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ROQUE FRANGIOTTI

HISTÓRIA
dos
HERESIAS
(SÉCULOS I-VIII)

CONFLITOS IDEOLÓGICOS
DENTRO DO CRISTIANISMO

PAULUS
O presente livro oferece ao público brasileiro o “outro lado”
daquilo que foi ficando na “sombra” da história da Igreja e da teologia:
as heresias. Os historiadores de uma e de outra disciplina deram pouca
atenção ao fato das heresias. Se houve um tempo em que ler ou estudar
algum texto herético era já sinal ou, ao menos, levantava suspeitas de
ser herético, as disposições da Igreja, hoje, são completamente
diversas. Mais aberta e dialogante, a Igreja tende a descobrir nas
heresias aspectos positivos, mesmo parciais, da verdade. O presente
livro elabora uma história das heresias desde as origens do cristianismo
até o início da Idade Média, dando maior espaço àquelas que foram
mais problemáticas, que mais influência tiveram na formação da
doutrina cristã.

ROQUE FRANGIOTTI nasceu em Itápolis (SP), em 1939. Defendeu tese de

ROQUE FRANGIOTTI - HISTORIA DAS HERESÍAS


pós-graduação na Fac. deTeol. N. Sra. da Assunção (São Paulo). Foi Diretor
do Instituto Teológico São Paulo (ITESP) no triênio 1976- 1978. Doutorou-se
pela Universidade de Ciências Humanas de Estrasburgo (França). Autor de
diversos artigos na revista Vida Pastoral, dos livros A doutrina tradicional da
Providência (1986), História da Teologia I - Período Patristico (1992) e
História da Teologia II - Período Medieval (1992), todos publicados por esta
mesma editora.
HISTÓRIA DAS HERESIAS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Frangiotti, Roque, 1939-


História das heresias: séculos l-VII: conflitos ideológicos dentro do
criatianismo / Roque Frangiotti. — São Paulo: Paulus, 1995. - (Avulso)

Bibliografia.
ISBN 978-85-349-0337-0

1. Heresias cristãs - História 2. Igreja - História 3. Igreja - Controvérsias I.


Título. II. Série.

94-3826 CDD-273

índices para catálogo sistemático:


1. Heresias: História da Igreja: Cristianismo 273
ROQUE FRANGIOTTI

HISTÓRIA DAS HERESIAS


(SÉCULOS LVII)
conflitos ideológicos
dentro do cristianismo

PAULUS
Impressão e acabamento PAULUS

5a edição, 2007

©PAULUS-1995
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627
Tel. (11) 5084-3066
www.paulus.com.br
editorial@paulus.com.br
ISBN 978-85-349-0337-0
INTRODUÇÃO

A intenção desta obra é a de oferecer ao público brasileiro o


"outro lado” daquilo que foi ficando na “sombra” da história da
Igreja e da teologia: as heresias. Os historiadores de uma e outra
disciplina deram pouca atenção ao fato das heresias.
Se houve um tempo em que ler ou estudar algum texto herético
era já sinal ou, ao menos, levantava suspeitas, de ser meio herético,
as disposições da Igreja, hoje, são completamente diversas. Mais
aberta, mais tolerante, mais dialogante, tende a Igreja a descobrir, nas
heresias, eventuais aspetos positivos, mesmo se parciais, da verdade
completa. De qualquer maneira, é um dado admitido por todos que
as heresias fizeram avançar a reflexão teológica, obrigaram a precisar
a doutrina, a apurar os termos ambíguos.
Quem eram os heréticos? Leigos? Presbíteros? Bispos?
Patriarcas? Pontífices? Filósofos? Que princípios defendiam? Por
que os defendiam? Em que contexto se formaram? Por que
mantiveram suas opiniões apesar das ameaças, da excomunhão, da
perseguição, da exclusão? O certo é que hereges e ortodoxos se
apresentavam, cada um a seu modo, como defensores da verdade da
fé. Além do mais, as heresias demonstram, embora de forma
dramática, o profundo sentimento mítico-religioso da sociedade
antiga e revelam as divergências sociais, econômicas, culturais,
políticas,

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mantidas em silêncio pelo aparato do poderio imperial primeiramente
e imperial-eclesiástico, depois.
Tentei, de minha parte, elaborar uma história das heresias
desde os inícios do cristianismo até o início da Idade Média, dando
maior espaço àquelas que foram mais problemáticas, que mais
influência tiveram na formação da doutrina cristã.
A palavra heresia é de origem grega háiresis e significa
escolha, partido tomado, “corrente de pensamento ”, seita.
Originariamente, heresia é a acentuação de um aspecto particular da
verdade. No âmbito do cristianismo primitivo, é a negação ou
pregação de um evangelho diferente daquele pregado pelas
autoridades apostólicas (cf. 2Pd 2.1; G11.8). E a pregação dos falsos
profetas, falsos mestres que introduzem no seio da comunidade
doutrinas danosas, dúbias ou que não se compaginam com a doutrina
dos apóstolos (Inácio de Antioquia, Ad Trallianos 6.1; Ireneu. Adv.
Haer. III, 12,11- 13).
A aliança da Igreja com os poderes imperiais mudará
completamente o tratamento para com o herético: serão empregados,
quando necessário, os meios coercitivos, a comunhão e a disciplina
eclesiásticas serão bem mais rigorosas para com eles.
Nesta obra, sempre que possível, recorro ao texto do autor
(herege, autoridade) para que o leitor perceba "como" foi tal
discurso, escrito tal documento. Alguns são longos, mas necessários
para que se tenha idéia do modo de sentir e de pensar do autor,
naquele contexto. A última nota de cada capítulo indica uma pequena
bibliografia a que o leitor, desejoso de prosseguir no estudo desta ou
daquela heresia, poderá recorrer. Desde já avisamos: não há quase
nada em português sobre estas questões. Esta é uma das razões que
nos levaram à redação desta obra.

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CAPÍTULO I

PRIMEIRAS CONTROVÉRSIAS
NO SEIO DA IGREJA NASCENTE

Uma leitura da história do cristianismo dos primeiros séculos,


conduzida de modo tradicional, numa ótica dogmatizante. sem
espírito crítico, criou, na mente da maioria dos cristãos, uma imagem
irreal da “Igreja primitiva”. Essa imagem corresponde àquela de uma
Igreja que se fazia e vivia numa profunda hamionia. na mais intensa
caridade e fraternidade, uma espécie de Éden cuja astúcia e malícia
venenosas dos hereges corromperam.
Em primeiro lugar, é preciso observar que não havia,
propriamente, uma "Igreja” no sentido que se dá hoje a este termo.
Segundo, sempre existiram, desde os tempos da vida de Jesus com
seus discípulos, controvérsias e desentendimentos tanto em nível
doutrinário quanto em nível disciplinar. Não é verdade, portanto, o
que dizia Egesipo, pelos meados do século II, a respeito da pureza e
da perfeição da “Igreja apostólica”: “No tempo dos apóstolos, a
Igreja permaneceu como uma virgem pura e sem manchas, mas.
depois da morte dos apóstolos, o erro ímpio recebeu um princípio de
organização para o engano daqueles que ensinavam outra doutrina”'.

'Egesipo foi um escritor do século II de origem provavelmente judaica que esteve


em Roma por um longo período, com o fim de verificar a tradição sem erro da

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Ainda hoje, cristãos de todas as tendências se reportam à Igreja
primitiva como a um "encanto”, para encontrar nela uma forma de fé
fundamental, pura, exemplar. Basta uma leitura menos superficial de
alguns textos tidos como mais antigos do cristianismo, para se
desfazer esta concepção mítica, idílica da “Igreja primitiva”.
Tomemos, por exemplo, a situação da comunidade de Corinto,
retratada num dos documentos mais antigos, escrito no ano de 56: a
comunidade estava dividida; grupos brigavam entre si reivindicando
cada um a supremacia da pertença a este ou àquele apóstolo (eu sou
de Pedro, eu sou de Paulo...); escândalos envergonhavam a
comunidade: incesto, julgamento entres cristãos em tribunais pagãos
e vários tipos de imoralidade; desorganização e desordem nas
assembléias litúrgicas nas quais se refletem as divisões de classes
sociais. Mas, já uns seis ou sete anos antes dessa época, foi necessária
a realização de uma grande assembléia, conhecida como “concilio de
Jerusalém”, para resolver problemas que afligiam as primeiras
comunidades e que revelam as divisões e tendências opostas entre
helenistas e judaizantes. O livro dos Atos dos Apóstolos relata, no
capítulo 6,1-7, os conflitos na organização interna da comunidade:
“...os fiéis de origem grega começaram a queixar-se contra os fiéis de
origem hebraica” (6,1). O diácono Estêvão, do grupo dos helenistas,
é acusado, com muita probabilidade, não só por homens do Templo e
pelos chefes da sinagoga, mas também pelos judaizantes, de blasfemar
contra Moisés e contra Deus, isto é, de não seguir as práticas judaicas,
de ter compreendido o ensino de Jesus como caminho de liberdade,
subvertendo assim a Lei e os costumes judaicos, criticando as
instituições sagradas.
Segundo Jean Daniélou2, havia nos círculos judaico- cristãos,
duas tendências fundamentais contrapostas: uma

pregação apostólica. Sua obra, em cinco livros, consituída dehyponmemata (memórias) é


uma das fontes do historiador eclesiástico Eusébio de Cesaréia, que, em sua História
Eclesiástica, transmite alguns fragmentos destas “memórias”, especialmente no que diz
respeito à história da primitiva comunidade de Jerusalém {HE II, 23,4-8; 111,20,1-2;
32,3,6; IV,8,2; 22.2-7).
2TeologiadelGiudeo-crislianesimo, Bolonha, 1974. pp. 15-131.

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herética, representada sobretudo pelos ebionitas, cujo pensamento se
encontra expresso nas Pseudoclementinas3; outra, ortodoxa, derivada
da comunidade de Jerusalém, chefiada por Pedro e Tiago, o “irmão
do Senhor”. Contudo, pesquisas mais recentes mostram que aquilo a
que chamamos “cristianismo primitivo” era bem mais complexo do
que a hipótese de Daniélou. Admite-se, cada vez mais, que havia, no
interior destes grupos, pelo menos quatro tendências diferentes e até
mesmo de oposição radical.

/. Tendência judaizante radical

A primeira tendência se encarnou naqueles que criaram o


conflito em Antioquia registrado em At 15,1-5: “Chegaram alguns
homens da Judéia e doutrinavam os irmãos de Antioquia, dizendo:
‘Se não forem circuncidados, como ordena a Lei de Moisés, vocês
não poderão salvar-se’. Isso provocou alvoroço e uma discussão
muito séria deles com Paulo e Bamabé. Então ficou decidido que
Paulo, Bamabé e mais alguns iriam a Jerusalém para tratar dessa
questão com os apóstolos e anciãos. Com o apoio e solidariedade da
Igreja de Antioquia, eles atravessaram a Fenícia e a Samaria. Conta­
ram sobre a conversão dos pagãos (...). Alguns daqueles que tinham
pertencido ao partido dos fariseus e que haviam abraçado a fé
intervieram, declarando que era preciso cir- cuncidar os pagãos e
mandar que eles observassem a Lei de Moisés”. Estes convertidos do
farisaísmo queriam submeter os convertidos do paganismo às
práticas e prescrições judaicas. Denunciavam os seguidores de Jesus
que haviam desprezado os ensinamentos de Pedro e Tiago e se al
imentavam com ensinamentos blasfemos e frívolos contrários à Lei
cuja

3Pseudoclementinas sào apócrifos que se reclamam como autoria de Clemente


Romano, discípulo de Pedro e 3° bispo de Roma, segundo a lista de Ireneu de Liào.
Contém 20 Homílias de Pedro registradas e remetidas por Clemente a Tiago, irmào do
Senhor, bispo de Jerusalém, acompanhadas de duas Cartas escritas por Pedro ao próprio
Clemente.

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duração eterna o próprio Jesus confirmara ao dizer: "Não pensem que
eu vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim abolir, mas dar-lhes pleno
cumprimento. Eu garanto a vocês: antes que o céu e a terra deixem
de existir, nem sequer uma letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem
que tudo aconteça” (Mt 5,17-18). Consideram-se judeus renovados,
fiéis às legítimas tradições judaicas. Observam o Sábado, os dias de
jejuns e as festas. Oram em hebraico e devotam-se ao estudo das
Escrituras. O que os distinguia dos judeus ortodoxos, e que será o
motivo de sua expulsão das sinagogas, como heréticos (minim),Qra. a
crença de que Jesus de Nazaré, filho de José, era o autêntico Messias
que Deus tinha enviado para redimir Israel. Segundo eles, não se
podia, portanto, pertencer ao “povo eleito de Deus” sem passar pelo
rito que marca definitivamente esta pertença, ou seja, a circuncisão.
O batismo não substituía, para eles, a circuncisão. Era-lhes apenas
um sinal de arrependimento, de purificação, e não rito de “pertença à
Igreja”. Se, de fato, Jesus era o Messias de Israel, mais do que antes,
deve-se ser fiel a Moisés. Os convertidos do paganismo devem ser
circuncidados como sinal de pertença ao único povo eleito, único
povo messiânico.

2. Tendência judaizante moderada

A segunda tendência é representada pelo grupo de judeu-


cristãos liderados por Pedro e Tiago, o "irmão do Senhor”. Esta
tendência marca-se por maior tolerância. Os recém-convertí- dos do
paganismo não necessitam passar pela circuncisão nem observar
todas as práticas judaicas. Devem, porém, aceitar o monoteísmo e os
mandamentos, estão obrigados a observar certas normas alimentares,
como: abster-se das carnes sufocadas ou imoladas aos ídolos. Essa
medida facilitava a convivência com os judeus. Essas resoluções
foram tomadas no “concilio de Jerusalém”, conforme relata At 15,13-
21: “Quando Bamabé e Paulo terminaram de falar, Tiago tomou a
palavara e disse: ‘Irmãos, ouçam-me: Simão acaba de

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nos lembrar como desde o começo Deus cuidou de tomar homens das
nações pagas para formar um povo dedicado ao seu Nome. (...) Por
isso, eu sou do parecer que não devemos importunar os pagãos que
se convertem a Deus. Vamos somente prescrever que eles evitem o
que está contaminado pelos ídolos, as uniões ilegítimas, comer came
sufocada e o sangue”.
Como o problema havia tomado maior volume em Antioquia,
devido certamente à pregação dos judaizantes radicais, a assembléia
de Jerusalém resolve enviar, através de alguns participantes, uma
carta para dirimir as questões e apaziguar os ânimos: “Então os
apóstolos e os anciãos, de acordo com toda a comunidade de
Jerusalém, resolveram escolher alguns da comunidade para mandá-
los com Paulo e Bamabé para Antioquia. (...) Através deles enviaram
a seguinte carta: “Nós, os apóstolos e os anciãos, irmãos de vocês,
saudamos os irmãos que vêm do paganismo e que estão em Antioquia
e nas regiões da Síria e da Cilícia. Ficamos sabendo que alguns dos
nossos provocaram perturbações com palavras que transtornaram o
espírito de vocês. Eles não foram enviados por nós. (...) Porque
decidimos, o Espírito Santo e nós, não impor sobre vocês nenhum
fardo, além destas coisas indispensáveis: abster-se de carnes
sacrificadas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas e das uniões
ilegítimas. Vocês farão bem se evitarem essas coisas. Saudações!”
(At 15,22-29).
Esta palavra final, orientação da maior autoridade da Igreja de
Jerusalém. Tiago, reflete muita aproximação com o espírito dos
helenistas. Uma tendência moderada, a de não importunar os pagãos
convertidos sobrecarregando-os com as prescrições judaicas,
tentando “judaizá-los”.

3. Tendência helenista

A terceira tendência é formada pelos judeu-cristãos


helenizados. Estes têm como mestres Paulo e Bamabé. Paulo
argumenta, especialmente em Rm 4, que também os convertidos do
paganismo pertencem, pela fé em Cristo, à

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1

raça de Abraão. Fazem parte, portanto, do povo das Promessas. Não


há nenhuma necessidade nem esforço para “judaizar” os pagãos
convertidos. Estes não precisam se submeter à Lei, pois, em Cristo,
pela fé. possuem a salvação plena. Basta que sigam o Evangelho, que
é a "força de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Rm 1.16).
Os helenistas pregavam liberdade em frente à Lei e às tradições
judaicas.

4. Tendência dos helenistas radicais

O quarto e último grupo é caracterizado por certo radicalismo


da “liberdade paulina”. Estes, motivados pela liberdade em Cristo,
pregada e defendida por Paulo, pela fé que salva, não pelas obras da
Lei, exageraram pelo lado oposto dosjudaizantes. Rejeitavam
radicalmente a Lei e alimentavam posicionamentos hostis ao
judaísmo. Exageravam tanto a liberdade, a ponto de participar dos
cultos pagãos e se rebelavam contra a Lei. permitindo certa
licenciosidade. Nesta tendência se radicalizará, mais tarde. Marcião,
que rejeitará todo o AT e seu deus guerreiro, vingador, assumindo
uma postura nitidamente anti-semita. Entre estes helenistas radicais,
pode-se colocar com certeza os nicolaitas. que. segundo Ireneu de
Lião, “ensinavam que a fomicação e o comer as carnes oferecidas aos
ídolos são coisas indiferentes” (Adv. Haer. I, 26.3).

5. Os nicolaitas

Por volta dos anos 93-94. as comunidades da Ásia Menor,


especialmente as de Efeso, Pérgamo e Tiatira. estavam sendo
invadidas por um movimento de cunho doutrinai e. especifícamcnte,
ético-moral.
Ainda hoje há dificuldades em identificar a origem desta seita
herética. O que Ap 2,6.14.16.20 oferece não é. de modo algum,
suficiente para identificação de seu fundador e de sua origem. Ireneu
diz apenas isso: “Os nicolaitas têm por mestre

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Nicolau, um dos sete primeiros diáconos que foram constituídos
pelos apóstolos. Vivem sem moderação. 0 Apocalipse de João
manifesta plenamente quem são: ensinam que a fomicação e o comer
das carnes oferecidas aos ídolos são coisas indiferentes”. Também
Tertuliano atribui a paternidade da seita ao diácono helenista
"Nicolau de Antioquia, um pagão que seguia a religião dos judeus”,
mencionado em At 6,5. Este diácono, para se justificar, teria
apresentado sua mulher à assembléia dos crentes dizendo: “Quem a
quiser pode esposá-la, pois é necessário ter em pouca estima a carne
(ou, é preciso ter desprezo pela carne)”. Isso teria sido interpretado
tanto como ato de denúncia do apego às coisas terrenas, valorizando
apenas as coisas espirituais, como também um ato de renúncia ao
estado conjugal. Mas, o contexto indica melhor que se trata de um
princípio de libertinagem: usar da própria carne -corpo como se
queira, promovendo a fomicação e o adultério. Estes não devem ser
considerados como valores absolutos, mas, ao contrário, são
insignificantes, de pouca monta.
Outra opinião julga que o nome Nikólau seria a tradução grega
do hebriaco Balaram (dominador do povo, vencedor) em referência
ao profeta que, segundo Nm 31,16, instigou ao desvio moral e
religioso os israelitas, levando-os à fomicação. O profeta Balaão teria
aconselhado o rei Balac de Moab a oferecer as mulheres moabitas
aos israelitas com a finalidade de fazê-los prevaricar, convertendo-
os à idolatria (cf. Nm 25,1-9; 31,8.16; Jz 3,7-8). “Israel estabeleceu-
se em Setim. O povo se entregou à prostituição com as filhas de
Moab. Estas convidaram o povo para o sacrifício dos seus deuses; o
povo comeu e prostrou-se diante dos seus deuses” (25,1-2). Depois,
por ocasião da guerra contra Madiã, “Moisés indignou-se contra os
comandantes das forças, chefes de milhares e chefes de centenas, que
voltavam desta expedição guerreira. Disse-lhes: “Por que deixastes
com vida todas essas mulheres? Foram elas que, por conselho de
Balaão, se tomaram para os filhos de Israel a causa de infidelidade a
Javé (...) (31,14-16). Os nicolaítas seriam, então, sinônimo

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de corruptores dos costumes morais e religiosos. Parece bem isso que
Ap 2,14-15 indica: “Tenho, contudo, algumas reprovações que fazer:
tens aí pessoas que seguem a doutrina de Balaão, o qual ensinava
Balac a lançar uma pedra de tropeço aos filhos de Israel, para que
comessem das carnes sacrificadas aos ídolos e se prostituíssem. Do
mesmo modo tens, também tu (Anjo da igreja de Pérgamo) pessoas
que seguem a doutrina dos nicolaítas. Embora a comunidade de
Tiatira estivesse contaminada por ela, seu responsável não a estava
combatendo seriamente, por isso é repreendido: ‘Reprovo-te, contu­
do, pois deixas em paz Jezabel, esta mulher que se afirma profetisa:
ela ensina e seduz meus servos a se prostituírem, comendo das carnes
sacrificadas aos ídolos’” (Ap 2,20). Jezabel é, certamente, uma
referência à rainha fenícia de Israel que induziu seu marido, o rei
Acab, e grande parte do povo, aos cultos idolátricos: “De fato, não
houve ninguém que, como Acab, ge tenha vendido para fazer o que
desagrada a Javé, porque a isso o incitava sua mulher Jezabel. Agiu
de um modo extremamente abomiável, cultuando os ídolos...” (IRs
21,25-26). Desse modo, os nicolaítas devem ser objetos de repulsa,
como o são para o Anjo da Igreja de Efeso: “Tens de bom, contudo,
o detestares conduta dos nicolaítas, que também eu detesto” (Ap 2,6).
A heresia dos nicolaítas não consiste na negação da divindade
de Jesus, na negação da virgindade de Maria. Consiste num desvio
moral, numa prática pagã, idolátrica, na complacência aos cultos
pagãos.
Embora combatido, este movimento herético conseguiu
sobreviver até por volta do ano 200, quando, então, se dissolve na
heresia gnóstica dos ofitas, nome que se refere ao culto da serpente.
Na Idade Média, dava-se o apelativo de nicolaíta àqueles que se
opunham e hostilizavam o celibato eclesiástico
.
*

*A. di Nola, “Nicolaiti", em Enciclopédia delle religione, vol. IV, Firenze, 1972,
coll. 1030-1034, E. Peretto, “Nicolaiti”, em Dizionario Patristico e de Antichità
Christiane.. CasaEdit. Marietti, 1983, vol. G-Z, 2400-2401; M. Guguel, “LesNicolaítes",
em Estúdios Biblicos 5, 1946, pp. 129-131.

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6. Cerinto: Jesus não é o Cristo

Ao lado dos nicolaítas, e praticamente, contemporâneo,


aparece, também na Ásia Menor, um tal Cerinto. gnóstico cuja
atividade se intensificou pelos fins do século I. Ainda segundo Ireneu
de Lião, "Um certo Cerinto, na Ásia, ensinou a doutrina seguinte:
Não foi o primeiro Deus quem fez o mundo, mas uma Virtude
(Potência) separada por uma distância considerável da Suprema
Virtude (Potência-Prin- cípio) que está acima de todas as coisas e
ignorando o Deus que está acima de tudo. Jesus não nasceu de uma
Virgem porque isso lhe parece impossível, mas fora filho de José e
de Maria por uma geração semelhante a de todos os outros homens,
e ele suplantou a todos pela justiça, prudência e sabedoria. Após o
batismo, o Cristo, vindo de junto do Supremo Princípio, que está
acima de todas as coisas, desceu sobre Jesus sob forma de pomba.
Depois disso, Cristo anunciou o Pai desconhecido e realizou
milagres. No final, porém, o Cristo (Espírito) retirou-se de Jesus,
abandondo-o. Jesus, então, sofreu e ressuscitou, mas o Cristo
permaneceu impassível visto ser espiritual” (Contra as heresias I, 26,
l)5.
O vigor com que o evangelista João o combate mostra que sua
cristologia deixava sulcos profundos. Trata-se de um gnosticismo
judaizante provocado pelas especulações correntes em meio ao
judaísmo. Assim, Cerinto distinguia Jesus do Cristo. Este era um dos
Eões (Potentados-Virtudes) superiores que havia descido dos céus
sobre o homem Jesus, filho do Demiurgo e o abandonou a partir da
paixão. Na opinião de Alfred von Hamack, “Cerinto é o pai da
doutrina das duas naturezas”. A crer na tradição registrada por
Ireneu. em Contra as heresias 11,4. falando que Policarpo era
discípulo do apóstolo João, aconteceu um “entrevero”, nas termas de
Efeso. quando para lá se dirigia o apóstolo para o banho:

'Tradução de H. A. Simon, em Documentos da Igreja Cristã, seleção de H.


Bettenson. Aste, S. Paulo, 1967, p. 69. (Doravante, apenas H. Bettenson, seguido do n’da
página).

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“Vivem ainda irmãos (diz Ireneu) que o ouviram (a Policarpo) relatar
como João, o discípulo do Senhor, entrando nas termas de Efeso e aí
vendo a Cerinto, se precipitou para fora sem se banhar, dizendo:
‘Fujamos antes que se desmoronem as termas, pois ali está Cerinto,
o inimigo da verdade...’”.

7. A variante elcasaita

Durante o reinado de Trajano, 90-117, alguns judeu- cristãos


seguiram a liderança de certo Elchasai ou Elkasai. Este movimento
provinha da região dos partas e, opunha-se acirradamente à doutrina
de Paulo. Afirmava a existência de um único Deus e acreditava que
Jesus era um ser humano, reencamação dos profetas de outrora. Nele,
Jesus, penetrou o Espírito Santo, por isso era o Messias predestinado
a levar Israel à salvação. Observavam a Lei mosaica (circuncisão,
sábado, prescrições rituais). Admitiam dois princípios originais, um
masculino (“Senhor da grandeza”, “Rei da Luz”) e um feminino
(“Espírito Santo”, “Ruach”) e tinham Jesus como o primeiro
mensageiro excelso de Deus que teria aparecido personificado várias
vezes, de modo particular em Adão.
Hipólito diz que certo Alcibíades de Apameia chegou a Roma
no tempo do bispo Calisto pregando um segundo batismo, referindo-
se a um livro elcasaita de revelação (Refutatione IX, 13,1-17,2). De
fato, apareceu entre os judeus, na primeira década do século II, um
livro com revelações no qual se pedia a conversão em vista de um
juízo bem próximo. Embora suas revelações não se realizassem, o
livro gozou de vasta estima e divulgação, e seus conteúdos foram
sendo adaptados às novas situações. Orígenes escreveu que os
elcasaítas apareceram em Cesaréia anunciando que o perdão era
possível também àqueles que renegaram a fé (cf. Eusébio de
Cesaréia, HE, VI, 38). “Parece que a respeito dos elcasaítas não se
trata de um grupo particular, mas da influência de um misterioso livro
de revelação, que teve

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ascendência sobre um número de concepções religiosas já existentes,
provavelmente partindo com alguns grupos ju- deu-cristàos a este do
rio Jordão”6.

8. O adocionismo de Hérnias

Embora Hermas se ocupe sobretudo de moral, da penitência,


dos exercícios para a construção da Igreja, suas referências a Jesus
Cristo revelam uma cristologia adocionista mais destacada da
literatura primitiva. Seus escritos levam tanto a marca do judeu-
cristianismo mais forte, que um especialista o tem como um judeu
convertido da comunidade de Qumrã. De fato, o ensinamento moral
de Hermas se assemelha demais a certos escritos do mar Morto7. Sua
teologia é profundamente judaica. Em termos de cristologia, Hermas
identifica o Filho de Deus com o Espírito Santo, com o Nome de
Deus e com a Lei de Deus. Hermas não menciona, em sua obra, nem
Jesus nem o Cristo. Sobre a encarnação, diz que Deuz faz habitar o
Espírito Santo numa carne que havia escolhido e que esta carne
serviu tão bem ao Espírito Santo que, quando o Espírito a deixou,
Deus deu a esta carne um “lugar de repouso” como recompensa
{Parábola V, 6,7). De fato, esta Parábola diz que um Senhor plantou
uma vinha. Ao partir, entregou-a a um escravo. No retomo, constatou
que o escravo se esforçou mais do que se esperava. O Senhor da
vinha resolve, então, após consultar seu Filho e conselheiro, aceitar
o escravo como herdeiro do Filho {Par. V.2.2-11). Em V,5,2-3,
Hermas diz que “O Filho é o Espírito Santo e o escravo é o Filho de
Deus”. Finalmente, quando

•A. F.J. Klijn, “Elceasaiti". em Diccionario Patristico e diAnlichità CristianetA- F)


coll. 1128-1129; “Elcasaiti". em Enciclopédia Cattolica. Città <lel Vaticano, v. 5. p. 149;
A. F. J. Klijn e G. J. Reinink. “Patristic Evidence for Jewish-Christian Sects". em
Supplements toNouum Testanientuni 36. Leiden 1973. pp. 54-67; “El chasaiu and Mani.
A review of Early Christian Life and Langage". em Vigiliae Christianae 28, 1974. pp.
277-289.
’Cf. J.P. Audet, “Affinités littéraires et doctrinales du Manuel de discipline", em
Revue Biblique, IX, 1953, pp. 41-82

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expõe a teoria adocionista, diz: “Deus fez com que o Espírito
morasse na carne por ele escolhida; o mesmo Espírito que existia
antes e que fez a criação. Esta came em que habitava o Espírito Santo
servia bem ao Espírito (...). Por ter vivido de maneira boa e pura e
por ter-se esforçado e colaborado em tudo com o Espírito Santo,
Deus o elegeu como companheiro do Espírito. Pois lhe agradou o
comportamento desta came. por não ter desonrado o Espírito Santo,
que possuía na terra. De maneira que ele consultou o Filho e os anjos
gloriosos, para que a came adquirisse uma morada e não lhe faltasse
uma recompensa por seu serviço: pois toda came pura e sem mancha
em que vive o Espírito Santo será recompensada” (Par. V,6,4-7).
A “came” é, sem dúvida o homem Jesus. O Espírito, conforme
é apresentado aqui, tem os traços da Sabedoria preexistente do livro
dos Provérbios e da Sabedoria. Como prêmio, o homem Jesus recebe
por seu serviço e sua fidelidade uma participação na dignidade deste
Filho, o Espírito Santo.
Percebe-se que a concepção cristológica de Hermas é mais
primitiva que outros textos do judeu cristianismo: Jesus, durante sua
vida terrena, ainda não é Filho, mas adquire esta dignidade como
recompensa por sua atuação fiel. Ele é, pois, constituído Filho, não
no seu batismo, como faziam alguns grupos cristãos, mas na
ressurreição. Não há nenhuma especulação em termos de relacionar
Jesus com o Logos. Hermas elabora uma cristologia independente de
Paulo e de João.
Não se pode, portanto, esquecer estas tendências e concepções
tão diversificadas no cristianismo primitivo. Entre as tendências
judaizantes. destacou-se um gmpo que. embora aceitasse que Jesus
fosse o verdadeiro Messias de Israel, não o tinha nem o admitia como
“Filho de Deus” no sentido próprio, natural, legítimo. Vivia na
pobreza e na mais estrita observância daquilo que aprendera de
Jesus. Este gmpo ficou conhecido como os ebionitas.

18
9. 0 adocionismo ebionita

A diferença substancial que separava os ebionitas dos outros


judeu-cristãos e, especialmente os afastava dos helenistas, consistia
no modo de conceber a pessoa e a obra de Jesus. De fato,
perseverando na fé judaica, num monoteísmo restrito, os ebionitas
não admitiam as insinuações daqueles que falavam de Jesus como
um ser divino. Quais eram as características desta cristologia
ebionita? Pode-se dizer que ela se fixou nos elementos da pregação
primeira conforme está no discurso de Pedro, na manhã de
Pentecostes, em At 2,14-36: Jesus é o enviado por Deus que sofreu
o martírio ignominioso da cruz por instigação dos chefes judeus;
tudo isso aconteceu conforme desígnio estabelecido por Deus e
revelado pelas Escrituras; Deus, porém, o ressuscitou e o constituiu
Messias e Senhor.
Os ebionitas viviam segundo a Lei judaica e rejeitavam
radicalmente a pregação paulina. Negavam a divindade de Jesus,
reconhecendo-o, porém, como Messias anunciado pela Lei e pelos
profetas. Jesus teria nascido normalmente de José e Maria e fora
ungido por Deus, com o Espírito Santo, no Jordão, quando de seu
batismo, recebendo a filiação divina.
Ireneu de Lião, na obra Contra as heresias 1.26.2. é o primeiro
a designar os ebionitas como heréticos, incluindo- os entre os
gnósticos por causa de suas ligações com Cerinto. O conteúdo de sua
doutrina, segundo Ireneu. é o seguinte: “Os que se chamam ebionitas
admitem que o mundo foi feito pelo verdadeiro Deus, mas, quanto ao
que diz respeito ao Senhor, professam as mesmas opiniões que
Cerinto e Carpócrates. Utilizam somente o Evangelho de Mateus,
rejeitam o apóstolo Paulo, que acusam de apostasia a respeito da Lei.
Aplicam-se a comentar as profecias com uma minúcia excessiva.
Praticam a circuncisão e perseveram nos costumes legais e nas
práticas judaicas, a ponto de ir até adorar em Jerusalém, como sendo
a casa de Deus”.
Os ebionitas interpretavam as expressões “Filho de Deus”,
“Verbo”, “Espírito Santo”, segundo as categorias

19
1

hebraicas, no sentido em que nenhuma delas era considerada


“pessoa", no sentido filosófico, ontológico. Mesmo aqueles entre eles
que aceitavam tivesse Jesus nascido de uma Virgem por obra do
Espírito Santo, negavam sua preexistência como Verbo de Deus.
Jesus seria homem predestinado por Deus que, no batismo, recebera
o Filho de Deus, o Verbo- Sabedoria de Deus Pai. Jesus era, para eles,
judeu crente, fiel, piedoso, profeta e mestre inigualável. A dificuldade
que os ebionitas encontravam para conceber a divindade de Jesus
reside na fidelidade ao monoteísmo judaico, isto é, em conciliar a
divindade de Jesus com a revelação bíblica da unidade e unicidade de
Deus. Assim, são duplamente banidos: do judaísmo porque aceitam
Jesus como Messias verdadeiro de Israel: do cristianismo, porque não
o aceitam como ser divino. O monarquianismo dos ebionitas é uma
conse- qüência do espírito e fidelidade à revelação veterotesta-
mentária dos judeu-cristãos.
Por volta dos anos 130. encontravam-se várias seitas judeu-
cristãs com as mesmas características dos ebionitas.
fiindamentalmente estas três: consideravam Jesus como simples
homem; não aceitavam o Evangelho de Paulo e seguiam a Lei judaica.
Praticamente um século depois. Orígenes menciona os judeu-
cristãos do Egito, que chama de ebionitas. No Contra Celso II, relata
a fidelidade deles à Lei mosaica e explica que a palavra “ebion”, em
hebraico, significa “pobre”, mas a aplica no sentido irônico de
mostrar que os ebionitas eram “pobres no entender”(cf.
tambémDeprzwc. IV.3.5.8). Orígenes explica ainda que havia duas
seitas ebionitas: “aqueles que como nós admitem que Jesus nasceu de
uma virgem e aqueles que, ao invés, crêem que não nasceu de tal
modo, mas como todos os outros (C.Celso V.61). Para estes últimos,
Jesus teria nascido como fruto de um casamento entre uma “jovem”
judia e um soldado romano. Jesus tinha inclinação ao pecado como
todos os homens, e sua missão, preanunciada pelos profetas, era
reconduzir os judeus transviados à reta observância da Lei. Por isso,
a justificação provinha tão

20
somente das obras da Lei, o que levantava sua oposição a Paulo.
De modo geral, os ebionitas, esta igreja dos pobres, refutavam
Paulo por sua posição de liberdade em frente à Lei; João porque
reconhecia a divindade e a preexistência de Jesus; e Lucas por causa
de sua exaltação à virgindade de Maria.
Fragmentos da doutrina ebionita se encontram nas Homílias e
nas Recognitiones
.
* A questão maior, para eles, como já foi dito, está
no plano da fidelidade à revelação vetero-testamentária de conciliar
a divindade de Jesus com o dogma da unidade e unicidade de Deus.
Para eles, a prática de Jesus como narrada por Marcos e Mateus,
aparece como a práxis de luta contra o mecanismo da exploração e da
injustiça social próprio da Palestina daquele tempo, isto é. uma luta
contra o poder econômico, político, e ideológico-religioso. A morte
de Jesus foi um verdadeiro assassinato político, resultado de seu
encontro com o poder dominante. Sua ressurreição não é vista como
prova de sua divindade, mas como afirmação da continuação da sua
luta, de “práxis messiânica” na Igreja e a afirmação do triunfo da vida
sobre a morte.
Nas Pseudoclementinas, o problema central é o da fé a respeito
de Jesus, se ele é ou não profeta predito por Moisés. Revela-se, ainda,
que, conforme diz Epifânio, em Panarion 30,3.7. havia entre os
ebionitas os que aceitavam a reencar- nação de Jesus. Para estes.
Jesus aparecia sobre a terra periodicamente ao longo das eras.
Ultimamente, apareceu como sétimo Adão. Jesus seria o Espírito
eterno (Recogn. 1,43,1-2) que estava sempre com os justos. Na
qualidade de sétimo Adão, veio ao mundo abolir os sacrifícios e
instaurar o perdão dos pecados pelo batismo em seu nome (Recogn.
1,37,3; 39,1-2; 49.1-5). Jesus é maior que Moisés e João

*Recongnitiones. obra em 10 livros, também atribuídas a Clemente Romano,


chegadas à tradição latina por Rufino, nas quais, elementos biográficos se alternam com
o desenvolvimento de questões doutrinais.

21
Batista. Estes eram profetas, Jesus é profeta e messias (Recong. 1,59-
61). De qualquer maneira, Jesus é o profeta - messias no qual Deus
leva a termo sua ação salvífica.

