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as mutações estão a chegar… variantes do Reino Unido e África do Sul são o novo perigo.
LUC DESCHEEMAEKER (cartoonista belga). 2021. https://www.instagram.com/p/CKdyKO2JSgB/
Igreja e evangelização:
provocações da pandemia
par te 2 – as dore s do parto
a L i t ur gi a o nl i ne : d e s a f i o s e p o s s i b i l i d a d e s
Introdução campo da vivência e da expressão da
nossa fé, levantando inúmeras questões:
A Igreja é, essencialmente, comuni-
como entender, por exemplo, a possibili-
dade, povo de Deus a caminho rumo ao
dade da eucaristia celebrada sem a comu-
Reino definitivo. É Ecclesia: assembleia
nidade, não obstante a sua validade ser
dos chamados, dos escolhidos. Esta elei-
garantida pela lei eclesiástica? A presi-
ção divina tem o seu início com o povo
dência só do presbítero (e do presbítero
de Israel e culmina em Jesus Cristo, pedra
só!) é mesmo suficiente para afirmar que
fundamental da nova e definitiva constru-
a eucaristia tem alimentado todo o povo
ção espiritual, a formada pelos renascidos
de Deus, neste tempo de pandemia? As
do Mistério da sua Páscoa e chamados a
celebrações domésticas em torno da
ser povo de sacerdotes, para oferecer a
Palavra constituem uma liturgia de “se-
Deus um culto que lhe seja agradável (cf.
gunda classe” ou de suplência da eucaris-
1Pd 2, 4-5). Enraizada na prática de Je-
tia? Onde estão os limites entre participa-
sus, fiel à sua Palavra e sob a ação do
ção e coisificação da experiência litúrgi-
Espírito Santo, como os primeiros irmãos
ca, nas transmissões online? Temos ele-
e irmãs, “a Igreja nunca deixou de se
mentos para falar da liturgia online como
reunir para celebrar o Mistério pascal”
autêntico caminho de comunhão e parti-
(SC, n. 6). Assim, a assembleia reunida
cipação? São muitas perguntas, ainda
para o louvor de Deus e a sua própria
com poucas respostas! Muitas delas são
santificação (cf. SC n. 7), é imagem e
sintomáticas de situações há tempos
realização da Igreja. No entanto, reunir-se
acomodadas, mas muito mal compreendi-
publicamente para o culto, nem sempre
das, que exigem de nós abordagens sé-
foi algo fácil para a Igreja. Sabemos, pela
rias, sob pena de grave incoerência e
nossa história, que, principalmente nos
traição à reforma da liturgia, empreendida
primeiros séculos, os cristãos se encon-
pelo Concílio Vaticano II, que se propôs
travam às escondidas e celebravam nas
resgatar a originalidade da essência de
suas casas. E foi nestas condições – de
todo o rito cristão.
volta à Igreja doméstica! – que nós fomos
colocados pela pandemia provocada pelo A inundação mediática
coronavírus! De facto, em março deste no terreno litúrgico
ano de 2020, de repente, a necessidade do Já sabemos que os meios de comuni-
isolamento social, como medida sanitária cação (TV, rádios etc.) e as plataformas
no combate à Covid-19, colocou-nos em sociais vêm, há já algum tempo, a ganhar
crise, no plano social, económico, ambi- espaço, também, no terreno católico! No
ental, eclesial e interpessoal. Os cenários, entanto, com a pandemia, assistimos a um
mundial e brasileiro, que se descortina- fenómeno que poderíamos chamar de
ram diante de nós, nos quais nós mesmos inundação mediática, também no campo
desenrolamos o drama da nossa existên- litúrgico da nossa Igreja. De acordo com
cia, têm sido marcados pelas experiências Grillo, “se os corpos ficam em casa, pelo
do sofrimento, da dor, da solidão, da menos os olhos, os ouvidos, as mentes e
indignação social e política, das perdas, os corações tentam sair, tentam encon-
enfim, da morte. trar-se, não tardam em interligar-se entre
O facto é que a pandemia nos tem fei- si. Através das telas dos computadores,
to repensar muitas coisas, também no das tablets, dos telemóveis, ou dos televi-
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sores, tentamos compensar tudo isso [...]. realidade cultural se instaura, possibili-
Porém, é uma forma de, muito facilmen- tando novas formas de encontro e relação
te, transformar o rito num espetáculo” das pessoas entre si, e destas com o sa-
(GRILLO, 2020a). Basta percorrer os grado. O que pressupõe sérias diligências,
canais da TV, ou ter acesso ao facebook, pois mexe com conceitos e princípios
por exemplo, para depararmos com mis- fundamentais da experiência litúrgica,
sas transmitidas ao “gosto do freguês”, tais como o de participação, comunidade,
momentos orantes, transmissões ao vivo experiência simbólica, espaço sagrado
com meditação da Palavra, do terço, etc., questões estas que precisam de ser
Liturgia das Horas e pregações, adoração amplamente discutidas.
do Santíssimo Sacramento etc. E tudo
Liturgia e meios de comunicação na
isto em matizes bem diversos, que vão
pandemia. Uma limitada compreensão
desde propostas muito sensatas e coeren-
da eucaristia
tes com a melhor teologia litúrgica, até
disparates sem credibilidade alguma. Com o advento da pandemia, e a sá-
É uma cultura digital que se vai con- bia decisão da Igreja de suspender as
figurando diante de nós, e com a partici- atividades religiosas e litúrgicas nos seus
pação de nós todos. De acordo com o templos, a primeira iniciativa pastoral de
papa Francisco, vivemos “numa cultura boa parte do clero foi investir na multipli-
amplamente digitalizada, que afeta de cação das transmissões da missa pela TV,
modo muito profundo a noção de tempo e rádio e meios de comunicação digitais,
de espaço, a perceção de si mesmo, dos dum modo geral. Não se questiona, aqui,
outros e do mundo, o modo de comuni- a boa vontade e o desejo dos pastores de
car, de aprender, de nos informarmos, de nutrir, de alguma maneira, os seus reba-
entrarmos em relação com os outros” nhos, com a Palavra de Deus e a piedade
(FRANCISCO, 2019). Esta cultura digital eucarística. Sabemos quanto bem-estar
tem alterado a nossa linguagem, a nossa estas possibilidades têm trazido a tantas
mentalidade e a hierarquia de valores (1). pessoas, como doentes e idosos. O que se
A tradicional dicotomia entre real e virtu- questiona, no entanto, é até onde se pode
al, hoje, é questionada por muita gente falar de “participação”, em relação a tais
que defende a não existência do virtual, missas transmitidas. No fundo, temos de
mas somente a realidade da presença e nos questionar sobre a forma como ocor-
das relações das pessoas, mediadas pelas re, na ação litúrgica, a relação rito-
redes, inclusive com trocas afetivas. Uma espaço: é o espaço que determina o rito,
presença diferenciada, é verdade, mas ou é ao contrário? A participação plena,
sempre presença, já que os meios de ativa, consciente, piedosa e frutuosa,
comunicação funcionariam como verda- desejada pela Sacrosanctum concilium (n.
