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O risco de toda interpretação é o do desvirtuamento ou mes- ...

Claude Geffré
'
mo o da tra1ç.lo Mas quando se trata de interpretar o cristia·
n1smo, é também o nsco da fé Apresentando es~ ensaios
de hermen~ut1ca trológica, o Autor reivindica o direito a uma
interpretaç.lo cnatwa. em fidelidade ao próprio impulso da fé
e em respa)ta aos apelos de n~ s1tuaçao histórica
A pnme1ra parte, metodológica mostra que, depa1s do Vat1·
cano li, pas ou-se de um modo de fazer teologia de tipa dog-
mático para um modo de tipo hermenêutico com todasª" con-
sequências daí decorrentes quanto ao estatuto da \.erdade em
teologia e quanto à existência de um pluralismo teológico. Na
segunda parte, encontram-se alguns exemplos dessa reinter-
pretação criativa, que não dissocia nossa rele1tura das verda-
des cristãs mais fundamentais de nossa experiência atual.
Mas Claude Geffré não se contenta em propor uma interpre-
tação contemporânea da fé. Ele se compraz em observar que
a própria vida d~ cristãos e a prática das Igrejas estão reinter-
pretando o cnst1anismo. A terceira parte "erifica 1 so por oca-
sic1o de deslocamentos particularmente s1gn1ficativos como o
diálogo da íé com as culturas não-cristãs, o fenômeno maci-
ço da secularização, a nova compreensJo do cristianismo co-
mo onoprax1a e a nova idade da m1ssJo da lgreJa sob o signo
da deí~ dos direito) do homem e da prioridade dada aos
pobres
AD mesmo tempa equilibrada e arriscada a obra toda proce-
de da convicção íntima de que o cristtan1smo só é liel a si mes-
mo quando se ultrapassa sem cessar
Como Fazer
Teologia Hoje
hermenêutica teológica

...

1
z
•l!!
Claude Geffré

COMO FAZER
TEOLOGIA HOJE
Coleção TEOLOGIA HOJE Hermenêutica teológica
Shalom: Paz! Novas f)(!rspectivas do :sacramento da reconciliação,
8. Haering
Medicina e manipulação. B. Haering
Moral e evangeli:ação hoje. B. Haering
O presente critico da Igreja, R. M. Roxo
A /g. eja e seus modelos. A Dulles
A linguagem teológica - Como falar de Deus hoje?, B. Mondin
Antropologia teológica. B. Mondin
Os grandes teólogos do século XX - vol. I Os teólogos católicos,
8. Mondin
Os grandes teólogos do 5éculo XX - vol 2: Os teólogos protestantes
• ortodoxos, B. Mond.in
O culto a Maria hoje, Oiversos
Teolosia da Revelação, Ren~ LatoureUe, sj
Teolosia, ciência da salvação, Ren~ Latourelle, sj
As novas eclesiologias, B. Mondin
Jesus de Nazaré, história de Deus, Deus da história, Bruno Forte
O homem de l1oje diante de Jesus de Nazarl - 3 vols., Juan Luis Scaundo
Novos caminhos da moral, Marciano VidaJ
Ensaio de ltica sexual, Jaime Snock
A doutrina tradicional da Providlncia, implicações sociopollticas, Roque
Frangiotti
Vida e reflexão - Contributo da Teologia da Libertação ao JH!nsamento
teolósico, VV. AA
O s~romento do amor. Paulo Evdokimov
Por urna Jsreja mais humana, [dward Schillebeeclcx
Como fazer teologia hoje, Claude Geff~ Edições Paulinas
Título original INTRODUÇÃO
La chrlstlanlsme au risque de 11nterpr6tatlon
© Les l!dltlons du Cerf, Paris, 1983
"O que me interessa é 'a interpretação" enquanto
Tradução dá à palavra uma vida que ultrapassa o instante e o
Ben6nl Lemos lugar nos quais ela foi pronunciada ou transcrita. O
Revisão
termo 'interpretação' reúne todas as nuanças adequa-
das."
Edson Gracfndo
George Steincr (Apres Babel, p. 37)

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) lnt-:macional Quando publiquei Un nouvel áge de la théologie, cm
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
1972, um de meus críticos terminou sua recensão, saudando
meu livro como uma nova idade da Apologética... Havia
GeffTé, Claude . nisso uma dose de ironia, já que eu me empenhava justa-
G265c Como fazer teologia boje; hermenêutica teológica/ Clau-
de Gef~; (tradução Benôru Lemos; revisão l:.dson Gra- mente em mostrar os impasses de certa apolog~tica, quer
cindo) . - São Paulo: Ed. Paulinas, 1989 . use ela argumentos racionais exteriores à fé, quer trilhe os
(Coleção teologia boje)
Bibliografia.
caminhos de pesquisa existencial, partindo da análise das
implicações da subjetividade humana. Quanto ao mais, nada
ISBN 85-05-00951-7 tenho contra a apologética. A teologia cristã, em sua longa
1. Hermenêutica - Aspectos religiosos - Cristianis-- história, não cessou de exercer função defensiva. Mas por
mo 2 . Teologia - Metodologia 3 . Teologia - S~o
20 J . Título . II . Título: Hermenêutica teológica . que deve o teólogo ser considerado suspeito de apologética,
III. Série: Teologia hoje. no sentido pejorativo, toda vez que se esforça simplesmente
CDD-230 018 por mostrar a pertinência do Ministério cristão para a inte-
-220 601
88.1633 -230 .0904 ligência e a prática do homem de hoje? Para evitar se-
melhante caricatura do trabalho teológico, ter-me-ia sido ne-
cessário, talvez, medir a distância que separa a apologética.
lndices para catálogo sistemático: no sentido clássico, da teologia fundamental, que eu já defi-
1. Hermenêutica bíblica 220 601 nia então como "hermenêutica da Palavra de Deus e da exis-
2 . Metodologia: Teologia dogmática cristã 230 018 tência humana".
3 . Século 20: Teologia dogmática cristã 230 0904
4 . Teologia: Século 20: Cristianismo 230 0904 Agora, anos depois, insisto e assino, se assim me posso
S. Teologia dogmática cristã: Metodologia 230 .018 exprimir. Apresentando estes ensaios de hermenêutica teo-
l6gica sob o título de "O cristianismo sob o risco da inter-
ED EDIÇÕES PAUUNAS pretação n, 1 peço antes de tudo a atenção para a ambiva-
TELEX C111 39464 I PSSP BRI
Rua Dr. Pwuo Fenaz, 183 lência do termo "risco". Evidentemente o risco da inter-
041T7 SÃO PAULO - SP
ENO TR.EGR • PAUUNOS
pretação - nunca devemos esquecê-lo - é o risco da ele-

Com aprovação eclesiãstica


1 O Autor aqui está ae referindo ao título origina!, em franc!s:
~ EDIÇÕES PAULINAS · SÃO PAULO - 1989
Le christianisme au risque de l'interpr4taJion. (N. do E.)
ISBN 85·05-00951·7

.5
formação, da distorção e do próprio. erro. Mas, ~uando se ma representado pela teologi~ ~~mprccndid~ como herme-
trata do cristianismo, é também o nsco puro e sunples da nêutica. E além disso, a possibilidade de leitura estrutural
fé. A intenção deste livro é fazer com que se compreenda das Escri~ras, como também da tradiç~o cristã, viri~ con-
melhor que a fé s6 é fiel ao seu impulso .e .ªº que ~e firmar o destino fatalmente hermenêutico da teologia nos
é dado crer se levar a uma interpretação crrattva do cns- tempos modernos.
tianismo. O risco de, por falta de audácia e lucidez, só trans- Com teólogos como Edward Schillebeeckx e David Tra-
mitir um passado morto não é menos grave do que o do cy, que são também colegas e ~gos, comprccnd;i cad~ vez
erro. mais a função presente da teologia como correlaçao crítica e
Não ignoro o processo moderno feito contra a herme- mútua entre a interpretação da tradição cristã e a interpre-
nêutica sobretudo no contexto cultural francês ( cf. cap. 2) . tação de nossa experiência humana contemporânea.2 Seja qual
Mas s~m fazer da hermenêutica um cavalo de Tróia que for a diversidade dos temas abordados nesta obra, o método
ponha abaixo todos os obstáculos no c~nho da compreen- pressuposto é sempre este, mesmo quando tal não for expli-
são teológica, insisto em que a teologia é, do começo ao citado.
fim empreendimento hermenêutico. Não se trata somente Insisto em que não posso rder a tradição cristã fazendo
de ~nstatar que, desde o começo da Igreja, a teologia não abstração do que, sem dificuldade, chamo de estados de
deixou de reinterpretar o Antigo Testamento à luz do Novo consci~ncia do homem contemporâneo. Mas significa tam-
e que não deixou de reinterpretar a mensagem cristã em bém que não posso interpretar nosso mundo atu~ da expe-
função das sucessivas mudanças culturais {mostram-no os riência com toda a sua ambigüidade, sem ser habitado pelo
trabalhos históricos de Henri de Lubac} . Trata-se, tam- mundd da experiência cristã. Nós pertencemos à linguagem
bém de tomar a sério a hermenêutica como dimensão intr!n- muito mais do que a possuímos, como pertencemos à histó-
seca' do conhecimento, enquanto moderno, e de tirar disso ria muito mais do que a dominamos. Como poderia o teó-
todas as conseqüências para a teologia como inteligência logo decifrar a experiência do homem contemporâneo, sem
da fé . estar informado pelos efeitos conscientes ou inconscientes de
Que todo ato de conhecimento é ato de interpretação, séculos de tradição judaico-cristã? Esse processo de interação
sabemo-lo melhor depois que emergiu, no século XIX, a mútua, no qual não posso dissociar minha interpretação dos
nova "consciência histórica", e depois que, graças ao mé- textos da tradição cristã de minha experiência atual, conduz
todo analltico e à crítica das ideologias, estamos mais pre- necessariamente ao risco de interpretação criativa da men-
venidos contra as ilusões e os preconceitos inerentes a todo sagem cristã. Conheço bem o abuso moderno do termo "cria-
ato de conhecimento pretensamente objetivo. Isso é tão certo tividade n, que pode disfarçar a incapacidade de explorar as
que hoje em dia se aceita definir o próprio conhecimento r:quezas do passado. Mas quando falo de interpretação cria·
científico como conhecimento interpretativo, e que a distin- tiva, não se trata de interpretação arbitrária que pretendesse
ção clássica ( cf. Dilthey) entre as ciências da natureza sob surgir ex nihilo. Trata-se muito mais de retomada, sem re-
o signo do explicar e as ciências humanas sob o signo do petição, da mensagem cristã, que só é fiel a si mesma à
compreender perdeu muito de sua pertinência. Assim, a que- medida que gera novas figuras históricas na forma de es-
rela, em nome do estruturalismo, contra a hermenêutica co-
mo método de leitura dos textos, sob pretexto de que ela 2 Um resumo d:> método hennenEutico de E. Schillebc:cckx pode
seria, por natureza, prisioneira de compreensão metafísica ser encontrado na edição francesa, apresentada por J. Do~. de seu
pequeno livro Explrience liumaine et foi en /ésus-Christ, Cerf, Para,
das relações do sinal e do significado, parece-me debate 1981. Quanto a D. Tracy, cf. Blessed Rage for Order, Scabury Prcss,
menor em relação ao que está em jogo nesse novo paradig- Nova Iorque, 1975, e The aruúogical Jmagination, Cross Road, Nova
Iorque, 1981.
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crituras ou de práticas inéditas. Para reconhecermos o ca- va com o mundo da compreensão do intérprete, mas o sen-
ráter criativo de qualquer interpretação, devemos dcmis- tido estará sempre no prolongamento da coisa do texto
tificar a ilusão de sentido que estaria atrás do texto (na submetido aos mais rigorosos processos de explicação da
consciência de seu autor, na reconstituição de seu contexto análise literária ou estrutural. Por isso, longe de concluir
sócio-histórico ou na sua primeira recepção) ou mesmo no pelo impasse da hermenêutica enquanto esforço para com-
próprio texto. O sentido deve ser procurado muito mais no preender, ele se compraz em constatar que a explicação já
"na frente" que está no ponto de encontro do horizonte do se tornou o caminho da compreensão (d. cap. 2, sobre o
texto com o nosso horizonte de compreensão. deslocamento da hermenêutica sob o choque do estruturalis-
Essa interação do texto e do intérprete nos remete à mo) . Seria sumamente proveitoso para o teólogo-bermcneu-
imagem que se tornou clássica cm hermenêutica depois de ta se ele acenasse a ascese inevitável imposta pela objetivi-
Gadamer, a da conversação. Mas embora Gadamer seja o dade do texto. Em sua preocupação de atualizar a mensa-
primeiro a reivindicar, contra as pretensões à objetividade gem cristã para boje, não foi ele muitas vezes tentado a
pura do Iluminismo, :i importância da tradição, na qual se extrair muito depressa " mensagens" deste ou daquele texto,
inscreve todo intérprete, o modelo da conversação ainda que resistem, apesar de tudo, a semelhante recuperação?
pode evocar a ilusão de transparência entre o texto e o Essas reflexões deveriam ser suficientes para tranqüi-
intérprete. Hoje essa hermenêutica ideal deve ser substituí- lizar aqueles que me objetarem que, batendo-me pelo risco
da por uma hermenêutica da suspeita, que se interroga de de interpretação criativa, menosprezo a tradição da Igreja.
maneira crítica sobre os pressupostos conscientes ou não de S muito mais, porque a tradição nos precede e resiste a
nossa pré-compreensão como também sobre as condições de nós que nunca terminamos de tirar dela algo de novo e
produção dos textos a interpretar. Voltando ao exemplo da de discernir o contingente do único essencial. Longe de se
conversação, é próprio do método analrtico justamente ma- oporem, criatividade e lucidez crítica são as melhores alia-
nifestar os sentidos latentes, reprimidos, paradoxais do dis- das no procc.s so complexo da reinterpretação do cristianis-
curso que se instaura entre o analisado e o analisante. E o mo. Somente a distância histórica nos permite assinalar as
que já é verdade do relacionamento interpessoal é-o, ainda sedimentações sucessivas que cobriram o teor original da
mais, da comunicação social. Isso significa que a hermenêu- mensagem a transmitir. E só uma suspeita metódica é que
tica teológica, em sua releitura dos textos do passado a pode nos ajudar a discernir as cumplicidades entre as ima-
serviço de melhor inteligência da identidade cristã, não pode gens próprias da fé e a doença infantil do desejo ou uma
ignorar essa ascese da lucidez para a qual nos convidam as vontade secreta de domínio. Os maiores espirituais não fi.
teorias críticas modernas, tenham elas sua origem na psica- zeram sempre questão de praticar a regra do discernimento
nálise, na crítica marxista das ideologias ou nas diferentes dos espíritos? ...
formas do método genealógico, na esteira de Nietzsche e de Mas, se a preocupação com uma interpretação criativa
M. Foucault (d. cap. 3) . nos expõe ao risco do arbítrio, a obsessão com a lucidez
Devemos acres~tar que, embora reconheçamos, com não nos expõe ao risco do reducionismo? Conheço bem esse
G~damer, que o conjunto do processo de interpretação se gênero de aporia. Como saber se o "crível disponível" de
o.nenta para a . compreensão, concedemos que o grande mé- uma época ainda não se tornou a norma do que deve ser
n~o de i::_a~ Ricoeur é o de ter chamado nossa atenção para crido? Evidentemente é mais tranqüilizador refluir para o
a unportanoa do texto, para a sua estrutura objetiva, para a " bem comum" dos fiéis e apelar para o "escândalo dos fra-
sua_org~ção inte:na e para as suas condições de pro- cos". Mas, como mostra a história do pensamento cristão,
duçao. A mterpretaçao correta será feita numa interação vi- o medo é sempre mau conselheiro, e não querer olhar de

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frente os resultados incontestáveis da crítica prepara dias E no entanto da é concernida do começo ao fim pela .coisa
amargos. Se estamos convencidos da juventude permanente do texto ou ainda pelo mundo ao qual remetem as Escr1tu~as
do Evangelho, por que fingirmos ignorar os novos csta~os judaico-cristãs, a saber, a irru~o ~audil? do amor gra.tulto
de conscibcia da humanidade contemporânea? Como digo de Deus pelo homem. Não hes1te1, ~r isso, .cm r~urur na
adiante ( cap. 1O), a situação histórica do "crer" não permite segunda parte alguns ensaios de escritura m.ais fácil, tod~s
que nos detenhamos numa fé ingênua. Ou melhor, devemos concernentes às realidades mais fundamentalS da revelaçao
falar da "ingenuidade segunda" de fé que passou pela prova cristã. Desde o tempo da Igreja nascente a linguagem. da fé
crftica. E no círculo sempre recomeçado do "crer" e do já era e é sempre interpretativ!. Mostro_-o a propósito do
"compreender", tenho a convicção íntima de .que a lucid.cz que constitui o cerne da pregaçao apo~tólica, a saber, a res-
crftica não compromete cm nada a espontanCidade propna- surreição de Cristo ( cap. 5). Em seguida, cm con~a.stc. com
0 que pode ser hermenêutica atéia moderna do cnsuarusm~,
mente teologal da fé. Nisso tenho o sentimento de ser rigo-
rosamente fiel à lição de meu antigo mestre da leitura de como a de E. Bloch ( cap. 6), interrogo-me sobre as condi-
santo Tomás de Aquino, o pe. Chenu, que repetia constan-
temente que a fé não suprime o regime humano do espírito.
ções de reinterpretação ?o discurso so~re o Deus de J~s.us
que tome a sério as aporias fundamen.ta1s do tefsmo tradicro-
O plano da presente obra não exige longos comentário~. nal para o regime moderno do csp{rtt~ ( caps. 7 e 8) . En-
A mim de se impôs rapidamente. Faço votos que de sc1a fim, a consc:ência aguda da não-necessidade ~e Deus numa
claro também para meus leitores. A primeira parte, mais história entregue a si mesma nos força ~ re10terprctar. em
metodológica, pertence à teologia fundamental ou aind~ ao termos novos o sentido da senhoria de Cnsto sobre a histó-
que denominamos epistemologia teológica. Procuro. rcsslt~ar ria. Proponho então, modest~e~tc, alguns ~ntos d~ ref~­
historicamente a instância hermenêutica da teologia e urar rência entre as diversas tendenc1as da ecologia da história
disso as conseqüências para a redistribuição do trabalho teo- (cap. 9). . . .
lógico. Há mais de um s&:clo o problema hermenêutico não A hermenêutica teológica, em seu cuidado por atualizar
cessa de se pôr cm termos novos. Acima das modas sucessi- a Palavra de Deus para hoje, não se contenta com produzir
vas do estruturalismo francês, o teólogo responsávd não pode novos comentários. À força de freqüentar um texto que é a
permanecer numa soberba ignorância do deslocamento verifi- testemunha privilegiada da Palavra atuante de Deus, o teó-
cado na hermenêutica moderna sob o choque provocador, logo tem a vocação exigente de exercer~ isto . é, de propor
mas finalmente benéfico, dos novos métodos de leitura dos práticas significantes para a Igreja. Mas isso .ainda é pouco.
textos. Em outro capítulo ( 3), esforço-me por caracterizar o A própria prática dos cristãos é lugar teol6gtco que oferece
moddo de escritura teológica de tipo hermenêutico, em sua dados ao teólogo em sua reinterpretação criativa d~ fé.
c::Lferença com o modelo clássico de escritura de tipo dogmá- Sob a ação do Espírito, q~e nunc~ lhe falta, a c.?~~dade
tico. Ouso esperar ficará claro que, julgando certo dogma- cristã toda tem compet!ncta para mterpretar os s10ais dos
tismo, não contesto em nada os direitos e a validade per- tempos" e para criar outras figuras históricas da plenitude
manente da teologia doglllática. O último capftulo ( 4) lem- insondávd do mistério de Cristo.
bra a vocação própria do teólogo, que é uma espécie de Todos os temas abordados na terceira parte têm relação
"mediador" entre o ensinamento magisterial da Igreja e a com a prática concreta das Igrejas consideradas perante con-
vivência irreduúvel do povo cristão. dições históricas, sociais e culturais novas. Antes mesmo de
O pensamento contemporâneo é acusado muitas vezes acabarmos de tirar todas as conseqüências da revisão de
de se atolar nos debates metodológicos das questões prdi- algumas teses teológicas elaboradas em outra éP?C~ ~a fé,
minares. Nem a teologia escapa desse perigo de formalismo . a prática dos cristãos já está reinterpretando o crisuarusmo.
10 11
Isto vale para a transmissão da fé em cultura atéia ou in- mento cr1stao deve não s6 superar o desafio da indiferença
dissociável de uma grande religião não-cristã ( cap. 10). religiosa, mas também - acima da alternativa do teísmo
Vale também para as tentativas de reinterpretação não-reli- e do ateísmo - prestar a maior atenção na permanência do
giosa do cristianismo num mundo secular ( cap. 11). Vale que alguns saúd..m como o •gênio do paganismo•.
para a retomada do tema clássico da imitação de Cristo à Minha última palavra será para exprimir minha grati-
luz de nossa nova inteligência das relações entre a ortodoxia dão a todos, conhecidos ou desconhecidos, que me ajudaram
e a ortopraxia (cap. 12). Vale para a conquista onerosa, tanto por suas perguntas quanto por suas respostas. Estou
fora da Igreja e na Igreja, do direito à liberdade religiosa convencido de que a partitura francesa, apesar de sua rela-
( cap. 13). Vale enfim para a nova consciência missionária tiva discrição, produz um som inimitável na polifonia teo-
da Igreja, quando ela deve dialogar com as grandes religiões lógica da Igreja de nosso tempo.
não-cristãs e contribuir para a promoção dos direitos do
homem ( cap. 14). Na terceira parte, a questão que se põe Fevereiro de 1983.
é sempre a da identidade cristã cm face a reinterpretações do
cristianismo, sejam elas étiais e políticas, sejam sacralizantes.
. Defini acima o trabalho teológico como o estabcle-
~~to de correlação crítica entre a tradição cristã e a cxpc-
nenaa humana contemporânea. A respeito dessa c:cpcriência
complexa insisti principalmente cm nossa nova "consciência
históri:a ", com todas ~ suas exigências críticas. Mas, para
prev~ a censura de mtelectualismo hipercrítico, gostaria
de deixar claro que, para mim, assumir o risco de inter-
pretação do cristianismo é também reinterpretar sem cessar a
boa nova da salvação à luz da contra-experiência do sofri-
mento maciço e global da humanidade contemporânea.
Embora revistos, corrigidos e, às vezes inteiramente
refundidos, a maior parte dos textos reunidos' neste volume
já foram objeto de debates ou publicações nesses últimos
dez anos.3 Não me desagrada verificar que, com exceção dos
lug~es de pas~age~ obr~gatórios do ensinamento teológico,
a ~a. rcflcxao foi mwtas vezes estimulada por perguntas
ocasionais. ~pesar de sua diversidade, essas perguntas não
f?ram fortwtas. Constato, por exemplo, que, depois de ter
sido forçado a tomar cm consideração entre tantas outras
as diversas formas do ateísmo ocidentaÍ fui levado cada v~
tna!s.~ rcfl_:tir ?ª_coexistência do cristi~nismo e das grandes
relig1oes nao-?"1stas, co~o iambém sobre a ressurgência de
um neopagarusmo. No fim deste segundo milênio o pcnsa-
J Veja nota bibliogrilica no fim do volume.

12 13
PRlMEIRA PARTE

DA TEOLOGIA COMO HERMENSUTICA


1

DO SABER À INTERPRETAÇÃO

Escolhendo este título, quero tentar caracterizar o des-


locamento que se realizou na teologia de uns vinte anos para
cá, isto é, a passagem da teologia como saber constituído
para a teologia como interpretação plural ou ainda a passa-
gem da teologia dogmática para a teologia como hermenêu-
tica. Sei que para alguns o termo "interpretação,, se tomou
termo tabu e que, se quisern:os falar hoje do deslocamento
da teologia, devemos falar do deslocamento mais radical
provocado pela crise da hermenêutica. Mas os próximos ca-
pítulos se ocuparão justamente de perguntar se os novos
modos de leitura da Escritura e do Dogma tomam caduca a
função hermenêutica da teologia como atualização do sentido
da mensagem cristã.

1. AS CAUSAS DO DESLOCAMENTO ATUAL DA TEOLOGIA

Para tentar compreender o deslocamento em curso da


teologia, lembrarei somente o aprofundamento teológico da
noção de revelação e a história recente do problema herme-
nêutico.
No tocante à revelação. farei simplesmente três obser-
vações.1
1 Para desenvolvimentos mais amplos, remetemos ao nosso estudo:
· Esquisse d'une Théologie de la ~vélation•, in P. Ricoeur, E. Levinas ...
La Ré11élaJion, Fac. Univers. Saint-Louis, Bruxelas, 1977, pp. 171-205.

17
1. Hoje temos consciência mais viva de que a Palavra
de Deus não se identifica nem com a letra da Escritura, ele. sem que nenhuma delas possa ser absolutizada, nem
nem com a letra dos enunciados dogmáticos. Dogma e Escri- mesmo a do Novo Testamento. Com efeito, Jesus é senhor
tura são testemunhos parciais da plenitude do Evangelho, de todos os tempos, e nós devemos repetir o que foi mani-
que é de ordem escatológica. festado em Jesus de Nazaré com referência à nossa experiên-
cia do homem e do mundo.
2. A revelação não é a comunicação, a partir do alto,
de um saber fixado vez por todas. Ela designa, ao mesmo tem- O deslocamento da teologia operado pela passagem do
po, a ação de Deus na história e a experiência de fé do saber para a interpretação está também ligado à hist6ria re-
Povo de Deus, que se traduz em expressão interpretativa cente do problema hermenêutico. Não é o caso de expor de
dessa ação. Em outras palavras, o que chamamos Escritura novo essa história, de Dilthey a Gadamer.2 Seja-me sufi-
já é interpretação. E a resposta da fé pertence ao próprio ciente reter dois aspectos que concernem diretamente aos
conteúdo da revelação. deslocamentos atuais da teologia: de um lado, a contestação
do saber histórico no sentido do historicismo e, do outro, a
3. A revelação atinge sua plenitude, seu sentido e sua contestação do saber especulativo.
atualidade somente na fé que a acolhe. Por isso a revelação,
enquanto Palavra de Deus numa paiavra humana ou vestígio
de Deus na história, não se sujeita a método cienúfico, A. A contestação do saber histórico
histórico-crítico. A fé, em seu aspecto cognitivo, é sempre
conhecimento interpretativo marcado pelas condições his- Vimos o impacto do método histórico na teologia. Seja
tóricas de uma época. E a teologia, enquanto discurso in- o que for que se diga da crise modernista, a introdução dos
terpretativo, não é somente a expressão diferente de um métodos históricos, num primeiro tempo, foi libertadora cm
conteúdo de fé sempre idêntico, que escaparia à historicidade. relação a uma escolástica completamente desUgada das fon-
Ela é também a interpretação atualizante do próprio conteú- tes históricas da fé. Mas, num segundo tempo, a exegese
do da fé. científica e a história científica das origens cristãs contribuí-
ram para cavar o fosso entre a história e o doFª• entre a
Depois dessas breves elucidações, podemos dizer que verdade dos exegetas e a verdade dos teólogos.
compreender a teologia como hermenêutica é tomar a sério
a historicidade de toda verdade, inclusive da verdade reve- O pressuposto implícito dos exegetas é de que a ver-
lada, e tomar a sério também a historicidade do homem dade do cristianismo está contida num texto, a Bíblia, e de
como sujeito interpretante. Longe de querer apagar o caráter que ela pode ser reconstituída por métodos científicos. A
contingente da verdade, à maneira da antiga metafísica, o pen- exegese é o lugar de passagem obrigatório para chegar a
samento moderno diria, antes, que a historicidade é a con- esta verdade, que é identificada com o conteúdo de texto
d!ção de toda rc;stauração do sentido. A teologia contempo- passado. Segue-se disto certo desconhecimento da experiên-
ranea procura t:lrar todas as conseqüências dessa intuição. cia atual de comunidade cristã e a atenuação de um ques-
Parece-me, assim, que reflexão mais lúcida sobre a re- 2 Remeto, com prioridade, ao estudo de P. Ricoeur, •t.a tllcbe
velação nos leva a compreender que a teologia é sempre ati- de 1 henn~neulique", in Exegesis, Delachaux et NiestJI!, Neuchântcl, 1975,
vidade hermenêutica, pelo menos no sentido cm que ela é pp. 119 200.
3 A esse respeito podem ser consuJtad:>s, com proveito, R. Re-
interpretação da significação atual do acontecimento Jesus fouJ~. • t •ex~gbe en question", in Le Supp/Ament 111, 1974, pp. 391-423,
Cristo a partir das diversas liuguagens da té suscitadas por e a obra coleLiva: Crise du biblisme, chance de la Bible, Epi, Paris,
1974.
18
19
tionaa:ento propriamente teolóBico sobre o sentido desses nêutica procura o sentido do texto respeitando sua alteri-
textos para hoje. dade histórica.
l! mérito da hermenêutica filosófica, depois de Dilthcy,
ter posto em discussão as pretensões do saber histórico no
sentido do positivismo e ter mostrado que não pode haver B. A contestação do saber especulativo
reconstiruição do passado sem interpretação viva condiciona-
da pela minha siruação presente. A contestação do saber histórico no sentido do histori-
Desde Karl Barth, a teologia é hermenêutica que se cismo abalou, pois, a segurança da teologia de tipo funda-
esforça por fazer falar a Palavra de Deus para hoje. Tam- mentalista, que pretenderia chegar diretamente à Palavra de
bém Bultmann, apesar de censurar Barth por dar pouca Deus pela escuta literal da palavra das Escrituras. Mas, de
importância ao esrudo crítico dos textos, reage contra a con- modo mais geral, não se pode falar de passagem do saber
cepção positivista da história, que pretenderia chegar a co- à interpretação e de abalo do dogmatismo, sem se mencio-
nhecimento exato do passado à maneira das ciências exatas. nar a contestação do saber especulativo oa filosofia contem-
O conhecimento existencial, isto é, um conhecimento inter- porânea.
pretativo inseparável da auto-interpretação do sujeito, é o 1. A nova ontologia de Heidegger, que se esforça por
único conhecimento histórico autêntico, à diferença do co- restaurar o pensamento do ser, desconstruiu a antiga onto-
nhecimento objetivante do historicismo.4 teologia, que dera à teologia seus fundamentos concepruais.
Mas hoje, depois dos trabalhos de Gadamcr5 e Pannen- Esta teologia metafísica pode ter tido êxito excepcional. Mas
berg,6 sabemos melhor que a própria contestação do histo- não podemos mais teologizar tão impunemente segundo o
ricismo pela hermenêutica existencial é prisioneira da pro- modo de pensar metafísico. E não podemos mais, sem ser-
blemática kantiana, que separa a ordem dos fatos (objeto mos coniventes, identificar o teol6gico que vem propriamente
das ciências da exper~ência) da ordem do sentido ou do do Deus de Jesus com o teol6gico de natureza e de nível pu-
valor (objeto de uma ética e de uma metafísica). A teologia ramente ontológicos. Por outro lado, a filosofia renunciou
protestante, para escapar aos desvios do historicismo, en- à sua pretensão de "saber absoluto", e a teologia cristã
careceu a autoridade sobreoarural da Palavra de Deus, sem deve tirar as conseqüências, para a sua racionalidade, de
recorrer ao critério da história. Chega-se, assim, a uma dis- rudo o que separa filosofia hermenêutica de filosofia do
tinção ruinosa entre a tarefa do exegeta-historiador e a do saber.
hermeneuta-teólogo. O primeiro procura o sentido do even- 2. Em segundo lugar, a pretensão de certa teologia de
to a partir de seu contexto histórico . O segundo se esforça ser a sistematização perfeita e unjversal da mensagem cristã
por arualizar o sentido do evento passado para nós hoje. vai diretamente de encontro à crítica moderna da ideologia,
Contra hermenêutica psicologizante, que compreende o texto que se assinala justamente por sua vontade de totalização
como expressão da vida subjetiva do autor, a nova hcrmc- não-dialética, por seu desprezo pela complexidade histórica
4 Entre os escr;tos de Bultmann, veja principalmente Histoir11 e por sua obstinação contra o real. Nós somos todos marca-
11t Escliatologie, trad. Cranc., DelachauJt et Niesd~. Neuchitel, 1959. dos pela suspeita nietzschiana cm rdação à verdade. 7 A ver-
Sobre o significado da d1stJnção H.s·oire-Geschichte, cf. nosso estudo:
·K~rygme et histoire chez RudoU Bultmann", in Rev. Se. Phil. Théol. dade cm si mesma não é "perspectivista ", mas nós devemos
49, 1965, pp. 809-639.
5 Para primeiro contato, veja H.-G. Gadamer, ú probl~me de la 7 Será proveitoso consultar a obra clássica de J. Granfor, ÚJ pro-
conscience historique, Lovafoa, 1963. bl~me de la vérité dans la philosophie de Nietzsche, Seuil, Paris, 1966.
6 Cf. sobretudo: •Hermeneutik und Univerulgeschichte•, in Grund- Veja tam~m P. Gisel, • Perspectivisme niet.z.sch~en et discoura tMologi-
/ragen systematischer Theologie, Gõttingen, 1967, pp. 91-122. que•, in Concilium 165, 1981 , pp. 121-31.

20 21
aceitar atingi-la somente em certa perspectiva. Todo discurso moderna não pode renunciar a mediatizar as relaç~s entre
é, portanto, provisório, rdativo. Ele não é saber, mas lin- a razão e a fé. Penso, neste sentido, numa teologi.a herme-
guagem interpretativa, relativa à perspectiva do que o pro- nêutica como a de Paoncnberg, que procura reagir ~ontra
duz. A verdade é plural porque a própria realidade é multi- 0 sobrenaturalismo das teologias da Palavra para enrruzar a
forme . Esta consciência mais aguda não leva necessariamente crec:Ubilidadc da mensagem cristã em seus eventos funda-
à destruição de uma fé verdadeiramente dogmática, no sen- dores.
tido cristão do termo. Mas nos toma mais circunspectos em
rdação a uma teologia dogmática que se apresentasse como
a única interpretação autêntica da mensagem cristã. A me-
11. CONSEQOENCIAS DA ORIENTAÇÃO HERMENEUTICA
dida que toma consciência de estar sempre em situação DA TEOLOGIA PARA A PRATlCA TEOLOGICA
hermen!utrca, a teologia se apresenta mais modesta e mais
interrogativa.
3. Acrescento, enfim, que o deslocamento atual da teo- Gostaria agora de assinalar alguns deslocamentos ve-
logia, que caracterizo como uma passagem do saber à inter- rificados na prática teológica. Embora todos esses aspectos
pretação, é conseqüência do deslocamento das estruturas de estejam estreitamente interligados, distinguirei sucessiva-
crec:Ubilidade do homem moderno. Quero dizer que as con- mente um tratamento novo dos lugares tradicionais, que
dições históricas da fé e, portanto, do discurso teológico são a Escritura e a Tradição, uma articulação nova en~e a
mudaram profundamente. O que já estava latente no tempo Escritura e o Dogma, um deslocamento do ato teológico e
da crise modernista, mas que explode hoje em pleno dia, é a emergência de lugares novos, que modificam a função dos
o conflito entre a autoridade da fé e a autoridade da razão lugares tradicionais da teologia.
no debate dos homens. Se muitos discursos eclesiásticos se
tomaram insignificantes para bom número de nossos con-
temporâneos, não é somente por causa da indiferença reli- A. Um tratamento novo dos lugares tradicionais
giosa ou do rdaxamento dos costumes, mas por causa de
um sentimento mais vivo do divórcio entre a fé cristã e os A atitude dos teólogos cm relação a esses lugares que
novos estados de consciência da humanidade. A autonomia são a Escritura e a Tradição mudou. Quero dizer que das
da consciência é dado indutávd de nossa modernidade. são objetos textuais mais no sentido de re~erência do_que
Por isso a pretensão de um saber teológico à infalibilidade, de "autoridades". Quando se trata da Escritura, ela nao é
em nome de uma autoridade, a de um magistério ou mesmo considerada, cm primeiro lugar, como um dado, no sentido
a de Deus, é recusada. O conteúdo de verdade de um ensi- de conteúdo de verdade do qual basta apropriar-se. Ela é
namento não é aceito em virtude da autoridade de quem o testemunho que remete a eventos históncos. Trata-se, por-
profere, mas em virtude de seu título para ser crido. Teolo- tanto, de interpretação crente irremediavdmcn~ histórica,
g:as "autoritárias", como as teologias da Palavra de Deus isto é relativa. Numa perspectiva estrutural, diríamos que
no sentido barthiano ou teologias católicas como a da Escola não ~stc verdade do texto. A leitura é que produz signifi-
Romana, não correspondem mais ao regime moderno do cações diversas. Mas o teólogo recebe o texto de uma comu-
espírito.ª Como em outras épocas de sua história, a teologia nidade, a Igreja. E é porque esta comunidade está em con-
8 Sobre as teologias •autoriuirias•, remetemos ao nosso capítulo: tinuidade com a comunidade primitiva, que produziu esse
•La Th~logie dogma tique à l'âge bermtneutique•, in Un nouvel "" texto, que ele não pode fazê-lo dizer qualquer coisa. ~ esta
de la thlologie c·Cogitatio fidei• 68), Ccrf, Paris, 1972.

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23
con~uidad~ que é a condição de possibilidade da tradição. uma construção que tivesse apenas relação distante com esse
Assun, a leitura crente da Escritura é sempre hermenêutica dado. Sabemos que não podemos fazer o inventário das
no senúdo em que hoje interpretamos o texto dentro da fontes da fé, sem nos darmos a todo um trabalho de in-
mesma tradi~o. na qual ele foi escrito. Pode-se, por isso, terpretação.
falar de conunu1dade de sentido ligada à continuidade histó-
rica, embora o evento Jesus Cristo suscite sempre em fun- Essa ultrapassagem da distinção entre o dado e o cons-
ção de minha situação histórica, uma interpretaJo e uma truido nos leva a um deslocamento das diversas funções
expressão diferentes. A referência à origem do sentido, a do da teologia. Abandonamos a divisão tripartida da teologia
e-:ento fundad?~ é essencial. Mas a transmissão da mensagem dogmática da Contra-reforma: exposição da doutrina da Igre-
nao é a repeuça? d: um saber constituído uma vez por ter ja, prova dessa doutrina tirada da Escritura e da Tradição,
das, mas a atualizaçao sempre nova do que foi manifestado e aprofundamento espcculativo. 10 O teólogo não faz mais
em Jesus. Por isso uma teologia viva é sempre atividade apelo à Escritura para simplesmente justificar ou confirmar
hermenêutica. o ensinamento do magistério, como se fazia na teologia ca-
tólica até as vésperas do Vaticano II. ~ antes a nossa leitura
atual da Escritura que nos conduz a uma reinterpretação
B. Uma articulação nova entre a Escritura e o Dogma dos enunciados dogmáticos , levando em conta a situação de
questão e de resposta que foi ocasião de sua formulação.
Considerar a teologia como hermenêuúca é repor em A linguagem dogmática é a expressão de tomada de cons-
causa a distinção entre o dado e o construido estudada na ciência pela Igreja do que ela vive em dado momento. Do
teo.logi~ tradicional, e ultrapassar a oposição ~tre uma tecr mesmo modo que não podemos identificar a Igreja e o
lo~a dita ~os1tiva e uma teologia dita especulativa, que há reino de Deus, não podemos também falar de identidade
mrus de tres séculos compromete a unidade do saber teoló- pura e simples da linguagem dogmática da fé e da Palavra
gico.9 De fato, essa distinção consagrava o divórcio entre de Deus. Evitando identificar seja a Escritura, seja o Dogma
a razão e a história no trabalho teológico e o triunfo de uma com a Palavra de Deus, compreendemos sua complementari-
e~colá~tica separa?a de suas fontes bíblicas. O positivismo dade na apropriação progressiva das riquezas do mistério
htstónco e o racton~smo teológicl) têm a mesma origem, de Cristo pela Igreja. Concretamente, a função hermenêutica
a sa'?er! o desconhecunento de verdadeira compreensão her- da teologia é medida pela articulação recíproca das confis-
n;ieneuuca do passado. Nós já o sugerimos: esse desconhe- sões de fé dogmáticas e da Escritura. Lemos a Escritura a
amento é herança da distinção kantiana entre o conhecimen- partir deste horizonte formado pela tradição da Igreja. Foi
to d.os.fatos e a p:ocura do sentido. A teologia dita positiva este o método privilegiado da dogmática católica. Mas de-
se limit~va a reg1s~rar documentos do passado. Isso feito, vemos fazer também a operação inversa, isto é, entregar-
a teologia especulattva podia entregar-se ao seu trabalho de mo-nos a uma releitura da Escritura a partir de nosso ho-
a;>n~rn:çã~ tc;:.6rica, como se pudéssemos contentar-nos com rizonte histórico, a fim de discernirmos o que é visado por
d1sunçao tngenua entre um dado cujo sentido pudéssemos tal deftnição dogmática do que depende da mentalidade e
ler, pondo entre parênteses nossa compreensão de hoje, e das representações espontâneas de uma época (d., abaixo,
cap. 4 ).
~ t ainda em fu~ção d~a distinção que Y. Congar compreende a 10 Sobre a origem dessa divisão tripartida da dogmática, rcmete-
relaçao ent.rc a teologta pos111va e a teologia es~culativa, em La foi d mOi a W. Kasper, Renouveau de la mlthode thlologique, trad. franc.
la thJolog1e, DCJcl~. Paris, 1962. Cerf, Paris, 1968. •

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minha situação presente de leitor. A teologia é, pois, movi-
e. o deslocamento do ato teológico mento sem fim de interpretação no qual a novidade das
como "intellectus fidei,, questões postas ao texto comporta necessariamente o risco
de respostas imprevisíveis.
D~ tudo o q~e precede segue-se que o ato teológico
como mtellectus /1de1 se deslocou. Quero dizer que não
podemos mais identificar o inte/lectus f idei com um ato da D. A emergência de lugares novos
razão especulativa que se mova segundo o esquema do su-
jeito e do objeto e que procure explicar o que nos é dado A teologia do Vaticano II não usava mais como medium
compreender na revelação, a partir de certo número de ra- de elaboração os conceitos da filosofia escolástica. Mas, se
zões metafísicas. O inte/lectus f idei pode ser comparado a ela usava os conceitos relacionais da filosofia existencial
um "compreender hermenêutico", ou seja, é diferente do ou o vocabulário e os resultados das ciências humanas, co-
simples ato de conhecimento, um modo de ser no qual a mo a sociologia e a psicologia, era sempre com o desejo
compreensão do passado é inseparável de uma interpretação secreto de reconstituir um discurso totalizante sobre o mun-
de si mesmo. 11 Isso me parece muito importante mas com a do e sobre o homem sob a influência do s1mbolismo cristão.
condição de que não se permaneça no psicologis~o da hermc· Hoje compreendemos melhor que não se trata simplesmente
nêutica existencial. Como o mostrou Gadamer, compreender de substituir a filosofia cristã por esses lugares novos que
nunca é comportamento subjetivo cm relação a um "objeto" são as ciências humanas (conceito, aliás, vaporoso) , sem
dado. "O compreender deve ser considerado menos como mudar profundamente nossa maneira de teologizar. Esses lu-
ação d~ s~bjetividade do que como inserção no processo de gares são menos lugares novos do que racionalidades novas,
transnussao no qual o passado e o presente se mediatizam aproximações diferentes da realidade individual e coletiva.13
constantemente. "u A teologia enquanto hermenêutica deve levar em conta,
em sua interpretação da mensagem cristã, seja ela evangélica
Assim podemos dizer que o objeto imediato do trabalho
seja dogmática, a análise crítica das conc:Lções de produção
teol.ó~ico nã~ ~ "o~j.et_o_", no sentido de conjunto de pro-
pos1çocs, CUJa mt_el1g1bihdade procuro, mas o conjunto dos de toda linguagem. Antes de incorporar a si temas novos,
textos ~ompreendidos _no campo da hermenêutica aberto pela deve ela, portanto, interrogar-se sobre a relação com sua
própria linguagem. Ela não pode mais contentar-se com ser
rcvelaçao. Procuro detxar desdobrar-se o ser novo da Bíblia
discurso espontâneo e auto-afirmativo. A partir de análise
e. de suas re!eituras eclesiais sobre a base de minha relação
sociopolítica, ela deve discernir a função ideológica que seu
viva com Cnsto, senhor da história. Para que esse ser novo
discurso pode exercer. Deve também entregar-se a uma lei-
do texto seja revelante para mim, devo vencer a distância
tura sociológica das diversas mensagens eclesiais, levando em
~tur'.11 que me separa do texto ressituado cm sua produção
consideração uma análise rigorosa das estruturas de comuni-
histórica. Mas, ao mesmo tempo, não devo anular a alteri-
cação e de produção das mensagens na sociedade. Ela pode
da_de do texto, ~.r9ue é justamente essa distância que é
ainda interrogar-se, num novo esforço, sobre a função sim-
criadora de possibilidades novas de sentido em função de
bólica da linguagem b:blica ou dogmática a partir das téc-
1 ~ Referimo-n°! ev!dentemente ao verstehen de Heidegger, para 0 1.J Sobre a originalidade desses processos cienLfficos e a evanes-
qual compreender nao ~ um ato do conhecimento n~tico mu cencia de um objeto religioso como objeto especffico dos "ciencias da
existencial. (Cf. Sein und Zeil, § .J 1) . ' religião•, pode ser lido, sempre com proveito, o artigo de M. de
12 H.·G. Gadamer, Vlrill et mlthode trad. frene ScuiJ Pan·s Certeou, •La rupture instauralricc ... ", io Esprit, junho de 1971, pp.
1976, p. 130. • .. • • 1177-214.

26 27
nicas da análise psicanalítica. Enfim, a análise estrutural obri- que está atrás dela. Ela é prática da esperança, que tem
ga o teólogo a nunca refletir sobre os enunciados, fazendo por lugar o não-lugar, e não o ser passado.
abstração de seu ato de enunciação. Tudo isso nos mostra Tentei, pois, caracterizar o deslocamento atual da teo-
que o famoso diálogo da teologia com as ciências humanas logia como passagem do saber à interpretação. Aceito definir
pressupõe sempre, em primeiro lugar, um debate epistemo- a teologia como interpretação atualizante da Palavra de Deus.
lógico.14 A teologia deve fazer tudo por melhor inteligência Malgrado o sucesso das novas teorias de leitura, creio ainda
?o crer cristão. Mas, mesmo preservando sua originalidade na possibilidade de leitura hermenêutica dos textos que são
irreduúvel, ela não pode constituir um saber em ruptura para nós portadores da mensagem cristã. Muitos exegetas
com as novas aproximações científicas da realidade, aproxi- reconhecem que hoje é necessário fazer apelo à complemen-
mações que são menos saberes totalizantes do que empreen- taridade do método estrutural e do método histórico. Não
dimentos de verificação e de produção da racionalidade. vejo por que não seria possível, em teologia dogmática,
.E'.u desejari~, por fim, assinalar que a passagem da fazer apelo a vários tipos de leitura. Ou então damos mais
teologia como saber para a teologia como interpretação é valor às ideologias que acompanham essas diferentes leitu-
ins;~arávc:J ~a emergência de um lugar novo, a saber, a ras do que aos serviços próprios que esses diversos mé-
pratica cmta, como lugar de produção do sentido da men- todos podem prestar à teologia enquanto inteligência da fé.
sagem cristã e, ao mesmo tempo, como lugar de verificação A teologia como serviço da Igreja é responsável por uma
dessa mensagem. Podemos definir a teologia como herme- mensagem, e o estudo do autofuncionamento dos textos
?êutica atu_:ihzante .da Palavra ~e Deus. Mas não pode haver que lhe são confiados deve estar a serviço da comunicação
mterpretaçao teónca da Escritura que faça abstração da dessa mensagem. Sei que para alguns a leitura hermenêutica
prática atual dos cristãos. A teologia não é saber constitu1do de um texto está incorrigivelmente ligada ao modo de pen·
anterior à práxis da fé e da caridade dos cristãos. Ela é o sar metaHsico e que este modo de pensar está ultrapassado.
l~gar e º. ins~ento da interpretação da Escritura. A prá- Mas tratar-se-ia de precisar de qual "metafísica" se quer
tica eclesial é diferente de simples condicionamento novo falar.
de mensagem sempre idêntica: ela tem papel estruturante C.Omo se verá no capítulo seguinte, não penso que pos-
~a elaboração da mens~gem . Esta importância dada à prá- samos deter-nos numa aproximação puramente estrutural da
tica como lugar t.eológico traz mais do que simples deslo- linguagem bíblica para pormos o problema teológico da re-
camen t~ da. teol~g1a. T~ata-se ?e verdadeira reviravolta, cujas velação em e por palavras humanas. Assim corremos o risco
consequênoas amd~ nao. avaliamos, particularmente no que de permanecer fechados no!> textos e de não poder mais
se refere ao pluralismo msuperável da teologia. A teologia dar a devida atenção à condição de possibilidade de reveJação,
enquanto teologia da práxis não pode contentar-se com in- isto é, de sentido dado, e não simplesmente reconstruído.
terpretar de outro modo a mensagem cristã. Ela é criadora A linguagem é mais do que sistema de sinais, ela é o evento
de novas possibilidades de existência. Mas, evidentemente de uma palavra. Devo interrogar-me, por isso, sobre a in-
devemos falar de relação dialética entre a Escritura e taÍ tencionalidade significante que está na origem da linguagem.
prática significante. Se a Escritura pudesse justificar não Isso depende de aproximação fenomenológica da linguagem.
tmporta qual pr.ática cristã~ ela seria propriamente insignifi- O sentido só existe no encontro da consciência com a rea-
cante. A teologia da práxis assume o risco de antecipar o lidade. Mas essa aproximação da linguagem não é suficiente.
futuro . Ela não é somente a interpretação atualizante do O reconhecimento do nível ontológico da linguagem como
. ~4 A e&le respeito, cí. o livro recente de J.-P. Deconchy, Orthodoxie
ontophania, como manifestação do ser, é o pressuposto ne-
relig1euse et sciences humaines, Mou1on, Paris e La Haye, 1980. cessário da revelação e de uma teologia da Palavra de Deus.

28 29
d enun ciam a teologia hermenêutica como pura. teologia da -
2 alavra que se contenta com. propor novi: mterpretaça.o
fe6rica do cristianismo. Eles insistem com razao que ª. pr~s
A HERMEN~UTICA EM PROCESSO histórica dos homens - ~· po~tanto~ também a práuca his-
tórica da Igreja - deve mter:vl! a mulo. d~ ~emento cons-
titutivo na interpretação atualizante do msu~smo. M~s ~e-
. relativamente fácil o:ostrar que a teolog~a hermcneuuca
bem compreendida não pode f azer apelo à P'ª!"~
na , · como elc-
ento determinante da compreensão hermeneuuca e como
~bjetivo termi~al d~ ~~vimento de interpretação .. S~do a
Há mais de um decênio tornou-se corrente considerar revelação judruco-cnsta inseparavelmente e~c?to histónco e
a teologia como hermenêutica da Palavra de Deu~. <fm isso palavra suscitada por esse e_vento, é neccssano ult~apassar. a
procurava-se designar a passagem de uma teolog•a dogm?- falsa oposição entre teologia da palavra e teolog1a da his-
tica ", no sentido autoritário do termo, para urna teologia
lustória. ~ .
"interpretativa", que é consciente da historicidade de toda Falando da contestação da teologia como hermeneuuca,
verdade - mesmo revelada - e de todo conhecimento - tenho cm vista algo muito mais radical. Trata-se, .antes de
mesmo teológico. Essa passagem de um saber constituído, tudo, do processo instaurado contr~ a hermenêutica como
seguro de si mesmo, para uma interpretação plural era o método de leitura de um texto: msso está todo o debat~
eco, na teologia, da contestação das pretensões do saber atual dentro da exegese contemporânea, entre uma apro~­
histórico no sentido do historicismo como também das pre- maçã~ hermenêutica e uma aproximação cstru~al da Escri-
tensões ao saber absoluto do saber especulativo. Alguns teó- tura. Trata-se, em seguida, mas de modo mats geral, ~a
logos, tanto católicos como protestantes, se esforçaram por contestação radical do movimento de pens~en.to própno
tirar as conseqüências da fenomenologia hermenêutica de da hermenêutica, do mesmo que está no pr10dp.10 d_: toda
Heidegger, quando este nos diz que todo conhecimento do compreensão teológica, ainda quando a teologia .nao era
ser (e, portanto, de Deus) só pode ser compreendido atra- compreendida como hermenêutica, a saber, da subida para
vés da elucidação do ser que se põe a questão do ser, a um inteligível permanente sob o .refl~o do sensível ou
saber, o homem. Assim, a teologia é, inseparavelmente, her- além da contingência dos eventos históricos. No fundo, tra-
menêutica da Palavra de Deus e hermenêutica da existência ta-se sempre de encontrar a inteligibilidade do ser sob o
humana. A teologia se torna hermenêutica à medida que sensível ou de restaurar continuidade de sentido acima de
compreende que toda afirmação sobre Deus implica uma distância cultural ou histórica. Com isso a hermenêutica per-
afirmação sobre o homem. maneceria congenitalmente l;gada ao movimento de pensa-
Em outras palavras, o teólogo não se contenta com mento da metafísica. Ela é, portanto, rejeitada por todos
procurar a intelig.bilidade em si dos enunciados escriturfs- aqueles que fazem hoje o process~ do logocent~is"!o e se
ticos ou dogmáticos. Ele procura extrair o sentido para hoje. empenham na demolição da metafísica. A hermeneutica deve
Nisso está toda a distância entre um compreender especula- ceder o lugar à gramatologia, para usarmos o título de uma
tivo e um compreender hermenêutico. obra do pensador mais radical dessa mudança cultural, J.
Ora, essa teologia hermenêutica se acha hoje cada vez Derrida.
mais contestada. Desejo falar não tanto dos que, em nome Hoje, na França, é de bom-tom, mesmo cm ambientes
de uma teologia da história ou de uma teologia política, teológicos, falar da crise da hermenêutica. Pessoalmente, pen-
30 31
so que se formos até o fim no questionamento radical da A. A hermenêutica e a crítica das ideologias
hermenêutica, o exercício do ato teológico se tomará im-
possível. Devo confessar que os ensaios teológicos que que- Sabemos que a hermenêutica filosófica de Gadamer quer
rem tomar distanciamento radical cm relação à hermenêuti- ser mais do que metodologia das ciências da interpretação.
ca, para adotar uma aproximação estrutural - não só como Ela não tem só alcance epistemológico e não se contenta
método de leitura dos textos, mas também como horizonte com nos dizer o que fazer para compreender. Ela tem ainda
de pensamento - não me convenceram? alcance ontológico e se atribui a tarefa de enunciar as con-
No presente capítulo, cu queria começar por lembrar dições de possibilidade de toda compreensão efetiva.2
quais são os traços maiores da crise da hermenêutica. Tra- Seguindo Heidegger, ele se esforça, portanto, por ela-
tar-se-á, em seguida, de perguntar a qual deslocamento da borar uma teoria verdadeiramente filososófica do compreender
hermenêutica leva uma tomada a sério dos novos métodos hermenêutico como estrutura de nosso ser-no-mundo, e não
de leitura dos ..t:Xt?s. Poderemos _então procurar precisar como origem de um saber no sentido epistemológico. Com
algumas,. ~nsequencra~, para a práuca da teologia, de uma esse objetivo, Gadamer reabilita o conceito de tradição, que
her~eneuttca que acenou deixar-se questionar por todo o fora completamente desacreditado pela Aufklãrung. Não exis-
movunento de pen~amento contemporâneo sob o signo da te compreensão efetiva sem consentimento numa tradição
recusa do logocentr1smo. Como se pode adivinhar continuo que nos constitui. ! justamente neste ponto que Habermas
a defend~r a possibilidade de uma teologia herm~êutica e contesta o projeto hermenêutico de Gadamer. Enquanto o
tenho mwtas vezes o sentimento de que muitas críticas atuais mérito permanente da Aufklãrung foi o de nos ter tornado
pr~de_m de desconhecimento da evolução presente da her- atentos às exigências da reflexão crítica, que é correlativa
meneuaca. da autonomia e da emancipação do homem moderno, Ga-
damer expulsa essa instância cr{tica do campo hermenêutico.
O seu empreendimento é, pois, suspeito à medida que vai
dar num imperialismo não-criticado da tradição.
1. A CRISE DA HERMENtUTICA Quanto a Habermas, ele traça uma teoria geral da co-
municação inter-subjetiva, dominada pelo conceito de "crí-
tica das ideologias•. E se empenha, de modo particular, em
F~ balanço completo da crise atual da hermenêutica mostrar que devemos renunciar vez por todas ao pseudo-ideal
é tare~a unpossível, uma vez que ela coincide com a crise do do conhecimento desinteressado. Não podemos mais, como
própno pensamento ocidental. Referindo-me ao contexto no tempo de Marx, contentar-nos com denunciar a ideologia
fr,.anc_ês, insistirei aqui principalmente na crítica da herme- como superestrutura metafísica e religiosa. :!! a própria ciên-
nei:uca C?mo ~étodo de leitura de um texto e na contcs- cia que se tornou ideologia dominante.
taçao ~ais radical de todo projeto hermenêutico enquanto A primeira vista, a crítica das ideologias não faz outra
cx~ressao. do pensamento metafísico. Mas, antes, evocarei coisa que a hermenêutica quando ela denuncia o falso abso-
mwto rap~dam~te ,ª.contestação alemã da hermenêutica em luto da ciência e sua pretensão ilusória ao saber desinteres-
nome da teoria crmca das ideologias" .1 sado. Mas Habermas pensa que, apesar das aparências, a
1 Refiro.me aqui ao debate, na Alemanha, entre H.-G. Gactam. 2 Cf. J. Greisch, K. Neufeld, C. Theobald, La crise contemporaine.
e J Habennas. Para tomar conhecimento desse debate, leia-se 0 livro Du modemisme d la crise des hermlneutiques, Beauchesne, Paris, 1973,
publicado sob o título: Hermeneutik und Jdeologie kritik Suhr P· 1'44. Recomendo vivamente o balanço da crise da hennen!utica apre-
Frankfurt, 1971. ' xntado por J. Greisch nesse volume coletivo, ao qual devo muito.

32 33
2 • Como razcr tcoloal• bole
hermenêutica de Gadamer, justamente por causa de sua con- sempre ·l den"' u·ca além da materialidade dos
d f' contextos
· tcx-
fiança cega na tradição, ainda tem uma concepção idealista wais ou históricos. O estruturalismo não e me a .s• mesmo
do conhecimento humano. Ela privilegia certa transparência como sistema filosófico. Mas, representando um sistema ?e
da rdação inter-humana e é incapaz de desmascarar as re- nsamento original, ele se vê em .ruptura .~m ~ humarus-
lações de força e mesmo de violência inscritas na tradição ~o filosófico, definido pela primazia do SUJClto. O evento
que nos carrega, as quais obliteram toda comunicação hu- de verdade mais importante de nosso tempo ~ ? .descentra-
mana. Malgrado sua pretensão ao universal, a hermenêutica to do homem em relação a toda falsa sub1euv1dade ccn-
de Gadamer fracassa ao fornecer critério para o discerni- m:l "l Essa ideologia anti-humanista se encontra no ncomar-
mento das consciências falsa e autêntica. Ela deve ser supe- ~s~o de L. Althusser, no neofreudismo de ]. . Lacan, no
rada pela crítica das ideologias, que queira poder pôr à pro- neopositivismo de C. Lévi-Strauss e na arqueolog.1a do sa~r
va todos os tipos de diálogo humano à luz de exigência de de M. Foucault. Em todo caso, do p<:>nto de. vista da lin-
comunicação universal finalmente sem violência e sem temor. .. {stica moderna, o homem, como su1e1to da linguagem, de-
~parece em proveito de uma r:gião m~da, a das es~~ras
e a dos sinais dispersos que nao reenviam a uma s1gnif1~a­
B. A leitura contra a interpretação ão global do mundo e do homem. Trata-se d~ estudar a lin-
~agem como sistema de sinais, e não como ~mal ou cxpr:,s-
Enquanto toda aproximação hermenêutica de um texto -0 de um pensamento. Os termos têm sentido pela rclaçao
pressupô~ a possibilidade de descobrir o sentido originário, com os outros termos da frase, m_as nao
sa - por rcl.açao- ~m
oculto, sob a letra, as novas teorias de leitura, particular- uma realidade exterior. l! necessáno tom3:1' ~ .séno ? }ogo
mente a análise estrutural, não postulam nenhuma teoria de lateral dos significantes, sem postular um s1gnif1cad~ últLm_?·
duplo sentido e se aplicam unicamente às estruturas internas n :zemos que a linguagem como palavra, como maru.festaçao
do texto. Não se trata de, numa perspectiva histórica, pôr-se de sentido e como evento de um encontro é absorvida pela
a questão do sentido ao qual reenvia uma multiplicidade de linguagem como sistema. "Ela fala antes que eu fale", para
sinais, textuais ou não. Como diz Roland Barthes, "a desin- usarmos o termo muito citado de Lacan.
tegração do sinal parece ser a grande questão da moderni- C.Omo bem o mostrou J.-P. Osier, o processo instaurado
dade". Desde que Saussure estabeleceu que o sentido jorra contra a hermenêutica não data de hoje . .t:s
no~as teorias de
da articulação dos sinais em sistemas significantes, a questão leitura do texto bíblico levam em cons1deraçao o desloca-
não é mais a da continuidade de sentido além de separações mento de terreno operado por Marx e, antes dele, por .Es-
textuais ou históricas, mas a da produção do sentido e de pinosa. Devemos, com efeito, escolher. Ou so~o~ herdeiros
se:.i funcionamento no interior de um texto fechado e orga- de Espinosa, ou o somos de F~uerbac~. ~st.e úlum_?. ao se
nizado como um sistema de significação. Como funciona o aplicar a uma interpretação atéta do cnsuarusmo, nao aban-
texto para produzir certos efeitos de sentido? O conceito de donou o terreno tradicional da hermenêutica. Tratava-se sem-
"produção" substitui o de "compreensão", como o de "ves- pre de descobrir uma essência inteligível sob mutações cul-
tígio" ou de "arquivo" substitui o de "sinal". turais, particularmente a do advento do a~eísmo mod~rno.
Se deixarmos o plano da lingüística para explicitarmos "O deslocamento exemplar operado por Espmosa é uma mu-
a ideologia que a acompanha, achar-nos-emos na presença dança de terreno'. Espinosa não foi para a caixa do ponto,
de uma contestação radical da hermenêutica, à medida que atrás do cenário; ele foi para outro lugar, em outro. Esse
esta postula uma continuidade de sentido e a primazia
do sujeito que decifra a inteligibilidade de aventura única e 3 A. Vergolc, fnterpritation du langage religieux, Scuil, Paris,
197'4, p. 16.
34 35
'cm outro lugar', impossfvd de ser encontrado ao rúvd do trariamcntc a uma concepção substancialista da linguagem,
texto religioso literal ou simbólico, é o conhecimento do segundo a qual a linguagem é reservatório de sinais, atrav~
segundo gênero, que, more geometrico, procede dedutiva- dos quais um leitor vai decifrar um sentido, é necessário
mente por definição, isto é, pela explicação causaJ, uma vez compreender a linguagem como totalização das diferenças,
que definir e expor a causa necessária são uma só e mesma produzindo o sentido por oposições. Não existe um sentido
coisa, pelo menos no rúvd da ciência. O produto desse deslo- do texto que baste restituir. O sentido não está "antes" do
camento é a consideração da rdigião ou de sua manifes- texto, nem "por baixo " do texto. Assim, ler não é decifrar
tação num texto como constituindo um efeito ... • 4 "Espi- um sentido antecedente, mas produzir um sentido, deixan-
nosa tem descendência à mcclida que iniciou uma teoria do-se governar pela cadeia dos significantes. Como diz A.
de leitura como condição e possibilidade de toda leitura. Com Ddzant, "o sentido só pode ser a circulação ordenada dos
de o texto se toma efeito, e também o sentido do texto. significantes, o jogo cUercncial das oposições, pelos quais
Conhecer o que se lê é, pois, produzir o conceito teórico se inscrevem tanto um autor textual como um leitor textual" .7
dos mecanismos que dão tal ou tal texto, tal ou tal sentido,
contra-sentido, não-sentido. Em outras palavras, Espinosa Vê-se bem a distância entre semelhante teoria de lei-
subordinou toda 'compreensão' ou recolhimento do sentido tura e o positivismo latente de certa exegese tradicional,
a uma teoria prévia do conhecimento dos 'efeitos-compreen- que identificava a verdade com o conteúdo do texto . Isso,
são' ou 'recolhimento', ou, se se preferir, Espinosa reduziu por outro lado, permiti~ aos exeg:_tas cx~rc~r às vezc:s ~r~o
a hermenêutica ao plano de 'efeito hermenêutico', o que terrorismo, como se a 10tcrpretaçao autennca do cristlarus-
tira a esta última todo privilégio de conhecimento. n5 mo hoje dependesse estreitamente do sentido literal dos tex-
Devemos agora explicitar as conseqüências da análise es- tos extraídos pela exegese. Ao contrário, uma leitura estru-
trutural, especialmente no que concerne ao questionamento tural do texto b:blico pode ser libertadora à medida que,
de certo tipo de exegese bfblica tradicional. cm lugar de nos obrigar à repetição de um sentido já presente
ade, da se torna pré-texto com uma pluralidade de leituras
1. Se levarmos a sério a reviravolta copcrnicana ope- e com comunicação com outros. "Não tenho uma verdade do
rada pela lingüística desde Saussurc, devemos pôr cm causa texto, mas de me desaloja e me desloca: cxllio ou êxtase,
a idéia de uma verdade do texto ou de um sentido literal graças ao texto, mas sem que eu fale o que o texto diz. "1
a descobrir, o que era o postulado implícito da exegese Deveríamos insistir aqui na noção de "permissão": o que o
histórico-crítica. "Se cada demento da linguagem enquanto texto permite e o que não permite, à medida que não
unidade constitutiva, não é distinguívd dos outros pelo que o identif1camos com uma plenitude de verdade imediata-
de representa ou designa, o sentido não será constituído mente transparente. E é legítimo dizer o mesmo da pre-
pela rdação extdnscca do sinal com a realidade, pela etiqueta sença de Cristo, como evento fundador, para a história
que o termo, por exemplo, coloca sobre a coisa. Ele seri presente dos cristãos. "Uma quenose da presença produz uma
produzido pela rdação interna constituinte que esse termo escritura plural e comunitária. "9
mantém com todos os outros termos do vocabulário. "6 Coo.
• J.·P. Osier, prefácio à tradução francesa de L'Essence du chrt. 7 A. Dclzant, La communication de Dieu. Par-deU1 utile et inutile.
tianisme. de T . Feucrbach, Maspcro, Paris. 1968, pp. 10-1. Essai th~ologique sur l'ordre symbolique ("CogiLatio Fidci• 92), Ccrf,
5 ld. ibid., p. 17. Paris, p. 65.
6 L. Marin , •La dissolution de l'homme dans les scicnces humal- 8 M de Ccrtcau, in Crise du biblisme, chance de la Bible, l!pi,
ncs: mod~lc linguistique ct sujet signifiant•, in Concilium 86, 1973, Paris. 1973. p 46.
p. 33.
9 ld., ªLa rupturc inslauralrice", in Espril, junho de 1971 , p. 1201.

36 37
2. Outra conseqüência ela leitura de tipo estrutural, cm sição estrutural, é confundir a ordem simbólica com o fun-
sua diferença com a pesquisa interpretativa ela hermenêutica, C::onamento da representação imaginária, que pretende :s.lcan-
é que é inútil procurar voltar, partindo do texto como jogo çar a realidade a partir da e numa imagem. De fato, para
diferencial de significantes, a um querer dizer do autor e termos acesso à verdadeira ordem simbólica, devCJros pôr em
mesmo a um significado último. Se o sentido é um efeito causa a prioridade do significado. O simbólico nfo remete
dos significantes no sistema fechado de um texto, eviden- a uma plenitude de sentido. Ele não faz pensar ... , II'as permi-
temente é ilusório procurar um querer dizer do autor, cm te a vinda do sujeito e o encontro com outros. "O !'imb6lico
tal contexto sociocultural, mediante tal forma literária. Tam- remete, portanto, à sociedade e à aliança que ela implica,
bém aqui estamos em completa ruptura com a ambição do à comunicação que nela se forma. " 11 Enquanto a leitura her-
método histórico-crítico em exegese. O privilégio dado ao menêutica do símbolo exigia a prioridade do significado, hoje
ponto de vista sincrônico nos leva a rdativizar a noção de preferimos dizer que, na ordem simbólica, "o significado
autor no sentido de intencionalidade ou de voz atrás do está sempre cm posição de significante" .12 Nem Deus pode
texto. Como dizíamos acima, a propósito do estruturalismo ser identificado com o significado último. Ele deve ser con-
cm geral, o homem como sujeito e intencionalidade signifi- siderado como um significante que remete a outros signifi-
cante é posto de lado. "Ele não aparece aí como sujeito doa- cantes laterais.
dor de sentido, mas como o lugar de produção e de mani-
º
festação do sentido ... " 1 A tomada em consideração do texto J . Há um terceiro ponto que merece ser sublinhado e
como objeto textual põe em causa a ideologia de uma origem que é carregado de conseqüências no que diz respeito à nos-
a procurar do lado de um autor proprietário do sentido, sa prática da Escritura, a saber, o fechamento dos textos.
como também a de uma finalidade , do lado de um leitor Esse privilégio dado ao ponto de vista sincrônico contesta
que deve apropriar-se do sentido. ~ necessário, portanto, diretamente o pressuposto implícito de toda compreensão
pôr entre parênteses as idéias de autor, de mensagem e de hermenêutica, a saber, que a tradição é o horizonte necessá-
destinatário, colocar-se simplesmente dentro da imanência do rio de nossa compreensão do passado. Contrariamente ao
texto e assinalar suas leis de funcionamento . método histórico, que procura compreender um texto a par-
tir de sua gênese e de suas releituras atualizantes na tra-
Mais radicaJrr:ente, a análise estrutural dos textos apli- dição, é necessário permanecer dentro do texto e produzir
cada à leitura da B1blia põe em causa o pressuposto de apro- seu sentido, deixando-se guiar pelo jogo diferencial dos sig-
ximação hermenêutica, a saber, a remitência a um significado nificantes . Enquanto para a hermenêutica tradicional, espe-
último e, conseqüentemente, a um autor divino. Estamos cialmente depois de Gadamer, a distância histórica, longe
sempre no nível do jogo dos significantes, e então a distinção
de ser obstáculo, é o meio mais seguro de compreensão do
entre o signicantc e o significado perde a sua pertinência. passado, aqui ela se toma o lugar de um pasmo irredutível,
Devemos abandonar o postulado da hermenêutica, a saber, de uma "disseminação" radical, como diria J. Derrida. Se
o de duplo sentido, um sentido originário por meio de um
sentido primeiro. queremos interpretar o crisúanismo em termos de tradição,
devemos dar prioridade às rupturas sobre a continuidade,
Na concepção tradicional da hermenêutica, o material às diferenças sobre a semelhança, às alteridades sobre a iden-
significante de um símbolo remete sempre a um significado údade. O texto da Escritura não somente dá ocasião a uma
último. ~ neste sentido que P. Ricoeur pode dizer que •o
símbolo faz. pensar". Mas para aqude que adota uma po- 11 G. Lafon, Esquisses pour un christianisme (• Cogitatio Fidci•
96). Ccrf, Paris, 1979, p. 64.
10 L. Marin, art. citado, p. 37. 12 G. Lafon, ib:d., p. 68.

