5) e o Espírito Santo nos une a este mediador.
Desta ordem das missões na economia da salvação, a tradição passou à
ordem das processões na Trindade “imanente”. Existe uma “correspondência”
entre ambas. As pessoas divinas relacionam-se entre si tanto na economia da
salvação como na vida intratrinitária com uma ordem determinada. Nesta
ordem está já contida a diferença entre a encarnação e a Igreja; estas se rela­
cionam de maneira análoga às processões divinas, ou seja, ao modo como se
relacionam o Filho e o Espírito Santo. Segundo o Novo Testamento, as missões
de Cristo e do Espírito sucedem-se no tempo. Mühlen está consciente de que
a unção de Cristo, segundo o Novo Testamento, há de ser posta em relação
com a vinda do Espírito sobre ele no Jordão45. Todavia, é de opinião que, a
partir do nexus mysteriorum> pode-se afirmar que a encarnação e a efusão do
Espírito sobre Jesus acontecem em um mesmo momento, mesmo que seja
preciso dar uma prioridade lógica à encarnação, uma vez que com ela o Logos
“personalizou” essa natureza humana46. Existe assim uma diferença, na relação
profunda, entre a encarnação que funda a filiação divina de Jesus e a espiração
e a missão do Espírito Santo, comum ao Pai e ao Filho. Esta missão é a que
continua na Igreja. Assim sendo, esta é a continuação da unção de Cristo com
o Espírito Santo: “A Igreja não é a continuação da encarnação como tal, mas
a continuação histórico-salvífica da unção de Jesus com o Espírito Santo”47.
Não é oportuno, aqui, dar continuidade aos aspectos eclesiológicos,
aos quais, em parte, já fizemos referência48. Importam-nos agora os aspectos
cristológicos que, de maneira mais direta, estão relacionados com os proble­
mas que são objeto de nosso interesse. Dizíamos que Jesus, segundo Mühlen,
recebeu, no momento exato da concepção, a plenitude do Espírito Santo e
da graça. Isto não impede que se possa falar de uma “história” da graça em
Jesus mesmo. Porém, tratar-se-ia, antes, de um crescimento na manifestação
desta graça “para fora”; no próprio batismo do Senhor, do ponto de vista
dogmático, acontece apenas a manifestação do envio do Espírito que teve
lugar no momento preciso da encarnação49. Por outro lado, Mühlen assinala

45. Cf. ibid. 217-224.


46. Cf. ibid. 193-194. Mühlen baseia-se em uma passagem de santo Tomás que já conhe­
cemos: STh III 7,13.
47. Ibid. 216. Cf. também 223.
48. Cf. o que foi dito no capítulo 2.
49. Cf. ibid. 247s; 216.

183
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

o fato de que o Espírito que desce sobre Jesus é o Espírito do qual ele, como
Filho, é princípio. Trata-se, portanto, de seu próprio Espírito, que desce sobre
ele enquanto homem como algo que lhe sobrevém50. A recepção do Espírito
pressupõe, portanto, a encarnação.
Não abordamos todos os pontos que uma exposição pormenorizada
deveria ter presentes. Foi-nos suficiente sublinhar a distinção clara entre a
encarnação e a unção de Jesus, dois eventos, por outro lado, intimamente
relacionados; tanto a distinção como a relação entre ambos fimdam-se, em
última palavra, na vida da Trindade e nas duas missões ad extra do Filho e
do Espírito. A ordem das missões haverá de ser mantida, e neste sentido a
prioridade da encarnação sobre a unção parece-me evidente. A humanidade
de Jesus não existe mais que enquanto assumida pelo Verbo. A unção vem
sobre Jesus enquanto homem, é unção da humanidade unida já hipostatica-
mente ao Filho, porque sem tal união essa humanidade não existe. N ada há
a objetar quanto a uma coincidência cronológica de encarnação e vinda do
Espírito Santo, no sentido de que Jesus existe sempre como santificado em
sua humanidade pelo Espírito. Em minha opinião, problema maior pode
criar o fato de não ver nos diferentes momentos da vida de Jesus mais do que
manifestações do que desde sempre existe em plenitude. Não se vê por que não
irá crescer a humanidade de Jesus em seu caminho para o Pai, e por que o
batismo do Senhor, momento a que o Novo Testamento dá tanta importância,
seja apenas manifestante de uma plenitude que já existe e não seja portador
de novidade alguma para Jesus (sempre enquanto homem, evidentemente).
Não significa algo o fato de que a partir desse momento Jesus inicie sua vida
pública, comece a pregar e a fazer milagres?51 É um ponto no qual não há
por que insistir, no qual, todavia, cabe certamente uma maior precisão. Que
o Espírito que desce sobre Jesus é o seu próprio, está claro. Entretanto, quem

50. Cf. ibid. 244. Mühlen funda-se em CIRILO DE ALEXANDRIA, Com. In ]oel II 35 (PG
71,380). Vimos outras passagens de Cirilo, nas quais insistia no mesmo ponto. Seja como for,
para são Cirilo, a unção de Jesus acontece no Jordão.
51. CONGAR, a meu ver, reconheceu neste ponto com muito maior clareza: El Espíritu
Santo, Barcelona, 1983, 606: “Quanto a Jesus, teremos cuidado em evitar todo adocianismo.
Afirmamos que é ontologicamente Filho de Deus pela união hipostática desde sua concepção;
que é templo do Espírito a partir desse mesmo momento, santificado pelo Espírito em sua
humanidade. Todavia, guiados pela intenção de respeitar os momentos ou etapas sucessivas
da história da salvação e dar todo o seu realismo aos textos do Novo Testamento, nós nos
propomos ver, primeiro, no batismo e, depois, na ressurreição-exaltação dois momentos de
atuação nova da virtus (da eficiência) do Espírito em Jesus, enquanto é constituído (e não apenas
declarado) por Deus Messias-Salvador e, posteriormente, Senhor”. Cf. também M. BORDONI,
La cristologia nelVorizonte dello Spirito, Brescia, 1995, 239.

184
0 ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

unge Jesus no Espírito Santo e poder, conforme Atos 10,38, é Deus (cf. também
Lc 4,18). Vimos também alguns elementos da teologia dos primeiros tempos
neste mesmo sentido. Seguindo a terminologia escolástica, e mais precisamente
a de santo Tomás que conhecemos, Mühlen qualifica de “acidental” a santidade
de Jesus operada pelo Espírito52; todavia, o que se quer dizer com esta palavra
é que não muda substancialmente a humanidade de Jesus já constituída. Não
no sentido de algo de pouca importância ou de que se possa prescindir. Ainda
que Mühlen não insista nos efeitos do dom do Espírito para Jesus mesmo,
mostra apreender claramente a transcendência salvadora da presença quan­
do define a Igreja como a continuação da unção de Cristo. A vinda de Deus
aos homens em Cristo não é compreendida nem alcança seus efeitos sem a
missão do Espírito; este desce primeiro sobre Jesus, para dele passar a todos
os homens. Manter a ordem das missões (cf. Gl 4,4-6) não significa de modo
algum “cristomonismo” .

Hans Urs von Balthasar e a "inversão trinitària"


No entanto, precisamos nos aprofundar ainda mais em algumas destas
questões e considerar especialmente a posição de H. U. von Balthasar, interes­
sante e complexa. O teólogo suíço não esconde sua insatisfação com as posições
de H. Mühlen que expusemos resumidamente. Para ele, pensar na sucessão
da união hipostática e na unção com o Espírito na ordem tradicional seria
contrário ao que diz o evangelho de Lucas (cf. Lc 1,35). Para Von Balthasar,
seguir nesta ótica é a conseqüência de querer seguir a ordem intratrinitária
na economia da salvação e fechar-se a toda espécie de “inversão trinitària”,
a saber, à “prioridade” do Espírito sobre o Filho que encontramos durante o
tempo da vida mortal de Jesus53.
O primeiro problema que se propõe é, portanto, o de uma hipotética
“ precedência” do Espírito Santo sobre o Filho no momento da encarnação.

52. Cf. MÜHLEN, Una mystica Personay223; mas também ibid. 245: o Espírito está insepa­
ravelmente unido a Jesus e a sua função.
53. Cf. Theologik III. Der Geist der Wahrheit, Einsiedeln, 1987,166-167. Deveremos retomar ao
tema da “inversão trinitària”, porque está em íntima relação com o que estamos tratando agora.
Von Balthasar abordou esta questão principalmente em Teodramática 3. Las personas dei drama:
el hombre en Cristo, 1993, 173-180; 477-480. A caracterização da “ inversão trinitària” em Theol
IHy 166-167, é especialmente clara: “A inversão econômica não muda nada na taxis intratrinitária.
Porém a remete... à simultaneidade das missões de Filho e Espírito, cuja relação mútua muda
segundo as necessidades da oikonomia: se em primeiro lugar o Espírito é enviado para encarnar
o Filho [um den Sohn zu inkamieren] e conduzir o homem Jesus até a morte, igualmente o res­
suscitado pode novamente dispor sobre o Espírito e enviá-lo juntamente com o Pai”.

185
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

O Espírito Santo não tem apenas uma atividade na santificação, mas pode-se
atribuir-lhe também uma ação criadora. Pressupõe-se que é a ação criadora
da humanidade de Jesus. Por outro lado, assinala acertadamente Balthasar,
não podemos pensar que o Espírito tenha “criado” a união das duas naturezas
de Cristo54. O dilema se estabelece se levamos em conta que, por um lado, no
Novo Testamento a encarnação é atribuída ao Espírito Santo e, por outro,
quem se encarna é o Logos e não se “deixa encarnar” por outra pessoa. O
problema pode ser resolvido, segundo nosso autor, com uma reflexão sobre
a essência do Espírito. Vale a pena examinar lentamente suas palavras:
O Espírito é o Espírito do Pai e do Filho; é enviado claramente como Espírito
do Pai sobre a Virgem, enquanto ao mesmo tempo (e não per priws), como
Espírito do Filho, move a este, segundo sua disponibilidade filial, a deixar que
se leve a efeito a união hipostática (em obediência apriórica, porém não passi­
va). Encarnação e “unção” simplesmente coincidem, como também coincidem
[zusammenfallen] a “unção” da humanidade de Cristo com a natureza humana
e com o Espírito Santo (pois Deus tanto é “natural” quanto “pessoal”)...
Enquanto o Espírito age como Espírito do Pai, leva a “semente de Deus” ao
seio da Virgem, enquanto é Espírito do Filho, este aceita em obediência a
disposição do Pai; dito com outras palavras: já se encarnando, obedece55.

O primeiro ponto é evidente: o Espírito é o Espírito do Pai e do Filho,


assim o afirmam o Novo Testamento e toda a tradição. No momento em que
vem sobre Maria para operar a encarnação, como em outro grande momento
em que, segundo o Novo Testamento, vem sobre Jesus, o de seu batismo,
aparece sobretudo como Espírito do Pai. Menos evidente é, a meu ver, o que
se diz em continuação: enquanto Espírito do Filho, move a disponibilidade
filial para a encarnação. Surge inevitavelmente a pergunta: Quando come­
ça a “ inversão trinitária” ? Já antes da encarnação, para torná-la possível?
Move já então o Espírito do Filho para o próprio Filho, para que se deixe
encarnar? Não estou certo de que esta passagem para a Trindade imanente
esteja plenamente justificada. Não seria a própria táxis que sofreria, esta táxis
intratrinitária que se quer manter? Qual o elemento ou aspecto da revelação
que viabiliza esta conclusão?
A obediência do Filho reporta-se também, ao que parece, à Trindade
imanente. Por sua vez é o Pai quem, segundo o Novo Testamento, envia o
Filho ao mundo, e esta vinda, para fazer não a vontade própria, mas a do Pai,

54. Cf. Theologik ///, 168. Confira, porém, o texto citado na nota anterior.
55. Theologik III, 168.

186
O ESPIRITO DO PAI E DO FILHO

poderia ser qualificada como um ato de obediência (cf. Hb 10,7-9). Neste


sentido, já na encarnação haveria obediência. Seja como for, não será demais
observar que o que Jesus veio cumprir é a vontade do Pai e que esta obediên­
cia é uma característica da situação de exinanitio de Jesus; a obediência está
relacionada com a forma de servo (F1 2,6-9). Falar da obediência no seio da
vida intratrinitária é algo que não pode ser feito, creio eu, sem certas reservas.
O Filho recebe do Pai tudo aquilo que é, e só existe em plena referência a ele.
Por conseguinte, pode-se pensar em uma atitude para com o Pai à qual, de
certa maneira, “corresponda” a obediência que mostra em sua vida humana.
Podemos aplicar aqui o que afirmamos ao tratar da Trindade econômica e
da Trindade imanente. Dever-se-á evitar, no mínimo, a univocidade no uso
dos mesmos termos aplicados à economia e à teologia. Como já sabemos, as
três pessoas da Trindade têm uma única vontade. Jesus, enquanto homem,
tem também uma vontade humana real, embora se acomode em tudo à
divina (cf. DH 553-559), que é a mesma do Pai. Não é, portanto, evidente
a transposição unívoca da obediência do encarnado à obediência no seio da
Trindade imanente.
Existe coincidência plena entre encarnação e unção? É esta coincidência
mais que cronológica? Neste contexto, von Balthasar fala de “ unção” entre
aspas, com o que não colabora para a precisão. Em que sentido é usado o
termo? No mesmo de Gregório de Nazianzo, que não podemos imaginar pre­
cisamente que seja o mais afortunado de toda a patrística? Pela encarnação,
o Logos assume hipostaticamente a natureza humana, de tal maneira que
essa humanidade é, a partir desse momento, irrevogavelmente a “sua”. Que essa
encarnação acontece pela obra do Espírito que desce sobre Maria está claro
na Escritura, porém não parece que essa ação possa ser chamada de unção.
Que Jesus, concebido pelo poder do Espírito, seja “ santo”, que tenha sido
santificado pela ação do Espírito Santo também é evidente. Deus é a um só
tempo “pessoal” e “natural”. Nada há a objetar contra esta afirmação, porém,
à primeira vista, não se entende o que quer dizer “natural” no contexto da
“ unção”. Certamente não é o fato de que a natureza divina se comunica à
humana. Segundo o Concílio de Calcedônia, não existe confusão entre as
naturezas. Quanto ao mais, a plena “divinização” da natureza humana de
Jesus tem lugar na ressurreição. Que a natureza humana de Jesus, por obra do
Espírito, seja habilitada, “conaturalizada”, para o cumprimento da missão que
o Filho encarnado deve realizar é uma idéia perfeitamente coerente e aceitável.
Porém, essa humanidade assim santificada é a natureza humana do Filho. A
importância da presença do Espírito na vida de Jesus não pode ser minimizada.
Tivemos oportunidade de conhecer alguns textos da Igreja primitiva que não

187
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

deixam lugar a dúvidas. Von Balthasar apóia-se muito em algumas passagens de


são Basílio e de são Gregório de Nazianzo, já de nosso conhecimento, sobre a
atribuição do evento da encarnação ao Espírito Santo56. De fato, ela aconteceu
por obra do Espírito Santo, e por isso é legítimo falar, como fizeram Basílio
e Gregório, de uma “precedência” do Espírito à vinda de Cristo ao mundo.
O Espírito, vindo sobre Maria, toma possível a encarnação. O problema está
no alcance e no sentido dessa prioridade, e se é tal que possa justificar que se
fale de “ inversão trinitária” , ou seja, de alteração na história da salvação da
ordem das processões intradivinas. Faz-se necessário buscar um pouco mais
de clareza nas indicações explícitas do autor sobre esta questão.
Já no volume III (II 2 no original alemão) de sua Teodramática, von
Balthasar enfatizara alguns traços fundamentais da “inversão trinitária”. O
autor suíço descobre nas fórmulas dos antigos credos, e nas formas passivas
dos verbos que indicam a encarnação do Filho, que a obediência deste começa
na encarnação57. Após aludir à teologia de santo Tomás que já conhecemos,
e na qual se inspira H. Mühlen, faz referência à posição da cristologia pneu-
matológica de W. Kasper, segundo o qual a santificação da humanidade de
Jesus pelo Espírito não é apenas uma conseqüência acidental da santificação
pelo Logos como conseqüência da união hipostática, mas, ao contrário, seria
também o pressuposto dela. Jesus é o Filho de Deus no Espírito Santo. Assim
sendo, o Espírito seria o médium pelo qual o Pai envia o Filho em liberdade e
no qual o Filho responde em obediência de modo histórico à missão do Pai58.
Isto, porém, não é suficiente para Von Balthasar: “O papel do Espírito não
consiste meramente em encontrar no homem Jesus o instrumento apropriado
para a obediência histórica do Filho, mas expressamente em colocar, graças à
sombra que cobre a Virgem, o Filho no estado humano, como inequivocamen­
te é expresso pelas fórmulas dos credos. Nesta atividade do Espírito o Filho
é já obediente enquanto, segundo a vontade do Pai, se submete ao critério
da ação do Espírito”59. A idéia da obediência à ação do Espírito em ordem à
encarnação já é do nosso conhecimento. Repete-se também no contexto que
esta obediência do Filho é ativa e não assume a forma de mera passividade.
Surge, porém, a pergunta que, em parte, já nos formulamos ao indagar se as

56. Cf. BASÍLIO DE CESARÉIA, De Spiritu sanctoy 19,49 (SCh 17bis 418-420); 16,39 (386);
GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 31,29 (SCh 250,232), citado em Theologik ///, 156-157.
57. Cf. Teodramática III. Las personas del drama: el hombre en Cristo, 173-174.
58. Cf. W. KASPER, Jesús el Cristo, Salamanca, 1978, 311-312, citado em H. U. VON
BALTHASAR, Teodramática ///, 175. De nossa parte, retornaremos ao pensamento de W.
Kasper.
59. VON BALTHASAR, Teodramática ///, 175.

188
0 ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

fórmulas bem conhecidas dos credos vão além da ação do Espírito que possi­
bilita a concepção virginal de Jesus no seio de Maria. A dúvida de que se queira
apontar também que o Filho> no ato da encarnação, obedece às indicações
do Espírito é, pelo menos, legítima. Não creio que seja fácil encontrar na tra­
dição testemunhos que denotem este último sentido. Pode-se, com certeza,
afirmar que “o Filho enquanto feito homem é agora em determinado aspecto
um fruto do Espírito, que lhe dá origem ex Maria Virginey embora no plano
intratrinitário o Espírito seja o fruto da espiração comum do Pai e do Filho”60.
A humanidade de Jesus é, sem dúvida, fruto da ação do Espírito. Todavia, que
o seja também a encarnação do Filho, de tal maneira que já na aceitação do
desígnio paterno que leva o Filho a fazer-se homem se dê uma obediência ao
Espírito, não me parece igualmente claro. Não creio que as duas afirmações
possam ser colocadas no mesmo plano61.
Von Balthasar admite que santo Tomás tem razão quando afirma que a
constituição de um sujeito precede o ato de sua “agraciação”. Pelo contexto,
parece referir-se à encarnação, que deve preceder “ôntica e logicamente” a
recepção da graça por parte de Jesus, o Filho encarnado. Daí, porém, não se
deduz, como tampouco das relações intratrinitárias, que a atividade do Espírito
no ato da encarnação deva vir depois da realizada pelo Filho:
Desde o início da encarnação, o Espírito possui no plano econômico uma forma
análoga de mediação entre Pai e Filho, tal como se evidencia na manifestação
oficial de sua missão no momento do batismo: desce sobre o Filho para “per­
manecer” suspenso em-sobre ele (Jo 1,32-33)... Nós não conhecemos outra
forma da Trindade econômica senão a única que teve lugar na história...: o

60. Ibid. 176.


61. Segundo o concílio XI de Toledo, o Filho foi enviado não só pelo Pai, mas também pelo
Espírito Santo e, inclusive, por si mesmo. Esta insólita fórmula de missão pelo Espírito não
parece ter outra significação a não ser a de expressar que as obras ad extra da Trindade são
comuns às três pessoas (DH 538): “Missus tamen Filius non solum a Patre, sed a Spiritu Sancto
missus esse credendum est: in eo quod ipse per prophetam dicit: ‘Et nunc Dominus misit me
et Spiritus eius’ (cf. Is 48,16). A se ipso quoque missus accipitur: pro eo quod inseparabilis
non solum voluntas, sed operatio totius Trinitatis agnoscitur”. A idéia do envio de Jesus por
parte do Espírito foi acatada por alguns padres, com base em Isaías 48,16; cf. AMBRÓSIO DE
MILÃO, De Spiritu sancto III 1,7-8 (CSEL 79,152-153); EUSÉBIO DE VERCELLI, De Trinitate
III 88-91 (CCL 9,54): não parece que estes exemplos possam alterar o que constitui a grande
linha da tradição. Cf. R. CANTALAMESSA, “Utriusque spiritus” . L’attuale dibattito teológico
sullo Spirito Santo alia luce del “Veni Creator”, Revista de Teologia 38 (1997) 465-484 [481].
Interessantes, a propósito, os esclarecimentos de BOA VENTURA, Breviloquium I 5,1.5: “Ex quo
apparet, quod haec sunt impropriae et exponendae: Spiritus sanctus mittit se; Spiritus sanctus
mittit Filium; Filius mittit se ipsum, nisi intelligatur: in quantum est de Virgine natus”.

