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Ensaio
Inicio de dia no Campo da Graça, na manhã de 6 de agosto de 2023, último dia da JMJ Lisboa 2023. Foto
Acedo, através dessas duas expressões, ao que vejo como o problema de base da
Igreja Católica, tão interessante quanto profundo, e que a JMJ obriga a enfrentar.
Por tudo o que foi a Jornada, mas em especial pelas repetidas afirmações do Papa
sobre “o que a Igreja é”.
Afinal, que instituição é esta, a Igreja (Católica)? E… a Igreja Católica tem de ser uma
instituição?
“Jesus veio anunciar o Reino, e o que veio foi a Igreja”: o dilema de Loisy… e de
todos nós (Loisy, o Reino e a Igreja)
2
O padre Alfred Loisy. Foto: Direitos reservados.
Primeira expressão: “Jesus veio anunciar o Reino, e o que veio foi a Igreja.” Foi
escrita por Alfred Loisy (1857-1940), padre católico, biblista e historiador, notável
estudioso do cristianismo primitivo e da figura de Jesus. Como é conhecido, os
seus escritos foram condenados no âmbito da “crise modernista” e o próprio
sofreu pena de excomunhão em 1908. A frase, tirada do seu contexto, torna-se
cáustica e irónica, mas tal é injusto para um pensador como Loisy.
Sem podermos entrar em demasiados detalhes, importa dizer que ele escrevia no
contexto de vários debates, com teólogos protestantes, sobre a natureza do
cristianismo; com toda uma corrente de historiadores, vários deles leigos, sobre a
história das primeiras comunidades cristãs; enfim, com biblistas, sobre a forma
como Jesus considerara a sua missão e o que dela deveria advir, nomeadamente
em torno da noção que aquele teria da “vinda do Reino dos Céus”, em termos de
proximidade temporal. Loisy defendia que Jesus acreditava numa vinda próxima,
imediata, do Reino dos Céus, com o fim do mundo humano – à semelhança de
muitos outros judeus do seu tempo. Além disto, continuando a ler o texto em que
se insere a citação, é claro que Loisy não aceitava a versão de uma agregação
fundada apenas na conversão interior, e defendia que Jesus tinha anunciado, ainda
que de modo vago, uma associação comunitária. Nos seus vários escritos, vai
aflorando o que ela seria, e mesmo o que veio a ser, no cristianismo primitivo; mas,
sobretudo, fê-lo defendendo a historicidade da instituição, o que via como apenas
natural e inevitável; e mesmo, de algum modo, positivo.
Todos os familiarizados com estes temas sabem bem como estão aqui linhas de
pensamento milenar, que ao longo da história da Igreja foram sempre ressurgindo, 2
revestindo-se de diferentes formas concretas. A nostalgia evangélica, a convicção
da vinda próxima do Reino dos Céus ou a decisão de implementar na terra “cortes
celestiais” – nem todas correram bem, ou, na verdade, quase todas correram muito
mal, terminando em banhos de sangue por pressão política ou eclesiástica,
desfazendo-se em grupúsculos, ou mesmo autodesenvolvendo-se em estrutura de
poder hierárquico e negativamente carismático. Com desfechos menos negativos, a
própria Ordem do Santo a quem o Papa Francisco “pediu” o nome – os Frades
Menores –, enfrentou grandes cisões internas nos primeiros tempos da sua
existência. Uma parte significativa delas residiu na recusa de Francisco em escrever
uma regra formal, mais uma vez numa ousada (e utópica?) imitação do Mestre.
“Em pouco de um século, c. 150 d. C., estas duas faces do Cristianismo primitivo –
os ditos de Jesus e as cartas de Paulo – tinham-se reunido no mesmo cânone da
escritura cristã, no Novo Testamento. De um lado, temos um apelo intemporal à
renúncia, ligado à promessa do tesouro no céu; do outro, uma correspondência
febril sobre a movimentação de dinheiro nas comunidades cristãs. Nas cartas de
Paulo, a riqueza não existia para ser objeto de renúncia. Existia para ser usada.
Além disso, deveria ser usada tanto para sustentar os líderes religiosos, como para
sustentar os pobres entre os santos, em favor dos quais os primeiros apelos de
Paulo tinham sido feitos.” (Peter Brown, Treasure in heaven, 2).