38 39
pl~alid~dc de interpretações, mas é pretexto para intcrpre- C. Hermenêutica e gramatologia
taç~s inovadoras, que criam, a cada vez, uma diferença.
~ vao postular um sentido único e definitivo da Escritura Tentamos ver cm que as novas teorias de leitura, par-
~ue b~stasse_recolher e repetir ao longo dos séculos. "O sen~ ticularmente a análise estrutural dos textos, contestam dire-
tido ainda nao está presente nela, nem no acesso ao sentido, tamente a hermenêutica como processo de interpretação li-
mas é . o seu excesso, dado gratuitamente, desde que se gado a duplo sentido, como acesso ao sentido por meio de
rem.~noe à sua pr~~ça e à sua percepção; o trabalho do outro sentido. Isso renova nossa prática da Escritura . Mas,
sen~do é esta renuncia, a marcha para a terra prometida 0 cm exegese, podemos considerar a análise estrutural como
caminho, o método. " 13 '
método que vem completar o método histórico-crítico. Não
E se é necessário renunciar à presença de uma continui- existe necessariamente incompatibilidade absoluta entre es-
dade de sentido que subsista além dos desvios culturais e tes dois métodos. O mesmo não se dá se considerarmos as
das :UPturas históricas, é ?ecessário também descartar a pre- ideologias subjacentes a eles . Neste caso, devemos falar de
tensao .d.e poder retraduzu um sentido idêntico em lingua- incompatibilidade radical e até de luta de morte. Jacques
g~ns difer~tes. Isso seria deter-se numa concepção insufi- Derrida deu sua forma mais extrema ao processo movido
c1en~e ~ª.linguagem e conservar uma separação ilusória entre à hermenêutica como movimento de pensamento. "Gramato-
• os s1gnif1cante$ ~ o sigll,ificado. Não podemos pretender di- logia ou hermenêutica" : trata-se de alternativa sem possibi-
~r a me~ma coisa .com palavras diferentes. As palavras só lidade de compromisso. Para de, a crise da hermenêutica se
t~ senado . pela ligaç~o com outras palavras, segundo re- torna a crise de todo o pensamento ocidental. E, ao mesmo
laçoes laterais. E esse Jogo diferencial varia de acordo com tempo, o movimento de pensamento designado pelo nome de
o ~ntexto textual _ou histórico. Somos sempre reenviados "gramatologia" representa a contestação mais radical poss{-
~ hnguag~ como sistema fechado. Mudando-se as regras do vcl de toda a teologia hermenêutica . "O encontro entre a
JOg?, modifica-se a produção do sentido. O sentido não é an- hermenêutica e a gramatologia deve tomar necessariamente
tcr10~ o~ transcendente ao sistema dos significantes que 0 a forma de luta de morte, de cnfrentamento que exclui de
CODStltul. inicio toda possibilidade de reconciliação ou de mediação. "1.S
Adivinha-se que nessa perspectiva sincrônica seremos 1. Podemos, numa primeira aproximação, reduzir a
levados a uma prática radicalmente nova da Escritura. O oposição entre hermenêutica e gramatologia à oposição entre
célebre p~o~lema, sempre i!ritante para a consciência cristã, a escrttura e a palavra. Mas com a condição de não ficarmos
da conciliaçao entre a novidade criativa e a fidelidade será no nível lingüístico. Privilegiando a escritura, a gramatologia
po_sto com toda a sua agudeza. De fato, uma vez que não quer ser demolição radical da metafísica, à medida que
~st~ uma verdade d~ Escritura que possa fornecer-nos um esta se situa na linha do logoccntrismo. O privilégio con-
cri~éno seguro para a Interpretação da mensagem cristã para cedido à voz, à phone, é metafísico. E é inseparável de uma
hoje, compr~ende.-se . ~ uso privilegiado que é feito do re- metafísica da presença, que postula uma plenitude de senti-
curso à práaca s1gnif1cante do cristão ou à ortopraxia.1• do, um significado transcendental, anterior a todo significan-
te. A escritura não é mais do que a expressão do evento
da linguagem, pela qual o homem torna o mundo presente
a si mesmo.
13 A. Delzant, op. cit., p. 69.
1_'4 ~b.rc este ponto veja o artigo de F. RefouJ~. •L·ex~g~ en
quesuon , Ul Le Supplément 111, 1974, pp. '411-4.
15 J. Grclsch, in La crise contemporaine..., cit., p. 157.
40
41
2. O projeto da gramatologia consiste em conduzir até taffsica do logos, da presença e da consciê!1i~ª deve refletir
às últimas conseqüências a demolição da metafisica como a escritura como sua morte e sua fonte . Uma vez que
ontotcologia, efetuada por Heidegger. Ora, o horizonte de compreendemos a linguagem como ?r~anização ~e ~ipa signi-
pensamento do projeto hermenêutico permanece inelutavel- ficado-significante, concedemos a pnondade ao s1gnif1cad? co-
mente sob o signo da ontotcologia enquanto pensamento do mo plenitude de sentido e não ~capam~s ao logocentr1sn;io
Ser como presença, identidade, pertinência, origem. Derrida como destino do pensamento OCidental. Toda vez que afir-
quer, mais radicalmente do que Heidegger, ultrapassar a mamos que o significado n~o é ~eduúvcl ª.º ..sig~c9:11te, ~~;
ontotcologia na direção de um pensamento da diferença. mos o sentido do ser como 1denudade, perunenaa, origem.
"Enquanto a diferença remete, em última instância aos con-
ceitos de produção e de economia, que marca pred~minância Restaria perguntar se a tradição hermenêutica está tão
irr~utivel da espacialidade, a hermenêutica permanece sob fatalmente ligada ao destino da metafísica enquanto ontotco·
o signo do sentido que se manifesta. " 16 Poder-se-ia objetar logia como o diz J. Derrida. O que é certo, e.m todo caso,
que tam.bém a hermenêutica de Gadamer quer se inscrever é que uma hermenêutica pressupõe necessariamente uma
no movunento de pensamento instaurado por Heidegger. filosofia do sentido. Ora, o movimento de pensamento .ra-
Mas Derrida pensa que não só Gadamer como também o dicalizado por Derrida significa o desmoronam~nto d~ filo-
próprio Heidegger não foram até o fim nas implica~s do sofia do sentido seja da clássica, isto é, metafísica, se1a mo-
'
derna, isto é, husserliana ou mesmo he1.deggenana.
. 20
. .
destino historial do pensamento do ser e do fechamento da
metafisica. Concluindo essa muito breve evocação do conflito ir·
reduúvel que separa esses dois horizontes d~ pensamento,
3. Embora pense que o estruturalismo ainda continua a gramatologia, de um lado, e a hermenêu~ca, do outro,
prisioneiro da metaffsica, uma vez que privilegia demasiada- seria conveniente sublinhar o alcance de~tru1dor para t~o
mente a fonética, Derrida fornece a este a justificação teó- projeto teológico de um pens.ame~to da diferença no s~udo
rica, quando define a linguagem como "jogo formal das di- de Derrida. A questão é mwto diferente de um conflito. de
ferenças". A gramatologia deve ser entendida como destrui- método no que concerne à aproximação do texto bíblico.
çã'? do sinal em proveito do vestígio, que designa justamente Trata-se simplesmente do problema da verdade e, portanto,
o Jogo das difer~nças. " O vesdgio é, com efeito, a origem da compreensão teológica, e de nada mais. _
absolu_ta do. sentJ~o em geral, o que significa mais uma vez A este respeito poderfamos tentar comparaçao entre a
que º.ªº exis~e origem absoluta do sentido em ge!·al. n11 Co- crise modernista e a crise da hermenêutica, precisando logo
m'? vimos acuna, é a relação significante-significado, o pró- que esta última contesta ainda mais radicalmente os funda-
prio. postulado de toda a hermenêutica, que desmorona. O mentos do discurso teológico.
sentido só pode jorrar da oposição dos significantes. E não A crise modernista nasceu da impossibilidade de recon-
dev~os hes.ita~ .em dizer que todo significado iá está na ciliar a nova prática científica da história com uma com-
postça? de s1gniftcan!e· "Que o significado seja originária e preensão teológica do dogma cristão. Hoje ª. crise da her-
csscn~almence (e nao só para um espírito finito e criado) menêutica é o sintoma do fosso cada vez mruor que separa
vesdgio, q~C:. ele iá este;a sempre na posição de significante
é a propos1çao aparentemente sem problemas na qual a mc- 18 ld. ibid., p 108. .
19 F. Wnhl , in Qu'est-ce que le struc:uralisme?, Seuil, Pans, 1968,
16 ld., ibid., pp. 165-6. p. 413. .. .
20 A respeito da discussão sobre o conílito entre a hermer.,~llca
17 J. Derrida, De la grammatologie, ~d. de Minuit, Paris, 1967, e a• gramatologia, pode ser lida com proveito a obra d~ J. Gre1sch,
p. 95 .
Herméneutique et grammatologie, Edfüons du CNRS, Pans, 1977.
42 43
~a <:_?mprccnsão tc:<>l~gica do mistério cristão de uma apro- rogarmos seriamente sobre as possibilidades do discurso teo-
xunaçao do fa~o cr_istao segundo a prática das ciências hu- lógico. A crise da hermenêutica não. é, aliás, a cri~c ?a pr_?-
m~as e da histó~a . A nossa situação atual só faz acuar pria teologia? Como dissemos, a cr1se da hermeneutica n~o
mais a . ruptura cptstemológica, já manifesta no tempo do é só crise de linguagem, mas também de pensamento. Nao
mod~~mo~ entre..."~tcndimcnt,? ci~úfico", "razão cspc- vejo, por isso, atualmente, como seria poss{v~ negociar u~a
culau~a e cxper1enoa tcologal . Vimos a importância do espécie de compromisso ~tre a gr~atolog1a e a teologia.
concCJto de •produçã~" tanto do ponto de vista lingüístico Estamos diante de alternativa que impede todo esforço de
como do ponto de vista do estruturalismo ideológico. Ele conciliação. .
é revelador. de uma situação e de uma prática científica to- Devemos, por isso, aceitar viver no desconforto de cri.se
talmente diferente da do modernismo. Empenhruro-nos no cujas conseqüências ainda não avaliamos . Não creio, todavia,
~tudo das "co~diçõcs de produção" socioculturais, psicoló- que toda hermenêutica teológica esteja voltada. ao fracas~o,
g1cas e econôrrucas do objeto religioso. Mas ele, enquanto já por causa da irreduúbilidade da .hermenêutica teológica
verdade. e sentido a decifrar, desvanece. "Durante a crise à hermenêutica geral. Não penso, parucularmentc, que o pro-
moder~sta, era a ~pecificidade cristã, a 'ephapax', que de- cesso movido contra a ontoteologia torne definitivamente
s~par~a em rr~vCJto de expe:iência em si inefável e supra- caduco todo projeto hermenêutico. Esse processo não data
histór1ca. Na crise hermenêutica' é o objeto rdigioso como de hoje. E, desde Heidegger, a teologia hermenêutica tem
um. todo que perde seu lugar. Quando a análise não visa procurado tomar a sério as conseqüên~as da .?1udança ~a
mais à verdad~ do discurso ou de um símbolo rdigioso, metafísica empenhando-se cada vez mais cm nao confundir
mas. aos .m~smos de. sua produção, os quais, segundo a 0 •teológico" que vem da tradição ontoteológica ocidental
prática c1cnúf1ca escolhida, pertencem a um sistema socio- com o " teológico" que vem da tradição judaico-cristã._
lógico, psicológico ou outro, o símbolo ou o fenômeno rdi- Vejo bem o benefício enorme que a nossa prática da
g'oso não pode mais continuar sendo objeto privilro-i"do· Escritura pode tirar da análise estrutural dos textos. A ascese
e 'e se rcd. uz a um uruco
, . ponto num campo relacional, -i:.-
que' da análise estrutural tem o mérito incontestável de nos pôr
daí por diante tem outros centros de referência. "21 ao abrigo das fantasias subjetivas, psicológicas e apologéti-
cas na interpretação de um texto, tentação à qual a exegese
cristã tradicional muitas vezes sucumbiu. Mas dificilmente
vemos como o teólogo possa permanecer no ponto de vista
li . O DESLOCAMENTO ATUAL DA HERMEN~UTICA do lingüista em sua concepção da lingua.gem. Como vim~s,
o lingüista considera a linguagem exclusivamente com? SIS·
tema diferencial de sinais e não como palavra, como inten-
A. O destino da hermenêutica teológica cionalidade significante, como mensagem dirigida a um des-
tinatário. Daemos que o lingüista faz abstração da função
" . Procurei reconstituir alguns aspectos da crise da hermc- fenomenológica da linguagem como mediação. Esta mediação
neuu.ca. Na sua forma mais radical, a da gramatologia de J. é, contudo, o verdadeiro evento de palavra: eu - tu - e
~nda! a contesta~o do horizonte de pensamento, que é aquele do qual eles falam . Quem diz "mensagem" diz al-
10dissooável do projeto hermenêutico, nos leva a nos intcr- guém que fala ou escreve e alguém que ouve ou lê.
21 .e. Theobald, ·L'en~ de l'histoirc daru l'univers reli ·eux et
Em outras palavras, o teólogo não pode deixar de con-
thool.og1que . au moment de la crise modemiste• , in La crise giconlem- siderar a linguagem do ponto de vista semântico. A lingua-
poraine..., cat., pp. 74-5. gem não procede só de análise estrutural, mas também de
44 45
. bíblica Para mim, a leitura
das palavras-eh.ave da li~guagem herm~êutica, pelo menos
fenomenologia na qual é apanhada novamente a intencio- cristã da Escritura sera sempre o texto dentro da mesma
nalidade significante que preside o discurso. Na própria li- no sentido de que intc:rpret:uxio~ode haver nela uma plura-
nha da lingüística saussuriana sabe~os que devemos distin- tradição em que ele f~1 escntfu ção de situações históricas
guir a lingüfstica da "língua" , e esta do •discurso". Na pri- tidade de interpretaç;: e~ :Ujo sujeito é a comunidade
meira, a unidade de base é o sinal; na segunda, a frase . diferentes. Mas .a tra içao v:;::,cam o hermenêutico que ex-
Uma coisa é considerar a palavra como "diferença" num sis- interpretante, c1rcu~screve o~ arbitrárias. Não pode-
tema de oposições; outra é considerá-la como função na frase clui as interpretaço~f. aberran~to de vista diacrônico ao
enquanto unidade significante do discurso. mos, portanto, sacri i~ar o che armos a um fechamento
Devemos até acrescentar, parece-me, que o teólogo não
Po nto de vista sincrônico par~d d gradical O evento-funda-
pode contentar-se com aproximação fenomenológica da lin- descontmu1 a e · " . ,.
absoluto e a uma irremediavelmente passado, pcrm~t~
guagem. ~ próprio de hermenêutica teológica que se es- dor, Jesu~, ~udedestdá tido que é inseparável da tradiçao
força por não ligar seu destino histórico ao da ontoteologia certa conunu1 a e o sen ' .
justamente recolher a lição do segundo Heideeger, quando histórica dos que vivem de seu espírito.
ele nos fala da linguagem como modalidade do ser, como
ontophanra. Antes de ser palavra dirigida a alguém, a lin- .. · egundo Paul Ricoeur
guagem é dizer, é palavra como manifestação do ser. Deve- B. O deslocamento da hermeneutica s
mos ouvir o dizer da linguagem antes de exercermos nossa - révias sinto-me mais livre
responsabilidade de sujeito falante. 22 Feitas essas observaçoes P ' .. · - pode mais
Eu seria mesmo tentado a pensar que esse nível onto- . destino da hermeneuaca nao
para afmnar que ~ evento cultural representado pelo
lógico do dizer como manifestação do ser é o pressuposto ser o mesmo depois desse étodo de leitura quanto como
necessário de uma hermenêutica da linguagem da revelação. estruturalismo, tanto como m dical a crise da herme-
J:: porque já sou capaz de discernir a manifestação do ser ideologia. Em sua forma ~end~ ~~a h~menêutica românti-
em toda linguagem, particularmente na linguagem poética, nêutica ~· pel? menoÓ d~:i::amento atual da hermenêutica
ª
que sou capaz de acolher a Palavra de Deus como manifes- cn e ps1cologizan~e. ento moderno no que ele
tação "inaudita • do ser. A hermenêutica cristã terá por ta- participa d? ~ov~en~o do ~~s~e ser caracterizado como
refa justamente procurar o sentido das palavras-chave da lin- tem de mais s1gnif1caavo ,,e q elação a uma falsa subjetivi-
guagem da revelação em função da palavra "Deus", que • descentração do" ~o~~ci:md~ consciência" . Aqueles para
diz mais do que a palavra "ser", especialmente se a palavra dade, ou como ;sh1s ,.. u·ca " se tornou tabu deveriam
"Deus" estiver compreendida em sua relação privilegiada com · t rmo ermeneu {·
os qualS o ~ - ntre ar muito depressa à cr uca
a simbólica da Cruz. lembrar-se disso.. e .ºªº se ere ;corrigivelmente sob o signo
Em todo caso, não vejo como possamos permanecer ao
nível da análise estrutural para manifestarmos a inteligência ~~ ;~~d:roe~~l~t~~~~ja ele metafísico, seja transcen-
22 Rcfcrirno·nos principalmente ao texto inédito de M. Heidegger dental. . bo unha desse deslocamento de
traduzido para o francês sob o título: - ouelqucs indications sur dea Paul Ricoeur é ª testem · rtância ao objeto
points de vuc principaux du colloquc thwlogiquc consac~ au 'Problm.
d 'unc pcnséc ct d'un langage non objectivisants dans la thwlogic d'au- uma hermenêutica que dá toda ~ s~ia1:~ente no momento
jourd'huj' •• in Archives de Pltilosophie 32, 1969, pp. 397-4 15. Teste- textual e que não se concentra un . . f
munho o este questionamento: ·e o homem esse ser que tem a lingua- ,Ja ap..ro~riação subjetivabdalhotext~~::~~::· ~~~~: ; :
gem cm suo posse? ou f o linguagem que 'tem' o homem. à mcd:cla rderenoa aos seus tra os
que ele pertence à linguagem, a qual lhe abre o mundo e, com
isso, ao mesmo tempo, a suo morado no mundo? •, ibid., p. 409. 47
46
tentar expor rapidamente os aspectos mais significativos do
deslocamento cm curso.23 er romover um tipo de leitura que
tismo, .quando este qu p r dizer do autor, para ater-se
rcnunae a alcançar um quer~ntrar suas condições de pro-
1. A situação da oposição entre • explicar• e •compreender•
à objetividade do! .t exto e endiante de si não é o autor, mas
Para compreendermos a posição mais recente da her- d - o que o eitor tem d
·sa do texto para falarmos como Ga amer.
uçao. dil
menêutica, devemos notar bem que ela se mantêm reservada a co1 ' . r rocura ultrapassar o e-
tanto diante da hermenêutica romântica e psicologizante
- que, depois de Schleiermacher e Dilthey (ainda cm Ga-
Em outrda~ /~~c~~ra~g~~u o6;etividade do tex~o, ~
a
ma entre a is ' .. . . d à
· ·Jade ou a pertinenc1a, 1Jga a com preensão
. histónca.
. da
damer) , privilegia a idéia de afinidade, de conaturalidade prox1m1 . capar à alternauva que 8.Ul
entre o leitor de um texto e seu autor - como diante do Ele se esforça , por iss~, p:~ es da grande obra de Gadamer:
estruturalismo, que visa antes de tudo à objetivação do texto, está presente nodo pr~pnoé de ºum lado, a compreensão, liga-
seja qual for o alcance de sua mensagem para alguém. verdade e mét. o, i_sto , do outro o método, que
d - d ob-
.dé: de distância implicada na preocupa~ao e
A ambição da hermenêutica romântica era, a propósito uma pcrtmêneta comum, e, '
a a
de um texto determinado, "compreender seu autor melhor evoca a ' a 'h A sar do senudo concc-
do que ele se compreendeu ". Como diz Ricoeur, • o objeto jetividade das ?~~as,, do ~:~~ns1: que título de Ga-
0
da hermenêutica é incessantemente deportado do texto, de tivo da prepasiçao cal ' podti. a e que de fato sacrifica uma
seu sentido e de sua referência para a vivência expressa ne- d Prune uma terna v ' ' ê .
le" .24 Ricoeur, ao contrário, procura recolher a lição de Hei- eptstemo.16gica
amer ex.
teoria . da interpretação à hermen uuca, no
degger, quando ele • despsicologiza" o "compreender histó- sentido ontológico. d conciliar os
rico" para o mundanizar. A compreensão como existencial . f esforço desespera o para .
não visa mais a um ato do conhecimento noético, ela designa Ricoeur az um ão ao estruturalismo, ao acettar pas·
dois. De um lad?, dá raz éticos a fim de estahe-
um "poder ser". Minha " situação " cm relação ao mundo pre- pela longa via dos métodos exeg • . à c!es-
!ecer a objetivi a ~ o t~tod. pe1'
cede meu conhecimento do mundo con:o objeto. E, assim, &ar d d d Mas do outro, resiste
truturalismo. Ele não
compreender um texto é desdobrar a possibilidade de ser ão do sentido prauca a o es . . é
indicada pelo texto. Ricoeur não quer mais ligar o destino da const~ç f . à compreensão hermenêutica, isto ,
frenuneta, com e eJto, d dade Mas para ele, o texto co-
hermenêutica à "noção puramente psicológica de transferên. . alm t à procura a ver
ediati.za a verdade a compreen ~r. tv.wts
. ' d }. .. _.
cia a outrem e desdobrar o texto, não mais voltado para seu m en e,
mo obra é que m - d mundo do texto ( equ1valentc,
autor, mas para um sentido imanente e para a espécie de
mundo que ele abre e descobre" .25 Ele chega, assim, parado-
precisamente~ é . a ndoçao en de Gadamer) que lhe permite
para ele, da coisa o texto . " . tinência Ela é
Kalmente, a uma das exigências fundamentais do estrutura- ediatizar a relação entre a di~tancia e a ~ - • A. b' Ú·
23 Alt!m do prefácio à tradução fran cesa de /lsus, de R. Bullmann,
: ara ele o paradigma da distânoa na
- d di na obra e o car ter es
ácomuru:;~·al dao :m.
.
Seuil. Paris, 1968, refiro me espccialmenre aos seguinres trabalhos: •1.a
va~o o scurso ta o distanciamento pela escntura,
posição, ao que se acr~en . amente em questão a oposição,
tãche de l'herméneurique; La fonclion herméneulique de la distan-
ciarion; He-méneutique philosophique er herméneutique biblique•, ia
Exegesis, Delachaux et Niestlé, Neuchltel, 1975, pp. 179 228; •He~ nos obrigam a pormos J.ntei; d r' e 'explicar'. Uma
neurique de 1id!e de ~v 'lation •, in P Ricocur. E. Levinas, E. H. . b.d de Dilthey entre compreen e áli
loue, E. Comélis, C. Geff~. La Rl vl lation, Publication des Faculrll
Universitaires Saint·Louia, Bruxelas, 1977; "Nommer Dieu·. in ttubl
~:a ~~a da herm;nêutica foi aberli~a ~lo ;uce=:ob:~
estrutural · daqui para &ente a exp caçao o
thlologir-ues et religieuses 52, 1977, pp. 489-508.
24 P. Ricocur, Exegesis, cit., p. 189. gatório da' compreensao. - n26
25 ld., ibid., p. 190.
26 ld • ibid., p. 209.
48
49
2. A mediação do texto seu funcionamento . O texto guarda a su~ pretensão de.. dizer
alguma coisa sobre a realidade. Ele ~prune um certo mun·
Em Ricoeur a noção de "mundo do texto,. decorre cli- do". "Com efeito, o que deve ser mterpretado num texto
retamente de sua compreensão da linguagem como clialética é uma proposição de mundo, de um mundo q~e eu. possa
do sentido, clialética à qual ele voltou muitas vezes, espe- habitar para projetar nele um de meus poss{veis mais pró-
cialmente em seu cliálogo com o estruturalismo.n Ela é in· rios... ~ o que eu chamo de mundo do t~to, o .~undo
separável de decisão epistemológica, a de privilegiar o dis- p óprio desse texto único ."28 Devemos, por ISSO, rejeitar a
curso em sua diferença da linguagem, para retomarmos a ~~ernativa de uma hermenêutica polarizada na compre~nsão
distinção saussuriana entre a linguagem como língua e a lin- da intenção do autor, e de um método estrutur~ polai:izado
guagem como palavra. na explicação da estrutura do texto. "A alte~nat1va da mten-
Evento de palavra só existe no nível do cliscurso. Este -0 ou da estrutura é vã. Porque a re/er~nc1a ao texto -:: o
último remete, com efeito, a um locutor e a um destinatário ça e chamo a coisa do texto ou o mundo do texto - nao é
qu d .
e é sempre mensagem a respeito de alguma coisa. Assim, nem uma nem outra. Intenção e estrutur! ~s1gnam_ o sen-
enquanto a análise estrutural permanece na imanência do tex- tido; 0 mundo do texto designa a referenoa ~o d1scur~o,
to como jogo diferencial de significantes que não remete a - que é dito mas aquilo sobre que ele é dito. A coisa
nao 0 • ... . · d é
uma referência, o discurso, para Ricoeur, faz advir "um do texto é o objeto da hermeneut1ca. E a c01sa o texto o
29
mundo" . E o que faz a originalidade do discurso é a su- mundo que o texto desdobra diante de si. "
peração do evento fugid:o da palavra em sua significação que Essa idéia de "desdobramento do mundo diante .do tex-
permanece. Essa superação, que ainda está latente no nf. to" só tem sentido com referência à_lin~agem poética, qu~
vel da palavra viva, manifesta-se quando o discurso se torna Ricoeur privilegia em relação à funçao sunples~ente desc:1-
escritura, especialmente quando esta toma a forma de ver- tiva da linguagem cotidiana. C? discurso poético (que nao
dadeira obra, de obra literária. A obra assegura a função de deve ser confundido com a poesia em ~ua ~eren~a. da pr~sa)
mediação prática entre a palavra e o sentido. ~ próprio do tem uma função revelante num sentido na.o religioso. ~­
estilo justamente inscrever o evento fugidio da intencionali- nha convicção mais profuda é de que a linguagem poética
dade do autor na obra. Daí para frente o texto tem vida é a única a nos indicar uma pertin~ncia a uma ordem de
própria, independente da intenção do autor. Ele poderá ser coisas que precede nossa capacidade de opormos a .n?s ~~
lido em contexto diferente do de sua produção e suscitar sas coisas como objetos que se oponham a um su~e1!º·.
múltiplas leituras. Assim, o próprio fenômeno da escritura Note-se o sabor tipicamente heideggeriano ~essa co~1denoa.
chama a objetivação e, portanto, o distanciamento como De fato, essa insistência na dimensão poética ~a linguagem
condição da compreensão. Graças à noção de "mundo do remete ao segundo Heidegger, para o qual a linguagem é o
texto", Ricoeur mantém distância de uma hermenêutica tra- d"zer do ser do mundo, antes de ser o instrumento da co-
dicional que acredita poder colher um sentido ob jetivo do municação inter-humana. Ricoeur reivindicou sempre ~a
texto, encontrando o querer dizer do autor. Mas ele guarda reflexão sobre a linguagem que ultrapasse o ponto de vista
distância também do estruturalismo, para o qual o sentido do lingüista e do fenomenólogo, para desembocar numa ver·
a compreender são as estruturas do texto e o mecanismo de dadeira ontologia da linguagem. E em seu belo texto sobre
•a hermenêutica da idéia de revelação", começa a elaborar
27 Veja particularmente: •La structurc, te mot et l 'tv~nement •, la a tarefo que atribuía a toda teologia da Palavra de Deus
Le conflit des i'!terp.·étations, Seuil, Paris, 1969, pp. 8097, e •eftM.
ment et scns•, m Révélation et Histoirc, conferência editada por B. 28 P Rlcoeur, Exegesis cit., p. 213. . • .
CasteUi, Aubier, Paris, 1971, pp. IS-~. 29 •Herm~neutique de l'id~ de rivélation , art. ett., PP· 38-9.
30 ld , ibid., pp. 39-40.
50 51
depois de Bultmann, a saber, o longo caminho da " reivindi- . o" Como de se distancia cada vez mais da tra-
cação do dizer pelo ser" .31
dr=~·:~ativa e da ontoteologia, do . me~m~
~testa sempre mais as ilusões da con~ênoa ~ ata e
:li'1º ~e
3. A apropriação do texto e a compreensão de si ~ O homem só se compreende se aceitar segu~ o longo
:J" . dos diversos sinais de humanidade depos1~dos nas
~:~ºva ões da cultura. O .. mundo do texto "' ~ante do
Insistimos na objetivação do texto, em sua autonomia
em relação ao autor e em seu papel de mediação em relação
à compreensão. Agora devemos tirar disso todas as conse- ob~ 0 tomem recebe um ser mais vast.o, ~ estrctt~ente
qüências no que diz respeito à apropriação subjetiva do texto qu e1a
corr uvo· d e u ma desistência da consc1ênc1a. fPor isso
· ·a
pelo leitor. hermenêutica filosófica de Ricoeur pensa . podedr ~l r 1usod
O tema da apropriação ( Aneignung) é constante em - mente às críticas marxista e freudiana as ' usoes a
hermenêutica. A hermenêutica existencial de Bultmann foi, conSC1 · mas também à crítica das ideologias de Haber-
nao s?ênoa,
com razão, censurada de sacrificar a objetividade do texto mas. - d .,. · d
a compreender à historicidade da decisão. Nesse sentido a ·
Assun, n :coeur renuncia à pretcnsao a conSClenoa e
1'1 • d "d ol
sua hermenêutica vai diretamente de encontro à crítica das utofundadora e de estar na origem o sen~ ?• P.ara v -
teorias estruturalistas atuais de leitura . Dizemos que estas ser aà li agem no que ela tem de mais or1gmár10. Mas
conservam, da linguagem, o aspecto "lfngua ", enquanto tar to ~'f:ts as pesquisas estruturais o levaram a tom~r cada
Bultmann concentra toda a sua atenção na lingmigem como quanmais a sério a objetividade do texto, tanto mats cod-
"evento da palavra". Como vimos, o prop6sito de Ricoeur v_cz de a se opor ao estruturalismo quando este pretcn e
- prop6sito impensávd sem o estruturalismo - é ultrapas- °i:Ür a re/erência do texto em benefício ~camente de s~u
sar a oposição entre o distanciamento e a compreensão, ou ª tido compreendido como jogo de rdaçoes puramente m-
mdhor, fazer do distanciamento o caminho da compreensão. sen
terno ao ' texto · u A tese hermenêutica diametralmente · oposta
Não se trata mais de compreender o texto tornando-se con- à tese estruturalista - não ao método e às pcsqw~as es~-
temporâneo da intenção do autor. Mas enquanto em seus . é que a diferença entre a palavra e a escritura nao
ruws- d.i ( al
escritos anteriores (d. o prefácio ao Jésus de Bultmann ) poderia a· bolir a funça-o fundamental do
· O scurso
di o qu
Ricoeur ainda falava da objetividade do sentido, como se cn loba duas variantes : a oral e a escrita ). scurso con-
houvesse, para ser apropriada, uma "verdade-através-do-tex- . ~ em que alguém d iz alguma coisa a alguém :obre algu"!a
to ", aí de usa seu conceito de "mundo do texto" . "Aquilo s1s. e . Sobre alguma coisa.• eis a inalicnávd funçao rcfercnaal
COISO
de que, finalmente, me aproprio é uma proposição do mundo, do discurso. n3J
e da não está atrás do texto, como o estaria uma intenção
oculta, mas diante dde, como o que a obra desdobra, des-
cobre, revela. Desde então, compreender é compreender-se Ili. AS IMPLICAÇOES TEOLÓGICAS DO DESLOCAMENTO
diante do texto. nJ2
ATUAL DA HERMENeUTICA
Em Ricoeur, desde a Symbolique du mal, essa ruptura
decidida com a hermenêutica romântica sob o signo do pri-
mado da subjetividade é coerente com sua preocupação cons- Apesar da contestação radical da hermenêutica pelo m~­
tante de denunciar "a enfermidade constitucional do cogito todo de análise estrutural e principalmente pda ideologia
cstruturalista, eu já disse por que ainda acreditava no futuro
li Cf. o preflicio ao flsus de R. Bultmann, p. 28.
32 P. Ricoeur, Exegesis, cit., p. 214.
JJ ld., •Nommer Dieu•, art. cit., p. 493.
52
53
de uma teologia hermenêutica. Não penso, de fato, que da uma 'Palavra' oferecida à reinterpretação, mas sistemas de
esteja ligada de modo fatal e necessário ao destino da m:ta- interpretação que 'fazem palavra' n .34
Hsica. Creio, ao contrário, que a crise atual da me~s~ca, A idéia de "mundo do texto n nos permite atender a
como pensamento da identidade, e das filosofias d~ ~~Jeito, uma leitura estrutural quando esta renuncia a procurar um
como autofundação da consciência, abre novas possibilidades sentido ou uma verdade já presentes sob o texto ( cf. o
à hermenêutica. fundamentalismo bíblico). Mas, ao mesmo tempo, mante-
Essa renúncia ao duplo absoluto, o da especulação on- mos uma compreensão hermenêutica, porque o texto reme-
toteológica e o da reflexão transcendental, nos convida a to- te a algo diferente dele, a um tipo de mundo que tem
mar realmente a sério a modalidade própria da linguagem alcance revdante para mim. A teologia é sempre hermenêutica
como linguagem originária. ~ a grande lição da hermenêutica no sentido em que vive de uma anterioridade, a saber, a
geral de Ricoeur, cujas reivindicações mais significativas ten- história do cristianismo. Mas, ao mesmo tempo, ela está sem-
tamos resumir. Mas é evidente que semelhante deslocamento pre em devir, porque não pode identificar a verdade do cris-
seria impensável sem a crise de um pensamento sob o signo tianismo com um momento passado da tradição (nem mes-
do primado do sujeito e do logos. O destino da teologia he~­ mo com o corpus neotestamentário), nem com o presente
menêutica será necessariamente condicionado pela moderm- da fé atual. Existe uma homologia fundamental entre os
dade como pensamento da diferença e da alteridade. Ela enunciados bíblicos e seu contexto sociocultural de um lado
ainda está à procura de seu caminho a partir de dupla re- e o discurso da fé a produzir hoje em sua relaçao com noss~
jeição: a da hermenêutica romântica, que postula uma har- situação cultural, do outro.
monia ideal entre o leitor de hoje e o autor do passado, e a Todo o problema de uma teologia hermenêutica depois
do historicismo, que - em sua forma moderna - continua da "crise dos hermeneutas n consiste em conciliar uma " prio-
a identificar os fatos do passado com a verdade. ridade histórica" com uma "primazia teológica", para usar-
C.Onduindo, eu gostaria somente de destacar algumas mos as palav~as de Pierre Gisel em seu ensaio sobre o pro-
implicações teológicas do deslocamento atual da hermenêutica. grama teoJóg1co de Ernst Kãsemann. Essa hermenêutica es-
Seria necessário - idealmente - mostrar como a teologia tá se despedindo definitivamente do historicismo: em teolo-
pode satisfazer algumas exigências do estruturalismo, mesmo gia cristã, partimos de um evento histórico fundador mas
conservando sua identidade própria. nos entregamos a uma leitura teol6gica desse evento~ Por
iss~ não ~s~am~s necessariam~te condenados, como pensam
os 10<;>~dic1ona1s do estruturalismo, a uma teologia de tipo
A. O objeto da teologia como objeto textual metafísico, que é obcecada pela questão da origem. Não co-
nhecemos história que não viva de uma origem, mas não
Em função da dialética do explicar e do compreender, conhecemos também origem que não seja dita do seio da
própria de toda hermenêutica, dissemos, contra a hermenêu- história e como interpretação dessa história.35 O intellectus
tica osicologizante, que não era necessário telescopar a etapa fidei da teologia terá necessariamente a estrutura do "com-
de objetivação do texto em proveito da decisão existencial preender hermenêutico", à medida que o teólogo tratar
em face do texto. O objeto da teologia não é nem uma
palavra originária, plena de sentido, da qual o texto seria 34 G. Crespy, •L'~crit.ure de l'~criture:, in Parole et dogmatique.
apenas o eco, nem um evento histórico em sua faticidade, homma~e d Jean Bosc, catado por P. Guel, Virité et Histoire. La
thlolog1e dans la modemité, Ernst Kiisemann Beauchesne Paris 1977
mas um texto como ato de interpretação histórica e como p. 169. • ' • •
nova estruturação do mundo. " (A Escritura) não contém 35 cr. P. Gisel, op. cit., p. 627.

54 55
nós porque desdobram um " ser novo,. diante de nós e não
em primeiro lugar, porque teriam sido escritos sob o ditad~
a história do cristianismo como texto e, ao mesmo tempo,
tratar o texto como história, a história das interpretações.
No fundo, seria necessário elaborar nova epistemologia teo- de Deus.37
lógica que respondesse às exigências do modelo "genealogia" 4. Contrariamente à concepção bastante imaginativa da
que pode ser descoberto em Nietzsehe. inspiração como voz (divina) atrás da voz, devemos subli-
A importância dada ao texto e ao mundo do texto nhar mais o nexo entre a inspiração e a fé da comunidade
traz conseqüências importantes para o trabalho teológico. confessante. Devemos partir do nexo entre a Escritura e a
Menciono apenas algumas. !greja ~rimitiva para esclarecermos o problema geral da
1. O objeto imediato do trabalho teológico não é uma rnsp~raçao. Segundo a sugestão da Karl Rahner, podemos
série de proposições cuja inteligibilidade procuro, mas o con- contrnuar a falar de Deus como "autor da Escritura" no
junto dos textos compreendidos no campo hermenêutico senti.do em que ele é. o autor da fé da Igreja primitiva, o
aberto pela revelação. Assim, o intellectus fidei é algo di- reurudor dessa comurudade, cuia fé encontra sua expressão
ferente de um ato da razão especulativa que se mova segun- e sua obietivação na Escritura.li
do o esquema do sujeito e do objeto. Ele pode ser comparado O deslocamento atu~ da hermenêutica nos ajuda, por-
com um "compreender hermenêutico " (d., acima, p. 26). tanto, a renovar a teologia da revelação. O texto bíblico é
revelação religiosa para nós porque em si mesmo em sua
2. A teologia, em seu esforço para designar Deus, deve fa~a texrual, ele já tem alcance revelante, como t~o texto
respeitar a estrutura originária da linguagem da revelação pc-~oco que ultrapasse a função simplesmente descritiva da
e não reduzi-la imediatamente a conteúdo proposicional. A ~agem cotidiana. Diante desse "ser novo" desdobrado
estrutura da confissão de fé está estreitamente ligada à es- pelo texto, o próprio homem recebe um " ser ~ovo ", isto é,
trutura da linguagem na qual ela se exprime. Por isso não um alargamento de seu ser puramente narural. Essa arualiza-
posso, por exemplo, tratar as diversas formas da confissão ção de um poss{vel próprio do homem pode verificar-se em
de fé no Deus de Israel (escritos narrativos, proféticos, le- t~o _texto poético ..~ · no caso do texto bfblico, a apro-
gislativos, sapienciais etc.) como simples gêneros literários. p_:1açao ~o texto co10c1de não só com uma nova compreen-
A designação de Deus é polifônica,36 e é seguindo a particula- s~o ?e s1, mas também com uma nova possibilidade de cxis-
ridade própria de cada enunciado bfblico ( inseparável de seu tenaa e com a vontade de fazer existir um mundo novo.
ato de enunciação) que posso elaborar uma teologia diver- Em outros :ermos, não h.á revelação, no sentido rigoroso,
sificada do nome de Deus. s~ conv~sao pessoal e mauguração de uma nova prática
3. Uma teologia hermenêutica que se aplique à "coisa" éoca e sooal.
do texto, em vea. de procurar o sentido querido pelo autor
sagrado, que, por sua vea., reenvia ao autor divino, nos leva
a pôr em questão uma teologia da revelação identificada B. Tradição e produção: a teologia como genealogia
praticamente com a inspiração compreendida como insufla-
ção do sentido por um autor divino. A idéia de uma voz Uma " teologia hermen~uti~ que toma como categoria
atrás da voz, de uma escritura sob ditado nos é sugerida central o mundo do texto nao fará uso da tradição como
pela modalidade própria da revelação profética. Mas devemos
considerar seriamente as outras formas originárias da revela- 3_7 cr. id . •ttenn~neutique de l'id6e de ~v~lation• art .
espec1almente p 32. , · c1t.,
ção no corpus bíblico. Esses textos são "revelação" para 38 C. Geíí~, Esquisse d'une th4ologie de la r4v4laJion ·
pp. 185s. , Clt.,
36 P. Ricocur, • Nommer Dieu•, art. cit., p. 497.

56 57
gamente do que a 'nova produção' de um texto de uma
história das interpretações do texto. Já o dissemos: a teologia prática. de uma. ins~tuição ... "40• Podemos, assim, ~mpreen­
cristã vive sempre de uma precedência. Mas, se nos guardar- ~er ~elhor a dialética de continuidade e de ruptura cons-
mos de identificar o texto da Escritura com a verdade ori- utuuva da tradição cristã. " Voltando-nos para a orige~ não
ginária, ou a.inda a Escritura com o Evangelho (no senódo voltamos para o que ela foi no fato e no mundo con~eto
luterano), teremos uma concepção menos estática da tra· em que ela se efetuou, porque o que encontramos ai é um
dição. Quem d'.z tradição não diz simplesmente transmis- ato ~ue deve retomar-se de maneira sempre criativa e não
são de um dado válido em todos os tempos. Tradição e pro- repetir-se da maneira literal. "41 '
dução não se opõem. A aplicação ou a apropriação do "mun- Assim, guarda?1o~ distância de uma hermenêutica que
do do texto n leva não s6 a produções novas na ordem da pretendesse reconsatuir o sentido originário de um evento
linguagem, mas também a práticas novas. passa?o, tomando-se contemporânea, ou retraduzir sentido
A hermenêutica tradicional postulava sempre uma har- 1dênuco n.um.a pluralidade de linguagens. Agir como herme-
monia preestabelecida, uma identidade fundadora, uma "fu. n~uta .é errar mterpretações novas e até produzir novas figuras
são dos horizontesn . A nova hermenêutica toma em consi- históricas do cristianismo em outros tempos e em outros luga-
deração a materialidade textual do texto fundador e sua his- res. Tal prática hermenêutica é correlativa de concepção da
tória radical, sendo, por isso, criativa. Devemos aceitar vi- verdade q.ue não se identifica nem com uma plenitude de
ver no regime da diferença . Se considero o texto cm sua ser na orJgem, nem com uma figura histórica. A verdade
autonomia de obra textual, não se trata de ouvir uma pala- está, ~tes, sob o signo do devir. Ela é advir permanente,
vra originária da qual o texto não seria mais que o eco, o sentido mesmo da verdade bíblica como realidade de or-
não se trata de me tornar contemporâneo do querer dizer dem escatológica.
de um autor passado, não se trata de atingir um além evi- . ~ cristianismo é tradição porque vive de uma origem
dente do texto. ~ o próprio fechamento do texto que é a P.rimeua que é dado. Mas, ao mesmo tempo, ele é necessa-
condição de retomada criativa. "O texto não é tanto o teste- ri~ente. se~pre produção, por9ue essa origem só pode ser
munho segundo de uma origem radical (anterior) como o redita historicamente e numa mterpretação criativa. Com-
advento, em tempo e cm lugar determinados, de configuração ~arou-se, ~m razão, a teologia com a genealogia no sen-
39
especifica, de uma estruturação do mundo. " u~o d~ Nietzsche, por~ue a sua t~efa consistirá sempre em
A teologia vive necessariamente de uma origem, o even- diz~r Juntamente a origem e a história. Explicar-nos-emos
to Jesus Cristo como evento fundador. Mas o Novo Testa- mais longamente a este respeito no capítulo seguinte.
mento como testemunho desse evento não é texto que nos
entregue imediatamente seu sentido completo e definitivo.
Consideramos esse texto como "ato de interpretação n, e a C. Hermenêutica e teologia política
distância que nos separa dele - longe de ser obstáculo -
é a condição de um novo ato de interpretação para nós . Insistimos principalmente na contestação da hermenêu-
hoje. Existe analogia entre o Novo Testamento e a função ~ca ~o estrururalismo - seja como método seja como
que ele exercia na Igreja primitiva, de um lado, e a produção ideologia. Mas, numa exposição sobre a crise d~ hermenêu-
de um novo texto boje e a função que ele exerce no presente
da sociedade e da cultura. •A teologia teria como tarda 40 ld . ibid .. p. 164.
hoje menos a inteligência de uma Palavra pronunciada anú- . 41 Mf Bcllet, in ·crise du biblisme, chance de la Bibte• p 195
~~7
1 ;;. 4 f,eíoul~. •L'ex~g~ en question•, in IA Supplé,,;enÍ 111:
39 P. Giscl, op. cit., p. 147.
4 1
59
58
rica, convém lembrar que a hermenêutica encontra pela fren- cantes da nova hermenêutica, que acentua a compreensão do
te também a crítica das diversas teologias políticas. Podemos texto do Novo Testamento como ato de interpretação da
até caracterizar o movimento da teologia protestante, há comunidade primitiva, consiste cm não poder separar, no
mais de vinte anos, como uma passagem das teologias da ato de interpretação hoje, a interpretação da linguagem da
palavra para as teologias da história e para as teologias fé e a interpretação da existência cristã. A teologia não repete
políticas. Costuma-se censurar as primeiras de serem apenas ~a verdade original. Ela "faz" a verdade, no sentido joa-
uma nova interpretação teórica do cristianismo e de não con- runo . Nessa hermenêutica criativa. a prática não é sol1"ente o
duzirem a uma transformação efetiva do mundo e da histó- campo de aplicação de uma verdade cristã já constituída uma
ria sob a ação do reino de Deus, que vem. Outros já mos- vez por todas . A prática significante dos cristãos intervém
traram que essa oposição entre teologia da palavra e teologia como momento constitutivo na própria vinda da verdade.
da história era falsa alternativa. Mas é interessante mostrar A linguagem teológica não é linguagem poética como a
em que sentido a nova orientação da hermenêutica, centrada linguagem bíblica. Ela é linguagem especulativa que não
no " mundo do texto" , não permite deter-se numa pura in- tem, portanto, pelo simples fato de sua estrutura de lin-
terpretação textual, na ordem da linguagem. Ela conduz ne- guagem, alcance " revelante" . Mas podemos comparar a teo-
cessariamente a uma reinterpretação prática, a um fazer. logia com "poética", no sentido cm que ela é a teoria de
Devemos lembrar aqui o que dizíamos, com Ricocur, um " fazer" . A teologia diz sempre, numa diferença histó-
sobre a dimensão poética da linguagem bíblica. Como poé- rica, a verdade que lhe é confiada. Essa situação histórica
tica . a linguagem bíblica não é somente celebração do Nome nova leva-a a um ato de interpretação que é a instauração
de Deus, mas também a recriação de um mundo novo. A permanente de um poema da fé tanto na orde'm da confissão
compreensão hermenêutica da linguagem bíblica tem como como na da prática.
objeto o mundo novo ao qual o texto reenvia. E a compreen-
são se completa com uma nova compreensão de si perante
o texto . Mas compreender-se diante do texto é não se en-
CONCLUSÃO
tregar a uma compreensão puramente intelectual do texto,
é tornar real uma nova possibilidade de existência e fazer
existir um mundo novo. O compreender hermenêutico desá-
Tentei considerar com toda a seriedade a contestação
gua, portanto, numa prática social e numa prática política. da hermenêutica por toda uma corrente de pensamento con-
"Penso, pois, que uma hermenêutica que toma por cate-
temporâneo que c;iuer pô~ termo à tirania do logos. Mas,
goria central o 'mundo do texto' não corre mais o risco
e~ ~ez de ~nclwr _Pelo insucesso de toda teologia herme-
de privilegiar a relação dialogal entre o autor e o leitor, nem neu uca, prefiro pedir somente que sejamos muito atentos
a decisão pessoal em face do texto. A amplitude do mundo
às conseqüências do deslocamento inevitável da hermenêu-
do texto requer amplitude igual do lado da aplicação, a qual tica provocado pelo choque do estruturalismo.
será tanto práxis política como trabalho de pensamento e
de linguagem. "42 AJguns me censurarão, sem dúvida, de ter-me entrega-
do a uma ~pcração que. se parece ~uito com recuperação.
Não existe, portanto, teologia hermenêutica sem prá-
Respondei:ei somente, e ~sso será a minha conclusão, que não
tica. O que distingue teologia de ideologia é justamente que ~emos ignorar o destino da hermenêutica geral, mas que
aquela conduz a práticas significantes. Um dos traços mar-
nao . podemos também subordinar o futuro da teologia ao
42 P. Ricocur, •Nommcr Dicu", art. cit., p. 508. desuno da hermenêutica. A teologia cristã é, com efeito, ir-

60 61
reduúvel s qualquer outra experiência hermenêutica. Ela
quer ser a teoria de experiência absolutamente original. Co-
mo caracterizar essa experiéncia hermenêutica original? Di· 3
rei, com uma palavra, que justamente quando a teologia se
faz prática de um texto e quer ser a teorização da prática DOGMÁTICA OU HERMEN!UTICA?
suscitada por esse texto, ela é vencida pela "coisa" do texto,
a saber, por uma Alteridade que faz malograr todo discurso
da objetivação.
Retomarei aqui uma afirmação recente de Gadamer:
"Não existe teoria hermenêutica que não seja dependente da
prática hermenêutica. "43 ~ essa dependência que constitui
o que ele chama "situação bermenêu tica ". Pois bem, dize- Há não muito temPo falava-se do conflito entre os dog-
mos que antes de resolvermos, de um ponto de vista teórko, máticos e os exegetas. Devemos falar agora do conflito entre
o Jebate estruturalismo ou hermenêutica , devemos tomar os dogmáticos e os hermeneucas? Isso não tem muito sen-
cm consideração a situação hermenêutica própria da teologia tido, porque a hermenêutica não ~e tornou uma nova dis-
uistã. ciplina dentro do saber teológico. ~ toda a teologia dogmáti-
ca que tende a se compreender como hermenêutica da Pa-
lavra de Deus. Mas é incontestável que os termos " dogmáti-
ca • e "hermenêutica " se tornaram, na prática concreta dos
teólogos , indfcio de duas tendências diferentes. Devemos
mesmo falar de dois paradigmas do trabalho teológico . E
não é errôneo dizer que uma revolução epistemológica os
separa.
A teologia dogmática como apresentação sistemática das
verdades cristãs não perdeu nada de sua legitimidade nem
de sua atualidade. Mas o termo "dogmática" tende a desig-
nar o uso " dogmatista" da teologia, isto é, a pretensão de
apresentar as verdades da fé de maneira autoritária, como
garantidas unicamente pela autoridade do magistério ou da
Bíblia, sem nenhuma preocupação com a verificação crfrica
concernente à verdade testemunhada pela Igreja. Preocupan-
do-se exclusivamente com a transmissão escruoulosa dos tra-
dita e não refletindo no que está implicado na traditio,
como ato de transmissão, a teologia se condena fatalmente
à repetição. O termo "hermenêutica" evoca movimento de
pensamento teológico que, pondo em relação viva o passado
e .º . Pr~ente, expõe-se ao risco de interpretação nova do
43 H.·G. Gadamer, •Herm~neutique et théologie•, ln Rev. Se. Rei. cnsttarusmo para hoje. Esta instância hermenêutica da teolo-
51, 1977, p. 396. gia nos leva a uma concepção não-autoritária da autoridade,

62 63
a uma concepção não-tradicional da tradição e a uma noção teologia se atribui a tarefa de tornar mais inteligível e mais
plural da verdade cristã. falante a linguagem já constituída da revelação. Essa lingua-
Mas como se assistiu, no catolicismo, até o Vaticano gem é_privilegiada e normativa para toda a fé da Igreja.
II, a uma inflação dogmática da teologia, deveríamos falar Mas nao podemos contentar-nos com repeti-la passivamente.
hoje de inflação hermenêutica? A questão merece ser colo- Ela deve ser, sem cessar, reatualizada de maneira viva em
cada, e a contestação recente da hermenêutica como método função de situação histórica nova e em diálogo com o~ re-
de leitura pelo estruturalismo não muda em nada essa orien- cu.rsos ,,inéditos. de dada cultura. A teologia é, pois, "rees-
tação profunda da teologia moderna. Contrariamente à epis- critura a parttr de escrituras anteriores, não somente da
temologia antiga, o domínio da verdade e o do sentido não Escritura-fonte dos dois testamentos, mas também das no-
se recobrem necessariamente. E alguns se perguntam seria- vas escrituras suscitadas por ela ao longo da vida da Igreja.
mente se a teologia ainda tem poder de afirmação e de de- Desde suas origens, a teologia cristã conheceu vários
cisão na ordem da verdade. Será que o trabalho do teólogo mod~os de ~tura . Os Padres da Igreja, ao comentar a
não se esgota na manifestação do sentido, ou melhor, dos Escritura, praticaram a alegoria; a teologia medieval forjou
múltiplos sentidos das diversas linguagens da fé? Não estaria o modelo da teologia-ciência no sentido de Aristóteles· a
o campo da teologia cristã entregue ao conflito das inter- Reforma privilegiou o comentário da Escritura contra os ' re-
pretações, e não se torna a hermenêutica muitas vezes a cursos dialéticos da escolástica. Mas o que mais nos interes-
solução miraculosa para harmonizar as afirmações diferentes sa a~ui é o model? dogmático que dominou toda a teologia
da Escritura e do dogma ou as descontinuidades muito evi- católica do Concilio de Trento ao Vaticano II .
dentes da tradição dogmática e teológica? Não me deterei longamente na descrição do modelo
Penso que o melhor meio de responder a essas objeções dogmáti~o . Podemos !ecorrer à sua apresentação feita por
é refletir sobre as causas dessa passagem da dogmática para Marc Michel em seu pequeno livro V oies nouvelles pour la
a hermenêutica. Gostaria justamente de mostrar que a com- t?~ologie. 1 Contento-me com recordar alguns pontos esscn-
preensão moderna da teologia como hermenêutica nos ajuda orus .
a valorizar a originalidade da verdade cristã. .A teologia segundo o modelo dogmático dos manuais
Na primeira parte esforçar-me-ei por caracterizar a pas- clá.ss1C?s usados n?s seminários procedia em três tempos.
sagem do modelo dogmático para o modelo hermenêutico P nmetro, o enunciado de uma tese de fé. Depois vinha a
de escritura teológica . Em seguida, interrogar-me-ei sobre o explicação, na qual se aduziam as decisões oficiais do ma-
alcance histórico e teológico dessa mudança . Enfim, na ter- gistério, particularmente as do Concilio de Trento. Por fim
ceira parte, perguntar-nos-emos qual é o estatuto da verdade a prov~, citand.a:se a Escritura, os Padres e alguns teólogos~
cr~stã numa teologia compreendida como hermenêutica . Concluindo, rejeitavam-se as teses opostas, especialmente as
da Reforma.
O que deve s~r logo assinalado é que o ponto de partida
1. A PASSAGEM DO MODELO DOGMATrCO do tr~balh? teo~óg1~, o enunciado inicial que fazia o papel
PARA O MODELO HERMEN~UTICO de pnndp10 primetro, era sempre o ensinamento atual do
~agistério. ~le. desempe~ava, portanto, o papel de princl-
pto . hermeneutI~o exclus1vo, fazendo uma seleção entre as
Poderíamos descrever a teologia como fenômeno de es- escrtturas antenores, quer se tratasse do Novo Testamento,
critura. De fato, como no caso de toda escritura, trata-~
sempre de "reescritura" . Em cada época de sua história, • 1 M. .Michel , Vaies nouvelles paur la théologie c·oossiers Libres•).
Cerf, Pans, 1980, PP· 55 69; especialmente o cap. Ili: •L'Effacement
du mod~le dogma tique•.
64 6.5
l · Como raur tcolotla hoJe
quer dos textos patrísticos e das ~versas ~e~~ogias do, ~as­ social. Mas a questão é saber se a função da teologia consist~
sado. E permitia proceder à exclusao das op1111oes contrarias. somente em reproduzir, legitimando-o, o ensinamento ofi-
cial da instância hierárquica como instância da ortodoxia ou
Assim a teologia dogmática se definia como um co- se ela tem também, por vocação, uma função critica e m~­
mentário fiel do dogma, isto é, do que a Igreja sempre com- mo profética em relação àqueles que detêm o poder de defi-
preendera e ensinara; e a Escritura entrava apenas a título nir e interpretar.
de prova do que já estava estabelecido. Enquanto ~ santo
Tomás as proposições externas à fé, as dos concílios, dos Em outros termos, o perigo para uma teologia segundo
teólogos e dos bispos são verdadeiras somente quando :x- o modelo "dogmático" é que a relação com a verdade da
mensagem seja determinada pela. relação COJ:? a instituição
pressão da verdade divina no li_vre evento de s~a ,rc:velaçao,
aí as proposições de fé, das quais procede o raaOCUllo teoló- hierárquica. Nesse caso a teologia corre o. risco de se ~e­
gradar em ideologia a serviço do poder donunante na Igreja.
gico, funcionam com a evidência dos prime~os princípios_ e
a sua verdade depende unicamente da autondade do magts- Como acontece em toda sociedade religiosa, a autoridade
tério.2 Estamos, portanto, diante de sistema autoritário, no hierárquica muitas vezes é tentada a pedir à teologia que
qual a autoridade do magistério praticamente substituía a reproduza o discurso que legitima o monopólio que ela d~t~
autoridade da Escritura. Compreende-se que, nessa perspec- como única intérprete autêntica, rejeitando como marginais
tiva, uma das maiores preocupações dessa teologia "autori- ou desviantes os discursos inovadores.4 Como é previsível,
tária n fosse demonstrar o desenvolvimento contínuo entre a essa dependência estreita da teologia em relação à Igreja-in~­
Escritura, os Padres e o ensinamento atual do magistério. tituição consagra também um tipo de relação entre a Igre1a
As célebres ttorias sobre o desenvolvimento homogêneo do e a sociedade em geral. Tratar-se-á essencialmente de atitude
dogma procedem dessa preocupação apologética. 3 defensiva como o mostra muito bem o anátema lançado con-
tra as idéÍas modernas pelo Syllabus de Pio I.X.5 No máx~o,
A respeito desse modelo "dogmático" de teologia, outros tratar-se-á de atitude apologética quando o dogma católico
assinalaram antes de mim a importância da instituição hierár- for contestado pelos resultados das ciências da natureza e
quica na produção da verdade. A teologia era o reflexo fiel das ciências históricas. Em todo caso, esse modelo "dogmáti-
da Igreja-instituição, compreendida segundo a distinção en- co" de escritura teológica, habitualmente designada como
tre Igreja docente e Igreja discente, distinção ainda desco- "teologia da Contra-Reforma", manteve-se até as vésperas
nhecida na idade clássica da teologia medieval. ~ claro que do Vaticano II.
a teologia só pode preencher sua função dentro de um campo Hoje isto é . cerca de vinte anos depois, assistimos a
uma desl~ação e'a uma explosão desse sistema de "teologia
2 Essa distância entre a perspectiva de santo Tomás e a da
teologia da Contra-Reforma foi muito be~ subllnha~a por P. Eicher ~m
Theologie. Eine Einfü/1 ·ung in das Stud1um, Muruque, 1980, espe~ral­ 4 A propósito desse • jo~o insti~ucio_?al \ v7ja ~ ?.,bra coletiva
mente pp. 99-103 e pp. 178-83; _Y. Con~ar, de s7u lodo, voltou muitos dirigida por M. Michel, Pouvo1r et vérité ( Cogitallo F1de1 113), Cerf,
vezes a essso evolução de teologia católica, e~ vrrtu~e ~ qual o papel Paris 1981. Pode-se consultar também a obra já clássica de P. Le-
da autoridade do magistério como regro próx!ma e 1med1_ata da fé ~~­ gend~. L'amour du ce11seur, essai sur l'ordr~ dopnatiqu!, SeuiJ, ~aris,
mentou cada vez. mais (cf. seu artigo recente: Les régulallon de la for , 1974. Recomendamos ainda duas obras soc1ológicas muito sugesliyos:
in Le Supplément 133, 1980, pp. 260-81). Ele assinala, por _exemplo, a G. Defois, "Discours religieux et pouvoir social•, in Arch. de_ Soc1olc>-
importância da substituição, no Vaticano 1, da fórmula tomista do mo- gie des Religions 32, 1971, pp. 85-106, e J. Seguy, •Le coníl1t théolo-
tivo formal da fé. ·veritos prima•, pela • Auctoritos Dei revelantis•, gique" in Le Supplément 133, 1980. pp. 223-42.
p. 268, n. 19; cf. P. Eicher, op. cit., p. 89. 5 A propósito do ate(smo, P. Ladri~re mostrou que entre a con-
3 Cf. a este respeito, o dia~óstico Iú;ido de J.-P. ~ossua em denação de Pio IX e a abertura do VatiC;Sno [[ não houve de-:env?l-
•1mmutabilité, progrês ou struturat1ons mulllples des doctnnes ch~­ vimento harmonioso, mos ruptura: "L'espnt de mensonge dans le di&-
tiennes•, in Rev. Se. Phil. Tliéol. 52, 1968, pp. 173-200. cours théologique•, in Le Supp/ément 139, 1981, pp. 509-29.

66 67
dogmática", que podemos caracterizar como fechado e auto- 2. O intellectus fidei da teologia enquanto hermenêuti-
ritário. Em função de alguns condicionamentos históricos e ca não é ato da razão especulativa no sentido clássico do
cuJturais, que estudaremos mais adiante, o moddo "dogmá- pensamento metafísico. Ele pode ser identificado com um
áco" de escritura teológica cedeu lugar a um moddo de "compreender histórico" , sendo aí a compreensão do passa-
escritura que podemos chamar de "hermenêutico". Dizer que do inseparável de interpretação de si e de atualização criativa
a teologia contemporânea se compreende como hermenêutica voltada para o futuro. A escritura teológica, segundo o mo-
não significa que da se tomou adogmática, mas que, antes delo "hermenêutico", é anamnese, no senúdo cm que é
de tudo, da toma a sério a historicidade de toda verdade, sempre precedida pelo evento fundador, mas é também pro-
mesmo que seja a verdade revelada, como também a histo- fecia, no sentido em que só pode atualizar o evento fundador
ricidade do homem enquanto sujeito interpretante, e que como evento contemporâneo, produzindo um novo texto e
da se esforça por atualizar para hoje o sentido da mensa- novas figuras históricas. Assim, a teologia, como dimensão
gem cristã. Já insisti nessa instância hermenêutica de toda consúruúva da tradição, é necessariamente fidelidade cria-
teologia cristã.6 Contento-me aqui com resumir, em algumas tiva.
proposições, os traços mais característicos dessa escritura
teológica segundo o moddo "hermenêutico". 3. Contrariamente ao método clássico da teologia dog-
1. O ponto de partida da teologia como hermenêutica mática, a teologia segundo o moddo hermenêutico não se
não é um conjunto de proposições imutáveis de fé, mas a contenta com expor e explicar os dogmas imutáveis da fé
pluralidade das escrituras compreendidas dentro do campo católica, mostrando seu acordo com a Escritura, com os
hermenêutico aberto pelo evento Jesus Cristo. A primeira Padres e com a tradição teológica. Muito mais: ela procura
escritura, enquanto colocação por escrito do testemunho pres- manifestar a significação sempre atual da Palavra de Deus,
tado ao evento Cristo, é, também da, ato de interpretação em sua forma escriturística, dogmática ou teológica, em fun-
da primeira comunidade cristã. Em função de situação histó- ção das novas experiências históricas da Igreja e do homem
rica nova, essa primeira escritura suscitou novas escrituras de hoje. Ela ignora, por isso, uma diferença fundamental
como atos de interpretação que testemunham inseparavd- entre uma teologia dita positiva, que faria o inventário his-
mente, sob a ação do Espírito, a experiência cristã funda- tórico do "dado de fé", e uma teologia dita especulativa,
mental e uma nova experiência histórica da Igreja. A teologia que daria a explicação radical desse dado. Ela trata sempre
como hermenêutica é, pois, sempre fenômeno de reescritura com "objetos textuais", procurando decifrar seu sentido para
a partir de escrituras anteriores. Podemos defini-la como hoje e procedendo, a partir deles, a uma nova escritura.
um novo ato de interpretação do evento Cristo na base de 4. A teologia enquanto hermenêutica se alimenta de
correlação crítica entre a experiência cristã fundamental, tes- uma circum-inccssão incessante entre a Escritura e a Tradi-
temunhada pela tradição, e a experiência humana de hoje.7 ção, que continuam sendo os lugares privilegiados de toda
6 Veja, acima, cap. 1; veja também : •La ~vélation hier et au- teologia. Ela procura uma nova inteligência da mensagem
jourd hui De l'l!criture à la p~dkation ou les actualisations de la cristã, respeitando o círcuJo hermenêutico entre a Escritura
Parole de Dieu·. ín Rlvllation de Dieu et langage des hommens (•eo.
gitatio Fidei• 63), Cerf. Paris, 1962, pp. 95-121; Um nouvel 8ge de la e o Dogma, que, tanto um como o outro, dão testemunho à
thlologie c·cogitatio Fidei• 68). Cerf, Poris. 1972, po. 43 66. plenitude da Palavra de Deus, embora a Escritura seja a
7 Este princípio hermentutico é aplicado na cristologia de E. autoridade última (norma normans non normata) em relação
Schillebecclc.x. Jesus. Die Geschic/1te von einem Lebenden, Herder,
Friburgo, 1975. Um bom resumo do método teológico de E. Schille- às novas escrituras que ela suscitou na Igreja. A teologia
beeckx se encontra na edição francesa de Expérience humaine et /oi en dogmática saída da Contra-Reforma lia a Escritura antes
Jlsus Christ, Cerf, Paris, 1981. de tudo a partir das explicações ulteriores da tradição dog-
68 69
mática. A teologia segundo o modelo "hermenêutico" não dos historiadores das origens cristãs, de um lado, e a ver-
teme aplicar-se a uma reinterpretação dos enunciados dogmá- dade dos dogmáticos, do outro. Se é verdade que não se
ticos a parúr de melhor conhecimento da situação histórica pode identificar a verdade do cristianismo com a reconsti-
que foi a ocasião de sua formulação e à luz de nossa leitura tuição dos fatos históricos - foi o erro do historicismo - é
atual da Escritura, isto é, de leitura que tome cm conside- verdade também que não se pode aceitar a ruptura, realizada
ração os resultados irrecusáveis da exegese moderna. por certa teologia escolástica, entre os enunciados dogmáti-
cos e seus fundamentos escriturísticos e históricos - é o
r>.rro ele certo radonalismo teológico.
II . O ALCANCE HISTÓRICO E TEOLÓGICO DA EXCLUSÃO Na aurora dos tempos modernos, a Igreja se pensou
DO MODELO DOGMATICO como sociedade exclusiva, segundo o modelo de ideologia
unitária. A teologia dogmática de tipo monolítico era coe-
Poderíamos escrever longamente sobre os diversos fa- rente com sua relaç.ão defensiva com a sociedade moderna.
tores que levaram à substituição do modelo "dogmático" Ao mesmo tempo ela recusava, fora dela, o pluralismo ideo-
pelo modelo "hermenêutico" de escritura teológica. Não te- lógico e cultural das sociedades liberais do Ocidente, con-
nho a intenção de me entregar aqui a uma pesquisa histórica denava o pluralismo doutrinal dentro dela e definia regras
detalhada. Gostaria apenas de assinalar alguns fatores mais de ortodoxia cada vez mais rigorosas. E se precisarmos que,
decisivos. Distinguirei fatores de ordem histórica, de ordem até o Vaticano II, todos os professores de teologia tinham a
epistemológica e de ordem psicológica. Mas o que nos in- obrigação de ensinar o que se denomina tomismo, vemos
teressa em cada caso é o alcance teológico dessa mudança. que dentro da Igreja católica a questão do pluralismo teoló-
Com efeito, o que está em causa é a concepção da verdade. gico nem se punha:
E longe de a orientação hermenêutica da teologia contem- A teologia segundo o modelo "dogmático" ou ainda a
porânea comprometer o futuro da teologia dogmática como teologia escolástica, qualificada de "barroca", era prisioneira
exposição sistemática das verdades cristãs, mostraremos que da problemática racionalista do século XVIII e, como vi-
ela está a serviço de melhor reconhecimento da originalidade mos, tendia a edificar um sistema no qual a autoridade do
própria da verdade em teologia. magistério se revestiria de autoridade praticamente maior
do que a da Escritura. Pela primeira vez na história da teo-
logia, em reação contra o principio escriturístico da Reforma,
A. A explosão da ideologia unitária do sistema dogmático a Bíblia era apenas a fonte da revelação, e não era mais a
forma primeira da fé na revelação judaico-cristã. Em sua
O primeiro abalo da teologia católica enquanto sistema forma racionalista, a teologia escolástica tendia a se tomar
fechado e autoritário foi provocado pela irrupção dos méto- sistema de proposições capazes de deduzir todos os con-
dos históricos no saber eclesiástico. Essa ocasião foi a crise teúdos de fé a parúr dos princípios críveis. E o que me
modernista. Embora a autoridade hierárquica tenha prati- parece decisivo no debate "dogmática ou hermenêutica" é
camente desconhecido a pertinência das questões postas pelo que a alma dessa construção teológica não é mais a verdade
modernismo, é incontestável que a auto-suficiência dos dog- do que deve ser crido, mas a certeza de que Deus disse isto
niáticos ficou arranhada.8 Resultou disso o que se chamou ou aquilo, certeza que recebeu a garantia da autoridade do
de sistema da "dupla verdade": a verdade dos exegetas e magistério.9
8 Dentre- os mwtos trabalhos sobre o modernismo. citemos so- 9 Essa concepção do trabalho teológico, que caracteriza a teologia
mente a tese recente de R. VirgouJay, Blondel et le modernisme, Cerf escolástica em sua forma racionalista, foi muito bem discernida por
Paris, 1980; no fim do volume encontra-se abundante bibliografia. '
70 71
Hoje, principalmente depois do Vaticano II, a Igreja um pluralismo teológico "qualitativamente novo", com? diz
aceitou dialogar com um mundo que é caracterizado por Karl Rahner .11 Ele não tem nada a ver com a pluralidade
pluralidade de opções em favor de tal ou tal sistema de va- das "escolas teológicas" no sentido antigo, pluralidade que
lores ou de ideologias. Ela deve, além disso, enfrentar uma se situava ainda dentro de um mesmo campo cultural e de
situação histórica na qual os cristãos têm consciência muito uma só civilização.
mais radical sobre o rdativismo da civilização ocidental e Neste final do século XX, quando sabemos melhor que
do próprio cristianismo como religião histórica. Assistimos, o futuro do cristianismo não se coloca mais principalmente
portanto, a uma transformação considerávd do trabalho teo- no Ocidente, o pluralismo teológico é o destino histórico
lógico e de seus métodos. da Igreja.12 Já conhecemos as teologias l~tino-8?1ericanas ~
Em primeiro lugar, os teólogos devem leva.r cm conta libertação. Conhecemos também as teologias africanas e astá-
um pluralismo filosófico insupcrávd, no sentido de que ne- ticas ainda balbuciantes. Contrariamente aos espiritos des-
nhum "sistema" pode pretender totalizar todas as fontes da conflados, que pensam que estamos no caminho de rdati-
experiência humana. Devemos acrescentar que a filosofia não vismo perigoso e que a unidade da fé está ameaçada, devemos
é mais o único interlocutor da teologia. Os teólogos não compreender que esse pluralismo das teologias e mesmo das
podem mais estudar o fato cristão ignorando os resultados confissões de fé é expressão e exigência da verdadeira catoli-
das diversas ciências humanas da religião. E a maneira de cidade da Igreja. Mas, evidentemente, isso convida a teolo-
teologizar é forçosamente interpdada pelas novas racionali- gia a fazer um novo esforço para repensar o estatuto da
dades que estão em ação nessas diversas disciplinas. Isso verdade cristã, que não pode ser identificado com um saber
significa que existem lugares novos de produção teológica dogmático constituído uma vez por todas.
- não só os campos novos do saber em nossa modernidade
ocidental, mas também os recursos das outras culturas.to
Assim, o antigo edifício de uma teologia escolar, que B. Uma nova epistemologia teológica
pretendia a universalidade para toda a Igreja, está ruindo.
A teologia de tipo hermenêutico é necessariamente plural, A passagem de uma teologia segundo o moddo • dog-
porque quer ser inseparavelmente hermenêutica da Palavra mático n para uma teologia segundo o modelo "hermenêu-
de Deus e hermenêutica da experiência histórica dos homens. tico" levanta um problema temível no que concerne ao es-
~ cm função dessa circularidade entre a leitura crente dos tatuto da verdade em teologia. Tentarei aqui apenas ofere-
textos fundadores, que testemunham a experiência cristã ori- cer alguns pontos de referência num domínio ainda muito
ginária, e a existência cristã de hoje, que pode nascer uma mal explorado.
interpretação nova da mensagem cristã. Ora, essa existência
cristã é cultural, social e politicamente condicionada pela si- A contestação da verdade como "adaequatio"
tuação histórica de cada Igreja. Constatamos, hoje, portanto, Não partirei do horizonte das teorias analíticas do nco-
P. Eicher, op. cit., pp. 179 80: • Nicht mehr die Wahrheit dcs Geglaubten, positivismo lógico.13 Podemos distinguir as teorias criterio-
sandem die Gewissheit dass Got dics oder jencs gcsagt habe, wird
zur tre1benden Frage dcs Systemdenkens, daa zu seiner Sicherung nun 11 K. Rahner, •te pluralisme en tMologie et l 'unit~ du credo
ein unerschütterlichcs Fundament der theologischen Konstruction de l ~gl ise•,
ln Concilium 46, 1969, p. 95.
braucht ...• 12 Nós nos esforçamos por deduzir o alcance histórico do plura-
10 Sobre esses lugares novos da teologia, que não devem ser lismo teológico na Igreja de hoje, em nosso estudo: Pluralit' des th'."°
confundidos com os lugares teol6gicos no sentido habitual, remeto às logies et unité de la foi, na nova lnitiation pratique t) la tMolog1e,
minhas conclusões na conferencia publicada sob o título: ú d'plo- Cerf, Paris, 1982, t. I , pp. 117-42.
cement de la tMologie, Beauchcsne, Paris, 1977, pp. 171-8. lJ Para introdução a cssaa diversas teorias remeto à obra prc-

72 73
lógicas: quais são os critérios que permitem identificar um mo, a nova hermenêutica estará muito mais atenta às con-
enunciado verdadeiro? E as teorias verificatórias: quais são d ições sociais, psicológicas e lingüísticas da compreensão.
os processos de verificação para saber se um enunciado é De modo particular, ela tomará muito a sério a objetividade
verdadeiro? Podemos dizer que todas essas teorias têm por do texto em suas condições de produção. Com isso, ela
quadro o problema do enunciado e de seu fundamento . Em reata com o "explicar" próprio das ciências da natureza.
função do contexto de nossa teologia européia, prefiro par- Mas, como vimos no capítulo precedente, num autor como
tir de Heidegger, que põe em questão justamente o nexo Paul Ricoeur, a hermenêutica não renuncia à compreensão
entre problema da verdade e enunciado. Ele procura descons- do texto e, portanto, à pesquisa da verdade. Já citamos esta
truir esse nexo, tirando daí um horizonte mais originário constatação: "Está aberta uma nova época da hermenêutica
(existencial, primeiro Heidegger ) ou fazendo uma escalada pelo sucesso da análise estrutural; daqui para frente a expli·
para uma história originária da verdade e do ser (segundo cação é o caminho obrigatório da compreensão. " 16
Heidegger) .14 Uma compreensão hermenêutica da verdade na linha de
O "compreender" histórico, no sentido de Heidegger, Heidegger nos convida a mantermos distância tanto da con-
tem importância decisiva para a nossa compreensão teológi- cepção metafísica da verdade, própria da teologia dogmática
ca dos enunciados de fé .15 Ele nos convida particularmente clássica, quanto da concepção da verdade pressuposta pelo
a pormos em causa nosso hábito de fazer' do juízo (como' historicismo. Comum a essas duas concepções, que afinal
adaequatio rei et intellectus ) o lugar exclusivo da verdade são herdeiras da problemática racionalista da Aufklarung,
teológica. Sabemos que Heidegger quis ultrapassar a herme- é a idéia de correspondência, de adequação entre sujeito e
nêutica individualista e romântica de Dilthey, mostrando objeto, tendo por base uma relação imediata na origem, seja
9ue é a .nossa própria existênc:ia, enquanto perpétuo pro- ela identificada com uma plenitude de ser, como no pensa-
jeto de s1, que deve ser entendida como interpretação com- mento metafísico, seja com um fato histórico passado, como
preensiva. Em seus últimos escritos ele insistiu no fato de no caso do historicismo.
'!ue essa modalidade de existência interpretante é dom da O conhecimento metafísico da verdade em uso na teo-
linguagem e, por ela, dom da história do próprio ser. logia dogmática desconhece a historicidade radical de toda
A linguagem nos interpreta, e é nela que a verdade nos verdade, inclusive da verdade revelada. A tradição é enten-
~dvém . E~ seguida! Gadamer faz da tradição o lugar da dida então como um tesouro, como o depósito de certo
mterpretaçao. Esta e o produto da diferença entre dois ter- número de verdades intangíveis que deve unicamente ser
mos históricos, já significantes por si mesmos, o passado e transmitido. O pressuposto implícito do historicismo é que
o presente. Assim, o conhecimento do passado não é recons- a verdade do cristianismo está contida num texto da Bíblia
tittJ!ção arbitrária: ele é a .':º~preensão do que nos agarrou. que pode ser reconstituído por métodos científicos. Trate-se
Hoje, sob o choque das CJenc1as humanas e do esttuturalis- de textos ou de fatos, o historicismo acredita poder estabe-
lecer relação imediata com uma origem que ele identifica
ciosa de J.·F. Malherbe, tpistémologies anglo-saxonnes P.U F Namur
1981. • . • •
com a verdade. Bultmaoo, Karl Barth e a teologia dialética
fizeram grande esforço para escapar ao impasse do historicis-
14 Veja particularmente O. Põgp,eler, La pensée de Martin Hei·
degger, Aubier, Paris, 1967, pp. 124-36 e 366-82. mo, substituindo um termo hist6rico pensado como origem
15 Sobre a importância da compreensão hermenêutica da verdade por um termo teol6gico.
para os e~saios contemporâneos de teologia sistemática, pode ser lido
com proveito D. Tracy, The analogical lmagination. Christian theology
~nd the cul!ure o/ pluralism, Nova Iorque, 1981, sobretudo o cap. 111; 16 P. Ricocur, • La íontion herméneutique de la distanciation• in
The Class1c•, pp. 99-153. Exegesis, Delachaux & Niestlé, Neuchlitel, 1975, p . 209. '

74
Hoje um autor como Kiisemann reage contra Bultmann, sente. Só podemos dizer a significação da origem na vontade
dando toda a sua importância ao hist6rico. Mas ele se preo- presente de nos apoderarmos do passado como origem. Di-
cupa muito, também. com manter a pertinência ttol6gica zer que a teologia é "genealogia" é dizer que ela é total-
do Jesus histórico. 1; Tendo o Jesus histórico suscitado uma mente histórica e que é no ato de interpretar o cristianismo
pluralidade de testemunhos, não se pode identificar a ver- no presente que ela pode também dizer o sentido das ori-
dade do cristianismo com a figura hist6rica de Jesus. Como gens cristãs.
Gadamer se esforça por superar a ruptura kantiana entre
Para Nietzsche, o acesso à verdade é sempre um parto
os faros e o sentido, assim Kasemann procura ultrapassar a
doloroso, apesar de todos os disfarces. Ele nos previne con-
oposição entre o extrinsecismo teológico e o historicismo.
Podemos dizer que na época moderna a pesquisa mais fe- tra as ilusões do dogmatismo especulativo e do historicis-
mo. A este respeito ele é o verdadeiro iniciador de nossa
cunda em teologia fundamental diz respeito às relações entre
modernidade crftica, que não é somente de natureza episte-
a verdade e a história. Guardamos distância de relação me-
mológica, no sentido da crítica kantiana, mas também de
taffsica com a verdade, que está sempre sob o signo da ló-
gica da mesma coisa, de coincidência imediata com a origem estilo "genealógico". Trata-se de desmontar os mecanismos
sutis que estão na origem de nossas certezas, e de perguntar
e que anula toda descontinuidade, diferença e pluralidade.
Trata-se de estabelecer entre a história e a verdade uma de onde elas vêm. Particularmente, demistificaremos a ilu-
são que consiste em identificar a origem com uma plenitude
relação que aceite plenamente estar sob o signo da des-
de sentido. A origem só diz seu sentido no presente.
continuidade, da diferença e da alteridade. Estaremos então
em condições de pensar a tradição não como reprodução Mas o "martelo da análise genealógica" não nos con-
de passado morto, mas como produção sempre nova. Pierre dena necessariamente ao silêncio ou à sucessão indefinida
Gisel, comentador da obra de Kiisemann, propõe designar das interpretações. A relação genealógica do passado com o
essa nova epistemologia como uma "genealogia•, em refe- presente é o lugar de produção da verdade; e a teologia
rência ao pensamento de Nietzsche. cristã como discurso histórico deve reter a lição desse
método. 19 No ato de dizer o mundo atual, a teologia cristã
Uma relação geneal6gica com a verdade pode dizer o sentido das origens cristãs. Em outros ter-
mos, os enunciados teológicos sobre o cristianismo são in-
Começarei com esta citação de Gisel: "Todo discurso dissociáveis de um ato presente de enunciação na situação
reenvia a um ato de interpretar, a uma avaliação do mundo, presente da Igreja. A verdadeira tradição cristã é sempre
:e
a uma entrada singular na humanidade. nesse sentido que, interpretação criativa que procede de confrontação viva en-
depois de Nietzsche, fala-se em genealogia. Para lá da alter- tre o discurso passado da primeira comunidade cristã e o
nativa historicismo-metafísica, chama-se conjunto à origem discurso presente da Igreja informada por sua prática con-
e à história, porque ignora-se toda história que não viva creta.
de uma origem e que não seja dita do seio da história e co-
mo interpretação dessa história . " 18 Assim, é necessário es- Já insistimos na idéia de .. testemunho", para caracteri-
tabelecer uma relação genealógica entre o passado e o pre- zarmos a Escritura. Enquanto testemunho prestado ao evento

17 Pierre Cisei, em sua obra sobre Kãsemann, procura justamente 19 Sobre o m~IOdo genealógico em Nictuche, veja J. Cranier,
desdobrar todas as conseqii!nciu dessa dupla pcrtin!ncia. P. Cisei, Nietzsche (•Que sais je?•), PUF, Paris, 1982, pp. 66 9 Sobre a fecun-
Vérité et histoire. IA thlo/ogie dans la modernité: Ernst Kãsenumn, d 'dade desse m~todo •genealógico• para o trabalho teológico de hoje,
Bcauchcsne. Paris, 1977. leiam se u interessantes observações de P.-M. Bcaudc, L'accomp/isse-
18 P. Cisei, op. cit., p. 627. ment des Ecritures (•Cogitatio Fidei• 104). Ccrf, Paris, 1980, pp. 292-5.

76 77
Cristo, o Novo Testamento não é texto que nos entregue dade. Sem irmãos, como alguns, ao ponto de falar em caráter
imediatamente seu sentido completo e definitivo. Devemos fascista de toda linguagem, é certo que há uma violência do
compreender esse texto como um "ato de interpretaçãon discurso de verdade, que, por natureza, é discurso de totali-
para nós hoje. Segundo Pierre Gisel, devemos tirar todas zação, que se torna senhor do passado e do futuro e que
as conseqüências da analogia entre o Novo Testamento (e tende a se tornar discurso totalitário.21
a função que ele exercia na Igreja primitiva) e entre a pro- O discurso dogmático da Igreja não escapou a essa
dução de um novo texto hoje (e a função que ele exerce tentação, sobretudo quando fez apelo aos recursos do saber
no presente da sociedade e da cultura). A teologia entendida especulativo. Pode-se perguntar, com efeito, se a mola se-
como escritura hermenêutica tem por tarefa criar novas in- creta do pensamento ontoteológico, subjacente nos discursos
terpretações do cristianismo e favorecer práticas cristãs sig- dogmatizantes, não é a nostalgia de origem identificada, com
nificantes em função da situação concreta da Igreja, cm con- a plenitude do ser e da verdade. O mundo se define pela
formidade com os tempos e os lugares. Essa maneira de contingência, o homem pela falta. Far-se-á então da idéia
conceber a teologia é evidentemente correlativa de concepção de Deus o lugar metafísico que totaliza todas as significações
da verdade que, como já o dissemos, não se identifica bem do mundo, que reconcilia todas as oposições, que anula to-
com uma plenitude de ser na origem, nem com uma figura das as diferenças. O deus do projeto especulativo não seria
histórica particular. A verdade está, antes, sob o signo de então mais que a projeção da megalomania do desejo do
futuro permanente. :a este o sentido da verdade bíblica co- homem, que não consente em sua fi.nitude. Na realidade,
mo realidade de ordem escatológica.20 como o sublinha com muita razão A. Vergote, "Deus, se é
verdadeiramente Deus, só pode entrar no reino da verdade
A patologia da verdade dogmática como significante que abre o campo da manifestação, não
como aquele que fecha o poder de significância com uma
Tentei elucidar alguns fatores históricos e epistemol6-
resposta última. Se ele tem sentido, deve ser enquanto re-
gicos que contribuíram para a exclusão do modelo "dogmá-
presenta um superpoder de dar sentido. "22
tico" de escritura teológica. Gostaria ainda de lembrar rapi-
damente fatores de ordem psicológica. Quero falar da "pa- Existe, portanto, cumplicidade entre o desejo do saber
tologia da verdade" que certa teologia dogmática trai quando absoluto, inerente ao pensamento metafísico, e a tendência
passa para o dogmatismo. da fé cristã a dogmatizar. Especialmente a partir do s~o
Como a teologia moral pode levar ao legalismo, tam- XVIII, a noção de verdade usada na teologia enquanto ciên-
bém a dogmática pode conduzir ao dogmatismo. Por quê? cia da fé era a da lógica das proposições, que repousa no
Hoje estamos mais atentos sobre as fontes inconscientes que principio de não-contradição. O termo "dogma n, que nor-
podem inclinar toda religião para o dogmatismo. Seja na malmente reenvia ao evento da verdade divina que sobrevém
ordem doutrinal, ritual, seja institucional, a religião conhece à história, torna-se de fato indicador de verdade infallvel,
a tentação de hipostasiar formas contingentes e de conferir garantida pelo magistério da Igreja. Mais tarde, quando foi
o selo de eterno a tal ou tal de suas figuras históricas. proclamado o dogma da infalibilidade pontifícia, ele com
:a a mesma estratégia habitual dos poderes religiosos insti- muita r!1P!J pôde ser caracterizado como a ideologia própria
tuídos quando as formas tradicionais da religião se vêem
21 Cf. J. Greisch, •1...e pouvoir des signes, ICJ insignes du pouvoir•,
contestadas pelos novos estados de consciência da humani- ln Le Pouvoir, Bcauchesne, Paris, 1978, pp. 175-205, especialmente
pp. l~I.
20 A CJte respeito, veja a obra clássica de 1. de la Potterie, •ta 22 A. Vcrgote, lnterprétation du langage relisieux, Seuil, Paris,
Vérité dans Jean•, in Ana/ecta Bíblica 73-74, 2 vou., Roma, 1976. 1974, p. 52.

78 79
dessa figura histórica Jo cristianismo que foi o catolicismo Deus a partir de significantes inadequados. E é próprio
intransigente. ~ permitido ver no encarecimento da infali- da teologia especulativa justamente transgredir os primeiros
bilidade a express;to úpica da patologia da verdade católica.23 significantes da linguagem da revelação graças aos novos
Nessa perspectiva, a fé cristã, enquanto adesão a uma ver- significantes que lhe são oferecidos por certo estado da cul-
dade que "advém" gratuitamente, não se confunde incons- tura filosófica e cientffica.24 O erro do dogmatismo consiste
cientemente com a necessidade arcaica de uma certeza infalí- cm reduzir os significantes da revelação às suas expressões
vel? É necessário certamente analisar esses componentes psí- conceptuais. A teologia como hermenêutica não renuncia a
quicos da consciência religiosa, se se quiser ir até às raízes uma lógica rigorosa das verdades de fé, mas tem consciência
secretas do dogmatismo enquanto fundamentalismo . E a in- do limite constitutivo de sua linguagem cm relação a um
tolerância de alguns crentes, em relação ao pluralismo teo- ideal de sistematização conceptual. A linguagem teológica
lógico ou a qualquer tentativa de reformulação da fé cristã, tem seus critérios próprios de verdade. Por definição, esses
não é sinal de insegurança fundamental diante de qualquer critérios não podem ser de ordem cmpfrica, uma vez que a
coisa que atinja sistema fechado de verdades dogmáticas teologia tem por objeto uma realidade invisível. A teologia
imutáveis? tem como ponto de partida, contudo, uma objetividade his-
tórica : os eventos fundadores do cristianismo. Por isso um
dos critérios de verificação do trabalho teológico consiste
justamente em confrontar as novas expressões da fé com a
Ili. A VERDADE DA TEOLOGIA COMO LINGUAGEM
INTERPRETATIVA
linguagem inicial da revelação referente a esses eventos fun-
dadores e com as diversas linguagens interpretativas que se
encontram na tradição.25
Todo o meu esforço neste capítulo consiste em mos- A teologia enquanto nova escritura, na base de confron-
trar que, quando não funciona mais segundo o modelo "dog- tação incessante entre escrituras anteriores, é dirigida pela
mático", a teologia não renuncia, por isso, a trabalhar pela natureza da verdade pela qual ela é responsável. É neces-
verdade. Creio mesmo poder dizer que a teologia entendida sário, portanto, procurar caracterizar os traços próprios des-
como hermenêutica respeita mais a originalidade da verdade sa verdade pela qual a teologia é responsável. Apre.sentarei
que nos foi confiada na revelação cristã. É o que eu gostaria três.
de sugerir na primeira parte.
A teologia pode ser definida como o esforço para tomar
mais intcligfvel e mais significante para hoje a linguagem já A. A verdade da teologia é da ordem do testemunho
constituída da revelação. Essa linguagem já é interpretativa.
A teologia como nova linguagem interpretativa apóia-se nela O objeto do conhecimento teológico não é um con-
para explicar as significações do mistério cristão em fun- junto de verdades conceptuais, mas um mistério, o ato mes-
ção do presente da Igreja e da sociedade. A teologia é, por- mo pelo qual Deus se deu a conhecer aos homens. Dessa
tanto, um caminho sempre inacabado para uma verdade verdade divina cm ato de automanifestação, Jesus é a teste-
mais plena. A linguagem teológica é necessariamente inter- munha insuperável. O testemunho de Jesus se traduziu em
pretativa à medida que visa à realidade do mistério de 24 A este respeito, veja L. Ladri~rc. •La Lhfologie et te langage
de l 'interp~lation • ,
in Rev. Tl1éol. de Louvain 1, 1970, pp. 241-67.
23 CC. J. Hoífmann, • L ' infaillibilit~ pontificale: formuJation d'un 25 Sobre essa criteriologia teológica, pode-se ler nosso artigo:
dogme ou gen~ d'une id~logie• in Travaux du CERIT, Pouvoir et "Th~logie •, in Encyclopaedia Universalis, vol. XV, Paris, 1973, pp.
vlritl (• Cogitatio Fidei• 108), Ccrf, Paris, 1981, pp. 209-29. 1087-91.

80 81
enunciados de fé· sobre eles trabalha o teólogo. Mas ele não A teologia é, pois, precedida de uma verdade que ela
pode separar es~s enunciados do evento de sua enunciação. conhece por testemunho, ex auditu, e à qual ela, por sua
Assim, a verdade cristã é uma verdade que acontece apenas vez, dá testemunho. Ela reconhece que é obrigada por uma
no evento sempre atual de sua enunciação e que é toda vol- verdade da qual não dispõe. A linguagem teológica, por
tada para uma plenitude de manifestação de ordem escato- mais especulativa que seja, deve ressentir-se dessa passividade
lógica . A verdade no sentido bíblico pôde ser aproximad~, primeira. Dizemos que a linguagem teológica como celebra-
com razão, da essência da verdade como a compreende HCl- ção da verdade que veio em Jesus Cristo tem necessaria-
degger.26 Ele fala de uma verdade originária, situacf:i aquém mente uma dimensão doxol6gica. Mas, ao mesmo tempo, a
do julgamento e que não é senão a eclosão do scnudo. Isso linguagem teológica terá sempre um alcance prático, porque
significa que toda verdade é correlativa de uma não-verdade testemunha uma verdade que não cessa de advir ao coração
ligada ao estado de velamento originário. Também a ver- do mundo e que tende a se encarnar em figuras históricas
dade da qual se ocupa a teologia se ressente sempre de seu novas. Assim, embora a linguagem teológica, como lingua-
estado de velamento originário. Ela não pode, portanto, ser gem especulativa, não tenha mais o valor evocativo e suges-
reduzida às verdades objetivas, das quais trata o saber teó- tivo da linguagem bíblica, ela continua sendo radicalmente
rico. uma linguagem poética no sentido em que é a teoria de
Isso significa que não há conhecimento teológico da um fazer. Ela deve desaguar em novas práticas significantes
verdade de fé sem participação ativa na verdade mesma de na Igreja e na sociedade. Nesse sentido, a teologia terá nor-
Deus cm ato de vinda. A linguagem teológica pode ser es- malmente uma responsabilidade social e polftica.28 Ela exerce
peculativa, mas nem por isso ela deixa de ser linguagem de função de julgamento em relação às práticas do mundo.
engajamento, linguagem auto-1mpl1catíva. Ela depcnd~ ?o t~­
temunho, uma vez que não se refere a verdades verif1cávets
e que o sujeito crente está totalmente implicado cm seu ato B. A verdade da teologia é radicalmente histórica
de enunciação. Assim, a verdade invocada pelo teólogo é
uma verdade celebrada, confessada. Ela pode ser aproximada Se desde o começo a verdade cristã é da ordem do
das verdades da razão no sentido de Kant. Essas verdades testemunho, testemunho que se tornou Escritura, isso signi-
não têm a evidência objetiva de uma verdade científica ou fica que não há imcdiaticidade da verdade que veio em Jesus.
de uma verdade filosófica. Mas não são verdades arbitrárias, Quem diz testemunho diz distância, espessura humana, in-
porque correspondem aos fins necessários do homem: elas terpretação. O mesmo vale para esses novos testemunhos
se impõem cm nome de evidência interior.27 que são as teologias ao longo da história da Igreja. A teologia
26 Dentre outros trabalhos citados: H . Schlier, "Méditations sur la 28 Cf. P. Ricoeur, •Nommer Dieu•, in Etudes Tl1lologiques et Re-
notion johanmque de vérité• , ín Essa1s sur /e Nouveau Testament, ligieuses 52, 1977, pp. 505 8 . Poderíamos lembrar aqui o sentido ltico
Cerf, Pans, 1968, pp. 317·24; W. Kasper, Dosme et. Evan~lle, Caster- da transcendência segundo E. Levinas, que remete à veritas redarguens,
man, Touma1, 1967, pp. 55-101 ; H. Ott, MWas ist smemausche.Theo- a "verdade que acusa•, de santo Agostinho: "Não assume a traIUCCn-
logie?•, in Der spare Heideger und die Theolosie, MNeuJand in der dEncia um sentido eventualmente mais antigo e, em todo caso, diferente
Theologie•, Bd 1, Zurique, 1964, pp. 95-133; C. Gerf~. •Le probl~me do que lhe vem da di/erença onto/6gica? Ele significa, em minha res-
théologique de l'objectiv1té de Dieu•, in ) . Colette e outros, Procà ponsabilidade pelo outro, à primeira vista, meu próximo ou meu irmão ...
de l'objectivitl de Dieu c·Cogitatio Fidei• 41, Cerf. Paris, .1~9, P~- Responsabilidade que nenhumA experiência, nenhum aparecer, nenhum
241-63: 8 . Dupuv, ML'tnfaifübifüé aclon Hans Küng•, in Esl1u m/01/li- saber vem fundar; responsabilidade sem culpabilidade, mas na qual,
ble ou intemporel/e? Recherches et Dlbats, DDB, .Paris, 1973, pp. 3~- dianre do ro~to, eu me vejo exposto a uma acusação que o 4.libi de
27 Sobre a originalidade da verdade no registro de uma filosofia minha aheridade não poderia anular• (E . Levinu, •oe la signifiance
do testemunho, veja P. Ricoeur, "L'hennéneutique du témoignage'', in du aens•, in Heidegger et la question de Dieu, Grassei, Paris, 1980,
Le Tlmoignage (Encontro Castelli), Aubier, Paris, 1972, pp. 35-61. p. 24-0) .

