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LADARIA
A TRINDADE
Mistério de comunhão
Edições Loyola
Theologico
Publicações de Teologia, sob a responsabilidade da
Faculdade de Teologia
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LUIS F.
LADARIA
A TRINDADE
Mistério de comunhão
Tradução
A lda da Anunciação M achado
Edições Loyola
Título original:
La Trinidad, mistério de comunión
Autor: Luis F. Ladaria
© Ediciones Secretariado Trinitario, 2002
Filiberto Villalobos, 80
37007 — Salamanca — Espanha
ISBN 84-88643-79-9
Edições Loyola
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ISBN 978-85-15-03598-4
© ED IÇÕ ES LO YO LA, São Paulo, Brasil, 2009
Sumário
Introdução.............................................................................. 7
Conclusão.............................................................
índice de autores.......................................................
Introdução
7
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
8
INTRODUÇÃO
11
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
A salvação do homem está no dom de si que Deus lhe faz. Esta comunicação
se produz em Cristo e no Espírito. As pessoas divinas atuam nesta doação de
maneira diferenciada. Só podemos chegar à afirmação de que Deus é uno e
trino porque se nos manifestam em sua distinção na economia salvadora. Na
tradição, insistiu-se muito na ação unitária de Deus nas atuações ad extra. Isto,
porém, não significa que cada pessoa não atue na obra comum segundo sua
propriedade pessoal. Existe um caso em que esta distinção é uma verdade de
fé: a encarnação do Filho. Só ele, e não o Pai nem o Espírito Santo, assumiu
a humanidade. Existe, portanto, uma “missão”, uma presença salvífica divina
no mundo, própria e específica de uma pessoa divina. A partir desta missão
do Filho, chegou-se, no desenvolvimento dogmático da Igreja, à idéia da pro
cessão eterna do Filho. Temos aqui um caso de identidade, ou talvez, melhor
dizendo, poderíamos falar em correspondência entre a Trindade econômica
e a Trindade imanente.
Do fato de que somente o Filho tenha se encarnado não se deduz que as
outras pessoas estejam excluídas deste acontecimento. Sabemos bem que o que
ocorreu foi totalmente o oposto. Este fato, no entanto, confirma a verdade do
que estamos dizendo: se o Pai envia o Filho, é evidente a existência de uma
distinção na ação de um e de outro. Deste fato claro, Karl Rahner deduz que
é falso o princípio segundo o qual nada existe na história da salvação que
não se possa pregar do mesmo modo do Deus trino como um todo e de cada
pessoa em particular2. O axioma fundamental tem sentido na mente de Karl
Rahner, conforme já insinuamos, como fundamentação do caráter salvador
do mistério trinitário, em sua conexão irrenunciável com os mistérios da
encarnação e da graça — o mistério da graça entendido no sentido amplo da
comunicação que Deus faz de si mesmo aos homens em Cristo e no Espírito3.
Neste sentido, a preocupação de Rahner é mais dar ênfase à comunicação de
Deus aos homens do que refletir sobre o mistério da Trindade imanente. Daí
o fato de que a segunda parte do axioma, “ao inverso”, formulada com ffe-
qüência neste e em outros contextos, não receba praticamente esclarecimento
algum no conjunto de sua obra4. O que o autor alemão, sem dúvida, afirma
2. Cf. El Dios trino... 370-371. Não nos interessa expor a doutrina de Karl Rahner em detalhe.
No entanto, quis recordar brevemente estes princípios fundamentais, por serem necessários
para a exposição que virá a seguir.
3. K. Rahner salientou repetidas vezes em sua obra a inseparabilidade e a mútua conexão
destes três mistérios centrais; à guisa de exemplo, Sobre el concepto de mistério en teologia
católica, in Escritos de teologia IV, 53-101 [91 ]; Reflexiones fiindamentales sobre antropologia
y teologia en el marco de la teologia, MySal II/1, 454-468 [458].
4. Assim foi justamente constatado por M. GONZÁLEZ, La relación entre la Trinidad
económica y la Trinidad inmanente, 103. Pode-se ver também K. RAHNER, El concepto de
mistério..., 97.
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
5. El Dios trino..., 380: “Deus se comporta conosco de um modo trinitário, e esse mesmo
comportamento trinitário (livre, e não devido) para conosco é não apenas uma imagem ou
analogia da Trindade interna, mas é esta mesma, comunicada de maneira livre e gratuita [frei
und gnadenhaft]. . . ”; cf. ibid., 417; e também Advertências..., 127.
6. Não nos esqueçamos de que, muito embora K. Rahner tenha sido o grande popularizador
deste axioma, seu homônimo K. Barth havia enunciado já com prioridade um princípio seme
lhante, apesar de fazê-lo de um modo menos chamativo: “Seguimos a regra — e a consideramos
fundamental — de que as afirmações sobre a realidade dos modos de ser divinos ‘antes de tudo
em si mesmos’ não podem ser distintas quanto ao conteúdo daquelas que é preciso efetuar
precisamente sobre sua realidade na revelação” (Kirchliche Dogmatik 1/1, München, 1935, 503;
cf. também 352). Do texto, parece poder-se deduzir que a Trindade econômica é o ponto de
partida para o conhecimento da imanente.
7. JOÀO PAULO II, encíclica Fides et Ratioy 93: “O objetivo fundamental que a teologia
persegue é apresentar a compreensão da revelação e o conteúdo da fé. Assim, o verdadeiro centro
da sua reflexão será a contemplação do próprio mistério de Deus Uno e Trino. E a esse chega-se
refletindo sobre o mistério da encarnação do Filho de Deus”.
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
prévia do ser divino que ama o homem que criou: Deus, com efeito, amou
tanto o mundo que deu o seu Filho, o seu único... (Jo 3,16). A economia
da salvação permite e nos leva de fato a fazer afirmações com sentido sobre
Deus em si mesmo (cf. Jo 1,1-2), sem que o mistério desapareça. O axioma
fundamental e o debate em torno dele permitiu destacar o consenso que
ocorre em muitos pontos teológicos de primeira importância, a começar pela
relevância, mais ainda, pelo lugar central que o mistério da Trindade ocupa
na vida cristã e, por conseguinte, o caráter salvador que o caracteriza. Dá-se
como certa a impossibilidade de chegar a ele por caminhos que não sejam os
da revelação e da doação que Deus faz de si mesmo em Cristo e no Espírito.
Com isso, fica claro que Deus nos revela a profundidade de seu ser somente
na medida em que nos introduz nele e nos faz partícipes de sua vida. Não é
em vão que o batismo que nos perdoa os pecados e nos confere a dignidade
de filhos de Deus é administrado em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo (cf. Mt 28,19).
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
só nela pôde ter origem a reflexão sobre o que Deus é em si. Porém, por sua
vez, a Trindade econômica pressupõe sempre, necessariamente, a Trindade
em si mesma10. A partir destes princípios geralmente aceitos, a Comissão toma
posição de modo direto em favor do “axioma fundamental”, inspirando-se,
ainda que com notáveis precisões, nas conhecidas formulações de Karl Rahner:
“Por isso, o axioma fundamental da teologia atual expressa-se muito bem com
as seguintes palavras: a Trindade que se manifesta na economia da salvação
é a Trindade imanente, e a mesma Trindade imanente é a que se comunica
livre e gratuitamente na economia da salvação”11.
As coincidências com o modo de se expressar de Karl Rahner são claras.
No fundo, o que se aceita é sua intuição. Mas existem também algumas mudan
ças. Em lugar da Trindade econômica, fala-se da “Trindade que se manifesta
na economia da salvação”. É uma formulação mais bem-sucedida. Todavia,
não se pode passar por cima do fato de que a segunda parte do axioma de
Rahner, o “ao inverso”, recebe aqui um conteúdo concreto. Seja como for, a
Comissão serve-se da linguagem de Rahner para preencher com conteúdos
esta segunda parte do axioma. Antes de tudo, diz-se, a Trindade se comunica.
K. Rahner cunhou o termo Selbstmitteilung, comunicação de si mesmo12, que
teve muita aceitação na teologia católica, principalmente na teologia da graça.
Além disso, esta comunicação é feita “livre e gratuitamente” . Já observamos
que o próprio Rahner se serve desta expressão13. Com a maior precisão de
termos apresentada pela Comissão, ela não se afastou nem do espírito nem da
letra de quem formulou o axioma pela vez primeira na teologia católica. Os
três nomes divinos de Pai, Filho e Espírito Santo estão na teologia tal como
estão na economia da salvação14. O documento faz eco à antiga distinção pa
trística entre “teologia” e “economia”, com o fim de salientar a íntima relação
entre as duas. Se a segunda nos permite o acesso à primeira, esta constitui o
necessário princípio e fundamento da economia da salvação.
Todavia, mais interessante ainda que esta aceitação, em termos gerais,
do axioma fundamental é o desenvolvimento que dele se faz em seguida.
Inspirando-se na terminologia clássica do Concílio de Calcedônia, a Comissão
prossegue afirmando que é preciso evitar toda separação entre a cristologia e
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
18. Cf. ElDios trino..., 372-383. Conforme já indicamos, não é nosso objetivo, no momento,
expor o pensamento de K. Rahner.
19. Na seqüência, deveremos entrar em alguns detalhes sobre a questão. Sobre a relação
entre processões e missões, cf. SANTO TOMÁS, STh I 43,1: “Missio igitur divinae personae
convenire potest, secundum quod importat processionem ab alio”. Y. CONGAR, El Espíritu
Santo, Barcelona, 1983, 211, faz eco a esta tradição quando escreve: wQue o Verbo e o Espírito
venham não significa que se desloquem; significa que fazem existir uma criatura em uma relação
nova com eles. Significa que a processão que os coloca na eternidade da Unitrindade acaba livre
e eficazmente em um efeito criado”.
20. Poderíamos multiplicar as citações. IRENEU DE LIÃO, Adv. Haer. III 18,1 (SCh 211,
342): “ ... Verbum existens apud Deum, per quem omnia facta sunt, qui et semper aderat generi
humano, hunc in novissimis temporibus secundum praefinitum tempus a Patre unitum suo
plasmati...”. O texto une a mediação criadora com a encarnação, a união a seu plasma, pas
sando pela proximidade permanente do Logos ao homem; ver também V 16,1 (SCh 153,214):
“ab initio usque ad finem format nos et coaptat in vitam et adest plasmati suo”. Sobre a perene
proximidade do Filho em relação ao homem, cf., além disso, ibid. III 16,6 (312); IV 6,7 (SCh
100,454); IV 20,4 (634-636); IV 28,2 (758), etc.
21. Cf. JUSTINO, Ap. I 62-63 (Wartelle, 184-186) e principalmente Dial. Tryph. 56-60
(Marcovich, 161-174); TEÓFILO DE ANTIOQUIA, Ad Aut. II22 (BAC 116,814); TERTULIANO,
Adv. Marc. II 27 (CCL 1,505-507); Prax. XIV-XVI (Scarpat, 178-190); IRENEU, Adv. Haer. IV
6,1-9,1 (SCh 100, 436-458); Demonstr. 12 (FP 2,81-82).
22. IRENEU, Adv. Haer. IV 6,1 (SCh 100,436): wquia ipse est Verbum qui agnitionem
Patris facit”; 6,3 (442): “Agnitio enim Patris est Filii manifestatio: omnia enim per Verbum
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
se fez homem, nós, homens, podemos ser feitos filhos de Deus, segundo o
conhecido princípio do intercâmbio que Ireneu formulou pela primeira vez23.
Evidentemente, a encarnação do Filho convém, se o homem há de ser feito
filho de Deus. Revelação do Pai, filiação divina do homem como salvação,
tudo isso no âmbito da mediação universal do Logos por quem tudo foi feito
são as razões que impõem, quase espontaneamente, a encarnação do Filho de
Deus. Todavia, a pergunta explícita sobre a conveniência ou necessidade da
encarnação da segunda pessoa não parece ter sido proposta expressamente.
Uma reflexão um pouco mais explícita sobre o tema, apesar de não se
haver ainda posto a questão nos termos claros dos autores medievais, encontra-
se em santo Atanásio. Assim diz o bispo de Alexandria:
Depois, ele próprio [o autor da carta aos Hebreus] dá a razão pela qual não
devia ser outro quem se fez homem, senão o Filho de Deus. “Convinha de fato
àquele para quem e por quem tudo existe, e que queria conduzir à glória uma
multidão de filhos, levar à consumação, por meio de sofrimentos, o promotor
da salvação deles” (Hb 2,10). Com estas palavras, quer significar que não era
próprio de outro tirar os homens da corrupção que havia surgido, mas do
Verbo de Deus, mediante o qual no princípio haviam sido criados24.
manifestantur”; 6,6 (448-450): “Et per ipsum Verbum visibilem et palpabilem factum Patrem
ostendebatur... invisibile etenim Filii Pater, visibile autem Patris Filius”. Mais detalhes em A.
ORBE, Espiritualidad de san íreneoy Roma, 1989, 241-258.
23. Cf. abundantes exemplos em L. F. LADARIA, Teologia dei pecado original y d e l a grada,
Madrid, 32001, 151. Mais adiante, retornaremos a esta questão; cf. nota 59.
24. De Incarn. Verbi 10 (SCh 199,300); a mesma doutrina em Contra Arianos II 53 (PG
26,260): “Porque ele é diferente de suas obras, ou melhor, porque é seu criador, era conveniente
que fosse ele quem realizasse a renovação nele... Ele recria em si mesmo todas as coisas; fez-se
homem para renová-las.
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
nem pelo Filho nem pelo Espírito Santo30. Agostinho, porém, não efetuou o
passo das teofanias para a encarnação. Existe uma diferença fundamental entre
ambos os eventos. Mais ainda, sem que seja delineada diretamente a questão
de que tratamos, é sensível a correspondência entre a Trindade econômica e a
Trindade quando, ao falar da encarnação do Filho, afirma que, considerando
que é o Pai quem gera, e o Filho é o gerado, é congruente o fato de que seja
o Pai quem envia e o Filho, o enviado31.
Depois de Agostinho, encontramos alusões em alguns autores ocidentais
ao fato que constituirá mais tarde o problema medieval, evidentemente sem
expô-lo de maneira expressa. A coerência entre a filiação eterna e a tempo
ral, entre o ser, como Deus, Filho do Pai e, como homem, filho de Maria, é
objeto específico de reflexão. É outro ponto de vista que coloca em destaque
a relação entre economia e teologia. Genádio de Marselha desenvolveu este
pensamento em uma linda página:
Não foi o Pai quem assumiu a carne, nem o Espírito Santo, mas somente o
Filho; de tal modo que aquele que na divindade era Filho de Deus Pai, ele
mesmo, na humanidade, se fizera filho de uma mãe humana [ipse fieret in
homine hominis matris filius] e assim o nome de filho não passaria para
outro que não fosse Filho por causa da geração eterna. Portanto, o Filho de
Deus se fez filho do homem, nascido de Deus como Filho de Deus segundo
a verdade da natureza, e segundo a verdade da natureza filho do homem
[nascido] do homem [ex homine hominis filius]. De tal maneira que aquele
que foi verdadeiramente gerado [veritas generationis] tivesse o nome de Filho
não por adoção nem por denominação, mas pelo fato de nascer segundo um
e outro nascimento, e o verdadeiro Deus e verdadeiro homem fosse um só
Filho, Deus e homem [Deum et hominem unum filium]32.
30. AGOSTINHO, Tritt. II 18,35 (CCL 50,126): “Per subiectam vero creaturam, non solum
filium, vel spiritum sanctum, sed etiam patrem corporali specie sive similitudine mortalibus sen-
sibus significationem sui dare potuisse credendum est”; III 11,26 (157):“ ... in quibus angeliserat
utique et pater, et filius, et spiritus sanctus; et aliquando pater, aliquando filius, aliquando spiritus
sanctus, aliquando sine ulla distinctione personae deus per illos figurabatur”; cf. II 11,27 (158);
IV 21,32 (205): “quia etiam si voluisset deus pater per subiectam creaturam visibiliter apparere,
absurdissime tarnen aut a filio quem genuit, aut a spirito sancto, qui de illo procedit, missus
diceretur”. Cf. também a Ep. 11,2.4 (CSEL 34,26-28), que insiste, em termos não muito precisos,
na unidade de ação das três pessoas divinas, mas não diz que as três possam se encarnar.
31. Tritt. IV 20,29 (199): “Sicut ergo pater genuit, filius genitus est, ita congruet pater misit, fi
lius missus est”; 20,28 (198): “ ab illo mittitur de quo natum est; mittitur quod genitum est”.
32. GENÁDIO DE MARSELHA, De eccl dogmatibus 2 (PL 58,981AB); cf. F. NERI, Cur
Verbum capax hominis. Le ragioni delYincamazione della seconda persona delia Trinità fra teologia
scolastica e teologia contemporânea, Roma, 1999, 58-59.
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
33. FULGÊNCIO DE RUSPA, De Fide ad Petrum 7 (II) (CCL 91 A,716); cf. também ibid.,
7-8 (717).
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
Estas razões, como se pode facilmente constatar, não são de tanto peso
quanto as que excluem a encarnação do Pai. Não existe alusão alguma a m o
tivos da vida intratrinitária. Simplesmente, a confissão de fé não seria a que é,
não poderíamos professar que o Filho nasceu por obra do Espírito Santo da
virgem Maria, não poderíamos confessar sua ressurreição de entre os mortos
(cf. Rm 10,9)35. Igualmente o Espírito Santo não poderia ter descido em forma
de pomba sobre si mesmo feito homem como desceu sobre Jesus, o Filho. A
brevidade do comentário não permite apreender o alcance, na concepção de
Fulgêncio, da descida do Espírito sobre Jesus. Como também não é possível
quanto à significação do inciso “qui Patris et Filii Spiritus est”. Considera ele
que a salvação não poderia ter sido realizada de outro modo, mais do que com
as missões do Filho e do Espírito, tal como aconteceram de fato? Relaciona
a ordem das missões com a das processões? É possível que assim seja, uma
vez que é clara em Agostinho a relação entre o Espírito como dom do Pai e
do Filho e sua processão dos dois. Seja como for, temos a impressão de nos
encontrar perante uma tentativa de excluir a possibilidade da encarnação do
Espírito Santo, apesar de que as razões desta exclusão não pareçam representar
um peso significativo, nem se tenha discorrido muito sobre elas36.
Não parece, portanto, que santo Agostinho tenha defendido a tese da
possibilidade da encarnação das três pessoas, ainda que em alguns extremos
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
possa ter se aproximado dela. De igual maneira, esta opinião não se generalizou
imediatamente após ele, nem sequer em círculos que receberam sua influência.
Ou melhor, vemos testemunhos do contrário. Entretanto, o mais provável é
que a influência da doutrina trinitária de Agostinho tenha determinado certa
mudança na hora de justificar a necessidade ou conveniência da encarnação
do Filho. Têm mais peso os motivos da “teologia” que os da “economia” e,
concretamente, desaparece o da imagem de que o Filho devia restaurar, uma
vez que já na criação inicial do homem era o modelo. Para Agostinho, como
se sabe muito bem, a alma humana é imagem da Trindade por inteiro. Por
outro lado, nota-se também certa evolução nos últimos autores citados, no
sentido de que se dão razões não apenas positivas em favor da encarnação do
Filho, mas também negativas para excluir a das outras pessoas.
A teologia medieval
37. Podemos nos reportar à obra de F. NERI, Cur Verbum capax hominis (cf. nota 32), 49-
207. A razão pela qual me detive um pouco mais nos autores mais antigos está em que estes
encontram menos espaço na investigação de F. Neri.
38. Cf. ANSELMO, Epistola de Incamatione Verbi (Opera Schmitt 2, 25-28); cf. NERI, Cur
Verbum capax hominis, 59-62.
23
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
24
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
Entretanto, apesar de todas estas razões, Tomás aceita e explica por conta
própria a hipótese de Pedro Lombardo sobre a possibilidade da encarnação
das outras pessoas: a encarnação de outra pessoa não implicaria em si mesma
contradição alguma nem significaria uma diminuição do poder daquela que
se encarnasse; tampouco apresentaria em si mesma nenhum inconveniente;
as dificuldades surgiriam somente se fosse considerada a ordem livremente
instituída por Deus, não sendo, portanto, decisivas44.
Na Summciy de modo significativo, santo Tomás muda a ordem das ques
tões. Afirma primeiramente a possibilidade da encarnação de qualquer pessoa,
para passar depois à conveniência da ordem estabelecida por Deus. Quanto
ao que tange ao primeiro ponto, assinala-se que o poder divino é possuído
igualmente pelas três pessoas, e é também a mesma a “ratio personalitatis”,
embora sejam distintas as propriedades pessoais. Assim sendo, a onipotência
divina podia unir a natureza humana à pessoa do Pai ou à do Espírito Santo
como a uniu à do Filho45. Devemos notar neste contexto um ponto de clara
procedência agostiniana: na hipótese da encarnação do Pai, este não seria en
viado, como o foi o Filho46. Santo Tomás introduz as razões da conveniência
da encarnação do Filho, indicando, como já fizera em sua obra de juventude,
que foi “convenientíssimo” que se encarnasse a segunda pessoa47. Estas razões
de suma conveniência estão no fato que o Verbo é o exemplar de toda criatura
e é particularmente a Sabedoria da qual deriva a sabedoria humana; por isso
era mais conveniente que se unisse à criatura, especialmente à criatura huma
na. A predestinação dos homens é a filiação divina; foi, portanto, conveniente
que mediante aquele que é Filho por natureza os homens participassem pela
25
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
O Filho é o revelador do Pai, por ele foi gerado e dele saiu, é sua palavra
e sua imagem. Deus criou todas as coisas por meio dele e por meio dele nos
salva. À sua imagem, os homens foram criados, segundo a antiga teologia
da Igreja, e é a imagem de Jesus Cristo ressuscitado que somos chamados a
reproduzir (cf. ICor 15,49; Rm 8,29); cabe a ele reparar a imagem deteriorada
e devolver-nos a semelhança perdida. Se ele é o Filho único por natureza,
compete a ele tornar-nos participantes de sua condição filial. Estes e outros
motivos que encontramos na tradição (o Filho como a Sabedoria, a beleza etc.)
mostram-nos a congruência da encarnação do Filho. Se Deus se manifestou
a nós dessa forma, é preciso pensar que isto não é simplesmente casual, mas
corresponde ao que Deus é em si mesmo, que é congruente com sua pró
pria vida divina. Existe ainda espaço para questões hipotéticas? Não parece.
Provavelmente a própria pergunta seja ociosa. Deus não nos revelou até onde
chega sua onipotência, na misteriosa relação entre sua natureza e sua liberdade
a que faremos referência em breve; nem tampouco todas as características da
profunda congruência, que sem dúvida devemos postular, entre seu ser e seu
agir. Por outro lado, também não sabemos onde termina o que é próprio de
cada pessoa divina, uma noção que usamos e que certamente teremos de usar,
27
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
53. Cf. AGOSTINHO, Trin. V 9,10 (CCL 50,217); VII 4,7 (255).
54. Cf. H. U. VON BALTHASAR, Theologik II. Die Wahrheit Gottes, Ensiedeln, 1987, 137; K.
RAHNER, El Dios trino..., 373s.; 433; H. MÜHLEN, Der Heilige Geist als Person in der Trinität ,
in der Incarnation und im Gnadenbundy Münster, 1963, 106s.; as pessoas, como pessoas, não
têm nada em comum. O que têm em comum é a divindade, o ser pessoal as distingue.
55. Pode-se escarmentar em cabeça alheia, ainda que seja nas cabeças dos mais velhos. Para
defender a possibilidade da encarnação das três pessoas, e concretamente do Pai, tanto santo
Tomás como são Boaventura terão de defrontar-se com a objeção de que neste caso haveria
em Deus duas pessoas que seriam “filhos”. Respondem dizendo que, neste caso, a encarnação
não ocorreria por meio de um nascimento: o Pai poderia formar para si mesmo um corpo,
como no caso de Adão (TOMÁS, Sup. Sent III, d. 1, q.2, a.3); mais genericamente, é falso
que Deus não possa assumir a carne mais que a tomando de uma mulher como de uma mãe
(BOAVENTURA, In Sent. III, d. 1, a.l, q. 4). A semelhança que estas possíveis “encarnações”
teriam com o que o Evangelho nos narra é nula.
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
56. Cf. CCC 256, com citação do segundo concílio de Constantinopla (cf. DH, 421).
57. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 7,23 (SCh 405,240): “ Devo ser sepultado com Cristo,
ressuscitar com ele, ser co-herdeiro de Cristo, ser feito filho de Deus, e até mesmo deus”; a
idéia se repete em Or. 14,23 (PG 35,888).
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
tem lugar “propter nos homines et propter nostram salutem” . É preciso que
isto seja tomado em consideração para entender a doutrina do “intercâmbio”,
que se encontra nos Padres com formulações distintas. Em muitas ocasiões,
fala-se em termos mais ou menos genéricos de divindade e humanidade, porém,
em outras, é explicitada a idéia da filiação, a de Cristo e a dos homens59. Uma
vez que não se pode separar a Trindade imanente da Trindade econômica,
também não podem ser separadas a cristologia e a doutrina trinitária porque,
como nos recordava a Comissão Teológica Internacional, “o mistério de Jesus
Cristo se insere na estrutura da Trindade”60.
É preciso reconhecer que neste momento o problema que a Comissão
Teológica assinalava há dois decênios não é muito atual na teologia católica.
Em certo sentido, já não o era quando o documento a que nos referimos foi
publicado. Os princípios nos quais se inspirava foram amplamente recebidos
na teologia católica. Entretanto, a relação entre teologia e economia continua
e continuará sempre a suscitar problemas, uma vez que não podemos pensar
que a economia salvadora esgote o mistério de Deus. Na consciência da Igreja
sempre esteve o fato de que no acontecimento de Jesus Cristo e no dom de
seu Espírito Deus se revela a nós como é; todavia, a maior proximidade desta
revelação nos mostra um Deus muito maior e misterioso61. A outra separa -
59. Assim, por exemplo, encontra-se muito claramente em IRENEU DE LIÃO, Adv. Haer. III
19,1 (SCh, 211,374): tt... o Filho de Deus se fez homem para que o homem, unido ao Verbo de
Deus e recebendo a adoção, se fizesse filho de Deus... Porque de que maneira poderíamos nos
unir à incorrupção e à imortalidade se antes da incorrupção e da imortalidade não se houvesse
feito o que somos nós?” . Cf. também ibid. III 10,2 (116-118): “ [Deus] qui per legem et prophe-
tas promisit Salutarem suum facturum se omni cami visibilem, ut fieret Filius hominis ad hoc
et homo fieret filius Dei”. Ireneu, o primeiro que formulou este princípio de modo explícito,
insistiu como vemos explicitamente na filiação divina, e não se contentou com formulações mais
genéricas sobre a divinização. Os dois elementos devem andar juntos. Encontramos o mesmo
em época muito mais tardia em AGOSTINHO, Sertno 185 (PL 38,999); LEÃO MAGNO, Ser. 26,
6 in Nat. Domini (PL 54, 213). Neste sentido, não é tão completa a fórmula de Atanásio citada
pela CTI (cf. nota anterior). Outras indicações sobre o motivo patrístico do intercâmbio serão
encontradas em L. F. LADARIA, Teologia dei pecado original y de la grada (cf. nota 23).
60. Teologia - Cristologia - Antropologia I C) 1.2 (249).
61. JOÃO PAULO II, Fides et Ratioy 13: “Entretanto, não se pode esquecer que a Revelação
permanece envolvida no mistério. Jesus, com toda a sua vida, revela seguramente o rosto do Pai,
porque ele veio para manifestar os segredos de Deus; e contudo o conhecimento que possuímos
daquele rosto está marcado sempre pelo caráter parcial e limitado de nossa compreensão”;
ibid.: “ Em resumo, o conhecimento da fé não anula o mistério, torna-o apenas mais evidente e
apresenta-o como um fato essencial para a vida do homem”; isto não significa que a revelação
não seja autêntica e que “a palavra de Deus, que é sempre palavra divina em linguagem humana,
31
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO
não seria capaz de exprimir nada sobre Deus”; cf. ibid., 84-85; H. U. VON BALTHASAR,
Teodramática 3. Las personas dei drama. El hombre en Cristo, Madrid, 1993,465: MSe o princípio
divino, o Pai, se desdobra real e até exaustivamente no Filho feito homem, então o mistério
santo se torna público e manifesto, porém sem deixar de ser mistério, porque são necessários
sempre a iniciação, o dom do Espírito e os ‘olhos da fé’ para perceber o mistério desvelado”;
ibid., 486: “Não é porque Deus se revela que é menos Deus e menos incompreensível”.
62. Ibid. 2.1 (249). Cf. também o concílio Lateranense IV (DH 804).
63. AGOSTINHO, En. in Ps. 62,16 (CCL 39,804): “Semper enim ille maior est, quantumque
creverimus”. Também aqui podemos citar o concílio Lateranense IV (DH 806): “Quia inter
creatorem et creaturam non potest tanta similitudo notari, quin inter eos maior sit dissimili-
tudo notanda”.
64. Cf. E. JÜNGEL, Dios como mistério dei mundo, Salamanca, 1984, 303-307.
32
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
das posições a que se refere ao falar desta separação moderna. Todavia, não
existe dúvida de que sua advertência revestiu-se de atualidade nos últimos
decênios, durante os quais se desenvolveram tendências teológicas que na
fase da redação do documento estavam apenas começando a se insinuar. São
algumas das hipóteses propostas pelo chamado “pluralismo” na teologia cristã
das religiões. Não nos cabe agora entrar em detalhes sobre o particular; para
nosso propósito, serão suficientes algumas pequenas indicações65.
Trata-se de buscar uma interpretação teórica da pluralidade religiosa
tendo em conta as riquezas espirituais que se descobrem no diálogo com as
diferentes religiões. A partir desta experiência, pode se tornar difícil continuar
afirmando a superioridade do cristianismo. Ao contrário, este encontro leva a
pensar que nas grandes religiões há uma mescla m ais ou menos uniforme de
bem e de mal, de valor mais ou menos equivalente como respostas salvadoras
para a transcendência. Do ponto de vista cristão, tais hipóteses fundam-se na
cristologia e na doutrina sobre Deus. Uma vez que, conforme se diz, Deus é
inabarcável e incognoscível, nenhuma figura reveladora pode dá-lo a conhecer
plenamente. Por outro lado, insiste-se no teocentrismo de Jesus (indiscutido e
indiscutível), que nos remete sempre ao Pai, diante do qual está sempre total
mente aberto. A fé cristã na encarnação não exclui que o Logos presente em
Jesus o esteja também em outros homens eleitos. Na pluralidade de mediações,
permanece sempre o único amor de Deus como único mediador. Quanto ao
que diz respeito à doutrina sobre Deus, a fé cristã afirma sua incompreensibi-
lidade; Deus é inabarcável, sempre supera nossos conceitos. Daí, porém, não
se infere que Deus não tenha se revelado; é preciso sustentar precisamente o
contrário. Deus se revelou em toda a história, não apenas em um fragmento
seu, segundo as capacidades próprias dos homens. Como estes são diferentes,
a revelação aconteceu em formas diversas; e, assim, deu origem a diferentes
experiências religiosas; para explicá-las, os homens se serviram dos conceitos
e nomes que tiveram à sua disposição em cada tempo e em cada contexto.
Tais explicações são todas válidas, porque têm na raiz a revelação comum que
65. Tomo como exemplo uma contribuição relativamente recente, na qual, além disso, se
encontra abundante informação sobre o tema: P. SCHMIDT-LEUKEL, Was will die pluralistische
Religionstheologie?, Münchener Theologische Zeitschrift 49 (1998) 307-334. Reporto-me a este
artigo para o que segue. Entre os escritos já clássicos nesta linha: J. HICK (Ed.), The Myte of
God Incarnate, London, 1977, e especialmente a contribuição do próprio editor, Jesus and the
World Religions, in ibid., 172-184; ID., Problems of Religious Pluralism, London, 1985; ID., The
Methafor of God Incarnate, London, 1993; P. F. KNITTER, No Other Name? A Critical Surwey
of Christian Attitudes Toward the World Religions, Maryknoll/New York, 1996; J. HICK, J. P.
KNITTER (Ed.), The Mythe of Christian Uniqueness, Maryknoll/New York, 1988.
33
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
66. A CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, decl. Dominus Iesusy9, assim descreve
estas posições: “Na reflexão teológica contemporânea é freqüente fazer-se uma aproximação de
Jesus de Nazaré, considerando-o uma figura histórica especial, finita e reveladora do divino de
modo não exclusivo mas complementar a outras presenças reveladoras e salvíficas. O Infinito,
o Absoluto, o Mistério último de Deus manifestar-se-ia assim à humanidade de muitas formas
e em muitas figuras históricas: Jesus de Nazaré seria uma delas. Mais concretamente, seria
para alguns um dos tantos vultos que o Logos teria assumido no decorrer dos tempos para se
comunicar em termos de salvação com a humanidade”; cf. também ibid. 4;6.
67. Cf. E. SCHILLEBEECKX, Umanità. Storia di Dioy Brescia, 1992, 219-220: “Deus é de
masiado rico... para poder deixar-se esgotar em sua plenitude por uma tradição experiencial
religiosa, sempre determinada e por isso limitada”; afirma-se claramente, por outro lado, que
a singularidade de Cristo e sua divindade em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da
divindade (Cl 2,9). Esta “corporeidade”, porém, caracteriza a forma contingente e limitada da
aparição do Filho de Deus na terra.
34
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
68. Cf. CL. GEFFRÉ, La singolarità dei cristianesimo nelletà dei pluralismo religioso, Filosofia
e Teologia 6 (1992) 38-58, espec. 53; cf. também, La théologie des religions non chrétiennes
vingt ans après Vatican II, Islamocristiana 11 (1985) 115-133, 132; Pour un christianisme
mondial, Recherches de Science Religieuse 86 (1998) 53-75; defende-se a insuperabilidade de
Cristo e da revelação cristã, embora se faça presente a limitação histórica; fala-se também da
presença escondida do mistério de Cristo em outras tradições religiosas, com o que se expressa
sua significação universal; c f p. 67; 72.
69. Cf. ID., La vérité du christianisme à Fâge du pluralisme religieux, Angelicum 74 (1977)
177-191, 182. Indica-se, ao mesmo tempo, a necessidade iniludível do anúncio de Cristo.
70. Refletiremos mais adiante sobre a incidência que este fato tem nas relações entre a
Trindade econômica e a Trindade imanente.
7\. Dominas Iesusy10. Imediatamente em continuação, diz-se: “O único sujeito que opera nas
duas naturezas — humana e divina — é a única pessoa do Verbo. Portanto, não é compatível
com a doutrina da Igreja a teoria que atribui uma atividade salvífica ao Logos como tal em sua
divindade, que se realizasse ‘à margem’ e ‘para além’ da humanidade de Cristo, também depois
da encarnação” . C f também ibid. 9; 13-15.
35
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
72. Ibid. 11: M... deve crer-se firmemente na doutrina de fé sobre a unicidade da economia
salvífica querida por Deus Uno e Trino, em cuja fonte e em cujo centro se encontra o mistério
da encarnação do Verbo...” ; 14: “Deve crer-se firmemente como verdade de fé católica que a
vontade salvífica universal de Deus Uno e Trino é oferecida e realizada de uma vez para sempre
no mistério da encarnação, morte e ressurreição do Filho de Deus”.
73. CTI, Teologia... C) 1 (248-249): “A economia de Jesus Cristo revela o Deus trino; Jesus
Cristo só pode ser conhecido em sua missão se corretamente entendida a presença singular,
nele, de Deus mesmo. Por essa razão, teocentrismo e cristocentrismo iluminam-se e postulam-
se mutuamente” . Sobre esta questão, e sem a pretensão de ser exaustivos, cf. COMISSÃO
TEOLÓGICA INTERNACIONAL, El cristianismo'y las religionesy in Documentos (cf. nota 8),
357-604; entre a abundante bibliografia sobre o assunto, cf. K. H. MENKE, Die Einzigkeit Jesu
Christi im Horizont der SinnfrageyEinsiedeln/Freiburg, 1995; M. DE FRANÇA MIRANDA, O
cristianismo em face das religiões, São Paulo, 1998; M. SCHULZ, Anfragen an die pluralistische
Religions-theologie: Einer ist Gott, nur Einer auch Mittler, Münchener theol. Zeitschrift 51 (2000)
125-150; G. IMMARRONE, La dottrina del primato assoluto e della signoria universale di Gesü
Cristo nel dibattito attuale sul valore salvifico delle religioni, in I. SANNA (a cura di), Gesü
Cristo speranza del mondo. Miscellanea in onore di Marcello Bordoni, Roma, 2000, 339-408;
G. L. MÜLLER, M. SERRETTI (Hrsg.), Einzigkeit und Universalität Jesu Christi im Dialog mit
dem Religionen, Einsiedeln, 2000; M. DHAVAMONY, The uniqueness and universality o f Jesus
Christ, Studia Missionalia 50 (2001) 179-216.
36
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
É convicção cristã o fato de que aquele que viu Jesus viu o Pai (cf. Jo
14,9) e, do mesmo modo, que só por Jesus se vai a ele (cf. Jo 14,6)74. Por
conseguinte, só a partir da revelação de Deus, que nele atinge sua plenitude
e se realiza, temos acesso ao mistério da vida do Deus trino:
A distinção de vários sujeitos em Deus não é possível do ponto de vista cristão
senão a partir do comportamento de Jesus Cristo. Somente nele abriu-se para
nós e tomou-se acessível a Trindade... Do Pai, do Filho e do Espírito Santo
como “pessoas” divinas, só sabemos graças à figura e ao comportamento de
Jesus Cristo. É preciso, então, aprovar o princípio, ffeqüentemente aplicado
hoje, segundo o qual não podemos conhecer a Trindade imanente e nem nos
aventurar em afirmações a respeito a não ser pela Trindade econômica75.
74. Não se excluem, com isto, as “mediações participadas”; cf. VATICANO II, const. Lumen
Gentium, 60; 62; JOÂO PAULO II, Redemptoris missioy5; CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA
DA FÉ, decl. Dominus Iesus, 14.
75. H. U. VON BALTHASAR, Teodramática 3. Las personas dei drama: El hombre en Cristo,
Madrid, 1993, 466. Von Balthasar adverte neste mesmo contexto quanto à extrema cautela que
se requer ao aplicar à Trindade analogias de fora do cristianismo. Estas analogias carecem de
base “econômica”, não provêm da revelação de Cristo, razão pela qual não são acessos válidos
ao mistério. Ou são simples adições de princípios cosmológicos, com o que não fugiriam do
triteísmo, ou manifestações ou aspectos do Uno, caso em que se trataria de doutrina do tipo
“modalismo”. Outras alusões de von Balthasar ao Grundaxiom serão encontradas em ibid., 150;
Teodramática 4. La accióny Madrid, 1995, 295-304; Theologik II. Wahrheit Gottesy Einsiedeln,
1985, 123-125. Voltaremos a nos reportar a von Balthasar quando abordarmos a segunda parte
do axioma fundamental.
