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Igreja e evangelização:
provocações da pandemia
par te 3 — vinho novo, odres novos
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fermento para uma nova cultura
“Das grandes provações da huma- sim, que um pão ou um bolo fiquem
nidade, dentre elas a pandemia, ou se colados ao chão, demasiadamente com-
sai melhor ou pior. Não se sai igual”. pactos e pesados; 4) e por fim, em quarto
Esta frase do papa Francisco contém, em lugar, é curioso o processo por meio do
si, um grande alerta: um mundo novo qual ele provoca transformações: o fer-
está a surgir das entranhas desta pande- mento faz brotar o ar, o sopro, o vento
mia, mas a qualidade humana deste no próprio interior da massa, abrindo e,
mundo ainda é uma incógnita, não é às vezes, rasgando nela espaços necessá-
autoevidente. Tudo dependerá das op- rios ao seu crescimento, leveza e sabor.
ções que, pessoal e coletivamente, for- Se a Igreja é chamada a ser, neste mun-
mos tomando. É necessário, então, lidar do, um sacramento da humanidade re-
com este tempo atípico como uma crisis: conciliada, podemos sonhar que, na nova
um tempo que apela ao juízo, que traz a Cultura emergente, a humanidade possa
urgência de despertar consciências e realizar-se mais plenamente, ao assumir
tomar as melhores decisões. De acordo a sua condição de fermento neste mun-
com o nosso título – retomando uma do. Integrando, com leveza e cuidado, a
inspiração evangélica –, a Igreja não está comunidade da vida, a humanidade pode
nem acima nem abaixo dos outros atores ser porta-voz do louvor a Deus que se
sociais, mas deseja ser como um “fer- expressa em toda a Criação, escutando e
mento”. Gostaríamos de nos apoiar nesta dando voz às subtis boas notícias dos
metáfora inspiradora, para refletir sobre seres silenciosos, e às dores de todos os
o papel das discípulas e dos discípulos seres brutalmente silenciados. Vejamos
de Jesus na construção de uma nova o que isso poderá significar.
Cultura mais solidária, compassiva e (1) Tecer novas relações e apreciar o
fraterna. protagonismo do diferente. Durante
Destacamos quatro características do séculos – e de modo mais acelerado a
fermento que nos parecem bastante partir da modernidade ocidental –, a
inspiradoras: 1) em primeiro lugar o separação entre Natureza e Cultura foi
fermento não é o principal ingrediente sendo enfatizada, com sérias consequên-
de uma receita, e só realiza aquilo que cias éticas, sociais, teóricas e espirituais.
lhe é próprio, quando provoca transfor- A consciência da distinção entre os seres
mações na mistura dos outros ingredien- humanos e os outros seres, foi cami-
tes, aos quais reconhece o protagonismo; nhando rumo a uma cisão, alimentando
2) em segundo lugar, o fermento é um processos hegemónicos e despóticos,
ingrediente discreto: no resultado final não somente entre a humanidade e o
de uma receita, deixa de ser visto na sua conjunto da Criação, mas também, entre
forma original, para passar a ser notado os próprios seres humanos, ampliando
pelos efeitos que provoca, quando entra conflitos sociais, étnicos, religiosos,
em comunhão com o que é diferente sexuais, geracionais etc. Deixando-se
dele; 3) em terceiro lugar, a sua função iluminar pela nova Cultura ecológica em
principal é fazer crescer, evitando, as- gestação – já tão antiga, em tantos povos
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nativos! –, os discípulos e discípulas de o tipo de crescimento que pode trazer
Jesus podem descobrir e ajudar os seus alegria ao mundo, e que irá surgir neste
irmãos humanos a descobrir uma nova pós-pandemia. Alguns modelos de cres-