82 83
não pode, portanto, pensar num acesso imediato à verdade Tudo isso nos ajuda a compreender qual é a rdação de
como se esta coincidisse com a Palavra de Deus em estado uma teologia hermenêutica com a verdade. Essa rdação é
puro, ou com um evento histórico no começo. A teologia indissociável da rdação mútua entre o evento fundador e a
como hermenêutica só atinge a verdade dos enunciados de situação atual da comunidade cristã, sobre a qual já insisti
fé numa perspectiva histórica. várias vezes. Devemos renunciar à ilusão de uma verdade-
Sob pretexto de que as verdades de fé são absolutas, adesão ou de uma verdade-adequação, que suporia um ob-
certa teologia cometeu o erro de esquecer-se de que a posse jeto imutávd e um sujeito conhecente invariante. Desde que
dessas verdades pelo espírito humano é sempre histórica e, Deus se deu a conhecer aos homens, o elemento interpreta-
portanto, relativa. Os enunciados de fé são verdadeiros hoje tivo da comunidade cristã pertence ao conteúdo da verdade
como ontem, mas a sua compreensão correta depende do de fé. A verdade cristã não é, portanto, núcleo invariante
poder de significação do espirito num momento histórico que se transmitiria de século em século na forma de depósito
dado. Por outro lado, a verdade de um enunciado é deter- fixo . Ela é um advir permanente, entregue ao risco da histó-
minada pela situação histórica de questão e resposta que ria e da Uberdade interpretativa da Igreja sob a moção do
esteve na origem da formulação desse enunciado. :e
Espírito. notoriamente insuficiente falar, hoje, a propósito
O conhecimento teológico, como conhecimento interpre- do conteúdo da fé, de relação entre núcleo invariante e re-
tativo, participa da historicidade radical dessa situação de gistro cultural variável. Devemos guardar-nos da ilusão de
questão e resposta. Trate-se de artigo de fé ou de definição invariante semântico que subsistisse além de todas as con-
dogmática, a sua compreensão correta supõe que se tenha tingências da expressão.30 Seria deter-se em concepção pura-
criado a adequada " situação hermenêutica", que é determi- mente veicular e instrumental da Unguagem. :e
necessário
nada pelo jogo da questão e da resposta.29 :e
evidente, por falar de relação de relações. De acordo com as situações his-
tóricas diferentes da Igreja, dá-se a produção de uma relação
exemplo, que uma definição dogmática é uma resposta que
só pode ser compreendida com referência à questão histórica nova entre a mensagem cristã e a novidade da rdação semân-
que a provocou. Não existem afirmações dogmáticas em es- tica. A responsabilidade do teólogo consiste em mostrar a
tado puro que não façam referência a uma situação concreta continuidade descontínua de tradição cristã, que é criativa
da Igreja, geralmente uma situação de crise, e que não se- de figuras históricas novas em resposta ao acontecimento per-
jam marcadas pelo sistema de representações de uma época. manente da verdade originária, que se revelou em Jesus
Graças a todo um trabaJho crítico, o teólogo pode discernir Cristo.
o conteúdo permanente de verdade de uma definição dog-
mática e, depois, a sua função concreta de resposta em face a
um erro determinado. Essa definição dogmática não se toma C. A verdade da teologia
falsa ou perempta numa situação eclesial diferente. Mas da como expressão do consenso eclesial
pode revestir-se de sentido novo, em relação ao seu sentido
original, em face de tal urgência eclesial e pode exercer fun. Em função do que precede, resulta que a cxpenenoa
ção diferente na economia geral de fé, contanto que a ver- cristã da verdade não se identifica com um conhecimento
dade de fé sobre a qual da insistia seja objeto de posse tran-
qüila e não de contestação. faillibilit~ minist~rielle. R~ílexions thwlogiques•, in Concilium 83,
1973, pp. 83-102, especialmente pp. 88-93.
JO Ess_e perigo foi lucidamente denunciado por J. Gabus, cf. Criti·
29 Essa condição essencial de compreendo correta foi lembrada que du discours théologique, Delachaux & Niestlé Neuch1tel 1977
com vigor por E. Schillebcecloc, em seu artigo: •te problême de lran- p . 323. • . •

84
puramente especulativo. A verdade de fé é caminho a se- cias da unidade e o direito a legítimo pluralismo no conheci-
guir, permanente advir, itinerário cm comum. Ela nasce do mento interpretativo da verdade, devemos voltar sempre à
testemunho e está sempre encarnada, cm confronto com a experiência de toda a Igreja, designada comumente como con-
situação concreta do mundo e da Igreja, sem que se possa s~nsus fidelium . Poderíamos falar de faro incrente à cxpcriên-
separá-la de seus lugares de vinda. ~! ~~en~ da pr~eira com~dadc cristã e às expe-
Devemos então falar de uma verdade plural cm teolo- r1cnc1as. hist?ncas ultenores da Igreja. A despeito das rup-
gia, sem o risco de interpretações indefinidas? Aparece fi- turas históncas, o que garante a identidade do "cu" da
nalmente a objeção de todos aqudes que não aceitam a ex- I~cja é inseparavdmente a permanência do dom do Espf-
clusão da teologia dogmática cm proveito da hermenêutica. rtto de verdade (Jo 14,26} e a identidade da experiência
l! possivd sair do dilema irritante: ou o dogmatismo mo- crente, que tem sua expressão não só nas confissões de fé,
nolltico ou o arbítrio das interpretações múltiplas? mas também na prece litúrgica da Igreja e no serviço do
Respondo que é verdade que a interpretação não é úni- Evangelho das bem-aventuranças.
ca porque há muitas possibilidades de ler um mesmo texto,
e que é impossívd sacralizar a verdade de um texto. Mas é Sei que é muito fácil invocar a Igreja como luf.ar her-
verdade também que não existe a possibilidade de infinitas menlutico, para decidir sobre o verdadeiro e o falso em
interpretações. Essa possibilidade se inscreve cm campo her- teologia. Somos sempre colocados na obrigação de fornecer
menêutico determinado por uma comunidade de intcrprc- critérios infallveis. Mas já demistifiquei a ilusão de crer que
tação.31 O progresso na verdade se faz mediante reconheci- dispomos de critério estático infallvd, seja no sentido de
mento mútuo de vários sujeitos, que testemunham uma ver- enunciados escrirurísticos ou dogmáticos, seja no da decisão
dade sempre inacessívd. A este respeito o teólogo poderia de magistério infallvd. Direi simplesmente que a norma do
tirar proveito da recente teoria de J. Habcrmas, a Konsen- julgamento teológico conforme à verdade que nos foi confia-
s':'s-theorie: a verdade é o resultado de processo intersubje- da na revdação deve ser procurada a partir da corrdação
tivo de consenso. O problema não é chegar a um consenso, recíproca entre a experiência fundamental do Novo Tes-
custe o que custar, mas chegar a um consenso sem vioUncia, tamento e a experiência coletiva da Igreja, marcada pelos
a uma siruação de comunicação ideal, sem fator de violência novos estados de consciência da humanidade.
e de poder, para que a comunicação não seja perturbada. A Dogmática ou hermenêutica? Sob aparência cândida a
verdade não depende do saber imediato, mas de processo questão é pérfida: ela diz respeito ao estatuto da vcrru:de
argumentativo intersubjetivo. na teologia. Chegados ao termo deste capítulo, parece-me
Para o teólogo, o campo hermenêutico, o espaço da possivd formular as três conclusões seguintes.
verdade, é a Igreja como sujeito adequado da fé. Podemos
s.em ,,dúvida, repetir com Paulo VI que "a fé não é plura: . 1. A teologi~ entendida como hermenêutica não é adog-
lista . Mas devemos entendê-lo bem. Se considerarmos a fé mánca. Quero ~r que,. se ela contesta o uso dogmatista
em sua tradução numa linguagem (e da não existe cm es- de .c~r~a teologia escoláStlca, não pretende pôr cm causa a
tado puro, fora desse regime de encarnação), poderíamos lcg1t1mJdade da teologia dogmática enquanto exposição rigo-
falar também de unidade multiforme da /~ no tempo e no rosa das verdades da fé. À medida que devemos renunciar
espaço. Para superarmos o conflito possívd entre as cxigên- ao mit? d~ teologia universal, cada teologia particular está
na obngaçao de ser radicalmente cristã, isto é, deve mani-
:SI Cí. P. Ricoeur, conclusão do encontro: •Ex~p et henn~ncu­ festar o sim e o não ao Evangelho e levar a um julgamento
tique", Seuil, Paru, 1971, p. 295. pronunciado sobre o mundo.

86 87
2. A teologia entendida como hermenêutica ~os aj.u~a
a respeitar a originalidade da verdade da revelaçao cns~,
que é da ordem do testemunho e que não cessa de adv1r 4
no presente da Igreja. Ela nos convida, particularmente, a
não reduzirmos os significantes da revelação às suas expres- A LIBERDADE HERME~UTICA DO TEÓLOGO
sões conceptuais e a não identificarmos pura e simplesmente
a razão teológica com a razão especulativa.
3. Por fim, a teologia hermenêutica corresponde a uma
situação histórica da Igreja, na qual a defes~ da verda?e
que nos foi confiada na revelação não está ligada à ens-
têocia de uma teologia dogmática autoritária, que preten-
O teólogo é responsável diante de Deus e dos homens
deria o universal. Para lá do dogmatismo e da explosão
pela Palavra de Deus no seio dessa comunidade que é a
anárquica, somos convidados a repensar como poderá ser
Igreja, convocada e instituída por esta mesma Palavra de
uma unidade plural da verdade cristã que não comprometa
Deus. Antes de tentar uma reflexão sobre a função da teo-
a unanimidade na fé.
logia na conjuntura presente da Igreja de João Paulo II,
gostaria de fazer duas observações.
1. Visto que a Palavra de Deus se cumpriu uma vez
por todas em Jesus, o Cristo, o ato teológico. ~ atra.vess~do
por tensão irredutível entre uma fé transm1t1da historica-
mente pelas primeiras testemunhas e a necessidade sempre
nova de compreender e atualizar a fé para hoje. Numa pala-
vra, a teologia é sempre inseparavelmente anamnese e pro-
fecia. Modestamente, mas sem cessar, o teólogo se sente
responsável pela esperança universal que surgiu no mundo
com a vinda de Cristo. Por isso ele é responsável não s6
diante da comunidade dos crentes, mas também diante de
todo homem.
2. A responsabilidade pela atualização da boa nova do
Evangelho é de toda a comunidade dos crentes, que rece-
beram, todos, :tlgum carisma de verdade. Mas a Igreja é
um todo orgânico no qual podem-se distinguir diversas fun-
ções e diversos ministérios. No que concerne ao serviço da
fé apostólica, distinguem-se tradicionalmente o magistério pas-
toral dos bispos e o magistério científico dos teólogos.
O ministério dos bispos consiste em transmitir a fé
apostólica e em velar pela sua pureza e plenitude. O mi-

88 89
nistério do teólogo consiste em refletir sobre a fé para dar-lhe a exercer função ideológica, a de legitimar junto aos fiéis as
elaboração científica, usando para isso os instrumentos crí- tomadas de posição do magistério tanto na ordem doutrinal
ticos da história, da filosofia e das ciências humanas e em como na disciplinar. Não se pode atribuir semelhante tarefa
função dos novos questionamentos apresentados pela situação ao conjunto dos teólogos, enraizados que estão em suas Igre-
histórica da Igreja e do mundo. jas locais, com seus respectivos problemas.
Deveria existir interação recíproca e até complementa-
2. Outros, ao contrário, são levados a fazer da teologia
ridade entre essas duas funções. Na verdade, o que se cons- a tcmatização da vivência de uma comunidade particular ou
tata muitas vezes é conflito. 1
mesmo de uma Igreja loc.al. A teologia se enraíza sempre
Fugindo à polêmica, seria necessário voltar atrás e re- numa prática concreta. Mas pode degenerar em ideologia
fletir sobre as causas desse conflito. Não proviria ele de - ideologia de um grupo de pressão dentro da Igreja - se
compreensão diferente do que é chamado "depósito da fé n não permanecer em diálogo com as outras interpretações do
e "regulação da fé"? Isso porque cada vez se pressupõe con- cristianismo no tempo e no espaço. Sem dúvida, na Igreja
cepção diferente da linguagem e da verdade. de hoje uma teologia universal se tornou impossível. Mas
toda teologia deve tender a manifestar a universalidade da
fé cristã.3
1. A FUNÇÃO PRóPRJA DA TEOLOGIA 3. Por fim, é muito freqüente a permanência numa
concepção insuficiente da teologia entendida como tradução
da doutrina oficial da Igreja numa linguagem mais adaptada.
Antes de apresentar minha visão pessoal do serviço
Ouve-se muitas vezes que a tarefa do teólogo consiste
teológico na Igreja, desejaria lembrar algumas concepções
em "renovar a linguagem da fé". É uma fórmula muito
insuficientes da teologia. Mencionarei três dentre elas.
ambígua, porque pode ser entendida como simples rejuve-
1. Ontem principalmente, mas ainda hoje, alguns são nescimento ou mudança de linguagem gasta. Ora, o proble-
tentados a entender a teologia como prolongamento do ma- ma não é só de tradução, adaptação ou acréscimos novos em
gistério.2 A tarefa da teologia consistiria essencialmente em relação a um núcleo doutrinal, que permaneceria imutável.
transmitir e explicar o ensinamento do magistério, elaboran- Em função dos novos estados de consciência da huma-
do-o e justificando-o cientificamente. A teologia seria então nidade, o teólogo é testemunha de interrogação fundamental
simples auxiliar do magistério. Parece que muitas vezes é que se refere ao próprio coração da fé. Segundo a expressão
esse o caso da teologia da Cúria Romana. Isso pode levá-la do P. Labarriere, trata-se de pesquisa centrípeta e não cen-
trífuga. Por outro lado, os crentes da base não se enganam a
1 Entre os casos mais recentes de conílito, basta lembrar os este respeito: as suas dificuldades não procedem só da lin-
a/faires Pohier•, "Küng• e •schillebeeckx•. Da imensa literatura
M
guagem tradicional da fé, mas também do conteúdo da fé.
suscitada por esses conflitos citarei apenas o estudo irônico de Y.
Congar: •Les régulations de la foi•, in Le SuppUment 133, 1980, Por isso, seria fazer mau juízo dos teólogos considerá-los
pp. 260-81.
2 E a tentação do modelo de teologia dogmática Contra-Refonna, 3 Chegou se a ver certo •provincialismo teológico• em teologias
que apresentamos no capítulo precedente. Em sua bela meditação sobre particulares como a •teologia da libertação", a ªteologia negra•, a
a "situação eucarística da teologia•, J -L. Marioa não escapa com- ªteologia feminista•. Sob o título: wThéologies différentes, responsa-
pletamente a esse perigo qWUldo faz do ministério do teólogo parti- bilité commune: Babel ou la Pentecôte?", a revista Concilium (1984)
cipação no carisma do bispo, cf. Dieu sons l'etre, Fayard. Paris, 1982, procurou mostrar que o pluralismo teológico não deve levar a um
cap. V: "Ou site euclulristique de la théologie•, pp. 196-222. estilhaçamento da teologia.

90 91
responsáveis pela perturbação ou pela inquietação dos sim- tido, da qual o texto das Escrituras seria apenas o eco, nem
ples fiéis. Eles estão, ao contrário, à escuta dos fiéis para um evento histórico em sua faticidade bruta. ~ um texto
tentar fazer análise crítica de seu mal-estar e arriscar rcinter· como ato de interpretação histórica. E a distância que nos
pretação nova da linguagem da fé . separa desse texto é a condição da teologia como novo
Crer que se pode retraduzir numa linguagem nova ver- ato de interpretação para nós hoje. Existe, pois, homologia
dades tradicionais, sem proceder a uma reinterpretação des- ou relação de relações entre o Novo Testamento e sua efeti-
sas verdades, é permanecer numa concepção insuficiente vidade prática na Igreja primitiva, de um lado, e a produção
da verdade e da linguagem. De um lado, é esquecer a his- de um texto nov.o hoje e seu caráter operativo para a vida
toricidade radical de toda verdade, mesmo quando se trata presente da IgreJa, do outro. Tal prática da teologia como
da verdade revelada. Do outro, é permanecer numa con- retomada criativa é correlativa de uma concepção da ver-
cepção instrumental da linguagem como se ela fosse apenas dade .entendid~ não como sa~, mas como desvelamento pro-
o instrumento neutro de pensamento todo-poderoso e imu- gressivo, tendido para plcrutude de ordem escatológica. A
tável e como se a invariância do sentido estivesse sempre v~r~ad~ do EvangeJ?o é um advir permanente, medido pela
garantida, fossem quais fossem suas expressões verbais. distanoa entre o Cristo ontem e o Cristo amanhã.
Em contraste com essa concepção insuficiente, proporei O de~sito da fé ~obre o qual trabalha o teólogo com-
definir a teologia como reinurpretação criativa da mensagem preende. nao só a Escnrura, mas também a Tradição, não
cristã. no sentido de segunda fonte, mas no da Escritura como é
O ponto de partida do trabalho teológico será sempre compreendida pela Igreja (d. Dei Verhum 6, 24). Trata-se
o que se chama • dado revelado " ou ainda o "depósito da essencialmente da tradição dogmática como texto produzido
fé", isto é, o que foi transmitido desde os Apóstolos. Mas, pela Igreja a partir de escriruras anteriores cm circunstâncias
de fato, esse depósito da fé é o testemunho suscitado pelo determinadas.
evento Jesus Cristo, testemunho que se tomou Escritura. A t~logia como retomada criativa deverá entregar-se
Em outros termos, na revelação, não podemos separar a a uma remterpretação das verdades dogmáticas à luz de nos-
ação salvífica de Deus, que se cumpriu no evento Jesus, e a sas novas leituras da Escritura. Graças aos recursos da crítica
experiência crente da primeira comunidade cristã, que é his.tórica, ela procurará discernir o que pertence à fé apos-
sempre um conhecimento interpretativo. Isso significa que tólica do que depende da mentalidade e das representações
a teologia trabalha sobre um texto que é, também ele, "ato espontâneas de uma época. O grande principio metodológico
de interpretação". que ~eve ser usado é o da pergunta e resposta.4 A resposta,
Isso significa ainda que, na primeira comunidade cris- constituída por um dogma como tomada de consciência do
tã, a teologia, enquanto discurso interpretativo, foi contem- conteúdo ~ f~ da Igreja em dado momento, s6 pode ser
porânea da fé. Quero dizer que a teologia não é somente compreendida Junto com a questão histórica que a provo-
reflexão ulterior sobre a fé e seu conteúdo, mas que tam· cou .5
bém intervém no próprio conteúdo da fé . Isso deve aju-
dar-nos a demistificar a idéia de um conteúdo de fé que • '4 Sobre C;SSC jogo da pergunta e da resposta , veja sobretudo o
fosse invariante subjacente a traduções teológicas múltiplas 1"?.P?rw;ite ~ru.go de ~· . Schillebeeclcx: •1..e probl~e de l'infaillibilitt
nuruattnelle , m Conc1/1um 83, 1973, pp. 83-102
e variáveis. A revelação e a fé (inclusive o dogma) são tão S A esse respeito: v~ja a maneira pela qual 8. Sesbout compreende
radicalmente históricas quanto a teologia . a resposta que consu1~1u o dogma de Calcedõnia, comparando, com
GadamCT, a hermen!ut1ca teoUrica com a hennenetitica jurídica. Esse
Assim, como mostramos no capfrulo 2, o objeto llnc- dogma t decreto. de aplicaçã.o da mensagem fundadora a uma situação
diato da teologia não é uma palavra originária, cheia de scn- concreta da lgre1a: ele t ato de interpreiação e tam~m ato de juris-

92 93
Mas é possível que a simples reinterpretação da res· dogma de Efeso sobre a maternidade divina e os dogmas
posta num contexto novo como o nos~o não seja suficient:· mariais recentes da imaculada conceição e da assunção.
Não devemos então afastar a eventualidade de reformulaçao Acrescento, enfim, que a tomada a sério da historici-
do dogma. A repetição pura e simples das fórmulas dogmá· dade radical das fórmulas dogmáticas pode ajudar-nos a com-
ricas pode gerar contra-sensos e confusões, se osA term~s preender a dialética de continuidade e de ruptura, constitu-
e os conceitos filosóficos assumidos pelo dogma tem hoJe tiva da tradição cristã. A verdadeira tradição não é repro-
outra significação. Devemos aceitar mudança na formulação dução mecânica, mas sempre produção nova. O cristianismo
justamente para sermos fiéis ao valor permanente de uma não é desdobramento linear de uma história já contida em
afirmação de fé. E quando sabemos o quanto as fórmulas germe em sua origem. E sabemos que a idéia de desenvol-
dogmáúcas dependem de elabora~o t7°lóçica particular, é vimento homogêneo tem sabor fortemente apologérico.7
permitido perguntar-nos se o mag1sténo ainda pode deter-
minar a fé mediante definições dogmáticas no momento
em que a Igreja deve conformar-se com pluralismo teoló-
li. O SENTIDO DE REGRA DE Ft NA IGREJA
gico insuperável. Os responsáveis eclesiais ?evem pensar se-
riamente nessa questão, uma vez que no fim deste segundo
milênio a Igreja tem o dever urgente de atualizar a me~agem Desde a origem do cristianismo histórico, encontramo-
cristã em outras culturas, diferentes da cultura oadental. nos diante de pluralidade de confissões de fé. Sabemos que
A história da tradição nos atesta, contudo, que divergências o próprio Novo Testamento contém várias teologias que não
na expressão podem salvaguardar a unanimidade na fé. Por podem ser reduzidas a uma unidade doutrinal simples.8 Exis·
que, por exemplo, não seria possível hoj: ? que foi possí~el tiu, portanto, um processo contínuo de gênese dessas confis-
em 433 quando do ato de união de Cririlo de Alexandria, sões dentro da Escritura, na época das primeiras expressões
reconhC::endo a diferença das fórmulas cristológicas que opu- eclesiais pós-apostólicas e até os desenvolvimentos dogmáti-
nham Alexandria e Antioquia? cos ulteriores - e isso sob a pressão de condicionamentos
Em conclusão de tudo isso, direi que a reinterpretação históricos novos.
do dogma não consiste em declarar que o que era verdade Hoje, se não nos princípios, pelo menos na prática acei-
ontem tornou-se falso hoje, mas em ressituar um dogma tou-se um pluralismo teológico de fato, em conseqüência da
particular no conjunto da fé e em compreender que ele explosão da cultura. Independentemente da permanência da
pode exercer, hoje, função diferente da que exerceu quando divisão das Igrejas cristãs, é necessário mesmo falar de plu-
formulado. A este respeito, devemos ter na maior conside- ralismo legítimo das confissões de fé, à medida que as Igre-
ração o principio da "hierarquia das verdades", revaloriza~o jas locais estão enraizadas em experiências históricas, cul-
pelo Vaticano II.6 Assim, no diálogo com as outras confis- turais e sociopolíticas irredutíveis. Por isso, só pode causar
sões cristãs, não deveríamos pôr em plano de igualdade o inquietação constatar que o magistério se situa muito ex-
clusivamente na linha tradicional da Igreja do Ocidente,
quando o futuro da fé cristã se joga cada vez mais em ou-
prudência Cf. B. Sesbou6, •Le prt>Cà contemporain de Chalcedoine•, tros coo tinentes.
in RSR 65/1. 1977, pp. 45-80; veja também a obra recente do mesmo
autor, /ésus-Christ dans la tradition de l'l!glise (•J&us et )6sus-Christ•
77), Desclée, Paris, t 982, pp. 141> 7. . . 7 Cf. f.-P. Jossua, art . cit., acima, cap. 3, nota 3.
6 Veja o Cllmentário (com bibliografia completa) desse Pi:tnc!J?tO, 8 E. Kiiscmann mostrou que ~ impossível reduzir a uma unidade
enunciado no decreto sobre o ecumenismo. de Y. Congar, D1vers1th formal as eclesiologias diferentes do Novo Testamento, cf. Y. Congar,
et communion (•Cogitatio Fidci• 112), Cerf, Paris, 1982, pp. 184-97. op. cit., pp. 19s.

94 95
ccnte no sentido de norma diferente da doutrina recebida
Em todo caso, a questão de uma regra de fé se põe com dos Apóstolos e entregue à Igreja.
muita urgência . Em relação a esta questão podemos encon- Mas, cm virtude de evolução histórica. que o P . Congar
trar duas atitudes extremas. descreve em sua obra sobre a Tradição, 10 manifestou-se a
Uns apelam para a pretensão absoluta do cristianismo tendência de distinguir cada vez mais entre tradição passiva,
à universalidade e, graças à autoridade formal de um poder isto é, o conteúdo da fé, e tradição ativa, isto é, o magis-
central, esforçam-se por promover uma uniformid~dc da_ dou- tério que propõe esse conteúdo. De fato, o magistério, cm
trina e da prática cristã. Mas trata-se de falsa uruvcrsalidadc sua função normativa, tomou-se a regra próxima da fé. Com
abstrata, com o risco de ortodoxia verbal que não atinge a isso foi indevidamente aumentado o poder da autoridade
vivência irredutível de cada fiel . Sem excluir o perigo de A eclesiástica, que enuncia a fé , quando a única regra da fé
confissão de fé, cm vez de ser expressão espontânea do povo de toda a Igreja não é uma autoridade criada, mas o próprio
de Deus, tomar-se instrumento de poder nas mãos dos res- Deus, Deus como Verdade primeira, para falarmos com santo
ponsáveis hierárquicos. Tomás. Nessa linha esquece-se muitas vezes que a verdade
Outros, à força de respeitarem todas as opiniões e tole- do Evangelho como objeto de fé não é só corpus doutrinal,
rar todas as práticas cristãs, chegam a um "cristianismo ex- verdade-coisa, mas verdade dinâmica, verdade adveniente,
plodido" . Isso compromete a identidade do que nos foi trans- verdade praticada no sentido de são João. Trata-se de ver-
mitido pelos Apóstolos. Além disso, também a visibilidade dade visada e jamais possuída. Dizemos que o caráter ines-
social do cristianismo no mundo fica ameaçada. gotável da mensagem cristã se enraíza na distância entre a
Não podemos, portanto, seguir a economia de uma re- Palavra de Deus consignada na Escritura e o Evangelho co-
gra de fé. Haverá necessariamente uma parte de re~a­ mo plenitude escatológica. Ele é , ao mesmo tempo, memória
mentação social da linguagem da fé . E , dentro da lgreJa, é e promessa. Desde as origens, sabemos que o capital de ver-
necessário aceitar certa tensão entre as exigências de autenti- dade evangélica da prática eclesial ultrapassa o conteúdo ex-
cidade de minha fé pessoal: •Que importância tem para mim plícito das confissões de fé. E como não existe identidade
uma linguagem que não é verdadeira para mim? ", e as exi- entre a Igreja e o reino de Deus, também não existe identi-
gências de minha comunhão com todos aqueles que se dizem dade entre a confissão de fé dogmática e a Palavra de Deus.
de Cristo: " Que importância tem para mim uma verdade
que me separa de meus irmãos? "9
Distinguirei a seguir o sentido histórico da expressão B. As instâncias da regulação da fé
regula fidei, as instâncias da regulação da fé na Igreja e os Devemos discernir três instâncias: a do povo dos cren-
critérios da verdadeira regra de fé. tes, a dos pastores e a da comunidade dos teólogos. E o bom
uso da regulação supõe a interação das três .
A. A expressão "regula lidei" 1. O povo dos crentes
Encontramos a expressão •regra da verdade " pela pri- A indefcctibilidade, isto é, a permanência na verdade,
meira vez cm santo lrineu. Nos primeiros séculos da Igreja, é uma promessa feita por Cristo a toda a Igreja, Povo de
a expressão regula /idei não designava um ato da Igreja do- Deus. E a infalibilidade ministerial, a dos responsáveis hic-

9 Cf. M de Ceneau, •y •t-il un langage de l'unitt? De quelquca 10 Cf. La Tradition et ln traditions, 1. Essai historique, Fayard,
conditions prúlabtes• , in Concüium 51, 1970, pp. 72.a9. Paris, pp. 233-57 e notas, pp. 279-91.

96 97
4 • Como fazer Lcoloata boje
rárquicos, é apenas a expressão dessa indefcctibilidade de bispo de Roma continua a missão confiada aos Apóstolos
toda a Igreja. de transmitir a mensagem de Jesus. J;: numa convicção de
Seja o que for dos erros, dos desvios e da imbricação fé que aceitamos o papel do magistério pastoral do papa e
inextricável do que é reformável e do que é irreformável, dos bispos de decidirem, em caso de conflito ou de pertur-
a Igreja está sob o signo da epiclese permanente do Espirita. bação da legitimidade de uma nova interpretação da confis-
J;: necessário, pois, tomar a sério o sensus fidei de todos os são de fé ou de uma nova confissão de fé. Contento-me
fiéis e falar de "auto-regulação" de todo o povo dos crentes com lembrar aqui algumas das condições mais comumente
como organismo vivo em sua procura da verdade toda. "Dis- admitidas, que favorecem o bom exercício dessa regulação do
cerni tudo e ficai com o que é bom" ( 1Ts 5,21 ) : é reco- magistério.
mendação que se dirige a todos os cristãos. A importância 1. O magistério está submetido à Palavra de Deus, isto
desse sensus fidei foi claramente sublinhada, especialmente é, ao testemunho da Escritura relida na fé da Igreja, mas
na Lumen gentium: "O conjunto dos fiéis, ungidos que são levando em consideração os resultados irrecusáveis da exe-
pela unção do Santo, não pode enganar-se no ato de fé. gese crítica.
E manifesta esta sua peculiar propriedade mediante o senso
sobrenatural da fé de todo o povo ... " ( LG II, 12) .11 2. O magistério está a serviço da comunidade eclesial
Encontram-se na história da Igreja vários exemplos des- e de seu testemunho. Isso significa que ele não pode usar
sa vigilância na fé do conjunto do Povo de Deus. Assim, a confissão de fé como instrumento de poder. Ele deve, ao
durante a controvérsia ariana, a confissão de fé foi preser- contrário, estar à escuta do sensus /idei, que se exprime de
vada não pelo episcopado, mas pela fé de toda a comuni- maneira variada em toda a Igreja. Em outras palavras, a
dade cristã. E mesmo hoje, a não-recepção ativa pelos cren- aceitação pelo conjunto do Povo de Deus do ensinamento
tes da base de ensinamento ou de lei promulgada pelos res- dos responsáveis hierárquicos é critério certo de verificação
ponsáveis oficiais tem valor de sinal. Não basta condenar de sua credibilidade e de sua força de persuasão.
como ilegal uma práxis eclesial nova. A história nos ensina J . O magistério - especialmente quando se exprime
que uma prática inicialmente em conflito com a ordem ecle- mediante essa instância de regulação que é a Congregação
sial oficial pode tomar-se com o tempo a prática dominante da Fé - deve exprimir-se para toda a comunidade eclesial
da Igreja e acabar por receber a sanção oficial da autoridade. em nome da fé apostólica, e não em nome de uma teologia
b preciso, por isso, confiar na vitalidade evangélica do povo particular, mesmo que fosse a da Cúria Romana.
cristão e considerar que muitas vezes as "renovações" mais
conformes à condição exodal do Povo de Deus vêm de baixo 4. O magistério tem autoridade sobre a interpretação
e não de cima. No domínio litúrgico, por exemplo, não san- da fé proposta pelos teólogos, mas deve ter na maior consi-
cionou o Concilio Vaticano II iniciativas vindas, em grande deração a pesquisa teológica em seu esforço, para exprimir
parte, da base? de maneira cientificamente responsável o sensus fidei dos
crentes e para reinterpretar a confissão de fé em função das
2. Os pastores interrogações mais radicais de nosso tempo.u

J;: a instância de regulação na qual pensamos mais es- llum, réílexion tMologique", io Foi populaire, /oi savante, Cerf, Paris,
1976, pp. 9-40.
pontaneamente. O corpo dos bispos em comunhão com " 12 Devemos reconhecer que até às v~peras do Vaticano li assisti-
mos não só a uma supervalorização do magistério, mas também a
11 Entre outros trabalhos sobre o sensus f;delium. recomendamos certa confusão entre a função dogmática e a função teológica na
de modo muito especial o estudo de J.-M. R. Tillard, •te sensus fid~ Igreja. Isso era inevitável, uma vez que o clima da Contra-Reforma,

98 99
3. A comunidade dos teólogos mulação. Ele aprenderá, particularmente, a distinguir a ver-
dade de uma formulação dogmática, em resposta ao contex-
Já falei do trabalho teológico como reinterpretação cria- to histórico que lhe deu origem (aqui, a certa altura, a
tiva. Aqui desejaria apenas insistir no papel orgânico dos autoridade responsável é a eclesial), da verdade da afirmação
teólogos no processo complexo da regulação da fé. Distin- de fé enunciada nesta e por esta formulação (aqui a autori-
guirei uma função pastoral dos teólogos e uma função cien- dade responsável é a Palavra de Deus) . S necessária uma
tífica. sã criteriologia para que não se atribuam o mesmo valor e a
1. Os teólogos exercem função de mediação entre o ma- mesma autoridade a todos os atos magisteriais.
gistério e os fiéis, e isso em dois sentidos. De um lado, eles Nesse trabalho arriscado, mas responsável, o teólogo de-
dão expressão refletida à vitalidade evangélica da comunidade ve poder caminhar longamente e tem direito ao erro. Mas
cristã, em solidariedade com a vida e as questões de todos deve poder beneficiar-se da regulação e da crítica construtiva
os homens. Com isso eles podem ajudar o magistério em da comunidade dos teólogos, antes de ser freado prematura-
sua tarefa, sensibilizando-o para as necessidades reais dos mente em sua pesquisa pelas medidas disciplinares de uma
fiéis e para os deslocamentos da cultura. Do outro lado, eles congregação romana.
se esforçam por explicar e interpretar o ensinamento oficial
da Igreja, para que ele chegue realmente, e não apenas ver-
balmente, à inteligência e ao coração dos fiéis. C. A questão dos critérios
2. O teólogo deve ter espaço de liberdade para se entre-
gar a pesquisa exigente, sem outra preliminar que não seja Tudo o que tentei dizer até agora tende a mostrar que
o amor à verdade e a certeza de que o mistério de Cristo não basta .afirmar a autoridade jurídica de um magistério
supera todos os enunciados que a Igreja possa emitir sobre para que fique assegurada a regulação da fé na Igreja. De-
ele. Ele se sente mais particularmente responsável pelo fu- ve-se falar, preferivelmente, de auto-regulação de toda a Igre-
turo da fé cristã perante a instância crítica da razão humana. ja, enquanto corpo vivo, no qual cada um é chamado a to-
Isso significa que ele deve levar em conta não só o escânda- car a sua partirura. A regra de fé é o objeto mesmo da fé
lo dos fracos, mas também o escândalo dos fortes . Significa º, ~stério de Cristo enquanto capaz de suscitar figuras bis~
também que ele deve não só criticar as heresias progressistas, tortcas sempre novas na ordem da confissão e na ordem da
mas também denunciar as heresias conservadoras. Para isso, prática.
em nome da seriedade de sua pesquisa, ele não pode deixar Mas, em caso de conflito, em caso de pluralidade irre-
de manifestar a distância que pode haver entre uma doutrina dutível de interpretações, qual será o critério para julgar o
oficial e a confissão de fé cristã no que ela tem de mais que é conforme à fé da Igreja e o que não é?
autêntico. Em relação a uma nova formulação da fé, não se pode
Concretamente, o teólogo exercerá discernimento críti- contentar-se com apelar para a letra da Escritura. Não se
co a respeito dos enunciados tradicionais da fé, com a con- pode também apelar para uma espécie de invariante quimi-
vicção de que não há nada irreversível em matéria de for- camente pura, que seria o conteúdo mínimo da fé cristã na
forma de enunciado imutável e irreformável através de to-
a chamada teologia barroca, tendeu a edificar um sistema no qual dos os séculos. Certamente o critério deverá ser sempre pro-
o magist4!rio se revestia praticamente de uma autoridade maior do curado em função do que está no centro da confissão cristã
que: a da própria Escritura. Depois do Vaticano 11 , distinguem-se
malS claramente a função de regulação do rnagistl!rio e a função cien- Jesus? o Cristo, a sua vida e a sua pregação. Mas isso ain&:
tífica da pesquisa teológica. é muito geral.

100 101
O verdadeiro critério será sempre não norma estática
e exterior, mas critério dinâmico, a saber, uma relação pro-
porcional entre várias idéias-força que constituem a subs-
tância do cristianismo e que se referem a Cristo como ao seu
centro.
Finalmente a verificação, e, portanto, o julgamento, per-
tence a toda a comunidade eclesial como comunidade confes-
sante e como comunidade interpretante em sua escuta sem-
pre nova da Palavra de Deus. Há discernimento pr6prio da
fé vivida em relação à fé confessada. A liberdade de inter- SEGUNDA PARTE
pretação não é indefinida. !! permitido acrescentar que ela
é medida não por conteúdo proposicional intangível, a ser O TESTEMUNHO INTERPRETATIVO DA~
transmitido mecanicamente de século em século, mas pela
permanência da relação religiosa do homem com Deus inaugu-
rada em Jesus, cuja identidade através de todos os tempos
da Igreja é assegurada pelo Espírito Santo. Se, em caso de
necessidade, o magistério tiver de intervir, ele o fará como
servo da totalidade da fé da Igreja, da fé católica no sentido
de sua universalidade no tempo e no espaço. Tratar-se-á sem-
pre de procurar o que é essencial à fé apostólica. Id quod
requiritur et id quod sulficit: esse princípio de base do tra-
balho ecumênico na pesquisa de fórmula de união entre as
diversas confissões cristãs deve ser aplicado também na co-
munidade eclesial católica, com a condição de não ser enten-
dido em sentido quantitativo.
Falei, no começo, da fidelidade criativa do teólogo. A
teologia é sempre tradição, no sentido que é precedida por
uma origem que é dada, o evento Jesus Cristo, cujo sentido
nenhum enunciado esgota. Mas ela é sempre, também, pro-
dução de linguagem inédita, porque essa origem da só pode
redizê-la historicamente e segundo uma interpretação criativa.

102
'
A RESSURREIÇÃO DE CRISTO
COMO TESTEMUNHO INTERPRETATIVO

O testemunho é, sem dúvida, a possibilidade mais ir-


reduúve1 do discurso humano. Em si mesmo, ele é " processo
de interpretação n como encontro criativo do evento e do
sentido, da experiência e da linguagem. .E no discurso do
testemunho que aparece melhor o nexo inextricável entre a
realidade e a linguagem do qual nos fala a nova hermenêu-
tica. Um acontecimento que não entra para tradição de lin-
guagem e, portanto, para sucessão de testemunhos torna-se
logo acontecimento insignificante e até cessa de ser aconteci-
mento hist6rico. Segundo a palavra de Eruico Castelli, "um
fato não interpretado não testemunha ".
O testemunho como possibilidade original do discurso
humano testemunha a irredutibilidade dos acontecimentos
históricos a fatos brutos e a irredutibilidade da palavra à
linguagem como sistema. O testemunho é sempre evento de
palavra: ele é o dizer de alguém a alguém. Uma reflexão
sobre o testemunho nos obriga a superar o positivismo das
palavras como também o positivismo dos fatos, porque o
testemunho se situa justamente na articulação viva da palavra
e do evento. E diante de um estruturalismo que quereria
permanecer no " positivismo dos sinais" , o testemunho, co-
mo possibilidade original do discurso humano, é o mais pr6-
prio para nos fazer pressentir o mistério da linguagem en-
quanto promoção do "dizern por livre decisão.
O testemunho remete sempre à liberdade da testemu-
nha, à sua intenção significante e, portanto, a um destinatá-
rio. Quando o homem não habita t:nah; a linguagem como
sinal do ser e de Deus, a palavra como testemunho, isto é,

105
como interpelação da consciência humana, guarda mais do munha num processo era (como ainda é) aquele que podia
que nunca sua urgência. O testemunho contesta todos os fornecer uma informação de primeira mão sobre aconteci-
cesarismos, a começar pelo "cesarismo da ciência". Os cére- mentos nos quais estivera implicado ou aos quais assistira
bros eletrônicos podem, melhor do que a memória humana, pessoalmente. Nesses casos o testemunho se funda numa ex-
fornecer informação sempre mais copiosa e sempre mais se- periência imediata: digna de fé é somente a testemunha
gura. Mas não podem testemunhar. E quando, se.gundo al- ocular e auricular.
guns, devemos lamentar cada vez mais certa normalidade na Mas encontramos no grego clássico outro uso do termo
ordem do saber e na ordem ética, poderia bem acontecer testemunha e de seus derivados.1 Ele não pertence mais à
de o testemunho - especialmente quando ele é a expressão área jurídica, mas à esfera da ética. A testemunha não é mais
de comunidade humana - se tornar a fonte de nova objeti- aquele que testemunha acontecimentos reais apoiado numa
vidade, para lá do dilema tipicamente moderno de "objeti- experiência imediata, mas aquele que se faz porta-voz de
vidade alienante" ou de "subjetividade inconsistente". uma opinião pessoal ou de verdades das quais está convenci-
Essas poucas palavras sobre o testemunho como do. Em outras palavras, o testemunho não é mais a expres-
possibilidade original do discurso humano nos cenvidam a são de saber experimental, mas de fé.
refletir sobre a estrutura do testemunho enquanto ele depen- Mas, a despeito dessa divergência de sentido ( testemu-
de indissociavelmente da fé pessoal e do saber. O teste- nho sobre acontecimentos - testemunho prestado a uma
munho é inseparavelmente atestaç.ão histórica e "evento de verdade ), existe parentesco profundo que justifica essa passa-
palavra" . Eu gostaria de mostrar isso a propósito do teste- gem da ordem objetiva do processo para a esfera da ética, a
munho dado à ressurreição de Cristo. Trata-se, sem dúvida, saber, a convicção íntima e irrecusável como fonte do teste-
de caso limite. Mas é também caso privilegiado para enten- munho e o engajamento da testemunha em sua palavra.
der a atividade interpretante em ação no testemunho. Fazer Aquele que testemunha uma verdade não testemunha em no-
a hermenêutica do testemunho é fazer a interpretação da me da evidência constrangente de um fato empírico; ele fala
interpretaç.ão em ato. E é a propósito do testemunho dado em nome de uma certeza interior que, para ele, tem força
aos eventos fundadores do cristianismq que vemos o melhor de evidência. O testemunho é a expressão pública de uma
possível ós limites do positivismo histórico como hermenêuti- palavra interior irrecusável. Por isso, aquele que testemunha
ca psicologizante. Antes de estudar as relações da experiên- uma verdade na ordem dos valores e do agir humano está
cia e da linguagem como elementos constitutivos do teste- pronto a sacrificar a liberdade de viver à liberdade de falar.
munho da ressurreição, gostaria de colher a lição proporcio- A linguagem corrente sabe por instinto que não i;e dá teste-
nada pelo estudo das origens do termo " testemunha ". munho a verdades científicas. Testemunham-se somente ver-
dades ou valores pelos quais a testemunha está pronta a mor-
rer. Nisso está a diferença entre o informante e a testemunha.
Os computadores podem suprir a linguagem da informação,
1. NA ORJGEM DO TERMO "TESTEMUNHA" nunca a palavra da testemunha.
A originalidade do testemunho referente a julgamentos
de valor nos sugere que ele não é redutível ao puro teste-
A. "Testemunha" na linguagem corrente munho sub;etivo em oposição ao testemunho obietivo, que
Não é inútil lembrar que o termo "testemunha" ( már- 1 Sobre o uso do termo "testemunha" no grego não bíblico, veja
tys) foi usado inicialmente na linguagem judiciária. Teste- o artigo de Strathm.a nn in Kittel. Theol. Wort. lV, 478-84.

106 107
se refere a acontecimentos ou situações verificáveis. Na ver- de sua ressurreição, e aquele que testemunha esses mesmos
dade, a liberdade da testemunha está sempre engajada, mas acontecimentos na fé.2 Embora em Lucas a idéia de teste-
ela não testemunha até à morte para comunicar simples con- munha esteja ligada ao testemunho dado a acontecimentos
vicção pessoal: seria obstinação ou fanatismo. Ela testemu- históricos, ela é alargada: trata-se sempre de testemunho de
nha para celebrar uma ordem objetiva de verdade. C:Omeça- crentes. A ressurreição é acontecimento real, mas não se si-
mos a pressentir o estatuto epistemológico original do tes- tua no mesmo plano que os outros acontecimentos da vida
temunho, quando se trata do testemunho de um "crente". histórica de Jesus. Ela não pode ser atestada unicamente
Existe estatuto misto, objetivamente insuficiente e subjeti- com base no testemunho de testemunhas oculares, devendo
vamente suficiente, que pode ser aproximado do estatuto ser atingida na fé, e é então que ela se torna objeto de
misto dos postulados da razão prática de Kant. Na ordem testemunho.
do saber teórico, a fé-crença tem a fragilidade do provável. ~ notável, na teologia de Lucas, que somente os Doze
Mas, na ordem prática, a fé racional corresponde à ordem sejam testemunhas da ressurreição (At 1,22;2.32;4,33;10,
objetiva dos fins necessários do agir humano. Se a verdade 40), quando houve número maior de testemuhas oculares
honrada pelo testemunho nasce no domínio dos fins necessá- das aparições. O testemunho da ressurreição é limitado ao
rios na ordem do agir, compreende-se que o testemunho não pequeno círculo dos Doze porque "conhecer" a ressurreição
seja redutível ao arbítrio de subjetividade. Ele é a expressão é conhecer na fé. Dar testemunho à ressurreição não consiste
de normatividade, a das verdades práticas, que escapa à per- em transmitir informação neutra sobre acontecimento hist6-
cepção do saber puramente teórico. Dizemos que o campo rico, mas em identificar, e, portanto, em interpretar na fé,
do testemunho corresponde à questão de Kant: "Que me é esse acontecimento como salutar por excelência. E se a qua-
permitido esperar? n lidade de apóstolos é limitada ao grupo dos Doze é porque
Apesar da força de convicção comum aos dois tipos de o testemunho da ressurreição é o objetivo do ministério
testemunho, o testemunho compreendido como testemunho apostólico. O testemunho apostólico exige da testemunha
da fé-crença na ordem do valor tenderá cada vez mais, na não só que ela seja uma testemunha direta digna de fé, mas
linguagem corrente, a perder seu enraizamento no primeiro também que dê sua adesão na fé ao Evangelho como men-
sentido do termo testemunha, aquele que ele tem na lingua- sagem de salvação. Esse testemunho apostólico foi a fonte
gem jurídica. Ora justamente na linguagem do Novo Testa- de todos os outros testemunhos na Igreja. O conhecimento
mento os dois sentidos do termo testemunha distinguidos cristão da ressurreição será sempre conhecimento apostólico,
até aqui estão associados de modo original: ao mesmo tempo, "sobre o fundamento dos Apóstolos" ( Ef 2 ,20), isto é, uma
a testemunha ocular de acontecimentos num processo e a participação no conhecimento dos Apóstolos.
testemunha na ordem dos valores. Trata-se do testemunho Em são João, o verbo " testemunhar" (martyrein) con-
de um "crente". Mas aí "crente" remete não à fé filosófica, serva seu sentido primitivo, o da linguagem judiciária, e,
mas à fé positiva fundada em revelação histórica. por isso, é necessário que a testemunha tenha visto e ouvido
(Jo 1,34;3,11.32;19,35; lJo 1,2;4,14) o que testemunha.3
Mas esse primeiro sentido é constantemente ultrapassado
B. "Testemunha" na linguagem do Novo Testamento
2 Cf. Strathmann, M6rtys no Novo Testamento, op. cit., pp. 492-510.
1! principalmente em são Lucas que o termo testemunha 3 Sobre são João, além do artigo de Strathmann, consultamos
E. Neuhiiusler, •Zeugnis•, in úx. /. theol. u. Kirche, col. 1361-62, e
designa de modo indissociável aquele que foi testemunha de N. Brox, "Témoignage•, in Eneyclopédie de la foi 4, Ed. du Cerf,
acontecimentos históricos da vida de Jesus, particularmente Paris, 1967, pp. 285-94.

108 109
numa concepção original do testemunho, na qual o "saber" testemunha estão associados de maneira inextricável. Gosta-
da testemunha vem da fé no testemunho de Jesus e não de ria agora de estudar o testemunho da ressurreição como a
experiência sensível. S6 Jesus é a testemunha fiel por exce- expressão de experiência única, na qual a atestação de um
lência (Ap l ,5 ;3,14) . Ele veio ao mundo para dar teste- acontecimento é indissociável da reinterpretação crente. Não
munho à verdade (Jo 18,37) . E ele pode ser testemunha se trata de reeditar debate tipicamente apologético sobre as
verdadeira porque ele é aquele que sabe ( 5 ,3 2 ) . Ele teste- relações entre certeza hist6rica e fé sobrenatural no ato de
munha o que viu e ouviu junto do Pai ( 3 ,11 .32 ) . E se, daf fé . O que me interessa é refletir no testemunho como caso
para frente, os homens são capazes de transmitir o testemu- exemplar do encontro da realidade com a linguagem. A res-
nho recebido é porque, também eles, sabem na fé . surreição de Cristo é evento real que se produziu e evento
Segundo a compreensão joanina, não existe testemunho da linguagem da fé, " evento de palavra" (Wortgeschehen).
sem testemunho ocular, mas, em suma, as testemunhas ocula- Ela é, sem dúvida, irredutível a qualquer outro evento his-
res testemunham "coisas do céu" . Por isso o seu testemunho t6rico, mas nos ajuda a assinalar o que está em jogo na
s6 pode ser recebido na fé, que não julga "conforme a carne" estrutura de todo testemunho quando ele se refere a aconte-
(8,15) . Uma vez que o testemunho se refere a uma reve- cimento histórico. Testemunhar é fazer a experiência ime-
lação, a garantia da autenticidade do testemunho é somente diata de um evento reviver na palavra; mas, diferente de
a autoridade da testemunha : Jesus reivindica o testemunho simples repetição, é sempre "reprodução " original do acon-
do Pai, os discípulos reivindicam o testemunho de Jesus . tecimento.
Assim, enquanto em Lucas a autenticidade do testemunho
repousa numa garantia de ordem hist6rica - a das testemu-
nhas da ressurreição - , para João, o testemunho remete li. EXPERl.2NCIA E LINGUAGEM NO TESTEMUNHO
à pr6pria testemunha e à sua veracidade. Devemos aceitar o DA RESSURREIÇÃO
testemunho relativo à revelação porque as testemunhas são
dignas de fé . E somente a fé dá essa certeza. Sem dúvida,
a teologia joanina do testemunho não rompe o nexo entre A. As linguagens da fé pascal
a fé e a hist6ria. Mas ela não procura apoiar a fé no mis-
tério do Verbo encarnado sobre o testemunho hist6rico pres- O melhor meio para o discernimento dos elementos
tado ao evento da ressurreição. Não se preocupa ela, antes comprometidos na estrutura do testemunho prestado à res-
de tudo, com mostrar que a fé tem seu fundamento pr6prio surreição de Cristo seria fazer rigorosa análise da linguagem
na "revelação do Pai " e não na "carne e no sangue"? E é do Novo Testamento no que se refere a Jesus ressuscitado.
precisamente o quarto evangelho que privilegia a fé sem vi- Este trabalho já foi feito por outros.• Aqui queremos somen-
são em relação à de Tomé, que quis ver para crer (Jo 20,29). te reunir as conclusões que concernem mais diretamente ao
No termo dessas breves obse.rvações sobre o sentido nosso prop6sito.
do termo testemunha, constatamos que o sentido de teste- Se considerarmos todos os textos do Novo Testamento
munha na linguagem jurídica, isto é, de quem atesta a exis- sobre a ressurreição, poderemos distinguir dois tipos de lin-
tência de fato empírico, tende a se distanciar sempre mais
- pelo menos na linguagem corrente - do sentido de tes- ~ Apoiamo-nos aqui especialmente nos dois trabalhos exeg~ticos
cl4ss1cos na língua francesa: X. Uon-Dufour, Résurrection de / ésus
temunha na linguagem ética ou religiosa. et message pascal, Scuil, Paris, 1971, e J. Delonne, • La rúum:ction
Ora, como o mostra o estudo do vocabulário do Novo de J~us dans le langage du Nouveau Testament• , in ú l.Angage de
Testamento, na linguagem cristã os dois sentidos do termo la /oi dans l'Ecriture et dans le monde actuel Cerf Paris 1971 pp
101-82. • • • • .

110 111
guagem: ao lado da linguagem do testemunho ou da confis- Assim, a preocupação de chegar à historicidade da res-
são de fé, existem textos narrativos, textos históricos e surreição, a partir dos textos mais descritivos e mais nar-
interpretações teológicas. Mas podemos ater-nos a dois gê- rativos do Novo Testamento, não deve nunca fazer esquecer
neros literários fundamentais, o testemunho e a narração, que esses textos são objeto de pregação dirigida aos· judeus
por exemplo, o testemunho de Paulo na primeira carta aos e aos gregos: são o evangelho proposto à fé . Para usarmos
Coríntios e as narrações evangélicas sobre a descoberta do distinção familiar aos lingüistas, eles não são enunciados
túmulo vazio e sobre as aparições .5 constativos, mas enunciados performativos. E quando se trata
Na primeira carta aos Coríntios, Paulo se faz porta-voz ":e
das breves confissões de fé primitivas: verdade! o Senhor
da tradição relativa às aparições: "Apareceu a Cefas, e de- ressuscitou" ( Lc 24 ,34 }, "elas mais anunciam do que enun-
pois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos ciam a fé" .7 "Elas não se apresentam como descritivas, não
irmãos de uma vez (a maioria dos quais ainda vive, enquanto fornecem informações. Elas mediatizam uma adesão a Deus
alguns já adormeceram) . Posteriormente, apareceu a Tiago, e a Jesus . "8 Com o auxilio das análises de Austin, J. De-
e, depois, a todos os Apóstolos . Em último lugar, apareceu lorme estudou a força "ilocucionária" dos verbos gregos usa-
também a mim como a um abortivo ... " (lCor 15.5-8) . Mas dos por são Paulo para proclamar a fé pascal.9 Segue-se daí
essa narração objetiva das aparições faz parte de discurso que se trata de um tipo de discurso no qual o interlocutor
que pertence ao gênero testemunho. As aparições são objeto é convidado a tomar decisão pessoal. A linguagem não é ins-
do credo que ele transmite aos coríntios: d ., por exemplo, trumento neutro de comunicação de informação. E mesmo
o v. 11: "Eis o que pregamos. Eis também o que acreditas- quando usa o registro da narração, o discurso de Paulo sobre
tes", e os vv. 14-15 : "E, se Cristo não ressuscitou ... acon- Cristo ressuscitado não se apresenta como enunciado consta-
tece mesmo que somos falsas testemunhas de Deus." E, in- tivo, mas se aproxima de enunciado performativo.
versamente, as narrações evangélicas apessoais sobre as apari- Devemos acrescentar que o poder de Deus que se ma-
ções são expressão de experiência pessoal imediata e de rein- nifestou na ressurreição de Cristo é o mesmo que depois
terpretação crente dessa experiência. "Segundo a evolução se manifestou na pregação apostólica: esta é "uma demons-
dos discursos no Novo Testamento, a aparição não pôde por tração de espírito e poder " (lCor 2,4 ). Assim, o próprio
muito tempo ser objeto de narração autobiográfica. Muito testemunho é "evento de palavra" em continuidade com o
cedo ela foi integrada na narração apessoal ."6 evento da ressurreição na origem do testemunho. Os dois
Vemos, pois, que não devemos urgir a distinção entre "eventos" são manifestações do poder de Deus. E é ainda
"testemunhos" e "narrações" nos enunciados sobre a ressur- o poder de Deus que está em ação na adesão do crente ao
reição de Cristo. O mais interessante para nós é, antes, cons- testemunho do Apóstolo. Trate-se do testemunho das pri-
tatar que na estrutura de todo discurso sobre a ressurreição meiras testemunhas, da pregação apostólica ou da confissão
de Jesus verifica-se uma relação do tipo da do pregador com de fé dos crentes, estamos na presença de expressões dife-
o fiel . Em outras palavras, a testemunha está sempre im- rentes de experiência comum, na qual a atestação histórica,
plicada no que diz e é sempre visado um destinatário, no a fé e o poder do Espírito estão implicados de maneira in-
qual ela quer despertar a fé . Isso é evidente nos discursos dissociável.
de Pedro e de Paulo referidos nos Atos . Mas poderíamos A análise da linguagem da ressurreição é, pois, instru-
verificar o mesmo também no discurso narrativo do prólogo tiva quanto à natureza do testemunho dado a Cristo ressus-
dos Atos (At 1,1-3 }.
7 (d . ibid., p. 164.
5 Cf. X. Léon-Dufour, op. cit., p. 258. 8 ld., ibid., p . 177.
6 J. Delonne, op. cit., p. 157. 9 ld., ib:d., pp. 159s.

112 113
citado e quanto à natureza <lo evento da ressurreição. Não se texto e o presente de nossa cultura, e a distância entre o
trata de verificação empíric& ou de relação de acontecimentos, texto e os acontecimentos aos quais ele remete. Em outras
como pode ser feito por uma testemunha num processo. palavras, a Escritura é menos dado inspirado diretamente
Na origem do testemunho existe a experi~ncia de alguma por Deus do que testemunho, cujo sentido devemos decifrar,
coisa nova, de acontecimento exterior à testemunha, do qual situando-o na tradição . Os protestantes foram, pois, levados
ela não tem a iniciativa. O melhor meio para se manter fiel a pôr em questão a autoridade "autônoma n da Escritura. Co-
aos textos é falar de "visão objetivan, cf. At 1 3 : "Ainda a mo observa Pannenberg, ...para Lutero, o sentido literal da
eles (os Apóstolos) Jesus se apresentou vivo depois de sua Escritura ainda é idêntico ao seu conteúdo histórico. Para
paixão, com muitas provas incontestáveis: durante quarenta nós, ao contrário, os dois são separados. Não podemos mais
dias apareceu-lhes e lhes falou do que concerne ao reino de fazer a imagem de Jesus e a sua história, apresentada pelos
Deus. n Mas essa experiência originária está envolta em ex- diferentes autores neotestamentários, equivaler à origem real
periência de fé que reconhece o Senhor ressuscitado no Je- dos eventos. nll
sus que se mostra vivo. Por isso o testemunho, enquanto Não podemos, portanto, fazer os diversos testemunhos
constatação do evento, se transmuda imediatamente em "con- da fé pascal equivaler à origem real dos eventos. E, como
fissão de fé n, que tem por finalidade despertar a fé naquele vimos, esses testemunhos são menos da ordem do discurso
ao qual é dirigida. do que do anúncio: eles são palavra falante e não palavra
O estado dos textos sugere que a dimensão empírica falada ou escrita. Eles testemunham eventos reais, as apari-
do evento que é testemunhado é somente um dos componen- ções. Mas esses eventos não são relatados como fatos brutos:
tes de evento que transcende a ordem dos eventos históricos séo acontecimentos interpretados. Isso já é verdade da his-
comuns.10 Em outras palavras, a ressurreição de Cristo é dife- tória em geral, na qual não posso dissociar a prática, a ativi-
rente de fato bruto. Ela é evento interpretado que s6 pode dade interpretante, do objeto, os acontecimentos relatados.
ser atingido a partir da linguagem da fé pascal. O evento Escrever a hist6ria é sempre "produzir n de outro modo os
real que se produziu é sempre refratado num "evento de mesmo acontecimentos.u "A história nunca se toma um con-
palavra n. Gostaria agora de mostrar como a pluralidade das junto a partir de fatos brutos. Enquanto história de homens,
linguagens da fé pascal nos ajuda a precisar a relação ori- ela está sempre misturada com a compreensão, com a espe-
gihal entre experiência histórica e linguagem no testemunho rança e com a memória. A transformação da compreensão une
da ressurreição. os acontecimentos da história. História e compreensão não
se deixam dissociar nos dados primitivos de uma história. nu
B. Experiência hist6rica e linguagem 11 W. Pannenberg, •Die Krise des Sshriitprinzips•, in Grund/ragen
systematischer Theologie, Gõtlingen, 1967, p. 15.
12 Remetemos ao artigo de M. de Certeau, cujo titulo já 6 suges-
A nova hermenêutica toma consciência da necessidade tivo: ª Paire de l'Histoire. Problêmes de mélhodes et problêmes de
de vencer duas distâncias: a distância entre o passado do sens•, in Rech. Se. Rei., 1970, 481·520.
13 W. Pannenberg, · oogmalische Thesen zur Lehre von der Offen-
10 Um bom resumo das pesquisas sobre a historicidade da res- barung• in Oflenbarung ais Geschichte, Gõttingen, 1965, p. 112. Para
surreição e das diversas tomadas de posição a respeito dela encontra.se melhor desfazer a ilusão do •positivismo histórico•, citarei com prazer
no artigo de A. Geschl!, •La résum:ction de J&us•, in Revue Thlolo- estas linhas de J. Granier, parafraseando a denúncia do realismo
gique de louvain 21, 1971, pp. 257-306, especialmente pp. 265-72; positivista íeita por Nietzsche: • ...O 'esp(rito de moleza' espreita. E eis
para balanço crítico da controvérsia atual sobre a historicidade da que ele nos interpela sob os tracos de um advogado do realismo
ressurreição de Cristo, pode·se consultar tamMm o estudo recente de positivista. Que nos aconselha ele? Que nos contentemos com os 'íatos',
P. Grelot, •La résum:ction de J~s et l'histoirc. Historicité et histo- adotando atitude de estrita objetividade, a fim de que a realidade se
riallté•, in Les QuaJre Fleuves 15-16, 1982, pp. 145-79. mostre como 6, sem nenhum acréscimo de afetividade, de cobiça ou

114 11.5
O nexo indissociável entre experiência histórica e lin- tcmunha . "E1as são um apelo à fé, e não às constatações
guagem da interpretação se torna ainda mais impressionante empfricas. " 14
se considerarmos os testemunhos históricos de que dispomos No que concerne à relação entre experiência histórica
sobre o alguma coisa que se passou durante os "cinqüenta e linguagem da fé, a lição mais sugestiva dos recentes tra-
d ias" entre a morte de Cristo e o nascimento da Igreja. balhos exegéticos consiste cm nos tornar atentos à diversi-
Dizemos há muito tempo que se é verdade que a ressurreição dade das linguagens que tentam exprimir o mistério da res-
de Cristo é evento real novo em relação à cruz de Jesus, surreição. Estamos diante de experiência única, e a plurali-
isso não impede que ela seja evento irredutível aos fatos dade dos vocabulários trai o caráter indizível da experiência.
brutos da história universal, aqueles que entram numa pes- Não há fé pascal sem testemunhas e, portanto, sem lingua-
quisa histórica. Ela é, com efeito, o ato, inacessível a teste- gem. Mas a fé pascal não é redutível a alguma de suas lin-
munhas diretas, pelo qual Deus glorificou Jesus de Nazaré, guagens.
que fora colocado no sepulcro. Mas dizemos também que o Dentre as diversas linguagens do mistério pascal, foi a
evento transcendente da ressurreição comporta uma dimen- fórmula mais antiga, "Deus ressuscitou Jesus dentre os mor-
são histórica, o vestígio concreto deixado por ele na história tos", que se impôs na linguagem tradicional da Igreja. Ape-
dos homens, a saber, as aparições, o sepulcro vazio, a pre- sar de suas imperfeições, a linguagem da ressurreição conti-
gação pascal dos Apóstolos. Ora, chegando a esse ponto.' a nua privilegiada. l! a "linguagem de referência", pela qual
reflexão teológica sobre a ressurreição, preocupada uruca- devem medir-se todas as interpretações, diz-nos X . Léon-
mente com estabelecer a historicidade das aparições, muitas Dufour .15 Mas não devemos negligenciar as outras lingua-
vezes faz como se fosse possível chegar aos " fatos históricos" gens do Novo Testamento, as da vida e da exaltação, que têm
fora da interpretação crente das primeiras testemunhas. As por função justamente corrigir e completar o vocabulário da
aparições são inseparavelmente eventos reais e "eventos de ressurreição.
linguagem n.
Escrevendo para gregos, hostis à idéia de ressurreição,
Podemos falar das aparições como de sinais hist6ricos
Lucas e Paulo privilegiaram o vocabulário da vida. Eles
da ressurreição. Mas elas são precisamente sinais e não provas
procuram afirmar ao mesmo tempo a realidade e a novidade
demonstrativas. Non sunt probationes, sed signa: já dizia
da vida do Ressuscitado (falam de vida "eterna,, de Cris-
Tomás de Aquino. Enquanto têm dimensão cmpfrica, as apa- to ou designam-no como "o primogênito dentre os mortos").
rições são objeto de experiência sensível. Mas enquanto são
Mas, trate-se da linguagem da ressurreição ou da linguagem
sinais de outra coisa, elas deixam inteira a liberdade da tes-
da vida, é sempre grande o perigo de manter-se numa re-
de interesse... Conselho de míope! Porque, retruca Nietzsche, 6 ter vista presentação imaginária do retorno de Cristo à vida anterior.
curta pensar algu6m que apreende fatos brutos, a realidade como ela Por isso o vocabulário da exaltação tem por função subli-
6, quando confia no dado imediato. A realidade if!!edi~ta 6 uma. ilu-
são· 6 porque o olho 6 muito fraco que algu6m 1magma ter diante nhar o caráter escatol6gico da ressurreição de Cristo. Essa
de 'si fatos, quando para olhar agudo existem apenas interpretações! nova interpretação da realidade da ressurreição nos ajuda a
O percebido já 6 um mundo arranjado, simplificado, esquematizado, compreender a distância entre o milagre da ressurreição co-
mundo cujo sentido exprime nossa própria atividade criativa• (J . Gra-
nier, • La pens6e nietz.sch6enne du chaos• in Rev. de Méthaph. et d• mo retorno de um cadáver à vida e o mistério da ressur-
Mora/e 1971 , p. 132) . Sobre a ambigüidade da expressão •fato bit~ reição como exaltação à direita de Deus e entrada na glória.
rico• e a necessidade de superar a •positividade• da problemática
antiga da história, aconselhamos vivamente a leitura de A. Vanel,
•L'impact dea m6thodea historiquea en th6ologie du XVle au XXe 14 A. Jaubert , •christ est ressuscit~·. in Qui est / l sus-Christ?
aikle•, in LA Déplacem.nt tk la t~ologie, Beaucheane, Paria, 19n, c· Recherches et 06bats•). 008, Pa.ris, 1968, p. 121.
especialmente pp. 261. 15 X. Uon-Oufour, op. cit., p. 277.

116 117
Somos então convidados a ultrapassar todas as armadilhas um pos1uv1smo histórico estreito, é quando deixamos a his-
da imaginação e a concebermos, para lá do plano deste mun- tória empírica que encontramos, de fato, a história humana
do, outra vida e outro corpo. A fé pascal pode confessar, real como tradição.
simplesmente: " Jesus é Senhor." Com isso ela diz de outro
modo tudo o que está na fórmula primitiva: "Deus ressusci-
tou Jesus dentre os mortos."
Essa pluralidade das expressões pascais nos confirma o
e. o testemunho como "evento de palavra"
que dizíamos sobre a estrutura do testemunho como experiên- Conhecemos a palavra de Bultmann: "Jesus ressuscitou
cia histórica e como evento de linguagem. Sem a experiência no querigma." Se essa fórmula implica a negação da historici-
de fenômeno real não haveria testemunho da ressurreição. dade da ressurreição, ela é inaceitável. Mas ela assume sen-
Mas essa experiência "histórica " está envolta em experiência tido muito profundo se procura fazer-nos compreender que
de fé que toma expressões diferentes à medida que a expe- a ressurreição de Jesus entrou na história não só pelas apa-
riência ultrapassa as possibilidades de uma única linguagem. rições como fatos empíricos, mas também no e através do
A liberdade hermenêutica das expressões da fé pascal testemunho da fé dos Apóstolos. No próprio querigma existe
testemunha a dimensão trans-histórica da ressurreição. Co- uma realização da ressurreição. Todo evento histórico tem
m ') a ressurreiç-o , enquanto evento escatológico, não é re- com que suscitar uma palavra, um testemunho ... E é quando
dutív!l ao seu componente histórico, do mesmo modo o o evento real se torna "evento de palavra" que ele pertence
testemunho da ressurreição é a passagem, para a palavra, verdadeiramente à história humana, que nunca terminou de
de experiência na qual a fé interpretante é mais import.a nte atualizar seu sentido.
do que a constatação empírica. Assim, quando se diz que a
nossa fé na ressurreição de Cristo repousa no testemunho Isso é mais verdadeiro do evento Cristo do que de qual-
histórico dos Apóstolos, testemunhas das aparições, ela se quer outro. "A historicidade de um acontecimento depende
refere menos ao caráter de evento dos fatos narrados do menos de sua densidade 'fatual', de sua materialidade bruta,
que à pessoa mesma de Jesus ressuscitado, que se revela do que de sua aptidão para entrar num discurso no qual
através· desses fatos . Conhecemos esses fatos somente pelo uma comunidade humana poderá reconhecer ( mas também
testemunho de homens que também eram crentes, as "teste- rever, refazer) sua história. " 16 Um fato ou uma experiência
munhas anteriormente designadas" ( At 10,41) . Em outras que não suscita testemunho é sem interesse ou mesmo ine-
palavras, a fé traz em si mesma seu testemunho, embora xistente. A história só recolhe acontecimentos nomeados, in-
ela se apóie em testemunho que procede da pesquisa his- terpretados, ressituados por uma palavra numa tradição, isto
tórica. é, numa rede de significações. "A palavra pela qual faço
O estudo das diversas linguagens da fé pascal nos per- chegar à linguagem uma situação dada é, de fato, a inaugu-
mitiu, pois, pôr em relevo, no testemunho, o nexo incxtri- ração humana do acontecimento e, nesse sentido, também a
cável entre experiência e interpretação. Mas é pouco dizer que sua constituição, sejam quais forem a sua consistência e a
não devemos dissociar experiência e interpretação. 1! pouco sua realidade. " 17
também dizer que o testemunho é reflexo de experiência úni- Testemunhar é, pois, fazer vir à palavra um aconteci-
ca, na qual o evento e o sentido se misturam. Devemos subli- mento que se produziu realmente, mas não é relatar pura e
nhar mais o caráter inaugurador do testemunho em relação
ao próprio evento, que, tomando-se "evento de palavra", é 16 J. Moingt, •eertitude historique et foi • in Reclt. Se. Rei.,
1970, p. 572.
promovido a nova existência. E, à diferença do que pensaria 17 A. GescM, art. cit., p. 287.

118 119
simplesmente o acontecimento: é promovê-lo a existência diferente da fotografia ou da estenografia do que se passou.
nova. C.Om efeito, não podemos dissociar o acontecimento Fazendo o acontecimento vir à palavra, ele o recria e lhe dá
do sentido novo que ele assume no testemunho. O teste- existência nova. Daí por diante o evento, enquanto procla-
munho é, por excelência, " acontecimento de palavra "; por mado, terá vida própria, sem que seja possível dissociar o
isso cu disse no começo que o testemunho como possibili- evento cm sua faticidade de sua compreensão pela teste-
dade do discurso manifesta o melhor possrvel a irredutibi- munha.
lidade da palavra à linguagem como sistema. C.Omo mostra O que acabamos de dizer já vale para qualquer acon-
Paul Ricocur cm seu estudo: 'Evenement et sens, é na lin- tecimento promovido à dignidade de "fato histórico" no
güística da palavra que verificamos a articulação viva do conjunto de narração histórica. Está certo dizer que o his-
evento e do sentido.18 O testemunho depende de lingüística toriador "produz" os fatos. Mas no caso da ressurreição, o
do discurso ou da mensagem, e não de lingüística da língua evento do qual é dado testemunho não é promovido a nova
ou do código. existência pelo simples fato de a testemunha ter liberdade
Mas é a escritura que nos manifesta claramente o que interpretativa. A sua confissão e, portanto, a sua interpre-
se passa já no testemunho como palavra imediata sobre o tação são obra da fé e do Espírito de Deus. C.Omo dissemos
acontecimento. Existe superação do acontecimento enquanto antes, o mesmo poder de Deus que agiu na ressurreição de
fugidio no seu sentido enquanto durável. Tornando-se escri- Cristo enquanto evento histórico agiu também no testemu-
tura, o primeiro testemunho dos Apóstolos pertence de ma- nho prestado ao evento, isto é, na ressurreição confessada,
neira durável à história humana e abre possibilidades de na ressurreição tornada "evento de palavra". Não basta,
atualização sempre nova na ordem do sentido como na or- por isso, dizer que não atingimos a ressurreição fora dos
dem do agir. "A carreira do texto, daí para frente, escapa testemunhos dos crentes sobre ela. Devemos dizer que o
ao horizonte finito da vivência de seu autor. O que o texto lugar próprio da ressurreição é menos a história cm seus
diz importa agora mais do que o que o autor quis dizer, e a dados empíricos do que a linguagem da fé pascal enquanto
exegese aplica seus processos no pedmctro de sentido que linguagem da primeira comunidade cristã.
rompeu suas amarras com a psicologia de seu autor. 19 Somente aqueles que não compreendem nada do forte
Esse desligamento do sentido em relação ao evento fa- entrelaçamento da realidade com a linguagem é que podem
tual se ve.rifica já no testemunho como proclamação do concluir que a ressurreiç.ão de Cristo não passa de produto
evento. No caso da ressurreição, isso significa que só atin- da fé das primeiras testemunhas . 1!, antes, porque a ressur-
gimos a ressurreição de Cristo nos testemunhos sobre ela reição escapa à faticidade de prodígio físico, cujas testemu-
nas confissões de fé. Em outras palavras, nós a atingimo~ nhas nos teriam transmitido reportagem escrupulosa, e por-
não em suas condições espácio-tcmporais, mas enquanto ela que ela se torna o "dizer" de toda uma comunidade crente
se tornou "evento de linguagem". Um dos exemplos do ca- que ela entra para a verdadeira historicidade. Os testemu-
ráter instaurador da linguagem pascal é a sua intenção es- nhos da ressurreição remetem para o evento histórico que
catológica: os Apóstolos identificaram Cristo ressuscitado co- os suscitou. Mas eles reenviam também, de maneira indis-
mo salvador e juiz cscatológico.'!O O testemunho humano é sociável, à tradição de uma comunidade confessante, da qual
eles são o vesúgio histórico. E é por pertencermos à mesma
18 Cf. P. Ricoeur, ·ev~nement et sens•, in R' v'1ation et Histoire tradição de fé que podemos chegar à pessoa do Ressuscitado
(Encontro Castelli, 5-11 de janeiro de 1971), Aubier, Paris, 1971,
pp. 15-34. através desses diversos testemunhos.
19 P. Ricoeur, op. cit., p. 19.
20 Cf. A. Gesch~. art. ciL, pp. 302-3. A. Geach~ mostra com fornece . o_ verdadeiro lugar de inteligibilidade teológica do mist~rio da
muito acerto, na terceira parte de seu artigo, que a escatologia nos l'CSSWTCIÇIO.

120 121
Para terminar, gostaria agora de situar brevemente o Por isso, eles, por sua vez, só podem ser chamados teste-
testemunho dado à ressurreição pelos crentes de hoje, do munhas à estrita medida que a sua palavra estiver em con-
ponto de vista da relação entre experiência e linguagem. tinuidade viva com o testemunho dessas primeiras e únicas
testemunhas que são os Apóstolos.
2. Dito isso, não devemos esquecer agora aquilo de
HI. O TESTEMUNHO DOS CRENTES HOJE que tratava toda a nossa pesquisa, a saber, que o testemunho
dos Apóstolos não é relato de eventos, mas o "evento de
palavra n que resulta inseparavelmente da experiência de fe-
O testemunho é sempre a interpretação de uma expe- nômeno real e de interpretação crente. Eles não são teste-
riência particular. No testemunho apostólico da ressurreição munhas neutras, mas crentes. Do ponto de vista da relação
constatamos a interação constante entre uma experiência entre a fé no mistério de Cristo glorificado e os sinais his-
inesperada, o fato das aparições, e uma fé despertada pelas tóricos que abonam esta fé, a fé dos Apóstolos não é diferen-
palavras de Jesus e pelo conhecimento da Escritura e de te da nossa. Eles foram testemunhas oculares das aparições,
suas promessas escatológicas. E todo o sentido de nossa pes- mas o reconhecimento de Cristo como Senhor da glória é
quisa foi o de mostrar que não é fácil dissociar, no teste- obra do Espírito. Em outras palavras, o seu ver não é cons-
munho, experiência e linguagem. A experiência é identifi- titutivo de sua fé. Também para nós, o nosso saber fun-
cada numa linguagem que já é uma interpretação do "que dado no testemunho histórico dos que viram, os Apóstolos,
se passou n. Por isso o testemunho é diferente da pura tra- não é constitutivo de nossa fé no Ressuscitado.
dução verbal da experiência viva. Ele recria de certa forma
Assim, trate-se da fé dos Apóstolos ou da nossa, ela
a experiência da qual alguém quer ser testemunha. Qual é
hoje nosso testemunho como encontro original de uma ex- traz em si mesma seu testemunho, apesar de da se apoiar
em sinais históricos, o fato das aparições, no caso dos Após-
periência e de uma linguagem? Veremos que devemos subli-
nhar tanto a novidade como a continuidade de nossa situação tolos, a realidade histórica de seu testemunho, no nosso caso.
Como dissemos acima, o mesmo poder de Deus que se ma-
em relação aos Apóstolos.
nifestou n:i ressurreição de Cristo age também na pregação
1. O· testemunho apostólico é testemunho na fé, mas é dos Apóstolos e no testemunho dos crentes hoje. Em vir-
também testemunho de primeira mão, sem intermediário. tude do testemunho interior do Espírito, cada crente é es-
Os Apóstolos são as testemunhas diretas do que Jesus disse tabelecido na contemporaneidade com o que sucedeu nos
ou fez desde seu batismo por João Batista até sua ascensão. "cinqüenta diasn dos quais fala a Escritura. A fé dos Após-
Eles são particularmente as testemunhas oculares de sua tolos não se refere à faticidade dos acontecimentos cm sua
morte e de sua ressurreição ( At 1,22) . E é porque eles dimensão fenomenal, mas aos acontecimentos como sinais
viram que eles não podem não falar ( At 4 ,20) . Esse conhe- da salvação escatológica sobrevinda em Cristo. Do mesmo
cimento "segundo a carnen é privilégio exclusivo dos Após- modo, a nossa fé não se refere à materialidade das narra-
tolos, e esse seu privilégio, esse seu carisma apostólico não ções evangélicas como processo verbal do "que se passou",
é transmissível. Desse ponto de vista, os crentes que vierem mas ao testemunho apostólico como boa nova da salvação
depois deles serão sempre testemunhas por procuração, por- advinda. O crente que se apóia no testemunho apostólico
que não viram o que os Apóstolos viram. Os fiéis sabem decidiu-se pelo testemunho a Jesus e se toma também tes-
simplesmente que os Ai)óstolos o viram, e o seu próprio temunha. Apesar de não ter conhecido Jesus "segundo a
testemunho só pode ser a transmissão do que receberam. carne", devemos dizer que de é testemunha "ocular" no

122 123
sentido de são João. Com efeito, ele testemunha o que para meio de retraduzir a mensagem pascal numa linguagem que
ele se tomou evidência. 11 possa despertar nossos contemporâneos para a fé . A lingua-
Na origem do testemunho dado hoje à ressurreição, gem da ressurreição será sempre "a linguagem de referência"
existe, como no caso dos Apóstolos, o nexo indissociável de porque é a da. Igreja há séculos. Mas, se ela precisou se;
experiência pessoal e de interpretação na fé. Existe encontro completada, r~terpretada por outras linguagens desde os
pessoal com Jesus de Nazaré através dos testemunhos his- tempos a~stólicos, ela o deve ser ainda mais hoje, quando
tóricos do Evangelho, através dos sinais eclesiais de sua é necessáno testemunhar Cristo ressuscitado num mundo pós-
presença, através dos sinais de seu amor. Então, à luz da cristão, estranho à linguagem bíblica.
fé e da tradição viva da Igreja, ele é reconhecido e identi/i- Não é possfvel dizer aqui como traduzir o testemunho
cado como o Ressuscitado. E esse reconhecimento leva a d.a fé pascal em linguagem contemporânea, sem trair o sen-
proclamar a boa nova da salvação, isto é, a presença sempre ndo que ela sempre teve na tradição da Igreja. Lembrarei
atual do Ressuscitado: "Acreditei, por isto falei" ( 2Cor 4, apenas que o testemunho dado à ressurreição do Senhor nun-
13). O testemunho dos crentes na Igreja se apóia ao mes- ca é redutível à experiência que um crente tem dela. O tes-
mo tempo nos eventos fundadores da comunidade cristã e temu~ho só é v~vo s~ ~p~ime o modo pelo qual verifiquei
nos testemunhos apostólicos sobre esses acontecimentos. A em mt~a própria ex1stenoa a presença e a energia de Cristo
leitura crente desses acontecimentos hoje se inscreve na pró- ressusatado. Mas o testemunho dado à ressurreição deve ser
pria tradição que foi constitutiva dos testemunhos. também expressão da fé e da unidade da Igreja. A releitura
3. O testemunho do crente hoje não é, pois, a simples e a reinterpretação das fórmulas da fé pascal se realizam
expressão de experiência pessoal. Ele se inscreve numa tra- sempre dentro de uma comunidade de interpretação em con-
dição viva de interpretação, a da Igreja como comunidade tinuidade com a primeira comunidade de fé, da qual jorra-
ram os testemunhos apostólicos.
confessante através dos séculos. Não existe, contudo, teste-
munho, no sentido rigoroso, sem novo ato de interpretação No termo dessa pesquisa sobre o testemunho da ressur-
e, pois, sem certa inventividade de linguagem. Já constata- reição como experiência e como linguagem, podemos dizer
mos essa pesquisa de uma nova linguagem, que testemunha pelo menos que a única linguagem ao mesmo tempo ade-
uma experiência muito rica no plano dos testemunhos apos- quada à experiência das primeiras testemunhas e conforme
tólicos. São Paulo, por exemplo, ao responder às objeções ao que_o homem de hoje espera é a linguagem da esperança.
dos coríntios, não se contentou com repetir as fórmulas pri· E, entao, .testemu.nhar a ~tualidade do mistério pascal não
mitivas que recebera, mas falou do corpo de Cristo ressus- ~ s~ repetlr a ~tlg! confissão de fé dos primeiros cristãos,
citado como de um "corpo celeste" que vem do alto ( lCor Cnst~ ressusatou! , mas também provocar na vida pessoal,
15,35-38). Não posso dar testemunho sem a mediação de na .soaedade dos homens e na história antecipações signifi-
minha existência e, portanto, sem a vontade de tomar meu catlvas do futuro prometido em Jesus .
o conteúdo da fé pascal em minha linguagem.~ esse o único Ao começar eu disse que o testemunho dado aos valores
d~ ~istência humana responde à questão: "Que me é pcr-
21 Citaremos estas linhu características de H. Un von Balthuar: miudo esperar?" Isso significa que todo testemunho é inter-
•Que mesmo na presença das aparições do Ressuscitado se tenha sempre
falado de (6 6 a prova clara de que a U na ressurreição, a (6 doe pretação prática de futuro entrevisto. E então parece que to-
que não viram corporalmente o Ressuscitado, mu creem em virtude do testemunho humano aponta obscuramente para a verda-
do testemunho apostólico, não consiste em ter por verdadeira simpl• de do testemunho pascal. No deserto das linguagens fecha-
verossimilhança, mas consiste no dom de amor da própria pessoa e da
próprias evidências à Pessoa divina, que encerra e tem em si mesma das e sem palavras, a função do testemunho humano consiste
o centro de gravidade de toda evidência" (H. Un von Balthu8r, em manter a história aberta para alguma coisa sempre nova
la Gloire et la Croix, Aubier, Paris, 1965, p. 170). e imprevisfvel.
124 125
trata de restituir ao homem o que é atribuído ilusoriamente
a Deus, mas de conservar Deus como utopia concreta do
6 movimento de autotranscendência do homem. Não se trata,
portanto, de transposição antropológica da teologia. O ho-
A HERMEmUTICA AttIA DO TÍTULO mem não toma o lugar de Deus. Ele é um possfvel real
por vir.
FILHO DO HOMEM EM ERNST BLOCH
2 . Trata-se de hermenêutica subversiva. Devemos en-
tender com isso que, em relação à dialética "religião-políti-
ca ", Bloch não se entrega a uma redução trivial do religioso
ao político, mas a uma crítica da religião pela própria reli-
gião. J;: uma hermenêutica que subverte a religião à medida
L'Essence du christianisme de Feuerbach já foi aponta?a que a seculariza. Mas, de fato, essa secularização tem por
muitas vezes como exemplo de "hermenêutica atéi~" cris-?o fim mostrar a dimensão irredutível da religião. Com efei-
tianismo. Em contraste com os ensaios de hermeneuttca teo- to, longe de liqüidar a religião, trata-se de manter o po-
lógica apresentados na presente. o~r~, ~ostaria de me ,.de~er der prático da religião como dialética da esperança. Nesse
num exemplo particularmente s1gruµcattvo de_ hermeneu..tt~ sentido é mais correto falar de crítica do pol1tico-religioso
atéia moderna. Para isso escolho a interpretaçao dada a ~1- pela religião do que de redução do religioso ao politico.
lho do Homem" por Ernst Bloch em Atheismus im Chm- Em todo caso, para Bloch, parece que a religião constitui
tentum. 'tul V um irredutível que não é, como para Hegel, ultrapassável
A exegese de "Filho do Homem" está no cap1 o no conceito.
de Atheismus im Christentutn, que tem por título: Aut
Caesar aut Christus, 1 e que continua o capí~o IV, ~nsa­ 3. Pode-se definir a hermcnêu tica de Bloch como pro-
grado ao êxodo na representação de Javé, isto é, à des- grama mais de desteocratização do que de demitização. Co-
teocratização" (Enttheocratisierung). Bloch se alonga n~sse mo toda hermenêutica, também a de Bloch procura o claro
capftulo mostrando que o título "Filho do Homem" , isto e o manifesto sob o oculto e o obscuro. Mas a opacidade da
é, a uniÍo do homem com Deus, designa o ponto de chega?a Escritura não vem somente de seu revestimento mitológico
do tema messiânico do êxodo, que percorre toda a Bíblia. e de nossa distância histórica. Ela é também espelho da
O êxodo dos judeus se torna o êxodo do ,.Própri~ Deus, e a opacidade da condição presente do homem. Mas ela pro-
figura do Filho do Homem conduz esse exodo, isto é, essa cede principalmente do processo de teocratização inerente à
saída de Deus para fora de si mesmo, para seu termo. própria Escritura até à vinda de Cristo. Bloch se aplica, en-
Antes de abordar a exegese de Ernst Bloch nesse capí- tão, a uma releitura do texto bíblico à luz de um êxodo
tulo V, desejaria tentar resumir ? ~ue caracteriza a origina- desteocratizado e da promessa de nova terra, inaugurada por
lidade de seu programa hermeneuttco. Cristo. Ele abre caminho através da opacidade do texto com
o desígnio de reconstituir a revolta que habita o texto, re-
1. Trata-se de uma hermenêutica atéia a serviço de volta que foi ocultada não só pelas releituras eclesiais do
secularização radical. Mas, à diferença de Feuerbacb, não se Evangelho, mas também no processo de colocar por escrito
a mensagem de Cristo.
1 E. Bloch, L'Athéisme dans le christianisme, trad .. frene., Galli- Assim, é legítimo falar de uso subversivo da herme-
mard, Paris, 1978. Todas as citações sem outra referência remetem a
esta edição. nêutica tradicional, e isso cm dois sentidos. De um lado,

126 127
cm lugar de procurar além do sentido literal um sentido Do outro lado, Jesus é o sinal do inacabamento do
divino, ele procura um sentido secular, a saber, uma reali- homem. Em outras palavras, o Deus do homem atual é o
dade humana: o homem como possibilidade real. Nisso ele homo absconditus do futuro (ontologia histórica). Não se
é fiel à utopia marxista do humano, que se exprime pela trata de chegar a uma humanização de Deus, que não pas-
2
naturalização do homem e pela humanização da natureza. saria de secularização insípida à la Feuerbach, ou de pro-
Do outro lado, ele procura reconstituir o movimento de sub- meteísmo. Trata-se de transformar dialeticamente o cristia-
versão, interno à Escritura e constantemente encoberto ou nismo como religião cultual em reHgião utópica, na qual
edulcorado na própria Escritura pela lógica teocrática da do- Deus será a realidade do homem oculto, a qual só pode ser
minação. realizada e manifestada pela transformação da realidade pre-
Compreende-se melhor agora o sentido da afirmação sente. Com isso, Bloch exegeta quer simplesmente ser fiel
paradoxal de Bloch, que se tornou célebre: "Somente um à dimensão escatológica do Novo Testamento.
verdadeiro cristão é que pode ser um bom ateu; somente O tema da investidura de Javé por Jesus volta cons-
um verdadeiro ateu é que pode ser um bom cristão. n Em tantemente . A vinda de Jesus coincide com o fim do teocra-
outras palavras, somente um bom cristão é que pode ser um tismo político-religioso de Israel . Foi essa subversão do teo-
bom ateu porque é o cristão que conduz a seu termo o cratis:°1o que levou Jesus à morte. Mas, de fato, a vinda
movimento de desteocratização; e somente um verdadeiro do Filho do Homem estava na linha do messianismo esca-
ateu é que pode ser um bom cristão porque é o ateu que tológico judaico. O êxodo dos judeus se torna o êxodo de
trabalha para o advento do reino já instaurado em Cristo, Deus mesmo. Jesus foi até o fim na reHgião do Deus do
a saber, o reino do homem. êxodo: "Esse Messias filho do homem não se fazia tam-
A exegese do título "Filho do Homemn é dilicil de ser bém passar por alguém que lutasse para manter ou restabe-
resumida. É um texto cheio de idas e vindas e digressões, lecer, com zelo todo romântico, o reino de Davi como ele
e o caráter ofegante de sua escrita é um eco do ribombo do era, com seu Deus-Senhor. Não, ele se afirmava completa-
texto que ele comenta. Mesmo com o risco de simplificar, mente êxodo, um novo êxodo, escatológico e revolucionário
creio possível reduzir a exegese do título "Filho do Homem" em toda a sua extensão: vinda de Deus ao homem• ( p. 171) .
em Bloch a três temas, embora eles sejam inseparáveis. Contrariamente à opinião mais difundida sobre o mes-
sianismo transcendente de Jesus, Bloch pensa que Jesus ti-
nha plena consciência de ser o Messias esperado pelos ju-
deus, isto é, "um Messias que ralizaria a promessa de sal-
1. A INVESTIDURA DE JAV~ POR JESUS
ou o 2XODO DE DEUS vação política e religiosa, pondo fim à miséria concreta, abrin-
do uma era de felicidade concreta n ( p. 164 ) . Essa insis-
tência no realismo político do messianismo de Jesus é o
Parece que a exegese blochiana dos textos do Novo Tes- único meio de ser fiel à sua dimensão escatológica. Foram
tamento é comandada por duas idéias. De um lado, Jesus, os teóloogs liberais e anti-semitas, como Renan, Wellhausen
como Filho do Homem, é o sinal da vinda de Deus ao ho- e Haraack, que traíram a escatologia do Novo Testamento,
mem. :a o tema do êxodo, da utopia religiosa por excelência, pondo o acento na espera de um reino interior e puramente
da abertura para o desconhecido. ético. De fato, "desde sua origem, a autenticidade do Evan-
gelho implicava seu sentido real e revolucionárion (p. 165) .
2 Veja, a este respeito, o estudo de G. Raulet, •utopio-Discoun Em apoio de sua tese, Bloch interpreta de maneira mui-
pratique•, que apresenta a obra coletiva, publicada sob o título: Utopt.,
marxisme selon Ernst Bloch, Payot, Paris, 1976, pp. 9-53. to pessoal algumas passagens clássicas do Novo Testamento.

