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A LAICIDADE DO CRENTE.
A relação com o mundo no
evangelho de Jesus e de Paulo *

THE SECULARITY OF THE BELIEVER. The relationship with the world


the Gospel of Jesus and of Paul

Giuseppe Barbaglio**

RESUMO: Os cristãos vivem no “mundo”, com todos os outros homens. Por causa de sua fé, fazem
uma experiência peculiar de “mundaneidade. O autor faz exegese teológica de vários textos – 111
bem difíceis, como diz ele - em que S. Paulo examina a questão da presença deles no mundo, ou
seja na política e na sociedade. Situa inicialmente a comunidade dos crentes dentro da historia “e
do mundo, chamando a atenção para o significado especial desse presença como criaturas novas
e livres em Cristo - livres do mundo idolátrico e da lei de Mosaica. Ao mesmo tempo, morrem
com Cristo para a vida egocêntrica e passam a uma solidariedade entre crentes e mundo. O
novo culto que prestam a Deus não depende mais de sacrificios rituais, ao mesmo tempo o autor
explora o significado da morte de Cristo como sacrificio. E por fim conclui que o cristianismo que
vai bem além do aspecto confessional.

PALAVRAS CHAVE: “Mundaneidade”; Liberdade; Lei; Morte; Sacrifício.

ABSTRACT: Christians live in the “world”, with all the other men. Because of their faith, they go
through a peculiar experience. The author makes theological exegesis of several texts – indeed
difficult texts - -in which St. Paul examines the issue of their presence in the world, namely the
presence in politics and in society. Initially he situates the issue of presence of believers within the
story. Highlights the new world created in Christ, where he dies for the ego-centered life. Shows
how Paul understands the new freedom in Christ, solidarity among believers and the world, and
the new worship that pleases God. Recognizes the limits of sin, of which Christ frees us. Finally,
the author emphasizes, as Paul points to one Christianity that goes well beyond the confessional
aspect.

KEY WORDS: Freedom; Identity; Sin; Solidarity;

* Texto póstumo publicado e autorizado pela Associazione Culturale "don G. Giacomini,


promotora de Incontri di "Fine Settimana"percorsi su fede e cultura Anno 35º - 2013/2014
** Giuseppe Barbaglio:presbítero, teólogo e biblista italiano,.doutor em teologia (Pontificia
Università Gregoriana), licenciado em Ciencias bíblicas (Pontificio Istituto Biblico, Roma), doutor
em filosofia (Università di Urbino). Lecionou Sagrada Escritura no Seminario di Lodi e na Facoltà
Teologica da Italia Setentrional, Desenvolveu pesquisas bíblicas sobre o ambiente histórico do
Novo Testamento, sobre a origem da Igreja, sobre o tema do "Jesus histórico". Faleceu em Roma,
em 2007.
Eu escrevi há vinte anos um livrinho sobre a cidade do crente. Se hoje tivesse
que retornar ao tema, evitaría o termo “cidade”, muito polissêmico e ambíguo,
substituindo-o com um termo mais em sintonia com os testemunhos bíblicos,
aquele de “mundaneidade”. A experiência dos crentes, dos cristãos no mundo,
é uma experiência “mundana”. O termo “mundaneidade”, mais que aquele de
“laicidade”, está em sintonia com os testemunhos bíblicos. Os textos de Paulo
sobre este tema, são bastante difíceis, mas se lidos um pouco atentamente, se
tornam estimulantes também para nós.

1. O “mundo” para Paulo

Antes de tudo, Paulo para “mundo” usa dois vocábulos que derivam do
judaísmo grego, não da tradição hebraica mais antiga - que fala de mundo como
criação de Deus. Sobretudo “kosmos”: o mundo como realidade bela e ordenada
e depois “aion”, isto é: “o mundo em sua duração”. Nós diríamos :”as gerações do
mundo que se sucedem”.
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Especialmente em Jesus e Paulo, o problema do mundo não é tanto saber
que coisa é o mundo, que coisa é o tempo; mas, o relação entre nós e mundo.
Ou, em outra perspectiva, que coisa querem dizer o tempo e o mundo para nós.
Eu escolhi dois textos um pouco difíceis e também à primeira vista ambíguos
em Paulo, para conseguir dizer alguma coisa a respeito deste argumento assim
complexo: a inclinação dos crentes no mundo, isto é a presença dos crentes na
politica e na sociedade . São textos difíceis, mas que é preciso ter a coragem de
afrontar, porque são também muito importantes. Certo, Paulo não é o único,
mas é uma presença bastante significativa das Escrituras cristãs .

2. 1 Coríntios os 5,9-11: a comunidade dos crentes dentro da


historia

“Eu vos escrevi na minha carta que não vos misturásseis com os devassos,
mas não pretendia em todo caso referir-me aos devassos deste mundo ou aos
avarentos, ladrões, idólatras. Pois de outro modo deveríeis sair do mundo. Eu vos
escrevi pelo contrário, para não vos associardes com quem portando o nome de
irmão é devasso ou avarento ou idólatra ou maledicente ou bêbado ou ladrão:
não comais nem mesmo junto com tal pessoa.”
A primeira Carta aos Corintos foi enviada para a igreja que Paulo tinha
fundado em Corinto. Corinto era uma cidade portuária, e à época muito
importante. A Corinto grega tinha sido destruída pelos Romanos pelo ano 150
aproximadamente antes de Cristo, mas depois do ano de 49 Júlio Cesar a refundou
como colônia romana. Corinto representava o encontro de duas culturas, a
grega e a romana. Para ali, confluíam vários grupos sociais. Enquanto Atenas, que
naquele período estava em crise, Corinto era a grande cidade, onde se faziam
também os jogos panelênicosi (não só em Olimpia!). Naquele mundo cultural
muito vivo e diversificado assistíamos ao primeiro encontro, ou desencontro em
alguns aspectos, de uma comunidade cristã no mundo, numa cidade a cultura
metropolitana.
Numa primeira carta, que estava perdida, para a comunidade de Corinto
- Paulo a tinha fundado pelo ano 50 - continha esta surpreendente exortação: “
vós deveis evitar o encontro com os pornoi”. Os pornoi eram os devassos. Porém
a palavra pornos não quer dizer só o devasso sexual, mas também, segundo a
polêmica judaica, o idólatra. Os hebreus chamavam de “imorais” aos pagãos que
adoravam as divindades. Pois que em Corinto - que era também uma cidade
eticamente muito corrompida - o significado desta palavra variava entre “idolatria”
e “licenciosidade ético-moral, sexual”. 113
Então os crentes de Corinto tinham respondido a Paulo, perguntando-lhe
como seria possível para eles - que eram um pequeno grupo de 40-50 pessoas
ao máximo numa cidade que podia ter trezentos/quatrocentos mil habitantes -
evitar o encontro com os idólatras, com os devassos, com os pagãos. E Paulo, na
resposta retorna sobre a sua exortação precedente. Ele esclarece que houve um
equivoco, uma incompreensão, afirmando que não se referia aos devassos deste
mundo, mas aos devassos que são os irmãos, que pertencem à comunidade. Se
os crentes, de fato, não devessem misturar-se com a sociedade, deveriam sair do
mundo. Ele afirma portanto claramente que a existência da comunidade cristã
é uma existência “na “ sociedade, “no” mundo. É uma experiência de quem “faz
parte” desta sociedade, desta cidade, do mundo. A existência cristã não é uma
existência que se deve viver num espaço separado, acima da sociedade, mas
dentro da sociedade, assumindo a rede de relações, assumindo a mestiçagem.