10. O desenvolvimento do adocionismo

Ao longo do século I, os mestres das comunidades cristãs não


tinham preocupação de precisar em que consistia aquela força, aquele
poder e autoridade de que Jesus estava revestido. Entre os judeu-
cristãos. Jesus era concebido como aquele que, carregado de força e de
autoridade especiais, veio introduzir o reino de Deus. Esta primazia do
reino se evidencia pelo fato de que o próprio Jesus, ao longo de sua
vida, enfatiza muito mais sua obra, seu ensinamento, do que a si
mesmo, sua pessoa.
Mas, pelos fins do século II, alguns começam a tentar definir
com mais precisão quem era Jesus, qual era, realmente, sua relação
com Deus. Entre os que procuravam estabelecer uma definição, estava
Teódoto de Bizâncio, o “Curtidor”, o primeiro a sistematizar e a
defender o adocionismo: Jesus era puro homem, nascido naturalmente
da Virgem, o qual, no batismo, havia recebido uma força especial.
Quando o acusaram de ter renegado a fé, por ocasião de uma
perseguição, justificou-se dizendo que não negara nada mais que um
homem (Jesus). Por volta do ano 190, Teódoto foi excomungado pelo
papa Vítor, mas continuou arregimentando muitos adeptos,
especialmente entre os convertidos do judaísmo que tinham
dificuldades em reconhecer e aceitar a divindade de Jesus. Com seus
adeptos, Teódoto conseguiu organizar uma comunidade cismática, em
Roma. Um dos mais ilustres entre seus discípulos foi Teódoto, o
Jovem. Este dizia que o intermediário entre Deus e os anjos não era
Jesus, mas Melquisedec, superior a Jesus. Ficaram conhecidos, por
esta razão, como os melquisedequianos.
Esta problemática adocionista está na raiz da redação dos
evangelhos. Estes, ao que tudo indica, foram escritos com

22
o fim de provar, demonstrar a divindade de Jesus, pelo menos na
forma como se encontram atualmente. A intenção é explícita em João
20,30-31: “Jesus fez, diante de seus discípulos, muitos outros sinais
ainda, que não se acham escritos neste livro. Estes, porém, foram
escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para
que, crendo, tenhais vida em seu nome". Esta intenção resulta igual-
mente evidente nos outros evangelhos. Cada um, à sua maneira, põe
em evidência como, através de sua vida, de seus gestos e de sua
pregação, Jesus se revelou o Filho de Deus. Para Marcos, o evangelho
é “a boa nova de Jesus Cristo, Filho de Deus” (1.1) e esta revelação
acaba na cena final, no ato de fé do oficial romano vendo Jesus
expirar: “Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus” (15,39).
Em Mateus, a importância do tema é sublinhado pelas numerosas
vezes em que Jesus é nomeado Filho de Deus; e Deus, o Pai de Jesus.
Mas, mesmo não levantando a questão do significado exato
deste título, a problemática é complexa. Como se chegou a esta fé?
Quando amadureceu esta confissão da filiação divina de Jesus?
Porque o título “Filho de Deus” está ausente das confissões mais
antigas, dos discursos missionários proferidos por Pedro e Paulo?
Num período da história do primeiro cristianismo, coberto pelo relato
dos Atos até o capítulo 15, esta profissão está ausente. Nos discursos
deste período, Jesus é reconhecido como o Servo do Senhor, o
Ungido, o Santo, o Justo, o Chefe e, por duas vezes, o Salvador (go’el
= redentor-libertador de Israel).
Só em At 9,20-21, aparece o título na pregação de Paulo, nas
sinagogas de Damasco: “Saulo esteve alguns dias com os discípulos
em Damasco e, imediatamente, nas sinagogas, começou a proclamar
Jesus, afirmando que ele é o Filho de Deus”. A Bíblia de Jerusalém
nota, em referência a este versículo, que “Filho de Deus” corresponde
a “Cristo” do v. 22. De fato, aí se diz que “Saulo, porém, crescia mais
e mais em poder e confundia os judeus que moravam em Damasco,
demonstrando que Jesus é o Cristo”. O título “Filho de Deus”

23
reaparece em Atos só mais uma vez, em 13,33, novamente num
discurso de Paulo na sinagoga de Antioquia da Pisídia. Neste texto,
muito provavelmente, Paulo, com a catequese primitiva, concebe a
ressurreição como momento de reconhecimento de Deus Pai para
com Jesus: arrancando-o dos grilhões da morte, Deus Pai o premia,
confirma sua missão e o toma como Filho: “eu hoje te gerei”.
O título Filho de Deus indica, aí, uma relação especial com
Deus, no contexto histórico-salvífico redentor de Israel. Não estaria
apontando para uma questão de essência, de substância igual ao Pai.
Um exegeta contemporâneo escreveu, a respeito de At 13,32-33:
“Vários autores católicos vêem na citação deste texto por Paulo uma
proclamação da messianidade de Jesus. Os judeus, com efeito,
aplicavam esta passagem ao Messias, mas não entendiam esta filiação
no sentido natural. Eram demasiados monoteístas para crer que Deus
tivesse um filho que lhe fosse igual. (...) é possível que tenha aplicado
esta passagem aqui no sentido messiânico, tal como a entendiam os
judeus”9.Quanto aos sinóticos, nenhuma só vez Jesus disse,
explicitamente, que era o Filho de Deus, nenhuma só vez pronunciou
este título aplicando- o a si mesmo.
Não passa despercebida, em tantos discursos dos Atos, a ênfase
posta sobre a ação de Deus em Jesus: é sempre Deus quem opera nele
e por ele. “Deus o fez Senhor e Cristo”. “O Santo, o justo, o príncipe
da vida, Deus o ressuscitou” (At 2,36; 3,14-15). “Deus ressuscitou
seu Servo”(3,26). “O Deus de nossos pais ressuscitou Jesus, a quem
vós matastes, suspendendo-o no madeiro. Deus, porém, o exaltou
com a sua direita, fazendo-o Chefe e Salvador, a fim de conceder a
Israel o arrependimento e a remissão dos pecados” (At 5,30- 31).
Jesus aparece como o instrumento privilegiado da ação de Deus Pai.
A ressurreição, entendida como processo de glorificação, exaltação,
indica a ação pela qual Deus Pai fez

9A. F. J. Klirçjn.op. cit., 36, 1973, pp. 19-43.

24
Jesus passar da condição de homem justo, santo, servo, mestre, à
qualidade de Filho de Deus.
Na tradição judaica, conservada no Antigo Testamento, este
título tem três aplicações diferentes: ao povo de Israel, ao rei de Israel
e a certos mandatários de Deus. Em nome de Deus, Moisés declara
ao Faraó, na peleja por libertar o povo do Egito: "Assim falou Javé:
o meu filho primogênito é Israel. E eu te disse: ‘Faze partir o meu
filho, para que me sirva” (Ex 4,22-23). Em Os 11.1. é o próprio Javé
quem diz: "Quando Israel era menino, eu o amei e do Egito chamei
meu filho”.
A idéia ás filho aplicada a Israel parece indicar o amor especial,
privilegiado que Javé devota a seu povo e à maneira de conduzi-lo,
de educá-lo. Por outro lado, a idéia de Israel como Servo (Servidor),
especialmente como aparece nos cânticos de Isaías, mostra como o
tema está ligado à eleição (cf. Is 41,8; 43,10-20; 44,1.2; 45,4), a qual
remonta ao chamado de Abraão. Mais que uma relação entre servo-
Senhor, esta noção “servo”, indica uma relação de confiança e de
amor para com Deus (cf. nota i de 41,8, da Bíblia de Jerusalém). Em
Is 42,1, se diz: “Eis o meu Servo que eu sustento, o meu eleito, em
quem tenho prazer. Pus sobre ele o meu espírito, ele trará o
julgamento às nações”. Não se pode deixar de associar este último
texto a Mc 1,10: “E, logo ao subir da água, viu o céu se rasgando e o
Espírito, como uma pomba, descer até ele, e uma voz veio dos céus:
‘Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo”’.
Parece que a comunidade dos discípulos reconheceu que, em
Jesus, se sintetizou, de forma absoluta, esta eleição. Ele é, de fato, o
“filho” (gr. pais) predileto de Deus, o Messias-Rei de Israel que vai
estabelecer o reinado de Deus através do serviço da justiça, como o
Servo de Javé, em Is 42,1-8.
Esta cristologia adocionista tinha Jesus como homem de
extraordinária virtude, do qual Deus se servira para implantar o
Reino. Interpretava a relação Jesus-Deus segundo a mentalidade e as
tradições judaicas do profetismo: Jesus é o

25
“homem de Deus”, inspirado e possuído pelo Espírito de Deus na
força do qual opera a tarefa messiânica. Nesta perspectiva, a
ressurreição não é prova de sua divindade, mas o modo como Deus
legitima a pessoa e a obra de Jesus, credenciando- o defmitivamente
como Messias de Israel.
Os adocionistas foram combatidos sobretudo por Hipólito e por
Tertuliano. Hipólito escreveu os Syntagma (ou Compêndio contra 32
heresias) e Phylosophumena (Refutação de todas as heresias).
Tertuliano, por sua vez, atacou-os na obra Prescrição dos heréticos.
Segundo Eusébio de Cesaréia, os adocionistas procuram
fundamentar-se nos próprios apóstolos: “Eles dizem que todos os
antigos e os próprios Apóstolos receberam e ensinaram aquilo que
ensinam hoje, que a verdade da pregação foi conservada até o tempo
de Vítor, o trigésimo bispo de Roma a partir de Pedro, mas que, a
partir de Zeferino, seu sucessor, ela foi alterada” (HE, N,2%3\ Logo
em seguida, Eusébio afirma que Hipólito rebateu esta afirmação dos
adocionistas com as próprias Escrituras e muitos outros escritos
cristãos: “Todos estes escritores (isto é, Justino, Melcíades, Taciano,
Clemente e tantos outros, entende-se, os apologistas) falam de Cristo
como de um Deus. Quem não conhece os livros de Ireneu, de Melitão
e de outros em que se proclama que o Cristo é Deus e homem? Quem
ignora os nossos cânticos e os hinos escritos por irmãos fiéis desde as
origens, onde eles cantam o Cristo como o Verbo de Deus e o
celebram como Deus? Como se pode, pois, admitir que o sentimento
da Igreja tenha sido declarado por tantos anos e que aqueles que
viveram até Vítor tenham pregado no sentido que estes pregam?
Como não se envergonham de lançar semelhante mentira contra
Vítor? Não lhes é bem feito que Vítor tenha excomungado o curtidor
de peles, Teódoto, cabeça e pai desta apostasia negadora de Deus, que
por primeiro disse que o Cristo era simplesmente um homem?”
(ihidem, 4-6).

26
CAPÍTULO II

CONFLITOS PROVOCADOS
PELO DOCETISMO E PELA GNOSE

1. Docetismo ou a negação da corporeidade de Jesus

Bem cedo, pelo final do século I, começa a tomar corpo, entre


os cristãos, especialmente nas comunidades da Ásia Menor, uma
concepção segundo a qual Jesus não teria verdadeiro corpo. Não se
trata, propriamente, de uma seita, mas de uma tendência, de uma
corrente de pensamento embebida de gnosticismo que esvaziava a
humanidade de Jesus. Os gnósticos, como veremos logo a seguir, se
caracterizam pelo menosprezo da matéria, da carne e superestimam
a alma-espírito. Para eles, a matéria é má em si mesma, incapaz e
desnecessária para a salvação. Mais ainda: a matéria é radicalmente
oposta ao espírito. São realidades contraditórias. Por isso, Deus, o
espírito perfeitíssimo, transcendente, imutável e impassível, não
pode, por nenhuma razão, assumir qualquer parcela de matéria. Em
outras palavras, é impossível conceber a encarnação de Deus na
matéria. Se o espírito-alma procura por todas as vias se libertar deste
corpo-matéria para se aproximar de Deus, como poderá Deus entrar
na matéria-came?
Julgavam os gnósticos terem atingido um estágio superior de
conhecimento, mais elevado que o comum dos fiéis.

27
Tinham-se como “avançados no conhecimento da divindade",
possuidores de uma sabedoria (gnose) tão sublime, que desprezavam
a fé dos simples, dos rústicos. Para se alcançar a salvação, segundo
eles, não era necessária a fé no homem Jesus. Se Jesus era Deus, seu
corpo real só podia ser astral, celeste. Seu corpo humano, terrestre só
podia ser “aparente”. Em grego, parecer é dokeo, aparência é
dokesis. donde docetistas, aqueles para os quais o corpo humano de
Jesus era só aparente, um fantasma. Pretendiam assim, marcar o
caráter divino, celeste do Filho de Deus: Jesus é, para eles, o homem
celeste. Que o Filho de Deus tenha-se feito carne, homem em tudo
semelhante a nós, tenha sofrido, morrido na cruz, é loucura e absurdo.
Assim os docetistas esvaziavam a realidade histórica de Jesus. Para
estes cristãos helenistas gnósticos, de fato, o anúncio de um Deus
feito homem, crucificado, era extremamente escandaloso. Era- lhes
simplesmente absurdo pensar e admitir que Deus tivesse a mesma
sorte dos homens tomando-se semelhante a nós. E a este grupo de
pessoas que parece se dirigir Paulo em ICor 1,20-27: “Onde está o
sábio? Onde está o homem culto? Onde está o argumentador deste
mundo? Por acaso, Deus não tomou louca a sabedoria deste mundo?
De fato, quando Deus mostrou a sua sabedoria, o mundo não
reconheceu a Deus através da sabedoria. Os judeus pedem sinais e os
gregos procuram a sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo cruci­
ficado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos (...). A
loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus
é mais forte do que os homens (...). Mas, Deus escolheu o que é
loucura no mundo, para confundir os sábios; e Deus escolheu o que
é fraqueza no mundo, para confundir o que é forte”.
Pelos escritos do apóstolo João, ou de seus discípulo, idéias
semelhantes ou bem próximas dos docetas se levantavam no meio
das comunidades cristãs. “A Uo, escrita provavelmente no fim do
século I, era dirigida às comunidades cristãs da Ásia Menor, que
passavam por séria crise, provocada por um gmpo de dissidentes
carismáticos. Estes

28
propunham uma doutrina gnóstica afirmando que o homem se salva
graças a um conhecimento religioso especial e pessoal”10. Um texto
de Pablo Richard esclarece ainda mais a situação de conflito que se
vivia nas comunidades joaninas: ”A comunidade do discípulo amado
não só teve conflitos com grupos inimigos ou diferentes da
comunidade, mas também viveu conflitos dentro da própria
comunidade. Na comunidade e na tradição do discípulo amado
nasceu uma tendência helenizante e (pré)gnóstica. que fez uma
interpretação espiritualista do evangelho. As assim chamadas cartas
de João são escritas para corrigir esta tendência dissidente. O autor
das três cartas tem uma interpretação do evangelho contraposta à
interpretação dos dissidentes helenizantes e espiritualistas. (...) Esta
interpretação helenizante errada do evangelho chegará a ser a
interpretação dominante no século II. Os dissidentes levarão consigo
o evangelho e o difundirão nos ambientes gnósticos do século II. O
comentário mais antigo do evangelho é do gnóstico Heracleão (160-
180 d.C.). Até o dia de hoje existe esta interpretação gnóstica.
helenizante e espiritualista do quarto evangelho”11. Tudo indica que
a preocupação maior do autor da carta está em orientar os fiéis
fomecendo-lhes um critério seguro para distinguirem entre o joio e o
trigo: "... todo espírito que reconhece que Jesus Cristo veio na carne
é de Deus; todo espírito que não reconhece Jesus não é de Deus” (Uo
4,1-3). E 2Jo 7 afirma: “Porque muitos sedutores, que não reconhe­
cem Jesus como Messias encarnado, espalharam-se pelo mundo”.
Aqui parece estar lavrada a regra de fé da comunidade joanina. Esta
se assenta na aceitação do grande mistério cujo centro é a encarnação,
que os docetas negavam.

■°Introdução à Uo. na Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. S. Paulo, Paulus. 4*


impressão. 1990.
“P. Richard. “Chaves para uma re-leitura histórica e libertadora (Quarto Evangelho
e Cartas)’’, cm Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana (Ribla), n2 17. 1994/1.
pp. 7-26. aqui. p. 22. Além de Ireneu de Lião, também Tertuliano combateu duramente
os docetistas gnósticos em Sobre a carne de Cristo; ContraMarcião; cf. também o artigo
“Docetisme”. em Dictionnaire de Spiritualíté ascétiqueet mvstique. Paris, 3. pp. 1461 -
1468.

29
Aceitar e crer que Deus tenha-se feito came e habitado entre nós,
como um de nós (Jo 1,14), homem em tudo semelhante a nós: “O que
era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos como nossos olhos,
o que contemplamos, e o que nossas mãos apalparam do Verbo da
Vida” (Uo 1,1).
Com o docetismo nasce, de fato, a primeira ameaça séria à base
fundamental do cristianismo: negação da encarnação. Filha do
gnosticismo, o docetismo mina, pela raiz, o mistério de Jesus Cristo,
negando a realidade da sua condição humana, assegurando-lhe
somente uma existência histórica aparente, portanto, des-
historizando-a.
Não só Paulo e João combateram os docetistas. Outros Padres
da Igreja do século I saíram em defesa da existência humana real de
Jesus Cristo. O primeiro deles foi Inácio de Antioquia. que lutou
contra os docetas defendendo a eficácia e a consistência da
encarnação: "... um só médico, came e espírito, gerado e não gerado.
Deus feito came, Vida verdadeira no seio da morte, nascido de Maria
e nascido de Deus, passível e impassível, Jesus Cristo, nosso Senhor”.
(Carta aos Efésios, VII). Para desviar de vez os fiéis da influência
docetista, advertia: “Toma-te surdo quando te falam de um Jesus
Cristo fora daquele que foi da família de Davi, filho de Maria, nasceu
autenticamente, comeu, bebeu, padeceu verdadeiramente sob o poder
de Pôncio Pilatos, foi cmcificado e morreu verdadeiramente. (...) De
que me valería estar em cadeias, se Cristo sofre somente na aparência,
como certos pretendem? Esses, sim, não passam de meras
aparências” (Cartas aos Tralianos, IX-X).
Também Ireneu investe decididamente contra os docetas: “O
Salvador, conforme Saturnino, não nasceu, não teve corpo nem
forma, mas foi visto em forma humana apenas em aparência. O Deus
dos judeus, segundo ele. era um dos sete anjos; visto que todos os
príncipes quiseram destruir seu Pai, Cristo veio para aniquilar o Deus
dos judeus e para salvar os que nele mesmo acreditassem; esses são
os que possuem uma faísca da vida de Cristo” (Contra as heresias I,
24,1-2).
Os símbolos de fé foram se desenvolvendo, a partir daí,

30
enfatizando cada vez mais a realidade humana de Jesus, de seu
nascimento, sofrimento, crucificação, morte e sepulta- mento. Há
necessidade de destacar sua realidade corporal para afugentar um
“Jesus sombra", "fantasma”.
Os docetas tiveram continuidade na história do cristianismo
naqueles que insistiam e insistem, ainda hoje, numa espiritualidade
inteiramente desfavorável ao homem. Há certo docetismo, na
seqüência, que contamina a vida cristã, à medida que, para sublinhar
a grandeza da alma, seu valor, a necessidade de purificação, de
santificação e de salvação, desprezam ou até negam qualquer valor a
tudo o que se refere ao corpo. Criam uma espiritualidade angélica, de
pessoas celestiais, etéreas, desencarnadas. Esvaziam os valores do
corpo, da realidade histórica. Só é nobre e digno o que é do espírito,
da alma, o que vem do alto.

2. A emergência do gnosticismo

E impossível, dado o grande número de textos e da diversidade


de opiniões e doutrinas, chegar a uma concepção definitiva, acabada,
do gnosticismo. De fato, o gnosticismo é um movimento amplo que
apresenta uma grande variedade de formas e de seitas cujo caráter
comum parece o de fundir o cristianismo com filosofias pagãs.
Textos que falam do elemento feminino na divindade, celebram um
Deus simultaneamente Pai e Mãe. Outros julgam que a ressurreição
de Cristo deva ser entendida de modo simbólico, e não literalmente.
Outros textos extremos denunciam os católicos, devido à sua
interpretação literal das Escrituras, como heréticos.
Alguns especialistas admitem que a gnose foi um movimento
largamente difundido no mundo antigo que remonta às tradições mais
diversas. O certo é que os Padres ortodoxos da Igreja antiga viam no
gnosticismo a heresia mais ameaçadora para o cristianismo.
Mas, de onde tira o gnosticismo sua origem? Decorre ele de
certa decepção com a existência terrena? Se é difícil estabelecer sua
origem, sua difusão e penetração nas crenças

31
1

religiosas e na cultura do mundo greco-latino, se deve, certamente, à


apatia política e a estagnação cultural do império do Oriente nos dois
primeiros séculos de nossa era. Muitos, na época, se sentiam
profundamente estranhos no mundo em que viviam, pondo sua
esperança numa salvação milagrosa para escapar das opressões
políticas e sociais da existência. De fato, a visão gnóstica do mundo
é pessimista oferecendo ao gnóstico uma maneira de se ultrapassar a
si mesmo.
Por isso, alguns julgam que o gnosticismo nasceu em reação
contra o afundamento das visões religiosas tradicionais, judaicas e
pagãs e também cristãs, após a destruição de Jerusalém pelos
romanos, em 70 d.C. Outros, no entanto, a têm como fruto do
sincretismo das religiões orientais e da mística helênica12.
Segundo o testemunho de Ireneu de Lião e de outros Padres da
Igreja antiga, numerosos evangelhos circulavam entre diversos
grupos cristãos, além daqueles que compõem hoje o NT, como o
Evangelho de Tiago, o Evangelho de Filipe, o Evangelho de Pedro,
o Evangelho da Verdade e muitos outros poemas e hinos secretos
atribuídos a Jesus ou a alguns de seus discípulos. Alguns destes
escritos gnósticos foram descobertos em Nag Hammadi13 e outros se
perderam. Os que se diziam cristãos, referiam-se às crenças e práticas
numerosas e das mais divergentes entre elas. Do mesmo modo, as
comunidades espalhadas pelo mundo conhecido se organizavam de
maneiras largamente diferenciadas umas das outras. Só a partir do
ano 200 as coisas começam a se

•2Cf. W. Bauer, Orthodoxy andHeresy in Earleist Christianity, trad. do alemão, 2a


ed., Philadelphia, 1971, XXII.
13Nag Hammadi, cidade do Egito, antiga Chenoboskion, entre Siut e Luxor, a noite
de Hamra Dom, próximo da cidade de Farshut. “Os escritos de Nag Hammadi” se referem
à Biblioteca de escritos em língua copta, descoberta por Muhammad ‘Ali al- Sammãm
Khalifah em dezembro de 1945, nas proximidades de Nag Hammadi. Muitas hipóteses
foram levantadas sobre a origem e a natureza desta Biblioteca, mas até hoje, as escavações
arqueológicas in loco não trouxeram nenhuma definição. Hoje a Biblioteca se encontra
no Museu Copto do Cairo. A partir de 1972, teve início a edição em facsímile. terminada
em 1977, o que a tornou acessível a todos os estudiosos interessados.

32
modificar. É certo, também, que as pesquisas operadas sobre os
documentos descobertos em Nag Hammadi conduzem o debate em
outra dimensão. Elas deixam entrever que estas discussões religiosas
a respeito da natureza de Deus ou de Cristo comportam,
simultaneamente, implicações essenciais para o desenvolvimento do
cristianismo enquanto religião institucional. Mais simplesmente,
idéias que entra- nham conseqüências contrárias a este movimento
acabam por ser etiquetadas "heréticas”, idéias que, implicitamente, o
favorecem, são reputadas "ortodoxas”.

3. Conteúdo doutrinai do gnosticismo

Apesar da diversidade das correntes e seitas, o gnosticismo tem


em comum o dualismo da matéria e do espírito como oposição eterna.
Este dualismo se traduz na concepção da ordem cósmica e moral, na
luta do bem contra o mal, na queda da alma no corpo. Em resumo,
dois problemas intimamente ligados preocupam os gnósticos: a
criação e o mal. Se Deus é bom, como criou o mundo, de onde vem
o mal? Se não criou o mal, não é o criador único das coisas. Assim,
as principais questões que a gnose pretendia resolver eram: 1. De
onde procede o mal do mundo? 2. Como se originou a matéria? 3.
Como se unem, no homem, matéria e espírito? 4. Como se liberta o
espírito da matéria (problema da redenção) e volta para Deus?
Para responder a estas questões, criaram sistemas "audaciosos”
e complicadíssimos. De maneira breve e simples, pode-se dizer o
seguinte: há um reino de luz, que é o Deus bom e o das trevas que é
o da Matéria eterna. Entre o Deus-Abismo e o organizador da
Matéria, o Demiurgo, há um número incalculável de graduações, que
chamam de Eões. Estes, por sua vez, são as emanações superiores
que participam dos atributos da essência divina, distribuídos em clas­
ses. A união dos Eões formava o Pleroma ou plenitude da
Inteligência. A emanação última, mais imperfeita, foi a

33
criadora. Em outras palavras, o Demiurgo, criador deste nosso mundo
material era o último dos Eòes, o mais afastado do Deus-Abismo, ou
o Demônio que arrebatara uma centelha da Plenitude divina para com
ela animar a matéria. Tal é a origem do mundo, o que explica também
a diversidade dos homens. Estes, segundo os gnósticos, estão
divididos em três classes ou categorias: os hílicos, são os pagãos, os
materiais. Estes serão eliminados com a matéria; os psíquicos ou
anímicos, são os cristãos ordinários, em quem a Matéria e o Espírito
estão equilibrados mais ou menos. Estes gozarão uma felicidade de
segunda classe, intermediária; por fim, os espirituais ou gnósticos, os
instruídos, em quem a matéria é dominada totalmente pelo Espírito
de Deus.
Aplicando o próprio sistema à fé cristã, os gnósticos fazem de
Cristo um Eão superior, um Nõus (Inteligência- Logos) enviado por
Deus para revelar aos homens o Deus supremo e verdadeiro até então
desconhecido e lhes ensinar como superar a matéria. Esse Eão
apoderou-se de Jesus de Nazaré no momento em que foi batizado no
Jordão. Daí por diante sua mente se iluminou e compreendeu que sua
missão era levar aos homens a verdadeira gnose, isto é, o verdadeiro
conhecimento que é o Evangelho, para libertar os homens da matéria.
Assim, operou a redenção. Quando o Evangelho completar sua obra
na terra, todas as parcelas do espírito divino, aprisionadas na matéria,
voltarão à Plenitude do Deus-Pleroma.
Os gnósticos distinguem, portanto, nitidamente, dois mundos: o
mundo material, mau, e o mundo espiritual, bom. Os homens
possuem um elemento material, o corpo, a carne, e um elemento
espiritual, a alma, que constitui o homem verdadeiro, autêntico. Só
este recebe o apelo para a salvação, ou seja, só o espírito é elemento
de salvação. A redenção consiste em sair deste mundo material, mau,
voltado à destruição, e voltar ao mundo espiritual do Pai. Portanto, a
salvação está assegurada somente aos “espirituais” gnósticos, àqueles
que têm, em si mesmos, a centelha divina originária. Esta centelha é
despertada por um processo de conhecimen

34
to através da revelação feita ao espírito, através do qual a alma do
gnóstico toma consciência da sua verdadeira natureza: sufocada pela
matéria, aspira libertar-se dos liames do corpo e do mundo material.
Esta concepção de redenção parece conter uma contradição com
o princípio escatológico por eles mesmos assentado, segundo o qual,
tudo há de terminar com uma reconciliação geral de tudo
(apocatástase panton), isto é, com o retomo de todas as coisas ao
lugar correspondente à sua natureza, ou devolução das coisas a seus
estados primitivos. Assim, negavam a ressurreição da carne; o
inferno e o céu deixavam de ser lugares de recompensa ou castigo.
Ireneu de Lião esforçar-se-á em dizer que a salvação não
consiste em fazer os homens saírem deste mundo para atingir um
mundo espiritual, mas na vinda de Deus a este mundo para habitar
entre os homens.
O gnosticismo é, portanto, uma doutrina religioso-fdo- sófica
marcada por um dualismo acentuado em que a matéria é desprezível.
Quanto a isso, deve muito de sua fundamentação fdosófica ao
platonismo. EmEnéade 1,8.14, Plotino escreve que a "matéria é a
causa da debilidade da alma e de sua disposição viciosa. Ela é o mal,
ou melhor, o mal original’’ (protonkakon). Afasta, o quanto possível,
o Deus supremo, bom, do contato com a matéria. Entre o mundo
visível, material, e o Deus supremo imaginam intennediários
numerosíssimos, por meio dos quais chega até nós a ação divina,
descendo de grau em grau. Do mesmo modo, por seu meio, a alma
pode, de grau em grau, se elevar até o Deus supremo.
Não admitindo que o espírito divino se una à matéria, o
gnosticismo nega toda a possibilidade de encarnação. A humanidade
de Cristo-Logos é uma humanidade tomada às pressas, sobre a qual
desce em forma de pomba no momento do batismo do homem Jesus
de Nazaré e abandonando-a antes da. paixão.
Resumindo: a gnose é uma revelação e uma doutrina de
salvação. Ela ensina a alma a se libertar do mundo material,

35
onde está prisioneira, e a sair para o mundo espiritual e luminoso, de
onde caiu. Esta libertação se efetuará por meio de uma revelação
(conhecimento) celeste acompanhada, freqüentemente, por fórmulas
e ritos mágicos. Nem todos podem participar da gnose. Ela é
reservada só aos iniciados, e aí parecia residir sua fortíssima atração.

4. O gnosticismo no tempo dos apóstolos

Quando o diácono Filipe chegou a Samaria, encontrou- a


seduzida por talSimão. De fato, segundo At 8,9-1 1, Simão, antes de
procurar os apóstolos, havia revolucionado toda a Samaria com suas
mágicas, trambiques, e impressionava tanto o povo, que este o
julgava como sendo o poder de Deus. Dando a aparência de
convertido, Simão se faz batizar por Filipe. Quando, um pouco mais
tarde, chegam à Samaria Pedro e João, Simão lhes propõe a compra
do poder de conferir o Espírito Santo. Pedro o repreende e ele se
humilha, arrependido. Não se fala mais nele. Contudo, livros posteri­
ores permitem seguir a carreira “carismático-gnóstica ” de Simão.
Justino Mártir, que era de Pelusa, Palestina, e conhecera seus
compatriotas, refere-se a ele do seguinte modo: “...quase todos os
samaritanos e alguns de outras nações reconhecem Simão e o adoram
como o deus supremo” (Apol. 1,26,3; LVI, 1-2).
A gnose simoniana exaltou progressivamente seu fundador,
reconhecendo nele uma divindade intermediária, a grande Virtude de
Deus, depois o adorou como Deus supremo. No final do século II,
Ireneu mostra a tentativa de seus seguidores em adpatar seu esquema
doutrinário ao dogma da trindade: “Simão pretende ter descido entre
os judeus como o Filho, na Samaria, como o Pai e nas outras nações
como o Espírito Santo” (Contra as heresias 1,23).
Ao lado deste deus supremo, os fiéis honram uma deusa,
Helena. Ela seria a primeira emanação da mente de Simão, da qual
foram gerados anjos e poderes, da seguinte maneira:

36
do sumo deus (Simão), emanara a primeira idéia criadora. Ennóia.
mãe de tudo; dela saíram as potestades a ngélicas, os demiurgos que
criaram este mundo e expulsaram Ennóia na matéria. Esta teria
transmigrado por diversos corpos femininos até Helena de Tiro, a
companheira de Simão. Para libertar Ennóia e remir os homens,
Simão descera do céu incógnito, como homem, na Judéia, onde teria
sofrido, aparentemente (docetismo simoniano) como Filho, na
Samaria, como Pai. Para ser salvo, basta crer nele e em Helena
(ibidení). Talvez por isso, Simão Mago é considerado o “patriarca
dos hereges”14.
Ao que parece, as comunidades cristãs corriam o risco de ser
contaminadas pela gnose. Paulo fora informado de que a comunidade
de Colossas, na Ásia Menor, se deixava cativar por uma doutrina que
combinava certo gnosticismo e práticas judaicas. O próprio Paulo usa
os termos “conhecimento” (gnoses) e "pleno conhecimento”
(epignosis) do jargão gnóstico, várias vezes. A posição violenta entre
a came e o espírito de Rm 8,22-25 e ICor 15,50, a idéia de um Cristo
vitorioso, superior aos “principados, potestades, virtudes,
dominações”, vitorioso sobre este mundo tenebroso (Cl 1,15-20) e
um Cristo como um “Homem Celeste” são expressões que se
aproximam muito da doutrina gnóstica. Talvez por esta razão Paulo
era o principal apóstolo para os gnósticos, especialmente para
Marcião. Há aqueles que negam a ressurreição (ICor 15,12). em
outras comunidades, alguns se entregam a especulações ambiciosas
e se comprazem em genealogias fantásticas (Tt 3,9), em “fábulas
habilmente inventadas” (IPd 1,16), aqueles que negam a encarnação
(Uo 4,2-3).

5. Gnosticismo no século II

O gnosticismo vai se intensificando no período dos Padres


apostólicos, entre os anos 90 e 130, quando então
“L. Cerfaux, “La gnose siinonienne”, em Recherche de Science Religiense 15. 480-
502; 16, 1926. 5-15; 265-285; 481-503.

37
começa seu período de apogeu, que durará até o final do século.
Inebriados por suas especulações, os gnósticos negam a vida real de
Cristo, sua humanidade real. Os bispos da Ásia Menor,
especialmente a partir de Inácio de Antioquia, lutam contra tal
ameaça de ruína para a fé cristã. Mas quem realmente vai combater
a gnose de um modo global é Ireneu de Lião, em sua volumosa obra
Contra as heresias. Orígenes, no tratado Contra Celso, indica fontes
para se conhecer melhor a gnose. Tertuliano, por sua vez, não se
cansa de dar combate aos gnósticos. Contra eles escreveu: A
prescrição dos heréticos, Contra Marcião, Contra os valentinianos,
Contra Hermógenes, Contra Scorpiace (ou Medicina contra picada
do escorpião, opúsculo em que Tertuliano tenta provar aos gnósticos
o valor moral e o mereceimento do martírio).
Terminemos este item com um texto gnóstico exemplar. Trata-
se de uma passagem da obra de Basílides, recolhida por Ireneu de
Lião em seu Contra as heresias I, 24,3-5: “Para credenciar-se como
autor de especulações mais altas e plausíveis, Basílides ampliou
consideravelmente os pontos de vista de Saturnino. Ensinou que a
Mente foi o primogênito do Pai Ingênito. A Razão foi gerada pela
Mente e, por sua vez, gerou a Prudência, e esta gerou a Sabedoria e
o Poder. Da Sabedoria e do Poder nasceram as Virtudes, os Príncipes
e os Anjos, que são chamados também de ‘Os Primeiros’. Estes
fizeram o Primeiro Céu, do qual derivaram outros céus, que, também,
geraram outros céus... (perfazendo um total de 365 céus).
Os anjos que presidem sobre o Céu inferior, que é visto por nós,
ordenaram todas as coisas que há no mundo, dividindo entre si a terra
e as nações da terra. Seu chefe é aquele que tem sido crido como o
Deus dos judeus. Ele pretendeu sujeitar os demais povos aos judeus,
provocando a resistência dos outros príncipes, que se coligaram
contra ele... Então o Pai Ingênito e Inominado... enviou sua Mente
primogênita (chamado o Cristo) para libertar os que nele cressem dos
poderes que fizeram o mundo. Ele apareceu, assim, entre as nações
dos príncipes, em forma de homem, e

38
realizou atos de poder. Ele, porém, não sofreu, mas certo Simão de
Cirene foi movido a levar a cruz por ele: Simão foi equivocadamente
crucificado, tendo sido transfigurado por ele de tal sorte que o
populacho o tomou por Jesus. Jesus, entretanto, trasmutou-se na
forma de Simão, presenciando a agonia de seu sósia e dele
escarnecendo. Quem, portanto, reconhecer e reverenciar o
crucificado, ainda não deixou de ser escravo e sujeito ao domínio dos
que fizeram nossos corpos. Quem, ao contrário, o negar, fica livre
deles e conhece a disposição do Pai Ingênito.
Basílides ensina também que a salvação só concerne à alma,
pois o corpo é naturalmente corruptível. As profecias em si mesmas
provieram dos príncipes que fizeram o mundo. A lei foi dada pelo
príncipe que tirou os israelitas da terra do Egito. Basílides prescreve
ainda a perfeita indiferença para com as coisas imoladas aos ídolos,
permitindo que as usemos sem temor; igualmente quer que
consideremos como matéria absolutamente inocente as
sensualidades e lubricidades de toda classe...”1'.
Para Ireneu, "A veradeira gnose é a doutrina dos Apóstolos”
{Contra as heresias IV,33,8).

6. Ognosticismo de Marcião ou o “Primogênito de Satanás”

O século II foi extremamente efervescente de idéias novas,


novas seitas, novas correntes filosóficas. E um século fértil em
doutrinas, teorias, seitas e, porque não, em “heresias”. Homens
dotados de grande capacidade criaram uma abundante e variada
literatura em que se incluem tratados cosmológicos, filosóficos,
comentários bíblicos, evangelhos e atos dos apóstolos, cartas
apostólicas, apocalipses, salmos e hinos.
Se já durante a vida dos apóstolos havia diversidade de
tendências entre eles no tocante à pregação, à disciplina, à
interpretação e compreensão das Escrituras, à vida e obra do

6H. Bettenson, pp. 68-69.