128 129
S · Como lazer tcoloala hoje
Por exemplo, na narração das tentações, no capítulo IV, pa- Atribuindo a si o título "Filho do Homem" , Jesus pro-
rece-lhe claro que Jesus teria tido o sentimento de sucumbir nunciou o nome de êxodo desconhecido dos judeus até o
ao demônio, dizendo-se "Filho de Deus". Do mesmo modo, presente e que atingia todas as representações de Deus usa-
não se compreenderia a necessidade do segredo messiânico das pelos que dispunham do poder religioso. Ele pôs termo
em são Marcos, se Jesus não quisesse ser o Messias espera- à falsa hip6stase de um Deus criador. "Quanto ao evange-
do pelos judeus. Ele seria designado somente como um ho- lho segundo são João, se ele faz o escatológico retroceder
mem bom, um pastor e, no máximo, como sucessor dos an- para trás do protológico e da luz do começo, que é a do
tigos profetas. O grito de Jesus em sua agonia: "Meu Deus, seu prólogo, é unicamente para fazer desse logos o alfa de
meu Deus, por que me abandonaste? " não é grito de deses- mundo diferente do da criação já existente e para fazê-lo
pero, devido ao sentimento de ser abandonado por Deus. surgir com Cristo, no fim, como prólogo de novo mundo.
É a expressão da angústia de quem vê escapar-lhe a reali- O verdadeiro criador é Cristo Logos, gerando nova cria-
zação concreta de sua obra. Foi o único momento em que tura ... " ( cf. p. 202).
lhe faltou a fé em relação à segurança que ele tinha de ser Para Bloch, o título misterioso "Filho do Homem" é
aquele que abriria o caminho para Sião, já bem próxima a chave da desteocratização: de significa a reinvestidura,
(cf. p. 163). num humanum ainda enigmático, de todos os tesouros que
E quando Jesus diz que seu jugo é suave e seu peso foram confiscados pela hip6stase de um Pai celeste. A fór-
leve, não se trata do jugo da Cruz, mas do anúncio da vinda mula bíblica: Deus homo /actus est é a última expressão do
do Messias-Rei entronizado. Finalmente, a boa nova do êxodo bíblico, que é "êxodo fora de Javé. Nem se deve
Evangelho é o anúncio de felicidade social e política que mais falar em antiteocratismo, mas em ateocratismo ou em
nada mais poderá abafar ( cf. p. 164) . O texto seguinte re- 'cristocentrismo sem resto' " ( cf. § 31). E ele vê no ca-
sume com muita precisão a prática hermenêutica de Bloch pítulo 17 de são João a chave da homoousia, isto é, não da
a serviço da secularização: "Subjetivamente, Jesus se consi- divindade de Cristo, mas de sua igualdade com Deus. O an-
derava, pois, sem reserva, como o Messias do qual falava a tigo "dia de Javé" , aquele que devia vir no fim do tem-
tradição; objetivamente, ele era quem menos pensava em se pos, se apresenta no quarto evangelho como parusia de
refugiar numa interioridade que não se manifestasse, em lan- Cristo, do Filho do Homem existindo sem Javé, A-Kyrios
çar raízes na espera de um reino dos céus transcendente; ao e A-Theos ao mesmo tempo. Bloch pensa que, assim, funda-
contrário, a salvação era Canaã. Era o cumprimento do que mentou exegeticamente o ateísmo radical que professava no
fora profetizado aos antepassados, mas sem a sua &agilidade, Le principe espérance: "A verdade do ideal de Deus é a uto-
a sua trivialidade, os seus fracassos, um Canaã realizado em pia do reino, e esta pressupõe justamente que nenhum Deus
sua quintessência ... Já havia muita interioridade na espera more nos céus, já que, afinal, nenhum lá se encontra e ja-
do Messias, e céu mais que suficiente na fé no além: a terra mais se encontrou" (Das Prini.ip Ho/fnung, 1959, p. 1514,
é que precisava do Salvador e do Evangelho" ( p. 164). citado na p. 204).
Como veremos adiante, o útulo "Filho do Homem",
que é criação de Jesus e não de seus discípulos, sublinha ao Para apoiar sua tese, Bloch se empenha numa releitura
mesmo tempo o realismo político do messianismo de Jesus muito particular do processo de Jesus. Se os sumos sacerdo-
e o fim do teocratismo. Com efeito, a tese principal de Bloch, tes condenaram Jesus, não foi porque tivesse ele blasfema-
nesse capítulo, é a de que o útulo "Filho do Homem" é do, pretendendo ser o Messias, isto é, o Filho de Deus, mas
escatológico, ao passo que o útulo ulterior, Kyrios Christos, porque de ameaçava a teocracia clerical e a religião institu-
depende do culto. cional, estabelecida desde Esdras e Neemias. Jesus era consi-

130 131
derado perigoso porque seu reino, o do Filho do Homem, de Deus está próximo" significa que Jesus nunca deu à sua
era muito diferente do reino teocrático de Javé. Jesus foi missão um sentido edulcorado e exterior ao mundo.
crucificado porque era visto como subversivo precisamente A pregação de Jesus é mais dura do que a de todos
por ser "a figura exemplar de outro mundo, sem opressão os profetas que o precederam. Jesus vomita os úbios . E
e sem Deus Senhor" ( p. 170). Bloch cita com satisfação a palavra de Jesus em Mateus 10,
34 : "Não vim trazer a paz, mas a espada", ou a de João
12,48: " Quem me rejeita e não acolhe minhas palavras tem
seu juiz: a palavra que proferi é que o julgará no último dia."
II. O ADVENTO DO REINO DE DEUS COMO REINO TERRESTRE
Mas como interpretar, então, as palavras de Jesus no
sermão da montanha sobre a não-violência e o amor aos
A intenção de Bloch é reagir contra interpretação do inimigos? Bloch as interpreta sempre à luz da iminência do
cristianismo entendido como o ponto de saída de evasão reino, que vem, e isso num contexto apocalíptico. Conten-
consoladora, para interpretá-lo como perspectiva aberta para to-me com citar um texto bastante claro a esse respeito.
o inacabado, para o novo. " A velha, muito velha terra é tomada pelo kairos dessa
A luz de sua exegese do útulo misterioso de "Filho urgência, e é esse, por outro lado, o motivo pelo qual parece
do Homem", pode-se resumir sua inte.rpretação dos textos que o reino, já tão próximo, não requer mais a menor vio-
do Novo Testamento concernentes ao reino como se segue: lência. O Jesus do sermão da montanha está totalmente nes-
se espírito, uma vez que, atrás de cada uma das bem-aven-
1. O que é primeiro no Evangelho não é o amor, mas turanças em defesa da não-violência, ele deixa entrever logo
o anúncio do reino. ( Mt 5,3-10) a iminência, daí para frente, do reino dos
2. O reino de Deus não é um reino interior ou um céus. Isso significa que não se trata ou não se trata somente
reino no além, mas o advento de um reino de liberdade de recompensa popular, mas que o 'porquê' que precede e
fundamenta o 'deles é o reino dos céus' significa mais pro-
sobre a terra.
fundamente que toda violência, toda tentativa de expulsar
3. O reino de Deus se realiza sobre a terra, mas, como os vendilhões de um templo, que, de qualquer modo, ruirá,
reino escatológico, ele ainda não foi entregue, porque se é declarada supérflua num tempo cujo tempo enfim chegou .
realiza somente em estado de germe. É verdade que a revolução violenta, que eleva os humildes
e humilha os poderosos, se verifica totalmente no âmbito da
natureza num Jesus apocalíptico e substitui, de certa forma,
A. O primordial é o Reino e não o amor pela arma superior de catástrofe cósmica, uma revolta leva-
da a efeito pelos homens" (pp. 168-9).
Bloch insiste na imediaticidade quiliástica da referência Existe, pois, anterioridade do anúncio do reino que
ao reino dos céus. Deve-se interpretar o alcance ético do reino vem em relação ao conteúdo ético da mensagem de Jesus.
a partir de sua espera escatológica, e não o inverso. As pa- Nem por isso Bloch nega esteja o amor no centro da men-
lavras de Jesus são carregadas de espera apocalíptica, e foi sagem de Jesus, mas ele deve ser interpretado à luz de
o cristianismo posterior, em parte sob a influência de Paulo, advento próximo. Foi justamente isso que não fez o cristia-
que esvaziou a mensagem evangélica de sua palavra subver- nismo histórico, que tornou inofensiva a mensagem de Cris-
siva. A palavra de Marcos: "Cumpriu-se o tempo e o reino to e fez dela um encorajamento à resignação diante da in-

132 133
justiça. O amor, no sentido do ágape, é um amor aos ho- mundo. Serviu para tirar toda a força às aspirações terrestres
mens que não tem precedente. Ele põe abaixo todas as for- do cristianismo.
mas de agressão. Mas, na pregação de Jesus, de tem lugar A oposição entre este mundo e o outro não tem, pois,
somente à luz de advento já próximo. o sentido que a espiritualidade cristã lhe dá há vinte séculos.
Trata-se de tensão escatológica entre este mundo, isto é, o
eon presente, e o outro mundo, isto é, "o eon futuro, e,
B. O advento de um reino de liberdade sobre a terra melhor, o de uma idade futura do mundo, em oposição ao
mundo existente n.
A partir do tema do " Filho do Homem" que se veste Bloch conhece evidentemente o logion de Mt 22,21 :
de Javé, já insistimos no realismo carnal e político do " Devolvei, pois, o que é de César a César, e o que é de Deus,
reino anunciado por Jesus. É interessante ver qual é a exe- a Deus. n Mas não se deve tirar dde uma lição moral sobre
gese de Bloch para os textos do Novo Testamento que têm o desinteresse em rdação ao mundo. Essa palavra de Jesus
o sentido de reino interior ou de reino que não é deste tem , antes de tudo, sentido escatológico. É justamente por-
mundo. Ele pensa, com efeito, que, há dois mil anos , esses que o reino está próximo que se pode tratar César com in-
textos vêm sendo explorados indevidamente num sentido diferença. Contrariamente ao que Lutero pensou poder de-
espiritualista, para mostrar o quanto o cristianismo é ino- duzir desse logion, com referência à doutrina dos dois rei-
fensivo. nos, de não tem nenhum sentido dualista . Não se deve ver
Em Lc 17,21, Jesus nunca quis dizer: "O reino de nde dupla compatibilidade, que conduz, aliás, aos piores
Deus está em vós n, com referência à interioridade. A tra- compromissos. O texto que se segue resume muito bem a
dução exata é : "O reino de Deus está no meio de vós." concepção de Bloch sobre a atitude evangélica em relação ao
Jesus se dirige não aos discípulos, mas aos fariseus. Ele res- mundo: "O mundo imperial é insignificante e, apesar de seu
ponde, assim, à cilada da pergunta ddes sobre quando viria esplendor, é tão insípido como pernoitar num hotd, tendo
o reino . A sua resposta significa: "O reino está próximo que partir no dia seguinte de madrugada. Para Jesus, o que
também no espaço, de está aqui na comunidade dos que o conta, antes de tudo, é esse conselho autenticamente quilias-
reconhecem n (p. 166) . Também a famosa resposta de Jesus ta: distribuir os bens próprios aos pobres e, assim, subtrair-se
a Pilatos: "Meu reino não é deste mundon não tem o signi- não só subjetivamente mas também objetivamente aos inte-
ficado que se quis dar-lhe. Bloch pensa que esta palavra atri- resses reunidos em torno de César, interesses desprezíveis e
buída por são João a Jesus diante de Pilatos não é histórica. condenados a curta duração. Nessa perspectiva, o Evangelho
Ela denota influência paulina. João pensa na pobreza das não tem nada de social, e, à primeira vista, nem é moral.
primeiras comunidades cristãs e prepara para elas um meio Ele é o evangelho da redenção escatológica n ( p . 172) .
para se defenderem diante das autoridades romanas. Trata-se
de tema judiciário e apologético. "É contrário à coragem e
até mesmo à dignidade de Cristo que de tenha pronunciado C. O reino de Deus se realiza somente em estado de germe
diante de Pilatos essa palavra derrotista, que de se tenha
apresentado como um sonhador e excêntrico diante de seu Seria necessário comentar aqui as páginas bastante di-
juiz romano, que ele tenha dado aos romanos o espetáculo fíceis do § 29, intitulado: Até a grandeza do Filho do Ho-
de uma pessoa inofensiva e quase cômica" ( p. 167). E. Bloch mem desaparece. O reino é "pequeno". Bloch se opõe ao
acrescenta que essa passagem de são João não salvou nenhum mesmo tempo ao mito pagão e antropomórfico do homem
cristão de Nero, mas serviu como apologia aos senhores do makanthropos como encarnação do reino futuro e ao tema

134 135
hegeliano de uma reconciliação do Espírito absoluto com o Trata-se de manter, sob forma atéia, na imagem do Filho
homem como espírito finito. do Homem, o que transparecia do Deus do êxodo. O homem
Poder-se-ia dizer que, segundo a visão blochiana, o rei- presente aberto para possibilidades inéditas, é o homo abs-
no coincide com a fermentação que habita todo homem. conditus, que ainda não foi manifestado. "A imagem do Filho
Jesus como Filho do Homem é a figura histórica dessa aber- do homem é das mais incompletas e ainda não traz em si
tura. Mas é uma abertura para o de.sconhecido, para o an- a solução de seu mistério " ( p. 193 ).
thro pos agnostos. "! o desconhecido, a proximidade do des- Assim, depois do desaparecimento do Deus teocrático
conhecido que falta a todas as manifestações religiosas, clás- do Antigo Testamento, o mistério continua. Mas esse mis-
sicas ou neoclássicas do antropomorfismo; falta-lhes a dimen- tério é o enigma do homem, do qual o Filho do Homem é
são aberta do anthro pos agnostos" ( p. 192 ). a figura histórica. E este enigma do homem coincide com a
E o que ele reprova no humanismo de Hegel é a re- vinda do reino. O Messias como Filho do Homem não en-
dução do divino a uma medida humana. Porque, se é ver- cerra a história, mas a abre. Ele é a chave do ainda-não-ser
dade que o ser-para-si está salvo da alienação religiosa, ele como possibilidade histórica.3
se coisifica na história. O humanum de Hegel desaparece
no Estado. No fundo, Bloch, para lá do humanismo ateu,
quer conservar Deus como utopia concreta do tomar-se ho-
mem do homem, tornar-se que nunca termina e nunca se Ili. A MUDANÇA DIALETICA DO TITULO CULTUAL DE FILHO
manifesta. ! essa a contribuição do cristianismo, a qual se DE DEUS PARA O T(TULO ESCATOLôGICO
DE FILHO DO HOMEM
resume na figura do Filho do Homem. Trata-se de reino sem
Deus e sem transcendência, mas o Filho do Homem designa
a ação de transcender toda reificação do homem .
Para mostrarmos tudo o que separa o ateísmo religioso A imitação de Bousset, Bloch pensa ser possível esta-
belecer separação absoluta entre o título escatológico de "Fi-
de Bloch da insipidez do humanismo ateu , citaremos ainda
o texto que se segue: "O humanismo do classicismo recai, lho do Homem ", que seria criação própria de Jesus e de
mesmo na esfera religiosa, aquém de Jó, aquém da idéia do uso constante na comunidade palestina primitiva, e os ú-
tulos de Kyrios e Filho de Deus, que o substituíram pouco
Filho do Homem e da descoberta de que um homem pode
ser melhor, de que ele pode ser, mais do que seu Deus, o a pouco no cristianismo helenístico, tentado a prestar culto
centro de todas as coisas. Uma religião na qual o Filho do a Cristo como a uma nova divindade.
Homem não é senão beleza e medida significa sempre, com O título de Kyrios, que é sempre tentado a retomar seu
efeito, como em Hegel, a 'consciência da reconciliação do sentido pagão, como o de Pantocrator, tende pouco a pouco.
homem com Deus'. Uma religião na qual o reino está em a escamotear o título de Filho do Homem, o qual, entre-
ebulição jamais reduz o divino a medidas humanas; ela não tanto, desde a Igreja primitiva até Thomas Münzer, está
tende ao equilíbrio da reconciliação; ao contrário, o Filho sempre do lado dos pobres e dos que se revoltam. "So-
do Homem e seu reino são humanos sem serem iá dados" ment.e o.que no futuro é próprio da autoridade da instituição
(pp. 192-3). e:Iestástlca pertenceu e conttnua a pertencer ao Kyrios, mas
Isso nos confirma que a figura do "Filho do Homem• nao aquele que, no espírito da comunidade primitiva e do
é chave decisiva para compreender a hermenêutica atéia do
3 Cf., E. Bra~n. • Possibilit~ ct non-enco~trc. L'ontologic traditio-
cristianismo de Bloch. Não se trata de contentar-se com a ncllc ct 1ontolog1c du non-encorc.Strc de Bloch•, in Utopie, marxis'"'1
transformação da teologia representada pelo humanismo ateu. se/011 Ernst Bloch, pp. 155-69.

136 137
Filho do Homem, tinha só valor de futuro: a vinda do Foi o Apóstolo dos pagãos, com seu espírito de contabi-
'melhor eon', o que constitui desde então para a cristandade lista, que combinou o mito pagão da morte e ressurreição
a pedra de tropeço de sua imagem do Senhor Jesus, quando anuais de um deus com a lógica jurídica da dívida a pagar
não coisa pior, e que ela tenta constantemente escamotear ao deus Moloc mediante o derramamento do sangue de ví-
hipocritamente" (p. 199) . tima inocente. Numa perspectiva apologética, dever-se-ia ino-
Bloch não deixou de observar que a hipótese da ori- centar Deus Pai de ter entregue seu filho inocente. Se Jesus
gem puramente palestina do útulo de Filho do Homem é se sacrificou voluntariamente para pagar a dívida, foi por
contradita pelo evangelho de João, que, embora escrito mais causa da culpabilidade do homem . Essa idéia não é inteira-
tarde, faz uso privilegiado desse título. Sobre isso ele não mente de Paulo. "As suas últimas raízes estão num solo não
se explica. No parágrafo 31, intitulado: "Um cristocentris- só profundamente sangüinário como também totalmente ar-
mo sem resto", ele vê justamente nele uma confirmação do caico: ela provém do antigo sacrifício humano, evitado já há
antitcocratismo fundamental da mensagem de Jesus. ~ o muito tempo - mesmo antes de Moloc! Com isso ela se
evangelho de João que nos mostra com clareza a homoousia revela essencialmente contrária ao cristianismo" ( p. 209).
de Jesus, isto é, a sua igualdade com Deus. Se ainda se Bloch revela profundo parentesco, desde são Paulo até
encontra uma teodicéia em são João, isto é, se Jesus atribui Lutero, entre o tema da pretensa paciência da cruz e o da
ao Pai qualidades que são só suas, é pura aparência. Com obediência incondicional à autoridade, em benefício dos que
efeito, Jesus diz só de si mesmo, de sua primeira vinda co- detêm o poder nas Igrejas. Graças ao mito do cordeiro sa-
mo Logos, que ele é a luz e a vida . Todos os versiculos ( caps. crificado, "a subversão que habita a Bíblia se vê definitiva-
15-17) sobre o mundo que não conheceu nem o Pai e nem mente interrompida" (p. 211 ). Encontramos uma vez mais
o Filho concernem a um Deus ainda desconhecido não só o objetivo maior da hermenêutica blochiana: trata-se, em
dos pagãos, mas também dos próprios judeus. contraste com a paciência do Crucificado, de restabelecer a
Pelo menos poder-se-ia admitir que o título de Kyrios, efervescência revolucionária, a cólera e a revolta que habi-
que pertence à pregação pós-pascal, fosse posto diretamente tam o texto bíblico.
cm ligação com a ressurreição de Cristo ... Mas, para Bloch, Entretanto, para sermos plenamente justos em relação
a ressurreição é somente produto da imaginação dos discí- à posição de Bloch, devemos notar que, se é verdade que,
pulos, que não se consolavam da morte de Jesus. São Paulo para ele, a esperança na ressurreição jamais ajudou algum
é o grande responsável pelo mito da morte e ressurreição, oprimido a sair de sua miséria, ainda assim ele saúda em
que nos remete aos mistérios pagãos naturistas mais arcaicos. são Paulo um "tribuno do humano, porque se dirigiu con-
A idéia de sacrifício voluntário é criação de Paulo. Ela está tra a mais impiedosa das antiutopias deste mundo heterô-
em relação dialética com a ressurreição e era necessária para nomo em que vivemos, a morte" (p. 212).
a pregaç.ão missionária dirigida aos pagãos. Se Jesus é o Mes-
sias esperado, não o é apesar da Cruz, mas por causa dela.
Assim, não é investindo-se do velho tcocratismo de Javé IV. VALOR DA EXEGESE DO TITULO DE •pJLHO DO HOMEM•
que o Filho do Homem se revela como o Messias, mas mor- SEGUNDO E. BLOCH
rendo na cruz. A aproximação entre o Messias e a figura do
Servo que sofre, do Segundo Isaías - que, não obstante,
parece fci ta pelo próprio Jesus - , é sem valor para Bloch. Tentei mostrar que a exegese do título de •Filho do
Ele pensa que a profecia de Isaías 53 se refere a Israel, e Homem " feita por Bloch ilustra perfeitamente o movimento
não ao Messias. de sua hermenêutica como programa de destcocratização.

138 139
Seria interessante, sem dúvida, confrontar sua hermenêutica de ver os cristãos gregos de nascimento se equivocarem so-
atéia com os resultados da exegese cientifica contemporânea. bre ele, considerando-o como indicação de descendência.
A obra AJheismus im Chrislentum data de 1968, e Bloch
2. A exegese contemporânea é cada vez mais unânime
conhece bem os trabalhos dos grandes exegetas modernos:
em fazer esse útulo remontar a Jesus mesmo. E aqui deve-
Schwcitzcr, Bultmann, von Rad, Kiisemann, Jeremias,
Stauffcr, Wcllhausen. Devemos observar, todavia, que, do mos ainda dar razão a Bloch. Um indício disso é fornecido
pelo fato de Jesus falar de si mesmo como "Filho do Ho-
ponto de vista das origens cristãs, ele privilegia autores ca.
mem" sempre na terceira pessoa. Isso não teria sentido, se
mo Bousset e Baucr, cujas conclusões já estão muito ultra-
esse título fosse criação dos discípulos. Para eles, a identi-
passadas. ficação de Jesus com o Filho do Homem era evidente. Por
Não podendo entregar-me seriamente a esse trabalho outro lado, os exegetas observam que em nenhum logion
de confrontação, que seria objeto de nova exposição, con- sobre o Filho do Homem se fala ao mesmo tempo da res-
tentar-me-ei com fazer quatro breves considerações, apoian- surreição e da parusia. A distinção entre ressurreição e pa-
do-me principalmente nas conclusões de J. Jeremias cm sua rusia vem, com efeito, da cristologia pós-pascal. Assim, a au-
teologia do Novo Testamento.4 sência de distinção entre ressurreição e parusia corresponde
1. O útulo de "Filho do Homem" se encontra oitenta a emprego pré-pascal da fórmula "Filho do Homem".
e três vezes nos evangelhos, sessenta e nove vezes nos sinó- Sem dúvida, alguém poderá admirar-se de a primeira co-
ticos e treze vezes no evangelho de João . ~ incontestável - munidade cristã nunca ter empre~ado essa fórmula em seus
e nesse ponto devemos dar razão a Bloch - que a aplicação símbolos de fé, ao passo que a transmitiu nos verba Christi
do útulo de "Filho do Homem " a Cristo vem de antiga e mesmo na tradição sinótica. Isso prova, pelo menos, que
tradição de origem palestina. E a retomada do Filho do pti- esse títuJo, enquanto remontava a Jesus mesmo, era sagrado
mciro homem celeste de Daniel 7, que pertence ao judaísmo e que ninguém se teria permitido eliminá-lo.5
tardio pós-cxllico, embora seja encontrado também na anti- 3. Parece bem estabelecido hoje que a origem da noção
guidade iraniana. ~ um fato que a Igreja de expressão grega de "Filho do Homem " não deve ser procurada nos mitos
evitou o título de "Filho do Homem ". Ele não se encontra do homem primordial, corren~es na Mesopotâmia, na Pérsia,
em nenhum formulário de fé da cristandade primitiva. na !ndia e na gnose. A idéiá de "Filho do Homem " remete
São Paulo devia conhecer a expressão "Filho do Ho- à apocalíptica do judaísmo antigo, particularmente de Daniel
mem ", embora nunca a use. Pode-se até pensar que a sua 7,1-14.
tipologia "Adão-Cristo", totalmente desconhecida tanto do Mas a oposição radical que Bloch estabelece entre o ú-
judaísmo antigo quanto do helenismo prwistão, tcnha- tulo escatológico de Filho do Homem e o título cultuai de
lhe sido inspirada pela aplicação do útulo de Filho do Ho- Filho de Deus é exegeticamente insustentável. Os testemu-
mem a Cristo. Se, apesar disso, ele evitou esse título cm sua nhos mais antigos concernentes à vinda do Filho do Homem
pregação aos gentios, foi, sem dúvida, para prevenir o perigo e à sua manifestação tendem a mostrar que ela se dará na
forma de elevação para Deus. O útulo de Filho de Deus
'4 J. Jeremias, Teologia do Novo Testamento, Ed. Paulinas, São
PauJo. All!m de Jeremias, consultamos tamMm: C. H. Dodd, L'lnter- e o de Kyrios convêm, pois, perfeitamente à epifania do
prltation du quatri~me l vangile, trad. franc., Cerf, Paris, 1975: H. E. Filho do Homem no último dia. Em outras palavras, mes-
Tõdt., Der Menschensohn in der synoptischen Ueberlie/erung, Gerd mo que a idéia de glorificação do Filho do Homem possa
Mobn, Gütersloh, 1959; J. M. van Cangh, •Le Fils de l'homme dans la
trad ition synoptique", in Revue Théologique de Louvain l, 1970, pp.
'411-9. 5 J. Jeremias, op. cit., p. 333.

140 141
ter evoluído à luz da experiência pascal, ela já se encontra CONCLUSÃO
em germe na revelação do Filho do Homem segundo Daniel
7. O Messias esperado terá, portanto, a dignidade e os atri-
butos de rei. Mas, contrariamente ao que Bloch afirma, a 1. A hermenêutica atéia do Novo Testamento de Ernst
espera messiânica não tem nada a ver com as esperanç.as Bloch é estimulante desafio em relaç.ão a uma compreensão
nacionalistas de Israel. O judaísmo conheceu duas esperas abastardada do cristianismo segundo a qual o ensinamento
messiânicas: a esperança nacional do herói guerreiro da raça de Jesus não seria mais do que uma mensagem inofensiva
de Davi e a esperança do bar'enasha, o Filho do Homem que ou ... um. plat.onismo para o povo. Bloch certamente ajudou
seria a "luz das nações" . Referindo-se explicitamente à es- a .tC?lo~a cristã a .rede~brir a dimensão escatológica do
pera do bar'enasha, Jesus rejeitava, pois, a esperança de um cr1SUarusmo e a dissooar o Deus da tradição bfblica do
Messias polftico. O título de Filho do Homem exprimia jus- Deus do tefsmo.7 A diferença de um Deus concebido como
tamente a universalidade de seu poder: ele é o salvador do hipóstase de um eterno presente, pode-se dizer que o futuro
mundo inteiro6 (Mt 25,31-46) . Por outro lado, o fato de é a determinação ontológica mais própria de Deus. Bíblica-
Jesus falar de si mesmo como Filho do Homem sempre na mente o ser de Deus é idêntico ao seu reino. 11 somente na
terceira pessoa sugere que ele distinguia entre seu estado realização de seu reino que Deus é Deus, e essa realização
presente e seu estado de exaltação, quando seria elevado à de seu reino é determinada pelo futuro . Em outras palavras,
condição de "Filho do Homem". a questão do Ens perfectissimum está ultrapassada e deu
lugar ao problema mais utópico, o do fim . Neste sentido
4 . Ú>mo vimos acima, Bloch considera a idéia de sa- é verdade dizer que "só um ateu pode ser um bom cristão"~
crifício voluntário uma criação tardia de são Paulo. Ora,
parece indubitável que Jesus previu e anunciou a sua paixão 2. O Filho do Homem é a chave do inacabamento do
e morte (d. os três anúncios da paixão em Me 8 ,31; 9 ,31; homem tendido para realização desconhecida dele. Finalmen-
10,33) e que foi ele quem fez a aproximação entre o Filho te o reino de Deus não é senão a vinda progressiva do reino
do Homem e o Servo sofredor de Isaías 53. Pelo menos, terrestre como reino da liberdade, coincidindo com uma hu-
no célebre texto de Me 10,45 e de Lc 22,24-27, vê-se cla- manização da natureza e com uma naturalização do homem.
ramente que Jesus se apresenta como o modelo do serviço, A questão que permanece é a de saber em que se funda a
sob o aspecto do sacrifício de sua vida, com referência a irredutibilidade ~o Novo em relação a tudo o que foi e que
Isaías 53 . "O Filho do Homem não veio para ser servido, é. Se o futuro Já está presente nas potencialidades e nas
mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos. " latências dos processos da natureza ou ainda nos desejos
Seja o que for da autenticidade desse versículo, é incontestá- e nas esperanças do homem, então ele não é o Novo em sua
vel que ele provém de uma tradição palestina antiga (em irredutibilidade e em sua indisponibilidade. Em outras pa-
Marcos), na qual a idéia do poder expiatório da morte era lavras, para fundamentar o primado ontológico do futuro
mui~o corrente. Não se trata, pois, de posterior criação dog- cm relação a toda realidade, não seria necessário pôr a "ex-
mática de Paulo. Se Jesus tinha consciência de ser o envia- terioridade" do que designamos bíblicamente como reino
do de Deus e se contava com morte violenta, é muito normal de Deus?
que ele interpretasse a sua própria morte em termos de ser- . 3. Com a figura do Filho do Homem, Bloch subverte a
viço e de expiação e que tenha visto o sentido de sua morte hip6stase do Deus que foi e que é. Mas faz ele mais do
na predição de Isaías 5J.
'bli7 ~b~ isso pode-se ler com proveito Cb. Duquoc, •un atlXismc
6 J. Jercmiu, op. cit., p. 343. b 1 que , m Lum1Are et Vie 156, 1982, pp. 69-81.

142 143
que substituí-la por nova hipóstase, a do futuro? Em outras
palavras, o Deus "na frente" é uma verdadeira alternativa
em relação ao Deus " além " ? Para Bloch, Deus é a expressão 7
da esperança jamais satisfeita do homem. Ele censura o cris-
tianismo justamente por querer trazer uma resposta a essa DO DEUS DO TEtSMO AO DEUS CRUCIFICADO
espera, por encher o vazio ontológico que define o homem,
no fundo por matar a esperança por meio da fé .
Mais precisamente, essa obsessão pelo cumprimento não
viria do fato de Bloch ainda conceber o futuro em sentido
grego, como o oposto dialético do passado, quando o futuro
no sentido bíblico deve ser entendido como vinda, advento,
parusia? 8 O Deus que vem como Deus da promessa introduz Hoje, ou Deus é desconhecido, não sendo mais possível
uma ruptura na imanência da natureza e da história, mas que a questão de Deus seja posta historicamente, não im-
não elimina a esperança, ele a funda. Bloch professa o ateís- porta por quem e em quais circunstâncias; ou Deus é muito
mo cm relação a um Deus hipostasiado por amor a Deus conhecido: quero dizer que os nomes divinos do teísmo clás-
e ao seu reino, não sendo Deus senão a realidade do homem sico são usados, o que levou muitos crentes a guardar si-
oculto como utopia do homem presente. A sua hermenêu- lêncio sobre Deus.
tica atéia da religião consiste em conservar Deus como fator Enquanto muitos, não-crentes e até crentes, fazem a
de transcendência. Mas quer compreendamos a história co- experiência da ausência de Deus ou sentem dolorosamente
mo degradação em relação a uma origem, quer como acesso o contraste entre a injustiça do mundo e a existência de um
nunca terminado a uma origem ainda não realizada, con- Deus que é Onipotência e Amor, é certo que a confissão
tinuaremos sempre no circulo da imanência ou da totalidade. de Deus não pode contentar-se com ser repetição morta.
Pode haver saída diferente da de um Novum que seja a Deveríamos partir para a reconquista do nome perdido de
exterioridade de um Outro criando em mim uma responsa- Deus . Não podemos, sob o pretexto de respeitar o nome
bilidade infinita? ( cf. Levinas) . inefável de Deus, deixar de invocá-lo, de chamá-lo pelo seu
Critica da religião e crítica pela religião, tal é o projeto nome. Como assegurar a presença de Deus entre os homens,
original dessa hermenêuúca a serviço da secularização. Blocb se não pudermos mais chamá-lo pelo seu nome? Mas, para
quer subverter o cristianismo como religião cultual pelo mes- isso, não basta transmitir uma confissão recebida por reve-
sianismo. Mas não subverte ele o pró2rio messianismo ju- lação. Também Deus recebe dos homens um nome de ba-
daico, substituindo a dialética de promessa e de cumprimen- tismo, segundo as épocas.1 A designação de Deus é tarefa
to por totalidade sempre visada, mas nunca acabada? criativa. Devemos aceitar sem cessar o risco de dizer o nome
de Deus para que ele apareça como sempre novo, vivo, atual.
Deus tem uma história na consciência do homem. E a his-
tória dos nomes divinos é a história das imagens de Deus.
1 Deixo consignada aqui esta feliz expressão de Andd Dumas:
8 Sobre isso, veja as distinções de J. Moltmann in Théologie d• •Eu diria, portanto, que hoje Deus espera receber de nós seu nome
l'espérance, trad íranc., Cerf c·eogltatio Fidei• n. 50), Paris, 1970; de batismo, nome que tanto lhe convenha quanto nos fale, nome aceito
veja tamb~ m A. Dumas, • Ernst Bloch et la tMologie de l'es~rance e agradável junto de Deus e junto do homem•, in •Dieu, pourquoi,
de Jürgen Moltmann ", in Utopie, marxisme selon Ernst Bloch, pp. comment?•, BulleJin du Centre Protestant d'Etudes, junho de 1973,
222,.38. p. 17.

144 14.5
Seria fácil , sem dúvida, mostrar que essas imagens foram justamente o de estar exposto a duas tentações: a de com-
produzidas em ligação com interesses bem determinados . prometer a identidade irredutível do Deus de Jesus, sacrifi-
A tarefa da teologia consiste justamente em criticar essas cando-a ao Deus do teísmo, e a de tomar tão a sério a ma-
imagens diferentes de Deus e em procurar os nomes menos nifestação de Deus em Jesus que o estatuto da transcendência
impróprios, nomes que sejam ao mesmo tempo a expres- pessoal de Deus se torne incerto e o diálogo com as outras
são do que Deus nos disse de si mesmo e da situação his- grandes religiões monotdstas se torne problemático. Tra-
tórica do homem diante dele. ta-se, na verdade, de falso dilema . Mas não basta mostrá-la
Trata-se de saber se ainda somos capazes de dizer Deus, teoricamente para eliminar essa dualidade de interesses, es-
de denominar o Deus único e pessoal - tanto perante a sa hesitação, essa claudicação, testemunhadas pela prática e
crítica atéia moderna como perante o imanentismo secreto pel;i linguagem dos cristãos.
da renovação religiosa contemporânea. Ao lado dessa urgên- Quanto a isso, o movimento teológico recente da "morte
cia, nosso ecumenismo cristão parece bem estreito. Existem de Deus n é um bom revelador dessa oposição entre Deus
razões para considerarmos seriamente uma complementari- e Jesus. Paradoxalmente, o resultado positivo dessa teologia
dade das três grandes religiões monoteístas no que concerne foi o de dar origem a uma terceira via, além do teismo me-
ao futuro da denominação de Deus. As três grandes reli- tafísico e do ;esuismo. A teologia cristã conhece particular-
giões saídas de Abraão podem ensinar, umas às outras, a mente uma renovação cristológica notável , que se esforça
não invocarem o nome de Deus em vão. por conciliar as exigências de uma teologia trinitária com
Nas páginas que se seguem começaremos avaliando a as de uma teologia da Cruz.3
situação da teologia recente, caracterizada pela contestação As teologias seculares e as teologias da morte de Deus
filosófica e política do Deus do teísmo. Em seguida tomare- são resultado de duas contestações, a do Deus da metafísica
mos conhecimento das pesquisas relativas a um "teísmo e a da função social de Deus. Devemos considerar essas
crítico" e procuraremos dizer quais são os nomes privilegia- contestações mais de perto. Elas coincidem com a crítica
dos de Deus que correspondem à espera do homem mo- de certo número de imagens de Deus e, portanto, de nome.s
derno. divinos que não são propriedade exclusiva do Deus dos
cristãos. O imperialismo da figura de Jesus em muitos meios
cristãos contemporâneos pode ser interpretado como reação
1. A SITUAÇÃO DO DISCURSO SOBRE DEUS HOJE contra uma época que estava sob o signo do teísmo, isto é,
de um Deus considerado como "quase evidenten e cujo
rosto era pouco diferente do que ele podia ter na forma
No cristianismo, a teologia dos nomes divinos depende comum da crença em Deus.
essencialmente do papel de Jesus na qualificação da imagem
privilegiada de Deus. Podemos dizer que essa teologia oscila
entre duas orientações: Deus compreendido em continuidade A. A contestação do Deus da metafísica
com o Absoluto do pensamento filosófico e das grandes re-
ligiões, ou Deus compreendido a partir de sua manifestação Essa contestação deve ser compreendida a partir da mu-
em Jesus de Nazaré. Poderíamos quase falar de combate en- dança de nossa conjuntura cultural, isto é, de nossa nova
tre Jesus e Deus.2 O destino histórico do cristianismo ~
3 . Evid~n~c~cnte penso principalmente na obra de J. Moltmann,
2 Cf. C. Duquoc, •La figure trinitaire du Dicu Jbus• in LumJAr. ú D1eu cruc1/1é c· Cogitatio Fidei• 80), Cerf, Paris, 1974, mas citarei
et Vie 128, maio-junho de 1976, p. 68. ' tambc!m H. Urs von Ballhasar, " Le myst~re pascal• , in Mysterium Salu-

146 147
imagem do mundo e do homem, e a partir da crise da lin- A nossa visão moderna do homem nos convida, por-
guagem filosófica sobre Deus. tanto, a abandonarmos a imagem de um Deus providencialis-
ta, que interviria miraculosamente em sua criação para re-
A mudança de nossa imagem do homem e do mundo tocá-la ou que agiria diretamente no curso da história para
suscitar algum acontecimento feliz ou infeliz como recom-
A linguagem tradicional sobre Deus, isto é, a linguagem pensa ou castigo da ação dos homens.
do teísmo, estava ligada a uma visão do mundo como cos- Foi justamente para superar essa imagem de Deus, uti-
mo estabelecido e hierarquizado, dependente de um Deus lidade suprema do homem, que a teologia moderna, seguindo
causa primeira e fundamento absoluto. O homem ocupava Karl Barth, acentuou a distância entre o Deus da religião e
seu lugar nesse universo hierarquizado. o Deus da fé.
Hoje a imagem do mundo não é mais a de um cosmo O Deus das religiões ou o Deus cósmico da natureza
determinado uma vez por todas. O mundo se define sobretu- é um Deus que responde muito bem às necessidades do
do como hist6ria, como devir, como campo ilimitado e.la ação homem . Ele corresponde a um estado de infância da hu-
humana. Ele remete em primeiro lugar à liberdade transfor- manidade : é o Deus hipótese de trabalho, o Deus que dá sen-
madora do homem, e não a um principio transcendente, causa tido, o Deus que consola e dá boa consciência, o Deus que
explicativa do mundo. A imagem dominante não é mais, protege e abona os nossos empreendimentos humanos.
portanto, a de um Deus todo-poderoso e imutável , predeter- O Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, o Deus da his-
minando marcha do mundo. É a de uma história da qual tória é o Deus todo Outro, que cria a questão da salvação no
o homem é o produtor e o responsável. Adivinha-se a im- homem, o Deus cuja resposta ultrapassa completamente a
portância dessa substituição da natureza pela hist6ria no expectativa humana. J! um Deus procurado por causa de
que se refere à denominação de Deus. si mesmo, não um Deus "disponívd ", adaptado pelo homem
Essa idéia de autogênese do homem parece dificilmente às suas necessidades. Estamos à procura de um nome que
conciliável com a de um Deus todo-poderoso e providente. evoque Deus como mistério de gratuidade.
Enquanto o homem não era ele mesmo, enquanto ele alie-
nava sua substância no Absoluto, Deus exercia certo núme- A crise da linguagem /ilos6fica sobre Deus
ro de funções em sua vida e no mundo. É necessário aceitar Assim, a nossa imagem do homem e do mundo mudou
um estatuto de inutilidade de Deus no mundo moderno. muito para que nos contentemos com imagem de Deus ligada
Deus recua à medida que o poder do homem se entende.4 a outra fase da cultura. De fato, alguns nomes divinos não
habitam mais a consciência religiosa espontânea do homem
tis. Cerf, Pa ris, 1972, pp. 9 ·274 ; S. Breron , Le Verbe et la Croix, moderno.
Desclée, Paris, 1981; E. Jilngcl, Dieir myst~re du monde, tred. frene.
(" Cogirerio Fidei " 116 e 117) , Ccrf, Paris, 1983. Mas, se quisermos ir até às raí.zes das dificuldades da
4 Serie inrcressenre expor a hisrória de secularização de idéia te~ linguagem teológica tradicional, devemos mencionar a crise
lógica de criação, que rende, na época moderna , a definir a essência da linguagem filosófica sobre Deus ou, mais precisamente, a
do homem que gera a si mesmo. Veja, a esse rcspeiro, A . Ganoc-
zy, Homme créateur, Deus créateur c·cogitatio Fidei• 98), Cerf. P• crise dos fundamentos metafísicos da teologia.
ris, 1970, que segue o rema da criação de Hegel , Marx, Nietzsche
e Serrre Num conrexto to ralmcntc ourro, o da fil osofia de A. N. tradução, cm francês, à Process Theology pode-se ler com proveito o
Whithead , e Process Theo/ogy americana (cf. cspccialmcnrc J. Cobb e estudo ~e A. Gouncllc, •Le Dynamismc crfatcur de Dicu. Essai sur la
S. Ogdcn) nasceu da vontade de superar as dificuldades fundamentais rhéologic du Pl'OCC$5• , in Et. Théol. Rei., Cahicrs hon ~ric, Mont-
do rcísmo tradicional para um pensamento crítico moderno. Para in- pellier, 1981.

148 149
Sabemos, desde Kant, que o pensamento metafísico so- que lhe são confiados pela revelação divina, aos imperati-
bre Deus recebeu um golpe mortal: a vida do entendimento vos do teísmo metafísico. Como o mostra com vigor uma
está denunciada como ilusão transcendental. Deus só é aces- obra recente, o Deus conceptual da ontotcologia t>odcria
sível como postulado da razão prática, isto é, no plano das bem ser apenas um ídolo, isto é, a colocação do divino à
exigências éticas. . disposição do homem numa aparência chamada deus; po-
Na teologia católica, esse acontecimento considerável deria ser, portanto, o desconhecimento de sua distância ab-
permaneceu por muito tempo disfarçado, em parte graças à soluta.ª
renovação moderna do tomismo. Mas hoje, o sucesso de um Pode-se criticar sem fim a aliança histórica entre o
"Jesus-centrismo" coincide com o abalo do Deus todo-po- pensamento grego e a revelação judaico-cristã, mas não se
deroso e imutável do teísmo metafísico. De seu lado, a teo- pode negar que a idéia de ser supremo, que tem sua cxp~­
logia protestante vinha procurando há muito tempo, depois são mais perfeita na figura da causa sui, pertence à essênaa
de Kant, construir um discurso sobre Deus.s da metafísica. "~ por isso, aliás, que o ser supremo, e com
ele uma constituição ontotcológica, está onde Deus, enquan-
Graças a Heidegger e à sua crítica da ontoteologia, sa- to cristão, desaparece." "A causa sui vale como teológica só
bemos melhor que essa morte do Deus da metafísica está na ontoteologia, na qual ela domina a função divina e a usa
inscrita no próprio destino da metafísica desde sua origem. no momento mesmo cm que a respeita. Os caracteres de
Com efeito, o mesmo movimento da metafísica que faz de ídolo convêm igualmente a um 'Deus' que serve de funda-
Deus o fundamento absoluto do existente, mata-o. Nessa mento, mas que também recebe um fundamento; que ~un­
teologia invertida que é o humanismo a.teu, o homem su.bsti- cia supremamente o Ser dos seres.em geral e, nesse sentido,
tuiu Deus como ser supremo, e, em Nietzsche, conseguunos envia-lhes uma imagem fiel daquilo pelo que des são, e do
a morte de Deus pela vontade de poder.6 que eles são; que fica distante da ontologia comum somente
Um dos resultados da atual crise da metafísica é o de quando dentro de uma conciliação (Austra~ que preserve de
inaugurar nova época "historial" para a teologia cristã, época de uma familiaridade fundamental. ProdllZ!do por e para a
na qual não é mais possível confundir o " teológico" vindo ontoteologia, esse 'Deus' se ordena para ela como o ídolo
propriamente de Deus com o "teológi~" ?e_natureza. pro- para a cidade (a não ser que o jogo político do ídolo remeta
priamente ontológica.7 Assim, a teologia crista é convidada inversamente à ontotcologia). C.om a única diferença de que,
a ousar ser ela mesma e a não sacrificar os nomes de Deus, aqui, o ídolo permanece .~nceptual: ele ~ã? somente não
oferece mais nenhuma fe1çao na qual o div100 nos olhe e
5 Veja especialmente A. Dumas•. •La critique .de l'~bjec.tivi.t6 d~ se dê a ser desfigurado. "i
Dieu dans la th6ologie protestante•, rn Nommer D1eu ( Cogitauo Fa-
dei• 100), Cerf, Paris, 1980, pp. 115-37. Ju~ nuançado sobre a contes-
tação atual do Deus da tradição ontoteológ1ca pode ser encontrado em 8 Pensamos no livro de J.-L. Marion, cujo tftulo 6 todo um pro-
P. Vignaux, "Dieu contest6, Dieu incontestable", in Les Quatre Fleuva grama, L'/dole et la distance, Gruset, ~aris: ~97?. Pai;a o nosso ~~
6, 1976, pp. 64-77. • . pósito aqui, ver particularmente o § 2: Le DLeu de 1 o~to-th6ologie ,
6 Sobre esse destino da metafisica como ontoteologia e sobre suu pp. 27s. Em seu novo livro, Dieu sans l'ltre, Fayard, Pans, 1~82, J.-L.
conseqüências para a teologia cristã, permitimo-nos remeter para trab• Marion radicaliza ainda mai.s seu pensamento, procurando libertar a
lhos anteriores: C. Geffri, • Le problbne th6ologique de l'objectivit6 do teologia não só da idolatria da metafísica, no sentido de Heidegger,
Dieu" in Proc~s de l'objectivité de Dieu (•Cogitatio Fidei• 41) , Cerf, como tamb6m da idolatria d:> pensamento do Ser en~uanto .tal. Deus
Paris,' 1969, pp. 241-63; e "Sens et non:sen! d'~ne . th6<;>1o~e non m6- pode dar-se a pensar sem idolatria somente a parttr de 11 ~esmo.
taphysique•, in Nouvel age de la théolog1e ( Cogitauo Fadei 68), Cerf, 9 J.-L. Marion, L'ldole et la distance, pp. 34-5. O autor cata.8!•
Paris. s/ d, pp. 67-81. com toda a naturalidade, o c61ebre texto de Heidegger em ldent1t11t
7 Sobre o alcance dessa distinção, preciosas observações de G. und Dilferen:· •Esse Deus o homem não pode nem orar a ele, nem
Granel encontram·se em vários estudos sobre Heidegger, reunidos DO oferecer lhe a!Íuma coisa, ~em, diante dele, cair d~ joelhos, ~r res-
volume Traditionis traditio, Gallimard. Paris. 1972. peito, nem tocar música ou dançar. Em conformidade com ISIO, o

1'1

l
150
Certamente pode-se encarecer que nos maiores (um To- Deus será a sua conversibilidade com Deus concebido como
más de Aquino) a teologia metafísica dos teólogos cristãos Ser Primeiro. É certo que o Deus revelado é o Deus criador
soube evitar o comprometimento do Deus da revelação pelo e que pode ser interpretado como o Deus Fundamento da
ídolo ontoteol6gico. Mas mesmo que seja verdade que ele ontoteologia. Mas uma teologia cristã dos nomes divinos
tem uma percepção muito viva do além conceptual de Deus deve ainda mostrar-nos o que a santidade e o amor divinos,
identificado com o Ser absoluto. de sua Alteridade irreduú- revelados em Jesus, trazem de espedfico para as proprieda-
vel, parece difícil afirmar que Tomás de Aquino escape ao des transcendentais do ser, transpostas para Deus.
destino da metafísica ocidental, isto é, pelo menos ao mo- Era necessário lembrar essa crítica do Deus da onto-
vimento dela como tentativa de explicação da realidade a teologia para compreender a crise do teísmo na teologia con-
partir de fundamento supremo. temporânea. Concretamente ela coincide com o processo fei-
Como sugeri em outro lugar, 10 a teoria dos nomes di- to à teologia objetivante e com o sucesso das teologias
vinos de santo Tomás (a célebre questão XIII...), embora existenciais. Mas, compreende-se melhor hoje que esta úl-
seja um modelo de epistemologia teológica, mostra os limi- tima corrente, que se recusa a invocar Deus de outro modo
tes de uma teologia enquanto ciência rigorosa de Deus. As- que não seja por um "tu" indizível, pode ser a expressão
siste-se, com efeito, a uma redução rigorosa dos atributos de um triunfo da subjetividade do homem e, por isso, de
bíblicos de Deus, especialmente quando expressos na for- uma humanização de Deus. Quando o existencialismo teoló-
ma verbal (verbos de ação), à atualidade pura do ser. Isso gico ( cf. Bultmann) não ousa objetivar Deus, para preser-
conduz a dificuldades temíveis quando se trata de conside- var seu caráter indizível, não reduz ele Deus ao sentido
rar com seriedade as ações "históricas" de Deus (criação que ele tem para o homem? 11 O destino da teologia cristã
- encarnação - divinização). E a distinção entre "nomes seria então verificar a palavra profética de Feuerbach: "Deus
próprios" e "nomes metafóricos" comporta o risco de deixar é um termo cujo único sentido é o homem." E, contraria-
perder-se a força sugestiva dos grandes súnbolos bíblicos, mente a certas interpretações um pouco curtas do ateísmo
que são reduzidos ao papel de metáforas dotadas de simples nietzscheano, pode-se compreender o grito "Deus está mor-
função pedagógica. to! " como uma recusa ao Deus-ídolo metafísico. A morte de
Em todo caso, a teologia dos nomes divinos explicita Deus, para Nietzsche, é a morte do Deus moral e ideal, a
as conseqüências da opção audaciosa de santo Tomás inter- morte de um conceito de Deus que o humaniza e não res·
pretando o Deus da revelação em termos de ser e identifican- peita a necessidade distância entre o homem e ele.
do-o com o Fundamento dos seres. Em sua vontade de ex-
plicação, a teologia-ciência explica o Deus de Abraão, de
Isaac e de Jacó a partir de alguma coisa anterior, de expe- B. A contestação da função social de Deus
riência humana do divino, a saber, da idéia de Deus con-
cebido como Ser absoluto. O critério hermenêutico para A contestação do Deus do teísmo não tem só causas
saber qual nome, bíblico ou não, convém propriamente a filosóficas, mas também causas sociais e políticas. Sejam
quais forem suas orientações cLferentes, as teologias secula-
pensamento a-teu (gottlou, no sentido paulino), que Jeve abandonar res e as teologias ditas "da morte de Deus" concordam em
o Deus dos íiJósofos, o Deus causa sui, estA talvez mais próximo do sua recusa ao Deus metafísico e em sua adesão a Jesus. O
Deus divino. O que significa somente: isso estA mais livremente aberto
a ele do que querena acreditar a ontoteologia.• (Trad. franc. .ln Deus todo-poderoso e imutável, o Deus metafísico e mesmo
Questions I, Gall.mard, 1968, p. 306.)
10 Veja C. Geff~. art. •oieu•, in Encyclopaedia Universalü, vai. 11 Cf. nosso estudo citado acima, • Le probl~me th~ologique de
5, Paris, 1969, pp. 576-80. l'objectivit~
de Dieu• , pp. 251-2.
o súr-bolo da Paternidade divina . aparecem como a garantia pela injustiça quedes sofriam? Uma das funções sociais mais
ideológica de uma ordem social conservadora, à qual se importantes do teísmo consiste em explicar as desigualdades
opõe o movimento moderno de emancipação. Parece ane os de poder e de privilégio na sociedade. Essa função essen-
nomes tradicionais dados a Deus, onipotência, imutabilidade, cial da teologia, sob o signo do teísmo metafísico, consistia
eternidade, legitimam e sacralizam um tipa de instituição aos .ºIh?~· por exemplo, .dos novos teólogos da libertação,
eclesial que testemunhava a ordem metafísica do mundo e em Justificar a ordem soetal existente e em manter certa or-
exercia um poder efetivo sobre as sociedades civis. dem institucional particular . 1•
Hoje. graças à crítica marxista das ideologias , conhe- . . ~a época mc;xierna, certo discurso sobre Deus como jus-
cemos melhor a função ideológica aue a teolop.ia pode exer- uf1cauva das desigualdades sociais desapareceu. Para muitas
cer em dado momento histórico. Não existe discurso teoló- pessoas, nem a submissão à vontade paterna de Deus, nem
gico desinteressado. Não é preciso ser marxista para tomar a mesmo a esperança mediatizada pela presença de Cristo, nem
sério a idéia de que a lústória das imagens sobre Deus e, a espera de um eschaton realizado por Deus são capazes de
portanto, dos nomes divinos, tem ligação com a história da aliviar a dor humana. A história e a aç.ão do homem na
produção, isto é, com o desenvolvimento da base material história tornaram-se os instrumentos essenciais, graças aos
de uma sociedade. 12 Existe uma correlação permanente entre quais o homem deve procurar integrar o sofrimento e o
as condições de existência lústórica de uma sociedade e as mal.
representações de si mesma que ela se dá. Essa "visão do ~mos, pois, C?nvidados a falar sobre Deus depois de
mundo" não é um simples reflexo das estruturas socioeco- Marx, isto é, um discurso que escape à crítica marxista da
nômicas. Ela tem uma função de justificação e de legitima- religião como ideologia. É incontestável que certa teologia
ção de um grupo (a classe dominante) dentro da sociedade. tradicional pôde servir de aval ideológico para tal ou tal
É nesse momento que a "visão do mundo" degenera em estado da sociedade . E hoje algumas teologias recentes (sob
ideologia.13 a influência do existencialismo, do personalismo, do m~todo
A teologia degenera em ideologia cada vez que passa transcendental) trataram demais a dimensão social do cris-
a ser um sistema de justificação e de legitimação social e tianismo como um aspecto acidental. É próprio das novas
procura impor, em nome da " pura fidelidade ao Evangelho", teologias políticas ou das teologias da libertação tomar a
tal ou tal opção social ou política, quando, na verdade, ela sério a eficácia histórica do cristianismo e propor a imagem
defende os interesses de um grupo dominante, seja na so- de um Deus Senhor da história que não faça concorrência
ciedade Igreja, seja na sociedade à qual a Igreja está ligada. com a ação transformadora do homem .15 O discurso sobre
Deus não pode servir para sacralizar ou manter uma visão
Quem pode negar que em sua longa lústória o discurso determinista e fatalista da lústória que acarrete uma acei-
cristão sobre Deus procurou justificar a injustiça social rei- tação teórica e prática de suas deficiências e contradições.
nante e fornecer aos homens a ilusão de uma compensação

12 Cí. A. Fierro, •Histoirc de Dieu·, in Lumiêre et Vie 128, 1976, 14 Como introdução à problemática das teologias da libertação
PP· H-99. ~menda":!os vi.vamente a leitura do número especial da revista Con-
13 Em vez de citar a imensa literatura consagrada à teoria dM cil1um 96: Pr&XJs de libtration et foi chrttienne•, 1974.
ideologias, remetemos somente a duas obras que põem muito bem o 15 P~ me que t desconhecer o alcance eclesiológico da opção
problema das rela.ções entre ft cristã e ideolog:a: C. Wackenheim, preferencial pelos pobres nas Igrejas do Terceiro Mundo ver, como H.
Christianisme sans idéologie, Gallimard, Paris, 1974, e S. Breton, ThlorW ~e L';Jb.ac, nas •teologias da libertação" apenas um novo avatar do
des idéologies, Descltc, 1976. Veja, entretanto, nossa reserva sobre a 1oa_qu1n_umo: cí. La Pos'érité spirituelle de /oachim de Flore, t. 11. •0e
posição de Wackenheim in Le Supplément 116, 1976, pp. 125-8. Samt-S1mon à nos jours• c•cwture et Vtritt), Lcthielleux, Namur, 1981.

154 155
11. A PROCURA DO NOME PRóPRIO DE DEUS novo tipo de existência com os outros; ele é também o Reve-
lador de Deus. A vida de Jesus foi, ao mesmo tempo e inse-
paravelmente, uma "orthopraxis", isto é, uma práxis con-
Seja em nome da crise da metafísica compreendida <:>- duzida conforme ao reino de Deus, e uma "celebração" da
mo ontoteologia, seja em nome da contestaçao ~a funçao soberania de Deus.17 Jesus nos liberta de uma imagem opres-
social que o Deus do teísmo exerceu durante mwto tempo siva de Deus justamente para nos revelar o verdadeiro sen-
no Ocidente, tentamos até aqui conhecer as dimensões da tido da paternidade e da soberania de Deus. E é porque
crise do discurso tradicional sobre Deus. Jesus se identifica com a causa de Deus, que é também a
Mas se alguém se contentasse com substituir o teísmo causa do homem, que ele é rejeitado pelos homens. Em sua
da antiga teologia por um "Je~us-centrismo", d~veria con- agonia Jesus nos comunica seu segredo: sua união privile-
siderar que assim chegaria rapidamente a um lmpasse n.o g:ada com Deus. Em compensação, na ressurreição manifes-
que concerne ao futuro do cristianismo. Hoje cad_a vez ma.Ls ta-se o engajamento permanente de Deus em relação a Jesus.
se toma consciência disso. O sim a Jesus e o nao a Deus, Assim, é o mistério da cruz e da ressurreição que revela a
que estão se tornando moda para alguns cristã?s, ~on:ipro~e­ relação privilegiada do Pai e do Filho. Com isso já está
te a universalidade do cristianismo, tornam ma.LS cliHcil odiá- colocada a questão do Deus de Jesus como mistério trini-
logo com as grandes relig"ões nãa<ristãs e desen~orajam os tário.
agnósticos que estão à procura de Deus. Contrar1ame:°te .ª? Depois da crise do teísmo metafísico, a teologia cristã
que às vezes se escreve, não é Deus como tal que ena difi- do mistério de Deus se encontra, portanto, em face a tarefa
culdades a muitos crentes de boje, é o caráter escandalosa- nova. Ela é convidada a respeitar mais seriamente a origina-
mente histórico do cristianismo, o fato de Deus ter ligado lidade do Deus de Jesus. Tratar-se-ia de elaborar o que se
sua sorte à de um judeu do século I. Deve-se rejeitar o pode designar como "teísmo crístico". Não é possível, com
Deus-{dolo do pensamento conceptual. Mas substituir Deus efeito, contentar-se com repetir materialmente o dado bíblico
por Jesus é fazer também de Jesus um {dolo. sem nenhuma retomada especulativa. Se queremos chamar
Devemos ao contrário, ser fiéis ao movimento do No- a Deus com um nome que ressoe em nossa cultura, a teolo-
vo Testament~, no qual constatamos que é impossível co- gia, hoje como ontem, não pode renunciar a articular as
nhecer Jesus fora de sua relação ao Pai, como é imposs{vel exigências da fé e da razão. Antigamente era o Deus da Bf-
conhecer Deus fora de Jesus. Uma das funções essenciais blia que criava dificuldades para o teólogo especulativo,
do ministério de Jesus foi justamente a de libertar os ho- hoje é o discurso racional da teologia natural. Seria preciso
mens das falsas imagens de Deus, para reensinar-lhes o ver- conservar o objetivo da teologia especulativa, mas aprovei-
dadeiro nome de Deus. 16 Cristo não é somente o modelo da tando também outros recursos conceptuais.
existência humana, ele não é somente aquele que define um
constante, intensa, com o Pai e que por 'esta razão ele se apresentou
16 •Tenho a impressão de que um 'Jesus-ccntrismo' exclusivo como 'passagem' • ("L'enjeu de la crise religieuse", in Rech. Se. Rei.
neg)igenc:a esse trabalho essencial de reconquistar o no~e de Deus 63, 1975, p. 32) .
faom;ado sobre os deuses fabricados pelas nossas necessidades. Eae 17 Mencionemos esta formulação perfeitamente equilibrada de E.
'Jesus-centrismo' comete, assim, o erro de se separa~ ~os oulrOS deUlel Schillebecckx: ·o Deus de Jesus é verdadeiramente Deus, e não se
possfvel. Também ele se torna então uma especialização henn6tica. identifica com uma função de humanização ou de libertação humana,
Se Jesus não tem relação com Deus, por que acrescentar lhe esse n~ mas, definitivamente, ele não deixa de ser um Deus que se preocupa
ao mesmo tempo próprio e universal, Cristo?" (A. Dumas! •Dacu. com o homem. Por isso toda a vida de Jesus foi uma 'celebração' da
pourquoi comment?" citado acima, nota 1) . E no mesmo sentido _ . soberania de Deus e, ao mesmo tempo, uma orthopraxis, isto 6, uma
linhas dd G. Morei: '•Mas a qual cristão o que 6 o ~ração do crild.9- prbis conduzida em conformidade (orthos} com o reino de Deus"
nlsmo o Deus trinitário. diz realmente alguma co11a? Ora, nio • ("1.e 'Dieu de J6sus' et le ' J6sus de Dieu" •, in Concilium 93, 197-4,
pode ~ucccr que para Cristo a vida só teve sentido por uma rcblçlO p. 103) .

1.56
157
Proponho simplesmente duas vias de pesquisa que po-
dem ajudar-nos a pensar o nome próprio do Deus de Jesus. . De fato , só um realismo cristo/6gico é que nos permite
c?nJu!ar, ao mesmo tempo, o perigo do pensamento metaf!-
s1co, isto é, ~ de um Deus f~ra da realidade, e a tentação do
A. Cristo como universal concreto antro~entr1smo moderno, isto é, a da dissolução de Deus
na reAlidade do mundo tornado maior :?O
Do ponto de vista da razão teológica, seria o caso de D~ante da C:Cí.tica atéia de um De~s além do mundo e
iniciar um movimento de pensamento que apreenda a ver- da crft1ca da religião como alienação do homem devemos
dade revelada a partir de seu lugar oróprio, em vez de pro- procurar conciliar a realidade de Deus e a realid~de do ho-
curar justificar o nome oculto de Deus a partir de funda- mem, esforçando-nos por pensar Cristo como universal con-
mento prévio, seja ele Deus entendido como Ser absoluto creto. Se formos até o fim oo realismo da encarnação como
ou o homem em sua autocompreensão. Trata-se-ia de não tornar-se-homem de Deus e como tomar-se-Deus do homem
partir mais do homem racional com sua vontade de repre- deveríamos poder compreender como a realidade de De '
sentação em face de Deus, mas do homem definido como se mostra como realidade do homem e inversamente. Desd=
acolhimento, como abertura. Então o próprio Deus deveria q~e D~us se fez ho;ffiem em Jesus, Deus e a realidade estão
ser pensado, de preferência, como Evento e Advento, como rruster1os~ente urudos - sem estarem identificados _ no
Apelo sempre novo, como Exigência incondicional. 11 s~ de_Cristo. Falar ~ Deus sem falar do real é que seria
Como há um lugar próprio no qual se revela a verdade alienaçao, porque é impossível falar do real em sua pro-
do ser, do mesmo modo há um lugar próprio no qual a fundeza sem falar a Deus.
verdade originária de :Ceus se deixa apreender. Esse lugar Deus nos re~elou seu ~orne cm Cristo. Mas o cumpri-
é Cristo em sua proximidade do Pai. Assim, além da redução mento da revel~çao em Cnsto .é palavra muito plena para
cosmológica e da redução antropológica do cristianismo, a poder ser conceituada de maneira satisfatória. A diferença
única via é uma "teologia teológica" que parta da confissão ~os. ídolos conceptuais do tefsmo, Cristo é o ícone do Deus
de que "Deus é amor", revelada no evento Cristo. No Verbo mv1sf.vel, aquele. que . o torna presente justamente porque
encarnado a verdade abriu o caminho que leva a ela: "Eu respeita a sua d1stânc1a. Podemos compreender Cristo ícone
sou o caminho, a verdade e a vida. "19 d.e J?eus co~ o vestfgio concreto da diferença entre 0 misté-
Em nosso desejo de designar Deus hoje, estamos CX· rio med~uvel de :Ceus e sua presença entre os homens.
postos a dois perigos. Ou nos contentamos com um concci· Como w:uve~sal concreto, Cristo é o lugar no qual se arti-
to metafísico de um Deus além do mundo, fora da reali- culam misteriosamente a diferença entre Deus velado e Deus
dade, Deus esse que é estranho ao que os homens vivem. revelado, entre a revelação como sentido universal e como
Ou, no desejo de atingir melhor o homem, não ousamot evento histórico particular, entre Deus e o homem.
mais falar de Deus e guardamos do cristianismo só sua di- . Pod~os dizer que o discurso teológico só evita cair
mensão ética de serviço aos homens. E se ainda falamol na idolatria se não apagar a diferença entre o que lhe é
de Deus, é um discurso antropológico, isto é, um discuno dado pensar oa revelação e o que lhe permanece sempre
indireto sobre o homem. oculto. Com efeito, a verdade revelada surge a partir do
lugar onde o que se dá e o que se reserva permanecem
18 Para aprofundar o que aqui apenas sugerimos, remetemot ele
novo "º nosso estudo •Le probl~me théologique de l'objectivité da 20 Trata se da " 1eol~gia da realidade•, que A. Dumas 1en1ou des-
Dieu•. in op. cit., pp. 2.55s. crever .em seu comen16no à obra teológica de D. Bonhoeffer Une
19 Cf. H. Un von Balthasar, L'Amour seul est digne de foi (•PGI
Vivante•), Aubier, Paris, 1966. ~':,,~ogre de la rl alité: Dietrich Bonhoe/fer, Labor et Fides, Ge'nebra,

158
159
indissociavelmente unidos. Encontramos aqui o movimento soluto. Ela insiste, por isso, na impassibilidade de Deus,
da teologia negativa e de seu jogo de afirmações e negações que, como Ato puro, não é afetado por essas obras con-
a serviço do respeito ao Deus escondido. tingentes que são a criação e a encarnação. Podemos, por-
tanto, perguntar, com razão, se, nesta perspetiva, ela justifica
real.mente a encarnação como mistério da kenose de Deus .
B. Uma transcendência que reconcilia No século XVIII, o racionalismo da Aufklãrung não
a imutabilidade de Deus e o devir fez senão acusar essa incapacidade de pensar especulativa-
mente a particularidade histórica de Jesus como universal
A originalidade do Deus da revelação judaico-cristã é concr~to. Basta pensar n? influência de Wolff em teologia.
a de revelar-se numa história, na contingência, no concreto. Ora, Justamente a teolog1a que procura pensar especulativa-
Devemos procurar pensar a relação entre o Logos eterno mente o Deus da Bíblia, o Deus de Jesus, deve tomar cm
e o evento particular Jesus Cristo. E isso será sempre escân- consideração a ruptura introduzida por Hegel no pensamen-
dalo para a razão. Essa revelação histórica, que torna Deus to do histórico.'2
tão próximo do homem, é também a que traz mais difi- Pode-se afumar que Hegel ajuda os teólogos cristãos
culdade aos nossos contemporâneos. Como pretender que o a "suportarn especulativamente a idéia de um Deus encar-
cristianismo, enquanto religião histórica, tenha o monopó- nado. Para ele, com efeito, a universalidade verdadeira só
lio da verdadeira relação com o Absoluto? E, sobretudo, existe cm concreto. O universal deve encarnar-se, e é só
como fazer a salvação de todos os homens depender desse então que ele é realme'.lte. J;: conhecido o célebre axioma:
evento particular, contingente, que é Jesus Cristo?~' "Tudo o que é racional é real, e tudo o que é real é racio-
E, no entanto, não é escamoteando a particularidade nal. n Em outras palavras, é quando o verdadeiro racional
histórica de Jesus que teremos alguma possibilidade de asse- é efetivo que ele é também plenamente racional.
gurar sua universalidade. Ele não é manifestação privilegiada Assim, depois de Hegel, sabemos melhor que o con-
do Absoluto na história. Ele é o próprio Absoluto tornado creto, o histórico, o positivo, o contingente não são neces-
histórico. J;: impossível deduzir o tornar-se-homem de Deus sariamente rebeldes à inteligibilidade e à universalidade.
a partir de uma idéia a priori de Deus como Absoluto. De- Ele é justamente o filósofo da reconciliação. Como teólogos
vemos aceitar o escândalo da encarnação na incondicionali- cristãos, deveríamos, portanto, ser capazes de pensar o nome
dade da fé. Se dizemos, com Urs von Balthasar, que Jesus próprio do Deus histórico, sem nos impressionarmos dema-
é a "figura n de Deus como Amor absoluto, é enquanto o siadamente com o "fosso horrível " entre o universal e o
evento Jesus qualifica intrinsecamente o Ser de Deus e, por- histórico do qual falava Lessing. Sem nos refugiarmos numa
tanto, o nome próprio de Deus como Amor. pura teologia blblica, teríamos uma alternativa em relação
O pensamento cristão sempre teve muita dificuldade a uma teologia natural que se mostra incapaz de valorizar
em tomar a sério a positividade do mistério cristão. Assim, a o universal concreto, isto é, de articular a historicidade e a
teologia metafísica, quando procura justificar os mistériOI
da criação e da encarnação, isto é, os atos mais livres de . 22 Cf. A. CescM, "Le Dieu de la Bible et la tMologie s~cuJative•,
Deus, preocupa-se sobretudo com salvaguardar a transcend~ m Epltem. Tl1eol. Lov. SI, 1975, pp. 5-34, especialmente pp. 26s.
E conhecida a pergunta de Karl Barth: • Por que Hegel não foi para o
cia de Deus, identificando-o com a imutabilidade do Ser ai> mundo protestante o que Tomás de Aquino foi para o mundo cató-
lico?• E a esse lipo de pergunta que W. Pannenberg tenta dar uma
21 ~ este tipo de aporia que tentamos enfrentar em •La contlW resposta e~ seu imponame estudo: "La significatioo du cltristianisme
gence historique du cltrislianisme comme scandale de la foi•, in La dans la philosophie de Hegel", in Archives de Philosophie 33, 1970,
Spirituelle, nov.·dez. de 1973, pp. 791·9. pp. 775-86.

160 6 • Como raur teoloaia hoje


161
inteligibilidade, a contingência e a racionalidade. O fato cris- desde a criação. Segundo a expressão ousada de Rabner,
tão faz pensar. Não sendo especulativo, ele não reclama um "Deus se comunica à sua criação de tal sorte... que se ani-
puro sacrifício da inteligência. A religião mais histórica é quila e se torna criatura" .'!4 Não devemos mais separar criaçã?
também a mais penetrada de racionalidade. e encarnação. A encarnação do Verbo de Deus numa reali-
Um teólogo como Karl Rahner esforçou-se por repen- dade distinta de sua essência é o ato supremo da criação
sar o mistério da encarnação, escapando à lógica da identi- divina, e isso já corresponde a uma "expropriação" de Deus.
dade da filosofia aristotélico-tomista. A transcendência do Mesmo fazendo apelo aos recursos da filosofia moderna,
Deus de Jesus se manifesta no fato de ele ultrapassar a opo- não nos afastamos do programa teológico da grande tradi-
sição que, numa metafísica do ser, pomos entre a imuta.bili- ção cristã, a dos Padre~ ~a Igreja, quando eJes .nos dizem
dade e o tornar-se. É próprio de Deus, poderfamos dizer, que a economia é o uru~o ~ugar da teologia, 1s!o ~ do
tornar-se outro permanecendo Deus. É privilégio só de Deus conhecimento e da denorrunaçao de Deus. A questao nao é:
o constituir ele mesmo o que o diferencia dele.n A propó- "podemos conhecer Deus em Jesus?", como se já tivéssemos
sito da encarnação não devemos ter receio de falar do "tor- idéia prévia de D~us; mas: "qual é o Deus que conhece~os
nar-se-homem" de Deus. Isso, ao mesmo tempo, nos escla- em Jesus?" O próprio termo Deus só pode ser entendido
rece sobre o mistério da criação o homem. A criação do a partir da particularidade da história de Jesus : o Deus de
homem só tem sentido como possibilidade de Deus de existir Jesus é o Deus de Israel . ~ é enquanto Jesus é este h~mem
em outro. Neste sentido, é correto entender, com Rahner, a Particular morto e ressuscttado, que ele tem uma urudade
antropologia como uma "cristologia deficiente". ' com o Deus de Israel, que .e1e ch_ama ~e~ p.ru..·u
privilegiada
O desígnio de Deus, já atuante na criação, co?siste em Unidade tal que ele é mais que a manifestaçao privilegiada
pôr outros ele-mesmo em r:Iação com el~ e as~á-~os aos de Deus entre os homens. Ele é o Filho de Deus consubstan-
intercâmbios do Pai e do Filho no Espírito. A cr1açao pre- cial ao Pai no sentido que a Igreja do Concílio de Calde-
para e torna possível a encarnação co:°1o possib~dade para dônia precisou.
Deus de existir em outro. Se renunctarmos ao impasse do Contemplando a relação humana de Je~us co~ o ?cus
teísmo metafísico, isto é, se deixarmos de fazer esfol!° de Israel estamos no caminho para descobrir o nusténo da
desesperado para conciliarmos os atos livres do Deus cria- filiação divina e podemos situar-nos ~m verdade diante de
dor e salvador com a Eterna presença do Ato puro, pode- Deus e invocá-lo com o seu nome, isto é, reconhecer-nos
remos dizer que o Amor leva Deus a se aniquilar, e isso "filhos " e dizer-lhe "Pai" . É enquanto Jesus é este homem
que identificou sua vontade com a d~ Deus e que se fez
23 Reconhecemos aqui o audacioso esforço especulativo de K. obediente até à morte que ele é o Filho de Deus. ~ en-
Rahner em sua interpretação da definição de .Calcedõnia, cf. "Prob!6- quanto Filho que ele é Deus. Somos en~o ~troduzidos n.a
mcs actuals de cbristologie", in l!crits théolog1ques, t. I, , DDB,, ~~·
1959, especialmente pp. 148 61. •Assim, Deus permane17 em si, tmu- intimidade do mistério de Deus como nusténo de paterru-
tável', quando vem verdadeirament~ para o que. el~ ~nsutui como sendo dade e filiação.
ao mesmo tempo unido a ele e diferente dele , 1b1d., p. 157; ean nota,
ele acrescenta: •(A ontologia) deve conceder que Deus, ~rmanecendo
imutável em si, pode existir em outro e que essas duas afirmações ~
verdadeira e realmente a realidade do mesmo Deus enquanto tal.
De seu lad"'. E. Jün11el ve n3 questão da relação entre Deus e o
perecfvel (die Vergãnglichkeit) a aporia fundamental do pensamento
sobre Deus na modernidade. E é indo até o fim numa reílexão ~bre a 24 K. Rahner, Mission et Grâce, t. 1., Mame, Paris, 1962, p. 76.
humanidade do Deus crucificado que ele procura uma soluÇ110. Cf. 25 Ponto sobre o qual insiste, muito particu.l~e•ne. V.:· P~"e!'!;
Dieu myst~re du monde ("Cogitatio Fidei" 116 e 117), Cerf, Paria, berg em sua cristologia, Esquisse d une christolog1e ( Cognauo F1de1
1983. 62). Cerf, Paris, 1971.