76. CTI, Teologia - Cristología - Antropologia, C) 2 (249).
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
77. H. U. VON BALTHASAR, Teodramática 3, 466-467: “Na Trindade revelada por Cristo
aparecem as duas coisas ao mesmo tempo: que Deus como Pai, Filho e Espirito se ocupa do
mundo, e isso para sua salvação — o dogma da Trindade, em sua entranha mais profunda, é
portador de um cunho soteriológico —, todavia ocupa-se do mundo enquanto Deusy que não
se converte ‘no amor’ pelo fato de ter o mundo como seu ‘tu’ e seu ‘partenaire\ mas por ser já
em si mesmo e acima do mundo ‘o amor’” .
78. Cf. W. KASPER, Der Gott Jesu Christi, Mainz, 1982, 336: “Se o axioma da identidade da
Trindade imanente e econômica há de levar à fundamentação e não à dissolução da Trindade
imanente, então não se pode entender essa identidade no sentido da fórmula tautológica A =
A. O ‘é* neste axioma não pode ser entendido no sentido de uma identidade, mas no sentido de
uma presença não-dedutível, livre, gratuita e histórica da Trindade imanente na econômica”.
79. G. LAFONT interpretou neste sentido a segunda parte do axioma, em uma das primeiras
tomadas de posição significativas sobre ele, muito pouco tempo depois que tinha sido publicado
o artigo de K. Rahner em Mysterium salutis; cf. sua obra Peut-on connaître Dieu en Jésus-Christ?,
Paris, 1969,212; indica-se ai que Rahner quer estabelecer uma “reciprocidade perfeita” entre as
duas partes do axioma. Não me consta que Rahner tenha afirmado semelhante coisa, e Lafont
não cita texto algum a respeito. K. Rahner disse que se Deus, livremente, quer comunicar-se,
tem de fazê-lo deste modo, porém a reciprocidade perfeita é uma interpretação que vai mais
além da letra do autor alemão. B. FORTE critica também o vice-versa em termos, a meu ver,
excessivamente lancinantes em Teologia delia StoriayCinisello Balsamo, 1991, 54-55: “O ‘vice-
versa’ não pode ser aceito: não obstante todas as precisões possíveis, ele corre o risco de resol
ver o divino no mundo e, portanto, de reconduzir a teologia da revelação a uma filosofia da
revelação, caracterizada pela necessidade, intrínseca em Deus mesmo, do ato da revelação”; cf.
também A. STAGLIANÒ, Il mistero dei Dio viventey Bologna, 1996, 490, para quem a segunda
parte do axioma não enquadra apropriadamente o tema da liberdade divina. Esta liberdade
foi, como vimos, claramente afirmada por K. Rahner e pela Comissão Teológica Internacional.
Do ponto de vista da teologia protestante, interpretou-se também o “ao inverso” de K. Rahner
no sentido de uma correspondência estrita; assim, B. OBERDÖRFER, Filioque. Geschichte und
Theologie eines ökumenischen Problems, Göttingen, 2001, 197; 261s.; 571. Oberdofer, como eie
próprio assinala explicitamente, inspira-se na teologia trinitária de W. Pannenberg, segundo a
qual, efetivamente, a correspondência entre a Trindade imanente e a econômica é muito forte.
Teremos oportunidade de tratar deste problema no capítulo 3.
38
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
homens, dando seu Filho para a salvação do mundo (Jo 3,16; cf. ljo 4,8-11).
Portanto, não se trata exclusivamente do fato de que a economia da salvação
nos remeta à Trindade em si mesma, mas também de assegurar que é esta
mesma Trindade que se faz realmente presente na economia da salvação. Em
minha opinião, é este, e não outro, o significado da segunda parte do axioma
fundamental, que, prescindindo da formulação concreta de Karl Rahner, a
Comissão Teológica Internacional fez sua, na forma matizada que já vimos.
A Trindade imanente é a Trindade econômica, ou seja, é a que se com u
nica livre e gratuitamente na economia de salvação. Existe uma identidade,
todavia já nos deparamos em diferentes ocasiões com a necessidade de matizar
seu alcance. Impõem-se dois esclarecimentos evidentes, e foram geralmente
aceitos na teologia recente: por um lado, a Trindade não se constitui na eco
nomia da salvação e, por outro, também não se exaure nela82. Daí, portanto,
que se tenha de estabelecer uma distinção necessária, não adequada, entre a
Trindade imanente e a econômica83. Na diferenciação necessária da econo
mia e da teologia existe uma “ correspondência”84. Assim como ocorre uma
correspondência entre o modo como a Trindade se revela e seu ser íntimo,
assim a própria Trindade se expressa e se comunica livre e gratuitamente,
e ao mesmo tempo verdadeira e definitivamente (o que não quer dizer de
maneira exaustiva) na revelação de Cristo. Assim, as duas partes do axioma
sustentam-se mutuamente. A primeira parte, por si mesma, levaria apenas a
dizer que na revelação cristã temos uma manifestação verdadeira de Deus,
mas não que Jesus leve a cumprimento e aperfeiçoe a revelação e confirme
com o testemunho divino que Deus está sempre conosco (DV 4, “... reve-
lationem complendo perficit ac testimonio divino confirmat, Deum semper
nobiscum esse...” ). O acontecimento de Cristo nos remete verdadeiramente
à Trindade imanente somente se nele esta mesma se fez presente de maneira
insuperável no éon atual.
Desse ponto de vista é preciso ter presente e sem dúvida se há de acolher
a afirmativa de W. Kasper: “Na autocomunicação histórico-salvífica está pre
sente de um modo novo a autocomunicação intratrinitária: em palavras, sinais
82. Cf. as reflexões de Y. CONGAR, El Espíritu Santo, Barcelona, 1983, 454-462; La parola
e il soffio, Roma, 1985, 131.
83. Cf. K. RAHNER, El Dios trino..., 371; H. U. VON BALTHASAR, Teodramática 3, 466.
84. Falar de correspondência já na primeira parte do axioma deixa talvez mais aberto o mistério
do Deus em si mesmo do que o simples “é”. Já nos anos 1930, esta expressão foi usada por A.
STOLZ, De Sanctissima Trinitate, Freiburg, 1939, 130: “ ... oiconomiae internae correspondere
oiconomiam externam”. Devo este dado a A. CORDOVILLA, La creaáón en Cristo en la teologia
de Karl Rahner y Hans Urs von Balthasar, Roma, 2002, 47 (tese inédita de doutorado).
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
por converter-se em uma espécie de condição prévia para a revelação e doação de Deus em seu
sentido mais próprio e verdadeiro” . Entre estes teólogos estão K. Rahner e ). Moltmann. Cf. a
discussão de suas teses em ibid., 295-304. Não entramos agora na questão do acerto de Balthasar
nesta discussão. Retornaremos mais adiante (cap. 2) a tratar da teologia trinitária de K. Rahner
e das críticas que foram feitas. Sobre a discussão do problema do hegelianismo em K. Rahner, cf. G.
J. ZARAZAGA, Trinidad y comunión. La teologia trinitaria de K. Rahner y la pregunta por sus
rasgos Hegelianos, Salamanca, 1999, onde são assinaladas, parece-me que com muita razão, as
diferenças que o separam do pensador idealista.
89. Em alguns teólogos protestantes notáveis delineia-se este problema de uma plenitude
escatológica de Deus (mesmo que seja por uma decisão do próprio Deus) em seu modo de abor
dar a relação entre Trindade econômica e Trindade imanente. Cf. W. PANNENBERG, Teologia
sistemática /, Madrid, 1992,325-363; J. MOLTMANN, Trinität und Reich Gottes. Zur Gotteslehre,
München, 1980, 166-178; Der gekreuzigte Gott. Das Kreuz Christi als Grund und Kritik christli
cher Theologie, München, 1972,222-236. Cf. adiante capítulo 3. Sobre a teologia trinitária de W.
Pannenberg, podemos desde já reportar-nos ao estudo de K. VECHTEL, Trinität und Zukunft. Zum
Verhältnis von Philosophie und Trinitätstheologie im Denken Wahlfhart Pannenbergs, Frankfurt
am Main, 2001. Partindo de outro ponto, P. Schoonenberg considera que a plena personalização
do Filho e do Espírito só tem lugar a partir da encarnação. Deste ponto de vista, a rigor, não se
podería falar de uma Trindade imanente sem a economia da salvação; cf., entre outras publicações,
Der Geist, das Wort und der Sohn. Eine Geist-Christologie, Regensburg, 1992.
90. ORÍGENES, Princ. IV 4,1 (SCh 268,400-402); cf. I 2,6 (SCh 252,122).
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
não vem do nada. Estes dois extremos foram incompatíveis na teologia dos
primeiros séculos cristãos. No entanto, a crise ariana obrigou a um redelinea-
mento profundo deste e de outros pontos de vista. É Deus Pai simplesmente
porque quer? Não significaria isto que ele, o Filho, não é Deus igual? A
partir do Concílio de Nicéia, efetuou-se uma clarificação sobre o significado
da vontade e da liberdade em Deus, em relação com sua natureza. Atanásio
foi talvez o primeiro a formular o problema de modo preciso: a questão da
voluntariedade ou da involuntariedade não se delineia em Deus nos mesmos
termos que entre os homens:
Se o Filho é por natureza e não por vontade, pode não ter sido querido pelo Pai,
e existe contra sua vontade? Absolutamente não. O Filho é querido pelo Pai...
Pois do mesmo modo que sua bondade não começou por vontade, mas ao
mesmo tempo não é bom sem vontade nem desígnio... igualmente, a existência
do Filho, embora não tenha começado por vontade, não é involuntária nem
lhe falta o consentimento. Pois, da mesma maneira que o Pai quer sua própria
hipóstase, quer a do Filho, que é própria de sua essência91.
91. ATANÁSIO, C. Arianos III 66 (PG 26,451). Cf. os cap. prévios, 61ss. Fides Damasi (DH
71): “Pater Filium genuit, non voluntate, nec necessitate, sed natura” ; Concílio XI de Toledo,
ano 675 (DH 526): “quem [Filium] Deus Pater nec voluntate nec necessitate genuisse credendus
est, quia nec ulla in Deo necessitas capit, nec voluntas sapientiam praevenit” .
92. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 29,6-9 (SCh 250,188-192): “Porque, dizem, se o gerou
sem desejá-lo, foi obrigado; todavia, quem sujeitou sua vontade? E como pode ser Deus quem
foi obrigado? E, se o gerou querendo-o, o Filho, então, é filho da vontade. Como pode então
proceder do Pai?... Deus criou todas as coisas querendo ou sem querer? Se o fez obrigado, temos
aqui um ato de tirania... E, se criou com livre vontade, também as criaturas se vêem |>rivaclas
de seu Deus e, antes de todas, tu... porque ao pôr a vontade no meio, separa-se as criaturas de
seu Criador... O Pai é Deus porque quer sê-lo ou o é contra sua vontade?... E por que não é
também ele, segundo teus pressupostos, um produto de sua vontade? E se é Deus sem querê-lo,
quem o forçou a ser Deus?... Grande coisa é para ti saber que foi gerado. Quanto ao modo, não
consentimos sequer que os anjos o entendam; muito menos que o entendas tu. Porém, como queres
que te explique o modo? Pois tal como o conhecem o Pai que gerou, e o Filho que foi gerado”.
44
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
Alguém respondeu com agudeza a um herege que perguntava com muita astúcia
se Deus gerou o Filho querendo ou sem querer; porque se houvesse respondido
wsem querer”, seguia-se em Deus uma muitíssimo absurda miséria; e se houvesse
respondido “querendo”, o herege teria concluído imediatamente com razões
invencíveis que o Filho não era da natureza, mas da vontade. Por isso aquele,
muito precavido, perguntou-lhe por sua vez se Deus Pai era Deus querendo
ou sem querer. De tal maneira que, se respondesse “sem querer”, seguir-se-ia
aquela miséria que é grande loucura crer em Deus. E se dissesse “querendo” lhe
teria respondido por sua vez que o próprio Deus o é por sua vontade e não pela
natureza. Que saída lhe restava senão calar-se, se não quisesse ver-se amarrado,
por causa de sua própria pergunta, com um laço impossível de ser desfeito?93.
93. AGOSTINHO, De Trinitate XV 20,38 (CCL 50,516); também ibid. 19 37 (514), o Filho
de seu amor é o Filho gerado de sua substância. E também Dial sexaginta quinque quaes. Q.7
(PL 40,736): “Voluntate genuit Pater Filium, an necessitate? Nec voluntate, nec necessitate”.
Já HILÁRIO DE POITIERS, Syn. 58 (PL 10,520): “Nec dissimilem sui edidit natura naturam,
sed ex substantia Dei genitus naturae secundum originem attulit, non secundum creaturas,
voluntatis essentiam”; ibid. 59: “Cum non ex voluntate, ut caetera, Filius subsistere doceretur,
ne secundum voluntatem tantum, non etiam secundum naturam haberet essentiam...”. Sto.
Tomás, STh I, 41,2, discute ainda o problema em termos semelhantes. Os atos de noção não
são voluntários, embora caiba entender a voluntariedade no sentido de que o Pai quer ser Deus
e, portanto, quer gerar o Filho. Cf. também Contra gentiles IV 11.
94. H. U. VON BALTHASAR, Teodramática 4, 299-330.
45
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
95. G. LAFONT, Peut-on connaître Dieu en Jésus-Christ (cf. nota 79), 201 ss.
46
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
a nós com liberdade total e a partir da plenitude de sua vida. A doação que
Deus faz de si mesmo mostra-se como mais plena se consideramos a igual
dignidade das três pessoas. A “correspondência” entre a Trindade econômica
e a imanente e o fato de acentuar que esta última, livre, porém realmente,
se expressa e se comunica na economia da salvação não têm por que trazer
consigo a volta a estágios que o desenvolvimento dogmático superou. Uma
concepção mais profunda da liberdade de Deus coloca-nos em condições de
relacionar melhor a teologia e a economia. Não nos parece, por conseguinte,
que tenhamos a temer que o axioma fundamental deva nos induzir a formu
lações que ponham em risco o dogma trinitário.
Deus se comunica livre e gratuitamente. Todavia, é evidente que, se decide
livremente comunicar-se, há de fazê-lo de maneira que esta comunicação seja
real. Esta comunicação gratuita e livre não pode ser feita senão no Filho e no
Espírito; só existe esta correspondência entre a “autocomunicação” econômica
de Deus e a imanente que dá origem às pessoas divinas pela comunicação que
o Pai faz de sua divindade se efetuada uma autêntica revelação e comunicação
do próprio Deus. Karl Rahner assim se expressa:
Como o que se comunica é precisamente o Deus pessoal trinitário, e igualmente
a comunicação (que é feita à criatura por pura graça), se tem lugar livremente,
só pode ter lugar na forma intradivina das duas comunicações da essência
divina do Pai ao Filho e ao Espírito, porque outra comunicação distinta não
poderia comunicar de modo algum o que se comunica aqui, as pessoas divinas,
não sendo estas algo distinto de seu próprio modo de comunicação96.
96. K. RAHNER, El Dios trino..., 380-381. E imediatamente antes, 380: “Deus se porta co
nosco de uma forma trinitária, e este mesmo comportamento trinitário (livre, e não devido)
para conosco não é apenas uma imagem [Abbild] ou uma analogia da Trindade interna, mas
é esta mesma, comunicada de maneira livre e gratuita \frei und gnadenhaft)”. Talvez seja esta
uma das poucas passagens nas quais K. Rahner explica algo do “ao inverso” da segunda parte
de seu axioma. Por um lado, insiste-se na identidade entre a Trindade imanente e a econô
mica, porém, por outro, afirma-se que o comportamento para fora não é somente “ imagem
e analogia” . Não se exclui, portanto, este elemento de distinção, junto ao mais enfatizado da
identidade. Já fizemos referência à distinção “não adequada” entre a Trindade econômica e a
Trindade imanente (cf. o texto referente à nota 83).
47
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
97. STh III, 1,2: “Ad finem aliquem dicitur aliquid esse necessarium dupliciter: uno modo,
sine quo aliquid esse non potest, sicut cibus est necessarium ad conservationem humanae vitae;
alio modo, per quod melius et convenientius pervenitur ad finem, sicut equus necessarius est
ad iter. Primo modo Deum incamari non fuit necessarium ad reparationem humanae naturae:
Deus enim per suam omnipotentem virtutem poterat humanam naturam multis aliis modis
reparare. Secundo autem modo necessarium fuit Deum incarnari ad humanae naturae repa
rationem”; cf. também ibid. 1,1. Todos estes problemas já se encontram na base do Cur Deus
homo? de santo Anselmo.
98. Neste ponto, mesmo reconhecendo uma parte de verdade, provavelmente é preciso matizar
as críticas de G. LAFONT, Peut-on connaître..., 222-223, a K. Rahner. Aceitando o princípio
da liberdade divina e que não podem ser excluídas a priori outras possibilidades, é preciso ter
também presente a conveniência do caminho escolhido por Deus. Em ibid., 224, afirma-se que,
48
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
segundo K. Rahner, “si Dieu décide de créer, il faut que 1’homme Dieu apparaisse, en sort que
tout homme doive être defini au niveau de sa puissance obedientielle à Tlncamation” (destaque
do autor). Simplesmente é preciso dizer que a interpretação do pensamento de R. neste ponto
é incorreta. Se é justo o último inciso, não o é a primeira parte do texto. Dada a criação, não se
segue para K. Rahner a necessidade da encarnação. Ao contrário, para o autor alemão, poderia
haver homens sem a encarnação do Filho, embora não sem sua possibilidade. Esta possibilidade
basta-lhe para definir o homem a partir do poder de obediência para a encarnação, contando
com a própria encarnação. Assim em Para la teologia de la encarnación, in Escritos de Teologia
IV, Madrid, 1962, 129-157, 152: “Existem homens, sem dúvida, que não são o Logos mesmo.
Naturalmente, poderia também haver homens se o Logos não se houvesse feito homem, do
mesmo modo que pode ocorrer o menor sem o maior. Apesar de que o menor se baseia sempre
na possibilidade do maior, e não o inverso” . Cf. também as mesmas idéias em ID., Grundkurs
des Glaubens, Freiburg, 1976, 221.
99. Ao fazer uso deste último texto, não me associo à posição daqueles que, de um ou de
outro modo, se servem dele para pensar em uma plenitude da Trindade que se produziria no
final dos tempos (confusão entre a economia e a teologia). A manifestação plena de Deus, ligada
à parusia do Senhor segundo o Novo Testamento, é a manifestação do Deus que desde sempre
existiu, e que em suma gratuidade chama os homens à participação de sua vida.
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
103. Cf. H. U. VON BALTHASAR, Theologik II. Wahrheit Gottes, Einsiedeln, 1985, 297.
104. ID., Gloria. Una estética teológica I. La percepción de la forma, Madrid, 1985, 465: “Só
a culpa dos homens obriga o Filho a revelar-se ao mundo à maneira de ocultação”.
105. Cf. L. F. LADARLA, El Dios vivo y verdadero, 89-93.
106. A fé entra também na própria experiência dos discípulos no encontro com o Senhor
ressuscitado; sabemos que em várias ocasiões o reconhecimento do Senhor, quando este apa
rece, não é imediato; cf. Mateus 28,17; Lucas 24,19-32.36-33; João 20,11-18. De Tomé, diz-se
expressamente que creu depois de ter visto o Senhor (cf. Jo 20,29; cf. também Jo 20,8); cf. J.
CABA, Resucitó Cristo, mi esperanza. Estúdio exegético, Madrid, 1986,373-376; O. GONZÁLEZ
DE CARDEDAL, Cristología, Madrid, 2001, 135-136.
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
107. Cf. CTI, Teologia... IC ) 3 (250); CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÊ, decl.
Dominus Jesus, 15: w... pode-se e deve-se afirmar que Jesus Cristo tem, para o gênero humano
e sua história, um significado e um valor singular e único, somente dele próprio, exclusivo,
universal e absoluto. Jesus é, com efeito, o Verbo de Deus feito homem para a salvação de
todos”; cf. todo o n. 15.
108. CONC. VATICANO I, const. Dei Filius (DH 3002): “Hic solus verus Deus... non ad
augendam suam beatitudinem nec ad adquirendam... si mul ab initio temporis utramque de
nihilo condidit creaturam, spiritualem et corporalem...” .
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
109. CTI, Teologia... I C) 3 (250). De outro ponto de vista, JOÃO PAULO II, Tertio Millenio
Adveniente, 10: “Em Jesus Cristo, Verbo encarnado, o tempo se faz uma dimensão de Deus,
que em si mesmo é eterno” .
110. Cf. L. F. LADARIA, II Logos incarnato e lo Spirito Santo nelFopera delia salvezza,
Osservatore Romanoy20 set. 2000, 4-5; ID., Jesús y el Espíritu Santo en la obra de la salvación.
En tomo a la declaración “Dominus Iesus”, Revista Espanola de Teologia 61 (2001) 321-330.
111. Assim diz o Tomus ad Flavianum (DH 294): “Agit enim utraque forma cum alterius
comunione quod proprium est”; do mesmo, Promisse me memini ao imperador Leão (DH 317):
“ Quamvis itaque ab illo initio, quo in utero Virginis Verbum caro factum est, nihil unquam
inter utramque formam divisionis exstiterit, et per omnia incrementa corporea unius personae
hiermit totius temporis actiones.. (DH 318): “ ... in tantam unitatem ab ipso conceptu Virginis
deitate et humanitate consorta, ut nec sine homine divina, nec sine Deo agerentur humana”.
112. Podemos remeter aos textos do Concílio de Éfeso, DH, 250ss. Cf. também as precisões
de Leão Magno, Promisse me memini (DH 318): “ ... qua ilium, sicut Doctor gentium dicit,
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
exaltavit Deus et donavit illi nomen, quod super omne nomen excellit (cf. Fl 2,9s), ad eandem
intellegimus pertinere formam, quae ditanda erat tantae glorificationis augmento. In forma
quippe Dei aequalis erat Filius Patri...”. Também santo Atanásio falou da exaltação no mesmo
sentido: C. Arianos I 41-46 (PG 26,96-108).
113. Cf. STTiIIl 2,4.
114. O texto latino diz: "... etiam Pater cum Filio et Spiritu Sancto vitam trinitaríam modo
profundíssimo et — saltem ut nos intelligimus — quasi novo gerit, inquantum relatio Patris
ad Filium incarnatum in Spiritus doni consummatione ipsa relatio constitutiva Trinitatis est”.
Cf. Gregorianum 64 (1983) 11.
54
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
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A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
122. Também ibid. IX 39 (413-414): “Ut enim in unitate sua maneret ut manserat, glorifi-
caturus eum apud se Pater erat (cf. Jo 17,5), quia gloriae suae unitas per oboedientiam dispen
sations excesserat; scilicet ut in ea natura per glorificationem rursus esset, in qua sacramento
erat diuinae natiuitatis unitus”.
123. ID., Tr. Ps. 2,27 (CCL 61,56): "... ut, quia antea Dei Filius, tum quoque et hominis
Filius esset, id, quod tum hominis filius est ad perfectum Dei Filium, id est ad resumendam
indulgendamque corpori aeternitatis suae gloriam per ressurrectionis potentiam gigneretur...
Precatur id se quod ante erat esse, gigni scilicet ad id quod suum fuit”; cf. todo o n. 27 (56-
57). Sobre a geração na ressurreição (cf. SI 2,7; At 13,33), cf. ibid. 2, 30 (58). Para uma análise
ulterior destes textos e outros paralelos, cf. L. F. LADARIA, La cristología de Hilário de Poitiersy
Roma, 1989, 223-264.
57
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
pelas três pessoas “de modo quase novo”. É a novidade da encarnação, que
culmina no momento da ressurreição, quando a humanidade é plenamente
introduzida na vida divina. Os mistérios da economia da salvação não são
estranhos a Deus, que livremente e só por amor os realiza.
As passagens que acabamos de citar referem-se diretamente à humanidade
de Jesus, muito embora insinuem que, com ela, entram também de alguma
forma na vida divina todos os homens. Em outros lugares, esta “ inclusão”
aparece mais em primeiro plano. O que acontece em Jesus oferece vantagem
e é proveitoso somente para nós124. A humanidade assumida “afeta” a vida do
Filho eterno em sua relação com o Pai e o Espírito Santo. E não somente a
humanidade assumida hipostaticamente, pois “afeta” também a vida do Filho
glorificado e, portanto, de algum modo, também toda a Trindade, a vinculação
com Cristo de toda a humanidade (cf. GS, 22). Tudo quanto agora dissemos
coloca-se, evidentemente, em um nível muito distinto do que indicamos
até agora. A união do Filho a toda a humanidade e a cada um dos homens,
certamente real e bem testificada na tradição, tem características diversas da
união hipostática absolutamente irrepetível.
Esta questão aparece em algumas conhecidas passagens de Orígenes,
que tomam como alvo a dor de Jesus por nossos pecados, os quais, segundo
o Alexandrino, mesmo ressuscitado, continuam afetando-o até que tudo lhe
seja submetido no fim dos tempos:
Meu salvador se aflige também agora por meus pecados. Meu salvador não pode
experimentar alegria, porque eu permaneço na iniqüidade... Como poderia
beber o vinho da alegria (cf. SI 104[103],15) aquele que é advogado por meus
pecados (cf. ljo 2,1), quando eu o entristeço pecando? Como poderia estar
na alegria aquele que se aproxima do altar em propiciação por mim, pecador,
aquele a cujo coração chega continuamente a tristeza por meus erros?
Aquele que tomou sobre si nossas feridas e sofreu por nossa causa como mé
dico de nossas almas e de nossos corpos, esquecer-se-ia agora da corrupção
124. HILÁRIO DE POITIERS, Tritt. XI 49 (CCL 62A, 576-577): “Quod itaque Deus erit
omnia in omnibus (lCor 15,28), adsumptionis nostrae profectus est. Qui enim, cum esset in
Dei forma, repertus est in forma serui (cf. Fl 2,6-7), rursum confitendus est in gloria Dei Patrie
(Fl 2,11): ut non ambiguë in eius forma manens intellegatur, in cuius erit gloria confitendus.
Dispensatio itaque tantum est, non demutatio: in eo enim est in quo erat. Sed cum médium
est quod esse coepit, id est, homo natus, totum ei naturae quae antea Deus non fuit adquiritur,
cum Deus esse omnia in omnibus post sacramentum dispensationis ostenditur. Nostrae haec
itaque lucra sunt et nostri profectus, nos scilicet conformes efficiendi gloriae corporis Dei...
Ceterum nos in hominis nostri conformem gloriam proficiemus. In agnitionem Dei renouati
ad creatoris imaginem reformabimur”.
58
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
de nossas chagas?... “Não beberei deste fruto da videira até o dia em que o
beber, de novo, convosco...” (Mt 26,29). Espera, portanto, que nós nos con
vertamos, que imitemos seu exemplo, que sigamos suas pegadas, para gozar
então conosco e beber conosco o vinho no reino de seu Pai (cf. Mt 26,29)...
Irá bebê-lo de novo mais tarde, quando todas as coisas lhe houverem sido
submetidas (cf. ICor 15,28), e estando todos salvos e destruída a morte do
pecado, não será necessário oferecer vítimas pelo pecado125.
125. ORÍGENES, Hom. Lev. 7,2 (SCh 286,308-314); mais informações sobre a questão de
Cristo médico, em S. FERNÁNDEZ, Cristo médico según Orígenes. La actividad médica como
metáfora de la acción divina, Roma, 1999, 250-251.
126. Sermo mai. 98, de Ascensione Domini, 1 (PLS 2,494): “Ille iam exaltatus est super coe-
los, patitur tamen in terris quidquid laborum nos tamquam eius membra sentimus. Cui rei
testimonium perhibuit desuper damans: Saule, Saule, quid me persequeris? (At 9,4); et: Esurivi,
et dedistis mihi manducare (Mt 25,35)”; idéias semelhantes em En. in Os. 60,1-3 (CCL 39,765-
766): “In Christo autem nos omnes unus homo quia huius unius hominis caput est in caelo et
membra adhuc laborant in terra, et quia laborant uidete quod dicat: Exaudi, Deus, deprecationem
meam... Et quare clamat hoc? Dum angeretur cor meum. Ostendit se esse per omnes gentes toto
orbe terrarum in magna gloria, sed in magna tentatione”.
127. ORÍGENES, Hom. Ez. 6,6 (SCh 352,229-231): “Em primeiro lugar, [o Filho] sofreu
porque baixou e se manifestou. Qual é, portanto, esta paixão que sofreu por nós? A paixão da
59
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
outro lado, a esta última, enquanto é amor128. Não queremos entrar agora nas
questões do sofrimento de Deus129, a não ser na medida em que o problema se
relaciona com nosso tema, a saber, enquanto a economia da salvação “afeta” o
ser de Deus. Deixa acaso o Pai indiferente o fato de que o Filho tome sobre si
nossas dores e nossas culpas? O texto de Orígenes que citamos parece insinuar
que a compaixão de Deus Pai por nosso sofrimento funda-se no fato de que o
Filho compartilhou nossa condição. Porém, independentemente da exegese do
texto origenista, existem boas razões para pensar que, se no envio de seu Filho
ao mundo se mostra todo o amor do Pai por nós, não se pode pensar em uma
manifestação desse amor que não seja reflexo desta mostra de amor supremo e
não receba dela seu sentido mais profundo. Deus nos ama com amor de Pai somente
enquanto é o Pai de Jesus. Nossa filiação divina é participação da filiação de
Cristo. Também aqui cabe pensar na “mediação” de Jesus, em quem o Pai nos
ama e por intermédio do qual pode compartilhar nossos sentimentos. Este as
pecto não é, certamente, tão radical nem tão decisivo quanto o da encarnação
do Filho que, a partir daquele momento, não existe senão unido segundo a
hipóstase à humanidade assumida. Mas mostra também que a economia sal
vadora, livre e gratuita, na qual Deus se manifesta e se comunica aos homens
sem constrição de gênero algum, significa um compromisso tão radical com a
humanidade que não pode deixar Deus indiferente.
A Comissão Teológica Internacional, no documento que nos serviu de
guia, ocupou-se também da questão130. As referências à paixão de Jesus Cristo
60
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
amizade, quer que se lhe responda com amor. Quando seu amor é ofendido, a Sagrada Escritura
fala da dor de Deus e, ao contrário, se o pecador se converte a ele, fala de sua alegria (cf. Lc
15,7). ‘A saúde da dor está mais próxima da imortalidade que o pasmo daquele que não sente*
(AGOSTINHO, Enarratio in Ps 55,6)”; ibid. 5.1: “A piedade cristã sempre recusou a idéia de
uma Divindade à qual de modo algum chegaram as vicissitudes de sua criatura; além disso,
era propensa a admitir que, como a compaixão é uma perfeição nobilíssima entre os homens,
também existe em Deus, de modo eminente e sem imperfeição alguma, a mesma compaixão,
isto é, ‘a inclinação [...] da comiseração, não a falta de poder* (LEÃO I, Tomus ad Flavianumy
DS 293). Os Padres denominaram esta misericórdia perfeita em relação às desgraças e dores
dos homens ‘Paixão de amor*, de um amor que na Paixão de Jesus Cristo levou a cumprimento
e venceu os sofrimentos”. Cf. toda a seção B) (259-263).
131. Ibid. II B) 5 (263): “Segundo a Sagrada Escritura, Deus criou o mundo livremente,
conhecendo em sua presciência eterna — não menos eterna que a geração do Filho — que o
sangue precioso do Cordeiro imaculado Jesus Cristo (cf. lPd l,19s.; Ef 1,7) seria derramado.
Neste sentido, o dom da divindade do Pai ao Filho tem uma correspondência íntima com o
dom do Filho ao abandono da cruz. Todavia, já que também a ressurreição é conhecida no
desígnio eterno de Deus, a dor da “separação” é sempre superada no gozo da união, e a com
paixão de Deus trino na paixão do Verbo entende-se propriamente como uma obra de amor
perfeitíssimo, com a qual é preciso alegrar-se”.
61
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
62
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE ECONÔMICA E A TRINDADE IMANENTE
nos em hipóteses. É claro que Deus não se exaure na economia, por mais que
insistamos na verdade de sua revelação e de sua doação a nós. Ademais, esta
revelação concreta se dá em Jesus, que se esvaziou de si e assumiu a forma de
servo. Contemplamo-lo em um caminho de obediência que o leva à cruz, e
só com os olhos da fé o vemos ressuscitado e glorificado e exaltado à direita
do Pai. Caminhamos na fé e não na visão. Esta é outra dimensão da gran
deza de Deus, que se manifesta com tanto maior evidência quanto mais nos
aproximamos na pequenez e na humildade.
Entretanto, estas não são razões para rechaçar a segunda parte do axioma,
por mais que nos convidem a uma interpretação prudente dela. A Trindade
imanente comunicou-se “absoluta e definitivamente” no acontecimento de
Jesus Cristo. Nele, e não em outro homem ou em outra ocasião, Deus se
comprometeu irrevogavelmente com todos os homens e estabeleceu com eles
uma aliança nova, universal e imperecível. Não nos é permitido, neste ponto,
deixar-nos ficar no “agnosticismo” acerca do caráter definitivo da revelação de
Cristo. Além disso, Deus, que não se aperfeiçoa nem cresce de maneira algu
ma com a economia da salvação (neste ponto, nunca insistiremos bastante),
a partir dela conduz sua vida trinitária de um modo, segundo nossa maneira
de entender, “quase novo”. É a conseqüência da assunção da humanidade por
parte do Filho. As relações constitutivas da Trindade são agora relações das
outras pessoas com o Filho encarnado. E, tendo-se feito o Filho irmão dos
homens, a todos eles se estende a “compaixão” divina.
As duas partes do axioma sustêm-se mutuamente. É evidente que sem a
primeira a segunda não tem sentido. Mas tampouco a primeira sem a segun
da. Se não existir certo “ao inverso”, não poderemos dizer que a Trindade
econômica seja a imanente. Remeter-nos-ia apenas a um Deus sempre maior
que se podería crer presente na revelação de Cristo, o qual, porém, poderia
revelar-se de outros modos e em outros acontecimentos. Por outro lado, a
liberdade e a transcendência de Deus, que é preciso pôr em destaque na reta
interpretação da segunda parte do axioma, nos previnem contra uma inter
pretação demasiado unívoca do primeiro “ e \ O ser trinitário de Deus nos
é revelado na economia da salvação e não se constitui nela. Uma vez que a
revelação de Deus ou é a revelação da Trindade ou não é, podemos pensar,
sempre com referência ao mistério, que as relações entre as pessoas que apa
recem na economia “correspondem” às que existem na Trindade imanente133.
133. Falar de “correspondência” entre a economia e a teologia pode ser mais adequado que
falar de simples identidade, porque expressa melhor o “excesso” de Deus em si mesmo. Cf. a
nota 84. Esta terminologia é usada, entre outros, por K. VECHTEL, Trinität und Zukunft. Zum
63
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
As "três pessoas"
divinas na unidade da essência
A. A época patrística
1. Alguns poucos exemplos serão o suficiente: I Ciem. 44,6 (FP 4,130); 58,2 (144); INÁCIO
DE ANTIOQUIA, Mag. 13,1-2 (FP 1,136); Efes. 9,1 (112); JUSTINO, / Apol. 13,1-3 (Wartelle,
112); 60,5-7 (180); 65,3 (188-190).
65
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
2. Cf. Contra Noetum 7,1; 14,2.3 (Simonetti 166; 176). Não se usa ainda o termo para o
Espírito Santo.
3. Cf. ibid. 7,1. A unidade e a distinção entre o Pai e o Filho vêem-se refletidas em João
10,30: “Eu e o Pai somos um”; o texto será usado constantemente nos séculos posteriores com
esta mesma finalidade. A menção à unidade na potência recorda ATENÁGORAS, Legaúoy 10
(BAC 116, 660-661), onde encontramos duas vezes expressões similares.
4. Evidentemente, nada existe que faça pensar em um sentido técnico trinitário. No NT o
termo prósopon aparece muitas vezes. Junto à significação normal de “rosto”, “face”, encon
tramos o termo nas frases nas quais se indica que Deus (Cristo) não olha as (não faz acepção
de) “pessoas”: cf. Mt 22,16; Mc 12,14; Lc 20,21; G1 2,6. Com este sentido, usa-se na LXX; cf.
Deuteronômio 1,17. Usam-se outros termos derivados de prósopon em Atos 10,34; Romanos 1,11;
Efésios 6,9; cf. Colossenses 3,25. Também no sentido de pessoa, indivíduo, 1 Coríntios 1,11.
5. São Justino conhecia o termo, que serve para a distinção dos que participam em um
diálogo, ou identificação do personagem que fala; assim, por exemplo, os profetas falam “em
pessoa” (= em nome) do Pai ou do Filho; cf. Apol 1,36,1.2; 37,1.3.9; 38,1; 49,1; Tryph. 42,3;
88,6. Orígenes, Hipólito, Clemente de Alexandria conhecem também este uso, que irá adquirir
novas conotações para a teologia trinitária em Tertuliano; cf. A. MI LANO, Persona in teologia.
Alie origini dei significato di persona nel cristianesimo antico, Roma, 21996, 69-70.
6. Adv. Prax. 11,4 (Scarpat 168): "... non posse unum atque eundem uideri qui loquitur
et de quo loquitur et ad quem loquitur”; 11,9-10 (170): “His itaque paucis tamen manifeste
distinctio trinitatis exponitur. Est enim ipse qui pronuntiat Spiritus et Pater ad quem pronun-
tiat et Filius de quo pronuntiat. Sic et cetera quae nunc a Patre de Filio uel ad Filium, nunc a
Filio de Patre uel ad Patrem, nunc a Spiritu pronuntiantur, unamquamque personam in sua
66
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
proprietate constituunt”. O Espírito Santo fala nos textos do Antigo Testamento, sobretudo
nos salmos. Cf. todo o contexto.
7. Cf. A. MILANO, Persona in teologia, 61-68; J. MOIGNT, Théologie trinitaire de Tertullien,
Paris, 1966, II, 589ss.
8. TERTULLANO, Adv. Prax. 2,4 (146): “Quase non sic quoque unus sit omnia dum ex uno
omnia per substantiae scilicet unitatem et nihilominus custodiatur oikonomiae sacramentum,
quae unitatem in trinitatem disponit”. No Filho e no Espírito Santo, Deus não se divide nem se
dispersa; ibid. 3,5 (148): “Quale est ut Deus diuisionem et dispersionem pati uideatur in Filio
et in Spiritu sancto, secundum et tertium sortitis locum, tarn consortibus substantiae Patris
quas non patitur in tot angelorum numero...” .
9. Santo AGOSTINHO, Conf XII 7,7 (CCL 27,219): “Et aliud praeter te non erat unde
faceres ea, Deus una trinitas et trina unitas”. Cf. mais matéria em L. F. LADARIA, El Dios vivo
y verdaderoy369.
