Você está na página 1de 666

A F am osa C o le tâ n e a d e T ex tos das

V e rd ad e s B íblicas F u n d a m e n ta is

F un dam en tos

Editado por R. A, Torrey Atualizado por Charles L. Feinberg e Outros


Introduções Biográficas de Warren W. Wiersbe

MAGNOS
C o p y r ig h t © 1958, 1990 p o r B io la U n iv e r s it y
P u b lic a d o o r ig in a lm e n t e p o r K r e g e l P u b lic a t io n s , a d iv is io n o f K r e g e l,
In c ., P.O. Box 2607, G r a n d R a p id s , M I 49501. U SA

T it u lo o r ig in a l
The Fundam entais:
T h efa m o u s sourcebook o ffo u n d a tion a l biblical truths
T rad u ção
Cláu d io J. A . Rodrigues
R e v is ã o
Lena Aranha
Capa
M arcelo M oscheta
D ia g r a m a ç â o
Patricia Caycedo
C o o r d e n a d o r de p ro d u ç ã o
M auro W. Terrengui

Ia edição - Fevereiro -2005


Im p re s s ã o e a c a b a m e n to
Imprensa da Fé

D a d o s In te r n a c io n a is de C a t a lo g a ç ã o n a P u b lic a ç ã o (C IP )
( C â m a r a B r a s ile ir a d o L iv r o , SP, B r a s il)

Os F u n d a m e n t o s : a fa m o s a c o l e t â n e a d e t e x t o s d a s v e r d a d e s b íb lic a s
f u n d a m e n t a is / e d it a d o p o r R .A . T o r r e y ; a t u a l i z a d o p o r L . F e in b e r g
e o u t r o s ; i n t r o d u ç õ e s b io g r á f ic a s d e W a r r e n W . W ie r s b e ; [ t r a d u ç ã o
C l á u d i o J . A . R o d r i g u e s ] . -- São P a u lo : H a g n o s , 2005.
T it u l o o r ig in a l : T h e F u n d a m e n t a l s : t h e f a m o u s s o u r c e b o o k o f
E O U N D A T IO N A L B IB L IC A L T R U T H S .

1. F u n d a m e n t a l i s m o 2. T e o lo g ia d o u t r in a l
I. T o rre y , R .A . (R e u b e n A r c h e r ) , 1856-1928.
I I . F e in b e r g , C h a r l e s L e e .
I I I . W ie r s b e , W a r r e n W . I V . T i t u l o .
04-8657 CDD-230.046

Í n d ic e s p a r a c a t á l o g o s is t e m á t ic o :

1. F u n d a m e n t a l i s m o : T e o l o g i a : D o u t r i n a c r i s t ã 230.046

IS B N 85-89320-66-9

Todos os d ireitos desta e d iç ã o reservados à


E D IT O R A H A G N O S
R u a B e la r m in o C a rd o s o de A n d r a d e , 108
São P a u lo - SP - 04809-270 Tel/Fax: ( x x ll) 5668-5668
e-m ail: h a g n o s @ h a g n o s .c o m .b r w w w .h a g n o s .c o m .b r
índice

Prefácio à edição brasileira 9


Prefácio à última edição norte-americana (1990) 11
Prefácio 13
1A história da alta crítica 15
Canon D yson H ague , M. A.,
2 A autoria do pentateuco 23
“A AUTORIA MOSAICA DO PENTATEUCO”
P rof . G eorge F. W right , D.D., LL. D.
“T rês p e c u l i a r i d a d e s d o p e n t a t e u c o in c o m p a tív e is c o m a s t e o r i a s
DE GRAF-WELLHAUSEN REFERENTES À COMPOSIÇÃO DESSE LIVRO”
A n d r e w C. R obinson , M.A.
3 A Bíblia e a crítica moderna 31
D avid H eagle , D .D .
4 As sagradas escrituras e as negações modernas 37
P rof . J am es O r r , D .D .
5 Crítica ao antigo testamento
e ao cristianismo do novo testamento. 49
P rof . W. H. G riffith T homas D.D.
6 O testemunho de Cristo ao Antigo Testamento 63
W illia m C aven , D.D., LL.D.
7 A evidência interna do quarto evangelho. 73
Canon G. O sborne T roop , M.A.
8 As primeiras narrativas de Gênesis 81
P rof . J ames O r r , D.D.
9 Um Isaías 89
P rof . G eorge L. R obinson , D.D.
10 O livro de Daniel 97
P rof . J oseph D. W ilson , D.D.
110 valor doutrinai dos primeiros capítulos de Gênesis 105
R ev. D yson H ague , M .A .
12 0 testemunho arqueológico para as escrituras 121
“ O TESTEMUNHO DOS MONUMENTOS PARA A VERDADE DAS ESCRITURAS”
P r o f. George F. W r ig h t, D.D., LL.D.
“ O TESTEMUNHO RECENTE DA ARQUEOLOGIA PARA AS ESCRITURAS”
M . G . K y l e , D .D ., L L .D .
13 Ciência e fé cristã 129
P rof . J ames O r r , D .D .
14 A inspiração da Bíblia — definição, extensão e prova 141
Rev. James M. Gray, D.D.
15 Inspiração 165
L. W. M u n h a ll, M . A., D.D.
16 A glória moral de Jesus Cristo, uma prova da inspiração 177
Rev. Wm. G. M oo rehead, D.D.
17 O testemunho da escritura em relação a si mesma. 191
Rev. G eorge S. Bishop, D.D.
18 O testemunho da unidade orgânica da Bíblia à sua inspiração 199
A rth u r T. PlERSON, D.D.
19 A profecia cumprida, um forte argumento para a Bíblia 209
A rn o C. G aebelein, D.D.
20 Vida na palavra 217
P h il ip M auro
21 Existe um Deus? 241
Rev. Thomas W h ite la w , M.A., D.D.
22 Deus em Cristo, a única revelação da paternidade de Deus 251
R obert E . S peer
23 A divindade de Cristo 263
P r o f. Benjamim B . W a r fie ld , D.D., LL.D
24 O nascimento virginal de Cristo 271
P rof . J ames O r r , D .D .
25 O Deus-Homem 281
J ohn S tock
26 A certeza e a importância da ressurreição
corporal de Jesus Cristo dentre os mortos 297
R ev. R. A. T orrey, D.D.
27 A personalidade e a divindade do Espírito Santo 313
Rev. R . A . T orrey, D.D.
28 O Espírito Santo e os filhos de Deus 319
Rev. W . J . E rdm an, D.D.
29 O cristianismo não é fábula 327
Rev. Thomas W h ite la w , M.A., D.D.
6
30 A concepção bíblica de pecado 339
Rev. Thomas W h ite la w M.A., D.D.
31 O testemunho de Paulo quanto à doutrina do pecado 349
P r o f. C h a rle s B. W illia m s , B.D., Ph.D.
32 Pecado e julgamento futuro 361
S ir R o b e rt A nderson, K.C.B., LL.D.
33 O que Cristo ensina sobre retribuição futura 369
Rev. W illia m . C. P r o c te r , F.Ph.
34 A expiação 377
P rof . F ran klin J ohnson , D .D ., L L .D .
35 Expiação por meio da propiciação 387
Dyson H ague, M.A.
36 A graça de Deus 399
C. I. S c o fie ld , D.D.
37 Salvação pela graça 409
R ev. T homas S purgeon
38 A natureza da regeneração 425
Thomas B o sto n (1676-1732)
39 Regeneração, conversão, transformação 431
R ev. G eorge W . L asher , D .D ., L L .D .
40 Justificação pela fé 439
H . C. G . M ou le , D .D .
41 As doutrinas que devem ser enfatizadas
no evangelismo bem sucedido 449
L. W. M u n h a ll, M.A., D.D.
42 Prega a palavra 459
H oward C rosby
43 Evangelismo pastoral e pessoal,
ou ganhar homens para Cristo um a um 467
R ev. J ohn T imothy S tone , D .D .
44 O verdadeiro evangelismo da escola dominical 477
C harles G allaudet T rumbul
45 O lugar da oração no evangelismo 487
R ev. R. A. Torrey, D.D.
46 Missões estrangeiras ou evangelismo mundial 495
R o b e rt E. Speer
47 Quais motivos missionários devem prevalecer? 513
R ev. H enry W . F rost
48 Consagração (Êxodo 28.40-43) 521
R ev. H enry W . F rost
49 O romanismo é cristianismo? 531
T. W . M edhurst
50 Roma, a antagonista da nação 543
R ev. J . M . F oster
51A Igreja verdadeira 553
J ohn C. R y l e , D .D .
52 Os propósitos da encarnação 559
R ev. G . Cam pbell M organ , D .D .
53 A filosofia moderna 575
P h il ip M auro
54 O conhecimento de Deus 591
Rev. David James B u r r e l l , D .D ., LL.D.
55 A ciência da conversão 601
Rev. H. M . Sy denstricker, P h .O .,
56 O transcurso da evolução 611
P r o f. G eorge F. W r ig h t, D.D., L.L.D.
57 O valor apologético das epístolas de Paulo 625
Rev. E. J. S tobo, J r., B.A., S.T.D.
58 A eficácia divina da oração 633
A rthur T. P ierson , D .D .
59 O ensino de nosso Senhor a respeito do dinheiro 649
A rth u r T. P ierson, D.D.
60 “As escrituras” 657
R ev. A . C. D ix on , D .D .
61 O que a Bíblia possui para o crente 665
Rev. G eorge F. P entecost, D.D.
62 A esperança da igreja 677
Rev. Jo h n M c N ic h o l, BA., B.D.
63 A vinda de Cristo 689
P r o f. C h a r le s R. E rdm an, D.D.
64 O testemunho da experiência cristã 699
P r e s . E . Y. M ullins , D .D ., L L .D .
índice remissivo 705
Notas 710
9

Prefácio
à edição brasileira

5 Fundamentos é uma famosa coletânea teológica de perfil

0 apologético que foi originalmente publicada nos EUA, em


1909. A obra resume em grande parte o perfil teológico
evangelical norte-americano do final do século dezenove e começo
do século vinte. A validade de tal obra no contexto brasileiro con­
temporâneo pode ser detectada por meio de diversos enfoques.
Em primeiro lugar, a obra traz nomes de grande expressão do
mundo evangélico de fala inglesa. Estudiosos destacados como B.
B. Warfield, James Orr, Charles Erdman, G. Campbell Morgan,
James M. Gray, A. T. Pierson, Philip Mauro, C. I. Scofield, C. G.
Moule. Tal empreendimento acentuará nosso frutífero diálogo com
a história do pensamento evangélico, mormente quando compreen­
demos que nossas raízes evangelicais devem muito à contribuição
de missionários da outra América que, sob severas dificuldades e
fatores limitantes, vieram ao Brasil para proclamar o evangelho.
Outro fator que valoriza em muito esta obra é o fato de que seu
editor e idealizador foi um homem extraordinário. Além de possuir
vasta erudição, garimpada tanto nos EUA como na Alemanha, R.
A. Torrey ficou conhecido por sua paixão evangelística e por sua
espiritualidade. Com maestria combinou intelectualidade e vida de
oração. Um dos seus principais temas foi avivamento espiritual. Em
nossa terra, acostumada aos dualismos pós-platônicos, marcada
pela polarização entre razão e espiritualidade, o exemplo de R. A.
Torrey tem muito a ensinar.
Por outro lado, não tenho dúvidas de que alguns círculos
teológicos duvidarão do valor de uma obra como os Fundamentos,
principalmente por aquilo que pode ser chamado de seu perfil
apologético. A verdade é que o cenário iluminista europeu trouxe
uma difícil relação entre “o mundo científico” e o “mundo da fé”. Tal
relação mostrou-se problemática e dolorida no contexto teológico
e religioso protestante, particularmente quando enfoques acentu-
adamente racionalistas do texto bíblico surgiram iluminados pelo
alvorecer do “Aufklárung” europeu. A obra de Torrey representa
uma reação a tal vertente, procurando de todas as formas, destacar
a confiabilidade, a razoabilidade e a afirmação das Escrituras. Na­
turalmente, toda empreitada apaixonada costuma exceder certos
limites e corre até mesmo o risco de uma polarização completa. E
bem provável que muitas críticas ao cenário teológico evangelical
norte-americano do primeiro quarto do século XX, para o qual esta
obra contribuiu, mereçam ser ouvidas e consideradas com bom
senso. Apesar destes fatores, há grande vantagem de ter esta obra
em português, no Brasil, hoje. Primeiro, porque os tempos são
outros. A própria história da filosofia nos mostrará que a maneira
de interagir com uma obra assim tão definida hoje acabará sendo
muito distinta da do cenário americano de cem anos atrás. O ama­
durecimento histórico e teológico permitirá um grande proveito de
quem souber utilizá-la. Além disso, a terra do “deixa disso”, da tole­
rância e do “futebol-arte”, possui suficiente “jogo de cintura” e sabe
processar com eficiência máxima tudo que lhe parece edificante
e construtivo a partir de qualquer cenário teológico, diminuindo
exponencialmente um possível coeficiente de atrito nada desejável.
Aqueles que facilmente polarizam e radicalizam certas questões de
certo carecem de suficiente brasilidade.
Que o respeito pela Palavra de Deus, e o equilíbrio entre razão
e espiritualidade de R. A. Torrey e a fértil terra cada vez mais de
“Nosso Senhor” permitam que esta obra seja uma bênção para
todos que dela utilizarem.

Luiz S a y ã o

10
11

Prefácio
à última edição norte-americana
(1990)

E
m 1909, Deus levou dois Cristãos leigos, Lyman e Milton
Stewart, a comprometerem-se com os gastos da publicação
de uma série de doze volumes que deveriam apresentar os
fundamentos da fé cristã. Como tinham o desejo de combater as
incursões do liberalismo, esses volumes foram enviados gratui­
tamente a ministros do evangelho, missionários, supervisores da
escola dominical e a outros que se empenhavam em obras cristãs
de campo por intermédio do mundo de fala inglesa. A supervisão
da seleção dos artigos a ser incluídos em Os Fundamentos foi
entregue a um comitê de homens, conhecidos por ser dignos de
confiança quanto à fé. A liderança desse comitê incluía homens
resolutos como A. C. Dixon e R. A. Torrey.
Mais tarde, em 1917, sob o patrocínio do Bible Institute of Los
Angeles (hoje Biola University), foi publicada uma edição em qua­
tro volumes que incluía apenas alguns dos artigos originais.
Para celebrar o Ano de Jubileu, em 1958, o Bible Institute, em
cooperação com a Kregel Publications, patrocinou a emissão de
uma nova edição de Os Fundamentos. Sob a supervisão geral do
Dr. Charles L. Feinberg, um comitê de professores do Talbot Theo-
logical Seminary selecionou os artigos mais relevantes teológica e
culturalmente do original de Os Fundamentos e os atualizou cuida­
dosamente para o leitor contemporâneo. Essa coleção foi publicada
como Os Fundamentos para Hoje e foram feitas diversas tiragens.
A Kregel Publications, reconhecendo a enorme importância que
esta coleção clássica das verdades bíblicas fundamentais tem hoje,
tanto quanto quando foi publicada pela primeira vez, põe agora à
disposição esta nova edição em um único volume, como a de 1958,
para a qual o Dr. Warren W. Wiersbe graciosamente providenciou
Introduções Biográficas e um proveitoso Prefácio.
Esta é a oração de todos os envolvidos: que o Autor da Verdade
que auxiliou nestes Fundamentos — o próprio Senhor Deus — pos­
sa, mediante estes escritos, vir a abençoar e edificar Seu povo em
toda parte.

Os E d it o r e s

12
13

Prefácio

s doze volumes compreendendo Os Fundamentos, editado

O por A. C. Dixon, que foi posteriormente assistido por Louis


Meyer e R. A. Torrey, foram publicados de 1910 a 1915 e
enviados gratuitamente a pastores, missionários e a outros obrei­
ros cristãos. Financiados pela riqueza dos magnatas do petróleo
da Califórnia, os irmãos Lyman e Milton Stewart, três milhões de
volumes foram distribuídos no mundo de fala inglesa.
Naquele momento da história, o Fundamentalismo tornava-se
uma força que contava, graças a pregadores efetivos, com confe­
rências bíblicas populares e com publicações que ensinavam “os
fundamentos”, assim como também expunham a crescente aposta­
sia daqueles dias. A Scofield Reference Bible foi publicada em 1909
e tornou-se o texto padrão para os estudiosos da Bíblia da escola
dispensacional. Era um tempo de mudanças e desafios.
De 25 de maio a Iode junho de 1919, seis mil pessoas se encon­
traram na Filadélfia para “A Conferência Mundial sobre os Fun­
damentos Cristãos”. W. H. Griffith Thomas presidiu o Comitê das
Resoluções e entre os quinze oradores de melhor conhecimento do
programa estavam W. B. Riley, R. A. Torrey, Lewis Sperry Chafer,
James M. Gray e William L. Pettingill. Estavam ali presentes
delegados de quarenta e dois estados dos EUA e da maioria das
províncias canadenses, como também de mais sete países.
W. B. Riley disse em seu primeiro discurso: “O futuro olhará de
volta para a Conferência Mundial sobre os Fundamentos Cristãos...
como um evento mais histórico do que a fixação, em Wütenberg,
das noventa e cinco teses de Martinho Lutero. Chegou a hora do
surgimento de um novo Protestantismo”.
Nestes dias de comunhões fragmentadas e doutrinas diluídas,
a igreja deve descobrir novamente a ampla base que os “Pais
Fundamentalistas” construíram e da qual eles ministraram.
Nossa moderna sociedade pluralista faz com que seja fácil para
nós ser tão tolerantes, que quase deixamos de ter convicções, ou
tão intolerantes, que pensamos que nosso grupo particular é o
único guardião da verdade. E bom ter Os Fundamentos novamente
impresso, e acredito que a nova geração de estudiosos da Bíblia se
identificará com esta plêiade de grandes líderes e aprenderá com
eles os elementos fundamentais da doutrina e da prática.

W arren W . W ie r s b e

14
15

A história da alta crítica

Canon D yson H ague, M . A .,


Diretor da Memorial Church, Londres e Ontário. Prof.
de Liturgia e Eclesiologia no Wycliffe College, Toronto,
Canadá
Original em inglês revisadopor Charles L. Feinberg, Th.D., Ph. D.

O que significa a expressão “Alta Crítica”? De imediato, deve-se


dizer que a palavra “alta” é um termo acadêmico, utilizado em um
sentido puramente particular e técnico. E utilizado em contraste
à “Baixa Crítica”. A alta crítica não significa nada mais do que
o estudo da estrutura literária dos vários livros que compõem a
Bíblia. Tal estudo é indispensável para se averiguar o autor, data,
circunstâncias e propósito de um escrito.

Porque a alta crítica


é identificada com a descrença?
E preciso dizer que existe uma alta crítica que é reverente no
tom e erudita na obra. Contudo, a pesquisa da alta crítica nem

CANON DYSON HAGUE (1857- 1935) foi ordenado em 1883 após


estudar artes e teologia na üniversidade de Toronto. Serviu como
coadjutor na Catedral de St. Jam es, tam bém em Toronto, e como
diretor da Catedral de St. Paul, em Brockville, Ontário, e na de St.
Paul, em Halifax, Nova Escócia. De 1897 a 1901, Hague lecionou
apologética, liturgia e homilética no Wycliffe College, em Toronto. Seus
escritos incluem vários livros sobre liturgia anglicana.
Os fundamentos

sempre foi realizada com um espírito reverente, nem respeitando o


espírito científico e a erudição cristã. Em primeiro lugar, os líderes
desse movimento baseiam suas teorias amplamente em suas
próprias conclusões. Eles fundamentaram suas conclusões, em
grande escala, sobre uma base bastante dúbia, a do estilo do autor
e suas supostas qualificações literárias. O estilo não é uma base
segura para a determinação de uma obra literária. Não é possível
garantir que um homem, por ser perito em filologia, seja capaz de
compreender a integridade ou credibilidade de uma passagem
qualquer das Escrituras, assim como não é possível assegurar
que tenha compreendido a beleza ou o espírito dela melhor do que
outras pessoas. A qualificação para a percepção da verdade Bíblica
é a compreensão espiritual.
Em segundo lugar, as teorias da alta crítica estão nas mãos daqueles
que extrapolam no domínio das conjecturas. Foi Newton quem alertou
que nenhuma consideração, seja ela qual for, deveria ser dada às meras
conjecturas ou hipóteses de pensadores. Em terceiro lugar, aqueles que
dominam o movimento são homens que possuem uma forte tendência
a negar o sobrenatural. Alguns dos homens que se destacaram no
movimento da alta crítica são homens que não possuem nenhuma fé
tanto no Deus da Bíblia, como na necessidade ou na possibilidade de
uma revelação sobrenatural pessoal. Não é nossa posição afirmar que
todos os críticos foram ou são super antinaturalistas, mas as figuras do­
minantes o foram e o são. E triste, mas a alta crítica se identifica com um
sistema de crítica que está baseado sobre hipóteses e suposições que
têm por seu objeto o repúdio à teoria tradicional, assim como, aparente­
mente, tem investigado as origens, formas, estilos e conteúdos não para
confirmar a autenticidade, credibilidade e a dignidade das Escrituras,
mas para, na maioria dos casos, desacreditar sua autenticidade, para
descobrir discrepâncias e lançar dúvidas sobre sua autoridade.

A origem do movimento
Quem eram os homens cujas perspectivas moldaram o
pensamento dos principais escritores da escola da alta crítica de
hoje? Neste desenvolvimento podemos discernir três estágios:
(1) O franco-holandês; (2) o alemão; e (3) o anglo-americano.
As perspectivas que hoje são aceitas como axiomáticas parecem
ter sido primeiramente sugeridas por Carlstadt em 1521. Pode-se
dizer com certeza que a alta crítica teve sua origem com Spinoza,

16
A história da alta crítica

o filósofo racionalista holandês. Em 1670 ele, de forma ousada,


revelou e impugnou as datas tradicionais e a autoria Mosaica do
Pentateuco, atribuindo o mesmo a Esdras ou a algum outro com­
pilador posterior. Em 1753, o físico francês, Jean Astruc, segundo
opinião geral, um livre pensador de caráter libertino, expôs pela
primeira vez a hipótese divisora dos elementos Javistas e Eloístas,
dando assim início a uma nova era. Ele reivindicava que o uso dos
dois nomes, Iavé e Elohim, mostravam que o livro de Gênesis fora
composto por diferentes documentos. Astruc pode ser chamado o
pai das teorias documentais. Ele afirmava haver vestígios de pelo
menos dez ou doze pequenas biografias no livro de Gênesis. Ele
negou a autoridade divina desse livro, pois o considerava um livro
desfigurado pelas repetições sem utilidade, pela desordem e pela
contradição.
Eichhorn publicou em 1780 sua obra, uma introdução sobre
o Antigo Testamento. Ele desenvolveu a teoria documental de
Astruc, foi seguido por Vater e, posteriormente, por Hartmann.
Por fim, eles fizeram do Pentateuco um amontoado de fragmentos
reunidos por um editor ou redator. Em 1806, De Wette propôs
o ponto de vista de que o livro de Deuteronômio fora escrito na
época de Josias (2Rs 22.8). Não demorou muito para Vatke de­
clarar, sem ressalvas, a origem pós-Mosaica e pós-profética dos
primeiros quatro livros da Bíblia. Os estudiosos subseqüentes
foram Bleek, Ewald, Hupfeld, Graf, Kuenen e Wellhausen, com
seus respectivos pontos de vista sobre a autoria não-mosaica do
Pentateuco.
Após o estágio alemão da crítica veio o anglo-americano.
Davidson, Robertson Smith, G. A. Smith, Driver e Briggs seguiram
o caminho traçado pelos escritores racionalistas alemães. A lista,
incontestavelmente, é bastante parcial, mas esses são os nomes
proeminentes em relação ao movimento.

Os pontos de vista da crítica


Com certeza, três coisas podem ser afirmadas sobre quase to­
dos os líderes, se não todos eles: eles negam a validade do milagre
e qualquer narrativa miraculosa; os milagres foram considerados
legendários ou míticos; negaram, portanto, a realidade da profecia.
A profecia foi chamada de conjectura ou coincidência, quando não
de embuste. Eles negaram a realidade da revelação; manifestaram-se

17
Os fundamentos

descrentes no sobrenatural. A religião do Antigo Testamento é,


para eles, apenas uma religião humana. As forças formadoras do
movimento da alta crítica, portanto, eram forças racionalistas. A
descrença antecedeu a crítica, não foi conseqüência dela.

O ponto crucial
De acordo com a fé da Igreja universal, o Pentateuco é uma
composição consistente, coerente, autêntica e genuína, inspirada
por Deus, e escrita por Moisés uns quatorze séculos antes de
Cristo. Além disso, é uma parte da Bíblia de suma importância,
pois é tanto o substrato básico de toda revelação de Deus como a
seção introdutória do Palavra de Deus, que sustenta Sua autoridade
e a qual foi concedida mediante inspiração por intermédio de Seu
servo Moisés. Esta é a fé da Igreja.

A teoria da crítica
De acordo com os críticos, o Pentateuco consiste de quatro
documentos completamente diferentes. São eles (1) o Javista,
(2) o Eloísta, (3) o Deuteronomista, e (4) os documentos do Código
Sacerdotal, em geral designados como J, E, D e S. Essas diferentes
obras foram compostas em vários períodos históricos, que se es­
tendem do nono ao quinto séculos. Tais documentos representam
diferentes tradições dos Hebreus e variações em relação às ques­
tões mais importantes. Esses documentos, com certeza, não foram
compilados e escritos por Moisés. No processo editorial, aparente­
mente, nenhum limite foi atribuído à obra dos redatores. Os críticos
dessa linha de pensamento concluem que os documentos contêm
três tipos de material: a probabilidade verdadeira, a certeza dúbia e
a definitivamente espúria.

O antigo testamento desacreditado


Não é apenas o Pentateuco que é desacreditado, mas o restante
do Antigo Testamento também é tratado de modo similar. Os
Salmos não são da época de Davi, mas da época dos Macabeus.
Isaías foi escrito por um sem número de autores. Daniel foi apenas
um pseudônimo da obra, escrita no segundo século a. C., no tempo
de Antíoco Epifânio.

18
A história da alta crítica

A Bíblia desacreditada
Não pode haver dúvida de que Cristo e Seus apóstolos aceitaram
na íntegra o Antigo Testamento, como um texto totalmente inspira­
do do primeiro capítulo do Gênesis ao último capítulo de Malaquias.
Tudo era implicitamente crido como a Palavra do próprio Deus. E,
desde aqueles dias, o ponto de vista da Igreja cristã universal é o
de que a Bíblia é a Palavra de Deus. A Bíblia, segundo os críticos,
não pode mais ser vista desse ângulo. Não é mais a Palavra, no
velho sentido desse termo. Ela apenas contém a Palavra de Deus, e,
em muitas de suas partes, ela é tão incerta quanto qualquer outro
livro humano. Não é nem mesmo história digna de confiança. Seus
relatos da história comum estão cheios de falsificações e erros
crassos.

üma teoria revolucionária


A alta crítica tem estado nas mãos de homens que repudiam
a crença em Deus e em Jesus Cristo, portanto, essa teoria é, na
verdade, uma teoria revolucionária. E uma teoria de inspiração que
procura desbaratar as idéias aceitas da Bíblia e seu inquestionável
padrão de autoridade e verdade. Pois o que quer que esse assim
chamado elemento divino seja, parece ser inteiramente consistente
com o argumento imperfeito, com a interpretação incorreta ou
aquilo que o homem mediano chamaria falsificação ou fraude.
Para aceitá-la, o cristão terá que reajustar completamente suas
idéias acerca de honra e honestidade, de falsidade e representação
errônea. Os homens costumavam pensar que a falsificação era um
crime e a fraude um pecado. Eles costumavam pensar que o des­
cuido afetaria a confiabilidade e que inconsistências comprovadas
colocariam em risco a credibilidade. Hoje, no entanto, parece que
tudo isso pode existir e, mesmo assim, uma constatação maravi­
lhosa, a fé não será destruída, mas colocada sobre um fundamento
mais firme.

Se não Moisés, quem?


Se Moisés não escreveu os livros de Moisés, quem o fez? Se
houve três, quatro, seis ou nove escritores autorizados, porque não
quatorze, dezesseis ou dezenove? E o que dizer do número indeter­
minado de redatores? De onde veio a autoridade deles? Moisés, nós

19
Os fundamentos

conhecemos; Samuel; nós conhecemos; Daniel, nós conhecemos;


mas vós anônimos e pseudônimos, quem sois? O Pentateuco com
autoria mosaica, como Escritura divinamente creditada, é sustenta­
do pela tradição e erudição e satisfaz à razão. No entanto, um livro
recortado de compilações anônimas, cujos redatores e redações
são pré e pós-exílio, significa uma enorme confusão.

Nenhuma autoridade final


Um outro sério resultado da alta crítica consiste em ameaçar o
sistema de doutrina cristão e toda produção de teologia sistemática.
Antes de mais nada, qualquer texto de qualquer parte da Bíblia
era aceito como um texto-prova para o estabelecimento de alguma
verdade do ensino cristão, e uma declaração da Bíblia punha fim
às controvérsias. Mas agora os críticos pensam ter mudado tudo
isso. Eles proclamam que a ciência da crítica despojou a ciência da
teologia sistemática.

Obscurantistas não
Há, portanto, duas questões com as quais o estudioso da Bíblia
deve se defrontar. A primeira é: acaso não seria a recusa do sistema
da alta crítica uma simples oposição à luz e ao progresso, uma
posição de alarmistas ignorantes e obscurantistas? O desejo de
receber toda luz que a busca mais destemida pela verdade que
a erudição puder alcançar é o desejo de todo aquele que crê na
Bíblia. Nenhuma mente cristã realmente saudável pode advogar o
obscurantismo. No entanto, é dever de todo cristão testar todas as
coisas e reter o que for bom. O leitor mais comum da Bíblia conhe­
ce o suficiente para saber que a investigação do Livro, que afirma
ser sobrenatural, quando realizada por homens que são inimigos
declarados do sobrenatural e, indiscutivelmente, têm espírito irre­
verente, sabendo-se que os estudos desses assuntos que só podem
ser compreendidos pelos homens de coração contrito e humilde,
deve ser recebida com cautela.

O argumento da erudição
A segunda questão também é séria: não somos impelidos a
aceitar esses pontos de vista quando propostos não apenas por
racionalistas, mas por cristãos; e não por cristãos comuns, mas

20
A história da alta crítica

por homens de erudição superior e que não podem ser desafiados?


Existe uma idéia bem difundida, principalmente entre os jovens, de
que os críticos devem ser seguidos, pois a erudição deles esclarece
as questões. Isso é um grande equívoco. Nenhum erudito expe­
riente pode solucionar questões que exigem um coração humilde,
uma disposição para crer e um espírito reverente, tanto quanto o
conhecimento de hebraico e de filologia; e nenhum erudito pode
ser considerado perito quando é visivelmente caracterizado por ter
um julgamento tendencioso, uma curiosa falta de conhecimento a
respeito da natureza humana e uma condescendência, ainda mais
curiosa, aos pontos de vista de homens que têm preconceito em
relação ao sobrenatural.
Há também uma idéia bastante difundida entre os jovens de que
se os eruditos são peritos em hebraico, portanto, suas deduções
quanto ao idioma devem ser aceitas. Isso também é um equívoco.
Nenhum erudito no mundo jamais foi, é ou será capaz de dizer
as datas de cada livro da Bíblia mediante o estilo do hebraico.
Além disso, nem todos os estudiosos estão do mesmo lado. Não
é verdadeiro dizer que os únicos que se opõem à perspectiva da
alta crítica são os ignorantes, os preconceituosos e os iletrados. O
racionalismo tem seus estudiosos? A posição ortodoxa também os
tem. E estes não deixam nada a desejar aos que esposam o ponto de
vista moderno. Será que, quanto ao Antigo Testamento, devemos
ficar com os inimigos da verdade das Escrituras ou com o ponto de
vista de Cristo em relação a esses textos?
De nossa parte desejamos ficar com Cristo e Sua Igreja. Se te­
mos algum prejulgamento, preferiríamos prejulgar o racionalismo.
Se temos alguma tendência, esta deve ser contra um ensino que
deixa o coração instável e perturba a fé. Preferimos, mesmo às
custas de ser considerados retrógrados, permanecer com o Senhor
e Salvador Jesus Cristo, recebendo as Escrituras, sem objeção
e sem dúvidas, como a Palavra de Deus. Apenas um pouco de
estudo e um pouco de atenção aos teorizadores racionalistas e seus
simpatizantes podem nos levar à incerteza; contudo, um estudo
mais profundo e uma busca mais rigorosa nos inclinará, como
inclinou a outros eruditos, à mais profunda convicção a respeito da
autoridade e autenticidade das Sagradas Escrituras e nos levará a
clamar: “ “Puríssima é a tua palavra; por isso, o teu servo a estima”
(SI 119.140)

21
23

2 A autoria do pentateuco

“A autoria mosaica do pentateuco”


P rof. G eorge F. W r ig h t , D.D., LL. D.
Oberlin College, Oberlin, Ohio

“Três peculiaridades do pentateuco incompatíveis com


as teorias de graf-wellhausen referentes à composição
desse livro”
A ndrew C. R o b in s o n , M.A.
Ballineen, County Cork, Irlanda

Por cerca de um século uma escola influente de críticos iludiu o


mundo com artigos e volumes, procurando provar que o Pentateuco
não teve origem no tempo de Moisés e que a maior parte das leis
atribuídas a ele não passaram a existir senão vários séculos após a

G EORG E FREDERICK WRIGHT (1838-1921) formou-se pelo Seminário


Teológico de Oberlin, em 1862, e pastoreou em Bakersfield, VT (1861-
1872) e em Andover, MA (1872-1881), antes de retornar a Oberlin para
lecionar (1881-1907). Nitidamente interessado em geologia e na relação
entre ciência e religião, Wright foi pioneiro de um a apologética única em
seus dias. Editou a Bibliotheca Sacra e publicou, entre outros: The Logic
ofC hristian Evidences [A Lógica das Evidências Cristãs] (1880), Studies
in Science and Religion [Estudos sobre Ciência e Religião] (1882), The
Divine Authority ofthe Bible [A Autoridade Divina da Bíblia] (1884), uma
biografia de Charles Finney (1891) e sua autobiografia (1916).

ANDREW C. ROBINSON. Ballineen, Condado de Cork, Irlanda.


(Informações biográficas adicionais indisponíveis)
Os fundamentos

morte do profeta, e muitas delas somente apareceram no tempo de


Ezequiel. Para esses críticos, os patriarcas são relegados ao reino
do mito ou à lenda obscura, e a história do Pentateuco, de modo
geral, é desacreditada.

O peso da prova
Ao abordar o assunto é necessário considerar o peso da prova.
A autoria mosaica do Pentateuco, até recentemente, foi aceita sem
questionamento tanto por judeus como por cristãos. Tal aceitação,
que nos chegou de forma direta desde os tempos mais remotos,
dos quais possuímos alguma informação, dá-nos o apoio ao qual
chamamos consenso geral, que, embora talvez não seja absoluta­
mente conclusivo, compele aqueles que o desacreditam a produzir
inquestionável evidência contrária. Contudo, a evidência que os
críticos produzem nesse caso é inteiramente circunstancial, con­
sistindo de inferências de uma análise literária de documentos e da
aplicação de uma teoria evolucionária desacreditada com relação
ao desenvolvimento das instituições humanas.

O fracasso do argumento
da análise literária

a) Evidência da crítica textual


Um comentário instrutivo sobre as pretensões da erudição de
toda essa escola crítica é que eles basearam, sem exames adequa­
dos dos fatos, as análises do Pentateuco no texto que se encontra
em nossas Bíblias hebraicas comuns. Ao passo que os estudiosos
do Novo Testamento dispensaram uma enorme quantia de esforço
na comparação de manuscritos, versões e citações para determinar
o texto original, esses críticos do Antigo Testamento fizeram pouca
coisa nesse sentido. Esse procedimento é, sem sombra de dúvida,
totalmente não-erudito, mas, mesmo assim, é o que críticos de
renome admitem ter feito. O fato é que, embora o texto hebraico,
atualmente conhecido como massorético, não tenha sido estabele­
cido senão no sétimo século d.C., temos material abundante com o
qual compará-lo, o qual pode nos trazer de volta aquela realidade
que estava mil anos mais próxima do tempo da composição original
dos livros. Existe muito material: a tradução Grega do Antigo Tes­
tamento, a Septuaginta, o Pentateuco Samaritano, outras versões

24
A autoria do pentateuco

gregas, traduções siríacas e a Vulgata Latina de Jerônimo. Esse


material fornece ampla base para corrigir, nos menores detalhes,
o texto hebraico atual; e isso pode ser feito sobre princípios cien­
tíficos bem estabelecidos, os quais, em grande parte, eliminam
emendas conjeturais.
Ao trazer à luz essa evidência para sustentar o argumento, alguns
resultados notáveis são produzidos, os mais importantes dos quais
remontam aos fundamentos sobre os quais as teorias sobre o caráter
fragmentário do Pentateuco estão baseados. O indício mais proemi­
nente da divisão documental deriva-se do suposto uso por diferentes
escritores dos dois nomes para designar a divindade, Iavé e Elohim .
Agora, a divisão original dos documentos foi feita sobre a suposição de
que, várias centenas de anos após Moisés, surgiram duas escolas de
escritores, uma das quais em Judá, que utilizava o nome Iavé quando se
referia a Deus, e a outra, no reino do norte, que utilizava Elohim. Dessa
maneira, os críticos chegaram a designar uma parte dessas passagens
como pertencente ao documento J, e as outras, ao documento E. Estes
documentos, conforme eles supõem, foram cortados e encaixados
posteriormente por um editor de modo a tornar a narrativa existente
contínua. Quando, porém, como freqüentemente ocorria, uma dessas
palavras encontrava-se em passagens em se pensava que o outro
nome deveria ter sido usado, supunha-se, inteiramente sobre bases
teóricas, que um engano havia sido cometido pelo editor ou redator, e,
desse modo, sem nenhuma cerimônia, a objeção era arbitrariamente
removida sem consultar a evidência textual.
Esses fatos, que agora são amplamente verificados, destroem
totalmente o valor do indício que a alta crítica tem apresentado,
com ostentação, para justificar a divisão do Pentateuco nos docu­
mentos conflitantes de E e J. E isso é algo que os próprios críticos
são agora levados a admitir. A resposta que eles dão é que a análise
está correta, mesmo se o indício que os levou a essa conclusão
seja falso. Em mais exames, à luz do conhecimento atual, a crítica
legítima remove um grande número de dificuldades alegadas e
apresentadas pela alta crítica, assim como muitos dos supostos
indícios nos vários documentos perdem seu valor.
b) Enganos da análise literária
Mesmo que assumíssemos praticamente a inerrância do texto
massorético, os argumentos contra a autoria mosaica do Pentateuco

25
Os fundamentos

extraída da análise literária podem ser considerados o resultado da


erudição má direcionada, assim como são completamente falacio­
sos. A longa lista de palavras, as quais alegaram ser características
dos escritores a quem as várias partes do Pentateuco são designa­
das, pode ser prontamente considerada como uma lista ocasionada
pelos diferentes assuntos almejados nas porções das quais as listas
são retiradas. O absurdo das reivindicações da alta crítica de ter
estabelecido a existência de diferentes documentos no Pentateuco
por meio de uma análise literária pode ser mostrada por uma
variedade de exemplos. O Prof. C. M. Mead, o revisor americano
mais influente das traduções do Antigo Testamento, para mostrar a
falácia do processo deles, tomou a epístola aos Romanos e a dividiu
arbitrariamente em três partes, conforme o uso das palavras
“Cristo Jesus”, “Jesus,” ou “Deus” e, a seguir, demonstrou por meio
de análise que as listas das palavras características dessas três
passagens eram ainda mais notáveis do que aquelas extraídas pela
crítica destrutiva do Pentateuco, a partir dos fragmentos principais
nos quais esses estudiosos o haviam dividido. O argumento da
análise literária, conforme os métodos desses críticos, provaria o
caráter múltiplo da epístola aos Romanos tão plenamente quanto
eles provaram o caráter múltiplo do Pentateuco.

A má compreensão das formas legais


e o sistema sacrificial.
Uma outra fonte do raciocínio falaciosa, na qual os críticos
têm caído, surge da má compreensão do sistema sacrificial da lei
mosaica. Os críticos afirmam que não houve um santuário central
na palestina até vários séculos após sua ocupação sob o comando
de Josué, e que, em um período posterior, todos os sacrifícios pelo
povo foram proibidos com exceção dos que eram oferecidos no
lugar pelos sacerdotes, a menos que fosse onde tivesse havido
uma teofania especial. Contudo, essas afirmações demonstram
uma interpretação totalmente equivocada dos fatos. Ao interpretar
Josué 18.1, Juizes 18.31, e ISamuel 2.24, os críticos cometem um
equívoco humilhante ao substituir reiteradamente “santuários” por
“altares”, assumindo que, como havia uma pluralidade de altares
no tempo dos juizes, havia também uma pluralidade de santuários.
Eles estavam totalmente equivocados em relação à permissão dada
em Êxodo 20.24. Nesse texto, “em todo lugar” refere-se à Palestina,

26
A autoria do pentateuco

a Terra Santa. Os Sacrifícios, como aqueles que os patriarcas ofe­


reciam, sempre foram permitidos aos leigos, conquanto que estes
utilizassem apenas um altar de terra ou de pedras brutas sem os
adornos característicos dos altares pagãos. No entanto, os altares
de terra, quando não tinham relação com nenhum tipo de templo,
não eram casas de Deus, e não se tornaram casas de Deus porque
eram chamados de santuários, vários milhares de anos após terem
caído em desuso, pelos críticos.
Mas além dos sacrifícios leigos que foram contínuos desde os
tempos dos patriarcas e mantidos ao abrigo da perversão, havia
outras classes de oferendas (Nm. 28) estabelecidas pelo estatuto.
A falha em distinguir claramente entre os tipos de sacrifícios
conduziu a crítica à confusão sem fim, e um erro surgiu devido
à incapacidade desses estudiosos de entender termos e princípios
legais. O Pentateuco não é mera literatura, pois contém um código
legal. E um produto da habilidade de um estadista que consiste
de três elementos distintos que sempre foram reconhecidos pelos
legisladores; a saber, o civil, o moral e o cerimonial. Esses estratos
da lei estavam natural e necessariamente em existência ao mesmo
tempo. Ao dispô-los como estratos sucessivos, em que a lei cerimo­
nial era a última, os críticos cometeram um erro crasso, o que levou
a conclusões extremamente equivocadas.

A evidência positiva
A autoria mosaica do Pentateuco é apoiada, entre outros fatos,
pelas seguintes considerações. (1) A era mosaica foi uma época li­
terária na história do mundo quando escritos similares a esse eram
comuns. Em vista dos códigos legais que antecederam os dias de
Moisés, teria sido estranho se este líder não tivesse produzido um
código legal. (2) O Pentateuco reflete de maneira correta as condi­
ções egípcias no período a elas designadas, e é difícil crer que foi
um produto literário de uma época posterior. (3) A representação
de vida no deserto é bastante precisa, e muitas de suas leis são
adaptadas àquele estilo de vida, de maneira que é difícil acreditar
que literatos, milhares de anos mais tarde, a tivessem imaginado.
(4) As leis em si carregam sinais inquestionáveis de adaptação ao
estágio do desenvolvimento nacional ao qual elas são atribuídas.
(5) O pouco uso que se fez das sanções de uma vida futura é evi­
dência de uma data bem remota e de um esforço divino particular

27
Os fundamentos

para salvaguardar os israelitas da contaminação de idéias egípcias


sobre o assunto. (6) A subordinação dos elementos miraculosos no
Pentateuco às conjunturas críticas no desenvolvimento da nação é
tal que só poderia ser obtida por meio da história genuína. (7) Toda
a representação conforma-se à verdadeira lei do desenvolvimento
histórico. As nações não surgem pela virtude de forças inerentes,
mas por intermédio das lutas de grandes líderes iluminados
diretamente do alto ou pelo contato com aqueles que já foram
iluminados.
O defensor da autoria Mosaica do Pentateuco não tem motivos
para estremecer na presença dos críticos que negam essa autoria
e desacreditam a história. Ele pode, tranqüilamente, desafiar a
erudição a negar suas conclusões, ofender-se com a arrogância dela
e sustentar a confiança que tem na evidência histórica bem docu­
mentada, que foi suficiente para aqueles que primeiro a aceitaram.
Por fim, existem três particularidades, entre outras, muito
notáveis no Pentateuco, as quais são incompatíveis com as teorias
modernas de composição. A primeira é a ausência do nome
Jerusalém no Pentateuco. Do ponto de vista tradicional, essa
ausência não apresenta nenhuma dificuldade; o fato de que Betei,
Hebrom e outros santuários sejam mencionados, ao passo que
Jerusalém não, significaria apenas que nesses locais os patriarcas
construíram seus altares, ao passo que em Jerusalém não. Contudo,
do ponto de vista moderno, que sustenta que o Pentateuco foi, em
grande parte, composto para glorificar o sacerdócio em Jerusalém,
e que o livro de Deuteronômio, em particular, foi produzido para
estabelecer Jerusalém como o único santuário aceitável, e central,
para a adoração de Israel, tal omissão parece, na verdade, bastante
estranha. A conclusão é inevitável: na época em que o Pentateuco
foi escrito, Jerusalém com toda sua glória sagrada ainda não havia
entrado na vida de Israel.
A segunda particularidade notável é a ausência de qualquer
menção de cantos sagrados no Pentateuco. Esta seria uma estranha
omissão, se o Código Sacerdotal, que define os deveres dos levitas,
tivesse sido composto na época pós-exílio, quando os cantores
levitas e suas canções de louvor eram a característica principal do
ritual.

28
A autoria do pentateuco

A terceira particularidade notável é a ausência do título divino


“Senhor dos Exércitos”. Antes do tempo de Samuel, o título jamais
fora utilizado; após esse período, no entanto, é utilizado cerca de
duzentas e quarenta e sete vezes.* Por que ele não se encontra no
Pentateuco? Este é um sinal inequívoco de que o Pentateuco não
poderia ter sido composto do modo como afirmam os críticos.
Seria uma impossibilidade literária para um número tão grande de
escritores, que escreveram ao longo de centenas de anos, o fato de
nenhum deles nunca ter, nem por acidente, deslizado no uso desse
título divino para Iavé, “Senhor dos Exércitos”, muito em voga
naqueles séculos. A razão é óbvia: o Pentateuco foi escrito antes
que qualquer dessas características chegassem a ser utilizadas.

29
31

3 A Bíblia e a crítica moderna

D a v i d H e a g l e , D .D .
Emeritus, Stuttgart, Alemanha
Traduzido do original alemão por F. Bettex, D. D.
Abreviado e corrigido por James H. Christian, Th. D.

Como a Bíblia pode provar ser divinamente inspirada, um livro


que nos foi dado pelo céu, uma comunicação do Pai a Seus filhos, e,
portanto, uma revelação?
Primeiramente, pelo fato de que, como nenhum outro livro sa­
grado no mundo faz, a Bíblia condena o homem e todas suas obras.
Ela não louva a sabedoria, a razão, a arte, ou qualquer progresso
que ele tenha feito; além disso, ela o retrata como um ser que aos
olhos de Deus é um pecador miserável, impossibilitado de fazer
qualquer bem, e merecedor apenas da morte e da perdição eterna.
Na verdade, um livro que é capaz de falar dessa maneira e como
conseqüência disso levar milhões de homens, cuja consciência os
importuna, a prostrar-se no pó e a clamar, “Deus tem misericórdia
de mim, um pecador”, deve conter algo mais do que uma mera
verdade comum.
Em segundo lugar, a Bíblia exalta a si mesma bem acima de
todos os outros livros meramente humanos, quando anuncia o
grande e incompreensível mistério de que, “Deus amou ao mundo
de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que

DAVID H EA GLE Emeritus, Stuttgart, Alemanha. (Informações biográficas


adicionais não disponíveis).
Os fundamentos

nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). Em todas
as nações pagãs, onde podemos encontrar um deus — Osíris,
Brahma, Baal, Júpiter ou Odin — que tenha prometido aos povos
que, ao tomar sobre si o pecado do mundo e sofrer seu castigo, ele,
desse modo, se tornaria o salvador e redentor dos homens?
Em terceiro lugar, a Bíblia põe o selo de sua origem divina sobre
si mesma mediante as profecias. Deus, muito apropriadamente,
pergunta por meio do profeta Isaías, “Quem há, como eu, feito
predições desde que estabeleci o mais antigo povo? Que o declare
e o exponha perante mim! Que esse anuncie as coisas futuras, as
coisas que hão de vir!” (Is 44.7).
Que diz novamente, “Eu sou Deus, [...] que desde o princípio
anuncio o que há de acontecer e desde a antiguidade, as coisas que
ainda não sucederam; que digo: o meu conselho permanecerá de
pé, farei toda a minha vontade; que chamo a ave de rapina desde o
Oriente e de uma terra longínqua, o homem do meu conselho. Eu
o disse, eu também o cumprirei; tomei este propósito, também o
executarei” (46.9-11). Ou dirigindo-se ao Faraó, “Onde estão agora
os teus sábios? Anunciem-te agora ou informem-te do que o S e n h o r
dos Exércitos determinou contra o Egito” (19.12). Perguntamos
novamente, onde há um deus, ou deuses, um fundador de religião,
como Confúcio, Buda ou Maomé, que poderia, com tal certeza, ter
predito o futuro de seu próprio povo? Ou onde há um estadista que
nos tempos atuais pode predizer qual será a condição das coisas na
Europa daqui a cem ou duzentos anos? No entanto, as profecias de
Moisés e os juízos ameaçadores sobre os israelitas foram cumpridos
literalmente. As profecias relativas à destruição daquelas grandes
cidades antigas, Babilônia, Nínive e Mênfis, também foram cum­
pridas literalmente (embora quem acreditasse naquele tempo?).
Além do mais, foram cumpridas, de modo literal, as profecias que
os profetas Davi e Isaías fizeram concernentes aos sofrimentos de
Cristo — Sua morte na cruz, o ter bebido vinagre e o lançar sortes
por suas roupas. Há também outras profecias que serão cumpridas
de modo ainda mais literal, tais como as promessas feitas a Israel, o
juízo final e o fim do mundo. Como diz Habacuque, “Porque a visão
ainda está para cumprir-se no tempo determinado, mas se apressa
para o fim e não falhará; se tardar, espera-o, porque, certamente,
virá, não tardará” (Hb 2.3). Em quarto lugar, a Bíblia tem de­
monstrado seu poder peculiar por sua influência com os mártires.

32
A Bíblia e a crítica moderna

Pensem nas centenas de milhares que, em diversas épocas e de


povos distintos, sacrificaram a tudo — esposas, filhos e todas as
posses, e, por fim, a si mesmos — pelo relato contido nesse livro.
Pensem em como eles, nos tormentos e nas fogueiras, confessaram
a verdade da Bíblia e mantiveram o testemunho de seu poder.
Por último, a Bíblia, a cada dia mais, mostra ser um livro divina­
mente concedido graças à benéfica influência para todos os tipos de
pessoas. Ela converte para uma vida melhor o ignorante e o sábio,
o mendigo e o rei sentado no trono, a pobre mulher que vive em um
sótão, o grande poeta e o mais profundo pensador, pessoas civiliza­
das e selvagens incultos. A despeito de todo escárnio e zombaria de
seu inimigos, ela tem sido traduzida para centenas de idiomas, as­
sim como tem sido proclamada por milhares de missionários e por
milhões de pessoas. Ela torna o orgulhoso humilde, e o dissoluto,
virtuoso; consola o desafortunado e ensina ao homem como viver
pacientemente e morrer de modo triunfante. Nenhum outro livro,
ou coleção de livros, realiza para o homem os grandes benefícios
realizados por esse livro que contém a verdade.

A crítica moderna e seu método racionalista


Nos tempos atuais apareceu uma crítica, cada vez mais incisiva
em seu ataque ao livro sagrado, que agora decreta, com toda auto-
segurança e confiança, que esse livro sagrado é simplesmente uma
produção humana. Além de outras falhas encontradas nele, essa
crítica declarou que a Bíblia está cheia de erros, sendo muitos de
seus livros espúrios, pois foram escritos por homens desconheci­
dos em datas posteriores àquelas que lhes são atribuídas, etc. e
etc. O princípio fundamental sobre o qual esse veredicto baseia-se
é, conforme expressou Renan, que a razão é capaz de julgar todas
as coisas, mas não é julgada por nada. Portanto, uma revelação
puramente racional, com certeza, seria uma contradição de ter­
mos; além disso, seria inteiramente supérflua. Quando, porém, a
razão compromete-se a falar de coisas inteiramente sobrenaturais,
invisíveis e eternas, ela fala como um cego que fala sobre as cores,
pois discursa sobre coisas relativas às quais não conhece nem pode
conhecer; e assim torna-se ridícula. Ela não ascendeu aos céus
nem desceu às profundezas; e, portanto, uma religião puramente
racional não é, de forma alguma, religião.

33
Os fundamentos

Incompetência da razão
para a verdade espiritual
A razão sozinha jamais inspirou os homens com grandes e
sublimes concepções da verdade espiritual, seja no caminho da
descoberta seja no da invenção; mas, costumeiramente, ela tem
rejeitado e ridicularizado tais questões. O mesmo acontece com
esses críticos racionalistas, que não têm apreço ou compreensão
daquela elevada e sublime Palavra de Deus. Eles não compreendem
a majestade de Isaías, a ternura e a compaixão do arrependimento
de Davi, a audácia das orações de Moisés, a profundidade filosófica
de Eclesiastes, nem a sabedoria de Salomão que “na rua [...] levanta
a voz”. Para os críticos, sacerdotes ambiciosos, em datas posterio­
res às comumente atribuídas aos livros, compilaram todos aqueles
livros aos quais fizemos alusão; segundo eles, esses sacerdotes
também escreveram a lei Sinaítica e inventaram toda a história da
vida de Moisés.

Nenhum acordo entre os críticos


Será que esses críticos, pergunte a alguns deles, concordam uns
com os outros? Longe disso. Eles, com certeza, negam unanime­
mente a inspiração da Bíblia, a divindade de Cristo e do Espírito
Santo, a Queda e o perdão dos pecados por meio de Cristo; o mesmo
acontece em relação a outros tópicos: a profecia, os milagres, a
ressurreição dos mortos, o juízo final, o céu e o inferno. Quando,
porém, chegam aos seus resultados, pretensamente corretos,
nem mesmo dois deles afirmam a mesma coisa, e as numerosas
publicações criam uma leva de hipóteses controvertidas, auto-con-
traditórias e naturalmente destrutivas.

Quais são os frutos


dessa crítica?
Nas salas de aula a crítica ilude, nas palestras faz grandes simu­
lações, pois para as meras palestras populares ela ainda é útil; mas
quando os trovões do poder de Deus rompem sobre a alma, quando
o desespero devido à perda de tudo que alguém amava toma conta
da mente, quando a lembrança de uma vida perdida e miserável ou
das más ações do passado é sentida e admitida, quando alguém
está enfermo e a morte se aproxima, e a alma, percebendo que está

34
A Bíblia e a crítica moderna

diante do muro da eternidade, chama por um Salvador — nesse


exato momento, quando sua ajuda é mais necessária, essa religião
moderna falha abertamente.
Contudo, suponhamos que todo o ensinamento dessa crítica
fosse verdadeiro, qual seria seu proveito para nós? Ela, na verdade,
nos colocaria em uma triste condição. Pois, assentando-nos ao
lado de templos arruinados e de altares destruídos, sem nenhuma
alegria com relação à outra vida, não haveria nenhuma esperança
de vida eterna, nenhum Deus para nos auxiliar, nenhum perdão dos
pecados. Desse modo, sentindo-nos miseráveis, totalmente desola­
dos em nossos corações e com o caos em nossas mentes, seriamos
completamente incapazes de saber ou de crer em qualquer coisa.
Será que essa perspectiva em relação ao cristianismo poderia ser
verdadeira? Não! Se essa crítica moderna fosse verdadeira, então
deveríamos nos desvencilhar do tão aclamado cristianismo, que
apenas nos ilude com fábulas mirabolantes! Deveríamos nos
desvencilhar dessa religião que não tem nada a nos oferecer, a
não ser o lugar comum dos ensinamentos sobre a moral! Nada de
fé! Nada de esperança! Comamos e bebamos, pois morreremos
amanhã!

Conclusão
Portanto, ao repudiar essa crítica moderna, devemos mostrar
nossa condenação a ela. O que ela nos oferece? Nada. O que nós
tira? Tudo. Temos alguma utilidade para ela? Não! Ela não nos
auxilia na vida nem nos conforta na morte; Ela não nos julgará no
mundo vindouro. Pois, em nossa fé bíblica, não precisamos nem
dos encômios dos homens, nem da aprovação de alguns pobres
pecadores. Não tentaremos melhorar as Escrituras nem adaptá-las
ao nosso querer, mas, nós mesmos, seremos dirigidos por elas. Não
exercemos autoridade sobre elas, mas as obedeceremos. Confiare­
mos naquele que é o caminho, a verdade e a vida. Sua Palavra nos
libertará.
“Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna; e
nós temos crido e conhecido que tu és o Santo de Deus” (Jo 6.68-69).
“Venho sem demora. Conserva o que tens, para que ninguém tome
a tua coroa” (Ap 3.11).

35
37

As sagradas escrituras
e as negações modernas

P rof. J am es O rr , D .D .
Faculdade da Igreja Livre Unida, Glasgow, Escócia.
Abreviado e corrigido por James H. Christian Th. D.

Há hoje no meio da crítica uma doutrina válida das Sagradas


Escrituras para a Igreja Cristã e para o mundo? E se há, qual é essa
doutrina? Esta é inquestionavelmente uma questão muito urgente
em nossos tempos atuais. “Há um livro que podemos aceitar como o
repositório de uma verdadeira revelação de Deus e um guia infalível
referente ao modo de vida e a nossos deveres para com Deus e para
com o homem?”. Essa é uma questão de imensa importância para
todos nós. Cem anos atrás, essa questão dificilmente precisaria ser

JA M ES ORR (1844-1913) graduou-se pela (iniversidade de Glasgow,


na Escócia, sua terra natal. Entre 1874 e 1891, ele foi ministro da Igreja
Presbiteriana CJnida de East Bank, em Hawick. Abandonou o pastorado
para lecionar ‘História da Igreja’ na Faculdade Teológica Presbiteriana
CJnida, em Glasgow, até 1901, quando se tornou professor de
apologética e dogmática no Glasgow College (posteriormente chamado
Trinity College). Orr passou a estudar o desenvolvimento da doutrina da
igreja, que acreditava seguir um a continuidade lógica divina. Entre suas
maiores obras estão The Christian View of God and the World [A Visão
Cristã de Deus e do Mundo] (1893, publicado novamente em 1989, pela
Kregel Publication) e The Progress of Dogm a [O Progresso do Dogma]
(1897).
Os fundamentos

respondida entre os cristãos, pois era universalmente admitido,


algo inquestionável, que existia tal livro, a Bíblia. Ali, acreditava-se,
havia o relato inspirado que continha toda a vontade de Deus para
a salvação do homem; o ensino desse livro, aceito como verdadeiro
e inspirado, pode levá-lo a seguir a orientação ali contida, para que
não tropece ou erre quando estiver buscando atingir o fim supre­
mo da existência, quando estiver tentando encontrar a salvação,
ou quando estiver tentando compreender a recompensa de uma
imortalidade gloriosa.
Mas, agora, uma mudança está ocorrendo. Não há nenhuma
tentativa de disfarçar o fato de que vivemos em uma época em que,
mesmo dentro da igreja, encontramos com freqüência um senti­
mento de apreensão e desconfiança (uma hesitação em confiar
na Bíblia como autoridade e utilizá-la como arma de precisão, algo
que ela já foi; ou com uma correspondente ansiedade de encontrar
uma base mais segura na autoridade eclesiástica externa ou com
os outros, do que no próprio Cristo, ou, quem sabe, em uma
consciência cristã) em relação às Sagradas Escrituras, a base mais
segura para a crença e a vida cristã. As vezes, aceita-se a idéia de
que o pensamento de uma autoridade externa a nós mesmos deva
ser totalmente abandonado; e que apenas o que pode ser aceito é o
que traz sua autoridade dentro de si pelo apelo que faz à razão, ou a
nosso ser espiritual, e aí repousa o juiz para nós do que é verdadeiro
e do que é falso.
A idéia da autoridade das Escrituras é uma concepção que
repousa nas próprias Escrituras. Essa crença nas Sagradas Escri­
turas foi aceita e agiu sobre a Igreja de Cristo desde o princípio. A
própria Bíblia afirma ser um livro autorizado e um guia infalível
para o verdadeiro conhecimento de Deus e do caminho da salvação.
Essa perspectiva está implícita em cada referência feita a ela,
desde seu surgimento, por Cristo e por seus apóstolos. E, penso
eu, desnecessário argumentar que o Novo Testamento, a obra dos
apóstolos e dos homens apostólicos, não está em um nível mais
baixo de inspiração e autoridade que o Antigo Testamento. Nesse
sentido, como um corpo de escritos de autoridade divina, os livros
do Antigo e do Novo Testamentos foram aceitos pelos apóstolos e
pela Igreja da era pós-apostólica.
Tome os escritos de qualquer um dos pais da igreja e você en­
contrará as palavras deles saturadas de referências às Escrituras.

38
As sagradas escrituras e as negações modernas

Descobrirá que as Escrituras foram tratadas precisamente do


mesmo modo como são tratadas pela literatura bíblica de hoje; a
saber, como a autoridade última sobre as questões das quais eles
discorrem.
Com toda certeza, a crítica tem seus direitos. Que questões
puramente literárias sobre a Bíblia recebam discussões plenas e
sinceras. E que a estrutura dos livros seja examinada com imparcia­
lidade. Se uma ciência reverente tem luz a lançar sobre a composição
ou autoridade ou época desses livros, que sua voz seja ouvida. Por
outro lado, não temos de aceitar toda teoria crítica ardorosa que
qualquer crítico deseje apresentar como a palavra final sobre essa
questão. Somos compelidos a olhar para as pressuposições sobre as
quais cada crítico procede e perguntar: até onde a crítica está con­
trolada por aquelas pressuposições? Estamos fadados a olhar para
a evidência pela qual a teoria é apoiada e perguntar: ela é realmente
corroborada por essa evidência? Quando as teorias são apresen­
tadas com toda confiança como resultados fixos, e, enquanto as
observamos, nós as encontramos ainda em constante processo de
desenvolvimento e mudança, tornando-se constantemente mais
complicadas, mais extremas, mais fantásticas, somos autorizados
a perguntar: essa é a verdade que deveria ser alegada? Hoje, essa é
minha queixa contra muitas das correntes críticas da Bíblia — não
por ser crítica, mas por partir de bases equivocadas, por proceder
de métodos arbitrários, crítica essa que chega a resultados, confor­
me creio, que são visivelmente falsos.
Há, certamente, uma imensa mudança de atitude da parte de
muitos que ainda sustentam sinceramente a fé na revelação sobre­
natural de Deus. Acho muito difícil descrever essa tendência, pois
não tenho a intenção de descrevê-la de um modo que faria injustiça
a qualquer pensador cristão, uma vez que ela é cercada de muitos
sinais de caráter ambíguo. Jesus é reconhecido pela maioria daque­
les que o representam como “o Filho Encarnado de Deus”, embora
diluídas em asserções mais ou menos indefinidas, inclusive sobre
aquele artigo fundamental, que torna, às vezes, dúbia a idéia que
os escritores defendem. O processo do pensamento com relação às
Escrituras é facilmente traçado. Primeiro, há uma ostentação que
caminha por fora, unida a alguma expressão de contentamento,
aquilo que se chama a inspiração verbal das Escrituras, um termo
do qual se abusa. Fala-se de Jesus como o mais alto revelador, e

39
Os fundamentos

Suas palavras — se somente pudéssemos realmente saber quais


são elas e, de modo geral, pensa-se que podemos saber isso
—proporcionam a regra mais elevada de guia para este tempo e
para a eternidade. Contudo, mesmo a crítica, deve ter seus direitos.
O Novo Testamento é o lugar em que os evangelhos se fundem e,
em nome da crítica sinóptica, a crítica histórica, eles estão sujeitos
a processos admiráveis, no curso dos quais muitas das histórias
são fundidas ou perdem elementos, perdendo suas características
cristãs. Jesus, assim nos lembram os críticos, era um homem de
Sua geração, sujeito a erros em Seu conhecimento humano, e é
preciso fazer concessões para as limitações de Suas concepções e
julgamentos. Alega-se que Paulo seja ainda amplamente dominado
por sua herança de concepções rabínicas e farisaicas. Ele foi educa­
do como fariseu, educado com os rabis e, quando se tornou cristão,
levou consigo muito da sua formação para seu pensamento cristão,
e temos de retirar esse pensamento quando formos estudar suas
epístolas. Ele, portanto, não é um mestre a ser seguido mais do que
nosso próprio juízo da verdade cristã que nos conduz. Isso faz com
que nos livremos de muita coisa que nos é inconveniente sobre o
ensino de Paulo.

O antigo testamento e os críticos


Se estas coisas são feitas nos “ramos verdes” do Novo Testamen­
to, é fácil perceber o que será feito nos “ramos secos” do Antigo. As
conclusões da escola mais avançada de críticos são aqui, em geral,
aceitas como estabelecidas de uma vez por todas, com o resultado
— a meu ver, de qualquer forma — de que o Antigo Testamento foi
incomensuravelmente rebaixado do lugar que já ocupou em nossa
reverência. Suas histórias mais remotas, que chegam à época dos
reis, são amplamente resolvidas por mitos, lendas e ficção. A cate­
goria da história propriamente dita é deixada de lado. Sem dúvida,
postulam que as lendas são tão boas quanto a história, e que as
concepções, transmitidas na forma de lendas, que nos são passadas
por elas também são tão boas quanto se fossem transmitidas na
forma de fatos..
Contudo, suas leis, quando chegamos a tratar delas dessa
maneira, carecem de autoridade divina. Elas são o produto da
mente humana de várias épocas. Suas profecias são as expressões
de homens que possuíam o Espírito de Deus, que é apenas, em

40
As sagradas escrituras e as negações modernas

um maior grau, aquilo que outros bons homens, mestres religiosos


em todos os países, possuíam — não um espírito qualificado, por
exemplo, para fazer predições reais ou para sustentar mensagens
autorizadas da verdade aos homens. Conseqüentemente, nesse tur­
bilhão e confusão de teorias que encontramos em nossas revistas,
enciclopédias, jornais e livros que têm aparecido para aniquilar
os crentes conservadores, será que não é de admirar que muitos
fiquem inquietos e perturbados e sintam-se como se o chão sobre
o qual eles costumavam pisar estivesse se abrindo sob seus pés?
Desse modo, a questão torna-se mais urgente: “O que é preciso que
se diga quanto ao valor e lugar das Sagradas Escrituras?”.

Há uma doutrina válida


para a igreja cristã de hoje?
Permitam-me tentar indicar as linhas sobre as quais eu
responderia a seguinte questão: “Temos, ou podemos ter, uma
doutrina válida das Sagradas Escrituras?”. Para que uma dou­
trina das Escrituras satisfaça as necessidades da igreja cristã e
mostre-se à altura das afirmações da própria Bíblia parece-me ser
indispensável três coisas muito necessárias. São estas: primeiro,
uma perspectiva mais positiva da estrutura da Bíblia do que a que
se obtém em muitos círculos; segundo, o reconhecimento de uma
verdadeira revelação sobrenatural de Deus na história e religião da
Bíblia; terceiro, o reconhecimento de uma verdadeira inspiração
sobrenatural no relato dessa revelação. Podemos afirmar estas três
coisas? Elas suportariam o teste? Penso que sim.

A estrutura da Bíblia
Primeiramente, quanto à estrutura da Bíblia, faz-se necessária
uma idéia mais positiva dessa estrutura do que a que atualmente
prevalece. Ao tomar muita coisa da crítica, você vê a Bíblia sendo
desintegrada de muitas maneiras, e tudo que parece estrutura
desmorona-se. Dizem para você, por exemplo, que os livros de
Moisés são formados por muitos documentos, que são muito mais
tardios na origem e não possuem valor histórico. Dizem para você
que as leis que eles contêm são também, na maior parte, de origem
um tanto posterior, e que, principalmente, as leis levíticas são
de construção pós-exílio; elas não foram dadas por Moisés; elas
eram desconhecidas quando os filhos de Israel foram levados ao

41
Os fundamentos

cativeiro. O uso do templo talvez esteja incorporado à lei levítica,


mas a maioria do conteúdo daquela lei levítica era inteiramente
desconhecido, uma invenção de sacerdotes e escribas do período
pós-exílio. Elas foram moldadas, trazidas perante a comunidade
judaica que retornara da Babilônia e aceita por essa comunidade
como a lei da vida. Assim, você tem a história da Bíblia virada de
cabeça para baixo, e as coisas tomam uma nova perspectiva.
Devo, então, em consideração à crítica, aceitar tais teorias e
abandonar a estrutura que a Bíblia apresenta? Ao tomar a Bíblia
como ela está, encontro — e isto sem qualquer aprendizado crítico
particular que você possa encontrar por aí — o que parece ser a
evidência de uma estrutura interna definida, uma parte ajustando-
se a outra e conduzindo a uma terceira, formando uma unidade do
todo na Bíblia. A Bíblia possui inegavelmente uma estrutura na
forma como se apresenta. E distinta dos escritos do Alcorão, do
budismo, do hinduismo e de qualquer outro tipo de livro religioso.
Apenas por este fato, é diferente de todos ao outros, pois é a perso­
nificação de um grande plano, ou esquema ou propósito da graça
divina que se estende desde o início dos tempos através de eras
e dispensações sucessivas até chegar a seu ápice em Jesus Cristo
e no derramar do Espírito, em Pentecostes. A história da Bíblia é
a história do desenvolvimento do propósito redentor de Deus. As
promessas da Bíblia marcam os estágios de seu progresso e sua
esperança. Os pactos da Bíblia permanecem diante de nós para seu
desdobramento. Você começa com Gênesis, que estabelece os fun­
damentos e conduz ao Livro do Êxodo; e o livro do Êxodo, por sua
vez, com sua introdução às leis dadas, conduz ao livro que o segue.
Deuteronômio retoma a história das rebeliões e das leis dadas ao
povo e conduz à conquista. Não preciso seguir os desdobramentos
posteriores, que passam pela monarquia e pela profecia e por tudo
mais, mas você poderá encontrá-los reunidos e cumpridos no Novo
Testamento. A Bíblia, como a temos, encerra-se nos evangelhos,
nas epístolas e no Apocalipse, cumprindo todas as concepções do
Antigo Testamento. Ali o círculo se completa com o novo céu e a
nova terra onde habitará a justiça. Aqui está uma estrutura, uma
história interligada, uma unidade de propósito que se estende ao
longo desse livro e liga todas as suas partes. Essa estrutura é uma
ilusão? Será que apenas nós, e muitos pensadores que concordam
conosco, sonhamos que ela está ali? Será que nossos olhos nos

42
As sagradas escrituras e as negações modernas

iludem quando acreditamos vê-la? Ou alguém a inventou em uma


data posterior, colocando e ornamentando esses relatos, lendas e
histórias, ou qualquer que seja o nome que você queira dar, mais
remotos, — habilmente tecido na história até que tenha a aparência
de naturalidade e verdade? Seria como encontrar a mente capaz
de inventá-la e, depois, a mente capaz de operá-la em uma história,
depois que tiveram essa idéia. Mas se não inventaram, ela pertence
à realidade e à essência da história; pertence aos fatos; e, portanto,
ao Livro que relata os fatos. Existem testemunhos internos na
estrutura da Bíblia quanto à autenticidade de seu conteúdo que
protestam contra os esforços que são freqüentemente feitos para
reduzi-la a fragmentos e estremecer esta unidade, virando-a de
“pernas para o ar”. “Andai sobre Sião... contai suas torres; marcai
bem suas muralhas”; você descobrirá que há algo ali que a arte
humana não conseguirá destruir.
“Bem, tudo isso é muito bom”, ouço alguns dizer, “mas há fatos
do outro lado; existem aquelas múltiplas provas que nossos amigos
críticos alegam, ou seja, de que a Bíblia é realmente uma coleção de
fragmentos e documentos de data muito posterior, e que a história
é uma coisa completamente diferente do que a que Bíblia relata”.
No entanto, quando examino a evidência, não sinto que tenha esse
poder de convencimento que nossos amigos, os críticos, insistem
que têm.
Não estou rejeitando esse tipo de teoria crítica porque ela vai
contra meus preceitos ou tradições; rejeito-a simplesmente porque
me parece que a evidência não a sustenta, e que a evidência mais
forte é contra ela. Não é possível entrar em detalhes aqui; mas
apenas tomo um ponto que mencionei —a origem pós-exílio da lei
levítica. Expressei o que se diz sobre essa questão — que aquelas
leis e instituições pertencem aos sacerdotes, os levitas, e que os
sacrifícios que você encontra no meio do Pentateuco realmente
não existiram em nenhuma forma autorizada e, de modo geral,
não existiram de forma alguma até que os judeus retornassem
da Babilônia, para que depois fosse entregue como um código de
leis que os judeus aceitaram. Mas deixe que o leitor se coloque na
posição daqueles que retornaram e perceba o que isso significa.
Esses exilados haviam retornado da Babilônia. Eles tinham sido
organizados em uma nova comunidade, haviam reconstruído seu
templo e, muitos anos depois, quando começou haver confusão,

43
Os fundamentos

aqueles dois grandes homens, Esdras e Neemias, chegaram para


ficar ali entre eles. E, logo a seguir, Esdras produziu e proclamou
publicamente o que chamou a lei de Moisés, a lei de Deus pela mão
de Moisés que ele trouxera da Babilônia. Uma descrição completa
do que aconteceu é dada no oitavo capítulo do livro de Neemias.
Esdras lê essa lei, de seu púlpito de madeira, dia após dia para o
povo, e o intérprete dá o sentido. Agora, imagine, a maior parte das
coisas contidas nesse livro que ele está lendo ao povo jamais tinha
sido ouvida antes — na verdade, jamais tinha existido; os sacerdotes
e os levitas, como descritos ali, jamais existiram. A própria lei era
longa, complicada e opressiva, mas a coisa admirável é que o povo
mansamente a aceitou como verdadeira — aceitou-a passivamente
como lei — e se submeteu a ela, tomando sobre si suas opressões
sem um murmúrio dissidente sequer.
Para começar, essa é uma coisa muito notável. Contudo, lembre-
se, o que era essa comunidade. Ela não era uma comunidade com
unidade de pensamento, mas uma comunidade nitidamente dividida
em si mesma. Se você ler a narrativa, descobrirá que havia facções
em forte oposição; havia partidos fortemente opostos a Esdras e a
Neemias e às reformas deles; havia muitos naquela comunidade,
como se pode perceber no livro de Malaquias, que não tinham fé.
Mas, inacreditavelmente, todos eles se uniram para aceitar essa
nova, opressiva e, até então, desconhecida lei, a lei de Moisés, a lei
que veio a eles desde a mais remota antiguidade. Havia sacerdotes
e levitas naquela comunidade que conheciam algo acerca de suas
próprias origens; eles possuíam genealogias e conheciam algo so­
bre seu próprio passado. De acordo com a nova teoria, esses levitas
eram uma ordem completamente nova; jamais existiram antes do
tempo do exílio e passaram a existir por intermédio da sentença de
degradação que o profeta Ezequiel lhes proferiu no capítulo 44 de
seu livro. No entanto, a história silencia totalmente a respeito dessa
degradação. Se alguém perguntar quem aplicou a degradação ou
porque foi ela aplicada, ou quando ela ocorreu, e como os sacerdo­
tes chegaram a se submeter a ela, não há resposta a ser dada. Mas
isso aconteceu, assim nos dizem os críticos.
Desse modo, os sacerdotes e levitas estão lá e ouvem sem
espanto, à medida que Esdras lhes ensina como os levitas tinham
sido separados muitos séculos antes no deserto pela mão de Deus e
tinham feito uma ampla provisão de dízimos para seu apoio, assim

44
As sagradas escrituras e as negações modernas

como, e porque não, havia cidades separadas para que eles nelas
vivessem. As pessoas sabiam pouco sobre seu passado. Essas ci­
dades jamais existiram senão no papel; mas eles aceitaram a idéia.
Ficam sabendo sobre essas cidades que eles devem ter conhecido
sem que elas jamais existissem como cidades dos levitas. Eles não
apenas ouvem, mas aceitam os pesados dízimos impostos a eles
sem uma palavra de protesto e fazem um pacto com Deus assegu­
rando a si mesmos a obediência fiel a todos estes mandamentos.
Essas leis do dízimo, como descobrimos, não tem relação real
com a situação deles. Elas foram feitas para um caso totalmente
diferente. Elas foram feitas para um estado de coisas no qual havia
poucos sacerdotes e muitos levitas. Os sacerdotes existiam apenas
para conseguir o dízimo, contudo, nessa comunidade restaurada
havia uma grande quantidade de sacerdotes e poucos levitas. As
leis do dízimo não se aplicavam a todos, mas eles aceitaram essas
leis como se fossem de Moisés.
Assim, posso examinar as provisões da lei uma a uma — tabernácu-
lo, sacerdotes, ritual, sacrifícios e o Dia de Expiação; no entanto,
essas coisas, em sua forma pós-exílio, jamais existiram; elas foram
extraídas das mentes criativas dos escribas; contudo, o povo as
aceitou como a genuína obra das mãos do antigo legislador. Será
que tal coisa já foi ouvida antes? Tente fazê-lo em alguma cidade.
Tente ganhar o povo pondo sobre eles uma série de pesados encar­
gos ou dízimos, ou algo parecido, com base em que tinham sido
produzidos na idade média, mas valiam até hoje. Tente levá-los a
crer; tente levá-los a obedecer, e você verá a dificuldade. Será que é
crível para alguém que carrega livros e teorias de estudo e recebe
uma ampla e clara visão da natureza humana? De qualquer modo,
afirmo que não e será um espanto para mim, enquanto estiver vivo,
o modo como tal teoria obteve a aceitação que tem recebido entre
homens inquestionavelmente capazes e ajuizados. Estou convenci­
do de que a estrutura da Bíblia sustenta a si mesma, e que essas
teorias contrárias são falhas.

Revelação sobrenatural
Penso que é um elemento essencial em uma doutrina válida
das Escrituras, na verdade o âmago da questão, que ela contenha
um relato de uma revelação sobrenatural; e que é isso o que a
Bíblia afirma ser — não um desenvolvimento dos pensamentos

45
Os fundamentos

do homem acerca de Deus, e não o que esse ou aquele homem


pensa sobre Deus, como eles formaram idéias sobre Jeová, que
originalmente era o deus da tempestade do Sinai, e como eles
produziram esse grande Deus universal dos profetas, mas uma
revelação sobrenatural que o próprio Deus revelou em palavras e
ações aos homens no curso da história. Se essa afirmação referente
à revelação sobrenatural de Deus fracassar, a Bíblia fracassa, pois
está fundamentada nela do início ao fim. Hoje, é importante que o
tratamento de nosso pensamento moderno faça companhia à Bíblia.
Estou bem e completamente cônscio que muitos de nossos amigos
que aceitam essas teorias críticas mais recentes, afirmam crer,
tanto quanto todos os que proclamam sua fé, como eu também, na
divina revelação e em Jesus Cristo e em tudo que se relaciona a Ele.
Alegro-me com esse fato e creio que eles estão seguros em dizer
que isto existe na religião de Israel, algo que não se pode apagar,
nem tampouco explicar a não ser pela revelação divina.
No entanto, o que sustento é que essa teoria da religião da Bíblia,
sobre a qual se tem falado e que chegou a ser conhecida particular­
mente como a visão crítica, possui uma origem bastante diferente
— em homens que não acreditam na revelação sobrenatural de Deus
na Bíblia. Essa escola como um todo, como uma escola difundida,
sustenta a posição fundamental — a posição que seus adeptos reivin­
dicam ser oriunda do pensamento moderno — de que os milagres
não aconteceram e não podem acontecer. Tomando por base que eles
são impossíveis; seus seguidores, portanto, devem excluir tudo que
se assemelhe ao sobrenatural para fora do relato bíblico.
Jamais pude compreender como essa posição é sustentável para
uma pessoa que crê no Deus pessoal vivo que realmente ama Suas
criaturas e tem um desejo sincero de abençoá-las. Quem ousa
afirmar que o poder e a vontade de tal Ser, como devemos crer que
Deus seja — o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo —, pode
ser totalmente explicado pela criação natural? Quem pode crer que
não há coisas mais elevadas a ser obtidas da providência de Deus do
que pode ser alcançada por meio da lei natural? Quem se aventura a
declarar que não há em tal Ser a capacidade de revelar-se em pala­
vras e em atos além da natureza? Se há um dogmatismo no mundo,
esse é aquele do homem que proclama limitar o Autor do universo
por esse limite finito. As vezes, dizem-nos que ver a Deus no natu­
ral é uma coisa mais sublime do que vê-lo em algo que transcende
o natural; que é mais sublime ver a Deus na obra regularmente

46
As sagradas escrituras e as negações modernas

ordenada da natureza do que supor que ali sempre houve alguma


coisa transcendente que opera natural e ordenadamente. Contudo,
a questão é: será que essa operação natural não tem seus limites?
Não há algo que a natureza e as operações naturais não podem
alcançar, não podem fazer para o homem, mas que precisamos que
sejam feitas por nós? Precisamos amarrar Deus de tal maneira que
Ele não possa entrar em comunhão com o homem, ou seja, de forma
que haja o refrear da graça sobrenatural, da revelação e da salvação?
Devemos negar que ele tenha feito isso? Essa é, na verdade, a linha
divisória entre as diferentes teorias, tanto no Antigo quanto no
Novo Testamentos. A revelação, certamente, deve ser inteiramente
admitida se o homem está tentando atingir o claro conhecimento
necessário de Deus; e essa questão é um fato: Deus têm se revelado?
Creio que seja uma parte essencial da resposta, a verdadeira doutrina
das Escrituras, dizer, “Sim, Deus assim tem se revelado, e a Bíblia é
o relato disso do princípio ao fim”. A menos que haja uma aceitação
de coração do fato de que Deus entrou, em palavra e em ato, na
história humana para a salvação do homem, para sua renovação,
para a libertação deste mundo, ou seja, uma revelação que culmine
no próprio Revelador — a menos que aceitemos isso, não teremos o
fundamento para a verdadeira doutrina das Sagradas Escrituras.

O livro inspirado
Agora, apenas uma palavra de encerramento sobre a inspiração.
Não acho que alguém pesará a evidência da própria Bíblia bem
cuidadosamente se não disser que pelo menos ela afirma ser, de
uma maneira particular e especial, um livro inspirado.
Dificilmente há alguém, penso eu, que duvidará que Jesus
Cristo trata o Antigo Testamento desse modo. Cristo admite que
as Escrituras eram uma revelação divina verdadeira e que ele era o
objetivo de todas elas; pois ele veio para cumprir a lei e os profetas.
As Escrituras são a última palavra para Ele — “Não leram? Errais
não conhecendo as Escrituras”. E igualmente certo que os apóstolos
tratavam o Antigo Testamento desse modo, e que eles proclama­
vam que nessas Escrituras e em nas palavras delas estava posto o
“fundamento” sobre o qual a Igreja fora construída, o próprio Jesus
Cristo, a principal pedra de esquina, a essência do testemunho
deles; “edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas”
(Ef 2.20; ver 3.5).

47
Os fundamentos

A própria Bíblia como prova da inspiração


O que a Bíblia nos oferece como prova de sua inspiração? O que
a Bíblia nomeia como as qualidades que a inspiração lhe concede?
Paulo fala a Timóteo sobre as Escrituras que eram capazes de torná-
lo sábio para a salvação por meio da fé em Cristo Jesus. Ele continua
nos dizendo que toda a Escritura é inspirada por Deus e é útil para
a doutrina, para o ensino, para a repreensão, para a correção, para
a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e
perfeitamente habilitado para toda boa obra. Quando examinamos
o Antigo Testamento e o louvor que faz da Palavra de Deus, desco­
brimos que as qualidades da inspiração são justamente as mesmas.
“A lei do Senhor é perfeita”, etc. Estas são as qualidades que o livro
inspirado afirma sustentar — qualidades que somente a verdadeira
inspiração do Espírito de Deus poderia nos fornecer; qualidades
suficientes para suprir tudo que precisamos, pois não precisamos
de nada além delas.
Alguém duvida que a Bíblia possua essas qualidades? Olhe
para sua estrutura; olhe para sua completude; olhe para a clareza,
plenitude e santidade de seus ensinos; olhe para sua suficiência em
conduzir toda alma que procura verdadeiramente o conhecimento
salvador de Deus. Tome o livro como um todo, em todo seu pro­
pósito, todo seu espírito, todo seu objetivo e tendência e toda sua
configuração, e pergunte: será que ali não está manifesto o poder
que só pode apontar, como a Escritura o faz, para o Espírito Santo
de Deus que estava nos homens que a escreveram ?
49

Crítica ao antigo testamento

5 e ao cristianismo do novo
testamento

P rof. W. H. G r if f it h T h o m a s D.D.
Wycliffe College, Toronto, Canadá
Revisado por Charles L. Feinberg. Th.D. , Ph. D.

W1L11AM HENRY GRIFFITH THOMAS (1861-1924) foi um co-fundador


do Seminário Teológico de Dallas. Sua prática teológica formal começou
no K ings College, em Londres, e foi complementada na Oxford
(Jniversity, que lhe concedeu seu B.D., em 1895. De lá, ele mudou-se
para a Igreja St. Paul, onde enfatizava a oração e o estudo da Bíblia; sua
igreja conduzia seis encontros de oração por semana. Em 1905, Griffith
Thomas tornou-se diretor do Wycliffe Hall, em Oxford. Achando que
seu ministério precisava se ampliar, mudou-se para o Canadá em 1910
e tornou-se professor de literatura e exegese do Antigo Testamento no
Wycliffe College em Toronto. Entre os seus 26 livros estão obras como
The Prayers o f St. Paul [A Oração de Paulo], Grace and Power [Graça e
Poder], Christianity is Christ [Cristianismo é Cristo], The Pentateuch [O
Pentateuco], Genesis [Gênesis], Outline Studies in Matthew [Estudos
sobre Mateus], Outline Studies in Luke [Estudos sobre Lucas], The
Apostle Peter [O apóstolo Pedro], The Apostle Jo h n [O apóstolo João],
Studies in Colossians and Philemon [Estudos sobre Colossenses e
Filemom] e The Holy Spirit [O Espírito Santo], muitos dos quais foram
republicados por Kregel Publications. Griffith Thomas faleceu pouco
antes da abertura do Dallas Seminary.
Os fundamentos

Por um certo tempo, um grande número de cristãos sentiu-se


compelido a fazer objeções às atitudes de muitos estudiosos em
relação ao Antigo Testamento. Os estudiosos da crítica ensinaram
a negação absoluta do caráter histórico dos patriarcas, ou apenas
a aceitação parcial disso: o alegado caráter não-histórico dos
registros referentes a Moisés; a impossibilidade de confiar nas afir­
mações quanto ao futuro, feita pelos profetas; o erro dos escritores
do Novo Testamento ao atribuir valor histórico para os registros
do Antigo Testamento; a possibilidade de haver erros, inclusive
do próprio Senhor, que, durante todo o ministério, considerou
reiteradamente a autoridade divina do Antigo Testamento. Não
questionamos, nem sequer por um momento, a validade da crítica
bíblica, pois é necessário que todos os que usam a Bíblia utilizem
sua capacidade de julgar o texto que está diante deles. A alta
crítica não só é legítima, mas um método necessário para todos
os cristãos, pois podemos descobrir fatos e formas pela utilização
dele. Nossa hesitação e objeção não são em relação ao método, mas
ao que acreditamos ser uma utilização ilegítima, não-científica e
não-histórica desse método.

O testemunho do século dezenove sobre a história e


a experiência cristã não tem
nenhuma importância nessa questão?
No início do século dezoito, esses pontos de vista modernos
quanto ao Antigo Testamento não eram conhecidos. Mas isso
não deve ser considerado sinal de ausência de força intelectual e
erudição da igreja. Homens como Orígenes, Jerônimo, Agostinho,
Tomás de Aquino, Erasmo, Calvino, Lutero, Melanchton, sem
esquecer os puritanos ingleses e outros teólogos do século de­
zessete, não eram intelectualmente frágeis ou inertes, nem eram
completamente destituídos de compreensão crítica com referência
às Sagradas Escrituras. Contudo, eles, e a Igreja toda junto com
eles, jamais hesitaram em aceitar o ponto de vista do Antigo Tes­
tamento que lhes fora transmitido, não apenas como uma herança
do judaísmo, mas endossado pelos apóstolos. Caso ignorássemos
toda referência ao nosso Senhor, mesmo assim não seria possível
deixar de admitir que as perspectivas de Paulo, Pedro e João so­
bre o Antigo Testamento fossem as mesmas de toda a igreja cristã
até o fim do século dezoito. E, mesmo que levássemos em conta

50
Crítica ao antigo testamento e ao cristianismo do novo testamento

todas as possibilidades referentes à ausência de espírito histórico


e os métodos críticos modernos, será que devemos supor que,
por séculos, toda a igreja jamais considerou assuntos tais como
conteúdo, história e autoridade do Antigo Testamento?
Além disso, essa é uma questão que não pode ser decidida
apenas pela crítica intelectual. As Escrituras apelam à consciência,
ao coração e à vontade, assim como à mente; e a consciência
cristã, a experiência espiritual do Corpo de Cristo acumulada ao
longo da história, não deve ser considerada levianamente, muito
menos posta de lado, a menos que seja factualmente provado não
ter legitimidade. Não queremos dizer que “o que é novo não é ver­
dadeiro”, mas a demora para o aparecimento dessas perspectivas
críticas modernas deveria nos fazer parar por um tempo, antes de
praticamente colocar de lado o instinto espiritual de séculos de
experiência cristã.

A crítica concorda prontamente com a posição


histórica da nação judaica?
A nação judaica é um fato histórico, e seu relato nos é dado
no Antigo Testamento. Não há literatura contemporânea para
averiguar os relatos fornecidos ali, e a arqueologia nos proporciona
assistência apenas sobre detalhes mínimos, e não em relação a
algum período longo ou contínuo da história. Pode-se provar que
esse relato da história judaica permaneceu o mesmo por muitos sé­
culos. Contudo, muitos dos críticos modernos buscam reconstruir
a história dos judeus em vários pontos importantes. Por exemplo,
apresentam uma idéia bem diferente do caráter das primeiras for­
mas da religião judaica em relação ao que é apresentado no Antigo
Testamento, conforme aceitamos atualmente; a concepção deles
sobre os patriarcas é muito diferente das concepções encontradas
na narrativa do Antigo Testamento; a concepção sobre Moisés e
Davi foi essencialmente alterada com relação ao que nós é apresen­
tado no Antigo Testamento.
Agora, o que há na história judaica para apoiar toda essa
reconstrução? Absolutamente nada. Observamos, ao longo dos sé­
culos, o grande e notável fato objetivo da nação judaica, e o Antigo
Testamento é, ao mesmo tempo, o relato da vida nacional desse
povo, como o meio pelo qual a nação foi estabelecida. O Antigo
Testamento surgiu com eles, desenvolveu-se com eles, e é apenas

51
Os fundamentos

para os judeus que podemos olhar para procurar pelos primeiros


testemunhos do cânon do Antigo Testamento.
Em razão desses fatos, deve-se concluir que as posições funda­
mentais da crítica do Antigo Testamento moderna são visivelmente
incompatíveis com o desenvolvimento histórico e com a posição do
povo judeu. Portanto, não seria correto fazer uma pausa antes de
aceitar essa reconstrução subjetiva da história? Se alguém ler os
escritos de Wellhausen, depois deve se perguntar se ele admite de
alguma forma a história como nos foi dada no Antigo Testamento.

Os resultados da perspectiva moderna do antigo


testamento foram realmente provados?
As vezes, diz-se que a crítica moderna não é mais uma questão
de hipótese; pois ela entrou no domínio dos fatos. Alguns de seus
adeptos mais zelosos reivindicaram uma vitória completa para seus
postulados. Mas será que isto é realmente assim? E interessante e
também desconcertante descobrir que esses mesmos que reivin­
dicam isso falam de questões, que se supunham estar resolvidas
e encerradas décadas atrás, como se ainda fossem abertas. Em
primeiro lugar, será que a excessiva análise literária do Pentateuco
é provável ou mesmo possível sobre bases literárias? Deixe que
alguém trabalhe com a introdução crítica ao Antigo Testamento, ou
com um comentário crítico, em uma seção do Gênesis para saber
se tal combinação de autores é provável, ou se, mesmo que seja, os
vários autores podem ser identificados? Será que o método todo
não é puramente subjetivo para ser provável e confiável?
Além disso, os críticos não estão de acordo quanto ao número
de documentos ou quanto às porções a ser atribuídas a cada autor.
Alguns anos atrás, a crítica estava feliz em dizer que Isaías 40—66,
embora não tivesse sido escrito por Isaías, era obra de um único
autor, um profeta desconhecido do exílio. Contudo, estudiosos
posteriores consideraram que esses capítulos foram obra de dois
escritores e que todo o livro de Isaías não chegou à forma atual a
não ser muito tempo após o povo voltar do exílio. Portanto, essas
diferenças na análise literária envolvem diferenças de interpreta­
ção e diferenças de data, caráter e significado de partes específicas
do Antigo Testamento. A opinião expressa foi que a nova obra foi
suficiente para confundir toda as reconstruções atuais da religião
de Israel, e que a declaração partiu de uma fonte crítica confiável.

52
Crítica ao antigo testamento e ao cristianismo do novo testamento

Enquanto as declarações de fatos no Antigo Testamento forem


tomadas como se geralmente fossem falsas, resultados duradouros
serão impossíveis.

A posição da crítica moderna é realmente compatível


com a crença de que
o antigo testamento é uma revelação divina?
O problema diante de nós não é meramente literário, nem mes­
mo histórico; ele é essencialmente religioso, e todo o problema se
resume em apenas uma questão: o Antigo Testamento é o relato de
uma revelação divina? Esse é o problema fundamental. Admite-se,
de ambos os lados, ser quase impossível minimizar as diferenças
entre os pontos de vista tradicional e moderno em relação ao
Antigo Testamento. Eles se referem às diferentes concepções do
relacionamento de Deus com o mundo, assim como às concepções
distintas referentes ao curso da história de Israel, o processo da
revelação e a natureza da inspiração das Escrituras. Supunha-se
que a religião antes do período dos grandes profetas era idêntica a
outras religiões semíticas, que eram politeístas. Será que o Antigo
Testamento não revela, portanto, o tratamento único de Deus para
com Israel desde o tempo de Abraão até o oitavo século a.C.?
A seguir, podemos tomar o caráter das narrativas do Gênesis.
A questão real em discussão refere-se a seu caráter histórico.
A crítica moderna concebe os relatos do livro de Gênesis como
totalmente míticos e legendários. Contudo, é certo que os judeus
de séculos posteriores aceitaram esses profetas como personagens
verídicos, e os incidentes a eles relacionados, como história genuí­
na. Paulo e os outros escritores do Novo Testamento seguramente
sustentaram o mesmo ponto de vista. Se, portanto, eles não são
históricos, certamente as verdades enfatizadas pelos profetas e
pelos apóstolos referentes às histórias patriarcais ficam bastante
fragilizadas em suas bases.
Tomemos, novamente, a legislação que no Pentateuco se
associa a Moisés, a qual é quase invariavelmente apresentada
pela frase: “falou o S e n h o r a Moisés”. A crítica moderna considera
que essa legislação era desconhecida até cerca de mil anos após
o tempo de Moisés. Será que isso pode ser aceito como algo acei­
tável? Devemos supor que “falou o S e n h o r a Moisés” é apenas um
instrumento literário muito conhecido e cuja intenção é a de revestir

53
Os fundamentos

a declaração de maior importância e de sanção mais solene? Essa


posição, junto com o ponto de vista geralmente aceito pela crítica
moderna acerca da falsificação de Deuteronômio nos dias de Josias,
não pode ser admitida como algo que esteja de acordo com o fato
histórico ou princípio ético.
Contudo, alguns críticos asseveram firmemente que as novas
perspectivas são compatíveis com a crença na autoridade divina do
Antigo Testamento. Sobre que base repousa essa compatibilidade?
Negar a historicidade, corrigir datas em centenas de anos, rever
juízos sobre os quais a nação se firmou por séculos, mover pontos
de vista que foram o sustentáculo de milhões de pessoas e, a seguir,
dizer que tudo isso é consistente com o Antigo Testamento como
uma revelação de Deus é, pelo menos, algo intrigante e não propor­
cionará satisfação mental ou moral para muitos. Não é uma simples
questão de como podemos usar o Antigo Testamento na pregação,
ou o quanto resta para ser utilizado após a aceitação dos pontos de
vista da crítica. Até mesmo nossa pregação carecerá de uma gran­
de parcela de certeza. Se devemos admitir certas biografias como
não-históricas, não será fácil retirar lições para a conduta, e se a
história é amplamente legendária, nossas deduções sobre o gover­
no e a providência de Deus ficam essencialmente enfraquecidas.
Contudo, o único ponto a ser enfrentado é a credibilidade histórica
daquelas porções do Antigo Testamento questionadas pela crítica
moderna, assim como o valor histórico e religioso dos documentos
do Pentateuco. Ainda precisa ser provado que os pontos de vista
modernos estão em harmonia com a aceitação do Antigo Testamento
como o relato de uma revelação divina.

A crítica moderna está baseada sobre


uma filosofia sólida de forma que os cristãos
possam aceitá-la?
Na base de muito do pensamento moderno está a filosofia
conhecida como idealismo, que, como muitas vezes é interpretada,
envolve uma teoria do universo que não encontra lugar para as
interposições sobrenaturais de qualquer tipo. A grande lei do
universo, incluindo os domínios físicos, mentais e morais, é con­
siderada uma evolução e, embora isto pressuponha, sem dúvida,
um Criador original, nessa teoria, agora diante de nós, não se
permite qualquer subseqüente intervenção direta de Deus durante

54
Crítica ao antigo testamento e ao cristianismo do novo testamento

o processo de desenvolvimento. Esse princípio filosófico geral


aplicado à história tem seguramente influenciado, se não chegou
a praticamente moldá-la, uma grande parte da crítica moderna do
Antigo Testamento. Não se induz todo aquele que aceita até mesmo
a posição de uma crítica moderada a seguir até o extremo a teoria
evolucionista; mas não resta a menor dúvida de que a maior parte
da crítica do Antigo Testamento é concretamente afetada por uma
teoria evolucionista de toda a história, a qual tende a minimizar
a intervenção divina nas tarefas do povo de Israel. E certamente
correto dizer que a pressuposição de boa parte do raciocínio crítico
atual é uma negação do sobrenatural e especialmente do elemento
preditivo na profecia.
Quando à teoria da evolução concebida como um processo de
diferenciação de existências ininterruptas, sob leis puramente
naturais, e sem qualquer intervenção divina, bastará dizer que não
foi provada na esfera da ciência natural, ao passo que nos domínios
da história e da literatura é comprovadamente falsa. Os relatos da
história e da literatura revelam, de tempos em tempos, o grande
fato e fator de personalidade, a realidade do poder pessoal, e esse
elemento determinante tem um modo particular de desprezar toda
teoria idealista de um progresso puramente natural e uniforme na
história e nas letras. Bem distante dos exemplos de uma persona­
lidade vigorosa, como tem surgido de tempos em tempos através
dos séculos, há uma Personalidade que ainda não foi explicada por
nenhuma teoria evolucionista — a pessoa de Jesus de Nazaré.
Existem dados suficientes na atual crítica do Antigo Testamento
que validam a afirmação de que ela procede de pressuposições
relativas às origens da história, da religião e da Bíblia, e que, em
essência, são avessas à crença na revelação divina. Sendo esse o
caso, naturalmente olhamos com grande suspeita os resultados
derivados de uma base filosófica tão incerta.

Premissas puramente naturalistas podem ser aceitas


sem chegar
à conclusões puramente naturalistas?
Graf, Kuenen e Wellhausen são reconhecidamente aceitos como
mestres por seus seguidores, e os resultados de suas análises
literárias do Pentateuco são em geral admitidos como conclusivos.
Com base nessa discussão literária, certas conclusões foram

55
Os fundamentos

formadas quanto ao caráter e desenvolvimento da religião do


Antigo Testamento, e como resultado disso a história dos judeus
foi reconstruída. Sabe-se agora que os principais críticos negam o
elemento sobrenatural no Antigo Testamento. Essa é a pressupo­
sição de toda a posição deles. Deve-se admitir que isso não afeta
materialmente suas conclusões? Há algum momento seguro ou
lógico a parar para os que aceitam muitas dessas premissas? A
extrema subjetividade da crítica moderna é parte de um resultado
lógico de sua posição geral. A tendência de seus pontos de vista é a
de minimizar o sobrenatural no Antigo Testamento.
Tomem, por exemplo, o elemento Messiânico. A despeito da
crença universal dos judeus e dos cristãos no Messias pessoal,
uma crença, em primeiro lugar, proveniente apenas do Antigo
Testamento, mas apoiada pelos cristãos no Novo Testamento, a
crítica moderna não admitirá as predições claras e indubitáveis
acerca Dele. Percepções referentes às condições existentes são
prontamente outorgadas aos profetas, mas não lhes é dada permis­
são para prever as condições futuras com relação ao Messias. No
entanto, as palavras maravilhosas de Isaías permanecem e exigem
uma exegese sincera e plena, algo que não se encontra em muitos
eruditos modernos.
Se for preciso realçar que muitos críticos britânicos e norte
americanos crêem firmemente na autoridade divina do Antigo Tes­
tamento e na revelação divina contida nele, então pode-se dizer que,
para não faltar à verdade em relação a esses homens, os quais estão
fundamentados na fé cristã do passado, eles mantêm suas antigas
convicções, mas, ao mesmo tempo, admitem princípios e métodos
que estão logicamente em desacordo com essas convicções. Existe
também o perigo de que o outros, seguindo as premissas desses
estudiosos, aceitem as posições deles a ponto de assumir também
suas conclusões lógicas.

Podemos deixar de lado


a evidência da arqueologia?
Sabe-se muito bem que, nos últimos cem anos, um vasto
número de descobertas arqueológicas foi feito no Egito, Palestina,
Babilônia e Assíria. Muitas destas descobertas, de forma notável,
lançaram luz sobre as aspectos históricos do Antigo Testamento.
Grande número de pessoas e períodos foram iluminados por estas

56
Critica ao antigo testamento e ao cristianismo do novo testamento

descobertas e, agora, são vistos de uma forma clara, algo que antes
era impossível. E um fato simples e ainda notável que nem uma
dessas descobertas em todo esse tempo embasou qualquer das
características distintivas e dos princípios da posição crítica, ao
passo que, por outro lado, muitas delas proporcionaram abundante
confirmação da perspectiva tradicional e conservadora do Antigo
Testamento. E necessário mencionar apenas algumas destas
confirmações. A arqueologia confirmou a antiguidade dos escritos,
a historicidade dos relatos da campanha dos reis em Gênesis 14, a
confusa história de Sara e Agar, o Egito de José e de Moisés, a his­
toricidade de Sargão e Belsazar, e a natureza da língua Aramaica de
Daniel e Esdras. Foi interessante notar como um certo número dos
principais arqueólogos abandonou muitas de suas antigas posições
críticas e revelaram-se vigorosamente a favor da historicidade e do
valor do Antigo Testamento.

Os pontos de vista de crítica moderna são


consistentes com o testemunho de nosso senhor
quanto ao Antigo Testamento?
A igreja cristã aborda o Antigo Testamento, principal e predo­
minantemente, do ponto de vista da ressurreição de Cristo. Nós,
naturalmente, perguntamos o que nosso Mestre pensava do Antigo
Testamento, porque se este vem a nós com a autoridade do Senhor
e podemos descobrir Seu ponto de vista sobre ele, isso deve nos
satisfazer. Nos dia da vida de nosso Senhor sobre a terra uma
questão premente era: “O que vocês pensam de Cristo?”. Uma
outra era: “O que está escrito na lei? Como vocês a leram?” Estas
questões ainda estão sendo levantadas de uma forma ou de outra,
e hoje, como antigamente, os grandes problemas — dois centros
de preocupação como tem sido chamados — são Cristo e a Bíblia.
Os dois problemas, na verdade, se resumem em um, pois Cristo e
a Bíblia são inseparáveis. Se seguimos a Cristo, ele nos ensinará
a Bíblia; e se estudamos a Bíblia, ela nos apontará para Cristo. Os
dois são denominados de a Palavra de Deus.
Ele veio, entre outras coisas, para dar testemunho da verdade
(Jo 18.37), e o resultado necessário deste propósito é que ele dê
testemunho infalível. Ele veio para revelar a Deus e a vontade de
Deus, e isto implica e requer conhecimento especial. Isto exige
que cada asserção feita por ele seja verdadeira. O conhecimento

57
Os fundamentos

divino não se submeteu a qualquer alteração pela encarnação, não


por que não pudesse fazer isso. Ele continuou a existir na forma de
Deus, mesmo enquanto ele existia na forma de homem (Fp 2.6). Na
perspectiva dessa posição, cremos que temos o direito de apelar ao
testemunho de Cristo em relação ao Antigo Testamento. O lugar
que o Antigo Testamento ocupou em Sua vida e ministério é garan­
tia suficiente para fazer referência ao uso que Ele faz dele. Sabe-se
muito bem que, no que diz respeito ao Antigo Testamento, nossa
autoridade mais alta é a de nosso Senhor; e o que é verdadeiro em
relação ao Antigo Testamento como um todo, certamente é verda­
deiro em relação às partes às quais nosso Senhor, em particular, fez
referência.
Sejamos claros, portanto, quanto ao que queremos dizer ao
fazer esse apelo. Não temos, por um momento sequer, a intenção
de encerrar toda crítica possível ao Antigo Testamento. Existem
numerosas questões que jamais foram abordadas pelo nosso
Senhor, e há, conseqüentemente, amplo escopo para a crítica
sóbria, necessária e valiosa. Contudo, o que queremos dizer é que
qualquer coisa no Antigo Testamento que foi declarada por nosso
Senhor como um fato, ou implicado como um fato, é, ou deveria ser,
daí em diante encerrada para aqueles que sustentam que Cristo
é infalível. A crítica, portanto, pode fazer qualquer coisa desde
que não seja incompatível com as declarações de nosso Senhor;
portanto, a respeito do que Cristo falou, certamente, a questão está
encerrada.
Qual é, então, a perspectiva geral do Senhor quanto ao Antigo
Testamento? Não há dúvida que o Antigo Testamento que nosso
Senhor tinha em mãos era praticamente, se não verdadeiramente,
o mesmo de hoje, e que ele o considerava revestido de autoridade
divina, a corte final do apelo para todas as questões relacionadas
às Escrituras. O modo pelo qual ele o citou nos mostra isso. Para
o Senhor Jesus o Antigo Testamento era autorizado e final, porque
era divino.
Ninguém pode passar pelos evangelhos sem ficar impressiona­
do com a profunda reverência de nosso Senhor para com o Antigo
Testamento, e com o uso constante que fazia dele em todas as
questões sobre o pensamento e a vida religiosos. Sua pergunta,
“Não lestes?”; Sua afirmação, “Está escrito”; Seu testemunho,
“Pesquisai as Escrituras”, são indicativos plenos de Sua perspec­

58
Crítica ao antigo testamento e ao cristianismo do novo testamento

tiva acerca da autoridade divina do Antigo Testamento, a mesma


posição que temos hoje. Ele põe Seu selo de autoridade tanto em re­
lação à historicidade quanto à revelação de Deus. Ele complementa,
jamais o suplanta. Ele o amplifica e modifica, mas jamais o anula.
Ele cumpre, mas jamais o invalida.
Esse ponto de vista geral é confirmado por Suas referências
detalhadas ao Antigo Testamento. Considere Seu testemunho
às pessoas e aos fatos do antigo pacto. Dificilmente há um livro
histórico de Gênesis a 2Crônicas ao qual nosso Senhor não faça
referência; e talvez seja significativo que Seu testemunho inclua
referências a cada um dos livros do Pentateuco, a Isaías, a Jonas,
a Daniel e aos milagres, as partes mais questionadas hoje. Acima
de tudo, certamente é muito significativo que em Sua tentação, uns
dos momento mais profundos, ele usasse três vezes como a Palavra
de Deus o livro (Deuteronômio) sobre o qual houve, talvez, a maior
controvérsia de todas. Novamente, portanto, dizemos que, em
qualquer interpretação honesta, tudo que se pode dizer que Cristo
usou como referência, ou como um fato, é daí em diante sancionado
e selado pela autoridade de nosso infalível Senhor.
Tampouco, essa posição pode ser contestada pela declaração
de que Cristo simplesmente adotou as crenças de seu tempo sem
necessariamente sancioná-las como corretas. Não há prova alguma
disso, muito pelo contrário. Ele foi diretamente contra a opinião
dominante em alguns dos assuntos mais importantes de seu
tempo. Seu ensino sobre Deus, a justiça, o Messias, a tradição, o
sábado, os samaritanos, as mulheres, o divórcio e João Batista era
diametralmente oposto ao de seu tempo. E essa oposição estava
deliberadamente fundamentada no Antigo Testamento, e nosso
Senhor os responsabilizou pela má-interpretação do texto. O único
ponto discordante entre Ele e os judeus, quanto ao Antigo Testa­
mento, era o de interpretação. Nenhum vestígio de prova pode ser
alegado ao fato de que Ele e os judeus diferiam completamente
quanto ao ponto de vista geral que tinham do Antigo testamento, a
saber, seu caráter histórico ou sua autoridade divina. Se o ponto de
vista judeu da época estivesse errado, será que poderíamos pensar
que nosso Senhor teria ficado em silêncio sobre uma questão de
tamanha importância, sobre um livro que Ele cita ou alude mais
de quatrocentas vezes, e o qual utilizou constantemente ao ensinar
sobre Si mesmo? Se os judeus estivessem errados, ou Jesus estava

59
Os fundamentos

ciente disso ou não. Se estivesse ciente, por que ele não os corrigiu
como fez em relação a tantos outros pontos e detalhes? Quem
ousaria considerar a outra alternativa?
Tampouco, esse testemunho quanto ao Antigo Testamento pode
ser contestado pela afirmação de que a limitação da vida terrena de
nosso Senhor o manteve dentro da perspectiva corrente do Antigo
Testamento, perspectiva essa que não necessitava ser verdadeira.
Essa declaração ignora a força essencial de Sua afirmação pessoal
de ser “a Palavra”. Em mais de uma ocasião, nosso Senhor afirma
falar de Deus, assim como tudo que Ele disse tinha a garantia divina.
Notemos cuidadosamente o que isso envolve. As vezes, diz-se que
o conhecimento de nosso Senhor era limitado e que ele viveu aqui
como um homem, não como Deus. Suponha que isso seja admitido
em benefício do argumento. Muito bem; como homem ele viveu
em Deus e por Deus e afirmou que tudo que Ele disse e fez era de
Deus e por intermédio de Deus. Se, portanto, as limitações fossem
de Deus, assim também eram as declarações; e, como a garantia de
Deus era dada para cada uma dessas afirmações, elas são divinas
e infalíveis (Jo 5.19,30; 7.13; 8.26; 12.49; 14.24; 17.8). Ainda que
admitamos toda uma teoria que nos compelirá a aceitar um um
não-uso temporário das funções da divindade na pessoa de nosso
Senhor, ainda assim as palavras realmente expressas como homem
foram, conforme Ele afirmou, provenientes de Deus, e, portanto,
sustentamos que são infalíveis. Portanto, repousamos sobre a
afirmação pessoal de nosso Senhor que afirmou dizer tudo e fazer
tudo pelo Pai; por meio do Pai, para o Pai.
Não há, claro, questão de conhecimento parcial após a ressur­
reição, quando nosso Senhor ficou manifestamente livre de todas
as limitações das condições terrenas. Mas foi também após Sua
ressurreição que ele pôs seu selo de autoridade sobre o Antigo Tes­
tamento (Lc 24.44). Concluímos que as declarações positivas de
nosso Senhor sobre a questão do Antigo Testamento não devem ser
rejeitadas a não ser que O responsabilizemos pelo erro. Se nesses
pontos, sobre os quais podemos prová-Lo e checá-Lo, achamos que
Ele não é confiável, que conforto real podemos ter ao aceitar seu en­
sino mais sublime, em que a verificação é impossível? Cremos que
estamos sobre uma base absolutamente segura, quando dizemos
que o que o Antigo Testamento deve e deverá ser para nós o que era
para o nosso Senhor.

60
Crítica ao antigo testamento e ao cristianismo do novo testamento

Podemos estar certos que nenhuma crítica do Antigo Testa­


mento jamais será aceita pela igreja cristã como a principal, se não
aceitar plena e satisfatoriamente: (1) seu elemento sobrenatural;
(2) a experiência espiritual iluminada dos santos de Deus em todos
os tempos; (3) a tradição geral da história judaica e a posição única
da nação hebraica ao longo dos séculos; (4) a concepção apostólica
da autoridade e inspiração do Antigo Testamento; e (5) a crença
universal da igreja cristã na infalibilidade de nosso Senhor como o
Mestre da verdade.

61
63

^ O testemunho de Cristo
” ao antigo testamento

W i l l ia m Caven, D.D., LL.D.


Ex-diretor do Knox College, Toronto, Canadá
Revisado por Charles L. Feinberg, Th.D., Ph.D.

Tanto judeus quanto cristãos recebem o Antigo Testamento


como uma revelação de Deus, ao passo que os últimos admitem
que ele tem uma relação íntima e vital com o Novo Testamento. Nos
últimos tempos, tudo que está relacionado ao Antigo Testamento
tem sido sujeito a exame minucioso — a autoria dos vários livros,
o tempo em que foram escritos, o estilo, o valor histórico, os
ensinamentos éticos e religiosos. Aparte da veneração com a qual
tratamos os escritos do Antigo Testamento, a íntima relação que
eles têm com o Novo Testamento necessariamente aguçam nosso

WILLIAM CAVEN (1830-1904) emigrou da Escócia em 1847. Em sua


nova pátria, o Canadá, graduou-se pelo Knox College em Toronto antes
de ser ordenado como ministro Presbiteriano em 1852. Após vários anos
de trabalho pastoral, Caven retornou a Knox em 1866 como professor
de teologia exegética. Caven foi um vigoroso defensor da unificação
da igreja e contribuiu para formar a Igreja Presbiteriana do Canadá,
que incluía a Igreja da Escócia. Entre outras coisas, interessava-se por
missões e escatologia. Seus escritos mais notáveis foram compilados
postumamente em Christ's Teaching Concerrting the Last Things [Os
Ensinamentos de cristo em relação aos últimos acontecimentos]
( 1908 ).
Os fundamentos

profundo interesse pelas conclusões que podem ser alcançadas


pela crítica ao Antigo Testamento. Para nós a dispensação do Novo
Testamento pressupõe a dispensação mosaica, e os livros do Novo
Testamento tocam os do Antigo Testamento em cada ponto.
Propomos aqui tomar um ponto de vista sucinto do teste­
munho de nosso Senhor quanto ao Antigo Testamento, como
relatado pelos evangelistas. Os próprios escritores do Novo
Testamento citaram e se referiram ao Antigo Testamento, e os
pontos de vista que eles expressam quanto à antiga estrutura e
seus escritos se harmonizam com as declarações de seu Mestre;
no entanto, confinamo-nos apenas ao que diz respeito ao Senhor.
Consideremos, primeiramente, o que está contido ou necessa­
riamente implicado no testemunho do Senhor em relação às
Escrituras do Antigo Testamento e, em segundo, ao valor crítico
de Seu testemunho.

O testemunho do Senhor
quanto ao antigo testamento
A autoridade de nosso Senhor pode ser citada em favor do cânon
do Antigo Testamento como era aceito pelos Judeus em seus dias.
Ele jamais os responsabiliza por acrescentar ou retirar algo das
Escrituras, ou de qualquer modo por adulterar o texto. Se tivessem
sido culpados de tão grande pecado, seria praticamente impossível
que entre as responsabilidades que lhes foram impostas, essa
questão não fosse mencionada. O Senhor reprova Seus compa­
triotas pela ignorância quanto às Escrituras e por fazer da lei algo
vazio em razão de suas tradições, mas Ele jamais insinua que eles
introduziram algum livro no cânon ou rejeitaram qualquer um que
merecesse lugar nele.
O cânon do Antigo Testamento do primeiro século é o mesmo
que o nosso. A evidência para isto é total, e esse fato dificilmente é
posto em questão. Na verdade, o Novo Testamento não contém ne­
nhum catálogo dos livros do Antigo Testamento, mas o testemunho
de Josefo, de Melito de Sardes, ou de Orígenes, de Jerônimo, do
Talmude, decisivamente mostra que o cânon do Antigo Testamento,
uma vez fixado, permaneceu inalterado. E certo que a Septuaginta
concorda com o hebraico quanto ao cânon, demonstrando assim
que o assunto não estava em disputa havia pelo menos dois séculos
antes de Cristo. O testemunho da Septuaginta não é fragilizado

64
O testemunho de Cristo ao antigo testamento

pelo fato de que os apócrifos do Antigo Testamento são acrescidos


aos livros canônicos. O Senhor, como pode-se observar, jamais cita
qualquer um dos livros apócrifos, nem a eles faz referência.
a) Nenhuma parte atacada
Se nosso Senhor não nomeia especificamente os escritores
dos livros do Antigo Testamento, ao menos é possível dizer que
nenhuma palavra Dele põe em questão a autenticidade de qualquer
livro, e que Ele comprovadamente atribui várias partes das Escri­
turas aos escritores cujos nomes são apresentados como autores.
A Lei é atribuída a Moisés; o nome de Davi está relacionado aos
Salmos; as profecias de Isaías são atribuídas a Isaías; e as de Daniel
a Daniel. As referências a Moisés como legislador e escritor são
claras e numerosas (Cf. Mt 8.4; 19.8; Lc 16.31; Mc 7.10; Lc 24.27,44;
Jo 5.45-47; 7.19,22,23). Os Salmos são citados mais de uma vez por
nosso Senhor, mas apenas uma vez menciona-se um escritor. O
Salmo 110 é atribuído a Davi; e a validade do argumento do Senhor
depende de esse salmo ser davídico. A referência, portanto, até
onde podemos verificar, confirma as inscrições dos Salmos com
relação à autoria. Isaías é citado em um bom número de passagens
(cf. Mt 13.14,15; Mc 7.6; Lc 4.17,18). Em sua grande profecia sobre
a queda da comunidade Judaica, o Senhor, em Mateus 24.15, cita
Daniel 9.27 e 12.11.
b) Narrativas e registros autênticos
Quando Cristo faz referência às narrativas e relatos do Antigo
Testamento, ele as aceita como autênticas e como historicamente
verdadeiras. Ele, em nenhuma das citações, sugere ou aceita
uma interpretação alegórica ou mítica. Os relatos da criação, do
dilúvio, da destruição de Sodoma e Gomorra, assim como muitos
incidentes e acontecimentos posteriores a esses, são considerados
como autênticos. Pode-se, naturalmente, alegar que as referências
do Senhor à criação do homem e da mulher, ao dilúvio, às cidades
do planalto, assim como todas as outras, servem igualmente a Seu
propósito de ilustração, quer Ele as admita como histórias quer
não. Contudo, ao pesar as palavras Dele ver-se-á que elas perdem
muito de sua força e aplicabilidade a menos que os eventos aludidos
tenham um caráter histórico (Cf. Mt 19.4,5; 24.37,39; 11.23,24).
Essas declarações, todos sentem isso, perdem seu peso, se não

65
Os fundamentos

houvesse nenhum dilúvio tal como é descrito em Gênesis, ou se a


destruição da pervertida Sodoma fosse apenas um mito. Ilustrações
e paralelos podem, para certos propósitos, ser extraídos da litera­
tura fictícia, mas quando o Senhor queria despertar a consciência
dos homens e aguçar seus temores ao se referir à certeza do juízo
divino, Ele não confirmaria seu ensino por exemplos de punição
que são apenas fábulas. Seu argumento de que o Deus santo e
justo fará como tem feito, estenderá seu braço como nos dias da
antiguidade, ficaria destituído, nesse caso, de toda validade.
Um ponto de vista freqüentemente recomendado é que, em
relação às outras nações, assim como aos judeus, o período mítico
precede o histórico e, portanto, as narrativas mais remotas do An­
tigo Testamento devem ser tomadas de acordo com seu verdadeiro
caráter. Nos períodos posteriores do Antigo Testamento, temos
relatos que, no todo, são históricos; mas nos tempos bastante
remotos não devemos buscar a história autêntica. Notamos sim­
plesmente que as breves referências de nosso Senhor à narrativa
mais antiga do Antigo Testamento não sugerem a distinção, quanto
à probidade, feita tão freqüentemente entre os relatos mais remotos
e os posteriores do Antigo Testamento .
c) O Antigo Testamento de Deus
Postulamos que Cristo aceita, em um sentido muito particular,
a antiga dispensação e suas Escrituras como de Deus; possuindo
autoridade especial e divina. Muitos que não reconhecem nenhuma
santidade ou autoridade peculiar na religião dos Judeus, acima de
outras religiões do mundo, admitiram prontamente que é de Deus.
Contudo, a opinião destes é que toda religião possui elementos de
verdade, que todas elas proporcionam meios pelos quais as almas
devotas têm comunhão com o Poder que governa o universo, mas
que nenhuma delas deve exaltar suas pretensões acima das outras,
muito menos reivindicar sanção divina exclusiva; todas elas são o
produto da natureza espiritual humana, como foi moldada por sua
história e ambiente, em diferentes épocas e nações.
Mas as declarações de Jesus Cristo sobre essa questão da
origem divina da religião do Antigo Testamento são inequívocas;
e Sua linguagem com relação ao escrito no qual essa religião foi
entregue era bem clara e incisiva. Deus é a fonte, no sentido mais
direto, tanto da religião quanto dos relatos dela. Nenhum homem

66
O testemunho de Cristo ao antigo testamento

pode reivindicar a autoridade de Cristo para colocar o judaísmo no


mesmo patamar que o confucionismo, o hinduismo, o budismo e o
parsismo. Fica muito evidente que a fé judaica, para nosso Senhor, é
a única fé verdadeira e que as Escrituras judaicas possuem um lugar
de destaque, o qual não pode ser dividido com os livros sagrados de
outros povos, “porque a salvação vem dos judeus” (Jo 4.22).
Quase todas as referências de nosso Senhor ao Antigo Testa­
mento apóiam a declaração de que Ele admite que essas Escrituras
são proveniente de Deus. Ele mostra que a profecia do Antigo
Testamento é cumprida Nele; ou Ele proclama Seu ensino e Suas
afirmações fundamentado nas Escrituras; ou Ele ordena que se
obedeça à lei; ou Ele afirma a inviolabilidade da lei até seu total
cumprimento; ou Ele acusa uma geração cega e presunçosa de
substituir e anular uma lei que eles eram obrigados a observar
(cf. Mt 5.18; 15.4; 21.13; 22.32; e Mc 7.8). O Senhor fez muitas cita­
ções e alusões a muitas passagens do Antigo Testamento como se
fossem revelações de Deus, ou como aguardando o cumprimento,
de modo que não é necessário fazer citações desse tipo. Todas es­
sas referências, certamente, implicam a autoridade das Escrituras;
porque nenhum homem, nem criatura, pode contar o que está
oculto no futuro longínquo.
Não estamos nos esquecendo de que o Senhor reconhece plena­
mente o caráter provisório da lei mosaica e da antiga dispensação.
Fossem os antigos impecáveis e nenhum lugar teria sido encon­
trado para o novo. Tivesse a graça e a verdade vindo por Moisés,
e o advento de Jesus Cristo teria sido desnecessário. Contudo, em
tudo isso não há nada que modifique a proposição que estamos
ilustrando, isto é, que nosso Senhor aceita o Antigo Testamento
como a Palavra de Deus, cunhada com autoridade divina e a qual
faz com que a vontade e a mente divinas sejam verdadeiramente
conhecidas.
d) Deus fala
Nosso Senhor certamente atribui ao Antigo Testamento uma
natureza mais alta do que muitos têm suposto. Deus fala por todo
o Antigo Testamento, e, embora Ele se revelará de forma mais per­
feita em seu Filho, nada que esteja contido na revelação mais antiga
fracassará em sua finalidade ou será acusada de conter erro. Cristo
não utiliza o termo “inspiração” ao referir-se ao Antigo Testamento,

67
Os fundamentos

mas quando nos dirigimos a Suas palavras com relação às origens e


à autoridade desses escritos, tornar-se evidente que para Ele esses
escritos, em sua totalidade, são dados por Deus. Ver-se-á que Seu
testemunho não é nada distinto do de Paulo (2Tm 2.16) e do de
Pedro (2Pe 1.21).
e) Palavras e mandamentos de Deus
Ao falar de Cristo como alguém que ensinou que o Antigo
Testamento é de Deus, fizemos referência às passagens nas quais
Ele diz que suas obras e mandamentos são as de Deus (cf. Mt 15.4
e Mc 7.8,9). Passagens como essas fazem mais do que provar que o
Antigo Testamento expressa em sua totalidade a mente de Deus e,
portanto, possui extrema autoridade. Com certeza, se pudéssemos
dizer que Deus falou certas palavras, ou que certas palavras e man­
damentos são de Deus, temos mais do que um endosso geral. Não
é preciso, naturalmente, nenhuma prova de que as palavras citadas
no Novo Testamento como proferidas por Deus não são as únicas
partes do Antigo Testamento que têm autoridade divina direta. A
impressão deixada sobre cada mente imparcial é que tais citações,
como as feitas pelo Senhor, são apenas exemplos de um livro no
qual Deus fala o tempo inteiro. Certamente, não há encorajamento
para que tentemos fazer qualquer análise das Escrituras em suas
partes divinas e humanas, para repartir a autoridade entre Deus
e o escritos humanos, porque, como vimos, as mesmas palavras
são atribuídas a Deus e a seu servo Moisés. Tudo é dito por Deus
e também por Moisés. Tudo é divino e ao mesmo tempo humano.
O divino e o humano são assim relacionados para que a separação
seja impossível.
f) Infalibilidade absoluta das escrituras
E preciso que se chame a atenção para três passagens nas quais
o Senhor faz referência à origem e à absoluta infalibilidade das Es­
crituras. São elas: Mateus 22.42-45; João 10.34-36 e Mateus 5.17,18.
Na primeira, faz-se referência ao Salmo 110, e nosso Senhor diz que
Davi estava completamente sob a influência do Espírito na produ­
ção do Salmo, de maneira que a palavra tem autoridade absoluta.
Esse é o significado que o Senhor dá, e os Fariseus não objetam
de forma alguma ao Seu argumento. Na segunda passagem, Cristo
justifica-se quanto à acusação de blasfêmia ao afirmar que é o Filho
O testemunho de Cristo ao antigo testamento

de Deus, e faz isso fundamentado no fato de que as Escrituras do


Antigo Testamento não podem ser quebradas. A autoridade das
Escrituras, desse modo, estende-se a seus termos individuais
(neste caso, “deuses”). Se isto não for inspiração verbal, torna-se
difícil saber o que é. No último texto, o Senhor em seu Sermão da
Montanha faz referência a Sua relação com o Antigo Testamento e
as Escrituras. Nenhuma outra palavra tão forte poderia ser empre­
gada para afirmar a autoridade divina de todo o Antigo Testamento;
porque a lei e os profetas significam todo o Antigo Testamento.
Resta agora uma questão: será que as Palavras de Cristo podem
ser proclamadas em seu pleno significado, ou, por uma razão ou
outra, deve-se fazer pouco caso delas? Esta questão é de imensa
importância e será considerada a seguir.
g) Cumprimento da profecia
A inspiração do Antigo Testamento está claramente indicada nas
muitas declarações de nosso Senhor com respeito ao cumprimento
das profecias nelas contidas. E prerrogativa de Deus saber, e tornar
conhecido, o futuro. O presságio humano não pode ir além do que
é prefigurado nos acontecimentos que acontecem ou está envolvido
em causas que vemos em plena operação. Se, portanto, o Antigo
Testamento, centenas de anos à frente, revela o que acontecerá, a
onisciência deve ter dirigido a pena do escritor; essas Escrituras
devem ser inspiradas (cf. Mt 26.31; Jo 5.46; 15.25; e Lc 2.44-46)
para tais predições. Ensinar que o Antigo Testamento contém pre-
dições autênticas é, como dissemos, ensinar que ele é inspirado. O
desafio de Isaías vem a calhar (Is 41.23).
Observamos, portanto, que nosso Senhor aceita o cânon do
mesmo Antigo Testamento que nós temos hoje, pois Ele faz até
referência a livros particulares do cânon atribuindo-os a escritores
cujos nomes dão título aos livros. Ele reconhece a religião judaica
e seus livros sagrados, em um sentido especial, como de Deus, e
os escritores das Escrituras, conforme a perspectiva Dele, falam
no espírito. Reconhece também que as palavras contidas ali são tão
apropriadamente escolhidas que um argumento pode repousar na
exatidão de um termo, que nenhuma parte das Escrituras falhará
em sua finalidade ou será considerada um equívoco e que as predi­
ções das Escrituras são predições genuínas, as quais devem todas,
a seu tempo, ser cumpridas.

69
Os fundamentos

O valor do testemunho de Cristo


Resta ainda considerar brevemente o valor do testemunho de
Cristo com relação ao Antigo Testamento para o estudioso da
Bíblia. Será que podemos aceitar as afirmações de Cristo sobre
essas questões como afirmações que têm valor ou autoridade para
o estudo bíblico? Podemos aceitá-las com o valor e importância
que aparentam ter, ou devemos desconsiderá-las? Existem dois
caminhos pelos quais se procura invalidar o testemunho de Cristo
com relação ao Antigo Testamento.
a) A alegada ignorância de Jesus
Proclama-se que Jesus não tinha nenhum conhecimento acima
do de Seus contemporâneos no que diz respeito à origem e às
características literárias das Escrituras. Os Judeus acreditavam
que Moisés escrevera o Pentateuco, que as narrativas do Antigo
Testamento eram todas histórias autênticas e que as palavras das
Escrituras eram todas inspiradas. Cristo compartilhou a opinião
de Seus compatriotas acerca desses assuntos, mesmo quando
eles estavam errados. Sustentar esse ponto de vista, conforme se
argumenta, não significa depreciar as qualificações do Senhor para
Sua missão, a qual era religiosa e espiritual, não literária; porque,
em relação ao valor religioso do Antigo Testamento e sua aplicação
espiritual, ele pode, sem dano algum, ser aceito como nosso guia.
Seu conhecimento era adequado para entregar a doutrina, mas não
se estendia necessariamente às questões de erudição e crítica. So­
bre estes assuntos, Ele fala como um homem qualquer; e procurar
confinar ou dirigir a crítica mediante o apelo à Sua autoridade é um
procedimento que só pode repercutir sobre aqueles que o adotam.
Esta perspectiva é promovida, não somente pelos críticos que
rejeitam a divindade de Cristo, mas por muitos que professam crer
nessa doutrina.
Invoca-se a doutrina da kenosis para se explicar a imperfeição do
conhecimento de nosso Senhor sobre as questões críticas, como
fica evidenciado pelo modo como Ele fala do Pentateuco e de vários
outros problemas do Antigo Testamento. O tema da limitação do
conhecimento de Cristo em sua vida terrena é algo difícil, e isso
não será considerado na presente obra. Contudo, podemos afirmar
com confiança que o conhecimento do Senhor era inteiramente
adequado ao cumprimento de Seu ofício profético. Imputar-lhe

70
O testemunho de Cristo ao antigo testamento

imperfeição como Mestre da Igreja seria, na verdade, impiedade.


Será que não fica bem claro que se o ensino do Senhor estiver
errado, então seu ofício profético está ameaçado? Pois existe a
alegação de que, ao sustentar com firmeza o que lhe foi livremen­
te permitido ensinar, estamos pondo em risco a fé. Os críticos,
a quem estamos questionando, devem admitir que os pontos em
questão não são de extrema importância, ou que o Senhor não
estava plenamente qualificado para Sua obra profética. Aqueles
que reverenciam a Bíblia não admitirão nenhuma dessas duas
posições.
b) Teoria da acomodação
A teoria da acomodação é apresentada na explanação daquelas
referências que Cristo faz ao Antigo Testamento, as quais endos­
sam o que é considerado como descuidos ou erros populares.
Ele falou, conforme afirmam, a partir da opinião e da crença
corrente quanto ao Antigo Testamento. Essa crença era por vezes
correta, por vezes errônea; no entanto, quando nenhum interesse
religioso ou moral fosse afetado, quando a verdade espiritual não
estivesse envolvida, Ele permitiu a si mesmo, mesmo quando a
crença comum era errônea, falar conforme essa crença. Declara-
se que o Senhor agiu de maneira prudente, porque não seria de
forma alguma proveitoso, afirma-se, contestar a opinião comum
em questões de pequena importância e, desse modo, despertar
ou reforçar suspeitas quanto ao Seu ensino em geral. Quanto à
acomodação que, conforme se supõe, ter sido praticada por nosso
Senhor, observamos que se isto implica, como o termo propria­
mente requer, um conhecimento mais exato e correto do que
Sua linguagem revela, tornando-se difícil em muitos exemplos
justificar Sua perfeita integridade.
Além disso, podemos dizer que se as declarações de nosso
Senhor acerca da autoria de partes da Escritura ofereceu uma
medida de Sua aprovação das opiniões que estão se interpondo no
caminho tanto do conhecimento genuíno como também da fé, fica
difícil ver como elas puderam ser admitidas como exemplos de uma
acomodação justificável. Parece-nos que nesse caso não se pode
justificar a absoluta veracidade do Senhor, a não ser que lhe seja
imputado um grau de ignorância que o incapacitaria para Seu ofício
como Mestre permanente da Igreja.

71
Os fundamentos

c) Duas posições claras


Duas posições podem ser afirmadas: (1) A legislação do
Pentateuco é realmente atribuída a Moisés pelo Senhor. Se esta
legislação está em um ponto bem distante de Moisés e boa parte
dela foi produzida após o exílio, a linguagem do Senhor está positi­
vamente equivocada e endossa um erro que vicia toda a construção
da história do Antigo Testamento e o desenvolvimento da religião
em Israel. (2) Moisés é o escritor da lei e é possível referir-se a ela
como seus escritos. As palavras de Jesus evidenciam que Ele reco­
nhece Moisés como o escritor dos livros que o identificam como o
autor. Qualquer afirmação contrária seria o mesmo que roubar as
características e a força de várias das afirmações de nosso Senhor.
Se toda a Escritura possui o testemunho de Cristo, não podemos
recusar ouvi-Lo quando Ele fala de suas características. E loucura,
impiedade inexprimível, tomar uma decisão diversa da do Senhor
em qualquer questão concernente à Bíblia sobre a qual temos Seu
veredicto; e dizer que devemos ouvi-Lo quando Ele fala de verdade
espiritual, mas que devemos ser livres quando a questão refere-se
ao conhecimento, não pode ser considerado melhor do que isso.
Que desgraça quando nosso conhecimento entra em disputa com
Aquele que é Profeta, Sacerdote e Rei, e por cujo Espírito falam
tanto os profetas quanto os apóstolos!
Nossa intenção foi a de mostrar que o Senhor reconhece todo o
livro ou coleção de livros do Antigo Testamento como divino, auto­
rizado e infalível. O testemunho de nosso Senhor quanto à natureza
do Antigo Testamento deve permanecer intacto.

72
73

_ A evidência interna
■ do quarto evangelho

C a n o n G. O s b o r n e T r o o p , M .A.
Montreal Canadá

Toda a Bíblia está estampada com o “selo de qualidade” divina;


contudo, o evangelho segundo João é primus inter pares [primeiro
entre iguais]. Por intermédio dele, como por meio de uma transpa­
rência, contemplamos a entrada no Santo dos Santos, onde resplan­
dece, em glória não terrena, “a grande visão da face de Cristo”. No
entanto, a perversidade humana fez dele o “centro da tempestade”
da crítica do Novo Testamento, sem dúvida graças ao fato de que
esse evangelho sustenta o testemunho inabalável tanto da divinda­
de de nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo, como de Sua perfeita
humanidade. O Cristo do quarto evangelho não é não-histórico,
uma visão idealista, um sonho da igreja, mas é, como afirma ser, o
quadro pintado pelo “discípulo que Jesus amou”, uma testemunha
ocular do sangue e da água que fluíram de seu lado perfurado.
Essas podem parecer meras declarações sem fundamento e como
tais serão rejeitadas de imediato por um leitor científico. Contudo,

CANON G. O SB ORN E TROOP. (1854-1932) recebeu o bacharelado do


Kings College em Windsor, Nova Escócia, em 1877. Serviu as igrejas
em Halifax, Nova Escócia; St. John, New Brunswick; Montreal e Toronto
entre 1874 e 1920. Suas cartas publicadas por jornais locais discutiam
tanto assuntos teológicos quanto seculares.
Os fundamentos

o apelo deste artigo é feito ao instinto do “único rebanho” do “único


Pastor”. “Eles conhecem sua voz... e não seguirão a um estranho”.
1. Há uma passagem no evangelho que brilha como um raio — ela
ofusca nossos olhos por sua grande glória. A Marta, que está
com o coração partido, o Senhor Jesus diz com aterradora brus­
quidão: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda
que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim, não morrerá,
eternamente”.
Podemos afirmar com certeza que essas palavras estão muito
além do alcance da invenção humana. Jamais o coração humano
poderia dizer, “Eu sou a ressurreição e a vida”. “Há uma ressurrei­
ção e uma vida”, teria sido uma grande e notável afirmação, mas
este que fala identifica-se com a ressurreição e com a vida eterna. As
palavras só podem ser oriundas lá de cima, e aquele que as profere
é digno da maior adoração pela alma que se rende.
Em um capítulo anterior, João relata uma certa questão
direcionada ao Senhor que a respondeu de uma maneira que não
possui paralelo na literatura mundial. “Que faremos”, clama o povo
impaciente; “Que faremos para realizar as obras de Deus? Respon­
deu-lhes Jesus: A obra de Deus é esta: que creiais naquele que por
ele foi enviado” (Jo 6.28,29). Atrevo-me a dizer que uma resposta
assim a essa questão não tem paralelo. Isso é a obra de Deus, que
creiais naquele que por Ele foi enviado. Eu sou a raiz da árvore que
sustenta os únicos frutos que agradam a Deus. Nosso Senhor pro­
fere este discurso no capítulo 16, quando diz que o Espírito Santo
“convencerá o mundo do pecado... porque não crêem em mim”. A
raiz de todo mal é a descrença em Cristo. A condenação do pecado
do mundo repousa na rejeição do Redentor. Aqui, na aceitação ou
na rejeição de sua admirável personalidade, encontramos a raiz da
Justiça e a raiz do pecado. Isso é algo único, assim como proclama
aquele que fala como alguém “separado dos pecadores”, embora o
Senhor tenha posto sobre Ele a “iniqüidade de todos nós”. Verda­
deiramente,
Ele é Sua própria e melhor evidência,
Seu testemunho é interno.
2. Passemos ao capítulo quatorze que é tão amado por todos os
cristãos. Ouça essa voz, a voz de muitas águas, e como ela soa
nos ouvidos dos discípulos perturbados: “Não se turbe o vosso
coração; credes em Deus, crede também em mim. Na casa de
A evidência interna do quarto evangelho

meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria


dito. Pois vou preparar-vos lugar. E, quando eu for e vos preparar
lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que, onde
eu estou, estejais vós também”.
Quem ousaria dizer: “Credes em Deus, crede também em mim”?
Ele se atreve a dizer porque é o Filho do Pai. O filho do homem é
homem: o Filho de Deus poderia ser algo menos do que Deus? Em
outra parte, nesse mesmo evangelho, ele diz: “Eu e o Pai somos
um”. O capítulo quatorze revela o Senhor Jesus como alguém que
está completamente à vontade na companhia celestial. Ele fala de
seu Pai e do Espírito Santo como de si mesmo, pessoas completa­
mente santas. Ele sabe tudo sobre a casa de seu Pai e suas muitas
moradas. Ele era íntimo dela antes que o mundo existisse. Notem
bem, também, o extraordinário toque de veracidade transparente:
“Se assim não fora, eu vo-lo teria dito”. Somente uma testemunha
auricular poderia ter apanhado e preservado esse comovente
parêntese, e quem mais do que o discípulo a quem Jesus amou?
Antes de terminar os comentários sobre esse famoso capítulo,
não podemos esquecer de notar as assombrosas palavras do versícu­
lo 23: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o
amará, e viremos para ele e faremos nele morada”.
Isso só pode ser qualificado de blasfemo, a não ser que seja a
verdadeira declaração de alguém semelhante a Deus. Por outro
lado, será que qualquer homem razoável pensaria seriamente que
tais palavras se originassem da mente de um falsificador? “Todo
aquele que é da verdade ouve a minha voz”, e, certamente, esta voz
está aqui.
3. Quando chegamos ao capítulo 17 passamos para o próprio
interior da câmara do Rei dos reis. Ele relata a oração do sumo
sacerdote de nosso Senhor, quando “levantou os olhos ao céu
e disse: Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que
o Filho te glorifique a ti”. Que qualquer homem se proponha à
terrível tarefa de falsificar tal oração e colocá-la na boca de um
Cristo imaginário: a mente cambaleia só de pensar nisso. E,
portanto, perfeitamente natural que João devesse relatá-lo. Deve
ter chegado a seus ouvidos e aos de seus co-discípulos em meio
a um silêncio assustador, no qual eles podiam ouvir as batidas de
seus corações atentos. Porque seus próprios corações estavam
ouvindo por meio de seus ouvidos enquanto o Filho derramava

75
Os fundamentos

sua alma no Pai. É um raro privilégio, e algo que faria a maioria


dos homens estremecer: ouvir a um homem e companheiro a
sós com Deus. Mas o Senhor Jesus no meio de seus discípulos
apresenta Sua própria alma diante de seu Pai, como se realmente
tivesse estado a sós com ele. Ele orou na cruz quando Sua morte
terrível estava bem à vista, mas em Sua oração não há o mais
leve vestígio de fracasso ou pesar, como também não há nenhum
traço de confissão de pecado ou necessidade de perdão. No
entanto, existem marcas indeléveis de autenticidade. Teria sido
impossível para algum pecador conceber tal oração. Contudo,
tudo isso é bem consistente com o caráter daquele que “falou
como jamais” outro homem falou e podia desafiar o mundo para
convencê-lo do pecado.
Com tais pensamentos em mente, olhemos, pois, um pouco mais
de perto as palavras da oração.“Pai, é chegada a hora; glorifica a teu
Filho, para que o Filho te glorifique a ti, assim como lhe conferiste
autoridade sobre toda a carne, a fim de que ele conceda a vida eter­
na a todos os que lhe deste. E a vida eterna é esta: que te conheçam
a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”.
Temos aqui novamente Sua calma maneira para se pôr na mes­
ma altura que o Pai em relação à vida eterna. E seria apropriado
lembrar aqui a consistência dessa declaração com aquela afirmação
considerada Joanina, a qual foi relatada em Mateus e em Lucas:
“Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho,
senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a
quem o Filho o quiser revelar”.
Também lemos em João 14.6: “Ninguém vem ao Pai senão por
mim”. E, ao reverentemente prosseguirmos na oração, encontramo-
Lo dizendo: “E, agora, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a
glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo”.
Essas palavras são naturais para o Filho do Pai como nós O
conhecemos e O adoramos, no entanto, elas estão além do alcance
de um homem inspirado. E quem poderia imaginar um farsante
inspirado pelo Espírito Santo? Palavras assim ficaram, portanto,
gravadas no coração de uma testemunha auricular como aquela
que Jesus amou.
Temos também nessa oração a plena revelação de “um rebanho”
e “um Pastor” feita no capítulo dezessete: “Não rogo somente por
estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por

76
A evidência interna do quarto evangelho

intermédio da sua palavra; a fim de que todos sejam um; e como


és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para
que o mundo creia que tu me enviaste. Eu lhes tenho transmitido a
glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos; eu
neles, e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade,
para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como
também amaste a mim”.
Paira um clamor por uma unidade nestas santas palavras, como
jamais o coração de um homem mortal ousou sonhar. Não é uma
unidade eclesiástica fria e formal, como sugerida por uma curiosa
e infeliz tradução, um equívoco, de “um aprisco” por “um rebanho”,
em João 10.16. E a unidade viva do rebanho vivo com o Pastor vivo
do Deus vivo. E, na verdade, a mesma unidade, como a que subsiste
entre o Pai e o Filho. E, de acordo com Paulo em Rm 8.19, a criação
está aguardando por Sua revelação. O único Pastor sempre teve,
desde o início, um rebanho em resposta a Sua oração, mas o mundo
ainda não viu esse rebanho e, portanto, ainda não está convencido
de que o nosso Jesus é, na verdade, o enviado de Deus. O mundo vê
a Igreja Católica e a Igreja Católica Romana, mas a Igreja Católica
Santa nenhum olho a viu senão os de Deus. Porque a Igreja Católica
Santa e o único rebanho do Pastor são um e o mesmo, e o mundo
não os verá “até que ele venha”. A Igreja Católica Santa é um objeto
de fé e não de visão, e, desse modo, é o único rebanho. A despeito
de todas as tentativas de eliminação e organização, o trigo e o
joio crescem juntos, e a ovelha e os lobos vestidos de cordeiros se
encontram juntos nos mesmos pastos terrenos. Mas quando o Bom
Pastor retornar, Ele trará seu belo rebanho com Ele e, finalmente,
o mundo verá e acreditará. “O profundidade da riqueza, tanto da
sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são
os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos!”
O mistério dessa unidade espiritual jaz oculta na oração sacer­
dotal, mas podemos nos assegurar que nenhum falsário jamais
poderia descobri-lo, porque muitos daqueles que professam e
chamam a si mesmos cristãos ainda não conseguem vê-lo.
4. O “Cristo diante de Pilatos” de João também é marcado pela sin­
ceridade e verdade. Como a mera imaginação humana poderia
desenvolver essas nobres palavras: “O meu reino não é deste
mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros
se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos

77
Os fundamentos

judeus; mas agora o meu reino não é daqui. [...] Eu para isso
nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da
verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz”?
Toda a admirável história da traição, da negação, do julgamento,
da condenação e crucificação do Senhor Jesus, como apresentada
por João, respira com a viva simpatia de uma testemunha ocular. O
relato, além disso, é tão maravilhoso na elegância de sua reserva
quanto na simplicidade de sua exposição. E completamente livre
de sensacionalismo e de toda forma de extravagância. E calmo e
judicioso no mais alto grau. Se é escrito pelo discípulo inspirado
a quem Jesus amou, tudo é natural e facilmente “compreendido
pelas pessoas”, ao passo que sob qualquer outra hipótese, conteria
muitas dificuldades que não poderiam ser explicadas. “Eu não sou
crédulo o bastante para ser incrédulo”, é uma afirmação sábia em
relação a isso como em outras conexões similares.
5. O evangelho se abre e se fecha com surpreendente grandeza.
Com dignidade divina, relaciona-se com as palavras de abertura
do Gênesis: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com
Deus, e o Verbo era Deus. [...] E o Verbo se fez carne e habitou
entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, gló­
ria como do unigênito do Pai”. Na apresentação de João Batista
há um contraste natural com esta sublime descrição: “Houve um
homem enviado por Deus cujo nome era João”. Na Encarnação,
Cristo não se tornou um homem mas Homem. Além disso, neste
ponto Paulo e João estão de pleno acordo.
Paulo a Timóteo: “Há um só Deus e um só Mediador entre Deus
e os homens, Cristo Jesus, homem, o qual a si mesmo se deu em
resgate por todos”. A realidade da natureza humana do Redentor
é maravilhosamente apresentada na comovente conversa, junto ao
poço, entre o Salvador, que estava cansado, e a mulher Samaritana
culpada; como também em Sua perfeita amizade humana com
Maria e Marta e o irmão delas, Lázaro, que culmina nas preciosas
palavras, “Jesus chorou”.
E, assim, pelo amargo caminho da cruz a grandeza da encarna­
ção passa para a glória da ressurreição. Os dois últimos capítulos
falam de vida por meio de um incidente estarrecedor. Se alguém
pretende formar uma concepção verdadeira do que aqueles breves
capítulos contêm, que leia Jesus and the Resurrection” [Jesus e
a Ressurreição] do Bispo de Durham (Dr. Handley Moule), e o

78
A evidência interna do quarto evangelho

cálice de santa alegria se encherá até transbordar. No túmulo vazio,


aspiramos o ar do reino invisível, mas atualmente contemplamos
extasiados a face do Rei crucificado, porém, ressuscitado e sempre
vivo. Maria Madalena, com o coração partido e em desespero, está
totalmente inconsciente do fato de que os santos anjos estão exata­
mente diante dela e que atrás dela seu Senhor e Mestre está vivo.
Lentamente, mas de forma segura, a alegre história se espalha de
boca em boca e de coração em coração, até mesmo o honesto, mas
teimoso, Tomé é levado a se prostrar, chorando, com o peito cheio
de remorso, e adorando alegremente, “Senhor meu e Deus meu!”
Depois, vem a amável história do trabalho infrutífero, de uma
noite inteira, dos sete pescadores, e a aparição do Estranho, ao
clarear da madrugada, na praia, a miraculosa retirada dos peixes,
o alegre clamor de reconhecimento, “E o Senhor!”, o desjejum que
jamais será esquecido com o Salvador ressurrecto, e Sua conversa
inquiridora com Pedro, passando ao mistério da idade avançada de
João.
Em todos esses rápidos esboços, sentimo-nos instintivamente
diante da verdade. Somos coroados com a bênção do Salvador:
“Bem-aventurados os que não viram e creram”, e estamos prontos a
nos render em alegre concordância com a declaração que encerra o
capítulo vinte: “Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos
outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes, porém,
foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de
Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome”.

79
81

As primeiras narrativas
de Gênesis

D.D .
P r o f . Jam e s O r r ,
Faculdade da Igreja Livre Unida, Glasgow, Escócia
Revisado por Charles L. Feinberg, Th.D., Ph.D.

Consideramos as primeiras narrativas do Gênesis os primeiros


onze capítulos do livro, aqueles que precedem o tempo de Abraão.
Esses capítulos apresentam peculiaridades próprias, embora o tra­
tamento crítico dado a eles não se limite apenas a esses capítulos,
mas estende-se a todo o restante de Gênesis, ao livro de Êxodo
e às histórias posteriores com a finalidade de reduzir todas essas
narrativas a lendas.

JA M ES ORR (1844-1913) graduou-se pela Universidade de Glasgow,


na Escócia, sua terra natal. Entre 1874 e 1891, ele foi ministro da Igreja
Presbiteriana CJnida de East Bank, em Hawvich. Abandonou o pastorado
para lecionar ‘História da Igreja’ na Faculdade Teológica Presbiteriana
Unida, em Glasgow, até 1901, quando se tornou professor de
apologética e dogmática no Glasgow College (posteriormente chamado
Trinity College). Orr passou a estudar o desenvolvimento da doutrina da
igreja, que acreditava seguir um a continuidade lógica divina. Entre suas
maiores obras estão The Christian View of God and the World [A Visão
Cristã de Deus e do Mundo] (1893, publicado novamente em 1989, pela
Kregel Publication) e The Progress of Dogm a [O Progresso do Dogma]
(1897).
Os fundamentos

Podemos começar olhando para a matéria que é abrangida por


esses onze capítulos para ver seu conteúdo. Primeiramente, no
relato da criação em Gênesis 1 temos a sublime introdução ao livro
de Gênesis e a toda a Bíblia. Esse capítulo, indiscutivelmente, está
no lugar ideal como prefácio a tudo aquilo que o seguirá. Onde na
literatura há algo semelhante a isso? Não há nada em parte alguma,
seja nas lendas babilônicas seja em qualquer outro lugar. Pode-se
perguntar qual interesse religioso a fé tem na doutrina da criação,
ou em qualquer teoria ou especulação sobre como o mundo veio a
existir. A resposta é que ela tem profundo interesse. O interesse da
religião na doutrina da criação é que ela é nossa garantia para a de­
pendência de todas as coisas em Deus, a base de nossa segurança
para que tudo na natureza e na providência esteja a sua disposição.
Imagine que houvesse algo no universo que não fosse criado por
Deus, que existisse independentemente dele, como poderíamos
estar certos de que esse elemento não poderia frustrar, vencer ou
destruir o cumprimento do propósito de Deus? A doutrina bíblica
da criação exclui definitivamente essa suposição.
Em seguida a esse primeiro relato da criação há uma segunda
narrativa com um estilo diferente, que vai do capítulo dois ao qua­
tro, contudo, intimamente relacionado ao primeiro pelas palavras,
“Esta é a gênese dos céus e da terra quando foram criados, quando
o S e n h o r Deus os criou”. As vezes, há referências a essa parte
como a segunda narrativa da criação e, muitas vezes, diz-se que
contradiz a primeira. No entanto, isso é um equívoco. Como foi
indicado anteriormente, essa segunda narrativa não é uma história
da criação no sentido de ser a primeira de todas. Ela não diz nada
a respeito da criação do céu nem da terra, tampouco menciona
os corpos celestiais ou o mundo vegetal de forma geral. Ela trata
simplesmente do homem e do relacionamento entre Deus e o ho­
mem quando este foi criado, e tudo nessa narrativa diz respeito e
é agrupado a partir desse ponto de vista. O cerne da narrativa é a
história da tentação e da Queda do homem. Por vezes se diz que a
Queda não é mencionada nos livros posteriores do Antigo Testa­
mento, portanto, não pode ser admitida como uma parte essencial
da revelação. Seria mais verdadeiro dizer que a história da Queda,
por estar no princípio da Bíblia, proporciona a chave para toda a
narrativa subseqüente. Qual é o quadro dado em toda a Bíblia? Não
é o quadro de um mundo distante de Deus, que vive em rebelião

82
As primeiras narrativas de Gênesis

contra Ele, desobediente a Seu chamado e que resiste a Sua graça?


Qual é a explicação dessa apostasia e transgressão universal, se
não a de que esse homem decaiu de seu primeiro estado? Pois, com
certeza, esse não é o estado no qual Deus fez o homem, ou desejou
que o homem estivesse. A verdade é que, se essa história da Queda
não estivesse ali no princípio da Bíblia, precisaríamos colocá-la lá
por nós mesmos para que pudéssemos explicar o estado moral do
mundo como a Bíblia o apresenta para nós, e como sabemos que ele
é. No capítulo quatro, uma espécie de apêndice a esses capítulos,
narra-se a história de Caim e Abel, com breve menção ao começo
da civilização pela linhagem de Caim, assim como o início, em
Sete, de uma linhagem piedosa.
Retornando ao estilo de Gênesis 1, no capítulo cinco temos a
linha genealógica de Sete que vai de Adão a Noé. Fica-se admirado
com a longevidade daquelas figuras patriarcais que vivem no alvo­
recer dos tempos, contudo, não ficamos menos admirados com o
refrão constante e triste que finaliza a cada relato, “e morreu”, com
exceção feita a Enoque. Esse capítulo está diretamente relacionado
com o relato da criação em Gênesis 1, mas pressupõe igualmente a
narrativa da Queda nos capítulos que estão entre eles. As obras da
crítica muitas vezes afirmam o contrário. Contudo, alguns dos prin­
cipais críticos devem admitir que a história do dilúvio pressupõe a
narrativa da Queda.
Em seguida, chega-se ao relato do dilúvio no capítulo seis, no
qual acredita-se que duas narrativas são misturadas. Mesmo a
crítica deve admitir que essas duas histórias encaixam-se de modo
incrível uma sobre a outra, e que uma é incompleta sem a outra.
Por exemplo, se uma dá ordem a Noé e a sua casa para que entrem
na arca, a outra é que narra a construção da mesma arca. O que é
ainda mais incrível, quando se compara as histórias da Bíblia com
o relato Babilônico do dilúvio, descobre-se que essa narrativa toma
as narrativas do Gênesis, consideradas como duas pela crítica, para
formar uma história completa. Após o dilúvio e o pacto com Noé, a
raça humana espalha-se novamente como é demonstrado no relato
das nações do capítulo dez. Em 10.25, percebe-se que nos dias de
Pelegue a terra estava dividida; em seguida, no capítulo onze, lê-se
a história do juízo divino em Babel em que a fala dos homens foi
confundida, e isto é seguido pela nova genealogia que se estende a
Abraão.

83
Os fundamentos

Esse é um breve panorama do material e, ao observar esse mate­


rial atentamente, deve-se admitir que essa é uma parte da história
maravilhosamente bem tecida a sua própria maneira e que não se
parece em nada com as frouxas, incoerentes e confusas mitologias
de outras nações. Não há nada que se assemelhe a ela em qualquer
outra história ou livro religioso, e, quando passamos a falar sobre
as grandes idéias que a permeiam e lhe conferem unidade, nossa
admiração aumenta ainda mais. A crítica reconhecerá as grandes
idéias, contudo, afirma que elas não estavam originalmente ali, mas
foram inseridas posteriormente pelos profetas para que as antigas
lendas tivessem utilidade religiosa. Para nós, no entanto, é indiscu­
tivelmente preferível crer que elas estavam ali desde o princípio.
A verdade é que muitas vezes depende-se do método com o qual
se aborda essas narrativas. Há um ditado que diz que “tudo pode
ser pego com as duas mãos”, e isto é verdade com relação a essas
histórias antigas. Aborde-as de um certo modo, e elas serão um
amontoado de fábulas, lendas e mitos sem qualquer base histórica.
Assim, esses mitos podem ser tratados de um modo que Caim
seja composto originalmente por três figuras distintas, que foram
misturadas; Noé por outras três, e assim por diante. Aborde essas
narrativas de um outro modo, e elas serão as mais antigas e as
mais preciosas tradições de nossa raça, dignas em seus méritos
intrínsecos de estar onde estão, ou seja, no começo da Palavra de
Deus, e capazes de manter seu direito de estar lá; não são um sim­
ples veículo de grandes idéias, mas apresentam, por meio de seu
próprio modo antigo, a memória das grandes verdades históricas. A
história da Queda, por exemplo, não é um mito, mas inclui a estar-
recedora memória de uma catástrofe moral real que aconteceu no
começo de nossa raça e que trouxe maldição e morte ao mundo.
Chegamos agora à questão: há alguma corroboração ou confir­
mação externa dessas primeiras narrativas do Gênesis? As notáveis
descobertas na Babilônia são bem conhecidas e lançam extraordi­
nária luz sobre os primórdios da elevada cultura babilônica. Ali,
muito antes de Abraão, havia cidades, atividades artísticas, livros,
bibliotecas, e a época de Abraão foi o período do florescimento dessa
civilização. Em vez de Israel ser um povo que emerge da obscura
aurora do barbarismo, descobrimos, à luz dessas descobertas, que
foi um povo para o qual convergiram as riquezas de uma civilização
que já existia havia milênios de anos. Para nós, o principal interesse

84
As primeiras narrativas de Gênesis

dessas descobertas é o apoio que nos concedem ao responder à ques­


tão: Até onde essas narrativas do Gênesis incluem as mais antigas
tradições de nossa raça? Há duas razões que nos levam a olhar com
alguma confiança para a Babilônia para responder a essa questão.
Um delas é que a Babilônia da antiguidade permite-nos voltar à época
em que essas tradições foram relatadas; a outra é que a própria Bíblia
aponta para a Babilônia como a área originária daquelas tradições. O
Éden estava na região da Babilônia, como se percebe por seus rios, o
Eufrates e o Tigre. A Babilônia foi onde a arca foi construída; e a arca
repousou em uma montanha que ficava nas adjacências dessa região.
Foi da planície do Sinai, na Babilônia, que a nova dispersão da raça
teve lugar. A Babilônia, portanto, mais do que qualquer outra região,
autoriza-nos a olhar para essas antigas tradições para conhecê-las
melhor, e realmente encontramos dados reveladores.
Tomemos apenas um ou dois exemplos. O primeiro é esse antigo
décimo capítulo do Gênesis, a lista das nações, o qual foi aclamado
como um documento etnográfico de primordial importância. Ali
temos (vv. 8-10) certas afirmações sobre a origem da civilização
babilônica. Descobrimos que (1) a Babilônia é uma das civilizações
mais antigas; (2) que a civilização assíria originou-se da babilônica;
e, (3) o mais estranho de tudo, que os fundadores da civilização
babilônica não eram semitas, mas camitas, descendentes de Cuxe.
Cada uma dessas afirmações contradizia as opiniões antigas, assim
como o que se acreditava sobre esses antigos povos, até que as des­
cobertas ensinaram o contrário. No entanto, não discutiremos aqui
se a exploração corroborou a Bíblia em cada um desses pontos.
Observemos agora as histórias da criação, do Paraíso e do
dilúvio. Alguns relatos cuneiformes têm uma remota semelhança
com a história do Paraíso e da Queda. Por outro lado, as bibliotecas
da Mesopotâmia proporcionaram versões da história do dilúvio. A
narrativa babilônica do dilúvio, como a história da criação, é adul­
terada, politeísta e mítica, possuindo pouca semelhança ao relato
do Gênesis. Será que os israelitas pegaram emprestado a narrativa
dessas fontes? O contraste em relação ao espírito e à natureza entre
os relatos proibiria qualquer derivação desse tipo. A forma adulte­
rada poderia, possivelmente, provir da corrupção da narrativa mais
elevada, e não o contrário. A relação é unicamente de parentesco,
não de derivação. Essas tradições provêm de uma fonte mais antiga
e são preservadas pelos hebreus em sua forma mais pura.