3. A carta aos Gálatas: livres do mundo idolátrico e da lei de


Mosaica

O segundo texto muito mais empenhativo e problemático compreende


varias passagens da carta aos Gálatas. Trata-se de uma carta encíclica, porque
enviada a diversas comunidade da Galácia. A região gálata estava habitada
desde o ano 200 a.C. pelos Gálicos, pelos Celtas, que, vindos da França, se
fixaram no centro da penísula da Anatolia, dando vida a um reino. No ano 25,
com a morte do último rei dos Gálatas, Aminta, o reino passou aos Romanos,
com os quais tinham depois constituído com as regiões mais vizinhas a famosa
província de Galácia, com capital Ancira, a atual Ankara. Paulo tinha fundado
algumas comunidades nesta região , comunidades que depois receberam a
visita de missionários judeu-cristãos tradicionalistas, ou melhor reacionários.
Estes missionários afirmavam que o evangelho da liberdade de Paulo era
um evangelho insonso, apresentado assim para ter mais facilmente a adesão
dos Gálatas, enquanto o evangelho verdadeiro de Jesus Cristo exigia também
a circuncisão (se voltavam para os pagãos) e portanto a observância da lei
mosaica.
Paulo escreve a estes Gálatas, que gozavam da liberdade de cristãos,
procurando detê-los em sua recaída na religião mosaica, onde Cristo era somente
um complemento. Cristo, nesta concepção, vinha inserido dentro de um esquema
que reservava a salvação exclusivamente aos que tinham a circuncisão, isto é, que
observavam a lei mosaica.
114 No início deste texto muito difícil, e também ambíguo, diz: “Eu Paulo ... às
igrejas da Galácia. Graças a vós e paz de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo, o
qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados ...” (Gal 1,4)
Nesta afirmação aparece uma fé cristã “prepaulina”, própria dos judeu-
cristãos convencidos de que os sacrifícios de expiação do templo de Jerusalém
não eram mais o sacramento do perdão, porque substituídos pela morte de Jesus,
o novo sacramento do perdão. Os tradicionalistas judeu-cristãos retinham porém
que Jesus devia ser compreendido desde a religião mosaica, enquanto Paulo
proibia nesta compreensão uma diminuição da força salvifica de Cristo. Para
Paulo a salvação não está no perdão dos pecados, não depende da conversão;
mas é algo muito mais radical. De fato, o perdão dos pecados só resolve a
situação no momento. E então Paulo, iniciando a sua carta, para persuadir os
seus ouvintes sobre a fidelidade à tradição, apesar de toda a sua radicalidade,
retorna antes de tudo à fórmula tradicional protocristã da morte de Cristo como
sacramento do perdão dos pecados no lugar dos sacrifícios do templo, mas para
dizer logo depois onde está exatamente a ação de Cristo: “a fim de que ele nos
resgate deste mundo mau”.
A salvação portanto não está tanto no perdão dos pecados mas em um
evento de libertação e de resgate “deste mundo mau”. A expressão “este mundo”
é bastante ambígua em Paulo. Em geral tem valor negativo, pejorativo. Não
indica o mundo na sua fisicidade, mas na sua relação com os homens e portanto
se refere à história, à sociedade. Que este mundo seja mau, Paulo o precisará no
capitulo quarto da carta: este mundo é uma realidade negativa sobretudo porque
é um mundo idolátrico.
As pequenas comunidades cristãs como aquela de Corinto ou como aquelas
presentes no império romano estavam em contato com uma humanidade
idolátrica, uma humanidade que dobrava os joelhos diante da realidade criada,
como se fosse Deus. Então em Gálatas 4, referindo-se a estes crentes da Galácia,
que se tinham convertidos à sua pregação, Paulo afirma: “Um tempo vós que não
conhecíeis (aqui conhecer significa reconhecer, não é um ato de conhecimento
intelectual ) o Deus criador, éreis escravos dos que não são tais para natureza” (Gal
4,8)
O ambiente em que Paulo se comunica com as suas comunidade é idolátrico,
é um mundo escravo destas divindades, que na realidade são uns “zé ninguém”, e
que tinham consistência somente para aqueles que as reconhecessem.
Temos um texto paralelo em 1Coríntios, 8, 5-6, em que Paulo diz:
“ se bem que existam aqueles que são considerados deuses seja no céu seja na terra
- como de fato existe uma quantidade de senhores -, para nós ao contrário existe um
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só Deus, o Pai... e existe um só Senhor, Jesus Cristo”.
Existem muitos deuses e muitos senhores reconhecidos, adorados ,
venerados, a quem se serve, mas nós crentes em Cristo reconhecemos um só
Deus, o Pai, e um só Senhor, Jesus Cristo. Então os deuses eram os chefes das
nações, os imperadores, os senhores, que tinham o poder de vida e de morte
sobre todos. “Ele nos resgatou, libertou deste mundo mau” quer dizer então que
