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www.serradopilar.com | 4 Quaresma, 14.03.

2021 | ano 46º | nº 2212

Vacinas. LUC DESCHEEMAEKER (cartoonista belga). 2021. https://www.instagram.com/p/CJqFBosp3nN/

Igreja e evangelização:
provocações da pandemia
par te 3 — vinho novo, odres novos
1
fermento para uma nova cultura
“Das grandes provações da huma- sim, que um pão ou um bolo fiquem
nidade, dentre elas a pandemia, ou se colados ao chão, demasiadamente com-
sai melhor ou pior. Não se sai igual”. pactos e pesados; 4) e por fim, em quarto
Esta frase do papa Francisco contém, em lugar, é curioso o processo por meio do
si, um grande alerta: um mundo novo qual ele provoca transformações: o fer-
está a surgir das entranhas desta pande- mento faz brotar o ar, o sopro, o vento
mia, mas a qualidade humana deste no próprio interior da massa, abrindo e,
mundo ainda é uma incógnita, não é às vezes, rasgando nela espaços necessá-
autoevidente. Tudo dependerá das op- rios ao seu crescimento, leveza e sabor.
ções que, pessoal e coletivamente, for- Se a Igreja é chamada a ser, neste mun-
mos tomando. É necessário, então, lidar do, um sacramento da humanidade re-
com este tempo atípico como uma crisis: conciliada, podemos sonhar que, na nova
um tempo que apela ao juízo, que traz a Cultura emergente, a humanidade possa
urgência de despertar consciências e realizar-se mais plenamente, ao assumir
tomar as melhores decisões. De acordo a sua condição de fermento neste mun-
com o nosso título – retomando uma do. Integrando, com leveza e cuidado, a
inspiração evangélica –, a Igreja não está comunidade da vida, a humanidade pode
nem acima nem abaixo dos outros atores ser porta-voz do louvor a Deus que se
sociais, mas deseja ser como um “fer- expressa em toda a Criação, escutando e
mento”. Gostaríamos de nos apoiar nesta dando voz às subtis boas notícias dos
metáfora inspiradora, para refletir sobre seres silenciosos, e às dores de todos os
o papel das discípulas e dos discípulos seres brutalmente silenciados. Vejamos
de Jesus na construção de uma nova o que isso poderá significar.
Cultura mais solidária, compassiva e (1) Tecer novas relações e apreciar o
fraterna. protagonismo do diferente. Durante
Destacamos quatro características do séculos – e de modo mais acelerado a
fermento que nos parecem bastante partir da modernidade ocidental –, a
inspiradoras: 1) em primeiro lugar o separação entre Natureza e Cultura foi
fermento não é o principal ingrediente sendo enfatizada, com sérias consequên-
de uma receita, e só realiza aquilo que cias éticas, sociais, teóricas e espirituais.
lhe é próprio, quando provoca transfor- A consciência da distinção entre os seres
mações na mistura dos outros ingredien- humanos e os outros seres, foi cami-
tes, aos quais reconhece o protagonismo; nhando rumo a uma cisão, alimentando
2) em segundo lugar, o fermento é um processos hegemónicos e despóticos,
ingrediente discreto: no resultado final não somente entre a humanidade e o
de uma receita, deixa de ser visto na sua conjunto da Criação, mas também, entre
forma original, para passar a ser notado os próprios seres humanos, ampliando
pelos efeitos que provoca, quando entra conflitos sociais, étnicos, religiosos,
em comunhão com o que é diferente sexuais, geracionais etc. Deixando-se
dele; 3) em terceiro lugar, a sua função iluminar pela nova Cultura ecológica em
principal é fazer crescer, evitando, as- gestação – já tão antiga, em tantos povos
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nativos! –, os discípulos e discípulas de o tipo de crescimento que pode trazer
Jesus podem descobrir e ajudar os seus alegria ao mundo, e que irá surgir neste
irmãos humanos a descobrir uma nova pós-pandemia. Alguns modelos de cres-
faceta da sua dignidade: o que é mais cimento, fundados na ilusão de um pro-
próprio da dignidade humana é a nossa gresso ilimitado, mostraram-se predató-
capacidade de dignificar, de reconhecer rios, incentivando a devastação das
a dignidade dos outros, a dignidade de riquezas naturais dos diversos biomas
toda a Criação de Deus. Só há dignidade para a reprodução, em larga escala, de
de tudo e de todos, onde forem vencidos alguns poucos produtos (normalmente
o autocentralismo, a autorreferencialida- grãos e gado), para benefício de um
de, o sentimento e o pensamento que pequeno grupo de privilegiados. A nova
justificam uma pretensa superioridade de consciência ecológica alerta para a im-
uns sobre os outros. portância da biodiversidade, e denuncia
(2) Alegrarmo-nos por sermos parceiros o caráter homogeneizador das práticas
e parceiras discretos de um projeto mai- de produção das grandes indústrias
or do que nós. Não haverá nova Cultura, agropecuárias. Um olhar espiritual con-
nova humanidade, novas relações, sem templativo, também, é capaz de reco-
uma nova capacidade de diálogo, de nhecer, na beleza da Criação, a verdade
debate de ideias, de escuta da diversida- contida na máxima “quanto mais diver-
de de valores presentes nas nossas soci- so, mais divino”. Assim, o crescimento a