deiras extensões dos nossos sentidos. Do 11.14.48), não depende, apenas, da quali-
mesmo modo, há que se superar o binó- dade da transmissão, nem sequer das boas
mio off-line/online, já que “hoje, vivemos disposições de quem está a assistir à
uma experiência ‘onlife’ (Luciano Flori- celebração. A linguagem litúrgica requer
di). A interligação e as redes já são uma mais do que pessoas reunidas para ouvir
dimensão existencial das pessoas. Redes ou ver o que se transmite, ainda que se
e ruas estão mais do que nunca conecta- consiga estabelecer com elas excelentes
das e interligadas. O ‘véu’ dessa separa- relações humanizadas e comoventes.
ção rasgou-se, há já um bom tempo” Muito do que a ação ritual significa e
(SBARDELOTTO, 2020a). De acordo realiza, só pode ser vivido na imediatez
com este pensamento, um novo tipo de do sinal que provoca os sentidos, e evoca
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o sentido maior da presença do Ressusci- Outra questão muito séria que deve
tado, no clima e no espírito de comunhão ser objeto da nossa reflexão, intimamente
que brotam da assembleia reunida, “como ligada às transmissões das missas, refere-
se fosse uma só pessoa” (Ne 8,1). Há um se à missa sine populo, isto é, sem a
distanciamento incontornável entre a presença da comunidade celebrante,
comunidade local que vive o rito e a centrada na figura autorreferenciada do
verdade do evento salvífico (na pande- presbítero. A missa com assistência de
mia, infelizmente, o padre sozinho!), e um só ministro, uma das três opções
aqueles que se esforçam por penetrar no apresentadas pelo Missal (nºs. 252-272),
sentido desses sinais, mas não o podem tornou-se a regra nas atuais circunstân-
fazer à distância. Quando este sinal é o cias. A Instrução Geral do Missal Roma-
pão eucarístico, mais ainda se percebe no é muito clara, ao apresentar uma sal-
este distanciamento. Categorias como vaguarda: “A celebração sem ministro ou
“comunhão espiritual” ou “comunhão sem, pelo menos, um fiel, não se faça a
mental” – por sinal, tão estranhas à teolo- não ser por causa justa e razoável” (n.
gia litúrgica pós-conciliar! –, não conse- 254). Há quem argumente que a assem-
guem proporcionar a vivência que se bleia está presente, quando participa por
espera da comunhão eucarística: comer meio da assistência à transmissão realiza-
do pão, beber do vinho, tomar parte da da pelos meios de comunicação e plata-
ceia do Senhor como conviva do banque- formas digitais, questão complexa, já
te divino. Não podemos correr o risco de abordada acima. Outros argumentam a
voltar àqueles tempos medievais, em que favor da legitimidade desta opção, por
o povo se contentava em ver de longe a obedecer a uma “lei” referendada pela
hóstia consagrada, limitando-se a adorá- Igreja. Há, ainda, os que se apoiam, pie-
la, e privando-se do que lhe é essencial, dosamente, na obrigatoriedade do padre
como disse Jesus: “a minha carne é ver- de celebrar a eucaristia.
dadeira comida, e o meu sangue é verda- O que se questiona, aqui, não é nem a
deira bebida” (Jo 6, 55). validade da missa – ponto indiscutível! –,
Os caminhos que tentamos para suprir nem a legitimidade da forma, mas o seu
esta privação da celebração eucarística, genuíno significado, dentro da eclesiolo-
estão a «revelar-nos quanto é “limitada a gia e da teologia que fundamentam a
nossa compreensão da ceia memorial do Reforma Litúrgica. O que pensar de uma
Senhor, o que deverá levar-nos a buscar o celebração na qual somente se evidencia
sentido mais profundo da eucaristia, que o ministério da presidência, se a liturgia
inclui o lava-pés do serviço e do amor deve ser “ação de todo o corpo da Igreja”,
fraterno, interação entre fé e vida, que “não ações privadas, mas celebrações da
muitos cristãos já vivenciam. Aliás, esta- Igreja, sacramento da unidade” (SC, n.
mos a ter oportunidade de contemplar a 26)? O Catecismo da Igreja Católica é
entrega do Senhor, no trabalho arriscado claro ao afirmar: “É toda a comunidade, o
de tantos profissionais da saúde, na luta corpo de Cristo unido à sua Cabeça, que
para obter o auxílio de emergência, na celebra” (n. 1140). Mais do que o “valer”,
partilha e na solidariedade em socorrer os ou não, a missa, o mínimo suficiente,
mais frágeis, na batalha quotidiana pela preocupa-nos o reducionismo de toda a
sobrevivência em condições adversas” riqueza da ação ritual. No dizer de GRIL-
(CARPANEDO, 2020a). LO, “se o seu valor é pensado como o
conjunto de todas as palavras e de todas
O presbítero sozinho e a insuficiência as linguagens, numa comunidade rica e
do “mínimo suficiente” articulada, uma missa válida é só válida.
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Falta-lhe toda aquela gratuidade de que tem do sacerdócio batismal dos fiéis
precisa de modo vital, para ser plenamen- (CARPANEDO, 2020b).
te ela mesma” (GRILLO, 2020b).