Cristo nos libertou de um mundo enquanto expressão idolátrica, enquanto
ambiente onde se dobram os joelhos diante da realidade humana, criada como
se fosse deuses, de um mundo escravizado.
Hoje o mundo idolátrico se manifesta em novas formas, por exemplo no
grande fetiche do mercado. Fala-se das “leis do mercado”, do “livre mercado”
como se fossem o decálogo! É um mundo idolátrico, onde se adora o mundo,
onde as pessoas são sacrificadas ao mundo, onde as pessoas se ajoelham diante
das leis do mundo. E Paulo nos diz: “Cristo nos resgatou deste mundo idolátrico”
esta é a primeira característica.
Uma segunda característica diz respeito à circuncisão e à lei mosaica. Paulo
escreve aos crentes de Galácia, que queriam fazer-se circuncidar, porque os
pregadores judeu-cristãos adversários de Paulo, diziam que se não se fizessem
circuncidar, eles não poderia receber a salvação. Cristo não basta, deve-se observar
também a lei mosaica.
Paulo põe uma equivalência entre a idolatria do mundo pagão (“aqueles
que não conhecem Deus porque são escravos de divindades que não são
realmente tais”) e a adoração da lei própria do mundo judaico. A lei mosaica é
que é considerada não na sua derivação divina, mas enquanto elemento que
constitui o centro da existência das pessoas. Os pregadores judeu-cristãos de fato
sustentavam que sem a circuncisão, isto é sem a assunção da lei mosaica, não
existe salvação. Deste modo, a lei, e portanto a religião mosaica, foi criada por
Deus neste mundo (os homens se definem em relação à posse ou à privação da
lei mosaica).
A lei mosaica, a circuncisão, era por sua natureza um fator de discriminação,
porque aqueles que tinham a lei e a observavam, eram acolhidos por Deus,
estavam no caminho da salvação, enquanto aqueles que não tinham a lei
mosaica, os gentios, os pagãos, eram ipso facto considerados pecadores. O
próprio Paulo diz isso em Gálatas 2, quando se dirige a Pedro, após a cisão da
comunidade de Antioquia. Antioquia era uma comunidade mista, onde as regras
116 da dietética e da tradição hebraica não eram observadas, e todos os crentes
comiam juntos na liberdade cristã. Depois que chegaram alguns de Jerusalém,
mandados por Tiago, irmão do Senhor Jesus , que sustentavam que não se devia
comer juntos porque existiam regras a serem respeitadas. Pedro tinha cedido e se
colocava ao lado daqueles judeu-cristãos circuncidados que comiam segundo
tais regras, deixando sós os pobres pagãos convertidos, causando assim uma
cisão na comunidade. Paulo afirma ter desafiado Pedro de peito aberto, porque
o seu comportamento era merecedor de condenação e fonte de escândalo.
Assim reprova a Pedro: “Nós somos judeus por natureza e não somos pecadores
provenientes do mundo dos gentios.” (Gal 2,15)
Enquanto os gentios estavam na situação de serem pecadores (não porque
tivessem cometido pecados, também os judeus não os cometeram), os judeus,
no interior do sistema mosaico, tinham os meios para obter o perdão através do
arrependimento e dos sacrifícios expiatórios.
Podemos assim compreender agora plenamente o: “Ele nos libertou deste
mundo mau”: Cristo nos libertou deste mundo idolátrico, onde impera a idolatria,
a adoração das coisas, das pessoas, dos chefes, das criaturas. Cristo nos libertou
deste mundo onde vale a lei da discriminação produzida pela lei mosaica, deste
mundo onde se adora a religião.
Para além da religião civil, Paulo diz que Jesus nos resgatou deste
mundo onde a religião mosaica, (aliança sinaítica, ritos de expiação) foi
discriminante nos confrontos com aqueles que eram por condição excluídos.
O evento libertador de Cristo é portanto um evento que liberta do mundo
da idolatria e do mundo das religiões (também da religião católica!), entendendo
por religiões um conjunto de crenças, um conjunto de ritos, de expressões sociais
que separam, que excluem.
Na realidade, o mundo judaico tinha um respiro universalista, que implicava
porém na assimilação dos diversos povos. Os judeus não sustentavam que o seu
Deus salvaria somente a eles. A salvação dizia respeito a todos, também aos
gentios, sob a condição que os gentios se fizessem hebreus; isto é, aceitassem
a circuncisão, como diziam os adversários de Paulo, perdendo assim a própria
identidade cultural e tornando-se diferentes.
Paulo representa um universalismo qualitativo, e isto é: um universalismo
que admite sobre o próprio plano uns e outros, os hebreus que tinham uma
tradição monoteística, a lei, a aliança, a circuncisão, o templo, o culto, e os gentios
que não a tinham. Diante do Deus de Jesus Cristo, o homem das religiões e o
homem que não tivesse nenhuma religião, estão purificados.
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4. Gálatas 3,27-28: livres em Cristo das diversas identidades