162 163
Ili . DEUS COMO BOA NOVA PARA O HOMEM DE HOJE Designar Deus como boa nova para os homens, isto é,
não como um Deus justiceiro e repressivo, mas como um
Esforcei-me por soletrar o nome próprio do Deus de Deus amor e libertador, é a re.sponsabilidadc histórica das
Jesus. C.Omo não podemos, porém, defini-lo, mas somente três grandes religiões monoteístas neste final de século.
?omeá-lo, temos necessidade de recorrer a vários nomes para C.Onvém falar cm monotelsmo, e não cm leismo. Não
Invocá-lo. Além de no falso dilema entre Jesus e Deus in- é só o ateísmo que devemos enfrentar. C.Omo antigamente
. . '
s1stunos em sua transcendência . Mas precisando que se trata no monoteísmo bíblico, temos de recorrer a um Deus único
da transcendência do amor, não da dn Ser absoluto. Isso contra os ídolos de hoje, contra o que é vivido como abso-
significa que em si mesmo ele é essencialmente mistério de luto, quer seja o dinheiro, o poder, o Estado, quer seja a li-
comunicação. Ele ultrapassa a antinomia entre a pessoa iso- berdade individual ... C.Omo vimos, o próprio Jesus pode ser
lada e o amor suprapessoal. Por isso nós o invocamos se- transformado cm ídolo, cm fetiche!
gundo a simbólica do Pai, do Filho e do Espírito:16 O mis- Terminando, gostaria de lembrar dois nomes divinos
tério da Trindade não deve ser confundido com um triteísmo. que me parecem cm particular consonância com a expecta-
C.Onfessamos assim o mistério suprapcssoal de Deus, cm con- tiva do homem de hoje. Temos necessidade de invocar a
formidade com a nossa prática da relação com o Deus único. Deus como o antidestino e como aquele que é solidário.
Não basta, porém, repetir a confissão oficial da fé da Ele é, ao mesmo tempo, Aquele-que-vem e Aquele-que-está-
Igreja. E necessário designar a Deus de tal forma que venha conosco.
à consciência do homem como boa nova. A designação de
Deus obedece a uma dialética complexa. De um lado, se
não o denominarmos mais, também não asseguraremos mais A. Deus, o antidestino
sua presença entre os homens. Do outro, se nos voltarmos
para um dogmatismo impenitente, não respeitaremos mais Invocar a Deus como antidestino é sublinhar a origina-
sua distância, e a sua presença poderá tornar-se insuportá- lidade do Deus bíblico cm relação aos deuses pagãos. En-
vel. Deus deve ser reconhecido também como o Outro, o quanto os deuses pagãos impunham ao homem o fardo de
Ausente, aquele que falta, a falha, o vestígio ...27 uma fatalidade insuperável, a revelação do Deus bíblico coin-
cide com a boa nova de libertação dessas falsas fatalidades.
26 CC. C. Duquoc, •La figure trinitairc du Dieu de J&us•, in Deus deve ser chamado, esperado, como aquele que
Lumi~re et Vie 12tl, pp. 73s; e Vieu diflérent, Cerf, Paris, 1977. desfataliza a história em geral e a nossa história pessoal.
27 Estamos prontos a aceitar por nossa conta esse diagnóstico
cruel de G. Morei : • ... Cada um se perguntará se a reação atual de Como nos convida o marxismo, devemos rejeitar as preten-
ate!smo ou de agnosticismo não tem por motivação, pelo menos em sas fatalidades da história em nome do poder criador da
parte, certa avenão diante do positivismo religioso. A acumulação de liberdade humana. Ora, um certo Deus do teísmo parece
representações nesse domínio não deixa, aliás, de ter relação com o
mesmo fenômeno na esfera econõmica: aqui e lá afirma-se a me. fazer o jogo dos determinismos mais estáúcos do mundo.
ma necessidade de ter a todo custo à disposição, de ter garantiu, E a crença num Deus providência, que previu tudo anteci-
de põr 'em depósito'. Voltando à teologia, notemos a contradição do padamente, parece contradizer a idéia de novidade no plano
mesmo individuo, que, de um lado, em refetincia ao discurso fil~
fico (de resto, clássico) , confessa não saber nada sobre Deus e, do da história. Nesse caso, a história não passaria do desenro-
outro, compensa essa ma.ravilhosa pobreza com uma inflação de con- lar de cenário previamente escrito.
ceitos, previamente dissecados, senão de imagens. Deus pode ser com- Mas, se temos o senso do Deus bíblico e do Deus de
plexo, mas certamente não ~ complicado. O Deus cristão envelheceu
terrivelmente e muito mal no Ocidente.• ("Les vertus de la nuit•, Jesus, podemos dizer que a história não escapa a Deus,
in • L'Eglise: l '~preuve du vide•, Autrement 2, 1975, p. 82.) sem fazermos de Deus um superagente que faça concorrência
164
com a ação humana. A criação não deve ser entendida como imprevisíveis. A prova por excelência de que Deus é liber-
um!l coisa em tudo acabada. Ela é o campo das possibili- tador é a ressurreição de Jesus. E a energia da ressurreição
dades do homem como co-criador em nome de Deus; é este como antidestino, como vitória sobre a morte e sobre todas
o sentido da história humana. O desígnio criador de Deus é as formas de negatividade, está agindo na história. A fé em
que o homem e toda a criação tenham sucesso. Deve-se até Deus coincide com a necessidade de pôr uma alteridade ou
dizer que a liberdade humana é o lugar da aç.ão divina uma "exterioridade" em rdação à intolerávd clausura da ima-
no mundo. Por isso a responsabilidade humana é tão grande. nência histórica . Por .isso não podemos contentar-nos com
Segundo a originalidade da história no sentido bíblico, nenhuma religião da totalidade, seja a do homem, a do pro-
a verdadeira dialética não é a do presente e do eterno, mas gresso, a do futuro , seja mesmo a de um panteísmo. ~ essa
a do presente e do futuro.u Deus não se define como o "exterioridade" que fundamenta nossa responsabilidade in-
eterno presente, como o lugar das idéias ou dos valores dos finita em relação a outro, cujo rosto é a epifania de Deus
quais o mundo e a história seriam apenas manifestações, (d. E. Levinas}.
mas como o Deus do futuro, o Deus da promessa. ~ este o Deus é, pois, aquele que desfataliza a história. Ele é
nome revdado a Moisés: "Serei quem serei", e não "serei outro nome da liberdade e da graça em nossa vida. Nós es-
como sempre fui n. tamos todos sob a lei, estamos todos sujeitos a leis econô-
~ correto, pois, chegar ao ponto de dizer que em micas e sociais, somos todos necessariamente para a morte.
Deus há mais novidade do que imutabilidade já definida Toda a questão consiste em saber se o homem se define
vez por todas. Se a verdadeira categoria da história não é somente pelo que pertence ao "disponível" para de ou tam-
o passado, mas o futuro, a história é aberta, voltada para bém por uma abertura misteriosa, irredutível às estruturas so-
um Deus na frente, que surge do futuro.19 Não basta falar ciais, econômicas e poUticas que o determinam necessariamen-
de Deus em tetmos de futuro imprevisfvel. Deve-se falar do te. A senha do humanismo ateu era: "~ necessário suprimir
futuro de Desus mesmo. Com efeito, se tomamos a sério Deus para que o homem exista." Talvez estejamos começando
o evento Cristo como vinda de Deus para a história humana, a verificar a urgência de um novo humanismo que redescu-
devemos dizer que o futuro de Deus e o futuro do homem bra essa verdade muito antiga: "~ necessário que Deus vi-
são inseparáveis. Não estando acabado o devir da humani- va para que o homem exista." " Dize-me qual é teu Deus,
dade, podemos dizer que o futuro de Deus permanece aberto. e te direi o que é o homem para ti ." Ou, como diz Moltmann:
Parece-me, em todo caso, que designar Deus é, para ·.. Deus é a crítica do homem. "30
o homem, um modo de escapar à dura lei da repetição da
mesma coisa, à opressão de destino indutávd, cujo signifi-
cante mais trágico é a morte humana. Por isso, o nosso B. Um Deus solidário
Deus é o Deus da esperança, o Deus da promessa, o Deus
sempre novo, que se dá a conhecer nos acontecimentos O Deus que vem, o Deus "antidestino" é também o
Deus conosco, o Deus solidário. E seria necessário mostrar
28 Sabemos o quanto J. Moltmann, em sua Thlologie de l'np4- que o Deus de Jesus é o Deus solidário porque é o Deus
rance, subHnhou, de modo quase demasiadamente sistemático, cua crucificado.
oposição entre a história no sentido bíblico e a história no sentido Encontramos aqui a objeção fundamental contra a exis-
grego: Théologie de l'espérance c•Cogitatio Fidei• 50), Cerf-Mame,
Paris, 1970 (cf. cd. bras : Teologia da esperança, Loyola, São Paulo, tência de Deus: o poder do mal em todas as suas formas
1971) .
29 CC. W. Pannenbcrg, "Der Gott der Hoffnung•, in Grundi/ra,.,. 30 CC. J. Moltmann, L'homme. Essai d'anthropologie chrétienne,
systematischer TM<>logie, Gottingen, 1967, pp. 387-98. Cerf-Mame, Paris, 1974, p. 123.

166 167
na condição humana. O processo movido contra Deus por
Jó não cessa em nossa história contemporânea. Apraz-me e. não deixa ao mal a última palavra. Mas ele quer ter neces-
citar observação colhida num artigo já antigo : "Diante do s1 da~e dos ho~ens . Como diz Nabert, "a vida de Deus é
escandaloso sofrimento do inocente, chame-se ele Jó, morra confiada a nós . Essa humildade de Deus é a marca de seu
no Calvário ou em Auschwitz, o simples teísmo se toma amor, não sendo, portanto, contraditória de sua onipotência.
definitivamente ridículo . "31 E Moltmann escreve em seu li- Ela é, antes, a man.!_fcstaçã~ orivilegiada de sua glória, diria
vro Le Dieu cruci/ié: "No fundo, a questão da história do Lutero. Somos entao conv1dados a participar seguindo a 1

mundo é a questão da justiça. E essa questão deságua na Cristo e com ele, do combate de Deus contra o podey do
transcendência. A questão de saber se Deus existe ou não mal. Os deuses pagãos são "poderes"; o Deus de Tesus é
é questão especulativa em face do grito dos que são assas- fraco e sofre. No nome blasfematório de " Deus crucificado"
sinados e dos que foram para a câmara de gás. "32 Ou ainda: o que ~os ~ mostrado. antes de toda teologia da redenção,
"Em si, a questão da existência de Deus é ninharia diante é a solidar•edade de Deus com o injustificável por exce-
da questão de sua justiça no mundo. 1133 lência, a saber, com o inocente que sofre.
Perante a questão lancinante do mal, sentimos com a Conviria encerrar essa reflexão sobre o nome próprio
maior vivacidade o impasse de todas as teoclicéias. Não se de Deus lembrando a linguagem da Cruz (logos staurou)
responde ao injustificável simplesmente recorrendo à confis- da qual nos fala são Paulo na primeira carta aos Coríntios'
são de Deus como todo-poderoso, sábio e bom ... em l , 18. A linguagem da Cruz, que é loucura para os h~
Somos convidados, ao contrário, a reinterpretar a oni- mens, na verdade é poder e sabedoria de Deus.35 A nota dis-
potência de Deus a partir da última manifestação do nome tintiva de uma teologia cristã dos nomes divinos vem da
de Deus na Cruz de Cristo. E aqui merece reter nossa aten- maneira pela qual ela considera a linguagem da Cruz. Existe
ção a audaciosa tentativa de Bonhoeffer. Ele muda o esque- uma "condenação à morte" da linguagem sobre Deus que
ma de Feuerbach segundo o qual o homem se esvazia de si vem do contraste doloroso entre a ausência de Deus e a
mesmo num absoluto ilusório que é Deus, mostrando que presença ?o mal no mundo. Devemos "praúcar" Deus, cm
na revelação bfblica Deus não se enriquece a expensas do v.cz d.e discorrer sobr~ ele. ~ justamente aquele que vive
homem . O homem não é esgotado pela fé bfblica; muito ao s~enaosamente o serviço aos homens como forma privile-
contrário, Deus morre para que o homem viva. l! a religião giada de nosso culto a Deus que saberá invocá-lo com os
em geral que remete o homem à onipotênica de Deus. A n?mes que lhe convêm. A morte de Cristo, ao condenar todo
Bfblia remete o homem à fraqueza e ao sofrimento de Deus. dtscr:r~o carnal sobre um Deus demasiadamente familiar,
Devemos chegar ao ponto de falar, com o P. Varillon restttw-nos o uso duma palavra segundo o Espírito sobre 0
da humildade de Deus34 diante de sua criação, como se Deu~ Deus único, que é, ao mesmo tempo, o Deus três vezes san-
fosse impotente diante do desencadeamento das forças do to e o Deus próximo.
mal. Deu~ nã? nega o mal, mas se encarrega dele livremente,
faz-se solidáno em Cristo para àboli-lo . .L)cus é o antimal
31 P. Watte, • Job à Auschwitz", in Rev. Théol. de Louvain 4
1973, p. 189, citado por A. GescM, •Retrouver Dieu• , in La Foi .Í
le Temps 6, 1976, p. 139. 35 ·o Logos da Cruz ~ bem um logos, um dito; mu esse dito
. 32 J. Moltmann, LA Dieu crucifié ("Cogitatio Fidei" 80), Ccrf, desconcerta de tal forma nossos pensamentos que só pode ser lou-
Pans, 1974, p . 199. cura; e ~.enquanto loucura que ele ~ poder de Deus.• Tal ~ parece
33 J. Moltmann, op. cit., p. 252. ~ 'f'rcm~s pDescrová vel da proposição paulina. Cf. S. Brcnton, ie Verb~
34 F. Varillon, L'Humilité de Dieu, Ccnturlon, Paris, 1974. a rovc, 1éc, Paris, 1981, p. 103.

168 169
o Deus da razão do Deus da fé, como procurou fazer a
teologia dialética na linha de Pascal e Kierkegaard. O Deus
8 que se revela na história é também o fundamento de todo
ser criado. O Deus atingido pela razão não é um outro
"PAI" COMO NOME PRÓPRIO DE DEUS Deus, mesmo que se trate de um Deus diferente. Al~ns,
como Hans Küng. propõem efetuar uma Aufhebung do Deus
dos filósofos ao Deus da Bíblia.1 Mas como entender isso?
Seja qual for a seriedade da negação nessa assunção dialéti-
ca, não é ainda consentir numa "reconciliação" cheia de am-
bigüidades?
Prefiro a via já decidida de E. Jüngel, para o qual a
A célebre oposição entre o Deus dos filósofos e. ~ Deus renúncia ao Deus dos filósofos não nos dispensa, de forma
de Abraão de Isaac e de Jacó se tornou quase tr1v1al . .o alguma, do dever de pensar o ser de Deus.2 A tarefa histórica
processo d~ helenização do cris~mo não da~a d: hoJe. da teologia consiste mesmo em elaborar a idéia cristã de
Mas depois que Heidegger denunc1~u a contamJ.naça? recí- Deus de maneira ainda mais rigorosa do que a idéia de
proca do conceito de ~er e. d~ conceito de J?eus no ~scur~o Deus da filosofia . Assim, tomar conhecimento do desmoro-
ontoteológico, a teologia crista se encontra diante de s1tuaçao namento do conhecimento metafísico de Deus não nos leva
nova. de forma alguma a substituir o pensar Deus por um crer e,
Quero dizer que não podemos contentar-n~s tom per- finalmente, por um agir. Trata-se de pensar o que cremos a
petuar o debate sobre o conflito entre a teologia. natur3:1 e partir da revelação. Para chegarmos a verdadeiro conceito
a teologia dialética . Em filosofia como .em teologia, ~ pais_a- cristão de Deus deveríamos ver, particularmente, em que
gem mudou . ~ necessário ver. ~u~ a crise. da metafísica nao medida é possível pensar, ao mesmo tempo, Deus e o transi-
levou necessariamente ao postUv1smo lógico. Um ~utor co- t6rio-perecJvel (die Vergãnglichkeit).3 Justamente disso é in-
mo E. Levinas, por exemplo, propõe uma alternattv~ à do- capaz o pensamento metafísico, porque ele não pode ter um
minação exclusiva do logos grego, procurando um :SPªÇO conhecimento positivo do que passa e morre.
de transcendência" na rdação ética a outrem. E a cme da ~ nesse contexto cultural e teológico que devemos en-
teologia metafísica não foi d~r neces~ariamente num funda- tender o sentido desse novo capítulo sobre Deus Pai. Seria
mentalismo bíblico. Em funç~o da crise ~o teísmo, ~ teol~ necessária longa explicação para tratarmos com a seriedade
gia contemporânea se caracterl.Zà por uma . concentraçao cru- que convém o problema da aplicação do nome "Pai" ao
tológica ". Mas nem por isso da renunoa a pensar o ser Deus dos cristãos em sua diferença com o Deus dos filóso-
de Deus. Ao contrário, ela procura pensá-lo mostrando o fos . Depois de lembrar brevemente a revelação bíblica do
nexo indissociável entre a teologia trinitária e a cruz de Deus Pai, contentar-me-ei com sugerir duas pistas de pes-
Jesus. . quisa. Procuraremos mostrar, cada vez, que o nome "Pai"
A teologia tradicional atribui a si a tarefa .de harmom-
1 H. Küng, Dieu existe-t-il? (Existiert Gott?), Seuil, Paris, 1981.
zar o Deus dos filósofos com o Deus da Bíblia. Mas com p. 770.
muita freqüência correu o risco de comprometer a originaB- 2 • Abschied vom 'Gou des Philosophen' ist a1so alles andere ais
dade do Deus que se revda em Jesus. Inversamente, entro- Abschied von der Pílicht , Gott zu denken•: E. Jilngel, Gott ais
Gwimnis der Welt, Tubinga, 1977, p. 269 .
tanto, é verdade que não se pode dissociar completameD .3 Cf. E. J!lngel, op. cit., p. 270.

170 171
é o mais adequado para manifestar a novidade do Deus de ccpção absolutamente transscxual da paternidade divina nos
Jesus, não só em relaç.ão ao Deus dos gregos, mas também convida, pois, a não carregarmos esse símbolo de traços uni-
em rdação ao Deus dos judeus. Não é essa a intenção con- c~ente ~asculinos, em conformidade com algumas exigên-
fessada de Paulo quando opõe às razões procuradas pelos oas atuais, que reagem, com razão, contra representações
gregos e aos sinais pedidos pelos judeus a linguagem da muito exclusivamente masculinas ou mesmo paternalistas de
Cruz como última palavra na qual Deus se dá a conhecer? Deus.
Segundo a intuição de Paul Ricoeur, é necessário atin-
gir o "grau zero" na figura do pai para poder ousar in-
vocar Deus como "Pai".5 ~ um movimento que se inicia
1. A REVELAÇÃO BfBLICA DO DEUS PAI
com os profetas ( Oséías, Jeremias, o Terceiro Isaías). Mas
então. Deus Pai não é mais somente o antepassado, a figura
da origem, mas o pai de uma nova criação, de uma nova
1. Convém notar, inicialmente, que seria abusivo pro-
aliança. Mais ainda, é numa espécie de linguagem indireta
curar no nome "Pai" o traço característico do Deus de Is-
que Deus é invocado como pai: "Eu dizia-: Vós me chama-
rad em sua diferença do Deus-principio do pensamento gre-
reis 'meu pai', e não vos afastareis de mim" (Jr 3,19).
go (trate-se do Bem de Platão, do primeiro Motor de Aris-
tóteles ou do Um de Plotino) . O Deus de Israel é o Deus Deus é o pai que perdoa as infidelidades de seu povo Israel.
E para evitar ª. identificação da figura do pai com a de geni-
pessoaÍ por excelência, o Deus vivo, ao mesmo tempo todo
tor ou de dom.lDador, ela é completada em Oséias por outra
outro e todo próximo. Mas o que surpreende é a hesitação figura de parentesco, a do esposo.
do pensamento bíblico em designar Deus como Pai, quando
essa designação era corrente e mesmo banal no Oriente 2. O Novo Testamento não cessa de pôr nos lábios de
antigo. Jesus o termo "Pai" (setenta vezes ... ) . Não cabe aqui um
À diferença dos mitos pagãos sobre a genealogia dos reescudo deste ponto.6 O que merece ser destacado é o
deuses, a paternidade de Deus no sentido bíblico é totalmente nexo entre a insistência de Jesus na paternidade de Deus
dissociada da idéia de geração ( cf. o sentido inteiramente e a pregação sobre o reino que vem ( cf. os pedidos do
específico do verbo bara para designar o ato criador). pai-nosso). Jesus não anuncia um Deus diferente do da Alian-
Deus é designado como Pai em relação com um ato de ça. ~as,. à ~ferença de João Batista, estende a paternida-
eleição, que é também indissociável de sua intervenção his- de misenoordiosa de Deus aos pecadores e aos ímpios. Deus
tórica em favor de seu povo. Deus é o pai de Israel, não é o pai dos desgarrados ( cf. a parábola do filho pródigo).
o pai dos homens. "A novidade radical é que a eleição de Há uma evolução em relação ao Deus de Israel, à medida
Israel como primogênito manifestou-se num ato histórico, a que Deus é o Deus da graça antes de ser o Deus da lei.
saída do Egito. O fato de a paternidade de Deus ter sido O pertencer ao povo eleito não garante a salvação, mas sim
posta, assim, em relação com uma ação histórica modifica
profundamente a noção de pai. "4 Nas narrações contidas na S C~. P. ~icoeur, •La Patemitl!: du fanta.sme ao symbole•, in
IA Confllt des mterpr4tations. Essais d'hermAneutique Seuil Paria 1969
teologia das tradições históricas ( cf. voo Rad), o Deus de p. 476. ' • • •
Israe.t é mais herói libertador, um actante, do que Pai. Essa 6 All!m dos estudos clássicos de J. Jeremiu e W. Marchei (Dieu
reserva dos hebreus a respeito da figura do pai e sua con- Plre .dans /e Nouveau Testament, Cerf, Paris, 1966, remeto de modo
es~1al às páginas de E. Schillebeeckx sobre a experiencia do Deus
P~ por Jesus: Jesus: Die Geschichte von einem ubenden, Ba.sill!ia·
4 J. Jeremiu, Abba, /bus et son Pne, Viena, 1975, pp. 227-40 (cf. a abundante bibliografia sobre o assunto
1972, p. 11. na p. 227).

172
17)
ciio da filiação única de Jesus. Há paternidade porque há
0 pertencer ao reino que vem: .E ~mo é necessário_ entrar filiação . E há filiacão porque há, pelo dom do Espírito,
nele como criança, o nome pnvilegiado com o qu.tl ..e de~e comunhão com o Filho único. "Eis a prova de que sois real-
invocar a Deus será o de Pai. Por outro lado, é em funçao mente filhos de Deus: Deus enviou aos nossos corações o
da proximidade escatológica do reino que vem, que de_vero Espirita do seu Filho, que clama: Abba, Pai" (Gl 4,6).
ser interpretados todos os textos do Evangelho que no~ fa.
Iam da providência paterna de Deus, que faz o so~ levan-
tar-se e a chuva cair sobre bons e maus e que cuida dos
pássaros do céu e das flores do campo. Isso já_ é suficie~te II. DA ATRIBUIÇÃO À INVOCAÇÃO
para nos mostrar a distância en~e. um~ con~e~o metafís1c:a
do Deus providência e a revelaçao 1uda1co-cr~sta do Deus Pat.
Segundo a observação de W . Pannenbe_rg, nao podemos ºPor Com o que dissemos foi possível descobrir na Brblia
a linguagem sapiencial de ~esus à su~ lmguagem cscatol6g1ca. um movimento que vai da designação de Deus como Pai à
"A proximidade escatológica do remo de Deus descobre a sua invocação. De modo semelhante podemos constatar uma
proximidade de Deus em relação. ao homC?1 e, a toda~ as conquista do nome acima de sua atribuição geral. ~ toda a
criaturas em geral, revelando assun o destmo natural da distância entre a apelação geral El, que a Setenta traduz o
existência humana. "7 mais das vezes por Theos e a denominação indizível de Deus
como IWHW. Apoiados nesses indícios, podemos refletir
3. O movimento que vai da designação à invocação, em tudo o que separa o discurso filosófico sobre Deus da
que já observamos nos profetas, tem seu .acabamento na linguagem religiosa. O pensamento metafísico pode atribuir
oração de Jesus: Abba. Como mostrou Jeremlas, .essa cxpr~s­ certo número de nomes a Deus. Mas somente a revelação
são aramaica absolutamente insólita em toda a literatura Ju- feita por Deus mesmo de seu nome próprio é que nos per-
daica paralela não exprime só a obediênci~ filial de Jesus mite invocá-lo como tal.
em sua relaç.ão com Deus, mas é também a expressao de O nome próprio não designa esta ou aquela proprie-
uma relação única com Deus" .1 Essa comunhão única entre dade, mas a pessoa no que ela tem de irredutível. Na ver-
Jesus e seu Pai é atestada pelo célebre logion de Mt 11 ,27 dade, o nome não significa nada, mas me permite ser identi-
("ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece ficado como "eu n e ser reconhecido pelos outros no que
o Pai senão o Filho"), de cuja autenticidade não. temos tenho de único. Em outras palavras, não há nome próprio
razão para duvidar. Se levarmos cm conta, além disso, a fora do intercâmbio dialogal.
distinção muito clara estabelecida por Jesus entre "meu Pai• Como vimos, o nome divino de Pai não pertence de
e "vosso Pai", reservado aos discípulos (Mt 5,45;6,1;7,11; maneira exclusiva ao judeu-cristianismo, à diferença do te-
Lc 12,32), podemos afirmar que, cm Jesus, Deus se revelou tragrama, que é privilégio de Israel. Trata-se de representação
como Pai de um Filho único. Estamos, então, na presença de humana de Deus (que procede do que Hegel chama de
uma etapa radicalmente nova n~ revelação d.o nome de ~ "fé ingênua" ) . Mas desde que cremos que Deus se revelou
como Pai. Os homens são filhos à medida que parua- como Pai, de instaura o homem como seu interlocutor com
pam da relação única de Jesus com s~u .Pai . .A revelação da o poder de designar com este nome o "tu" indizível de
paternidade de Deus aos homens é llldissooável da revela- Deus. Invocando Deus como "Pai", não significamos tal ou
tal qualidade em Deus, mas exprimimos simbolicamente o
7 W. Panncnbcrg, Efquisse d 'une christologie, trad. franc. reconhecimento recíproco entre o homem e Deus. Devemos
gitatio Fidci • 62). Cerf, Paris, 1971, p. 293.
8 A. Vcrgotc, /nterprétation du langage religiewc, Seuil, mesmo dizer, com A. Vergote, que o nome Pai aplicado a
1974, p. 125.

174
Deus é coisa diferente do símbolo. O símbolo sempre expri- Deus, que desafia todos os nossos conceitos, afirma ele que
me uma superdeterminação de sentido, à medida que é vi- Deus é inominável.
sado um segundo sentido com base no primeiro. "Ora, o Seja qual for a correção trazida pela via-neJ(.ationis,
nome paternal de Deus, por mais inesgotável que seja o o movimento de pensamento iniciado pelo Pseudo-Dionísio
seu sentido, não pertence ao registro dos conceitos supcr- na teologia cristã procede da capacidade do saber humano
determinados . Chamando a Deus de Pai, no sentido forte em sua vontade de dispor do divino num conceito de Deus
do termo, o homem exprime um sentido preciso que não como Ser supremo. Quando este último assume a figura da
remete mais a um segundo sentido. E que o termo não Causa sui, pode-se perguntar se o saber humano não com-
procede do pensamento significante, mas da palavra reco- pletou a idolatria de Deus. E a s~bstitui~ã? do s~ber me-
nhecente. "9 tafísico pelo saber transcendental nao modifica radicalmente
O estatuto do nome de Pai nos confirma que ele per- a hybris do conhecimento humano em sua vontade de dispor
tence à linguagem originária sobre Deus em sua diferença da do divino. E sempre o cogito no principio da denominação
linguagem especulativa da atribuição, filosófica ou teológica, de Deus. Ora, à autodenominação de Deus como Pai cor-
a mesma que comanda enunciados como: Deus é simples, responde em primeiro lugar a escuta do homem, o consen-
perfeito, bom, imutável, infinito, todo-poderoso etc. Nisso timento em um nome sem nenhuma autofundamentação pré-
está toda a diferença entre a linguagem religiosa, que é a via de sentido. E, pois, seriamente permitido perguntar se
da invocação, e a linguagem filosófica, que é a da atribuição, 0 tdsmo filosófico pode pretender chegar a algo que não
que procede por composição intelectual e na qu~ Deus está seja um divino anônimo. O próprio K. Rahner não pensa
em posição de sujeito de certo número de predicados. que o saber metafísico possa encontrar o Deus pessoal da
A reflexão sobre o nome Pai coloca, pois, com agu- fé. Se é possível uma teologia, uma teologia que chegue a
deza, o problema da correlação entre ?s n~~es pessoais uma objetivação de Deus, isso se dará necessariamente sobre
do Deus bíblico e os atributos de Deus identificado com o a base da comunhão reveladora que Deus faz de seu nome.
Ser absoluto ou Principio. "Talvez seja necessário dizer com Em todo caso, uma teologia cristã que tome a sério a
toda a firmeza poss{vel que o Ser e Deus são diferentes, e autodenominação de Deus como Pai é convidada a pesqui-
que a idolatria ameaça os maiores (Heidegger, mas tam- sar - além de todos os ídolos conceptuais do divino -
bém santo Tomás), desde que pensem em identificá-los. "10 0 que se oferece ao pensamento no Deus divino da reve-
E aliás notável que o nome Pai não se encontre nos tra· lação. A possibilidade e, ao mesmo tempo, a tarefa de nossa
ta'dos clássicos que estudam os nomes divinos. Falar de situação histórica consiste em medir o que distingue o Deus
atributos a propósito de Deus encerra sempre o risco de Pai revelado em Jesus do Deus da ontoteologia. Já citamos
fazer pensar em propriedades que ele tenha em comum. c.?m
outras essências (Karl Barth prefere falar de perfetç~s,
acima a palavra de Heidegger a propósito desse Deus: "J:.
esse Deus o homem não pode nem orar nem oferecer sacri-
que sublinham melhor a singularidade do ser d~ .Deus_).11 fício. Diante da Causa sui de não pode cair de joelhos cheio
Por isso, Dionísio Areopagita não deixa de corngtr a ma- de temor, nem tocar instrumentos, nem cantar ou dançar. "u
dequação dos nomes divinos, levando a sua neg~çã? ao ez.
tremo. Por fim, para salvaguardar a superessenaalidade de
9 J. Jercmlas, op. cit., p. 69.
10 J.-L. Marion, L'Idole et la distance, Gnwct,
270-1. 12 M. Heidegger, ldmtitãt und Dilfermz, Pfullingen, 1957, p. 70.
11 K. Barth, Dogmatique, trad. franc., li, 1, 2, Labor et cr. acima,cap. 7' nota 9.
Genebra, 195,7, p. 69.

176 177
III. o DEUS PAI ou A ·vmA DIFERENCIADA· DE DEUS
e sua abertura ao que não é divino. Deus não só é diferente
em si mesmo, mas também suscita diferenças. Vê-se assim
Do que precede podemos concluir que a paternidade tudo o que separa a lógica de um saber sobre Deus sob o
não é conceito filosófico . Ela é da ordem da vinda e do si~no da idcnti~de. e uma teologia cristã sob o signo da
reconhecimento. Não podemos especular sobre o conteúdo diferei;iça. No pnmeuo caso há o perigo de Deus ser apenas
da paternidade divina fora do ato de enunciação pelo qual a c6p1a do homem, e então o ateísmo seria uma saída
Deus declara sua identidade. 16~ica . No segundo, Deus pode tornar-se a abertura liber-
Eu desejaria agora continuar minha reflexão sobre a tadora do homem.
originalidade de Deus Pai em sua diferença com o Deus do Uma teologia trinitária sob o signo da diferença nos
tefsmo filosófico, mostrando que a escuta do que advém na convida, pois, a conjurarmos os perigos do pensamento me-
figura revelada do Pai nos ajuda a demistificarmos as ilu- tafísico quando ele se contenta com representar Deus co-
sões do projeto especulativo sobre Deus como também do mo o inverso do homem. Conhecemos essa lógica do Abso-
desejo imaginário do Absoluto. Estamos aqui em presença luto, que corresponde, aliás, ao sistema de projeção pelo
de dois registros diferentes . Mas a psicanálise nos ensina o qual o homem procura escapar à sua finitude. Deus é o
quanto nosso desejo de plenitude de sentido se enraíza ideal da perfeição, ao passo que o homem se define pela
em nossa paixão mais arcaica da origem. Trata-se aqui sim- sua falta ; Deus é eterno, ao passo que o homem está
plesmente de sugerir que o dogma trinitário nos remete a sujeito ao tempo; Deus é imutável, ao passo que o homem
um Deus diferente daquele do pensamento metafísico e co- é mutável; Deus é inalterável, ao passo que o homem é
mo que fundamenta a verdade da relação de filiação entre afetado pelo sofrimento etc. Assim, a diferença entre Deus
o homem e Deus. e o homem é pensada unicamente em termos de oposição.
E uma cristologia centrada unicamente na união hipostática
ainda permanece prisioneira dessa oposição, se não se per-
A. Um Deus diferente guntar em que coisa Cristo, enquanto revelador do Pai,
põe em causa nossas representações a priori sobre Deus e
"Deus diferente" é o título de um livro de e.
Duquoc, o homem.
no qual se lê : "A simbólica trinitária exprime que a Rea- Ir até o fim no que está implicado na simbólica trini-
lidade de Deus encerra diferenças, evocadas pelas imagens tária é cessar de manter-se numa relação de concorrência
do Pai, do Filho e do Espírito e tradicionalmente inter- entre o homem e Deus. b justamente em face de Deus Pai
pretadas em termos de 'pessoas' . nu O Deus do saber onto- que se instaura a verdade da relação religiosa do homem
teológico é o Deus da identidade, da coincidência consigo com Deus, a qual comporta semelhança e diferença.
mdimo, da perfeição não afetada por nenhuma altcridade,
da auto-suficiência e da contemplação de si mesmo. A vida
do Deus que se revela em Jesus é uma vida diferenci4"11. B. A semelhança na diferença
Ele é Pai, Filho e Espírito, isto é, ultrapassa não s6 1
contemplação narcisista de si mesmo, mas também o ea- Vimos acima que o Deus Pai da revelação bíblica não
colho do face a face extático. O papel do Espírito consia1e é o ancestral que sustenta a eterna nostalgia do homem. Ele
em significar e realizar a comunhão diferenciada de Deus é o Deus da promessa que dirige o homem para um futuro
inédito. A vinda de Deus Pai no evento de uma palavra
1l C. Duquoc, Dieu diflérent, Cerf, Paris, 1977, p. 119. na qual ele se diz na primeira pessoa rompe o círculo ima-
178 179
ginário de retomo à origem. Segundo a fórmula de A. Ver- de Deus para a realidade do Deus Pai reconhecido em sua
gote, não se deve confundir "a conquista do originário com djferença. Nisso está toda a diferença entre uma identifica-
a reconquista da origem" .14 O Deus do tefsmo filosófico, ção imaginária com Deus e uma identificação que aceita o
enquanto se identifica com a plenitude do ser e do sentido, jogo da diferença e da semelhança. Invocando a Deus como
corresponde ao Deus fantasmático do desejo absoluto do Pai, reconheço que recebo minha existência de um outro,
homem. A fé no Deus Pai coincide com um ato de reconheci- mas, ao mesmo tempo, identifico-me como filho e como
mento mútuo. Mas o preço desse reconhecimento é a conde- homem chamado a trabalhar com outros pelo reino. A nossa
nação à morte do fantasma paternal de Deus e de nosso "divinização" não é, pois, contraditória de nossa humani-
desejo megalomaníaco de sermos como Deus. zação. Tomar-se filho é aprender a respeitar a alteridade do
Segundo o programa de Paul Ricoeur, trata-se de pas- que chamamos "Pai nosso" . b irmos até o fim numa con-
sar "do fantasma para o símbolo do Pai" . E a solução da cepção não utilitarista de Deus e sermos remetidos da au-
crise edipiana é cheia de ensinamentos para o aprendizado tonomia que nos confere nossa identidade filial para a nossa
de nossa relação de filiação com referência a Deus. responsabilidade histórica.
Se a psicanálise tem suas suspeitas quanto à imagem Assim, a revelação do Deus Pai subverte o que poderia
paternal de Deus é porque este último pode vir a ser o ser apenas relação de concorrência entre o homem e Deus.
lugar ideal para a projeção do desejo arcaico do homem. Devemos substituir a relação "senhor-escravo" pela relação
O crente espera tudo de Deus: a imortalidade, a inocência, "paternidade-filiação". A única atitude que corresponde à
o cumprimento de todos os seus desejos na ordem do saber Palavra do Pai é a do filho adotivo que vive sua seme-
e do amor. Ora, " a análise freudiana do complexo de :&tipo lhança, aceitando sua diferença. O homem aceita não ser
nos ensina que o filho atribui ao pai uma vida que não ~ Deus, mas recebe de Deus ser semelhante a ele. Devemos
a que recebeu efetivamente dele, mas a que quereria poder renunciar ao velho sonho que o demônio sempre sugere ao
atribuir a si mesmo. "IS Daí o desejo de assassínio do pai homem : "Sereis como deuses" (projeto de identificação ima-
ou a submissão até à morte à vontade do pai, que são ginária com Deus) . Daí por diante o homem é chamado a
meios simétricos de apossar-se dos privilégios reservados realizar a palavra de Jesus: "Sede perfeitos como vosso
ao pai. A única saída é renunciar à onipotência infantil do Pai celeste é perfeito" (realidade de uma comunhão no
desejo, isto é, renunciar de fato a uma identificação morllll Espfrito que não elimina as diferenças) .
com o pai por um reconhecimento mútuo. "Reconhecer-se
existir por um outro, aceitar uma palavra como constitutiva
e uma lei como estruturante não é mais viver sob o imperia- CONCLUSÃO
lismo do fantasma, mas na ordem simbólica estruturada
pela palavra e pela lei." 16
A economia do desejo, manifestada pela crise edipiana, As breves observações que precedem têm por fim so-
vem encontrar-se em nossa relação com Deus. Também aqui mente mostrar em que a figura revdada de Deus como
a prova decisiva será a passagem do "fantasma paterno• "Pai " nos leva a uma revolução em nossas representações
espontâneas de Deus e da relação do homem com Deus.
14 Esta fórmula se encontra no importante estudo de A. V
•passion de )'origine et quête de l'originaire•, retomado em Inter Não basta exorcizar os ídolos conceptuais do pensamento
tion du langage religieux, cit., cf. p. 44. metafísico; é necessário também mostrar em que o Deus
15 J.·M. Pohier, Au nom du nre. Recherchu thlologiqua diferente revelado pela si.mb6lica trinitá.ria escapa à crítica
psychanalytiques (•Cogitatio Fidei" 66) , Ccrf, Paris, 1972, p. 105.
16 C. Duquoc, op. cit., p. 102. freudiana do "fantasma paterno" de Deus.

180 181
Assim, para lá do teísmo e do ateísmo, somos impelidos
Nem tudo, porém, está dito quando lembramos que a
condição filial instaurada em Jesus nos !'rotege contra n a tomar a sério a Theologia crucis (é o sentido de E . Jüngel
em Dieu mystere du monde) . O ateísmo que caracteriza a
projeção de um pai idealizado q~e só pode. ser. um con~r­
nossa modernidade nos obriga a elaborar novo conceito cris-
rente e um rival do homem. Sena necessário ainda meditar
tão de Deus. O ateísmo enquanto negação do teísmo é um
sobre a condição de Tesus como Filho, considerando que na
momento crítico da teologia cristã. Uma teologia da Cruz
cruz ele fez até o fim a experiência do que significn ser
filho. Inicialmente eu sugeriria que somente uma t.:nlc1~ia não é só a exigência de nossa situação histórica de falta
de fé. Ela é também capaz de enfrentar a questão temível da
da Cruz é que pode pensar o ser do Deus de Jesus em
sua diferença com o Deus dos filósofos e dos sábios. Con- justiça de Deus no mundo . O mérito de Hegel e, depois
dele, de Bonhoeffer, é o de terem proposto uma interpre-
cluo dizendo algumas palavras sobre este ponto.
tação teol6gica do ateísmo, mostrando a origem cristol6gica
A loucura do Logos da cruz (!Cor 1,18) é a última do discurso moderno sobre "a morte de Deus n.
palavra sobre o Pai de Jesus. Quando Jesus renuncia à
presença de um Pai idealizado, fazendo a experiênc:!a de seu
silêncio e de sua ausência, é Deus mesmo que manifesta sua
solidariedade com o so&imento e a morte do homem. Ele
dá então a prova de sua diferença radical do Deus todo-
poderoso e apático da tradição filosófica. Morrendo como
"abandonado de Deusn (]. Moltmann), Jesus é " levado à
sua realização n como Filho ( Hb 5,7-9) . Mas a palavra de
Jesus a Filipe, "quem me viu, viu o Pain (Jo 14,9),. recebe
então seu alcance decisivo. Precisamente quando o Filho so-
fre por ser abandonado pelo Pai, o Pai também sofre por
abandonar seu Filho bem-amado por amor aos homcns. 17
Deus renuncia às suas prerrogativas para se apagar na huma-
nidade do crucificado. Pôde-se com razão interpretar a últi-
ma palavra da cruz "como renúncia de Deus a si mesmo•
(W. Kasper) .
A teologia trinitária nos remete a um Deus diferent~
do Deus simples da ontoteologia. Mas dev~os ir até ~ fim
na teologia da cruz, se quisermos fazer brilhar a novidlllk
do Deus Pai de Jesus em relação tanto ao Deus da razio
como ao Deus de Israel, mesmo não sendo ele um 0"'10
Deus.

17 Cf. J. Moltmann, Le Dieu crucifi'· trad. franc. •eogitatio


80), Cerí, Paris, 1974, p. 280:·p Pai e~trcg~ seu F~ho à cruz
tomar-se o Pai entregue, dado , e mais adiante: Abandonao
Filho tarn~m o Pai se abandona. Entregando o Filho, tain~ o
se en'treaa, não, polim, da mesma maneira.•

182 183
A. Crise de confiança no sentido da história

9 1. O homem de nosso tempo tem o sentimento de viver


sob o signo de uma história trágica, de uma história dilace-
EXPLOSÃO DA HISTÓRIA ra~, des~aça~a ... E o ceticismo atual a respeito das filo-
sofras da h1st6r1a nos fornece sobre isso prova irrecusávd.
E SENHORIA DE CRISTO
Depois. de J:iegel, os filósofos se esforçaram por mani-
festar a racionalidade do movimento histórico . A história
tem um sentido: ela é a mediação do devir do homem como
homem e, .po~tanto,. de ~eu reconhecimento por outrem.
É pela mediaçao da históna que o homem atinge sua essên-
Em que sentido se pode falar de uma única história cia. Este sen.tido transc~de ~s múltiplos agires dos homens
a partir de Jesus como Cristo e como Senhor? Essa questão <=?mo o movunento da ~stóna ultrapassa todas as ações par-
nos remete a outra: pode-se falar de inteligibilidade da his- uculares. E na perspectiva do materialismo histórico, é pelo
tória profana ou deve-se dizer que ela, como tal, é sem u:ab~o do hom~ que se passa da "pré-história" para a
significação e que só tem sentido em função da história da h1stór1a. Mas, depois do absurdo das duas guerras mundiais
salvação? Esse assunto pertence à teologia da história. Mas depois da. experiência dos diversos totalitarismos, o pensa~
quem pretende hoje escrever uma teologia da história? mento oodental tornou-se mais crítico no que se refere às
Começaremos caracterizando o contexto sócio-histórico reconstruções racionais da história. Toda filosofia da histó-
no qual se inscreve uma reflexão cristã sobre a história. ria que pretenda decifrar o sentido global da história parece
Em seguida, esforçar-nos-emos por apresentar alguns demen- voltada ao fracasso. 1 Por isso, prefere-se refugiar-se numa
tos de reflexão sobre a relação entre a unidade de Cristo e pura analítica da historicidade do Dasein, isto é, do tempo
a unidade da história. que mede a liberdade humana {d. R. Bultmann). Contra
Hegel, pensamos que a história não é o lugar automático do
desdobramento necessário da verdade. E contra pensadores
como P~~berª, pensamos . que a história não é o lugar
1. O CONTEXTO ATUAL DE REFLEXÃO CRISTÃ de antec1paçao nao-problemáuca da totalidade. Uma análise
SOBRE A HISTO RIA
objetiva eh história universal leva, antes, a constatar a pre-
sença recorrente de anomia e de dispersão, de desordem e
de explosão.
Há dois traços que impressionam imediatamente: do
um lado, constatamos crise de confiança no sentido da hist6-
ria; do outro, a Igreja tem consciência cada vez mais vi .• º.Pode-s~ falar de ' desenvolvimento', sem se precisar o que 6
a raiz, o que se desenv~lve (e que não poderia ser simples), e sem
de sua responsabilidade histórica perante o mundo e o põr em relação uma ongem que escapa e um fim que ainda não
turo do homem. c:beaou, uma vez que estamos numa história que continua? At~ que
ponto ~ cm que nível pode-se postular uma humanidade única, que se
c:omtróa no tempo, através das fases sucessivas e progressivas?• Tais
llo as quest?es que A. Vanel põe ao projeto de hist6ria universal
l: tenda a 1n1e_rpre!ar a totalidade da •história vivida•; cf. •L'impact
ú IMthodes h1stonques en th~ologie du XVle au XXe ai«Je• in
Dlplaument de la th4ologie, Beauchcsne, Paris, 1977, p. 36. '

184 185
2. Em se.gundo lugar, deve-se admitir que o marxismo Deus. Essa confiança no progresso ilimitado do homem ainda
participa da crise geral das ideologias. Sem dúvida ele ainda se encontra em alguns documentos do Co c{Jj
é onipresente como instrumento de análise para a denúncia Gaudium et spes. n o, como a
das taras do status quo de nossas sociedades liberais. Mas O q~e s: oculta atrás das ideologias do progresso e
o grande acontecimento do último decênio, pelo menos para da secuJartzaçao é a fé no homem. Ora, esta fé 00 homem
a intelligent:âa francesa, é a crise do marxismo como ideolo- está a?alada, e Prometeu. que ia bem, não vai mais tão be
gia - por causa do fracasso de sua pretensão de realizar Acreditava-se nas virtudes ilimitadas da raza-0 · t é m.
historicamente o ideal comunista. Seja o que for de seu pro- feli CJ·d ade e na fraternidade fundada sobre a razã , 1s o
. acre
na
' di-
pod . . d d o,
jeto abortado de um eurocomunismo que apela para modelo tava-se . no . er llimi ta o a ciência e da técni. ca,. a ameaça
democrático em oposição ao modelo stalinista, parece que, atÔmtca e as 10certezas sobre as conseqüências das · uJ
por uma espécie de destino fatal, todas as revoluções inspi- - é· f marup a-
çoes gen acas. azem pesar uma angústia surda sobre 0 fu-
radas pelo marxismo chegam ao totalitarismo e aos gulags ... turo da espécie humana. Acreditava-se dominar 3 natureza.
É preciso dizer que as pretensões do humanismo - trate-se ela está poluída, ~ então procura-se reencontrá-la e res i~
do humanismo marxista ou do humanismo burguês - foram tá-la ( cf. a ecolog1a). pe
desmentidas pelo destino trágico do homem, de um quarto . Numa palavr~'. o homem, que é definido só pela efi-
de século para cá. É preferível falar de niilismo a falar de cá~a, pela . rentabi!idade, pelo progresso quantitativo, não
humanismo ateu.2 sau.sfaz mrus. E milhões de pessoas - especialmente entre
os JOVens - perderam a razão de viver.
3. Enfim, devemos lembrar a crise da ideologia do
progresso. Com o início do século XVIII a ideologia do pro-
gresso veio encher o vazio deixado pelo recuo da ideologia
cristã. Começou-se a acreditar plenamente na evolução da B. A. con~ciência cac!8 vez mais viva da responsabilidade
ciência e da técnica para a solução paulatina de todos os hist6r1ca da lgre1a em relação ao futuro do homem
problemas e dificuldades do homem.
A Igreja começou discordando da ideologia do progres- Essa nova consciência está ligada às incertezas que pe-
so, mas, aos poucos, os teólogos procuraram reinterpretar sam sobre o futuro do homem à situação dramática de
o cristianismo em função da idéia de progresso. Podemos um. mundo no qual o f~sso entre os países pobres do hemis-
citar, por exemplo, a teologia de Teilhard de Chardin, que féno SuJ e os países ncos do hemisfério Norte não cessa
de aprofundar-se.
tende a fazer a ideologia do progresso coincidir com a recapi-
tulação de todas as coisas em Cristo. Devemos citar tambma . Ma~ ess~ nova consciência é também indissociável da
as teologias da secularização, que funcionam como idco~ virada ~1stór1ca ~o Vaticano II no que concerne à atitude
gias, isto é, que procuram justificar biblicamente a seculari- da lg~eJa a respeito da Declaração dos Direitos do Homem.
zaç.ão do mundo, a vocação demiúrgica do homem sobre a Dc~1s de mais de um século de mal-entendidos trágicos
criação e a idéia de que a transformação do mundo d~v1.dos em parce ao contexto "laicista" da explicitação do~
homem trabaJha secretamente para o advento do reino dircuos do ~oi;i:iem no século XIX, a Igreja católica se tor-
nou, ~es.te último quarto do século XX, a maior campeã
2 A este re3peito, veja o número especial de Concilium, IOb ~os direitos do homem. Não se deve dizer somente· " Do
título: "La crise de l'humanisme", n. 86 (1973); cr. também e. yllabus ao diálogo" ,3 mas também: do anátema à ~desão
"La crise de l'humanisme et 1actualité d'une anthropologie ch~ti
in Humanisme et /oi chrétienne (Mélanges de l'lnstitut Catholique p.n:. ~:~~mo-nos à obra de J.·F. Six, Du Syllabus au dialogue, Seuil,
Paris), Beauchesne, Paris, 1976, pp. 473-82.

186 187
e à promoção dos direitos do homem. Os direitos do homem nitturcza.• Ora. o substrato da história humana não é a
(inclusive o direito à liberdade religiosa) não são somente Natureza considerada como simples desenvolvimento ou co-
tolerados pela Igreja. Segundo a palavra de Paulo VI, eles mo uma esoécie de processo arônimo. A história do ho-
se tomaram uma exigência do Evangelho (Sínodo de 1974) mem é a história de sua liberdade e de sua paixão.
( cf., abaixo, cap. 13). Uma filosofia da história que não tome em consjde-
Afirmar que a defesa e a promoção dos direitos do r~ção o ~ofr~e~to dos homens dá interpretação não-dialé-
homem são uma exigência do Evangelho é admitir que é aca da histó~1a, rn~erpretação abstrata da história polarizada
impossível dissociar a evangelização da promoção humana por con~epçao mfrlca da emancipação do homem, na qual
na única missão da Igreja ( cf. a exortação apostólica de os conflitos e as catástrofes da liberdade não são levados
Paulo VI: Evangelii nuntiandi). em conta. A história tende a se identificar com a história
dos vencedores, isto é, com uma espécie de darwinismo ins-
pirado no principio de seleção.
e. Deslocamento das teologias da história Ora, a história concreta do homem nos remete à AJteri-
d~de de um Deus libertador, que faz justiça a todos, aos
Esse novo contexto sócio-histórico trouxe uma rev1sao vivos e aos mortos, e não a um Deus evoluidor (Cristo
das teologias demasiadamente otimistas do trabalho, das rea- Omega) .
lidades terrestres e da história. Apontarei somente uma dis-
tância maior perante a síntese teilhardiana, um reequilíbrio 2. O reequilibrio das teologias políticas
das teologias políticas e das teologias da libertação e uma e das teologias da libertação
crítica da teologia dos sinais dos tempos.
Em ~rim_:iro lugar é preciso lembrar que as teologias
?a secular.~açao e as teologias politicas foram objeto de
1. O otimismo evolucionista de T eilhard intensa critica por parte dos teólogos da libertação. Eles
~cu~~ o~ teólogo~ europeus de pecarem numa concepção
Todos nós somos teilhardianos no que se refere à sua
mdJVJdualista da liberdade como emancipação e de assim
vontade de reconciliar a Igreja e o mundo e à sua insis- fazerem o jogo de certa privatização do cristianismo.s Che-
tência na unidade da história, história da salvação e história ga-se afinal a uma justificação teológica do mundo moderno
escrita pelos homens. Mas somos todos também p6s-teilhar·
como ~undo profan~ e fomece~se a~al teológico a um tipo
dianos no sentido em que temos consciência muito mais aguda de soaedade sob o signo da raoonalidade técnica, do cresci-
sobre o aspecto trágico da história e dos conflitos de toda mento a qualquer preço e do trabalho desumanizante.
sociedade humana. O mal não é somente o "sangue da eva.
lução " ou o "preço do progresso " como conseqüência do ~as é , ~ecessário mencionar também o reequilibrio da
inacabamento do mundo. teologia poüuca por Metz ( cf. A fé em história e sociedade)
e por Moltmann ( cf. Le Dieu crucifié).
A maior limitação de Teilhard é a de permanecer numa
visão não-dialética da história, isto é, ele não estabelece 4 ·o sofrimento põe a contradição enLre a natureza e a história
uma ruptura trágica entre a matéria e o espírito. O mal ' enl!'C a telco~o~ia e a . escatologia", J.-8. Metz, A fé em hist6ria ~
recuperado e tomado meio para um fim. Pode-se dizer com sociedade•. Ediçoes Paul mas, São Paulo, (1981) .
5 Veia parucularme~te as contnouiçôes de E. DusseJ e J. L. ~
J .-B. Metz que Teilhard confunde a teleologia com a escato- gund? no número .especial de Concilium: Praxis de libération et foi
logia, isto é, que ele tende a explicar a história a partir ck chrlt1enne. le témo1gnage des t/1éologiens latino-américains, n. 96 (1974) .

188 189
Eis alguns perigos inerentes à teologia polltica, enten- fuMetz corrige ?s per!gos da teologia política centrada
dida como teologia otimista da história, como podemos re- no turo ~ constru~ mediante a importância que dá à noção
sumi-los a partir de J.-B. Matz.6 de m~m6rta. _memória do sof~~ento e. memória da paixão
a. Ela avaliza uma visão finalista da história, isto é, de Cri~to. Nao ~e haver v1sao da história que apague a
de uma humanidade progredindo sem parar no caminho da memória do sofrimento da humanidade E é ó ·
· d · - . · a mem na
reconciliação com a natureza, isto é, ela confunde a teleo- perigosa a ~atxao de Cnsto que permite à Igreja exercer
logia com a escatologia. seu papel crfttco em relação à sociedade.7
b . Ela justifica muito depressa um sentido da história . ~ memória da paixão de Cristo inspira uma visão da
história na qual se toma a sério a separação entre 0 homem
como história dos ganhadores, dos vencedores , dos chega-
dos, e não dá nenhum lugar à memória do sofrimento hu- e a naturc:za e se dá lugar à história dos sofrimentos huma-
mano. Em outras palavras, ela corre o risco de abonar cris- nos. A históri~ dos so~rimentos do homem não é, como
tãmente o tema marxista segundo o qual o "mal-estar" da numa pcrspecuva ma_rx:ista, capítulo da pré-história da li-
condição humana deve finalmente ser reabsolvido, graças a ber_dade. ~la é e conttnua sendo elemento intrínseco da his-
certo número da causalidades históricas de ordem socio- tória da li_~rdade .. Dc~emos até dizer que uma das dinâmi-
cas essenoais da história é a memória do sofrimento _ ao
econômica.
~esmo tempo _como consciência negativa de liberdade por
c. Sem confundir o reino com a libertaç.ão política, a Vlf ~ como es_ umulante de combate a travar para vencer 0
teologia polltica, em sua preocupação de reagir contra a sofrim~to. Ftn~ente é o Deus da paixão de Jesus que
privatização do cristianismo, deixa muito na sombra o fato é o su1eito da história universal.
de que a realização do reino passa pela resposta livre das A memória da paixão de Cristo é memória subversiva
pessoas ao apelo de Deus. Em outros termos, a história e. perigosa porque interpela o poder social e político dos
como movimento de humanização não é o sacramento au- ricos e d?s detentores do poder. Não basta falar de " reserva
tomático da vinda do reino de Deus. A libertação social e csc~tológica". !! necessário apoiá-la na mem6ria da paixão de
polltica pode somente criar condições ou espaço para a li- Cr1~to, a ~ual contesta todos os sistemas totalitários e todas
berdade. a~ ideologias que preconizam emancipação linear, unidimen-
d. Do ponto de vista da integridade da mensagem s1o~al do h??1em. Ela proíbe o nivelamento da dimensão
cristã, as teologias políticas têm muita dificuldade cm jus- social e política do sofrimento e nos coage a levarmos cm
tificar teologicamente o fato de que a ressurreição passa conta, numa soci~dade planificada, as pessoas sem poder e
pelo caminho da paixão. Assiste-se então a essa crise de sem voz. _Além disso, a memória cristã da paixão tem cará-
identidade das teologias cristãs, sublinhada por Moltmann. ter antecipador. Ela é a prefiguração de futuro que será
A medida que a mensagem cristã é inteiramente adaptada ?o~ 9ue sofrem, dos sem-esperança, dos oprimidos e dos
às ideologias seculares, seja a da emancipação do homem, muteis deste mundo.
no sentido da Aufklarung, seja a da liberdade revolu- A iden~dad~ _cris_tã só pode ser compreendida como
cionária, no sentido marxista, ela se torna insignificante e um ato de 1dentif1caçao com Cristo crucificado. "Para 0
cai ao nível " de paráfrase religiosa supérflua dos processos
modernos do mundo" {Metz). 7 • A r_nemória, d~ sofrimentos de Jesus deve ressoar, no meio do
que ~ considerado acenável' pela nossa sociedade como uma evocação
6 Referimo-nos de modo especial ao artigo: ·u m~moire de la ao mcs~o tempo perigosa e libertadora, e os do~as da cristologia de-
souffrance, facteur de l'avenir•, in Concilium 76, 1972, pp. 9-2.5 ; e 80 vem af1rmar·sc c:cimo fónnulas que lembrem coisas bem incômodas", cf.
cap. Vl de La foi dans l'histoire et dans la sociétl, cil. J..B. Metz, art: c11 .•• p. 18; cf. também o cap. V de La foi dans l'histoire
tt dans la soc1lté: Lc souvenir dangereux de la libert~ de Jéaus-Christ•.
190
191
cnstao não existe alternativa entre evangelização e humani- di~isã?, de conflito. de crise. O mesmo se pode dizer do
zação. Não existe alternativa entre conversão interior e mu- anuncio do Evangelho pela Igreja boje.
dança das relações e das condições de vida. "1 Por outro lado, antes de vermos nos "sinais dos tem-
pos" uma Palavra de Deus, devemos interpretá-los nos pla-
3. Um ;uízo mais critico sobre a teologia dos "sinais nos hu~ano, ~ociológico e cultural. Temos, por exemplo,
dos tempos" uma lCJtura, diferente da de Teilhard, de fenômenos como
urbanização, socialização, planetarização, progresso técnico.
Do Vaticano II para cá fala-se muito em "sinais dos E, de qualquer forma, mesmo que constatemos progressos
tempos n para designar fenômenos que, no plano humano, reais no nível da con~ência humana ou da humanização
sociológico e cultural, caracterizam as necessidades e as as- do homem, devemos ainda mostrar o nexo entre esses di-
pirações de uma época. Diz-se que é missão da Igreja discer- ~ersos _fenô!Deno~ ~ a vinda do reino de Deus. Ainda que
nir os sinais dos tempos . Esses acontecimentos são vistos isso nao se1a a última palavra sobre o sentido da história
como uma praeparatio evangelica para o reino, como "pon- feita pelo homem.' podemos esta?eJecer como regra teológica
tos de preparação" em relação ao cumprimento último da segura que os diversos acontectmentos da história só são
história, que será "Deus tudo em todos" .9 "preparações" para o reino se favorecem a abe.rtura das
Guardemo-nos de otimismo um tanto ingênuo e subli- liberdades humanas para a liberdade divina. Finalmente tudo
nhemos que a história humana continua profundamente am- o que se passa no domínio das relações humanas da econo-
bígua. Devemos evitar cair numa visão muito antropomorfa mia, da política, da ciência e da cultura encontra ~eu sentido
da ação de Deus na história como se Deus estivesse maia último somente em função da relação fundamental entre 0
engajado em certos acontecimentos. homem e Dcus. 11
Notemos, particularmente, que, na tradição bíblica, 1
expressão "sinais dos tempos " é amb{gua. 10 Há, de um lado,
a tradição do êxodo, na qual os "sinais e prodígios" sio
presságios positivos da salvação que liberta o homem e li. UNICIDADE DE CRISTO E UNIDADE DA HISTORIA
gata o mundo. Do outro lado, há a tradição apocalípti
na qual "os sinais do fim" são presságios negativos do
vel fim do mundo. A moderna " teologia dos sinais dos J?epois de termos reconstituído a paisagem histórica e
pos" tem a tendência de interpretar os sinais dos tem teológica na qual nos achamos, podemos arriscar algumas
num sentido exclusivamente positivo. proposições sobre a unidade da história.
O verdadeiro sinal dos tempos é Cristo. Ora, a Compreende-se, em todo caso, por que é temerário ela-
vinda, que coincide com a vinda do reino, é um fator borar uma teologia da história que dissesse de vez o senti-
do t~ol6gico da história humana tomada como um todo
8 J. Moltmann, Le Dieu cruci/ié, trad. franc. c•Cogitatio Fidci• como história universal. Podemos quando muito interrogar~
Cerf, Paris, 1974, p. 30. nos sobre a relação entre a história humana com seus fins
9 M.·D. Chenu, •tes signes des temps. R~flexion tMologique•.
L'Eglise dans /e monde de ce temps, t. li, Cerf, Paris, 1967, pp. próprios e a salvação entendida como cumprimento e reca-
cf. também, •tes signes des temps", in Nouv. Rev. Théol. 87, l
pp. 29-39; e • 1ntroduction : signes des temps" in Concilium 25, .11 Embo~a não a~ite que sejam. a ~lima palavra a respeito do
pp. 125-32. tentJdo t~l6g1co da história profana, msp1ro-me aqui nas reflexões de
10 A este respeito, veja as justas observações de J. Mol~ P. Valadie.."•. q~e reage sadiamente contra o uso um tanto fácil da
L'Eglise dans la force de l'Esprit, trad. franc. c•Cogitatio Fidei• apreaio sinais dos tempos•, cf. •signes des temps, signes de Dieu"
Cerf, Paris, 1980, pp. 5~74. ln Etudes, agosto-setembro de 1971, pp. 261-79. '

192 7 • COIDO faur teoloala boJc 193


pitulação de toda a criação. Trata-se então mais de teologia que não é mais do que a história do Esp!rito de Deus nos
da responsabilidade hist6rica dos cristãos do que de teolo- corações, independente das flutuações da história. A história
gia da história propriamente dita. Nesse sentido, tal teologia passa a ser apenas o "quadro externo" no qual se joga o
da história é inseparável de uma teologia da missão, de drama da salvação, sem que a figura como tal da história
uma "hermenêutica do envio" (d. abaixo, cap. 14). tenha qualquer relação com o eschaton. E, por uma espécie
Devemos procurar a sua via entre dois excessos. De de "volúpia apocalíptica", parece que, para Balthasar, o pro-
um lado temos os defensores da descontinuidade absoluta, gresso na caridade é inversamente proporcional ao progresso
chamados "escatologistas"; do outro, os defensores da con- humano na ordem da imanência histórica.
tinuidade, chamados "encarnacionistas".
Para falarmos como Moltmann em sua Théologie de
1. A primeira tendência é de homens como K. Barth, l'espérance, devemos dizer que Balthasar não entende a his-
R . Bultmann,U K. Lõwith 13 e sobretudo, atualmente, H . Urs tória historicamente. Ele é prisioneiro de uma perspectiva
von Balthasar. 14 Eles estabelecem absoluta descontinuidade platônica, segundo a qual a história é uma sucessão de epi-
entre o devir da história e a vinda do reino, entre a história fanfos cambiantes e variáveis do eterno presente.
profana e a história da salvação. Não existe termo de com-
paração entre o desenrolar da história e o reino que vem 2. A outra tendência provém do que designei como um
de Deus. A história corresponde, sem dúvida, a desígnio "otimfamo evolucionista", que é representado por alguns
providencial de Deus, tendo, por isso, um sentido, mas não discípulos de Teilhard e por algumas teologias poUticas. Ela
cabe a nós decifrar esse sentido. insiste n.i continuidade entre o progresso imanente à histó-
~ necessário mesmo ir mais longe: para Balthasar (e ria e a vinda do reino, entre a promoção humana e a sal-
Bouyer, 15 antes dele} a relação da história com o reino ~ vação cristã. Dizemos que, segundo essa tendência, a relação
negativa. Longe de ser o lugar da manifestação de Deus, a entre a salvação escatológica e a construção do futuro no
história está submetida à vontade de poder do homem. tempo histórico é determinada de maneira unívoca como
Assim, falar de progresso da história, que por si mesma pre- que seguindo uma linha única. ~ o que chamei atrás de
parasse misteriosamente o reino de Deus, é dar pouca im- interpretação teleol6gica, e não escatológica, da história e
portância às afirmações da revelação sobre o mundo, que de confusão entre evolução do mundo natural e história das
está submetido à lógica do mal. ~ também dar pouca im- liberdades. 16
portância à Cruz enquanto julgamento sobre este mundo. A única interpretação adequada do sentido da história
O que é difícil de aceitar em Balthasar é essa scpar~ é a interpretação escatol6gica: ela mantém a história aberta
muito ríg:da entre a história profana e a história da salv~ para um futuro, e a história se torna instrumento eficaz
separação que vai dar numa secularização cada vez · das promessas de Deus.
da história e numa espiritualização da história da salv
Em suma, a relação entre o reino de Deus e a história
12 CL sobretudo Histoire et Eschatologie, Delachaux et não pode ser enunciada nem na forma de monismo, nem na
Neuchi tel , 1959. de dualismo. Não existe solução teológica para exprimir de
13 Cf. K. Lõwith, De Hegel à Nietzsche (trad. franc.) , G maneira satisfatória essa relação. Devemos aceitar ficar em
Paris, 1969.
14 Cf. sobretudo De l'intégration. Aspects d'une thJolop suspenso segundo o logion de Lucas: "A vinda do reino de
l'Histoire. DDB, Paris, 1970. Deus não é observável. Não se poderá dizer: 'Ei-lo aqui!
15 Cf. L. Bouyer, "Christianisme et Eschatologie", in Vie
tuelle, out. de 1948, pp. 6-38, e "Ou en est la th&>logic du 16 "Nio existe mediação teleológica e finalista entre a natureza e o
mystiquc?", in Rev. Se. Rei. 22, 1948, pp. 313-33. homem•, afirma J.-8. Metz contra Tcilhard, op. cit., p. 127.

194 19.5
Ei-lo ali', pois eis que o reino de Deus está no meio de
vós" ( Lc 17 ,20) . tura da sucessão dos acontecimentos. Mas, com a vinda de
Cristo, a história entrou em sua fase última e decisiva. Daí
Mas, ao mesmo tempo, devemos refletir teologicamente
para frente ela está sob a senhoria de Cristo não podendo
no acabamento escatológico, levando em conta duas certezas
mais pretender-se autônoma. '
que só se podem conciliar dialeticamente: de um lado, a
história concreta é, de certa forma, o lugar em que o mun- Devemos concluir disso que existe insuperávcl dico-
do é transformado a tal ponto que toca o mistério de Deus; tomia entre história da salvação e história profana? Po-
do outro, o reino de Deus "dirige" a história e ultrapassa demos afirmar, por exemplo, que todo o esforço da his-
de maneira absoluta todas as possibilidades de cumprimento tória profana por uma humanização maior do homem e por
terrestre.17 mais justiça no mundo corresponde somente a uma secula-
Parece-me, por isso, mais adequado empenhar-se na rização da esperança cristã?
elaboração de uma teologia da práxis cristã ou do envio da Não deveríamos, ao contrário, mostrar cm que a se-
Igre;a do que na de uma teologia da história propriamente cularização, ou melhor, a "mundanizaç.ã o" é conseqüência
dita. A história humana é essencialmente ambigua. A função da pregação do Evangelho, que ensina a considerar o mun-
de uma teologia da história não é a de especular sobre o do e a história não como poder numinoso e como destino
sentido que a história teria em si mesma, mas a de impri- cego, mas como tarefa, como o lugar de nossa responsabi-
mir-lhe sentido em função do futuro escatológico, o único lidade? A pregação do Evangelho seria o antidestino da
que a fé conhece. Não se trata somente de interpretar a história.
história, mas também de transformá-la.
Nas proposições que se seguem, inspiro-me em Molt- 1. Tomando-se homem, Deus se comprometeu defini-
mann (especialmente em sua Théologie de l'espérance), em tivamente com a história dos homens. A ação de Deus na
alguns teólogos da libertação (G . Gutiérrez, L. Boff, J. L. história não é da ordem do golpe de força miraculoso. Deus
Segundo) e em alguns documentos dos teólogos do Ter- se insere na história para conduzir todas as coisas ao seu
ceiro Mundo. 18 acabamento. Mas não se trata de acabamento histórico. A
morte está vencida, mas na esperança - não na história .
Isso significa que o Novo Testamento assume o ponto de
A. A história feita pelos homens recebe seu sentido vista dos sábios. Não existe escatologia histórica. 1! por
isso que o Novo Testamento faz sua a tradição apocalíptica
último da humanização de Deus em Jesus Cristo (d. Kãsemann) .
O Novo Testamento não nos propõe nenhuma indicaçiD Entretanto, o fato de recusar uma escatologia histórica,
sobre a data do fun do mundo e nenhum meio para a lei- isto é, uma libertação e uma reconciliação total do homem
com a natureza na história, não leva a tornar vãs as pro-
17 A esse respeito, sinto-me bem nesta feliz formulação de E. 8 messas do Antigo Testamento que têm relação com a hist6-
•A teologia da história não visa a justificar o devir humano, mm
conservá-lo a distância, em face à eternidade de Deus : ele se 1oma ria. No Antigo Testamento a história da salvação se fundava
gencia positiva e contingente, emergência de um mundo em re num acontecimento temporal: a saída do Egito ou ainda a
alteridade de Deus criador•, cf. • Projet et conditions d'unc volta do exílio . E se se constata uma evolução para uma sai
de l'histoire•, in Rech. Se. Rei. 70, 1982, pp. 321-42.
18 Refiro-me particularmente aos documentos publicados no ftm vação do coração, a salvação conserva conotação temporal.
congressos da Associação Ecumenica dos Teóloios do Terceiro M Ora, o Antigo Testamento não foi abolido pelo Novo. Os
Dar es-Salam (1976) , Acra (1977), Colombo (1979), São Paulo {l autores do Novo Testamento assumiram a realidade tempo-
196
197
ral, terrestre, política do Antigo Testamento. A salvaçã_o n~ dos tempos. Mas, historicamente, ele vem como o servo
sentido do Novo Testamento é inseparavelmente adoçao f t· que é homem entre os homens, oue se identifica até com
lial e sucesso da criação. Se é verdade que a salvação diz os mais pobres e despojados. A aliança de Deus com o ho-
respeito ao ser pessoal do homem quanto ao seu destino eter- mem é tão radical que o devir da humanidade importa ao
no éla continua a interessar o todo do homero cm seu des- seu mistério de homem, porque, identificando-se ele com
tin~ coletivo na história.19 Se separarmos as bcm-avcnturan· todos, o desenvolvimento das possibilidades do homem con-
ças de seu pano de fundo vetcrotestamentário, elas podem cerne ao seu próprio desenvolvimento.
tornar-se evasão platônica ou ópio social. E se compreender- As promessas escatológicas dos profetas do Antigo Tes-
mos bem o alcance do discurso sobre o julgamento escato- tamento. enquanto anunciavam uma reconciliação no plano
lógico ( Mt 25 ) , constataremos que ele. ?á _como ta~cfa his- da história, são anunciadas de modo original. Trata-se de
tórica aos discípulos de Jesus a reconciliaçao anunoada pe- libertação relativa, já que a morte não está vencida no plano
los profetas. . . da história. Mas o sentido da ação humana na história é o
Assim, o Novo Testamento crta um espaço livre. Ele de desdobrar as possibilidades humanas e fazer a história
liberta o mundo dos deuses e de uma intervenção miraculosa convergir para seu ponto de atração: a unidade radical da
de Deus. Não recusa a dimensão dramática da história, mas humanidade na origem, retomada num plano superior cm
essa dimensão dramática não exclui a possibilidade de reali- Cristo.
zar uma reconciliação ao nível da história. Assim, todas as possibilidades da história são recolo-
cadas nas mãos do homem, que é aquele pelo qual se cumpre
2 . Essa idéia de realização histórica das promessas pro- a função histórica querida por Deus. A verdadeira religião
féticas tem seu fundamento no mistério da encarnação. Ili não consiste, daqui para frente, somente cm cultos e sacri-
uma humanização de Deus em Jesus, e o trabalho do Esp(- fícios, mas também em fazer reinar justiça concreta.
rito de Deus na história consiste em fazer aparecer tudo o A humanização de Deus faz do homem a mediação
que significa para a humanidade a decisão pela qual ?cus real da relação com o Absoluto. O "sobrenatural" não deve
se ligou a da. Em outras palav~as, compete ~ ~~manidade ser entendido no sentido de entidade separada. Ele se define
tornar-se da mesma, isto é, realizar suas possibilidades. por uma relação: a relação do homem com o Deus vivo.
Cristo nos reenvia, assim, à face histórica de Deus, e Dar de comer aos famintos , transformar as estruturas de
esta é o homem. A identificação radical que Jesus faz de li uma sociedade injusta, construir a paz são atos de conteúdo
mesmo com todo homem e que é sancionada por dois tfm- humano. Mas de fato eles têm uma significação "transcen-
los bíblicos Novo Adão e Filho do Homem, ainda não ez. dente", porque objetivamente neles se lê o alcance histórico
plicitou todos os seus efeitos. É ncccssári~>, ~is, to,?W" 1 da humanização de Deus.
sério o comprometimento de Deus com a histórta. O Fi A humanização de Deus pôs no mundo o alcance obje-
do Homem " de Daniel vinha do céu e únha uma apareJd tivamente " sobrenatural " ou última tarefa humana. Poder-
humana emprestada. Também Cristo virá dos céus no sc-ia ~er que daí para frente não há mais história profana.
DcpolS da encarnação, sabemos que essa história é a media-
19 "A salvação (soteria) deve tambim ser entendida, no senddo
Antigo Testamento, como o shalom, que não significa ~ aalveçlo ção e a verificação da relação com o Absoluto. Toda a or-
alma, libertação individual de um mundo mau, ~n5?1açao apeml dem cultuai e sacramental cai na insignificância quando a
uma consciEncia na provação, mas tambim rcalizaçao de u~ história não é mais pensada como tarefa a cumprir .5>
rança escatológica de justiça, de humanização do homem, de sociioUI•
da humanidade e de paz cm toda a criação•. cf. J. Moltmann. T ....__}!!_ Em nossa opinião, o fundamento radical da positividade da
de / 'es~rance, trad. franc. (" Cogitatio Fidci• 50), Cerf, Paria, "' auawna humana deve ser procurado no mist~rio da encarnação, mas,
l~.

199
198
B. A Igreja é o sacramento da presença do Espírito humanidade toda está engajada numa história coletiva da
de Deus em toda a criação e em toda a história qual Deus faz uma história de salvação. Cristo é o Verbo
humana que ilumina todo homem que vem a este mundo. Isso sig-
nifica que não podemos ficar numa concepção puramente
A Igreja como sacramento da salvação, como sinal da cronológica da história da salvação. O que é primeiro na
reunião de todos os homens em Cristo é outra coisa que a história sagrada não são Abraão, nem Moisés, nem mesmo
humanidade. Mas de fato ela é o sinal explicito de mistério Adão. Na ordem ontológica, o que é primeiro é Cristo co-
mais vasto, o da presença gratuita de Deus em toda cria- mo "Novo Adão" . ~ ele que dá sentido à história religiosa
tura e em toda a história. O mundo e a Igreja são expres- pré<.ristã da humanidade, como também à sua história pós·
sões complementares de um mesmo mistério: a instauração cristã.
ou a recapirulação de todo homem e de todo o criado cm O que se diz de Cristo, Verbo encarnado. deve ser
Cristo.11 Isto significa que apesar da ambigüidade das mo- dito também do Espírito de Cristo ressuscitado. Há uma his-
tivações da liberdade humana, o mundo da criaç.ão tende, tória do Espírito que excede o quadro da história de Israel
por suas energias próprias , e mesmo sem o saber, para reali- e da história da Igreja, que ultrapassa também o quadro
zar o desígnio eterno de Deus. das grandes religiões do mundo.u
Existe uma "tentação de cristandade" mais sutil do Pelo menos na ordem das representações, somos pri-
que a forma histórica que conhecemos, a saber, a vontade sioneiros de concepção linear da história da salvação da qual
de identificar a Igreja deste mundo com a comunidade es- Cristo seria o ponto final em vista de novo começo. E o
catológica dos eleitos no céu. Ela consiste em pensar que as judeu-cristianismo de certa teologia ocidental poderia fazcr-
únicas relações possfveis entre a história humana e o reino nos acreditar que a religião cristã é simples alargamento da
de Deus passam necessariamente pela Igreja como institui- religião judaica. Seria desejável encontrar-se a concepção on-
ção vis(vel. tol6gica e não historicista da história, a dos Padres gregos
Somos convidados a ultrapassar um eclesiocentrismo que falam de uma economia do mistério de Deus cm Cristo
estreito. Não podemos identificar as Igrejas das quais falam e no Espírito. O "mistério escondido cm Deus desde toda a
os homens com a Igreja que Deus vê. A Igreja terrestre 4 eternidade" provoca a admiração de são Paulo. E como
a figura concreta da experiência que os homens fazem, mc:a- não há mais descendência de Abraão segundo a carne, Paulo
mo sem o saberem, da história de Cristo. E cm relação l pode dizer aos atenienses: "O Deus que adorais é o mesmo
história mais vasta do Espírito, a Igreja é somente um ~ que vos anuncio. n
minho e uma passagem para o reino de Deus. Em função desse alargamento, podemos pelo menos re-
ter duas conseqüências:
~ necessário superar também uma concepção muito
treita e muito linear da história da salvação. Todos os 1. A Igreja como realidade histórica não tem o mono-
mens recebem do Criador a mesma vocação fundamental, e pólio dos sinais do reino: a graça é oferecida a todos os
homens segundo vias conhecidas de Deus somente. Deus é
como bem o mostrou P. Gisel, isso pl'CS$Upõe uma teologia da maior qo que os sinais históricos pelos quais ele manifesta
entendida como ruptura origin4ria, cm virtude da qual a sua presença.
pensada não como a positividade de um já existente real, mu
positividade de um advir real. Cí. P. Gisel, La Création, Labor
Fidcs, Genebra, 1980. 22 Cf. J. Moltmann, L'Eg/ise dans la force l'Esprit, cit., p. 56. Veja
21 Inspiramo-nos aqui no artjgo antjgo, mas decisivo, de E. ~ K. Rahner, •Remarques sur te concept de ~v~ladon", in K.
becckx, •L'tglisc et l'bumanit~·. in Concilium 1, 1965, pp. 57-71. ~r·J . Ratzinger, Révélation et tradition, 008, Paris, 1972, pp. 15-36,
eapecialmente pp. 24-5.
200 201
2. A salvação do homem individual ou coletivo, isto é, turada dos homens em Deus, a qual é doai gratuito dado
o sucesso da primeira criação, não se realiza somente pelo do alto pelo poder recriador de Cristo ressuscitado. Ordem
ministério da Igreja - por sua pregação e por seus meios da criação e ordem da salvação não são duas realidades
de graça - mas também pelo trabalho de todo horricm, justapostas. Elas estão submetidas de modo igual à senhoria
cristão ou não, orientado para uma cura, para uma liber- de Cristo. A salvação é o sucesso definitivo da primeira
tação, para uma promoção do homem. O movimento da his- criação (d. o tema da recapitulação em Efésios) .24 A Igreja
tória profana, quando em conformidade com o desígnio de como sacramento da salvação, já o vimos, é o sinal visível
Deus, por suas energias próprias tende para uma libertação de mistério mais vasto do que a só comunidade dos res-
progressiva do homem, para um domínio maior da natureza, gatados, a saber, a presença gratuita de Deus em toda a
para uma reunião de todos os homens numa só familia hu- criação. Ela atualiza a bênção de Deus da aliança com Noé
mana. Esse movimento da história não pode ser estranho e da aliança com Abraão.
à missão da Igreja e sem significação cm relação ao cumpri- Assim, como já o disse no começo desta segunda parte,
mento escatológico da história. devemos afirmar, ao mesmo tempo, que a história em si
Assim, a história do Espírito é o horizonte englobante mesma não é o sacramento automático do reino de Deus e
da história simplesmente. Sob a ação do Espírito, a história que o devir histórico do mundo não é só o quadro ou a
passa para a escatologia, e a escatologia para a história. "matéria ocasional" ( Chenu) da vida individual e coletiva
Se designarmos o Espírito como o "poder do futuro", deve- da graça. Ele tende por suas energias próprias, à medida
mos dizer que o futuro esperado como vitória sobre a morte que está a serviço da promoção do homem , para o cum-
torna-se histórico não só pelos meios de graça da Igreja, primento do desígnio de Deus para a criação. Os progres-
mas também pelas energias próprias da história. Cada vez sos autênticos da consciência humana coletiva, na ordem da
que há vitória sobre todas as formas da morte, há atuali- humanização, das relações pacíficas entre os homens e da
zação das energias de Cristo ressuscitado no tempo da hia- luta pelos direitos dos oprimidos podem constituir "pedras
tória.23 de espera", uma espécie de praeparatio eva11gelica em re-
lação à realidade última do homem . Como o sublinham os
teólogos do Terceiro Mundo reunidos em São Paulo ( 1980 ),
"a realização do reino como desfgnio último de Deus para
e. Há uma "convergência" entre a libertação dos homem a sua criação é experimentada nos processos históricos da
e dos povos na história e a vinda do reino libertação humana ". Trabalhar para a transformação do mun-
do e para a promoção do homem não .é ainda construir o
. . Embora o term,o "conv~rg~cia" seja impróprio, ele aie- reino de Deus. Mas recusar-se a colaborar nesse projeto
nifica que há um vIDculo nusterioso entre o movimento da humano, quando ele é conforme às exigências inelutáveis da
história, à medida que ele está a serviço da dignidade vida humana individual e coletiva, seguramente é ir contra
homem como imagem de Deus, e a comunhão bem- o dcs1g010 de Deus.b
23 •A espera cristã refere-se a Cristo, que já veio; mm
espera algo novo, que at~ o presente ainda não aconteceu: o 24 Cí. J. P. Jossua, ·L'cnjcu de la rcchcrchc tMologiquc actuellc
pnmcnto, cm todas as coisas, da justiça prometida de Deus, o sur lc salu1 ", in RSPT 54, 1!J70, pp. 24-45.
mcnto da ressurreição dos mortos prometida cm sua rcssurrciçlo 25 Vejo o fórmula vigoroso de C . Duquoc: •Afirmar o homem
cumprimento da senhoria do Crucificado sobre todas as coisas, nio é r:iecessariomen1c afirmar Deus; mas negar o homem é negar
tida cm s~a elevação à glória.• Cf. J. Moltmann, Teologia da a Dcw", tn L Eslise et /e monde, Equipes Enseisnantes, I! trim., 1964-
Loyola, Sao Paulo, 1971. 1965, p. 81.

202 203
CONCLUSÃO

Ubi Christus, ibi Ecclesia. Terminando, acrescento que


a verdadeira Igreja não se encontra somente onde a comuni-
dade está reunida para a escuta da Palavra de Deus e para
o memorial do Corpo do Senhor. Ela está presente tam-
bém na fraternidade com os mais humildes, à medida que
eles são presença privilegiada de Cristo. Não devemos
isolar uma da outra as duas advertências do Senhor: • quem
TERCEIRA PARTE
vos ouve a mim ouve" e "quem os visita a mim visita" .
~ este o sentido do ju1zo escatológico cm Mt 25: A PRÁTICA DOS CRISTÃOS REINTERPRETA
"Todas as vezes que o deixastes de fazer a um desses pe-
queninos, foi a mim que o deixastes de fazer." A presença O CRISTIANISMO
oculta do juiz do mundo nos menores de nossos irmãos é
um julgamento que põe à prova a autenticidade da Igreja e
de sua missão.
No fim desta reflexão sobre a unidade da história cm
função da senhoria de Cristo, gostaria de dizer que é necessá-
rio saber manter juntas, dialeticamente e sem contradição, a
responsabilidade hist6rica do cristianismo e a sua gratui-
dade absoluta.
Numa situação de crise mundial, a Igreja toma cons-
ciência mais viva de sua responsabilidade cm relação à fi-
gura do homem na história. Mas, como o sublinha muitas
vezes J .-B. Metz, a originalidade da efetividade cristã vem
de que, quando o cristianismo supervaloriza e radicaliza o
combate pela justiça, justamente então ele o relativiza. Com
efeito, a Igreja deve continuar a ser testemunha de uma
esperança além da história. O cristianismo como mistério
da salvação ultrapassa sempre sua utilidade social para o ho-
mem. Por isso, mesmo dando seu fundamento radical ao
messianismo da história, a mensagem cristã deve continuar
a ser anunciada sob o signo da gratuidade. O "fazer me-
mória de Jesus " tem sempre uma dimensão doxológica que
tem sua justificação cm si mesma.