85
Os fundamentos

Devemos dizer algo acerca dos aspectos científicos e históricos


dessas narrativas. Evoca-se a ciência para provar que as narrativas
da criação em Gênesis 1, a história da origem do homem e da Queda
nos capítulos dois e três, o relato da longevidade patriarcal nos
capítulos cinco e onze, a história do dilúvio e outras questões, de­
vem todas ser rejeitadas, porque estão em franca contradição com
os fatos do conhecimento moderno. Quando se diz que a ciência
contradiz a Bíblia, o que se quer dizer por contradição? A Bíblia, em
hipótese alguma, foi-nos concedida para que antecipasse ou prees-
tabelecesse as descobertas da ciência do século 20. A Bíblia, como
todo intérprete informado das Escrituras sempre tem sustentado,
toma o mundo como ele é e usa uma linguagem popular, apropriada
ao indivíduo mediano, não ao especialista. Isso não quer dizer que,
por a Bíblia não ensinar a ciência moderna, podemos dizer que
ela a contradiz. Nas narrativas do Gênesis, o ponto de partida do
autor é tão verdadeiro, a iluminação com a qual ele é dotado tão
divina, a compreensão da ordem da natureza tão infalível, que há
muito pouco, se houver algo, em sua descrição que, mesmo agora,
precise ser mudado com nosso conhecimento avançado. Seria bom
se aqueles que falam de desacordo com a ciência olhassem para as
grandes verdades embutidas nessas narrativas, as quais a ciência
poderia ser chamada a confirmar. Há, por exemplo, (1) a verdade
de que o homem é a última obra criada por Deus, a coroação da
criação do Senhor. A ciência pode contradizer isto? (2) Há a grande
verdade da unidade da raça humana. Nenhum povo antigo cria em
tal unidade e, repentinamente, a ciência lança dúvidas sobre isso.
A ciência pode contradizer isso? (3) Existe a declaração de que o
homem foi feito à imagem de Deus. A ciência que estuda a natureza
humana pode contradizer isso? (4) A região da Babilônia é dada
como a área da origem do homem. Isso está em contradição com a
história? Contradizer isso é que está fora do domínio da ciência.
Concluindo, fica claro que as narrativas da criação, ou seja, a
Queda, o dilúvio, etc. não são mitos, mas são narrativas que contêm
o conhecimento ou memória de transcursos reais. A criação do
mundo certamente não foi um mito, mas um fato, e a representação
dos diferentes atos criativos tratam igualmente de fatos. A lingua­
gem usada não era a da ciência moderna, mas sob a liderança divina
o escritor sagrado dá um quadro amplo e geral que transmite uma
idéia verdadeira da ordem da obra divina na criação. A Queda do

86
As primeiras narrativas de Gênesis

homem foi também um fato grandioso com conseqüências univer­


sais de pecado e morte para a raça humana. A origem do homem
só pode ser explicada por intermédio de um exercício da atividade
criativa direta. O dilúvio foi um fato histórico, e a preservação de
Noé e de sua família, dentre as tradições humanas, é um dos fatos
mais bem e mais amplamente comprovados. Nessas narrativas do
Gênesis e dos fatos que elas abrangem, os fundamentos de tudo
que há na Bíblia foram realmente lançados. A unidade da revelação
liga esses fatos com o evangelho cristão.

87
89

9 (Im Isaías

P r o f . G e o r g e L. R o b in s o n , D .D .
Antigamente do Seminário Teológico McCormick, Chicago
Revisado por Charles L. Feinberg,Th.D., Ph.D.

Por mais de dois milênios não houve serias dúvidas de que Isaías,
o filho de Amós, fosse o autor de cada uma das partes do livro que
traz seu nome. A igreja cristã era unânime sobre essa questão, até
que alguns eruditos alemães, há um século e meio, colocassem a
unidade do livro em questão. A desintegração crítica do livro de
Isaías teve início com Koppe, que em 1780 foi o primeiro a duvidar
da autenticidade do capítulo cinqüenta. Em 1789, Doerlein suspei­
tou de todos os capítulos que vão do quarenta ao sessenta e seis.
Esse estudioso foi seguido por Rosenmueller, que foi o primeiro a
negar que Isaías tivesse feito a profecia contra a Babilônia no trecho
que vai do capítulo treze, versículo um, ao quatorze, versículo vinte

G EORGE LIV1MGSTOME ROBINSON (1864-1958) põe seu conhecimento


do Antigo Testamento para o bom uso em sua bem sucedida exploração
arqueológica da Palestina. Sua descoberta mais importante foi o lugar
elevado de Petra. Robinson foi graduado em 1877 como bacharel pela
Universidade de Princeton, e em 1893 graduou-se pelo Seminário
Teológico de Princeton. Sua carreira de variados aprendizados
incluía tarefas no Knox College de Toronto; na American School of
Archaeologgy em Jerusalém; e no Seminário Teológico McCormick.
Seus escritos incluem The Biblical Doctrine of Holiness [A Doutrina
Bíblica da Santidade], Leaders of Israel [Líderes de Israel] e Why I Am a
Christian [Por que Sou Cristão],
Os fundamentos

e três. Eichhorn, no início do século dezenove, também eliminou o


oráculo contra Tiro no capítulo vinte e três, e junto com Gesenius e
Eurald, negou também a autoria dos capítulos vinte e quatro a vinte
e sete por Isaías. Gesenius também atribuiu a algum profeta des­
conhecido os capítulos quinze e dezesseis. Rosenmueller foi mais
além e pronunciou-se contra os capítulos trinta e quatro e trinta
e cinco. Não muito depois (1840), Ewald questionou os capítulos
doze e trinta e três. Assim, até o meio do século dezenove, uns
trinta e sete ou trinta e oito capítulos foram rejeitados como textos
que não faziam parte dos escritos reais de Isaías.
Em 1879-80, o renomado Franz Delitzsch de Leipzig, que
durante muitos anos defendeu a autenticidade de todo o livro, por
fim, aderiu ã posição crítica moderna e, na edição de 1889 de seu
comentário, interpretou os capítulos quarenta a sessenta e seis,
embora com muita hesitação, como provenientes de um período
próximo ao exílio babilônico. Por volta da mesma época (1889-90),
Driver e George Adam Smith deram ímpeto popular a pontos
de vista semelhantes na Grã-Bretanha. Desde 1890, a crítica de
Isaías tem sido até mais microscópica do que antes. Duhm, Stade,
Guthe, Hackmann, Cornill e Marti, no continente europeu, assim
como Cheyne, Whitehouse, Box, Glazebrook, Kennett e outros, na
Grã-Bretanha e América do Norte, questionaram porções que se
supunham ser verdadeiras até agora.
Até mesmo a unidade dos capítulos quarenta a sessenta e
seis, que os críticos imaginavam ser obra do segundo Isaías, foi
abandonada. O que antes de 1890 supunha-se ser o produto único
de algum célebre, mas anônimo, sábio, que viveu na Babilônia no
sexto século a.C., é agora dividido e subdividido e, em grande
parte, atribuído a vários escritores, de Ciro a Simão. A princípio,
pensava-se que seria suficiente separar os capítulos sessenta e
três a sessenta e seis como um acréscimo posterior às profecias do
Deuteronômio-Isaías; contudo, mais recentemente, o modismo
passou a ser a distinção entre os capítulos quarenta a cinqüenta
e cinco, que alegam ter sido escritos na Babilônia por volta de
549-538 a.C., e os capítulos cinqüenta e seis a sessenta e seis,
que reivindicam ter sido compostos por volta 460-445 a.C. Alguns
levam a desintegração ainda mais longe, principalmente no caso
dos capítulos cinqüenta e seis a sessenta e seis, que são subdivi­
didos em vários fragmentos, os quais os críticos afirmam ser o

90
Um Isaías

produto de uma escola de escritores, em vez de um único escritor.


As oposições também entram em conflito quanto ao lugar de sua
composição, se na Babilônia, Palestina, Fenícia ou Egito.
O estado atual da questão de Isaías é complexa e encontra-se em
um beco sem saída. Nenhum comentário importante sobre Isaías
apareceu desde 1900. Entre aqueles que negam a integridade do
livro estão Driver, G. A. Smith, Skinner, Cheyne, Duhm, Guthe,
Marti, Kennett, e mais recentemente, Pfeiffer e muitos outros. E
aqueles que têm defendido a unidade de Isaías são Naegelsbach, W.
H. Green, Margoliouth, Robinson, Moeller, e mais recentemente,
Allis, E. J. Young, Fitch e outros mais.
Qual é a razão básica para a dissecação do livro? O axioma
fundamental da crítica é a suposição de que um profeta sempre
fala de uma determinada situação histórica referentes às atuais
necessidades das pessoas entre as quais viveu, e essa determi­
nada situação histórica deve ser realçada em cada profecia. Esse
postulado fundamental embasa toda a crítica moderna em relação
à profecia do Antigo Testamento. Esse princípio, de modo geral, é
sábio, mas pode facilmente ser sobrecarregado, exagerado. Assim,
certas precauções são necessárias: (1) E impossível investigar
cada seção separada da profecia, independentemente de seu con­
texto, em relação a uma determinada situação histórica. (2) Não é
necessariamente o maior acontecimento na história de uma nação
ou o acontecimento sobre o qual a maior parte é conhecida que
pode realmente ter dado nascimento, humanamente falando, a uma
profecia em particular. A história de Israel está repleta de crises e
acontecimentos, qualquer um dos quais pode facilmente ser invo­
cado para proporcionar um respaldo, ou pelo menos um respaldo
possível, para uma dada profecia. (3) Os profetas, habitualmente,
falam diretamente às necessidades de seu próprio tempo, mas eles
também falam às gerações que ainda estão por vir. Isaías ordenou
que seus ensinamentos fossem preservados para o futuro (8.16;
30.8 e 42.23).
Não se sabe quando ou como o livro de Isaías foi editado e con­
duzido à sua forma atual. Jesus ben Sirach, o autor do Eclesiástico,
ao escrever por volta de 180 a.C., cita Isaías como um dos hebreus
dignos e nobres da antiguidade, em cujos dias, “o sol recuou; ele
prolongou a vida ao rei” (Eclesiástico 48.20-25, cf. Is 38.4-8); e
acrescenta, que “com o poder do espírito ele viu o fim dos tempos,

91
Os fundamentos

consolou os aflitos de Sião”. Portanto, evidentemente, no início do


segundo século a.C., o mais tardar, o livro de Isaías tinha alcançado
sua forma atual, e os vinte e sete capítulos já eram atribuídos ao
filho de Amós.
Além do mais, não há absolutamente nenhuma prova de que os
capítulos um a trinta e nove, ou qualquer outra secção considerável
das profecias de Isaías, existiram por si mesmas como uma coleção
independente; nem há qualquer base para pensar que as porções
messiânicas foram sistematicamente interpoladas por editores bem
posteriores ao tempo de Isaías. Os recém descobertos Manuscritos
do Mar Morto (1947) não revelam nenhum rompimento entre as
porções anteriores e posteriores do livro de Isaías.
Algumas falsas pressuposições governam os críticos em sua
desintegração do livro de Isaías. Uma delas é a de que a conversão
dos pagãos (2.2-4) estava além do horizonte de um profeta do
oitavo século. A outra, o quadro da paz universal (11.1-9) refere-
se a uma data posterior. Ou ainda, o conceito do juízo universal
(14.26) está além do alcance do pensamento de Isaías; e mais uma
outra, a natureza apocalíptica dos capítulos vinte e quatro a vinte e
sete pertence a um tempo posterior a Ezequiel. Os radicais in toto
[no todo] negam a existência de passagens messiânicas entre as
predições de Isaías. No entanto, negar ao Isaías do oitavo século
toda universalidade da graça, da salvação ou do juízo, todo ideal
messiânico altamente desenvolvido, cada uma das ricas notas de
promessa e conforto, toda fé sublime na natureza sagrada de Sião,
como alguns fazem, é criar inapropriadamente um novo Isaías de
magnitude bastante reduzida, um estadista de inclinação não muito
otimista, embora fosse um pregador da justiça, e o expoente de
uma religião ética e fria sem o calor e a paixão das mensagens que
são, na verdade, atribuídas aos profetas do oitavo século.
Os postulados básicos de boa parte da crítica não são sábios, e
amplos fatos devem decidir a unidade ou o caráter coletivo do livro
de Isaías. Determinar o exato respaldo histórico de cada seção é
simplesmente impossível, como a história da crítica demonstra ple­
namente. A exegese verbal pode provocar mais dano do que bem. E
preciso que se dê mais respeito à estrutura do livro. Quando o tra­
tamos como um todo orgânico, o livro é uma grande obra-prima. O
autor é dominado ao longo de todo o livro por um grande propósito
que é levado pouco a pouco a um ápice em um quadro da redenção
de Israel e da glorificação de Sião. O fracasso em reconhecer essa

92
ü m Isaías

unidade incapacita qualquer homem a lhe fazer justiça exegética.


Encarar o livro como uma massa heterogênea de profecias mistura­
das, que foram escritas em tempos bastante separados e sob várias
circunstâncias, que se estendem da época de Isaías até o período
dos Macabeus, e as quais foram interpoladas livremente através
dos séculos intermediários, é perder a visão das grandes realidades
históricas e da perspectiva do profeta. Em suma, todo o problema
referente à quantidade escrita por Isaías, se pouco ou muito, ficaria
imensamente simplificado se os críticos apenas se despojassem da
massa de pressuposições inapropriadas e das restrições arbitrárias,
que fixam de modo inflexível e duvidoso o que cada século pode
pensar e dizer.
Há, além disso, os argumentos que corroboram uma crença de
que havia apenas um Isaías. O círculo de idéias ao longo do livro
é admiravelmente o mesmo. Por exemplo, tomem o nome de Deus
que também é peculiar ao livro de Isaías, “o Santo de Israel”. Esse
título ocorre vinte e cinco vezes ao todo no livro do profeta Isaías,
e apenas seis vezes no restante do Antigo Testamento. A presença
desse nome em todas as diferentes seções do livro (1.4; 10.20;
30.11,12,15; 45.11; 54.5; 60.9,14) é de mais valia para identificar
Isaías como o autor de todas essas profecias, pela simples razão
de que a teologia do profeta aparece na própria fibra e textura de
todo o livro, do que recorrer ao fato de verificar se o nome dele foi
inscrito no começo de cada capítulo. Um outro conceito repetido no
livro é o de “restante’1 (1.9; 11.11,12,16; 28.5; 46.3). Um outro fato
constante é a posição mantida pelo profeta quanto à “Sião” (2.3;
24.23; 30.19; 34.8; 46.13; 52.1; 60.14; 62.1,11; 65.11,25; 66.8). Esse
e outros traços caracterizam psicologicamente o livro com uma in­
dividualidade que é difícil de ser apresentada se ele for dilacerado,
como fazem alguns, em várias seções escritas ao longo de vários
séculos.
Um segundo argumento em favor de um Isaías é o estilo
literário. E notável que a expressão, “porque a boca do Senhor o
disse” seja apenas encontrada três vezes no livro de Isaías, mas em
nenhuma outra parte do Antigo Testamento (cf. 1.20; 40.5; 58.14).
A tendência da parte do autor de enfatizar a reduplicação é bastante
peculiar (cf. 2.7,8; 40.1; 43.11; 51.12; 62.10). O estilo de Isaías difere
amplamente de qualquer outro profeta do Antigo Testamento e é
extremamente distinto do estilo de Ezequiel e dos profetas do pós-
exílio.

93
Os fundamentos

As referências históricas são um terceiro argumento para a


unidade da autoria. Tomemos, por exemplo, a constante referência
do profeta a Judá e a Jerusalém, em 1.7-9; 5.13; 24.19; 40.2,9; 62.4,
e também ao templo e ao ritual de adoração e sacrifício, em 1.11-15;
43.23,24; e 66.1-3,6,20. Quanto ao exílio, a atitude do profeta em
todo o livro é tanto de antecipação quanto de realização (cf. 57.1;
3.8; e 11.11,12).
Por fim, um quarto argumento a favor de um único Isaías é o
elemento preditivo. Essa é a prova mais forte quanto à unidade
do livro. A predição é a própria essência da profecia. Isaías era
preponderantemente um profeta do futuro. Com subitaneidade
sem paralelo, ele, reiterada vezes, salta do desespero à esperança,
da ameaça à promessa, do real para o ideal. Isaías falou para seu
próprio tempo, mas também se dirigiu às épocas vindouras. Seus
tempos verbais são caracteristicamente futuros e perfeitos profé­
ticos. Ele foi excepcionalmente dado à predição; assim, antes da
Guerra Siro-Efraimista (734 a.C.), ele predisse a queda de Efraim
(7.8) e a pilhagem de Damasco e Samaria (8.4; cf. 7.16); antes da
queda de Samaria em 722 a.C., predisse o destino de Tiro (23.15);
antes do cerco de Asdode em 711 a.C., predisse o juízo sobre Moabe
e Quedar (16.14; 21.16); um pouco antes do cerco de Jerusalém por
Senaqueribe em 701 a.C., predisse o fracasso dessa invasão (29.5)
e a queda da Assíria (30.17,31; 31.8). Ele, muitas vezes, aponta para
predições que fizera nos primeiros anos de seu ministério e para o
fato de que elas tinham sido cumpridas (cf. 41.21-23,26ss; 42.9,23;
43.9,12; 44.7,8,27,28; 45.1-4,11,21; 46.10,11; e 48.3,5,6-8,14-16).
De todas essas numerosas predições explícitas, as quais
foram repetidas muitas vezes, uma coisa fica óbvia, a saber, que
uma grande ênfase foi posta sobre a predição em todo o livro de
Isaías. Ciro, de qualquer ponto de vista, deve ser considerado como
alguém que foi predito. Na verdade, faz pouca diferença em que
ponto da história alguém se encontra, se no oitavo ou no sexto
século a.C., mas, para o autor, Ciro foi o assunto da predição do
capítulo quarenta a quarenta e oito. Se, na verdade, ele realmente
está predizendo Ciro antes de todo o cumprimento, ou se para ele
Ciro é o cumprimento de alguma predição antiga, isso não altera o
fato de que Ciro era o assunto da predição da parte de alguém. Se
é preciso tomar uma decisão em relação a quando Ciro realmente
foi predito, é obviamente necessário assumir que foi predito muito

94
ü m Isaías

antes de sua aparição na história. Isso está em harmonia com o tes­


te da profecia em Deuteronômio 18.22. Há uma predição similar no
Antigo Testamento: o rei Josias foi predito pelo nome mais de dois
séculos antes de seu nascimento (lRs 13.2). O argumento de Isaías
ao longo da narrativa é que ele está predizendo eventos que apenas
Deus é capaz de antever e fazer acontecer; em outras palavras, essa
pré-ciência é a prova da divindade de Jeová.
Porque os homens objetam tanto à predição? A menos que haja
precisão sobre qualquer predição dada, a menos que ela transcenda
o prognóstico comum, não há valor especial algum nela. A única
possível objeção é que o caráter da predição com tantos detalhes
inspira aversão à razão. Contudo, a resposta a essa objeção já está à
mão; ela pode ser avessa à razão, mas certamente auxilia a fé. A fé
diz respeito ao futuro, da mesma forma que a predição; e o Antigo
Testamento é predominantemente um livro que encoraja a fé.
A única característica proeminente da religião de Israel é a
profecia preditiva. Apenas os hebreus predisseram a vinda do
Messias do reino de Deus. Da mesma forma, a predição da vinda
de um Ciro como o agente humano da libertação de Israel é apenas
o lado reverso do mesmo quadro do profeta do Agente divino, o
Servo sofredor do Senhor, que é obediente e que redimiria Israel
de seu pecado. Se negarmos a Isaías, o filho de Amós, as predições
referentes a Ciro, isso seria o mesmo que roubar o caráter essencial
e a perspectiva única da profecia; emascular os últimos capítulos de
Isaías, ao desconsiderar sua característica preditiva e ao os reduzir
à mera predição pós-evento, é o mesmo que destituir seu valor
religioso.

95
97

O livro de Daniel

D. W i l s o n , D.D.
P r o f. Jo se p h
SeminárioTeológico da Igreja Episcopal Reformada, Filadélfia
Resumido e editado por Charles L. Feinberg. Th.D., Ph.D.

As modernas objeções ao livro de Daniel foram iniciadas por


eruditos que tinham preconceitos ao sobrenatural. Daniel predisse
eventos que ocorreram na história. Entretanto, esses eruditos
argumentam que as alegadas predições devem ter sido escritas
após os eventos.
Contudo, o sobrenatural não é impossível nem improvável, se
existe razão suficiente para a existência dele no propósito de Deus.
Não é impossível, por exemplo, que um evento tão maravilhoso
como a vinda do divino à humanidade na pessoa de Jesus Cristo fos­
se predito. Não só não é impossível, mas parece bastante provável,
pois, além disso, parece fazer sentido que um profeta predizendo
um evento grande e distante, como aquele mencionado acima, daria
alguma evidência a seus contemporâneos ou sucessores imediatos
de que era um profeta verdadeiro. Jeremias predisse o cativeiro

JO SEPH DAWSON W ILSON (1840-1925) foi um dos fundadores


da Igreja Episcopal Reformada na América (1874). De 1867 a 1874,
foi reitor da Calvary Church em Pittsburgh e, posteriormente, serviu
congregações em Illinois, Missouri e British Columbia. Em 1901, uniu-
se à faculdade do Seminário Episcopal Reformado, na Filadélfia. Suas
publicações incluem Studies on Words from the Cross [Estudos sobre as
Palavras da Cruz] (1884) e D id Daniel Write D aniel? [Daniel Escreveu
Daniel?] (1896).
Os fundamentos

de setenta anos. Seus ouvintes tinham garantias para crer nisso?


Claro que sim. Pois ele também predisse que todas aquelas terras
ficariam sujeitas ao rei da Babilônia. Passados alguns anos, aquela
profecia mostrou ser verdadeira, e os homens sensatos acreditaram
na predição do exílio dos setenta anos.
Alguns eruditos têm apresentado a opinião de que o livro de
Daniel é uma fraude piedosa. Outros tentaram salvar alguma coisa
dos destroços desse livro, o conforto e o apoio dos santos que têm
sofrido através dos tempos, ao se firmarem sobre a moral e ensino
religioso contido ali. Esses apologistas têm causado danos ao
fomentar a idéia de que uma fraude pode ser usada para propósitos
santos, assim como a de que um falsário pode ser um mestre apro­
priado da verdade religiosa.
Esses eruditos encontram em Daniel 8, sob a figura de um
pequeno chifre, a profecia de que Antíoco Epifânio perseguiria
os Judeus. A visão é a do cordeiro e a do bode, que representam a
Pérsia e a Grécia, nações que foram especificadas pelo nome. Um
notável chifre do bode, Alexandre o Grande, foi quebrado, e em
seu lugar surgiram quatro chifres: os quatro reinos nos quais o
Império Grego foi dividido. O pequeno chifre proveio de um desses
quatro chifres, e não resta a menor dúvida de que ele se refere
primariamente a Antíoco Epifânio. Ele morreu por volta de 163 a.C.
A teoria da crítica destrutiva é que algum “judeu piedoso e erudito”
escreveu o livro de Daniel naquele tempo para encorajar os Maca­
beus a se revoltarem contra esse rei do mal; assim, presume-se que
o livro tenha sido escrito na Babilônia, uns trezentos e setenta anos
antes, para poder passar como se fosse uma revelação de Deus.
Essa teoria foi apoiada por numerosos argumentos, a maioria deles
conjeturais, e todos sem provas.
O judeu imaginário é chamado “piedoso” devido às sublimes
concepções religiosas contidas no livro, e “erudito” graças a seu
íntimo contato com as condições e designações da corte babilônica
ocorridas quatro séculos antes de seu tempo. Mas como nenhum
homem, por mais erudito que fosse, pode escrever uma história ex­
tensa, a partir de sua imaginação, sem cometer alguns deslizes, os
críticos procuram diligentemente por equívocos. O principal desses
alegados equívocos serão considerados no próximo parágrafo.
Encontramos uma dificuldade no princípio da hipótese crítica.
Daniel 9.26 prediz a destruição de Jerusalém e do templo; uma

98
O livro de Daniel

calamidade tão terrível para a imaginação judaica que a tradução


grega do Antigo Testamento foi incapaz de traduzir completamente
o texto hebraico. Que tipo de encorajamento foi esse? A hipótese
falha no princípio.
Visto que Antíoco Epifânio é predito no capítulo oito, os críticos
procuram levá-lo à força para o capítulo sete. Eles tentam iden­
tificar o pequeno chifre do capítulo sete com o do capítulo oito.
No entanto, não vemos semelhança entre eles. O pequeno chifre
do capítulo sete aparece como o décimo primeiro chifre entre os
dez reis. Ele é diferente dos outros reis. Ele permanecerá até que
o Filho do Homem venha nas nuvens do céu, e o reino que jamais
será destruído seja estabelecido. Antíoco Epifânio, o pequeno
chifre do capítulo oito, provém de um dos quatro chifres no qual se
dividiu o reino de Alexandre. Ele não era diferente dos outros reis,
pois era exatamente como muitos outros monarcas do mal e não
permaneceu até a vinda do Filho do Homem.
Essas diferenças tornam a desejada identificação impossível,
e um exame das duas profecias em sua totalidade mostra isto
claramente. Os capítulos dois e sete são uma profecia da história
mundial até o reino milenar. Os capítulos oito e onze referem-se a
uma crise na história judaica, uma crise que já aconteceu há muito
tempo.
O capítulo dois, com o sonho da imagem colossal, fala de quatro
reinos mundiais que serão sucedidos por inúmeras soberanias, al­
gumas fortes, outras frágeis, perdurando até que Deus estabeleça
um reino que jamais será destruído. O capítulo sete, com a visão
das quatro bestas, faz paralelo ao capítulo dois. Os mesmos quatro
impérios mundiais estão em vista; a quarta besta, que é sucedida
por dez reis, permanece até a vinda do Filho do Homem, que esta­
belecerá um reino eterno. Esses quatro impérios mundiais eram
a Babilônia, a Pérsia, a Grécia e Roma. Não houve outro império
desde essa época. Esforços têm sido feitos para unir as diferentes
partes da visão, mas isso é impossível.
Essas profecias, que são ilustradas em cada aspecto pela história
até o presente momento, são um empecilho para essa teoria. O
Império Romano deve ser eliminado para livrar-se da predição, e
qualquer ajuda para esse fim tem sido bem vinda. Alguns críticos
fazem do reino dos Selêucidas, que era uma das partes do Império
Grego, o quarto reino mundial, mas este jamais foi um reino mun­
dial. Ele era uma parte do Império Grego, uma das quatro cabeças

99
Os fundamentos

do leopardo. Outros críticos criaram um Império Medo imaginário,


entre a Babilônia e a Pérsia. Esse império jamais existiu. O Império
Medo-Persa foi um só império. Ciro, o persa, conquistou a Babilônia.
A história diz isso, e as escavações a confirmam.
A tentativa do pequeno chifre do capítulo oito, Antíoco Epifânio,
de extirpar a verdadeira fé fracassou, embora quase tenha sido
bem sucedida. A profecia de Daniel encorajou alguns poucos fieis a
resistir aos gregos e aos seus próprios compatriotas sem fé. Deus
previu e alertou. O aviso passou desapercebido pela maioria dos
judeus, mas felizmente houve um remanescente que acreditava, e a
fé verdadeira foi salva da extinção.
As setenta semanas de Daniel 9.24-27: “semanas” nessa profecia
não são semanas de dias, mas de “setes” anos, ou períodos que são
“múltiplos de sete”. Desde a emissão de uma ordem para restaurar
e reconstruir Jerusalém até o Messias haveria sessenta e nove
setes, isto é, quatrocentos e oitenta e três anos. O Messias seria
arrancado e não teria nada, e o povo e seu príncipe destruiria Jeru­
salém e o templo. Isso aconteceu na procuradoria de Pôncio Pilatos.
O Messias apareceu e foi arrancado; ele não tinha nada de seu reino
justo sob o trono de Davi. E, antes que aquela geração passasse, os
romanos destruíram a cidade e o santuário, assim como dispersa­
ram a nação judaica, levando ao término a economia política deles.
Desde o edito de reconstruir Jerusalém até o Messias, o Príncipe,
deveria haver quatrocentos e oitenta e três anos. Esse decreto foi
promulgado no vigésimo ano de Artaxerxes I, Longimanus, cerca
de 445 a.C. Os quatrocentos e oitenta e três anos terminaram no
tempo de Pôncio Pilatos, que governou de 26 a.C. a 36 d.C.
Tudo isso é bastante evidente, e se as palavras de Daniel
tivessem sido escritas após a morte de nosso Senhor e da queda
de Jerusalém, ninguém poderia deixar de perceber que o Senhor
Jesus Cristo é indicado. Mas se foi escrito no exílio, isso seria
uma predição sobrenatural, daí os esforços para evitar algumas
implicações da passagem. Encontrar alguma pessoa proeminente
que fora “arrancada” antes de 163 a.C. foi o primeiro requerimento.
O sumo sacerdote Onias, assassinado por seus rivais que queriam
seu posto, era a pessoa mais adequada. Ele, no entanto, não era em
nenhum sentido o Messias, mas por ter sido ungido ele poderia ter
servido. Ele morreu em 171 a.C. O próximo passo seria encontrar
um edito para reconstruir Jerusalém, quatrocentos e oitenta e três
anos antes de 171 a.C. Esta data seria 654 a.C., durante o reino de

100
O livro de Daniel

Manassés, filho de Ezequias. Nenhum decreto pôde ser encontrado


ali. Mas, caso se deduzisse quarenta e nove anos, a data passaria
a ser 605 a.C., e visto que naquele ano Jeremias tinha predito
(Jr 25.9) a destruição de Jerusalém, talvez isso servisse de evidência.
Havia duas objeções a esse ponto de vista. Uma delas era que
uma profecia de desolação para a cidade e para o santuário então
existente não era o mesmo que uma ordem de restauração e recons­
trução. E a outra objeção era que essa também era uma predição
sobrenatural e, portanto, não era aceitável para os críticos. Assim,
um recurso apelou para o decreto de Ciro (Ed 1.1-4), feito em 536
a.C. Mas o decreto de Ciro autorizava a construção do templo, não
de Jerusalém. Nem seria provável que um rei sábio como Ciro ti­
vesse permitido que uma cidade fortificada fosse construída em um
canto remoto de seu império, bem próximo a seu inimigo, o Egito,
nação com a qual os judeus, freqüentemente, fizeram acordos em
anos anteriores. A cidade não foi restaurada até o vigésimo ano
de Artaxerxes (Ne 2.3,8,13). A permissão de construir poderia
seguramente ter sido dada nessa época, pois o Egito tinha sido con­
quistado, e a lealdade dos judeus à Pérsia fora posta à prova. Além
disso, a data do decreto de Ciro não vai ao encontro das condições.
De 536 a.C. a 171 d.C., há trezentos e sessenta e cinco anos, e não
quatrocentos e oitenta e três. Um “judeu piedoso e erudito” não
teria cometido um erro primário de cálculo, ao impingir fraudulen­
tamente uma falsificação a seus compatriotas.
Existem quatro decretos relativos à cidade de Jerusalém,
emitidos pela corte Persa. O primeiro sob Ciro, mencionado
acima. O segundo sob Dario I (Ed 6). O terceiro, no sétimo ano de
Artexerxes (Ed 7.12-26). Todos eles eram referentes ao templo. O
quarto, no vigésimo ano de Artaxerxes, foi o único em que consta a
ordem para restaurar e reconstruir uma cidade murada.

Supostos descuidos
As interpretações críticas das profecias acima mencionadas são
tão pouco naturais, que acabam por colocar uma forte tensão sobre
nossa credulidade. Por conseguinte, foram feitas tentativas para
desacreditar o livro de Daniel, ao se mostrar que ele não foi escrito
na Babilônia e ao se revelar alguns dados históricos imprecisos. As
alegadas imprecisões podem ser mostradas e usadas para confir­
mar a precisão histórica e a confiabilidade do livro.

101
Os fundamentos

(1) Primeiro, pode ser mencionado o fato de que nenhum histo­


riador menciona Belsazar. Assumiu-se que esse nome tinha
sido inventado. Escavações demonstraram que Belsazar, sem a
menor sombra de dúvida, viveu na Babilônia.
(2) No entanto, o título de “rei”, que Daniel dá a Belsazar; não foi
confirmado, pois nenhum tablete datado em seu reino foi encon­
trado. Visto que Belsazar era co-regente com seu pai, o nome
de seu pai estaria nas datas. Ele era o herdeiro de seu trono e,
mesmo que não possuísse formalmente o título, aos olhos do
povo, ele era o rei.
(3) Discute-se que Belsazar não era filho de Nabucodonosor, como
se declara em Daniel 5.11. Se ele fosse o neto por parte de mãe,
a mesma língua seria usada, e o reino pacificador de Nabonido,
seu pai, é mencionado desse mesmo modo.
(4) Os críticos têm atacado a menção de Daniel sobre os “caldeus”,
como uma associação de sábios. Reivindica-se que somente
quatro séculos após o tempo de Daniel o termo veio a significar
associação. Heródoto visitou a Babilônia e usou a palavra no
mesmo sentido que Daniel (Heródoto 1.181,185).
(5) Quanto às palavras gregas em Daniel que, conforme Driver,
provam a data tardia, descobrimos, no entanto, que esses são no­
mes de instrumentos musicais, e que os babilônicos conheciam
os gregos por meio da guerra e do comércio e, quando se admite
que os instrumentos musicais levam consigo os nomes nativos,
esse argumento esvazia-se como os outros.
(6) Insiste-se que Daniel começa o cativeiro (1.1) no terceiro ano
de Jeoaquim, 606 a.C., embora Jerusalém não tenha sido destru­
ída senão em 587 a.C. Contudo, Daniel data o cativeiro, levado
a cabo em três invasões e três deportações, no período em que
ele e seus amigos foram levados. O cativeiro de setenta anos
foi contado a partir da primeira deportação, e Daniel nos conta
quando isso ocorreu. O cativeiro terminou em 536 a.C.
(7) O aramaico. Alguns afirmam que o aramaico não era falado na
Babilônia; outros, que o aramaico da Babilônia era diferente do
de Daniel. Em 1906 e em 1908, papiros em aramaico do quinto
século a.C. foram encontrados. Descobriu-se que o aramaico
era a língua comum do povo, a mesma língua que os caldeus
amedrontados usaram quando seu rei furioso os ameaçou
(Dn 2.4).

102
O livro de Daniel

Daniel era um homem sábio e bem conhecido no tempo de


Ezequiel. Se não fosse assim, toda a ironia de Ezequiel 28.3 não
faria sentido. Ele também foi eminente pela piedade e estimado
como um canal da revelação divina (Ez 14.14,20). Uma colocação
surpreendente é a seguinte: Noé, o segundo pai da raça, Jó, o
gentio e Daniel, o judeu.
Daniel é mais atestado do que qualquer outro livro do Antigo
Testamento. Ezequiel o menciona; Zacarias parece ter lido o livro; e
nosso Salvador reconheceu Daniel como profeta (Mt 24.15). Essas
são comprovações mais que suficientes.

103
105

O valor doutrinai
dos primeiros capítulos de
Gênesis

R ev. D yson H ague, M .A .


Vigário da Igreja da Epiphany; Prof. de Liturgia do
Wycliffe Colege, Toronto, Ontário, Canadá
Revisado por Gerald B. Stanton, Th.D.

Gênesis -o fundamento para toda a escritura


O Livro de Gênesis é, em muitos aspectos, o livro mais importan­
te da Bíblia. E extremamente importante porque responde, não de
forma exaustiva, mas satisfatoriamente, às perguntas fundamentais
da mente humana. Contém as primeiras informações autorizadas,
dadas à raça humana, concernentes a essas perguntas de interesse
perpétuo: o ser de Deus; a origem do universo; a criação do ho­
mem; a origem da alma; o fato da revelação; a origem do pecado; a

CANON DYSON HAGUE (1857- 1935) foi ordenado em 1883 após


estudar artes e teologia na Universidade de Toronto. Serviu como
coadjutor na Catedral de St. Jam es, tam bém em Toronto, e como
diretor da Catedral de St. Paul, em Brockville, Ontário, e na de St. Paul,
em Halifax, Nova Escócia. De 1897 a 1901, Hague lecionou apologética,
liturgia e homilética no Wycliffe College, em Toronto. Seus escritos
incluem vários livros sobre liturgia anglicana.
Os fundamentos

promessa de salvação; a divisão primitiva da raça humana; o cha­


mado de Israel e a parte preliminar do programa redentor de Deus.
Em suma, nesse volume inspirado dos princípios, temos a explicação
satisfatória de todo o pecado e miséria e contradição presentes agora
neste mundo, e a razão do esquema da redenção.
Ou, podemos colocar isso de outro modo. O livro de Gênesis é a
semente na qual a planta da Palavra de Deus é acolhida. E o ponto
de partida do plano de Deus, o qual é gradualmente desdobrado ao
longo das eras. O Gênesis é a base do pilar da revelação divina. E
a raiz da árvore das Escrituras inspiradas. E a fonte do fluxo dos
escritos sagrados da Bíblia. Se a base do pilar for removida, o pilar
cai. Se a raiz da árvore for cortada, a árvore murchará e morrerá.
Se a nascente do rio for cortada, o rio secará. A Bíblia, em sua
totalidade, é como uma cadeia pendurada em dois ganchos. O livro
de Gênesis é um desses gancho; e o livro do Apocalipse, o outro.
Arranque um gancho, e a cadeia fica confusa. Se os primeiros capí­
tulos do Gênesis não são confiáveis, então a revelação do princípio
do universo, a origem da raça e a razão para sua redenção não fazem
sentido. Se os últimos capítulos do Apocalipse estão deslocados, a
consumação de todas as coisas não é conhecida. Se retirarmos o
Gênesis, perde-se a explicação do primeiro céu, da primeira terra,
do primeiro Adão e da Queda. Se retirarmos o Apocalipse, perde-se
a verdade completa do novo céu, da nova terra, do homem redimido
e do segundo Adão no Paraíso resgatado.
Além disso, nos primeiros capítulos do livro de Gênesis tem-se o
fundamento forte e suficiente do subseqüente desenvolvimento do
reino de Deus; a raiz-germe de toda a Antropologia, Soteriologia,
Cristologia, Satanologia, assim como referências aos antigos e
modernos problemas do mistério e culpabilidade do pecado, da
unidade da raça e do estabelecimento do matrimônio e da vida
familiar de Deus.
Assumimos desde o começo a historicidade do Gênesis e sua
autoria mosaica. Evidentemente, ele foi aceito por nosso infalível
Senhor Jesus Cristo como histórico, como uma composição única,
escrita por Moisés. Foi aceito por Paulo, que escreveu sob a inspi­
ração do Espírito, e pelos líderes divinamente indicados do povo
escolhido de Deus. Esse livro, por seu realismo e consistência,
assim como pelo que foi finamente denominado de sua veracidade
subjetiva, tem mostrado sua validade ao povo de Deus através dos

106
O valor doutrinai dos primeiros capítulos de Gênesis

tempos. Postulamos, especialmente, a historicidade dos primeiros


capítulos, pois não só são valiosos, mas vitais. Eles são a essência
de Gênesis.
O livro de Gênesis não é o trabalho de um teórico nem de um
analista tribal. Menos ainda é o produto de algum compilador ou
compiladores anônimos de uma série de mitos, históricos na forma,
mas não históricos de fato, feito em alguma era desconhecida. Sua
abertura é um apocalipse, uma revelação direta do Deus de toda a
verdade. Se foi dado em uma visão ou de qualquer outro modo, é
impossível dizer. Mas é possível, até mesmo provável, que o mesmo
Senhor Deus, que revelou a seu servo no Espírito como Ele era no
Dia do Senhor, o apocalipse dos eventos humanamente desconhe­
cidos e impossíveis de ser conhecidos, da história do homem que
acontecerá quando este céu e esta terra tiverem passado, também
teria revelado a seu servo, estando no Espírito, o apocalipse dos
eventos humanamente desconhecidos e impossíveis de ser conhe­
cidos, que aconteceram antes que a história desta terra começasse.
O começo e o fim das coisas estão ambos absolutamente ocultos da
ciência, conforme foi afirmado. A ciência diz respeito aos fenôme­
nos. Quando a ciência confessa sua impotência é que entra a reve­
lação, e, com a autoridade de Deus, revela essas coisas que estão
acima da ciência. Portanto, o começo do Gênesis é uma narrativa
divinamente inspirada dos eventos considerados necessários por
Deus para estabelecer os fundamentos da lei divina na esfera da
vida humana e apresentar a relação entre o Criador onipotente e o
homem que caiu, e a raça destinada a ser redimida pela encarnação
de seu Filho.
A concepção racionalista alemã, que passou por cima de milha­
res de mentes cristãs mais ou menos ortodoxas, é a de que esses
primeiros capítulos contêm antigas tradições da mente semita-
oriental. Outros vão mais longe, e não somente os negam como
produto da mente reverente e religiosa do hebreu, mas afirmam
que esses capítulos iniciais são simplesmente lendas orientais, cuja
origem não é de Deus, mas do leste, provavelmente da Babilônia
pagã.
Portanto, postularíamos as seguintes proposições:
1. O livro de Gênesis não tem valor doutrinai, se não for considera­
do como possuidor da autoridade divina.
2. O livro de Gênesis não pode ser considerado como possuidor da

107
Os fundamentos

autoridade divina, se não for verdadeiro. Pois, se não for história,


não é confiável; e se não for revelação, não possui autoridade
divina.
3. O livro de Gênesis não é verdadeiro, se não for de Deus. Pois,
se não for de Deus, não é inspirado; e se não é inspirado, não
possui, para nós, nenhum valor doutrinai qualquer que seja.
4. O livro de Gênesis, se for uma compilação heterogênea de folclo­
re mitológico por escritores desconhecidos, não vem direto de
Deus.
5. Se o livro de Gênesis é uma narrativa lendária, anônima, indefi­
nidamente equivocada, e se as pessoas descritas nesse livro são
meras personificações míticas do gênio tribal, naturalmente ele
não é apenas não-autêntico, porque não foi autenticado, mas uma
base insuficiente para a doutrina. O resíduo de verdade dúbia,
que pode, com graus variados de consentimento, ser extraído
disso, jamais poderia ser aceito como um fundamento para a
superestrutura da doutrina eternamente fidedigna, porque o
axioma é que apenas a Palavra de Deus tem valor doutrinai.
Ficção mítica e legendária, além da tradição errônea e enga­
nosa, são incompatíveis não apenas com o caráter do Deus de
toda a verdade, mas com a verdade, a confiabilidade e a absoluta
autoridade da Palavra de Deus. Não tomamos mitos inventados
como nossas credenciais. Os documentos primários, se é que
eles existiram, foram colecionados, revisados e reescritos por
Moisés, que agiu sob a inspiração de Deus.
Uma sentença em Lines ofDefense [Linhas de Defesa], de Margoliouth,
merece uma consideração cuidadosa hoje. Deveríamos ter alguma
oportunidade, disse o professor de Oxford, de aferir a habilidade
daqueles cuja fé na convicção antiquada na autenticidade das
Escrituras foi abandonada (pág. 293). Talvez fosse preferível pôr a
idéia desse modo: os cristãos modernos deveriam ter mais oportu­
nidade não apenas de avaliar a habilidade, mas de aferir também as
qualificações espirituais de uma escola crítica que, notoriamente,
tem sido caracterizada por um entusiasmo contra o milagroso, e a
adoção precipitada de qualquer conclusão da fonte racionalista que
milita contra a historicidade de Gênesis.
Hoje em dia, os cristãos estão concedendo muito espaço ao
cientista agnóstico e ao racionalista especializado em hebraico,
o que, muitas vezes, é algo reprovável, se aqueles permitem que

108
O valor doutrinai dos primeiros capítulos de Gênesis

estes saiam de suas províncias específicas sem protesto. Suas


suposições deveriam ser assistidas com extrema vigilância e ciúme
(cf. Gladstone, The Impregnable Rock of Holy Scripture [A Rocha
Impregnável das Sagradas Escrituras], pp. 62-83).
Mas para resumir: o livro de Gênesis é o fundamento sobre o
qual a superestrutura das Escrituras repousa. Os primeiros três
capítulos são o fundamento do fundamento, os quais formam, em
si mesmos, uma monografia completa da revelação. E dessa subes-
trutura final, os primeiros trêsversículos do primeiro capítulo são,
por sua vez, o fundamento.
No primeiro versículo de Gênesis, em palavras de grandeza
sobrenatural, temos uma revelação de Deus, a causa primeira, o
Criador do universo, sobre o mundo e o homem. O Ser glorioso de
Deus surge sem explicação, e sem escusas. E uma revelação do
único Deus pessoal e vivo. Não há na cosmogonia filosófica antiga
nenhum rastro da idéia de tal Ser, menos ainda de um tal Criador,
porque todos os outros sistemas começaram e terminaram com
concepções panteístas, materialistas ou hilozoísta. A Palavra divina
foi a única a declarar a idéia absoluta do Deus vivo, sem qualquer
tentativa de demonstração. A espiritualidade, infinidade, onipotên­
cia e santidade do Ser divino, tudo, em germe, repousa aqui, e em
nenhum outro lugar. Não somente isso. Pode-se dizer que a última
e totalmente revelada doutrina da unidade de Deus na Trindade
repousa também aqui em germe.
O fato é que Deus, no primeiro capítulo de Gênesis, não é deter­
minado como uma dedução da razão ou de uma generalização filo­
sófica. E uma revelação. E uma revelação daquela verdade primária
que é recebida pela mente humana universal como uma verdade
que não precisa de nenhuma prova, mente essa que é incapaz disso,
mas que, ao ser recebida, é verificada pela mente inteligente por
uma força irresistível, não só com argumentos ontológicos e cos-
mológicos, mas também com argumentos teleológicos e morais.
Temos nesse primeiroversículo de Gênesis, não só um postulado à
parte da Revelação, mas três grandes verdades que constituíram a
glória de nossa religião:
(1) A unidade de Deus, em contradição a todos os politeísmos e
dualismos da filosofia pagã antiga e moderna.
(2) A personalidade de Deus, em contradição àquele panteísmo,
materialista ou idealista, que reconhece a imanência de Deus no

109
Os fundamentos

mundo, mas nega sua transcendência. Pois em todos os seus inú­


meros desenvolvimentos, o panteísmo tem essa peculiaridade, a
de negar a personalidade de Deus, além de excluir do reino da
vida a necessidade de um Mediador, Aquele que leva sobre Si o
pecado, e de um Salvador pessoal.
(3) A onipotência de Deus, em contradição não apenas àquelas
concepções aviltantes das deidades antropomórficas do mundo
antigo, mas a todos aqueles ídolos artificiais que os milhões
pagãos adoram hoje. Deus fez as estrelas e os sóis, que o homem
em sua extravagância os adoraria de bom grado. Assim, em con­
tradição a todas as concepções e evoluções humanas, resta não
apenas uma abstração deísta, mas o único, o verdadeiro e uno
Deus vivo. Ele é chamado de Elohim, o nome da majestade divi­
na, o Único que deveríamos adorar, nosso Criador e Governador;
o mesmo Deus que em algunsversículos é revelado depois como
Jeo\á-Elohim, em que Jeová é o nome da aliança, o Deus da
revelação e da graça, o Senhor sempre-existente, o Deus e Pai
de todos nós (Green, Unity of Genesis [Unidade de Gênesis], pp.
31, 32; o Faussefs Bib. Ency., p. 258).
Uma das teorias do modernismo é que a lei de evolução pode
ser localizada na Bíblia, no desenvolvimento da idéia de Deus. O
desenvolvimento da idéia de Deus? Existe na Bíblia qualquer traço
real do desenvolvimento da idéia de Deus? Há uma revelação que
se expande cada vez mais, tornando-se mais rica e mais cheia dos
atributos e procedimentos e modos e obras de Deus, mas não da
idéia de Deus. O Deus de Gênesis 1.1 é o Deus do Salmo 90, de
Isaías 40.28, de Hebreus 1.1 e de Apocalipse 4.11.
“No princípio, criou Deus os céus e a terra.” Aqui, em uma reve­
lação sublime, está o fundamento doutrinai da criação do universo,
e a contradição das concepções antigas e modernas da eternidade
da matéria. Somente Deus é eterno.
Pode-se até acreditar na história de um pensador japonês que
tomou um livro estranho e, maravilhado, leu a primeira frase: “No
princípio, criou Deus os céus e a terra”. Ocorreu-lhe que havia mais
filosofia de caráter teológico que satisfazia, com apenas uma sen­
tença, a mente e a alma do que todos os livros sagrados do oriente.
Essa única oração separa a Bíblia do resto das produções huma­
nas. A mais sábia filosofia dos antigos, platônicos, aristotélicos ou
gnósticos, nunca alcançou o ponto de que o mundo foi criado por

110
O valor doutrinai dos primeiros capítulos de Gênesis

Deus, no sentido de criação absoluta. Em nenhuma cosmogonia,


exceto na Bíblia, há um registro da idéia de que Deus criou o céu
e a terra, resultado do esforço de sua vontade e do decreto de sua
personalidade eterna, auto-existente. Ex nihilo nihil fit [Coisa
alguma pode ser criada do nada]. O ponto mais alto alcançado
pelas especulações filosóficas foi um tipo de teoria atômica; de
átomos cósmicos e germes e ovos que tinham alguma força inex­
plicável de desenvolvimento, do qual o cosmo presente evoluiu ao
longo de muitas eras. Cria-se, quase que de forma universal, que a
matéria sempre existiu desde a eternidade. A Bíblia ensina que o
universo não foi auto-produzido, nem foi o resultado de uma mera
evolução passiva de sua natureza, tampouco surgiu de uma mera
transição de uma forma de ser a outra, do não-ser ao ser, mas que
foi uma criação direta do Deus pessoal, vivo, que trabalha, o qual
criou todas as coisas do nada pelo decreto de sua vontade e pela
instrumentalidade dos Logos eterno. Em contraste glorioso com
a ciência agnóstica e seu credo lamentável, “eu creio que atrás e
sobre e ao redor dos fenômenos da matéria e da força permanece
o mistério não solucionado do universo”, os cristãos sustentam sua
solução triunfante, “eu creio que, no princípio, criou Deus os céus
e a terra” (Jo 1.1-3; Hb 1.1; Cl 1.16). O primeiroversículo da Bíblia é
uma prova que o livro é de Deus.
E o mesmo acontece com respeito aosversículos subseqüentes.
Gênesis definitivamente não é uma declaração de história científica.
E uma narrativa para o gênero humano, cuja finalidade é mostrar
que este mundo foi feito por Deus para a habitação do homem e
foi, gradualmente, ajustado para os filhos de Deus. Assim, em
uma série de desenvolvimentos criativos sucessivos do caos sem
forma, contendo em condição embrionária todos os componentes
elementares — substâncias químicas, mecânicas, ar, terra, fogo e
água —, o sublime processo é registrado de acordo com a narrativa
de Gênesis na seguinte ordem:
1. A criação por ato divino direto da matéria em seu estado gasoso,
aquoso, terrestre e mineral sucessivamente (Gn 1.1-10; cf.
Cl 1.16; Hb 11.3).
2. O aparecimento pelo poder criativo divino das mais baixas
formas de vida do mar e da terra (Gn 1.11-13).
3. A criação por ato divino direto de formas maiores de vida,
aquáticas e terrestres; os grandes monstros marinhos e répteis

íii
Os fundamentos

gigantescos, os sheretjim e tanninim (cf. Dawson, Origin ofthe


World [Origem do Mundo], p. 213; Gn 1:20,21).
4. O aparecimento pelo poder criativo divino de animais terrestres
da mais alta organização, herbívoros, mamíferos menores e
carnívoros (Gn 1.24,25).
5. Finalmente, a criação do homem por um ato divino direto
(Gn 1.26,27). Não em primeiro, mas por último. O último para
o qual o primeiro foi feito, como Browning descreve magis­
tralmente. Nisso reside a compatibilidade entre o Gênesis e a
ciência, pois essa ordem sublime é apenas a ordem que alguns
dos mais renomados cientistas dos séculos dezenove e vinte
proclamaram. E notável também que a palavra para a absoluta­
mente nova criação seja apenas utilizada em relação à introdu­
ção da vida (Gn 1.1,2,27). Esses três pontos, em que a idéia de
criação absoluta é introduzida, são os três principais pontos, que
os modernos defensores da evolução acham impossível fazer
alguma conexão.

O princípio da humanidade
A seguir, temos nessa sublime revelação o fundamento doutrinai
para o começo da humanidade. O homem foi criado, não evoluiu.
Quer dizer, ele não veio da massa lamacenta protoplásmica, ou do
lodo marinho plactónico, nem descende do peixe ou da rã, ou do
cavalo, ou do macaco; mas foi criado de uma vez, de forma direta,
um ser completo, provindo de Deus. Quando lemos o que alguns
escritores, manifestamente religiosos, dizem sobre o homem
e sua origem bestial, nossos ombros inclinam-se inconsciente­
mente, nossa cabeça fica cabisbaixa, o coração, doente. Nosso
amor-próprio recebe um golpe. Quando lemos Gênesis, nossos
ombros endireitam-se, nosso peito se ergue. Sentimos orgulho
de ser aquela criatura chamada homem. O coração fica alegre, e a
cabeça ergue-se. A Bíblia é abertamente contra o desenvolvimento
evolutivo do homem, assim como é contra sua ascensão gradual do
animal em indefinidos éons. Na verdade, ela não se levanta contra
a idéia do desenvolvimento dos planos do Criador na natureza, ou
de uma variação de espécies por meio de ambientação e processos
de tempo. Isso pode ser visto em Gênesis e em toda a Bíblia, assim
como neste mundo. Mas a Bíblia é inteiramente contra aquela visto­
sa teoria de que todas as espécies, vegetal e animal, se originaram

112
O valor doutrinai dos primeiros capítulos de Gênesis

por meio da evolução de formas mais inferiores por intermédio


de longos processos naturais. A forma materialista dessa teoria é
muito ofensiva para o cristão. Ela praticamente substitui o único
e verdadeiro Deus por uma célula protoplásmica que engendrou
tudo. No entanto, até mesmo a teoria teísta-supernaturalista é
oposta à Bíblia e à ciência pelas seguintes razões:
1. Não há nenhuma lei universal de desenvolvimento. Ao contrário,
a evidência científica aponta para a deterioração. A flora e a
fauna do período mais recente não mostram nenhum traço de
melhoramento, e até mesmo o homem, o homem orgulhoso,
do ponto de vista biológico e fisiológico, não ganhou nada, por
assim dizer, desde o alvorecer da história. Os primeiros rema­
nescentes arqueológicos do Egito, da Assíria e da Babilônia não
mostram nenhum vestígio de um aparecimento lento a partir de
seres bárbaros. E verdade que a espécie pode ser artificialmente
melhorada, mas isso não é nenhuma transmutação de espécies
(Dawson, Origin of World [Origem do Mundo], pp. 227-277).
2. Nenhum tipo novo jamais foi descoberto. A ciência está procla­
mando universalmente a verdade de Gênesis 1.1, 12, 21, 24, 25,
“segundo sua espécie” e “segundo suas espécies”, quer dizer,
espécie após espécie. A geologia, com suas quinhentas ou mais
espécies de ganóides, proclama o fato da não-transmutação das
espécies. Se, como dizem eles, os estratos contam a história
de períodos incontáveis, é estranho que durante essas eterni­
dades incontáveis o trilobite nunca tenha produzido qualquer
coisa senão um trilobite, nem a amonite jamais tenha produzido
qualquer coisa senão uma amonite. As elaboradas exceções
artificiais da ciência moderna apenas confirmam a regra (cf.
Townsend, Collapse ofEvolution [Colapso da Evolução]).
3. Nem há qualquer vestígio de transmutação de espécies. O
homem se desenvolve de uma única célula, e diz-se que a célula
de um macaco é indistinguível da de um homem. Mas o fato
de que a célula de um homem se desenvolve em um homem,
e a célula de macaco, em um macaco, demonstra que há uma
diferença incomensurável entre elas. E o desenvolvimento de
uma célula em um homem não tem nada que ver com a evolução
de um espécime para outra. “Para a ciência, as espécies são
unidades praticamente inalteráveis” (Origin of World [Origem do
Mundo], pág. 227). O homem é a única espécie de seu gênero, e

113
Os fundamentos

o representante exclusivo de sua espécie. Diz-se que o abandono


de qualquer tipo original é logo seguido pela completa extinção
da família.
4. Nem o elo perdido foi achado. O falecido Robert Etheridge do
Museu Britânico, líder do departamento de geologia, e um do
mais hábeis paleontólogos britânicos, disse: “Em todo este gran­
de museu não há uma partícula de evidência da transmutação
de espécies. Nove décimos da conversa dos evolucionistas não
é fundamentada em observação, além de ser completamente
refutada pelos fatos”. Diz-se que o Professor Virchow, quando
discorreu a respeito da evolução, declarou com veemência: “E
tudo tolice. Estamos, como sempre estivemos, muito longe
de estabelecer qualquer conexão entre o homem e o macaco”
(ou, como afirmam mais recentemente, entre o homem e um
“ancestral comum” com o macaco). Há um grande abismo entre
a teoria da evolução e a sublime declaração de Gênesis 1.26, 27.
Estes versículos dão para o homem seu verdadeiro lugar no uni­
verso, a consumação da criação. O homem, feito do pó da terra e
criado no mesmo dia que o grupo mais elevado de animais, tem
afinidades fisiológicas com a criação animal. Mas ele foi feito à
imagem de Deus, e é, portanto, transcendentemente superior
a qualquer animal. “O homem foi feito para andar, o macaco,
para escalar”, disse anos atrás De Quatrefages, o grande cien­
tista Francês. Um homem faz mil coisas diariamente que um
macaco não poderia fazer mesmo se tentasse por dez mil anos.
O homem possui faculdades de projeção, de controle, de ordem,
de construção e administrativas. O homem tem personalidade,
entendimento, vontade e consciência. O homem é apto a temer a
Deus e pode adorá-lo. O relato de Gênesis a respeito do homem
é a única base possível de revelação. A revelação de paternidade;
do belo, do verdadeiro, do bom; de pureza, de paz; tudo isso é
inconcebível para um cavalo, um cachorro, ou um macaco. Um
símio mais civilizado não poderia ter nenhuma afinidade com tais
concepções, ou de recebê-las caso lhes fossem reveladas.
Além disso, esse livro da Bíblia é a única base racional para a
doutrina de regeneração em oposição à idéia da evolução do caráter
humano, e da grande doutrina da encarnação. O homem que foi ini­
cialmente feito à imagem de Deus, pode nascer novamente pelo poder
regenerador do Espírito Santo e ser feito à imagem de Deus, o Filho.

114
O valor doutrinai dos primeiros capítulos de Gênesis

Fundamentos doutrinais em Gênesis


Além disso, temos nessa sublime revelação de Gênesis o funda­
mento doutrinai de: (1) a unidade da raça humana, (2) a Queda do
homem, e (3) o plano de redenção.
(1 ) A u n id a d e d a r a ç a h u m a n a . Com respeito a essa unidade, Sir
William Dawson disse que a Bíblia conhece apenas um Adão.
Adão não foi um mito, ou um nome étnico. Ele foi um homem
verdadeiro, feito por Deus; não um desenvolvimento evolutivo
de algum antropóide cabeludo em algum continente imaginário
da Lemúria. A Bíblia conhece apenas uma espécie de homem,
um par primitivo. Isso é confirmado pelo Senhor Jesus Cristo
em Mateus 19.4. E reafirmado por Paulo em Atos 17.26, seja
qual for a leitura que se possa fazer, e em Romanos 5.12;
ICoríntios 15.21, 47, 49. Também não há qualquer fundamento
para supor que a palavra Adão é usada em um sentido coletivo,
deixando, assim, espaço para as hipóteses do desenvolvimento
evolutivo de um grande número de pares humanos. Todas as
coisas, tanto em fisiologia quanto em etnologia, como também
nas ciências, que lidam com esse assunto confirmam a idéia da
unidade da raça humana.
( 2 ) A Q u e d a d o h o m e m . O fundamento de toda a Hamartologia
e da Antropologia (doutrinas do pecado e do homem) repousa
nos primeiros três capítulos do Gênesis. Esse fundamento nos
ensina que o homem foi criado originalmente para a comunhão
com Deus, e mesmo que sua personalidade fosse dicotômica ou
tricotômica, ele seria uma criatura completamente apta para o
companheirismo pessoal e inteligente para com seu Criador, e
estaria unido a Ele com os laços de amor e de conhecimento.
Todo elemento da história da Bíblia refere-se a si mesma como
uma narrativa histórica. Colocado no Éden por seu Deus,
com um trabalho a fazer e uma ordem a seguir, o homem era
potencialmente perfeito, mas com a possibilidade de queda. O
homem caiu por desobediência e pelo poder de um enganador
sobrenatural, a conhecida serpente, representando o diabo e
Satanás, que de Gênesis 3 a Apocalipse 19 aparece como o ini­
migo implacável da raça humana, o líder daquele grupo de anjos
caídos que, pelo pecado do orgulho, abandonaram seu primeiro
principado.

115
Os fundamentos

Essa história é incompreensível se tomada apenas como um


mito. O grande teólogo holandês Van Oosterzee diz, “A narrativa
apresenta-se claramente como história. A vestimenta histórico-
fantástica de uma idéia puramente filosófica não está muito de
acordo com o espírito genuíno da antiguidade judia” (Dogmatics
[Dogmática], II, p. 403).
Ainda mais incompreensível seria se fosse somente uma alego­
ria que relaciona o fruto, a serpente, a mulher, a árvore, o comer,
etc. a coisas completamente distintas daquelas mencionadas na
Bíblia. E história. E tratada como tal por nosso Senhor Jesus Cristo
que, seguramente, não tomaria um mito por história, e por Paulo
que, dificilmente, construiria Romanos 5 e ICoríntios 15 baseado
em fábulas inteligentemente compostas. Essa é a única explicação
satisfatória da corrupção da raça. Desde o tempo de Adão a morte
tem reinado no mundo.
Essa história da Queda serve, além disso, como uma barreira
contra todo maniqueísmo e contra o pelagianismo, que declara
que o homem, afinal de contas, não é tão mau, além de zombar
da doutrina do pecado original, essa natureza pecaminosa que,
conforme claramente declarado em todas as confissões da igre­
ja, cada um de nós possui desde o nascimento. A penalidade e
horror do pecado, a corrupção de nossa natureza humana e a
desesperança de nosso estado pecaminoso definitivamente são
coisas estabelecidas nas Sagradas Escrituras, assim como são
as deduções divinamente inspiradas de Paulo a partir desse fato
cujo resultado foi o pecado e a morte pela desobediência e queda
de Adão, a cabeça original da raça humana. A raça está em uma
condição pecaminosa (Rm 5.12). A humanidade é uma solidarie­
dade. Como a raiz de uma árvore vive em um talo, em um ramo,
em folhas e frutos; assim Adão, como diz Anselmo, uma pessoa
de natureza pecaminosa, em sua posteridade produziu pessoas
pecaminosas. Ora, como Pascal finamente propõe, o pecado
original é loucura para o homem, mas essa loucura é mais sábia
do que toda a sabedoria do homem, porque sem ela quem pode­
ria dizer o que é o homem. Toda sua condição depende desse
ponto imperceptível (Thoughts [Pensamentos], cap. 13, 11). Essa
história de Gênesis também é o fundamento da doutrina da
Bíblia referente à responsabilidade humana para com Deus e à
necessidade do homem para prestar contas para o Senhor. Uma

116
O valor doutrinai dos primeiros capítulos de Gênesis

antropologia inferior sempre significa uma teologia inferior,


porque se o homem não foi uma criação direta de Deus, se ele
foi um mero desenvolvimento indireto, fruto de um processo
lento e doloroso, de sabe-se lá o que, ou como, ou por que, ou
quando, ou onde, a fonte principal de responsabilidade moral se
esvai. A concepção fatalista da vida pessoal e moral do homem é
o presente mortal da evolução naturalista para nossa era.
( 3 ) O p l a n o d a r e d e n ç ã o . Com respeito a nossa redenção, o tercei­
ro capítulo de Gênesis é a base de toda a Soteriologia (doutrina
da salvação). Se não houve a Queda, não houve condenação, nem
separação e, tampouco, houve necessidade de reconciliação. Se
não houve necessidade de reconciliação, não houve necessida­
de de redenção; e se não houve necessidade de redenção, a en­
carnação foi uma superfluidade, e a crucificação, uma loucura
(G1 3.21). O apóstolo faz uma relação tão íntima entre a queda
de Adão com a morte de Cristo, que sem a queda de Adão a
ciência da teologia fica esvaziada de sua característica mais
saliente, a expiação. Se o primeiro Adão não foi feito uma alma
viva e caiu, não havia nenhuma razão para a obra do Segundo
Homem, o Senhor do céu. A rejeição da história de Gênesis,
quando considerada um mito, leva à rejeição do evangelho da
salvação. Se a realidade histórica de Adão e Eva é abandonada,
uma das bases principais da doutrina cristã é removida,
porque a Queda jamais permanecerá como o ponto de partida
da revelação especial, da salvação pela graça e da necessidade
da regeneração pessoal. Nisso repousa o germe de todo o
evangelho apostólico.
Finalmente, temos em Gênesis 2 o fundamento doutrinai desses
grandes fundamentos para a humanidade: a necessidade de traba­
lho e de um dia de descanso, a ordenação divina do matrimônio e
a vida no lar. O dia de descanso semanal foi proporcionado para o
homem por seu Deus, e é plantado bem na frente da casa. Nosso
Senhor Jesus Cristo endossa a história mosaica da criação de Adão e
Eva, ao referir-se a ela como a explicação da vontade divina relativa
ao divórcio, e sanciona, por seu infalível imprimatur [imprimátur],
a mais importante das questões éticas, a monogamia. Assim, os
grandes elementos de vida como Deus a pretendeu, os três fatores
universais de uma vida feliz, saudável e prática, a lei, o trabalho e o
amor são postos no princípio do livro de Deus.

117
Os fundamentos

Outros assuntos importantes no Gênesis


Três outras características notáveis encontradas nos primeiros
capítulos de Gênesis merecem uma breve referência.
A primeira é a afirmação da unidade original da linguagem da
raça humana (Gn 11.1). Max Muller, um etnólogo e filólogo ilustre,
declara que todos os idiomas, a despeito de sua diversidade, devem
ter se originado de uma fonte comum (cf. Saphir, Divine Unity
[Unidade Divina], pág. 206; Dawson, Origin ofthe World [Origem
do Mundo], pág. 286; Guinness, Divine Programme [Programa
Divino], pág. 75).
A segunda afirmação é que o milagre da profecia etnológica feita
por Noé em Gênesis 9.26,27, na qual nos é predito, em um epítome
sublime, as três grandes divisões da raça humana e o destino his­
tórico e derradeiro delas. As três grandes divisões, camita, semita
e jafética, são três grupos étnicos nos quais a ciência moderna tem
dividido a raça humana. Os fatos da história têm cumprido o que
foi predito em Gênesis há quatro mil anos. As nações camitas, in­
cluindo os caldeus, os babilônicos e os egípcios, foram degradadas,
profanas e sensuais. A semita foi a dos religiosos, de onde veio o
Messias. A jafética foi a das raças que mais cresceram e tornaram-
se dominante, incluindo todas as grandes monarquias mundiais,
tanto dos tempos antigos quanto modernos, a grega, a romana, a
gótica, a celta, a teutônica, a britânica e a americana, assim como,
conforme investigações e descobertas recentes, as raças da índia,
China e Japão. Assim, Cam perdeu todo o império séculos atrás;
Sem e sua raça adquiriram esse império ética e espiritualmente
pelo Profeta, Sacerdote e Rei, o Messias; ao passo que Jafé, abar­
cando o mundo e aumentando a supremacia imperial, tem estado
no domínio industrial, comercial e político.
A terceira é a promessa gloriosa dada a Abraão, o homem a quem
o Deus da glória apareceu e em cuja semente, pessoal e encarnada,
o mundo inteiro seria abençoado. A experiência espiritual de
Abraão com Deus é a explicação do monoteísmo das três maiores
religiões do mundo. Ele, como uma figura, está em proporção
majestosa, como diz Max Muller, segundo apenas em relação ao
Único na história do mundo inteiro. A parte dessa promessa, a
história milagrosa da raça hebréia é inexplicável. O fato central de
todo o Antigo Testamento, a promessa do Salvador e sua gloriosa
salvação, centra-se nele e parte dele (Gn 12.3, 22,18; G1 3.8-16).

118
O valor doutrinai dos primeiros capítulos de Gênesis

Em uma época, portanto, quando os críticos estão intrepida­


mente exigindo o estabelecimento de resultados seguros de suas
excentricidades hipotéticas, os cristãos deveriam exigir mais
corajosamente, em discussões sérias, os resultados seguros da
revelação de Deus, como encontrado nos capítulos de abertura do
Gênesis.
A tentativa do modernismo de poupar o sobrenatural na segunda
parte da Bíblia, ao transformar em mitos o sobrenatural na primeira
parte, é tão sem sabedoria quanto fatal. Em vez de diminuir o domí­
nio da fé no meio do coro de dúvida, ao admitir que um capítulo é
duvidoso porque algum especialista em doutrinas o questionou, ou
que uma doutrina é menos autêntica porque alguém formulou uma
hipótese não verificável, seria melhor unirmo-nos a homens como
Romanes, Lord Kelvin, Virchow e Liebig, aceitando suas idéias de
um Poder Criativo, e apoiar Cuvier, o eminente cientista francês,
que disse que Moisés, embora tenha sido instruído em toda ciência
do Egito, era superior a sua época e deixou-nos uma cosmogonia
cuja exatidão, de uma maneira razoável, pode ser verificada
diariamente; apoiar o Sir William Dawson, o eminente cientista
canadense, que declarou que as Escrituras em todos seus detalhes
não contradiz o resultado alcançado pela ciência, mas antecipa
muitas de suas descobertas; apoiar a Professora Dana, a eminente
cientista americana que disse, após examinar os primeiros capítu­
los de Gênesis como geóloga, “Acho que está em perfeito acordo
com a ciência conhecida”; ou melhor de tudo, com aquele que disse,
“Porque, se, de fato, crêsseis em Moisés, também creríeis em mim;
porquanto ele escreveu a meu respeito”. (Jo 5.45,46)

119
121

O testemunho arqueológico
para as escrituras

“O testemunho dos monumentos


para a verdade das escrituras”
P r o f . G e o r g e F. W r i g h t , D.D., LL.D.
Oberlin College, Oberlin, Ohio,
“O testemunho recente
da arqueologia para as escrituras”
M. G. Kyle, D.D., LL.D.
Presidente do seminário teológico Pittsburgh-Xenia
Revisado por Charles L Feinberg, Th.D., Ph.D.

G EORG E FREDER1CK WRIGHT (1838-1921) formou-se pelo Seminário


Teológico de Oberlin, em 1862, e pastoreou em Bakersfield, VT (1861-
1872) e em Andover, MA (1872-1881), antes de retornar a Oberlim para
lecionar (1881-1907). Nitidamente interessado em geologia e na relação
entre ciência e religião, Wright foi pioneiro de uma apologética única
em seus dias. Editou a Bibliotheca Sacra [Biblioteca Sacra] e publicou,
entre outros: The Logic ofC hristian Euidences [A Lógica das Evidências
Cristãs] (1880), Studies in Science an d Religion [Estudos sobre Ciência
e Religião] (1882), The Diuine Authority of the Bible [A Autoridade
Divina da Bíblia] (1884), um a biografia de Charles Finney (1891) e sua
autobiografia (1916).
MELV1N GROVE KYLE (1858-1933) foi clérigo presbiteriano que se
especializou em arqueologia bíblica e egiptologia. Ele dissertou sobre
esses assuntos no Seminário Teológico de Xenia, que se tornou o
Seminário Teológico Pittsburgh-Xenia, e foi presidente daquela escola
de 1922 a 1930. Ele editou a Bibliotheca Sacra [Biblioteca Sacra] em
1921 e tam bém escreveu um a coluna em arqueologia para a The
Sunday School Times [Escola Dominical], Em 1927, serviu como
moderador da Igreja Presbiteriana (Jnida. Publicou vários livros sobre
arqueologia bíblica, incluindo The Deciding Voice of the M onum ents in
Biblical Criticism [A Voz Decisiva dos Monumentos na Crítica Bíblica],
Moses and the M onum ents [Moisés e os Monumentos], e The Problem of
Pentateuch [O Problema do Pentateuco],
Os fundamentos

Toda história é fragmentária. Cada fato particular é o centro


de um grande complexo de circunstâncias. Nenhum homem
possui inteligência suficiente para inserir um fato hipotético em
circunstâncias que não pertencem a ele, e para fazê-lo ajustar-se
exatamente a essas circunstâncias. Só uma inteligência infinita
poderia fazer isso. Então, uma falsificação bem sucedida é impossí­
vel, se tivermos um número suficiente das circunstâncias originais
com que compará-la. Esse princípio é que dá tal importância ao
exame da testemunha. Se a testemunha é verdadeira, quanto mais
for interrogada tanto mais preciso será seu testemunho, quando
visto conforme o quadro de circunstâncias em que é inserido. Se for
falso, tanto mais sua falsidade se tornará aparente.
Oportunidades notáveis para examinar novamente o Antigo
Testamento foram apresentadas pela descoberta de monumentos
havia muito tempo enterrados nas terras da Bíblia, assim como
pela decifração de inscrições neles encontradas. O propósito deste
capítulo é fornecer os resultados de uma parte dessa pesquisa para
proporcionar um exame razoável da competência e honestidade dos
historiadores do Antigo Testamento, assim como da fidelidade com
que seus registros nos foram transmitidos. As limitações de espaço
não permitirão mais do que um exemplo dessa vasta evidência,
agora disponível para nós.

A identificação de Belsazar
A atenção deve ser centrada primeiramente em uma das narra­
tivas do Antigo Testamento, contra a qual alguns dos mais severos
julgamentos dos críticos modernos foram lançados. Referimo-nos
às declarações relativas à pessoa e à carreira de Belsazar no livro
de Daniel. No quinto capítulo de Daniel, Belsazar é chamado de
o filho de Nabucodonosor, e é dito que ele foi o rei da Babilônia,
morto na noite em que a cidade foi capturada. Alguns historiadores
têm negado completamente o caráter histórico de Belsazar; pois,
conforme outros, ele era o filho de Nabonido, o rei nessa época,
que, segundo se sabe, estava fora da cidade quando essa foi tomada
e que viveu, portanto, algum tempo a mais após a captura dessa
cidade. Há aqui uma incrível discrepância, uma clara contradição
entre os historiadores profanos e os sagrados. Mas, em 1854, Sir
Henry Rawlinson descobriu, enquanto escavava as ruínas da antiga
Ur, inscrições que declararam que Nabonido (Nabunaid) associou

122
O testemunho arqueológico para as escrituras

seu filho primogênito, Bel-shar-usur, a seu trono, permitindo que


ele usasse o título real, tornando, portanto, crível o fato de que
Belsazar deve ter estado na Babilônia, como a Bíblia relata, que
ele deve ter sido chamado de rei e que deve ter perecido na cidade
enquanto Nabonido sobreviveu fora do reino. Durante vários anos,
Nabonido ficou ocupado com as campanhas na cidade de Tema, na
Arábia. O fato de Belsazar ter sido chamado de rei enquanto seu pai
ainda estava vivo não é mais estranho do que aquele fato em que
Jeorão é designado rei de Judá por seu pai, Josafá, sete anos antes
da morte de seu pai (2Rs 1.17; 8.16); ou daquele em que Jotão foi
feito rei antes de seu pai, Uzias, que morreu de lepra, embora Uzias
ainda seja chamado de rei em algumas das referências feitas a ele.
O fato de Belsazar ter sido chamado de o filho de Nabucodonosor
é considerado prontamente, conforme a suposição de que ele era
seu neto, e há muitas coisas que indicam que Nabonido se casou
com a filha de Nabucodonosor para consolidar sua posição como
usurpador do trono. Se essa visão for rejeitada, há a suposição
natural, que no uso livre de termos referentes ao relacionamento,
algo comum no Oriente, “filho” poderia ser aplicado a alguém que
era simplesmente um sucessor. Nas inscrições nos monumentos
de Salmanezer III, Jeú, o extirpador da casa de Onri, é chamado
de o “filho de Onri.” A posição de Belsazar é confirmada inciden-
talmente pelo fato de que em Daniel 5.6 é prometido o “terceiro”
lugar no reino, e em 5.29 esse lugar é determinado, o que implica
que Belsazar era só o segundo. Assim, o que antes foi considerado
como uma objeção insuperável à precisão histórica do livro de
Daniel prova ser uma marca de precisão. As coincidências são mais
notáveis, pois são, de forma evidente, não intencionais.

O obelisco negro de Salmanezer


Podemos agora acompanhar o movimento de Salmaneser III
(858-824), na maior parte de sua carreira, a partir de várias
inscrições. Poucos anos depois de sua ascensão ao trono assírio,
uma importante batalha, contra uma forte coalizão de doze reis,
foi travada em Carcar, às margens do rio Orontes. A “Inscrição do
Monolito” de Salmanezer III descreve essa batalha. Entre os reis
da coalizão aparece o nome de “Acabe, o Israelita”, uma atestação
à proeminência de Acabe entre os regentes de seu tempo. Na
última campanha de Salmanezer III, Jeú, de Israel, foi compelido

123
Os fundamentos

a pagar-lhe pesado tributo. Isso foi relatado no famoso Obelisco


Negro encontrado por Layard, em 1846, no palácio de Salmanezer,
em Ninrode. Assim, a arqueologia dá testemunho à historicidade
desses reis Israelitas.

A pedra moabita
Uma das mais importantes descobertas para o Antigo Testamen­
to é a Pedra Moabita, descoberta em Dibon, a leste do Jordão, em
1868, que foi fixada pelo Rei Mesha (aproximadamente 850 a.C.)
para comemorar sua libertação do jugo de Onri, rei de Israel. A
inscrição é valiosa, entre outras coisas, por seu testemunho quanto
ao planejamento da civilização dos Moabitas daquele tempo, assim
como para a íntima semelhança do idioma deles com o dos hebreus.
Ao comparar o relato Moabita com 2Reis 3.4-27, achamos um relato
que faz paralelo e suplementa a narrativa bíblica de um modo
notável.

A expedição de Sisaque
Sisaque (Sheshonk dos egípcios e fundador da dinastia líbia) é
o primeiro nome de um rei egípcio a ser encontrado nas Escrituras
(lRs 11.40). Tirando vantagem do rompimento do reino salomôni-
co, Sisaque invadiu Jerusalém, despojando o palácio real e a casa
do Senhor. Ele também estava interessado na Síria e na Palestina.
O relato de suas vitórias está inscrito em uma parede do grande
tribunal sul do templo de Amon, em Karnak, no Egito. Mais de
cento e cinqüenta nomes de cidades palestinas estão inscritas,
embora um certo número delas seja ilegível. Algumas das cidades
mencionadas, em que as maiores delas estão em Israel, são Gate,
Sharuhen, Arad, Gibeão, Bete-Horom, Aijalom, Taanaque, Megido,
Bete-Seã, Suném, Edrei, e Maanaim. A inscrição é importante, não
só porque corrobora o relato bíblico, mas também porque nomeia
as cidades envolvidas e suplementa o registro da Bíblia.

Israel no Egito
Se pudéssemos encontrar os nomes dos patriarcas nas inscri­
ções e pudéssemos identificá-los com certeza com as personagens
bíblicas, o caso seria corroborado por provas. Os nomes Jacob-el e
Joseph-el são encontrados em um monumento do tempo de Tutmés

124
O testemunho arqueológico para as escrituras

III, mas não há nada que os relacionem com os patriarcas. As chan­


ces de encontrar os nomes dos patriarcas nas inscrições parece
ser pequena, porque os patriarcas (exceto José) eram nômades e
tinham pouco contato com os movimentos políticos de seu tempo.
Porém, há um outro modo por meio do qual a narrativa bíblica
pode ser testada. Se os relatos bíblicos refletem com precisão as
condições e costumes daquele tempo, eles sustentam as marcas
mais fortes possíveis de autenticidade e confiabilidade. A visita de
Abraão ao Egito, em Gênesis 12.10-20, pode ser testada em todas as
suas cinco características proeminentes conforme as circunstân­
cias egípcias daquele tempo, e será confirmada em cada detalhe.
O relato da viagem de José para o Egito está relacionado com o
problema dos Hicsos. Estudos mais recentes revelam que houve
tanto um período mais remoto como um mais posterior de infiltração
dos Hicsos no Egito. Essas infiltrações coincidem com o contato que
Abraão teve com o Egito, e a relação posterior que José tinha com
essa nação. Se do ângulo da cerâmica peculiar a essa região, se da
contribuição ao campo da metalurgia, se do tipo de defesa da cidade,
ou se do uso de cavalos e de carruagens, o domínio dos Hicsos no
Egito é magnificamente iluminado e forma o pano de fundo do con­
tato de Israel com aquela terra. A história de José pode ser testada
em relação ao seu pano de fundo egípcio em mais de uma dúzia de
particulares, inclusive o método de embalsamar, e sua confiabilidade
é atestada a todo tempo. Nenhuma outra nação da antiguidade deu à
Bíblia maior atestação à sua veracidade do que o Egito.

Os hititas
Antes do século vinte, as referências bíblicas a um povo hitita
eram vistas com desconfiança pelos críticos. Em termos incertos,
afirmou-se que os Hititas jamais existiram. Os relatos bíblicos que
tratavam desse povo não eram nada mais do que legendários. Estes
ataques contra a probidade das Escrituras foram completamente
derrubados em 1906, quando Hugo Winckler, de Berlim, descobriu
a biblioteca real e os registros oficiais dos hititas em sua capital, Bo-
ghaz-keui, na Ásia Menor, aproximadamente a duzentos e quarenta
quilômetros ao sul do Mar Negro e a leste da moderna Ancara, na
Turquia. O resultado do trabalho de vários estudiosos nas inscri­
ções dos hititas foi o aparecimento de um povo e de um império
dificilmente menos importante do que os egípcios ou assírios.

125
Os fundamentos

Os tabletes de Tell-el-Amarna
A descoberta dos Tabletes de barro de Tell-el-Amarna, em 1887,
foi sem querer. Uma camponesa estava cavando, para conseguir
terra para fertilizar seu jardim, nas ruínas de Tell-el-Amarna no
Alto Egito, cerca de trezentos e vinte quilômetros ao sul do Cairo,
no banco oriental do Nilo. Um estudo cuidadoso de eruditos compe­
tentes revelou que esses tabletes faziam parte de arquivos oficiais
dos reis Amenotepe III e Aquenatom. Amarna era a capital durante
o reino de Aquenatom, o reformador religioso. Os tabletes são
datados de aproximadamente 1400-1360 a.C., por volta do tempo
da entrada de Israel em Canaã, quando vinham do Egito, conforme
as primeiras datações de Êxodo e do tempo imediatamente sub­
seqüente. Eles tratam de negócios políticos dos reis do Egito e do
domínio dos governantes da Babilônia, Síria e Palestina por esses
reis egípcios. Esse era o período de grande internacionalismo no
Oriente Médio.
Do ponto de vista da Bíblia, essas cartas são os achados mais im­
portantes feitos no Egito. Eles são importantes em vários aspectos:
político, epigráfico, geográfico e histórico, pois revelam a extensão
e a natureza da comunicação diplomática daquele tempo. A situ­
ação política, que retratam na Palestina, é a de uma ausência de
poder central; governantes submissos ao rei egípcio governavam
as diferentes cidades-estado. As cartas dão a versão do cananeus
em relação à invasão da terra sob o comando de Josué. Os tabletes
lançam luz sobre a arte de escrever que não só era conhecida,
mas praticada extensiva e continuamente naquela época remota.
A língua falada em Canaã era quase idêntica ao hebreu. A grafia
de nomes próprios de origem cananita foi feita com auxílio, porque
os escribas do Egito tiveram que endereçar suas cartas a vários
vice reis egípcios espalhados pela Palestina. A característica mais
notável sobre o idioma das cartas é que este está em linguagem
cuneiforme babilônica, embora consista de governadores egípcios
que escrevem a reis egípcios. Evidentemente, o babilônico era o
idioma internacional daquele tempo. Geograficamente, as cartas
identificam um bom número de lugares ao longo da costa da Síria e
de Canãa. Quanto ao material histórico, conforme uma estimativa
quanto à quantidade, chega a cerca de metade do Pentateuco.
É suficiente dizer que, embora muitas confirmações mais positi­
vas das declarações aparentemente improváveis dos historiadores

126
O testemunho arqueológico para as escrituras

sagrados podem ser alegadas, não houve nenhuma descoberta


que fosse contrária a essas declarações. Os casos já enumerados
relatam tempos e lugares bem distantes e fornecem explicações
tão inesperadas às dificuldades que pareciam insuperáveis, que
esse testemunho não pode ser ignorado ou rejeitado. Essa história
pôde ser confirmada em tantos casos, e de maneira tão notável, por
meio de monumentos descobertos milênios após seu surgimento,
que nada poderia ser mais providencial. Seguramente, Deus cuidou
disso, para que a fé decadente de nossos dias não tivesse de tatear
na escuridão. Quando a fé de muitos estava minguando, e muitos
arautos da verdade ficaram tentados a falar de maneira incerta,
as próprias pedras clamaram com uma voz que só um surdo não
poderia ouvir. Tanto na escrita quanto na preservação da Bíblia,
contemplamos as obras das mãos de Deus.

(Nota: Uma discussão dos importantes Rolos do Mar Morto foi propositadamente
omitida, porque é ainda muito cedo para uma avaliação definitiva desses achados
significativos).

127
129

13 Ciência e fé cristã

P ro f. J a m es O r r , D .D .
Faculdade da Igreja Livre Unida, Glasgow, Escócia,
Revisado por Gerald B. Stanton, Th.D.

Em muitos círculos, a crença que circula diligentemente é que


o avanço da “ciência”, principalmente as ciências físicas — astrono­
mia, geologia, biologia e áreas semelhantes — tem causado danos,
quase que destrutivos, para as reivindicações da Bíblia e da verdade
do cristianismo. Ciência e cristianismo se opõem um ao outro. Os
seus interesses são vistos como antagônicos. Escrevem-se livros
como o Conflict Between Religion and Science [O Conflito entre
Religião e Ciência] de Draper, Warfare of Science with Theology in
Christendom [A Guerra da Ciência com a Teologia do Cristianismo\
de White, e a Finality of the Christian Religion [A Finalidade da

JA M ES ORR (1844-1913) graduou-se pela Universidade de Glasgow,


na Escócia, sua terra natal. Entre 1874 e 1891, ele foi ministro da Igreja
Presbiteriana Unida de East Bank, em Hawvich. Abandonou o pastorado
para lecionar ‘História da Igreja’ na Faculdade Teológica Presbiteriana
ünida, em Glasgow, até 1901, quando se tornou professor de
apologética e dogmática no Glasgow College (posteriormente chamado
Trinity College). Orr passou a estudar o desenvolvimento da doutrina da
igreja, que acreditava seguir uma continuidade lógica divina. Entre suas
maiores obras estão The Christian View of God and the World [A Visão
Cristã de Deus e do Mundo] (1893, publicado novamente em 1989, pela
Kregel Publication) e The Progress of Dogm a [O Progresso do Dogma]
(1897).
Os fundamentos

Religião Cristã] de Foster, para mostrar que essa guerra entre


ciência e religião sempre existiu e nunca poderá, na natureza
das coisas, cessar até que a teologia seja destruída, e a ciência se
mantenha segura e exclusiva nas mentes dos homens.
Essa, porém, não era a atitude dos mais antigos investigadores
da ciência. A maioria desses homens era formada por cristãos
piedosos. Naville, em seu livro Modem Physics [Física Moderna],
mostrou que, em tempos passados, os grandes descobridores na
ciência quase sempre eram homens piedosos. Isso foi verdade
acerca de Galileu, Kepler, Bacon e Newton; em tempos mais
recentes, foi também verdade em relação a homens como Faraday,
Brewster, Kelvin e um exército de outros. O falecido Professor
Tait, de Edimburgo, escrevendo na Internacional Review, disse: “A
assumida incompatibilidade entre religião e ciência tem sido tão
freqüente e confiantemente afirmada nos últimos tempos que. . .
chega a ser tomada como admitida pelos escritores dos principais
artigos, e é claro que essa confiança será perpetuada a muitos de
seus leitores. Mas isso tudo é um engano, e um engano tão grave
que nenhum cientista verdadeiro, na Inglaterra, pelo menos, está
livre de cometê-lo. Com algumas exceções, muito singulares, os
verdadeiros cientistas e verdadeiros teólogos de hoje não acham que
têm a necessidade de discutir o assunto”. O falecido Professor G. J.
Romanes deixou o testemunho em seu livro Thoughts on Religion
[Pensamentos sobre Religião], de que a coisa que, em grande parte,
o influenciou em seu retorno à fé foi o fato de que em sua própria
universidade, em Cambridge, quase todos os cientistas mais emi­
nentes eram cristãos declarados. “O curioso”, diz ele, “é que todos
os nomes mais ilustres estavam alinhados do lado da ortodoxia. Sir
W. Manson, Sir George Stokes, os Professores Tait, Adams, Clerk
Maxwell e Bayley — sem mencionar vários outros, menos conheci­
dos, como Routte, Todhunter, Ferrers, etc. — eram todos cristãos
declarados” (pág. 137). Pode-se afirmar que as coisas agora muda­
ram. Até certo ponto, isso talvez seja verdadeiro, mas qualquer um
que conhece as opiniões de nossos principais cientistas está ciente
de que acusar a maioria dos homens de não ser cristãos, ou de ter
sentimento descrente, é uma grande calúnia.
Se por um conflito entre ciência e religião, entendemos que um
erro doloroso tem sido muitas vezes cometido, e enganos infelizes
surgiram, tanto de um lado como de outro, no curso do progresso

130
Ciência e fé cristã

da ciência — aquelas novas teorias e descobertas, como na astro­


nomia e na geologia, têm sido vistas com desconfiança por aqueles
que pensaram que a verdade da Bíblia estava sendo afetada por tais
descobertas — e que, em alguns casos, a igreja dominante buscou
abafar o avanço da verdade por meio de perseguições — isto não
deve ser negado. E uma ilustração infeliz de como o melhor dos
homens pode, às vezes, errar em assuntos que ele entende imper­
feitamente, ou de como seus preconceitos e idéias tradicionais são
afetados. Mas isso não prova nada contra o valor das descobertas em
si, ou da compreensão mais profunda dos caminhos de Deus para
os homens que fizeram essas descobertas, ou da real contradição
entre a nova verdade e o ensino essencial da Bíblia. Ao contrário,
como uma minoria geralmente percebia, a suposta desarmonia com
as verdades da Bíblia era irreal, primeiramente por abrir caminho
para uma melhor compreensão de ambos os lados, e finalmente por
oferecer um novo panorama na contemplação do poder, sabedoria
e majestade do Criador. Jamais deve ser esquecido, também, que o
erro raramente estava todo de um lado; que a ciência, em inúmeros
casos, também tem avançado suas teorias precipitadas e sem ga­
rantia, tendo muitas vezes de retratar-se, até mesmo em relação às
suas especulações mais verdadeiras, para os limites que estavam
na mais perfeita harmonia com a verdade revelada. Se a teologia
resistiu às novidades da ciência, foi porque freqüentemente teve
boas razões para isso.
E bom, em todo caso, que esse suposto conflito entre o cris­
tianismo e ciência pudesse ser cuidadosamente provado, e que
dever-se-ia descobrir onde exatamente a verdade com respeito a
isso repousa.

Ciência e lei — milagre


Talvez seja mais em sua perspectiva geral sobre o mundo do que
em seus resultados específicos que a ciência alega estar em conflito
com a Bíblia e o cristianismo. A Bíblia é um registro da revelação
divina. O cristianismo é um sistema sobrenatural, no sentido de
uma entrada direta de Deus na palavra e na história humana para
fins benévolos, e o milagre é a essência disso. Por outro lado, o
avanço da ciência fez muito para aumentar a impressão do reinado
universal da lei natural. Seu efeito foi o de conduzir multidões, cuja
fé não está fundamentada na experiência espiritual direta, para

131
Os fundamentos

que olhassem com desconfiança para toda a idéia do sobrenatural.


Deus, assim assume-se, tem Seu próprio modo de operar, e esse é
mediante atuações secundárias que operam de maneiras absoluta­
mente uniformes; os milagres, portanto, não podem ser admitidos.
E, visto que os milagres encontram-se na Bíblia — visto que todo
o livro se estabelece sobre a idéia de uma estrutura sobrenatural
da graça — o todo deve ser rejeitado, pois está em conflito com a
mente moderna. O Professor G. B. Foster chega a ponto de declarar
que um homem dificilmente pode ser intelectualmente honesto se
hoje professa acreditar nos milagres da Bíblia.
Estaríamos exagerando ao falar dessa atual repugnância ao
milagre, e à rejeição dele na Bíblia, como se fosse algo realmente
novo. Isso é tão antigo quanto o próprio racionalismo. Encontramos
essa maneira de pensar em Spinoza, em Reimarus, em Strauss e
em inúmeros outros. DeWette e Vatke, entre os primeiros críticos
do Antigo Testamento, manifestaram isso tão fortemente, como o
fazem agora seus seguidores, e fizeram disso o pivô de sua crítica.
Isso governou os ataques sobre o cristianismo feitos na era dos
deístas. David Hume escreveu um ensaio contra os milagres, com o
qual pensou ter resolvido a questão para sempre. Mas, considerado
seriamente, será que esse ataque sobre a idéia do milagre, derivada
de nossa experiência da uniformidade das leis da natureza, pode
ser defendido? Isso, em si mesmo, não envolve uma enorme supo­
sição, e não vai contra a experiência e o bom senso? A pergunta é
bem apropriada.
Primeiro, o que é um milagre? Várias definições foram dadas,
mas aqui bastaria falar que se trata de algum efeito na natureza,
ou desvio de seu curso comum, devido à interposição de uma causa
natural. Deve-se observar que, conforme a idéia bíblica do milagre,
as ações naturais devem ser empregadas sempre que possível. Se
a abertura do Mar Vermelho, para deixar os Israelitas passar, foi
devido em parte a um vento forte que soprou, isso ocorreu devido
a uma ordem de Deus, algo que não diminui o caráter sobrenatural
do evento como um todo. As águas foram separadas por um co­
mando de Deus, e um caminho foi feito naquele momento e lugar
particular para o povo atravessar. Esses são os milagres que os
teólogos chamam de “providenciais”, nos quais, até onde se pode
ver, as ações naturais sob a direção divina bastam para produzir
o resultado. Há, porém, uma outra classe mais conspícua, como

132
Ciência e fé cristã

a limpeza instantânea do leproso, ou o ressuscitar dos mortos, na


qual as ações naturais são óbvia e completamente transcendidas.
A discussão principal continuará sobre essa classe de milagres.
Estes são milagres no sentido mais estrito, pois dependem de uma
transcendência completa das leis naturais.
O que, por conseguinte, se entende por uniformidade da natureza?
Há, naturalmente, as leis da natureza — ninguém duvida disso. E
um erro total supor que a Bíblia, embora não escrita no século vin­
te, não saiba nada a respeito de uma ordem regular e de um sistema
da natureza. O mundo é o mundo de Deus; está estabelecido por
seu decreto; Ele tem concedido a toda criatura uma natureza, com
suas restrições e limites; e todas as coisas continuam de acordo
com suas ordenações (SI 119.91). Na Bíblia, porém, a lei jamais é
vista como se tivesse uma existência independente, pois é sempre
considerada como uma expressão do poder ou sabedoria de Deus.
E isso que nos concede o ponto de vista correto para considerar
a relação da lei com o milagre. O que, portanto, entendemos por
uma “lei” da natureza? E, como a ciência admite, apenas nossa
observação registrada da ordem na qual encontramos causas
e acontecimentos relacionados a nossa experiência. Ninguém
questiona o fato de essas causas estarem assim unidas. Se elas
não estivessem, não teríamos nenhum mundo no qual poderíamos
viver. Logo, o que entendemos por “uniformidade” quanto a esse
aspecto? Não queremos dizer mais do que isto — que dadas tais
causas, operando sob tais condições, tais efeitos se seguirão. Isso é
bem verdade e provavelmente ninguém negaria isso.
Entretanto, como J. S. Mill, em sua Logic [Lógica], mostrou há
muito tempo, um milagre no sentido restrito não é uma negação de
qualquer uma dessas verdades. Um milagre não é a afirmação de
que, caso as mesmas causas estejam operando, um resultado dife­
rente será produzido. Ao contrário, é a afirmação de que uma nova
causa interveio, e essa causa é a que os teístas não podem negar ser
uma vera causa [causa verdadeira] — a vontade e o poder de Deus.
Da mesma maneira que, quando ergo meu braço ou lanço uma pe­
dra no ar, não procuro abolir a lei da gravidade, mas sim neutralizar
ou anular sua ação puramente natural pela introdução de uma nova
força transcendente; assim, mas de um modo infinitamente mais
poderoso, um milagre deve-se à interposição da primeira causa de
tudo, ou seja, o próprio Deus. O que o cientista precisa provar para

133
Os fundamentos

estabelecer sua objeção ao milagre não são simplesmente aquelas


causas naturais que operam uniformemente, mas o fato de que
não existem outras causas além das naturais; ou seja, que as causas
naturais esgotam toda a causalidade no universo. Algo, conforme
sustentamos, ele nunca poderá fazer.
E óbvio, a partir do que foi dito agora, que a pergunta real em
debate sobre o milagre não é nenhuma lei natural, mas o teísmo.
Deve-se admitir de uma vez por todas que o milagre só pode ser
discutido de modo proveitoso com base em um ponto de vista teísta
do universo. Não estamos discutindo aqui que existam visões do
universo que excluem o milagre. O ateu não pode admitir o mila­
gre, porque ele não tem Deus para operar milagres. O panteísta
não pode admitir o milagre, porque para ele Deus e natureza são
um. O deísta não pode admitir o milagre, porque ele separou
Deus e o universo de tal modo que ele jamais poderá reuni-los
novamente. A pergunta não é, “O milagre é possível em uma visão
ateísta, materialista ou panteísta do mundo?” mas, “E possível em
uma visão teísta — na visão de Deus imanente em seu mundo e,
de modos infinitos, transcendendo-o?” Não estou dizendo nada a
respeito de “honestidade intelectual”, mas me admiro da segurança
de alguns que afirmam que, para os fins mais altos e mais santos
em suas relações pessoais com suas criaturas, Deus só pode
operar dentro dos limites que a natureza impõe; que Ele não pode
agir sem a ordem natural, ou acima dela, se assim desejar. Os
milagres permanecem ou caem por sua evidência, mas a tentativa
de rejeitá-los por qualquer máxima a priori [de precedência] sobre
a uniformidade da lei natural devem inevitavelmente fracassar.
O mesmo se aplica à negação da providência ou das respostas à
oração com base na uniformidade da lei natural. Aqui não se afirma
nenhuma ruptura da ordem da natureza, mas apenas um governo
ou direção da natureza, da qual o próprio homem se utiliza dessas
leis naturais, sem rompê-las, para fins especiais: um fato do qual
dispomos de exemplos diários.

Bíblia e as ciências especiais


Chegando mais perto do alegado conflito da Bíblia, ou do
cristianismo, com as ciências especiais, uma primeira pergunta de
suma importância é, “Qual é a relação geral da Bíblia com a ciência?
Como ela procura se relacionar com os avanços do conhecimento
Ciência e fé cristã

natural?”. Aqui, deve-se temer a resposta, pois, de ambos os lados,


equívocos são freqüentemente cometidos — do lado da ciência, ao
afirmar a contradição da Bíblia com os resultados científicos, em­
bora não exista realmente nenhum; do lado dos crentes, ao exigir
que a Bíblia seja tomada como um manual de ensino das mais novas
descobertas científicas e ao tentar, por meio de métodos forçados,
ler nela esses resultados. A verdade sobre esse ponto, na verdade,
está na superfície. A Bíblia não professa claramente antecipar as
descobertas científicas dos séculos dezenove e vinte. Seu desígnio
é bem diferente; a saber, é revelar Deus, Sua vontade, Seus propósi­
tos de graça para os homens, e, como Ele está envolvido com eles,
Sua relação geral com o mundo criado, a dependência desse mundo
Nele, em todas as suas partes, e Seu governo ordenado em provi­
dência para Seus fins sábios e bons. As coisas naturais são tomadas
como estão determinadas e, em uma linguagem simples e popular,
como nós mesmos falamos diariamente delas. O mundo que a
Bíblia descreve é o mundo que os homens conhecem e vivem nele, e
é descrito como aparece, não como, em suas pesquisas recônditas,
a ciência nos revela, sua constituição interna. Sábios expositores da
Bíblia, jovens ou velhos, sempre reconheceram isto e não tentaram
levar sua linguagem mais adiante. Tomemos apenas um exemplo,
João Calvino, que escreveu, antes que o sistema coperniciano de
astronomia obtivesse aceitação comum, em seu comentário sobre
o primeiro capítulo de Gênesis, essas sábias palavras: “Aquele que
quiser aprender astronomia e outras artes recônditas”, disse ele,
“deixe-o que vá a outro lugar. Moisés escreveu coisas em estilo
popular que qualquer pessoa comum, sem instrução, mas dotada
de senso comum pode entender. . . Ele não nos chama para o
céu, ele apenas propõe coisas que estão abertas diante de nossos
olhos”. Nesse momento, com toda a luz da ciência moderna ao
nosso redor, falamos do sol, da lua e das estrelas “que nascem” e
“se põem”, e ninguém entende mal ou afirma que essa afirmação
está em contradição com a ciência. Não há nenhuma dúvida
quanto ao outro lado disto, porque é tão verdadeiro que a Bíblia,
a despeito das coisas naturais, por meio do Espírito de revelação
que a anima, agarra as coisas com tal luz — ainda com referência
a seu próprio propósito — que a mente é prevenida de ser levada
para longe das grandes verdades que a Palavra de Deus pretende
transmitir.

135
Os fundamentos

Podemos ilustrar essas posições quanto à relação da Bíblia para


com a ciência, se olharmos brevemente para a aplicação de duas
ciências, a astronomia e a geologia, em que tal conflito tem sido
freqüentemente alegado.
1. A mudança do sistema de astronomia ptolemaico para o coper-
niciano — do ponto de vista que considerava a terra como o
centro do universo para a visão moderna e indiscutivelmente
verdadeira de que a terra se move ao redor do sol, o movimento
de translação, ao redor de si mesma, o movimento de rotação,
do céu repleto de estrelas e planetas em inumeráveis órbitas
no espaço, do qual a terra é apenas um corpo celeste — tornou
necessário que se fizessem pesquisas para se descobrir porque
alguns entenderam que a linguagem da Bíblia os conduzia ao
antigo sistema. Por um tempo, houve forte oposição da parte de
muitos teólogos, como também de estudantes de ciência, em
relação às novas descobertas do telescópio. Galileu foi preso
pela igreja. Mas a verdade prevaleceu, e logo se percebeu que a
Bíblia, usando uma linguagem de aparências, não estava falando
do movimento literal do sol ao redor da terra, como nossos
almanaques modernos o fariam, os quais empregam as mesmas
formas de fala. Uma pessoa teria de viajar muito longe naqueles
dias para achar um cristão que sentisse que sua fé fora afetada
de alguma forma pela descoberta da verdadeira doutrina do
sistema solar. Ele apenas se alegrava, pois era capaz de entender
melhor a natureza, e lia sua Bíblia sem o mais leve sentido de con­
tradição. No entanto, Strauss achava que o sistema coperniciano
havia dado seu golpe de morte ao cristianismo; como Voltaire,
antes dele, tinha afirmado que o cristianismo seria derrubado
pela descoberta da lei da gravidade e não sobreviveria um século
após essa descoberta. Newton, cristão de humildes intenções e
descobridor da lei da gravidade, não teve tal receio, e o tempo
mostrou que ele, e não Voltaire, tinha razão. Esses são exemplos
dos “conflitos” do cristianismo com a ciência.
A denominada “objeção astronômica” ao cristianismo toma, mais
especialmente, a forma de aumentar a ilimitabilidade do universo
descoberto pela ciência em contraste com o interesse peculiar de
Deus no homem exibido no evangelho cristão. “Que é o homem,
que dele te lembres?” (SI 8.4). Será que é possível acreditar que
esse pequeno ponto em meio a uma infinidade de mundos fosse

136
Ciência e fé cristã

escolhido como a cena da exibição de tão tremendo amor e graça


de Deus, que podemos observar por intermédio da encarnação do
Filho de Deus, do sacrifício da cruz e da redenção do homem? O
dia é chegado quando até mesmo sentiremos que essa objeção
carrega muito peso. Aparte do fato estranho, que até este momento
parece não existir nenhuma evidência de outros mundos habitados
por inteligências racionais como o homem — nenhum planeta, ne­
nhum sistema conhecido — as pessoas conscientes admitiram que
a grandeza quantitativa não serve para medir o amor e o cuidado de
Deus; que o valor de uma alma não deve ser estimado em termos de
estrelas e planetas; que o pecado não é um fato menos terrível, mesmo
que fosse provado que esse é o único ponto do universo na qual
ele emergiu. A essência da infinidade de Deus faz com que Ele se
preocupe tanto com o pequeno como com o grande; nenhuma folha
de grama poderia ondular, ou o inseto, cuja vida dure apenas um
dia, não viveria sua breve vida sobre as asas, se Deus não estivesse
realmente presente e não cuidasse minuciosamente dele. Aposição
do homem no universo permanece, por consentimento, ou melhor,
por meio de prova, da ciência, algo completamente estranho. O elo
entre o material e o espiritual, pois ele é o único ser que parece
provido, como a Bíblia afirma que ele é, para ser o laço de unidade
na criação (Hb 2.6-9). Essa é a esperança oferecida para nós em
Cristo (Ef 1.10).
Deve-se refletir também que, embora a expansão do universo
físico seja um conceito moderno, nunca houve um tempo dentro
da igreja cristã em que Deus - Ele mesmo infinito — não tenha
sido concebido como adorado e servido por hostes incontáveis
de espíritos cooperadores. Jamais se pensou no homem como
a única inteligência da criação. O mistério do amor divino para
nosso mundo era, na realidade, tão grande antes quanto após
as descobertas das expansões estelares. Portanto, o sentido
de “conflito” , embora não o sentido de maravilha, despertado
por meio das “riquezas abundantes” da graça de Deus para o
homem em Jesus Cristo, desaparece com a realização crescente
das profundidades e alturas do amor de Deus “que excede todo
entendimento” (Ef 3.19). A esplêndida demonstração por meio
da astronomia da majestosa sabedoria e poder de Deus não pode
ser diminuída por qualquer sentimento de desarmonia com o
evangelho.

137
Os fundamentos

2. 0 que acontece com a astronomia, também acontece com as


revelações da geologia referentes à idade e à formação gradual
da terra. Aqui também dúvida e suspeita, a princípio, foram
— naturalmente devido às circunstâncias — levantadas. O
gentil Cowper escreveria em suaTask [Tarefa] sobre aqueles:
... que perfuram e incomodam
A terra sólida e dos estratos encontrados ali
Extraem um registro pelo qual aprendemos
Que Aquele que a fez e revelou sua data
Para Moisés, estava enganado quanto à idade dela.
Se a intenção do primeiro capítulo de Gênesis realmente fosse
nos dar a “data” da criação da terra e dos céus, a objeção seria
incontestável. Mas as coisas, como no caso da astronomia, são
agora melhor entendidas, e poucos ficam perturbados ao ler suas
Bíblias, porque sabemos que o mundo é imensamente mais velho
que os seis mil anos que a antiga cronologia estimou que tivesse.
A geologia é vista apenas como um estudo que ampliou nossa idéia
a respeito da imensidão e maravilha das operações do Criador ao
longo dos éons do tempo durante os quais o mundo, com suas abun­
dantes populações de peixes, pássaros, répteis, mamíferos, estava
se preparando para que o homem o habitasse — quando as monta­
nhas ainda estavam sendo elevadas, os vales sendo escavados e as
veias de metais preciosos sendo marchetadas na crosta terrestre.
A ciência, então, realmente contradiz Gênesis 1? Certamente que
não, se o que foi dito acima sobre o caráter essencialmente popular
das alusões às coisas naturais na Bíblia forem relembradas. Certa­
mente não há, na narrativa bíblica, nenhuma descrição detalhada
do processo da formação da terra em termos que antecipariam a
ciência moderna — termos que teriam sido ininteligíveis aos pri­
meiros leitores —, mas há um quadro sublime, verdadeiro à ordem
da natureza, como aos amplos fatos da sucessão geológica. Se a
Bíblia narra como Deus chamou o céu e a terra a ser, separando a
luz das trevas, o mar da terra, cobrindo o mundo com vegetação,
dando ao sol e à lua a regra que designaria o dia e a noite, fazendo
as aves para voar e os monstros marinhos para arar o fundo do
mar, criando o gado e as bestas do campo e, finalmente, fazendo
o homem, macho e fêmea, à sua própria imagem, a quem Deus
estabeleceu como regente da criação. Essa sucessão ordenada das
formas criadas, em que o homem coroa o todo; essas profundas

138
Ciência e fé cristã

idéias da narrativa, situando o mundo desde o começo em relação


direta com Deus e pondo os fundamentos de uma persistente filoso­
fia da religião. Todas essas são verdades que a ciência não subverte,
mas as confirmam de modos infinitos. Os “seis dias” podem perma­
necer como uma dificuldade para alguns, mas, se isso for mais do
que a fixação simbólica do quadro — uma grande “semana” divina
de trabalho — pode-se bem perguntar, como Agostinho o fez muito
antes que a geologia viesse a cogitar sobre que tipo de “dias” eram
esses que tiveram curso antes do sol, com as vinte e quatro horas de
medida diuturna, que foram designados para aquele fim? Nenhuma
violência é feita à narrativa quando substituímos em pensamento os
dias “eônicos” — vastos períodos cósmicos — por “dias” de nossa
escala mais estreita, os que são medidos pelo sol. Desse modo, o
último traço de aparente “conflito” desaparece.
A conclusão do assunto é, que, até o presente momento, a ciência
e as visões bíblicas de Deus, do homem e do mundo não estão em
nenhuma relação real de conflito. Cada um dos livros da Palavra de
Deus reflete luz nas páginas do outro, mas nenhum deles contradiz
o testemunho essencial do outro. A própria ciência parece agora
disposta a tomar um ponto de vista menos materialista em relação
à origem e à natureza das coisas do que fez décadas atrás, interpre­
tando a criação mais à luz do sentido espiritual. A experiência do
crente cristão, com a obra de missões em terras pagãs, fornece um
testemunho que não pode ser desconsiderado quando pensamos
sobre realidade do mundo espiritual, assim como quando conside­
ramos as forças que regeneram, transformam e procedem desse
mundo espiritual. A Deus, toda a glória!

139
141

A inspiração da Bíblia —
definição, extensão e prova

R ev. J ames M . G ray, D .D .


Reitor do Moody Bible Institute, Chicago, IL
Revisado e editado por Gerald B. Stanton, Th.D.

Nesta dissertação, a autenticidade e credibilidade da Bíblia são


assumidas, pelo que se entende: (1) que seus livros foram escritos
pelos autores a quem eles são atribuídos, e que os conteúdos são
em todos os pontos idênticos ao material que esses escritores
produziram; e (2) que esses conteúdos são merecedores de inteira

JA M ES MARTIN GRAY (1851-1935) foi designado por D. L. Moody de:


“O melhor professor da Bíblia que já encontrei”. Embora ele não fosse
convertido até aos 21 anos, Gray tornou-se um expositor notável da
Bíblia, conferencista, escritor e educador. Depois de servir como reitor
da Primeira Igreja Episcopal Reformada em Boston (1979-1894) e como
professor da Bíblia na A. J. Gordon Missionary and Training School
(agora Gordon College), ele tornou-se o reitor do Moody Bible Institute
em 1924. Foi nomeado presidente do Moody Bible Institute em 1925.
Ele tam bém foi editor da Bíblia de Referência de Scofield, viajou para
Grã Bretanha para proferir palestras, escreveu vários livros e numerosos
hinos. Alguns de seus livros importantes são How to Master the English
Bible [Como Dominar o Inglês Bíblico], Christian Worker’s Commentary
[Comentários do Obreiro Cristão], (republicado por Kregel Publications
como Home Bible Study Commentary [Comentários para o Estudo
Bíblico em Casa]), e Why a Christian Cannot Be an Euolucionist? [Por
Que um Cristão Não Pode Ser um Evolucionista?].
Os fundamentos

aceitação como declarações de fato. Se fosse preciso provar essas


suposições, a evidência seria abundante, e as penas mais capazes
tratariam disso.
Contudo, não devemos supor que devido a essas coisas serem
assumidas, sua importância relativa é subestimada. Ao contrário,
elas estão sob inspiração, e, como diz o Presidente Patton, estão na
base. Elas têm que ver com a historicidade da Bíblia, historicidade
essa que para nós é a base de sua autoridade. Nada pode ser resol­
vido até que isto seja decidido, mas ao admitir essa historicidade,
considerando tudo que diz respeito a isso, o que já podemos fazer
agora, o que pode nos interessar mais do que a pergunta: qual o
alcance dessa autoridade?
Por um longo tempo, o ataque do inimigo dirigiu nossas energias
para uma outra parte do campo, a vitória, porém, nos trará de volta
aqui novamente. As outras questões estão fora da própria Bíblia,
mas essa está dentro. Essas outras questões conduzem os homens
para longe dos conteúdos do livro para considerar como eles vie­
ram a existir; essa questão, no entanto, nos leva a considerar o que
eles são. Feliz o dia quando a investigação voltar para cá, e feliz a
geração que não esquecer a maneira como ir ao encontro dela.

Definição de inspiração
1. I n s p ir a ç ã o n ã o é r e v e l a ç ã o . Como o Dr. Charles Hodge ex­
pressou, a revelação é o ato de comunicar o conhecimento divi­
no para a mente, mas inspiração é o ato do Espírito que controla
aqueles que tornam esse conhecimento conhecido a outros. As
vezes, essas duas experiências se encontram na mesma pessoa;
na verdade o próprio Moisés é um exemplo disso, pois recebeu
uma revelação em um momento, como também a inspiração
para torná-la conhecida, contudo, é importante distinguir entre
as duas.
2. I n s p ir a ç ã o n ão é il u m in a ç ã o . Todo cristão regenerado é
iluminado pelo simples fato de que é habitado pelo Espírito
Santo, mas eles não são inspirados, mas apenas os escritores
dos Antigo e do Novo Testamentos o são. A iluminação espiritual
é sujeita a graus, alguns cristãos possuem mais do que outros;
ma a inspiração não está sujeita a graus, pois em todos os casos
é a respiração de Deus, expressando-se por intermédio da per­
sonalidade humana.
A inspiração da Bíblia — definição, extensão e prova

3. A in s p ir a ç ã o não É o g ê n io h u m a n o . 0 gênio é simplesmente


uma qualificação natural, portanto pode ser exaltado em alguns
casos; no entanto, a inspiração, no sentido em que estamos
considerando, é completamente sobrenatural. E uma dádiva
que vem sobre os escritores do Antigo e do Novo Testamentos
para dirigi-los e capacitá-los a escrever esses livros, e não vem
sobre nenhum outro homem, e em nenhum outro momento, e
para nenhum outro propósito. Nenhum gênio humano jamais
introduziu seus escritos com a fórmula, “Assim disse o Senhor”,
ou palavras que produzam esse efeito, mas essa expressão é
comum para os autores da Bíblia. Nenhum gênio humano jamais
concordou com qualquer outro gênio humano quanto às coisas
que os homens mais querem conhecer e, portanto, por mais
genial que fosse, essa inspiração difere não apenas em grau,
mas em tipo, da inspiração das Escrituras.
4. Quando falamos que o Espírito Santo vem sobre os homens para
compor os livros, seria preciso entender que o objeto não é a
inspiração dos homens, mas os livros — não os escritores, mas os
escritos. Em outras palavras, sua finalidade está no relato, e não
no instrumento humano que o fez.
Por exemplo: Moisés, Davi, Paulo e João não eram sempre e
em qualquer lugar inspirados, pois, assim, teriam sempre e em
todo lugar sido infalíveis e inerrantes, o que não é o caso. Eles às
vezes cometiam enganos em pensamento e erravam em relação à
conduta. No entanto, eles podem ter sido falíveis e errôneos como
homens rodeados de fraquezas como nós mesmos, tal falibilidade
ou errância, no entanto, jamais, sob qualquer circunstância, passou
a seus escritos sagrados.
Isso, às vezes, apresenta uma grande classe de objeções contra
a doutrina da inspiração — aquelas, por exemplo, associadas à
questão sobre se a Bíblia é a Palavra de Deus ou apenas contém
aquela Palavra. Se por essa afirmação se quer dizer que Deus falou
cada palavra na Bíblia, e, conseqüentemente, que cada palavra é
verdadeira, a resposta deve ser não\ mas se quer dizer que Deus
causou cada palavra na Bíblia, verdadeira ou falsa, a ser registrada,
a resposta deve ser sim. Na Bíblia há palavras de Satanás, palavras
de falsos profetas, palavras dos inimigos de Cristo, mas mesmo
assim elas são palavras de Deus, não no sentido de que Ele as
proferiu, mas no sentido de que Ele as causou para que fossem

143
Os fundamentos

registradas, o registro de palavras infalíveis e inerrantes para nosso


proveito. Nesse sentido, a Bíblia não contém meramente a Palavra
de Deus, ela ê a Palavra de Deus.
5. Quanto a essa definição, devemos declarar que o registro por
cuja inspiração combatemos é o registro original — os originais
ou pergaminhos de Moisés, Davi, Daniel, Mateus, Paulo ou
Pedro, conforme for o caso, e não qualquer tradução particular
ou traduções deles. Não há tradução absolutamente sem erro,
nem poderia haver, levando-se em conta as fraquezas dos
copistas humanos, a menos que fosse do agrado de Deus exe­
cutar um perpétuo milagre para assegurar essa infalibilidade
dos copistas.
Mas isso torna nula nossa argumentação? Alguns diriam que
sim, e eles argumentariam perspicazmente que insistir na iner-
rância de um pergaminho que nenhum ser vivo jamais viu é uma
questão meramente acadêmica e sem valor. Mas será que eles não
percebem que o caráter e a perfeição da Trindade estão envolvidas
nessa inerrância?
Alguns anos atrás um teólogo “liberal”, depreciando essa
discussão como se não valesse a pena, observou que era uma
questão de pouca importância se um par de calças compridas fosse
originalmente perfeita, mas agora estivesse rasgada. Ao que o valo­
roso e engenhoso David James Burrell respondeu, que poderia ser
uma questão de pouca importância para aquele que veste as calças
compridas, mas para o alfaiate que as fez seria muito importante
saber que elas não deixaram sua loja daquele modo. E, a seguir,
acrescentou que se o Altíssimo têm de criar entre os cavaleiros das
tesouras, Ele poderia pelo menos ser considerado como o melhor
do grupo, e o único que não falha em nenhum ponto e não envia
nenhum trabalho imperfeito.
Mas se essa questão fosse apenas puramente especulativa e
sem valor, o que seria da ciência da crítica bíblica pela qual apro­
priadamente fixamos tal propriedade hoje? Acaso os construtores
montam pilares em terra macias, se eles nunca esperam tocar a
base? Acaso os estudiosos disputam sobre o texto das Escrituras
e examinam minuciosamente a história e o significado de palavras
únicas, “a coloração delicada do modo, tempo e sotaque”, se no fim
não há aproximação a um absoluto? Como o Dr. George H. Bishop
diz, será que nossa concordância, toda vez que a utilizamos, não

144
A inspiração da Bíblia — definição, extensão e prova

fala em alto e bom som a nós mesmos de um pergaminho que um


dia foi inerrante? Por que nós não possuímos concordâncias para as
mesmas palavras de outros livros?
Tampouco, aquele pergaminho original é uma coisa tão remota,
como alguns supõem. Será que o número e a variedade dos ma­
nuscritos e versões existentes não tornam comparativamente fácil
chegar a um conhecimento de seu texto, e a erudição competente
de hoje não afirma que quanto ao Novo Testamento, pelo menos,
temos em novecentos e noventa e nove casos entre mil a mesma
palavra do texto original? Caso uma consideração sincera seja dada
a essas coisas, será possível, desse modo, ver que não estamos pro­
curando um fantasma ao lutar pela defesa dos originais inspirados
da Bíblia.

Extensão da inspiração
1. A INSPIRAÇÃO DAS ESCRITURAS INCLUI O TODO E CADA UMA DAS
partes d e l a . Há alguns que negam isso e limitam a inspiração
apenas às porções proféticas, às palavras de Jesus Cristo, e,
conforme afirmam, aos ensinos espirituais mais profundos
das epístolas. Os livros históricos, conforme o critério desses
estudiosos, servem como um exemplo e, portanto, não precisam
ser inspirados, porque os dados podiam ser obtidos de fontes
naturais.
A Bíblia, porém, não conhece nenhuma limitação em si mesma,
como veremos: “Toda a Escritura é inspirada por Deus” (2Tm
3.16). Os dados históricos, a maioria deles pelo menos, poderiam
ter sido obtidos de fontes naturais, mas o que dizer da orientação
sobrenatural requerida em sua seleção e narração? Compare, por
exemplo, os relatos da criação, da Queda, do dilúvio, etc., encon­
trados em Gênesis com aqueles já descobertos por escavações em
terras bíblicas. Não é verdade que os resultados das escavações e
da pá apontam para o mesmo original, a Bíblia, embora a frivolida­
de e o absurdo dêem muitas vezes evidências do modelo humano e
pecador pelo qual elas ocorreram? Será que não mostram a neces­
sidade de algum poder diferente daquele que o homem possui para
conduzi-lo para fora do labirinto ou do erro em direção à clareira da
verdade?
Além disso, não são os livros históricos de algum modo os mais
importantes na Bíblia? Não é verdade que a doutrina do pecado

145
Os fundamentos

necessita deles para o ponto de partida do relato da Queda? Será


que poderíamos entender tão satisfatoriamente a justificação se
não tivéssemos a história do pacto de Deus com Abraão? E o que
dizer do sacerdócio de Cristo? Despreze o livro de Levítico, e o que
será feito dos hebreus? O livro os Atos dos apóstolos é histórico,
mas será que podemos desconsiderar sua inspiração?
Na verdade, os livros históricos têm o testemunho mais forte,
quanto à importância que têm, em outras partes da Bíblia. Isto
aparecerá mais particularmente ao prosseguirmos, mas, agora, por
exemplo, examine o uso que Cristo fez de Deuteronômio em seu
conflito com o tentador. Ele supera o inimigo três vezes, ao citar
aquele livro histórico sem qualquer nota ou comentário. Será que
não fica difícil acreditar que nem Ele nem Satanás o considerassem
inspirado?
Assim, sem ir mais adiante, podemos dizer que é impossível
assegurar a infalibilidade religiosa da Bíblia — o que aqueles que
objetam a isso dizem ser necessário — se excluímos a história da
Bíblia da esfera de sua inspiração. Mas se incluímos a história da
Bíblia, devemos inclui-la toda, pois quem seria competente para
separar suas partes?
2 . A in s p ir a ç ã o não in c l u i a p e n a s t o d o s o s l iv r o s d a B íb l ia em
GERAL, MAS EM DETALHES, A FORMA ASSIM COMO A ESSÊNCIA, A
palav ra a s s im c o m o o p e n s a m e n t o . Isso às vezes é chamado
de teoria verbal da inspiração e alguns objetam veementemente
a essa teoria, pois é muito mecânica, assim como degrada os
escritores, considerados mais como máquinas, e cuja tendência
é a de formar céticos, e toda essa coisa.
Esta última observação, porém, não é tão alarmante como
parece. Diz-se que a doutrina da retribuição eterna do mau nos
torna céticos, como também o mesmo acontece com uma expiação
vicária, para não mencionar outras revelações das Sagradas Escri­
turas. A mente natural não leva a nenhuma dessas coisas. Mas se
não estamos preparados para fazer concessões em um caso por
uma determinada razão, por que nos pediriam para fazê-las em
outros? Contudo, não estamos insistindo sobre nenhuma teoria
que exclui completamente o elemento humano na transmissão
da Palavra Sagrada. Como Dr. Henry B. Smith diz, “Deus fala por
intermédio da personalidade, assim como pelos lábios de Seus
mensageiros”, e podemos verter naquela palavra “personalidade”

146
A inspiração da Bíblia -— definição, extensão e prova

tudo o que forma essa personalidade — a época na qual a pessoa


viveu, o ambiente, o grau de cultura, o temperamento e tudo mais.
Estaríamos limitando o Santo de Israel, se disséssemos que ele é
incapaz de fazer algo sem tornar o ser humano em um autômato.
Na verdade, será que Ele, que criou o homem como um ser livre,
não deu a esse ser a oportunidade de modelar seus pensamentos
em formas de fala que expressam a inerrância de Sua vontade, sem
destruir aquilo que Ele fez?
Na verdade, em que reside a livre atuação do homem, em sua
mente ou em sua boca? Devemos dizer que ele é livre enquanto
Deus controla seu pensamento, mas que ele se torna uma mera
máquina, quando esse controle se estende à expressão de seu
pensamento?
Em última análise, é a própria Bíblia que tem de resolver a
questão de sua inspiração e a extensão desta, e para isso chegamos
à consideração da prova, mas ainda podemos nos permitir uma
questão final. Será que Deus pode dar um pensamento ao homem
sem as palavras que revestem esse pensamento? Não são os dois
inseparáveis, tanto quanto “uma soma e seus números, ou uma
melodia e suas notas”?. Houve algum caso conhecido na história
humana em que uma mente saudável foi capaz de criar idéias
sem expressá-las por meio de sua própria percepção? Em outras
palavras, como Dr. A. J. Gordon certa vez observou: “Negar que o
Espírito Santo fala nas escrituras é uma proposição inteligível, mas
ao admitir que Ele fala, torna-se impossível saber o que Ele diz, a
não ser que tenhamos suas palavras”.

Prova de inspiração
1. Ain s p ir a ç ã o d a B íb l ia é p ro v ada p e l a f il o s o f ia , ou p e l o q u e
PODE SER CHAMADO DE A NATUREZA DO CASO. A proposição pode
ser declarada assim: A Bíblia é a história da redenção da raça,
ou do lado do indivíduo, uma revelação sobrenatural da vontade
de Deus aos homens para sua salvação. No entanto, essa história
foi dada a certos homens de uma época para ser transmitida por
escrito para outros homens de épocas diferentes. Agora todos
os homens experimentam a dificuldade para fazer reflexões fiéis
de seus pensamentos a outros devido ao pecado, ignorância,
memória defeituosa e a inexatidão, sempre incidente, no uso do
idioma.

147
Os fundamentos

Portanto, pode-se facilmente deduzir que se a revelação deve


ser comunicada precisamente da forma como originalmente foi
recebida, o mesmo poder sobrenatural é requerido tanto em um
caso como no outro. Isso foi suficientemente tratado acima e não
precisamos entrar novamente em detalhes.
2 . P ode s e r pro v a d o p e l a h is t ó r ia e n a t u re za d a B íb l ia , o u
seja, por tudo aquilo que foi assumido quanto à sua autenticidade
e credibilidade. Tudo aquilo que prova estas coisas, prova sua
inspiração.
Para emprestar, em parte, a linguagem da Confissão de West­
minster, “a sublimidade de seu assunto, a eficácia de sua doutrina,
a unidade de suas várias partes, a majestade de seu estilo e a
extensão e perfeição de seu desígnio”, tudo isso indica a divindade
de sua origem.
Quanto mais pensamos nisso tanto mais devemos nos convencer
de que os homens, sem a ajuda do Espírito de Deus, não poderiam
ter concebido, nem reunido, nem preservado em sua integridade
esse precioso depósito conhecido como os Oráculos Sagrados.
3 . As d e c l a r a ç õ e s da p r ó p r ia B íb l ia e as co n c lu sõ e s a s e r e m
d e l a s t ir a d a s são a prova m a is f o r t e . Esse raciocínio não é
circular, como alguns podem pensar. No caso de um homem,
por exemplo, em que não há nenhuma dúvida sobre sua vera­
cidade e nenhuma hesitação é sentida ao se aceitar o que ele
diz sobre si mesmo; e visto que a Bíblia se manifestou para ser
verdadeira em suas declarações de fato por meio de evidência
inexpugnável, será que não podemos aceitar seu testemunho em
seu próprio favor?
Tomemos o argumento de Jesus Cristo como um exemplo.
Ele ficava satisfeito ao ser testado pelas profecias a Seu respeito
que foram feitas antes Dele, e o resultado foi o estabelecimento
definitivo de Sua afirmação sobre ser o Messias. Esse sistema
complexo de profecias, tornando a conspiração ou a falsificação
impossíveis, é a prova incontestável de que Ele era o que ele
afirmou ser.
E assim com a Bíblia. O caráter de seus conteúdos, a unidade
de suas partes, o cumprimento de suas profecias, os milagres que
a atestam, os efeitos que tem realizado na vida das nações e dos
homens, tudo isto mostra que é ela divina e, portanto, que pode ser
crida por aquilo que diz de si mesma.

148
A inspiração da Bíblia — definição, extensão e prova

a) Argumento para o Antigo Testamento


A começar com o Antigo Testamento,
(1) considere como os escritores falam da origem de suas mensa­
gens. Dr. James H. Brookes é autoridade para dizer que a frase,
“Assim diz o Senhor”, ou seu equivalente, é usada pelos escritores
duas mil vezes. Suponhamos que eliminemos, em cada exemplo,
essa frase e seu contexto necessário do Antigo Testamento, fica
difícil imaginar quanto do Antigo Testamento permaneceria.
(2) Considere como as expressões dos escritores do Antigo Testa­
mento são introduzidas no Novo. Tomemos Mateus 1.22 como
exemplo: “Ora, tudo isto aconteceu para que se cumprisse o
que fora dito pelo Senhor por intermédio do profeta”. Não era o
profeta quem falava, mas o Senhor quem falava pelo profeta.
(3) Observemos como Cristo e seus apóstolos consideram o
Antigo Testamento. Jesus disse: “Não penseis que vim revogar
a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir”
(Mt 5.17). “A Escritura não pode falhar” (Jo 10.35). Ele às vezes
usou palavras únicas para fundamentar doutrinas importantes,
duas vezes em Mateus 22, nos versículos 31,32 e 42-45. Os após­
tolos fazem o mesmo (ver G13.16; Hb 2.8,11 e 12.26,27).
(4) Consideremos o que os apóstolos ensinam diretamente sobre
o assunto. Pedro nos conta que “nunca jamais qualquer profecia
foi dada por vontade humana; entretanto, homens santos falaram
da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21).
“Profecia” aqui se aplica à palavra escrita como está indicado
noversículo precedente, e significa não apenas a predição dos
eventos, mas as declarações de qualquer palavra de Deus sem
referência ao tempo passado, presente ou futuro. Na verdade, o
que Pedro declara é que a vontade do homem não tem nada que
ver com qualquer parte do Antigo Testamento, mas que todo ele,
de Gênesis a Malaquias, foi inspirado por Deus.
Naturalmente, Paulo diz o mesmo, em uma linguagem ainda
mais clara, em 2Timóteo 2.16 “Toda a Escritura é inspirada por
Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção,
para a educação na justiça”. A frase “inspirada por Deus” significa
literalmente soprada por Deus. Todo o Antigo Testamento é soprado
por Deus, porque é à esta parte da Bíblia que a citação se refere
em particular, visto que o Novo Testamento ainda não era muito
conhecido.

149
Os fundamentos

Como esse versículo é um pouco diferente na versão revisada


e corrigida, enfatizaremos um pouco mais o que ele diz. A RC
traz, “Toda escritura divinamente inspirada é proveitosa”, mas o
chicaneiro está disposto a dizer que, portanto, parte da escritura
pode ser inspirada, e outra, pode não ser, e que o que é proveitoso
estende-se apenas à parte inspirada, e não à outra parte.
Mas aparte do fato de que Paulo dificilmente seria culpado de
um truísmo tão fraco como esse, pode se dizer, primeiramente,
em resposta à essa objeção que a tradução da versão revisada e
atualizada não só refere-se à Escritura mais consistente, mas está
mais de acordo com o original grego. Vários dos melhores estu­
diosos do grego desse período afirmam isto, incluindo alguns dos
próprios revisores que não votaram por essa mudança no texto. Em
segundo lugar, até mesmo os revisores colocam isso na margem
como se fosse praticamente igual em autoridade com a tradução
que preferem, e que o leitor, se assim desejar, pode escolhê-la. Há,
no entanto, alguns cristãos piedosos que gostariam de manter a
tradução da versão revisada e corrigida como se fosse mais forte
do que a da versão revisada e atualizada, e que interpolariam uma
palavra para que viesse significar, “Toda Escritura (porque) divina­
mente inspirada é proveitosa”. Cremos que tanto Gaussen quanto
Wordsworth aceitam esse ponto de vista, e os dois, por assim dizer,
são leais defensores da inspiração integral das Escrituras.
b) Argumento para o Novo Testamento
As vezes, há alguns que afirmam que, embora o argumento
para a inspiração do Antigo Testamento seja forte e convincente,
em relação ao Novo Testamento essa inspiração é apenas indireta.
“Nenhum dos evangelistas nos diz que ele é inspirado”, afirma um
certo professor de teologia, “como também nenhum escritor de
uma epístola, a não ser Paulo, menciona ser inspirado”. Enquanto
nos preparamos para discutir esta afirmação, reflitamos primeira­
mente que a inspiração do Antigo Testamento já foi assegurada,
então por que uma evidência semelhante deveria ser requerida
para o Novo Testamento? Quem quer que seja competente para
falar como autoridade sobre a Bíblia sabe que a unidade do Antigo
e do Novo Testamentos é a mais forte demonstração de sua fonte
comum. Eles são vistos não como dois livros, mas como duas partes
de um mesmo livro.

150
A inspiração da Bíblia — definição, extensão e prova

É algo similar ao que é apresentado pelo Dr. Gaussen, em seu


exaustivo Theopneustia (agora publicado por Moody Press sob título,
Inspiration ofthe Holy Scripture [Inspiração das Sagradas Escrituras]),
como argumento para a inspiração do Novo Testamento.
(1) O Novo Testamento é posterior e, por essa razão, a revelação
mais importante dos dois, conseqüentemente se o primeiro era
inspirado, certamente isso deve ser verdadeiro quanto ao último.
Os versículos de abertura do primeiro e do segundo capítulos
de Hebreus sugerem claramente isto: “Havendo Deus, outrora,
falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profe­
tas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho [...] Por esta razão,
importa que nos apeguemos, com mais firmeza, às verdades
ouvidas, para que delas jamais nos desviemos”.
Esta conclusão é tornada ainda mais conclusiva pela circuns­
tância de que o Novo Testamento às vezes explica, às vezes prova
e às vezes até mesmo revoga ordenações do Antigo Testamento.
Veja Mateus 1.22, 23 para um exemplo do primeiro caso, Atos dos
apóstolos 13.19 a 39 para ilustrar o segundo, e Gálatas 5.6 para
exemplificar o terceiro. Seguramente, estas coisas não seriam
verdadeiras se o Novo Testamento não tivesse igual e, em um certo
sentido, até mesmo maior autoridade do que o Antigo.
(2) Os escritores do Novo Testamento ocupam uma posição
igual ou até mais alta do que os do Antigo. O fato de que eram
profetas fica evidente em alusões como em Romanos 16.25-27, e
Efésios 3.4, 5. Mas que eles eram mais do que profetas fica claro
pelo fato de que sempre que profetas e apóstolos são menciona­
dos juntos no Novo Testamento, estes sempre são mencionados
primeiro do aqueles (ver ICo 12.28; Ef 2.20; 4.11). É verdade
também que os escritores do Novo Testamento tinham uma
missão mais alta do que aqueles do Antigo, visto que eles
foram enviados por Cristo, como Ele tinha sido enviado pelo Pai
(Jo 20.21). Eles deviam pregar não para uma única nação (como
Israel), mas para todo o mundo (Mt 28.19). Eles receberam as
chaves do reino dos céus (Mt 16.19) e seriam recompensados de
modo preeminente na regeneração (Mt 19.28). Considerações e
comparações como essas não devem ser subestimadas, quando
estivermos avaliando a autoridade de quem as escreveu.
(3) Os escritores do Novo Testamento eram especialmente
qualificados para sua obra, como vemos em Mateus 10.19, 20;

151
Os fundamentos

Marcos 13.11; Lucas 12.2; João 14.26 e 16.13, 14. Pode-se notar
que, em alguns casos, a inspiração de caráter mais absoluto foi
prometida em relação ao que eles deveriam falar — a conclusão
é que havia garantia de que seriam guiados da mesma forma em
relação ao que escrevessem. As palavras faladas eram limitadas
e temporárias em sua esfera, mas a escrita cobriria toda a gama
da revelação e duraria para sempre. Se em um caso eles eram
inspirados, quanto mais no outro.
(4) Os escritores do Novo Testamento afirmam ter recebido
inspiração divina. Ver Atos dos apóstolos 15.23-29, em que,
especialmente no versículo 28, há o registro de que Tiago disse:
“Pois pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor
maior encargo além destas coisas essenciais”. Afirma-se aqui
muito claramente que o Espírito Santo é o escritor real da carta
em questão e simplesmente se utiliza os instrumentos humanos
para Seu propósito. Acrescente-se a isto ICoríntios 2.13, em que
Paulo diz: “Disto também falamos, não em palavras ensinadas
pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito, conferindo
coisas espirituais com espirituais”, ou como a Nova Versão
Internacional propõe, “interpretando verdades espirituais para
os que são espirituais”. Em ITessalonicenses 2.13, o mesmo es­
critor diz: “Outra razão ainda temos nós para, incessantemente,
dar graças a Deus: é que, tendo vós recebido a palavra que de
nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de
homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual,
com efeito, está operando eficazmente em vós, os que credes”.
Em 2Pedro 3.2, o apóstolo equipara suas próprias palavras à
dos profetas do Antigo Testamento, e nos versículos 15 e 16
do mesmo capítulo faz o mesmo com os escritos de Paulo,
classificando-os como “as demais escrituras”. Finalmente, em
Apocalipse 2.7, embora seja o apóstolo João quem escreve, ele
está autorizado a exclamar: “Quem tem ouvidos, ouça o que o
Espírito diz às igrejas”, e assim por diante ao longo das epístolas
para as sete igrejas.
c) Argumento para as Palavras
A evidência de que a inspiração inclui a forma como também
a substância das Sagradas Escrituras, a palavra, assim como o
pensamento, podem ser reunidas da seguinte maneira.

152
A inspiração da Bíblia — definição, extensão e prova

(1) Certamente houve algumas ocasiões quando as palavras foram


dadas a agentes humanos. Tomemos o exemplo de Balaão (Nm
22.38; 23.12,16). E claro que esse profeta egoísta pensou, ou seja,
desejou falar algo diferente do que ele disse, mas foi obrigado
a falar a palavra que o Senhor colocou em sua boca. Há duas
testemunhas incontrovertíveis em relação a esse fato; uma, o
próprio Balaão, e a outra, Deus.
Vejamos Saul (ISm 10.10), ou em um período posterior, seus
mensageiros (19.20-24). Ninguém afirmará que as palavras aqui
não foram inspiradas. E também Caifás (Jo 11.49-52), de quem se
diz expressamente que quando ele profetizou que aquele homem
deveria morrer pelo povos, “ele não disse isto de si mesmo”. Quem
acredita que Caifás quis dizer isso, ou realmente soube o significado
do que ele disse? Isto se harmoniza inteiramente com a promessa de
Cristo aos Seus discípulos em Mateus 10.19,20, e em outras partes.
“E, quando vos entregarem, não cuideis em como ou o que haveis
de falar, porque, naquela hora, vos será concedido o que haveis de
dizer, visto que não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai
é quem fala em vós”. Marcos 13.11 é ainda mais enfático: “Quando,
pois, vos levarem e vos entregarem, não vos preocupeis com o que
haveis de dizer, mas o que vos for concedido naquela hora, isso falai;
porque não sois vós os que falais, mas o Espírito Santo”.
Vejamos as circunstâncias do dia de Pentecostes (At 2.4-11),
quando os discípulos “passaram a falar em outras línguas, segundo
o Espírito lhes concedia que falassem”. Partos, medos, elamitas,
os habitantes da Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, Ponto e das
províncias da Ásia, da Frigia, da Panfília, do Egito e das regiões
da Líbia, nas imediações de Cirene; romanos, cretenses e árabes,
todos testemunharam: “Como os ouvimos falar em nossas próprias
línguas as grandezas de Deus?” Essa inspiração não incluiu as
palavras? Na verdade, não excluem o pensamento? Que exemplo
mais claro poderia ser desejado?
Agora, considere a declaração de lPedro 1.10,11, em que ele
fala daqueles que profetizaram da graça que viria: “Foi a respeito
desta salvação que os profetas indagaram e inquiriram, os quais
profetizaram acerca da graça a vós outros destinada, investigando,
atentamente, qual a ocasião ou quais as circunstâncias oportunas,
indicadas pelo Espírito de Cristo, que neles estava, ao dar de ante­
mão testemunho sobre os sofrimentos referentes a Cristo e sobre
as glórias que os seguiriam”.

153
Os fundamentos

Se víssemos um estudante que, após ter tomado nota da


conferência de um filósofo profundo, estava agora estudando
diligentemente para compreender o sentido do discurso que ele
havia escrito, deveríamos simplesmente perceber que ele era um
aluno, e não o mestre; que ele não tinha nada que ver com a origem
dos pensamentos ou das palavras da conferência, mas era mais um
discípulo, cuja intenção era entender o que ele havia transcrito, e
assim ser capaz de transmitir o conteúdo para os outros.
“E quem pode negar que esse é o quadro exato que temos nesta
passagem de Pedro? Aqui estavam escritores inspirados estudando
o significado que eles mesmos haviam escrito. Com toda permissão
possível para as peculiaridades humanas dos escritores, eles devem
ter sido repórteres do que ouviram, mais do que formuladores do
que aquilo que tinham sido feitos para entender” (A. J. Gordon, The
Ministry ofthe Spirit [O Ministério do Espírito], pp. 173,174).
(2) A Bíblia ensina claramente que a inspiração se estende a suas
palavras. Falamos de Balaão como alguém que proferiu aquilo
que Deus pôs em sua boca, mas a mesma expressão é usada pelo
próprio Deus com referência a seus profetas. Quando Moisés se
desculpava, porque não era eloqüente, para não fazer o serviço
que lhe era pedido, aquele que fez a boca do homem disse: “Vai,
pois, agora, e eu serei com a tua boca e te ensinarei o que hás de
falar” (Êx 4.10-12). E o comentário do Dr. James H. Brookes é
muito pertinente: “Deus não disse: ‘Eu serei com a tua mente, e
te ensinarei o que hás de pensar’; mas: “Eu serei com a tua boca
e te ensinarei o que hás de falar’. Isto explica por que, quarenta
anos depois, Moisés disse a Israel: ‘Nada acrescentareis à pa­
lavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis
os mandamentos do SENHOR, vosso Deus, que eu vos mando’
(Dt 4.2)”. Sete vezes Moisés nos fala que as tábuas de pedra que
contêm os mandamentos eram a obra de Deus, e o que estava
escrito fora escrito e gravado nas tábuas por de Deus (Êx 31:
16).
Passando do Pentateuco aos livros poéticos, encontramos David
dizendo: “O Espírito do Senhor fala por meu intermédio, e a sua
palavra está na minha língua” (2Sm 23.1,2). Ele também não disse
que Deus pensou por ele, mas que falou por intermédio dele.
Chegando aos profetas, Jeremias confessa que, como Moisés,
recuou da missão que lhe foi designada e pela mesma razão. Ele era

154
A inspiração da Bíblia — definição, extensão e prova

uma criança e não podia falar. “Depois, estendeu o Se n h or a mão,


tocou-me na boca. E o Se n h or me disse: Eis que ponho na tua boca
as minhas palavras” (Jr 1.6-9).
Tudo isso substancia a declaração de Pedro citada anteriormen­
te, de que “nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade
humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, mo­
vidos pelo Espírito Santo”. Seguramente, se a vontade do homem
não teve nada que ver com a profecia, ele não poderia ter liberdade
na seleção das palavras.
Isso vale para o Antigo Testamento. Quando alcançamos o Novo,
temos, como já vimos, a mesma precisão infalível e verbal garantida
aos apóstolos pelo Filho de Deus. E temos os apóstolos afirmando
isso, como quando Paulo em ICoríntios 2.12,13, distingue entre as
“coisas”, ou os pensamentos que Deus lhe deu, e as palavras nas
quais ele as expressou, insistindo na divindade de ambos: “Disto
também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria hu­
mana, mas ensinadas pelo Espírito”. Em Gálatas 3.16, seguindo o
exemplo do seu Mestre divino, ele emprega não apenas uma única
palavra, mas uma única carta como a base de um argumento para
uma grande doutrina. A bênção de justificação que Abraão recebeu
tornou-se a bênção do crente em Jesus Cristo. “Ora, as promessas
foram feitas a Abraão e ao seu descendente. Não diz: E aos descen­
dentes, como se falando de muitos, porém como de um só: E ao teu
descendente, que é Cristo”.
O escritor da epístola aos Hebreus fundamenta-se em um
argumento semelhante sobre a palavra “todo” no capítulo 1.8, na
palavra “todos” em 1.11, e na frase “ainda uma vez por todas” em
12.26, 27.
(3) O argumento mais singular para a inspiração das palavras
das Escrituras é a relação que Jesus Cristo mantém com elas.
Em primeiro lugar, ele mesmo foi inspirado quanto às suas
próprias palavras. Na primeira referência ao seu ofício profético
(Dt 18.18), Jeová diz: “Suscitar-lhes-ei um profeta do meio de
seus irmãos, semelhante a ti, em cuja boca porei as minhas
palavras, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar”. Essa era
uma limitação sobre suas declarações que Jesus reconheceu em
todos os lugares. “As palavras que eu vos tenho dito são espírito
e são vida”; “de modo que as coisas que dele [de Deus] tenho
ouvido, essas digo ao mundo”; “mas falo como o Pai me ensi­
nou”; “a mim que vos tenho falado a verdade que ouvi de Deus”;

155
Os fundamentos

“Porque eu não tenho falado por mim mesmo, mas o Pai, que
me enviou, esse me tem prescrito o que dizer e o que anunciar”;
“As coisas, pois, que eu falo, como o Pai mo tem dito, assim falo”
(Jo 6 :63; 8 :26, 28, 40; 12 :49, 50).
Essa idéia é ainda mais impressionante, quando lemos sobre a
relação do Espírito Santo para com o Deus-homem. “O Espírito do
Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os
pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restau­
ração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos”; “até
ao dia em que, depois de haver dado mandamentos por intermédio
do Espírito Santo aos apóstolos que escolhera”; “Revelação de Jesus
Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos”; “Estas
coisas diz aquele que conserva na mão direita as sete estrelas e que
anda no meio dos sete candeeiros de ouro”; “Quem tem ouvidos,
ouça o que o Espírito diz às igrejas” (Lc 4.18; At 1.2; Ap 1.1; 2.1,11).
Se a Palavra encarnada precisou da unção do Espírito Santo para
dar aos homens a revelação que recebeu do Pai em cujo seio habita,
e se a atuação do mesmo Espírito se estendeu às palavras que falou
ao pregar o evangelho aos mansos, quanto mais essas coisas devem
ser desse modo no caso de homens comuns quando engajados no
mesmo serviço? Com que razão alguém pode afirmar que qualquer
escritor do Antigo ou do Novo Testamentos estava preocupado com
suas palavras e que não sentia falta dessa ação do Espírito Santo?”
(The New Apologetic [A Nova Apologética], pp. 67, 68).
Em segundo lugar, Cristo usou as Escrituras como se elas, em
relação às suas palavras, fossem inspiradas. Em Mateus 22.31,32,
ele substancia a doutrina da ressurreição contra o ceticismo dos
saduceus, enfatizando o tempo presente do verbo “ser”, ou seja, a
palavra “sou”, na linguagem do Senhor a Moisés na sarça ardente.
Nos versículos 42 a -45, do mesmo capítulo, ele faz o mesmo
em relação à própria deidade, fazendo alusão ao segundo uso da
palavra “Senhor” no Salmo 110. “Disse o S e n h o r ao meu senhor.
[...] Se Davi, pois, lhe chama, como é ele seu filho?” (Mt 22.44,45).
Em João 10.34-36, ele se justifica da acusação de blasfêmia dizen­
do: “Não está escrito na vossa lei: Eu disse: sois deuses? Se ele
chamou deuses àqueles a quem foi dirigida a palavra de Deus, e a
Escritura não pode falhar, então, daquele a quem o Pai santificou e
enviou ao mundo, dizeis: Tu blasfemas; porque declarei: sou Filho
de Deus?”.

156
A inspiração da Bíblia — definição, extensão e prova

Em Mateus 4, vemos Jesus superando o tentador no deserto, ao


fazer três citações de Deuteronômio sem qualquer explicação ou
comentário, exceto: “Está escrito”. Com referência a isso, Adolphe
Monod diz: “Não sei nada da história da humanidade, nem mesmo
na área da revelação divina, que prova mais claramente que isto é a
inspiração das Escrituras. Veja bem! Jesus Cristo, Senhor do céu e
da terra, chama para Sua ajuda naquele momento solene o Seu servo
Moisés? Aquele que fala do céu se fortalece contra as tentações do
inferno pela palavra daquele que falou da terra? Como podemos
explicar este mistério espiritual, que inverte maravilhosamente a
ordem das coisas, se para Jesus as palavras de Moisés não eram as
palavras de Deus mais do que as dos homens? Como explicaremos
isso seJesus não estivesse completamente cônscio que homens santos
de Deus falaram como se fossem movidos pelo Espírito Santo?... Per­
mita que o que foi suficiente para ele baste para você. Não tema que
a pedra que sustentou o Senhor na hora de sua tentação e angústia
oscile, porque você se apóia muito pesadamente sobre nela.”
Em terceiro lugar, Cristo ensina que as Escrituras são inspira­
das em relação às palavras contidas ali. No Sermão da Montanha
ele disse: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não
vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo:
até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará
da Lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5.17-18).
Aqui está confirmado o testemunho por um juramento, porque
“em verdade” nos lábios do Filho do Homem possui essa força. Ele
afirma a indestrutibilidade da lei, não de sua substância somente,
mas de sua forma, não do pensamento, mas da palavra.
“Nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se
cumpra” O “i” significa o yod, a menor letra do alfabeto hebraico,
enquanto o “til” significa o chifre, uma curta projeção em certas
letras que estendem a linha base além do ponto sobre o qual ela se
apóia. Um leitor que não conheça o hebraico necessita ter boa visão
para ver o til, mas Cristo garante que como parte do texto sagrado,
nem o til nem yod perecerão.

Dificuldades e objeções
Subentende-se que existem dificuldades no modo de aceitar
uma visão de inspiração como esta. Mas para a mente finita,
sempre haverá dificuldades relacionadas à revelação do Infinito, e

157
Os fundamentos

não poderia ser de outra maneira. Os homens de fé — e é a estes


que estamos nos dirigindo, e não aos homens do mundo — não
esperam entender ou resolver todas as dificuldades relacionadas
com outros mistérios da Bíblia antes de aceitá-las como divinas, e
por que eles deveriam fazer isso neste caso?
Além disso, Arcebispo Whately disse, algo que, em geral, é
aceito, que não somos obrigados a tirar toda dificuldade de uma
doutrina para acreditar nela, desde que os fatos sobre os quais ela
se fundamenta sejam verdadeiros. Particularmente, esse é o caso
em que a rejeição de tal doutrina envolve maiores dificuldades do
que a crença nela, como acontece aqui.
Pois se este ponto de vista da inspiração for rejeitado, o que
tem seus oponentes para oferecer em seu lugar? Será que eles
percebem que qualquer objeção a isto é leve se comparada com
aquelas de qualquer outra visão que possa ser nomeada? E será que
eles admitem que isso é verdadeiro, por que esse ponto de vista tem
a imensurável vantagem de concordar com as claras declarações
das Escrituras sobre o assunto? Em outras palavras, como o Dr.
Burrell diz, aqueles que afirmam a inerrância dos originais das
Escrituras fazem isso na autoridade do próprio Deus, e negar isso
é estar de acordo com a negação de que elas ensinam o perdão
dos pecados ou a ressurreição dos mortos. Nenhuma reviravolta
ou fraude exegética pode negar as afirmações já citadas nessas
páginas, para não dizer nada do constante sentido sugerido na
evidência que encontramos na Bíblia quanto à sua verdade. Mas
agora consideremos algumas dessas dificuldades.
1. E x is t e m as c h a m a d a s d is c r e p â n c ia s o u c o n t r a d iç õ e s en t r e
CERTAS DECLARAÇÕES DA BÍBLIA E OS FATOS DA HISTÓRIA OU CIÊN­
CIA n a t u r a l . O melhor modo de conhecer essas discrepância é
tratá-las separadamente, como são apresentadas, mas quando
alguém pergunta quais são elas não é raro obter o silêncio como
resposta. Elas são difíceis de produzir, e quando produzidas,
quem seria capaz de dizer que pertencem aos pergaminhos ori­
ginais? Como não estamos discutindo a favor de uma tradução
inerrante, o fardo da prova não deveria ficar com quem faz a
objeção?
Mas algumas dessas “discrepâncias” são explicadas facilmente.
Elas não existem entre as declarações da Bíblia e os fatos da ciên­
cia, mas entre interpretações errôneas da Bíblia e as conclusões

158
A inspiração da Bíblia — definição, extensão e prova

imaturas da ciência. A antiga história de Galileu é um exemplo, pois


a afirmação dele, de que a terra se move em volta do sol, em nada
contradiz a Bíblia, mas mostra apenas a falsa suposição teológica
sobre essa realidade. Desse modo, ao se lançar mais luz nesses ca­
sos muitas destas discrepâncias são removidas, e é justo presumir
que mais luz removeria todas elas.
2 . E x is t e m d if e r e n ç a s n a s p r ó p r ia s n a r r a t iv a s . Em primeiro
lugar, os escritores do Novo Testamento às vezes mudam
palavras importantes ao citar o Antigo Testamento, o que não
poderia acontecer se em ambos os casos os escritores tivessem
sido inspirados. Mas o que não é lembrado é que nas Escrituras
não estamos tratando com muitos autores humanos diferentes,
mas com um único Autor divino. Há um princípio na literatura
comum de que um autor pode fazer uma citação como for de
seu agrado, e dar um tom diferente a uma expressão aqui e ali
de acordo com a mudança da condição das tarefas, sempre que
necessário ou desejável. Negaremos esse privilégio ao Espírito
Santo? Na verdade, não podemos achar que algumas dessas
supostas citações errôneas mostram o progresso da verdade,
uma evidente aplicação do ensino de uma primeira dispensação
para as circunstâncias da última, servindo de uma confirmação
de sua origem divina mais do que um argumento contrário
a essa origem? Oferecemos como exemplos desse princípio
Isaías 59.20, citado em Romanos 11.26, e Amós 9.11 citado em
Atos dos apóstolos 15.16.
No entanto, uma outra classe de diferenças refere-se ao mesmo
evento que às vezes é registrado de modo diferente por escritores
diferentes. Tomemos aquele exemplo mais freqüentemente utilizado
pelos que fazem esse tipo de objeção, a inscrição na cruz, relatada
por todos os evangelistas, mas de modo diferente por cada um deles.
Como podem tais relatos ser inspirados, é a pergunta que fazem.
Para responder a essa objeção, deve-se lembrar que a inscrição
foi escrita em três línguas, que exigem uma disposição diferente
das palavras em cada caso, e que um evangelista pode ter traduzido
o hebraico, o outro, o latim, ao passo que o terceiro traduziu o gre­
go. Nunca foi afirmado que qualquer um deles forneceu a inscrição
completa, nem podemos afirmar que havia qualquer obrigação
de que fizessem isso. Além disso, nenhum contradiz o outro, e
nenhum deles diz algo que pode ser considerado não verdadeiro.

159
Os fundamentos

Recordando o que foi dito anteriormente sobre nosso procedi­


mento de não estarmos tratando de diferentes autores humanos,
mas de um único Autor divino, será que o Espírito Santo não
poderia ter escolhido enfatizar um fato particular aqui, ou aspecto
de um fato da inscrição para um fim específico e importante?
Examine os relatos para determinar qual pode ter sido esse fato.
Observe que o que quer que tenha sido omitido, todas as narrativas
relatam a monumental circunstância de que o Sofredor na cruz era
O Rei dos Judeus.
Poderia ter havido uma causa para isso? Qual foi a principal acu­
sação contra Jesus feita por seus acusadores? Ele não foi rejeitado e
crucificado, por que disse que era o Rei dos judeus? Não foi essa a
idéia central que Pilatos foi providencialmente guiado a expressar
na inscrição? E, nesse caso, não era disso que os evangelistas deve­
riam dar testemunho? E não deveria esse testemunho ter sido dado
de um modo a dispersar o pensamento de conspiração nas premis­
sas? E isso não envolveu uma variedade na narrativa que deve, ao
mesmo tempo, estar em harmonia com a verdade e com o fato? E
não temos esse mesmo fato relatado nos quatro evangelhos?
Esses relatos suplementam um ao outro, mas não contradizem
um ao outro. Nós os colocamos diante dos olhos na ordem em que
foram registrados.
E ste é J esus o R ei dos J udeus
o R ei dos J udeus
E ste é o R ei dos J udeus
J esus N azareno o R ei dos J udeus

A inscrição inteira evidentemente era: “Este é Jesus Nazareno


o Rei dos Judeus”, contudo, apresentamos o argumento de que o
que foi dito acima a esse respeito é um argumento razoável para as
diferenças nos relatos.
3. HÁ v a r ie d a d e n o e s t i lo . Alguns pensam que se todos os escri­
tores fossem igualmente inspirados, e a inspiração se estendesse
a suas palavras, todos eles deveriam possuir um mesmo estilo
— como se o Espírito Santo possuísse apenas um estilo!
Estilo literário é um método de selecionar palavras e de reunir as
sentenças com as marcas da obra de um autor com a influência de
seus hábitos, sua condição na sociedade, sua educação, seu racio­
cínio, sua experiência, sua imaginação e seu gênio. Esses aspectos
formam sua fisionomia mental e moral e compõem seu estilo.