faceta da sua dignidade: o que é mais cimento, fundados na ilusão de um pro-
próprio da dignidade humana é a nossa gresso ilimitado, mostraram-se predató-
capacidade de dignificar, de reconhecer rios, incentivando a devastação das
a dignidade dos outros, a dignidade de riquezas naturais dos diversos biomas
toda a Criação de Deus. Só há dignidade para a reprodução, em larga escala, de
de tudo e de todos, onde forem vencidos alguns poucos produtos (normalmente
o autocentralismo, a autorreferencialida- grãos e gado), para benefício de um
de, o sentimento e o pensamento que pequeno grupo de privilegiados. A nova
justificam uma pretensa superioridade de consciência ecológica alerta para a im-
uns sobre os outros. portância da biodiversidade, e denuncia
(2) Alegrarmo-nos por sermos parceiros o caráter homogeneizador das práticas
e parceiras discretos de um projeto mai- de produção das grandes indústrias
or do que nós. Não haverá nova Cultura, agropecuárias. Um olhar espiritual con-
nova humanidade, novas relações, sem templativo, também, é capaz de reco-
uma nova capacidade de diálogo, de nhecer, na beleza da Criação, a verdade
debate de ideias, de escuta da diversida- contida na máxima “quanto mais diver-
de de valores presentes nas nossas soci- so, mais divino”. Assim, o crescimento a
edades plurais. Neste sentido, a discrição desenvolver nesta nova Cultura pós-
do fermento inspira novos modos de pandémica, deveria ser duplo: o cuidado
viver os processos sociais transformado- e a conservação da riqueza natural que
res. Dignas de nota são as diversas inici- nos foi confiada pelas gerações que nos
ativas promovidas pelo papa Francisco, precederam, e o aumento da qualidade
desde o início do seu magistério, inspi- de vida dos grupos menos favorecidos,
radas no princípio de sinodalidade, a arte que não são beneficiados pelas produ-
de caminharmos juntos. Vários foram os ções em larga escala. É urgente e im-
encontros com movimentos sociais, prescindível promover a aprendizagem e
cientistas, educadores, economistas, a valorização da partilha, como antídoto
povos nativos... Na base desses encon- contra o desejo insustentável de acumu-
tros, uma certeza comum: ninguém lação. Além disso, é necessário falar de
possui, sozinho, as respostas para supe- um crescimento ético que se faz urgente
rar as crises da humanidade, e avançar e necessário: o estabelecimento de limi-
rumo a um mundo mais conforme ao tes à nossa capacidade produtiva. Na
Reino de Deus. Por isso, a atitude de encíclica Laudato si’, o papa Francisco,
escuta mútua revela-se como a única via de modo recorrente, convida a humani-
lúcida, para que os diversos atores soci- dade a experimentar a realização mais
ais intuam e construam, juntos, novos completa da sua liberdade, face à esco-
caminhos para a ciência, para a educa- lha de uma autolimitação consciente e
ção, para a economia, para a ecologia, responsável. O paradigma da não des-
para a Igreja. truição, deverá reger as decisões relati-
(3) Reconhecer que o crescimento de vas ao crescimento ou à desaceleração.
uns só faz sentido, com o crescimento de (4) Devolver a saúde pneumática ao
todos. Há várias maneiras de se conceber mundo, sem temer os possíveis conflitos.
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Devemos reconhecer que a pandemia e sempre existirão, grupos humanos
atual traz consigo uma poderosa metáfo- poderosos que resistirão à emergência de
ra. A enfermidade que este vírus provo- qualquer Boa Nova para os pobres, os
ca, afeta o sistema respiratório, provo- cativos, os cansados, os desesperados...