edades plurais. Neste sentido, a discrição desenvolver nesta nova Cultura pós-
do fermento inspira novos modos de pandémica, deveria ser duplo: o cuidado
viver os processos sociais transformado- e a conservação da riqueza natural que
res. Dignas de nota são as diversas inici- nos foi confiada pelas gerações que nos
ativas promovidas pelo papa Francisco, precederam, e o aumento da qualidade
desde o início do seu magistério, inspi- de vida dos grupos menos favorecidos,
radas no princípio de sinodalidade, a arte que não são beneficiados pelas produ-
de caminharmos juntos. Vários foram os ções em larga escala. É urgente e im-
encontros com movimentos sociais, prescindível promover a aprendizagem e
cientistas, educadores, economistas, a valorização da partilha, como antídoto
povos nativos... Na base desses encon- contra o desejo insustentável de acumu-
tros, uma certeza comum: ninguém lação. Além disso, é necessário falar de
possui, sozinho, as respostas para supe- um crescimento ético que se faz urgente
rar as crises da humanidade, e avançar e necessário: o estabelecimento de limi-
rumo a um mundo mais conforme ao tes à nossa capacidade produtiva. Na
Reino de Deus. Por isso, a atitude de encíclica Laudato si’, o papa Francisco,
escuta mútua revela-se como a única via de modo recorrente, convida a humani-
lúcida, para que os diversos atores soci- dade a experimentar a realização mais
ais intuam e construam, juntos, novos completa da sua liberdade, face à esco-
caminhos para a ciência, para a educa- lha de uma autolimitação consciente e
ção, para a economia, para a ecologia, responsável. O paradigma da não des-
para a Igreja. truição, deverá reger as decisões relati-
(3) Reconhecer que o crescimento de vas ao crescimento ou à desaceleração.
uns só faz sentido, com o crescimento de (4) Devolver a saúde pneumática ao
todos. Há várias maneiras de se conceber mundo, sem temer os possíveis conflitos.
3
Devemos reconhecer que a pandemia e sempre existirão, grupos humanos
atual traz consigo uma poderosa metáfo- poderosos que resistirão à emergência de
ra. A enfermidade que este vírus provo- qualquer Boa Nova para os pobres, os
ca, afeta o sistema respiratório, provo- cativos, os cansados, os desesperados...
cando uma espécie de asfixia. O parasi- Com o avanço técnico e tecnológico,
ta, inconsciente e inconsequente, sufoca esses grupos ampliaram, exponencial-
o seu hospedeiro, decretando, ao mesmo mente, a sua capacidade de produção,
tempo, o fim da sua própria existência. mas também de destruição. Agem como
Não tem sido esse o comportamento da predadores da Natureza e de outros seres
humanidade, nos últimos séculos, em humanos, com uma voracidade sem
relação aos recursos do nosso planeta? O limites. Como deveremos lidar com
fermento, como vimos, faz brotar o ar eles? Não há, evidentemente, respostas
dentro da massa, criando novos espaços. prontas. Mas se as Escrituras cristãs, por
Todas as religiões e tradições espirituais um lado, falam em “não resistir ao vio-
são convocadas a colaborar com a eleva- lento”, por outro, falam também, em
ção ética da humanidade, ajudando as linguagem apocalíptica, do grande com-
pessoas e as sociedades a tomar consci- bate contra o Dragão devorador. A
ência de que a vida saudável depende da emergência de uma nova Cultura e de
respiração: inspiração e expiração, rece- uma nova humanidade, depende da
ção e doação, personalização e comu- vitória de uma humanidade propriamen-
nhão. Porém, rasgar novos espaços numa te eucarística – capaz de viver o dom de
massa compacta, embora seja fundamen- si para o sustento de toda a Criação –
tal, não é sempre uma atividade confor- contra uma lógica autocentrada e voraz.
tável. É necessário identificar tudo aqui- O fermento não existe em função de si,
lo que prende esta massa ao chão, que pois se destina à existência de um pão ou
não lhe permite atingir a leveza e o sabor de um bolo mais nutritivo, saboroso,
aos quais ela é chamada. Faz parte da leve. O bolo e o pão, por sua vez, tam-
missão das religiões identificar e nomear bém não existem em função de si mes-
as forças do mal, aquilo que, em regime mos, mas para alimentar a vida e pro-
cristão, chamamos de Anticristo e Antir- porcionar maior prazer e alegria àqueles
reino. Aqui, uma vez mais, o papa Fran- e àquelas para quem são feitos. Do
cisco é um grande líder inspirador. Ele mesmo modo, só podemos desejar – e
não hesita em denunciar uma economia colaborar ativamente para esse fim! –
que mata, uma indústria que prefere as que a nova humanidade, que está sendo
armas ao alimento, uma política que testada no interior desta crise pandémi-
manipula e corrompe, ao invés de liderar ca, aprenda que a partilha de tudo o que
processos de superação da desigualdade, somos e possuímos, com quem não é e
um nacionalismo que fecha as portas à não possui da mesma maneira que nós, é
fraternidade, uma Igreja mais preocupa- uma condição para o surgimento de um
da com os seus privilégios históricos do mundo mais bonito, diverso, humano e
que com o Evangelho de Jesus Cristo. divino, onde todos possam crer, esperar
Não podemos ser ingénuos: existem, e amar.