Bonifácio VIII e os seus cardeais. Ilustração da edição do século XIV dos Decretais.
– O século XIX até meados do século XX: após o trauma das revoluções liberais,
surge um cristianismo em autodefesa, tanto a nível afetivo, com a proliferação das
devoções e das reparações, como, quanto à forma de se relacionar com a imparável
novidade, centrado na disciplina, no castigo do modernismo, na escandalosa maior
perseguição aos teólogos e historiadores da abertura (como Yves Congar) e aos
padres operários, do que aos padres que cometiam abusos sexuais (irmãos
Philippe, entre tantos outros)… Um cristianismo muitas vezes cúmplice do
colonialismo, na vertigem da “evangelização”, em que a riqueza da Doutrina Social
da Igreja ficou muitas vezes em segundo plano.
O Papa Francisco chega ao Parque Tejo para a Missa de Envio dos jovens na JMJ. Foto © João Matos/JMJ
Lisboa 2023
2
Segunda expressão: “A Igreja é de todos; a Igreja somos todos, todos”: o que quer
dizer esta bela frase? No pensamento de Francisco, talvez a voz de um profeta que,
a rir, suplica – a sério – ajuda aos jovens. Esperemos que sim, embora a força da
instituição seja imensa, e o próprio Papa – é forçoso reconhecê-lo, sob pena de
ingenuidade – não seja imune à interiorização de comportamentos e de ambientes.
“As sandálias do pescador” são, afinal, um filme, uma fábula. Tocando, de resto, no
âmago do problema: a riqueza, o poder. Sem aceitar a desculpa do “bom uso”.
Fábula, mesmo?
2
Cerimónia de acolhimento ao Papa Francisco. Foto ©️Jesus Huerta/JMJ Lisboa 2023
O que mais impressionou na JMJ foi a alegria no olhar, a dança e o canto nos
corpos, a tão frequente oração em público. Sem problemas. E muito para além dos
“betos” (que também têm direito à vida)! A generosidade ímpar de milhares de
voluntários, alguns dos quais deixaram decerto os estudos um pouco para trás, no
semestre passado. Impressionou, ainda, a (quase) total unanimidade quanto à
rejeição da exclusão por questões de género, de sexualidade, de divórcios e novos
casamentos. Não deve, porém, ser minimizada, em especial, a questão da forma
como olham para estas realidades os católicos de outras latitudes – como se vê
pelos problemas que tal gera na Igreja Anglicana. Há um diálogo a alimentar que
compreenda os valores das outras culturas, e não repita a falácia do progressismo
europeu, mesclado, mesmo sem saber, de convicções de superioridade
civilizacional. E há que transpor palavras audazes para os documentos, para a
catequese, para os hábitos institucionais. De outro modo, soam a slogan ou a
“coisas que o Papa diz e a Igreja não faz”. 2
O ambiente e as alterações climáticas são um património indiscutível, e o Papa
Francisco tem contribuído de forma notável para os colocar na agenda política,
social e – pasme-se! – religiosa. Colocando o acento num ponto que nem sempre
os jovens ocidentais se lembram: o efeito multiplicador que as alterações têm
quando se somam à pobreza, à desestruturação social e política, à guerra.
É certo que o Papa Francisco teve estas questões tão centrais como outras: visitou
o Centro Social Paroquial da Serafina, orou com jovens reclusos e com deficiência
em Fátima. Não saberei dizer – sobretudo nunca arriscaria a julgar – se estes
momentos foram tão importantes para os jovens como a festa e os ritos. Digo
apenas que será bom que tal tenha acontecido. Com o entusiasmo e o amor que
manifestaram, combater as injustiças e as desigualdades sociais será um pouco
menos difícil.
2
Voluntárias no Campo da Graça. Foto © Nuno Moreira/JMJ 2023
Custa muito ver altares enormes, e espaços VIP, só com homens, uma
omnipresença masculina quase total. Na missa de abertura, gerida pela Igreja
portuguesa, todas as leituras foram feitas por homens. Um exclusivo clube, os
“holy poor”? Com “as outras” ao seu serviço?
Temas: Alfred Loisy JMJ Jornada Mundial da Juventude JMJ Lisboa 2023 Jovens Maria de Lurdes
Rosa papa francisco
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