A Palavra de Deus
Outro problema decorrente deste, nal-
como pão que nos alimenta
guns casos, é o facto de uma pobre con-
ceção do ministério ordenado e da presi- A deslocação das celebrações da fé
dência eucarística, fazer com que se para dentro das casas, trouxe grandes
reforce um clericalismo dos meios de vantagens ao revigoramento da Igreja
comunicação, chegando-se, por vezes, ao doméstica, e ao protagonismo dos cris-
absurdo do exibicionismo, se o padre tãos leigos e leigas nas ações celebrativas.
fizer convergir para si toda a atenção, e O povo entendeu melhor que sabe e pode
não para o que se celebra (SBARDE- rezar, mesmo sem a figura significativa
LOTTO, 2020b). Esquecemo-nos, infe- do padre na presidência das celebrações.
lizmente, de que a epifania do ministro A liturgia do dia a dia foi ganhando força,
obscurece a epifania do Mistério! especialmente ao redor da Palavra de
O perigo da redução da liturgia Deus. A Bíblia, “peça” importante no
à celebração eucarística acervo de todo o cristão, deixou de ser
um bonito adereço, para ser aberta e
De forma alguma a missa é a única alimentar o povo de Deus. A Igreja sem-
maneira de celebrar o memorial do cruci- pre teve as Sagradas Escrituras em alto
ficado-ressuscitado. E, neste aspeto, este apreço, e ensina que, assim como as
tempo de pandemia surge como oportuna espécies do pão e do vinho consagrados,
ocasião de resgatar outras maneiras de a Palavra anunciada na celebração litúrgi-
celebrar a fé, também pertencentes à ca é “pão do céu” para alimentar os fiéis
liturgia da Igreja. Quando celebramos o (cf. DV, n. 21). De facto, é o mesmo
Ofício Divino ao nascer do sol, por Cristo que se faz, realmente, presente,
exemplo, estamos a oferecer um sacrifí- falando com o seu povo, quando são lidas
cio de louvor. Quando nos reunimos, à as Escrituras (cf. SC, n. 7). Palavra e
hora do poente, para celebrar o ofício da Sacramento não se contradizem, mas
tarde, estamos a fazer a Deus a nossa exigem-se mutuamente, pois “são meios
oferenda de ação de graças (eucaristia). A de que o Senhor se serve para comunicar
oração de agradecimento à mesa, por a sua graça, para edificar os cristãos, para
ocasião das refeições, tem, também, uma construir a Igreja como povo de Deus,
dimensão profundamente eucarística. Corpo de Cristo, Templo do Espírito,
De facto, há muitas famílias e peque- sacramento do Reino de Deus no mundo”
nas fraternidades que se têm valido desta (CNBB, Doc. 108, n. 29).
ocasião para celebrar nas Igrejas das suas
casas: recorrendo à oração dos salmos Perspetivas para uma fecunda relação
pelo Ofício Divino das comunidades, e à liturgia-meios de comunicação
escuta das Escrituras ditadas pela liturgia Neste momento da nossa reflexão,
diária e semanal, reunindo-se em círculo, queremos, também, reservar um espaço
ou, quem mora sozinho, colocando-se em aos projetos, com vista a um tempo novo
oração silenciosa na presença de Deus. que começa a ser engendrado desde já,
Trata-se de uma porção do povo de Deus com a graça de Deus e de seu Espírito de
que se encontra bem enraizado na fé da criatividade e renovação. O tempo da
Igreja, e que tem suficiente autonomia pós-pandemia, por muitos definido como
para se reunir como Igreja e celebrar o “novo normal”, não poderá ser, apenas,
Mistério da fé, graças à consciência que um retomar do que deixámos para trás,
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mas uma prova de que aproveitamos a presente. O Concílio foi assertivo ao
crise para torná-la verdadeira oportunida- dizer: “Em todas as celebrações litúrgi-
de de aprendizagem e aperfeiçoamento, cas, ministro e fiéis, no desempenho das
inclusive na reconstrução das nossas suas funções, façam somente aquilo e
práticas eclesiais. tudo aquilo que convém à natureza da
Parece-nos claro que a cultura digital ação, de acordo com as normas litúrgi-
é um fenómeno irreversível. E isso pode cas” (SC, n. 28). Somente uma nova
ser muito bom! Seremos cada vez mais cultura ritual, poderá fazer frente a um
desafiados a cultivar parcerias e intera- clericalismo enraizado na nossa mentali-
ções pastorais, buscando uma fecunda dade católica. Os meios de comunicação
relação entre a liturgia e os sofisticados podem colaborar na construção de uma
meios de comunicação e plataformas visão mais coerente do sacerdócio co-
digitais. O que exigirá de todos nós (ani- mum dos fiéis, e na divulgação de inicia-
madores da liturgia, padres, comunicado- tivas orantes protagonizadas pelos cris-
res, liturgistas etc.), muitos movimentos tãos leigos e leigas.
de conversão pastoral, tão necessária para
Passagem de um reducionismo
estarmos à altura de responder ao que o
eucarístico a uma consciência
papa Francisco nos pede: “É preciso ter a
eucarística
coragem de encontrar os novos sinais, os
novos símbolos, uma nova carne para a Somos chamados a ampliar a nossa
transmissão da Palavra” (EG, 167). Cien- consciência do que seja a eucaristia, que
tes de que a Liturgia se faz de sinais, não se limita à presença de Cristo nas
símbolos e gestos que encontram o seu espécies consagradas, mas se estende às
sentido à luz da Palavra, cabe-nos sem- várias outras formas de comunhão que
pre, deixar-nos educar pelos seus ritos estabelecemos com os irmãos e irmãs,
para, sem perder a fidelidade à riqueza especialmente à vivência da caridade, da
teológica e cultual que temos, conseguir- partilha fraterna, à equidade social e ao
mos, também, até onde for possível e cuidado pela nossa casa comum. Neste
como for possível, ser uma “presença aspeto, os meios de comunicação e plata-
evangelizadora no continente digital” formas digitais poderão desempenhar um
(Diretório Catequese, n. 371). papel importante de desconstrução do
A exigência da conversão pastoral pa- reducionismo eucarístico, evitando, inclu-
rece-nos bem oportuna, para falarmos de sive, exageros que, não raro, propagam
perspetivas litúrgicas, e aponta para al- uma distorcida teologia a respeito da
gumas mudanças e passagens necessárias: eucaristia.