MOEMA MIRANDA / ROSANA MANZINI. / FRANCYS SILVESTRINI ADÃO, SJ.


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Igreja doméstica e em saída digital.
Horizontes novos para a vivência da fé cristã

Este texto propõe-se explorar e refletir sobre aspetos decisivos da vivência da fé


cristã, do ser Igreja de Jesus Cristo, que, neste longo contexto de pandemia, afloraram
bem fortemente, seja como exigência pastoral diante de urgências, seja como
dinamismo profético a exigir respostas novas diante dos sinais do tempo. Está
organizado em duas partes: a primeira aborda a igreja doméstica, e a segunda reflete
sobre o chamamento a sermos uma “Igreja em saída”, também, no ambiente digital.

Igreja doméstica Não corresponde ao contexto atual, em


que as pessoas, praticamente, em todos
Por inúmeras razões, a vivência da fé
os âmbitos da vida, se perspetivam como
cristã, o modo de ser cristão, foi perden-
sujeitos ativos dos seus processos, e
do, paulatinamente, a força da sua capi-
sedentos de reconhecimento, relação
laridade e da sua dimensão doméstica,
dialógica, autonomia e participação.
familiar, vivida no interior do espaço
Sem criar condições para o exercício
sagrado das casas, com inúmeros desdo-
criativo da subjetividade, torna-se, prati-
bramentos para a vida eclesial e em
camente, impossível, na vivência da fé
sociedade. A opção pela estrutura orga-
cristã, haver crescimento significativo,
nizativa paroquial da vida cristã, com os
conquista da maioridade na fé, desen-
seus ritos litúrgicos sacramentais, espe-
volvimento da autonomia e do senso de
cialmente, a celebração da eucaristia, do
corresponsabilidade na missão. A pan-
batismo-crisma, da penitência e do ma-
demia da Covid-19, com o necessário
trimónio, com as suas exigências e obri-
distanciamento social e o consequente
gações, concentrou tudo em torno do que
encerramento dos templos, explicitou,
passou a ser vivido no interior dos tem-
mais do que a impossibilidade do tradi-
plos, das igrejas. Tudo passou a ser
cional funcionamento da dinâmica paro-
centralizado sob o poder hierárquico do
quial, a inadequação de um cristianismo
clero. No senso comum, até hoje, em
centrado nas mãos do clero, sem sinoda-
muitos lugares, o “sair de casa para ir à
lidade, sem dinâmica ministerial amplia-
igreja”, o não faltar à missa aos “domin-
da com projetos pastorais estimulantes,
gos e festas de guarda”, concentra o
desafiantes e envolventes, e sem capila-
critério decisivo para definir quem é
ridade participativa e corresponsável na
cristão católico praticante ou não. Os
vida eclesial e na sociedade.
processos decisórios, as reuniões de
planeamento, os encontros, os ritos Que queremos dizer
sacramentais, a catequese, as festas quando dizemos igreja doméstica?
religiosas e, até mesmo, grande parte das Entendemos por igreja doméstica a
devoções passaram a ser vividas, prati- vivência quotidiana da fé cristã, de for-
camente, no interior ou ao redor do ma autónoma e corresponsável, no di-
templo e sob o controle do clero. namismo concreto da vida dos converti-
Esta configuração da fé cristã, já há dos e convertidas ao Reino de Deus.
algum tempo que se revela esclerosada. Trata-se da realidade iluminada e impul-
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sionada pela fé que se torna seguimento meiras comunidades cristãs como sendo
de Jesus, cultivada no seio da dinâmica igrejas domésticas (At 2, 42-47). Quarto,
interna da vida familiar, com os seus a grande referência de atuação dos após-
múltiplos desdobramentos para a vizi- tolos, sobretudo Paulo, ao formar comu-
nhança, o bairro, a comunidade, o traba- nidades cristãs, era o espaço da casa e
lho, a participação nos movimentos não o do templo (Rm 16,5; 1Cor 16,19;
populares, nas pastorais, na política, Cl 4, 15). Quinto, no centro da experiên-
enfim, em todos os âmbitos da vida cia da fé cristã está a gratuidade da inici-
eclesial e em sociedade. Compreende-se, ativa do amor divino que nos torna
portanto, como um cultivo diário da vida membros da família de Deus: somos