189
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Filho, dócil ao Pai desde toda a eternidade, nessa forma de homem “aprendeu
a obediência pelos próprios sofrimentos” (Hb 5,8), que representa vicariamente
os pecadores e redime a partir de dentro sua desobediência. O Espírito que está
em-sobre ele é quem, em sua forma econômica, toma possível esta obediência
segundo o modo em que comunica ao Filho a vontade do Pai62.

Os textos da tradição que apresentamos mais acima insistiram em que


esta ação do Espírito em e sobre Jesus tem lugar precisamente enquanto se
encarnou, uma ação que se refere à humanidade do Filho, que afeta certa­
mente o Filho, porém enquanto encarnado. Enquanto se fez homem recebe
o Filho a unção do Espírito de que, enquanto Deus, não necessitava. Não se
trata, absolutamente, de minimizar a importância dessa atuação, mas sim de
distinguir no que é inseparável. Não existe dificuldade alguma em afirmar
que o Espírito guia Jesus no caminho histórico para o Pai, torna possível essa
obediência econômica de Jesus, mas é preciso insistir em que o Espírito Santo
vem sobre o Filho encarnado, santifica a humanidade que o Verbo assumiu
hipostaticamente. Essa distinção das naturezas, na unidade irrenunciável da
única pessoa do Filho, há de ser levada em conta, como fez a tradição desde
os primeiros séculos. O Espírito de Deus opera sobre Jesus enquanto é sus­
cetível de ser santificado e de progredir em um caminho histórico, em Jesus
enquanto homem63, em sua natureza humana que não existe mais do que
enquanto assumida pelo Filho. Patenteia-se assim, com clareza, que toda a
vida do Verbo encarnado se desenvolveu com a presença do Espírito Santo,
como dizia são Basílio.
Observamos nos textos de Balthasar o uso das preposições “em” e “sobre”
Jesus. É um aspecto que não deve ser desprezado. O Espírito, em Jesus, faz
referência à expressão do amor concorde do Pai e do Filho que é o Espírito.
O Espírito é desde sempre o Espírito do Pai e do Filho, a encarnação não in­
terrompe a espiração do Espírito por parte do Pai e do Filho. Neste aspecto, a
concordância de Jesus com a vontade do Pai remete ao “acordo” intratrinitário
e supratemporal da missão do Filho ao mundo em uma carne semelhante à do

62. Teodramática ///, 176.


63. Cf. ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, C. Arianos I 44-45 (PG 26,101-105); HILÄRIO DE
POITIERS, Tritt. XI 18-19 (CCL 62A,557-550): “Non ad id quod incremento non eger spectat
unctionis profectus, sed ad id quod per incrementum sacramenti profectu eguit unctionis, id
est ut per unctionem sanctificatus homo noster Christus existerer”. LEÃO MAGNO (DH 218);
“exaltationem tarnen, qua ilium... exaltavit Deus et donavit illi nomen, quod super omne no­
men excellit (cf. FI 2,9-10) ad eandem intellegimus pertinere formam quae ditanda erat tantae
glorificationis augmentum”.

190
0 ESPIRITO DO PAI E DO FILHO

pecado (cf. Rm 8,3). Há, porém, um segundo aspecto que no tempo da vida
mortal de Jesus de algum modo prevalece, o Espírito sobre Jesus, que assume
a fimção de apresentar o Filho obediente à vontade do Pai. Dele dariam tes­
temunho os textos que falam do mandato do Pai que Jesus deve cumprir64. O
Espírito é sempre o Espírito do Pai e do Filho, contudo certamente no tempo
da vida mortal de Jesus aparece com mais clareza o primeiro aspecto. É Deus
Pai quem unge Jesus em Espírito e poder (At 10,38), e foi isso mesmo o que a
tradição viu nos primeiros períodos. A controvérsia ariana deu oportunidade
para que se insistisse no dom que o próprio Filho faz a si mesmo. A doação
do Espírito depois da ressurreição deixará claro que o Espírito é a um só
tempo e inseparavelmente do Pai e do Filho. Todavia, o fato de este aspecto
aparecer mais claramente não quer dizer que o outro esteja oculto de todo.
Com efeito, se por um lado o Espírito move Jesus, também por outro Jesus
atua no Espírito, a saber, o Espírito é um poder de que dispõe, por exemplo,
para expulsar os demônios65. Esta certa ocultação do fato de que o Espírito é
também o Espírito do Filho está em correspondência com a kénosis do Filho.
Porém, assim como o Filho não deixa de ser Deus, tampouco deixa de ser
princípio do Espírito. E não o repetiremos nunca suficientemente: Jesus de
Nazaré sobre quem repousa o Espírito é o Filho de Deus encarnado.
De fato, Von Balthasar toma em consideração a doutrina dos dois estados
de Cristo, o statu s exinanitionis e o statu s exaltationis , que diz respeito à rela­
ção de Jesus com o Espírito. Esta relação, no primeiro dos estados, significa
a obediência de Jesus no cumprimento de sua missão, e no segundo o poder
de espirar o Espírito. Neste estado supera-se a “inversão trinitária”, ainda que
se siga o fato de que a humanidade do Filho se deve à ação do Espírito Santo.
Esta relação de Jesus com o Espírito nos dois estágios responde, na Trindade
imanente, a dois aspectos do Filho em seu eterno proceder do Pai: receber a pos­
sibilidade de co-espirar o Espírito, que corresponderia ao status exinanitionis, e a
i66.
efetividade dessa co-espiração, que corresponderia ao status exaltationis O Filho
recebe realmente a capacidade de espirar o Espírito. Por isso, ao encarnar-se,
possui em si a condição para ser conduzido pelo Espírito sobre ele, e a entregar-

64. Teodramática III, 177-178.


65. Cf. M. SCHULZ, Sein und Trinität. Systematische Erörtungen zur Religionsphilosophie
G. W. F. Hegels im ontologiegeschichtlichen Rückblick auf J. Duns Scotus und I. Kant und die
Hegel-Rezeption in der Seinsauslegung und Trinitätstheologie bei W. Pannenberg, E. Jüngel,
K. Rahner und H. U. von Balthasar, St. Ottilien, 1997, 801.
66. Teodramática III, 178-179. Podemos, naturalmente, nos perguntar se esta distinção tem
sentido na Trindade imanente. No plano econômico, a distinção entre o status exinanitionis e
o status exaltationis é clara.

191
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

se a este guia. Von Balthasar termina assim sua exposição sobre a inversão
trinitária: “O que designamos como ‘inversão’ não é, definitivamente, mais
que a traslação da Trindade imanente ao âmbito do econômico, no qual a
‘correspondência’ do Filho com o Pai é articulada como ‘obediência’”67. Vai-se
da economia à teologia ou da teologia à economia? Em que razões se funda a
traslação do âmbito da Trindade imanente ao da Trindade econômica? Não
é, antes, inverso o caminho a seguir, como se reconhece universalmente na
teologia católica e como o próprio H. U. von Balthasar afirmou expressamente
em não poucas ocasiões?68.
Outras considerações que se acrescentam ao final desta mesma obra
não mudam substancialmente o quanto até aqui indicamos. Uma pequena
indicação complementar faz ver que von Balthasar não é insensível à questão
da “cronologia” da unção de Cristo. Como Jesus é
Fruto do Espírito que cobriu a Virgem com sua sombra, possui sem dúvida este
Espírito nele, porém, desde o momento em que o Espírito desceu expressamente
(“corporalmente”) sobre ele, tem Jesus o Espírito “sobre ele” ... (Mt 3,16; Lc
3,22). João diz com precisão “permanecendo sobre ele” (1,33)... Que Jesus
tenha o Espírito realmente “sem medida” (Jo 3,34), porém apesar de tudo o
reconheça sobre ele, é a expressão de seu abaixamento... no qual, descendo
de sua condição divina, “se faz obediente até a morte” (F1 2,8). Porém, este
Espírito de Deus sobre ele... está ao mesmo tempo nele, por exemplo, quando
“expulsa os demônios pelo Espírito de Deus” (Mt 12,28). Assim, esse Espírito,
nele e sobre ele, é a presença manifesta de sua missão divina...69.

Von Balthasar faz aqui uma precisão importante, na medida em que parece
que o batismo do Senhor é um momento novo desta presença do Espírito que
já ocorria; a novidade afetaria especificamente a modalidade do “sobre ele” .
Esta última forma seria a base econômica do a Patre procediu ao passo que a
forma “nele” ofereceria o fundamento ao Filioque. Existem diversos modos de
doação do Espírito, que permitem diversos modos de relação entre o Filho e
o Pai, conforme o que a missão exige em cada caso. Tudo isso não significa
que Deus mude em si mesmo, mas que o Deus imutável entra em relação

67. Ibid. 180.


68. Cf., sobre estes problemas, J.-N. DOL, L’inversion trinitaire chez Hans Urs von Balthasar,
Revue Thomiste 100 (2000) 205-238; sobre a inversão trinitária de Von Balthasar, cf. também E.
SALMANN, Neuzeit und Offenbarung. Studien zur trinitarischen Analogik des Christentums,
Roma, 1986, 303; G. VANDEVELDE-DAILLERE, L’inversion trinitaire chez Hans Urs von
Balthasar, Nouvelle Revue Théologique 120 (1998), 370-379.
69. Teodramática III, 478.

192
0 ESPÍRíTO DO PAI E DO FILHO

com a criatura, e isto confere às relações internas de Deus uma nova face,
não meramente externa, porque a natureza humana unida hipostaticamente
ao Filho traz à luz alguma das infinitas possibilidades que se encontram no
ser de Deus70.
Fomos dando já algumas pinceladas críticas à medida que nossa exposição
avançava. Mas devemos ter agora uma avaliação de conjunto. Antes de tudo,
é preciso salientar que a preocupação fundamental de Von Balthasar ao for­
mular sua teoria é legítima e está justificada. A presença do Espírito em Jesus
foi excessivamente descuidada no decurso dos tempos, e não se pode evitar a
impressão de que, em dados momentos da história da teologia, não se soube o
que fazer com os dados que nos falam desta ação do Espírito sobre Jesus e da
atuação de Jesus “no Espírito”. A recuperação dessa dimensão “pneumática”
da cristologia é necessária se se quer fazer precisamente crísfologia. Portanto,
antes de tudo temos esse reconhecimento inicial da importância do plano
empreendido, que certamente merece muita atenção.
Fizemos já referência ao caráter meramente hipotético que pode ter
uma obediência do Filho às indicações do Espírito no deixar-se encarnar.
Não parece haver dados que nos permitam ir tão longe. Fica o fato de que
a encarnação se efetua por obra do Espírito Santo. A potência criadora do
Espírito torna possível a encarnação no seio da Virgem, a concepção virginal
de Jesus. O Espírito forma a humanidade de Jesus em Maria e de (ex) Maria.
Todavia, essa humanidade de Jesus é criada enquanto é assumida pelo Verbo.
“ Ipsa assumptione creatur”, segundo a conhecida fórmula inspirada em santo
Agostinho e são Leão Magno71. Somente na medida em que o Filho assume
a humanidade esta é criada. Existe simultaneidade perfeita entre ambas as
ações, mas é preciso dar prioridade à assunção. Essa humanidade só existe na
medida em que está hipostaticamente unida ao Verbo, só é criada enquanto é
a humanidade do Filho. É criada pelo próprio fato de ser assumida, e não o
inverso. Nada na humanidade de Jesus é prévio à assunção por parte do Filho,
no cumprimento do desígnio do Pai. É, sem dúvida, importante e decisiva
a ação do Espírito na encarnação72. Não creio, porém, que dê motivo para

70. Cf. ibid. 478-470.


71. AGOSTINHO, Contra sermonem Arianorum 8 (PL 42,688): “nec sie adsumptur est ut
prius creatus post adsumeretur, sed ut ipsa adsumptione crearetur”; LEÃO MAGNO, Ep. 35,3
(PL 54,807; e também DH 298): “Natura quippe nostra non sic adsumpta est, ut prius creata
post adsumeretur, sed ut ipsa adsumptione crearetur” . Cf. também TOMÁS DE AQUINO,
STh III 3,3.
72. LEÃO MAGNO, Tomus ad Flavianum (DH 292): “fecunditatem virgini Sanctus Spiritus
dedit”.

193
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMJNHÀO

falar de um a mudança da ordem na aparição econômica das pessoas. Parece-


me difícil que se possa falar de uma preparação por parte do Espírito dessa
humanidade para que seja a humanidade do Filho73. Simplesmente, antes de
ser a humanidade do Filho, não éy absolutamente, e é somente enquanto está
hipostaticamente unida ao Verbo.
Enquanto o Filho é homem, desce sobre ele o Espírito Santo. Enquanto
homem, é santificado pelo Espírito, é ungido. Tudo isso não é um dado
prévio à encarnação, mas sim sua conseqüência necessária. Quando se fala
da santificação da humanidade por obra do Espírito, surgem mal-entendidos
com o uso do termo “acidental”. O Filho que vem a este mundo deve ser
necessariamente o Cristo, o Ungido; se sua humanidade não está cheia do
Espírito Santo, não pode realizar sua missão salvadora e, além disso, não pode
comunicar o Espírito aos homens. Jesus, enquanto é o Filho feito homem, é o
lugar da presença do Espírito no mundo e o princípio de sua efusão, depois
de haver sido plenamente glorificado74. Todo este processo afeta Jesus em sua
humanidade. A presença do Espírito no Filho encarnado não é “acidental”.
O fato de que a atuação do Espírito em Jesus, durante o tempo de sua vida
mortal, mostre, antes, que o Pai é a sua fonte última é algo perfeitamente coe­
rente com os dados da revelação. A glorificação de Jesus, com a conseqüente
efusão do Espírito Santo, irá mostrar que o Espírito é ao mesmo tempo do Pai
e do Filho. Tudo isso é conseqüente com os dois estágios da vida de Jesus. A
ressurreição é a revelação plena do mistério trinitário. A economia salvadora e,

73. Cf. W. KASPER, Jesús el CristoySalamanca, 1978,310-311: “Na medida em que o Espírito
preenche totalmente a humanidade de Jesus, faz-lhe o dom da abertura, em razão da qual ela pode
ser livremente um oco e vazio total para a autocomunicação de Deus. Por isso... a santificação
da humanidade de Jesus pelo Espírito e seus dons não é somente uma conseqüência acidental da
santificação pelo Logos em razão da união hipostática, mas, ao contrário, representa também
seu pressuposto. O Espírito é, pois, tanto a liberdade personificada do amor de Deus como o
princípio criador, que santifica o homem Jesus, capacitando-o para ser a resposta humana à
autocomunicação de Deus mediante sua livre obediência e entrega”; é interessante o que se diz
no contexto sobre a liberdade do Espírito. Esta passagem é citada por Von Balthasar (cf. nota
38), que parece aceitar este ponto de vista; cf. também M. BORDONI, Cristologia nelVorizonte
dello SpiritOy Brescia, 1995, 227. É possível que não contribua para a clareza o fato de se falar
neste contexto de uma santificação da humanidade de Jesus em virtude da união hipostática.
Com isso, a presença santificadora do Espírito corre o risco de ser desvirtuada e reduzida a
algo, efetivamente, “acidental”. Entende-se que se queira evitar esta unilateralidade. Não seria
mais oportuno dizer que o Espírito santifica a humanidade que o Filho assumiu?
74. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, declaração Dominus ksusy 12: “No
Novo Testamento, o mistério de Jesus, Verbo Encarnado, constitui o lugar da presença do
Espírito Santo e o princípio da sua efusão na humanidade...”. O fato de que Jesus seja o Verbo
encarnado parece ser a razão pela qual é o lugar da presença do Espírito.

194
0 ESPIRITO DO PAI E DO FILHO

concretamente, a encarnação do Filho “afetam”, por certo, a vida da Trindade.


Já o vimos no capítulo 1. Todavia, a meu ver, a afirmação de que “a relação
com a natureza mundana, unida hipostaticamente ao Filho, traz à luz uma
das infinitas possibilidades que se encontram na vida eterna de Deus”75 teria
necessidade de algum comentário esclarecedor. Certamente as relações entre as
pessoas divinas são agora com e do Filho encarnado; isto é claro, como também
o é o fato pelo qual o que torna possível a encarnação é a riqueza infinita da
vida divina. É igualmente evidente que a encarnação traz à luz, para nós, uma
plenitude misteriosa que supera nossa capacidade de compreensão. Entretanto,
a esta perfeição infinita a encarnação nem acrescenta nem pode acrescentar
nada. Estamos sempre no difícil problema da justa interpretação do axioma
fundamental. Deus é, com certeza, sempre maior do que sua manifestação.
O dom do Espírito à Igreja e aos homens é conseqüência da encarnação
e da glorificação de Cristo. É Jesus quem traz o Espírito ao mundo. Isto en­
cerra o claro pressuposto da presença do Espírito em Cristo durante sua vida
mortal. Nunca insistiremos bastante na importância da ação do Espírito em
Jesus. Não penso, porém, que seja necessário, para acentuá-la, falar de uma
inversão trinitária76. Parece, antes, que é precisamente a ordem encarnação-
unção que garante ao máximo o significado dessa ação do Espírito para a
salvação dos homens, na distinção entre o pessoal e o dinâmico que víamos
na teologia dos Padres77. Jesus, o Filho encarnado, vive sua filiação divina no
Espírito Santo que está nele, e que o guia, em quem opera e em virtude do qual
obedece em liberdade ao desígnio paterno. A condição do Filho unigénito de

75. Teodramática ///, 480.


76. J. M. GARRIGUES, À la suite de la clarification romaine sur le “ Filioque”, Nouvelle Revue
Théologique 119 (1997) 321-334 [325]: “ Il n’est pás nécessairede concevoir une sorte d’inversion
trinitaire dans l’Économie. Si c’était le cas, la christologie messianique de l’onction du Christ par
la puissance de l’Esprit serait une christologie ascendente de l’homme Jésus considéré comme
une personne humaine que la personne de l’Esprit unirait progressivement à la personne du
Fils éternel”. Certamente, os autores a que nos referimos não caem nem de longe neste perigo.
É, todavia, a conseqüência a que se pode chegar se não se parte do fato de que a humanidade
de Jesus é, desde o primeiro momento, a do Filho encarnado.
77. Cf. também, sobre a importância da ação do Espírito em Jesus, O. GONZALEZ DE
CARDEDAL, Cristología, 2001, 430-431; e também ibid. 384: “O Espírito suscita para o Filho
uma humanidade própria, que ele personaliza e na qual existe como homem. Essa existên­
cia humana prolonga e expressa sua co-pertença a Deus e por isso atrai o Pai e o Espírito,
conferindo-lhes uma nova presença no mundo”. De acordo com o que foi dito anteriormente,
haveríamos de pensar que o Espírito suscita esta humanidade, enquanto o Filho a personaliza,
tornando-a sua. É difícil conceber que a humanidade exista sem ser ainda própria da segunda
pessoa divina. Os textos citados anteriormente parecem excluí-lo.