Passagem de uma cultura clerical Passagem de uma relativização
para uma cultura ritual (2). da Palavra à sua sacramentalidade
Fomos culturalmente (des)educados A Igreja ensina-nos que a “celebração
para a ação ritual, numa conceção dese- da Palavra de Deus possui um caráter
quilibrada do valor dos ministérios e sacramental” (CNBB, Doc. 108, n. 63),
funções na celebração litúrgica, sobretu- isto é, manifesta a presença e a ação de
do, dos sacramentos. Sabemos do lugar Cristo, Palavra encarnada. No desejo de
importante que cabe ao ministro ordena- promover e salvaguardar a dignidade da
do, mas isso não significa colocar nele eucaristia, a Palavra, não raras vezes,
toda a dependência da celebração, em ficou relativizada. No entanto, não pode-
detrimento da participação efetiva dos mos esquecer-nos de que, cerca de 70%
outros ministérios e de toda a assembleia das comunidades eclesiais, no Brasil, não
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têm missa todos os domingos. Muitas celebrada no lar. A pandemia teve, pelo
delas têm-na uma ou duas vezes ao ano, e menos, a vantagem de nos levar a repen-
vivem da Palavra. A pandemia mostrou- sar a necessidade da sua revalorização.
nos quanto a celebração familiar em torno Eis um ponto em que os meios de comu-
da Palavra (sobretudo do evangelho do- nicação têm um papel imprescindível:
minical), bem como a sua leitura orante, disponibilizar subsídios e ferramentas,
podem alimentar-nos a fé e a vida. Tudo para que as liturgias domésticas sejam
isso exige uma valorização maior da verdadeiros encontros das famílias entre
Palavra de Deus. Nesse aspeto, as tecno- si e com o Deus da vida!
logias da comunicação podem ter um
Passagem do consumismo litúrgico
papel muito importante no serviço da
à participação ativa,
formação bíblica e da facilitação dos
consciente e frutuosa
momentos orantes do povo, com propos-
tas qualificadas de celebração. O desconhecimento teórico e prático
da ação ritual, faz com que muitos fiéis
Passagem de uma visão da liturgia
acorram aos sacramentos, mormente à
doméstica como uma atividade
eucaristia, como consumidores do sagra-
suplente, a uma valorização da casa
do. Foi o que se verificou, claramente,
como espaço celebrativo
durante a pandemia, revelando quanto
Boa parte dos fiéis questiona se, em ainda temos de crescer, num dos pilares
vez de assistir à missa pelos meios de da liturgia mais incentivado pela Sacro-
comunicação, não seria mais interessante sanctum Concilium: a participação. Para
reunir a família e fazer da pequena Igreja muitos, participar é “fazer algo” na missa.
da casa um lugar de encontro com Jesus, O resto é assistência, posição não muito
na certeza do que ele mesmo prometeu: diferente da daqueles que permanecem
“Onde dois ou três estiverem reunidos em impassíveis diante da TV a assistir à
meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt missa. Não faltaram grupos a disputar a
18,20). Aos poucos, podemos ir desen- hóstia consagrada como propriedade, e
volvendo uma liturgia doméstica, feita de pastores a oferecê-la em ações totalmente
pequenos ritos em estilo simples, presidi- isoladas do contexto celebrativo. Eis aqui
da pela mãe ou por outra pessoa da famí- um aspeto que merece investimentos
lia. Por meio desta celebração, podemos pastorais urgentes. Será que os meios de
alegrar-nos na presença de Jesus, escutar comunicação e redes sociais poderão
e meditar a sua Palavra e, juntamente ampliar o seu compromisso de ajudar na
com Jesus, erguer ao Pai os nossos cora- educação do povo cristão, com vista à
ções em preces, partilhar um pão em ação consciente participação na sagrada litur-
de graças, invocar uma bênção (CARPA- gia?
NEDO, 2020a). Mas, para isso, é preciso
estarmos conscientes de que a liturgia Passagem dos meios de comunicação
doméstica não é, apenas, uma atividade considerados como palco, aos meios de
suplente, na falta das missas nos templos, comunicação entendidos como serviço
nem mesmo, uma liturgia de “segunda É próprio das tecnologias de comuni-
classe”. Aliás, não nos esqueçamos de cação social dar visibilidade às pessoas e
que a história do cristianismo, especial- acontecimentos. A ordem de Jesus: “O
mente das celebrações do Mistério Pas- que vos digo na escuridão, repeti-o à luz
cal, teve o seu início nas casas. A liturgia do dia, e o que vos for dito em segredo,
fixada no templo fez com que os cristãos proclamai-o de cima dos telhados” (Mt
se distanciassem bastante da liturgia 10,27) é, mais do que nunca, levada à
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risca. No campo da liturgia, entretanto, o inerentes e, também, das suas possibili-
menos é mais, quando se trata dos “ato- dades, como nos diz a Igreja: “a vida
res”, visto que a finalidade de toda a ação litúrgica e comunitária, também, pode ser
ritual é proporcionar aos celebrantes um enriquecida com o recurso ao ambiente
autêntico mergulho no Mistério do Cristo, digital, mediante oportunidades de ora-
ação esta que nos santifica e se torna um ção, meditação, preparação dos sacra-
sincero louvor ao Pai, na força do Espíri- mentos e partilha da Palavra de Deus na
to (cf. SC, n. 7). O protagonismo, portan- internet, nas redes sociais e em aplicati-
to, pertence ao próprio Deus. Oxalá que vos móveis” (CNBB, Doc. 99, n. 191).
aqueles que se dedicam ao serviço de Que o Espírito, fonte de discernimento e
levar ao povo, por meio dos meios de de constante renovação, nos ilumine neste
comunicação, alguma proposta celebrati- novo tempo!
va, especialmente os que presidem às Notas
celebrações, nunca percam a mística do
1 Cf. Diretório para a Catequese, n. 359.
profeta João Batista: “É preciso que ele 2 Intuição de Andrea Grillo em A liturgia como
cresça e eu diminua” (Jo 3,30). “tela” e a tentação da “simples administração.
IHU.
Conclusão
Referências
Liturgia online: experiência que se vai CARPANEDO, P. O espaço da celebração em
consolidando, aos poucos, e que merece tempo de isolamento social. Revista Caminhando
toda a nossa atenção, pelo enorme desafio com o Itepa. Ano 37, número 129, set. 2020, p.
que nos traz. Será, mesmo, uma possibi- 115-120 (2020a).
lidade que veio para ficar? Parece-nos _____. Celebrar a fé em tempo de isolamento
social. Disponível em:
que sim! Mas substituirá, essa modalida- https://www.paulinos.org.br/home/blog/atualidad
de, as celebrações em que os fiéis, física e e/celebrar-a-fe-em-tempo-de- -isolamento-social.
geograficamente no mesmo templo, se Acesso em: 27 set. 2020 (2020b). CNBB. Instru-
congregam como um só corpo, para a ção Geral para o Missal Romano e Introdução ao
celebração do Mistério Pascal, num tem- Lecionário. Brasília: CNBB, 2009.