nova, do jeito de viver e conviver, que se filhos e filhas do mesmo Abba querido
vai moldando, transformando e purifi- e, portanto, chamados a viver como
cando, continuamente, na olaria da expe- irmãos e irmãs, enraizados em Cristo
riência do amor de Deus e do amor Jesus (1 Jo 4, 7-9.19-21).
compartilhado na família e na sociedade.
A igreja doméstica em contexto
Realidade, consequentemente, muito
de pandemia
mais ampla do que o que é vivido e
compartilhado no espaço do templo. O contexto de pandemia, com as
Tudo o que é refletido e vivido no tem- exigências sanitárias do “ficar em casa”,
plo, na leitura da Palavra de Deus, nas impulsionou a tomada de consciência da
dinâmicas impulsionadas pela comuni- centralidade da igreja doméstica no
dade de fé, visa alimentar os horizontes dinamismo da vida cristã. Colocou na
da igreja doméstica, como lugar próprio lista das discussões e reflexões teológi-
para interiorizar o sentido de ser cristão. co-pastorais, o sentido e o papel da
A igreja doméstica, como expressão igreja doméstica, no conjunto da ação
da inquieta e criativa vivência da fé evangelizadora e na missão do Reino.
cristã no quotidiano da vida das pessoas, No entanto, importa dizer que a igreja
está muito presente nas origens. Primei- doméstica não surge como uma saída de
ro, o próprio Jesus, de muitas maneiras, emergência, uma espécie de via secun-
deixou-se fecundar pelo húmus da expe- dária, a que se recorre em contextos
riência doméstica quotidiana, para ex- especiais, quando se está impedido de
pressar o dinamismo do Reino de Deus utilizar a via principal da paróquia e da
presente e atuante no meio de nós (Mt 7, centralidade do templo e do clero. Pelo
24-27; 13, 33). Utilizou, muitas vezes, o contrário, a igreja doméstica impõe-se
espaço da casa, o círculo familiar, para como o lugar do cultivo da intimidade,
vivenciar a fé com os seus discípulos e da interiorização afetiva e efetiva, e do
discípulas (Mc 14, 12-25). Segundo, ao aprofundamento da experiência da fé
envolver os seus seguidores e seguidoras cristã. E, se observarmos com atenção,
na missão, prestou atenção, em primeiro ela é, na verdade, a “Primeira Igreja”,
lugar, à realidade vivida nas casas (Mc pois, é no seio familiar, no aconchego do
6, 10-12). Terceiro, o livro dos Atos dos lar, que a maioria das pessoas nasce, é
Apóstolos, ao narrar a vida dos primei- recebida e recebe os primeiros e os últi-
ros cristãos, descreve a experiência de mos cuidados, na infância e na velhice.
Pentecostes no espaço da casa e não do Quando a família não está bem estrutu-
templo (At 2, 1-4), e apresenta as pri- rada e equilibrada afetiva, social e eco-
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nomicamente, a vida das crianças e dos zeladores, guardiães. Há que haver o
idosos é envolvida em situações trágicas cultivo da confiança na presença de
de abandono e de violência. O espaço Deus, sempre companheiro de estrada
doméstico é onde a maioria das pessoas connosco, e na própria liberdade-
aprende os princípios e os valores bási- responsabilidade de cada um. A igreja
cos e estruturantes para a vida, onde se doméstica favorece a emergência de
testemunham e se cultivam os bons sujeitos adultos, que refletem, filtram,
costumes. interpretam, interiorizam, dialogam e
A igreja doméstica, como qualquer livremente se comprometem com a
outra realidade humana, é marcada pela práxis cristã.
ambivalência humana e, portanto, pela Por tudo isto, a igreja doméstica de-
carência de conversão. Se na Igreja, nas ve ocupar o centro das atenções e das
relações que se concretizam na diocese e preocupações da ação evangelizadora da
na paróquia, pode ser reconhecido o Igreja. Neste sentido, deve ser conside-
grave problema do clericalismo, na rada um indicador concreto do nível de
família surge o patriarcalismo, a violên- qualidade da vida cristã e da ação evan-
cia doméstica, entre outras questões. gelizadora.
Toda e qualquer Igreja é uma realidade Igreja em saída digital
sempre carente de reforma e conversão.