195
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Deus não pode ser compartilhada por ninguém. A união hipostática é também
irrepetível, em virtude da unicidade pessoal do Verbo de Deus. Jesus, porém,
nos comunica seu Espírito, o “espírito de filiação” (Rm 8,15). Aquele que é
eternamente o unigénito de Deus, em virtude de sua encarnação e da efusão
do Espírito, do Espírito que desceu sobre ele e o guiou até oferecer-se na cruz
(cf. Hb 9,14; e também na ressurreição, Rm 1,4), converte-se no primogênito
entre muitos irmãos (cf. Rm 8,29). Podemos ser “filhos no Filho” porque
este compartilhou nossa condição e porque nos deu o Espírito que sobre ele
repousou. Tanto uma coisa como a outra são necessárias na realização do
desígnio salvador de Deus.
Em relação com a “ inversão trinitária”, propôs-se também o problema
que indaga se a tese pode ser mantida à luz do princípio comumente admitido
da identidade entre a Trindade econômica e a Trindade imanente. Somente
a partir da economia da salvação podemos chegar ao conhecimento de Deus
em si mesmo. Observamos algumas expressões de Von Balthasar nas quais
parecia que se passava da imanência à economia, ou seja, que de algum modo
se aceitava sem as devidas nuanças a segunda parte do Grundaxiom de Karl
Rahner, ao passo que a primeira parte, de aceitação geral, parecia não ser
levada em conta78. É a Trindade econômica a Trindade imanente, se a ordem
das pessoas não é a mesma em um e em outro caso? É a táxis das hipóstases
algo apenas acidental, que pode mudar pelas exigências da economia? Qual é,
então, o sentido desta última? Pareceria que não existe correspondência entre
a ordem das missões e a das processões. Com o se chega, então, a conhecer a
ordem destas últimas? Na realidade, a “inversão trinitária” termina, segundo
Von Balthasar, com a ressurreição e glorificação de Jesus. Também esta e o
conseqüente dom do Espírito são uma parte fundamental e de relevância
primária na economia da salvação. Neste momento decisivo, por certo se
salvaria a correspondência entre as missões e as processões eternas. Porém,
todos os aspectos e dimensões do acontecimento Cristo são reveladores do
mistério de Deus e todos os mistérios da vida do Senhor são salvadores.
A afirmativa de que a revelação culmina no mistério pascal significa que os
fatos acontecidos no tempo da vida mortal de Jesus são aprofundados e con­
templados a uma luz mais plena, não, porém, que estes acontecimentos não
tenham correspondência com o ser eterno de Deus. Falar de inversão pode
criar alguma dificuldade se levamos em conta que as relações eternas que
constituem as pessoas têm correlação com as processões e com a ordem das
missões. Seria certamente excessivo falar, pela razão já apontada, de uma total

78. Cf., além disso, J.-N. DOL, L'inversion trinitaire chez Hans Urs von Balthasary 223.

196
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

ruptura entre a ordem imanente e a econômica; a primeira ver-se-ia alterada


somente durante o estado de esvaziamento e de kénosis de Jesus, e seria um
aspecto desse estado. Além disso, assim a dificuldade permanece, e pode dar
lugar a um dilema: ou muda a ordem trinitária em si, o que parece impossível,
ou a revelação do mistério de Deus não corresponderia, em algum aspecto, ao
que Deus é em si mesmo. No entanto, não creio que seja necessário levar as
coisas até o extremo. Acredito que, para responder à preocupação legítima de
dar à ação do Espírito em Jesus toda a sua importância, e para apreciar em sua
justa medida a questão suscitada por Von Balthasar, faz-se necessário recorrer
ao conceito cunhado por ele próprio. Uma distinção mais precisa entre as duas
naturezas de Cristo, sua natureza divina eterna e a natureza humana assumida
pelo Filho por nossa salvação, segundo a qual Jesus é ungido e santificado,
dá a nós um caminho de solução do problema, já entrevisto, ainda que nem
sempre explicitado, pelos Padres da Igreja.

O Espírito Santo e a ressurreição de Jesus

Trata-se, sem dúvida, de um ponto de importância primordial no estudo


das relações entre Jesus e o Espírito Santo. Segundo o Novo Testamento, o
Espírito Santo intervém ativamente na ressurreição de Jesus (cf. Rm 1,4; 8,11).
A ressurreição é a culminação do caminho da vida filial de Jesus enquanto
homem, realizado “no Espírito” . Sobre este particular, não deveria haver
dúMda. Não conhecemos um caminho histórico do Filho encarnado que não
seja levado a cabo no Espírito. Os Padres da Igreja relacionaram a doação do
Espírito por parte de Jesus com a “novidade” de Jesus mesmo, em virtude
de sua ressurreição, pela ação do Espírito79. Neste ponto, portanto, temos de
aceitar muitas das intuições de H. U. von Balthasar. Temos, porém, de ter
presente, e em seguida voltaremos a refletir sobre isso, que seja como for
trata-se da ressurreição do Filho de Deus enquanto homem, de acordo com a
condição em que podia crescer. Participa plenamente na vida divina, também
enquanto homem, aquele que enquanto Deus não necessitou nem encamar-se,
nem morrer, nem ressuscitar. Mas que, uma vez realizado o desígnio de amor
que levou o Filho a despojar-se de si mesmo e a tomar a forma de servo, não
pode viver em plenitude a vida divina se a ela não está incorporada, também
plenamente, a humanidade que fez sua80. No entanto, tudo isto não acrescenta
nada à sua divindade. Somente é necessário, uma vez que foi levada a cabo

79. Cf. L. F. LADARIA, El Dios vivo y verdadero, 96-97.


80. Cf. HILÁRIO DER POITIERS, Trin. IX 38 (cf. a nota 119 do capítulo 1).

197
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO

a encarnação. Por outro lado, a iniciativa da ressurreição e desta doação em


plenitude do Espírito ao Filho enquanto homem pertence sempre ao Pai (cf.,
entre muitas outras passagens, At 2,24.32.33.36). Nossas reflexões subseqüentes
irão nos obrigar a refletir novamente sobre este tema.

2. Da economia à teologia. O Espírito Santo na Trindade

O princípio de correspondência da Trindade econômica à imanente é de


aplicação sempre difícil. Entretanto, a necessidade da “teologia” foi sentida
na Igreja desde os primeiros tempos precisamente para garantir a verdade da
“economia”. Donde o plano da reflexão sobre a Trindade imanente é justificado,
embora seja evidente que requer extrema prudência e que as conclusões a que
se chegar não poderão ter em todos os casos a mesma garantia de acerto. As
propostas que aqui serão feitas nascem do diálogo e querem ser apresentadas
como contribuição a esse diálogo.
É conhecido o grande apreço que H. U. von Balthasar tem pela tradição
latina da processão do Espírito ex Patre Filioque; uma das razões aduzidas em
favor da posição ocidental é que desse modo as relações entre o Pai, o Filho e
o Espírito Santo são realmente “trinitárias”, isto é, implicam a um só tempo
as três pessoas; se, ao contrário, se fala somente da processão do Espírito do
Pai, corre-se o risco de justapor relações “binitárias” (Pai-Filho/Pai-Espírito),
sem que as relações que unem os três apareçam em primeiro plano. Não quer
insistir em mudança, como se fez com ff eqüência, no fato da missão do Espírito
pelo Pai e pelo Filho para chegar até a processão do mesmo. Pensa que não
podem ser tiradas conseqüências em demasia para a Trindade imanente a
partir da economia da salvação81. Tal posição não deixa de parecer estranha
à primeira vista; só a economia da salvação é caminho para a Trindade ima­
nente, só a partir do fato de que o Pai enviou o Filho ao mundo chegou-se
à idéia da geração eterna deste último. É possível que a atitude prudente de
Von Balthasar seja devida a sua teoria da inversão trinitária a que acabamos
de aludir. Se durante o tempo da vida mortal de Jesus o Espírito Santo “precede”
o Filho, por que isso não há de ser reflexo de uma realidade na vida “ imanen­
te” de Deus? O passo seria talvez demasiado arriscado. Principalmente se se
considera que foi proposta por parte ortodoxa a hipótese de uma geração do
Filho a Patre Spirituque que tenderia a equilibrar a presumida unilateralidade

81. Cf. Theologik III 192.

198
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

da posição latina82. Delineia-se naturalmente o problema da viabilidade dessa


opinião teológica. Devemos refletir brevemente sobre ela.

A. O Espírito Santo e a geração do Filho


Em sua obra sobre o Espírito Santo na tradição ortodoxa83, P. Evdokimov
expôs pela primeira vez esta opinião. Seu ponto de partida apóia-se em que,
se por um lado não se pode esquecer a táxis das três pessoas divinas, por ou­
tro é preciso insistir também na igualdade delas. Assim sendo, o sentido da
fórmula proposta seria que cada pessoa há de ser contemplada em sua relação
com as outras duas. Por essa razão, o Filho, ao ser gerado, recebe do Pai o
Espírito Santo, de quem é inseparável, e assim nasceu do Pai e do Espírito (ex
Patre Spirituque). O Espírito Santo procede do Pai e repousa sobre o Filho,
o que está em correspondência com a processão mediante o Filho ou do Pai
e do Filho. Assim, a geração do Filho pelo Pai é feita com a participação do
Espírito Santo, ao mesmo tempo em que a processão deste último acontece
com a participação do Filho. Para insistir no caráter trinitário de todas as
relações intradivinas, afirma-se mesmo que a própria inascibilidade do Pai
supõe a participação do Filho e do Espírito Santo, que dela dão testemunho
enquanto procedem do Pai como de uma única fonte84.
É um equilíbrio que, como vimos em outros casos, de algum modo quer
renunciar à ordem tradicional das processões; daí as dificuldades suscitadas
em alguns autores católicos85. Leva ao Spirituque o fato de que o Filho receba

82. Cf., a propósito, as considerações de Von Balthasar em Teodramática ///, 179.


83. P. EVDOKIMOV, VEsprit Saint dans la tradition orthodoxe, Paris, 1961, 71-78, espec.
72. A preocupação de Evdokimov está em que a relação hipostática seja sempre trina. Cf.
também, neste mesmo sentido, B. BOBRINSKOY, Le Mystère de la Trinité. Cours de théologie
orthodoxe, Paris, 1986, 77-78; todas as relações devem ser trinitárias, e por isso o Espírito está
presente na geração do Filho.
84. Cf. ibid. 78: “Se se aceita o caráter ternário de todas as relações intradivinas, pode-se
colocar, ao lado da fórmula per Filiumy a fórmula per Spiritumy e inclusive ir mais longe e ver
no Filho e no Espírito as testemunhas do Pai e dizer que, na qualidade de tais, condicionam
a inascibilidade do Pai”. Não deixa de ser curioso que a teologia ortodoxa, que sempre se ca­
racterizou pela insistência no primado do Pai (cf. capítulo 3, nota 36), experimente também a
necessidade de “equilibrá-lo”. A teologia latina das relações tem talvez neste ponto algo com que
contribuir. A idéia do Spirituque foi também recebida na teologia protestante: J. MOLTMANN,
Lo Spirito delia vita. Per una pneumatologia integrale, Brescia, 1994, 89-90: “O Pai gera o Filho
em virtude do Espírito eterno e emite o Espírito eterno em presença do Filho... Não se afirma
nenhuma precedência de um sobre o outro [o Filho e o Espírito]”.
85. Cf. Y. CONGAR, La parola e il soffioy Roma, 1985, 119; El Espíritu Santoy Barcelona,
1983, 515; H. U. VON BALTHASAR, Teodramática III, 179; cf. também ID., TheologikllL 48-

199
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

do Pai o Espírito em sua geração? Qual é o alcance preciso desta afirmação?


A processão do Espírito Santo do Pai e seu “repouso” no Filho encontram
certamente mais apoio na tradição86. A doutrina clássica das processões não
quis estabelecer diferença alguma cronológica nem de dignidade. Todavia,
a partir de seus pressupostos, surge a pergunta se podemos continuar ainda
afirmando, com são Basílio, que o Espírito Santo, de nosso ponto de vista, é
nomeado em primeiro lugar, ao passo que, se olharmos as coisas do ponto
de vista da Trindade imanente, é nomeado em terceiro lugar, depois do Pai
e do Filho87. Muitos outros textos patrísticos parecem diretamente opostos a
tal m odo de pensar88. Observar-se-á, além disso, outro aspecto importante na
correspondência entre a Trindade econômica e a Trindade imanente. Já vimos
que não se pode considerar totalmente seguro que exista uma precedência do
Espírito em relação ao Filho no tempo da vida mortal deste. Se consideramos a
comunicação da Trindade a nós e a ordem com que as pessoas atuam em nossa
salvação, aparece com maior clareza o sentido da táxis. 0 envio do Espírito a
nossos corações segue-se à glorificação do Filho. Não oferece dúvida a ordem
das missões que encontramos juntas em Gálatas 4,4-689. A manutenção do

51, com relação às teses de Durrwell, às quais a seguir faremos referência; M. BORDONI, El
Espíritu Santo y Jesús. Reflexión bíblico-sistemática, in Se encamó por obra dei Espíritu Santo,
Salamanca, 2000,13-41, 32-34 (também em Estúdios Trinitarios 34 [2000] 3-31); S. DEL CURA
ELENA, Espíritu de Dios, Espíritu de Cristo: una pneumatologia trinitária, in ibid. 131-173,
164-167 (também em Estúdios Trinitarios 33 [1999], 217-257). Também da parte ortodoxa não
faltam posições críticas diante desta opinião; cf. B. OBERDÖRFER, Filioque. Geschichte und
Theologie eines ökumenischen Problems, Göttingen, 2000,401; 442, com referência a J. Zizioulas.
Para superar estas dificuldades, Y. CONGAR, El Espíritu Santo, 514-516, indica que a unidade
divina, além de fundar-se nas processões, funda-se também na pericoresis no “in-esse” dos três.
Já nos referimos a esta questão (capítulos 2 e 3) e voltaremos a ela.
86. A idéia da processão do Pai e o repouso sobre o Filho encontram-se já em JOÃO
DAMASCENO, De fide orthod. I 8 (PG 94,821).
87. Cf. BASÍLIO DE CESARÉ1A, De Spiritu sancto 16,37 (SCh 17bis, 376): “Se o Apóstolo
menciona aqui (ICor 12,4-6) em primeiro lugar o Espírito, em segundo lugar o Filho e em
terceiro o Pai, não temos de pensar de modo algum que se tenha revolvido a ordem, mas que
começa de nosso ponto de vista”; cf. também 16,38; 18,44-45; o falar de um primeiro, um
segundo e um terceiro não significa nem cair no politeísmo nem estabelecer diferenças de
hierarquia entre as pessoas.
88. Cf. El Espíritu Santo, 1988, 515-516. Não cita diretamente textos de Basílio, mas sim
de ATANÁSIO, C. Arianos III 24 (PG 26,373): “ [O Filho] não recebe o Espírito, mas, antes, o
distribui a todos. Não é o Espírito quem une o Filho ao Pai, mas o Espírito, ao invés, recebe
do Logos; cf. CONGAR, El Espíritu Santoy 516. Podemos também nos referir aos conhecidos
textos de TERTULIANO, Prax. VIII 5-7 (Scarpat, 160-162).
89. Os textos de Basílio citados na nota 87 respondem a esta mesma preocupação. Porém, o
fato de que o Espírito apareça associado ao Pai e ao Filho na salvação mostra que está do lado
não das criaturas, mas de Deus.

200
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

primado do Pai não significa, em hipótese alguma, subordinacionismo, do


mesmo modo que a ordem das processões não pode significar diminuição de
tipo algum90. Todavia, será preciso aperceber-se de algum modo do fato de que o
Espírito é a um só tempo Espírito do Pai e do Filho, ao passo que este último
aparece em sua relação com o Pai que o enviou, por mais que sua vida filial
enquanto homem só possa ser vivida no Espírito.
Neste contexto, merece certamente uma reflexão a tese de F.-X. Durrwell,
exposta em seu livro O Espírito Santo de Deus91. Antes de Jesus, diz-nos o autor,
falava-se já do Espírito de Deus, que no Antigo Testamento é conhecido como
potência e santidade, mas ninguém sabia que este era o Espírito do Pai. Essa
força e esse poder não se punham em relação com a paternidade divina, da
qual, por outro lado, temos apenas escassas indicações no Antigo Testamento.
Em sua vinda ao mundo, Jesus nos revela o Pai, e nos dá a conhecer também o
Espírito de sua paternidade; mais ainda, revela-se que Deus é Pai no Espírito.
Essa paternidade no Espírito aparece na economia da nova aliança. Jesus no-la
ensina: a encarnação acontece pela obra do Espírito; em seu batismo, Jesus
é proclamado Filho de Deus, porque nele repousa o Espírito; é estabelecido
na vida plena de Filho quando Deus Pai o ressuscita no Espírito Santo. Esse
Deus, Pai de Jesus, não é diverso do Pai do Antigo Testamento, e o Espírito no
qual Deus gera não é distinto daquele no qual cria todas as coisas. A partir do
Novo Testamento, sabemos que a paternidade de Deus em relação com Jesus
é a fonte de sua atividade no que diz respeito ao mundo e em Israel. Agora
se sabe também que a atividade de Deus no Espírito encontra sua origem na
geração do Filho92.
Neste Espírito, que é plenitude de ser e de vida, Deus dá cumprimento à
obra essencial de seu amor: a geração de seu Filho unigénito. Se na economia
da salvação Deus sai de si mediante o Espírito, também em seu mistério eterno,
e concretamente na geração do Filho, Deus sai de si através de seu Espírito.
Se Deus realiza todas as obras na força de seu Espírito, no mesmo Espírito
encontra o cumprimento a obra específica de Deus, a de sua paternidade. O
Espírito é o sopro de Deus, e sem este sopro não pode haver Palavra. O Verbo
sai do Pai levado pelo sopro. Por isso o Pai gera seu Filho no Espírito Santo93.

90. TOMÁS DE AQUINO, STh I 33,1 ad 2: “Quia licet attribuamus Patri aliquid auctoritatis
ratione principii, nihil tarnen ad subiectionem vel minorationem quocumque modo pertinens,
attribuimus Filio vel Spiritui Sancto”.
91. L'Esprit Saint de DieuyParis, 1983. Irei citá-lo pela tradução italiana: Lo Spirito Santo alla
luce del mistero pasquale, Roma, 1985.
92. Cf. ibid. 167.
93. Cf. ibid. 168.

201
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Em toda a obra da criação e da salvação, o Espírito opera em um movimento


de fluxo e refluxo: atrai Deus e reconduz a ele os seres que o mesmo Deus
cria fora de si no Espírito. Assim, no Espírito do amor, o Pai gera o Filho e
na potência desse amor reconduz o Filho a sua própria unidade. Por isso, “no
Espírito” há um Pai e um Filho, em razão da terceira pessoa existe uma primeira
e uma segunda. O amor que os homens experimentam dá uma imagem do
Espírito Santo e pode ajudar a entender a função que o Espírito Santo realiza
na geração eterna do Filho: “0 homem que ama deseja que o outro seja, até
o ponto de querer ser para o outro e no outro; assim no Espírito, Deus é para
seu Filho, e é nele essencialmente Pai na geração do Filho”94.
O mistério trinitário transborda na atividade criadora. Deus cria en­
quanto é Pai do Unigénito no Espírito Santo. O Espírito que adeja sobre as
águas no momento da criação é o mesmo Espírito do Pai, daquele que diz
sobre Jesus: “Tu és meu filho. Eu, hoje, te gerei” (At 13,33). Porém, segundo
o Novo Testamento, o Espírito é ao mesmo tempo o Espírito do Filho. Sua
personalidade se define pela relação entre os dois. O Filho é gerado pelo Pai,
mas o Espírito Santo nunca é apresentado como outro filho. Sua relação
com o Pai é diversa. Diz-se de um homem que gera seu filho, mas não que
gera sua vida, sua força ou seu amor. Estes emanam de alguém, porém não
o “ reproduzem”95. Sem nascer do Pai, sua relação com a geração do Filho é
muito íntima, porque procede “em” a geração do Filho, é o Espírito do Pai
em sua paternidade, é na geração do Filho onde o Espírito encontra origem.
Se Cristo é na terra o homem do Espírito, enquanto a partir do conhecimento
de Cristo podemos nos elevar ao do mistério trinitário, podemos dizer que
o Pai gera no Espírito, e que esse é o Espírito do Pai nessa geração, procede
nessa relação do Pai e do Filho. Se todo o mistério do Pai é gerar o Filho, o
Espírito é essa geração96. Sob esta luz, entende-se por que se diz no evangelho
de João que “ainda não havia Espírito, porque Jesus ainda não fora glorificado”
(Jo 7,39): não se havia realizado ainda a geração dentro da criação, a geração
que coincide com a ressurreição: “ Deus ressuscitou Jesus, como está escrito
no salmo segundo: ‘Tu és meu filho. Eu, hoje, te gerei™ (At 13,33; SI 2,7).
O Espírito Santo é possuído em comum pelo Pai e pelo Filho, porém
de uma forma distinta em cada caso. O Pai gera no Espírito, o Filho é gerado

94. Ibid. 168-169. Formulemos desde logo alguma pergunta: É este Espírito “anterior” à
geração? E, se assim é, não será também anterior ao Pai, que, de certa maneira, terá de lançar
mão dele para a geração do Filho, isto é, para o que é mais próprio de seu ser?
95. Cf. ibid. 170. Pode-se ver aqui uma relação com santo Tomás, que indica como o ser
imagem está ligado à geração; por isso, o Espírito Santo não é imagem do Pai; cf. STh I 35,2.
96. Cf. Lo Spirito Santo, 171. Cf., além disso, todo o contexto.