_____. Ministério e Celebração da Palavra (Doc.
po e num espaço determinado? Certamen- 108). Brasília: CNBB, 2019.
te que não! Não se trata, obviamente, de _____. Diretório de comunicação da Igreja no
caminhos de substituição, nem de idênti- Brasil (Doc. 99). Brasília: CNBB, 2013. GRIL-
co significado. Na peugada de Sbardelot- LO, A. A. Liturgia e Covid-19. Como ser assem-
to, poderíamos dizer que se torna neces- bleia celebrante em tempos de pandemia. Dispo-
nível em: http://www.ihu.unisinos.br/78- -
sário “abandonar a lógica do ‘ou’ e assu-
noticias/598334-liturgia-e-covid-19-
mir a lógica do ‘e’. Não se trata de evan- diversamente-igreja-como-ser-assembleia-
gelizar ‘ou’ no ambiente digital, ‘ou’ nos celebrante-em-tempos-de-pandemia-artigo-de-
demais ambientes sociais, mas de sair ao andrea-grillo. Acesso em: 28 set. 2020 (2020a).
encontro das pessoas, no ambiente digital, _____. A liturgia como “tela” e a tentação da
‘e’ nos demais ambientes sociais, isto é, “simples administração. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/602845-a-liturgia-
onde quer que elas estejam, para assim como-tela-e-a-tentacao-da-simples-
gerar comunhão e construir comunidade, administracao-artigo-de-andrea-. Acesso em: 28
como fez Jesus com os discípulos de set. 2020 (2020b).
Emaús (Lc 24,13-35)” (SBARDELOTTO, PAPA FRANCISCO. Evangelii gaudium. Sobre
2020a). Trata-se, na verdade, de reconhe- o anúncio do Evangelho no mundo atual. São
Paulo: Paulus e Loyola, 2013.
cermos a importância do mundo digital, ______. Christus Vivet. Para os jovens e para
como ferramenta articuladora de relações todo o povo de Deus. Brasília: CNBB, 2019.
humanas, para a facilitação da celebração PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMO-
da fé, cientes dos limites que lhe são ÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO. Diretório
8
para a catequese. São Paulo: Paulus, 2020. digital: entre luzes e sombras. Disponível em:
SBARDELOTTO, M. Virtualização da fé? http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597585-a-
Reflexões sobre a experiência religiosa em re-descoberta-eclesial-do-ambiente-digital.
tempos de pandemia. Disponível em: Acesso em: 28 set. 2020 (2020b).
http://www.ihu.unisinos. br/601104- VATICANO II. Constituição Sacrosanctum
virtualizacao-da-fe-reflexoes-sobre-a- Concilium. São Paulo: Paulinas, 2015
experiencia-religiosa-em-tempos-de-pandemia. Pe. VANILDO DE PAIVA Mestre em Psicologia
Acesso em: 27 set. 2020 (2020a). pela PUC Minas e professor titular da Faculdade
_____. A (re)descoberta eclesial do ambiente Católica de Pouso Alegre (FEJAN)
as dioceses e as paróquias
já não são as mesmas
No dia 27 de março de 2020, quando nossa pretensão esgotar a temática, mas
o vírus se espalhava rapidamente pela estimular a reflexão de todos e todas, a
Europa, o papa Francisco atravessou uma fim de seguirmos, corajosamente, a agen-
Praça São Pedro vazia, e rezou pelo fim da eclesial do Concílio Vaticano II, tão
da pandemia. Nas suas palavras, ele fez posta em evidência pelo papa Francisco
uma afirmação muito assertiva: “Não nos no seu magistério. Convém destacar que
detivemos perante os teus apelos, não isso só será possível, se a Igreja tiver a
despertámos face a guerras e injustiças ousadia de vencer outro vírus letal: o
planetárias, não ouvimos o grito dos clericalismo.
pobres e do nosso planeta gravemente Como as estruturas eclesiais chegaram
enfermo. Avançámos, destemidos, pen- à pandemia
sando que continuaríamos sempre saudá-
Há, agora, um slogan que se ouve
veis, num mundo doente. Agora, sentin-
com muita frequência: depois da pande-
do-nos num mar agitado, imploramos-te:
mia, já não seremos os mesmos. Será?
‘Acorda, Senhor!’” (FRANCISCO, 2020a).
Falamos de um novo normal que daria
Podemos entender, a partir destas pa-
origem a o amadurecimento humano, e
lavras, que a pandemia não significou só
com ele, ao amadurecimento e renovação
a disseminação de uma nova doença, mas
de muitas instituições, como a própria
que mostrou, também, quão doente a
Igreja Católica. Pode até ser que a huma-
humanidade inteira estava. Poderemos
nidade saia desta pandemia com traços de
dizer o mesmo das estruturas eclesiais?
uma espiritualidade mais profunda, mar-
Poderemos dizer o mesmo das dioceses e
cada pela efemeridade da vida. Porém,
paróquias? Com a apresentação que se
afirmar que estruturas sólidas sofrerão
segue, queremos olhar para essas estrutu-
abalos significativos, é uma aposta, não
ras, antes e durante a pandemia, e traçar
uma constatação. É esse o caso das estru-
algumas perspetivas de futuro. Não é
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turas diocesanas e paroquiais, que há Só um tratamento de choque, com
tempos clamam por renovação, conversão propostas radicadas no Evangelho e aten-
pastoral e novos horizontes. tas aos sinais dos tempos, poderá abrir
“A paróquia não é uma estrutura ca- novas pistas de transformação das estru-
duca; precisamente porque possui uma turas eclesiais. De contrário, far-se-ão
grande plasticidade, pode assumir formas algumas emendas aqui e ali, e daqui a
muito diferentes, que requerem a docili- pouco, este tempo, que deveria contribuir
dade e a criatividade missionária do Pas- para a inauguração de novos rumos,
tor e da comunidade” (EG 28). Exata- restará apenas como uma lembrança.