Se a igreja doméstica pode ser en-
Nesse sentido, pode dizer-se que
tendida como a vivência da fé cristã no
uma evangelização que não contemple,
quotidiano das pessoas, para além dos
valorize e trabalhe as relações humanas,
templos, é preciso levar em conta, tam-
seja no espaço do templo, seja no espaço
bém, que hoje habitamos espaços au-
doméstico familiar, não atinge, de facto,
mentados, expandidos, conectados,
a vida concreta das pessoas, o coração
graças à evolução tecnológica. Durante o
dos convertidos e convertidas, o centro
confinamento devido à Covid-19, as
de irradiação das suas vidas.
“Igrejas domésticas” não se limitaram à
Igreja doméstica: um indicador própria casa, mas conectaram-se com
decisivo para a ação evangelizadora outros lares, unindo pessoas, famílias,
Não se pode pretender que a igreja grupos e comunidades em encontros de
doméstica seja evangelizada com uma oração, formação e organização de ações
pastoral de massa, com uma dinâmica de pela internet. O fenómeno digital escan-
mega templos, de grandes aglomerações, carou as portas das casas ao mundo,
mas através da formação de pequeninas fazendo com que as pessoas se sentissem
comunidades, com círculos bíblicos e “reconvocadas para fora”, para o “céu
pequenos grupos de reflexão, partilha, aberto” da comunicação. Deste modo,
ação e celebração. passou-se a viver também uma nova
Estas células, por mais diretrizes e eclesialidade, com um novo significado,
orientações que recebam da Palavra de devido ao encerramento dos templos por
Deus e dos clérigos, não podem ser nem causa da pandemia e, ao mesmo tempo,
uniformizadas, nem controladas pelo na sequência da reabertura ao mundo,
clero. É uma realidade na qual os cris- possibilitada pela conexão das redes.
tãos leigos e leigas são os sujeitos con- Assim, mesmo num período de dis-
dutores dos seus processos internos, são tanciamento social, a Igreja pôde conti-
os verdadeiros artífices, cuidadores, nuar a ser – e talvez até mais – “em
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saída”, como nos pede o papa Francisco. 70% nos seus telemóveis, e 58% nas
Agora, porém, pelas “estradas digitais”, redes sociais digitais.
que, como diz o papa, estão “congestio- Ambiente de vida e de realidade
nadas de humanidade, muitas vezes
Estes dados confirmam aquilo que
ferida: homens e mulheres que procuram
Bento XVI já afirmava em 2013: “O
uma salvação ou uma esperança”. Para
ambiente digital não é um mundo parale-
Francisco, “abrir as portas das igrejas
lo ou puramente virtual, mas faz parte da
significa também abri-las ao ambiente
realidade quotidiana de muitas pessoas”
digital, seja para que as pessoas entrem,
e, por isso, “se a Boa Nova não for dada
independentemente da condição de vida
a conhecer, também, no ambiente digi-
em que se encontrem, seja para que o
tal, poderá ficar fora do alcance da expe-
Evangelho possa cruzar o limiar do
riência de muitos” (BENTO XVI, 2013).
templo e sair ao encontro de todos”
O digital, portanto, é real. É uma reali-
(FRANCISCO, 2014). E ele mesmo dá o
dade cultural e social. É uma expressão
exemplo, com as suas presenças no
cada vez mais encarnada, concreta e
Twitter (nas várias contas @Pontifex),
material da humanidade.
no Instagram (@Franciscus), no YouTu-
É preciso, desse modo, superar a di-
be (com o projeto “O Vídeo do papa”)
cotomia “virtual x real”, “offline x onli-
e, também, no aplicativo Click To Pray,
ne”. Hoje, vivemos uma experiência
que nos convida a rezar pelas intenções
verdadeiramente “onlife” (FLORIDI, 2014),
de Francisco, ao longo do dia.
isto é, a conectividade e as redes digitais
Alguns dados ajudam a ilustrar a im-
já são uma dimensão existencial das
portância do ambiente digital na vida
pessoas. É cada vez mais difícil – senão
quotidiana contemporânea. Segundo o
impossível – viver sem internet, ambien-
instituto de pesquisas DataReportal,
te no qual nos relacionamos, estudamos,
com dados divulgados no início de 2020,
trabalhamos, compramos, nos entrete-
já são 150,4 milhões os utentes frequen-