202
o espírito do pai e do filho

no Espírito. Do Pai, o Espírito transborda, o Filho o recebe. O Pai não o


possui mais do que como o dá, e assim o Filho também recebe o poder de
dar o Espírito. Não seria o Espírito do Filho, se não o pudesse dar, porque
o Espírito é doação, não se tem senão doando-se. Por isso, enquanto Jesus
ressuscitado entrou plenamente na vida filial, dá o Espírito; ser fonte do
Espírito é um privilégio filial. O Pai dá ao Filho o poder de enviar o Espírito,
ele o faz partícipe dessa potestade. Na glória, Jesus vive na plena vida filial.
O Pai envia o Espírito em virtude de sua união com o Filho, embora ele seja
a origem de tal missão. Tanto o Pai como o Filho enviam o Espírito, porém
o enviam na união dos dois97. O Filho compartilha toda a glória do Pai, a
de possuir e a de enviar o Espírito. Quando chega a plenitude dos tempos,
os dois são enviados “simultaneamente” (cf. G1 4,4-6)98. Iguais na posse do
Espírito e no poder de enviá-lo, o Pai e o Filho distinguem-se na paternidade
e na filiação. O Pai é a fonte última do Espírito e Jesus o reconhece como
tal. Jesus enviará o Espírito que procede do Pai (cf. Jo 15,26). A fonte, que
é o Pai, faz que o Filho seja também fonte. O Pai, que gera no amor, dá ao
Filho o podê-lo amar. Amando-o, isto é, gerando-o, ele o faz responder
ao amor. Esse amor é, por sua vez, um estímulo para o amor do Pai. Por essa
razão, o Filho não é inferior ao Pai, porque suscita no Pai o amor no qual é
o Pai. Este amor, por sua vez, é uma provocação para o amor do Pai, que o
gera neste amor. O Espírito suscita assim entre eles um movimento de fluxo
e refluxo, pelo qual o Pai gera e o Filho é gerado99. Por esta razão, o Espírito
Santo que está no Pai e no Filho, de maneira diversa em cada um deles, “é
pessoalmente a geração”100.
O Espírito é assim o terceiro, porque nenhuma das pessoas procede dele,
ou porque nele culmina a profundidade do mistério divino. É a terceira pessoa
no mistério divino como culminação e como profundidade. É o mistério no
qual são o Pai e o Filho. O Espírito está no início, no Pai que gera, e também
no término, no Filho que é gerado. Procedendo deles, não é depois deles,
porque são o Pai e o Filho no Espírito. O amor é o espaço da alteridade e do

97. Cf. ibid. 172-173.


98. Cf. ibid. 174. Não se consegue ver como a partir de Gálatas 4,4-6 pode-se falar da simul­
taneidade da missão do Filho quando chegou a plenitude dos tempos e do envio do Espírito a
nossos corações. Antes, parece pressupor-se uma sucessão.
99. Cf. ibid. 174-175. De certa maneira, poderia parecer que o ponto de partida da geração
caberia ao Espírito, identificado com o amor que está na origem de tudo. Como se relaciona
com o amor fontal do Pai? Em seguida, retornaremos a esta questão.
100. Ibid. 175.

203
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

encontro; faz surgir a pessoa. Assim é a Trindade, um eu e um tu, dois pólos


e uma comunhão mútua101.
Deste modo, segundo Durrwell, o Pai gera o Filho no amor e lhe concede
amá-lo por sua vez, na geração. Até aqui, deparamos com idéias comumente
admitidas. 0 mais original de nosso autor é a apreciação segundo a qual
esse amor se identifica com o Espírito Santo. Assim, o Espírito do amor se
encontra entre o Pai e o Filho em um movimento de fluxo e refluxo, pelo
qual o Pai gera e o Filho é gerado. A pessoa do Espírito Santo constitui-se,
pois, na relação entre o Pai e o Filho, e é assim a terceira pessoa, distinta das
outras duas. Porém, não como o amor que une os dois e o fruto desse amor,
segundo idéias mais geralmente admitidas, mas é pessoalmente a geração; assim
sendo, geração no amor e geração no Espírito vêm a coincidir102. O Espírito
está no começo da geração porque o Pai gera no amor e nesse mesmo amor
o Filho é gerado e responde ao amor do Pai. Desta maneira, Durrwell faz
sua a idéia de Mühlen, que, como sabemos, considera o Espírito Santo uma
pessoa em duas pessoas103, embora o autor francês chegue a esta conclusão
com base em outros pressupostos. Por um lado, o Espírito Santo procede da
unidade do Pai e do Filho e, por outro, realiza esta unidade. A primeira idéia
não criou dificuldades no marco da teologia ocidental. Contudo, será neces­
sário esclarecer a segunda parte, embora a idéia não possa, absolutamente,
ser descartada, mas totalmente o contrário. O Pai e o Filho não estão unidos
senão neste dom, o Espírito, o qual, segundo santo Tomás, procede do Pai e
do Filho como “ amor unitivus duorum” 104.
Não está igualmente claro que se mantenha a ordem intratrinitária na
idéia do Espírito como a geração em pessoa. Não é fácil adivinhar o que se quer
expressar com isso, e Durrwell está bem consciente do problema105. Equivale

101. Cf. ibid. 177-178.


102. Durrwell assinala em outras ocasiões que o Espírito Santo se acha “hipostasiado”, o que
corresponde à essência divina. Cf. Le Père, Dieu en son mystère, Paris, 1988, 146: “tudo o que a
linguagem teológica chama de essência divina, natureza divina, encontra-se hipostasiado nele”;
cf. também 148-149. A mesma idéia em Jesús Hijo de Dios en el Espíritu Santoy Salamanca,
1999, 106. Podemos nos perguntar sobre o porquê desta exclusividade. Não pode o amor ser
identificado com o fato de que o Pai gera o Filho com a pessoa do Pai, que é todo amor, como
ouvimos algum Santo Padre dizer? Por outro lado, Ricardo de São Vítor, como sabemos, dizia
que cada pessoa é seu amor, o amor que é comum aos três, possuído de maneira irrepetível.
103. Citado em Lo Spirito Santo, 179. Fizemos referência a estas idéias de Mühlen no ca­
pítulo 2.
104. STh I 36,4.
105. Lo Spirito Santo, 175, exatamente depois da passagem citada no texto: “Uma palavra
humana não é, certamente, capaz de expressar nunca o mistério, porém, reconhecendo no

204
o espírito do pai e do filho

talvez à idéia repetida com freqüência do Espírito Santo como o poder de


gerar. Seja como for, há de ficar claro, e aí está radicado o grande interesse da
proposta de Durrwell, que o Espírito Santo não pode ser um apêndice do qual
o Pai e o Filho pudessem prescindir na plenitude da vida divina. Pode-se falar
do Espírito, como faz o autor, como do mistério no qual são o Pai e o Filho
em sua unidade recíproca. Todavia, devemos nos empenhar em vê-lo unido
ao Pai e ao Filho sem alterar a táxis intratrinitária106. Na economia da salvação,
encontramos o Espírito presente no Verbo feito carne. Certamente, podemos
passar daí à Trindade imanente no sentido de que, nas relações intradivinas
do Pai e do Filho, o Espírito Santo não pode estar ausente. Igualmente, entre­
tanto, não se vê de modo claro que a geração deva ter lugar no Espírito Santo
ou que este seja a geração “em pessoa” . Não se produz talvez um pouco de
confusão entre o “espírito” como natureza divina, força em que o Pai gera,
e o Espírito pessoal, o Espírito Santo “ terceiro” da Trindade, que a tradição
fez aparecer como o amor do Pai e do Filho em que os dois se unem? Não
levamos de algum modo à Trindade imanente a “inversão trinitária”?
Estas idéias foram esclarecidas e ampliadas em outras publicações. Uma
idéia nova que Durrwell desenvolveu nos últimos tempos é a do Espírito
como princípio da “personalização”, já na vida divina da Trindade107; esta
afirmação funda-se na obra “personalizadora” que o Espírito Santo realiza na
humanidade de Jesus durante sua vida mortal:
Jesus se encontra mais à frente personalizado em todo o seu ser como Filho
de Deus. Um homem é por seu nascimento uma pessoa corporal. Todavia,
as virtualidades dessa pessoa corporal estão ainda por se desenvolver... Jesus
estava divinamente, filialmente personalizado desde seu nascimento; seu ser
humano tinha sido assumido pela pessoa do Verbo eterno. Entretanto, homem
terreno, estava ainda em potência de uma personalização total... Este fazer-se
se realiza no Espírito Santo, princípio de toda personalização. Este princípio é
primeiramente na Trindade: no Espírito é como o Pai é a pessoa paternal e
o Filho a pessoa filial. Espírito de paternidade em um, de filiação em outro.
Por sua ação, é como a criação foi evolucionando, desde a matéria chamada

Espírito a geração eterna, como se encontra no Pai e no Filho, foi dito algo essencial sobre a
pessoa do Espírito”.
106. Encontramos no próprio Durrwell formulações nas quais se reconhece muito mais a
doutrina tradicional; por exemplo, ibid. 180: “procede da unidade do Pai e do Filho e realiza
sua unidade” .
107. Cf. Jesús Hijo de Dios en el Espíritu Santo, Salamanca, 1999 (original francês de 1997), 59.

205
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

inerte até esse cume que é a pessoa humana. Pela força do mesmo Espírito, o
homem desenvolve as virtualidades de sua pessoa ao longo de sua vida108.

Esta longa citação nos permite ver com clareza a relação que Durrwell
estabelece entre a economia da salvação e a Trindade imanente. Atribui-se ao
Espírito Santo o crescimento humano de Cristo, que desde o primeiro instante
de sua concepção é o Filho de Deus encarnado. Esta ação do Espírito seria o
reflexo econômico da ação do Espírito como poder da geração do Filho pelo
Pai e, portanto, o agente da “personalização” dos dois. Estamos sempre na
difícil tarefa de estabelecer os termos da correspondência entre a economia
da salvação e a Trindade imanente e o alcance do “vice-versa”. Que o Espírito
Santo seja agente do crescimento humano de Jesus, que possa ser chamado de
“personalização” (não nos interessa abordar agora este problema), autoriza
a pensar que realiza uma função semelhante na vida divina? E mais ainda:
existe base na economia da salvação para falar de uma personalização do Pai
por obra do Espírito Santo?
Está, sem dúvida, muito claro o problema que o autor francês observa em
certas teologias tradicionais da Trindade e que quer justamente tornar óbvio:
que se possa pensar no Pai e no Filho, na paternidade e na filiação de um e
de outro, sem que o Espírito Santo venha imediatamente à mente109. É preciso
dar razão a Durrwell nessa preocupação. A perfeita igualdade das três pessoas
impede que se possa pensar em cada uma delas sem ter presentes as relações
com as outras duas. Há, certamente, uma base para isso na economia: Jesus
viveu na terra sua filiação divina com a presença e a ação do Espírito Santo.
Na ressurreição, especialmente, põe-se em relevo essa ação do Espírito. Já
deparamos repetidas vezes com o texto de Atos 13,33, que aplica ao momento
da ressurreição de Cristo o Salmo 2,7: “Tu és meu filho. Eu, hoje, te gerei” .
Entende-se, portanto, a ressurreição em chave de geração. Na ressurreição do
Senhor está presente de modo ativo o Espírito Santo, segundo Romanos 1,4. O
“Espírito de santidade” de que se fala nesta passagem é, segundo Durrwell (e
muitos outros autores), o Espírito Santo, não a natureza divina de Jesus. Esta
geração da ressurreição, cujo agente principal é o Pai, realiza-se no Espírito:
“Obra de Deus em sua paternidade, realizada no Espírito Santo, a ressurreição

108. Ibid. 61-62; cf. 74; 116. A idéia de que o Pai gera o Filho no Espírito Santo repete-se
com freqüência; cf. ibid. 23; 31; 50; 74; 92; 127.
109. Em ibid. 80, define-se assim a posição a que Durrwell quer opor-se: “Nem o Pai em sua
paternidade nem o Filho em sua geração estão marcados pelo selo do Espírito, afetados pelo
brotar deste na paternidade e na filiação. Poderíamos pensar neles sem pensar simultaneamente
no Espírito. Este vem mais tarde...”.

206
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

de Jesus revela que Deus gera seu Filho neste mundo no Espírito, que Jesus é o
Filho gerado neste divino poder que é o Espírito”110. Na ressurreição encontra,
portanto, sua culminação a obra do Espírito, que começou já na encarnação
do Filho e que continuou durante toda a existência humana de Jesus. Nova
mostra da importância decisiva desta ação do Espírito Santo, ativo na ressur­
reição de Jesus, geração do Filho “neste mundo”.
Esta geração de Jesus como Filho na ressurreição encontra certo prolon­
gamento em nossa geração como filhos de Deus no Filho pela ação do Espírito.
Deus nos engloba no Espírito na ação paternal de gerar o Filho. No Espírito
Santo, nós, homens, nascemos como filhos de Deus. Jesus é o Filho unigénito
que, não obstante, tem muitos irmãos, dos quais Deus é Pai na geração de seu
Filho único. A ação paternal que o Pai realiza em seu Filho nos abraça também
a nós. Vivifica-nos com Cristo, ressuscita-nos com ele (cf. Ef 2,5-6; Cl 2,12;
F1 3,10): “Sua ressurreição é ‘para nós’ (cf. 2Cor 5,15), faz-se efetivamente
nossa, pelo fato de que Deus nos engloba em sua ação paternal que ressuscita
Jesus” 111. Nós, homens, nascemos como filhos de Deus no Espírito Santo; não
se concebe a filiação divina de Jesus sem o Espírito Santo.
Podemos concluir esta exposição com um texto sintético em que Durrwell
reúne muitos dos temas que até agora apareceram:
Seu papel [do Espírito Santo] se expressa em termos de dinamismo. Não é o
autor nem o efeito da ação, é a ação, o poder operante. Não é ele, mas o Pai,
quem ressuscita Jesus, ele é o poder da ressurreição. Não é o glorificador112
nem o glorificado, mas a glória que faz de Jesus o Senhor da glória. Não é o
que unge, nem o ungido, mas a unção. O Pai é a verdade, o Filho, o esplendor
dessa verdade, o Espírito, o que guia até a verdade completa... ele não é o
que fala, nem a palavra, mas o sopro que leva a palavra... o Pai ama, o Filho
é amado, o Espírito é o amor... Pois bem, existe em Deus uma operação
essencial, que engloba todas as demais, a de gerar o Filho infinito. Daqui se
depreende a conclusão já formulada; no mistério eterno, o Espírito Santo é o

110. Ibid. 86. Também ibid. 80: “Parece suceder que, nas discussões que as opõem entre si,
estas teologias [as teologias latina e grega] não buscam nem encontram sua legitimidade nem
nos dados oferecidos pela Escritura sobre o Espírito Santo, nem no mistério declarado como
central pela Escritura: o de Cristo em sua páscoa, na qual o Pai gera seu Filho no Espírito Santo”;
e também 116: “ É a obra do Pai que gera o Filho no mundo; é a obra do Filho que consente na
paternidade de Deus; a obra se realiza no Espírito, poder da divina engendração”.
111. Ibid. 91; cf. todo o contexto.
112. Tenhamos, no entanto, presente João 16,14: “Ele me glorificará, pois receberá do que
é m eu...”.

207
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

poder divino de engendramento, o do Pai em sua paternidade, que se traduz


na filiação, a saber, o Filho113.

A “geração” de Jesus na ressurreição é um dado bíblico, como também


o é a intervenção do Espírito nessa ressurreição. Porém, o próprio Durrwell,
em um dos textos que acabamos de citar, indicou que essa geração do Filho
no Espírito no momento da ressurreição se dá “ neste mundo” . Assinala-se,
assim, a distinção com a geração eterna. Estabelecida com clareza essa distin­
ção, é legítimo traspassar sem mais o esquema para a geração eterna do Filho
no Espírito? Notemos que a geração da ressurreição, se, por um lado, afeta
realmente o Filho, afeta-o enquanto homem, na humanidade que assumiu.
Sob este aspecto, faz sentido falar de seu crescimento, de sua morte e de sua
exaltação e de sua entronização à direita do Pai. Estas distinções estão claras
na consciência da Igreja, pelo menos desde o Concílio de Éfeso. É o Filho en­
quanto assumiu a humanidade quem, enquanto homem, é gerado “como Filho
perfeito” na ressurreição114. Deparamos aqui com um problema semelhante
ao que encontrávamos ao estudar o problema da inversão trinitária. É preciso
insistir, e já o dissemos repetidas vezes, na importância da ação do Espírito
na humanidade de Jesus. Porém, ao mesmo tempo, devemos ter presente que
o Espírito age em Jesus como homem, na humanidade assumida pelo Filho
no seio de Maria. Jesus, gerado como Filho perfeito em sua humanidade no
Espírito, é desde toda a eternidade o Filho perfeito do Pai. Se não se houvesse
efetuado a união hipostática, se o Filho não houvesse assumido como sua a
natureza humana, não se teria efetuado essa ação do Espírito nele e sobre ele.
A base “econômica” para a idéia da geração eterna no Espírito não parece,
portanto, totalmente evidente. Mais ainda, a economia nos iqduz, ao que
parece, à manutenção da ordem trinitária tradicional, fundada na ordem da
fórmula batismal de Mateus 28,19. A humanidade do Filho encarnado é o
lugar da presença do Espírito; isto vale especialmente para a humanidade do
Filho glorificado, que é princípio da efusão do Espírito Santo para a Igreja
e para os homens. A vinda do Espírito Santo sobre Jesus está já destinada à
Igreja. Toda a economia da salvação é em proveito nosso e por isso a geração
à filiação perfeita na humanidade pela ação do Espírito nos engloba também
a nós. Certamente essa geração é reflexo da geração eterna do Filho, e nela

113. Jesús Hijo de Dios..., 94-95.


114. A expressão é de HILÁRIO DE POITIERS, Tr. Os. 2,27 (CCL 61,56): "... id, quod tum
hominis fUius est, ad perfectum dei filium, id est ad resumendam indulgendamque corpori aetemi-
tatis suae gloriam per ressurrectionis potentiam gigneretur”. Cf. todo o capítulo 2,27 (56-57).

208
O ESPIRITO DO PAI E DO FILHO

tem seu fundamento último e sua razão de ser. Todavia, não é sem mais
nessa geração eterna na qual nós somos gerados como filhos. Somos filhos
no Filho somente enquanto este se fez homem e nos comunica o Espírito que
repousou sobre ele. Novamente a distinção entre a economia e a teologia, na
correspondência entre ambas, tem aqui seu lugar115.
Fizemos já alguma referência ao tema do Espírito como o poder de gerar
no âmbito da Trindade imanente. Em minha opinião, estabelece-se a questão
da relação e distinção entre o Espírito Santo como terceira pessoa e o espírito
como a essência divina. Sabemos muito bem como foi difícil nos primeiros
tempos da Igreja o estabelecimento dessa distinção; por isso, o termo ‘‘espí­
rito” nem sempre teve um significado claro e preciso. Segundo a doutrina
tradicional, o Pai é o princípio da Trindade, é aquele que, gerando o Filho
e espirando (de qualquer maneira principaliter) o Espírito Santo, comunica-
lhes inteiramente sua essência divina (cf. DH 805, Concílio Lateranense IV;
DH 525, Toledano XI). O Pai, além disso, gera o Filho de sua substância (cf.
DH 527). Gera-o em virtude de seu poder de gerar que é, nele, a natureza
divina; este é o principium quo da geração116. É necessário que este poder seja
atuado por outra pessoa? Continuará sendo o Pai, neste caso, princípio e
fonte da divindade? O Pai é, como tal, amor que se doa na geração do Filho
e na espiração do Espírito Santo. Seja como for, as duas processões acham-
se internamente relacionadas, uma não pode ser considerada independente
da outra. Neste ponto é preciso insistir, e o faremos na seqüência, por nossa

115. Em outro aspecto, podemos ver a distinção entre a economia e a teologia a partir da
ressurreição de Jesus. No Novo Testamento, a iniciativa desta é quase sempre atribuída ao
Pai. Porém, não podemos ignorar os textos em que o Filho aparece ativo neste evento: João
2,20-22; 10,17; 1 Tessalonicftises 4,14. Jesus, portanto, não se mantém completamente passivo
neste acontecimento, embora também nele se faça referência ao Pai. Cf. O. GONZÁLEZ DE
CARDEDAL, Cristología, 144. Durrwell está consciente deste problema; escreve em Jesús Hijo
deDios...y 128: “Jesus exerce uma autêntica causalidade em sua filiação, em sua receptividade...
O Espírito da ressurreição tem sua fonte no Pai, porém seu brotar na páscoa de Cristo é pro­
vocado por Cristo... Em toda doação, aceitar o dom é exercer uma causalidade sem a qual não
teria lugar a doação. Em toda realidade amorosa, acolher o amor é libertar o amor no coração
do outro, fazer com que brote nele... Abandonando-se ao Pai, Jesus permitee provoca a ação
ressuscitadora, faz com que brote nele o Espírito do Pai. Desta maneira, participa filialmente
de sua própria engendração na plenitude do Espírito”. É claro que estas profundas reflexões
com referência à ressurreição de Jesus não podem ser transpostas sem motivo para a geração
eterna. O Filho não preexiste a esta geração como preexiste à ressurreição na carne.
116. SANTO TOMÁS, STh I 41,5: “Id quo Pater generat, est natura divina, in qua sibi Filius
assimilatur. Et secundum hoc Damascenus dicit quod generatio est opus naturae, non sicut
generantis, sed sicut eius quo generans generat. Et ideo potentia generando significant in recto
naturam divinam, sed in obliquo relationem”.