39
Mestre, é fácil imaginar o que ocorreu após a morte deles. Os cristãos
viram-se. no meio do século II, provocados pelas perseguições, pelos
abalos de novas doutrinas e desesperançados de mudança
econômica.
A medida que o tempo avança, vão surgindo aqueles que,
influenciados pela gnose, operam o desligamento teológico e
sociocultural do cristianismo de seu meio de origem e de suas
inspirações originais. Cada vez mais vão absorvendo os elementos
da vida pagã, das categorias filosóficas, especialmente estóicas e
neoplatônicas, estranhas às categorias da revelação bíblica. O
marcionisino é um exemplo lúcido dessa simbiose. O século II foi,
assim, o século em que surgiram grandes heresias e outras nele foram
semeadas. Ireneu de Lião e Epifânio contam 32 heresias no período
deste século.

a) A origem do marcionismo

Segundo os dados fornecidos pelos historiadores da


antiguidade, Marcião nascera, no início do século II, em Sinope (no
Ponto, hoje, Turquia). Filho do bispo da cidade, abraçou a vida
monástica. Suas virtudes e sua continência o levaram ao presbiterato.
Acusado de ter seduzido uma virgem, isto é, uma jovem cristã votada
ao celibato (alguns dizem que se tratava de uma figura retórica, sendo
esta virgem a Igreja), foi excomungado pelo próprio pai e expulso da
cidade. Dirigiu-se. então, a Efeso, estendendo suas atividades
também pelas cidades vizinhas. Esperava encontrar apoio nestas
comunidades da Ásia Menor, que, há muito, tinham assumido uma
atitude de certa autonomia em relação ao judaísmo. Não encontrando
ressonância de suas propostas doutrinais, transferiu-se para Roma.
Talvez na intenção de ganhar a simpatia desta comunidade, fez-lhe a
doação de 200 mil sestérsios. Tendo conquistado espaço na
comunidade cristã, põe-se a ensinar publicamente a doutrina meio
estóica, meio gnóstica dos dois princípios, tal como já havia exposto
tal Cerdão. Este é, segundo Ireneu de Lião,

40
o pai intelectual de Marcião. De fato, diz Ireneu, “Certo Cerdào, que
tem suas origens nos discípulos de Simão e que residiu em Roma sob
Higino, o nono detentor da sucessão episcopal desde os apóstolos,
ensinou que o Deus pregado pela Lei e pelos profetas não é o Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo, que um é conhecido e o outro ignoto, que
um é justo e que o outro é bom. Marcião, o Pôntico, sucedeu-lhe
desenvolvendo sua escola, blasfemando sem pudor” (Contra as
heresias I, 1-9).
Marcião acabou por desagradar também a comunidade de
Roma. Um conselho de presbíteros, em 144, repudiou suas doutrinas,
devolveu-lhe a generosa doação e o baniu da comunidade. Começa,
então, a pregar suas idéias mais aberta e livremente, fundando sua
própria Igreja.
Não parece que a intenção original de Marcião tenha sido a de
construir uma nova igreja, criar uma seita, mas a de anunciar a
verdadeira mensagem de Jesus, que lhe parecia muito adulterada
pelas diversas interpretações comprometidas com os judaizantes. Sua
doutrina se expandiu por todo o império romano até a Pérsia, criando
enorme contingente de seguidores. A mescla de estoicismo e
gnosticismo explica, certamente, o sucesso de seu ensinamento e a
longa duração de sua seita. Ainda no século XVI havia marcionitas
no Oriente e no Ocidente. Sua igreja permaneceu até o século VI.

b) A doutrina de Marcião

O núcleo de sua doutrina teológica era a proclamação da


redenção operada por Jesus Cristo pela misericórdia de Deus Pai.
Constatando que o AT não apresentava os traços de misericórdia do
Deus anunciado por Jesus, distinguiu, então o Deus benévolo e Pai
de Jesus, que salva livremente e por amor, do. Deus vingador e iroso
do AT, Senhor deste mundo. Radicalizou a oposição paulina entre a
justiça da Lei e a graça do evangelho, a ponto de distinguir duas
divindades.

41
o Deus criador que carregou o homem decaído com o jugo da Lei, e
o Deus bom, compassivo, que enviou Jesus para libertar o homem do
jugo da Lei. Jesus é morto justamente pelo Deus justo, vingador, do
AT.
No esforço de afastar e eliminar do cristianismo todos os
elementos judaicos das Escrituras do Novo Testamento, com o
objetivo de “desjudaizar” a religião cristã, Marcião elabora uma
depuração dos escritos neotestamentários. Rejeita os evangelhos de
Marcos, Mateus e João. Elabora pessoalmente um cânone com textos
selecionados de Lucas e da tradição paulina. Acreditava que as
contradições da tradição cristã eram devidas às interpelações
introduzidas pelos judaizantes. Escreve, então, suas Antíteses
(Antithéses). Da leitura dos sinóticos, conclui que os primeiros
discípulos não compreenderam o ensinamento de Jesus, nem o
próprio Jesus. Só Paulo o havia compreendido. Por isso, o evangelho
autêntico fora transmitido a Paulo, por revelação. Seus textos-chaves
eram as cartas aos Gálatas, aos Romanos e a passagem de ICor 11.23.
onde Paulo diz ter recebido "do Senhor” sua narração da última ceia:
"De fato, eu recebi pessoalmente do Senhor aquilo que transmiti a
vocês...”. Sua intenção é oferecer um conhecimento (uma gnose)
mais puro e coerente. Neste sentido. Paulo era para ele e seus
seguidores o apóstolo por excelência, justamente, por não se
identificar ou por romper com o judaísmo e ir pregar aos pagãos.
Assim, seu pensamento e seus ensinos estão marcados por profundo
anti-semitismo.
Já que não contamos com textos do próprio Marcião ou de
algum de seus discípulos, podemos mostrar, com certa reserva, o
essencial de sua doutrina, nos seguintes termos: o Demiurgo criou o
mundo e o homem, sua própria imagem, de modo que imprimiu
necessariamente, nesta obra da criação, o selo de seu poder restrito.
Muito fraco para resistir ao elemento material de que seu corpo é
formado, o homem cedeu às sugestões do maligno e se expôs à
rigorosa justiça do Criador. Exceto um pequeno

42
número de homens, todos os descendentes do primeiro homem se
corromperam cada vez mais. O Demiurgo, irritado, os abandonou,
pois, ao poder dos demônios, reservando para si os justos, para com
eles formar um povo querido, o povo judeu, ao qual deu sua Lei, e ao
qual socorria com todo o seu poder, mas sem sucesso, na luta contra
o maligno. Contrariamente, pleno de amor para com a humanidade,
o Deus bom quis pôr fim a esta luta trazendo a si os homens
unicamente por amor. Enviou, então, sobre a terra, seu Cristo, com
ordem de revelar a todos os homens, pagãos e judeus, sua essência
até então oculta. O Cristo apareceu inopinadamente na sinagoga de
Cafamaum. Veio ao mundo sem intervenção de Maria. Não admite,
portanto, a encarnação. Revestido de uma aparência de corpo, lançou,
a partir desse momento, o fundamento de um novo reino espiritual.
Mas, por instigação dos judeus, foi condenado à morte. Sua paixão e
sua morte, contudo, foram só aparentes, porque, para sofrer e morrer,
era-lhe necessário um corpo real. Ora, ele não podia assumir um
corpo material para não cair sob o poder do maligno, sem se submeter
ao poder do Demiurgo. Vencido e cheio de cólera, o Deus do AT
rasgou o véu do Templo e se submeteu ao poder do Deus de Jesus.
Jesus Cristo era para os marcionitas a personificação da idéia da
redenção. Aqueles que crêem nele, gozarão no seu reino uma
felicidade perfeita. Os que permanecerem agarrados ao Demiurgo,
receberão segundo suas obras, após um justo julgamento, uma
felicidade limitada no seio de Abraão ou, então, serão condenados.
Quanto aos mortos antes da aparição de Cristo, criam que, tocado de
compaixão para com eles, Cristo descera aos infernos para lhes
oferecer sua salvação a todos, judeus e pagãos.
Marcião impôs a seus seguidores uma moral rígida, austera,
interditando o matrimônio, o uso das carnes e do vinho, deixando na
fila dos catecúmenos aqueles que não se sentiam prontos para guardar
a mais rigorosa continência.
Marcião parece ter tentado elaborar um cristianismo coerente
com a concepção gnóstica e alimentada por um forte

43
anti-semitismo. Sua grande tarefa, a “desjudaização” das Escrituras
do Novo Testamento, rejeitando, por completo, o Antigo
Testamento. Mas, no século II, não foi o único a querer corrigir o
cristianismo, a dar uma nova interpretação da pessoa e da obra de
Jesus Cristo16.

lflCf. M. Simonetti. “Note suH’interpretazione gnostica delTAntico Testamento", em


Vetera Christianonim 9.1972,331-359; 10,1973,103-126; B. Aland, “Marcione”, em
DizionarioPatristico e di Antichità Classiche II, pp. 2095-2098; A. Orbe (a cura di), II
Cristo. Testi teologia espirituali dalI alIVsecolo, I, Roma. 1987, XV-XVII.

44
CAPÍTULO III

FIDELIDADE MONOTEÍSTA:
MONARQUIANISMO
E PATRIPASSIONISMO

/. Monarquianismo: não épossível um "Segundo Deus"

A partir dos anos 150, assiste-se a um florescimento de seitas,


no seio do cristianismo, destacando-se, principalmente, os gnósticos,
os marcionitas, os montanista, os monarquianos ou patripassianos.
Partindo da fé inamovível da unidade de Deus, do monoteísmo
restrito, repetia como em refrão: Monarchiam tenemus. Na seqüência
das tendências judaizantes, não abriam mão do monoteísmo judaico,
mas, por outro lado, aceitavam a divindade de Jesus Cristo. Como
conciliar, então, este paradoxo? Como admitir a divindade de Jesus
Cristo sem trair a fidelidade monoteísta? Para eles, distinguir, em
Deus, pessoas diferentes na unidade da divindade, parecia-lhes
admitir mais um deus. Desse modo, Jesus Cristo seria um "segundo
Deus” (dêutero theós). Não lhes era possível esta afinnação.
Portanto, se só há um Deus, e se Jesus-Cristo é Deus, então só pode
ser aceito se este Jesus- filho for o Pai, numa forma ou modalidade
especial. Jesus, o Filho, segundo eles, não é pessoa distinta do Pai,
mas a

45
própria divindade, que, numa forma ou modalidade, é o próprio Pai
e num a outra forma ou modo é o Filho. Assim, foi o próprio Deus-
Pai que numa forma/modo desceu dos céus ao seio de Maria; viveu
neste mundo; sofreu, morreu e ressuscitou. Por esta razão, os
defensores desta doutrina receberam o nome de modalistas e
patripassianos (pater=pai; passio=sofre: o Deus-Pai sofreu na cruz)
e ainda dehyopáteres (hiós=filho: o filho é o Pai).
Os monarquianos julgaram que a palavra ‘‘Filho” conduzia não
à distinção entre Pai e Filho, mas àquilo que os unia na mesma obra
e mesmo ser divino. Segundo eles, não só a identidade das obras, pois
“só faço as obras que o Pai quer”, “meu alimento é fazer a vontade
de meu Pai”, “as obras que eu faço não são minhas”, "concluí a obra
que me encarregaste de realizar” (cf. Jo 4,34; 5,30; 10,25.37; 17,4),
mas, uma total identidade de ser é afirmada em Jo 10,30: “Eu e o Pai
somos um” e 14,9-11: “Quem me viu, viu o Pai. Como podes dizer:
‘Mostra-nos o Pai!? Não crês que estou no Pai e o Pai está em mim?
As palavras que vos digo, não as digo por mim mesmo, mas o Pai,
que permanece em mim, realiza suas obras. Crede-me: eu estou no
Pai, e o Pai em mim”. Como se vê, o monarquianismo salvaguarda o
monoteísmo, mas des- trói a autonomia, a existência autônoma do
Filho.

2. O monarquianismo de Noeto

Também esta doutrina nasceu em terras da Ásia, no Oriente.


Conforme Hipólito, seu primeiro corifeu foi Noeto, natural de
Esmima, conterrâneo de S. Policarpo. A crer em Hipólito, Noeto
seria homem cheio de orgulho, convicto de ser inspirado pelo
Espírito Santo. A crer em Noeto, este não tencionava “destruir a
Igreja” ou lhe ser adversário. Instigado pelos presbíteros de Esmima,
perplexos com a novidade da doutrina. Noeto lhes declarou que, mais
qua a todos, tinha em grande apreço as excelências de Cristo e de sua
divindade. Queria honrar e defender a grandeza de Cristo: “E, pois,

46
uma culpa glorificar a Cristo?”, é sua primeira resposta aos que o
inquiriam.
Hipólito caracteriza a doutrina de Noeto do seguinte modo:
“Cristo, diz ele, é o Pai mesmo, e é o Pai mesmo que nasceu, que
sofreu e que morreu. Quanto a si, pretendia ser Moisés e seu irmão
Aarão. Os santos presbíteros o chamaram e o interrogaram diante de
toda a Igreja. Ele, primeiro negou. Mas, mais tarde, quis sustentar
abertamente a sua doutrina. Os santos presbíteros o convocaram
novamente e o refutaram. Mas ele Ihos resistia dizendo: "E. pois, uma
culpa glorificar a Cristo?” Os presbíteros replicaram: “Também nós
confessamos verdadeiramente um só Deus; confessamos Cristo, con­
fessamos o Filho que sofreu, como sofreu, que morreu, como morreu,
que ressuscitou ao terceiro dia, que está à direita do Pai. que virá para
julgar os vivos e os mortos. E isto nós o dizemos como o temos
aprendido. Então, tendo-o convencido de erro, o expulsaram da
Igreja” (Ad. Noetum, I).
A argumentação de Noeto prendia-se a textos do AT e do NT,
tais como: “Eu sou o Deus de teus pais. (...) Não terás outros deuses
diante de mim” (Ex 3,6; 20,3); "Eu sou o primeiro e o último, fora de
mim não há Deus” (Is 44,6) e a textos do NT citados no parágrafo
anterior. Além destes textos, Noeto dava ênfase à passagem de Rm
9,5: "(...) aos quais pertencem os patriarcas, e dos quais descende o
Cristo, segundo a came, que é, acima de tudo, Deus bendito pelos
séculos!”. De onde conclui Noeto: “o Pai é Cristo; ele é o Filho; foi
gerado, sofreu e ressuscitou”. Noeto parece ter-se inspirado também
em textos de santo Inácio de Antioquia e de Ireneu de Lião.
justamente porque os tennos empregados por eles eram ainda
imprecisos e ambíguos.

3. O patripassionismo de Práxeas

Segundo Tertuliano, Práxeas foi o primeiro a levar da Ásia para


Roma o monarquianismo patripassiano. Práxeas havia passado algum
tempo na prisão pela fé. Libertado,

47
dirigiu-se a Roma, pelo ano 190, onde começou a tirar vantagens de
sua condição de confessor, isto é, de alguém que sofrerá por causa da
fé. Aos bispos de Roma, na época, simpáticos às profecias de
Montano. fez-lhes mudar de opinião, referindo-lhes tudo quanto
sabia dos profetas e da igreja montanista, na Ásia. Como os cristãos
de Roma se escandalizassem, Práxeas escreveu uma retratação e se
dirigiu para a África. Ali, continuando a atacar os mon- tanistas, em
suas pregações atraiu a ira de Tertuliano, na época, montanista ainda
convicto. Como desforra, Tertuliano encetou uma campanha contra
Práxeas, cujo resultado está na obra Contra Práxeas. Eis uma
amostra do vigor com que Tertuliano ataca Práxeas e sua doutrina:
“O demônio tem lutado contra a verdade de muitas maneiras, até
defenden- do-a para melhor destmí-la. Ele defende a unidade de
Deus, o onipotente criador do universo, com o fim exclusivo de
tomá-la herética. Afinna que o Pai desceu ao seio da Virgem, dela
nascendo, e que o próprio Pai sofreu; que o Pai, em suma, foi
pessoalmente Jesus Cristo (...). Práxeas foi quem trouxe esta heresia
da Ásia para Roma (...). Práxeas expulsou o Paráclito (lançou fora a
profecia, referência às denúncias contra o montanismo) e crucificou
o Pai” (Ad Prax. I)17.

4. Sabelianismo ou a monarquia em tríplices operações

Nos primeiros anos do século III, chegaram a Roma, vindos do


Oriente, dois discípulos de Noeto, Epígono e Cleomenes, que se
dedicavam a defender e difundir, entre as igrejas, o monarquianismo.
Mas o nome mais célebre entre os defensores do monarquianismo
foi, sem dúvida, Sabélio.
Sabélio era rígido defensor da monarquia divina. Apresentava a
divindade como uma mônada que se dilata em três operações
distintas: Pai, no AT; Filho, na encarnação e Espírito Santo, no
Pentecostes. Contudo, tratava-se de uma

•TH. Bettenson, pp. 70-71.

48
única hipóstase, isto é, pessoa. Segundo Epifânio, bispo de Salamis,
os sabelianos "ensinavam que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são
uma só e mesma essência, três nomes apenas dados a uma só e
mesma substância. Propõem uma analogia perfeita tomada do corpo,
da alma e do espírito do homem. O corpo seria o Pai, a alma seria o
Filho, enquanto o Espírito Santo seria para a divindade o que o
espírito é para o homem. Ou tome-se o sol: o sol é uma só substância,
mas com tríplice manifestação (prósôpa): luz, calor e globo solar. O
calor (...), (análogo a) o Espírito, a luz, ao Filho, enquanto o Pai é
representado pela verdadeira substância. Em certo momento, o Filho
foi emitido como um raio de luz; cumpriu no mundo tudo o que cabia
à dispensação do Evangelho e à salvação dos homens, e retirou-se
para os céus, semelhantemente ao raio enviado pelo sol que é
novamente incorporado a ele. O Espírito Santo é enviado mais
sigilosa- mente ao mundo e, sucessivamente, aos indivíduos dignos
de o receberem (...)” (Ad. haer. LXI, l)18.
De origem africana, Sabélio chegou a Roma por volta 217 e
conquistou a amizade e a confiança do papa Calisto. que. mais tarde,
o excomungará. A proposta de Sabélio simplicava as questões a
respeito da trindade. O monarquianismo teve grande sucesso,
especialmente entre os simples, a ponto de se tomar popular:
preservava o monoteísmo e não deixava dúvidas sobre o número de
deuses ou de pessoas em Deus. Quando se falava que o Pai era Deus,
que o Filho e o Espírito Santo também eram Deus, muitos
interpretavam esta doutrina como um politeísmo. A doutrina
trinitária criava, assim, pelo menos nos inícios do século III,
obstáculos e certo escândalo à fé dos simples, conforme se pode
verificar pelo texto de Tertuliano: “Todos os simples, para não dizer
os ineptos e os ignorantes, que constituem sempre a maioria entre os
fiéis, consideram que a regra de fé nos faz passar do politeísmo do
século ao Deus vivo e verdadeiro, e não compreendem que
necessitam crer sem

'*Ibidem, p. 71.

49
dúvidas no Deus único, mas com a sua economia (isto é, de se
revelar em três pessoas); eles se espantam, crendo que a economia
introduza o número, que a Trindade ameace a unidade, enquanto, ao
contrário, a unidade, fazendo sair de si mesma a Trindade não é
anulada por ela, mas organziada. Eles continuam repetindo que nós
pregamos dois ou três deuses, e que eles adoram um Deus único (...).
Nós afinnamos uma monarquia, dizem, porque eles se exprimem
assim, mesmo aqueles que falam latim, e repetem esta palavra com
tanta força, que se creria que compreendem a monarquia tão bem
quanto a enunciam” (Coníra Práxeas, I).
Essa popularidade do monarquianismo vem de que assegura, à
massa dos simples, conforme observa também Orígenes, a unidade
de Deus, pois, “estes não querem ser suspeitos de afirmar dois
deuses, e não querem negar a divindade do Salvador; e. assim, são
levados a não admitir que há dois nomes e uma só pessoa” (Zn
Titum, Pat. gr. XIV coL 1304). De fato, Sabélio enfatizava que Pai,
Filho e Espírito Santo con stituíam apenas uma só hipóstase (uma
só pessoa) e tâsprósopa (três rostos, faces, modos de ser). Para ele,
portanto, não há Trindade na essência de Deus, mas na economia
divina: Deus se chama Pai, quando cria, em relação aos seres
criados; Filho, enquanto redime, pela encarnação; Espírito Santo,
quando santifica os fiéis. Por essa razão, essa doutrina é chamada
também de “heresia da união” porque retém o Pai. o Filho e o
Espírito Santo numa só pessoa (hipóstase). A divindade é. assim,
uma espécie de mônada que se desdobra em três operações distintas.
Epifânio não economizou duras críticas a Sabélio e ao
sabelianismo: “Estes filhos espúrios, raça bastarda. (...) tais os
sabelianos, que. negando a subsistência do Filho e do Espírito,
afirmam que o próprio Pai é também Filho e Espírito Santo. Dizendo
não subsistentes o Filho e o Espírito Santo, são deicidas como os
judeus e como estes devem ser condenados” (Ancoratur. 166).
Naqueles tempos, não havia ainda uma linguagem precisa, um
vocabulário definido, consagrado para se falar

50
de Deus-Trindade. Os termos substância, hipóstase, pessoa,
natureza, prestavam-se há muitos equívocos e discussões
infindáveis. Outra grande dificuldade para se ter melhor
compreensão da doutrina dos hereges é que não se tem mais nenhum
escrito deles. Tudo o que se pode conhecer de seus pensamentos,
doutrinas e posições, tem de ser procurado nas obras de seus
opositores como Ireneu, Tertuliano, Hipólito. homens polêmicos,
especialmente os dois últimos, cheios de paixão. Tertuliano e
Hipólito escreveram seus ataques contra os monarquianos num
período em que estavam separados da Igreja católica de Roma:
Tertuliano tinha-se feito montanista. e Hipólito. desgostoso pela
demora do papa Zeferino em condenar o sabelianismo. acusou-o de
conivência com a heresia, rompeu com o pontífice e proclamou-se
antipapa, passando a dirigir sua própria seita.
Como a heresia sabeliana se tomasse mais evidente e volumosa
em termos de adeptos, o papa Calisto lançou contra Sabélio a
excomunhão. Sabélio fugiu, então, para o Oriente, depois para o
Egito, e morreu em 260. Sua seita sobreviveu até pelos fins do século
IV19.

5. Paulo de Samósata ou o monarquianismo adocionista

Este herético se insere na linha dos monarquianos adocionistas.


Sobre sua origem, sabe-se somente que era originário da Síria, da
cidade de Samósata, vindo de uma família pobre. Com habilidade e
astúcia, conseguiu juntar elevada fortuna. Habilidoso, sabia
aproveitar as ocasiões. Numa dessas ocasiões, em 260, aproveitou-
se para se elevar ao episcopado de Antioquia. Na época, acumulava
o cargo de ministro do tesouro (procurator ducenarius) da rainha

'•Cf. Grillmeier, Gesu il Cristo nella fede delia Chiesa. DalVetà apostólica al
Concilio di Calcedonia, I/I, Brescia, 1982, pp. 244-248; J.N.D. Kelly, 11 pensiero
cristiano delle origini, Bolonha, 1972; M. Simonetti. “Sabellio e íl sabellianismo". em
Studi Storico-Religiosi, Università di Rnma, 1980, pp. 7-25; R. Cantalamessa. “Prassea
e 1 'eresia monarchiana”, em Scuola Cattolica 90, 1962, pp. 28-50.

51
Zenóbia de Palmira. Amante do luxo e do fausto, enquadra- se
perfeitamente entre aqueles bispos denunciados por Cipriano. bispo
de Cartago que "descuidavam suas funções divinas e se faziam
administradores de grandes propriedades (...)■ Cada um trata de
aumentar a sua fortuna. Já não há piedade nos sacerdotes, nem
integridade de fé nos ministros de Deus, nem caridade nas obras, nem
regra nos costumes” (De lapsis).
Aliado e protegido da rainha Zenóbia, intrigante e ambicioso.
Paulo parece ter sido um homem que semeava a desordem moral por
onde passava. Mas, o que o destacou no contexto da Igreja da época
foi sua doutrina monarquianista- adocionista. Entre 264 e 268.
surgiram muitas discussões, reações de apoio e de oposição e sínodos.
em tomo de sua doutrina.
De fato, Paulo não reconhecia as três pessoas em Deus. Assim,
dava o nome de Pai ao Deus criador de todas as coisas, de Filho ao
homem Jesus, de Espírito Santo à graça que reside nos apóstolos. Para
ele, Jesus é maior que os profetas e do que o próprio Moisés, pois “a
Sabedoria não habitou igualmente em nenhum outro”, afirmava. Esta
habitação não equivale, de modo algum, à encarnação. Jesus não é o
Logos, pois, o Logos-Sabedoria é maior do que ele. Além do mais, o
Logos não tem uma substância (ousía), não possui uma “hipóstase”
própria, não é uma “pessoa” em Deus, mas uma dínamis, uma
faculdade com a qual Deus opera no mundo. Assim, a união entre
Jesus e o Logos é sempre extrínseca, moral, pela qual Jesus
permaneceu sempre homem, em quem o Logos fez morada como
num templo. Desse modo, Maria não gerou o Verbo-Logos, mas um
homem igual a nós, melhor que todos, porque nascido sob o Espírito
Santo (reconhece-se, aqui, a origem do Nestorianismo}.
Em 264, realizou-se um sínodo, em Cesaréia da Capadócia, cujo
resultado foi a “conversão” de Paulo. Para segurá-lo na ortodoxia, os
bispos redigiram uma “fórmula de fé” à qual Paulo foi obrigado a
subscrever. Mas, dissimulado, após o sínodo, voltou à vida anterior,
de fausto, luxo e

52
licenciosidade. Revoltados, os bispos convocaram e realizaram um
segundo sínodo com a decisão de condená-lo definitivamente.
Obrigado a comparecer à assembléia, Paulo tentou defender sua
doutrina com artimanhas, mas acabou sendo excomungado como
herético e deposto da sede episcopal. Pertinaz, não desocupou os
edifícios eclesiásticos que ocupava como bispo. Conforme Eusébio,
o próprio sínodo que o condenou o descreve assim: “Ele, procurando
a glória, organiza uma pompa teatral nas assembléias da igreja, para
impressionar a fantasia e golpear o espírito dos simples (...). Aqueles
que não o louvam e não agitam os lenços como nos teatros, que não
gritam, que não se levantam como o fazem os de seu partido, homens
e mulheres que o ouvem de maneira indecente, aqueles que o ouvem
como se deve fazer na casa de Deus, com respeito e compostura, c
repreendem e o reprovam. Nas assembléias trata de modo grosseiro
os intérpretes da palavra que passaram desta vida, enquanto exalta a
si mesmo enfaticamente, não como um bispo, mas como sofista e um
charlatão. Ele proibiu (...) os hinos em honra de nosso Senhor Jesus
Cristo, mas, no grande dia da Páscoa, faz cantar em sua honra e em
plena igreja mulheres que se teria horror em escutar (...). Não quer
confessar conosco que o Filho de Deus veio do céu (...). mas aqueles
que cantam em sua honra e o elogiam entre o povo dizem que seu
ímpio mestre é um anjo descido do céu. isto ele não impede... {HE
VII,30,9-11).
Deixando de lado as extravagâncias pessoais, o problema
teológico parece marcado pela crise que a difusão da cultura e da
teologia alexandrinas causou em meios asiáticos, onde o
monarquianismo, em suas mais váriadas formas, tivera origem e se
conservava em plena vitalidade. Paulo de Samósata talvez tenha
tratado de maneira radical este monarquianismo a ponto de levantar
toda esta seleuma. Mas, porque sua doutrina estava fincada na
tradição asiática, purificada dos pontos radicais, sobreviveu, em
forma de seita, pelo menos até o Concilio de Nicéia, 50 anos após.

53
Não se pode deixar de observar que, para desterrar Paulo, os
dirigentes das igrejas fizeram apelo ao imperador pagão Aureliano.
Este consentiu em “arbitrar uma questão entre a Igreja e o herege
Paulo de Samósata e que tinha decidido a favor dos cristãos católicos,
que estavam em comunhão com Roma". Esta decisão surpreendente
pode explicar-se, ao mesmo tempo, por certa simpatia para com a
verdadeira Igreja e pela hostilidade contra Paulo, um dos conselheiros
de Zenóbia, a rainha de Palmira, que Aureliano tinha interesse em
abater”20.

WD. Rops. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, S. Paulo, 1988, p. 380, nota 14; cf.
ainda: G, Bardy. Paul de Samosate: étude historique, nouvelle éd., Louvain. 1929: P.
Galtier. “L’Homousios" de P. de Samosate", em Recherche de Science Religieuse XIII
1922, pp. 30-45.

54
CAPÍTULO IV

MONTANO: UM CONFLITO
ECLESIOLÓGICO

1. A emergência do montanísmo

O que se pode saber sobre Montano, fundador de um


movimento de renovação espiritual e moral, se deve à colheita de
algumas informações indiretas em Eusébio de Cesaréia, HE, N, 14-
19, e em Epifânio, Heresias 48ss. Há indícios de que Montano
escrevera numerosas obras, mas nenhuma delas foi encontrada até
hoje.
Nascido na Frigia, Ásia Menor, por volta dos anos 155- 160,
tomou-se sacerdote do deus Apoio Lairbeno. Convertido ao
cristianismo, sentiu-se, num dado momento, nào só o porta- voz, mas
a encarnação do Espírito Santo. Afirmava que o Paráclito prometido
em Jo 14,26; 16,7, se encarnara em sua própria pessoa. Apresentava-
se como a presença viva do Paráclito. Com ele chegara a nova era,
inaugurava a era do Espírito Santo, a revelação perfeita: “Vim, não
como anjo ou mensageiro, mas como o próprio Deus Pai"; “Sou o
Pai, o Filho e o Espírito Santo”; “Vêde, o homem é como a lira, e eu
sou o arco; o homem dorme, e eu velo...”, dizia constantemente.
Segundo os historiadores do cristianismo primitivo, o
montanísmo pode ser visto por quatro ângulos diferente.
Primeiro, como fenômeno nascido da superstição religiosa ou fruto
do milenarismo asiático influenciado pelo Apocalipse. Segundo,
como uma tentativa de retomo à Igreja das origens, de reforma da
Igreja, de retomo ao estado de perfeição e pureza, como pretexo
contra o episcopado monárquico urbano, que sufocava, cada vez mais,
o dom da profecia, isto é, como movimento contra a Igreja
organizada, sistematizada. Terceiro, pode-se vê-lo ainda como um
movimento político religioso que nasceu e se radicava nas igrejas das
zonas mrais da Frigia contra as igrejas urbanas, que se pavoneavam
em tomo de seus bispos. Em quarto e último lugar, como reação do
conservadorismo das regiões mrais, contra a “modernização” das
igrejas urbanas, que se vão helenizando, enfraquecendo sua
fisionomia original, carismática. Por isso, segundo alguns
historiadores, o sucesso do montanismo se deve ao fato de ele falar a
linguagem do povo frígio, isto é, ir ao encontro das aspirações e
sonhos de libertação social. Montano teria partido da base da
religiosidade popular frigia, da vida de fé, da organização, dos ritos
próprios aos frígios. E também por esta razão que o montanismo é
conhecido como "movimento catafrígio” ou “heresia frigia”. Desse
modo, não se deve estranhar que Montano, homem de costumes
severos, exigentes, admitisse, como companheiras de evangelização,
duas mulheres, Priscila e Maximila, profetisas sacerdotisas. Se, de
fato, Montano fora sacerdote do deus Apoio Lairbelo, havia aí uma
procedência do "meio-ambien- te” cultural, pois, aí as mulheres
também exerciam o sacerdócio. Inscrições descobertas comprovam
que o exercício do sacerdócio era comum a ambos os sexos.

2. Caráter milenarista do montanismo

O conteúdo essencial deste movimento da “nova profecia”


reside no anúncio da iminência do fim do mundo. Um movimento
marcado por um milenarismo agudo. Maximila, uma das profetisas.
companheiras de evangelização de

56
Montano, prevê o fim do mundo para imediatamente após sua morte.
As guerras provocadas pelo imperador Marco Aurélio eram
interpretadas como indícios do fim imediato do mundo.
A substância do milenarismo, conhecido também como
quiliasmo (do grego kilias, milênio) está na fé em um reino terrestre
de Cristo com seus eleitos, com a duração de mil anos, na nova
Jerusalém. Reino de paz, alegria, felicidade completa, harmonia, no
qual não existiría a morte, a dor ou qualquer tipo de sofrimento. Este
reino de mil anos, predito em Ap 21.1-22,5, se instalaria,
segundoMontano, em Pepuza. na Frigia, e não em Jerusalém. Por
isso, todos os cristãos deverão estar ali. na chegada do Senhor.
Grupos numerosos se dirigiam com os profetas à planície de Pepuza
para aguardar ali a vinda de Cristo. Como se supunha que esta vinda
ocorresse em breve, não necessitavam de muitos bens. Por isso,
alguns que tinham posses, dispunham de tudo, abandonavam tudo e
se refugiavam em Pepuza.
Essa esperança escatológica de um fim imediato, de umaparusia
próxima parece ter sido a fé comum da maioria absoluta dos cristãos
dos primeiros tempos. Já os tessalonicenses tinham sido advertidos
por Paulo sobre a exasperação da segunda vinda de Cristo (ITs 5.1-
5). De início, o próprio Paulo teria se colocado entre aqueles que
esperavam, em vida, a vinda do Dia do Senhor. Essa vinda foi sendo
sempre protelada: quando Nero morreu, depois quando Tito arrasou
o Templo, no ano 70, e em 135, quando o imperador Adriano destruiu
Jemsalém e pôs fim ao estado judaico, muitos cristãos interpretaram
estas calamidades como indícios do fim desta era e a chegada dos
novos tempos com a Vinda de Cristo para estabelecer seu reino de
paz. Quando nos fins do século II o império romano foi tomado pelo
caos, Tertuliano e outros julgaram ter chegado o fim deste mundo.
Mas, como todos os sinais não finalizassem nas expectativas
aguardadas, os cristãos começaram a alimentar sua escatológica com
outras interpretações da Vinda de Cristo. Uma espístola atribuída a

57
Bamabé dizia que ele viria, mas dali a mil anos. Outros declaravam
que esta vinda só aconteceria depois que a “geração” ou “raça” dos
judeus já estivesse extinta ou, então, quando o Evangelho tivesse sido
pregado a todos os gentios. Finalmente, este reino foi definitivamente
transferido para a outra vida, para o céu.

3. O rigorismo montanista

Em vista da brevidade do tempo, a preparação para sé acolher


esta vinda devia ser intensa. Assim, Montano e suas profetisas falam
sob a autoridade do Espírito, levando ao êxtase e ao entusiasmo.
Exigem fé incondicionada de seus adeptos, obediência às suas ordens
e uma moral rígida, dura, rigorosa, uma prática ascética de jejuns
severos, substanciosas esmolas de qualquer tipo, encorajam e
aconselham ao martírio, interdição do matrimônio, especialmente das
segundas núpcias.
O ponto mais marcante do rigorismo montanista era o de que,
após o batismo, os pecadores não deveríam esperar novo perdão dos
pecados. Ensinava que os pecados maiores, chamados “capitais”,
como o homicídio, o adultério e a apostasia, não podiam ser
perdoados e que a Igreja não tinha poder para isso. A estes "pecados
capitais”, alistavam-se outros secundários: proibição de ornamento
nas mulheres, aceitação de cargos públicos, uso da pintura, escultura
e das ciências profanas. O montanísmo se caracterizava, assim, pela
mais rigorosa penitência.
Mas, parece que o que mais provocou a condenação de Montano
foi o fato de questionar a autoridade dos bispos. Com a pretensão de
que nele e por ele falava o Espírito Santo, tinha-se como superior à
própria autoridade dos bispos e das Escrituras. Exigia que todos
acolhessem a “nova profecia” como uma real efúsão do Espírito.
O movimento montanista não ficou restrito aos limites da Frigia.
As propostas de um retomo à sonhada perfeição

58
das origens cristãs, a crítica à Igreja episcopal urbana e o rigorismo
moral deram-lhe muita popularidade entre as classes subalternas. Este
movimento estendeu-se por todo o orbe romano com seguidores por
toda a parte, no Oriente e no Ocidente. Um de seus seguidores mais
famosos foi Tertuliano, que, por sua vez, contribuiu para maior
difusão da seita no Norte da África, com seu nome e prestígio. Traços
de prolongada existência desse movimento são as repetidas condena­
ções às quais foi submetido. Após as condenações de repetidos
sínodos regionais, o papa Vítor (198-199) ou Zeferino (199-217)
excomungou os seguidores de Montano. Mas os montanistas sofrerão
ainda uma última condenação no VI Concilio Ecumênico, no final do
século VII, realizado em Constantinopla, em 680-68121.

21Cánone 95; cf. J. Danielou; op. cit. 427-458; A. Fagiotto, L 'eresia deiFrigi, Roma,
1924; P. de LabrioWe, Les sources de 1’histoire du Montanisnie, Paris, 1913; C.
Mazzucco, E. Pietrella, “11 rapporto tra Ia concezione dei millennio dei primi cristiani e
1 Apocalisse di Giovanni", em Augustinianum 18, 1978, pp. 29-45.

59
CAPÍTULO V

DONATISMO: A GRANDE CRISE


DA IGREJA AFRICANA

Passada a expectativa escatológica da segunda vinda de Cristo


e o ardor messiânico, a Igreja está preparada para ingressar no mundo
do império, no mundo político pela aliança com Constantino. Na
política, o imperador terá necessidade de unir as províncias para se
sustentar. Na Igreja, surge a necessidade de criar um cânone, de uma
norma para possibilitar a unidade das leituras e das interpretações dos
textos sagrados. De fato, até o século IV nào havia ainda na Igreja
um cânone constituído dos livros das Escrituras, especialmente do
NT. Este cânone só será fixado no século V, mas já, agora, tem início
o processo que levará a ele. Mais do que antes, isso deverá ser feito
também por razões políticas, mostrando às autoridades que
governam o império o perigo que as divisões provocadas pelas
heresias poderíam acarretar para o enfraquecimento do império. O
que poderá acontecer quando as armas espirituais como a
excomunhão não mais forem suficientes para intimidar um pensador
que, movido por convicções pessoais, recusar esta ou aquela
interpretação das Escrituras e ousar propor outra? Quando, obsecado
pela necessidade de garantir a unidade política do império, o próprio

61
imperador, geralmente mau filósofo e péssimo teólogo, optar por esta
ou aquela doutrina? Se acertar politicamente, acertará também
teologicamente?