67
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
primeiras, mostram que estas não podem existir uma sem a outra. Antes que se
começasse a usar de modo reflexo a categoria da relação e outras equivalentes,
notou-se já que não pode existir um pai sem um filho, nem vice-versa, pois
os dois se exigem um ao outro. Por isso, no caso em que ainda não se explica
em termos claros a eternidade da geração do Filho, pode-se duvidar também
da eternidade da paternidade divina101. Orígenes foi o primeiro a constatar de
modo explícito que, dada a imutabilidade divina, Deus não pode “ converter-se”
em Pai, mas desde sempre gerou, de modo misterioso, seu Filho unigénito11. 0
fato de ser em relação distinguirá as pessoas, porém, por sua vez, as mostrará
unidas na referência mútua, sem a qual não podem existir12.
10. TERTULIANO, Adv. Prax, 7,1 (156): w... exinde eum Patrem sibi faciens, de quo pro
cedendo Filius factus est”; sobre a mútua exigência dos dois, ibid. 10,2-3 (164): “Atquin pater
filium facit et patrem filius et qui ex alterutro fiunt a semetipsis sibi fieri nullo modo possunt,
ut pater se sibi filium faciat et filius se sibi patrem praestet. Quae instituit Deus, etiam ipse
custodit. Habeat necesse est pater filium ut pater sit, et filius patrem ut filius sit. Aliud est
autem habere, alium esse...”.
11. ORlGENES, Princ. I 2,2 (SCh 252,114): “ Propter quod nos semper deum patrem no-
vimus unigeniti filii su i...”; I 2,3 (116): MQui autem initium dat uerbo dei uel sapientiae dei,
intuere ne magis in ipsum ingenitum patrem impietatem suam iactet, cum eum neget semper
patrem fuisse et genuisse uerbum et habuisse sapientiam in omnibus anterioribus temporibus
uel saeculis”.
12. Ibid. I 2,10 (132): “Quemadmodum pater non potest esse quis, si filius non sit, neque
dominus esse quis potest sine possessione uel seruo”.
13. Cf. ATANÄSIO, C. Arianos I 14 (PG 26,42B). Se o Filho não fosse eterno, a Trindade
teria sido imperfeita; cf. ibid. 17ss. (48ss). Nas reflexões de Atanásio sobre a luz e o resplendor,
é visível a influência de ORÍGENES, De princ. I 2,7 (SCh 252,124), entre outras passagens.
68
AS "TRÉS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
disso, o Pai não pode estar privado de sua sabedoria e de sua força, que é o
Filho (cf. ICor 1,24)14. Próprio do ser do Pai é o ser do Filho15. Pai e Filho,
portanto, exigem-se um ao outro. A distinção pessoal ocorre somente na relação
mútua. Hilário de Poitiers não abordou a questão de outro modo:
Porém, onde existe o Pai, existe também sempre o Filho. Se conheces ou pensas
em um Deus ao mistério de cujo conhecimento pertence o ser Pai, e que não
é sempre Pai do Filho gerado, conheces e afirmas também que não é Filho o
que foi gerado. Porém, se pertence sempre ao Pai o ser eternamente Pai, faz-se
mister que sempre pertença ao Filho o ser etemamente Filho16.
69
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
18. Cf. BASÍLIO DE CESARÉIA, Contra Eunomium II 9-10 (SCh 305, 36-40). Sobre o
pensamento de Basílio, cf. H. V. DRECOLL, Die Entwiklung der Trinitátslehre des Basilius
von Càsarea, Gõttingen, 1996; B. SESBOÜÉ, Saint Basile et la Trinité. Um acte théologique au
IVe siècle. Le rôle de Basile de Césarée dans Télaboration de la doctrine et du langage trinitaire,
Paris, 1998.
19. Or. 29, 16 (SCh 250, 210); ibid. 31,7 (288): "... o Filho é Filho segundo uma relação
mais elevada, já que nós não podemos expressar de outro modo que é de Deus e que lhe é
consubstanciaF’.
20. Assim, por exemplo, Or. 31,9 (290): “A distinção da manifestação ou, se assim se pode
dizer, a relação entre eles cria a diferença de nomes; assim é salvaguardada a distinção das três
hipóstases na única natureza e a única dignidade da divindade”. Notemos que, à diferença dos
textos anteriores, o Espírito Santo é contemplado aqui junto ao Pai e ao Filho no tecido das
relações intratrinitárias.
70
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
Santo Agostinho
Um passo decisivo na conexão mais explícita entre as noções de pes
soa e relação será dado na contribuição de santo Agostinho. Recolhendo e
aprofundando algumas das intuições dos capadócios, também o Doutor de
Hipona fará a distinção entre o que em Deus se diz “ad se” ou “ad aliquid”.
Tudo o que se diz “ad se”, diz-se de Deus enquanto uno21. Referimo-nos a
cada uma das pessoas somente quando usamos os nomes relativos que as
caracterizam. E estes não indicam substância diversa22. Os nomes de Pai e
Filho não oferecem problemas, porém na Escritura encontra-se também
para o Espírito Santo um nome relativo: o de dom de Deus23. Pode-se, as
sim, estender ao Espírito Santo o que se diz do Pai e do Filho. Somente no
plano da relação, e não no da substância ou do que se diz “ad se”, cabe em
Deus a distinção das pessoas. Esta não se pode dar enquanto se fala de Deus
em si mesmo, mas somente no plano da relação. Precisamente por isso, não
constitui obstáculo à unidade divina, que se dá na substância. Além disso, é
preciso acrescentar que a relação não é em Deus acidental, porque, dada a
simplicidade e a imutabilidade divinas, em Deus os acidentes são totalmente
excluídos24. Em Agostinho, seguindo a linha que víamos insinuada em certas
passagens de Gregório, e à diferença de outros textos deste autor e sobretudo
de Basílio, as relações, mais que garantir a unidade de substância das pessoas,
garantem que a distinção em Deus não atenta contra aquela. As perspectivas
de são Basílio e de santo Agostinho, como facilmente se depreende, não são
exatamente as mesmas. Certamente não é aceitável uma distinção radical
entre os esquemas grego e latino da Trindade; também segundo este último,
21. Cf. Trin. V 8,9 (CCL 50,215-216); VII 3,6 (254) etc.
22. Trin. V 7,8 (214): “quod relative pronuntiatur, non indicat substantiam”.
23. Ibid. 11,12 (219): “sed ipsa relatio non apparet in hoc nomine; apparet autem cum dicitur
donum Dei”. Cf. todo o parágrafo (218-220).
24. Ibid. 5,6 (211):“ ... quamuis diuersum sit Patrem et Filium esse, non est tamen diuersa
substantia: quia hoc non secundum substantiam dicuntur, sed secundum relativum; quod
tamen relativum non et accidens, quia non est mutabile”. Cf. Também, para o que segue, L.
F. LADARIA, Persona y relación em el De Trinitate de San Augustin, Miscelânea Comillas 30
(1972) 245-291.
71
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
25. AGOSTINHO, Trín. IV 20,29 (CCL 50,200): “Totius divinitatis, vel si melius dicitur deitatis
principium pater est”. Cf. os concílios de Toledo VI, XI e XVI (cf. DH 490; 525; 568).
26. Trataremos desta questão no capítulo 4.
27. Trin. V 9,10 (217): ‘Tarnen cum quaeritur quid tres, magna prorsus inopia humanum
laborat eloquium. Dictum est tarnen tres personae, non ut illud diceretur, sed ne taceretur” ; VII
4,7 (255): “ Et cum intelligitur saltem in aenigmate quod dicitur, placuit ita dici, ut diceretur
aliquid cum quaereretur quid tria sint, quae tria esse fides vera pronuntiat”. Cf. também VII
6,11-12 (261-267).
28. Trin. VII 6,11; cf. todo o parágrafo (261-265).
29. Cf. ibid.; também Trin. VIII proem. 1 (268); IX 1,1 (293).
72
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
das três pessoas, Pai, Filho e Dom, parece existir ainda para Agostinho um
“substrato” absoluto sobre o qual esta relação se apóia. Com efeito, o Doutor
de Hipona, reagindo contra algumas idéias que conhecemos, expressas, entre
outros, por Atanásio, assinala que o Pai não pode ser sábio pelo Filho, mas
que o é por si mesmo; caso contrário, dada a simplicidade divina (o ser e o ser
sábio, bom etc. identificam-se), o Pai também “seria” pelo Filho. Isto, porém,
para Agostinho significaria uma contradição, porque equivaleria a dizer que
o Pai não é nada em si mesmo, mas que tudo o que é, ele o é em relação ao
Filho: “O Pai não seria nada em si mesmo, e não somente seu ser Pai, mas em
absoluto tudo o que é, dir-se-ia em relação ao Filho. E como seria da mesma
essência o filho cujo pai, a respeito de si mesmo, não é nem essência, nem
absolutamente nada?”30. Agostinho parece pensar que a relação deve apoiar-se
em um substrato absoluto. Do contrário, não se pode efetuar. Assim, chega
à conclusão de que o Pai tem de ser algo em si mesmo, para que se possa
pregar a seu respeito que é Pai por sua relação com o Filho; do mesmo modo
que se um homem não fosse homem em si não podería ser chamado senhor
em relação a seu servo31. Por isso, a conclusão a que é preciso chegar é que as
pessoas divinas são primeiramente pessoas, que se diz “ad se”, “antes” , logi
camente falando, de estarem relacionadas entre si como Pai, Filho e Dom de
ambos. Donde a aporia de Agostinho, à qual, pouco acima, fazíamos alusão:
tem-se de pregar três pessoas em Deus, ou seja, é preciso usar o plural para
o que se diz “ad se” . É uma exceção à regra formulada, que se deve à neces
sidade de responder o que são os três quando nos é perguntado. Somente
“pela necessidade do debate [propter disputandi necessitatem]” admite-se
este plural que não é relativo. E, neste caso, é preciso evitar toda distância ou
30. Trin. VII 1,2 (246). Interessante também a continuação do texto (246-247): “Neuter ergo
ad se est, et uterque ad invicem relative dicitur: na pater solus non solum quod pater dicitur, sed
omnino quidquid dicitur relative ad filium dicitur; ille autem dicitur et ad se? Et si ita est, quid
dicitur ad se? Na ipsa essentia? Sed patris essentia est filius, sicut patris virtus et sapientia, sicut
verbum patris et imago patris: aut si essentia dicitur ad se filius, pater autem non est essentia,
sed genitor essentiae, non est autem ad se ipsum, sed hac ipsa essentia quam genuit, sicut hac
ipsa magnitudine magnus quam genuit; ergo et magnitudo dicitur ad se filius, ergo et virtus,
et sapientia, et verbum et imago. Quid autem absurdius, quam imaginem ad se dici?— Restat
itaque ut etiam essentia filius relative dicatur ad patrem. Ex quo conficitur inopinatissimus
sensus, ut ipsa essentia non sit essentia... Homo ergo cum dominus dicitur, ipse homo essentia
est, dominus vero relative dicitur; homo enim se dicitur, dominus ad servum; hoc autem unde
agimus, si essentia ipsa relative dicitur, essentia ipsa non est essentia. Hue accedit, quia omnis
essentia qui relative dicitur est etiam aliquid excepto relativo... Quapropter si et Pater non est
aliquid ad se ipsum, non est omnino qui relative dicitur ad aliquid”.
31. Cf. ibid.
73
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
Severino Boécio
A tentativa de reunir sob um conceito unívoco as pessoas divinas, hu
manas e angélicas não ajuda a contemplar os problemas específicos da dou
trina trinitária quando se trata da noção de pessoa. A definição de Boécio,
“naturae rationalis indivídua substantia”33, não inclui explicitamente a relação
nas características da pessoa divina. Todavia, também ele, em pura linha
agostiniana, assinala que “substantia continet unitatem, relatio multiplicat
trinitatem”34. A relação é, por conseguinte, o fator que cria a distinção, sem
que a unidade da essência divina fique afetada. Refere-se a esta unidade tudo
quanto se diz de Deus “ad se”. O relativo, em Deus, não indica que os termos
sejam diferentes; no caso de Deus, a relação se estabelece entre os que são
o mesmo, porém não o mesmo35. Pbr isso o Pai, o Filho e o Espírito Santo
não diferem senão na relação36. Se Boécio pensa, conforme parece ocorrer
também com Agostinho, em um substrato absoluto sobre o qual se funda a
relação, tal idéia não se deixa entrever a partir de suas breves páginas sobre
a Trindade, nas quais se fala muito das relações e, no entanto, dá-se pouca
atenção ao termo “pessoa”37.
32. Trin. VII 6,12 (267): “Aut si iam placet propter disputandi necessitatem, etiam exceptis
nominibus relativis, pluralem numerum admittere, ut uno nomine respondeatur, cum quaeritur,
quid tria, et dicere tres substantias sive tres personas, nulla moles aut intervalla cogitentur, nulla
distantia quantulaecumque dissimilitudinis...”.
33. Liber de persona et duabus naturis 3 (PL 64,1343).
34. De Trin. 6 (PL 64,1255). Ibid., imediatamente antes (1254-1255): “ ... facta quidem est trinita-
tis numerositas, in eo quod est praedicatio relationis: servata vero unitas in eo quod est indifferentia
vel substantiae vel operationis vel omnino eius quae secundum se dicitur praedicationis”.
35. Cf. ibid. (1255s). E também ibid. 5 (1254): “Differentiae vero ubi absunt, abest pluralitas,
adest unitas: nihil autem aliud gigni potuit ex Deo, nisi Deus, et in rebus numerabilibus repetitio
unitatum non facit modis omnibus pluralitatem. Trium igitur idonee constituta est unitas” .
36. Ibid. 5 (1254): “Quodcirca si Pater et Filius ad aliquid dicuntur, nihilque aliud, ut dictum
est, differunt, nisi sola relatione, relatio vero non praedicator quasi ipsa sit et secundum rem de
qua dicitur, non facit alteritatem rerum, de qua dicitur, sed, si dici potest, quo quidem modo
id quod vix intelligi potuit, interpretatum est personarum”.
37. Cf. na nota anterior um dos raros exemplos do uso de “pessoa” neste escrito. Algum texto
parece sugerir uma distinção na linha agostiniana: ibid. 5 (1254): “Neque accessisse dici potest
74
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
O Concílio XI de Toledo
Muitas destas idéias foram recolhidas na confissão de fé do Concílio
XI de Toledo, do ano 675 (cf. DH 525-532 para a parte trinitária). O gênero
aliquid Deo, ut Pater fieret; non enim coepit esse imquarn Pater, eo quod substantialis quidem
ei est productio Filii, relativa vero praedicatio Patris”. O interesse primordial é a insistência em
que a condição de Pai não começou em determinado momento.
38. Ibid. 3 (1251).
39. Cf. ibid. (1251). Todos os textos que são citados em continuação pertencem a este
capítulo 3.
40. Cf. o final do texto citado na nota 35.
75
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÄO
41. Deve ser citado, antes de tudo, o exemplo significativo de K. BARTH, Die Kirchliche
Dogmatik, I/I, München, 1935, 368; 373; 390; 414; recentemente, L. SCHEFFCZYK, Der Gott
der Offenbarung. Gotteslehre, Aachen, 1996, 281-282; L. F. MATEO-SECO, Dios uno y trinoy
Pamplona, 1998, 297-300.
42. A afirmação se repete diversas vezes no documento; cf. DH 528; 529; 530: “Haec sancta
Trinitas, quae unus et verus est D eus...”. E também o concílio toledano III, de 589, Symbolum
Recaredi regis (DH 470): “Haec enim sancta Trinitas unus est Deus, Pater et Filius et Spiritus
Sanctus” .
43. Cf. acima a nota 25.
44. Cf. capítulo 1, Liberdade e necessidade na Trindade imanente, p. 43.
76
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
Em tudo o que em Deus se diz “ad se” não cabe o número; o plural só
tem sentido se consideramos a relação das pessoas entre si; a relação distingue,
porém por sua vez mostra a referência, o fato de que os três estão em refe
rência um ao outro. Evita a confusão, mas não separa46. Esta função de unir
as pessoas que corresponde à relação se expressa ainda com maior clareza na
continuação: “não se conhece o Pai sem o Filho nem se reconhece o Filho sem
o Pai. Com efeito, a mesma relação que se expressa no nome pessoal proíbe
separar as pessoas; mesmo quando o nome não as designa em uma só vez,
em uma só vez as insinua. Pois ninguém pode ouvir nenhum destes nomes
77
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
sem que tenha de entender forçosamente o outro” (DH 532). A relação não
somente mostra a distinção, mas também proíbe a separação. Embora não se
jam nomeadas de uma só vez as duas pessoas, a menção do Pai implica a do
Filho. E o mesmo caberá afirmar do Espírito Santo, mesmo que não se diga
expressamente, uma vez que é o Espírito do Pai e do Filho. Nomeando uma
pessoa, implicitamente faz-se menção das outras. A Trindade não é una apesar
das relações que distinguem as pessoas, mas sim nelas. A mesma relação que,
ao que parece, as constitui impede de separá-las. A relação entre as pessoas
tem a ver, portanto, com a unidade divina, e não só com a distinção daquelas.
Assim, a unidade de Deus em três pessoas é o modo mais alto de unidade que
se possa imaginar. O Concílio não pretende definir em nenhum momento a
pessoa, mais ainda, deixa entrever a dificuldade deste conceito47.
Os textos deste concílio toledano despertam um grande interesse. Seguem
de perto santo Agostinho, mas talvez com mais clareza que este nos mostrem
os dois aspectos das relações entre as pessoas divinas: ao mesmo tempo que
as distinguem, unem-nas. A unidade da essência divina é a um só tempo e
inseparavelmente a unidade dos três.
Anselmo de Cantuária
Iniciaremos nosso breve itinerário com alguma referência à teologia da
pessoa na concepção de Anselmo, que mostrou uma grande preocupação com
insistir na unidade de Deus. O que é preciso explicar não é a unidade dos
três, mas sim a “trindade do uno”. A maneira como o problema é proposto
no capítulo 79 do Monologion é já expressiva: “Três ‘que’ se pode chamar de
algum modo a suma essência”. As dificuldades do conceito de “pessoa” apa
recem imediatamente, já que na inefável “trina unitas” e “una trinitas” que
encontramos em Deus a unidade funda-se na única essência, porém a trindade
em três “ não sei que”. Porém, por necessidade, é possível afirmar que “aquela
suma trindade ou trindade una é chamada uma essência em três pessoas ou três
substâncias [subsistências]”48. Anselmo empenhou-se em deduzir as pessoas
47. DH 531: “Tres igitur personae istae dicuntur, iuxta quod maiores definiunt, ut agnos-
cantur, non ut separentur”. Não se pode dizer sem mais nem menos que se trate de um conceito
genérico.
48. Ibid. (SCHM1TT I, 85-86). Cf. o desenvolvimento de todo o capítulo. A dificuldade
vem do conceito boeciano de pessoa. Se em Deus não existe pluralidade de substâncias, não
78
AS "TRÊS PESSOAS" DMNAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
pode haver tampouco pluralidade de pessoas. A rigor, também não se pode falar de substância
onde não há acidentes.
49. Conforme assinalado pelo próprio Anselmo no prólogo da obra (ibid. 8).
50. Ibid. 43 (ibid. 60); cf. De proc. Spiritus sancti (SCHMITT II, 180-181).
51. Cf. Mon. 38-41 (56-58).
52. Ibid. 43 (59): “Et cum ita sit alius ille et alius ille, ut omnino pateat quod duo sunt: sic
tarnen unum et idipsum est id quod est ille et ille, ut penitus lateat quid duo sunt” . Aparece
novamente a dificuldade da noção de pessoa.
53. Ibid. 53 (66).
54. Ibid. 49 (64): “Amat ergo seipsum summus spiritus, sicut sui meminit et se inteOigit”.
55. Cf. ibid. 51 (64).
56. Ibid. 54 (66).
79
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
essência suma57. Neste sentido, são atributos, funções do único sujeito divino
que se identifica com a essência comum, o sumo espírito que são os três. A
essência divina é incompreensível e, por conseguinte, não se pode explicar
“ como se sabe ou se diz a si mesma e se, ao dizer-se a si mesma, o Pai gera
e o Filho é gerado, ‘quem se preocupa com os da sua geração?’ (Is 53,8)”58.
De maneira semelhante, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, embora cada um
deles fale, não são três “ falantes” , mas um só, e ao mesmo tempo não se diz
mais que uma única coisa, a essência comum. Por isso, uma só é a sabedoria
que “neles” diz, e uma só a substância que neles é dita59. É, portanto, ao que
parece a essência divina que, nas pessoas, pronuncia e é pronunciada, gera,
é gerada e procede.
No começo destas linhas, fazíamos alusão às dificuldades de Anselmo
com o conceito de “pessoa” em Deus. Não se podem desconhecer os traços
“pessoais” que, em diversos momentos de sua exposição, a essência divina
comum adquire. Não é fácil, a partir destes pressupostos, integrar um discurso
coerente sobre as três pessoas divinas. A própria vacilação terminológica é
boa prova disso. Naturalmente, é preciso ter presente que a preocupação do
bispo de Cantuária era demonstrar a compatibilidade com a razão da doutri
na trinitária. Explica-se, neste sentido, a forte acentuação da unidade divina,
que não exclui a vida interna de Deus no dom de si, que é a característica
do Espírito supremo. Não obstante isso, formularam-se juízos muito severos
sobre a doutrina trinitária de Anselmo tal como foi expressa sobretudo no
Monologion60.
57. Cf. H. C. SCHMIDBAUR, Personarum Trinitas. Die militärische Gotteslehre des heiligen
Thomas von Aquin, St. Ottilien, 1995, 292; pode-se ver o conjunto do cap.: 280-299.
58. Mon. 64 (75): “Nam si superior consideratio rationabiliter comprehendit incomprehen-
sibile esse, quomodo eadem sum a sapientia sciât ea quae fecit...: quis explicet quomodo sciât
aut dicat scipsam, de qua aut nihil aut vix aliquid ab homine scire possibile est? Ergo si in eo
quod seipsam dicit, generat pater et generatur filius: ‘generationem eius quis enarrabit’ ”.
59. Mon. 63 (73): “necesse est ut, quemadmodum singulus pater et singulus filius et singulus
eorum spiritus est sciens vel intelligens, et tarnen hi très simul non sunt plures scientes aut
intelligentes, sed unus sciens, unus intelligens ita singulus quisque sit dicens, nec tarnen omnes
simul très dicentes, sed unus dicens. Hinc illud quoque liquide cognosci potest quia, cum hi très
dicuntur vel a seipsis vel ad invicem, non sunt plura quae dicuntur. Quid namque ibi dicitur
nisi eorum essentia? Si ergo ilia una sola est, unum solum est quod dicitur. Ergo si unum est
in illis quod dicit, et unum quod dicitur — una quippe sapientia est quae in illis dicit, est una
substantia quae dicitur — , consequitur non ibi esse plura verba sed unum”.
60. Cf. SCHMIDBAUR, Personarum Trinitas, 296, segundo a qual a diferença que haveria
entre Agostinho e o desenvolvimento de sua teologia por Anselmo seria a que separa Agostinho
do modalismo; cf. ibid. 298. Um quadro mais matizado em P. GILBERT, Dire ITneffabie. Lecture
du “ Monologion” de s. Anselme, Paris/Namur, 1984, 207-246.
80
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
61. Cf. De proc. I (SCHMITT 2, 180-181): “Quatenus nec unitas amittat aliquando suum
consequens, ubi non obviat aliqua relation is oppositio, nec relatio perdat quod suum est,
nisi ubi obviat unitas inseparabilis”. Sabe-se que a primeira parte deste texto, não a segunda,
inspirou de perto o concílio Florentino, decreto pro Iacobitis (cf. DH 1330). Sobre a processão
do Espírito em Anselmo, cf. S. BONANNI, II “Filioque” tra dialettica e dialogo. Anselmo e
Abelardo: posizioni a confronto, Lateranum 64 (1998), 49-79.
62. Ibid., 183.
81
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
63. Seja como for, mesmo que disséssemos que vem da relação, não havendo nenhuma
relação do Pai que não seja do Filho, deveríamos dizer também que vem dos dois. Cf. De proc.
II (189-190).
64. De proc. II (190): “Non autem magis est pater deus quam filius, sed unus solus verus
deus pater et filius. Quapropter si spiritus sanctus est de patre, quia est de deo qui pater est,
negari nequit esse quoque de filio, cum sit et de deo qui est filius”; afirmações semelhantes em
ibid. III (190-191); V (194); VII (198-199) etc.
65. De proc. I (183); IV (193). É evidente a influência de SANTO AGOSTINHO, Trin. IV
20,29 (CCL 50,199); XV 26,45 (524).
66. De proc. IV (193).
67. Ibid. VII (199). Ibid. III (191): “Quid apertius quam de solo vero deo, qui est pater et
filius, procedit spiritus sanctus, cum dicitur a patre procedere?”.
82
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
83
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
todo propósito de ver uma distinção na atuação das pessoas no “Patre per
Filium” de alguns orientais é rechaçado em seu plano, igualmente é reduzida
ao mínimo a significação do prinápaliter de santo Agostinho. Efetivamente,
não existe inconveniente em usar esta expressão, porque o Filho tem do Pai o
que é e, portanto, também o que dele seja o Espírito Santo. Entretanto, não se
deve dizer que o Espírito Santo seja principalmente do Pai, como se fosse mais
do Pai que do Filho, “já que, assim como o Pai não é mais Deus que o Filho,
embora o Filho tenha seu ser do Pai, igualmente o Espírito Santo não é mais
do Pai que do Filho, embora o Filho tenha do Pai que dele venha o Espírito
Santo”73. Mais que do Pai e do Filho enquanto são ad invicemyo Espírito Santo
procede da essência divina comum aos dois; o Espírito Santo é de dois, porém
enquanto são um só Deus. As relações não podem introduzir na unidade a
pluralidade que lhes é própria, nem vice-versa74. A relação é assim a categoria
que distingue dentro da unidade, e que assim se “opõe” a esta última. O exemplo
eloqüente da processão do Espírito mostra uma teologia trinitária na qual a
significação da distinção pessoal se reduz notavelmente. Neste sentido, Anselmo
pôde dar motivo à reprovação que se formula às vezes contra a teologia latina
por colocar a unidade da essência divina adiante das distinções pessoais. Os
juízos globais podem pecar por precipitação. Certo é que nem santo Agostinho
nem santo Tomás levaram as coisas a estes extremos. A essência divina chega
a aparecer aqui com caracteres quase pessoais. De certo modo, e com muitas
matizações necessárias, encontramo-nos diante de um precedente do que, no
século XX, será a linha desenvolvida principalmente por Karl Barth, à qual
nos referiremos neste mesmo capítulo. Todavia, não devemos esquecer que
Anselmo em outros contextos está bem consciente do valor da distinção das
pessoas em Deus e do caráter irrepetível delas. Referimo-nos já a sua resposta
à questão sobre a possibilidade da encarnação das três pessoas divinas.
84
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
di San Vittore (t 1173), Brepols, 1998; M. D. MELONE, Lo Spirito Santo nel De Trinitate di
Riccardo di San Vittore, Roma, 2001.
76. De Trinit. IV 22 (SCh 63,280): a pessoa divina é “divinae naturae incomunicabilis existen-
tiae”, adaptação à pessoa divina da definição geral de pessoa, “naturae rationalis incomunicabilis
existentia”, ibid. IV 23 (282).
77. Cf. ibid. IV 15 (260).
78. Ibid. IV 7 (242s). Em contrapartida, santo Agostinho falava da pessoa como um “aliquid”:
Trin. VII 6,11 (CCL 50, 263).
79. Ibid. II 16 (138): “Constat itaque de omnipotente quod ipse sit summum bonum, et
quod consequens est, quod ipse sit sibi suum bonum”; cf. Ill 2 (168s).
80. Ibid. Ill 2 (168).
81. Ibid. Ill 4 (174).
82. Ibid. Ill 2 (168). Texto inspirado em Gregório Magno, In Ev. Horn. I 17,1 (PL 76,1139):
“Minus quam inter duos caritas haberi non potest. Nemo enim proprie ad se ipsum habere
caritatem dicitur, sed dilectio in alterum tendit ut esse caritas possit”.
85
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
83. Cf. ibid. Ill 2 (170). Para nosso propósito, podemos prescindir do valor das ‘Tationes
necesariae” para a explicação da existência da Trindade. Podemos pensar que somente são tais
à luz da fé.
84. Ibid. Ill 18 (208): “ in sola geminatione persone non esset cui posset quivis duorum prae-
cipuas inconditatis sue delicias communicare”; ibid. 13(198): “Caritas autem ut esse vera possit,
personarum pluralitatem exigit; ut vero consummata sit, personarum Trinitatem requirit” .
85. Alguns exemplos: ibid. Ill 20 (212): “Ecce quomodo ex tertie persone consodalitate in
ilia Trinitate agitur ut concordialis caritas et consocialis amor ubique nusquam singularis inue-
niatur”; III 11 (192): “plenitudo bonitatis esse non possit, ubi voluntatis nel facultatis defectus
dilectionis consortem praecipuique gaudii communionem excludit. Summe ergo dilectorum
summeque diligendorum uterque oportet ut pari voto condilectum requirat, pari concordia
pro voto possideat”.
86. Ill 19 (208s): “Condilectio autem iure dicitur, ubi a duobus tertius concorditer diligitur,
socialiter amatur et duorum affectus tertii amoris incêndio in unum conflatur... Non enim de
qualicumque, sed de summa condilectione loquimur et qualem creatura a Creatore nunquam
meretur, nunquam digna invenitur” .
87. Tritt. V 16 (344): “Constat autem quia verus amor potest esse aut solum gratuitus, aut solum
debitus, aut ex utroque coniunctus, id est, ex uno debitus et ex alio gratuitus. Amor gratuitus est,
quando quis ei a quo nihil muneris accipit gratanter impendit. Amor debitus est, quando quis ei
a quo gratis accipit nihil nisi amorem rependit. Amor es utroque permixtus est, qui altematim
amando et gratis accepit et gratis impendit” ; cf. também V 19 (350); esta tripla distinção encontra-
se já em De verbis Apostoli 9; notado por P. CACCIAPUOTI, “Dews existential amoris”, 163.
88. Trin. V 20 (352): “ Nihil aliud est ibi persona ista quam dilectio summa hac proprietate dis-
tincta; nec aliud aliquid est persona tertia quam dilectio summa tertia proprietate distincta”.
86
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
coisa, cada pessoa é o mesmo que seu amor e por isso exclui-se a possibili
dade de que em Deus haja mais de três pessoas89. O terreno está preparado
para passar à terminologia mais estritamente trinitária que caracteriza cada
uma das três pessoas divinas segundo a forma de amor que lhe é própria90. É
comum, porém, às três pessoas o sumo amor e a suma dileção; mais ainda,
a distinção das três propriedades se dá no sumo amor91. Nada substancial
acrescenta a este esquema o quanto se diz sobre as processões, a geração do
Verbo e a processão do Espírito Santo. O Pai quer ter um condigno para dar-
lhe seu amor e dele recebê-lo, e para comunicar as riquezas de sua grandeza,
e quer ter um “condilecto” para ter o consórcio de amor e para ter a quem
comunicar as delícias de sua caridade. A comunhão da majestade é a causa
da primeira processão; a do amor, a da segunda92.
O pensamento do Vitorino nos coloca diante de um modelo que res
ponde a preocupações diversas das de santo Anselmo. A teologia de Ricardo
move-se, com certeza, no terreno especulativo, porém não se pode esquecer
que a história da salvação é o que dá a possibilidade de pensar em Deus como
comunicação de amor. O amor é a capacidade de estabelecer a diversidade, em
primeiro lugar em Deus mesmo, mas também fora dele, na criação93. Em Deus,
o amor parece coincidir com a essência divina, uma vez que o amor sumo
é o que é comum aos três. Para ser tal, este amor, como já vimos, necessita
de pluralidade, mais ainda, da Trindade. Se a unidade divina é fundada no
amor, supõe a distinção das pessoas. Neste sentido, unidade e distinção em
Deus iluminam-se mutuamente. E não pode ser de outro modo, se Deus não
pode deixar de ser, para si mesmo, o sumo bem. Volta-se a encontrar aqui
o problema da liberdade e da necessidade de Deus, que Ricardo não delineia
explicitamente. A comunicação do amor não pode ser imposta, porém, por
outro lado, dificilmente se pode pensar que não se realize. O próprio Ricardo
esforça-se por descobrir as “ rationes necessariae” que conduzem da unidade
divina ao conhecimento da Trindade. Somente a partir da noção da caridade ou
do amor pode a Trindade ser o lugar da comunicação, do gozo, da concórdia
e do amor “consocial”. Para isso, não basta a noção abstrata de substância ou
essência divina, é preciso recorrer também à noção bíblica do Deus amor (cf.
89. Ib. “ Quoniam ergo quelibet persona, ut diximus, est idem quod amor suus... sicut
quartam proprietatem, sic quartam personam nullatenus ibi invenire poterimus”.
90. Cf. ib id VI 14(412).
91. V 19 (350): “Ecce in amore summo trina proprietatum distinctio, cum sit tamen una
cademque in omnibus, utpote summa et vere eterna dilectio”.
92. Cf. ibid. VI 6 (386s).
93. Cf. P. CACCIAPUOTI, “Deus existential amoris'\ 229ss.
87
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
ljo 4,8.16)94. O amor cuja fonte é o Pai, o amor gratuito que constitui sua
pessoa é a raiz da comunicação da essência divina e, portanto, do fato que
“ ex-sistam” eternamente as outras duas pessoas divinas. Creio seja necessário
colocar na pessoa do Pai, em seu amor gratuito, e não na substância divina
que seria o próprio amor, a raiz do intercâmbio de amor que é a vida do
Deus uno e trino. Não parece haver lugar em Ricardo para uma unidade que
“ preceda” o amor do Pai como fonte. Outro fato é o de que sua exposição
parte da unidade divina, como primeiro dado que se impõe à razão humana
na reflexão sobre o mistério de Deus. Não parece que se possa buscar outra
unidade senão a que se dá no amor sumo, comum às três pessoas divinas, e
que tem sua raiz e sua origem na “comunicação” do Pai como fonte95.
A comunicação de amor do Pai e do Filho é intercâmbio e concórdia,
e conduz necessariamente à expansão no “condilectus”. Pareceria que uma
pura lógica racional deveria levar a uma multiplicação de pessoas divinas.
Entretanto, o dado revelado regula o pensamento e o ilumina a partir de
seu próprio interior. A caracterização dos três tipos de amor e, em último ter
mo, do modo de “ex-sistir” toma impossível pensar em um número ilimitado
de pessoas. Assim, a “ex-sistencia” vem a determinar a “incomunicabilidade” das
pessoas ao estabelecer um modo irredutível do amor. Embora não se tenha
apenas uso específico do conceito de relação, este, indiretamente, está muito
presente na reflexão do Vitorino. O amor que caracteriza cada uma das três
pessoas divinas tem as outras duas como destinatários. Inevitavelmente, o
modo de “ex-sistir” determina também um modo de “ser ad” , dada a íntima
conexão entre o receber e devolver o amor. A unidade e a distinção em Deus
fundam-se, por conseguinte, no amor que, por um lado, é comum aos três
e, por outro, manifesta-se em formas e modos distintos. Embora faça uso
de outro vocabulário, Ricardo se coloca, de certo modo, na linha que vai de
Agostinho a Tomás, que contempla as pessoas cada vez com maior clareza,
não só como relacionadas, mas como relação em si mesmas. Sem dúvida, não
é preciso fazer leituras de Ricardo que antecipem o que somente um século
depois dele será formulado claramente, nem, por outro lado, deve ser julgado
a partir dos critérios que somente em tempos posteriores encontrarão uma
expressão mais precisa.
94. Já santo Agostinho havia reconhecido no amor a essência divina, cf. Tritt. XV 6,10 (CCL
50,472); 17,28-29 (502-504; 19,37 (513-514).
95. Muito influenciado por Ricardo de São Vítor, BOAVENTURA usa a noção da “comu
nicação” por parte de Deus; Breviloquium 1, 2,3. “Et ideo ut altissime et piissime sentiat, dicit,
Deus se summe communicare, aeternaliter habendo dilectum ac condilectum, ac per hoc Deum
unum et trinum”.
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
Tomás de Aquino
Faz-se necessário insistir especialmente na definição de santo Tomás da
pessoa divina como a “relação subsistente”. Em qualquer natureza, a pessoa é o
que é distinto “ naquela natureza”. Em Deus, seguindo a doutrina agostiniana,
a distinção não se faz senão pelas relações. Por isso a partir destas ter-se-á de
buscar a definição da pessoa divina:
Ora, em Deus, [...] só há distinção em razão das relações de origem. [...]
a relação em Deus não é como um acidente que existe num sujeito; ela é a
própria essência divina. Por conseguinte, é subsistente como a essência divina.
Portanto, assim como a deidade é Deus, do mesmo modo também a pater
nidade divina é deus Pai, isto é, uma pessoa divina. Assim, a pessoa divina
significa a relação enquanto subsistente96.
96. STh 129,4. Ib. 32,2, ad 1: “ Relatio quam significai hoc nomen Pater, est subsistens persona.
Unde supra dictum est quod hoc nomen persona in divinis significat relationem ut subsistentem
in divina natura”; 42,4: “Eadem essentia quae in Patre est patemitas, in Filio est filiatio”.
97. STh 140,2. Sobre a identidade e a distinção entre as propriedades e as pessoas, ibid. 40,1.
É também importante para esta questão De Potentia q. 10, a.3.: wPrius secundum intellectum est
persona quam actio personalis. Relationes autem sunt constitutivae personarum, processiones
sunt quase personales. Ergo prius secundum intellectum sunt relationes quam processiones...
Processio... distinctionem in divinis requirit. Distinctio autem non est in divinis nisi per re
lationes. Ergo processiones in divinis supponunt relationes”. Porém, é interessante também a
distinção que o próprio santo Tomás estabelece em ibid.: “Est ergo alius modus intellegendi quo
intelligitur relatio ut constitutiva divinae personae, et alius quo intelligitur relatio ut relatio est.
Unde nihil prohibet quod quantum ad unum modum intelligendi, relatio presupponat proces-
sionem, quantum verum ad alium sit e converso. Sic ergo dicendum est, quod si consideretur
89
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
90
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
100. O motivo do Deus que não está só nem é solitário é conhecido na patrística; cf.
TERTULIANO, Adv. Prax. V 2 (Scarpat, 152); HILÁRIO DE POITIERS, Trin. 117 (CCL 62,17);
I 38 (37); IV 17,18.19 (120-122), entre outras passagens.
101. STh I, 31,3: “ Licet angeli et animae sanctae semper sint cum Deo, tamen si non esset
pluralitas personarum in divinis sequeretur quod Deus esset solus vel solitarius. Non enim
tollitur solitudo per associationem alicuius quod est extraneae naturae. Consociatio angelorum
et animarum non excludit solitudinem absolutam in divinis” .