209
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

conta. Ao Espírito Santo, enquanto realiza a unidade do Pai e do Filho e é


o fruto dessa unidade e desse amor, convém especialmente o que é comum
aos três, e em particular o am or117. Este, porém, como já vimos, pode definir
também o Pai e o Filho.
Certamente se há de enfatizar, e Durrwell, juntamente com muitos
outros autores atuais, o faz acertadamente, o fato de que o Filho e o Espírito
são inseparáveis. Ao Pai convém a geração, porém ao mesmo tempo e in­
separavelmente a espiração do Espírito Santo. As duas estão em correlação,
enquanto o Espírito é do Pai e do Filho. Deus Pai é princípio do Espírito
precisamente enquanto é Pai, e por sua vez não pode gerar o Filho sem que
surja a união dos dois, que tem lugar no Espírito. Do mesmo modo que na
economia da salvação se há de recuperar a importância decisiva da presença
do Espírito Santo em Jesus, também no que diz respeito à reflexão sobre a
Trindade imanente é necessário evitar a idéia de que o Espírito é simples­
mente “passivo” na vida intratrinitária118. As tentativas de pensar com mais
decisão nas pessoas trinitárias devem ser bem-vindas, mas surge o problema
que põe em dúvida se isso pode ser feito respeitando a ordem tradicional das
processões. Vejamos como a importância da presença do Espírito na vida de
Jesus pode ser salientada sem o recurso à “inversão trinitária”. O Espírito é
certamente a terceira pessoa sem necessidade de que seja a última119. A ordem
das processões não implica diminuição nas pessoas divinas. Ao mesmo tempo
em que estas procedem umas das outras, não são mais que na relação com as
outras e no ser nas demais.
Th. G. Weinandy parece inspirado de perto por Durrwell, a quem, ade­
mais, cita com freqüência, ainda que suas formulações sejam mais genéricas.
O Pai gera o Filho e subsiste na relação com ele no Espírito Santo. Reproduzo
uma passagem fundamental, em que resume sua tese:

117. Cf. AGOSTINHO, Trin. XV 19,37 (CCL 50,513-514). A especial relação entre o Espírito
e o amor foi vista por Agostinho na união do Pai e do Filho; cf. ibid. VI 5,7 (235); V 11,12
(219). Também o concílio XI de Toledo (DH 527): “quia caritas sive sanctitas ambonim esse
monstratur”. Dificilmente poderemos pensar que o amor preceda o amante e o amado, que
são o Pai e o Filho. Voltaremos em seguida, por nossa conta, a este tema. Cf. em particular a
nota 132.
118. Cf. DURRWELL, Jesús, Hijo de Dios...y 98: “Tampouco é preciso fazer do Espírito a
última pessoa, que venha por detrás das outras, que fosse como a mela sem saída onde expira
o movimento trinitário, a pessoa estéril da qual não sai nada”. Entretanto, o próprio Durrwell
está consciente do problema da táxis intratrinitária: ibid. n. 25: “na ordem trinitária, o Espírito
Santo é consecutivo à relação entre o Pai e o Filho...”.
119. Bela intuição de Durrwell (ibid. 100).

210
O ESPIRITO DO PAI E DO FILHO

O Espírito não tem um nome distinto, porque subsiste precisamente como


aquele em quem o Pai e o Filho são nomeados. O Pai subsiste em relação com o
Filho (e por isso é chamado Pai) somente no Espírito Santo pelo qual [by whom]
gera o Filho. O Filho subsiste em relação com o Pai (e por isso é chamado
Filho) somente no Espírito que o conforma para ser Filho. O Espírito subsiste
como uma pura relação juntamente com o Pai e o Filho enquanto sustém sua
relação e assim dá ou manifesta seus nomes. O Espírito Santo é a pessoa ou
“quem” oculta o sem nome porque a autêntica natureza de sua subjetividade
é iluminar, ou, mais profundamente, dar substância ou personalizar o Pai e
o Filho um para o outro. Poder-se-ia dizer que o Espírito Santo é a mais pes­
soal das pessoas da Trindade, e assim a mais relacional em sua subjetividade,
porque é a mais translúcida e transparente. Mediante ele [through him\ o Pai
e o Filho contemplam-se eternamente um ao outro em amor120.

Tanto os méritos como as interrogações suscitadas na exposição das


teorias anteriores podem também ser assinalados aqui. A preocupação de as­
segurar a função ativa do Espírito na vida trinitária por um lado e, por outro,
a insuficiente clareza sobre o sentido e o alcance dessa atividade que se quer
levar até a processão do Filho. Têm tais tentativas base na tradição? Não pa­
rece que por parte dos autores que propugnaram estas novas hipóteses tenha
havido muita preocupação por aduzi-las. Por outro lado, as poucas passagens
patrísticas que poderiam talvez motivar estas teorias acham-se dispersas e não
parecem ser de grande clareza. A. Orbe cita algumas passagens de Eusébio de
Cesaréia. Segundo o grande historiador da Igreja, nenhum dos “ cristos” ou
ungidos do Antigo Testamento chegou à perfeição do verdadeiro Cristo, “que
não recebeu a unção preparada por meio de elementos sensíveis, mas a que
convém a Deus, com o Espírito divino, ao participar na ingênita e paterna
deidade”121. Porém, não parece que se deva ver aqui em ação diretamente o

120. TH. G. WE1NANDY, The Father's Spirit of Sonship. Reconceiving the Trinity, Edinburgh,
1995, 84. É clara a influência de Durrwell, citado em nota aqui mesmo. Também ibid. 73: “O
Filho é Filho porque tendo sido gerado pelo Pai no Espírito de filiação ama o Pai como Filho.
Este ato de amor filial, exercido no Espírito de filiação, é o que o faz o Filho... O Pai não seria
Pai se não tivesse um Filho que o ama como Filho. Pois bem, a pedra angular que mantém
unidos este ato paterno de geração do Filho no amor e este ato filial do Filho que ama o Pai é
realizado pela ação do Espírito... O Espírito que brota dentro do Pai como seu amor no qual
ou pelo qual [in or by whom] o Filho é gerado conforma o Pai para ser Pai para o Filho e ao
mesmo tempo conforma o Filho para ser Filho para o Pai”. Observemos o uso, equivalente, ao
que parece, das preposições in e by.
121. EUSÉBIO DE CESARÉIA, Historia ecclesiastica I 3,10ss. (PG 20,72Css.), cit. por ORBE,
La unción dei Verboy576. Uma das preocupações de Eusébio é mostrar a antiguidade do nome e
da pessoa de Cristo, sua preexistência: cf. ibid.: “a fim de que ninguém fosse pensar, atendo-se

211
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Espírito pessoal; antes, o que se quer dizer é que o Pai comunica ao Filho sua
natureza divina espiritual. O mesmo Orbe comenta: “O ‘crisma’, o ungüento
de Cristo identifica-se com o Espírito divino, natureza divina, ou deidade
que o Pai comunica ao Verbo. Ungüento de fragrância única, só comunicá­
vel, como a Unigénito. A unção consiste na geração mesma do Verbo, pela
qual o Espírito do Pai passa para o Filho, à maneira de fragrância divina”122.
R. Cantalamessa aduziu em diversas ocasiões um texto de Gregório de Nissa
que em sua opinião poderia justificar que se falasse de uma intervenção do
Espírito na geração do Filho:
O óleo da exultação apresenta o poder do Espírito Santo, com o qual Deus
é ungido por Deus, isto é, o unigénito é ungido pelo Pai (cf. SI 45 [44],8)...
Como o justo não pode ao mesmo tempo ser injusto, assim o ungido não pode
não ser ungido. Pois bem, aquele que nunca deixou de ser ungido certamente
é ungido desde sempre. E quem quer que seja deve admitir que aquele que
unge é o Pai e o ungüento é o Espírito Santo123.

Todavia, como facilmente se comprova, esta passagem não vai além


da afirmação de uma unção do Filho por parte do Pai no Espírito, desde o
primeiro instante de sua geração; desde sempre o Filho é o ungido. Porém,
o fato de que o Espírito intervenha na geração ou tenha uma ação generativa
do Pai no Espírito não aparece de modo algum com clareza. Quanto ao mais,
Gregório de Nissa também não parece confundir, como Gregório de Nazianzo,
a geração temporal do Filho com a unção. Não parece, portanto, existir base
para postular essa confusão no que diz respeito à geração eterna124.

aos tempos de sua existência na carne, que nosso salvador e Senhor Jesus Cristo é tão novo”;
cf. ORBE, La unción dei Verbo, 575.
122. Ibid. 578; cf. todo o contexto, 569-592. A estas considerações, pode-se acrescentar a
falta de clareza da doutrina trinitária de Eusébio, que certamente não permite ver nestes textos
precedentes das posições modernas.
123. GREGÓRIO DE NISSA, Adv. Apollinarem 52 (PG 45, 1249-1252); cit. por R.
CANTALAMESSA, II canto dello Spirito, Roma, 1998,412.0 autor cita este mesmo texto em seu
artigo “Utriusque Spiritus”. L’attuale dibattito teológico sullo Spirito Santo alia luce dei “Veni
Creator”, Revista de Teologia 38 (1997) 465-484 [479], e o introduz assim: " ... são Gregório de
Nissa, que dedica um capítulo inteiro a ilustrar a unção do Verbo mediante o Espírito Santo em
sua geração eterna do Pai, parte do pressuposto de que o nome ‘Cristo', ungido, pertence ao
Filho desde a eternidade”. Realmente, o texto não parece dar mais de si. A posição de Gregório
de Nissa não parece muito diferente da que têm os autores que o precederam, e a que faremos
referência a seguir.
124. In illud Tunc ipse Filius (PG 44,1320): “Ao unir-se com a carne, o Logos elevou-a às
propriedades do Logos pela recepção do Espírito Santo que o Logos possuía antes da encarna­
ção”. Parece distinguir-se claramente a encarnação do dom do Espírito à humanidade assumida,

212
0 ESPIRITO DO PAI E DO FILHO

A posição do Espírito desde sempre por parte do Filho é, sem dúvida,


um ensinamento dos Padres dos primeiros séculos. Entretanto, nem por isso
devemos pensar que tal fato signifique uma participação do Espírito na geração
eterna. É possível descobrir certa analogia com a teologia da unção de Cristo em
sua humanidade no Jordão, já abordada anteriormente. Esta pressupõe, como
dizíamos, a encarnação do Filho, é conseqüência dela, o que em nada supõe
que devamos considerá-la algo “acidental”. Sem ela, Jesus não pode realizar
sua missão. De maneira semelhante, pensou-se em uma unção pré-cósmica
do Filho com o Espírito para que leve a termo sua mediação na criação125. Na
força do Espírito paterno, pode o Filho dar unidade e harmonia ao cosmo que
o Pai cria por seu intermédio. Podemos nos perguntar se essa união anterior à
criação pode ser um ponto de apoio válido para falar da geração do Filho no
Espírito. Não parece haver passagem alguma que abone esta tese. A unção tem
por objeto tornar possível ao Filho, já constituído como tal com a geração, a
função criadora ou conservadora do cosmo. A. Orbe escreve:
Dir-se-ia, atendo-nos estritamente a sua ideologia [de Justino e Ireneu], que o
Filho de Deus como tal não houvesse sido ungido, a não ser chamado como
mediador para a saúde das naturezas, espécies e indivíduos criados no universo.
Porém, dentro da teologia do século II, o próprio Verbo deveu sua existência
perfeita aos desígnios do Pai sobre a criação.
0 xpi0|jux virá sobre o nascido Filho de Deus, Verbo perfeito, com a mesma
necessidade lógica com que o Pai o gerou para a saúde do mundo futuro.
Com uma modalidade de sumo interesse, por suas interferências com o he-
lenismo. A unção do Verbo encaminha-se não a dar-lhe consistência em sua
pessoa, dado que o Verbo subsiste previamente a sua unção, mas a dotá-lo
daquela vida ou espírito dinâmico pelo qual vivificará e manterá o Universo
em coesão e unidade...
0 Verbo, mediante sua função conservadora física, pressagia a estrita soterio-
logia que o encarnado levará a cabo sobre a Igreja126.

embora este dom seja colocado no momento da encarnação e seja obra do Filho que desde
sempre possui o Espírito.
125. Cf. A. ORBE, La unáón dei Verbo, espec. 32-82, sobre são Justino; 501-541, sobre santo
Ireneu; e também os dados sobre os autores eclesiásticos dispersos na obra, particularmente 593-
627; retomaremos em seguida às conclusões desta importante obra. Cf. também L. F. LADAR1A,
El Espíritu en Clemente Alejandrino. Estúdio teológico-antropológico, Madrid, 1980, 64-79.
126. A. ORBE, La unáón dei Verbo, 630; cf. todo o contexto, com as referências à transposi­
ção cristã de motivos estóicos; ibid. 632: “Nenhum documento dá a entender que o Pai tenha
ungido o Verbo pelo próprio fato de gerá-lo”.

213
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

A unção pré-cósmica pressupõe a geração do Filho. Sabemos que, nos


primeiros tempos da Igreja, esta geração está ligada à mediação criadora. Se a
vontade criadora de Deus “ requer” a geração do Filho, pede igualmente a unção
do Espírito para que a mediação possa completar-se. Não temos necessidade
de pensar que essa unção se realiza no Espírito Santo pessoal, terceira pessoa
da Trindade. O mais provável, como já assinalamos, é que se trata da unção
com o Espírito paterno, a força da natureza divina. Certamente não podemos
tampouco pressupor nos primeiros séculos cristãos a teologia da união do
Pai e do Filho realizada no Espírito Santo, que se desenvolveu em tempos
posteriores e não deu lugar a qualquer alteração da táxis tradicional. A partir
da mediação de Cristo na economia salvadora (cf. U m 2,5), pôde-se chegar
já no próprio Novo Testamento à mediação criadora universal. De modo
semelhante, a partir da unção temporal do Filho encarnado que na força do
Espírito realiza sua missão e pode comunicar o Espírito Santo aos homens,
chegou-se, na reflexão da teologia anterior a Nicéia, à presença do Espírito no
Verbo para a mediação cósmica. Porém, a geração pelo Pai e essa unção com
o Espírito não se confundem. A atuação do Espírito Santo na geração eterna
do Filho parece, por conseguinte, ser desconhecida na tradição.
Não se mostrou que haja clareza suficiente na tradição para fundar estas
novas hipóteses. Neste caso, não se trata da nova descoberta de um ensinamento
esquecido; teremos de julgar o valor de cada conclusão segundo a solidez das
premissas em que se funda. A possível base econômica para a geração ex Patre
Spirituque ou in Spiritu não se mostrou tão segura quanto se poderia supor. A
atuação do Espírito em Jesus, desde o primeiro instante de sua vida humana
até a ressurreição, pressupõe a encarnação. Trata-se, seja como for, de uma
atuação sobre a humanidade do Verbo. E tudo isso em uma economia que se
realiza toda inteira “propter nos homines et propter nostram salutem”; somente
a partir deste pressuposto Jesus necessita da unção do Espírito. As idéias da
“precedência” do Espírito sobre o Filho na economia e na ação do Espírito na
geração eterna deste último não encontra razões claras em seu favor.

B. A relação paterno-filial no Espírito Santo


Contudo, nem por isso, como já tivemos oportunidade de antecipar,
se há de excluir ou desautorizar estes propósitos recentes. Na economia da
salvação, Deus é realmente revelado, embora saibamos da dificuldade de trans­
por para sua vida eterna tudo quanto aparece em sua revelação aos homens.
Realizou-se um esforço notável na teologia católica dos últimos tempos para
avaliar a importância que representa a presença do Espírito na vida de Jesus.

214
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

Neste ponto, podemos contar com resultados adquiridos, além da discussão


sobre pontos ou aspectos concretos127. Algo nos revela essa presença sobre
a vida eterna de Deus. Jesus realiza no Espírito sua vida humana de obedi­
ência ao Pai. Podemos pensar que esse fato está em correlação com a vida
da Trindade imanente. Tem o Espírito uma função na unidade do Pai e do
Filho na vida eterna de Deus? A doação do Espírito pelo Pai e Jesus depois
da ressurreição deste mostra certamente a unidade de ambos, é talvez a prova
mais evidente dela. Somente sendo Jesus perfeitamente uma só coisa com o
Pai (cf. Jo 10,30) pode o Espírito de Deus ser também o de Cristo (cf. Rm
8,9). Podemos nós passar dessa manifestação à vida imanente da Trindade?
Afirmar certa vinculação do Pai e do Filho encarnado “no Espírito” não parece
errado, de modo algum. À intervenção do Espírito na concepção virginal de
Jesus está ligada sua filiação divina. A proclamação de Jesus como Filho e a
efusão do Espírito sobre ele acontecem juntas no momento do batismo do
Jordão (inclusive em Jo 1,32-34). A solene invocação de Deus como Pai no
hino de júbilo está ligada à exultação “no Espírito”. Digamos o mesmo da
constituição de Jesus como Filho de Deus em poder na ressurreição dentre
os mortos. Por conseguinte, existem, ao que parece, sólidos fundamentos na
economia da salvação que, sem necessidade de nos introduzir em seus desíg­
nios — não isentos de dificuldades — , de alterar ou de “ equilibrar” a ordem
tradicional das precedências, nos permitem afirmar em termos mais genéricos
e mais sóbrios que o Pai e o Filho o são “no Espírito Santo”. A expressão é
usada pela declaração do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos de
13 de setembro de 1995 sobre as diferenças entre as teologias grega e latina em
relação à processão do Espírito Santo128. Faz-se necessário dedicar um pouco
de atenção a este importante texto.
Evidentemente, a declaração não pretende oferecer uma solução definitiva
a um problema histórico e especulativo de tamanha envergadura. A finalidade

127. Cf. L. F. LADARIA, El Dios vivo y verdadero, 58-72; M. BORDONI, El Espíritu Santo
y JesúSy 17-29.
128. Publicada em UOsservatore Romanoyem 13 de setembro de 1995; o original em francês
tem como título Les traditions grècque et latine sur la procession de TEsprit Saint. Texto em
espanhol: Las tradiciones griega y latina referentes a la procesión dei Espíritu Santo, Diálogo
Ecuménico 33 (1998) 139-150 (citaremos por esta tradução). A declaração assinala a base
“econômica” da expressão a que acabamos de nos referir, recordando, entre outras, algumas
das passagens bíblicas a que aludimos acima. E acrescenta: “Esta função do Espírito no mais
íntimo da existência humana do Filho de Deus feito homem deriva de uma relação trinitária
eterna, com a qual o Espírito caracteriza, em seu mistério de Dom de amor, a relação entre o
Pai e seu Filho predileto, como fonte de amor” (150).