160
A inspiração da Bíblia — definição, extensão e prova

Mas será que Deus não é livre para agir com estas leis fixas, ou
sem elas? Não há circunstâncias que tinjam seu ponto de vista ou
raciocínio, e Ele não tem nenhuma idiossincrasia de fala, e nenhu­
ma língua mãe pela qual expresse seu caráter, ou dedos de gênio
que marquem as folhas de sua produção literária.
Portanto, é uma grande falácia, como o Dr. Thomas Armitage
certa vez disse, supor que a uniformidade do estilo verbal tenha de
marcar a autoria de Deus na Bíblia, ou selecionar suas palavras.
Como o autor de todos os estilos, ele os usa de acordo com Sua
vontade. Ele dá todos os poderes de individualidade mental a seus
instrumentos para que os usem nas Escrituras, e depois usa os
poderes desses instrumentos como quer para expressar por meio
deles Seu pensamento.
Na verdade, a variedade de estilo é uma prova necessária da
liberdade dos escritores humanos, e é isso que, entre outras coisas,
nos convence de que, embora controlados pelo Espírito Santo, eles
não eram meras máquinas nas quais Ele escreveu.
William Cullen Bryant era um jornalista e poeta; Edmund
Clarence Stedman era um corretor de Wall Street e também
poeta. Como o estilo deles era diferente tanto as cartas editoriais e
comerciais por um lado, e a poesia por outro! Deus é mais limitado
do que um homem?
4. HÁ c e r t a s d e c la r a ç õ e s d a p r ó p r ia B í b l i a . Paulo não diz em
um ou mais lugares: “Eu falo como homem”? Seguramente, mas
ele não está usando os argumentos comuns entre os homens
para elucidar um ponto? Não poderia ele verdadeiramente ser
conduzido pelo Espírito a fazer isso, e relatar o fato, assim como
fazer ou dizer qualquer outra coisa? Naturalmente, o que ele cita
dos homens não tem o mesmo valor essencial daquilo que ele
recebe diretamente de Deus, no entanto, o relato da citação é
verdadeiramente inspirado.
Existem duas ou três outras declarações dele desse tipo no
sétimo capítulo de ICoríntios, em que ele trata do matrimônio. No
versículo 6, ele disse: “E isto vos digo como concessão e não por
mandamento”, e o que ele quer dizer não é uma referência à fonte
de sua mensagem, mas ao assunto. Em contradição ao falso ensino
de alguns, ele diz que os cristãos tem a permissão de se casar, mas
não existe um mandamento para que façam isso. No versículo 10,
ele diz: “Ora, aos casados, ordeno, não eu, mas o Senhor, que a

161
Os fundamentos

mulher não se separe do marido”, mas ele prossegue no versículo


12: “Aos mais digo eu, não o Senhor”. Ele se declara inspirado no
primeiro exemplo, mas não no segundo? De forma alguma. Mas
no primeiro caso, ele está aludindo ao que o Senhor falou sobre o
assunto, ao passo que no segundo, aqui na carne, ao que ele, Paulo,
está acrescentando à autoridade do Espírito Santo que fala por
intermédio dele. Em outras palavras, pondo sua própria expressão
em igualdade com as de nosso Senhor, ele simplesmente confirma
a inspiração dela.
No versículo 40, ele usa uma expressão enigmática: “E penso
que também eu tenho o Espírito de Deus”. Como estamos nos
esforçando para argumentar apenas por um relato inspirado, deve
parecer fácil dizer que aqui ele relata uma dúvida sobre se ele era
inspirado, ou não, e, conseqüentemente, em todos os outros lugares
em que há a ausência de tal relato de dúvida, a inspiração deve ser
assumida. Mas isto seria considerar a pergunta provada, mas pre­
ferimos a solução de outros que dizem que a resposta se encontra
na condição da igreja de Corinto daquele tempo. Seus inimigos
tinham buscado contrariar seus ensinos, reivindicando que tinham
o Espírito de Deus. Referindo-se a essa reivindicação, ele diz com
ironia justificável: “E penso que também eu tenho o Espírito de
Deus”. “E penso” na boca de alguém que tem autoridade apostólica,
diz o Professor Watts, pode ser tomado como a afirmação mais for­
te do juízo em questão. A passagem é às vezes parecida a uma outra
na mesma epístola no capítulo quatorze, no versículo 37, em que ele
diz: “Se alguém se considera profeta ou espiritual, reconheça ser
mandamento do Senhor o que vos escrevo”.
O tempo nos impede de tratar com mais demora as outras difi­
culdades e objeções, contudo, isto não é necessário, visto que não
há um ponto sequer do qual tratamos que não tenha sido tratado sa­
tisfatória e repetidamente pelo homem de Deus e o filho da fé. Além
disso, seria seguro desafiar todo o mundo cristão para que forneça
o nome de um homem, que se sobressai como um ganhador de
almas, mas que não creia na inspiração da Bíblia como procuramos
esclarecer nestas páginas.
Contudo, concluímos com um tipo de testemunho concreto — o
da Assembléia Geral da Igreja Presbiteriana da América, de há muito
tempo, feito em 1893.0 escritor não é presbiteriano e, portanto, pode
pedir com mais graça a seus leitores que considerem o caráter e o

162
A inspiração da Bíblia — definição, extensão e prova

intelecto representados nessa Assembléia. Ali estão alguns de nos­


sos maiores comerciantes, nossos maiores juristas, nossos maiores
educadores, nossos maiores estadistas, assim como nossos maio­
res missionários, evangelistas e teólogos. Pode haver uma reunião
capaz e respeitável de representantes do cristianismo em outros
lugares e em outras ocasiões, contudo, poucos grupos podem
ultrapassar esse aqui mencionado. Pela sobriedade de pensamento,
pela profundidade, assim como pela amplitude de aprendizado, pela
riqueza de experiência espiritual, pela honestidade de expressão
e pela virilidade de convicção, a Assembléia Geral da Igreja Pres­
biteriana da América deve hoje merecer a atenção e o respeito de
todo o mundo. E o que ela disse sobre o assunto que estamos agora
considerando, em sua reunião na cidade de Washington, capital dos
EUA, na data nomeada, foi o seguinte:
“A Bíblia como nós a temos hoje, em suas várias traduções e revisões,
quando liberta de todos os erros e enganos dos tradutores, copistas
e impressores, [é] a própria Palavra de Deus e, por conseguinte,
completamente sem erro.”

163
165

15 Inspiração

L. W. M u n h a l l , M. A ., D.D .
Autor de “A alta crítica versus os altos críticos ”
Revisado e editado por Gerald B. Staton, Th. D.

A Bíblia é inspirada. É, portanto, a Palavra de Deus. Isto é fun­


damental para fé cristã. “A fé vem pela pregação, e a pregação, pela
palavra de Cristo” (Rm 10.17).
Mas, pergunta-se, o que se entende por inspiração? Visto que
há muitos que insistem que os pensamentos da Bíblia e não as
palavras, são inspirados, esta é a própria questão. A assembléia
geral da Igreja Presbiteriana em 1893, por uma votação unânime
fez a seguinte declaração: “A Bíblia como nós a temos hoje, em
suas várias traduções e revisões, quando liberta de todos os erros e
enganos dos tradutores, copistas e impressores, é a própria Palavra
de Deus e, por conseguinte, completamente sem erro”.
O que queremos dizer por inspiração verbal é que as palavras que
compõem a Bíblia são inspiradas por Deus. Se elas não são, então a Bí­
blia não é inspirada, visto que ela se compõe tão somente de palavras.

LEANDER WH1TCOMB MÜNHALL (1843-1934) foi em grande parte um


evangelista metodista autodidata que pregou o evangelho por mais de
cinqüenta anos. Serviu com distinção durante a Guerra Ciuil, participando
em trinta e três batalhas. Editou The Methodist [O Metodista], uma
publicação semanal da Filadélfia, e serviu como representante para
conferências denominacionais. ü m defensor da ortodoxia bíblica, ele
advertiu sua denominação quanto ao liberalismo em seu livro Breakers!
Methodism Adrift [Vagalhão! Metodistas à Deriva] (1913).
Os fundamentos

“Toda a Escritura é inspirada por Deus” (2Tm 3.16). A palavra


traduzida por Escritura nessa passagem é graphe. Ela significa
escrever ou qualquer coisa escrita. A escrita é composta de pa­
lavras. O que mais é isto senão inspiração verbal; e quem ensina
outra coisa arrebata as “Escrituras para sua própria destruição”. O
Professor A. A. Hodge diz: “A linha nunca pode ser racionalmente
traçadas entre os pensamentos e as palavras da Bíblia... temos uma
Bíblia inspirada, verbalmente inspirada, temos o testamento do
próprio Deus”.
O professor Gaussen diz: “A teoria de uma revelação divina, na
qual ter-se-ia a inspiração de pensamentos sem a inspiração da lin­
guagem, é tão inevitavelmente irracional que não pode ser sincera,
e prova-se falsa até mesmo aos que a propõem”.
Canon Wescott diz: “A mais leve consideração mostrará que
as palavras são tão essenciais ao processo intelectual como são
ao relacionamento mútuo... os pensamentos se casam às palavras
como a alma ao corpo. Sem isso, os mistérios desvelados diante dos
olhos do vidente seriam sombras confusas; desse modo, tornam-se
lições claras para a vida humana.”
O deão Burgon, um homem de vasto conhecimento, diz: “Não
se pode dissecar a inspiração em substância e forma. Quanto aos
pensamentos, como inspirados à parte das palavras que o expres­
sam, é algo que poderia até se comparar com uma melodia sem
notas ou com uma soma sem números. Assim, nenhuma teoria da
inspiração pode ser inteligível. E tão ilógica quanto sem valor, e não
é necessário muita severidade para derrubá-la”.
Essa doutrina da inspiração das Escrituras, em todos os seus
elementos e partes, sempre foi a doutrina da igreja. Dr. Wescott
provou tal fato mediante uma cadeia de citações dos pais anteni-
cenos da igreja (no apendix B de sua Introduction to the Study of
the Gospels [Introdução ao Estudo dos evangelhos]). Ele cita, por
exemplo, Clemente Romano, quando este diz que as Escrituras são
“as verdadeiras declarações do Espírito Santo”.
Consideremos algumas citações dos pais da igreja:
( 1 ) J u s t in o , falando das palavras das Escrituras, diz: “Não deve­
mos supor que a linguagem procede dos homens que são inspi­
rados, mas da própria Palavra divina, que move esses homens. A
obra deles é anunciar aquilo que o Espírito Santo propõe ensinar
por intermédio deles, para os que desejam aprender a verdadeira

166
Inspiração

religião”. “A história que Moisés escreveu foi por inspiração


divina”. E, assim, tudo na Bíblia.
( 2 ) I r in e u . “O s escritores falaram como que agindo pelo Espírito.
Todos os que predisseram a vinda de Cristo receberam sua
inspiração do Filho, pois como as Escrituras poderiam sozinhas
“testificar” a respeito dele apenas?” “Mateus poderia ter escrito,
“A geração de Jesus era assim”, mas o Espírito Santo, prevendo a
corrupção da verdade e fortalecendo-nos contra a decepção diz,
por intermédio de Mateus, “A geração de Jesus, o Messias, era
assim”. “Os escritores estão além de toda falsidade”, ou seja, eles
são inerrantes.
(3 ) C le m e n t e d e A l e x a n d r ia . “Os fundamentos de nossa fé não
repousam em uma base insegura. Nós os temos recebido do
próprio Deus por meio das Escrituras, nem um i, nem um til
deles passarão até que sejam cumpridos, pois a boca do Senhor,
o Espírito Santo, o disse. Ele deixa de ser um homem que des­
denha a tradição da igreja e abandona as opiniões humanas; pois
as Escrituras são verdadeiramente santas, visto que nos tornam
santos, semelhantes a Deus. A Bíblia se compõem destes Santos
Escritos ou Palavras, e Paulo diz que eles são inspirados por
Deus (2Tm 3.15,16). Os Escritos Sagrados consistem dessas
letras ou sílabas sagradas, pois elas são “inspiradas por Deus”.
E também: “Os judeus e os cristãos estão de acordo quanto à
inspiração das Santas Escrituras, mas diferem no que se refere
à interpretação. Por nossa fé, cremos que toda a Escritura, visto
que é inspirada por Deus, é proveitosa”.
(4 ) O r íg e n e s . “E doutrina reconhecida por todos os cristãos e,
evidentemente, proclamada nas igrejas, pois o Espírito Santo
inspirou aos santos profetas e apóstolos e estava presente naque­
les a quem inspirou na Vinda de Cristo; pois Cristo, a Palavra de
Deus, estava em Moisés quando este escreveu, e nos profetas, e,
por seu Espírito, falou-lhes todas as coisas. Os relatos dos evan­
gelhos são os Oráculos do Senhor, puros Oráculos purificados
como prata sete vezes forjada. Eles são isentos de erros, visto que
foram cuidadosamente escritos, com a cooperação de Espírito
Santo”. “E bom aderir às palavras de Paulo e dos apóstolos como
a Deus e ao nosso Senhor Jesus Cristo. Há muitos escritos, mas
somente um livro; quatro Evangelistas, mas apenas um evange­
lho. Todos os Escritos Sagrados exalam a mesma plenitude. Não

167
Os fundamentos

há nada, na lei, nos profetas, no evangelho, no apóstolos que não


vieram da plenitude de Deus”.
( 5 ) A g o s t in h o . A visão das Sagradas Escrituras sustentada por
Agostinho era a mesma de Tertuliano, Cipriano e todos os pais
da igreja do Norte da África. Nenhuma visão da inspiração ver­
bal poderia ser mais rígida. “As Escrituras são as letras de Deus,
a voz de Deus, os escritos de Deus”. “Os escritores registram as
palavras de Deus. Cristo falou por Moisés, pois ele era o Espírito
do Criador, e todas as profecias são a voz do Senhor. Do Espírito
proveio o dom de línguas. Toda a Escritura é proveitosa visto
que é inspirada por Deus. As Escrituras, se na história, na pro­
fecia, nos Salmos ou na Lei, são de Deus. Elas não podem estar
certas em parte e falhas em parte. Elas são de Deus, que falou
completamente todas as Escrituras”. Como também não foram
os apóstolos que falaram, mas o Espírito do Pai neles, assim é
que o Espírito fala em toda a Escritura”. “Não se aproveita nada
do que digo, o do que ele diz, apenas é proveitoso o que diz o
Senhor”.
Prof. B. B. Warfield, do Seminário Teológico de Princeton,
resume o caso em um artigo sobre The Westminster Doctrine
of Inspiration [A Doutrina da Inspiração de Westminster]: “Sem
dúvida basta ter sido dita para mostrar que a confissão ensina
precisamente a doutrina ensinada nos escritos particulares dos
autores, que era também a Doutrina Protestante Geral da época,
e não daquele tempo somente ou apenas dos protestantes, pois
apesar das afirmações contrárias, que recentemente tornou-se
toleravelmente corrente, esta doutrina da inspiração (verbal) tem
sido essencialmente a doutrina da igreja de todos os tempos e de
todos os nomes”.

Algumas provas da inspiração verbal


A Bíblia ensina claramente que suas palavras são inspiradas e
que ela é a Palavra de Deus. Examinemos um pouco essa questão,
ao considerar brevemente três tipos de evidência.
Primeiro. Notemos o testemunho direto da Bíblia em relação ao
fato da inspiração verbal.
“Então, disse Moisés ao Senhor: Ah! Senhor! Eu nunca fui elo­
qüente, nem outrora, nem depois que falaste a teu servo; pois sou
pesado de boca e pesado de língua. Respondeu-lhe o Senhor: Quem

168
Inspiração

fez a boca do homem? Ou quem faz o mudo, ou o surdo, ou o que vê,


ou o cego? Não sou eu, o Senhor? Vai, pois, agora, e eu serei com
a tua boca e te ensinarei o que hás de falar”. (Êx 4.10-12); “Disse
mais o Senhor a Moisés: Escreve estas palavras, porque,, segundo
o teor destas palavras, fiz aliança contigo e com Israel” (Êx 34.27);
“Então, disse: Ouvi, agora, as minhas palavras; se entre vós há
profeta, eu, o Senhor, em visão a ele, me faço conhecer ou falo com
ele em sonhos. [...] Boca a boca falo com ele [Moisés], claramente
e não por enigmas; pois ele vê a forma do Senhor; como, pois, não
temestes falar contra o meu servo, contra Moisés?” (Nm 12.6,8);
“Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis
dela, para que guardeis os mandamentos do Senhor, vosso Deus,
que eu vos mando” (Dt 4.2); “Porém o profeta que presumir de
falar alguma palavra em meu nome, que eu lhe não mandei falar,
ou o que falar em nome de outros deuses, esse profeta será morto”
(Dt 18.20).
Em Marcos 12.36, Jesus diz: “O próprio Davi falou, pelo Espírito
Santo”. Se nós voltarmos a 2Samuel 23.2, encontraremos, o que foi
que Davi disse: “O Espírito do Senhor fala por meu intermédio, e a
sua palavra está na minha língua” (2Sm 23.2).
Jeremias disse: “Ah! Senhor Deus! Eis que não sei falar, porque
não passo de uma criança. Mas o Senhor me disse: Não digas: Não
passo de uma criança; porque a todos a quem eu te enviar irás; e
tudo quanto eu te mandar falarás. Não temas diante deles, porque
eu sou contigo para te livrar, diz o Senhor. Depois, estendeu o Se­
nhor a mão, tocou-me na boca e o Senhor me disse: Eis que ponho
na tua boca as minhas palavras” (Jr 1.6-9).
Balaão foi compelido a falar contra sua vontade. E disse: “Eis-me
perante ti; acaso, poderei eu, agora, falar alguma coisa? A palavra
que Deus puser na minha boca, essa falarei”. Ele tentou de todas as
maneiras amaldiçoar os israelitas, mas tantas vezes quanto tentou,
ele os abençoava. Balaque por fim disse: “Nem o amaldiçoarás,
nem o abençoarás. Porém Balaão respondeu e disse a Balaque:
Não te disse eu: tudo o que o S e nh o r falar, isso farei? (Nm 22.38;
23.25,26)
Nos cinco livros de Moisés, nos livros chamados históricos, nos
livros incluídos sob o título geral de os Salmos, expressões como
as que daremos a seguir ocorrem centenas de vezes: “Assim diz o
Senhor”; “o Senhor disse”; “o Senhor falou”; “o Senhor tem dito”; e

169
Os fundamentos

“a palavra do Senhor”. Não há outro pensamento expresso nesses


livros relativos à inspiração além daqueles que os escritores falaram
e escreveram, as próprias palavras que Deus lhes deu.
Voltando aos livros chamados proféticos, encontramo-nos com
Isaías dizendo: “Ouvi a palavra do S e n h o r” (1.10); e, não menos
do que vinte vezes, ele declara explicitamente que seus escritos
são a “palavra do S e nh o r”. Jeremias diz quase cem vezes, “Veio a
mim a palavra do S e nh o r”, e, “as palavras do Deus vivo”. Ezequiel
diz que seus escritos são a “palavra do S e n h o r” umas sessenta
vezes. Aqui está um exemplo: “Filho do homem, mete no coração
todas as minhas palavras que te hei de falar e ouve-as com os teus
ouvidos. Eia, pois, vai aos do cativeiro, aos filhos do teu povo, e,
quer ouçam quer deixem de ouvir, fala com eles, e dize-lhes: Assim
diz o S e nh or Deus” (Ez 3.10-11). Daniel disse: “Contudo, ouvi a voz
das suas palavras” (Dn 10-9). Oséias disse, “Palavra do S e n h o r”
(Os 1.1). “Palavra do Senhor que foi dirigida a Joel” (J11.1). Amós
disse: “Ouvi a palavra que o Se nh or fala” (Am 3.1). Obadias disse:
“Assim diz o Senhor Deus” ( Ob 1.1). “Veio a palavra do Senhor a
Jonas” (Jn 1.1). “Palavra do Senhor que em visão veio a Miquéias”
(Mq 1.1). Naum disse: “Assim diz o S e nh o r” (Na 1.12). Habacuque
escreveu, “O Senh or me respondeu e disse” (Hc 2.2). “Palavra do
Sen h or que veio a Sofonias” (Sf 1.1). “Veio a palavra do Senhor, por
intermédio do profeta Ageu” (Ag 1.1). “Veio a palavra do S enhor
ao profeta Zacarias” (Zc 1.1). “Sentença pronunciada pelo S enhor
contra Israel, por intermédio de Malaquias” (Ml 1.1). E neste, o
último dos livros do Antigo Testamento, é dito vinte e quatro vezes,
“Assim diz o Senhor”.
As palavras que o próprio Jesus proferiu eram inspiradas. As
palavras que ele falou não eram suas, mas na verdade, colocadas
em sua boca. Na maioria dos casos, expressam a maneira como
se predisse que Cristo deveria falar, assim como Moisés falou. “O
Senhor, teu Deus, te suscitará um profeta do meio de ti, de teus
irmãos, semelhante a mim’, a ele ouvirás”. Encontramos duas vezes
a expressão, “semelhante a mim”. E como seria semelhante a
Moisés, exceto se, como todo o contexto mostra, “semelhante” a ele
em inspiração verbal? Deus disse a Moisés: “Tu, pois, lhe falarás
e lhe porás na boca as palavras; eu serei com a tua boca e com a
dele e vos ensinarei o que deveis fazer. Ele falará por ti ao povo;
ele te será por boca, e tu lhe serás por Deus” (Êx 4.11-16). Jesus,

170
Inspiração

portanto, como profeta, proferiu palavras inspiradas semelhante


às de Moisés. As palavras que ele falou, Deus pôs em sua boca e
em sua língua. Assim ele diz, ao assegurar aos Judeus que Moisés
falou dele: “Porque eu não tenho falado por mim mesmo, mas o Pai,
que me enviou, esse me tem prescrito o que dizer e o que anunciar.
E sei que o seu mandamento é a vida eterna. As coisas, pois, que eu
falo, como o Pai mo tem dito, assim falo” (Jo 12.49,50).” “Porque eu
lhes tenho transmitido as palavras que me deste, e eles as receberam,
e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e creram que tu me
enviaste” (Jo 17.8). “Em verdade, em verdade vos digo que o Filho
nada pode fazer de si mesmo” (5.19). Visto que Jesus Cristo era
divinamente auxiliado, semelhante a Moisés, tendo as mesmas palavras
postas em sua boca, como os evangelistas e apóstolos não precisariam
da mesma liderança e auxílio divino para qualificá-los para sua obra,
garantindo, desse modo, sua confiabilidade inerrante e sua autoridade
divina? Se Moisés e Isaías, se o próprio Jesus Cristo, tinham de ser
divinamente assistidos, como os narradores da história e dos oráculos
do Novo Testamento seriam isentados dessa mesma atividade divina
do Espírito, que tudo controla e guia para a plena verdade?
Jesus disse aos discípulos, “Quando, pois, vos levarem e vos
entregarem, não vos preocupeis com o que haveis de dizer, mas o
que vos for concedido naquela hora, isso falai; porque não sois vós
os que falais, mas o Espírito Santo” (Mc 13.11).
Este mesmo dom incluía todos os discípulos no dia de Pentecos­
tes, porque: “Todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram
a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que
falassem” (At 2.1,4). A multidão que ouvia atônita, dizia: “Vede!
Não são, porventura, galileus todos e esses que aí estão falando? E
como os ouvimos falar, cada um em nossa própria língua materna?
[...] Como os ouvimos falar em nossas próprias línguas as grande­
zas de Deus?” (At 2.7,11).
Paulo diz: “Disto também falamos, não em palavras ensinadas
pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito, conferindo
coisas espirituais com espirituais” (ICo 2.13). “Outra razão ainda
temos nós para, incessantemente, dar graças a Deus: é que, tendo
vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, aco-
lhestes não como palavra de homens, e sim como, em verdade é, a
palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmente em
vós, os que credes” (lTs 2.13).

171
Os fundamentos

Assim, a Bíblia, de maneira uniforme, ensina a doutrina da


inspiração verbal. Ela é a Palavra de Deus. Esse é o testemunho
constante do próprio livro. A Bíblia jamais, nem uma única vez, diz
que os meros pensamentos dos escritores eram inspirados; ou que
estes escritores tinham um “conceito”. As Escrituras são chamadas
“os oráculos de Deus” (Rm 3.2); “a palavra de Deus” (Lc 8.11) ; “a
palavra do Senhor” (At 13.48); “a palavra da verdade” (Ef. 1.13); “a
palavra de fé” (Rm 10.8); e, por meio destas e de outras declarações
semelhantes, é declarado, mais de duas mil vezes, que a Bíblia é a
Palavra de Deus — que as palavras são provenientes de Deus, que
são inspiradas.
Segundo. Que dizer do testemunho inferido em relação ao fato
de a inspiração ser verbal? Por testemunho inferido quero dizer
que isso é assumido pela Bíblia, assim como a implicação natural
de muitas de suas declarações.
A Bíblia assume ser de Deus, pois ela enfrenta o homem face a
face com a espada desembainhada e diz: “Tu deves!”, e, “Tu não
deves!”, e exige rendição imediata, incondicional e irreversível à
autoridade do céu, assim como submissão a todas as leis e à von­
tade de Deus, conforme foi transmitido em suas páginas. Isso por
si só não significaria muito, embora seja um fato único, não fosse
pelos resultados admiráveis e significativos de tal submissão; mas,
a inferência natural de tal suposição é que as palavras que exigem
e ordenam são de Deus.
Muitas das declarações da Bíblia indicam claramente que suas
palavras são inspiradas. Vejamos alguns exemplos: “Para sempre,
ó S e nh or está firmada a tua palavra nos céu” (SI 119.89). Esta é a
característica de todos os Salmos. “As palavras do Senhor são pa­
lavras puras” (SI 12.6). “Não é a minha palavra fogo, diz o Senhor,
e martelo que esmiúça a penha?” (Jr 23.29). “A palavra de nosso
Deus permanece eternamente” (Is 40,8); e assim por diante, quase
ad infinitum [até o infinito]. Em todas as partes do relato sagrado
encontra-se essa mesma sugestão da autoria divina. Jesus e os
apóstolos sempre admitiram isto e deram-lhe proeminência e ênfa­
se. O valor e a importância da Bíblia não devem ser subestimado.
Terceiro. O testemunho resultante. O que dizer dele? Paulo nos
fala que “toda a Escritura é inspirada por Deus”. “Porque nunca
jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto,
homens santos falaram da parte de Deus, movidos (pheromenoi,

172
Inspiração

impelidos) pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21). “Esta passagem não


justifica a chamada Teoria Mecânica da Inspiração”. Essa teoria
não é ensinada em nenhum lugar das Escrituras. Na verdade, o
fato óbvio de que as características dos escritores não eram de
modo algum modificadas ou destruídas faz com essa teoria caia
em descrédito. Diz-se: “Então, formou o Senh o r Deus ao homem
do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem
passou a ser alma vivente” (Gn 2.7). Eliú disse, “ O Espírito de
Deus me fez, e o sopro do Todo-Poderoso me dá vida” (Jó 33.4).
Agora, portanto, o próprio poder onipotente que concedeu a vida
a Adão e a Eliú, e que criou os “céus [...] e tudo que neles há”
(Êx 20.11), está, em algum sentido misterioso, nas palavras dos re­
latos sagrados. Então, dizem-nos: “Porque a palavra de Deus é viva,
e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e
penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas,
e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração”
(Hb 4.12). Qual o resultado de continuar crendo na Palavra e de
submeter-se a seus requerimentos?
1. Isso nos concederá vida espiritual e salvará nossa alma. “Acolhei,
com mansidão, a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para
salvar a vossa alma” (Tg 1.21). “Pois fostes regenerados não de
semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de
Deus, a qual vive e é permanente” (lPe 1.23). “Pois, segundo o seu
querer, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos
como que primícias das suas criaturas” (Tg 1.18). Disse Jesus: “As
palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida” (Jo 6.63).
Como uma boa semente contém o germe da vida, de maneira
que quando lançada no solo da terra na estação apropriada, sob a
influência da luz do sol e das chuvas, germina e brota para repro­
duzir, assim também as palavras da Bíblia, se acolhidas na mente e
no coração, ao serem cridas e obedecidas, germina, e o resultado é
vida espiritual, que reproduz sua espécie, e esta alma crente se tor­
na participante da natureza divina (2Pe 1.4). “E, assim, se alguém
está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis
que se fizeram novas” (2Co 5.17). O poder e a vida do Onipotente
estão ocultos nas palavras do relato sagrado; essas palavras são
inspiradas por Deus, e o poder e a vida se manifestará em todos
os que se submeterem a seus requisitos. Todos os livros que os
homens escreveram não podem fazer isto.

173
Os fundamentos

2. Possui poder purificador. “De que maneira poderá o jovem guar­


dar puro o seu caminho? Observando-o segundo a tua palavra”
(SI 119.9). Jesus disse: “Vós já estais limpos pela palavra que vos
tenho falado” (Jo 15.3). “Para que a santificasse, tendo-a purifi­
cado por meio da lavagem de água pela palavra” (Ef. 5.26).
3. Pela Palavra somos guardados do mal e do poder de nosso
inimigo. O salmista disse: “Quanto às ações dos homens, pela
palavra dos teus lábios, eu me tenho guardado dos caminhos
do violento” (SI 17.4); e, “Guardo no coração as tuas palavras,
para não pecar contra ti” (SI 119.11). Então Jesus disse: “Eu
lhes tenho dado a tua palavra [...] Santifica-os na verdade; a tua
palavra é a verdade” (João 17.14,17).
“Uma voz diz: Clama; e alguém pergunta: Que hei de clamar?
Toda a carne é erva, e toda a sua glória, como a flor da erva; [...]
seca-se a erva, e cai a sua flor, mas a palavra de nosso Deus per­
manece eternamente” (Is 40. 6,8). “Porque nada podemos contra a
verdade, senão em favor da própria verdade” (2Co 13.8).
Este, portanto, é o resumo de nossa argumentação: a Bíblia é
formada de escritos, e estes são compostos de palavras. As pala­
vras são inspiradas — inspiradas por Deus. A Bíblia, portanto, é
inspirada — ela é a Palavra de Deus.
Isto é visto claramente, p r im e ir a m e n t e na declaração unifor­
me do livro. Todos os profetas do Antigo Testamento, Jesus nosso
Senhor e todos os escritores do Novo Testamento dão o mesmo
testemunho com relação a esta matéria de importância transcen­
dental. Nem uma única palavra ou pensamento contrário pode
ser encontrado em todas as suas declarações. A atitude de Jesus
para com o Antigo Testamento e suas declarações confirmam,
sem a menor sombra de dúvida, nossa argumentação. Ele tinha
em mãos o mesmo texto do Antigo Testamento que temos hoje.
Ele acreditava que o Antigo Testamento era a Palavra de Deus
e o proclamou como tal. Ele disse, “Nem um i ou um til jamais
passará da Lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5.18). Ao frustrar
o tentador ele disse: “Está escrito! está escrito! está escrito!”.
Para confundir os judeus, ele disse: “Porque, se, de fato, crêsseis
em Moisés, também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a
meu respeito” (Jo 5.46). Ele jamais criticou as Escrituras, mas
sempre referiu-se a elas como proveniente de seu Pai, a Palavra
de autoridade e final.

174
Inspiração

Jesus é a vida e a luz dos homens. 0 mesmo é verdade em


relação às Escrituras. Jesus disse: “As palavras que eu vos tenho
dito são espírito e são vida” (Jo 6.63). O salmista disse: “Lâmpada
para os meus pés é a tua palavra e, luz para os meus caminhos”
(Sl. 119.105). De um modo inexplicável, Jesus é identificado com
Palavra. “O Verbo era Deus [...] e o Verbo se fez carne” (Jo 1.1,14).
E quando as vitórias do evangelho tiverem sido finalmente cumpri­
das e Jesus tiver afirmado seus direitos reais, seu nome será: “O
Verbo de Deus” (Ver Ap 19.11,13).
Em s e g u n d o l u g a r . A Bíblia afirma ser a Palavra de Deus por
intermédio de suas imperiosas exigências. Quem, senão Deus, tem
o direito de requerer do homem o que a Bíblia requer?
Em t e r c e ir o l u g a r . A Bíblia tem cumprido todas as suas afir­
mações e promessas. Os resultados maravilhosos que ela concede
para quem a proclama e crê nela, provam de forma definitiva sua
origem e caráter sobrenatural.
Sei muito bem que existem dificuldades, mas muitas dificulda­
des desaparecem com as pesquisas pacientes, reverentes e aplica­
das; e, sem dúvida, outras em breve seguirão o mesmo caminho.
Assim, convido os críticos eruditos e reverentes a despedirem-se
de sua nobre obra, para aprenderem com o falecido Bispo Ryle,
a quem endosso: “Dêem-me a teoria verbal completa com todas
suas dificuldades, em vez da dúvida. Aceito as dificuldades e,
humildemente, aguardo pela solução delas; mas enquanto espero
estou firme na Rocha”.
Que esta, portanto, seja nossa atitude, para que se manifeste ao
mundo que a abençoada Bíblia, as “Sagradas Escrituras” de ambos
os Testamentos, é o produto da “inspiração de Deus,” que fez os céus
e a terra, e “soprou” no homem sua alma; o produto daquele “sopro”
divino que regenera, ilumina e santifica a alma; as “Escrituras ins­
piradas por Deus”, cujas “palavras” são as “palavras de Deus”. Diga
isso para a igreja em seus seminários, universidades e faculdades,
nos púlpitos, nas Escolas Dominicais e classes bíblicas e que essa
verdade seja proclamada em todas as convenção, conferências e as­
sembléias, em que a concepção e a estima em relação às Escrituras
não devem ser menores e mais baixas do que a alta concepção e
estima que nosso Senhor e seus apóstolos tinham por esse “Livro”.
Aquilo que eles admitiram como a “Inspiração de Deus”, deve,
desse modo, servir para a opor-se a toda inspiração humana que

175
Os fundamentos

ousa sugerir que as Sagradas Escrituras não sejam inspiradas por


Deus. Digamos, junto com o imortal Atanásio, que sabia ler grego
melhor do que o “movimento da opinião erudita”; “O, meu filho,
não somente as antigas, mas as novas Escrituras são inspiradas por
Deus, como Paulo disse, “Toda a Escritura é inspirada por Deus”.
Digamos ao ministro emergente, “Fale como os Oráculos de Deus
falam” — as palavras que “Deus falou”, as palavras que Cristo
“escreveu”. Diga a todo leitor e ouvinte da Palavra, que aquilo que
“Moisés disse”, e “Davi disse”, e “Isaías, Pedro, Paulo, João e as
Escrituras disseram” foi o que “Deus disse”. Diga ao santo que está
falecendo, que quando seu pulso palpitar, e os amigos chorarem em
seu leito, e a “Ciência” tiver esgotado em vão todos os seus pobres
recursos, este Deus, que inspirou as Escrituras, “que não mente”,
este Jesus que é uma Rocha e o “firme Fundamento”, lançado na
Palavra para sua fé, jamais desapontará sua confiança. Para cada
pergunta da exegese ou da crítica, responda: “O que dizem as Es­
crituras?”; “Como lestes?”; “Esta escrito!”. E parem de escarnecer
o sagrado, estabelecido havia muito tempo, a tradição honrosa que
a Igreja Apostólica nos legou. Com atitudes reverentes, os dias
visitarão novamente a Igreja, como “no princípio”, e Deus, honrado
em Sua Palavra, não mais refreará o Espírito, mas abrirá as janelas
dos céus e derramará sobre a Igreja uma bênção tão grande, que
esta não terá espaço para recebê-la. Deus apresse esse dia!

176
177

A glória moral de Jesus Cristo,


uma prova da inspiração

Rev. Wm. G. M o ore he ad, D . D .


Presidente do Seminário Teológico Xenia, Xenia, Ohio
Resumido e editado por James H. Christian, Th. D.

As glórias do Senhor Jesus Cristo são três: essencial, oficial


e moral. Sua glória essencial é a que lhe pertence como filho de
Deus, um Ser igual ao Pai. Sua glória oficial é a que lhe pertence
como Mediador. Esta é a recompensa que lhe é conferida, a subli­
me promoção que recebeu quando levou Sua grande obra a uma
conclusão final e triunfante. Sua glória moral consiste da perfeição
que marcou sua vida e ministério terrenos; perfeição existente em

WILLIAM G ALLOGLYM OOREHEAD (1836-1914) foi escritor evangélico,


conservador, missionário e pastor. Nascido em Ohio, graduou-se no
Muskingum College, Seminário Teológico Allegheny e no Seminário
Teológico Xenia. Após sua ordenação, Moorehead viajou à Itália, com
a Am erican and Foreign Union, como missionário. Quando retornou
aos Estados ünidos em 1869, pastoreou igrejas em Ohio e Pensilvânia.
Em 1873, como pastor na Primeira Igreja em Xenia, passou a lecionar
no Seminário Teológico Xenia, onde ministrava aulas sobre o Novo
Testamento, até se tornar presidente da escola em 1899. Escreveu
muitos livros, incluindo Studies in Mosaic Institutions [Estudos sobre as
Instituições Mosaicas], e um a série de esboços de estudos sobre os livros
da Bíblia. Moorehead foi um dos editores da Scofield Reference Bible.
Os fundamentos

todo relacionamento e circunstância que viveu aqui. Tanto a glória


essencial como a oficial foram, de modo geral, veladas em sua
jornada terrena. Sua glória moral não poderia ficar oculta; em tudo
que fazia, ele não poderia ser menos do que perfeito; a glória moral
lhe pertencia; ela era Ele mesmo. A glória moral ilumina agora cada
página dos quatro evangelhos, como fez em cada caminho que Ele
trilhou enquanto esteve entre nós, aqui na terra.
A tese, que assumimos para ilustrar e estabelecer, é a seguinte:
que a glória moral de Jesus Cristo, como apresentada nos quatro
evangelhos, não pode ser o produto do intelecto humano, pois
apenas o Espírito de Deus é competente para executar esse retrato
sem precedentes do Filho do Homem. A discussão do tema foi
dividida em duas partes: I. Uma breve pesquisa da glória moral
de Cristo como apresentada nos evangelhos. II. A aplicação do
argumento.

A glória moral de Cristo

a) A humanidade de Jesus
A glória moral de Jesus surge em seu desenvolvimento como
Filho do Homem. A natureza que Ele assumiu era a nossa natureza,
exceto apenas quanto ao pecado e às propensões pecaminosas.
Sua humanidade foi real e verdadeira, a qual deveria passar pelos
vários estágios do desenvolvimento, como qualquer outro membro
da raça. Da infância à juventude, da juventude à maturidade, houve
rápido o crescimento tanto de corpo quanto de suas faculdades
mentais; contudo, o progresso foi feito de modo ordenado.
Como Filho do homem, Ele não estava livre das enfermidades
não pecaminosas que pertencem a nossa natureza. Ele tinha as
mesmas necessidades que todos nós; necessitava de alimentos, de
descanso, de compaixão humana e da assistência divina. Ele era
submisso a José e Maria, era um adorador na sinagoga e no templo;
chorou devido à culpa e à dureza do coração da cidade, e à beira do
túmulo de uma pessoa amada; expressou sua dependência de Deus
pela oração.
Nada é mais certo do que as narrativas do evangelho que
apresentam o Senhor Jesus como verdadeiramente homem, um
verdadeiro membro de nossa raça. Mas, assim que admitimos
essa verdade, somos confrontados por uma outra, que põe esses

178
A glória moral de Jesus Cristo, uma prova da inspiração

registros de forma única e inigualável no campo da literatura. Esse


segundo fato é o seguinte: Ele é absolutamente perfeito em cada
estágio de seu desenvolvimento, em cada relacionamento em Sua
vida e em cada detalhe de Seu serviço. Em nenhuma parte de Sua
vida, Ele comete algum engano, em nenhuma parte deixa uma
mancha, em nenhum lugar há defeito. Nada é mais admirável,
mais singular do que o profundo contraste entre Jesus e o conflito
e discórdia que 0 cercam, entre Ele e aqueles que estavam mais
próximos a ele, os discípulos, João Batista e sua mãe, Maria. Todos
estão incomensuravelmente abaixo dele.
b) O homem padrão

Os evangelhos exaltam nosso Senhor como alguém infinitamente


acima de todos os homens, como o homem padrão, o representante e
o ideal de nossa raça. Nada, conforme o julgamento dos historiadores,
se sobressai tão nitidamente quanto a raça, o caráter nacional — nada
é mais indelével. Mesmo os maiores homens são incapazes de se
libertar das influências do meio no qual nasceram e foram educados.
As particularidades da raça e do espírito de sua época deixam
vestígios imperecíveis no caráter. Em todas as fibras de seu ser, Lutero
era alemão, Calvino, francês, e Knox, escocês; Agostinho carrega a
inequívoca marca do romano, e Crisóstomo, certamente, a do grego.
Paulo, com toda sua enorme sinceridade e simpatia era judeu, sempre
um judeu. Jesus Cristo é o único que é justamente intitulado e deve
ser chamado de o Homem Universal. Nada de local, transitório,
individualizante, nacional ou sectário diminui as proporções de seu
admirável caráter. “Ele está acima do parentesco, do sangue, do
estreito horizonte que, como parecia, limitava Sua vida; pois Ele é
o arquétipo em cuja presença as distinções de raça, intervalos de
épocas, tipos de civilização e graus de cultura mental são fatores que
parecem inexistentes” (Liddon). Ele pertence a todas as épocas, ele se
relaciona com todos os homens, quer tremam de frio em meio a neve
do círculo polar ártico, quer ofeguem sob o ardente calor do equador;
pois Ele é o Filho da humanidade, a genuína descendência da raça.
c) Altruísmo e dignidade
A glória do Senhor aparece em seu altruísmo e em sua dignidade
pessoal. A ausência total de qualquer espécie de egoísmo no cará­
ter do Senhor Jesus é outra característica notável que podemos ver

179
Os fundamentos

nos evangelhos. Ele teve freqüentes e sinceras oportunidades de


recompensar a ambição, caso sua natureza fosse marcada por esta
paixão. Mas “Cristo não quis agradar a si mesmo”, ele “não procurava
sua própria glória”; ele não veio “fazer sua própria vontade”. Seu
corpo e Sua alma, assim como todas Suas faculdades e atividades
inerentes, foram devotados ao supremo objetivo de Sua missão. Seu
autosacrifício incluía todo o âmbito de seus pensamentos humanos,
afeição e ação; esse sacrifício durou toda Sua vida; Sua mais alta
expressão foi Sua ignominiosa morte na cruz do calvário.
A estranha beleza de seu altruísmo, como mostrada nas narrati­
vas dos evangelhos, aparece no fato de que Ele jamais busca chamar
atenção para Si, assim como deprecia a publicidade. Em Sua
humildade, Ele parece estar satisfeito com a obscuridade; como
que segurando o desejo inquieto de eminência, que é comum aos
homens realmente grandes; tão zeloso e cuidadoso que, mesmo ao
fazer milagres, não os acrescentava a Sua reputação. Mas em meio
a toda Sua humildade autosacrificante, Ele jamais perde Sua digni­
dade pessoal nem o auto-respeito que o tornam também especial.
Ele recebe o ministério do humilde e do majestoso; às vezes está
faminto, mas alimenta as multidões nos lugares desertos; não tem
dinheiro, contudo, jamais pede e arranja uma moeda na boca de um
peixe para pagar o tributo ao governo. Ele pode até pedir um pouco
de água à beira do poço, mas é dessa forma que salva uma alma.
Ele jamais foge de seus inimigos; mas retira-se silenciosamente ou
passa por eles sem ser visto. A hostilidade não o faz tomar atitudes,
nem o exaspera. Ele está sempre calmo e sereno. Parece cuidar
pouco de Si, de Seu conforto ou segurança, mas tudo que faz é para
a honra e a glória do Pai. Se a multidão, ansiosa e expectante, o
pressiona e grita: “Hosana ao filho de Davi!”, Ele não fica exaltado;
se todos se afastam espantados por Suas palavras de poder, Ele
não fica deprimido. Ele não procura lugar entre os homens, Ele
fica calmamente satisfeito em ser Servo do Senhor, obediente e
humilde. Ele nunca buscou favorecer a Si mesmo.
E, por intermédio de toda Sua incrível auto-renúncia, é possível
ver, de quando em quando, relances da majestade infinita e da su­
prema dignidade inerentes a Ele, pois Ele é o Filho de Deus. As pa­
lavras de Van Oosterzee são tão reais quanto belas e significativas:
“Ele é o mesmo Filho do Rei que hoje habita no palácio de seu Pai,
e amanhã, por amor a seus súditos rebeldes, em um lugar remoto

180
A glória moral de Jesus Cristo, uma prova da inspiração

do Reino, renunciando a Sua glória principesca, vem habitar entre


eles como servo... e, quando o humilde manto é aberto por um
momento, aparentemente por acidente, é conhecido pela dignidade
de Sua aparência e a estrela da realeza em Seu seio”.
d) Superioridade em relação
ao juízo humano e à intercessão
Os evangelhos apresentam o Senhor Jesus como alguém
superior ao juízo e à intercessão dos homens. Quando foi desafiado
pelos discípulos e pelos inimigos, como muitas vezes ocorria, Jesus
jamais se desculpou, jamais se defendeu, jamais confessou um
erro. Quando os discípulos, aterrorizados, em razão da tempestade
no lago, despertaram-no dizendo: “Mestre, não te importa que
pereçamos?” (Mc 4.38), Ele não justificou Seu sono, nem defendeu
Sua aparente indiferença ao temor deles. Marta e Maria, uma de
cada vez, com profundo pesar, dizem: “Senhor, se estiras aqui, não
teria morrido meu irmão” (Jo 11.21), Jesus não se desculpou por
não ter estado ali; nem quanto à demora de dois dias no local onde
estivera quando a mensagem urgente dessas irmãs O alcançou.
Na consciência da perfeita retidão de Seus caminhos, ele apenas
respondeu, “Teu irmão há de ressurgir” (Jo 11.23). Pedro uma vez
tentou admoestá-lo dizendo: “Tem compaixão de ti, Senhor; isso de
modo algum te acontecerá” (Mt 16.22). Mas Pedro tinha de apren­
der que era Satanás que fazia essa admoestação. Jesus não proferiu
uma palavra sequer, quando os Judeus inferiram corretamente o
que Ele dissera e comentaram: “Sendo tu homem, te fazes Deus a
ti mesmo” (Jo 10.30-36). Ele salientou a aplicação do nome Elohim,
demonstrando que Seu título à divindade era mais alto e de um tipo
diferente daquele dos magistrados judeus. Ele também chegou a
afirmar uma segunda vez aquilo que tinha causado grande ofensa:
declarar Sua identidade com o Pai, o que implicava em Sua própria
divindade. Os Judeus O compreenderam. Ele não se retratou do
que eles imputaram como blasfêmia, e esses judeus procuraram
novamente matá-lo.
Dessa maneira, Ele é igualmente superior à intercessão humana.
Ele jamais pediu a Seus discípulos, nem a Seus amigos mais chega­
dos e, certamente, jamais a Sua mãe Maria, que orassem por ele.
No Getsêmani, Ele pediu aos três discípulos que estivessem ali com
Ele, mas não pediu que orassem por Ele. Na verdade, Ele lhes pediu

181
Os fundamentos

que orassem para que eles mesmos não caíssem em tentação, mas
não que orassem para que Ele não caísse em tentação, nem que
fosse liberto dela. Paulo escreveu muitas vezes: “Irmãos, orai por
nós” — “orai por mim”. No entanto, este não era o modo de falar
de Jesus. Em sua intercessão, Ele jamais usou a primeira pessoa
do plural em suas petições. Ele sempre disse, “Eu”, “me”, “mim”,
“estes”, e “os que tu me destes”.
e) A impecabilidade de Jesus
A impecabilidade do Salvador testemunha Sua glória moral.
O evangelho nos apresenta um fato único e solitário da história
humana — um homem absolutamente sem pecado! Ouçamos
algumas testemunhas. Há o testemunho dos inimigos. Por três
longos anos os fariseus estavam observando sua vítima. Como
alguém escreveu, “Havia fariseus misturados em toda multidão,
ocultando-se atrás de cada árvore. Eles examinaram os discípulos
de Jesus, questionavam tudo ao redor dele. Olharam para a vida
ministerial do Mestre, para a vida privada Dele, para Suas horas
de descanso. Eles apresentaram uma única acusação, a única que
poderiam apresentar —a de que Ele demonstrara desrespeito para
com César. O juiz romano que devia conhecer a acusação, decla­
rou-a sem valor”. Havia outro espião — Judas. Se tivesse havido
uma falha sequer no ministério do Redentor, Judas, em sua terrível
agonia, teria se lembrado disso para seu consolo; mas a amargura
de seu desespero, que tornou sua vida intolerável, foi: “Pequei,
traindo sangue inocente” (Mt 27.4).
Há ainda o testemunho de seus amigos. Seus discípulos afirmam
que, durante o convívio com eles, Sua vida era sem mácula. Não
houve nem uma única mancha que por eles fosse detectada, ou eles
a teriam relatado, como fizeram sobre suas próprias deficiências
e erros. O homem mais puro e austero que viveu naquele tempo,
João Batista, não queria batizar o Único Santo e, consciente de sua
própria indignidade, disse, “Eu é que preciso ser batizado por ti,
e tu vens a mim?” (Mt 3.14). Nem Seu próprio testemunho deve
ser desprezado, pois Jesus jamais confessou pecado, jamais pediu
perdão. Mas, não é Ele quem censura veementemente a auto-justiça
dos fariseus? Ele jamais deixa transparecer algum vestígio, jamais
faz uma oração que implique o mais leve traço de culpabilidade. Ele
pinta a condenação dos pecadores incorrigíveis e não arrependidos

182
A glória moral de Jesus Cristo, uma prova da inspiração

com as cores mais horríveis encontradas em toda a Bíblia, mas Ele


mesmo não se sente apreensivo; Ele não expressa receio quanto à
vida futura, não expressa nenhum receio quanto ao futuro penal;
Sua paz de espírito, Sua comunhão com Deus Onipotente nunca
é perturbada ou interrompida. Ele desafia a Seus mais ferrenhos
inimigos a culpá-Lo por algum pecado (Jo 8.46). Em Jesus Cristo,
esta auto-revelação não era involuntária, nem acidental, nem força­
da: ela era extremamente deliberada. Existe ao seu redor um ar de
santidade superior, de separação do mundo e de seus caminhos,
uma separação de tudo que é mau, em toda forma e grau, tal como
nenhum outro que jamais viveu demonstrou. Embora descendesse
de um ancestral impuro, não trouxe consigo nenhuma marca do
pecado ao mundo; e embora se misturasse com os pecadores e fos­
se atacado por violentas tentações, nunca pecou nem se maculou.
Ele não era apenas puro, mas imaculável. Ele desceu para sofrer
todas as circunstâncias da humanidade real, imersa em pecado e
miséria, mas, no entanto, guardou consigo a infinita pureza do céu.
Nos anais de nossa raça, não há ninguém próximo ou semelhante
a ele.
f) Conjunto e correlação de virtudes
O admirável conjunto de virtudes e excelências encontradas
no Senhor Jesus forma uma outra característica notável dos
evangelhos. Houve aqueles que demonstraram diferentes traços
de caráter; aqueles que, graças aos dons extraordinários, foram
considerados acima da grande maioria dos homens. Mas quem
entre os mais poderosos dos homens demonstrou ser continua­
mente equilibrado e corretamente ponderado em todas as suas
faculdades e poderes? Mesmo nos maiores e melhores homens,
encontramos desigualdade e desproporção. Em Jesus Cristo não há
descontinuidade. Nele não há preponderância da imaginação acima
do sentimento, do intelecto sobre a imaginação, da vontade sobre o
intelecto. Nele há uma harmonia ininterrupta de todos os poderes
do corpo e da alma, pois Ele serve ao que deve servir, governa o que
deve ser governado, e tudo contribui para um adorável fim. Nele,
toda graça está em sua perfeição, não há nada em excesso, nada fora
de lugar, e nada faltando. Sua justiça e Sua misericórdia, Seu amor
sem fim e Sua verdade, Sua santidade e Seu perdão nunca entram
em conflito; um jamais se sobrepõe ao outro. Sua firmeza jamais

183
Os fundamentos

se degenera em obstinação, ou Sua tranqüilidade em indiferença.


Sua gentileza nunca se torna fraqueza, nem Sua devoção de alma se
torna indiferente aos outros. Em seus melhores servos, as virtudes
e a graça não estão em equilíbrio e, com freqüência, entram em
conflito uma com a outra. Paulo tem horas de fraqueza e até de
petulância. João, o apóstolo do amor, até mesmo quis fazer com que
descesse fogo do céu para consumir os inóspitos samaritanos. E a
mãe Dele, virgem, teve de aprender que nem mesmo ela poderia
dizer-lhe o que Ele deveria ou não fazer.
Em toda Sua vida, a caminhada de um dia jamais contradiz a
outra. Enquanto Ele demonstra que é o Senhor da força e do poder
tremendos da natureza, e o Senhor do mundo invisível, Ele volta-se
para o lado e deixa Sua glória, ao tomar em seus braços as crianci­
nhas e as abençoar. “Ele jamais fala quando seria melhor ficar em
silêncio; Ele jamais fica em silêncio quando seria melhor falar; e
sempre deixa a arena da controvérsia como vencedor”.
g) Onipotência e onisciência
Os evangelistas não deixam de declarar os atributos divinos do
Senhor Jesus, particularmente a onipotência e a onipresença. Eles
agem assim como uma mera questão de fato, quanto ao que pode
e deve ser esperado dessa personagem tão exaltada, como era o
Senhor Jesus. Quão incrível poder é este que Ele demonstrava
quando lhe agradava fazer uso dele! Poder este que se estende às
forças da natureza. A Sua palavra, a tempestade se acalma, e a fúria
do mar cessa. A Sua vontade, caminha sobre as águas como em
terra seca. Isto também se estende ao mundo dos espíritos maus. A
Sua presença, os demônios gritam de medo e abandonam suas víti­
mas. Seu poder se estende ao reino das doenças. Ao Seu comando,
toda forma de enfermidade é curada, e Ele cura o enfermo tanto
quando está ao lado deles, como quando está longe. Igualmente a
morte, esta tirana inexorável que a riqueza nunca conseguiu subor­
nar, nem as lágrimas a amenizaram, nem poder humano jamais a
deteve, mas a qual abandonou imediatamente sua presa, quando a
voz do Filho de Deus ordenou.
Da mesma maneira, Jesus certamente possuía conhecimento e
poder sobre-humanos. Assim, Ele viu as profundezas do coração
de Natanael, quando este estava sob a figueira; Ele viu as pro­
fundezas do mar, e a moeda na boca de um determinado peixe;

184
A glória moral de Jesus Cristo, uma prova da inspiração

Ele, à beira do poço, sabia até mesmo toda a vida passada de uma
mulher, embora jamais a tivesse encontrado. João nos conta que:
“E não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito
do homem, porque ele mesmo sabia o que era a natureza humana”
(Jo 2.25). Ele conhecia o mundo dos maus espíritos. Jesus tinha
pleno conhecimento dos movimentos de Satanás e dos demônios.
Disse ele a Pedro: “Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou
para vos peneirar como trigo! Eu, porém, roguei por ti, para que
a tua fé não desfaleça” (Lc 22.31,32). Ele, muitas vezes, falou
diretamente aos espíritos maus que tinham o controle sobre o
povo, ordenando-os a manter a paz, para saírem e não entrarem em
outras vítimas. Ele conhecia o Pai como ninguém seria capaz de
conhecer. “Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o
Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele
a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11.27).

A aplicação do argumento
Nada é mais óbvio do que esse axioma comum, que todo efeito requer
uma causa adequada. Na Bíblia encontramos quatro breves relatos da
vida terrena de nosso Senhor, os quais tratam quase que exclusivamen­
te de Seu ministério público: eles não professam ter relatado até mesmo
tudo o que Ele fez em sua missão oficial (Cf. Jo 21.25). Os autores
dessas memórias eram homens, cujos nomes são bem familiares
na maior parte do mundo; mas além de seus nomes sabemos bem
pouco sobre eles. O primeiro era coletor de impostos do governo
romano; o segundo era, como geralmente aceito, João Marcos, que
por algum tempo serviu como assistente de Paulo e Barnabé, e que
posteriormente se tornou companheiro e auxiliador de Pedro; o ter­
ceiro era médico e amigo fiel e cooperador de Paulo; e o quarto era
um pescador. Dois deles, Mateus e João, foram discípulos de Jesus;
se os outros, Marcos e Lucas O viram em Sua jornada terrena, isto
não pode ser determinado.
Esses quatro homens, sem experiência na arte de escrever, sem
conhecimento das idéias da antiguidade, escreveram as memórias
da vida de Jesus. Três deles atravessam de forma substancial o
mesmo caminho, relatam os mesmos incidentes, discursos e mila­
gres. Embora esses relatos estejam permeados pela mais profunda
admiração por seu Mestre, eles jamais se estendem sobre Suas
grandes qualidades. Tudo o que eles fazem é relatar Suas ações e

185
Os fundamentos

Seus discursos com o mínimo possível de comentários. Um deles,


na verdade, João, entrelaça comentários reflexivos com a narrativa;
mas ao fazer isso ele se abstém cuidadosamente do elogio e do
panegírico. Ele se detém em sua narrativa apenas para explicar
algumas referências, que introduziriam algum dizer profundo do
Senhor, ou para imprimir alguma verdade vital. No entanto, apesar
dessa ausência total de tentativas de delinear um caráter, estes
quatro homens realizaram o que nenhum outro fez ou poderia fazer
— apresentaram o mundo com o retrato do Homem-Deus, o glorio­
so Salvador. Mateus O descreve como o Messias prometido, a glória
de Israel, o Filho de Davi, o Filho de Abraão; o Único em quem os
pactos e as promessas encontram seu amplo cumprimento; o Único
que cumpriu toda justiça. Marcos O apresenta como o poderoso
Servo do Senhor que realiza o dever que o homem negligenciou
e vai ao encontro da necessidade de todos que O cercam. Lucas
O descreve como o Amigo do homem, cujo amor é tão intenso e
abrangente, cuja piedade é tão divina, que seu poder de salvação se
estende ao judeu e ao gentio, ao mais baixo e ao mais humilde, ao
publicano, ao samaritano, ao pródigo, ao adúltero, ao ladrão, como
também ao homem culto, moral e grande. João o apresenta como o
Filho de Deus, o Verbo que se tornou carne; como a Luz para um
mundo obscuro, como o Pão para um mundo faminto, como a Vida
para um mundo morto. Mateus escreve para os judeus, Marcos
para os romanos, Lucas para os gregos e João para os cristãos; e
todos eles escrevem para todas as raças, povos, tribos e línguas
do mundo todo, e para todas as épocas! O que o filósofo, o poeta,
o erudito, o artista não puderam fazer; o que homens de grande
inteligência e o gênio mais estupendo não conseguiram fazer,
esses quatro homens inexperientes fizeram — eles apresentaram
ao mundo o Filho de Deus, em todas Sua perfeição e glória.
a) Clm fato a ser explicado
Como se dá que homens comuns e sem instrução (At 4.13) cum­
pram tão perfeitamente tão grande tarefa? Sustentemos, portanto,
nosso axioma de que todo efeito deve ter uma causa adequada. Que
explicação podemos dar para esse efeito maravilhoso? Atribuire­
mos sua obra a mentes geniais? Mas as multidões de homens, tanto
antes quanto desde essa época, possuíam mentes geniais do mais
alto grau; e esses homens dotados trabalharam em áreas afins às

186
A glória moral de Jesus Cristo, uma prova da inspiração

dos quatro evangelistas. As mentes mais poderosas da raça huma­


na — homens do Egito, da índia, da China e da Grécia —tentaram
retratar o caráter perfeito e gastaram toda sua genialidade para
pintar um homem semelhante a Deus. E qual o resultado? Ou esse
ser é investido de paixões e brutalidades dos homens decaídos,
ou é um espectador impiedoso e passivo das tristezas e dores do
mundo. Em qualquer um desses casos, esse caráter retratado pode
controlar o medo, mas não o amor e a confiança dos homens.
Novamente perguntamos, como os evangelistas resolveram
esse grandioso problema da humanidade com tão perfeita origina­
lidade e precisão? Existem apenas duas respostas racionalmente
possíveis: 1. Eles tinham diante de si o Cristo pessoal e histórico.
Os homens não poderiam inventar o Deus-homem dos evangelhos,
como também não poderiam criar o mundo. As palavras quase
irreverentes de Theodore Parker estão fundamentadas na verdade
mais absoluta: “Somente alguém como Jesus poderia forjar um
Jesus”. 2. Eles escreveram por inspiração do Espírito Santo. Não
pode ser de outro modo. Não basta dizer que o modelo divino
estava diante deles: eles devem ter algo mais, sem o qual jamais
teriam êxito.
Assumamos que estes quatro homens, Mateus, Marcos, Lucas
e João, foram pessoalmente assistidos sobre o ministério de Jesus
— que eles O viram, O ouviram, O acompanharam por três anos.
Contudo, conforme suas próprias exposições dos fatos, eles não
O entenderam. Eles testificaram que os discípulos, os apóstolos
entre eles, obtiveram apenas as mais ínfimas concepções de Jesus
e de Sua missão. Eles nos falam de uma admirável incapacidade
e debilidade em todas as suas apreensões a respeito de Jesus. O
sol da justiça estava brilhando sobre eles e ao seu redor, e eles
não podiam ver senão o mínimo! Ele lhes contava repetidamente
de Sua morte iminente e de Sua ressurreição, mas eles não O
entendiam; eles até questionaram entre si o que Ele queria dizer
por ressurgir dos mortos (Mc 9.10) — pobres homens! E, esses ho­
mens, que, durante o ministério terreno de Jesus, estiveram cegos
e ignorantes, escreveram quatro pequenas obras sobre a pessoa e
a obra do Senhor Jesus, que o estudo e a pesquisa da cristandade
por dezenove séculos não esgotaram seus ensinamentos, e que a
crítica mais aguda e mais hostil expressamente fracassou ao tentar
desacreditá-la.

187
Os fundamentos

E isso não é tudo. Outros tentaram, a seu próprio modo, compor


a vida e os atos de Jesus. Comparemos alguns destes com os nossos
quatro evangelhos.
b) Evangelhos espúrios
A narrativa dos evangelhos observa um silenciar quase inin­
terrupto quanto à longa estadia de Jesus em Nazaré. Esse vazio
fez com que a igreja se tornasse um tanto impaciente. Durante os
primeiros quatro séculos, muitos tentaram preenchê-lo. Alguns
desses evangelhos apócrifos ainda existem, principalmente aque­
les que tratam da infância e da juventude do Redentor; e é bastante
instrutivo notar como eles procuraram levantar o véu que cobre
os primeiros anos de Cristo. Vejamos o contraste patente entre os
relatos do Novo Testamento e dos evangelhos apócrifos: “O caso ficou
assim: nossos evangelhos nos apresentam um quadro glorioso de um
poderoso Salvador, os evangelhos míticos apresentam o quadro de
um ser desprezível. Em nossos evangelhos, Ele exibe uma sabedoria
sobre-humana; nos míticos, ele é alguém absurdamente sobre-hu-
mano. Em nossos evangelhos, Ele é adornado com todo a beleza da
santidade; nos míticos, o menino Jesus é irritadiço e malicioso. Nossos
evangelhos exibem uma moralidade sublime; naqueles espúrios,
nenhum feixe de luz moral brilha na pessoa retratada. Os milagres de
um e de outro são em todos os pontos antagônicos” (Row).
Esses evangelhos apócrifos foram escritos por homens que vi­
veram não muito longe da era apostólica; por cristãos que queriam
honrar o Salvador em tudo que diziam sobre Ele; por homens que
tinham diante de si o retrato que os evangelhos forneciam Dele.
E, mesmo assim, esses homens, muitos deles mais cultos do que
os apóstolos, com a vantagem de dois ou três séculos de estudo e
pensamento cristão, não puderam produzir um esboço do Menino
Jesus sem violar nosso senso de propriedade e chocar nosso senso
moral. A distância entre os evangelhos do Novo Testamento e os
pseudo-evangelhos é medido pela distância entre o produto do
Espírito de Deus, e o da mente humana decaída.
c) “Vidas de Cristo” não inspiradas
Tomemos um outro exemplo. O século dezenove foi muito
frutífero na produção de obras comumente chamadas de “Vidas
de Cristo”. Vamos contrastar com os evangelhos quatro dessas

188
A glória moral de Jesus Cristo, uma prova da inspiração

“Vidas”, talvez as mais completas e melhores, consideradas em


conjunto, escritas por falantes nativos do inglês — a de Andrews,
a de Geikie, a de Hanna e a de Edersheim. Muitas informações e
auxílio devem ser derivados dos trabalhos desses eruditos cristãos
e outros, que tem trabalhado no mesmo campo; mas quão distante
e abaixo estão todos eles do relato do Novo Testamento, um fato
que nem é preciso demonstrar.
O contraste será percebido quanto ao tamanho ou volume. Os
quatro autores juntos não tem menos de cinco mil quatrocentas e
noventa páginas, o suficiente, nestes dias atarefados, para requerer
meses de leitura para, pelo menos uma vez, ler todo seu conteúdo.
Algumas versões, como a Bagster, imprime os quatro evangelhos
em oitenta e duas páginas; outras, como a American Revised, em
cerca de cem páginas, um contraste com as mais de cinco mil e
quatrocentos dos quatro relatos citados sobre a vida de Jesus .
Como será que tamanha sabedoria e conhecimento estão
reunidos nessas obras curtas? Quem ensinou aos evangelistas esse
poder humano de expressão e condensação, de combinação e sepa­
ração, de revelação nas palavras e mais revelação sob as palavras?
Há apenas uma resposta a essas questões, e não pode haver outra.
O Espírito do Deus vivo preencheu as mentes desses escritores
com Sua sabedoria inerrante e controlou a fala humana deles. A
este Espírito criativo, que povoou o mundo com organismos vivos
tão diminutos que apenas o microscópio pode revelar sua presença,
não é difícil nos dar em tão breve espaço o sublime retrato do Filho
do Homem.

189
191

O testemunho da escritura
em relação a si mesma

Rev. G eo rg eS. B is h o p , D . D .
East Orange, New Jersey
Revisado e editado por Charles L. Feinberg, Th. D., Ph. D.

O assunto sob consideração neste capitulo é o testemunho da Es­


critura em relação a si mesma, ou seja, a auto-evidência, o testemu­
nho irresistível e imparcial que temos ali. Esses testemunhos podem
ser tratados sob quatro tópicos: (1) Imortalidade, (2) Autoridade,
(3) Doutrina Transcendente e (4) Afirmação Direta.
1. I m o r t a l id a d e . Todos os outros livros morrem. Poucos livros
sobrevivem, e desses, poucos tem alguma influência. Muitos

G EORG E SALES BISHOP (1836-1914) nasceu em Rochester, NY, e


formou-se no Seminário Teológico de Princeton em 1864. Foi ordenado
nesse m esm o ano no ministério Presbiteriano, pastoreou igrejas em
Trenton e Orange, NJ, e em Newburgh, NY. Serviu à Primeira Igreja
Reformada de Orange, NJ, por trinta e um anos e foi presidente do
Sinodo Geral da Igreja Reformada da América de 1899 a 1900. Foi
premiado com o título honorário D.D. pela Rutgers üniversity em 1877.
Além de sua contribuição aos Fundamentos, escreveu para várias
publicações evangélicas e foi o autor de The Person and Work of the Holy
Spirit [A Pessoa e a Obra do Espírito Santo] (1897), The Sweep of Time
[O Movimento do Tempo] (1909), The Doctrines of Grace [As Doutrinas
da Graça] (1910) e A Commentary on G alatians [Comentários sobre
Gálatas] (1912).
Os fundamentos

dos livros dos quais citamos foram escritos em tempos recentes.


Mas aqui está um livro cujas vozes antimundanas envelheceram,
da época em que essas vozes falavam no Éden. É um livro que
sobreviveu não apenas com força contínua, mas com crescente
luz, vitalidade e influência. Sobreviveu a todos os choques sem
um arranhão sequer, e a todas as fornalhas das eras sem o
cheiro de fumaça e com cada um de seus documentos em seu
devido lugar. Pode-se dizer a respeito desse livro o que podemos
também dizer do próprio Cristo: “Tu tens o orvalho de tua ju­
ventude desde o ventre da manhã”. Ele data de dias tão remotos
quanto o Ancião de Dias, e quando o universo for dissolvido, ele
ainda falará com vozes de trovão sobre a majestade e a melodia
do amor. Ele cobre em suas páginas o passado sem fim e abre o
futuro interminável, o única revelação inalterável e imutável de
Deus.
2. A IMORTALIDADE ESTÁ AQ U I, E A AUTORIDADE COLOCA SEU SELO
s o b r e e s s e l i v r o . É inútil falar que não há padrão. A natureza
aponta para um; a consciência clama por um. É preciso que haja
padrão, e padrão inspirado; porque a inspiração é a essência da
autoridade, e a autoridade é proporcional à inspiração. Inspira­
ção verbal é, portanto, o Thermopylae2 da fé bíblica. Sem sopro,
nenhuma sílaba; sem sílaba, nenhuma palavra; sem palavra,
nenhum livro; sem livro, nenhuma religião. Não há avanço
possível na revelação, tampouco uma nova luz. O que primeira­
mente foi escrito, permanece o mesmo hoje, e permanecerá para
sempre. O produto da mente de Deus é completo, perfeito e final
(Ap. 22.18,19).
A Bíblia é a palavra de Deus, e não meramente a contém. A
Bíblia se autodenomina a palavra de Deus, e por este mesmo título
difere de todos os outros livros. Se a Bíblia não se chama a Palavra
de Deus, então não pode ser chamada de mais nada. A Bíblia é a
Palavra de Deus, porque vem de Deus; porque todas as suas pala­
vras foram escritas por Deus; porque é o único expoente de Deus;
a única regra de Seu procedimento; e o único livro pelo qual todos
nós devemos ser julgados no final.
(1) A Bíblia é autoridade porque o Deus perfeito é o narrador.
Na Bíblia Deus fala, Deus é ouvido, e os homens nascem de novo
pela Palavra de Deus (Rm 10.7). (2) A Bíblia vem anunciada por
milagres e proclamada com fogo. No Antigo Testamento é o Monte

192
O testemunho da escritura em relação a si mesma

Sinai, no Novo, o Pentecostes. Será que o próprio Deus escreveria


nas tábuas e enviaria as línguas de fogo para a proclamação de
uma revelação, se cada partícula do que estava ali não fosse Dele?
Em suma, operaria milagres e enviaria fogo para sinalizar uma
obra meramente humana, ou até mesmo parcialmente humana e
parcialmente divina? Como seria indigno da parte de Deus, e quão
impossível é essa suposição!
(3) A Bíblia está revestida de autoridade nos termos sublimes
de sua intenção. Deus, na Bíblia, fala a partir de um redemoinho,
por intermédio da voz de um Elias, com o tom imperativo dos
profetas e apóstolos aos quais capacitou a ensinar, com ousadia e
bravura, o mundo de Faraó a Nero, e aos confins da terra. Vejamos
Jeremias 20.9 e Amós 3.8. (4) A Bíblia é a suprema autoridade, pois
é do início ao fim uma projeção gloriosa do mais amplo exalar dos
decretos de Deus. A Bíblia abrange da criação dos anjos ao novo
céu e a nova terra, através do lago de fogo. Que campo para esses
eventos! Quando a Bíblia é considerada como uma projeção exata
dos decretos de Deus no futuro, este argumento chega a um ápice;
de fato, chega ao ponto crucial da controvérsia. A coisa mais difícil
de crer acerca de Deus é que ele conhece o futuro exata e absoluta­
mente, pois Ele o ordenou. O atributo da onisciência infalível é de
difícil compreensão, e invoca a inspiração direta.
(5) A Bíblia é a vestimenta da autoridade, pois os ganchos no fi­
nal da corrente provam a inspiração de cada elo. Compare a Queda
em Gênesis com a ressurreição no Apocalipse. Compare a antiga
criação nos primeiros capítulos do Antigo Testamento com a nova
criação nos últimos capítulos do Novo. Um é o prólogo, ao passo
que o outro é o epílogo desse vasto e infinito drama. (6) Um outro
argumento pela suprema autoridade das Escrituras é o caráter da
investigação desafiada pela Palavra de Deus. A Bíblia vence ao
mais preciso escrutínio. Suas páginas abertas iluminam a legenda,
“Busque as Escrituras!”. As Escrituras podem ser analisadas,
peneiradas e pulverizadas como em um moinho em relação a todos
os pensamento expressos nela. Somente um livro divino ousaria
proferir tal desafio. Deus o escreveu, e ninguém pode esgotá-lo.
Apliquem seus microscópios, apliquem seus telescópios às Escri­
turas. Os estudiosos separam suas fibras, mas não as desgastam.
Eles dispersam suas névoas, mas encontram estrelas agrupadas.
Com a Palavra de Deus, quanto mais escrutínio, mais divindade;

193
Os fundamentos

quanto mais dissecação, tanto mais perfeição. É impossível impor


às Escrituras um teste muito penetrante, ou uma luz muito cortan­
te, ou uma pedra de toque muito exata, pois nada que o homem
criasse poderia ser mais poderoso do que ela.
3. E m t e r c e ir o l u g a r , a s E s c r it u r a s t est ific a m q u an to a sua
do
o r ig e m d iv in a p o r m e io d e sua d o u t r in a t r a n s c e n d e n t e ,
resplendor do divino, do testemunho do Espírito. Esperaríamos
encontrar em um livro que viesse de Deus anotações com pon­
tos de jaspe e de sardônica, e que fosse valorizado pelo o brilho
das colinas perpétuas. Deveríamos procurar por aquilo que o
livro, com radiante convicção, transmite de forma tremenda, e
em toda parte, por meio de seu testemunho nu e cru, pelo qual
ele simplesmente é.
A Bíblia é a Palavra de Deus, pois é o livro dos infinitos, a
revelação do que a natureza jamais alcançou. A maior necessidade
da alma é a salvação. E esse conhecimento de Deus que nos asse­
gurará consolo aqui e no porvir. A natureza desvinculada da Bíblia
não contém esse conhecimento. Tateando em meio à escuridão,
o homem se confronta com dois fatos imutáveis: a culpa do ser
humano e a justiça de Deus. A natureza não pode ajudar o homem;
pois ela não fala em nenhuma parte sobre a redenção.
As Escrituras são divinas em sua própria mensagem, pois elas
tratam de três infinitos: a culpa infinita, a santidade infinita e a
redenção infinita.
Culpa infinita! Minha culpa não tem limite? O inferno é mais
profundo? Infinitamente culpado? Isso é o que sou. A Bíblia declara
esse fato de imediato, bem sei, e por essa razão posso saber que
o testemunho da Bíblia é divino. Sei disso pela consciência, pela
iluminação, pelo poder do Espírito de Deus, pela Palavra e pela
convicção que resplandece em mim, e com a qual concordo.
E equilibrado acima de mim, um correlativo infinito — Deus! O
que pode ser mais alto? Qual horizonte é mais majestoso? O Deus
infinito, acima de mim, vindo para me julgar! Sei disso no instante
em que a Bíblia o declara.
Então, o terceiro, e aquilo que completa o triângulo, tornando
seus lados eterna e divinamente iguais, a redenção infinita, o
Salvador infinito, Deus na cruz respondendo ao Deus do trono,
meu Jesus, meu Refúgio, meu Deus Eterno. Por meio desses três
infinitos, principalmente a redenção infinita pela qual todo o ser

194
O testemunho da escritura em relação a si mesma

humano clama em seu último clamor de exaustão, a Bíblia prova


que é a geometria da alma, a matemática eterna, a verdadeira
revelação de Deus.
As Escrituras são sua própria auto-evidência. O sol não requer
crítica, a verdade nenhuma proteção. Quando Deus fala, sua evidên­
cia está em Suas palavras. Como os profetas antigos sabiam quando
Deus lhes falava, como sabiam que era Deus? Eles se sujeitavam
a voz, que fazia estremecer seus ossos, a um teste crítico? Eles
colocavam Deus a uma prova severa, em uma retorta de química,
para se certificar que era Deus? Eles achavam necessário sustentar
os manuscritos de Deus à luz dos ansiosos exames filosóficos, para
expor e tornar o invisível, visível? A própria sugestão disso é uma
loucura.
4 . Em q u a r t o l u g a r , a s E s c r it u r a s d iz e m d e s i m e sm a s q u e s ã o
Elas não somente assumem, elas afirmam. “Assim diz o
d iv in a s .
Senhor”, é intrínseco, um testemunho dentro do testemunho. O
argumento da auto-afirmação das Escrituras é cumulativo.
(1) A Bíblia reivindica que, como um livro, ela provém de
Deus. De várias maneiras ela insiste nessa reivindicação. Ela
diz isso (Hb 1.1,2). A questão da inspiração é, em sua pri­
meira declaração, a questão da própria revelação. A questão
é simplesmente sobre testemunho divino e nossa tarefa é
apenas receber esse testemunho. Quando Deus fala, tudo é
testemunho. Ele deve ser ouvido e obedecido.
Na Bíblia, Deus fala, e não somente por meio de procuração.
Lemos, repetidas vezes: “O Senhor falou”. O narrador auto-anun-
ciado é Deus. O próprio Deus desce e fala, não somente no Antigo
Testamento, e não somente por procuração. Cristo, em todas as
lugares, aceitou as Escrituras, e refere-se ao Antigo Testamento
em sua inteireza, à Lei, aos profetas e aos Salmos, como o oráculo
vivo de Deus. Ele aceita e endossa tudo que foi escrito, e até torna
mais proeminente aqueles milagres que a infidelidade considera
como o mais incrível. E Jesus faz tudo isso com base na autoridade
de Deus. Essa posição do nosso Salvador, que também exaltava as
Escrituras como a porta-voz do Deus vivo, foi prontamente susten­
tada pelos apóstolos e pela igreja apostólica.
Muitas vezes no livro de Atos dos apóstolos e em todas as epísto­
las, a expressão utilizada é: “Deus disse”, “ele disse”, e, “o Espírito
Santo disse”.

195
Os fundamentos

(2) Se a Escritura é divina, então o que ela diz de si mesma


é divino. Aqui duas palavras constituem as chaves apostólicas
para a posição da igreja: ‘'grafe” (escrita) e “theopneusto” (inspi­
radas por Deus). A afirmação sagrada não é dos instrumentos,
mas do autor, não dos agentes, mas do produto. E a única e
soberana justificação do que foi deixado nas páginas quando
a inspiração chega ao fim. Deus não inspira homens, mas
a linguagem. Homens santos foram movidos, sustentados,
mas seus escritos, aquilo que eles colocaram nas páginas, foi
inspirado por Deus. Você assopra sobre uma lâmina de vidro.
Seu sopro fica congelado ali; fica ali; fixa-se como uma figura
de gelo. Essa é a idéia. O escrito sobre a página que veio da
mão de Paulo era apenas soprada, soprada naquela página,
como a alma foi soprada sobre o corpo de Adão.
Sobre o pergaminho original, cada sentença, palavra, linha,
sinal, ponto, i ou til, traço de pena foi colocado ali por Deus. Não há
discussão sobre um outro pergaminho anterior. Os homens podem
destruir os pergaminhos. O tempo pode os destruir, mas a escrita
permanece.
As Escrituras dizem que as leis que os escritores promulgaram,
as doutrinas que ensinaram, os relatos que eles registraram, suas
profecias de Cristo, não eram suas, não eram concebidas por eles
mediante fontes externas, mas eram dadas diretamente por Deus.
Alguns dos narradores da Bíblia, como Balaão e Caifás, falaram
contra sua própria vontade. Os próprios profetas não sabiam o que
escreviam (lPe 1.10,11). Isso eleva a Bíblia acima de todas as mãos
humanas e a coloca de volta, no seu lugar original, nas mãos de
Deus.
Diz-se que “a palavra do Senhor veio” para este ou aquele
escritor. Não se diz que o Espírito veio, o que é verdadeiro; mas
que a própria Palavra veio. Nega-se, e mais enfaticamente, que as
palavras sejam as palavras do homem, do agente. “Sua palavra está
na minha língua” (2Sm. 23.2). Paulo afirma que: “Em mim, Cristo
fala” (2Co 13.3). Será que a linguagem poderia afirmar ou defender
mais claramente uma inspiração verbal, direta e completa?
As Escrituras declaram que homens santos foram movidos, ou
melhor, carregados por uma corrente extática sobrenatural. Esses
homens não foram deixados um instante sozinhos com a com­
preensão, a sabedoria, fantasia, lembranças ou julgamentos que

196
O testemunho da escritura em relação a si mesma

tinham, tampouco foram deixados sozinhos para ordenar, dispor


ou escrever. Eles eram instrumentos inteligentes, cônscios, exatos
e precisos. Mas, na verdade, foi Deus quem escreveu toda a Bíblia.
O perigo de nossos dias, o declínio da doutrina, da convicção, do
sentimento moral — será que isso tudo não dá seu primeiro passo
em nossa perdida sustentação sobre a inspiração verbal e completa
da Palavra de Deus? Uma boa convicção repousa aqui na raiz de
cada solução que desejamos, como sua triste ausência repousa na
raiz de cada ruína que deploramos.

197
199

O testemunho da unidade
orgânica da Bíblia à sua
inspiração

A rthu r T. P ie r s o n , D .D .
Pastor do tabernáculo de Spurgeon, Londres
Revisado e editado por Charles L. Feinberg, Th.D.,Ph.D.

O argumento pela inspiração da Bíblia a ser apresentado aqui


está fundamentado na unidade das Escrituras. Esta unidade pode
ser vista em vários particulares notáveis.

A unidade é estrutural
No próprio livro aparece um certo arquétipo, um plano arqui­
tetônico. Os dois testamentos são construídos sobre o mesmo
esquema geral. Cada um se divide em três partes: a história, a

ARTHÜR TAPPAN PIERSON (1837-1911) teve a nada invejável tarefa de


substituir a C. H. Spurgeon no púlpito do Metropolitan Tabernacle, em
Londres, quando este ficou doente. Antes de suceder Spurgeon, Pierson,
de 1860 a 1911, servia às igrejas Congregacionais e Presbiterianas em
New York e Pensilvânia. Foi um dos editores da Scofield Reference Bible.
Entre seus livros de destaque encontramos: Crisis of Missions [Crise
das Missões], The Corning of the Lord [A Vinda do Senhor], e Miracle of
Missions [O Milagre das Missões]. Além de sua obra teológica, Pierson
fundou o First Penny Saoing B ank da Filadélfia.
Os fundamentos

didática e a profética; olhando para o passado, para o presente


e para o futuro. Nessa coleção de livros há grande variedade e
diversidade quanto ao estilo e personalidade. Alguns livros são his­
tóricos, outros, poéticos; uns contêm leis, outros, músicas; alguns
são proféticos, outros, simbólicos. No Antigo Testamento, temos
divisões históricas, poéticas e proféticas; no Novo Testamento,
temos narrativas históricas, seguidas por vinte e uma epístolas e
um poema apocalíptico simbólico, em que predominam figuras de
linguagem oriental. Contudo, essa não é uma disposição artificial
dos fragmentos. Encontramos “o Antigo Testamento manifesto no
Novo, e o Novo, latente no Antigo”.
Em um livro assim, portanto, não é comum que houvesse
unidade; pois todas as condições foram desfavoráveis a um ensino
e um testemunho moral harmonioso. Aqui estão reunidos uns ses­
senta ou mais documentos diferentes, escritos por umas quarenta
pessoas, espalhadas em enormes intervalos de tempo e espaço, e
as quais eram estranhas umas às outras. Esses documentos são
escritos em três idiomas diferentes, em países distintos, entre os
mais variados povos que, por vezes, eram hostis aos escritores,
com notórias diversidades de estilos literários, os quais eram
homens de todos os graus de cultura e capacidade mental, de
Moisés a Malaquias. Quando observamos essas produções, existe
nelas grandes dessemelhanças, tanto quanto ao assunto como na
maneira de se expressar; ainda assim todos eles constituem um
só volume.
Todos eles estão inteiramente em concordância. Há diversidade
na unidade, e unidade na diversidade. Quanto mais a estudamos,
mais fazemos aparecer sua unidade e harmonia. Toda crítica de
mais de três mil anos fracassou ao tentar apontar uma contradição
importante ou irreconciliável no testemunho e nos ensinos daque­
les que estão separados por maior distância. Não há colisão, nem
poderia haver! Como isto pode ter acontecido? Não há resposta que
possa ser dada a menos que se admita o elemento sobrenatural. Se
Deus realmente supervisionou a produção deste livro, então sua
unidade é a unidade de um plano divino, e sua harmonia a harmo­
nia de uma suprema inteligência.
O Templo, primeiramente construído sobre o Monte Moriá,
foi feito com pedra, que foram levadas para lá. Não havia nem
martelo, nem machado, nem qualquer ferramenta de ferro fundido

200
O testemunho da unidade orgânica da Bíblia à sua inspiração

no templo durante sua construção. O que garantiu assimetria ao


templo, quando foi construído, e a harmonia entre os operários
nas pedreiras e oficinas e os construtores na colina? Uma mente
presidia todo o plano; uma inteligência construiu toda aquela
estrutura no campo da idéias antes que acontecesse de forma real.
Somente assim podemos explicar a unidade estrutural da Palavra
de Deus. A estrutura estava planejada e forjada na mente de um
arquiteto divino, que supervisionou seus próprios trabalhadores e
obra. Cada coisa está em concordância com as demais, pois toda
a Bíblia foi construída no pensamento de Deus antes que um livro
fosse organizado. A construção surgiu prontamente a partir da
pedra fundamental, primeiro as bases, a seguir pavimento sobre
pavimento, pilares sobre pedestais, e capitéis sobre pilares, e arcos
sobre capitéis, até que o domo refletisse o esplendor do meio dia, e
o Apocalipse abrangesse e completasse o todo glorioso com visões
celestiais.

A unidade é histórica
A Bíblia inteira é a história do Reino de Deus. Israel representa
este reino. Tudo se centra sobre a nação hebréia. Com a origem e
progresso dessa nação, começa a principal porção histórica; com a
apostasia e cativeiro desse povo, essa porção termina. Os tempos
dos gentios preencheram o intervalo, mas não possuem história
própria. A profecia, que é a história antecipada, retoma a linha par­
tida e nos concede o perfil do futuro, quando Israel terá novamente
seu lugar entre as nações.

A unidade é dispensacional
Existem certas características dispensacionais uniformes,
que distinguem cada novo período. Cada dispensação é
marcada por sete características, na seguinte ordem: (a) luz
crescente; (b) declínio da vida espiritual; (c) união entre os
crentes e o mundo; (d) uma civilização gigantesca, do tipo que
encontramos no mundo; (e) desenvolvimento paralelo do bem
e do mal; (f) apostasia da parte do povo de Deus; (g) juízo
final. As mesmas sete marcas têm aparecido igualmente em
todas, demonstrando que há um poder controlador: Deus na
história.

201
Os fundamentos

A unidade é profética
Em toda profecia há apenas um centro, o reino e o Rei. Adão,
o primeiro rei, perdeu seu cetro devido ao pecado. Sua provação
terminou em fracasso e desastre. O último Adão, em sua provação,
obteve a vitória, desbaratou o tentador e permaneceu firme. As duas
vindas deste Rei constituíram os dois centros da elipse profética.
Sua primeira vinda foi para tornar possível um império no homem
e além do homem. Sua Segunda Vinda será para estabelecer este
império em glória. Toda profecia se movimenta ao redor destes
eventos. Ela toca Israel somente enquanto este está relacionado
com o reino; e os gentios só enquanto estes se relacionam com
Israel. Existem umas seiscentas e sessenta e seis profecias gerais
no Antigo Testamento, trezentas e trinta e três delas referem-se
particularmente à vinda do Messias e só se cumprem Nele.

A unidade, portanto, é também pessoal


Hebreus 10.7. Há apenas um livro, e nele, apenas uma pessoa.
Cristo é o centro da profecia do Antigo Testamento, como é tam­
bém da história do Novo Testamento. De Gênesis 3 a Malaquias 3,
Ele preenche o perfil histórico e profético. As produções não só se
unem a Ele, mas até mesmo os ritos e cerimônias encontram Nele
seu único intérprete. Os personagens históricos O prefiguram, e os
eventos históricos são exemplos pictóricos de Seu ministério vicá-
rio. O Antigo Testamento é uma fechadura da qual Cristo é a chave.
Se pegarmos qualquer ponto dele, podemos pregar sobre Jesus.

A unidade é simbólica
Há um uso correspondente dos símbolos, seja na forma, cor ou
número. Na forma, temos o quadrado, o cubo e o círculo, e eles são
usados como tipos da mesma verdade. Na cor, há a branca para a
pureza, os branco reluzente para a glória, o vermelho para a culpa do
pecado e o sacrifício pelo pecado, o azul para a verdade e fidelidade
à promessa, o roxo para a realeza, as cores pálidas ou lívidas para a
morte, e o negro para os desastres e assolações. Quanto aos núme­
ros, há claramente um sistema numérico. O um parece representar
a unidade, o dois, correspondência e confirmação ou contradição;
o três é o número da Trindade; o quatro é o número do mundo e do
homem. O sete, a soma de três e quatro, é a combinação do divino e

202
O testemunho da unidade orgânica da Bíblia à sua inspiração

do humano; o doze é o produto de três e quatro, para representar


que o divino interpenetra o humano; o dez é a soma de um, dois,
três e quatro, e ê o número da completude. Três e meio, um número
quebrado, representa a tribulação; o seis, chega perto do sete, é
a inquietação; o oito, que está além do número do repouso, é o
número da vitória. Isso implica uma mente que esteja presidindo a
tudo, e esta não pode ser a mente do homem.

A unidade é didática
Em todo o alcance e escopo do ensino ético da Bíblia, não
há inconsistência ou adulteração. Os ensinamentos doutrinais e
éticos, do começo ao fim, não estão em conflito, nem a respeito
de um ponto sequer; mais do que isso, encontramos neles uma
unidade positiva de doutrina que nos deixa maravilhados. Mesmo
quando, à primeira vista, parece haver conflito, como entre Paulo
e Tiago, em um exame mais detalhado, descobre-se que em vez de
um estar debatendo com o outro, face a face, na verdade, eles estão
um de costas para o outro, lutando contra inimigos comuns. Além
disso, observamos um desenvolvimento progressivo da revelação,
não apenas do Antigo Testamento para o Novo Testamento, mas
nos limites do próprio Novo Testamento. O mais espantoso de tudo
é que essa unidade didática e moral não pode ser plenamente com­
preendida, senão até que o livro estivesse completo. O progresso da
preparação, como um andaime sobre a construção, obscurecia sua
beleza; mas quando João colocou a última peça na posição esperada
e declarou que nada mais seria acrescido, o andaime foi retirado, e
a grande catedral foi revelada.

A unidade é científica
A Bíblia não é um livro científico, mas segue uma lei consis­
tente. Como uma locomotiva em seu trilho, ela ressoa no trilho da
ciência, mas jamais se desvia de seu próprio trilho. (1) Aqui não se
encontra nenhum ensino direto ou antecipação da verdade científica.
(2) Nenhum fato científico é afirmado de forma equivocada, embora
seja empregado uma fraseologia comum, popular. (3) Utiliza-se um
conjunto elástico de termos, que contêm em germe toda verdade
científica, como a semente contém a árvore. A linguagem é tão elás­
tica e flexível a ponto de contrastar-se com a estreiteza da ignorância
humana, e ainda expande-se às dimensões do conhecimento. Se a

203
Os fundamentos

Bíblia pode, por meio da linguagem imperfeita, selecionar os ter­


mos que podem sustentar verdades ocultas até que épocas futuras
cheguem para descortinar o significado interior, isso deve parecer
ser a melhor solução desse difícil problema. Agora, quando che­
gamos a comparar a linguagem da Bíblia com a ciência moderna,
descobrimos ser isso um fato.
A correspondência geral entre o relato mosaico da criação e
as descobertas mais avançadas da ciência prova que somente
aquele que construiu o mundo, poderia construir o livro. Quan­
to ã ordem da criação, Moisés e a geologia estão de acordo.
Ambos ensinam que no princípio havia um abismo, ou um de­
serto aquático, cujos densos vapores encobriam a luz. Ambos
fazem a vida preceder à luz; e a vida se desenvolver debaixo
do abismo. Ambos fazem a atmosfera formar uma expansão ao
transformar os vapores em nuvens, e assim separar as fontes
de águas de cima das fontes debaixo. Ambos nos contam que os
continentes se elevaram de debaixo das grandes profundezas,
e produziram relva, ervas e árvores. Ambos ensinam que os
céus foram clareados, e o sol e a lua e as estrelas, que então
apareceram, começaram a servir para dividir o dia da noite e a
sinalizar as estações e os anos. Ambos, portanto, representam
as águas produzindo criaturas que se movem e rastejam e aves
que voam na expansão da atmosfera, seguidos pela raça de
quadrúpedes mamíferos e, ao fim de tudo, o aparecimento do
homem.
Há também o mesmo acordo quanto à ordem da criação ani­
mal. A geologia e a anatomia comparativa se unem para ensinar
que a ordem vai dos tipos inferiores aos superiores; primeiro, o
peixe, em seguida os répteis, depois o homem. Esta é exatamente
a ordem seguida por Moisés. Podemos pegar o exemplo desta
garantia científica na astronomia. Jeremias 33.22 diz, “Não se
pode contar os exércitos do céu, nem medir a areia do mar”. Antes
do tempo de Cristo, esse número era considerado como cerca de
mil; no século XIX, esse número aumentou para milhões; e agora
sabemos que estão enumerados na casa dos bilhões. Assim, a
exclamação do profeta, seiscentos séculos antes de Cristo, mais
de dois mil anos antes de Galileu, prova que não foi um exagero
poético, mas uma verdade literal. Quem foi o professor de astro­
nomia de Jeremias?

204
O testemunho da unidade orgânica da Bíblia à sua inspiração

Por fim, a unidade da Bíblia é orgânica


Essa é a unidade do ser organizado. A unidade implica três
coisas: primeiro, que todas as partes são necessárias para um todo
completo; segundo, que todas as partes são necessárias para que
uma complemente a outra; e terceiro, que todas são permeadas por
um único princípio vital.
(1) A unidade orgânica é dependente da existência e cooperação dos
órgãos. Um oratório não é uma unidade orgânica, pois qualquer
parte dele pode ser separada das demais, ou deslocada por uma
nova composição. Mas se o corpo humano perde um olho, um
membro ou a menor junta de um dedo, ele está permanentemen­
te danificado; a completude do ser se foi: Nenhum livro da Bíblia
poderia se perder sem danificar o corpo da verdade contido ali.
Cada livro preenche um lugar; nenhum pode ser omitido.
Por exemplo, o livro de Ester há muito tem sido criticado como
não necessário à completude do cânon, particularmente porque não
faz nenhuma menção ao nome de Deus. No entanto, esse livro é a
exibição mais completa da providência de Deus. Ele ensina que há
uma mão divina além dos afazeres humanos, em que há liberdade
de resolução desinteressada e ação consistente com a soberania de
Deus, e todas trabalhando juntas para produzir grandes resultados.
A epístola a Filemom parece, à primeira vista, apenas uma carta
a um amigo sobre um escravo fugitivo. Mas essa carta está cheia de
exemplos de graça. O pecador fugiu de Deus e, além disso, ainda o
roubou. Alei não lhe concede direito de asilo; mas a graça lhe con­
cede o privilégio do apelo. Cristo, Parceiro de Deus, intercede. Ele
o envia de volta ao Pai, não mais como escravo, mas como filho.
(2) A lei da unidade foi enquadrada na declaração científica. O
ser organizado, em todos os casos existentes, forma um todo,
um sistema completo, todas as partes do qual se correspondem
mutuamente. Nenhuma dessas partes pode mudar sem que a
outra também mude; e, conseqüentemente, cada uma tomada
separadamente indica e fornece todas as outras. Os quatro
evangelhos são necessários uns aos outros e a toda Bíblia. Cada
um deles apresenta o assunto de um ponto de vista diferente, e a
combinação nos dá uma Pessoa divina refletida e projetada dian­
te de nós, como um objeto com proporções e dimensões. Mateus
escreveu aos judeus, e mostrou Jesus como o Rei do Judeus, o

205
Os fundamentos

Legislador Real. Marcos escreveu para os romanos e o mostrou


Cristo como o Poder de Deus, o Servo divino. Lucas escreveu
para os gregos e O mostrou como a Sabedoria de Deus, o Mestre
e Amigo humano. João escreveu para suplementar e completar
os outros evangelhos, e O mostra como o Filho de Deus, assim
como o Filho do homem, que tem e concede a vida eterna.
Do mesmo modo, as epístolas são todas necessárias para com­
pletar o todo e se completam umas às outras. Há cinco escritores,
cada um possuindo sua própria esfera de verdade. O grande tema
de Paulo é a fé e sua relação com a justificação, a santificação, o
serviço, a alegria e a glória. Tiago trata das obras, sua relação com
a fé e sua justificação diante do homem. Ele é a contraparte e com­
plemento de Paulo. Pedro trata da esperança, como a inspiração
do povo peregrino de Deus. O tema de João é o amor e sua relação
com a luz e a vida de Deus como manifestada no crente. Judas soa
a trombeta do alerta contra a apostasia, que implica a ruína da fé,
a ilusão da falsa esperança, o esfriamento do amor e a expressa
decadência das boas obras. Qual desses escritores poderia ser
banido do Novo Testamento?
A unidade da Bíblia é a unidade de um todo orgânico. O decálogo
exige o Sermão da Montanha. A profecia de Isaías torna necessária
a narrativa dos evangelistas. Daniel está para o Apocalipse como
um osso está para a articulação. Levítico explica e é explicado pela
epístola aos Hebreus. Os Salmos expressam a mais alta moralidade
e espiritualidade do Antigo Testamento; eles ligam o código mo­
saico com a ética divina dos evangelhos e das epístolas. Quando
chegamos aos últimos capítulos do Apocalipse, encontramo-nos
misteriosamente nos primeiros capítulos de Gênesis; e o mais
admirável é que quando percorremos todo o trajeto de seu pensa­
mento, percebemos que seguimos o perímetro de um anel de ouro;
as extremidades se encurvam, se tocam e se fundem.
(3) A vida de Deus está em Sua Palavra. A Palavra é ativa, viva. Seria
um espelho? Sim, mas um espelho como um olho vivo. Seria uma
semente? Sim, mas uma semente que oculta a vitalidade de Deus.
Seria uma espada? Sim, mas uma espada que discerne de forma
onisciente e permeia de forma onipotente o coração humano. Se-
jamos-lhe reverentes, para que tenhamos um livro vivo em nossas
mãos. Falemos com ele, e ele nos responderá. Curvemo-nos e
ouçamos; ouviremos nele as batidas do coração de Deus.

206
O testemunho da unidade orgânica da Bíblia à sua inspiração

Devemos empunhar esse livro, único, portanto, como a palavra


da vida e a luz de Deus no meio de uma geração adúltera e perversa.
Encontraremos oposição. Como os pássaros que voam de encontro
à Estátua da Liberdade, em Nova York, devido à insensibilidade em
relação à luz, as criaturas da escuridão insultarão a Palavra e em
vão procurarão apagar sua luz eterna. Mas eles só terão fracassos
estonteantes e derrotas em seu fundamento, ao passo que Ela
ainda se manterá erguida em seu pedestal de pedra, irremovível e
serena!

207
209

A profecia cumprida, um forte


argumento para a Bíblia

A rno C. G a e b e le in , D .D .
Ex- editor da revista Our Hope
[Nossa Esperança], Nova York
Revisado e editado por Charles L. Feinberg, Th. D., Ph.D.

O desafio do Senhor aos deuses ídolos da Babilônia era o de


predizer os acontecimentos futuros. Vejamos Isaías 41.22,23 e 46.10.
Somente Deus pode declarar o final desde o começo. Os ídolos
mudos dos pagãos não sabem nada a respeito do futuro, e o próprio
homem é incapaz de descobrir o que acontecerá. Portanto, o Senhor,
que fez esse desafio, demonstrou seu poder ao predizê-lo. Nenhum

ARNO CLEMENS GAEBELEIN (1861-1945) foi um estudioso incansável


e dedicado da Bíblia, que chegou aos Estados ünidos, proveniente
da Alemanha, quando estava com 18 anos de idade. Praticamente
autodidata em questões bíblicas, Gaebelein, no entanto, possuía um
ótimo conhecimento de hebraico. Seu conhecimento sobre as profecias
foi de grande ajuda em seu ministério com os judeus em Nova York. Sua
obra, como fundador e editor da revista O ur Hope [Nossa Esperança]
é ainda hoje reverenciada por aqueles que se beneficiaram com seus
estudos bíblicos mensais. Os livros de Gaebelein são ainda hoje muito
estimado pelos estudiosos da Bíblia, livros como The Annotaded Bible
[A Bíblia Anotada], Studies in Zechariah [Estudos sobre Zacarias] e The
Prophet Daniel [O Profeta Daniel] (publicado novamente em 1955, por
Kregel Publications). Gaebelein foi um dos editores da Scofield Refererice
Bible.
Os fundamentos

dos “livros sagrados” das nações contém predições do futuro. Se


os autores desses escritos tentassem predizer o futuro, eles teriam
fornecido mais evidência de sua decepção. Mas a Bíblia é predo­
minantemente um livro de profecia. E essas profecias, conforme é
declarado, são as falas do Senhor e mostram que a Bíblia é um livro
sobrenatural, a revelação de Deus.

A profecia negligenciada e negada


E deplorável, portanto, que a igreja ignore ou negligencie quase
completamente o estudo da profecia, resultando na perda de uma
das mais poderosas armas contra a infidelidade. A negação da Bíblia
como a Palavra de Deus inspirada tem se difundido bastante. Se a
profecia fosse estudada de maneira inteligente, essa negação não
poderia florescer como floresce, porque as predições cumpridas da
Bíblia dão a mais clara e a mais conclusiva evidência de que a Bíblia
é a revelação de Deus.

Passado, presente e futuro


As profecias da Bíblia podem, antes de mais nada, ser divididas
em três classes: (1) As profecias que já foram cumpridas. (2) As
profecias que, neste momento, estão em processo de cumprimento.
Muitas predições escritas há milhares de anos atrás estão sendo
cumpridas. Entre elas, estão aquelas que se relacionam com a
condição nacional e espiritual de Israel, e as predições relativas
à condição moral da época presente. (3) As profecias que ainda
serão cumpridas. A referência, neste caso, diz respeito àquelas que
predizem a Segunda Vinda gloriosa de Nosso Senhor, o re-ajun-
tamento e a restauração de Israel à terra da promessa, os juízos
que aguardam as nações da terra, o estabelecimento do reino, a
conversão do mundo, a justiça e a paz universal, a libertação da
criação, e outras mais.
Essas grandes profecias a respeito das coisas futuras são muitas
vezes roubadas de seu significado literal e solene por um processo
de espiritualização. As visões dos profetas referentes a Israel e
Jerusalém e às glórias que acontecerão em uma era futura, são
quase que geralmente explicadas como profecias que terão seu
cumprimento na igreja durante a época atual. No entanto, nosso
objeto não é acompanhar as profecias não cumpridas, mas as profe­
cias cumpridas e em processo de cumprimento.

210
A profecia cumprida, um forte argumento para a Bíblia

Profecia cumprida, um tema vasto


A profecia cumprida é um tema vasto e de muita importância.
A história dá testemunho de que os eventos que têm transpirado
entre as nações foram pré-escritos na Bíblia. A atenção será diri­
gida às profecias cumpridas que se relacionam à Pessoa de Cristo,
ao povo de Israel e a um número de nações, cuja história têm sido
divinamente predita na Bíblia. Além disso, dever-se-á fazer menção
dos desdobramentos proféticos fornecidos no livro de Daniel, com
seu interessante cumprimento.

Profecias messiânicas e seu cumprimento


A Antigo Testamento contém uma ordem notável de profecias
relativas à Pessoa, vida e obra de nosso Senhor. A crítica
destrutiva radical tem tomado a posição de que não existem
predições relativas a Cristo no Antigo Testamento. Tal
negação está ligada à negação de Sua divindade e de Sua
obra na cruz. Acompanhar o grande número de profecias
relativas à vinda de Cristo no mundo e à obra que ele
deveria cumprir aqui está além do escopo destas páginas.
Entretanto, a profecia Messiânica será indicada mais por­
menorizadamente. Cristo é primeiramente anunciado em
Gênesis 3.25, como a semente da mulher, e, portanto da raça
humana. Em Gênesis 9.26,27, a supremacia de Sem é predita.
No devido tempo, Abraão, filho de Sem, recebeu a promessa
de que a semente predita viria dele (Gn 12.8).
Portanto, o fato revelado foi que ele viria de Isaque, e não de
Ismael, de Jacó, e não de Esaú. A predição divina apontou para
Judá e, posteriormente, para a casa de Davi como a raiz de onde o
Messias brotaria. As profecias de Isaías revelam que sua mãe seria
virgem (Is 7.14); da virgem nasceria um filho e este se chamaria
Emanuel, que significa Deus conosco. A divindade e a humanidade
estão unidas no Messias (Is. 9.6). O Messias, o Filho de Deus,
apareceria (Is 11.1) depois que a casa de Davi fosse destituída de
sua dignidade e glória reais.
Existem profecias que falam de Sua vida, Sua pobreza, das obras
que faria, assim como da rejeição que sofreria por parte de Seu
próprio povo (Is 53). Durante o tempo de Sua rejeição por Israel, os
gentios seriam visitados por Sua salvação (Is 49.5,6).

211
Os fundamentos

Seu sofrimento e morte são ainda mais minuciosamente


preditos. No livro dos Salmos, os sofrimentos de Cristo, a profunda
agonia de sua alma, as expressões de sua tristeza e seu pesar são
pré-escritos pelo Espírito de Deus. Sua morte por meio da crucifica­
ção está profetizada no Salmo 22, uma morte desconhecida na época
de Davi. O clamor do Abandonado é predito com as mesmas palavras
que saem da boca de nosso Salvador na escuridão que o envolvia na
cruz. Do mesmo modo, são as palavras de zombaria daqueles que o
olharam; a perfuração de suas mãos e pés; a divisão das roupas e o
lançar sorte por elas. Por fim, o Salmo 110.1 profetiza que o Rejeitado
ocuparia o lugar à destra de Deus. Na verdade, este é um encadea-
mento maravilhoso de profecias que dizem respeito a Cristo.

O povojudeu
Quando Frederico, o Grande, rei da Prússia, pediu ao capitão
da corte um argumento em favor da inspiração da Bíblia, este
respondeu: “Vossa Majestade, os judeus”. Ele respondeu bem à
pergunta. As Escrituras estão cheias de predições relativas à histó­
ria de Israel. Suas descrenças, a rejeição do Messias, os resultados
dessa rejeição, a dispersão pelo mundo, as perseguições e tristezas
que sofreram, a preservação miraculosa como nação, a futura
grande tribulação e restauração final — todos estes fatos foram
anunciados repetidamente por seus profetas. Toda a história desse
povo está cheia de acontecimentos que foram preditos muito antes
de que fossem cumpridos. Sua jornada e servidão no Egito foram
anunciadas a Abraão. O cativeiro babilônico e o retorno de uma
parte remanescente foram preditos pelos profetas pré-exílios, que
também previram um exílio maior e de proporções mundiais. Nas
profecias do retorno da Babilônia, até mesmo o nome do rei Persa,
por quem essa previsão seria cumprida, é predito. Duzentos anos
antes que Ciro nascesse, Isaías profetizou acerca dele (Is. 44.28;
45.1).
Um dos capítulos mais notáveis no Pentateuco é Deuteronômio 28.
Ali foi predita a triste história de Israel. O Espírito de Deus, por
intermédio de Moisés, esboçou milhares de anos atrás a história
da nação dispersa, o sofrimento e a tribulação dela, como tem
acontecido há dois milênios, e ainda está acontecendo. Esses são
argumentos a favor da origem divina e sobrenatural desse livro,
que nenhum infiel jamais foi capaz de responder; nem haverá

212
A profecia cumprida, um forte argumento para a Bíblia

qualquer resposta para ele. Algo muito interessante é o último ver­


sículo desse grande capítulo profético. Quando Jerusalém foi des­
truída pelos romanos em 70 d.C., todos aqueles que não morreram
na terrível calamidade foram enviados às minas do Egito, onde os
escravos foram mantidos em trabalho constante até que sucumbis­
sem. De acordo com Josefo, cerca de cem mil foram feitos escravos,
de maneira que o mercado estava abarrotado de judeus. Assim foi
cumprida a palavra: “Mas não haverá quem vos compre”.
Embora sem uma terra, Israel, através dos séculos, continuou
sendo uma nação. Tudo isso foi escrito de antemão na Bíblia.
Comparemos Levítico 26.33, Deuteronômio 4.27; 28.64-67; e
Jeremias 30.11. Herder chamou os judeus de “o enigma da história”.
Que mente humana teria predito que esse povo em particular, que
habitava em uma terra especial, seria espalhado entre as nações,
sofreria como nenhuma outra nação sofreu e ainda seria guardado,
sendo, desse modo, marcado como o povo do pacto de Deus, o
Senhor cujos dons e chamados são sem arrependimento? Aqui
na verdade está um argumento a favor da Palavra de Deus que
nenhum infiel pode responder.
De acordo com Oséias 5.15, o Senhor estaria no meio de Israel, e
este retornaria ao seu lugar. A referência não é à manifestação do Se­
nhorJesus Cristo entre seu povo. Eles O rejeitaram; Ele retornou a seu
lugar em glória. O povo escolhido ainda deverá reconhecer a ofensa
que fez. Na Palavra, em vários outros trechos, encontram-se profecias
que predizem o futuro arrependimento nacional de Israel, quando o
remanescente confessar a culpa por ter rejeitado o Messias.

Profecia de outras nações


Os profetas têm muito a dizer sobre as nações que tiveram
contato com Israel. Babilônia, Assíria, Egito, Amom, Moabe, Tiro,
Sidom, Iduméia e outras nações são mencionadas nas Escrituras
proféticas. Seu destino final foi predito por Deus muito antes de sua
queda e ruína acontecer. A profecia precisa de Ezequiel, referente
ao julgamento dessas nações, nos capítulos vinte e cinco a trinta
e sete foram cumpridas ao pé da letra, como pode se verificar ao
comparar a profecia com a história secular. Quer seja a predição de
Ezequiel da destruição de Tiro (capítulos 26 a 28), quer sejam as
profecias de Isaías do julgamento do Egito (capítulo 19), tudo foi
cumprido literalmente.

213
Os fundamentos

Além disso, o livro de Daniel fornece algumas das mais estu­


pendas evidências do cumprimento da profecia. Nenhum livro da
Bíblia foi mais atacado do que esse, ele, no entanto, sobreviveu
a todos os ataques. O sonho de Nabucodonosor está relatado
no segundo capítulo. O rei pagão foi informado por Deus sobre
o rumo do mundo, daqueles dias até o reino do Messias. Como
predito, os reinos seriam quatro: Babilônia, Medo-Persa, Grécia
e Roma. A divisão final em dez reinos ainda será cumprida. No
sétimo capítulo, a visão de Daniel cobre a mesma área, só que
do ponto de vista de Deus, e acrescenta detalhes com relação ao
quarto império. A história dá testemunho de que esses quatro
poderes tiveram um lugar na história e caíram, como indicado
nesses relatos proféticos. No oitavo capítulo, foram reveladas a
vinda e a carreira de Alexandre, o Grande. Não é possível refutar
a identificação do regente ímpio, em 8.19-24, com a Antíoco Epifa-
nes. A maior profecia do livro de Daniel está no capítulo nove, em
que é descrito e claramente predito o tempo da vinda do Messias,
Sua morte violenta, a reconstrução de Jerusalém no tempo de
Esdras e Neemias e sua subseqüente destruição pelos romanos
no ano 70 d.C.
A maior parte do capítulo onze de Daniel foi historicamente
cumprida. Essas predições foram tão acuradas que os inimigos
da Palavra tiveram de recorrer ao subterfúgio de que o capítulo
foi escrito após a ocorrência dos eventos. Pode-se fazer alusão
a muitas profecias e ao cumprimento delas; outras, igualmente
claras, podem ser apresentadas. O poderoso rei do versículo três
era Alexandre, o Grande, filho de Felipe da Macedônia. O versículo
quatro declara de maneira precisa a ruína do império de Alexandre.
O rei do sul e o rei do norte, no versículo seis, são Ptolomeu II
(Filadelfos) e Antíoco II (Theos), respectivamente. A invasão da
terra da Palestina por Antíoco, o Grande, foi predita no versículo
dezesseis. Afilha da mulher do versículo dezessete, conforme os fa­
tos históricos, era Cleópatra. Os versículos vinte e um a quarenta e
cinco encontraram seu cumprimento nos atos ímpios de Antíoco IV
(Epifanes). Os atos heróicos e piedosos dos Macabeus (relatados
no livro apócrifo dos Macabeus) possuem referência nos versículos
trinta e dois e trinta e quatro.

214
A profecia cumprida, um forte argumento para a Bíblia

Outras profecias cumpridas


O Novo Testamento contém profecias que estão em processo
de cumprimento. A apostasia atual da fé histórica foi predito em
passagens como ITimóteo 4.1,2; 2Timóteo 3.1-5; 4.1-3; 2Pedro 2;
epístola de Judas; e outras porções das epístolas e do Apocalipse.

Profecias não cumpridas


Na Bíblia existem muitas profecias que não foram cumpridas. O
cumprimento literal das profecias no passado, no entanto, confirma
o cumprimento literal de toda profecia na Palavra de Deus. O mundo
ainda aguarda seu cumprimento. A seu tempo, Deus cumprirá seus
propósitos eternos. Nós, o povo de Deus, não podemos negligenciar
a profecia, pois o testemunho profético é a lâmpada que brilha na
escuridão.

215
217

Vida na palavra

P h il ip M auro
Procurador de Justiça, Nova York
Revisado e editado porRev. Glenn 0 ’Neal, Ph.D.

Das muitas declarações que a Bíblia faz com respeito à Palavra


de Deus, nenhuma é mais significativa, e certamente nenhuma é de
maior importância ao homem mortal, do que a declaração de que a
Palavra de Deus é uma Palavra Viva. Se os homens forem capazes
de apreender, mesmo que debilmente, esse tremendo fato, isso os
levará a dar o devido respeito e ênfase em sua pregação e ensino.
Em Filipenses 2.16, temos a expressão: “A Palavra da Vida”. A
mesma expressão ocorre em ljoão 1.1, que aqui é utilizada a respei­
to de Jesus Cristo, a Palavra encarnada, ao passo que em Filipenses,

PHILIP MAÜRO (1859-1952) foi um advogado de sucesso, atuando


diante da Suprema Corte dos Estados ünidos, quando se converteu
após assistir encontros no Gospel Tabernacle, em New York, cujo pastor
era A. B. Simpson. Isso foi no dia 24 de maio de 1903. No ano seguinte,
ele publicou From Reason to Reuelation [Da Razão à Revelação], o
primeiro de mais de quarenta livros de sua autoria, ü m de seus livros
mais amplamente circulados, Life in the Word [Vida na Palavra], foi
publicado em 1909 e foi incluído em Os Fundamentos em uma versão
condensada. Ele continuou sua prática legal, mas falava em encontros
cristãos e escrevia livros e artigos. Foi Mauro quem preparou o sumário
legal que Williarn Jennings Bryan usou no famoso julgamento de
Scopes Trial, em 1925. Nos anos posteriores, ele m udou seu ponto de
vista quanto ao Reino e à profecia, mas nunca se afastou das doutrinas
básicas da fé cristã.
Os fundamentos

aparentemente, fala-se da Palavra escrita. A Palavra escrita e a


Palavra encarnada são identificadas desse modo nas Escrituras, e
o significado desse termo nem sempre é muito claro, pois se diz as
mesmas coisas tanto de uma quanto de outra, e também o mesmo
caráter é atribuído a ambas. A semelhança fundamental repousa no
fato de que cada uma é a expressão tangível ou reveladora do Deus
invisível. Como a Palavra escrita ou falada afirma, o propósito é o
de comunicar ao outro o pensamento invisível e inacessível, assim
também Jesus Cristo, como a Palavra encarnada, e as sagradas
Escrituras, como a Palavra escrita, expressam e comunicam o
conhecimento do Deus invisível e inacessível. “Quem me vê a
mim vê o Pai [...] Crede-me que estou no Pai, e o Pai, em mim”
(Jo 14.9,11).
Em Hebreus 4.12, encontramos a declaraçao de que “a palavra
de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de
dois gumes”. E isso se refere claramente à Palavra escrita. Contu­
do, o versículo seguinte, sem qualquer mudança de assunto, dirige
nossa atenção Aquele que sonda os corações (Ap 2.23), dizendo:
“E não há criatura que não seja manifesta na sua presença; pelo
contrário, todas as coisas estão descobertas e patentes aos olhos
daquele a quem temos de prestar contas”.
Também em lPedro 1.23, lemos a respeito da “palavra de Deus,
a qual vive e é permanente”, ou mais literalmente, a palavra do Deus
vivo. Aqui também pode haver incerteza se ele se refere à Palavra
encarnada ou à Palavra escrita; mas, geralmente, entende-se que se
trata desta última, e a citação de Isaías 40.6-8 confirmaria essa idéia.
Aprendemos com essas passagens que elas se referem à Palavra
de Deus como a Palavra Viva. Essa é uma declaração notável, digna
de nosso exame mais apurado e de nossa mais séria consideração.
Por que se referem à Palavra de Deus desse modo? Por que se
atribui a ela extraordinária propriedade de v id a , o u vitalidade? Em
que sentido pode-se dizer que é uma Palavra Viva?
A expressão v iv a , como aplicada à Palavra de Deus, significa,
notoriamente, alguma coisa mais do que participar do tipo de vida
com a qual estamos acostumados e que reconhecemos por meio da
observação. Deus fala de Si mesmo como o Deus vivo. O Senhor
Jesus é o “Autor da vida” (At 3.15). Ele se apresentou a João, na
visão que este teve em Patmos, como Aquele que vive. A vida eterna
está Nele (ljo 5.11).
Vida na palavra

É claro, portanto, que quando lemos “a palavra de Deus é viva”,


devemos entender que ela vive uma vida espiritual, inexaurível,
inextinguível, em suma, uma vida divina. Na verdade, se a Palavra
de Deus é viva nesse sentido, então temos aqui um fato da mais
extraordinária importância. No mundo ao nosso redor, os seres
e as coisas que chamamos vivos podem, apropriadamente, ser
chamados de “mortos”. O que chamamos de “a terra dos vivos”
pode ser melhor descrita como a terra dos que morrem. Qualquer
que seja a direção para qual olhamos, sempre vemos que a morte
está dominando e operando de acordo com seu método invariável
de corrupção e decadência. A morte é o monarca verdadeiro deste
mundo, e encontramo-nos sempre com a evidência e os resultados
terríveis daquele que tem o domínio universal, “que tem o poder da
morte, a saber, o diabo” (Hb 2.14). A morte reina (Rm 5.17), e ainda
reina sobre todas as coisas. O poder extremo e terrível da morte
fez desta terra um grande campo de sepulturas — um gigantesco
cemitério.
Será que pode haver uma exceção a esta aparente regra univer­
sal? Será que há, na verdade, neste mundo de seres que morrem,
onde as forças da corrupção agarram imediatamente tudo em
que a vida entra, e sobre todas as obras das chamadas criaturas
vivas, um objeto que é realmente vivo, um objeto sobre o qual a
corrupção não pode se agarrar e que resiste e desafia todos os po­
deres da morte? Essa é a afirmação das passagens das Escrituras
que citamos. Certamente, portanto, se essas declarações forem
verdadeiras, temos aqui o mais espantoso fenômeno de todo o
universo acessível; e será de muito valor investigar um objeto
sobre o qual tão incrível asserção é, seriamente, feita, se bem que
muito discretamente.
Antes de continuarmos com nossa pesquisa, notemos um dos
muitos pontos de semelhança entre a Palavra encarnada e a Palavra
escrita. “Quando o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14),
não havia nada em sua aparência que manifestasse sua divindade,
ou que mostrasse que “a vida estava nele” (Jo 1.4). Esse fato não
foi demonstrado por seu comportamento sem mácula e altruísta,
nem por seus incomparáveis ensinos e discursos, mas por sua
ressurreição dos mortos. O único poder que é maior do que a morte
é o poder da vida. Ele teve e exerceu esse poder e possui agora as
chaves da morte e do inferno.
Os fundamentos

Similarmente, não há nada na aparência e no comportamento


(por assim dizer) da Bíblia que mostre que ela tem uma caracte­
rística de vida divina, que outros livros não têm. Ela tem a mesma
semelhança com outros escritos que Jesus, o filho de Maria, tem
para com outros homens. A linguagem utilizada é humana, assim
como Ele veio em carne humana. Contudo, há entre ela e todos os
outros livros a mesma diferença que há entre Ele e todos os outros
homens, a saber, a diferença entre o que vive e o que morre. “A
Palavra de Deus é viva” (Hb 4.12).
Ela requer, portanto, algo mais do que um rápido olhar ou uma
inspeção casual para discernir sua maravilhosa diferença; mas a
diferença está lá, e, com diligência e atenção, podemos descobrir
algumas indicações claras dessa diferença.
Olhemos, portanto, para a Palavra escrita de Deus para ver
se ela manifesta características que são encontradas apenas nas
coisas vivas e também para ver se ela exibe, não simplesmente a
posse da vida do tipo perecível e corruptível com o qual estamos tão
familiarizados pela observação, mas a vida de uma ordem diferente,
imperecível e incorruptível.

Vivacidade perene
A Bíblia difere-se radicalmente de todos os outros livros em sua
vivacidade perpétua. Essa característica é reconhecida somente
por aqueles que conhecem o livro de maneira íntima, algo que pro­
vêm da convivência com ela, como se fosse um membro da família.
Menciono isso primeiro, porque foi uma das propriedades únicas
da Bíblia que me impressionou após eu começar a lê-la depois de
minha conversão a Cristo. E fato bem notório que a Bíblia jamais
se esgota, jamais adquire mesmice, jamais diminui seu poder de
responsabilidade para com a alma aflita que dela se aproxima.
As passagens mais conhecidas, após milhares de leituras, são
tão vivas como na primeira vez. E, na verdade, como uma fonte
de água viva. A fonte é a mesma, mas a água é sempre fresca, e
sempre refrescante. Não podemos comparar isso a nada, senão ao
que encontramos em uma companhia viva, a quem amamos e a
quem vamos em socorro e comunhão. A pessoa é sempre a mesma,
mas sem mesmice. Novas condições evocam novas respostas; e o
mesmo acontece com a Bíblia. Como um livro vivo, ela se adapta
às novas fases de nossa experiência e às novas condições nas quais

220
Vida na palavra

nos encontramos. Das passagens mais familiares vêm, repetidas


vezes, uma nova mensagem; como nosso amigo mais íntimo terá
sempre algo novo a dizer, assim que as condições mudarem e as
novas situações requererem.
Mas, embora a Bíblia, nesse importante aspecto, se assemelhe
a uma pessoa viva, que nos é íntima, leal e uma companhia que
nos corresponde, ela se difere dessa companhia humana quanto ao
conselho, consolo e apoio que ela fornece, pois esses estão acima e
além do que qualquer ser humano pode fornecer; e a única explica­
ção para isso é que a fonte de sua vida e poder não é humana, mas
divina.

A Bíblia não se torna obsoleta


Uma das características mais proeminentes dos livros escritos
por homens, cuja proposta é a de difundir informação e instrução,
é que eles muito rapidamente se tornam obsoletos, e devem ser
deixados de lado e substituídos por outros. E isso é particular­
mente verdadeiro acerca dos livros de ciência, manuais e outros
semelhantes. Na verdade, é uma questão de orgulho (embora seria
difícil explicar o porquê) que o “progresso”, assim como em todos
os departamentos do aprendizado, seja tão rápido a ponto de tornar
os livros científicos de uma geração para outra quase sem valor.
As mudanças no conhecimento humano, pensamento e opinião
ocorrem tão rapidamente, que os livros, que eram os padrões on­
tem, são postos de lado hoje e substituídos por outros, que por sua
vez, serão descartados por outras “autoridades” amanhã. De fato,
todo livro que é escrito com um sério propósito começa a se tornar
obsoleto antes que a tinta se seque em suas páginas. Essa pode ser
a ocasião para orgulhar-se do grande progresso da humanidade e
dos maravilhosos avanços da “ciência”; contudo, o real significado
desse fato é que os livros humanos são todos, como o próprio
homem, criaturas mortais.
A Bíblia, por outro lado, embora trate dos maiores e dos mais
sérios de todos os assuntos, tais como Deus, Cristo, eternidade,
vida, morte, pecado, justiça, juízo, redenção — é sempre a mais
atualizada, a melhor e a única autoridade em todos esses assuntos
e em outras questões de peso das quais ela trata. Séculos de pro­
gresso e de avanço não acrescentam absolutamente nada à soma do
conhecimento de qualquer um destes assuntos. A Bíblia é sempre

221
Os fundamentos

viva e totalmente atualizada. Na verdade, está muito, muito à frente


da ciência humana. O progresso não pode sobrepujá-la, ou ir além
dela. Geração após geração, e todas elas encontram a Bíblia espe­
rando por ela com seu sempre vivo e jamais decadente estoque de
informação que diz respeito às questões da mais alta importância,
ou seja, a tudo o que afeta o bem-estar dos seres humanos.
Portanto, podemos dizer que, considerada simplesmente como
livro de instrução, a Bíblia está, quanto a cada assunto do qual tra­
ta, não meramente a par, mas bem à frente do aprendizado dele em
todas as outras épocas, no passado ou futuro. As impressões que
ela causa sobre a mente dos que crêem são as impressões da ver­
dade, embora a ciência contemporânea possa chegar a impressões,
que se tornarão as conclusões estabelecidas pelo estudo científico,
diametralmente opostas.
De forma distinta de todos os outros livros de instrução, a Bíblia
não se torna obsoleta. Esse é um fato de imensa importância; e sua
única explicação é que a Bíblia é um livro vivo — a Palavra do Deus
vivo. Todos os outros livros participam da enfermidade de seus
autores e estão morrendo ou já estão mortos.

A Bíblia é indestrutível
A Bíblia tem uma vida inerente e imperecível, a razão pela qual
ela sobrevive a todas as tentativas que foram feitas para destruí-la.
A Bíblia é o único livro no mundo que é verdadeiramente odiado.
Esse ódio é amargo, persistente e mordaz. Geração após geração,
esse ódio tem se mantido vivo. Sem dúvida, há uma explicação
sobrenatural para essa contínua demonstração de hostilidade para
com a Palavra de Deus, pois essa Palavra tem um inimigo sobrena­
tural que pessoalmente experimentou seu poder (Mt 4.1-10).
Mas a explicação natural desse ódio é que a Bíblia se difere nota­
velmente dos outros livros, porque ela não dá um quadro agradável
do homem e de seu mundo, mas faz o oposto. A Bíblia não diz que
o homem é um ser nobre, que aspira alcançar ideais elevados. Ela
não descreve a carreira da humanidade como um progresso, como
um bravo e bem-sucedido esforço do homem contra os males de
seu ambiente; contudo, faz exatamente o contrário, pois declara
que essa carreira é de desobediência e de separação de Deus, que
tem preferência pela escuridão em vez da luz, pois seus atos são
maus.

222
Vida na palavra

A Bíblia não apresenta o homem como enfrentando circuns­


tâncias adversas, sem que tivesse qualquer culpa, e como um
ser que está engajado em superar esses obstáculos por meio do
desenvolvimento e do exercício de seus poderes inerentes. Ela não
aplaude suas conquistas, nem louva sua maravilhosa civilização.
Ao contrário, ela relata como Deus viu que a impiedade do homem
era grande na terra, e que toda os pensamentos e sonhos de seu
coração se inclinavam continuamente para o mau (Gn 6.5). Ela
fala dos homens como um seres “cheios de toda injustiça, malícia,
avareza e maldade; possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e
malignidade; sendo difamadores, caluniadores de Deus, insolentes,
soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos
pais, insensatos, pérfidos, sem afeição natural e sem misericórdia”
(Rm 1.29-31). Ela diz que todos eles estão vendidos “à escravidão
do pecado” (Rm 7.14), que “não há justo, nem um sequer, não há
quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram,
à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um
sequer” (Rm 3.10-12). Os homens, por natureza, são descrito como
mortos pelas transgressões e pecados, os “filhos da desobediência;
entre os quais também todos nós andamos outrora, segundo as
inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos
pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da ira, como também
os demais” (Ef 2.1-3).
A Bíblia não tem nada a dizer para elogiar o homem ou seu dotes
naturais. Ao contrário, despreza a sabedoria humana como tolice
diante de Deus. Ela declara que Deus tornou “louca a sabedoria
do mundo” (ICo 1.20); que “o homem natural não aceita as coisas
do Espírito de Deus” (ICo 2.14); e que “se alguém julga saber
alguma coisa, com efeito, não aprendeu ainda como convém saber”
(ICo 8.2).
A Bíblia também não prediz o triunfo final da “civilização”. Ela
não diz que o progresso da humanidade trará por fim uma enorme
melhoria da situação. Ela não diz que a natureza humana melho­
rará sob as influências da educação e da cultura, mesmo que as
estas se acrescentem o cristianismo. Ao contrário, ela declara que
os homens “perversos e impostores irão de mal a pior, enganando e
sendo enganados” (2Tm 3.13).
Mesmo neste “mundo perverso” (G11.4), durante o qual a Igreja
de Cristo é o objeto mais conspícuo sobre a terra, e durante o qual

223
Os fundamentos

o mundo tem o enorme benefício resultante da luz da revelação e


de uma Bíblia aberta, não foi predito que o homem e seu mundo
sofreriam qualquer melhoria, ou que o desenvolvimento desta épo­
ca estaria caminhando em direção a melhores condições na terra.
Ao contrário, a Bíblia declara que “nos últimos dias, sobrevirão
tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactan-
ciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos,
irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio
de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais
amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade,
negando-lhe, entretanto, o poder” (2Tm 3.1-5).
Esse é o caráter do homem, e esses devem ser os resultados,
conforme as Escrituras predizem, sobre todos os esquemas de
melhoramento, educação, desenvolvimento, cultura, civilização
e aprimoramento de caráter. E, por esta razão, a Bíblia é profun­
damente detestada. Nada tem sido mais seriamente procurado do
que a destruição desse terrível e preciso retrato dos homens e de
seus feitos. E espantoso pensar que pessoas inteligentes suponham
que o homem desenhou esse quadro de si mesmo, predizendo
isso como o resultado de todos seus esforços! Não é de admirar
que a Bíblia seja odiada, pois declara a verdade sobre o homem e
seu mundo. O senhor Jesus expôs claramente tanto o fato quanto
sua explicação quando diz a seus irmãos descrentes: “Não pode o
mundo odiar-vos, mas a mim me odeia, porque eu dou testemunho
a seu respeito de que as suas obras são más” (Jo 7.7).
Novamente, a Bíblia é odiada por que afirma o direito de exercer,
e exerce, autoridade sobre o homem. Ela fala como alguém que tem
autoridade. Ela dá ordens a todos. Ela diz, “deves”, e, “não deves”. Ela
não aconselha ou recomenda um modo de ação que seria melhor do
que outros, como se dirigisse a um igual, mas se dirige aos homens
de modo imperativo quanto ao que devem fazer, e ao que não devem
fazer. Dessa maneira ela se dirige a todas as classes e condições
dos homens — reis e governantes, pais e filhos, maridos e esposas,
senhores e servos, ricos e pobres, altos e baixos, livres e escravos.
Nisso, também, temos uma característica da Bíblia que a distingue
de todos os outros livros. Ela não reverencia as pessoas. Mas, por
essa razão, também é odiada; por que os homens estão se tornando
cada vez mais impacientes a todo tipo de autoridade externa. Os
princípios de democracia, a essência da supremacia (praticamente,

224
Vida na palavra

a divindade) do homem, deixam totalmente niveladas todas as


sociedades, e isso estende-se às nações progressistas da terra.
Há um amplo sentimento no exterior, que encontra muitas vezes
expressão e sempre uma recepção amigável, para efetuar aquilo
que tem agrilhoado o homem ao longo das épocas por estreitas
idéias teológicas da quais a Bíblia é a fonte, e que chegou o tempo
de se libertar dessa escravidão, de elevar-se a seu verdadeiro poder
e majestade e começar a fazer grandes coisas para si mesmo.
E um fato impressionante que, em todo o universo visível, não há
nada que assuma autoridade sobre o homem, ou que lhe imponha
leis, exceto a Bíblia. O homem, uma vez completamente liberto
desse livro perturbador, será finalmente liberto de toda autoridade,
e terá chegado àquele estado de lassidão predito nas profecias do
Novo Testamento, em que a sociedade estará pronta para aceitar a
liderança daquele “iníquo”, cujo aparecimento é segundo a eficácia
de Satanás, com todo poder, e sinais, e prodígios de mentira, e com
todo o engano de injustiça aos que perecem, porque não acolheram
o amor da verdade para ser salvos (2Ts 2.7-10).
Esse é talvez o principal propósito das persistentes tentativas de
nossos dias, a maioria das quais em nome da erudição e da teologia
liberal, para derrubar a autoridade das Escrituras; e podemos ver
com nossos próprios olhos que a medida do sucesso dessa grande
apostasia foi predita pela Bíblia.
Outros livros não são odiados. Eles podem ser livros que os
homens não gostam, e eles simplesmente os abandonam. Mas a
Bíblia é, e sempre foi, odiada mortalmente. Ela é o único livro que
foi perseguido século após século, como se os homens perseguis­
sem um inimigo mortal. No princípio, sua destruição foi buscada
por meio da violência. Todos os poderes humanos, políticos e
eclesiásticos, foram combinados para extingui-la. Pessoas foram
punidas com a morte apenas por possuir ou ler uma cópia; e essas
cópias eram apresentadas ao executor público para ser tratadas
do mesmo modo como trataram a Palavra encarnada. Nenhum
expediente do qual a genialidade humana pudesse se utilizar, ou do
qual a crueldade fosse posta em ação, foi omitido na desesperada
tentativa de extirpar esse livro da face da terra.
Contudo, como a violência fracassou nesse propósito de libertar
o homem da Bíblia, outros meios tem sido criados no persistente
esforço de alcançar esse objetivo. Com essa finalidade, o intelecto

225
Os fundamentos

e o aprendizado do homem tem sido posto em ação. O livro tem


sido atacado de muitos lados por homens da mais alta inteligência,
cultura e erudição. Como a arte da impressão foi desenvolvida, há
em progresso uma contínua a guerra de livros. Muitos livros contra
o Livro — os livros humanos contra o livro de Deus. A autoridade da
Bíblia tem sido negada; sua veracidade e, até mesmo, sua moralidade,
impugnadas; suas afirmações sobre a consciência humana, ridiculari­
zadas; mas tudo isso tem um propósito, o de tornar mais conspícuo o
fato de que a “Palavra de Deus é viva” e possui vida indestrutível.
Pouco menos de dois séculos atrás surgiu um livro que atraiu
muita atenção, principalmente nos altos círculos intelectuais e
culturais. Foi pomposamente intitulado de A Era da Razão, e seu
autor, Thomas Paine, provavelmente era um expoente intelectual
entre seus contemporâneos. O autor estava tão confiante de que o
raciocínio de seu livro era a prova da indignidade das Escrituras,
assim como que este destruiria as afirmações da Bíblia sobre a
consciência dos homens de que essa era a revelação do Deus vivo,
que predisse que em cinqüenta anos a Bíblia não seria mais im­
pressa. No entanto, aproximadamente duzentos anos se passaram
desde que essa tolice foi dita. O orgulhoso e seu livro passaram; e
seus nomes foram praticamente esquecidos. Contudo, a palavra de
Deus tem sustentado seu lugar, e não mediante o poder humano.
Aqueles que crêem nela e a estimam são um povo fraco. E não há
muito sábios, nem muito poderosos, tampouco muito bem-nascidos
entre eles. Eles não têm o poder em si mesmos para lutar contra
os inimigos da Bíblia. A situação se assemelha à cena relatada
em IReis 20.27, em que os israelitas saíram para a luta contra o
sírios, e lemos que: “Aos filhos de Israel se passou revista, foram
providos de víveres e marcharam contra eles. Os filhos de Israel
acamparam-se defronte deles, como dois pequenos rebanhos de
cabras; mas os siros enchiam a terra”. Não obstante tamanha desi­
gualdade, a vitória é certa. Os inimigos da Bíblia têm, na verdade,
enchido a terra. No entanto, todos eles passarão; mas a Palavra do
Senhor não passará.

A Bíblia discerne os corações


O poder de discernimento pertence apenas a um ser vivo inteli­
gente; e o poder de discernimento possuído por um homem não vai
além da superfície das coisas. No entanto, a passagem em Hebreus,

226
Vida na palavra

já citada (4.12), afirma que a Palavra de Deus “é apta para discernir


os pensamentos e propósitos do coração”.
Essa é uma declaração bastante notável, mas é verdadeira, e
milhões de homens têm sentido e reconhecido o poder de inqui­
rir e de discernir da Palavra de Deus. Quando recorremos a ela,
não estamos tão dispostos a aprender sobre os pensamentos de
outros homens quanto para saber mais sobre nossos próprios
pensamentos. Vamos a outros livros para encontrar o que estava
no coração e nos pensamento de seus autores; mas vamos a esse
livro para encontrar o que está em nosso coração e pensamento.
Para uma pessoa que a lê sempre com inteligência espiritual,
por menor que ela seja, chega a ter uma percepção do fato de
que esse livro entende e sabe tudo acerca dela. Ele despe os
segredos mais profundos de seu coração e traz à superfície de
sua consciência, fora das insondáveis profundezas e recessos
inexploráveis de seu próprio ser, os pensamentos e intenções
cuja existência era insuspeita. Ele revela o homem para si mesmo
de um modo difícil de descrever, algo absolutamente peculiar à
Bíblia. Ela é um espelho fiel que nos reflete exatamente como
somos. Detecta nossas razões, discerne nossas necessidades;
descobre nossas repressões e nos revela fielmente nosso eu
verdadeiro, assim como aconselha, reprova, exorta, guia, dá
vida, fortalece e ilumina.
A palavra viva continuará a ser a companhia que discerne de
todos aqueles que recorrem a ela procurando pela ajuda que não
se encontra em nenhuma outra parte deste mundo de moribundos.
Ao irmos à Bíblia, jamais pensamos que estamos recorrendo a um
livro do passado distante, a alguma coisa da antiguidade-, mas a
buscamos como um livro do presente — um livro vivo.

A palavra exibe as características do desenvolvimento


O desenvolvimento é uma das características de um ser vivo. A
palavra de Deus reside e se desenvolve no coração humano, porque
esse é seu verdadeiro alojamento, mais do que na página impressa.
O salmista diz: “Guardo no coração as tuas palavras” (SI 119.11).
O livro do Deuteronômio tem muito a dizer sobre a palavra de
Deus. No capítulo trinta, ele declara (v.14) que a “palavra está mui
perto de ti, na tua boca e no teu coração”. E isto é repetido em
Romanos 10.8, com um acréscimo, “a palavra da fé que pregamos”.

227
Os fundamentos

Em Tessalonicenses 2.13, Paulo diz aos tessalonicenses: “É que,


tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus,
acolhestes não como palavra de homens, e sim como, em verdade
é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmente
em vós, os que credes”. O coração que crê é a morada da Palavra de
Deus, e lá ela opera para efetuar resultados definidos.
Em Colossenses 3.16, temos a admoestação: “Habite, ricamente, em
vós a palavra de Cristo; instrui-vos e aconselhai-vos mutuamente em
toda a sabedoria”. E no coração que crê que a palavra habita ricamente.
O Senhor Jesus, explicando palavra do semeador diz: “A semente
é a palavra de Deus” (Lc 8.11); e novamente: “O semeador semeia
a palavra” (Mc 4.14). (Uma semente, naturalmente, é sem valor a
não ser que tenha vida em si mesma.) E, além disso, explicou que
a semente que cai em terra boa “são os que, tendo ouvido de bom e
reto coração, retêm a palavra; estes frutificam com perseverança”
(Lc 8.15; grifo do autor). Para os judeus descrentes o senhor disse:
“Também não tendes a sua palavra permanente em vós, porque não
credes naquele a quem ele enviou” (Jo 5.38).
Em Colossenses 1.5,6, Paulo fala da “palavra da verdade do
evangelho, que chegou até vós; como também, em todo o mundo,
está produzindo fruto e crescendo, tal acontece entre vós, desde o
dia em que ouvistes e entendestes a graça de Deus na verdade”.
Nessas passagens nos é apresentado o pensamento da palavra
como uma semente viva, que primeiramente encontra morada no
coração humano, para depois ali habitar e se desenvolver.
O desenvolvimento da palavra de Deus é especificamente
mencionado em várias passagens admiráveis nos Atos dos
apóstolos 6.7: “Crescia a palavra de Deus, e, em Jerusalém, se
multiplicava o número dos discípulos; também muitíssimos
sacerdotes obedeciam à fé” (grifo do autor). Aqui nos é dito
especificamente que a palavra de Deus se desenvolvia. Aprende­
mos com isso que a mera multiplicação de cópias das escrituras
não é em si importante. E de pouca valia ter o livro em casa
na prateleira ou na mesa, se não for guardado no coração. No
entanto, quando recebida no coração, a Palavra de Deus cresce
e se desenvolve. Ela é assimilada na vida daquele que a recebe, e
daí em diante faz parte dele.
Feliz é o homem que recebeu “a palavra de Deus” (At 8.14;
11.1, etc.), que deu lugar para ela em sua vida, e em cujo coração e
pensamento tem se desenvolvido e prevalecido.

228
Vida na palavra

A palavra que dá vida


Chegamos agora a algo mais elevado e mais profundo. O grande
mistério de uma coisa viva é o poder que ela possui de propagar sua
espécie.
A concepção espiritual e a natureza da semente pela qual esta é
efetuada são claramente declaradas em lPedro 1.23: “Pois fostes
regenerados não de semente corruptível, mas de incorruptível,
mediante a palavra de D eus , a qual vive e é permanente” (grifo do
autor).
Há uma imensa quantidade de verdade, da mais alta importân­
cia, contida nessa passagem; mas a declaração que nos importa
principalmente é a de que a semente para o novo nascimento é
proveniente da Palavra (“a palavra de Deus, a qual vive”). Essa
afirmação ensina claramente que a Palavra de Deus possui o mais
alto dote de um ser vivo, a saber, o de distribuir vida. E o ensino
do Senhor Jesus na parábola do semeador, na explicação em que
ele disse, “a semente é a Palavra de Deus” (Lc 8.11; grifo do autor),
corrobora essa afirmação.
Em conseqüência da transgressão e da Queda do primeiro
homem, que era o depositório original da vida da humanidade
(Gn 2.7), a vida nele, sendo “corruptível”, tornou-se viciada. Daí,
pela lei inexorável, a semente de suas gerações também se tornou
corrompida. Dá-se então que todo homem em sua geração natural
é gerado de semente corruptível (e corrupta). E recebeu (devendo,
portanto, distribuir à geração sucessiva) uma vida corrupta. Neces­
sitamos, portanto, de uma semente nova e incorruptível para trazer
à existência uma família humana que corresponda aos propósitos de
Deus na criação do homem (Gn 1.26). E essa semente foi fornecida
pela Palavra de Deus. Todo aquele que crê nessa Palavra é nascido
de novo (ou de cima); desta vez não de semente corruptível, “mas
de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive” (grifo do
autor). Essa é uma Palavra viva.
E preciso notar que as Escrituras testificam que a semente da
Palavra viva não é meramente incorrupta, mas é “incorruptível”. Ela
participa, portanto, da natureza “do Deus incorruptível” (Rm 1.23).
Essa é a garantia que temos de que a palavra de Deus não está
sujeita a influências corruptíveis do mundo corrupto e decadente
para o qual ela vem. Ela é a única coisa que não sucumbiu às forças
da decadência e da morte que reinam universalmente sobre a

229
Os fundamentos

terra. Na verdade, não foi afetada nem de leve por essas forças.
Isto foi bastante salientado nas páginas precedentes; mas a grande
verdade, em relação à passagem de lPedro, vem a nós com força
peculiar. Não precisamos ficar preocupados se a verdade de Deus,
incorporada por ele em sua Palavra, foi corrompida, porque ela é
incorruptível. E por essa Palavra, aqueles que crêem são nascido de
novo por meio da operação do Espírito Santo. Para eles “o espírito
évida” (Rm8.10).
A mesma verdade é declarada em Tiago 1.18, por meio destas
palavras: “Pois, segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra
da verdade”.
Essa é a concepção espiritual dos “filhos de Deus”. Estes são
nascidos ou gerados. Um filho não pode ser trazido à existência se
não for gerado de um pai. Os filhos de Deus devem ser nascidos de
Deus. O apóstolo o João nos diz que eles “não nasceram do sangue,
nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”
(Jo 1.13). O apóstolo Tiago nos conta que eles são gerados pela
vontade de Deus. Portanto, embora o processo seja impenetrável
e misterioso, não há dúvida quanto a esse fato. Quando a palavra
de Deus é verdadeiramente “ouvida” e, em seguida, recebida em
um coração preparado, esta palavra se torna verdadeiramente uma
semente, espiritual e incorruptível, que, quando estimulada pelo
espírito de Deus, torna-se o germe de vida de uma nova criatura
— um filho de Deus.
A mesma verdade é claramente ensinada na explanação de nos­
so Senhor na parábola do semeador, à qual já fizemos referência.
Visto que temos sua própria interpretação dessa parábola, não
precisamos ficar na incerteza quanto ao seu significado. Ele diz: “A
que caiu à beira do caminho são os que a ouviram; vem, a seguir, o
diabo e arrebata-lhes do coração a palavra, para não suceder que,
crendo, sejam salvos” (Lc 8.12; grifo do autor). E também: “A que
caiu na boa terra são os que, tendo ouvido de bom e reto coração,
retêm a palavra; estes frutificam com perseverança” (Lc 8.15).
O método da concepção espiritual exposto nas Escrituras,
efetuado de uma maneira bastante análoga à concepção natural,
fornece a explicação da relação que há entre “crer” e “vida”, que é
mencionada em muitas passagens. Uma das mais conhecidas é a de
João 5.24, em que o Senhor Jesus declara em uma linguagem bem
simples que o homem que houve sua Palavra e crê naquele que O

230
Vida na palavra

enviou tem a vida eterna e passa da morte para vida. Este homem
recebe a semente em seu coração, e a semente é ali estimulada para
a vida.
Na verdade, o grande propósito da palavra escrita é distribuir a
vida — a vida (quer dizer divina) eterna — para aqueles que estão
mortos pelas transgressões e pecados. O evangelho de João, am­
plamente devotado ao grande tema da vida eterna, e do qual uma
grande parte de nossa informação com respeito a ela é derivada,
foi escrito “para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus,
e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.31; grifo do
autor).
A mesma verdade é declarada em uma passagem bem conhecida,
a de Romanos 10.9, que expõe bem claramente a verdade especial,
que constitui a substância e a medula da revelação de Deus em
sua palavra, em que ele convoca os homens a crer e obedecer por
intermédio da pregação do evangelho, a saber, que Jesus Cristo,
que morreu pelos pecadores, ressuscitou dos mortos e é o Senhor de
todos, para a glória do Deus Pai.
O ponto principal a ser apreendido é que é necessário um certo
preparo do coração para que a “boa semente” da Palavra possa ger­
minar e ali se desenvolver. Este coração preparado é descrito nas
Escrituras como um coração que crê. Esse estado de estar prepara­
do manifesta-se quando um homem crê em Deus, como fez Abraão
(Rm 4.17); ou, em outras palavras, quando um homem está pronto
para receber a Palavra de Deus como fizeram os tessalonicenses
(lTs 2.13). Quando um homem é trazido, pela operação do Espírito
Santo, que é o “Espírito de vida, em Cristo Jesus” (Rm 8.2,10), a um
estado de preparação, então a Palavra de Deus, sendo recebida no
coração, age como uma semente que cai em boa terra.
Esse é o poder da verdade viva: distribuir vida; e isto faz a
diferença entre a verdade que Deus revelou em sua Palavra, e a
verdade que pode ser encontrada em qualquer outro lugar. A tabela
de multiplicação é verdade; mas não é a verdade viva. Ela não tem
poder estimulante. Os teoremas de geometria são verdade; mas
não são a verdade viva. Jamais ouvimos algum homem testificar
que era infeliz e escravo do pecado e continuou na escuridão
espiritual, firmemente atado à miséria e ao vício, até que seus
olhos fossem abertos pela grande verdade de que dois e dois são
quatro, ou de que três ângulos internos de um triângulo são iguais

231
Os fundamentos

a dois ângulos retos; e que a partir desse momento sua vida foi
transformada, sua alma liberta da escravidão, e seu coração ficou
cheio de alegria e paz graças a essa crença. Por outro lado, no
caso da verdadeira conversão, pode ter sido apenas a declaração
mais breve e a mais simples da “Palavra da verdade do evangelho”
(Cl 1.5), que foi ouvida e crida, como aquela de que “Cristo [...]
morreu a seu tempo pelos ímpios” (Rm 5.6), e que o grande poder
daquele que levantou Cristo dos mortos faz renascer em Cristo uma
alma que anteriormente estava morta em transgressões e pecados
(Ef 1.20; 2.5). Desse modo, a Palavra da Verdade se torna, de
alguma maneira misteriosa, o veículo para a distribuição daquela
vida da qual o Cristo ressurrecto, a Palavra encarnada, é a única
Fonte. A vida eterna para a alma individual começa por intermédio
da crença no “testemunho de Cristo” (ICo 1.6), e o testemunho de
Deus, que Ele, por sua graça, tem dado aos pecadores que parecem
para que eles possam crer e ser salvos, é “com respeito a seu Filho”
(Rm 1.3; ljo 5.10). “E o testemunho é este: que Deus nos deu a vida
eterna; e esta vida está no seu Filho” (ljo 5.11). Por isso, está es­
crito a respeito daqueles que experimentaram o novo nascimento:
“Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus”
(G13.26).

A palavra que sustenta a vida


A vida possuída pelos seres humanos não é apenas uma vida
derivada, isto é, uma vida obtida de uma fonte externa, mas é uma
vida dependente, que requer sustentação contínua. Ela deve ser
sustentada por uma nutrição constante e adequada, feita em breves
intervalos. A força humana da qual o homem se orgulha e, na ver­
dade, sua vida física são dependentes do alimento, e este alimento
deve ser matéria orgânica, quer dizer, matéria que, por sua vez, já
foi viva. O fato dessa dependência do alimento, e de alimento que o
homem é expressamente incapaz de produzir de matéria inorgâni­
ca, embora todas as matérias estejam dentro de seu alcance, devem
ensiná-lo uma lição de humildade; mas parece que esse fato não
produziu esse efeito.
Hoje em dia, os homens se orgulham de sua “independência” e
se gabam muito de sua “autoconfiança”. Esse é o tamanho de sua
presunçosa loucura; pois o homem é a criatura mais importante e
dependente, não é nem mesmo capaz, como as plantas, de preparar

232
Vida na palavra

seu próprio alimento a partir de elementos minerais, e depende


diariamente de criaturas vivas, que na escala dos seres lhe é infe­
rior. E, até agora, por ter uma base de autoconfiança, ele não sabe
como conduzir o mais simples dos processos vitais de seu próprio
corpo. Se seu Criador, de quem o homem gosta de acreditar que
é independente, lhe concedesse a operação do menor desses pro­
cessos essenciais por um breve tempo, a pobre criatura pareceria
miseravelmente.
O que acontece com a vida física, acontece com a vida espiritual
daqueles que foram gerados da semente incorruptível da Palavra.
Esses seres espirituais exigem alimento apropriado; e Deus tem
proporcionado este alimento em abundância, de acordo com as
necessidades deles. Ao analisarmos esse importante assunto da
nutrição espiritual, devemos aprender novamente a relação entre
Cristo, a Palavra encarnada e a Palavra escrita. Diz-se, reiterada-
mente, que tanto uma como a outra são como alimento para os
filhos de Deus.
O terceiro, o quarto e o quinto capítulos do evangelho de João
tratam da distribuição da vida eterna como um dom gratuito de
Deus por intermédio de Jesus Cristo, o Filho de Deus, a todos aque­
les que crêem nele; e o sexto capítulo trata da nutrição espiritual.
Inclusive, após alimentar milagrosamente a multidão, mostrando-
se assim como alguém por cujo poder o alimento se multiplica na
terra, ele se revela como “o pão da vida”. Duas vezes diz, “Eu sou o
pão da vida” (w. 35 e 48) e no v.33, “Porque o pão de Deus é o que
desce do céu” (v.51). E de suas palavras, Ele diz, “O espírito é o que
vivifica; a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho
dito, são espírito e são vida” (v.63; grifo do autor).
Naturalmente, essas afirmações não fazem sentido à mente
natural; pois são direcionados à fé. “Como pode este homem nos
dar de sua carne para comer?”, é a pergunta que faz o coração
descrente. Como Cristo pode dar de si mesmo para o sustento do
“homem interior” é uma questão à qual não podemos responder
agora. O processo da nutrição física está igualmente além da com­
preensão humana e é contrária a todas as probabilidades a priori
[de precedência].
Observando mais atentamente ao que é dito em relação à
Palavra de Deus, escrita ou falada, descobrimos que a Palavra de
Deus é “viva”, pois como qualquer outra substância viva, ela tem

233
Os fundamentos

a propriedade de fornecer nutrição, e, por essa razão, sustentar


a vida. E uma Palavra que sustenta a vida. No entanto, aqui uma
notável diferença atrai nossa atenção. O alimento físico vem da
terra (SI 104.14), ao passo que o alimento espiritual vem de cima,
do céu (Jo 6.50).
Já fizemos referência anteriormente ao fato de que, após apre­
sentar a grande verdade da concepção e geração espiritual por
meio da semente da Palavra de Deus, o apóstolo Pedro exige que
se dê atenção à nutrição espiritual. Diz ele: “Portanto [...] desejai
ardentemente, como crianças recém-nascidas, o genuíno leite espi­
ritual, para que, por ele, vos seja dado crescimento para salvação”
(lPe 2.1,2). Evidentemente, a dupla injunção do Senhor, “Pastoreia
as minhas ovelhas” (Jo 21.16), e, “Apascenta os meus cordeiros”
(Jo 21.15), causou forte impressão sobre ele quanto à importância
da nutrição espiritual. Contudo, o alimentar apropriado requer
apetite por alimento saudável e, assim, ele procura estimular um
desejo nos jovens cristãos para que eles possam se desenvolver. E,
imediatamente, relaciona a Palavra com o que Cristo diz, “Se é que
já tendes a experiência de que o Senhor é bondoso” (lPe 2:3).
A importância da nutrição e do sustento da nova vida recebida
com o aproximar-se de Cristo, e as infelizes conseqüências que
sempre resultam do negligenciar a dieta apropriada têm sido tão
freqüente e energicamente afirmadas pelos servos de Cristo, que
parece inteiramente desnecessário enfocar esse assunto. O que sa­
lientamos aqui, de modo especial, é a correspondência que há entre
a maneira de Deus de sustentar a vida física do homem mediante
o alimento derivado de uma fonte viva, e seu modo de sustentar a
vida espiritual do crente mediante o alimento de uma fonte viva,
quer dizer, da Palavra viva.
As passagens, que apresentam a Palavra de Deus como o alimen­
to para seus filhos, são bastantes conhecidas; e, ao nos lembrarmos
delas, devemos alertar nossos eleitos que essas afirmações não são
para ser consideradas como se fossem poéticas ou figurativas, mas
literais, práticas e imensamente importante.
Quando Deus criou o homem, seu plano não era para que o ho­
mem vivesse apenas de pão e alimentos físicos, mas “de tudo o que
procede da boca do Senhor viverá o homem” (Dt 8.3). Para ensinar
essa lição a Seu povo, que estava no deserto, foi que Deus deu-lhe
o maná, assim eles poderiam aprender sobre sua dependência de

234
Vida na palavra

Deus. Por isso, essa passagem foi utilizada pelo Segundo Homem
no deserto, em seu combate contra o demônio, cuja intenção era a
de inculcar no homem a impressão de independência de Deus. O
Homem Jesus Cristo fez isso, pois, com a Espada do Espírito, der­
rotou firme e verdadeiramente o propósito central de seu grande
adversário.
O homem deve ser alimentado por cada palavra de Deus.
Nenhuma parte da Bíblia deve ser negligenciada sem que haja
perda e detrimento; e é preciso observar que na Bíblia há uma
boa variedade de nutrientes espirituais, assim como a variedade
de alimento físico que Deus proporcionou para as necessidades do
homem físico. Se há leite para as criancinhas, há também alimento
sólido para aqueles que são maduros. E há o risco da interrupção
do crescimento para aqueles que permanecem satisfeitos com uma
dieta relativamente fraca, adequada às crianças que sabem, talvez,
apenas que seus pecados são perdoados; como diz o apóstolo João:
“Filhinhos, eu vos escrevo, porque os vossos pecados são perdoa­
dos, por causa do seu nome” (ljo 2.12). Mas aqueles que têm de ser
alimentados com leite, quer dizer, as verdades mais elementares
e simples do evangelho, são os que não possuem habilidades no
manuseio da palavra da justiça. As crianças não podem fazer nada
por si mesmas, muito menos preparar um alimento, ou prestar
qualquer serviço às outras pessoas. Por conseguinte, o apóstolo
Paulo, escrevendo aos Hebreus, censura alguns deles, “pois, com
efeito, quando devíeis ser mestres, atendendo ao tempo decorrido,
tendes, novamente, necessidade de alguém que vos ensine, de
novo, quais são os princípios elementares dos oráculos de Deus;
assim, vos tornastes como necessitados de leite e não de alimento
sólido. Ora, todo aquele que se alimenta de leite é inexperiente na
palavra da justiça, porque é criança. Mas o alimento sólido é para
os adultos, para aqueles que, pela prática, têm as suas faculdades
exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal”
(Hb 5.12-14).
Jeremias diz: “Achadas as tuas palavras, logo as comi ” (Jr 15.16).
Por isso, ele encontrou força espiritual para se sustentar em seu
dificílimo ministério, do qual, devido a sua personalidade tímida e
sensível, ele recuou horrorizado em agonia de alma. Para ser um
bom e efetivo ministro de Cristo é necessário estar bem nutrido
por meio da ampla participação no alimento espiritual que a Palavra

235
Os fundamentos

viva fornece. Assim, Paulo admoestou seu filho na fé, Timóteo, a


quem ele escreveu: “Expondo estas coisas aos irmãos, serás bom
ministro de Cristo Jesus, alimentado com as palavras da fé e da boa
doutrina que tens seguido” (lTm 4.6; grifo do autor).