102. H. CH. SMIDBAUR, Personarum Trinitasyinsiste muito fortemente no “personalismo”
de santo Tomás e na importância decisiva que nesta concepção tem a relação. Para Tomás,
está excluído que as pessoas possam ser constituídas e diferenciadas pelo que lhes é comum,
a essência divina. Nem a essência divina nem o ato da processão como tal podem constituir a
pessoa; não fica mais que a relação como o elemento que constitui a pessoa, aquela categoria
que tinha parecido até aquele momento demasiado “débil” para sustentar o ser da pessoa.
Cf. ibid. 668-669; e também 542, entre outros muitos lugares. G. EMERY, Essentialisme ou
personnalisme dans le traité de Dieu chez saint Thomas d'Aquin, Revue Thomiste 98 (1998)
5-38, com algumas discrepâncias com Smidbaur sobre o papel da essência divina subsistente
na constituição da pessoa, pensa que a comunhão das três pessoas é a meta a que quer con
duzir a teologia trinitária de Tomás (cf. p. 17). Também ele dá ênfase ao caráter fundamental
da relação na interpretação do personalismo trinitário. Não devemos esquecer tampouco este
aspecto ao considerar a doutrina do Espírito Santo como amor do Pai e do Filho, da qual
trataremos no capítulo 4.
91
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
2. A discussão moderna
Karl Barth
103. Kirchliche Dogmatik 1/1, München, 1935, 315: “A revelação é certamente um predicado
de Deus, porém de tal maneira que este predicado é totalmente idêntico com Deus mesmo”.
Também ibid. 313, no fato de revelar-se e no modo de fazê-lo é completamente ele mesmo.
104. Ibid. 315. Cf. também a continuação para o que segue.
92
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
93
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
Esta doutrina trinitária reza, sempre segundo o teólogo suíço, que “o Deus
que, segundo o testemunho da Escritura, se revelou é, em uma indestrutível
unidade, ele mesmo três vezes de modo diverso” 108. Como passa Barth da
reflexão formal inicial sobre esta “trindade” de revelador, revelação e efeito
dela para os conteúdos concretos da doutrina trinitária que tem na revelação
seu próprio fundamento?
A problemática da doutrina trinitária acha-se já preparada na revelação
de Deus como o Senhor a quem já nos referimos. Porém, a partir deste m o
mento, diz expressamente Barth, já não se procede com o esquema de sujeito,
predicado, complemento, ou, o que neste caso vem a ser o mesmo, de revela
dor, revelação, ser revelado. Este esquema devia somente aclarar o que e até
que ponto (dass unà inwiefem) a própria revelação nos leva ao problema da
Trindade109. Parece já com esta indicação que o ponto de partida no conceito
mesmo de revelação nos aproximava de um esquema melhor dito formal, que
em um primeiro momento deixa de lado os conteúdos da revelação, e que ne
cessariamente tem de dar passagem à forma concreta da revelação bíblica e da
doutrina trinitária. A aproximação que parte do esquema revelador, revelação,
ser revelado corresponde à ordem lógico-objetiva da revelação bíblica e da
doutrina trinitária. Porém, se de fato vemos como da revelação se passou à
doutrina trinitária da Igreja, se nos apresenta antes de tudo Cristo, a seguir
Deus e por último o Espírito Santo. É a ordem de 2 Coríntios 13,131101.
Barth, porém, ao que parece, continua fazendo uso do esquema lógico.
Nas narrações da Bíblia, continua nos dizendo, encontramos que Deus se deu
a conhecer. Deus é Deus-conosco, tem uma figura111. O fato de sua revelação
mostra uma diferenciação de Deus em si mesmo; em uma primeira forma de
ser (Seinsweise) oculta, pode ser também para nós. O fato da revelação mostra
que lhe é próprio o distinguir-se de si mesmo, ou seja, ser Deus oculto em
si mesmo, e ao mesmo tempo ser revelado, isto é, ser igualmente Deus na
figura daquilo que ele não é em si mesmo112. Deus pode fazer-se homem, isto
é, tem a capacidade de fazer-se desigual a si mesmo. Com isso nos é revelado
o que, segundo sua essência, não pode ser conhecido pelo homem. Deus é e
será sempre mistério. Revela-se a nós como Pai do Filho na medida em que
94
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
toma figura por nós em sua liberdade de ocultar-se ou revelar-se. Parece que,
mais do que partir do fato da relação paterno-filial que se mostra na vida de
Jesus, que certamente não nega, nosso autor se funda no fato da distinção em
Deus mostrada pela revelação, partindo da unidade do sujeito que se distin
gue a si mesmo113. Esta impressão se reforça a partir das reflexões de Barth
sobre a unidade divina que a doutrina da Trindade nem nega nem põe em
dúvida: “O Deus que, segundo a Escritura, se revela é um em três maneiras
próprias de ser [Seinsweisen] que existem em suas relações mútuas: Pai, Filho
e Espírito Santo. Assim é ele o Senhor, ou seja, o Tu, que sai ao encontro
do Tu humano e se comunica como o sujeito indissolúvel, e assim, e neste
modo, se revela ao homem como seu Deus” 114. Não deixa de ser significativa
a clara acentuação da unidade do sujeito e do fato de que o Deus Pai, Filho e
Espírito Santo é o Senhor, o Tu, um só, que sai ao encontro do eu humano
e a ele se revela. Em virtude desta unidade, a fé que se expressa nas fórmulas
triádicas da Igreja não tem três objetos, porque, se assim fosse, se trataria de
uma fé em três deuses. A unidade divina se dá na trindade. Evidentemente,
não existem três deuses, nem tampouco três partes da divindade, mas sim, que
“o nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo diz que Deus é o Deus uno em
uma tripla repetição [dreimalige Wiederholung], e isto de tal maneira que esta
repetição está fundada em sua mesma divindade, e portanto... que só nesta
repetição é o único D eu s...”115. À unicidade da essência divina, que não pode
multiplicar-se por três, pertence a “personalidade”. Em Deus tudo é pessoal,
nada é “neutro”, porém não podemos dizer que haja três “personalidades” .
A “personalidade” nada tem a ver inicialmente com a questão das pessoas em
Deus. Assim se esclarece o que significa a “ repetição” em Deus com a qual
acabamos de deparar: “ Não se fala de três ‘Eus' divinos, mas três vezes do
único Eu divino” 116.
Não existe antagonismo entre unidade e trindade. Uma unidade de Deus
sem a distinção das pessoas tornaria impossível a revelação divina na alteri-
dade como verdadeira presença de Deus. Por outro lado, se a revelação tem
de ser levada a sério, não pode haver hipóstases subordinadas. A revelação e o
ser revelado devem ser iguais ao revelador. Só a igualdade de essência de Cristo
113. Ibid.: “Já o fato de sua revelação diz isto: que lhe é próprio distinguir-se de si mesmo,
isto é, ser em si mesmo Deus ocultamente e ser, ao mesmo tempo, de modo completamente
distinto, isto é, ser revelado, e isto significa ser igualmente Deus na forma daquilo que ele
mesmo não é”.
114. Ibid. 367.
115. Ibid. 369.
116. Ibid. 370.
95
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
96
AS "TRÊS PESSOAS" DMN AS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
122. Ibid. 384. As aspas são minhas. W. Pannenberg notou a subordinação da doutrina
trinitária em K. Barth a uma idéia pré-trinitária da unidade divina ligada à subjetividade na
revelação; cf. Teologia Sistemática I, Madrid, 1992, 324-325.
123. Bastará citar como exemplo o concílio IV de Latrão (DH 804): “ ... sed est Pater qui
generat, et Filius qui gignitur, et Spiritus Sanctus qui procedit”. É verdade que o concílio se opõe
à posição que diz que é a essência de Deus que gera ou é gerada, o que K. Barth não diz. Com
estas citações, pode-se talvez entender por que dizíamos que, embora com grandes diferenças,
a posição de Barth recorda de algum modo a de santo Anselmo.
124. Kirchliche Dogmatik 1/1, 369: "... sua unidade consiste na trindade das ‘pessoas’”.
125. Ibid. 373: “sustulit singularitatis ac solitudinis intelligentiam professio consortii”. O
texto parece tomado de HILÁRIO, De Tritt. IV 17 (falta em Barth a indicação do capítulo),
embora na edição de Migne faltem as palavras ac solitudinis e encontremos professione em
lugar de professio (cf. PL 10, 110-111; a mesma leitura na moderna edição de CCL 62, 120;
as variantes de Barth não aparecem no aparato). Em todo o contexto, Hilário insiste em que
Deus não é solitário.
97
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
Karl Rahner
A influência de Karl Barth na teologia trinitária de Karl Rahner e, con
cretamente, em sua doutrina acerca das pessoas divinas é evidente. Também
para Rahner o termo “pessoa” , em sua acepção moderna, oferece dificuldade
quando o aplicamos às três pessoas divinas. Com efeito, falar de “três pessoas”
em Deus pode induzir a pensar em três centros distintos de consciência e de
atividade, o que facilmente levaria ao triteísmo. Devemos ter presente que as
palavras evoluem em seu sentido, e nem a Igreja, nem seu magistério podem
controlar tal evolução. Isto teria ocorrido com o conceito de pessoa, identifi
cada com o “campo de consciência”. Neste contexto, Rahner recorda como,
de acordo com numerosas declarações magisteriais, em Deus há somente um
poder, uma vontade, um único ser em si, um único obrar, uma única felici
dade etc.126. Rahner não propugna simplesmente uma substituição do termo
“pessoa” . Ele mesmo diz clara e expressamente o contrário127. Não obstante,
porém, insiste na aporia do conceito de pessoa128. De algum modo, ele retorna
à dificuldade já encontrada anteriormente por santo Agostinho: quem são estes
três? Quando dizemos que em Deus há três pessoas, obrigados a responder
a esta pergunta, “ generaliza-se e soma-se precisamente o que não se pode
somar, porque o único elemento verdadeiramente comum no Pai, no Filho
e no Espírito Santo é a divindade única, e não existe um aspecto que esteja
realmente acima deles, sob o qual pudessem ser somados como Pai, Filho e
Espírito” 129. Efetivamente, neste caso não podemos pensar que a essência se
multiplique, como ocorre, por exemplo, se falamos de três homens. É evi
dente que esta dificuldade surge em todos os outros casos em que usamos os
números para falar de Deus (duas processões etc.)130.
Em Deus, conforme já víamos, não sucede a existência de mais que um
poder, uma vontade, um único ser em si. A consciência de si mesmos que
126. Cf. El Dios trino como principio e fundamento transcendente de la historia de la salva-
ción, MySal II/l, 359-449 [411]; cf. no n. 78 abundantes referências de textos magisteriais.
127. Cf. ibid. 387; 441; 436: “Portanto, a única coisa que resta ao teólogo particular em nos
sos dias é empregar também o conceito de pessoa na doutrina trinitária, procurando, segundo
suas forças, livrá-lo das falsas interpretações às quais se vê atualmente tão exposto. Porque,
se o magistério lhe proíbe abandonar esses conceitos por sua própria autoridade, ao mesmo
tempo obriga-o a explicá-los”.
128. Cf. ibid. 432; também ibid. 434: “Se falamos hoje de pessoa no plural, dada a com
preensão atual do termo, vemo-nos quase obrigados a pensar em vários centros espirituais de
atividade, em várias subjetividades e liberdades espirituais. Não obstante, não ocorrem em Deus
três centros de atividade, nem três subjetividades e liberdades”.
129. Ibid. 433.
130. Ibid. 434.
AS "TRÊS PESSOAS" DMNAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
o Pai, o Filho e o Espírito Santo possuem é dada pela essência divina e, por
conseguinte, comum aos três; a consciência é um aspecto das pessoas concretas,
porém, para o autor alemão, não é um aspecto constitutivo do ser “pessoa”
que se diferencie da essência divina131. Por esta razão, “a consciência não é um
aspecto que distinga as ‘pessoas’ divinas entre si, mesmo quando cada ‘pessoa’
divina em sua concreção possuísse uma consciência. Por conseguinte, temos
de separar cuidadosamente do conceito de ‘pessoa’ tudo o que possa significar
três ‘subjetividades’” 132. Segue-se daí, para Rahner, uma conseqüência que deu
origem a muitas discussões: “Tampouco ocorre, por isso, ‘intratrinitariamente’,
um ‘tu’ recíproco. O Filho é a auto-expressão do Pai, porém, por sua vez, não
pode ser concebido como ‘pronunciando’, o Espírito é o ‘dom’ que já não dá
por sua vez. João 17,21, Gálatas 4,6, Romanos 8,15 pressupõem um ponto de
partida criado do ‘tu’ com relação ao Pai”133. Destas afirmações de Karl Rahner,
não se podem, com certeza, tirar conseqüências precipitadas e não deveriam
dar lugar a extrapolações excessivas. De fato, e quanto ao que diz respeito às
processões trinitárias, o Filho é o pronunciado e o Espírito é o que é dado, sem
que haja lugar, de modo algum, para o processo contrário. É possível que Karl
Rahner se refira somente a este aspecto da questão134. De qualquer maneira,
99
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
habitudinem ad verbum conceptum: nihil enim est aliud dicere quam proferre Verbum... Et
sic sola persona proferens Verbum est dicens in divinis”.
135. Cf. K. RAHNER, ElDios trino. .., 434, texto já citado na nota 133. Para R., o problema está
em que o amor recíproco teria pressuposto dois atos, o que ele quer excluir a todo custo.
136. Cf. 435. Cf. na mesma página a nota 118, na qual K. Rahner cita novamente B.
LONERGAN, De Deo Trino II, 193: “Et ideo relinquitur quod tria subiecta sunt invicem
cônscia per unam conscientiam quae aliter et aliter a tribus habetur” . Lonergan, porém, fala
sem reparos de “tria subiecta”, ao passo que Rahner, depois de haver negado que se dêem
três subjetividades, vê-se de algum modo forçado a falar de três sujeitos, porém coloca estas
palavras entre aspas: “Isto, porém, não significa que os ‘três sujeitos' em Deus tenham três
consciências distintas graças às quais sejam em si originariamente conscientes. Cada uma das
‘pessoas’ divinas está ‘consciente’ das outras duas..., porém, isto é, por um lado, o resultado
da identidade da essência divina... no Pai, no Filho e no Espírito e, por outro, é conseqüência
de que todo actus notionalis (idêntico à essência divina) como consciente (e relativo) toma os
demais atos juntamente conscientes” .
100
AS "TRÊS PESSOAS" DMNAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
concreto em cada uma dessas formas de dar-se, que naturalmente têm rela
ções mútuas entre si, sem fundir-se com o modalismo. Se traduzimos isto
na expressão da Trindade “imanente”, temos como resultado: o Deus único
subsiste em três formas distintas de subsistência [Subsistenzweisen]. Nesse
caso, “distintas formas de subsistência” seria o conceito explicativo não para a
pessoa, que significa o que subsiste diferenciado, mas para a personalitas, que
é o que faz com que a realidade concreta de Deus, que nos sai ao encontro de
maneiras distintas, se nos apresente precisamente desta maneira; e esta forma
de apresentar-se é algo próprio do mesmo Deus. A “pessoa” única (em Deus)
seria, nesse caso, Deus existindo e saindo a nosso encontro nessas formas
determinadas e distintas de subsistência137.
101
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
isto sim, um momento da pessoa concreta140. Seja como for, não deixa de ser
verdade que o caráter subjetivo dos três modos de subsistência não está devi
damente iluminado141. Por outro lado, Rahner indica que a expressão “formas
de subsistência” mostra que existe uma união entre os três que subsistem deste
modo distinto, um elemento que a noção de pessoa não daria142. Aqui apare
ce o limite da noção de pessoa usada por Rahner. Nela, não entra a relação.
Seguiu de preferência o conceito que ele denomina “moderno” (movido pela
preocupação de evitar os mal-entendidos e de não cair no triteísmo vulgar), e
não o da tradição teológica em que a relação teve um papel tão relevante. Há
de se notar também que a dimensão da relação constitui, igualmente, parte
do conceito moderno de pessoa, com o que, do mesmo modo, se abre assim
uma possibilidade de tornar acessível a nossos contemporâneos o conceito
clássico da teologia trinitária. Por outro lado, os três modos de subsistência
indicam, com efeito, talvez mais claramente, que neles subsiste o Deus uno,
porém não aparece claramente pelo próprio uso do termo como se articulam
unidade e trindade, tal como com o conceito de pessoa associado à relação se
produziu ao longo dos séculos143.
Voltemos, porém, às formas de subsistência: Karl Rahner apóia-se na
proposição destes termos, por um lado no ipÓTToç if|<; uTrápxcojç dos capadócios
e, por outro, na definição da pessoa como “ subsistens distinctum in natura
rationali” de santo Tomás144. 0 que, concretamente, significa subsistir ilumina-
se a partir daquele “ponto da própria existência no qual nos encontramos com
o primeiro e último desta experiência, com o concreto, irredutível e insubsti
tuível. Precisamente isso é o subsistente. Aqui se confirma novamente nosso
axioma fundamental: sem a experiência histórico-salvífica do Espírito-Filho-Pai
não se poderá conceber nada como o Deus único em seu subsistir distinto”145.
A divindade não é prévia a estas “formas de subsistência”. A primeira delas
constitui Deus como Pai, como princípio sem origem da autocomunicação e
140. Cf. El Dios trino..., 411-412, nota 78. M. SCHULZ, Sein und Trinitàt, 670, observa
justamente que para K. Rahner existem atos das pessoas.
141. Cf. ibid., 678.
142. Cf. K. RAHNER, El Dios trino..., 438.
143. K. Rahner mostra que as fórmulas clássicas usadas na doutrina trinitária com a palavra
“pessoa” podem ser também usadas com a expressão “formas de subsistência”, porém creio
que seja mostrado também que com esta última expressão não se vai mais além do que com
o termo pessoa; cf. ibid. 440. K. Rahner, por outro lado, não esqueceu o conceito trinitário da
“relação” e põe em guarda contra o perigo de usar esta categoria para reduzir o alcance das
distinções em Deus, dizendo que estas são unicamente relativas; cf. ibid. 431-432.
144. Cf. ibid. 433; 437; 447s. Para os Capadócios, cf. 410, nota 76.
145. Ibid. 437-438.
102
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
103
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
104
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
IV, 297, a autocomunicação divina só ad extra adquiriria verdadeira consistência; talvez seja
excessivo, embora Rahner insista muito neste ponto e seja parco sobre a Trindade imanente;
cf. os textos que reproduzimos na nota 148.
155. Criticada, por outro lado, por K. RAHNER, El Dios trino...y441-444.
156. Ibid. 432. O texto continua: u... para depois libertar-se da dificuldade ocasionada por
este pressuposto (ao delinear falsamente a ‘simplicidade’ de Deus) recorrendo à explicação de
que a diferença que se dá em Deus é ‘somente’ relativa”.
105
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
157. Será preciso entender um monoteísmo que não tenha em conta a trindade das pessoas.
A fé em Deus uno e trino é monoteísta, mais ainda, é a forma mais elevada do monoteísmo.
158. Cf. Trinität und Reich Gottes. Zur Gotteslehre, München, 1980, 166.
159. Cf. ibid. 166-167.
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166. Ibid.: “A constituição das pessoas e sua manifestação nas relações são duas faces da
mesma coisa. O conceito de substância reflete a relação da pessoa com a natureza divina co
mum. O conceito de relação reflete a relação das pessoas entre si. São dois pontos de vista que
haverão de ser distinguidos. As pessoas trinitárias subsistem na natureza divina comum, existem
em suas mútuas relações” .
167. Cf. ibid. 178. Víamos como a unidade de Deus era considerada aberta, comunicável;
de algum modo, portanto, parece incluir também a nós.
168. Em nosso próximo capítulo, dedicado à teologia do Pai, iremos nos ocupar das tenta
tivas de W. Pannenberg, que, embora com notáveis diferenças, têm alguns pontos de contato
com as de J. Moltmann.
169. Cf. principalmente sua obra Der Heilige Geist als Person in der Trinität, bei der Inkarnation
und in Gnadenbund: Ich-Du-WiryMünster, 21967, sobretudo 100-169. O desenvolvimento se
resume em suas passagens essenciais em 167-169.
170. Cf. STh I 30,4 ad.3; 42,4 ad.3, a pessoa não é um universal em Deus.
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
171. Ibid. 106: “As pessoas divinas, enquanto são pessoas, não têm nada em comum”; cf.
ibid. 100-107: a diferença entre as pessoas divinas é a coisa maior em que se possa pensar. Dada
esta diferença, Mühlen acredita que seja sumamente improvável que o Espírito Santo houvesse
podido manifestar-se sustentando uma natureza criada; cf. 113ss.
172. Cf. a descrição e análise destes dois modos fundamentais em ibid. 59-80.
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dá a processão do Espírito Santo. Como já tivemos oportunidade de constatar
por nós mesmos, neste último autor é suscitado o problema de descobrir se, na
origem das processões do Filho e do Espírito, se encontra a Pessoa do Pai ou
a essência divina. Este primado da essência sobre a pluralidade das hipóstases
seria ocasionado quando entre estas últimas não se dariam mais que relações;
entre outros motivos, porque a relação, do ponto de vista ontológico, possui
a consistência mais frágil e, por isso mesmo, o perigo de ameaçar a unidade
divina seria menor189. Para Von Balthasar, porém, seguindo santo Tomás, a
pessoa não é apenas a relação, mas o que com ela se estabelece de maneira
terminante. Este resultado viria do próprio conceito da relação190.
Não temos necessidade de retornar às passagens de santo Tomás nem de
santo Anselmo191. Para nosso propósito, é suficiente, neste momento, assinalar
como a partir das missões do Filho e do Espírito não se pode chegar, em caso
algum, a falar de uma fecundidade da essência divina. Ao Pai, e somente
ao Pai, pertence a fecundidade em sua fonte. Cristo se sente apenas devedor
do Pai, nunca da divindade fecunda no Pai192. Não existe nada no Pai anterior
à paternidade, a rigor não existe alguém que gera “antes” da geração.
Segundo Von Balthasar, santo Agostinho, a partir da analogia do espírito
humano, não pode chegar realmente às três pessoas em Deus, uma vez que as
atividades do interior do espírito não podem levar a ver em Deus três sujeitos.
Para santo Tomás, a “pessoa” é a preocupação fundamental. Em sua definição
dela como “subsistens distinctum in natura rationali”, com o acento primeiro
no “distinctum” e a seguir no “subsistens in” , designa o subsistir comum das
hipóstases na essência divina. Estas hipóstases não se distinguem mais que
pelas relações que, por sua vez, derivam das processões. Já que estas têm lugar
no espírito divino, podem ser reais sem dividir a divindade. Com o podem as
atividades espirituais dar lugar às pessoas? Por um lado, as processões em Deus
não podem ser acidentais, e devem identificar-se com a essência divina. Por
outro, a categoria da relação é a única que não afeta diretamente a substância
à qual “adere”, mas cria um vínculo entre as pessoas e significa uma direção,
um “para”. O ser, por um lado, idênticas à essência divina, e a existência, por
outro lado, deste “para” , deste “sentido” permitem a definição das hipóstases
como relações subsistentes; na relação está o único de cada pessoa, enquanto
subsistentes são idênticas à essência divina. E se a relação não é mais que a união
115
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÀO
entre dois termos como pode ser considerada o fundamento para a hipóstase?
Tanto a existência real das hipóstases em seu ser, cada uma diante das outras,
como o fato de que as três são um só Deus, nós os conhecemos por revelação.
Só no equilíbrio destas duas afirmações, cuja síntese não podemos alcançar, é
possível resolver especulativamente este problema193. Este é o balanço que faz
Von Balthasar de sua análise da posição de santo Tomás que reproduzimos
brevemente. Mesmo com a aceitação fundamental da definição da pessoa
como “ relação subsistente” , não parece ficar satisfeito com ela. Como já antes
insinuou e também nós observamos, tende, antes, a definir a hipóstase como
o que se constitui de maneira terminante por meio de uma relação194.
Pode-se pensar que a idéia do término da relação se encontra em co
nexão com a da fecundidade do amor divino, que encontraria sua expressão
no Espírito Santo, fruto do amor do Pai e do Filho. A reflexão sobre o amor
é precisamente o caminho escolhido por Von Balthasar para sair da dificul
dade apresentada pela concepção clássica de Agostinho e Tomás. Não é a
essência divina que é ativa nas processões, porém a essência divina é a que o
Pai comunica ao Filho na geração e ambos ao Espírito Santo na processão. O
doar-se do Pai ao Filho e de ambos ao Espírito Santo não é nem necessidade
nem vontade arbitrária, mas corresponde à natureza. Se é assim que sucede,
esta natureza não pode ser mais que o amor. Se o fator que move a doação
econômica do Filho e do Espírito pelo Pai é claramente o amor, para tanto
tem de haver uma pressuposição na essência do Deus uno e trino:
A essência divina, assim considerada, seria não apenas co-extensiva com o
acontecimento das processões eternas, mas também co-determinada pela
participação nela, única em cada caso, do Pai, do Filho e do Espírito Santo...
E já que todas as pessoas são hipóstases da única natureza divina concreta,
à qual cada uma delas é idêntica, sua unidade na essência pode também ser
descrita como seu ser no outro, seu “circumincessio”, por meio do qual for
mam juntas o único, livre e “pessoal” rosto de Deus195.
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AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
A pluralidade das pessoas não tem nada a ver com uma contingência,
mas é, antes, a expressão mais alta da plenitude ilimitada do ser divino, que
não poderia ser esgotada em uma pessoa só; necessita, de algum modo, do
êxtase das pessoas em sua mútua contraposição; só assim pode manifestar-se
como amor absoluto e como, simplesmente, a verdade200.
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
No equilíbrio que von Balthasar tenta manter, é evidente que suas prefe
rências se inclinam para insistir no modelo do amor interpessoal, com o uso
da analogia familiar, em que H. Mühlen201 o havia precedido, e também M.
J. Scheeben, a quem o autor suíço se refere explicitamente202. Nesta mesma
linha, é preciso situar também a insistência na noção da pessoa divina não
só como a relação subsistente, mas também como o resultado dessa relação.
Tudo isso há de ser visto também em conexão com a definição da essência
divina como amor. Também Von Balthasar haverá de ser situado entre os que
defendem um “nós” intratrinitário mais que um “eu” . Porém, à diferença de
outros modelos que privilegiam a comunhão interpessoal que, por temor do
subordinacionismo, tendem a reduzir o caráter fontal do Pai, Von Balthasar,
como tivemos oportunidade de constatar, insiste em que o mistério de Deus
e o mistério do Pai vêm a ser equivalentes; este último é, em sua doação
original, a fonte única e a origem da divindade. Esta doação é o fundamento
do mistério divino. Junto a esta ordem das hipóstases há de ser mantida de
qualquer maneira a igualdade delas. A essência divina é determinada assim
mediante as hipóstases203, com o que o caráter “pessoal” destas últimas põe-se
de manifesto204. Todavia, em última instância, todos os modelos extraídos da
criação são inadequados; já o indicamos no início de nossa breve exposição;
além disso, Von Balthasar acrescenta uma razão mais decisiva: Jesus não os
usou em sua interpretação do divino em sua pessoa205.
201. Embora este último insista, como vimos, no fato de que o Espírito Santo, à diferença
do filho na realidade humana, não é um “ele” para o Pai e o Filho, mas o “nós” de ambos.
202. Cf. Theologik II, 55-57; cf. M. J. SCHEEBEN, Die Mysterien des Christentums, Freiburg
im Br., 1865, 173-181.
203. Cf. Theologik II, 137.
204. Isto é patenteado nas indicações de von Balthasar acerca do caráter pessoal do Deus
uno, que aparece na mútua inabitação das pessoas; também enquanto assinala acerca das
“apropriações”, ibid. 137; o que se apropria a cada uma das pessoas poderia ser entregue por
esta às outras, à divindade, como bem comum. Cf. G. GRESHAKE, Der dreieine Gott. Eine
trinitarische Theologie, Freiburg/BaselAVien, 1997, 214-216.
205. Cf. Theologik 77, 61.
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AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
206. Cf. J. RATZINGER, Zum Personverstàndnis in der Théologie, in ID., Dogma und
Verkündigungy München/Freiburg Br., 1973, 205-223, 223. Na nota 12 desta mesma página,
suaviza o juízo formulado no texto, uma vez que os fatores da tradição contribuem para equi
librar a chamada doutrina psicológica da Trindade.
207. Cf. ibid. 223, nota 12. Ratzinger reporta-se à STh III 3,3 ad 1. O texto em questão diz
assim: “Sicut igitur nunc, positis proprietatibus personalibus in Deo, dicimus très personas: ita,
exclusis per intellectum proprietatibus personalibus, remanebit in consideratione nostra natura
divina ut subsistens, et ut persona”. Interessantes as precisões sobre este texto de G. EMERY,
Essentialisme ou personnalisme..., 33. O conhecimento de certa personalidade de Deus é algo
acessível fora da fé cristã; não se trata aqui, portanto, da consideração da realidade de Deus
tal como a fé ensina.
208. Cf. J. RATZINGER, Zum Personverstàndnis. .., 222; cf. Também, ID., Introducción al
CristianismOy Salamanca, 1971, 151-153.
209. Cf. o título da edição francesa da obra de J. ZIZIOULAS, Vêtre ecdésiaU Genebra,
1981.
210. Símbolo Quicumque (DH 75): “ Fides autem catholica haec est, ut unum Deum in
Trinitate et Trinitatem in unitate confitemur”; em diferentes documentos magisteriais da Igreja
antiga usam-se expressões similares; cf. DH 441; 501; 546.
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
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AS “TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
213. A propósito deste texto, diz TERTULIANO, Adv. Prax. 22,11 (Scarpat, 208): “Non per-
tinet ad singularitatem, sed ad unitatem, ad similitudinem, ad coniunctionem, ad dilectionem
patris qui filium diligit et ad obsequium Fili qui voluntati Patris obsequitur” .
214. Cf. L. F. LADARIA, El Dios vivo y verdadero. El mistério de la Trinidad, Salamanca,
22000, 105-107.
215. Cf. H. C. SCHMIDBAUR, Personarum Trinitas. Die trinitarische Gotteslehre des heiligen
Thomas von Aquin, St. Ottilien, 1995, 488-501, 537-544.
216. S. JOÃO DAMASCENO, De fide orth. 17 (PG 94,805), fala em termos muito “pessoais”,
no sentido moderno, do Filho e do Espírito. Assim diz do Filho: “ ... tem consistência substan
cialmente, é dotado de vontade livre, é eficaz e onipotente”; e do Espírito (também à semelhança
do Filho), diz-se pouco depois: “ ... é considerado uma pessoa própria e por si, procede do Pai
e descansa no Filho, ele mesmo se declara e expressa a si mesmo; não pode ser separado nem
de Deus em quem está, nem do Filho de quem é companheiro, nem, por último, sua maneira de
se dilatar é tal que deixe de estar em todas as partes; mas que, à semelhança do Logos, existe
segundo a hipóstase, é vivente, quer livremente, move-se a si mesmo, é eficaz, quer sempre
o bem, e para tudo o que decidiu tem o poder juntamente com a vontade...”. Tudo isso não
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
Cada pessoa tem consciência de seu “eu sou” vivendo na outra e para a
outra. Além da distinção e da consciência, a “personalidade” implica outro
elemento: a relação com o outro, que é a razão de ser da intersubjetividade219.
O que dá sua individualidade às pessoas opostas na relação é precisamente
o caráter mútuo das relações; total comunicação recíproca na plenitude da
obsta que toda a Trindade seja “uma substância, uma divindade, uma força, uma vontade, um
poder, um princípio, um poder, uma dominação, um reino...”; ibid. I 8 (809).
217. Cf. F. BOURASSA, La Trinità, in K. H. NEUFELD (a cura di), Problemi e prospettive di
teologia dogmática, Brescia, 1983, 337-372, esp. 35ls. Bourassa assinala neste contexto como,
na realidade, a teologia medieval também havia se preocupado em indicar que as relações
são o que une, e a “oposição” das relações é, antes de tudo, reciprocidade; SCHMIDBAUR,
Personarum Trinitas..., 542: “Não é precisamente que a única consciência divina sustenha
três ‘eus\ mas o contrário: três ‘eus’, sujeitos incomensuráveis, são portadores da consciência
divina à qual, de outra forma, não corresponde de maneira alguma uma subsistência absoluta.
Porém, isto só se capta a partir do complexo transfundo, não fácil de perceber, da ‘doutrina
da dupla relação’ do Aquinate; segundo ela, não é a essência divina como tal a que subsiste de
modo triplo, mas somente as relações mesmas como ‘esse-in’, que são realmente idênticas às
da essência divina” .
218. BOURASSA, La Trinità, 352-353. Ibid. 353: “Esta consciência ‘pessoal’ de uma existência
vivida para o outro, em uma reciprocidade tão total e infinita, é o ‘ápice’ da Unidade. Longe
de contradizê-la, esta implica, ao contrário, a unidade essencial da consciência e do amor e,
portanto, a unidade de substância”.
219. Ibid. 354. Cf. também dele: Personne et conscience em théologie trinitaire, Gregorianum
55 (1974) 471-493, 677-720. Inspiro-me nele, em parte, nas considerações que seguem, espe
cialmente 717-720.
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AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
220. Ibid. 719. O consenso no ponto da unicidade da consciência compartilhada por três
conscientes parece ser geral na teologia católica; cf. os dados recolhidos em L. F. LADARIA, El Dios
vivoy verdadero, 289; 293. Cf., além disso, H. MÜHLEN, Der heilige Geist..., 163; 165-166.
221. BOAVENTURA, Quest. Dis. De Trin. II, II: “Perfectior est unitas, in qua cum unitate
naturae manet unitas caritatis... Ergo si unitas divina est perfectissima, necesse est quod habeat
pluralitatem intrinsecam”; já GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 25,16 (SCh 284,194): “nem
caiamos, à maneira judaica, em um só princípio, estreito, invejoso e impotente”; cf. também
ibid. 17 (198); L. SCHEFFCZYK, Der Gott der Offenbarung. Gotteslehre, Aachen, 1996, 344: “A
fé cristã na Trindade sempre entendeu a si mesma como a forma mais elevada da fé em um
só Deus”.
222. Símbolo Clemens Trinitas (DH 73): “Clemens Trinitas est uma divinitas”; Fides Damasi
(DH 71): “Patrem, Filium et Spiritum Sanctum unum Deum colimus et confitemur” ; cf. SANTO
AGOSTINHO, Trin. I 2,4 (CCL 50,31); XV 5,7 (468).
123
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
223. BASÍLIO DE CESARÉ1A> De Spir. Sancto 18,45 (SCh 17 bis,406): “Na comunhão
(KOivuwia) da divindade está a unidade”.
224. Concílio de Florença, Decreto para os jacobitas (DH 1330): “ ... omniaque sunt unum,
ubi non obviat relationis oppositio”. Como se sabe, o princípio vem de santo ANSELMO, De
processioneSpiritusSancti, 1 (Schmitt2,180-181):“Quatenusnecunitasamittataliquandosuam
consequentiam, ubi non obviat aliqua relationis oppositio, nec relatio perdat quod suum est,
nisi ubi obsistat unitas inseparabUis”. A formulação de Anselmo é mais equüibrada que a do
concílio de Florença, apesar da clara linha de acentuação da unidade divina que caracteriza o
bispo de Cantuária.
225. SCHMIDBAUR, Personarutn Trinitas..., 542; 543, coloca-o em relevo para santo Tomás,
com numerosas citações. O autor dá ênfase à “incomensurabilidade” das três pessoas, isto é, à
impossibilidade de medi-las juntas.
226. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Cuestiones seiectas de cristología PV 8,
in Documentos 1969-1996, Madrid, 1998, 239: “O homem foi criado para integrar-se em Cristo
e, por ele, na vida trinitária, e sua alienação de Deus, embora grande, não pode ser tão grande
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AS “TRÊS PESSOAS" DM NAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
unidade e a distinção divinas não se opõem nem se limitam uma à outra. Deus
não é menos uno pelo fato de ser trino. Mais ainda, em Deus, a unidade e a
distinção crescem em proporção direta227. Assim sendo, não temos por que
nos esforçar por reduzir tanto quanto possível as diferenças entre as pessoas
relacionadas. Quanto mais forem acentuadas ao mesmo tempo a unidade e
a distinção no Deus uno e trino, que conhece em si mesmo a alteridade no
grau máximo na unidade mais profunda, mais clara aparecerá a capacidade
divina de abraçar e de acolher em si o homem livremente criado, distinto de
Deus, sem que ocorra nenhuma confusão entre Criador e criatura.
quanto o é a distância entre o Pai e o Filho em seu aniquilamento quenótico (F1 2,7) e no
estado em que foi ‘abandonado’ pelo Pai (Mt 27,46). Trata-se aqui do aspecto econômico da
relação entre as divinas pessoas, cuja distinção (na identidade de natureza e do amor infinito)
é máxima”. A Comissão Teológica reflete explicitamente sobre a relação entre a economia da
salvação e a Trindade imanente. O “abandono” do Filho na paixão leva a considerar a distinção
interna em Deus que o torna possível (notemos a mudança de terminologia, “distância” para a
economia salvadora, “distinção” na Trindade imanente). Esta distinção é a que permite a Deus
abraçar em seu seio o pecador que se distanciou dele; isto é possível em virtude da obediência
de Jesus que, por amor e em obediência ao Pai, se despoja de sua categoria, podendo assim
experimentar na paixão a angústia e a obscuridade, o “abandono” de Deus.
227. Cf. K. H. MENKE, Stellvertretung. Schlüsselbegriff christlichen Lebens und theologische
GrundkategorieyEinsiedeln/Freiburg, 1991, 434; ibid. 450: “A unidade de Deus é absoluto dar-
se (Pai), absoluto receber-se (Filho), na infinita unidade da infinita distinção do dar-se e do
receber-se (Espírito Santo)”.
228. BERNARDO DE CLARAVAL, Dediligendo Deo 12,35 (PL 182,996): “Quid vero in summa
et beata illa Trinitate summam et ineffabilem conservat unitatem nisi caritas? Lex erit ergo, et lex
Domini caritas, quae Trinitatem in unitate quodammodo cohibet et colligat in vinculo pacis”.
229. Referimo-nos já a H. MÜHLEN, Der heiligeGeist..., 163-164,que falada “Wirhaftigkeif
da natureza divina enquanto tal, que seria a razão pela qual as pessoas são umas nas outras.