215
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

primordial é assegurar que também para a teologia católica o Pai é a única fonte
da divindade, e que a doutrina da processão do Espírito também do Filho não
afeta este princípio fundamental. Ao mesmo tempo, constitui preocupação do
documento mostrar que, na teologia do Oriente e do Ocidente, com matizes
diversos, procurou-se manter o caráter “ trinitário” das relações entre as pes­
soas divinas. O Espírito Santo tem a mesma dignidade que o Pai e o Filho, a
relação das duas primeiras pessoas com ele é tão importante quanto a que une
o Pai e o Filho entre si. Não podemos pensar que a relação paterno-fdial esteja
perfeitamente realizada e aperfeiçoada sem a terceira pessoa. O Espírito não
pode existir sem o Pai e o Filho, porém o Pai e o Filho também não podem
ser tais sem o Espírito Santo. Afirmar o contrário equivale a pensar que não
^existe reciprocidade nas relações trinitárias. Não se trata apenas do fato de
que a geração do Filho e a processão do Espírito sejam igualmente eternas.
Mantendo a táxis, haverão de ser vistas também as implicações das duas. A
“ precedência” da geração não significa que a processão do Espírito não deva
segui-la necessariamente, antes é o contrário o que se há de sustentar; por
conseguinte, não podemos considerar a própria geração sem relação com
a processão do Espírito. Assim sendo, a doutrina latina do Filioque, desde
que situada em um contexto justo, não leva a uma subordinação do Espírito
Santo na Trindade129130. A relação paterno-filial não pode estar perfeitamente
caracterizada e completada sem a terceira pessoa, de tal maneira que o Pai e
o Filho não podem “prescindir” do Espírito. Segundo a tradição, não existe
uma “fecundidade” interna do Espírito; isto, porém, de modo algum pode
implicar inferioridade ou mera passividade no seio da vida divina, como se a
fecundidade fosse a única função ativa possível do Espírito ad intram. A ele se
deve a caracterização “trinitária” da relação Pai-Filho, o que equivale a dizer
a perfeição e a consumação da mesma, que não pode existir à margem deste
caráter trinitário. A declaração a que nos referimos assim se expressa:

129. Cf. Las tradiciones..., 147. H. U. von Balthasar funda precisamente no caráter “trini­
tário” que devem ter todas as relações sua defesa da doutrina da processão do Espírito do Pai
e do Filho; cf. Theologik //, 189-200.
130. C f, a propósito desta questão (e sobre a declaração em seu conjunto), J.-M. GARRIGUES,
La clarification sur la procession du Saint-Esprit et l’enseignement du concile du Florence,
Irénikon 68 (1995) 501-506; ID., À la suite de la clarification romaine: le Filioque affranchi
du “filioquisme”, Irénikon 69 ( 1996) 189-212; ID., À la suite de la clarification romaine sur le
Filioque, Nouvelle Revue Théologique 119 (1997) 321-334. D. DEL CURA ELENA, Espiritu de
Dios, Espiritu de Cristo: una pneumatología trinitaria, 155-157. Sobre algumas reações ortodoxas
à Declaração, cf. L. LIES, Derzeitige ökumenische Bemühungen um das Filioque, Zeitschrift für
katholische Theologie 122 (2000) 317-353; B. OBERDÖRFER, Filioque. Geschichte und Theologie
eines ökumenischen Problems, Göttingen, 2001, 532-545.

216
O ESPIRITO DO PAI E DO FILHO

De modo semelhante, inclusive se na ordem trinitária o Espírito Santo é conse­


cutivo à relação entre o Pai e o Filho, já que tem sua origem do Pai enquanto
Pai do Filho único, é no Espírito Santo onde esta relação entre Pai e Filho
alcança ela própria sua perfeição trinitária. Do mesmo modo que o Pai se
caracteriza como Pai pelo Filho a quem ele gera, igualmente o Espírito Santo,
tendo do Pai sua origem, caracteriza-o de maneira trinitária em sua relação
com o Filho, e caracteriza o Filho de maneira trinitária em sua relação com o
Pai: na plenitude do mistério trinitário, são Pai e Filho no Espírito Santo.
O Pai não gera o Filho senão espirando... por meio dele o Espírito Santo, e
o Filho não é gerado pelo Pai senão na medida em que a espiração... passa
através dele. O Pai não é Pai do Filho único senão sendo para ele e por meio
dele a origem do Espírito Santo.
O Espírito não precede o Filho, já que o Filho caracteriza como Pai o Pai de
quem o Espírito tem sua origem, o que constitui a ordem trinitária. Todavia,
a espiração do Espírito a partir do Pai faz-se por meio e através da (são os
dois sentidos de õiá em grego) geração do Filho a quem caracteriza de ma­
neira trinitária131.

Na seqüência, indica-se com precisão em que consiste o caráter trinitário


com que a pessoa do Espírito Santo contribui para a relação entre o Pai e o
Filho. É a função original do Espírito na economia, em relação com a missão
e a obra do Filho. Se o Pai é o amor em sua fonte e o Filho é o amado do Pai,
o Filho de seu amor (cf. Cl 1,13), o Espírito Santo é o amor (cf. Rm 5,5)132.
O Espírito Santo caracteriza trinitariamente a relação entre o Pai e o Filho
enquanto é o amor mútuo dos dois, o amor no qual só pode ter lugar a rela­
ção Pai-Filho. Neste sentido, conservando-se intacta a táxis, as três pessoas se
contemplam na unidade e na reciprocidade das relações mútuas, e o Espírito
Santo não fica deslocado nem relegado a um segundo momento133. Somente
enquanto unidos no Espírito, no amor e na expressão no fruto do Espírito o
Pai e o Filho podem ser tais. Não se pode pensar que o Pai e o Filho existam

131. Las tradiciones...y 147-148.


132. Ibid. 149. A Declaração torna-se, assim, eco da tradição agostiniana que caracteriza as
três pessoas como o amante, o amado e o amor; cf. AGOSTINHO, Trin. VI 5,7 (CCL 50,236):
“unus diligens eum qui de illo est, et unus diligens eum de quo est, et ipsa dilectio”; VIII 10,14
(291): “Ecce tria sunt, amans et quod amatur et amor”; cf. também IX 2,2 (294s); XV 3,5
(465); 6,10 (472). Para Agostinho, isto é a conseqüência da definição de Deus como amor que
encontramos em 1 João 4,8.16; cf. os dois últimos textos.
133. É preciso reconhecer que esta é uma preocupação muito legítima dos teólogos a quem
nos referimos; toda reflexão trinitária deverá ter presentes estes problemas e deverá empenhar-
se em dar-lhes uma solução.

217
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

sem estar unidos no amor mútuo do Espírito Santo. A presença do Espírito


como amor do Pai e do Filho não aparece diretamente no Novo Testamento.
Não faltam, porém, pontos de partida que legitimam os desenvolvimentos de
santo Agostinho. Já nos referimos às passagens neotestamentárias em que a
existência filial de Jesus (e, conseqüentemente, sua relação com o Pai) é vista
em conexão com a presença, nele, do Espírito Santo. Se essa vida filial de
Jesus não se entende sem o Espírito, podemos, portanto, inferir que esse fato
corresponde a alguma realidade na Trindade imanente.
O Pai é o princípio e a fonte de toda a divindade. Isso, no entanto, não
significa que possa existir sem o Filho. Não pode ser amor fontal sem aquele
a quem comunica tudo sem reservas. O Pai é ao mesmo tempo princípio do
Espírito Santo. Devemos pensar que também essa relação pertence a seu ser. Há
uma relação do Pai com o Espírito Santo, que devemos considerar da mesma
importância que a primeira134. Algo semelhante devemos dizer do Filho. Não
podemos pensar que este seja constituído como pessoa somente por sua relação
com o Pai. Esta, sem dúvida, o caracteriza como Filho, porém, nesta caracteri­
zação, deve estar implícita uma relação com o Espírito. É igualmente essencial
a relação com o Espírito Santo, se não queremos que este ocupe uma posição
subordinada. Todavia, assim como essa reciprocidade não nos faz mudar a
ordem na relação Pai-Filho, não há razão alguma para que a tenhamos de
mudar nas relações Filho-Espírito. A doutrina agostiniana do Espírito como
amor do Pai e do Filho, que tanta influência teve no Ocidente135, oferece um
caminho para considerar a reciprocidade trinitária das relações divinas. Sem
esse amor que há entre ambos, o Pai e o Filho não podem ser tais. O Pai não
existe nem pode existir sem a doação total ao Filho, nem o Pai nem o Filho
podem existir sem a doação total ao Espírito Santo, o amor em que se unem
e o fruto desse mesmo nome. Se consideramos nas processões divinas a total
doação amorósa, não existe perigo de que a táxis se converta em subordinação.
Já o vimos em alguns exemplos da antiga teologia a propósito do Pai e do
Filho. O Pai gera o Filho e essa ordem não pode ser mudada, porém o Filho,
pelo fato de ser gerado, consuma e aperfeiçoa o Pai, que só é enquanto gera

134. TOMÁS DE AQUINO, STh 1 32,2: “ ... una persona invenitur in divinis referri ad duas
personas, scilicet persona Patris ad personam Filii et personam Spiritus Sancti. Non autem una
relatione: quia sic sequeretur quod etiam Filius et Spiritus Sanctus una et eadem relatione refer -
rentur ad Patrem; et sic... sequeretur quod Filius et Spiritus Sanctus non essent duae personae”;
ibid.: “unde secundum duas relationes Filii et Spiritus Sancti quibus referuntur ad Patrem,
oportet intelligi duas relationes in Patre, quibus referatur ad Filium et Spiritum Sanctum”.
135. E à qual também o Oriente não está completamente alheio. Cf. a passagem de são
Gregório Palamas, citada na nota 11 da declaração de que estamos tratando.

218
o espírito do pai e do filho

o Filho, Deus igual a ele. Nada nos impede, ou melhor, tudo nos recomenda
que apliquemos também à processão do Espírito um esquema semelhante. O
Pai não é Pai sem o Filho e ambos não são Pai e Filho sem o Espírito entre
ambos, o amor unitivo dos dois. A ordem tradicional apóia-se no fato de que
a Escritura nos fala do Espírito do Filho, porém não nos diz que o Filho seja
do Espírito, como nos diz que é de Deus ou do Pai136.
Outros dados da Escritura concordam com este. Encontramos no Novo
Testamento a missão do Espírito por parte do Filho, mas não que o Filho tenha
sido enviado pelo Espírito137. A ação do Espírito sobre Jesus nos evangelhos, que
o impele ao deserto etc., não tem as características de um envio propriamente
como tal. Somente o Pai enviou Jesus ao mundo. Em contrapartida, segundo
alguns textos do Novo Testamento (cf. Jo 15,26; Jo 20,22; Lc 24,49; At 2,33) o
Espírito Santo é dado ou enviado por Jesus ressuscitado, e é enviado também
pelo Pai em nome de Jesus, o Filho (cf. Jo 14,26). Em contrapartida, não se
diz que o Espírito envie o Filho ou que este seja enviado em nome do Espírito
Santo138. Estes dados da economia da salvação têm sua grande significação e
não podem ser deixados de lado. A teologia latina tem precisamente neles sua
base da processão do Espírito Santo do Pai e do Filho. Todavia, previamente
a este passo está o da constatação de que o Espírito, no Novo Testamento, é
considerado o Espírito de Deus Pai e também o Espírito do Filho, dado que a
tradição manteve139. Precisamente para justificar o que é dos dois, Agostinho
chegou à formulação de seu conhecido ensinamento da processão do Espírito
do Pai e do Filho140. Agostinho não pode pensar como o Espírito Santo é real­

136. GREGÓRIO DE NISSA já notou o fato, In orationem dominicam, fragmento citado por
João Damasceno (PG 46,1109); cf. Las tradiciones.. 1 4 8 , nota 9, onde é citada, além disso, outra
passagem de são Máximo, Confessor: assim como não se pode dizer que a palavra é da voz, não
se pode dizer que o Verbo é do Espírito; Quaestiones et Dubbia (PG 90,813). AGOSTINHO,
Trin. V 12,13 (CCL 50,220): “Item dicimus spiritum sanctum filii, sed non dicimus filium
spiritus sancti ne pater eius intelligatur spiritus sanctus”.
137. Neste sentido, já fizemos referência a alguns textos que não parecem ter peso para
alterar a linha predominante da tradição, fundada no Novo Testamento.
138. Cf. R. CANTALAMESSA, “ Utriusque Spiritus”, 480-481.
139. Cf. HILÁRIO DE POITIERS, Trin. VIII 21.26 (CCL 62A,334; 337-338); ATANÁSIO,
Ad Serap. I 25,32 (PG 26,589; 605); III (625); IV 4 (641); CIRILO DE ALEXANDRIA, In Joh. IX
(PG 74,257); AGOSTINHO, Trin. V I 4,7 (CCL 50,35); 8,18 (52); IV 20,29 (199); V 11,12 (219);
XV 26,45.47 (525.529) etc. Do Espírito dos dois “utriusque Spiritus”, fala também o hino “Veni
Creator” . Estas formulações como Espírito do Pai e do Filho, Espírito dos dois, são desenvolvi­
mento dos dados da Escritura, porém não se encontram literalmente no Novo Testamento.
140. AGOSTINHO, Trin. IV 20,29 (199): “nec possumus dicere quod spiritus sanctus et a
filio non procedat; neque enim frustra idem spiritus et patris et filii dicitur”; XV 26,45 (524):
“... et postea de ambobus processerat spiritus sanctus quoniam scriptura sancta spiritum eum
dicit amborum”.

219
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

mente do Filho se não procede também dele. Que o Espírito seja próprio do
Filho é ensinamento também dos Padres gregos141. Não encontramos termos
equivalentes ou semelhantes que se refiram ao Filho em sua relação com o
Espírito. Se não vemos razão para alterar a ordem das pessoas, isso não significa
que o Espírito Santo ocupe um lugar secundário nas relações intratrinitárias.
O Pai só possui a essência divina enquanto a comunica ao Filho, o Pai e o
Filho só a possuem enquanto se unem em seu amor mútuo que é o Espírito
Santo, que é por sua vez a comunhão dos dois e o fruto dela.
A doutrina agostiniana do Espírito como o amor e a comunhão do Pai
e do Filho, como insinua a declaração, pode ajudar-nos a descobrir o caráter
trinitário com que a pessoa do Espírito Santo contribui para a relação entre
o Pai e o Filho. Vale a pena deter-nos brevemente neste ponto. Com efeito,
para Agostinho, o Espírito é ao mesmo tempo a comunhão e o amor do Pai
e do Filho:
Seja como for, o Espírito Santo é, por conseguinte, algo comum ao Pai e ao
Filho, ou esta mesma comunhão consubstanciai e coeterna. Se, de maneira
conveniente, pode ser chamada amizade, assim seja chamada. Todavia, é mais
adequado o nome de amor [caritas]. E este é também uma substância e Deus
é amor, como está escrito (cf. ljo 4,8.16)142.

O Espírito Santo é algo comum ao Pai e ao Filho, e este algo comum é,


definitivamente, a comunhão eterna identificada com a caridade. Indicou-se
anteriormente que o Espírito Santo é aquele em quem um e outro se unem,
no qual o Pai ama o Filho e aquele que foi gerado ama quem o gera143. Assim,
o Pai e o Filho não se unem por um deles dois, tampouco por uma autoridade
que lhes seja superior, mas pelo Espírito que não lhes é alheio144. A doação
deste Espírito em comum, que para Agostinho, como sabemos, leva à idéia
da processão em comum, favorece também a concepção do Espírito como

141. Cf. ATANÁSIO, textos citados na nota 139; CIRILO DE ALEXANDRIA, In ]oh. V (PG
73,753); De Sanctissima Trinitate Dial. VI (PG 75,1056).
142. Trin. VI 5,7 (235); cf. todo o contexto; não podemos nos deter na análise de todos os
pormenores. E também XV 27,50 (532): “communio quaedam consubstantialis”.
143. Trin. VI 5,7 (235): “ Siue enim sit unitas amborum siue sanctitas siue caritas, siue ideo
unitas quia caritas et ideo caritas, quia sanctitas, manifestum est quod non aliquis duorum
est quo uterque coniungitur, quo genitus a gignente diligatur generatoremque suum diligat”;
a idéia da unidade do Pai e do Filho no Espírito aparece também em Trin. IV 9,12 (177); VI
9,10 (239); VII 3,6 (254); VIII 8,12 (286-287); Sermo 212,1 (SCh 116,180).
144. Trin. VI 5,7 (235): "... sintque non partecipatione sed essentia neque dono superioris
alicuius sed suo próprio seruantes unitatem spiritus in uinculo pacis”. O dom do Espírito não
se refere apenas à Trindade econômica, mas também à Trindade imanente.

220
o espírito do pai e do filho

comunhão e amor dos dois, um a comunhão que só se pode realizar nesta


processão e doação. O Espírito Santo é comum aos dois, e enquanto é dos
dois é chamado propriamente amor, caritas, que une o Pai ao Filho: “ E se
é amor [caritas] com o qual o Pai ama o Filho e o Filho ama o Pai, mostra
de maneira inefável a comunhão dos dois, o mais conveniente será que seja
chamado propriamente amor aquele que é o Espírito comum a am bos” 145.
Agostinho vê a idéia da comunhão expressa também no fato de que o nome
do Espírito Santo, que a terceira pessoa tem como próprio, convém também
ao Pai e ao Filho. Assim, o dom dos dois significa sua comunhão; esta se ex­
pressa no nome próprio do Espírito Santo, que pode ser comum a todas as
pessoas146. E enquanto o Espírito, dom dos dois, participa da mesma natureza
divina do Pai e do Filho é definido, como já sabemos, como a comunhão
consubstanciai dos dois147. O Espírito Santo é a comunhão entre o Pai e o
Filho e o amor de ambos. Porém, não é só o amor com que ambos se amam,
mas ao mesmo tempo o amor que procede desta comunhão: “Veremos assim
também o Deus Trindade, ao contemplá-lo com a inteligência como a quem
fala e à sua palavra, isto é, ao Pai e ao Filho, e ao am or que deles procede [inde
procedentem caritatem], a saber, o Espírito Santo comum a ambos?” 148.

145. Trin. XV 19,37 (513); XV 17,27 (501): “Qui spiritussanctum secundum scripturas sanctas
nec patris est solius nec filii solius sed amborum, et ideo communem qua inuicem se diligunt pater
et filius nobis insinuat caritatem”. Nas duas ocasiões em que Agostinho afirma no de Trinitate
que o Espírito Santo procede “príncipaliter” do Pai, a idéia se une com a doação, ao Filho, da
possibilidade de que o Espírito seja comum aos dois e, como tal, proceda como dom comum:
Trin. XV 17,29 ( 503-504): . in hac trinitate non dicitur uerbum dei nisi filius, nec donum dei
nisi spiritus sanctus, nec de quo genitum est uerbum et de quo procedit príncipaliter spiritus
sanctus nisi deus pater. Ideo autem addidi príncipaliter, quia et de filio spiritus sanctus procedere
reperietur... Sic ergo eum genuit ut etiam de illo donum commune procederet, et spiritus sanctus
esset amborum”; XV 26,47 (529): “Filius autem de patre natus est, et spiritus $anctus de patre
príncipaliter, et ipso sine ullo temporis interuallo dante, communiter de utroque procedit”.
146. Ibid. V 11,12 (219): “Ergo spiritus sanctus ineffabilis quaedam patris et filii communio,
et ideo fortasse sic appellatur quia patri et filio potest eadem appeilatio conuenire... Ut ergo ex
nomine quod utrique conuenit utriusque communio significetur, uocatur donum amborum
spiritus sanctus” . J. RATZINGER, Der Gott Jesu Christi. Betrachtungen über den Dreieinigen
Gott, München, 1976,89: “Este nome da terceira pessoa... não expressa algo específico, mas sim
nomeia o que é comum em Deus. Porém, precisamente aí, ressoa o que é ‘próprio’ da terceira
pessoa: é o que é comum, a unidade do Pai e do Filho, unidade em pessoa. O Pai e o Filho são
uma só coisa um com o outro na medida em que vão mais além deles mesmos; no terceiro, na
fecundidade da doação, são um”; ibid. 90-91: “O Pai e o Filho são o movimento do puro dar-se,
da pura entrega de um para o outro. Neste movimento são fecundos, e esta fecundidade é sua
unidade, seu pleno ser um”; cf. também ibid. 28, citado na nota 237 do capítulo 2.
147. Cf. a nota 142.
148. Trin. XV 6,10 (473).