A palavra que transforma a vida


O alimentar-se na Palavra de Deus, o pão da vida, deve necessa­
riamente ser benéfico ao homem como um todo, incluindo seu ser
intelectual e físico, assim como seu ser espiritual. O novo homem
exige uma nova disposição mental, e há provisão para essa finalida­
de. Paulo disse: “E vos renoveis no espírito do vosso entendimento”
(Ef 4.23), e, “E não vos conformeis com este século, mas trans-
formai-vos pela renovação da vossa mente” (Rm 12.2). A antiga
mente — com todos seus hábitos de auto-ocupação (certamente,
uma criadora de infelicidade e descontentamento), suas mórbidas
tendências, seu desejo ardente por excitação e sensações, suas
imaginações, apetites, gostos, inclinações e desejos e cada coisa
elevada em que se exalta em detrimento do conhecimento de Deus
— deve ser retirada e substituída por uma nova mente; pois a pieda­
de tem a promessa do vigor da vida que é agora, como também da
que está por vir.
Como, então, é que essa injunção deve ser realizada? E impor­
tante para milhões de almas ansiosas ter uma resposta clara a essa
questão. E ela pode ser obtida. Os incidentes diários e a atmosfera
no meio da qual o homem e a mulher medianos gastam seu tempo
são de tal forma, que só podem produzir distúrbios e desordens
mentais a ponto de, se fosse compreendido e se alguma coisa
pudesse impressionar esta época agitada e sem reflexão, criar um
reboliço. A freqüência com que encontramos casos de depressão
mental, insônia, melancolia e outras desordens nervosas demons­
tra que os inimigos, numerosos e insidiosos, que atacam o lugar
reservado à razão, levam-nos a necessitar de métodos e meios de
defesa e reparação que estão além dos recursos da medicina.
O escritor conhece, por experiência própria, os indescritíveis
horrores dos estados mentais mórbidos e depressivos, e conhece,
também, a transformação que se efetua pela “renovação da mente”
de acordo com a injunção bíblica. Há plena provisão para essa
transformação maravilhosa, e as condições internas na qual tal
mudança se efetua são claramente expostas e acessíveis a todo

236
Vida na palavra

crente. Nesse caso, o estudo da palavra usado na ordem (“Seja


Transformado”) nos tornará inteirados das condições essenciais
à transformação. A palavra em questão parece ter sido posta de
lado pelo Espírito Santo com o propósito de ensinar o segredo
importante e maravilhoso da transformação do crente durante sua
existência no corpo, à semelhança de Cristo; de maneira que todos
os crentes podem ser capazes de dizer juntamente com Paulo:
“Temos a mente de Cristo”.
Portanto, chama-se a atenção do leitor para que observe cuida­
dosamente os usos dessas palavras em particular. Sua primeira
ocorrência está nas narrativas do evangelho, no relato da trans­
figuração de Jesus Cristo, e é, de fato, a palavra traduzida ali por
“transfigurado” (Mt 17.2; Mc 9.2). A palavra significa literalmente
“metamorfoseado”. “O seu rosto resplandecia como o sol, e as suas
vestes tornaram-se brancas como a luz.” Essa descrição pode ser­
vir muito bem para ensinar a natureza da mudança contemplada. E
algo que transporta a luz do céu para a mente e tinge até as coisas
comuns com um brilho da luz celestial.
A próxima ocorrência da palavra é, como já vimos, em Romanos
12.2, em que os crentes são avisados a não se conformar com o
padrão deste século, mas a se metamorfosear, ou se transfigurar,
por meio da renovação de suas mentes.
A terceira e última ocorrência da palavra conta-nos claramente
como essa grande transformação é ocasionada, pois a Bíblia é um
livro muito prático. Além disso, ela nos foi dada por Aquele que
entende perfeitamente as limitações humanas, que sabe e declara
que esta é, em seu estado natural, “destituída de força”, quer dizer,
completamente impotente (Rm 5.6). Podemos nos assegurar,
portanto, que quando Deus conclama a alma estimulada a fazer
algo, ele coloca o meio requerido por Ele ao alcance dessa alma.
E assim, lemos nessas palavras esclarecedoras quais são as condi­
ções requeridas para se efetuar a transformação desejada: “E todos
nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a
glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua
própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (2Co 3.18).
A palavra que foi traduzida aqui por “somos transformados” é
a mesma palavra (metamorfoseados ou transfigurados) usada nas
passagens citadas anteriormente, e essas são as únicas ocorrências
dessa palavra na Bíblia.

237
Os fundamentos

0 ensinamento é muito claro. Quando os judeus lêem a Palavra


de Deus, um véu está sobre o coração deles, e as mentes deles
estão cegas (v.14). Ou, como declarado em Rm 11.25: “Que veio
endurecimento em parte a Israel, até que haja entrado a plenitude
dos gentios”. Daí, a razão pela qual eles não contemplam Nele aque­
le de quem as Escrituras testificam. Mas, porque cremos, o véu foi
retirado por Cristo e, conseqüentemente, todos nós que olhamos
para Ele somos transfigurados na mesma imagem pela operação
divina e irresistível do Espírito Santo.
Se, quando olhamos para a Palavra de Deus, não vemos Cristo ali,
olhamos sem propósito, porque ele está em toda parte da Bíblia.
E preciso que se note cuidadosamente que essa transformação
não é a obra do homem que contempla a Cristo na Palavra; pois o
processo é realizado enquanto aquele não se ocupa consigo mesmo,
ou com sua transformação, mas é absorvido na contemplação da
glória do Senhor. A transformação é efetuada pelo poder do Espíri­
to de Deus; e podemos aprender com essa passagem a importante
lição de que a ocupação com a obra do Espírito e o importar-se com
ela pode apenas retardar essa obra. Basta sabermos que Aquele
que começou a boa obra em nós a continuará até o dia de Cristo
(Fp 16). Nossa parte, e deveria ser também nosso deleite, é
contemplar continuamente a glória do Senhor; e enquanto assim
fizermos, “somos transformados” na mesma imagem, e muito mais
rapidamente se estivermos despreocupados conosco mesmos.
Note-se, além disso, que a transformação é uma operação gra­
dual, que exige prontidão na contemplação daquele que é o objeto
posto diante de nós pelo Espírito Santo. Pouco a pouco, enquanto
nosso olhar é fixado nele, os velhos traços e disposições que não se
assemelham a Ele são substituídos por Suas próprias característi­
cas. Assim, a obra prossegue “de glória em glória”. A conformação
a essa imagem, que é o propósito de Deus para todos Seus filhos
(Rm 8.28), não é realizada, como pensam alguns, mediante uma
transformação instantânea, uma sublevação convulsiva e um deslo­
camento da antiga natureza, realizada pela operação das emoções
em um estado extático; mas é realizado gradualmente, enquanto o
crente está continuamente ocupado com Cristo (“contemplando”).
Não existe um atalho histérico para o resultado desejado. Pois Cristo
deve ser conhecido pela Palavra escrita, algo que só acontece pela
intervenção do Espírito Santo; e o processo deve continuar durante
todo o termo da existência do crente nesse corpo corruptível.

238
Vida na palavra

Desse modo, a Palavra viva torna-se a reguladora e a transfor­


madora das mentes daqueles que a buscam diligentemente. Sob
sua potente influência, a confusão do pensamento, perplexidades,
estados mentais depressivos e outras condições dolorosas são
dissipadas, e a tranqüilidade serena e o repouso da mente de Cristo
são reproduzidos naqueles que são redimidos por Seu precioso
sangue.
Estamos atravessando o domínio da morte, o país do último
inimigo que deve ser destruído, e que tem posto todas as coisas
vistas sob seus pés (ICo 15.26,27). Em toda direção, nossos olhos
encontram as evidências inequívocas da soberania suprema da
morte. Mas neste domínio da morte, há uma Palavra Viva — uma
Palavra Viva em um mundo que parece. As forças da corrupção e
decadência não podem prevalecer sobre ela, e ela se ri dos ataques
de seus inimigos.
No entanto, essa Palavra está aqui, não meramente para ma­
nifestar vida, mas também para distribuir vida àqueles que estão
perecendo e trazê-los a um contato vital com a nova Fonte de Vida
da humanidade, o Filho de Deus, o segundo homem, o Senhor dos
céus, que vive e foi morto, e eis que vive para sempre e tem as cha­
ves da morte e do inferno (ICo 15.47;Ap 1.18). Ele, como homem,
cruzou o abismo entre o domínio da morte e o da vida. Ele, para
esse fim, “visto, pois, que os filhos têm participação comum de car­
ne e sangue, destes também ele, igualmente, participou”, não para
melhorar a carne e o sangue, mas “para que, por sua morte, destru­
ísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo, e livrasse
todos que, pelo pavor da morte, estavam sujeitos à escravidão por
toda a vida” (Hb 2.14,15). Por Ele mesmo ter cruzado esse abismo,
veio a tornar-se o caminho da vida a todos os que nele crêem, os
quais, tendo ouvido sua Palavra — a Palavra da vida — passaram
igualmente da morte para a vida (Jo 5.24).
Essa é a maravilhosa provisão de Deus para a libertação dos
homens que morrem. Para que eles não morram, e porque Deus
não quer que eles venham a perecer (2Pe 3.9), Ele enviou para este
mundo efêmero uma Palavra de Vida. Pois Deus não é Deus de
mortos, mas de vivos (Mt 22.32).
Em comparação com a provisão de sabedoria, poder e graça
divinos, do Deus que ressuscita os mortos (Rm 4.17), quão ridicula­
mente tolos e vãos são todos os planos humanos de aprimoramento,

239
Os fundamentos

reforma e cultivo daquele velho homem que caiu sob a soberania


da morte! Os homens são muito engenhosos, mas nenhum ainda
apresentou um esquema que abolisse ou que fizesse com que fosse
capaz de escapar da morte, ou que ressuscitasse os mortos. Sem
isto, de que valem os planos de aprimoramento? E para que fina­
lidade eles servem senão para cegar as mentes humanas quanto à
verdade de que estão mortos e que estão fora do alcance de todos,
exceto do poder de Deus que ressuscita os mortos? Certamente
esses planos são os instrumentos de maior êxito do “deus deste
século”.
Os homens não precisam de moralidade, mas de vida; não
precisam respeitar a morte, mas receber o dom da vida eterna;
não precisam de entretenimento decente, mas de uma saída do
reino da morte. Muitos homens têm apresentado seus planos para
a “elevação da humanidade” (embora os resultados disso não sejam
ainda discerníveis); mas há apenas um homem que faz, ou sempre
fez, a oferta da vida eterna. Nenhum outro jamais disse: “Eu sou
a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra,
viverá; e todo o que vive e crê em mim não morrerá, eternamente”
(Jo 11.25,26). Ele apenas reivindica ser o “manancial de águas
vivas” (Jr 2.13; Jo 4.14; 7.37), e diz a todos os que estão sofrendo a
sede da morte, “Venha a mim e beba” (Jo 7.37).
Portanto, ao concluir essas reflexões sobre a Palavra Viva, obe­
decemos a ordem, “Vem! Aquele que ouve diga”, e, amavelmente,
devemos repetir o último convite da graça relatada na Palavra da
Vida: “Aquele que tem sede venha, e quem quiser receba de graça
a água da vida” (Ap 22.17).

240
241

Existe um Deus?

M.A., D.D.
R e v . T hom as W h it e la w ,
Ministro Presbiteriano, Kilmarnock, Escócia
Resumido e editado por James H. Christian, Th.D.

Se há ou não uma inteligência pessoal suprema, infinita e


eterna, onipotente, onisciente e onipresente, o Criador, sustentador
e regente do universo, imanente, embora também transcendente,
a todas as coisas, gracioso e misericordioso, o Pai e Redentor da
humanidade, esse com certeza é o problema mais profundo que
pode agitar a mente humana. Situado no fundamento de toda cren­
ça religiosa humana — quanto à responsabilidade e dever, pecado
e salvação, imortalidade e bênção futura, quanto à possibilidade de
uma revelação, de uma encarnação, de uma ressurreição, quanto
ao valor da oração, à credibilidade do milagre, à realidade da
providência — e a resposta dada a esse problema está intimamente
ligada não apenas à felicidade temporal e eterna, mas também ao
bem-estar e o progresso da raça. No entanto, as mais variadas
respostas são dadas a essa pergunta.

THOMAS WHITELAW (1840-1917) foi ordenado em 1864, após receber


educação formal no United Presbyterian Hall, em Edimburgo, Escócia.
Trabalhou como pastor e administrador tanto em Igrejas Presbiterianas
quanto na Igreja Livre Unida. Seus comentários incluem estudos sobre
Gênesis e Atos dos apóstolos. Ele tam bém escreveu sobre a divindade
de Cristo.
Os fundamentos

0 ateu, por exemplo, a firma que não há Deus. O agnóstico


professa que não pode dizer se há ou não um Deus. O materialista
orgulha-se de não precisar de um Deus e de poder percorrer o
universo sem ele. O cristão responde que não pode fazer nada sem
um Deus.

A resposta do ateu
“Mão há Deus”
Hoje em dia dificilmente seria possível replicar a essa ousada
e confiante negação dizendo simplesmente que o ateu teórico é
uma espécime totalmente excepcional da humanidade, e que sua
afirmação audaciosa é tanto o resultado de ignorância quanto de
impiedade. Aparentemente, esse ateísmo teórico não está extinto,
mesmo nos círculos cultos, e algumas observações com respeito a
ele são necessárias. Essas observações são as seguintes:
1. A DESCRENÇA NA EXISTÊNCIA DE UM S E R D lV IN O NÃO É EQUIVALEN­
TE À DEMONSTRAÇÃO DE QUE NÃO HÁ Ü E U S .
2 . Ta l d e m o n s t r a ç ã o p e r t e n c e à n a t u r e z a d o s c a s o s im p o s s í v e is .

O falecido Prof. Calderwood, da Universidade de Edimburgo,


apontou muito bem que “a existência divina é uma verdade tão
clara que não necessita de prova, é uma verdade tão elevada
que não é possível sequer prová-la”. Como o Dr. Chalmers há
muito observou, antes que alguém possa positivamente afirmar
que não há Deus, é necessário que essa pessoa vanglorie-se
indevidamente de possuir a sabedoria e a ubiqüidade de Deus. E
preciso que se explore todo o circuito do universo para se certi­
ficar de que não há Deus. E necessário ter interrogado todas as
gerações da humanidade e todas as hierarquias do céu para se
certificar de que eles jamais ouviram falar de um Deus. Logo,
como Chalmers propõe, “para o homem não conhecer a Deus,
é preciso apenas mergulhar abaixo do nível de nossa natureza
comum. No entanto, para negar a Deus é preciso que ele seja o
próprio Deus”.
3. A n e g a ç ã o d a e x i s t ê n c i a d i v i n a n ã o é g a r a n t i d a p e l a in c a p a c i ­
d a d e d e s e d is c e r n ir t r a ç o s d a p r e s e n ç a d iv in a n o u n iv e r s o .

“Eu não consigo ver”, escreveu Huxley, “uma sombra do resquí­


cio de evidência de que o Grande Desconhecido está subjacente
ao fenômeno do universo que está diante de nós, na relação de
um Pai que ama e cuida de nós como afirma a cristandade”.

242
Existe um Deus?

Blatchford, com ênfase semelhante, afirma: “Não consigo crer


que Deus é um Deus pessoal que interfere nos afazeres huma­
nos. Não consigo ver na ciência, ou na experiência, ou na histó­
ria, qualquer sinal de um Deus, ou de uma intervenção, assim”.
A incapacidade de Huxley e Blatchford seja de ver, seja de ouvir
Deus pode servir, e sem dúvida serve, como uma explicação
de seu credo ateu, mas, seguramente, não é uma justificação
desse mesmo credo, visto que um pensador mais profundo do
eles disse: “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu
eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente
se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos
por meio das coisas que foram criadas. Tais homens [os que não
crêem] são, por isso, indesculpáveis” (Rm 1.20).
A maior parte da humanidade, não somente em países cristãos,
mas também em terras pagãs, desde o começo do mundo, tem
acreditado na existência de um Ser Supremo. Eles podem, muitas
vezes, como Paulo diz, ter mudado “a glória do Deus incorruptível
em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como
de aves, quadrúpedes e répteis” (Rm 1.23); mas, bem arraigado
em suas naturezas, embora depreciados pelo pecado, afirmam a
concepção de um Poder sobre-humano a quem eles devem lealdade
e cujo favor é indispensável para sua felicidade. Plutarco dizia que
em seu tempo o homem podia viajar o mundo, mas não encontraria
uma única cidade sem templos e deuses. Pode-se afirmar, sem que
isso cause muitas controvérsias, que a maior parte da humanidade
possui alguma idéia de um Ser Supremo; de maneira que se a
falsidade ou a verdade da proposição: “Não há Deus”, devesse ser
determinada pela contagem dos votos, a questão estaria resolvida,
isto é, contra o credo ateu.

A confissão do agnóstico
“Não posso dizer se há ou não um Deus”
Sem afirmar dogmaticamente que não há um Deus, o agnóstico
praticamente insinua que se houver um Deus, ou não, ninguém
pode dizer e isso não tem muita importância. O agnóstico não nega
que além do fenômeno do universo possa haver um Poder; mas se
há ou não, e se houver, se este Poder é uma Força ou uma Pessoa,
ele está entre as coisas desconhecidas e incognoscíveis, de manei­
ra que, praticamente, não pode haver mais do que um objeto de

243
Os fundamentos

especulação curiosa, como aquele que ocupa o tempo perdido de


alguns astrônomos, que querem saber se existem, ou não, habitan­
tes no planeta Marte.
Como exposto, o credo dos agnósticos está aberto a sérias objeções.
1. E le ig n o r a com pletam ente o f a t o r e s p ir it u a l n a n a t u r e z a

humana — ou negam completamente a existência da alma, ou


a vêem como uma função meramente corporal; ou, quando a
percebem como uma entidade separada e distinta do corpo e
que usa suas faculdades para apreender a razão sobre os objetos
externos, ainda assim negam sua habilidade para discernir rea­
lidades espirituais. Em qualquer alternativa, ele é contraditado
tanto pelas Escrituras quanto pela experiência. A Bíblia, de Gê­
nesis a Apocalipse, procede com base na afirmação de que “há
um espírito no homem” (Jó 32.8), que possui poder não somente
para apreender coisas não vistas, mas para ver e conhecer a Deus
e ser visto e conhecido por Ele. E também não se pode negar
que o homem deve ser mais do que matéria animada, pois tem
o poder de aprender além do alcance de seus sentidos; porque
ele pode e acolhe a concepção e os sentimentos de estima, que,
de certa maneira, não possuem nenhuma relação direta com os
sentidos, e podem originar pensamentos, emoções e volições
que não foram estimulados por objetos externos. E certo que
Abraão e Jacó, Moisés e Josué, Samuel e Davi, Isaías e Jeremias
não tinham dúvida de que conheciam a Deus e eram conhecidos
por Ele; e há milhares de cristãos hoje para os quais seria difícil
de convencê-los que não poderiam conhecer e não conhecem
Deus, embora não esse conhecimento não seja possível de ser
obtido por intermédio dos sentidos ou, até mesmo, da razão.
2. I m a g in a -s e que as c o is a s não podem ser adequadam ente

Esta
c o n h e c id a s a m e n o s q u e s e j a m c o n h e c id a s i n t e i r a m e n t e .

proposição, contudo, não pode ser mantida quer na ciência, quer


na filosofia, quer na vida diária, quer na experiência religiosa. A
ciência sabe que existem coisas como vida e força, mas confessa
sua ignorância quanto à essência dessa vida e força; tudo o que
se entende sobre elas são suas propriedades e efeitos. A filosofia
pode expor as leis do pensamento, mas é incapaz de explicar o
segredo do pensamento em si; de como é estimulado na alma
pelos movimentos nervosos causados pelas impressões de fora,
e de como ele pode expressar-se ao fazer surgir movimentos con­
trários no corpo. O caso também não é diferente na experiência

244
Existe um Deus?

religiosa. O cristão, como Paulo, não pode ter dificuldade em


dizer, “Cristo vive em mim”, mas ele não pode explicar para si,
ou para os outros, como isso acontece. Portanto, deve-se rejeitar
a inferência de que visto que a mente finita não pode compre­
ender completamente o infinito, não pode, pois, conhecer de
modo algum o infinito, e deve permanecer incerta para sempre
se há ou não um Deus. As Escrituras, deve-se salientar, não
dizem que qualquer mente finita possa descobrir plenamente a
Deus. No entanto, ela diz que os homens podem conhecer Deus
pelas coisas que Ele faz e, mais especialmente, por Sua própria
imagem apresentada em Jesus Cristo, de maneira que se eles
não conseguem conhecê-lo, eles não têm desculpa.
3 . O ATEÍSMO PRATICAMENTE SOLAPA OS FUNDAMENTOS DA MORALIDA­
DE. Se não se pode dizer se há ou não um Deus, como se poderá
assegurar que existe algo como a moralidade? As distinções
entre certo e errado que alguém faça quanto às normas de sua
conduta podem ser completamente sem fundamento. E verdade
que é possível haver uma batalha para se manter alienado de uma
relação de prudência quanto à segurança futura, pelo mero desejo
de estar do lado vencedor, caso haja um Deus. Mas não é certo se
o imperativo “deve” ficaria ressoando por muito tempo dentro da
alma, visto que ninguém poderia dizer se além dos fenômenos da
natureza, ou da consciência, houve ou não um Deus. A moralida­
de, assim como a religião, pode repousar nas incertezas.

O orgulho do materialismo
“Não necessito de um Deus, pois posso percorrer o
universo sem Ele”
Apenas admita que tudo se iniciou em um oceano de átomos
e que uma força os colocou em movimento, e o materialismo
continuará a explicar o mistério da criação. Se nós temos o que
ele denomina imaginação científica, ele nos levará a ver todo o
processo — as moléculas ou átomos se combinando e se dividindo,
avançando e retrocedendo, formando grupos, construindo massas
e preenchendo espaços, tornando-se cada vez mais quentes
enquanto giram pelo espaço, rodopiando cada vez mais rápido,
até que abruptamente, devido apenas à velocidade, eles aumentam
e explodem, rompendo-se em fragmentos que, ao se resfriarem,
formam um sistema planetário completo.

245
Os fundamentos

Convidando-nos a lançar luz sobre este globo, o materialista nos


mostrará como, por longos séculos, remontando a milhões de anos,
as várias rochas que formam a crosta terrestre foram depositadas.
Sim, se mergulharmos com ele até o fundo do oceano, ele nos in­
dicará a primeira partícula de matéria inorgânica da qual brotou a
vida, o protoplasma, embora ele não possa dizer quando ou como.
Com relação a essa teoria do universo, no entanto, cabe aqui
fazer algumas observações:
1 . E s s a t e o r i a , t o m a d a e m s e u v a l o r t o t a l , admitindo-se como
inquestionáveis os fatos científicos alegados sobre os quais
está baseada, é no máximo apenas uma inferência ou hipótese
forjada, que pode ou não ser verdadeira e, certamente, não pode
reivindicar ir além dessa discussão.
2 . F a z e n d o c o n c e s s õ e s a t u d o q u e o s e v o l u c io n ís t a s e x i g e m , que
o cosmo atual se desenvolveu da matéria e da força, resta a ques­
tão, se isto necessariamente exclui ou necessita da intervenção de
Deus como o motor primário do processo. Se sim, gostaríamos de
saber de onde se originou a matéria e a força. Além disso, gosta­
ríamos de saber como esses átomos ou elétrons se atraíram e se
repeliram um aos outros e se combinaram, se não havia nenhuma
causa por trás desses fatos e nenhum objetivo em vista.
Contra esta hipótese panteísta, deve-se sempre expor a dificuldade
de se explicar como ou porque o Deus que estava latente na matéria
ou na força, demorou tanto para chegar à consciência do homem e
como, antes do aparecimento do homem, o Deus latente, que não tinha
consciência, poderia ter dirigido o processo evolutivo que moldou o
cosmos. Até que essas questões estejam satisfatoriamente respondi­
das, não será possível aceitar a solução materialista do universo.

A declaração do cristão
“Nao posso fazer nada sem deus. sem deus não sou
capaz nem mesmo de me relacionar com o universo ao
meu redor, nem explicar Jesus Cristo acima de mim,
tampouco compreender as experiências espirituais
dentro de mim.”
1. Sem D eus o u n iv e r s o m a t e r ia l ao redor do c r is t ã o é e

c o n t in u a sendo um Quando o cristão


e n ig m a i n q u ie t a n t e .

examina essa porção do universo que se apresenta à sua vista,


ele percebe sinais de sabedoria, poder e bondade que sugerem

246
Existe um Deus?

de maneira irresistível a idéia de um Deus. Quando ele olha para


o firmamento de estrelas com suas órbitas sem fim e considera
sua disposição e ordem, o equilíbrio e os movimento circulares,
instintivamente argumenta que esses sóis brilhantes e seus sis­
temas devem ter sido criados, dispostos e sustentados por uma
Mente Divina. Quando o cristão restringe sua atenção sobre a
terra, na qual está, ele repara as indicações dos projetos que são
visíveis em toda parte, como testemunha, por exemplo, na cons­
tância das leis e da força da natureza, na variedade interminável
das formas da natureza, tanto as animadas quanto as inanima­
das, assim como em sua maravilhosa gradação, não somente em
seus tipos, mas também nas ocasiões em que aparecem, e no
maravilhoso ajuste dos órgãos ao ambiente; ele se convence de
que essas coisas não são obras do acaso, que é cego, ou da pro­
dução espontânea da matéria, que em si, até onde ele sabe, não
tem poder, é sem vida e não tem inteligência, mas que só pode
ser a obra das mãos de uma Mente Criativa. Quando, além disso,
o homem reflete que no entorno da experiência humana, jamais
se teve conhecimento de efeitos sem causas; que projetos jamais
foram concebidos ou forjados sem projetistas e artífices; que a
matéria inorgânica jamais foi conhecida por tornar-se organismo
vivo, quer espontaneamente, quer por aplicação de meios; que
jamais se soube de algum tipo de vida ter transmutado de forma
espontânea ou artificial em outro, nem vegetal em animal, nem
animal em homem; mais uma vez, o cristão sente ter chegado
à conclusão de que todo o cosmo deve ser a produção de uma
mente, até mesmo de uma Inteligência Suprema, infinitamente
poderosa, sábia e bondosa. Como o salmista hebreu, ele se sente
compelido a dizer: “Que variedade, Senhor, nas tuas obras!
Todas com sabedoria as fizeste; cheia está a terra das tuas
riquezas” (SI 104.24).
Caso o filósofo faça a objeção de que esse argumento necessaria­
mente não requer uma Inteligência Infinita, mas apenas um artífice
capacitado para construir um universo tal como o atual, a resposta
é que se tal artífice existiu, ele exigiria ser mencionado pelo que
fez, pois os seres que são finitos devem ter tido um início e, portan­
to, devem ter sido causados. De acordo com isso, esse artífice deve
ter sido precedido por um outro maior do que ele, e este por outro
ainda maior, e assim por diante ad infinitum [infinitamente].

247
Os fundamentos

2 . S e m D eu s o cristão não p o d e e x p l ic a r p a r a si a p e s s o a d e
J esu s Fixando a atenção apenas nos evangelhos, o Cristão
discerne a personalidade que não pode ser justificada com
princípios comuns. Não é o simples fato de que Jesus tenha feito
obras como nenhum outro fez e proferiu palavras como jamais
lábios mortais o fizeram; é que em acréscimo a Sua vida, ele
possuía uma bondade incomparável — filantropia incansável,
amor auto-sacrificante, humildade, mansidão e pureza perfeita
— tal como jamais fora testemunhado sobre a terra, e jamais foi
exibida por qualquer um de seus discípulos. E que Jesus — uma
personalidade tal como descrita por aqueles que contemplaram
a glória Daquele que foi o unigênito do Pai; cheio de graça e ver­
dade, apresentando pretensões e afirmações que eram comple­
tamente inadequadas aos lábios de um simples homem, e muito
menos de um homem pecador — declarou ser a Luz do Mundo
e o Pão da Vida: anunciando que possuía o poder de perdoar os
pecados e de ressuscitar os mortos; que havia pré-existido antes
de vir à terra e que retornaria ao estado pré-existente quando
sua obra se realizasse, a qual seria morrer pelos pecados dos
homens: que ressuscitaria dos mortos e as ascenderia aos céus,
e tudo isso ele realmente fez; afirmando que era o Filho de Deus,
semelhante ao Pai, e o futuro juiz da humanidade. O cristão que
analisa esse quadro percebe que, embora Ele pertença aos limi­
tes do homem, também se reveste da semelhança de Deus, e
esse cristão raciocina que se este quadro retrata a vida (e como
poderia ter sido retratada de outra maneira?), então um Deus
deve ter andado nessa terra na pessoa de Jesus. Para o cristão,
nenhuma outra conclusão é possível.
3 . Sem D e u s o c r is tã o não pode e n te n d e r os fa to s de sua
Tomemos primeiramente a idéia de Deus
p r ó p r i a c o n s c iê n c ia .
que o cristão descobre quando chega à idade do juízo e da res­
ponsabilidade. Algo que ele não pode entender, se nenhum ser
como Deus existe, é como essa grande idéia surge dentro dele.
Dizer que ele simplesmente a herdou de seus pais ou a absorveu
de seus contemporâneos, não resolve o problema, mas apenas
faz com que esse mistério retroceda geração após geração.
Permanece a questão: como essa idéia se originou pela primeira
vez na alma? Responder que ela se desenvolveu gradualmente
a partir do totemismo e do animismo praticados pelas raças de

248
Existe um Deus?

evolução inferior que, impelidas por temores supersticiosos,


conceberam que os objetos materiais foram habitados por
fantasmas ou espíritos, é outra forma de evadir-se do problema.
Porque novamente surge a questão: como estas raças de evolu­
ção inferior chegaram à concepção de espíritos, distintos dos
corpos ou dos objetos materiais em geral? Caso a resposta seja
de que a veneração por ancestrais falecidos gerou a concepção
de um Deus, então dever-se-á exigir também por qual processo
de raciocínio eles foram transportados da concepção de haver
tantos deuses quantos os ancestrais para a concepção de uma
Divindade Suprema ou Senhor absoluto. A única explicação sa­
tisfatória da consciência latente de Deus que o homem, em todas
as épocas e terras, tem demonstrado possuir, é que é uma das
intuições da alma, uma parte do aparato intelectual e moral com
o qual vem ao mundo; que, de início, essa idéia ou intuição está
subjacente à alma, como uma semente que, pouco a pouco, se
abre enquanto a alma surge para a plena posse de seus poderes
e é convocada pela natureza externa; caso o pecado não tivesse
entrado no mundo, essa idéia ou intuição teria se expandido e
florescido em toda a parte, preenchendo a alma com uma clara
e radiante concepção do Ser Divino, em cuja imagem foi criado;
com tudo, agora, em conseqüência da maligna influência do
pecado, essa idéia ou intuição foi mais ou menos obscurecida ou
fragilizada em todos os lugares, e, nas nações pagãs, corrompida
ou desprezada.
Então, o cristão, levantando-se em razão da experiência distin­
tivamente religiosa da conversão, se encontra com uma série ou
grupos de fenômenos inexplicáveis para ele, caso não houvesse
Deus. Cônscio de uma mudança parcialmente intelectual, mas
principalmente moral e intelectual, uma mudança tão completa que
chega a uma revolução interior, a ponto de as Escrituras a chamar
de novo nascimento ou nova criação, que ele sabe não ser capaz de
produzi-la pela educação ou pelo ambiente, pela reflexão filosófica
ou por considerações sobre a prudência. A única resposta razoável
que ele pode fornecer é que ele tem sido sustentado pelo invisível,
pelo Poder Sobre-Humano, de maneira que se sente constrangido a
falar como Paulo: “Pela graça de Deus, sou o que sou” (ICo 15.10),
e não somente isso, mas como o resultado dessa transformação
interior em sua natureza, ele admite que está em uma nova relação

249
Os fundamentos

com aquele Poder Supremo que o tem estimulado e renovado, para


que possa entrar em comunhão com ele por intermédio de Jesus
Cristo, dirigindo a Ele suas orações e recebendo Dele os benefícios
e as bênçãos em resposta às suas orações.
Essas experiências, das quais o cristão está cônscio, podem ser
caracterizadas pelos não-cristãos como ilusões. Contudo, para os
cristãos, elas são realidades; e, sendo realidades, isso torna sim­
plesmente impossível para ele crer que não há Deus. Ao contrário,
elas o inspiram com confiança de que Deus é, assim como Ele é o
Recompensador daqueles que diligentemente O buscam, “porque
dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas; a ele, pois, a
glória eternamente. Amém!” (Rm 11.36).

250
251

Deus em Cristo,

22 a única revelação
da paternidade de Deus

R obert E . S peer
Secretário do Conselho Presbiteriano de Missões
Estrangeiras
Resumido e editado por James A. Christian, Th.D.

“Eles vos expulsarão das sinagogas; mas vem a hora em que


todo o que vos matar julgará com isso tributar culto a Deus. Isto
farão porque não conhecem o Pai, nem a mim” (Jo 16.2,3).

ROBERT ELLIOTT SPEER (1867-1947) foi, nos EÜA, um dos mais


eficazes incentivadores das missões estrangeiras. Formado pela
Universidade de Princeton, em 1891, Speer precisou interromper seu
curso no Seminário de Princeton para se tornar Secretário de Missões
Estrangeiras para o Conselho Presbiteriano de Missões Estrangeiras.
Jam ais voltou a completar seu curso no seminário, pois passou
dezesseis anos viajando e desafiando cristãos a dispor suas vidas e
riquezas na divulgação do evangelho. Em 1927, foi eleito Presidente da
Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, o segundo leigo a ocupar essa
posição naquela época. A Universidade de Edimburgo concedeu-lhe o
doutorado honorário em 1910. Escreveu e editou sessenta e sete livros,
entre os quais The Principies of Jesus [Os Princípios de Jesus], The Man
Paul [O Homem Paulo], Missons and Politics in Asia [Missões e Política
na Ásia] e The Finality of Jesus Christ [A Finalidade de Jesus Cristo].
Os fundamentos

Essas palavras nos sugerem que não basta a um homem justo crer
em Deus. Tudo dependerá em que tipo de deus se crê. A primeira
vista, essa é uma comparação um tanto intrigante e surpreendente,
pois que nosso Senhor institui aqui, por um lado, uma diferença entre
uma mera fé em Deus e a possível e horrível conseqüência moral e,
por outro lado, um conhecimento de Deus em Cristo e seus seguros
efeitos morais. E a lição parece ser a inadequação de qualquer fé
religiosa que não reconheça a revelação do Pai em Jesus Cristo, e
que não reconhece Jesus Cristo como Deus. De certa maneira, é um
pouco difícil para nós aceitar tão grande concepção como essa em
nossa vida, mas nosso Senhor a apresenta com clareza inequívoca:
por um lado, a inadequação moral de uma mera crença em Deus; por
outro lado, a adequação moral e espiritual de um reconhecimento de
Deus como o Pai manifesto em Cristo, que também é Deus.

Teísmo não é suficiente


No primeiro desses dois versículos, nosso Senhor torna inequivo­
camente claro o primeiro desses dois pontos. Ele não percebe uma
mera fé teísta como garantia adequada da retidão e da justiça moral.
Ele sofreu em Sua própria morte os frutos, possivelmente amargos,
de uma mera fé teísta. Os homens que O entregaram à morte eram
fervorosos crentes em Deus e, quando crucificaram o Filho de Deus,
pensavam estar fazendo uma coisa primorosa a Deus. E Ele disse a
Seus discípulos que chegaria o dia quando homens conscienciosos
fariam da obra de Deus o ato de os executar; e que aqueles que os
colocariam à morte não seriam homens maus, mas homens que
pensavam que ao matá-los estariam fazendo a vontade de Deus.
Vemos exatamente esse mesmo erro sendo cometido em nossos
dias. Simplesmente crer em um Deus não é uma proteção segura.
Nosso Senhor entendia muito bem que uma mera fé em Deus não
era suficiente para tornar um homem bom, mas que um homem
podia crer em Deus e ser um assassino, ou um adúltero; ele podia
crer em Deus e entregar os próprios apóstolos à morte e pensar que
assim estaria prestando um grande serviço a Deus.

Ser consciente não é o suficiente


Parece-me ser valioso nos deter aqui por um momento para
notar como é fácil para um homem ser culpado de um erro e crime
de consciência. Dizer que está conscientemente satisfeito com o

| 252
Deus em Cristo, a única revelação da paternidade de Deus

que fez, não é desculpa para um homem. Suponho que a maior


parte das coisas más tem sido feita com toda boa consciência, e
que a maioria dos pecados que cometemos hoje, cometemos com
uma consciência perfeitamente limpa. Existe uma coisa chamada
cegueira moral que é tão real quanto à cegueira física. Há algum
tempo, visitei uma escola de meninas, bem conhecida, e tive uma
discussão com uma das professoras, que dizia que não fazia muita
diferença em que um aluno cria ou o que fazia, conquanto que ela
estivesse cônscia de sua crença e conduta. Eu, no entanto, lhe disse
que, para ela, devia ser muito fácil ir para a escola, pois não faria
a menor diferença se alguém respondesse certo ou não, se tão
somente ela estivesse cônscia de que era honesta em relação àquilo
que dizia. Ela poderia ter duas respostas completamente contrárias
a uma certa questão e marcar cada uma delas como correta. Todo o
fundamento do universo moral cai debaixo do homem e da mulher
que tem esse ponto de vista, de que não há realmente algum padrão
objetivo do certo ou do errado, que tudo depende de como uma
pessoa vê e, se ela se sente confortável com isso, tudo está certo. Os
homens que entregaram os discípulos de Jesus Cristo à morte não
tinham escrúpulos acerca disso. Eles pensavam estar prestando
um serviço a Deus. A idéia que nosso Senhor quer nos passar é que
os padrões de um homem dependem de sua concepção de Deus, e
ele sabia não haver garantia de retidão e justiça moral na vida de
um homem, a não ser que esse homem considerasse a revelação de
Deus, o Pai, que fora feita em Jesus Cristo, e aceitasse Jesus Cristo
como Deus.

A menção que Cristo faz do “Pai”


Não há lugar aqui para traçar essa grande idéia ao longo de todo
o ensino de nosso Senhor. Lembro-me de, ultimamente, ler os últi­
mos discursos de Jesus, em João, com esse pensamento em mente.
Jesus menciona apenas quatro vezes o nome de Deus, ao passo
que fala do Pai, pelo menos, umas quarenta vezes. Evidentemente,
nosso Senhor concebia que Sua grande mensagem aos homens era
uma mensagem de Deus, o Pai, conforme revelada em Sua própria
vida, e Jesus afirmou que isso era uma grande verdade moral prá­
tica, que era para salvar os homens daqueles erros de julgamento,
de ato e de caráter, sobre os quais um homem não tem garantia se
tiver apenas uma mera fé monoteísta.

253
Os fundamentos

Em relação à nossa fé religiosa


1. Acho que agora podemos ir bem ao âmago da coisa considerando,
primeiramente, a relação dessa revelação que Jesus Cristo fez do
caráter de Deus Pai em Si mesmo para nossa fé religiosa. Começa­
mos nosso credo cristão com a declaração, “Creio em Deus Pai,
Todo Poderoso”. Creio que nenhum homem pode dizer essas
palavras sincera e honestamente, com apenas o entendimento
intelectual daquilo que está dizendo, mas que só as pode proferir
se estiver com seus pés fincados solidamente sobre a convicção
evangélica; pois não sabemos praticamente nada sobre Deus
Pai, a não ser o que aprendemos da revelação de Deus Pai em
Jesus Cristo. As vezes, os homens dizem que a idéia de Deus
Pai estava no Antigo Testamento, e há, sem dúvida, um sentido
no qual podemos encontrá-la ali: os hebreus pensavam em Deus
como Pai, o Pai de Israel.
Aqui e ali há alguma irrupção esplêndida nos profetas que
contém essa idéia, como quando Jeremias, clamando a Deus,
diz: “Porque sou pai para Israel, e Efraim é o meu primogênito”
(Jr 31.9). Ou quando Israel clama por meio de Isaías: “O S e n h or , tu
és nosso Pai, nós somos o barro, e tu, o nosso oleiro” (v. 64.8). Mas
em ambos os sentidos essas são um tipo de concepção nacionalista
de Deus, como o Pai de todo o povo, Israel. Voltando ao Salmo 103,
em que encontramos a melhor expressão disso: “Como um pai se
compadece de seus filhos, assim o S enhor se compadece dos que o
temem” (v. 13), e, até aqui, ouve-se o clamor nacional. Ou voltando ao
Salmo 89, e lá, também está o clamor nacionalista e patriótico: “Ele
me invocará dizendo: Tu és meu Pai, meu Deus e a rocha de minha
salvação” (v. 26). Se em todo o grande corpo da poesia religiosa de
Israel há apenas duas ou três citações sobre a paternidade de Deus,
não podemos crer que essa idéia tenha preenchido um lugar muito
amplo no coração de Israel. E, na última de todas as profecias do
Antigo Testamento, a queixa de Deus é que os Israelitas não o conce­
biam como seu Pai, e, até mesmo, a concepção política de Deus como
o Pai da nação não era uma realidade na experiência do povo.

üma nova concepção


A revelação de Deus como o Pai dos homens era, na prática,
uma nova concepção exposta no ensino e na vida de nosso Senhor
Jesus Cristo — e não apenas em seu ensino. Jamais conheceríamos

254
Deus em Cristo, a única revelação da paternidade de Deus

a Deus como Pai apenas pela mensagem de Jesus Cristo; jamais


seriamos capazes de conceber qual era a idéia de Cristo acerca de
Deus, se não víssemos o que essa idéia operou na própria pessoa
de Jesus Cristo. Não foi apenas aquilo que Ele nos falou sobre Deus.
Ele disse que quando andava diante dos homens, Ele era um com
o Pai em quem os olhos dos homens podiam contemplar: “Eu sou
o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por
mim. Se vós me tivésseis conhecido, conheceríeis também a meu
Pai. Desde agora o conheceis e o tendes visto. Replicou-lhe Filipe:
Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta. Disse-lhe Jesus: Filipe,
há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem
me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês
que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu
vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece
em mim, faz as suas obras” (Jo 14.6-10).

João e Mateus
Não podemos separar os elementos cristológicos do evangelho.
Tem sido feito um esforço para se excluir o evangelho de João, e
é-nos dito que, com o evangelho de João de fora, a obra verdadeira
de Cristo era apenas sua mensagem, tornar o Pai conhecido para
os homens; e que o caráter cristólogico que impomos ao evangelho
era algo impingido posteriormente sobre este, e não algo que estava
na mente e no pensamento de Jesus Cristo. Contudo, não vejo como
os homens podem ter esse ponto de vista se não cortarem também
o capítulo onze de Mateus. Ali, Cristo expõe, tão inequivocamente,
quanto em qualquer outra parte do evangelho de João, o caráter es­
sencialmente cristólogico de Seu evangelho: “Tudo me foi entregue
por meu Pai. Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém co­
nhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”
(v. 27). Não podemos separar a revelação da paternidade de Deus,
feita por Cristo, da pessoa de Cristo. Ele não expunha a paternidade
de Deus pelo que Ele falava; mas expunha a paternidade de Deus pelo
que era; e é uma espécie de concepção intelectual equivocada tomar
certas palavras Suas e dizer que essas palavras nos autorizam a crer
em Deus como nosso Pai, embora rejeitemos Jesus Cristo como Seu
Filho Divino, e pensemos que é possível sustentar o primeiro artigo
de nosso credo cristão sem que o segundo lhe dê continuidade,
“Creio em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor”.

255
Os fundamentos

Cristo é tudo
Se eu e você subtrairmos de nossa concepção de Deus o que
entendemos em relação à pessoa de Jesus Cristo, praticamente não
nos resta mais nada. Os discípulos sabiam que lhes restaria bem
pouco. Quando lhes foi proposto que separassem Cristo da revela­
ção que Ele fez, esses homens ficaram absolutamente aturdidos e
disseram: “Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida
eterna” (Jo 6.68), ou seja, ele estavam dizendo: “Para nós não há
mais nada no judaísmo”. O Monoteísmo estava no Judaísmo; a re­
velação de Deus estava no judaísmo; mas aquilo não era mais nada
para os discípulos, pois eles tiveram essa gloriosa visão do Pai que
se fez conhecer aos homens por Jesus Cristo, Seu Filho. Parece que
nossa atitude para com Jesus Cristo é o determinante de nossa vida
no Pai; e que a imaginação que temos de uma vida no Pai, que se
baseia na rejeição das afirmações de Jesus Cristo, é uma imagina­
ção sem nenhum fundamento. Vejamos aquelas notáveis palavras
do Senhor: “Quem não me ama não guarda as minhas palavras;
e a palavra que estais ouvindo não é minha, mas do pai, que me
enviou” (Jo 14.24); Se alguém me ama, guardará a minha palavra;
e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada”
(Jo 14.23). O que Jesus apresenta como a condição de uma atitude
justa para com Deus é a aceitação, pelo homem, do segredo interior
de Sua própria vida, uma entrega deliberada do próprio homem aos
sublimes princípios que estão manifestos no caráter e na pessoa
de Jesus, uma união compassiva consigo mesmo. E Ele resumiu
tudo a Filipe nestas palavras: “Quem me vê a mim vê o Pai”. E
nesse sentido que digo que você e eu não podemos honestamente
declarar que “cremos em Deus Pai”, a menos que digamos logo a
seguir: “E em Jesus Cristo, Seu único Filho, nosso Senhor”, pois
não sabemos praticamente nada sobre Deus como Pai, exceto o que
foi revelado de Deus Pai naquele que disse: “Eu e o Pai somos um”.
Acaso cremos na paternidade de Deus nesse sentido?

Aplicação prática
2. Talvez possamos responder essa questão de modo melhor se
perguntarmos, em segundo lugar, se admitimos em nossas vidas
todas as implicações práticas dessa revelação do caráter do Deus
Pai em Jesus Cristo. Há uma razão para isso: pense em como

256
Deus em Cristo, a única revelaçao da paternidade de Deus

isso interpreta o mistério e o testemunho da vida. Hoje, sobre


a hipótese meramente teísta, a vida é apenas um enigma. Não
temos qualquer consolo, nem luz, nem iluminação sobre o que
sabemos ser o grande problema da vida a partir de uma simples
crença em Deus. Esse enigma torna-se inteligível para nós apenas
se entendermos Deus como nosso Pai, no sentido em que Jesus
Cristo O revelou. O Dr. Babcock costuma dizer a seguinte frase:
“Você tem de ficar com uma dessas duas interpretações. Você
tem de lê-la nos termos da paternidade”. Uma vez que aceito a
revelação de Deus feita em Jesus Cristo, minha vida ainda é um
tremendo problema para mim. Há muitas coisas nela que são
ainda terrivelmente confusas e difíceis; mas consigo ver um
pouco de luz em seus mistérios profundos e impenetráveis. Foi
somente com esse ponto de vista que o escritor da grande epístola
aos Hebreus pensava ter uma chave para o mistério de sua própria
vida, ao flagelo dela, à disciplina rígida e ardente pela qual ele vê
que todos nós devemos passar. Somente quando Ele concebeu a
Si mesmo como filho do grande Oleiro, que estava moldando o
próprio barro, que o mistério começou a clarear um pouco em
seu caminho. E foi apenas assim, lembre-se, que Cristo lançou
luz sobre o mistério de sua vida: “Pai [...] não se faça a minha
vontade, e sim atua” (Lc 22.42). Somente quando Ele se lembrou
e descansou profundamente sobre o caráter de Deus, como Seu
Pai, é que aquelas grandes experiências, pelas quais ele passava,
passaram, para ele, a ter plena inteligibilidade de Deus. Afinal,
não havia imaginação que relacionasse essas duas grandes idéias
de Isaías, a idéia viva da paternidade de Deus e a idéia metafórica
de Deus como o Oleiro que trabalha o seu barro. E somente assim
que entendemos ambos os aspectos de nossa vida humana. Quan­
do a roda se move depressa, e a mão do Oleiro parece cruel ao
barro, e a fricção é cheia de terrível calor, começamos a entender
algo desse mistério, ao admitir que a mão do Oleiro é a mão de um
Pai que molda com disciplina paternal a vida de seu filho. “E para
disciplina que perseverais (Deus vos trata como filhos); pois que
filho há que o pai não corrige?” (Hb 12.7).

Nossos ideais
Ora, pense também como essa concepção de Deus inspira e
retifica os ideais de nossa vida. Foi isto que sugeriu essa idéia a

257
Os fundamentos

Jesus aqui. Ele percebeu que não havia absolutamente nenhuma


garantia de padrões corretos de vida em uma mera fé teísta, e não
há mesmo. Não temos qualquer garantia de ideais morais justos
e perfeitos, os quais só obteremos mediante à demonstração do
caráter de Deus Pai na pessoa de Jesus Cristo e da união pessoal
com Deus Nele.
De fato, os melhores ideais de nossas vidas devem-se a essa
revelação. O ideal de pureza — os judeus jamais o tiveram. Eles
tinham um ideal de pureza ritual, mas não tinham o ideal cristão de
pureza moral. Não podemos encontrar o ideal de pureza em nenhu­
ma parte do mundo em que a concepção da revelação do Deus Pai
em Cristo não ocorreu. Explicá-la, como se verá, é um simples fato
de religião comparada. Poderá algum homem descobrir o pleno
ideal de pureza moral em qualquer parte deste mundo, a não ser
que tenha sido criado pela revelação do caráter do Deus Pai em
Cristo? Devemos isto a esse fato, e não podemos ficar seguros de
seu caráter de perpetuação, a não ser que a convicção dessa grande
revelação habite na fé do homem.
Tomemos nosso ideal de trabalho. Onde Cristo obteve seu ideal
de trabalho? “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também”
(Jo 5.17). Em que base ele estabeleceu sua afirmação de que os
homens devem trabalhar? “Filho, vai hoje trabalhar hoje na vinha”
(Mt 21.28). Todo nosso ideal de uma vida de trabalhadores, de
um aproveitamento pleno do poder da vida de um homem em um
serviço não egoísta, é ideal nascido da revelação do caráter de Deus
Pai em Cristo. E o perdão é um ideal do mesmo tipo. Todos nós
devemos o mais altos e os mais nobres ideais de nossa vida a essa
revelação. E não nos parece justo um homem tomar aqueles ideais
e, em seguida, negar sua origem, atropelando as afirmações Dele,
sem dizer de quem esses ideais provieram.

Obediência suavizada
E pense em como esta concepção de Deus torna a obediência tão
racional e doce. Há algo racional, mas dificilmente doce na idéia de
obediência a Ele sob a simples concepção teísta. Toda a alegria da
obediência vem quando penso em mim como filho de meu Pai e
enviado a fazer Sua vontade. Nosso Senhor pensava que Sua vida
era exatamente assim. Naquela última noite em que Simão Pedro
tentou defendê-lo pela força, Ele disse: “Mete a espada na bainha;

258
Deus em Cristo, a única revelação da paternidade de Deus

não beberei, porventura, o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18.11).


Obtemos nossos ideais de obediência, assim como a alegria e o
deleite de obedecer, da idéia de que, depois de tudo, devemos sim­
plesmente obedecer nosso Pai. No capítulo quatorze do evangelho
de João, temos uma pequena visão do que Cristo concebe como a
doçura e a ternura e a beleza que pode ter a vida de uma pessoa
que realmente aceite essa revelação. Disse Jesus: “Naquele dia vós
conhecereis que eu estou em meu Pai, e vós, em mim, e eu, em
vós. Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o
que me ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu
também o amarei e me manifestarei a ele. [...] Se alguém me ama,
guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele
e faremos nele morada. Quem não me ama não guarda as minhas
palavras; e a palavra que estais ouvindo não é minha, mas do Pai,
que me enviou” (João 14.20-24).

Relação à vida de oração


3. E, por último, pense na luz que essa concepção de Deus lança sobre
nossa vida de oração. Suspeito que a oração tem sido apenas um
logro para muitos de nós, ou uma coisa que temos feito, porque
outras pessoas nos disseram que era uma coisa que era preciso
fazer. Nunca tiramos qualquer coisa dela; ela jamais significou
algo para nós. Podemos, algo que é bem possível, falar às pare­
des de pedra se orarmos da maneira como temos feito. Dizemos,
“Deus”, mas poderíamos até ter dito “colinas”, ou, “montanhas”,
ou, “árvores”, ou qualquer outra coisa. Isso porque não entramos
na escola de Cristo e aprendemos lá, o mesmo que fazemos com
sua prática e doutrina, o que é a verdadeira oração e como o
homem pode fazê-lo.
Espero não ser mal compreendido. A única coisa que quero dizer
é que a concepção que Cristo tinha de Deus e Sua prática de oração
não repousam meramente na interpretação teísta do universo e
da natureza de seu Criador, em Sua majestade e onipotência. Elas
repousam sobre a concepção do Pai que Ele revelou em Si mesmo.
Medite sobre as orações que Ele fez: a oração que Ele nos ensinou
a orar, “Pai nosso, que estás nos céus”; a oração que Ele próprio
ofereceu, quando os discípulos de João Batista vieram a ele: “Por
aquele tempo, exclamou Jesus: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu
e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as

259
Os fundamentos

revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agra­
do” (Mt 11.25,26); a oração que Ele ofereceu no templo, quando
Filipe e André se aproximaram com a mensagem sobre os gregos
que estavam procurando ver-lhe: “Agora, está angustiada a minha
alma, e que direi eu? Pai, salva-me desta hora? Mas precisamente
com este propósito vim para esta hora” (Jo 12.27); a oração que Ele
ofereceu diante de Lázaro: “Pai, graças te dou porque me ouviste.
Aliás, eu sabia que sempre me ouves”(Jo 11.41,42); a oração que
ele fez no Getsêmani: “Meu Pai, se não é possível passar de mim
este cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade” (Mt 26.42); e
a última de todas, quando, como uma criança cansada, ele se deita
nos braços do Pai e adormece: “Então, Jesus clamou em alta voz:
Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E, dito isto, expirou”
(Lc 23.46). Que concepção de oração essas orações lhe fornecem.
Não estamos orando a algum Deus teísta e frio; estamos orando a
nosso Pai que se fez real para nós, que nos aquece com o calor de
uma extraordinária ternura por nós, que é vivo e tem consciência de
todo nosso sofrimento, esforço, conflito e necessidades humanos.
Faz-se uma oração, por um motivo, um motivo racional. Posso
ir a meu Pai e pedir-lhe as coisas das quais necessito. Há uma
passagem formidável na revista de Andrew Bonar, na qual ele fala
que se assentou um dia para estudar e, ao olhar pela janela, viu dois
de seus filhos atravessando o campo. Ele relata que, enquanto via
aquelas criancinhas fazendo seu caminho pelo campo, o amor em
seu coração o dominou, e ele empurrou seus livros que estavam na
mesa e saiu à porta e os chamou no campo; e eles vieram correndo
ansiosamente em resposta ao chamado amoroso de seu pai. E,
quando eles chegaram, ele os acariciou e disse que deu um abraço
em cada um de seus filhos, apenas graças ao êxtase de seu amor
paternal, que fez com que fosse impossível que ele não fizesse algo,
pois aquelas crianças eram tão caras a seu coração. Será que vocês
supõem que Deus é um tipo de pai inferior? A oração, no sentido
da suplica por coisas reais, torna-se uma realidade racional aos
homens que crêem em Deus por intermédio de Jesus Cristo.

Comunhão
E quão doce se torna a oração no sentido de uma comunhão
viva. Será que vocês supõem que somos figuras mais nobres
do que aquela do grande Pai, segundo quem nossa paternidade
Deus em Cristo, a única revelação da paternidade de Deus

humana foi forjada? Será que vocês percebem que se é doce para
nós termos nossas criancinhas se arrastando a nós na escuridão,
também é doce para nosso Pai celestial aqui, ou em qualquer parte,
ter homens, seus filhos, que se esgueiram para junto Dele, e de seu
amor? Isto não é um modo exagerado de apresentar esse fato. Não
nos é garantido, por meio daquelas palavras que nosso Senhor falou
na manhã de Páscoa, quando estava ao lado de seu túmulo aberto,
enquanto uma mulher, Maria, que estava abraçada a seus pés, o
adorou: “Maria! [...] vá ter com os meus irmãos e diz-lhes: Subo
para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (Jo 20. 16,17).
Sim, essa é a forma correta de apresentar isso hoje. Não há Deus
para nós, em nenhuma parte de todo o universo não há um Deus
real e suficiente para nós, senão o Deus que é revelado a nós em
Jesus Cristo e que nos está chamando hoje pelos lábios de Cristo:
“Meu filho, oh meu filho”, e que, se formos homens verdadeiros,
nos faria retornar esse chamado: “Meu Pai, ó meu Pai”.

261
263

A divindade
de Cristo

P r o f . B e n ja m im B . W a r f i e l d , D.D., LL.D
Seminário Teológico Princeton
Revisto e editado por Gerald B. Stanton, Th.D.

Um escritor célebre notou que nossa segura convicção da divin­


dade de Cristo não repousa sobre “textos-prova ou passagens, nem
sobre antigos argumentos provenientes destes, mas sobre a face
geral de toda manifestação de Jesus Cristo, e de toda impressão
deixada por Ele sobre o mundo”. Sua antítese é também absoluta e,
possivelmente, trai uma desconfiança injustificada da evidência das
Escrituras. Para torná-la aceitável, devemos ler antes a declaração:

BENJAMIM BRECKINRIDGE WARFIELD (1851-1921) estudou no


Princeton College, no Seminário da Princeton e na üniversidade de
Leipzig, na Alemanha. Warfield, ordenado em 1879, lecionou no
Seminário Teológico Ocidental, Allegheny, PA, de 1878 a 1887, quando
foi para o Seminário da Princeton, onde permaneceu até sua morte, em
1921. Foi seguidor do Dr. A. A. Hodge e manteve a posição conservadora
calvinista desse grande teólogo, Calvino. De 1890 a 1902, editou a
Presbyteriam and Reformed Review. Muitos de seus livros ainda são lidos
hoje em dia, incluindo Bíblical and Theological Studies [Estudos Bíblicos
e Teológicos], Calvin and Angustine [Calvino e Agostinho], Inspiration
and Authority of the Bible [Inspiração e Autoridade da Bíblia], The
Person and Work ofC hrist [A Pessoa e a Obra de Cristo], Perfectionism
[Perfeccionismo] e Counterfeit Miracles [Milagres Forjados].
Os fundamentos

“Nossa convicção da divindade de Cristo repousa não apenas em


passagens das Escrituras que a afirmam, mas também sobre toda
nossa impressão do mundo”. Ou talvez: “Nossa convicção repousa
tanto sobre as afirmações das Escrituras como sobre sua completa
manifestação”. Ambas as linhas de evidência são válidas e, quando
misturadas, formam uma corda inquebrantável. Os textos-prova
e as passagens comprovam que Jesus era considerado divino por
aqueles que viviam com Ele; que Ele mesmo afirmava ser divino:
era reconhecido como divino por aqueles que eram ensinados pelo
Espírito; que, enfim, Ele era divino. Mas, além e acima dessa evi­
dência bíblica, a impressão que Jesus deixou sobre o mundo dá tes­
temunho independente de sua divindade e pode muito bem ser que,
para muitas mentes, isso possa parecer a evidência mais conclusiva
de todas. Certamente, é bastante convincente e impressionante.

A natureza da evidência
Um homem ao ver o rosto de seu amigo o reconhece, como
reconhece sua própria letra quando se depara com ela. Pergunte-lhe
como ele sabe que esse rosto é o de seu amigo, ou que essa letra é a
sua, e ele pode emudecer ou, se procurar responder, balbuciar algo
sem sentido. Ainda que seu reconhecimento se baseie em bases sólidas,
carecerá de habilidade analítica para isolar e afirmar essas mesmas ba­
ses sólidas. Cremos em Deus, na liberdade e na imortalidade como
bons fundamentos, embora não sejamos capazes de analisar estas
bases de maneira satisfatória. Não existe nenhuma convicção real
sem fundamento racional adequado para sua evidência. Assim, se
estamos solidamente seguros da divindade de Cristo, isso será sobre
bases adequadas, que apelem à razão. Mas pode muito bem ser sobre
bases não analisadas, talvez não passíveis de ser analisadas, por nós,
de forma a ser demonstradas na forma da lógica formal.
Não precisamos aguardar para analisar as bases de nossas
convicções antes que elas operem para produzir convicções, assim
como não necessitamos aguardar para analisar nossa comida antes
que ela nos nutra. A convicção cristã sobre a divindade de seu
Senhor não depende de sua solidez sobre a capacidade cristã de
convencimento para afirmar as bases de sua convicção. A evidência
que ele oferece para isto pode ser completamente inadequada,
embora a evidência sobre a qual ele repouse seja absolutamente
constrangedora.
A divindade de Cristo

O testemunho na solução
A própria abundância e persuasividade da evidência para a di­
vindade de Cristo aumenta grandemente a dificuldade de afirmá-la
adequadamente. Isto é verdadeiro até mesmo quanto à evidência
escriturai, pois ela é tão precisa e definida. E verdade o que Dr. Dale
observa: que os textos particulares, nos quais a divindade é defi­
nitivamente afirmada, não se referem, nem de perto, ao todo, ou
ainda, nem são as provas mais impressionantes que as Escrituras
fornecem da divindade de nosso Senhor. Ele compara esses textos
aos cristais de sal que aparecem na areia da praia depois que a maré
recua. “Esses cristais de sal não são”, observa ele, “a prova mais
forte, embora seja a mais aparente, de que o mar é salgado; o sal
está presente na solução de cada balde de água do mar”. A divinda­
de de Cristo está na solução de cada página do Novo Testamento.
Cada palavra acerca Dele, cada palavra proferida a respeito Dele,
pressupõe a aceitação de que Ele é Deus. Essa é a razão pela qual a
“crítica”, que procura eliminar o testemunho do Novo Testamento
em relação à divindade de nosso Senhor, impôs a si mesma uma
tarefa sem esperança. O Novo Testamento teria de ser eliminado.
Não podemos nos afastar de seu testemunho. Como a divindade de
Cristo é a pressuposição de cada palavra do Novo Testamento, fica
impossível selecionar palavras do Novo Testamento e buscar, com
elas, construir documentos mais recentes nos quais a divindade
de Cristo não seja afirmada. A convicção segura da divindade de
Cristo é contemporânea ao próprio cristianismo. Jamais houve um
cristianismo, nem nos tempos dos apóstolos, nem a partir daí, em
que essa não fosse uma opinião primordial.

Um evangelho saturado
Observemos, por meio de um ou dois exemplos, quão comple­
tamente saturado está a narrativa do evangelho com a aceitação
da divindade de Cristo, de maneira que ela surge de forma e em
lugares inesperados.
Em três passagens de Mateus, relatando as palavras de Jesus,
Ele fala de modo familiar e da maneira mais natural do mundo
sobre “seus anjos” (13.41; 16.27; 24.31). Em todas elas, Ele afirma
que é o “Filho do Homem”; e em todas as três existem sugestões
adicionais de sua majestade. “Mandará o Filho do Homem os seus

265
Os fundamentos

anjos, que ajuntarão do seu reino todos os escândalos e os que


praticam a iniqüidade e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá
choro e ranger de dentes” (Mt 13.41,42).
Quem é esse Filho do Homem que tem anjos, por cuja instru-
mentalidade o juízo se executará a seu comando? “Porque o Filho
do Homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e,
então, retribuirá a cada um conforme as suas obras” (Mt 16.27).
Quem é este Filho do Homem cercado por Seus anjos e em cujas
mãos estão a distribuição da vida? O Filho do Homem “enviará os
seus anjos, com grande clangor de trombeta, os quais reunirão os
seus escolhidos, dos quatro ventos, de uma a outra extremidade
dos céus” (Mt 24.31). Quem é este Filho do Homem que, por sua
ordem, Seus anjos selecionam os homens? Um escrutínio dessas
passagens mostrará que não é um corpo particular de anjos que
significa os “anjos” do Filho do Homem, mas os anjos como um
corpo, quem são Dele e estão ali para servi-Lo, conforme Ele orde­
nar. Em uma palavra, Jesus Cristo está acima dos anjos (Mc 13.32)
— como é argumentado de modo extenso e explícito no início da
epístola aos Hebreus. “Ora, a qual dos anjos jamais disse: Assenta-
te à minha direita...” (Hb 1.13).

O céu vem a terra


Existem três parábolas relatadas no décimo quinto capítulo de
Lucas, como proferidas por nosso Senhor em Sua defesa contra os
murmúrios dos fariseus, que protestavam quanto ao fato de Ele
receber os pecadores e comer com eles. A essência da defesa que
nosso Senhor oferece para Si mesmo é que há alegria no céu graças
aos pecadores que se arrependem! Porque “no céu”, diante do trono
de Deus? Ele está apenas pondo o juízo do céu contra o da terra,
ou apontando para sua vingança futura? De forma alguma. Ele está
representando Sua ação de receber os pecadores, de procurar o
perdido, como Sua própria missão, pois esta é a conduta normal
do céu que se manifestou Nele. Ele é o céu que vem a terra. Sua
defesa é, portanto, apenas o desvelar a natureza real da transação.
Os perdidos, quando se aproximam Dele, são recebidos, porque
este é o caminho do céu; e Ele não pode agir de outro modo, senão
pelo modo do céu. Ele assume tacitamente a parte do bom Pastor
como Sua.

266
A divindade de Cristo

A posição única
Todas as grandes designações não são tão afirmadas quanto
assumidas por Ele para Si mesmo. Ele não se autodesigna profeta,
embora aceite esta designação de outros. Ele coloca-se acima de
todos os profetas, até mesmo de João, o maior dos profetas, como
aquele para quem todos os profetas olharam. Se chama a Si mesmo
de Messias, preenche esse termo dando-lhe um significado mais
profundo, abrigando-se na única relação que há entre o Messias de
Deus, como seu representante, e Seu Filho. Jesus não fica satisfeito
em apresentar-se meramente como alguém que tem uma relação
única com Deus. Ele afirma que é o recipiente da plenitude divina,
o participante de tudo que Deus tem (Mt 11.28). Fala livremente
de Si mesmo como o Outro de Deus — a manifestação de Deus
sobre a terra, ou seja, quem quer que O visse, via também o Pai — e
Aquele que faz a obra de Deus na terra. Ele afirma, abertamente, ter
prerrogativas divinas — o conhecer o coração do homem, o perdão
dos pecados, o exercício de toda autoridade no céu e na terra. Na
verdade, tudo que Deus tem e é, Ele afirma ter e ser; onipotência,
onisciência, perfeição pertencem tanto a um como ao outro. Ele
não somente executa os atos divinos, mas Sua própria consciência
se adere à consciência divina. Se Seus seguidores demoravam para
reconhecer Sua divindade, isso não era devido ao fato de Ele não
ser Deus, ou não manifestar suficientemente Sua divindade. Era
devido a eles serem tolos e lentos para crer, no coração, naquilo que
Ele deixava tão patente diante de seus olhos.

A prova maior
As Escrituras nos dão evidência suficiente, portanto, de que
Cristo é Deus. Contudo, elas estão longe de nos conceder toda a
evidência que temos. Há, por exemplo, a revolução que Cristo ope­
rou no mundo. Se, na verdade, se perguntasse qual é a prova mais
convincente da divindade de Cristo, talvez a melhor resposta fosse
o cristianismo. A nova vida que ele trouxe ao mundo; a nova criação
que ele produziu por meio de Sua vida e obra no mundo; aqui estão
pelo menos as credenciais mais palpáveis.
Olhemos para isso de forma objetiva. Leia-se o relato histórico
do avanço e das conquistas do cristianismo nos dias da igreja
primitiva e, depois, pergunte-se: Poderiam essas coisas ter sido

267
Os fundamentos

forjadas por um poder menor do que o divino? E, a seguir, lembre-


se que essas coisas não apenas foram forjadas naquele mundo
pagão dois mil anos atrás, mas foram forjadas novamente em cada
nova geração, pois o cristianismo reconquista o mundo para si,
geração após geração. Pense em como a proclamação cristã se
disseminou, perfazendo seu caminho sobre o mundo como o fogo
na grama seca de uma campina. Imagine como ele, enquanto se
dissemina, transformou vidas. Isso, quer em seu aspecto objetivo,
quer em seu aspecto subjetivo, se fosse incrível, não teria real­
mente ocorrido. Charles Darwin diz: “Se um viajante, por acaso,
estiver a ponto de naufragar em alguma costa desconhecida, ele
orará mais piedosamente para que a lição do missionário possa
ter chegado a esta distância. A lição do missionário é como uma
varinha de condão”. Poderia esta influência transformadora, que
não foi diminuída após dois milênios, ter provindo de um mero
homem? Historicamente, é impossível que o grande movimento,
que chamamos cristianismo e que não esgota após todos estes
anos, pudesse ter se originado de um impulso meramente huma­
no, ou pudesse representar hoje a obra de uma força meramente
humana.

A prova interna
Ou olhemos para isso de forma subjetiva. Todo cristão tem
dentro de si a prova do poder transformador de Cristo e pode re­
petir o silogismo do homem cego: “Nisto é de estranhar que vós
não saibais donde ele é, e, contudo, me abriu os olhos” (Jo 9.30).
Um arrazoado eloqüente exige o seguinte: “Será que devemos
confiar no toque de nossos dedos, na visão de nosso olhos, na
audição de nosso ouvidos e não confiar em nossa consciência,
mais profunda, de nossa mais elevada natureza — a resposta da
consciência, o florescer da alegria espiritual, o brilho do amor
espiritual? Negar que a experiência espiritual seja tão real quan­
to a experiência física é desprezar as mais nobres faculdades de
nossa natureza. Isso é dizer que metade de nossa natureza diz
a verdade, e que a outra, profere mentiras. A proposição de que
os fatos da esfera espiritual são menos reais do que os fatos da
esfera física contradiz toda filosofia.” O coração transformado
dos cristãos alista-se a si mesmo “na gentil temperança, nos
nobres motivos, nas vidas vividas visivelmente sob o império de

268
A divindade de Cristo

grandes aspirações” — essas são as provas sempre presentes da


divindade da Pessoa de quem suas inspirações são retiradas.
A prova suprema para cada cristão acerca da divindade de seu
Senhor é, portanto, sua própria experiência interna em relação ao
poder transformador de seu Senhor sobre o coração e a vida. Como
aquele que sente o calor do sol sabe que o sol existe, assim também
aquele que experimentou o poder recriador do Senhor sabe que
Ele é seu Senhor e Deus. Aqui está a prova, talvez possamos dizer
a mais apropriada, ou, certamente, devemos dizer a mais convin­
cente, para todo cristão da divindade de Cristo; uma prova que não
pode escapar, e à qual, seja ele capaz de analisá-la, seja ele capaz
de delineá-la em uma afirmação lógica ou não, ele não pode deixar
de dar sua convicção sincera e irrefutável. Qualquer outro fato
ele pode, ou não, ter certeza, mas ele sabe que seu Redentor vive.
Porque Ele vive, nós também devemos viver — esta era a afirmação
do Senhor. Porque vivemos, ele também vive — esta é a convicção
que não pode ser arrancada do coração do cristão.

269
271

O nascimento
virginal de Cristo

P rof. J am es O rr, D .D .
Faculdade da Igreja Livre Unida, Glasgow, Escócia,
Revisado por Gerald B. Stanton, Th.D.

Sabe-se muito bem que a última metade do século XIX foi


marcada por um determinado ataque à verdade do nascimento
virginal de Cristo. No ano 1892, surgiu uma Alemanha uma grande
controvérsia, devido à recusa de um pastor, chamado Schrempf,
em usar o credo apostólico no batismo devido à descrença nesse e
em outros artigos. Schrempf foi deposto e teve início uma agitação
contra a doutrina do nascimento virginal, que aumentou desde en­
tão. Outras tendências, especialmente o surgimento de uma escola

JA M ES ORR (1844-1913) graduou-se pela üniversidade de Glasgow,


na Escócia, sua terra natal. Entre 1874 e 1891, ele foi ministro da Igreja
Presbiteriana ünida de East Bank, em Hawvich. Abandonou o pastorado
para lecionar ‘História da Igreja’ na Faculdade Teológica Presbiteriana
ünida, em Glasgow, até 1901, quando se tornou professor de
apologética e dogmática no Glasgow College (posteriormente chamado
Trinity College). Orr passou a estudar o desenvolvimento da doutrina da
igreja, que acreditava seguir um a continuidade lógica divina. Entre suas
maiores obras estão The Christian View of God and the World [A Visão
Cristã de Deus e do Mundo] (1893, publicado novamente em 1989, pela
Kregel Publications) e The Progress of Dogm a [O Progresso do Dogma]
(1897).
Os fundamentos

da crítica bíblica extremamente radical, deram força ao movimento


negativo. O ataque não estava confinado, na verdade, ao artigo do
nascimento virginal. Ele afetava toda a estima sobrenatural de
Cristo — Sua vida, Suas pretensões, Sua impecabilidade, Seus
milagres, Sua ressurreição dos mortos. Contudo, o nascimento
virginal foi atacado com veemência especial, pois se supõe que a
evidência para tal milagre é mais fácil de ser descartado do que a
evidência para fatos públicos, como a ressurreição. O resultado foi
que, em muitos círculos, o nascimento virginal de Cristo é realmen­
te tratado como uma fábula, e a crença nele é vista como indigna da
inteligência do século vinte.

A característica mais infeliz


Não é somente nos círculos de descrença que o nascimento
virginal é desacreditado; na própria igreja, o hábito crescente é o
de lançar dúvidas sobre esse fato, ou ao menos de admiti-lo como
parte não essencial da fé cristã. Essa é a característica infeliz dessa
infeliz controvérsia. O artigo, afirma-se, não pertence à tradição
cristã primitiva, e a evidência disso não é forte. Portanto, deve ser
abandonada.
Do lado da crítica, ciência, mitologia, história e religião compa­
rada, tem-se atacado essa doutrina tão querida ao coração cristão,
a qual é corretamente julgada por eles como vital à sua fé. Pois,
por mais alta que seja a voz da negação, um fato deve tocar todo
observador cuidadoso desse conflito. Entre aqueles que rejeitam
o nascimento virginal do Senhor, poucos serão encontrados
— não conheço nenhum — que, em outros aspectos, aceitam um
ponto de vista adequado à pessoa e à obra do Salvador. Aqueles
que aceitam uma plena doutrina da encarnação — isto é, de uma
entrada verdadeira do Filho eterno de Deus em nossa natureza
com o propósito da salvação dos homens — aceitam com ela,
praticamente sem exceção, a doutrina do nascimento virginal de
Cristo, ao passo que aqueles que repudiam ou negam esse artigo
de fé, ou sustentam um ponto de vista inferior em relação à pessoa
de Cristo, mais comumente, rejeitam as afirmações sobrenaturais
totalmente. O grande número de oponentes do nascimento
virginal — aqueles que são conspícuos em escrever contra ele
— pertence à última classe.

272
O nascimento virginal de Cristo

O caso afirmado
O objeto desta dissertação é mostrar que aqueles que seguem
as linhas da negação do nascimento virginal apenas esboçaram
fazer grande injustiça à evidência e à importância da doutrina que
rejeitam. A evidência, embora não seja do mesmo tipo público como
a da ressurreição, é de longe mais forte do que o opositor gostaria,
e o fato negado faz mais parte de um aspecto vital da essência da fé
cristã do que ele supõe. Colocada na posição certa entre as outras
verdades da religião cristã, não é apenas uma pedra de tropeço
para a fé, mas sente-se que condiz com o poder auto-evidente na
conexão dessas outras verdades, assim como fornece a explicação
que é necessária à pessoa sagrada e sobrenatural de Cristo. O
cristão comum é aqui uma testemunha. Ao ler os evangelhos, ele
não percebe qualquer incongruência ao passar das narrativas do
nascimento virginal à maravilhosa história da vida de Cristo nos
capítulos que se seguem, e destes para as descrições da dignidade
divina de Cristo, encontradas em João e Paulo. O todo parte de uma
ponte: o nascimento virginal é tão natural no início de vida desse
Homem — o Filho divino — quanto é a ressurreição ao seu final. E
quanto mais intimamente se considera a questão, tanto mais forte
se desenvolve a impressão que dela se tem. Ela só é enfraquecida
quando a concepção de Cristo, contida nas Escrituras, é abandona­
da, e essas várias dificuldades e dúvidas que se instalam.

üm ponto de vista superficial


Na verdade, dizer que nada depende dessa crença quanto à nossa
avaliação da pessoa de Cristo é um modo muito superficial de falar
ou de pensar sobre o nascimento virginal. Quem quer que reflita
cuidadosamente sobre esse assunto deixa de perceber que se Cristo
nasceu de uma virgem — se ele foi verdadeiramente “concebido”,
como o credo reza, “pelo Espírito Santo, nasceu da virgem Maria”
— um elemento sobrenatural deve, por necessidade, entrar em sua
pessoa; no entanto, se Cristo era sem pecado e, ainda mais, se Ele
era a própria Palavra de Deus encarnada, será que não deve ter
havido um milagre — o milagre mais impressionante do universo
— em sua origem? Se Cristo era como João e Paulo afirmam, e Sua
Igreja sempre creu, o Filho de Deus feito carne, o segundo Adão,
a nova Cabeça redentora da raça, um milagre deveria ser esperado

273
Os fundamentos

em sua origem terrena; sem um milagre tal pessoa jamais teria


existido. Por que então criticar as narrativas que declaram esse
milagre? Quem não percebe que a história do evangelho teria sido
incompleta sem elas? Aqui a inspiração apenas concede à fé o que
a fé em sua própria base exige imperativamente para sua perfeita
satisfação.

A primeira promessa
Agora é o momento de irmos à própria Escritura e olharmos
o fato do nascimento virginal em sua posição histórica e em sua
relação com outras verdades do evangelho. Para preceder o exame
da evidência histórica, é preciso, primeiramente, dizer algo sobre
a preparação do Antigo Testamento. Houve tal preparação? Alguns
diriam que não, contudo, esse não é o modo de Deus, e podemos
olhar com confiança para, pelo menos, algumas indicações que
apontam na direção do evento do Novo Testamento.
Voltemos nosso juízo primeiramente para a mais antiga de todas
as promessas evangélicas, que a semente da mulher esmagaria a
cabeça da serpente. “Então, o Senhor Disse à serpente: [...] Porei
inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu
descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar”
(Gn 3.14,15). A “serpente”, nessa passagem, é Satanás, e a “semen­
te” que o destruirá é descrita, com toda ênfase, como a semente
da mulher. Pela mulher, o pecado teve acesso à raça, mas pela se­
mente da mulher viria a salvação. Os escritores da igreja primitiva
insistiram, muitas vezes, na analogia entre Eva e a Virgem Maria.
Podemos rejeitar qualquer elemento de super exaltação de Maria,
que eles relacionam com esse fato, mas não deixa de ser significati­
vo que essa frase em particular tenha sido escolhida para designar
o futuro Salvador. Não posso crer que essa escolha tenha sido um
acidente. A promessa feita a Abraão foi a de que em sua semente,
as famílias da terra seriam abençoadas; em uma passagem, o
masculino é enfatizado, mas na outra é a mulher — uma mulher em
particular, inconfundível.

A profecia de Emanuel
A concepção do Messias, que gradualmente amealhou a si os
atributos de um Rei divino, alcança uma de suas mais claras ex­
pressões na grande profecia de Emanuel, que vai do capítulo sete de

274
O nascimento virginal de Cristo

Isaías ao nove, versículo sete, cujo centro é a seguinte declaração:


“Portanto, o Senhor mesmo vos dará um sinal: eis que a virgem
conceberá e dará à luz um filho e lhe chamará Emanuel” (Is 7.14;
cf. 8.8.10). Este é o mesmo filho maravilhoso exaltado no capítulo
nove, versículos seis e sete. Essa é a profecia citada como cumprida
no nascimento de Cristo, em Mateus 1.23, e parece também fazer
alusão às ardentes promessas à Maria, em Lucas 1.32,33. Faz-se
objeção de que o termo “virgem”, traduzido em Isaías, não tem
necessariamente esse significado; pois denota apropriadamente
apenas uma jovem não casada. O contexto, no entanto, parece cla­
ramente por ênfase sobre um estado de não casada, e os tradutores
da versão grega do Antigo Testamento (a Septuaginta) entenderam
perfeitamente isso, quando traduziram-no por parthenos, palavra
que significa “virgem”. E singular que os próprios judeus parecem
não ter aplicado nunca essa profecia ao Messias, um fato que
contraria a teoria de que foi esse texto que sugeriu a história de um
nascimento virginal aos primeiros discípulos.

Testemunho do evangelho
Esse relato encontrado nas Escrituras proféticas, aparente­
mente, não produziu frutos nas expectativas judaicas do Messias,
quando o evento ocorreu foi algo que, para as mentes cristãs,
lançou luz sobre a importância preditiva. Em Belém da Judéia,
como Miquéias predisse, nasceu de uma mãe virgem aquele “cujas
origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade”
(Mq 5.2; Mt 2.6). Mateus, que cita a primeira parte do versículo,
dificilmente ignorava a alusão da pré-existência nela contida. Isso
nos leva ao testemunho do nascimento miraculoso de Cristo em
nosso primeiro e terceiro evangelhos — os únicos evangelhos que
relatam as circunstâncias do nascimento de Cristo completamente.
Por consenso geral, as narrativas em Mateus (cap. 1—2) e em
Lucas (cap. 1—2) são independentes — ou seja, eles não derivam
uma da outra — ainda que ambas afirmem, em detalhes, que Jesus,
concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu de uma virgem
pura, Maria de Nazaré, prometida a José, a qual posteriormente
seria sua esposa. O nascimento se deu em Belém, para onde José
e Maria foram para se recensear. O anúncio foi feito por um anjo,
de antemão, a Maria, e o nascimento foi precedido, assistido e se­
guido por eventos notáveis que são narrados por esses evangelistas

275
Os fundamentos

(nascimento de João Batista, com as anunciações, aparição dos an­


jos para os pastores, visita de sábios do oriente, etc.). As narrativas
deveriam ser cuidadosamente lidas para entender as observações
que as seguem.

O testemunho provado
Não há dúvida, portanto, sobre o testemunho do nascimento
virginal, e a questão que surge agora é — qual é o valor, como uma
evidência, dessas partes dos evangelhos? Serão partes genuínas
dos evangelhos? Ou são acréscimos tardios e não confiáveis? De
que fontes presume-se que são derivados? Nossa crença no nas­
cimento virginal depende da verdade dessas narrativas. Será que
elas podem ser confiáveis? Ou são meras fábulas, invenções, lendas
às quais não se pode dar nenhum crédito?
A resposta a várias dessas questões pode ser dada de forma muito
breve. As narrativas do nascimento de Jesus em Mateus e Lucas são
indubitavelmente partes genuínas de seus respectivos evangelhos.
Elas estão ali desde que os evangelhos vieram a existir. A prova disso
é convincente. Os capítulos em questão encontram-se em todos os
manuscritos e versões dos evangelhos conhecidos que existem. Há
centenas de manuscritos, alguns deles bem antigos, que pertencem a
diferentes partes do mundo, e muitas versões em diferentes idiomas
(latim, siríaco, egípcio, etc.), mas essas narrativas do nascimento vir­
ginal se acham em todos eles. Sabemos, na verdade, que uma seção
dos primeiros cristãos judeus — os ebionitas, como eram conhecidos
— possuíam um evangelho baseado em Mateus, em que os capítulos
sobre o nascimento de Jesus estavam ausentes. Contudo, esse não
era o verdadeiro evangelho de Mateus: no máximo, era uma forma
corrompida e mutilada do mesmo. O evangelho genuíno, como os
manuscritos atestam, sempre teve esses capítulos.
Quanto aos evangelhos em si, eles não são de época tardia e de
origem não apostólica; mas foram escritos por homens apostólicos
e, desde início, aceitos, pois circularam nas igrejas como coleções
dignas de confiança da saudável tradição apostólica. O evangelho
de Lucas era da pena do próprio Lucas, e o de Mateus, embora
alguma dúvida ainda reste sobre seu idioma original (aramaico ou
grego), passou sem maiores problemas pela igreja primitiva como o
evangelho genuíno do apóstolo Mateus. As narrativas nos chegam,
conseqüentemente, com extrema sanção apostólica.

276
O nascimento virginal de Cristo

Quanto às fontes das narrativas com relação ao nascimento vir­


ginal nesses dois evangelhos, a informação que eles transmitiram
derivou-se de uma fonte fidedigna, José e Maria. Essa é uma carac­
terística incrível dos contrastes encontrados nas narrativas — pois
o relato de Mateus é todo do ponto de vista de José, e o de Lucas, do
de Maria. Os sinais disso são inquestionáveis. Mateus conta sobre
as dificuldades de José e suas ações, mas diz pouco ou nada sobre
os pensamentos ou sentimentos de Maria — Lucas, por sua vez, fala
muito sobre Maria — até mesmo seus pensamentos íntimos — mas
não diz quase nada sobre José. As narrativas não são como alguns
as consideram, contraditórias, mas são independentes e complemen-
tares. Uma suplementa e completa a outra. Ambas são necessárias
para dar o todo da história. Elas carregam em si a marca da verdade,
honestidade e pureza, assim como são dignas de toda aceitação, como
evidentemente a igreja primitiva, ao aceitá-las, comprovou.

Objeção infundada
Contra a aceitação dessas primeiras narrativas bem atestadas,
o que, agora, tem os críticos a alegar? A objeção de que mais
ênfase é posta no silêncio sobre o nascimento virginal nos demais
evangelhos e outras partes do Novo Testamento. Isso, argumentam
os críticos, prova de maneira conclusiva que o nascimento virginal
não era conhecido nos primeiros círculos cristãos e era uma lenda
de origem posterior. Em relação aos evangelhos — Marcos e João
— a objeção só se aplicaria se fosse o desígnio desses evangelhos
narrar, como os outros fazem, as circunstâncias do nascimento.
Mas esse não era o desígnio deles. Tanto Marcos como João sabiam
que Jesus teve um nascimento humano — uma infância e vida ante­
rior a seu ministério — e que sua mãe se chamava Maria, mas eles,
deliberadamente, não nos contaram nada sobre isso. Marcos inicia
seu evangelho com a entrada de Cristo em Seu ministério público e
não diz nada sobre o período anterior, principalmente sobre como
Jesus veio a ser chamado “o Filho de Deus” (Mc 1.1). João traça a
descida de Jesus e nos conta que “o Verbo se fez carne” (João 1.14);
contudo, ele não diz a maneira como esse milagre de tornar-se car­
ne ocorreu. Em seu plano, não há mentira. Ele conhecia a tradição
da igreja sobre o assunto: ele possuía os evangelhos que narravam
o nascimento virginal de Jesus e aceitava esse ensino como um
fato. Nesse caso, falar de contradição está fora de cogitação.

277
Os fundamentos

Quão longe estava Paulo de ter conhecimento dos fatos da


origem terrena de Cristo é algo que não é fácil de dizer. Até certo
ponto, esses fatos sempre seriam admitidos como realidade na
privacidade dos círculos mais internos dos cristãos — ao menos,
enquanto Maria vivesse — e os detalhes não teriam sido plenamen­
te conhecidos até que os evangelhos fossem publicados. Paulo de­
finitivamente não baseou a pregação do seu evangelho sobre essas
questões privadas e internas, mas sobre fatos amplos e públicos do
ministério de Cristo, como Seu ministério, Sua morte e Sua ressur­
reição. Seria, portanto, ir longe demais inferir a partir disso que
Paulo não teve conhecimento do milagre do nascimento de Cristo.
Lucas foi companheiro de Paulo e, sem dúvida, dividia com Paulo
todo o conhecimento que ele mesmo havia reunido sobre esse e
outros assuntos. Uma coisa é certa, Paulo não poderia ter crido na
dignidade divina, na pré-existência, na perfeição sem pecado e na
liderança redentora de Jesus como creu, sem ter sido convencido
de que Sua entrada na humanidade não era evento comum da natu­
reza, mas implicava um milagre sem paralelo de algum tipo. Esse
Filho de Deus, que “a si mesmo se esvaziou”, “nascido de mulher,
nascido sob a lei”, “que não conheceu pecado” (Fp 2.7.8; G1 4.4;
2Co 5.21) não era, e não poderia ser, um simples produto da
natureza. Deus deve ter operado de forma criativa em Sua origem
humana. O nascimento virginal seria para Paulo o mais razoável
e crível dos eventos. Assim também para João, que sustentava o
mesmo ponto de vista quanto à dignidade e à santidade de Cristo.

A prova da impecabilidade de Cristo


As vezes, argumenta-se que um nascimento virginal não serve
como auxílio à explicação da impecabilidade de Cristo. Maria
era pecaminosa em sua natureza, e sugere-se que a mácula de
corrupção seria transmitida tanto só por um de seus pais como
pelos dois. Não se leva em conta que todo o fato não se esgota ao
dizer que Jesus nasceu de uma virgem. Há um outro fator — “O que
nela foi gerado é do Espírito Santo” (Mt 1.20). O que ocorreu foi
um milagre divino e criativo, que proporcionou a produção dessa
nova humanidade que manteve, desde seu princípio germinal, a
liberdade da mais ínfima nódoa de pecado. A geração paternal em
tal origem é supérflua. O nascimento de Jesus não foi a criação
de uma nova personalidade, como acontece com os nascimentos

278
O nascimento virginal de Cristo

comuns. Ele era uma Pessoa divina — que já existia — e entrou


neste novo modo de existência. Apenas um milagre poderia efetuar
tal maravilha.

O testemunho da igreja primitiva


A história da igreja primitiva, ocasionalmente, é chamada para
dar testemunho de que a doutrina do nascimento virginal não era
primitiva. Nenhuma afirmação poderia ser mais fútil. A igreja pri­
mitiva, até onde podemos traçar seu caminho na história, em todas
suas ramificações, sustentava essa doutrina. Nenhuma seita cristã
conhecida a negava, exceto os ebionitas, já citados acima. O corpo
geral dos cristãos judeus — os nazarenos, como eram chamados
— a aceitava. Até mesmo as maiores seitas gnósticas, a seu próprio
modo, a admitiam. Os gnósticos que a negavam eram veemente
repelidos pelos maiores mestres da igreja. Relata-se que o apóstolo
João opôs-se com veemência a Cerinto, o mestre mais antigo, a
quem essa negação se relaciona.
Doutrinalmente, a crença no nascimento virginal de Cristo é do
mais alto valor para a correta apreensão da personalidade única e
sem pecado de Cristo. Aqui esta alguém, como Paulo apresenta em
Romanos 5.12ss., que, livre do pecado e sem as limitações adâmi-
cas da raça, reverte o curso do pecado e da morte, trazidos pelo
primeiro Adão, estabelecendo o reino de justiça e vida. Se Cristo
tivesse nascido naturalmente, nenhuma dessas coisas poderia ser
afirmada Dele. Como um da raça de Adão, e não um que vem de
uma esfera mais elevada, Ele teria compartilhado a corrupção e a
condenação de Adão — teria precisado ser redimido. Por intermé­
dio da infinita misericórdia de Deus, Ele veio de cima, não herdou
culpa, não necessitou de regeneração ou santificação, mas tornou-
se o Redentor, o Regenerador e o Santificador para todo aquele que
O receber. “Graças a Deus pelo seu dom inefável” (2Co 9.15).

279
281

25 O Deus-Homem

J ohn S tock
Revisado e Editado pelo Rev. Glenn 0 ’Neal, Ph.D.

Jesus de Nazaré não era um mero homem, que excedia os


outros em pureza de vida, sinceridade de propósito e plenitude de
conhecimento. Ele é o Deus-Homem. Tal ponto de vista da pessoa
do Messias é o fundamento seguro de todo testemunho das Escri­
turas em relação a Ele, e é para ser irresistivelmente inferido pelo
estilo e peso com que Ele habitualmente falava de Si mesmo. Desse
argumento a respeito do Salvador, baseado na inferência, podemos
salientar aqui os pontos mais enfáticos, apenas de modo bastante
breve.
1. J e su s a f ir m o u s e r o F il h o d e D e u s . Em Sua conversa com
Nicodemos ele se denominou como “o unigênito Filho de Deus”
(Jo 3.18). Esse título majestoso foi repetidamente apropriado
por nosso Mestre. Quando confrontado pelo Sinédrio, Jesus
foi intimamente questionado sobre o uso desse título; e Ele

JO H N STOCK (1817-1884) escreveu livros com títulos tão variados como


Confessions ofan Old Smoker [Confissões de um Velho Fumante], Advice
to a Young Christian [Conselhos a um jovem cristão] e A H andbook of
Revealed Theology [Manual da Teologia Revelada]. Stock nasceu em
Londres e se formou na Universidade de Londres. Em seus quarenta e
dois anos de pregação, ocupou o púlpito em Chatham , Salendine Nook
e Morice Square Davenport. Em 1868, Stock recebeu a graduação de
LL.D., na Madison üniversity, nos Estados Unidos.
Os fundamentos

assumiu a culpa pela acusação (ver Mt 26.63,64 e 27.43; cf.


Lc 22.70,71, e Jo 19.7). Vê-se claramente na narrativa que os
judeus entenderam esse glorioso nome nos lábios de Jesus como
uma afirmação blasfema de tomar para Si os atributos divinos.
Eles compreenderam que Jesus, dessa forma, fazia-se igual a
Deus (ver Jo 5.18); efazia-se Deus (ver Jo 10.33). Eles O compreen­
deram? Eles exageram o significado desse título como foi afirmado
por nosso Senhor? Quão fácil teria sido para Ele apresentar a eles o
fato correto. Quão imperativas eram suas obrigações ao agir assim,
não simplesmente para Si, mas para esses infelizes que estavam
sedentos por Seu sangue devido a uma compreensão equivocada.
Será que todo princípio de filantropia não exigia que Ele os salvasse
da perpetração do terrível assassínio que Ele sabia eles estavam
concebendo? Sim, se eles estivessem equivocados, não corrigir
a decepção seria um crime nefando de nosso Senhor. Mas Ele
não proferiu uma palavra sequer para amenizar a ofensa de Sua
afirmação. Ele permitiu ser repulsivo à mente judaica e morreu
sem esboçar qualquer sinal de que tivesse sido mal-compreendido.
Assim, Ele aceitou a interpretação de seu significado, e selou o
sentido do título, Filho de Deus, com o sangue de Seu coração.
Nada pode ser mais claro, portanto, do que o fato de que Jesus
morreu sem um protesto por afirmar igualdade a Deus e, assim,
fazer-se Deus. Não ousamos confiar em nós mesmos ao escrever o
que devemos pensar Dele sob tais circunstâncias, se Ele fosse um
mero homem.
2 . J esu s, e m v á ria s o c a s iõ e s , a f ir m o u u m a s u p r e m a c ia d iv in a
em a m bos os m u n d o s . Ele afirmou que tinha autoridade sobre
os anjos. Como, por exemplo, em Sua descrição do juízo final:
“Mandará o Filho do Homem os seus anjos, que ajuntarão do
seu reino todos os escândalos e os que praticam a iniqüidade”
(Mt 13.41). O reino é Seu, e todos os anjos de Deus são Seus
servos obedientes.
Ele declarou, nos termos mais claros possíveis, que Ele presi­
dirá, como o juiz Universal dos homens, no último grande dia, e
que Sua sabedoria e autoridade recompensará a cada homem a Sua
condenação apropriada. “Quando vier o Filho do Homem na sua
majestade e todos os anjos com ele, então, se assentará no trono
da sua glória; e todas as nações serão reunidas em sua presença, e
ele separará uns dos outros, como o pastor separa dos cabritos as

282
O Deus-Homem

ovelhas; e porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos, à esquerda


” (Mt 25.31-33). Sua voz proferirá palavras vivas: “Vinde benditos
de meu Pai!”, e a terrível sentença: “Apartai-vos de mim malditos”
(Mt 25.31-46). Sem hesitação, equívoco ou compromisso, Jesus de
Nazaré continuamente assumia o direito de discriminar o caráter
moral e os méritos de toda a humanidade, de Adão ao dia da conde­
nação. Sua consciência sublime, de supremacia universal, auxiliou
a afirmação de tudo isso com audácia, e só fez com que isso se
tornasse a seqüência natural de Sua divindade encarnada. “Toda a
autoridade”, disse Ele, “me foi dada no céu e na terra” (Mt 28.18).
Esta idéia germinou nas mentes de seus seguidores e apóstolos.
O quadro vivido, relatado no capítulo vinte e cinco de Mateus,
deu um colorido a todos os pensamentos subseqüentes sobre seu
Mestre divino. Eles sempre falaram Dele como alguém constituído
por Deus a ser o “Juiz de vivos e de mortos” (At 10.42; 17.31). Eles
testificaram que: “Porque importa que todos nós compareçamos
perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo
o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo” (2Co 5.10;
Rm 14.10).
Desse modo, a mente do apóstolo João estava preparada para
as subseqüentes revelações em Patmos, quando ouviu Seu Senhor
glorificado proclamar que tinha “as chaves da morte e do inferno”
(Ap 1.18) e teve a visão do “grande trono branco e aquele que nele
se assenta, de cuja presença fugiram a terra e o céu, e não se achou
lugar para eles” (Ap 20.11).
Mas quem é este que afirma compreender e dominar qualquer
ameaça da retribuição eterna; que professa ser capaz de examinar
os propósitos e motivos secretos, assim como as palavras e atos de
cada homem que nasceu, desde a aurora da responsabilidade pes­
soal até o dia da morte? Pode algum tipo de onisciência qualificá-lo
por tal investigação seja ela intrincada, seja ela complicada, seja ela
vasta? Se ele não pudesse sondar “mentes e corações” (para usar as
próprias palavras de Jesus relatadas por João), como ele poderia dar
a cada um de nós de acordo com nossas obras (Ap 2.23)? O cérebro
se agita quando pensamos nas tremendas transações do último dia,
e, então, os interesses importantes para sempre estarão decididos;
e a razão nos diz, que se o juiz que deve presidir sobre estas sole-
nidades for um homem, este deve ser um Deus-Homem. Se Jesus
deve ser o juiz universal e absoluto de nossa raça — um juiz para

283
Os fundamentos

cujas decisões não haverá apelo, Ele deve ser Deus “manifestado
na carne”. Mas o que podemos pensar Dele, se ao apresentar esta
afirmação ele nos engana?
3 . Je s u s sem pre a fir m o u t e r p o d e r a b s o lu t o e in c o n te s tá v e l ao
TRATAR DE CADA QUESTÃO DE DEVER MORAL E DO DESTINO. JeSUS
afirmou ser o Senhor absoluto em todos os campos da moral.
Ele estabeleceu o significado e a força das antigas leis e instituiu
novas leis por Sua própria autoridade. Por exemplo, vejamos o
Sermão da Montanha. Com que peremptoriedade, que apenas
Ele possuía, define a legislação existente de Deus e expande
seus limites! Com que dignidade consciente, Ele decide toda
questão em todo o âmbito do dever humano com apenas essas
palavras — “Porque vos digo!”. Ele usa essa fórmula sete vezes
em um capítulo (Mt 5.20, 22,28,32,34,39,44). E, na aplicação
do sermão, Ele declarou que quem ouve Suas palavras e as
pratica é como o homem prudente que constrói sua casa sobre
uma rocha (Mt 7.24). As pessoas ficavam espantadas com Sua
doutrina; pois na verdade, “ele as ensinava como quem tem
autoridade e não como os escribas ” (Mt 7.28,29). Mas o tom
que permeia o Sermão da Montanha atravessa todo o ensino de
Jesus de Nazaré. Ele fala sempre como se fosse o Autor e Doador
da lei; como se tivesse o poder de modificar qualquer uma de
suas provisões de acordo com sua forma de adequar as idéias;
e como se fosse o Senhor Supremo das consciências humanas.
Seu estilo é inteiramente diferente daquele de qualquer mestre
inspirado que apareceu antes ou depois Dele. Eles apelavam à lei
e ao testemunho (ver Is 8.20). Mas Jesus afirmava ter um poder
inerente para modificar e alterar a ambos.
O sábado era o símbolo de todo pacto feito por Deus com
Israel por meio do ministério de Moisés (ver Êx 31.12-17). Mas
Jesus afirmou Sua completa supremacia sobre essa instituição
divina. Estas foram suas palavras enfáticas: “Porque o Filho
do Homem ê Senhor do Sábado" (Mt 12.8; grifo do autor; Mc
2.28; Lc 6.5). Ele poderia, por sua própria vontade, diminuir os
terrores do sábado judeu e, até mesmo, substitui-lo totalmente
pelo “Dia do Senhor” cristão. Ele era Senhor de toda instituição
divina.
E na Igreja, ele afirma o direito de regulamentar Suas doutrinas
e Suas ordenanças de acordo com Sua vontade. Ele comissionou os

284
O Deus-Homem

apóstolos para que batizassem em Seu nome e os encarregou de


ensinar os convertidos a observar todas as coisas que Ele os tinha
ordenado (Mt 28.19,20). Desse modo, João foi preparado para a
visão sublime do Filho do homem como “aquele que conserva na
mão direita as sete estrelas e que anda no meio dos sete cande­
eiros de ouro” (Ap 2.1); e como “aquele que tem a chave de Davi,
que abre, e ninguém fechará, e que fecha, e ninguém abrirá” (Ap
3.7).
E a autoridade que Jesus afirmava chegava aos céus e ao estado
final das coisas. Ele afirmava que subiria para compartilhar o do­
mínio do Pai e se assentaria no trono de Sua glória (ver Mt 19.28).
A contraposição a essa afirmação é encontrada em Sua declaração
a João, em Patmos, em que diz: “Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-se
comigo no meu trono, assim como também eu venci e me sentei
com meu Pai no seu trono” (Ap 3.21). A maneira pela qual o Senhor
falou de Si, em relação ao estado celestial, produz muitos frutos
nos corações e sentimentos de seus discípulos. Para eles, nesta
vida estavam “ausentes do Senhor”, quanto à presença visível Dele;
e a única bela idéia de céu era que Ele estava ficando “presente”
com o Senhor (2Cor 5.6,8). Ele os havia ensinado a admiti-lo como
“tudo em todos” (ICo 12.6), mesmo em Seu estado eterno; e com
fé inquestionável, eles almejavam a única esperança bendita de ha­
bitar para sempre com o Senhor. Todas as outras idéias do mundo
celestial se perdem de vista em comparação com essa antecipação
entusiasmada.
Mesmo as moradas, que eles deveriam ocupar na casa do Pai
Eterno, Jesus disse-lhes que Ele é quem as concederia (Jo 14.2).
Ele afirmou Seu direito de entregar as coroas e as glórias da
bem-aventurança imortal, como se elas fossem Suas por direito
indiscutível. Ele o quer, e se faz. Ele constantemente lembrava
seus discípulos da recompensa que Ele daria a cada servo que,
em Sua vinda, Ele descobrisse ter sido fiel (cf. Mt 24.44 com
45,46,47;25.14-46, etc.).
E verdade que Jesus concederá essas honras apenas àqueles que
foram preparados pelo Pai; porque em Seus desígnios de misericór­
dia o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um. Ele ainda, de direito,
dispensará as bênçãos a todos aqueles que merecem. Porque estas
foram as verdadeiras palavras do Senhor: “O assentar-se à minha
direita e à minha esquerda não me compete concedê-lo; é, porém,

285
Os fundamentos

para aqueles a quem está preparado por meu Pai” (Mt 20.23). A
linguagem logicamente implica absoluto direito de nosso Senhor
de dar as coroas; mas apenas àqueles que são designados a essas
honras pelo Pai.
Essas idéias são repetidas na visão a João. Jesus concede o direito
à “árvore da vida” (Ap 2.7). Nas orações do exército de redimidos,
como descrito naquele maravilhoso livro de Apocalipse, eles sem­
pre atribuem sua salvação e glória a Jesus, e os anjos sem pecado
aumentam o coro dos louvores a Emanuel, enquanto o universo, de
sua miríade de mundos, ecoa o refrão (Ap 5.8-14).
Na descrição do estado final de coisas — um estado que será
subseqüente ao milênio (Ap 20.1-10), e também ao juízo final tanto
de justos quanto de ímpios (Ap 20.11-15) e ao ato de homenagem
e fidelidade descritos em ICoríntios 15.24-28, encontramos o
Cordeiro ainda e para sempre no trono. A Igreja é ainda “a noiva,
a esposa do Cordeiro” (Ap 21.9). Nesse estado consumado de
todas as coisas, “o Senhor, o Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro”
são o templo da Igreja (Ap 21.22); a glória de Deus a ilumina;
e “o Cordeiro é a sua lâmpada” (Ap 21.23); o rio puro de água
da vida ainda flui de debaixo do trono de Deus e do Cordeiro
(Ap 22.10), ali “estará o trono de Deus e do Cordeiro. Os seus servos
o servirão, contemplarão a sua face, e na sua fronte está o nome dele”
(Ap 22.3,4). Por todo o Apocalipse jamais encontramos Jesus entre
os adoradores. Ele é o único adorado no trono, e, com esse quadro,
se encerram as majestosas visões.
Os apóstolos inspirados tinham assimilado essas idéias do
ensino pessoal de seu Senhor, e as revelações subseqüentes apenas
expandiram em suas mentes as sementes de pensamento que
haviam caído ali dos lábios sagrados de Jesus. Paulo expressou
nobremente os sentimentos de todos os seus irmãos quando
escreveu, “Já agora a coroa da justiça me está guardada, a qual o
Senhor, reto juiz, me dará naquele Dia; e não somente a mim, mas
também a todos quantos amam a sua vinda” (2Tm 4.8). Mas, cer­
tamente aquele que afirma ter supremacia, absoluta e indiscutível,
em moral, em instituições divinas, na Igreja sobre a terra, no céu
e em um universo consumado para sempre, deve ser Senhor de
todos, manifestado em forma humana. Se ele não o fosse, o que ele
deveria ter sido para avançar tais hipóteses, e o que deve ser o livro
que as reforça?

286
O Deus-Homem

4 . J esu s a f ir m o u Sua plena posse do p o d e r para p e r d o a r p e­


cados. Os instintos morais dos Judeus estavam correto quando
eles apresentaram a questão, “Quem pode perdoar pecados,
senão um, que é Deus?” (Mc 2.7). Não nos admiramos que,
com as idéias que tinham sobre Cristo, eles perguntassem com
espanto, “Quem é este que até perdoa pecados?” (Lc 7.49), ou
que eles exclamassem, em referência a tal reivindicação, dessa
maneira, “Este blasfema” (Mt 9.3).
E Cristo declarou mais enfaticamente, em mais de uma oportu­
nidade, Sua posse dessa prerrogativa divina e curou o paralítico,
em testemunho professo desse fato (Lc 5.24). Aqueles que elimi­
nassem completamente os elementos miraculosos da segunda
narrativa, devem admitir que Mateus, Marcos e Lucas relatam de
modo pormenorizado que Jesus professou operar pelo menos um
milagre em apoio de Sua afirmação de possuir poder para perdoar
pecados. Se Ele operou o milagre, Sua afirmação fica estabelecida;
e se Ele não operou, mas trapaceou o povo, então, será para sempre
um autêntico impostor! Mas se Ele o operou e provou Sua afirma­
ção, Ele deve ser igual a Seu Pai; porque os judeus estavam certos,
pois ninguém “pode perdoar pecados, senão um, que é Deus”.
Poderia um mero homem cancelar com uma palavra o pecado de
uma criatura contra seu Criador? Apenas pensar isso, seria uma
blasfêmia.
5 . J e s u s a f ir m o u t e r o p o d e r d e r e s s u s c it a r S e u p r ó p r io
CORPO DO TÚMULO, d e DESPERTAR AS ALMAS DOS HOMENS PARA
A VIDA ESPIRITUAL E DE RESSUSCITAR TODOS OS MORTOS NO
ú l t im o g r a n d e d i a . Jesus comparou Seu corpo a um templo
que os judeus destruiriam, mas que ressuscitaria novamente
em três dias (Jo 2.19-21). Ele afirmou que tinha poder de
deixar sua vida e o poder de tomá-la novamente (Jo 10.18).
Ele declarou que os que estão mortos espiritualmente — por­
que a ressurreição física é mencionada posteriormente como
um tópico distinto — ouviriam Sua voz e viveriam (Jo 5.25).
E, em seguida, Ele nos diz para não nos admirarmos com
isto, por que o dia virá quando, por Seu decreto onipotente,
toda as gerações dos mortos “ouvirão a sua voz e sairão: os
que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os
que tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo”
(Jo 5.28,29).

287
Os fundamentos

Mas se Jesus não fosse em algum sentido misterioso, o Senhor


de Sua própria vida, que poder tinha Ele de dispor dela como lhe
agradasse? E como Ele poderia chamá-la de volta? E como poderia
transmitir a vida espiritual, se não fosse a fonte divina dessa vida?
E como poderia levantar os mortos de seus túmulos, se não fosse o
Criador Onipotente? Todas essas afirmações, se genuínas, necessi­
tam de fé na divindade de Jesus.
6. J esus declarou que p o s s u ía a c a p a c id a d e de fazer todas

as obras de Salvador curou o homem no poço de


S eu Pa i. O
Betesda no Sábado. Quando foi acusado pelos judeus de pecado
por esse ato, nosso Senhor se justificou com as palavras sempre
memoráveis, “Meu Pai trabalha até agora (isto é, no sábado,
sustentando e abençoando os mundos), e eu também trabalho”
— no mesmo dia, portanto, em que curou o enfermo —, assim,
afirmando indiretamente Seu direito de fazer tudo que seu Pai
faz, e, como os judeus colocaram, ao afirmar essa filiação, faz-se
“igual a Deus”. Mas nosso Senhor não retirou nem um til de Sua
afirmação. Na verdade, ele admitiu que, como o Mediador en­
carnado, Ele recebeu Sua autoridade do Pai, mas declarou que:
“Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer
de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque
tudo o que este fizer, o Filho também semelhantemente o faz”
(Jo 5.17-19). Nenhuma linguagem pode exagerar a sublimidade
dessa afirmação. Cristo afirmou que possuía pleno direito e
capacidade de fazer tudo que o Pai Eterno tinha o direito e ca­
pacidade de fazer. Acaso tal linguagem foi alguma vez utilizada
pelos mais inspirados ou mais ousados dos meros mortais? Não
podemos esquecer que nosso Senhor foi cuidadoso ao declarar
que o Pai havia lhe comissionado todo juízo (Jo 5.22); mas se Ele
mesmo não fora um participante da Trindade, então como Ele
poderia ter sido, como o Único Encarnado, qualificado para ser
armado com prerrogativa tão vasta? Aquele que pode fazer todas
as obras de Deus deve ser Deus!
7 . J e s u s f a l o u d e S i m esm o c o m o o m a io r d o m d e m is e r ic ó r d ia
Em Sua conversa com Nicodemos, Cristo falou de Si
in f in ita .
nestes termos: “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira
que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não
pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16), a maneira pela qual
nosso Senhor evidentemente quer transmitir a idéia que o dom do

288
O Deus-Homem

Filho era o mais rico presente do amor divino. Imagine um mero


homem se posicionando e se proclamando ser o melhor dom
do amor de Deus para nossa raça. Que monstruoso exagero e
egoísmo! Se Cristo for maior do que todos os outros dons divinos
juntos, então não é Ele o Deus-Homem? Na hipótese evangélica,
tais representações não são vistas nem como bombásticas, nem
como exagero retórico, mas como a verdade soberba e sólida; e
podemos acompanhar o dizer de Paulo, sem restrições: “Graças
a Deus pelo seu dom inefável” (2Co 9.15).
8 . J esu s a n u n c io u -se c o m o o ce n t ro d o d e sc a n so p a r a a a l m a
humana. Quem não estremeceu sob o poderoso encanto da­
quelas poderosas palavras: “Vinde a mim, todos os que estais
cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós
o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de
coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu
jugo é suave, e o meu fardo é leve” (Mt 11.28-30). Nesse con­
vite, nosso Senhor diz ser tudo para a alma. Devemos ir a Ele,
para tomar seu jugo sobre nós e aprender dele. Ao recebê-Lo,
encontraremos descanso para nossas almas, pois ele nos dará
descanso.
Agora, apenas Deus é o lugar de descanso do espírito humano.
Nele, e somente Nele, podemos encontrar a paz assegurada. Mas
Jesus afirma ser nosso descanso. Então, será que Ele não deve ser o
Deus encarnado? E muito notável o fato de que, no mesmo tom no qual
ele fala de Si nesses termos augustos, ele diz: “Sou manso e humilde
de coração”. Mas, ao fazer tal afirmação, onde estavam sua mansidão
e humildade, se ele fosse simplesmente um homem como nós?
No mesmo espírito estão aquelas memoráveis passagens nas quais
sua maravilhosa pessoa refere-se a Si mesmo como nossa paz. “Deixo-
vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como a dá o mundo. Não
se turbe o vosso coração, nem se atemorize” (Jo 14.27). “Estas coisas
vos tenho dito para que tenhais paz em mim” (Jo 16.33). Desse modo,
o Senhor concentra nossos pensamentos em Si. Mas o que deve ser
Ele para que seja digno de tão suprema atenção?
9 . J esu s p e r m it iu q u e T o m é O a d o r a s s e c o m o a seu S e n h o r e seu
D e u s , e p r o n u n c io u u m a b ên çã o s o b r e a f é a s s im d e m o n s t r a ­
da (Jo 20.28). Sobre esse fato, citamos o admirável comentário
de Dean Alford: “O ponto de vista sociniano4, de que essas
palavras, meu Senhor e meu Deus, são apenas uma exclamação,

289
Os fundamentos

é refutado, primeiramente, (1) pelo fato de que tais exclamações


não eram usadas pelos judeus. (2) Pelo eipen auto (ele lhe disse,
isto é, Cristo). (3) Pela impossibilidade de se referir ho Kurios
mou, meu Senhor, a alguém outro além de Jesus (ver v. 13).
(4) Pelo uso do Novo Testamento de expressar o vocativo pelo
nominativo com o artigo. (5) Pelo completo absurdo psicológico
de tal hipótese; de que alguém apenas convencido da presença
dele a quem ele amava profundamente, em vez de se dirigir a ele,
deveria irromper em um choro irrelevante. (6) Por um absurdo
ainda maior, o de supor que, se este fosse o caso, o apóstolo
João, que, de todos os escritores sacros, mais constantemente
matinha na mente o objeto do qual estava escrevendo, deveria
ter relatado algo além desse objeto. (7) Pela íntima conexão de
pepisteukas, “creste” (ver versículo seguinte).
Observamos, portanto, que essa é a mais elevada confissão de fé
que já foi feita; e que ela mostra que (embora não de modo completo)
o significado das confissões anteriores de ser ‘o Filho de Deus' foi
compreendido. Assim, João, no encerramento de seu evangelho,
reitera o testemunho com o qual começou — a divindade do Verbo,
que se tornou carne, e, por essa confissão de encerramento, mostra
como o testemunho deJesus de Si mesmo pouco a pouco se aprofundou
e elevou a convicção dos apóstolos, desde o tempo em que eles ape­
nas o conheciam como ho huios tou Joseph (1.45), ‘o Nazareno, filho
de José,’ até agora, quando Ele é reconhecido com seu Senhor e seu
Deus” (cf. Greek New Testament de Alford sobre a passagem).
Essas notas sensatas não deixam nada a ser acrescentado
quanto à aplicação das palavras, “Senhor meu e Deus meu”. Mas
como o Salvador recebeu esse ato de adoração? Ele o sustentou e
o recomendou para que as eras vindouras o imitassem. “Disse-lhe
Jesus: Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram
e creram” (v. 29). Desse modo, ele mais enfaticamente declarou
seu senhorio e divino. Mas se ele fosse apenas um Cristo, conforme
o ponto de visa sociniano, quão terrível seria seu crime!
1 0 . J esus e x ig e d e n ó s u m a f é s e m h e s it a ç ã o e il im it a d a n e l e ; f é t a l

D e u s . Devemos crer nele para


q u e p o d e a p e n a s s e r d e p o s it a d a e m

a salvação de todo nosso ser; não meramente como para nos indicar
o caminho para o céu, mas sendo ele mesmo o caminho. Ele coloca a
fé que se deve dar-lhe na mesma categoria da fé que devemos dar ao
Pai (Jo 14.1). O espírito de Seu ensino sobre a fé que deve ser posta

290
O Deus-Homem

Nele se encontra nas palavras que disse à mulher em Samaria: “Se


conheceras o dom de Deus e quem é o que te pede: dá-me de beber,
tu lhe pedirias, e ele te daria água viva. [...] Quem beber [...] da
água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água
que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna” (Jo
4.10-14). A menos que exerçamos fé em Sua pessoa e em Sua obra,
que Ele figurativamente chamou de comer de Sua carne e beber
de Seu sangue, não viveremos (Jo 6.53); “se alguém dele comer,
viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo é a
minha carne” (v. 51). Aqueles que se entregaram nos braços de
Cristo pela fé receberam Dele a vida eterna, e jamais perecerão
(Jo 10.28). Eles estão tanto nos braços de Jesus quanto nos
braços do Pai; e sua segurança está tanto em um como no outro
(cf. 28,29,30). De fato, nessa graciosa transação, o Filho e o Pai são
um (v. 30). Os judeus poderiam muito bem, segundo seus pontos
de vista sobre sua origem, pegar pedras para apedrejá-lo por tais
afirmações, dizendo, como eles fizeram, “Não é por obra boa que te
apedrejamos, e sim por causa da blasfêmia, pois, sendo tu homem,
te fazes Deus a ti mesmo” (v. 33). A justificação de nosso Senhor
a respeito de si mesmo, fazendo uma referência à linguagem do
Salmo 82.6, é um exemplo do argumento do menor ao maior. Se, em
algum sentido, os regentes judeus podiam ser chamados deuses,
quanto mais apropriadamente poderia ele, o Filho unigênito do Pai,
ser dessa maneira designado! “Sem mim nada podeis fazer”, é, em
suma, a essência do ensino do Salvador a respeito de si mesmo (ver
Jo 15.1-5).
Este é o resumo da mensagem do evangelho: Crede no Senhor
Jesus Cristo e sereis salvos. Essa era uma exigência contínua e
honesta feita pelo Salvador, e inculcada por seus apóstolos; mas
dizemos abertamente, que ao exercer tal fé em Jesus da forma
como Ele exigiu e os evangelhos cumprem, segundo o ponto de vista
dos socinianos, estaríamos expostos ao terrível anátema: “Maldito
o homem que confia no homem, faz da carne mortal o seu braço”
(Jr 17.5). Como minha alma estaria nos braços de um simples mor­
tal? Como eu ousaria confiar minha redenção eterna aos cuidados
de um Cristo como esse? E baseado em que princípio Paulo diz:
“Tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4.13). E como pode
Jesus ser “tudo em todos” aos verdadeiros crentes de cada nação?
(Cl 3.11).

291
Os fundamentos

1 1 . A AFEIÇÃO E DEVOÇÃO QUE JESUS EXIGE, SÃO DE TAL PROPRIEDADE


q u e d e v e m s e r r e n d id a s a p e n a s a D e u s . Da maneira como
devemos confiar em Cristo para tudo, assim devemos entregar-
lhe tudo, caso Ele exija o sacrifício. Essa era a doutrina que o
Senhor ensinava continuamente. Que nossos leitores se reme­
tam a Mateus 10.37-39 e à passagem paralela, Lucas 14.26,27,
e verão imediatamente quão incondicional é a exigência do
Salvador. Pai, mãe, filho, filha, esposa e, até mesmo, a própria
vida devem ser sacrificados, se a devoção a Cristo necessitar
dessa rendição. Todas as criaturas, todas as coisas e nossa
própria vida devem ser para nós como nada quando comparadas
a Cristo. O próprio Deus não exige nem mais, nem menos de
nós. O que mais poderia exigir o Eterno Criador? A lei moral
diz: “Amarás, pois, o S e n h or , teu Deus, de todo o teu coração, de
toda a tua alma e de toda a tua força. [...] A ele servirás, a ele te
chegarás e, pelo seu nome, jurarás” (Dt 6.5; 10.20). No entanto,
Cristo nos pede para que o amemos assim, e exige de nós a hon­
ra e o sacrifício de todo nosso ser; então, se ele não for o Autor àe
nosso ser, que direito tem Ele de exigir tal coisa de nós? Eu não
amaria a Cristo como Ele requer ser amado, se eu não cresse
Nele como o Deus encarnado. Se fizéssemos tal coisa a partir
do ponto de vista sociniano, seriamos idólatras. No entanto, os
motivos que reinavam no coração dos apóstolos inspirados se
resumem a isso: “Pois o amor de Cristo nos constrange”, e eles
abandonaram a lei, e todo homem daqui em diante de viver não
mais “para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e
ressuscitou” (2Co 5.14,15). E Jesus declarou que nosso destino
eterno tomará sua natureza de nossa anuência, ou não, com suas
exigências: “Portanto, todo aquele que me confessar diante
dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai, que
está nos céus; mas aquele que me negar diante dos homens,
também eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus”
(Mt 10.32,33,38-42, cf. Mt 25.45,46), e esse sentimento ecoa no
ensino apostólico, quando é dito: “Se alguém não ama o Senhor,
seja anátema. Maranata [vem Senhor]” (1 Co 16.22). Contudo, a
suspensão de tão tremenda declaração para que nosso amor seja
decretado pela pessoa de uma mera criatura é, claramente, uma
idéia completamente revoltante para nosso senso moral. Ele
deve ser o Deus-Homem.

292
O Deus-Homem

12. A q u e l a s p a s s a g e n s n a s q u a is J esus pro m et eu S ua presença


c o n t in u a d a c o m os d is c íp u l o s a p ó s Sua ascensão são, tam­

bém , m u i t o s u g e s t iv a s . Belas são as palavras: “Porque, onde


estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio
deles” (Mt 18.20). Uma das últimas promessas de nosso Senhor
foi: “E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do
século” (Mt 28.20). Nenhuma crítica perversa poderá explicar
essas garantias; elas garantem a presença pessoal e perpétua de
Jesus com todos Seus discípulos até o fim dos tempos.
E essa idéia teve uma maravilhosa influência sobre as concep­
ções e ações dos homens a quem Jesus inspirou. Eles viveram como
aqueles que estavam perpetuamente sob os olhos de seu Senhor.
Desse modo, um fala em nome de todos: “E por isso que também
nos esforçamos, quer presentes, quer ausentes, (de Cristo quanto à
sua presença corporal, v. 6 e 8), para lhe sermos agradáveis (a Cristo)”
(2Co 5.9). Embora fosse negada sua presença corporal, eles sabiam
que Sua presença divina estaria sempre com eles, desde que traba­
lhassem para agradá-Lo, e o melhor desejo que poderiam aspirar
uns aos outros era: “O Senhor seja com o teu espírito. A graça seja
convosco” (2Tm 4-22). E João O viu, na visão que teve, sustentando
as estrelas ministeriais em sua mão direita e andando no meio de
candelabros dourados — as igrejas (Ap 2.1).
Mas como podemos explicar representações como estas, se o
Messias for possuído de apenas uma natureza — a humana, que
deve necessariamente ser local e limitada quanto a sua presença?
Quem é Este que sempre está com Seus discípulos em todos os
países ao mesmo tempo, senão o Único Infinito, em forma humana?
Sentimos Sua presença; sabemos que Ele está conosco; e, desse
modo, temos evidência de que Ele é mais do que apenas um ho­
mem.
Alguém que rejeita a idéia da divindade de Cristo encontra
consolo em passagens como: “O Pai é maior do que eu” (Jo 14.28).
Ninguém nega que, como homem e mediador, nosso Senhor era
inferior ao Pai. Filipenses 2.5-8 descreve o processo pelo qual
Deus, o Filho, esvaziou-se do exercício voluntário de seus atributos
para tornar-se homem e morrer por nós.
Há duas classes de Escrituras que se relacionam ao nosso
Senhor: a primeira, afirmando sua posse de uma natureza humana,
com todas suas fragilidades e limitações: e a segunda, atribuindo-
lhe uma natureza divina, que tinha os atributos da Divindade,

293
Os fundamentos

executava obras divinas e era digno de honra e culto supremo. Os


unitarianistas só podem explicar, e bem mal, uma dessas classes
de Escritura, a primeira; mas os trinitarianistas podem aceitar
ambas as classes, e as expõem em sua integridade e plenitude. Não
tropeçaremos em evidências de que Jesus era “osso dos meus ossos
e carne da minha carne” (Gn 2.23). Alegramo-nos Nele como em
alguém que se compadece “das nossas fraquezas” (Hb 4.15); mas
não temos necessidade de retirar as impurezas, introduzidas por
uma crítica sutil e injusta, referentes à atribuição de perfeição e
obras divinas a Sua pessoa.
Os tempos exigem de nós uma reafirmação vigorosa das
verdades antigas, que são os próprios fundamentos do sistema
do evangelho. A humanidade necessita de um Cristo a quem todos
possam cultuar e adorar. O canto mítico de Strauss, o Leben Jesu;
o Cristo irreal e romântico da Vie de Jesus [A Vida de Jesus], de Re­
nan; e, até mesmo, o Cristo meramente humano, de “Ecce Homo”,
jamais pode operar qualquer libertação na terra. Um Messias desse
tipo não vai ao encontro dos anseios da natureza humana decaída.
Ele não responde à insistente questão: “Como pode o homem ser
justo para com Deus?” (Jó 9.2). Ele não fornece nenhuma atuação
efetiva ou suficiente para a regeneração do poder moral do homem.
Ele não traz Deus a nós, à nossa natureza. Esse Cristo, podemos
criticar e admirar, como faríamos com Sócrates, ou Platão, ou
Milton, ou Shakespeare; mas não podemos confiar Nele como
nossa Salvação; não podemos amá-Lo com todo nosso coração; não
podemos oferecer a Seus pés a honra de todo ser; pois se assim
fizéssemos, estaríamos idolatrando.
Um Salvador, cujo único poder para salvar repousa nos excelen­
tes preceitos morais que concedeu e na vida pura que Ele viveu;
que não é mais o Deus-Homem, mas um mero homem; cujo sangue
não teve expiação sacrificial ou poder propiciatório no governo de
Deus, mas foi simplesmente uma testemunha mártir do sistema
superior da ética — não é o Salvador dos quatro evangelhos, ou
de Paulo, ou de Pedro, ou de João. Não é sob a bandeira de tal
Messias que a Igreja de Deus conquistou seus triunfos. O Cristo do
Novo Testamento, da Igreja primitiva, da Cristandade universal; o
Cristo, o poder de cujo nome revolucionou o mundo e o soergueu ao
patamar atual, e sob cuja liderança o exército sacramental dos re­
dimidos de Deus estão avançando, e avançarão, para vitórias ainda

294
O Deus-Homem

maiores sobre a superstição e o pecado, é Emanuel, Deus conosco,


em nossa natureza, cujo sangue “nos purifica de todo pecado”
(ljo 1.7), e que é capaz de salvar, até mesmo dos confins da terra,
todo o que vem a Deus por intermédio Dele.

295
297

A certeza e a importância da
ressurreição corporal
de Jesus Cristo dentre os mortos

R ev . R . A . T o r r e y , D .D .
Ex-deão do Instituto Bíblico de Los Angeles
Revisto e editado por Gerald B. Stanton, Th.D.

A ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos é a pedra an­


gular da doutrina cristã. Ela é mencionada de maneira direta umas
cento e quatro vezes, ou mais, no Novo Testamento. Ela foi o ponto
mais proeminente e principal do testemunho apostólico. Quando
os apóstolos, após a apostasia de Judas Iscariotes, sentiram que era
necessário completar seu número, novamente acrescentando mais

REÜBEN ANCHER TORREY (1856-1928) foi no princípio de sua vida


cristã um crítico partidário da alta crítica. Contudo, durante o ano
em que passou estudando na Alemanha, ele rejeitou essa filosofia
e, mais tarde, tornou-se um dos principais pensadores entre os
Fundamentalistas. Torrey, um pregador poderoso, deixou sua marca
no evangelismo mundial. Entre suas outras realizações, foi supervisor
do Moody Bible Institute, pastor da Moody Memorial Church, da Igreja
das Portas Abertas em Los Angeles e deão do Instituto Bíblico de Los
Angeles (hoje Biola üniversity). Torrey escreveu muitos livros, incluindo
The Real Christ [O Cristo Real] (1920). Is The Bible the Inerrant Word of
God? [A Bíblia é a Palavra lnerrante de Deus?] (1922), e The Power of
Prayer[Q Poder da Oração].
Os fundamentos

um para ocupar o lugar de Judas Iscariotes, isso ocorreu para que


esse novo apóstolo fosse testemunha (com eles) da ressurreição
do Senhor (At 1.21,22). A ressurreição de Jesus Cristo foi o ponto
que Pedro enfatizou em seu grande sermão no dia de Pentecostes.
Todo seu sermão foi centrado sobre esse fato. Sua tônica foi: “A
este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas”
(At 2.32; cf. vv. 24-31). Quando os apóstolos, alguns dias depois,
foram cheios novamente com o Espírito Santo, o resultado central
foi que os apóstolos deram “testemunho da ressurreição do Senhor
Jesus” (At 4.33; grifo do autor). A doutrina central que o apóstolo
Paulo pregou aos filósofos epicureus e estóicos na colina Marte era
Jesus e a ressurreição (At 17.18; cf. At 23.6; ICo 15.15).
A ressurreição de Jesus Cristo é uma das duas verdades funda­
mentais do evangelho, a outra é Sua morte expiatória (ICo 15.1,3,4).
Essas eram as boas novas, primeiro, que Cristo morreu por nossos
pecados, e, segundo, que Ele surgiu dos mortos. A crucificação
perde seu sentido sem a ressurreição. Sem a ressurreição, a morte
de Cristo era apenas a morte heróica de um nobre mártir. Com a
ressurreição, ela se torna a morte expiatória do Filho de Deus. Ela
mostra que a morte deve ter valor suficiente para nos redimir de
todos nossos pecados, porque ela foi o sacrifício do Filho de Deus.
Refutar a ressurreição de Jesus Cristo e a fé cristã é esforço vão. “Se
Cristo não ressuscitou”, clama Paulo, “é vã a nossa pregação, e vã, a
vossa fé” (ICo 15.14). Posteriormente, ele acrescenta, “E, se Cristo
não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos
pecados” (ICo 15.17). Paulo, como claramente mostra o contexto,
fala da ressurreição corporal de Jesus Cristo. A doutrina de Jesus
Cristo é a única doutrina que tem poder de salvar qualquer um que
creia nela de coração (Rm 10.9). Conhecer o poder da ressurreição
de Cristo é uma das maiores ambições do crente inteligente, e para
atingi-la ele sacrifica todas as coisas e considera “tudo como perda”
(Fp 3.8-10).
Embora a ressurreição corporal e literal de Jesus Cristo seja
a pedra fundamental da doutrina cristã, ela é também o estreito
de Gibraltar da evidência cristã, e o Waterloo da infidelidade e
do racionalismo. Se as afirmações escriturais da ressurreição de
Cristo podem ser estabelecidas como certezas históricas, as asser­
ções e doutrinas do cristianismo repousam sobre um fundamento
inexpugnável. Por um lado, se a ressurreição de Jesus Cristo dentre

298
A certeza e a importância da ressurreição corporal
de Jesus Cristo dentre os mortos

os mortos não pode ser estabelecida, o cristianismo se esvazia.


Em um instinto verdadeiro, um agnóstico brilhante e importante
da Inglaterra, chegou a dizer, que não há utilidade em gastar
tempo discutindo os outros milagres. A questão essencial é: Jesus
ressuscitou dos mortos? Se sim, será bastante fácil crer nos outros
milagres; mas, se não, os outros milagres perdem seu sentido.
As afirmações contidas nos quatro evangelhos que admitem
a ressurreição de Jesus Cristo são afirmações de fato ou ficção,
fábulas ou mitos? Existem três linhas independentes de prova de
que as afirmações contidas nos quatro evangelhos em relação à res­
surreição de Jesus Cristo são afirmações exatas do fato histórico.

A evidência externa da autenticidade


e veracidade das narrativas do evangelho
Esse é um argumento totalmente satisfatório. As provas da
autenticidade e veracidade das narrativas dos evangelhos são arra-
sadoras e impressionantes, mas o argumento é longo e intrincado
e precisaria de um volume para discuti-lo de maneira satisfatória.
Os outros argumentos são tão completamente suficientes, impres­
sionantes e convincentes para uma mente sincera, que podemos
passar por esse argumento e deixá-lo de lado, embora seja bom no
lugar que ocupa nessa defesa.

As provas internas da veracidade


dos relatos dos evangelhos
Esse argumento é inteiramente conclusivo, e o afirmaremos
brevemente nas páginas que se seguem. Não presumiremos abso­
lutamente nada. Partiremos de um fato que todos nós sabemos ser
um fato, a saber, que temos hoje quatro evangelhos, seja lá quem os
escreveu e onde quer que tenham sido escritos. Colocaremos esses
quatro evangelhos lado a lado e veremos se podemos discernir
neles as marcas da verdade ou da ficção.
1. A primeira coisa que nos admira enquanto comparamos esses
evangelhos uns com os outros é que eles são quatro relatos
separados e independentes. Isso fica muito claro em relação às
aparentes discrepâncias, variadas e distintas, nesses quatro re­
latos. Teria sido impossível para esses quatro evangelhos terem
sido formados a partir de maquinações de uns com os outros, ou
terem sido derivados de um outro, quando tantas e tão distintas

299
Os fundamentos

diferenças são encontradas neles. Embora haja harmonia entre os


quatro relatos, a harmonia não fica na superfície; ela aparece apenas
por meio de um estudo prolongado e persistente. E essa harmonia é,
precisamente, como a que existiria entre relatos escritos por várias
pessoas diferentes, em que cada uma delasvê o evento a partir de seu
próprio ponto de vista. E exatamente essa harmonia que não existiria
nos quatro relatos, caso fossem manufaturados em conjunto, ou
derivados uns dos outros. Nos quatro relatos manufaturados em
conjunto, qualquer traço de harmonia poderia aparecer na superfície.
Qualquer discrepância que houvesse, só viria à tona por meio de um
detalhado e cuidadoso exame. No entanto, com os quatro evange­
lhos o caso é exatamente o oposto. A harmonia surge de um estudo
cuidadoso e minucioso, e a aparente discrepância repousa sobre a
superfície. Esses quatro relatos, verdadeiros ou falsos, são separados
e independentes uns dos outros. (Os quatro relatos também suple­
mentam um ao outro, e o terceiro relato às vezes reconcilia aparentes
discrepâncias entre os dois primeiros).
Esses relatos devem ser ou um registro dos fatos que realmente
ocorreram ou ficção. Se ficção, essas narrativas devem ter sido forja­
das de maneira independente umas das outras; as concordâncias são
muito notáveis e muito variadas. E absolutamente incrível que quatro
pessoas se sentem para escrever, independentemente umas das outras,
um relato sobre algo que jamais ocorreu e tenham produzido histórias
que concordem em certos pontos como acontece com os evangelhos.
Por outro lado, esses relatos não podem ter sido feito, como já vimos,
em conjunto, uns com os outros; pois as discrepâncias aparentes são
muito numerosas e muito notáveis. Prova-se que eles foram feitos de
maneira independente uns dos outros; prova-se que eles não foram
feitos em conjunto uns com os outros; assim, somos conduzidos à con­
cluir que eles não foram feitos de modo nenhum, e que eles são relatos
verdadeiros dos fatos como estes realmente ocorreram. Podemos
apoiar o argumento nesse ponto e achar, o que seria bem razoável,
que o caso está resolvido. Mas podemos continuar ainda mais.
2. Aproxima coisa que notamos é que cada um desses relatos fornece
indicações extraordinárias de terem sido derivados de testemunhos
oculares.
O relato de uma testemunha ocular é claramente distinto do
relato de alguém que está meramente repetindo o que outros
lhe contaram. Qualquer um que está acostumado a ponderar a
evidência no tribunal, ou no exame histórico, logo aprende como

300
A certeza e a importância da ressurreição corporal
de Jesus Cristo dentre os mortos

distinguir o relato de uma testemunha ocular da mera evidência


de um boato. Qualquer examinador cuidadoso dos relatos da
ressurreição do evangelho detectará de imediato muitas provas do
testemunho ocular. Alguns anos atrás, quando fiz uma palestra em
uma universidade americana, um cavalheiro foi-me apresentado
como cético. Então, fiz-lhe uma pergunta: “Qual linha de estudo
o senhor está seguindo?”. Ele me respondeu que procurava fazer
um curso de pós-graduação em história, com vistas à carreira de
professor. Perguntei-lhe: “Então o senhor sabe que o relato de
uma testemunha ocular se difere em muitos aspectos do relato de
alguém que simplesmente está contando o que ouviu de outros?”.
“Sim”, respondeu-me ele. Em seguida perguntei: “0 senhor leu
cuidadosamente os relatos da ressurreição de Cristo nos quatro
evangelhos?”. Ele me respondeu, “Sim, li”. Então, continuei a
questioná-lo: “Diga-me, o senhor notou claras indicações de que
eles se derivaram do testemunho ocular?”. “Sim”, respondeu-me
ele, “fiquei bastante impressionado com isso na minha leitura dos
relatos”. Qualquer um que os lê cuidadosa e inteligentemente fica
impressionado com o mesmo fato.
3. A terceira coisa que percebemos sobre essas narrativas dos
evangelhos é sua naturalidade, honestidade, falta de rebuscamento
artístico e simplicidade.
E verdade que os relatos têm a ver com o sobrenatural, contudo,
os próprios relatos são muito naturais. Há uma notável ausência
de toda tentativa de dar cor e efeito. Não há nada, senão o simples
e sincero narrar dos fatos como eles realmente ocorreram. 0
Dr. William Furness, o grande erudito e crítico unitarianista, que
certamente não era muito favorável ao sobrenatural, diz: “Nada
pode exceder em honestidade e simplicidade aos quatro relatos
da primeira aparição de Jesus após sua crucificação. Se essas
qualidades não são discerníveis aqui, devemos desistir de poder
discernir-los em outra parte”.
Suponha-se que encontrássemos quatro relatos da Batalha
de Monmouth. Provavelmente, os acharíamos cheios daquela
sinceridade e simplicidade que sempre traz convicção; acharíamos
que, embora aparentemente em desacordo nos menores detalhes,
concordaríamos quanto à essência de seus relatos sobre a batalha
— ainda que não tivéssemos conhecimento da autoria ou data des­
ses relatos, não diríamos, na ausência de qualquer um dos outros
relatos: “Aqui está um relato verdadeiro da Batalha de Moumouth”?

301
Os fundamentos

Isso é exatamente o que ocorre no caso das narrativas dos evange­


lhos. São claramente separados e independentes uns dos outros,
trazendo os sinais claros de terem sido derivados de um testemu­
nho ocular, caracterizado por uma seriedade e simplicidade sem
paralelos, aparentemente em desacordo nos detalhes menores,
mas de perfeito acordo quanto aos grandes fatos centrais relatados.
Se somos francos e honestos, se seguimos os cânones da evidência
no tribunal, se seguimos qualquer lei saudável da crítica literária
e histórica, logicamente não somos levados a dizer, “Eis um relato
verdadeiro da ressurreição de Jesus”?
4. A próxima coisa que notamos é a evidência não-intencional das
palavras, sentenças e pormenores acidentais.
Muitas vezes, acontece que quando uma testemunha se mantém
firme, a evidência não-intencional que ela sustenta pelas palavras e
sentenças das quais se utiliza, e por pormenores acidentais que ela
introduz, é mais convincente do que seu testemunho direto para
si mesma. Os relatos dos evangelhos estão repletos de evidência
desse tipo.
Tomemos, como primeiro exemplo, o fato de que em todos os
relatos da ressurreição nos evangelhos, somos levados a compreen­
der que Jesus não foi reconhecido prontamente por seus discípulos,
quando apareceu a eles depois de sua ressurreição (e.g. Lc 24.16;
Jo 21.4). As narrativas dos evangelhos registram simplesmente o
fato sem tentar explicá-lo. Se as histórias fossem fictícias, elas,
com certeza, jamais teriam sido feitas dessa maneira, porque
o escritor teria visto imediatamente a objeção que surgiria nas
mentes daqueles que não quisessem crer em Sua ressurreição, isto
é, que não foi Jesus realmente a quem os discípulos viram. Por que,
então, a história é contada dessa maneira? A razão óbvia é que os
evangelistas não estavam produzido uma história para fazer efeito,
mas simplesmente registrando eventos exatamente como eles
ocorreram. Esse é o modo pelo qual ela ocorreu, portanto, esse é o
modo pelo qual eles a contaram. Não é uma criação de incidentes
imaginários, mas um relato exato dos fatos, cuidadosamente obser­
vado e registrados precisamente.
Tomemos um segundo exemplo: em todos os relatos dos evan­
gelhos sobre as aparições de Jesus depois da ressurreição, não há
uma única aparição relatada a um inimigo ou oponente de Cristo.
Todas as aparições foram para aqueles que já acreditavam. Podemos

302
A certeza e a importância da ressurreição corporal
de Jesus Cristo dentre os mortos

ver facilmente porque aconteceu assim, mas em nenhuma parte


nos evangelhos nos é dito a razão. Se as histórias tivessem sido
criadas, certamente elas jamais teriam sido criadas desse modo.
Se os evangelhos fossem, como alguns querem que acreditemos,
criações construídas cem, duzentos ou trezentos anos após os
acontecimentos relatados, quando todos os protagonistas estives­
sem mortos e nenhum deles pudesse contradizer qualquer mentira
contada, Jesus teria sido representado como aparecendo a Caifás,
a Anãs, a Pilatos e a Herodes, e os confundiria por sua reaparição
dos mortos. Mas não há qualquer sugestão de algo desse tipo nos
relatos dos evangelhos. Toda aparição é para quem já é um crente.
Por que isso se dá assim? Porque a razão óbvia é que esse foi o
modo como as coisas ocorreram, e as narrativas dos evangelhos
não estão relacionadas com a produção de uma história para causar
efeito, mas simplesmente com eventos relatados exatamente como
eles ocorreram e como observado pelos escritores.
Descobrimos um outro exemplo muito impressionante no que
está relatado com respeito às palavras de Jesus para Maria, no
primeiro encontro entre eles (Jo 20.17). Jesus, conforme o relato,
diz: “Não me detenhas; porque ainda não subi para meu Pai”. Nada
nos é dito sobre a razão de Jesus ter proferido essas palavras. So­
mos levados a descobrir a razão para elas, e as explicações variam
amplamente umas das outras. Por que essa pequena declaração de
Jesus é colocada no relato do evangelho sem uma palavra de ex­
plicação? Com certeza, um escritor construindo uma história não
colocaria um detalhe como esse, sem significado aparente e sem
uma tentativa de uma explicação para ele. Por que o encontramos
aqui? Porque isso é exatamente o que aconteceu. Isso é o que Jesus
disse; isso é o que Maria ouviu Jesus dizer; isso é o que Maria
contou e, portanto, isso é o que João relatou. Não podemos ter aqui
uma ficção, mas um relato cuidadoso das palavras ditas por Jesus
depois de Sua ressurreição.
Encontramos ainda um outro exemplo em João 20.4-6. Esse
está inteiramente de acordo com o que sabemos de outras fontes
sobre João e Pedro. Maria, retornando com muita pressa do
túmulo, encontra-se com os dois discípulos e clama: “Tiraram
do sepulcro o Senhor, e não sabemos onde o puseram” (v. 2). Os
homens correram o máximo que podiam até o túmulo. João, o
mais jovem deles (o mais impressionante é que a narrativa não nos

303
Os fundamentos

diz aqui que ele era o mais jovem dos dois discípulos), corre mais
rápido do que Pedro e chega ao sepulcro primeiro, mas como era
um homem introspectivo e reverente (outro detalhe que não nos é
dito aqui, mas sabemos disso por intermédio de uma outra fonte,
de um estudo sobre sua personalidade), não entra na tumba, mas
simplesmente inclina-se e olha para dentro do sepulcro. Pedro,
impetuoso, embora mais velho, vem atrás de João, com dificuldade
e tão rapidamente quanto pode, mas quando alcança o sepulcro não
espera sequer um momento, mas lança-se de cabeça no interior
dele. Isto criação é literária, ou um relato real? Ele, na verdade,
seria um artista literário de indiscutível capacidade, que possuía
a habilidade de criar tal fato embora os acontecimentos não se
dessem dessa forma. Há, incidentalmente, um toque de colorido
local no relatório. Quando, hoje em dia, se visita um sepulcro, que
os eruditos agora aceitam como o local verdadeiro do sepultamento
de Jesus, sente-se inconscientemente a obrigação de abaixar-se e
olhar para dentro.
Encontramos um outro exemplo em Marcos 16.7: “Mas ide,
dizei a seus discípulos e a Pedro que ele vai adiante de vós para
a Galiléia; lá o vereis, como ele vos disse”. Eu gostaria de chamar
atenção aqui para duas palavras, “e a Pedro”. Não era Pedro um dos
discípulos? Não há nenhuma explicação para esse detalhe, mas
a reflexão mostra ser a expressão de amor para com o discípulo
desanimado e desesperado que havia negado por três vezes a seu
Senhor. Se a mensagem fosse simplesmente aos discípulos, Pedro
teria dito, “Sim, fui discípulo, mas agora não me conto mais entre
eles. Neguei por três vezes a meu Senhor naquela noite terrível com
juramentos e praguejamentos. Ele não acha que estou entre eles”.
Mas o terno e compadecido Senhor, por meio de seu mensageiro,
um anjo, envia a mensagem, “Vá, diga aos discípulos e a quem quer
que disseres, mas certifique-se de contar a Pedro, pobre, fraco, he­
sitante, regenerado e de coração quebrantado”. Isso é criação, ou é
um quadro real de nosso Senhor? Tenho pena do homem que é tão
tolo a ponto de imaginar que isso é ficção. Aliás, deve-se notar que
isso é relatado apenas no evangelho de Marcos, que, como se sabe
muito bem, é o evangelho de Pedro. Como, um dia, Pedro narrou a
Marcos o que ele deveria relatar, com lágrimas nos olhos e gratidão
no coração, ele se voltaria a Marcos e diria: “Marcos, certifique-se
de colocar no texto: Diga aos discípulos e a Pedrol”.

304
A certeza e a importância da ressurreição corporal
de Jesus Cristo dentre os mortos

Tomemos ainda um outro exemplo: Em João 20.16, lemos,


“Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, voltando-se, lhe disse, em hebraico:
Raboni (que quer dizer Mestre)! ”. Que toque delicado de natureza
temos aqui! Maria está do lado de fora do sepulcro, cheia de pesar.
Ela não reconheceu seu Senhor, ainda que Ele lhe tenha falado. Ela
o confundiu com o jardineiro. Ela disse: “Senhor, se tu o tiraste,
dize-me onde o puseste, e eu o levarei” (v. 15). Então, Jesus profere
apenas uma palavra. Ele diz, “Maria”. Enquanto este nome vibrava
no ar da manhã, proferido com um velho tom familiar, expresso
como ninguém antes mais havia, senão ele, em um instante abrem-
se seus olhos. Ela cai a seus pés, tenta apalpar-lhe e olha para seu
rosto, e clama “Raboni (que quer dizer Mestre)!”. Isso é criação?
Impossível! Isso é vida. Esse é Jesus, e essa é a mulher que o amou.
Nenhum autor desconhecido do segundo, terceiro ou quarto século
poderia ter produzido uma obra-prima como essa. Estamos aqui,
de modo inquestionável, face a face com a realidade, cheia de vida,
com Jesus e Maria, como eles realmente eram.
Um exemplo mais importante: em João 20.7, lemos: “E o lenço
que estivera sobre a cabeça de Jesus, e que não estava com os len­
çóis, mas deixado num lugar à parte”. Quão estranho é que detalhe
tão pequeno como esse seja acrescido à história sem nenhuma ten­
tativa de explicá-lo. Mas quão profundamente significativo é esse
pequeno detalhe sem explicação. Lembremos as circunstâncias.
Jesus está morto, por três dias e três noites seu corpo jaz frio e em
repouso no sepulcro, tão verdadeiramente morto como qualquer
corpo morto, mas, por final, a hora designada chega, o alento de
Deus passa através do barro que dorme e repousa, e naquele mo­
mento supremo de sua vida terrena, naquele momento supremo da
história humana, quando Jesus ergue-se triunfante sobre a morte,
o túmulo e Satanás, não há exultação de Sua parte, mas com aquela
mesma autocompostura majestosa e serenidade que marcaram
toda Sua carreira, aquela mesma calma divina que Ele demonstrou
sobre a tempestade na Galiléia, assim, agora novamente, nesse su­
blime e tremendo momento, Ele não arranca afobadamente o lençol
de sua face e lança-o para fora, mas, absolutamente sem pressa,
agitação ou desordem humana, Ele o retira calmamente de sobre
Sua cabeça, o dobra e o coloca de uma maneira bem ordenada
em um lugar separado. Isso é criação? Jamais! Aqui não estamos
contemplando uma peça de arte primorosa de um romancista; mas

305
Os fundamentos

lendo a narrativa simples de um detalhe incomparável em uma vida


única, que foi realmente vivida nesta terra, uma vida tão bela que
não é possível lê-la com honestidade e entendimento, sem sentir as
lágrimas banhando os olhos.
Mas alguém dirá que todas essas coisas são insignificantes. Na
verdade, é desse próprio fato que elas obtém muito de seu signifi­
cado. E em tais pequenas coisas que a ficção se revelaria. A ficção
mostra-se diferente graças aos pormenores. Nos traços mais proe­
minentes, a ficção pode se igualar à realidade, no entanto, quando
se chega ao exame dos fatos diminutos e microscópicos, logo se
detectará que não é realidade, mas criação. Contudo, quanto mais
microscopicamente examinamos as narrativas do evangelho, tanto
mais ficamos impressionados com sua veracidade. Nas narrativas,
há uma seriedade, uma naturalidade e uma veracidade auto-eviden-
te, que vai aos detalhes mais diminutos e que ultrapassa todas as
possibilidades da arte.
A terceira linha de prova de que as declarações contidas nos
quatro evangelhos, com relação à ressurreição de Jesus Cristo, são
relatos exatos do fato histórico é

A evidência circunstancial
para a ressurreição de Cristo
Há certos fatos provados e admitidos que exigem a ressurreição
de Cristo para que sejam explicados.
1. Sem dúvida, a verdade fundamental pregada nos primeiros anos
da história da igreja era a ressurreição. Se Jesus ressuscitou
realmente ou não dos mortos, uma coisa é certa: os apóstolos
proclamavam constantemente que sim. E por que os apóstolos
usariam isso como a pedra fundamental de seu credo, se não
fosse atestado e firmemente crido?
Mas isto não é tudo: eles guiam suas vidas por essa doutrina. Os
homens jamais conduzem suas vidas por uma doutrina na qual eles
não crêem firmemente. Eles declaram que viram a Jesus após Sua
ressurreição, e em vez de abandonar essa afirmação, eles guiam
suas vidas por esse fato. Naturalmente, os homens podem errar
e, freqüentemente, o fazem, mas foi por meio de um erro que eles
creram com firmeza. Nesse caso, eles teriam sabido se tinham
visto a Jesus ou não, e não teriam meramente morrido por erro,
mas morrido por uma afirmação que eles sabiam ser falsa. Isso não

306
A certeza e a importância da ressurreição corporal
de Jesus Cristo dentre os mortos

é apenas incrível, mas impossível. Além do mais, se os apóstolos


realmente cressem com firmeza, como se admitiu, que Jesus surgiu
dos mortos, eles tinham alguns fatos sobre os quais eles fundamen­
tavam sua crença. Estes teriam sido os fatos que eles teriam relatado
ao contar a história. Eles certamente não teriam criado uma história
de incidentes imaginários, quando tinham em mãos os fatos sobre os
quais fundamentavam sua crença. Mas se os fatos fossem como nar­
rados nos evangelhos, não há como escapar à conclusão de que Jesus
realmente ressuscitou. Mas ainda, se Jesus não tivesse ressuscitado,
teria havido evidência desse fato. Seus inimigos teriam procurado
e encontrado essa evidência, mas os apóstolos subiram e desceram
a mesma cidade onde Ele tinha sido crucificado, proclamando
diretamente e à vista de seus assassinos que Ele havia ressuscitado,
e nenhum deles podia produzir uma evidência contrária. O melhor
que eles podiam fazer era dizer que os guardas dormiram e que os
discípulos roubaram o corpo enquanto os guardas dormiam. Homens
que sustentam uma evidência do que aconteceu enquanto estavam
dormindo geralmente não são considerados como testemunhas em
quem se pode crer. E, também, se os apóstolos tivessem roubado o
corpo, eles saberiam disso e não estariam prontos para morrer pelo
que eles sabiam ser uma fraude.
2. Um outro fato conhecido é a mudança do dia de descanso. A
igreja primitiva proveio dos judeus. Desde tempos imemoriais,
os judeus haviam celebrado o sétimo dia da semana como o dia
de descanso e adoração, no entanto, encontramos os primeiros
cristãos nos Atos dos apóstolos, e também nos primeiros escri­
tos cristãos, se reunindo no primeiro dia da semana. Nada é
mais difícil do que mudar um dia sagrado que fora celebrado por
séculos, e é um dos costumes mais estimados do povo. O que é
especialmente significativo sobre a mudança é que o dia não foi
mudado por nenhum decreto repressor, mas por consentimento
geral. Alguma coisa tremenda deve ter ocorrido que levasse a
essa mudança. Os apóstolos afirmaram que o que tinha ocorrido
naquele dia foi a ressurreição de Cristo dos mortos, o que é a
explicação mais racional. De fato, é a única explicação razoável
para essa mudança.
3. No entanto, o fato mais significativo de todos é a mudança nos
próprios discípulos, a transformação moral. No tempo da cruci­
ficação de Cristo, encontramos toda a companhia dos apóstolos

307
Os fundamentos

devastada pelo vazio e completo desespero. Observemos Pedro,


o líder dos apóstolos, que negou a seu Senhor três vezes com
juramentos e maldições, mas, alguns dias depois, vemos esse
mesmo homem, cheio de uma coragem que nada poderia abalar.
Nós o vemos parado diante do conselho que condenou Jesus à
morte, dizendo-lhes, “Tomai conhecimento, vós todos e todo o
povo de Israel, de que, em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, a
quem vós crucificastes, e a quem Deus ressuscitou dentre os
mortos, sim, em seu nome é que este está curado perante vós”
(At 4.10). Um pouco após ter sido ordenado pelo conselho a
não falar, nem ensinar no nome de Jesus, ouvimos Pedro e João
respondendo: “Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a
vós outros do que a Deus; pois nós não podemos deixar de falar
das coisas que vimos e ouvimos” (At 4.19,20). Um pouco mais
tarde ainda, após a detenção e o aprisionamento, em perigo de
morte, quando severamente acusados pelo conselho, ouvimos
Pedro e os apóstolos respondendo à exigência para que ficassem
em silêncio com respeito a Jesus, com as seguintes palavras:
“Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens. O Deus de
nossos pais ressuscitou a Jesus, a quem vós matastes, penduran­
do-o num madeiro. Deus, porém, com a sua destra, o exaltou a
Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento
e a remissão de pecados. Ora, nós somos testemunhas destes
fatos, e bem assim o Espírito Santo, que Deus outorgou aos que
lhe obedecem” (At 5.29-32). Alguma coisa tremenda deve ter
ocorrido para justificar tamanha transformação moral, radical
e assombrosa, como essa. Nada, a não ser a ressurreição e o
testemunho ocular, poderia explicar esse fato.
Esses fatos inquestionáveis são tão impressionantes e tão con­
clusivos que, até mesmo, os eruditos infiéis e os judeus admitem
agora que os apóstolos acreditavam que Jesus ressuscitara dos
mortos. Até mesmo Ferdinad Baur, pai da escola de Tübingen,
admitiu isso. David Strauss, que escreveu a mais magistral “Vida
de Jesus” do ponto de vista racionalista, algo que jamais fora feito
antes, disse: “Somente isso é preciso ser reconhecido, isto é, que
os apóstolos creram firmemente que Jesus havia ressuscitado”.
Strauss, evidentemente, não quis admitir nada mais do que pre­
cisava fazer, mas foi compelido a admitir esse fato. Schenkel foi
ainda mais longe e disse: “E um fato indiscutível que, na primeira

308
A certeza e a importância da ressurreição corporal
de Jesus Cristo dentre os mortos

manhã do primeiro dia da semana após a crucificação, o túmulo de


Jesus estava vazio. Um segundo fato é que os discípulos e outros
membros da comunhão apostólica estavam convencidos de que
Ele foi visto após a crucificação”. Admitir isso é fatal para aquilo
que os racionalistas querem fazer com esses detalhes. A questão
que surge imediatamente é: “De onde provém essas convicções e
crenças, senão de uma ressurreição factual”.
Renan procurou dar uma resposta dizendo que “a paixão de uma
mulher alucinada (Maria) deu ao mundo um Deus ressurrecto”.
(Renan, Life ofJesus [A Vida de Jesus], p. 357). Com isto, Renan quer
dizer que Maria estava apaixonada por Jesus, que, após a crucifi­
cação, meditou sobre isto, com a paixão de seu amor, sonhou com
uma condição, na qual ela mesma teve uma alucinação de que havia
visto a Jesus ressuscitado dos mortos. Posteriormente, relatou seu
sonho como um fato verdadeiro, e, assim, a paixão de uma mulher
alucinada levou o mundo a crer em um Deus ressurrecto. Mas a res­
posta a tudo isso é óbvia, a saber, a paixão de uma mulher alucinada
não foi competente a ponto de realizar essa tarefa. Lembremos a
composição da companhia apostólica; nessa companhia havia um
Mateus e um Tomé, que precisavam ser convencidos, e fora dela
estava um Saulo de Tarso que precisava ser convertido. A paixão
de uma mulher alucinada não convenceria um descrente obstinado
como Tomé, nem um publicano judeu como Mateus. Quem jamais
ouviu que um publicano, e acima de tudo um publicano judeu, seria
enganado pela paixão de uma mulher alucinada? A paixão de uma
mulher alucinada não convenceria um inimigo feroz e consciente
como Saulo de Tarso. Precisamos buscar por uma explicação mais
sadia do que essa. Strauss tentou justificar tal fato, perguntando
se a aparição não poderia ter sido uma visão. Strauss teve, e ainda
tem, muitos seguidores para essa teoria. Mas, não há nessa teoria,
respondemos antes de mais nada, qualquer ponto de partida subje­
tivo para tais visões. Os apóstolos realmente não esperavam ver o
Senhor e, dificilmente, creriam em seus próprios olhos quando O
vissem. Além disso, quem já ouviu dizer que onze homens tiveram
a mesma visão ao mesmo tempo, para não mencionar os quinhentos
(ICo 15.6), que tiveram a mesma visão ao mesmo tempo. Strauss
exige que abandonemos um milagre razoável e o substituamos
por quinhentos milagres impossíveis. Nada pode ultrapassar a
credulidade da descrença.

309
Os fundamentos

A terceira tentativa para uma explicação é que Jesus não estava


realmente morto quando eles o tomaram da cruz, e que seus ami­
gos o reanimaram e o trouxeram de volta à vida, e o que se supôs
ser a aparição do Senhor ressuscitado, foi a aparição de alguém que
jamais esteve realmente morto e que, agora, era meramente alguém
que fora considerado como ressuscitado. Essa teoria de Paulus tem
sido apresentada e remendada por vários escritores racionalistas
de nosso tempo e parece ser a teoria favorita daqueles que hoje ne­
gariam a realidade da ressurreição de nosso Senhor. Para sustentar
esse ponto de vista, tem-se apelado ao breve tempo que Jesus ficou
na cruz, e ao fato de que a história nos conta sobre alguém que, no
tempo de Josefo, foi retirado da cruz, tratado e depois voltou à vida.
Mas a isso respondemos: lembremos dos acontecimentos que ante­
cederam a crucificação, a agonia no jardim do Getsêmani, a terrível
provocação dos quatro julgamentos, o flagelo e a conseqüente
condição física na qual tudo isso deixou Jesus. Lembre-se também,
da água e do sangue que derramaram de seu lado perfurando.
Em segundo lugar, seus inimigos tomariam, e tomaram, todos os
cuidados necessários contra tal coisa (Jo 19.34). Em terceiro lugar,
se Jesus fosse meramente ressuscitado, ele estaria tão debilitado,
tão arruinado fisicamente que sua reaparição teria sido medida em
seu valor real, e a transformação moral dos discípulos continuaria
sem justificativa. Em quarto lugar, se tivesse sido reanimado, os
apóstolos e amigos de Jesus, que são os únicos que, conforme se
supõe, poderiam tê-lo reanimado, saberiam que não foi o caso de
uma ressurreição, mas de ressuscitação, e o fato principal a ser
justificado, a saber, a mudança em si mesmos permaneceria injusti­
ficado. A tentativa de explicação é uma explicação que não explica.
Em quinto lugar, respondemos que a dificuldade moral é a maior
de todas, pois se fosse realmente o caso de ressuscitação, então
Jesus procurou apalpar-se como alguém que ressuscita dos mortos,
quando na realidade Ele não era um deles. Nesse caso, ele seria um
arqui-impostor, e todo o sistema cristão repousa sobre uma fraude
como seu fundamento maior. E possível crer que tal sistema de reli­
gião como o de Jesus Cristo, que incorpora princípios e preceitos de
verdade, pureza e amor exaltados, “se originassem de uma fraude
deliberadamente planejada”? Ninguém, cujo coração não seja apo­
drecido pela fraude e trapaça, pode crer que Jesus tenha sido um
impostor, e sua religião fundamentada sobre uma fraude.