mente por causa dessa plasticidade, as Mais uma oportunidade perdida! Um
estruturas católicas sofrem mudanças na único e estruturante exemplo poderá
história, mas mantêm-se firmes, parecen- ilustrar esta perspetiva: o crescimento do
do, até, ignorar as mudanças sociais e de clericalismo, que invade toda a estrutura
época. E a afirmação do papa Francisco eclesial, só poderá resultar numa estrutura
condiciona as mudanças a dois sentimen- ainda mais paralisada, em contraposição
tos esperados dos agentes eclesiais orde- com a proposta do papa Francisco de uma
nados: docilidade e criatividade missioná- Igreja missionária em saída. O clericalis-
ria. mo tem um forte ingrediente misógino, e
é alimentador de preconceitos, o mais
É necessário ter cuidado, para que a
forte dos quais a laicofobia.
ansiedade pelos tempos pós-pandemia,
não nos leve a apostar em decisões unila- Sem um empoderamento real, e não
terais, tendo em vista o destino das estru- só de discursos, sem uma Eclesiologia do
turas eclesiais. O que significa que, sem a Povo de Deus, com o protagonismo laical
disposição evangélica e profética dos em todos os âmbitos da instituição, nada
agentes eclesiais ordenados, nada aconte- mudará. Ao mesmo tempo que, sem uma
cerá. Embora a paróquia não seja, certa- mudança radical no reconhecimento do
mente, a única instituição evangelizadora, papel da mulher, tudo ficará como está.
se ela for capaz de se reformar, escutar os As portas fechadas dos templos, du-
homens e as mulheres do tempo presente rante a reclusão imposta pela pandemia,
nas suas alegrias e esperanças, tristezas e podem sugerir um tempo de recolhimento
angústias (GS 01), continuará a ser Igreja, purificador e de conversão, a que, insis-
comunidade de comunidades, que vive no tentemente, nos convida o papa Francis-
meio das casas dos seus filhos e das suas co. Mas o que vemos é uma crescente
filhas. Entretanto, estar no meio do povo exposição nos meios de comunicação,
não é garantia de proximidade; mais do produzindo uma espécie de “clero-
que nunca, é urgente perceber os reais ostentação”, com muitos modismos e de
desafios da presente geração. qualidade muito questionável. Uma Igreja
A grande questão é que, algumas es- centrada na conversação e manutenção
truturas diocesanas e paroquiais, se torna- dos chamados “serviços sacramentais”,
ram estáticas e frias, com planeamentos e sem uma consideração séria do lugar da
planos de pastoral, até, bem feitos, mas Palavra no processo evangelizador.
que não chegam ao coração dos fiéis e, na Uma “Palavra de qualidade” e com
maioria das vezes, nem ao dos agentes métodos pedagógicos sérios, poderia
encarregados da animação evangelizado- amenizar o distanciamento, favorecer a
ra. Já se fala que vivemos num tempo em formação dos discípulos e discípulas,
que se crê mais nos testemunhos que nos levando a iniciação à vida cristã às famí-
textos. lias e àqueles indivíduos que, de repente,
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podem ter encontrado nas redes sociais, rão, ou, mudamos as estruturas e estas
verdadeiras partilhas querigmáticas e farão emergir homens e mulheres novos.
experiência de vida cristã. Ora, uma consideração mais dialética, faz
O certo é que não preparámos a Igreja com que percebamos que são necessários
para uma vida fora dos seus limites pré- seres humanos novos para estruturas
estabelecidos, fora das suas estruturas novas, e estruturas novas para seres hu-
solidificadas. Ignorámos a crítica que manos novos, num movimento concomi-
Jesus fez, no diálogo com a Samaritana, tante. Portanto, torna-se urgente redesco-
sobre a tentativa de engaiolar o sagrado. brir os processos nestes dois horizontes.
Quando questionado sobre o lugar certo Uma excelente pista pastoral que, em
de adoração, respondeu: “Virá o tempo – alguns lugares vai ganhando força, é o
e é agora – em que os verdadeiros adora- retorno aos pequenos grupos de reflexão.
dores adorarão o Pai em espírito e verda- Somente uma paróquia descentralizada
de” (Jo 4,20-23). em redes, será capaz de evangelizar os
Um rápido giro pela história, leva-nos becos das nossas cidades, tanto os geo-
a perceber que, do século IV até ao Con- gráficos como os existenciais. Cristãos e
cílio Vaticano II, as estruturas eclesiais se cristãs convictos de que a proposta de
foram acomodando às diversas conjuntu- Jesus passa pelos pobres, pelos enfermos,
ras sociais e culturais. Todavia, alguns pelos pequeninos. É preciso sair da nossa
hábitos adquiridos na longa tradição zona de conforto, e ir para as periferias
eclesial, transformaram-se em cláusulas existenciais de todas as latitudes.
petrificadas. Nem mesmo a Palavra reve- A pandemia chegou às comunidades
lada é capaz de se tornar um parâmetro de O debate sobre a “virtualização da fé”
mudanças. Tem-se a impressão de que as não é recente. Desde a segunda metade da
hermenêuticas se sobrepuseram ao valor década de noventa do século passado, no
do espírito das experiências dos cristãos Brasil, este tema ocupa espaço na refle-
primitivos; selecionam-se textos sagra- xão católica. O que, talvez, a pandemia
dos, de acordo com a ocasião. do novo coronavírus tenha acelerado, terá
Ao contrário de Evangelii gaudium, sido o début (= iniciação), nos meios
nas estruturas eclesiais, o espaço mostra- digitais, de muitos agentes eclesiais orde-
se superior ao tempo (EG 222-225). No nados, mesmo não tendo os mínimos
critério para a sua definição, o territorial recursos técnicos para “transmitir” uma
ainda é o que predomina, mesmo que celebração.
constatemos, sobretudo nos espaços Poderíamos dar-nos por satisfeitos
urbanos, que o povo vai impondo o crité- com a afirmação de que as celebrações,
rio afetivo de pertença, flexibilizando o finalmente, deram entrada nas platafor-
territorial. O que vemos, porém, muito mas digitais – a pandemia a isso nos
intensamente, nas comunidades eclesiais, obrigou. Contudo, seria uma reflexão
é uma massa passiva, que se contenta muito básica. O que a virtualização das
com o serviço religioso aí recebido, em celebrações revela, é uma situação grave,
detrimento do que caracteriza o autêntico que sobreviveu à pandemia nas dioceses e
movimento cristão: a vida comunitária. Já paróquias: novamente, o clericalismo.