1. Fim do cristianismo como “religião ilícita”

Entre 280-285 nasce o filho de Constâncio I, Flávio Valério


Constantino. Entre outras características, Constantino tomou-se
homem de brilhante carreira militar. Quando assume uma parte do
império romano, o cristianismo é ainda uma “religio illicita”, uma
“fora da lei”, algo “fora dos muros”. Em 310, um sonho o leva a aderir
a um culto solar e apolíneo. Já em 312, movido agora por um estranho
sinal no céu, In hoc signo vinces ("por este sinal vencerás”), enfrenta
e vence Maxêncio, a três quilômetros de Roma, sobre a Ponte Mílvia.
e se toma o único imperador do Ocidente.
Ao longo de 313. Constantino mantém um intenso
relacionamento com a Igreja e edita uma série de medidas em seu
favor tais como a restituição dos bens eclesiásticos tomados à Igreja
em períodos de perseguição, isenção das taxas fiscais e ajuda
financeira ao clero. Mas, seu primeiro ato parece ter sido o de
publicar um edito de liberdade para todas as religiões, sentindo a
necessidade de proteção dos deuses, com a qual pudesse assegurar-se
e assegurar a unidade do império. O centeúdo deste edito é
extremamente revelador: “Nós, Constantino e Licínio, Imperadores,
encontrando-nos em Milão para conferenciar a respeito do bem e da
segurança do império, decidimos que, entre tantas coisas benéficas à
comunidade, o culto divino deve ser a nossa principal preocupação.
Pareceu-nos justo que todos, incluindo os cristãos, gozem da
liberdade de seguir o culto e a religião de sua preferência. Assim
Deus, que mora no céu, ser-nos-á propício a nós e a todos os nossos
súditos.
Decretamos, portanto, que, não obstante a existência de
anteriores instruções relativas aos cristãos, os que optarem pela
religião de Cristo sejam autorizados a abraçá-la sem

62
estorvo ou empecilho, e que ninguém absolutamente os impeça ou
moleste (...). Observai outrossim. que também todos os demais terão
garantia a livre e irrestrita prática de suas respectivas religiões, pois
está de acordo com a estrutura estatal e com a paz vigente que
asseguremos a cada cidadão a liberdade de culto segundo sua
consciência e eleição; não pretendemos negar a consideração que
merecem as religiões e seus adeptos (...). Assim continue o favor
divino, já experimentado em empreendimentos moinen- tosíssimos,
outorgando-nos o sucesso, garantia do bem comum”22.
Apesar de toda a abertura e de certo "ecumenismo”, já em 326,
Constantino esquece o que havia prometido no Edito de Milão sobre
a liberdade de cada um seguir e praticar a religião segundo sua
consciência e decreta um Edito contra os heréticos excluindo-os dos
benefícios clericais.
Na nova era. inaugurada pela liberdade e benefícios concedidos
por Constantino. dilata-se o germinar de muitas heresias. Algumas
tinham se originado no século anterior e. agora, com mais liberdade,
tomavam novo impulso e dimensões maiores. Impossível enumerar
todas as questões teológicas, disciplinares, morais, que muitos
cristãos defrontaram até a morte. Destacaremos as principais:
donatismo, arianismo, apolinarismo e priscilianismo. Estas
controvérsias terão outras características muito diferentes das ante­
riores. Duas razões podem ser invocadas para esta mudança: a) com
a liberdade de culto, o número de adeptos do cristianismo cresceu,
assustadoramente. Assim, uma heresia arrastava atrás de si muito
maior número de cristãos, o que podería provocar um cisma. Este,
por sua vez, enfraquecia a unidade do império; b) a participação
sempre mais freqüente do imperador nas discussões religiosas e
disciplinares, seu interesse político em resolver as questões
teológicas para evitar rachaduras nas províncias do impériojá
enfraquecido.

22 Edito de Milão, março de 313, transcrito por Lactãncio, De mort. persec. XLVIII:
texto em H. Bettenson, pp. 44-45.

63
De fato, Constantino é chamado a intervir numa questão
polêmica que ameaçava a Igreja da África: a questão donatista.
Princípios morais elevados se misturavam a grandes escândalos e
assassínios. Clérigos e leigos se digladiam. Por um longo século, a
Igreja africana viverá neste conflito.

2. Os inícios do conflito

O ponto de partida deste cisma foi o debate em tomo da


indulgência de uns e a intransigência de outros em frente aos lapsi.
Os lapsi eram aqueles que, por ocasião da perseguição de
Diocleciano, 303-305, tinham entregue às autoridades policiais do
império os vasos sagrados, os livros litúrgicos e as próprias Escrituras
ou, então, tinham fugido. Passada a perseguição, começaram a
retomar às comunidades. Cristãos de tendências rigoristas,
influenciados talvez de longa data pelos montanistas, especialmente
por Tertuliano, julgavam os traditores (os que tinham traído a fé)
apóstatas e indignos. Se se tratava de leigos, necessitavam ser
rebatizados. Se fossem membros do clero, não podiam administrar os
sacramentos por que estes seriam inválidos em suas mãos.
Defendiam que a eficácia dos sacramentos dependia do estado de
graça do ministro. A Igreja devia ser inteiramente pura e limpa, o que
certamente não era aquele que concedia o perdão aos que cometiam
pecados abomináveis. Estes, ou se rebatizavam ou seriam excluídos
defmitivamente da Igreja. O próprio primaz de Cartago, Mensúrio,
era tido pelos rigoristas como um traditor.
Já antes, em 251, Novaciano havia levantado uma questão
semelhante, em Roma, criando um pequeno cisma. Novaciano exigia
uma atitude mais firme, mais severa e rigorosa dos bispos,
especialmente do papa, contra os lapsi. Queria uma Igreja de puros e
de espirituais, recusando a possibilidade de segunda penitência após
o batismo. Por fim. criando um partido forte, Novaciano sagrou-se
bispo e se elevou ao pontificado, opondo-se ao papa.

64
Em oposição aos traditores, alguns se gabavam da resistência
heróica por terem passado 15 ou 20 dias na prisão. Outros se
exaltavam, se envaideciam, expondo-se como exemplos para seus
próprios bispos.
Sequiosos por mudanças no estado deteriorado das relações
sociais, culturais e econômicas, ansiosos por reformas que não
vinham, o número destes rigoristas foi crescendo rapidamente. Foi,
então, que o bispo Mensúrio, de Cartago, e seu arquidiácono
Ceciliano tiveram de intervir diante das agitações provocadas por
eles. A questão explodiu, realmente, quando, em 311, morrendo
Mensúrio, Ceciliano foi eleito e ordenado com certa pressa sem a
presença dos bispos daNumídia23. Além disso, Ceciliano era odiado
pelos rigoristas, que, entre outras coisas, o acusavam de deixar
morrer de fome, propositalmente, alguns cristãos prisioneiros e de
ter, entre seus ordenantes, um apóstata, o bispo Félix. Os descon­
tentes se reuniram num sínodo em Citra, convocado pelo primaz da
Numídia, após o assassínio do interventor que este havia nomeado
para a sede de Cartago, ocupada por Ceciliano. Em 312, depõem
Ceciliano e elegem, para seu posto, Majorino, capelão de uma rica
senhora espanhola, Lucila. Talvez aconselhado por Osio, seu acessor
eclesiástico, Constantino decide apoiar Ceciliano24. Em seguida,
baixou um decreto isentando o clero seguidor de Ceciliano de todos
os encargos financeiros (os munera). Eis o texto em que Constantino
justifica as decisões tomadas em favor do clero cecilianista:
“Demonstrado por muitos argumentos que o desprezo de uma
religião em que se tributa suma reverência à majestade divina
acarreta os maiores perigos às coisas do Estado, e que, pelo
contrário, praticada e devidamente protegida, tal religião tem
ocasionado, por graça de Deus, a máxima prosperidade ao nome
romano e a maior felicidade a todos os nosso negócios; pareceu- nos
de bom alvitre, queridíssimo Anulino, que recebam alguma
recompensa por seus serviços aqueles homens que, com a25

25Cf. Agostinho, Psalmus contra partem Donati 11,44-46; Pl 43,26. 2‘Agostinho,


Contra Epist. Pamieniani I, 4,6 e 5,10.

65
devida probidade e observância da lei, prestam seu ministério ao culto
da divina religião. Conseqüentemente, queremos que sejam eximidos
absolutamente de qualquer função pública os que exercem seus
préstimos, nos limites da província a ti confiada, à Santa Religião
Católica na Igreja presidida por Ceciliano, e que são vulgarmente
chamados de clérigos; não seja que, por algum erro ou descuido
sacrílego, sejam afastados do culto devido à Divindade, mas. muito
pelo contrário, que possam cumprir a obrigação de sua própria lei sem
qualquer empecilho. Quanto mais homenagens prestem a Deus, tanto
maior utilidade prestam ao Estado”2’.
Os rigoristas se exasperaram com este decreto, e a polêmica se
incendiou. Nesse meio tempo, morreu Majorino. o bispo donatista,
de Cartago. Para seu lugar foi eleito o "formidável Donato de Casae
Nigrae”. Homem extraordinário, apto tanto para a doutrina quanto
para a ação e o governo, assume, o movimento e o fortalece20.

3. Intervenção do Imperador Constantino

A seita donatista foi adquirindo proporções gigantescas pelo


fanatismo e se estendeu por todo o Norte da África. Preocupado,
seriamente, o imperador Constantino, que desejando a todo o custo a
paz e a ordem, especialmente na África, sempre ameaçada pelas
forças separatistas anti- romanas, tomou partido a favor de Ceciliano.
Levantam-se, então, os donatistas. protestando que os
condenasse sem os ouvir. Julgando que o imperador tivesse sido
enganado por seus informantes e conselheiros, entrega-

“Constantino e Anulino, 313, em Eusébio de Cesaréia, HE, X, VII; texto em H.


Bettenson. pp. 46-47.
MNào se conhece quase nada da vida pessoal de Donato. Todavia, do donatismo h’ã
abundantes informações, especialmente fornecidas pela obra publicada por volta de 365,
por santo Opta to, bispodeMileve, naNumídia, ContraPannenianumDonatistam. Veja o
esquema desta obra em 7 capítulos, em B. Altaner e S. Stuiber, Patrologia, S. Paulo,
Paulus, 1982, p. 372, e indicações bibliográficas no final do capítulo.

66
ram-lhe um memorial com muitas queixas, invocando-o como
árbitro imparcial para que decidisse sobre qual era a verdadeira Igrej a
de Cristo, se a de Donato ou a de Ceciliano.
O imperador, que acabava de dar paz à Igreja, pelo Edito de
Milão, creu chegado o momento de não deixar avançar as polêmicas
e as agitações. Por sua iniciativa, reuniu-se, em Roma, em 2 de
outubro de 313, um sínodo. Pouco conhecedor das questões
religiosas, passou a presidência a Melcíades, bispo de Roma. Eis a
carta de convocação do sínodo: “Constantino Augusto a Melcíades.
bispo dos romanos e a Marcos. Numerosos e importantes escritos
foram-mè enviados por Anulino, claríssimo procônsul da África, nos
quais se reporta que Ceciliano, bispo da cidade de Cartago, é censu­
rado por alguns de seus colegas que têm sede na África, em muitos
pontos. E penível que, nas províncias (...) reine a agitação por uma
questão tão insignificante (...). Conse- qüentemente, pareceu-me
bom que o próprio Ceciliano embarque para Roma, acompanhado de
dez bispos daqueles que o acusam e de dez outros que ele mesmo
julgar necessário para sua causa, a fim de que, em vossa presença.
(...) ele possa ser ouvido, como sabeis que é conforme à augustíssima
lei. (...) junto à minha carta seguem as cópias dos documentos que
me foram enviados por Anulino (...). Após tê-los lido, Vossa Firmeza
julgará de qual maneira será necessário examinar em detalhes a tal
causa e encerrá-la segundo a justiça. Não escapa à Vossa Solicitude
que, presentemente, tenho tal respeito à legítima Igreja católica, que
não quero que tolereis, de maneira alguma, nenhum cisma ou divisão
em qualquer lugar que seja (...)"27.
Por três dias o sínodo examinou a questão e resolveu em favor
de Ceciliano. contra os donatistas. oferecendo-lhes e lhes facilitando
os meios de se reconciliarem com a Igreja.

2TCópia da Carta do Imperador ordenando que se realize, em Roma, um sínodo de


bispos, para a união e a concórdia das Igrejas, em Eusébio dc Cesaréia, HE, x,x, 18-20.

67
Mas os donatistas não aceitaram esta decisão e julgando que o sínodo
de Roma não atendera suas razões, apelaram de novo ao imperador
Constantino. Este pediu, então, ao procônsul da África que
investigasse e averiguasse a verdade sobre o bispo Félix e sua
conduta durante a perseguição. O resultado desta investigação pode
ser lido neste texto de Agostinho: “A investigação me fez ver
claramente que Ceciliano estava sem qualquer culpa: era homem
observante de sua religião e devotado a ela como devia sê-lo. Saltava
à vista que não se podia encontrar nele falta alguma, contrariamente
às acusações que pesavam sobre ele resultantes das invenções
alegadas em seu desabono por seus inimigos em sua ausência”28.
Diante de tal decisão, os donatistas exigiram uma assembléia
mais numerosa, em que se pudesse ver o parecer geral da Igreja.
Reuniu-se, portanto, em agosto de 314. em Aries, na Gália. um
sínodo de caráter quase universal. As questões foram reexaminadas
e reavaliadas. Julgou-se que a ordenação de Ceciliano. mesmo com
a participação de um apóstata, era válida, desde que se cumprissem
todos os requisitos exigidos, tirando a base para o protesto dos
donatistas. Foi condenada a prática de rebatizar os lapsi- traditores.
Tendo apelado, novamente, para o imperador, este decidiu conforme
os sínodos de Roma e Aries. Mas os donatistas não se davam por
vencidos e agravaram a situação nas igrejas da África. Pela primeira
vez na história, a Igreja vai usar a força do braço secular para coibir
a ação dos hereges. O imperador tomou medidas severas e violentas.
Um bispo e alguns donatistas foram assassinados, o que serviu de
pretexto para gritarem que só eles tinham mártires e para revidarem
com atos não menos violentos. A eles se juntaram os circuncelleones.
As lutas foram se alternando durante o século sem que se obtivesse
algum resultado29.

"Agostinho, Contra Cresconium. III, 82: trad. em H. Bettenson, pp. 47.


"Cf. F. Martroye,aDonatistesetcircumcenions",em7?ewMelfzseon</ue6,1904, p.
355ss.

68
Em 316, ditaram-se leis rigorosas contra os donatistas.
culminando com a ordem de deixarem as igrejas e lhes confiscaram
os bens. Nessa altura, os donatistas constituíam uma verdadeira igreja
com muitos bispos e comunidades organizadas declaradamente
contra a Igreja católica.

4. Desenvolvimento e queda do donatismo

Em 321, publicou-se um edito de tolerância permitindo aos


cismáticos continuarem a existir em paz. Com isso, o donatismo se
expandiu de tal fonna que, em 330, conquistou a Igreja principal de
Cirdra e em 336, Donato reuniu um sínodo em Cartago com 270
bispos.
Com as intervenções de Agostinho, voltou-se a discutir sobre a
conveniência da repressão violenta da heresia por parte das
autoridades. Contudo, com Juliano Apóstata, o donatismo foi
tolerado e estimulado. E instmtivo ler o texto de Juliano. sobre a
tolerância, numa época em que se prega a liberdade de culto e o
ecumenismo: "Imaginava que os bispos galileus teriam comigo
maiores obrigações do que com os meus predecessores. Pois, no
governo deles, muitos foram banidos, perseguidos e encarcerados e,
dos chamados hereges, muitos foram executados (...). Todas essas
coisas foram invertidas em meu governo: os desterrados têm
pennissão para regressar; os bens confiscados retomam a seus
proprietários. Mas tal é sua insensatez e doidice que. pois já não
podendo mais ser déspotas, executando suas decisões primeiro contra
seus innãos e, então, contra nós, os adoradores dos deuses, se
inflamam com fúria, não sabendo mais onde atacar para conseguir o
propósito desonesto de alarmar e excitar o povo. São irreverentes
para com os deuses e desobedientes aos nossos editos, mesmo aos
mais justos. Entretanto, não toleramos que um cristão seja levado aos
altares pela força; (...). Portanto, é o meu agrado, mediante esse edito,
mandar e ordenar a todos que se abstenham de fomentar os tumultos
do clero (...), (aos

69
cristãos) é lícito celebrar suas assembléias, se assim desejarem, e
oferecer suas orações de acordo com seus usos. (...) doravante, deixe-
se o povo viver em paz. Não se permita que alguém cause distúrbios
ou leve outro a errar. Que o cristão desnorteado não perturbe a quem
adora os deuses como convém e conforme foi legado pela remotíssima
antiguidade; que os adoradores dos deuses não destruam nem pilhem
a casa dos que a ignorância, mais do que a livre escolha,
desencaminha. Os homens devem instruir-se e conquistar-se pela
razão, e não com pancadas, insultos e castigos físicos. (...) Pois os que,
em matéria de suprema importância, andam errados merecem mais
compaixão do que ódio (...)”3°.
Donato acab ou sendo exilado em 347. Mas, seu sucessor,
Parmeniano, conduziu a Igreja donatista com firmeza, segurança e
estabilidade. Apesar de alguma divisão interna, provocada por
extremistas radicais, quando em 411, se congrega sob a presidência
do representante imperial, uma assembléia em Cartago, os donatistas
contavam com 285 bispos, apenas uma menos que os católicos.
Não se extinguiu o donatismo senão com a invasão dos bárbaros,
vândalos, no Norte da África. “Iniciado como uma tentativa-revolta
para conservar a pureza da fé e da Igreja contra aqueles que tinham
cedido durante a perseguição, o donatismo continuou como cultura e
movimento de protesto contra a época constantiniana, fortemente
conjugado com o tradicionalismo teológico da Igreja norte-africana,
de notável intensidade puritana. Se não se tomou a religião dos norte-
africanos, como o monofísismo para o coptas, deve-se isso à
circunstância que, com a falência da revolta de Gildão (398), os
donatistas se encontraram em frente a uma Igreja católica que, além
de ser guiada por santo Agostinho, podia contar com o poder
coercitivo do império e sobre uma refeita organização eclesial.
Sucessivamente, o advento dos vândalos, dos bizantinos e o definitivo
declínio do cristianismo

“Texto em H. Bettenson, pp. 49-50.

70
norte-africano com a irrupção islâmica, impediram qualquer
movimento de renascimento do donatismo”3 .

5. A doutrina donatista

O elemento essencial da doutrina donatista reside na concepção


da natureza da Igreja. Assimilando elementos de Tertuliano e de
Cipriano, concebem a Igreja como sociedade de puros e de justos,
como morada do Espírito Santo. Sublinham a natureza espiritual da
Igreja e exigem santidade de seus membros: “Nós somos uma
sociedade (corpus), um sentimento religioso comum, uma disciplina
unitária e um comum laço de esperança”, dizia Tertuliano (Apol.
39,1). Os ministros que administram os sacramentos devem ser pu­
ros, imunes do vitupério do pecado. A integridade e a pureza eram as
marcas fundamentais da Igreja na concepção de são Cipriano. A
Igreja era para ele um "jardim fechado” (hortum clausura) e uma
“fonte selada” (fons sigilata).
Em 411, na conferência de Cartago, o Mandatum donatista
afirmava: "(...) mostramos, antes de tudo, que nas divinas Escrituras
a Igreja de Deus é proclamada por toda a parte santa e imaculada”,
numa evidente assimilação dos ensinamentos de Cipriano.
De fato, quando da disputa com o papa Estêvão, entre 254-256,
com os bispos africanos, Cipriano afirmava que nenhum sacerdote
em pecado mortal poderia administrar validam ente um sacramento.
Afirmava ainda que era dever da comunidade vigiar e separar-se de
um sacerdote pecador, sob pena de contaminação (cf. Epist. 67,4).
De Cipriano os donatistas aprenderam que não é válido o batismo
administrado fora da Igreja dos puros e os que foram batizados por
um ministro cismático deveríam ser rebatizados.

”G. Bove “Donatismo",emLexicon. DizionarioTcologicoEnciclopedico, Piemme,


1993, pp. 315-316.

71
Julgavam-se, assim, os donatistas. os autênticos herdeiros da
verdadeira Igreja. Isso os tomava conservadores em termos
litúrgicos, rejeitando as novas festividades introduzidas pela Igreja
católica romana. Valorizavam o martírio como o meio mais eficaz
para apagar os pecados cometidos após o batismo (cf. Tertuliano,
Apol. 50,16; De anima 55.5). Opunham-se ao monarquianismo e
continuavam usando a Bíblia africana, enquanto a Igreja romana já
lia a Vulgata (cf. Agostinho. Sermo 202.2; Contra litt. Petiliani III,
40,48). Desse modo, há quem compare o velho Donato a dom
Lefebre: “Donato, tal como Lefebre em Ecône, é o líder de uma igreja
paralela que nomeia seus bispos, incentiva o martírio voluntário,
pratica a liturgia antiga e se fecha sobre suas convicções. Como hoje,
com os movimentos de extrema direita, o donatismo tece os laços
sociopolíticos”32.
Por essas razões, a verdadeira Igreja era a donatista, pois só ela
se conservava “santa e imaculada”. Seguia-se daí que só os
sacramentos administrados pelos sacerdotes e bispos donatistas.
ministros puros e santos, sào válidos. Os sacramentos administrados
por um ministro pecador especialmente, por traditor. são inválidos,
como se fossem administrados por um morto (cf. Agost. Contra litt.
Petiliani, 11,2,4; 7,14).
Ainda na esteira de Cipriano. os donatistas conservavam sólida
tradição episcopal. Tudo o que era ensinado pelos bispos tomava-se
matéria de autoridade indiscutível. Panneniano. sucessor de Donato,
ensinava com Cipriano que os bispos eram intérpretes intermediários
entre o povo cristão e Deus, o homem que tem sempre o Evangelho
nos lábios e o martírio no coração. Não admitiam a nova realidade
dos “christiana têmpora” (“era cristã”) trazida pela “conversão” de
Constantino. “O que tem que ver o imperador com a Igreja”,
perguntava Petiliano, como já o fizera Donato e outrora Tertuliano,
em relação à filosofia grega: “Ora, que há

ME.T. Barbier, La Patristique, Centurion. Paris, 1993, p. 66.

72
de comum entre Atenas e Jerusalém, entre a Academia e a Igreja’’?.
Viam a Igreja como continuação do justo sofredor, de onde nasce o
ideal do martírio: "O sangue dos mártires é semente do cristianismo”,
dizia Tertuliano. A par disso, o donatismo possuía leigos intelectuais
bem preparados como Crescêncio, Virgílio e Ticônio.

6. Conclusão

De origem e caráter religioso, com pretensões de reformar e


purificar a Igreja, o movimento donatista acabou se transformando
num grande apelo e protesto social, cultural e econômico.
Recuperando a “psicologia do martírio”, da purificação, do justo
sofredor, num momento em que as reformas administrativas e fiscais
de Diocleciano primeira mente e de Constantino depois se
convertiam em taxas mais elevadas e maiores encargos financeiros,
especialmente, para os cristãos das zonas rurais, encontrou nesse
meio o donatismo um solo fértil para fincar suas raízes, crescer e
frutificar (cf. Agost. Epist 58,1 e 129,6).
Pelos fins do século III, a identidade das comunidades da
Numídia e da Mauritânia se desenhava nas diferenças econômicas e
geográficas. Por esssa razão, quando mais ou menos por volta de 348
surgiram os circonceleões (os que rondam em tomo das granjas ou
celeiros. Eram os camponeses berberes que no século IV, na
Numídia, formaram bandos de revoltados. Após a repressão de 346-
348, aproximaram-se dos donatistas com quem formaram uma frente
única), o descontentamento econômico e social encontrou um canal
de expressão através dos donatistas. Antagonismo e confronto com
os proprietários de terra se expressam em termos religiosos de tal
modo que o líder dos circoncileões se denominava duces sanctorum
(condutor dos santos) e os imperadores que reprimiam os donatistas
eram chamados de precursores do anticristo.

73
O movimento dos circonceleões não teria crédito sem esta
conexão com a tradição rigorista e conservadora dos donatistas e dos
descontentamentos políticos e econômicos. Bispos donatistas como
Macróbio, rival de Agostinho, estavam prontos para se identificar
com os circonceleões, não obstante as diferenças de cultura e de
língua (cf. Agost. Epist. 108,5,14).
Donato teve como início a revolta contra os cristãos laxos da
África do Norte, por aqueles que consideravam traição da fé dos
líderes e continuou como protesto contra os efeitos dos “tempos
cristãos” iniciados por Constantino. Tanto o laicato como o clero e
os circonceleões da zona rural encontraram a própria identidade no
interior desse movimento. A herança donatista do puritanismo não
conformista que associava a preocupação pela justiça e integridade
cristãs com a justiça social, porém, sobreviveram e continuou a
influenciar o pensamento a ação cristã no Ocidente até nossos dias33.

■UJ.P. Brisson, Autonomisme et christianismedans PAfriqueroínainedeSetime


SévèredPinvasion arabe. Paris, 1958; R. Crespinfdinistèreet saintelépastoraledu clergè
et solution de la crise donastite dans la vie et doctrine de Sainl Augustin; Paris, 1965;
H.C. Frend, TheDonatistChurch, amovimentofproteste inRomanNorthÁfrica, Oxford.
1971. 2a ed.; •‘Donatismo", em Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane, Marietti,
1988. pp. 1014-1025; “Donato di Cartagine", ibideni, pp. 1028-1030.

74
CAPÍTULO VI

CONCEPÇÕES CRISTOLÓGICAS
SUBORDINACIONISTAS

Ao longo do século IV. ganha corpo uma nova interpretação da


pessoa de Jesus Cristo, cujas origens estão, antes de tudo, no antigo
adocionismo, e depois, na noção de Logos da filosofia grega e
filoniana.
O subordinacionismo reconhece em Jesus Cristo não apenas um
homem dotado por Deus, mas o Filho criado pelo Pai antes da criação
do mundo. Cristo foi chamado à existência antes de todas as coisas e
desempenhou uma função mediadora na obra da criação. E uma
criatura excelsa, mas subordinada ao Pai. E bem a influência do
espírito grego que preserva a distância entre o múltiplo contaminado
da história e o Uno puríssimo do divino. O Concilio de Nicéia (325
d.C.), em duas secções, confessará não só a preexistência de Jesus
Cristo, mas também sua igualdade com o Pai. E esta segunda parte
da confissão que vai gerar e alimentar uma longa polêmica.
O subordinacionismo afirma que só o Pai é, rigorosamente,
Deus. Enquanto Verbo-Logos, submerso no tempo e na matéria, na
qualidade de Filho, o Cristo é um "deus subordinado” ao Pai. um
"segundo Deus " (Déutero Theós. Orígenes e Fílon de Alexandria).

75
1. Orígenes, subordinacionista?

Embora defenda a divindade do Filho, Orígenes acentua também


sua inferioridade e subordinação ao Pai. Sua formação platônica
deveu influenciá-lo de maneira decisiva. S. Jerônimo o acusa de
subordinacionista; Gregório Taumaturgo, Atanásio e outros não o
julgam tão severamente. O que nos interessa, aqui, não é decidir se
Orígenes foi ou não subordinacionista, mas verificar os passos dados
na fonnação do subordinacionismo, que vai provocar o concilio de
Nicéia e a definição do dogma homousiano (igualdade de natureza
entre o Pai e o Filho). Constata-se que Orígenes é o primeiro, ao que
parece, a empregar o termo homoúsios = consubstanciai, tenno que
fez carreira nas controvérsias dogmáticas, provocando intennináveis
discussões e desentendimentos.
De fato, embora afirme a comunidade de substância entre o Pai
e o Filho, Orígenes não deixa de mostrar certa dependência e
inferioridade do Filho em relação ao Pai: "Nós que cremos no
Salvador quando disse: ‘O Pai, que me enviou, é maior do que eu' e
por esta mesma razão não permite que se lhe aplique o apelido de
‘bom’ em seu sentido pleno, verdadeiro e perfeito, (...) dizemos que
o Salvador e o Espírito Santo estão muito acima de todas as coisas
criadas, com uma superioridade absoluta sem comparação possível;
porém, dizemos também que o Pai está acima deles tanto mais do que
estão por cima das criaturas mais perfeitas" (In Johan.. 13,25). O
Filho procede etemamente do Pai, por isso não houve um tempo em
que o Filho não existisse. Na obra Contra Celso 8,15, Orígenes afirma
explicitamente a inferioridade do Filho, concebido como um
“segundo Deus”: “Desde o momento em que proclamamos que o
mundo visível está sob o poder do Criador de todas as coisas,
afirmamos que o Filho não é mais poderoso do que o Pai, antes, bem
inferior a ele”. Das relações entre o Pai e o Filho, diz Orígenes: “Deus
Pai, que tudo abrange, chega até cada um dos seres, fazendo- os
participar do seu ser e fazendo-os ser o que são. O Filho é

76
inferior em relação ao Pai, alcançando somente as criaturas racionais;
com efeito, ele é segundo depois do Pai. Ainda inferior é o Espírito
Santo, que só chega aos santos. Por isso, o poder do Pai é maior do
que o do Filho e do Espírito Santo; o Espírito Santo, por seu tumo, é
superior em relação ao dos outros seres santos” (ibidem).
Além de introduzir os termos da fdosofia grega nas discussões
cristológicas, tais como física, hipóstase, substância, essência e
teandria (Deus-homem; é o primeiro também a usar esta expressão
theântropos, que foi incorporada defmitivamente à teologia),
Orígenes relaciona a doutrina platônica e filoniana do Logos com a
cristologia. A alma preexistente de Jesus, que desce ao seio de Maria
na encarnação é laço de união entre o Logos infinito e o corpo finito
de Jesus: “Sendo esta substância da alma intermediária entre Deus e
a came - porque é impossível que a natureza de Deus se mescle com
um corpo sem um intermediário - o Deus-Homem (Theântropos)
nasce, como temos dito, fazendo de intermediária essa substância
(isto é, a alma) cuja natureza não repugna assumir um corpo. Por
outro lado, tampouco era contrária à natureza desta alma, como subs­
tância racional que era, receber a Deus, em quem havia entradojá
totalmente (...). Ela, pois, merece também, juntamente com a came
que assumiu, nos nomes de Filho de Deus. Poder de Deus, Cristo e
Sabedoria de Deus, porquanto estava toda inteira no Filho de Deus
ou havia recebido todo inteiro dentro de si o Filho de Deus” (De
principiis 2,6,3).

2. Novaciano: a inferioridade do Filho

Novaciano foi uma personagem muito controvertida entre os


presbíteros de Roma do meado do século III. Homem de grande
talento e emdição. formado na filosofia estóica. parece ter exercido
enorme influência entre o clero e os fiéis de Roma, embora o papa
Comélio prefira qualificá-lo por “sua astúcia e duplicidade, por seus
peijúrios e falsidades.

77
por seu caráter insociável e amizade de lobo” (Eusébio, HE VI,
43,61).
Em sua obra Sobre a Trindade (De Trinitate), talvez a melhor
sobre o assunto antes de Agostinho, embora afirme que o Logos
sempre esteve no Pai, que está etemamente no Pai, porque senão o
Pai não seria sempre Pai, afirma, por outro lado que “o Pai é anterior
ao Filho, como Pai; visto que ele não conhece origem, deve existir
necessariamente antes daquele que tem uma origem. O Filho, pois, é
necessariamente inferior ao Pai. porque reconhece ele mesmo que
existe no Pai; tem uma origem, já que nasceu, e (...) contudo, apesar
de ter nascido e ter assim origem, é em tudo, semelhante (vicimis) ao
Pai, precisamente devido a seu nascimento, visto que nasceu do Pai,
o qual é o único que carece de origem” (.Sobre a Trindade, 31).
Mesmo reconhecendo no Filho-Logos o poder criador, pois
“Seu nome é o Verbo, pelo qual foram feitas todas as coisas, e sem o
qual nada foi feito (...). Ele procedeu do Pai, por cuja vontade todas
as coisas foram feitas”, e reconheça sua divindade: “Deus, com toda
a certeza, procedente de Deus, constituindo a segunda pessoa depois
do Pai por ser Filho e, sem despossuir por isso o Pai, da unidade da
divindade” (ibidem), concebe o Filho como subordinado ao Pai:
“Visto que recebe a santificação do Pai, segue-se que não é o Pai,
mas o Filho. Porque, se fosse o Pai, não haveria recebido a
santificação, antes, a teria dado. Ao contrário, ele sustenta que
recebeu a santificação do Pai. Ao receber esta santificação, prova que
é inferior ao Pai, e demonstra com isso que é o Filho, não o Pai.
Afirma, além disso, que foi enviado pelo Pai. Assim, pois, o Senhor
Cristo veio porque foi mandado por obediência; o qual prova também
que não é o Pai, mas o Filho, o qual havia certamente sido o que envia
e não o enviado, se fosse o Pai. Mas não foi o Pai o enviado; se o
fosse, o fato de ser enviado provaria que o Pai está submetido a outro
Deus” (ibid., 27).
Para Novaciano, Cristo permanece para sempre submetido ao
Pai: “A única explicação plausível é que ele (Cristo) é, 78
ao mesmo tempo, anjo e Deus. Mas esta descrição não pode
convencer nem se referir ao Pai, que é somente Deus: porém, se pode
aplicar com propriedade a Cristo, de quem fora revelado, que não é
somente Deus, mas também anjo, é evidente, pois que não foi o Pai
quem falou a Agar nesta passagem (Gn 21,17), senão Cristo, que não
é somente Deus, mas aquele a quem se aplica com propriedade o
título de anjo, em virtude de ter sido feito “o anjo do grande
conselho” - anjo porque manifesta a intenção escondida no seio do
Pai, como declara João (Jo 1,18). E considerando que João não disse
que esta Pessoa que revela os planos ocultos do Pai se fez carne, a
fim de podei' manifestar esses planos, segue-se que Cristo não é
somente homem, mas também anjo; e, além disso, as Escrituras o
apresentam não somente como anjo, mas como Deus. Esta é nossa fé
cristã. Pois, se recusarmos reconhecer que foi Cristo quem falou a
Agar nesta passagem, devemos fazê-lo a um anjo de Deus ou pôr a
Deus Pai entre os anjos” (ibid, 18).
Cristo é o servo do Pai, a cujos preceitos sempre obedeceu: “E,
pois, parte da mesma verdade que, ele (Cristo) não faz nada segundo
sua vontade, nem leva a cabo alguma coisa segundo seu próprio
conselho, nem vem de si mesmo, mas obedece a todo mandato e
ordem do Pai. Seu nascimento prova que é o Filho, mas sua
obediência submissa declara que é o ministro da vontade do Pai, de
quem tem o Ser. E assim tributa a devida submissão ao Pai de todas
as coisas, ainda que seja Deus, além de ser ministro; e, assim, por sua
obediência demonstra que o Pai, de quem toma sua origem, é um só
Deus” (ibid., 31).
Para evitar ser acusado de diteísmo (dois deuses), Novaciano
acaba acentuando ainda mais seu subordinacionismo. O Logos é uma
manifestação passageira pessoal do Pai. O Logos devolverá ao Pai,
no final, toda autoridade: ‘‘Daí, pois, que todas as coisas estejam
postas sob seus pés e entregue.àquele que é Deus, e o Filho reconhece
que todas as coisas lhe estão sujeitas como um dom recebido do Pai;
assim ele restitui ao Pai toda a autoridade da divindade. O Pai

79
aparece como o único Deus verdadeiro e eterno; ele é a única fonte
deste poder da divindade. Ainda que seja transmitida ao Filho e
concentrada nele, volta de novo ao Pai através de sua comunidade de
Substância. O Filho aparece como Deus, porque evidentemente a
divindade lhe fora comunicada e conferida; não obstante isso, o Pai
se revela como único Deus, já que progressivamente essa mesma
majestade e divindade - como uma grande onda que volta sobre si,
remetida de novo pelo mesmo Filho - volta e refaz o caminho para o
Pai, que lha deu” (ibidem).

3. A entrada do termo Logos na controvérsia cristológica

O subordinacionismo, uma das controvérsias mais longas e


graves da história da dogmática, está amarrado à questão da
especulação fdosófica sobre o Logos.
Em todas as Escrituras, este termo aparece apenas no Prólogo
do Evangelho de João, em IJo 1,1 e em Ap 19,13. Nestas duas últimas
citações, o termo não está relacionado à natureza de Jesus, mas à sua
missão como “Palavra” reveladora de Deus. Que origem tem, afinal,
este termo? Que sentido tem, no Prólogo de João? Sua origem está
em Platão, em Fílon ou nos escritos sapienciais do Antigo
Testamento? Se o termo é muito importante para a compreensão da
pessoa de Jesus, por que não é retomado mais freqüentemente ao
longo do Novo Testamento?
Embora se possa mostrar a afinidade que há entre o ensinamento
filosófico religioso estóico, especialmente no contexto do sincrestimo
helenístico, e o ensinamento joanino sobre o Logos, de modo
particular a afinidade entre o ensino de Fílon de Alexandria e o de
João, exegetas contemporâneos insistem sobre o radicamento bíblico
da concepção joanina.