310
A certeza e a importância da ressurreição corporal
de Jesus Cristo dentre os mortos

Na Inglaterra, um líder das forças racionalistas tentou recente­


mente provar a teoria de que Jesus estava apenas aparentemente
morto, apelando ao fato de que quando o lado de Jesus foi perfu­
rado e o sangue escorreu, algo, segundo ele, improvável, esse
racionalista concluiu seu pensamento com a seguinte pergunta:
“Como pode um homem morto sangrar?”. A essa pergunta, basta
responder que quando um homem morre da causa popularmente
chamada de coração partido, o sangue escapa para o pericárdio e,
depois de ficar ali por algum tempo, separa-se em soro (a água) e
coágulo (glóbulos vermelhos, sangue) e, desse modo, se um ho­
mem estivesse morto e se seu lado fosse perfurado por uma lança,
e a ponta da lança perfurasse o pericárdio, “sangue e água” fluiria,
assim como o relato afirma que aconteceu. O que é exposto como
uma prova de que Jesus não estava realmente morto é, na realidade,
uma prova de que ele estava, e um exemplo da precisão cuidadosa
da história. Certamente, ela não teria ela sido criada dessa maneira,
se não fosse um fato real.
Eliminamos qualquer outra suposição possível. Resta apenas
uma, a saber, se Jesus realmente ressuscitou dos mortos no
terceiro dia, como registrado nos quatro evangelhos. A tentativa
desesperada, que aqueles que tentam negar esse fato são levados a
fazer é em si mesma uma prova do fato.
Temos então várias linhas independentes do argumento que
apontam decisiva e conclusivamente à ressurreição de Cristo dos
mortos. Algumas delas, tomadas em separado, já provam o fato,
mas tomadas em conjunto constituem um argumento que torna a
dúvida na ressurreição de Cristo impossível à mente esclarecida.
Naturalmente, se alguém está determinado a não crer, nenhuma
quantidade de provas o convencerá. Alguém assim deve ser
deixado à sua própria escolha de erro e de falsidade; mas qualquer
homem que realmente deseja saber a verdade e quiser obedecê-la a
qualquer custo deve aceitar a ressurreição de Cristo como um fato
historicamente comprovado.

311
313

A personalidade
e a divindade do Espírito Santo

R ev. R . A . T o r r e y , D .D .
Ex-deão do Instituto Bíblico de los Angeles
Revisto e editado por Charles L. Feinberg, Th.D., Ph.D.

Uma das doutrinas mais específicas da fé Cristã é a que diz


respeito à personalidade e à divindade do Espírito Santo. Do ponto
de vista da adoração é uma doutrina da mais alta importância. Se
o Espírito Santo é uma Pessoa divina, digno de receber nossa
adoração, nossa fé e nosso amor, e não sabemos ou não admitimos
isso, então estamos privando um ser divino da adoração, amor e
confiança que lhe é devido.

REÜBEN AMCHER TORREY (1856-1928) foi no princípio de sua vida


cristã um crítico partidário da alta crítica. Contudo, durante o ano
em que passou estudando na Alemanha, ele rejeitou essa filosofia
e, mais tarde, tornou-se um dos principais pensadores entre os
Fundamentalistas. Torrey, um pregador poderoso, deixou sua marca
no evangelismo mundial. Entre suas outras realizações, foi supervisor
do Moody Bible Institute, pastor da Moody Memorial Church, da Igreja
das Portas Abertas em Los Angeles e deão do Instituto Bíblico de Los
Angeles (hoje Biola University). Torrey escreveu muitos livros, incluindo
The Real Christ [O Cristo Real] (1920). Is The Bible the Inerrant Word of
God? [A Bíblia é a Palavra lnerrante de Deus?] (1922), e The Power of
Prayer [O Poder da Oração],
Os fundamentos

A doutrina da personalidade do Espírito Santo também é da


mais alta importância do ponto de vista prático. Se pensamos no
Espírito Santo apenas como um poder ou influência impessoal,
então nosso pensamento constantemente será, “Como posso
possuir e me utilizar do Espírito Santo”; mas se pensamos Nele
da maneira como está na Bíblia, ou seja, como uma pessoa divina,
infinitamente sábia, infinitamente santa, infinitamente terna, então
nosso pensamento constantemente será, “Como o Espírito Santo
pode me possuir e me usar?”. A primeira concepção conduz à auto-
exaltação, mas a segunda ao auto-esvaziamento e à auto-renúncia.
Se pensamos no Espírito Santo apenas como um poder divino ou
influência, e em seguida imaginamos que já recebemos o Espírito
Santo, haverá a tentação de sentirmos como se pertencêssemos a
uma ordem superior de cristãos. Mas se pensamos no Espírito Santo
da maneira como a Bíblia requer, ou seja, como um ser divino de
majestade infinita que condescende em habitar em nosso coração e
tomar posse de nossa vida, ele nos colocará no pó e nos fará andar
muito suavemente diante de Deus.
Do ponto de vista experimental, é da mais alta importância que
conheçamos o Espírito Santo como uma pessoa. Muitos podem tes­
tificar a bênção que vem a suas vidas, quando passam a conhecer
o Espírito Santo como um amigo e ajudador divino, vivo e sempre
presente. Há quatro linhas de prova na Bíblia que o Espírito Santo
é uma pessoa.

Características do Espírito Santo


1. Todas as características da personalidade são atribuídas
ao Espírito Santo. Quais são as marcas distintivas da persona­
lidade? Conhecimento, sentimento e vontade. Qualquer ser que
conhece, sente e tem desejo é uma pessoa. Quando se diz que
o Espírito Santo é uma pessoa, alguns entendem que isso quer
dizer que o Espírito Santo possui mãos, pés, olhos e assim por
diante, mas essas são marcas, não da personalidade, mas da cor-
poreidade. Quando dizemos que o Espírito Santo é uma pessoa,
queremos dizer que Ele não é uma mera influência ou poder que
Deus envia para nossa vida, mas é um Ser que conhece, sente e
deseja. Essas três características da personalidade — conheci­
mento sentimento e vontade — são cada vez mais atribuídas ao
Espírito Santo.

314
A personalidade e a divindade do Espírito Santo

Em ICoríntios 2.10,11, conhecimento é atribuído ao Espírito


Santo. Ele não é meramente uma iluminação que vem a nossa
mente, mas é um ser que conhece as coisas profundas de Deus e
nos ensina o que Ele mesmo sabe. A vontade é atribuída ao Espírito
Santo, em ICoríntios 12.11. O Espírito Santo não é uma influência
ou poder, que usamos segundo nossa vontade, mas uma Pessoa
divina que nos usa segundo Sua vontade. Essa é uma verdade de
importância fundamental para nos ajustar em nossa correta relação
com o Espírito Santo. Lemos, em Romanos 8.27, que a qualidade da
mente é atribuída ao Espírito Santo. “Mente” inclui as concepções
de pensamento, sentimento e propósito. Desse modo, a personali­
dade, no sentido mais pleno, é atribuída ao Espírito Santo.
Em Romanos 15.30, o amor é afirmado como um atributo do
Espírito Santo. O Espírito Santo não é um mero poder ou influência
cega e insensível que sobrevêm à nossa vida. O Espírito Santo é uma
pessoa que ama tão ternamente como Deus Pai ou Jesus Cristo, o Filho.
Pensamos diariamente no amor de Deus Pai e de Cristo, o Filho, mas
meditamos muito pouco no amor que devemos ao Espírito Santo. Deve­
mos creditar nossa salvação tão verdadeiramente ao amor do Espírito,
quanto devemos ao amor do Pai e ao do Filho. Novamente, lemos, em
Neemias 9.20, que inteligência e bondade são características do Espírito
Santo. Há aqueles que nos dizem que a personalidade do Espírito Santo
não é encontrada no Antigo Testamento. Embora essa verdade não seja
tão plenamente desenvolvida como no Novo Testamento, não obstante o
conceito básico também está lá. Por fim, Efésios 4.30 atribui tristeza ao
Espírito Santo. Ele é uma pessoa que vem habitar em nosso coração,
observando tudo que fazemos, dizemos e pensamos. Se há algo em ato,
palavra ou pensamento que é impuro, cruel, egoísta ou mal de qualquer
maneira, ele fica profundamente entristecido com isso. Esse pensamen­
to, uma vez compreendido, toma-se um dos motivos mais fortes para
uma vida santa e um caminhar cuidadoso.

Os atos do Espírito
2. A segunda linha de prova na Bíblia sobre a personalidade
do Espírito Santo é que muitos atos, que apenas uma pessoa
pode executar, são atribuídos ao Espírito Santo. ICoríntios 2.20
declara que o Espírito procura as coisas profundas de Deus. Ele
não é simplesmente uma iluminação, mas uma pessoa que busca as
coisas profundas de Deus. Em Apocalipse 2.7, ele é representado

315
Os fundamentos

como uma pessoa que fala; em Gálatas 4.6, há a declaração que Ele
clama. Romanos 8.26 é a prova do ministério de oração do Espírito.
Ele não somente nos ensina a orar, mas ele pessoalmente ora em
nós e por meio de nós. O crente tem Cristo orando por ele à direita
do Pai (Hb 7.25), e o Espírito Santo orando por intermédio dele
aqui (Rm 8.26).
Em João 15.26,27; 14.26; e 16.12-14, o Espírito Santo é apresen­
tado como um mestre da verdade, não apenas uma iluminação que
capacita nossa mente a ver a verdade, mas alguém que nos vem
pessoalmente e nos ensina a verdade. E um privilégio do crente
mais humilde ter esta Pessoa divina como seu mestre diário da
verdade de Deus (ljo 2.20,27). O Espírito Santo é representado,
em Romanos 8.14, como nosso guia pessoal, que nos guia quanto
ao que fazer, tomando-nos pela mão e conduzindo-nos àquela linha
de ação que é agradável a Deus. De Atos 16.6,7; 13.2; e 20.28,
aprendemos que o Espírito Santo toma o controle da vida e conduta
de um servo de Jesus Cristo; Ele é também visto convocando ho­
mens ao trabalho e os designando para o ofício. Muitas vezes, nas
Escrituras, há ações que são atribuídas ao Espírito Santo e que só
uma pessoa poderia executar.

O ofício do Espírito
3. A terceira linha de prova da personalidade do Espírito Santo
é que um ofício é atribuído ao Espírito Santo, algo que somente po­
deria ser visto como o predicado de uma pessoa. Em João 14.16.17,
é-nos dito que ser um Consolador é parte do ofício do Espírito, que
substitui nosso Salvador, enquanto este está ausente. Cristo pro­
meteu que, durante sua ausência, Ele não deixaria seus discípulos
órfãos (Jo 14.18). E possível que Jesus tivesse prometido um outro
Consolador para ficar em Seu lugar, se este outro não fosse uma
pessoa, mas apenas uma influência ou poder, mesmo que benéfico
e divino? Seria concebível que Ele tivesse dito que seria proveitoso
para Si partir (Jo 16.7), se o outro Consolador que estava vindo
substitui-lo fosse apenas uma influência ou poder? Além disso, a
palavra grega Paracleto conota alguém que está constantemente ao
lado, como auxiliador, conselheiro, confortador e amigo. Isso exige
personalidade. Enquanto aguardamos o retorno de Cristo desde o
trono do Pai, temos uma outra Pessoa, sempre ao nosso lado e em
qualquer momento que olhemos para ela, tão divina quanto Jesus

316
A personalidade e a divindade do Espírito Santo

Cristo, tão sábia, tão forte, tão capacitada para ajudar, tão amável e
sempre pronta para nos aconselhar, nos ensinar e nos dar a vitória
e ter todo o controle de nossa vida.
Essa é uma das concepções mais reconfortantes do Novo Tes­
tamento, para esta dispensação. E uma cura para a solidão. É uma
cura para corações partidos, separados dos entes amados. E uma
cura para o temor da escuridão e do perigo. Mas é por estar a nosso
serviço por Cristo que essa concepção do Espírito Santo nos é de
enorme proveito. Não precisamos ser privados de alegria e liber­
dade em nosso serviço devido ao temor que pode impedir nossos
esforços. Só precisamos nos lembrar que a responsabilidade não
está realmente sobre nós, mas sobre um outro, o Espírito Santo, e
Ele sabe o que deve ser feito e o que deve ser dito. Se lhe é permi­
tido fazer a obra, para a qual Ele é tão perfeitamente competente,
nossos temores e cuidados desaparecerão.

Tratamento do Espírito Santo


4. A quarta linha de prova da personalidade do Espírito Santo
é que o tratamento atribuído ao Espírito Santo só poderia ser
atribuído a uma pessoa. O Espírito Santo pode ser confrontado,
resistido e entristecido, de acordo com Isaías 63.10. Não é
possível se rebelar contra uma influência ou poder. Só é possível
se rebelar contra e entristecer uma pessoa. Só é possível tratar
uma pessoa com insolência, e isso ê afirmado com referência ao
Espírito Santo (Hb 10.29). Ananias e Safira mentiram ao Espírito
Santo (At 5-3). Não é possível mentir a uma influência ou poder
cego e impessoal, mas só a uma pessoa. Mateus 12.31,32 declara
que o Espírito Santo pode ser blasfemado. E impossível blasfemar
contra uma influência ou poder; somente uma pessoa pode ser
blasfemada, e, por sinal, apenas uma Pessoa divina. E-nos dito
ainda que a blasfêmia contra o Espírito Santo é um pecado mais
sério, até mesmo, do que contra o próprio Filho do homem. O que
poderia deixar mais claro que o Espírito Santo é uma pessoa, e
uma Pessoa divina?

Conclusão
Para concluir, o Espírito Santo é uma pessoa. As Escrituras colo­
cam esse plano além de qualquer dúvida para qualquer um que, de
boa vontade, vá às Escrituras para descobrir o que elas realmente

317
Os fundamentos

ensinam. Estamos andando em cônscia comunhão com Ele? Admi­


timos ou reconhecemos que Ele está constantemente habitando em
nós? Conhecemos a comunhão com o Espírito Santo (2Co 13.14)?
Aqui está o segredo de uma vida cristã de liberdade, alegria, poder
e plenitude. O verdadeiro viver cristão é ter alguém como um
amigo sempre presente, estar cônscio de que se tem alguém como
o amigo sempre presente, o Espírito Santo, e entregar a vida em
todos os seus departamentos inteiramente ao seu controle.

318
319

O Espírito Santo
e os filhos de Deus

Rev. W. J. E rdm an, D.D.


Germantown, Pennsilvania
Revisado e editado por Charles L. Feinberg Th.D., Ph.D.

Fica evidente, por meio de muitos escritos sobre o batismo do


Espírito Santo, que não foi dada a devida importância à caracterís­
tica peculiar do dom de Pentecostes em sua relação com a filiação
dos crentes. Antes de entrarmos na consideração desse assunto,
podemos fazer algumas breves observações com respeito ao
Espírito Santo e sua relação com o povo de Deus nas dispensações
e tempos que precederam o dia do Pentecostes.
1. O Espírito Santo é uma outra Pessoa da Trindade, contudo, não
um Ser distinto. Como Ser pessoal, são-lhe atribuídos nomes,
afeições, palavras e ações, intercambiáveis com os de Deus.
Seus atos e procedimentos não são os de um meio ou influência
impessoal, mas de uma pessoa, de Alguém que, na natureza do

W. J. ERDMAN (1833-1923) foi o segundo pastor da Moody Church, em


Chicago. Seu filho, Charles R. Erdman (1876-1878), um pastor refinado
e autor por direito próprio, considerava seu pai “um dos estudiosos mais
piedosos, diligentes e influentes da Bíblia moderna”. A influência de
Erdman tam bém pode ser percebida por seu interesse na Conferência
Bíblica de Niagara, a precursora das conferências Bíblicas feitas por
toda a América.
Os fundamentos

caso, não pode ser menos do que Deus em sabedoria, amor e po­
der, assim como é um com o Pai e com o Filho. Ele, na verdade,
é uma outra Pessoa, mas não um Ser distinto.
2. A vida espiritual e divina do povo de Deus é do mesmo tipo em
cada era e dispensação, mas a relação com Deus, na qual a vida
foi desenvolvida desde a antiguidade, era diferente desta que hoje
existe entre os crentes, que são filhos, e Deus Pai. O Espírito Santo
agiu de acordo com esta relação. Ele era, desde a antiguidade o
autor e sustentador de toda vida e poder espiritual em homens e
mulheres justos de eras passadas, em patriarcas e amigos de Deus,
em israelitas, os menores e os servos, em reis piedosos e salmistas
adoradores, em sacerdotes consagrados e profetas fiéis. Qualquer
que seja a verdade que foi revelada, ele se empenhou em desenvol­
ver a vida divina, da qual ele participa. Desde o início, ele se utilizou
da promessa e do preceito, da lei e do tipo, do salmo e do ritual para
instruir, estimular, convencer, ensinar, guiar, escoltar, confortar e
promover o desenvolvimento e estabelecimento do povo de Deus.
Quando, por fim, toda justiça e virtude sagrada se manifestou em
Cristo, então o molde e a imagem da vida espiritual dos santos da
antiga aliança foram aperfeiçoados e completados. De forma divina
e humana, na auto negação e na plena rendição à vontade de seu Pai,
no ódio ao pecado e na graça aos pecadores, na pureza de coração e
perdão das ofensas, na gentileza e condescendência, no descanso do
serviço incessante, na unidade de propósito e obediência sem falta
— em uma palavra, em toda excelência e graça, em toda virtude
e beleza do Espírito, na luz e no amor, o Senhor Jesus apresenta o
molde e a essência da vida espiritual, divina e eterna.
3. A redenção precede a filiação e o dom do Espírito. E possível
ver essa proposição claramente no argumento de Paulo, em
Gálatas 4.4.6. A palavra “adoração” significa o ato de colocar no
estado e na relação de um filho (Rm 9.4 e Ef 1.5). Nos escritos de
João, os crentes jamais são chamados de filhos, mas “filhinhos”
(“nascidos”) uma palavra que indica natureza, afinidade. A filia­
ção não se relaciona com a natureza, mas à posição legal; ela não
está associada à regeneração, mas à redenção. Em Pentecostes,
foi nos discípulos redimidos que Espírito de Deus foi derramado,
não para fazer filhos crentes, mas porque eles tinham se tornado
filhos por meio da redenção. Em suma, a filiação, ainda que,
desde a redenção, seja inseparável da justificação, faz com que
na ordem da salvação a justificação tenha sucesso.

320
O Espírito Santo e os filhos de Deus

A nova dignidade da filiação foi conferida por meio da redenção,


o novo nome “filhos” lhes foi dado como um novo nome “Pai” lhe
foi declarado. Um novo nome foi dado ã vida nessa nova relação,
“a vida eterna”, e um novo nome, “Espírito de seu Filho”, foi dado
ao Espírito Santo, que daí em diante sustentaria e desenvolveria
essa vida, assim como iluminaria e guiaria os crentes em todos os
privilégios e deveres dos filhos de Deus.
Estes fatos, portanto, são todos relacionados uns aos outros e
dependentes uns dos outros. Jesus Cristo deve, primeiramente,
por a base do perdão dos pecados passados e futuros em sua obra
de redenção e reconciliação; como foi ressurrecto e glorificado e
como isso nunca acontecera antes, Ele é o “primogênito de toda
criação” (Cl 1.15), a cuja imagem eles são predestinados a se con­
formar. Como o Filho, Ele declarou-lhes o nome de Deus como Pai,
o nome de Deus coroado que corresponde ao mais alto título deles,
filhos de Deus. Como seus irmãos, no sentido mais alto e singular,
Ele não os chamou a não ser depois de sofrer, morrer e ressuscitar
dos mortos, contudo, esse nome foi a primeira palavra que Ele lhes
falou na manhã da ressurreição, como se fosse a alegria principal
de Sua alma poder saúda-los e chamá-los de seus irmãos, e filhos
de Deus, sendo Nele e com Ele “filhos da ressurreição” (Lc 20.36).
Porque eles eram filhos, o Pai, por intermédio do Filho, apresenta
o Espírito de Seu Filho ao coração clamando, “Abba, Pai!”. Essa é
a maravilhosa dignidade de uma filiação na glória, como aquela de
nosso Senhor Jesus, com todas as bênçãos e privilégios, serviços
e recompensas, sofrimentos e glórias, para os quais o dom do
Espírito Santo está relacionado na presente dispensação.
De acordo com isso, quando os discípulos foram batizados com o
Espírito no dia de Pentecostes, eles não foram apenas dotados com
o poder de ministrar, mas eles também entraram na experiência
da filiação. Portanto, eles ficaram conhecendo, como não poderiam
ter conhecido antes, embora o livro de Atos dos apóstolos relate
apenas um pouco de suas vidas internas que, por meio do Espírito
que desce do céu, os filhos de Deus estão para sempre unidos ao
que sobe aos céus, o Filho de Deus glorificado. Se eles, logo de
início, compreenderam completamente essa realidade, ou não,
o fato é que eles estavam Nele e Ele neles. Jesus foi gerado pelo
Espírito, e eles também. Ele não era deste mundo em relação a Sua
origem e a Sua natureza, nem eles. Ele era amado pelo Pai, assim
também eles, e com o mesmo amor; Ele foi santificado e enviado

321
Os fundamentos

ao mundo para dar testemunho da verdade, do mesmo modo Ele os


enviou. Ele recebeu o Espírito como o selo de Deus à sua Filiação,
assim também foram eles selados; Ele foi expiado com poder e luz
para servir, assim eles receberam sua unção. Ele começou a servir
quando veio o Espírito, que certifica, e a palavra do Pai, que confir­
ma, assim também eles começaram a servir quando o Espírito do
Filho, a Testemunha, foi enviado a seus corações, clamando, “Abba,
Pai!”. Ele foi, depois de servir e sofrer, recebido em glória, assim
eles deverão obter Sua glória quando Ele vier novamente para
recebê-los para si mesmo. Na verdade, “segundo ele é, também nós
somos como neste mundo” ( ljo 4.17).
4. Todos os dons para os crentes em Cristo estavam contidos
no dom do Espírito Santo no dia de Pentecostes e se relacio­
naram a eles como filhos de Deus, tanto individual quanto
corporalmente como a Igreja, o corpo de Cristo. Em tese,
como se pode ver na comparação, não havia diferença em seus
dons e atos antes e depois deste dia, mas o novo dom agora
habitaria nos corações dos homens como filhos de Deus, e
com vida mais abundante e manifestações variadas de poder
e de sabedoria. Mas, pelo Espírito, o único corpo foi formado,
e todos os dons são devidos a sua presença perpétua (ICo
12.14). João 7.37-39 é um exemplo dos dizeres antecipadores
de nosso Senhor, que não se tornariam efetivos enquanto ele
não morresse e ressuscitasse.
Algo significativo é que, após o Pentecostes, somente as pala­
vras “cheios do Espírito” foram usadas. Nada se diz do recebimento
individual de um novo “batismo do espírito”. Isto implica que o
batismo é um para todo o corpo, até que todos os membros sejam
incorporados; um é o derramamento, e muitos os preenchidos;
uma é a fonte, muitos os corações a beber, para ter de uma vez por
todas a fonte de água que jorra dentro deles.
Na verdade, os discípulos foram dotados de poder para servir
de acordo com a promessa; sobre esses fatos, em especial, seus
olhos e corações foram fixados. Essa era a coisa principal para
eles; no entanto, à luz das últimas passagens da Bíblia, vê-se que a
coisa principal com Deus não era apenas atestar a glória de Jesus
pelo dom do Espírito, mas também em um Espírito para batizar
em um corpo os filhos de Deus, que até então eram considerados
os que estavam espalhados no estrangeiro, como membros não

322
O Espírito Santo e os filhos de Deus

incorporados (ICo 12.13; Jo 11.52; Gl.3.27,28). E o dom, se para


o corpo ou para o membro individual, é um para todos. Como o
cristão está definitivamente em Cristo, assim o Espírito Santo está
definitivamente no cristão; mas o propósito da presença do Espírito
é, muitas vezes, apenas debilmente compreendida pelo crente,
assim como seu conhecimento do que significa estar em Cristo é
muito incompleto e impreciso.
5. O Espírito Santo é dado de uma vez por todas na remissão dos
pecados para aqueles que crêem em Cristo Jesus como seu
Salvador e Senhor. E, portanto, preciso ser observado que,
como o Espírito age de acordo com a verdade conhecida ou
crida ou obedecida, um intervalo não espiritual ou infrutífero
pode vir entre a remissão dos pecados e a clara manifestação
do Espírito, quer em relação à santidade da vida, quer em re­
lação ao poder para o serviço, quer em relação à paciência nos
julgamentos. Certamente, é o ideal divino de uma vida santa,
que a presença do Espírito deva se tornar manifesto de uma
vez no perdão dos pecados, e continuar a aumentar em luz e
poder até o fim (Rm 5.1-5). Esse constante progresso até o dia
perfeito foi e é a verdade de muitos, que desde a infância ou
desde o dia da conversão, no caso dos adultos, foram guiados
continuamente pelo Espírito e jamais enfrentaram uma grave
crise. Com outros, não se dá o mesmo, porque a confissão
de um grande número de homens e mulheres, eminente
posteriormente para a santidade, em que a vida de antes de
tal crise não foi digna do nome de vida cristã. Apenas um ato
definitivo de dedicação à plena vontade de Deus é que explica
a mudança.
Sua experiência pode ser apresentada da seguinte maneira. A
plena verdade da filiação e salvação dos crentes não pode ter sido
ensinada a eles em sua primeira manifestação de fé; a vida pode ter
começado sob o jugo de escravidão legal. A liberdade do acesso
filial pode ter sido posta em dúvida, ainda que seus corações muitas
vezes ardessem graças à presença do Espírito desconhecido. Des­
se modo, anos ineficazes e exaustivos se passaram, seguidos de
pouco desenvolvimento na graça ou serviço frutífero ou resignação
paciente, até que, de vários modos, um ponto tenha sido alcançado,
quando, por fim, por intermédio da dedicação do coração, o Espírito
Santo torna-se manifesto na plenitude de seu amor e poder. Não é

323
Os fundamentos

possível provar que há com Deus um intervalo entre justificação e a


concessão do Espírito (um intervalo que certas teorias disputam).
A experiência insatisfatória do cristão ignorante ou desobediente
pode levá-lo a pensar que ele jamais teve o Espírito.
Existem, no entanto, certos intervalos relatados no Novo Tes­
tamento que precisam ser considerados. Um entre a ascensão
e o Pentecostes era para uma preparação singular por meio da
oração e espera pelo Senhor. O dia de Pentecostes foi, sem dú­
vida, no caso dos convertidos, para a confirmação da autoridade
apostólica; o dos samaritanos, quando Filipe pregou, pode ser
explicado pela lembrança do feudo religioso entre judeus e sa­
maritanos, que, agora, precisaria ser resolvido para sempre, e a
unidade da igreja estabelecida. Com respeito a Paulo, é evidente,
pela narrativa, que ele não sabia da plena importância do apareci­
mento de Jesus até que Ananias chegou (At 9.10-19). Contudo, o
caso de Cornélio prova que absolutamente não precisava existir
nenhum intervalo, porque no momento em que Pedro disse essa
palavra, recebida com fé por Cornélio e por todos presentes ali,
o Espírito Santo, que conhecia o coração deles, caiu sobre eles.
Nem o exemplo do remanescente dos discípulos de João Batista,
doze deles, em Efeso, prova que tal intervalo é hoje necessário;
porque eles nem mesmo ouviram que Jesus tinha vindo, e que a
redenção havia sido realizada, e o Espírito concedido. Mas, tão
logo a remissão dos pecados no nome de Jesus lhes foi pregada,
eles passaram a crer, foram batizados, e por meio da oração e
da imposição de mãos receberam o Espírito Santo (At 19.1-6).
A questão que Paulo endereçou a eles tem sido estranhamente
aplicada nestes dias a cristãos, embora pertinente apenas a es­
ses discípulos de João. Endereçá-la a cristãos hoje é negar uma
redenção acabada, a filiação de crentes, e o derramar de uma vez
por todas do Espírito Santo.
6. As condições da manifestação da presença e do poder do Espírito
são as mesmas na conversão, ou depois dela, a experiência pro­
funda do crente, quer em relação ao conhecimento mais pleno
de Cristo, quer para o serviço mais efetivo, quer em relação à
duração mais paciente dos julgamentos, quer em relação ao cres­
cimento da semelhança com Cristo. A experiência, em cada um
dos casos, está no mesmo molde: cada palavra ou fato de Cristo
deve ser recebido com a mesma atitude e condição de espírito

324
O Espírito Santo e os filhos de Deus

como da primeira vez, quando ele foi visto como o sustentador


de nossos pecados, isto é, apenas pela fé. Do modo negativo,
pode-se dizer que as condições são a fragilidade confessa e
a incapacidade de ajudar a si próprio, portanto a prontidão de
olhar apenas para Deus para obter ajuda.
As Escrituras não ensinam, como certas teorias implicam ou
expressam, que há um intervalo entre a remissão de pecados e
o selar do Espírito, e que os crentes justificados podem morrer
durante tal intervalo jamais sendo selados e, assim, jamais terem
estado em Cristo e jamais terem sido atestados como filhos de
Deus. Tal crença contradiz a própria graça de Deus e implica que a
filiação depende do dom do Espírito, e não da redenção e remissão
de pecados (G1 4.5). Dá-se também que esses justificados vazios
do Espírito não são de Cristo (Rm 8.9; ICo 12.3). Quanto à prova
da presença do Espírito, quaisquer que sejam as emoções que
podem estar presentes na descoberta do amor e poder de Deus no
caso de alguns, eles não devem ser os testes e medidas de todos.
As conversões não são iguais, nem as manifestações do Espírito.
Mais que tudo, a prova se vê no desenvolvimento da santidade, na
auto negação por amor de Cristo, na multiplicação das graças e na
manifestação do fruto do Espírito.
De modo positivo, os requerimentos ou acompanhamentos
inseparáveis da manifestação do habitar do Espírito, seja para o
viver santo, seja ao serviço fiel, deve ser tirada do exemplo de nosso
Senhor Jesus Cristo. E elas são a oração, a obediência, a fé e, acima
de tudo, um desejo e propósito de glorificar a Cristo. Tudo, na
verdade, pode ser sumarizado em uma condição, e esta é permitir
a Deus ter Sua própria vontade e seguir Seu caminho conosco. Se
Cristo é verdadeiramente a sabedoria de Deus para a salvação,
só o Espírito Santo pode demonstrá-lo às mentes e corações dos
homens; e Ele não tem missão no mundo separado de Cristo e de
Sua obra de redenção. A obra externa de Cristo e a obra interna do
Espírito andam juntas. A obra de Cristo por nós é por intermédio do
sangue, a obra do Espírito em nós é por intermédio da verdade. O
último repousa sobre o primeiro; e sem o Espírito, substitutos para
o Espírito e Sua obra serão acompanhados pelos substitutos para
Cristo e Sua obra. A importância, portanto, da presença e obra do
Espírito Santo deve ser avaliada de acordo com aquela palavra, de
amplo alcance, de Cristo, “Ele me glorificará” (Jo 16.13-15).

325
Os fundamentos

7. Concluindo, a soma de toda Sua missão é aperfeiçoar nos santos


a boa obra que Ele começou, e Ele amolda isso de acordo com
a realidade da alta e santa filiação. Ele estabelece os santos
em Cristo e por Ele (2Co 1.21). De acordo com essa realidade,
suas vidas participam dos pensamentos e desejos, esperanças e
objetos, espirituais e celestiais. Os nascidos de Deus, por saber
de onde vêem e para onde vão, vivem em um mundo não feito de
carne e sangue. A vida deles está oculta com Cristo em Deus;
a obra de fé deles é forjada na habitação invisível do Espírito; a
obra de amar é incentivada pela obediência leal a seu Senhor,
que está ausente em um país distante, ao qual tanto Ele quanto
eles pertencem. Os sofrimentos não são deles, mas Seu, que do
céu pode perguntar, “Por que me persegues?”. O culto deles é o
do Pai, em espírito e em verdade, diante do trono de misericór­
dia; a paz deles é a paz de Deus, que não pode ser perturbada por
qualquer temor de que as eras eternas possam acabar. A alegria
é a alegria no Senhor, cuja fonte está em Deus, que fica cada vez
mais profunda em seu fluxo perpétuo; a esperança é a vinda do
Filho do Deus do céu e a visão do Rei em Sua beleza no meio dos
esplendores inefáveis da casa de Seu Pai. E por todo o caminho,
espinhos e flores, pelo qual eles viajam para o país celestial, é o
bom Espírito quem os guia.

326
327

29 O cristianismo não é fábula

R e v . T hom as W h it e la w , M.A., D.D.


Ministro Presbiteriano, Kilmarnock, Escócia
Editado por Arnold D. Ehlert, Th.D.

Sua suprema excelência


primeira marca da veracidade do cristianismo deve ser
encontrada em sua suprema excelência como um sistema religioso.
A beleza inacessível e encanto irresistível de sua concepção, e o
caráter único dos meios pelos quais ele conclui seus objetivos, não
são reconciliáveis com a noção de fábulas.
Se, portanto, apesar disso, o cristianismo é uma fábula, então é a
fábula mais divina que a linguagem humana jamais pôde expressar.
Nada semelhante pode ser encontrado na literatura mundial. Paulo
falou a verdade sem rodeios quando declarou que “nem olhos viram,
nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o
que Deus” revelou aos homens no evangelho (ICo 2.9).

THOMAS WHITELAW (1840-1917) foi ordenado em 1864, após receber


educação formal no United Presbyterian H all, em Edimburgo, Escócia.
Trabalhou como pastor e administrador tanto em Igrejas Presbiterianas
quanto na Igreja Livre CInida. Seus comentários incluem estudos sobre
Gênesis e Atos dos apóstolos. Ele tam bém escreveu sobre a divindade
de Cristo.
Os fundamentos

a) Não é de origem humana


1. A própria concepção do evangelho como um plano para resgatar
um mundo perdido na culpa e no poder do pecado, com o intuito
de transformar os homens em servos da justiça, seguidores
de Cristo e filhos de Deus, à Sua semelhança, participando de
sua natureza e, por fim, os elevando a um estado de imortali­
dade santa e abençoada como aquela na qual Ele mesmo habita
— esta concepção jamais surgiu da ação intelectual de um
enganador e, menos ainda, da ação de um corpo sacerdotal ou
de um embusteiro político — não, nem mesmo na imaginação
do melhor e mais brilhante pensador, poeta, profeta ou filósofo
que já viveu. Os homens não escrevem romances e compõem
ficção para redimir seus companheiros da culpa e do pecado,
para consolá-los e apóia-los na morte e para prepará-los para a
imortalidade. Mesmo aqueles que admitem o cristianismo como
uma religião baseada em enganos e decepções, não afirmam
que o objeto de seus instrutores era algo tão elevado e espiritual,
mas que seus produtores procuram enriquecer a si mesmos por
meio dessa imposição a seus companheiros crédulos, tornando-
os cegos à verdade, ao apresentar-lhes ficções como se fossem
fatos, amedrontando-os com terrores fantasmagóricos e, assim,
garantindo seus serviços ou seus meios. Uma das reivindicações
da especulação alemã foi que o cristianismo foi produzido em
Roma, no tempo de Trajano, i.e., por volta do início do segundo
século, para ajudar em um grande movimento de libertação do
proletariado judeu contra seus senhores tiranos, e que, de fato,
refere-se a uma combinação imaginária do socialismo romano,
da filosofia grega e do messianismo judaico. Nenhum destes,
no entanto, é o relato fornecido pelo cristianismo em seus
documentos quanto a seu objetivo, que, como já declarado, é o
de livrar os homens do pecado e da morte. A própria grandeza
desse objetivo prova que o cristianismo não emanou da mente
humana, mas que deve ter procedido do coração de Deus. E, se­
guramente, pode-se afirmar que a Sabedoria e o Amor Infinitos
não utilizam fábulas e decepções, lendas e ficções para chegar a
Seus propósitos e realizar Seus objetivos.
2. Se, além disso, os detalhes do plano cristão forem levados em
consideração, quer dizer, os meios particulares pelos quais
ele propõe efetuar seus objetos, será preferível que a idéia de

328
O cristianismo não é fábula

ficção e fábula seja posta de lado e que a realidade e a verdade


sejam postas em seu lugar. Não será necessário questionar de
modo sério os detalhes do plano cristão, que são em essência e
brevemente: (1) que Deus, em infinito amor e por pura graça,
propôs proporcionar salvação para a raça do homem decaído
desde a eternidade; (2) que para cumprir esse propósito, Ele
enviou Seu próprio Filho, unigênito e muito amado, o brilho de
Sua glória e a imagem expressa de Sua Pessoa, para este mundo,
à semelhança de carne pecaminosa, para morrer por homens pe­
cadores, satisfazendo, assim, a justiça de Deus, ressuscitar dos
mortos, mostrando, desse modo, que Deus aceitou o sacrifício e
poderia, com base nisso, ser justo e o justificador do ímpio, como
também trazer vida e imortalidade à luz; e (3) que, baseado nessa
expiação, a obra de salvação é oferecida a todos sob a condição
única da fé. Assim, será que, por um momento apenas, é possível
crer que embusteiros e enganadores poderiam e puderam ter
inventado um conto tão divino? Todas as experiências afirmam
o contrário.
Onde quer que os homens tenham tentado construir planos de
salvação, eles não buscaram a origem desses planos em Deus, mas
em si mesmos. Os esquemas humanos sempre foram planos pelos
quais é possível salvar a si mesmo, com salvação que supunham
necessitar — nem sempre uma salvação do pecado e da morte,
mas, mais freqüentemente, uma salvação da pobreza material, do
desconforto corporal, da ignorância mental; em geral, necessida­
des temporais. Nem jamais sonharam uma salvação que deveria
lhes sobrevir por meio da mediação de um outro, e com certeza não
do próprio Deus na Pessoa de seu Filho; mas sempre de uma salva­
ção por meio de seus próprios esforços. Jamais uma salvação pela
graça por meio da fé e, portanto, livre; mas sempre uma salvação
pelas obras e por meio do mérito, portanto, como um débito — uma
salvação de formas exteriores e de ritos mágicos, ou pela educação
e cultura.
b) Quem o iriüentou?
3. Em seguida pode ser acrescentado: Se o plano cristão é uma
fábula, quem inventou a idéia de uma encarnação? Porque para
a concepção judaica de qualquer época essa idéia era estranha,
proibida por seu forte monoteísmo. Quem apresentaria o quadro

329
Os fundamentos

de Jesus como aparece nos evangelhos? Quem concebeu a noção


de fazê-Lo um homem sem pecado, cujo tão grande êxito levas­
se todas as gerações subseqüentes de adoradores, com algumas
exceções evidentemente, a admitir que Ele não tinha pecado?
Ainda assim, jamais se viu um homem sem pecado antes, nem
se viu um desde Sua aparição. Quem dotou este Jesus com poder
sobre-humano, que executou obras possíveis somente a Deus,
e com sabedoria sobre-humana que saiu de seus lábios, se tal
sabedoria jamais foi falada, mas apenas imaginada? E universal­
mente admitido que o poder e a sabedoria de Jesus jamais foram
superados ou sequer igualados. Que gênio foi tão ousado para
manifestar a noção não apenas de fazer expiação pelo pecado,
mas de fazer isso por intermédio de Cristo, que dá sua vida em
favor de muitos, demonstrando a realidade dessa expiação me­
diante sua ressurreição? No início, essas concepções eram tão
incríveis a seus seguidores, como também foram inaceitáveis ao
homem natural, visto que é difícil crer em algum enganador que
os teria escolhido para sua obra, mesmo que eles tivessem ido
ao seu encontro. E quem sugeriu a doutrina de uma dupla res­
surreição no final dos tempos? — uma doutrina a qual a ciência
humana não auxilia ou a filosofia jamais foi capaz de atingir.
Aquele que considera essas coisas de modo imparcial deve
perceber que, em todos esses temas, não estamos tratando com
pensamentos puramente humanos, mas com pensamentos que são
divinos e que é inútil falar deles como fatos fabulosos ou irreais.
“Deus não é homem, para que minta” (Nm 23.19). Ele não é ne­
nhum tirano para que procure oprimir os homens, nem um falso
sacerdote para que queira enganar os homens, nem um escritor de
romances que estuda para divertir os homens, mas um Pai, que é
a Luz, em Quem não há nenhuma escuridão, cujo maior interesse
está em salvar os homens e cujas palavras são como Ele, o mesmo
ontem, hoje e eternamente.

Sua adaptação perfeita


A segunda marca da veracidade no plano cristão está em sua
perfeita adaptação ao fim para o qual ele foi designado.
1. Assumamos, por enquanto, que o sistema cristão é inteiramente
um produto da mente humana, ou uma pura fabricação. Portanto,
a questão a ser considerada é, se é completamente possível que

330
O cristianismo não é fábula

ele respondesse perfeitamente ao fim para o qual foi intenciona­


do. Se este fim foi de enganar os homens, para os escravizar e os
degradar, então seus inventores realmente os iludiram; porque
assim que um homem aceita o cristianismo, mas depois se ele
descobrir que é enganado por isso, essa é uma abençoada decep­
ção que torna impossível mantê-lo em sujeição ou degradação,
visto que ele ilumina seu entendimento, purifica seu coração,
limpa sua imaginação, estimula sua consciência, fortalece sua
vontade e enobrece toda sua natureza. “Conhecereis a verdade,
e a verdade vos libertará”, disse Cristo. Por outro lado, se seu fim
foi fazer isto mesmo, então, sem dúvida, esse fim foi alcançado;
contudo, o mero fato de que foi alcançado, mostra que o plano
não é proveniente da mente humana, uma obra de ficção, mas
vem do coração de Deus, como a Escritura da verdade.
2. Se há uma característica, mais saliente do que todas as outras,
da obra humana, esta é a imperfeição. Por mais magníficas que
algumas das invenções humanas possam ser, poucas delas são
absolutamente livres de defeitos, e aquelas que são as mais
livres dessas imperfeições foram trazidas a seu presente estado
de excelência apenas por meio de lentos e curtos estágios e após
repetidas modificações e aprimoramentos — dão testemunhos
disso a imprensa, o motor à explosão, a telegrafia, a força e a
luz elétrica, os instrumentos musicais, aeronaves, etc. E, por
mais perfeito que qualquer invenção humana possa parecer ser
atualmente, não há garantia de que, no futuro, não será superada
por algo melhor adaptado ao fim que tem em vista.
O caso, no entanto, é diferente com as obras de Deus, que como
Ele mesmo, são todas perfeitas: e caso se fizesse um exame seria
possível perceber que o sistema cristão é perfeitamente adaptado
ao fim que tem em vista, a saber, a salvação, e jamais precisou ser
modificado, mudado ou aprimorado, então a inferência será inevi­
tável: a obra é de Deus, e não do homem, ou seja, a conseqüência
é que não é uma ficção; mas um fato; não é uma fábula, mas a
verdade.
Estou consciente de que no presente momento existem aqueles
que declaram que o cristianismo é uma representação, que serviu a
seu tempo, mas ele perdeu sua posição na mente dos homens, assim
como necessitará de dar lugar para outra panacéia que venha curar
as enfermidades da vida. Mas para a maior parte desses, isso é o

331
Os fundamentos

clamor daqueles que não provaram o cristianismo e, dificilmente,


entenderão o que ele significa. E, em qualquer caso, nenhum subs­
tituto efetivo para o cristianismo jamais foi apresentado por seus
oponentes ou pelos críticos. Nem qualquer tentativa de modificar
ou oprimir o cristianismo como um sistema de doutrina religiosa
jamais foi bem sucedida. Talvez, um dos esforços mais vigorosos
nessa direção foi a chamada teologia (aliás racionalista) liberal que
procura despojar o cristianismo de todos seus elementos sobrena­
turais e, em particular, de seu Jesus divino-humano, reduzindo-o
às dimensões de um homem comum — nesse caso, obviamente,
a superestatura do cristianismo como um todo cairia no chão.
Mesmo um colaborador do Hibbert Journal (Jan. 1910), que não
aceita o cristianismo ortodoxo, escreve acerca do “colapso do
cristianismo liberal” e confessa francamente que “o Jesus simples
do cristianismo liberal não pode ser encontrado”, o que significa
um reconhecimento de que o quadro de Jesus como um Homem
Divino, encontrado nos evangelhos, um Cristo sobrenatural, não é
ficção, mas uma verdade sublime.
3. Um exame detalhado do plano cristão mostra que os meios
mais adequados para assegurar seus fins não poderia ter sido
inventado.
a. Não se deve negar que parte do objetivo do cristianismo
é restaurar a humanidade em geral, e os indivíduos em
particular, ao favor e à comunhão de Deus, sem o que eles
são afastados devido ao pecado. Se a Bíblia está certa em
sua explicação da origem do pecado, não nos é necessário
argumentar por hora. A observação comum, assim como a
consciência individual, testifica quanto ao fato do pecado; e o
cristianismo propõe solucionar a condição desastrosa da raça
induzida pelo pecado — não por dizer aos homens que o pe­
cado é apenas uma invenção da imaginação (que os homens
mais conhecem do que crêem); ou, que é um assunto tão in­
significante que Deus o negligenciará (o que os homens, em
seus melhores momentos, duvidam); e certamente não por
pedir aos homens para salvar a si mesmos (que eles logo des­
cobrem que não podem); mas por, primeiramente, apresentar
o pecado em toda sua moral de caráter repugnante e culpabi­
lidade legal e, a seguir, anunciar que Deus providenciou um
cordeiro para uma oferta queimada, seu próprio Filho, sobre

332
O cristianismo não é fábula

quem Ele colocou a iniqüidade de todos nós, e que agora Ele,


em Cristo, está reconciliando o mundo para Si mesmo, não
imputando aos homens suas transgressões.
b. Uma segunda coisa proposta pelo cristianismo é tornar
os homens santos, libertá-los do amor e da prática do pecado
para confortá-los no amor e na prática da verdade e justiça; e
Ele procura fazer isso dando ao homem um coração novo e
um espírito justo, mudando sua natureza, implantando nele
princípios santos e colocando-o sob o governo do espírito
divino e eterno.
A experiência dos dezenove séculos passados tem provado que
os meios são adequados, nos quais milhões de almas humanas fo­
ram transladadas da escuridão para a luz e transferidas do serviço
de Satanás para o serviço do Deus Vivo. E mais, outros métodos
têm sido provados sem causar qualquer transformação permanente
quer de corações quer de vidas. Encantamentos mágicos, murmú­
rios sem significados, cerimônias trabalhosas, penitências doloro­
sas, legislações, educação, filantropia, tudo tem sido um recurso,
mas em vão. Jamais, em tempo algum, o método do evangelho foi
seriamente experimentado e provado ser ineficiente.
c. Uma terceira coisa que o cristianismo se propõe a fazer
é conferir àqueles que o aceitam uma abençoada imortalida­
de — apoiá-los, quando chegar sua morte; consolá-los com
o prospecto de uma existência feliz, enquanto seus corpos
estão nos túmulos; trazer estes mesmos corpos de volta, e no
final dotá-los de uma gloriosa vida sem fim em um novo céu e
uma nova terra, onde habitará a justiça. E o cristianismo faz
isto principalmente para assegurar a seus adeptos um título à
vida eterna por meio da obediência à morte de Cristo, fazendo
com que eles encontrem a herança por intermédio da habi­
tação Espírito de Cristo neles e da operação deste Espírito
em seus seres, o qual lhes abre os portões da imortalidade
mediante a ressurreição de Cristo e, finalmente, pela vinda de
Cristo para eles no final dos tempos.
Pode-se pensar em alguma coisa que seja um plano de salvação
mais completo do que esse? Há algo nele que não seja exatamente
adequado e que precise ser substituído ou ajustado para sua finali­
dade? Isso está longe de acontecer, pois um único pino sequer pode
ser removido do edifício sem trazer abaixo toda a superestrutura.

333
Os fundamentos

Tire do cristianismo a encarnação, ou a expiação, ou a ressurrei­


ção, ou a exaltação, ou a vinda futura e seu conjunto é destruído.
Retire-se o perdão, ou a pureza, ou a paz, ou a filiação, ou o céu,
e seu valor como sistema religioso se acaba. Contudo, essas não
são afirmações que sustentam as fábulas e as ficções, os mitos e
as lendas, que podem ser adulterados, em que partes podem ser
tiradas ou acrescidas, sem pôr em perigo seu valor. Por isso, é fácil
afirmar que um esquema tão admiravelmente ajustado em todas
as suas partes, tão completo em suas provisões e tão incrivelmente
adaptado a seu projeto, só pudesse ter emanado da mente daquele
que é maravilhoso no conselho e excelente na obra, que é o verda­
deiro Deus e a Vida Eterna.

Seu êxito conspícuo


Uma terceira marca da veracidade do sistema cristão é seu êxito
conspícuo em efetuar a finalidade para a qual ele foi designado.
Se o cristianismo fosse uma imaginação sem fundamento, ou
uma lenda supersticiosa, haveria razão para se supor que ele teria
sobrevivido tanto tempo ou que teria reconhecido as maravilhas
que foram feitas durante os últimos dezenove séculos — quer sobre
indivíduos, quer sobre o mundo em geral? E verdade que a simples
duração do tempo, na qual uma religião prevaleceu, quando consi­
derada por si mesma, não é garantia suficiente da verdade dessa
religião, pois o Budismo possuiria um certificado mais elevado de
veracidade do que o cristianismo; mas, quando vista em conexão
com os resultados benéficos de elevar a humanidade, tanto indi­
vidualmente quanto coletivamente, que tem provindo da religião,
a duração do tempo pela qual ela tem continuado não pode ser
considerado um testemunho pequeno para sua verdade. Os efeitos
práticos de uma religião sobre os indivíduos e sobre o mundo em
geral, como se diz, formam um argumento em seu favor que não
pode ser facilmente colocado de lado.
1. Quanto ao indivíduo. Se os fatos sobre os quais o cristianismo
tem se baseado são puramente ficções, a história da encarna­
ção, a morte e a ressurreição de Jesus foi somente uma lenda,
e a promessa de perdão, de pureza e de paz, da vida eterna e
da glória que o cristianismo sustenta para os homens é uma
decepção, em vez de uma verdade, será que alguém imaginaria
que ele poderia ter efetuado as transformações que ele operou

334
O cristianismo não é fábula

nos corações e vidas individuais? Lembro-me que a primeira


mentira contada pelo diabo no Éden inseriu toda a raça humana
na morte espiritual. Tenho ainda de aprender que uma mentira
maquinada, mesmo que por pessoas boas, pode salvar os
homens da perdição e elevá-los ao céu, pode abençoá-los com
felicidade interna e assegurá-los do favor divino, pode consolá-
los na tristeza, fortalecê-los na fraqueza, sustentá-los na morte
e capacitá-los para a eternidade. E isso é o que o cristianismo
pode fazer — e fez em eras passadas a milhões, e está fazendo
hoje a milhares que o estão provando. Utilizarei mais do que foi
dito pelos críticos e escarnecedores para persuadir-me de que
essas coisas foram feitas por uma fábula. Já ouvi que fábulas
e ficções, lendas e supertições divertem homens e mulheres,
entretendo-os quando cansados, ocupando-os quando inativos,
tirando seus pensamentos do sério e ajudando-os a fechar seus
olhos para a aproximação da morte. Jamais ouvi falar que elas
conduzem almas a Deus, assegurando as pessoas de seu favor,
limpando-as do pecado, abençoando-as com a paz, preparando-
as para a eternidade. Mas isso é o que o cristianismo pode fazer
e faz; e, assim, penso que ele não é uma fábula, mas um fato;
não uma lenda, mas uma história; não um conto imaginário, mas
uma verdade sólida.
2. E quando acrescento a isto, o que tem sido feito no extenso teatro
do mundo, minha fé em sua verdade é confirmada. Dezenove
séculos atrás, o cristianismo começou sua carreira de conquistas.
Não possuía força ou riqueza, nem instrução e influência social,
tampouco o patrocínio imperial a seu lado. Foi desprezado pelos
grandes da terra como uma supertição. Foi visto pelos judeus
e gentios como subversão da religião e da moral. Seus adeptos
foram tirados da escória da população, dos pobres e dos igno­
rantes (pelo menos quanto ao modo de ver do mundo); e seus
apóstolos eram um grupo humilde, a maioria deles era formada
por pescadores — embora rapidamente tivessem melhorado sua
posição com a aceitação de alguém (Paulo), cuja força mental e
seriedade religiosa foram valiosas para o cristianismo como um
todo e para multidões de discípulos comuns, assim como para
a média dos pregadores. Mas o que apenas um pode significar,
embora ele fosse um gigante intelectual e espiritual, para a
poderosa tarefa colocada diante dele, a de conquistar o mundo e

335
Os fundamentos

de fazer todas as nações obedientes à fé? No entanto, essa tarefa


foi tomada de imediato em suas mãos, e o êxito que alcançou foi
declarado nos anais dos séculos passados.
No primeiro século, que pode ser chamado de a Era Apostólica,
o cristianismo praticamente derrotou o judaísmo, ao estabelecer-se
como uma religião organizada, não apenas na Palestina, mas na
Ásia Menor e em algumas das principais cidades da Europa. Ele,
sem dúvida, foi auxiliado pela destruição de Jerusalém, no ano 70,
pelos exércitos de Tito; mas a corrosão do judaísmo foi, gradual­
mente, causada pela disseminação da fé cristã.
Nos dois séculos seguintes, que podem ser chamados de a Idade
dos Pais, o paganismo foi superado, substituindo-se a adoração das
divindades pagãs e do Imperador Romano pela adoração a Jesus.
Não sem antes passar pela feroz tribulação na longa sucessão
de perseguições com as quais ele foi assaltado, mas obteve sua
reconhecida vitória , e, em sua experiência, a experiência de Israel
no Egito repetiu-se — “Mas, quanto mais os afligiam, tanto mais se
multiplicavam e tanto mais se espalhavam” (Ex 1.12), de maneira
que, ao final do terceiro século e no começo do quarto, ele tinha em
seu domínio cerca de um quinto do Império Romano.
Desde aquele tempo, o cristianismo aplicou-se à tarefa de tornar
os cristãos nominais em cristãos reais; mas não fosse a misericórdia
de Deus na Reforma, e ele poderia ter sido derrotado. Mas o Espí­
rito de Deus pôs uma divisão entre a desolação moral e espiritual,
assim como no princípio já havia feito em relação ao caos material,
quando a Palavra de Deus disse — “Haja luz!”, e houve luz. Lutero,
na Alemanha, Calvino, em Genebra, e Knox, na Escócia, junto com
outros, em diversas partes, surgiram como defensores da verdade
que fizeram com que o pensamento dos homens se voltasse para a
simplicidade e a certeza do evangelho; e um grande despertar se
espalhou pelo mundo, que, nominalmente, era cristão.
Depois disso, o cristianismo deu um passo à frente entre as na­
ções; e está agora fazendo pelo mundo o que nenhuma outra religião
fez ou pôde fazer — nem o Budismo, nem o Confucionismo, nem o
Islamismo —, o que nenhum substituto moderno do cristianismo
pode fazer — seja ele o materialismo, seja ele o agnosticismo, seja
ele o espiritismo, seja ele o socialismo; e, somente, por essa razão
é que podemos descansar seguros de que o cristianismo não é uma
fábula engenhosamente criada, mas uma verdade divinamente

336
O cristianismo não é fábula

revelada — apenas ele contém a esperança para o mundo como


um todo, e geração após geração passará até o dia em que ele
preencherá o globo.
Em suma, quando alguém se lembra que o cristianismo cons­
truiu a igreja cristã, e que a igreja cristã foi o fator mais poderoso
para se criar a civilização moderna, torna-se uma impossibilidade
creditar a alegação, ou mesmo abrigar a suspeita, de que ele foi
fundamentado sobre uma mentira. Pode ser provado por seus
frutos. Apesar das imperfeições que encontramos na igreja cristã,
pois é uma instituição humana, poucos negarão que sua existência
no mundo foi produtiva e de resultados preponderantemente
bons, e baseado apenas nesse certificado, pode-se afirmar que o
cristianismo não é uma “fábula engenhosamente criada”, mas uma
verdadeira revelação do maravilhoso propósito redentor de Deus
para os homens pecadores.

337
339

30 A concepção bíblica de pecado

R ev . T homas W h it e l a w M.A., D.D.


Ministro Presbiteriano, Kilmarnock, Escócia
Revisado por Charles L. Feinberg, Th.D., Ph.D.

As Sagradas Escrituras não apresentam nenhuma demonstra­


ção da realidade do pecado. Em todas suas afirmações a respeito do
pecado, pressupõe-se que o pecado é como um fato que não pode
ser contrariado, nem negado. E verdade que alguns, por intermé­
dio da falsa filosofia e da ciência materialista, recusam admitir a
existência do pecado, mas seus esforços para explicá-lo por meio
de suas teorias são provas suficientes de que o pecado não é uma
invenção da imaginação, mas uma realidade sólida. Outros podem
se aprofundar tanto no poder do pecado, a ponto de perder o senso
de realidade, porque sua natureza moral se tornará tão endurecida
que não possui mais sentimento. Nesses casos, a convicção do
pecado não é possível, exceto pela operação interior do Espírito de
Deus, que pode romper a dura crosta da moral entorpecida, na qual
seus espíritos estão encerrados. Uma terceira classe de pessoas,
que simplesmente deixa de pensar no pecado, pode vir, no decorrer

THOMAS WHITELAW (1840-1917) foi ordenado em 1864, após receber


educação formal no United Presbylerian Hall, em Edimburgo, Escócia.
Trabalhou como pastor e administrador tanto em igrejas Presbiterianas
quanto na Igreja Livre ünida. Seus comentários incluem estudos sobre
Gênesis e Atos dos apóstolos. Ele tam bém escreveu sobre a divindade
de Cristo.
Os fundamentos

do tempo, a concluir que se o pecado é uma realidade ou não, isso


não tem a menor importância. A verdade é que é extremamente
duvidoso que qualquer pessoa inteligente, cujas intuições morais
não foram completamente destruídas ou cujas percepções mentais
não foram embotadas pela indulgência na impiedade, pode, com
muito êxito, persuadir a si mesma permanentemente de que o
pecado é um mito, ou uma criação da imaginação, e não uma reali­
dade severa. A maior parte dos homens sabe que o pecado é, neles
mesmos, um fato observável que eles não podem desconsiderar. A
Bíblia afirma que qualquer homem o descobrirá se olhar para seu
próprio coração.
Conseqüentemente, a Bíblia devota seu esforço para distribuir à
humanidade o conhecimento sobre a natureza e a universalidade,
a origem e a culpabilidade, e, especialmente, a remoção do pecado.
Apresentar esse assunto será o objeto deste capítulo.

A natureza do pecado
Não é necessário declarar que as idéias modernas de pecado não
recebem nenhum apoio das Escrituras, que jamais falam sobre o
pecado como o “bem no fazer”, como “uma necessidade determina­
da pela hereditariedade e ambiente”, como “um estágio do desen­
volvimento superior do ser finito”, como “uma mancha que adere ao
quadro corpóreo do homem”, e, por último, “como uma invenção da
imaginação imperfeitamente esclarecida, ou teologicamente per­
vertida”, mas sempre como o livre ato de um ser inteligente, moral
e responsável, que se afirma contra a vontade de seu Criador, que
é distinta da lei escrita em seu coração (Rm 2.15), ou da revelação
de Deus ao homem no Antigo e no Novo Testamentos. Portanto,
o pecado é comumente descrito nas Escrituras pelos termos que
indicam, com perfeita clareza, sua relação com a vontade divina ou
a lei, e nenhuma incerteza existe quanto a seu caráter essencial.
No Antigo Testamento (Êx 34.5,6; SI 32.1,2), três palavras
são usadas para a plena definição do pecado: (1) “transgressão”
(pesha‘ ) ou um afastamento de Deus e, portanto, uma violação de
seus mandamentos (Êx 22.8); (2) “pecado” (hatta’th) ou errar o
alvo, o descumprimento de algum dever, ou não fazer o que se
deve (Gn 4.7); (3) “iniqüidade” (‘awon), ou um desvio do caminho
reto, resultando daí a perversidade, a depravação e a desigualdade
(Is 53.6).

340
A concepção bíblica de pecado

As palavras empregadas no Novo Testamento para designar o


pecado não são muito diferentes quanto ao significado, se é que
existe diferença — hamartia, uma falha, um passo em falso; e
anomia, ilegalidade. Portanto, a concepção bíblica de pecado poder
ser honestamente somada às palavras da Confissão de Westmins­
ter: “Pecado é qualquer falta de conformidade à lei de Deus, ou
a transgressão dela”; ou nas de Melancthon: “Define-se pecado
corretamente como anomia, ou desconformidade à lei de Deus, isto
é, um fracasso da natureza e dos atos, opostos à lei de Deus”.

A universalidade do pecado
De acordo com a Bíblia, o pecado não é uma qualidade ou con­
dição da alma que se revelou apenas em indivíduos excepcionais,
como, por exemplo, os ofensores notórios, ou em circunstâncias
excepcionais, como nas primeiras eras da existência humana na
terra, ou entre raças semi-desenvolvidas, ou em terras onde as
artes e as ciências são desconhecidas, ou em comunidades civili­
zadas, onde o ambiente local é prejudicial à moralidade. O pecado
é uma qualidade ou condição da alma que existe em cada criança
nascida de mulher, e não meramente em tempos isolados, mas em
todos os tempos, e em cada estágio de sua carreira, embora nem
sempre se manifestando nas mesmas formas de pensamento, senti­
mento, palavra e ação em cada indivíduo, ou, até mesmo, no mesmo
indivíduo. Ele afeta extensivamente toda a raça humana, em todas
as épocas desde o início do mundo, em todos os lugares abaixo do
sol, todas as raças na qual a humanidade tem sido dividida, em cada
situação na qual o indivíduo se envolveu; e intensivamente em cada
indivíduo em cada departamento e faculdade de sua natureza, do
centro à circunferência de seu ser.
As Escrituras não expressam rumores incertos sobre o caráter
de corrupção moral que o mundo abraçou, quer na era pré-dilu-
viana (Gn 6.12), quer na geração de Davi (SI 14.3), quer no tempo
de Isaías (Is 53-6), quer na era cristã (Rm 3.23). O veredicto de
Salomão vigora por todo o tempo: “Não há homem que não peque”
(lRs 8.46). Nem mesmo os homens melhorados, que nasceram no­
vamente pelo Espírito e pela Palavra de Deus, renovados em suas
mentes e criados novamente em Cristo Jesus, estão sem pecado
(ljo 1.8). Quão verdadeiramente isso pode ser apreendido pelo fato
de que as Escrituras mencionaram apenas uma pessoa em quem

341
Os fundamentos

não havia pecado, Jesus de Nazaré, que podia desafiar seus inimi­
gos e convencê-los do pecado. Daqueles que O conheciam mais
intimamente, um testificou que ele “não cometeu pecado, nem dolo
algum se achou em sua boca” (lPe 2.22; ljo 3-5). A explicação para
essa isenção, claro, era que ele era Deus “manifestado na carne”
(lTm 3.16). Mas, além Dele, não há uma única pessoa que figure
nas páginas da Bíblia e de quem se possa dizer, ou que tenha sido
dito, que foi sem pecado. Nem Enoque nem Noé, na era ante-dilu-
viana; nem Abrão nem Isaque, nos tempos patriarcais; nem Moisés
nem Aarão, nos anos da peregrinação de Israel; nem Davi nem
Jônatas, nos dias da monarquia; nem Pedro nem João, tampouco
Barnabé ou Paulo, na era apostólica, poderiam ter reivindicado tal
distinção; e estes eram alguns dos melhores homens que jamais
apareceram sobre este planeta.
O reino do pecado sobre a família humana universal, não apenas
acontece de forma extensiva, mas também intensiva. Não é um mal
que afetou somente uma parte da complexa constituição humana;
cada parte dela sentiu sua influência funesta. Ele obscurece o
entendimento dos homens e os torna incapazes, sem iluminação
sobrenatural, para apreender as coisas espirituais (ICo 2.14;
Ef 4.17,18). Ele corrompe o coração de tal forma, que se este for dei­
xado a si mesmo, torna-se, acima de todas as coisas, um enganador
(Jr 17.9, Ec 9.3; Gn 6.5; Mt 15.19). Ele paralisa a vontade, ao menos
parcialmente, em cada caso, de maneira que mesmo regeneradas,
as almas muitas vezes se queixam junto com Paulo, que quando
deveriam fazer o bem, o mal está presente com eles (Rm 7.14-25).
O pecado entorpece a consciência, que, ao ocupar lugar de Deus
na alma, a torna menos rápida para detectar a aproximação do mal,
menos preparada para soar um alerta contra ele e, algumas vezes,
tão mortificada, o ponto de perder a sensibilidade para ele (Ef 4-19).
Em suma, não há uma faculdade da alma que não seja prejudicada
por ele (Tg 1.5).

A origem do pecado
Como um ser puro, possuído daquelas capacidades intelectuais
e instituições morais que foram necessárias para torná-lo justamen­
te responsável perante à lei divina, poderia cair de sua inocência
original, como caiu, e abraçar o pecado, é um daqueles problemas
obscuros que filósofos e teólogos tentaram em vão solucionar.

342
A concepção bíblica de pecado

Nenhuma explicação mais confiável da entrada do pecado no


universo, de modo geral, e neste mundo, em particular, foi jamais
dada a não ser a que é fornecida pelas Escrituras.
Segundo a Bíblia, o pecado fez sua primeira aparição entre as
hostes angelicais, embora nada mais seja relatado, do que o simples
fato de que os anjos pecaram, não guardaram seu primeiro estado,
mas abandonaram sua própria habitação (2Pe 2.4; Jd 6), a razão do
porquê agiram assim não nos foi revelada. A dedução óbvia é que o
pecado desses espíritos caídos foi uma ação determinada pelo livre
arbítrio deles, ditado pela insatisfação com o lugar que lhes fora
dado e pela ambição de assegurar para si um estágio mais elevado
do que aquele no qual eles haviam sido colocados; embora isso não
responda à questão de como tal insatisfação e ambição pudessem
surgir entre seres criados sem pecado. Uma vez que não houve in­
fluência externa no caminho da tentação, a não ser pela inteligência
deles mesmos, não parece que qualquer outra resposta seja possí­
vel, a não ser aquela de que na criação de uma personalidade finita,
dotada de livre vontade, a possibilidade de se fazer uma escolha
pecaminosa está necessariamente envolvida nessa criação.
No caso do homem, no entanto, a entrada do pecado no mundo
recebe uma explicação um tanto diferente dos escritores sagrados.
Eles, em acordo, atribuem as ações pecaminosas, palavras,
sentimentos e pensamentos de cada indivíduo a sua própria
escolha deliberada, livre, de maneira que o homem é, desse modo,
e com perfeita justiça, responsável por seu desvio do caminho da
retidão moral. Alguns dos escritores sagrados deixaram claro que
a entrada do pecado neste mundo foi efetuada por meio da deso­
bediência do primeiro homem, que agiu como o representante de
toda sua posteridade natural (Rm 5.12), e que a primeira queda do
homem não foi feita sem a tentação, mas pela influência sedutora de
Satanás (Gn 2.1.6; Jo 8.44; 2Co 11.3; Ef 2.2). A história de Gênesis
sobre a Queda ensina, de forma inequívoca, esse efeito: a queda
do primeiro homem do estado de inocência causou conseqüências
desastrosas sobre si e seus descendentes. Sobre si mesmo o pecado
provocou distúrbios imediatos, em toda sua natureza, implantando
nele as sementes da degeneração — corporal, mental, moral e
espiritual —, enchendo-o com o temor de seu Criador, pondo sobre
sua consciência um fardo de culpa, obscurecendo suas percepções
quanto ao certo e ao errado e interrompendo, até agora, as relações

343
Os fundamentos

pacíficas que existiam entre ele e seu Criador. Sobre seus descen­
dentes, o pecado abriu as comportas da corrupção, pela qual a
natureza deles, desde o nascimento, caiu sob o poder do mal, como
logo foi testemunhado na obscura tragédia do fratricídio com o qual
a narrativa da história humana começou e na rápida disseminação
da violência através do mundo pré-diluviano.
Isso é o que os teólogos chamam de a doutrina do pecado
original, pela qual eles querem dar a entender que os resultados
do pecado de Adão, tanto legal quanto moral, foi transmitido à
posterioridade dele, de maneira que agora cada indivíduo que
vem ao mundo, não vem como seu primeiro pai, em um estado de
equilíbrio moral, mas vem com a herança de uma natureza que foi
debilitada pelo pecado.
Que essa doutrina, embora freqüentemente combatida, tem
uma base na ciência e na filosofia, assim como nas Escrituras,
torna-se mais aparente a cada dia. Mas se confirmada ou con­
traditada pelo pensamento moderno, a doutrina das Escrituras
brilha como um raio de sol, de que o homem nasceu “na iniqüi­
dade, e em pecado” foi concebido (SI 51.5; ver também SI 58.3;
Ef 2.3; Gn 8.21; e Jó 15.14). Se essas passagens não mostram
que a Bíblia ensina a doutrina do pecado original, ou do pecado
transmitido, é difícil ver em qual linguagem mais clara ou mais
enfática a doutrina poderia ter sido ensinada. A verdade da dou­
trina pode ser desafiada por aqueles que repudiam a autoridade
das Escrituras; que é uma doutrina das Escrituras que não pode
ser negada.

A culpabilidade do pecado
Não se quer dizer, com isso, que a culpabilidade do pecado é me­
ramente como um ato, indesculpável por parte de seu perpetrador,
que sendo tal personalidade como é, dotada de faculdades como as
suas, nunca o deveria ter cometido; não somente sua atrocidade,
como um ato praticado contra a luz e o amor, e em oposição flagran­
te à santidade e à majestade do Legislador, que tem de considerar
isso com aversão, assim como deve repeli-lo de Sua presença e
tem de excluir de Seu favor quem for culpado. Mas acima e abaixo
dessas representações de pecado, que são todas Escriturais, pela
culpabilidade do pecado foi planejado sua exposição para a penali­
dade à transgressão, conforme fixada pela justiça divina.

344
A concepção bíblica de pecado

Essa penalidade foi fixada, em primeiro lugar, por Deus,


quando o homem foi criado, conforme a narrativa de Gênesis
declara (Gn 2.16). Na verdade, podemos observar que essa
penalidade ainda recai sobre o impenitente, não pela o que
está implicado na linguagem de nosso Salvador, que, à parte de
Sua obra redentora, o mundo estava em perigo de perecer e já
se apresentava condenado (Jo 3.16-18); mas é expressamente
declarado por João, que diz que sobre o incrédulo permanece “a
ira de Deus” (Jo 3.36), e por Paulo, que afirma que “o salário do
pecado é a morte” (Rm 6.23).
Fica claro que as Escrituras incluem na justa punição do
pecado mais do que a morte do corpo. Que isto faz parte da pe­
nalidade do pecado, dificilmente, pode ser negado por um leitor
cuidadoso das Escrituras; mas as Escrituras inequivocamente
insinuam que a penalidade igualmente inclui a morte espiritual
e eterna. Quando a Bíblia afirma que os homens estão natural­
mente mortos em transgressões e pecados (Ef 2.1), obviamente
propõe transmitir a idéia de que até que a alma seja tocada pela
graça divina, ela é incapaz de fazer qualquer coisa espiritual ou
religiosamente boa, de assegurar justificação legal diante de
um Deus santo, ou de provocar regeneração espiritual. Quando,
mais adiante, as Escrituras afirmam que o incrédulo não verá a
vida (Jo 3.36), e que o ímpio será lançado em perpétuo castigo
(Mt 25.46), isso, seguramente, não sugere que ao entrar em
outro mundo, o não salvo na terra terá outra oportunidade de
aceitar a salvação (segunda provação), ou que a extinção do
ser será completa (aniquilação), ou que toda a humanidade
eventualmente alcançará a salvação (universalismo). Enquanto
isso, basta observar que as palavras citadas ensinam que a
penalidade do pecado continua além da sepultura. Admitindo
que as palavras de Cristo — sobre o verme que nunca morre, e o
fogo que não será extinguido — são figuras de linguagem, elas
significam inquestionavelmente que essas figuras de linguagem
representam alguma calamidade terrível — por um lado, perda
de felicidade, separação da fonte de vida, exclusão da bênção, e,
por outro lado, acesso de miséria, sofrimento, penúria, aflição,
que serão percebidas pelos ímpios, quando a devida recompensa
de suas vidas impenitentes e desobedientes, e a qual nenhum
tempo futuro aliviará (ver Ap 22.11).

345
Os fundamentos

A remoção do pecado
Odioso e culpável como o pecado é, não é permitido nas Escri­
turas ser contemplado em toda a nudez de seu caráter, repugnante
à vista de Deus, e em todo o peso de sua culpa diante da lei, sem
esperança de solução para qualquer um; mas, em uma luz confor­
tante, está exposto como uma ofensa que pode ser perdoada e uma
corrupção que, no final das contas, será, ou pode ser purificada.
Quanto ao possível perdão do pecado, que constitui o cerne das
boas novas para a propagação daquilo que foi escrito na Bíblia,
desde a primeira página do Gênesis à última do Apocalipse, há uma
meia-voz, sussurrando como o fim que se aproxima em tons claros
e alegres de amor e misericórdia, proclamando que o Deus do céu,
embora seja Ele mesmo santo ejusto, não obstante é misericordioso
e gracioso (Êx 34.6). Na Escrituras é anunciado que Ele fez plena
provisão para harmonizar as reivindicações de clemência e justiça
em Seu próprio caráter, ao dar auxílio a Seu único Filho gerado,
sobre quem Ele lançou a iniqüidade de todos nós (Is 53.6), para
que Ele pudesse, de uma vez por todas, como o Cordeiro de Deus,
tirar o pecado do mundo (Jo 1.29). A Bíblia declara que toda a obra
necessária para capacitar os homens pecadores a ser perdoados,
foi realizada pela morte e ressurreição de Cristo, e, desse modo, o
mundo foi reconciliado com Deus (2Co 5.19). Os homens, em toda
parte, são convidados a se arrepender e se converter, para que seus
pecados possam ser apagados (At 3.19). Nada mais é requerido dos
homens, para que se tornem livres e completamente justificados
de todas suas transgressões, do que a fé na propiciação da cruz
(Rm 3.25); e nada deixará de fora do perdão um pecador, exceto a
recusa em crer (Jo 3.36).
A remoção final do pecado das almas dos crentes não é exposta
de forma incerta pelas Escrituras. Com certeza, ela foi predita no
nome dado ao Salvador. Certamente, ela foi predita no nome dado
ao Salvador em Seu nascimento. (Mt 1.21). Estava implicada no
propósito de Sua encarnação (ljo 3.5). E esse foi o propósito de­
clarado de Sua morte na cruz (Tt 2.14). Para o cristão, foi dito que
seu destino final é ser conformado à imagem de Cristo (Rm 8.29) e
habitar na cidade divina (Ap 22.14).
O fato de que aqueles que deixam esta vida em impenitência e
descrença, ou serão aniquilados na morte ou após a ressurreição, é
julgado por alguns como uma dedução legítima do uso da palavra
A concepção bíblica de pecado

morte como o castigo do pecado. Mas morte, quando aplicada ao


homem, não significa extinção do ser. Há muito tempo tem se
dado atenção ao fato de que os vários órgãos do corpo podem ser
removidos sem se extinguir o espírito que nele habita, e é certo
que a parte imaterial do homem não será destruída, embora toda
estrutura material seja reduzida ao pó. Somente na suposição de
que a mente é apenas uma função da matéria, pode a dissolução
do corpo ser considerada como a extinção do ser. Tal suposição
é estranha às Escrituras. No Antigo Testamento, Davi esperava
habitar “na Casa do Senhor para todo o sempre” (SI 23.6). No Novo
Testamento, Cristo tomou por admitido que Abraão, Isaque e Jacó,
embora mortos a muito tempo, ainda estavam vivos, e que Lázaro
ainda existia no mundo invisível, embora seu corpo estivesse na
sepultura. Em nenhuma parte é sugerido que a alma seja simples­
mente uma função do corpo, ou que ela deixe de existir, quando o
corpo morre.
Quanto à teoria de uma segunda provação, textos como
Mateus 12.32 e 25.48 não dão esperança de destruição final do
pecado por intermédio de uma segunda chance. Toda tentativa de
encontrar lugar para essa idéia se rompe diante do fato indiscutível
de que as palavras “perpétuo” e “eterno” são as mesmas em grego
(aionion), e elas indicam que o castigo do ímpio e a bênção do justo
são iguais em duração. Não é mero fato de que a doutrina de uma
segunda provação seja destituída de apoio das Escrituras, mas,
contrariamente a todas as experiências, assume-se que toda alma
não salva aceita a segunda oferta de salvação, que é mais do que
qualquer um pode afirmar com certeza; e se todos não fizerem
isso, o pecado ainda permaneceria. Pode-se argumentar que todos
aceitariam devido à maior luz que eles teriam quanto à suprema
importância da salvação, ou graças às influências mais fortes que
serão trazidas para testemunhar sobre eles. Mas, nessa hipótese,
parece que uma reflexão é lançada em relação a Deus, por Este
não ter feito tudo que poderia para salvar os homens enquanto eles
viviam, uma reflexão que homens bons não farão.
A terceira teoria para banir o pecado da família humana, se não
do universo, é a do universalismo, ponto de vista de que por meio
da disciplina, daqui em diante, as almas de todos serão levadas à
sujeição a Cristo. A liderança universal de Cristo que é ensinada
nas Escrituras certamente é verdadeira (ICo 15.28). Mas não está

347
Os fundamentos

implicado que todos se renderão voluntariamente à sujeição a Cristo.


Todo poder e autoridade, humano e angélico, hostil e amistoso,
crente e descrente deve sujeitar-se a Ele. “Ele deve reinar até que
todos os seus inimigos sejam colocados debaixo de seus pés”— não
tomados em Seu coração, recebidos em Seu amor e empregados a
Seu serviço. Essa perspectiva não aparenta ser a salvação universal
e a completa extinção do mal moral ou do pecado no universo.
Um mistério obscuro e insolúvel foi a vinda do pecado pela
primeira vez no universo de Deus. Sua continuação em uma raça
que desde a eternidade foi objeto do amor de Deus e, em tempo,
foi redimida pelo sangue do Filho de Deus, que, graciosamente,
atuou pelo Espírito de Deus, isso é também um mistério obscuro.
Felizmente, não nos é requerido compreender todos os mistérios;
mas podemos deixar esse mistério, confiantemente, nas mãos do
Pai.

348
349

O testemunho de Paulo
quanto à doutrina do pecado

P r o f. C h a r le s B. W i l l i a m s , B.D., P h.D.
Seminário Teológico Batista Sudeste,
Fort Worth, Texas.
Resumido e Editado por James H. Christian, Th.D.

Theodore Parker disse uma vez: “Raramente uso a palavra pe­


cado. A doutrina cristã de pecado é a do próprio diabo. Eu a odeio”.
Sua visão do pecado moldou seu ponto de vista quanto à pessoa de
Cristo, assim como em relação à expiação e à salvação. De fato, a

CHARLES BRAY WILLIAMS (1869-1952) era um parente distante


de Roger Williams, pai da liberdade religiosa na América; de William
Williams, signatário da Declaração da Independência; e de Sir George
Williams, fundador da Associação Cristã de Moços (ACM). Ele se
formou na Faculdade Wake Forest (B.A.), no Seminário Teológico
Crozer (B.D.), na üniversidade de Chicago (M.A., Ph.D.) e foi honrado
pela üniversidade de Baylor com o título de D.D. Ele ensinou grego no
Seminário Teológico Batista Sudeste (1905-1919) e foi deão dessa escola
(1913-1919). Foi presidente da Faculdade Howard (Alabama), de 1919 a
1921; professor de Interpretação do Novo Testamento na üniversidade
Mercer (1921-1925); e professor de Grego e Ética, na üniversidade ünião
(Tennessee), de 1925 a 1938. Ele tam bém foi pastor em igrejas Batistas
na Pensilvânia, Texas, Flórida, Tennessee e Carolina do Norte. Autor de
dez livros, um a de suas mais notáveis contribuições foi A tm nslation of
the New Testament in the Language of the People [A Tradução do Novo
Testamento na Linguagem do Povo] (1937).
Os fundamentos

questão do pecado está por trás da própria teologia, soteriologia,


sociologia, evangelismo e ética. Não se pode sustentar um ponto
de vista bíblico de Deus e do plano de salvação sem ter uma idéia
bíblica do pecado. Não se pode proclamar uma verdadeira teoria da
sociedade a não ser que se veja a atrocidade do pecado e sua relação
com todas as enfermidades e desordens sociais. Nenhum homem
pode ser um evangelista bem sucedido do Novo Testamento, procla­
mando o evangelho como “o poder de Deus para salvação de todo
aquele que crer”, a menos que ele tenha uma concepção adequada
da enormidade do pecado. Nem pode um homem sustentar uma
teoria ética consistente ou viver no mais alto padrão de moralidade,
a menos que ele esteja apegado com um senso agudo da natureza
sedutora do pecado.

Pecado, um fato na história humana


Paulo possui um vocabulário extenso de termos que denotam o
pecado ou os pecados. Na epístola para os Romanos, em que elabo­
ra sua doutrina do pecado, ele usa dez termos gerais para pecado:
1. Hamartia, cinqüenta e oito vezes ao todo, quarenta e três em
Romanos, errar o alvo, pecado como um princípio.
2. Hamarteema, duas vezes, o pecado como uma ação.
3. Parabasis, cinco vezes, transgressão, literalmente, andar ao
longo da linha, mas não exatamente de acordo com ela.
4. Paraptoma, quinze vezes, literalmente, um fracasso, falha, desvio
da verdade e da retidão (Thayer), traduzido por “ofensa” na RA.
5. Adikia, doze vezes, injustiça.
6. Asebeia, quatro vezes, impiedade, falta de reverência para com
Deus.
7. Anomia, ilegalidade, seis vezes.
8. Akatharsia, nove vezes, impureza, falta de pureza.
9. Parokoee, duas vezes, desobediência.
10. Planee, quatro vezes, vagar, errar.
Além desses termos gerais para pecado, Paulo usa muitos
termos específicos para vários pecados, vinte e um destes são
encontrados na categoria de Romanos 1.29-31. Vinte um é igual a
três vezes sete e parece expressar a idéia de completude no pecado,
alcançado pelos gentios. E realmente verdade que Paulo usa um
grande número de termos para denotar e descrever vários pecados
pessoais, sensuais, sociais, éticos e religiosos. Isso não seria uma

350
O testemunho de Paulo quanto à doutrina do pecado

evidência léxica inconfundível de que o apóstolo, em relação aos


gentios, acreditava no pecado como um fato da história humana?
Novamente, na principal de todas as epístolas de Paulo, ele trata
do pecado, de modo abstrato, ou dos pecados, de modo concreto.
Em Romanos 1.18—3.20, ele discute a impossibilidade tanto dos
judeus quanto dos gentios para atingir a justiça. Esses capítulos
constituem a melhor descrição, vivida e compreensiva, do pecado
encontrado na literatura bíblica, grega, romana, ou qualquer outra.
Isso é verdade quanto aos fatos da vida pagã hoje, pois o pagão mo­
derno freqüentemente acusa os missionários cristãos de escrever
isto depois que eles tivessem conhecimento pessoal de sua vida e
conduta.
Em ICoríntios, pecados grandes são tratados — inveja, dis­
cussão, divisões, incesto, litígio, adultério, fornicação, bebedeira,
cobiça, idolatria, etc. Em 2Coríntios, alguns dos mesmos pecados
são condenados. Em Gálatas, ele insinua o fracasso do homem
para atingir a justiça, ao manter a tese de que nenhum homem é
justificado pelos atos da lei, mas qualquer homem pode ser justifi­
cado pela simples fé em Cristo Jesus (2.14ss), e menciona as obras
da carne, “prostituição, impureza, lascívia, idolatria”, etc. (5.19).
Em Efésios, ele reconhece que seus leitores estavam “mortos nos
vossos delitos e pecados” (2.1), e exorta-os a deixar de lado certos
pecados (4.25ss). Em Colossenses, faz o mesmo. Em Filipenses,
ele fala menos sobre pecado ou pecados, mas, em 3.3-9, ele conta
sua experiência do fracasso de atingir a justiça com todas suas van­
tagens de nascimento, preparo, cultura e circunstâncias de vida.
Nas epístolas pastorais, ele reprova certos pecados com convicção.
a) A experiência de Paulo — a prova
psicológica para ele de sua doutrina do pecado
Paulo era um fariseu. Seu objetivo religioso era retidão ou relação
correta com Deus. Como fariseu, ele sentia que podia e devia, em si
mesmo, alcançar a justiça ao guardar toda a lei escrita e oral. Este
tipo de (suposta) justiça, ele, posteriormente, descreve e repudia.
“Porque nós é que somos a circuncisão, nós que adoramos a Deus
no Espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus, e não confiamos na
carne. Bem que eu poderia confiar também na carne. Se qualquer
outro pensa que pode confiar na carne, eu ainda mais: circuncidado
ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu

351
Os fundamentos

de hebreus; quanto à lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da


igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível. Mas o que,
para mim, era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. Sim,
deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do
conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi
todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo e
ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, senão
a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus,
baseada na fé” (Fp 3.3-9). Toda a justiça que ele poderia alcançar
era insuficiente. Somente a justiça de Deus, concedida por meio
da fé em Cristo Jesus, poderia satisfazer a consciência do pecador
despertado ou ser aceitável a Deus.
b) A origem de pecado
O apóstolo não discute o problema maior, a origem do pecado,
no universo moral de Deus. Somente a origem do pecado relativa
e temporal, sua entrada na raça humana, na terra, domina o pensa­
mento de Paulo, não sua fonte absoluta e final.
A passagem clássica sobre a fonte do pecado humano é
Romanos 5.12-21. Paulo testemunha que o pecado entrou em nossa
raça por intermédio da desobediência de Adão. “Portanto, assim
como por um só homem entrou o pecado [hamartia, o princípio do
pecado] no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte
passou a todos os homens, porque todos pecaram [...]Pois assim
como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para
condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça
sobre todos os homens para a justificação que dá vida. Porque,
como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pe­
cadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos
se tornarão justos” (Rm 5.12,18-19). Nesse paralelismo entre Adão
e Cristo, Paulo está procurando mostrar, por meio de contraste, a
excelência da graça e a bem-aventurança transcendente do homem
justificado em Cristo. Ele, primariamente, não está discutindo a
origem do pecado humano. O fato — que é um testemunho inci-
dental, e não um testemunho estudado — torna ele todo ainda mais
confiável e convincente.
Paulo não está aqui simplesmente expressando o pensamento
de seus compatriotas não inspirados quanto à entrada do pecado
em nossa raça. O Dr. Edersheim diz: “Conforme suas opiniões

352
O testemunho de Paulo quanto à doutrina do pecado

podem ser juntadas de seus escritos, as grandes doutrinas do


pecado original e da pecabilidade de toda nossa natureza não eram
sustentadas pelos antigos Rabinos”. (IJve and Times of Jesus the
Messiah [Vida e Época de Jesus, o Messias], 1,165.) Weber sumariza
dessa maneira o ponto de vista judaico expresso no Talmude: “Pela
Queda o homem caiu em maldição, é culpado de morte e seu direito
de se relacionar com Deus se tornou difícil. Não podemos dizer
mais do que isso. O pecado, ao qual a tendência pela inclinação a ele
já tinha sido delineada pela criação, tornou-se um fato, ‘o impulso
para o mau’ (cor malignum, 4 Ed 3.21) obteve o domínio sobre a
humanidade, que só pode resisti-lo por meio dos maiores esforços;
diante da Queda, o mal tem poder sobre ele, mas nenhum predo­
mínio” (Altsyn. Theol., p. 216). O leitor deve recorrer aos seguintes
textos: Sabedoria 2.23ss; Eclesiástico 25.24 (33); 4 Ester 3.7, 21ss;
Apocalipse de Baruque 17.3; 54.15,19, como expressões do ponto
de vista judaico referente à entrada do pecado no mundo e à relação
de Adão para com a raça na transmissão da culpa. Uma dessas
passagens, Eclesiástico 25.24 (33), traça, até mesmo, o pecado da
raça de volta à Eva.
Observe que Paulo vai além da declaração de qualquer escritor
judaico não inspirado —
1. Ao afirmar que foi por intermédio de Adão, e não de Eva, que o
pecado entrou na raça.
2. Que, em certo sentido, quando Adão pecou, “todos pecaram”
(Rm 5.12), e em seu ato de pecar, “muitos se tornaram pecado­
res” (5.19). Indubitavelmente, o apóstolo quer dizer que toda a
raça esteve, de forma seminal, em Adão, como seu progenitor, e
que Adão, pelo processo de hereditariedade, passou a seus des­
cendentes uma natureza depravada. Ele provavelmente não quer
dizer que cada indivíduo estava realmente na pessoa de Adão.
Se Adão não tivesse pecado e, assim, depravado e corrompido a
fonte da raça, essa raça não teria sido a herdeira do pecado e a
ceifeira de seus frutos, isto é, tristeza, dor e morte.
3. Que na introdução do pecado na raça por seu progenitor a própria
raça se tornou incapaz de livrar-se do pecado e da morte. Isso o
apóstolo afirma vez após vez e já havia demonstrado antes que
ele fizesse o paralelismo entre Adão e Cristo, quando diz: “Ora,
sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para
que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante

353
Os fundamentos

Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras
da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do
pecado” (3.19, 20).
c) A essência e natureza do pecado
Isto nos leva a perguntar: o que constituiu a essência ou centro
do pecado, do modo como Paulo o percebeu? Evolucionistas moder­
nos enfatizam a tendência superior de todas as coisas, e, assim, o
pecado é considerado por eles como apenas um passo no progresso
superior da raça; quer dizer, pecado é “bom na produção”. Os cien­
tistas cristãos vão ainda mais longe e admitem toda dor e mal como
criações meramente imaginárias de mentes anormais (ver Science
and, Health [Ciência e Saúde]). Não há mal real, nenhuma dor real,
dizem eles. Será que algumas dessas perspectivas encontram
endosso em Paulo?
Deve-se notar que Paulo não dá em nenhum lugar uma definição
formal de pecado. Mas ao estudar os termos, que ele usa mais fre­
qüentemente, podemos determinar sua idéia de pecado. Ele utiliza
principalmente o substantivo hamartia, cinqüenta e oito vezes,
do verbo hamartano, errar o alvo, pecar. No grego clássico, isso
significa “perder o objetivo”, “errar no julgamento, ou na opinião”.
Para Paulo, pecar é errar o alvo ÉTICA e RELIGIOSAMENTE.
Duas outras palavras usadas por Paulo mostram-nos qual objetivo
foi perdido: adikia, injustiça, falta de conformidade para com a
vontade de Deus; anomia, ilegalidade, fracasso em agir ou viver de
acordo com o padrão da lei de Deus. Assim, o objetivo perdido é a
lei divina. Parabasis, transgressão, enfatiza a mesma idéia, fracasso
para seguir a linha da justiça exposta na lei.
Por outro lado, o pecado não é meramente uma negação. E uma
qualidade positiva, é uma “Queda” (paraptoma, quinze vezes vezes).
Isto é vividamente ilustrado por Paulo em sua descrição da idola­
tria, sensualidade e imoralidade do mundo gentio (Rm 1.18-32).
Primeiro, eles conheciam Deus, porque Ele os ensinava sobre Si
mesmo na natureza e na consciência (1.19,20). Em segundo lugar,
eles se recusaram a adorá-Lo como Deus, ou dar-lhe graças como
o Doador de todas as boas coisas (1.21). Em terceiro lugar, eles
começaram a adorar a criatura em lugar do Criador e, em seguida,
entregaram-se à idolatria em uma escala descendente, adorando
primeiro as imagens humanas, posteriormente as de pássaros, as

354
O testemunho de Paulo quanto à doutrina do pecado

de animais e, por fim, as de répteis (1.22-25). Em quarto lugar, essa


idéia errada de Deus, assim como a falsa relação para com Ele, os
degradou a ponto de abraçarem a mais grosseira sensualidade e a
mais obscura imoralidade (1.26-32). Esse é o progresso da raça?
Se assim for, é progresso no desdobramento do poder cumulativo
do pecado, como no império Romano, onde a filosofia e a cultura
humanas estavam fazendo um extremo esforço parar deter a maré
de vício e contribuir para o avanço do governo, pensamento, arte
e ética humanos. Quer dizer, se o pecado é um elo na cadeia da
evolução humana, Paulo diria que era um passo para baixo, e não
para cima, na longa estrada do desenvolvimento humano.
Vejamos um outro termo utilizado por Paulo para expressar a
atitude de Deus para com o pecado. Esse termo é “ira”, que ocorre
vinte vezes nas epístolas de Paulo. (Esta contagem segue Moulton
e Geden, Condordance to the Greek Testament [Concordância do Tes­
tamento Grego], e exclui Hebreus das epístolas paulinas.) Thayer
define esse termo da seguinte maneira: “A ira, em Deus, se opõe
à desobediência, obstinação e pecado do homem, manifestando-se
na punição do mesmo” (Greek English Lexicon to New Testament
[Léxicos do Grego e Inglês do Novo Testamento]). Isto é, o pecado é
diametralmente oposto ao elemento da santidade e justiça do caráter
de Deus, e, assim, o caráter justo de Deus se revolta contra o pecado
no homem e manifesta Sua repulsa ao punir o pecado. Essa mani­
festação do desagrado divino para com o pecado não é espasmódica
ou arbitrária. E a expressão natural de um caráter que ama a justiça
e a bondade. Porque Deus aprova e ama a justiça e a bondade, Ele
deve desaprovar e odiar a injustiça e o mal. A expressão espontânea
dessa atitude do caráter de Deus para com o pecado é a “ira”. Quão
atroz e enorme deve ser o pecado, se o Deus amoroso e gracioso,
em quem Paulo crê, o odeia e o pune dessa maneira! Sua natureza
deve ser o oposto daqueles atributos mais altos de Deus — santida­
de, justiça e amor.
Tomemos outro termo usado por Paulo, hupodikos, culpável
(Rm 3.19). Thayer define este termo assim: “Sob julgamento, al­
guém que perdeu seu processo; com o uso do caso dativo, devedor
a alguém, que deve satisfação (ibid.). Nessa passagem o dativo
de Deus é usado, e assim “todo o mundo” conforme Paulo declara é
“culpável perante Deus”, pois perdeu seu processo perante Deus, deve
satisfação a Deus” (e, por implicação, é incapaz de satisfazê-Lo). Essa

355
Os fundamentos

passagem implica que a essência do pecado é a culpa. O homem está


“sob julgamento” pelo pecado, “sob sentença”. Ele se apresenta para
o tribunal de Deus e descobre ter quebrado a lei de Deus, portanto,
é culpado e sujeito à punição. Um elemento secundário no pecado
está implicado nesse termo, o desamparo do homem no pecado,
pois deve “satisfação a Deus”, embora não seja capaz de prestá-la.
Paulo usa o termo pecado para expressar três fases do mesmo:
PRIMEIRO, o princípio do pecado, ou o pecado em termo abstrato.
Ele usa essa palavra mais freqüentemente nesse sentido do que em
qualquer outro. Muitas vezes, personifica o princípio do pecado,
sem dúvida, porque acredita no Satanás pessoal. EM SEGUNDO
LUGAR, por implicação, ele ensina que o homem está em um estado
de pecado (Rm 5.18, 19). “Todos os homens para condenação”
significa que os homens estão em um estado de condenação — cul­
pados de transgredir a lei de Deus e, portanto, dignos de punição.
“Muitos se tornaram pecadores” significa que a natureza humana
é essencialmente pecaminosa e, assim, pode se dizer que o homem
que está sob o princípio do pecado, ou no estado de pecado (embora
esta frase, “no estado de pecado,” não ocorra em Paulo, mas apenas
em teólogos de uma época posterior). EM TERCEIRO LUGAR,
Paulo usa vários termos para pecado que significam atos de pecado.
Aqui ele o vê em termo concreto. Os homens se esquecem de Deus,
odeiam a Deus, mentem, roubam, matam, cometem adultério,
odeiam os pais, são egoístas, etc.
d) Relação da lei para com o pecado
A lei produz o pecado? Absolutamente não, afirma Paulo. “Que
diremos, pois? E a lei pecado? De modo nenhum! Mas eu não teria
conhecido o pecado, senão por intermédio da lei; pois não teria eu
conhecido a cobiça, se a lei não dissera: Não cobiçarás. Mas o pe­
cado, tomando ocasião pelo mandamento, despertou em mim toda
sorte de concupiscência; porque, sem lei, está morto o pecado”,
etc., etc. (Rm 7.7-14). Os seguintes pontos parecem claramente
expressos nessa passagem:
1. A lei não ê a causa real do pecado de homem. Nem mesmo sua
mais severa exigência pode ser responsabilizada como causa do
pecado do homem.
2. Isto ê verdadeiro, porque a lei ê essencialmente santa, justa e boa;
santa, no duplo sentido, pois é tanto uma ordem separada do

356
O testemunho de Paulo quanto à doutrina do pecado

ser como uma conduta ordenada por Deus, que também requer
santidade, ou o seguir essa ordem separada do ser e da conduta;
justa no sentido de ser a expressão da vontade de Deus e o padrão
dos pensamentos e das ações humanos; boa no sentido de que
é ordenada para fins benéficos. E também chamada “espiritual”,
no sentido de que foi dada por intermédio do Espírito de Deus e
conduz à espiritualidade se obedecida mediante justo motivo.
3. Mas essa lei, santa, justa, boa e espiritual, tornou-se “A OCASIÃO”
para o pecado. Paulo ilustra isso com o décimo mandamento. Ele
não teria cobiçado, se a lei não tivesse dito, Não cobiçarás. A pala­
vra grega para “ocasião”, aphormee, significa literalmente “base
de operações” (Thayer). O princípio do pecado torna a ordem
de Deus seu quartel general para uma longa campanha de lutas
no homem, incitando-o às más ações e desencorajando-o das
boas. Há alguma coisa no homem que se revolta ao fazer o que é
exigido e o inclina a fazer o que é proibido. Conseqüentemente, o
princípio do pecado, usando esta tendência do homem, e fazendo
assim da lei a base de suas operações, torna-se “ocasião” para o
pecado.
4. A lei manifesta a pecaminosidade do pecado — ela mostra como
ele é atroz em sua natureza e mortal em suas conseqüências.
Isto foi o que Paulo intimou em Romanos 5.20, quando disse:
“Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa”. A lei mostra aos
homens que eles são incapazes de alcançar a justiça.
5. Desse modo, a lei prepara NEGATIVAMENTE o caminho que leva
os homens a Cristo como seu único Resgatador. “Desventurado
homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte? Graças
a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. De maneira que eu, de
mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas,
segundo a carne, da lei do pecado” (Rm 7.24, 25). O apóstolo
foi levado ao desespero, quando mergulhou nas perseguições
que efetuou e nos enormes pecados que cometeu, mas quando
ele chegou ao fim de suas forças olhou para cima e aceitou a
libertação do Cristo ressurrecto.
e) Relação da carne com o pecado
Paulo muita vezes usa o termo “carne”, sarx, em contraste com
o termo espírito. Neste sentido, “carne”, de acordo com Thayer,
significa “mera natureza humana, natureza terrena do homem, à

357
Os fundamentos

parte da influência divina e, portanto, propenso ao pecado oposto


a Deus”. Ele considera a carne (que ocorre oitenta e quatro vezes)
como o lugar do princípio do pecado. “Porque eu sei que em mim,
isto é, na minha carne, não habita bem nenhum” (Rm 7.18). Ele não
pretende negar o pecado como um ato de culpa que jaz na vontade
humana. Contudo, ele admite a natureza inferior do homem (sua
sarx) como o elemento de fragilidade e de corrupção humanas, que
fornece um campo para a operação do princípio de pecado. A lei é
a “BASE das operações” (ocasião), mas a carne é o CAMPO aberto
onde o princípio do pecado opera. Esse princípio do pecado arrasta
o homem mais elevado (o chamado “homem interior”, Rm 7.22,
“a mente”, ou a razão, nous, 7.25, ou mais comumente, o espírito)
para baixo, para o reino da carne por intermédio das paixões, dos
apetites, etc. (G15.16; Ef 2.3), ao conduzir o homem todo em pensa­
mentos, atos e caminhos do pecado.
Mas devemos nos apresar em dizer que Paulo não adota o ponto de
vista platônico de que a matéria é má em si mesma. Paulo não pensa
na estrutura física do homem como se fosse em si mesma pecami­
nosa e em seu espírito, ou alma, como se fosse em si mesmo santo.
Ele apenas enfatiza a servidão do homem sob a preponderância do
princípio do pecado devido à fraqueza da carne humana. Paulo não
afirma que a razão humana seja livre do pecado, porque aprova a
lei de Deus. Sua expressão (Rm 7.25): “Com a mente [razão] sou
escravo da lei de Deus; mas, segundo a carne, da lei do pecado”,
enfatiza o fato de existir essa luta no homem; que a natureza mais
elevada aprova as exigências da lei de Deus, embora ela não possa
cumprir essas exigências devido à escravidão de sua natureza
inferior (carne) ao princípio de pecado.
f) A s conseqüências do pecado
Esse ponto não necessita de nenhuma discussão muito prolonga­
da. Paulo pensa na morte, com seu encadeamento de antecedentes,
tristeza, dor e todos os tipos de sofrimento, como conseqüência do
pecado. Isso significa tanto a morte física quanto a espiritual, e a
esta última (separação do homem da comunhão com Deus) é de su­
prema importância para Paulo. Ele também afirmou o grande fato
de que toda a vida cósmica — plantas, animais e seres humanos
— foi feita para sofrer em razão da presença do pecado no homem.
(Ver Rm 5.12-14, 21; 6.21; 7.10; 8.19-25; Ef 2.1, etc.)

358
O testemunho de Paulo quanto à doutrina do pecado

g) A universalidade do pecado
Paulo admite que todo homem é pecador e culpado, ainda que
suas vantagens naturais ou culturais possam ser grandes. Ele
percebeu que ele tinha as maiores vantagens “na carne” para atin­
gir a justiça (Fp 3.3-9), contudo, ele falhou miseravelmente (Rm
7.24), como todos têm falhado (Rm 1.18—2.29). No entanto, ele
não está satisfeito com uma mera demonstração experimental da
universalidade do pecado. Ele se baseia igualmente no que foi dito
nas Escrituras (Rm 3.9-20). Mais do que isso, ele estudou os fatos
da vida humana, tanto os judaicos quanto os gentios e, assim, por
meio do método indutivo, ele é levado pelo Espírito a declarar “visto
que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão
de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado” (Rm 3.20);
“pois todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23).

h) A persistência do princípio do pecado


Em Gálatas 5.17,18, Paulo conta aos cristãos gálatas que “a
carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque
são opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do
vosso querer”. Lightfoot diz: “E um apelo à própria consciência de­
les: “Vocês não tem a evidência desses dois princípios opostos em
seu coração?” (Commentary on Galatians in loco [Comentário sobre
Gálatas no próprio local]). Os cristãos Gálatas são exortados a an­
dar “no Espírito”, e não no princípio do pecado, que não é derrotado
totalmente na regeneração da carne, pois que o pecado prevalece
e os cobre de derrota e vergonha. Essa mesma persistência quanto
ao princípio de pecado é descrita em Romanos 8.5-9, em que ele
certamente descreve a experiência dos crentes. Em seguida, em
Filipenses 3.12-14, ele alude assim à própria experiência Cristã:
“Não que eu o tenha já recebido ou tenha já obtido a perfeição;
mas prossigo para conquistar aquilo para o que também fui con­
quistado por Cristo Jesus. Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo
alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para
trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo
para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo
Jesus”. Paulo sabia, por experiência própria, que o antigo princípio
de pecado ainda o perseguia e que, devido à fragilidade da carne,
ele não tinha alcançado o “alvo” da justiça prática.

359
Os fundamentos

i) O pecado é finalmente derrotado em Cristo Jesus


Paulo pensou na conquista da mente nessa única passagem,
Romanos 5.12-21. A conquista do pecado pela graça em Cristo Jesus
transcende o poder demolidor do pecado concedido por Adão à sua
posteridade. “Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa; mas onde
abundou o pecado, superabundou a graça, a fim de que, como o
pecado reinou pela morte, assim também reinasse a graça pela jus­
tiça para a vida eterna, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor”. Este
é o hino de triunfo do apóstolo, conforme ele escreveu, de forma
notável, ao descrever a bem-aventurança do homem justificado.
A primeira conquista histórica sobre o pecado em Cristo foi sua
concepção sem pecado; embora nascido de uma mulher pecadora,
sua natureza pecaminosa, não lhe foi transmitida. Assim, obteve
vitória após vitória — naqueles trinta anos de silêncio, nos quais
Ele jamais rendeu-se a um único impulso pecaminoso; na tentação
do deserto, quando, nesse supremo momento, diz: “Retira-te,
Satanás” (Mt 4.10); no Calvário, quando Ele humildemente se
submeteu aos sofrimentos do pecado humano, e cuja a submissão
mostrou que Ele estava acima do pecado; na ressurreição, quando a
morte foi derrotada e derrubada em seu próprio campo de batalha,
a sepultura, enquanto Ele, como o Filho de Deus, ergueu-se em
triunfo e, depois de quarenta dias, assentou-se à direita do Pai, para
enviar aos homens o Espírito, para aplicar e estimular sua obra
mediadora.
Essa conquista sobre o pecado é personalizada em cada crente.
Na regeneração, o princípio do pecado é conquistado pelo Espírito
em Cristo, e a natureza divina é, assim, implantada para garantir
a conquista completa sobre o pecado. Na vida de consagração e
culto, o princípio de pecado é derrotado passo a passo, até que
na morte, cujo aguilhão é o pecado, o crente triunfa em Cristo no
último campo; ele não sente nenhum aguilhão e sabe que a luta
contra o monstro do pecado passou para sempre, e na exultação,
ele recebe “uma entrada abundante” ao reino da glória, como Paulo
triunfalmente a recebeu (Fp 1:21, 23; 2Tm 4.6-8).

360
361

Pecado e julgam ento futuro

K.C.B., LL.D.
S ir R o b e r t A n d e r s o n ,
0 autor de The Corning Prince [A Vinda do Príncipe] e The
Silence ofGod [O Silêncio de Deus] .Londres, Inglaterra,
Revisado por Charles L Feinberg, Th.D., Ph.D.

A palavra hebraica hata’ foi traduzida aproximadamente duzentas


vezes como “pecado” nas Bíblias em inglês, embora o significado
seja “erro”; e este fato notável pode nos ensinar que, apesar de
lermos em ljoão 5.17, “toda injustiça é pecado”, a idéia principal é
muita mais profunda. O homem é um pecador, porque ele falha a

SIR ROBERT ANDERSON (1841-1918) converteu-se a Cristo com


dezenove anos e, quase imediatamente, começou a pregar a seus
compatriotas em Dublin, onde ele estudou direito na Faculdade de
Trinity. Tornou-se um membro respeitado da lrish Home Office e um
especialista em investigação criminal. Em 1888, juntou-se à Scotland
Yard, em Londres, para trabalhar como Chefe do Departamento de
Investigação Criminal, um a tarefa que desempenhou com distinção até
sua aposentadoria, em 1896. Em sua aposentadoria, ele foi nomeado
cavalheiro pela Rainha Victoria; e, em 1901, O Rei Edward VII o tornou
Comandante Cavaleiro. Em meio a todos seus muitos afazeres, ele
procurou obter um profundo conhecimento da Bíblia, pregou em várias
conferências e escreveu dezessete livros, incluindo The Corning Prince
[A Vinda do Príncipe], Daniel in the Critics’ Den [Daniel na Cova dos
Críticos], The Gospel and Its Ministry [O evangelho e Seu Ministério]
e The Silence of God [O Silêncio de Deus], publicados por Kregel
Publications. Escreveu tam bém numerosos artigos e panfletos e foi um
inimigo declarado da alta crítica.
Os fundamentos

cumprir o propósito de seu ser. Esse propósito é, como a Confissão


de Westminster habilmente declara, “glorificar a Deus” e desfrutar
Dele para sempre. Nosso Criador pretendeu que fossemos “para
louvor da sua glória” (Ef 1.14). Contudo, falhamos completamente
nisto, porque carecemos “da glória de Deus” (Rm 3.23). O homem
é um pecador não apenas em razão do que faz, mas em razão do
que é.

O homem como um fracasso


Que o homem seja um fracasso não é negado por ninguém,
exceto por aqueles que dizem em seu coração: “Não há Deus”.
Não somos cônscios de aspirações confusas e desejos insatisfeitos
que pertencem ao infinito? Alguns há, assim nos dizem, que não
possuem tais aspirações. Parece haver exceções sem dúvida, mas
elas não podem ser explicadas. E essas aspirações e desejos são
completamente distintos do gemido da criação inferior. Como,
então, podemos responder por eles? Há uma grande quantidade de
provas de que o homem é por natureza um ser religioso; e este fato
indiscutível aponta para um fato adicional de que ele é criatura de
Deus. Alguns atribuem os fenômenos intelectuais e estéticos do
ser humano ao grande “germe primordial”, um germe que não foi
criado, mas, nas palavras de MarkTwain, “apenas aconteceu”. Con­
tudo, a maioria de nós não consegue crer em um efeito sem uma
causa adequada; e se aceitamos a hipótese do germe onipotente
deveríamos considerá-lo mais como uma exibição incrível do poder
criativo do que a cosmogonia Mosaica.

Por que um fracasso?


Mas tudo isso, que é tão evidente para cada pensador livre e
destemido, leva a uma dificuldade de primeira magnitude. Se o ho­
mem é um fracasso, como pode ser uma criatura de um Deus que
é infinito em sabedoria, bondade e poder? Deus não cria criaturas
imperfeitas.
Concluímos que algum mal aconteceu a nossa raça. Aqui a queda
proporciona uma explicação adequada das estranhas anomalias de
nosso ser, e não pode haver nenhuma outra explicação para elas.
Certamente, o homem é uma criatura de Deus, e tão certo quanto isso
é o fato de que ele é uma criatura decaída. Mesmo que as Escrituras

362
Pecado e julgamento futuro

ficassem em silêncio quanto a esse ponto, os fatos palpáveis nos


levariam a inferir que algum desastre semelhante aos relatados no
Gênesis devem ter acontecido à raça humana.

O homem sem desculpa


Mas embora isto ajude a resolver uma dificuldade, acaba por
sugerir uma outra. 0 dogma da depravação moral e irremediável
do homem, aparentemente, não pode ser reconciliada com a justiça
divina de punir o pecado. Mas este homem que não tem desculpa
é o claro testemunho das Sagradas Escrituras. Na época antedilu-
viana toda a raça estava mergulhada no vício; e essa era também
a condição dos cananeus tempos mais tarde. Mas os julgamentos
divinos que caíram sobre eles são prova de que sua condição não
era somente uma conseqüência inevitável da Queda.

A depravação na natureza religiosa


Todos os homens não regenerados não são igualmente degrada­
dos; de fato, o religioso não convertido pode manter um alto padrão
de moralidade, assim como o cristão espiritual. A este respeito,
a vida de Saulo, o fariseu, era tão perfeita quanto a de Paulo, o
apóstolo. Seu próprio testemunho a esse respeito é inequívoco
(At 26.4,5;Fp3.4-6), como também é sua confissão de que, não obs­
tante sua vida de moralidade imaculada, ele era um blasfemador,
que perseguia inocentes, e o maior dos pecadores (lTm 1.13).
A solução desse enigma parece se encontrar no fato tão ple­
namente declarado nas Escrituras, de que não é na esfera moral,
mas na religiosa, ou espiritual, que o homem é desesperadamente
depravado e perdido. Daí a terrível palavra sobre todos, a qual é
verdadeira — “Os que estão na carne não podem agradar a Deus”
(Rm 8.8). O homem natural não conhece seu Deus.

O homem é um pecador no caráter


Enquanto o pecado tem muitos aspectos, o homem é primária e
essencialmente um pecador, não devido ao que faz, mas em razão
do que é. O pecado deve ser julgado do ponto de vista divino, e não
do humano. Ele está relacionado com as exigências de Deus, e não
com as estimativas do próprio homem. E isso se aplica a todos os
aspectos em que o pecado pode ser admitido, como o errar o alvo,

363
Os fundamentos

uma transgressão, uma desobediência, uma queda, uma não-obser-


vância da lei, uma discórdia, ou de qualquer outro modo. O pecado
original pode às vezes encontrar expressão no: “Não posso”; mas:
“Não farei” está além de todo pecado real, pois sua raiz principal é a
afirmação de uma vontade que não está sujeita à vontade de Deus.

A mente carnal
As verdades espirituais são espiritualmente discernidas. Quando
Paulo declara que a mente do não regenerado é inimizade contra
Deus (Rm 8.7), ele está declarando o que é um fato da experiência
de todos os homens que pensam. Fale ao homem do que é devido
a Deus, e a inimizade latente da mente carnal é despertada ime­
diatamente. No caso de alguém que teve preparação religiosa, as
manifestações desse ódio podem ser modificadas ou podem ser
contidas, mas ele está cônscio disso. Homens conscientes do mundo
não compartilham as dúvidas que alguns entretêm quanto à verdade
das Escrituras sobre este assunto. Em todos os momentos há uma
prova que, quando o homem conhece a vontade de Deus, não há nada
nele que o incita a se rebelar contra ela. Esse estado de coisas, além
disso, é obviamente anormal, e, se o divino não for levado em conta,
isso permanecerá um mistério não solucionado e insolúvel. A Queda
explica isso, e nenhuma outra explicação pode ser oferecida.

A raiz do pecado
A epístola de Tiago declara que todo pecado é o resultado de
um desejo maligno. Comer o fruto proibido foi o resultado de um
desejo despertado pela condescendência com a astúcia do tentador.
Uma vez que nossos pais deram ouvidos às mentiras de Satanás,
sua Queda tornou-se um fato. O ato de abertura à desobediência,
que se seguiu naturalmente, foi apenas sua manifestação exterior.
Visto que sua ruína ocorreu, não pela corrupção de seu aspecto
moral, mas pela ruína de sua fé em Deus, não é na esfera moral que
a ruína é completa e desesperada, mas na espiritual.

Reconciliação, a grande necessidade


Romanos 2.6-11 aplica-se a todos, os que têm e os que não têm
revelação divina. Naturalmente, o teste e o padrão seriam diferentes
com o judeu e o pagão, e a negação disso não somente provê uma

364
Pecado e julgamento futuro

desculpa adequada para uma vida de pecado, mas impugna a justiça


do julgamento divino que o aguarda. Nenhuma quantia de sucesso,
nenhuma medida de obtenção nessa esfera, nada mesmo pode aju­
dar a nos colocar em correção para com Deus. Se a casa estiver na
escuridão, porque a corrente elétrica foi cortada, nenhum cuidado,
por maior que seja, dado à planta e ornamentos restaurarão a luz. A
primeira necessidade é ter a corrente renovada. O mesmo acontece
aqui; o homem, por natureza, está alienado da vida de Deus, e sua
primeira necessidade é ser reconciliado com Ele. E sem redenção,
a reconciliação é impossível. Uma discussão da questão do pecado
à parte da solução de Deus para o pecado apresentaria a verdade
em uma perspectiva tão completamente falsa, quanto sugerir um
erro positivo.

O padrão perfeito
O desejo consciente reconhecerá que no julgamento divino o
padrão deve ser a perfeição. Se Deus aceitasse um padrão mais
baixo do que a justiça perfeita, Ele mesmo estaria se declarando
injusto. O grande problema da redenção não é como Ele pode ser
justo ao condenar, mas como Ele pode ser justo ao perdoar. Em uma
corte criminal, a primeira questão em qualquer caso é o declarar-se
culpado ou não culpado, e isto nivela todas as distinções. O mesmo
acontece aqui; todos os homens carecem, e, portanto, todo o mundo
apresenta-se como culpado diante de Deus. Após o veredicto, vem
a sentença, e nesse estágio a questão dos graus da culpa exigem
considerações. No julgamento do ímpio morto haverá muitas faixas
para alguns, e poucas para outros (Ap 20.12).

Julgamento futuro
A questão transcendente do destino final dos homens deve ser
resolvida antes do advento daquele dia; porque a ressurreição o
declarará, e a ressurreição precede o julgamento. Porque há uma
“ressurreição da vida”, e uma “ressurreição do juízo” (Jo 5.29). Mas
embora a suprema declaração do destino dos homens não aguarde
aquele inquérito terrível, o julgamento futuro é uma realidade
para todos. Porque, quando a Palavra declara que todos devem
estar diante do trono do juízo de Cristo (Rm 14.10,12), isso é uma
referência ao povo de Deus. Este julgamento trará recompensa a
alguns e perda para outros. Mas este julgamento da tribuna de

365
Os fundamentos

Cristo só tem um conexão incidental sobre o tema deste capítulo,


e não deve ser confundido com o juízo do grande trono branco. Do
julgamento, neste último sentido, o crente tem absoluta imunidade
(Jo 5.24). Os crentes são filhos de Deus (Jo 1.12), e não é por re­
curso a uma corte criminal que as faltas e as más ações dos filhos
são julgadas.

Graus de recompensas e castigos


Tem sido dito que nem mesmo dois dos redimidos terão o
mesmo céu; e nesse sentido, dois dos perdidos não terão o mesmo
inferno. Isto não é uma concessão às heresias populares sobre este
assunto. Porque a invenção de um inferno de duração limitada ou
traduz o caráter de Deus, ou praticamente nega a obra de Cristo.
Se a extinção do ser fosse o destino do impenitente, mantê-los
no sofrimento por um tempo ou um século seria a crueldade de
um tirano que, tendo decretado a morte dos criminosos, adiou a
execução da sentença para torturá-los. Muito pior do que isto, por­
que desse ponto de vista a ressurreição do injusto não teria outro
propósito senão aumentar sua capacidade para sofrer. Se adotamos
a alternativa — que o inferno é uma disciplina punitiva por meio da
qual o pecador passará para o céu —desacreditamos a expiação e
arruinamos a verdade da graça. Se o prisioneiro ganha sua liberta­
ção ao servir sua sentença, onde está a graça? E se os sofrimentos
do pecador podem expiar seu pecado, o melhor que pode ser dito
sobre a morte de Cristo é que ela abriu um caminho curto e fácil
para o mesmo objetivo, que pode ser alcançado por uma jornada
entediante e dolorosa. Além disso, a menos que o pecador se torne
justo e santo antes de entrar no inferno (nesse caso, por que não
deixá-lo entrar no céu imediatamente?), ele continuará a pecar;
visto que todo novo pecado envolverá uma nova penalidade, sua
punição pode não ter fim.

Falso argumento
Todo tratado em apoio desses erros confia no argumento de
que as palavras das Escrituras, que conotam duração eterna, re­
presentam palavras no texto original que não tem significado. Mas
esse argumento é desacreditado pelo fato de que o crítico seria
compelido a usar essas mesmas palavras, se ele fosse se colocar
na tarefa de traduzir novamente a versão para o grego. Porque essa

366
Pecado e julgamento futuro

linguagem não tem outra terminologia para expressar o pensamen­


to. Mas o cristianismo varre todos esses erros. O Deus do Sinai
não se arrependeu de seus trovões, mas revelou-se plenamente em
Cristo. A maravilha da revelação não é a punição, mas o perdão.
0 grande mistério do evangelho é como Deus pode ser justo e,
ao mesmo tempo, o justificador dos pecadores. As Escrituras que
revelam esse mistério o tornam claro como a luz, ou seja, que isso
é possível somente por meio da redenção (1 Jo 2.2). A redenção só
pode ocorrer apenas e totalmente pela morte de Cristo (Jo 3.16).
Pôr limitações aqui é limitar Deus.

A cruz de Cristo
Na sabedoria de Deus, a plena revelação do juízo eterno e a des­
truição do perdido aguardavam a suprema manifestação da graça
e do amor divino no evangelho de Cristo. Quando esses terríveis
temas são separados do evangelho, a verdade é apresentada em uma
falsa perspectiva que parece ter sabor de erro. Nem mesmo a lei
divina e as penalidades pela desobediência nos capacitarão a admitir
corretamente a gravidade do pecado; isso podemos aprender somen­
te pela Cruz de Cristo. Nossa estimativa do pecado será proporcional
a nossa avaliação do custo de nossa redenção, o sangue precioso
de Cristo. Aqui, e somente aqui, podemos conhecer o verdadeiro
caráter e profundidade do pecado humano, e somente aqui podemos
conhecer, até onde a mente finita pode conhecê-lo, as maravilhas de
um amor divino que ultrapassa todo o conhecimento.
E o benefício é para todo crente. Foi pela descrença que o
primeiro homem se afastou de Deus; portanto, é muito lógico que
nosso retorno a Ele seja pela fé. Se esse evangelho é verdadeiro,
quem pode ousar impugnar a justiça do castigo eterno? Cristo abriu
o reino de Deus para todos os crentes; o caminho para Deus está
livre, e quem quer que queira pode vir. Não há nenhuma decepção
nisso, e a graça não dá lugar para o favoritismo (lTm 2.3-6).
Isto é tão claro quanto as palavras podem traduzir, ou seja, que
as conseqüências da aceitação ou rejeição a Cristo são finais e
eternas. Todas as questões relacionadas pertencem a um Deus de
justiça perfeita e de amor infinito. E que essa seja nossa resposta
para aqueles que exigem uma solução deles. A fé sem hesitação é
nossa atitude correta na presença de revelação divina, mas onde a
Escritura se cala, calemos nós também.

367
369

O que Cristo ensina


sobre retribuição futura

Rev. W illia mC. P r o c t e r , F.Ph.


Croydon, Inglaterra,
Resumido e editado por James H. Christian Th.D.

Há quatro razões para limitar nossa consideração do assunto de


retribuição futura quanto ao ensino de nosso Deus Jesus Cristo;
(1) Limita o alcance de nossa investigação para o que é possível
em um ensaio breve. Concentraremos nossa atenção em dez
passagens, nas quais nosso Senhor usa a palavra Geena (que era
o título habitual em sua época para a habitação dos perdidos),
junto com aqueles outros versículos que evidentemente se
referem ao estado futuro do ímpio.
(2) Proporciona uma resposta suficiente à especulação daqueles que
não sabem, ao se referir à revelação Daquele que sabe. Tomando
as palavras do próprio Cristo, encontraremos a melhor base de
acordo comum nestes dias do ponto de vista da inspiração em
relação aos perdidos. Certamente, aquele que é “a Verdade”
jamais representaria erradamente ou exageraria em um assunto
de importância vital, nem encorajaria os erros populares, tam­
pouco criaria temores desnecessários.

WILLIAM C. PROCTER, Croydon, Inglaterra. (Informações bibliográficas


adicionais indisponíveis).
Os fundamentos

(3) Também, proporciona uma resposta suficiente para aqueles que


apresentam a doutrina como irracional e desonrosa a Deus, e
que consideram aqueles que a sustentam como pessoas de mente
estreita e de coração duro. Essa resposta os lembra que todas as
mesmas expressões que, em sua maioria, são ferozmente denun­
ciadas hoje, saiam dos lábios do Salvador que morreu por nós, e
proveio do coração do “Amigo das almas". Certamente, não temos
o direito de procurar ser mais largos de mente do que Ele era,
ou de nutrir falsas esperanças que não têm uma compaixão mais
profunda pelas as almas dos homens, pois isso seria quase uma
blasfêmia.
(4) Ao considerar o assunto como cristãos professos, as palavras do
próprio Mestre certamente devem por um fim a toda controvérsia;
e estas são claras e inequívocas quando tomadas em seu sentido
pleno e óbvio, sem sujeitá-las a qualquer interpretação forçada.
Em seguida, consideraremos brevemente o ensino de Cristo
sobre este assunto, mas antes devemos perguntar:

O quê ensinou nosso Senhor sobre a certeza da


retribuição futura?
A palavra “retribuição” deve ser preferida a “castigo”, porque a
Bíblia nos ensina que o destino do ímpio não é uma inflicção arbi­
trária (muito menos, vingativa), mas a conseqüência necessária de
seus próprios pecados. Tomando as passagens em sua ordem, em
Mateus 5.22, Cristo fala da ira sem motivo contra seu irmão, e de
que aquele que proferir um insulto a seu irmão estará sujeito “ao
inferno de fogo”, enquanto que, nos vv 29 e 30, Ele profere uma
advertência semelhante concernente ao pecado da luxúria; e estes
estão no Sermão da Montanha, que é a parte geralmente aceita de
seu ensino! No capítulo 8.12, Ele fala que os “filhos do reino”, os que
são descrentes, serão “lançados para fora, nas trevas”, e acrescenta
que ali haverá “choro e ranger de dentes” — expressões que são
repetidas nos capítulos 22.13 e 25.30. No capítulo 10.28 Jesus disse:
“Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma;
temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma
como o corpo” — um temor saudável que está decididamente em
falta nos dias de hoje, e que muitas pessoas consideram como um
remanescente da superstição bastante inadequada para esta era
esclarecida! A explicação que nosso Senhor deu à parábola do joio

370
O que Cristo ensina sobre retribuição futura

e do trigo, em que declarou: “Mandará o Filho do Homem os seus


anjos, que ajuntarão do seu reino todos os escândalos e os que pra­
ticam a iniqüidade e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro
e ranger de dentes. [...] sairão os anjos, e separarão os maus dentre
os justos, e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger
de dentes” (Mt 13.41,42,49, 50). No capítulo 23: Ele fala do fariseu
hipócrita como filhos “do inferno”, mostrando que a conduta deles
os tinham capacitado para isto, e que eles iriam “para o seu próprio
lugar”, como Judas (que Ele descreve como “o filho da perdição”
em Jo 17.12), enquanto no v. 33 ele pergunta: “Como escapareis da
condenação do inferno?”. A lei de retribuição não pode ser rejeita­
da, nem mais nem menos do que a da gravidade; pois ela é fixa e
inalterável. Esse inferno não foi preparado para os seres humanos,
mas eles se preparam para ele, e isto fica claro na sentença que
nosso Senhor diz que ele pronunciará sobre aqueles à sua esquerda
no último grande dia: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo
eterno, preparado para o diabo e seus anjos” (Mt 25.41).
Voltando-nos para o evangelho, de acordo com Marcos, encontra­
mos nosso Senhor dizendo, no capítulo 3.29, “Mas aquele que blasfe­
mar contra o Espírito Santo não tem perdão para sempre, visto que é
réu de pecado eterno”. Qualquer posição que possa ser tomada como
pertencente ao caráter de blasfêmia contra o Espírito Santo, a causa
e a conseqüência estão aqui intimamente ligadas, o pecado eterno
traz retribuição eterna. As palavras, no original, indubitavelmente
indicam um hábito inveterado em lugar de um ato isolado e, prova­
velmente, seria melhor traduzido por: “é mantido debaixo do poder
de um pecado eterno”. Isto, em si mesmo, impede a possibilidade
de perdão, pois assume a impossibilidade de arrependimento; além
disso, cada repetição que envolve uma nova penalidade, a punição
é naturalmente interminável. Semelhantemente, em João 8.21,24,
nosso Senhor repete duas vezes essa declaração para os judeus
que não acreditam Nele: “Perecereis no vosso pecado”, o que indica
que pecados não perdoados devem manter a alma na condenação e
conspurcação; porque a morte, longe de mudar o caráter humano,
apenas o fixa; e, conseqüentemente, Cristo fala no capítulo 5.29 da
ressurreição dos condenados, “ a ressurreição do juízo”.
Um estudo cuidadoso do uso das palavras bíblicas “vida” e
“morte” mostrará claramente que a raiz dessas idéias é respecti­
vamente “união” e “separação”. A vida física é a união do espírito

371
Os fundamentos

com o corpo; a vida espiritual é a união do espírito com Deus; a


vida eterna é a união perfeita e consumada com toda a eternidade.
Semelhantemente, a morte física é a separação do espírito do cor­
po; a morte espiritual é a separação do espírito de Deus; e a morte
eterna é a perpetuação desta separação. Conseqüentemente, para
todos aqueles que não experimentaram um segundo nascimento,
“a segunda morte” torna-se inevitável; porque aquele que é nascido
apenas uma vez, morre duas vezes, ao passo que é o que é “nascido
de novo” morre apenas uma vez.

O quê Cristo ensinou quanto


ao caráter da retribuição futura?
Já vimos que Ele falou sobre isto cheio de tristeza e miséria em
sua séxtupla repetição da notável expressão: “Haverá choro e ran­
ger de dentes” (Mt8.12; 13.42,50; 22.13; 24.51; 25.30; Lc 13.28). Em
Marcos 9.43-48, nosso Senhor fala duas vezes do “fogo inextinguível”,
e três vezes acrescenta, “onde não lhes morre o verme, nem o fogo
se apaga”. Naturalmente, ele está usando as metáforas judaicas
comuns para Geena, dos fogos perpétuos, que queimavam no vale
de Hinom para destruir o refugo, e os vermes que se alimentavam
dos cadáveres não sepultados que ali eram lançados; mas, como já
vimos, Ele jamais encorajou uma ilusão popular. O nosso Senhor fa­
lou duas vezes dos mestres infrutíferos que são lançados “no fogo”
(Mt 7.19; Jo 15.6); duas vezes da “fornalha acesa” (Mt 13.42,50);
duas vezes do “inferno de fogo” (Mt 5.22; 18.9); e duas vezes do
“fogo eterno” (Mt 18.8; 25.41).
Na parábola de nosso Senhor sobre o homem rico e Lázaro,
o primeiro é representado como estando “em tormentos” e “em
angústia” no “inferno”, e que a memória ultrapassa a vida atual e
nos acompanha para além da sepultura, fica claro pelas palavras de
Abraão a ele: “Filho, lembre-te” (Lc 16.23-25). Poderia algum tor­
mento material ser pior do que a tortura moral de uma consciência
intensamente afiada, na qual a memória se torna remorso, quando
habita em um tempo que não passa e possui talentos que são mal
utilizados, sobre deveres omitidos e pecados cometidos, sobre
oportunidades perdidas tanto de fazer quanto de obter o bem,
sobre privilégios negligenciados e avisos rejeitados? Isto é muito
mal aqui, onde a memória é tão defeituosa, e a consciência pode
ser facilmente entorpecida; mas o que deve ser daqui em diante,

372
O que Cristo ensina sobre retribuição futura

quando nenhum expediente ajudará a banir a lembrança e submer­


gir o remorso? Cecil põe o assunto em uma casca de nozes quando
ele escreve: “Inferno é a verdade vista muito tarde”.
Seguramente, tais expressões como o verme que não morre e o
fogo inextinguível não representam ficções piedosas, mas fatos claros;
e podemos estar certos de que a realidade excederá, e não será mais
amena, às figuras empregadas, como no caso das bem-aventuranças
dos redimidos. As maldições, assim pronunciadas, são mais terríveis
do que os trovões do Sinai, e a condenação anunciada mais terrível do
que a de Sodoma; contudo nunca devemos esquecer que estas terrí­
veis expressões saíram dos lábios do Amor Eterno, e veio do coração
transbordante de terna compaixão pelas almas dos homens.

O quê Cristo ensinou sobre


a continuidade da retribuição futura?
Há alguma base sólida em Suas palavras relatadas para a doutri­
na da esperança eterna, ou, quem sabe, a sombra de um fundamen­
to para a idéia de que todos os homens serão eventualmente salvos?
Muito tem sido discutido o fato de que a palavra grega “aionios”
(usado por nosso Senhor em Mt 18.8 e 25.41,46, é traduzida por
“eterno” em muitas versões em português, RA; RC; NVI; BJ; ECA;
NTLH) literalmente significa “longo-tempo”; mas um exame dos
vinte e cinco lugares, nos quais ela é usada no Novo Testamento,
revela o fato de que é duas vezes usadas em referência ao evan­
gelho, uma vez em referência à a aliança do evangelho, uma vez
em referência à consolação que nós é trazida pelo evangelho, duas
vezes em referência ao próprio Deus, quatro vezes em referência
ao futuro do ímpios, e quinze vezes em referência à vida presente
e futura do crente. Ninguém pensa em limitar sua duração nos
primeiros quatro casos e no último, por que fazem isso naquele que
sobra? O dilema torna-se agudo ao se considerar as palavras de
nosso Senhor relatadas em Mateus 25.46, em que, precisamente, a
mesma palavra é usada com relação à duração da recompensa dos
justos e da retribuição dos ímpios, pois somente pela adulteração
e distorção violentas pode a mesma palavra na mesma sentença
possuir significados diferentes. Certamente, é um tanto ilógico
para os que consideram tanto o amor de Deus, argumentar que
a punição será a solução futura para aqueles que o Amor Divino
deixou de influenciar aqui.

373
Os fundamentos

Não somente não há o menor vestígio no ensino de nosso Senhor


de que o castigo futuro será remediável ou corretivo, mas Suas
palavras com relação a Judas, em Mateus 26.24, são inexplicáveis
se aceitarmos esta suposição. Seguramente, sua existência ainda
teria sido uma bênção, se o seu castigo fosse seguido pela restau­
ração final, e Cristo, no entanto, jamais teria se expressado com as
palavras lamentavelmente solenes: “Mas ai daquele por intermédio
de quem o Filho do Homem está sendo traído! Melhor lhe fora não
haver nascido”. Semelhantemente, há um contraste notável e signi­
ficativo entre as palavras de nosso Senhor aos judeus incrédulos,
relatadas em João 8.21: “Para onde eu vou vós não podeis ir”, e as
proferidas a Pedro no capítulo 13.36: “Para onde vou, não me podes
seguir agora; mais tarde, porém, me seguirás”

O que Cristo ensinou quanto às causas


da retribuição futura?
Um estudo cuidadoso das palavras de nosso Senhor mostra
que há duas causas primárias, a saber, incredulidade deliberada
e rejeição obstinada; e, seguramente, estas são apenas diferentes
facetas do mesmo pecado. Em Mateus 8.12, o contraste entre a
fé do centurião pagão e a incredulidade da nação judaica tirou de
Seus lábios as solenes palavras: “Ao passo que os filhos do reino
serão lançados para fora, nas trevas”; ao passo que no capítulo 23,
a terrível denúncia no versículo 33 é seguida pelo triste lamento:
“Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te
foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como
a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o
quisestes!” (v. 37).
Semelhantemente, em Marcos 3.29, o “pecado eterno” só
pode ser o da rejeição contínua das ofertas de misericórdia; e em
João 8.24, nosso Senhor declara: “Por isso, eu vos disse que mor-
rereis nos vossos pecados; porque, se não crerdes que EU SOU,
morrereis nos vossos pecados” Finalmente, em Marcos 16.16,
encontramos as palavras: “Quem crer e for batizado será salvo;
quem, porém, não crer será condenado”.
Uma outra dificuldade é removida, quando admitimos que
nosso Senhor ensinou que haveria diferentes graus no inferno
como no céu. Desse modo, em Mateus 11.20-24, Ele ensinou que
haveria “menos rigor” no Dia do Juízo para Tiro e Sidom do que

374
O que Cristo ensina sobre retribuição futura

para Corazim e Betsaida, e para Sodoma do que para Cafarnaum; e


em Marcos 12.40 ele fala do “juízo muito mais severo”. E claro que
a retribuição futura será proporcional à quantidade de culpa e de
graça rejeitada. (Ver também Lc 12.47,48; Jo 19.11).
Até aqui, examinamos, o mais detalhadamente possível neste
espaço limitado, todas as palavras relatadas de nosso Senhor que
sustentam esse assunto importante. Só resta, em suma, salientar,
muito brevemente, que todo o vento do ensino de Cristo confirma o
que aprendemos nessas passagens isoladas, e que a retribuição não
é apenas incidental, mas uma parte fundamental da mensagem
evangelho. Este é o pano de fundo obscuro sobre o qual Seu amável
convite e ternos postulados são apresentados, e a mensagem do
evangelho perde muito de sua força quando essa doutrina é omiti­
da. Mas, pior de tudo, as sérias exortações para o arrependimento
imediato e a fé perdem sua urgência, se o resultado final for o mes­
mo para aqueles que adiam seus deveres para além da vida atual.
Será que, seriamente, poderíamos aceitar que Judas será, por fim,
como João, e Nero como Paulo?
E para terminar, as doutrinas do céu e do inferno parecem ficar de
pé ou caírem juntas, porque ambas se estabelecem sobre a mesma
revelação divina, e ambas tem a mesma palavra “eterna” aplicada
a sua duração. Se a ameaça da palavra de Deus não for confiável, o
mesmo pode acontecer com as promessas; se as denúncias não têm
significado real, o que poderíamos falar dos convites? Ruskin afir­
ma muito bem que a negação do inferno é “mais perigosa, porque é
mais atraente, uma forma de infidelidade moderna”. Mas será que
é tão moderna assim? Não seria um eco da dúvida insinuante do
diabo: “E assim que Deus disse” (Gn 3.1). Seguida pela insistente
negação, “E certo que não morrereis” (Gn 3.4), que levou à Queda
do homem. Que nós, portanto, acreditemos mais na verdade de
Deus, do que na mentira do diabo; aceitemos a revelação divina,
antes da especulação humana e cuidemos do que Cristo ensinou
tão claramente, sem mitigar, modificar ou minimizar Seus solenes
avisos.

375
377

34 A expiação

P r o f. F r a n k lin Jo h n s o n , D.D., LL.D.


Autor de Citações do Antigo Testamento no Novo
Testamento, Chicago
Revisado por Gerald B. Stanton, Th.D.

O mundo cristão como um todo acredita em uma expiação


substituta. Esta tem sido a crença do cristianismo desde que come­
çou a pensar sua doutrina. A expiação substituta foi declarada por
Atanásio tão clara e plenamente como por qualquer outro escritor
posterior. Todos os grandes credos históricos que apresentam a
expiação a apresentam, em alguma medida, como uma expiação
substituta. Todos os grandes sistemas históricos de teologia a
entesouram como se fosse a Arca do Aliança, o objeto central do
Santo dos Santos.

FRANKLIN JO H N SO N (1836-1916) foi um hom em de muitos talentos


e interesses. Em 1860, tornou-se membro da Convenção Nacional
Republicana que nomeou Abraham Lincoln para Presidente. Escreveu
livros sobre temas variados como a evolução, a feminilidade, estudos
psíquicos, missões e romances. Johnson, depois de receber sua
graduação pelo Seminário Teológico Colgate, em 1861, foi ordenado
como ministro Batista e assumiu seu primeiro pastorado em Bay City,
Michigan. Entre 1862 e 1889, Johnson liderou igrejas em Nova Jersey,
Massachusetts e Atenas, na Grécia. Mais tarde, lecionou na Universidade
de Ottawa e na Universidade de Chicago. Johnson tam bém contribuiu
para enciclopédias e traduziu hinários latinos.
Os fundamentos

Bases da crença na substituição


Se perguntássemos àqueles que sustentam essa doutrina quais as
bases para que acreditem que Cristo é o substituto dos pecadores,
haveria muitas respostas, mas talvez em apenas duas delas todas as
vozes concordariam. A primeira dessas bases seria as repetidas decla­
rações das Sagradas Escrituras, que são tão claras, tão precisas, tão
numerosas e tão variadas, algo que não deixa lugar à dúvida sobre seu
significado. A outra base é o testemunho do coração humano, sempre
que lamenta seu pecado ou alegra-se em uma libertação conquistada.
A declaração das Escrituras de que Cristo carregou nossos pecados na
cruz é necessária para satisfazer os desejos da alma.

A teoria da influência moral


Embora o mundo cristão, como um todo, acredite em uma expia-
ção substituta, a doutrina é rejeitada por uma minoria de homens
capacitados que apresentam, no lugar dela, o que muitas vezes tem
sido chamado de a teoria da “influência moral”. De acordo com esse
ponto de vista, a única missão de Cristo foi revelar o amor de Deus
de um modo tão comovente, a ponto de derreter o coração e induzir
os homens a abandonar o pecado. Agora, ninguém põe em questão
a profunda influência espiritual de Cristo onde ele é pregado como
a propiciação de Deus, e onde a Cruz é elevada como o único
meio designado de alcançar e salvar o perdido. Eles só contestam
quando a “teoria de influência moral” é apresentada como uma
explicação suficiente da expiação, para a negação de que a obra de
Cristo tornou Deus propício ao homem. Pode-se apreciar a lua, sem
desejar que ela ponha de lado o sol e as estrelas.

Argumentos contra a substituição


Os defensores da “teoria da influência moral” querem tirar a dou­
trina da substituição de seu lugar. Eles tentam fazer isso, avançando
muitos argumentos, dos quais somente nos deteremos em dois aqui,
visto que os outros, em momento de maior luz, cairão por si mesmos.
a) Substituição Impossível
Eles dizem que a doutrina da substituição supõe o que é impos­
sível. A culpa não pode ser transferida de uma pessoa para outra. A
punição e a penalidade não podem ser transferidas de uma pessoa

378
A expiação

culpada para uma pessoa inocente. Uma pessoa inocente pode


receber o pecado, mas se assim for, ela ainda será inocente, e
não culpada. Uma pessoa inocente pode sofrer, mas se assim for,
seu sofrimento não será punição ou penalidade. Tal é a objeção:
o mundo cristão, ao crer que uma expiação substituta foi feita por
Cristo, acredita em uma coisa que é contrária às leis necessárias
da lógica. O leitor perceberá que essa objeção, no seu todo, tem
que ver com as definições das palavras culpa, punição e penali­
dade, e não tem força além da esfera da crítica verbal. E verdade
que a culpa e o castigo, no sentido da culpabilidade pessoal, não
podem ser transferidos de um malfeitor para um benfeitor. Isso
não é uma grande descoberta, pois é sustentada tão seriamente
por aqueles que acreditam em uma expiação substituta como
por aqueles que a negam. Ao reconhecer, porém, o fato de que
a culpa pertence historicamente àquele que a cometeu, e neste
sentido é intransferível, de modo algum isso milita contra o fato
de que culpa como uma obrigação à justiça pode, sob certas
condições, ser transferida.
b) Substituição Imoral
O segundo argumento por meio do qual os defensores da
“teoria da influência moral” procuram refutar a doutrina de uma
expiação substituta é, como o primeiro, igualmente infeliz, pois
também critica as palavras mais do que os pensamentos que
são explorados nas expressões. A doutrina de uma expiação
substituta, dizem, é imoral. Examinemos o que nessa doutrina é
imoral. Responde-se que ela é imoral ao dizer que nossa culpa foi
transferida para Cristo e que Ele foi punido por nossos pecados.
Contudo, eles deixam de observar que isso só seria verdade, se
a ação fosse contrária à vontade de Cristo, o que definitivamente
não era.
Quem objeta, não sustenta que a doutrina de uma expiação
substituta produziu igualmente imoralidade sempre que foi procla­
mada. Ele não se aventura a provar essa responsabilidade apelando
à história. O apelo seria fatal. Durante mil e novecentos anos, o
único grande avanço moral da raça humana foi provocado pela pre­
gação de uma expiação substituta. “Pelo fruto se conhece a árvore”
(Mt 12.33). E impossível que uma doutrina essencialmente imoral
fosse a causa da moralidade entre os homens.

379
Os fundamentos

A teoria da influência moral


não é adequada
Voltemo-nos agora à “teoria da influência moral” e consideremos por
que não deve ser aceita. Em primeiro lugar, ela é muito circunscrita.
Como uma teoria completa da expiação, ela é muito circunscrita,
muito restrita. Fosse ela universalmente adotada e seria o fim do
pensamento sobre esse grande tema. Nesse estudo, a expiação
substituta promete uma eternidade de progresso encantador. Ela
não pode ser esgotada.
A adoção desse ponto de vista circunscrito seria o fim do pen­
samento, assim como seria o fim da emoção. O coração sempre
foi iluminado pela pregação de um Cristo que carregou nossos
pecados diante de Deus, na Cruz. Por esta verdade, o pecador
endurecido foi submetido e nele o pecador arrependido encontrou
uma fonte de delícias. Uma expiação de custo infinito, fluindo do
amor infinito e procurando libertação da perda infinita, derrete o
mais frio coração e inflama o mais caloroso. Pregar um sacrifício
menor seria disseminar o gelo, em vez do fogo.
Mas a vontade é alcançada por meio da razão e das emo­
ções. Aquele que deixasse de desafiar o pensamento profundo e
extinguisse as chamas da emoção deixaria de alcançar a vontade
e de transformar a vida. A teoria torna a morte de Cristo predomi­
nantemente cênica, espetacular, um esforço para exibir o amor de
Deus, em vez de uma oferta para Deus que, por Sua natureza, é ne­
cessária para a salvação do homem. Ela luta em vão para encontrar
uma razão valiosa para o terrível sacrifício. Conseqüentemente,
pode, de forma apropriada, ser sentenciada como uma imoralidade
essencial. Em todo caso, a obra de Cristo, se interpretada dessa
maneira, não provará “o poder de Deus para a salvação” (Rm 1.16).
A especulação chama-se “teoria da influência moral”, mas quando
pregada como uma teoria exclusiva da expiação é incapaz de exer­
cer qualquer profunda influência moral.
O homem que morre para resgatar da morte aquele que ele ama
é lembrado com lágrimas de reverência e gratidão; o homem que
se entrega à morte apenas para mostrar que ama é lembrado com
horror.
Além disso, o ponto de vista não é bíblico. A falha principal da­
queles que avançam nessa visão está na esfera da exegese. A Bíblia
fala tanto da expiação substituta, que o leitor a descobre em todos

380
A expiação

os lugares. Os textos que a ensinam não são raros, nem são apenas
expressões isoladas; há um grande número deles; eles se apressam
em tropas; ocupando cada colina e cada vale. Eles ocasionam o
maior embaraço àqueles que negam que a relação de Deus com o
mundo é determinada pela cruz, e vários métodos são empregados
por vários escritores em uma tentativa de reduzir seu número e
sua força. Visto que eles são mais abundantes nas epístolas do
apóstolo Paulo, alguns depreciam sua autoridade como um mestre
do cristianismo. A doutrina está incluída nas palavras que nosso
Senhor proferiu na última ceia, assim alguns atacam essas palavras
como se não fossem genuínas. Cristo é declarado, repetidamente,
como uma propiciação. “a quem Deus propôs, no seu sangue, como
propiciação, mediante a fé” (Rm 3.25; ver também Jo 2.2; 4.10;
Hb 3.17).
Muitos argumentos especiais são contrários ao claro significado
dessas declarações. Não parece difícil entendê-las. A propiciação
deve ser uma influência que torna alguém propício, e a pessoa que
se torna propícia, por isto mesmo, deve ser a pessoa que foi ofen­
dida. No entanto, alguns não hesitam em afirmar que esses textos
consideram o homem como o único ser propiciado pela cruz.
Torturas especiais são aplicadas a muitas outras passagens
das Escrituras para evitar que proclamem uma expiação
substituta. Cristo é “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do
mundo!” (Jo 1.29). “O Filho do homem, que não veio para ser
servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos”
(Mt 20.28; Mc 10.45). “Aquele que não conheceu pecado, ele o
fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de
Deus” (2Co 5.21). Estes são alguns exemplos das incontáveis
declarações, que as Escrituras fazem, sobre a expiação substi­
tuta e com as quais aqueles que rejeitam a doutrina lutam em
vão. Qualquer especulação que se coloque contra esta corrente
poderosa que flui ao longo de todas as Escrituras está destina­
da a ser varrida.
Ainda mais. Uma teoria teológica, como uma pessoa, deve ser
julgada um pouco pela companhia que tem. Se ela mostra uma incli­
nação inveterada para se associar com outras teorias, que mentem
completamente na superfície, que, no fundo, não é saudável e não
resolve nenhum problema, assim como rejeita a experiência cristã
mais profunda, evidentemente também deve ser varrida, pois é do
mesmo tipo.

381
Os fundamentos

A teoria, à qual me oponho aqui, tende a se consorciar com um


ponto de vista inadequado da inspiração. Alguns de seus repre­
sentantes questionam a inerrância das Escrituras, até mesmo nos
assuntos pertinentes e à fé e à conduta. Ela tende a se consorciar
com um ponto de vista inadequado de Deus, porque alguns de
seus representantes, ao exaltar Seu amor, se esquecem de Sua
santidade e de Sua ira terrível contra os malfeitores incorrigíveis.
Tem também a tendência de se consorciar com um ponto de vista
inadequado do pecado, porque alguns de seus representantes fa­
zem com que a alienação do homem de Deus consista meramente
em atos, em lugar de um estado subjacente do qual eles procedem.
Tem, por fim, a tendência de se consorciar com um ponto de vista
inadequado de responsabilidade e de culpa,pois alguns de seus
representes ensinam que estas cessam quando o pecador se con­
verte, de maneira que não há nenhuma necessidade de propiciação,
mas apenas de arrependimento. Um representante destacado dessa
teoria escreveu o seguinte: “Todos os justos proclamam que estão
satisfeitos se o pecado for abolido”. “A lei Divina está direcionada
contra o pecado e fica satisfeita quando o pecado cessa.” “Se a
graça traz um fim ao pecado, o fim buscado pela lei foi atingido.
Portanto, não pode ser possível que à vista de Deus haja qualquer
necessidade de satisfazer a lei diante da graça que pode salvar os
pecadores.” Estas palavras são como o som de uma “canção muito
adorável”; mas muitas almas perdoadas proferiram uma tendência
mais preocupante. Um homem pode cessar de pecar sem inverter
o dano que ele causou. Em seu ofício, suponhamos, ele defraudou
as viúvas e os órfãos, e agora eles estão mortos. Ora, em sua vida
social, ele levou o jovem à incredulidade e ao vício, e eles agora
riem de seus esforços para desfazer o dano, ou entraram na eter­
nidade sem ser salvos. Em um sentido, seu pecado chegou a um
fim, contudo seus efeitos perniciosos estão em plena carreira. Sua
consciência lhe diz que ele é responsável não só pela comissão de
seus pecados, mas pela ruína causada por seus pecados. Em outras
palavras, ele é responsável por todo o encadeamento de males que
ele pôs em operação. A profundidade de sua responsabilidade é
muito mais profunda, para que tal luz a possa sanar.
Estas são algumas das razões que conduzem o mundo cristão
como um todo a rejeitar como inadequada a “teoria da influência
moral” da expiação.

382
A expiação

A suficiência da expiação substituta


Embora a doutrina bíblica de salvação ainda não tenha constru­
ído uma teoria, não obstante muitos pensadores cristãos jamais
cessarão de procurar por uma teoria adequada da expiação. Pode
ser bom para nós, portanto, considerar algumas das condições com
as quais é necessário que ela concorde, para que tenha sucesso em
lançar qualquer nova luz sobre este tema vital.
1. Qualquer teoria da expiação, para ser adequada, deve proceder
de uma interpretação justa e natural de todas as declarações
bíblicas sobre o assunto. Ninguém deve apanhar e escolher
dentre elas. Ela não deve sufocar ninguém e levá-lo ao silêncio.
2. E preciso fazer uso do pensamento que outras gerações produzi­
ram. Ninguém deve descartar estes materiais antigos. Embora
eles não sejam uma construção completa, constituem um fun­
damento que não podemos desprezar, e quem quer que avance
em nosso conhecimento da paz que foi produzida para nós por
intermédio de Cristo não deve desprezar e deixar de construir
sobre esse fundamento.
3. Deve-se levar em conta todos os atributos morais de Deus, por­
que todos eles são importantes para nossa salvação. No amor de
Deus se descobrirá o motivo principal para a expiação (Jo 3.16).
Na justiça de Deus se encontrará a necessidade para a expiação
(Rm 3.25, 26). E possível descobrir um efeito da expiação, o
afastar a ira de Deus do homem, o produto do amor e da justiça
ultrajado pelo pecado: “Mas Deus prova o seu próprio amor para
conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda
pecadores” (Rm 5.8).
4. Deve estar em conformidade com uma profunda experiência
cristã. Deve levar em consideração o julgamento daquelas almas
sábias que têm ensinado “as profundezas de Deus” (ICo 2.10)
com muito conflito espiritual, para que alcance as conclusões
aceitáveis para eles.
5. Ela deve encarar o sacrifício de Cristo como um evento plane­
jado desde a eternidade. Ele é o “Cordeiro que foi morto desde
a fundação do mundo” (Ap 13.8). Jesus era “conhecido, com
efeito, antes da fundação do mundo, porém manifestado no fim
dos tempos, por amor” (1 Pe 1.20). O pecado não surpreendeu a
Deus. Ele o previu e providenciou um Redentor antes que ele nos
tivesse levado cativos.

383
Os fundamentos

6. Deve partir de um ponto de vista adequado referente ao auto-


sacrifício de Cristo. Nenhum homem jamais entregou sua vida
em favor de outros, no mesmo sentido no qual Cristo entregou
Sua vida pelo mundo. Todo homem deve morrer algum dia;
“não há nenhuma liberdade nesta guerra”. Quando um homem
sacrifica sua vida, ele apenas sacrifica alguns dias ou anos; mas
ele a entrega mais cedo em vez de mais tarde. Mas Cristo não
escolheu entre morrer em um tempo em preferência a outro; ele
escolheu entre morrer e não morrer. Assim, visto de qualquer
ângulo, os sofrimentos voluntários de Cristo ultrapassam nosso
poder de pensar e imaginar, indo infinitamente além de toda a
experiência humana.
7. Deve considerar muito o efeito produzido sobre Deus pelo
sacrifício infinito, voluntário e altruísta de Cristo pelo mundo.
Aqui, toda a língua humana se cala e soa fragilizada ao dizer
que Deus Pai se admira com extremo entusiasmo com essa
carreira santa e heróica de sofrimento para a salvação do
homem. Ainda devemos usar essas palavras, embora sejam
inadequadas. As Escrituras falam de sua atitude para com Seu
Filho encarnado como a de quem a apreciou e a aprovou de
maneira ilimitadas, assim como nos conta que Sua voz foi ouvi­
da muitas vezes do céu, dizendo: “Este é o meu Filho amado,
em quem me comprazo”. Quando dizemos que o sacrifício de
Cristo é meritório com Deus, queremos dizer que Ele proclama
Sua suprema admiração. Tal era Seu sentimento para com o
sacrifício do Filho, quando Ele o previu desde a eternidade;
tal foi Seu sentimento para com Ele enquanto olhava para esse
sacrifício durante seu desenrolar; e tal é Seu sentimento para
com ele agora, quando Ele olha para trás e glorifica a Cristo em
sua honra.
8. Deve descobrir que a obra de Cristo produziu uma enorme
diferença nas relações de Deus com o mundo decaído. Era
infinito no amor que o incitou e no auto-sacrifício que o assistiu,
e, conseqüentemente, infinito em seu valor moral. Não podemos
senão julgar adequado que esse sacrifício procurasse uma ad­
ministração da graça para o mundo. Provido para a eternidade,
cuja eficácia para com Deus foi desde sempre, ele procurou uma
administração da graça desde o momento em que o primeiro
pecado foi cometido.

384
A expiação

Sem dúvida nenhuma, é por esta razão que Deus suportou o


mundo ao longo de todas as eras de sua história de rebeldia. Ele
o contemplou desde o princípio em Cristo e, conseqüentemente,
o tem tratado com tolerância, com carinho e com clemência. Ele
não veio primeiro debaixo da graça, quando Cristo foi crucificado;
ele sempre esteve debaixo da graça, porque o sacrifício de Cristo
sempre esteve no plano e no propósito de Deus, assim, sempre
exerceu uma influência propiciatória. A graça de Deus para com o
homem não foi completamente revelada e explicada senão quando
se tornou manifesta na pessoa e na obra de Cristo, mas sempre foi
o princípio predominante do governo divino. Os homens são salvos
pela graça desde a morte de Cristo, e eles sempre foram salvos pela
graça, quando foram salvos. Todo o argumento do apóstolo Paulo
em suas epístolas aos Romanos e aos Gálatas tem como propósito
a defesa dessa proposição, de que Deus sempre justificou o homem
pela graça por intermédio da fé, e que jamais houve qualquer outro
modo de salvação. Toda a administração de Deus na história huma­
na é apresentada à luz do “Cordeiro que foi morto desde a fundação
do mundo”, cuja bondade e indulgência são infinitas, não obstante
aquelas severidades que expressaram Sua aversão ao pecado.
Mas se a abnegação de Cristo fez uma diferença na atitude
prática de Deus para com o mundo, ela também fez uma diferença
no seu sentimento para com o mundo. Deus é um. Ele não entra em
conflito consigo mesmo. Ele não tem um curso de ação e um outro
curso de sentimento. Se ele trata paciente e graciosamente nossa
raça pecaminosa é porque Ele tem paciência e graça, e a obra de
seu Filho, por meio da qual sua administração se tornou paciente e
graciosa, tornou seu sentimento também paciente e gracioso.
As Escrituras se referem a essa administração diferente e a seu
fundamento em um sentimento diferente, quando apresentam Cristo
a nós como “a propiciação pelos nossos pecados e não somente
pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro”

385
387

Expiação por meio


da propiciação

D yso n H a g u e , M .A .
Canon Dyson Hague, vigário da igreja Epiphany,
Toronto, Canadá; Prof. de Liturgia e Eclesiologia no
Wycliffe College, Toronto, Canadá; Cônego da Catedral
St. PauPs, Londres, Canadá, 1908-1912.
Revisado por Arnold D. Ehlert Th.D.

A importância do assunto é óbvia. A expiação é o cristianismo


em epítome. E o cerne do cristianismo como sistema; é a marca
distintiva da religião cristã. Porque o cristianismo é mais que uma
revelação; é mais que uma ética. Cristianismo é exclusivamente
uma religião de redenção. De início, baseamo-nos no fato de que
ninguém pode apreender claramente esse grande tema se não
estiver preparado para receber as Escrituras como elas são, assim
como tratá-las como a fonte final e autorizada do conhecimento
cristão e a prova de toda teoria teológica. Qualquer declaração
sobre a expiação, para satisfazer completamente o cristão verdadei­
ramente inteligente, não deve ser contrária a quaisquer dos pontos

CANON DYSON HAGUE (1857- 1935) foi ordenado em 1883 após


estudar artes e teologia na Universidade de Toronto. Serviu como
coadjutor na Catedral de St. Jam es, tam bém em Toronto, e como
diretor da Catedral de St. Paul, em Brockville, Ontário, e na de St. Paul,
em Halifax, Nova Escócia. De 1897 a 1901, Hague lecionou apologética,
liturgia e homilética no Wycliffe College, em Toronto. Seus escritos
incluem vários livros sobre liturgia anglicana.
Os fundamentos

de vista bíblicos. E também, para abordar de forma justa o assunto,


deve-se receber com um certo grau de reserva as representações
um tanto exageradas que alguns escritores modernos concebem
como os pontos de vista da ortodoxia. Não podemos deduzir os
pontos de vista bíblicos da expiação a partir de concepções não
bíblicas da pessoa de Cristo; e a idéia de que Cristo morreu porque
Deus foi insultado e deve castigar alguém, ou de que a expiação
era a propiciação de um monarca irado — o Deus que deixou de
fora o mau, enquanto torturou o inocente, e verdades travestidas
como essas são simplesmente representações equivocadas daquele
socianismo remendado que fermentou a teologia de muitos dos
excelentes líderes religiosos da última parte do século dezenove.