mos, rezamos etc. Em 2011, um relatório
tes da internet no Brasil, ou seja, 71% da
da ONU chegou a defender o acesso à
população. Desperta, ainda, mais a nossa
rede como um direito humano caracterís-
atenção o tempo médio de uso diário da
tico do século XXI, e afirmou que im-
internet por parte dos brasileiros:
possibilitar tal acesso ou desconectar a
9h17min, praticamente metade de um
população, viola esse direito (ONU,
dia, o que coloca o país no terceiro lugar
2011).
mundial em relação ao tempo de cone-
Redes e ruas, portanto, estão mais do
xão (ficando, apenas, atrás das Filipinas
que nunca conectadas e interligadas. O
e da África do Sul).
“véu” dessa separação rasgou-se há um
Em julho de 2020, o DataReportal
bom tempo. O que possibilita, por sua
publicou uma nova pesquisa, para se
vez, também, novas formas de encontro
compreender as transformações que a
e de relação, inclusive com o sagrado. E,
pandemia havia provocado no cenário
por isso, transforma a própria experiên-
digital. Constatou-se que, durante o
cia e vivência da fé.
período inicial da quarentena, uma gran-
de maioria dos entrevistados (entre de- Ambiente de relação e de comunidade
zasseis e sessenta e quatro anos de ida- Hoje, o papa Francisco afirma que “a
de) passou, ainda, mais tempo ligada: internet pode oferecer maiores possibili-
8
dades de encontro e de solidariedade “cultura digital”. Neste sentido, “as
entre todos; e isto é uma coisa boa, é um comunidades em redes digitais comple-
dom de Deus”. Segundo ele, “a rede mentam e fortalecem as comunidades
digital pode ser um lugar rico de huma- presenciais”, como afirma o Diretório de
nidade: não uma rede de fios, mas de Comunicação da Igreja no Brasil (n.
pessoas humanas” (FRANCISCO, 2014). 183). Mas isso, continua o documento,
Francisco também já afirmou que “o uso “exige uma renovada capacidade de
da internet é complementar ao encontro dialogar com as pessoas”. Ou seja, co-
em carne e osso”; é, inclusive, um “re- nexão não é, automaticamente, relação.
curso para a comunhão” (FRANCISCO, A comunidade é fruto da comunhão
2019). entre as pessoas, que, por sua vez, é
Especialmente nestes tempos de fruto da capacidade de dialogar, de se
pandemia, surgiram novas formações abrir ao “outro”. Em rede, é preciso, não
comunitárias e eclesiais em rede. Consti- apenas, reconhecer a presença do irmão
tuíram-se verdadeiras “comunidades e da irmã, mas também, envolvê-los e
eclesiais digitais”, que se reúnem para deixar-se envolver por eles, para que
rezar juntas, refletir e aprofundar a fé, seja possível uma comparticipação ativa
como no fenómeno das “lives”, ou na experiência de comunhão e na cons-
transmissões em direto, e, principalmen- trução de uma comunidade.
te, na partilha do pão da Palavra. Desta Ambiente de inculturação
forma, atualiza-se, por outros meios e e evangelização
noutros ambientes, uma mesma busca de
O desafio é reconhecer as “formas e
vínculo interpessoal e de experiência
valores positivos” (EG 116) presentes na
religiosa, própria de outras formas de
cultura digital e que podem enriquecer a
comunidade. Trata-se, no fundo, de
evangelização, introduzindo-os na cultu-
“outro modo de ser Igreja”, no meio das
ra eclesial. Trata-se de promover uma
diversas variações históricas das experi-
verdadeira inculturação digital, que
ências comunitárias, que nunca foram as
assuma as “categorias próprias da cultu-
mesmas, nem iguais, ao longo da histó-
ra [digital]” no anúncio do Evangelho,
ria da Igreja e nas diferentes culturas. É
permitindo que a força do próprio Evan-
o que Francisco também põe em relevo
gelho “provoque uma nova síntese com
na Evangelii gaudium: “Como podemos
essa cultura” (EG 68).
ver, na história da Igreja, o cristianismo
Trata-se de um processo artesanal,
não dispõe de um único modelo cultural
que deve ser discernido e elaborado a
[...]. Não faria justiça à lógica da encar-
partir das especificidades de cada con-
nação, pensar num cristianismo mono-
texto local, de acordo com os tempos, os
cultural e monocórdico” (EG 116). Cada