125
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
enquanto a divindade tem no Pai a fonte única, e o Pai não existe mais que na
relação com o Filho e o Espírito, na doação e na entrega sem reservas230. Razão
pela qual não parece de todo adequado estabelecer dois níveis de unidade em
Deus: a unidade da essência divina e a do amor231. O próprio ser de Deus é
amor232, mais precisamente “ intercâmbio de am or”233. Um intercâmbio que,
como Ricardo de São Vítor assinalava, pressupõe uma “condignidade” entre
o amante e o amado que responde a este amor. Sem alteridade não pode ha
ver verdadeiro amor, este não tem lugar naquele que só se ama a si mesmo;
como já indicava são Gregório Magno: é preciso que o amor tenda ao outro
para poder ser caridade234. Contemplado de nosso ponto de vista, o amor de
Deus está na origem de sua livre ação criadora, faz surgir o outro, a criatura,
e a mantém em seu ser distinto de Deus. E, acima de tudo, envia-nos seu
Filho e o Espírito Santo para nos fazer filhos seus. Por isso podemos pensar
que o amor do Pai que se identifica com sua natureza divina está na origem
Se a essência divina se identifica com a plena posse no amor, mostra-se claro o porquê desse
”nós” inserido nela.
230. HILÄRIO DE POITIERS, Trin. IX 61 (CCL 62A, 440): “Nescit autem Deus aliud ali-
quando quam dilectio esse, neque aliud quam pater esse. Et qui diliget non inuidet; et qui pater
est, non etiam non pater totus est. Non enim admittit hoc nomen portionem, ut ex aliquo pater
sit et ex aliquo pater non sit...”.
231. Mesmo assim H. MÜHLEN, Der heilige Geist..., 165: “As pessoas divinas não são
somente uma só coisa em virtude da unidade da natureza divina, mas também em virtude da
unidade do amor”. Fundamenta esta distinção em santo Tomás, Super Joannem c. 17.1ec.5,2:
“In Patre et Filio est duplex unitas, scilicet essentiae et am oris...”. Mühlen, porém, assinala
que estas duas formas de unidade estão intrinsecamente relacionadas. Podemos pensar que a
relação é tão íntima que chegam a identificar-se.
232. Cf. o material extraído em L. F. LADAR1A, El Dios vivo y verdadero, 374-376, e que não
temos por que reproduzir. No entanto, acrescento alguns dados de que a idéia esteve presente
na tradição: assim GREGÓRIO DE NISSA, De anima et resurectione (PG 46,96): “A vida da
natureza de cima é amor, a vida divina é atuada mediante o amor”; LEÃO MAGNO, Sermo 92,3
(PL 54,454): “sic enim caritas ex Deo est, ut Deus ipse sit caritas”; JOÃO DA CRUZ, Romances
sobre el evangelio “In principio erat Verbum”, acerca da Santíssima Trindade (Obras, Salamanca,
1992, 41-42): “Três pessoas e um amado/entre todos três havia/e um amor em todas elas/e um
amante as fazia:/e o amante é o amado/em que cada qual vivia... Este ser é cada uma,/e este só
as unia/em um nó inefável/que dizer não se sabia;/pelo que era infinito/o amor que as unia,/
porque um só amor três têmVque sua essência se dizia...”.
233. Assim se expressa o CEC, n. 221: “ipsum Dei Esse est amor. Filium Suum unigenitum
et Spiritum amoris in plenitudine temporum mittens, Deus suum summe intimum revelat
secretum. Ipse aeterne est amoris commercium: Pater, Filius et Spiritus Sanctus, nosque des-
tinavit ut huius simus participes”.
234. Hom. In Evang. I 17,1 (PL 76,1139), texto citado na nota 82. Já AGOSTINHO, Trin. VIII
10,14 (CCL 50,290): “Quid est ergo amor, nisi quaedam vita duo aliqua copulans vel copulare
appetens, amantem scilicet et quod amatur”.
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AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
127
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
unidade e é o terceiro nesta comunhão como aquele que é o mesmo na doação do amor que,
respondendo ao Pai e ao Filho, sela a comunhão dos dois. Cf. mais adiante o capítulo 4.
238. “Tudo o que é meu é teu” (Lc 15,31), diz o pai do filho pródigo a ele. A comunhão
divina pode ser participada, por graça indevida, aos homens.
239. Nesta última passagem, mostra-se com clareza a relação entre o ser uno do Pai e do
Filho e a mútua inabitação: “Que todos sejam um. Como tu, Pai, em mim e eu em ti... Para
que sejam um como nós somos um [êv]; eu neles e tu em m im ...”, desta unidade devem ser
participantes também os homens, como já indicávamos na nota anterior.
240. Cf. ATENÁGORAS, Legatio pro Christianis, 10 (BAC 116,660). São interessantes, deste
ponto de vista, algumas observações de X. ZUBIRI, El problema teologal dei hombre: cristia
nismo, Madrid, 1997, 140-145, sobre a mútua implicação das pessoas, a compenetração entre
elas, e a vida pessoal de Deus; assim em ibid. 141: “A respectividade trinitária não é questão de
TiepixópEOtc; de natureza, mas de implicação do que é seu, isto é, dos caracteres pessoais da pessoa
enquanto tal... Inegavelmente, existe uma circulação de natureza, porém é como consequência
desta unidade estrutural das pessoas” ; ibid. 144: “se entendemos a vida de um ponto de vista
pessoal, então a vida pessoal não é composta unicamente de uma pessoa. Ao invés, a plenitude
da vida pessoal de Deus é composta por várias pessoas. E entre as várias pessoas, pessoalmente
distintas, constituem uma só vida pessoal, que não é numericamente uma, mas possui uma
unidade intrínseca de respectividade... Existe em Deus uma unidade que não é numérica... mas
de pessoas que, em sua distinção, constituem uma só vida trinitária, que é real e efetivamente a
vida de Deus”; “Em Deus existe uma vida, uma unidade puramente respectiva e não numérica,
como a que pode haver entre várias pessoas que em sua distinção de pessoas, não obstante,
vivem uma vida pessoalmente una. Reciprocamente, a vida pessoal divina na Trindade mesma
é essencialmente vivida em três pessoas distintas. Há em Deus uma vida trinitária 'una’, que
tem uma estrutura de certo modo unitária com unidade de respectividade”.
128
AS "TRÊS PESSOAS" DM NAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
amado, e vice-versa. Sem pensar, certamente, que esta inabitação seja mera
mente estática, mas com toda a dinamicidade do movimento que implica a
perichóresis grega. Poderíamos dizer que o ser em relação ao outro leva por
sua própria dinâmica interna ao ser no outro, ao entrar no outro, suprema
aspiração do amor que quer unir o diverso sem anulá-lo. A manifestação e
realização máxima da unidade do Pai e do Filho é o Espírito dos dois, que é
por sua vez o fruto desta mesma unidade. Unidade e fruto dela, porque só
neste fruto, precisamente no Espírito dos dois, realiza-se a unidade na qual
não existe nem teu nem meu. O Espírito é por sua vez um “eu” , uma pessoa,
que compartilha em plenitude tudo o que é do Pai e do Filho. Notemos que
o Espírito vem do Pai e do Filho, e não só do que têm em comum (unidade
da essência), mas também do amor dos dois (que parte sempre do amor cuja
fonte é o Pai), que pressupõe a distinção entre um e outro. No capítulo 4,
haverá oportunidade de voltar mais demoradamente a este particular.
241. Melhor falar de três que compartilham uma mesma autopossessão do que de três
autopossessões, precisamente para dar maior relevância tanto à distinção como, ao mesmo
tempo, à unidade. Cf. A. GONZÁLEZ, Teologia de la práxis evangélica. Ensayo de uma teologia
fundamental, Santander, 1999, 401.
129
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
242. Assim, a Fides Pelagii Papaeya que acabamos de nos referir (DH 441): “ ... et omnes tres
simul unus verus perfectus sit Deus, videlicet ex plenitudine divinitatis nihil minus in singulis,
nihil amplius intelligatur in tribus”.
243. Papa HORMISDAS, Inter eas quae ao imperador Justino, ano 521 (DH 367): “ Unum
est sancta Trinitas, non multiplicatur numero, non crescit aumento”; Concílio IX de Toledo
do ano 675 (DH 529): “Singulariter ergo, et unaquaeque persona plenus Deus et totae tres
personae unus Deus confítetur et creditur: una illis vel indivisa atque aequalis Deitas, maiestas
sive potestas, nec minoratur in singulis, nec augetur in tribus; quia nec minus aliquid habet,
cum unaquaeque persona Deus singulariter dicitur, nec amplius, cum totae tres personae unus
Deus enuntiatur” .
244. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or., 31,9 (SCh 250,290-292): “O que falta ao Espírito...
para ser Filho?... Por outro lado, também ao Filho não lhe falta nada para ser o Pai, porque
a condição de Filho não significa uma carência, e não por esta razão é o Pai... Estas palavras
não significam uma carência nem uma diminuição segundo a essência, enquanto ele não ter
sido gerado, o haver sido gerado e o proceder indicam o primeiro o Pai, o segundo o Filho,
o terceiro aquele que se chama precisamente o Espírito Santo, de maneira que se conserve
sem confusão a distinção das três hipóstases em uma única natureza e na única dignidade da
130
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
não se separa do número, embora tampouco possa ser contido por ele245. Só
existe na comunhão inefável das três pessoas, e as três juntas não são “ mais”
do que cada uma delas. É Trindade, e não triplo246. Temos de continuar falan
do das três pessoas, embora insistamos na “originalidade” de cada uma delas
e na dificuldade de usar um conceito comum. Porém, ainda que seja “para
não calar” , como dizia santo Agostinho, não podemos deixar de pensar que
existe algo, por mínimo que seja, que não nos permite que nos afastemos do
número; contudo, ao mesmo tempo, há de ficar claro que Deus não se deixa
compreender no número e que a originalidade do Pai, do Filho e do Espírito
Santo não pode ser deixada de lado quando dizemos “três pessoas”.
A unidade divina na comunhão das pessoas não é um dado “posterior”
à distinção destas últimas, porque tem no Pai sua raiz e seu fundamento. O
mistério de Deus e o mistério do Pai vêm a coincidir, dizia-nos Von Balthasar.
Precisamente porque o Pai não é mais que Pai, a natureza divina que tem nele
sua única fonte e origem, carrega em si a dimensão da comunhão, do “nós” . Para
a reta compreensão de quanto dissemos até aqui, não podemos, portanto, pres
cindir da teologia do Pai. A ela dedicamos nossa atenção no capítulo seguinte.
divindade. O Filho não é o Pai, pois o Pai é um só, porém é a mesma coisa que o Pai; nem o
Espírito é o Filho pelo fato de provir de Deus, porque um só é o Unigénito, porém é a mesma
coisa que o Filho. Os três são um só ser quanto à divindade, e o único ser são três quanto às
propriedades”.
245. Cf. DH 530.
246. Cf. DH 528.
131
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
Não deixa de ter seu interesse a idéia de santa Teresa segundo a qual cada
pessoa pode contemplar e falar por si e, além disso, amam-se, comunicam-
se e se conhecem. Estamos de algum modo diante de uma antecipação dos
problemas da teologia moderna. O intercâmbio de amor entre as três pessoas
divinas é algo que vem espontaneamente à mente da santa. Que cada um a tem
um m odo de agir que lhe é próprio (pode olhar e falar por si) confirma-se no
fato de que só o Filho se encarnou. A distinção das pessoas é tão importante
quanto a unidade da essência a que alude imediatamente depois. Nos três, não
existe mais que “um querer, um poder e um domínio”, expressões que pare
cem inspiradas nos textos magisteriais que citamos. Esta unidade de essência,
de poder e de vontade não é, portanto, incompatível com a comunicação e o
intercâmbio de amor entre elas.
São João da Cruz, em seus Romances, finge diálogos cheios de sabor entre
o Pai e o Filho na preparação da encarnação248. Santo Inácio, nos Exercícios
Espirituais, convida-nos a contemplar o que fazem e dizem as três divinas
pessoas em sua decisão de salvar o mundo. Pressupõe-se também um diálogo
etemo entre elas249. Muito interessante é também uma passagem de são João de
Ávila, onde também a noção de comunicação desempenha um grande papel,
em relação com a fecundidade e a generosidade divinas, já que Deus não é
247. Relaciones 33,3. (Obras completas, Burgos, 1984, 1461).[Citado da ed. br.: Relações, in
Obras completas — Teresa de Jesus, São Paulo, Loyola/Carmelitanas, 22002, 820.]
248. Cf. Romances 2-4; 7 (Obras completas, Salamanca, 1992, 42-45;47-48); reproduzimos
alguns versos deste último: “Nos amores perfeitos/esta lei se requeria:/que se fizesse semelhante/o
amante a quem queria:/que a maior semelhança/mais deleite continha;/o qual, sem dúvida, em
tua esposa/grandemente cresceria/se viesse a ser semelhante/na carne que tinha./Minha vontade
é a tua/— o Filho lhe respondia — /e a glória que eu tenho/é tua vontade ser minha...”. Cf.
Hebreus 10,5-10, onde parece pressupor-se este diálogo eterno do qual nasce a encarnação.
249. Exercidos Espirituais, n. 102: "... como as pessoas divinas olhavam toda a planície ou
redondeza de todo o mundo...”; 107: “ ... o que dizem as pessoas divinas é, a saber: ‘Façamos
redenção do gênero humano’...”. Pressupõe-se claramente um “nós” divino, não somente um
eu. Cf. também ibid. 108. A mediação do Filho em face do Pai ocupa um lugar central, tanto
nos EE (cf. n. 63; 148; 156; 168) como no Diário Espiritual (cf. n. 8; 15; 23; 24; 27; 63, com
referência à unidade da inabitação mútua; 77 etc.).
132
AS "TRÊS PESSOAS" DIVINAS NA UNIDADE DA ESSÊNCIA
250. Audi filia (II) 39,3 (Bac maior 64, 619-620). Sobre a fecundidade divina, SANTO
TOMÁS, STh 127,5, ad 3: “ ... est in eo solum unum verbum perfectum, ut unus amor perfectus.
Et in hoc eius perfecta fecunditas manifestatur”; a influência de santo Tomás parece também
patentear-se nas considerações sobre a solidão de Deus e a de Adão; cf. STh I 31,3, que citamos
na nota 101; sobre o Deus não-solitário, cf. nota 100.
251. Retornaremos a este tema no capítulo seguinte.
133
Capítulo 3
1. Este capítulo constitui uma reelaboração do artigo publicado com o mesmo título em
Estúdios Trinitarios 32 (2000) 263-295, e também no volume Dios Padre enviô al mundo a su
Hijo, Salamanca, 2000, 163-195.
2. Cf., entre outros textos, TERTULIANO, Adv. Prax, 8,5-7 (Scarpat, 160); GREGÓRIO
DE NAZ1ANZO, Or. 2,38 (SCh 247,140); 30,7 (SCh 250,240); AGOSTINHO, Trin. IV 20,29
(CCL 50,200): “totius divinitatis vel si melius dicitur deitatis principium pater est”. Diferentes
documentos magisteriais salientaram esta verdade; assim os símbolos dos concílios de Toledo
VI, XI e XVI; DH 490 “Patrem ingenitum, increatum, fontem et originem totius divinitatis”; cf.
525; 568. Cf. F. A. PASTOR, “Principium totius deitatis”. Mistério inefable y lenguaje eclesial,
Gregorianum 79 (1998) 247-294. Sobre a paternidade de Deus na tradição, cf. E. ROMERO POSE,
Apuntes sobre Dios Padre en la teologia primitiva, in Dios Padre envió al mundo a su Hijoy73-109;
L. F. LADARIA, La fede in Dio Padre nella tradizione cattolica, Lateranum 66 (2000) 109-128.
3. TERTULIANO, Adv. Prax. 5,2 (152): “Ante omnia enim Deus erat solus, ipse sibi et
mundus et locus et omnia. Solus autem quia nihil aliud extrinsecus praeter ilium. Ceterum ne
tunc quidem solus; habebat enim secum quam habebat in semetipso rationem, suam sicilicet”.
135
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO
capítulo anterior encontram aqui não apenas sua continuação, mas também
seu fundamento. Nas antigas alusões ao Deus não-solitário encontra-se já
certo esboço, certamente bem distante, dos problemas que se apresentaram
nos últimos tempos.
Se Deus não é solitário e o Filho é Deus como ele, delineia-se o problema
da unicidade divina. Não significa isso falar de “outro” Deus? A questão foi
proposta já nos primeiros tempos do cristianismo*45. O problema da unidade
e da trindade divinas, que têm no Pai seu fundamento último, vai significar
sempre um desafio para o pensamento teológico. Não é somente um interesse
especulativo o que leva ao estudo do mistério da Trindade. Santo Tomás justifica
a necessidade da disciplina teológica pelo fato de que Deus, cuja compreensão
excede a razão humana, é o fim último do homem. Somente com o conheci
mento de Deus pode ordenar a ele suas intenções e ações\ A reflexão sobre a
pessoa do Pai enquanto princípio e fonte da divindade é essencial para a teologia
cristã. Proponho-me, neste capítulo, a repassar alguns dos problemas sistemáticos
que nestes últimos anos foram debatidos e se debatem ainda hoje no âmbito da
teologia, sobretudo católica. Não podemos, evidentemente, abordar todos os
problemas propostos, nem tampouco levar em conta o pensamento de todos
os autores dignos de nota que os abordaram. Farei referência a apenas três pon
tos: à questão de quem é o Deus uno, ao debate recente acerca da importância
das processões divinas, e portanto da condição de origem da divindade que
corresponde ao Pai, e, por último, farei uma breve alusão à teoria da “ kénosis
originária” do Pai na geração do Filho e na processão do Espírito Santo.
HILÁRIO DE POITIERS, Trin. I 38 (CCL 62,37): “ ... ita Deum et te celebrare, ne solum, et
eum praedicare, ne falsum”; VII 3 (262): “Non enim unum Deum pie possumus praedicare,
si solum, quia non erit Deus filius in solitarii fide... Et eiusdem periculi res est unum Deum
negare, cuius est solitarium confiteri” ; VIII 36 (349): "... unum utrumque significat, non ad
solitudinem singularis, sed ad spiritus unitatem”. Cf. TOMÁS DE AQUINO, STh I 31,4, ad 3.
Texto citado na nota 101 do capítulo 2.
4. Assim, por exemplo, em são JUSTINO, Dial Tryph. 50,1 (Marcovich, 152); 55,1 (161).
À expressão na boca de Trifon, de que a Escritura não conhece “outro Deus”, Justino responde
que a Escritura chama Deus a outro, além do criador do universo; cf. ibid. 56,4 (161-162).
Cf. PH. HENNE, Pour Justin, Jésus est-il un autre Dieu, Revue des Sciences Philosophiques et
Théologiques 81 (1997) 57-68.
5. Cf. STh I 1,1.
136
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
137
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
Esta idéia foi seguida e desenvolvida por não poucos autores. Muitos dão
como certo que a doutrina do Deus uno é a doutrina acerca do Pai, muito
embora, por razões evidentes, ainda não possa aparecer nela como tal. Entre
que citamos nas notas precedentes mostram que o Pai é considerado também no Ocidente o
princípio da Trindade.
12. K. RAHNER, Theos, 152.
13. K. Rahner assinala em outro lugar que se opinou que bastaria escrever um tratado
De divinitate una, “muito filosófico e abstrato e muito pouco histórico-salvífico e concreto”. El
Dios trino como principio..., 367. Ter-se-á de tratar, portanto, do Deus uno, não simplesmente
da “divindade una”.
14. À luz da doutrina trinitária o Pai, que não tem origem, não pode ser pensado mais
que em relação com o Filho e o Espírito. A ausência de origem absoluta de que aqui fala K.
Rahner não significa, portanto, que se considere o Pai uma “pessoa absoluta” .
15. K. RAHNER, Theos, 151.
138
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
139
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
dos textos citados de Karl Rahner23. O não ter origem de seu não constitui a
pessoa; o princípio sem princípio não poderia, portanto, identificar-se com
tanta facilidade com o Pai, o qual, como o próprio Rahner indica, possui
sua essência e seu ser absolutamente não derivado de outro só em relação ao
Filho (e ao Espírito Santo). Os problemas do princípio e os da paternidade
estão certamente relacionados, porém, deveriam ser distinguidos24. É a linha
que H. U. von Balthasar procurou seguir. Segundo ele, deve-se manter uma
maior correlação na revelação das três pessoas; existe já uma certa revelação
da Trindade implícita na revelação da pessoa do Pai:
A idéia de uma revelação sucessiva das três pessoas divinas é absurda, pois
são elas essencialmente imanentes umas às outras; na relação pré-cristã com
Deus, somente o Deus vivo (trinitário) pode ter sido revelado, embora não
formalmente em sua Trindade, como os Padres da Igreja (pelo menos de
Ireneu em diante)25 o confirmam; o fato de que no momento da encarnação
do Filho no Novo Testamento seja em primeiro lugar o Pai quem o envia do
céu, o que é invocado como “Deus” não quer dizer nada em contrário, pois
naturalmente o Filho e o Espírito remetem sempre ao Pai, o Deus da Antiga
Aliança, a partir de agora interpretado de maneira totalmente nova embora
sempre idêntica, o Deus que enviou desde sempre seu Verbo e seu Espírito, e
que sem eles não teria podido estabelecer nenhuma aliança com os homens.
O Verbo, no entanto, não havia dado ainda o passo definitivo até a esfera dos
homens, com o que não era possível conhecê-lo como pessoa divina; e este
era o caso do Espírito, que, embora repousando nos homens, ainda não havia
penetrado definitivamente em seu coração26.
140
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
141
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
que funda a possibilidade do menor29. Por esta razão, não parece que possam
ser identificados, sem maiores razões, o Deus uno e o Pai. O Pai, princípio
da divindade, só o é em relação com o Filho e o Espírito, somente enquanto
relacionado com eles é princípio das criaturas, como somente enquanto rela
cionado com eles pode dar-se a conhecer na atuação do Antigo Testamento.
A revelação da unidade divina e da Trindade andam juntas. Seria demasiado
simplista dizer que o Antigo Testamento nos apresenta o Deus uno e o Novo
Testamento, o Deus trino. Precisamente a revelação neotestamentária, enquanto
revelação da Trindade, significa um aprofundamento insuspeitado do mono
teísmo, da unidade divina. Pode-se afirmar a identificação pessoal do Deus
do Antigo Testamento com o Pai. Todavia, a posteriori, podemos dizer que
só em virtude de sua condição de “Pai” pode manifestar-se como o faz. Na
consideração cristã do Deus uno, não podemos, portanto, prescindir das três
pessoas30, embora, por razões evidentes, seja o Pai enquanto princípio quem
apareça em primeiro lugar. Mas o Pai é princípio de tudo enquanto é “Pai”
ou seja, é princípio da realidade criada enquanto o é do Filho e do Espírito
Santo. Por esta razão também eles, embora não possam ser reconhecidos em
sua propriedade pessoal sem a revelação cristã, participam da condição de
princípio das criaturas. O Deus uno e trino, Pai, Filho e Espírito Santo, é um
só princípio da criação. O Novo Testamento no-lo indica de algum modo
quando nos fala da mediação do Filho ou do Logos na criação. Exatamente
porque chamamos a Deus “Pai”, não podemos pensar nele sem sua relação
com o Filho e o Espírito. A partir do momento em que usamos este nome
relativo, implica certa contradição o fato de considerá-lo somente o Deus uno.
Por definição, o Pai é o Deus não-solitário. Por isso, não é incompatível pensar
que, por um lado, a Trindade é o Deus uno e que, ao mesmo tempo, o Pai é
o que aparece em primeiro lugar diante de nosso olhar quando nos referimos
a Deus princípio de tudo e, concretamente, ao Deus do Antigo Testamento
que se identifica pessoalmente com ele31.
29. Cf. K. RAHNER, Grundkurs des Glaubens. Einführung in den Begriff des Christentums,
Freiburg/Basel/Wien, 1976, 187-221.
30. AGOSTINHO, Tritt. I, 2,4 (CCL 50,31): " ... quod Trinitas sit unus et solus et verus
Deus”; XV 5,7 (468): "... unum Deum, quod est ipsa Trinitas”; DH 73: “Clemens Trinitas est
una divinitas”. TERTULIANO, Adv. Prax. 31,2 (Scarpat 236): “Sic Deus voluit novare sacra-
mentum, ut nove unus crederetur per Filium et Spiritum”. Não deixa de ser interessante esta
última formulação. No Novo Testamento, crê-se no Deus uno de modo novo. Cf. outros textos
neste sentido nas notas 42 e 211 do capitulo 2.
31. Neste sentido, deve-se reconhecer um aspecto de verdade na idéia de Gregório de
Nazianzo sobre a revelação sucessiva das pessoas. Cf. Orario 31,26 (SCh 250,326): “O Antigo
142
DEUS PAJ. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
Testamento anunciou manifestamente o Pai e, de um modo mais obscuro, o Filho. O Novo Tes
tamento deu a conhecer abertamente o Filho e fez entrever a divindade do Espírito. Agora o
Espírito está presente no meio de nós e nos concede uma visão mais clara de si m esmo...”
(trad. J. R. Díaz Sanchez-Cid, in GREGÓRIO DE NAZIANZO, Los cinco discursos teológicos,
Madrid, 1995, 254).
32. Cf. MOLTMANN, Trinität und Reich Gottes. Zur Gotteslehre, München, 1980, 167.
33. Ibid. 182.
34. Y. CONGAR, La Parola e il SoffioyRoma, 1985, 138.
143
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
35. G. GIRONÉS, La divina arqueologia, Valência, 1991, 25; ibid. 31: “A pessoa do Pai é
constituída por sua livre abertura a toda comunicação (de amor), a toda relação com outro. Tem
esta faculdade originariamente (sem dependência alguma), porém não se lhe teria reconheci
do se não a houvesse expressado em um diálogo com o Filho e o Espírito e com as próprias
pessoas da Criação”.
36. Ibid. 43. Alguns teólogos ortodoxos falam do Pai em termos à primeira vista seme
lhantes; cf. Y. SPITERIS, La dottrina trinitaria nella teologia ortodossa. Autori e prospettive,
in A. AMATO (ed.), Trinità in contesto, Roma, 1993, 45-69.
37. Tratamos amplamente da questão no capítulo 1, na seção dedicada a “liberdade e
necessidade na Trindade imanente” .
38. Cf. Der Gott Jesu Christi (cf. nota 14), 192; 195-196. Na realidade, deparamos com o
mesmo problema que aparecia quando se tratava da identificação do Pai com o Deus uno.
144
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
porquanto, em algum aspecto, estaria por cima de suas relações com o Filho
e com o Espírito, que têm nele seu princípio? Precisamente com a intenção
de garantir esta igualdade e de evitar que o caráter de princípio sem princípio
que corresponde ao Pai seja obstáculo à plena comunhão entre as três pessoas
surgiram, na teologia dos últimos anos, tendências que procuram atribuir
somente um valor relativo às processões divinas e, com isso, o papel do Pai
como raiz e fonte da divindade. Colocam-se, neste sentido, nos antípodas das
posições que acabamos de mencionar.
145
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
146
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
42. O destino do homem é chegar a ser como Deus, todavia, os homens erram quando
querem apoderar-se avidamente da igualdade com Deus (cf. F1 2,6). Com o despojamento de
Jesus da forma de Deus, temos o reflexo “econômico” desta autodiferenciação do Filho em
relação ao Pai; os homens se tomam participantes da comunhão do Filho com o Pai enquanto
se conformam com aquele nesta autodiferenciação; cf. W. PANNENBERG, Teologia sistemática
II, Madri, 1996, 250-251.
43. Na realidade, o caráter relativo dos nomes Pai e Filho foi reconhecido desde as pri
meiras etapas da tradição. E na época posterior a 325 não só Atanásio, mas todos os partidários
da ortodoxia nicena argüiram a partir desta reciprocidade para afirmar a divindade do Filho
e a impossibilidade de que o Pai exista sem ele. Já nos referimos a este ponto no capítulo 2.
Retornaremos a ele na seqüência.
147
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
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DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
50. Cf. ibid. 348-349. Pannenberg recorre novamente a Atanásio, C Arian. I 20, que,
fundando-se em João 14,6, assinala que, se o Filho não tivesse sido gerado, a verdade não teria
estado sempre em Deus. Ibid. 349: “Com estas idéias ousadas, Atanásio punha radicalmente
em questão a compreensão habitual da divindade do Pai, segundo a qual esta divindade não
está sujeita a condição alguma... Mas não, a divindade do Pai está condicionada ao Filho; é
este quem nos é mostrado como único Deus verdadeiro. Atanásio falava também do Pai como
‘fonte’ da sabedoria, porém de tal maneira que sem o Filho, que procede de dita fonte, não se
pode chamar o Pai de fonte” .
150
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
toda a eternidade, o Filho é o lugar da monarquia do Pai e uno com ele pelo
Espírito Santo. A monarquia do Pai não é o pressuposto, mas o resultado da
ação conjunta das três pessoas51.
Nos textos que vimos citando, ter-se-á facilmente observado uma cons
tante passagem da Trindade econômica para a Trindade imanente: fala-se
da necessidade do Filho e do Espírito para que o Pai seja Deus, porém, ao
mesmo tempo, da necessidade da devolução do Reino para que o Pai tenha
sua “monarquia”. Aqui, novamente, as relações de Deus com o mundo de
vem ser incluídas na questão da unidade da essência de Deus. Pannenberg vê,
certamente, a necessidade de distinguir a Trindade econômica da imanente53,
porém insiste mais ainda na unidade das duas, em termos que não redundam
em sentido inequívoco: Assim, “ resta ainda pela frente, à divindade eterna
do Deus trinitário, tanto quanto à verdade de sua revelação, seu crédito na
história”54; e também:
151
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
TheologieyGöttingen, 1980, v. 2,112-128; cf. o estudo crítico de M. SCHULZ, Sein und Trinität.
Systematische Erörterungen zur Religionsphilosophie G.W.F. Hegels im ontologiegeschichtlichen
Rückblick auf J. Duns Scotus und I. Kant und die Hegel-Rezeption in der Seinsauslegung und
Trinitätstheologie bei W. Pannenberg, E. jüngel, K. Rahner und H. U. v. Balthasar, St. Ottilien,
1997, 468-474; 480-486.
55. W. PANNENBERG, 360; também ibid. 424: “Com a criação de um mundo, a divin
dade de Deus e mesmo sua existência tornam-se dependentes da realização plena do destino
de tal mundo, com a presença do Reinado de Deus”.
56. Ibid. 361: “O tratamento desta idéia há de mostrar se é possível pensar que o Deus
uno seja de tal maneira transcendente e esteja, ao mesmo tempo, de tal modo presente no
curso da história de salvação que os acontecimentos históricos signifiquem realmente algo para
a identidade de sua pessoa eterna”.
57. Ibid. 361-362, continuação imediata do texto citado na nota anterior: “E terá de mos
trar também se é possível pensar no conceito da essência divina como o compêndio sintético
[Inbegriff] das relações entre Pai, Filho e Espírito, à diferença daquela outra idéia ontológica
de essência que Agostinho se acreditava obrigado a pressupor”. Existe certamente muito de
aproveitável na idéia de Pannenberg, mas surge a dúvida sobre se, com o esquecimento das
processões, esta unidade não se realiza em um segundo momento. Cf. os textos a que se referem
as notas 51 e 52.
152
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
58. Cf. M. SCHULZ, Sein und Trinitäty496: “Não se pode pensar nada maior que esteja
além do amor do Pai que gera... e nenhuma dependência acrescentada com relação ao Filho
faz aumentar, absolutamente, a forma de doação (a relação) do Pai; o Pai, por assim dizer,
não necessita de nada disso. O amor verdadeiro cria liberdade e autonomia, não relações de
dependência. Não se pode falar, portanto, de uma subordinação do Filho”. Schulz critica
também a noção da “dependência” recíproca das pessoas tal como Pannenberg a entende;
considera-a conseqüência de uma concepção absoluta e não relacional das pessoas, que se deve
corrigir depois com o recurso a este conceito. Uma concepção relacional das pessoas confere
melhor ênfase à plenitude do ser e da doação mútua que sempre caracteriza as relações entre
as pessoas divinas; ibid. 490-495; cf. também J. O ’DONNELL, Panenberg’s Doctrine o f God,
Gregorianum 72 (1991) 73-98; J. A. MARTÍNEZ CAMINO, Vechselseitige Selbstunterscheidung?
Zur Trinitätslehre Wohlfhart Pannenbergs, in H. L. OLLIG, O. J. WIERTZ (hrsg.), Reflektierter
Glaube (Festschrift Erhard Kunz), Egelsbach/ Frankfurt Main/München, 1999, 131-149; K.
VECHTEL, Trinität und Zukunft, 224-237.
59. GRESHAKE, Der dreieine Gott. Eine trinitarische Theologie, Freiburg/Basel/Wien,
1997.
60. Ibid. 184.
153
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
154
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
da pessoa divina como relação subsistente, de tal maneira que cada uma delas
é enquanto está em relação com as outras duas pessoas. A pessoa tem seu ser
só a partir do outro e para o outro. A unidade que se estabelece a partir do
tecido destas relações é a maior que se possa imaginar67.
Outra dificuldade que se pode contrapor a esta concepção a partir da
doutrina tradicional está na doutrina das processões. A pluralidade, assinala
nosso autor, foi vista tradicionalmente como uma “queda” de uma unidade
originária. A pluralidade é deficiência, diminuição no ser. A doutrina trini-
tária teve de defender-se desta concepção, muito embora, ao fazê-lo, tenha
se movido nas coordenadas da mentalidade dominante. A teologia teve de
esforçar-se por mostrar que a processão dos muitos não significa uma queda
nem uma diminuição. Por isso, a pluralidade que vem da unidade (da subs
tância divina ou do Pai) é uma sucessão, ordenada hierarquicamente, porém
de pessoas divinas que possuem uma mesma dignidade. Existe uma ordem
entre elas, porém com isso não se cai no subordinacionismo, nem tampouco
na manifestação modalista de um “ uno”. Pois bem, a partir do momento
em que se trata da constituição das pessoas, esta, ainda que não se queira e
mesmo que se negue, funda-se em representações temporais de um antes e um
depois. Para Greshake, estas dificuldades aconselham a renunciar à idéia das
processões que constituem as pessoas a partir do uno e à das relações que daí
resultam. Estes conceitos eram necessários no horizonte unitário próprio de
outros tempos, porém agora esta concepção tradicional pode ser abandonada
porque temos outras possibilidades, a partir do acontecimento interpessoal,
para pensar na unidade e na trindade68. A unidade na comunhão inclui já
originariamente as diferenças, e por isso não é o resultado de algo exterior,
é uma unidade que se realiza precisamente na pluralidade; os dois aspectos
são igualmente originários. A pluralidade não é uma diminuição da unidade,
mas o m odo como esta se realiza. Deus é a mais alta unidade porque esta
se realiza no intercâmbio de amor de três pessoas. Não há uma essência
divina que não seja a que se realiza na comunhão das diversas pessoas69.
67. Cf. GRESHAKE, Der dreieine Gotty 191. Neste contexto, Greshake cita Ricardo de
São Vítor e Hegel. Ao menos para o primeiro, é evidente que o que define a pessoa é sua
“ex-sistência”, isto é, sua processão. Greshake, como veremos a seguir, tem, em contrapartida,
grandes dificuldades com esta idéia. É igualmente evidente que para santo Tomás, o criador
da fórmula da relação subsistente, as processões divinas estão fora de qualquer discussão. As
processões, portanto, não deveriam constituir um obstáculo para a plena viabilidade de rela
cionamento das pessoas divinas.
68. Cf. GRESHAKE, Der dreieine Gott, 195.
69. Cf. ibid. 196-200. Na página 199, n. 547, citam-se alguns textos de são Boaventura. Um
deles é de particular interesse: QD de Myst. Trin. II, II (já citado na nota 221 do capítulo 2).
155
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
70. Cf. ibid. 201. Greshake cita neste contexto uma passagem de W. SIMONIS, Trinität
und Vernunft, Frankfurt am Main, 1972, 135.136s: “Os conceitos ‘PaF e ‘Filho’... só podem
ser aplicados à Trindade imanente com consideráveis restrições... Nem o Logos eterno como
tal, nem Jesus como mero homem, nem o Logos como aquele que de algum modo se possui
como alienado, mas Jesus como o Logos que se possui como alienado de si, que foi tomado
em posse e deste modo foi introduzido no ser relacional de Deus é o Filho do Pai” . O texto
não deixa de suscitar alguma dificuldade. É claro, por um lado, que não podemos, sem maio
res motivos, trasladar a Deus em sua vida íntima nossos conceitos, e é igualmente claro que o
Novo Testamento fala de Jesus como do Filho. Porém, segundo o Novo Testamento, a mesma
pessoa do Filho preexiste à encarnação. Jesus nos revela, portanto, uma relação eterna com o
Pai. Surpreende, por outro lado, a “prudência” com que se aplica ao preexistente o título de
Filho e, em contrapartida, com toda a naturalidade o de Logos. Também este título se aplica
ao preexistente porque o conhecemos feito carne, e também o uso deste título na Trindade
imanente necessita forçosamente da analogia. Greshake, que se declara de acordo com esta
passagem, toma, em contrapartida, as distâncias do contexto em que estes pensamentos se
expressam. Cf. GRESHAKE, Der dreieine Gott, 201, n. 552, e 146-147.
71. Cf. ibid. 201, imediatamente após o texto de Simonis, citado na nota anterior.
72. Cf. TOMAS DE AQUINO, STh I 34,2, ad 3, cit. por GRESHAKE, Der dreieine
Gott, 203. No entanto, convém citar o texto de santo Tomás: “ Ipsa enim nativitas Filii, quae
est proprietas personalis eius, diversis nominibus significatur, quae Filium attribuuntur ad
exprimendum diversimode perfectionem eius... Non autem potuit unum nomen inveniri,
per quod omnia ista designarentur” . É claro que todas estas perfeições são do Filho e a ele se
aplicam as diversas denominações para expressá-las. O título do artigo em questão é “ Utrum
Verbum sit proprium nomen Filii” . Patenteia-se, por conseguinte, que Filho é o nome pessoal
por excelência da segunda pessoa.
156
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
73. Cf. ibid. 200-207. De quaJquer maneira, é preciso ter presente que a glorificação
mútua foi vista como uma prova da perfeita divindade do Filho e de sua eternidade com o
Pai, que não pode existir sem ele. Assim, por exemplo, HILÁRIO DE POITIERS, Trin. III 12;
IX 23 (CCL 62, 83s; 394-396).