A expiação a partir do ponto de vista bíblico

a) O testemunho do antigo testamento


Quando estudamos o Antigo Testamento, deparamo-nos com o
fato de que no sistema do Antigo Testamento, sem um sacrifício de
expiação, não poderia haver acesso, para os homens pecadores, à
presença do Deus Santo. O coração e o centro do sistema religioso
divinamente revelado do antigo povo de Deus era tal que sem um
sacrifício propiciatório não poderia haver aproximação aceitável a
Deus. Deve haver aceitação antes que haja adoração; deve haver
expiação antes que haja aceitação. Essa expiação consistia no der­
ramamento de sangue. O sangue derramado era a efusão da vida;
porque a vida da carne está no sangue — um dizer que a ciência
moderna da fisiologia abundantemente confirma (Lv 17.11-14). O
sangue derramado era o sangue de uma vítima que deveria ser
cerimonialmente imaculada (Ex 12.5; I Pe 1.19); e a vítima que era
imolada era um representante vicário ou substituto do adorador
(Lv 1.4; 3.2-8-13; 4.4,15,24-29; 16.21, etc.). A morte da vítima era
um reconhecimento da culpa do pecado, e o representava.
Em suma: todo o sistema foi projetado para ensinar a santidade
e a justiça de Deus, a pecabilidade dos homens e a culpa do pecado;
e, acima de tudo, para mostrar que era a vontade de Deus que o
perdão estaria assegurado, mas não em razão de qualquer obra do
pecador ou qualquer coisa que ele pudesse fazer, qualquer ato de
arrependimento ou exibição de penitência, ou execução de obras
expiatórias ou de restituição, mas somente devido à graça imereci­

388
Expiação por meio da propiciação

da de Deus por meio da morte de uma vítima culpada de nenhuma


ofensa contra a lei divina, cujo sangue derramado representava a
substituição de um inocente por uma vida culpada, (ver Lux Mundi
[Luz do Mundo] , p. 237. A idéia, na página 232, de que o sacrifício é
essencialmente a expressão do amor não decaído, é sugestiva, mas
seria melhor usar a palavra “também” em vez de “essencialmente”.
Ver também, o tratamento extremamente sugestivo na Mosaic Era
[A Era Mosaica] de Gibson, do Ritual ofthe Altar [Ritual do Altar], p.
146.) E óbvio que todo sistema foi transitório e imperfeito, como de­
monstra o oitavo capítulo de Hebreus. Não porque ele era revoltante
como a mente moderna objeta, mas porque esse foi o modo de Deus
ensinar que o pecado era revoltante e merecedor da morte; pois em
sua essência era típico e profético, cuja intenção era a de familiarizar
o povo de Deus com a grande idéia da expiação, ao mesmo tempo em
que os preparava para a sublime revelação Daquele que estava por
vir, o Homem menosprezado e rejeitado pelos outros homens, que
deveria ser esmagado e afligido por Deus, e que deveria ser ferido
por nossas transgressões e castigado por nossas iniqüidades, e cuja
alma deveria ser uma oferta pelo pecado (Is 53.5,8,10,12).
b) O testemunho do novo testamento
Quando chegamos ao Novo Testamento, deparamo-nos com
três coisas:
P r im e ir o , a proeminência única dada à morte de Cristo nos
quatro evangelhos. Isso é algo sem paralelo. E também sem ana­
logia, não somente nas Escrituras, mas na história. A coisa mais
curiosa sobre isso é que não há nenhum precedente para isto no
Antigo Testamento (Dale, Atonement [Expiação], p. 51). Nenhum
valor ou benefício particular é ligado à morte de alguém no Antigo
Testamento; nem há ali nenhum traço, por mais remoto que seja,
da morte de alguém cujo efeito seja expiatório, humanizador ou
regenerador. Houve muitos mártires e heróis nacionais na história
hebréia, e muitos deles eram apedrejados e serrados ao meio,
foram torturados e imolados com espadas, mas nenhum escritor
judeu atribui qualquer importância ética ou regenerativa a essas
mortes, ou ao derramamento de seu sangue.
S e g u n d o , fica evidente para o leitor imparcial do Novo Testa­
mento que a morte de Cristo foi o objeto de Sua encarnação. Sua
crucificação foi o propósito principal de Sua vinda. Ao passo que

389
Os fundamentos

Sua vida gloriosa, afinal, era e é a inspiração da humanidade,


Sua morte foi a razão de Sua vida. Sua missão era principalmente
morrer. Além de pensar na morte como uma finalidade ou o ápice
inevitável da vida, o homem comum raramente alude à morte ou
pensa nela. Em toda biografia ela é aceita como o inevitável. Mas
com Cristo, Sua morte foi o propósito pelo qual ele desceu do céu:
“Agora, está angustiada a minha alma, e que direi eu? Pai, salva-me
desta hora? Mas precisamente com este propósito vim para esta
hora” (Jo 12.27). Desde o início de Sua carreira esse foi o evento
predominante. Ele foi previsto claramente. Foi voluntariamente
sofrido, e, em Marcos 10.45, ele diz: “ Pois o próprio Filho do Ho­
mem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em
resgate por muitos”. Não temos o hábito de pagar resgates, e a me­
táfora hoje em dia é pouco conhecida. Mas, para o judeu, o resgate
era um costume cotidiano. Era o que era dado em troca pela vida
do primogênito. Era o preço que cada homem pagava por sua vida.
Era o pensamento subjacente nos escritos Mosaico e proféticos
(Lv 25.25,48; Nm 18.15; SI 49.7; Is 35.10; 51.11; 43.14; Êx 13.13;
30.12-16; 34.20; Os 13.14, etc.); e assim, quando Cristo fez essa
declaração, esse era um conceito que seria imediatamente compre­
endido. Ele veio dar Sua vida como resgate para que por intermédio
de Seu sangue pudéssemos receber a redenção, ou a emancipação,
tanto da culpa quanto do poder do pecado. (Os modernos se es­
forçam para esvaziar este dizer de Cristo de todo seu significado.
O texto, infelizmente para eles, é persistente, mas a mente alemã
jamais se sente perdida diante de uma teoria; assim, afirma-se que
essas afirmações são indicações de que Pedro foi “paulinizado”,
pois os racionalistas relutam muito em aceitar as Escrituras como
elas são, principalmente, aceitar as palavras de Cristo com seu
significado óbvio, quando elas se opõem às aversões teológicas
deles.)
T e r c e ir o , o objeto da morte de Cristo foi o perdão dos pecados.
A causa final de Sua manifestação foi a remissão. Seria impossível
resumir todos os ensinos do Novo Testamento sobre esse assunto.
(O estudante deve se remeter a Crawford, que oferece cento e
sessenta páginas para os textos no Novo Testamento, e ao Sumary
[Resumo] de Dale, pp. 443-458).
Está claro, entretanto, que, para o pensamento de nosso Salva­
dor, Sua cruz e paixão não era a conseqüência incidental de Sua

390
Expiação por meio da propiciação

oposição aos padrões religiosos degradados de Seu tempo, e que


Ele não morreu como um mártir, pois era preferível a morte do que
a apostasia. Sua morte era um meio pelo qual os homens obteriam
o perdão dos pecados e a vida eterna (Jo 3.14,16; Mt 26.28). O
testemunho mutuamente concordante dos escritores do Novo
Testamento, tanto nos Atos dos apóstolos quanto nas epístolas, é
que Cristo não teve uma morte acidental, mas sofreu de acordo
com a vontade de Deus, por Sua própria vontade, e de acordo com
as predições dos profetas, assim como sua morte foi substituta,
sacrificial, expiatória, reconciliadora e redentora (Jo 10.18; At 2.23;
Rm 3.25; 5.6, 9; ICo 15.3; 2Co 5.15,19,21; Hb 9.14,26, etc.). Como
prova, bastará tomarmos o testemunho inspirado de três escritores
notáveis, Pedro, João e Paulo.
c) O testemunho de Pedro
Na concepção de Pedro, a morte de Jesus foi o fato central da
revelação e do mistério, assim como o ápice da encarnação. O
derramamento de Seu sangue foi sacrificial, uma aliança; encobriu
os pecados; foi redentor; resgatador; pois era o sangue do Cordeiro
imaculado que limpa o pecado (lPe 1.2,11,18,19). Em todas suas
exposições após o Pentecostes, ele exalta a crucificação como
uma revelação da enormidade do pecado humano, nunca como
uma revelação da infinidade do amor divino (Dale, p. 115). Sua
morte não foi meramente um exemplo; ela foi substituta. Ela foi a
morte daquele que carregou os pecados. “Cristo também sofreu
por nós”, “ele suportou nossos pecados”, isto quer dizer que Ele re­
cebeu sua penalidade e sua conseqüência (Lv 5.17; 24.15; Nm 9.13;
14.32, 34; Ez 18.19,20). Sua morte foi a obra substituta e vicária
de um inocente em favor do culpado, no lugar dele e em vez dele
(lPe 3.18). (Isto certamente é uma evidência da análise tendencio­
sa do modernismo, ao interpretar isso como uma demonstração de
apenas simpatia.)
d) O testemunho de João
De acordo com João, a morte do Senhor Jesus Cristo foi propicia-
tória, substituta, purificadora. Foi o hilasmos, a base objetiva para a
remissão de nossos pecados.
O tratamento estreito e superficial do modernismo — quando
não nega a autoria joanina do quarto evangelho e do Apocalipse,

391
Os fundamentos

insinua, pelo menos, que a morte de Cristo não tem paralelo nos
escritos de João com os escritos de Pedro e Paulo, assim como com
outros autores do Novo Testamento — é completamente contradito
pelas declarações claras da própria Palavra.
A glória do mundo futuro é o Cordeiro sacrificado. A glória
do céu não é o Senhor ressurrecto que ascendeu ao céu, mas o
Cordeiro que foi imolado (Ap 5.6-12; 7.10; 21.23, etc.). A figura
preeminente no evangelho joanino é o Cordeiro de Deus, que tira
o pecado do mundo e que leva o fardo do pecado, ao expiá-lo como
aquele que carrega o pecado. O centro do evangelho joanino não é
o Cristo que ensina, mas o Cristo que é elevado, cuja morte serve
para atrair, como um ímã, o coração da humanidade e cuja vida,
como o Bom Pastor, é dada palas ovelha (Jo 12.32; 10.11-15).
Ninguém que encare, razoavelmente, o texto de João poderia
negar que a base objetiva para o perdão dos pecados, na concepção
desse evangelista, é a morte de Cristo, e que a concepção mais
fundamental do sacrifício e da expiação encontra-se nos escritos
daquele que escreveu por meio do Espírito de Deus: “E ele é a pro-
piciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios,
mas ainda pelos do mundo inteiro” (ljo 2.2). “Nisto conhecemos o
amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e devemos dar nossa vida
pelos irmãos” (ljo 3.16). “Nisto consiste o amor”, etc. (ljo 4.10).
O caráter propiciatório do sangue, o caráter substituto da
expiação, e, acima de tudo, o caráter de expiação da obra de Cristo
no Calvário, claramente, são apresentados de maneira mais indubi-
tável na triplicidade dos escritos históricos, didáticos e proféticos
de João.
e) O testemunho de Paulo
Paulo tornou-se, na província de Deus, o gênio construtivo do
cristianismo. Seu lugar na história, por intermédio do Espírito, foi
o de elucidar os fatos relevantes do cristianismo e, especialmente,
daquele grande assunto que Cristo deixou em certa medida sem
explicação — Sua própria morte (St. Paul [São Paulo], Stalker, p. 13).
Este grande assunto — sua causa, seu significado, seu resultado
— tornou-se o próprio fundamento do evangelho de Paulo. Foi o
começo, o centro e a consumação de sua teologia. Foi a verdade ele­
mentar de seu credo, pois ele iniciou com essa verdade. A morte de
Cristo permeia a vida dele. Ele a glorificou o máximo que pôde, até

392
Expiação por meio da propiciação

o fim. 0 pecador estaria morto, escravizado, culpado e desesperado


sem a morte expiatória de Jesus Cristo. Mas Jesus morreu por ele,
em seu lugar, tornando-se maldição por ele, tornando-se pecado por
ele, entregando-se por ele, como oferta e sacrifício a Deus por ele.
Desse modo, Ele o redimiu, o justificou, o salvou da ira, comprou-o
por Seu sangue, reconciliou-se com ele por meio de Sua morte, etc.
Falar de Paulo, usando a linguagem que ele usou como se fosse uma
acomodação aos preconceitos judaicos, ou como se fosse o condes-
cender com os adeptos de uma teologia atual, não somente é, como
Dale diz, um insulto à compreensão dos fundadores da fé judaica,
mas é um insulto à compreensão de qualquer homem sensato de
hoje. A morte de Cristo foi uma morte pelo pecado; Cristo morreu
por nossos pecados; quer dizer, como representante de nossos
pecados, no lugar deles. Havia algo no pecado que tornou Sua morte
uma necessidade divina. Sua morte foi uma morte propiciatória,
substituta, sacrificial e vicária. Sua meta era anular o pecado; propi­
ciar justiça divina, procurar por nós a justiça de Deus; resgatar-nos e
reconciliar-nos com Deus. A morte de Cristo estava conciliando, pois
por meio dela os homens são reconciliados a Deus, e a maldição do
pecado, a escravidão do pecador, a sujeição à morte e a incapacidade
de retornar a Deus são o resultado da morte do Cordeiro, que foi
morto como uma vítima e imolado como um sacrifício (ICo 5.7).
Para Paulo, a vida do cristão emergia da morte de Cristo. Todo
o amor, toda a regeneração, toda a santificação, toda a liberdade,
toda a alegria, todo o poder circulam ao redor da obra expiatória
do Senhor Jesus Cristo, que morreu por nós e, objetivamente, fez
por nós algo que o homem jamais poderia fazer, pois fez uma coisa,
incrível e impossível, a salvação pela substituição de Sua vida no
lugar do culpado.

f) O resum o das escrituras


Para condensar a apresentação das Escrituras: o cerne da idéia
da expiação é alienação. O pecado, como iniqüidade e transgres­
são, tinha o elemento adicional da rebelião egoísta contra Deus e
do desafio aberto a Ele (ljo 3.4; Rm 5.15,19). O horror do pecado é
que ele afastou a raça humana de Deus. Tirou Deus de seu trono e
se colocou em seu lugar. Inverteu a relação do homem e de Deus. O
pecado, por intermédio de sua influência maligna e de sua paixão,
alienou a humanidade, a escravizou, a condenou, a amaldiçoou à

393
Os fundamentos

morte, a expôs à ira. O sacrifício da cruz é a explicação da enor­


midade do pecado, e a medida do amor da Trindade redentora.
Seguramente, é tolice dizer que Deus ama porque Cristo morreu.
Cristo morreu, porque Deus ama. A propiciação não desperta o
amor; é o amor que proporciona a expiação. Para cancelar a mal­
dição, suspender a proibição, inocular a antitoxina da graça, para
restabelecer a vida, comprar o perdão, para resgatar o escravizado,
para defender a obra de Satanás; em uma palavra, para reconciliar
e restaurar a raça perdida; para isto, Jesus Cristo, o Filho de Deus
e Filho do Homem, veio a este mundo e ofereceu Sua Pessoa divina
e humana, corpo e alma.
A morte de Cristo na cruz, tanto como o substituto quanto
como o representante federal da humanidade, voluntária, altruísta,
vicária, sem pecado, sacrificial, proposital e não acidental, do ponto
de vista da humanidade, inconsciente e brutal, mas do ponto de
vista do amor, indiscutivelmente gloriosa, pois não só satisfez todas
as exigências da justiça divina, mas ofereceu o incentivo mais
poderoso para o arrependimento, a moralidade e a abnegação. As
Escrituras apresentam, assim, em seu todo, a substância de duas
grandes teorias, a moral e a vicária, e descobrimos, na aparência
ou na totalidade da apresentação bíblica, não apenas segmentos
parciais ou antagônicos da verdade, mas a completude dos aspectos
espirituais, morais, altruístas e expiatórios da morte de Cristo.

O consenso de todas as igrejas


Quando nos voltamos para esse assunto, apresentado de acordo
com os padrões dos representantes das principais igrejas protes­
tantes, é reconfortante descobrir que há uma unidade significativa
entre eles. Em todos os credos e confissões da igreja, a morte de
Cristo é apresentada como o fato central do cristianismo; pois é
preciso se lembrar que as igrejas reformadas aceitas, igualmente
com a igreja romana, formam a plataforma histórica dos três
grandes credos, e em todos estes credos este assunto é preemi-
nente. No Credo Apostólico, por exemplo, não há a menor menção
do glorioso exemplo de Cristo como homem, ou das obras e das
palavras de Sua vida maravilhosa. Tudo é deixado de lado, para que
a fé da igreja, em todas as eras, possa ser imediatamente centrada
sobre Seus sofrimentos e Sua morte. E quanto aos vários padrões
doutrinais, uma referência aos Artigos da Igreja da Inglaterra, ou a

394
Expiação por meio da propiciação

Confissão de fé de Westminster, ou a da igreja Metodista, ou os for­


mulários da crença Batista, mostra imediatamente que a expiação
é tratada como um dos fundamentos da fé. Pode se dizer que um
teólogo moderno encontra dificuldade em aceitar isso ou, de bom
grado, daria uma explicação que eliminasse essa verdade; mas,
inquestionavelmente, a afirmação não é de uma mera expiação no
sentido ritschliano5, mas uma oferta vicária real; uma morte reden­
tora; uma morte reconciliadora; uma morte que leva o pecado; uma
morte sacrificial pela culpa e pelos pecados dos homens. Sua morte
foi a morte da vítima divina. Ela foi uma satisfação pela culpa do
homem. Ela propiciou Deus. Ela satisfez a justiça do Pai. A mente
moderna percebe apenas um lado da reconciliação.
A mente moderna observa a verdade somente de um ponto de
vista. Ela deixa de levar em conta a ira de Deus, e o que ljoão 2.1 e
Romanos 3.25 ensinam, que a morte de Cristo não faz algo que possa
ser apenas expresso como “propiciatório”. A teoria moderna ignora
um lado da verdade, pois contrapõe dois lados complementares e,
portanto, não pode ser confiável. Os padrões da Igreja apresentam
simplesmente, é claro, em linguagem, necessariamente imperfeita,
a verdade como está nas Escrituras de Deus. Talvez, nenhum
resumo mais refinado de seu ensino, do que a linguagem do ofício
de comunhão anglicana, possa ser encontrado: “Jesus Cristo, Filho
unigênito de Deus, sofreu a morte na cruz para nossa redenção,
e fez ali, por meio de uma oblação de si mesmo oferecida de uma
vez, um sacrifício, uma oblação e uma satisfação plenos, perfeitos e
suficientes pelos pecados de todo o mundo”.

O aspecto prático

a) O poder de sua morte


Por fim, consideraremos a expiação em seu poder real. Quando
olhamos por intermédio da perspectiva da história, podemos vê-la
exemplificada em vidas inumeráveis. Paulo, Agostinho, Francisco
de Assis, Lutero, Latimer, junto com uma miríade de outros filhos
dos homens pecaminosos, que lutam, mas que estão cansados, de­
sesperados, doentes em razão do pecado e sobrecarregados com o
peso desse pecado, assombrados com o temor da culpa, que tentam
lutar com a força do pecado, atormentados com a dor do pecado,
encontraram Naquele que morreu sua paz. O grande cientista,

395
Os fundamentos

Sir David Brewster diz: “Ó, a expiação, é tudo para mim! Ela
conhece minha razão e satisfaz minha consciência, preenche meu
coração.” (ver também essa sublime passagem em Drummond,
The Ideal Life [A Vida Ideal], pg 187).
Ou, tomemos nossos hinos. Não queremos teologia melhor e
religião melhor do que as apresentadas nesses hinos, diz o grande
teólogo (Hodge, Syst. Theol., ii: 591), que clama o triunfo, a confian­
ça, a gratidão e a lealdade da alma, da seguinte maneira:
Rocha das Eras, quebrada por mim,
Oculte-me em Ti.
Minha fé olha para Ti,
Tu Cordeiro do Calvário.
Quando eu observo a cruz maravilhosa,
Na qual o Príncipe da glória morreu.
Ou considere a força do pastor. Deve ser construída e fundamen­
tada na realidade e, quando for descrever o que o Filho de Deus fez
por nós, deve ser tão real quanto a própria vida. Um dos grandes
pregadores do século dezenove diz: “Olhando para trás, para os
caminhos cheios de vicissitudes, digo que a única pregação que me
fez bem é a pregação de um Salvador que, sobre o madeiro, levou
meus pecados em Seu próprio corpo, e a única pregação pela qual
Deus me capacitou a fazer o bem a outros é a pregação na qual
apresento meu Salvador, não como um exemplo sublime, mas como
o Cordeiro de Deus que tirou os pecados do mundo! E a obra de
Cristo não terminou com Sua morte na cruz. Sua vida continuou,
mesmo depois que ele ressurgiu e ascendeu. O Crucificado ainda
está colhendo almas para si. Ele ainda está aplicando Seu sangue
curativo à consciência ferida. Não pregamos um Cristo que viveu e
está morto; pregamos o Cristo que morreu, mas está vivo. Esta não
é apenas a extensão da encarnação; é a perpetuação da crucificação
que é a espinha dorsal do cristianismo.
Mas a ortodoxia não deve ser em detrimento da ortopraxia.
Maclaren, de Manchester, nos conta, em um de seus volumes encan­
tadores, que, certa vez, escutou a história de um homem que tinha
um caráter muito sombrio, mas que era firme e profundo em relação
à expiação. Mas o que há de bom em ter firmeza e profundidade
quanto à expiação, se a expiação não o faz são? Alguém que lê o
Novo Testamento ou compreende a essência do cristianismo apos­
tólico deve entender que uma mera aceitação teórica da expiação,

396
Expiação por meio da propiciação

desacompanhada de uma penetração da vida, do caráter e dos


princípios de Jesus Cristo, não é de nenhum valor. A expiação não
é uma mera fórmula para consentimento; é um princípio de vida
para a realização. Mas será que a expiação não é um fato que, onde
quer que seja verdadeiramente recebida, gera amor a Deus e amor
ao homem; evoca um ódio e horror ao pecado; e oferece não apenas
o mais alto incentivo à abnegação, mas a dinâmica mais poderosa
para a vida de retidão?
Para a alma, que contempla o Cordeiro de Deus e encontra paz
por meio do sangue da cruz, surge um sentido de alívio jovial, uma
consciência de profunda satisfação que é a novidade de vida.
Sim, um cristianismo que é apenas um sistema moral, e o
melhor dentre as religiões naturais, não é digno de ser preservado.
Um cristianismo sem um Cristo divino, uma expiação vicária e uma
Bíblia inspirada, nunca terá poder. Um evangelho desvitalizado,
um evangelho diluído, ou um evangelho atenuado não conceberá
nenhum programa esplêndido, nem inspirará nenhum esforço
esplêndido. Nunca produziu um mártir; nem o fará. Jamais inspirou
um reformador, nem jamais o fará. As duas pobrezas religiosas da
atualidade — o perder o senso quer do pecado, quer de Deus — são
simplesmente o resultado deste socinianismo atenuado, que está
se tornando prevalente. Nenhum ministro de Cristo tem qualquer
direito de aparar as pontas da cruz. Ao mesmo tempo, uma das
maiores maldições é um cristianismo que é meramente ortodoxo,
ou uma ortodoxia de mãos dadas a um cristianismo moribundo.
Uma igreja que é apenas a guardiã da tradição do passado, e não a
expressão de uma vida espiritual forte; um cristão que está apenas
conservando um credo tradicional, e não exemplificando a vida
do Deus vivo, é um obstáculo. Uma igreja morta jamais será o
expoente do Deus vivo, e um clérigo morto jamais será o expoente
de uma igreja viva, pois o teste de todo sistema religioso, político
ou educacional, afinal de contas, como diz Amiel, é o homem quem
o faz (Amiel, p.27).

397
399

36 A graça de Deus

C. I. S c o f i e l d , D.D .
Editor da Bíblia de Referência Scofield,
Editado por Charles L Feinberg, Th.D., Ph.D.

Graça é uma palavra usada no Novo Testamento para traduzir a


palavra grega, charis, que significa “favor”, sem recompensa. Se há
qualquer ato compensatório ou pagamento, mesmo que leve ou ina­
dequado, não é mais graça. Quando usada para denotar uma certa
atitude ou ato de Deus para com o homem, a essência do assunto é

CYRCIS INGERSON SCOFIELD (1843-1921) é mais conhecido por


sua Bíblia de Referência Scofield. Ele serviu no exército confederado,
estudou direito em St. Louis e, em 1869, trabalhou como advogado
em Kansas. Serviu na Legislatura do Estado de Kansas em 1871, e
foi nomeado procurador em 1873, mas logo depois voltou a St. Louis.
Em algum momento do ano de 1879, Scofield converteu-se a Cristo.
Sentindo um chamado para a pregação, ele foi licenciado em 1880 e,
no ano seguinte, organizou uma pequena Igreja Congregacional em
Dallas, Texas (hoje, a Igreja Memorial de Scofield). Em 1895, Scofield
tornou-se pastor da Igreja do Lar de D.L. Moody, em Northfield, MA,
assim como presidente das escolas de Moody. Em 1901, ele concebeu o
plano para sua Bíblia de referência, que foi publicada em 15 de janeiro
de 1909. Scofield passou os últimos anos de sua vida no ministério de
conferências sobre a Bíblia. Ajudou a fundar a Faculdade Bíblica da
Filadélfia, em 1914; e em 1917, uma nova edição da Bíblia de referência
de Scofield foi publicada, (üm a revisão completa aconteceu em 1967.)
Scofield foi um dos líderes mais influentes da escola dispensacional da
interpretação da Bíblia nos Estados ünidos, se não no m undo todo.
Os fundamentos

que o mérito humano fica completamente excluído. Na graça, Deus


age para com aqueles que merecem, não seu amor, mas sua ira.
No plano da epístola aos romanos, a graça não entra, nem poderia
entrar, pois toda a raça, sem uma única exceção, é considerada
culpada e, portanto, cala-se diante de Deus.
Condenada pela criação, a testemunha silenciosa do universo,
(Rm 1.18,20); por meio da ignorância teimosa, da perda do conheci­
mento de Deus, uma vez universal (Rm 1.21); da idolatria insensata
(Rm 1.22,23); assim como por um modo de vida pior que bestial
(Rm 1.24,27); pelo orgulho e crueldade impiedosos (Rm 1.28,32);
por meio de éticas filosóficas que não produzem frutos na vida
(Rm 2.1,4); por consciências que só podem acusar, ou “procuram”
se “desculpar”, mas jamais justificar (Rm. 2.5,16); e, por fim, pela
própria lei na qual aqueles que se gloriam nela (Rm 2.17; 3.20), pois
“sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para
que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus”
(Rm 3.19).
Em um sentido absoluto, o fim de toda a carne chegou. Tudo
foi experimentadç). A inocência, como as das duas criaturas não
decaídas em um Éden de beleza; a consciência, isto é, o conheci­
mento do bem e do mal com a responsabilidade de fazer o bem e
evitar o mal; as promessas, com a ajuda de Deus, disponível por
meio da oração; a lei, experimentada em grande escala e ao longo
de séculos de clemência, suplementada pelo poderoso ministério
ético dos profetas, sem jamais apresentar um ser humano íntegro
diante de Deus (Rm 3.19, G13.10; Hb 7.19; Rm 3.10,18; 8.3,4); esse
é o quadro bíblico. E é contra este pano de fundo obscuro que a
graça brilha.

Definição
As definições da graça do Novo Testamento são tanto inclusivas
quanto exclusivas. Elas nos dizem o que a graça é, mas há também
o cuidado em nos dizer o que ela também não é. As duas grandes
definições centrais são encontradas em Efésios 2 e Tito 3. O lado
inclusivo ou afirmativo está em Efésios 2.7; o aspecto negativo,
o que a graça não é, se encontra em Efésios 2.8,9. O judeu, que
está debaixo da lei, quando vem a graça, fica debaixo de sua
maldição (G1 3.10); e os gentios estão “sem Cristo, separados da
comunidade de Israel e estranhos às alianças da promessa, não

400
A graça de Deus

tendo esperança e sem Deus no mundo” (Ef 2.12). E para essa


raça, Deus vem mostrar “para mostrar, nos séculos vindouros,
a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conosco, em
Cristo Jesus” (Ef2.7).
A outra grande definição da graça se encontra em Tito 3.4,5,
também com seus aspectos negativos e positivos. A graça, portan­
to, caracteriza a era presente, como a lei caracterizou a era do Sinai
ao Calvário (Jo 1.17). E esse contraste entre a lei, como um método,
e a graça, como um método, atravessa toda a revelação bíblica em
relação à graça.
Isso, naturalmente, não significa que não havia lei antes de
Moisés, nem que não havia graça e verdade antes de Jesus Cristo.
A proibição feita a Adão, de não comer o fruto da árvore do conheci­
mento do bem e do mal (Gn 2.17), era lei, e, certamente, a graça era
mais suavemente manifestada na procura do Senhor Deus por suas
criaturas pecadoras, e ao vesti-las com roupas de pele (Gn 3.21), foi
feito um belo quadro de Cristo como nossa justiça (ICo 1.30). Alei,
no sentido de alguma revelação da vontade de Deus, e a graça, no
sentido de alguma revelação da bondade de Deus, sempre existiu,
e as Escrituras testemunham abundantemente esse fato. Mas a lei,
como uma regra inflexível de vida, foi dada por Moisés, e do Sinai
ao Calvário, ela domina e caracteriza o tempo; assim como a graça
domina, ou dá seu caráter peculiar, à dispensação que começa no
Calvário e tem seu termino predito no arrebatamento da igreja.

Lei e graça divergem


Este é, no entanto, o momento mais vital para se observar que as
Escrituras nunca, em qualquer dispensação, misturam esses dois
princípios. A lei sempre tem um lugar e obra distinta e completa­
mente diversa dos da graça. A lei é Deus proibindo e requerendo
(Êx 20.1,17); a graça é Deus pedindo e dando (2Co 5.18,21).
A lei é um ministério de condenação (Rm 3.19); a graça, de
perdão (Ef 1.7). A lei amaldiçoa (G1 3.10); a graça redime dessa
maldição (G13.1). Alei mata (Rm 7.9,11); a graça vivifica (Jo 10.10).
A lei cala toda boca diante de Deus; a graça abre toda boca para
louvá-Lo. A lei coloca uma distância, grande e cheia de culpa, entre
o homem e Deus (Êx 20.18, 19); a graça aproxima o homem cul­
pado de Deus (Ef 2.13). A lei diz, “Olho por olho, dente por dente”
(Êx 21.24); a graça diz, “não resistais ao perverso; mas, a qualquer

401
Os fundamentos

que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra” (Mt 5.39).


A lei diz: “Odiarás o teu inimigo” (Mt 5.43); a graça diz: “Amai os
vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5.44). A lei
diz, faça e viva (Lc 10.26,28); e a graça diz, creia e viva (Jo 5.24).
A lei nunca teve um missionário; a graça deve ser pregada a cada
criatura. A lei condena expressamente o melhor homem (Fp 3.4,9);
a graça justifica livremente o pior (Lc 23.24; Rm 5.5; lTm 1.15;
ICo 6.9,11). A lei é um sistema de provação; a graça, de favor. A lei
apedreja os adúlteros (Dt 22.21); a graça diz: “Nem eu tampouco
te condeno” (Jo 8.1,11). Debaixo da lei, a ovelha morre pelo pastor;
debaixo da graça, o pastor morre por suas ovelhas (Jo 10.11).
A relação de um para com o outro desses princípios diversos, lei
e graça, preocupou a igreja apostólica. A primeira controvérsia foi
relativa à lei cerimonial. Foi a discórdia dos legalistas que diziam
aos gentios que não poderiam ser salvos a menos que se circunci-
dassem “segundo o costume de Moisés” (At 15.1). Essa exigência
foi aumentada, quando os apóstolos e anciões se reuniam em Jeru­
salém para resolver esta controvérsia (At 15.5, 6). A exigência, feita
nessa ocasião, exigia não apenas a circuncisão ou obediência à lei
cerimonial, mas a todo o sistema mosaico. A decisão do conselho
negou ambas as exigências, e a nova lei do amor foi invocada para
que os gentios convertidos se abstivessem de coisas especialmente
ofensivas aos crentes judeus (At 15.28,29). Mas a confusão desses
dois princípios diversos não terminou com a decisão do conselho.
A controvérsia continuou, e, seis anos mais tarde, o Espírito Santo,
por intermédio de Paulo, lançou-se contra os legalistas de Jerusalém
por meio de um esmagador e terrível acontecimento, a epístola
aos Gálatas. Nessa maravilhosa carta, cada faceta da questão, das
respectivas esferas da lei e da graça, é discutida, e uma decisão
final e autorizada foi alcançada.
O apóstolo chamou os gálatas para a graça de Cristo (G11.6). Na
verdade, a graça significa favor imerecido, e não recompensado. E
essencial que isto seja esclarecido. Jamais acrescente uma mistura
de obras da lei ou esforço da lei, “do contrário, a graça já não é
graça” (Rm 11.6). Isso é tão verdadeiro, que a graça não pode nem
mesmo começar em nós, a não ser que a lei já tenha nos reduzido à
culpa que nos emudece (Rm 3.19). Enquanto houver o menor sinal
de culpa, ou carência, não haverá lugar para a graça. Se um homem
não for tão bom como ele deveria ser, embora ainda muito bom

402
A graça de Deus

para o inferno, ele não é um objeto para a graça de Deus, mas para
a obra esclarecedora, convincente e que trata da morte contida em
Sua lei.
Alei é justa (Rm 7.12) e, portanto, aprova cordialmente a bonda­
de, ao mesmo tempo em que condena implacavelmente a maldade;
mas, com exceção de Jesus de Nazaré, a lei jamais viu um homem
íntegro por intermédio da obediência. A graça, ao contrário, não
procura por homens bons a quem ela possa aprovar, porque isso
não é graça, mas mera justiça para aprovar a bondade. Ela, porém,
procura pelos condenados, culpados, emudecidos e desamparados
a quem ela possa salvar por meio da fé, para depois os santificar e
glorificar.
Para a graça, portanto, Paulo chamou os gálatas. Qual foi
sua controvérsia com eles? (1.6). Apenas esta: eles estavam se
afastando da graça de Cristo para um outro evangelho, que não
é em absoluto outro (G1 1.7). Não poderia haver outro evangelho.
Mudar, modificar a graça de Cristo, por menor que fosse essa
mudança, o resultado seria não ter um evangelho. Um evangelho
é uma novidade feliz; e a lei não é uma novidade feliz (Rm 3.19). A
lei, portanto, tem apenas uma linguagem; ela declara todo o mundo
— bons, maus e “ótimos” — culpado.
Mas, então, o que deve um simples filho de Deus, que não conhe­
ce nenhuma teologia, fazer? Apenas isso: lembrar-se que qualquer
evangelho que não seja puro, em que a graça seja adulterada, é
um outro evangelho. Se ele propõe, sob qualquer motivo especial,
obter o favor de Deus por obras ou bondade ou caráter ou qualquer
outra coisa mais que o homem possa fazer, é espúrio. Esse é o teste
infalível.
Mas é mais do que espúrio, é amaldiçoado, ou melhor, os que
o pregam é que são amaldiçoados (G1 1.8,9). Não é um homem
quem diz, mas o Espírito de Deus que o diz por meio do apóstolo.
Isto é extremamente solene. Nem mesmo a negação do evangelho
é tão terrivelmente séria, quanto perverter o evangelho. Deus pode
conceder, a seu povo hoje, poder para discriminar e distinguir
aquilo que se difere do evangelho. Bem, esse é o discernimento
que parece faltar tão dolorosamente.
Se um pregador é culto, gentil, honesto, intelectual e bastante to­
lerante, a ovelha de Deus correrá para ele. Ele, claro, fala de modo
formoso sobre Cristo e usa os velhos termos — redenção, cruz,

403
Os fundamentos

sacrifício e expiação — mas qual é seu evangelho? Essa é pergunta


crucial. Será que a salvação perfeita, total, eterna — justificação,
santificação e glória — resulta apenas da obra de Cristo, e o dom
gratuito de Deus apenas da fé? Ou ele reivindica que o caráter é a
salvação, embora ele possa acrescentar que Cristo ajuda a formar
esse caráter?

Os dois erros
Na epístola aos Gálatas, Paulo responde a dois grandes erros,
nos quais, em graus diferentes, os sistemas teológicos fracassaram.
O curso dessa demonstração é como a marcha irresistível de um
exército armado. O raciocínio dos legalistas, antigos e modernos,
são espalhados como a palha do trigo moído no verão. A maioria de
nós foi criada e, agora, vive debaixo da influência dessa epístolas
aos Gálatas. A teologia protestante é, em sua maior parte, comple­
tamente adepta da teologia apresentada em Gálatas, pois nem a lei
nem a graça tem um lugar distinto e separado, como nos conselhos
de Deus, mas estão misturadas em um sistema incoerente. A lei
não é mais, como na intenção divina, uma ministração da morte
(2Co 3.7), da maldição (G1 3.10), da convicção (Rm 3.19), porque
nos ensinam que devemos tentar guardá-la, e que podemos fazer
isso com a ajuda divina. Nem a graça, por outro lado, nos traz a
libertação abençoada do domínio do pecado, porque somos manti­
dos sob a lei como uma regra de vida, apesar da clara declaração de
Romanos 6.14.
a) O primeiro erro
O Espírito, primeiramente, encontra satisfação de que a justifica­
ção é em parte por obras da lei e em parte pela fé por meio da graça
(G12.5; 3.24). Os passos são: 1. Mesmo os judeus que não são como
os gentios, desesperados e sem Deus no mundo (Ef 2.12), mas já em
relação de aliança com Deus, mesmo eles, “sabendo, contudo, que
o homem não é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em
Cristo Jesus” (G12.15.16), creram; “pois, por obras da lei, ninguém
será justificado”. 2. A lei executou sua sentença sobre o crente
(G12.19); a morte o livrou. Identificado com a morte de Cristo pela
fé, para Deus, ele morreu com Cristo (Rm 6.3-10; 7.4). 3. Mas a
justiça é pela fé, não pela lei (G1 2.21). 4. O Espírito Santo é conce­
dido à fé, não às obras da lei (G1 3.1-9). 5. Aqueles que estão sob a

404
A graça de Deus

lei, estao sob a maldiçao (G13.10). A lei, portanto, nao pode ajudar,
mas só pode fazer sua grande e necessária obra de condenação
(Rm 3.19, 20; 2Co 3.7, 9; G13.19; Tg 2.10).
Em Romanos 5.1-5, o apóstolo resume os resultados da justifi­
cação pela fé excluindo cuidadosamente toda aparência de mérito
humano. A graça por meio da fé em Jesus Cristo levou o crente à
paz com Deus, uma posição resultante da graça que assegura a
esperança de glória. A tribulação não pode servir para desenvolver
nele novas graças. O próprio amor que o salvou por meio da graça
agora preenche seu coração; o Espírito Santo lhe foi concedido, e
ele se alegra em Deus. E tudo pela graça, por meio da fé.
b) O segundo erro
O Espírito próximo refuta o segundo grande erro concernente
às relações da lei com a graça — a noção de que o crente, embora,
seguramente justificado pela fé por meio da graça, inteiramente
sem obras da lei, depois da justificação é colocado debaixo da lei
como uma regra de vida. Essa é a forma atual do erro dos gálatas.
Desde Lutero, o protestantismo tem consistentemente aceito a
justificação pela fé por meio da graça. No entanto, de forma incon­
sistente, a teologia protestante tem sustentado a segunda forma de
perceber o evangelho, conforme o erro dos gálatas.
Uma seção inteira da epístola aos Romanos e dois capítulos de
Gálatas são devotados à refutação desse erro e à apresentação da
verdadeira regra de vida do crente. Romanos, nos capítulos seis,
sete e oito, e Gálatas, nos capítulos quatro e cinco, apresentam o
novo evangelho ao crente que está firmado na graça. Romanos 6.14
declara o novo princípio. O apóstolo não está aqui falando da justi­
ficação de um pecador, mas da libertação de um santo do domínio
do pecado que habita nele. Em Gálatas, depois de mostrar que a lei
foi para o judeu como um pedagogo, ou um aio, em uma casa grega
ou romana, um tutor de crianças em sua infância (G1 3.23,24), o
apóstolo diz explicitamente (3.25): “Mas, tendo vindo a fé, já não
permanecemos subordinados ao aio” (pedagogo). Nenhuma eva­
são é possível aqui. O pedagogo é a lei (3.24); a fé justifica, mas a fé
que justifica também acaba com a regra do pedagogo. A moderna
teologia reivindica que estamos debaixo do pedagogo. Esse é um
assunto claro, há uma absoluta contradição entre a Palavra de Deus
e a teologia. Em qual você acredita?

405
Os fundamentos

Igualmente fútil é a reivindicação tímida de que essa discussão


bastante profunda em Romanos e Gálatas relaciona-se à lei cerimo­
nial. Nenhum gentio pode observar a lei cerimonial. Até mesmo os
judeus, desde a destruição do templo em 70 d.C., não foram capazes
de manter a lei cerimonial, a não ser em alguns aspectos particula­
res da dieta. Não é a lei cerimonial que fala da cobiça (Rm 7.7-9).
O crente está separado da lei mosaica pela morte e pela ressurrei­
ção (Rm 6.3-15; 7.1-6; G14.19-31). O fato permanece inalterado, ou
seja, de que para Deus ele é, quanto à lei, um criminoso executado.
A justiça foi completamente justificada, e não há mais possibilidade
de se fazer uma acusação contra ele (Rm 8.33,34).
Não é possível conhecer a liberdade do evangelho ou Sua
santidade até que essa grande verdade fundamental seja clara e
bravamente agarrada. Um homem pode ser cristão e também ser
digno e útil, mas ainda estar debaixo da escravidão da lei. Mas
ninguém pode jamais ter a libertação do domínio do pecado, nem
conhecer a verdadeira bem-aventurança e descanso do evangelho,
e permanecer debaixo da lei. Portanto, note-se uma vez mais que
é a morte que rompeu a conexão entre o crente e a lei (Rm 7.1-6).
Nada pode ser mais claro.
Mas deve ser acrescentado que há um mero modo carnal de
olhar para a libertação da lei, que é menos bíblico e mais desonroso
a Deus. Ele consiste na alegria de uma suposta libertação do prin­
cípio da autoridade divina sobre a vida, uma libertação para a mera
vontade própria e ilegalidade.
A verdadeira base da alegria é uma questão completamente
diferente. A verdade é que um cristão pode seguir certos aspectos
da lei como uma regra de vida. Não compreendendo que a lei é algo
mais do que um ideal, ele sente um tipo de complacência piedosa
ao consentir “com a lei, que é boa” (Rm 7.16), e, de forma mais ou
menos lânguida, esperar que no futuro ele possa ter melhor êxito
em guardá-la do que no passado. Assim tratada, a lei é completa­
mente roubada de seu terror. Como uma espada cuidadosamente
guardada em sua bainha, a lei não age mais na consciência. Desse
modo, esquece-se que a lei oferece absolutamente apenas duas
alternativas, a estrita obediência em todas as coisas, ou uma mal­
dição. Não há uma terceira voz (G1 3.10; Tg 2.10). A lei tem apenas
uma voz (Rm 3.19). A lei, em outras palavras, nunca diz: “Tente
fazer melhor da próxima vez”. O legalista antinomiano parece
ignorar completamente isso.

406
A graça de Deus

A verdadeira vida cristã


E agora, saindo do lado negativo de um andar santo e vitorioso
debaixo da graça para o positivo, encontramos o princípio e o
poder do andar definido em Gálatas 5.16-24. O princípio do andar
é brevemente afirmado: “Andai no Espírito e jamais satisfareis à
concupiscência da carne” (G1 5.16).
O Espírito é revelado em Gálatas de maneira tripla. Primeiro, ele
é recebido pelo ouvir sobre a fé (3.2). Quando os Gálatas creram,
eles receberam o Espírito. Com que finalidade? Para que sua
santificação agisse na vida interior. Em Romanos, o Espírito não
é mencionado até que tenhamos um pecador justificado tentando
guardar a lei, completamente derrotado nessa tentativa pela carne,
e clamando, não por ajuda, mas por libertação (Rm 7.15-24). Então,
o Espírito começa habitar no crente e traz resultados maravilhosos
(Rm 8.2). Não o esforço do apóstolo debaixo da lei, nem a ajuda
do Espírito nesse esforço, mas o poder do Espírito que habita no
íntimo pode destruir o poder do pecado interior (G15.16-18).
O que significa andar no Espírito? A resposta está em Gála­
tas 5.18. Mas de que outra forma alguém pode ser levado a Ele,
senão pela condescendência a Seu domínio? Há uma maravilhosa
sensibilidade no amor do Espírito. Ele não agirá em nossas vidas
pela onipotência, forçando-nos à conformidade. Essa é razão pela
qual a grande palavra de Romanos 6 é “condescender”, em que se
diz expressamente que não estamos debaixo da lei, mas debaixo da
graça.
Os resultados do andar no Espírito são duplo, o negativo e o
positivo. Ao andar no Espírito, não satisfaremos os desejos da
carne (G1 5.16). A “carne” aqui é o exato equivalente do “pecado”
em Romanos 6.14. E a razão para isso é imediatamente fornecida
(5.17). O Espírito e a carne são antagônicos, e o Espírito é maior
e mais poderoso do que ela. A libertação vem, não pelo esforço
próprio feito debaixo da lei (Rm 7), mas pelo Espírito onipotente,
que é contrário à carne (G1 6.7), e que traz o crente resignado para
a experiência de Romanos 8.

407
409

Salvação pela graça

R ev . T h o m a s S pu r g e o n
Pastor batista, Londres, Inglaterra.
Editado por Arnold D. Ehlert Th.D.

O que é “Graça”?
Certa vez, encontrei, a bordo de um navio australiano, um
homem de idade avançada, de temperamento cordial e cuja
instrução era bem fundamentada e extensa. Ele conseguia viver
quase que em um perpétuo dia ensolarado, pois ele seguia o sol
ao redor do globo ano após ano, e ele mesmo era tão “ensolarado”,
que os passageiros faziam amizade com ele e procuravam tirar
dele alguma informação. Certa vez, quando surgiu uma discussão

THOMAS SPURGEON (1856-1917) era filho do famoso pregador


Charles Haddon Spurgeon. Ele e seu irmão gêmeo, Charles, foram
batizados pelo pai, em 21 de setembro de 1874, e sempre se esperou
que seguissem os passos do pai e, talvez um dia, o sucedessem. Charles
ingressou na carreira comercial. Thomas, porém, sentiu um chamado
para o ministério e atuou com êxito na Nova Zelândia. Depois da morte
de seu pai, em 1892, Thomas Spurgeon foi chamado para pregar por
três meses no Metropolitan Tabemacle, em Londres, e, em seguida, por
mais um ano. Ele foi chamado para ser pastor em 1894 e permaneceu
até 1908. Em seu ministério, o grande edifício queimou completamente;
mas ele liderou a congregação em um programa de reconstrução, e a
obra continuou. Embora obscurecido pelo ministério de seu pai, Thomas
Spurgeon foi um pregador eficaz a seu próprio modo.
Os fundamentos

sobre o que era “graça”, alguém disse: “Vamos perguntar para a


‘enciclopédia ambulante’, pois ele certamente sabe isso”. Assim
foram até ele para lhe perguntar o significado do termo teológico
“graça”. Eles voltaram tristemente desapontados, porque todos
eles diziam: “Confesso que não entendi nada”. Ao mesmo tempo,
ele ofereceu a seguinte e extraordinária declaração: “Acho que
os que falam freqüentemente sobre o assunto também não a
compreenderam, como qualquer um daqui”. Como o médico, a
quem o Rev. T. Phillips mencionou em seu sermão no Congresso
Mundial Batista, que falava o seguinte da graça: “Para mim não
faz sentido algum”. Esse viajante bem culto não a compreendeu.
Alguns de nós, dificilmente, ficaríamos surpresos com isso, mas
nos ocorreu que ele poderia ter permitido que isto fosse possível
em relação a esse tema em particular, pois, em todo caso, algu­
mas pessoas menos instruídas podiam ser mais esclarecidas do
que ele. No entanto, nesse mesmo navio havia um marinheiro
cristão, que, se pudesse não teria dado uma definição concisa
e adequada da “graça”, não obstante sabia perfeitamente seu
significado, e diria: “Sim, sim, senhor; é isto mesmo”, com o
coração palpitante e a face radiante, se alguém tivesse sugerido
o seguinte: “A graça é o favor gratuito, imerecido de Deus,
graciosamente concedido ao pecador indigno”. E se o próprio
Sr. Phillips estivesse a bordo e pregasse ali seu sermão, teria
declarado: “A graça é algo em Deus que está no centro de todas
Suas atividades redentoras, a inclinação e o alcance de Deus,
o Deus que desce das alturas de Sua majestade, para tocar e
agarrar nossa insignificância e pobreza”, a face batida pelo vento
teria se iluminado novamente, e o marinheiro convertido teria
dito para de si mesmo: “O, para agraciar tão grande devedor,
devo ser constrangido diariamente”.
Verdadeiramente, o mundo por meio de sua sabedoria não
conhece a Deus. O verdadeiro significado de “graça” está oculto
ao sábio e ao prudente, mas é revelado às criancinhas. “Senhoras
de casas simples do interior” são, muitas vezes, mais sábias para
as coisas mais profundas de Deus do que os sábios e os cientistas.
Nosso viajante instruído habitava em um dia perpétuo, mas não era
capaz de dizer, fundamentado em sua experiência de vida: “Deus
brilhou em nosso coração para, na face de Jesus Cristo, dar a luz do
conhecimento da glória de Deus”.

410
Salvação pela graça

Dr. Dale, muitos anos atrás, lamentava que a palavra “graça”


estivesse caindo em desuso. Tem, sim! Pois tem sido usada muito
menos desde então. Sua própria definição de “graça” é digna de ser
lembrada: “A graça é o amor que vai além de toda a exigência de
amar. E amor que, após cumprir as obrigações impostas pela lei,
tem uma riqueza de bondade inexaurível”. E esta é a declaração do
Dr. Mclaren: “Graça — o que é isso? A palavra significa, primei­
ramente, amor em função daqueles que estão abaixo do amante,
ou quem merece algo mais; concedendo amor que condescende e
amor paciente que perdoa. Então, significa o dom que tal amor con­
cede; e, portanto, significa o efeito desses dons nas belas feições do
caráter e na conduta desenvolvida nos que o recebem”.
O Dr. Jowett coloca a questão de maneira admirável: “Graça é
energia. Graça é energia de amor. Graça é uma energia de amor
que redime ao ministrar ao não amado, e que concedendo ao não
amado sua própria amabilidade”. Devemos ouvir o Dr. Alexander
Whyte aqui? “Graça significa favor, misericórdia e perdão. Graça e
amor são, em essência, a mesma coisa, a diferença é que a graça é
o amor que se manifesta e opera sob certas condições, assim como
se adapta a certas circunstâncias. Como, por exemplo, o amor não
tem limite ou lei, como a graça tem. O amor pode existir entre
iguais, ou pode surgir àqueles acima de nós, ou fluir àqueles abaixo
de nós. Mas a graça, por sua natureza, tem apenas uma direção a
tomar. A graça sempre flui. A graça, na verdade, é amor, mas é amor
para criaturas que se humilham. O amor do rei aos seus iguais,
ou à sua própria casa real, é amor; mas seu amor aos seus súditos
é chamado graça. E, assim, é que o amor de Deus para com os
pecadores é sempre chamado de graça nas Escrituras. E amor, na
verdade, mas é amor às criaturas, e às criaturas que não merecem
seu amor. E, portanto, tanto o que Ele faz por nós em Cristo como
o que é descoberto para nós por Sua boa vontade no evangelho é
chamado de graça.”

É possível definir “graça”?


Embora essas definições sejam encantadoras, estamos cônscios
de que nem a metade nos foi dito. O! As extraordinárias riquezas de
sua graça. A que devemos comparar a misericórdia de Deus, ou que
comparação devemos fazer? Ela desafia a definição e empobrece a
descrição. Isso é difícil de imaginar, pois é algo divino. Há algumas

411
Os fundamentos

coisas na terra para as quais nenhuma pena humana fez justiça


— tempestades, arcos-íris, cataratas, poentes, icebergs, flocos de
neve, gotas de orvalho, as asas que batem entre as flores no verão.
Porque Deus as fez, o homem é incapaz de descrevê-las. Quem,
portanto, dirá plenamente aquilo que Deus tem e é? A definição que
citamos do Dr. Jowett é digna de sua grande reputação, contudo
ele mesmo confessa que a “graça” é indefinível. Assim, cuidado­
samente, ele faz a seguinte colocação: “Algum ministro da Cruz,
enquanto labuta em grande solidão, entre um povo primitivo e
disperso, e às margens de florestas primevas e obscuras, enviou-me
uma pequena amostra de seu vasto e rico ambiente. Foi o brilho
e o alegre colorido da asa de um pássaro nativo. A cor e a vida de
alianças sem vestígio servindo de amostragem dentro dos limites
de um envelope! E quando fazemos uma pequena frase compacta
para entesourar o segredo da graça, percebo quão bela e irradiante
ela pode ser, pois apenas a asa de um pássaro nativo pode dar um
esboço estonteante da riqueza que ainda está intacta e não revelada.
Não, não podemos defini-la”.

Desejo por salvação


Não podemos nos enganar e achar que todos os homens desejam
ser salvos. Gostaria Deus que isso fosse assim! Uma falta de senso
de pecado é o presságio mais perigoso de hoje, como o Sr. Gladstone
declarou que era em sua época. Se ele estivesse vivo agora, ele,
assim cremos, repetiria aquelas portentosas palavras com mais
ênfase, porque essa falta — essa falta fatal — é aprovada e nutrida
por alguns daqueles cujo solene empenho deveria ser o de impedi-
la e condená-la. Uma falta que é seguramente fatal, pois se o senso
de pecado estiver ausente, que esperança há de haver o desejo por
salvação, ou de um clamor por misericórdia, ou de apreço por um
Salvador? Enquanto os homens imaginarem que são Cristos em po­
tencial, há pouca probabilidade de que eles ficarão suficientemente
descontentes consigo mesmos ao olhar para Jesus, ou, na verdade,
supor que eles são pessoas ricas e com acréscimo de bens e,
portanto, não necessitam de nada. Não, não; nem todos os homens
desejam salvação, embora pensemos que, mais cedo ou mais tarde,
ela chegará a todos eles, antes que o processo de endurecimento
esteja completo, alguma consciência de pecado, alguma apreensão
quanto ao futuro, algum desejo lânguido e espasmódico que seja,

412
Salvação pela graça

de se acertar com Deus e ter o céu assegurado. Além disso, há um


número muito maior do que supomos de almas realmente ansiosas.
Esse desejo profundo, muitas vezes, é ocultado sob uma roupagem
de despreocupação, e há, às vezes, um coração que se parte sob
um peito de bronze. Em acréscimo a esta falta de senso de pecado,
e em parte em conseqüência dela, há muita concepção errônea
quanto à natureza da salvação e o modo de assegurá-la. E possível
ter em mente a verdadeira concepção de pecado e de salvação, sem
a compreender, ou, seja qual for o caso, sem se submeter ao método
divino de salvação. Pode-se admitir que ser salvo do pecado é su­
perar seu poder, como também escapar de sua penalidade, e ainda
supor que isto não seja impossível de ser alcançado por homens
decaídos por meio da penitência profunda, da reforma radical e da
piedade precisa.

Retidão é essencial
Uma coisa é evidente — retidão é essencial. Mas qual deve ser
a natureza e a qualidade dessa justiça, e como e de onde ela deve
ser obtida? Será que minha retidão deve ser produzida em casa,
ou deve ser de Deus e vir de cima? Devo formar a minha própria
retidão ou devo me sujeitar à de Deus? A salvação deve ser por meio
das obras ou da fé? Cristo é um Substituto para o pecador, ou será
que o pecador é um substituto para o Salvador? Devemos preferir o
cheiro do altar do sacrifício, designado por Deus e proporcionado
por Deus, ou preferiremos enfeitá-lo com flores que murcham
e com frutas que secam, embora à primeira vista nos pareçam
justas? A bondade é pessoal, ou é a graça de Deus, como revelada
em Jesus Cristo, que nos leva ao mundo onde tudo está bem? A
primeira é uma escada que nós mesmos colocamos e subimos com
muito esforço; a outra é um elevador que Deus provê, no qual, na
verdade, passamos pela fé penitencial, mas cujo poder de elevação
é apenas de Deus. A salvação por obras é a escolha do fariseu, a
salvação por graça é a esperança do publicano.

üm ou outro
Esses dois princípios não podem ser combinados. Eles são
totalmente distintos; além disso, estão em discrepância um com a
outro. Uma mistura dos dois é impossível. “E, se é pela graça, já não
é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça” (Rm 11.6). Não

413
Os fundamentos

se pode merecer a misericórdia. Esse campo não deve ser semeado


com sementes misturadas. O boi da misericórdia e o jumento do
mérito não devem trabalhar juntos; na verdade, eles não podem ser
atados ao mesmo carro; pois são muito desiguais. Não podemos
tecer uma roupa de linho e lã, assim como não podemos tecer as
obras e a graça juntas. Como Hart, de maneira singular, expressa
isso:
Em tudo o que fazemos pecamos,
Judeus eleitos
Não devem usar
Lã misturada com linho.

Assim a escolha deve ser feita entre esses dois caminhos para
o céu. A grande questão ainda é: “Como o homem pode ser justo
diante de Deus?”, e parece que ele mesmo ou deve ser essencial e
perfeitamente santo, ou deve, por algum meio, adquirir uma justiça
que sustentará o escrutínio da onisciência e a revista da alta corte
celestial.

O que diz o livro?


O que tem a Palavra de Deus a dizer sobre essa questão bastante
importante? Ela declara plenamente que todos pecaram, que o
pecado é excessivamente pecaminoso, que a retribuição segue a
iniqüidade como uma carroça segue as pegadas do boi que a puxa,
que ninguém pode limpar suas mãos ou renovar seu próprio cora­
ção. Ela nos diz também que Deus, em sua infinita misericórdia,
inventou um modo de salvação, e que ninguém, a não ser Jesus,
pode fazer o bem a pecadores desamparados. Observe as vítimas
de sangue e os altares de incenso da antiga dispensação! Eles falam
do pecado que precisou ser extinguido, assim como eles prefigu-
ravam um sacrifício de nome mais nobre e de sangue mais rico
do que esses, o único Sacrifício que pode tornar perfeitos os que
se aproximam dele. Ouçamos a Davi, quando clama: “Não entres
em juízo com o teu servo, porque à tua vista não há justo nenhum
vivente” (SI 143.2).
Os profetas dizem a mesma coisa. “Com o seu conhecimento,
justificará a muitos, porque as iniqüidades deles levará sobre si”
(Is 53.11). Em seguida, há a maravilhosa palavra que quebrou as
correntes que estavam na alma de Lutero, enquanto ele subia de

414
Salvação pela graça

joelhos a santa escadaria: “O justo viverá pela fé” (G1 3.11). Os


apóstolos dão um testemunho semelhante. Pedro fala de Jesus de
Nazaré, e declara: “E não há salvação em nenhum outro; porque
abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os ho­
mens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12).
Paulo é insistente na justificação apenas pela fé: “Visto que nin­
guém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que
pela lei vem o pleno conhecimento do pecado” (Rm 3.20). “Porque
pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom
de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie” (Ef 2.8 e 9).
“não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua mi­
sericórdia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador
do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós ricamente, por meio
de Jesus Cristo, nosso Salvador, a fim de que, justificados por graça,
nos tornemos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna”
(Tt 3.5, 6, 7). (ver também G13.11;Fp 3.8,9; At 13.39; 2Tm 1.9).

Sem saída
De qual testemunho precisamos mais? E evidente que o caminho
das obras está fechado. A Arvore da Vida e as tábuas quebradas
da Lei caíram através do caminho estreito, e Deus fixou um aviso,
grande e legível, de maneira que quem lê pode percorrer um caminho
melhor — SEM SAÍDA! Isso é uma ordem, e o selo vermelho do Rei
está nele; então, obedeça-a sempre. As instruções levíticas, as con­
fissões davídicas, as declarações proféticas e apostólicas são todas
a voz do Senhor — a voz que derruba o cedro do Líbano e limpa as
florestas — declarando que a salvação é apenas pela graça.

O veredicto da história
A história do homem é a história do pecado. E um relato longo,
lúrido de queda e fracasso. Adão teve a melhor oportunidade de
todas. A lei, naquela época, era fragmentária e rudimentar. Havia
apenas uma ordem — um teste solitário. Mas essa única ordem foi
demais para nossos primeiros pais. Mais tarde, o mundo, varrido
pelo dilúvio, foi logo profanado novamente. Mais um pouco ainda,
e veio a lei para Israel, santa, justa e boa. Eles obedeceram? Deixe
que as carcaças que se espalharam no deserto testemunhem. Será
que há uma vida sequer perfeita nos anais de todos os tempos? Os
fariseus eram preeminentes como religiosos profissionais, contudo,

415
Os fundamentos

Jesus disse: “Se a vossa justiça não exceder em muito a dos escri-
bas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus” (Mt 5.20). Eles
viajavam em um trem expresso e, naturalmente, de primeira classe,
mas era o trem errado! Saulo de Tarso era o fariseu dos fariseus,
mas, lembre-se, ele não era hipócrita, no entanto, também estava
na trilha errada, até que mudou de trem na junção de Damasco. Ali,
ele renunciou a toda confiança na carne, e daí em diante exclamou:
“Mas o que, para mim, era lucro, isto considerei perda por causa
de Cristo. Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da
sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por
amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo,
para ganhar a Cristo e ser achado nele, não tendo justiça própria,
que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça
que procede de Deus, baseada na fé” (Fp 3.7-9).

Graça, não graças


A experiência pessoal fornece testemunho semelhante. Nossas
próprias graças não podem nunca satisfazer como a graça de
Deus satisfaz. Aquele que não está longe do Reino, não obstante
pergunta: “O que me falta ainda?”. Alguém pode muito bem pensar
que poderia esperar ganhar o céu pelos atos da lei como se fosse
puxado pelas botas. O fato é que a natureza humana decaída é
incapaz de manter perfeitamente a lei perfeita de Deus. Isso é bom,
quando é entendido e humildemente reconhecido; isto pode ser
a aurora de coisas melhores, mesmo se estiver como aquele, que
escutei contar, que foi levado a Cristo pela aplicação das palavras
do Espírito: “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas,
e desesperadamente corrupto” (Jr 17.9). Quem pode tirar uma
coisa pura de uma impura? Gulliver conta a história de um homem
que gastou oito anos em um processo para extrair raios de sol
de pepinos. Os raios de sol deveriam ser colocados em frascos
hermeticamente selados, para aquecessem o ar quando o clima
estivesse inclemente. Isso, na verdade, era uma tolice, mas é ainda
mais ridículo pensar em extrair justiça de um coração depravado.
“Os que estão na carne não podem agradar a Deus” (Rm 8.8).
Este era um bom conselho dado a uma pessoa que buscava: “Você
jamais conhecerá e encontrará a paz enquanto não deixar de olhar
para si mesmo e deixar todas as suas graças em troca de nada”. O
diabo negro da injustiça escraviza milhares, mas o diabo branco

416
Salvação pela graça

da autojustiça escraviza dez milhares. A salvação é por graça, não


pelas graças. Proclame em alta voz essa verdade, porque ela é a boa
nova para todos, exceto para os fariseus. Eles, na verdade, preferem
outro evangelho, que não é outro e tampouco é moderno, pois é tão
velho quanto a oferta de Caim. Sua palavra de ordem é: “Creia em si
mesmo”, mas para aqueles que viram a si mesmos como Deus os vê,
não podem por nenhum meio elevarem-se a si mesmos, pois estão
calados debaixo do pecado, e já condenados, ah!, para estes, essa é,
na verdade, a novidade do verão. Se a salvação é por graça, os não
agraciados podem ser salvos, os pródigos podem voltar para casa,
o vil pode ser purificado. Ah! sim, e há um sentido em que quanto
mais culpado, melhor. Então, há menos temor da intrusão de outra
confiança, e a glória concedida à graça de Deus é maior. Penso que
se a salvação for por obra, então ninguém pode ser salvo. Estou
igualmente certo de que se a salvação for por meio da graça, nin­
guém precisa perder-se, porque é onipotente, e uma grande alegria
ser provado plenamente. Li, outro dia, essa frase em uma vitrine de
um rebitador: “Não há nenhum artigo quebrado que não possa ser
consertado — quanto mais quebrado estiver, mais gostamos dele”,
e digo para mim mesmo: “O mesmo acontece com a graça de Deus,
e enquanto viver, direi isso aos pobres pecadores”.
Ao passo que para o orgulhoso fariseu, “Deus lhe concede graça
para gemer”.

O que diz a cruz?


Graça e expiação andam de mãos dadas. O Dr. Adolph Saphir
disse bem: “O mundo não sabe o que é a graça. Graça não é pie­
dade; graça não é indulgência, nem perdão; graça não é não sofrer
longamente. Graça é tanto um atributo infinito de Deus como Seu
poder e Sua sabedoria. A graça manifesta-se na injustiça, a graça
possui uma justiça que está baseada na expiação ou substituição, e
ao longo de toda a Bíblia corre a linha dourada da graça e a linha
escarlate da expiação que, juntas, nos revelam — para todos os ho­
mens — uma justiça que vem do céu”. O fato de que Cristo morreu,
um sacrifício pelo pecado, certamente resolve a questão quanto a se
a salvação é ou não pela graça. “Se a justiça é mediante a lei, segue-
se que morreu Cristo em vão” (G1 2.21). Aquele grande Sacrifício
foi pior do que desperdício, se o homem pudesse se salvar. Aqueles
que pensam ser salvos por meio das obras da carne esvaziam a

417
Os fundamentos

graça de Deus. 0 dom inefável jamais foi doado; o sacrifício substi­


tuto jamais foi oferecido, qualquer outro caminho jamais foi possível.
O Calvário diz, mais claramente do que qualquer outra coisa, “Ao
S enhor pertence a salvação! ” (Jn 2.9). Afastai -vos, vós negociantes
do mérito da cruz, em que “a espada da Justiça é colocada na
bainha enfeitada com jóias da graça”. Penitências, e devoções, e
desempenhos não passam de vaidade, devido aos “sofrimentos
desconhecidos” do Cordeiro imaculado de Deus. E impossível para
a autojustiça prosperar no declive da colina chamada Calvário.
O, não ofereça nenhum preço; a graça de Deus é gratuita
Para Paulo, para Madalena, para mim!
Tudo de Graça
A Salvação, portanto, é necessariamente toda de graça. A Queda
do homem é tão completa, a justiça de Deus é tão inexorável, o céu
é tão sagrado, que nada, exceto o amor onipotente, pode erguer o
pecador, pode aumentar a lei que ele mutilou e pode torná-lo puro
o bastante para habitar na luz. A intenção de salvar os pecadores é
de Deus, um desejo que nasceu nos lugares secretos de Seu grande
coração amoroso. “A graça inventou um modo de salvar o homem
rebelde”. A realização do maravilhoso plano revela completamente
a graça de Deus. Ele enviou seu Filho para ser o Salvador do mundo.
Ele o deu livremente para nós. Ele o reconheceu em Sua humilha­
ção como Seu Filho amado, mas o abandonou no madeiro, porque
Ele foi feito pecado por nós. Além disso, ele trouxe novamente dos
mortos nosso Senhor Jesus, este grande pastor de ovelhas, e O
entronizou à direita de Sua majestade nas alturas. Lá ele começou
a derramar o Espírito para convencer o mundo do pecado, e da
justiça, e do juízo. Aqui está a graça em cada passo.

“Por meio da fé”


Uma obra de graça, também, foi efetuada em cada coração que
crê. Não somos salvos meramente porque Cristo morreu. As boas
novas devem ser para nós como a chuva no Saara, a graça não se
inclinou à penitência, à oração e à fé.
A Graça ensinou minha alma a orar,
E fez minhas lágrimas rolar.
A Salvação pela graça é apropriada pela fé. A graça é a fonte, mas a
fé é o canal. A Graça é a linha da vida, mas a fé é a mão que a aperta.

418
Salvação pela graça

E para excluir, completa e totalmente, todo o orgulho, declara-se


que a salvação e a fé são ambas Dom de Deus. “Porque pela graça
sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus”
(Ef 2.8). Que a salvação é o dom de Deus é evidente. “O dom de
Deus é vida eterna através de Cristo.” “O dom gratuito”, “o dom da
graça”, “o dom da justiça” — estas frases determinam o fato de que
a salvação é em si um presente divino para o homem. “Salvação ,”
clamava C. H. Spurgeon na grande congregação, “é tudo por nada!
— Cristo gratuito! — Perdão gratuito! — Céu gratuito!” Graças a
Deus pela salvação gratuita!
Mas a fé é, também, dom de Deus? Seguramente que sim,
somente porque é uma das mais preciosas faculdades do coração
humano. O que temos que não foi recebido? Mas a fé em Cristo é,
em um sentido muito especial, um dom divino. “Não que seja algo
que nos é dado que seja diferente da confiança absoluta exercida
em outros casos, mas que tal confiança é divinamente guiada e
fixada sobre o objeto correto. As manifestações graciosas da
necessidade da alma, e da glória do Senhor, prevalecem sobre a
vontade de repousar a confiança neste objeto.” Confiar é natural,
mas confiar em Cristo, mais do que em si mesmo, ou em cerimô­
nias, é sobrenatural — é dom de Deus. Além disso, a fé, para ser
digna do nome, não deve ter os olhos secos, e quem pode derreter
o coração e converter a pedra dura em uma fonte de águas, senão o
Deus de toda a graça?
A graça que me fez sentir o pecado,
Ensinou-me a crer;
Então, ao crer, encontrei a paz,
E agora eu vivo, eu vivo.
Não se deve supor que a graça complete sua obra em nós assim
que cremos. O poderoso chamado da graça, que resulta em nosso
despertar, é apenas o começo das boas novas. A graça nos guarda
até o fim. Ela não nos deixará. Ela é a estrela da manhã e da tarde
da experiência cristã. Ela nos coloca no caminho, nos ajuda, e nos
leva durante todo o caminhar!

“Para que nenhum homem se glorie”


E difícil imaginar por qual outro processo a salvação poderia ter
sido assegurada, consistentemente com a honra de Deus. Suponha,
por um momento, que a salvação pelas obras fosse uma alternativa

419
Os fundamentos

possível. O orgulho, longe de ser excluído, seria convidado. O


homem se orgulharia no prospecto. Quão orgulhoso ele ficaria
de seu propósito e de sua esperança. Em uma tarefa como essa,
ele embarcaria com bandas de músicas e fitas coloridas. Haveria
confiança e pompa desde o princípio. Ai! Homem vão; isto pode
terminar de maneira desastrosa. Você está construindo sobre a
areia. Isto não é de Deus, e, portanto, isso levará à ruína. O Espírito
divino leva os homens à convicção e ao profundo arrependimento;
ele nunca incita à justiça si mesmos e ao orgulho; como expressa
essa simples estrofe de Hart:
Ele nunca leva um homem a dizer,
“Graças a Deus, eu sou tão bom”,
Mas converte seu olhar para um outro caminho —
Para Jesus e Seu sangue.
Ele se orgulharia do progresso. Como sua pior realização
o elevaria? Que exultação poderia haver no mais sutil avanço!
Não haveria necessidade de obrigação para com Deus. O novo
nascimento, a purificação pelo sangue, a conversão do Espírito
— como chamaremos isso? O homem que se fez por si mesmo,
conforme dizem, adora seu criador, e o homem que confia em
sua própria justiça adora seu salvador, quer dizer, ele mesmo.
Enquanto o fariseu está se vangloriando do que faz, o publicano
lamenta o que ele é. Porque seu coração o golpeia, e ele golpeia
seu coração; ele não pode olhar para cima, porque ele olhou para
dentro, então, porque ele clama por misericórdia, ele é justifica­
do. E assim que Deus coloca a questão, porque Ele disse: “Eu
sou o SENHOR, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a
darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura”
(Is 42.8).
Ele se orgulharia quando perfeito. Se uma paz real e uma
alegria duradoura viesse a ele, ele se orgulharia novamente.
“Tornei meu coração puro, lavei minhas mãos na inocência”, cla­
maria ele. Não haveria espaço para Deus, nem para seu clamor
soberano a todo louvor de nossa salvação. Em vez do doce badalo
do sino de São Salvador, “Eu te perdoei — eu te perdoei — eu te
perdoei todas as dívidas”, ficaríamos ensurdecidos com o som do
bronze do próprio trompete de cada homem que vocifera acerca
do bem — alguns mesmo ousariam dizer, o Deus — que está em
tudo.

420
Salvação pela graça

Sei qual música prefiro. Desde de a primeira vez, quando ouvi


àquela palavra de perdão, como os sinos que badalam à tarde, minha
alma deixou de lado todas as outras espécies. Toquem, toquem,
doces sinos!
Novamente, ele se orgulharia no Paraíso. Pense nisso! O céu tal
como é, está cheio do louvor perfeito a Deus. Cada canção em honra
do Pai, do Filho, ou do Espírito. “Aquele que nos ama, e, pelo seu
sangue, nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino,
sacerdotes para o seu Deus e Pai, a ele a glória e o domínio pelos
séculos dos séculos. Amém!” (Ap 1.5,6) Este é o coro dos céus, o
doce refrão da canção eterna. “Digno é o Cordeiro”, clamam eles, e
novamente dizem, “Aleluia!”
Mas se a salvação fosse por obras e não pela graça, as canções,
seriam em louvor do homem. Cada um louvaria seu companheiro
ou a si mesmo, e passariam a eternidade contando as virtudes e as
vitórias pessoais. O, que eternidade cansativa seria essa.
Ah! E melhor como é, com o Cordeiro no meio do trono, e as
harpas tocando em louvor de Jesus. Não haverá ali auto-admiração,
e, conseqüentemente, nenhuma comparação e nenhuma rivalidade,
a não ser na verdade, que competiremos um com outro quanto a
quem renderá a maior graça. O mote de cada um será, “Aquele
que se gloria, glorie-se no Senhor” (ICo 1.31). Como McCheyne
expressa, não seremos “revestidos com nossa própria beleza”. Está
é a beleza disso!
Assim, a salvação é de graça, e apenas de graça. Deus não terá
nenhum homem que se orgulhe, e orgulho ele certamente teria,
fosse ele salvo, mesmo que em parte, pelas obras de suas próprias
mãos. Está é, sem sombra de dúvida, uma doutrina da humildade.
Não é de admirar que não seja popular. A verdade raras vezes é.
“A verdade não é bem vinda, embora divina”. Mas não é bom ser
humilde? Na verdade, não estamos dispostos a favorecer qualquer
ensino que deprecie a Deus, ou que exalte o homem. Foi muito bem
e verdadeiramente dito que “o homem que foi arrebatado do desam­
paro e do desespero pela graça imerecida, jamais esquecerá de se
considerar como um homem perdoado” (Rev. T. Phillips). Ele não
deixará de olhar para trás, para a rocha de onde ele foi tirado, e para
o poço onde ele estava enterrado. Gipsy Smith tinha um arbusto ao
pé de seu jardim em Cambridge, para que ele pudesse desfrutar
de uma visão ininterrupta do jardim no qual a tenda de seu pai foi

421
Os fundamentos

erguida, e onde ele costumava passear quando jovem, quando era


vendedor de madeira (Ele vendia pregadores de roupas, lembra-
se?). Nós o amamos por isso. Exaltado à honra e proveito pela
graça, ele deu a Deus o louvor. A graça divina torna o homem
gracioso. As boas obras e as graças não são de nenhum modo
excluídas das vidas dos crentes. Elas são o produto da salvação
gratuita, a evidência da fé salvadora, o reconhecimento de cora­
ções gratos. O pecador salvo pela graça exterioriza a salvação
que foi forjada nele. Ele é escravo da vontade do Salvador. Ele
não pode ficar contente em triunfar na graça de Cristo; ele deve
agraciar seu triunfo também. Aconteceu com ele o mesmo que
aconteceu com os habitantes da cidade de Bath, que lembram
seu apreço pelas águas curadoras em uma tábua na qual está
inscrito:
Estas águas curadoras fluem desde tempos imemoriáveis,
Sua virtude é impar, seu calor não diminui,
Seu volume não decai; elas explicam a origem,
Respondem pelo progresso e exigem a
gratidão
Da Cidade de Bath.
A analogia é quase perfeita. A graça de Deus pode ser comparada
às águas que fluem, às correntes quentes que curam, às correntes
que nunca se esfriam nem falham. Além disso, “elas são considera­
das nossa origem e progresso”, isto é, devemos nosso ser espiritual
e nosso ser bom a elas. E quanto à exigência de gratidão — bem,
“as correntes de misericórdia nunca deixam de nos convidar para
canções do mais alto louvor”.
O, preguemos a graça, mesmo se não formos graciosamente
recebidos. “Se as pessoas não gostam da doutrina da graça”, disse
C. H. Spurgeon, “ofereça-lhes mais dela”. Não o que eles querem,
mas o que eles necessitam é o que devemos oferecer. Se os tempos
são de amor ao prazer, descrença, auto-satisfação, devemos invocar
mais o testemunho fiel quanto à natureza do pecado, à atitude de
Deus para com ele e os termos pelos quais Ele oferece a salvação.
Devemos objetivar o coração e a consciência. Devemos procurar
elevar e, até mesmo, alarmar o pecador, enquanto o convidamos
tão cortesmente, como sempre, ao único Mediador. Um evangelho
pleno trata da abundância de pecado, e muito mais da abundância
da graça.

422
Salvação pela graça

Certamente, o Dr. Watts cantou verdadeiramente, quando


descrevia os relatos de suas experiências da graça:
Então todas as sementes escolhidas
Se encontrarão ao redor do trono,
Abençoarão a conduta de Sua graça,
E tornarão Suas glórias conhecidas.
Para mim, rever o plano de Deus para minha salvação e tentar
expô-lo foi o mesmo que o poeta chama de “uma gota do céu”.
Sempre senti gratidão pelos navios que me levaram através dos
mares. Quanto mais devo amar o bom navio da graça que me
leva longe em meu caminho para os Portos Celestiais. Certa vez,
ofereceram-me uma oportunidade rara para ver o navio em que
viajava, antes que a viagem chegasse ao fim. Após três meses em
um navio à vela, fomos saudados por um rebocador, cujo capitão,
sem dúvida, esperava ser requisitado para a tarefa de nos rebocar
até o porto. Havia, no entanto, uma leve brisa que, embora muito
suave, prometia ser constante. Portanto, declinamos os serviços do
rebocador. Ansioso por ganhar algum dinheiro honesto, o capitão
navegou ao nosso lado e permitiu que os passageiros de nosso
navio pudessem admirar, de um outro deque, essa boa embarcação
que os transportara por cerca de vinte e quatro mil quilômetros.
Eu era um deles. A experiência de sair do que fora minha casa
flutuante, para observar suas linhas graciosas, os mastros altos,
as áreas afiladas, as velas estufadas — a onda branca cacheando o
talha-mar, e a esteira verde espiralando atrás. Dessa perspectiva,
itens que haviam se tornado familiar, ganharam um interesse reno­
vado. Havia o timão, que, durante a tempestade, seis marinheiros o
amarraram, e ali a bitácula, cuja bússola, bem abrigada, fora bem
estudada desde o início, e acolá a casa dos mapas com seus tesou­
ros de sabedoria, e, mais distante, as âncoras com suas enormes
patas e, acima de tudo, a rede de cordas — um emaranhado para
o não iniciado. Até mesmo a fumaça da cozinha do navio inspirava
respeito, pois nos remetia às muitas refeições que o apetite, agu­
çado pelos penetrantes ares dos mares do sul, devorara. E, mais
além, o porto de nossa própria cabine! Que coisas maravilhosas
foram vistas através daquele pequeno orifício, e que doces sonos,
embalados pelo berço profundo, foram desfrutados sob aquele teto.
O! Aquela era uma visão magnífica, aquele navio cheio de mastros,
que por tanto tempo foi nossa casa sobre o oceano, a qual, apesar

423
Os fundamentos

dos ventos e correntes contrários, das aterrorizantes ventanias e


das torturantes calmarias, deu meia volta no globo e trouxe, em
segurança, seus numerosos passageiros e carga valiosa através de
léguas sem rasto. Será que você pensa que aplaudimos a valente
embarcação, seu habilidoso comandante e a tripulação repetidas
vezes? Ainda escuto os ecos de nossos gritos de saudação: “Viva!”
Será que você acha que agradecemos a Deus pela próspera viagem,
conforme a vontade Dele, e que deixamos o rebocador para voltar
para nosso navio sem a menor dúvida de que o pouco que restava
de nossa viagem seria completada logo e sem maiores problemas?
Deixe-me aplicar esse incidente. A boa embarcação é a graça, e
levei meus leitores ao rebocador para lhes dar uma oportunidade
de ver a maneira como caminharam até bem próximo — (não sabe­
mos até que proximidade chegaram) — do porto, ao pé da colina.
Já velejamos ao redor dessa embarcação, falamos sobre os mastros
altos e marcamos bem seu quebra-mar. Vimos a respiração de
Deus estufando suas velas iluminadas pelo sorriso de Seu amor.
Percebemos a linha escarlate em toda sua mastreação, e a bandeira
carmesim balançando na proa. Vimos na popa a roda, o timão, da
soberania de Deus pela qual o grande navio é manobrado para
seguir o caminho que Governador quiser e, na proa, a âncora grande,
para emergências, dos pecadores: “O que vem a mim, de modo
nenhum o lançarei fora” (Jo 6.37). A casa dos mapas é a Palavra,
e a bússola é o Espírito. Há despensas bem fornidas, salões espa­
çosos, aposentos, que nunca devem ser esquecidos, os quais Ele
providenciou para que suas preciosidades dormissem, e uma vista
de onde elas podem ver suas maravilhas nos momentos difíceis.
Em meio à tempestade de estresse e fatigantes calmarias; por meio
de léguas de emaranhados de ervas daninhas, ficando sempre fora
do alcance de muitos icebergs, gelados e perigosos, enfrentando
mudanças do clima, a graça nos trouxe até aqui, com velocidade
variada e traçado em ziguezague. Temos, por acaso, ainda algumas
léguas a percorrer. Podemos até retroceder e, por um momento,
ficar à beira da entrada do porto, mas, por favor, Deus, por fim,
devemos ter entradas abundantes. Circundamos o navio, e chamo
cada passageiro a abençoar a embarcação em nome do Senhor e
louvar Aquele que a possui e a navega. Toda a honra e glória para o
Deus da graça e para a graça de Deus! Dez mil obrigados, milhares
de agradecimentos a Jesus! E igual louvor ao Espírito bendito!

424
425

A natureza da regeneração

Thom as B o s to n (1676-1732)
Resumido e editado por James 11. Christian, Th.D.

Muitos são iludidos por falsas concepções da natureza da


regeneração, como se equivocam em relação a algumas mudanças
parciais feitas neles para esta grande e completa mudança. Para
remover tais equívocos, consideremos essas poucas coisas:
1. Muitos consideram a igreja sua mãe, a quem Deus não tomará
como seus filhos. Todos os que são batizados não são nascidos
de novo. Simão foi batizado, ainda “pois vejo que estás em fel de
amargura e laço de iniqüidade” (At 8.13-23). Onde o cristianismo
é a religião da nação, muitos são chamados pelo nome de Cristo
embora não tenham nada Dele, senão o nome: e não é de admi­
rar, porque o diabo tem seus cabritos entre as ovelhas de Cristo

THOMAS BOSTON (1676-1732) nasceu em um lar presbiteriano na


Escócia. Q uando jovem, passou um tempo na prisão com seu pai, que
não aceitava suas convicções bíblicas. Foi educado em Edimburgo,
ordenado em 1699 e tornou-se pastor de um a pequena igreja em
Simprin, Berwickshire. Em 1707, ele mudou-se para Ettrick, em
Selkirkshire, e permaneceu ali pelo resto de sua vida. Foi um poderoso
pregador do evangelho, que exaltava a graça de Deus, e concedeu a seu
povo um a teologia bíblica sólida. Seus escritos foram reunidos em doze
volumes. Seus livros mais famosos são The Crook irt the Lot [O Cajado
no Rebanho) e H um an Nature in Its Four-fold State [A Natureza Humana
em Sua Faceta Quádrupla],
Os fundamentos

naqueles lugares onde apenas poucos professam a religião crista.


“Eles saíram de nosso meio; entretanto, não eram dos nossos”
(Jo 2.19).
2. A boa educaçao não é regeneração. Educaçao pode refrear os
desejos humanos, mas não pode mudar o coração. Um lobo
ainda é uma fera voraz, embora esteja aprisionada. Joás era
muito devoto durante a vida de seu bom tutor Joiada; mas,
posteriormente, ele rapidamente mostrou de qual espírito ele
era, por sua repentina apostasia (2Cr 24.2-18). O bom exemplo
é uma poderosa influência para mudar o homem exterior; mas
essa mudança freqüentemente se perde, quando o homem muda
suas companhias.
3. Uma conversão de uma profanação aberta para a civilidade e so­
briedade fica aquém dessa mudança de salvação. Alguns ficam,
por um tempo, muito perdidos, principalmente em seus anos de
juventude; mas, com o tempo, eles se reformam e deixam seus
caminhos profanos. Essa mudança pode ser encontrada nos
homens completamente destituída da graça de Deus.
4. Pode-se ocupar em todos os deveres externos da religião e, ainda
assim, não ser nascido de novo. Os homens podem escapar das
profanações do mundo e ainda não serem salvos (2Pe 2.20-22).
Todos os atos externos de religião estão dentro do âmbito das
capacidades naturais. Sim, hipócritas podem ter a falsificação de
todas as graças do Espírito: porque lemos acerca da verdadeira
santidade (Ef 4.23); e da fé não ilusória (lTm 1.15); que nos
mostra que há uma santidade falsificada, e uma fé fingida.
5. Os homens podem avançar para uma grande exatidão em seu
próprio caminho da religião e, ainda assim, não conhecerem
o novo nascimento. “Porque vivi fariseu conforme a seita mais
severa da nossa religião” (At 26.5). A natureza tem seu próprio
rigor, porém não santificado na religião. Os fariseus tinham tan­
to disso que eles consideraram Cristo como alguém um pouco
melhor do que um mero libertino.
6. Uma pessoa pode ter exercícios refinados de alma e aflições,
mas, mesmo assim, morrer no nascimento. Muitos se contorce­
ram “em dores de parto”, que se sentiram como se estivessem
“dado à luz” ao “vento” (Is 26.18). Pode haver aflições doloridas
e agonia de consciência que não servem para nada. Faraó e o
mago Simão tinham convicção de que realizavam o desejo das

426
A natureza da regeneração

orações que os outros faziam para eles. Judas se arrependeu;


e debaixo dos terrores da consciência, devolveu as moedas de
prata obtidas com fraude. As árvores podem florescer razoa­
velmente na primavera, época em que nenhum fruto pode ser
encontrado: e alguns exercitam a alma, mas isso não serve para
nada, senão para saborear o inferno.
O novo nascimento, que, embora tenha se iniciado apenas apa­
rentemente, pode ser arruinado de dois modos: Primeiro, alguns,
como Zerá (Gn 38.28,29), são levados ao nascimento, mas retor­
nam novamente. Eles têm convicções inabaláveis por um tempo;
mas estas acabam, e eles se tornam descuidados quanto à salvação
e se tornam tão profanos que ficam piores do que nunca; “e o último
estado daquele homem torna-se pior do que o primeiro” (Mt 12.45).
Eles são despertados pela graça, mas não se convertem à ela, e esta
vai se acabando como a luz do dia, até que se encerra na escuridão
da meia-noite.
Em segundo lugar, alguns, como Ismael, vêem muito cedo; eles
nascem antes do tempo da promessa (Gn 16.2; comparar com
G1 4.22, etc.). Eles assumem como se fosse uma mera obra da lei,
e não permanecem até o tempo da promessa do evangelho. Eles
agarram a consolação, não esperando até que ela seja dada a eles;
e, tolamente, tiram seu conforto da lei que os feriu. Eles aplicam
o gesso curativo neles mesmos, antes que sua ferida esteja sufi­
cientemente cicatrizada. A lei os golpeia severamente, lançando
maldições e vingança em suas almas. Então, eles começam a
reformar, orar, lamentar, prometer e votar, até que este medo seja
abolido. Finalmente, eles, novamente, caem no sono dos braços da
lei, e nunca saem deles mesmos e de sua própria justiça, nem são
levados a Jesus Cristo.
Por último, pode haver uma mudança maravilhosa de afeições, em
almas que não são tocadas com a graça regeneradora. Onde não há
graça, pode, não obstante, haver uma inundação de lágrimas, como
aconteceu com Esaú, “pois não achou lugar de arrependimento,
embora, com lágrimas, o tivesse buscado” (Hb 12.17). Pode haver
grandes episódios de alegria; como para os que ouvem a Palavra,
representados na parábola pelo solo rochoso, que “a recebe logo,
com alegria ” (Mt 13.20). Também pode haver grandes desejos
pelas boas coisas, assim como grande prazer nelas também; como
aconteceu àqueles hipócritas descritos em Isaías58.2: “Mesmo

427
Os fundamentos

neste estado, ainda me procuram dia a dia, têm prazer em saber


os meus caminhos; como povo que pratica a justiça e não deixa o
direito do seu Deus, perguntam-me pelos direitos da justiça, têm
prazer em se chegar a Deus”. Veja como eles podem, às vezes, subi
tão alto, embora venham a cair. Eles chegaram a ser “iluminados, e
provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito
Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo
vindouro” (Hb 6.4-6). Operações comuns do Espírito divino, como
a inundação de uma terra, o fazer algo estranho, como virar as
coisas de cabeça para baixo; mas quando elas acabam, tudo volta a
correr novamente para o canal comum. Todas essas coisas podem
acontecer, pois o Espírito santificador de Cristo jamais descansa
na alma, mas o coração de pedra ainda permanece; e, nesse caso,
essas afeições só podem secar, porque elas não têm raiz.
Mas a regeneração é uma mudança real por inteiro, pela qual o
homem se torna uma nova criatura (2Co 5.17). O Senhor Deus faz
da criatura uma nova criatura, como o ourives derrete o vaso da
desonra e o torna um vaso de honra. O homem é, com relação a seu
estado espiritual, completamente deslocado pela Queda; toda facul­
dade da alma é deslocada: na regeneração, o Senhor afrouxa todas
as juntas, e as coloca novamente no lugar certo. Essa mudança feita
na regeneração, é, portanto:
1. U m a m u d a n ç a d e q u a l id a d e s o u d is p o s iç õ e s : não é uma mu­
dança da essência, mas das qualidades da alma. As qualidades
depravadas são removidas, e as disposições contrárias são inse­
ridas e postas em seu lugar. “No sentido de que, quanto ao trato
passado, vos despojeis do velho homem e vos revistais do novo
homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes
da verdade” (Ef 4.22,24). O homem, por intermédio do pecado,
não perdeu nenhuma das faculdades racionais de sua alma: ele
ainda tem entendimento, mas este está obscurecido; ele ainda
tem vontade, mas esta é contrária à vontade de Deus. Assim,
na regeneração, não há uma nova substância criada, mas novas
qualidades são infundidas; a luz no lugar das trevas, a justiça no
lugar da injustiça.
2 . E u m a m u d a n ç a s o b r e n a t u r a l : aquele que é nascido novamen­
te é nascido do Espírito (Jo 3.5). Grandes mudanças podem ser
feitas pelo poder da natureza, especialmente quando assistidas
pela revelação externa. A natureza pode ficar tão elevada pelas

428
A natureza da regeneração

influências comuns do Espírito, que uma pessoa pode, desse


modo, ser convertida em um outro homem, como Saú o foi
(ISm 10.6), embora jamais se torne um novo homem. Mas na
regeneração, a própria natureza é modificada, e tornamo-nos
participantes da natureza divina; e isto deve necessariamente
ser uma mudança sobrenatural. Como podemos nós, que esta­
mos mortos em transgressões e pecados, nos renovar, mais do
que um homem morto pode levantar-se de seu túmulo? Quem
senão o Espírito de Cristo santificador pode formar Cristo em
uma alma, mudando-a à Sua própria imagem? Quem, senão o
Espírito de santificação, pode dar um novo coração? Podemos
dizer, quando vemos um homem mudado: “Isto é o dedo de
Deus”.
3 . E UMA MUDANÇA À SEMELHANÇA DE ÜEUS. “E todos nÓS, CO m
o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória
do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua
própria imagem” (2Co 3.18). Tudo que gera, gera seu igual;
a criança traz a imagem dos pais; e aqueles que são nascidos
de Deus, trazem a imagem de Deus. O homem que aspira ser
como Deus, tornou-se como o diabo. Em seu estado natural, ele
se assemelha ao diabo, como um filho se assemelha a seu pai.
“Vós sois do diabo, que é vosso pai” (Jo 8.44). Mas quando essa
mudança feliz chega, aquela imagem de Satanás é desfigurada,
e a imagem de Deus restaurada. O próprio Cristo, que é o brilho
da glória de Seu Pai, é o padrão segundo o qual a nova criatura é
feita. “Porquanto aos que de antemão conheceu, também os pre­
destinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de
que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8.29). Por
essa razão se diz que Ele é formado no regenerado. (G14.19).
4. E u m a m u d a n ç a u n iv e r s a l : “E, assim, se alguém está em
Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que
se fizeram novas” (2Co 5.17). O pecado original infecciona todo
o homem; e a graça regeneradora é a pomada que salva e vai
até onde a ferida alcança. Esse fruto do Espírito está em toda a
bondade; bondade da mente, bondade da vontade, bondade das
afeições, bondade de todo o homem. Ele não obtém apenas uma
nova cabeça, para conhecer a religião, ou uma nova língua para
falar dela; mas um novo coração, para amá-la e abraçá-la em toda
sua conversação.

429
431

Regeneração,

39 conversão,
transformação

R ev . G e o r g e W . L a s h e r , D .D ., L L .D .
Autor de Teologyfor Plain People [Teologia para as
Pessoas Comuns] Cincinnati, Ohio,
Editado por James H. Christian, Th.D.

Harold Begbie, em seu Twice-Born Men [Homens Nascidos Duas


Vezes], nos dá uma série de exemplos nos quais os homens mais
baixos, ou de natureza mais perversa, repentinamente se tornam
mudados quanto ao pensamento, propósito, vontade e vida. Esse
autor, sem ignorar intencionalmente a palavra “regeneração”, ou
o fato da regeneração, ele enfatiza o ato da conversão, no qual
ele inclui a regeneração que, em nossa concepção, é a origem da
conversão e da verdadeira reforma como um fato permanente. Uma

G EORG E WILLIAM LASHER (1831-1920) foi ordenado para o


ministério Batista em 1859. Serviu igrejas em Nova York, Nova Jersey,
Massachusetts e Connecticut, e, depois, (1872) tornou-se diretor da
Sociedade de Educação Batista, em Nova York. Foi-lhe concedido
a graduação honorária pelo seminário Teológico Hamilton e pela
Universidade de Colgate. Foi autor de panfletos populares famosos,
como a Theology for Plain People [Teologia para as Pessoas Comuns],
W hat D id Peter M ean? [O Que Pedro Quis Dizer?] e Individualism in
Religion [Individualismo na Religião].
Os fundamentos

fragilidade em muito dos ensinos dos tempos modernos é que a


conversão e a reforma são consideradas em primeiro, ao passo que
a regeneração ou é ignorada, ou minimizada à nulidade.

Regeneração
Jesus Cristo não fala muito da regeneração, mas usa a palavra
equivalente em grego (palingenesis) apenas uma vez, e em seguida
(Mt 19.28) faz referência às coisas criadas, uma nova ordem no
universo físico, em preferência à nova condição da alma individual.
Ele ensina, porém, a grande verdade em outras palavras pelas quais
ele torna evidente que uma regeneração é o que a alma humana
necessita e deve ter para ajustá-la ao reino de Deus.
Nos outros evangelhos, Jesus ensina coisas que envolvem um
outro nascimento, sem o qual é impossível cumprir as exigências
divinas; mas no evangelho de João, isso é nitidamente apresentado
logo no primeiro capítulo, e a idéia é levada até o fim. Quando (em
Jo 1.12,13) se diz que aqueles que receberam a Palavra de Deus
receberam também “poder”, ou direito, de se tornar filhos de Deus,
declara-se expressamente que esse poder, ou direito, não é inerente
à natureza humana, não é encontrado no nascimento natural, mas
envolve um novo nascimento — “os quais não nasceram do sangue,
nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de
Deus”. E este novo, ou segundo, nascimento que produz os filhos de
Deus. A declaração de João (3.3) cria confusão com a reivindicação
comum de que Deus é o Pai da humanidade universal, assim como
torna absurdo falar de “paternidade de Deus”, “o Pai celestial”, “a
paternidade divina”, e outras frases mais com as quais sempre nos
deparamos nestes dias modernos. Nada é mais distante da verdade,
e nada é mais perigoso e sedutor, do que a reivindicação de que os
filhos de Adão são, por natureza, filhos de Deus. Essa é a base de
muitos raciocínios falsos com respeito ao estado futuro e à continui­
dade da punição futura.
E dito que embora um pai possa castigar seu filho, “para
seu proveito”, a relação de paternidade e filiação ainda proíbe o
pensamento de que o pai pode empurrar seu filho para queimá-lo
e mantê-lo ali para sempre. Não importa qual a ofensa, ele pode
ser expiado pelo sofrimento; o coração do pai certamente cederá,
e o pródigo será recebido com alegria e contentamento pelo pai
ansioso. Claro que, a falácia do argumento está na suposição de que

432
Regeneração, conversão, transformação

todos os homens são, por natureza, os filhos de Deus, uma coisa


expressamente negada pelo Senhor Jesus (Jo 8.42), que declarou
para alguns dele que o pai deles era o diabo. A conversação com
Nicodemos dá-nos a condição sobre a qual os homens nascidos
uma vez podem ver o reino de Deus, a saber, se nascidos duas ve­
zes, uma vez da carne, e a segunda vez, do Espírito. “Se alguém não
nascer de novo [anothen, de cima] não pode ver o reino de Deus”
(Jo 3.3). Deve haver um nascimento do céu antes que ele possa ser
um herdeiro celestial. Nicodemos, embora mestre de Israel, não o
compreendeu. Ele tinha lido em vão a palavra de Jeremias (31.31)
com relação à “nova aliança” que envolve um novo coração. Ele não
conseguiu discernir entre o homem natural e o homem espiritual.
Ele não tinha a concepção de uma condição alterada como a base
da reforma genuína. Mas Nicodemos não estava sozinho nessa con­
cepção errada. Depois de todos estes séculos, muitos estudiosos
do Novo Testamento, embora aceitando o evangelho de João como
canônico e genuíno, tropeçam na mesma grande verdade e perver­
tem “os retos caminhos do Senhor” ” (At 13.10). Tomando o quinto
versículo de João 3, eles aceitam a doutrina da regeneração, mas a
acoplam a um ato externo sem o qual, na visão deles, a regeneração
não é e não pode ser completada. Em seus rituais, eles declaram
distintamente que o batismo da água é essencial à regeneração e é
produtivo para ela, a qual Jesus declara que deve ser do céu. Eles
tropeçam, ou pervertem as palavras usadas, e fazem o “nascer da
água” ser o batismo, sobre o qual nada é dito no versículo desse
capítulo, e que todo teor das Escrituras negou.
Os lexicógrafos, os gramáticos e os teólogos evangélicos se
pronunciam todos contra a interpretação aplicada às palavras
de Jesus, quando ele diz: “Quem [qualquer um] não nascer da
água kai Espírito não pode entrar no reino de Deus”. (Jo 3.5). Os
lexicógrafos nos dizem que a conjunção kai (grega) pode ter um
significado epexegético e pode ser (como freqüentemente é) usado
para ampliar o que vem antes; que pode ter o sentido de “mesmo”,
ou “a saber”. E assim eles justificam a leitura: “A não ser que um
homem nasça da água, até mesmo [ou, a saber] do espírito, ele, não
pode entrar no reino de Deus”. Os gramáticos nos dizem a mesma
coisa, e inumeráveis exemplos desse uso podem ser citados tanto
do grego clássico, quanto no Novo Testamento. Os teólogos são
explícitos em sua negação de que a regeneração pode ser efetuada

433
Os fundamentos

pelo batismo. Eles sustentam uma experiência puramente espiritual,


ou antes do batismo, ou após ele, e negam que o nascimento espiri­
tual é efetuado pela água, não importa como ele seja realizado. No
entanto, alguns que aceitam essa posição em discussões do “novo
nascimento” caem na idéia ritualista, quando tratam do batismo,
seu significado e lugar no sistema cristão.

a) Paulo como intérprete de Jesus


O melhor intérprete de Jesus, que sempre procurou representá-lo,
foi um homem que foi feito um “instrumento escolhido”, para levar
o evangelho do reino às nações pagãs de seu tempo e transmitir
suas interpretações para nós do século vinte. Ele diria: “Faço -vos,
porém, saber, irmãos, que o evangelho por mim anunciado não é
segundo o homem” (G1 1.11). E Paulo fala de sua obra forjada na
alma humana como uma nova criação — algo que não estava ali
antes. “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura” (cria­
ção) (2Co 5.17). “Pois nem a circuncisão é coisa alguma, nem a
incircuncisão, mas o ser nova criatura” (criação) (G1 6.15). Nunca,
jamais, em todas suas discussões sobre o caminho da salvação,
Paulo intima que a nova criação é efetuada por uma observância
ritual. Ele sempre, e em todo lugar, a admitiu e a tratou como uma
experiência espiritual operada pelo Espírito de Deus.
b) O testemunho da experiência
As orações da Bíblia, especialmente as do Novo Testamento, não
indicam que o suplicante pede por uma regeneração — um novo
coração. Eles podem ter sido ensinados quanto à necessidade disso
e podem ter sido levados face a face com o grande e decisivo fato;
mas seu pensamento não é tanto em relação a um novo coração
como é a respeito de seus pecados e de sua condenação. O que ele
quer é a libertação do pecado e de suas conseqüências do. Ele se
acha um pecador condenado, debaixo de um olhar severo de um
Deus de justiça, e se desespera. Mas lhe contam sobre Jesus e a
graça perdoadora de Deus, e ele pede que a provisão graciosa seja
aplicada à sua própria alma. Mas quando o pecador, que suplica e
crê, desperta para a consciência de que sua oração foi ouvida, ele
acha que é uma nova criatura. A obra foi operada naquele momento
sem que estivesse consciente desse fato. Tudo que ele sabe é que
uma grande mudança aconteceu dentro dele. Ele é uma nova
Regeneração, conversão, transformação

criatura. Ele ousa esperar e crer que é um filho de Deus; e ele


clama no êxtase de uma nova vida: “Abba, Pai”. “O próprio Espírito
testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rm 8.16),
e, subseqüentemente, aprendemos que somos herdeiros de um Pai
rico — “Herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo” (Rm 8.17),
com quem, estamos prontos tanto para sofrer quanto para reinar.

Conversão
A conversão (que na realidade significa apenas “mudança”),
conforme já dissemos, está incluída na idéia de regeneração; mas
as palavras não significam a mesma coisa. Regeneração implica
conversão; mas pode haver conversão sem regeneração. O perigo
é que a distinção pode não ser observada e que, por haver uma
conversão visível, pode se supor que houve uma regeneração
prévia. A conversão pode ser um mero processo mental; a com­
preensão convencida, mas o coração permanece inalterado. Pode
ser efetuado como a educação e o refinamento são efetuados. As
escolas estão constantemente fazendo isso. A regeneração envolve
uma mudança do pensamento; mas a conversão pode ser efetuada
apesar de a condição moral permanecer inalterada. A regeneração
pode ocorrer apenas uma vez na experiência da mesma alma; mas
a conversão pode ocorrer muitas vezes. A regeneração implica uma
nova vida, vida eterna, a vida de Deus na alma humana, uma filiação
divina e um habitar contínuo do Espírito Santo. A conversão pode
ser como a do Rei Saul, quando ele tomou lugar entre os profetas
do Senhor, ou como a de Simão, o feiticeiro, que disse: “Rogai vós
por mim ao Senhor, para que nada do que dissestes sobrevenha a
mim” (At 8,24).
A conversão pode ser o resultado de uma convicção que, afinal,
pode ser uma mudança de vida útil para a vida que está por vir,
como também para a vida que é agora; que no mundo futuro um
homem consiga o que ele ganha nesta vida. Ela não implica um
coração apaixonado por Deus e pelas coisas de Deus. Os homens
do mundo são convertidos muitas vezes. Eles mudam seus pensa­
mentos e, freqüentemente, mudam seu modo de viver para melhor
sem se regenerarem.
Um dos perigos mais iminentes da vida religiosa de hoje é colocar
a conversão no lugar da regeneração, e contar como convertidos os
homens cristãos, contar os “convertidos” em encontros de reaviva-

435
Os fundamentos

mento como regenerados e salvos, porque eles têm mentalmente,


e, por ora, mudado. Os homens são convertidos, politicamente, de
um partido para outro; de um grupo de princípios para outro. Os
cristãos, após a regeneração, podem mudar seus pontos de vista
religiosos e passar de uma denominação para outra. Poucos cris­
tãos passam muitos anos sem uma necessidade de conversão. Eles
crescem frios de coração, cegos para as coisas de Deus e vagam
pelo estreito caminho ao qual, certa vez, se comprometeram; no
entanto, eles precisam de conversão. A maioria dos reavivamentos
da religião começa com a conversão dos santos. Almas, em número
considerável, são raramente regeneradas, ao passo que homens e
mulheres regenerados têm necessidade de conversão, pois estão
inconscientes de seu elevado chamado. Primeiro, uma igreja con­
vertida, em seguida, almas regeneradas e convertidas.

Reforma
A reforma implica conversão, mas não implica regeneração.
A regeneração assegura a reforma, mas a reforma não implica a
regeneração. Os reformadores foram ao estrangeiro em todos os
tempos e são conhecidos tanto pelo paganismo como pelo cristia­
nismo. Buda era um reformador. Maomé era um reformador. Reis
e sacerdotes foram reformadores, embora não soubessem nada da
vida de Deus na alma humana. O engano mais brilhante e fatal no
mundo religioso hoje é o esforço de reformar os homens e a socie­
dade, fazendo da reforma um substituto para regeneração.
A vida social de hoje está cheia de dispositivos e expedientes
para melhorar a condição física dos indivíduos, das famílias e
das comunidades, embora a vida da alma esteja intacta. Temos
inumeráveis organizações cívicas, cujo mais alto objetivo é o me­
lhoramento não apenas das condições mundanas, mas do caráter
da fraternidade. Um argumento pela existência de muitas destas
organizações é que elas podem melhorar os homens graças à
confiança e à fraternidade asseguradas pelo contato efetuado, por
juramentos, assim como pelo cultivo da vida social.
Não se pode negar que estas atuações reformatórias são boas e
cumprem bem seu papel. Mas há um engano fatal na noção de que
a elevação da sociedade, ou seja, a eliminação de suas misérias, leve
a uma vida religiosa e promova o cristianismo. Talvez os maiores
obstáculos para a conquista buscada hoje pelo cristianismo, em paí­

436
Regeneração, conversão, transformação

ses civilizados e nominalmente cristãos, são as várias organizações


cuja intenção é a de reformar a sociedade. Elas estão melhorando
o exterior, venerando e polindo o lado de fora, embora o interior
não seja melhor do que antes, porque o coração permanece mau
e pecador. “O Senhor, porém, lhe disse: Vós, fariseus, limpais o
exterior do copo e do prato; mas o vosso interior está cheio de
rapina e perversidade” (Lc 11.39). Os fariseus eram as melhores
pessoas daqueles tempos; contudo eles eram os mais fracassados.
Jesus jamais fez tão ferozes denúncias contra qualquer outro grupo.
Por quê? Porque eles estavam empregando meios humanos para
realizar o que somente o Espírito Santo poderia realizar. E assim,
hoje, todo dispositivo para o aprimoramento da sociedade que não
golpeia a raiz da doença e aplica o remédio no fundamento da vida,
a alma humana, é farisaico e está realizando uma obra farisaica.
Está polindo o exterior, mas continua indiferente ao interior. “O
bom é sempre o inimigo do ótimo”; e assim a reforma é sempre um
inimigo da cruz de Cristo.
Fundamental para o sistema cristão é uma convicção de pecado
que compele ao clamor por misericórdia, que responde ao Espírito
Santo, capaz de regenerar a alma e convertê-la, como também é
capaz de reformá-la e habilitá-la para a bem-aventurança do céu.

437
439

Justificação pela fé

H . C. G. M o u le , D .D .
Bispo DE Durham, Inglaterra
Revisado por Gerald B. Stanton, Th.D.

Justificação pela fé: essa frase tem peso semelhante tanto em


relação à Escritura como à história. Nas Sagradas Escrituras é o
tema principal de duas grandes epístolas dogmáticas, Romanos
e Gálatas. Na história Cristã foi a poderosa palavra de ordem do
movimento da Reforma, em um vasto levantamento espiritual da
igreja. Ela não é, de modo algum, a única grande verdade consi­
derada nas duas epístolas; se permitíssemos que sua mensagem
sobre justificação por fé obscurecesse sua mensagem sobre o
Espírito Santo, e a forte relação entre as duas mensagens, estaríamos

HANDLEY C. G. MOÜLE (1841-1920) serviu a coroa inglesa como


o capelão para a Rainha Victoria. Moule recebeu três graduações da
Universidade de Cambridge: M.A., em 1869; B.D., em 1894; D.D., em
1895. Como um dos membros da faculdade de teologia da Universidade
de Cambridge, ele abriu o cam inho para D. L. Moody e Ira D. Sankey
para que eles pudessem falar aos estudantes. Moule era um estudioso
do Novo Testamento, cujo foco de interesse foi o apóstolo Paulo, ü m
escritor comentou que Moule “podia pensar e sentir como Paulo sentiu
e pensou”. Embora sua caneta prolífica tenha nos concedido numerosos
comentários, ensaios, exposições de temas e poemas, sua maior
contribuição provavelmente foi Colossian and Philemon Studies: Lessons
in Faith an d Holiness [Estudos sobre Colossenses e Filemom:Lições
sobre a Fé e a Santidade] (publicado pela Kregel Publications).
Os fundamentos

interpretando-as de forma lamentavelmente equivocada. Essa não


era a única grande verdade que movia e animava os líderes espiritu­
ais da Reforma. Contudo, tal é a profundidade e a dignidade dessa
verdade, e tão central é sua relação às outras verdades sobre nossa
salvação, que podemos dizer, sem medo de cometer injustiças, que
essa era a mensagem de Paulo, a verdade que repousa no coração
das mais variadas mensagens das epístolas não paulinas e a verda­
de da grande reforma da igreja ocidental. Lutero, com razão, disse
que a justificação pela fé era “o artigo de uma igreja que se afirma
ou que cai”.

Importância dos termos


Há dois grandes termos diante de nós, justificação e fé. Deve­
mos, naturalmente, considerar em seu lugar a palavra que, em
nosso título, as liga, para perguntar como a justificação se dá “pela”
fé. Mas primeiramente, o que é justificação e, em seguida, o que é
fé?
Por derivação, ju st ifica çã o significa tornar justo, quer dizer,
fazer conformar a um padrão verdadeiro. Parece, assim, significar
um processo pelo qual o errado é corrigido, e o mau se torna
bom, e o bom, melhor, ou seja, a melhoria real da coisa ou pessoa
justificada. Em um caso curioso, e, até onde sei, apenas nesse caso
a palavra tem esse significado no uso comum. “Justificação” é um
termo da arte dos impressores. O compositor “justifica” uma peça
de tipografia quando ele corrige, leva para uma ordem perfeita, os
espaços entre as palavras e as letras, e assim por diante, o tipo que
ele fixou.
Mas isso é um caso isolado. No entanto, no uso das palavras,
universalmente, justificação e justificar significam algo comple­
tamente diferente do que a melhoria de condição. Elas significam
estabelecimento de posição diante de um juiz ou júri, literal ou
figurado. Elas significam o ganho de um veredicto favorável na
presença desses representantes da lei, ou a declaração desse vere­
dicto, a sentença de absolvição, ou a sentença de direito justificado,
como for o caso.
Não estou pensando na palavra em seu significado exclusivamen­
te religioso. Tome-a em seu sentido comum, no emprego diário; é
sempre assim. Justificar uma opinião, justificar uma maneira de
se conduzir, justificar uma afirmação, justificar um amigo, o que

440
Justificação pela fé

significa? Certamente que não significa reajustar ou melhorar seus


pensamentos, ou suas ações, ou suas palavras; como também não
significa educar seu amigo para ser mais sábio ou mais capaz. Não,
apenas ganhar um veredicto para o pensamento, ou ação, ou pala­
vra, ou amigo, em qualquer tribunal, como, por exemplo, o tribunal
da opinião pública, ou da consciência comum. Não é melhorar, mas
defender, justificar.
Tomemos uma rápida ilustração com o mesmo efeito das Escri­
turas e de uma passagem, que em nada se refere à doutrina, da lei
pública israelita: “Em havendo contenda entre alguns, e vierem a
juízo, os juizes os julgarão, justificando ao justo e condenando ao
culpado” (Dt 25.1). Aqui é óbvio que a questão não é um aprimo­
ramento moral. Os juizes não existem para tornar o homem justo
melhor. Eles existem para justificar sua posição como satisfatória
diante da lei.
As passagens não teológicas, pode-se observar, e geralmente
em conexões não teológicas, são de grande utilidade para deter­
minar o significado primário e verdadeiro de termos teológicos.
Pois, a não ser em raras exceções, os termos teológicos são termos
do pensamento comum, adaptados a um uso especial, mas em si
mesmos inalteráveis. Isto é, eles foram usados dessa maneira,
na simplicidade da verdade original. Em épocas posteriores, eles
podem desviar-se daquela simplicidade. Esse foi o caso com nossa
palavra justificação, como veremos agora. Primeiramente, a palavra
significava na religião exatamente o que significava fora dela, pois
significava o ganho, ou o conseqüente anúncio, de um veredicto
favorável. Não a palavra, mas a aplicação foi alterada quando a
salvação estava em questão. Foi, na verdade, uma aplicação nova e
gloriosa. O veredicto em questão não era o veredicto de uma corte
hebréia, nem da opinião pública, mas do Juiz eterno de toda a terra.
Contudo, esse uso não modificou o significado a palavra.

Justificação, um termo “forense”


E evidente que a palavra justificação, semelhante na linguagem
religiosa e na comum, é uma palavra relacionada com a lei. Tem a
ver com absolvição, vindicação e aceitação diante de um tribunal.
Para usar um termo técnico, ela é uma palavra forense, uma
palavra do legislativo (que, na antiga Roma, ficava no forum [fó­
rum]). Com respeito a nossa salvação, ela não está tão diretamente

441
Os fundamentos

relacionada à nossa necessidade de revolução espiritual, emenda,


purificação, santidade, quanto à nossa necessidade de adquirir
— apesar de nossa culpa, de nossa responsabilidade, de nossa
dívida, de nossa condenação merecida — algo como uma sentença
de absolvição, uma sentença de aceitação, no tribunal de um Deus
santo.
Não que não tenha nada a ver com nossa purificação espiritual
interna. Ela tem relações intensas e vitais com esse aspecto, mas
estas não são relações diretas. A importância direta de justificação
tem que ver com a necessidade do homem de uma libertação divina,
não do poder de seu pecado, mas de sua culpa.

Justificação não é o mesmo que perdão


O problema suscitado pela palavra justificação é: como o homem
será justo diante de Deus? Para usar as palavras de nosso décimo
primeiro artigo: como seremos “contados como justos diante de
Deus”? Em outras palavras, como nós, tendo pecado, ao quebrar
a santa lei, tendo violado a vontade de Deus, seremos tratados,
quanto a nossa aceitação diante Dele? Sua questão não é, direta­
mente: como eu um pecador me tornarei santo? Mas: como eu um
pecador serei recebido por meu Deus a quem eu afligi, como se não
O tivesse afligido?
Notemos aqui o que será esclarecido na reflexão, que a justifica­
ção significa propriamente não menos do que isso, o ser recebido
por Ele, como se não O tivéssemos afligido. Isto não é somente
ser perdoado por ele. Na verdade, como pecadores, necessitamos
urgentemente de perdão, de remissão de nossos pecados e de
lançar fora a vingança santa de Deus sobre nossa rebelião. Mas
precisamos mais. Precisamos da voz que diga, não apenas: “Você
pode ir; sua penalidade está cancelada”; mas: “Você pode vir; você
é bem-vindo em minha presença e companhia”. A justificação não
significa meramente uma concessão de perdão, mas um veredicto
em favor de nossa posição como satisfatória diante do Juiz.

O problema especial de nossa justificação


Aqui, de passagem, notemos que a palavra justificação não
implica por si mesma que a pessoa justificada seja um pecador. Para
ver isto tão claramente quanto possível, lembre-se que o próprio
Deus, no Salmo 51.4, disse ter sido justo, justificado no Seu falar,

442
Justificação pela fé

e que Cristo foi “justificado em espírito”, em ITimóteo 3.16. Em


uma corte legislativa humana, como vimos acima, o dever supremo
do juiz é o de justificar o justo” (Dt 25.1), e somente o justo. Em
todos esses casos, a justificação sustenta, de modo perfeito, seu
significado próprio, simples, sem nenhum mistério ou problema.
Agora chegamos ao momento da questão prática e concreta, como
devemos ser justificados diante de Deus, ou, para compreender
isso mais intimamente, como eu, eu o pecador, serei bem recebido
por meu Senhor ofendido, como se eu fosse satisfatório? Assim, o
pensamento da justificação se apresenta a nós em um aspecto novo
e mais solene. A palavra mantém seu significado inalterado. Mas,
e quanto a sua aplicação? Aqui, sou culpado. Ser justificado é ser
declarado sem culpa, ser justificado e aceito pelo Legislador e pela
Lei. Isto é possível? Isto não é impossível?
Justificação pela fé significa a aceitação do pecador culpado
diante de Deus pela fé. Grande é o problema assim indicado. E
grande é a maravilha e a glória da solução que nos é dada pela
graça de Deus. Mas para esta solução, devemos avançar por meio
de mais alguns passos.

O que é fé?
Podemos agora adequadamente nos aproximar de nosso segun­
do grande termo, f é , e perguntar: o que significa? Como aconteceu
com a justificação, também com a fé, podemos nos aproximar
melhor da resposta perguntando primeiro: o que a fé significa
na vida e no discurso comum? Consideremos frases como: ter fé
na política, fé em um remédio, fé em um líder político ou em um
líder militar, fé em um advogado, fé em um médico. Aqui a palavra
fé é usada de um modo obviamente paralelo àquele no qual nosso
Senhor se utiliza, quando apela aos apóstolos para terem fé Nele. O
uso é paralelo também ao seu uso habitual nas epístolas, por exem­
plo, em Romanos 4, em que Paulo discursa sobre a fé de Abraão,
em íntima relação com a fé que ele procura desenvolver em nós.
Não está claro, para todas as intenções e propósitos práticos,
que a palavra significa confiança? Será que — quando um homem
doente chama o médico em quem ele tem fé e quando o soldado se­
gue, talvez literalmente em escuridão absoluta, o general em quem
ele tem fé — o significado não é óbvio? Confiança em uma coisa ou
pessoa que se supõe ser digna de confiança, isto é fé.
Os fundamentos

Confiança prática
Notemos um aspecto a mais da palavra fé, no uso comum atual,
que parece significar confiança prática. Raramente, se alguma vez,
a usamos como uma mera opinião que é passiva na mente. Ter fé
em um comandante não significa meramente ter convicção de que
ele é hábil e competente. Podemos ter em mente tal crença sobre o
comandante do inimigo — conseqüentemente, com muitas impres­
sões desagradáveis em nossa mente. Podemos ser confiantes de que
ele é um grande general, no sentido bem oposto à confiança pessoal
nele. Não, ter fé em um comandante implica um ponto de vista, em
que se confiamos realmente nele, estamos completamente prontos
para confiar nós mesmos e nossa causa a seu comando. A mesma
coisa é verdade quanto à fé em uma promessa divina, fé em um Re­
dentor divino. Significa uma confiança, genuína e prática. Significa
um colocar a nós mesmos e nossas necessidades, em confiança
pessoal, em suas mãos.
Aqui observamos que a fé, dessa forma, insinua um elemento
da escuridão, do desconhecido. Onde tudo é visível ao coração e à
mente dificilmente pode haver fé. Estou em curso de água perigo­
so, em um barco com um barqueiro habilidoso e experiente. Eu o
cruzo, não sem tremor talvez, mas com fé. Aqui a fé é exercitada
em um objeto digno de confiança e conhecido, o barqueiro. Mas
é exercida, pelo menos para mim, com relação às circunstâncias
incertas — a porção de perigo e o caminho a percorrer com o
barco. Onde não há circunstâncias incertas, minha opinião sobre
o barqueiro não seria de fé, mas mera opinião; de estima, e não de
confiança nele.
Nosso exemplo sugere a observação que a fé, como um elemento
relacionado com nossa salvação, necessita de um certo objeto digno
de confiança, como Jesus Cristo. Ao aceitá-Lo, temos a correta con­
dição para exercer a fé — a confiança em Sua capacidade e poder
sobre nosso comportamento em circunstâncias desconhecidas ou
misteriosas.

Hebreus 11:1, não uma definição


Parece bom observar aqui essa grande sentença, Hebreus 11.1,
algumas vezes citadas como uma definição de fé: “Ora, a fé é a
certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não
Justificação pela fé

vêem”. Se isto é uma definição, ela deve negar a simples definição


de fé que chegamos acima, a saber, confiança. Porque ela nos leva
a uma região totalmente diferente do pensamento e sugere que a
fé é, em um sentido espiritual misterioso, um poder sutil de tocar
e sentir o não visto e eterno, quase uma “segunda-visão” na alma.
Todavia, sustentamos que ela é sempre a mesma coisa em si mesma,
quer trate de coisas comuns quer de espirituais, a saber, confiança,
que é colocada em um objeto de grande confiança e exercida mais
ou menos na escuridão.
Portanto, consideramos as palavras de Hebreus 11.11 como uma
descrição de fé. Elas não definem a fé em si mesma; elas a descre­
vem em seu poder. Elas formam um tipo de declaração que fazemos
quando dizemos: conhecimento é poder. Isto não é de modo algum
uma definição de conhecimento. E uma descrição dele em um de
seus grandes efeitos.
Todo capítulo de Hebreus 11 ilustra isso e confirma nossa
simples definição de fé. Noé, Abraão, José, Moisés — todos eles
trataram a esperança de algo e o invisível como uma realidade,
porque todos eles confiavam no Prometedor fiel. Suas vitórias
foram misteriosamente grandes, suas vidas estavam relacionadas
vitalmente com o Invisível. Mas a ação para essa finalidade foi, da
parte deles, sublime e extremamente simples. Foi confiança no
Prometedor. Foi aceitar Deus em Sua Palavra.

Fé sem mérito
“A virtude da fé repousa na virtude de seu Objeto”. Este Objeto,
nessa questão de justificação, assim nos asseguram abundante­
mente e com a extrema clareza as Escrituras, é nosso próprio
Senhor Jesus Cristo, que morreu por nós e ressuscitou.
Um assunto importante dessa reflexão é: somos alertados con­
tra a tentação de erigir a fé em um Salvador, quer dizer, pôr nossa
confiança em nossa fé. Isto é uma tentação real para muitos. Ao
ouvir que para ser justificados eles devem ter fé, eles logo se ocu­
pam com uma análise ansiosa de sua fé. Será que confio o bastante?
Será que minha confiança é satisfatória em tipo e quantidade? Mas
se fé salvadora é apenas uma atitude de confiança, então a questão
de seu efeito e virtude é imediatamente transferida para a questão
da adequação de seu Objeto. Eles não deveriam perguntar: Será
que confio o bastante? Mas: Jesus Cristo é grande o bastante

445
Os fundamentos

e bastante gracioso para que eu confie Nele? Os olhos abertos


da alma se voltam para cima, para a face de nosso Senhor Jesus
Cristo, e a fé se esquece de sua própria ação. Em outras palavras,
o homem confia instintivamente em um Objeto considerado tão
magnificamente, tão supremo, tão capaz de sustentá-lo. Seus pés
estão sobre a Rocha, e ele a conhece, não pelo sentir de seus pés,
mas pelo sentir da Rocha.
Notemos aqui que a fé, vista como confiança, é obviamente uma
coisa tão diferente quanto possível de mérito. Ninguém, na vida
comum, pensa sobre uma confiança bem colocada como meritória.
Está certo, mas não é justo. Isso não faz com que um homem, quando
em perigo iminente, mereça resgate, mas ele implicitamente aceita
a liderança e orientação de seu resgatador. O homem que descobre
ser um pecador culpado e confia em Cristo, como seu perdão e paz,
certamente não ganha mérito para aplicar à sua própria salvação.
Ele não merece nada em virtude do ato de aceitar tudo.

Definição de “pela”
Consideremos, agora, a questão dessa palavra que está no meio
da frase e serve como um conectivo em nosso título, “pela”. Justifi­
cação pela fé, o que significa? Essa recepção divina dos culpados,
como se eles não fossem culpados, pela confiança em Jesus Cristo
— o que temos de pensar sobre isto?
Vimos que um significando mais acertado não pode ser dado pela
palavra “pela”. Ela não pode significar “em razão de”, como se a fé
fosse uma consideração valiosa que nos autorizou a justificação. O
rebelde que se rende não é anistiado devido à consideração valiosa
de sua rendição, mas em razão da graça do soberano, ou Estado,
que anistia. Por outro lado, sua rendição é o meio necessário para a
anistia se tornar realmente sua. Essa é sua única atitude apropria­
da (em um suposto caso de rebelião legítima) para com o poder
ofendido. Este poder não pode fazer paz com um sujeito que está
agindo de maneira errada para com ele. Ele o quer bem, ou não pro­
porcionaria a anistia. No entanto, o soberano, ou estado, não pode
fazer paz com ele, enquanto este rejeitar a provisão. A rendição não
é adequadamente o preço pago pela paz, mas é, não obstante, a mão
aberta necessária para se apropriar da dádiva dela.
Em certa medida, isto ilustra nossa palavra “pela” na questão da
justificação pela fé. Fé, confiança, é a “chegada” do homem pecador
Justificação pela fé

para aceitar a anistia sagrada de Deus em Cristo, recebendo, por


meio de Sua Palavra, a seu Rei benigno. E a entrada do rebelde em
correta relação com seu Senhor ofendido, nessa grande questão do
perdão e da aceitação. Não é uma virtude, não é um mérito, mas um
meio apropriado.

O laço matrimonial
“Fé”, diz o Bispo Hopkins de Derry, “é o laço matrimonial entre
Cristo e o crente; e, portanto, todas as dívidas do crente são res­
ponsabilidade de Cristo, e a justiça de Cristo é instituída no crente.
[...] Na verdade esta união é um mistério sublime e inescrutável,
pois há uma união íntima, espiritual e real entre Cristo e o crente.
Assim, a fé é o caminho e o meio de nossa justificação. Pela fé,
somos unidos a Cristo. Por esta união, somos verdadeiramente
retos. E sobre esta retidão, a justiça, assim como a misericórdia de
Deus, estão empenhadas em nos justificar e absolver [E. Hopkins,
The Doctrine ofthe Covenants (A Doutrina das Alianças)].
449

As doutrinas que devem ser

41 enfatizadas no
evangelismo bem sucedido

L. W. M u n h a ll, M .A ., D.D.
F ilad élfia
Revisado por Gerald B. Stanton, Th.D.

0 que constitui o evangelismo bem sucedido? Alguns res­


ponderão, “Grandes audiências, pregação eloqüente, música que
desperta a alma”.
Mas, digo: “Podemos ter tudo isso e não termos o evangelismo
real, assim como podemos ter o evangelismo bem sucedido sem
esses recursos”.
Outros dirão: “Algum movimento que acrescente um grande de
fiéis aos membros das igrejas”. No entanto, respondo, “Podemos
ter um evangelismo bem sucedido e não termos adesão às igrejas.

LEANDER WHITCOMB MÜNHALL (1843-1934) foi em grande parte um


evangelista metodista autodidata que pregou o evangelho por mais de
cinqüenta anos. Serviu com distinção durante a Guerra Civil, participando
em trinta e três batalhas. Editou The Methodist [O Metodista], uma
publicação semanal da Filadélfia, e serviu como representante para
conferências denominacionais. ü m defensor da ortodoxia bíblica, ele
advertiu sua denominação quanto ao liberalismo em seu livro Breakers!
Methodism Adríft [Vagalhão! Metodistas à Deriva] (1913).
Os fundamentos

Também, podemos ter um grande número de pessoa acrescen­


tado aos membros das igrejas sem termos um evangelismo bem
sucedido”.
Ainda outros dirão, “Uma obra ou esforço que traga para a
igreja pessoas que sejam firmes”. Mas respondo, “Podemos ter
membros acrescentados à igreja que permanecerão, contudo, a
obra evangelística será mal sucedida. Também podemos ter uma
obra evangelista muito bem sucedida e as adesões às igrejas, como
resultado desse evangelismo, não resistirem por muito tempo”. Não
importa o tamanho da multidão, quão eloqüente seja a pregação
e a canção que desperta a alma, se as condições ordenadas por
Deus não forem completamente atendidas, o fracasso é inevitável.
Embora essas coisas sejam importantes, grandes êxitos têm sido
reconhecido sem eles. As condições ordenadas por Deus são
indispensáveis.
Conheço muitas campanhas evangelistas que tiveram bom êxi­
to, em que uma ou mais igrejas estavam identificadas com ela, que
recebiam apenas alguns membros, ou nenhum, como resultado
desse movimento de evangelização. A motivação dessas igrejas
para se unir ao movimento era errada. Elas não estavam prepara­
das para a obra; elas eram formais, mundanas, não espirituais e
sem fé. Não acrescentaram nada de valor à obra e, portanto, não
obtiveram nada dela.
Conheço muitas pessoas que foram membros fiéis da igreja por
muitos anos e jamais foram nascidas novamente. “Eles tinham um
nome para viver e estavam mortos.”Tenho, também, conhecimento
de pessoas que foram, sem dúvida, salvas e eram sinceras, que se
uniram à igreja como resultado de uma campanha evangelista e
foram bem por um tempo, mas depois a abandonaram. O abandono
foi injustamente atribuído à campanha, mas a causa real desse
abandono pode ter sido devido a uma ou mais das seguintes razões:
Primeiro, a atmosfera da igreja não era agradável, pois não era
espiritual e, além disso, era fria. Uma atmosfera apropriada é de
importância vital para “as crianças em Cristo” (ICo 3.1). Segundo,
em muitos casos os pastores, em vez de alimentar a igreja de Deus
com o leite sincero da palavra, ou eram como aqueles que são men­
cionados no capítulo vinte e três de Jeremias, ou transformaram
seus púlpitos em plataformas de leitura, e os membros em vez de
pão recebiam pedras. Terceiro, definitivamente o mau exemplo

450
As doutrinas que devem ser enfatizadas no evangelismo bem sucedido

apresentado pela grande maioria dos membros de grande parte


das igrejas — pois eles deixam claramente de cumprir suas solenes
obrigações para com Deus e para com a igreja — causou desastres
entre os recém convertidos. E há ainda outras razões para o aban­
dono dos fracos e inexperientes.

As condições
Novamente, aparece a questão: “O que constitui o evangelismo
bem sucedido”? E respondo: “Pregar o evangelho de acordo com as
condições e direções divinas”. Quais são essas condições?
Primeiro, discipulado. Jesus comissionou apenas alguns. Deve-se
conhecer, por experiência própria, o poder e a alegria do evangelho
antes que a pessoa seja competente para divulgá-lo.
Segundo, poder. Aos discípulos, foi dito: “Eis que envio sobre
vós a promessa de meu Pai; permanecei, pois, na cidade, até que
do alto sejais revestidos de poder” (Lc 24.49). Como os apóstolos
e os discípulos de nosso Senhor, que esperaram por seu ministério
maravilhoso e testemunharam suas ações maravilhosas, não esta-
vam qualificados para testemunhar e servir sem o poder do alto,
nós, seguramente, devemos ter ajuda divina, que virá pelo habitar
do Espírito.
Terceiro, fé. Deus prometeu: “assim será a palavra que sair da
minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e
prosperará naquilo para que a designei” (ls 55.11). O proclamador,
portanto, não tem nenhuma necessidade de desconfiar do resultado,
sabendo muito bem que “quem fez a promessa é fiel” (Hb 10.23).

As Instruções
Quais são as instruções? Primeiro, “E disse-lhes: Ide por todo o
mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Mc 16.15). O campo
é o mundo; e as boas novas, para todos os homem.
Segundo, o evangelho deve ser pregado. O pregador enviado
por Deus é um arauto. Ele não tem mensagem própria; ele deve
proclamar a mensagem do Rei. De acordo com a lei heráldica, se o
arauto substituísse uma palavra do Rei pela sua, ele era decapitado.
Se essa lei fosse seguida atualmente, muitos pastores perderiam
suas cabeças. Na verdade, muitos perderam suas cabeças, a julgar
pelo tipo de mensagem que estão entregando.
Os fundamentos

Terceiro, O pregador deve ser valente, uma testemunha (martus


[mártir]). Praticamente todos os apóstolos foram ao martírio por
proclamar fielmente a Palavra de Deus. Como Cristo disse: “Lem­
brai-vos da palavra que eu vos disse: não é o servo maior do que
seu senhor. Se me perseguiram a mim, também perseguirão a vós
outros; se guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa”
(Jo 15.20). Novamente, “Ai de vós, quando todos vos louvarem! Por­
que assim procederam seus pais com os falsos profetas” (Lc 6.26).
Paulo disse, “Porventura, procuro eu, agora, o favor dos homens
ou o de Deus? Ou procuro agradar a homens? Se agradasse ainda
a homens, não seria servo de Cristo” (G11.10). A mente do homem
natural é inimizade contra Deus. Portanto, o não salvo exige do
pregador: “Não profetizeis para nós o que é reto; dizei-nos coisas
aprazíveis, profetizai-nos ilusões” (Is 30.10). Um prêmio é dado
pela sutileza a muitos que tem autoridade na igreja. Em razão dis­
so, tão sublime coragem é necessária e requerida nestes dias para
falar fielmente a Palavra de Deus como foi mostrado por Miquéias,
quando ficou diante de Acabe, Josafá e os quatrocentos profetas
mentirosos; ou Simão Pedro, quando disse aos ameaçadores e
irados governantes de Israel: “Pois nós não podemos deixar de
falar das coisas que vimos e ouvimos” (At 4.20). Nunca houve mais
necessidade de intrepidez por parte do servo de Deus como hoje.
Homens verdadeiramente ousados, que não receberão honras de
homens ou procuraram honra para si, são absolutamente necessá­
rios para o evangelismo bem sucedido.

A mensagem
Agora, tratemos da mensagem em si. Timóteo teve como recomen­
dação: “Faze o trabalho de um evangelista, cumpre cabalmente o teu
ministério” (2Tm 4.5), e, ao fazer isso, “prega a palavra, insta, quer
seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longa-
nimidade e doutrina” (2Tm 4.2) ”, a pregação doutrinai, portanto, é
necessária para o êxito evangelista. Mas qual doutrina? E respondo:
P r im e ir o , o pecado — sua universalidade , natureza e conseqüência .
Universalidade. “Como por um só homem entrou o pecado no
mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a
todos os homens, porque todos pecaram. [...] Porque, [...] se, pela
ofensa de um só, morreram muitos [...]; Pois assim como, por uma
só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação

452
As doutrinas que devem ser enfatizadas no evangelismo bem sucedido

[...]. Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos


se tornaram pecadores” (Rm 5.12-21, ver também SI 51.5; 58.3;
Ec 7.20; Rm 3.10; ljo 1.8,10, etc.).
Natureza. Há numerosas palavras na Bíblia que são traduzidas
por “pecado”. Essas palavras significam iniqüidade, ofensa,
transgressão, fracasso, erro, desvio, motivo de pecado e errar o
alvo. Em ljoão 3.4 nos é dito que: “O pecado é a transgressão da
lei”. A palavra traduzida por transgressão é anomia, que significa
ilegitimidade. Fracassar em se conformar com a lei é certamente
tão pecado como violar os mandamentos de Deus. A descrença
também é pecado (Jo 16.9; 3.18).
Em Gênesis 6.5 nos é dito: “Viu o SENHOR que a maldade do ho­
mem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo
desígnio do seu coração;”, e em Gênesis 8.21, “Porque é mau o desígnio
íntimo do homem desde a suamocidade”Apalavra que setraduz aqui por
“desígnio íntimo”, significa também os desejos e propósitos do indivíduo
nessas passagens. Portanto, a culpa está tanto nos desejos e propósitos,
quanto nos atos. Alei comum exige que se tenha cometido um ato aberto
deviolação antes que possa ser ajuizada a culpa. Mas, de acordo com a lei
divina, alguém é culpado mesmo que jamais cometa um ato aberto, visto
que a culpa está nos desejos e propósitos do coração (ljo 3.15; Mt 5.28;
ISm 16.7; Rm 3.19).
O Criador Todo-Poderoso e soberano é infinito em santidade.
“Por conseguinte, a lei é santa; e o mandamento, santo, e justo, e
bom” (Rm 7.12). O pecado é arruinador, atroz e prejudicial: a coisa
mais terrível do universo.
Conseqüências. O pecado separa e aliena o pecador de Deus;
e o pecador se torna inimigo de Deus pelas más obras (Rm 8.7),
não tem paz (Is 57.21), não descansa (Is 57.20), é manchado
(Ef 4.17-19), condenado (Jo 3.18), e não tem esperança (Ef 2.12). Ó,
maldição e ruína do pecado!
O futuro reserva para o não arrependido e descrente, primeiro,
um julgamento inexorável e terrível (ver Mt 25.30-46; Hb 9.27;
Jd 14, 15; Ap 20.11-13; 22.11,15). Segundo, a ira de Deus (ver
Ed 8.22; SI 21.9; Jo 3.36; Rm 1.18; 2:5; 4.15; 5.9; 12.19; 13.4; Ef 2.3;
5.6; Cl 3.6; ITs 1.10; Ap 6.16,17; 14.10; 16.19; 19.15, etc.). Terceiro,
tormentos eternos (ver SI 11.6; Is 33.14; Dn 12.2; Mt 3.12; 22.11-13;
23.33; 25.41, 46; Mc 9.43, 48; Lc 12.5,16.22-31; Jo 5.28,29; 2Ts 1.7-
9; Hb 10.28,29; 2Pe 3.5-12; Ap 19.20; 20.14,15; 21.8, etc.).

453
Os fundamentos

0 pregador que ignora essas três terríveis e inexoráveis verda­


des prega um evangelho castrado, por mais que seja tão fiel em
proclamar outra verdade. Aquele que prega o amor de Deus à parte
da justiça e ira de Deus proclama apenas um sentimento ineficiente.
Ninguém jamais verdadeiramente desejará a salvação, a menos que
primeiro admita que há algo a ser salvo. “Pela fé, Noé, divinamente
instruído acerca de acontecimentos que ainda não se viam e sendo
temente a Deus, aparelhou uma arca para a salvação de sua casa;
pela qual condenou o mundo e se tornou herdeiro da justiça que
vem da fé” (Hb 11.7); tudo isso simboliza a condição do pecador, ne­
cessidade, motivo e esperança. De nenhum modo, o amor de Deus
pode ser tão claro, formoso e convincentemente apresentado como
no fato de que Deus torna claro ao pecador sua condição e perigo,
mas depois lhe mostra o caminho da saída, tendo, em sua grande
misericórdia, lhe proporcionado uma saída de custo infinito. Nesse
ponto, o evangelho entra com as boas novas, mostrando o amor de
Deus para o pecador.
O motivo supremo para a obra expiatória de nosso Senhor era
Seu amor infinito por nós. O objeto supremo que tinha em vista
era nos salvar da ruína eterna (Jo 3.16). Nosso Senhor, enquanto
esteve entre os homens, tinha mais a dizer sobre a condenação
do impenitente do que sobre o amor e o céu. Não seria sábio e
seguro seguir seu exemplo que diz: “A palavra que estais ouvindo
não é minha, mas do Pai, que me enviou” (Jo 14.24)? Como pode
algum ministério razoavelmente esperar ter sucesso evangelista se
fracassa ao imitar o Mestre nesse particular?
S e g u n d o , R e d e n ç ã o p o r in t e r m é d io d o s a n g u e d e J e s u s . As
Escrituras são numerosas. Especialmente Isaías 53.6; Marcos 10.45;
lPedro 3.18; 2Coríntios 5.21; Romanos 10.4; Gálatas 3.13; lCorín-
tios 6.20; (ver também Lv 17.11; Hb 9.22; Mt 20.28; 26.28; Jo 3.14,
16; Rm 3.24-26; 5.9; ICo 1.30; 10.16; 2Co 5.14-21; Ef 1.7; 2.13-17;
Cl 1.14,19-22; lTm 2.6; Hb 9.12-14, 24-26; 10.19; 13.12; lPedro 1.2,
18,19; 2.24; ljo 1.7; Ap 1.5; 5.9; 12.11). Por nenhum outro fundamento,
a não ser a cruz, pode o pecador ser justificado e reconciliado com
Deus. Se a obra expiatória de nosso Senhor não foi vicária, então
os sacrifícios, ordenanças, tipos e símbolos da antiga estrutura
são sem significado e sem valor. A teoria da influência moral de
Bushnell é correta para o santo; mas a expiação não tem nenhum
valor para o pecador, se não for substituta.

454
As doutrinas que devem ser enfatizadas no evangelismo bem sucedido

Mais de trinta anos atrás, em Denver, Colorado, encontrei-


me com um Ministro congregacional idoso, que era pastor em
Hartford, Connecticut, durante o pastorado de Dr. Horace
Bushnell na mesma cidade. Ele me contou: “Passei uma hora
com Dr. Bushnell um dia antes de ele morrer. Foi quando ele
me disse: ‘Dr., temo grandemente por algumas coisas que
disse e escrevi sobre a expiação e que podem estar erradas
ou causar danos irreparáveis’. Ele estava deitado de costas,
com as mãos apertadas sobre seu peito. Ele ficou ali com
os olhos fechados, em silêncio, por alguns momentos, e seu
rosto indicava grande ansiedade. Subitamente, abrindo seus
olhos e erguendo suas mãos ele disse, ‘O, Senhor Jesus, Tu
sabes que eu espero pela misericórdia apenas por meio de Teu
sangue derramado’.”
TkRCEiRO, r e s s u r r e iç ã o . “E, se Cristo não ressuscitou, é vã a
nossa pregação, e vã, a vossa fé; [...] e ainda permaneceis nos vos­
sos pecados. E ainda mais: os que dormiram em Cristo pereceram.
Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos
os mais infelizes de todos os homens. Mas, de fato, Cristo ressus­
citou dentre os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem”
(ICo 15.14-20). Jesus foi “designado Filho de Deus com poder,
segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a
saber, Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 1.4). Portanto, os apóstolos
e discípulos foram em toda parte pregar “Jesus e a ressurreição”
(ver At 2.24-32; 3.15; 4.2, 10, 33; 5.30; 17.18, 32; 23.6; 24.15, 21;
ICo 15.3-8; lPe 1.3-5; Rm 4.25; lPe 3.22; Hb 7.25).
Q u a r t o , ju s t ific a ç ã o . Observe as seguintes e importantes
passagens das Escrituras: Romanos 3.24-26, Colossenses 1.21,22,
Romanos 8.33 e Romanos 8.1,2. Os crentes, conforme a Palavra,
não estão “debaixo da lei, e sim da graça” (Rm 6.14) e podem ale­
gremente dizer, judicialmente, claro, “Pois, segundo ele é, também
nós somos neste mundo” (ljo 4.17).
Q u in t o , r e g e n e r a ç ã o . O não cristão está espiritualmente mor­
to (Rm 5.12) e deve “nascer de novo” ou “Em verdade, em verdade
te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de
Deus” (Jo 3.3). Aqueles que recebes Jesus como Salvador e Senhor,
são feito “co-participantes da natureza divina” (2Pe 1.4; Jo 1.12,
13). “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas
antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2Co 5.17).

455
Os fundamentos

S e x t o , a r r e p e n d im e n t o . 0 arrependimento significa uma mu­


dança da mente; e essa mudança da mente é causada pelo Espírito
Santo, por meio do conhecimento da condição e das necessidades
do pecador, assim como dos perigos que ele corre. O pecador é
convencido “do pecado, da justiça e do juízo” (Jo 16.8), e é levado
a se render completa, imediata e irrevogavelmente a Deus (ver
Mt 9.13; Mc 6.12; Lc 13.2-5; 24.47; At 2.38; 3.16; 17.30; 26.20;
Rm 2.4; 2Co 7.9,10; 2Tm 2.25; 2Pe 3.9).
S é t im o , c o n v e r s ã o . A conversão significa se voltar para, ou
retomar o curso em direção oposta. Quando o pecador não salvo
é convencido do pecado e resolve abandonar suas transgressões
e entregar seus caminhos ao Senhor, ele se arrependeu; e quando
ele age sobre o que resolveu, ele se rende a Deus em auto-rendição
absoluta, dizemos que ele se converteu (ver SI 19.7; 51.13; Mt 18.3;
At 3.19; Tg 5.19,20).
O itavo , f é . Enquanto o pecador não mudar sua mente com res­
peito a sua relação com Deus e não resolver fazer isto de todo seu
coração, sua fé é vã, ele ainda está em seus pecados. Mas quando
ele se arrepende sinceramente e se volta para Deus, e crê no relato
que Deus deu de seu Filho, sua fé é de coração e justa (Rm 10.9,10.
Ver também Hb 11.6; Rm 10.17; G1 5.22; Ef 2.8; G1 3.6-12; 2.16-20;
Rm 4.13-16; 3.21-28; At 16.30,31; Jo 6.47).
N o n o , o b e d iê n c ia . A fé é um princípio vital. “A fé, se não tiver
obras, por si só está morta” (Tg 2.17,18). Duas coisas são exigidas
do crente em sua profissão de fé em Jesus como Salvador e Senhor,
a saber, a confissão verbal e o batismo de água. “Porque com o
coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da
salvação” (Rm 10.10. Ver também SI 107.2; Mt 10.32,33; Rm 10.9;
ljo 4.15, etc.). O crente não é salvo porque ele é batizado; mas,
batizado porque é salvo. Somos salvos apenas por meio da fé, mas
não a fé que é sozinha, porque “a fé, se não tiver obras, por si só
está morta”. O batismo de água é uma ordenança divina, a forma
pela qual os crentes testemunhas ao mundo que morreram com
Cristo e foram “ressuscitados juntamente com Cristo” (Cl 3.1),
uma habitação de Deus por meio do Espírito (ver Mt 28.19,20;
At2.38,41; 8.12,13,16,36,38; 9.18; 10.47,48; 16.15,33; 19.5; 22.15,16;
Rm 6.3,4; Cl 2.12; lPe 3.21; ljo 2.3; 3.22).
D é c im o , g a r a n t ia . A salvação da morte espiritual por meio do
novo nascimento vem imediatamente após o “testificando tanto

456
As doutrinas que devem ser enfatizadas no evangelismo bem sucedido

a judeus como a gregos o arrependimento para com Deus e a fé


em nosso Senhor Jesus Cristo” (At 20.21). “Porque pela graça sois
salvos, mediante a fé” (Ef 2.8). “Estas coisas vos escrevi, a fim de
saberdes que tendes a vida eterna, a vós outros que credes em o
nome do Filho de Deus” (ljo 5.13). Aqui se declara que algumas
coisas estão na Palavra de Deus e por meio delas o crente deve
saber que possui a vida eterna. Aqui estão algumas delas: “Em
verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê
naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas
passou da morte para a vida” (Jo 5.24). “Aquele que tem o Filho tem
a vida” (ljo 5.12-13). “Por isso, pois, os judeus ainda mais procura­
vam matá-lo, porque não somente violava o sábado, mas também
dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus”
(ljo 5.18. Para confirmação ver ljo 2.3; 3.14, 24; 4.20,21).
“E, por meio dele, todo o que crê é justificado” (At 13.39) — uma
obra realizada. Assim a Bíblia ensina uniformemente. Ao se crer
nessas palavras de garantia, encontra-se a paz e a alegria. Essa é a
tarefa do pregador, tornar clara essa questão para os convertidos,
para que eles possam estar seguramente ancorados (Cl 2.2-3).
Há algumas outras doutrinas, de caráter persuasivo, tais como
o amor, o céu, a esperança, as recompensa que podem ser enfati­
zadas, para melhorar uma campanha evangelista; mas, essas que
enumerei serão certamente proporcionadas por Deus na salvação
das almas, se proclamadas como devem ser.
A vida e a oportunidade são nossas. Os homens estão morrendo,
e todo o mundo jaz no maligno, perdido na ruína do pecado. A
redenção é um fato realizado, e a salvação é possível para todos.
Escolhemos proclamar a mensagem da vida e da esperança e
estamos certos do glorioso sucesso se formos fiéis; caso contrário
seria melhor não termos nascido.

457
459

Prega a palavra

H ow ard C rosby
Chanceler da Universidade da Cidade de Nova York
Resumido e editado por Glenn 0 ’Neal, Ph.D.,

Uma das últimas injunções do ancião Paulo, pouco antes de


seu martírio, foi feita a Timóteo, que constitui o texto de minha
dissertação: “Prega a Palavra” (2Tm 4.2). Trinta anos de experi­
ência cristã, quinze anos de pesquisa apostólica e a inspiração do
Espírito Santo estão nessas palavras. Era uma ordem do próprio
céu, não apenas para Timóteo, mas para todos aqueles que tomam
o cargo de evangelistas ou pregadores na igreja do Novo Testamen­
to. A ordem, assim sucintamente dada, é uma condensação de tudo
que Paulo disse para Timóteo ou para a igreja sobre o assunto da
pregação.
Estão incluídas nessa breve ordem tanto a doutrina saudável
que ele salienta como o evitar as fábulas e as palavras de sabedoria
do mundo. Havia uma tendência, desde o início, a conformar a
doutrina de Cristo à filosofia humana, a fundir as duas, para mos­
trar que todas as religiões têm o mesmo elemento divino em suas

HOWARD CROSBY (1826-1891) graduou-se pela Universidade de Nova


York e manteve a cadeira de grego ali, desde 1851, e na Universidade
Rutgers (nomeado por seu tio avô), desde 1859. Tornou-se pastor da
igreja presbiteriana da Quarta Avenida na Cidade de Nova York. Seus
escritos incluem comentários sobre Josué, Neemias e todo o Novo
Testamento.
Os fundamentos

raízes. Percebemos isso no gnosticismo, na escola Alexandrina de


Clemente e Orígenes e em uma série de heresias que se espalha­
ram pela igreja tempos mais tarde.
O caráter distintivo do cristianismo desagradou a mente filosófi­
ca, e os homens buscaram explicar muitas de suas características
a partir do ponto de vista da consciência humana e dos ensinos
sobre a natureza. Estes esforços têm certos aspectos em comum.
Eles diminuem a atrocidade do pecado, aumentam os poderes do
homem e sugerem uma uniformidade do destino. O pecado é um
defeito, talvez uma doença. O defeito pode ser sanado, e a doença
pode ser curada pelas aplicações humanas, mas a ajuda divina é
valiosa como encorajamento ao esforço humano.
A alta civilização e a reforma moral são o que o homem necessi­
ta, e estas podem ser obtidas pelo uso de princípios gerais comuns
à nossa raça, dos quais o cristianismo é apenas uma das fórmulas.
E natural e inevitável que, com este ensino, a Palavra de Deus
escrita seja negligenciada, se não ignorada. Ninguém pode estudar
esta Palavra e, em seguida, usá-la para um propósito mais amplo e
indiscriminado. Ninguém pode estudar esta Palavra e, em seguida,
ficar contente com uma polidez superficial da sociedade e uma
fraternidade universal baseada em tal esquema. Paulo percebeu
esta tendência em seu próprio tempo, e ele alerta a igreja seria­
mente contra ela. “Cuidado”, é a sua forma de dizer. “Cuidado que
ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas,
conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do
mundo e não segundo Cristo” (Cl 2.8). O princípio do mau está
sempre operando. A natureza humana é sempre a mesma. A igreja
está sempre sujeita aos mesmos esforços da natureza humana,
que por si mesma procura remover os fundamentos da graça para
substitui-la pelas invenções do orgulho. Quer apareça na forma da
hipótese hierárquica, quer apareça no caráter da pesquisa nacional
e na busca científica, o princípio do mau oculta, mutila ou contradiz
as Sagradas Escrituras. As Escrituras, como elas são, com suas
afirmações divinas e seus ensinamentos firmes e inflexíveis, não
podem tolerar isso, e o apelo das Escrituras são considerados como
uma marca de credulidade e uma exibição de ignorância.
Uma das visões mais tristes da igreja de Cristo é a rendição a
esse espírito de orgulho da parte dos pregadores ordenados da
Palavra. Muitos Timóteos modernos usam o púlpito para discursos

460
Prega a palavra

sobre arte e literatura; outros tomam a oportunidade para exibir


retórica e oratória; outros proclamam uma ética da conveniência;
ao passo que ainda outros procuram apenas titilar os ouvidos de
uma audiência que deseja apenas ter divertimento. Em todos estes
casos, procuramos em vão pelo evangelho. Platão ou Aristóteles,
e em alguns casos Luciano, teriam dito tudo isso. As igrejas estão
cheias de apelo aos desejos carnais e aos paladares estéticos. Ora­
tória brilhante, música científica, tópicos sensacionais e bancos de
igrejas modernos são as iscas para atrair as pessoas às igrejas, e
uma igreja é chamada próspera quando esses dispositivos mise­
ráveis fazem sucesso. O pregador se encanta quando aparece no
jornal e acomoda sua pregação ao que jornal pode absorver. Essas
igrejas, naturalmente, terão tanto oficiais de espírito mundano e
membros de espírito mundano, ao passo que as almas piedosas ou
fogem deles, ou lamentam em segredo, se eles não esfriarem em
razão da falta de calor do evangelho.
Contra tudo isso é que o santo apóstolo expressa seu clamor
ao longo das eras: “Prega a Palavra”. O que é a Palavra? Não é a
filosofia dos homens nem a retórica humana. E a revelação divina.
Esta é chamada de a Palavra de Deus, porque não é do homem.
Como Palavra de Deus, ela tem tanto autoridade como poder — au­
toridade de exigir atenção, e poder de converter e salvar a alma.
Ela não deve ser socada na argamassa humana, nem se encontra no
molde do homem. Também não deve ser distorcida e adequada às
idéias preconcebidas do homem. Tampouco deve ser filtrada pelo
coador do homem, nem misturada com os conceitos humanos. E
de Deus, e por ser de Deus nenhum homem deveria ousar, de qual­
quer modo, acrescentar a ela, ou tirar dela, ou alterá-la. O Senhor
Jesus se levanta pela sua cruz onde ele ofereceu o sacrifício pelo
pecado, e aponta para trás, para o Velho Testamento, e avança para
o Novo, tratando-o igualmente como a Palavra de Deus. Em relação
ao primeiro, Ele clama, “Examinais as Escrituras” (Jo 5.39)”; Em
relação ao último, Ele diz a seus apóstolos que o Paracleto viria e
os ensinaria todas as coisas, e eles dariam testemunho. O Antigo
Testamento é uma revelação de Deus — uma Bíblia — uma regra
inerrante de fé. Deus não nos deu uma luz duvidosa e enganosa para
nosso caminho. Ele não nos deu um pacote de verdades e de fábula
que foram apenas colocadas juntas. Ele não nos deixou à mercê de
nossa razão fraca e discordante, possibilitando, desse modo, que a

461
Os fundamentos

revelação fosse supérflua. Ele deu a seu povo a palavra confirmada,


“a palavra profética” (2Pe 1.19), o único guia razoável para nossa
razão e nossa natureza pecaminosa; e sobre esta Palavra certa está
construída sua Igreja. As doutrinas da graça não têm nem origem
humana nem apoio humano. Elas são totalmente divinas e são
recebidas apenas pela alma que se torna participante da natureza
divina. Portanto, buscar na filosofia humana ou na consciência in­
terna do homem sua confirmação ou explicação seria o mesmo que
buscar o sentenciado por crime para compreender as excelências
da lei penal. O erro dos erros é procurar pelas verdades da religião
a partir do homem. Isto é apenas a adaptação da religião ao coração
carnal. E a essência do orgulho e da rebelião contra Deus.
A acusação favorita dos defensores dessa devassidão é a de que
estamos adorando um livro. “Bibliolatria” é a palavra formidável
que eles nos lançam. Mas não adoramos um livro. Adoramos Deus,
que enviou o Livro, e o desprezar o Livro, que Ele nos deu, não
pode ser considerado um verdadeiro culto a Deus. Se honrarmos a
Deus, honraremos à Palavra que Ele enviou e seremos zelosos com
essa Palavra, para que “nem um i ou um til” (Mt 5.18) seja tirado
dela pelas excentricidades de sonhadores ou pelas mãos ímpias de
críticos orgulhosos. E a Palavra de Deus, e, como tal, não permi­
tiremos, nem por um momento, que especulações, imaginações e
suposições dos homens, extremamente cultos, levantem a menor
suspeita sobre ela. Esses homens estão cada vez mais convictos das
grotescas falácias em seu empreendimento ardente de diminuir a
influência da Palavra Santa, e suas críticas têm se voltado contra
eles mesmos, pois os deixam confusos. Que grandes absurdos têm
sido promulgados por esses inimigos instruídos da revelação! Mito,
romance, ficção da poesia, um remendo de tradições, relatos con­
traditórios, fraude piedosa, estas são algumas das etiquetas que o
orgulho pomposo do homem fixa aos livros das Escrituras, embora
nenhuma de suas zombarias tem sido sustentada à luz da crítica ho­
nesta. Em todos os escritos sagrados, de Moisés a João, nenhuma
verdade científica foi contraposta, e nenhuma verdade histórica,
relatada falsamente. As investigações mais microscópicas, para en­
contrar algum descuido, foram feitas pelos mais sérios e instruídos
inimigos da verdade, mas nenhum equívoco foi descoberto, exceto
aqueles resultantes do processo de transcrição e aqueles imagi­
nários, que são perfeitamente solucionados pelo senso comum.

462
Prega a palavra

Aplique-se esses testes aos Vedas, ao Avesta ou ao Alcorão, e o


contraste é esmagador. Estes ficam marcados pelo erro e pela falsi­
dade, mas as Escrituras saem do crisol sem mancha, como a pura
Palavra de Deus. Homens, tão instruídos quanto os críticos hostis,
por meio de suas investigações, assim como homens famosos e
reverenciados no mundo das letras, têm aceitado as Escrituras,
todas elas, como a verdade inerrante de Deus. Se o veredicto de
críticos hostis pode ser assim colocado lado a lado em uma corte
igualmente instruída, o resultado mostra que a instrução deles não
serve para nada nessa questão.
Mas muito acima desse testemunho à letra é o testemunho de
milhões que encontraram, no volume sagrado, a alegria indescri­
tível, assim como a paz que ultrapassa a todo entendimento, pois
foram atraídos à Palavra como uma criança é atraída a seu pai, sem
questionar a respeito de sua dignidade e autoridade. Eles nunca
supõem (e essa posição é a única correta) que a fonte que refresca
sua alma é defeituosa ou corrupta, mas valorizam cada gota como
um dom da graça divina. Eles constantemente vão a estas águas
santificadas e sempre tiram força das épocas de seca. Para esses,
as censuras dos críticos são tão indignas de respeito quanto aque­
les que argumentam contra o brilho do sol. E esta Palavra Santa,
imaculada e poderosa para a justiça e o conforto, que o pregador
cristão deve pregar. O pregador é um proclamador, um arauto, não
um criador de teorias. Ele tem a Palavra que lhe foi dada e a deve
proclamar. Ele não deve retirar água dos poços da filosofia humana,
mas da corrente que flui diretamente do trono de Deus. Ele deve
dizer ao povo o que Deus disse. Ele deve se ocultar atrás de sua
mensagem e recebê-la igualmente junto com aqueles a quem ele a
endereça. O pregador não é o porta-voz de uma igreja para emitir
decretos eclesiásticos e fulminar censuras eclesiásticas. Isto está
longe de ser a pregação da Palavra. Como um arauto de Cristo, pois
diante dele não há nada senão consciências e corações humanos
aos quais deve apelar, não há nada que o sustente senão a Palavra
de Deus revelada para proferir e impor. Todos os comandos da
igreja que estão tanto sobre ele como sobre sua pregação não são
nada, a não ser quando eles estão de acordo com a Palavra. Ele é
responsável como o arauto de Deus, e não da igreja. Ele é o arauto
de Deus, e não da igreja. A mesma razão que o proíbe de fazer da
aprovação do povo o guia para sua pregação, o proibirá de fazer da

463
Os fundamentos

autoridade da igreja seu guia. Ele ficará feliz se agradar tanto ao


povo como às autoridades, mas ele não poderá fazer deste agrado
um critério ou padrão. Seu dever está acima disso tudo. A sua
submissão é à uma ordem mais alta.
Desse modo, limitando-se a pregar a Palavra de Deus, o pre­
gador não está circunscrevendo seu poder, mas ampliando-o. Pelo
uso zeloso da Palavra, ele realizará mais pelo reino de Cristo e pela
salvação dos homens do que por uma mistura de expedientes hu­
manos com a Palavra. Expedientes humanos são muito ilusórios e
atrativos, mas, infelizmente, muitos pregadores os empregam. Eles
pensam que atrairão multidões e encherão os bancos da igreja; e,
na verdade, isso até pode acontecer, mas estes não são os objetivos
para os quais o Senhor enviou seus arautos. O sucesso não deve
ser calculado por meio de casas cheias e aplauso popular, mas por
meio de corações convictos e convertidos, assim como pelo fortale­
cimento da fé e da piedade do povo de Deus. Uma vida mais santa,
uma separação mais nítida do mundo, uma integridade imaculada,
sem perseguições empresariais, uma devoção cristã aos interesses
dos outros e um conhecimento mais pleno da Palavra — estes são
os verdadeiros sinais do sucesso que o pregador pode justamente
buscar. Estes são os resultados gloriosos pelos quais a alma con­
sagrada orará, e neles ele se alegrará com uma alegria mais pura,
mais santa do que aquela que vem dos números, da riqueza ou da
admiração popular.
Se o pregador prega apenas a Palavra, então ele ensinará seu
povo a manusear a Palavra — a segui-lo em sua leitura e exposição
— a estudar mais as lições das Escrituras em casa e a louvar suas
benditas verdades em suas almas. O povo, desse modo, se tornará
poderoso nas Escrituras; e aquele que é poderoso nas Escrituras é
um poder para Cristo e para a salvação, pois em sua própria alma
terá uma plena experiência do poder da verdade divina, que deriva
diretamente de sua fonte e que prova como a entrada da Palavra de
Deus concede a luz.
Novamente, se o pregador pregar unicamente a Palavra, ele
mesmo será um estudioso diligente desta. Ele se banhará na
revelação de Deus e será penetrado por ela; e, assim, ele próprio
será prova contra todas as setas de ignorância e de vaidade. Ele se
tornará íntimo de cada detalhe da história, cronologia, etnologia,
geografia, profecia, preceito e doutrina sagrados, e não tomará

464
Prega a palavra

nada de segunda mão. Ele não irá ao Papa ou ao Concilio, nem a


Calvino ou a Armínio, para saber o que pregar, mas seu prazer
estará na lei do Senhor, e em sua lei ele meditará de dia e de noite.
E um fato lamentável, mas em muitos de nossos seminários,
onde os pregadores são preparados para a obra de Deus, Sua
Palavra não é ensinada, mas em seu lugar os esquemas filosóficos
dos assim chamados “pais” e dos grande teólogos são dados como
o fundamento da crença doutrinai. E verdade, que esses esquemas
são levados à Escritura para que sejam apoiados por ela, e os textos
são citados em sua defesa. Também é verdade que alguns desses
esquemas são mais ou menos consoantes com as Escrituras. Mas,
apesar dessas constatações, o erro ainda existe, ou seja, de que
a Palavra de Deus é secundária na instrução. Ela não é ensinada
como um manual autorizado e com autoridade.
Algumas escolas teológicas podem, sem exagero, ser chamadas
“escolas para converter crentes em céticos”. A desculpa de que os
homens que estão se preparando para ser pregadores deveriam
saber tudo aquilo que é dito contra a credibilidade, a genuinidade
e a autenticidade das Escrituras é sem consistência. Se isso fosse
o objeto, essas objeções seriam consideradas apenas entre parên­
teses, e a arrasadora evidência das Escrituras seria a principal
corrente de pensamento; mas esse não é o caminho que é traçado.
Ao contrário, as objeções são aumentadas, e a leitura de seus
autores é recomendada aos estudantes; porém, a sugestão muitas
vezes é a de que os pontos de vista conservadores da inspiração da
Palavra de Deus são antiquados e obsoletos, verdadeiros sinais de
ignorância. Temos assim, nos próprios lugares onde a maioria de­
veria esperar ver a mais profunda reverência pela Palavra de Deus,
assim como seu estudo fiel para o entendimento da vontade divina,
a maquinaria para minar a doutrina da inspiração e da autoridade
das Escrituras, sobre a qual toda a verdade cristã repousa, e que,
também, minam as mentes jovens que estão sendo preparadas para
se tornar pregadores de Cristo para um mundo pecador e agonizan­
te. E um pensamento muito doloroso e faz com que a igreja de Jesus
Cristo se eleve para um sentido do mal, e é preciso corrigi-lo diante
de toda a igreja que está envenenada por esta insidiosa influência.
Queremos que nossos jovens Timóteos saiam para sua obra com
apenas um desejo — o de apresentar a Palavra de Deus diante do
povo e evitar questões e disputas de palavras que não possibilitam

465
Os fundamentos

que nenhum ministro aumente a piedade, sabendo que o poder de


converter e edificar não é resultante da sabedoria do homem, mas
do poder de Deus.
Quando os pregadores abandonam a Palavra, sua pregação
se torna estéril e infrutífera. O Espírito divino só acompanhará
a Palavra divina. Seu poderoso poder agirá apenas a seu próprio
modo e por seu próprio meio. A Palavra é sobrenatural, e ai do
pregador que leva o sobrenatural para o natural; que põe de lado
a espada do Espírito para usar em seu lugar uma lâmina de sua
própria têmpera!