lugares e as pessoas. É preciso, também,
modelo cultural, na sua diversidade,
ter consciência crítica diante de tantos
possibilita diferentes formas de encontro
aspetos negativos das redes, como a
e de relação, de comunhão e de comuni-
desinformação, os discursos de ódio, as
dade – em suma, de participação. E a fé
“bolhas” sociais e informativas, a de-
cristã assume “o rosto das diversas cul-
pendência tecnológica etc. Além disso,
turas e dos vários povos onde for acolhi-
embora falemos de “cultura digital” no
da e se radicar” (EG 116).
singular, as expressões da digitalização
O mesmo se pode dizer da chamada
são as mais diversas, gerando diferentes
9
“culturas digitais”, inclusive dentro de – para experimentar a sua presença e
uma mesma região. O Brasil, aliás, ainda viver a comunhão com ele.
tem uma forte cultura não digital. De À guisa de conclusão
acordo com os dados apresentados no
Como vimos, igreja doméstica e
início deste texto, há ainda 29% de bra-
Igreja em saída digital, são realidades
sileiros desconectados. Perante tudo isto,
que enriquecem e despertam possibili-
o maior desafio pastoral é superar a
dades novas para a fé cristã se dizer, se
lógica da “substituição” pela lógica da
configurar e concretizar a sua missão de
“complexificação”, da complementari-
ser “fermento”, “sal” e “luz”, no com-
dade, da interligação. Se o digital não se
plexo contexto em que vivemos. Ambas
opõe ao “real”, então o desafio é promo-
explicitam temáticas centrais, para se
ver uma complexa ecologia comunicaci-
pensar a atual vivência da fé cristã e,
onal pastoral, na qual “tudo esteja estrei-
juntas, oferecem criativo e dinâmico
tamente interligado” (cf. Laudato si’, n.
indicador do nível de qualidade da ação
16). Se a pastoral quiser ser verdadeira-
evangelizadora contemporânea.
mente cristã, nos passos do Deus que
encarnou na história e na cultura huma- Nota
nas, interligando, estreitamente, o divino 1) Esta centralidade do vivido no templo e
sob o controle do clero, pode ser observada, com
e o humano, e se quiser ser verdadeira- as devidas diferenças, em muitas outras denomi-
mente católica, acolhendo a universali- nações protestantes e evangélicas pentecostais e,
dade e a diversidade humanas, ela é sobretudo, neopentecostais. Nesse sentido,
chamada a abandonar a lógica do “ou” e acreditamos que o que aqui é apresentado, possa
servir para alimentar a reflexão cristã na sua
a assumir a lógica do “e”. Não se trata multieclesialidade.
de viver a fé, “ou” no ambiente digital, Referências
“ou” nos demais ambientes sociais, mas
BENTO XVI. Redes sociais: portais de verdade
sim de sair ao encontro das pessoas no e de fé; novos espaços de evangelização. Men-
ambiente digital, “e” nos demais ambi- sagem para o 47º Dia Mundial das Comunica-
entes sociais, isto é, onde quer que elas ções Sociais. Vatican.va, Vaticano, 24 jan. 2013.
estejam, para assim gerar comunhão e FLORIDI, Luciano (org.). The Onlife Manifesto:
Being Human in a Hyperconnected Era. Lon-
construir comunidade, como fez Jesus dres: Springer, 2014.
com os discípulos de Emaús (Lc 24,13- FRANCISCO. Comunicação ao serviço de uma
35). autêntica cultura do encontro. Mensagem para o
Noutra passagem, Jesus disse, ainda: 48º Dia Mundial das Comunicações Sociais.
“Onde dois ou mais estiverem reunidos Vatican.va, Vaticano, 24 jan. 2014.
_____. “Somos membros uns dos outros” (Ef 4,
em meu nome, eu estarei no meio deles”
25): das comunidades de redes sociais à comu-
(Mt 18,20). Trata-se de uma verdadeira nidade humana. Mensagem para o 53º Dia
promessa de presença real do próprio Mundial das Comunicações Sociais. Vatican.va,
Jesus. O importante, aqui, não é o “on- Vaticano, 24 jan. 2019.
de”, em sentido geográfico, mas sim, ONU. “Report of the Special Rapporteur on the
promotion and protection of the right to freedom
reunir-se em comunidade em nome de of opinion and expression., Frank La Rue”,
Jesus – em casa ou no templo, à distân- Conselho de Direitos Humanos da ONU, 16
cia ou perto, em rede digital ou fora dela mai. 2011.