Em Gálatas 3, 27-28, temos aquele texto extraordinário de Paulo, que


necessitaria que fosse pronunciado cada dia, sobretudo hoje: “Sim, quando fostes
batizados em Cristo, vós fostes revestidos de Cristo. Não há judeu, nem grego, não
há mais escravo nem livre, não há mais homem nem mulher, porque todos vós
sois um só ser em Cristo Jesus.” 3,27: “Sim, quando fostes batizados em Cristo, fostes
revestidos de Cristo...”
A imagem do vestido era uma imagem tradicional utilizada também nos
mistérios gregos onde se vestia um habito novo, como sinal de uma novidade
da vida: fecha-se uma porta às costas, ao passado e se abre outra para o futuro,
sobre a novidade.
“Não há mais judeu nem grego” (era a grande divisão do mundo de então,
monoteístas - politeístas), “não há mais escravo nem livre” (era a grande fratura
de tipo social, de tipo politico: nas assembleias das cidade gregas ali onde se
decidia a res pubblica, não podiam tomar parte todos que que habitavam na
cidade, mas somente os que tinham o direito de cidadania. As minorias étnicas,
por exemplo, estavam privadas deste direito), “não há mais homem ou mulher”
(nNão existe diferença, “pois que todos vós sois um só ser em Cristo Jesus “,
recebestes uma nova identidade) .
Se nós tivéssemos perguntado a Paulo quem foi ele, antes de Damasco, teria
respondido com muito orgulho de ser um hebreu, um monoteísta, um circunciso,
no interior da aliança de Deus e da sua lei. Se lhe tivéssemos perguntado depois,
teria respondido: “Um ser em Cristo”. Paulo é um místico, não é um moralista. Ser
cristão, para Paulo, é ser envolvido pelo Ressuscitado. O Ressuscitado é o Espírito
de Deus, é Jesus de Nazaré transformado, Jesus de Nazaré que viveu uma
metamorfose na ressurreição , tornando-se Espírito que dá a vida.
A identidade cristã coloca-se dentro este espaço novo de vida - que é o
senhorio de Cristo e que é o Espírito de Deus . Então quando Paulo diz que
não existe judeu, grego, escravo, livre, homem, mulher, certamente não quer
dizer que esta diversidade não existe mais; mas que esta diversidade não é mais
identitária, isto é não constitui mais a identidade da pessoa. A pessoa não se
define mais em relação a Cristo como hebreu ou gentio, escravo, livre, homem
e mulher: define-se como alguém que existe em Cristo, que está dentro este
espaço das novas forças da vida de Cristo.
118 Nós vivemos hoje um forte retorno às afirmações das identidade depois
da queda do império soviético Temos assistido a uma multiplicação de estados
na Europa, Também de pequenos estados: a Tchecoslovaquia dividiu-se em dois
estados, e depois a Iugoslávia se dividiu com a Bosnia, etc. Existe uma corrida de
identificação nacional ou local: no norte da Itália, a identidade paduana. Cristo
nos libertou das identidade culturais, das identidade religiosas, das identidade
sociais, das identidade de gêneros...
Para Paulo, portanto, Cristo nos libertou do mundo enquanto idolátrico e
dum mundo das religiões enquanto variáveis de separação e discriminação. Cristo
nos libertou das diversidades identitárias. As diversidades permanecem, mas
não são mais a identidade verdadeira; são apenas variantes culturais, religiosas,
morais, etc. porque a identidade é uma outra.

5. Gálatas 5,1-2;13:chamados à liberdade

A libertação deste mundo idolátrico e das religiões discriminantes e


identitárias, é o evangelho, a boa novidade. “Cristo vos libertou”: o cristianismo não
é um apelo à autolibertação, mas é um evento de libertação, um evento de graça.
Porém, este evento de libertação, que é um dom, é também um tarefa, confiado
à nossa responsabilidade. O evento de libertação não é uma situação dada uma
vez para sempre, mas solicita o nosso empenho responsável.
Temos dois textos, sempre em Gálatas, que repetem a mesma ideia:
“Cristo nos libertou para uma vida de liberdade”. (Gal 5,1) e “somos libertos para a
liberdade”, Paulo exorta: “estais firmes portanto”. Eis a responsabilidade: a firmeza
na liberdade. Estar firmes quer dizer “não vos submetais de novo ao jogo da
escravidão” (Gal 5,1), que sabemos ser a escravidão ao mundo idolátrico e ao
mundo das religiões que desagregam..
E em Gálatas 5, 13 Paulo repete: “ vós de fato, irmãos, fostes chamados
para a liberdade” . Isto é: vós fostes chamados (por Deus ) a construir a vossa vida
sobre a liberdade, “somente que depois esta liberdade não se torne um ‘aformèn’,
uma base de lançamento para a carne.” Neste caso, “carne” em Paulo significa uma
existência dominada por um dinamismo egocêntrico, do ego. “Mas, ao contrario,
mediante o ágape, mediante o amor, sede escravos uns dos outros”. Mediante o
ágape, o amor, que é fruto do Espírito do Ressuscitado, sejamos chamados
e tornemo-nos capazes de cuidar uns dos outros , de tornar-nos escravos
uns dos outros. A liberdade cristã é uma liberdade responsável, solidária, do
cuidado reciproco. É uma liberdade que consiste numa escravidão reciproca. 119
Paulo nestes textos emerge como a apostolo de um cristianismo radical, de um
cristianismo de confim, de um cristianismo místico, de um cristianismo da liberdade
dum mundo idolátrico, do mundo das religiões descriminantes e identitárias.

6. Gálatas 6, 11.14-15: um mundo novo

Em Gálatas, 6, 11-15, na conclusão da epistola, Paulo fala em primeira


pessoa, escrevendo com seu próprio punho, afirma: “Vede com que grandes
caracteres eu escrevo com minha mão” e entre as coisas belíssimas que diz, afirma
o v. 14: “Para que eu não venha jamais de me vangloriar” (por vangloriar-se não se
entende o vangloriar-se diante dos homens mas o vangloriar-se diante de Deus,
isto: apropriar-se dos direitos, dos interesses, nos confrontos de Deus), “Eu só
posso vangloriar-me de uma coisa: da cruz do Senhor nosso Jesus Cristo”.
A cruz para Paulo não é só a morte, mas é morte e ressurreição. A cruz é
um símbolo que exprime para alguém o verdadeiro lado trágico e isto é a morte
terrível do crucificado, a tortura reservada aos escravos e aos traidores. O servile
supplicium de quem fala Sêneca. Por outro lado a cruz é o símbolo da ressurreição
dos mortos.
Deus ressuscitou não um homem santo, mas o crucificado, isto é: o
maldito, “maldito aquele que pende do lenho” (Dt 21, 23). Paulo se refere a esta
maldição em Gálatas 3, transformando-a: o maldito é a fonte de benção para
todas as gentes.
Paulo disse “glorio-me somente da cruz de Cristo”. Eu diria: eu me glorio
somente de Deus que ressuscitou o crucificado. Este é o símbolo da cruz.
Diz: “Por meio desta cruz, deste evento de Deus que ressuscitou o crucificado, o
mundo está crucifixado para mim e eu estou morto para o mundo”.
O mundo do qual fala é sempre o mundo idolátrico, o mundo das religiões
discriminantes, o da adoração dos ídolos. Paulo neste texto não diz que o mundo
idolátrico - das religiões discriminantes, das identidade que separam - está
morto; que não conta mais; mas que nós somos livres. Não, para Paulo o mundo
idolátrico e o mundo das religiões que separam não têm mais influência alguma
sobre mim.
Deste belíssimo texto se consegue também fazer-nos entender exatamente
em que sentido Paulo diz: por meio de Cristo somos resgatados deste mundo.
Aquilo que é resgatado é a relação, é a dependência: não somos mais dependentes
deste mundo idolátrico, deste mundo das religiões discriminantes.
O versículo 15 diz: “De fato nem a circuncisão, nem a incircuncisão, que
120 eram os dois mundos, vale coisa alguma”. Paulo reconhece que há pessoas que
são circuncidadas , mas isto não tem mais valor. Isso não é mais a identidade das
pessoas, pois aquilo que vale é um mundo novo; há uma nova criação.
A nova criação é um mundo onde não existe mais a dependência das pessoas
da idolatria e da discriminação. Lá onde as pessoas se libertam da escravidão dos
ídolos se libertam também das religiões discriminantes. Ali nasce o novo mundo.
O profeta Isaías tinha falado de “novos céus e nova terra”, nós diremos: uma nova
sociedade. Nós estamos no mundo, diz Paulo, mas não sucumbimos ao mundo
idolátrico e ao mundo das religiões discriminantes.