204
10

O TESTEMUNHO DA~ NUMA CULTURA


NÃO-CRISTÃ

Quando se ouve falar em "fé" e "cultura", pensa-se


Jogo em relaç.ão de conflito. E, no entanto, a chamada cul-
tura ocidental é impensável sem suas raízes judaico-cristãs.
Quando se fala em Ocidente, deve-se sempre fazer referência
a dois pólos: Roma e a Nova Roma, Bizâncio. De fato, foi
só nos séculos IV e V que o termo Ocidente entrou nos
textos. Constantinopla não é inseparavelmente romana e gre-
ga, judaica e cristã?
Pode-se dizer que a cultura ocidental nasceu da síntese
do elemento greco-romano com o judaico-cristão. Fora des-
sas duas heranças, não podemos chamar-nos "ocidentais".
Temos, de um lado, o que Renan chamava de milagre grego
e, do outro, o monoteísmo dos profetas de Israel. A pre-
tensão do Ocidente ao universal tem seu fundamento no
logos grego, na linguagem formal da filosofia e das mate-
máticas. Mas o senso de um tempo irrevers{vel, de uma his-
tória que caminha para um termo, vem-nos da herança ju-
daico-cristã. A ciência e o senso da história são os dois tra-
ços que comandam o destino do Ocidente.
Mas, como é impossível falar de modelo cultural único,
devemos pôr de lado também a idéia de fixidez da cultura.
Se aceitamos definir a cultura como o conjunto dos conheci-
mentos e dos comportamentos técnicos, sociais e rituais que
caracterizam determinada sociedade, devemos comparar as
culturas com os vivos, que crescem e mudam. Quem diz
cultura diz necessariamente técnica, arte e linguagem. Ora,
como falar da cultura ocidental em geral, sem falar de suas

207
crises de crescimento, de suas mudanças de rumo, de suas que põem em questão a linguagem tradicional sobre Deus,
modernidades sucessivas? tentando superar apenas o ponto de vista da cultura ocidental.
Se suspeitamos a existência de conflito entre a fé cristã
e a cultura, isso se dá enquanto consideramos a cultura oci- A . As dificuldades do crer inerentes
dental sob o choque da modernidade . Começaremos dizendo à nossa situação histórica
a natureza de uma fé crítica sob o choque da modernidade.
Em seguida falaremos do encontro do cristianismo com as A mudança de nossa imagem do mundo
culturas modeladas pelas grandes religiões não-cristãs. Per-
A linguagem da fé da época clássica da teologia ( a
guntar-nos-emos então quais são as condições para um tes-
da Idade Média) estava estreitamente ligada a uma repre-
temunho profético numa cultura não-cristã. sentação do mundo como mundo das naturezas, mundo es-
tável e hierarquizado segundo a escala dos graus do ser.
O grau do ser particular que é o homem se integrava per-
1. FE QUE PASSOU PELA PROVA CRITICA feitamente como uma parte no universo hierarquizado.
Hoje o mundo se define como hist6ria, como devir
como campo ilimitado da ação humana. Ele remete à li~
A fé será sempre arrancamento em relação às nossas herdade criativa do homem, e não a um princípio trans-
evidências sensíveis, e, enquanto adesão à Palavra de Deus cendental, causa primeira explicativa do mundo. O mundo
testemunhada pelas Escrituras, ela não muda segundo as perdeu seu encantamento. Trata-se de um mundo hominiza-
épocas. Mas a fé - enquanto enraizada numa subjetividade do, que não reenvia mais a Deus. Essa substituição da natu-
humana - tem uma história. Como dizia P. Ricoeur, o ob- reza pela hist6ria é de importância fundamental e condiciona
jeto da fé não muda ... Mas o "crível disponível" do homem necessariamente nossa imagem de Deus (d. acima, cap. 7).
muda. O recuo histórico que fazemos em relação a certas re- Vivemos o resultado do que começou na Europa com
presentações do mundo nos obriga a distinguir entre o que a Aufklãrung como processo de emancipação do homem.
pertence à revelação como tal e o que depende do veículo Do século XVIII em diante, o que se sabe não concorda
cultural de uma época. mais com aquilo em que se crê. O homem é a medida do
homem, e o mundo dessacralizado não remete mais a Deus,
Hoje a fé em Deus tornou-se problemática. Ela deve mas ao poder do homem. A imagem moderna do homem
superar a prova critica que vem da suspeita em relaç.ão ao é a de um ser em perpétua criação de si mesmo e do mundo.
discurso cristão tradicional. Não podemos contentar-nos com Essa idéia de autogénese do homem parece dificilmente con-
uma fé ingênua que não tomou conhecimento da crítica ciliável com a imagem de um Deus todo-poderoso e provi-
marxista da religião como ideologia, ou da crítica nietzschea- dente. Enquanto o homem não era ele mesmo, enquanto
na do cristianismo como doença do homem sob o signo do ele alienava a sua substância no absoluto, Deus exercia certo
ressentimento, ou da crítica freudiana das ilusões da cons- número de funções em sua vida e no mundo. Hoje parece
ciência. Deve-se, então, falar de preferência de uma ingenui- que Deus se tornou inútil ...
dade segunda em relação à fé que atravessou a prova crítica.
Não é o caso de refazer aqui - depois de tantos ou- A secularização
tros - uma exposição detalhada das dificuldades do crer. Não podemos falar de crise de nossas representações
Gostaria somente de assinalar alguns fatores mais decisivos, religiosas sem nos referirmos ao fenômeno da secularização,

208 209
que afeta a civilização ocidental há quase dois séculos e que fazer deuses que é a megalomania do desejo humano ou
a acompanha por toda parte. Trataremos esse ponto no ca- seu gosto pelo inefável.
pítulo seguinte. Basta-nos dizer aqui que a secularização sig- A religião é a vitória do desejo humano. A fé é ven-
nifica que a religião se retira de todos os setores nos quais cida por um encontro, por uma presença, mesmo quando
o homem adquire o conhecimento e, portanto, o domínio das essa presença fere a espontaneidade do homem. O homem
realidades e dos problemas terrestres e humanos. Em con- é rapidamente religioso, mas lento para crer.
seqüência disso, o homem se pergunta para que Deus pode
servir, temendo que a religião se oponha ao seu direito à Os estados de consciência da humanidade
autonomia. Quando se fala em crise da fé ou em mal-estar dos
Sei que a secularização é fenômeno tipicamente oci- cristãos, vem a tentação de fazer julgamento moral sobre a
dental . Mas , seja qual for a vitalidade das culturas e das situação. Lamentam-se as desgraças dos tempos, invocando-
religiões fora do Ocidente, podemos falar de uma universali- se o relaxamento dos costumes, a degradação dos valores
dade da civilizaç.ão técnica e de certa imaginação coletiva morais, a falta de generosidade. Mas é preciso vçr que o
que gera uma "way of life " secularizada. Sei também mal-estar dos cristãos não provém só do sentimento de um
que se fala com facilidade de um "retorno de Deus" ao Oci- desajuste entre o ideal cristão e o estado dos costumes,
dente (Europa e Estados Unidos) . Esse retorno de Deus mas também à tomada de consciência de um divórcio entre
pode funcionar como resposta ao desencanto produzido pela a fé cristã e os estados de consciência da humanidade atual.
crise das ideologias e como fenômeno de contracultura em Enfim, o que está em questão é o conflito entre a autori-
face a uma civilização industrial sob o signo da rentabilidade, dade da fé e a autoridade da razão no debate sobre o ho-
do anonimato e do crescimento a qualquer preço. Mas, que mem que mencionamos acima (d. p. 22) .
esse "retorno de Deus" não nos iluda sobre a situação de Compreende-se, então, o descrédito de certo discurso
incredulidade do mundo contemporâneo. Pelo menos no que cristão moralizante que, diante de problemas como o da
se refere ao Ocidente - Europa e Estados Unidos - , fome no mundo, o dos conflitos sociais, o da demografia
assiste-se a um recuo da fé e da prática religiosa em quase galopante ou como a nova consciência da sexualidade hu-
todas as Igrejas cristãs. mana, contenta-se com fazer apelo à oração ou à generosi-
E ainda que se faça juízo mais nuançado sobre a pre- dade dos indivíduos. ~ preciso aceitar as conseqüências de
tensa irreligião do homem moderno, não se trata de vol- secularização normal e inevitável, isto é, tomar a sério uma
tar aquém da crítica feita à ilusão da religião por todo o aproximação racional que dependa da economia, do direito
movimento do pensamento moderno. Sobretudo na teologia internacional e da antropologia em geral.
protestante abusou-se da oposição entre fé e religião. f: ver- Acrescento que uma fé crítica e adulta deve enfrentar
dade, porém, que a religião favorece a evasão do homem para o desafio formidável dirigido ao cristianismo pela situação
um "alhures" que não é a vida real. O Deus da fé bíblica de injustiça do mundo contemporâneo. Já citei a palavra de
não está onde o homem se inventa deuses - seja da ferti- J. Moltmann, "a questão em si da existência de Deus é1
lidade, seja da imortalidade. Deus não está no prolonga- uma ninharia em face da questão de sua justiça no mundo " .
mento das experiências inefáveis que o homem pode co- Para milhões de pessoas, a questão primordial não é a de
nhecer. Ele quer ser reconhecido numa história, em encar- Deus, mas quem come?, ou mesmo quem morre? "Para o
nações. f: sempre a resposta a uma iniciativa de Deus, a escravo a proximidade do Ser não é o parentesco mais radi-
um movimento que vai de Deus para o homem. A religião
de ontem, como a de hoje, explora sempre essa máquina de 1 J. Moltmann, Le Dieu cruci/ié, cit., p. 252.

210 211
cal; a proximidade de seu próprio corpo e do dos o..:tros Um melhor conhecimento dos milênios que antecederam
vem antes n, escreve Umberto Eco.2 Cristo e das outras grandes tradições religiosas da humani-
Se considerarmos a humanidade cm seu conjunto - se- dade nos leva necessariamente a pôr cm causa a pretensão
gundo as grandes paixões coletivas que- Kant distinguia, a do cristianismo de ser a única religião verdadeira e univer-
saber, o ter, isto é, o econômico, o poder, a saber, o político, sal. Como pretender que ele seja para o homem a única
e o valer, isto é, o cultural - , a situação do mundo con- mediação do Absoluto? Não seria necessário admitir que
temporâneo põe questões urgentes à Igreja. Basta lembrar todas as religiões são válidas como vias para Deus? E certo
a explosão demográfica, o saque dos recursos naturais, a fracasso da missão não mostra que a pretensão do cristianis-
separação crescente entre os países pobres e os países ricos, mo à universalidade não se verificou historicamente?
a disseminação da força nuclear. Por isso os teólogos do Essa consciência mais viva da particularidade histórica
Terceiro Mundo insistem nas necessárias implicações sociais do cristianismo não deve levar-nos ao relativismo e ao ceti-
e políticas da fé cristã. O Evangelho não é neutro, e, graças cismo. Ela nos convida, antes, a um discernimento crítico da
à radicalidade evangélica de certas comunidades de base das originalidade do cristianismo em sua diferença das outras
Igrejas do Terceiro Mundo, pode-se falar de uma nova pri- grandes religiões - tanto das religiões monoteístas, como o
mavera da Igreja neste final de século XX, à medida que judaísmo e o islã, quanto das religiões orientais, como o hin-
ela faz uma opção decisiva em favor dos pobres. duísmo e o budismo. Só um melhor conhecimento das ri-
A presença lancinante do mal e da injustiça no mundo quezas de cada uma das grandes religiões não-cristãs é que
nos convida a pôr em causa uma concepção ingênua da pode evitar que caiamos num imperialismo cristão ingênuo,
revelaç.ão bllilica segundo a qual ela conteria todas as res- como se o cristianismo histórico tivesse o monopólio de to-
postas às questões que o homem pode pôr-se. Como o tes- dos os valores positivos nas ordens ética, religiosa e espiri-
temunha o livro de Jó, a Bllilia não é s6 a história das tual. Uma coisa é aceitar a particularidade histórica do cris-
respostas de Deus às questões essenciais do homem. Ela é tianismo, outra é pôr cm dúvida a mediação única de Cristo
também e inseparavelmente a história do questionamento do como encarnação de Deus na história.
homem em processo com Deus. Por isso não podemos ido-
latrar a letra da Escritura. Ela é antes o eco do silêncio
misterioso de Deus. Sem dúvida, Deus é aquele que dá B. A interpretação como elemento
sentido à existência humana. Mas não se trata de luz que
elimine toda obscuridade.3
constitutivo da fé crítica

O relativismo religioso Tentamos discernir alguns elementos cssenCials da si-


tuação histórica que condiciona a experiência contemporâ-
Nesse rápido inventário das dificuldades do crer deve- nea da fé cristã. Se nos interrogarmos sobre a concepção
mos incluir ainda, como obstáculo à fé, uma consciência mais da existência humana vivida hoje, poderemos dizer que ela
viva da relatividade do cristianismo como religião histórica. se caracteriza por dois dados centrais: de um lado, a espera
inextirpável de um futuro que humanamente pode ser vivi-
2 U. Eco, La Structure absenle, Paris, 1972, p . 384, citado por do; do outro, a angústia diante desse futuro, porque a si-
G. Morei, •L'enjeu de la crise rcligieuse", in Rech. Se. Rei. 63, 1975, tuação de injustiça na qual vive a imensa maioria dos ho-
pp. 11-38. mens constitui escândalo e ameaça permanentes para o fu-
3 Cf. J. Moingt, •L'&:ho du silence", in Rech. Se. Rei. 67, 1979,
pp. ~36. turo. ~ cm função desse horizonte que devemos empenhar-

212 213
nos numa reinterpretação do cristianismo e numa atualização tivo da fé não é verdade morta, mas verdade viva, sem-
da mensagem cristã para hoje. pre transmitida numa mediação histórica, e que tem neces-
Isso nos leva à compreensão de que não há fé critica sidade de ser atualizada sem cessar.
sem o recurso a uma "operação hermenêutica " que parta A fé cristã vive necessariamente de uma origem, o eveo-
de uma análise crítica de nosso mundo de experiência hoje, to Cristo como evento fundador. Mas o Novo Testamento,
que procure encontrar as estruturas constantes da experiên- como colocação por escrito do testemunho prestado a esse
cia fundamental testemunhada pelo Novo Testamento e pela evento, já é interpretaç.ão. É testemunho condicionado por
tradição cristã ttlterior, e que, enfim, estabeleça "correlação toda a espessura histórica de uma comunidade crente sujeita
crítica" entre a tradição da experiência cristã e as nossas às suas próprias necessidades de legitimação e de identifi-
experiências de hoje.• cação. O Novo Testamento como testemunho interpretativo
só revela seu sentido quando entendido no movimento de
Fé cristã e experiência interpretativa5 uma tradição histórica.
Já sublinhamos a historicidade fundamental da fé . Isso Hoje, ter fé crftica e responsável é produzir nova in-
significa que a reflexão crítica _não é uma ~egunda etapa, terpretação d.a mensagem cristã, levando em conta nossa si-
facultativa e reservada a uma elite, em relaçao à fé. Já no tuação histórica, inscrevendo-nos, todavia, na mesma tradi-
Novo Testamento a teologia é absolutamente contemporân:a ção que produziu o texto original. Existe analogia entre o
da fé isto é a fé se diz necessariamente numa coofrontaçao Novo Testamento e a função que ele exercia na Igreja primi-
inces;ante c~m uma cultura. Podemos considerar todo o No- tiva, de um lado, e, do outro, a produção de um texto novo,
vo Testamento como ato de interpretação6 do evento Cristo hoje, e a função que eJe exerce na Igreja e na sociedade.
pela Igreja primitiva. E a distância que nos separa dele - Sob a garantia do dom do Espírito e de fé vivida em comu-
longe de ser obstáculo - é a. condição m~sma de novo ato nidade, a continuidade não deve ser procurada na repetição
de interpretação para nós hoje. O próprio fechamento do mecânica de mensagem doutrinal, mas na analogia entre dois
texto é a condição de retomada criativa. Devemos falar de atos de interpretação.
analogia ou de homologia fundamental entre os enunciados
bíblicos e seu meio sociocultural, de um lado, e, do outro, A experiência cristã fundamental
o discurso da fé a ser usado hoje e a nossa situação cultural.
A experiência fundamental da salvação oferecida por
Compreender a exigência hermenêutica de todo ato de
Deus em Jesus foi colorida diferentemente pelos sinóticos,
fé é levar na devida consideração a historicidade da verdade,
por são Paulo e por são João, em função dos questionamen-
mesmo quando se trata da verdade revelada, e é tomar.º.ª tos, dos modos de representação, de pensamento e de lingua-
devida consideração a historicidade do homem como SUJCl·
gem do tempo e do meio sociocultural.
to interpretante, cujo ato de conhecimento é insep9:1'ável
de uma interpretação de si mesmo e do n;iundo. A int~r­ É Jesus vivendo na hist6ria que constitui o começo e
pretação é a exigência mesma d.a fé, à medida que o obJe- que representa a fonte, a norma e o critério do que os pri-
meiros cristãos experimentaram. A tarefa de uma fé crítica
4 A esse respeito, veja os princfpios metodol~gicos enuncia~os consiste em reconstituir essa experiência fundamental, dis-
por E. Schillebeeckx em Expérience llumaine et /01 en / ésus.Cllrist,
Cerf, Paris, 1981 , especialmente pp. 29-64. . . .
sociando-a d.as representações que pertencem a um mundo
5 Resumimos aqui o que já expusemos na pnmetra parte (especial· de experiência ultrapassado.
mente nos caps. 1 e 3). . . . . É possível reduzir essa experiência fundamental a al-
6 Tomo esta expressão de P. G1sel em Vérité et ll1sl'!ire. La
théologie dons la modernité. Ernst Kiisemann, Beauchesne, Pans, 1977. guns elementos essenciais:

214 21.5
1. Jesus anuncia um Deus que quer a salvação de todos crftica. Sem dúvida, a fonte e a norma da fé cristã não é o
os homens e de todo o homem. Em outras palavras, o Deus Jesus reconstituído pela ciência hist6rica, mas o Jesus vivo
de Jesus não é um Deus diferente do Deus testemunhado da hist6ria, confessado como Cristo pela primeira comunida-
pelas diversas religiões da humanidade. E por salvação dev~ de cristã. A teologia dogmática deve levar em conta o fato
mos entender não s6 a salvação dos vivos em todas as suas de que hoje a pesquisa hist6rico-crítica está em condições
dimensões corporais, espirituais e sociais, mas também a sal- de nos mostrar a identidade entre o Cristo confessado na
vação dos mortos. fé e o homem Jesus de Nazaré.
2. O ser humano de Jesus se define por sua relação ao b. As definições dogmáticas devem ser reinterpretadas
Pai. Mas Jesus nunca dissociou sua relação existencial com à luz de nossa leitura critica da Sagrada Escritura e em fun-
o Deus Abba de sua práxis de cura, de libertação e de re- ção de nossa experiência humana atual. A nossa situação
conciliação em relação aos pobres e aos pequenos de Israel. hist6rica particular é, com efeito, elemento constitutivo de
Por isso anunciar a boa nova do Evangelho não é somente nossa compreensão da mensagem cristã. De outro modo,
transmitir uma mensagem , mas também tomar manifesta uma correríamos o risco de defendermos ortodoxia puramente
experiência de libertação. "verbal" (cf., acima, cap. 4) .
3. Por seu mistério de morte e ressurreiç.ão, Jesus dá a c. Na apresentação da mensagem cristã, é necessário con-
prova de que a história humana não pode ter seu cumprimen- siderar o princípio da "hierarquia das verdades", frisado
to no "sistema" terrestre de nossa história. Mas a fé na pelo Vaticano II. No fim deste segundo milênio, a Igreja
ressurreição, longe de ser fuga para o além, remete-nos para tem o dever urgente de atualizar a mensagem cristã para
a nossa vida presente no mundo, para anteciparmos os efei- culturas diferentes da cultura ocidental.
tos libertadores da ressurreição contra todas as formas de
morte.
II. O ENCONTRO DO CRISTIANISMO
Os dois p6los de reinterpretação criativa do cristianismo COM A DIVERSIDADE DAS CULTURAS
Hoje não existe pregação viva sem reinterpretação cria-
tiva do cristianismo. Com efeito, não basta "adaptar" uma
Mesmo os que vivem a fé em países da antiga cristan-
doutrina tradicional à mentalidade de hoje. Toda procura de
dade do Ocidente são atingidos, a um útulo ou outro, pelo
nova linguagem da fé implica necessariamente uma reinter-
encontro do cristianismo com alguma grande religião não-
pretação do conteúdo do qual essa linguagem é portadora.
cristã. E o problema que se põe é o do choque de duas
Essa tarefa arriscada de reinterpretação só pode ser feita culturas.
pela colocação em correlação recíproca da experiência fun-
Não existe, com efeito, encontro entre duas religiões
damental do Novo Testamento e da fé tradicional da Igreja
em estado puro. E sempre também o enfrentamento entre
e da experiência humana de hoje. Contento-me com enume-
duas culturas. Não existe mensagem cristã quimicamente pura
rar alguns princípios que devem guiar esse trabalho crítico:
que já não esteja " traduzida" em alguma cultura. E quando
a. Segundo o Vativano II, a "alma", o "principio vital" os cristãos são minoritários num dado país, vêem-se diante
da teologia deve ser a Escritura. Isso significa que é neces- de pessoas para as quais pertencer a uma cultura é indisso-
sário submeter as hip6teses teol6gicas - mesmo as mais ciável do pertencer à religião dominante. O que há de co-
veneráveis - às conclusões irrefutáveis da exegese hist6rico- mum à "cultura" e à "religião" é a noção de "herança" .

216 217
Segundo a metáfora de J. Ladriere, uma cultura é um • en- mo modo que o tornar-se homem de Deus salvaguarda a
raizamento" .7 Ela é um vínculo invisível mas muito estreito transcendência de Deus.
que liga um ser humano aos seus predecessores, aos seus Quando tentamos compreender o problema da incul-
contemporâneos e aos seus sucessores. Pertencer a uma cul- turação do cristlanismo- numa mentalidade diferente, na qual
tura é enraizar-se numa tradição particular, é ser convidado se encbntram inextricavelmente misturados elementos cultu-
a habitar o mundo numa linguagem. rais e elementos religiosos, devemos pensar segundo uma
Depois de algumas distinções sobre o princípio funda- relação de ruptura e segundo uma relação de criação. Por
mental da inculturação do cristianismo, seremos levados a ruptura devemos compreender que o anúncio do Evangelho
refletir sobre a originalidade do cristianismo como religião coincide com a irrupção de uma novidade nos modos de pen-
e sobre sua verdadeira universalidade. Poderemos então for- samento, na imaginação e na cultura das pessoas. Por criação
mular algumas exigências novas do testemunho. sublinhamos o fato de que, malgrado sua novidade. o querig-
ma cristão'. para ser entendido, tornou-se fato de cultura,
isto é.. se depôs nas linguagens e nas psicologias existentes.
~ em função dessa dialética de continuidade e ruptura
A. O princípio fundamental da inculturaçãoª que devemos pensar o problema da inculturação. O Evange-
lho deve ser boa nova, apesar de, até certo ponto, tornar-se
O sínodo dos bispos de 1977 falava de uma verdadeira
fato de cultura. Se a evangelização não fizer es!'e esforço de
"encarnação da fé " nas culturas. "A mensagem cristã deve
inculturação, não existirá evento evangélico. Haverá apenas
enraizar-se nas culturas humanas, assumi-las e transformá-
o "fâlsô ·escândalo" de veículo cultural estrangeiro ou ultra-
las ... A fé cristã deve encarnar-se nas culturas" (Doe. catho-
passado. Mas, inversamente, se o discurso da fé se trans-
lique, t . 74 [1977] 1018) ... Em vez de aculturação, usa-
fundir ' completamente numa cuJtura particular, ao ponto de
mos o termo inculturação para sublinharmos, num contexto
perder sua identidade, não haverá também evento evan-
de evangelização, a necessidade de a fé germinar e crescer
gélico.
no seio das culturas.9 A fé é comparada a uma semente exa-
O Evangelho será sempre sinal de contradição. Mas
tamente como a Palavra de Deus nos sinóticos. E a expres-
quando o cristianismo entra em conflito com uma cultura ou
são "encarnação da fé" nos remete evidentemente ao mis-
com uma grande religião, toda a questão consiste em saber
tério central do cristianismo como encarnação do Verbo de
se isso se dá por causa do Evangelho ou por causa da cultura
Deus. Isso significa que a encarnação radical da mensagem
privilegiada à qual ele está historicamente associado.
cristã numa cultura não compromete sua integridade, do mes-
O processo de inculturação obedece a dois movimentos:
7 Cf. J. Ladri~rc. Les Enjeux de la rationalité. Le dé/i de la science inculturação do cristianismo e cristianização da cultun. Esse
et de la technologie aux cultures, Aubier-Montaigne, Paris, 1977. Para fenômeno de cristianização, lento e complexo, comporta dia-
a história do conceito de cultura, aconselhamos o breve estudo de lética de assimilação e dissimilação. De fato, como constata-
M. Meslin, " Cultun: et modernité", in Rev. de l 'lnstitut Catholique de
Paris 1, 1982, pp. 75-90. mos· a propósito do encontro do cristianismo nascente com
8 Entre os trabalhos mais recentes sobre o problema da incuJtu- o helenismo, pode dar-se uma primeira assimilação ingênua
ração, recomendamos principaJmente M. Sales, "Christianisme, cuJtun: e sincretista, seguida logo de movimento de rejeição, ao qual
et cultures•, in Axes X lll/ 1-2, jan. de 1981, pp. 3-40.
9 Sobre a questão do vocabulário, veja 1. de la Pntterie in sucede uma segunda assimilação, mais crítica. E, como já
Culture et /oi. Publication de la Commission biblique, Elle-Di-Ci, Turim, dissemos, o cristianismo não encontra, sobretudo na Africa
1981 , pp. 327-9. Sobre o confronto entre a Bíblia e as culturas, veja
tamMm a obra recente de P. Beauchamp, Le Récit, la lettre et le
e na Asia, nenhuma cultura em estado puro, e sim grandes
corps ("Cogitatio Fidei" 114), Cerf, Paris, 1982. tradições religiosas. Onde é anunciado, o Evangelho de.sem-

218 219
penha papel de "catalisador cdtico" 1º em relação aos valo- moral, social e religiosa. Devemos guardar duas palavras de
res ·éticos, meditativos e ascéticos das outras tradições reli- Cristo: "Não vim abolir, mas cumprir", e: "Não se põe
giosas. Mas os cristãos devem, ao mesmo tempo, estar pre- vinho novo em odres velhos". n
parados para pôr em questão sua maneira de viver o cristia- Essa coexistência da rel;gião judaica e de uma prática
nismo, a fim de que não seja ele fator de estrangeiramento cristã seguindo a Cristo nos convida a refletir sobre a origi-
em relação à cultura dominante no país em que se encon- nalidade do cristianismo como religião. Seríamos tentados a
tram. Não se trata de anunciar ou de viver cristianismo di- dizer que Cristo não fundou uma nova religião, se por reli-
ferente, mas de, em conformidade com a catolicidade da g~ão entendermos sistema de representações, conjunto de ri-
Igreja, favorecer as condições de aparecimento de uma outra tos, catálogo de prescrições éticas, programa de práticas so-
figura hist6rica do cristianismo. ciais. A existência cristã não se define a priori. Ela se acha
onde o Espírito de Cristo faz surgir um ser novo de homem
individual e coletivo. A questão de um especifico cristão é
B. A originalidade do cristianismo como religião mal colocada. Não há "espécie" cristã. Há somente um "gê-
nero" cristão, dificilmente discernível. u Dizemos que há uma
O encontro do cristianismo com uma grande religião maneira cristã de ser homem, de amar, de sofrer, de traba-
nos convida a refletir sobre a originalidade do cristianismo. lhar. E há uma maneira cristã de ser iraquiano, indonésio,
A esse respeito, a relação entre o cristianismo nascente e o turco, afriàmo ou chinês. ·
judaísmo tem sempre valor exemplar. E como o cristianismo deve encarnar-se em mentalida-
Sabemos que a nova aliança inaugurada por Cristo não des nas quais os elementos culturais e religiosos se mistu-
trouxe imediat.amente novo culto, novo sacerdócio e novos ram de modo indissociável, não basta falar de duas perti-
templos. E na ordem ética, a .mensagem de Cristo é antes a nências, cristã e cultural. Podemos ir ao ponto de falar de
radicalização do que estava em germe na lei judaica como lei duas pertinências religiosas? Quero dizer que a questão não
de amor. A novidade radical se resume ao evento Cristo consiste somente em saber se alguém pode ser integralmente
como tal com o que ele acarreta de inédito na relação com chinês e cristão, árabe e cristão. A questão seria: é possfvel
Deus e com os outros. Essa novidade se traduz especial- ser budista e cristão, muçulmano e cristão? Essa questão não
mente no espfrito novo com o qual são assumidos um uni- é absurda. Em todo caso, ela nos remete a esta questão mais
verso de pensamento, uma visão do mundo e do homem, radi~al: que é mais importante no cristianismo? um conjunto
um estilo de vida e categorias éticas, que podem ser antigos. de ritos, de representações, de práticas, que são os elementos
Foi a urgência da missão junto aos gentios que provo- estruturalmente comuns a todas as religiões, ou o poder im-
cou discernimento entre os elementos judaicos contingentes previsível do Evangelho?
e a mensagem evangélica. Os judeus tornados discípulos de Não é porque, historicamente, as relações entre o cris-
Cristo achavam normal fazer-se circuncidar e não comer cer- tianismo e as outras religiões foram vividas em termos de
tas carnes. Por isso, no começo da Igreja primitiva, a nova ex.cl..u~ão que essa situação é normativa para o fim do segundo
religião instaurada por Cristo era designada simplesmente mileruo. Já somos testemunhas, na Asia, de casos de " budis-
como a "via " ( odos). Tratava-se, para eles, de um prolonga- mo cristão" e de "hinduísmo cristão", que são coisa diferen-
mento da haJakha judaica como conjunto de regras de ordem
11 A esse respeito, veja F. Mussner, Traité sur les jui/s trdd.
10 Tiramos essa expressão de H . Kilng, Etre c/irétien (trad. Cranc), frene. ("Co~tatio Hde.i " 109), Cerf, Paris, 1981, cap. Ili. '
SeuiJ, Paris, 1. 978, p. 116; essa idéia é retomada por J. Mohmann in . 12 Inspiro-me aqui nas palavras estimulantes de Y. Je Gal, Ques-
L'eglise dans la force de l'Esprit, cit., pp. 210s. t1ons d la théologie chrétienne, Cerf, Paris, 1975, p. 71.

220 221
a partir do caráter absoluto do evento Cristo enquanto ma-
te de sincretismos preguiçosos. Trata-se de criações originais nifestação histórica do absoluto de Deus. Em virtude do ca-
do Espírito de Jesus. Verificamo~ assim, que a relação entre ráter humano-divino de Cristo, a Igreja histórica se pensou,
o cristianismo nascente e o judaísmo é esclarecedora para a no meio dos homens, no meio de outras relig"ões ou sabedo-
compreensão do encontro do cristianismo contemporâneo rias, como o grupo portador da verdade absoluta e agiu se-
com as grandes. religiões não-cristãs.13 gundo essa persuasão.
Se lembro essa problemática arriscada de duas perti- Assim, ela organizou sua ação doutrinal, política e so-
nências religiosas é porqu~ penso que ~ ~u~to simples, mui- cial sob o ângulo do que se pode chamar de "ideologia uni-
to triunfalista também, dizer que o crisuarusmo é fermento tária", 14 e isso se traduziu em certo triunfalismo da Igreja
que deve operar uma Aufhebung , ( ~estruiçã.o-~ss~nção) de ou numa unicidade entendida em termos de exclusão ou de
todas as tradições religiosas . Sem duvida,.º . cr1suanismo exc:_r- inclusão . Nós somos os depositários do "verdadeiro", e esse
cerá sempre discernimento crítico e pur1f1cador em relaçao " verdadeiro" se opõe a todo o resto como a erro. Ou en-
a outras religiões. Mas, como já disse, devemos guar.da~-n~s tão somos tentados a dizer que a verdade cristã engloba
da ilusão de acreditar que é possível estabelecer disunçao todos os valores de humanidade, de civilização e de reli-
muito nítida entre valores culturais, que poderiam ser con- glão fora do cristianismo.
servados e elementos religiosos, que deveriam ser rejeitados. Seria relativamente fácil mostrar que essa pretensão ao
A Igreja' será fiel à sua vocação universal não pel_a des~ção universal coincidiu, no cristianismo, com sua relação com
das outras religiões, mas por uma presença crista que seia o uma civilização privilegiada, dominante, a civilização ociden-
germe e a promessa ~ r~açõ~s "históricas novas como tal . Quanto mais a religião cristã era pensada como universal,
um cristianismo árabe, mdiano, chines ... tanto mais ela se apresentava com todos os atributos do poder
Em outros termos o cristianismo é infiel à sua condi- e tanto mais era tentada a promover uma unidade entendida
ção cxodal quando abs~lutiza uma re~ação histórica, ist? em termos de uniformidade.
é, uma produção institucional e doutrmal como estad~ de~­ Ora, constato que hoje, graças a melhor conhecimen-
nitivo da Igreja de Cristo. O Evangelho exerce funçao cri- to dos outros mundos, diferentes do mundo ocidental, temos
tica não só em relação a outras religiões, mas também em consciência mais viva da particularidade histórica do cristia-
relação à própria retgião cristã. Concretamente isso signific~ nismo, que não inclui todos os valores que se explicitaram
que, diante do desabo das outras culturas ~ .das outra.s reli- em outras relig:ões ou em outras sabedorias espirituais. Te-
giões, a Igreja só pode ser fiel ~ sua catoliodade aceitando mos, também, consciência mais viva de certo insucesso da
uma conversão, isto é, aceitando pôr em causa seu modo de missão universal do cristianismo e constatamos que a pre-
expressão ocidental. tensão ao universal é, antes, contrária à prática histórica de
Jesus, porque, revelando-se em Jesus, Deus não absolutizou
uma particularidade; ele significou, ao contrário, que nenhu-
C. A particularidade histórica do cristianismo ma particularidade histórica é absoluta.
e sua vocação para o universal Essa aceitação da particularidade histórica do cristia-
Muitas vezes houve na Igreja a tentação de concluir pe-
lo caráter absoluto do cristianismo como religião histórica, M. Zago, ·L·~vang~lisation daas le clirnat religieux de l'Asie•, in
Concil.um 134, 19711, pp 93-106.
14 Tomo esta expressão de C. Duquoc, Dieu di/férent, Cerf,
13 Cf. nosso estudo: • Pour une théologie à l'heure chinoise. 2van- Paris, 1977, p. 126.
gfüsation et culture•, in Concilium 146, 1979, pp. 93-106. Cf., tambtm,
223
222
nismo não contradiz nossa fé na universalidade da mediação passar as objetivações históricas que ele pode assumir na or-
de Cristo, nem nossa fé na missão universal da Igreja . dem da linguagem, na ordem institucional e na ordem das
~ enquanto Universal concreto, isto é, enquanto Deus práticas. Isso alcança a idéia mestra desta obra, a da fideli-
feito homem, que Jesus é universal. Cremos que Cristo não dade criativa, que implica todo testemunho cristão à me-
é uma manifestação entre outras do Absoluto que é Deus. dida que ele é dado na história .
Ele mesmo é Deus tornado histórico. Mas o que dizemos de
Procuro somente responder à seguinte questão: quais
Cristo como mediação de Deus não podemos dizer do cris-
são as condições de um testemunho profético na Igreja? e
tianismo histórico. Por outro lado, a missão universal da
por que falar aqui em testemunho profético?
Igreja não depende do.caráter absoluto do cristianismo como
religião histórica.15 O cristianismo não tem o monopólio da A dificuldade de comunicação da fé pode ser devida
ação salutar de Deus: a.graça é oferecida a todos os homens ao desencontro entre a linguagem do Novo Testamento e a
segundo vias conhecidas só de peus. A. Igreja, como reali- linguagem dominante em nossa cultura. Pode-se dizer tam-
dade histórica, não tem o monopólio dos sinais do reino; bém que a dificuldade de comunicação da fé vem do fato
Deus é mais do que os sinais históricos ' pelos quais ele de que, à diferença do que se passava com os contemporâ-
manifestou sua presença. neos de Cristo e dos Apóstolos, quando nós nos dirigimos
Essas poucas distinções tê~ por finalidade fazer-nos ao homem moderno, não podemos contar com um pressu-
compreender que a verdadeira universalidade do cristianis- posto religioso ou com uma espera messiânica. Mas pode-
mo não é uma universalidade abstrata, que tenda a impor a mos perguntar se o insucesso relativo de nosso testemunho
todas as Igrejas uma unifonrudade formal. C.Omo dizia Paulo não vem de não ser ele suficientemente um testemunho pro-
VI, "somos pluralistas precisamente porque católicos, isto é, fético, isto é, uma palavra criativa de algo novo.
universais". A catolicidade deve incluir pluralismo de con-
fissões e de práticas, sem chegar a uma explosão; "a fé não
é pluralista", para retomarmos outra expressão de Paulo VI. A. O testemunho como vitória da fé
Mas, se tomarmos a sério as condições de encarnação da
Igreja numa cultura dada, a própria fé deve poder gerar O testemunho é necessariamente vitória de nossa fé,
figuras históricas diferenciadas do cristianismo. de uma fé que passou pela prova de contestação radical, a
da cultura atéia do mundo moderno, o que chamo de ateís-
mo pós-cristão. Vivemos num mundo que perdeu sua in-
genuidade.
III. AS CONDIÇOES DE TESTEMUNHO PROFtTICO A fé será sempre da ordem da espontaneidacfe, mas a
fé responsável por si e pelos outros teve de passar pela
prova da crítica para conhecer o que chamei atrás, com Paul
C.Omo veremos adlante, a propósito do "cristianismo co- Ricoeur, de "ingenuidade segunda". De fato, culturalmente
mo via" ( cap. 12), o cristianismo é, por essência, religião a fé não tem mais o caráter de evidência que pode ter tido
profética, é também a existência cristã é, por essência, exis- nos séculos de cristandade. Poderíamos dizer que a situação
tência profética: o cristianismo está em "êxodo" permanente. de descrença constitui uma espécie de destino histórico per-
Há, pois, uma exigência interna no cristianismo para ultra- mitido por Deus e que esta situação histórica de ausência de
15 Cf. A. Ganoczy, • pr~tcn tion à l'Absolu, justification ou obstaclc Deus acaba condicionando necessariamente a fé dos cristãos
pour l'~vang~lisation·, in Concilium' 134, 1978, pp ..33-43. e seu testemunho. Dizemos que a ausência de Deus ou o
224 225
a • Como fazer tcoloata bole
B. O testemunho como a!o profético
silêncio de Deus é sentido tão profundamente pelos cristãos
como pelos não-crentes. . O nosso testemunho não pode ser simplesmente trans-
Compreendemos que não se trata de partt.r em cruzad_a missão de verdades, a transmissão somente de um saber. Ele
ou de lançar imprecações contra os sem-Deus, mas de parn- deve ser evento profético, epifania de Deus entre os homen~.
cipar, mesmo como crentes, de certo destino histórico da au- No clima de ceticismo em que nos achamos, alguma quali-
sência de Deus.16 dade de fé num homem normal, competente, integrado na
Isso nos torna mais silenciosos, mais modestos, menos sociedade, é sempre milagre que surpreendo, P~!vr~ que es-
triunfalistas, mais compreensivos da fraqueza dos outros. Há panta. Na origem do testemunho há uma expenencia. Antes
uma fraternidade na fraqueza entre crentes e descrentes. de acusarmos a cultura ou a irreligião do homem moderno,
Essa fraternidade na fraqueza não é necessariamente uma devemos perguntar-nos se o nosso testemunho pr~ede des-
demissão da fé e do testemunho, é a aceitação de um destino sa experiência. Se os Apóstolos foram testemunhas ~compa­
histórico. Aqui poderíamos retomar as intuições de Bon- ráveis foi porque puderam tocar, contemplar... Se :'tnte sé-
hoeffer. Trata-se de viver como se Deus não existisse, mas culos depois somos muitas vezes testemunhas hesitantes é
- paradoxo para o crente - v1ven · do isso
. d1ante
. de Deus. 17 talvez porque não encontramos a pessoa de Jesus, o rosto
A mensagem da fé tornou-se normalmente difícil. Hoje, o de Deus.
que é surpreendente não é a descrença, mas a não-descrença. Temos o testemunho histórico dos Apóstolos e os si-
Não obstante, a mensagem cristã conserva, ao mesmo nais da presença de Jesus na Igreja e no mundo, mas isso
tempo, toda a sua atualidade. Põe-se então a q.uestão: "Co- não basta· é necessário o testemunho interior, atual, do Es-
1
mo comunicar a fé, con:o testemunhar Jesus diante de pes- pírito San to, que atesta no fundo de nosso coraç.ão que Cris-
soas indiferentes?" A situação não é mais a da primeira pre- to está sempre vivo. É a experiência da fé cristã e do teste-
gação cristã, uma vez que não podemos mais contar com o munho que procede da fé. Em outras palavras, a. fé é. teste-
mesmo a priori rel!gioso. Entretanto, o homem é homem e munho exterior porque antes ela é testemunho rnter1or do
continua apaixonado pela verdade, pela justiça, pelo amor, Espírito em nós .
pela liberdade, e temos a certeza de que existe nel.e uma Se o testemunho é um evento profético, ele será um
abertura possível para o Evangelho. Do ponto de vista da testemunho prestado a Jesus. Mas, como todo testemunho
situação mundial, eu diria que o Evangelho - sem apolo- profético, ele consistirá também em discernir o po~to de
gética fácil - nunca foi tão atual como hoje. Ele será sempre vista de Deus nos acontecimentos do mundo e na vtda da-
da ordem da gratuidade, mas as nossas sociedades modernas queles aos quais somos enviados. Isso é conforme à econo-
descobrem que na mensagem das bem-aventuranças há uma mia da revelação. A nossa missão consiste em manifestar a
verdade e que, se ela não for reconhecida de uma maneira atualidade e o poder libertador da palavra de Deus que se
ou de outra, levará a humanidade coletivamente a uma for- tornou irreligioso ao se tornar adulto.
ma de suiddio.
e. o testemunho deve ser situado historicamente
Quando consideramos a tradição profética no Antigo
16 Cf. G . Morei, •Les vertus de la nuit•, in Autrement 2, 1975, Testamento, vemos que a palavra profética está sempre si-
pp. 79-84. tuada historicamente. O profetismo nunca é abstrato: ele tem
17 Veja, a esse respe;to, nosso artigo: •Le destin de la foi chré·
tienne dans un monde d mdilfércnce•, in Conc1l1um, maio de 1983.
227
226
sempre um enraizamento histórico. 18 Poderíamos distinguir, De semelhante testemunho, que não é simplesmente
no testemunho profético, três pólos: verbal, mas de uma existência, temos vários exemplos: o dos
- a memória da ação de Deus; que estão engajados na Anistia Internacional, o dos dissi-
- o discernimento da situação presente; dentes dos países do Leste, o dos que pertencem a movimen-
- a produção de uma palavra nova, que proceda da tos como "Médicos sem Fronteiras" ou o dos que trabalham
sensibilidade histórica para as necessidades do homem, do no Quarto Mundo etc.
mundo, da Igreja.
Há dois testemunhos proféticos que devemos dar: de
O testemunho está sempre, portanto, ligado à partici- um lado, dar novamente razões para viver às pessoas das
cul11ridade das situações da Igreja no mundo. Uma palavra sociedades industriais e pós-industriais que estão desampa-
que quer ser universal se arrisca a ser insignificante. Trata-se radas e à procura de novos messias, de novos guias; de
sempre de palavra nova, em função de situação nova. Hoje outro, pôr termo ao processo fatal que alarga o fosso entre
não pode haver testemunho do Evangelho de Cristo sem, países ricos e países pobres. Esse testemunho não pertence
ao mesmo tempo, discernimento dos novos estados de cons- só aos cristãos, porque o Espírito de Cristo é sempre im-
ciência do homem, das questões novas postas pela demogra-
previsível.
fia e pela forma, qualitativamente diferente, da violência
humana na idade atômica, pela tensão Norte-Sul, pela ten-
são entre países ricos e países pobres. O testemunho situado
historicamente é isso: reler o Evangelho e fazê-lo falar em E. Os critérios de autenticidade do testemunho
função de nossa situação presente. Penso que a tradição cris-
tã deve ser sempre portadora de futuro, do contrário ela
1. Em primeiro lugar temos a referência ao Evangelho
não é mais transmissão no Espírito e pode ser "letra que
mata", e não "Espírito que vivifica". e à prática de Jesus. Numa situação histórica inédita, o tes-
temunho cristão é imprevisível e a imitação de Cristo não
é reprodução mecânica. Mas há uma prática de Jesus que
deve inspirar todo testemunho. Essa prática de Jesus, esse
D. O testemunho profético não pertence só aos cristãos senso cristão, não dissocia o senso de Deus e o senso do
homem.
Poderíamos justificar teologicamente essa afirmação
mostrando que as notas de eclesialidade não são somente as No testemunho cristão existe, hoje, urgência em en-
notas de pertinência visível à Igreja enquanto reunião dos contrar o essencial: depois do Vaticano II , fala-se em hierar-
crentes. Há aqueles que vivem do Espírito de Cristo - sem quia das verdades. O essencial é o mistério da morte e res-
o saber - e que estão fora das fronteiras da Igreja visível. surreição de Cristo e a prática de Jesus em favor dos ho-
Em outros termos, os cristãos não têm o monopólio do mens. Ora, essa prática se tornaria insignificante, se não fos-
espírito das bem-aventuranças e nem o monopólio do Es- se referida a Deus seu Pai.
pírito de Jesus. Pode haver, por exemplo, testemunhos, ges-
2. Não se pode dissociar o testemunho enquanto enun-
tos, ações, palavras que procedam de ateísmo de cunho
ético. ciado do ato de enunciação, do engajamento da testemunha
falando na primeira pessoa e, portanto, da maneira pela qual
18 Veja, particulannente, o estudo de P. Beauchamp, •La prophétie ela se conve.rteu, antes de propor testemunho como interpe-
d'hier•, in lumi~re et Vie 115, 1973, pp. 14-24. lação aos outros.

228 229
Para usarmos uma palavra de Kierkegaard, "há uma dizia da originalidade do cristianismo, que é melhor do que
reduplicação do testemunho na vida da testemunha" .19 Que uma religião, ele é a religião da graça. O importante é o
significa reduplicar? Significa ser alguém .o que diz; do con- espírito novo com o qual assumo determinados valores já
trário o testemunho é puramente verbal . É a d;ferença entre existentes, seja eu francês , americano, africano ou chinês.
a palavra do repetidor e a da testemunha . O testemunho
4. O respeito pela liberdade do outro no testemunho:
cristão é sempre ·existencial; como dizia ainda Kierkegaard,
isto seria objeto de reflexão sobre a relação entre a respon-
"em cristianismo deve-se falar de imitador, e não de profes-
sor". sabilidade, a urgência do testemunho e a necessidade do
diálogo. ·
Acrescentarei - e isto é importante do ponto de vista Alguns dizem com amargura que se passou da missão
de uma teologia do testemunho - que é Deus mesmo a para o diálogo. Eu diria que passamos de um mau proseli-
instância diante da qual se testemunha . .B um sinal da gra- tismo para o diálogo. O verdadeiro testemunho não exclui
tuidade do dom que me é concedido e da gratuidade de meu o diálogo. Evidentemente pode-se pôr o problema teórico:
testemunho junto aos outros. Sou responsávd diante de como cumprir minha responsabilidade com o Evangelho e,
Deus, e não só diante dos outros. Sou julgado, em primeiro ao mesmo tempo, respeitar a hberdade do outro? Parece
lugar, por Deus, e não pelos outros. Como Deus é graça, há que a lei do diálogo consiste em os intérlocutores se porem
sempre uma palavra interior que revda ao coração do ou- reciprocamente em questão na procura hesitante da verdade.
vinte o sentido do meu enunciado, o sentido da minha pa- Ora, o fundamento de meu testemunho é a certeza de ter
lavra. Deus é, pois, a instância diante da qual o teste- descoberto em Jesus a verdade sobre o homem e a his-
munho é proferido. É nisso que consiste a reduplicação do tória.
testemunho como transmissão de um conteúdo para a minha Gandhi dizia: "Como pode ser fraterno aquele que acre-
própria vida. Nesse momento a minha vida se toma palavra dita ter a verdade? " É , com efeito, pretensão insustentável
viva. impor a outrem a minha verdade como a única, quando sei
3. A palavra da testemunha deve ser amiga do homem. muito bem que dei minha adesão a essa verdade com liber-
O testemunho cristão dado ao Evangelho é sempre palavra dade, isto é, que a escolhi entre outras. Ela não se impõe,
exigente, interpelante, palavra que põe o homem em questão, portanto, com a objetividade e a universalidade de uma ver-
que o julga, mas que deve ser sempre libertadora, e não dade evidente, científica ou filosófica .
fardo suplementar. Em outras palavras, os bons profetas não Para sairmos deste dilema bastante teórico, responsa-
são necessariamente profetas da desgraça ou profetas acusa- bilidade ou respeito ao outro, devemos refletir na natureza
dores .. Os bons profetas são aqueles que vão ao encontro da da fé, no fato de que a fé é sempre, inseparavelmente, dom
esperança do que tem possibilidades que ainda não lhe fo- gratuito de Deus e ato livre. Ou: a fé não é posse definitiva,
ram reveladas: palavra criativa de algo novo. certeza adquirida vez por todas. Ela participa da insegu-
A novidade é a possibilidade de existir inseparavelmen- rança que caracteriza a minha liberdade. Por outro lado,
te como homem e como cristão. Estamos um pouco cansa- devemos sublinhar - especialmente em nossa situação cul-
dos das discussões sobre o "mais cristão ou sobre o especifi- tural - o caráter obscuro da fé . Não só não temos certeza
camente cristão". Devemos lembrar aqui o que K. Barth a respeito de nossa própria fé, como também essa fé se
refere a verdades obscuras, das quais não temos evidência.
19 Veja a retomada dessa idéia pelos autores da obra coletiva Há grande descontinuidade entre as verdades que partilho
sob~ o teslemunho: P. Jacquemont, J.·P. Jossua, B. Quelquejeu Le com outros, no sentido de algumas evidências, e as verdades
Temps de la patience, Cerf, 1'ans, 1976, pp. 131-2. ' que dependem do mundo da fé.
230 231
Conclusão: As duas grandes formas de testemunho na Igre;a
Desse ponto de vista, poderíamos, então, falar de si-
multaneidade existencial da fé e da descrença no íntimo do O testemunho cristão nunca é individual, ele é prestado
crente.20 O diálogo começa em nós mesmos, e não só com como Igreja. Devemos examinar o que o Espírito continua
o outro, o sem-fé. Esse possível sem-fé, em primeiro lugar, a dizer às Igrejas (d. Ap 2,7).
somos n9s mesmos, não o outro. Na Igreja de hoje há duas espécies de testemunho pro-
Assim, em"'toclo testemunho há, necessariamente, uma fético: o de tendência mais sociopolítica e o de tendência
fraternidade entre o crente e o descrente, fraternidade numa roais mística.
pesquisa jamais acabada. A essa altura não sou simplesmente De um lado, temos o testemunho profético dos cristãos
proprietário de uma resposta definitiva, sou também teste- da América Latina e dos países do Leste, dispostos a defen-
munha de uma ºinterrogação, de uma verdade que me ultra- der o Evangelho com o sacrifício da própria vida, dispostos
passa, de um apdo. também a defender os valores implicados · no Evaneelho,
Se, testemunhando, aceito seriamente as exigências do particularmente os direitos fundamentais do homem. :a ver-
diálogo, sou eu mesmo, com minha fé, que vou ser submeti- dade que nesse final do século XX a Igreja de Cristo é
do a uma purificação radical. Quem sabe descobrirei, assim, uma Igreja profética no sentido em que, em muitos países
que não tenho direito às verdades que testemunho, porque pobres, não é mais aliada dos poderes constituídos, nem
não as ponho em prática. Antes de ser confrontado com a cúmplice de certo status quo.
exigência de verdade do meu interlocutor, posso iludir-me Do outro lado, temos as comunidades carismáticas, que
sobre a autenticidade de meu testemunho. Inversamente, atestam a permanência e o poder do Espírito. Elas dão
tomando consciência de minha incoerência, posso eventual- testemunho da presença do Deus vivo no mundo.
mente decobrir no outro uma fé oculta sob sua recusa de É muito lamentável, no cristianismo contemporâneo,
aceitar o Evangelho. que essas duas tendências freqüentemenre se excluam mutua-
Assim, pode haver no outro uma recusa paradoxal da mente. Penso que é o senso do Deus vivo que preserva o
verdade em contradição com a verdade de sua vida. Do profetismo político de cair em messianismo puramente tem-
mesmo modo que sou remetido à minha incoerência, isto é, poral. Por outro lado, são os frutos da caridade concreta
ao fato de que minha fé confessada não coincide com minha e realista, os frutos da caridade com os mais pobres de nos-
fé vivida. Testemunhar o Evangelho, testemunhar a verdade sos irmãos que atestam a autenticidade cristã das chamadas
de Cristo é testemunhar verdade que me ultrapassa, e no comunidades carismáticas.
ato de testemunho posso chegar à minha verdade como o
mostra o diálogo de Jesus com a Samaritana.
Em outras palavras, o diálogo entre duas pessoas leva
ao diálogo consigo mesmo, e nesse diálogo a verdade se
celebra, se atesta. Quando o testemunho é dado diante de
Deus e desinteressadamente, a sua intenção pode não ser
tanto fazer com que o outro seja o que ainda não é - no
sentido de conversão - , mas tentar fazê-lo entrar em si
mesmo, isto é, revelar sua verdade ou uma possibilidade de
existência ainda oculta.
20 Cf. J.·B. Metz, *L'incroyancc com.me probl~mc th~logique " ,
in Concillum 6, 1965, pp. 63-81.
233
232
ante situação histórica nova. ~ notável, em todo caso, que
sejam os teólogos a usarem de modo privilegiado a "se-
11 curalização" como modelo sociológico de interpretação da
realidade histórica. ~ impossível, portanto, proceder à her-
A FUNÇÃO IDEOLóGICA DA SECULARIZAÇÃO menêutica da secularização sem refletir no uso que dela fez
0 pensamento cristão mais recente. Is~ deve ajudar-nos a
discernir o conteúdo ideológico do conceito de secularização.
Trata-se também d~ caso exemplar. para a ·verificação da fun-
ção ideológica da teologia em contexto histórico dado.
Não posso, depois de tantos outros, reabrir o debate
sobre as rdações entre teologia e ideologia.1 Contento-me
Empenhar-se na hermenêutica da secularização é tentar com distinguir duas funções da secularização. Em primeiro
interpretar fenômeno comolexo que caracteriza o mundo co- lugar, a função de justificação e de legitimação. Trata-se,
mo moderno desde a Au/klãrung, isto é, desde o movimento então, de ver que a teologia da secularização fornece justi-
de emancipação da sociedade ocidental não só da tutda da ficação teórica tanto do devir secular do mundo e do ho-
Igreja, mas também de toda forma relig:osa. mem como da mudança em curso no cristianismo. Mas,
Quanto maior o acordo entre os historiadores da cul- além da função legitimadora, que pode ser denunciada co-
tura e · os sociólogos da religião na descrição do fen.ômeno, mo coisificante, a secularização ainda pode ter para o futuro
tanto mais difícil é a sua interpretação. Alguns pura e sim- do cristianismo função exploratória e até utópica. Em ou-
plesmente identificam secularização com dessacralização. Ou- tras palavras, a demitização da secularização como ideologia
tros pensam que secularização designa só o processo histórico deve coincidir com uma decifração de seu alcance explicativo
de recessão do cristianismo na sociedade ocidental e que ela em rdação à transformação da dimensão rclig=osa do ho-
pode muito bem coexistir com a persistência do sagrado mem: Ela tem, particularmente, o mérito de nos mostrar a
no mundo moderno. Essas divergências de interpretação mo~ inadequação das categorias de " sagrado" e " profano" para
tram que, quando se trata de "secularização", é muito di- justificarem a situação "religiosa" da humanidade contem-
fícil ficar na simples constatação histórica do fenômeno : es- porânea e o "rdigiaso" especificamente cristão.
tudo científico e interesse ideológico se misturam de modo
inextricávd. Eu gostaria de verificar isso a propósito da "teo-
l?gia da secularização". Ela é, inseparavelmente, hermenêu-
tica da secularização e hermenêutica do cristianismo. 1. O VOCABUL.\RIO DA SECULARIZAÇÃO
As teologias nasceram sempre do encontro da mensa- E A FUNÇÃO DA IDEOLOGIA
gem cristã com uma nova fase da cultura. A "teologia da
secularização" é uma tentativa de reinterpretação do dado
cristão à luz da "modernidade" do mundo e do homem Antes de nos interrogarmos sobre a função ideológica
designada com o termo "secularização". A secularização ~ da secularização, devemos pôr-nos de acordo sobre o termo
elevada à dignidade de critério hermenêutico da teologia 1 Remeto somente à obra de S. Brcton, Théorie des idéologies,
crista. Toda a questão consiste cm saber se essa famosa Dcsclée. Paris, 1976, e à de Ch. Wackenheim, Christionisme sons idéo-
"secularização" não se tornou conceito teol6gico, para não logie, Gallimard, Paris, 1974, bem como ao estudo de P. Ricocur, •tter-
méneutique et critique des id~logies • , in obra coletiva, Démythisauon
dizermos ideol6gico, forjado para as necessidades da Igreja et idéologie, ~d . CasteW, Aubier, Paris, 1973, pp. 25-61.
234
"secularização n e sobre o que caracteriza a função da ideo- ateus que se inspiram em Feuerbach - que as religiões his-
logia. tóricas cedem o lugar à religião secular do homem.
.1. ~~a P"1!1eira aproximação, designaremos por •se- Essas observações preliminares de vocabulário bastam
cularizaçao o fenomeno pelo qual as realidades do homem para nos pôr em guarda contra as ~nfusõe~ que o t~rmo
e do mundo tendem a se estabelecer numa autonomia cada secularização pode favorecer em funçao dos 10teresses tdeo-
vez. maior, pondo de lado qualquer referência religiosa. His- l6gicos de quem o usa. Uma coisa é afirmar a autonomia do
toricamente, o termo "secularização n teve durante muito temporal em face à dominação secular da Igreja, outra é afir-
ten:po. sign_ificado jurídico e 'neutro. Ele designava a ope- mar a completa dessacralização do mundo porque "moderno"
ra~ao Jurídica pela qual se efetuava a transferência de pro- ou a irreligião total do homem contemporâneo porque
P.rtedades e usufrutos de alguns bens da Igreja para instân- " maior".
oas do Estado. Quando essas operações foram feitas sem o Para melhor discernimento da função ideológica da se-
consentimento da Igreja, sob clima de polêmica e reinvindi- cularização, distinguirei , com P . Berger, a secularização no
cações - foi o caso do século XIX - , o termo "seculari- sentido objetivo e no sentido subjetivo.1 No sentido objetivo,
zação.", co~o também "laicização n, serviu para designar de entende-se por secularização o processo de libertação da
maneira mais geral o processo de emancipaç.ão da sociedade sociedade em relação à autoridade eclesiástica, bem como o
mod~rna em relação à tutela da Igreja. Os grandes setores retraimento das motivações religiosas nas diversas manifes-
da v.1da humana escaparam progressivamente à instituição tações da cultura. A secularização é, inseparavelmente, pro-
eclesial: eles pertencem à ordem do racional do científico cesso socioestrutural e fenôn:eno de civilização. A seculari-
e do político. Sem dúvida, o traço mais decislvo desse pro- zação no sentido objetivo é inseparável do pluralismo: a
cesso de secularização nos tempos modernos é a extensão religião não tem mais o monopólio como sistema de legiti-
da racionalidade a todos os setores da realidade. É o "desen- mação social e como sistema de ideação. Mas essa seculari-
cantamento" do mundo no sentido de M. Weber. A natureza zação da sociedade e da cultura traz uma secularização no
não .encerra mais o sagrado: ela pertence ao domínio do sentido subjetivo, isto é, uma secularização da consciência.
explicado, do objetivável, do "disponível". Paralelamente a Dizemos que há secularização no sentido de transformação
esse processo de objetivação, afirma-se cada vez mais a au- das estruturas de credibilidade da religião. É conseqüência
tonomia do homem como dominador deste mundo sem mis- inevitável do pluralismo. O "crfvel disponível" do homem
tério. moderno mudou no sentido de que os conteúdos tradicio-
. Vê-se,. assim, que se passou naturalmente de um pri- nais da crença religiosa entram em conflito com os novos
?1eiro sen~do de "secularização", na acepção de laicização, estados da consciência ligados à modernidade.
isto .é, de libertação do domínio da Igreja, para um segundo Essa crise de credibilidade está necessariamente ligada
senado, o de dessacralização do mundo e do homem. Há a processos sociais que podem ser determinados empirica-
enfim, uma terceira etapa nessa evolução semântica do ter~ mente. Mas ela não é simples reflexo deles: a secularização
mo "secularização". Ele passou a designar o processo de do homem relig:oso no plano subjetivo tem suas leis pró-
emancipação do homem moderno como processo de ateismo. prias. Devemos talar de causalidade recíproca entre o plano
A dependência religiosa em relação a Deus é denunciada co- sociocultural da secularização e o plano da consciência. Ao
m? alienação inco~patível com a afirmação da plena autono-
mia do homem, finalmente entregue a si mesmo. Podería-
2 P. Berger, La religion dans la conscience moderne, Centurion,
mos dizer - pelo menos na perspectiva dos humanismos Paris, 1971, pp. 175, 203, 237 e pa.ssim.

236 237
mas na forma de ilusão, pela qual ele se justifica, se dissi-
pluralismo dos sistemas de ideação, que pretendem dar a
mula e se esquiva de uma forma ou de outra, mas para
justificação da realidade, correspondem a dúvida e o ceti- • _.J: ...
sua vantagem lDlcmata.
~ismo d~ consciência m~erna. Podemos divergir quanto ao Como a ideologia serve aos interesses da classe domi-
~ventár10 d~s causas históricas da secularização. Podemos nante, ela tende a justificar o status quo social para pre-
mte~pre~ ~eren~emente o fenômeno, e é aí que entram servar os privilégios adquiridos. Ela é, pois, essencialmente
mott~açoe~ ideológicas pode.rosas. Mas o que é incontestável conservadora, à diferença da utopia, que procura sempre
é a s1tuaçao completamente nova criada para o homem mo- transformar e superar o estado dado de uma sociedade (d.
derno pela ~ecul~ização. "Provavelmente pela primeira vez a diferença entre "ideologia" e "utopia " em Mannheim).
em toda a h1stó~1~,. as legi~ações religiosas do mundo per- Apesar de sua vontade de apresentar uma imagem do mun-
deram sua credibilidade nao só para alguns intelectuais e do totalizante e universal, ela é, pois, parcial. Ela usa a
para outros indivíduos marginais, mas também para largas categoria de totalidade, mas não faz dela nenhum uso dialé-
camadas de sociedades inteiras. "3
tico para apreender a realidade . Toda ideologia tende, pois,
2. Se é verdade que, especialmente na literatura cristã a ser "reilicante" e "anti-histórica" .5
a secul.ar;zação não é somente "modelo" da sociologia d~ Segundo o ponto de vista do marxismo ortodoxo, as
conhecimento, mas também conceito ideol6gico, devemos ideologias, e particularmente a religião, são explicações subs-
começar por lembrar como se caracteriza geralmente a fun- titutivas dos fenômenos que ainda não são compreendidos
ção da ideologia. pela ciência. E desaparecerão por si mesmas quando se chegar
A ideologia foi definida como a "cristalização teórica a uma compreensão verdadeiramente cicntíf1ca da realidade.
de um~ form~ de f~sa consciência". Marx foi o primeiro a Mas um autor como L. Althusser recusa a teoria do fim das
denunoar a ideologia como a falsa consciência gerada no ideologias. Para ele a sociedade é totalidade complexa que
h?~em al!enado.. -. sem que ele o perceba - pelas contra- comporta três estruturas ou instâncias, a econômica, a po1í-
diçoes .socioeconomicas da sociedade na qual ele vive. No caso tlca e a ideológica, que têm entre si relações reciprocas e
da sociedade burguesa, a religião e a metafísica são as ideo- necessárias. A ideologia é estrutura permanente, que não se-
logias por excelência. Os homens têm necessidade de re- rá eliminada pela ciência e que exerce uma função necessária
produzir no imaginário as relações reais que têm entre si. em toda sociedade. O que é possível é determinar cientifica-
Mas esta "visão do mundo" não é simples reflexo das es- mente o funcionamento da ideologia. Mas não podemos fa-
ttu.~ras ~ocioeconômicas. Ela tem função de justificação e zer abstração da ideologia para compreendermos os fenô-
legmmaçao de um grupo (a classe dominante ) na socie- menos econômicos e políticos. Inversamente, seria muito sim-
dade. Marx teve o mérito de analisar o inconsciente social plista querer explicar uma superestrutura como a religião
e d~ mostr.ar qu~ toda " visão do mundo" pode degenerar unicamente a partir do estado das forças produtivas.
em ideologia. A ideologia se apresenta como sistema de re- Se considerarmos agora o caso da teologia, devemos
presentações, de idéias e de valores, com seu rigor próprio, recusar-nos a reduzir a teologia a ideologia e, ao mesmo tem-
ao passo que seu móvel efetivo se encontra na vontade de po, ter na maior conta a crítica marxista das ideologias. A teo-
satisfazer os 0t~resses de determinado grupo. "Ideologia é logia, como esforço de teorização do dado cristão, só tem
co?Jplexo de 1dé1as ou de representações que, aos olhos do sentido se permanecer sob a ação da fé . Ora, a fé se opõe
Sujeito, passa por uma interpretação do mundo ou de sua
própria situação; que lhe representa a verdade absoluta 4 J. Gabcl, "ld&>logic", in Encyclopaedia Universalis, vol. VIII ,
Paris, 1970, p . 719.
' 5 K. Jaspers, Origine et sens de l'histoire, citado por J. Gabei,
3 P. Berger, op. cit., p. 201.
art. cit., p. 719.
238 239
à pretensão totalizante da ideologia. Ela é apelo à supe- entre Deus e o mundo. J?o lado católi~~· podemos l~b:ar
ração de situação histórica relativa e da justificação teórica a condenação do modernismo e do laicismo e as posiçoes
de grupo humano particular. Ela se define como abertura intransigentes do magistério com .relação a todas as manifes-
para o futuro, e, embora tome a sério o sofrimento e a tações do fenômeno de secularização, até às vésperas do Va-
incerteza do homem, aprofunda a sua esperança. úcano II.
Mas, ao mesmo tempo, uma análise de tipo marxista Mas, depois da úlúma guerra, viu-se nascerem rapida-
nos aj.uda a discernir melhor a função ideológica que a mente, especialmente no âmbito do pr?t~st~úsmo, teolo-
teologia pode exercer em dado momento histórico. A teolo- gias que procuravam reinterp~etar. o crtsttarusmo. à luz da
gia degenera em ideologia sempre que se toma sistema de secularização como processo histórico. Devemos citar sobre-
justificação e legitimação socia! e que procura legitimar, em tudo F. Gogarten, quê - poderíamos dizer - foi o primei-
no~e da " P~.ª fidelidade ao Evangelho ", tal ou tal opção ro a fazer da secularização critério hermenêutico da fé cristã.
soaal ou políuca, quando, na verdade, defende os interesses Em seguida, teologias da secularização, como a de H . Cox,
?a class~ dominante, seja na sociedade, seja na própria lgre- devem muito às intuições principais de D . Bonhoeffer sobre
Jª· O discurso teológico tem sua coerência própria: ele não 0
" fim da religião" . Achamo-nos , pois, em face de todo um
é o simples reflexo das relações sociais existentes e seu movimento de pensamento teológico que tende a identificar
sentido não se esgota cm seu significado social. Mas ele 0
movimento moderno de "secularização" com o destino his-
nunca deixa também de ter relação com as esferas do eco- tórico do cristianismo. Ele culminou nas teologias radicais
nômico e do político. Quem pode negar que, em sua longa da "morte de Deus" como a de T. ]. J. Altizer.
história, a teologia cristã procurou justificar a injustiça social Na teologia católica, não se encontram, pelo menos no
reinante e dar aos homens a ilusão de compensação pela começo, teologias que mereçam verdadeiramente. o nome de
injustiça que eles sofriam? " teologias da secularização". Trata-se de teologias que, co-
mo as "teologias das realidades terrestres ", procuram diá-
logo entre o cristianismo e o mundo moderno e que querem
II. A SECULARIZAÇÃO COMO PRODUTO HISTôRICO dar justificação teológica às tarefas profanas do homem.
DA F~ CRISTÃ Mas o termo "secularização" não tem a mesma sorte que
na teologia protestante. Entretanto, essas "teologias das rea-
lidades terrestres" exerceram influência não negligenciável
Feitas essas elucidações sobre o termo "secularização" na constituição pastoral Gat1dium et spes, que consagra,
e. sua função de ideologia, devemos perguntar-nos se, de uns de certa forma, nova concepção do diálogo entre a Igreja
vlllte anos para cá, a secularização não funciona, na teologia e o mundo. E, recentemente, teólogos católicos elaboraram
cristã, como se fosse ideologia. A secularização, que é, primei- "teologias políticas " e "teologias da libertação", que teste-
ramente, conceito sociológico, tende, com efeito, em alguns munham problemática muito mais revolucionária do que as
teólogos, a tornar-se conceito teológico. teologias da secularização.
Num primeiro tempo, ante o fenômeno maciço da se- Não é o caso de apresentarmos aqui, em detalhes, as
6
cularização, as Igrejas se refugiaram numa atitude defensiva diversas teorias elaboradas pelos teólogos da secularização.
e conservadora. Do lado protestante, devemos citar uma teo-
6 Remeto aqui somente às obras mais marcantes que usarei neste
logia como a de Karl Barth, que sublinha os direitos absolu- estudo: F. Gogarten, Destin et espoir du monde mode ne, Casterm~.
tos da Palavra de Deus, seja qual for a mentalidade secular Toumai 1970· D Bonhocffer, Résistance et soumission, Labor et F1-
do homem moderno, e que tende a acentuar a separação des, Ge~ebra, ' 1963; H. Cox, la Cité séculi~re, Castennan, Tounai,

240
241
Eu gostaria somence, inspirando-me em Gogarten e Bon- da imortalidade que o homem inventava diante do absurdo
hoeffer, de tentar resumir os principais argumentos aore- da morte. O problema de Israel não era o de atrav.essar o
sentados como justificação teol6gica da secularização. Esse bismo terrificante da morte, mas o de poder conunu.ar a
termo, que procura descrever uma situação histórica, perten- ~elebrar 0 nome de Deus depois de deixar a terra dos vtvos.
ce à sociologia do conhecimento. Ora, entre os teóricos da Enfim 0 Deus de Israel não estava encarregado de manter
secularizaç.ão ele se torna conceito propriamente teológico. h r~onia do cosmo. O 'seu encargo era menos o de suster
Passa-se de uma situação de fato para uma situação de di- ~ :niverso do que o de transformá-lo. Ele intervinha .na
reito. A secularização, que é, em primeiro lugar, o resultado história dos homens e procurava habitar entre e~es . Ass1D1,
de algumas mudanças de ordem socioeconôrnica, torna-se Deus de Israel não era nem o Deus da fecundi?ade, net:?
0
produto hist6rico da fé cristã. Estamos diante de relação re-
0
Deus da imortalidade, nem o r>:us .da harmo.rua d~ uru-
ciproca entre fé e secularização. A secularização é o critério erso que são os lugares por e:ccelenoa da manifestaçao do
hermenêutico da reinterpretação da mensagem cristã para drvin~ na história das relieiões.' . ·- .
hoje. Inversamente, a secularização não é mais constatação A originalidade da fé bfulica em relação à relig_ao foi
empírica, mas produto ideológico. A secularização moderna justamente a de celebrar o nome de Deus em face a. um mun-
é pensada segundo o modelo antigo do movimento de des- do c:ntregue a si mesmo, em lugar de se confundir com a.s
sacralização e desdivinização operado pela fé bfulica. ne::essidades fabricantes do homem para compensa~ as defi-
Num esforço de clareza, creio poder discernir três pres- ciências de sua vida ou responde~ ~~s gran.dcs erugmas. do
supostos teológicos fundamentais na reflexão cristã contem- niverso. A função essencial da rel•g1ao consiste em doDUnar
porânea sobre a secularização. Em primeiro lugar, temos a ~ angústia da vida humana diante da insegurança do mundo.
originalidade do Deus da fé em relação ao Deus da religião. A originalidade da fé bfulica, para a_utor~s como Barth ~
A secularização é então conceito teológico que designa a Bulcmann, consiste cm que ela se opoe diretamente à reli-
dessacralização. Vem, em seguida, a doutrina luterana da ·- 0 entendida como a vontade do homem de se tornar
justificação. A secularização designa então a autonomia da ~:no de Deus para acalmar sua angústia. A fé bfulica -
razão. Por fim , há uma inte.rpretação da kenose de Deus. ao mesn:o tempo em que dessacraliza o .mundo - resntw
0 homem a ele mesmo, à sua autonomta e ao seu ~~r
Por "secularização" entende-se então o mundo maior.
A diferença do deus cósmico das religiões pagãs, o de dominação sobre o mundo. Há, pois, uma convergenoa
Deus de Israel não responde muito bem às necessidades do entre 0 dinamismo da fé bfulica e o processo moderno de
homem. Ele abençoa a vida, mas não a sacraliza. A reve- secularização: . ecul . _
lação do Deus criador foi justamente ponto de partida de Pode-se dizer que toda a teolog• ~ ~ ~ ar.izaçao se
racLcal dessacrahzação do mundo antigo, que estava cheio desenvolve no horizonte teológico da disunçao radical entre
de deuses. Por outro lado, o Deus de Israel não era o Deus fé e religião como teorizada por auto.res c?'.11º K. Barth e R.
1968; T. J. J. AJtizer, The Gospel o/ Cll:'istian Atheism, The West- Bultmann sendo a religião sempre identificada com a pro-
minster Press, Filadélfia, 1966. Sobre as teologias da secularização, re- cura da s~gurança e, portanto, com uma "~bra". do homem
comendo vivamente o estudo de C. Ouquoc, Ambiguité des théologies pecador, e sendo a fé entendida ·como risco, msegur~~·
de la sécularisation. Essai critique, Duculot, Gembloux, 1972. Podem ser
consultados com proveito: L. Newbigin, Une religion pour un monde entrega total do homem à Palavra de Deus, sem .medtaçao
séculier, Castennan, Toumai-Paris, 1969; R. Marlé, La Singularité chré- humana. O "fim da religião", tema orquestrado m.uita~ vezes
tienne, Castennan, Toumai-Paris, 1970; também a obra coletiva, Les por D . Boohoeffer, é, portanto, a realização histórica do
Deux Visages de la théologie de la sécularisatlon, Castennan, Toumai,
1970; e a também coletiva, Herméneutique de la sécularisation (tdit. 7 Cf. A. Dumas, Nommer Dieu (• Cogitatio Fidei• 100) Cerf,
CasteUi) , Aubier, Paris, 1976.
Paris, 1980, PP· 88-9.

242 243
que estava contido em germe no dinamismo da fé bfblica. roente P. Berger, é bastante estranho (ou dever-se-ia falar
Longe de lamentar o processo inelutável de secularização de "ironia da história") que historicamente o cristianismo
do mundo moderno, é necessário, portanto, alegrar-se como tenha sido seu próprio coveiro.ª E este, no entanto, o caso,
que com uma nova oportunidade para o futuro do cristia- se é verdade que a secularização é produto da fé, ao passo
nismo. A secularização não é simplesmente fato inelutável, que constatan:os, por outro lado, que a secularização minou
ela é um dever. a credibilidade do cristianismo. Mas teólogos da seculariza-
A fé não é pervertida pela dessacralização, que, muito ção como Gogarten rêspóoderiam que é necessário distingir a
ao contrário, é uma exigência da fé. Toda a história de Is- secularização legitima, isto é, a distinção radical entre Deus
rael pode ser compreendida como luta do profetismo contra e 0 mundo, da secularização ilegitima, isto é, o fato de o
os riscos permanentes de degradação da fé em religião e homem não se ver mais como criatura de Deus. Deve-se falar
contra a tentação de sacralizar alguma coisa que não fosse então de secularismo, e ele está pronto a admitir que a se-
o nome de Deus. Por comparação com as religiões pagãs, cularização contém em germe sua própria perversão.
assiste-se no Antigo Testamento a uma metamorfose das Insisti até aqui na revelação do Deus todo-outro e na
relações do sagrado com o profano. Deus não é o sagrado, distinção entre fé e religião como pressupostos teológicos da
mas o "Santo" que faz explodir a oposição entre o sagrado teologia da secularização. Agora devemos precisar que os
e o profano. No regime da antiga aliança, o sagrado ainda teólogos da secularização usam também a doutrina luterana
desempenhava, todavia, papel mediador entre o homem e da justificação pela fé sem as obras para legitimarem o re-
Deus. E só com a encarnação de Deus em Jesus que se pode conhecimento do mundo como profano e a autonomia da
falar de superação radical da oposição do sagrado ao pro- razão em relação à fé. Do mesmo modo, a distinção luterana
fano. O que define a nova aliança é justamente o fato de dos dois reinos, o reino de Deus e o do mundo, significa
que todo o sagrado mediador entre o homem e Deus se que no reino do mundo Deus submeteu todas as coisas ao
concentra na pessoa de Jesus. poder da razão humana. Lutero se preocupava, em primeiro
Assim, para teólogos como Gogarten e Bonhoeffer, o lugar, com afirmar a liberdade real do cristão, que é "livre
fenômeno histórico da secularização, entendido ao mesmo senhor de todas as coisas e que não está sujeito a ninguém ".
tempo como dessacralização do mundo e como autonomia da Mas, de fato, sem o saber, ele abria o caminho para o mundo
razão humana, é o resultado do que se encontra em germe moderno, isto é, para o reconhecimento da autonomia do
na revelação bfblica, a saber, a desdivinização do mundo por mundo e para a distinção entre ordem temporal e ordem
Deus. E um acontecimento considerável na história religiosa espiritual. E precisamente enquanto o homem, pela fé, é
da humanidade. Ele transforma radicalmente a relação do livre em relação ao mundo que ele é seu senhor e res-
homem com o mundo. Em face a este mundo desdivinizado, ponsável por de.
o homem é totalmente livre para o dominar e transformar. Gogarten identifica o conceito de "mundo" com os de
Gogarten gosta de citar, como programa dessa liberdade "lei " e de "obra" no sentido de são Paulo e como eles fo-
nova, a palavra de são Paulo: "Tudo é vosso, o mundo, a ram interpretados na tradição reformadora .9 O pecador é
vida, a morte, as coisas presentes e as futuras" ( lCor 3, aquele que confia em si mesmo ou em práticas no âmbito do
22). Acontece que essa verdade libertadora ficou oculta no mundo. Nisso ele ainda é homem da lei . O homem novo é
cristianismo histórico enquanto a humanidade ainda vivia na
fase da religião. Compete, pois, ao pensamento cristão da 8 Cf. P. Berger, op. cit., p. 206.
Idade Moderna, isto é, da fase do fim da religião, dar jus- 9 Cf. Les Deux Visages de la thlologie de la slcularisation, cit.,
tificação teológica à secularização. Como observa pedida- p . 32.