80
4. O conceito “Logos ” em Filon de Alexandria

Na literatura apologética do século II, quem explorou esta


noçào com muito apreço foi Justino Mártir, na obra Diálogo com
Trifao. Justino parece ter haurido a noção de Logos dos estóicos do
“Logos proferido”, aplicando-a a Jesus Cristo. Mas, na verdade, a
noção de Logos da patrística se deve, de fato, mais do que a qualquer
outro, a Filon de Alexandria.
Nascido em Alexandria, entre 10-15 a.C., formou-se no
rabinismo mais culto da época. Um verdadeiro sábio. Considerado
precursor dos pais da Igreja, é o primeiro a elaborar, na história, fusão
entre fdosofia grega e teologia judaica. Para isso criou o método
alegórico, que fará enorme sucesso, tomando-se verdadeiro método
entre os pais da Igreja, a partir de Orígenes.
Filon entende o Logos como um princípio que Deus gerou de si
mesmo antes de todas as criaturas. Ele é certa potência racional
(logiké) que o Espírito Santo chama ora “glória do Senhor”, ora
“Sabedoria”, ora “anjo”, “Deus”. “Senhor” e "Logos” (Verbo-
Palavra) (...) e leva todos os nomes, porque segue a vontade do Pai,
e nasceu da vontade do Pai. Assim vemos que algumas coisas
acontecem entre nós: proferindo uma palavra (verbo-logos) geramos
uma palavra, mas, no entanto, não ocorre uma divisão e uma
diminuição do Logos que está dentro de nós. E assim também que de
um fogo se acende outro fogo sem que o fogo que acende seja
diminuído: este permanece igual e o novo fogo que se acendeu
subsiste sem diminuir aquele do qual se acendeu”.
Como se sabe, o termo grego significa tanto razão (pensamento
pensante) quanto palavra (pensamento pensado). Na tradição
filosófica grega, especialmente no estoicismo e na religiosidade
popular por ele inspirado, no hermetismo, o Logos divino era
celebrado como racionalidade divina que preenche o cosmo e lhe dá
coesão e harmonia. Por outra parte, Filon de Alexandria, adota a
concepção filosófica do Logos para indicar a “potência” (dynamis)
divina criadora do universo e também para indicar o arquétipo ideal
do homem.

81
No Antigo Testamento, como também em Fílon, na exegese
bíblica, a “palavra” de Deus é expressão da vontade criadora divina
e é. portanto, o instrumento entre Deus e o mundo criado. Mas ela é
também “palavra profética” que transmite a mensagem divina. A
reflexão rabínica sobre a “palavra” (dabar), nos textos sagrados,
desenvolveu uma problemática exegética peculiar centrada na noção
de memra (palavra) de Javé; com o eterno memra a literatura
targúmica tende a substituir o nome inefável de Deus, mas, em alguns
casos enunciados, no Targum Palestinense a memra de Deus
designava o próprio Deus enquanto criador e iluminador do mundo.
Mas, ao que parece, a exegese joanina tende, sobretudo, a
sublinhar as estreitas analogias entre os seus enunciados, as funções
cosmológicas e soteriológicas do Logos e os enunciados dos livros
sapienciais sobre idênticas funções da Sabedoria divina, que naqueles
livros é freqüentemente personificada: a Sabedoria preexistente ao
mundo criado e assistente de Deus, na sua obra criadora (cf. Pr 8,22;
Eclo 24,5ss; Jó 28.23ss). Ela habita junto de Deus e é objeto de
eleição divina (Sb 8,3). Ela é esplendor da luz eterna, espelho puro
da potência de Deus e imagem da sua bondade (Sb 7,26).
Encarregada de missão universal, ela “tomou morada” em Israel
(Eclo 24,13; Br 2,28), justamente como o Logos de Deus “fez
morada” no novo Israel (Jo 1,14). Não obstante, as afinidades
tenninológicas e conceituais, há nitidamente diferença teológica das
especulações filoniana e sapienciais quanto ao ensino de João: nem
para os filósofos, nem para Fílon, nem para autores sapienciais,
estritamente aderentes ao monoteísmo da tradição hebraica, o Logos
divino ou a Sabedoria é uma entidade-pessoa subsistente ao lado do
Deus Supremo, ainda que, seja uns e outros, recorram a procedi­
mentos estilísticos da "personificação” falando do Logos ou da
Sabedoria. Além do mais, nem para Fílon nem para os sapienciais é
concebível a encarnação do Logos-Sabedoria numa criatura humana.
E esta é a absoluta inovação da mensagem joanina, a qual afirma que
o Logos se fez came em Jesus de Nazaré e nele viveu entre nós.

82
Na filosofia grega, o Logos adquiriu significado metafísico de
princípio auto-realizável do universo. Em Heráclito, é a racionalidade
do processo universal, a lei das mutações. Fecundado pela teologia
aristotélica, o Logos tomou-se, no estoicismo, o princípio dinâmico
racional ativo do universo e nas suas partes (lógos spermátikos), meio
de comunicação com o divino; concepção que se faz religiosa no
estoicismo popular e no sincretismo helenístico.
Em Fílon, o Logos é o universal ativo e inteligente, instrumento
e desígnio de Deus, o único mediador entre Deus e suas criaturas. Sob
o aspecto soteriológico, este é identificado com a Sabedoria e com a
Palavra de Deus. Fílon o chama “Deus (Theós). sem artigo, em
oposição a “ó theós”, com artigo, isto é, ser divino, mas diz isso
também de certos homens que receberam diretamente a iluminação
divina. Antes de criar o mundo físico. Deus criou o “cosmo
inteligível”, isto é, as idéias, como modelo ideal (cf. Pr 8,15.22). Esse
“cosmo inteligível” não é outro que o Logos de Deus, pelo qual cria
o mundo (no esquema platônico, as idéias tomam-se.
definitivamente, pensamentos de Deus presentes no Logos ou
coincidem com ele). E Fílon quem, pela primeira vez, hipostasia a
noção do Logos, isto é, distingue o Logos de Deus a ponto de fazer
dele uma hipóstase e denominá-lo "Filho primogênito do Pai
incriado”, um “Segundo Deus”, e “Imagem de Deus” (para Paulo, ele
é “imagem visível do Deus invisível”), causa instrumental de toda a
criação. Assim, Fílon falado Logos como "arcanjo”, "mediador entre
Criador e criatura”, arauto da paz de Deus.
E importante observar que o Logos de Fílon equivale à
“Sabedoria e à Palavra de Deus” bíblicas. Palavra criadora com que
Deus guia e “Palavra que salva”. E o vínculo que mantém o mundo
unido, o princípio que o conserva e a nonna que o governa.
Inumeráveis são as manifestações de sua atividade no universo. E o
poder criador com que Deus produz o universo e o poder régio com
que governa o que criou. Um pouco árida, mas introdução necessária
para se entender a posição de Ario, que vai discutir a cristologia a
partir da noção de Logos.

83
CAPÍTULO VII

A CONTROVÉRSIA ARIANA

1. A doutrina cristológica de Ari o

Foi nese contexto filosófico que Afio formou seu conceito de


Logos. Em suas pregações, de maneira inflamada, começou a
exprimir algumas idéias sobre a Trindade que se aparentavam ao
adocionismo e so subordinacionismo de seu mestre Luciano de
Antioquia. O subordinacionismo vai se explicitar e tomar corpo,
defmitivamente, e ganhar popularidade com Ario.
As origens de Ário não são claras. Nascido, provavelmente, na
Líbia, por volta de 256-260, orgulhava-se de ter sido discípulo de
Luciano de Antioquia, o fundador da escola teológica desta cidade.
Mais tarde, admitido entre o clero de Alexandira, foi ordenado
sacerdote e encarregado pelo bispo de Alexandria da igreja de
Baucalis. Diz-se que gozava, entre os fiéis, a fama de ser quase um
santo, um iluminado, capaz de longos jejuns, de grandes
mortificações. Suas pregações eram acompanhadas de pureza, de
desprezo pelos bens temporais e por tudo o que fosse carnal. Homem
dado ao ascetismo e misticismo, de grande habilidade dialética e
tenacidade em suas opiniões. Sua obra literária, contudo,

85
nào foi extensa. Dele restam apenas uma carta dirigida a Eusébio de
Nicomédia, bispo influente e chefe militante das teses arianas, na
corte de Constantino, e duas profissões de fé. Uma delas é endereçada
ao bispo Alexandre e a outra ao próprio Constantino, a qual lhe valeu
ser readmitido na Igreja, em 336. Além desses pequenos textos,
restam alguns fragmentos de sua obra mais célebre, a Thalia
(Banquete), obra de propaganda popular.
Eis como Sócrates, historiador da Igreja antiga, por volta de
440, descreve as origens do arianismo: “A Pedro, bispo de
Alexandria, depois de ter sido martirizado na perseguição de
Diocleciano, sucedeu Aquilas na sede episcopal. Depois de Aquilas,
ocupou a sede, durante a mencionada era da paz, Alexandre, que, com
seu modo impávido de tratar as coisas, unificou a Igreja. Em certa
ocasião, reunidos seus presbíteros e clérigos, esboçou Alexandre uma
consideração um tanto ousada sobre a Santíssima Trindade,
aventurando-se numa explicação metafísica da Unidade na Trindade.
Um dos presbíteros de sua diocese, de nome Ario, homem exercitado
na dialética, entendeu que o bispo estava expondo as doutrinas de
Sabélio, o líbio. Levado pelo gosto da controvérsia, esposou
pareceres absolutamente opostos aos do líbio, refutando
energicamente os pontos de vista do bispo. "Se Deus Pai gerou o
Filho, dizia, o que foi gerado teve um começo de existência, pois é
evidente que houve (um tempo) quando o Filho não era. Daí conclui-
se, necessariamente, que teve a existência a partir do não
existente’’3*.

2. Em que consiste a doutrina ariana?

Ario afirmava a existência de um único Deus, o Pai, eterno,


absoluto, imutável, incorruptível. Este Ser Supremo e Absoluto, não
pode comunicar, segundo sua concepção, seu Ser, nem mesmo
parcelas dele, nem por criação, nem por

’4Sócrates, Hist. Eclesiástica: I, V; texto em H. Bettenson, pp. 72-73.

86
geração. Se Deus não é corpo, não pode ser composto, divisível.
Assim, é impossível a Deus gerar um filho. Tudo o que está fora dele,
portanto, foi criado do nada. Tudo o que existe fora do Deus
Absoluto, eterno, incriado, incomunicável, são meras criaturas. Para
criar o mundo, o Deus Supremo criou antes um ser intermediário
para servir de instrumento da criação. Este ser intermediário é o
Logos. O Logos é superior e anterior a todas as criaturas, mas não é
eterno. E o primogênito de todas as criaturas, a mais excelente de
todas, acima de todo o criado, mas não é igual a Deus. Se Jesus foi
gerado quer dizer que houve um tempo, um instante ao menos, em
que não era, razão pela qual não pode ser coetemo nem
consubstanciai. Para ele, embora representando o sumo da
humanidade, Jesus era somente uma criatura, receptáculo do Logos.
Ario pensa, então, o mistério de Jesus Cristo nesta perspectiva: o
Logos divino é criado, embora a melhor de todas as criaturas; toma-
se o criador de todos os outros seres como instrumento de Deus Pai;
ele é “deus” em relação às outras criaturas; este Logos divino se
encarnou e se tomou a alma de Jesus Cristo, que foi adotado como
Filho de Deus. Aquele Logos que se fizera homem, que se
contaminara com um corpo humano, não podia ser Deus como o Pai,
que é incorruptível, intemporal, puro, eterno, incomunicável.

3. Os argumentos de Ario

Além de procurar fundar sua doutrina nas Escrituras, utilizando


de modo especial os textos do Novo Testamento que indicam a
diferença e a aparente subordinação de Jesus ao Pai, um dos
argumentos empregados por Ario contra a divindade- igualdade de
Jesus com o Pai foi o costume litúrgico de orar ao Pai por meio de
Cristo. Os exemplos são claros. A doxologia antiga rezava assim:
Glória ao Pai pelo Filho no Espírito Santo. Na conclusão, a oração
latina dizia: Pelo Cristo Senhor nosso.
Essa mediação de Cristo é, segundo Ario, uma expressão clara
de sua inferioridade em relação ao Deus-Pai. A oração

87
se dirige a Deus-Pai como destinatário supremo. Porém, para que
chegue até ele. busca-se um intermediário que seja mais que nós e
menos que ele. Deus-Pai.
Muitas igrejas foram mudando a fórmula tradicional, como
reação prática aos argumentos de Ário, por uma fórmula nova: Glória
ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Nas igrejas latinas, especialmente
após o concilio de Nicéia. mudou-se o “Por Cristo Senhor nosso”,
pela fórmula: “Que vive e reina com Deus Pai na unidade do Espírito
Santo. Deus pelos séculos dos séculos” (fórmula antiariana). Vê-se,
pelo exemplo, que a reação foi além de uma simples mudança de
fórmula. Modificou-se o destinatário da oração que não se dirige mais
somente ao Pai, mas a Cristo.
Ário conqista enorme audiência no Oriente, acolhido nos meios
intelectuais e populares, compondo cânticos que os marinheiros
difundiam circulando-os por toda a costa do império.
Advertido pelo bispo Alexandre, de Alexandria, a se
uniformizar com o ensino tradicional. Ário se recusou e, agrupando
em tomo de si certo número de clérigos e leigos, através de cartas,
apelou a muitos antigos alunos de Luciano de Antioquia. entre os
quais Eusébio, bispo de Nicomédia.
Mas às lutas doutrinárias se misturam questões pessoais,
políticas, aspectos econômicos, querelas de vocabulário, influências
palacianas. Tudo isso contribui para complicar a discussão e lhe dar
complexidade. Segundo o historiador H. I. Marrou, “uma heresia é,
freqüntemente, no ponto de partida, a tomada veemente de um
aspecto autêntico, mas parcial da revelação que, desenvolvida
unilateralmente, se deforma em breve e compromete o equilíbrio de
toda a teologia (...). Ário aparece dominado pela vontade de
salvagardar a originalidade e os privilégios do Pai, único ser agenetos,
isto é, não gerado (...). Esta insistência conduz Ário a desvalorizar
relativamente o Logos, que não é eterno, coetemo ao Pai incriado

^NouveUe Histoire de 1 ‘Eglise, 1.1, “Arius et le Concile de Nicée”, p. 291.

88
4. Primeira condenação de Ario

Depois de ter admoestado, em segredo, a Ario, sem nenhum


sucesso, Alexandre, bispo de Alexandria, convocou o sínodo. Nele,
Ario teve a oportunidade de expor suas idéias. Seus adversários nào
aceitaram seus argumentos e insistiram na eternidade e na
consubstancialidade do Logos com o Pai. Alexandre, após ouvir os
argumentos das partes, optou pela condenação de Ario, que, animado
pelo grande número de adeptos, não lhe deu ouvidos. Os bispos
Secundus, de Ptolemaida, e Tomás, de Mannárica, que ficaram do
lado de Ario, foram depostos36. Mas, finalmente, prevaleceu a deci­
são do sínodo. Magoado, Ario se refugiou em Cesaréia, na Palestina,
junto ao bispo Eusébio. Aí iniciou extensa correspondência,
especialmente, com Eusébio de Nicomédia, antigo discípulo de
Luciano de Antioquia. Teodoreto, bispo de Ciro, conservou uma
carta de Ario a Eusébio de Nicomédia, redigida por volta de 321. Um
pouco longa, mas será necessário lê-la para que se tenha
conhecimento do que originou o conflito, pela versão do próprio
Ario: 'Ao seu queridíssimo, homem de Deus, cheio de fé e ortodoxia,
Eusébio, saudações no Senhor da parte de Ario. injustamente
perseguido pelo papa Alexandre, sabendo que a verdade que de tudo
triunfa tem em Eusébio seu defensor. (...) avisar-vos quão grave­
mente somos atacados e perseguidos pelo bispo, que se volta contra
nós chegando ao extremo de nos expulsar da cidade como ateu,
porquanto não concordamos com ele nas suas pregações: ‘Deus
sempre, o Filho sempre; ao mesmo tempo o Pai, ao mesmo tempo o
Filho; o Filho coexiste com Deus, não sendo gerado no tempo; Deus
sempre, o Filho sempre; o Filho existe desde que existe o próprio
Deus’.
Vosso irmão Eusébio, bispo de Cesaréia, Teódoto, Paulino,
Atanásio, Gregório, Aécio e os demais bispos do Oriente foram
condenados porque diziam que Deus existe sem começo, antes do
Filho; (...) não falta entre eles (hereges)

*Cf. Sócrates, Hist. Eccl. 1,6 e Depositio Arii.

89
quem afirme ser o Filho uma efluência, outros uma projeção do Pai.
outros ainda que é co-ingênito com o Pai.
Mas não podemos dar ouvidos, nem mesmo pensar em debelar
estas heresias sem que nos ameacem com mil mortes. Nós pensamos
e afirmamos (...): que o Filho não é ingênito, nem participa
absolutamente do ingênito, nem derivou de alguma substância, mas
que por sua própria vontade e decisão existiu antes dos tempos e eras,
inteiramente Deus, unigênito e imutável. Mas antes de ter sido
gerado, ou criado, ou nomeado, ou estabelecido, ele não existia, pois
não era ingênito. Somos perseguidos porque afirmamos que o Filho
tem um início, enquanto Deus é sem início. Eis por que somos
perseguidos e também por que afirmamos que ele é do que não é,
justificando essa afimação porquanto ele não é parte de Deus nem
deriva de substância alguma. Por isso somos perseguidos. Vós sabeis
o resto.
Confio, caro Eusébio, fiel discípulo de Luciano, que
permaneçais firmes no Senhor e lembrado de nossas aflições”^7.
A doutrina de Ario fascinava as inteligências e atraía também
grande número dos fiéis simples. Além de divulgar sua doutrina por
meio de extensa correspondência, Ario redigia uma obra importante
em que expunha suas idéias. Escrita, ao menos parcialmente em
verso, destinada a ser aprendida e recitada pelos fiéis simples, deu-
lhe o nome de Thalia (Banquete). Obra que se perdeu.
Quando esta obra chegou às mãos de Alexandre, bispo de
Alexandria, que havia expulsado Ario, intensificou uma campanha
contra até mesmo ao papa Silvestre, para que não caíssem no erro de
Ario e se esforçassem em combatê-lo.
Para se ter uma idéia da contaminação e do entusiasmo que
suscitaram as idéias de Ario, basta pensar que tudo se deu no prazo
de um ano: Palestina, Síria, Ásia Menor, Egito estavam tomados por
suas idéias, surgindo uma comunidade ariana ao lado da Igreja
ortodoxa.

3:Texto conservado por Teodoreto. bispo de Ciro (423-458); em HE. I.IV; H.


Bettenson, PP. 71-72.

90
Bispos reunidos num sínodo em Cesaréia da Palestina,
pusseram-se ao lado de Ário e o autorizaram a reassumir suas funções
sacerdotais em Alexandria. Alexandre, porém, recusava-se a aceitá-
lo, novamente, em sua diocese. Incentivado por seus adeptos, Ário
desembarcou em Alexandria. Sua chegada provocou grande agitação
pois, molineiros, marinheiros, viajantes, mercadores, camponeses e
o povo mais simples cantavam suas canções pelas ruas e praças. O
arianismo tomou-se então, uma questão popular.

5. A entrada de Constantino nas discussões teológicas

Após a capitulação de Licínio. em 323. Constantino quis


restabelecer a paz e a unidade abaladas pela crise ariana. Vejamos
como se deu a evolução desse conflito e os passos que levaram à
convocação do I Concilio ecumênico de Nicéia, em 325. Alguns
historiadores afirmam que a tumultuada controvérsia ariana se deve
a que, pela primeira vez. o imperador se implicara com assunto
especificamente teológico, se imiscuía sob pretexto de assegurar a
paz e a concórdia no império.
Enquanto isso, reunia-se um novo sínodo desta vez na cidade de
Antioquia para eleger o bispo sucessor de Filógeno. morto em
dezembro de 324. A escolha recaiu sobre Eustácio. muito conhecido
por sua adesão às idéias de Alexandre. Aproveitou-se da ocasião do
sínodo para condenar novamente Ário e suas doutrinas. Com vistas
na condenação da doutrina ariana, o sínodo elaborou uma profissão
de fé na qual ressalta que o Filho nascera do Pai, em sentido próprio:
"(...) em um só Deus onipotente, imutável e eterno, que cuida de tudo,
e tudo dirige: justo, bom, criador do céu e da terra e de quanto nela
se contém, Senhor da Lei, dos profetas e do Novo Testamento. E em
um Senhor Jesus Cristo, filho único, o qual nasceu não do nada, mas
do Pai, não como uma obra, mas em sentido próprio, como um Filho,
que foi gerado de maneira inefável (...) que era de todos os tempos”.

91
Três dos bispos participantes do sínodo negaram-se a
subscrever o documento e foram excomungados. A carta sinodal foi
amplamente difundida. Foi enviada uma cópia especial ao bispo de
Roma e aos bispos da Itália que dependiam diretamente dele. Estes
responderam com aprovação formal de tudo quanto se havia decidido
no sínodo de Antioquia sobre a fé. Mas isso não enfraqueceu em nada
o entusiasmo dos arianistas.
O imperador temia a expansão e o volume da heresia. Esta
parecia representar uma fissura e ameaça à unidade política e
religiosa do império. Multiplicavam-se as rivalidades, as facções, as
intrigas da corte e manipulações de infonnações. De fato,
apaixonando o povo, a heresia se tomava um catalisador de
desordem, tumultos, motins. Pode-se sentir uma parcela deste clima,
num momento da carta de Gregório de Nissa: "Se se pede ao cambista
o valor da moeda, ele vos responde sob o Gerado e o Ingênito. Se se
vai ao açougue, o açougueiro vos declara que o Pai é maior que o
Filho. Se se vai às termas, o rapaz que prepara o banho vos interroga
não para saber se vosso banho é quente ou frio, mas se pregais que o
Filho é saído do nada’’ (PGXLVI. col. 557b).
Com receios de que os dissídios internos da Igreja trouxessem
problemas para a unidade do império, para a convivência social, o
imperador enviou para Alexandria seu conselheiro eclesiástico, Osio
de Córdova, com uma carta para Alexandre e outra para Ario. Esta
carta reveste-se de grande importância. Nela Constantino fala como
político preocupado em restabelecer a paz religiosa, especialmente,
já marcado pela experiência nas intervenções dos conflitos
donatistas, no Norte da África. Não se deve estranhar que ele esteja
pouco interessado na substância doutrinai da controvérsia, dado que
não conhece quase nada da doutrina cristã.
Falida a missão de Osio. Alexandre e Ário seguem Osio de
retomo a Nicomédia, procurando, cada um, os favores do imperador.
Com a intenção de resolver de vez a controvérsia, Constantino,
juntamente com Osio e Alexandre e com outros

92
bispos ortodoxos, concluíram que se impunha um concilio geral,
ecumênico. A idéia viera, talvez, da assembléia dos bispos reunidos
em Antioquia ou proposta por Osio a Constantino. O fato é que o
executor do projeto foi o próprio imperador. Encarregou-se desde a
convocação até a providenciar viagens, transportes, alimentação,
alojamento dos bispos participantes. Está presente nas assembléias
na qualidade de juiz nas decisões. Foi um concilio tenso, com
discussões apaixonadas, ardentes.

6. As questões conciliares

Os 300 bispos orientais presentes no concilio não se abriram


para as concessões mútuas como queria, politicamente, o imperador.
Afirmaram a unidade fundamental da igualdade do Filho com o Pai:
“Eu e o Pai somos um”; o Filho é consusbstancial (homooúsios) ao
Pai, é o Logos etemo que se encarnou. O concilio passou a ser
chamado de "santo", "grande’’, “coluna contra toda heresia". Eis, em
resumo, algumas afinnações tiradas do symbolo. isto é, do credo
niceno, diretamente visando ao arianismo: “(...) um só Senhor Jesus
Cristo, o Filho de Deus, nascido (gerado) do Pai como o Filho único,
isto é, da substância do Pai, Deus (saído) de Deus. Luz (saído) da
Luz, Deus verdadeiro (saído) do Deus verdadeiro, gerado, não feito,
da mesma substância que o Pai, por (intermédio de) quem todas as
coisas foram feitas (...) e por nossa salvação desceu (dos céus), se
encarnou e se fez homem, sofreu e ressuscitou (...).
Neste credo, muita coisa permaneceu ainda vaga. Os termos não
são aclarados, mas confessados. Havia interpretações diferentes
sobre os termos natureza, substância, hipóstase. como a de Eusébio
de Cesaréia, que entendia substância (ousia) num sentido genérico,
aquilo que há de comum entre dois indivíduos. Os partidários de Osio
compreendiam o termo "da mesma substância" como da mesma
realidade individual. O tenno consubstanciai fora introduzí -

93
do pelo próprio imperador Constantino. Outros o entendiam num
sentido mais abstrato, referindo-se à totalidade das propriedades
humanas ou divinas. E justamente essa ausência de definição dos
termos empregados que cria as dificuldades.
Em Nicéia, “fez-se uma objeção metafísica aos termos que
implicavam uma participação da divindade (ousía tomado como
substância material). “Na realidade, as decisões de Nicéia foram fruto
de uma minoria. Foram mal-entendidas e até rejeitadas por muitos que
não eram partidários de Ário. Especialmente os termos ektesoysías e
homoóysios levaram muita oposição por serem desconhecidos das
Escrituras, novos, favoráveis ao sabelianismo”38.
Apenas 17 bispos se opusseram à fórmula nicena e se uniram a
Ário. Estes, sob ameaças, acabaram por subscrever o símbolo. Apenas
2 bispos egípcios se recusaram a fazê-lo, o que lhes custou o exílio
imediato. O mesmo aconteceu com Ário, Eusébio de Nicomédia e
Teognide de Nicéia. O imperador apóia e sanciona as sentenças de
exílio e excomunhão dos recalcitrantes. Começa aqui uma longa
história em que o poder civil e o eclesiástico se dão as mãos. Além de
condenar Ário, Nicéia definiu a total divindade do Filho, que não é
criatura, mas gerado, desde toda a eternidade, da natureza do Pai,
idêntico a ele na condição divina.

7. O retorno do arianismo

Com o banimento dos hereges, a questão ariana parecia


encerrada. Mas, Constança, irmã do imperador, conquistada
secretamente pelo arianismo, trabalhando junto com Eusébio de
Cesaréia, muito estimado por Constantino, consegue a suspensão do
exílio de Eusébio de Nicomédia. Uma vez na corte, Eusébio,
“conselheiro espiritual de Contança” e muito influente nas rodas
palacianas, começou, junto ao impera-

MCf. H. Bettenson, p. 74.

94
dor, um esforço para levantar o desterro de Ario. Eusébio assume a
postura de novo líder do arianismo. Com o apoio de Constança,
organiza todas as forças e dá prosseguimento à campanha contra os
bispos ortodoxos católicos mais significativos. Vinga-se daqueles
que o obrigaram a assinar a contragosto as decisões de Nicéia,
voltando contra eles a violência do poder, especialmente contra
Atanásio de Alexandria, conseguindo que seja exilado.
Sucessivamente, consegue a deposição de Eustácio de Antioquia,
Atanásio de Alexandria e Marcelo de Ancira. Muitos outros
sacerdotes tiveram a mesma sorte e se viam forçados a substituir a
fórmula de fé de Nicéia pelas arianas. Em 331, consegue o retomo
de Ário, com a intervenção especial de Constança. Em
Constantinopla, Ário apresenta ao imperador uma fórmula de fé
ambígua, amorfa, mas suficiente para salvá-lo do exílio. Tal era a
situação quando ocorre a morte de Constantino, em 337.
Após a morte de Constantino e de seu filho Constantino II, o
império foi dividido entre Constante, no Ocidente, e Constâncio, no
Oriente. Sob o governo de Constâncio, a perseguição contra os
ortodoxos cessou por algum tempo. Atanásio pode voltar do exílio e
vê as sentenças de condenação anuladas no sínodo romano de 340.
Um sínodo em Antioquia, em 341, substitui o símbolo de Nicéia por
quatro fórmulas diferentes nas quais a palavra “consubstanciai” não
aparece. Contâncio mostra-se simpático ao arianismo. Com isso a
influência dos seguidores de Ário aumenta e tem início uma nova
onda de perseguição dos antiarianos, especialmente de Atanásio.
Hilário de Poitiers e Eusébio de Verceilas são exilados. Em 357, os
arianos triunfam no Oriente e no Ocidente. Mas começam a se
desentender entre si. Aparecem dois partidos extremos, formados em
tomo de pessoas e fórmulas: os anomeus (anomoios) e os
h&meusianos (homoiouseanos).

95
8. O anomeísmo

Após a morte de Ario, o arianismo foi se dividindo em várias


tendências: os horneusianos admitiam que o Filho era de uma
substância semelhante, mas não idêntica à do Pai; os anomeus
afinnavam uma diferença radical entre Pai e Filho. Portanto, o termo
anomeísmo indica a ala dos arainos intransigentes surgidos por volta
de 355 (uns 25 anos após o concilio de Nicéia). Sustentavam total
“dessemelhança", desigualdade nos elementos constitutivos da
essência divina entre Pai e Filho. Ensinavam que o Filho fora gerado
diretamente pelo Pai, mas diverso dele na substância, e, portanto,
inferior. Mas, devido à sua proximidade com o Pai, e por sua função
cosmológica, o Filho gozava de uma condição quase divina. Essa
tendência toma-se muito forte e influente a ponto de o imperador
Constâncio convocar um concilio anomeísta, em Constantinoplapara
360.
A Igreja ariana, na vertente homeusiana. ultrapassou as
fronteiras do império romano. O mais conhecido destes missionários
arianos homeístas foi Ulfilas. germano, do povo dos godos, que
habitava a região Norte do Danúbio. O bispo ariano Eusébio conferiu-
lhe a consagração episcopal. Ulfilas retomou, então, a seu próprio
povo. Entre suas atividades, destaca-se o fato de ter elaborado o
alfabeto gótico, de ter traduzido a Bíblia para sua língua e lançado as
bases de uma igreja gótica.
Após a morte de Constâncio. ocorrida em 362. surgiram vários
reinados breves. O imperador Valente (364-378). no Oriente, foi
favorável ao arianismo sob a forma do homeísmo estabelecido
definitivamente nos sínodos de Rimini e Constantinopla. Mas, com a
morte de Valente, o imperador do Ocidente. Graciano. nomeia para o
Oriente, um hábil general e administrador. Teodósio. Simpático à
doutrina do Ocidente e ao credo niceno. empreende uma campanha
contra o arianismo e o varre defmitivamente do império. Implanta,
através do Concilio de Constantinopla, o II ecumênico, em 381, o
cristianismo que professava uma única

96
essência divina em três hipóstases ou, como se dizia no Ocidente,
uma substância em três pessoas. O arianismo é definitivamente
condenado, e o cristianismo professado pelo bispo de Roma, Dâmaso
e pelo bispo de Alexandria, Pedro, passa a ser a religião oficial de
todo o império romano. Assim se expressa Teodósio I, numa carta
veemente de 380, dirigida a todo o povo do império: “Queremos que
as diversas nações sujeitas à nossa Clemência e Moderação
continuem professando a religião legada aos romanos pelo apóstolo
Pedro, tal como a preservou a tradição fiel e tal como é
presentemente observada pelo pontífice Dâmaso e por Pedro, bispo
de Alexandria, e varão de santidade apostólica. De conformidade
com a doutrina dos apóstolos e o ensino do Evangelho, creiamos,
pois, na única divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo em igual
majestade e em Trindade santa. Autorizamos aos seguidores desta lei
a tomarem o título de cristãos católicos. Referentemente aos outros,
que julgamos loucos cheios de tolices, queremos que sejam
estigmatizados com o nome ignominioso de hereges, e que não se
atrevam a dar a seus conventículos o nome de igrejas. Estes sofrerão,
em primeiro lugar, o castigo da divina condenação e, em segundo
lugar, a punição que nossa autoridade, de acordo com a vontade do
céu, decida inflingir-lhes”39.
Estas orientações tomam-se mais claras e diretas num novo
documento contra os heréticos de 381: “Sejam absolutamente
excluídos dos edifícios eclesiásticos, pois não estão autorizados a
celebrar suas assmbléias ilegais dentro dos povoados. Se tentarem
qualquer distúrbio, ordenamos eliminar e expulsar das cidades esses
frenéticos, de modo que as igrejas católicas possam ser restauradas,
no mundo inteiro, e recolocadas em mãos dos bispos ortodoxos que
confessam o credo de Nicéia”10.

''Ibidetn, pp. 51-52.


"'Nullus haereticus, 381 (Cod. Theod. XVI.V.6), em H. Bcttenson, p. 52.

97
Desse modo, o arianismo desaparece como doutrina oficial, mas
vai sobreviver por muito tempo ainda, entre os bárbaros invasores do
império do Ocidente: visigodos. ostrogodos, vândalos, burgúndios e
longobardos só vão se converter os cristianismo romano pelos fins
do século VII41.

**A. d’Alès, "Le lendemain de Nicée”, em Gregorianum 6,1925, pp. 489-536; G.


Bardy, “La politique religieuse de Constantine après le concile de Nicée”. emRevue
Science Religieuse 8. 1928. pp. 516-551; “La crise arienne”. em Histoire de lEglise, par
Fliche-Martin, vol. III. pp. 69-176; pp. 237-276; G.P. Bognetti, “La rinascita
cattolicadeirOccidentedifronteall ’arianesimoea!k)scisma”.emC n<’.$ed<?//’Ettropa>
Roma, 1961, pp. 13-41; X. Le Bachelet, "Arianisme”. em Dictiomiaire de Theologie
Catholique I, coll. 1779-1863; J. Danielou, H. Marrou, Nova história da Igreja, vol. L,
Vozes, Petrópolis, 1973. pp. 260-277; E. Bellini, Alessandra e Ario. Un esempio di
conflito tra fede e ideologia. Documenti delia prima controvérsia ariana, Jaca Book,
Miiào, 1973.

98
CAPÍTULO VIII

A HERESIA APOLINARISTA

Na origem desta controvérsia apolinarista, que terminou


acrescentado mais uma heresia no século IV, está um esforço cheio
de boa fé, de combater o arianismo. Como os arianos negassem a
divindade e a consubstancialidade de Cristo com o Pai, membros da
escola teológica de Antioquia começaram a distinguir as duas
naturezas em Jesus Cristo, de tal forma que parecia comprometer a
unidade pessoal de Cristo. Foi o que deu origem ao nestorianismo.
Mas, na seqüência, interessa-nos verificar o surgimento e o desenvol­
vimento do apolinarismo.
Enquanto o arianismo é uma heresia trinitária, pois, negando a
igualdade do Filho com o Pai, não reconhece uma segunda pessoa
em Deus, não havendo, portanto, nenhuma trindade, o apolinarismo
é essencialmente uma heresia cristológica porque se refere tão
somente à pessoa de Cristo, na tentativa de explicar a união entre as
duas naturezas.

1. Quem et'a Apolinário?

O promotor desta doutrina foi Apolinário, o Jovem, bispo de


Laodicéia, na Síria. Nascido por volta de 310, filho de Apolinário, o
Velho, reitor cristão, também ele bispo.

99
Homem de extraordinária erudição, viveu num período em que
circulavam constantemente doutrinas heterodoxas. Com seu pai,
empenhou-se no combate ao paganismo de Juliano Apóstata,
compondo textos poéticos para as escolas cristãs, em substituição aos
textos pagãos. De sua vida pessoal, não se sabe quase mais nada. E
ainda difícil saber quais são, realmente, suas obras literárias, já que
seus seguidores subscreveram muitas obras em seu nome. Sabe-se
que Apolinário combateu o filósofo pagão Porfirio, em 30 livros, e
Juliano Apóstata. São-lhe atribuídos como autênticos as Parafrasi ou
Metafrasi sobre o Saltério em exâmetro e mais três obras dogmáticas:
Quod unus sist Christus; De incarnatione Dei Verbi e uma Carta ao
imperador Joviano. As obras De unione corporis et divinitatis in
Christo e um De fide et incarnatione, são atribuídas ao papa Júlio I,
embora estejam em seu nome.

2. A cristologia proposta por Apolinário

Apolinário foi um dos mais vigorosos defensores das


conclusões do concilio de Nicéia e incansável adversário do
arianismo. Foi ainda um dos que levaram mais profimdamente a sério
a discussão sobre a relação entre o divino e o humano na pessoa de
Cristo. Se Nicéia afirmava que Jesus Cristo é plenamente Deus e
homem, não se explicava, contudo, como se dava esta união, como
se estabelecia esta relação entre as duas naturezas. E a esta tarefa que
se dedica Apolinário.
A tese fundamental de Apolinário consiste em afirmar que o
Verbo, encamando-se, ocupara o lugar da alma humana de Jesus.
Enunciando a unidade de Cristo como a sua hipóstase, concebe o ser
composto do Verbo feito carne como uma integração substancial da
carne com o Verbo. Exclui, por isso, do ser de Jesus a razão (nôus),
a alma racional superior, enquanto sujeito capaz de autodeter- minar-
se.

100
Esta sua doutrina cristológica provinha da antropologia
platônica que concebia o homem dividido ou composto em três
partes: uma alma espiritual-inteletual, uma alma sensitiva e um corpo
material. Em Jesus, o lugar da alma espiritual é preenchido pelo
Logos. Deste modo, só o corpo é realmente humano, nele. Esta teoria
se fiinda num argumento segundo o qual dois seres completos em si
e dotados cada um de princípio vital próprio “não podem, de maneira
alguma, formar uma pessoa viva”42. Mas se funda igualmente num
princípio religioso, soteriológico: se Jesus tivesse alma intelectual-
espiritual e liberdade humana, nossa salvação não teria base firme,
pois a alma humana é, por essência, mutável, acessível ao mal.
Assim, Apolinário eliminou a alma espiritual de Jesus, introduzindo,
em seu lugar, o Logos. Só assim se explicaria a divindade de Cristo,
sua impecabilidade e imutabilidade. Como em Cristo havia ver­
dadeira impecabilidade, não podería existir nele esta parte fraca da
natureza humana. Com isso, Apolinário “desloca o problema ao
dirigir a seta da argumentação não mais sobre a exegese apologética
das paixões humanas de Cristo, mas muito diretamente sobre a
antropologia: para Apolinário, o ser humano não podería estar isento
de pecado por causa da fraqueza e da tirania da came; sua liberdade
inclui ao menos a pecabilidade. Para que Cristo existisse sem pecado,
seria preciso que uma alma ou um espírito viesse nele guiar a came
que assumira para tomar-se semelhante a nós. O problema para
Apolinário consite em arrancar Cristo dessa dualidade dolorosa que
é a nossa, uma vez que nos dilaceramos entre as tendências opostas
da came e do espírito. Daí sua insistência característica sobre a
unidade do Homem-Deus. Apolinário é autor da fórmula que
desempenhará papel tão relevante nas controvérsias ulteriores:
“Única é a natureza (a realidade concreta) do Verbo divino que se
encarnou •'43 .