74. GRESHAKE, Der dreieine Gott> 205. Cf. também o que segue.
157
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
158
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
A doutrina das processões não pode ser considerada isolada da doutrina das
relações. De fato, Tomás dá mais importância às relações que às processões
divinas78. Por essa razão, a doutrina do Pai como fonte e princípio de toda
a divindade não pode ser contemplada independentemente da de suas rela
ções com o Filho e o Espírito que o constituem, de tal maneira que não se
pode pensar nele sem essas relações79. Porém, precisamente por isso, surge a
pergunta: É imprescindível, para manter esses princípios, deixar de lado toda
a longa tradição das processões divinas, a partir da qual se desenvolveu e se
aprofundou a especificidade do monoteísmo cristão? No Novo Testamento,
o Pai é aquele do qual tudo provém e para o qual tudo se dirige, é aquele
diante do qual Jesus ressuscitado intercede por nós (cf. Hb 7,25; 9,24; Rm
8,34; ljo 2,1). Na liturgia, como já assinalamos, dirigimo-nos habitualmente
ao Pai por meio do Filho. Faz-se, então, justiça a estes dados, a esta relevân
cia da primeira pessoa com uma concepção simplesmente pericorética da
unidade divina, na qual este caráter de princípio do Pai não aparece com
tanta clareza? Não deixa de surpreender que entre as analogias fundadas na
criação enumeradas por Greshake para explicar o lugar das pessoas no seio
da Trindade imanente não apareçam a paternidade e a filiação humanas, que
a própria linguagem neotestamentária sugere imediatamente e nas quais se
fundou toda a tradição. É a analogia usada por Jesus. A referência mútua e a
igualdade das pessoas entre si e a característica do Pai como princípio andam
juntas na tradição80. Quanto ao mais, no fato de que só o Pai é sem princípio
78. STh I 40,2: “Melius dicitur quod personae seu hypostases distinguantur relationibus
quam per originem”; cf. também I 40,4.
79. Conhecemos já o texto do concflio XI de Toledo que acabamos de citar: “Quod enim
Pater est, non ad se, sed ad Filium est; et quod Filius est, non ad se, sed ad Patrem est; similiter
et Spiritus Sanctus non ad se, sed ad Patrem et Filium relative referitur: in eo quod Spiritus
Patris et Filii praedicatur” (DH 538). Greshake cita em parte este texto em Der dreieine Gotty
188, nota 185.
80. Assim sucede no mesmo concílio XI de Toledo que acabamos de citar: “Quia nec Pater
sine Filio, nec Filius aliquando exsistit sine Patre. Et tarnen non sicut Filius de Patre, ita Pater de
Filio, sed Filius a Patre generationem accepit...” (DH 526). TOMÁS DE AQUINO, STh I 33,1 ad
2: “Quia licet attribuamus Patri aliquid auctoritatis ratione principii, nihil tarnen ad subiectionem
vel minorationem quocumque modo pertinens, attribuimos Filio vel Spiritui Sancto”. Responde
a esta mesma preocupação a interpretação que os autores nicenos do século IV dão de João 14,28
(“o Pai é maior que eu”), a que Greshake se refere um tanto sumariamente em Der dreieine Gott,
192, n. 518. Cf. HILÁRIO DE POITIERS, Trin. III 12; Dí 54, IX 56 (CCL 62,83; 432-433,435-436);
Syn. 64 (PL 10,524); ATANÁSIO, Contra Ar. I 58 (PG 26,133); BASlLIO DE CESARÉIA, Contra
Eunômio I 25 (SCh 299,262); GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 30,7 (SCh 250,240); e ainda
AGOSTINHO, Trin. IV 20,27; VI 3,5 (CCL 50,195.233). O Pai é maior enquanto Pai, enquanto
princípio, porém o Filho não é menor enquanto o Pai lhe dá tudo o que ele é.
159
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO
81. TOMÁS DE AQUINO, STh I 33,4 ad 4: “ Ponere igitur duos innascibiles, est ponere
duos deos, et duas naturas divinas”. Cita, entre outros, HILÁRIO DE POITIERS, Syn. 60 (PL
10,521B): “Cum ergo unus Deus sit, duos innascibiles esse non possunt”. Em STh 39,8, Tomás
assinala que o Pai se apropria da unidade pelo fato de ser “principium non de principio”. Cita
AGOSTINHO, Dedoctr. Christ. 5 (PL 34,21): “In Patre est unitas, in Filio aequalitas, in Spiritu
sancto unitatis aequalitarisque concordia”; também Boaventura cita este texto em Breviloquium
I 7,3; cf. também I 7,1; cf. PEDRO LOMBARDO, Sent. I d. 31, c. 2.
82. É preciso insistir no caráter relativo do Pai como princípio. J. Moltmann, a cuja
opinião acerca do Pai como “princípio absoluto” da Trindade já nos referimos (cf. notas 32-
33), é ao mesmo tempo um defensor muito decidido da unidade “pericorética”. Cf. Trinitat
und Reich Gottes, 179-182; 187-193. W. PANNENBERG, Teologia sistemática I, 352, censura
sua inconseqüência neste ponto.
83. Acredito que algumas vezes seja ocasionada uma confusão entre a doutrina das pro
cessões divinas enquanto tais e as teorias “psicológicas” de santo Agostinho e santo Tomás. É
evidente que estas últimas nunca foram adotadas pelos documentos oficiais da Igreja e podem
ser, por conseguinte, objeto de livre discussão teológica. Não se pode dizer o mesmo, a meu
ver, das processões divinas, das quais se fala já no Concílio de Nicéia (geração do Filho pelo
Pai) e que constituíram ensinamento constante nos tempos posteriores. Cf. GRESHAKE, Der
dreieine Gotty 205. Quanto ao mais, as imagens da Trindade na alma humana não constituem
o conjunto da doutrina trinitária destes autores, mas apenas um de seus aspectos.
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DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
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A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO
85. O motivo da falta de inveja repete-se em Trin. VI 21 (220): "... non inuidum te
bonorum tuorum in unigeniti tui natiuitate esse confido”; GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or.
25,16 (SCh 284, 194-196): não se pode pensar que Deus seja invejoso ou fraco.
86. HILÁRIO DE POITIERS, Trin. VII 31 (298-299): “A fé apostólica não confessa dois
deuses porque não confessa dois pais nem dois filhos. Confessando o Pai, confessou o Filho,
ao crer no Filho, também creu no Pai, porque o nome de pai contém o de filho. O Pai não o
é mais que pelo Filho e a referência ao Filho é a demonstração do Pai, porque o Filho não vem
mais que do Pai. Na confissão de um só Deus não se fala de uma só pessoa, porque o Filho dá
ao Pai a plenitude [Patrem consummat Filius] e o nascimento do Filho é a partir do Pai. A
natureza não se transforma pelo nascimento, de modo que não seja a mesma na identidade de
seu gênero, mas é de tal maneira a mesma, que pelo nascimento e pela geração se há de confessar
que um e outro são uma só coisa, não um só”. Cf. sobre estes textos e outros semelhantes L.
F. LADARIA, "... Patrem consummat Filius” . Un aspecto inédito de la teologia trinitaria de
Hilário de Poitiers, Gregorianum 81 (2000) 775-788.
162
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
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A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO
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DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
distinção entre o Pai e o Filho. Deus não poderia ser Deus senão nesta kénosis
intradivina91. Todo drama possível entre Deus e um mundo qualquer tem seu
lugar na distinção do Pai e do Filho, neste drama original e trinitário que está
acima do tempo92.
Distingue-se certamente com clareza essa kénosis originária do des-
pojamento histórico do Filho de que se nos fala em Filipenses 2,7. Porém,
de algum modo, constituiria sua condição de possibilidade. Porque não é
somente o Pai quem se despoja de si mesmo segundo H. U. von Balthasar,
mas a esta kénosis do Pai corresponde desde já uma kénosis intratrinitária do
Filho e do Espírito, na qual se funda o esvaziamento que Jesus fez de si na
encarnação: “Esta ‘kénosis da obediência’ (‘no depor a figura de Deus’ - F1
2,7) está baseada na eterna e recíproca kénosis das pessoas divinas. Como um
aspecto entre os infinitos aspectos sempre reais da vida eterna”93. A eterna
relação de amor entre as pessoas divinas é interpretada, portanto, em termos
de kénosis e esvaziamento de si mesmas. A geração do Filho seria, por assim
dizer, o primeiro momento e o princípio desta kénosis originária que desta
maneira teria o Pai como primeiro sujeito.
Que julgamento merece esta teoria? É preciso aceitar um aspecto irre
nunciável de verdade na intuição de Von Balthasar: o esvaziamento de Cristo
na encarnação tem sua condição de possibilidade na vida interna de Deus: “O
elemento que exerce a função de mediação da missão entre Jesus e o Pai é a
forma econômica do acordo eterno entre Pai e Filho”94. A Trindade imanente
é, de fato, o “princípio e fundamento” (K. Rahner) da economia da salvação.
Tudo quanto nela sucede tem sua condição de possibilidade na vida íntima
de Deus: “Na vida interna de Deus está presente a condição de possibilidade
daqueles acontecimentos que, pela incompreensível liberdade de Deus, encon
165
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
166
DEUS PAI. ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA RECENTE
último tem no primeiro seu fundamento e sua razão de ser. O amor de Deus é
a primeira e a última palavra, tanto ad intra quanto ad extra, em sua identidade
eterna que não pode ser mudada por nenhum evento histórico. Na ordem do
ser, o amor de Deus ad intra é o primeiro analogado. É absolutamente prévio
ao pecado dos homens, e este não tem de modo algum o poder de determinar
internamente este amor ou de acrescentá-lo97. Com uma formulação não de
todo livre de ambigüidades, expressa-se uma verdade capital: o que aparece na
história da salvação tem na vida imanente de Deus seu fundamento último. A
entrega de Jesus na cruz é possível porque o amor do Pai, desde sempre, deu
tudo a seu Filho. A forma econômica que o amor adota na kénosis do Filho
tem sua razão de ser e sua possibilidade na própria Trindade, porém não é a
reprodução temporal da forma eterna do amor. Segundo meu ponto de vis
ta, é melhor, portanto, renunciar a esta terminologia, antes de tudo porque
não parece precisa, além de poder dar ocasião a graves mal-entendidos. No
intercâmbio total de amor no seio da Trindade há doação plena das pessoas,
mas assim a vida de Deus se realiza no que lhe é mais próprio; neste sentido,
as pessoas divinas não se despojam de nada enquanto seu ser está em relação,
sua subsistência própria e sua doação aos demais são as mesmas98. O Pai é Pai
enquanto, na perfeita doação de seu amor, é princípio do Filho e do Espírito
que são Deus exatamente como ele99. “É o Pai na engendração infinita do
Filho infinito. Sua divindade é a paternidade sem limites.” 100 Tudo quanto
97. M. SCHULZ, Sein und Trinität (cf. nota 54): “Segundo a alusão de Von Balthasar
a Filipenses 2 como analogatum primarium para o discurso sobre a kénosis original em Deus,
deve-se negar na transposição ao ser divino o que pertence à pura semântica hamartiológica
das expfessões sujeitas a debate. Todavia, por esta abstração, o amor imanente de Deus não se
torna menor, ou menos ‘sério’, ou se dissolve em mero ‘jogo\ mas aparece antes do pecado
em sua identidade que não se pode manipular nem modelar. Dito de outra maneira: segundo a
ordem do ser, o analogatum primarium é o amor de Deus em si... O pecado não tem o poder
de determinar internamente este amor nem de acrescentá-lo”.
98.0. GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cristología, Madrid, 2001, 397-398: “Falar sem mais
preâmbulos de uma kénosis intratrinitária em sentido estrito carece de fundamento bíblico e é
uma aplicação indevida do princípio de reciprocidade entre a Trindade imanente e a Trindade
econômica. Deus revela e realiza no mundo o que é sua vida trinitária, porém a existência
encarnada do Filho tem elementos de novidade, liberdade e história que são conseqüência do
pecado humano, e que não preexistem nem têm seu fundamento na vida trinitária”. Cf. também
as reservas que já eram assinaladas por W. KASPER, Theologie und Kirche, Mainz, 1987, 222.
99. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 2,38 (SCh 247,140): “ [O Pai] seria princípio de
um modo pequeno e indigno se não fosse o princípio da divindade e da bondade que se con
templa no Filho e no Espírito Santo”. A própria dignidade do Pai enquanto princípio depende,
portanto, da plenitude da divindade das outras pessoas.
100. F. X. DURWELL, Jesús Hijo de Dios en el Espíritu Santo> Salamanca, 1999, 113; cf.
ID., Le Père. Dieu en son mystère, Paris, 1988, 29-33.
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
101. Sabemos que SANTO IRENEU chegou a falar da “crucifixão cósmica” do Verbo;
cf. Adv. Haer. V 18,3; 19,1 (SCh 153,244-246; 248); Demostr. 34 (FP 2,130-131). Cf. A. ORBE,
Teologia de San Ireneo II, Madrid, 1987,236-263; D. WANKE, Das Kreuz Christi bei Irenàus von
Lyon> Berlin/New York, 2000, 305-335. No entanto, encontramo-nos no terreno das relações
entre a criação e a salvação, tratando-se, concretamente, de assegurar que o criador e o redentor
são o mesmo, não se entrando no campo da Trindade imanente.
102. Recordemos o que dissemos no capítulo 1 sobre o caráter quenótico da economia
da salvação. Nós nos baseávamos neste caráter como um dos motivos para explicar por que o
mistério da Trindade imanente não pode exaurir-se na economia da salvação. Parece que esta
distância ficaria anulada se projetássemos já a kénosis no ser eterno de Deus. Aludíamos, já en
tão, à relação com o pecado humano da forma concreta da economia da salvação e citávamos,
neste sentido, alguma passagem precisamente de H. U. von Balthasar.
168
Capítulo 4
169
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
1. O Espírito e Cristo
Não há por que insistir nos dados básicos do Novo Testamento.
Simplesmente os recordemos. Jesus é concebido por obra do Espírito Santo
(Mt 1,20; Lc 1,35); Jesus é ungido no Espírito Santo no batismo no Jordão (cf.
Mc 1,10 par.; Lc 4,18; At 10,38; Jo 1,32-34); é levado ao deserto pelo Espírito
Santo para ser tentado (cf. Mc 1,12 par., com significativas diferenças de matiz
entre os sinóticos, nas quais não nos deteremos); Jesus expulsa os demônios
em virtude do Espírito Santo (cf. Mc 3,22-30; M t 12,28); Jesus exulta no
Espírito Santo (Lc 10,21); em virtude de um Espírito eterno, oferece-se ao Pai
em sua paixão (cf. Hb 9,14); foi constituído Filho de Deus em poder segundo
o Espírito de santidade pela ressurreição dentre os mortos (Rm 1,4: cf. Rm
8,11). Não foi fácil para a teologia dar o justo valor a estes dados e, acima de
tudo, combiná-los com o dogma trinitário e cristológico desenvolvido nos
primeiros séculos da Igreja. Concretamente, o significado da presença do
Espírito em Jesus criou problemas. Começaremos com alguns dados sobre a
teologia do batismo e a unção de Cristo.
2. Cf. PH. HENNE, Pourquoi le Christ fut-il baptisé? La réponse de Justin, Revue des Sciences
Philosophiques et Théologiques 77 (1993) 567-583; A. ORBE, La unciôn del Verbo, Roma, 1961,
39ss.
170
0 ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO
171
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
8. A. ORBE, La uncióti dei Verboy Roma, 1961, 41: “Pessoalmentey não tinha necessidade
alguma dos dons anunciados por Isaías, ordenados como estavam à salvação dos homens.
Recebeu-os, porém, enquanto homemyporque só enquanto homem podia salvar os homens, e
só mediante sua natureza humana previamente ungida com os dons do Espírito poderia Jesus
santificar ‘conaturalmente’ os homens” . Cf. também ibid. 42-60.
9. Cf. TERTULIANO, Adv. Marc. V 8 (CCL 1,598): “ ... quo floruisset in carne sumpta ex
stirpe David, requiescere in illo haberet omnis operatio gratiae spiritualis et concessare et finem
facere quantum ad Iudaeos”.
10. IRENEU DE LIÃO, Adv. Haer. III 9,3 (SCh 211,108): “Sed Verbum Dei, qui est Salvator
omnium, et dominatur caeli et terrae, qui est Iesus..., qui adsumpsit carnem et unctus est a
Patre Spiritu, Iesus Christus factus est”.
11. Ibid. III 9,3 (110): “Nam secundum id quod Verbum Dei homo erat ex radice lesse et
filius Abrahae, secundum hoc requiescebat Spiritus Dei super e um et ungebatur ad evangeli-
zandum humilibus” .
172
O ESPIRITO DO PAI E DO FILHO
12. Ibid. (110-112): “Spiritus ergo Dei descendit in eum, eius qui per prophetas promiserat
uncturum se eum, ut de abundantia unctionis eius nos percipientes salvaremur”. Cf. também
III 17,2-3 (330-336). Démons. 9 (FP 2,73); 53 (165).
13. Adv. Haer. III 17,1 (330): “unde et in Filium Dei filium hominis factum descendit, cum
ipso adsuescens habitare in genere humano et requiescere in hominibus et habitare in plasmate
Dei, voluntatem Patris operans in ipsis et renovans eos a vetustate in novitatem Christi”.
14. Cf. ATANÄSIO, Contra Arianos I 46 (PG 26, 108); 47 (109).
15. Ibid. 47 (108-109).
173
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
nós, depende da unção que o Verbo feito carne recebe em sua humanidade.
Encontramos idéias que já nos são conhecidas. Entretanto, Atanásio se afasta
da tradição precedente em um ponto importante: é o Filho enquanto Deus
quem unge a si mesmo como homem16. Perde-se assim uma dimensão tri-
nitária, para acentuar fortemente a divindade do Filho (que constatávamos
ser afirmada também pelos autores precedentes); entende-se claramente esta
preocupação no contexto da controvérsia ariana, porém, sem dúvida, é oca
sionado um distanciamento dos dados do Novo Testamento.
Hilário de Poitiers é igualmente claro na afirmação na divindade de
Jesus que, como homem, e não com o Deus, recebe o batismo. A unção não
afeta sua natureza divina, na qual não cabe o “ progresso” . A unção batismal
é dada para que sua humanidade, que a partir da encarnação é a humanidade
do Filho, cresça na santidade, renasça e o Filho do homem se torne cada vez
mais Filho de Deus também enquanto homem:
Aquele que é Deus por geração não chegou a sê-lo por alguma razão depois
do nascimento, pois, ao nascer, por seu nascimento não é mais que Deus. E,
quando é ungido por algum motivo, o progresso produzido pela unção não
se refere àquele que não necessita de crescimento algum, mas àquele que, pelo
crescimento no mistério, necessita do progresso causado pela unção; ou seja,
Cristo é ungido a fim de que, mediante sua unção, seja santificado enquanto
é homem como nós17.
16. Ibid. 46 (108): “Eu, que sou o Verbo do Pai, eu mesmo me dou o Espírito a mim feito
homem, e a mim feito homem santifico-me nele, para que depois todos se santifiquem em mim
que sou a verdade (cf. Jo 14,6)” ; cf. também ibid. 47 (109).
17. HILÁRIO DE POITIERS, de Trinitate XI 19 (CCL 62A 550); XI 18 (549): “Unctio enim
illa non beatae illi et incorruptae et in natura Dei manenti natiuitati profecit, sed corporis sacra
mento et sanctificationis hominis adsumpti... Et quemadmodum in Spiritu Dei et uirtuti unctus
sit (cf. At 10,38) non ambiguum est tunc, cum ascendente eo de Iordane uox Dei Patris audita
est: Filius meus es tu, ego hodiegenui te (cf. Lc 3,22; SI 2,7), ut per hoc testimonium sanctificatae
in eo carnis unctio spiritalis uirtutis cognosceretur”; Tr. Ps. 2,29 (CCL 61,57-58): “Scriptum est
autem cum ascendisset ex aqua: Filius meus es tuyego hodiegenui te. Sed secundum generationis
hominis renascentis tum quoque ipse deo renascebatur in filium perfectum...”.
18. In Mt. 2,5 (SCh 254,110); é interessante o último inciso, “hominem et adsumptione
sanctificans et lauacro”, onde hominem indica a um só tempo a humanidade de Jesus e a
humanidade inteira.
174
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO
19. Ibid. 2,6 (110): MNam baptizato eo, reseratis caelorum aditibus, Spiritus Sanctus emittitur
et specie columbae uisibilis agnosdtur et istius modi patemae pietatis unctione perfunditur.
Vox deinde de caelis ita loquitur... (Lc 3,22; SI 2,7). Filius Dei auditu conspectuque monstra-
tur... ut ex eis quae consummabantur in Christo cognosceremus post aquae lauacrum et de
caelestibus portis sanctum in nos Spiritum inuolare et caelestis nos gloríae unctione perfiindi
et paternae uocis adoptione Dei filios fieri, cum ita dispositi in nos sacramenti imaginem ipsis
rerum effectibus ueritas praefigurauerit” ; notamos já a mesma citação nos textos apontados
nas notas precedentes; mais informações sobre estas passagens em L. F. LADARIA, El Espíritu
Santo en san Hilário de PoitiersyMadrid, 1977,116-124; ID., La cristología de Hilário de Poitiers,
Roma, 1989, 105-118; 1D., La “unción de la gloria celeste”. Gloria y Espíritu Santo en Hilário
de Poitiers, Revista Catalana de Teologia 25 (2000) 131-140.
20. A. ORBE, La unción dei Verbo, 635: “Então [no Jordão], com efeito, teve lugar uma nova
geração, distinta da filiação natural divina, e explicitamente denunciada por uma variante de Lucas
3,22b: ‘Filius meus es tu, ego hodie genui te\ Muito mais que a extensão de tal variante entre
os primeiros escritores cristãos e seu signo de autenticidade discutível, interessa aqui a teologia
ingênua que encobre. No Jordão, Deus gera para uma nova vida a humanidade de Jesus, enquanto
cabeça da Igreja e manancial, para ela, da filiação adotiva. Jesus é humanamente adotado pelo Pai,
mediante o Espírito: não o era até então, e necessitava sê-lo em benefício de seus irmãos, como
cabeça deles e princípio de uma vida divina transferível aos homens...”. Cf. ibid. 634-637.
21. Cf. HILÁRIO DE POITIERS, Trin. III 16 (87-89); Tr. Ps. 2,27 (CCL 61,56-57).
175
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
22. Vale a pena reproduzir algumas passagens de recapitulação de A. ORBE, La uncióti dei
Verboy 635-637: “O Salvador haverá de exercer sua ação integralmente, como Deus e como ho
mem. A união hipostática, por si, não conaturaliza o Espírito ao homem. Conaturaliza-lhe a vida
íntima que o próprio Espírito provoca na alma e no corpo de Jesus, quando os invade com novos
conhecimentos, afetos e vivências. No Jordão, mudou radicalmente a vida humana de Jesus... Na
ordem da economia, a humanidade de Jesus foi habilitada muito em breve... para fazer milagres
e para ensinar. Empregou, não obstante, os XII meses de sua vida pública para tomar-se capaz de
infundir em outros seu próprio Espírito. Entretanto, o Espírito penetrava lentamente na alma e
na carne de Jesus. Mais que a assimilação do Espírito pela humanidade de Jesus, era a assimilação
de Jesus pelo Espírito. Na saúde da Igreja, nem o Verbo como tal nem a fortiori a humanidade
desembaraçada de Jesus podem operar eficazmente. O Verbo atuará como princípio do Espírito
— em favor dos homens — sob a condição de que o encontre já conaturalizado ao homem, com
essências humanas, adquiridas em Jesus. Em virtude de sua destinação aos homens, seu princípio
imediato será o Verbo Encarnado enquanto tal. O próprio Pai não o difunde direta e imediatamente
sobre os membros da Igreja. Só Jesus (Verbo feito homem) fez milagres e anunciou o evangelho
do Pai, só ele derramará o Espírito que recebeu por primeiro no Jordão”. 1D., En tomo a la en-
camacióriy Santiago de Compostela, 1985, 218-219: “A natureza humana de Jesus recebe, a modo
de qualidade, o Espírito Santo. E em sua virtude fica habilitada para atos espirituais; e inicia um
novo regime operacional... Era mister que, constituído mediador entre Deus e os homens, Jesus
atuasse no divino a partir de sua natureza humana. E para tal fim recebesse, a modo de crisma, em
sua humanidade, o Espírito Santo destinado a seus irmãos, os homens. Tal modo de apresentar o
Espírito Santo na Encarnação, e no Batismo, demonstra que sabiam distinguir entre o pessoal e
o dinâmico... Os eclesiásticos discorrem com maior simplicidade e clareza sem confundir nunca
a presença não-operativa do Verbo e a presença operativa do Espírito que, a modo de unção,
habilita na ordem salvífica a humanidade do Verbo a partir do batismo”.
23. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 30,21 (SCh 250,272); igualmente, ibid. 30,2 (228):
“a divindade é a unção da humanidade”. As idéias de Gregório tiveram influência em JOÃO
176
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO
DAMASCENO, Defide orthodoxa III3; 17; IV 14; 18 (PG 94,989; 1070; 1161; 1185); mais matizado
em IV 6.9 (1112; 1120). A idéia da unção da humanidade pela divindade encontra-se já presente em
ORÍGENES, Princ. II 6,4.6 (SCh 252,316; 322), porém não se trata da unção do Jordão, mas da
união da alma preexistente com o Verbo: “anima cum uerbo Dei Christus efficitur”.
24. A teologia do batismo de Jesus segundo Gregório tende a considerar a cena uma pre
figuração do que acontece em nosso batismo; cf. Or. 39,1; 14-17; 20 (SCh 358, 151; 178-188;
194); Or. 40,29-30 (SCh 246-248).
25. Or. 31,29 (SCh 250,332).
177
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
de Deus, que havia perdido, quando soprou no rosto dos discípulos, o que
disse?: “Recebei o Espírito Santo...” (Jo 20,22-23)26.
26. De Spiritu sancto 16,39 (SCh 17bis, 386). Também ibid. 19,49 (418-420): “Também o
Espírito precede a vinda de Cristo. A presença de Cristo na carne não pode ser separada do Es
pírito Santo. O poder dos milagres, os dons das curas realizaram-se mediante o Espírito Santo.
Os demônios eram expulsos no Espírito de Deus. O diabo foi aniquilado com a presença do
Espírito”.
27. Cf. ibid. 12,28 (344). Trata-se de uma citação de um conhecido texto de IRENEU, Adv.
Haer. III 18,3 (SCh 211,350-352). Adota-o também AMBRÓSIO DE MILÃO, De Spiritu sancto
I 3,44 (CSEL 79,33). Também para Ambrósio, o Espírito desce sobre Cristo enquanto homem,
para o cumprimento de sua missão evangelizadora e para que dele nós o recebamos; cf. De
Spiritu sancto I 8,93 (55); III 1,2.5 (150.151).
28. AGOSTINHO DE HIPONA, Trin. XV 26,46 (CCL 50A, 526-527): “Nec sana tunc
unctus est Christus spiritu sancto quando super eum baptizatum velut columba descendit;
nunc enim corpus suum, id est ecclesiam suam praefigurare dignatus est... Sed ista mystica et
invisibili unctione tunc intelligendus est unctus quando verbum Dei caro factum est (Jo 1,14),
id est quando humana natura sine ullis praecedentibus bonorum operum meritis deo verbo
est in útero virginis copulata ita ut cum filio fieret una persona... Absurdissimum est enim ut
credamus eum cum iam triginta esset annorum... accepisse spiritum sanctum”.
29. SANTO AGOSTINHO, In Joh. Ev. trac. V, 5 (CCL 36,43); Jesus é batizado no Jordão
para nos exortar a receber seu batismo, já que ele recebeu o batismo do servo. O significado
178
O ESPÍRíTO DO PAI E DO FILHO
cristológico da descida do Espírito sobre Jesus tal como é narrada em João 1,32-34 não preocupa
Agostinho nos trac. IV-VI In Joh. (CCL 36,31-67), que dedica a estes versículos; o ponto central
é que Jesus batiza no Espírito Santo. Vê no batismo de Jesus uma manifestação da Trindade;
trac. VI 5 (56): “Apparet manifestíssima Trinitas. Pater in voce, Filius in homine, Spiritus in
colomba” . Desaparece toda menção à unção que víamos em autores anteriores.
30. Cf. CIRILO DE ALEXANDRIA, In Joh. Ev. II (PG 73,196-210); Adv. Nestorium III3 (PG
76,148): “Quando o vês ungido pelo próprio Espírito, pensa na economia da carne” .
31. In Joh. Ev. II (208A); acolhe-se o motivo apontado por Ireneu, que já conhecemos.
32. Ibid. (205D).
33. Cf. ibid. V (752-757, espec. 753).
34. Cf. ibid. (753A); Cristo é o primeiro que recebe o Espírito.
179
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÀO
B. Santo Tomás
A teologia do batism o e da unção de Cristo continuou na Idade Média.
Iremos nos deter brevemente em algumas das principais afirmações de santo
Tomás. Para ele, a união do Verbo à humanidade não acontece mediante a
graça que se atribui ao Espírito Santo, porque a graça, na visão de Tomás,
é um “acidente”, e a união hipostática pertence à subsistência. O Espírito
Santo formou o corpo de Cristo. A graça da união é o mesmo ser pessoal
que se dá divinamente de maneira gratuita à natureza humana na pessoa
do Verbo. A graça habitual, que corresponde à santidade especial deste
homem, é a conseqüência da graça da união35. A “ graça” vem, portanto,
da união hipostática e é um efeito conseqüente desta. É este um ponto que
devemos reter e que se coloca, embora com uma chave diversa, na linha da
antiga tradição, que via a presença do Espírito Santo em Jesus como uma
conseqüência da encarnação. No tratamento dado por santo Tom ás à graça
de Cristo, não são freqüentes as menções ao Espírito Santo36. Não faltam,
porém, as passagens nas quais a graça habitual se relaciona diretamente com
o Espírito Santo, dando-se uma iluminação recíproca das missões trinitárias e
da articulação entre a graça da união e a graça habitual37. A união hipostática
35. TOMÁS DE AQUINO, STh III 6,6: “Gratia enim unionis est ipsum esse personale quod
gratis divinitus datur humanae naturae in persona Verbi: quod quidem est terminus adsump-
tionis. Gratiam autem habitualis, pertinens ad specialem sanctitatem illius hominis, est efifectus
quidam consequens unionem. Cf. todo o artigo.
36. Cf. ibid. ad 3. Cf. la q. 7, onde se fala da graça de Cristo sem menção especial ao Espírito
Santo. Curioso o conteúdo do art. 11, ad 1, comentário sobre João 3,34, segundo o qual Deus
não dá o Espírito Santo com medida; no comentário não é mencionado o Espírito Santo, mas
fala-se do dom eterno do Pai ao Filho, da natureza divina e do dom da união da pessoa divina
à humanidade.
37. Ibid. 7,13: “Principium enim unionis est persona Filii assumens humanam naturam...
Principium autem gratiae habitualis, quae cum caritate datur, est Spiritus Sanctus... Missio
autem Filii, secundum ordinem naturae, prior est missioni Spiritus Sancti: sicut ordine naturae
Spiritus Sanctus procedit a Filio et a Patre dilectio. Unde et unio personalis, secundum quam
intelligitur missi Filii, est prior, ordine naturae, gratiae habituali, secundum quam intelligitur
missio Spiritus sanctus”. Cf. a continuação: a graça vem da presença da divindade no homem,
e a presença de Deus em Cristo é, antes de tudo, a da divina pessoa na natureza humana. Como
conseqüência desta união, vem a graça habitual, como o esplendor se segue ao sol. Desapareceu
180
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO
aqui a menção ao Espírito Santo. Sobre a relação entre o Espírito Santo e a graça, em termos
mais genéricos, cf. I 43,3.
38. Cf. ibid. 34,1.
39. Ibid. 39,2: “Christus autem spirituali baptismate non indigebat, qui a principio suae concep-
tionis gratia spiritus sancti repletus fuit”. Cf. 39,6, sobre a descida do Espírito Santo em forma de
pomba. De modo conseqüente com o que se acaba de dizer, não se faz nenhuma alusão ao efeito que
a descida do Espírito possa ter para Cristo. Santo Tomás apóia-se na passagem de santo Agostinho
que já conhecemos. De Jesus cheio do Espírito Santo fala também em ibid. II.II, 14,1.
40. STh III 8,5: Min anima Christi recepta est gratia secundum maximam eminentiam.
Et ideo ex eminentia gratiae quam accepit, competit sibi quod gratia illa ad alios derivetur.
Quod pertinet ad rationem capitis” . Novamente, neste contexto, falta a menção ao Espírito
Santo.
41. Cf. STh II.II, 14,1; Jesus faz os milagres pela força do Espírito Santo e ao mesmo tempo
por força da natureza divina: tt... quae quidem agebat et per virtutem propriae divinitatis et
per operationem Spiritus Sancti, quo secundum humanitatem erat repletus”.
181
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
C A discussão recente
A presença do Espírito em Jesus foi posta em destaque em tentativas
diversas na teologia dos últimos decênios. Deixo de lado os propósitos de uma
simples substituição da teologia do Filho ou do Logos pela do Espírito, porque
não parece que tenham levado a resultados positivos. A impressão é, antes,
que tenham conduzido a um caminho morto, uma vez que se torna muito
problemática sua compatibilidade com o dogma trinitário e cristológico42.
Pode-se compartilhar sem dificuldade a opinião de que uma cristologia que
parte do Espírito leva ao adocionismo43. Jesus é o Filho de Deus feito homem.
Esta é sua identidade pessoal e, por conseguinte, o único ponto de partida
válido para abordar o problema da presença, nele, do Espírito Santo. A partir
desta base, abre-se um vasto campo para a discussão teológica, no intuito de
precisar cada vez mais a relação entre a encarnação e a unção de Cristo e a
obra do Espírito presente na humanidade do Salvador.
42. Cf., entre outros, G. W. H. LAMPE, The Holy Spirit and the Person of Christ, in S. W.
SYKES, S. P. CLAYTON (eds.), Christy Faith and HistoryyCambridge, 1972, 111-130; ID., God
as Spirity Oxford, 1976; H. BERGHOF, Theologie des Heiligen Geistesy Neukirchen, 21988; R.
HAIGH, Jesusy Symbol of GodyMariknoll, New York, 1999, espec. 424-492; ID., The Case for
Spirit Christologie, Theological Studies 53 (1992) 257-287.
43. Cf. W. PANNENBERG, Jesus, God and ManyPhiladelphia, 1968, 120-121, citado por H.
U. VON BALTHASAR, Theologik III. Der Geist der Wahrheity Einsiedeln, 1987, 33.
44. Cf. H. MÜHLEN, Una mystica Persona. Die Kirche ab das Mysterium der heibgeschichli-
tchen Identität des Heiligen Geistes in Christus und in den Christen München/Paderborn/Wien,
31968, espec. 189-200.
182
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO
ao Pai (cf. Ef 2,18). A missão do Espírito pressupõe a do Filho, para nossa ida
ao Pai por meio de Jesus é necessária a prévia missão do Espírito Santo. Por
outro lado, somente Cristo é o mediador entre Deus e os homens (cf. lTm
2,5) e o Espírito Santo nos une a este mediador.
Desta ordem das missões na economia da salvação, a tradição passou à
ordem das processões na Trindade “imanente”. Existe uma “correspondência”
entre ambas. As pessoas divinas relacionam-se entre si tanto na economia da
salvação como na vida intratrinitária com uma ordem determinada. Nesta
ordem está já contida a diferença entre a encarnação e a Igreja; estas se rela
cionam de maneira análoga às processões divinas, ou seja, ao modo como se
relacionam o Filho e o Espírito Santo. Segundo o Novo Testamento, as missões
de Cristo e do Espírito sucedem-se no tempo. Mühlen está consciente de que
a unção de Cristo, segundo o Novo Testamento, há de ser posta em relação
com a vinda do Espírito sobre ele no Jordão45. Todavia, é de opinião que, a
partir do nexus mysteriorum> pode-se afirmar que a encarnação e a efusão do
Espírito sobre Jesus acontecem em um mesmo momento, mesmo que seja
preciso dar uma prioridade lógica à encarnação, uma vez que com ela o Logos
“personalizou” essa natureza humana46. Existe assim uma diferença, na relação
profunda, entre a encarnação que funda a filiação divina de Jesus e a espiração
e a missão do Espírito Santo, comum ao Pai e ao Filho. Esta missão é a que
continua na Igreja. Assim sendo, esta é a continuação da unção de Cristo com
o Espírito Santo: “A Igreja não é a continuação da encarnação como tal, mas
a continuação histórico-salvífica da unção de Jesus com o Espírito Santo”47.
Não é oportuno, aqui, dar continuidade aos aspectos eclesiológicos,
aos quais, em parte, já fizemos referência48. Importam-nos agora os aspectos
cristológicos que, de maneira mais direta, estão relacionados com os proble
mas que são objeto de nosso interesse. Dizíamos que Jesus, segundo Mühlen,
recebeu, no momento exato da concepção, a plenitude do Espírito Santo e
da graça. Isto não impede que se possa falar de uma “história” da graça em
Jesus mesmo. Porém, tratar-se-ia, antes, de um crescimento na manifestação
desta graça “para fora”; no próprio batismo do Senhor, do ponto de vista
dogmático, acontece apenas a manifestação do envio do Espírito que teve
lugar no momento preciso da encarnação49. Por outro lado, Mühlen assinala
183
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
o fato de que o Espírito que desce sobre Jesus é o Espírito do qual ele, como
Filho, é princípio. Trata-se, portanto, de seu próprio Espírito, que desce sobre
ele enquanto homem como algo que lhe sobrevém50. A recepção do Espírito
pressupõe, portanto, a encarnação.
Não abordamos todos os pontos que uma exposição pormenorizada
deveria ter presentes. Foi-nos suficiente sublinhar a distinção clara entre a
encarnação e a unção de Jesus, dois eventos, por outro lado, intimamente
relacionados; tanto a distinção como a relação entre ambos fimdam-se, em
última palavra, na vida da Trindade e nas duas missões ad extra do Filho e
do Espírito. A ordem das missões haverá de ser mantida, e neste sentido a
prioridade da encarnação sobre a unção parece-me evidente. A humanidade
de Jesus não existe mais que enquanto assumida pelo Verbo. A unção vem
sobre Jesus enquanto homem, é unção da humanidade unida já hipostatica-
mente ao Filho, porque sem tal união essa humanidade não existe. N ada há
a objetar quanto a uma coincidência cronológica de encarnação e vinda do
Espírito Santo, no sentido de que Jesus existe sempre como santificado em
sua humanidade pelo Espírito. Em minha opinião, problema maior pode
criar o fato de não ver nos diferentes momentos da vida de Jesus mais do que
manifestações do que desde sempre existe em plenitude. Não se vê por que não
irá crescer a humanidade de Jesus em seu caminho para o Pai, e por que o
batismo do Senhor, momento a que o Novo Testamento dá tanta importância,
seja apenas manifestante de uma plenitude que já existe e não seja portador
de novidade alguma para Jesus (sempre enquanto homem, evidentemente).
Não significa algo o fato de que a partir desse momento Jesus inicie sua vida
pública, comece a pregar e a fazer milagres?51 É um ponto no qual não há
por que insistir, no qual, todavia, cabe certamente uma maior precisão. Que
o Espírito que desce sobre Jesus é o seu próprio, está claro. Entretanto, quem
50. Cf. ibid. 244. Mühlen funda-se em CIRILO DE ALEXANDRIA, Com. In ]oel II 35 (PG
71,380). Vimos outras passagens de Cirilo, nas quais insistia no mesmo ponto. Seja como for,
para são Cirilo, a unção de Jesus acontece no Jordão.