7. 2 Coríntios 5,14-15: morrer com Cristo para a vida egocêntrica

Na segunda carta aos Coríntios, 5,14 Paulo afirma que nós somos movidos
pelo amor de Cristo, isto é, o amor que Cristo tem para conosco nos move na vida.
“O ágape de Cristo nos compele, nos desafia, nos impulsiona a nós que julgamos este
fato: um só é morreu em favor de todos.”
Na liturgia eucarística temos uma tradução que a meu ver é não só infeliz,
mas é um pouco desconfortante. O texto original é: “Este é o meu corpo, (quer
dizer: este sou eu), “uper umon” está no texto bíblico. Na missa se diz: “este é o
meu corpo dado em sacrifício por vós”. O significado grego é: este sou eu que me
dou em vosso favor, para o vosso bem.
A inserção subserviente da palavra “sacrifício” valoriza a visão
tradicional católica da missa, da ceia do Senhor, como sacrifício. Ora Paulo
é contrario à concepção sacrifical e expiatória da morte na cruz de Jesus
- concepção que transparece só em Rom 3, 24-25, e depois em 1Cor 5, 7.
Ele, algumas vezes para dirigir-se aos seus ouvintes, repete algumas expressões
tradicionais, para depois porém corrigi-las. A morte de Jesus não é um sacrifício
expiatório, mas um ato de amor por nós: Jesus morreu em nosso favor, para o
nosso bem.
Depois ele continua : “um só morreu por todos, portanto todos estão
mortos”. Esta sequencialidade nos desconcerta, porque nós teríamos dito mais
logicamente que depois que um morreu por todos, nós todos obtemos a vida
por meio de sua morte, e não que “morto um, mortos todos!” Na base do versículo
existe a concepção mística de Paulo, onde a experiência cristã é a experiência
de quem está inserido em Cristo Ressuscitado, de quem entra em comunhão
com Cristo Ressuscitado. A mística de Paulo não é teocêntrica, mas cristocentrica,
isto é: refere-se a união com Cristo Ressuscitado. Então, se um morreu por todos, 121
todos aqueles que estão em Cristo estão envolvidos no evento de sua morte.
Este é o sentido.
Cristo não é um individuo isolado, mas é um valor representativo, que nos
envolve. Aquilo que acontece com Ele acontece com os crentes, porque os crentes
estão inseridos n`Ele e o evento seu torna-se evento nosso, dos crentes. Ele morre
em favor de todos, portanto todos estão mortos. Em que sentido estão mortos?
Naturalmente o versículo 15 diz:: “E ele morreu por todos, afim de que aqueles que
vivem, os viventes, os homens, não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que
morreu e ressuscitou para eles”.
A morte de que se fala é a morte do ego: não vive mais para si mesmo, mas
vive para Cristo e para os outros. A consequência é: “assim como nós de agora
em diante não conhecemos mais ninguém segundo um juízo humano, carnal - e, se
também nós primeiro tivéssemos conhecido Cristo em modo carnal - doravante não
o conhecemos mais assim”,
A relação com Ele é uma nova relação. “Em consequência se um está em
Cristo, está dentro Cristo, é envolvido por seu evento (esta é a mística cristocentrica
de Paulo), constitui a célula do novo mundo criado”.
É interessante o paralelismo entre a pessoa crente, que entra no espaço
criado por Cristo e por seu Espírito e o mundo. “O velho se foi, eis que surge o novo”.
A novidade trazida por Cristo é exatamente esta: não viver mais centrado no
ego (introflexão), mas viver para aquele que morreu e ressuscitou para nós
(extroflexão).
Paulo partiu da morte de extroflexão de Cristo: Cristo morreu em favor de
todos, a favor de nós, não a favor de si próprio. E na sua morte a favor de nós,
Ele envolve a nós que morremos ao viver para nós mesmos, de modo da viver
para Ele. Portanto, existe esta participação do crente na vida de oblatividade do
Cristo. A novidade não está no aspecto físico do mundo, nas instituições; mas a
novidade se refere à existência, à relação.