•2P. Sinulders, Mysterium Salutis II1/3: A cristologia na história dos dogmas, Vozes,
Petrópolis, 1973, p. 39.
**J. Danielou e H. Marrou, NovaHistória da Igreja, I: Dos primórdios a S. Gregório
Magno, Vozes, Petrópolis, 2a ed., 1973, p. 344.

101
0 esforço está, portanto, concentrado, em manter a unidade e
divindade de Cristo. Assim, em Cristo, o Verbo é o princípio de toda
a vida humana e sobrenatural. Nele há um corpo, uma alma, princípio
de vida que são humanos, mas a alma intelectual é substituída pelo
Verbo divino, a inteligência pessoal de Deus. Conseqüentemente. o
Cristo é mais um “homem celeste" que terrestre. Há encarnação,
mas não verdadeira huma- nizaçào. E um Cristo em que brilha o
fogo etemo, se irradia a luz divina. Cristo translúcido e transparente
de divindade que se manterá na cristologia clássica oriental,
especialmente, refletido na imagem transfigurada de Cristo dos
ícones.
A doutrina de Apolinário dá origem a uma cristologia mística
que só vê a divindade e a unidade de Cristo com Deus. Ainda hoje
esta teoria seduz muitas “almas piedosas” que vão a Jesus Cristo
como se vai diretamente a Deus. Estas vêem em Jesus imediatamente
Deus, o ser divino que age e vive através de um corpo. A função da
carne consiste em ocultar a glória da divindade presente nele.
Vejamos um exemlo bem recente que se aproxima do apolinarismo:
“Jesus era Deus, mas, durante a sua vida humana terrestre, essa
divindade ficou escondida. O poder divino ficou de certo modo
reprimido, voluntariamente reprimido. Jesus não quis que, pelo seu
modo de ser ou de agir, o povo pudesse adivinhar que era Deus.
Todos viram nele um homem e ele nunca quis aparecer diferente de
um homem. Ele podia ter criado na sua maneira de ser homem alguns
sinais espetaculares que dessem ao povo a impressão de que era
Deus. Mas ele quis mesmo dar a impressão de que era simplesmente
homem. Se tivesse mostrado a sua dignidade de Deus, teria recebido
todos os privilégios e não teria sido tratado como foi. Mas era
justamente o que ele não queria (...). Com essa redução a nada, não
se quer dizer que Jesus deixou de ser Deus, o que seria impossível,
mas simplesmente que se negou a usar os seus poderes divinos para
viver a sua vida humana. Esta é a confissão de fé dos primeiros
cristãos”11. .

"J. Comblin, Epístola aos Filipcnses. Col. Comentário Bíblicos, NT. Vozes.
Petrópolis. Ed. Sinodal. 1985, p. 41.

102
Ao que tudo indica, Apolinário foi vítima das incertezas quanto
à precisão dos termos. Para ele, de fato, “natureza” era o mesmo que
“pessoa”. Quando em 361 foi enunciada a unidade de Cristo com a
sua hipóstase, concebendo o ser composto do Verbo feito carne como
uma integração substancial da carne com o Verbo, excluiu-se do ser
de Cristo a razão ou a alma superior, enquanto ele é sujeito capaz de
autonomia, de autodeterminar-se. Por isso, a humanidade de Cristo
não é completa ou perfeita. Faltando a alma racional, falta aquele
princípio operativo autônomo que é a fonte das paixões e da
pecabilidade. Vindo a ter, desse modo, o completo domínio sobre a
“carne”, o Verbo pode realizar eficazmente a redenção dos homens.

3. Consequências desta cristologia

Essa cristologia, conseqüentemente, abre caminho para o


monofisismo. Além disso, acaba se opondo à teologia dos
antioquenos, a qual exaltava a humanidade de Cristo em detrimento
da divindade. Estaria afetado também o princípio soteriológico, pois,
se a encamação-humanização não foi completa, seria incompleta
também a nossa salvação, visto que “aquilo que não foi assumido não
foi salvo”. Se a alma espiritual de Jesus foi substituída pelo Verbo,
este toma-se parte integrante da natureza humana e é, por isso,
diminuído em sua divindade, o que é impossível. Como dizia
Gregório Nazianzeno: “justamente o que há de mais importante no
homem, o seu nôus (intelecto-alma espiritual), que o faz imagem de
Deus, deixar-se-ia de lado”. Finalmente, sem alma humana, sem
inteligência e vontade próprias, distintas de Deus, Cristo não pode
merecer e obter a salvação dos homens porque é por nossos atos
livres e deliberados que merecemos.
Vejamos como se apresentava o apolinarismo para um
contemporâneo. Trata-se de um texto em que Gregório de Nazianzo
faz um exame da doutrina de Apolinário: “Não

103
deixemos os homens enganarem a si mesmos ou a outros com a
afirmação de que carecia de alma humana o ‘Homem do Senhor -
assim é como chamam Aquele que antes é “nosso Senhor e Deus”.
Nós não separamos o homem da divindade, mas afirmamos o dogma
da unidade e identidade dessa pessoa, que inicialmente não era
homem mas unicamente Deus, Filho único de Deus, anterior a todas
as épocas, e que nos últimos dias assumiu a humanidade para nossa
salvação, fazendo-se passível na came, em sua impassível divindade;
circunscrito no corpo, porém incircunscrito no espírito; ao mesmo
tempo terrestre e celeste, tangível e intangível, compreensível e
incompreensível; a fim de que. mediante uma só e mesma pessoa,
perfeitamente homem e perfeita- mente Deus, a humanidade inteira
caída pelo pecado pudesse novamente ser criada.
Portanto, se alguém não crê que Santa Maria é a mãe de Deus,
ele não tem comunhão com Deus. (...) se alguém afirma que a
humanidade foi formada e só depois revestida da divindade, esse tal
merece condenação (...). Se alguém sustenta a idéia de dois filhos,
um de Deus Pai e outro da Virgem mãe, esse tal não tem parte na
adoção (...) porquanto divindade e humanidade são duas naturezas,
como a alma e o corpo, mas não há dois filhos nem dois deuses (...).
Ambas as naturezas, por meio da união, são uma, seja divindade feita
homem, seja humanidade feita Deus, ou seja qual for a expressão
correta (...).
Se alguém disser que em Cristo a divindade operou por graça
(...) não esteve nem está unida com ele em essência, ou que foi
reputado digno da filiação adotiva (...), ou que sua came desceu dos
céus e não nasceu aqui, sendo superior à nossa e não extamente igual
à nossa (...) (seja anátema).
Se alguém põe sua confiança em Cristo como num homem
carente da racionalidade humana, esse tal é destituído de
racionalidade e é indigno da salvação: só será salvo aquilo que Cristo
uniu à sua divindade (...). Não deixemos que se nos invejem a
salvação total, ou que revistam o

104
Salvador apenas de ossos, nervos e aparência de humanidade (...).
Objeta-se-nos que ele não podia conter duas naturezas
completas. Evidentemente que não para quem o considerar
fisicamente. Um alqueire não pode conter dois alqueires (...). Pois
quem quer considerar o mental e o incorpóreo, tem em mente, sem
dúvida, que na minha personalidade encerro a alma, a razão, a mente
e o Espírito Santo (...). Se invocam o texto ‘O Verbo se fez carne’
(...) não compreendem que esta frase constitui uma sinédoque onde
se toma a parte pelo todo'”5.
As discussões obrigaram a realização do concilio de Alexandria,
em 362. no qual a doutrina de Apolinário foi condenada, mas não sua
pessoa. Ele, particularmente, continuou gozando de muito prestígio
de tal modo que ganhava adeptos em diversas igrejas. Em 374-375,
S. Jerônimo foi ouvir suas pregações, enquanto um apolinarista dos
mais influentes. Vitalis, tentava atrair o papa Dâmaso para o lado de
Apolinário. Mas, Dâmaso, informando-se exatamente nos sínodos de
374 e 376 de Roma, lançou um anátema contra o apolinarismo.
A doutrina apolinarista reaparece, contudo, até mesmo em seus
opositores, os antioquenos que tentavam salvaguardar a humanidade
íntegra de Jesus, defendendo sua natureza humana plena. Eis o que
diz Teodoro de Mopsuéstia: "Em Cristo, 'in-habita’ o Logos, e nessa
'in-habitação' a divindade penetra o véu da humanidade sem rasgá-
lo, nem rompê-lo, nem recortá-lo, deixando-o intacto, de modo que o
Logos e o homem se unem, constituindo a figura única da doxa, a
saber, o Cristo da glória refúlgente. Comunicando esta glória à
natureza humana, manifesta o Logos que se uniu à humanidade de
Jesus”. Na mesma linha teológica se movem santo Efirém, são
Gregório Nazianzeno e outros.
Como crescesse, simultaneamente, uma tendência que negava a
divindade do Espírito Santo, os rnacedonianos,

•'Gregório de Nazianzo, Arcebispo de Constantinopla, 380/81. Epístola Cl em H.


Bettenson. pp. 78-79.

105
negando sua “igualdade com o Pai’’, o papa Dâmaso e o imperador
Teodósio I, unidos pelo mesmo esforço de defesa e unidade do
cristianismo e do império, convocaram um concilio ecumênico para
a cidade de Constantinopla, em 381. Aí se fez sentir a influência dos
macedonianos. que contavam já com 36 bispos ao lado dos 150 bispos
ortodoxos participantes do concilio. Este concilio reafirmou a fé e os
dogmas de Nicéia. Em 30 de julho de 381, o imperador fez publicar
as decisões conciliares proibindo, entre outras medidas, as reuniões
dos macedonianos, semi-arianos e apolinaristas. Em 383-384, e em
388, Teodósio põe o “braço secular" a serviço da represào da heresia.
Com a morte de Apolinário, em 390, seus adeptos se dividiram
em dois partidos: um mais radical, fiel a Apolinário. Este acabou
formulando uma cristologia monofisista. O outro partido, mais
moderado, acabou se reconciliando com a Igreja de Roma46.

‘“A. D'Alès, “Apollinaire. Lesorigines des monophysisme", em RcvueApologétique


42,1942, pp. 131-149;C.E. Bevan,Apollinarisnie. Anessay ion thechristologyoflhe early
Church, Cambrige, 1926; A. Grillmeier, Gesü il Cristo nellafede delia Chiesu, vol. I,
Brescia, 1928, pp. 607-629; Voisin, “La doctrine trinitaire d’Apollinaire de Laodicée", em
Revue d'Histoire Eccléstique 2, 1901, pp. 35-55; pp. 239-252; LApollinarisme. Eludes
historiques, littéraires et dogniatiques sur le debat des controversas christologiques au
IV siècle, Louvain, 1901.

106
CAPÍTULO IX

PRISCILIANO: PRIMEIRO HEREGE


CONDENADO À MORTE

Prisciliano era sacerdote espanhol nascido nos meados do


século IV, em 345. Rico, educado nas escolas de Bordeaux,
inteligente, erudito, mas de natureza inquieta, enigmática, começou
a chamar a atenção sobre si tanto por sua vida austera quanto por
suas doutrinas.
De fato, sua pregação e seu renome começam com uma vida
ascética muito rígida, dura e severa. Eleito bispo de Ávila, começou
a difundir, entre os anos 370-375, uma doutrina tanto estranha quanto
confusa, mesclada de teorias marcionitas, sabelianas, gnósticas e
maniquéias. Nem mesmo a descoberta recente de algumas de suas
obras, como os Noventa Cânones ou Sentenças podem fornecer uma
completa compreensão de suas doutrinas.
No fim do século passado, o alemão Jorge Scheeps descobriu
diversas obras que são, provavelmente, de Prisciliano. Encabeça esta
descoberta o Liber Apologeticus, dirigido ao episcopado católico. O
Liber ad Damasum, uma profissão de fé católica em que condena
várias heresias. O Liber de fide et apochryphis sustenta que nem
todos os livros inspirados estão incluídos no Cânone estabelecido
pela Igreja. Merece atenção especial a teoria sobre a inspiração das
Escrituras, uma das características da seita priscilianista. Segundo
revelam estas

107
obras, Prisciliano sustentava, realmente, que existiam outros livros
inpirados ao lado do cânone oficial da Igreja. Dizia mais ainda, que a
inspiração permanecia aberta, não estava encerrada, o que lhe
permitia suas próprias interpretações. Para ele, Deus não havia
limitado o Espírito profético somente aos livrosjá canonizados. Podia
apresentar, assim, como inspiradas, suas próprias idéias e teorias. Sua
proposta, portanto, contrariava tudo o que significava tradição e
fixação da doutrina de uma vez por todas, por parte da autoridade
eclesiástica.
Quanto à pessoa de Jesus Cristo, Prisciliano afirmava que a
humanidade nele não era real: a alma de Cristo era somente uma
realidade divina. Sua doutrina trinitária é extremamente confusa.
Poderiamos elaborar uma súmula de seu ensinamento, nos
seguintes temios. conforme a condenação emitida pelo concilio de
Braga: 1. o Filho de Deus não existia antes de nascer de Maria; 2.
Jesus Cristo não nasceu na verdadeira natureza de homem; 3. os anjos
e as almas humanas são emanações de substância divina; 4. as almas
humanas pecaram num lugar celestial onde habitavam e. por isso, são
precipitadas dentro dos corpos na terra; 5. o demônio não foi criado
por Deus, nem foi primeiramente um anjo de luz. mas saiu do caos e
das trevas; 6. as almas e os corpos humanos sofrem a influência dos
astros; 7. a carne não ressuscitará e ela não é a criação de Deus, mas
dos anjos maus; 8. o matrimônio é mau e a procriação dos filhos
condenável, porque é o demônio quem forma o corpo no seio da mãe.

1. Suspeito de heresia

O primeiro a suspeitar do perigo dos ensinamentos de


Prisciliano foi o bispo Higino, que o denunciou ao metropolitano da
Lusitânia, Idácio de Mérida. Prisciliano respondeu às suspeitas com
diversas profissões de fé que se mostraram insuficientes para seus
acusadores. Foi, em seguida, acusado de maniqueísmo e de outros
erros doutrinais e, num primeiro sínodo em Saragoça, em 380, sua
doutrina foi

108
condenada. Ele, pessoalmente, não foi excomungado. Recebeu,
contudo, severas advertências.
Dados estes acontecimentos na Espanha, Prisciliano se dirigiu
à Gália, onde se uniu a um grupo ascético liderado pela rica senhora
Encrozia. Por carta, dirigiu-se ao bispo Ambrósio de Milão, homem
forte e de renome, na época, e ao papa Dâmaso, em busca de apoio.
Estes, porém, lhe negaram qualquer apoio.

2. Agravamento do conflito

Máximo, general do exército romano do Ocidente, assassinou o


imperador Graciano e lhe usurpou o trono imperial. Querendo apagar
os vestígios dos meios ilícitos empregados para chegar ao trono,
Máximo procurou ganhar a simpatia de todos os cristãos,
especialmente, dos bispos. Declarou-se não só favorável, mas
também protetor da ortodoxia e tenaz inimigo das heresias.
Ao chamado do novo imperador, um grupo de bispos
apresentou-se solícito em Tréveros. Entre eles, Idácio e Itácio,
partidários do emprego dos meios violentos para reprimir a heresia.
Estes pediram, ao imperador, abertura de um processo de juízo
criminoso contra Prisciliano. O imperador acolheu o pedido dos
bispos e ordenou que se fizesse um sínodo em Bordeaux, no ano de
384. Este sínodo condenou novamente a doutrina priscilianista.
Idácio e Itácio pressionaram o imperador para que fosse além da
condenação da doutrina e punisse o próprio Prisciliano. Prisciliano,
que incautamente havia corrido para Tréveros para pedir justiça junto
ao imperador, foi encarcerado e torturado.
Sabendo que ocorria, na cidade imperial, o bispo de Tours,
Martinho, viajou apressadamente para lá com a intenção de impedir
a execusão da sentença. Parecia-lhe inconcebível que se pretendesse
dar glória a Cristo pelo suplício de um homem. Suplicou, então, ao
imperador que

109
não desonrasse seu império e o reino de Deus, derramando sangue em
nome de Jesus Cristo: “Se uma sentença dos bispos condena
determinados hereges. dizia ele, ao imperador é suficiente que eles
sejam destituídos de seus postos, porém, por favor, que não haja
derramamento de sangue”. Desse modo, Martinho protestou
energicamente contra aqueles bispos implacáveis, inescrupulosos que
defendiam aquilo que ele chamava de “o crime novo e inaudito de
submeter uma causa eclesiástica a um juiz secular”.
Como o bispo de Tours era muito amado por sua caridade e
milagres, e em toda a Gália já gozasse a fama de santidade, o
imperador considerou uma boa política ouvi-lo e atendê-lo.
Prometeu-lhe libertar Prisciliano e os discípulos que com ele estavam
encarcerados. Mas, apenas partira Martinho de volta para sua diocese,
os ferrenhos adversários, Idácio e Itácio, voltaram às acusações,
insinuando, desta vez, que, se o bispo de Tours defendera com tanto
ardor a causa de Prisciliano, seguramente, era porque também ele
estava imbuído das idéias priscilianistas. Acrescentavam, agora, às
antigas acusações contra Prisciliano, às de gnosticismo, ma-
niqueísmo, defensor de obras heréticas e apócrifas, de ocultismo e de
magia.
De fato, para que a sentença capital fosse executada e de maneira
mais rápida, bastava acusar alguém da prática de magia, não somente
de heresia, visto que a magia estava entre os crimes mais detestados
pelos imperadores “cristãos”. O imperador, querendo agradar a
maioria dos bispos, ordenou que Prisciliano, Encrózia e mais dois
discípulos fossem decapitados. Isso se deu em 385. Assim, Prisciliano
foi morto por acusação de praticar a magia, não por ser herege. Foi a
primeira vez na história do cristianismo que um herético foi punido
com a pena capital. Após este ato, o imperador Máximo expediu
ordens a toda a Espanha pelas quais ordena o encarceramento de todos
os priscilianistas. Estes só não foram executados em massa pela
eficácia de um novo apelo de Martinho de Tours.

110
3. Repercussão da condenação de Prisciliano ã morte

A repercussão desta execução capital foi enorme, em todo o


Ocidente. Os bispos mais moderados condenaram a atitude insana e
cruel de Idácio e Itácio. O primeiro teve de renunciar a sua sede
episcopal e o segundo foi excomungado.
Alguns anos mais tarde, Teodósio derrotou e executou Máximo
na batalha de Aquila (em 388). Declarou nulos seus decretos e os
seguidores de Prisciliano foram reabilitados. Por sua vez, Ambrósio
de Milão, embora tivesse recusado apoio a Prisciliano, protestou
energicamente contra este ato bárbaro, nos seguintes termos: "‘Esses
sacerdotes que solicitam e aprovam a efúsão de sangue se
assemelham aos fariseus perseguidores da mulher adúltera. Com
efeito, de idêntica maneira, argumentam que, devendo os criminosos
ser castigados pela lei pública, todos, e ate os próprios sacerdotes,
têm o direito de denunciá-los. Porém, os fariseus pediam unicamente
a cabeça de uma adúltera; estes, ao contrário, solicitam as de muitas
vítimas. Jesus Cristo não permitiu que uma só mulher culpável
perecesse; estes, pelo contrário, consideram que não se imolou
vítimas suficientes”.
Ambrósio certamente não podia imaginar que, alguns séculos
mais tarde, se criaria um instituto jurídico, um tribunal com
sacerdotes encarregados de caçar e denunciar hereges. De fato, com
o decreto Ad abolendani de 4 de novembro de 1184, o papa Lúcio
III, como coroamento de sua reconciliação com Frederico Barba-
roxa, criava a Inquisição. Criada, de início, em vista de punir os
neomaniqueus, isto é, os cátaros, a Inquisição vai ampliando seus
poderes, empregando a tortura, a violência e a pena de morte em
defesa do cristianismo até criar um clima de terror em toda a
cristandade ocidental.
Os restos mortais de Prisciliano foram reconduzidos para sua
pátria, a Espanha, onde foram honrados como os de mártir. Isso
revigorou os priscilianos e alimentou a polêmica. Desse modo, o
priscilianismo sobreviveu à morte de seu fundador, e sobreviveu na
Espanha até que o concilio de

111
Braga, em 563, anatematizasse defmitivamente a seita. Não mais se
ouviu falar deles, mas subsistirá, ocultamente, para renascer com
força, séculos depois, nos cátaros47.

<?A.D’Alès, Priscilillien et PEglise chrétiettne à lafin du IVsiècle, Paris. 1936;


“Priscillien”, em Recherches des Sciences Religienses 23, 1933, p. 5-21; pp. 129-
I40;J.M.BlazquezMartínez."PeiscilianointroductordelascetismoenGallicia”, em Prímera
reunión gallega de estúdios clásicos, (Pontevedra, 2-4 dcjulhode 1979),
SantiagodeCompostela, 1981. pp. 210-236; A.B.J.M.Goosen/Algunasobservaciones sobre
Ia pneumatologia de Prisciliano”. ibidem. pp. 237-242; J. Fontaine, “Panorama espiritual
dei Occidente penninsular en los siglos IV y V", ibidem. pp. 185-209. H. Chadwick,
Priscillian of Anda, Oxford. 1976; R. Lopez Canedo. Prisciliano: su pensamientoysu
problema histórico, Santander. 1966; E. Suys,“La sentence portée contre Priscillien", em
Reuue d'Hisloire Ecclesiastiqnc 21. 1925. pp. 530-538.

112
CAPÍTULO X

PELÁGIO E O PELAGIANISMO

1. As origens do pelagianismo

Este homem, nascido em 354, na Grã Bretanha, antes mesmo


de se tomar monge, já era consagrado à vida austera, em busca da
perfeição evangélica. Autores antigos como Jerônimo e Orósio o
descrevem como homem de aspecto físico singular e de inteligência
viva.
Em 384, como monge, encontra-se em Roma, onde viverá até
410. Ali ficou chocado com o baixo nível moral dos cristãos da Itália.
Com sua simpatia e fama de homem espiritual, Pelágio vai
penetrando na sociedade romana. Começa, neste período, a difundir
os germes de sua doutrina, que será conhecida com o nome de
pelagianismo. Exaltando a natureza humana como capaz, por si só,
da prática das virtudes, e com sua persuasão, vai fazendo numerosos
discípulos. Não só se toma o grande conselheiro espiritual dos
cristãos romanos, mas se põe a escrever algumas obras como um
tratado Sobre a fé, um escrito exegético sobre as Testemunhas
bíblicas e uma Exposição das epístolas de são Paulo.
Por ocasião da invasão dos bárbaros, da tomada de Roma por
Alarico, em 410, Pelágio e alguns de seus discípulos, entre eles seu
maior colaborador, Celestino, refugiam-se

113
na Sicília. Durante esta estada na Sicília, redige um tratado Sobre a
Natureza. Nesse tratado, Pelágio desenvolve, de maneira sistemática,
suas teorias sobre a perfeição da natureza humana. Esta não é, para
ele, de modo algum, tocada pelo pecado original. A natureza humana
é capaz, com suas próprias forças, de evitar o pecado. Com a
liberdade de que está dotado, o homem é capaz de escolher sempre o
que lhe convém. Daí conclui a possibilidade de, por si mesmo, sem
necessidade de nenhum auxílio sobrenatural, evitar todos os pecados
e praticar todas as obras boas. Isto se explica tendo presente a
natureza do homem tão perfeita como antes do pecado de Adão, já
que não existe o pecado original transmissível, pelo qual o pecado de
nossos primeiros pais teria se transmitido à sua descendência. Nesta
obra, portanto, Pelágio põe as bases do sistema teológico: uma
antropologia otimista, negação do pecado original transmissível e
afirmação da suficiência do homem, sem auxílio da graça para a
salvação.
Este seu otimismo antropológico, louvando a auto-suficiência
humana, cativava e atraía inúmeros seguidores. Fazer o bem. só
depende do nosso querer, dizia ele. Tudo depende de nós. Alguns
antipelagianos chamaram a isso de a "soberba pelagiana".

2. A posição teológica de Pelágio: uma concepção do homem e da


graça

Partindo de uma tradição ascética, Pelágio era otimista a


respeito da capacidade moral do homem, em virtude da qual este
podia levar à prática o que Deus exige. Dizia ele: "Todas as coisas,
boas e más, que nos tomam dignos de louvor ou de censura, são feitas
por nós, e não nascidas conosco. Não nascemos completamente
desenvolvidos, mas capacitados para o bem e para o mal; fomos
concebidos tanto sem virtude como sem vício e, antes da atividade de
nossa

114
vontade pessoal, nada há em nós exceto aquilo que Deus depositou
em nós”48.
O menosprezo da capacidade para o bem, provocado pelo
pecado original de Adão, havia sido suprimido pelo batismo, que
reforça, satisfatoriamente, a liberdade do homem para decidir-se por
Deus. Segundo os ensinos de Pelágio, a eleição e a prática do bem são
sustentados pela graça de Deus. Protestando contra ele, Agostinho
objetou que o homem, pelo pecado herdado de Adão, já não é capaz
de fazer o bem sem ajuda imediata da graça e que, pelo batismo, fireia-
se a tendência ao mal e o homem fica, por completo, e em todos os
aspectos, aberto à graça de Deus.
Em 411. da Sicília Pelágio e Celestino passam para a África,
também na esperança de se entrevistar com Agostinho. Não
conseguindo seu intento, deixou Celestino e se dirigiu para Jerusalém.
Em breve tempo, conquista ali a simpatia do bispo João. Mas. contra
ele se levantam, de todos os lados, opositores, na própria Palestina, na
África e em Roma. Neste mesmo ano. reuniu-se um sínodo em
Cartago que decidiu pela condenação da doutrina pelagiana. Outro
sínodo em Diáspole, em 415, condena Pelágio. Em 27 de janeiro de
417, o papa Inocêncio I, ornindo as opiniões dos adversários de
Pelágio e lendo as conclusões dos sínodos já realizados, condena mais
uma vez Pelágio e Celestino à excomunhão.
Diante desta resolução, Pelágio tenta demonstrar sua inocência,
enviando ao novo pontífice, Zózimo. uma defesa, em setembro de
417. Esta autodefesa é o Libellus Fidei. Zózimo se deixa convencer
pela argumentação de Pelágio. Mas. Agostinho, ferrenho adversário
das teses pelagianas, e o sínodo plenário de Cartago, em maio de 418.
decidem por nova condenação do pelagianismo. Zózimo, então, retira
seu apoio a Pelágio e na carta circular Tractaria reitera a condenação
de Pelágio e de Celestino, obrigando todos os

"Pelágio, Pro libero arbítrio, em Agostinho. Depeccato origineli, 14; texto traduzido
em H. Bettenson. p. 88.

115
bispos a subscrevê-la, alinhando-se, dessa maneira, à prescrição de
30 de abril de 418 do imperador Honório. Em Jerusalém, Pelágio foi
convocado a comparecer perante um sínodo, em que sua doutrina foi
condenada e ele expulso da cidade.
A partir desse momento, não se tem mais notícia segura sobre
ele. Parece encontrar-se traços de uma estada em Antioquia, onde
teria sido, mais uma vez, condenado, por volta de 425. Enfim, teria
estado na região de Alexandria, onde morrera por volta de 437.

3. A polêmica com Agostinho

A partir de 418, começa um período marcado pelas polêmicas,


especi almente, com Agostinho de Hipona. Nesta altura, Pelágio
conta, além de Celestino, com outro discípulo de renome: Juliano.
bispo de Eclano (380-445). Este defensor do pelagianismo foi
deposto e se refugiou na Cilícia. junto a Teodoro de Mopsuéstia.
Juliano foi o principal adversário de Agostinho por doze anos de
polêmica.
Na polêmica com Agostinho. Juliano tentava conciliar a
bondade do matrimônio com a transmissão do pecado original, o que
transformou a disputa em questão antropológica. Juliano acusava
Agostinho de ser obcecado pelo pecado, pela corrupção da natureza
humana e pela concu- piscência da came. Acusava-o, ainda, de não
se ter libertado definitivamente do maniqueísmo e de minimizar o
valor do livre-arbítrio sobre o qual já havia escrito três livros.
Foi neste contexto que surgiram as grandes obras de Agostinho
sobre a liberdade humana e a graça: Sobre a graça e o livre-arbítrio;
Sobre a correção e a graça; Sobre a predestinação dos santos e
Sobre o dom da perseverança. A influência de Agostinho tem sido
tão marcada, que, no curso dos séculos, a doutrina pelagiana foi lida
quase exclusivamente na perspectiva dos seus escritos. Os estudos de
Plinval sobre o pelagianismo permitem uma visão de

116
conjunto mais correta e mais honesta da que se teve no passado49.
A questão pelagiana passou para a história como uma questão
sobre o pecado original. Na realidade, é uma questão sobre o modo de
conceber a pessoa humana, uma questão antropológica. Tratava-se de
movimento de idéias e práticas que atravessam a cristandade na
primeira metade do século V. Um movimento de coerência com o
evangelho que recolova a ascese e o empenho pessoal em todos os
setores da vida humana, não os deixando relegados como privilégio
dos que viviam nos mosteiros. Isso pode-se verificar num texto do
próprio Pelágio no qual aparece com evidência sua verdadeira
preocupação: "Em vez de considerar como privilégio os
mandamentos de nosso Rei, (...) bradamos a Deus, na indolência de
nosso corações: 'Isso é difícil e duro demais. Não podemos fazê-lo.
Não passamos de pobres homens dominados pela fraqueza da carne'.
Desvario cego e blasfêmia presunçosa! Imputamos a Deus onisciente
a culpa de ser duas vezes ignorante: de ignorar sua própria criação, e
de ignorar seus próprios mandamentos. Como se Deus, esquecido da
fraqueza dos homens que são obra sua, lhes impusesse mandamentos
a que não podem obedecer. Ao mesmo tempo (perdoa-nos Deus!)
imputamos injustiça ao Justo, e crueldade ao Santo - injustiça,
queixando-nos de que manda o impossível; crueldade, imaginando
que alguém possa ser condenado por causa de um mandamento que
não podia observar. Assim Deus se nos afigura (blasfêmia enorme!)
mais preocupado com o nosso castigo do que com a nossa salvação
(...). Ninguém conhece o tamanho de nossa força melhor do que
aquele que nos deu tal força (...). Ele não pretende exigir nada
impossível, pois ele é justo; nem condenará a ninguém por faltas que
não podia evitar, pois Ele é santo”’ ’. Em vez de se lamentar e ficar
aguardando

^Cf. P. de Plinval. Pélage. Ses écrits, sa vie et sa reforme. Etude d’histoire littéraire
et religieuse, Lausanne. 1943.
“Pelágio, Ep. adDenietriadem, 16, adfin; PL. XXXIII. 1110; texto em H. Bettenson.
p. 87.

117
graças especiais, o homem deve asumir corajosamente a prática das
virtudes, é o que Pelágio parece querer dizer.
Quando a compreensão pós-constantiniana do ser cristão
parecia solidificada, a presença do cristão no interior do estado, e
não em contraposição com ele, tudo é posto em discussão. Para
Pelágio, todo cristão está capacitado a praticar as virtudes, a alcançar
a santidade. E chamado a seguir Cristo nas escolhas da virgindade e
castidade e a possibilidade de poder fazê-lo se dá na liberdade de
cada um.
Tal idealismo encontrou acolhimento favorável um pouco por
tudo. No terreno social, as famílias nobres sentiam-se honradas por
se dedicar à sustentação de mosteiros. Nos mosteiros, as idéias
ascéticas de Pelágio eram um estímulo à prática do monaquismo
austero. Agostinho mesmo testemunha que, no mosteiro de
Adrumeto, circulava o seguinte adágio pelagiano: “Está em meu
poder fazer o bem, sou eu a gerir a minha liberdade” (Epist. 216,5).
Mas as questões fundamentais tocavam a natureza mesma da
Igreja. Negando o nascimento da humanidade no “pecado original”,
a humanidade não necessitava de redenção, desde o nascer, o que se
opunha, conseqüentemente. à prática de batizar as crianças para a
remissão dos pecados. Isso reduzia, na opinião de seus adversários,
a graça de Deus, limitando à ajuda externa da liberdade. Seria a obra
de Cristo inútil? A satisfação de Cristo seria supérflua? Cristo só nos
ajuda com seu exemplo? Seus méritos e suas graças não fazem falta
ao cristão? Seria a oração também supérflua, já que o homem tem,
com suas próprias forças, inteira suficiência?

4. Nova versão do cristianismo?

Pode-se ver o movimento pelagiano como tentativa de


compreensão do cristianismo, na primeira década do século V.
Pelágio e Agostinho, de fato, refletem as idéias de fundo sobre o
modo diverso de pensar a graça de Deus e a liberdade

118
do homem, isto é, a relação homem-Deus ou a colocação do
problema antropológico no seio do cristianismo. Para Pelágio, a
graça de Deus é só uma ajuda externa à liberdade, uma ajuda no
significado da criação, da revelação e da remissão dos pecados. Uma
ajuda, portanto, à própria liberdade para ser e agir sobre o plano de
um bem meritório de vida eterna. A liberdade, de fato, tem, desde a
criação, uma autonomia radical nas decisões referentes a seu destino.
Sobre esta questão fundamental, assim ele se expressa, num texto
conservado por Agostinho, em sua obra Degratia Christi:
“Distinguimos três coisas que colocamos em determinada ordem.
Em primeiro lugar, colocamos o posse (poder, habilidade,
possibilidade); em segundo lugar, o velle (querer, vontade);
finalmente, o esse (o ser, a existência, a atualização). A natureza
designamos o posse; à vontade, corresponde o velle; à atual
realização chamamos esse. O primeiro destes elementos, ou seja, o
poder, pertence propriamente a Deus, que o comunica a suas
criaturas; mas os dois outros, ou seja, o querer e o atualizar,
pertencem ao agente humano em cuja vontade têm sua fonte. Eis por
que o elogio (o mérito) do homem depende de sua vontade e de sua
obra; ou melhor, este mérito pertence, simultaneamente, ao homem
e a Deus, que lhe concede a possibilidade de querer e obrar e
assistindo-o com sua graça, o socorre nesta possibilidade. Se o
homem tem a possibilidade de querer e de obrar o bem, deve-o
exclusivamente a Deus (...). Eis por que (repitamo-lo muitas vezes
para precaver-nos contra vossas calúnias!), quando afirmamos que é
possível ao homem permanecer sem pecado, estamos glorificando a
Deus, já que reconhecemos que dele nos vem esta dádiva e este
poder. Ele nos concedeu o posse, e não há motivo de glorifícar-se o
agente humano quando exclusivamente consideramos a Deus. Aliás,
a questão não é do velle nem do esse, mas apenas do posse"2".

5IPelágio, Pro libero arbítrio, ap. Agostinho. Degratia Christi (41.3), texto em H.
Bettenson, p. 87-88.

119
Parece que “a tese de Pelágio estava em sintonia, quanto à
substância, com as convicções dos gregos sobre a autarquia da vida
moral do homem, enquanto a tese de Agostinho era a de que o
cristianismo subvertia aquela convicção”52. O mérito seja do querer,
seja do atuar e a respectiva recompensa devem-se exclusivamente às
escolhas da liberdade. Para Agostinho, a graça de Deus é o bem
mesmo da liberdade humana. Para ele, de fato, a liberdade pode ser
tal e agir sobre o plano de um bem meritório de vida eterna. Deixada
a si mesma, não se apoiando em Deus, ela vaga à deriva (cf. Epist.
194,3). Assim, mostrou, numa série de escritos, que a revelação cristã
gira em tomo da necessidade da graça (...). Sua tese triunfou no
concilio de Cartago de 417, e o papa Zózimo condenou o
pelagianismo”53.

5. Resumindo

Poderiamos concentrar as principais idéias da doutrina


pelagiana nos seguintes pontos: o homem tem de se esforçar para
viver segundo uma rígida ascese, costumes austeros e praticar as
virtudes; Deus deu ao homem o livre-arbítrio, com ele o homem pode
escolher o bem ou o mal; para fazer isso, não é preciso ser cristão;
muitos fdósofos pagãos foram virtuosos; Cristo aparelhou a natureza
dos cristãos para obras melhores que a dos pagãos; a graça não opera
transformação nenhuma no interior do homem, contudo, facilita-o
para fazer o bem; assim, também o exemplo de Cristo corrobora para
a prática do bem; como Adão nos influencia com seu mau exemplo,
Cristo nos salva, vivendo uma vida exemplar e nos oferecendo sua
doutrina; o pecado de Adão, em seus descendentes, consiste em
seguir o mau exemplo dele; Adão influenciou pouco, negativamente;
Cristo influenciou muito, positivamente; nesse sentido, a graça é
maior do que o pecado.

MG. Reale-D. Antiseri, História da Filosofia, v. 1, S.Paulo, Paulus, J990, p. 433.


''Idem, ibidem.