244
luteranas uma das razões do conservantismo político das
aqude que, como pessoa livre em face do mundo, só confia teologias políticas ou protestantes.11
em Deus. Parece, assim, que nada mediatiza o encontro pes- Outra doutrina teológica invocada para fornecer uma
soal do homem com Deus. A fé como obediência ao convite · tificaça-o da "secularização" é a da kenose de Deus em
de Deus e como abertura para o futuro funda a secularidade JUS
Jesus. A secularização des1gna
. - o " mundo. mru_o~
entao . n e a
do mundo e a livre responsabilidade do homem perante o "·dade adulta" do homem. Encontramos essa mtwçao em
histórico. "A fé não representa sistema dogmático e meta- ~ohoeffer mas ela recebeu sua formulação máis radical na
1
físico a ser aplicado no mundo. Este mundo é profano por- teologia da "morte de Deus" de T. J. J. Altizer .
12

que só o homem é criador dos valores que entende promover O Deus da religião mantém o homem num estado m-
nele. Ele não busca os princípios deste mundo numa reserva
fantil: ele o aliena. Para Bonhoeffer, a .imJ>?t~cia do homem
celeste. A fé, despojada da dimensão metafísica recebida do cligioso é o correlativo exato da orupotenoa de Deus. O
mundo grego, funda, por sua abertura para o futuro, o ca-
Deus de Jesus quer o homem a?ulto. A secularização .do
ráter secular do mundo. " 1º mundo é conseqüência do desígruo de Deus, que se deixa
Secularização é, pois, outra designação da autonomia desalojar do mundo e preg'.11' na cruz P~ª. 9ue o homem
da razão . Gogarten estabelece corte radical entre Deus e o chegue à idade adulta e seJa -.- nas pas1t1v1dades de sua
homem, entre a fé e o mundo, entre a revelação e a história. vida - participante da senhoria de Cristo sobre o mund~.
Mas ele se separa de K. Barth, para o qual a Palavra de "Eis a cL.ferença decisiva em relação a t~ as outr~ rc:U-
Deus nos atinge só na encarnação. Se o mundo, enquanto giõcs. A religiosidade do homem o reenvia, em sua IDJs~1a,
desdivinizado e secular, é produto da fé, ele pode tomar-se ao poder de Deus no mundo, Deus é o deus ex machma.
o lugar em que Deus nos fala. Hoje o que caracteriza a A B.blia o reenvia ao sofrimento e à fraqueza de Dc:us;
modalidade própria da fé cristã é que a questão de Deus somente o Deus que sofre é que pode ajudar. Neste senudo,
só pode ser colocada no horizonte da secularização do mundo pode-se dizer que a evolução do mundo para a idade adulta,
e de toda existência humana. da qual falamos, fazendo tábula rasa de falsa imagem de
A partir do princípio da Reforma, procura-se fazer da Deus, liberta o olhar do homem, dirigindo-o para o Deus
secularização uma exigência da própria fé. Rompe-se, então, da Bllilia, que adquire seu poder e seu lugar no mundo por
com o cristianismo histórico, cuja missão foi entendida, du- sua rmpotenaa. nu
• A •

rante séculos, como um esforço para "cristianizar" o mun- Poderíamos caracterizar a atitude de Bonhoeffer como
do. Mas isso para melhor afirmar a pureza absoluta da fé. a inversão da inversão da religião efetuada por Feuerbach,
Toda tentativa de mediatizar entre a fé e o saber (teologia que disse: "Para enriquecer Deus, o homem deve empobre-
clássica) , entre a fé e a civilização ( huo;ianismo cristão), cer-se; para que Deus seja tudo, o h~mem não deve ser
entre a fé e a história (teologia política) chega a uma con- nada." Bonhoeffer inverte o esquema, dizendo: Deus se em-
fusão ilegítima e redunda em "secularizar a fé ". Pode-se
dizer que, paradoxalmente, a teologia da secularização que 11 A respeito desse ponto, '?r.,. J.. L. Se~do, •eapitalisme-So<?ia-
procede da Reforma é a fonte de teologia política que re- lisme, une croix pour la th~logie • m Conc1/1um 96. 1974, especial·
cusa toda idéia de causalidade entre os movimentos históri- mente pp. 104-S. · h w ·
12 1'. J. Alliz.er, The Gospel o/ Christian Atheum. T e estnuns-
cos de libertação humana e a vinda do reino de Deus. Por ter Prcss, Filad~lfia, 1966. . . . .
isso os teólogos da Lbertação vêem na influência das teses 13 D. Bonhoeffer, Résistance et soum1ss1on, c1t., p. 163. Veia o
comentário propriamente t.:ológlco de E. Jüngel ~brc ~ te~to~. dle-
brcs em Dieu myst~re du monde, trad. íranc. ( Cogitatto F1de1 no.
10 t assim que C. Duquoc transcreve o pensamento de Gogarten 116-117), Cerf, Paris, 1983, l, pp. 86-96.
in Ambiguité des théologies de la sécu/arisation, p . 41.
247
246
pobrecc para enriquecer o homem ... Ele reinterpreta, por- Ili. A ruNÇÃO IDEOLOGICA DA SECULARIZAÇÃO
tanto, o mistério da morte de Cristo à luz da secularização
e vê uma convergência entre a promoção do homem adulto,
libertado da alienação religiosa, e a revelação do Deus fraco Vimos rapidamente alguns dos argumentos teológicos
e sofredor em Jesus. Quando o homem faz a experiência de invocados pelos teólogos da secularização. Devemos mostrar
sua força e de sua autonomia, ele compreende que é só o agora em que sentido a teologia da secularização funciona
Deus fraco e crucificado que pode vir em seu auxilio. Foi à maneira de ideologia e serve aos interesses da Igreja .
preciso esperar o fim da religião para que as funções ilusó- Ela procura, em primeiro lugar, justificar e legitimar o
rias de Deus em relação ao homem fossem demistificadas e retraimento histórico do cristianismo nos tempos atuais . Co-
para que ele fosse reconhecido em sua transcendência pró- mo toda ideologia, a teologia da secularização negligencia
pria. Finalmente, como, à diferença do que se passou du- uma pesquisa verdadeiramente histórica sobre as causas da
rante séculos, a fé não está hipotecada pela religião, toda a secularizaç.ão no mundo moderno. Finalmente, ela se obstina
questão consiste em chegar a uma " interpretação não-reli- contra a realidade, procurando a todo custo uma convergência
giosa dos termos bl>licos", em encontrar um "discurso se- entre o processo moderno de secularização e o movimento
cular" sobre Deus, em assegurar um "anúncio a-religioso do de dessacralização inaugurado pela fé bíblica . A secularizaç.ão
Evangelho". - que é antes de tudo conceito sociológico para designar
O programa de cristianismo a-religioso de Bonhoeffer o fenômeno em virtude do qual as estruturas da socieda-
está cheio de intuições muito ricas e permanece na órbita de de tendem a se estabelecer numa autonomia cada vez maior
teologia cristã. Em outro autor, como Altizer, o alcance em relação a toda instância religiosa ou eclesial - tende a
ideológico do conceito de secularização é tal que não se fala se tornar conceito ideológico e, portanto, a-histórico.
só da fraqueza de Deus, mas também da morte de Deus. A "secularização" é fenômeno incontestável de civili-
A boa nova do Evangelho é a proclamação da morte do zação. Ela caracteriza a sociedade moderna em sua diferença
Deus todo-poderoso e ciumento do Antigo Testamento. Che- a uma sociedade sacra/ ainda sob a dominação da Igreja.
ga-se a uma jcsuologia pura e simples. A onipotência é iden- Mas como que para justificar teologicamente o fato de a
tificada com o mal. Se Deus é amor, ele deve cessar de ser Igreja ter perdido suas posições de poder na sociedade mo-
Deus. Ele só se resgata pela sua morte. O cristianismo histó- derna, este estado de fato é absolutizado e se toma estado
rico não compreendeu o alcance da morte de Jesus. Ele pro- de direito. É estranho, em todo caso, que o termo "secula-
longou o poder constrangedor da religião sobre o homem. rização " tenha-se tornado termo privilegiado do vocabulário
A idade da secularizaç.ão total do mundo e do homem inau- cristão. Ora, se é evidente que as estruturas da sociedade,
gura finalmente a verdadeira compreensão do mistério pas- como as ciências, as técnicas, a cultura, a filosofia, as ideo-
cal. A morte do Deus todo-poderoso é a condição para o logias políticas, se tornaram seculares no sentido de que não
aparecimento da verdadeira hberdade e para a autonomia têm nenhuma regulação religiosa, isso não significa necessa-
do homem. É nisso que Deus revela seu amor. riamente que o mundo moderno esteja completamente des-
sacralizado. Muitos observadores atestam, ao contrário, a
persistência da religião no mundo contemporâneo e até um
retorno do sagrado. 14 Os crist.ãos que se fazem arautos da

14 Cf. a obra cole1iva, Le Re:our du sacré, Beauchesne, Paria,


1977, com minhas conclusões, pp. 129-43. Assinalo, al~ m disso, duas
ob:as importantes, que apareceram recentemente, das quais tomei ~

248
249
se~arização não se arriscam a se atrasar de uma geração? Em segundo lugar, a opos1çao entre a fé e a religião,
E talvez estejam colocados para decifrar os sinais de um que teve tanto sucesso no pensamento cristão contemporâ-
retoro? d? sagrado, porque supõem inconscientemente que neo, protestante ou católico, tem alcance estratégico inegável.
a I~eJa ainda detéI? o monopólio do sagrado. Crêem, pois, De um lado, com objetivo apologético, ela permite pôr a
facilmente, que a crise das Igrejas e a crise da orática crente fé ao abrigo da contestação radical da religião pelo ateísmo
coincidem necessariamente com o caráter irreligioso do ho- moderno. Do outro, da fornece justificação ideológica para
mem moderno, o que não é absolutamente evidente. O fato a indiferença religiosa do homem moderno, afirmando que a
de muitos de nossos contemporâneos não serem mais cris- relig.ão não é o pressuposto necessário da fé. Além disso,
tã?s n~o significa que se tenham tornado irreligiosos e que a fé cristã nunca tem tantas oportunidades de ser verdadei-
se1am incapazes de fazer a experiência do sagrado. ramente ela mesma que possa fazer abstração de todo pres-
Para falarmos em dessacralização, devemos começar por suposto relig~oso. Enfim, muitas vezes a oposição entre a fé
nos entendermos sobre a noção de sagrado. O declínio de e a religião traz aval teológico a toda uma literatura es-
sociedade sacral ainda enfeudada na Igreja pode muho bem piritual que põe em relevo o contraste entre o "belo risco
coincidir com um retorno do sagrado, que é figura hlstórica da fé n e a "secularização pequeno-burguesa da religião n • 16
do espírito. Por isso, em vez de falarmos do enfraqueci- Ora, a tese do fim da religião e da idade adulta tem
mento do sagrado, devemos falar de "suas metamorfoses".1.5 o ar de afirmação ideológica que não corresponde à situação
O sagr.ado não se identifica com as objetivações religiosas complexa da humanidade contemporânea. Pode-se perguntar
produzidas por ele nas religiões históricas. A experiência do se não se trata de tentativa um tanto desesperada de justifi-
sagrado é diferente da experiência de Deus. E tem por obje- car o insucesso da evangelização cristã na maior parte dos
to uma região específica do ser que não é identificável com países do hemisfério Norte.
De.us.. Por isso o recuo considerável do sagrado como sagrado Contrariamente, com efeito, ao que anunciavam os pro-
ob1ectal não contradiz a permanência do sagrado como ex- fetas da morte de Deus, parece que a religião retoma a dian-
periência subjetiva. E essa experiência leva a uma reinvesti- teira em seu diálogo com a ciência, e isso pela primeira vez
dura do sag_rado em outros objetos, não mais da natureza, desde Darwin. Isso tenderia a provar que, contrariamente
mas da técnica, eventualmente, ou em novos ritos em novos ao que afirmavam todos os teólogos da secularização, o sa-
mitos, em novas festas, em novos deuses no scid de nossas grado, o mítico, o místico, o extático não foram eliminados
sociedades secularizadas. O .c erto é que o sagrado moderno da condição humana. O homem não vive só de pão ou de
é sempre um sagrado pós-cristão. Pode-se pensar que o cé- conhecimento científico. E longe de ser expressão da miséria
lebre ~ reto~no do sagrado~~ d<;> qual muitos falam hoje, atesta do homem, como pensava Marx, esse revival religioso é
o .v~o deixado na consctenoa moderna pelo Deus judaico- fenômeno próprio das sociedades ricas do mundo ocidental.
cr1stao. Ela não é, também, protesto contra a miséria, mas protesto
contra o não-senso das sociedades da abundância, que au-
n.h ccimento depois da redação deste texto: J.-P. Simonneau, Sécula- mentam sem cessar seus meios, enquanto so&em da ausência
risa11on el rel1g1ons politiques, Mouton, Paris, 1982, e F.·A. lsambert crescente de fins. Esse despertar religioso, pelo menos nos
Le Sens du s~.·é. File el religion populairc, ~d. de Minuit, Paris, 1982.
IS Penmto-me remeter ao meu estudo: -Le christianisme et les Estados Unidos, é uma forma de contracultura, tendo, por-
m~tamorphOSC$ du sacri", in Le Sacré. Eludes el recherches. Atas do tanto, alcance social e mesmo político. ~ interessante notar
Encontro. Rom81!º• cd}tadas po~ E: Castelli, Aub;er-Montaigne, Paris,
1974; veJ& tamb.m mmha contnbu1ção ao volume em homenagem ao 16 Cf. R. Bultmann , •oiscours de Paul à l'Ariopage" (trad. franc.),
mons van Kamp, ·~ularisation du christianisme et retour du sacri" in Le Supplément 114, 1973, pp. 303-13, com um comentário de C.
in Savoir, /aire, espérer. Les limites de la raison Bruxelas 1976 t 11' Geffré, • L'homme modeme face au Dieu inconnu• , ibid., pp. 315-21.
PP· 739-54. ' ' ' . '

250 2.51
que para muitos jovens de hoje o religioso não é expressão sua influência cultural e poUtica e o enfraquecimento das
de falta, mas de criatividade, de alegria, de solidariedade instituições cristãs. A religião cristã corre então o risco de
com os outros. limitar-se à esfera do privado e não exerce mais sua aç.ão
~ certo que a crftica à religião ~ uma exigência da f~ pública transformadora nas estruturas da sociedade. Assim,
~~tã, _se po.r religião entendermo$, 'Seja projeto de autojus- ao mesmo tempo cm que avaliza teologicamente um apaga-
tif1caçao, se1a evasão para fora da vida real. Se a religião rr.cnto da Igreja como instituição na sociedade secular con-
não é necessariamente expressão · da· procura de falsa segu- temporânea, a teologia da secularização tende a legitimar o
rança, mas ~press~o do desejo do homem e da superação ethos humanista das sociedades liberais. "~ construção teó-
de seu dese10 na linha de suas experiências humanas mais rica, que serve para manter em sua autonomia e em sua
positivas na ordem do amor e da criatividade, somos convi- emancipação a consciência de nossa sociedade moderna, sua
dados a ultrapassar oposição muito simplista entre a fé e a or:entação coletiva. Assim, o seu caráter de adaptação se
r~·g·ão. Assim, o p~ojeto de cristianismo a-religioso no sen- acha ao mesmo tempo associado a uma sociedade que se
ado de Bonhoeffer, Justamente ao procurar justificar teologi- funda na autoridade privada do indivíduo situado no sistema
camente o processo moderno de secularização, pode compro- econômico e no setor dos lazeres. nta No momento em que a
meter os pressupostos antropológicos da fé cristã. A fé se teologia da secularização garante domúúo intocável, o da fé,
enraíza necessariamente no que se poderia chamar de "sa- de fato da fornece, embora involuntariamente, um álibi às
grado original" do homem como mistério de abertura e de sociedades neocapitalistas sob o signo do crescimento a qual-
com~?· ~jam quais forem as metamorfoses do sagrado quer preço do máximo rendimento, da racionalidade técnica.
na his~or.1a, _e o homem que é o lugar originário do sagrado. A religião cristã tem função de pacificação psicológica. Ela
Um cnsoarusmo completamente secularizado, que não vai ao ajuda os indivíduos a resolverem suas angústias, mas não
encontro do pressenúmento obscuro do sagrado presente no toca nas estruturas do sistema capitalista. Embora sem o sa-
~oração. de todo homem, pode degradar-se justamente em
ber, ela se faz cúmplice delas.
ideologia. E não exerce mais atração em todos os nossos Não é, pois, de admirar que, apesar de sua apar~cia
contemporâneos que buscam o sagrado. progressista, a teologia da secularização se veja hoje contesta-
?ri~te, enfim, um traço paradoxal nas teologias da se-
da pelos promotores da "teologia da revolução n ou da "teo-
culanzaçao. Ela;; se pretendem progressistas: rompem com logia da libertação". "A teologia da secularização não repete
uma teologia q'1e procurava legiúmar o papel sacralizante da o modelo constantiniano nem o adapta, mas também não o
Igreja em relação às estruturas da sociedade. Ora, de fato, rejeita. Ela corresponde, certamente, ao empreendimento de
com toda i~eologia, a teologia da secularização, secretamen- destruição ideológica e pragmática das teologias e dos com-
te, faz o jo~o das sociedades neoliberais do mundo ocidental IX?rtam.entos que continuam sob a influência da Igreja pós-
todas sob :> signo da cLstinção tipicamente burguesa entre ~ mdenana. Mas, por falta de autocrítica e de crítica das
pnvado t. o publico. 17 condi~ões de sua emergência na sociedade de hoje, o ethos
tcmauzado pela teologia da secularização não faz senão re-
Vimos a importância da teoria luterana dos dois reinos. produzir a mentalidade do modelo constantiniano. •l9
A tculog1a da seculanzação jusu&ca teologicamente a mar-
gm1 uzaçao progressiva da lgreja na soacdade, a perda de 18 Les Deux Vlsages de la thlologie de la slcularisation cil
p . 146 ' .,

17 Essa critica da liberdade como liberdade de emancipação no . IJ ~- Xhaufflaire, :Lath6ologic ap~ la th6ologic de la a&:ulari·
sa1on • m Les Deux Visages de la thlologie de la slcularisation cit.
s...11ido das sociedades ncohberais, está subjacente na nova tcoÍogia pp. 89-90. • ,
· t0Unca de J.-8. Metz cm La Foi dmis I Egl1se et dans la sociltl, cit.

).52
De seu lado, os teólogos latino-americanos acusam os
t~ólogos europeus da secularização, e mesmo a teologia polí. causa de seu oportunismo. Pode-se cair numa tão má apolo-
~ca de J .-B. Metz, de serem anti-revolucionárias por essên- gética, tranqüilizando-se muito depressa com sinais, inevi-
oa . Com efeito, sob a influência da doutrina luterana da fé uivelmente ambíguos, de um retorno do sagrado. Esse re-
sem as obras, elas relativizam completamente todos os es- viva/ é sobretudo fenômeno de contracultura, não sendo evi·
forços de libertação feitos na história em relação ao absoluto dente que ele ofereça oportunidade para o futuro da fé cris-
esc~tológico . ~ão teologias abstratas e neutralistas, quando tã. Em outros tern:os, tomar a pista falsa das teologias da
muito refornustas, mas incapazes de justificar, em nome do secularização para defender a tese de unsecular man não
Evangelho e da preparação, desde este mundo do reino de seria erro simétrico? 20 Uns falam de mudança radical do
Deus definitivo, uma opção política concreta. ' mundo, de passagem da idade religiosa para a idade irreli-
giosa e adulta do homem. Outros afirmam que nada mudou,
ou melhor, que não sabemos decifrar os sinais da persis-
tência da religião.21
IV. A SECULARIZAÇÃO E O FUTURO DO CRISTIANISMO
Diante dessas afirmações simétricas, que dissimulam
mal seu interesse apologético, parece que devemos manter
Fazendo da secularização um " produto " histórico da fé pelo menos duas ordens de certezas. De um lado, devemos
~fulica, os teóricos da secularização desconhecem a origina- tomar viva consciência do destino histórico da questão de
lidade do processo moderno de secularização. Falam dele Deus. Quero dizer que, contrariamente ao "regime religioso"
num nível abstrato e metafísico e negligenciam suas formas da humanidade durante milênios, a questão de Deus não é
concretas, econômicas, políticas e culturais. Finalmente. em- evidente para o homem do final do século XX. Essa questão
bora sem o. saberem, "~rod.u~em" a ideologia da qual a Igreja se tornou totalmente livre, e parece que não pode ser colo-
t~m .necessidade para Justificar seu devir, isto é, sua mar- cada por quem quer que seja nas condições atuais do mun-
gmaliza~ão ~escente. Ao mesmo tempo, avalizam as socie- do. Por outro lado, não podemos mais retroceder da sus·
dades liberais do mundo ocidental sob o signo da ruptura peita que nosso pensamento moderno faz pesar sobre a ilu-
entre "~úb.lic?" e "privado". Curiosamente, quando eles são religiosa. Sabemos melhor que a religião sempre explora
q~er~ 10s1snr na função social e política do cristianismo, a máquina de fazer deuses que é a megalomania do desejo
nao at10gem . seu as~to .profético, uma vez que ele não es- humano ou seu gosto pelo inefável . Por isso devemos per-
capa à fataµdade .his.t6n.~ de todas as religiões, a saber, guntar-nos seriamente se temos interesse em ligar o futuro
a de ser a ideologia Justificadora da sociedade estabelecida. da fé cristã às ressurgências permanentes do instinto reli-
_ Mas sug~ri no inl~~ que a ideologia da secularização gioso.
nao é necessanament~ re~1cante e a-histórica. E verdade que, Justamente porque se passou algo novo na história da
por !alta de senso ~aléttco, ela absolutiza o presente e não humanidade, devemos considerar com toda a seriedade o al-
considera a complexidade da realidade histórica. Quando se cance exploratório e até profético da "secularização". Direi,
trata, entretanto, do futuro do cristianismo com relação à em primeiro lugar, que as teses contrastantes sobre a secula-
mud~ça religio.sa do mundo, pode-se pensar que ela tem rização e a ressacralização do mundo denotam a inadequa-
funçao prospecnva e mesmo profética. E do que eu gostaria
de falar agora, ao terminar. 20 eo perigo ao qual não escapa o obra de A. M. Greetey,
Unsecular Man. The Persistence o/ Religion, Schocken Books, Nova
_ Não basta, com efeito, contestar as teses da scculari- Iorque, 1972.
zaçao do mundo e da irreligião do homem moderno por 21 eo caso. na França, dos livros de sucesso de Maurice Clavel
e André Frossard.
254
25.5
,

- d mundo ou com uma concepção sacra! do cristianismo


çao o- leve em consideração a mudança religlosa
. em curso.
ção da opos1çao "sagrado-profano " para atingir a originali- d
que nao . _ . .
, motl·vo de admiraçao se, histoncamente, por. causa e.s-
dade específica do "religioso-cristão" . Em seguida, devemos Sera - malsã entre sagrado e profano, o cr1suarusmo
· · · d e-
decifrar, sob a ideologia da secularização, uma verdade pro- Sa0
sa ten - em busca de autentica
·ona tanto aqueles que estao " · cx-
fundamente cristã, da qual começamos apenas a tomar cons-
ciência, a saber, a da mundanidade do mundo como conse- cef>?en
" eia do sagrado como os que compreenderam o alcance
pen .,.. . dh
qüência da encarnação. " revolucionário " do Evangelho para nova ex:istenoa o o-
Pode-se pensar que é porque identificamos demasiada- mem? - · d
mente o "religioso" com o "sagrado ", conseqüência de uma Chegamos, assim, à última observaça?, r:iouva a por
primeira crispação entre o " divino" e o " sagrado", que temos reflexão sobre a função hist6rica da secularizaça~ para o ~­
muita dificuldade em justificar a originalidade da religião turo do cristianismo. Creio que atrás do conceito teológico
cristã num mundo secular. A reduplicação do mundo pro- de secularização - apesar .do a~u~o que se pa<ie faze:r dele
fano em mundo secular é simétrica de distinção muito rígida ara justificar a perda de influenoa da Igre1a na soaedade
entre a fé e a religião.2'! Seja qual for, com efeito, o interesse p aderna - oculta-se intuição muito profunda sobre a estru-
dessa distinção teológica, a fé cristã é, na verdade, variante ~ra nova do mundo depois da encamaç.ão de ~usem Jesus.
do fenômeno religioso. É falso fazer da secularização produto hist6rtco da fé dos
Por termos identificado muito depressa o "religioso" cristãos. Mas é certo dizer que a mun~anidade do mu~do é
com " sacra) arcaico", que é contestado pelo processo moder- conseqüência da encarnação. E é preasament~ por n~o ter
no de secularização, chegamos às conseqüências extremas das levado até o fim as conseqüências de um realismo cr1stol6-
teologias da secularização, isto é, a autodestruição do cris- gico que a cristandade não permiti~ªº. mundo ~er_plen~mente
tianismo. O discurso sobre Deus não é mais do que discurso ele mesmo e que hoje a má consc1ênoa dos cnsta~s da lugar
indireto sobre o homem, e o discurso sobre as realidades a otimismo exagerado quanto às novas oportuntdades de-
do além é apenas urna maneira de compreender as realidades correntes da secularização para a fé.
deste mundo. A oposição entre o sagrado e o profano pode Segundo a bela expressão de A. ~as, comen~an~o
explicar adequadamente a economia das outras religiões, a cristologia de Bonhoeffer, é necessário tomar a séno a
mas deixa escapar algo de essencial no que diz respeito à presença polifônica de Cristo no meio do real ". A i~éia _forÇü
novidade histórica do cristianismo. A verdade procurada na que não deve cessar de ser aprofu~dada é q~~ a acettaçao do
ideologia da secularização é justamente o fato de que, depois mundo por Deus implica secularidade positiva do mundo.
da encarnação de Deus em Jesus, a categoria de profano é Quanto mais o mundo, a história, o b~mem são el:S mes-
incapaz de explicar a realidade do mundo desdivinizado, do mos tanto mais Deus é ele mesmo. Nao basta entao falar
mesmo modo que a categoria de sagrado é incapaz de expli- do ~undo como profano, em oposição ao mundo sacr~l
car a realidade teologal da existência cristã. da Antiguidade. Não basta também falar de mundo seculari-
Então, ou chegamos a uma secularização do cristianis- zado no sentido da secularização como processo moderno
mo, de modo que ele seja esvaziado de seu mistério para se de a~tonomia do mundo em relação a toda instância religiosa.
reduzir a uma ideologia estimulante para a construção de um Deveríamos falar da nova realidade do mundo estruturado
mundo mais humano; ou sonhamos com uma ressacraliza- por Cristo. As linhas seguintes, de J.. B. Metz,. mostt~ bem
a intuição que se oculta sob o concelto teológico de secula-
22 Para primeiro abordagem do alcance desta distinção em Barth rização n' ao qual ele prefere o de "mundanidade do m~do n:
e BonhoeHer, pode ser consultado nosso breve estudo: •La critique
de la religion chez Barth e Bonhoeffer• , in Parole et Mission 31, 1965, "A mundanidade do mundo aparece sempre como nao do-
pp. 567-83.

2.56 9 . Como raur tcoloata boje


minada, não penetr~~a pela fé e, nesse sentido, sempre pagã
e profana. Se~ duvida, o mundo inteiro é agarrado por
Cristo; mas. nao em nós e em nossa situação histórica de 12
crentes, e sun em Deus e no 'sim' que só de pronunciou
sobre o mu~do, no mistério impenetrável de seu amor, que O CRISTIANISMO COMO VIA
é o v~rdadciro lugar de convergência da fé e do mundo".23
Em. virtude d~ realismo da encarnação, devemos aprender a
deafrar a realidade de Deus no mais profundo da realidade
do mundo. Uma vez que em Jesus realizou-se a união de
Deus e da realidad~, devemos ser capazes de conjurar, ao
~esmo tempo, o perigo do pensamento metafísico e religioso,
isto ~· d_e um Deus fora da realidade, e a tentação da se- O tema da "via" nos remete naturalmente ao Tao chi-
cularJzaçao moderna, a saber, a dissolução de Deus na reali- nês, isto é, ao Livro da via e da virtude de Lao-tse. Embora
dade do mundo tornado "maior". sem condições de tentar estudo comparativo entre o cristia-
.. A~ te~o ?essas reflexões, podemos concluir que a sig- nismo como via e o Tao, permito-me deixar aqui as refle-
nif1c~ça? histó~ica da "secularização" não se esgota em sua xões espontâneas que me foram inspiradas pela leitura do
funçao 1deoló~1ca a serviço dos interesses de uma Igreja em Tao. Creio, com efeito, que elas são de natureza a sublinhar,
período de crise. E!a t~~ ta1!;1bém. função ut6pica em relação à primeira vista, a originalidade e a complexidade de rein-
à metamorfose do religioso realizada pelo cristianismo, da terpretação do cristianismo segundo a metáfora da "via".
q~al ~e nunca chega, porém, a ser plenamente a figura
histónca.2• Numa primeira aproximação, o Tao pode ser compreen-
dido como via moral a ser segujda, como estilo de vida.
Tentaríamos, então, uma comparação com o cristianismo en-
quanto prática reta, enquanto ortopraxia. Mas, como bem
o mostra o P . Oaude Larre em seu recente comentário, o
termo T ao designa realidade misteriosa cujos harmônicos
são muitos.1 Ele é tão inadequado como o termo Deus
para designar o Absoluto. Seu sentido é tanto via do céu
. ~_3 J.-8 . Metz, Po.ur une théologie du monde, trad. franc. (•Cogitatio como via dos santos. Com efeito, ele lembra a Realidade
Fide1 57).' Cerf, ParlS, 1971, p. 54 lcf. 1rad. por&.: Teologia do mundo aquém das aparências e além do sr ber e da experiência. Na
Moraes, Lisboa, 1969) . ' ordem do agir humano, a "via" depende tanto da mística
24 Pn:f1ro falar de uma mc1amorfose do sagrado e do religioso
on~C: R. ~1rad f~~a do fim do sagrado, iniciado pelo cris1ianismo como quanto da sabedoria e da ascese. O que me impressiona é que
rel1g1õo nao-sacnf1cal,. cf. Dcs choses cachées depuis la /ondation du ela circunscreve um domínio intermediário entre o da ver-
monde, Gr~el, Pa.n s, 1978. Isso só é possível porque ele se atém a dade e o da lei. A "via" é da ordem da vida. Por i~o, se
uma. ~nccpç.°~ m~110 unívoca de sacrifício e porque vê na violência
sacrif1cal o unico .1mpul_so do sagrado. Como o atesta a nossa época, quiséssemos equivalente cristão do Tao, creio que devería-
consta tamos a pcrs1s.tênc.a de Sf'l!rado pós-religioso que não se confunde mos falar do cristianismo como reino de Deus.
com o sagrado arcaico das religiões e que não é esgotado pela religião
de Jesus. Mesmo cm nosso mundo ocidental compreende-se cada vez
melhor q~~ o atelsn!º. i;ião é a única alternativa do cristianismo; deve-
mos adm111r a . poss1b1hda~e sempre renascente do pagànismo. CC. M. 1 Lao-tsc, Tao Te King, Le Livre de la voie et de la vertu, trad.
Augé, Le G4me du pagamsme, Gallimard, Paris, 1982. frene. de Claude Larre c· Christus•), 008, Paris, 1977.

258 259
. ,.t:. com referência a esta amplitude de sentido do Tao I. O CRISTIANISMO COMO RELIGIÃO DO tXODOl
chines que me proponho refletir sobre o uso privilegiado
~metáfora da "vian nos textos judaico-cristãos. A primeira
vista é incontestável que, no Novo Testamento (especial- A. O êxodo como símbolo-chave da religião de Israel
ment: n.os Atos) ,. º termo "vian (odos) designa a via por
excelenoa, a maneira de viver dos discípulos de Cristo. ~ 0 O vocabulário da via, como o de caminhada, tem papel
cas~, por exemplo, de At 9,2, onde se lê que Saulo "foi essencial na descrição da vida religiosa e moral dos hebreus .
pedir-lhes cartas... a fim de poder trazer para Jerusalém, O êxodo, a saída do Egito, é a figura mais adequada para
presos, os que lá encontrasse pertencendo ao Caminho, quer atingir a essência da religião de Israel como religião de sal-
homen~, quer mulheres" . Essa linguagem podia ser com- vação, isto é, como caminhada libertadora com e seguindo
pr~dida pel~~ primeiros cristãos de origem judaica, aos Deus, sejam Moisés ou Jesus o guia do povo de Deus .
quais era familiar a halakha judaica enquanto conjunto de Do ponto de vista da história comparada das religiões,
regras de comportamento moral, social e religioso. O termo é interessante notar que a religião de Israel pertence ao
halakha vem de uma raiz que significa "caminhar" .2 tipo de religiões nômades, em oposição às religiões míticas e
mágicas dos países de civilização agrária. Correlativa.mente,
Entretanto seria empobrecer muito o tema do cristia- e à diferença dos deuses agrários, o Deus de Israel é um
nismo como via, se a via fosse entendida simplesmente co- gt1ia que está em caminho e que caminha com seu povo.
mo "conduta de vida" . A imagem da vida (com todos os Temos conhecimento das conseqüências que um teólogo
termos a ela associados, particularmente o de "caminhada") como J. Moltmann tirou disso em sua teologia da esperança
é ~ave que :1º.s ~bre o conhecimento do que há de mais (cf. em particular o capítulo II: " Promessa e história") . Ele
origmal no cnsnarusmo como sistema religioso. Tentaremos mostra que a religião de Israel é essencialmente religião da
por. isso, r~onsti~ a amplitude do tema cristão da via'. promessa, na qual a revelação de Deus está estreita.mente
Creio que isso sena, também, boa introdução a diálogo fe- ligada ao conteúdo da promessa divina referente ao futuro
cundo com o pensamento e a espiritualidade chinese.s. e não a " aparições" de Deus em lugares sagrados, como era
Uma pr~~ª. conclusão, provisória, consistiria em di- o caso nas religiões epifânicas. Isso implica uma concepção
zer que, no cnsnarusmo, o tema da via lembra domínio mais da história muito diferente da das religiões míticas, religiões
vasto . do que o da conduta moral. Mas, ao mesmo tempo, do eterno retorno. Com Israel começa a experiência propria-
d~ é_ mad~quado para exprimir toda a plenitude do mistério mente hist6rica do tempo, de um tempo não definido pela
c:rstao. Nisso ele é mais circunscrito do que o Tao chinês repetiç.ão do semelhante, mas pela tensão para um futuro
sunplesmente porque o cristianismo como sistema religios~ ainda em suspenso. "Sob o amparo da promessa, a realidade
d~ ~ lugar essencial à noção de Deus pessoal e à idéia de não é apreendida como cosmo divinamente estabilizado, mas
cnaçao. como hist6ria na qual é preciso avançar, deixando a estrada
para trás, e caminhar na direção de horizontes novos, ainda
não visto. "4 E o que é notável é que Isr:iel continuou a
3 Para esse tema geral do !xodo, remelo ao artigo: "Exode•, io
Vocab ulaire de théologie biblique, 2~ ed., Cerf, Paris, 1970, col. 423-S;
veja lambém J. Guillet, Thêmes bibliques, Aubier, Paris, 1954, cap. 1:
2 Cf. C. Perrot, •Halakha juive et moral chrétienne: fonctionnc- " Th~mes de l'Exode•; A.·M. Bcsnard, Par un long chemin vers toi.

96). Cerf, Paris, 1978, pp. 35-SJ.



ment et réf~rcnce •, in E.criture et pratique chrétienne Lcctfo Divina• le pê/erinage chr4tien, (•Foi Vivante• 184) , Cerf, Paris, 1978.
4 J. Moltmann, Teologia da espe.ança, Loyola, São Paulo, (1971) .

260 261
~terpre_tar as suas outras exper:ências históricas, como a do Senhor. Quando Abraão deixou Ur, na Caldéia, ele o fez
rnstalaçao em Canaã, o exfüo, os conflitos com outros po- parque tinha encontro marcado em outro lugar com o Deus
vos, à luz da experiência religiosa decisiva do êxodo como cujo chamamento ouvira. Quando Moisés deixou o Egito,
caminhada com Deus através do deserto. foi para que Deus entrasse em diálogo com seu povo no
. Antes de Moltmann, o filósofo E. Bloch sentiu-se en- deserto. Quando Esdras deixou Babilônia, foi porque não
tusiasmado po.r essa_fermenta~ão do presente sob a pressão suportava mais não poder contemplar a face de seu Deus
de P.romessa 31.Dd~ nao cumpnda, que ele descobria ao longo no templo de Jerusalém.
da li~e~~tura b!hlica. Também para ele a religião de Israel
é religiao do exodo e da esperança. Mas segundo a her-
menêutica subversiva usada por ele em Atheismus im Chris- B. A lei como caminho do homem
tentum, trata-se de êxodo revolucionário: o êxodo dos ju-
deus se muda no êxodo de Deus mesmo, isto é, na vinda de Quando se estuda o vocabulário da via no Antigo Tes-
J?eus ~o homem, da qual Jesus, o Filho do Homem, é a tamento, constata-se que o termo hebraico derek designa
figura msuperável.s tanto a via de Deus, ou do Senhor, como a via do homem.
. ~o começo dessa reflexão sobre o cristianismo como Pode-se então fazer um confronto com o Tao, que significa
via, é lmpor~ante fazermos imediatamente referência ao êxo- simultaneamente a "via do céu" e a "via dos santos"?
do. ~m efeito, todas as relig'ões, todas as sabedorias, todos Concretamente, a "via do Senhor" evoca a maneira pe-
os sistemas morais r~c>rrem à metáfora da "via" para desig- la qual Deus se pôs em caminho à frente de seu povo para
nar conduta de s:u~ d~scípuJos. Não se pode falar da religião libertá-lo da escravidão do Egito ou do exfüo em Babilônia.
de I.srael e do cnstiarusmo como " via", sem interpretá-los a Os textos bíblicos sobre o tema da "caminhada" são muitos.6
parur do acontecimento decisivo do êxodo. Isso significa Baste-nos citar o salmo 68,8: "Ó Deus, quando saíste à fren-
ultrapassa~ Jogo uma acepção puramente moral da via . A via te do teu povo, avançando pelo deserto, a terra tremeu ... ",
a ser se~da pe]~s homens é inseparável da via do Senhor e o salmo 99,7: "Falava com eles da coluna de nuvem ... "
como gu1~, e a via como experiência histórica do êxodo só Essa coluna de nuvem que guiou os hebreus pelo deserto
tem sentido como prefiguração escatológica da caminhada foi identificada com a Sabedoria de Deus pelo livro da Sa-
de todos os homens para a consecução do reino de Deus. bedoria: "Aos santos deu a paga de suas penas, guiou-os
Quando! atendendo ao chamamento de Deus, Abraão se pôs por caminho maravilhoso: de dia, serviu-lhes de sombra e,
em caminho (G? 12,1-5) , sem saber para onde ia (Hb 11, à noite, de luz de astros" (Sb 10,17).
8), com;çou a lmensa aventura do povo dos crentes cami- Mas, de modo mais geral, o termo "via" serve para
nhando nas pegadas de Deus". Como o diz magnificamente designar as vias misteriosas do Senhor, isto é, a sua maneira
o autor da epíst~la aos H~breus: "Na fé, todos estes morre- de se conduzir para salvar os homens. Assim, mesmo depois
r~, sem ter obtido a realização da promessa, depois de tê-la de ter chegado à Terra prometida, Israel devia continuar a
visto ~ saudado de. longe, e depois de se reconhecerem es- andar nas " vias do Senhor". Isso foi poss(vel porque Deus
trangeiros e peregr10os nesta terra. Pois aqueles que assim revelara suas vias a Moisés. "Javé, qu_s: faz obra de justiça
falai;n d~monstram claramente que estão à procura de uma e que faz justiça aos oprimidos, revelou seus desígnios {suas
pátria... ( Hb 11,13-14). Na verdade eles estavam à pro-
cura não só de uma pátria, mas também' de Alguém, do rosto 6 Encontram·se muitas referências cm S. Lyonnct, •Per un in-
contro tra Cristiancsimo e Cina: li Cristiancsimo presentato come
' Via' (Tao) o come ' modo di vila'•, Florença, abril de 1978, pro
.5 CC., acima, cap. .5. manuscripto.

262 263
vias_) a M~isés, e aos filhos de Israd seus altos feitos.• a caminhada pelo deserto, Jesus é o novo Moisés que chama
Assun, a lei pa~sa a ser a v~a obrigatória do homem, porque os homens para segui-lo no caminho da cruz, que leva ao céu.
antes da é a via de ?cus, isto é, a expressão do comporta- Não chegaríamos ao fim se quiséssemos enumerar o
mento de ~s. Aí Já encontramos o tema da imitação de uso constante, feito pelo Novo Testamento, das imagens do
Deus. _A 1:1 com.po:t.8• sem dúvida, preceitos externos, mas caminho, da subida, da caminhada para chegarmos ao coração
d~s nao sao arbitrar1os: estão a serviço da identificação do do mistério cristão. Viver como discípulo de Cristo é fazer
agu do hom7°1 com o agir de Deus. Obedecer à lei é agir com ele e nele a sua páscoa e o seu êxodo desta terra para
com..o _Deus,_ 1~to é, amar como Deus ama . ~ este o sentido 0 reino dos céus. Desde que Abraão subiu o monte Moriá
~a cucunosao do coração" (d. Dt 1O,16) . Seria preciso para sacrificar Isaac ( Gn 22 ), pode-se dizer que, na religião
citar o longo texto de Dt 10,12-19: "E agora, Israd, que é de Israd como no cristianismo, a idéia de caminhada, parti-
que Javé teu Deus te pede? Apenas que temas a Javé teu cularmente a de subida, está associada à idéia de sacrifício.
D!us, andando em seus caminhos, e o ames, servindo a :b o sentido de nosso termo moderno : peregrinação. Quando
Javé t~u Deus com todo o teu coração e com toda a tua Moisés procurou libertar seu povo do cativeiro do Egito,
alma ... apresentou essa fuga como peregrinação e disse ao faraó :
Em suma, o homem da antiga aliança era livre para es- "Deixa-nos ir pelo caminho de três dias de marcha no de-
colher entre ~uas vias. De um lado, o caminho da vida ( Pr serto para sacrificar a Javé, nosso Deus" (Ex 5,3 ).
2,19) : o. caminho reto e perfeito, conforme à lei de Deus Também a vida de Jesus deve ser considerada como
que consiste em praticar a justiça ( Pr 8,20) , em ser fieÍ caminho, como peregrinação que parte de Deus e retorna
à verdade ( S_l 119 ,30) , em procurar .a paz (Is 59 ,8) . Do para Deus. Mas essa volta para Deus coincide com a páscoa,
outro, o caminho tortuoso, dos insensatos e dos pecadores com a subida para Jerusalém, onde de consumaria seu sa-
que co:°duz à perdição (SI 1,6 ) e à morte ( Pr 12,28 ) . Essa; criffcio na cruz. O anúncio de sua subida para Jerusalém,
duas .vias se encontram no Evangelho: de um lado, 0 caminho feito três vezes nos sinóticos, é impressionante. "Estavam no
estreito, que conduz à vida; do outro, a vida larga que caminho, subindo para Jerusalém . Jesus ia à frente deles.
conduz à morte (Mt 7,13s) .7 ' Estavam assustados e acompanhavam-no com medo,. (Me
10.32 ). O caminho que leva à glória passa necessariamente
pda cruz. Mas, à diferença dos sacrifícios da antiga aliança,
e. o cristianismo como novo êxodo daí para frente ~ pelo sangue de Jesus que temos acesso ao
verdadeiro santuário. "Sendo assim, irmãos, temos a plena
~ claro que para os autores do Novo Testamento a garantia para entrar no Santuário, pdo sangue de Jesus.
obra ~ed~tora de Cristo é considerada como o cumprimento Nele temos um caminho novo e vivo, que ele mesmo inau-
do _mistério de salvação preFgurado pelo êxodo. ~ a reali- gurou através do véu, quer dizer: através da sua humani-
zaçao ~o novo ~~~ anunciado pelo Segundo Isaías depois dade ... n ( Hb 1o,19 ) .
do exílio em Babiloma. E quando João Batista é identificado Não é, pois, de surpreender se, para os primeiros ou-
com a voz ,,do que clama: "No deserto preparai os caminhos vintes da palavra apostólica, a nova religião, inaugurada por
do . Senhor , ( Mt 3,3), é-o com referência explicita às pro- Cristo, é designada simplesmente como a "via" (odos). É o
fecias de !saias. Como Moisés era o guia de seu povo durante caso no texto dos Atos citado acima, onde o termo "via"
designa não tanto os cristãos como a conduta da comunidade
• 7 .P!rª. comple1ar as referências deste parágrafo veja 0 arti o· dos crentes: At 9,2 (d., aí, a nota "h " de A Bíblia de Jerusa-
Chem1n , m Vocabulaire de tl1'ologie biblique, ci1., 'col. 159-62. g · lém, Ed. Paulinas, São Paulo) . Deveríamos citar também At
264
265
! 9 ,9, onde .lemos, a propósito da rusputa de Paulo com os de Cristo. Trata-se de andar no Esp!rito, que é a lei nova
J~deus ~a smagoga de Efeso, que "alguns, porém, empeder- do cristão (d. Gl 5 ,16: "Andai sob o impulso do Esp!rito",
bl~i~s.. ~ mcrédulos, falavam mal do Caminho diante da assem- e 2Cor 12,18: "Não caminhamos no mesmo Esp!rito?").
Como diz C. Perrot em seu estudo sobre a halakha judaica
.. Ao fim dessa ~rimeira consideração sobre o tema do e a moral cristã, "agora o cristão não é mais remetido à lei,
~odo, chegamos: pois, à certeza de que a metáfora da via mas à moral cristã, "agora o cristão não é mais remetido à
nao é uma metáfora ~ntre outras, mas símbolo-chave que lei mas à comunidade do Esp!rito e a si mesmo enquanto
abre para nós o conh~ento do cristianismo como mistério in;pirado pelo mesmo Espírito, ~rqu~ agora? Esp~ito está
pascal. ~eterem~s pnnapalmente a idéia revolucionária de no princípio da conduta moral :ª Ainda existem m~da­
~empo, mtroduztda pelo judeu-cristianismo. A diferença do mcntos do Senhor". São Paulo amda faz apelo à autondade
ornem d~ ~undo antigo, submetido à lei do destino, isto da Escritura, à lei e aos profetas, ainda faz referência a tal
é, à repetl~ao do mesmo, os membros do novo povo de ou tal palavra do Senhor. Mas na halakha cristã o disdpulo
Deus .anteo~am, nas s~das da história, o refoo de Deus, é remetido à sua própria consciência em solidariedade com
que 811lda nao se manifestou em plenitude. Trata-se, por- uma comunidade que vive do Esp!rito do Senhor. A norma
tant~>, de com~dade em êxodo que exerce função anti- do comportamento moral não é mais a lei ou esta ou aquela
destino. em relaçao a toda a família humana, submetida à palavra da Escritura, mas o comportamento do Senhor. Co-
dura le1 do tempo, que passa e que caminha para a morte. nhecemos a aparente suficiência de Paulo, que escandalizou
alguns: "Sede meus imitadores, como eu mesmo o sou de
Cristo" (lCor 11,1).
li. CRISTO COMO VIA E A IMITAÇÃO DE CRISTO Estamos, pois, na presença de moral aberta •. ~âmica,
na qual cada um se acha na obrigaçã? ~e ~roduzll' ~scur5?
moral sempre novo, a partir de sua lIDJtaçao de Cnsto. Fi-
. Cristo não é somente aquele que sobe a Jerusalém para nalmente, para o cristão, a "via por exc~ência" ~!Cor 12,
realtzar lá sua passage~ deste m~ndo para o Pai (Jo lJ ,l); 31 ), muito superior aos carismas, é a ~1a da canda_?e (d.
ele é também o Caminho, a Via, a Peregrinação. Os he- Rm 14 15 : "andai no amor" ) . Ora, a lei do amor nao pres-
bre~s andavam na lei do Senhor (SI 119,1 ) para ir para creve ~ada de determinado. A pergunta: "que devo fazer?",
a vida. ~gora os rusclpulos devem andar em Cristo ( Cl 2 6) a resposta do cristão não é ditada antecipadamente. Compete
pa~a rea1.1Zar se~ êxodo. d.efinitivo para o Pai. A lei se torn~u, a ele inventar sua própria via, procurando qual é a vontade
pois, pesso~ viva. Adiv.mhamos as conseqüências de seme- de Deus nas diferentes situações e discernir o que o serviço
lhante n?v~dade, se qwsermos apreciar a originalidade da ao próximo reclama concretamente hic et nunc.
moral crista. No. fun?o, trata-se de ver em que se transfor-
mou a h.ala!eh': Judwca. em relação à pessoa de Jesus. _e 0
tema da tmJtaçao de Cnsto. B. Da imitação à filiação
Quem compreende essa interiori1.ação necessária da lei
A. Caminhar seguindo a Cristo
de Cristo (Gl 6,2) como " lei do Esp!rito" (Rm 8,2), como
"lei da fé " ( Rm 3 ,27) e como lei do amor não corre o
.E sobretudo são Paulo que usa o verbo peripatein,
andar, para exprimir a conduta do cristão no seguimento 8 C. Perrot, art. cit., p. 48.
266 267
risco de compreender a imitação de Cristo como a insípida
reprodução de modelo ultrapassado. . - somente mestre de sabedoria e que nós não
Cristo oao é disctp
os apenas , ulos . Cristo é o dFilho
. bem-amado do
A esse respeito, a ética paulina nos põe a salvo do le- so~ nós somos filhos com ele, co-her CJ.ros.
galismo e do moralismo. ~ por isso que eu dizia, no começo, Pai, e ntra a ilusão de reprodução maníaca ?este ou daquele
que não se pode usar o tema do "cristianismo como via• Co da vida de Jesus é necessário reencontrar a
em sentido estritamente moral. Lutero percebeu perfeitamen- fatod á ou mem6ria
gesto
· da . de Crts · to 'no sentido paulino.
d u Paulo
te as ambigilidades e os perigos do tema da imitação de au0 oa · pelar para a memória de Cristo scgun o a carne,
dmir -
açao! por .. ·~
Cristo para o cristianismo como "religião da graça". Ele - aceita a exem
na · judaico-cristã. Pode causar a
queria que ele estivesse sempre subordinado à justificação à manelfaPaulo não se refira a nenhum episódio da VL
pela fé somente. Podemos citar esta bela expressão: "A plo, que " aJ a palavra precisa do Senhor, CC?m
imitação
9 não produz filhos, mas a filiação produz imitado-
res. " Em seguida, os teólogos da Reforma mantiveram-se
de J~usd~ ~ef:~cia8:°" divórcio (!Cor 7,10). EI; é ló~tco
exceçao . cl . dado claramente por ele: Por tsto,
sempre reservados a respeito da idéia de imitação. Eles pre- c6m o prm ~Lo ené un nhecemos segundo a carne. Mesmo
ferem distinguir entre nachahmen e nach/olgen. O primeiro doravante a rungu m co ·á - nhe
se conhecemos Cristo segundo a carne, agora J nao o co -
deve ser entendido no sentido de imitação puramente mo-
. " ( 2Cor 5 16 ) . Que significa isso senão que não
ral. O segundo evoca a comunidade de destino, a partilha cemos ~:s:;i ar-nos d~ maneira nostálgica ao Jesus passado
Intima entre o Senhor e seus discípulos. Em seu livro Le devem rgPáscoa? Em outros termos, a verdadelra me--
Prix de la Gráce, D . Bonhoeffer sublinha que a Nach/olge de antes ª od - d que se passou em
é "exatamente o contrário do legalismo" porque ela é a de- mória de Cristo não ~ r~pr- uçao do E !.rito ·de Cristo
~taçao
de Nazaré. Ela e cnaçao nova o sp . . _
dicação só a Cristo, isto é, "a ruptura total de toda progra- Jesus . d sempre vivo em sua Igreja. Entender a
mática, de toda abstração, de todo legalismo".10 ressuS?ta o, n·do de são Paulo é conceber segwmento
de Cns to no sen ta certa
Cristo é, pois, mais do que figura exemplar. Ele é fi- aJ de Jesus que os cristãos encontrem a _respos. -
gura originária ou fundadora . Daemos que é preciso subs- ~ue o Esp!rito de Jesus lhes inspirar cm funçad:f• ·e~·~
tituir o tema da imitação pelos da participação e da genea- históricas novas. Seguir a .les~s é revesttr-s~s ose risc~s daf
logia. "A semelhança entre Cristo e o cristão não deve ser 13 ) com todas as consequenoas e com t~ além di
externa, como entre cópia e modelo, mas interior, como en- dec~rrentes. O tema da imitação nos confuma, sso,
tre principio e efeito. " 11 A idéia de imitação pode ser sufi- que uma cristologia ~utêntica nãbéo de~de s~ d:a:~~~á~:
ciente na perspectiva de moral de heróis. No cristianismo, rico, mas que se alimenta tam m o segwm
13
a imitação só pode ser conseqüência da filiação. Para o cris-
tão, seguir a via de Cristo significa levar a vida de filho de de Jesus. -cerência à imitação. de JCristo no
Em t odo caso, com r º' -
Deus segundo o Espírito de Cristo. Em outras palavras, .d u1in podemos concluir que seguir a esus nao
Cristo é mais do que modelo exterior. Ele é lei atuante, que senti o pa o, . d . voluntarista e onerosa
consiste em repr<?<1uzlf e manabemd -se à vida de filho
realiza em nós o que nos atrai nele. Dizemos ainda que um modelo exterior, mas em an onar

9 ln Ep. ad Gaiatas, ed. de 1519, W . A. li, p. 518, citado por F. 12 Cf. C. Perrot, • L'~am nbe n6o-testamentaire• in Rev. m~
1 37 Para • retomada de
RefouJ6, • 1~ comme ttUrence de J'agir dcs cbtttieiu•, in tcriture /'Institui Catholique de Pans 2• 1982 •. P~2 ·do. tema tradicional da
dema, P<>6.ti~ d ~o m~o ::~d';!°o, vivamente a obra sugestiva
f
et pratique chrilienne, Cerl, Paris, 1978, p. 201.
10 U. Bonhoeffer, Le Prix de la Grtke, Neuchltel, 1967, pp. 25-6, via na espmtua ' a ~ cns ª: Paris 1982.
citado por F. RefouJ6, art . cit., p. 20J.
de M. Bellet, La Vo1e, jeuil, • ur /es ordres religieux. trad. franc.
de ~etz, . '! tem!')s• ~• Paris• 1981, pp. 32-3.
11 F. Refoul6, ibid., p . 222.
13 Cf. J.·B.
e· Problemcs v1e religieuse
268
269
que Cristo quer levar em cada um de nós. Seria, todavia, O tema da imitação de Cristo, por .m~ ~ublime que
enganar-se sobre a natureza da imitação de Cristo com1'ren- . cheio de ciladas. Ele nos leva a disunguir h<:m ~~
der a disponibilidade ao impulso do Espírito como ausência ~cJª•~ca ão imaginária com Cristo de processo de 1dentifi-
de iniciativa. Se imitar a Cristo não é copiar mecanicamente idcn ç . . o da diferença e da semelhança. Como
modelo passado, mas ser contemporâneo de Cristo sempre - que aceita o JOg · é
caçao tende à identificação mais absoluta, isto. •
vivo, a via cristã leva a uma criatividade imprevislvel na no a:~:~~e a uma fusão mortal, o único meio d~ res~tar
ordem da prática cristã. Trat~se da palavra da Escritura sem 'dade ' do outro e de ser recooheci~o na idennda~c
ou da vida de Cristo, elas só podem ser atualizadas hoje
mediante interpretação criativa.
a ~te.ri é aceitar a função iostituinte da linguagem. A u;;-
pr prta é meio não só de comunicação, mas também e
Nós somos precedidos sempre pelo exemplo de Cristo, guagcm . . . d .. n para
mar consciência do próprio limite, e ~er umd cu nh .
que é a referência originária de toda a prática cristã, mas to tro de existir cm função do dese10 e o reco ect-
a transmissão desse exemplo é sempre histórica, isto é, está ~n~: de ' um outro. Crispar-se na identificação ~m outrd,
sempre em relação com a prática concreta das pessoas em m espécie de mimetismo maníaco, é um meio ~ctu:Pa .º
tal momento da história. O cristão não está, pois, condenado d~:CUsar os próprios limites; é fechar-~e. no seu imaginário
ao ideal impossível de reproduzir o que Cristo fez. Ao con- e não chegar à própria verdade de su1e1to dependente do
trário, ele está entregue à sua consciência, iluminada pelo
Espírito, para inventar o que Cristo faria boje. reeonhecimento de outrem. .
Concretamente, isso significa que nã<? há seguimento
d Jesus sem escuta de sua palavra, r~ebida como dom e
e. o seguimento de Jesus como vocação para a liberdade ~amamento, e sem participação na vida de Jesus, que é
caminho para o Pai.
Insistindo na dimensão teologal da imitação de Cristo, A palavra de Jesus é palavra de filiaç.ão. Nele fuhr
minha intenção principal foi denunciar os perigos de con- ele invoco Deus como Pai, e sou reconheado como. o.
temporaneidade com modelo passado que nos dispensasse M~s nunca termino de torn:ir-me filho . Tornar-se ~ºp~
de retomada criativa na primeira pessoa, em nome do Es- aprender a respeitar a alteridade do que chamamos. d
pírito de Jesus. Não conhecemos mais Cristo segundo a nosso " e viver a própria semelhança cor:i J?eus, aceitan o
carne, isto é, se assim podemos dizer, de maneira passadista. dif a ~ pois aceitando a dependenoa, tomar con~-
Terminando essas reflexões, deveríamos ainda mostrar ~ênc~:d: ~ró~ria iclentidade filial. e s~r remetido . à próp~a
que o seguimento de Jesus tem seus riscos, os mesmos que insubstituível responsabilidade histórica. O seguimento e
a liberdade de filho de Deus. O fascínio por modelo inimi- Jesus coincide sempre com o chamamento para uma voca-
tável é algo mortífero: leva à alienação e à paralisia, com a ção própria na Igreja. Esta vocação te?1. sempre ~d cs~­
consciência desesperadora de ser apenas cópia inadequada. tura ao mesmo tempo, mística e pol1t1ca no ~do mais
Paradoxalmente, direi que a nossa verdadeira liberdade ampÍo.1• Mística, porque nunca t~mino de apr~ báar me~
coincide com a morte de nosso desejo de semelhança imagi- " tornar-me filho" em Jesus; poliuca, porque nao segui
nária com Cristo. Com a imagem fascinante de Cristo a ser
imitada dá-se o mesmo que com a projeção da imagem pa- 14 Co m efeito, o seguimento de Jesus tem, funmtdamt.ecnotaelmepontlelt"1co
um
terna para a onipotência do desejo do menino. ~ somente . · 1 é · ultaneamente s1 ...
componente soc1opollucoh: ~ eçã sunque a teologia do seguimento de
renunciando a uma identificação mortal com o pai por meio Poderíamos d izer, sem esna º•
Jesus é teologia política. CL J.-8 . Metz, op. c1t., p. 34.
de conhecimento mútuo que o menino será alguém um dia.
271
270
mcnto de Jesus fora de contexto histórico e social dado, no Ili. O CRISTIANISMO COMO ORTOPRAXIA
qual devo continuar o combate de Cristo contra todas as for-
mas de morte.
O problema consiste cm não reduzir o seguimento de Falar do cristianismo como via é, parece, privilegiar o
Jesus a pura interioridade, nem a cumprimento puramente . ·arusmo como prática reta, e não como mensagem dou-
ético. Para isso é necessário tender a reproduzir na própria cr~s~l conteúdo dogmático ou saber. Há uma palavra. que
.e
vida a via de Jesus como "caminho para o Pai" . necessá- ~ f~rtuna, desde algum tempo, para designar esta ~cn-
rio, com efeito, ver toda a vida de Jesus como um grande - saber ortopraxia. Ela tem a vantagem de sub~ar
.e
movimento de retorno ao Pai . exatamente isso que é lem- qsao, ª- ...,;,,'te ortodoxia cristã
ue nao........., . que não vá dar numa
· dpránca.
brado pelo autor da epístola aos Hebreus, aplicando a Jesus Mas ela encerra também o nsco de p~~rar mwto cpressa
a palavra do salmo 39: ssívcl aproximação com ou~as religlOe~ , pondo-se entre
po " teses o conteúdo da fé cristã. Gostaria de lembrar, de
"Tu não quiseste sacrifício e oferenda. ~erado, que, em cristianismo, é imposs~vcl opcr fé e orto-
Tu, porém, formaste-me um corpo. praxJa . e , do outro • que o termo ortoprax1a bcrdesigna, um
. traço
Holocaustos e sacrifícios pelo pecado totalmente próprio da religião cristã, a sa_ , a pratica evan-
não foram do teu agrado. gélica, justamente o que a metáfora da via quer evocar.
Por isso eu digo:
Eis-me aqui, - no rolo do livro
está escrito a meu respeito - A. O sentido de "fazer a verdade,,
eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade•
(Hb 10,5-7).
Procurou-se recentemente justificar o p~ma~o ~ or-
to raxia sobre a ortodoxia a partir da fórmula JOanma fazer
Como homem, Jesus se definiu por sua obediência à a ~erdade" (Jo 3,21 ). Houve quem quise~sc ver aí o funda-
vontade do Pai. E a prova suprema de sua obediência de mento bíblico de uma concepção pragmatista da vcrdad~ se-
Filho foi a aceitação da morte. A sua morte não foi so- do a qual seria verdadeiro só o que fosse operatório e
mente a conseqüência de seu combate pela justiça, em soli- ~ificado pela ação. Segundo uma exegese corrcnt~, mas
dariedade com os mais abandonados. O oferecimento de muito banal, a fórmula de são João deve ser entendida da
sua vida exprime também seu movimento de retorno ao prática moral inspirada pela fé . Mas, co!;1o o mostrou I,;
Pai ..e porque existe pelo Pai e para o Pai que ele dá a de la Potterie em seu notável estudo, o fazer a verdade
sua vida cm retribuição, como contradom. Numa troca de joanino não designa a ação m~ral dod cr/ené~e ~mo co,~c­
amor, o contradom que vai até ao dom da própria vida qüência da fé, mas a própria genese a . contran..?,
é a resposta a um amor gratuito que nos precede. A aceitação não se compreenderia a segunda parte do versículo de sao
da morte foi , pois, coisa muito diferente de obediência he- João: "vem para a luz". Que é,, vir_ para ~ luz senão chegar
róica a uma ordem do Pai. Foi a expressão perfeita de seu à fé? Para são João, o "fazer nao des~gna as _?bras en-
amor e de seu abandono filial ao Pai. "Não existe maior amor quanto distintas da fé, como na perspectiva de sao Paulo,
do que dar a vida pelas pessoas amadas." E , paradoxalmente, mas a própria obra da fé. Basta comparar com outro texto
aceitar a morte, isto é, o que há de mais desumano, é a paralelo: 6,28-29. Os judeus perguntaram: " Que faremos
última palavra da liberdade.
IS J de la Potterie • 'Faire la v~rit~': devisc de l'onhopraxie
ou invitation à la foi?", Ín Le SupplémenJ 118, 1976, PP· 283-93.
272
273
para trabalhar nas obras de Deus? n Respondeu-lhes Jesus: · de Cristo é não só propor novas interpretações do evento
"A obra de Deus é que creiais naquele que ele enviou . n r . J tmas
cr:sto, Otamb é m prodUZlf . novas f'1guras bis ~Óricas
. dº- cris-
.
Assim, longe de nos apoiar em são João para opormos tianismo segundo os luçares e os t:nipos. Ess:i conce~o da
a confissão da fé à práxis, devemos dizer que a práxis por ática cristã é inseparavel de noçao da verdade que nao se
excelência, para ele, é a própria obra da fé. Fazer a verdade Pdentlica nem com uma plenitude do ser na origem, !1em
é vir progressivamente para a fé. Vê-se, pois, que a expres- ~m uma figura histórica. A verdade está, antes, sob ~ signo
são "o cristianismo como vian pode ser entendida não s6 de um devir. Ela é advir permanente. ~ este o sentido da
de conjunto de preceitos a seguir, mas também do próprio verdade bíblica como realidade de ordem escatológica. 16
caminho da fé . A este respeito é muito interessante notar, Vimos acima que não é possível opor, em ·são João,
em são João, uma equivalência entre "caminhar" e "crern. prática da fé e prática do amo~. A própria fé é obra ... M~s,
Que é crer senão "caminhar na luz" (d. Jo 12,35-36) e justamente, a fé é longo caminhar que compreende ván~s
"caminhar na verdaden (2Jo 4 e 3Jo 3-4) ? Para são João, etapas antes de chegar ao estad~ ad~lto'. "estatura da pleru-
como para são Paulo, a via por excelência é a via do amor, tude de Cristo n (Ef 4,13 ). Existe mstinto da verdade, fé
mas de amor sempre iluminado pela fé (d. a fórmula tão antes da fé explícita, que nos permite compreender por que
rica de Gl 5 ,6: "a fé agindo pela caridade n) . a prática evangélica não é monopólio exclusivo dos que são
membros da Igreja e que professam fé explícita em Jesus .
Pode suceder que alguém, sem o saber, seja discípulo
B. O cristianismo se define primeiramente de Jesus num sistema religioso diferente do ~ri~tianismo ~­
pela prática evangélica mo religião histórica. ~ difícil, por isso, deftnlf a especifi-
cidade cristã por ortodoxia doutrinal ou mesmo por ortopra-
Depois de termos denunciado falsa interpretação do xia no sentido em que houvesse uma única via cristã certa.
"fazer a verdade" joanino, estamos mais livres para afirmar ~ impossível definir a via evangélica a priori.. A novidade do
que atrás do termo " ortopraxia n se esconde uma verdade comportamento cristão não se mostra necessartamente em seu
muito profunda, concernente à essência do cristianismo. ~ conteúdo. Ela é, antes, modalidade particular do agir hu-
certo que, com relação ao contexto religioso do mundo greco- mano em geral. Mais do que " espécie n cristã, há uma ma-
romano, o cristianismo triunfou não como religião da verdade neira de seguir a Jesus, de praticar as bem-aventuranças. E a
( aletheia) ou do mistério, mas como religião do amor ( aga- resposta cristã é tão imprevisível como o Espírho de J~sus,
pe). ~ certo que não se pode opor a prática da fé à prática que não pertence só aos cristãos. Não devemos, por isso,
da caridade. Mas é incontestável que o cristianismo se de- surpreender-nos se muitas vezes recebemos lições do Ev~­
fine primeiramente por prática, a prática evangélica, e não gelho, seia de ateus, seja dos qu~ pertencem a outra~ rel,!-
por saber ou por adesão a corpo de verdades. giões . "Felizes aqueles que acreditaram sem terem visto ,
A luz de concepção dialética das relações entre teoria disse Jesus. "Felizes aqueles que viveram do Evangelho ~cm
e práxis, entender o cristianismo como via ou como orto- o saberem n podemos dizer hoje. Alegremo-nos se muitos
praxia é compreender que o agir cristão não é simples con- seguem a vida de Cristo, exercem a sequela Christi, antes de
seqüência ou campo de aplicação de verdade doutrinal já aderir ao conteúdo dogmático da fé cristã e mesmo antes de
totalmente constituída. ~ a própria prática cristã, que é não reconhecer explicitamente Jesus como Senhor. Assim, falar
só reveladora, mas também criadora de significações novas do cristianismo como via é sugerir que o cristianismo é mais
quanto ao conteúdo da mensagem cristã. Já dissemos, a pro-
pósito do problema hermenêutico, que agir segundo o Esp{- 16 Cf., acima, cap. 3.

274 275
·au·vidade o cristianismo não é mais via aberta
do que religião particular, definida pelos dogmas, por culto, -a.A'as sem cn ' · " · odal
ln ' futuro imprevisível, e já é infiel à sua .extstenaa ~ ·
por critérios de pertinência: ele é de todos os que caminham
para a luz. para Seguir a indicação da metáfora da via a ~ropós1to do
. · · é compreender que a herança recebida é revela-
cr1suanismo af.
de futuro a ser feito . Seria exagero umar que:,.~
CONCLUSÃO 1~:ªoel a si mesma, a religião cristã só poderá ser a religiao
do futuro?
Para darmos conclusão a essas muito breves considera-
ções sobre o cristianismo como via, lembremos a palavra pro-
funda de IGerkegaard, quando ele nos diz que não pode-
mos nunca pretender ser cristãos, mas que devemos sempre
nos tornar cristãos. A metáfora da via, como também as
comparações neotestamentárias da semente, do germe, do fer-
mento, procura lembrar a realidade, e realidade essencialmen-
te dinâmica, do reino de Deus. Não seria possível fazer apro-
ximação dessas comparações com o vocabulário vitalista e
organicista do Tao? Como o reino de Deus, também o Tao,
no ponto de partida, é semente quase invisível (d. cap. 67:
"Todos dizem que a minha via é grande, mas de aparência
. ... ,, )
triste
Devemos falar, ao mesmo tempo, do devir da existên-
cia cristã individual e do devir da Igreja como povo de Deus.
Estamos sempre em caminho para plenitude que ainda não
foi manifestada, a do reino de Deus. Em função dessa di-
mensão escatológica, todas as etapas do caminho no segui-
mento de Cristo só podem ser provisórias e a serem ultra-
passadas. Isto vale também da Igreja de Cristo como figura
histórica. Há um advir permanente da plenitude do Evan-
gelho como realidade escatológica. Por isso as objetivações
dessa plenitude na ordem da verdade, como na ordem do
amor, são realizações sempre inadequadas, que suscitam no-
vas interpretações e também novas criações cm relação com
a prática histórica. Enquanto histórico, o evento Cristo está
definitivamente no passado. Mas Cristo está sempre vivo e
continua a exercer a sua senhoria sobre toda a história.
Além disso, em virtude do dom permanente de seu Espírito,
há atualização sempre nova do que foi manifestado nele du-
rante sua existência histórica . Sem referência ao evento fun-
dador que é Jesus, o cristianismo se toma insignificante.
277
276
promoção dos direitos do homem é exigência do Evangelho
e deve ocupar lugar central no ministério da Igreja."
13 A história dessa reviravolta já foi escrita muitas vezes.
Aqui eu gostaria apenas de inter~ogar-me sobre a s!gnificação
POR UMA INTERPRETAÇÃO CRISTÃ teológica dessa mudança. Mas sei que se há domíruo no qual
DOS DIREITOS DO HOMEM não se pode julga.r abstratamente, em nome de princípios
tcol6gicos, é o dos direitos do homem. Podemos espantar-nos
e mesmo falar em escândalo diante da h!ntidão com que a
Igreja tomou consciência das implicações de sua mensagem.
Mas, sem querer escusar a Igreja, não podemos esquecer os
contextos sócio-históricos terrivdmente complexos nos quais
Podemos afirmar, sem reticências, que a Igreja católica a doutrina dos direitos do homem tomou consistência.
se tornou, neste último quartel do século XX a maior cam- Começaremos dando alguns pontos de referência deci-
peã ?~s direitos ~o homem . Isso vale especiaÍmente para 0 sivos no que concerne à história ambfgua dos direitos do
J>?ntif1cado de Joao Paulo II, que, em encíclicas e inúmeros homem como foi testemunhada pela prática e pela teoria da
discursos, quando de suas viagens, fez da defesa do homem Igreja católica. Em seguida, interrogar-nos-emos sobre as
e de seus direitos um dos temas principais de seu ensina- relações entre a Carta dos Direitos do Homem e o con-
men~o. ~~s .ª.virada decisiva na evolução do pensamento da teúdo da revelação bíblica. Será a ocasião de nos perguntar-
Igreja foi 11llc1ada por João XXII! e pelo Concílio Vaticano mos se as três grandes religiões monoteístas não têm respon-
II. Basta lembrar o acontecimento que foi a encíclica Pacem sabilidade histórica urgente com relação à defesa e à pro-
in terris, que se abre com uma verdadeira carta dos direitos moção dos direitos do homem.
e ~everes do homem, ou ainda a célebre Declaração sobre
a liberdade religiosa, do Vaticano II, que reconhece solene-
mente a todo homem o direito de escolher livremente a sua
religião. 1. HISTORIA AMBIGUA
Quanto caminho percorrido depois do Syllabus de Pio
IX, que co~denava, sem apelo, a proposição seguinte: "Todo
hom~ é hvre par~ abraçar e professar a religião que a luz A mensagem de Jesus é essencialmente mensagem de
da razao o levar a julgar ser a verdadeira religião" ( Syllabus libertação do homem . Por seu ensinamento e por toda a sua
15, 1864; Dz 2915) ! No século XIX, os papas não ces- vida, Jesus não cessou de reivindicar a dignidade absoluta
saram de lançar o anátema contra as liberdades modernas. do homem, mesmo pecador, diante de Deus e a igualdade
Elas for~ dura ~onquista da consciência leiga, não só con- de todos os homens entre si. Segundo a expressão de são
tra o Antigo Regune, mas também contra a Igreja. PauJo: "Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre,
Retomando o título de uma obra de J.-F. Six, é muito não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em
po~co escrever: do Syllabus ao diálogo. Deve-se dizer: do Cristo Jesus" ( Gl 3 ,28). Se é verdade que devemos pro-
anatem_a .à adesão e à promoção dos direitos do homem. curar o fundamento teológico dos direitos do homem no
Dos dir~tos do homem não se diz mais que são tolerados tema bíblico do "homem imagem de Deus n ( Gn 1,26), é
pela Igre1a, porque des se tornaram exigência do Evangelho preciso dizer que a pregação de Jesus radicalizou esse ensi-
segundo a afirmação explícita de Paulo VI em 1974: "Á namento. No centro da pregação de Jesus está a proximi-
278 279
dade do reino de Deus , isto é, a salvação total e final do rdação à concepção dos direitos do homem no mundo anti-
homem. "Ora, isso significa que Deus faz prevalecer no . Muitas vezes a Igreja esteve em conflito com as pre-
mundo seu reino, seu 'direito divino', tomando partido pelo ~sões do poder imperial, na defesa da dignidade de todo
home~, tomando em suas mãos a causa perdida do homem, homem - mesmo escravo - e da igualdade de todos os
P.ara. libertar e salvar o homem. n i Jesus é o libertador mes- homens. Embora a noção de liberdade religiosa como direito
siânico que, em nome dos direitos de Deus toma a defesa inviolável da pessoa ainda não estivesse explicitada, pode-
dos fracos, dos oprimidos e dos pobres. Sa~os, por outro mos dizer que, nos primeiros séculos da Igreja, milhares de
l~do, pelas narrações evangélicas, que o engajamento deci- cristãos foram mortos em defesa de sua liberdade religiosa.
d1do de Jesus em favor dos humildes, dos marginais, dos Com a aliança, no começo do século IV, entre Constan-
fora-da-let, dos publicanos e dos pecadores provocou 0 es- tino e a Igreja, começa um novo destino histórico do cris-
cândalo dos justos. Essa atitude subversiva foi até ocasião tianismo. ~ o começo de um verdadeiro césaro-papismo e
de seu processo e de sua morte na cruz. da chamada "cristandade" , embora esse termo' com seu sen-
!vf~s ~omo foi vivida concretamente nos vinte séculos tido sociológico apareça só no século IX. O Edito de Mi-
de crtsttarusmo esta mensagem de libertação e de defesa dos lão ( 313 ) , que promulgou a liberdade dos cultos, perma-
direitos do homem? neceu, de fato, letra morta, e o cristianismo, promovido a
.Achamo-nos diante de duas correntes que coexistiram e "religião do Estado", passou para o controle dos césares
coexistem .na Igreja até hoje. Quero d:zer que sempre po- cristãos. Houve entendimento entre a Igreja e o Estado, e,
d~remos atar o exemplo de cristãos, de grupos m1 de mo- quando a política dos imperadores favorecia a unidade e a
vtmcntos que não cessaram de considerar com a devida se- expansão da Igreja, os bispos achavam natural usar o braço
riedade o ensinamento de Jesus sobre a dignidade sagrada secular contra os hereges e os cismáticos.
de todos os homens. Mas, por outro lado seria ainda mais Eis o julgamento moderno de um historiador: "No pe-
f~cil apont~ .as ~úmeras deturpações do ~sinamento prim.i- ríodo patrístico, a liberdade religiosa se particularizou, pois,
ttvo do cr1sttarusmo, testemunhadas pela prática e mesmo em benefício da Igreja católica. A unidade religiosa, que os
pela teologia da Igreja. Há nisso mistério profundo que imperadores consideravam indispensável para a manutenção
não .depende só da fraqueza e do pecado dos bom~s ou da unidade política, os b!spos a reivindicavam como exi-
de _stmples causas conjunturais. ~ preferível falar cm evo- gência essenoal da fé cristã e não hesitavam cm solicitar a
luçao estrutural. Como foi possfvel que a Igreja, que nor- ajuda do Estado para mantê-la. ni Até santo Agostinho, o
~ente deveria ser a pátria da liberdade, se tenha tomado grande teólogo, justificou o recurso à força para reconduzir
rnuruga da Lberdade? Distinguiremos, muito esquematica- os donatistas obstinados. Foi nessa ocasião que ele inter-
mente, três períodos. precou o compelle intrare da parábola das núpcias (Lc 14,
24 ) para justificar o uso da coação externa a serviço da
única verdade salutar. Uma vez que a verdade revelada cm
A. A aliança da Igreja com o Estado Jesus é necessária para a salvação de todos os homens,
todos os meios são bons para manter os homens nessa ver-
N~o de.vcm~s ~ubestimar, nos três primeiros séculos dade ou para constrangê-los a ela aderir. Vê-se aí a ideo-
da Igreja, a influenoa da mensagem cristã de libertação cm logia da verdade obrigat6ria, que teve conseqüências tão
funestas cm toda a história ulterior do cristianismo. En-
1 J. Blanlc, •te droit de Dieu veut la vie de l'homme. Le problb-
me dcs dro1ts de 1homme dans le Nouvcau Tcstament•, in Concilium 2 J. Lecler, ús Premiers Dé/enseurs de la liberté religieuse, t. 1,
144, 1979, pp. S0.1.
Ccrf, Paris, 1969, p. 18.
280 281
quanto a causa da Igreja coincidia com o interesse dos reia indissociavelmente social e eclesial. O direito .das pessoas era,
cristianíssimos, o célebre axioma "fora da Igreja nenhuma · sacrificado à saúde de todo o corpo sooal: .
salvação" podia servir de aval ideológico para justificar a pais, Essa situação de ausência de liberdade religiosa se pro-
morte de milhões de homens. até a aurora dos tempos modernos. E a Reforma só
Em comparaç.ão com o período patrístico, a Idade M~ }:ge°:acerbar a ideologia da "religião d~ Estado ", ~~-toda
dia era ainda mais intolerante. Tolerava-se, sem dúvida, a intolerância que dela decorre. A ~mdade da rel_i~ Lao se
certa liberdade de consciência no caso dos judeus e dos ara os reis e para os príncipes fator declSlvo de
infiéis, isto é, dos muçulmanos. Mas, em relação aos hereges tornou Ppolítica. Os judeus. e os w·é·
unidade i 1s eram to1erados, mas
e aos cismáticos, a intolerância era absoluta. Do século XI codos os meios eram considerados ?ons Pai:ª amputar os
cm diante, a pena de morte, sempre descartada por Agosti- membros dissidentes, que comprometiam a urudad~ do corpo
nho, tornou-se prática corrente contra os que eram infiéis ecll ·al Podia-se falar avant la lettre, de reconheamento da
es . ' d -àfé ·
às promessas do batismo. No século XIII, o papa Gregório "liberdade de consciência ~, u~a v~ que a a e~ª.º . cris-
IX, de acordo com o imperador Frederico II, instituiu a tã era livre. Mas não havia amda ~herdade religiosa, Já que
santa Inquisição, e o supl1cio do fogo se regularizou contra a obstinação no cisma ou na heresia era pass{vel de morte.
os hereges obstinados e contra os relapsos. A teologia da
época se empenhou em justificar os processos da Inquisição.
Lê-se, por exemplo, em Tomás de Aquino : "(Os hereges e B. O anátema contra o liberalismo
os apóstatas) devem ser constrangidos, até fisicamente, a
honrarem suas promessas e a se manterem no que aceitaram A Revolução Francesa e a Declaração dos Direi~o~ .do
vez por tOdas" (Suma teológica II/II, q . 10, a. 8). Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 178?, lnlCl~u
Mas, para sermos plenamente justos, devemos precisar novo período na hlstória das relações entre a Igre1a católica
que Tomás de Aquino respeita totalmente a liberdade de abra- e os direitos do homem. . . . . .
çar a fé em Cristo, mas a recusa àquele que pretende aban- A Declaração reconhece os direitos naturais, . !Daliená-
doná-la. "Abraçar a fé é obra de vontade, mas permanecer veis e sagrados do homem. Esses . di!ei~os são a ~herdade,
na fé é obra de necessidade" (II/II, q . 10, a. 8 ad 3). a propriedade, a segurança e a res1sten.oa ~ opressao. O ar-
E essa necessidade não era entendida só em sentido moral. tigo 10 precisa: "Ninguém .d~ve ser 1nqu1etado por causa
Justificava-se o uso da violência física contra o herege. Em de suas opiniões, mesmo religiosas, c:ontanto que a .sua ma-
outras palavras, recusava-se ao herege o benefício da boa fé; nifestação não perturbe a ordem. publica es.tab:lecida pela
ele era sempre culpado e, se não se arrependesse, devia lei." E o artigo 11 reconhece "a livre c.o~urucaç~o dos .pen-
desaparecer pela morte, a fim de evitar que a gangrena se samentos e das opiniões como um dos direitos mais preciosos
espalhasse pelo corpo eclesial. do homem". d . .
Essa intolerância nos escandaliza, a nós, cristãos do Qual foi a linguagem da Igreja diante .essa primeira
século XX. Ela está em contradição com a mensagem cristã declaração dos direitos do homem, que parecia plenamente
primitiva. Mas é necessário ressituá-la no contexto político coerente com a verdadeira dignidade d~ ~~soa humana ~o­
e sociológico da cristandade medieval. Ela é a última conse- rno a defendia já a mensagem cristã pnmmva? Por trágico
qüência da aliança entre a sociedade civil e a sociedade reli- mal-entendido histórico, a linguagem dos papas dos séculos
giosa. Diante da ameaça do islã, tratava-se de manter por XVIII e XIX foi a do anátema.3
todos os meios a ordem social da cristandade. A heresia J Cf. a esse respeito: B. Plongeron: *Pourquoi l'anath~me ca-
era mal contagioso que podia infectar todo o corpo, que era tholique aux XVJlc..XfXe si~les?•, in Pro1et 5, 1981, PP· 52-66.
282 283
No breve Quod Aliquantum, Paulo IV pronunciou 0 dade de consciência e qualifica de "execrável• a da liberdade
ann~ema contra a Constiruição Civil do clero, votada em 12 de imprensa. Os mesmos excessos se encontram na encíclica
de Julh~ de 1790, mas con~enou também os redatores da Quanta cura ( 1864) de Pio IX. E apenas um século antes
~ccl_a:_aça~ 1e} 78.9. Ele con~1d~rava que o ªefeito• da cons- do Vaócano II, encontra-se entre os erros condenáveis de-
ntwçao a~ ~ena ~ de aniq~ar a religião católica e, coin nunciados pelo Syllabus a proposição seguinte, que citei no
ela, a obedienaa de'?~ aos re1s. Foi com esta visão que se começo dessa exposição: "Todo homem é livre para abraçar
estabeleceu, como direito do homem na sociedade, a libcr. e professar a religião que a luz da razão o levar a julgar ser
da~e absoluta, que não só assegura o direito de não ser m. a verdadeira religião."
qweta.do por causa de suas opiniões religiosas, mas tamb6n ~. pois, incontestável que o reconhecimento dos di-
essa li.eco~ ~e pensar, de d \zer, de escrever e mesmo de reitos fundamentais da pessoa humana foi conquista pro-
fazer unl?rumr, ~ m_atéria de religião, tudo o que pode gressiva da consciência moderna, como consciência leiga,
ser sugendo pela imaginação mais desregrada; direito mons- contra o ensinamento mais explícito do magistério católico.
truoso, que parece, todavia, à Assembléia resultar da igual- Sem dúvida, hoje é difícil para nós imaginar a que ponto os
dade e da liberdade naturais de todos os homens.• hábitos de pensamento e os pesos históricos impeliam muito
~mo observa B. Plongeron, descobrem-se nesse texto naturalmente a Igreja à condenação do liberalismo. Na ver-
os dois .pos~ados 9ue estavam subjacentes na argumentação dade, o liberalismo não podia ser considerado doutrina ino-
do magts~ério ca~óli.co até o Vaticano II. Em primeiro lugar, fensiva. Ele era ideologia atéia que levava à exaltação do
o exerdao do direito fundamental à liberdade era conside- indivíduo e à rejeição de toda autoridade, inclusive da de
rado como . "~rdade ~esenfreada ". Em segundo lugar, 1 Deus. Foi esse liberalismo que Leão XIII condenou cm suas
luta dos crutaos pela liberdade s6 era legítima quando se grandes endclicas Immortale Dei ( 1865) e Rerum novarum
~atava de defender a liberdade religiosa no sentido católico.• (1891).
Em outras palavras, comenta C. Wackenheim o direito l Mas, apesar da ambigüidadc do liberalismo, o papado
li~rdade religiosa se fundava na naturC2a do homem como do século XIX não soube discernir a parte de verdade nele
a interpretava o magistério eclesiástico. Pensava-se assim contida. "Para isso, ter-lhe-ia sido necessário poder olhar a
que um direito inalienável da pessoa levava à obri~ação d~ realidade social e humana sob outro ângulo, mudar de pers-
aderir à Igreja católica! •s pectiva e tomar como ponto de partida não mais os 'direitos'
. ~o século XIX, os papas não cessaram de fulminar o de Deus, mas os da pessoa humana, cm suma, realizar re-
liberalismo, denunciando-o como a ideologia funesta dos tem- volução copcmicana. "7 A Igreja não teve discernimento pro-
pos modernos.6 Na encíclica Mirari vos ( 1832), Gregório fético e infelizmente apareceu aos olhos de todos os homens
XVI chega a chamar de •delírio" a reivindicação da liber- sedentos de liberdade como inimiga da liberdade. Pode-se
considerar esse erro histórico da Igreja como conseqüência
4 Cf. 8. Plongeron, ibid., p. 56. fatal de desvio teológico iniciado no século IX, a saber, a
S C. Wackenheim. "La s1gnüication tMologique des droits de ideologia da cristandade e o mito da verdade obrigatória.
l'homme"! in Co!fCilium 144, 1979, p . 71. De um lado, a confusão entre a ordem eclesial e a ordem
6. V~Ja, partJcularmente, R. Aubert, "L'enseignement du magist~re
eccl~1~ttqu.e au XIX• si~le", in Tollrance et communaut' humaim1,
ToumaJ-Paru, 1952, pp. 75-103. Para breve apresentação histórica do 7 CC. F. RefouJ~. ·L'~glise et les libert&", in Le Suppllment
fenõmen<? .moderno da liberdade religiosa, pode-se ler E. PouJat, •u. 25, 1978, p. 253. Sobre a evolução do magist~rio romano concernente
bei:t~ rehgieuse et ~~veJoppement historique des libert~· in La libert' à questão dos direitos do homem, encontra·se vasta documentação em
re/.'§'CUSC dans /e 1udaisme, /e christianisme et l'islam c·Cogitatio Fi- G. Thils, Droits de l'homme et perspectives chrétiennes, Publicação da
de1 n. 11 O), Cerf, Paris, 1981, pp. 17-34. Faculdade de Teologia de Lovaina, 1981.