8. Rom 8,18-25: solidariedade entre crentes e mundo

Em Rom 8, 18-25, Paulo nos coloca em paralelo com o mundo criado: de


um lado nós crentes que temos a primazia do Espírito - cujo fruto é o ágape e
a força que nos torna escravos uns dos outros - e de outro lado o mundo criado,
com toda probabilidade inanimado. Paulo - depois ter dito que o crente foi
122 resgatado deste mundo mau, que está morto com Cristo em sua vida egocêntrica
e portanto recebeu esta vida de altruísmo e de amor, que é livre, etc. - afirma
finalmente a semelhança de condição entre nós e o mundo. Nós gememos e o
mundo geme, nós esperamos e o mundo espera. “Nós” e o mundo, a totalidade,
estamos unidos na espera e entre gemido. O gemido indica as dores de parto,
os sofrimentos que preparam o novo nascimento, não os rumores da morte. A
comunidade dos crentes não está fora do gemido do mundo, do gemido que é
sofrimento e também tormento, mas que aponta a um novo nascimento. “Não só:
nós gememos na espera do resgate do nosso corpo”.
Para Paulo nós não temos um corpo, mas somos um corpo, somos
corporeidade. E corporeidade significa relacionalidade. O homem é por essência
relacionalidade: relacionalidade com Deus, a criatura que reconhece o criador e
portanto não adora as criaturas; relacionalidade nos confrontos com os outros,
nesta escravidão de amor reciproco; relacionalidade verdadeira com o mundo,
isto é: nós somos seres essencialmente mundanos, para quem a sorte dos crentes,
dos homens, é a sorte do mundo. Então, o mundo geme na esperança de ser
libertado da vacuidade do ser.
Quando leio este texto me vem à mente a vacuidade de muitas expressões
da nossa vida, a inconsistência, a estupidez, o não ser enfim. O mundo liberto
da vacuidade é o homem livre na sua relacionalidade essencial com Deus, com os
outros e com o mundo. Gememos nós, geme o mundo criado e geme o Espírito, com
gemidos, diz, inenarráveis. O Espírito de Deus, que para Paulo habita nos crentes,
está presente no mundo, e está presente como principio de transformação, de
libertação. E Ele próprio geme na esperança. Isso é extraordinário!
A comunidade dos crentes não está acima, não está numa condição
diversa a respeito dos outros, isto é: aos crentes não é economizado nada que
não seja economizado para os outros. A existência dos crentes é uma existência
no gemido, no sofrimento, próprio de quem não chegou ainda de um caminho
fatigoso.
Num texto da segunda Coríntios Paulo diz: “eu carrego sempre (Paulo
era um missionário) a necrose de Jesus”, a morte de Jesus. Paulo fala sempre de
sua missão de apóstolo, mas também daquela junto a todos os crentes, é um
processo atingido pela morte. Para ele, a morte não é aquela que chega no fim.
A morte é um processo que torna a vida do homem caduca, ameaçada, precária,
sofredora, dolorosa. Então, para os crentes não é economizado nada que não
seja economizado para os outros. Os crentes que vivem neste mundo, foram
libertados por Cristo do mundo idolátrico, do mundo das religiões discriminantes.
123
9. Romanos 12,1-2: o culto dos crentes

Paulo, depois ter exposto o seu evangelho aos Romanos nos primeiros
onze capítulos, conclui com uma exortação: “eu vos exorto”. Ele, via de regra, não
determina, mas exorta. O exortar é a atitude do pai nos confrontos com os filhos,
não de um pai patrão. Paulo solicita, fala, exorta, como um pai exorta os filhos. “
Peço-vos portanto, irmãos” (adelfòi, neste caso ficaria bem traduzir por “irmãos”
e “irmãs”). Aliás, Paulo não diz jamais “filhos meus”, ou quase jamais. Usa “filhos
meus” só em dois-três textos, onde diz: eu sou pai enquanto vos gerei através
do evangelho. Portanto, o evangelho é o elemento gerador. Paulo se apresenta
como um irmão. Portanto, a comunidade cristã para ele é uma fraternidade No
mundo grego, o amor entre irmãos era em geral muito considerado; muito mais
que o amor entre marido e mulher.
Não é paulina a concepção da igreja como “povo de Deus “, introduzida
pelo concilio por solicitação sobretudo de Congar e da escola francesa dos
dominicanos de Saulchoir, que justamente queriam ressaltar que a comunidade
dos crentes está a caminho na história. Para Paulo a comunidade é uma
fraternidade, uma família. Uma família não no seu aspecto de paternidade e
filiação, mas de fraternidade. A coisa é de tal modo interessante, que quando
se passa às cartas pastorais, isto é: às cartas de Tito e de Timóteo, que são da
tradição paulina, também ali se encontra a afirmação que a igreja é família de
Deus. Porém, a família de Deus de que se fala é constituída pelos pais e pelos
filhos, onde o pai é o grande chefe da família. Tanto isso é verdadeiro que o autor
destas cartas pastorais sustenta que o presbítero deve saber comandar, ter sob
controle os filhos e as mulheres... A mesma metáfora da família é usada não só em
modo diverso, mas frequentemente contraposto.
Eu vos exorto, pois, irmãos e irmãs, mediante os gestos de misericórdia de
Deus. E ainda mais fielmente para as vísceras maternais de Deus. O que solicita
aos crentes são as vísceras maternais de Deus, e Paulo é o comunicador destes
gestos de “visceralidade”, de “amor visceral” de Deus . Eu vos exorto a colocar diante
do altar, não as ofertas sacrificais, mas a vossa existência mundana qual vítima
sacrificial. Ainda uma vez, Paulo utiliza de modo não ritual conceitos cultuais.
Aquilo que agrada a Deus como oferta viva e santa, como dom, é a existência
mundana dos crentes, é a sua mundaneidade, a sua corporeidade. E este é o culto
intelectual. A oferta que os homens fazem a Deus deve ser uma oferta adequada
à sua natureza de seres inteligentes, de seres lógicos, que tenham o logos, a
124 mente, a inteligênca, o pensamento. As ofertas animais, de seres que não tenham
a inteligência, não são adequadas para a natureza humana.
“Não sejais conformistas nos confrontos com este mundo (to aiòni)”, com
este mundo idolátrico, com este mundo que adora as religiões discriminantes.
Não sejais conformistas, mas deveis operar a metamorfose que torne nova a
vossa mente, o vosso modo de ver as coisas, de modo que vós possais distinguir e
conhecer aquilo que é a vontade de Deus, aquilo que é o bem, aquilo que agrada a
Ele e é perfeito.
Eis um texto muito empenhativo. Ser inconformista quer dizer transformar
o modo de olhar o mundo para que corresponda ao querer de Deus. Paulo não
diz que devemos seguir a vontade de Deus comunicada a nós por qualquer um
que se creia conhece-la com perfeição em nosso lugar, mas que “nós” devemos
transformar o nosso modo de ver, devemos renovar à luz da nossa mente de
modo a corresponder aquilo que Deus quer de nós.