466
467

Evangelismo pastoral e pessoal,


ou ganhar homens para Cristo
um a um

R ev. J ohn T im o t h y S t o n e , D . D .
Ministro Presbiteriano, Chicago
Revisado e editado por Charles L Feinberg, Th.D., Ph.D..

A história do evangelismo é a história específica da cruz de


Cristo. Grandes movimentos e reavivamentos representaram boa
parte de sua história geral, mas, lenta e silenciosamente, ao longo
dos séculos, o evangelho ganhou, pois homens e mulheres levaram
outros ao arrependimento e tiveram por preceito e exemplo seguir
os passos de seu Senhor.
Cristo ganhou muitos de Seus seguidores e escolheu seus após­
tolos um a um. Ele chamou os homens para si, e eles ouviram e

JO H N TIMOTHY STONE (1868-1954) serviu a Quarta Igreja Presbiteriana


de Chicago por vinte e um anos como pastor, e vinte e quatro anos, como
pastor emérito. Antes de seu excelente ministério em Chicago, Stone foi
pastor em congregações em Nova York e Maryland; e, ao se aposentar,
tornou-se presidente do Seminário Teológico McCormick, em Chicago.
Ele tinha o dom de atrair os homens para a igreja e recrutá-los para a
obra de Cristo. Ele esboçou sua abordagem em seu livro Recruinting
for Christ [Recrutando para Cristo] (1910). Ele tam bém publicou uma
biografia de George Whitefield (1914), um livro devocional, To Start the
Day [Para Começar o Dia] (1914) e vários livros de sermões.
Os fundamentos

atenderam a Seu chamado. As multidões O buscaram e O ouviram


alegremente, mas Ele procurava indivíduos, e esses indivíduos procu­
raram outros e os trouxeram a ele. João Batista trouxe André; André
encontrou seu irmão Simão. Cristo encontrou Filipe, que encontrou
Natanael. O Senhor chamou Mateus em meio a suas tarefas, e o mesmo
aconteceu em relação aos outros apóstolos. Saulo deTarso foi preso pelo
chamado divino, enquanto ele perseguia os primeiros cristãos.
Naquelas primeiras décadas da igreja primitiva e nas eras
subseqüentes, a obra individual para indivíduos cumpriu seu obje­
tivo. Os evangelhos, os Atos dos apóstolos e as epístolas verificam
amplamente esse fato. Até mesmo a maravilhosa obra de Filipe,
em Samaria, não foi o plano imediato de Deus, mas o Espírito lhe
mandou passar por Jerusalém e descer até o deserto em Gaza, para
que ele pudesse ganhar o eunuco etíope para Cristo e, por meio
dele, sem dúvida, incontáveis multidões na África. A jornada mis­
sionária e os esforços de Paulo estavam repletos de obra pessoal.
Suas cartas estão cheias de mensagens pessoais.
Deus usou os homens poderosamente para alcançar vastas multi­
dões de pessoas, desde os dias de Seu próprio ministério e dos dias
de Pedro e seus companheiros no Pentecostes. Mesmo hoje, mais de
duzentos anos depois de seu ministério inigualável, lembramo-nos de
George Whitefield que, às vezes, pregou para trinta mil pessoas ao
ar livre e ganhou milhares de pessoas para Cristo. Vastas multidões
eram alcançadas por Moody e Sankey; grandes audiências se reuniam
para ouvir Spurgeon, semana após semana, ano após ano. Os fortes
evangelistas de nossa geração verificam, diante de nossos olhos, a
honra de Deus colocada naqueles para quem ele dá esse poder notável.
Mas nosso pensamento volta-se ao grande método universal que nosso
próprio Senhor instituiu, o de alcançar o indivíduo por intermédio de
sua companhia. O Todo-Poderoso podia ter assim disposto seu plano
divino para que Ele mesmo, sem ajuda humana, pudesse agarrar e
recrutar Seus seguidores, como fez com Saulo de Tarso, mas este não
era Seu plano. Por intermédio do homem, Ele alcançaria os homens.
Os meios humanos de poder devem fazer Sua obra maravilhosa.

O Espírito Santo
O primeiro requisito para ganhar homens para Cristo deve ser
a presença e o poder do Espírito Santo (Jo 16.7; At 1.8). Viver no
poder do Espírito e conhecer sua liderança são, em si mesmos, a

468
Evangelismo pastoral e pessoal,
ou ganhar homens para Cristo um a um

garantia de uma obra alegre e bem sucedida. O Espírito nos dirigi­


rá e falará por nós e por nosso intermédio. 0 temor e o embaraço
não molestarão, se estivermos debaixo da constante influência
do Espírito de Deus. O que dizemos na fraqueza, Ele usará com
poder. Sua Palavra não retornará vazia (Is 55.11). Podemos sempre
pressupor sua preparação, porque Ele não apenas nos envia, mas
nos chama. Sua palavra não é, “Vá”, mas, “Venha”. Assim, sempre
estaremos alertas para as oportunidades de falar as coisas que Ele
quer que falemos, e nossas palavras e pensamentos serão aqueles
que Ele sugere e honra. Seremos nutridos constantemente pela
Sua Palavra e equipados com Sua espada para proteção contínua e
contra o ataque agressivo. Seu Espírito também nos dará coragem
e resistência, e não precisaremos temer o oponente inesperado
nem o agressivo. O Espírito de Deus também prepara aquele de
quem devemos nos aproximar, pois está operando em seu coração
como também por meio de nossas palavras.
A oração também é um fator real em nossas vidas, e vivemos
em Sua presença pelo método verdadeiro de associação de conver­
sação. Podemos orar antes, depois ou enquanto falamos com os
outros, e fazer isso tão naturalmente que podemos realmente viver
na atmosfera de oração sem hipocrisia. Orar se tornará cada vez
mais um poder em nossa obra quando nos aproximarmos dos indi­
víduos a partir da própria presença do Deus invisível. Isso resulta
em confiança no resultado, e ficamos agradavelmente surpresos
conosco mesmos, pois descobrimos que nossa felicidade não
depende tanto da evidência de nosso sucesso como da consciência
de nossa fidelidade.
Devemos também procurar ganhar outros para Cristo para que
eles também possam ser usados por Seu Espírito e associados com
Ele, mais do que simplesmente obter salvação; não o que podemos
fazer por eles, mas o que o Espírito de Deus pode e quer fazer com
eles.
O Espírito de Deus também nos levará a ganhar desse contato
com os outros as experiências e os métodos pelos quais eles apren­
deram a fazer essa obra para Ele; daí, conferências e testemunhos
ganharão nova vida e terão um interesse mais agudo. A crítica
dará lugar à apreciação e à sugestão, assim como às expressões
de gratidão. Aprenderemos também a levar em oração as coisas
difíceis para Deus, em vez de levá-las aos homens em forma de

469
Os fundamentos

controvérsia, e ficaremos surpresos ao descobrir quão facilmente


elas se resolvem para nós.
O Espírito de Deus também nos preparará para passar mais
tempo sozinhos e pensar seriamente nos grandes assuntos e
valores da vida. A oração será menos geral e mais específica e
individual. As almas terão mais significado, e as coisas menos.
As vidas se tornarão mais atraentes e fascinantes, e os livros, os
documentos e as histórias só terão interesse quando relacionados
às vidas que podem ser influenciadas por ele. Outros serão ganhos
por você quando eles virem em sua face o reflexo de Cristo, porque
seu Espírito habitará dentro de você.

As escrituras
Um segundo elemento bastante necessário para ganharmos ho­
mens para o Senhor é o conhecimento e o uso adequado da Palavra
de Deus. Devemos ser obreiros que não precisam se envergonhar,
que podem dividir justamente a palavra da verdade. O uso da Bíblia
é a arma de maior avanço para Cristo. O obreiro que conhece sua
Bíblia a lerá constantemente para se fortalecer e aplicá-la no trato
com o não convertido. Ele não argumentará com homens, nem fa­
lará sobre a Palavra de Deus, mas ele a explicará e, repetidamente,
fará referência a ela.
Uma Bíblia aberta diante de um inquiridor quase sempre signi­
fica conversão e conseqüente desenvolvimento espiritual. Quando
estiver tratando sobre algum assunto, pergunte se a pessoa, a quem
você estiver pregando, alguma vez considerou o que a Bíblia diz
sobre o assunto em discussão. Passagens pertinentes, pelo menos,
atrairão sua atenção, e, inconscientemente, essa pessoa passará a
ter algum interesse na leitura da própria Bíblia.
Lembre-se de ter uma Bíblia aberta diante de sua companhia
enquanto você lê. Ler para um homem não o ajudará a ouvir, mas
ler com ele sim. Deixe que os olhos ajudem os ouvidos e torne-o
íntimo, deixando-o que o siga enquanto você ler. Algumas vezes,
peça, talvez, para ele ler um versículo ocasional que necessite de
ênfase e, a seguir, comente sobre ele, perguntando-lhe sobre o que
leu. Se um homem não entende como Deus pode amá-lo, não discu­
ta, mas vá ICoríntios 13 e leia, lentamente e de forma ponderada, e,
em seguida, leia João 3.16. Em outras palavras, ganhe um homem
pelo amor de Deus. Não omita Lucas 15, com sua parábola do filho

470
Evangelismo pastoral e pessoal,
ou ganhar homens para Cristo um a um

pródigo, nem ljoão 3.1,2. Se você tem alguém sobrecarregado


devido ao sentimento de culpa e pecado, vá a Isaías 1.18, e, em
seguida, aos capítulos sete e oito de Romanos. Muitos homens são
alcançados por esses capítulos; pois são um tipo de espelho para
maioria dos homens, sobre suas próprias vidas.

Oração
Não calculamos o lugar e o poder que a oração tem para ganhar
outros para Cristo, oração de intercessão pelos outros e a oração
com os outros enquanto nós os abordamos individualmente na
própria presença de Deus. Primeiramente, há uma oração para
eles. Não importa qual seu método ou falta de método, leve aqueles
por quem você está trabalhando em oração a Deus. Ore por eles
dizendo o nome deles; ore para que você possa se aproximar deles
corretamente e apelar para eles com sabedoria divina. Ore para que
você possa ser paciente, como também sábio, com eles. Ora para
que você possa encontrar as passagens corretas para ajudá-los.
Ore para que você possa levá-los a Cristo, em vez de falar com eles
sobre Ele. Ore para que eles sejam responsivos e fiquem desejosos
de aceitar Cristo. Ore para aqueles que os cercam não possam ser
obstáculos para eles. Ore para que você possa conversar com eles
sobre questões essenciais, e não perder tempo com coisas sem
importância. Ore para que você possa ser destemido, claro e exato.
Ore para que a simpatia e o amor humanos possam influenciar
você, para que possa mostra seu coração e sua alma e, dessa
maneira, tocar e derreter seus corações. Ore para que apenas a
abertura favorável da conversa possa vir até você e para que você
possa estar pronto para usá-la. Ore acima de tudo para que o poder
do Espírito Santo esteja contigo.
Em segundo lugar, ore com o indivíduo. Depois de mostrar-lhe
as Escrituras, a decisão deve ser feita: ajoelhem-se e peça-lhe para
tomar uma decisão após você derramar, com esse indivíduo, seu
coração diante de Deus. Deixe-o saber que você o ama pelo amor
de Cristo que quebra muitos corações. Quando você orar desse
modo, não importa quão frio seu coração possa ter estado no início
da oração, você sentirá que há três pessoas presentes, e a terceiro
é o Salvador dos homens.
Quando você orar com alguém que você está evangelizando,
seja bastante específico e claro em sua petição. Se possível, leve-o

471
Os fundamentos

em seguida a uma decisão e sele a ocasião com mais uma oração.


Derrame sua alma diante de Deus e trabalhe com Cristo por essa
alma. As vezes, um espírito não perdoador é a causa da demora.
Não há nada mais certo para superar a amargura e o ódio do que a
oração. Ao levar a vida humana para o lugar de oração, você trará o
poder divino para a obra e conquistará almas que poderia perder.
Uma outra forma de orar pelo indivíduo pode ser usada ao se
colocar os nomes daqueles por quem você está orando em uma
lista ou cartão. A lista é para o cristão individual, uma oração de­
terminada para uma alma determinada. Muitos desses cartões são
levados ao pastor, e o pastor e o povo unidos fazem oração por essas
almas. E um método real de unir o pastor e o povo em oração pelos
indivíduos. Uma lista de oração, que inclui todos os seus amigos,
é um método bastante inspirador e útil. A oração pelos indivíduos
também faz com que fiquemos alerta durante as oportunidades
abertas para falar a eles, assim como para dirigir corretamente a
conversação em tais momentos. Amizade e companheirismo sig­
nificam mais quando percebemos que estamos nos encontrando,
por intermédio de Cristo, no trono da graça, e os indivíduos estão
conscientes de um poder maior do que a fala humana, quando
sabem que você está orando por eles. Oração, portanto, é a atuação
mais eficaz e poderosa para ganhar os outros para Cristo.
Devemos também orar mais em nossas declarações públicas
pelo resultado imediato e direto de nossa pregação; para que as
almas possam ser convertidas; para que corações, que possam
estar aprisionados no pecado, sejam convertidos para Deus. Quan­
do uma congregação sente que um pregador realmente espera
resultados, eles começam esperar e orar também por eles. Se a
alma está faminta por almas, então a oração pública, assim como a
particular, as reivindicará.

Método e meio
O método é, afinal, secundário, mas se ele se tornar fixo e orde­
nado, será auto-destrutivo. Assim que alguém percebe seu método,
o coração e a mente ficam endurecidos, e há pouco ou nenhum
interesse. Quando o Espírito de Deus guia, somos sensíveis a todo
tipo de abertura e caminho. E sábio e justo para nós, portanto,
considerar os métodos e os meios. O próprio Cristo começou sua
obra alcançando os indivíduos e os preparando para trabalhar

472
Evangelismo pastoral e pessoal,
ou ganhar homens para Cristo um a um

pelos outros. 0 método de Cristo ainda permanece; Ele procura


indivíduos. Lembre-se da mulher de Samaria, Nicodemos, os dois
discípulos no caminho de Emaús, André, Filipe, Zaqueu, Mateus e
Saulo de Tarso.
A maior vantagem de grandes encontros é fazer os indivíduos se
interessarem pela verdade, pois eles indagarão de outros que estão
prontos para ajudá-los, quanto à aplicação da verdade que ouvem.
Uma série de encontros valiosos certamente apenas interessa e traz
resultados, quando os indivíduos convidam, buscam e conduzem
outros a estar presentes, para depois segui-los pelo esforço indi­
vidual. Deus opera por meio dos homens, e os indivíduos devem
alcançar outros indivíduos.
Um dos meios mais eficientes, que alguns tem usado, é o
de preparar os homens e as mulheres para convocar seus vizi­
nhos e convidá-los pessoalmente para o culto, não um convite
formal, mas amigável. Muitos departamentos na vida da igreja
fazem essa obra, mas deveria haver uma responsabilidade
pessoal específica que fosse colocada sobre os membros para
que alcançassem outros, ao fazer-lhes um convite definido para
vir à casa de Deus e entregar suas vidas ao Senhor. A igreja
de Cristo universal tem uma imensa força em si mesma para
encarar a obra de ganhar outros para Cristo, mas não usamos
essa força. Missionários estrangeiros têm apreciado esse fato,
e, em alguns lugares, a condição de ganhar os outros tem sido
imposta a novos membros, antes que sejam aceitos plenamente
na comunidade.
Algumas de nossas igrejas não tem recebido novos membros há
vários anos, e outras têm recebido muito poucos. Por outro lado, há
uma grande força — composta por milhares de pessoas, que não
está trabalhando na mesma linha de atividade —, o que deveria ser,
para nós, um privilégio e dever persegui-la. No entanto, não resta
dúvida que o pastor tem uma obra definida, a da pregação. Ele deve
também admitir que, não importa quão intensa e difícil de alcançar
essa obra seja, sua obra primordial deve ser no púlpito. Mas sua
obra é também pastorear seu rebanho, e um pastor não pode rea­
lizar adequadamente essa obra sem ensinar seu rebanho a seguir
a Cristo. Primeiramente, ele deve ser um anfitrião e ganhador
de homens para Cristo, assim como deve preparar seu povo para
segui-Lo. A grande necessidade da igreja hoje é trabalhar dentro

473
Os fundamentos

de si mesma para que seus membros possam se tornar obreiros


individuais e definidos para o Senhor Jesus Cristo, assim como
ganhadores de almas para Ele.
Um outro método bastante eficaz é o da correspondência. Mui­
tas vezes, quando não encontramos as pessoas em casa, ou quando
não somos capazes de nos aproximar delas como desejamos, se
nos sentássemos e escrevêssemos uma carta direta e pessoal, ela
teria seu peso e influência. Ela não deve ser um substituto para
uma conversa pessoal, mas é um acréscimo esplêndido para ela e
sempre que uma for negada, a outra pode ser usada.
Os meios e métodos para alcançar os outros são múltiplos e tão
diversificados quanto as personalidades e o preparo daqueles que
são obreiros. Deus tem novos métodos e meios para utilizar cons­
tantemente, mas devemos ficar alertas nessa grande obra, para
crescer em fé e honestidade. Um dos melhores meios de alcançar
os outros é ser capaz de se colocar diretamente no lugar do outro,
para sentir suas tentações, entender suas dificuldades e ter o desejo
de encontrá-lo em seu próprio lugar e com suas próprias necessida­
des. Se pudermos estabelecer esta solidariedade humana, teremos
percorrido um longo caminho para alcançar os outros.
Um outro meio bastante eficaz será por intermédio da Escola
Dominical e por meio dos canais regulares da participação ativa.
Tudo aquilo que possa ser feito para apresentar aos outros a ne­
cessidade positiva de se resolver essa questão para si mesmos,
como classes de comunicação, classes catequéticas, classes de
pastores individuais, todos estes métodos devem ser usados. O
pastor deve conhecer as escolas públicas e privadas das crianças
de sua congregação, para saber onde eles vivem, quais são suas
ocupações e quais são seus problemas. Em seguida, ele deve
planejar, de algum modo, para os encontrar individualmente.
Um pastor deve ir às várias classes da escola dominical de sua
própria igreja, não regularmente ou em ocasiões determinadas,
mas informalmente ou por disposição determinada pelo profes­
sor, pois assim entrará em contato com os alunos e os encontrará
em seu próprio meio. Ele também deve dispor classes especiais
para encontrá-los e falar sobre seu relacionamento com Cristo.
Em toda a igreja, ele deve ter aqueles que estão interessados nos
indivíduos para que eles recebam casos especiais e os remetam
a ele.

474
Evangelismo pastoral e pessoal,
ou ganhar homens para Cristo um a um

Mas, acima de tudo, o maior método do mundo, o maior meio


de todos para ganhar outros para Cristo, é o da oração persistente,
paciente e fiel. Essa atividade, seguida pela ação, será recom­
pensada. Tempos de reavivamento surgirão. Outros desejarão
cultos e métodos especiais e irão sugeri-los, assim nossas igrejas
estarão vivas e renovadas com o novo material. Descobriremos
que homens e mulheres não estão apenas clamando, “O que devo
fazer para ser salvo?”, mas, “Como podemos ganhar outros para o
Salvador?”. Todos nós devemos nos tornar obreiros para que não
sejamos envergonhados, admitindo que a Palavra de Deus jamais
retorna vazia para Ele. Certamente, “O que ganha almas é sábio”
(Pv 11.30).

475
477

44
O verdadeiro evangelismo da
escola dominical

C h a r le s G a lla u d e t T ru m b u l
Editor do The Sunday School Times
Revisado e editado por Glenn 0 ’Neal Ph.D.

Existem mais de trinta milhões de pessoas que se matricularam


nas Escolas dominical de todo mundo. Mas se todas essas pessoas, e
também todos os membros da igreja, soubessem o que, na verdade, é a
escola dominical, teríamos milhões e milhões de matrículas a mais.
A escola dominical muitas vezes é entendida como igreja de
crianças ou igreja do amanhã, ou um setor ou departamento da
igreja. E mais do que tudo isso junto.

CHARLES GALLAÜDET TRÜMBÜLL (1872-1941) graduou-se em Yale,


em 1893 e uniu-se ao time do The Sunday School Times, que era, na
época, editado por seu pai Henry Clay Trumbull. Dez anos mais tarde,
ele tornou-se editor. Um jornalista prolífico, escreveu colunas semanais
sobre as lições da escola dominical para um bom número de jornais
metropolitanos. Em 1910, Trumbull teve um a profunda experiência
espiritual que apagou as questões intelectuais que suscitara sobre a
inspiração e inerrância da Bíblia. Ele foi ativista do movimento “vida
cristã vitoriosa” e serviu como vice-presidente da Associação do
Fundamento Cristão Mundial. Taking MenAlioe [Pegando Homens Vivos]
foi talvez seu livro mais conhecido. Ele tam bém escreveu The Life Story
ofC. I. Scofield [A História da Vida de C. 1. Scofield], Trumbull foi ativo na
promoção de missões estrangeiras e de explorações na Palestina.
Os fundamentos

A verdadeira Escola dominical é a Igreja de Jesus Cristo empe­


nhada no estudo e no ensino sistemático da Palavra de Deus para
três grandes propósitos: para trazer ao corpo de Cristo aqueles que
participam da Escola dominical, mas que ainda não são membros
da igreja, ou de Cristo; para preparar aqueles que estão em Cristo
para um conhecimento crescente e a apropriação das riquezas
que são suas, porque eles são de Cristo; e enviar para o mundo
ganhadores de alma, vitoriosos e plenamente equipados, que serão
epístolas vivas de Cristo para aqueles que ainda não O conhecem.
Toda grandiosa obra da escola dominical centra-se em seu
manual, a Palavra de Deus. O estudo da Bíblia na escola dominical
torna-se um meio de alcançar o triplo propósito dessa escola
dominical. Ela é o grande movimento organizado da igreja de Deus
para o estudo da Bíblia, cuja finalidade é a salvação, a construção
do caráter e a preparação para evangelismo. Ou para descrever a
obra da escola dominical parcialmente em termos teológicos, o pro­
pósito da escola dominical é o estudo da Bíblia para a justificação,
a santificação e o culto.
Quem quer que precise saber o que a Bíblia tem a dizer sobre a
libertação, no futuro, do castigo de nossos pecados e a libertação
deste mundo do poder de nosso pecado, junto com o poder sobre­
natural de Deus como o equipamento do pleno desenvolvimento do
homem para o serviço, pode encontrar isso na escola dominical.
Somente aqueles que não precisam da mensagem mais plena possí­
vel da Bíblia sobre estes assuntos podem logicamente ficar fora da
escola dominical.
A verdadeira escola dominical é toda a igreja de Deus empe­
nhada no estudo sistemático da Bíblia para cumprir toda a vontade
de Deus como revelada em Sua Palavra para suas vidas. Com a
matrícula de bebês, de um lado da idade limite, e o departamento
da família, do outro, para os membros não participantes, há pouca
razão hoje para alguém ficar de fora do elenco de participantes da
escola dominical. Não é necessário assistir aos cultos de domingo
da escola dominical para ser um membro pleno e regular. Literal­
mente, todos os membros da igreja podem com grande proveito ser
matriculados: criancinhas, deficientes, enfermos, viajantes, mães
ocupadas com deveres domésticos, maquinistas, operadores de te­
légrafo ou telefone — a escola dominical recebe os representantes
de cada tipo da vida. Os membros que ainda estão no berço não

478
O verdadeiro evangelismo da escola dominical

lêem nem estudam por si mesmos; mas quando o supervisor de


crianças é entusiasmado, tem tato e amor, ele corre para as casas
da vizinhança, pergunta o nome do bebê e o matrícula, mesmo
que ainda não tenha nem mesmo vinte e quatro horas de vida.
Certamente, aquela casa, especialmente o pai e a mãe, não ficarão
ofendidos com esta demonstração de interesse pela pequena
vida que para eles é tudo. E corações endurecidos, que pareciam
desesperadamente distantes do evangelho, têm sido aquecidos e
ganhos para uma aceitação aberta do amor de Jesus Cristo graças
ao menor membro da família, que entrou para a escola dominical
por meio da matrícula de bebês.
Assim é que a verdadeira escola dominical é uma poderosa
operação evangelista. Se a escola dominical não é evangelista,
ela não é uma escola dominical. Ela pode até ter o nome de escola
dominical, mas ela não desempenha o papel de uma. A verdadeira
escola dominical da igreja de Jesus Cristo existe unicamente para
fazer toda a maravilhosa riqueza e esplendor das Boas Novas mais
bem conhecidas, tanto para os de dentro quanto para os de fora.
Há muitos métodos de evangelismo dos quais a escola dominical faz
uso abençoado. “O dia da decisão”, quando sabiamente observado, tem
resultado em grande bênção. Nesse dia, um apelo direto para aceitar a
Jesus Cristo como Salvador é feito da plataforma para toda a escola, ou
todo o departamento, e a oportunidade é dada para a resposta formal
por meio da assinatura de cartões, ou de qualquer outra maneira. A
observância desse dia é mais abençoada quando há uma preparação
séria e fiel para ele por meio da oração, feita pelos professores e
oficiais. Parece melhor não ter o dia anunciado antecipadamente para
a escola, mas somente para os professores e os oficiais, para que eles
possam se preparar para esse dia, em oração e obra pessoal.
Mas o evangelismo de tempo integral do professor fiel é o modo
mais efetivo e mais certo. Mais efetivo, isto é, se acompanhado pela
oração de tempo integral. Os encontros de oração dos professores
pela conversão e consagração dos alunos são um segredo da escola
dominical continuamente evangelista.
Que tipo de ensino é dado na Escola dominical para que o verda­
deiro evangelismo seja notável?
O ensino que assume que toda a Bíblia é a Palavra de Deus ins­
pirada; única, autorizada e infalível. A aceitação de teorias críticas
e das conclusões destrutivas não pode ter lugar nesse ensino.

479
Os fundamentos

A escola evangelista sabe que todos os homens (e “homens”


significa homens, mulheres e crianças) estão perdidos até que
sejam salvos pelo sangue de Jesus Cristo. O ensino, em uma escola
assim, apresenta claramente a condição perdida de toda a raça
humana pela natureza, e não admite possibilidade de salvação pela
educação, caráter ou qualquer outra obra humana. Ela dá pleno
reconhecimento à educação como o dever e o privilégio do cristão,
mas não substitui a educação pela salvação.
A Escola dominical evangelista sustenta que o Senhor Jesus
Cristo é o único Salvador dos homens, aceitando a Palavra do
Espírito Santo de que “não há salvação em nenhum outro; porque
abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os
homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12) E porque
nenhum homem ou ser criado pode salvar um outro ser criado
que é espiritualmente perdido, a divindade não criada de Jesus,
nosso Salvador, é reconhecida e proclamada. O novo nascimento,
realizado pelo Espírito Santo naquele que crê em Jesus Cristo
como Salvador, marca a passagem da morte para a vida — este é o
evangelho da escola dominical evangelista.
Os obreiros nessa escola dominical sabem que nenhum ser
humano pode salvar uma alma; eles sabem que nenhum ser humano,
não importa quão fiel e verdadeiramente a história da salvação seja
apresentada e como o convite do evangelho seja apresentado, pode ga­
nhar outra alma para Cristo ou capacitar essa alma para crer em Cristo
como Salvador. Eles reconhecem que esse ato de aceitação e crença
não é o resultado do ensino humano ou do contar ou do persuadir ou
do convidar, mas é uma obra sobrenatural de Deus. Portanto, o pro­
fessor evangelista depende principalmente da oração para ter sucesso
na missão principal da escola dominical. O professor reconhece que a
oração é o grande segredo, a grande essência do evangelismo eficaz.
O professor evangelista ora pelas almas antes mesmo que espere ser
usado para essa finalidade no ensino ou na conversa pessoal.
Nem todas as escolas dominicais são evangelistas. Nem todas
estão sendo sobrenaturalmente usadas por Deus na obra miracu­
losa de levar vidas ao novo nascimento e à nova vida em Cristo
Jesus. Existem perigos que ameaçam a escola dominical de hoje,
provavelmente mais do que em qualquer geração precedente.
Esses perigos não somente ameaçam; mas estão, desastrosa e
efetivamente, em operação em muitas escolas.

480
O verdadeiro evangelismo da escola dominical

A obra de desestruturação da crítica destrutiva infiltrou-se nas


lições de ajuda para a escola dominical. Não somente nos cursos
“independentes” do estudo da Bíblia, mas em auxílios de Lições
Internacionais, emitidas por meio de informações denominacionais
regulares, equívocos são encontrados, como as lições que assumem
o erro e a autoria humana de partes da Bíblia, em vez da autoria
inspirada e inerrante. Notar essa terrível invasão do adversário
tem sido uma coisa infeliz para muitos, pois ele usa os próprios
instrumentos da igreja de Cristo para distanciar os professores e
os alunos da esperança da vida eterna. Pois, como tem sido bem
salientado, o primeiro ato do adversário é desacreditar partes da
Bíblia, como a expiação de Jesus Cristo e Sua divindade. E sem um
Salvador que é Deus, o “evangelismo” da escola dominical deixa de
ser as Boas Novas.
The Sunday School Times teve a oportunidade de investigar uma
certa “Série Completamente Graduadas” de lições da escola domi­
nical, das quais a responsável pela publicação dizia: “Estas lições
já estão em uso em milhares de escolas dominical atualizadas. Os
vários cursos de estudo foram preparados sob a direção de homens
que são reconhecidos como autoridades em educação religiosa nes­
te país (EUA), e estas lições, portanto, abrangem os resultados da
mais recente pesquisa”. Ao examinar as lições, declarações desse
tipo foram encontradas: “E fácil ver que a época que produziu os
evangelhos não se importava com os relatos científicos dos atos de
Jesus, embora devesse esperar Dele exatamente os atos que lhe
são atribuídos. E possível, portanto, que alguns eventos, como a
cura do servo do centurião, fosse simples coincidência; que outros,
como o aparente andar de Jesus sobre a água, fossem atos naturais
que a escuridão e a confusão fizeram com que fossem mal compre­
endidos; que outros, como o transformar água em vinho, fossem
realmente parábolas que se tornaram, no decurso do tempo, relatos
de milagres. Como praticamente todos os milagres, exceto os de
cura, tinham seus protótipos no Antigo Testamento, pelo menos
um bom número deles foram atribuídos a Jesus, porque os homens
esperavam tais atos de seu Messias e, por fim, se convenceram de
que Ele deve tê-los executado”.
O parágrafo precedente estava em um manual de ajuda para
o professor do nível intermediário. Em um volume semelhante,
para o professor dos juniores, aparecia a seguinte discussão

481
Os fundamentos

quanto à razoabilidade dos milagres: “Há alguns estudiosos que


encontram traços desta tendência de aumentar o maravilhoso, até
mesmo nos próprios evangelhos, que, com toda sua unicidade, são
documentos humanos, escritos por seres humanos de carne e osso.
Por exemplo, na história da filha de Jairo, o comentário de Marcos,
como já vimos, nos leva à dúvida se a garotinha estava realmente
morta, ou se somente estava desmaiada, ou em estado de coma.
No relato posterior de Mateus, no entanto, vemos que Jairo diz a
Jesus, ‘Minha filha já está morta’. Quando eles chegam à casa, os
flautistas, contratados para o funeral, já estão na cena. Isso aumen­
ta a maravilha da história, mas não parece acrescentar nada a seu
significado moral. E possível que um bom número de relatos de
atos miraculosos, atribuídos a Jesus, sejam o produto dessa mesma
tendência. Isso quer dizer, a tendência de aumentar o maravilhoso,
como é visto nas lendas apócrifas, que surge do ‘anseio vulgar por
sinais e maravilhas.”
A explicação da omissão da história de Ananias e Safira, confor­
me transmitida aos professores dos juniores:
“Este temor é explicado pela história de Ananias e Safira, que
precede esta sentença no texto completo de Atos. Essa história é
como um monte de outras narrativas antigas, em que os fatos são
provavelmente relatados com precisão substancial; mas a interpre­
tação do próprio autor desses fatos não parece para nós, nestes
dias, muito satisfatória. Não há razão para duvidar dos relatos da
decepção causada aos apóstolos por esse casal inescrupuloso, Ana­
nias e Safira; nem o relato da censura de Pedro; nem a afirmação
de que ambos morreram logo após receber a reprovação. Naquele
período da história mundial, o povo inevitavelmente concluiria
que essa morte foi manifestação direta da ira divina invocada por
Pedro. Essa interpretação, no entanto, parece inconsistente com a
concepção cristã de Deus como um Pai amoroso e paciente. Em
razão das idéias primitivas que a história reflete, ela foi omitida da
“Bíblia Júnior”.
Como foi editorialmente declarado no The Sunday School Times,
que discutiu essa série de lições, é bem verdade que: “Existem
aqueles que não ensinam completamente o Cristo do Novo e do
Antigo Testamentos, pois estão ocupados em apresentar uma
Pessoa diferente e menor. Eles seguiram e ensinaram Jesus de
Nazaré como um mestre e líder ideal, reconhecendo-O, na verdade,

482
O verdadeiro evangelismo da escola dominical

como o desenvolvimento mais extraordinário entre os mais nobres


filhos de Deus; e a história do evangelho sobre Ele, a qual, como
sempre, é confiável, eles, porém, não têm apresentado Jesus sem
reservas como o Cristo eterno que toda a Escritura afirma, em
seu esforço extremo de expressar plenamente quem Ele é; assim
como tudo que Ele era, a própria Vida para a mente disciplinada e a
personalidade revolucionada de Paulo; como também tudo que Ele
é para aqueles que hoje testemunham em palavra e ato a liberdade
da esmagadora escravidão do pecado por meio de Sua presença, de
Seu habitar “nos que crêem”.
O mesmo editorial discutiu o perigo de ensinar um “Cristo modi­
ficado”. E continuou a dizer: “Não é uma coisa incomum encontrar
professores da Bíblia que estão ensinando um Cristo modificado.
A atitude de apreensão, para dizer pouco, de um tipo de erudição
influente, sobre a confiabilidade das Escrituras, e o encorajamento
da opinião não muito clara quanto às afirmações de Cristo são mais
confusas e insidiosas em seu resultado sobre a mente e a vida do
que uma negação insípida da verdade apreciada por incrédulos
confessos. Os escritores do Novo Testamento, por um lado, não
são totalmente capazes dentro do âmbito do vocabulário humano
de encontrar a linguagem que libertaria as correntes da verdade
inspirada com relação ao Senhor Jesus. Em sua maioria, arrebata­
dos pelo êxtase, como em sua apologética, eles não podem exaltar
a Cristo como deveriam, porque a linguagem é inadequada, não o
Senhor. Eles simplesmente não podem dizer o suficiente sobre Ele.
Mas, por outro lado, há um tipo de erudição moderna, que exerce
uma certa influência sobre o professor de Bíblia, tanto o preparado
como o não preparado, a qual é cuidadosa em não dizer muito sobre
Jesus. Há uma restrição em suas declarações sobre Ele, um distan­
ciamento cauteloso e reservado, que pareceria pertencer mais a um
método para o observador externo, do que para o discípulo interno.
A liderança ética e social e a supremacia são livremente atribuídas
a Jesus, mas esse tipo de erudição bíblica não parece, quando trata
de Jesus, tratar do mesmo Cristo eterno que foi desvelado a João,
a Pedro, a Paulo e a outros cujo espírito e cuja experiência são
semelhantes à desses homens mencionados.
Na verdade, as atribuições ilimitadas de João, as extensas
declarações de Pedro, o apaixonado abandono de Paulo, de modo
nenhum caracteriza esse tipo de erudição. Ao contrário, esse Jesus
Os fundamentos

da erudição é muito menor do que o Cristo do Novo Testamento; e o


Novo Testamento, para esses estudiosos, é um relato completamen­
te aberto para a dúvida razoável. Contudo, as vantagens superiores
da lição ajuda a colher os resultados dessa atitude para com Jesus,
e o relato de sua vida são amplamente impelidos aos professores e
alunos da Escola dominical hoje.”
Contra todas essas usurpações da Palavra de Deus, do evange­
lho de Jesus Cristo, de uma clara visão das necessidades eternas
dos homens deste evangelho, a escola dominical do verdadeiro
evangelismo, deve permanecer com a firmeza das Rochas das
Eras. Somente o poder de Cristo pode nos capacitar a permanecer
firmemente na força de Cristo. Ele faz apenas isto, com resultados
abençoados, porque a escola dominical O procura para fazer o
mesmo em seus próprios termos.
O programa de serviço social, que tem muitas coisas cristãs em
sua concepção, mas que, em muitos casos, coloca, tão desastrosa­
mente, o carro na frente dos bois, é um perigo contra o qual a escola
dominical precisa se precaver, especialmente em suas classes para
adultos. A salvação da sociedade independente da salvação do indi­
víduo é uma tarefa sem futuro; e a escola dominical do verdadeiro
evangelismo não entrará nela. Mas a escola dominical, que traz as
boas novas de Jesus Cristo para os indivíduos de qualquer comuni­
dade, eleva o padrão da sociedade de uma maneira que o programa
de serviço social comum jamais poderá fazer.
Uma última palavra é necessária. Se a Escola Dominical deve
realmente fazer sua obra como um agente evangelizador, ela deve
ter obreiros cujas vidas pessoais estejam radiantes com a vitória. A
Escola Dominical do verdadeiro evangelismo declara, com poder
convincente, a mensagem da vida vitoriosa.
Aqui está um evangelho, as Boas Novas, que é totalmente novo
para muitos que seguem o Senhor Jesus Cristo e se alegram com a
Escola Dominical como seu campo de atuação. Mas nosso Senhor
quer que todos os seus seguidores tenham essa experiência.
O Evangelismo que está limitado às Boas Novas, para que haja
libertação do castigo para nossos pecados é apenas meio evangelis­
mo. E um evangelismo aleijado e estagnado. Se formos contar “essa
doce história da antigüidade”, devemos contar toda a história.
E toda a história é que nosso Senhor Jesus Cristo veio, não so­
mente para pagar o castigo de nossos pecados, mas para destruir o
poder de nosso pecado. Ele deixou de lado sua glória e veio do céu

I 484
O verdadeiro evangelismo da escola dominical

para a terra, não somente para que os homens pudessem ser salvos
da segunda morte, mas também para que eles pudessem viver sem
pecar nesta vida atual. Aqui estão as Boas Novas de verdade; tão
boas que para muitos elas parecem muito boas para ser verdade.
Mas, graças a Deus, o evangelho é verdadeiro! Quando o Espírito
Santo nos diz, “Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois
não estais debaixo da lei, e sim da graça” (Rm 6.14), Ele realmente
quer dizer isto. Quando Paulo, na alegria exultante do Espírito,
declarou: “Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te
livrou da lei do pecado e da morte” (Rm 8.2), ”, ele realmente
quer dizer isto. E o mesmo Espírito de vida em Cristo Jesus está
tornando os homens livres hoje da lei do pecado, quando eles estão
prontos para recebê-Lo em Sua palavra. Quando o amado apóstolo
escreveu, sob a direção do Espírito Santo, “Filhinhos meus, estas
coisas vos escrevo para que não pequeis” (ljo 2.1), ele realmente
quer dizer apenas isto. Quando nosso Senhor Jesus disse, primeiro,
“Todo o que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34); mas,
em seguida, em vez de nos deixar em desespero, continuou a
dizer: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres”
(Jo 8.36), ele está tentando nos dizer o que sua salvação é.
A vida vitoriosa não é uma vida feita sem pecado, mas é uma vida
que se guarda do pecado. Não é, como bem foi dito, que o pecador
se torna perfeito aqui nesta vida, mas que o pecador, mesmo nesta
vida, tem um Salvador perfeito. E que o Salvador é mais do que
poderoso, enquanto nós ainda estamos nesta vida, para superar
todo o poder de nosso pecado.
A convenção Keswick, na Inglaterra, foi, por muitos anos, usada
de forma abençoada por Deus para divulgar as Boas Novas do
evangelho, a vitória sobre o pecado. A vida que se rende incon­
dicionalmente à fidelidade deste Senhor e Salvador para tornar
suas promessas verdadeiras, começa a admitir o significado das
riquezas inexprimíveis da graça de Deus.
Existem professores de Escola Dominical que se alegram hoje,
pois têm o privilégio de contar a suas classes toda a mensagem
do verdadeiro evangelismo. Que Deus possa poderosamente
aumentar o número desses que dão testemunho, por meio de suas
vidas vitoriosas e por intermédio da mensagem, ardente e alegre,
com relação a todo o evangelismo da Palavra: o poder de salvar e
de guardar de nosso maravilhoso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

485
Os fundamentos

Então, “Filhinhos, agora, pois, permanecei nele, para que, quando


ele se manifestar, tenhamos confiança e dele não nos afastemos
envergonhados na sua vinda” (ljo 2.28).
487

45 O lugar da oração no evangelismo

R ev. R. A. T o r r e y , D.D.
Deão do Instituto Bíblico de Los Angeles
Resumido e editado por James H. Christian, Th. D.

O fator humano mais importante no evangelismo eficaz é a ora­


ção. Tem havido grandes despertamentos sem muita pregação, e
tem havido grandes despertamentos sem absolutamente nenhuma
organização, mas nunca houve um verdadeiro despertar sem muita
oração.
A primeira grande colheita na história humana teve sua origem,
do lado humano, em um encontro de dez dias de oração. Lemos
sobre a pequena companhia dos primeiros discípulos: “Todos estes
perseveravam unânimes em oração” (At 1.14). O resultado desse
encontro de dez dias de oração está relatado no segundo capítulo

RECIBEN ANCHER TORREY (1856-1928) foi no princípio de sua vida


cristã um crítico partidário da alta crítica. Contudo, durante o ano
em que passou estudando na Alemanha, ele rejeitou essa filosofia
e, mais tarde, tornou-se um dos principais pensadores entre os
fundamentalistas, Torrey, um pregador poderoso, deixou sua marca
no evangelismo mundial. Entre suas outras realizações, foi supervisor
do Moody Bible Institute, pastor da Moody Memorial Church, da Igreja
das Portas Abertas em Los Angeles e deão do Instituto Bíblico de Los
Angeles (hoje Biola üniversity). Torrey escreveu muitos livros, incluindo
The Real Christ [O Cristo Real] (1920). Is The Bible the Inerrant Word of
God? [A Bíblia é a Palavra Inerrante de Deus?] (1922), e The Power of
Prayer [O Poder da Oração].
Os fundamentos

de Atos dos apóstolos: “Todos ficaram cheios do Espírito Santo


e passaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes
concedia que falassem” (2.4), e “os que lhe aceitaram a palavra
foram batizados, havendo um acréscimo naquele dia de quase três
mil pessoas” (2.41). Este despertar provou ser real e permanente;
aqueles que se juntaram naquele dia maior de toda a história cristã,
“perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir
do pão e nas orações” (2.42). “Enquanto isso, acrescentava-lhes o
Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos” (2.47).
Todo grande despertar, desde aquele dia até hoje, tem sua ori­
gem terrena na oração. “O Grande Despertar” no século dezoito,
no qual Jonathan Edwards foi uma das figuras centrais, começou
com seu famoso “Chamado à Oração”. A obra de David Brainerd
entre os índios estadunidenses, uma das obras mais maravilhosas
de toda a história, teve sua origem nos dias e noites que Brainerd
passou diante de Deus, em oração, pedindo uma dádiva de poder do
alto por esta obra. Em 1830, houve um reavivamento em Rochester,
Nova York, no qual Charles G. Finney foi o extraordinário agente
humano. Esse reavivamento espalhou-se por toda aquela região do
estado e, conforme as estimativas, cem mil pessoas entraram em
contato com as igrejas como resultado dessa obra. O próprio Sr.
Finney atribuiu seu sucesso ao espírito de oração que prevaleceu.
Ele diz em sua autobiografia:
“Quando estava indo em direção a Rochester, enquanto passava
por uma vila umas trinta milhas a leste de Rochester, um irmão
ministro que conheci, vendo-me sobre um barco no canal, saltou a
bordo para conversar um pouco comigo. [...] O Senhor lhe deu um
poderoso espírito de oração, e seu coração estava partido. Enquan­
to orávamos juntos, ele se espantou com sua fé a respeito do que
o Senhor estava para fazer ali. Lembro-me que ele dizia, ‘Senhor,
não sei como; mas sinto que Tu estás para fazer uma grande obra
nesta cidade’. O espírito de oração foi derramado poderosamente,
tanto que algumas pessoas paravam de fazer seu serviço para orar,
sendo incapazes de deter seus sentimentos durante a pregação.”
“Aqui devo apresentar o nome de um homem que eu terei opor­
tunidade de mencionar freqüentemente, Sr. Abel Clary. [...] Ele foi
licenciado para pregar; mas seu espírito de oração era tal — pois ele
estava tão carregado com as almas dos homens — que ele não era
capaz de pregar muito, todo seu tempo e esforço eram dedicados
O lugar da oração no evangelismo

à oração. 0 fardo de sua alma muitas vezes era tão grande que ele
era incapaz de ficar de pé, torcendo-se e gemendo em agonia. [...]
Esse Sr. Clary continuou em Rochester tanto tempo quanto eu, e
não deixei a cidade senão após sua partida. Ele nunca, que eu saiba,
aparecia em público, mas dava-se inteiramente à oração”.
Talvez o mais notável despertar jamais visto nos Estados Unidos
tenha sido o reavivamento de 1857. Até onde sua origem humana
pode ser traçada, ele começou nas orações de um missionário de
uma cidade humilde, Landfear, em Nova York. Ele não apenas
orava sozinho, mas organizou um encontro para oração ao meio-
dia. No princípio, a freqüência era bem pequena; em um encontro
havia apenas três presentes, em outro, dois, e ainda em um outro
encontro, apenas ele estava presente. Mas ele e seus companheiros
persistiram na oração até que o fogo foi aceso e se espalhou por
toda a cidade, assim, os encontros de oração passaram a ocorrer a
cada quatro horas, do dia e da noite, não apenas nas igrejas, mas nos
teatros. Após algum tempo de duração, o Dr. Gardner Spring, um
dos mais eminentes ministros da América do Norte, disse ao grupo
de ministros: “E evidente que um reavivamento está acontecendo
entre nós, e devemos pregar”. Um dos ministros respondeu, “Bem,
se é preciso haver pregação, você deve pregar o primeiro sermão”,
e o Dr. Gardner Spring consentiu em pregar. Mas, as pessoas que
vieram para ouvi-lo pregar não era maior do que o número das que
vinham para orar. Assim, a dependência foi colocada na oração, e
não na pregação; o fogo se espalhou para a Filadélfia, e em seguida
por todo o país, até que já não havia nenhuma parte do país onde os
encontros de oração não acontecessem, e toda a nação foi movida e,
em toda parte, houve conversões e acessões à igreja aos milhares.
Esse despertar na América do Norte foi seguido por um des­
pertar semelhante, embora em alguns aspectos até mesmo mais
notável, na Irlanda, na Escócia e na Inglaterra, em 1859 e 1860. Os
fatores humanos mais importantes na origem dessa obra maravi­
lhosa parecem ter sido quatro jovens que começaram a se encontrar
na antiga escola do subúrbio de Kells, no norte de Irlanda. Ali, noite
após noite, eles lutaram com Deus em oração. Por volta da prima­
vera de 1858, uma obra de poder começou a se manifestar. Espa­
lhou-se de cidade em cidade e de condado em condado; mas como
o número de pessoas que afluíam às igrejas era muito numeroso
para qualquer edifício, os encontros eram feitos ao ar livre, muitas

489
Os fundamentos

vezes assistidos por milhares e milhares de pessoas. Centenas de


pessoas eram freqüentemente convencidas do pecado em um único
encontro; os homens eram golpeados pela convicção do pecado en­
quanto trabalhavam no campo. Em alguns lugares, os tribunais
e as cadeias foram fechados, porque não havia casos para julgar
nem criminosos a ser encarcerados. Os frutos dessa obra ma­
ravilhosa permanecem até hoje. Muitas das principais pessoas
das igrejas da América do Norte foram convertidas naquele
tempo, no norte da Irlanda. Enquanto homens como Dr. Grattan
Guinness e Brownlow North foram grandemente usados naquele
tempo. O reavivamento espalhou-se não tanto por intermédio
dos pregadores, mas por meio da oração. A maravilhosa obra do
Dr. Moody na Inglaterra, Escócia e Irlanda em 1873, e nos anos
que se seguiram, sem dúvida teve sua origem humana na ora­
ção. Sua ida à Inglaterra foi em resposta às incessantes orações
de um santo que estava de cama. A primeira demonstração do
poder de Deus por meio de sua pregação foi em uma igreja no
norte de Londres, um ano antes de ele ter ido à Inglaterra para
essa obra. Nesse encontro, quinhentas pessoas definitivamente
aceitaram a Cristo em uma única noite. Este foi o resultado
direto e imediato das orações desse mesmo santo que estava de
cama. Enquanto o espírito de oração continuava, o Dr. Moody
continuava com poder, mas como sempre acontece, no decorrer
do tempo, fez-se cada vez menos orações e sua obra perdeu
visivelmente em poder.
O grande reavivamento no País de Gales, em 1904 e 1905, foi
inquestionavelmente o resultado da oração. Um ano antes de um
escritor começar sua obra em Cardiff, foi anunciado que ele estava
indo para essa cidade, e, por um ano, milhares de devotos cristãos
oraram para que houvesse um reavivamento não somente em
Cardiff, mas em todo o País de Gales. Quando chegamos em
Cardiff, descobrimos que os primeiros encontros de oração
matutinos tinham sido feitos em Penarth, um dos subúrbios de
Cardiff, durante meses. Contudo, o início da obra foi muito lento.
Havia grandes multidões, muitos louvores entusiasmados, mas
pouca manifestação de convicção real e de poder de regenerar. Foi
marcado um dia de jejum e oração. Esse foi observado não apenas
em Cardiff, mas em diferentes partes do país de Gales. Houve uma
reviravolta imediata da maré; o poder de Deus desceu. Por um ano

490
O lugar da oração no evangelismo

inteiro, após nossos encontros particulares em Cardiff, a obra acon­


teceu naquela cidade — encontros todas as noites com um grande
número de conversões. Por todo o país, a obra de Deus continuou,
sem muitos instrumentos humanos, a não ser a oração, que, confor­
me o relato, chegou, em um ano, a cerca de cem mil conversões. Foi
uma das obras mais notáveis de Deus nos tempos modernos, e do
País de Gales saiu um fogo de Deus para as partes mais distantes
da terra, e somente a eternidade revelará os gloriosos resultados
daquela obra.
E não apenas tem sido demonstrado mais e mais, de um modo
amplo, que os alastramentos dos reavivamentos são o resultado da
oração inteligente e contínua, mas que também em círculos me­
nores o poder da oração tem sido demonstrado cada vez mais. Em
uma aldeia muito obscura no estado de Maine, onde aparentemente
nada estava sendo realizado pelas igrejas, alguns cristãos sérios se
reuniram e organizaram um grupo de oração. Eles, aparentemente,
escolheram o caso mais difícil da aldeia e centraram suas orações
nele, importunando a Deus por sua conversão. O homem era
um bêbedo, cuja vida estava totalmente destruída. Em um curto
tempo, o homem estava completamente convertido. Então, o grupo
de oração centrou suas orações em outro homem, o segundo caso
mais difícil da aldeia, e ele se converteu; e, assim, a obra continuou
até que cerca de duzentas pessoas foram convertidas em um único
ano.
Em uma pequena vila no estado de Michigan, bem distante da
estrada de ferro, um ministro metodista e um presbiteriano se
uniram em um esforço para ganhar os não salvos para Cristo. Eles
eram apoiados por um grupo de oração fiel. Enquanto o presbiteria­
no pregava, e o Metodista exortava, esse grupo de oração estava na
sala ao lado clamando a Deus por Sua bênção na obra. Eles selecio­
navam os indivíduos da comunidade para orar por eles. Em alguns
casos, esses homens vinham ao encontro na mesma noite em que
se orava por eles e se convertiam. A obra cresceu notavelmente, e
os ministros e as grandes multidões viajam quilômetros para dar o
testemunho dessa obra maravilhosa.
Na história de missões estrangeiras, há muitos exemplos da im­
portância e do poder da oração no evangelismo mundial. Todos se
lembrarão do encontro de oração “do palheiro” e seus resultados, e
do envio dos cem pela Missão do Interior da China, em 1887.

491
Os fundamentos

Exemplos desse tipo poderiam facilmente ser multiplicados. A


história da igreja demonstra, sem dúvida, que o fator humano mais
importante no evangelismo do mundo é a oração. A grande necessi­
dade do presente é a oração. Em nossa obra em casa e fora, estamos
colocando cada vez mais dependência no homem, na maquinaria e
nos métodos, e cada vez menos em Deus. O evangelismo em casa
está se tornando cada vez mais mecânico, e os métodos utilizados
são cada vez mais revoltantes para as pessoas espirituais; e o evan­
gelismo externo está se tornando cada vez mais algo meramente
educacional e sociológico. O que é necessário acima de tudo hoje é
a oração, a verdadeira oração, oração no poder do Espírito Santo e a
oração que vai ao encontro das condições da oração que prevalece,
claramente fundamentada na Palavra de Deus.
Tudo o que foi dito até aqui é mais ou menos geral, mas se
qualquer coisa prática deve ser realizada, devemos ser mais espe­
cíficos. Em que direção colocaremos a oração, se víssemos este
evangelismo eficaz, pelo qual muitos anseiam?
P r i m e i r o , d e v e m o s o r a r p e l o s i n d i v í d u o s . Debaixo da
liderança de Deus devemos selecionar os indivíduos sobre quem
centraremos nossas orações. Cada ministro e cada cristão deve ter
uma lista de oração, i.e., deve escrever no alto de uma folha de papel
as seguintes palavras (ou palavras para o mesmo efeito): “Deus
ajude-me, oro honestamente e trabalho persistentemente pela con­
versão das seguintes pessoas”. A seguir, deverá se ajoelhar diante
de Deus e pedir a Deus, de maneira definitiva e com a mais honesta
intenção e sinceridade, para mostrar-lhe a quem colocar nessa lista
de oração, e conforme Deus o guiar para colocar pessoas diferentes
nessa lista de oração, deve escrever seus nomes. Depois, todos os
dias, deve ir a Deus em uma oração bem definida com aquela lista
de oração e clamar a Deus, na honestidade do Espírito Santo, pela
conversão desses não convertidos. Se houver espaço, ele poderá
relatar os exemplos mais maravilhosos de conversão em muitos
países como o resultado dessas listas de oração.
S egundo, d e v e m o s o r a r p e l a ig r e j a in d iv id u a l e p e l a c o m u ­

Orar firmemente por um despertar espiritual, orar para


n id a d e .

que os membros da igreja sejam trazidos ao plano mais alto da vida


cristã, para que a igreja seja purgada de seu compromisso atual
com o mundo, para que os membros da igreja sejam revestidos com
o poder do alto e cheios com a paixão pela salvação do perdido.

492
O lugar da oração no evangelismo

Devemos orar para que por meio da igreja e de seus membros, mui­
tos possam ser convertidos, e para que haja um despertar genuíno
na igreja e na comunidade. Qualquer igreja ou comunidade que es­
teja querendo pagar o preço pode ter uma reavivamento verdadeiro.
Esse preço não é construir um tabernáculo, nem chamar algum
evangelista famoso, ou colocar grandes somas de dinheiro em pro­
pagandas e tampouco seguir outros métodos modernos. O preço de
uma reavivamento é a oração honesta e séria no Espírito Santo, a
oração que não pedirá nada em troca. Deixe que algumas pessoas
em qualquer igreja ou comunidade se acertem completamente com
Deus, em seguida que o grupo se reúna com a determinação de
orar, não importando quanto tempo for preciso, e clame a Deus por
um reavivamento até que o reavivamento venha. Em seguida, essas
pessoas devem se colocar à disposição de Deus para Ele os usar em
obra pessoal, testemunho, ou qualquer outra coisa, e o resultado,
certamente, será um reavivamento genuíno da obra de Deus no
poder do Espírito Santo. O escritor disse essencialmente isto pelo
mundo; vez ou outra, o conselho foi seguido, e o resultado sempre
foi o mesmo, uma obra de Deus completamente real e eficaz.
T e r c e ir o , d e v e m o s o r a r p e l a o b r a e m p a ís e s e s t r a n g e ir o s . A
história das missões estrangeiras prova que o fator mais importante
na obra missionária eficaz é a oração. Homens, mulheres e dinheiro
são necessários para as missões estrangeiras, mas o que é mais
necessário de tudo é a oração. Devemos orar de maneira definida
pela liderança de Deus sobre os secretários e outros oficiais de
nossas corporações missionárias estrangeiras. Devemos orar pelos
campos definidos e pelo envio definido de obreiros para esses cam­
pos. Deveríamos orar especificamente pelos homens e mulheres
que estão no campo missionário. Quando alguém vai para o campo
estrangeiro, ele sente como se a própria atmosfera fosse possuída
pelo “príncipe da potestade do ar”. Deveríamos orar o tempo todo
no Espírito e com toda perseverança para que Deus possa dar a
esses homens e mulheres a vitória em seu conflito pessoal, assim
como o poder para que por meio de seus esforços possam ganhar
homens iludidos com as falsas religiões que destroem eternamen­
te, para a verdade do evangelho que salva eternamente. Devemos
orar também de modo bem definido pelos convertidos nos campos
estrangeiros, por sua libertação do erro, do engano e do pecado,
para que possam se tornar inteligentes, equilibrados, fortes e

493
Os fundamentos

membros úteis do corpo de Cristo. Devemos orar pelas igrejas que


são formadas, como o resultado do esforço missionário em terras
estrangeiras.
F in a l m e n t e , d e v e m o s o r a r p e l a e v a n g e l iz a ç ã o d o m u n d o na

geração atual. Deus está chamando a igreja, como jamais fizera


antes, para a evangelização do mundo, mas a igreja como um todo
está dormindo e não responde ao chamado. Assim, parece que a
porta está quase sendo fechada e que nosso Senhor esta dizendo
para nós como disse aos discípulos que dormiram no Jardim de
Getsêmani: “Ainda dormis e repousais!”, e continuaria: “A opor­
tunidade que vos dei, e que desprezastes está acabando”. Oremos
para que se Ele demorar, Deus nos dê mais uma oportunidade e
que Ele conduza sua igreja para aproveitar essa oportunidade que
nos é dada.

494
495

Missões estrangeiras ou
evangelismo mundial

E. S p e e r
R o be rt
Secretário do Conselho Presbiteriano de Missões
Estrangeiras Nova York
Editado por Arnold D. Ehlert, Th.D.

O Argumento em favor das missões estrangeiras é geralmente


desnecessário ou inútil. E desnecessário para os crentes; e para
os incrédulos é inútil. Mas não é bem assim; pois muitas vezes os
crentes e os descrentes, igualmente, formam sua opinião de segun­
da mão, e um estudo honesto de primeira mão sobre os fatos e os

ROBERT ELLIOTT SPEER (1867-1947) foi, nos EUA, um dos mais


eficazes incentivadores das missões estrangeiras. Formado pela
Universidade de Princeton, em 1891, Speer precisou interromper seu
curso no Seminário de Princeton para se tornar Secretário de Missões
Estrangeiras para o Conselho Presbiteriano de Missões Estrangeiras.
Jam ais voltou a completar seu curso no seminário, pois passou
dezesseis anos viajando e desafiando cristãos a dispor suas vidas e
riquezas na divulgação do evangelho. Em 1927, foi eleito Presidente da
Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, naquela época o segundo leigo
a ocupar essa posição. A Universidade de Edimburgo concedeu-lhe o
doutorado honorário em 1910. Escreveu e editou sessenta e sete livros,
entre os quais The Principies of Jesus [Os Princípios de Jesus], The Man
Paul [O Homem Paulo], Missons and Polilics in Asia [Missões e Política
na Ásia] e The Finality of Jesus Chríst [A Finalidade de Jesus Cristo].
Os fundamentos

princípios das iniciativas missionárias levam o grupo a crer, com


a mais profunda convicção e a mais firme esperança, assim como
abala o ceticismo e a oposição dos outros que não conheceram os
objetivos nem os motivos que inspiram o movimento.
No entanto, como as missões estrangeiras são um movimento
religioso, o argumento fundamental para ele é necessariamente
um argumento religioso e será conclusivo somente quando as
convicções religiosas, sobre as quais ele repousa, são aceitas. Esse
movimento de missões repousa, antes de mais nada, em Deus. Se
os homens crêem em Deus, devem acreditar nas missões estran­
geiras. E no próprio ser e caráter de Deus que a base mais profunda
da iniciativa missionária deve ser encontrada. Não podemos pensar
em Deus a não ser em termos que exigem a idéia missionária.
Ele é um. Portanto, não pode haver deuses tribais ou raciais
diferentes, como as religiões étnicas do Oriente afirmam, e a
política étnica do Ocidente assume. Seja qual for o Deus que existe
para a América, Ele existe para todo o mundo, e não existe nenhum
outro.* E algo não pode ser verdadeiro sobre o Deus na América,
que não seja também verdadeiro sobre Ele na índia. Os homens não
são livres para sustentar concepções contraditórias em relação ao
mesmo Deus. Se há algum Deus para mim, ele também deve ser
o Deus de qualquer outro homem. E Deus é verdadeiro. Dizer que
Ele é um é apenas dizer que Ele é. Dizer que Ele é verdadeiro é co­
meçar a descrevê-lo, e descrevê-lo como somente Ele pode ser. E se
Ele é verdadeiro, Ele não pode ter ensinado a falsidade aos homens.
Ele terá combatido a ignorância deles ao educar a humanidade,
mas não pode ter sido Sua vontade (ou ser Sua vontade agora) que
alguns homens devam ter falsas idéias Dele ou falsas atitudes para
com Ele. Um Deus verdadeiro deve desejar ser verdadeiramente
conhecido por todos os homens. E Deus é santo e puro. Nada profa­
no ou impuro pode provir Dele. Qualquer coisa profana ou impura
deve ser odiosa para Ele, e se isto acontecer na religião tanto mais
odioso, pois O representa de modo errado e é mais revoltante para
Sua natureza. Se em qualquer lugar do mundo a religião encobre o
que é impuro ou indigno, ali o caráter de Deus está sendo fraudado.
E Deus é justo e bom. Nenhuma raça e nenhum homem escapam
da afeição paternal de um Deus amoroso. Qualquer desigualdade
ou injustiça ou indiferença em um deus, que nos é oferecido, nos
levaria a procurar por um Deus real, pois saberíamos que ainda não

496
Missões estrangeiras ou evangelismo mundial

O encontramos. Um deus que foi ídolo na China, destino na Arábia,


fetiche na África e o próprio homem com todos os seus pecados na
índia, nada disso seria deus em parte alguma. Se Deus é o pai de
um homem, Ele é ou deveria ser o Pai de todos os seres humano.
Não podemos pensar em Deus, digo isso de forma reverente, sem
pensar Nele como um Deus missionário. Se não estivermos prepa­
rados para aceitar um Deus cujo caráter leva consigo a obrigação e
a idéia missionária, então podemos seguir em frente sem qualquer
Deus real.
Quando os homens acreditam em Deus em Cristo, o argumento
para as missões se torna ainda mais claro. E por Cristo que o caráter
de Deus nos é revelado. Uma de suas mais vigorosas e penetrantes
palavras foi sua declaração, “Mas vem a hora em que todo o que
vos matar julgará com isso tributar culto a Deus. Isto farão porque
não conhecem o Pai, nem a mim” (Jo 16.2-3). As melhores pessoas
de sua época, conforme Ele declarou, seriam ignorantes quanto ao
verdadeiro caráter de Deus, exceto aqueles que verdadeiramente
O conheciam ou reconheceram o Pai Nele. “Tudo me foi entregue
por meu Pai. Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém
conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser
revelar” (Mt 11.27). Esses não são estatutos arbitrários. Eles são
simples declarações de fato. O conhecimento que o mundo tem do
caráter de Deus dependeu e depende agora de seu conhecimento
de Deus em Cristo. Um Deus bom e digno, adequado e satisfatório,
i.e., Deus em verdade, só é conhecido quando os homens estiverem
em contato com a mensagem do Cristo histórico.
Esse fato simples envolve uma considerável responsabilidade
missionária. Os homens só conhecerão um Pai bom e amoroso
como seu Deus, i.e., eles conhecerão Deus, somente quando eles
tiverem o conhecimento de Cristo, a única revelação perfeita de
Deus. Pois, para aqueles que têm este conhecimento, a retenção
dessa informação significa fazer duas coisas para o resto do
mundo: uma é condenar o mundo por sua impiedade, e a outra é
suspeitar de que aqueles que pensam que possuem o conhecimento
de Deus na realidade ignoram o que Cristo foi e o que veio fazer.
“A convicção sincera e profunda de minha alma”, disse Phillips
Brooks, “quando declaro que se a Fé Cristã não atinge seu alvo
e se completa no esforço de tornar Cristo conhecido para todo o
mundo, é que essa fé me parece totalmente irreal e insignificante,

497
Os fundamentos

destituída do poder para a vida e incapaz de ser convincentemente


provada verdadeira.”. E me recordo de uma nota do Reitor Rainy
que dizia que a medida de nosso sentido de dever missionário era
simplesmente a medida de nossa avaliação pessoal de Cristo. Se
ele é Deus para nós, absolutamente tudo para nossas mentes e
almas, admitiremos que somente Ele pode ser isto para cada um
dos homens deste planeta, e que Ele deve ser oferecido desse modo
para todos. O ponto de vista unitarianista jamais produziu missão,
exceto sob um movimento herdado ou o estímulo transmitido
pelo movimento do evangelicalismo, e foi incapaz de sustentar
essas missões que produziu. Mas quando os homens realmente
acreditam em Deus em Cristo, e conhecem Cristo como Deus, eles
devem, se são leais a si mesmos ou a Ele, compartilhá-Lo com toda
a humanidade.
Pois, Cristo, filho de uma raça e de um tempo como Ele foi, e
essa raça a mais centrípeta de todas as raças, pensou e agiu em
universais. Ele olhou para todas as eras e para todas as nações. O
pão que Ele deveria dar era sua carne, pois Ele deveria dar a vida do
mundo. Ele era a luz de todo o mundo. E se Ele fosse levantado, Ele
atrairia todos os homens para Si. Seus discípulos deveriam ir a todo
o mundo e fazer discípulos de todas as nações. Suas ovelhas não
eram apenas de um rebanho judaico. Não era para uma raça, mas
para o mundo que o Pai O tinha enviado para ser o Salvador. Ele não
se considerava como um dentre muitos salvadores, e sua revelação
como uma dentre muitas revelações. Ele era o único Salvador dos
homens, e sua revelação era a única de Deus Pai. “Há muito tempo
deixei de admitir a história da raça hebréia como única”, escreve
um famoso líder cristão de hoje. “Foi bom para nós em nossos
primeiros dias que nossos estudos fossem dirigidos para essa
raça, para vermos como o povo hebreu encontrou Deus em cada
evento de sua história, mas cremos que a Assíria e Babilônia, assim
como Níneve e Roma, poderiam ter escrito histórias semelhantes
das relações de Deus com eles”. Pois, se a história da raça hebréia
é única ou não, isso não é uma questão teórica, mas uma simples
questão de fato. Se não foi única, então onde está sua semelhante?
Qual outra história produziu um vocabulário para a revelação?
Que outra história concedeu Deus para a humanidade? Que outra
terminou com um Salvador? Como uma simples questão de fato, o
cristianismo, que brotou dessa raça e dessa história, é distinto de

498
Missões estrangeiras ou evangelismo mundial

todas as outras religiões. Como tal, ele jamais contemplou qualquer


coisa não ser a reivindicação universal. Se ele se restringir a um
mero culto racial, ele se separa de seu Fundador e de Sua Vida e,
pratica e abertamente, abandona seu caráter essencial.
Não apenas é o dever missionário inerente à natureza do cristia­
nismo e à concepção cristã de Deus, i.e., ao real caráter de Deus,
mas está embutido no próprio propósito da igreja cristã. Não houve
nenhuma organização missionária na igreja primitiva. Nenhum
esforço foi feito para promover uma propaganda missionária, mas
a religião espalhou-se imediatamente e em toda parte. O gênio da
extensão universal estava na igreja. “Podemos admiti-lo como um
fato assegurado”, diz Hamack, “que a mera existência e atividade
persistente das comunidades cristãs individuais fizeram mais do
que qualquer coisa para estender a religião cristã”.
O Bispo Montgomery em seu livreto, Foreign Missions [Missões
Estrangeiras], relembra a definição do arcebispo Benson sobre
as quatro eras das missões: “Primeiro, quando toda a igreja agia
como uma só; depois, quando as missões aconteceram devido aos
grandes santos; em terceiro, à ação dos governos; e, por fim, a era
das sociedades missionárias”. A igreja no início era uma sociedade
missionária. Os novos cristãos se juntavam espontaneamente
graças ao poder unificador de uma vida comum, e eles sentiram
espontaneamente a pressão externa em relação à missão mundial.
A triunfante instauração daquela missão e o fruto moral dessa
vida, nova e unificadora, era sua apologética. Não era preciso estar
dentro das paredes de uma instituição formalizada e endurecida
para compor argumentos razoáveis a favor do cristianismo. A nova
religião teria apodrecido pela heresia e anemia em duas gerações
se assim tivesse feito.
Como um velho escritor da igreja da Inglaterra expressou: “O
modo pelo qual o evangelho parecia pretender ser igualmente
preservado e perpetuado na terra não foi por ter sido guardado ciu-
mentamente por uma ordem eleita e transmitido cautelosamente
a alguns escolhidos, mas por ter sido amplamente divulgado e tão
densamente semeado que seria impossível, pela própria extensão
de sua disseminação, ser meramente arraigado. O evangelho não
foi designado para ser como o fogo perpétuo no templo, para ser
vigiado com assiduidade zelosa e ser alimentado somente com
óleo especial; mas, ao contrário, seu propósito é ser como a luz que

499
Os fundamentos

brilha e queima, para ser colocada sobre cada colina que deveria
brilhar muito mais e ser mais luminosa na brisa, e continuar se
espalhando assim sobre o território circundante de forma que nada
deste mundo jamais pudesse ser capaz de o extinguir ou o ocultar”.
A doutrina saudável da igreja foi salvaguardada pela saudável e
higiênica ação reflexiva do culto, da obra e da conquista. E sua
luz e vida convenceram os homens, porque os homens as viram
conquistando as almas.
A igreja foi estabelecida para disseminar o cristianismo e para
conservá-lo do único modo pelo qual as coisas vivas podem ser
conservadas, pela ação viva. Quando em qualquer era ou em qualquer
terra a igreja se esqueceu disso, ela pagou por sua desobediência.
Enquanto houver homens não alcançados no mundo ou qualquer vida
não alcançada, a ocupação da igreja será seu dever missionário.
A quarta base profunda do dever missionário é a necessidade da
humanidade. O mundo necessita de Cristo hoje tanto e quanto ele
verdadeiramente precisou Dele dois mil anos atrás. Se o judaísmo e
o Império Romano necessitavam do que Cristo lhes trouxe então, o
hinduísmo e a Ásia necessitam Dele hoje. Se eles não necessitam de
Cristo agora, nunca mais necessitarão. Se eles podem progredir sem
Ele, todo o mundo pode dispensá-Lo. Se não há dever missionário, a
base é tirada de debaixo da necessidade e, portanto, de debaixo da
realidade da encarnação. Mas este mundo para o qual Ele veio pre­
cisava de Cristo. Os homens estavam mortos sem Ele. Foi Ele quem
lhes deu vida, que purificou sua conspurcação, que lhes ensinou a
pureza, o culto, a igualdade, a fé e lhes deu esperança e companhia.
Só ele pode fazer isso agora. O mundo não cristão necessita agora do
que Cristo, e somente Cristo, pode fazer por ele.
O mundo necessita da mensagem social e da redenção do
cristianismo. Paulo nos conta que encontrou e conquistou as desi­
gualdades de seu tempo, a brecha entre o cidadão e o estrangeiro,
o senhor e o escravo, o homem e a mulher. Essas ainda são as
brechas do mundo não cristão. O mundo não tem nenhum ideal
de fraternidade humana a não ser quando ouve falar dela por inter­
médio do cristianismo. Nenhuma das religiões e das civilizações
não cristãs concedeu às mulheres ou às crianças, especialmente
às meninas, seus direitos. Há uma afeição humana. A declaração
de um escritor recente com respeito a China, onde as “crianças são
geradas e não nascem”, é certamente muito falsa, a não ser nas

500
Missões estrangeiras ou evangelismo mundial

camadas mais básicas da vida. Mas o provérbio da mulher árabe


de Kesrawan também sugere, verdadeiramente, o ponto de vista
asiático: “Chora-se quarenta dias quando nasce uma menina”. E
entre o homem e o homem, o mundo não conhece base profunda de
humanidade comum, ou se ele a conhece, não tem sanção adequada
e recursos para sua realização. Sua irmandade está dentro da fé ou
dentro da casta, mas não é tão inclusiva quanto a humanidade. Ele
quer o que todo o mundo quis até que ele a encontrou por intermédio
de Cristo. “Em suas pequenas igrejas, onde cada pessoa leva o fardo
de seu vizinho, o espírito de Paulo”, diz Harnack, “já viu o despertar de
uma nova humanidade, e, na epístola aos Efésios, ele proclamou esse
sentimento com uma emoção de exaltação. Longe da sombra dessas
igrejas, com alguma semelhança não essencial, jaz a divisão entre o
judeu e o gentio, os gregos e os bárbaros, os grande e os pequeno, os
ricos e os pobres. Porque uma nova humanidade tinha agora surgido,
e o apóstolo a viu como o corpo de Cristo, no qual cada membro servia
os demais, e cada um era indispensável em seu próprio lugar”. A gran­
de idéia social do cristianismo ainda é realizada em parte por nós. Mas
não a temos a não ser que a tenhamos para a humanidade, e só pode
prevalecer em qualquer lugar ao prevalecer em toda parte.
O mundo precisa, além disso, da idéia moral e do poder moral
do cristianismo. As concepções cristãs de verdade, pureza, amor,
santidade e culto são originais. Todo ideal, exceto o ideal cristão, é
defeituoso. Três outros conjuntos de ideais são oferecidos aos ho­
mens. Os únicos outros ideais teístas são o islamismo e o judaísmo.
O ideal islâmico sanciona expressamente a poligamia, e a autori­
dade de seu fundador é citada em justificação da falsidade. O ideal
judaico é completamente fechado e foi transcendido pelo cristão. O
budismo, o xintoísmo e o confucionismo oferecem aos homens ide­
ais ateístas, i.e., os ideais que abandonam a concepção do absoluto
e não podem por si só se elevar acima de sua fonte no homem que
os criou. O hinduísmo, com seu panteísmo, é incapaz de distinções
morais que só podem produzir ideais morais e, de fato, hoje deve
suas concepções morais dignas exclusivamente à influência do cris­
tianismo. Mas não é só de ideais — é do poder para sua realização
que o mundo exige. Este poder só pode ser encontrado na vida, na
vida de Deus transmitida aos homens. Quem oferece ou pretende
oferecê-lo senão Cristo? Como pode ser oferecido por religiões que
não têm Deus, ou cujo Deus não tem caráter?

501
Os fundamentos

Só o evangelho pode descobrir a necessidade do mundo. O co­


mércio e o governo, assim como a filantropia e a educação, a tratam
superficialmente, e nas mãos de homens superficiais, ou maus, essa
superficialidade só é acentuada. Uma força é necessária para cortar
as raízes, a qual trata da vida em nome de Deus e pelo poder Dele,
que marcha direto para a alma e reconstrói o caráter, que salva os
homens um a um. Aqui não estamos atenuando o assunto, e para
não evadir ou confundir, eu o apresentarei de modo inequívoco. E
nosso dever levar o cristianismo ao mundo porque o mundo precisa
ser salvo, e só Cristo pode salvá-lo. O mundo necessita ser salvo da
carência, da doença, da injustiça, da desigualdade, da impureza, da
luxúria, do desespero e do medo, porque os indivíduos precisam
ser salvos do pecado e da morte, e só Cristo pode salvá-los. Só Seu
poder perdoará e regenerará, o qual alcançará bem profundo, o
bastante para transformar, e permanecerá até que a transformação
esteja fixada.
E o cristianismo faz isso separando o indivíduo e o salvando.
Ele o salva pelo poder de Deus em Cristo, opera nele e sobre ele. O
dever missionário é esse dever.
“Penso que a educação”, diz Uchimura, “é essencialmente
pessoal e individualista”. Ele usa o termo educação em seu sentido
lato. Há, porém, muito mais a se dizer sobre educação do que isso.
A sociedade é algo mais do que a soma total dos indivíduos, mas
ela começa e termina com os indivíduos, e a necessidade do mundo
é primordialmente a necessidade de seus indivíduos, e a salvação
do mundo, pela maneira de Cristo, só pode ser a salvação da alma
deste mundo pela salvação das almas de seus indíviduos.
Alguns anos atrás, ouvimos falar sobre uma grande necessidade
de se educar e de se civilizar o mundo antes que tentássemos mudar
sua religião. O Dr. George Hamilton apresentou essa argumentação
na Assembléia Geral da Igreja da Escócia, em 1796: “Disseminar o
conhecimento do evangelho entre as nações bárbaras e pagãs me
parece ser altamente absurdo, pois, na verdade, ele antecipa, assim
como, até mesmo, é contrário à ordem da natureza. Os homens
devem ser polidos e refinados em suas maneiras antes que possam
ser adequadamente iluminados nas verdades religiosas. A filosofia
e o aprendizado devem, na natureza das coisas, ter precedência.
Pois, pareceria menos absurdo fazer a revelação preceder a civi­
lização na ordem cronológica, do que aspirar explicar para uma

502
Missões estrangeiras ou evangelismo mundial

criança os princípios de Newton, antes que ela tome conhecimento


das letras do alfabeto. Essas idéias me parecem igualmente fun­
damentadas no erro; e, portanto, devo considerá-las igualmente
românticas e visionárias”. Esse ponto de vista não é muito popular
hoje. A civilização mostrou que é uma coisa vã e vazia, e sabemos
que o pecado e a paixão no coração dos homens, que não podem ser
destruídos por essa civilização, são tão reais e terríveis na América
e em todas as nações neutras, assim como nas nações em guerra.
Deus é a única necessidade do homem. O homem não pode salvar-
se ou fazer qualquer coisa além de seu alcance. Ele necessita do
que Deus, e só Deus, pode fazer por ele. Se isso é verdade quanto à
Europa e à América, é verdade também quanto aos demais países
do mundo. Jesus Cristo é o único Salvador dos homens, e todos os
homens do mundo, que necessitam deste Salvador, têm o direito
de olhar para aqueles que O conhecem para que estes falem Dele a
toda a humanidade.
Até mesmo como um movimento puramente religioso, existem
alguns que contestam as missões estrangeiras com base no fato de
que há outras religiões no mundo que são verdadeiras para seus
seguidores e que respondem às necessidades deles tão verdadei­
ramente como o cristianismo responde às nossas. Eles dizem que
uma comparação justa do cristianismo com as outras religiões
destrói a afirmação do cristianismo e torna as missões estrangeiras
desnecessárias. Isto é verdadeiro? Quais são as conclusões que tal
comparação apresenta?
1. Em primeiro lugar, é um fato significativo que o cristianismo
seja a única religião que procura tornar boa sua afirmação
quanto ao universalismo. Nenhuma das religiões não cristãs
faz qualquer esforço real nesse sentido. O islamismo está se
espalhando na África, na índia e, até mesmo, na América do
Sul, onde ele conquista milhares de pessoas, e na Europa, onde
conquista milhões, mas na América Norte tem feito pouco
progresso. Os limites do confucionismo são contraentes. O
xintoísmo foi mutilado pela derrota do Japão na Segunda Guerra
Mundial, e embora haja muitas novas seitas xintoístas, elas não
subscreveram obediência à forma estatal dela. O zoroastrismo,
uma das mais valiosas das antigas religiões, quase desapareceu
da terra onde se originou, e os números de adeptos na índia são
comparativamente pequenos. O hinduísmo é geograficamente

503
Os fundamentos

limitado, exceto como filosofia, por seu princípio de casta, e o


budismo reivindica apenas cerca de trezentos mil adeptos fora
da Ásia. Mas o cristianismo está sendo levado por toda a terra,
com poder crescente e contínuo, com atuações que sempre se
multiplicam, com devoção sempre crescente, e com propósito
aberto e sem acanhamento para preparar o reino de Cristo sobre
o mundo. O método do cristianismo não é menos significativo do
que o propósito missionário, pois não põe sua confiança no apoio
secular, apesar de todas as difamações que surgem, mas se apóia
em atuações puramente morais e na justa comparação de seus
tesouros com qualquer outro que o mundo possa oferecer. Assim,
o cristianismo avança destemidamente em toda vida e pensamen­
to do homem, como também soluciona seus problemas e vai ao
encontro de suas necessidades em nome e na força de Deus.
2. À raiz de todas as coisas está a idéia de Deus. Aqui todas as reli­
giões se encontram para ser julgadas. “A verdade, assim como
o bem, inerente em todas as formas de religião é que, em todas,
os homens procuram por Deus. A finalidade do cristianismo
repousa no fato de que ele revela o Deus por quem o homem
procura” (Jevons, Introduction to the Study of Comparative
Religion [Introdução ao Estudo da Religião Comparada], pg. 258).
O melhor que se pode dizer de qualquer religião não cristã é que
ela está procurando por aquilo que o cristianismo possui — o
Deus verdadeiro e perfeito. “A concepção de Deus com a qual o
cristianismo se dirige ao mundo, é a melhor que o homem pode
formar ou ter em mente”.
Se fizermos a pergunta: qual é essa excelência no cristianismo
pela qual é denominada ser uma religião missionária e merece ser
recebida por todos os homens?
A resposta seria: “O cristianismo é autorizado a ser uma religião
missionária e substituir todas as outras religiões graças a seu Deus”.
Há muitas glórias na religião de Jesus Cristo, e ela pode fazer
muitas coisas pelos homens; mas sua maior glória, ou melhor,
a soma de toda sua glória, é seu Deus. O cristianismo tem uma
concepção de Deus como nenhuma outra religião atingiu; e, o que
é mais, ele proclama e promove essa experiência de Deus como
a humanidade, em qualquer parte, jamais conheceu. E nisso que
encontramos essa superioridade que autoriza o cristianismo a
oferecer-se a todo gênero humano.

504
Missões estrangeiras ou evangelismo mundial

“É necessário dizer em poucas palavras o que este Deus é


— a glória do cristianismo e a base de sua coragem em avanços
missionários. Este Deus, tão infinitamente excelente, que todos os
homens podem muito bem esquecer todas as suas próprias religi­
ões, se eles puderem apenas conhecê-Lo. O Deus do cristianismo é
um, a única fonte, o Senhor e a finalidade de tudo. Ele é santo, tendo
em si o caráter que é o padrão de dignidade para todos os seres. Ele
é amor, que se estende para salvar o mundo do pecado e enchê-lo
com Sua própria bondade. Ele é sábio, sabendo como realizar o
desejo de Seu coração. Ele é Pai no coração, olhando para suas
criaturas como para ele próprio e procurando o bem-estar delas.
Toda esta verdade com relação ao Senhor, ele a tornou conhecida
em Jesus Cristo, o Salvador do mundo, em quem Sua vontade
redentora encontrou expressão, e Seu amor salvador tem chegado
à humanidade”.
Coloca-se contra esta concepção de Deus os pontos de vista das
religiões não cristãs, e não precisa ser demonstrado que a religião
do Deus Cristão tem supremos direitos entre os homens.
“Uma religião que pode proclamar tal Deus, e proclamá-Lo com
base na experiência, é boa para todos os homens e é digna de toda
aceitação. Visto que o cristianismo é a religião deste Deus, o cris­
tianismo merece a posse do mundo. Ele tem o direito de oferecer-se
vigorosamente a todos os homens e de substituir todas as outras
religiões, porque nenhuma outra religião oferece o que ele oferece.
Ele é o melhor que o mundo possui. Porque a doutrina e a experiên­
cia do Deus perfeito é a melhor que o mundo pode possuir.
Seu conteúdo pode ser desdobrado e melhor conhecido, mas
eles não podem ser essencialmente melhorados. No fundo, o
cristianismo é simplesmente a revelação do Deus perfeito, que faz
a obra do amor perfeito e da santidade para suas criaturas, trans­
formando-as à sua própria semelhança, de maneira que elas farão
as obras de amor e santidade para com seus companheiros. Nada
pode ser melhor do que isto. Portanto, o cristianismo tem pleno
direito de ser uma religião missionária, e os cristãos são chamados
a ser um povo missionário”.
3. O cristianismo, com sua concepção de Deus única e adequada,
tem uma mensagem para o mundo que é cheio de aspectos
que as religiões não cristãs não têm e não podem possuir. Até
mesmo as idéias que algumas dessas religiões compartilham

505
Os fundamentos

com o cristianismo, tais como “a crença na vida após a morte,


a diferença entre o certo e o errado, e que este último merece
punição; a necessidade de expiação pelo pecado; a eficácia da
oração; a presença universal de poderes espirituais de alguma
espécie”; crença na soberania de Deus, na imanência de Deus,
na transitoriedade e vaidade desta vida terrena, por um lado, e
no significado infinito desta vida e da sacralização da ordem
humana, por outro lado — tudo isso tem um relacionamento e
um significado no cristianismo, com seu Deus perfeito, que os
faz totalmente diferente das concepções das outras religiões. E,
além disso, o cristianismo tem todo um mundo de concepções
próprias — a paternidade de Deus, a fraternidade do homem,
a redenção, a encarnação de um Deus pessoal, a expiação, o
caráter, o culto e comunhão.
4. O cristianismo — em sua concepção de pecado, em sua provisão
para o perdão e derrota do pecado, em seus ideais de salvação
e a livre oferta de salvação para cada homem — é único e
satisfatório. O cristianismo vê o pecado como o mal supremo
no mundo, o admite como uma falta de conformidade com a
vontade perfeita de Deus, ou uma transgressão de sua lei perfei­
ta; ele ensina que o pecado não é uma questão apenas de ação,
mas também de pensamento, desejo e vontade, uma mancha na
natureza; ele insiste que Deus não é responsável por ele, ou por
qualquer mal, enfatiza a culpa e o horror dessas transgressões
e do mal, e as conseqüências fatais tanto para o tempo quanto
para a eternidade, mas abre ao homem um caminho cheio de
perdão e pura vitória. Em contraste com esta visão, o islamismo
ensina que o pecado é apenas a violação voluntariosa da lei de
Deus; ele não admite os pecados de ignorância; sua doutrina
da soberania de Deus fixa a responsabilidade pelo pecado em
Deus e dissolve o sentido de culpa, pois nega a mancha do mau
do pecado na natureza humana. No hinduísmo, o pecado como
oposição à vontade de um Deus pessoal é inconcebível; pois ele
é o resultado inevitável dos atos de um estado prévio do ser; é
mau, porque toda existência e toda ação, tanto boa como má,
são más, e é ilusão, como todas as coisas são ilusórias. No puro
budismo não pode haver pecado no sentido que damos a essa
palavra, porque não há Deus; o pecado significa “sede”, “desejo”,
e o Budismo procura escapar não do mal da vida apenas, mas

506
Missões estrangeiras ou evangelismo mundial

da própria vida; e sua concepção dos pecados é um obstáculo,


ao incluir o que é imoral, não inclui tudo, e, por outro lado, não
inclui, de forma alguma, muito do que não tem caráter imoral.
O confucionismo não faz menção da relação de Deus com
o homem e carece totalmente da concepção de pecado. Em
uma palavra, o cristianismo é a única religião no mundo que
claramente diagnostica a doença da humanidade e descobre o
que ela precisa para ser curada, assim como tenta permanente e
radicalmente tratar dela.
E assim, também, só o cristianismo sabe o que é a salvação que
os homens requerem, e faz provisão para isto. No cristianismo a
salvação é salvação do poder e da presença do pecado, assim como
de sua culpa e vergonha. Sua finalidade é o caráter santo e o culto
amoroso. Está disponível para os homens aqui e agora. Na concep­
ção islâmica, a salvação consiste na liberação do castigo, e libera­
ção não por redenção e pelo sacrifício de amor, mas pela absoluta
soberania de Deus. A concepção hindu de salvação é fugir dos
sofrimentos que incidem sobre a vida, ser libertado da existência
pessoal e consciente, e esta libertação deve ser obtida por meio
do conhecimento, conhecimento este que é o reconhecimento da
identidade essencial da alma com Brahma, o Deus impessoal, ou
por meio da devoção, devoção esta que não é fé em um Deus que
trabalha pela alma, mas a manutenção, pela alma, de uma atitude
salvadora da mente para com a divindade escolhida que deve ser
adorada. Este é o hinduísmo real, não a mais nobre doutrina dos
Vedas. A salvação no budismo é a extinção da existência. Na
verdade, no puro budismo não se reconhece que haja uma alma.
Só existe o Karma, ou caráter, que sobrevive, e cada homem deve
realizar seu próprio Karma sozinho. “Por si só”, está escrito no
Dhammapada, “o mal está feito; as pessoas sofrem por si só; e por
si só o mal é desfeito; assim como por si só se é purificado. Veja,
nenhum homem pode purificar a um outro.” O melhor budismo
do Norte aproxima-se do cristianismo em sua concepção de uma
salvação pela fé em Amitaba Buda, mas mesmo aqui a salvação só
pode ser conquistada a partir da necessidade de renascimentos
contínuos, pois não há uma criação de um novo caráter para o cul­
to humano na lealdade divina. O confucionismo não tem nenhuma
doutrina de salvação. A alma chinesa tem que se voltar, na tenta­
tiva de satisfazer suas necessidades, para outros mestres. Em seu
Os fundamentos

ideal e oferta de salvação, o cristianismo está sozinho (Kellogg,


Comparative Religion [Religião Comparada], caps IV, V).
5.0 Cristianismo é a única religião que é ao mesmo tempo histórica,
progressiva e espiritualmente livre. Portanto, é a única religião
que pode reivindicar domínio universal. Toda religião do mundo
teve um lugar na história, mas o islamismo é a única, cujo fatos
históricos são essenciais, e, como o Bispo Westcott diz:
“O cristianismo é histórico não apenas no sentido em que, por
exemplo, o islamismo é histórico, porque os fatos relacionados à
origem e ao desenvolvimento desta religião, com a personalidade
e vida do fundador, assim como com a experiência e o crescimento
de sua doutrina, podem ser traçados em documentos que são ade­
quados para assegurar a crença; mas em um sentido bem diferente.
Ele é histórico em seus antecedentes, em sua realização, em si; ele
é histórico como o coroamento de um longo período de preparo
religioso que foi realizado sob a influência de fatos divinos; ele é
histórico quando transmite a todos sua plenitude de tempos em
tempos em uma sociedade exterior pela ação do Espírito de Deus;
mas acima de tudo, e mais caracteristicamente, é histórico porque
sua revelação é de vida e na vida. A história de Cristo é o evangelho
em sua luz e em seu poder. Seu ensino é — em si mesmo, e nada
está aparte de si mesmo — o que Ele é e o que Ele faz. O credo
primitivo — o credo do batismo — é a afirmação dos fatos que
incluem toda a doutrina.”
“Os sistemas dogmáticos podem mudar, e têm mudado tanto
quanto refletem fases transitórias do pensamento especulativo,
mas o evangelho primitivo é inalterável como também é inexau-
rível. Não pode haver acréscimo a ele. Contém em si mesmo tudo
que será lentamente forjado no pensamento e nos atos até a consu­
mação.”
“Neste sentido, o cristianismo é a única religião histórica. A
mensagem que ele proclama é inteiramente única. Cristo disse, Eu
sou — não eu declaro, ou deixo em aberto, ou aponto para algo, mas
Eu sou — o caminho, a verdade e a vida.”
6. A ética única do cristianismo, o autoriza a absorver e a substituir
qualquer outra religião. Só ele faz do caráter moral de Deus a
coisa central e transcendente. Julgado por seu Deus, nenhum
outro deus é realmente bom. Só Ele apresenta um ideal ético per­
feito para o indivíduo e só Ele possui uma ética social adequada

508
Missões estrangeiras ou evangelismo mundial

para a vida nacional verdadeira e para uma sociedade mundial.


O cristianismo é primordialmente a religião ética. Todos seus
valores são valores morais. Tudo que há de melhor na vida de
um país cristão é um esforço para incorporar a ética cristã na
vida, e “dificilmente haverá um sinal mais confiável e um critério
mais seguro da civilização de um povo”, diz o antropólogo Waitz,
“do que o grau no qual as exigências de uma moralidade pura
são suportadas por sua religião e são entrelaçadas com sua vida
religiosa”. E este é o verdadeiro teste também das religiões. Será
que proporcionam aos homens ideais morais perfeitos? Elas con­
denam o mal e recusam permitir ao mal se abrigar sob sanções
religiosas? Em um ou em ambos destes assuntos, toda religião
não cristã se arruina. Há muito ensino moral digno em cada uma
das religiões não cristãs, mas o Alcorão ordenou a escravização
das mulheres e das crianças dos infiéis conquistados em batalha
e autorizou o concubinato ilimitado; assim, sua sanção da
poligamia não pode ser defendida como algo que vai ao encontro
do interesse da moralidade. “A poligamia”, disse Dr. Henry
H. Jessup, não “diminuiu a licenciosidade entre os islâmicos”.
Mesmo nos Vedas, há passagens que são moralmente excluídas
da publicação. “Eu não ouso dar e você não ousa imprimir”,
escreveu a Rev. S. Williams, “ipsissima verba [com as mesmas
palavras] de uma versão inglesa do original Yajar Veda Mantras”
(Indian Evangelical Review [Revista Evangélica Hindu], Janeiro,
1891). No Bhagavata Purana, o caráter do deus Krishna se dis­
tingue pela licenciosidade. E pior de tudo, na ética hindu, mesmo
no Bhagavadgita, há o ensinamento de que as ações em si não
mancham ninguém, se tão somente elas forem executadas no
estado de espírito ordenado no poema. Enquanto a ética de Buda
e do confucionismo são deficientes na benevolência ativa e no
culto humano, o cristianismo diz: “Portanto, sede vós perfeitos
como perfeito é o vosso Pai celeste” (Mt 5.48), uma concepção
particularmente cristã.
7. O cristianismo é a religião final e absoluta, porque contém todo
bem e verdade que podem ser encontrados em qualquer outra
religião, e os apresenta aos homens em sua plenitude divina,
ao passo que outras religiões não têm senão um bem parcial. O
cristianismo é livre dos males que são encontrados em todas as
outras religiões e só ele pode satisfazer todas as necessidades

509
Os fundamentos

do coração humano e da raça humana. É a única religião verda­


deira. Ficamos alegres em descobrir qualquer busca da verdade
em outras religiões, o que mostra que os corações daqueles que as
sustentam são feitos para esta verdade e capazes de recebê-la em
sua forma perfeita no cristianismo. Cristianismo é final, porque
não há nenhum bem além dele e nenhum mau nele, e também
porque ele purifica e coroa toda a vida e pensamento do homem.
Ele é a finalidade de toda busca humana. “Sustento”, diz Tiele
“que o aparecimento do cristianismo inaugurou uma nova época no
desenvolvimento da religião; que todos os fluxos da vida religiosa
do homem, uma vez separados, se unem nele; e que o desenvolvi­
mento religioso daí em diante consistirá em uma realização sempre
mais elevada dos princípios desta religião.” E o Cristianismo é ab­
soluto assim como final; isto é, ele preenche o campo. Não há nada
mais alto ou melhor. Não há nada mais do mesmo quilate. Como o
Bispo Westcott disse:
“Uma religião perfeita — uma religião que oferece uma satis­
fação completa para os desejos religiosos do homem — que deve
ser capaz de ir ao encontro dos desejos religiosos do indivíduo, da
sociedade, da raça, quer em um curso completo de seu desenvolvi­
mento quer na múltipla intensidade de cada faculdade humana em
separado.
“Assim, argumento que a fé em Cristo, nascido, crucificado,
ressuscitado, ressurrecto, elevado aos céus, forma a base desta
religião perfeita; que é capaz, em virtude de seu caráter essencial,
de trazer a paz em vista dos problemas da vida sob cada variedade
de circunstância e caráter — para iluminar, desenvolver e inspirar
cada faculdade humana. Minha argumentação repousa no reconhe­
cimento de duas marcas pelas quais o cristianismo se distingue de
toda outra religião. Ele é absoluto e histórico.
“Por um lado, o cristianismo não está confinado por qualquer
limite de lugar, tempo, faculdade ou objeto. Ele alcança todos os
seres humanos, assim como o todo de cada existência individual.
Por outro lado, ele oferece sua revelação nos fatos que são parte
real da experiência humana, de maneira que o ensino peculiar que
ele oferece quanto à natureza e às relações de Deus e do homem e
do mundo é simplesmente a interpretação dos eventos da vida dos
homens e da vida Daquele que foi verdadeiramente homem. Não é
uma teoria, uma esplêndida suposição, mas uma proclamação dos
fatos.”

510
Missões estrangeiras ou evangelismo mundial

“Isso, repito, são suas reivindicações originais e inalteráveis.


O cristianismo é absoluto. Ele afirma — como foi exposto pelos
apóstolos, embora a grandeza da afirmação logo fosse obscurecida
— alcançar todos os homens, todos os tempos, toda a criação; ele
afirma efetuar a perfeição, assim como a redenção do ser finito; ele
afirma trazer uma unidade perfeita da humanidade sem destruir
a personalidade de qualquer homem; ele afirma tratar tudo que é
externo como tudo que é interno, tanto da matéria como do espí­
rito, tanto do universo físico como do universo moral; ele afirma
realizar uma recriação co-extensiva com a criação; ele afirma
apresentar aquele que foi o Criador do mundo, como o Herdeiro de
todas as coisas; ele afirma completar o ciclo da existência e mostrar
como todas as coisas vieram de Deus e irão para Deus.”
Como absoluto, ele deve substituir tudo que é parcial ou falso.
Deve conquistar o mundo. O povo que o tem deve ser um povo
missionário.
Este é o solene dever com o qual estamos encarregados por
nossa experiência pessoal do tesouro que está em Cristo, e este é
o solene dever de comparar verdadeiramente o cristianismo com
as religiões do mundo que nos confronta. Semelhante ao olhar por
dentro e ao olhar por fora, erguemo-nos com um claro entendimen­
to do caráter missionário da religião que carrega o nome de Cristo.
A atitude dessa religião “não é de compromisso, mas de conflito e
de conquista. Ela propõe substituir as outras religiões. A afirmação
de Jeremias é a afirmação do cristianismo: “Os deuses que não fi­
zeram os céus e a terra desaparecerão da terra e de debaixo destes
céus” (Jr 10.11). A sobrevivência do Criador, prevista, é a base de
sua confiança e empenho. O cristianismo, assim, empreende uma
longa e laboriosa campanha na qual deve experimentar e aprender
a paciência dos julgamentos e demoras; mas a verdadeira situação
do caso não deve ser esquecido, a saber, que o cristianismo parte
para vitória. A intenção de conquistar é característica do evangelho.
Este foi o objetivo de sua juventude quando ele se apresentou entre
as religiões que o circundavam, e com este objetivo ele deve entrar
em qualquer campo no qual as antigas religiões estão obstruindo
a natureza religiosa do homem. Ele não pode conquistar senão
pelo amor, mas, pelo amor, ele pretende conquistar. Isso significa
encher o mundo.” Ele deve fazer isso para que as nações possam ter
seu Desejo, e o mundo, sua Luz.
513

Quais motivos missionários


devem prevalecer?

“O amor de Cristo nos constrange” (2Co 5.14)


R ev. H enry W . F rost
Diretor Norte Americano da Missão no Interior da China
Resumido e editado por Glenn 0 ’Neal, Ph.D.

Vários tipos de motivos


Quando contemplamos os motivos que amplamente prevale­
cem nestes dias com respeito à obra missionária, deparamo-nos
com uma surpresa. Houve um tempo — na memória de muitos
— quando os motivos proclamados eram notoriamente escriturais
e espirituais.
Recentemente, os motivos escriturais e espirituais tem dado
lugar ou ao egoísmo ou ao simples humanitarismo. E isto resultou

HENRY W ESTON FROST (1858-1945) começou sua carreira como


vendedor de óleo, após se graduar em Princeton. Contudo, pela
influência de sua esposa e incitado por sua própria visão pela obra
evangelista, ele optou por um a vida de atividade missionária. Após ser
ordenado pela igreja presbiteriana, Frost prosseguiu até se tornar um
estadista missionário. Ele começou como membro Norte Americano da
Missão no Interior da China (MIC). Por quarenta anos, ele foi o Diretor da
Casa em seu escritório na Filadélfia. Além de sua obra com a MIC, ele
foi obreiro ativo no movimento de conferência bíblica, escreveu poesia e
redigiu vários livros sobre missões e doutrinas.
Os fundamentos

em um desenvolvimento de uma fragilidade, tanto no apelo quanto


em seus resultados. Decerto, é verdade, como dizem, que as nações
não cristãs estão em um estado lastimável, governamental, educa­
cional, comercial, social e fisicamente; e igualmente é verdade que
nada, a não ser o cristianismo, alterará as condições existentes.
Mas tais condições não constituem o apelo que Deus faz ao povo
Dele, quando os impele a cristianizar as nações. As condições
acima citadas estão todas “debaixo do sol”, e elas têm que ver com
a presente vida temporal. Além disso, embora uma transformação
total pudesse ser assegurada quanto a estes aspectos, as pessoas
assim afetadas — como a presente condição do Japão demonstra
— não teriam sido levadas a se aproximar de Deus mais do que
antes. Pois, ao passo que é sempre verdade que o cristianismo
civiliza, jamais foi verdade que a civilização cristianiza.
Parece, quanto ao aspecto do parágrafo anterior, que se as almas
que devem ser alcançadas, se os homens que devem ser feitos justos
interiormente, se as coisas que levam à segurança e à bem-aventu­
rança eternas devem ser obtidas, esses motivos divinos, guiados
por métodos e resultados divinos, devem prevalecer. Esta é a razão
por que Deus põem esses motivos elevados diante da igreja. Ele
gostaria que os cristãos olhassem para o alto, para que pudessem
viver para o alto; e Ele gostaria que vivessem para o alto para que
eles pudessem elevar outros igualmente para o alto. E sumamente
importante, portanto, descobrir nas Escrituras quais são os moti­
vos divinamente dados. Nosso texto começa por indicar que Paulo
sentiu que estes poderiam ser expressos em uma frase: “O amor
de Cristo” — isto é, o amor de Cristo por nós — “nos constrange”
(2Co 5.14). Mas outras porções da palavra indicam que o Espírito
expande o pensamento assim expresso, o único motivo que inclui
vários outros. Podemos antecipar suficientemente, ao dizer que
esses motivos parecem ser três. E nosso propósito considerar
esses motivos um a um.
a) O primeiro motivo
Durante a primeira parte do ministério de Jesus na terra, isto
é, entre o seu batismo e a sua crucificação, ele falou muito pouco
sobre missões; mas durante a parte posterior, isto é, entre a sua
ressurreição e a sua ascensão, ele não falou de outra coisa. Esse
último fato é notável e impressionante, especialmente por haver

514
Quais motivos missionários devem prevalecer?

muitas outras questões, nesses últimos dias, sobre os quais seus


discípulos poderiam ter desejado lhe falar e com os quais
Ele poderia ter desejado se ocupar. Portanto, fica evidente,
durante os quarenta dias antes de sua ascensão, que um tema
era superior em Sua mente e que um fardo pesado foi posto em
Seu coração. Depois sua obra redentora de ter sido realizada,
ele desejou que seus discípulos proclamassem as alegres no­
vidades em todos os lugares; e, conseqüentemente, falou-lhes
disto, e somente disto.
Além disso, nas várias ocasiões quando Ele discursou sobre
o tema das missões, Ele sempre falava como um mestre que se
dirigia a Seus discípulos, como um capitão se dirigiria a Seus
soldados, como um rei se dirigia a Seus súditos. Em outros
tempos e em outras relações, Ele sugeria, exortava e compelia.
Mas aqui, sem exceção e sem equívoco, Ele ordenou. Ele não
explicou, nenhuma vez sequer, como Ele poderia exigir o que
estava requerendo; nem uma vez sequer Ele perguntou se
havia algum argumento a ser expresso em resposta às suas
propostas; com pleno conhecimento do custo terrível, sem per­
mitir qualquer fuga da obrigação imposta, ele simplesmente
disse, “Ide!”.
Em face de tal ardente paixão e pesada obrigação imposta,
há apenas uma conclusão possível: a Igreja de Jesus Cristo
não tem escolha quanto a se quer ou não cumprir essa ordem.
Aquele que comprou Seu povo com Seu próprio sangue, Aquele
que os possui em espírito, alma e corpo, Aquele que é, na ver­
dade, o Mestre, o Capitão e o Rei realmente ordenou que Seu
evangelho fosse pregado por todo o mundo. Naturalmente, a
Igreja, se assim desejar, pode desobedecer, como —falando de
forma geral — ela está desobedecendo. Mas sob as condições
que prevalecem, isto, por parte da igreja, é alta traição, e aí re­
side a perda presente e o perigo futuro. O que Cristo ordenou,
com toda consideração legítima, é o que deve ser plena e ime­
diatamente empreendido. Este, portanto, é o motivo principal
que Deus põe diante dos cristãos, individual e coletivamente, a
saber, que aquele que tem o direito de ordenar fez assim, e a or­
dem, graças a essa pessoa, pede por obediência, não hesitante,
mas contínua e firme, até que a tarefa ordenada seja completa
e finalmente realizada.
Os fundamentos

b) O segundo motivo
Há muitas passagens nos evangelhos que falam de Cristo como
alguém que tem compaixão, ou sendo movido por ela. Uma é
quando Jesus viu dois homens cegos e Ele lhes deu a visão; a outra
é quando ele viu um leproso e Ele o tocou e o curou; uma outra é
quando viu uma viúva chorando a perda de seu filho e Ele trouxe
de volta o menino à vida; ainda uma outra é quando viu a multidão
faminta e Ele a alimentou; e a última é quando ele viu a multidão
abandonada e Ele pediu a Seus discípulos para que orassem em
favor dela.
Todas essas passagens são interessantes, como uma revelação
do coração de Cristo, pois Ele é o “Deus da compaixão, a compai­
xão que nunca falha”. Mas a última passagem é particularmente
interessante, pois nos dá uma visão das condições seculares
presentes e da idéia de Deus com relação a elas. Porque o que era
verdadeiro naquele dia na Galiléia ainda é verdadeiro em relação a
este mundo; e o que Cristo era, Ele ainda é. Consideremos, por um
momento, a passagem.
Jesus tinha ido para Sua própria cidade, Nazaré, e, mais tarde,
Ele foi dali para os distritos da circunvizinhança. Como resultado
de suas ministrações de cura, ele juntou uma grande multidão a
seu redor, constituída de homens, mulheres e crianças, e naquele
momento Ele não tinha como voltar, pois já era quase noite, mas ha­
via ainda muitas necessidades físicas e espirituais que não tinham
sido tratadas. Este Jesus teve compaixão do povo durante todo o
dia, e isto é atestado por Suas palavras e atos. Mas agora, vendo a
multidão em uma condição lastimável, conforme o relato — porque
esta é a implicação — Ele teve uma compaixão peculiar por eles.
Ele viu que estavam famintos e cansados, como as ovelhas ficam no
fim do dia quando estão famintas e exaustas; ele viu também que
eles eram como um grande campo de colheita, cujo grão passou
da época, por falta de mãos para juntá-lo no seleiro, e estava se
estragando no talo. Então, — estas condições físicas sugerem a
espiritual — aconteceu que o grande o coração revelou Seu desejo,
e ali começou o apelo com um clamor comovedor, “Rogai, pois,
ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara”
(Mt 9.38).
Não insinuaríamos, por um momento sequer, que não havia
nenhuma causa suficiente na presença da multidão naquele dia
Quais motivos missionários devem prevalecer?

para assim mover poderosamente o coração do Filho de Deus. Ao


mesmo tempo, podemos pensar que grande parte da emoção que
Jesus experimentou foi ocasionada pelo fato de que a multidão dian­
te dele fosse um quadro das outras multidões maiores que compu­
nham um mundo perdido, e também daquela outra, e ainda maior,
composta das pessoas que não tinham nascido e que formariam
o mundo perdido que estava por vir. Pois Cristo sempre olhava as
coisas com um olhar divinamente profético; e havia alguma coisa
nessa visão presente para sugerir uma visão mais ampla. E, assim,
o coração sangrou de aflição; e, assim, a voz pediu lamentosamente
a ajuda do homem. Este mesmo Cristo está sempre olhando de seu
trono no céu, este mesmo coração está sempre sentindo o peso da
aflição compassiva, esta mesma voz está sempre suplicando a seus
discípulos para que vejam como ele vê e para que sintam como ele
sente. Este, portanto, é o segundo motivo que Deus põe diante dos
cristãos, isto é, entrar na compaixão de Cristo pelas almas e pelas
vidas perdidas dos homens, e, assim, ser movidos como Ele foi, e
ser constrangidos a fazer como ele fez.
c) O terceiro motivo
Os evangelhos, que relatam a vida terrena de Jesus, estão cheios
de promessas — a maior parte delas proveniente dos lábios do Mes­
tre — com respeito à vinda cuja a finalidade seria a de estabelecer
um reino. As epístolas, que representam o testemunho do Cristo
ressurrecto e glorificado, dão continuação a esse tema e sempre
fornecem a mesma ordem, primeiro a vinda, depois o reino. E no
fim do Novo Testamento, um livro todo — Apocalipse — é formado
pela expansão desse pensamento, agora familiar, e conta em deta­
lhes como Cristo virá e como o Reino será.
Em acréscimo ao que dissemos acima, os evangelhos, as
epístolas e Apocalipse falam de uma obra a ser realizada, que é
preliminarmente composta de dois fatos, a vinda e o reino, a qual a
divina estrutura torna tanto um como o outro possível. Como essas
passagens são vitais para nosso assunto, fizemos uma seleção
delas: “Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido”
(Lc 19.10); “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações”
(Mt 28.19); “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda
criatura” (Mc 16.15); “E sereis minhas testemunhas tanto em Jeru­
salém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra”
(At 1.8); “Para que, por meu intermédio, a pregação fosse plenamente

517
Os fundamentos

cumprida, e todos os gentios a ouvissem” (2Tm 4.17). 0 Espírito,


como se quisesse remover qualquer possível desentendimento com
relação ao plano divino, levou à declaração e à preservação das
palavras que nos dizem o que Deus pretende fazer neste tempo
presente de preparação para o tempo futuro, e qual a parte que
a Igreja deve ter no cumprimento do propósito assim anunciado.
Referimos a Atos dos apóstolos 15.13-18. Lá, Tiago, o porta-voz,
cita Pedro, pois o grande apóstolo confirma sua declaração ao
afirmá-la como uma verdade fundamental de que “o Senhor, que
faz estas coisas conhecidas desde séculos” (At 15.18). Assim, ele
diz: “Expôs Simão como Deus, primeiramente, visitou os gentios,
a fim de constituir dentre eles um povo para o seu nome. Conferem
com isto as palavras dos profetas, como está escrito: Cumpridas
estas coisas, voltarei e reedificarei o tabernáculo caído de Davi;
e, levantando-o de suas ruínas, restaurá-lo-ei. Para que os demais
homens busquem o Senhor, e também todos os gentios sobre os
quais tem sido invocado o meu nome, diz o Senhor, que faz estas
coisas conhecidas desde séculos” (At 15.14-18).
Aqui, portanto, estão uma declaração e um programa divinos. E,
falando de forma breve, ele apresenta os seguintes fatos na seguinte
ordem: primeiro, a atual obra da graça na qual Deus visita e reúne,
de forma mais proeminente os gentios, um povo para Seu nome;
segundo, o retorno de Cristo; terceiro, a restauração e o estabele­
cimento do reino teocrático judaico com sua adoração; e quarto, a
salvação na época do reino do “restante” dos judeus, e de “todos” os
gentios sobre quem o nome de Deus será invocado. E esse progra­
ma, em seu primeiro artigo, torna claro a parte que a Igreja tem em
seu cumprimento. Em uma palavra, é isto: Deus está visitando as
nações, e os cristãos têm o alto privilégio de visitá-las com Ele. Ele
vai adiante, nas pessoas dos missionários, não para converter todo
o mundo — visto que nem todos os homens O aceitarão —, mas
para juntar um povo com muita vontade de estar próximo de Deus,
celestial quanto à qualidade e inumerável quanto à quantidade, que
será para a glória de Seu nome por toda a eternidade.
E, manifestadamente, essa obra preparatória abrirá passagem
ao evento que é descrito como a vinda de Cristo. Esse, portanto, é
o motivo final e consumador que Deus põe diante dos cristãos, a
saber, ir a toda parte, pregando as boas novas a toda criatura, para
que a Igreja possa se tornar completa e para que o Rei e o Reino
possam vir.

518
Quais motivos missionários devem prevalecer?

Os efeitos dos motivos bíblicos


Será preciso apenas levar em consideração a descoberta de
que os três motivos que foram mencionados, a saber, a ordem,
a compaixão e a vinda de Cristo, são como o Deus que os deu e,
assim, são assim dignos de ser aceitos pelos homens mais nobres e
mais devotados. E há duas razões por que devem aceitar esses mo­
tivos. Primeiro, porque eles representam as verdades espirituais
e eternas. Segundo, porque eles são feitos pela mais alta glória de
Deus e pelo maior bem da humanidade. Quanto ao último, nenhum
outro motivo é tão enaltecedor e purificador para a pessoa que é
movida por eles, assim como nenhum outro motivo é tão certo de
favor e de bênção divinos em seu exercício. Há poder suficiente
nesses motivos, singular e coletivamente, para elevar a propaganda
missionária acima de qualquer coisa terrena, quer o egoísmo quer
a estreiteza, e colocá-la, no seu devido lugar, no plano celestial,
espiritual e infinito. Além disso, há potência suficiente aqui para
transformar a “esperança abandonada” das missões estrangeiras
de hoje, um grupo de Gideões, de homens e mulheres, que lutam
corajosamente contra diferenças esmagadoras, em um exército
sempre vitorioso da Igreja em que a batalha não somente será
realizada, mas também ganha, e em que o fim de salvar o eleito e
trazer de volta o Rei e o Reino serão, certa e rapidamente, cumpri­
dos. Que inimigos na terra, ou que demônios no inferno, poderiam
deter o progresso avançado de um povo que determinou, no poder
do Espírito Santo, obedecer a ordem de Cristo, apresentando sua
compaixão e prosseguindo com rostos erguidos para o encontro
vitorioso e arrebatador com Aquele que um dia descerá com um
clamor, anunciado pela voz do arcanjo e pela trombeta de Deus?
Motivos como estes não são apenas constrangedores; mas são
invencíveis e triunfantes.

519
521

Consagração
48 (Êxodo 28.40-43)

R ev. H en ry W . F rost
Diretor Norte Americano da Missão no Interior da China
Editado por Arnold D. Ehlert, Th.D

Alguns anos atrás, quando residia em Toronto, fui, um domingo


de manhã, assistir ao culto na Igreja de Knox, da qual o Rev. Henry
M. Parsons era pastor. Fui para o culto em um estado muito tran­
qüilo de espírito, desejando naturalmente, por uma nova bênção,
mas sem qualquer sentido especial do tipo de bênção que precisa­
va. Deus, no entanto, entendia minha necessidade real, e, antes do
sermão daquela manhã, meu conforto acabou e fiquei angustiado,
tanto na mente como no espírito. O sermão foi sobre um tema
relacionado com a nova vida em Cristo, e o Senhor fez tamanha
aplicação pessoal dele para mim que me senti completamente

HENRY W ESTON FROST (1858-1945) começou sua carreira como


vendedor de óleo, após se graduar em Princeton. Contudo, pela
influência de sua esposa e incitado por sua própria visão pela obra
evangelista, ele optou por uma vida de atividade missionária. Após ser
ordenado pela igreja presbiteriana, Frost prosseguiu até se tornar um
estadista missionário. Ele começou como membro Norte Americano da
Missão no Interior da China (MIC). Por quarenta anos, ele foi o Diretor da
Casa em seu escritório na Filadélfia. Além de sua obra com a MIC, ele
foi obreiro ativo no movimento de conferência bíblica, escreveu poesia e
redigiu vários livros sobre missões e doutrinas.
Os fundamentos

desfeito. Minha situação era similar àquela da noiva de Cânticos


dos Cânticos de Salomão, que clamava: “Não olheis para o eu estar
morena, porque o sol me queimou!” (Ct 1.6).E neste estado de
espírito, voltei para minha casa.
Logo após o jantar daquele dia, encontrei um lugar sossegado
em nossa casa, onde pudesse ficar sozinho com Deus, porque
precisava compreender a mim mesmo e, acima de tudo, saber
o propósito de Deus para mim. E, assim, meditei e orei, e orei e
meditei. Desse modo, foi revelado para mim, por fim, a consciência
de que estava errado em relação ao centro de minha vida. Não que
duvidasse que fosse salvo, porque eu sabia que era cristão; nem
duvidava que Deus me aceitara como seu servo, pois eu era diaria­
mente abençoado e usado por Ele em minha obra; mas esta minha
vida era um sobe desce, às vezes em comunhão com Deus, outras
vezes, não; ainda outras vezes louvando-0 por uma vitória e, mais
freqüentemente, confessando o pecado como resultado de uma
derrota deplorável. Foi desse modo que percebi que necessitava de
uma nova consagração.
Quando cheguei a este ponto, tomei minha Bíblia para estudar
sobre a consagração. Mas não sabendo em que textos buscar,
recorri à ajuda de uma concordância, com a intenção de esgotar
uma leitura da Bíblia sobre o assunto. Aqui, no entanto, deparei-me
com urna dificuldade. Havia poucas passagens que se referiam à
consagração. Mas achei que isso não importava, como consagração
e santificação são a mesma coisa, o que não conseguisse com uma
palavra, conseguiria com a outra. Mas quando olhei a palavra
santificação, deparei-me com uma dificuldade oposta, porque havia
muitas passagens, de maneira que não sabia o que fazer com elas.
Foi desse modo que me concentrei em uma passagem que havia
anotado, que falava tanto de consagração quanto de santificação,
a saber, Êxodo 28.40-43, e foi assim que me calei e, devotamente,
meditei sobre ela. Quero dizer que Deus me ensinou algo em
relação a essa parte das Escrituras que, até aquele dia, jamais
tinha aprendido; algo que revolucionou minha vida. Não que, desde
essa época, não tenha tido experiências de desequilíbrio espiritual
e que sempre tenha andado sem mácula diante de Deus. Aliás,
minha vida tem sido freqüentemente arruinada pelo fracasso e
pelo pecado. Contudo, digo para louvor de Cristo, que as coisas tem
sido diferentes daquilo que elas eram, e que tenho possuído uma

522
Consagração

bênção secreta de viver a qual jamais possuíra antes. E é graças ao


desejo que tenho de passar a vocês o segredo que Deus me deu, que
estou escrevendo de forma tão pessoal, mas agora, devo implorar
por permissão para conduzir a vocês no estudo da passagem das
Escrituras a qual me referi.
A primeira coisa que notei em meu estudo foi que a consagração e
a santificação não são a mesma coisa. Estamos tratando, assim creio,
com um texto verbalmente inspirado, e percebo que o Espírito diz:
“Consagrarás, e santificarás”. Isso significa para mim que a consa­
gração e a santificação —falo de um ponto de vista empírico — são
coisas separadas. E claro que estão intimamente relacionadas, que
uma precede à outra e uma conduz à outra, e que a outra segue à
uma nos resultados desta. Na verdade, pode-se verdadeiramente
dizer que são inseparáveis. Ao mesmo tempo, a consagração surge
primeiro, a santificação, depois. Para colocá-la na forma de um
quadro, a consagração é o ato inicial de atravessar a porta externa
de um palácio, e os atos subseqüentes de atravessar as outras
portas do palácio para ocupar o todo e alcançar a sala do trono do
rei; e a santificação é o próprio palácio, o todo que é o lar do rei, e
onde o rei pode ser visto face a face. Ou, para expor isso de forma
mais simples e clara, a consagração é o ato inicial e muitos atos
similares subseqüentes; e a santificação é o estado gerado como
conseqüência e resultado da consagração.
A segunda coisa que notei foi que aquele que estava para ser
consagrado tinha de pertencer à família de direito. Havia muitas
ordens do povo no mundo daquele tempo. Primeiro, havia as
grandes nações de fora; em seguida, em um círculo interior, havia
os israelitas; depois, em número reduzido, havia os levitas. Era
somente para Aarão e os filhos de Aarão, e o único modo, portanto,
para uma pessoa poder alcançar a experiência da consagração
era nascendo nessa família particular. Isso sugere, naturalmente,
a idéia de exclusividade. Ao mesmo tempo, é mais inclusivo do
que parece. Pois quem são os sucessores de Aarão e dos filhos de
Aarão? A resposta vem de Apocalipse 1.5,6, na atribuição de louvor
de João: “Aquele que nos ama, e, pelo seu sangue, nos libertou dos
nossos pecados, e nos constituiu reino, sacerdotes para o seu Deus
e Pai”. Aarão e seus filhos eram sacerdotes. Nós, que cremos em
Cristo, somos igualmente sacerdotes. Assim, também podemos ser
consagrados.

523
Os fundamentos

A terceira coisa que notei foi que a pessoa que devia ser
consagrada tinha que ter a vestimenta apropriada. Foi ordenado
a Moisés, antes de se apresentar para o ato da consagração, fazer
roupas de linho tanto as debaixo quanto as externas, e colocá-las
em Aarão e nos filhos de Aarão. Estas eram “as vestes sagradas
[...] para glória e ornamento” (Ex 28.2). E percebam a ordem das
palavras. Se Moisés, como mero homem, tivesse de escrever, ele
teria dito, as vestes sagradas para ornamento e glória; mas como
um homem inspirado pelo Espírito, ele disse, “as vestes sagradas
[...] para glória e ornamento”. Isto é importante, porque a ordem
das palavras nos dá a chave quanto ao significado das roupas. O
homem sempre procura colocar a beleza diante da glória, pois ele
argumenta que uma pessoa deve se tornar bela para que possa se
tornar gloriosa. Mas Deus não diz o mesmo, porque é impossível
para um homem se tornar belo, e, portanto, é impossível para ele se
tornar glorioso, e, desse modo, ele deve tornar-se glorioso para que
possa tornar-se belo. Em outras palavras, Deus só vê uma beleza
neste mundo; e essa é a glória de Seu Cristo; e, portanto, devemos
ser revestidos com Sua glória se queremos ser belos em Sua santa
presença. Esses pensamentos são amplamente confirmados por
uma comparação de Apocalipse 19.8 e 2Coríntios 5.21: “Pois lhe
foi dado [para a noiva] vestir-se de linho finíssimo, resplandecente
e puro. Porque o linho finíssimo são os atos de justiça dos santos”;
“Aquele que não conheceu pecado, ele [Deus] o fez [Cristo] pecado
por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus”. Em suma,
se temos fé em Cristo, estamos vestidos com as roupas sacerdotais
e, portanto, podemos ser consagrados.
A quarta coisa que notei foi que Aarão e seus filhos, antes que
fossem consagrados, deviam ser ungidos. No capítulo seguinte,
nos versículos vinte e vinte e um, aprendemos o que era esta
unção. Primeiro, havia um carneiro de consagração que era morto
em sacrifício. Em seguida, seu sangue era colocado sobre a orelha
direita do sacerdote, o polegar direito e o dedo do pé direito do
sacerdote. E, finalmente, o óleo era colocado sobre o sangue. Note
os emblemas e a ordem. Não era o óleo, nem o sangue; era óleo e
sangue. E não era óleo, e depois sangue; era primeiro sangue, e
em seguida o óleo. Em outras palavras, havia primeiro o sinal de
apropriação por meio da redenção, depois havia o sinal da aceitação
para o culto sacerdotal e, finalmente, a autorização para esse culto.

524
Consagração

E, uma vez mais, aquele que crer em Cristo passou por esse pro­
cesso. O crente é borrifado com o sangue precioso e é ungido com
o óleo santo, porque fomos comprados por um preço, o precioso
sangue de Cristo, e nós todos fomos batizados por um Espírito em
um corpo.
Tendo observado essas condições preliminares, cheguei por fim,
naquele domingo, à idéia da própria consagração. E ali me deparei
com uma grande surpresa. Tinha, como pensei, uma concepção
bastante clara do que era a consagração. Estava indo a um encontro
de consagração e lá me unindo com outros para nos entregar a Deus.
Ora, se isto não fosse o bastante, trancar-me em uma sala e ali fazer
resoluções e tomar votos para separar isto e aquilo, e receber isto e
aquilo, e, desse modo, para sempre ser o servo de Deus. Contudo,
notei à margem de minha Bíblia e vi diante da palavra “consagrar”
três palavras, “encher suas mãos”, e, não sabia, o que encher as
mãos tinha que ver com consagração. Assim foi que li o contexto
da passagem e cheguei ao capítulo vinte e nove, versículos vinte e
dois a vinte e quatro. E, assim, foi que aprendi o que significava a
verdadeira consagração, e o que ela deve sempre significar. Isso foi
o que encontrei. Moisés, depois de vestir e ungir Aarão e os filhos
de Aarão, tomou as vísceras do carneiro e sua coxa direita, como
também um pedaço de pão, um bolo assado com azeite e um pão
sem fermento da cesta e pôs tudo isto nas mãos de Aarão e seus
filhos. Então Aarão e seus filhos ficaram de pé e apresentaram
estes na presença do Senhor. E quando eles fizeram isto — nada
mais e nada menos — eles foram consagrados. Será que você está
admirado, de que quando li isto, fiquei surpreso? Quão diferente
era do que tinha imaginado. E mesmo, quão simples era. Embora
muito simples, é bastante profundo. Este cordeiro da consagração
simbolizava Cristo, porque estas ricas partes internas e a coxa
direita, bem forte, representam sua divindade eterna, e estas várias
porções de pão, feitas de trigo com farinha fina, manifestavam sua
humanidade sem fim. Em outras palavras, quando estes sacerdotes
ficavam de pé ali sustentando esses vários símbolos diante de
Deus, eles declararam —quer tenham entendido completamente
quer não — que seu único direito na presença santa era por meio da
redenção e do mérito eterno de Um outro; e que foi na vida e glória
desta Pessoa que eles apareceram e se dedicaram ao ministério
sacerdotal. E, quando Deus olhou do céu viu os símbolos elevados

525
Os fundamentos

e interpostos daquele Outro, de Cristo — Ele não viu Arão e seus


filhos —, assim Ele aceitou Aarão e seus filhos e os consagrou ao
culto sagrado. E isto é o que é necessário agora. Qualquer coisa
além disto é alta presunção e pecado, porque este é o modo divino
de aceitação, poder e glória. Em outras palavras, a palavra de
ordem de cada ato de consagração é esta: “Jesus somente!”. E você
pergunta, qual é a palavra de ordem da santificação? Também é,
“Jesus somente!”, somente esta vez, pois foi a muito tempo tirado e
cobre toda a vida. Paulo propõe isso dessa maneira: “Para mim, o
viver é Cristo!” (Fp 1.21). Devemos pôr as coisas em nossas vidas
da mesma forma.
Mas, quase ouço alguém dizer: “Esta é a doutrina antiga, que
contém ideais antigos; mas para mim, que vivo face a face com as
condições modernas, essas doutrinas e ideais não são plausíveis”.
Meu caro leitor, não discutirei consigo. Mas gostaria de sugerir a
você que você está errado. Porque, primeiro, nossa passagem diz:
“Isto será estatuto perpétuo para ele e para sua posteridade depois
dele” (Ex 28.43), e, visto que, como cristãos, estamos na linhagem
sacerdotal, também somos incluídos nesses privilégios da suces­
são sacerdotal. E também, Deus nunca se arrepende de seus dons
e chamados, e o que Ele fez uma vez na antiguidade, Ele é capaz
e está pronto para fazer novamente agora. Além disso, tenho visto
vidas, em nossos próprios dias, que vivem completamente para
Cristo e em circunstâncias as mais desfavoráveis possíveis, de
maneira que estou persuadido de que tal consagração, como foi
dito, é bastante possível para qualquer santo destes dias atuais,
mesmo nas condições indubitavelmente difíceis que os tempos
presentes têm produzido. Para encerrar, então, permitam-me falar
de algumas vidas consagradas que conheci pessoalmente.
O Sr. Hudson Taylor, quando viajava pela China, chegou a um rio
e contratou um barqueiro para o transportar através do rio. Pouco
depois que ele tinha feito esse acordo, um cavalheiro chinês, em
sedas e cetins, chegou ao rio, e não observando Sr. Taylor, pediu ao
barqueiro para contratar o barco para ele. 0 homem se recusou, di­
zendo que ele acabara de contratar o barco para o estrangeiro. Com
isso o cavalheiro chinês olhou para Sr. Taylor, e sem uma palavra,
tratou de dar-lhe um soco entre os olhos. Sr. Taylor ficou aturdido e
cambaleou para trás, mas ele se recuperou logo, e, viu seu agressor
de pé entre ele e a beira do rio. Em um instante o Sr. Taylor levantou

526
Consagração

suas mãos para empurrar o homem na água. Mas, um instante


mais, ele baixou seus braços para o lado. O Sr. Taylor então disse
ao cavalheiro: “Viu que poderia tê-lo empurrado para a água. Mas
o Jesus a quem sirvo não me permitiu fazer isto. E visto que o barco
é meu, eu o convido para compartilhá-lo comigo e irmos através
do rio”. O cavalheiro chinês baixou sua cabeça, envergonhado, e
sem uma palavra, caminhou para o barco aceitando a hospitalidade
que lhe foi graciosamente oferecida. O Sr. Taylor era um homem de
temperamento naturalmente rápido, mas evidentemente, para ele
viver era Cristo.
O famoso Rev. James Inglis era o pastor de uma grande igreja
em Detroit. Ele, um homem bastante instruído, foi graduado pela
Universidade de Edimburgo e pelo Divinity School — posterior­
mente foi convidado a atuar com o Comitê de Revisão Americano
do Novo Testamento — ele era extraordinariamente eloqüente, e
ele estava tendo uma carreira ministerial bem sucedida. Na verda­
de, ele era o pregador mais popular de Detroit, se não de Michigan,
em que grandes audiências se reuniam aos domingos, com pessoas
assentadas nos corredores e nos degraus do púlpito de sua igreja,
e os ouvintes ficavam presos às suas palavras. Um dia da semana,
nessa época, ele sentou-se em seu escritório, para preparar um de
seus sermões para o domingo seguinte, quando uma voz parecia
dizer-lhe: “James Inglis a quem você está pregando?” O Sr. Inglis
ficou assustado, mas respondeu: “Estou pregando a boa teologia”.
Mas a Voz parecia replicar: “Não perguntei o que você está pregan­
do, mas a quem você está pregando?” Meu tio respondeu: “Estou
pregando o evangelho”. Mas a Voz novamente replicou: “Não
perguntei o que você está pregando; perguntei a quem você está
pregando?”. O Sr. Inglis ficou em silêncio e com a cabeça curvada
por longo tempo antes que ele novamente respondesse. Quando
respondeu, levantou sua cabeça e disse: “O Deus, estou pregando
James Inglis!”. E a seguir acrescentou: “De agora em diante não
pregarei ninguém mais, a não ser Cristo, e Ele crucificado!”. Então
meu tio levantou-se, abriu a arca em seu escritório que continha
seus sermões eloqüentes e deliberadamente os colocou um a um
no fogo que estava queimando na lareira de seu escritório. Desde
aquele tempo, em que ele deu suas costas para toda tentação de
ser retórico e popular, pregou de forma simples, expondo o tema,
e entregou-se de vida e de palavras para apresentar Jesus Cristo

527
Os fundamentos

diante dos homens. Mais tarde, ele se tornou editor de dois jornais
religiosos amplamente lidos, e professor sobre os escritos de
homens como Dr. Brookes, de St. Louis, Dr. Erdman, da Filadélfia,
Dr. Gordon, de Boston e o Sr. Moody, de Northfield. Ele morreu em
1872, mas seu nome ainda é mantido de forma reverente e grata
na lembrança de muitos dos santos mais espirituais de Deus, na
América e na Europa. O Sr. Inglis era por natureza um homem de
disposição orgulhosa e ambiciosa; mas ficou manifesto que, em sua
vida, se tornou verdadeiro que para ele viver era Cristo.
Um amigo meu — cujo nome não fornecerei — foi um homem
de negócios em uma de nossas grandes cidades americanas. Ele
era um hábil financeiro e tinha ficado rico. Assim, aconteceu que
ele estava vivendo em uma bela casa de pedras, situada em uma
avenida proeminente e luxuosa. Ao mesmo tempo, ele era cristão,
presbítero em uma igreja presbiteriana e, em geral, ativo em boas
obras. Foi assim, quando Sr. Hudson Taylor visitou sua cidade em
1888, esse meu amigo se ofereceu para hospedá-lo. A provisão foi
feita, e o Sr. Taylor ficou em sua casa por quase uma semana. Meu
amigo foi assim levado a ter contato íntimo com um homem de
Deus, alguém como ele jamais vira antes. Com o passar dos dias,
ele ficou grandemente impressionado com a piedade e simpatia da
vida diante dele. Finalmente, depois que o Sr. Taylor partiu para
outro lugar, meu amigo se ajoelhou e disse a Deus: “Senhor, se
Tu queres fazer de mim algo semelhante àquele pequeno homem,
eu te darei tudo que tenho”. E o Senhor tomou-o em sua palavra.
Daquele tempo em diante, sua vida espiritual se aprofundou e
se desenvolveu visivelmente. Por fim, um dia ele disse para sua
esposa: “Minha querida, você não acha que podemos viver em uma
casa mais barata do que esta, de maneira que possamos reduzir
nossos gastos e dar mais dinheiro ao Senhor?” Em seguida, ele
propôs que eles vendessem a propriedade, construíssem uma
casa mais barata e dessem o que pudessem economizar para as
missões estrangeiras. Felizmente, ele tinha uma esposa que era
uma verdadeira “colaboradora”, e ela, cordialmente, concordou
com a proposta. Assim, a antiga propriedade foi vendida, a nova
casa construída e a soma obtida foi dada ao Senhor para sua causa
no estrangeiro. Cerca de dois anos mais tarde, meu amigo falou no­
vamente para sua esposa, desse modo: “Querida, estou preocupado
por causa dessa casa. O arquiteto me pediu mais dinheiro do que

528
Consagração

tinha intenção de gastar com ela. O que você acharia de vendê-la?


Consegui um terreno em uma rua aqui perto e podemos construir
ali uma casa mais barata do que esta, assim, depois, podemos
dar a diferença para as missões estrangeiras”. A esposa de meu
amigo não era uma mulher que gostava de mudanças. No entanto,
ela adorava o Senhor e, novamente, deu pronto assentimento à
proposta. Assim, a primeira transação foi repetida, uma casa mais
clara, mais barata, foi construída, e tudo aquilo que foi feito pela
mudança foi dado às missões. Enquanto isso, os negócios gerais de
meu amigo continuaram prosperando. Na verdade, tudo o que ele
tocava parecia se transformar em ouro. Mas seus gastos pessoais
e familiares, por sua escolha deliberada, estavam sendo constante­
mente reduzido. Ele nunca viveu miseravelmente. Mas, ao mesmo
tempo, seu modo de vida era cada vez mais simples. Assim, ele fez
dinheiro e poupou dinheiro. Toda vez que ele dava, dava para as
causas de Deus no país e no estrangeiro. E isto continuou até sua
morte. Na ocasião de sua morte, ele e sua esposa estavam apoiando
uns treze missionários, mas, antes, eles já tinham enviado para o
campo estrangeiro, contribuindo para as provisões, para os equi­
pamentos e as passagens, mais de cem trabalhadores novos e mais
velhos. Bem, meu amigo, por natureza, era um homem que amava
o dinheiro. Tinha uma fascinação por ele, tanto na produção quanto
no gastá-lo de forma egoísta. Mas, claramente, essa ganância tinha
sido tirada de sua vida. Seu coração estava onde estava seu tesouro,
e seu tesouro real estava no céu. Em outras palavras, ele também
era capaz de dizer: “Para mim, viver é Cristo!”.
Querido leitor, quem quer seja você, a vida consagrada é possível
e prática. Foi possível no primeiro século; e também é neste século
XXI. Foi possível para os primeiros apóstolos e discípulos; e é
também para os missionários, ministros, obreiros, leigos e homens
de negócio de hoje. Na verdade, é possível para qualquer um e para
todo que é do Senhor. Quanto a você, portanto, basta apenas uma
coisa. Lance mão de qualquer coisa que você recebeu do mundo
e depois levante essas mãos vazias para Deus. E tão certamente
quanto ele é gracioso, ele as encherá, até mesmo as suas, com
Cristo. E quando você se encontrar de pé, tendo Jesus entre você e
Deus, e estiver se ocultando debaixo Dele, confessando-0 ser seu
único mérito, glória e poder, você também será consagrado.

529
531

49 O romanismo é cristianismo?

T. W . M e d h u r s t
Glasgow, Escócia
Revisado por Gerald B. Stanton, Th.D.

Estou ciente de que, se decidir provar que o romanismo não é


Cristianismo, devo esperar ser chamado de “intolerante, severo,
pouco caritativo”. Não obstante, não estou atemorizado, pois creio
que sobre um entendimento correto deste assunto depende a
salvação de milhões de pessoas.
Uma razão por que o papado obteve tanto poder na Grã-Bretanha,
Irlanda e em toda parte é que muitos protestantes olham para ele
como uma forma de cristianismo verdadeiro. Eles pensam que
apesar dos grandes erros, ele deve ser tratado com ternura. Muitos

THOMAS WILL1AM MEDHÜRST (C. 1860) manteve um pastorado


produtivo de 1862 a 1869 na Igreja Batista, na Rua North Frederick,
em Glasgow, Escócia. Em seu ministério, a igreja esteve envolvida
com a implementação de igrejas, o evangelismo e com as atividades
educacionais cristãs. Deram início a um a escola Sabática, uma
Sociedade Cristã (um tipo de ACM), uma Sociedade de Distribuição
de Folhetos e um a Sociedade de Temperança. Sob o ministério de
Medhurst, a igreja dobrou o número de membros. Ele tam bém é autor
de A bounding Grace [Graça Abundante], The Christiarís Watchword and
Ertcouragement [A Palavra de Ordem e o Encorajamento Cristãos]; A
Voice From Glasgow on Baptism and the Church ofE ngland [üma Voz de
Glasgow sobre o Batismo e a Igreja da Inglaterra]; e foi o compilador de
A Collection ofH ym ns for Public an d Private Worship [üma Coletânea de
Hinos para a Adoração Pública e Particular],
Os fundamentos

supõem que ele foi reformado na época da Reforma e que agora


está muito mais próximo da verdade do que estava antes daquele
momento. No entanto, ele é ainda o mesmo; e, quando examinado,
ver-se-á que é bem diferente do cristianismo e, até mesmo hostil a
ele, ao cristianismo real, uma vez que não é, de fato, cristianismo.
O cristianismo, como revelado nas Escrituras Sagradas, está
baseado principalmente na salvação proporcionada por Cristo. Ele
o coloca imediatamente diante de nós como um homem perfeito, o
Deus eterno, o Deus homem Mediador que, por designação do Pai,
se tornou um substituto por todos aqueles que lhe foram dados. Ele
ensina que por Ele a justiça de Deus foi satisfeita e sua misericórdia
se tornou manifesta; que Ele cumpriu a lei e tornou disponível
sua completa justiça, assim como que somente por Este homem
os homens podem ser justificados diante de Deus. Ele ensina que
Sua morte foi um sacrifício perfeito e cumpriu a plena satisfação
por nossos pecados, de maneira que Deus não os responsabiliza
pelo pecado, mas lhes dá um perdão livre e pleno. Ele ensina que
Ele subiu para a direita de Deus e que enviou o Espírito Santo para
ser seu único Vigário e representante sobre a terra. Ele ensina que
Cristo é o único Mediador entre o Deus justo e o homem pecador;
que é somente pelo Espírito Santo que somos convencidos de
pecado e levados a confiar em Jesus; e que todo aquele que confia
Nele e O obedece com a obediência da fé e do amor é salvo. Sendo
salvos, eles se tornam “reis e sacerdotes para Deus”, e tem “vida
eterna” Nele.
Este é o cristianismo que os apóstolos pregaram. Mas lado a lado
com os apóstolos, Satanás foi também e pregou o que Paulo chama
de “outro evangelho”. Paulo não quis dizer meramente que ele era
chamado “outro evangelho”, mas que como Satanás “enganou Eva
com a sua astúcia” (2Co 11.3), assim alguns, enquanto professavam
ensinar o evangelho, estavam afastando os homens “da simplicida­
de e pureza devidas a Cristo”. Ao fazer isto, eles, na verdade, ensina­
vam “um outro evangelho”. Paulo, falando daqueles que eram assim
enganados, dizia: “Admira-me que estejais passando tão depressa
daquele que vos chamou na graça de Cristo para outro evangelho, o
qual não é outro, senão que há alguns que vos perturbam e querem
perverter o evangelho de Cristo” (G11.6,7). Ele quer dizer que pode
haver apenas um evangelho, embora alguma coisa a mais possa
ser chamada evangelho. E assim ele se refere àqueles que dessa

532
O romanismo é cristianismo?

maneira pervertiam “o evangelho de Cristo”: “Mas, ainda que nós


ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho [...] seja
anátema” (G11.6-9). Ele chama aqueles que assim fazem de “falsos
apóstolos, obreiros fraudulentos, transformando-se em apóstolos de
Cristo. E não é de admirar, porque o próprio Satanás se transforma
em anjo de luz. Não é muito, pois, que os seus próprios ministros se
transformem em ministros de justiça; e o fim deles será conforme as
suas obras” (2Co 11.13-15).
Consideremos bem o significado dessas passagens das Escritu­
ras. Paulo diz que não pode haver um “outro evangelho”.A conclu­
são é evidente de que tais mestres não eram em nada mestres do
cristianismo, mas de uma ilusão Satânica.
Sugiro que os ensinamentos de Roma são tão diferentes dos
das Escrituras Sagradas como esses que Paulo chama de “outro
evangelho”. Portanto, suas palavras nos autorizam a dizer que o
romanismo não é cristianismo.
P r im e ir o , o c r i s t i a n i s m o e s t á b a s e a d o s o b o s c l a r o s e n s in a ­

m entos das s c r it u r a s d o N o v o T e s t a m e n t o . Mas o romanismo


E
não professa ser fundado apenas nas Escrituras; ele reivindica
um direito de partir do que está contido nelas — um direito para
acrescentar às Escrituras o que é passado pela tradição, e partir
dela acrescentar às Escrituras ao fazer novos decretos. Ele proíbe
o cálice ao povo, por exemplo, na celebração da missa, embora
admitam que não era proibido para eles “no início da religião cristã”
(Concilio de Trento, Sessão 21, cap. 2). Ele diz que os concílios
e o Papa foram autorizados pelo Espírito Santo a fazer decretos
pelos quais, na realidade, as doutrinas entregues por Cristo são
completamente anuladas. Para mostrar quão extensivamente isso
tem sido feito, deixamos ao leitor o esforço de traçar o pleno efeito
do que Roma ensina quanto à regeneração batismal, transubstan-
ciação, justificação por meio dos sacramentos e obras humanas, a
invocação dos santos — coisas que são inteiramente contrárias ao
ensino de Cristo.
Os cânones do Concilio de Trento, que se deu no intervalo de
1545 a 1563, podem ser chamados a Bíblia do romanismo. Eles
foram traduzidos para o inglês somente em 1848, por um padre ca­
tólico romano, sob a sanção do dr. Wiseman. O Concilio nos conta
que a finalidade pela qual ele foi reunido era “para a extirpação das
heresias”. Qual, então, de acordo com ele, é o padrão de verdade?

533
Os fundamentos

Ele nos conta que Roma recebe “As Sagradas Escrituras” e “As
tradições não escritas [...] preservadas em contínua sucessão na
Igreja Católica, com igual afeto de piedade e reverência” (Sessão 4);
também que “ninguém pode ousar interpretar as Sagradas Escri­
turas” de um modo contrário à “igreja, que deve julgar, respeitando
o verdadeiro sentido e interpretação das Escrituras Sagradas”. Nem
é possível interpretá-las “de uma maneira contrária ao consenso
unânime dos padres” (Sessão 4).
Cristo nos ordena a julgar “todas as coisas” (lTs 5.21); a exa­
minar “as Escrituras” (Jo 5.39); averiguar por nós mesmos, como
fizeram os bereanos, se o que ouvimos está de acordo com o que
lemos nas Escrituras (At 17.11). Ele nos ordena a manter “o padrão
das sãs palavras”, proferida por Ele mesmo e Seus apóstolos, (2Tm
1.13); para exortar para que batalhassem, “diligentemente, pela
fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3; grifo
do autor). Mas Roma diz, “Ninguém ouse fazer assim” — que
todos os príncipes cristãos [...] façam os homens observar”
nossos decretos (Sessão 16), nem “permitam” que eles sejam
“violados pelos hereges” (Sessão 25). O romanista não deve
ousar ter uma opinião própria; pois sua mente deve existir
em estado de completa prostração e escravidão; ele não deve
tentar compreender por si as Escrituras. E se outros o tentarem
— se ele ousar receber o ensino e fazer a vontade de Cristo, em
vez de receber ficções e obedecer às ordens dos homens, que
subvertem completamente e destroem a verdade e a vontade de
Jesus, Roma ordena ao regente civil que os detenha e, por meio
de multas, prisão e morte, os compila, se possível, a renunciar ao
que Deus exige que mantenham e sigam, até mesmo se for para
perder a vida por isso.
“A Bíblia, toda a Bíblia, nada senão a Bíblia” é o padrão e regra
do cristianismo. Conhecer seu significado por nós mesmos, rece­
ber seu ensinamento, confiar em suas promessas, confiar em seu
Redentor, obedecê-Lo com delícia de amor e recusar seguir outro
ensinamento, isto é cristianismo. Mas o romanismo nega tudo isso;
portanto, o romanismo não é cristianismo.
E m s e g u n d o l u g a r , C r i s t o n o s o r d e n a a m o s t r a r “ m a n s id ã o ”
(2Tm 2.25). Ele diz:
p a r a com a q u e le s q u e n o s s ã o c o n t r á r io s
“Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos
perseguem” (Mt5.44).

534
O romanismo é cristianismo?

Mas o romanismo ensina os homens a odiar e, se forem capazes,


a perseguir até a morte todos aqueles que não o aceitarem. Seus
atos têm sido diabólicos e assassinos. Ele está “bêbedo com o
sangue dos santos”. O romanismo inscreveu na página da história
advertências que apelam à razão e aos sentimentos de todas as
gerações. O que é contado sobre 24 de agosto, 1572, tem que ver
com essa advertência. Naquele dia, os protestantes de Paris foram
condenados a morrer pelos membros da igreja do Papa. A única
ofensa deles era ser protestante, e, assim, milhares foram mortos.
As ruas de Paris se encheram de sangue; em toda parte clamores
e gemidos estavam misturados com o som dos sinos, o estrondo de
braços e os juramentos dos assassinos. O rei, Carlos IX, ficou de pé,
conforme se diz, em uma janela, e, de vez em quando, atirava nos
fugitivos. Toda forma de culpa, crueldade e sofrimento tornou essa
terrível noite horrorosa e apavorante.
Jamais em qualquer cidade que professa estar sob a influência
do cristianismo, houve tal ação de sangue e crime. Você pode dizer:
“Por que você lembra das atrocidades de um tempo tão remoto?”.
Respondo: Porque este ato recebeu a sanção da igreja de Roma
como uma demonstração meritória da fidelidade aos preceitos e
doutrinas romanistas. Quando as notícias desse terrível assassina­
to foram recebidas em Roma, os cânones de Santo Ângelo foram
despedidos, a cidade foi iluminada e o papa Gregório XIII e seus
cardeais saíram em procissão a todas as igrejas, oferecendo ações
de graças no templo de cada santo. O Cardeal de Lorraine, em uma
carta a Carlos IX, cheio de admiração e aplauso pelo ato sangrento,
disse: “Isto que tu alcançaste foi tão infinitamente acima de minhas
esperanças que jamais ousei contemplá-lo; contudo, sempre acredi­
tei que os atos de vossa majestade aumentariam a glória de Deus e
imortalizariam Seu nome”.
Alguns dizem que Roma deixou de perseguir. Mas este não é o
fato; seja quanto a seus atos, seja quanto regras de ação, ela afirma
que é inalterada e imutável', que é infalível e não pode mudar, exceto
se a necessidade, ou planos para o futuro, exigirem isso. Os fatos,
que provam que a perseguição ainda é aprovada por ela, estão
freqüentemente ocorrendo. Quando Roma tem pouco poder, seu
espírito de perseguição é mantido em pendência por um tempo;
mas ainda está ali. Quando está livre da restrição, não conhece
nenhum outro meio de tratar com a diferença de opinião senão pela

535
Os fundamentos

tortura, pela estaca, pelo parafuso de tortura, pela bota de ferro,


pelo punhal do assassino ou massacre em massa. Que todos os que
valorizam sua liberdade, todos os que amam a verdade, como está
em Jesus, não tenham comunhão com tais atos de escuridão, nem
com aqueles que os operam.
Concordo com dr. Samuel Waldegrave, quando ele diz que: “A
convocação do clero inglês, feita sabiamente, quando, nos dias de
Elizabeth, eles ordenaram que toda paróquia no país deveria ter uma
cópia do Livro dos Mártires de Foxe”, e que seria bom se uma cópia dele
estivesse “em cada casa, sim, em cada mão”, porque “Roma está traba­
lhando, com esforço redobrado, para a subjugação da Bretanha”, e “o
povo tem esquecido que ela é uma sereia que encanta mas destrói.”
E m t e r c e ir o l u g a r , q u a n t o a o s a c r if íc io d e C r is t o , o c r is t ia ­
n is m o ENSINA QUE ELE FOI “ OFERECIDO UMA VEZ PARA SEMPRE PARA
tir a ros p e c a d o s d e m u i t o s ” (Hb 9.28; grifo do autor); que aque­
les que são santificados pelo seu sacrifício são assim “santificados,
mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas"
(Hb 10.10; grifo do autor); que “com uma única oferta, aperfeiçoou
para sempre quantos estão sendo santificados” (Hb 10.14; grifo do
autor). Essas passagens declaram que o sacrifício de Cristo foi
oferecido de uma vez por todas e não será jamais repetido.
Mas Roma declara que Cristo é sacrificado novamente toda vez
que a Ceia do Senhor, que ela chama “missa”, é celebrada; e que
aqueles que a administram são sacerdotes que sacrificam.
O Concilio de Trento (Sessão 22) diz: “Visto que, este sacrifício
divino, que é celebrado na missa, contém este mesmo Cristo que é
imolado de uma maneira não sangrenta, que uma vez se ofereceu a
si mesmo de uma maneira sangrenta, sobe o altar da cruz, o sínodo
sagrado ensina que este sacrifício é verdadeiramente propiciatório,
e que, por meio dele, este é efetuado — que obtemos misericórdia
e encontramos a graça, se nós chegarmos a Deus, contritos e
penitentes, com coração sincero e fé justa, com temor e reverência.
Porque o Senhor, satisfez pela oblação deste, concedendo a graça e
o dom da penitência, perdoa até mesmo crimes e pecados atrozes.
Porque a vítima é uma e a mesma, a mesma oferta pelo ministério
dos padres que nesse sacramento oferecem Cristo na cruz, mas a
maneira de oferta é diferente.” O sínodo ordena o uso de luzes, in­
censo e vestes tradicionais; como também que os padres “misturem
a água com o vinho”.

536
O romanismo é cristianismo?

No capítulo 9, cânone 1, o sínodo diz: “Se alguém dizer que na


missa um sacrifício verdadeiro e apropriado não é oferecido a Deus;
ou, o que é oferecido nada mais é senão Cristo, que nos é dado para
comer; que este que assim não disser seja anátema”.
No cânone 3, decreta-se que: “Se alguém dizer que o sacrifício da
missa é apenas um sacrifício de louvor e ação de graça; ou que é uma
comemoração vazia do sacrifício consumado na cruz, mas não um sacrifí­
cio propiciatório; ou, que só quem O recebe se beneficia; e que não deve
ser oferecido pelos vivos e pelos mortos, pelos pecados, dores, satisfações e
outras necessidades', que este que assim disser seja anátema.”
O Cristo do romanismo é um Cristo que é sacrificado vez após
vez pela remissão dos pecados, tanto dos vivos quanto dos mortos,
por aqueles que vivem e pelos que estão no purgatório. Este não é o
Cristo do cristianismol
No cânone 1 em sua 13a sessão, o sínodo diz: “Se alguém negar
que o sacramento da santíssima Eucaristia não contém verdadeira,
real e substancialmente o corpo e o sangue, junto com a alma e a
divindade de nosso SenhorJesus Cristo, e, conseqüentemente, todo o
Cristo, mas disser que Ele está apenas ali como um sinal, ou figura,
ou virtude; que este que assim disser seja anátema.”
O Cristo da Bíblia, e do cristianismo, está no céu “à direita de
Deus” onde “também intercede por nós” (Rm 8.34; Cl 3.1; Hb 7.25).
Ele também não virá de maneira corporal novamente à terra senão
quando vier pela segunda vez, sem pecado, para salvação, para ser
admirado por todos aqueles que crêem (Hb 9.28; 2Ts 1.10). Mas o
Cristo do romanismo está nos altares de Roma, que afirma que Ele
é trazido pela palavra mágica de seus sacerdotes, e está ali na forma
de uma hóstia. Que terrível blasfêmia! O sacerdote pronúncia certas
palavras, faz a solene consagração e, depois, eleva a hóstia. Provai
— a hóstia; tocai — a hóstia; olhai — a hóstia; cheirai — a hóstia;
analisai — a hóstia; mas o sacerdote afirma, o Concilio de Trento
afirma, o romanismo afirma, as pobres vítimas do engano afirmam,
enquanto se curvam diante dela, “Este é nosso Cristo — nosso Deusl”.
Aqui está o ápice dessa superstição — ela exibe um pedaço de pão
como se fosse a pessoa de Cristo. Esse pedaço de pão é o Cristo da
Bíblia? Será que esse sistema que declara isso é cristianismo?
E m q u a r t o l u g a r , o c r i s t i a n i s m o e s t á em o p o s iç ã o d i r e t a a o
r o m a n is m o quanto ao modo de justificação de um pecador diante de
Deus.