perdemos imenso tempo a debater em que O uso do verbo “transmitir” não é
devemos investir em primeiro lugar, para aleatório: muitos ministros ordenados se
obtermos mudanças substantivas: no ser contentam com a “transmissão” das cele-
humano ou na estrutura. Dizia-se: muda- brações, e muitos leigos e leigas chegam,
mos o ser humano, e as estruturas muda- até, a criticar aqueles que não as “trans-
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mitem”. Porém, será que uma celebração património eclesiástico constituir um
litúrgica pode ser “transmitida”, como se problema para as comunidades. Quantas
fosse um programa de televisão ou de comunidades cristãs se veem obrigadas a
internet? A transmissão supõe que haja manter um património custoso, esgotando
um emissor ativo e um recetor passivo a sua força e criatividade com meios para
ou, como comumente se diz, um espeta- arrecadar recursos financeiros! Quantas
dor. As celebrações litúrgicas são traba- paróquias têm o seu calendário anual
lhadas tendo em conta os espectadores? cheio, apenas, de festas e quermesses!
A liturgia é, por excelência, uma ação Não seria este o momento de repen-
comunitária; mesmo que os fiéis estejam sarmos a caminhada destas comunidades?
impossibilitados de estar, fisicamente, A conversão pastoral não é um tema
nos templos das celebrações, eles tornam- apenas de hoje, mas, com todo o peso do
se presentes de forma mediada. Ora, se património, chegará essa conversão a ser
estão presentes, estão a participar, e não realidade? Sem verdadeira conversão
só a assistir a uma transmissão. Entretan- pastoral, as comunidades eclesiais não
to, a proliferação de “transmissões” das desenvolverão uma estratégia pastoral
celebrações litúrgicas durante a pande- para levar adiante a evangelização. Mas
mia, revela quão dependentes ainda estão, será que essa falta de estratégia pastoral
os leigos e as leigas, dos ministros orde- se deve, só, ao peso da estrutura eclesiás-
nados. tica? E a estrutura eclesiológica?
A vida cristã, também, é nutrida pelo A constituição sobre a Igreja, Lumen
Pão da Palavra, que pode ser partilhado gentium, faz notar que a estrutura eclesio-
em todos os lares e por todas as famílias. lógica fundamental é o Povo de Deus (LG
A “experiência doméstica da Igreja” II); mesmo que seja, hierarquicamente,
durante a pandemia pode, até, ser uma ordenado (LG III), não deixa de ser Povo.
realidade, em algumas comunidades, mas Todos os ministérios constituídos na
o que, infelizmente, se vê, é a procura Igreja estão orientados para o bem de
excessiva da “transmissão” digital de uma todo o Povo. O primeiro desses ministé-
fé clericalizada. rios é o episcopal (LG 20-23); os epísco-
Outro tema muito presente na vida pos ou bispos são os sucessores daqueles
das comunidades eclesiais, durante a que comeram e beberam com o Senhor
pandemia, é a manutenção do património Ressuscitado (At 10,41). Portanto, a sua
das dioceses e paróquias. Com menos missão de testemunhar, santificar e pasto-
dinheiro a circular, dada a redução da rear, tem como base a comunhão de vida
atividade económica, sente-se a diminui- com o Senhor que deu a vida pelo seu
ção da sua entrada: o dízimo sofreu uma Povo Santo (LG 24-27).
grande quebra e os eventos pararam. O Por outro lado, os presbíteros e os
resultado imediato foi a paralisação de diáconos, devem entender o seu ministé-
muitas obras, o corte de gastos desneces- rio em comunhão com o bispo, mas tam-
sários, especialmente, os gastos excessi- bém como membros de um colégio que,
vos com material litúrgico, e, nalguns unido, está ao serviço do Povo (LG 28-
casos, a dispensa de colaboradores e 29; PO 08). O que é que acontece, quan-
colaboradoras – infelizmente. do se tem uma compreensão equivocada
O que é que isso nos revela? Sobretu- desses ministérios constituídos para o
do dois aspetos: o peso do património das serviço do Povo de Deus? Quando os
dioceses e paróquias, e a falta de estraté- bispos se consideram, apenas, como
gias pastorais. Não é de hoje o facto de o administradores de grandes paróquias
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chamadas dioceses, e os presbíteros como em momentos críticos, como acontece
“pequenos bispos”, de pequenas dioceses nesta pandemia. Não estará na altura de
chamadas paróquias? aproveitarmos esta liberdade de ação, este
A pastoral não pode ser reduzida à compromisso com os mais necessitados,
manutenção de templos e prédios e, me- para nos decidirmos não só preferencial,
nos ainda, à satisfação de gostos estéticos mas fundamentalmente, pelos pobres?
dos agentes eclesiais ordenados. Talvez Afinal de contas, o Reino é deles (Mt 5,
até seja possível desenvolver uma religio- 3), Jesus foi ungido pelo Espírito para
sidade estética, mas nada evangélica. A lhes anunciar a Boa-Nova (Lc 4,18).
pandemia do novo coronavírus, mostrou Seria uma perda enorme que a ação
como as dioceses e paróquias estão muito solidária despertada pela pandemia, fosse
presas ao seu património, o que é um só mais uma “obra de caridade”. Toda a
peso para a tão almejada conversão pasto- sensibilização diante da miséria, da fome
ral das comunidades cristãs (EG 25-26). e da necessidade imediata dos mais vul-
Finalmente, o que se observa durante neráveis, é uma oportunidade para que a
a pandemia é o empobrecimento rápido Igreja recupere a sua opção pelos pobres,
de muitos, que já não tinham o mínimo como as conferências de Medellín (Po-
necessário à sobrevivência. Contudo, esta breza da Igreja 8) e Puebla (733-735)
situação não foi causada pelo vírus, que proclamaram.
se limitou a revelar a enorme quantidade Quando a pandemia passar...