10. Debate: Paulo, Jesus e os não crentes

Paulo fala só dos crentes e provavelmente nunca se pôs problema dos não
crentes. Há um espaço vazio em relação a este tema. Ele jamais levou em conta
isso. Perguntemos a ele somente pelo que ele se interessa.
A segunda observação a fazer é que Paulo quando diz “o crente em Cristo”,
o Cristo de quem fala é o Ressuscitado. Eis porque Paulo não dá nenhuna atenção
a Jesus de Nazaré, ao Jesus biográfico. Jesus Ressuscitado é o Jesus de Nazaré,.
Não é um outro. Pelo Jesus histórico, porém, não se interessa minimamente.
Tanto é verdade que de todas as palavras ditas por Jesus, segundo a
tradição, ele cita expressamente somente duas, que não têm grande peso:
“Aqueles que são ministros do anúncio devem viver do anúncio”; e depois a palavra
de Jesus sobre a indissolubilidade matrimonial. Toda a teologia de Paulo gira em
torno da morte e ressurreição de Jesus. O resto não lhe interessa. Provavelmente
o apóstolo negligenciou tudo aquilo que Jesus disse e fez, porque o Jesus das
palavras e dos fatos estava imanipulado pelos seus adversários, que o tinham
colocado dentro do sistema mosaico, como aquele que apoiava a observância da
lei mosaica. Há qualquer coisa de verdadeiro nisto.
Porém, o verdadeiro problema para Paulo é a libertação do mundo
idolátrico, para os quais os gestos e as palavras de Jesus não são eficazes. Paulo
entende que o coração do homem não muda substancialmente com os bons
exemplos, com as boas palavras. A escravidão do mundo idolátrico, do mundo
das religiões discriminantes, é qualquer coisa assim profunda que não pode ser 125
vencida por palavras e por exemplos. É necessário o grande gesto libertador de
Cristo, do Cristo Ressuscitado. O Cristo Ressuscitado é muito mais potente do
que Jesus de Nazaré, que tinha disposição para influenciar só as suas palavras e
o seu exemplo. Nada mais. Pelo contrario, o Cristo Ressuscitado tem nas mãos a
potencia do Espírito, o Espírito de Deus, o Espírito criador.
Estar em Cristo Ressuscitado é estar no Espírito. Em Paulo há este paralelismo:
nós estamos em Cristo e nós estamos no Espírito de Cristo, no Espírito de Deus. Se
as coisas são assim, nós poderemos dizer então que para Paulo os crentes não
são aqueles que conhecem Jesus de Nazaré, as suas palavras, os seus exemplos;
mas, aqueles que estão no Espírito, aqueles que são animados pelo Espírito. E o
Espírito é o Cristo Ressuscitado Não são uma presença local, mas universal. Jesus
de Nazaré podia influenciar com as palavras e com o exemplo somente àqueles
que o encontravam na Palestina; enquanto que para Paulo o Cristo Ressuscitado
e o Espírito podem influenciar sobre a totalidade universal dos homens. Jesus
de Nazaré é uma grandeza particular culturalmente situada. Ao invés, o Cristo
Ressuscitado que de qualquer modo se identifica com o Espírito, é uma grandeza
universal, é uma grandeza que pode influir sobre todos. Então, é necessário distinguir
entre aquilo que quer dizer “estar em Cristo” e a confissão cristã, a crença cristã, os
sacramentos, a vida cristã associada. O estar em Cristo não equivale à vida cristã
associada. Eis porque Paulo é radical. Anuncia um cristianismo de fronteira, um
cristianismo que é possível também para aqueles que não estão dentro da Igreja.
Assim Paulo, que jamais se pôs o problema dos não crentes com a sua
concepção do estar no Cristo Ressuscitado, no Espírito, propugna um cristianismo
que vai bem além do aspecto confessional.

11. Paulo e a teologia do sacrifício expiatório

Se nós entendemos por sacrifício aquela oblatividade pela qual alguém dá a


sua vida por amor do outro, não existem problemas. Mas, na teologia do sacrifício,
o sacrifício é um ato religioso, ou seja, um ato que envolve Deus. Enquanto nós
dizemos que se Deus deu a sua vida em nosso favor por um ato de amor extremo
para nós, estamos de acordo. Mas, se usamos a palavra sacrifício para dizer que
Jesus oferece a sua vida para o perdão dos nossos pecados, fazemos referência
à concepção arcaica de um Deus que tem necessidade de sangue, da vítima
sacrificial.
126 Quero dizer que a Eucaristia, como a morte de Jesus, segundo Paulo, está
fora deste esquema vitimário, das vítimas e dos sacrificadores, dos sacrifícios no
sentido religioso.
Na carta aos Romanos, Paulo exorta a oferecer as nossas existências como
sacrifício vivo, e não a oferecer vítimas sacrificais.
A nossa vida no mundo é o que Deus quer de nós, e não as vitimas. Se
há vítimas, há também sacrificadores, os sacrificadores providenciais. Sei que
é uma batalha perdida, porém... talvez, graças a um concílio, se possa traduzir
literalmente a frase proferida durante a Ceia do Senhor: “Isto sou eu que dou a
minha vida por vosso amor”. Esta é a tradução correta. Eis porque digo que aquela
tradução (“oferecido em sacrifício por vós”) por um lado não é exata e por outro
lado é um pouco capciosa enquanto insere a visão sacrifical dentro do texto.
A crítica ao culto sacrifical já está presente na linha profética. Em Isaías se
diz: “Quando vós vindes ao templo e pisais nos meus pavimentos, eu viro a face para
o outro lado. Ide embora, aquilo que eu quero é justiça”. Existe semelhança com os
textos de Amós. Aqui a crítica é à dissociação entre culto e vida. Paulo introduz
um novo elemento: não critica a dissociação, mas quer uma substituição. A única
oferta que agrada a Deus é a vida mundana, isto é, um culto não ritual. Por culto
entendemos um dom, um ato de benevolência verdadeiro para com Deus, e então
este ato de benevolência não é mais constituído por ritos, mas é constituído pela
vida mundana, pela vida profana. Na carta aos Romanos, Paulo exorta a oferecer
as nossas existências como sacrifício vivo, e não a oferecer vítimas sacrificais.
12. As religiões discriminadoras e fé universal