EDWARD GUIMARÃES / MOISÉS SBARDELOTTO

Cadernos Teologia Pública, ano 17 – vol. 17- nº 149 – 2020, pp 4-37 / INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS
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A QUARESMA
COMO TERAPIA
A QUARESMA É UM SEGMENTO DO CHAMADO ANO LITÚRGICO ONDE, NUMA
EXPERIÊNCIA CIRCULAR DA HISTÓRIA, OS CRENTES REPETEM
E ATUALIZAM NAS SUAS VIDAS O IM PACTO DA SALVAÇÃO DE CRISTO

O
s cristãos começam esta semana a quaresma: estivéssemos realmente num
um ciclo espiritualmente intenso de 40 dias deserto, sem armaduras nem
que os prepara para celebrar a Páscoa. A desculpas, deixando que as
quaresma é um segmento do chamado ano litúrgico perguntas fundamentais nos
onde, numa experiência circular da história, os crentes habitem de novo,
repetem e atualizam nas suas vidas o impacto da interrogando-nos sobre o
salvação de Cristo. De facto, não se trata apenas de que fizemos da nossa
fazer memória das várias etapas da existência histórica liberdade ou do nosso amor,
de Jesus, mas de receber e maturar, a essa luz, uma reconhecendo que o vazio
nova visão deles próprios. Nesse sentido, não admira desprotegido da paisagem é
que, por exemplo, Carl Jung tenha individuado nos afinal simétrico ao nosso
diversos momentos do ano litúrgico uma espécie de camuflado vazio, urdido por
sistema terapêutico, pois os ritos são também este vício nosso de viver às
essenciais ferramentas de cura. Importa, por isso, metades. Mesmo sabendo,
libertar a quaresma dos reducionismos que a como escreveu Sophia de
neutralizam. A casuística e a moleza acomodatícia Mello Breyner Andresen,
depressa desfiguram o espírito e, aquilo que nos é que “Meia verdade é como
oferecido como uma oportunidade de aprofundar com habitar meio quarto/ Ganhar
autenticidade a vida, descamba numa enésima forma meio salário/ Como só ter
de escapismo. Gosto do modo como um clássico direito/ A metade da vida”.
contemporâneo, Romano Guardini, define a liturgia: é O texto evangélico das
uma expansão da vida que toma posse da sua tentações é um mapa para
plenitude, já que os tempos e os rituais litúrgicos não readquirir a inteireza e
são coisas que criamos, mas obras de arte que somos coloca-nos perante três
ou em que nos tornamos. núcleos de questões: 1) se é
certo que não vivemos só de
A quaresma é uma proposta de discernimento e pão, vivemos de quê para lá
viragem. Os instrumentos práticos que apresenta do pão? Qual é
verdadeiramente a nossa
para que operemos esta transformação espiritual
fome e a nossa sede? Onde
são de ordem prática, não abstrações: o jejum, a é que elas acabam? Aonde
oração e esmola nos conduzem? 2) a fé
serve-nos para quê? Para
O passo do evangelho que se lê no primeiro domingo submeter Deus às condições
da quaresma — e que lhe serve de chave — é o que que consideramos
relata as tentações de Jesus no deserto. O desafio é que necessárias para acreditar
aceitemos escutar a vida que nos pertence como se nele ou, antes, para nos
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abrirmos, como nómadas e peregrinos, à radicalidade para Deus, para as coisas
do mistério? 3) estamos dispostos a renunciar ao grandes e amplia a nossa
equívoco do domínio e da posse, quaisquer que eles respiração. A esmola retira-
sejam, como supostas fontes de realização e de sentido, nos do conforto
reduzindo a isso o horizonte de significação da vida? O autorreferencial. Torna
que fazemos com as coisas que possuímos? E também: objetivos a compaixão, a
o que é que as coisas que possuímos fizeram de nós? A solidariedade e o cuidado
quaresma é uma proposta de discernimento e viragem. que nos permitem passar da
Os instrumentos práticos que apresenta para que indiferença à
operemos esta transformação espiritual são de ordem responsabilidade pelos
prática, não abstrações: o jejum, a oração e esmola. O outros, sobretudo os mais
jejum, como explica o Papa Francisco na mensagem vulneráveis.
quaresmal deste ano, é uma experiência de privação
voluntária (de alimento ou de um tipo de alimentos; de JOSÉ TOLENTINO
dependências de todo o género, pequenas e grandes; MENDONÇA
dos consumos fáceis a que nos permitimos, etc.),
adotando um estilo assumidamente frugal que ajude a in Semanário Expresso
devolver-nos liberdade. A oração volta o nosso olhar 20.02.2021

Conversão ecológica
Esta conversão comporta várias atitudes que se conjugam para ativar
um cuidado generoso e cheio de ternura. Em primeiro lugar, implica
gratidão e gratuidade, ou seja, um reconhecimento do mundo como dom
recebido do amor do Pai, que consequentemente provoca disposições
gratuitas de renúncia e gestos generosos, mesmo que ninguém os veja
nem agradeça. Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita
(...); e teu Pai, que vê o oculto, há de premiar-te (Mt 6, 3-4).
Implica ainda a consciência amorosa de não estar separado das outras
criaturas, mas de formar com os outros seres do universo uma estupenda
comunhão universal. O crente contempla o mundo, não como alguém
que está fora dele, mas dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos
uniu a todos os seres. Além disso a conversão ecológica, fazendo crescer
as peculiares capacidades que Deus deu a cada crente, leva-o a
desenvolver a sua criatividade e entusiasmo para resolver os dramas do
mundo, oferecendo-se a Deus como sacrifício vivo, santo e agradável
(Rm 12, 1). Não vê a sua superioridade como motivo de glória pessoal nem
de domínio irresponsável, mas como uma capacidade diferente que, por
sua vez, lhe impõe uma grave responsabilidade derivada da sua fé.

Papa Francisco, Laudato si’, nº 220

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