51. CONGAR, a meu ver, reconheceu neste ponto com muito maior clareza: El Espíritu
Santo, Barcelona, 1983, 606: “Quanto a Jesus, teremos cuidado em evitar todo adocianismo.
Afirmamos que é ontologicamente Filho de Deus pela união hipostática desde sua concepção;
que é templo do Espírito a partir desse mesmo momento, santificado pelo Espírito em sua
humanidade. Todavia, guiados pela intenção de respeitar os momentos ou etapas sucessivas
da história da salvação e dar todo o seu realismo aos textos do Novo Testamento, nós nos
propomos ver, primeiro, no batismo e, depois, na ressurreição-exaltação dois momentos de
atuação nova da virtus (da eficiência) do Espírito em Jesus, enquanto é constituído (e não apenas
declarado) por Deus Messias-Salvador e, posteriormente, Senhor”. Cf. também M. BORDONI,
La cristologia nelVorizonte dello Spirito, Brescia, 1995, 239.
184
0 ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO
unge Jesus no Espírito Santo e poder, conforme Atos 10,38, é Deus (cf. também
Lc 4,18). Vimos também alguns elementos da teologia dos primeiros tempos
neste mesmo sentido. Seguindo a terminologia escolástica, e mais precisamente
a de santo Tomás que conhecemos, Mühlen qualifica de “acidental” a santidade
de Jesus operada pelo Espírito52; todavia, o que se quer dizer com esta palavra
é que não muda substancialmente a humanidade de Jesus já constituída. Não
no sentido de algo de pouca importância ou de que se possa prescindir. Ainda
que Mühlen não insista nos efeitos do dom do Espírito para Jesus mesmo,
mostra apreender claramente a transcendência salvadora da presença quan
do define a Igreja como a continuação da unção de Cristo. A vinda de Deus
aos homens em Cristo não é compreendida nem alcança seus efeitos sem a
missão do Espírito; este desce primeiro sobre Jesus, para dele passar a todos
os homens. Manter a ordem das missões (cf. Gl 4,4-6) não significa de modo
algum “cristomonismo” .
52. Cf. MÜHLEN, Una mystica Personay223; mas também ibid. 245: o Espírito está insepa
ravelmente unido a Jesus e a sua função.
53. Cf. Theologik III. Der Geist der Wahrheit, Einsiedeln, 1987,166-167. Deveremos retomar ao
tema da “inversão trinitària”, porque está em íntima relação com o que estamos tratando agora.
Von Balthasar abordou esta questão principalmente em Teodramática 3. Las personas dei drama:
el hombre en Cristo, 1993, 173-180; 477-480. A caracterização da “ inversão trinitària” em Theol
IHy 166-167, é especialmente clara: “A inversão econômica não muda nada na taxis intratrinitária.
Porém a remete... à simultaneidade das missões de Filho e Espírito, cuja relação mútua muda
segundo as necessidades da oikonomia: se em primeiro lugar o Espírito é enviado para encarnar
o Filho [um den Sohn zu inkamieren] e conduzir o homem Jesus até a morte, igualmente o res
suscitado pode novamente dispor sobre o Espírito e enviá-lo juntamente com o Pai”.
185
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
O Espírito Santo não tem apenas uma atividade na santificação, mas pode-se
atribuir-lhe também uma ação criadora. Pressupõe-se que é a ação criadora
da humanidade de Jesus. Por outro lado, assinala acertadamente Balthasar,
não podemos pensar que o Espírito tenha “criado” a união das duas naturezas
de Cristo54. O dilema se estabelece se levamos em conta que, por um lado, no
Novo Testamento a encarnação é atribuída ao Espírito Santo e, por outro,
quem se encarna é o Logos e não se “deixa encarnar” por outra pessoa. O
problema pode ser resolvido, segundo nosso autor, com uma reflexão sobre
a essência do Espírito. Vale a pena examinar lentamente suas palavras:
O Espírito é o Espírito do Pai e do Filho; é enviado claramente como Espírito
do Pai sobre a Virgem, enquanto ao mesmo tempo (e não per priws), como
Espírito do Filho, move a este, segundo sua disponibilidade filial, a deixar que
se leve a efeito a união hipostática (em obediência apriórica, porém não passi
va). Encarnação e “unção” simplesmente coincidem, como também coincidem
[zusammenfallen] a “unção” da humanidade de Cristo com a natureza humana
e com o Espírito Santo (pois Deus tanto é “natural” quanto “pessoal”)...
Enquanto o Espírito age como Espírito do Pai, leva a “semente de Deus” ao
seio da Virgem, enquanto é Espírito do Filho, este aceita em obediência a
disposição do Pai; dito com outras palavras: já se encarnando, obedece55.
54. Cf. Theologik ///, 168. Confira, porém, o texto citado na nota anterior.
55. Theologik III, 168.
186
O ESPIRITO DO PAI E DO FILHO
187
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
56. Cf. BASÍLIO DE CESARÉIA, De Spiritu sanctoy 19,49 (SCh 17bis 418-420); 16,39 (386);
GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 31,29 (SCh 250,232), citado em Theologik ///, 156-157.
57. Cf. Teodramática III. Las personas del drama: el hombre en Cristo, 173-174.
58. Cf. W. KASPER, Jesús el Cristo, Salamanca, 1978, 311-312, citado em H. U. VON
BALTHASAR, Teodramática ///, 175. De nossa parte, retornaremos ao pensamento de W.
Kasper.
59. VON BALTHASAR, Teodramática ///, 175.
188
0 ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO
fórmulas bem conhecidas dos credos vão além da ação do Espírito que possi
bilita a concepção virginal de Jesus no seio de Maria. A dúvida de que se queira
apontar também que o Filho> no ato da encarnação, obedece às indicações
do Espírito é, pelo menos, legítima. Não creio que seja fácil encontrar na tra
dição testemunhos que denotem este último sentido. Pode-se, com certeza,
afirmar que “o Filho enquanto feito homem é agora em determinado aspecto
um fruto do Espírito, que lhe dá origem ex Maria Virginey embora no plano
intratrinitário o Espírito seja o fruto da espiração comum do Pai e do Filho”60.
A humanidade de Jesus é, sem dúvida, fruto da ação do Espírito. Todavia, que
o seja também a encarnação do Filho, de tal maneira que já na aceitação do
desígnio paterno que leva o Filho a fazer-se homem se dê uma obediência ao
Espírito, não me parece igualmente claro. Não creio que as duas afirmações
possam ser colocadas no mesmo plano61.
Von Balthasar admite que santo Tomás tem razão quando afirma que a
constituição de um sujeito precede o ato de sua “agraciação”. Pelo contexto,
parece referir-se à encarnação, que deve preceder “ôntica e logicamente” a
recepção da graça por parte de Jesus, o Filho encarnado. Daí, porém, não se
deduz, como tampouco das relações intratrinitárias, que a atividade do Espírito
no ato da encarnação deva vir depois da realizada pelo Filho:
Desde o início da encarnação, o Espírito possui no plano econômico uma forma
análoga de mediação entre Pai e Filho, tal como se evidencia na manifestação
oficial de sua missão no momento do batismo: desce sobre o Filho para “per
manecer” suspenso em-sobre ele (Jo 1,32-33)... Nós não conhecemos outra
forma da Trindade econômica senão a única que teve lugar na história...: o
189
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
Filho, dócil ao Pai desde toda a eternidade, nessa forma de homem “aprendeu
a obediência pelos próprios sofrimentos” (Hb 5,8), que representa vicariamente
os pecadores e redime a partir de dentro sua desobediência. O Espírito que está
em-sobre ele é quem, em sua forma econômica, toma possível esta obediência
segundo o modo em que comunica ao Filho a vontade do Pai62.
190
0 ESPIRITO DO PAI E DO FILHO
pecado (cf. Rm 8,3). Há, porém, um segundo aspecto que no tempo da vida
mortal de Jesus de algum modo prevalece, o Espírito sobre Jesus, que assume
a fimção de apresentar o Filho obediente à vontade do Pai. Dele dariam tes
temunho os textos que falam do mandato do Pai que Jesus deve cumprir64. O
Espírito é sempre o Espírito do Pai e do Filho, contudo certamente no tempo
da vida mortal de Jesus aparece com mais clareza o primeiro aspecto. É Deus
Pai quem unge Jesus em Espírito e poder (At 10,38), e foi isso mesmo o que a
tradição viu nos primeiros períodos. A controvérsia ariana deu oportunidade
para que se insistisse no dom que o próprio Filho faz a si mesmo. A doação
do Espírito depois da ressurreição deixará claro que o Espírito é a um só
tempo e inseparavelmente do Pai e do Filho. Todavia, o fato de este aspecto
aparecer mais claramente não quer dizer que o outro esteja oculto de todo.
Com efeito, se por um lado o Espírito move Jesus, também por outro Jesus
atua no Espírito, a saber, o Espírito é um poder de que dispõe, por exemplo,
para expulsar os demônios65. Esta certa ocultação do fato de que o Espírito é
também o Espírito do Filho está em correspondência com a kénosis do Filho.
Porém, assim como o Filho não deixa de ser Deus, tampouco deixa de ser
princípio do Espírito. E não o repetiremos nunca suficientemente: Jesus de
Nazaré sobre quem repousa o Espírito é o Filho de Deus encarnado.
De fato, Von Balthasar toma em consideração a doutrina dos dois estados
de Cristo, o statu s exinanitionis e o statu s exaltationis , que diz respeito à rela
ção de Jesus com o Espírito. Esta relação, no primeiro dos estados, significa
a obediência de Jesus no cumprimento de sua missão, e no segundo o poder
de espirar o Espírito. Neste estado supera-se a “inversão trinitária”, ainda que
se siga o fato de que a humanidade do Filho se deve à ação do Espírito Santo.
Esta relação de Jesus com o Espírito nos dois estágios responde, na Trindade
imanente, a dois aspectos do Filho em seu eterno proceder do Pai: receber a pos
sibilidade de co-espirar o Espírito, que corresponderia ao status exinanitionis, e a
i66.
efetividade dessa co-espiração, que corresponderia ao status exaltationis O Filho
recebe realmente a capacidade de espirar o Espírito. Por isso, ao encarnar-se,
possui em si a condição para ser conduzido pelo Espírito sobre ele, e a entregar-
191
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
se a este guia. Von Balthasar termina assim sua exposição sobre a inversão
trinitária: “O que designamos como ‘inversão’ não é, definitivamente, mais
que a traslação da Trindade imanente ao âmbito do econômico, no qual a
‘correspondência’ do Filho com o Pai é articulada como ‘obediência’”67. Vai-se
da economia à teologia ou da teologia à economia? Em que razões se funda a
traslação do âmbito da Trindade imanente ao da Trindade econômica? Não
é, antes, inverso o caminho a seguir, como se reconhece universalmente na
teologia católica e como o próprio H. U. von Balthasar afirmou expressamente
em não poucas ocasiões?68.
Outras considerações que se acrescentam ao final desta mesma obra
não mudam substancialmente o quanto até aqui indicamos. Uma pequena
indicação complementar faz ver que von Balthasar não é insensível à questão
da “cronologia” da unção de Cristo. Como Jesus é
Fruto do Espírito que cobriu a Virgem com sua sombra, possui sem dúvida este
Espírito nele, porém, desde o momento em que o Espírito desceu expressamente
(“corporalmente”) sobre ele, tem Jesus o Espírito “sobre ele” ... (Mt 3,16; Lc
3,22). João diz com precisão “permanecendo sobre ele” (1,33)... Que Jesus
tenha o Espírito realmente “sem medida” (Jo 3,34), porém apesar de tudo o
reconheça sobre ele, é a expressão de seu abaixamento... no qual, descendo
de sua condição divina, “se faz obediente até a morte” (F1 2,8). Porém, este
Espírito de Deus sobre ele... está ao mesmo tempo nele, por exemplo, quando
“expulsa os demônios pelo Espírito de Deus” (Mt 12,28). Assim, esse Espírito,
nele e sobre ele, é a presença manifesta de sua missão divina...69.
Von Balthasar faz aqui uma precisão importante, na medida em que parece
que o batismo do Senhor é um momento novo desta presença do Espírito que
já ocorria; a novidade afetaria especificamente a modalidade do “sobre ele” .
Esta última forma seria a base econômica do a Patre procediu ao passo que a
forma “nele” ofereceria o fundamento ao Filioque. Existem diversos modos de
doação do Espírito, que permitem diversos modos de relação entre o Filho e
o Pai, conforme o que a missão exige em cada caso. Tudo isso não significa
que Deus mude em si mesmo, mas que o Deus imutável entra em relação
192
0 ESPÍRíTO DO PAI E DO FILHO
com a criatura, e isto confere às relações internas de Deus uma nova face,
não meramente externa, porque a natureza humana unida hipostaticamente
ao Filho traz à luz alguma das infinitas possibilidades que se encontram no
ser de Deus70.
Fomos dando já algumas pinceladas críticas à medida que nossa exposição
avançava. Mas devemos ter agora uma avaliação de conjunto. Antes de tudo,
é preciso salientar que a preocupação fundamental de Von Balthasar ao for
mular sua teoria é legítima e está justificada. A presença do Espírito em Jesus
foi excessivamente descuidada no decurso dos tempos, e não se pode evitar a
impressão de que, em dados momentos da história da teologia, não se soube o
que fazer com os dados que nos falam desta ação do Espírito sobre Jesus e da
atuação de Jesus “no Espírito”. A recuperação dessa dimensão “pneumática”
da cristologia é necessária se se quer fazer precisamente crísfologia. Portanto,
antes de tudo temos esse reconhecimento inicial da importância do plano
empreendido, que certamente merece muita atenção.
Fizemos já referência ao caráter meramente hipotético que pode ter
uma obediência do Filho às indicações do Espírito no deixar-se encarnar.
Não parece haver dados que nos permitam ir tão longe. Fica o fato de que
a encarnação se efetua por obra do Espírito Santo. A potência criadora do
Espírito torna possível a encarnação no seio da Virgem, a concepção virginal
de Jesus. O Espírito forma a humanidade de Jesus em Maria e de (ex) Maria.
Todavia, essa humanidade de Jesus é criada enquanto é assumida pelo Verbo.
“ Ipsa assumptione creatur”, segundo a conhecida fórmula inspirada em santo
Agostinho e são Leão Magno71. Somente na medida em que o Filho assume
a humanidade esta é criada. Existe simultaneidade perfeita entre ambas as
ações, mas é preciso dar prioridade à assunção. Essa humanidade só existe na
medida em que está hipostaticamente unida ao Verbo, só é criada enquanto é
a humanidade do Filho. É criada pelo próprio fato de ser assumida, e não o
inverso. Nada na humanidade de Jesus é prévio à assunção por parte do Filho,
no cumprimento do desígnio do Pai. É, sem dúvida, importante e decisiva
a ação do Espírito na encarnação72. Não creio, porém, que dê motivo para
193
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMJNHÀO
73. Cf. W. KASPER, Jesús el CristoySalamanca, 1978,310-311: “Na medida em que o Espírito
preenche totalmente a humanidade de Jesus, faz-lhe o dom da abertura, em razão da qual ela pode
ser livremente um oco e vazio total para a autocomunicação de Deus. Por isso... a santificação
da humanidade de Jesus pelo Espírito e seus dons não é somente uma conseqüência acidental da
santificação pelo Logos em razão da união hipostática, mas, ao contrário, representa também
seu pressuposto. O Espírito é, pois, tanto a liberdade personificada do amor de Deus como o
princípio criador, que santifica o homem Jesus, capacitando-o para ser a resposta humana à
autocomunicação de Deus mediante sua livre obediência e entrega”; é interessante o que se diz
no contexto sobre a liberdade do Espírito. Esta passagem é citada por Von Balthasar (cf. nota
38), que parece aceitar este ponto de vista; cf. também M. BORDONI, Cristologia nelVorizonte
dello SpiritOy Brescia, 1995, 227. É possível que não contribua para a clareza o fato de se falar
neste contexto de uma santificação da humanidade de Jesus em virtude da união hipostática.
Com isso, a presença santificadora do Espírito corre o risco de ser desvirtuada e reduzida a
algo, efetivamente, “acidental”. Entende-se que se queira evitar esta unilateralidade. Não seria
mais oportuno dizer que o Espírito santifica a humanidade que o Filho assumiu?
74. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, declaração Dominus ksusy 12: “No
Novo Testamento, o mistério de Jesus, Verbo Encarnado, constitui o lugar da presença do
Espírito Santo e o princípio da sua efusão na humanidade...”. O fato de que Jesus seja o Verbo
encarnado parece ser a razão pela qual é o lugar da presença do Espírito.
194
0 ESPIRITO DO PAI E DO FILHO
195
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
Deus não pode ser compartilhada por ninguém. A união hipostática é também
irrepetível, em virtude da unicidade pessoal do Verbo de Deus. Jesus, porém,
nos comunica seu Espírito, o “espírito de filiação” (Rm 8,15). Aquele que é
eternamente o unigénito de Deus, em virtude de sua encarnação e da efusão
do Espírito, do Espírito que desceu sobre ele e o guiou até oferecer-se na cruz
(cf. Hb 9,14; e também na ressurreição, Rm 1,4), converte-se no primogênito
entre muitos irmãos (cf. Rm 8,29). Podemos ser “filhos no Filho” porque
este compartilhou nossa condição e porque nos deu o Espírito que sobre ele
repousou. Tanto uma coisa como a outra são necessárias na realização do
desígnio salvador de Deus.
Em relação com a “ inversão trinitária”, propôs-se também o problema
que indaga se a tese pode ser mantida à luz do princípio comumente admitido
da identidade entre a Trindade econômica e a Trindade imanente. Somente
a partir da economia da salvação podemos chegar ao conhecimento de Deus
em si mesmo. Observamos algumas expressões de Von Balthasar nas quais
parecia que se passava da imanência à economia, ou seja, que de algum modo
se aceitava sem as devidas nuanças a segunda parte do Grundaxiom de Karl
Rahner, ao passo que a primeira parte, de aceitação geral, parecia não ser
levada em conta78. É a Trindade econômica a Trindade imanente, se a ordem
das pessoas não é a mesma em um e em outro caso? É a táxis das hipóstases
algo apenas acidental, que pode mudar pelas exigências da economia? Qual é,
então, o sentido desta última? Pareceria que não existe correspondência entre
a ordem das missões e a das processões. Com o se chega, então, a conhecer a
ordem destas últimas? Na realidade, a “inversão trinitária” termina, segundo
Von Balthasar, com a ressurreição e glorificação de Jesus. Também esta e o
conseqüente dom do Espírito são uma parte fundamental e de relevância
primária na economia da salvação. Neste momento decisivo, por certo se
salvaria a correspondência entre as missões e as processões eternas. Porém,
todos os aspectos e dimensões do acontecimento Cristo são reveladores do
mistério de Deus e todos os mistérios da vida do Senhor são salvadores.
A afirmativa de que a revelação culmina no mistério pascal significa que os
fatos acontecidos no tempo da vida mortal de Jesus são aprofundados e con
templados a uma luz mais plena, não, porém, que estes acontecimentos não
tenham correspondência com o ser eterno de Deus. Falar de inversão pode
criar alguma dificuldade se levamos em conta que as relações eternas que
constituem as pessoas têm correlação com as processões e com a ordem das
missões. Seria certamente excessivo falar, pela razão já apontada, de uma total
78. Cf., além disso, J.-N. DOL, L'inversion trinitaire chez Hans Urs von Balthasary 223.
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A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
51, com relação às teses de Durrwell, às quais a seguir faremos referência; M. BORDONI, El
Espíritu Santo y Jesús. Reflexión bíblico-sistemática, in Se encamó por obra dei Espíritu Santo,
Salamanca, 2000,13-41, 32-34 (também em Estúdios Trinitarios 34 [2000] 3-31); S. DEL CURA
ELENA, Espíritu de Dios, Espíritu de Cristo: una pneumatologia trinitária, in ibid. 131-173,
164-167 (também em Estúdios Trinitarios 33 [1999], 217-257). Também da parte ortodoxa não
faltam posições críticas diante desta opinião; cf. B. OBERDÖRFER, Filioque. Geschichte und
Theologie eines ökumenischen Problems, Göttingen, 2000,401; 442, com referência a J. Zizioulas.
Para superar estas dificuldades, Y. CONGAR, El Espíritu Santo, 514-516, indica que a unidade
divina, além de fundar-se nas processões, funda-se também na pericoresis no “in-esse” dos três.
Já nos referimos a esta questão (capítulos 2 e 3) e voltaremos a ela.
86. A idéia da processão do Pai e o repouso sobre o Filho encontram-se já em JOÃO
DAMASCENO, De fide orthod. I 8 (PG 94,821).
87. Cf. BASÍLIO DE CESARÉ1A, De Spiritu sancto 16,37 (SCh 17bis, 376): “Se o Apóstolo
menciona aqui (ICor 12,4-6) em primeiro lugar o Espírito, em segundo lugar o Filho e em
terceiro o Pai, não temos de pensar de modo algum que se tenha revolvido a ordem, mas que
começa de nosso ponto de vista”; cf. também 16,38; 18,44-45; o falar de um primeiro, um
segundo e um terceiro não significa nem cair no politeísmo nem estabelecer diferenças de
hierarquia entre as pessoas.
88. Cf. El Espíritu Santo, 1988, 515-516. Não cita diretamente textos de Basílio, mas sim
de ATANÁSIO, C. Arianos III 24 (PG 26,373): “ [O Filho] não recebe o Espírito, mas, antes, o
distribui a todos. Não é o Espírito quem une o Filho ao Pai, mas o Espírito, ao invés, recebe
do Logos; cf. CONGAR, El Espíritu Santoy 516. Podemos também nos referir aos conhecidos
textos de TERTULIANO, Prax. VIII 5-7 (Scarpat, 160-162).
89. Os textos de Basílio citados na nota 87 respondem a esta mesma preocupação. Porém, o
fato de que o Espírito apareça associado ao Pai e ao Filho na salvação mostra que está do lado
não das criaturas, mas de Deus.
200
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO
90. TOMÁS DE AQUINO, STh I 33,1 ad 2: “Quia licet attribuamus Patri aliquid auctoritatis
ratione principii, nihil tarnen ad subiectionem vel minorationem quocumque modo pertinens,
attribuimus Filio vel Spiritui Sancto”.
91. L'Esprit Saint de DieuyParis, 1983. Irei citá-lo pela tradução italiana: Lo Spirito Santo alla
luce del mistero pasquale, Roma, 1985.
92. Cf. ibid. 167.
93. Cf. ibid. 168.
201
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
94. Ibid. 168-169. Formulemos desde logo alguma pergunta: É este Espírito “anterior” à
geração? E, se assim é, não será também anterior ao Pai, que, de certa maneira, terá de lançar
mão dele para a geração do Filho, isto é, para o que é mais próprio de seu ser?
95. Cf. ibid. 170. Pode-se ver aqui uma relação com santo Tomás, que indica como o ser
imagem está ligado à geração; por isso, o Espírito Santo não é imagem do Pai; cf. STh I 35,2.
96. Cf. Lo Spirito Santo, 171. Cf., além disso, todo o contexto.
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o espírito do pai e do filho
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
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o espírito do pai e do filho
Espírito a geração eterna, como se encontra no Pai e no Filho, foi dito algo essencial sobre a
pessoa do Espírito”.
106. Encontramos no próprio Durrwell formulações nas quais se reconhece muito mais a
doutrina tradicional; por exemplo, ibid. 180: “procede da unidade do Pai e do Filho e realiza
sua unidade” .
107. Cf. Jesús Hijo de Dios en el Espíritu Santo, Salamanca, 1999 (original francês de 1997), 59.
205
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
inerte até esse cume que é a pessoa humana. Pela força do mesmo Espírito, o
homem desenvolve as virtualidades de sua pessoa ao longo de sua vida108.
Esta longa citação nos permite ver com clareza a relação que Durrwell
estabelece entre a economia da salvação e a Trindade imanente. Atribui-se ao
Espírito Santo o crescimento humano de Cristo, que desde o primeiro instante
de sua concepção é o Filho de Deus encarnado. Esta ação do Espírito seria o
reflexo econômico da ação do Espírito como poder da geração do Filho pelo
Pai e, portanto, o agente da “personalização” dos dois. Estamos sempre na
difícil tarefa de estabelecer os termos da correspondência entre a economia
da salvação e a Trindade imanente e o alcance do “vice-versa”. Que o Espírito
Santo seja agente do crescimento humano de Jesus, que possa ser chamado de
“personalização” (não nos interessa abordar agora este problema), autoriza
a pensar que realiza uma função semelhante na vida divina? E mais ainda:
existe base na economia da salvação para falar de uma personalização do Pai
por obra do Espírito Santo?
Está, sem dúvida, muito claro o problema que o autor francês observa em
certas teologias tradicionais da Trindade e que quer justamente tornar óbvio:
que se possa pensar no Pai e no Filho, na paternidade e na filiação de um e
de outro, sem que o Espírito Santo venha imediatamente à mente109. É preciso
dar razão a Durrwell nessa preocupação. A perfeita igualdade das três pessoas
impede que se possa pensar em cada uma delas sem ter presentes as relações
com as outras duas. Há, certamente, uma base para isso na economia: Jesus
viveu na terra sua filiação divina com a presença e a ação do Espírito Santo.
Na ressurreição, especialmente, põe-se em relevo essa ação do Espírito. Já
deparamos repetidas vezes com o texto de Atos 13,33, que aplica ao momento
da ressurreição de Cristo o Salmo 2,7: “Tu és meu filho. Eu, hoje, te gerei” .
Entende-se, portanto, a ressurreição em chave de geração. Na ressurreição do
Senhor está presente de modo ativo o Espírito Santo, segundo Romanos 1,4. O
“Espírito de santidade” de que se fala nesta passagem é, segundo Durrwell (e
muitos outros autores), o Espírito Santo, não a natureza divina de Jesus. Esta
geração da ressurreição, cujo agente principal é o Pai, realiza-se no Espírito:
“Obra de Deus em sua paternidade, realizada no Espírito Santo, a ressurreição
108. Ibid. 61-62; cf. 74; 116. A idéia de que o Pai gera o Filho no Espírito Santo repete-se
com freqüência; cf. ibid. 23; 31; 50; 74; 92; 127.
109. Em ibid. 80, define-se assim a posição a que Durrwell quer opor-se: “Nem o Pai em sua
paternidade nem o Filho em sua geração estão marcados pelo selo do Espírito, afetados pelo
brotar deste na paternidade e na filiação. Poderíamos pensar neles sem pensar simultaneamente
no Espírito. Este vem mais tarde...”.
206
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO
de Jesus revela que Deus gera seu Filho neste mundo no Espírito, que Jesus é o
Filho gerado neste divino poder que é o Espírito”110. Na ressurreição encontra,
portanto, sua culminação a obra do Espírito, que começou já na encarnação
do Filho e que continuou durante toda a existência humana de Jesus. Nova
mostra da importância decisiva desta ação do Espírito Santo, ativo na ressur
reição de Jesus, geração do Filho “neste mundo”.
Esta geração de Jesus como Filho na ressurreição encontra certo prolon
gamento em nossa geração como filhos de Deus no Filho pela ação do Espírito.
Deus nos engloba no Espírito na ação paternal de gerar o Filho. No Espírito
Santo, nós, homens, nascemos como filhos de Deus. Jesus é o Filho unigénito
que, não obstante, tem muitos irmãos, dos quais Deus é Pai na geração de seu
Filho único. A ação paternal que o Pai realiza em seu Filho nos abraça também
a nós. Vivifica-nos com Cristo, ressuscita-nos com ele (cf. Ef 2,5-6; Cl 2,12;
F1 3,10): “Sua ressurreição é ‘para nós’ (cf. 2Cor 5,15), faz-se efetivamente
nossa, pelo fato de que Deus nos engloba em sua ação paternal que ressuscita
Jesus” 111. Nós, homens, nascemos como filhos de Deus no Espírito Santo; não
se concebe a filiação divina de Jesus sem o Espírito Santo.
Podemos concluir esta exposição com um texto sintético em que Durrwell
reúne muitos dos temas que até agora apareceram:
Seu papel [do Espírito Santo] se expressa em termos de dinamismo. Não é o
autor nem o efeito da ação, é a ação, o poder operante. Não é ele, mas o Pai,
quem ressuscita Jesus, ele é o poder da ressurreição. Não é o glorificador112
nem o glorificado, mas a glória que faz de Jesus o Senhor da glória. Não é o
que unge, nem o ungido, mas a unção. O Pai é a verdade, o Filho, o esplendor
dessa verdade, o Espírito, o que guia até a verdade completa... ele não é o
que fala, nem a palavra, mas o sopro que leva a palavra... o Pai ama, o Filho
é amado, o Espírito é o amor... Pois bem, existe em Deus uma operação
essencial, que engloba todas as demais, a de gerar o Filho infinito. Daqui se
depreende a conclusão já formulada; no mistério eterno, o Espírito Santo é o
110. Ibid. 86. Também ibid. 80: “Parece suceder que, nas discussões que as opõem entre si,
estas teologias [as teologias latina e grega] não buscam nem encontram sua legitimidade nem
nos dados oferecidos pela Escritura sobre o Espírito Santo, nem no mistério declarado como
central pela Escritura: o de Cristo em sua páscoa, na qual o Pai gera seu Filho no Espírito Santo”;
e também 116: “ É a obra do Pai que gera o Filho no mundo; é a obra do Filho que consente na
paternidade de Deus; a obra se realiza no Espírito, poder da divina engendração”.
111. Ibid. 91; cf. todo o contexto.
112. Tenhamos, no entanto, presente João 16,14: “Ele me glorificará, pois receberá do que
é m eu...”.
207
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
208
O ESPIRITO DO PAI E DO FILHO
tem seu fundamento último e sua razão de ser. Todavia, não é sem mais
nessa geração eterna na qual nós somos gerados como filhos. Somos filhos
no Filho somente enquanto este se fez homem e nos comunica o Espírito que
repousou sobre ele. Novamente a distinção entre a economia e a teologia, na
correspondência entre ambas, tem aqui seu lugar115.
Fizemos já alguma referência ao tema do Espírito como o poder de gerar
no âmbito da Trindade imanente. Em minha opinião, estabelece-se a questão
da relação e distinção entre o Espírito Santo como terceira pessoa e o espírito
como a essência divina. Sabemos muito bem como foi difícil nos primeiros
tempos da Igreja o estabelecimento dessa distinção; por isso, o termo ‘‘espí
rito” nem sempre teve um significado claro e preciso. Segundo a doutrina
tradicional, o Pai é o princípio da Trindade, é aquele que, gerando o Filho
e espirando (de qualquer maneira principaliter) o Espírito Santo, comunica-
lhes inteiramente sua essência divina (cf. DH 805, Concílio Lateranense IV;
DH 525, Toledano XI). O Pai, além disso, gera o Filho de sua substância (cf.
DH 527). Gera-o em virtude de seu poder de gerar que é, nele, a natureza
divina; este é o principium quo da geração116. É necessário que este poder seja
atuado por outra pessoa? Continuará sendo o Pai, neste caso, princípio e
fonte da divindade? O Pai é, como tal, amor que se doa na geração do Filho
e na espiração do Espírito Santo. Seja como for, as duas processões acham-
se internamente relacionadas, uma não pode ser considerada independente
da outra. Neste ponto é preciso insistir, e o faremos na seqüência, por nossa
115. Em outro aspecto, podemos ver a distinção entre a economia e a teologia a partir da
ressurreição de Jesus. No Novo Testamento, a iniciativa desta é quase sempre atribuída ao
Pai. Porém, não podemos ignorar os textos em que o Filho aparece ativo neste evento: João
2,20-22; 10,17; 1 Tessalonicftises 4,14. Jesus, portanto, não se mantém completamente passivo
neste acontecimento, embora também nele se faça referência ao Pai. Cf. O. GONZÁLEZ DE
CARDEDAL, Cristología, 144. Durrwell está consciente deste problema; escreve em Jesús Hijo
deDios...y 128: “Jesus exerce uma autêntica causalidade em sua filiação, em sua receptividade...
O Espírito da ressurreição tem sua fonte no Pai, porém seu brotar na páscoa de Cristo é pro
vocado por Cristo... Em toda doação, aceitar o dom é exercer uma causalidade sem a qual não
teria lugar a doação. Em toda realidade amorosa, acolher o amor é libertar o amor no coração
do outro, fazer com que brote nele... Abandonando-se ao Pai, Jesus permitee provoca a ação
ressuscitadora, faz com que brote nele o Espírito do Pai. Desta maneira, participa filialmente
de sua própria engendração na plenitude do Espírito”. É claro que estas profundas reflexões
com referência à ressurreição de Jesus não podem ser transpostas sem motivo para a geração
eterna. O Filho não preexiste a esta geração como preexiste à ressurreição na carne.
116. SANTO TOMÁS, STh I 41,5: “Id quo Pater generat, est natura divina, in qua sibi Filius
assimilatur. Et secundum hoc Damascenus dicit quod generatio est opus naturae, non sicut
generantis, sed sicut eius quo generans generat. Et ideo potentia generando significant in recto
naturam divinam, sed in obliquo relationem”.
209
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
117. Cf. AGOSTINHO, Trin. XV 19,37 (CCL 50,513-514). A especial relação entre o Espírito
e o amor foi vista por Agostinho na união do Pai e do Filho; cf. ibid. VI 5,7 (235); V 11,12
(219). Também o concílio XI de Toledo (DH 527): “quia caritas sive sanctitas ambonim esse
monstratur”. Dificilmente poderemos pensar que o amor preceda o amante e o amado, que
são o Pai e o Filho. Voltaremos em seguida, por nossa conta, a este tema. Cf. em particular a
nota 132.
118. Cf. DURRWELL, Jesús, Hijo de Dios...y 98: “Tampouco é preciso fazer do Espírito a
última pessoa, que venha por detrás das outras, que fosse como a mela sem saída onde expira
o movimento trinitário, a pessoa estéril da qual não sai nada”. Entretanto, o próprio Durrwell
está consciente do problema da táxis intratrinitária: ibid. n. 25: “na ordem trinitária, o Espírito
Santo é consecutivo à relação entre o Pai e o Filho...”.
119. Bela intuição de Durrwell (ibid. 100).
210
O ESPIRITO DO PAI E DO FILHO
120. TH. G. WE1NANDY, The Father's Spirit of Sonship. Reconceiving the Trinity, Edinburgh,
1995, 84. É clara a influência de Durrwell, citado em nota aqui mesmo. Também ibid. 73: “O
Filho é Filho porque tendo sido gerado pelo Pai no Espírito de filiação ama o Pai como Filho.
Este ato de amor filial, exercido no Espírito de filiação, é o que o faz o Filho... O Pai não seria
Pai se não tivesse um Filho que o ama como Filho. Pois bem, a pedra angular que mantém
unidos este ato paterno de geração do Filho no amor e este ato filial do Filho que ama o Pai é
realizado pela ação do Espírito... O Espírito que brota dentro do Pai como seu amor no qual
ou pelo qual [in or by whom] o Filho é gerado conforma o Pai para ser Pai para o Filho e ao
mesmo tempo conforma o Filho para ser Filho para o Pai”. Observemos o uso, equivalente, ao
que parece, das preposições in e by.
121. EUSÉBIO DE CESARÉIA, Historia ecclesiastica I 3,10ss. (PG 20,72Css.), cit. por ORBE,
La unción dei Verboy576. Uma das preocupações de Eusébio é mostrar a antiguidade do nome e
da pessoa de Cristo, sua preexistência: cf. ibid.: “a fim de que ninguém fosse pensar, atendo-se
211
A TRINDADE - MISTÉRIO DE COMUNHÃO
Espírito pessoal; antes, o que se quer dizer é que o Pai comunica ao Filho sua
natureza divina espiritual. O mesmo Orbe comenta: “O ‘crisma’, o ungüento
de Cristo identifica-se com o Espírito divino, natureza divina, ou deidade
que o Pai comunica ao Verbo. Ungüento de fragrância única, só comunicá
vel, como a Unigénito. A unção consiste na geração mesma do Verbo, pela
qual o Espírito do Pai passa para o Filho, à maneira de fragrância divina”122.
R. Cantalamessa aduziu em diversas ocasiões um texto de Gregório de Nissa
que em sua opinião poderia justificar que se falasse de uma intervenção do
Espírito na geração do Filho:
O óleo da exultação apresenta o poder do Espírito Santo, com o qual Deus
é ungido por Deus, isto é, o unigénito é ungido pelo Pai (cf. SI 45 [44],8)...
Como o justo não pode ao mesmo tempo ser injusto, assim o ungido não pode
não ser ungido. Pois bem, aquele que nunca deixou de ser ungido certamente
é ungido desde sempre. E quem quer que seja deve admitir que aquele que
unge é o Pai e o ungüento é o Espírito Santo123.
aos tempos de sua existência na carne, que nosso salvador e Senhor Jesus Cristo é tão novo”;
cf. ORBE, La unción dei Verbo, 575.
122. Ibid. 578; cf. todo o contexto, 569-592. A estas considerações, pode-se acrescentar a
falta de clareza da doutrina trinitária de Eusébio, que certamente não permite ver nestes textos
precedentes das posições modernas.
123. GREGÓRIO DE NISSA, Adv. Apollinarem 52 (PG 45, 1249-1252); cit. por R.
CANTALAMESSA, II canto dello Spirito, Roma, 1998,412.0 autor cita este mesmo texto em seu
artigo “Utriusque Spiritus”. L’attuale dibattito teológico sullo Spirito Santo alia luce dei “Veni
Creator”, Revista de Teologia 38 (1997) 465-484 [479], e o introduz assim: " ... são Gregório de
Nissa, que dedica um capítulo inteiro a ilustrar a unção do Verbo mediante o Espírito Santo em
sua geração eterna do Pai, parte do pressuposto de que o nome ‘Cristo', ungido, pertence ao
Filho desde a eternidade”. Realmente, o texto não parece dar mais de si. A posição de Gregório
de Nissa não parece muito diferente da que têm os autores que o precederam, e a que faremos
referência a seguir.
124. In illud Tunc ipse Filius (PG 44,1320): “Ao unir-se com a carne, o Logos elevou-a às
propriedades do Logos pela recepção do Espírito Santo que o Logos possuía antes da encarna
ção”. Parece distinguir-se claramente a encarnação do dom do Espírito à humanidade assumida,
212
0 ESPIRITO DO PAI E DO FILHO
embora este dom seja colocado no momento da encarnação e seja obra do Filho que desde
sempre possui o Espírito.
125. Cf. A. ORBE, La unáón dei Verbo, espec. 32-82, sobre são Justino; 501-541, sobre santo
Ireneu; e também os dados sobre os autores eclesiásticos dispersos na obra, particularmente 593-
627; retomaremos em seguida às conclusões desta importante obra. Cf. também L. F. LADAR1A,
El Espíritu en Clemente Alejandrino. Estúdio teológico-antropológico, Madrid, 1980, 64-79.