Paulo polemiza contra a religião mosaica, porque é discriminadora. Ela


discrimina entre aqueles que estão dentro e aqueles que estão fora, entre os
incluídos e os excluídos. Quando ele afirma que devemos sair da religião mosaica
é porque a lei, a circuncisão, etc., são discriminantes, não quer renunciar ao
hebraísmo e aderir a uma outra religião. Ele afirma que se deva voltar para trás,
além de Moises, porque a verdadeira identidade hebraica a ser mantida é aquela
de Abraão, aquela de uma figura universal: “em ti serão benditas todas as tribos da
terra”.
No tempo de Jesus o judaísmo tinha “moseisado” Abraão, sustentando que
ele havia observado a lei antes mesmo que ela que fosse promulgada (existem
dois textos muito claros sobre deste ponto de vista), inserindo portanto o
abraamismo dentro o mosaísmo. Paulo tira Abraão do mosaísmo, fazendo voltar
à sua origem, à figura abraâmica, que é figura universal. Por isso as promessas
abraamiticas, patriarcais, segundo Paulo, mantêm seu valor, não só para os
descendentes carnais, os hebreus , mas para todos, como era originariamente. A
127
lei não pode abrogar a promessa.
A imagem que Paulo tem de Deus não é aquela do Deus legislador
(aquele do Sinai), e portanto do Deus legislador, que sanciona o bem e o mal com
o premio e o castigo, mas aquela do Deus prometente, do Deus que promete.
E a promessa, diz Paulo, é como um testamento, que é de todo gratuito: é o pai
que doa ao filho uma herança. Então, o Deus que Paulo viveu, sob a luz de Cristo
naturalmente, (grande convergência neste caso entre Jesus e Paulo ) é o Deus
da promessa, da promessa unilateral, da promessa incondicional, da promessa
a todos, aos hebreus e aos gentios, aos escravos e aos livres, aos homens e às
mulheres, aos homossexuais e aos heterossexuais, aos islâmicos e aos católicos...
Aqui está a atualidade de Paulo, que realizou uma batalha extrema contra
uma religião que discriminava com a lei e com a circuncisão. Hoje as religiões
discriminalizam por outros fatores. A luta de Paulo pela libertação da religião
mosaica é uma luta de libertação da todas as religiões, enquanto e à medida
em quem são discriminantes. Aqui permanece a atualidade da distinção entre
fé e religião: Abraão é o pai dos crentes, não dos religiosos. E a fé, diferente da
lei, é uma grandeza transcultural, isto é, potencialmente aberta a todos. A todos
que se mantêm diferentes porque o judeu crente permanece judeu, o gentil
crente permanece gentil, o homem homem e a mulher mulher, etc., no lugar de
Deus legislador e sancionador e das religiões discriminantes o Deus abraâmico
da promessa.
13. A morte, o último inimigo

Paulo considera a morte não como um fato físico, mas como o último
inimigo de Cristo e do homem. Alguns podem acusar Paulo de ser um homem
que não sabe aceitar a morte, de ter uma atitude um pouco infantil de rebelião
frente a um fato inelutável. Para ele, a morte não é a morte feliz de São Francisco,
a morte de quem quer reunir-se com o seu Senhor e portanto a irmã morte. Nem
mesmo é o destino nu e cru do homem que não pode infantilmente renegá-la.
Para Paulo, a morte é uma violência contra o homem. A morte, para ele, não o
último instante da vida, mas o que mortifica a nossa vida.
Há este espinho dentro da existência humana, exposta cada dia diante da
morte: nós carregamos sempre a norte de Jesus, isto é: este processo progressivo
que afeta a vida do crente e do não-crente, para quem - Paulo diz - que a morte é
o Senhor do mundo. Este Senhor do mundo deve ser destronado, enquanto entra
em choque com o senhorio de Cristo. É um motivo cristológico. Cristo venceu a
morte em si; mas, se não a vence em nós, ele não é mais o nosso Senhor, pois o
128 nosso senhor será a morte. De fato em 1Cor 15 Paulo retoma a afirmação dos
salmos “até que ele tenha posto todos os seus inimigos sob os seus pés”. O ultimo
inimigo, o mais tremendo, o mais apavorante, é a morte.
Paulo tem uma concepção alta da vida e do Deus da vida. Este Deus da
vida deve dizer a última palavra sobre os viventes, e não a morte. A ressurreição
quer dizer exatamente isto. Não por nada no cap. 15 de 1Cor Paulo termina com
duas citações do Antigo Testamento: Onde está o morte o teu aguilhão? Onde está,
ó morte, a tua vitória? A morte foi tragada pela vitória de Cristo.
Paulo em Romanos 5 afirma: “Mediante um só homem, o pecado entrou no
mundo e através do pecado a morte...” . Nós devemos ser resgatados do pecado
e da morte, que são os dois senhores que entraram no mundo. O resgate do
pecado, do mal obscuro, que é a idolatria, vem através da morte e da ressurreição
de Cristo. Mas a libertação do pecado não é ainda a libertação da morte.
Paulo ligou pecado e morte. Todos os dois entraram no mundo; mas na
libertação, no estado atual, nós estamos livres só do pecado - desta potência
condicionante a quem podemos resistir; mas não ainda da morte. A ação
libertadora de Cristo foi distinguida por Paulo em duas fases: a libertação da
pecado e a libertação da morte. Do ponto de vista antropológico alguém pode
acusar Paulo de um sonho infantil, não tanto de não morrer, mas de entender
que toda a vida está sob o sinal tenebroso da morte. A morte ameaça e extenua
a vida no sofrimento, nas dificuldades; mas a esperança é a vitória sobre a morte
porque o que Paulo leva a serio é a ressurreição de Cristo e a nossa solidariedade
com ele. Não basta a vitória de Jesus sobre a sua morte. Pois, é necessária a vitória
de Jesus sobre a nossa morte, se nós estamos identificados com Ele. É a mistica
cristocentrica paulina.

FINALIZANDO...
Depois de analisar, em doze pequenos textos, a questão da presença dos
cristãos no mundo, segundo Paulo, convém recordar que os cristãos estão no
mundo para formarem a comunidade de Jesus, que não tem uma mensagem é
fechada em si mesma e só para os crentes. Mesmo que Paulo não estivesse preo-
cupado com os não crentes, ele sabe do valor universal da mensagem do Cruci-
ficado/ressuscitado: ela vale para todos os homens, de modo universal. Por esta-
rem livres de processos identitários culturais e nacionais, os cristãos são homens
livres das religiões discriminalizadoras, das idolatrias e da própria lei mosaica. Eles
se constituem em nova identidade, chamados para um mundo novo, capazes de
emprestar uma nova solidariedade ao mundo e, ao mesmo tempo, oferecer um
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novo culto a Deus o culto de si mesmos, não o de sacrifícios rituais). Enquanto
isso, por meio do grande vencedor, vão caminhando até a libertação do último
inimigo: a morte.

Traduziu: HR
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