120
Será interessante ver como Celestino retoma as idéias de
Pelágio com pequenas variantes: Adào foi criado mortal. Morreu não
por causa do pecado, mas pela condiçõa humana; pelo pecado, Adão
prejudica somente a si próprio, e não a toda a humanidade; a lei pode
conduzir os homens ao reino de Deus; antes da vinda de Cristo,
também havia homens sem pecado; o estado das crianças recém-
nascidas é igual ao estado em que Adão se achava antes de pecar;
como a raça humana não ressurge depois da ressurreição de Cristo,
assim os homens não morreram depois do pecado de Adão.
Quanto a Juliano de Eclano. destacamos que o essencial de sua
doutrina pode ser concentrado em dois pontos: a) contrair o pecado
original ao nascer, implica condenar o matrimônio como perverso,
mas a Igreja o mantém como sacramento; b) admitir a necessidade
universal e absoluta do batismo para as crianças significa condenar à
perdição etema inúmeras delas. Que restaria ainda da bondade e
misericórdia de Deus se se admitisse a predestinação? Que justiça e
que eficácia teriam o sacrifício de Cristo?2"

MR.F. Evans. Pelagius. Inquiries and Reappraisals, London. 1968: idem, “Vue
d’ensemble sur la littérature pélagienne”, emRevue des Eludes Latines, 29. 1951. pp. 284-
294; V. Grossi. “La crisi antropologica nel monastero di Adrumeto". em Augustinianum.
19. 1979. pp. 103-133; Idem, “Pelágio”, em: Dizionairo degli Insliluti di perfczione, 6,
1980. pp. 1327-1330; J. Danielou e H. Marrou, Nova História da Igreja, v. 1, Vozes.
Petrópolis. 1973. pp. 405-413; A. Wauns, Un chrétien nonuné Pélage, Bruxelas, 1971.

121
CAPÍTULO XI

NESTORIANISMO: AFIRMAÇÃO DE DUAS


PESSOAS EM CRISTO

Até o século V, não havia ainda um culto oficial a Maria, mãe


de Jesus. Aos poucos, vão surgindo atos de veneração. Gregório
Nazianzeno (329-390), parece ser o primeiro a convidar os cristãos a
venerá-la e a lhe dirigir preces, relatando o exemplo de santa Justina,
que implorou socorro da Santíssima Virgem (cf. Oratio 21,10s).
Até então, para muitos pais da Igreja, o título "mãe de Deus”
não se podia fundar biblicamente. Ao contrário, certos textos bíblicos
não favoreciam nenhum culto ou fundamento histórico a um culto
mariano. Em Mt 12,48-49, por exemplo, parece haver um
rompimento em termos de parentesco carnal, relativizando a
maternidade carnal de Maria para dar ênfase ao parentesco espiritual
entre os membros da comunidade. Em Lc 11,27-28, não se elogia
Maria por ser, propriamente, a mãe de Jesus, mas como aquela que
crê e pratica a vontade de Deus.
Mas será Agostinho quem trará uma contribuição definitiva
para fundar um culto sem receio, proclamando em seu tratado De
natura etgratia (Sobre a natureza e a graça), que entre todos os seres
humanos, Maria foi a única isenta do pecado original. Logo em
seguida, um sínodo em Alexandria, no ano de 430. aprova
oficialmente sua veneração e devoção. Contudo, será o III Concilio
Ecumênico de Efeso, em 431, que

123
selará, definitivamente, a sorte da devoção e o lugar de Maria na
Igreja católica. Este resultado adveio de uma longa e tumultuada
controvérsia entre dois representantes de duas escolas teológicas
diferentes, que sempre se opuseram: Alexandria e Antioquia.

/. A escola teológica de Antioquia

Há 25 km do mar, Antioquia, capital da Síria, é a melhor das 16


cidades do mesmo nome que Seleuco Nicator fundou em honra de seu
pai Antíoco. Era, no tempo de Nestório, um dos quatro patriarcados
mais antigos. Foi aí que se formou a primeira comunidade cristã fora
da Palestina e ali começaram a apelidar os seguidores de Jesus, os
prosélitos da nova religião, de “cristãos” (cf. At 11,26). Do ano 252 a
380, reuniram ah nada menos do que dez concílios.
A escola teológica tem sua origem nos presbíteros Doroteo e
Luciano de Samósata, por volta de 290. Seus discípulos mais
conhecidos foram Eusébio de Nicomédia, Maris de Calcedônia,
Leôncio de Antioquia. Eudóxio, Teognides de Nicéia. Teodoro de
Mopsuéstia, que foi professor de Nestório. Foram os seguidores de
Nestório que levaram a escola, já agonizante, para Edesa, depois para
Nisibe onde teve fim na Idade Média. Naqueles tempos, os pais da
Igreja se dedicavam mais ao estudo das passagens bíblicas e a
apresentar a maneira mais adequada de sua interpretação. A escola
exegética de Antioquia, um pouco posterior à de Alexandria,
aplicava-se, de maneira especial, à interpretação literal das Escrituras.
Nos alexandrinos, ao contrário, predominava a especulação teológica
e um espírito místico, a alegoria no estudo dos textos bíblicos. Os
antioquenos recorriam à filologia e à história. Não excluíam o recurso
a toda alegoria, e como os de Alexandria, não recusavam a letra do
texto. A reflexão, a lógica e a sobriedade nas idéias são dotes dos
doutores antioquenos. Enquanto em Alexandria o filósofo mais
seguido no método de raciocínio foi Platão, na escola de Antioquia se

124
seguiu a dialética de Aristóteles. Quando julgam a autoridade da
Bíblia, os antioquenos ressaltam o homem escritor, do qual se vale
Deus como de instmmento para comunicar a verdade revelada. Ao
contrário, para os alexandrinos, o homem é completamente nulo nesta
tarefa.
Como conseqüência temos que. quando fala de Cristo
encarnado, a escola de Alexandria assinala para Cristo uma só
natureza, a divina do Logos, e sua humanidade não era mais que uma
simples forma, de que o Logos se revestiu para manifestar seu ser. Os
antioquenos opuseram-se a esta negação da real humanidade de Jesus
e disseram que nele, no Cristo, há duas naturezas: a divina e a humana,
muito intimamente unidas, porém, não até o extremo de ficar apagada
em alguma delas a perfeita realidade. Tal foi a doutrina ensinada por
Teodoro de Mopsuéstia. Antes dele. Diodoro de Tarso dissera que
Maria dera à luz não o Logos. mas um homem em tudo parecido
conosco, embora muito mais excelente.

2. Nestório

Nascido na Gennânica Cesaréia. na Síria (hoj e, Mariash), no


fim do século IV, por volta de 380. Nestório será o provoca- dor das
controvérsias em tomo da maternidade divina. Formado na escola de
Antioquia, cujo mestre foi Teodoro de Mopsuéstia. tomou-se famoso
por sua eloqüência. O imperador Teodósio II o fez patriarca de
Constantinopla em 428, cargo que ocupará somente até 431, quando
será deportado.
Empenhado, sempre com grande afinco, em combater os judeus,
os arianos e, especialmente, os apolinaristas, bateu-se muito por obter,
do imperador Teodósio II, um edito contra esses heréticos. Na posse
de sua sede patriarcal, em Constantinopla, dirigiu com veemência,
estas palavras ao imperador bizantino: "Dá-me, ó imperador, a terra
limpa de hereges e eu te darei o céu; ajuda-me a combater a heresia e
eu te ajudarei a lutar contra os persas". Não se encontrará, com
facilidade, texto mais claro para indicar o compromisso da Igreja com
a política.

125
3. Situação socioeconõmica do tempo de Nestórío

A crise econômico-social havia-se intensificado a partir do


século IV, em todo o império romano. As constantes revoltas dos
colonos e dos escravos, aliadas às invasões dos bárbaros já por muitas
décadas enfraqueciam as forças do império. Diante destas crises
pensou-se que a solução estivesse num governo centralizado donde
emanariam as ordens para manter o domínio e o controle econômico
e social. Constantino havia optado pelo exército e pela religião para
criar uma platafonna de poder e assegurar o modelo imperialista de
governo. Teodósio I usou o cristianismo como pivô do estado para
exercer e assegurar seu poder. Morrendo Teodósio I, seus filhos,
ainda jovens e inexperientes, assumiram o governo do império
dividindo-o: Arcádio ficou com o Oriente, cuja capital era Constar,
tinopla. Honório ficou com o Ocidente, tendo por capital Milão.
Dividido, o império mostrou-se ainda mais fraco. Cada uma das
partes reagiu de modo diferente em frente aos mesmos problemas.
Enquanto o Oriente desviava para o Ocidente os invasores, o Ocidente
procurava integrá-los. Mais no Oriente que no Ocidente ocorreu a
confusão entre os planos políticos e religiosos. O comércio se
enfraqueceu. As cidades foram se despovoando. Tomou-se ainda
mais difícil para os dirigentes enfrentar os bárbaros devido ao
processo de mralização.
O "cesaropapismo" contribuiu decididamente para este estado.
De fato, "a aceitação do cristianismo como religião do império
atribuiu aos imperadores praticamente poder sobre a Igreja. (...) o
imperador, por sua própria iniciativa, declarava qual era a sã doutrina
e regulamentava, até certo ponto, a administração eclesiástica. Os
imperadores detinham em grande medida o controle das nomeações
para os altos cargos eclesiásticos (...). O apoio que o imperador
emprestava a esses editos e decisões dos concíclios gerais
transformava a heresia em crime e, certamente, significou um sério
limite imposto à liberdade do pensamento

126
cristão”55. Como crescesse o número do clero, animado pelos
privilégios concedidos desde os tempos de Constantino, elevado à
classe alta, isento de qualquer taxas, tomou-se o clero uma
preocupação para o imperador a ponto de para “não perder parte da
sua renda com a ordenação de homens abastados ao ministério
clerical, o governo dispôs que só fossem ordenados os de pequena
fortuna”56. Atrelada ao império, a Igreja assume, cada vez mais, as
mesmas estruturas de classe e de governo do império. Os bispos
centralizam mais e mais o poder em suas mãos. Tomam-se o centro
da administração e das decisões.
Tomando-se “religião oficial, o cristianismo acolherá um
enorme contingente de pagãos e bárbaros sem tempo nem pessoal
para prepará-los. O catecumenato será abandonado. “Com seu
crescimento numérico, (...) as pequenas comundiades primitivas se
haviam ampliado em favor da ‘massa’ - ela era cristã como podia sê-
lo uma massa superficial e formal: a água do batismo a tinha tocado,
mas o Espírito do Evangelho não havia penetrado nela”57.

4. As teses nestorianas

Segundo os historiadores, Nestório era mais orador do que


teólogo, mais eloqüente do que instmído e teria deixado se arrastar
pela pressunção e superficialidade.
Nestório teria partido dos conceitos da “imutabilidade de Deus
e da objetividade da natureza e da pessoa”. A imutabilidade de Deus
tomava impossível a união substancial, união real entre as duas
naturezas, a divina e a humana. Outro pressuposto filosófico de
Nestório: onde há natureza, há pessoa. Logo, existem em Cristo duas
naturezas e duas pessoas. Existem, portanto, duas filiações: uma
natural,

“W. 'NMf.er, História da Igreja Cristã, S.Paulo.Astc, 1983,111,item 12, pp. 216-217.
Kldem, ibidem.
KIdem, ibidem.

127
humana, contingente, nascida de Maria; outra divina, sobrenatural,
gerada por Deus. Entre as duas naturezas, não existe união intrínseca,
“hipostática”, mas apenas uma união moral. Desse modo, Jesus de
Nazaré não deve ser chamado Deus, visto que é apenas um homem
em que habita o Logos divino, ou melhor, em que coabita uma pessoa
divina, a do Filho de Deus. Sendo assim, Maria não é “mãe de Deus”
(theotókos), mas mãe do homem Jesus de Nazaré, isto é, “mãe de
Cristo” (Christotókos). Negava, com isso, a união “hipostática”
substancial e a unicidade de pessoa em Cristo.
A realidade parece provir do fato que o esforço de Nestório em
combater o apolinarismo, que negava a existência de alma humana
em Jesus, suprida pelo Logos, partia de uma base sólida, segundo ele,
afirmando a verdadeira humanidade de Jesus: ele era verdadeiro
homem, em tudo, semelhante a nós. Sustentava, para combater o
apolinarismo, que Jesus era puro homem nascido sem intervenção
divina. Mas esta ênfase na humanidade autônoma criava novo
problema de conseqüências soteriológicas: se Jesus fora simples ho­
mem, que nasceu naturalmente de Maria, padeceu, morreu na cruz,
esta “paixão e morte” não tinha valor infinito, salvífico, pois não era
um Deus que morria, que pagava por nossos pecados.
Tirando as conclusões radicais da escola de Antioquia, que
acentuava a perfeita humanidade de Cristo e sublinhava a distinção
das duas naturezas, enquanto a escola de Alexandria acentuava a
divindade, Nestório dizia que Maria só podia ser chamada
corretamente, “mãe de Jesus” (antropotókos). Num de seus sermões,
afirmava: “Ninguém venha me dizer que Maria é mãe de Deus; ela
foi mulher, e Deus não pode nascer de mulher; sustentar o contrário
é imitar os pagãos, que dão uma mãe às suas divindades; nunca
admitirei como Deus a um menino enrolado em panos, um menino
que primeiro tem dois meses e, depois, três meses”!
Nestório sustentava que Maria só havia dado à luz um ser
humano chamado Jesus. O Verbo divino estava unido a

128
este filho de Maria, não de maneira “ontológica”, "substancial”, mas
acidental, de forma moral. Explicava esta união chamando-a de
“união de habitação ", porque o Verbo habitou na humanidade de
Jesus como um templo; “união de afeição ”, porque esta união se
assemelhava à que existe entre dois amigos; “união de operação ”,
enquanto o Verbo tinha-se servido da humanidade de Jesus, como de
um instrumento para realizar milagres; “união de graça”, pois o
Verbo tinha- se unido a Jesus por meio da graça santificante.
Conseqüen- temente, em Jesus Cristo, existem duas naturezas
perfeitas e duas pessoas igualmente perfeitas: uma puramente divina,
a do Filho de Deus, outra, puramente humana, a do filho de Maria.
Portanto, para Nestório, é erro terrível "tratar os judeus como
deicidas: eles não mataram, na verdade um Deus, mas, sim, um
homem”.
Afirmando a divindade que habitava em Jesus, como Filho de
Deus, o Cristo não teve começo. Dizer que Jesus nasceu, sofreu,
morreu e ressuscitou, não equivale a que o Verbo de Deus tenha
nascido, morrido, ressuscitado, já que a natureza divina é impassível.
Significa dizer que o corpo de que se apropriou ao se unir à natureza
humana, nasceu, sofreu, morreu e ressuscitou.
Essencialmente, o problema está no modo de união das duas
naturezas. Para Nestório, a união moral faz com que cada uma das
naturezas conserve a própria hispóstase, isto é. a pessoa. Desse modo,
Nestório não pode aceitar aquilo que muitos pais da Igreja ensinavam
a respeito da “comunicação dos idiomas”, isto é, o atribuir a uma
natureza em Cristo aquilo que. em rigor, é próprio de outra natureza,
como por exemplo, dizer que “Deus sofreu”,’ “Deus morreu” ou
“ressuscitou”. Causa-lhe repugnância afirmar isso, tanto quanto
afirmar que “Maria é mãe de Deus”, como se a divindade pudesse
nascer de uma mulher.

129
5. A controvérsia com Cirilo de Alexandria

Quando estes ensinamentos chegaram aos ouvidos de Cirilo,


patriarca de Alexandria, teve início uma violenta controvérsia.
Nascido por volta de 376-380, sobrinho e sucessor do patriarca
Teófilo, a partir de 17/10/412, Cirilo era homem temperamental,
intransigente. Viveu sempre atrelado a conflitos ora com os judeus,
que expulsou do Egito, ora com os novacianos. de quem arrebatou as
igrejas, e com o próprio governador do Egito. Orestes. Era homem
que só sabia viver em polêmicas. Além de grande teólogo, escritor
fecundo e santo, ficou conhecido também como homem duro,
autoritário e ambicioso. Alguns o qualificam como verdadeiro faraó
da Igreja do Egito. Sua obra literária é vasta. Nada menos do que 10
volumes da patrologia grega do Migne. Sua correspondência se abre
num leque em que se inclui papas, príncipes, imperadores, rainhas,
irmãs de imperadores, bispos.
Para concluir a figuração da personagem, convém dizer que
sobre ele as opiniões não são unânimes, mas divididas. Alguns o
exaltam58 outros dele fazem um julgamento severo, como H. von
Campenhausen: "Cirilo, eu o sei, é santo. Não se segue que ele o era
em 412. Falo segundo a história (...), não penso que o próprio Cirilo
gostasse que suas ações históricas fossem tomadas como a medida de
sua santidade e não é honesto fazer modificação na história”59. "A
política de violência por ele inaugurada em prejuízo dos pagãos e dos
heréticos provocou, entre outros, o massacre de Hipázia, a famosa
filósofa platônica, por um grupo de monges fanáticos”60.

CF. àaM.&n<Av,Dogme et spirihialité chez S. Cyrille cTAtexandrie. Paris. 1944.


"*
MH. Von Campenahusen, Les Pèrvs Gnccs, Paris. "Livre de Vie”, nç59.1969. pp.
209-223, "Este fato é narrado pelo historiador cristão. Sócrates, morto em 430. em
História Eclesiástica. VII. 15.

130
6. As teses de Cirilo

Cirilo elaborou sua formulação cristológica rejeitando toda a


separação real das naturezas em Cristo. Defendendo,
incondicionalmente, a união hipostática, isto é, substancial das duas
naturezas, sublinha que o sujeito da humanidade de Cristo era a
pessoa divina.
A partir destes princípios, escreve uma carta advertindo
Nestório sobre seus erros. Por sua vez, Nestório responde a Cirilo
com certo desprezo àquele que chamava de o egípcio”. Os dois se
digladiavam verbalmente. Finalmente, os dois apelam para Roma.
Em Roma, já se suspeitava sobre Nestório de favorecer a heresia
pelagiana. O papa Celestino I convocou, então, em agosto de 430. um
sínodo romano em que Nestório foi condenado como herético. Estas
resoluções, juntamente com o pedido de retratação por parte de
Nestório, foram entregues a Cirilo para que as comunicasse a
Nestório. Mas, Cirilo retardou, propositalmente, em enviar as notifi­
cações do sínodo romano. Em vez disso, realizou outro sínodo com
os bispos do Egito, em novembro de 430 e redigiu uma carta sinodal
para Nestório que terminava com os 12 anáte- mas. Eis nove dos doze
anátemas, que resumem as teses e a doutrina de Cirilo: "1) Se alguém
não confessar que o Emanuel é verdadeiro Deus e que, portanto, a
Santa Virgem é Theotókos, porquanto deu à luz, segundo a carne, o
Verbo de Deus feito came, seja anátema. 2) Se alguém não confessar
que o Verbo de Deus Pai estava unido pessoalmente
(katfVhypóstasin) à came, sendo com ela propriamente um só Cristo,
ou seja, um só e mesmo Deus e homem ao mesmo tempo, seja
anátema. 3) Se, no único Cristo, alguém dividir as pessoas
(hypostáseis) já unidas, unindo-as mediante uma simples união de
acordo com o mérito, ou uma união efetuada através de autoridade e
poder, e não propriamente uma união de naturezas (kath’hénosin
physíken). seja anátema. 4) Se alguém distingue entre dois caracteres
(prósopa) ou pessoas (hypostáseis)... aplicando algumas apenas ao
homem Jesus, concebido separadamente do Verbo... outras apenas ao
Ver

131
bo... seja anátema. 5) Se presumir chamar Cristo de "homem portador
de Deus' (theophóron ánthôpon)... seja anátema. 6) Se alguém
chamar de Verbo a Deus ou Senhor de Cristo... seja anátema. 7) Se
alguém disser que Jesus, enquanto homem, era operado (enêrgêsthai)
por Deus, o Verbo, que a “glória do Unigênito” lhe foi concedida
como algo existente fora do Verbo... seja anátema. 8) Se alguém
tentar afirmar que, ‘juntamente com o Verbo Divino, se deve co-
adorar, co-glori- ficar, co-proclamar Deus ao homem assumido pelo
Verbo, como se fosse estranho ao Verbo, - e o elemento ‘com’ ou
‘co’, necessariamente, indica tal assunção, - e que não se deve adorar
com a mesma adoração, glorificar com a mesma glorificação ao
Emanuel feito “came”, seja anátema. 9. 10. 11. 12) Se alguém não
confessar que o Verbo de Deus sofreu na came e foi crucificado na
came... seja anátema”01.
Enquanto isso, Nestório continuava com sua pregação e
acrescentando acusações a seus adversários apolinaristas, mandando
prender e açoitar aqueles que lhe contradiziam em sua diocese.
Como as controvérsias entre Constantinopla e Alexandria se
agravassem, foi convocado um concilio geral para Efeso. De fato,
reuniu-se em 431, o III Concilio Ecumênico, em que o nestorianismo
foi condenado e Nestório deposto de seu patriarcado.
Doutrinariamente se estabeleceu que em Jesus Cristo há uma só
pessoa, a divina. Esta pessoa, por meio da união substancial
(hipostática), uniu as duas naturezas, divina e humana. Por isso, a
única pessoa existente em Jesus Cristo, nascida de Maria, é a pessoa
do Verbo de Deus. Por essa razão, a Virgem Maria pode ser chamada
com propriedade “mãe de Deus”, pois a pessoa que nasceu dela é
pessoa divina.
Mas, nesse enfrentamento não havia só questões teológicas.
Entre Cirilo e Nestório, duas cidades - de longo tempo rivais,
rivalidade que vinha dos tempos dos Ptolomeus com os Selêucidas,
dos séculos IV - VII a.C. - se combatiam em busca

61Texto em H. Bettenson, pp. 80-81.

132
da supremacia: Alexandria e Antioquia/Constantinopla. Duas escolas
exegético-teológicas de tendências opostas expunham suas divisões
e rixas. Antioquia sentia-se ameaçada e a ruptura entre as Igrejas
parecia inevitável. O imperador Teodósio II, hostil a Cirilo. convocou
um concilio geral em Efeso, em 431.

7. O Concilio de Efeso

Historicamente, não nos interessam os detalhes que ocorreram


do início ao fim deste concilio. O certo é que, apressado para
condenar Nestório, Cirilo abriu-o sem aguardar a chegada dos
legados pontifícios nem João, o patriarca de Antioquia, com outros
bispos. Isso se fez, em meio a um grande protesto de muitos dos
bispos participantes e do próprio representante do imperador. A
decisão foi tomada rapidamente desde a primeira sessão. Os bispos
sírios chegaram com 5 dias de atraso e protestaram contra esta
iniciativa. Houve, então, um grande descontentamento entre os
seguidores de Cirilo e os de João de Antioquia. Estes últimos se
reuniram à parte e excomungaram Cirilo e, por ordem do imperador,
o aprisionaram. Com a intervenção dos conciliadores, após três
meses, Cirilo foi libertado e a condenação de Nestório foi mantida.
Embora se negasse a aceitar as decisões do concilio, Teódosio
II, quando soube que o papa Celestino I confirmou expressamente as
suas conclusões e o reconheceu como Concilio Ecumênico, voltou
atrás e abandonou Nestório, ordenou a queima de suas obras e passou
para o lado do papa e da maioria conciliar. Nestório foi
defmitivamente, destituído de seu posto de patriarca e exilado para
Petra, primeiro, depois para Oásis, no Egito. Mas, de seu retiro,
continuou a defender sua causa e a provocar agitações em tomo de
suas teses, com alguns escritos. Para evitar novos distúrbios, Nestório
foi expatriado, em 434, para a Arábia. Como também aqui
continuasse a provocar discussões, foi transferido para Panápolis,
para uma espécie de prisão de Estado. Aqui

133
escreveu ainda o Livro de Heráclídes, uma autodefesa e uma crítica
dura das decisões do concilio de Efeso. Morreu em 450, sem se
retratar.
Em 433, fez-se uma união entre orientais e ocidentais na qual
anatematizaram a doutrina de Nestório. Os dois partidos aceitaram
uma fórmula de um símbolo de união. Neste símbolo se diz:
“Confessamos (...) Nosso Senhor Jesus Cristo o Filho único de Deus,
Deus perfeito e homem perfeito (...), gerado antes dos séculos por seu
Pai, segundo a divindade, e nos últimos dias, o mesmo por causa de
nós e para nossa salvação, gerado da Virgem Maria, segundo a
humanidade; o mesmo consubstanciai ao Pai por sua divindade e
consubstanciai a nós por sua humanidade. Porque a união das duas
naturezas se realizou; e é porque confessamos um só Cristo, um só
Filho, um só Senhor. Neste mesmo pensamento da união sem mistura,
confessamos a Santa Virgem, Mãe de Deus, porque o Deus-Logos se
encarnou” (PG. 77, 176-177).

8. A sobrevivência do nestorianismo

A heresia nestoriana sobreviveu por muito tempo após a morte


de Nestório. Da Ásia difúndiu-se até a China e a Mongólia. Na índia,
há ainda hoje uns 450 mil nestorianos, que formam a igreja de santo
Tomé. Na Pérsia, fündaram os nestorianos uma igreja que chegou a
ter 200 bispos. As igrejas nestorianas atingiram seu apogeu no século
XII, com milhões de fiéis. A partir do século XVI, a Igreja nestoriana
foi sofrendo uma decadência. Grande número de nestorianos acabou
aceitando o catolicismo romano, formando a Igreja oriental unida,
chamada “Igreja caldéia”, ou “cristãos caldeus”. Outros nestorianos
se aliaram aos missionários prostestantes da América ou aos
anglicanos. Sobreviveram após a primeira guerra, apesar das
perseguições sofridas, no Iraque. Entre a Turquia e a Pérsia, existem
hoje mais ou menos 150 mil nestorianos, cujo patriarca reside no
Kurdistão.

134
9. Por que Éfeso?

A proclamação do dogma da maternidade divina, na cidade de


Éfeso, parece ter um significado profundo e está ligado a uma tradição
pagã muito antiga. Dizem os historiadores que o povo aguardava,
ansioso, junto à basílica, o encerramento do concilio. Quando se
soube que os bispos conciliares reconheceram Maria como verdadeira
Mãe de Deus, o povo saiu jubiloso pelas mesmas ruas em que, quatro
séculos antes, havia-se produzido um grande tumulto contra o
apóstolo Paulo porque este se opunha à devoção pagã, ao culto da
deusa-mãe Artemis. Liderados pelo ourives Demétrio e animados
pelo seu discurso, puseram-se a gritar: ‘“Grande é a Artemis dos
efésios!’. A cidade foi tomada de confusão, e todos simultaneamente
se precipitaram para o teatro (...). Acalmando a multidão, o escrivão
da cidade falou assim: ‘Cidadãos de Éfeso! Quem há, dentre os
homens, que não saiba que a cidade de Éfeso é a guardiã do templo
da grande Artemis e de sua estátua caída do céu?’” (At 19,24-35). A
cidade que outrora havia adorado a deusa-mãe Diana- Artemis, cujo
templo em Éfeso estava entre as maravilhas do mundo, agora
acompanhava os bispos conciliares com tochas acesas, em meio aos
aplausos e aclamações de alegria.
A declaração da maternidade divina de Maria parece ter
recuperado o ânimo das massas despojadas, que, no culto da deusa-
mãe, garantiam sua autonomia espiritual num espaço leigo para viver
seus sonhos e sua piedade ante um autoritarismo clerical cada vez
mais prepotente. A prática autoritária da evangelização sem
conversão levou as classes, ignorantes e embmtecidas, a substituir
seus deuses e heróis pelos santos, transferindo apenas as imagens no
imaginário religioso. “A Virgem Maria passou a ser considerada a
principal entre todos os santos. A ela transferiu-se muito do
sentimento que se expressava no culto das deusas-mães do Egito, da
Síria e da Ásia Menor (,..)”62.

62W. Walker, op. cit., item 14, p. 225.

135
CAPÍTULO XII

ÊUTIQUES OU O MONOFISISMO

1. A afirmação de uma única natureza em Cristo

Levados pela oposição radical a Nestório, mesmo após o


Concilio de Efeso, alguns teólogos exageraram a doutrina de Cirilo
e caíram no excesso oposto da doutrina que combatiam: o
nestorianismo. Insistiam no sentido da “perfeita identidade”, em
proveito da divindade e em detrimento da humanidade de Cristo.
Assim temos que, no esforço de combater o apolinarismo, Nestório
caiu no erro de afirmar as duas pessoas correspondendo às duas
naturezas, em Cristo, e Eutiques, no afa de combater o
nestorianismo, deu origem à heresia chamada monofisita ou
monofisismo (mónos = um só, único;/IsA = natureza).
Nascido em 378, Eutiques tomou-se monge de um convento
nas imediações de Constantinopla. Amigo de Cirilo de Alexandria e
de seu sucessor Dióscoro e, sobretudo, do poderoso eunuco de
Teodósio II, Crísafo. Por esta razão era muito estimado e influente
no ambiente eclesiástico e político6*.

*'Cf. A. di Bernardino, "Eutiche", em Dizionario Patristico e di Antichitâ Cristiane


(A-F), p. 1307.

139
Êutiques tomou-se um dos maiores inimigos dos hereges e, na
controvérsia sobre a maternidade divina, tomou o partido de Cirilo
contra Nestório. Enquanto os nestorianos afirmavam o dualismo de
natureza e de pessoa em Cristo, Êutiques radicalizava, em represália,
sustentando que, na uniào das duas naturezas, a natureza divina
absorvera a natureza humana, de tal forma que não se podia falar
senão de uma só, de uma única natureza, em Jesus Cristo: a natureza
divina. Convencido desta realidade, Êutiques julgava que os parti­
cipantes do Concilio de Éfeso foram muito moderados na forma de
condenar o nestorianismo. Afirmava que, para extinguir de vez a
heresia, era necessário declarar e definir que em Jesus Cristo havia
não apenas uma só pessoa, mas também uma só natureza: a divina.
Para Êutiques, a natureza humana de Jesus fora como que absorvida
pela divindade do Verbo. Ao se encarnar, o Filho de Deus converteu
a humanidade de Jesus numa substância divina e eterna: ‘‘Depois da
encarnação, as duas naturezas ficaram reduzidas a uma só, que é a
divina”, dizia ele. Unicamente Deus, o próprio Deus, despojado por
vontade própria de sua impassibilidade, era quem havia sofrido e
morrido na cruz. Assim, Êutiques e seus seguidores, sobretudo entre
os monges e os da corte imperial, propunham que a humanidade de
Jesus tenha sido transformada, refiindida numa espécie de nova
natureza.
Êutiques, na qualidade de chefe dos propagadores dessa
doutrina extremista, foi convocado a comparecer, explicar e
responder às acusações que lhe faziam num sínodo reunido em
Constantinopla, em 448. Acompanhemos o interrogatório que lhe foi
feito na ocasião, isto é, na sessão VII do sínodo:
“Flaviano: Confessais que Cristo possui duas naturezas?
Êutiques: Nunca presumi especular acerca da natureza de meu Deus,
Senhor do céus e da terra; admito que nunca confessei ser ele
consubstanciai conosco... A Virgem, sim, confesso que é
consubstanciai conosco, e que dela se encarnou nosso Deus...
Florêncio: Sendo ela consubstanciai conosco, certamente
também seu Filho nos é consubstanciai?

140
Éutiques: Note, por obséquio, que nào afirmei que o corpo de
um homem passou a ser corpo de Deus, mas que este corpo foi
humano e o Senhor encamou-se da Virgem. Se desejais que
acrescente que o seu corpo foi consubstanciai com os nossos corpos,
assim fá-lo-ei, mas entendo a palavra consubstanciai (sublinhado no
texto) de modo que não acarrete a negação da filiação divina de
Cristo. Sempre evitei terminantemente a expressão “consubstanciai
na came. Mas, visto que Vossa Santidade mo pede, usá-la-ei....
Florêncio: Admitis ou não que nosso Senhor, nascido da
Virgem, é consubstanciai (conosco) e portador, após a encarnação,
de duas naturezas?
Éutiques:... Admito que nosso Senhor teve duas naturezas antes
da encarnação e uma só depois dela... Sou discípulo, neste particular,
do bem-aventurado Cirilo, dos santos Padres e de santo Atanásio;
eles falam de duas naturezas antes da união; depois da união e
encarnação, apenas falam de uma natureza, não de duas”65.
Ao que parece, Éutiques estava envolvido pela vida mística,
espiritual, como muitos monges exaltados de seu tempo, desprezava
de tal forma a natureza humana, que, extravagantemente, gabava-se
de tê-la destruído para viver só do espírito. Negando a natureza
humana no homem, para viver uma vida intensa no espírito, negou-a
também no homem Jesus de Nazaré, não enxergando nele senão a
divindade.
Éutiques começou a ser molestado quando Crísafo, seu
afilhado, quis fazê-lo patriarca de Constantinopla. Seu intento
fracassou, já que a assembléia escolhera Flaviano, inimigo das
doutrinas de Éutiques.
A pretexto de perseguir os nestorianos, Éutiques, aliando-se a
Dióscoro, patriarca de Alexandria, e com o apoio de Crísafo,
começaram a perseguir os que não participavam de suas opiniões.
Diante desta campanha, Flaviano, patriarca de Constantinopla,
reuniu os bispos e, depois de ouvir a defesa de

“Leão, Bispo de Roma, Ep. XXVIII, (AdFlavianum), 13 de junho de 449. Texto em


H. Bettenson, pp. 83-86.

141
Êutiques, concluiu por acusá-lo de heresia e o depôs de seu cargo de
abade. Êutiques não aceitou a sentença e apelou para o papa e para o
imperador com a esperança de ganhar tempo e atraí-los para sua
causa. A influência de Crísafo foi suficiente para convencer o
imperador Teodósio II da necessidade de um novo concilio. Este se
realizou em Éfeso, em 449.
Tudo foi preparado, de antemão, para dar vitória aos
monofisitas. Dióscoro, patriarca de Alexandria, assumiu a
presidência do concilio. Admitiu-se, nas deliberações, a presença de
Barsaumas, chefe de um grupo que se dizia monge e que saqueava
templos e incendiava mosteiros a pretexto de pertencer aos
nestorianos. Por outro lado, impediu-se a entrada de diversos bispos
inimigos do monofisismo.

2. O “Tomo de Leão ” e o “Concilio de Ladrões "

Mas o grupo de Êutiques não contava com a atitude enérgica do


papa Leão Magno. Este enviou a Flaviano uma carta que passou para
a história como o Tomus ctdFlaviamtm. Neste texto, o papa definia,
com clareza, que em Jesus Cristo havia duas naturezas, a divina, pela
qual ele era Deus, e a humana, pela qual era homem como nós; estas
duas naturezas estão unidas numa mesma e única pessoa, a do Verbo
divino. “Jesus Cristo é Deus, dizia Leão, porque está escrito: ‘No
princípio era o Verbo’. E é homem, porque se diz: ‘O Verbo se fez
carne’. A dualidade de natureza não prejudica, segundo Leão Magno,
a unidade da pessoa e é essa unidade que “faz professar no símbolo
que o Filho do Homem desceu dos céus e que o Filho de Deus tomou
came da Virgem Maria”.
Quando Hilário, um dos legados do papa, foi apresentar esta
carta ao concilio, não teve oportunidade de ser ouvido. Dióscoro e
seus partidários, apoiados pela guarda imperial e pelos “monges” de
Barsaumas, impediram a leitura da carta do papa. Declararam que
não se devia ajuntar nada ao que já fora definido nos três concilies
universais anteriores.

142
Muitos bispos protestaram, Flaviano e o legado romano,
Hilário, manifestaram-se contra esta atitude e as conclusões dos
monofisitas. Produziu-se, então, um grande tumulto, ocasião em que
o patriarca de Constantinopla, inimigo de Êutiques, foi espancado e
morrería, dias depois, em conseqüên- cia dos ferimentos recebidos.
Eis, num resumo, o que diz o "Tomo de Leão”, a respeito de
Êutiques: "Depois de tratar no cap. I, dos desvarios e da
incompreensãoA das Escrituras, por parte de Êutiques, no cap. II se
diz: “Êutiques, ignorando o que devia saber acerca da encarnação do
Verbo, não teve vontade de buscar a luz da inteligência no estudo
diligente das Escrituras. Devia ter admitido, ao menos, com
respeitosa solicitude, a fé comum e universal dos fiéis de todo o
mundo que confessam crer (...). Seu nascimento (do Filho) no tempo,
entretanto, nada tirou e nada acrescentou a seu nascimento etemo
divino, (...). Pois é verdade que o Espírito Santo deu fertilidade à
Virgem, embora a realidade do seu corpo fosse recebida do corpo
dele (...); III. Assim, intactas e reunidas em uma pessoa, as
propriedades de ambas as naturezas, a majestade assumiu a
humildade, a força assumiu a fraqueza, (...) a natureza inviolável
uniu-se à natureza que pode sofrer (...). O verdadeiro Deus nasceu,
pois, em natureza cabal e perfeita de homem verdadeiro, completo
nas suas propriedades e completo nas nossas. (...). Cada natureza
guarda as suas características sem qualquer diminuição de tal
maneira que a forma de servo não reduz a fonna de Deus (...). IV.
(...) Cada natureza (a de Deus e a de servo) realiza suas próprias
funções em comunhão com a outra. O Verbo faz o que é próprio ao
Verbo, a came faz o que é próprio à came; (...). Pois, ainda que em
Cristo nosso Senhor haja só uma pessoa Deus-Homem, o princípio
que comunica a ambas as naturezas as ofensas é distinto do princípio
que lhes toma comum à glória"60.

“Leào, Bispo de Roma, Ep. XXVIII. (Ad Flaviammi), 13 de junho de 449. Texto em
H. Bettenson. pp. 83-86.

143
Quando o papa foi informado do que acontecera em Éfeso,
declarou aquele concilio um Concilio de Ladrões.
Com a morte de Teodósio II, em 450, com a persistência e com
o beneplácido da imperatriz Pulquéria e de seu esposo Marciano,
reuniu-se no ano seguinte, em 451, um novo concilio. Inicialmente
convocado para ser realizado novamente em Éfeso, este concilio só
pôde ser realizado em Calcedônia, por motivos de uma guerra em
curso nas regiões de Éfeso. Neste concilio, o quarto ecumênico, os
ortodoxos obtiveram sua maior vitória. Seiscentos bispos reunidos
declararam que “Pedro falou pela boca de Leào” e que a Carta de
Leào Magno a Flaviano (Toinus ad Flavianuni) continha a
verdadeira doutrina sobre a pessoa e a natureza de Jesus Cristo.
Declararam (os conciliares) que confessavam um só e mesmo Cristo,
Senhor e Filho único em duas naturezas e que cada natureza,
conservando sua maneira de ser própria, encontrava-se com a outra
numa só pessoa. Numa palavra, ficava definido o dogma de que em
Jesus Cristo existiam duas naturezas, divina e humana, ambas
inteiras, distintas e unidas numa só e mesma pessoa, sem mistura
nem confusão, conservando cada qual suas propriedades mediante a
união chamada hipostática.