284
sociopolítica fez com que se justificasse o uso da violência Nações l!nidas .em 10 de dezembro de 1948: .. T.~a.pessoa
a serviço da ortodoxia e da unidade. Do outro, a certeza da tCID direito à liberdade de pensamento, de consaenaa e de
Igreja de estar de posse da única verdade levou-a a sacrifi- religião; esse direito implica a liberdade de mudar de rdi-
car os direitos da pessoa aos direitos exclusivos da verdade. gião ou de convicção bem como a liberdade de manifestar
sua religião ou sua convicção sozinho ou em comum, tanto
em público como em particular, pelo ensinamento, pelas
C. A adesão da Igreja católica práticas, pelo culto e pelos ritos."
à causa dos direitos do homem Antes da Dignitatis humanae, já coubera a João XXIII
a honra de ratificar a Carta dos Direitos do Homem, de
Como dissemos acima, foi preciso esperar o Concilio 1948, em sua grande encíclica Pacem in terris, que foi como
Vaticano II para que se pudesse falar de adesão oficial da que seu testamento espiritual. Antes dde, Pio XI e sobretudo
Igreja católica à causa dos direitos do homem. Lê-se na Pio XII começaram a grande virada da Igreja católica no
constituição pastoral Gaudium et spes esta afirmação solene: século XX em favor dos direitos do homem. A Igreja não
"Em virtude do Evangelho que lhe foi confiado, a Igreja só não pronunciou mais o anátema contra os direitos do
proclama os direitos do homem; da reconhece e tem em homem, como também considerou como uma de suas fun.
grande estima o dinamismo de nosso tempo, que, em toda çõ~s essenciais no mundo moderno trabalhar cm defesa e
parte, dá um novo impulso a esses direitos." E a declaração pela promoção dos direitos do homem. O que é novo em
Dignitatis humanae, sobre a liberdade rdigiosa, representa a João XXIII, cm relação aos seus predecessores, é que de
decisiva revisão de teoria perniciosa dos direitos exclusivos se dirige diretamente não só aos cristãos, mas também a
da verdade, que serviu para justificar séculos de intolerância. todos os homens. "Embora, na redação desse documento,
Não se trata mais só de tolerância negativa, como na teolo~a nosso pensamento se tenha guiado pela luz da Revelação,
político-rdigiosa da tese e da hipótese, forjada no século XIX, quisemos que de se inspirasse antes de tudo nas exigências
quando foi necessário aceitar que o catolicismo não era mais da natureza humana e se dirigisse a todos os homens. 11
a rdigião dominante em muitos Estados modernos. Deve-se Depois de João XXIII, Paulo VI e João Paulo II foram
falar em tolerância positiva. campeões da causa dos direitos do homem e manifestaram
O reconhecimento da liberdade rdigiosa pelo Vaticano várias vezes sua vontade de trabalhar cm estreita colaboração
II "não visa unicamente assegurar aos cristãos a possibilidade com a Organização das Nações Unidas, como o atestam seus
de se pronunciarem, sem nenhuma constriç.ão externa, quan- discursos perante essa instância internacional.9
to a esta ou aquda confissão cristã; não visa também a direito Podemos especular infinitamente sobre as razões dessa
exclusivo de escolher entre as diversas rdigiões do mundo, reviravolta na atitude da Igreja. Há uma causa histórica
mas quer reconhecer a todos o direito de se pronunciarem", imediata. A Igreja acabou por tomar em consideração a evo-
livres de constrições externas, "por uma religião ou por ne- lução das democracias ocidentais e compreendeu que a de-
nhuma" .8 Finalmente, a declaração sobre a liberdade rdigio- fesa da liberdade não era necessariamente sinônimo de ateís-
sa consagra oficialmente o artigo 18 de Declaração Universal mo e anticlericalismo. Mas, acima de tudo, em contato com
dos Direitos do Homem, adotada pela assembléia geral das ideologias totalitárias como o nazismo e o stalinismo, a Igre-
ja tomou conhecimento de sua própria intolerância. Como
8 Essas linhas são de dom J. Wlllebrands. Estão citadas em L. de
Vaucelles, "La d~claration de Vatican li sur la libert~ reljgieuse•, 9 Consulte-se, com utilidade, R. Refoulé, •Les efforts de l'autorité
in la /iberté religieuse dons /e judaisme, /e cliristianisme et l'islam, suprême de l'êglise en faveur des droits de l'homme•, in Concilium
(•Cogitatio Fidei• n. 10). Cerf, Paris, 1981 , p. 130. 144, 1979, pp. 101-8.

286 287
poderia o catolicismo reivindicar a liberdade religiosa peran- A. O fundamento teológico dos direitos do homem
te regimes totalitários, quando recusava essa liberdade aos
cidadãos dos Estados nos quais ele ainda era a religião do- Já dissemos que no magistério recente. d~ Igreja en-
minante? Diante das ideologias totalitárias, ele só podia in- contra-se aprovação explicita da Carta dos D.treitos do ~o­
vocar a dignidade inviolável da pessoa humana. Mas se pode rnem. É o caso particularmente d~ }oão XXII~.º~ encíclica
discernir, também, uma causa teológica. A Igreja aceitou dei- Pacem in terris. Ele tinha a amb1çao de s~ _?u~gir a todos
xar-se ensinar pelos estados de consciência da humanidade. os homens, porque falava cm nome das ~genaas da natu-
Quero dizer que ela aprendeu a interpretar a Revelação, reza humana e do direito natural. Mas sabia que ~~ ~atava
da qual ela é a depositária, a partir da história do mundo e de fundamento muito ambíguo. Também a consoenoa co-
da evolução das culturas. mum da dignidade da pessoa hum~na , à qual se refere .ª
Carta dos Direitos do Homem, precisa de fundamento mais
radical, do contrário pode ficar suspensa no ar ou ser falsa-
mente interpretada por este ou por aquele Estado moder-
II . A CARTA DOS DIREITOS DO HOMEM no . Em outras palavras, é neutralidade prejudicial da p~te
E A REVELAÇÃO BfBLICA das religiões monoteístas o calarem o fundamento. ~~lógico
dos direitos do homem sob o pretexto de se ~1~em .ª
todos os homens, sejam quais forem suas conv1cçocs reli-
A afirmaç.ão dos direitos do homem é, pois, conquista giosas ou filosóficas . Ao contrário, é res~nsabilida~e _co-
progressiva da consciência humana. Por trágico mal-enten- mum dos crentes elaborar conceito ecum~mco dos direitos
dido, a Igreja oficial não só não favoreceu essa tomada de do homem.
consciência, mas também fez tudo para retardar essa evo-
lução irreversfvel, pelo menos enquanto gozava, em alguns Embora a dou trina dos direi tos do homem tenha sido
Estados, do privilégio de religião dominante. Mas hoje essa explicitada no Ocidente, deve-se tender a ~n~eit~ univer~al
página está virada. Em vez de nos lamentar por causa dos dos direitos do homem que provenha do direito rnternaao-
erros do passado e de nos comprazer na história dolorosa nal. É o sentido dos dois pactos internacionais, relativos aos
de nossas intolerâncias reciprocas, entre as três grandes reli- direitos econômicos, sociais e culturais e aos direitos civis
giões monoteístas, é preferível que nos interroguemos sobre e políticos, adotados cm 1966 pela Assembléia das Na~
a nossa responsabilidade hist6rica de testemunhas, perante Unidas. Procurou-se determinar os elementos fundamentais
o mundo, da fé no Deus único. Nesta segunda parte, gos- que constituem a figura fundamental dos direitos do homem.
t$1riii de insistir na convergência entre a doutrina dos direitos Esses elementos são três : a liberdade, a igualdade e a par-
do homem e o ensinamento da revelação bíblica. Gostaria, ticipação,10 que lembram a tríade da Revolução Francesa.
por outro lado, de refletir sobre a contribuição que as Igre- Mas a fraternidade parece ser, antes, valor fundamental . Ela
jas cristãs podem dar para a causa dos direitos do homem não caracteriza a posição jurídica da pessoa numa sociedade.
num mundo dilacerado, no qual esses direitos são regular- Foi escolhido, por isso, o conceito de participação, que pres-
mente escarnecidos. supõe a segwança e a propriedade como direitos fundamen-
tais para que se possa participar da vida social e dos bens

10 Inspiro-me aqui diretamente nas id~ias de W. Hubcr, •Lcs


droits de 1 bomme. Un conccpt et son hlstoire•, in Concilium 144,
1979, p. 21.

288 289
10 · Como tuer teotoala boje
da sociedade. Assim, cada direito particular do homem deve além da morte, no qual Deus fará justiça a todos, mas
ser interpretado a partir desses três elementos fundamentais também libertação desde esta terra, no sentido da igualdade
tomados em conjunto segundo suas respectivas relações. Sa- e da fraternidade entre todos os homens. E a afirmação do
be-se como isso é importante na conjuntura política atual, reino de Deus coincide com a recusa a qualquer absoluti-
uma vez que nas democracias ocidentais há o perigo de zação do poder humano, trate-se do poder político, do po-
permanecer em concepção puramente individualista do direi- der de líder carismático, de raça privilegiada, de povo em
to à liberdade, enquanto no Leste insiste-se nos direitos do particular ou de classe social.
homem como direitos sociais. Segundo a mensagem cristã, a dignidade inviolável do
Em todo caso, se a figura fundamental dos direitos do homem e a igualdade de todos os homens entre si não se
homem se reduz a es~es três elementos, liberdade, igual- fundam só na semelhança do homem com Deus por causa de
dade, participacão, é fácil mostrar a convergência entre a sua criação, mas também na filiação divina adquirida em
doutrina dos direitos do homem e a visão bíblica e cristã Jesus e na salvação como promessa de vida divina depois
do homem . da vida terrestre.
O fundamento radical da dignidade inviolável da pes- Enquanto na Pacem in terris, João XXIII, desejando
soa humana está na revelação bíblica sobre a criação do ho- dirigir-se a todos os homens de boa vontade, argumentava
mem "à imagem de Deus n ( Gn 1,26). Isso significa, con- a partir de filosofia do direito natural, os papas Paulo VI
cretamente, que é impossível atentar contra os direitos do e João Paulo II ligam a causa dos direitos do homem
homem sem ofender a Deus mesmo, sem cometer uma ver- às exigências do Evangelho.
dadeira blasfêmia. É por ser o homem a imagem de Deus A defesa e a promoção dos direitos do homem não
que a sua vida tem valor sagrado. Na narração do Gênesis, são só exigência ética fundada na natureza humana, enten-
a proibição de derramar o sangue se funda explicitamente dida de maneira intemporal, mas também parte integrante
na relação com Deus: "Quem derrama o sangue do homem da boa nova da salvação em su.. referência ao reino de
pelo homem terá seu sangue derramado. Pois à imagem de Deus que vem .
Deus o homem foi feito n ( Gn 9 ,6 ) . Acima das discussões entre católicos e protestantes so-
A criação do homem à imagem de Deus funda a igual- bre a questão do direito natural, verifica-se hoje largo acordo
dade de todos os homens entre si. Devemos, por isso, falar ecumênico em procurar fundar a dignidade inalienável do
de vínculo necessário entre o monoteísmo e a doutrina dos homem, tanto dentro como fora da Igreja, na doutrina pau-
direitos do homem. E, no Antigo Testamento, o direito de lina da justificação. Pelo pecado, o homem perdeu seu di-
Deus está a serviço do direito do homem. Não poderíamos reito diante de Deus e não tem nenhum meio, mesmo pelo
aqui sublinhar o bastante a importância do tema da "justiça cumprimento da lei mosaica, de se justificar diante de Deus.
de . Deus n n~ Bíblia. Desprezar os pobres, os oprimidos, os Mas justamente pelo mistério da morte e ressurreição de seu
aflitos, as viúvas e os 6rfãos é ofender o direito de Deus. Filho, Jesus, o homem recebe gratuitamente a justiça de
Deus não é somente a fonte de todo o direito, mas também Deus como seu direito. E por sua atitude em relação aos
aquele que toma o partido dos mais desamparados contra "ímpios n , isto é, aos excluídos da sociedade relig.iosa, Jesus
os poderosos. demonstra que todo homem - mesmo pecador - conserva
A pregação do reino de Deus por Jesus não fez senão sua dignidade diante de Deus. Ele não cessa de ser criatura
levar às últimas conseqüências essa promessa messiânica de amada por Deus.
libertação para todos os homens, libertaç.ão definitiva num
290 291
B. A fé monoteísta e os direitos do homem Jacques Julliard: "0 fato maior deste decênio é a falência
das religiões temporais ... que rejeitam Deus, mas divinizam
Vimos acima que a declaração dos direitos do homem a política, conferem a ela valor messiânico e drenam em seu
se explicitou no contexto do liberalismo e do ideal humanista proveito a esperança humana ... As religiões de transcendência
dos séculos XVIII e XIX. Ela era reivindicação de autono- confessada, ao contrário, vão bem ... Assistimos a extraordi-
mia contra toda forma de autoridade, mesmo que fosse a nária mudança na situaç.ão ... escândalo maior para o orgulho-
de Deus. Não é exagero falar de "ideologia " dos direitos so pensamento marxista, digno e legítimo herdeiro da filoso-
do homem inseparável, no Ocidente, das ideologias do pro- fia das Luzes ... Hoje é em nome da filosofia que se oprime,
gresso e da secularização. O que estava subjacente nas di- e é em nome da fé que se revolta. " 11
versas ideologias é a fé no homem. Ora, acontece que, neste Assim, estaríamos assistindo a uma surpreendente in-
último quartel do século XX, a fé no homem está abalada. versão do que se tornara slogan do humanismo ateu moder-
Afirmamos que estamos saindo de período da história do- no desde Feuerbach, a saber, a incompatibilidade entre Deus
minado pela figura de Prometeu e que estamos à procura e a liberdade humana. Enquanto antigamente a fé em Deus
de outras figuras míticas, para, a partir das quais, interpre- parecia tomar impossível toda revolta humana, hoje é ela
tarmos o destino do homem ( cf., acima, cap. 9}. que a encorajaria. .f: incontestável que, nas três religiões
Graças ao poder demiúrgico da ciência e das técnicas monoteístas, é a fé em Deus que convida à resistência e à
acreditava-se chegar ao ápice do sucesso humano. Hoje tem: luta em defesa dos direitos do homem. Quando a ideologia
se mais consciência das conseqüências dramáticas de esgota- do progresso obtinha seus sucessos, acreditava-se que a ne-
mento dos recursos naturais, dos riscos permanentes de con- gação de Deus fosse condição para a construção do mundo
flito nuclear e dos perigos das manipulações genéticas, que e a luta contra as fatalidades da história. Hoje pareceria que
podem comprometer o futuro da espécie humana. Projeta- Deus deve novamente vir em socorro da humanidade que
va-se, antes, construir sociedade cada vez mais racionalizada começa a duvidar de suas capacidades demiúrgicas. Assim,
e planificada. Hoje já se notam os primeiros sintomas de a crença em Deus não faz necessariamente o jogo das forças
rejeição da sociedade industrial. Observava-se o regozijo por conservadoras do mundo. Ao contrário, ela pode estar a ser-
se ter entregue o homem a si mesmo, desalienando-o de viço das forças de libertação e ser a melhor garantia da de-
toda fé num Deus criador. Ora, esse homem criador e mani- fesa e da promoção dos direitos do homem.
pulador se sente, ao contrário, angustiado com a /oticidade Terminando, gostaria de insistir na responsabilidade his-
do mundo : ele está à procura de suas raízes. tórica dos crentes quando os direitos do homem são vio-
~ nesse contexto geral que, pelo menos nas sociedades lados todos os dias por Estados que assinaram a Declaração
ricas do Primeiro Mundo, se assiste ao que se chama "re- Universal dos Direitos do Homem e os acordos de Helsinki,
toro? de Deus". Trata-se de fenômeno complexo, difícil de de 1 de agosto de 1975. Contentar-me-ei com assinalar duas
analisar. Pode-se perguntar, de fato, se ele não é efeito de tarefas que me parecem particularmente urgentes.
reflexo de medo diante do apocalipse que seria um conflito
nu?ear. Seja como_f~r, é extremamente significativo que 1. A liberdade é indivisível
ho1e a defesa dos dueitos do homem não esteja mais ligada
ao movimento ateu de emancipação do homem da época As Igrejas cristãs passaram do anátema à adesão e ao
das Luzes. Assim, não estamos mais em contexto cultural engajamento a serviço da promoç.ão dos direitos do homem.
no qual Deus aparecia necessariamente como rival do ho- li J. Julliard, • Marcher sur les deux jambes•, in Le Nouvel Obser-
mem. De boa vontade faço meu este diagnóstico lúcido de vateur, 30 de dezembro de 1978.

292 293
único crime consiste em lutar pela justiça e pela igualdade
Mas não basta reclamar dos Estados modernos e, particular-
entre todos os homens?
mente, dos Estados comunistas o respeito aos direitos do
homem e, de modo especial, ao direito à liberdade religiosa, 2. A responsabilidade hist6rica das três religiões monoteístas
se a Igreja violar esses direitos quando se trata de seus fiéis.
De modo mais geral, como pode uma religião reivindicar No Ocidente há sempre o perigo de nos fixarmos numa
para si, junto aos Estados, liberdade que ela mesma não problemática _dos direi~os .d? homen: encarados só do ponto
concede aos seus fiéis? Isso põe em questão a credibilidade de vista da liberdade rndividual. Nao há, ~r exemplo, ~o­
dessa religião. bretudo ante o totalitarismo soviético, o perigo de as. ~gre1as
Eu disse o quanto a Igreja católica se beneficiou, nos cristãs do chamado Primeiro Mundo darem aval. reli~oso à
tempos modernos, dessa explicitação progressiva das exigên- ordem econômica capitalista, que favorece desequilíbrio cres-
cias concretas da dignidade das pessoas, que se fez não só cente entre o Norte e o Sul?
fora dela, mas também apesar dela. Em sua declaração, no Ora, nenhuma religião que pretenda lutar pela pro~o­
Vaticano II, sobre a liberdade religiosa, a Igreja teria sido ção dos direitos do homem pode permanecer surda ao grito
bem inspirada se tomasse conhecimento disso e reconhecesse universal dos pobres. Numa população de cerca de quatro
seu erro histórico, ela que, durante muitos séculos, tolerou bilhões de pessoas, admite-se que haja atualmente n? mundo
a escravidão e a tortura. Para isso teria sido necessário re- pelo menos oitocentos milhões de pessoas desnutridas ..Fe-
nunciar ao sacrossanto principio da continuidade e da não- lizmente as Igrejas do Primeiro Mundo começam a ouvu a
contradição das declarações do magistério. A idéfa de desen- interpelação das Igrejas do Terceiro Mundc;>.i2 As I.grejas do
volvimento dogmático sempre homogêneo é totalmente apo- Ocidente devem estar dispostas a se deixarem rnterpclar
logética. Mesmo hoje, quando João Paulo II não cessa de também pelo islã, uma vez que ele apóia a causa d7 todos
lutar, em seus numerosos discursos, oportuna e importuna- os oprimidos dos países ditos em vi~ .de dese~vol~imento .
mente, em defesa dos direitos do homem, a Igreja católica Eu diria até que uma das responsabilidades históncas d9:s
não tirou ainda todas as conseqüências da Declaração dos religiões monoteístas consiste em tr~balh~ p~a que os di-
Direitos do Homem no que concerne aos direitos do cristão reitos individuais do homem não se1am dissooados de seus
dentro da Igreja. Os teólogos dissidentes, por exemplo, sem direitos sociais, e em contribuir para a instauração de nova
dúvida não estão mais sujeitos a interrogatório. Mas quando ordem econômica mundial.
seus escritos são objeto de processo, os métodos usados pela Vimos que as Nações Unidas tiveram o mérito de com-
Congregação da Fé contradizem, cm mais de um ponto, a pletar a Declaração Universal dos Direitos do homem, de
Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e 1948 com o Pacto Internacional dos Direitos Econômico,
a Convenção Européia dos Direitos do Homem, de 1959, SociaÍ e Cultural de 16 de dezembro de 1966. Foi impor-
que reclamam particularmente a publicidade dos debates ju- tante passo para' tomar a sério os colll:ponentes sociais d~s
diciários. direitos do homem. Mas sabemos mwto bem que, na si-
A liberdade é indivisível. Uma religião não pode pre- tuação estrutural de injustiça do mundo atual, não basta
tender reclamar a liberdade religiosa ante Estados modernos proclamar direitos formais, como o direito .d~s povos à au-
totalitários, quando da mesma dá provas de intolerância de todeterminação, o direto ao trabalho, o direito de formar
outra época em relação aos seus fiéis. E para nos atermos
à religião cristã, que pensar dos regimes que se dizem cris- 12 Cf. N. Grcinacher, •La rcsponsabilit~ des f:glises .dans le .~toe
tãos e lutam contra o comunismo ateu, mas que, ao mesmo occidental pour la rialisation des droits de l'homme'". m Conc1l1um
144, 1979, pp. 133-41.
tempo, não hesitam em colocar em prisões cristãos cujo
29.S
294
sindicatos, o direito de greve, o direito ao seguro social, o
direito a um nível de vida conveniente, o direito à educação
etc. Além da ajuda caritativa, da qual participam generosa- 14
mente as Igrejas do Primeiro Mundo, é preciso agir sobre
os mecanismos econômicos e políticos que têm como con- A REINTERPRETAÇÃO DA MISSÃO DA IGREJA
seqüência a violação dos direitos do homem contra milhões
de pessoas. Pode-se considerar, com razão, que as possibili-
dades que as religiões têm de influenciar a ordem econômica
internacional são muito fracas . Mas deve-se começar por tra-
balho de conscientização. Quanto a isso, as grandes religiõe.s
monoteístas têm responsabilidade urgente. Elas podem des-
pertar a má consciência dos dirigentes políticos, trate-se dos Como acontece muitas vezes na história da Igreja, a
que exercem o poder nos países ricos ou do poder neocolo- vida sob a ação do Espírito de Deus anda na frente do pen·
nial de muitos países pobres. A vocaç.ão das religiões que sarnento. Enquanto falamos, com toda a razão, de "nova
apelam para o Deus libertador, que criou o homem à sua idade da missão ", ainda não dispomos de uma teologia da
imagem, é a de serem porta-vozes de todos os povos opri- missão que seja perfeitamente homogênea com a prática mis-
midos e a de serem a voz dos que não têm voz. sionária da Igreja como ela já pode ser observada concreta·
Ao termo desse estudo sobre a evolução da Igreja ca- mente. Mas essa prática é lugar teológico que o pensamento
tólica quanto à questão dos direitos do homem, gostaria de cristão deve ter na maior consideração em seu esforço para
falar de aprendizado ecuménico das implicações concretas dos renovar a compreensão da missão a partir da Escritura e
direitos do homem entre as três grandes religiões. Em vez dos documentos mais recentes do magistério (especialmente
de nos comprazermos com a história de nossas intolerâncias o decreto Ad gentes, do Vaticano II, e a exortação apostó-
recíprocas, deveríamos aprender a decifrar juntos os sinais lica Evangelii nutiandi, de Paulo VI) .1
dos tempos e aceitar deixar-nos ensinar pelo Espírito, que
Renovar a teologia da missão exigiria que se começasse
nos fala a partir da história do mundo e da evolução das
por interrogar sobre as bases cristológicas e eclesiológicas
sociedades. Devemos, sem dúvida, respeitar as diferentes
da antiga teologia da missão. Conviria, também, submeter a
modalidades de interpretação dos direitos do homem em fun.
exame crítico a teologia da redenção e a da história, que
ção de nossas próprias tradições religiosas. Mas temos a obri- estavam subjacentes nos usos mais constantes da atividade
gação de tender para a realização efetiva dessa figura funda-
missionária. Em lugar de tentarmos esboçar esta síntese teo-
mental e universal dos direitos do homem que integra sem- lógica renovada, contentar-nos-emos, nas páginas que se se-
pre os elementos essenciais de liberdade, igualdade e parti-
guem, com propor algumas reflexões que nos inspiram as
cipação, e da qual a melhor garantia é a fé no Deus único. orientações mais características da prática missionária da Igre-
As granêles mudanças do mundo moderno já nos provocaram ja de hoje.
a uma reflexão incessante sobre a fé e a tradição, sobre a fé
e a ciência. Mas neste final do século XX, a luta de todos
os homens de boa vontade pela promoç.ão dos direitos do
homem nos convida a refleur sobre o nexo essencial entre =
1 Neste capítulo usaremos u seguintes abreviaturas: AG Ad
gentes; EN = Evangelii nuntiandi; ME = Misaion and Evangelism
a fé monoteísta e a ;ustiça. {documento preparatório para a AssembMia Ecumenica de Vancouver,
de julho de 1983) .

296 297
11 • Como faz.er tcoloala hoje
1. O VOCABULÁRIO DA MISSÃO E DA EVANGELIZAÇÃO desde o fim da Segunda Guerra Mundial.4 De um lado, toda
a Igreja é concernida para a missão. Em 1965, o decreto
Ad gentes declara que todos os bispos e, com des, todas
1. O termo missão designa o ettvio da Igreja ao mundo. as Igrejas locais são " colegialmente" responsáveis pela evan-
O termo evangelização diz o anúncio ( pda palavra e pelo gelização do mundo (por outro lado, em 1967, a Congregação
exemplo) da boa nova às nações. Se nos ativermos ao sen- De Propaganda Fide foi transformada em Congregação para
tido estrito das palavras, poderemos dizer que o termo missão a Evangelização dos Povos). Por outro lado, a Igreja está
tem sentido mais amplo que evangelização: além da tarefa em estado de missão em toda parte, isto é, tanto cm países
fundamental de evangelização, a missão da Igreja designa ditos de cristandade como em países ditos "de missão". O
toda a sua atividade pastoral e sacramental, bem como as "espaço de missão" se exprime, assim, menos por um terri-
diversas formas de seu serviço ao homem no sentido do tório do que pelo "mundo", ao qual a Igreja é enviada e
Evangelho. que, como mundo pagão, está tanto numa nação como num
meio social e cultural ou no coração de todo homem.
2. Teologicamente, o termo missão é muito rico. Ele Assim, por causa da conotação territorial do termo mis-
remete não só às missões visíveis do Filho e do Espírito, são e de seu vínculo histórico com o processo de colonização,
mas também à vida íntima do Deus vivo. Como o sublinhou o termo evangelização tende a prevalecer nos documentos
o decreto Ad gentes, a vocação missionária da Igreja não se mais recentes da Igreja. É o que se observa particularmente
funda só num mandato positivo de Cristo, mas também no na exortação Evangelii nuntiandi. Nesse caso, ele, além de
envio inicial do Pai. A Igreja é pois missionária por sua designar o anúncio da boa nova, engloba também todas as
origem e por sua natureza. É preciso entender a missão da tarefas missionárias da Igreja que podem ser incluídas no
Igreja dentro de movimento dinâmico mais amplo, o do serviço do Evangelho.
amor do Pai pelo mundo.2
5. No Novo Testamento encontra-se uma teologia do
3. O uso do termo missão para designar a atividade testemunho muito rica, mas não, propriamente falando, uma
evangdizadora da Igreja remonta somente ao século XVII. " teologia da missão" no sentido moderno do termo.5 O tes-
Ele tende, então, a designar essa atividade missionária par- temunho é exigência interna do dinamismo da fé. "Acreditei,
ticular reservada a um corpo de "especialistas", sacerdotes por isto falei": (2Cor 4,13. O testemunho consiste antes de
seculares ou religiosos, enviados às longínquas terras pagãs. tudo no anúncio "querigmático ", na proclamação direta e
Isso coincide com a criação da Congregação De Propaganda pública do desígnio de Deus de salvar tudo em Cristo. Mas
Fide ( 1622) .3 A evangelização das terras recentemente des- encontra-se, principalmente nos Atos dos Apóstolos, uma
cobertas ou a descobrir tornou-se monopólio exclusivo da forma de evangelização diferente da pregação, a do testemu-
Sé romana. nho de vida. Parece que a conversão dos não-cristãos re-
4. O Concílio Vaticano II é testemunho da grande mu- sultou tanto da qualidade de vida dos cristãos quanto de
dança que se verificou na consciência missionária da Igreja sua pregação (cf. At 5,12-16; cf. ME 3). E na l! epístola
de Pedro, o eixo do testemunho é menos o querigma do
2 Cí. Y. Congar, ·Principes doctrinaux " (nn. 2 a 9) , in L'Activité
missionnaire de l'l!glise (decreto • Ad gentes", texto e comentário). 4 Sobre o alcance dessa mudança, podem-se ler as úteis rcílexões
Cerf, Paris. 1967. pp. 185-94. de A.·M. Henry, • Mission•, in Catholicisme, fase. 39, Letouzey, Paris,
3 Sobre a ins111uição da Propaganda Fide, pode-se consultar 8 . 1980, col. 328-31.
Jacqucline, "Mission", in Dictionnaire de spiritualité, col. 1383-90, Beau- 5 Cí. P. Jacquemont, J. P. Jossua, 8. Quelquejeu, Le temps de la
chesnc, Paris, 1979. patience, cap. 1V: • Proclarnation ou témoignage?•.

298 299
que as boas obras, ou melhor, a boa conduta (agatopoien), II permitiu melhor articulação da Igreja universal com as
que é colocada em relação com o dia da vinda do Senhor: Igrejas particulares. Por outro lado, ao mesmo tempo cm
"Seja bom o vosso comportamento entre os gentios, para que terminava a era colonial, cada Igreja particular veio
que ... vendo as vossas boas obras glorifiquem a Deus, no tomando consciência mais viva de sua própria responsabili-
dia da Visitação" (lPd 2,12). dade. Não é mais Roma que envia e que governa todas as
Assim, embora seja necessário distinguir, nunca deve- missões, é o colégio dos bispos unido a Roma ou cada bispo
mos opor pregação e testemunho de vida. E, segundo o uso (da África, da Ásia ou de outros lugares) cm seu próprio
mais corrente, o " testemunho cristão" tende a designar tanto território . Mesmo os países de evangelização recente têm
o anúncio explícito do Evangelho como as obras feitas cm vocação missionária e podem enviar missionários a outras
nome do Evangelho.6 Igrejas, como se observa atualmente na África e na Ásia.
Uma Igreja só é plenamente missionária quando concebe
sua missão cm seu próprio meio, mas deve abrir-se também
a uma missão no exterior, ad gentes. Já chegou, pois, o
II. A MISSÃO COMO VOCAÇÃO DE TODA A IGREJA tempo no qual não convém mais falar cm Igrejas-mães (as
da Europa e dos Estados Unidos da América) e em Igrejas-
filhas (as jovens Igrejas dos territórios ditos "de missão"}.
1. "Toda a Igreja é missionária; a obra de evangelização Todas as Igrejas são Igrejas-irmãs e têm cm comum a res-
é um dever fundamental do Povo de Deus" (AG 3, citado ponsabilidade da evangdização do mundo.
na EN 59). Na perspectiva da Lumen gentium, devemos in-
sistir na definição da Igreja não como societas per/ecta, mas 3. Na presente situação do mundo, é impossívd disso-
como povo de Deus, como comunidade exodal cm tensão ciar, dentro da missão da Igreja, a evangelização e todas as
para o reino. Ela está, pois, numa relação essencial com o tarefas a serviço da libertação e da promoção do homcm.7
mundo, e a situação histórica do mundo condiciona profun- Responder ao apdo de Deus, que ama todos os homens,
damente a consciência que a Igreja tem de sua missão. Se não pode consistir somente cm fazer entrar para a Igreja
quisermos caracterizar a situaç.ão do mundo contemporâneo, visível o máximo de pessoas e de povos. A Igreja não deve,
certamente devemos evocar o processo de secularização que com efeito, ser considerada somente como o povo dos que
acompanha a civilização técnica justamente quando da tende foram reunidos pela palavra em Jesus, mas também como
a se tornar mundial, a distância crescente entre os países o sacramento da presença de Deus cm toda a humanidade.
ricos do hemisfério Norte e os países pobres do hemisfério Poderíamos resumir a missão da Igreja, dizendo que ela
Sul e as ameaças que pesam sobre o futuro da humanidade consiste essencialmente em encarnar o Evangelho no tempo
por causa da dissseminação nuclear. ( Chenu}. Isso significa que antes e depois do anúncio ex-
plícito de Jesus, trata-se de trabalhar pda transformação do
2. O relevo dado à colegialidade episcopal no Vaticano homem, no sentido do Evangelho. Numa palavra, a Igreja
6 Esta extensão do termo • tcatemunho • t bastante sublinhada pelo
não existe para si mesma, mas para estar a serviço de todos
documento ccum! nico preparatório para a Asscmbltia Ecum!nica de os homens, a fim de levá-los para o reino de Deus.
Vancouver (1983). Ele pede que não se dissociem Evangelho espiritual
e Evangelho material (cf. n. 33) . Esse texto, preparado pela "Commis- 7 Citamos esta íónnula sem equívocos do documento Mission and
sion of World Mission and Evangelism" (CWME) , do Conselho mun- Evangelism : "Churches are learning afrcsh lhrough lhe poor of lhe
dial de Igrejas, foi publicado sob o título: •Mission and Evangelism. earth to overcome lhe old dichotomica between evangelism and social
An Ecumenical Affirmation •, in lntern. Rev. o/ Mission 71, n. 284, action : Tbe 'spiritual Gospel' and 'material Gospel' were in Jesus one
1982, pp. '427-51. Gospcl ", art. cit., p . #1, n . 33.

300 301
4. Todas as Igrejas, conscientes de sua catolicidade, roos mais resolutamente com nossos irmãos cristãos com os
quais ainda não estamos unidos numa comunhão perfeita,
são responsáveis, em conjunto, pela missão universal da Igre-
ja. E em cada Igreja local, todos os cristãos são chamados fundando-nos no batismo e no patrimônio da fé que nos é
a evangelizar com suas palavras e com seus atos. Em união comum, de modo a podermos desde já, no mesmo trabalho
oom seu bispo, os sacerdotes são responsáveis, de modo es- de evangelização. testemunhar juntos e mais largamente Cris-
pecial, pelo ministério da evangelização confiada por Jesus to no mundo" . E o objetivo do Conselho Mundial de Igre-
à sua Igreja. Mas, com ou sem ministério especial, todos jas é precisamente o de promover esta unidade visfvd.1º
os leigos são responsáveis pela evangelização, não podendo Devemos acrescentar que a causa da unidade dos cris-
sua ação ser reduzida a trabalhos puramente temporais. ~ tão~ é tanto. ~ais. urgente quanto os progressos da incligeni-
verdade, entretanto, que, em virtude de seu engajamento no zaçao do cnsuarusmo podem às vezes favorecer a multipli-
mundo, eles têm o dever mais especial de não só dar teste- cação das Igrejas evangélicas ou das Igrejas nacionais nos
munho a Jesus por meio de sua vida, mas também de en- povos da África ou da Ásia que conquistaram recentemente
carnar o Evangelho nas estruturas modernas da sociedade sua independência nacional.
e nos novos espaços do mundo moderno (EN 70) . Hoje
toma-se consciência em toda a Igreja de que a evangelização
está ligada de modo privilegiado ao testemunho da comuni-
dade cristã. Devemos saudar como um sinal dos tempos o III. A INCULTURAÇÃO COMO EXIG2NCIA DA EVANGELIZAÇÃO
nascimento e o renascimento da Igreja a partir das comuni-
dades eclesiais de base, sobretudo na África e na América
Latina.1 Isso nos convida teologicamente a ultrapassarmos 1. Encarnação e inculturação
certo eclesiocentrismo e cristomonismo, para sublinharmos
mais a dimensão pneumática da Igreja.9 Neste final do século XX, o futuro do cristianismo se
jogará cada vez mais cm outros continentes, e não na Europa.
5. Ante os desafios do mundo moderno, a divisão dos Esse fu.t uro de~derá, portanto, da apddão da Igreja para
cristãos é permanente obstáculo à obra de evangelização con- ~vangdizar e ':'1vif1car as culturas não-ocidentais, cm lugar de
fiada à Igreja por Cristo. Segundo a palavra dele, o meio ignorá-las ou unpor-lhcs o modelo uniforme de cristianismo
mais eficaz para a evangelização é a unidade de todos os muito exclusivamente condicionado pela cultura mediterrâ-
cristãos: "A fim de que todos sejam um. Como tu , Pai, estás nea. Devemos, por isso, falar de uma verdadeira "encarna-
em mim e eu em ti, que eles estejam em nós, para que o ção da fé" nas culturas, como lembrava o sínodo dos bispos
mundo creia que tu me enviaste" (Jo 17 ,21) . A unidade de 1977 .
como exigência toda especial para a missão da Igreja no Podemos entender a inculturação do cristianismo como
mundo é constantemente lembrada tanto pela Igreja católica conseqüência da encarnação do Vcrbo de Deus na humani-
como pelo Conselho Ecumênico de Igrejas. A terceira as- dade ~e Jesu~ (d ., acima, cap. 1). Mas trata-se apenas de
sembléia geral do sínodo dos bispos como também Paulo VI analogia. O rnteresse da analogia consiste em insistir cm
na Evangelii nuntiandi ( 77 ) insistem para que "colabore- que o Evangelho deve assumir as diversas culturas sem com-
prometer sua identidade. Mas o principal limite da com-
8 Para uma primeira aproximação, &empre v4lida, veja o número
especial de Concilium 104, 1975. paração vem de ser cl.úícil dizer o que entendemos pelo
9 Citamos, dentre muitos outros trabalhos, o estudo de W. Kaspcr,
•Eaprit-Christ-l!glisc•, in L'Ex~rience de l'Esprit (M~langes Schille. 10 Mission and Evangelism, art. cit., p. •28, n. l.
bcccltx) , Beauchesne, Paris, 1976, pp. '47-·69.
303
302
termo "cristianismo". ~ ele a mensagem cristã originária? O movimento de inculturação do cristianismo coincide
~ o cristianismo histórico na forma que tomou na Igreja necessariamente com uma "cristianização de tal ou tal cul-
oriental e na Igreja latina? Desde a origem, o cristianismo tura existente". Mas esta expressão é amb{gua, porque lem-
teve de assumir a particularidade de certa cultura. Por isso, bra muito certos modelos criticlveis de "cristandade" ou de
hoje como ontem, o encontro do cristianismo com as cul- "humanismo cristão". ~ preferível falar da função crítica e
turas é sempre o choque de duas culturas. Toda a questão purificadora do Evangelho em relação aos elementos pagãos
consiste em saber se a "estraneidade" da mensa~em cristã e anti-humanos de uma cultura. Normalmente o Evangelho
provém do paradoxo evang~co ou do veículo cultural pri- deve assumir todos os valores positivos de determinada cul-
vilegiado ao qual ela se encontra historicamente associada. tura, especialmente se atentarmos para o fato de que na Áfri-
ca e na Asia os valores culturais são indissociáveis dos valo-
2. Inculturação e adaptação res de grande tradição religiosa.
O movimento de inculturaç.ão do cristianismo cm novas A inculturação do cristianismo é tarefa tateante - e
culturas leva necessariamente a discernimento crítico dentro progressiva - , que não pode ser reservada só aos especia-
da Igreja entre os elementos substanciais da prática e da men- listas, teólogos, moralistas e historiadores. Ela se realiza no
sagem cristã e as formas contingentes que o cristianismo as- cotidiano da existência de uma comunidade cristã. l! nos múl-
sumiu em tal ou tal período de sua história. Neste final do tiplos intercâmbios da vida familiar e social que os cristãos
século XX, pela primeira vez o cristianismo ocidental não mostram que é possível conciliar sua identidade cristã com
é mais o modelo histórico dominante do pensamento e da sua identidade étnica, cultural, lingüística e nacional.
vida cristã. Em função de outras culturas, de outras antro-
pologias, de outras mentalidades, de outras tradições espiri- 3. O diálogo inter-religioso
tuais, a Igreja deve reconhecer a legitimidade do pluralismo Em sua tarefa missionária, a Igreja de hoje deve en-
teológico, litúrgico e ético. Longe de comprometer a unani- frentar o desafio não só das culturas não-ocidentais, mas
midade na fé dentro da mesma Igreja de Cristo, esse plura- também o das grandes religiões não-cristãs. O que caracteriza
lismo é exigência da catolicidade da Igreja. nova idade da missão, depois do Vaticano II, é, ao mesmo
A inculturação, enquanto exigência de encarnação numa tempo, nova visão das possibilidades de salvação fora da
cultura, é diferente de adaptação su~icial a tais ou tais Igreja e nova inteligência teológica da permanência das gran-
elementos arcaicos de certa cultura.1 Em alguns países da des religiões não-cristãs dentro do desfgnio providencial de
Africa e da Ásia que estão cm plena transformação, o es- Deus. Depois de uma teologia da salvação dos pagãos pela
forço de indigcnização da Igreja pode favorecer a sobrevi- pertinência à Igreja visível como único meio de salvação, os
vência de formas culturais ultrapassadas e a irresponsabili- teólogos católicos elaboraram, pois, uma teologia do cum-
dade social e política dos cristãos. A emergência de cristia- primento, segundo a qual Cristo está agindo cm todas as
nismo africano, japonês ou chinês não pode ser obra de mis- religiões como consumação final de toda a busca humana de
sionários estrangeiros, deve ser criação - no Espírito de salvação.u
Cristo, pelas Igrejas locais - de figuras históricas diferen- Em tal contexto, o que constitui a finalidade da ativi-
tes do mesmo cristianismo. dade missionária da Igreja é menos a vontade de converter
o "outro" do que a de anunciar, por palavras e atos, que o
li Veja a esse respeito as páginas vigorosas de J.-M. Ele in J.-M.
Ela, R. Luneau, Le temps des hlritiers, Karthala, Paris, 1981 , cap. V: 12 Cf. 1. Puthiadam, •u foi chrétlcnnc et la vie dans un monde
"On n'héritc pas de l'avcnir, on lc crée", pp. 229-SJ. de pluraliame n:llgieux• , in Concilium lSS, 1980, pp. 131-45.

304
'º'
tensão universalista do cristianismo, querem para si "abso-
reino de Deus veio em Jesus. Por isso, na missão entre os lutos " que incluem tudo o que há de bom, de verdadeiro e
que pertencem a outras religiões, será necessário respeitar as de nobre nas outras religiões. Daí a tentação do "sincre-
exigências de verdadeiro diálogo. Mas não se deveria con- tismo ", que não é perigo ilusório para o próprio cristianis-
cluir da{ que as exigências do diálogo diminuam a urgência mo. O cristianismo, muito ao contrário, é convidado a mos-
do testemunho dado a Jesus como razão de nossa esperança trar sua vocação universal, isto é, sua catolicidade, aceitando
e como fonte de nosso serviço aos homens. Podemos re- plenamente sua particularidade histórica na fidelidade ao "es-
nunciar ao termo "missão", pelo fato de ele evocar muito cândalo " do tornar-se-homem de Deus em Jesus de Nazaré.
uma forma de proselitismo, mas não podemos pura e sim- Devemos superar o triunfalismo de certo universalismo cris-
plesmente substituir o termo "testemunho" pelo termo "diá- tão que pretendia, senão conter todos os valores explicitados
logo" . Nesses diversos trabalhos de evangelização a serviço nas outras religiões, pelo menos levá-los à sua perfeição. Não
da libertação integral do homem, a Igreja sempre dá teste- podemos, com efeito, confundir a universalidade de Jesu~,
munho a Jesus como vida do mundo. como único mediador entre Deus e os homens, com a uru-
Esse diálogo não é só exigência do respeito à liberdade versalidade da religião cristã como fenômeno histórico. As
do outro numa fase da história que fez o aprendizado da to- grandes religiões não-cristãs interpelam a Igr~ja d~ Cristo e
lerância, mas também exigência do respeito às vias miste- a convidam a mostrar cada vez melhor sua idenndade pró-
riosas de Deus no coração do homem. Desde o começo da pria e a originalidade da salvação da qual ela tem a pr?mes-
história, ninguém ficou privado do socorro da graça. Fora sa. f: precisamente enquanto Jesus de Nazaré que Cnsto é
da Igreja visfvel, o Espmto de Deus está agindo também o Senhor do mundo, e é enquanto mensagem particular sobre
no coração dos que procuram salvação na fidelidade às suas Deus e sobre o homem que o Evangelho é boa nova para
próprias tradições religiosas. Devemos, por isso, respeitar o todos os homens. 13
destino espiritual de cada ser humano, que pode corresponder Devemos, portanto, dar testemunho da universalidade
à sua vocação eterna diante de Deus. da salvação em Jesus entre aqueles que pertencem a outras
A condição para verdadeiro diálogo é, ao mesmo tempo, religiões. Mas, ao mesmo tempo, devemos respei~ar os en-
a fidelidade à verdade própria e a abertura à interpelação do caminhamentos particulares que procedem do dest:lno de ca-
outro. O diálogo autêntico é sempre aventura arriscada que da ser humano, o qual, onde se encontra, pode ser solici-
não põe condição inicial. Ele pode então levar a uma "cele- tado pela graça e pelo Espfrito de Deus. O ~espeito às pes-
bração da verdade" que ultrapasse o ponto de vista parcial soas é uma das exigências do amor evangélico. Segundo o
dos interlocutores. f: na experiência do diálogo que posso ensinamento do Vaticano II sobre a liberdade religiosa, "o
descobrir que não aplico em minha vida a verdade para a homem deve submeter-se à verdade como ela lhe aparece
qual apelo, ao passo que o outro pode ser levado a viver em sua consciência e, por isso, não deve ser constrangido a
a verdade em sua vida. O proselitismo consiste sempre em agir contra a sua consciência" ( Dignitatis humanae 3).
querer obrigar o outro, a todo custo, a aceitar a minha con- f: certo que o termo " missão " está onerado por certa
vicção sem respeitar sua vocaç.ão própria. Quando se trata do ressonância triunfalista, e que se tende a substituí-lo pelo
diálogo concernente a uma religião como única via de sal- termo "diálogo", como se uma teologia mais otimista das
vação para o homem, somos sempre os "intendentes" de mediações da salvação fora da Igreja nos levasse a abrandar
verdade que nos ultrapassa. a urgência da missão. Isso significa manter-se preso a uma
No contexto atual do diálogo inter-religioso, todas as 13 C. Duquoc, •Le christianisme et la p~tention à l'universaJit~ · ,
grandes religiões, em parte sob a influência histórica da pre- in Concilium 155, 1980, pp. 75-85.

306 307
concepção estreita, legalista, cclcsiocentrista da missão.14 Os sar que J csus não teve consciência de fundar nova ., religião•
t~tos do Vaticano II afirmam ao mesmo tempo as possibi- cm sentido próprio. Isso significa, em todo caso, que a exis-
lidades de salvação .oferecidas aos homens que ignoram 0 tência cristã não se define a priori. Ela está cm toda parte
Evang~o (d . paruru!armcntc a Lumen gentium 16) e a em que o Espírito de Cristo faz surgir um ser novo do ho-
necessidade de a Igreja empenhar-se na missão. "Embora mem individual ou coletivo.
Deus possa, por vias que ele conhece, levar homens que,
sem ~pa de sua parte, ignoram o E vangelho, à fé, sem a 4. A Igreja como sacramento da salvação
qual é . impossívc:J agradar:lhe ( Hb 11 ,6 ), não obstante para
a Igreja evangelizar contmua sendo obrigaç.ão (d. lCor 9 A coexistência do cristianismo com as rdigiões não-cris-
16) - e também direito sagrado. Por isso a atividade mis~ tãs nos convida a ultrapassar eclesiocentrismo estreito, co-
sionária, hoje como sempre, conserva integralmente seu vigor mo se a missão não tivesse outro sentido que o de aumentar
e sua necessidade " ( AG 7 ) . o número dos que são filiados à Igreja visível. Não podemos
Por isso, inegavelmente é insuficiente dizer que a missão identificar as Igrejas das quais os homens falam com a Igre-
ad gentes se limita ao discernimento dos valores cristãos im- ja que Deus quer. Todos recebem do Criador a mesma vo-
plI~tos em tal religião ou em tal cultura e, port.anto, ao res- cação fundamental, e toda a humanidade está engajada cm
pcno e ao aprofundamento desses valores. Normalmente o história coletiva da qual Deus faz história de salvação. Cristo
testemunho dado ao Evangelho (por palavras e atos ) deve é o Verbo que ilumina todo homem que vem a este mundo.
levar a uma interrogação e eventualmente a uma conversão. Isso significa que não podemos contentar-nos com concepção
Mas esta . conversão coincide com uma criação nova, que muito cronológica da história da salvação. Na ordem onto-
transvalonza, sem destruí-las, as riquezas intrínsecas de cada lógica o que é primeiro é Cristo como "Novo Adão". ~ de
tradição cultural e religiosa. Devemos aprender a articular que dá sentido à história religiosa da humanidade, tanto pré-
o nome cristão no plural. cristã como pós-cristã (d., acima, cap. 10 ) .
As grandes religiões não-cristãs conhecem muitas vezes O que se diz de Cristo, Verbo encarnado, deve-se dizer
n?va vitali~~~· Isso !1~s co~vid~ a refletirmos no lugar das também do Espírito de Cristo ressuscitado. Existe uma his-
diversas r~g.1~ na unrca história da salvação e na originali- tória do Espírito que extravasa o quadro da história de
dade do ~1s~8.°;lsmo como religião. A este respeito, a relação Israd e da história da Igreja, que extravasa também o quadro
entre o cr1snarusmo nascente e o judaísmo é sempre esclare- das grandes rdigiõe.s do mundo.
cedora . para ~ós: Sabcm?s que a nova aliança, inaugurada Pelo menos na ordem das representações, somos prisio-
por Cristo, nao 10trodu21u logo novo culto, novo sacerdócio neiros de concepção linear da história da salvação que ter-
e no~os tem~los: E , na ordem ética, a mensagem de Cristo minaria cm Cristo, para começar de novo. E o judeu-cristia-
é .~s .ª radicaliza~ão do que estava insc.r ito cm germe na nismo de certa teologia ocidental poderia fazer-nos crer que
lei judaica como le1 de amor. A novidade radical se resume a religião cristã é simples alargamento da religião judaica.
~o ~vento Jesus cm si mesmo, com o que de encerra de Seria desejável que se encontrasse a concepção ontológica, e
~édito n~ :cJação com Deu~ e com os outros. Foi a urgên- não historicista, da história da salvação, que fala de uma
aa .da missao entre os genuos que provocou discernimento economia do mistério de Deus cm Cristo e no Espírito. ~ •o
crf~co entre cc~tos elementos do judaísmo e a mensagem de mistério escondido cm Deus desde toda a eternidade" que
Cnsto. Como dissemos acima (d. cap. 10), é permitido pcn- provoca a admiraç.ão de são Paulo. E como não há n;tais
14 CI. Gcffd, •ev~liaation ou dialogue?•, in Parole et Miuion descendência de Abraão segundo a carne, Paulo pode dizer
4S, 1969, pp. 22S-3S. aos atenienses: ·o Deus que adorais é o mesmo que cu
308 309
herdade do Deus que vem. 17 Luc!s resum.e sua missão com
vos anuncio." E justamente quando anuncia à samaritana
as palavras tiradas de Is 61,1-2: ~ espfr~to do Senhor ~tá
que "a salvação vem dos judeus", Jesus profetiza o culto sobre mim, porque Javé me ungiu; enviou-me a anuna_:u
"em espírito e em verdade", isto é, a vinda do Espírito, boa nova aos pobres, a curar os quebrantados de coraçao
que torna caduca toda espécie de culto estreitamente confes- : proclamar a liberdade aos cativos, a libertação aos que
sional tanto em Jerusalém como no monte Garizim. estão presos a proclamar um ano aceitável a Javé." E
Esta concepção da história da salvação é coerente com Mateus us~do Is 35 ,5 e Is 61 ,ls, põe na boca de Jesus
eclesiologia que, na linha do Vaticano II , insiste na Igreja esta re;posta aos enviados do Batista: "?s ceg~~ recuperam
como sacramento da salvação para as nações. 15 A pertinência ista os coxos andam os leprosos sao purificados e os
visfvel à Igreja de Cristo, garantida pela confissão de mesmo a V 'ouvem, os mortos' ressuscitam e os pob. res sao
surdos - eva~-
credo e pela comunhão no corpo eucarístico do Senhor, pode gelizados. E bem-aventurado aquele que não ficar escandali-
ser o sacramento de pertinência invisível a Cristo que trans- zado por causa de mim" ( Mt 11 ,~s):
borde as fronteiras da Igreja visível e que possa coincidir Já no Antigo Testamento, o direito de Deus está a se~­
com a pertinência a grandes religiões não-cristãs ou mesmo viço do direito do homem. Desprezar os pobres, os .º~n­
a ideologias seculares. A missão da Igreja, que prolonga a midos, os aflitos, as viúvas e os órfãos é ofender.º .direito
missão de Cristo, é universal: ela se dirige a todo homem, de Deus. Deus não é somente a fonte de todo o d1reit~, ele
criado à imagem de Deus. A consciência mais viva, hoje, da é também aquele que toma o partido dos mais despojados
particularidade histórica do cristianismo não diminui em na- contra os poderosos. A pregação do reino de Deus por
da a missão universal da Igreja. Mas compreendemos melhor Jesus levou às suas úl~mas c~nseqü~c!as essa promessa mes-
teologicamente que a missão universal da Igreja não depende siânica de libertação, libertaçao definiuva no além d.a mor:e,
do caráter absoluto do cristianismo como religião histórica. 16 no qual Deus fará justiça a todos, mas também liber.taçao
A Igreja, como realidade histórica, não tem o monopólio dos desde esta terra no sentido da igualdade e da fraterru~ad~
sinais do reino: a graça é oferecida a todos segundo vias entre todos os homens. Jesus é, pois, o libertador messiâni-
conhecidas só de Deus. Deus é maior do que os sinais histó- co que 1 em nome dos direitos de Deus, toma a defesa dos
ricos pelos quais ele manifestou sua presença. fracos , dos oprurudos
• •
e dos pobres.IS p ~r outro 1ad?•. ve-se,
"
pelas narrações evangéli~as, que o enga)an;iento decidido d:
Jesus em favor dos humildes, dos margmats, dos ,.fora-da-lei,
dos publicanos e dos pecadores provocou º._es~anda:1o dos
IV. A EVANGELIZAÇÃO DOS POBRES COMO CRITERIO justos. Essa atitude subversiva foi até a ocas1ao imediata de
DA AUTENTICIDADE DA MISSÃO DA IGREJA
seu processo e de sua morte na cruz.
2. Hoje, libertada da lúpótese longamente entretida pe-
1. A missão da Igreja tem por fim "apressar a vinda
do reino de Deus". Ora, um dos sinais desta vinda é que 17 Sobre o tema brblico da pobreza, veja cspecial~ente: A . Gelin,
Les pauvres que Dieu aime (• Foi Vivente•), Ccrf._ Pans, 1967, e 1.-M.
a boa nova é anunciada aos pobres. Jesus anunciou o Evan- R. Tillard, Le salut mystàre de pauvreté, Cerf, ~ar1s, .1968; cf. também
gelho do reino aos pobres e chamou os cativos para a li- A. Bõckckmann, • L' Eglise et lcs pauvrcs, Les 1mpuls1ons du Nouvcau
Tcstament• in Concilium 124, 1977, pp. 53 63.
18 Sobre Jesus como arauto dos direitos de Deus, cf. J. B~anck,
15 Cf. as justas observações de A.-M. Henry, art. cit., col. 346-7. • Lc droit de Dieu veut ta vie de l'homm.e . Lc pr_o.bl~me dcs dro1ts de
16 Cf. o artigo já citado de A. Ganoczy, " Pré1ention à l'Absolu, J'homme dans te Nouveau Testament•, Ul Concil1um 144, 1979, PP·
justification ou obstacle pour l'tvangélisation?", in Concilium 134, 45-55.
1978, pp. 33-43.
311
310
lo vínculo histórico entre o movimento mis . ár' como a Igreja primitiva. A conferência de Puebla falou
pansão colonial I . d er· s1on io e a ex-
d d' a greJa e isto é novamente testemunha do " potencial evangelizador dos pobres" ( n. 1147 ) .20
d: ~spe~ança os .Pobres. Alguns falaram de nova primavera
f &J:ealJa,pelà medida que ela dá provas de sua "opção pre- 3. A evangelização dos pobres pelos pobres é um "sinal
erencr os pobres. " 19 Como pod . d dos tempos" para a Igreja universal. Atualmente as Igrejas
do I . . erta ser e outro mo- do Terceiro Mundo interpelam as do Primeiro Mundo. Não
se as gre1as cristãs finalmente tomaram consci" . d
que ª . defesa e a promoção dos direitos do homC:ª sã e é só apelo à generosidade dos cristãos dos países ricos para
parte rntegrante de sua missão? Nenhuma eli ·- 0 com seus irmãos mais pobres. ! também convite à con-
tenda lutar pelos dir · d h r gtao que pre- versão de toda a Igreja, que sempre deve fazer "memória"
cl . ettos o omem pode permanecer surda
ª? amor uruversal dos pobres em nosso mundo contempo- da identificação de Jesus com os fracos, os pobres, os sem-
r.aneo, atormentado pelo distanciamento cada . voz deste mundo. Os pobres são os interlocutores privile-
tre os aí · , vez maior en- giados de Deus e dirigem uma Palavra de Deus a todas as
p ses ricos e os patses pobres.
Colonizados por "paí . - n Igrejas. Eles lembram-lhes que a proclamação do reino de
ro M d - . ses crrstaos , os países do Tercei- Deus coincide com a rejeição de toda absolutização de um
. un ? ~stao engajados na reconquista paciente de sua
f dependien~a, de sua identidade e de sua dignidade As
gre1as ocais desses países não podem pois · bo
poder humano, trate-se do poder político, do de uma raça
privilegiada, de um povo em particular ou de uma classe
nova do · ' • pregar a a social. Eles convidam, portanto, as Igrejas a rejeitar todo
remo que ve'?l~ sem assumir a causa dos mais de- compromisso com o poder político ou do dinheiro, a fim de
d~~~~dos contra a .rn~ustiça das forças internacionais do serem totalmente livres para cumprir a sua missão. Compete,
ou neocolorualistas. Trata-se, muito ao contrário de modo particular, às Igrejas do Primeiro Mundo inter-
de mostr~, graças ao testemunho das comunidades cri tã ' pelar a consciência dos dirigentes pol1ticos e incitá-los a agir
~ue o :_eui~ de . Deus já se antecipa e já se concre~ n~ sobre os mecanismos econômicos e políticos que têm como
libertaçao histórica dos homens. Por isso como 'á di conseqüência a violação dos direitos do homem contra mi-
não há mui'to sena'd o, quando se trata da' evangeliz J ssemos
- d ' lhões de pessoas.
m~ssas pobres, querer manter a todo custo as velha:~~otas
~as entre "evangelização " e "ação social" De od o- 4. A Igreja é enviada em missão a todos os homens e
cral, na ~érica La_tina, a evangelização das .mass: seºf:r:~ não só àqueles que são pobres no sentido econômico. O
per~pecétJ.~a. de opçao . preferencial pelos pobres. A evangeli- conceito de pobreza, no Evangelho, designa estado de de-
zaçao ierta a partir das comunidades ecl . . d b pendência que vai da pobreza econômica, social e física até
N- b fal d . · es1ars e ase
": _as~ ar b e missão entre os pobres. Deve-se falar d~ a pobreza psíquica, moral e religiosa. Parece que devem ser
ssao o~ ~ res para os pobres" . São os pobres ue evitados dois excessos, o de limitar a "pobreza" ao seu sen-
pela sua solidariedade pelo seu amor mú tu la q •
ção confi t pel ' o, pe sua ora- 20 No documento final do congresso dos teólogos do Terceiro
. an e, a sua esperança na provação manifestam Mundo em São Paulo, lêem-se estas declarações muito fortes: • Na
e anunoam a presença do reino de Deus p'od . América latina a evangelização conduzida pelos pobres encontra espaço
falar d I · · e-se pois
e greJa que nasce ou renasce a partir dos ~br~ privilegiado numa experiência concreta: as comunidades eclesiais de
base. A finalidade da evangelização não é a formação de pequenas
19 Esta prioridade em favor dos b t . elites ou de grupos privilegiados na Igreja. As comunidades cristãs se
no documento ecumênico Mission an~º Eres fgorosamente sublinhada renovam pelo movimento que as leva a procurar os mais explorados
of the Gospel among the r . . vange ism: "The proclamation entre os pobres. A evangelização das massas deve ser feita na pe.n -
and a priority criterion by ~ich1s10ª . sigo of lhe . ~essianic kingdom pectiva de uma opção preferencial pelos pobres• (cf. Foi el diveloppe-
nary engagement today" art c1·1 J~~lge the valid1ty of our missio- ment 76, 1980, nn. 43-4) . Veja também o livro recente de G. Gutiél'TCZ,
' . ., p . .... ' n. 32. A força histórica dos pobres, Vozes, Petrópolis, 1984).
312
313
tido religioso, isto é, a um estado de dependência e de as duas declarações do Senhor, "quem vos ouve a mim ou-
abertura para Deus, e o de entender a .. pobreza n unicamente ve" e "quem os visita a mim visita n , nem, conseqüentemente,
no sentido econômico e Hsico. A pobreza designa a escravi- opor a fraternidade com Cristo pela palavra e pelos sacr~­
dão e a desumanização do homem em todas as suas dimen- mentos à fraternidade com de pela presença entre os mais
sões.11 Os homens das "sociedades da abundância n que ex- pobres. A Igreja ~ estado de missão está presente onde
perimentam a morte de Deus e que sofrem de uma espécie de Cristo a espera misteriosamente nos humildes, nos enfermos
hebetude espiritual, por causa de um meio sob o signo do e nos presos. !! o sentido do juízo escatológico em Mateus
lucro, do sexo, da droga e do álcool, são também pobres 25 ,31-46: "Todas as vezes que o deixastes de fazer a um
que esperam a palavra libertadora do Evangelho. Isso é tão desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer."
certo que as Igrejas do Terceiro Mundo (especialmente as A presença oculta do juiz do mundo nos menores de nossos
da América Latina) estão tomando consciência de sua res- irmãos é critério que julga a autenticidade de nosso enga-
ponsabilidade missionária para com os homens sem Deus jamento missionário e a qualidade evangélica de nossas co-
dos países de cristandade antiga ( cf. a reunião, em Lima, munidades.
em fevereiro de 1981, de bispos, sacerdotes e religiosos de Mais do que nunca a Igreja deve aparecer como o sa-
oito países latino-americanos para refletirem sobre a respon- cramento universal da salvação, adquirido cm Jesus, acima
sabilidade missionária atual da América Latina) . da diversidade das raças, das culturas e das civilizações.
5. !! verdade, portanto, que a palavra libertadora do Contra universalidade ainda abstrata, a Igreja deve dar pro-
Evangelho deve ser dirigida a todos os homens, ricos e po- vas dessa fraternidade concreta com todos os homens . Po-
bres, que estão sob a escravidão do pecado e de alguma de-se dizer que a Igreja se torna universal à medida que
desumanização, qualquer que seja ela. Mas isso não põe assume as causas universais da comunidade humana plane-
em causa a prioridade da missão da Igreja entre os pobres, tária e à medida que, hoje, luta pelos direitos do homem
isto é, entre os oprimidos, os mais despojados e os sem-voz. e se põe a serviço dos mais pobres.
Os que criticam a expressão "opção preferencial pelos po-
bres " não devem esquecer-se de que da não tem só funda-
mento conjuntural, a situação de injustiça do mundo con-
temporâneo, mas também fundamento eclesiológico.12 Ubi V. A PROMOÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM
Christus, ibi Ecclesia: como já lembramos num capítulo pre- COMO REQUISITO DO EVANGELHO
cedente ( cap. 9) , a verdadeira Igreja não se encontra só on-
de a comunidade está reunida para escuta da Palavra de
Deus e para memorial do corpo do Senhor; ela está presente 1. Tomo este título de Paulo VI, que em sua men-
também na fraternidade com os mais humildes, porque eles sagem em união com os Padres do Sín~o de 1974, decl~a
são presença privilegiada de Cristo. Não devemos separar explicitamente: "Ela (a Igreja) acredita ... com toda ª. ~­
meza que a promoção dos direitos do homem é reqws1to
21 Cf. J. Mollmann, L'tglise dans la /orce de l'Esprit c• Cogitatio do Evangelho e que deve ocupar lugar central em seu mi-
Fidei• 102), Cerf, Paris, p. 110. nistério " (Doe. cathol. n. 1664, p. 965) . E em sua decla-
22 Esse fundamento eclesiológico da pobreza ~ fortemente sublí- raç.ão final, os Padres do Sínodo afirmam: "Impelidos pela
nhado por J. Moltmann: •A questão não consiste em saber como
pessoas ou acontecimentos anteriores à Igreja se relacionam com a caridade de Cristo e iluminados pela luz do Evangelho, con-
Igreja, mas como a Igreja se relaciona com a presença de Cristo n• fiamos que a Igreja, trabalhando mais fielmente na evange-
queles que estão 'de fora', famintos, sedentos, enfermos, nus, presos•, lização, anuncie a salvação total do homem ou sua completa
ibid., p. 172.

314 315
libertação e que, desde já, comece a realizá-la" (Doe. cathol. rica, representada pelo Vaticano II, no que concerne à ati-
n. 1664, 1974, p. 964 ). Como dissemos acima esses textos tude da Igreja em relação à Declaração dos Direitos do Ho-
nos co~vidam a não permanecermos numa o~sição entre mem. Depois de mais de um século de mal-entendidos,
e~angelização e ação social a serviço do homem. Pode-se devidos em parte ao contexto "laicista" da explicitação dos
~ q~e~ nos documentos recentes da Igreja, o termo "evan- direitos do homem no século XIX, a Igreja católica se tor-
g~çao tende a abranger toda a atividade da Igreja en- nou , neste último quartel do século XX, a maior defensora
viada ~o mundo, desde a ação caritativa e social até a pro- dos direitos do homem . Os direitos do homem (inclusive
cl~açao do Evangelho na assembléia eucarística. E embora o direito à liberdade religiosa) não são só tolerados pela
seja claro que não se de_ve confundir a salvação escatológica Igreja como também se tornaram "exigência do Evangelho",
do homem com a sua libertação histórica, é digno de nota segundo a palavra de Paulo VI (d., acima, cap. 13) .
~ue o~ Padr;s do Sínodo sobre a evangelização insistam nas 3. Afirmar que a defesa e a promoção dos direitos do
relaçoes mutuas entre a evangelização e a salvação integral homem são exigência do Evangelho é admitir que é impossí-
ou a libertação completa dos homens e dos povos". vel dissociar a evangelização e a promoção humana na única
2 . A t~logia da missão é estreitamente dependente de missão da Igreja. Paulo VI descobre entre as duas laços
~ teolo~a da salvação. Qual seria a concepção da sal- profundos e distingue laços de ordem antropológica, de or-
vaçao subJacent~ ~ uma a~vidade missionária que, no s~ dem teológica e de ordem evangélica. "Laços de ordem an-
culo XVI, cons1sna essenoalmente em •livrar as almas da tropológica, porque o homem a evangelizar não é um ser
~ndenação eterna" ou "em agregar à Igreja católica o maior abstrato, mas está sujeito às questões sociais e econômicas.
numero possível de novos batizados" (d. a obra da Santa Laços de ordem teológica, uma vez que não se pode disso-
Infância)? .A teol?gia .da missão é orientada também por ciar o plano da criação do plano da redenção, que atinge as
uma teologia da históna. Devemos identificar a história da situações concretas da injustiça a combater e da justiça a
salvação co'!1 ª. hist~ria profana ou, pelo menos, mostrar a restaurar. Laços dessa ordem eminentemente evangélica, que
sua convergenoa? D1spomos, há mais de trinta anos de en- é o da caridade: como, com efeito, proclamar o mandamento
saios teológicos diversos, que vão do "otimismo evoÍucionis- novo sem promover, na justiça e na paz, o verdadeiro e
ta" ª? ~pess~smo a~ptico" (d., acima, cap. 9). Boa autêntico crescimento do homem?" (EN 31 ).
apreoaçao crítica dessas diversas tendências pode ser encon- Podemos alongar-nos um pouco, meditando sobre as
tr?d~ na declar~ção sobre a promoção humana e a salvação relações da Igreja com o mundo. Procederemos em três
cnsta, da Com.Lssão Teológica Internacional (Doe. cathol. tempos.
n. 1726, 1977, pp. 761-8).
a. O mundo é mais do que o quadro da construção
Não é aqui, nesse breve capítulo, o caso de mostrarmos do reino de Deus: ele tem um sentido imanente em si mesmo.
~m a ampli~o d~Lável, o q.uant? uma melhor compreen~
sao da salvaçao cnsta e da bistóna da salvação está reno- Devemos manter o termo .. mundo" com toda a riqueza
vando a teologia da missão. Basta indicar em eco com a de sentido que ele tem em são João. Ele pode designar o
Evangel~i nuntiandi e a Mission and Evang~lism, o quanto a mundo do pecado, que se recusa a acolher o Verbo. Mas
concepçao atual .da missão é condicionada pela consciência designa também a primeira criação ao que ela tem de bom
nova que a Igreja assume de sua responsabilidade hist6rica como dom de Deus, e a humanidade enquanto chamada à
perante a estrutura de nossas sociedades e o futuro do ho- reconciliação com Deus. Quando se fala das relações entre
mem. Essa nova consciência é indissociável da virada hist6- a Igreja e o mundo, o "mundo" é entendido nesse terceiro

316 317
sentido, o mundo histórico, chamado à rccoociliação com da cnaçao pdo homem e a realização do reino de Deus,
Deus. Enquanto histórico, o mundo é ambíguo: de traz sem- sem que essa rdação tenha sua expressão visível no plano
pre cm si a tentação de se bastar a si mesmo. Mas enquanto da Igreja como instituição. Embora o termo ~ co~vergência •
antigamente, na linguagem da espiritualidade cristã, o termo seja muito forte, podemos falar de certa conunwdadc entre
• mundo• desjgnava sobretudo uma realidade negativa, hoje a construção de um mundo mais humano, conforme o de-
a Igreja tem consciência de que o termo • mundo• pode de- sígnio de Deus, e a vinda do reino de Deus.
signar o pro;eto humano coletivo (d. a explicitação pro- Se tomarmos a sério a senhoria de Cristo, poderemos
gressiva dos direitos fundamentais da pessoa humana), que dizer que todas as vezes que o .homem trabalha para a ~
é diferente do projeto escatológico, do qual a Igreja é teste- da primeira criação e para a libertação do homem, de atuali-
munha, mas que é projeto legítimo e não necessariamente za, de cena forma, as energias da ressurreição de Jesus cn·
coincidente com projeto de auto-suficiência. quanto vitória sobre a morte e sobre t<>c:!as as f?~s do
b. A construção do mundo não desemboca diretamente m1da. A Igreja como sacramento da salvaçao é, pois, para
no reino de Deus. as nações", o sinal visf vd de mistério mais vasto do 9uc a
s6 comunidade dos remidos, a saber, a presença gratuita de
Com efeito, uma coisa é a libertação e a promoção do Deus cm toda a criação e a promessa de libertação definitiva
homem no nfvd da hjstória e outra a comunhão dos ho- para todos os homens.
mens com Deus num futuro erans-histórico. Devemos excluir Em todo caso se formos atentos a essa unidade da
qualquer rdação de causa e efeito entre as lutas históricas Igreja e do mundo 'no desígnio total de Deus a respeito do
pela salvação do homem e pela salvação escatológica. Embo- homem veremos o quanto é artificial querer, a todo custo,
ra a história profana e a história da salvação sejam inse- dentro 'da missão da Igreja, estabelecer fronteiras entre ta·
paráveis, a história tout courl não é o sacramento eficaz refas ditas "espirituais", de pura evangelização, e tarefas
da vinda do reino de Deus. •A graça é graça, e a história ditas • temporais• , de serviço aos homens. Retomando a ex-
não é fonte de salvação. "u • O reino de Deus" dirige •a pressão já citada de M.-0. Chcnu, crata-se de "cnca.r:nar o
história e supera de modo absoluto todas as possibilidades Evangdho no tempo ". E essa cocamação não se realiza s6
de cumprimento terrestre" ( Comissão lntcmacional de Teo- mediante o testemunho explícito a Jesus, mas também por
logia). JusWDcnte por isso a evangelização, como anúncio meio da transformação do homem e da sociedade, no sentido
explícito da salvação adquirida cm Jesus, não perdeu nada do Evangelho.
de sua urgência.
e. Exute misterioso nexo entre os processos hist6ricos
de libertação humana e a realização do reino. CONCLUSÃO
Citei acim3 (cap. 9) as palavras dos teólogos do Ter-
ceiro Mundo reunidos cm São Paulo: •A realização do Reino
como dcslgnio último para a sua criação se experimenta nos Encerrando essas poucas reflexões sobre os traços mais
processos históricos de libertação humana" (n. 33). Isso característicos da missão cristã, julgamos dever insistir na
oos remete à idéia de rdação misteriosa cntte o acabamento urgência da missão da Igreja neste fim do segundo milênio.
Justamente por ser a test~unha do Deus vive;>. e li-
23 Cf. M.·D. Chenu, •1..es 1ianes dcs temps•, io Nouv. Rev. Thh>I., bertador, a Igreja toma consciê.noa de sua responsabilidade
jan. de 1965, p. 36. hlstóriêa cm relação ao futuro do homem e está sempre

318 319
pronta a trabalhar com todos os homens de boa vontade NOTA BIBLIOGRAFICA
para a edificação de um mundo menos desumano, no qual
os direitos inalienáveis de todo homem à liberdade, à digni-
dade e ao trabalho sejam reconhecidos. A missão da Igreja
é da ordem do testemunho: da não se limita à reunião his- t O cap. 1 retoma e completa o texto de exposição feita no
tórica e visível do maior número possível de pessoas, como encontro do Institui Catholique de Paris, cujas atas foram publicadas
se todo~ fo~sem chamados, no tempo histórico, a fazer parte sob o titulo: Le Véplacement de la théologie, Bcauchesne, Paris, 1977,
da Igreja visível. Por ser testemunha de esperança que vai PP· 51-64.
além do mundo, a Igreja é também testemunha, nesta terra, 2 O cap. 2 reproduz o texto de conferência pronunciada no quadro
do CERlT (Centre d Etudes et de Recherches lnterdisciplinaires en
da esperança dos pobres. ·anéolog.e), de Estrasburgo, e publicado sob o título: "La crise de
l'herméneutique et ses conscquences pour la théologie•, in Revue
Assim, é sempre possível o testemunho no sentido do des Se. Rei. 52, 1978, pp. 2~96.
Evangelho, mesmo quando - nas sociedades secularizadas
3 O cap. 3 constitui o texto inédito de conferência pronunciada
e pl~ilistas do Ocidente ou nos países nos quais a religião no quadro do programa anual de 1982 do CERIT, de Estrasburgo.
dom.mante é outra - os tempos não estejam sempre ma- o qual serã objeto de obra coletiva a aparecer nas Edi tions du Cerf
duros para uma palavra clara e explícita sobre Jesus. Resta sob o título La tl1éologie à l'épreuve de la vérité.
o testemunho da vida de cada cristão e o das comunidades 4 O cap. 4 retoma e completa artigo que apareceu inicialmente
cris~. Mas essa "encarnação do Evangelho no tempon a com o título de · uberté et responsabilité du théologien ·, in Le Supplé-
partir de nossas escolhas, de nossas lutas, de nossas solida- ment 133, 1980, 282-93.
riedades, de nossos devotamentos, não diminui em nada a 5 O cap. 5 é a retomada ~e contribuição à ~bra col~tiva: ~
témoignage (encontro romano editado por E. Castel11), Aub1er, Pans,
urgência da evangelização no sentido de testemunho explí- 1972, e publicada sob o título: • Le témoignage comme expéricnce
cito a Jesus. De outro modo, sejam quais forem as pos- et comme langage·.
sibilidades de salvação oferecidas a todos os homens de boa 6 O cap. 6 reproduz o texto de ".°ntribuição à obra. coletiva:
vontade, seria dar pouca importância ao poder libertador Religione e Politica (encontro romano editado por E. Castelh). Pádua.
da pessoa e da palavra de Jesus nesta terra. 1971!.
7 O cap. 7 retoma o texto, profundamente remanejado, de artigo
A Igreja de Cristo não deve ser somente testemunha que apa~eu sob o título: " La crise modeme du théisme· , in Le
das exigências de justiça inscritas no Evangelho. Ela deve Supplément 122, 1977, pp. 357-79, e que in1c1almcnte fora objeto de
ser também a testemunha do reino que vem e que coincidirá conferência pronunciada num cncon1ro mternac1onal da abadia de Se·
nanque, entre judeus, cristãos e muçulmanos.
com a salvação integral do homem. Com efeito, não é só
de justiça, de pão e de amor que os nossos contemporâneos 8 O cap. 8 reproduz o texto de artigo publicado na revista
têm fome. Eles sentem também uma necessidade cruel de Conci11um lbJ , 1981 , pp. 57-77.
sentido. A todos os homens em busca de razões para viver, 9 O cap. 9 retoma e completa o texto ~e exposi~o feita nui:n
encontro organizado em maio de 1982 no. lnstuut Cathohque d.e P~ns
os responsáveis pela missão da Igreja devem revelar o nome por iniciativa da Mission Ouvriêre, publicado na Revue de l Jnst11ut
de sua esperança, Jesus Cristo. Ca1hol1que de Paris 3, 1982, pp. 3-22.
10 O cap. 10 modifica e completa texto saldo inicialmente no
Le Supplément 140, 1982, pp. 103-29, sob o título: • Lcs exigcnccs
d 'unc foi critique face à une culturc non chrétiennc•. e que teve por
origem uma conferência feita . cm 1981 , e~ _Grottafcrrata quando das
/ ournées Romaines, que reuniram os dom1mcanos que trabalham em
terras do islã.
321
320
11 O cap. 11 retoma e completa o texto de contribuição à obra
coletiva: Hermi neutique de la úcu/arisation (encontro romano edi-
fNDICE
tado por E. Castelli) , Aubier, Paris, 1976.
5 Introdução
12 O cap. 12 desenvolve texto inédito, cujo ponto de panida foi
uma conferência pronunciada em Roma, em setembro de 1978, na
reunião anual do CECC (Catholics in Europe Concemed with China) . Primeira parte
13 O cap. 13 retoma o texto inédito de conferência pronunciada DA TEOLOGIA COMO HERMEN~UTICA
em mai" de 1982, no Terceiro E'lcontro lslâmir~ristão de Tunes:
• 1slã-<:ristianisrno e direitos do homem •.
14 O cap. 14 retoma e completa o texto de comunicação redigida
1. 00 SABER A INTERPRETAÇÃO
a ped:do do Secretariado para a Unidade, para servir na redação do
Memorandum católico sobre a missão, endereçado ao comitê central 17 I. As causas do deslocamento atual da teologia
encarregado da preparação da Assembléia Ecumênica de Vancouver
(julho de 1983) . 19 A. A contestação do saber histórico
21 B. A contestação do saber especulativo
23 II. Conseqüências da orientação hermenêutica
da teologia para a prática teol6gica
23 A. Um tratamento novo dos lugares tradicionais
24 B. Uma articulação nova entre a Escritura e o Dogma
26 C. O deslocamento do ato teológico como "intellectus
fidei n
27 D. A emergência de lugares novos

2. A HERMEN!UTICA EM PROCESSO
32 I. A crise da hermenêutica
33 A. A hermenêutica e a crítica das ideologias
34 B. A leitura contra a interpretação
41 C. Hermenêutica e gramatologia
44 II. O deslocamento atual da hermenêutica
44 A. O destino da hermenêutica teológica
47 B. O deslocamento da hermenêutica segundo Paul
Ricoeur
53 III. As implicações teol6gicas do deslocamento atual
da hermenêutica
54 A. O objeto da teologia como o~jeto textual .
57 B. Tradição e produção: a teologia como genealogia
59 C. Hermenêutica e teologia política
322 61 Conclusão
3 . .IX>GMATICA OU HER.MfilffiUTICA? 6. A HE~UTICA AttIA DO TITULO
FILHO DO HOMEM l:.M ERNST BLOCH
64 I. A passagem do modelo dogmático para o modelo
hermenêutico 128 I. A investidura de Javé por Jesus ou o êxodo de Deus
70 II. O alcance hist6rico e teol6gico da exclusão 132 II. O advento do reino de Deus como reino Urrestre
do modelo dogmático
132 A. O primordial é o reino e não o amor
70 A. A explosão da ideologia unitária do sistema 134 B. O advento de um reino de liberdade sobre a terra
dogmático 135 C. O reino de Deus se realiza somente em estado
73 B. Uma nova epistemologia teológica de germe
80 III. A verdade da teologia como linguagem 137 III. A mudança dialética do título cultual de Filho
interpretativa de Deus para o titulo escatol6gico de Filho
81 A. A verdade da teologia é da ordem do testemunho do Homem
83 B. A verdade da teologia é radicalmente histórica 139 IV. Valor da exegese do título de "Filho do Homem•
85 C. A verdade da teologia como expressão do consenso segundo E. Bloch
eclesial 143 Conclusão
4. A LIBERDADE ~UTICA 7. DO DEUS DO TE1SMO AO DEUS
DO TEOLOGO CRUCIFICADO
90 I. A função pr6pria da teologia
146 I. A situação do discurso sobre Deus hoje
95 II. O sentido de regra de fé na Igreja
96 A . A expressão "regula fidei" 147 A . A contestação do Deus da metafísica
97 B. As instâncias da regulação da fé 153 B. A contestação da função social de Deus
101 C. A questão dos critérios 156 II. A procura do nome pr6prio de Deus
Segunda parte 158 A. Cristo como universal concreto
160 B. Uma transcendência que reconcilia a imutabilidade
O TESTEMUNHO INTERPRETATIVO DA FE de Deus e o devir
5 . A RESSURREIÇÃO DE CRISTO 164 III. Deus como boa nova para o homem de hoje
COMO TESTEMUNHO INTERPRETATIVO 165 A. Deus, o antidestino
106 I. Na origem do termo •testemunha• 167 B. Um Deus solidário
106 A. "Testemunha" na linguagem corrente
108 B. •Testemunha " na linguagem do Novo Testamento 8. "PAI" COMO NOME PROPRIO DE DEUS
111 II. Experiência e linguagem no testemunho 172 I. A revelação bíblica do Deus Pai
da ressu"eição 175 II. Da atribuição à invocação
178 III. O Deus Pai ou a • vida diferenciada • de Deus
111 A. As linguagens da fé pascal
114 B. Experiência histórica e linguagem 178 A. Um Deus diferente
119 c. o testemunho como "evento de palavra" 179 B. A semelhança na diferença
122 III. O testemunho dos crentes hoje 181 Conclusão
9. EXPLOSÃO DA HISTORIA E SENHORIA 224 III. As condições de testemunho profético
DE CRISTO
184 1. O contexto atual de reflexão cristã sobre a hist6ria 225 A. O testemunho como vitória da fé
227 B. O testemunho como ato profético
185 A. Crise de confiança no sentido da história 227 c. o testemunho deve ser situado historicamente
187 B. A consciência cada vez mais viva 228 D. O testemunho profético não pertence
da responsabilidade histórica da Igreja só aos cristãos
em relação ao futuro do homem 229 E . Os critérios de autenticidade do testemunho
188 c. Deslocamento das teologias da história
193 II. Unicidade de Cristo e unidade da hist6ria 11 . A FUNÇÃO IDEOLÓGICA
DA SECULARIZAÇÃO
196 A. A história feita pelos homens recebe seu sentido 235 1. O vocabulário da secularização e a função
último da humanização de Deus em Jesus Cristo da ideologia
200 B. A Igreja é o sacramento da presença do Espírito 240 II. A secu/ar'fr.ação como produto hist6rico
de Deus em toda a criação e em toda a história da fé cristã
humana 249 III. A função ideo/6gica da secularização
202 C. Há uma "convergência" entre a libertação 254 IV. A secularização e o futuro do cristianismo
dos homens e dos povos na história e a vinda
do reino 12. O CRISTIANISMO COMO VIA
204 Conclusão 261 1. O cristianismo como religião do ~xodo
261 A. O êxodo como símbolo-chave da religião de Israel
Terceira parte 263 B. A lei como caminho do homem
A PRATICA DOS CRISTÃOS REINTERPRETA 264 c. o cristianismo como novo êxodo
O CRISTIANISMO 266 II. Cristo como via e a imitação de Cristo
10. O TESTEMUNHO DA ~ NUMA CULTIJRA 266 A. Caminhar seguindo a Cristo
NÃO-CRISTÃ 267 B. Da imitação à filiação
208 1. Fé que passou pela prova critica
270 c. o seguimento de Jesus como vocação
para a liberdade
209 A. As dificuldades do crer inerentes à nossa situação 273 III. O cristianismo como ortopraxia
histórica
213 B. A interpretação como elemento constitutivo 273 A. O sentido de " fazer a verdade"
da fé crítica 274 B. O cristianismo se define primeiramente pela prática
evangélica
217 II. O encontro do cristianismo com a diversidade
das culturas 276 Conclusão
218 A. O princípio fundamental da inculturação 13. POR UMA INTERPRETAÇÃO CRISTÃ
220 B. A originalidade do cristianismo como religião :COS DIREITOS DO HOMEM
222 C. A particularidade histórica do cristianismo
e sua vocação para o universal 279 I. Hist6ria ambígua
280 A. A aliança ela Igreja com o Estado
283 B. O anátema contra o liberalismo
286 C. A adesão da Igreja católica à causa dos direitos
do homem
288 II. A Carta dos Direitos do Homem e a revelação
bíblica
289 A. O fundamento teológico dos direitos do homem
292 B. A fé monoteísta e os direitos do homem

14. A REINTERPRETAÇÃO DA MISSÃO


DA IGREJA
298 I. O vocabulário da missão e da evangelização
300 II. A missão como vocação de toda a Igreja
303 III. A inculturação como exig~ncia da evangelização
310 IV. A evange/Qação dos pobres como critério
da autenticidade da missão da Igreja
315 V. A promoção dos direitos do homem como requisito
do Evangelho
319 Conclusão

321 NOTA BIBLIOGRAFICA

EI) Impresso na Gráfica de Edições Paulinas - 1989


Via Raposo Tavares, Km 18, 5 - 05550 SÃO PAULO

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