126. A. ORBE, La unáón dei Verbo, 630; cf. todo o contexto, com as referências à transposi
ção cristã de motivos estóicos; ibid. 632: “Nenhum documento dá a entender que o Pai tenha
ungido o Verbo pelo próprio fato de gerá-lo”.
213
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
214
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO
127. Cf. L. F. LADARIA, El Dios vivo y verdadero, 58-72; M. BORDONI, El Espíritu Santo
y JesúSy 17-29.
128. Publicada em UOsservatore Romanoyem 13 de setembro de 1995; o original em francês
tem como título Les traditions grècque et latine sur la procession de TEsprit Saint. Texto em
espanhol: Las tradiciones griega y latina referentes a la procesión dei Espíritu Santo, Diálogo
Ecuménico 33 (1998) 139-150 (citaremos por esta tradução). A declaração assinala a base
“econômica” da expressão a que acabamos de nos referir, recordando, entre outras, algumas
das passagens bíblicas a que aludimos acima. E acrescenta: “Esta função do Espírito no mais
íntimo da existência humana do Filho de Deus feito homem deriva de uma relação trinitária
eterna, com a qual o Espírito caracteriza, em seu mistério de Dom de amor, a relação entre o
Pai e seu Filho predileto, como fonte de amor” (150).
215
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
primordial é assegurar que também para a teologia católica o Pai é a única fonte
da divindade, e que a doutrina da processão do Espírito também do Filho não
afeta este princípio fundamental. Ao mesmo tempo, constitui preocupação do
documento mostrar que, na teologia do Oriente e do Ocidente, com matizes
diversos, procurou-se manter o caráter “ trinitário” das relações entre as pes
soas divinas. O Espírito Santo tem a mesma dignidade que o Pai e o Filho, a
relação das duas primeiras pessoas com ele é tão importante quanto a que une
o Pai e o Filho entre si. Não podemos pensar que a relação paterno-fdial esteja
perfeitamente realizada e aperfeiçoada sem a terceira pessoa. O Espírito não
pode existir sem o Pai e o Filho, porém o Pai e o Filho também não podem
ser tais sem o Espírito Santo. Afirmar o contrário equivale a pensar que não
^existe reciprocidade nas relações trinitárias. Não se trata apenas do fato de
que a geração do Filho e a processão do Espírito sejam igualmente eternas.
Mantendo a táxis, haverão de ser vistas também as implicações das duas. A
“ precedência” da geração não significa que a processão do Espírito não deva
segui-la necessariamente, antes é o contrário o que se há de sustentar; por
conseguinte, não podemos considerar a própria geração sem relação com
a processão do Espírito. Assim sendo, a doutrina latina do Filioque, desde
que situada em um contexto justo, não leva a uma subordinação do Espírito
Santo na Trindade129130. A relação paterno-filial não pode estar perfeitamente
caracterizada e completada sem a terceira pessoa, de tal maneira que o Pai e
o Filho não podem “prescindir” do Espírito. Segundo a tradição, não existe
uma “fecundidade” interna do Espírito; isto, porém, de modo algum pode
implicar inferioridade ou mera passividade no seio da vida divina, como se a
fecundidade fosse a única função ativa possível do Espírito ad intram. A ele se
deve a caracterização “trinitária” da relação Pai-Filho, o que equivale a dizer
a perfeição e a consumação da mesma, que não pode existir à margem deste
caráter trinitário. A declaração a que nos referimos assim se expressa:
129. Cf. Las tradiciones..., 147. H. U. von Balthasar funda precisamente no caráter “trini
tário” que devem ter todas as relações sua defesa da doutrina da processão do Espírito do Pai
e do Filho; cf. Theologik //, 189-200.
130. C f, a propósito desta questão (e sobre a declaração em seu conjunto), J.-M. GARRIGUES,
La clarification sur la procession du Saint-Esprit et l’enseignement du concile du Florence,
Irénikon 68 (1995) 501-506; ID., À la suite de la clarification romaine: le Filioque affranchi
du “filioquisme”, Irénikon 69 ( 1996) 189-212; ID., À la suite de la clarification romaine sur le
Filioque, Nouvelle Revue Théologique 119 (1997) 321-334. D. DEL CURA ELENA, Espiritu de
Dios, Espiritu de Cristo: una pneumatología trinitaria, 155-157. Sobre algumas reações ortodoxas
à Declaração, cf. L. LIES, Derzeitige ökumenische Bemühungen um das Filioque, Zeitschrift für
katholische Theologie 122 (2000) 317-353; B. OBERDÖRFER, Filioque. Geschichte und Theologie
eines ökumenischen Problems, Göttingen, 2001, 532-545.
216
O ESPIRITO DO PAI E DO FILHO
217
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
134. TOMÁS DE AQUINO, STh 1 32,2: “ ... una persona invenitur in divinis referri ad duas
personas, scilicet persona Patris ad personam Filii et personam Spiritus Sancti. Non autem una
relatione: quia sic sequeretur quod etiam Filius et Spiritus Sanctus una et eadem relatione refer -
rentur ad Patrem; et sic... sequeretur quod Filius et Spiritus Sanctus non essent duae personae”;
ibid.: “unde secundum duas relationes Filii et Spiritus Sancti quibus referuntur ad Patrem,
oportet intelligi duas relationes in Patre, quibus referatur ad Filium et Spiritum Sanctum”.
135. E à qual também o Oriente não está completamente alheio. Cf. a passagem de são
Gregório Palamas, citada na nota 11 da declaração de que estamos tratando.
218
o espírito do pai e do filho
o Filho, Deus igual a ele. Nada nos impede, ou melhor, tudo nos recomenda
que apliquemos também à processão do Espírito um esquema semelhante. O
Pai não é Pai sem o Filho e ambos não são Pai e Filho sem o Espírito entre
ambos, o amor unitivo dos dois. A ordem tradicional apóia-se no fato de que
a Escritura nos fala do Espírito do Filho, porém não nos diz que o Filho seja
do Espírito, como nos diz que é de Deus ou do Pai136.
Outros dados da Escritura concordam com este. Encontramos no Novo
Testamento a missão do Espírito por parte do Filho, mas não que o Filho tenha
sido enviado pelo Espírito137. A ação do Espírito sobre Jesus nos evangelhos, que
o impele ao deserto etc., não tem as características de um envio propriamente
como tal. Somente o Pai enviou Jesus ao mundo. Em contrapartida, segundo
alguns textos do Novo Testamento (cf. Jo 15,26; Jo 20,22; Lc 24,49; At 2,33) o
Espírito Santo é dado ou enviado por Jesus ressuscitado, e é enviado também
pelo Pai em nome de Jesus, o Filho (cf. Jo 14,26). Em contrapartida, não se
diz que o Espírito envie o Filho ou que este seja enviado em nome do Espírito
Santo138. Estes dados da economia da salvação têm sua grande significação e
não podem ser deixados de lado. A teologia latina tem precisamente neles sua
base da processão do Espírito Santo do Pai e do Filho. Todavia, previamente
a este passo está o da constatação de que o Espírito, no Novo Testamento, é
considerado o Espírito de Deus Pai e também o Espírito do Filho, dado que a
tradição manteve139. Precisamente para justificar o que é dos dois, Agostinho
chegou à formulação de seu conhecido ensinamento da processão do Espírito
do Pai e do Filho140. Agostinho não pode pensar como o Espírito Santo é real
136. GREGÓRIO DE NISSA já notou o fato, In orationem dominicam, fragmento citado por
João Damasceno (PG 46,1109); cf. Las tradiciones.. 1 4 8 , nota 9, onde é citada, além disso, outra
passagem de são Máximo, Confessor: assim como não se pode dizer que a palavra é da voz, não
se pode dizer que o Verbo é do Espírito; Quaestiones et Dubbia (PG 90,813). AGOSTINHO,
Trin. V 12,13 (CCL 50,220): “Item dicimus spiritum sanctum filii, sed non dicimus filium
spiritus sancti ne pater eius intelligatur spiritus sanctus”.
137. Neste sentido, já fizemos referência a alguns textos que não parecem ter peso para
alterar a linha predominante da tradição, fundada no Novo Testamento.
138. Cf. R. CANTALAMESSA, “ Utriusque Spiritus”, 480-481.
139. Cf. HILÁRIO DE POITIERS, Trin. VIII 21.26 (CCL 62A,334; 337-338); ATANÁSIO,
Ad Serap. I 25,32 (PG 26,589; 605); III (625); IV 4 (641); CIRILO DE ALEXANDRIA, In Joh. IX
(PG 74,257); AGOSTINHO, Trin. V I 4,7 (CCL 50,35); 8,18 (52); IV 20,29 (199); V 11,12 (219);
XV 26,45.47 (525.529) etc. Do Espírito dos dois “utriusque Spiritus”, fala também o hino “Veni
Creator” . Estas formulações como Espírito do Pai e do Filho, Espírito dos dois, são desenvolvi
mento dos dados da Escritura, porém não se encontram literalmente no Novo Testamento.
140. AGOSTINHO, Trin. IV 20,29 (199): “nec possumus dicere quod spiritus sanctus et a
filio non procedat; neque enim frustra idem spiritus et patris et filii dicitur”; XV 26,45 (524):
“... et postea de ambobus processerat spiritus sanctus quoniam scriptura sancta spiritum eum
dicit amborum”.
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A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
mente do Filho se não procede também dele. Que o Espírito seja próprio do
Filho é ensinamento também dos Padres gregos141. Não encontramos termos
equivalentes ou semelhantes que se refiram ao Filho em sua relação com o
Espírito. Se não vemos razão para alterar a ordem das pessoas, isso não significa
que o Espírito Santo ocupe um lugar secundário nas relações intratrinitárias.
O Pai só possui a essência divina enquanto a comunica ao Filho, o Pai e o
Filho só a possuem enquanto se unem em seu amor mútuo que é o Espírito
Santo, que é por sua vez a comunhão dos dois e o fruto dela.
A doutrina agostiniana do Espírito como o amor e a comunhão do Pai
e do Filho, como insinua a declaração, pode ajudar-nos a descobrir o caráter
trinitário com que a pessoa do Espírito Santo contribui para a relação entre
o Pai e o Filho. Vale a pena deter-nos brevemente neste ponto. Com efeito,
para Agostinho, o Espírito é ao mesmo tempo a comunhão e o amor do Pai
e do Filho:
Seja como for, o Espírito Santo é, por conseguinte, algo comum ao Pai e ao
Filho, ou esta mesma comunhão consubstanciai e coeterna. Se, de maneira
conveniente, pode ser chamada amizade, assim seja chamada. Todavia, é mais
adequado o nome de amor [caritas]. E este é também uma substância e Deus
é amor, como está escrito (cf. ljo 4,8.16)142.
141. Cf. ATANÁSIO, textos citados na nota 139; CIRILO DE ALEXANDRIA, In ]oh. V (PG
73,753); De Sanctissima Trinitate Dial. VI (PG 75,1056).
142. Trin. VI 5,7 (235); cf. todo o contexto; não podemos nos deter na análise de todos os
pormenores. E também XV 27,50 (532): “communio quaedam consubstantialis”.
143. Trin. VI 5,7 (235): “ Siue enim sit unitas amborum siue sanctitas siue caritas, siue ideo
unitas quia caritas et ideo caritas, quia sanctitas, manifestum est quod non aliquis duorum
est quo uterque coniungitur, quo genitus a gignente diligatur generatoremque suum diligat”;
a idéia da unidade do Pai e do Filho no Espírito aparece também em Trin. IV 9,12 (177); VI
9,10 (239); VII 3,6 (254); VIII 8,12 (286-287); Sermo 212,1 (SCh 116,180).
144. Trin. VI 5,7 (235): "... sintque non partecipatione sed essentia neque dono superioris
alicuius sed suo próprio seruantes unitatem spiritus in uinculo pacis”. O dom do Espírito não
se refere apenas à Trindade econômica, mas também à Trindade imanente.
220
o espírito do pai e do filho
145. Trin. XV 19,37 (513); XV 17,27 (501): “Qui spiritussanctum secundum scripturas sanctas
nec patris est solius nec filii solius sed amborum, et ideo communem qua inuicem se diligunt pater
et filius nobis insinuat caritatem”. Nas duas ocasiões em que Agostinho afirma no de Trinitate
que o Espírito Santo procede “príncipaliter” do Pai, a idéia se une com a doação, ao Filho, da
possibilidade de que o Espírito seja comum aos dois e, como tal, proceda como dom comum:
Trin. XV 17,29 ( 503-504): . in hac trinitate non dicitur uerbum dei nisi filius, nec donum dei
nisi spiritus sanctus, nec de quo genitum est uerbum et de quo procedit príncipaliter spiritus
sanctus nisi deus pater. Ideo autem addidi príncipaliter, quia et de filio spiritus sanctus procedere
reperietur... Sic ergo eum genuit ut etiam de illo donum commune procederet, et spiritus sanctus
esset amborum”; XV 26,47 (529): “Filius autem de patre natus est, et spiritus $anctus de patre
príncipaliter, et ipso sine ullo temporis interuallo dante, communiter de utroque procedit”.
146. Ibid. V 11,12 (219): “Ergo spiritus sanctus ineffabilis quaedam patris et filii communio,
et ideo fortasse sic appellatur quia patri et filio potest eadem appeilatio conuenire... Ut ergo ex
nomine quod utrique conuenit utriusque communio significetur, uocatur donum amborum
spiritus sanctus” . J. RATZINGER, Der Gott Jesu Christi. Betrachtungen über den Dreieinigen
Gott, München, 1976,89: “Este nome da terceira pessoa... não expressa algo específico, mas sim
nomeia o que é comum em Deus. Porém, precisamente aí, ressoa o que é ‘próprio’ da terceira
pessoa: é o que é comum, a unidade do Pai e do Filho, unidade em pessoa. O Pai e o Filho são
uma só coisa um com o outro na medida em que vão mais além deles mesmos; no terceiro, na
fecundidade da doação, são um”; ibid. 90-91: “O Pai e o Filho são o movimento do puro dar-se,
da pura entrega de um para o outro. Neste movimento são fecundos, e esta fecundidade é sua
unidade, seu pleno ser um”; cf. também ibid. 28, citado na nota 237 do capítulo 2.
147. Cf. a nota 142.
148. Trin. XV 6,10 (473).
221
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
Santo Agostinho não irá desenvolver mais este motivo da caritas procedens.
Entretanto, a intuição não deixa de ser interessante. O Espírito Santo é o amor
e a comunhão do Pai e do Filho, porém, ao mesmo tempo e inseparavelmen
te, é o am or que procede da comunhão dos dois. Assim sendo, convém ao
Espírito Santo o nome do amor que é comum a toda a Trindade, todavia com
a conotação própria de sua pessoa, do “ amor que procede”. Assim, o Pai e o
Filho amam-se no Espírito que deles procede149.
A doutrina do Espírito como amor e comunhão concebida por Agostinho
pressupõe a dualidade pessoal do Pai e do Filho. Só no Espírito comum, amor
e comunhão, existem o Pai e o Filho. Na doação mútua espiram o Espírito,
amor procedente. Não se pode dizer que, segundo Agostinho, a processão
do Espírito do Pai e do Filho aconteça simplesmente enquanto os dois são
um150. O Pai e o Filho amam-se e estão em comunhão enquanto se dá neles a
distinção pessoal. Segundo o próprio Agostinho, o amor pressupõe ao menos
a dualidade151. A comunhão tem sua origem no Pai, que gera o Filho de tal
maneira que o Espírito possa ser comum dos dois. Enquanto princípio de
toda a divindade, o Pai é o princípio do amor e da comunhão no Espírito
Santo. Enquanto é o amor que procede, também o Espírito Santo entra na
comunhão do Pai e do Filho. A comunhão das três pessoas e o primado do
Pai não só não são contraditórios, mas também se implicam. Nesta doutrina
se dá ênfase à comunhão das pessoas e, conseqüentemente, à reciprocidade
das relações trinitárias152. Pelo que acabamos de dizer, esta reciprocidade, em
si, não tem por que comprometer as propriedades pessoais de cada uma das
pessoas divinas. O amor do Pai e do Filho será sempre o amor entre quem
dá e quem recebe, quem é origem e quem é resposta. O amor dos dois que
se expressa e tem como fruto o Espírito Santo procede assim também princi-
149. Não é o momento de entrar na dificuldade que significa para o pensamento de Agostinho
a afirmação de que o amor do Pai e do Filho se dá no Espírito, quando o Pai não pode ser sábio
pela sabedoria que é o Filho. Na Idade Média, constatou-se a dificuldade; se o Pai e o Filho se
amam no Espírito Santo, recebem dele o ser. São as interpretações que de algum modo vimos
reproduzidas nos últimos tempos. PEDRO LOMBARDO, Sent I d. 32 c. 6, vê o problema e
não encontra solução. RICARDO DE SÃO VÍTOR aproxima-se mais da intuição agostiniana
em seu breve escrito Quomodo Spiritus Sanctus est amor Patris et Filii (PL 196,1011-1012), na
medida em que vè que se amam no Espírito porque este procede deles: “ Pater Spiritu sancto
diligere dicitur... quod Pater eam dilectionem qua Filius diligitur et Spiritus sanctus est spirat,
et illius auctor et origo exsistat”. Embora com ulteriores distinções, as quais não abordaremos,
moveu-se nesta linha também santo Tomás. Cf. a continuação do texto.
150. Cf. os textos mencionados nas notas 142 e 145.
151. Trin. VIII 10,14 (290): “Quid est ergo amor nisi quaedam uita duo aliqua copulans uel
copulari appetens...?”; cf. também VIII 8,12 (287); DC 2,11 (294) XI 2,2 (335).
152. Bem observado por B. OBERDORFER, Filioque, 113s.
222
o espírito do pai e do filho
paliter do Pai, não só porque este dá ao Filho o poder de gerar, mas também
porque é a fonte do amor do Filho de seu amor153. Com efeito, o amor de
Jesus pelo Pai manifesta-se no fazer o que lhe mandou realizar: “Ele vem a
fim de que o mundo saiba que amo o Pai e ajo conforme o Pai me prescre
veu” (Jo 14,31).
Embora em uma medida menor, santo Tom ás tam bém seguiu, em
alguns aspectos de seu pensamento, uma linha semelhante. Também ele se
pergunta se o Pai e o Filho se amam no Espírito Santo154. Sua resposta deve
ser necessariamente diferenciada, conforme os sentidos que o ablativo “Spiritu
Sancto” pode ter. Porque, se o consideramos no sentido causal, é claro que
não é possível. Parece que a ordem das processões o impede. Por outro lado,
enquanto o amor divino é tomado essencialmente, o Pai e o Filho se amam em
virtude de sua essência comum. Existem, porém, outras maneiras de entender
o ablativo. Este pode ser entendido no sentido do efeito, porque algumas ve
zes algo é nomeado segundo o efeito que produz; a árvore floresce nas flores.
Com relação a esta constatação, Tomás assinala que, em seu sentido de noção,
amar é espirar amor. Do mesmo modo que se diz que o Pai fala mediante o
Verbo ou o Filho, assim igualmente o Pai e o Filho se amam no amor que
procede, e no mesmo amor nos amam também a nós155. Como se relacionam
o nível essencial e o de noção? Existe, acaso, um duplo amor do Pai e do
Filho, por um lado em virtude de sua essência, por outro no Espírito Santo?
Provavelmente não será fácil encontrar uma resposta evidente a esta questão.
Creio, porém, que há boas razões para pensar que “o Pai e o Filho se amam
em virtude de seu ser essencialmente amor, porém este ser amor, na medida em
que é consumado por sujeitos que existem em relação, une-se sempre com a
relação da espiração ativa e recebe assim um caráter nocional. O ato de amor
interpessoal acontece em Deus ‘desde o princípio’ como espiração do Espírito
e assim se consuma somente no Espírito Santo que procede. Os dois aspectos
153. Cf. AGOSTINHO, Contra Maximinum II 17,4 (PL 42,784), que faz a distinção entre o
ser "princípio” próprio do Pai e o próprio do Filho; o Pai é “principium non de principio”, o
Filho “principium de principio”. É claro que algumas destas reflexões podem ser feitas a partir
de santo Agostinho, o que não quer dizer necessariamente que o próprio Agostinho as tenha
considerado.
154. Cf. STh I 37,2.
155. Ibid.: “Sicut ergo dicitur arbor florens floribus, ita dicitur Pater dicens Verbo sed Filio,
se et creaturam; et Pater et Filius dicuntur diligentes Spiritu Sancto, vel amore precedente, et se
et nos”; ibid. ad. 2: “Et similiter diligere, prout notionaliter sumitur, est producere amorem.
Et ideo potest dici quod pater diligit Filium Spiritu Sancto, tamquam persona procedente, et
ipsa dilectione, tamquam actu notionali”. Ê clara a influência de Agostinho na definição do
Espírito Santo como amor que procede.
223
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
estão unidos de tal maneira que se deve dizer que o amor mútuo do Pai e
do Filho é a processão do Espírito Santo, e vice-versa. Todo o amor divino,
incluindo o amor de cada uma das pessoas divinas a si mesma e às criaturas,
acontece em e pelo Espírito Santo; poder-se-ia mesmo dizer: consuma-se como
processão do Espírito Santo” 156. Deste ponto de vista, entende-se como para
santo Tomás o Espírito Santo procede como amor unitivo do Pai e do Filho157.
E na mesma linha podem-se interpretar suas afirmações sobre o Espírito Santo
como nexus enquanto é o amor mútuo do Pai e do Filho158. No Espírito Santo
enquanto é amor, o Pai e o Filho gozam um ao outro159.
A idéia do Espírito como o amor em que se amam, e que une o Pai
ao Filho, e como o fruto deste amor dos dois, acham-se presentes em santo
Tom ás160, embora certamente não possamos falar de soluções satisfatórias
em todos os pontos. Sem o amor mútuo que é o Espírito Santo, o Pai e o
Filho não podem estar unidos, e, podemos acrescentar, se não estão unidos
não podem ser. A doutrina clássica do Espírito como amor do Pai e do Filho
oferece, creio, uma base nada desprezível para responder à preocupação legí
tima de não relegar o Espírito Santo a um lugar secundário na vida imanente
156. H. CH. SCHMIDBAUR, Personarum Trinitas. Die trinitarische Gotteslehre des heiligen
Thomas von Aquin, St. Ottilien, 1995, 639.
157. STh I 36,4, o Pai e o Filho quanto à virtude espirante são um só princípio do Espírito
Santo, porém, ao mesmo tempo, este procede do Pai e do Filho enquanto são dois; “Si vero
considerentur supposita spirationis, sic Spiritus Sanctus procedit a Patre et Filio in quantum
sunt plures: procedit enim ab eis ut amor unitivus duorum”; ibid.: “Spiritus Sanctus procedit
a Patre et Filio ut sunt duae personae distinctae”; razão pela qual (ibid.) Tomás distingue entre
falar de “duo spiratores” (substantivo), expressão que não lhe parece adequada, uma vez que
são um só princípio do Espírito Santo e, portanto, há uma única espiração e “duo spirantes”
(adjetivo), mais correto, porque faz referência às duas pessoas que espiram; cf. também, sobre
a distinção do Pai e do Filho em relação com o Espírito, I 36,2, ad 4: “Dicitur etiam Spiritus
Sanctus in Filio quiescere, vel sicut amor amantis quiescit in amato, vel quantum ad humanam
naturam Christi...”. A herança de Agostinho é evidente.
158. Ibid. 137,1: “Spiritus Sanctus dicitur esse nexus Patris et Filii in quantum et am or... Sed
ex hoc ipso quod Pater et Filius se mutuo amant, oportet quod mutuus Amor, qui est Spiritus
Sanctus, ab utroque procedat”. Além do “nexus”, o Espírito Santo é também a “connexio”:
ibid. I 39,8. Ulteriores reflexões sobre estes temas serão encontradas em SCHMIDBAUR,
Personarum Trinitas..., 612-667. Cf. também R. SIMON, Das Filioquebei Thomas von Aquin.
Eine Untesuchung zur dogmengeschichtlichen Stellung, theologischen Struktur und ökumenis
chen Perspektive der thomanischen Gotteslehre, Frankfurt am Main, 1994. Também para SÃO
BOA VENTURA, Breviloquium I 3,9, o Espírito Santo é o nexo e a caridade do Pai e do Filho.
159. Cf. ibid. I 39,8.
160. Cf., neste sentido, a análise de W. A. KEALY, The Holy Spirit Proceding as Mutual
Love: An Interpretation o f Aquinas “Summa Theologiae” I 37, Angelicum 11 (2000) 553-558.
O Espírito Santo, enquanto relação entre o Pai e o Filho (Amor), é uno em essência com eles;
enquanto procede do Pai e do Filho, é distinto deles (procedens).
224
O ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO
de Deus. Não se trata, por certo, de afirmar que santo Agostinho ou santo
Tomás tenham respondido de m odo claro e unívoco ao problema que nos
propusemos. Todavia, algumas de suas afirmações dão ensejo a pensar que
o Pai e o Filho não possam ser perfeitamente caracterizados em sua relação
mútua sem a presença do Espírito Santo no qual se unem e se amam e que,
portanto, não podem alcançar sem o Espírito a plenitude de seu ser pessoal.
Evidentemente, é sempre mais difícil a caracterização das relações do Pai e
do Filho no que diz respeito ao Espírito Santo, e vice-versa, do que a relação
paterno-filial; para esta última, ajudam-nos os nomes bíblicos do Pai e do Filho,
que por sua vez deram lugar ao termo geração para caracterizar a processão
do Filho161. Na história do dogma e da teologia, as questões pneumatológicas
causaram e continuam causando mais problemas, e é natural que assim seja.
Na controvérsia sobre a processão do Espírito Santo, temos o exemplo mais
característico, embora não o único, dessa dificuldade.
Na seqüência, diremos alguma palavra sobre este assunto. Até este m o
mento, porém, nosso propósito foi averiguar em que sentido a teologia clássica
do Ocidente encerra elementos que nos permitem afirmar que o Pai e o Filho
são tais no Espírito, sem necessidade de entrar em hipóteses sobre a geração
deste último que possam comprometer a ordem tradicional, e para as quais
parece não termos encontrado bases totalmente convincentes na economia
da salvação. Estas doutrinas de santo Agostinho e de santo Tomás, além de
seu grande valor intrínseco, são opiniões teológicas de grande autoridade que
encontraram eco, ainda que de modo discreto, em diferentes intervenções
magisteriais162, em dadas ocasiões relacionadas com a processão do Pai e do
161. O vocabulário é muito mais vago no que tange ao Espírito. O termo processão aplica-
se também ao âmbito da história da salvação; espiração é o termo mais característico, embora
tenha tardado em generalizar-se no vocabulário teológico latino; seu uso é muito escasso, por
exemplo, em santo Anselmo. Quanto ao mais, os nomes das duas primeiras pessoas fazem
referência a sua relação mútua, porém não diretamente à relação com o Espírito Santo.
162. Assim foi no concílio XI de Toledo: “simul ab utrisque processisse monstratur; quia
caritas sive sanctitas amborum esse agnoscitur” (DH 527); a idéia do amor dos dois combina-
se aqui com a processão; concílio XVI de Toledo: “ex Patris Filiique unione procedit”; LEÃO
XIII, enc. Divinum illus munus: "... non aliter ille, qui divina bonitas est ac Patris ipsa Filiique
inter se caritas” (DH 3326; cf. 1331); JOÃO PAULO II, enc. Dominum et Vivificantemy 10: “Na
sua vida íntima, Deus ‘é Amor’ (ljo 4,8.16), amor essencial, comum às três Pessoas divinas:
amor pessoal é o Espírito Santo, como Espírito do Pai e do Filho. Por isso, ele ‘perscruta as
profundezas de Deus* (ICor 2,10), como Amor-Domy incriado. Pode-se dizer que, no Espírito
Santo, a vida íntima de Deus uno e trino se torna totalmente dom, permuta de amor recíproco
entre as Pessoas divinas; e ainda que no Espírito Santo Deus ‘existe’ à maneira de dom. O
Espírito Santo é a expressão pessoal desse doar-se, desse ser-amor. É Pessoa-Amor. É Pessoa-
dom” (DH 4780).
225
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
Filho, esta sim, como se sabe, freqüentemente afirmada (cf. DH 805; 850; 853;
1300-1302; 1330-1331, etc.). Não devemos esquecer a importância que esta
visão tradicional continua tendo na teologia católica atual. Não são poucos
os autores que vêem no Espírito com o fruto do amor do Pai e do Filho, por
um lado a pessoa que mostra o transbordamento de Deus para fora, porém,
ao mesmo tempo, a expressão da mais íntima vida do Deus amor163. Ao unir a
idéia do amor dos dois com a do fruto do amor (com o que a união é selada),
que víamos já presente no início, embora não muito desenvolvida, em santo
Agostinho (caritas procedem) e em santo Tomás (procedit utamor unitivus), de
alguma forma se encontra uma saída para o problema da subsistência própria
do Espírito em sua relação com o Pai e o Filho, que pode ficar desfigurada
se considerado somente o amor que une os dois ou esta mesma união. No
entanto, temos de ver ao mesmo tempo as duas dimensões do Espírito, como
amor mútuo e fruto do amor. Somente na medida em que o Espírito procede
de ambos o Pai e o Filho são uma mesma coisa, no Espírito dos dois mostra-
se de maneira eminente que tudo o que é do Pai é do Filho, e vice-versa. No
Espírito que deles procede, realiza-se e consuma-se a unidade dos dois, uma
unidade, como já dissemos repetidas vezes, na qual entra também, em con
dições de igualdade, o Espírito Santo. Por outro lado, as relações entre o Pai
e o Filho e as que unem os dois com o Espírito não têm por que possuir as
mesmas características; cada uma das relações trinitárias, enquanto constitutiva
das pessoas, é irrepetível.
O problema do Filioque não foi diretamente nosso ponto central de
interesse nas reflexões precedentes, embora seja evidente que esteve presente
em toda a nossa exposição. A doutrina do Espírito como amor do Pai e do
Filho, tal como foi desenvolvida por Agostinho e por Tomás, está em íntima
relação com a da processão do Espírito, de tal maneira que ambas se impli
cam mutuamente. Porém, em si, não está vinculada a uma concepção rígida
ou unívoca da processão do Espírito do Pai e do Filho. Levaria simplesmente
a postular uma intervenção do Filho ou uma relação essencial com ele na
163. Cf., além de outros autores, H. MÜHLEN, Der Heilige Geist als Person; 1D„ Una mystica
Persona; H. U. VON BALTHASAR, Theologik II. Die Wahrheit Gottes, 130; 140-142; Theologik
III. Der Geist der Wahrheit, 144-150; Y. CONGAR, El Espiritu Santo, Barcelona, 1983, 578-588;
W. KASPER, Der Gott Jesu Christi, 273-281 ; G. GRESHAKE, Der dreieine Gott. Eine trinitarische
Teologie, Freiburg/Basel/Wien, 1997,210-214; L. F. MATEO-SECO, Dios uno y trim, Pamplona,
1998,569-573; F. BOURASSA, Questions de théologie trinitaire, Roma, 1970,120-125; J. GALOT,
L’origine éternelle de L’Esprit Saint, Gregorianum 78 (1977), 501-522, espec. 517; ID., L’Esprit
Saint personne de communion, Saint Maur, 1977 etc.
226
O ESPIRITO DO PAI E DO FILHO
227
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
sob a ação do Espírito enviado pelo Pai fala-nos do primado do Pai em toda
a economia da salvação e, portanto, permite-nos chegar à conclusão de que
o Pai é a única fonte e princípio de toda a divindade. A presença do Espírito
em Jesus permite-nos afirmar que este é Filho no Espírito; por conseguinte,
o Espírito Santo não é alheio à relação paterno-filial. Já indicamos que se
gundo testemunhos explícitos de diversos Padres do Oriente e do Ocidente o
Espírito vem sobre Jesus enquanto é homem, vem sobre o Filho encarnado;
a unção pressupõe a encarnação, mesmo que não possa ser reduzida a algo
acidental ou secundário para a vida do Senhor. Por iniciativa do Pai, Jesus
ressuscita também graças à intervenção do Espírito Santo. Exaltado à direita
do Pai, infunde o Espírito juntamente com este. Já conhecemos as diferentes
variantes e os diversos matizes que se encontram no Novo Testamento sobre
a intervenção do Pai e do Filho nesta doação. O Espírito Santo, o Espírito de
Deus, sem deixar de ser tal, pode ser agora chamado também o Espírito
de Jesus, de Cristo, do Filho, de Jesus Cristo. Como tal é infundido em nossos
corações (cf. G1 4,6), para que possamos ser filhos de Deus (cf. G1 4,6; Rm
8,14-17). É injustificado afirmar que esses dados da economia devem cor
responder de algum modo à Trindade imanente, e que, portanto, algo dela
se nos revela quando Jesus glorificado dá o Espírito juntamente com o Pai e
dizemos que este Espírito é também do Filho ou que é “próprio” dele? Por
outro lado, também se há de ter presente que Jesus glorificado dá o Espírito
Santo enquanto o recebeu em sua humanidade, não só durante o tempo de
sua vida mortal, mas também na ressurreição (At 2,33: “Exaltado assim pela
destra de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e o derramou,
como estais vendo e ouvindo” ). Segundo as conhecidas passagens do quarto
evangelho, o Pai dá o Espírito porque Jesus o pede para si (cf. Jo 14,16; cf.
14,26, o Pai envia o Espírito em nome de Jesus), ou Jesus o envia de junto
ao Pai (parà; cf. Jo 15,26), porém não encontramos as fórmulas inversas. Se
não existem razões que nos obriguem a deter-nos no meramente econômico
no que se refere ao fato de que o Espírito é do Pai e do Filho e é dado pelos
dois, tampouco o principaliter deve ser minimizado. A reflexão sobre o Pai
fons et origo de toda a divindade não pode ser deixada de lado quando se trata
da processão do Espírito Santo167.
228
0 ESPIRITO DO PAI E DO FILHO
Santo”; cf. também todo o contexto. Quanto ao mais, esta foi a preocupação expressa por
João Paulo II em 29 de junho de 1995 na Basílica de São Pedro, na presença do patriarca de
Constantinopla; cf. UOsservatore Romano, 30 jun.-l° jul. 1995. A declaração quis precisamente
responder ao desejo do papa de que se fizesse luz sobre esta questão. Do ponto de vista teoló
gico, pode ser significativa a este respeito a posição de K. Rahner, que, a partir de seu princípio
da autocomunicação do Pai como fonte da divindade, tende a interpretar o Filioque como a
Patre per Filium. Cf. El Dios trino como principio y fundamento trascendente de la historia
de salvación, Mysterium salutis II/l, Madrid (1969) 359-449, espec. 405; 406; 410; 413; 442. A
compatibilidade e a complementaridade de ambas as fórmulas foram reconhecidas no Catecismo
da Igreja Católica, 248. Evidentemente, a idéia do Espírito como amor do Pai e do Filho oferece
mais dificuldades para Rahner; cf. ibid. 434, mas também 380; 405.
168. Cf. as atinadas observações de Oberdörfer, Filioque..., 505.
169. Cf., por exemplo, B. BOBRINSKOY, LeMystère de la Trinité, 304, embora exclua toda
noção de causa para o Filho. Mais dados em OBERDÖRFER, Filioque..., 513-514. A esse res
peito, são conhecidas as afirmações de Máximo Confessor e João Damasceno. Por outro lado,
é claro que estas idéias não são aceitas por todos.
229
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
170. Assim Y. CONGAR, El Espíritu Santo, 516: “Acolhemos, não obstante, esta idéia de uma
‘in-existência’ das hipóstases uma na outra, de intercâmbio e de reciprocidade. Existe uma vida
trinitária que não consiste unicamente nas processões ou relações de origem”. Cf. também G.
GRESHAKE, Der dreieine Gott. Eine trinitarische Theologiey 199-200; M. BORDONI, El Espíritu
Santo y Jesús. Reflexión bíblico-sistemática, 41.
171. Assim faz o Concílio XVI de Toledo em uma interessante formulação: “Relativum
etenim dicitur, quod una ad alteram personam referatur; nam quando dicitur Pater, Filii nihi-
lominus persona Signatur; et cum dicitur Filius, Pater ei sine dubio inesse monstratur” (DH
570; o destaque é meu).
230
0 ESPÍRITO DO PAI E DO FILHO
172. Cf. o Catecismo da Igreja Católicay 248: o Pai é a primeira origem do Espírito Santo
enquanto é princípio sem princípio» e enquanto é Pai do Filho único é, com de, o único prin
cípio do Espírito Santo.
231
Conclusão
1. Cf. CONCÍLIO VATICANO I, const. DeiFilius (DH 3016); JOÃO PAULO II, enc. Fides et
RatiOy 8; 14; 66, sobre o intellectus fidei; GREGÓRIO DE NAZIANZO, Or. 28,9 (SCh 250,118):
“ De igual modo, aquele que se esforça por investigar a natureza ‘daquele que é’ (Ex 3,14), não
poderá dizer somente o que não é, terá de dizer também o que é”.
233
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
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índice de autores
235
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
236
INDICE DE AUTORES
M
R
Martinez Camino, ]. A. 153
Mateo-Seco, L. F. 76, 137, 226 Rahner, K. 8, 9, 11-17, 19, 28, 36-41, 43,
Máximo Confessor, S. 229 47-50, 92, 98-105, 108, 109, 121, 124,
137-143, 152, 165, 191, 196, 229
Melone, M. D. 85
Ratzinger, J. 118, 119, 127, 221
Menke, K. H. 36, 125
Régnon, Th. De, 137
Milano, A. 66, 67
Ricardo de São Vítor 84, 88, 110, 111,
Moignt, J. 67
113, 126, 155, 204, 222
Moltmann, J. 43, 105, 106, 108, 109,
Romero Pose, E. 135
112, 143, 154, 160, 199
Mühlen, H. 28, 109-113, 118, 123-126,
148, 182-185, 188, 204, 226 S
Müller, G. 36, 182
Salmann, E. 192
Sanna, I. 36
N Scheeben, M. J. 118
237
A TRINDADE — MISTÉRIO DE COMUNHÃO
Simon, R. 224 V
Simonis, W. 156 Vandevelde-Daillere, G. 192
Spiteris, Y. 144 Vechtel, K. 43, 63, 148, 153
Staglianò, A. 38
Stolz, A. 40
Sykes, S. W. 182
W
Wanke, D. 168
Weinandy-Daillere, G. 6 0 ,2 1 0 ,2 1 1
Wiertz, O. J. 153
Teófilo de Antioquia 17
Teresa 131, 132
Z
Tertuliano 17, 19, 66-68, 83, 91, 121,
135, 137, 142, 172, 200 Zarazaga, G. J. 43, 103, 104
Tom ás de Aquino 24, 89, 101, 136, 141, Zizioulas, J. 119,200
156, 159, 160, 180, 193, 201, 218 Zubiri, X. 128
238
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