221
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Santo Agostinho não irá desenvolver mais este motivo da caritas procedens.
Entretanto, a intuição não deixa de ser interessante. O Espírito Santo é o amor
e a comunhão do Pai e do Filho, porém, ao mesmo tempo e inseparavelmen­
te, é o am or que procede da comunhão dos dois. Assim sendo, convém ao
Espírito Santo o nome do amor que é comum a toda a Trindade, todavia com
a conotação própria de sua pessoa, do “ amor que procede”. Assim, o Pai e o
Filho amam-se no Espírito que deles procede149.
A doutrina do Espírito como amor e comunhão concebida por Agostinho
pressupõe a dualidade pessoal do Pai e do Filho. Só no Espírito comum, amor
e comunhão, existem o Pai e o Filho. Na doação mútua espiram o Espírito,
amor procedente. Não se pode dizer que, segundo Agostinho, a processão
do Espírito do Pai e do Filho aconteça simplesmente enquanto os dois são
um150. O Pai e o Filho amam-se e estão em comunhão enquanto se dá neles a
distinção pessoal. Segundo o próprio Agostinho, o amor pressupõe ao menos
a dualidade151. A comunhão tem sua origem no Pai, que gera o Filho de tal
maneira que o Espírito possa ser comum dos dois. Enquanto princípio de
toda a divindade, o Pai é o princípio do amor e da comunhão no Espírito
Santo. Enquanto é o amor que procede, também o Espírito Santo entra na
comunhão do Pai e do Filho. A comunhão das três pessoas e o primado do
Pai não só não são contraditórios, mas também se implicam. Nesta doutrina
se dá ênfase à comunhão das pessoas e, conseqüentemente, à reciprocidade
das relações trinitárias152. Pelo que acabamos de dizer, esta reciprocidade, em
si, não tem por que comprometer as propriedades pessoais de cada uma das
pessoas divinas. O amor do Pai e do Filho será sempre o amor entre quem
dá e quem recebe, quem é origem e quem é resposta. O amor dos dois que
se expressa e tem como fruto o Espírito Santo procede assim também princi-

149. Não é o momento de entrar na dificuldade que significa para o pensamento de Agostinho
a afirmação de que o amor do Pai e do Filho se dá no Espírito, quando o Pai não pode ser sábio
pela sabedoria que é o Filho. Na Idade Média, constatou-se a dificuldade; se o Pai e o Filho se
amam no Espírito Santo, recebem dele o ser. São as interpretações que de algum modo vimos
reproduzidas nos últimos tempos. PEDRO LOMBARDO, Sent I d. 32 c. 6, vê o problema e
não encontra solução. RICARDO DE SÃO VÍTOR aproxima-se mais da intuição agostiniana
em seu breve escrito Quomodo Spiritus Sanctus est amor Patris et Filii (PL 196,1011-1012), na
medida em que vè que se amam no Espírito porque este procede deles: “ Pater Spiritu sancto
diligere dicitur... quod Pater eam dilectionem qua Filius diligitur et Spiritus sanctus est spirat,
et illius auctor et origo exsistat”. Embora com ulteriores distinções, as quais não abordaremos,
moveu-se nesta linha também santo Tomás. Cf. a continuação do texto.
150. Cf. os textos mencionados nas notas 142 e 145.
151. Trin. VIII 10,14 (290): “Quid est ergo amor nisi quaedam uita duo aliqua copulans uel
copulari appetens...?”; cf. também VIII 8,12 (287); DC 2,11 (294) XI 2,2 (335).
152. Bem observado por B. OBERDORFER, Filioque, 113s.

222
o espírito do pai e do filho

paliter do Pai, não só porque este dá ao Filho o poder de gerar, mas também
porque é a fonte do amor do Filho de seu amor153. Com efeito, o amor de
Jesus pelo Pai manifesta-se no fazer o que lhe mandou realizar: “Ele vem a
fim de que o mundo saiba que amo o Pai e ajo conforme o Pai me prescre­
veu” (Jo 14,31).
Embora em uma medida menor, santo Tom ás tam bém seguiu, em
alguns aspectos de seu pensamento, uma linha semelhante. Também ele se
pergunta se o Pai e o Filho se amam no Espírito Santo154. Sua resposta deve
ser necessariamente diferenciada, conforme os sentidos que o ablativo “Spiritu
Sancto” pode ter. Porque, se o consideramos no sentido causal, é claro que
não é possível. Parece que a ordem das processões o impede. Por outro lado,
enquanto o amor divino é tomado essencialmente, o Pai e o Filho se amam em
virtude de sua essência comum. Existem, porém, outras maneiras de entender
o ablativo. Este pode ser entendido no sentido do efeito, porque algumas ve­
zes algo é nomeado segundo o efeito que produz; a árvore floresce nas flores.
Com relação a esta constatação, Tomás assinala que, em seu sentido de noção,
amar é espirar amor. Do mesmo modo que se diz que o Pai fala mediante o
Verbo ou o Filho, assim igualmente o Pai e o Filho se amam no amor que
procede, e no mesmo amor nos amam também a nós155. Como se relacionam
o nível essencial e o de noção? Existe, acaso, um duplo amor do Pai e do
Filho, por um lado em virtude de sua essência, por outro no Espírito Santo?
Provavelmente não será fácil encontrar uma resposta evidente a esta questão.
Creio, porém, que há boas razões para pensar que “o Pai e o Filho se amam
em virtude de seu ser essencialmente amor, porém este ser amor, na medida em
que é consumado por sujeitos que existem em relação, une-se sempre com a
relação da espiração ativa e recebe assim um caráter nocional. O ato de amor
interpessoal acontece em Deus ‘desde o princípio’ como espiração do Espírito
e assim se consuma somente no Espírito Santo que procede. Os dois aspectos

153. Cf. AGOSTINHO, Contra Maximinum II 17,4 (PL 42,784), que faz a distinção entre o
ser "princípio” próprio do Pai e o próprio do Filho; o Pai é “principium non de principio”, o
Filho “principium de principio”. É claro que algumas destas reflexões podem ser feitas a partir
de santo Agostinho, o que não quer dizer necessariamente que o próprio Agostinho as tenha
considerado.
154. Cf. STh I 37,2.
155. Ibid.: “Sicut ergo dicitur arbor florens floribus, ita dicitur Pater dicens Verbo sed Filio,
se et creaturam; et Pater et Filius dicuntur diligentes Spiritu Sancto, vel amore precedente, et se
et nos”; ibid. ad. 2: “Et similiter diligere, prout notionaliter sumitur, est producere amorem.
Et ideo potest dici quod pater diligit Filium Spiritu Sancto, tamquam persona procedente, et
ipsa dilectione, tamquam actu notionali”. Ê clara a influência de Agostinho na definição do
Espírito Santo como amor que procede.

223
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

estão unidos de tal maneira que se deve dizer que o amor mútuo do Pai e
do Filho é a processão do Espírito Santo, e vice-versa. Todo o amor divino,
incluindo o amor de cada uma das pessoas divinas a si mesma e às criaturas,
acontece em e pelo Espírito Santo; poder-se-ia mesmo dizer: consuma-se como
processão do Espírito Santo” 156. Deste ponto de vista, entende-se como para
santo Tomás o Espírito Santo procede como amor unitivo do Pai e do Filho157.
E na mesma linha podem-se interpretar suas afirmações sobre o Espírito Santo
como nexus enquanto é o amor mútuo do Pai e do Filho158. No Espírito Santo
enquanto é amor, o Pai e o Filho gozam um ao outro159.
A idéia do Espírito como o amor em que se amam, e que une o Pai
ao Filho, e como o fruto deste amor dos dois, acham-se presentes em santo
Tom ás160, embora certamente não possamos falar de soluções satisfatórias
em todos os pontos. Sem o amor mútuo que é o Espírito Santo, o Pai e o
Filho não podem estar unidos, e, podemos acrescentar, se não estão unidos
não podem ser. A doutrina clássica do Espírito como amor do Pai e do Filho
oferece, creio, uma base nada desprezível para responder à preocupação legí­
tima de não relegar o Espírito Santo a um lugar secundário na vida imanente

156. H. CH. SCHMIDBAUR, Personarum Trinitas. Die trinitarische Gotteslehre des heiligen
Thomas von Aquin, St. Ottilien, 1995, 639.
157. STh I 36,4, o Pai e o Filho quanto à virtude espirante são um só princípio do Espírito
Santo, porém, ao mesmo tempo, este procede do Pai e do Filho enquanto são dois; “Si vero
considerentur supposita spirationis, sic Spiritus Sanctus procedit a Patre et Filio in quantum
sunt plures: procedit enim ab eis ut amor unitivus duorum”; ibid.: “Spiritus Sanctus procedit
a Patre et Filio ut sunt duae personae distinctae”; razão pela qual (ibid.) Tomás distingue entre
falar de “duo spiratores” (substantivo), expressão que não lhe parece adequada, uma vez que
são um só princípio do Espírito Santo e, portanto, há uma única espiração e “duo spirantes”
(adjetivo), mais correto, porque faz referência às duas pessoas que espiram; cf. também, sobre
a distinção do Pai e do Filho em relação com o Espírito, I 36,2, ad 4: “Dicitur etiam Spiritus
Sanctus in Filio quiescere, vel sicut amor amantis quiescit in amato, vel quantum ad humanam
naturam Christi...”. A herança de Agostinho é evidente.
158. Ibid. 137,1: “Spiritus Sanctus dicitur esse nexus Patris et Filii in quantum et am or... Sed
ex hoc ipso quod Pater et Filius se mutuo amant, oportet quod mutuus Amor, qui est Spiritus
Sanctus, ab utroque procedat”. Além do “nexus”, o Espírito Santo é também a “connexio”:
ibid. I 39,8. Ulteriores reflexões sobre estes temas serão encontradas em SCHMIDBAUR,
Personarum Trinitas..., 612-667. Cf. também R. SIMON, Das Filioquebei Thomas von Aquin.
Eine Untesuchung zur dogmengeschichtlichen Stellung, theologischen Struktur und ökumenis­
chen Perspektive der thomanischen Gotteslehre, Frankfurt am Main, 1994. Também para SÃO
BOA VENTURA, Breviloquium I 3,9, o Espírito Santo é o nexo e a caridade do Pai e do Filho.
159. Cf. ibid. I 39,8.
160. Cf., neste sentido, a análise de W. A. KEALY, The Holy Spirit Proceding as Mutual
Love: An Interpretation o f Aquinas “Summa Theologiae” I 37, Angelicum 11 (2000) 553-558.
O Espírito Santo, enquanto relação entre o Pai e o Filho (Amor), é uno em essência com eles;
enquanto procede do Pai e do Filho, é distinto deles (procedens).

224
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

de Deus. Não se trata, por certo, de afirmar que santo Agostinho ou santo
Tomás tenham respondido de m odo claro e unívoco ao problema que nos
propusemos. Todavia, algumas de suas afirmações dão ensejo a pensar que
o Pai e o Filho não possam ser perfeitamente caracterizados em sua relação
mútua sem a presença do Espírito Santo no qual se unem e se amam e que,
portanto, não podem alcançar sem o Espírito a plenitude de seu ser pessoal.
Evidentemente, é sempre mais difícil a caracterização das relações do Pai e
do Filho no que diz respeito ao Espírito Santo, e vice-versa, do que a relação
paterno-filial; para esta última, ajudam-nos os nomes bíblicos do Pai e do Filho,
que por sua vez deram lugar ao termo geração para caracterizar a processão
do Filho161. Na história do dogma e da teologia, as questões pneumatológicas
causaram e continuam causando mais problemas, e é natural que assim seja.
Na controvérsia sobre a processão do Espírito Santo, temos o exemplo mais
característico, embora não o único, dessa dificuldade.
Na seqüência, diremos alguma palavra sobre este assunto. Até este m o­
mento, porém, nosso propósito foi averiguar em que sentido a teologia clássica
do Ocidente encerra elementos que nos permitem afirmar que o Pai e o Filho
são tais no Espírito, sem necessidade de entrar em hipóteses sobre a geração
deste último que possam comprometer a ordem tradicional, e para as quais
parece não termos encontrado bases totalmente convincentes na economia
da salvação. Estas doutrinas de santo Agostinho e de santo Tomás, além de
seu grande valor intrínseco, são opiniões teológicas de grande autoridade que
encontraram eco, ainda que de modo discreto, em diferentes intervenções
magisteriais162, em dadas ocasiões relacionadas com a processão do Pai e do

161. O vocabulário é muito mais vago no que tange ao Espírito. O termo processão aplica-
se também ao âmbito da história da salvação; espiração é o termo mais característico, embora
tenha tardado em generalizar-se no vocabulário teológico latino; seu uso é muito escasso, por
exemplo, em santo Anselmo. Quanto ao mais, os nomes das duas primeiras pessoas fazem
referência a sua relação mútua, porém não diretamente à relação com o Espírito Santo.
162. Assim foi no concílio XI de Toledo: “simul ab utrisque processisse monstratur; quia
caritas sive sanctitas amborum esse agnoscitur” (DH 527); a idéia do amor dos dois combina-
se aqui com a processão; concílio XVI de Toledo: “ex Patris Filiique unione procedit”; LEÃO
XIII, enc. Divinum illus munus: "... non aliter ille, qui divina bonitas est ac Patris ipsa Filiique
inter se caritas” (DH 3326; cf. 1331); JOÃO PAULO II, enc. Dominum et Vivificantemy 10: “Na
sua vida íntima, Deus ‘é Amor’ (ljo 4,8.16), amor essencial, comum às três Pessoas divinas:
amor pessoal é o Espírito Santo, como Espírito do Pai e do Filho. Por isso, ele ‘perscruta as
profundezas de Deus* (ICor 2,10), como Amor-Domy incriado. Pode-se dizer que, no Espírito
Santo, a vida íntima de Deus uno e trino se torna totalmente dom, permuta de amor recíproco
entre as Pessoas divinas; e ainda que no Espírito Santo Deus ‘existe’ à maneira de dom. O
Espírito Santo é a expressão pessoal desse doar-se, desse ser-amor. É Pessoa-Amor. É Pessoa-
dom” (DH 4780).

225
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Filho, esta sim, como se sabe, freqüentemente afirmada (cf. DH 805; 850; 853;
1300-1302; 1330-1331, etc.). Não devemos esquecer a importância que esta
visão tradicional continua tendo na teologia católica atual. Não são poucos
os autores que vêem no Espírito com o fruto do amor do Pai e do Filho, por
um lado a pessoa que mostra o transbordamento de Deus para fora, porém,
ao mesmo tempo, a expressão da mais íntima vida do Deus amor163. Ao unir a
idéia do amor dos dois com a do fruto do amor (com o que a união é selada),
que víamos já presente no início, embora não muito desenvolvida, em santo
Agostinho (caritas procedem) e em santo Tomás (procedit utamor unitivus), de
alguma forma se encontra uma saída para o problema da subsistência própria
do Espírito em sua relação com o Pai e o Filho, que pode ficar desfigurada
se considerado somente o amor que une os dois ou esta mesma união. No
entanto, temos de ver ao mesmo tempo as duas dimensões do Espírito, como
amor mútuo e fruto do amor. Somente na medida em que o Espírito procede
de ambos o Pai e o Filho são uma mesma coisa, no Espírito dos dois mostra-
se de maneira eminente que tudo o que é do Pai é do Filho, e vice-versa. No
Espírito que deles procede, realiza-se e consuma-se a unidade dos dois, uma
unidade, como já dissemos repetidas vezes, na qual entra também, em con­
dições de igualdade, o Espírito Santo. Por outro lado, as relações entre o Pai
e o Filho e as que unem os dois com o Espírito não têm por que possuir as
mesmas características; cada uma das relações trinitárias, enquanto constitutiva
das pessoas, é irrepetível.
O problema do Filioque não foi diretamente nosso ponto central de
interesse nas reflexões precedentes, embora seja evidente que esteve presente
em toda a nossa exposição. A doutrina do Espírito como amor do Pai e do
Filho, tal como foi desenvolvida por Agostinho e por Tomás, está em íntima
relação com a da processão do Espírito, de tal maneira que ambas se impli­
cam mutuamente. Porém, em si, não está vinculada a uma concepção rígida
ou unívoca da processão do Espírito do Pai e do Filho. Levaria simplesmente
a postular uma intervenção do Filho ou uma relação essencial com ele na

163. Cf., além de outros autores, H. MÜHLEN, Der Heilige Geist als Person; 1D„ Una mystica
Persona; H. U. VON BALTHASAR, Theologik II. Die Wahrheit Gottes, 130; 140-142; Theologik
III. Der Geist der Wahrheit, 144-150; Y. CONGAR, El Espiritu Santo, Barcelona, 1983, 578-588;
W. KASPER, Der Gott Jesu Christi, 273-281 ; G. GRESHAKE, Der dreieine Gott. Eine trinitarische
Teologie, Freiburg/Basel/Wien, 1997,210-214; L. F. MATEO-SECO, Dios uno y trim, Pamplona,
1998,569-573; F. BOURASSA, Questions de théologie trinitaire, Roma, 1970,120-125; J. GALOT,
L’origine éternelle de L’Esprit Saint, Gregorianum 78 (1977), 501-522, espec. 517; ID., L’Esprit
Saint personne de communion, Saint Maur, 1977 etc.

226
O ESPIRITO DO PAI E DO FILHO

processão imanente do Espírito; as características desta intervenção ou desta


relação com ele poderiam, em grande medida, permanecer abertas164.
Faz-se necessário insistir em que o dom do Espírito, segundo o Novo
Testamento, é a obra conjunta do Pai e de Jesus, depois da glorificação deste.
Vem precisamente daí a doutrina ocidental da processão do Espírito do Pai
e do Filho. Uma vez mais, encontramo-nos na difícil passagem da Trindade
econômica para a Trindade imanente. Da processão do Espírito Santo do Filho
nada se diz na Escritura. Encontramos uma afirmação de sua processão do
Pai em João 15,26, porém esta passagem não tem de se referir necessariamen­
te à processão no seio da Trindade imanente, mesmo que assim tenha sido
interpretada desde épocas remotas. A legitimidade do caminho da missão do
Espírito para a processão é posta em dúvida pela teologia ortodoxa, que teme a
ocorrência no Espírito, dessa maneira, de uma excessiva dependência de Cristo,
com as conseqüências eclesiológicas do primado da instituição sobre o carisma.
Não parece que deva ser necessariamente assim, se considerada a reciprocidade
das relações trinitárias. Quanto ao mais, também a partir da missão do Filho
pelo Pai e da sua geração na ressurreição, chegou-se à idéia da geração eterna
que encontrou acolhida nos antigos símbolos. Da parte católica, também H.
U. von Balthasar põe dificuldades nesta passagem da economia para a teolo­
gia165. Se da parte latina acentua-se a doação do Espírito por parte de Jesus
ressuscitado, da parte grega acentua-se a descida do Espírito sobre Jesus no
Jordão. De ambas as partes, segundo Von Balthasar, seria cometido o mesmo
erro de passar da economia à teologia166. Entretanto, se não é a economia o
que nos conduz à teologia, não existe caminho algum para chegar a esta; toda
especulação carece de base. É evidente que devemos dar um valor de revelação
de Deus a todos e cada um dos momentos da vida de Cristo, porém esses
momentos já estão articulados a partir dó Novo Testamento. A vida de Jesus

164. É interessante a posição de W. PANNENBERG, Teologia sistemática I, 342-344, que


aceita a doutrina agostiniana do Espírito çomo amor do Pai e do Filho, ao passo que nos evangelhos
a razão da união de Jesus com o Pai consiste no fato de que está cheio do Espírito de Deus;
não aceita, porém, a posição de Agostinho na doutrina da processão; já sabemos como, para
Pannenberg, não hão de ser pensadas exclusivamente enquanto relações de origem (capítulo 3).
Cf. também a proposta de B. OBERDORFER, Filioque, 585-591. Do ponto de vista da teologia
ortodoxa, B. BOBRINSKOY também considera positivamente a idéia do Espírito como amor
do Pai e do Filho; cf. Le Mystère de la Trinité. Cours de théologie orthodoxe, 304; cf. ibif. para
sua posição sobre o Filioque.
165. Cf. Theologik III. Der Geist der Wahrheit, 192.
166. Ibid.; Von Balthasar alude aqui ao problema da inversão trinitária que já conhecemos.
É evidente que, com esta base, cria-se um difícil acesso à processão do Espírito Santo também
do Filho ou mediante o Filho.

227
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

sob a ação do Espírito enviado pelo Pai fala-nos do primado do Pai em toda
a economia da salvação e, portanto, permite-nos chegar à conclusão de que
o Pai é a única fonte e princípio de toda a divindade. A presença do Espírito
em Jesus permite-nos afirmar que este é Filho no Espírito; por conseguinte,
o Espírito Santo não é alheio à relação paterno-filial. Já indicamos que se­
gundo testemunhos explícitos de diversos Padres do Oriente e do Ocidente o
Espírito vem sobre Jesus enquanto é homem, vem sobre o Filho encarnado;
a unção pressupõe a encarnação, mesmo que não possa ser reduzida a algo
acidental ou secundário para a vida do Senhor. Por iniciativa do Pai, Jesus
ressuscita também graças à intervenção do Espírito Santo. Exaltado à direita
do Pai, infunde o Espírito juntamente com este. Já conhecemos as diferentes
variantes e os diversos matizes que se encontram no Novo Testamento sobre
a intervenção do Pai e do Filho nesta doação. O Espírito Santo, o Espírito de
Deus, sem deixar de ser tal, pode ser agora chamado também o Espírito
de Jesus, de Cristo, do Filho, de Jesus Cristo. Como tal é infundido em nossos
corações (cf. G1 4,6), para que possamos ser filhos de Deus (cf. G1 4,6; Rm
8,14-17). É injustificado afirmar que esses dados da economia devem cor­
responder de algum modo à Trindade imanente, e que, portanto, algo dela
se nos revela quando Jesus glorificado dá o Espírito juntamente com o Pai e
dizemos que este Espírito é também do Filho ou que é “próprio” dele? Por
outro lado, também se há de ter presente que Jesus glorificado dá o Espírito
Santo enquanto o recebeu em sua humanidade, não só durante o tempo de
sua vida mortal, mas também na ressurreição (At 2,33: “Exaltado assim pela
destra de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e o derramou,
como estais vendo e ouvindo” ). Segundo as conhecidas passagens do quarto
evangelho, o Pai dá o Espírito porque Jesus o pede para si (cf. Jo 14,16; cf.
14,26, o Pai envia o Espírito em nome de Jesus), ou Jesus o envia de junto
ao Pai (parà; cf. Jo 15,26), porém não encontramos as fórmulas inversas. Se
não existem razões que nos obriguem a deter-nos no meramente econômico
no que se refere ao fato de que o Espírito é do Pai e do Filho e é dado pelos
dois, tampouco o principaliter deve ser minimizado. A reflexão sobre o Pai
fons et origo de toda a divindade não pode ser deixada de lado quando se trata
da processão do Espírito Santo167.