cando uma espécie de asfixia. O parasi- Com o avanço técnico e tecnológico,
ta, inconsciente e inconsequente, sufoca esses grupos ampliaram, exponencial-
o seu hospedeiro, decretando, ao mesmo mente, a sua capacidade de produção,
tempo, o fim da sua própria existência. mas também de destruição. Agem como
Não tem sido esse o comportamento da predadores da Natureza e de outros seres
humanidade, nos últimos séculos, em humanos, com uma voracidade sem
relação aos recursos do nosso planeta? O limites. Como deveremos lidar com
fermento, como vimos, faz brotar o ar eles? Não há, evidentemente, respostas
dentro da massa, criando novos espaços. prontas. Mas se as Escrituras cristãs, por
Todas as religiões e tradições espirituais um lado, falam em “não resistir ao vio-
são convocadas a colaborar com a eleva- lento”, por outro, falam também, em
ção ética da humanidade, ajudando as linguagem apocalíptica, do grande com-
pessoas e as sociedades a tomar consci- bate contra o Dragão devorador. A
ência de que a vida saudável depende da emergência de uma nova Cultura e de
respiração: inspiração e expiração, rece- uma nova humanidade, depende da
ção e doação, personalização e comu- vitória de uma humanidade propriamen-
nhão. Porém, rasgar novos espaços numa te eucarística – capaz de viver o dom de
massa compacta, embora seja fundamen- si para o sustento de toda a Criação –
tal, não é sempre uma atividade confor- contra uma lógica autocentrada e voraz.
tável. É necessário identificar tudo aqui- O fermento não existe em função de si,
lo que prende esta massa ao chão, que pois se destina à existência de um pão ou
não lhe permite atingir a leveza e o sabor de um bolo mais nutritivo, saboroso,
aos quais ela é chamada. Faz parte da leve. O bolo e o pão, por sua vez, tam-
missão das religiões identificar e nomear bém não existem em função de si mes-
as forças do mal, aquilo que, em regime mos, mas para alimentar a vida e pro-
cristão, chamamos de Anticristo e Antir- porcionar maior prazer e alegria àqueles
reino. Aqui, uma vez mais, o papa Fran- e àquelas para quem são feitos. Do
cisco é um grande líder inspirador. Ele mesmo modo, só podemos desejar – e
não hesita em denunciar uma economia colaborar ativamente para esse fim! –
que mata, uma indústria que prefere as que a nova humanidade, que está sendo
armas ao alimento, uma política que testada no interior desta crise pandémi-
manipula e corrompe, ao invés de liderar ca, aprenda que a partilha de tudo o que
processos de superação da desigualdade, somos e possuímos, com quem não é e
um nacionalismo que fecha as portas à não possui da mesma maneira que nós, é
fraternidade, uma Igreja mais preocupa- uma condição para o surgimento de um
da com os seus privilégios históricos do mundo mais bonito, diverso, humano e
que com o Evangelho de Jesus Cristo. divino, onde todos possam crer, esperar
Não podemos ser ingénuos: existem, e amar.
Cadernos Teologia Pública, ano 17 – vol. 17- nº 149 – 2020, pp 4-37 / INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS
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A QUARESMA
COMO TERAPIA
A QUARESMA É UM SEGMENTO DO CHAMADO ANO LITÚRGICO ONDE, NUMA
EXPERIÊNCIA CIRCULAR DA HISTÓRIA, OS CRENTES REPETEM
E ATUALIZAM NAS SUAS VIDAS O IM PACTO DA SALVAÇÃO DE CRISTO
O
s cristãos começam esta semana a quaresma: estivéssemos realmente num
um ciclo espiritualmente intenso de 40 dias deserto, sem armaduras nem
que os prepara para celebrar a Páscoa. A desculpas, deixando que as
quaresma é um segmento do chamado ano litúrgico perguntas fundamentais nos
onde, numa experiência circular da história, os crentes habitem de novo,
repetem e atualizam nas suas vidas o impacto da interrogando-nos sobre o
salvação de Cristo. De facto, não se trata apenas de que fizemos da nossa
fazer memória das várias etapas da existência histórica liberdade ou do nosso amor,
de Jesus, mas de receber e maturar, a essa luz, uma reconhecendo que o vazio
nova visão deles próprios. Nesse sentido, não admira desprotegido da paisagem é
que, por exemplo, Carl Jung tenha individuado nos afinal simétrico ao nosso
diversos momentos do ano litúrgico uma espécie de camuflado vazio, urdido por
sistema terapêutico, pois os ritos são também este vício nosso de viver às
essenciais ferramentas de cura. Importa, por isso, metades. Mesmo sabendo,
libertar a quaresma dos reducionismos que a como escreveu Sophia de
neutralizam. A casuística e a moleza acomodatícia Mello Breyner Andresen,
depressa desfiguram o espírito e, aquilo que nos é que “Meia verdade é como
oferecido como uma oportunidade de aprofundar com habitar meio quarto/ Ganhar
autenticidade a vida, descamba numa enésima forma meio salário/ Como só ter
de escapismo. Gosto do modo como um clássico direito/ A metade da vida”.