3. Alexandria: capital do monofisismo

A vitória dos ortodoxos, no concilio de Calcedônia, não


destruiu o monofisismo. O resto dos anos do século V e todo o século
VI foram cheios de incessantes ataques dirigidos pelos monofisitas
aos ortodoxos.
Dióscoro, o patriarca de Alexandria, amigo de Éutiques,
adulterando a Carta de Leào Magno e as Atas do Concilio de
Calcedônia, fazia crer ao povo que, em tais assembléias, triunfara o
nestorianismo que Cirilo tanto combatera.
A paixão e o fanatismo pela causa de Dióscoro se inflamara a
tal ponto que, o imperador Marciano, tendo-o desterrado e
substituído pelo bispo católico Protério, fez estalar em

144
Alexandria sangrenta revolução, em que foi assassinado o novo
bispo, e os soldados do imperador, que tentavam evitar o crime,
foram queimados vivos, no templo de Serapis.
Nesta altura, Alexandria tomou-se a capital do monofisismo.
Daí se irradiou por todo o Egito, Etiópia, Síria e Armênia. Os
monofisitas tentaram conquistar a capital do império bizantino,
Constantinopla. Pela posse desta cidade, travou-se uma acirrada
batalha entre católicos e monofisitas, durante meio século. Como os
imperadores que se revesavam protegiam ora uma, ora outra
tendência, também se revesavam no trono episcopal, ora um católico,
ora um monofisita.
No reinado de Acácio, patriarca de Constantinopla, monofisita
convicto, criou-se o cisma acaciano, o qual separou a Igreja de
Constantinopla da Igreja de Roma, por trinta e cinco anos.

4. O “Henotikon ” do imperador Zenão

De fato, o imperador Zenão Isáurico, percebendo o grande


perigo que um cisma podería provocar para o governo do império,
baixou um “edito de união”, oHenótikon, composto pelos patriarca
de Constantinopla (Acácio) e o de Alexandria (Pedro Mongo).
Difundiu-se, então, por todo o império bizantino, a profissão de fé
monofisita chamada Henotikon ou Unificação. Neste decreto de
unificação, sugere-se que Calcedônia teria errado nas suas
conclusões e não se mencionam as duas naturezas de Cristo. Dizia-
se, apenas, que Cristo era uno, e não dois.
Esta fórmula de fé muito equívoca provoca grande indignação
na Igreja do Ocidente. O papa Simplício excomungou, então, o
imperador Zenão e os patriarcas do monofisismo, Acácio e Pedro
Mongo. Essa excomunhão, contudo, não vai sanar o cisma.
Aconteceu o que mais se temia: a instauração do cisma acaciano, que
só vai ser extinto com a subida ao trono imperial de Justino, ein 518,
e o restabelecimento da profissão de fé de Calcedônia.

145
Em síntese, o Henótikon. após a saudação do imperador aos
bispos e clérigos, aos monges e ao povo espalhados por Alexandria,
Egito, Líbia e Pentápolis, diz: "Nós estamos convencidos de que a
fonte e o sustentáculo de nossa soberania, sua força e inexpugnável
defesa, é aquela única e verdadeira fé que, por inspiração de Deus foi
publicada pelos 318 santos padres reunidos em Nicéia, e confirmada
pelos 150 santos padres que, de modo semelhante, se reuniram em
concilio em Constantinopla. Por isso, nos esforçamos noite e dia por
todos os meios, por oração, por ações corajosas, por legislação, a fim
de promover em toda a parte o crescimento da santa Igreja católica e
apostólica, a imaculada e imortal mãe de nosso reino, para que os
leigos piedosos, pennanecendo em paz e harmonia com Deus,
possam juntamente com os bispos, temamente amados por Deus, com
o piedosíssimo clero, os arquimandritas e os monges, oferecer seu
sacrifício aceitável em favor de nossa soberania. Visto que o nosso
grande Deus e Salvador Jesus Cristo, que se encarnou e nasceu de
Maria, a santa Virgem e Genitora de Deus, aprova e prontamente
aceita nosso culto e serviço harmonioso, o poder de nossos inimigos
será superado e disperso, e as bênçãos da paz, do tempo favorável e
de colheitas abundantes, assim como tudo o que em benefício do
homem, nos será liberalmente concedido.
Por conseguinte, visto que a fé irrepreensível é a nossa defesa e
a do Império Romano, recebemos petições de piedosos
arquimandritas e eremitas, suplicando com lágrimas que as igrejas
sejam restauradas na unidade, que sejam reunidos os membros que o
inimigo de todo o bem desde o princípio tentou por todos os meios
separar uns dos outros, sabendo que será derrotado se atacar quando
o corpo estiver todo reunido (...). Além disso, confessamos que o
Unigênito Filho de Deus, ele mesmo Deus, realmente tomou sobre si
a humanidade, nosso Senhor Jesus Cristo, e que, com respeito à sua
divindade, é consubstanciai com o Pai. sendo com respeito à sua
humanidade consubstanciai conosco; confessamos que ele. descendo
e se encarnando por

146
obra do Espírito Santo e da Virgem Maria, a Genitora de Deus, é um
só, e não dois, visto afirmarmos que pertencem a uma única pessoa
tanto os seus milagres como os seus sofrimentos, que, por sua própria
vontade, suportou na came; de modo algum admitimos aqueles que
fazem uma divisão ou uma confusão, ou apresentam um fantasma,
afirmando nós que sua encarnação verdadeiramente sem pecado na
Genitora de Deus não importou na adição de um Filho, já que a Santa
Trindade continua a existir como Trindade mesmo quando um
membro, Deus o Verbo, se encarnou (...).
(...) Anatematizamos todo aquele que confessou ou confessa
qualquer outra opinião, quer agora, quer em outro tempo, quer em
Calcedônia ou em outro sínodo qualquer; em particular
anatematizamos Nestório, Éutiques e todos os que sustentam seus
ensinamentos”67.

5. Surgimento dos coptas ejacobitas

Através da imperatriz Teodora, os monofisitas pressionavam


Justiniano, o novo imperador, para que condenasse os Três Capítulos.
Os Três Capítulos eram um resumo das obras dos teólogos
nestorianos ou seminestorianos, Teodoro de Mopsuéstia, Teodoreto
de Ciro e de Ibas de Edessa, que foram aprovados pelo concilio de
Calcedônia. Através de um edito, em 543, Justiniano atende a esse
pedido condenando os Três Capítulos. Aos monofisitas restava
convencer o papa Virgílio a fazer o mesmo. Diante de certa
resistência ou hesitação, sentindo que as pressões não produziam
muito efeito, os monofisitas seqüestram o papa e o conduzem a
Constantinopla, onde chegam nos inícios de 547. Mas, bem
informado sobre as questões, o papa continuava a se opor à aprovação
do decreto de condenação do imperador, até que,

flTZenào (Imperador de 474 a 491), apud Evagrius, H.E., III. 14; Texto em H.
Bettenson, pp. 130-132.

147
em 11 de abril daquele ano, enviou ao patriarca Mena, De
Constantinopla, o ludicatum,, no qual condena os Três Capítulos e
reafirma a validade do concilio de Calcedônia. Quando a notícia da
atitude do papa chegou ao Ocidente, os bispos ocidentais reagiram de
maneira violentíssima. As pressões foram tantas, que o papa teve de
suspender a condenação e convocar um novo concilio ecumênico,
realizado em Constantinopla em 553. Este que foi o II concilio de
Constantinopla e o V ecumênico, sem a participação do papa,
condenou os Três Capítulos, e o papa Virgílio, que vinha sofrendo
contínuas vexações, acabou confinnando a condenação em 8 de
dezembro de 553.
As reações no Ocidente foram extremamente negativas,
sobretudo na África, onde o imperador Justiniano teve de impor a
aprovação da condenação pela força. Favorecidas por motivos
políticos, dos longobardos que em breve invadiríam Roma, as igrejas
do patriarcado da Aquiléia separaram-se da comunhão romana,
criando um cisma que será extinto, apesar dos esforços de conciliação
de Gregório Magno, somente pelos fins do século VII, em 689.
O patriarcado de Alexandria continuou sua tradição monofisita,
que vinha sendo sustentada pelo patriarca Timóteo Eluro,
primeiramente, e Pedro Mongo, depois. Como naquele tempo se dava
aos egípcios o nome decoptos, a Igreja monofisita do Egito passou a
ser chamada de "Igreja copta”. Ainda hoje subsiste com esse nome e
continuam monofisitas também os etíopes e várias comunidades
cristãs da Síria e da Armênia.
Um monge sírio, Jacó. ordenado bispo de Constantinopla.
consagrou-se à restauração do monofisismo em toda a região da Síria
e da Armênia. Disfarçado de mendigo, percorreu todas estas regiões
ordenando bispos e sacerdotes, reagrupando igrejas dispersas. Desse
modo se formou, na Síria, a Igreja que, devido a seu nome, se chama
“Igreja jacobita”. Os cristãos da Igreja católica passaram a ser
chamados pelos coptas e jacobitas de melquitas, calcedonianos ou
imperialistas.

148
Mas não se escondem aqui, por trás da heresia uma profunda
divergência sociocultural e política? De fato, as divergências não
residiam somente nas opiniões sobre a natureza divina e humana de
Cristo, sobre sua pessoa. Atrás delas se escondia uma opinião, uma
vontade de liberdade, de autonomia, de se sobrepor. As heresias ser­
viam de veículos, de instrumentos de vazão do ódio nacional, e
mesmo racial entre estes povos convertidos à força, por decreto. Os
povos orientais, que tinham sido submetidos ao império romano,
guardavam um oculto rancor contra aqueles que lhes impuseram o
jugo. Consciente ou inconscientemente, desejavam recuparar sua
personalidade histórica que lhes havia sido arrebatada pelo domínio
dos “Césares”. Egito e Síria, especialmente, desejavam ser algo mais
que meras províncias do mundo romano. Assim, o monofisismo veio
a ser, para egípcios e sírios, um bom pretexto de fermentação
nacionalista. A rebelião religiosa da Síria e do Egito contra a Igreja
imperial, representava uma reação nacionalista dos elementos
orientais contra o predomínio dos elementos romanos, ocidentais.

6. A permanente tentação monofisita

Hoje há uns 6 milhões de monofisitas no Egito, uns 15 milhões


na Etiópia, formando a mais antiga Igrej a negra da África e uns 4
milhões de armênios separados.
Sempre houve, entre os cristãos, uma “tentação monofisita”.
Embora mantendo-se sempre “ortodoxos”, isto é, na fé da Igreja
católica romana, formulada pelos concí- lios, muitos cristãos
revelam uma tendência monofisita. Isso ocorre quando, por exemplo,
insistem quase exclusivamente no “Cristo nosso Deus”. Outros não
vêem em Cristo senão o “Deus presente e agindo sob a roupagem de
homem”, deixando em segundo lugar, ou até ignorando sua real
humanidade. Mesmo quando mencionam sua vida terrestre, como
ocorre nas devoções como as da via-sacra,

149
presépio, venera-se sempre e, sobretudo, “os fatos e as obras do Filho
de Deus", o “deus-conosco” e encobrem o papel próprio e consciente
do “homem Jesus”. Os frequentes suspiros ou expressões dos
devotos do “bom Deus”, referindo-se a Jesus, “o bom Deus no
tabemáculo” ou a “Cristo no santíssimo sacramento do altar”, o
“levar o bom Deus aos doentes” escondem o monofisita que mora no
devoto. A grande festa tradicional desde o século XIII, não é
dedicada a Jesus, mas ao “Corpo de Deus” (Corpus Christi, não ao
corpo de Cristo humano, terreno, mas ao corpo do Cristo glorifícado,
divinizado, que corresponde ao “Corpo de Deus”). Por isso E.
Masure escreveu: “O monofisismo é atentação ordinária das pessoas
piedosas mas ignorantes. O Cristo que elas adoram e a quem rezam,
é, como elas dizem, ‘o bom Deus’ (...). Todo o realismo cristão é
evaporado. É uma religião sem força nem originalidade. Ela é
infelizmente difiisa, muito espalhada nos meios dos crentes e. como
micróbio sutil, ela é dificílima de ser diagnosticada, combatida e
exorcizada”08.
Mas. esta tendência monofisita não se revela só no aspecto
devocionaL Certa teologia-cristologia se inclina, ou melhor, tem uma
grande atração por enfatizar a “pessoa divina” de Cristo, sua
divindade, embora continue falando das duas naturezas. Toda uma
concepção e representação da Igreja, dos sacramentos, dos santos se
ressentem desta perspectiva, que desconhece o realismo e a
autonomia da humanidade de Jesus.
É com estas palavas que P. Smulders conclui sobre as
controvérsias cristológicas ocorridas ao longo do século V: “A
grande disputa cristológica, que se incendiou no ano de 428,
alcançando seu ponto culminante em Éfeso e obtendo um fim
transitório em Calcedônia, pertence às páginas mais trágicas da
história da Igreja. Foi aí que se originaram divisões que ainda não
estão sanadas. O exemplo de comportamento não-cristão para com
os próprios cristãos, que então assumiu proporções mundiais
encontrou a cada passo, demasiados

“Le sacrifice du Chef, 2ême éd., Paris. 1932. p. 133.

150
imitadores. Entretanto, olhando para trás, nos perguntamos se o
conflito não poderia ter-se evitado. Realmente, quanto ao conteúdo,
os pontos de vista de ambas as partes se distanciavam muito menos
do que eles supunham”6''.

MMysterium Salutis. Compêndio de dogmática histórico-salviflca, III/3: O Evento


Cristo. A cristologia na história dos dogmas, Vozes, 1973, p. 59; A. Grillmeier, op. cit.
I/II, pp. 929-968; Liberato di Cartagine, Breve storia delia controvérsia nestoriana ed
eutichiana, acuradi F. Carcione, Anagni, Pontif. Collegio Leoniano. 1989.

151
CAPÍTULO XIII

MONOTELISMO: ÚLTIMA HERESIA


CRISTOLÓGICA, NO PERÍODO
PATRÍSTICO

Como os monofisitas se aferrassem à idéia de que o concilio de


Calcedônia deixava brechas no dogma da unidade essencial da
pessoa de Cristo, viam nele uma vitória dos nestorianos. Para tirar
dos monofisitas tal pretexto, delegado para conter a rebelião, o
imperador Justiniano reuniu o concilio de Constantinopla, em 553,
considerado o V Concilio Ecumênico. Nele foram condenados
expressamente os Três Capítulos tidos como a base teológica dos
nestorianos.
Pensou-se contentar, com isso, aos coptos e aos jacobitas, mas
não lhes aplacou a ira; mostravam-se intratáveis, exigindo a anulação
das decisões de Calcedônia e que toda a Igreja professasse o
monofisismo.

/. O trabalho de bastidores do patriarca Sérgio

Foi então que o patriarca Sérgio, de Constantinopla, pensou


numa fórmula de conciliação. De fato, o patriarca Sérgio, com o
objetivo de reconciliar calcedonianos e mono-

153
fisitas. pensou em deixar de lado o conceito de “natureza”,
valorizando, em seu lugar, o conceito de “energia”, de vontade. Ora,
a vontade, a energia de Cristo, deriva de sua personalidade (de sua
hypóstase) que é una, e não das duas naturezas. Portanto, há, em
Cristo, uma só operação, uma só energia (monoenergismo), dado que
seu agir provém da pessoa que é una, e não das duas naturezas. Sérgio
pensava: se a união entre as duas naturezas em Cristo é tão estreita,
que não há nele senão uma só pessoa, a divina, nunca houve nele
mais que uma só vontade (mónos-thélerna = uma única vontade) e
uma só ação.
Imediatamente, Ciro de Fásis, patriarca de Alexandria, aderiu à
proposta de Sérgio. Mas Sofrônio, o patriarca de Jemsalém, revelou-
se violento opositor, porque via no monotelismo uma traição ao
concilio de Calcedônia.
Para vencer os que se opunham à sua fórmula. Sérgio escreveu
ao papa Honório, queixando-se de que, por culpa de Sofrônio, os
cristãos se debatiam por uma questão secundária. Mostrou-lhe Sérgio
a conveniência de fazer cessar tais disputas para evitar o risco de que
novas comunidades cristãs se separassem da Igreja romana. Pedia-
lhe, portanto, que declarasse inoportuna a distinção entre uma ou
duas vontades, entre uma ou duas energias, em Cristo.
Enganado ou mal-informado. o papa Honório pensando mais na
paz do que em teologia, seguindo os conselhos de Sérgio, faz uma
infeliz intervenção na questão monotelita. pela qual será,
posterionnente, condenado como herético. Escreveu Honório aos
patriarcas de Constantinopla e de Jerusalém, manifestando-lhes que
a controvérsia sobre o monotelismo era mais uma questão de palavras
sem importância. Embora fosse certo que em Cristo houvesse duas
naturezas, confessa, por causa da íntima união das naturezas, uma só
vontade. Ele considerava, ao que parece, a tenninologia coisa
indiferente, entendendo que a vontade humana de Jesus não podia
estar em conflito com sua vontade divina. As duas naturezas, agindo
em uníssono, não podiam ser distintas de uma só vontade. Esta
manifes

154
tação do papa reforçou consideravelmente a posição monotelita.

2. O 'Ekthesís” do Imperador Heráclito

Foi então que o imperador Heráclito. tentando restabelecer a


paz e a união entre as igrejas e com isso reabilitar sua força política,
aproveitou para promulgar, em 638, um edito chamado Ekthesís.
Trata-se de uma exposição em que se impõe a todos os cristãos a
obrigação de confessar em Jesus Cristo uma só vontade. Expõe-se a
perfeita harmonia, em Cristo, entre as vontades divina e humana, que
por essa razão, formam uma única vontade. Como se pode observar,
esta doutrina priva a natureza humana de vontade e energia próprias,
tomando-a uma natureza desfigurada. Em síntese, diz a Ekthesís:
“...uma única vontade de nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro
Deus, pois a came animada pelo espírito, nunca atuou pelo próprio
impulso e em oposição à vontade do Verbo de Deus, mas apenas
quando, como e na mediada que o Verbo de Deus queria” (cf. Mansí,
X, 996 A-C).
Sérgio transfere a discussão do plano ontológico (do ser de
Cristo, de sua natureza, pessoa) para o plano dinâmico, da atividade
e vontade de Cristo. Parece que esta doutrina nasceu de uma
antropologia ainda imprecisa: a atividade humana procede
imediatamente da “natureza” ou da “pessoa”, do sujeito divino. E,
com certeza, a negação do caráter próprio e da autonomia humana
real, da atividade e da vontade humanas de Jesus. Desconhece todo
o realismo do “homem Jesus”. Permanecia em Jesus somente uma
espontaneidade e uma liberdade própria do Verbo de Deus. A
vontade humana, desprovida de iniciativa e de liberdade, comportar-
se-ia como um puro instrumento material70.

°Cf. J. Doyon, Cristologiapara o nosso tempo, S.Paulo, Paulus, 1972, pp. 266-267.

155
Como o papa Honório viesse a falecer pouco tempo depois do
lançamento da Ekthesis, o imperador Heráclito estabeleceu que seu
substituto deveria ser alguém que apoiasse e defendesse seu edito.
Como o escolhido fosse o bispo Severino, adversário àa Ekthesis,
este teve de aguardar durante 20 meses para obter a permissão do
imperador para ser consagrado. Mas, como papa, Severino contestou
a imposição imperial anatematizando o monotelismo. Em represália,
o imperador ordenou o saque ao palácio papal de Latrão, que foi
assaltado pelos próprios soldados do imperador.
Finalmente, Heráclito declarou ao morrer, em 641, que se
submetia ao papa, atribuindo ao patriarca de Constantinopla, Sérgio,
a responsabilidade da fórmula monotelita de 638, a famosa Ekthesis.

3. O “Typos ” e a violência do Imperador Constante II

No entanto, o monotelismo fazia progressos em Constantinopla,


sob a proteção dos patriarcas Pirro e Paulo e encontrava vasto
consenso fundado ainda sobre o equívoco teológico e sobre o
oportunismo político. Paulo convenceu o novo imperador, Constante
II, a publicar um novo edito monotelita que se denominou Typos
(Regra). Este Typos vetava toda discussão sobre a vontade e energia
em Cristo. Pretendia-se impor silêncio à toda a Igreja sobre a questão
monotelita. Por sua vez, o papa Martinho I, sucessor de João IV,
convocara um sínodo romano pelo qual respondeu ao imperador
condenando como heréticos tanto o Ekthesis e o Typos, quanto os
patriarcas Sérgio, Pirro e Paulo. Esta condenação, por sua vez, irritou
o imperador, que, em represália, mandou encarcerar o papa,
conduzindo-o como prisioneiro a Constantinopla. Ali, embora
achando-se enfermo, sofreu o papa inúmeras crueldades, entre as
quais a de ficar exposto, no porto de B izâncio, a todos os insultos e
desmandos dos monotelitas. Por fim, o imperador mandou instruir
um processo criminoso contra ele acusando-o com falsas teste

156
munhas, de haver usurpado a sede do episcopado de Roma,
falsificando a fé, blasfemando contra a Virgem Maria e atraiçoado o
império, aliando-se aos muçulmanos. O papa foi condenado ao
desterro e morreu na Grécia.
Mas a violência do imperador Constante II perseguiu também
outro inimigo do monotelismo, o monge Máximo Confessor. A este,
em 662, depois de o haver torturado, mutilou-o cortando-lhe a mão
direita e a língua, pelas quais se opunha ao monotelismo e ao edito
do imperador. O pensamento básico destes opositores era o seguinte:
se a liberdade humana de Jesus nada mais era do que um instrumento
passivo da sua vontade divina, sem movimento próprio, então o
homem-Deus não assumiu, realmente, aquilo que é, no homem, o
lugar da rebeldia, da desobediência ou da obediência para com Deus.
Desse modo, se vê como uma questão teológica se transforma
em questão política. Somente com a morte de Constante II, e com a
situação política mudada, o papa Agatão consegue reunir aquele que
será o VI Concilio Ecumênico, conhecido como o III Concilio de
Constantinopla.

4. OIII Concilio de Constantinopla (in Trullo): novas controvérsias

De fato, neste concilio, também chamado in Trullo ou Trulano,


porque realizado na sala abobadada do palácio imperial, a partir da
fé expressa em Calcedônia, além de condenar os monotelitas,
incluindo o papa Honório, ensina que, em Cristo, há duas vontades e
duas operações distintas, mas inseparáveis, sem confusão, não
opostas entre si, e que a vontade humana estava subordinada à
vontade divina. Depois de repetir as conclusões de Calcedônia sobre
a pessoa de Cristo, o concilio trulano afirma: “Pregamos também
duas vontades naturais nele, bem como duas operações naturais
(enérgeiai), sem divisão, sem mudança, sem separação, sem partilha,
sem confusão. Isto pregamos de acordo com a doutri

157
na dos santos Padres. Duas vontades naturais, não contrárias (que
Deus o afaste), como afirmam os ímpios hereges, mas sua vontade
humana seguindo a vontade divina e onipotente, não lhe resistindo,
nem se lhe opondo, mas antes sujeita a ela. Pois a vontade da carne
tinha de ser dirigida e estar sujeita à vontade divina, segundo o
sapientíssimo Atanásio. Porque assim como se diz que sua carne
deve ser e é a carne de Deus Verbo, assim se diz que a vontade natural
da carne pertence a Deus Verbo, como de fato pertence; ele mesmo
o diz: ‘...desci do céu não para fazer minha própria vontade, mas a
vontade do Pai que me enviou’ (Jo 6, 38), designando como ‘própria’
a vontade da came, visto que a carne se tomou sua própria carne.
Portanto, assim como sua santíssima e imaculada came,
vivificada pela alma, não foi destmída ao ser deificada, mas
continuou no seu próprio estado e esfera, assim também sua vontade
humana não foi destmída ao ser deificada, mas antes foi preservada,
como diz Gregório, o teólogo: ‘Pois o querer que entendemos ser um
ato da vontade do Salvador não é contrário a Deus, mas é
inteiramente dei ficado’”71.
Afinna, portanto, o VI Concilio Ecumênico as duas vontades e
duas energias, em Cristo, conforme sua dúplice natureza, divina e
humana. Condena-se o monotelismo e o monoenergismo e seus
principais representantes. Além destes aspectos doutrinários, este
concilio tomou-se importante pelos aspectos disciplinares das igrejas
orientais: 102 cânones atingem toda a vida religiosa dos fiéis e dos
clérigos. O cânone 13, por exemplo, é relativo aos diáconos e aos
presbíteros casados. O cânone 36 afinna que a sede de
Constantinopla é a segunda depois de Roma e dotada de igual
autoridade.
Mas o imperador bizantino, monotelita, reagiu negativamente
às conclusões deste concilio. Reuniu, em represália, um grande
número de bispos orientais e os obrigou a condenar estas conclusões.
Em seguida, uma revolução depôs o imperador.

•Terceiro Concilio Ecumênico de Constantinopla, 681, (Mansi, XI. 635 C ss). Texto
em H. Bettenson, p. 134.

158
O monotelismo constituiu o último degrau da escada de
heresias cristológicas inauguradas seis séculos antes por Cerinto.
Mas, o espírito sofisticado que reinava em bizâncio, sempre disposto
a novas distinções, sutilezas, levantaria novas controvérsias como a
iconoclasta e a questão do fUioque
* 23Mas aí já estamos na Idade
Média.

2J. Bois, “111 Concilede Constantinopla”, em Dictionnairede Thcoiogie Catholique


3 1. PP- 1259-1274; L. Brehier, “La crise de 1’empire et le redressement d’Heraclius
(611-632)”. em 1listoire de 1'Eglise, par Fliche-Martin. V. pp. 79-210; “La nouvelle crise
religieuse”, ibidem, pp. 120-124; pp. 397-400; F. Carcione. La gcnesi storico- teologica
dei monotelismo maronita, Unitor, Roma, 1990; Idem, Sérgio di Constantinopoli ed
Onorio I nella controvérsia monotelita dei VII secolo, Pont. Univ. Lateranense-I nstituto
di Scienze Religiose, Roma. 1985; L. Duschene. UEglise au 17 siècle. Paris, 1925. pp.
391-485; P. Galtier,“La premièrelettredu papa Honorius”,em Gregorianum 29,148. pp.
42-61; V. Monarchino, “Onorio I e il monergismo",em/papi nella Storia 1. pp. 206-220;
M. Simonetti, “Monoernergismo, monotelismo”. em Dizionario patristico e di antichità
cristiane, (G-Z), pp. 2289-2291.

159
CONCLUSÃO

A grande maioria dos que constituíam as comunidades dos


discípulos dos primeiros séculos pertencia às classes subalternas,
oprimidas, pobres, proletárias. Acolhiam a mensagem do reino de
Deus como iminente. Identificavam-se com Jesus, o profeta enviado
por Deus que se tomou o Messias.
Passado o período de perseguição, com a paz constantiniana,
operou-se uma profunda mudança nas representações cristológicas.
A comunidade se encheu de cristãos provenientes de outras camadas
sociais, daqueles que exerciam cargos públicos e de intelectuais
oriundos de famílias nobres.
O século IV foi um dos mais agitados em termos de discussões
doutrinais e condenações. Foi o século em que se operou a passagem
do cristianismo de religião ilícita para religião lícita. Na verdade,
percebe-se que, por detrás destas discussões religiosas, há muitos
elementos que vêm à tona recalcados ao longo de séculos de
competições políticas, disputas por supremacia do poder, repressões
econômicas. Os que negavam a igualdade substancial do Filho com
o Pai, como Ario, por exemplo, desprestigiavam a Igreja oficial,
hierárquica, e seu exercício presbiteral-episcopal, minando seus
poderes. Nos hinos arianos que se cantavam pelas bocas dos
sapateiros, açougueiros, marinheiros, barbeiros, disputando sobre a
consubstancialidade do Filho com o Pai, escondia-se o amargo
desejo de oposição a uma classe

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dominadora, opressora, que sempre ditava as regras. As autoridades
que impuseram a igualdade consubstanciai de Jesus com o Pai não
transferiram essa participação-igualda- de em nível político nem para
dentro da Igreja. Combateram e condenaram o mon arquianismo,
mas continuaram a defender o princípio e o exercício monárquico do
poder-govemo, isto é, a concentração do poder de governar numa só
pessoa. Aqueles que, explorados, apoiavam a proclamação da igual­
dade de Jesus com o Pai, esperavam, certamente igualar-se a seus
senhores, a ter direitos e mesa iguais, mas a realização deste sonho
lhes foi negada.
A heresia como problema teológico provocou e acionou os
poderes imperiais. Constantino, homem de larga visão política, viu
que o cristianismo lhe servia para diminiur o impacto desagregante
das diversidades sociais e econômicas existentes no império, entre
ricos e pobres, entre proletários e latifundiários.
Com a entrada de Constantino e, mais tarde, de Teodósio, foram
se amarrando os laços entre Igreja e Estado. O apoio recebido dos
imperadores, quer pelos ortodoxos, quer pelos heréticos, reforçou as
tendências cesaropapistas do Estado. Especialmente para a parte
oriental do império, menos na parte ocidental, o império bizantino
atingiu uma verdadeira supremacia estatal sobre a Igreja, o que foi
preparando o grande cisma de 1054.
Se o cristianismo teve origem naquele tempo em que “Houve
um edito de César Augusto” (Lc 2,1), solidificou-se pela condenação
e morte de Jesus sob responsabilidade de “Pôncio Pilatos”(Mc
15,15), afirmou-se, defmitivamente, na aliança com Constantino e
Teodósio. As discussões teológicas têm de ser lidas na ótica da
disputa pela prática do poder. As questões metafísicas, intradivinas,
recebem um tratamento político e são resolvidas, aqui na terra, quase
sempre pelo emprego da violência. A Igreja - que foi assumindo e
pondo a seu serviço a filosofia grega, a ascese e a moral estóicas,
alguns ritos e festas pagãs - agarrou-se depois ao braço secular, à
força da espada e dos decretos imperiais.

162
Teologicamente, a conseqüência mais sentida é que, a partir do
dogma de Nicéia. declarando a igualdade substancial de Cristo com
Deus, colocando-o no mundo divino- celeste, ele se distanciou dos
fiéis. Passou a ser tratado sempre como Deus, como segunda pessoa
da Trindade. Logo após o Concilio de Nicéia, apareceram as
primeiras imagens de Jesus Cristo vencedor, revestido da púrpura
imperial. Mais tarde, as figuras do Pantocrator, o Cristo todo-
podero- so. dominador dos reinos, nos traços e feições do imperador
bizantino. Um clima de terror se espalhou entre as massas,
especialmente, no Oriente. O sacrifício da missa, a basílica, a mesa
do altar e outros objetos “sacros” receberam os adjetivos de fríktos
(temíveis) e féberos (terríveis). A missa bizantina passou a ter uma
entrada solene em que o coro saudava o Cristo glorioso, triunfante,
na pessoa do sacerdote, como rei da criação. Os fiéis se prostravam
à passagem do celebrante e uma nuvem imensa de incenso invadia a
nave da basílica. Por outro lado, o vazio deixado pela humanidade de
Jesus, pela afirmação exclusiva de sua divindade, começou a ser
preenchido pelo florescimento do santoral, da mariologia e das
relíquias. Surgiram os novos mediadores, entre o povo e Cristo-Deus.
A cristologia não teve mais seu ponto de partida nos evangelhos
“históricos”, do “Jesus histórico”, mas do ser preexistente, do Logos
divino, eterno, consubstanciai ao Pai. Deixou de lado a práxis
histórica de Jesus como luta contra os mecanismos de opressão, da
injustiça, próprias da Palestina de seu tempo, para interpretar seus
atos, suas palavras na linha dos milagres que demonstram sua
divindade. Sua morte não foi mais interpretada como resultado de
seu enfrentamento com os poderes dominantes político-religio- sos,
mas como expiação por nossos pecados. Sua ressurreição era a prova
acabada e absoluta de sua divindade, não a afirmação da continuação
de sua “práxis messiânica”, através de seus discípulos.
A cristologia procurou desenvolver-se a partir daquilo que, em
concílios ou sínodos, ficou fixado como ortodoxo, isto

163
é, dogmático. A agressividade dos oprimidos foi transformada em
opressivos complexos de culpa, o que fez da religião cristã o melhor
suporte da ordem constituída.
A partir do momento em que a cristologia se transformou em
especulação fdosófico-metafísica sobre a natureza de Jesus Cristo,
sobre sua constituição, se afastou das massas o profeta portador de
esperanças. Esta especulação se fez em termos que tomaram
insignificante a história pessoal de Jesus de Nazaré, perdendo-se
numa metafísica atemporal. Os poderosos amam que o povo renda
homenagens às suas representações celestes. Adorando o Cristo
celeste, a segunda pessoa da Trindade, os poderes políticos,
econômicos, pedagógicos e religiosos estão a salvo. Sacralizam e
ancoram para sempre seus tronos.

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ÍNDICE

5 INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I

7 PRIMEIRAS CONTROVÉRSIAS NO SEIO DA IGREJA NAS­


CENTE

9 1. Tendência judaizante radical


10 2. Tendência judaizante moderada
11 3. T endência helenista
12 4. Tendência dos helenistas radicais
12 5. Os nicolaítas
15 6. Cerinto: Jesus nào é o Cristo
16 7. A variante elcasaíta
17 8. O adocionismo de Hermas
19 9. O adocionismo ebionita
22 10. O desenvolvimento do adocionismo

CAPÍTULO II

27 CONFLITOS PRO l 'OCADOS PELO DOCETISh IO E PELA


GNOSE

27 1. Docetismo ou a negação da corporeidade de Jesus


31 2. A emergência do gnosticismo
3. Conteúdo doutrinai do gnosticismo
33
4. O gnosticismo no tempo dos apóstolos
36
5. Gnosticismo no século II
37
6. O gnosticismo de Marcião ou o “Primogênito de Satanás”
39
a) A origem do marcionismo
40 b) A doutrina de Marcião
41
CAPÍTULO III
FIDELIDADEMONOTEÍSTA: MONARQUIANISMO E
45 PATRIPASSIONISMO

1. Monarquianismo: não é possível um “Segundo Deus’’


45 2. O monarquianismo de Noeto
46 3. O patripassionismo de Práxeas
47 4. Sabelianismo ou a monarquia em tríplices operações
48 5. Paulo de Samósata ou o monarquianismo adocionista
51
CAPÍTULO IV
55 MONTANO: UM CONFLITO ECLESIOLÓGICO
55 1. A emergência do montanísmo
56 2. Caráter milcnarista do montanísmo
58 3. O rigorismo montanista

CAPÍTULO V
61 DONATISMO: A GRANDE CRISE DA IGREJA AFRICANA
62 1. Fim do cristianismo como “religião ilícita”
64 2. Os inícios do conflito
66 3. Intervenção do Imperador Constantino
69 4. Desenvolvimento e queda do donatismo
71 5. A doutrina donatista
73 6. Conclusão

CAPÍTULO VI
75 CONCEPÇÕES CRISTOLÓGICAS SURORDINACIONISTAS
76 1. Orígenes, subordinacionista?
77 2. Novaciano: a inferioridade do Filho
80 3. A entrada do termo Logos na controvérsia cnstológica
814.0 conceito Fogos em Fílon de Alexandria

CAPÍTULO VII
85 A CONTROVÉRSIA ARIANA
85 1. A doutrina cristológica de Ario
86 2. Em que consiste a doutrina ariana?
87 3. Os argumentos de Ario
89 4. Primeira condenação de Ario
91 5. A entrada de Constantino nas discussões teológicas
93 6. As questões conciliares
94 7. O retomo do arianismo
96 8. O anomeísmo

CAPÍTULO VIII
99 A HERESIA APOLINARISTA
99 1. Quem era Apolinário?
100 2. A cristologia proposta por Apolinário
103 3. Consequências desta cristologia
CAPÍTULO IX

107 PRISCILIANO: PRIMEIRO HEREGE CONDENADO À MORTE


108 1. Suspeito de heresia
109 2. Agravamento do conflito
111 3. Repercussão da condenação de Prisciliano à morte

CAPÍTULO X
113 PELÁGIO E O PELAGIANISMO
113 1. As origens do pelagianismo
114 2. A posição teológica de Pelágio: uma concepção do homem e da
graça
116 3. A polêmica com Agostinho
118 4. Nova versão do cristianismo?
120 5. Resumindo

CAPÍTULO XI
123 NESTORIANISMO: AFIRMAÇÃO DE DUAS PESSOAS EM
CRISTO
124 1. A escola teológica de Antioquia
125 2. Nestório
126 3. Situação socioeconômica do tempo de Nestório
127 4. As teses nestorianas
130 5. A controvérsia com Cirilo de Alexandria
131 6. As teses de Cirilo
133 7. O Concilio de Éfeso
134 8. A sobrevivência do nestorianismo
135 9. Por que Éfeso?

CAPÍTULO XII
139 ÉUTIQUES OU OMONOFISISMO
139 1. A afirmação de uma única natureza em Cristo
142 2. O “Tomo de Ixjào” e o “Concilio de Ladrões”
144 3. Alexandria: capitai do monofisismo
145 4. O “Henotikon” do imperador Zenào
147 5. Surgimento dos coptas e dos jacobitas
149 6. A permanente tentação monofisita
CAPÍTULO XIII
153 MONOTELISMO: ÚLTIMA HERESIA CRISTOLÓGICA DO
PERÍODO PATRÍSTICO
153 1.0 trabalho de bastidores do patriarca Sérgio
155 2. O “Ekthesis” do imperador Heráclito
156 3. O “Typos’’ e a violência do imperador Constante II
157 4.0III Concilio de Constantinoplafm Trullo): novas controvérsias
161 Conclusão

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