167. Esta preocupação está claramente presente na declaração do PONTIFÍCIO CONSELHO


PARA A UNIDADE DOS CRISTÃOS, Las tradiciones...y 140: “Somente o Pai é o princípio
sem princípio... das outras duas pessoas trinitárias, a fonte única... tanto do Filho quanto do
Espírito Santo. O Espírito Santo tem, portanto, sua origem só do Pai... de maneira principal,
própria e imediata... Neste sentido, portanto, as duas tradições reconhecem que a ‘monarquia
do Pai’ implica que o Pai seja a única Causa... trinitária ou princípio... do Filho e do Espírito

228
0 ESPIRITO DO PAI E DO FILHO

Refletimos diversas vezes sobre as relações entre a Trindade econômica


e a Trindade imanente. Deparamos com este problema em muitos momentos e
a partir de diferentes pontos de vista. A prudência há de ser máxima e em
alguns momentos assinalamos a dificuldade de uma passagem demasiado rá­
pida para a Trindade em si. Porém, se a Trindade imanente não se constitui
na economia, será legítimo pensar que o Espírito não pode “fazer para si”
nela o Espírito do Filho, mas este fato deve encontrar na Trindade imanente
alguma correspondência168. Desde a eternidade, o Espírito Santo haverá de
ser o Espírito do Filho. As relações intratrinitárias não se constituem na
economia da salvação; pôs-se em destaque em repetidas ocasiões que o Filho
não pode chegar a ser um “tu” diante do Pai no momento em que assume
a humanidade. Por esta razão, podemos pensar que esses dados econômicos
respondem a algo na Trindade imanente. O Espírito não se faz o Espírito do
Filho, como tampouco o Filho se faz o Filho do Pai, por mais que não possamos
estabelecer um rigoroso paralelismo entre os dois termos desta comparação.
O sentido concreto dessa correspondência entre a economia e a teologia deve
permanecer no mistério. As formulações podem ser muitas, e sabemos que há
representantes da teologia oriental que não rejeitam uma intervenção do Filho
ou uma relação a ele na processão do Espírito, mesmo quando não possam
aceitar a formulação estrita do Filioque169. A teologia ocidental do Espírito
como amor do Pai e do Filho é uma possibilidade, talvez não a única, de
expressar essa relação eterna do Espírito com o Pai e também com o Filho,
e vice-versa. É válida enquanto toma em consideração os dados econômicos
da doação do Espírito por parte do Senhor ressuscitado juntamente com o
Pai e enquanto leva em conta também o fato de que a relação paterno-filial

Santo”; cf. também todo o contexto. Quanto ao mais, esta foi a preocupação expressa por
João Paulo II em 29 de junho de 1995 na Basílica de São Pedro, na presença do patriarca de
Constantinopla; cf. UOsservatore Romano, 30 jun.-l° jul. 1995. A declaração quis precisamente
responder ao desejo do papa de que se fizesse luz sobre esta questão. Do ponto de vista teoló­
gico, pode ser significativa a este respeito a posição de K. Rahner, que, a partir de seu princípio
da autocomunicação do Pai como fonte da divindade, tende a interpretar o Filioque como a
Patre per Filium. Cf. El Dios trino como principio y fundamento trascendente de la historia
de salvación, Mysterium salutis II/l, Madrid (1969) 359-449, espec. 405; 406; 410; 413; 442. A
compatibilidade e a complementaridade de ambas as fórmulas foram reconhecidas no Catecismo
da Igreja Católica, 248. Evidentemente, a idéia do Espírito como amor do Pai e do Filho oferece
mais dificuldades para Rahner; cf. ibid. 434, mas também 380; 405.
168. Cf. as atinadas observações de Oberdörfer, Filioque..., 505.
169. Cf., por exemplo, B. BOBRINSKOY, LeMystère de la Trinité, 304, embora exclua toda
noção de causa para o Filho. Mais dados em OBERDÖRFER, Filioque..., 513-514. A esse res­
peito, são conhecidas as afirmações de Máximo Confessor e João Damasceno. Por outro lado,
é claro que estas idéias não são aceitas por todos.

229
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

durante a vida mortal de Jesus se dá no Espírito. Pode-se legitimamente pensar


que esses dados da economia respondem à vida da Trindade em si mesma
(ressalvando sempre que o mistério divino supera nossa compreensão). Dessa
maneira, considera-se o Espírito Santo no tecido das relações trinitárias, com
exclusão de toda subordinação. O Espírito Santo é o Espírito do Pai e do Filho,
próprio dos dois, e creio que não seria um tratamento correto das relações
entre a Trindade econômica e a Trindade imanente o pensar que se constitui
tal na economia da salvação.
Não era nosso propósito nos parágrafos precedentes um estudo exaustivo
da questão da processão do Espírito do Pai e do Filho enquanto tal. Interessava
apenas fazer ver como na tradição existem elementos que permitem responder à
exigência de ver a relação paterno-filial realizada no Espírito, que encontramos
refletida em alguns dos teólogos a que nos referimos e também na declaração
do Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos. Pode-se satisfazer esta
exigência sem necessidade de alterar a ordem tradicional das pessoas.
Diversas vozes autorizadas se ergueram nos últimos tempos na teologia
católica em favor de uma consideração da unidade divina em termos de pe-
ricoresis ou mútua inabitação das pessoas17017. Deparamos já com esta questão
no capítulo 2. A teologia clássica das processões divinas desemboca na das
relações que constituem as pessoas. E o esse ad leva também ao esse inl7X. O
dom mútuo do Pai e do Filho no Espírito Santo pode ser um elemento que
ajuda a penetrar no mistério dessa comunhão íntima. No Espírito, o Pai e o
Filho estão um no outro, como o Espírito está também nos dois, já que não
os une a partir de fora, mas de dentro. Na tradição teológica latina, o fato
de que o Espírito Santo proceda do Pai e do Filho como de um só princípio,
ensinamento agostiniano acolhido no segundo Concílio de Lião (DH 850),
não deve fazer esquecer que este princípio é constituído pelo Pai e pelo Filho
enquanto tais, ou seja, em sua distinção pessoal; o amor mútuo é o amor que
tem no Pai a característica da doação original e no Filho a resposta a que a

170. Assim Y. CONGAR, El Espíritu Santo, 516: “Acolhemos, não obstante, esta idéia de uma
‘in-existência’ das hipóstases uma na outra, de intercâmbio e de reciprocidade. Existe uma vida
trinitária que não consiste unicamente nas processões ou relações de origem”. Cf. também G.
GRESHAKE, Der dreieine Gott. Eine trinitarische Theologiey 199-200; M. BORDONI, El Espíritu
Santo y Jesús. Reflexión bíblico-sistemática, 41.
171. Assim faz o Concílio XVI de Toledo em uma interessante formulação: “Relativum
etenim dicitur, quod una ad alteram personam referatur; nam quando dicitur Pater, Filii nihi-
lominus persona Signatur; et cum dicitur Filius, Pater ei sine dubio inesse monstratur” (DH
570; o destaque é meu).

230
0 ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO

tudo é dada172. O Pai e o Filho amam-se no Espírito Santo cada um segundo


a propriedade pessoal de seu amor. Faz-se necessário, deste ponto de vista,
“reduzir” a peculiaridade pessoal do Pai e do Filho e, portanto, esquecer o
caráter de princípio sem princípio que corresponde somente ao Pai. É outro
aspecto a ser levado em conta que nos faz ver que a relação das duas primeiras
pessoas com o Espírito não é meramente acidental quanto à relação Pai-Filho
que as caracteriza (ainda que em um modo não-exclusivo). Isso é assim ainda que
a relação do Pai e do Filho com o Espírito pressuponha em algum sentido,
certamente não cronológico, a relação paterno-filial. E tudo isso acontece,
como repetidas vezes assinalamos, no transbordamento do amor dos três, e
não por tipo algum de carência ou insuficiência que os faça necessitados de
ser completados ou enriquecidos.

172. Cf. o Catecismo da Igreja Católicay 248: o Pai é a primeira origem do Espírito Santo
enquanto é princípio sem princípio» e enquanto é Pai do Filho único é, com de, o único prin­
cípio do Espírito Santo.

231
Conclusão

O Concílio Lateranense IV nos adverte que não se pode afirmar nenhuma


semelhança entre o Criador e a criatura sem que se afirme ao mesmo tempo
a dessemelhança ainda maior (cf. DH 806). A ocasião concreta da afirmação
deste princípio geral é precisamente a distinção entre a unidade entre as pes­
soas divinas e a unidade entre os homens. As palavras de Jesus, “que sejam
um como nós somos um ” (Jo 17,22), não se aplicam do mesmo modo a
Deus e aos homens. Se entre nós se trata da unidade da caridade na graça, na
Trindade estas palavras dão a entender a unidade que vem da identidade da
natureza. Já antes o mesmo concílio nos adverte de que a unidade divina não
é a de uma coletividade, como muitos homens são um povo ou muitos fiéis
uma Igreja (cf. DH 803), contra a opinião de Joaquim de Fiore. Tudo o que
foi dito sobre o mistério de comunhão que constitui a vida divina remete-nos
a uma realidade que vai mais além de quanto possamos pensar ou expressar.
A unidade divina é uma realidade primária, tão primária quanto a Trindade,
e isso faz que o mistério da comunhão entre as pessoas divinas tenha com
qualquer tipo de comunhão humana uma dessemelhança maior que qualquer
semelhança que possamos descobrir.
Todavia, a maior dissimilitudo não impede que possamos falar de Deus
com sentido nem nos dispensa do esforço de um discurso teológico coerente1.

1. Cf. CONCÍLIO VATICANO I, const. DeiFilius (DH 3016); JOÃO PAULO II, enc. Fides et
RatiOy 8; 14; 66, sobre o intellectus fidei; GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 28,9 (SCh 250,118):
“ De igual modo, aquele que se esforça por investigar a natureza ‘daquele que é’ (Ex 3,14), não
poderá dizer somente o que não é, terá de dizer também o que é”.

233
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

A comunhão entre as pessoas divinas ultrapassa nossas categorias, em primeiro


lugar porque se funda na doação total do Pai, que é “pai” em sua totalidade
e não em parte, isto é, total comunicação de amor e de vida. Ele é a única
fonte e princípio da divindade. Porém, ao mesmo tempo, é relação pura
com o Filho e com o Espírito Santo, como também as outras pessoas são só
em sua relação com as demais. Total intercâmbio de amor, que ao mesmo
tempo que cria a propriedade irrepetível de cada uma das pessoas significa
a intimidade mais profunda que leva até o ser de cada uma delas nas outras.
Ao ser de cada uma pertence o ser nas demais, e ao mesmo tempo que estas
estejam nela. É a expressão máxima de comunhão que podemos imaginar,
bem conscientes de que também esta representação torna-se inadequada. A
distinção pessoal máxima e a igualdade na divindade das três pessoas não são
idéias contraditórias.
A doutrina clássica das processões não atenta contra a igualdade das
pessoas nem contra a plena comunhão delas. O fato de que o Pai o seja in­
teiramente exclui que a comunicação da divindade ao Filho e ao Espírito seja
“parcial” ou não-completa. E como o Pai não pode ser tal sem a geração do
Filho, tampouco o Pai e o Filho podem ser sem o Espírito Santo, o amor pro­
cedente que une os dois em uma união em que igualmente o mesmo Espírito
está presente. A origem da divindade no Pai faz que a unidade divina não seja
um dado posterior à trindade das pessoas. Também deste ponto de vista, esta
unidade é muito mais profunda do que podemos imaginar.
A teologia do Deus uno e trino funda-se exclusivamente na economia da
salvação. Esta tem sua origem no libérrimo desígnio divino, mas, ao fazer-nos
participantes de sua vida e comunicar-nos os bens divinos, mostra-nos Deus
tal como é. Se assim não fosse, não se efetuaria uma verdadeira revelação.
A economia da salvação remete-nos ao mistério de Deus e de modo algum
o exaure, porém em Cristo Deus veio aos homens de maneira definitiva e
selou com a humanidade a aliança que não passa. A Trindade econômica é a
Trindade imanente, no entanto esta se comunicou livre e gratuitamente e de
modo definitivo no mistério de Cristo. A economia da salvação não aperfeiçoa
Deus nem o faz crescer, mas não o deixa “ indiferente”. O Filho não abandona
a humanidade que assumiu. Em sua humanidade glorificada contemplamos
na esperança o que será nossa sorte futura. Participando em sua ressurreição,
conformados com Cristo glorioso, teremos parte na vida divina, na plenitude
da condição filial. Esta é a vocação a que todo homem foi chamado.

234
índice de autores

A Bernardo de Claraval 125


Boaventura, S. 24, 26-28, 88, 123, 155,
Agostinho de Hipona, S. 8, 19, 20, 22-24,
160, 189, 224
28, 31, 32, 44, 45, 59, 61, 67, 71-80,
Bobrinskoy, B. 199, 227, 229
82, 84, 85, 88, 90, 98, 109, 110, 113-
118, 123, 124,126, 131, 135, 142, 145, Boécio 74, 75
148, 152, 159,160, 178, 179, 181, 193, Bonanni 81, S.
210, 217-227 Bordoni, M. 36, 184, 194, 200, 215,
230
Amato, A. 144
Bourassa, F. 122, 226
Ambrósio de Milão, S. 178, 189
Bulgakow, S. 164
Atanásio de Alexandria 30, 44, 68, 159,
173, 190, 200, 219, 220
Atenágoras 66, 128 C
Caba, S. 51
Cacciapuoti, P. 84, 86, 87
B
Cantalamessa, R. 189, 212, 219
Balthasar, H. U. von 37, 40, 43, 99, Cirilo de Alexandria, S. 179, 184, 219,
113-118, 124, 131, 140, 141, 152, 154, 220
163-168, 185-194, 196-199, 216, 227 Clayton, S. P. 182
Barth, K. 8, 13, 84, 92-98, 105, 109 Clemente 66
Basílio de Cesaréia, S. 69 70, 124, 159, Clemente Alejandrino 213
188, 200 Congar, Y. 17, 40, 41, 50, 104, 143, 184,
Berghof, H. 182 199, 200, 226, 230

235
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

CordoviUa, A. 40, 163 Gregório de Nissa, S. 126, 212, 219


Cura, S. dei 200, 216 Gregório Magno, S. 85, 126
Gregório Palamas, S. 218
Greshake, G. 118, 153-157, 159, 160,
D
226, 230
Dhavamony, M. 36
Dol, S.-N. 192, 196
H
D recoil, H. V. 70
Durrwell, F. X. 200,201,204-211 Haigh, R. 182
Henne, Ph. 136, 170
Hick, J. 33
E
Hilário de Poitiers, S. 45, 55, 56, 58, 69,
Emery, G. 91, 119 91, 97, 126, 136, 157, 159-162, 174,
Eunômio 44, 69, 139, 159 175, 190, 208, 219
Eusébio de Cesaréia 211
Eusébio de Vercelli, S. 189
I
Evdokimov, P. 199
Immarrone, G. 36
Inácio de Antioquia, S. 65, 171
F
Inácio, Santo 132
Fédou, M. 60 Ireneu de Lião 17, 19, 31
Femández, F. 59
Forte, B. 38
J
França Miranda, M. de 36
João da Cruz, S. 126, 132
Fulgêncio de Ruspa, S. 21
João Damasceno, S. 121, 127, 176, 200
219, 229
G João de Ávila, S. 132
Galot, J. 137, 226 João Paulo II 13, 31, 37, 53, 62, 225,
Garrigues, S. M. 195, 216 229, 233
Gefíré, Cl. 35 Jüngel 32, 99, 152, 191
Genádio de Marselha 20 Justino, S. 17, 19, 65, 66, 130, 136, 140,
Gilbert, P. 80 166, 170, 171, 172, 173, 175, 213
Gironés, G. 144
González, A. 129 K
González de Cardedal, O. 39, 51, 55,
Kasper, W. 38, 40, 41, 64, 103, 104, 139,
167, 195, 209
140, 144, 166, 167, 188, 194, 226
González, M. 11, 12
Kealy, W. A. 224
Gregório de Nazianzo, S. 29,44, 70, 123,
130, 135, 142, 143, 159, 161, 162, 167, Knitter, P. F. 33
176, 178, 187, 188, 212, 233 Kowalczyk, D. 139

236
INDICE DE AUTORES

L Orbe, A. 18, 168, 170, 172, 175, 176,


211-213
Ladaria, L. F. 18, 31, 50, 51, 53, 57, 67,
Origenes 43, 58-60, 66, 68, 177
69, 71, 121, 123, 126, 135, 137, 141,
162, 164, 165, 175, 197, 213, 215
Lafont, G. 19, 38, 46, 48, 104 P
Lampe, G. H. W. 182
Pannenberg, W. 38, 43, 97, 99, 109,
Leão Magno 31, 53, 126, 190, 193 140, 145-154, 157, 158, 160, 165,
Lies, L. 216 182, 191, 227
Lonergan, B. 99, 100 Pastor, F. A. 135
Lubac, H. de, 60 Pedro Lombardo 23-25, 120, 160, 222,
229

M
R
Martinez Camino, ]. A. 153
Mateo-Seco, L. F. 76, 137, 226 Rahner, K. 8, 9, 11-17, 19, 28, 36-41, 43,
Máximo Confessor, S. 229 47-50, 92, 98-105, 108, 109, 121, 124,
137-143, 152, 165, 191, 196, 229
Melone, M. D. 85
Ratzinger, J. 118, 119, 127, 221
Menke, K. H. 36, 125
Régnon, Th. De, 137
Milano, A. 66, 67
Ricardo de São Vítor 84, 88, 110, 111,
Moignt, J. 67
113, 126, 155, 204, 222
Moltmann, J. 43, 105, 106, 108, 109,
Romero Pose, E. 135
112, 143, 154, 160, 199
Mühlen, H. 28, 109-113, 118, 123-126,
148, 182-185, 188, 204, 226 S
Müller, G. 36, 182
Salmann, E. 192
Sanna, I. 36
N Scheeben, M. J. 118

Neri, F. 20, 23, 24 Schefïczyk, L. 76, 77, 123

Neufeld, K. H. 122 Schillebeeckx, E. 34

Neunhauser, B. 137 Schmidbaur, H. C. 25, 80, 121, 122,


124, 224
Schmidt-Leukel, P. 33
O Schniertshauer, M. 84
Oberdörfer, B. 38, 200, 216, 222, 227, Schoonenberg, P. 43, 104
229 Schulte, R. 141
O’Donnell, J. 153 Serretti, M. 36
Ollig, K. L. 153 Sesboüé, B. 70

237
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO

Simon, R. 224 V
Simonis, W. 156 Vandevelde-Daillere, G. 192
Spiteris, Y. 144 Vechtel, K. 43, 63, 148, 153
Staglianò, A. 38
Stolz, A. 40
Sykes, S. W. 182
W
Wanke, D. 168
Weinandy-Daillere, G. 6 0 ,2 1 0 ,2 1 1
Wiertz, O. J. 153
Teófilo de Antioquia 17
Teresa 131, 132
Z
Tertuliano 17, 19, 66-68, 83, 91, 121,
135, 137, 142, 172, 200 Zarazaga, G. J. 43, 103, 104
Tom ás de Aquino 24, 89, 101, 136, 141, Zizioulas, J. 119,200
156, 159, 160, 180, 193, 201, 218 Zubiri, X. 128

238
Este livro foi composto nas famílias tipográficas
Frutiger, Minion e Bwgrkl*
e impresso em papel Offset 75g/m2

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