contemporâneo, Romano Guardini, define a liturgia: é O texto evangélico das
uma expansão da vida que toma posse da sua tentações é um mapa para
plenitude, já que os tempos e os rituais litúrgicos não readquirir a inteireza e
são coisas que criamos, mas obras de arte que somos coloca-nos perante três
ou em que nos tornamos. núcleos de questões: 1) se é
certo que não vivemos só de
A quaresma é uma proposta de discernimento e pão, vivemos de quê para lá
viragem. Os instrumentos práticos que apresenta do pão? Qual é
verdadeiramente a nossa
para que operemos esta transformação espiritual
fome e a nossa sede? Onde
são de ordem prática, não abstrações: o jejum, a é que elas acabam? Aonde
oração e esmola nos conduzem? 2) a fé
serve-nos para quê? Para
O passo do evangelho que se lê no primeiro domingo submeter Deus às condições
da quaresma — e que lhe serve de chave — é o que que consideramos
relata as tentações de Jesus no deserto. O desafio é que necessárias para acreditar
aceitemos escutar a vida que nos pertence como se nele ou, antes, para nos
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abrirmos, como nómadas e peregrinos, à radicalidade para Deus, para as coisas
do mistério? 3) estamos dispostos a renunciar ao grandes e amplia a nossa
equívoco do domínio e da posse, quaisquer que eles respiração. A esmola retira-
sejam, como supostas fontes de realização e de sentido, nos do conforto
reduzindo a isso o horizonte de significação da vida? O autorreferencial. Torna
que fazemos com as coisas que possuímos? E também: objetivos a compaixão, a
o que é que as coisas que possuímos fizeram de nós? A solidariedade e o cuidado
quaresma é uma proposta de discernimento e viragem. que nos permitem passar da
Os instrumentos práticos que apresenta para que indiferença à
operemos esta transformação espiritual são de ordem responsabilidade pelos
prática, não abstrações: o jejum, a oração e esmola. O outros, sobretudo os mais
jejum, como explica o Papa Francisco na mensagem vulneráveis.
quaresmal deste ano, é uma experiência de privação
voluntária (de alimento ou de um tipo de alimentos; de JOSÉ TOLENTINO
dependências de todo o género, pequenas e grandes; MENDONÇA
dos consumos fáceis a que nos permitimos, etc.),
adotando um estilo assumidamente frugal que ajude a in Semanário Expresso
devolver-nos liberdade. A oração volta o nosso olhar 20.02.2021
Conversão ecológica
Esta conversão comporta várias atitudes que se conjugam para ativar
um cuidado generoso e cheio de ternura. Em primeiro lugar, implica
gratidão e gratuidade, ou seja, um reconhecimento do mundo como dom
recebido do amor do Pai, que consequentemente provoca disposições
gratuitas de renúncia e gestos generosos, mesmo que ninguém os veja
nem agradeça. Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita
(...); e teu Pai, que vê o oculto, há de premiar-te (Mt 6, 3-4).
Implica ainda a consciência amorosa de não estar separado das outras
criaturas, mas de formar com os outros seres do universo uma estupenda
comunhão universal. O crente contempla o mundo, não como alguém
que está fora dele, mas dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos
uniu a todos os seres. Além disso a conversão ecológica, fazendo crescer
as peculiares capacidades que Deus deu a cada crente, leva-o a
desenvolver a sua criatividade e entusiasmo para resolver os dramas do
mundo, oferecendo-se a Deus como sacrifício vivo, santo e agradável
(Rm 12, 1). Não vê a sua superioridade como motivo de glória pessoal nem
de domínio irresponsável, mas como uma capacidade diferente que, por
sua vez, lhe impõe uma grave responsabilidade derivada da sua fé.
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