de homens e mulheres, crianças e velhos, O cenário aqui apresentado já estava
que vivem em situações de extrema fragi- em curso há anos. A pandemia do novo
lidade social e económica. Diante desta coronavírus, tornou-se um elemento
revelação, muitos leigos e leigas se sensi- catalisador de imensas questões que,
bilizaram e prontamente se organizaram ainda, não encontraram caminhos de
redes de interajuda. resposta no início da segunda década do
O que é que isto nos revela? Em pri- novo milénio: como superar o mal do
meiro lugar, que o braço livre da Igreja, clericalismo? Mas parece que o Senhor
durante as semanas ou meses de confi- nos diz, novamente: “Vinho novo em
namento, são os leigos e leigas compro- odres novos” (Mc 2,22). Um novo vinho
metidos. Evidentemente, muitos minis- a ser apreciado como sinal de esperança
tros ordenados, também, estão envolvidos de um novo tempo, um novo odre que
no trabalho de arrecadação e distribuição simboliza a ternura entre os irmãos e
de cabazes com os alimentos e artigos de irmãs, e o cuidado pela casa comum.
higiene mais básicos, para os mais pobres Neste novo tempo, a Igreja deverá
e necessitados. Mas são os leigos e as ser, não só, porta-voz dos clamores da
leigas que assumem essa frente de traba- terra, das comunidades e povos nativos,
lho, o que nos leva a pensar que a liber- mas também a primeira a dar testemunho,
dade de ação, dentro das comunidades nas suas mais simples decisões. Um bom
cristãs, é essencial. exemplo pode ser visto no próprio Vati-
Essa liberdade de ação não pode res- cano, onde deixaram de existir copos
tringir-se, apenas, a uma ação ad extra; é descartáveis, e se introduziu um novo
essencial que os leigos e as leigas com- modo de lidar com o lixo.
prometidos, gozem de liberdade para Para fazer levedar uma nova cultura,
atuarem ad intra ecclesiam. Ao mesmo não podemos omitir o diálogo com a
tempo, a sensibilidade diante do sofri- ciência, nem privar-nos do compromisso
mento alheio não pode ser vista, somente, de iniciar processos de promoção de uma
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educação integral e humanística. Para o sociais, tantas vezes criticadas e não,
papa Francisco, pensar na educação é devidamente, valorizadas pelos pastores,
pensar nas gerações futuras e no futuro da mas que, na pandemia, mostraram a bele-
humanidade. Aqui, o pacto educativo za e a importância de ter o serviço da
global surge como eminente sinal de caridade organizado para responder, com
esperança, unindo esforços e envolvendo prontidão, aos apelos de Cristo nos po-
diversos atores sociais. bres.
Outro bom e necessário fermento para Uma evangelização atenta a uma nova
inaugurar um futuro promissor para a economia que ajudará a construir um
Igreja, são os movimentos sociais e o mundo novo. Uma economia que tenha
diálogo ecuménico, inter-religioso e com como prioridade o ser humano, e não o
os não crentes. Nesse sentido, os movi- lucro; que tenha a vocação de servir a
mentos populares são apontados como vida e promover a pessoa. Uma nova
fonte de energia moral, capaz de revi- economia que brotará da denúncia profé-
talizar as nossas democracias em crise. tica do escândalo de só 1% da população
“Evangelizar é tornar o Reino de mundial deter a mesma riqueza que os
Deus presente no mundo” (EG 176; EN restantes 99%.
06). E para isso, é preciso que as comuni- Como nos recorda o papa Francisco,
dades diocesanas e paroquiais promovam embora desgastada e, por vezes, até, mal
e favoreçam meios para o encontro pes- interpretada, a palavra solidariedade
soal com Jesus Cristo. Redescobrir o significa muito mais do que algumas
valor e a força do querigma que coloca ações esporádicas de generosidade. É
em evidência a beleza do Evangelho, e muito mais! Supõe a criação de uma nova
jamais é indiferente ao outro, sobretudo mentalidade, que pense em termos de
aos mais pobres e em situação de vulne- comunidade, de prioridade da vida de
rabilidade. todos, sobre a apropriação dos bens por
Uma evangelização na qual o plane- parte de alguns (EG 188).
amento da ação das dioceses e paróquias, “Uma solidariedade guiada pela fé,
tenha como centro a pessoa de Jesus que permita traduzir o amor de Deus na
Cristo, a Eclesiologia do Povo de Deus, cultura globalizada, não construindo
sempre em comunhão e participação. torres, nem muros que dividem e depois
Planeamentos que nascem da escuta da desabam, mas tecendo comunidades e
Palavra e dos clamores dos sinais dos apoiando processos de crescimento ver-
tempos; prioridades e pistas de ação que dadeiramente humanos e sólidos. É preci-
sejam construídas não em gabinetes, mas so perguntar ao próprio coração: penso eu
a partir da escuta dos círculos de conversa nas necessidades dos outros?” (FRAN-
comunitários, dos grupos de reflexão, dos CISCO, 2020b).
conselhos de pastoral e, também, daque- Em suma, é preciso pôr em prática a
les e daquelas que se encontram distantes cultura do encontro, da vida e da esperan-
das estruturas que a Igreja hoje oferece. ça, nas nossas dioceses e paróquias. Mas,
Uma evangelização que torne natural antes, elas devem ser inauguradas naque-
o caminho missionário e sinodal, que dê le novo normal, que só será realidade,
primazia à renovação do coração, mais do quando todos nós deixarmos de ser pes-
que à dos estatutos e decretos. Onde a soas normais, moldadas pela cultura da
questão financeira brote da partilha dos invisibilidade e do descarte. Ser cristão é
bens e de uma evidente solidariedade, viver a revolucionária mística do amor ao
como bem testemunham as pastorais próximo, como caminho irrenunciável
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para a construção de novas veredas. alguns querem fazer crer. O renovado
O projeto de uma fraternidade univer- compromisso com a vida plena para todos
sal, insistentemente proclamado pelo e todas, é a grande novidade da missão da
papa Francisco, deve ser assumido por Igreja pós-pandemia: o novo coronavírus
todas as estruturas eclesiais, para que a fez-nos experimentar a fragilidade da
vida não seja instrumentalizada, em favor nossa condição; só mediante um cuidado
de interesses particulares e ocasionais. A mútuo, uma atenção fraterna, especial-
Igreja não pode permitir que a fé – a sua e mente para com os mais pobres e vulne-
a das outras religiões – seja instrumento ráveis, poderemos louvar juntos a bonda-
de polarizações, guerra e divisões, como de do Deus Criador (LS 01).
Cadernos Teologia Pública, ano 17 – vol. 17- nº 148 – 2020, pp 6-39. INSTITUTO HUMANITAS UNISINO