537
Os fundamentos

O que dizem as Escrituras? “Visto que ninguém será justificado


diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno
conhecimento do pecado” (Rm 3.20). “Concluímos, pois, que o
homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei”
(Rm 3.28; cf. 4.6; 5.1; 10.3-4; 2Co 5.19, 21).
No entanto, o que diz o romanismo? Ele diz que a justiça pela
qual os homens são justificados é a do Espírito Santo, pela graça
de Deus, por intermédio de Cristo, a qual eles operam por eles
mesmos; que é recebida por meio do “sacramento do batismo [...]
sem o qual ninguém jamais será justificado”; este é recebido “em
nós mesmos” quando somos renovados pelo Espírito Santo; está
é a justiça “distribuída”, “infundida”, “implantada”, e não imputada
(Sessão 6, capítulo 7). Entre as declarações do Concilio estão
estas: “Se alguém diz que justificar a fé não é nada senão confiança
na misericórdia divina que tira o pecado pelo amor de Cristo; ou,
que por esta confiança apenas somos justificados; que este seja
anátema” (Sessão 6, cânone 12). “Se alguém dizer que [...] as boas
obras são meramente os frutos e sinais da justificação obtida, mas
não um motivo do aumento desta; que este seja anátema” (cânone
24). “Se alguém dizer [...] que aquele que é justificado pelas boas
obras que são feitas por ele por intermédio da graça de Deus e pelo
mérito de Jesus Cristo, de quem ele é membro vivo, não mereça
verdadeiramente o aumento da graça, “a vida eterna”, etc... que este
que assim disser seja anátema. (cânone 32). Assim, o romanismo
amaldiçoa a pregação do verdadeiro cristianismo!
Mencionarei apenas mais uma prova de que o romanismo não é
o cristianismo, embora, haja muitas outras que possam ser dadas.
E m q u i n t o l u g a r , o c r i s t i a n i s m o d i z q u e “ h á u m só D e u s e um
só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem ” (lTm
2.5), que está à direita do Pai (Ef 1.20), onde ele vive“sempre para
interceder” por nós (Hb 7.25). O cristianismo diz que há apenas um
Mediador, e que não podemos nos aproximar de Deus senão por
intermédio de Jesus.
O que o romanismo diz? Citarei “um livro de devoção diária do
mês de maio”, publicado pela autoridade papal. “Grande é a neces­
sidade que você tem de Maria para ser salvo! Você é inocente?
Sua inocência ainda está, no entanto, debaixo de grande perigo.
Quantos, mais inocentes do que você, caíram no pecado e foram
condenados? Você é penitente? Sua perseverança ainda é muito

538
O romanismo é cristianismo?

incerta? Você é pecador? Oh, que necessidade você tem de Maria


para se converter! Ah, se não houvesse Maria, talvez você, estives­
se perdido! Portanto, pela devoção deste mês, você pode obter seu
patronato e sua própria salvação. E possível que uma mãe tão terna
não possa ajudar ao ouvir um filho tão devoto? Por um rosário,
por um jejum, ela às vezes conferia sinais de graça aos maiores
pecadores. Pense, portanto, o que ela fará por você por todo um
mês dedicado a seu culto!”. Aqui você vê que Maria é tudo; que
Jesus Cristo não é nada. O romanismo ensina também que é certo
pedir a intercessão de todos os santos passados (Sessão 25). Quão
terrível é ver que os pecadores são mantidos longe de Jesus e são
impedidos de alcançar a Deus por intermédio Dele.
O papado é enfaticamente anticristão: é o adversário de Cristo
em todos os ofícios que sustenta. E o inimigo de seu ofício profético;
por isso acorrenta a Bíblia que Deus inspirou. E o inimigo de seu
ofício sacerdotal; porque, pela missa, nega a eficácia daquele sacrifí­
cio que Ele ofereceu de uma vez por todas no Calvário. E o inimigo
de seu ofício real; porque tira a coroa de sua cabeça e a coloca na
do Papa.
Se isso pode ser verdadeiramente chamado de cristianismo,
então, qual é o reverso dele? Será que isto pode ser adequadamente
tratado como o cristianismo que ele odeia, que ele denuncia e que
tenta destruir? Será que o cristianismo pode ser o que proíbe a
liberdade de consciência e o direito de juízo, embora ordene que
a Bíblia seja queimada, pois ensina a adoração de santos e anjos,
como também faz com que a Virgem Maria mande em Deus, pois é
a mãe de Deus e a rainha do céu? Será que isto pode ser verdadeiro,
quando coloca de lado a mediação de Cristo, colocando outro em
seu lugar e fazendo com que a salvação dependa de uma confissão
para o homem, e isto em um confessionário tão imundo que o pró­
prio Satanás bem poderia se envergonhar dele? Será que aquilo que
condena o caminho da salvação por meio da fé como uma heresia
condenável pode ser cristianismo? Será que aquilo que, pelas bulas
de seus Papas e decretos de seus concílios, exige que tanto os prín­
cipes quanto o povo persigam os cristãos que realmente juram que
seus bispos e arcebispos os perseguem com todo seu poder? Pode
ser cristianismo aquilo que estabeleceu e ainda mantém a Inquisi­
ção — que foi tão cruel, tão sedenta por sangue, que o número dos
servos de Cristo mortos por ela, em cerca de mil e duzentos anos,

539
Os fundamentos

conforme uma estimativa, era de cinqüenta milhões, dando uma


média de quarenta mil por ano nesse longo período? Não, não pode
ser! Em alto e bom som, que os protestantes respondam, “Não!”.
Auxiliar um sistema desse tipo é lutar contra Deus. Ele exige
que resistamos “ao diabo” (Tg 4.7) e não tenhamos comunhão com
as “obras infrutíferas das trevas” (Ef 5.11). “Nenhuma paz com
Roma” deve estar em nossos lábios e em nossas vidas. “Nenhuma
paz com Roma”, quer usando seu manto escarlate, quer usando a
capa de um nome protestante.
A voz vem do céu: “Retirai-vos dela, povo meu, para não serdes
cúmplices em seus pecados e para não participardes dos seus
flagelos” (Ap 18.4), isto prova que pode haver verdadeiros cristãos
no corpo romano. Mas é prova também de que embora pertençam
ao corpo romano, eles não são dele; e que tentarão fugir dele, para
não serem participantes em seus pecados.
Somos informados por Deus que esse sistema é obra de Sa­
tanás; que seus ministros são “em nada ter sido inferior a esses
tais apóstolos” (2Co 11.15); que é ele quem desvia os homens “da
simplicidade e pureza devidas a Cristo” (11.3); que é ele que é o
autor deste “mistério da iniqüidade” que já estava operando quando
os apóstolos eram vivos, o qual, mais tarde, seria revelado, e per­
maneceria, até que fosse consumado por Cristo, e destruído “pela
manifestação de sua vinda”; um sistema que é “segundo a eficácia
de Satanás, com todo poder, e sinais, e prodígios da mentira, e com
todo engano de injustiça aos que perecem, porque não acolheram o
amor da verdade para serem salvos” (2Ts 2.7-10).
Que aqueles que amam a Deus, mas ainda têm alguma relação
com esse sistema, possam ouvir ao chamado, “Saia dela, povo
meu”. Que Deus permita que não participemos, de forma alguma,
de seus pecados; que possamos renunciar, com repugnância santa,
a todos seus símbolos; lançando-os fora com toda justa indignação,
rompendo com toda obediência a suas corrupções. Que possamos
não ter nada de romanismo em nossa disciplina. Que possamos es­
tar sujeitos, em todas as questões de fé e prática religiosa, à Palavra
de Deus, e a esta somente.
Vocês que buscam salvação, ide a Jesus, Aquele que Deus exal­
tou para ser um Príncipe e Salvador. Ele é capaz de salvar todos
aqueles que vão a Deus por intermédio Dele. O Pai está pronto,
com os braços estendidos, para apertar o pródigo penitente em

540
O romanismo é cristianismo?

seu abraço. O Filho estará pronto para dar perdão gratuito, pleno e
completo a todo pecador redimido, e justificar todo aquele que vêm
a Deus por meio Dele. O Espírito Santo está pronto para santificar,
renovar, instruir e ajudar a todos que invocam o nome do Senhor.
A assembléia dos pecadores salvos na terra está pronta para dar as
boas-vindas a vocês, para que participem de sua comunhão e de sua
alegria. Os anjos estão prontos, com harpas afinadas e dedos sobre
as cordas, para dar a vocês uma recepção triunfante, regozijando-
se por você com alegria. Venha como está; venha imediatamente.
“E o que vem a mim”, diz Cristo, “de modo nenhum o lançarei fora”
(Jo 6.37; grifo do autor).

541
543

50 Roma, a antagonista da nação

R ev. J. M . F o s te r
Boston, Massachusetts
Revisado e Editado porArnold D. Ehlert, Th.D.

A igreja Católica Romana opera como um sistema político-ecle-


siástico e é inimiga essencial e fatal da liberdade civil e religiosa,
a antagonista grisalha tanto da igreja como do estado. John Milton
disse: “O papado é uma coisa dupla e reivindica um duplo poder,
eclesiástico e político, ambos usurpados, e um suporta o outro”.
O Cardeal Manning disse: “A Igreja Católica é ou a obra-prima de
Satanás ou o reino do Filho de Deus” (Lectures on the Four-fold
Sovereignty of God [Ensinos sobre a soberania quádrupla de Deus],

JO H N McGRAW FOSTER (1860-1928) foi educado em Harvard, na


Universidade de Gottingen, no Seminário Teológico de Andover, na
Universidade de Oxford e na Universidade de Berlim. Ele foi ordenado
na Igreja Episcopal Protestante e serviu como coadjutor da Igreja de St.
Anne em Lowell, Massachusetts; foi reitor da Igreja de St. John, Bangor,
Maine; reitor da Igreja do Messias, Boston, Massachusetts; e tam bém
de uma paróquia em Washington, D. C.. Foster tam bém manteve a
posição de capelão examinador para o bispo de Massachusetts e foi
presidente do comitê da diocese de Massachusetts. Ele era um orador
de púlpito com boa reputação e foi chamado para falar por todo o país.
Ele foi destacado por sua erudição, cultura, dignidade, tolerância e
cordialidade. De suas mãos saíram The White Stone [A Pedra Branca]
(1901), To Know and Belieoe [Conhecer e Acreditar] (1908), The
Crowded Inn [A Hospedaria Lotada] (1918), e muitas contribuições para
periódicos teológicos e outros.
Os fundamentos

Londres, 1871, p. 171). Inquestionavelmente, ela não se enquadra


nesse último caso. O Cardeal Newman declarou: “Ou a Igreja de
Roma é a casa de Deus ou a casa de Satanás; não há meio termo”
(Essays [Ensaios], 11, p. 116). Ela certamente não é a primeira.

Roma é o inimigo do estado


Macaulay resumiu brevemente a situação quando disse: “E
impossível negar que a política da igreja de Roma é a obra-prima
da sabedoria humana. Na verdade, nada senão uma política assim
poderia, contra tais assaltos, ter suportado tais doutrinas. A expe­
riência dos mil e duzentos anos significativos, a ingenuidade e o
paciente cuidado de quarenta gerações de estadistas proporciona­
ram esta política, que chegou a tal ponto de perfeição, que entre as
invenções que foram feitas para controlar a humanidade, ela ocupa
o lugar mais alto” (citado por Avro Manhattan, The Vatican in
World Politics [O Vaticano na Política Mundial], Nova York, 1949, p.
2). Guy Emery Shipler, no prefácio a esse livro, declara, “Nenhum
circunstância ou acontecimento políticos pode ser avaliado sem
que se saiba a parte que o Vaticano desempenhou nele. E não
existe nenhuma situação política mundial significante na qual o
Vaticano não tenha uma parte importante explícita ou implícita”
(ibid., p. 7). Alguns dos aparelhos específicos empregados pela
Igreja de Roma para realizar seus fins políticos e sociais precisam
ser enumerados.
1. A igreja Católica Romana reivindica uma relação de membros
crescente que é agora maior do que qualquer denominação
protestante, e está crescendo rapidamente. Na década de 1948 a
1958 a relação de membros relatada nos EUA cresceu de vinte e
seis milhões para trinta e quatro milhões e quinhentos mil. Todo
o protestantismo, nesse período, reivindicava sessenta milhões.
As figuras se tornam mais significantes, quando lembramos que
em duzentos anos a igreja romana na América cresceu tanto,
que passou a ser a maior denominação, embora antes fosse
a menor. Sabe-se muito bem, que essas estatísticas incluem
crianças e católicos nominais. Os nomes raras vezes são tirados
das listas, exceto no caso de morte, e nem sempre isso acontece.
Há um valor de barganha nos números, e quando a relação de
membros mundial da igreja Católica é usada, o número (1958)
de aproximadamente quinhentos milhões é impressionante.

544
Roma, a antagonista da nação

2. 0 programa católico de desenvolvimento chama à grandeza. A


impressionante arquitetura, a beleza da decoração e a glória da
exibição são inerentes a esse programa. A igreja católica ou a
catedral é uma das construções mais proeminentes de qualquer
aldeia ou cidade, e muitas vezes é colocada em uma colina para
acentuar essa característica, como acontece também com muitas
de suas escolas. A nova Universidade de San Diego, Califórnia, é
um exemplo. Uma outra prática comum é usar o nome da própria
cidade no nome de suas universidades, como a acima menciona­
da, a Universidade de São Francisco, a Universidade de St. Louis,
Faculdade de Boston, Universidade de Dayton, Universidade de
Detroit, Universidade Fairfield (Conn.), Universidade de Dallas,
A Universidade de Seattle, para citar algumas.
3. A igreja Católica está fazendo um grande lance pelo controle
educacional nos Estados Unidos. Para uma observação da
política educacional católica é preciso ler a Educação Cristã
da Juventude, do Papa Pio XI. Este documento, uma das fontes
básicas da política educacional católica, toma a posição de que
visto que a família e a igreja dão à educação seu ímpeto inicial,
o estado não pode reivindicar o direito exclusivo à educação.
Olhando do ponto de vista católico, a filosofia educacional básica
da igreja católica é saudável. O Código da Lei do Cânon impele
aos pais “a uma obrigação séria de proporcionar o melhor de sua
habilidade para a educação religiosa e moral, assim como pela
física e civil, de seus filhos, como também por seu bem-estar
temporal” (Cânon 1113).
O Cânon 1372 limita a educação a ponto de que “nada contrário
à fé e à moral” deva ser ensinado, e que “o preparo religioso e moral
ocupem o lugar principal.” O Cânon 1374 proíbe as crianças católi­
cas de freqüentar às escolas não católicas, exceto quando o bispo
local puder permitir. O Terceiro Concilio Plenário de Baltimore
promulgou uma lei em 1884, cuja a intenção era de que uma escola
paroquial fosse estabelecida perto de toda igreja católica, caso
ainda não houvesse nenhuma, e que toda criança católica fosse
obrigada a freqüentar essas escolas, exceto por permissão de um
bispo.
Em justiça à posição católica, deve-se admitir que as escolas
particulares têm direito de existir, e é sobre esse fundamento
que o movimento da escola cristã foi desenvolvido. Nos Estados

545
Os fundamentos

Unidos, o costume de oferecer fundos estaduais ou federais para


apoiar escolas denominacionais é proibido. Os católicos, liberais
e conservadores, compartilham provisões de tempo livre para a
instrução religiosa em muitos lugares.
Se essa fosse a única essência e tendência do sistema escolar
católico, ele mereceria pouca crítica. Mas antes do fim da metade
do século passado, a crítica do sistema veio como uma onda forte. O
Cardeal Spellman, em 1947, na Universidade Fordham, reconheceu
e respondeu a essa crítica. A campanha para obter transporte
gratuito para estudantes para escolas paroquiais era apenas um
elemento em uma tendência de acontecimentos que causaram alar­
me. Algumas cidades tinham metade de suas crianças em idade
escolar em escolas católicas. E a intenção declarada da hierarquia
católica é proporcionar, o quanto possível, escolas secundárias e
faculdades suficientes para que toda criança católica seja capaz de
obter toda sua educação da igreja. Isto, mais uma vez, é o privilégio
de qualquer grupo em uma democracia.
O ponto a ser lembrado, no entanto, é que mesmo a população ca­
tólica americana não possui escolas católicas. Ainda que elas possam
fornecer o dinheiro, o título é investido na administração do clero
— bispo, arcebispo ou cardeal — naquilo que é chamado de a única
corporação que é de um homem apenas. Esse oficial incorporado
é isento de impostos e pode emitir notas em nome da propriedade
sem consultar as pessoas. A escola é operada e administrada pelo
funcionário eclesiástico na área particular, mas a autoridade final
fica a cargo do bispo. O Almanaque Católico Nacional para 1958 diz
que havia três milhões e setecentos mil estudantes em nove mil se-
tecentas e setenta e duas escolas fundamentais; setecentos e vinte e
três mil em duas mil oitocentas e trinta e cinco escolas secundárias;
e duzentos e sessenta mil em duzentas e cinqüenta e nove faculdades
e universidades nos Estados Unidos e em suas possessões.
As freiras incluem a vasta maioria da força de instrução das
escolas primárias católicas. A maioria delas pertence às ordens
estritas que obrigam à pobreza e à obediência absoluta. Elas têm
pouco contato com o mundo externo. Elas podem ser consciencio­
sas e trabalhar duro, como indubitavelmente muitas delas fazem,
mas têm a desvantagem daqueles que não estão integrados na
sociedade em geral. E fácil ver como todo o sistema pode ser mani­
pulado e controlado, tanto em termo geral quanto para propósitos
específicos.

546
Roma, a antagonista da nação

4. É nas relações políticas e internacionais, no entanto, que a igreja


de Roma faz seu lance mais forte e obtém suas maiores vitórias.
O ofício dual do Papa como líder eclesiástico da igreja e líder
político sobre a pequena propriedade conhecida como Cidade do
Vaticano é bem conhecido. Como é o menor estado soberano, ele
se orgulha do maior palácio do mundo. Opera como um estado
soberano e tem um sucesso incrível no cenário mundial. Paul
Blanshard em seus dois livros, American Freedom and Catholic
Power [Liberdade Americana e Poder Católico] e Communism,
Democracy, and Catholic Power [Comunismo, Democracia e
Poder Católico] (Boston 1949 e 1951), e Avro Manhattan, no The
Vatican and WorldPolitics [O Vaticano e o Mundo Político] (Nova
York, 1949), abriram os olhos de muitos para as manipulações do
Vaticano nas tarefas mundiais. A luta constante do escritório de
Washington da Associação Nacional Evangélica com os interes­
ses católicos, que procurariam obter controle de várias fases da
vida americana e internacional, não podem ser esboçadas aqui,
mas pode ser estudado consultando-se estes e outros livros e
lendo-se, de vez em quando, os relatórios do escritório NAE em
sua revista, United Evangelical Action [Ação evangélica Unida].
Em 1958, oVaticano mantinha representantes em aproximadamen­
te sessenta países, e quarenta e sete nações tinham representantes
diplomáticos no Vaticano. Até aqui, todos os esforços para ter
um representante dos Estados Unidos credenciado pelo Vaticano
falharam. A história do sucesso do Vaticano nas maiores capitais
do mundo é contada de forma vivida por Manhattan, em que um
capítulo é devotado a cada um dos seguintes temas: Alemanha,
Espanha, Itália, Áustria, Tchecoslováquia, Polônia, Bélgica, Fran­
ça, Rússia e os Estados Unidos; um capítulo final cobre a América
Latina, Japão e China.
5. No que diz respeito às raças, a igreja católica procura uma polí­
tica definida e efetiva. A igreja católica, como freqüentemente
tem sido declarado, particularmente sua divisão jesuíta, que
determina muito da política da igreja a longo prazo, pensa em
termos de séculos, mais do que em décadas. Um dos planos
subsidiários à eventual tomada dos Estados Unidos pelo catoli­
cismo é a campanha de tornar católicos os negros da América.
A Comissão pelas missões católicas entre os negros e índios
conduzem a esse esforço. O relatório anual dessa comissão, para
Os fundamentos

1957, mostra que há quatrocentas e noventa igrejas, setecentos e


quarenta e oito sacerdotes, trezentas e quarenta e cinco escolas
e quinhentos e trinta mil setecentos e dois membros entre os
negros. A relação de membros aumentou mais de vinte e sete
mil no ano anterior. Nove novas escolas para crianças negras
foram abertas. Um progresso considerável está sendo feito entre
os índios, de acordo com o mesmo relatório, com números que
se aproximam de quatrocentos e quinze igrejas, duzentos e
trinta sacerdotes, cinqüenta e sete escolas e cento e dezessete
mil duzentos e oitenta e um membros. A relação de membros
indígenas está crescendo cinco por cento ao ano.
6. Na cinematografia, a igreja católica admite uma das maiores
médias de influência no desenvolvimento educacional e social.
Conseqüentemente, houve muito esforço da parte da igreja para
mostrar pressão sobre a indústria cinematográfica, sobre o pú­
blico em geral, ao influenciar a produção de filmes e a freqüência
do público. O Papa Pio XI, em 1936, emitiu uma encíclica, “Vi­
gilante Cura”, sobre o assunto. A Legião da Decência trabalha
para implementar os princípios estabelecidos por essa encíclica.
Um penhor preparado por essa organização comete o signatário
a “condenar filmes indecentes e imorais e aqueles que exaltam o
crime ou criminosos [...] para fazer tudo aquilo que puder para
fortalecer a opinião pública contra a produção de filmes indecen­
tes e imorais, e para se unir com todos aqueles que protestam
contra eles” (Nat. Cath. Almanaque, 1958, p. 633). Uma lista de
filmes, com as respectivas avaliações, é publicada de tempos
em tempos nas publicações católicas. As categorias são: Classe
A, moralidade sem objeção para o patronato geral; Classe A, II,
moralidade sem objeção para adultos; Classe B, moralidade sem
objeção em parte para todos; e Classe C, condenados.
7. Uma situação semelhante existe com respeito à publicação de
livros. Em primeiro lugar, há o sistema de autorizar os leitores
católicos por meio de uma declaração sobre a página de direitos
autorais. Isto pode ser “Nihil obstat” [nada impede], “Cum per-
missu superiorum” [com permissão dos superiores] ou “Impri-
matur” [pode ser impresso]. E salientado que essas permissões
e aprovações não significam que a igreja católica endossa o que
está no livro, mas que meramente declara que não há nada no
livro contra a doutrina católica. Nem significa que o católico

548
Roma, a antagonista da nação

não pode ler qualquer livro que não tenha essa aprovação; ele,
portanto, é obrigado a não ler algo que seja contrário à doutrina
católica. Em caso de dúvida, supõe-se que ele deva consultar seu
padre. Há o famoso “Index Librorum Prohibitorum” [índice dos
Livros Proibidos], que tem centenas de anos de idade e é revisto
de tempos em tempos, mas a maioria dos títulos nesse catálogo
não são livros em língua inglesa. Pressões locais e gerais são fei­
tas sobre alguns livros de autores protestantes, que são inimigos
dos interesses católicos, os quais constituem a parte mais efetiva
e geral da censura. Os católicos que lêem livros condenados são
culpados de pecado grave.

Roma é a inimiga do cristianismo bíblico


Tem havido muitas e violentas diatribes contra a igreja católica
por aqueles a quem ela tem se oposto, excomungado, ou simples­
mente alarmado sobre suas tendências. Grande parte dessa litera­
tura, interessante como um corpo de polêmica anti-católica, não é
o tipo de escrita que convencerá um católico ou um não-católico
a não ser que ele queira ser convencido. (O título mais lúrido que
chama nossa atenção é o The Scarlet Harlot Stripped and Whipped
[A Meretriz é Despida e Chicoteada], um panfleto que se encontra
na famosa biblioteca memorial de William Andrews Clark, em Los
Angeles.) A alma e o espírito honestos serão convencidos somente
quando o Espírito de Deus operar com base na Palavra de Deus
para revelar a verdade do Senhor com tal clareza, que os erros
de Roma se tornam escandalosamente evidentes. Esse é o teste­
munho quase universal daqueles que saem do catolicismo para o
protestantismo. As principais culpas lançadas contra a Igreja de
Roma de um ponto de vista doutrinai são estas: (1) ela restringe
o uso da Bíblia; (2) ela controla a tradução da Bíblia; (3) ela aceita
que a tradição tenha autoridade igual às Escrituras e, com efeito, a
eleva acima das Escrituras, como pode ser evidenciado no caso do
dogma da assunção de Maria (1950); (4) ela tem sete sacramentos;
(5) ensina a transubstanciação; (6) sacrifica na missa; (7) nega o
cálice aos leigos; e (8) negocia por meio de missas e indulgências.
Todas essas culpas podem ser encontradas e elaboradas nas
polêmicas padrão contra o sistema, que são muito numerosas para
mencionar com a exceção de um par que pode ser considerado
clássico, a The Infallibility ofthe Church [Infalibilidade da Igreja],

549
Os fundamentos

de George Salmon (publicada primeiramente em 1888, reimpressa


em 1951 por Paker Book House, Grand Rapids) — isto porque
ela tem suportado o teste do tempo como um dos ataques mais
eficazes sobre a doutrina central da infalibilidade papal; e o People’s
Padre [Padre do Povo], do ex-padre Emmett McLaughlin (Boston,
1954) — isto porque é uma das posições mais recentes e eficazes
do sistema exposto por um padre irlandês que tinha um trabalho
muito próspero em Phoenix, Arizona. E uma autobiografia erudita
e sã.
A única arma verdadeiramente efetiva contra o sistema papal,
como Martinho Lutero descobriu, é a pura e inalterada Palavra de
Deus, e este artigo será encerrado dando alguma atenção à posição
católica oficial sobre as Escrituras. E algo espantoso encontrar um
livro que possa ser usado com igual eficácia tanto por católicos
quanto por protestantes para encorajar o próprio católico no estudo
pessoal da Bíblia e para dar-lhe a base católica oficial. Este é Rome
and the Study of Scripture [Roma e o Estudo das Escrituras], uma
coleção de textos legislativos papais sobre o estudo das Sagradas
Escrituras junto com as decisões da Comissão Bíblica (St. Mein-
rad, Ind., St. Meinrd’s, Abbey, 5o ed., 1953, 165 pp.). (Este livro
está catalogado pela Biblioteca de Congresso sob o título do autor:
Igreja Católica, Papa; mas deve ser encontrado também pelo título
e assunto se estiver catalogado apropriadamente.) Um bom núme­
ro das encíclicas papais e cartas apostólicas, junto com dezessete
decisões da autoridade superior da igreja sobre estudos bíblicos,
proporcionam amplo material para o propósito mencionado acima.
Encontra-se nesse livro uma atitude saudável para com as
Escrituras, considerada como inspirada e inerrante (entende-se,
naturalmente, que isso para eles se aplica também aos livros apó­
crifos, mas os argumentos protestantes sobre esse assunto são ade­
quados para colocar o inquiridor contra a parede). A declaração do
Concilio Vaticano é bastante satisfatória: . a igreja os considera
sagrados e canônicos não porque, embora tenham sido compostos
pela habilidade humana, eles foram posteriormente aprovados por
autoridade eclesial; não somente porque eles contêm a revelação
sem erros, mas porque, tendo sido escritos sob a inspiração do
Espírito Santo, eles têm Deus por seu autor” (op. cit., p. 24).
Uma carta encíclica, Spiritus Paraclitus, do papa Benedito XV,
escrito no décimo quinto centenário da morte de São Jerônimo,

550
Roma, a antagonista da nação

fala do amor de Jerônimo pelas Escrituras e diz, “Esperamos


confiantemente que seu exemplo incendiará tanto o clero quanto
o laicato com o entusiasmo pelo estudo da Bíblia” (ibid., pág. 71).
Igualmente: “A mesma veneração que os bispos devem oferecer
diariamente para aumentar e aperfeiçoar entre os fiéis o encoraja­
mento de todas aquelas iniciativas pelas quais os homens, cheios do
zelo apostólico, se esforçam, de forma louvável, para excitar e nutrir
entre os católicos um maior conhecimento do amor pelos Livros Sa­
grados” (ibid., p. 103). Outros encorajamentos semelhantes podem
ser encontrados entre esses documentos. Há uma precaução, no
entanto, para que as versões vernaculares das Escrituras devam
ser editadas com notas por eruditos católicos antes que possam ser
autorizadas para uma leitura pessoal do laicato. Embora isso possa
ser verdadeiro, o texto das versões católicas é suficientemente
similar aos textos originais para guiar qualquer pessoa sincera à fé
em Jesus Cristo para a salvação.
As Associações Bíblicas Católicas chegaram a ser nos Estados
Unidos, Grã Bretanha, Suíça e Argentina, umas das boas publica­
ções de material sobre estudos bíblicos. Particularmente na Suíça,
movimento que veio da Áustria, as devoções familiares, em que
a leitura das Escrituras deveriam ser central, foram fortemente
encorajadas. No Uruguai alguns padres com uma inclinação para
os estudos das Escrituras costumavam conduzir classes bíblicas
semanais para o laicato, e um alto padrão de vida espiritual foi
atingido por alguns dos assistentes.
E preciso se lembrar que os fatores já relatados representam a
prática real em muitas partes do mundo, mas eles não se baseiam
em um fundamento sólido, e qualquer católico que queira ler a
Bíblia pode apelar a eles.
A distribuição das Escrituras por protestantes em algumas par­
tes do campo de missão levou as autoridades católicas locais a fazer
um esforço por uma distribuição paralela dos evangelhos e outros
trechos pelos católicos, como aconteceu, por exemplo, no México.
Assim, a situação ideal foi desenvolvida — e o pesquisador poderia
comparar ambas as versões e descobrir a incrível similaridade.
Que Deus possa conceder que por qualquer e todos os meios as
Escrituras possam chegar às mãos de um grande número de leigos
católicos sinceros e assim a seus corações.

551
553

51 A Igreja verdadeira

John C. R y l e , D.D.
Bispo de Liverpool
Editado por Charles L Feinberg, Th.D.

Onde está a única igreja verdadeira? Com que se parece essa


igreja verdadeira? Quais são os sinais pelos quais essa única igreja
verdadeira pode ser conhecida? Estas perguntas podem ser muito
bem ser feitas, e aqui estão algumas respostas.
A única igreja verdadeira é composta de todos os crentes do
Senhor Jesus. Ela é formada por todos os eleitos de Deus, todos
os convertidos homens e mulheres, todos os cristãos verdadeiros.
Seja lá em quem for que possamos discernir a eleição de Deus Pai,
a aspersão do sangue de Deus Filho e a obra santificadora de Deus
Espírito nesta pessoa, vemos um membro da verdadeira igreja de
Cristo.
E uma igreja da qual todos os membros têm os mesmos sinais.
Todos eles são nascidos do Espírito; todos eles possuem “arrepen­
dimento para com Deus, fé para com nosso Senhor Jesus Cristo”,

JO H N CHARLES RYLE (1816-1900) atuou como bispo da Igreja


Anglicana e foi líder dos evangélicos naquela comunidade. Ordenado
em 1841, Ryle atuou em várias igrejas; depois, em 1880, foi nomeado
primeiro Bispo de Liverpool. Atuou ali, com distinção, até sua morte.
Escreveu muitos ensaios e livros que tiveram ampla circulação na
Inglaterra e na América do Norte, e alguns desses livros foram traduzidos
para línguas estrangeiras. Ele é mais conhecido por sua obra Expository
Thoughts on the Gospels [Exposição sobre os evangelhos].
Os fundamentos

e santidade de vida e de conversação. Todos eles odeiam o pecado


e todos eles amam a Cristo. Eles adoram de maneiras diferentes.
Alguns adoram com uma forma de oração, e alguns com nenhuma;
alguns adoram ajoelhados, e alguns de pé. Mas todos eles adoram
com o coração. Todos eles são conduzidos por um Espírito; todos
eles estão construídos em um fundamento; todos eles tiraram sua
fé de um único livro, as Escrituras. Todos eles se reunirão em um
grande centro, Jesus Cristo. Todos eles, agora mesmo, podem dizer
com o coração, “Aleluia”; e todos eles podem responder com o
coração e em uma só voz, “Amém e Amém”.
E uma igreja que não é dependente de nenhum ministro sobre
a terra, embora valorize muito aquele que prega o evangelho para
seus membros. A vida de seus membros não depende da relação de
membros da igreja, do batismo e da ceia do Senhor, embora eles
valorizem e tenham grande apreço por essas coisas, quando cele­
bradas. Mas tem somente um grande Líder, um Pastor, um Bispo
principal, o Senhor Jesus Cristo. Somente Ele, por intermédio de
seu Espírito, admite os membros dessa igreja, embora os ministros
possam mostrar a porta. Enquanto ele não abre a porta, nenhum
homem sobre a terra pode abri-la, nem bispos, nem presbíteros,
nem convocações, nem sínodos. Quando um homem se arrepende
e crê no evangelho, nesse momento ele se torna membro desta
igreja. Como o ladrão penitente, ele pode não ter a oportunidade de
ser batizado; mas tem aquilo que é muito melhor do que qualquer
batismo de água, o batismo do Espírito. Ele pode não ser capaz de
receber o pão e o vinho na ceia do Senhor; mas ele come o corpo
de Cristo e bebe o sangue de Cristo pela fé que vive a cada dia, e
nenhum ministro na terra pode impedi-lo de participar do Corpo
de Cristo. Ele pode ser excomungado por homens ordenados e
cortado das ordenanças externas da igreja que professa; mas todos
os homens ordenados no mundo não podem tirá-lo da verdadeira
Igreja.
Esta é uma igreja cuja existência não depende de formas,
cerimônias, catedrais, igrejas, capelas, púlpitos, fontes, batistérios,
vestuários, órgãos, dons, dinheiro, reis, governos, magistrados, ou
qualquer ato de favor, qualquer que seja ele, da mão do homem.
Ela tem muitas vezes vivido e continuado, mesmo quando todas
estas coisas tem sido tiradas dela; ela tem muitas vezes sido levada
para o deserto, ou para as covas e cavernas da terra, por aqueles

554
A Igreja verdadeira

que deveriam ter sido seus amigos. Sua existência não depende de
nada mais do que a presença de Cristo e Seu Espírito; e eles estão
sempre com ela, assim a Igreja não pode morrer.
Essa é a Igreja para a qual os títulos escriturais de honra e
privilégios atuais e as promessas da glória futura, em especial,
pertencem. Este é o corpo de Cristo; este é o rebanho de Cristo.
Esta é a casa da fé e a família de Deus. Este é o edifício de Deus, o
fundamento de Deus e o templo do Espírito Santo. Esta é a igreja do
primogênito cujo nome está escrito nos céus. Este é o sacerdócio
real, a geração escolhida, o povo particular, a possessão adquirida,
a habitação de Deus, a luz do mundo, o sal e o trigo da terra. Esta é
a “Santa Igreja Católica” do Credo Apostólico; esta é a “Única Igreja
Católica e Apostólica” do Credo de Nicéia. Esta é aquela igreja à
qual o Senhor Jesus promete que “as portas do inferno não prevale­
cerão contra ela”, e sobre a qual Ele diz, “E eis que estou convosco
todos os dias até à consumação do século”, (Mt 16.18; 28.20).
Esta é a única igreja que possui a verdadeira unidade. Seus
membros estão completamente de acordo sobre todos os assuntos
mais centrais da fé, porque todos eles são ensinados por um mesmo
Espírito: aprendem sobre Deus, Cristo, o Espírito, o pecado, seus
próprios corações, a fé, o arrependimento, a necessidade de santi­
dade, o valor da Bíblia, a importância da oração, a ressurreição e
o julgamento futuro — assim, sobre todos estes pontos, eles têm
um só pensamento. Tomemos três ou quatro deles, estranhos
uns aos outros, dos cantos mais remotos da terra; examinemo-los
separadamente sobre estes pontos e descobriremos em todos eles
um só julgamento.
Esta é a única Igreja que possui a verdadeira santidade. Todos
seus membros são santos. Eles não são apenas santos por profis­
são, santos no nome, santos no julgamento da caridade; eles todos
são santos em atos, ações, realidade, vida e verdade. Todos eles são
mais ou menos conformados à imagem de Jesus Cristo. Nenhum
homem profano pertence a esta Igreja.
Esta é a única Igreja que é verdadeiramente católica. Ela não é a
igreja de qualquer nação ou povo; seus membros são encontrados
em todas as partes do mundo onde o evangelho é recebido e aceito.
Ela não está confinada dentro dos limites de qualquer país, ou
encerrada dentro de qualquer recinto de qualquer forma particular,
ou dirigida por um governo externo. Nela não há diferença entre

555
Os fundamentos

judeu e grego, negro e branco, episcopal e presbiteriano, mas a fé


em Cristo está em todos eles. No último dia, seus membros serão
reunidos de todas as partes — norte, sul, leste e oeste — e terão
todos os nomes e falarão todas as línguas, mas todos serão um em
Jesus Cristo.
Esta é a única Igreja que é verdadeiramente apostólica. Está
construída sobre o fundamento deixado pelos apóstolos e sustenta
as doutrinas que eles pregaram. Os dois grandes assuntos aos quais
seus membros objetivam são a fé apostólica e a prática apostólica.
Eles consideram o homem que fala de acordo com os apóstolos sem
possuir estas duas coisas como o bronze que ressoa e o címbalo
que retine.
Esta é a única Igreja que certamente permanecerá até o fim.
Nada pode subvertê-la e destruí-la. Seus membros podem ser
perseguidos, oprimidos, aprisionados, espancados, decapitados,
queimados; mas a verdadeira Igreja jamais será totalmente extin­
guida. Ela surge novamente de suas aflições; vive através do fogo
e da água. Os Herodes, os Neros, as Marias sangrentas têm traba­
lhado em vão para derrubar esta Igreja; eles matam seus membros
aos milhares e, depois, morrem e vão para o lugar destinado para
eles. A verdadeira Igreja sobrevive a todos eles e os vê enterrados,
cada um a seu tempo. Ela é uma bigorna que tem quebrado muitos
martelos, e ainda quebrará muitos outros. E uma sarça que, embora
queimando, não é consumida.
Esta é a Igreja que faz a obra de Cristo na terra. Seus membros
são um pequeno rebanho, e poucos são comparados com os filhos
do mundo, um ou dois aqui, dois ou três ali. Mas estes são aqueles
que abalam o universo; estes são aqueles que mudam o destino
dos reinos por meio de suas orações. Estes são aqueles que são
obreiros ativos para espalhar o conhecimento da pura religião e
são imaculados; este são o sangue da vida de um país, a proteção,
a defesa, a permanência e o apoio de qualquer nação à qual per­
tencem.
Esta é a Igreja que será verdadeiramente gloriosa no final.
Quando toda glória terrena tiver passado, então esta igreja será
apresentada sem mancha diante do trono do Deus Pai. Tronos,
principados e poderes sobre a terra não serão nada; mas a igreja do
primogênito brilhará como as estrelas no final e será apresentada
com alegria diante do trono do Pai no dia da aparição de Cristo.

556
A Igreja verdadeira

Quando as jóias do Senhor estiverem prontas e a manifestação dos


filhos de Deus acontecer, somente uma Igreja será chamada, e esta
é a Igreja dos eleitos.
Leitor, esta é a verdadeira Igreja, à qual o homem deve pertencer
se ele quiser ser salvo. Até você pertence a esta, você não é nada
mais do que uma alma perdida. Você pode ter um sem número de
privilégios externos; você pode ter grande luz e conhecimento, mas
se você não pertence ao corpo de Cristo, sua luz, seu conhecimento
e seus privilégios não salvarão sua alma. Os homens imaginam se
eles vão a essa ou aquela igreja e se conformam a algumas formas,
mas todos devem ser justos com suas almas. Nem todo Israel era
chamado Israel, e nem todos que se professam ser cristãos são
membros do corpo de Cristo. Note que você pode ser um forte da
igreja anglicana, ou presbiteriana, ou independente, ou batista, ou
wesleyana, ou do irmão Plymouth, e ainda assim não pertencer à
verdadeira Igreja. E se você não pertence, seria melhor que não
tivesse nascido. “Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu e tua casa”
(At 16.31).

557
559

52 Os propósitos da encarnação

Rev. G. C a m p b e l l M o r g a n , D.D.
Pastor da Capela de Westminster, Inglaterra
Revisado por Gerald B. Stanton , Th. D.

Todo o ensinamento das Sagradas Escrituras coloca a encarna­


ção no centro dos métodos de Deus para com uma raça pecadora.
Para essa encarnação, tudo se moveu até sua realização, encon­
trando nela cumprimento e explicação. A mensagem dos profetas e
videntes e as canções dos salmistas tremeram com mais ou menos
certeza para a música final que anunciou a vinda de Cristo. Todos os
resultados dessas mensagens parciais e fragmentadas do passado
conduziram para a encarnação.

GEORGE CAMPBELL MORGAN (1863-1945) tornou-se ministro


Congregacionalista após ter sido criado em um lar de um pregador
Batista e trabalhar no corpo docente de uma escola judaica. Homem
de ampla experiência, Morgan ensinou em escolas, teve numerosos
pastorados em sua terra natal, a Inglaterra, viajou com D. L. Moody e
Ira Stankey e fez palestras em conferências bíblicas nos Estados ünidos.
CIm de seus maiores êxitos foi tomar um a igreja moribunda, a Capela
de Westminster, Buckingham Gate, na Inglaterra, e a transformar em
um a das Igrejas mais ativas do país. Após deixar esse pastorado, ele
lecionou no Instituto Bíblico de Los Angeles (hoje Universidade Biola)
e na Faculdade Gordon de Teologia e Missão. Apesar de tudo isso, ele
teve tempo de escrever sessenta livros de sermões, doutrina e teologia,
incluindo The Crisis of the Christ [A Crise do Cristo] (republicado em
1989 por Kregel Publications).
Os fundamentos

É igualmente verdade que todos os movimentos subseqüentes


procederam dessa encarnação, dependendo dela para a direção e
dinâmica. As histórias do evangelho são todas relacionadas com
a vinda de Cristo, com Sua missão e Sua mensagem. As cartas
do Novo Testamento têm todas a ver com a encarnação e suas
doutrinas e deveres correlatos. O último livro da Bíblia é um livro,
e o verdadeiro título dele é O Desvelamento de Cristo.
Não somente as mensagens atuais que foram reunidas nessa
única biblioteca divina, mas todos os resultados proveniente delas,
são finalmente resultados que provêm dessa mesma vinda de
Cristo. E certamente importante, portanto, que entendamos seu
propósito na estrutura de Deus.
Há uma quádrupla declaração do propósito expresso no Novo
Testamento: o propósito de revelar o Pai; o propósito de lançar fora
o pecado; o propósito de destruir as obras do diabo; e o propósito
de estabelecer um outro advento do Reino de Deus no mundo.
Cristo esteve em conflito com tudo o que era contrário aos pro­
pósitos de Deus na vida individual, social, nacional e racial. Quando
dizemos isto, há um sentido no qual, declaramos todo o significado
de Sua vinda. Sua revelação do Pai visava essa finalidade; seu ato
de lançar fora o pecado fazia parte deste mesmo processo; e seu
segundo advento será para a subversão completa e final de todos as
obras do diabo.

Revelar o Pai
“Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio
do Pai, é quem o revelou” (Jo 1.18). “Quem me vê a mim vê o Pai”
(Jo 14.9).
Esta última, a declaraçao do próprio Cristo em relação à verdade
deste assunto, é caracterizada pela simplicidade e sublimidade.
Entre todas as coisas que Jesus disse com relação ao Seu rela­
cionamento com o Pai, nenhuma é mais abrangente, inclusiva e
exaustiva do que esta.
As últimas horas de Jesus com seus discípulos estavam passando
rapidamente. Ele estava lhes falando, e por quatro vezes mais eles
o interromperam. ‘Replicou-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai,
e isso nos basta” (Jo 14.8). A interrupção de Felipe foi devido, em
primeiro lugar, à convicção da relação de Cristo, de algum modo,
com o Pai. Ele tinha estado muito tempo com Jesus a ponto de se

560
Os propósitos da encarnação

tornar íntimo, em algum sentido, com essa linha de pensamento.


Provavelmente, Felipe estava pedindo que fosse repetido, para ele e
para o pequeno grupo de discípulos, algumas das coisas maravilho­
sas que eles tinham lido no passado da história de seu povo; como
quando os anciões, certa vez, subiram a montanha e viram a Deus;
ou quando o profeta viu o Senhor assentado em um trono, alto e
elevado, e Sua presença encheu o templo; ou quando Ezequiel viu
Deus no fogo e nas rodas; em majestade e glória.
Não posso ler a resposta de Jesus a essa pergunta sem sentir que
Ele mesmo se despiu, deliberadamente, de qualquer coisa que se
aproximava da ostentação da retórica, e desceu a uma linguagem
comum de amigo para amigo. Olhando para o rosto de Felipe,
que estava expressando, embora ele não soubesse isso, a grande
angústia do coração humano, a grande fome da alma humana,
Ele disse: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens
conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9). Esta afirmação
foi justificada no transcurso dos séculos.
a) Revelação para a Raça
Portanto, consideraremos primeiro o que essa revelação de
Deus significou à raça; e, em segundo lugar, o que ela significou
para o indivíduo.
Primeiro, portanto, qual a concepção de Deus que a raça teve
diante do Cristo que veio? Tomando a idéia hebréia de Deus, deixe-
me colocar toda a verdade como a percebi em uma declaração inclu-
siva. Antes da encarnação tinha havido uma apreensão intelectual
crescente da verdade concernente a Deus, acompanhada por um
resultado moral decrescente.
E impossível estudar o Antigo Testamento sem ver que ali, gra­
dualmente, a névoa se dissipou em uma luz mais clara com relação
a Deus. Todas essas coisas — a unidade de Deus; o poder de Deus;
a santidade de Deus; a beneficência de Deus — os homens têm
chegado a ver através do processo das eras.
Contudo, lado a lado com esta crescente apreensão intelectual
de Deus ouve um resultado moral decrescente, porque é impossível
ler a história do antigo povo hebreu sem ver como eles se tornaram
cada vez pior em todas as questões morais. A vida moral de Abraão
era muito mais pura do que a vida no tempo dos reis. A vida nos
primeiros tempos dos reis era mais pura do que as condições que os
profetas por fim descreveram. A medida que havia o crescimento

561
Os fundamentos

da concepção intelectual de Deus, parecia que também era cada


vez mais inconcebível para os homens que Deus pudesse se inte­
ressar pela vida diária deles. A moralidade tornou-se algo que não
parecia ter uma íntima relação com ele, mas algo que importava
muito pouco.
Imagine o grande mundo formado por gentios, como acontecia
na época, e como ainda é, exceto onde a mensagem do evangelho
o alcançou. Tivemos mestres notáveis como Zoroastro, Buda, Con-
fúcio; homens que falam muitas coisas verdadeiras, que brilhavam
devido à luz que transmitiam aos homens, mas, apesar dessas
coisas, um fracasso perpétuo na moral e na degradação uniforme
da religião tem sido universal. O fracasso sempre foi devido a uma
falta de conhecimento final de Deus.
Por fim, chegou a canção dos anjos, e o nascimento do Filho de
Deus, que, por meio de Sua Encarnação e ministério, trouxe aos
homens uma nova consciência de Deus.
Ele incluiu em Seu ensino e Sua manifestação todas as coisas
essenciais que os homens tinham aprendido ao longo das eras
passadas.
Ele não negou a verdade da unidade de Deus; mas, mais
uma vez, a enfatizou. Ele não negou o poder de Deus; mas o
declarou e o manifestou com muitos toques suaves de poder
infinito. Ele não negou a santidade de Deus; mas insistiu nela
por meio do ensino e da vida, e, por fim, por intermédio do
mistério da morte. Ele não negou a benevolência de Deus; mas
mudou a fria palavra beneficência para a palavra que palpita
com o coração infinito da Divindade — Amor. Ele fez mais.
Aquilo que os homens tinham expressado de modo imperfeito
na canção e na profecia ele chegou a declarar: “Quem me vê a
mim vê o Pai” (Jo 14.9).
Onde quer que Cristo chegue a um povo que nunca teve revela­
ção direta, Ele chega primeiramente como cumprimento de tudo
que em sua concepção e esquema é verdadeiro. Ele chega, além
disso, para corrigir tudo que em sua concepção e esquema é falso.
Tudo que subjaz à consciência da humanidade concernente a Deus
é tocada, respondido e elevado à suprema consciência sempre que
Deus é visto em Cristo. Todos os raios de luz que tem cruzado a
consciência da humanidade se fundem na luz essencial quando Ele
é apresentado.

562
Os propósitos da encarnação

Cristo não chega para contradizer a verdade essencial do


budismo, mas para cumpri-la. Ele não chega para roubar o respeito
que os chineses têm pelos antepassados, como ensinou Confúcio,
mas para cumpri-lo e para elevá-lo acima dessa concepção — o
reconhecimento do único grande Pai, Deus. Ele sempre chega para
cumprir. Onde quer que Ele vá; ou sempre que Ele é apresentado;
sempre que os homens de nível intelectual inferior ou superior
vêem Deus em Cristo, suas mãos se abrem e eles deixam cair seu
fetiches, seus ídolos e rendem-se a Ele. Se o mundo não chegar a
Deus por intermédio Dele, é porque o mundo ainda não O viu; e se
o mundo ainda não O viu, a culpa recai sobre a igreja cristã.
Os amplos assuntos da manifestação de Deus em Cristo são — a
união da apreensão intelectual e do melhoramento moral, assim
como a relação da religião com a vida. Em nenhum sistema religio­
so do mundo existe a idéia de Deus que une religião com moral,
exceto nesta revelação de Deus em Jesus Cristo.
b) Revelação para o indivíduo
Em segundo lugar, o efeito da manifestação em relação ao
indivíduo. Como exemplo, não podemos fazer melhor do que
tomarmos Filipe, o homem a quem Cristo falou. Para o pedido de
Felipe: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta”. Jesus disse:
“Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido?”
(Jo 14.8,9). O sentido evidente da questão é: Você me viu o suficien­
te, Felipe — se você realmente me viu, então terá descoberto o que
está procurando — uma visão de Deus.
Portanto, o que Felipe viu? Que revelações da divindade chega­
ram a esse homem que pensava não ter visto e não ter entendido?
Faremos referência ao que as Escrituras contam sobre o que Felipe
tinha visto.
Toda a história está em João. Mateus, Marcos e Lucas se refe­
rem a Felipe, como um dos que estava entre o grupo dos apóstolos,
mas apenas isso. João menciona quatro ocasiões quando Felipe é
visto em união com Cristo. Felipe foi o primeiro homem que Jesus
chamou para O seguir; não o primeiro homem a segui-Lo. Havia
outros dois que precederam Felipe, que seguiram Jesus em conse­
qüência do ensinamento de João. Mas Felipe foi o primeiro homem
com quem Jesus usou essa grande fórmula de chamar os homens, a
qual se tornou tão preciosa com o passar dos séculos: “Segue-me”.

563
Os fundamentos

0 que aconteceu? “Filipe encontrou a Natanael e disse-lhe: Acha­


mos aquele de quem Moisés escreveu na lei, e a quem se referiram
os profetas: Jesus, o Nazareno, filho de José” (Jo 1.45). Essa foi a
primeira coisa que Felipe viu em Cristo de acordo com sua própria
confissão: alguém que incorporou todos os ideais de Moisés e dos
profetas.
Em seguida, no sexto capítulo, encontramos Felipe quando as
multidões famintas estavam ao redor de Cristo. Felipe que consi­
derava impossível alimentar a multidão, agora vê Alguém que de
um modo misterioso tinha recurso suficiente para satisfazer a fome
humana. Felipe ouvia o discurso inigualável em que Jesus elevava
a idéia da fome material à necessidade espiritual e declarava: “Eu
sou o pão da vida” (Jo 6.35). De maneira que a segunda visão que
Felipe teve de Jesus, de acordo com o relato, foi uma visão Dele,
cheio de recursos e capaz de satisfazer a fome, tanto material
quanto espiritual.
Na seqüência, vemos Felipe no décimo segundo capítulo. Os
gregos chegavam a ele e diziam, “Senhor, queremos ver Jesus”
(Jo 12.21). Felipe, que no caminho encontrou-se com André, pediu
a Jesus para que Ele fosse ver os gregos. Felipe percebeu que esse
homem tinha uma íntima relação com o Pai e que havia perfeita
harmonia entre eles, sem conflito, sem controvérsia. Ele viu, além
disso, que fundamentado nessa comunhão com Seu Pai e com essa
perfeita harmonia, sua voz mudava do tom de tristeza para o tom de
triunfo: “Chegou o momento de ser julgado este mundo, e agora o
seu príncipe será expulso. E eu, quando for levantado da terra, atrai­
rei todos a mim mesmo” (Jo 12.31,32). Essa foi a terceira visão que
Felipe teve de Jesus. Foi a visão de Um que age em perfeito acordo
com Deus, submetendo-se à tristeza que surgia em Sua alma, para
que por meio dela Ele pudesse realizar a redenção humana.
Agora voltamos à última cena. Felipe disse: “Senhor, mostra-
nos o Pai, e isso nos basta” (Jo 14.8). Juntando todas as coisas do
passado, Cristo olhou para o rosto de Felipe e respondeu: “Filipe,
há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem
me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai?” (Jo 14.9)
Não, Felipe não tinha visto essas coisas. Felipe viu tudo, elas esta­
vam ali para ser vistas. Mas, em breve, a obra infinita de Cristo foi
realizada, e a glória do Pentecostes iluminou o mundo; só assim ele
viu o significado das coisas que tinha visto, mas não vira; as coisas
que ele viu, mas que nunca compreendera.

564
Os propósitos da encarnação

Ele descobriu que ao ver Jesus tinha realmente visto o Pai.


Quando ele viu Um que incorporava em Sua personalidade todos
os fatos da lei e da justiça, que foi capaz de satisfazer toda a fome
da humanidade e que foi enviado para compartilhar as tristezas da
humanidade para atrair os homens para Si e salvá-los, ele tinha
visto a Deus.
Esta manifestação ganha a submissão da razão; apela para o
amor do coração; exige a rendição da vontade. Aqui está o valor da
encarnação como revelação de Deus.
Lembremos, por um momento, de nossos pensamentos em
relação à aplicação particular do caso de Felipe e pensemos no que
isso significa para nós. E verdade que essa manifestação ganha a
submissão de nossa razão, apela ao amor de nosso coração e pede
a rendição de nossa vontade?
Portanto, recusar Deus em Cristo é violar em algum ponto
essencial nossa própria humanidade. Para recusar, devemos violar
a razão que é capturada pela revelação; ou devemos esmagar a
emoção, que brota em nosso coração na presença da revelação; ou
devemos deixar de submeter nossa vontade às exigências que essa
manifestação faz. Deus concede que possamos olhar para sua face
e dizer: “Senhor meu e Deus meu!” (Jo 20.28). Assim encontrare­
mos nosso descanso, e nosso coração ficará satisfeito. Basta apenas
ver o Pai em Cristo.

A remoção dos pecados


“Sabeis também que ele se manifestou para tirar os pecados, e
nele não existe pecado” (ljo 3.5).
Nesse texto, chegamos mais perto de uma compreensão do pro­
pósito da encarnação, pois ela toca nossa necessidade humana. O
tema simples e todo inclusivo sugere que, primeiramente, o propó­
sito da encarnação é a remoção dos pecados; e, em segundo lugar,
que o processo pelo qual isso é alcançado é o da encarnação.
a) O propósito
Primeiro, portanto, tomaremos o propósito como foi declarado:
“Sabeis também que ele se manifestou para tirar os pecados”
(ljo 3.5). O que se quer dizer pela palavra “pecado”? E a soma
total de todo os atos ilegítimos. O pensamento é incompreensível
quando pensamos em relação aos números ou quando pensamos

565
Os fundamentos

na raça, mas lembremos que no meio daquilo que nos subjuga em


nosso pensamento estão, na realidade, nossos próprios pecados.
“Pecados” — errar o alvo, quer sejam erros voluntários, quer
sejam erros que ignoramos, isso não é relevante agora. A palavra
inclui todos aqueles pensamentos e palavras e atos por meio dos
quais temos errado o alvo do propósito e do ideal divinos.
A frase remover é uma declaração do resultado, não uma decla­
ração do processo. O equivalente hebraico da palavra “remover”
é encontrada naquela história, que nos é bem familiar, do bode
expiatório. Foi providenciado que esse animal fosse conduzido para
o deserto para uma terra solitária. Isso sugeria que os pecados
deviam ser tirados de um e colocados em outro, e por meio deste
o pecado seria tirado de nossa experiência e de nossa consciência.
Esta é a simples significação dessa declaração: “Ele se manifestou
para tirar os pecados” (ljo 3.5), para carregar. Ele foi manifestado
para que pudesse entrar em contato com a vida humana e passar
debaixo da carga dos pecados humanos, para, assim, carregá-los,
retirá-los.
b) O Processo
Em segundo lugar, para que este grande propósito da encarna­
ção possa ser mais poderosamente e melhor entendido, voltemos
reverentemente à indicação do processo que temos neste texto em
particular, “Sabeis também que ele se manifestou para tirar os pe­
cados” (ljo 3.5). Quem era essa Pessoa? E perfeitamente evidente
que João aqui, como sempre, tem seus olhos fixos sobre o Homem
de Nazaré; e ainda é igualmente evidente que ele está olhando para
Deus por intermédio de Jesus de Nazaré. Este é o significado da
palavra “manifestou” aqui. Ele é a Palavra que se tornou carne. Ele
é carne, mas ele é a Palavra. Ele é alguém que João apreciou pelos
sentidos, e ainda é alguém que João conhecia de forma proeminen­
te pelo Espírito.
Notem, que depois que ele faz a afirmação, “Sabeis também que
ele se manifestou para tirar os pecados” (ljo 3.5), ele acrescenta
esta grande palavra: “E nele não existe pecado”; ou: “Nenhum des­
vio da vontade de Deus, em nenhuma ocasião e de nenhuma manei­
ra” (BV). O Único em quem não havia erro do alvo se manifestou
para o expresso propósito de levar, tomar, não fazer acontecer os
erros do alvo dos outros.

566
Os propósitos da encarnação

Aproximo-me agora da coisa final nessa manifestação, o


processo da morte; pois nesta solene solitária e inacessível hora
da cruz está o cumprimento final da palavra do arauto às margens
do Jordão, “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!”
(Jo 1.29). Esta frase, “o Cordeiro de Deus”, poderia ter apenas um
significado aos ouvidos dos homens que as ouviram. Esta foi a voz
de um profeta hebreu falando para hebreus. Quando ele falou do
Cordeiro que tira os pecados, eles não tinham outra alternativa a
não ser pensar na longa linha de sacrifícios simbólicos que tinham
sido oferecidos e que tinham aprendido que eram sombras de
algum grande mistério do propósito divino pelo qual o pecado
poderia ser retirado.
Reverentemente, permitam-nos avançar um passo a mais.
Aquele que se manifestou era Deus. Se este pôde ser visto uma vez,
então olharemos sempre para trás para aquele Homem de Nazaré,
para Seu nascimento e Sua vida apenas como uma manifestação. A
cruz, como tudo mais, foi também uma manifestação. Na cruz de
Jesus estava em operação a visibilidade das coisas eternas. O amor
e a luz foram forjados para a visibilidade por meio da cruz. Na cruz
vejo a tristeza de Deus, e na cruz vejo a alegria de Deus, porque “ao
S enhor agradou moê-lo” (Is 53.10). Na cruz vejo o amor de Deus
operando pela redenção do homem por meio de Sua paixão e de
Seu poder. Na cruz vejo a luz de Deus recusando fazer qualquer
contrato com a iniqüidade, o pecado e o mal. A cruz é a revelação
histórica dos fatos permanentes no coração de Deus. A medida da
cruz é Deus. Aquele que se manifestou é Deus. Ele tem poder para
reunir em Sua vida eterna todas as raças, assim como a tristeza e o
pecado delas e carregá-los.
Se for declarado que Deus poderia ter forjado essa mesma liber­
tação sem sofrer, nossa resposta é que o homem que declara isso
não sabe nada sobre o pecado. Pecado e sofrimento co-existem.
No momento que há pecado, há sofrimento. No momento que
há pecado e sofrimento em um ser humano, esse sofrimento é
multiplicado em Deus. O “Cordeiro que foi morto desde a fundação
do mundo” (Ap 13.8). Desde o momento quando o homem, em seu
pecado, tornou-se filho da tristeza, a tristeza foi mais nitidamente
sentida no céu.
Pediria ao homem que está carregado com o peso de seu pecado
para contemplar a Pessoa que se manifestou. Para todos nós é

567
Os fundamentos

verdadeiro o fato de que vivemos, movemos e temos nosso ser


em Deus. Deus é infinitamente mais do que eu sou; infinitamente
mais do que toda a raça humana desde o início ao fim. Se Ele é
infinitamente mais, toda minha vida está Nele. Se no mistério
da encarnação tornou-se manifesta a verdade de que Ele, Deus,
carregou o pecado, então posso confiar Nele. Se essa for a fenda da
rocha, então posso dizer como nunca antes —
Rocha das eras, abra-se para mim,
Que eu me oculte em ti.
Ele se manifestou, e por essa manifestação vejo operar a verdade
infinita da paixão de Deus à qual nos referimos como a expiação.

Destruir os trabalhos do diabo


“Para isto se manifestou o Filho de Deus: para destruir as obras
do diabo” (ljo 3.8).
Não pode haver dúvida quanto àquele a quem João se referia
quando disse, “o Filho de Deus”. Em todos os escritos de João
fica evidente que seus olhos estão fixos no homem Jesus. Ocasio­
nalmente, ele não O nomeia, nem mesmo se refere a Ele com um
pronome pessoal, mas O indica por uma palavra que só poderia
ser usado quando se está olhando para um objeto ou para uma
pessoa. Por exemplo: “O que era desde o princípio, o que temos
ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que
contemplamos, e as nossas mãos apalparam” (ljo 1.1; grifo do
autor). Em uma outra ocasião ele disse: “Aquele que diz que
permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou”
(ljo 2.6;). E sempre o método de expressão de um homem que
está olhando para uma Pessoa. A Pessoa humana real de Cristo
estava sempre presente na mente de João enquanto ele escrevia
sobre ela.
A palavra “manifestou” pressupõe a existência anterior à mani­
festação. No Homem de Nazaré havia a manifestação do Único que
tinha existido muito antes do Homem de Nazaré.
O inimigo é descrito aqui como o diabo. Lemos que ele é um
assassino, um mentiroso, um traidor; a fonte principal do pecado,
a própria ilegitimidade. A trabalho do assassino é a destruição de
vida. A obra do mentiroso é a extinção da luz. A obra do traidor é a
violação do amor. A obra do arquipecador é a infração da lei. Estas
são as obras do diabo.

568
Os propósitos da encarnação

Ele é um assassino. Isso consiste fundamentalmente na destrui­


ção da vida em sua esfera mais elevada, a espiritual. A alienação de
Deus é a obra do diabo. E também a morte na esfera mental. A visão
que deixa de incluir Deus é a cegueira prática. No plano físico, toda
doença e toda dor são em última instância resultantes do pecado e
estão entre as obras do diabo. Estas coisas todas estão no domínio
de sua obra como homicida e destruidor da vida humana.
Ele é mais. Ele é o mentiroso, e aquele que extingue a luz,
de maneira que os homens se corrompam no caminho. Toda a
ignorância, todo o desespero, todo o que vaga sobre o deserto sem
rastros da vida, tudo isso é devido à extinção da luz espiritual na
mente do homem. Toda a ignorância é o resultado da ofuscação da
visão de Deus.
“E a vida eterna é esta” — vida de duração permanente, vida
alta, vida profunda, vida ampla, vida longa, vida inclusiva — “que te
conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem
enviaste” (Jo 17.3). A proporção na qual o homem conhece a Deus
é a proporção na qual ele vê claramente o âmago das coisas. Em
breve, quando a obra redentora de Cristo tiver sido aperfeiçoada no
homem e no mundo, descobriremos que toda ignorância será bani­
da, e o homem encontrará seu caminho na luz. Mas o mentiroso,
o único que traz a escuridão, tem feito suas obras se espalharem
sobre a face da terra, e toda ignorância e desespero resultantes são
devidos à obra daquele a quem Jesus indicou como o mentiroso
desde o início.
Novamente, a violação do amor, como uma obra do diabo, é
vista supremamente no caminho pelo qual ele entrou no coração
de Judas e o tornou um traidor. Toda a avareza que se encontra no
mundo hoje, todo o ciúme e toda a crueldade são obras do diabo.
Por fim, ele é o supremo pecador. Pecado é ilegitimidade, porém
não significa a condição de ser sem lei, mas a condição de ser con­
tra a lei, infringir a lei. De maneira que toda a injustiça feita a Deus
neste mundo, toda a injustiça feita pelo homem ao homem e toda
injustiça feita pelo homem a si mesmo são obras do diabo.
Em suma: morte, trevas, ódio, onde quer as encontremos, são
obras do diabo.
O Filho de Deus foi manifestado para que pudesse destruir
as obras do diabo. Se no início nós O vimos como uma alma
em conflito com todas estas coisas, lembre-se que isto foi uma

569
Os fundamentos

indicação do programa e uma profecia do propósito. A encarnação


não foi apenas o nascimento de uma criancinha por meio de quem
devemos aprender o segredo da infância, e em quem, atualmente,
devemos ver as glórias da humanidade. Tudo isto é verdade; mas foi
o acontecimento no curso dos eventos humanos, daquele coisa por
meio da qual Deus é capaz de destruir as obras do diabo.
a) O que significa “destruir”
“Destruir!” Essa é uma palavra que significa dissolver, soltar.
E a mesma palavra que é usada em Apocalipse para significar o
livrar-nos de nossos pecados. E a palavra usada em Atos dos após­
tolos, quando você lê que o barco se quebrou aos pedaços; soltou,
dissolveu, ou seja, aquilo que tinha sido um todo consistente foi
quebrado, espalhado e destruído.
A palavra “destruído” pode ser perfeitamente correta, mas
procuremos entendê-la. Ele se manifestou para fazer uma obra
na história humana, cujo resultado deve ser que as obras do diabo
devem perder sua consistência. A força coesiva que faz com que
pareçam estáveis até este momento, Ele veio para soltar e dissolver.
Ele se manifestou para destruir a morte pelo dom da vida. Ele se
manifestou para destruir a escuridão pelo dom da luz. Ele se ma­
nifestou para destruir o ódio pelo dom do amor. Ele se manifestou
para destruir a ilegitimidade pelo dom da lei. Ele se manifestou
para soltar, quebrar, destruir os negativos que deterioram, ao
trazer o positivo que refaz e eleva.
Dois mil anos atrás, o Filho de Deus se manifestou, e, durante
estes séculos, também se manifesta na vida de milhares de pessoas.
Ele destruiu as obras do diabo, dominou a morte pelo dom da vida;
expulsou as trevas pela luz penetrante; transformou o egoísmo da
avareza e do ciúme em amor, alegria, paz, longanimidade, bondade e
amabilidade. Ele apanhou homens sem lei e os fez servos, contentes
com Deus e ligados a Ele. Assim, Ele destruiu as obras do diabo.
A força deste Cristo tem operado e está operando; e as coisas
que foram anteriormente estabelecidas foram soltas e estão indo à
decadência. Ele se manifestou para destruir as obras do diabo. Se
você admitir que, em sua vida, está preso às forças do mal; então
oro para que você se converta com todo o propósito do coração ao
Único que se manifestou muito tempo atrás, que com todo poder de
sua vitória graciosa destruirá em você todas as obras do diabo e o
deixará livre.

570
Os propósitos da encarnação

Preparar para um segundo advento


“Cristo, tendo-se oferecido uma vez para sempre para tirar os
pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o
aguardam para a salvação” (Hb 9.28).
Todos nós somos conscientes de que nada é perfeito; de que as
coisas que Cristo veio fazer ainda não foram feitas; que as obras do
diabo ainda não foram finalmente destruídas; que os pecados ainda
não foram retirados; que na consciência espiritual da raça, Deus
ainda não é perfeitamente conhecido. “Agora, porém, ainda não
vemos todas as coisas a ele sujeitas” (Hb 2.8). A vitória não parece
estar ganha.
E impossível ler a história da encarnação e acreditar nela, e se­
guir a história dos séculos que se seguiram a esta encarnação sem
sentir no fundo do peito que algo mais é necessário. A encarnação
foi essencial, mas a consumação de seu significado só poderá se
realizar mediante uma outra vinda, tão pessoal, tão definitiva, tão
positiva, tão real na história humana como foi a primeira.
“Cristo [...] aparecerá segunda vez” (Hb 9.28). Não há fuga,
senão pela casuística, do simples significado dessas palavras. A
primeira idéia transmitida por elas é a de um advento pessoal real
de Jesus, ainda por acontecer. Espiritualizar uma declaração como
essa, não tentar fazer aplicação dela por qualquer outro meio do
que aquele pelo qual uma criancinha o entendesse, seria agir com
desonestidade para com a simplicidade da declaração das Escritu­
ras. Pode haver diversidade de interpretações quanto a como Ele
virá e quando Ele virá; se Ele virá para reinar por um milênio ou
para coroá-lo; mas o fato de Sua vinda real está fora de questão.
Paulo, em todos os seus escritos, está consciente dessa verdade
referente ao segundo advento. Em alguns deles, ele não o enfatiza
extensamente ou com tanta clareza quanto em outros, pela simples
razão de que não era sempre o assunto específico com o qual
ele estava tratando. Nas cartas aos Tessalonicenses temos o
ensinamento de Paulo com respeito a essa questão apresentado
mais claramente. Bem no centro da primeira carta, temos uma
passagem em que declara, em linguagem inconfundível, que “o
Senhor mesmo, dada a Sua palavra de ordem, ouvida a voz do
arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os
mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois, nós, os vivos,
os que ficarmos, seremos arrebatados juntamente com eles, entre

571
Os fundamentos

nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e, assim, estaremos


para sempre com o Senhor. Consolai-vos, pois, uns aos outros com
estas palavras” (lTs 4.16-18).
Tiago, escrevendo para aqueles que estavam em aflição diz:
“Sede vós também pacientes e fortalecei o vosso coração, pois a
vinda do Senhor está próxima” (Tg 5.8).
Pedro, com clareza semelhante, disse aos primeiros discípulos,
“Por isso, cingindo o vosso entendimento, sede sóbrios e esperai
inteiramente na graça que vos está sendo trazida na revelação de
Jesus Cristo” (lPe 1.13).
João, que reclinou sobre o seio de seu Mestre, disse, “Amados,
agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que ha­
veremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos
semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é. E a si
mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim como
ele é puro” (ljoão 3.2,3).
Judas disse àqueles a quem ele escreveu, “Vós, porém, amados,
edificando-vos na vossa fé santíssima, orando no Espírito Santo,
guardai-vos no amor de Deus, esperando a misericórdia de nosso
Senhor Jesus Cristo, para a vida eterna” (Jd 20,21).
Todo escritor do Novo Testamento apresenta essa verdade
como parte da fé cristã comum. Crença no segundo advento real e
pessoal de Jesus fez florescer o cristianismo primitivo e constituiu
o poder dos primeiros cristãos para sorrir diante da face da morte
e para superar todas as forças que eram contra eles. Não há nada
mais necessário em nossos dias do que uma nova declaração desse
fato vital da fé cristã. Pense o que significaria se toda igreja ainda
levantasse sua face para o leste e esperasse pela manhã; esperasse,
como o Senhor deve tê-la esperado, com a cintura cingida para o
serviço e as lâmpadas queimando. Se toda igreja cristã estivesse
esperando por isso dessa maneira, ela rejeitaria sua mundanidade
e infidelidade, e todas as outras coisas que impedem sua marcha
para a conquista.
a) Significado do segundo advento
As Escrituras fazem mais do que afirmar o fato do segundo adven­
to. De uma maneira notável, elas declaram o seu significado. “Cristo
[...]aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o aguardam para a
salvação” (Hb 9.28; grifo do autor). Para entender corretamente isto,

572
Os propósitos da encarnação

devemos colocar o segundo advento em contraste com o primeiro.


Isto é o que o escritor mais evidentemente quer dizer, porque o
contexto declara que ele se manifestou na consumação dos tempos
para carregar os pecados. Ele agora diz que “Cristo [...] aparecerá
segunda vez, sem pecado”. Todas as coisas do primeiro advento
eram necessárias para o segundo; mas as coisas do segundo serão
diferentes das coisas do primeiro.
Por meio do seu primeiro advento, o pecado foi revelado. Sua
própria cruz era o lugar onde todo o profundo ódio do coração
humano se expressou mais diabolicamente em vista do céu, da
terra e do inferno.
Houve também a revelação das trevas como contrária à luz. “E
os homens amaram mais as trevas do que a luz” (Jo 3.19), foi o
supremo lamento do coração de Jesus.
Em seu primeiro advento, Ele não somente revelou o pecado,
mas suportou-o. Tudo que ele fez em sua vida foi colocar-se debaixo
do pecado para retirá-lo. Ele suportou suas limitações por toda sua
vida. Ele viveu na pobreza, na tristeza e na solidão,e todas estas
coisas são limitações resultantes do pecado. Quando Jesus Cristo
entrou na carne, Ele entrou nas limitações que seguiam o pecado
e suportou o pecado em sua própria consciência por todos os anos;
não somente a pobreza, mas a tristeza em todas as suas formas,
assim como a solidão. Todas as tristezas do coração humano esta-
vam sobre Seu coração até que Ele proferiu aquele clamor indizível,
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mc 15.34).
Jesus, por ter finalmente tratado do pecado, o destruiu em sua
própria raiz em seu primeiro advento, e seu segundo advento será
o da vitória. Ele virá novamente; não na pobreza, mas na riqueza.
Ele virá novamente; não na tristeza, mas com toda alegria. Ele virá
novamente; não na solidão, mas para reunir ao seu redor todas as
almas confiantes que olharam para Ele, O serviram e O esperaram.
Tudo nesse primeiro advento de tristeza e solidão, de pobreza e de
pecado, estará ausente do segundo. O primeiro advento foi para a
expiação; o segundo será para administração. Ele veio, entrar na
natureza humana, tomar sua forma, tratar com o pecado e lançá-lo
fora. Ele tirou o pecado e virá novamente para estabelecer aquele
reino, os fundamentos do qual Ele lançou em sua primeira vinda.
Ele “aparecerá segunda vez, sem pecado, [...] para a salvação”
(Hb 9.28). Para aqueles que ouviram a mensagem do primeiro

573
Os fundamentos

advento e creram nela, e confiaram em Sua grande obra, e


encontraram abrigo no mistério de Sua manifestação e no fato
de ter carregado todo pecado — para estes, a salvação substitui
o julgamento. Mas para o homem que não se abrigou debaixo
daquele primeiro advento e de seu valor expiatório — o juízo habita
nele. Todas as coisas começadas por Seu primeiro advento serão
consumadas pelo segundo.
Em Seu segundo advento haverá completa salvação para o
indivíduo — justiça, santificação e redenção. Cremos e fomos
salvos. Cremos e estamos sendo salvos. Cremos e seremos salvos.
O último movimento acontecerá quando Ele vier.
Aqueles que dormem em Cristo estão salvos com Deus, e Ele os
trará com Ele quando vier novamente. Eles ainda não estão aper­
feiçoados, “por haver Deus provido coisa superior a nosso respeito,
para que eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados” (Hb 11.40). Eles
estão no descanso, e conscientemente no descanso. Eles estão
“em plena confiança, preferindo deixar o corpo e habitar com o
Senhor” (2Co 5.8), mas eles ainda não estão aperfeiçoados; eles
estão aguardando, na luz e alegria do céu, em meio à luta da terra,
pelo o segundo advento. O céu está esperando por Ele. A terra está
esperando por Ele. O inferno está esperando por ele. O universo
está esperando por Ele.
A vinda será para aqueles que esperam por Ele. Quem são
aqueles que esperam por Ele? “Pois eles mesmos, no tocante a nós,
proclamam que repercussão teve o nosso ingresso no vosso meio,
e como, deixando os ídolos, vos convertestes a Deus, para servirdes
o Deus vivo e verdadeiro e para aguardardes dos céus o seu Filho,
a quem ele ressuscitou dentre os mortos, Jesus, que nos livra da ira
vindoura” (lTs 1.9,10).
A primeira coisa é abandonar os ídolos. Temos feito isso?
Portanto, como abandonamos os ídolos e estamos O servindo, nós
O estamos esperando. Este é o esperar que o Novo Testamento or­
dena, e para aqueles que esperam, Seu segundo advento significará
a consumação da salvação deles. Cristo se manifestará! Glorioso
evangelho!

574
575

53 A filosofia moderna

P h il ip M au r o
Procurador de Justiça, Nova York
Revisado e editado por Gerald B. Stanton, Th.D.

“Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia


e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os
rudimentos do mundo e não segundo Cristo; porquanto, nele, ha­
bita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade. Também, nele,
estais aperfeiçoados. Ele é o cabeça de todo principado e potestade”
(Cl 2.8-10; grifo do autor).
Na passagem precedente ocorre a única menção que a Bíblia
faz à filosofia. Nada é mais altamente estimado entre os homens do
que a filosofia. Em todas as mãos é considerada como o exercício

PHILIP MACIRO (1859-1952) foi um advogado de sucesso, atuando


diante da Suprema Corte dos Estados Unidos, quando se converteu
após assistir encontros no Gospel Tabernacle, em New York, cujo
pastor era A. B. Simpson. Isso foi no dia 24 de m aio de 1903. No
ano seguinte, ele publicou From Reason to Revelation [Da Razão à
Revelação], o primeiro de mais de quarenta livros de sua autoria, (Jm
de seus livros mais amplamente circulados, Life in the Word [Vida na
Palavra], foi publicado em 1909 e foi incluído em Os Fundamentos em
uma versão condensada. Ele continuou sua prática legal, mas falava em
encontros cristãos e escrevia livros e artigos. Foi Mauro quem preparou
o sumário legal que Williarn Jennings Bryan usou no famoso julgamento
de Scopesô, em 1925. Nos anos posteriores, ele m udou seu ponto de
vista quanto ao Reino e à profecia, mas nunca se afastou das doutrinas
básicas da fé cristã.
Os fundamentos

e a ocupação supremos da mente humana, pois é considerada uma


ocupação para a qual apenas muitos poucos homens têm o equi­
pamento intelectual requisitado. Até onde a tradição dos homens
alcança, a filosofia tem mantido esse lugar destacado na estima
humana. Portanto, é um fato de muita significação que, em toda a
Bíblia, a filosofia seja mencionada apenas uma vez.
Mesmo hoje em dia, a deferência dada à filosofia é tamanha
que não existem muitos professores da Bíblia que se aventuram
a alarmar seus companheiros a respeito de seus perigos; os
filósofos têm o costume de lidar com o cristianismo da mesma
forma com que lidam com o paganismo. Na verdade, um curso
de filosofia é agora considerado, e por algumas gerações o tem
sido, uma parte essencial da educação de um homem que se
prepara para o ministério cristão. Esse não é o único dos “rudi­
mentos do mundo” que tem encontrado seu caminho em nossos
seminários teológicos. Portanto, não é surpreendente que, no
ensino fornecido por estes seminários de graduação, a filosofia
mantenha um lugar bem diferente daquele atribuído a ela pela
Bíblia.

Não uma afirmação humana


Podemos estar bem certos que a passagem citada acima não
é uma afirmação humana. Ela não expressa a estima humana
pela filosofia — longe disto. Ao pronunciar esse alerta, Paulo
não está repetindo o que ele aprendeu enquanto fazia seu curso
de filosofia na escola de Gamaliel. Nenhum homem jamais teria
unido a filosofia a uma decepção vã, ou a teria caracterizado
como um processo perigoso contra o qual o povo de Deus
deve ser alertado, para que eles não sejam escorchados de
suas posses. Nenhum homem jamais definiu a filosofia como
algo que está de acordo com a tradição humana e os princípios
básicos deste mundo mau, e não de acordo com Cristo. Esse
alerta é do próprio Deus; mas, esse, assim como muitos outros
avisos solenes, têm sido menosprezados e completamente des­
considerados. Aquilo, a que esse sério aviso se refere, tem sido
recebido de braços abertos e se incorporado na maquinaria
teológica de nossos sistemas eclesiásticos. As conseqüências
desse desconsiderar do alerta de Deus são maiores do que
podemos esperar.

576
A filosofia moderna

Esta palavra “cuidado” não ocorre muitas vezes no Novo


Testamento. Não existem muitas coisas das quais os crentes são
convidados a se precaver.
Algumas destas são os “escribas”, os “cães” (Mc 12.38), os
“ maus obreiros”, a “falsa circuncisão” (Fp 3.2), e um “coração
perverso de incredulidade” (Hb 3.12). O alerta de nosso texto se
dirige aos crentes que foram instruídos quanto a sua unidade com
Cristo em sua morte (pelas mãos do mundo), seu sepultamento e
sua ressurreição. Ênfase adicional é dada ao alerta em razão do
contexto em que isso ocorre. A palavra traduzida por “espólio”
significa, literalmente, fazer uma presa, como quando alguém cai
nas mãos de ladrões e seus bens são tirados por meio da violência,
ou por fraudadores persuasivos e plausíveis que ganham sua
confiança e, por meio de sua arte, o tosquiam de seus valores. O
que está em contemplação aqui é o tesouro celestial, a porção dos
crentes das riquezas insondáveis de Cristo. Por isso a fraude vazia
é contrastada com a plenitude da divindade que habita em Cristo;
e a condição escorchada daquele que foi vitimado pela filosofia é
contrastada com o enriquecimento daqueles que mantiveram pela
fé sua completude naquele que é o Cabeça de todo principado e
poder.
Mas por que, podemos muito bem indagar, a filosofia é descrita
como um instrumento de espoliação nas mãos de homens astutos?
E por que ela é caracterizada conforme (i.e., segundo) os rudi­
mentos, ou princípios básicos, do mundo? A palavra traduzida por
“rudimentos” ocorre quatro vezes nas Escrituras. Em Colossenses 2.20
é traduzida novamente por “rudimentos”. Em Gálatas4.3 e 9 é
traduzida por “princípios elementares” (NVI). Essas traduções
parecem transmitir a idéia dos princípios básicos ou fundamentais
do sistema mundial. Esses elementos são descritos em Gálatas 4.9
como “fracos e pobres”. Eles não fortalecem nem enriquecem, mas
fragilizam e empobrecem aqueles que recorrem a eles.

A filosofia definida
A razão para isso pode ser percebida, de um modo geral, pelo
menos, quando averiguamos o que é a filosofia, a saber, a ocupação
da tentativa de inventar, pelo exercício da razão humana, uma
explicação para o universo. E uma ocupação interminável, porque
se a explicação que a filosofia está sempre procurando fosse

577
Os fundamentos

encontrada, essa descoberta seria o fim da filosofia. A ocupação do


filósofo acabaria. E interminável, por uma razão ainda mais forte, a
saber, a de que o filósofo é limitado, pelas regras de sua profissão,
a empregar em sua pesquisa somente a sabedoria humana, e está
escrito que o mundo, por sua sabedoria, não chega ao conheci­
mento de Deus (ICo 1.19-21; 2.14). Incidentalmente, uma grande
parte do tempo do filósofo é ocupada em criticar e demonstrar
a irracionalidade ou o absurdo de todo sistema filosófico exceto
aquele que é exposto por ele mesmo. Isso, no entanto, é meramente
a parte destrutiva de sua obra, a parte construtiva é, como foi dito,
o emprego de suas faculdades racionais na tarefa de construir um
sistema que considerará, de uma determinada maneira, a existência
e a origem do universo visível, assim como as mudanças que pare­
cem acontecer nesse universo visível. O filósofo, ao se estabelecer
sobre tal sistema, deve daí em diante defendê-lo dos ataques dos
filósofos de “escolas” opostas (que apresentarão pesados volumes
para demonstrar, para sua interira satisfação, que seus sistema
filosófico é um tecido de absurdos) e responder a suas muitas e
variadas objeções e críticas.

“Não segundo Cristo”


A primeira vista, podemos ver, assim, que a filosofia é, em seu
caráter essencial, conforme a tradição humana e os princípios
fundamentais ou primários do sistema mundial. Não é “segundo
Cristo”, que é odiado pelo mundo e que pôs o machado à raiz de
todos os princípios deste. Proeminente entre os elementos do mun­
do e da tradição humana está o princípio de que o mundo reflete
a grandeza do homem, e que a razão humana é o fator mais alto e
mais poderoso dele. Atualmente, tem se tornado uma doutrina da
teologia popular que a razão humana é o tribunal final de apelação
em todas as questões de doutrina. No mundo do homem, o conhe­
cimento humano é exaltado e posto no lugar mais alto, e nenhum
limite está posto para o que pode ser realizado pela engenhosidade
humana. “Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre
cujo tope chegue até aos céus e tornemos célebre o nosso nome”
(Gn 11.4; grifo do autor), é o programa da humanidade, como
anunciado por aqueles que estabeleceram os princípios básicos do
sistema mundial. Nesse sistema só é valorizado e louvado aquilo
que é atingido pelo esforço do homem e creditado a ele. A filosofia

578
A filosofia moderna

adere estritamente a essa tradição e a esses princípios, em que suas


várias explicações para receber reconhecimento como “filosóficos”
devem ser puramente o produto da razão humana exercitadas sobre
os resultados das investigações humanas.

Filosofia versus revelação


Contudo, a filosofia e a revelação divina são completamente
irreconciliáveis. A própria existência da filosofia como uma ocu­
pação para a mente humana depende da rígida exclusão de toda
explicação do universo que não seja alcançada por um processo
especulativo. Se uma filosofia admite a existência de um Deus
(como as filosofias até agora o fazem), esse é um deus que ou é
um tolo, ou não permitiu que mais nada sobre si, ou como ele fez
e sustenta o universo, fosse dito. O deus dos filósofos não poderia
romper com essas restrições, caso contrário haveria imediatamen­
te um fim dessa filosofia. Porque não é a busca da verdade que faz
um filósofo. A busca da verdade, para ser filosófica, deve conduzir
às direções nas quais a verdade, possivelmente, não possa ser
encontrada. Pois a descoberta do que o filósofo pretende procurar
levaria suas filosofias a um fim, e tal calamidade deve, naturalmen­
te, ser evitada. Portanto, alguém que aceitasse a explicação do
universo como originária em Deus, que o fez, significaria que isso
não daria mais continuidade para a filosofia. Alguém que obteve a
verdade não é mais um pesquisador. O valor da filosofia, portanto,
não está em seus resultados, porque não há nenhum, mas somente
o emprego que suas especulações não verificáveis proporcionam
para aqueles cujos sabores e dotes intelectuais os qualificam para
se engancharem nele.

Filosofia versus Cristo


Novamente, a filosofia não é “segundo Cristo”, pela simples e
suficiente razão de que o testemunho de Cristo põe um fim a tudo
que ela aceita, a todas as especulações filosóficas concernentes às
relações da humanidade com Deus e com o universo. Cristo põe
seu selo na verdade e na autoridade divina das Escrituras do Antigo
Testamento. Além disso, Ele revelou o Pai e, por fim, Ele prometeu
mais revelações de verdade por meio de seus apóstolos, sob o en­
sino imediato do Espírito Santo. Essas revelações não são apenas
diametralmente opostas às especulações filosóficas, mas retiram

579
Os fundamentos

todo e qualquer fundamento destas. O testemunho e o ensino


de Cristo não foram comunicados aos homens com a intenção
de informá-los como o homem e o mundo vieram a ser o que
são — embora eles revelem a verdade quanto a isto. O propósito
da doutrina de Cristo e de sua missão pessoal ao mundo era
mostrar aos homens sua verdadeira condição, como seres sob o
domínio do pecado e da morte, e de realizar a redenção eterna
para todos os que crêem nas boas novas e aceitam o dom da
graça de Deus.
A doutrina de Cristo não somente instrue os homens quanto
ao caminho para o reino de Deus, mas também autoriza aqueles
que o aceitam à posse imediata e o desfrutar de muitos e valiosos
direitos e privilégios que não podem ser adquiridos de outro modo.
Se, portanto, você crê em Cristo Jesus e confia no mérito de Seu
sacrifício para que você seja aceito por Deus, tenha cuidado para
que nenhum homem o escorche desses inestimáveis direitos e
privilégios por meio da filosofia e do engano vão, de acordo com
os princípios do Mundo, e não segundo Cristo. Porque Nele, e em
nada mais, habita a plenitude da divindade; e Nele, e em nenhum
outro lugar, o crente pode ser cheio à sua extrema capacidade. A
filosofia pode tirar os homens da parte da herança da fé, pois ela
não tem nada a oferecer em troca.

Frutos da filosofia
Seria bem possível, para alguém que teve o deleite e a curiosi­
dade exigidos, traçar os principais desenvolvimentos da filosofia
e examinar as muitas diferentes “escolas” às quais ela tem dado
força no período destes vários milhares de anos. Ao fazer isso,
ele descobriria que a filosofia consiste na busca do inatingível,
e que, entre todos os variados campos da atividade humana, não
há nenhum que tenha testemunhado tal gasto estéril e absoluta­
mente fútil de energia como o campo da filosofia especulativa.
Um filósofo de renome declarou que a “filosofia tem sido um falso
aroma desde os dias de Sócrates e Platão”. Este dizer acerca de
um falso aroma por mais de dois mil anos certamente não é um
relato do qual devemos nos orgulhar; embora seja verdade que,
até onde os resultados alcançam, a filosofia não tem nada mais
encorajador do que isto para oferecer como uma encorajamento
para se engajar nela.

580
A filosofia moderna

Portanto, não propomos algo tão estupendo e (tão inútil), como


uma revisão da história da filosofia, mas meramente uma breve
declaração para expor o status da filosofia na atualidade. E isto
empreendemos para que o leitor não filosófico possa ser capaz de
averiguar o caráter da influência que a filosofia está mostrando,
nestes tempos de mudança e desassossego mental, sobre os
problemas imediatos da humanidade e sobre o que é chamado “o
progresso do pensamento humano”.
A grande maioria dos homens não pensa além das questões que
estão dentro do pequeno círculo de seus interesses pessoais. Esta
maioria irrefletida toma seus pensamentos e opiniões de alguns
intelectuais e cultos, ou de líderes que se propõem a ganhar sua
confiança. E importante, portanto, averiguar quais as idéias que
prevalecem entre aqueles que estão em uma posição capaz de in­
fluenciar a opinião da massa da humanidade. Isso pode facilmente
ser feito, provando o atual ensino filosófico nas grandes universida­
des dos países de fala inglesa.

A filosofia teísta e ateísta


As várias escolas de filosofia que floresceram ao longo das eras
podem ser divididas em duas classes principais, a saber, a teísta e
a ateísta. A primeira classe abrange todos os sistemas filosóficos
que admitem algum tipo de deus como o criador e sustentador do
universo. Deve-se notar, de passagem, que as filosofias teístas são
mais perigosas para o gênero humano do que a ateísta, porque a
primeira é bem calculada para ensinar aqueles que, por natureza
ou preparo, têm repugnância ao ateísmo.

Dualismo e panteísmo
Ao limitar nossa atenção, portanto, às filosofias teístas, encon­
traremos várias classes destas, a saber, “a dualista” e “a panteísta”.
O dualismo é o nome que os filósofos atribuem àqueles sistemas
que sustentam que Deus (ou a “Causa Primeira”) criou o universo
como um ato de sua vontade, mas tem uma existência distinta e
aparte dele. Esses sistemas são chamados “dualistas”, porque eles
consideram Deus como uma entidade, e o universo ou a criação
como outra entidade, assim, há duas entidades. O leitor deve enten­
der claramente que quando um professor instruído de filosofia fala
de “dualismo”, ele tem em mente também o cristianismo.

581
Os fundamentos

Monismo e pluralismo
O panteísmo, por outro lado, sustenta que Deus e o universo
são uma e a mesma coisa. Há várias variedades de panteísmo que
têm seguidores entre os filósofos, e, g., o monismo e o pluralismo.
O monismo é o sistema que assume como a base da realidade um
“absoluto” ou a “onisciência” — uma monstruosidade que com­
preende em seu vasto ser todas as coisas e todas as suas relações
e atividades. O monismo, portanto, afirma que há apenas uma
entidade. Deus não tem existência aparte do universo e jamais teve.
Este, portanto, é eterno, e não houve nenhuma criação.

A situação atual
Para obter, para nossa consideração, uma afirmação justa e
precisa da posição da recente filosofia, faremos referência às
conferências de Hibbert, de 1909, sobre “A Atual Situação da Filo­
sofia”, proferida pelo Professor William James, da Universidade de
Harvard, no Manchester College, em Oxford. Essas conferências
foram publicadas em um volume intitulado, A Pluralistic Universe
[Um Universo Pluralista] (Longmans, Green).
O professor James é um dos raros filósofos de destaque que rejei­
tam o ensinamento do monismo. Ele defende uma teoria nomeada
“pluralismo”, da qual uma boa idéia pode ser obtida das seguintes
citações. E de primordial importância para que aprendamos com
o professor James qual é o status atual do dualismo, pois, como
vimos, esta classe abrange o cristianismo fora de moda, a saber,
o bíblico. Quanto a isto ele diz: “O teísmo dualista é professado,
como jamais o fora antes, em todas as cadeiras de ensino católico,
ao passo que, nos últimos anos, há uma tendência a desaparecer de
nossas universidades britânicas e americanas para ser substituído
por um panteísmo monista, mais ou menos aberto ou disfarçado”
(op. cit., p. 24).
De acordo com essa autoridade competente, as faculdades
católicas romanas são as únicas que afirmam, conforme a Bíblia,
a criação e o governo do universo, a origem das criaturas vivas, in­
cluindo o homem, a origem do mal, etc., e, até mesmo, “professam”
esses eventos. As grandes universidades da Inglaterra e da Améri­
ca que foram fundadas com o propósito de manter as doutrinas das
Escrituras, para divulgar o conhecimento delas como a revelação

582
A filosofia moderna

do Deus vivo e como o fundamento de todo o ensino verdadeiro,


têm se destituído de tudo que fizeram de útil para a nutrição das
mentes jovens, e que as tornaram valiosas para as comunidades nas
quais floresceram. Essa grave e importante mudança foi realizada
por meio da atuação da filosofia e dos enganos vãos, conforme a
antiga tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e
não segundo Cristo.

(Im estranho fenômeno


Aqui, assim parece ao escritor, temos uma explicação para
o estranho fenômeno de que o romanismo está ganhando base
rapidamente na Inglaterra e nos Estados Unidos, um país basica­
mente protestante, embora esteja prontamente perdendo influência
naqueles países onde tem tido quase que exclusivo domínio sobre
a consciência do povo, e nos quais estes povos jamais tiveram o
privilégio de abrir a Bíblia. Eles jamais tiveram qualquer ligação
com ela como a Palavra de Deus. Tudo que sempre tiveram foi “a
igreja”, que agora a estão julgando por seus frutos.
Mas na Inglaterra e nos EUA a situação é outra. Por muitas
gerações, de pai para filho, o povo tem estado entrelaçado por
muitos e fortes laços e associações com a Palavra do Deus vivo.
Sua influência sobre os costumes e a vida do povo tem sido grande
e poderosa. Somente aqueles, cujas mentes estão cegas, negarão
a poderosa influência que a Bíblia exerceu como um fator na
prosperidade nacional dos países de fala inglesa. As grandes
universidades têm sido seu orgulho, consideradas como um dos
baluartes nacionais; e a Bíblia tem sido a pedra fundamental dessas
universidades. Mas agora aconteceu uma mudança — tão ágil e tão
furtiva que dificilmente admitimos que esta ocorreu. As universida­
des descartaram o ensino da Bíblia e repudiaram sua autoridade de
mestre divinamente inspirado. Somente nas “cadeias de instrução
católicas” seu ensino é professado. O que é de admirar, no entanto,
em um tempo de desintegração geral e desassossego, em que os
filhos dos ancestrais que amaram a Bíblia deveriam ser levados aos
milhares para um sistema que tem a aparência de estável, mas onde
tudo mais está caindo aos pedaços, mas que, apesar de todos seus
erros, proclama a infalibilidade das Sagradas Escrituras! Aquele
que for sábio levará essas coisas em conta.

583
Os fundamentos

üma mudança repentina


Professor James, em suas conferências em Oxford, no Manchester
College, trata do ensino da Bíblia hoje como algo expressamente
desacreditado e fora de época, para pedir apenas uma breve
referência passageira a uma discussão sobre a “atual situação da
filosofia”. Ele diz:
“Deixarei o materialismo cínico inteiramente fora de nossa
discussão, como se não fosse necessário diante desta audiência, e
ignorarei o velho teísmo dualista pela mesma razão” (op, cit., p. 30).
E importante para nosso propósito notar a subtaneidade da gran­
de mudança que ocorreu em nossas universidades, onde a doutrina
cristã tem sido relegada a uma posição de obscuridade tão profunda
que exige consideração em uma discussão desse tipo. O palestrante,
após fazer menção ao seguinte comentário feito pelos hindus, de que
“o grande obstáculo para a disseminação do cristianismo em seu
país era a infantilidade de nosso dogma da criação”, acrescentou:
“Certamente, muitos membros desta audiência estão prontos a se
alinhar com o hinduismo nesta questão”. As seguir, ele continuou a
dizer que “aqueles de nós que são sexagenários” têm testemunhado
tais mudanças a ponto de “fazer o pensamento da geração anterior
parecer tão diferente de sua sucessora como se ela fosse a expressão
de uma raça diferente de homens. A maquinaria teológica que falou
tão vivamente a nossos ancestrais — com sua idade finita do mundo,
sua criação a partir do nada, sua moralidade jurídica, seu tratamento
de Deus como um inventor externo, um governante inteligente e
moral — soa tão estranho para a maioria de nós como se fosse uma
religião selvagem de uma terra estranha” {op. cit., p. 29).
O efeito sobre as mentes maleáveis dos estudantes dessas
palavras, como aquelas últimas citadas acima, pode ser facilmente
imaginado. Esses pensamentos, astutamente, transmitem a su­
gestão de que esses jovens são, em respeito às noções filosóficas,
vastamente superior aos homens de luz e instrução de gerações
passadas, e que é pelo repúdio ao cristianismo e seus oráculos
vivos que eles fornecem prova convincente de sua superioridade
intelectual. Há poucas mentes entre os homens dessa época, a
quem esse discurso foi dirigido, ou de qualquer época — exceto
aqueles que são firmemente fundamentados e estabelecidos na
verdade — que poderiam resistir à insidiosa influência de tamanho
apelo à vaidade inata dos homens.

584
A filosofia moderna

Sendo essas as influências às quais os estudantes de nossas


universidades estão agora expostos, acaso não há necessidade
urgente de imprimir sobre os pais cristãos o alerta de nosso texto e
exortá-los a tomar cuidado para que seus filhos não sejam destruí­
dos pela filosofia e enganos vazios?

Buda ou Cristo?
E essencial proclamar esse alerta concernente a um sistema de
filosofia que, em suas várias formas, tem impedido que a verdadeira
doutrina de Cristo prevaleça em nossas universidades. Já declaramos
que esse sistema reinante, que muda agora o domínio na Inglaterra e
nos EUA, outrora indiscutível e predominantemente países cristãos,
é o panteísmo que tem florescido por milhares de anos como o culto
religioso filosófico da índia. Vimos como o Professor James condes-
cende ao comentário hindu sobre a doutrina bíblica da criação e se
alia a ela. Se o teste de uma doutrina é o modo como que ela é aceita
pelos hindus, seria bastante lógico ir a eles para a interpretação do
universo que deve ser ensinado em nossas escolas e faculdades.
Os filósofos de hoje não têm, portanto, nada a oferecer a nós,
que nossos ancestrais não entendessem tão bem quanto eles, ou
que nossos ancestrais não fossem tão livres para escolher como
nós. Será que nossos ancestrais, portanto, preferiram o pior, em vez
do melhor, quando escolheram e fundaram grandes universidades
para preservar as doutrinas ensinadas por Jesus Cristo e seus após­
tolos, em vez das doutrinas associadas com o nome de Buda (como
eles poderiam ter feito)? Nossos professores de filosofia de hoje
parecem dizer isso. Mas se ainda permanece qualquer juízo no ho­
mem do século vinte, ele se lembrará — antes de aquiescer, mesmo
que levemente, com a remoção dos antigos fundamentos — que o
que quer que possa ser considerado superioridade na ordem social
da Inglaterra cristianizada sobre a da índia panteísta é devido à
escolha que nossos ancestrais fizeram quando aceitaram o ensino
do evangelho de Cristo, e ao fato de que toda geração subseqüente,
até hoje, ratificou e aderiu firmemente a essa escolha.

Responsabilidade nacional
Aprendemos com a Bíblia e com a história secular que Deus não
apenas trata tanto com indivíduos com base no privilégio e respon­
sabilidade, mas também com as nações. Devido aos extraordiná­

585
Os fundamentos

rios privilégios concedidos aos Israelitas, uma responsabilidade


mais pesada recaiu sobre aqueles do que sobre as outras nações,
e eles foram visitados por suas infidelidades com corresponden­
te severidade. E, agora, estamos vivendo neste longo período
de séculos conhecido como “o tempo dos gentios”, durante os
quais os ramos naturais da oliveira (Israel) foram arrancados,
e os ramos da oliveira selvagem são enxertados em seu lugar;
quer dizer, o período no qual os gentios estão ocupando tempo­
rariamente o lugar de Israel, de privilégio e de responsabilidade
especiais. A diminuição deles se tornou as riquezas dos gentios
(Rm 11.11-25).
Ao tratar com uma nação, Deus olha para seus regentes ou
líderes como responsáveis por suas ações. A justiça Dele fica
especialmente evidente nos países onde os povos escolhem seus
próprios regentes ou governadores. Hoje em dia o povo é todo
poderoso. Os regentes são escolhidos para o propósito expresso
de executar a vontade popular. Igualmente, também chegou o
tempo quando o povo não somente elege seus regentes, mas
também cerca-se de mestres, porque eles não suportarão a sã
doutrina (2Tm 4.3-4). Podemos estar seguros, portanto, de
que as pessoas que encontramos nas cadeiras profissionais de
nossas faculdades estão lá pelo mandato do povo, que deixou de
dar ouvidos à verdade para dar atenção às fábulas que causam
comichão nos ouvidos.
Conforme a própria constituição de uma ordem social democrá­
tica, o mestre deve ensinar o que o povo gosta de ouvir, ou então dar
lugar aos que assim farão.
Deus certamente julgará as nações privilegiadas por isto.
A mudança foi grande e súbita. O julgamento será lento e
severo. Até hoje, qualquer que possa ter sido o estado moral
das massas do povo da Inglaterra e dos EUA, os governos foram
estabelecidos na base da doutrina cristã; pois os reis e outros
regentes juraram defender a fé; a Bíblia foi ensinada nas escolas,
e ninguém foi admitido como adequado para uma posição de
responsabilidade pública se não fosse um seguidor professo de
Jesus Cristo. Quanto aos professores em nossas escolas e facul­
dades, não havia um sequer que não sustentasse e não ensinasse
conforme a verdade imutável de Deus, a saber, as doutrinas do
cristianismo das Escrituras.

586
A filosofia moderna

üma grande apostasia


Reconhecendo esses fatos, que todos devem admitir como
fatos, mesmo que possam diferir sobre sua significação, segue
que estamos vivendo debaixo da sombra escura da maior apostasia
nacional que jamais aconteceu. Em toda a história da humanidade
jamais houve um distanciamento por atacado da fonte de bênçãos
nacionais, para se juntar aos deuses dos pagãos.
Muito pertinentes são as palavras do profeta — “Os sábios
serão envergonhados, aterrorizados e presos; eis que rejeitaram
a palavra do Senhor; que sabedoria é essa que eles têm?” (Jr 8.9)
— para a ocupação na qual nossos filósofos estão comprometidos,
pois é uma tarefa impossível tentar estabelecer uma explicação do
universo visível após ter rejeitado o verdadeiro relato a esse respei­
to, aquele que foi recebido diretamente de seu Criador. O deus da
filosofia reinante é um deus que não tem permissão para falar ou
tornar-se conhecido de qualquer forma. A filosofia, para sua pró­
pria proteção, deve necessariamente colocar essas restrições sobre
esse deus, pois ele a destruiria, e a ocupação do filósofo terminaria.
Assim, ele deve permanecer na obscuridade impenetrável e não
ser capaz de falar uma palavra sequer, assim como não é capaz de
tornar algum sinal ou movimento inteligível, para que os filósofos
possam continuar sua ocupação conveniente de fazer suposições
ruins como as que fazem.
Não é difícil para alguém que chega ao conhecimento da verda­
de por meio da recepção da Palavra de Deus, “não como palavra de
homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus” (lTs 2.13),
perceber a loucura e a futilidade de tudo isso. Mas quem livrará o
ignorante, o inocente e o imprudente de ser vitimado e eternamente
escorchado por esses homens que, professando a si mesmos como
sábios, se tornaram tolos? Podemos apenas soar o alarme e dar
aviso, especialmente àqueles que são responsáveis pela educação
infantil, em relação aos perigos que infectam a atmosfera intelectu-
alista de nossas universidades, faculdades e seminários.

üma razão para isto


Para encerrar, podemos, para o proveito de nossos leitores,
indicar uma profunda razão por que o inimigo de Cristo, e dos
homens a quem Ele procura salvar, deve estar ávido por imprimir

587
Os fundamentos

nas mentes desses a concepção do panteísmo. Essa doutrina


exclui totalmente a idéia de que o homem é um pecador e por isso
coloca a redenção fora do foco de discussão. Sob a influência dessa
doutrina, o homem jamais descobriria sua natureza corrupta e sua
necessidade de salvação, e daí, se não for libertado dela, morreria
em seus pecados. Um inimigo do homem não poderia inventar
contra ele nenhum dano maior do que este.
Mas a doutrina, que a filosofia de nossos dias tem importado da
índia, não opera somente na destruição do homem, mas também
desonra a Deus. Portanto, seu caráter satânico pode ser claramente
percebido por todos aqueles que têm olhos para ver. Seu princípio
fundamental é que Deus e o homem são verdadeiramente um em
essência e ser, e que o caráter de Deus é revelado na história da
humanidade. Essa doutrina maléfica torna Deus participante,
junto com o homem, de todas as múltiplas e criminosas impiedades
do gênero humano. Ela torna Deus particeps criminis em todos
os crimes monstruosos, crueldades, impurezas e abominações
inomináveis que tem manchado a história da humanidade. Essa
doutrina torna-0 realmente o agente principal em todos os pecados
e impiedades, visto que o pensamento e os impulsos incitados têm
origem Nele. Assim, Deus é responsabilizado por todos os atos do
mal que a Bíblia denuncia, e contra os quais a ira do Deus da Bíblia
é declarada.
Pode ser que em algum desses lugares escuros deste mundo
pecador esteja à espreita uma doutrina mais monstruosamente má,
mais caracteristicamente satânica do que essa que está agora insta­
lada em nossas cadeiras de instrução e são ali abertamente venera­
da como a última palavra da sabedoria humana amadurecida; mas
se algo assim existe, o escritor dessas páginas não está cônscio de
sua existência. Essa doutrina é praticamente a garantia, dada sob
o selo daqueles que ocupam as eminências da cultura, aprendizado
e sabedoria humanos, para que o penhor da serpente, dado aos
pais da raça, em relação ao que resultaria caso eles seguissem sua
trilha, tem por fim sido resgatado: “Porque Deus sabe que no dia
em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis
conhecedores do bem e do mal” (Gn 3.5), declarou a serpente; e
agora os líderes do pensamento moderno unem-se para proclamar
que o homem e Deus são verdadeiramente um, em essência e
natureza. Acautelai-vos! Acautelai-vos! Este ensinamento é, na

588
A filosofia moderna

verdade, segundo a mais antiga de todas as tradições humanas. É


conforme os princípios básicos do mundo e do deus deste mundo,
e não segundo Cristo. Nenhum perigo maior ameaça os homens e
as mulheres mais jovens da geração atual do que o perigo de que
algum homem, ou alguma língua persuasiva de algum professor
instruído e educado, possa fazer deles uma presa por meio da
filosofia e do engano vãos.

589
591

54 O conhecimento de Deus

Rev. David J a m e s B u r r e ll , D.D., L L .D .


Ministro da Igreja Marble Collegiate, New York
Revisado e editado por Gerald B. Stanton, Th.D.

O homem que não conhece Deus, ainda não começou a viver. Ele
come, bebe, casa-se, acumula uma fortuna ou é coroado; mas ele não
entrou naquela vida melhor, de grandes esperanças e nobres propó­
sitos e aspirações, que nos faz dignos de nosso direito de nascimento
divino. Porque “a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único
Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3).
Ter uma relação adequada com Deus é literalmente uma questão
de vida ou morte. Todas os “ismos” são dignos para ser aprendidos,
mas a TEOLOGIA é indispensável. Devemos conhecer a Deus.

DAVID JA M ES BÜRRELL (1849-1926) foi pastor, educado em Yale, e


ficou conhecido por sua habilidade em se comunicar, do púlpito, com os
jovens. Seu tom claro, de estilo muitas vezes eloqüente, serviu-lhe bem
em sua obra nas igrejas de Chicago, Dubuque e Minneapolis. Contudo,
sua obra mais notável se deu entre 1891 e 1926, na Igreja Reformada
Marble Collegiate, em Manhattan, a igreja mais antiga desse lado do
Atlântico, fundada em 1628. Burrell, um ativista real, alinhou-se com
as causas como a Liga Contra as - Boates de New York, o Seminário
feminino Bennett, a American Tract Society e a Sociedade Histórica de
New York. Entre seus livros estão títulos como The Religions ofthe World
[As Religiões do Mundo], The Wondrous Cross [A Magnífica Cruz], The
Religion ofthe Future [A Religião do Futuro] e W hy IBelieve the Bible [Por
Que Acredito na Bíblia],
Os fundamentos

Mas onde Ele está? “Ah! Se eu soubesse onde o poderia achar!


Então, me chegaria ao seu tribunal. [...] Eis que, se me adianto, ali
não está; se torno para trás, não o percebo. Se opera à esquerda,
não o vejo; esconde-se à direita, e não o diviso” (Jó 23.3, 8,9). O
horizonte retrocede quando nos aproximamos dele, e a escuridão
fica espessa quando procuramos como cegos sentir seu caminho
ao longo do muro.
Existem três caminhos que são trilhados em vão por multidões
que buscam essa indagação santa. Cada um deles indica: “Este é
o caminho para Deus”; e cada um deles é um beco sem saída que
deixa a alma ainda à procura, no escuro, clamando “Ah! Se eu
soubesse onde poderia O achar! ”
O p r i m e ir o d e s s e s c a m in h o s É a in t u iç ã o . Não há ateu de
nascença. Todos nascemos com um sentido interior de Deus.
Nas regiões do paganismo mais obscuro existem traços de duas
convicções encarnadas; a saber, o Deus de fato e uma alienação
pecaminosa Dele. Conseqüentemente, o espírito universal
de desassossego tão pateticamente expresso por Agostinho:
“Viemos de Deus, e ficaremos com saudade até que retornemos
para Ele”.
Sem dúvida, tem havido alguns que, embora sem luz, brilham ao
longo do caminho da intuição e têm conseguido um reconhecimen­
to de Deus; mas a grande multidão só chega à idolatria. Eles fazem
para si mesmos deuses “com aparência de homens”; deuses, como
os Brockens, das Montanhas Harz, projetados no céu. Um ídolo é
um deus feito pelo homem. Pode ser esculpido em madeira ou ima­
ginado pela massa cinzenta do cérebro; mas todos os deuses, de
onde quer que eles venham, são ídolos, exceto o único e verdadeiro
Deus.
O SEGUNDO CAMINHO DOS QUE BUSCAM A DEUS É A RAZÃO. Aqui
chegamos aos filósofos e aqueles que viajam com eles. Esse cami­
nho também conduz à decepção, porque está escrito, “Visto como,
na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria
sabedoria, aprouve a Deus salvar os que crêem pela loucura da
pregação” (ICo 1.21). A era dourada da filosofia na Grécia encer­
rou-se com a decadência do Panteão. Foi quando o povo perdeu a
confiança em seus ídolos e fez-se ouvir o clamor, “O Grande Pã está
morto!”, e os arvoredos e jardins e varandas pintadas surgiram
nos bancos do Eliseu. Os homens pensativos, que assumiram o

592
O conhecimento de Deus

nome de philosophoi, isto é, “amantes da sabedoria”, estavam todos


buscando por Deus. Os estóicos, os epicureus, os cínicos e os
peripatéticos, todos eles esperavam descobri-Lo pela luz da razão.
Quão vã essa indagação resultou!
Quando pediram a Simonides para que desse uma definição de
Deus, ele exigiu algumas semanas para meditar e depois respon­
deu: “Quanto mais penso Nele, mais Ele se torna desconhecido
para mim!”. Os inumeráveis deuses e altares de Atenas tinham
sido ridicularizados fora do tribunal; e os resultados da pesquisa
filosófica foram relatados sobre aquele outro altar que os sucedeu,
“Ao Deus Desconhecido”.
A ação do ofício dos filósofos de Atenas era exatamente como
a dos filósofos de nosso tempo. Consistia substancialmente de
quatro argumentos, a saber: (1) o argumento ontológico, para o
efeito de que o ser de Deus está envolvido na idéia de Deus. Essa
definição é boa, mas fracassa grandemente na demonstração; e
em qualquer caso ela não alcança a conclusão sobre o caráter de
Deus; (2) o argumento cosmológico, que as razões do efeito causam
e se expressam no epigrama ex nihilo nihil fit\ “do nada, nada vem”.
Este argumento igualmente não é conclusivo, visto que o Alguém
necessário ao qual ele conduz é apenas a mera sombra de um
deus. (3) O argumento teleológico, que vai do projeto ao Arquiteto,
embora tenha uma forte presunção quanto à infinita sabedoria, não
considera ou não tem conhecimento da natureza moral de Deus.
(4) O argumento antropológico, que infere a natureza moral de Deus
a partir da natureza moral do homem. Este argumento vai mais
adiante do que os outros; não obstante, está tão longe de ser a prova
final no sentido matemático que é muito bem possível argumentar,
se qualquer investigador da verdade já foi realmente convencido
por ele.
Estes são os argumentos que têm sido usados por filósofos
desde tempos imemoriais, e pouco tem sido somado ao processo no
decorrer dos anos. O resultado, como um todo, é o fracasso melan­
cólico. O mundo por sua sabedoria, que é o exercício unicamente
de sua razão, alcançou apenas o agnosticismo; e não “encontrou
Deus”.
A grande revelação não vem para aqueles que se julgam sábios,
mas para os humildes cujos corações estão abertos para Deus.
Uma coisa é saber sobre Deus, e outra completamente diferente é

593
Os fundamentos

conhecê-Lo. John Hay sabia tudo sobre o Presidente Lincoln, desde


a época da infância dele; o pequeno “Tad” não tinha essa informa­
ção, mas conhecia seu pai, e conhecia-o completamente. Os olhos
da fé vêem além dos da razão. Por isso, Jesus disse, “Se não vos
converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum
entrareis no reino dos céus” (Mt 18.3).
O t e r c e ir o dos caminhos atraentes é o dos cinco sentidos. Este
refere-se à Ciência Natural que chega a suas conclusões com a
evidência dos sentidos físicos.
Isto exclui a fé que é um “sexto sentido” divinamente dado aos
homens para a apreensão das verdades espirituais. Tentar resolver
qualquer dos grandes problemas que têm que ver com nossa vida
espiritual por meio do testemunho dos toques dos dedos é se ocu­
par em um trabalho inútil, porque “as coisas do Espírito de Deus
[...] se discernem espiritualmente” (ICo 2.14). Tentar compreender
um fato espiritual pelos sentidos físicos é tão ilógico quanto seria
insistir em ver com os ouvidos ou ouvir com os olhos. A fé não
é credulidade, nem é insubstancial, nem é crer sem evidência.
Do contrário, é tão substancial quanto evidente: a fé é apenas “a
certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não
vêem” (Hb 11.1). Recusar exercitar esse “sexto sentido” ou poder
de apreensão espiritual é colocar-se fora, para sempre, da possibili­
dade de apreender Deus ou qualquer uma das grandes, intangíveis,
mas reais, verdades que se centram Nele.
Contudo, estamos ouvindo constantemente, em certos círculos,
sobre a importância de continuar nossos estudos teológicos “pelo
método científico”. Com que resultado? “Nós temos um mundo de
fatos”, dizem eles, “e desses fatos, pelo processo indutivo, devemos
chegar às nossas conclusões”. E como um exemplo em álgebra.
Deus é o termo desconhecido; este deve ser expresso pelo X. O
problema, portanto, é solucionar o X em termos conhecidos pelo
uso de um sem número de fatos vistos e tangíveis. Isso pode ser
feito? Continue e prossiga suas pesquisas ao longo das linhas da
evolução, até o início do cosmos, e você chegará ao caos, e ao
sair do caos chega à nebulosa, e ao sair da nebulosa, ao gérmen
primordial; e este último, o átomo infinitesimal, olhará para você
com a antiga pergunta em seus lábios, tão alta quanto sempre, e en­
volvendo um problema tão profundo como quando você começou:
“De onde vim?”. Qual é a sua resposta? Deus? Chame-o “Deus”

594
O conhecimento de Deus

se quiser; de fato, é simplesmente algo impessoal, indefinível,


inevitável ou outro que, por falta de um termo melhor, é designado
como a “Causa Primeira”, mas que está infinitamente longe do que
um Deus pessoal significa.
Bem, então, a questão será abandonada? A idéia universal de
Deus, desse modo, não é meramente um ignis fatuus que conduz o
viajante esperançoso em um reino de névoas e sombras impenetrá­
veis? Ou há ainda algum modo de descobrir a Deus?
Sim, há um q u art o c a m in h o pelo qual nos aproximamos de
Deus. E uma estrada que leva ao próprio Rei, e esta é chamada de
“Revelação”.
Há uma presunção antecedente em seu favor; a saber, que se
há um Deus em alguma parte do universo Ele não nos deixaria
procurar, desesperadamente e no escuro, por nosso caminho para
Ele, mas em alguma parte, de algum modo, Ele se nos desvelaria.
Eis um livro que afirma ser Sua revelação. De todos os livro na
literatura de todos os tempos, esse é o único que afirma ter sido di­
vinamente autorizado e “escrito por homens santos quando foram
movidos pelo Espírito de Deus”.
Ele abre com as palavras, “No princípio, criou Deus”; e continua
a apresentar as duas grandes doutrinas da Criação e da Providên­
cia. Afirma, por um lado, que tudo no universo tem sua origem no
poder criador de Deus; e, por outro lado, que tudo é mantido pela
providência de Deus.
Nestas duas doutrinas, temos a soma e a substância da verdade
das Escrituras. Mas isto não é tudo. Entre as doutrinas da Criação
e da Providência lá está, por todos os corredores do Santo Escrito,
uma misteriosa Figura que é a predição de uma outra revelação que
virá mais adiante. No início, essa Figura aparece no protoevange-
lho como a “Semente da Mulher” que virá na plenitude dos tempos
para esmagar a cabeça da serpente. Ele aparece e reaparece, agora
em disfarce real, novamente como “homem de dores e que sabe o
que é padecer” (Is 53.3), e novamente com um nome escrito sobre
sua veste, “Emanuel” que quer dizer “Deus conosco”.
Esse Livro, que afirma ser a Palavra de Deus escrita, torna-nos
familiarizados com Seu ser, personalidade e atributos morais; mas
não esgota o tema. Ela nos leva ao longo de uma estrada, iluminada,
pelos tipos e profecias, até que ela se abre em uma outra estrada
bem clara, a Palavra de Deus encarnada.

595
Os fundamentos

E sta q u in t a e s t r a d a , a e n c a r n a ç ã o , é o caminho que todos


os investigadores da verdade deveriam seguir se eles quisessem
chegar finalmente a um conhecimento justo e seguro de Deus.
E aqui que encontramos Cristo, trazendo a mensagem do trono
do Pai. Ele vem para nosso mundo com o expresso propósito de
tornar Deus conhecido para nós. Como está escrito: “Ninguém
jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é
quem o revelou” (Jo 1.18).
Ele é chamado o Verbo, porque Ele é o meio de comunicação
entre o Infinito e o finito. Como está escrito, “No princípio era o
Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. [...] E o Verbo
se fez carne e habitou entre nós”, cheio de graça e de verdade, e
vimos Sua glória, glória como do unigênito do Pai. (Jo 1.1,14). Quer
dizer, a encarnação é a articulação da fala de Deus. Nas Escrituras
temos a letra de Deus; mas na encarnação temos a vinda de Deus
para desvelar-Se diante de nós.

Cristo, a revelação do Pai


Se, portanto, devemos sempre aprender a teologia, isso deve ser
feito como se fossemos discípulos, assentados em uma atitude dócil
aos pés de Cristo. Ele, como o Filho encarnado, é nosso Mestre
autorizado. O que, afinal tem Ele a dizer sobre Deus?
Com respeito aos atributos morais de Deus, o ensino de Jesus
é indubitavelmente claro. Ele diz: “Deus é espírito; e importa
que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade”
(Jo 4.24). Provavelmente, não é preciso dizer que um espírito, em­
bora invisível e impalpável, é uma personalidade real e consciente.
A comunhão de Jesus com este Espírito é como a comunhão entre
uma pessoa com a outra. Ele não fala de lei, nem de energia, nem
de algo indefinível em nós mesmos que é feito para a justiça”, mas
de Um com quem Ele tem familiaridade. “Ninguém jamais viu a
Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou”
(Jo 1.18; grifo do autor).
Quanto à providência divina, Ele fala em um tom inequívoco. O
Deus a quem ele desvela está em tudo e sobre tudo. Nas colinas,
Ele nos propõe: “Considerai como crescem os lírios do campo: eles
não trabalham, nem fiam” (Mt 6.28); assim como nos assegura
que “Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e
amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós outros, homens de

596
O conhecimento de Deus

pequena fé?” (Mt 6.30). Na persuasão deste fato, Ele nos encoraja
a orar, dizendo, “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei, e
abrir-se-vos-á” (Mt 7.7). Oh, grande coração do Infinito, rápido
para responder a todo nosso clamor por ajuda! A doutrina da ora­
ção, como ensinada por Jesus, é a simplicidade. Devemos recorrer
a Deus com nossos desejos como crianças recorrem a seus pais:
“Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos
filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas
aos que lhe pedirem?” (Mt 7.11). Quanto aos atributos morais de
Deus, o ensino de Jesus não é apenas claro, mas muito enfático,
pois nesse ponto Ele toca de forma vital em nosso bem-estar eter­
no. A santidade divina não é apresentada tanto como um atributo,
mas como a condição do ser de Deus. E a luz que emana de Seu
trono, do qual Cristo é a suprema manifestação. Cristo disse: “Eu
sou a luz do mundo” (Jo 8.12); e esta luz deve sempre se refletir
na vida de seus discípulos, conforme Ele disse, “Vós sois a luz do
mundo. [...] Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens,
para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que
está nos céus” (Mateus 5.14,16). Esta santidade não é meramente a
liberdade da contaminação moral, mas uma aversão sensível ao pe­
cado que torna impossível para Deus olhar com complacência para
qualquer criatura que esteja maculada por ele. Conseqüentemente,
há o apelo ao cultivo de uma vida santa, visto que sem santificação
“ninguém verá o Senhor” (Hb 12.14).
Dessa atmosfera de santidade procedem dois atributos que,
como braços abertos, abraçam o mundo. Um deles é a justiça, ou
o que diz respeito à lei. Nenhum mestre que já viveu, nem mesmo
Moisés, enfatizou tão profundamente, como Jesus Cristo o fez, a
integridade da lei moral. Ele não apenas defendeu a própria lei, mas
as penalidades fixadas para sua violação. O decálogo, no que toca à
inviolabilidade da lei, não é tão severo na acusação do pecado como
o Sermão do Monte.
O outro dos braços estendidos é o amor. A plenitude do amor
divino é apresentada nas palavras de Jesus: “Quando orardes, di­
zei: Pai ” (Lc 11.2). Madame de Stáel, sabiamente, observou que se
Jesus jamais tivesse feito qualquer coisa no mundo exceto nos ensi­
nar o “Pai Nosso”, Ele já teria conferido um benefício inestimável a
todos os filhos dos homens. O amor de Deus é manifesto nos dons
incessantes de Sua providência; mas seu símbolo de coroamento é

597
Os fundamentos

a graça da salvação. “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira


que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não
pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16).
Agora a reconciliação entre amor e justiça é encontrada na cruz.
Aqui “a misericórdia e a verdade estão unidas; justiça e paz beijam
uma a outra”. Como a lei é sagrada e inviolável, sua penalidade
deve ser infligida, ou sobre o malfeitor ou sobre algum substituto
competente que deve voluntariamente sofrer por ele. O Filho uni­
gênito, que diz voluntariamente: “Aqui estou eu, envia-me”, é essa
Pessoa. A justiça de Deus é mostrada no sofrimento infligido sobre
Seu Filho unigênito; e Seu amor é correspondentemente mostrado
quando oferece todos os benefícios desse sofrimento vicário a cada
um de nós, em que a única condição para obtê-los é a fé.
Agradou a Deus justificar sua suprema majestade diante de
seu antigo povo na controvérsia sobre o Carmelo. Todos os dias os
sacerdotes pagãos reuniam-se em seu altar e clamavam, “O Baal,
ouça-nos”; mas não havia nenhuma voz nem qualquer outra coisa
que os escutasse. A tarde, o único profeta de Deus estava ao lado
de seu altar e calmamente fez sua oração, “O S en h or , Deus de
Abraão, de Isaque e de Israel, fique, hoje, sabido que tu és Deus”
(lRs 18.36). Houve alguém que escutasse? Vede! Lá no crepús­
culo do céu uma chama cadente de fogo! Em silêncio, devido ao
surpreendente fato, o povo viu o fogo descer, cada vez mais baixo,
até que tocasse o sacrifício oferecido e o consumisse. A lógica do
argumento foi irresistível. Eles clamaram com um único acordo,
“Deus de Abraão, de Isaque e de Israel é Deus”.
O antítipo e o paralelo dessa grande controvérsia estão no
Calvário, onde Cristo — a uma só vez, o sacerdote que ministra
e o sacrifício sobre o altar — fez sua última oração com as mãos
estendidas sobre a cruz; e o fogo que desceu o consumiu como
a uma oferta queimada pelo pecado do mundo. A lógica, também
aqui, é incontestável. Em todo o mundo não há outro evangelho que
adequadamente apresente o amor divino. Pelo poder da verdade,
pelo triunfo da justiça, pela lógica dos eventos, pela filosofia da
história, pelo sangue da expiação, que o mundo responda: “Nosso
Deus, é o Deus da salvação; e não há nenhum outro além Dele”.
O fracasso das outras religiões e filosofias tem sido extrema­
mente patético. A ironia de Elias no Carmelo é meramente um
eco da explosão divina de alegria no céu em resposta àqueles que

598
O conhecimento de Deus

clamam: “Quebremos sua faixa e lancemos fora as cordas que nos


aprisionam!”. “Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba
deles” (SI 2.4). Os panteões se esmigalham e os sacerdotes mor­
rem; um altar permanece, para testemunhar a cruz no Calvário, o
único altar e o supremo argumento do Deus verdadeiro.
Mas todo homem deve, por si mesmo, responder a este argu­
mento. Cada um, por si mesmo, deve lutar a seu modo pela verdade.
É como a luta que Jacó teve com o antagonista invisível à margem
do riacho. Quando a noite estava acabando, ele chegou a entender
que a Onipotência o tinha sustentado. Então, veio um súbito ataque
e Jacó caiu, inválido. Deus o tinha atingido! Ele tornou-se um
homem desamparado, mas, agarrando-se ainda, clamou: “Não
te deixarei ir se me não abençoares” (Gn 32.26). E logo após a
bênção foi dada, uma bênção que Deus tinha esperado pelos anos
passados para dar-lhe: “Já não te chamarás Jacó, e sim Israel, pois
como príncipe lutaste com Deus e com os homens e prevaleceste”
(Gn 32.28). Nesse mesmo instante, ele recebeu sua recompensa de
cavalaria e entrou para a vida superior. No final deste conflito a luz
da manhã estava ardendo nas colinas de Edom; quão significativas
são as palavras, “Nasceu-lhe o sol” (Gn 32.31).
A nova vida tinha começado; a longa indagação terminara; Jacó
tinha encontrado Deus e seguiu seu caminho mancando da coxa
encolhida, para manter, nos anos seguintes, o símbolo daquela luta
até que ele chegasse ao portão do céu, em paz com Deus.
E assim que todo homem encontra Deus; em uma luta íntima
que termina na auto-rendição, uma completa entrega ao poder
beneficente de Deus.
Assim, a verdadeira vida começa com o conhecimento de Deus.
Começa quando um homem, oprimido pela dúvida e incerteza,
ouve Sua voz dizendo: “Põe aqui o dedo e vê as minhas mãos; chega
também a mão e põe-na no meu lado” (Jo 20.27). Começa quando,
diante da cruz, ele admite, como fez Lutero: “Ele morreu por mim,
por mim!” Então, o dia irrompe e as sombras se dissipam. O amor
conquista a dúvida, e a alma, contemplando o desvelar do Infinito
na paixão de Cristo, clama, “Senhor meu e Deus meu!” (Jo 20.28).

599
601

55 A ciência da conversão

R e v . H . M. S y d e n s t r ic k e r , P h .D.,
West Point, Mississippi,
Editado por Arnold D. Ehlert, Th.D.

O caso declarado
A penetração da investigação científica nas regiões antes des­
conhecidas das coisas é uma das maravilhas desta era. Todos os
departamentos de criação estão rendendo seus segredos ao olhar
pesquisador da ciência.
As causas das coisas estão sendo buscadas, não somente no
mundo natural, mas em todos os domínios, de maneira que as
coisas podem ser mais correta e diretamente trazidas à vontade
humana. As operações invisíveis pelas quais os poderosos resul­
tados são produzidos são forçadas a render-se e a contar seus

H. M. SYDENSTRICKER (1858-1914) nasceu em Lewisburg, em West


Virginia. Foi educado na Universidades de Washington e na Universidade
de Lee; na Faculdade de Wooster, onde recebeu seu Ph.D.; e no
Seminário Teológico União, em Virgínia. Teve um extenso ministério
pastoral nas igrejas presbiterianas dos Estados Unidos, no Missouri, no
Mississippi e no Texas. Esse pastor, evangelista e estudioso combinou o
chamado pastoral com posições de ensino na Faculdade Daniel Baker,
no Texas, e na Faculdade de Belvidere, em West Point, Mississippi. De
suas mãos saíram The Epic ofthe Orierxt [O Épico do Oriente] e ham eless
Immortals [Imortais sem Nome],
Os fundamentos

segredos. Novos poderes são descobertos em todos os domínios


da investigação e submetidos, como nunca antes, ao serviço do
homem. Praticamente, tudo está reduzido à ciência, e os homens
estão aprendendo o como e o porquê das coisas físicas, mentais e
espirituais. Quanto melhor estas coisas são compreendidas, tanto
mais completamente somos os senhores do mundo, para cuja sujei­
ção o homem foi comissionado.
Agora nossa investigação é se a conversão da alma humana — o
novo nascimento divinamente operado — está dentro do âmbito da
investigação científica. Será que as operações das forças divinas e
dos meios divinamente designados para a conversão de uma alma
podem se render à pesquisa científica, de maneira que a produzir
resultados com o mesmo grau de certeza como faz o químico em
seu laboratório? Será que as leis de causa e efeito operam no reino
espiritual como no mundo natural? E podemos aplicar os meios e as
causas espirituais com o mesmo grau de certeza como nas coisas
físicas? Será que podemos sair do reino do incerto e do vago para
trabalhar com almas humanas e operar com absoluta segurança
em relação aos resultados adequados e satisfatórios?
Nesta maior de todas as obras, e que é praticamente confiada ao
homem, será que Deus nos deixou entregues às incertezas absolutas
quanto aos resultados? Não é verdade que, se os meios divinamente
ordenados forem apropriadamente utilizados, os resultados podem
ser obtidos com a mesma certeza científica como em outras áreas,
e os resultados não serem de forma alguma espúrios, mas o efeito
real das causas aplicadas eficiente e apropriadamente? Não são as
promessas de Deus absolutas? E, muitos incidentes na obra e na
história da Igreja, não demonstram que a conversão das almas foi o
resultado direto da designação de Deus e dos meios humanos aplica­
dos a isso, operados puramente por métodos científicos, embora os
trabalhadores não tivessem o pensamento voltado para a ciência em
sua obra? Não somos limitados a obedecer as leis de Deus em todas
as operações científicas no mundo físico, e não devemos cientifica­
mente obedecer suas leis no reino mais alto de seu domínio?

O caso diagnosticado
Um diagnóstico cuidadoso do caso em consideração poderá nos
ajudar na busca de uma resposta científica para nossa investigação.
Conhecer o paciente, e, em especial, conhecer de modo preciso

602
A ciência da conversão

a natureza da enfermidade, é de primordial importância em seu


tratamento bem sucedido. Caso contrário, qualquer tratamento não
passa de mera conjectura.
Nosso objeto, nessa investigação, é uma alma humana degenerada
— degenerada significa uma injustiça inerente e uma corrupção inata
que afeta cada fibra efaculdade da alma humana. Essa total depravação
não significa que o homem é real e praticamente tão mau quanto ele é
capaz de ser, mas significa que o homem total é depravado em todas
as suas partes, e que ele nasceu nessa condição. Essa degeneração
nativa é de dupla natureza: Primeiro, é uma condenação legal que é
transmitida a toda alma humana desde que um ancestral foi justamen­
te condenado, o qual representou e ficou no lugar de toda a raça no
governo de Deus. Segundo, é uma corrupção moral completa de toda
a alma, de maneira que todas as faculdades da alma são afetadas desse
modo, tornando-se incapazes de agir corretamente, de modo que cada
imaginação do coração é continuamente para o mau. Esse homem
moralmente degenerado, em seu estágio adulto, também é culpado
de múltiplos pecados reais, que confirmam sua condenação e tornam
toda sua natureza moral mais depravada. Ademais, esta condição
depravada, este homem degenerado não tem o desejo de uma vida
melhor; seu gosto naturalmente pervertido a recusa, e ele mesmo não
quer considerar nada que possa ser melhor. Ele realmente ama sua
condição depravada e revela nas coisas que desenvolve ainda mais os
princípios mais básicos que existem nele. Além disso, seu intelecto é
tão cego que ele é incapaz de apreender as verdades espirituais e seus
olhos são tão estigmatizados que ele não pode ver a luz.
Esse é o caráter do homem não convertido, o sujeito, agora sob
nossa consideração. Fica muito evidente que, embora sejamos
capazes, com a ajuda da revelação divina e a observação da expe­
riência humana de diagnosticar o caso corretamente, a solução é
encontrada em um reino mais alto, apesar de poder ser aplicada em
parte por meio das ações humanas.

A hipótese divina
Em vista desse caso aparentemente desesperado, qual é a
hipótese divina a respeito dele? O que o plano divino contempla? E
bem evidente que o objetivo final da hipótese divina é livrar-se do
pecado. Mas para livrar-se do pecado, devemos também nos livrar
do pecador, de outro modo o pecado permanece.

603
Os fundamentos

Para livrar-se do pecador, duas coisas são possíveis, ou destruir


o pecador pelo julgamento e com ele também o pecado, ou, pela
graça divina, converter o pecador e assim remover o pecado.
Ambos os métodos são usados no governo divino, mas a conversão
é o que nos importa agora. A hipótese divina não é destruir o
pecador, mas salvá-lo ao fazer dele um homem totalmente novo
— transformá-lo de um filho do pecado em um filho real de Deus.
Não somente um filho de Deus, mas um filho realmente nascido de
maneira que, pelo nascimento, ele se torne um herdeiro de Deus e
um co-herdeiro com Cristo de uma herança celestial.
O fato de que o poder divino é suficiente para esse reconhe­
cimento, não será, por enquanto, levado em consideração nesse
questionamento. Contudo, será que essa investigação está no
âmbito da investigação científica e os métodos a ser usados são
estritamente científicos? O método divino ao aplicar a salvação
completa é para essa alma muito degenerada realmente científico?
Será que é possível supor que Deus é menos científico nisso do que
em relação à maior de todas as suas obras do que ele é nas coisas
menores de seu governo?
Será que Ele opera por um conjunto de leis no mundo natural,
e por leis diferentes, ou nenhuma lei sequer, no domínio espiritual
mais elevado?
Mas se Deus é científico — se a conversão da alma humana é
realizada por métodos científicos — dá-se que a obra é mais bem
feita quando é feita pelos métodos de Deus, se, na verdade, ela
pode ser feita de qualquer outro modo. E se o método de Deus é
científico, será que Ele nos revelou adequadamente Seu método de
maneira que este pudesse ser correta e prosperamente utilizado
por nós como Seus obreiros? E se essa revelação é feita para nós,
não ousaríamos deixar de usar o método de Deus, qualquer que
seja o outro método que possa ser sugerido. Pois, se deixamos de
lado os métodos que Deus nos deu e pelos quais Ele mesmo opera,
nossa obra será um fracasso completo ou os resultados serão
inadequados e espúrios.

Os meios descobertos
Após afirmar que a hipótese de Deus e declarar que seus méto­
dos são científicos, devemos, em seguida, descobrir os meios pelos
quais a obra deve ser realizada. Devemos lembrar que em todas

604
A ciência da conversão

as coisas que pertencem ao homem, tanto em questões temporais


quanto espirituais, Deus opera pelos meios humanos e, em geral,
por meio das ações humanas.
Mas na obra de converter a alma humana é evidente que os
meios são duplos. Primeiro, aqueles meios aplicados diretamente
da parte de Deus no interior da alma; e segundo, aqueles meios
aplicados do exterior por meio dos sentidos e ações e instrumen-
talidades humanas. E um fato, portanto, que até mesmo os meios
usados diretamente pela parte de Deus são pelo menos, em parte,
aplicados por meio de ações humanas; de maneira que a conversão
das almas adultas, até onde somos capazes de ver, é, de modo geral,
ocasionada por intermédio das instrumentalidades humanas.
Conseqüentemente, os meios pelos quais a alma humana é
convertida, ou nascida na família de Deus, são os seguintes:
(1 ) O E s p ír it o d iv in o : que é o único agente divino e sem o qual ne­
nhuma alma, de criança ou adulto, jamais pode passar da morte
espiritual para a vida espiritual. Esse Espírito divino opera como
e onde lhe agrada e com ou sem os meios e as ações.
(2) A P a l a v r a d e D e u s : que é a espada do Espírito que alcança e
estimula as almas dos homens por meio das faculdades racionais
e emocionais. A Palavra é eficaz somente quando acompanhada
pelo poder estimulante do Espírito, mas, ao mesmo tempo, pode
ser aplicada de forma variada e externa..
(3) A benign a in fluên cia do s cristãos , demonstrando a realidade, po­
der e bem-aventurança da nova vida na alma do homem convertido.
(4) A o r a çã o r e a l pela qual a alma regenerada traz a alma não
regenerada para os pés do Salvador divino, pois ela implora
insistentemente pela graça divina.
( 5 ) U m a fé a b so lu t a da parte do agente humano. Esta fé é uma
confiança absoluta na habilidade de Deus e em seu propósito de
realizar a obra por meio dos meios que são usados, sempre que
as condições para isto estiverem de acordo. Não é possível haver
fé verdadeira, quando os meios disponíveis não são usados e as
condições conhecidas não estiverem de acordo.

Os meios aplicados
Aqui é onde a ciência da conversão é manifestada de maneira es­
pecial. Tudo na natureza deve ser feito de acordo com a maneira de
Deus, e a maneira de Deus é sempre científica, e todas as coisas são

605
Os fundamentos

mais bem feitas, quando aderimos mais intimamente aos métodos


de Deus. A conversão da alma humana não é exceção a essa regra.
Podemos converter os homens com mais êxito, quando seguimos
estritamente à ciência divina em relação à obra. Nossos fracassos
são, sem dúvida, grandemente devidos a nossa desobediência aos
modos de Deus de fazer a obra.
Aceitamos estritamente as leis de Deus, quando desenvolvemos
nossas plantações. Primeiro, a semente é colocada onde os poderes
da vida dormentes são despertados e a semente germina. Poste­
riormente, vem a folha, o talo e o fruto maduro. Nenhum poder
humano ou sabedoria podem mudar essa lei da germinação e do
crescimento. Do mesmo modo, a alma humana, por estar espiritu­
almente morta, é incapaz de fazer qualquer coisa para se despertar
para uma nova vida; como também é incapaz até mesmo de querer
despertar para essa nova vida, fica bastante evidente que a primeira
coisa essencial é a aplicação direta do poder de dar vida do Espírito
divino à alma dormente. Este toque, que dá a vida, prepara a alma
para a aplicação efetiva de todo o outro meio designado, pelo qual
a alma é trazida para as realidades e a completude da nova vida.
Mas, normalmente, se não sempre, a aplicação do Espírito que dá
a vida por ações humanas é, de alguma maneira, uma resposta à
oração feita em algum lugar. Será que não é verdade que toda alma
nascida no reino de Deus seja uma resposta à súplica de algum
cristão sério, cujo coração é tão grande quanto a humanidade e cuja
oração toca cada alma perdida do homem?
Conseqüentemente, a oração é cientificamente o primeiro meio
e a força primordial a ser aplicada pelo verdadeiro cristão para
produzir a conversão de uma alma humana. E perfeitamente certo
que nada pode ser efetivamente feito até que o Espírito seja aplicado,
e o Espírito é ordinariamente dado em resposta à oração — isto é, o
Espírito que estimula aquele que levanta a alma e a prepara para a
aplicação efetiva de outro meio divinamente designado. Nossa inda­
gação é se o Espírito é alguma vez dado sem oração, quando a oração
está disponível, como acontece com todas as outras coisas, quando
as ações humanas são requeridas se estiverem disponíveis.
De acordo com a obra do Espírito, e junto com ela, será que a
aplicação da Palavra pela qual a alma do ouvinte é alcançada por
meio do intelecto, em que as faculdades de raciocínio são desperta­
das e, por meio delas, o apelo do evangelho é forçado na consciência

606
A ciência da conversão

recentemente despertada. Aqui, todos os poderes da eloqüência e


da razão e da persuasão agem completamente e se tornam efetivos
quando os olhos da alma despertada se voltam para a cruz.
Em seguida, a alma despertada, agora, torna-se cooperativa com
o Espírito divino, com a Palavra e com outros meios externos, e o
resultado é a crença na Palavra da parte da alma que foi despertada.
Assim, por meio do recebimento da Palavra, começa a existir uma
fé, viva, pessoal e real no Cristo apresentado no evangelho, seguida
pela confissão externa, a obediência e o culto cristão.
Conseqüentemente, a ordem científica da aplicação dos meios
para a conversão de uma alma são as seguintes: a oração da Igreja
e a obra cristã para a aplicação do Espírito estimulante da parte de
Deus; a pregação da Palavra e o uso de outros meios externos; o ato
responsivo, cooperativo e receptivo de um pecador, agora desejoso
pelo Espírito de Deus; e o ato pessoal completo de fé em Cristo; da
parte do pecador; pelo qual ele recebe realmente por sua própria
vontade o Salvador como apresentado diante dele, ele O confessa e
se torna obediente a Ele como seu Senhor e Mestre.

As condições impostas
Em todas as operações científicas existem condições que devem
ser obedecidas, caso contrário os resultados ou serão espúrios ou
desastrosos. Isto devido ao vasto número de conversões espúrias
e lapsos nas igrejas. Homens inescrupulosos e ignorantes que pro­
curam exibir os números usam de todos os tipos de artimanhas e
todas as maneiras possíveis para produzir as conversões aparentes.
Como se o químico pudesse entrar em seu laboratório e juntar isto
e aquilo e esperar resultados corretos e científicos. Os resultados
corretos podem se dar acidentalmente, mas os resultados, quase
inevitavelmente, serão venenos e explosões. Será que o mesmo não
acontece em relação aos métodos não escriturais e não científicos
usados por muitos que posam como peritos em conversões, assim
como em relação aos pseudo-reavivamentos agora tanto em voga?
As condições impostas pela verdadeira conversão de almas são
tanto filosóficas quanto científicas, e, ao mesmo tempo, sumamente
graciosas e benevolentes, com o olhar sempre voltado para o bem
mais alto de todos, tanto em relação à alma que está sendo salva
quanto em relação ao obreiro por meio de quem os resultados são
obtidos.

607
Os fundamentos

Estas condições são impostas pelo próprio Deus. Conseqüen­


temente, quando as condições são realmente cumpridas de nossa
parte, Ele se torna responsável pelos resultados. Os resultados nem
sempre podem ser conforme o que podemos calcular ou desejar,
mas eles sempre corresponderão aos meios do modo como são
usados.
Estas condições são duplas. Da parte do obreiro cristão, elas
consistem em aplicar os meios de Deus para a salvação dos homens
pelo modo de Deus. Aqui, o perigo está em aplicar todos os tipos
de meios humanos de qualquer maneira com a finalidade de obter
resultados aparentes. Freqüentemente, culpamos Deus direta ou
indiretamente pela pobreza e caráter dos resultados, quando, de
fato, nunca obedecemos as condições de Deus que sempre são
naturais, razoáveis e científicas.
Segundo, da parte do pecador, essas condições se aplicam,
porque embora ele esteja espiritualmente morto, ele está intelec­
tualmente vivo e, moralmente, é um livre agente, por conseguinte
responsável por sua conduta, incluindo sua incredulidade e sua
rejeição de Cristo como seu Salvador. Ele é responsável pelas opor­
tunidades colocadas diante de si e, portanto, ele é responsável pelas
condições que Deus impôs para a salvação de sua alma. Nenhum
homem, em qualquer terra, pelo menos, em que o evangelho foi
estabelecido, pode verdadeira e conscientemente reivindicar que
encontrou plenamente as condições de Deus para a sua salvação e
que Deus o rejeitou, ou que os resultados não foram adequados e
científicos. Por outro lado, nenhum obreiro cristão tem direito aos
resultados prometidos por Deus até que ele tenha ido ao encontro
das condições impostas por Deus. O uso parcial dos meios, usados
de forma indistinta por um tempo limitado, não é científico e não irá
ao encontro das condições de Deus. Isso não só é verdade na obra
da salvação real da alma, mas também na vida cristã.

Os resultados obtidos
Os resultados obtidos na conversão de uma alma humana são
igualmente científicos com os meios usados para isso.
O resultado primário é um novo homem. Não um velho homem
transferido, mas um novo homem, possuído por uma nova vida e
dotado com novas e ampliadas possibilidades. Um homem com
uma nova visão tanto desta vida quanto da futura, a eterna. Um

608
A ciência da conversão

homem inspirado com uma nova esperança, a sorte daqueles que


são lançados no próprio trono de Deus e que é um título positivo e
inalienável a uma herança no céu. Um homem com uma fé pessoal
positiva em Cristo. Uma fé que torna Cristo sua posse pessoal, com
tudo que Cristo é, assim como tudo o que Ele tem e tudo o que Ele
tem feito. Um homem, cuja vida inteira se converte do serviço ao
pecado e ao ego para o amável e voluntário serviço de Cristo como
seu novo Mestre.
E inquestionável que esse homem é o resultado científico dos
meios que foram aplicados, pois esses meios estão em harmonia
com as grandes leis de Deus que governam seu reino, desde as
mais diminutas combinações de átomos até o balanço das esferas
em seu universo ilimitado.
Primeiro, a vida produz a vida segundo sua espécie. Conse­
qüentemente, o toque do Espírito divino, que dá vida, distribui
vida de sua própria espécie para a alma dormente e a torna um
filho vivo de Deus. Esse resultado é tão manifestadamente cientí­
fico como aquele que pode ser encontrado em toda a natureza. A
alma imortal dotada com todas as possibilidades de um ser finito
já existe, mas a vida eterna é o resultado científico do toque do
Espírito de Deus, que dá vida. Na realidade, é impossível que o
resultado seja outro.
Outro resultado é o efeito produzido sobre a vontade do converti­
do. Sua vontade é renovada e está agora em harmonia com a vonta­
de divina, e isto ocorre pela ação da vontade divina sobre a vontade
do pecador. Aqui, novamente, o divino procria sua semelhança na
vontade alterada da alma convertida, que é um resultado natural e
científico.
Novamente, pelo poder iluminador e persuasivo do evangelho, o
pecador é levado a ver o erro de seu caminho e a condição de sua
alma, cujos resultados são o arrependimento dos pecados e a fé
em Cristo. O homem é exteriormente convertido e toda sua vida e
serviço convertidos. Estes são novamente os resultados científicos
dos meios usados conforme a ordem divina das coisas. Quando
estes resultados nem sempre seguem a pregação da Palavra
deve-se amplamente ao fato de que os meios têm sido usados de
maneira errada pela mera satisfação da luxúria do obreiro, ou que
outro meio necessário foi negligenciado, especialmente a oração.
E a razão por que muitas conversões não são genuínas é devido ao

609
Os fundamentos

fato de que elas são conversões meramente externas, o resultado


do discurso inflamado, a pregação do evangelho, ao passo que a
oração para a obra interma do Espírito foi totalmente ignorada.
Em todo o processo de conversão há um princípio fundamental
que gera gosto, e os meios produzem resultados de acordo com as
leis puramente científicas, e se os resultados não são científicos,
eles são espúrios, externos e temporários. Um exemplo belo e
indicado encontra-se na conversão da congregação que se encon­
trava na casa de Cornélio. Os meios foram usados — embora sem
o conhecimento da parte dos homens — na ordem científica. A
oração, o Espírito Santo, a Palavra pregada; e os resultados foram
conversão, confissão e culto cristão.

610
611

O transcurso da evolução

P r o f. G eo rg e F. W r i g h t , D.D., L.L.D.
Faculdade de Oberlin, Oberlin, Ohio
Revisado e editado por Glenn 0 ’Neal, Ph.D.

A palavra evolução é em si mesma bem inocente e tem uma


grande gama de uso legítimo. A Bíblia, na verdade, ensina um
sistema de evolução. O mundo não foi feito em um momento, ou
mesmo em um dia (qualquer período que a palavra dia possa
significar), mas em seis dias. Ao longo de todo o processo havia um
progresso ordenado das formas de matéria e vida, da inferior para
a superior. Em suma, há uma ordem estabelecida em toda a obra do
Criador. Até mesmo o Reino do Céu é como um grão de semente de
mostarda, que, ao ser plantada, cresce da menor semente para ser
uma árvore na qual as aves do céu podem se refugiar. Assim, em

G EORG E FREDERICK WRIGHT (1838-1921) formou-se pelo Seminário


Teológico de Oberlin, em 1862, e pastoreou em Bakersfield, VT (1861-
1872) e em Andover, MA (1872-1881), antes de retornar a Oberlim para
lecionar (1881-1907). Nitidamente interessado em geologia e na relação
entre ciência e religião, Wright foi pioneiro de um a apologética única
em seus dias. Editou a Bibliotheca Sacra [Biblioteca Sacra] e publicou,
entre outros: The Logic of Christian Euidences [A Lógica das Evidências
Cristãs] (1880), Studies in Science and Religion [Estudos sobre Ciência
e Religião] (1882), The Diuine Authority of the Bible [A Autoridade
Divina da Bíblia] (1884), uma biografia de Charles Finney (1891) e sua
autobiografia (1916).
Os fundamentos

toda parte há “primeiro a erva, depois, a espiga, e, por fim, o grão


cheio na espiga” (Mc 4.28).
A palavra, porém, tem perdido a boa reputação pela introdução
de implicações teológicas e filosóficas errôneas e prejudiciais. A
doutrina extensamente atual da evolução, que somos agora compe­
lidos a combater, é uma doutrina que praticamente elimina Deus de
todo o processo criativo e relega a humanidade à terna misericórdia
de um universo mecânico, as rodas de cuja maquinaria são levadas
a se mover sem qualquer imediata direção divina.
Essa doutrina da evolução recebeu um impulso do darwinismo
e foi tão freqüentemente confundida com ele que é importante, no
início, separar os dois. O darwinismo não era, na intenção de seu
autor, uma teoria de evolução universal, e Darwin raramente usava
essa palavra. O título da grande obra de Darwin é A Origem das
Espécies por meio da Seleção Natural. O problema que ele tinha a
intenção de resolver dizia respeito a apenas uma pequena parte do
campo da evolução. Sua hipótese era simplesmente que as espécies
podiam muito bem ser nada além de variedades aumentadas ou
acentuadas, as quais todos admitiam ter descendentes de um
ancestral comum. Por exemplo, há uma grande variedade de carva­
lhos. Mas todos os botânicos supõe que eles se originaram de um
ancestral comum. Algumas castanheiras, no entanto, se diferem
menos de alguns carvalhos do que as variedades extremas de sua
própria espécie. Não obstante, o carvalho e a castanheira não são
considerados como variedades, mas de espécies diferentes. No
entanto, a linha divisória entre eles é tão incerta que é impossível
defini-la em linguagem humana; conseqüentemente, alguns botâni­
cos estabeleceram espécies independentes entre os dois, que eles
chamam de “carvalho castanheira”.

O que é uma “espécie”?


Isto, no entanto, é apenas um único exemplo da grande dificulda­
de que os cientistas têm tido para determinar a definição satisfatória
das espécies. A definição mais geralmente aceita é “uma coleção de
plantas e animais individuais que se parecem um com o outro de
maneira tão próxima que se pode muito bem supor que descendem
de um ancestral comum”. Porém, é fácil ver que esta definição pede
auxílio a toda questão em debate. Não temos meios certos para
saber quão amplamente a progênie pode, em alguns casos, diferir

612
O transcurso da evolução

dos pais; mas apenas sabemos que as semelhanças podem resultar


da ação de outras causas, além das atribuídas às relações parentais.
A definição está longe de ser aquela que seria aceita nas ciências
exatas.
Pode-se muito supor que essas pequenas diferenças que
separam as espécies resultaram das variações dos indivíduos
que descendem de um ancestral comum, ainda que seja um salto
longo demais afirmar isso. Portanto, pode-se muito bem supor que
todas as diferenças entre os animais ou entre as plantas devem ter
surgido de uma maneira semelhante.
Uma diferença característica entre o elefante africano e o
elefante indiano, por exemplo, é que o elefante africano tem três
dedos ocultos em seus pé, e o indiano, quatro. Por isso, embora não
seja um grande arroubo de imaginação supor que essa diferença
tenha surgido por um processo natural, sem qualquer intervenção
exterior, é um arroubo indefinidamente maior da imaginação supor
que todos os membros da família geral, a qual eles pertencem, se
originaram de uma maneira semelhante; pois, essa família, ou
ordem, não inclui apenas o elefante, mas o rinoceronte, o hipopóta­
mo, a anta, o javali e o cavalo.
Mas muitos dos seguidores e expositores de Darwin chegaram
ao extremo em suas afirmações e anunciaram conclusões muito
mais surpreendentes do que essas. Eles não somente afirmam,
com uma assertividade da qual Darwin jamais foi culpado, que as
espécies tiveram uma origem comum por intermédio de causas
naturais, mas que todos os seres orgânicos são igualmente inde­
pendentes das forças sobrenaturais. Para eles, é algo bem insigni­
ficante que duas espécies de elefantes tenham descendido de um
tronco comum. Nada os satisfará a não ser afirmar que o elefante,
o leão, o urso, o rato, o canguru, a baleia, o tubarão, os pássaros de
todas as espécies — na verdade, todas as formas de vida animal,
inclusive as ostras e os caracóis — surgiram estritamente por
processos naturais de alguma partícula diminuta de vida, que se
originou em um tempo bastante remoto.

A origem da vida
Não é necessário dizer que essas conclusões devem repousar
sobre evidências bastante atenuadas, as quais não são permitidas
nas tarefas ordinárias da vida. Mas mesmo isto é apenas o início

613
Os fundamentos

com os evolucionistas minuciosos. Para ser consistentes, devem


não apenas ter todas as espécies de animais ou plantas, mas
todos os animais e plantas descendendo de uma origem comum,
que eles afirmam ser um protoplasma quase sem forma, que se
supõe ter aparecido nas primeiras eras geológicas. Nem isto os faz
chegar de alguma forma a seu objetivo final, pois, para levar a cabo
essa teoria, eles devem chegar à conclusão de que a vida em si se
originou, espontaneamente, por um processo natural, da matéria
inorgânica.
Mas eles não têm, de forma explícita, nenhuma prova científica
disso. Pois, até onde se sabe, a vida surge apenas de uma vida
antecedente. O primeiro capítulo do Gênesis, ao qual já foi feito
referência, fornece a definição da vida da planta, de forma tão
perfeita, como jamais foi dada. A vida da planta, que é a primeira
forma de matéria viva, é descrita como aquilo “cuja semente esteja
nele” e produz “semente segundo a sua espécie” (Gn 1.12). No
início do século dezenove, a teoria da geração espontânea teve
muitos partidários. Acreditava-se que formas diminutas de vida
da planta brotavam de certas condições de matéria inorgânica sem
a intervenção de sementes ou esporos. Garrafas de água, que se
supunham ter sido fechadas a todo acesso de germes vivos, eram
encontradas, depois de ficar por um tempo suficiente fechadas,
cheias de diminutos organismos vivos.
Mas experimentos mostraram que os germes deviam ter estado
na água antes que ela fosse posta de lado. Pois, ao submetê-la às
altas temperaturas, aparentemente a ponto de matar os germes,
nenhuma vida jamais se desenvolveria nela. Toda base positiva para
atravessar a brecha entre a matéria viva e a matéria inerte foi assim
removida do reino da ciência.

O mistério dos primeiros começos


Isso nos leva à importante conclusão de que a origem da vida,
e é claro que podemos acrescentar de suas variações, é para as
mentes finitas um problema insolúvel; e Darwin também o consi­
derou assim. No próprio início dessa especulação, ele se fixou na
suposição de que o Criador, no início, insuflou as forças da vida em
várias formas de plantas e animais e, ao mesmo tempo, dotou-as
com uma maravilhosa capacidade para a variação que sabemos que
elas possuem.

614
O transcurso da evolução

Essa misteriosa capacidade para variação está na base de sua


teoria. Se algo deve ter evoluído de uma maneira ordenada a partir
das forças residentes da matéria primordial, isso deve primeiro ter
sido envolvido pelo ato criador do Ser divino. Mas ninguém sabe o
que causa variação em plantas ou animais. Sabemos como o vento
vem, mas não sabemos de onde ele vem ou para onde ele vai. Os
criadores e os jardineiros não tentam produzir variedades direta­
mente. Eles simplesmente observam as variações que ocorrem e
selecionam para a propagação aquelas que servirão melhor a seus
propósitos. Eles estão bem conscientes de que as variações que
eles perpetuam não são apenas misteriosas em sua origem, mas
superficial em seu caráter.
No darwinismo, as condições variáveis de vida, às quais todo
indivíduo está sujeito, são feitas para tomar o lugar do Criador e
assegurar o que é chamado de seleção natural. Nesse caso, no
entanto, as peculiaridades selecionadas e preservadas devem
sempre ser positivamente vantajosas para a vida dos indivíduos
preservados. Mas para ser vantajosa, uma variação deve não só ser
considerável em quantidade, quanto correlata às outras variações,
de forma que não sejam antagônicas umas às outras. Por exemplo,
se um cervo nascesse com a capacidade de desenvolver chifres tão
grandes que pudessem ser uma vantagem decisiva para ele em
sua luta pela existência, ele deve ao mesmo tempo ter um pescoço
forte o bastante para suportar seu peso, e outras porções de sua
estrutura capaz de suportar o aumento de tensão. Caso contrário,
seus chifres seriam a ruína de toda sua esperança, em vez de uma
vantagem. E impossível conceber essa combinação de variações
vantajosas sem levar em conta a mente artificiosa do criador
original.
Dessa variedade de evolução, assim como de todas as outras,
pode se dizer verdadeiramente, conforme as palavras de um dos
mais destacados físicos, Clerk Maxwell: “Examinei tudo aquilo que
estava dentro de meu alcance e descobri que tudo deve ter um Deus
para fazê-lo operar”. Por nenhuma extensão de raciocínio legítimo,
o darwinismo pode ser excluído desse plano. Na verdade, se fosse
provado que as espécies se desenvolveram de outras pertencentes
a uma ordem inferior, como se supõem que as variedades foram
produzidas, isso fortaleceria mais, em vez de fragilizar, o argumen­
to padrão do projeto.

615
Os fundamentos

Contudo, a prova do darwinismo não é de nenhum modo total­


mente convincente, e seus partidários estão divididos em tantas
seitas contrárias, como acontece com os teólogos. Novas escolas
de evolucionistas surgem tão rapidamente, assim como as novas
escolas da crítica bíblica. Por incrível que pareça, os “neodarwinianos”
voltam para a teoria de Lamarck, ou seja, de que as variações são o
resultado do esforço e do uso feito pelo animal; ao passo que Darwin
negava a herança de características adquiridas; Weissmann vai ao
extremo de sustentar que a seleção natural deve ser levada de volta
aos últimos átomos da matéria primordial, onde eles devem ter
começado sua luta competitiva pela existência. Romanes e Gulick,
no entanto, insistem que variações específicas ocorrem freqüente­
mente da “segregação”, um processo inteiramente independente da
seleção natural.
Nem os defensores da evolução têm uma apreciação muito ele­
vada pelas opiniões alheias. Em uma carta a Sir Joseph Hooker, em
1866, referindo-se a Spencer, Darwin escreveu: “Sinto-me muito
mesquinho, quando o leio: suportaria e até gostaria de sentir que
ele era duas vezes mais engenhoso e inteligente do que eu, mas
quando sinto que ele é dezena de vezes superior a mim, até na arte
suprema de tergiversar, fico entristecido. Se ele tivesse se prepara­
do para observar mais, mesmo que isso, devido à lei de equilíbrio,
ocasionasse alguma perda do poder do pensamento, ele teria sido
um homem maravilhoso” (Life and Letters [Vida e Cartas], Vol. ii.,
p. 239).
Para responder sobre a hereditariedade, Darwin, em sua teoria
da pangênese, sugeriu que as infinitesimais “gêmulas” foram
tiradas de todas as partes do corpo ou da planta e que tinham “uma
afinidade mútua umas com a outras, o que levou à agregação ou
em brotos ou em elementos sexuais”. Mas quando ele se aventu­
rou a opinar que essas eram como as “moléculas vitalizadas” de
Spencer, nas quais habita uma “aptidão intrínseca para se agregar
às formas” das espécies, Spencer, imediatamente, disse que não
era bem assim. Elas não eram semelhantes em nada. Darwin, em
resposta, disse que ele sentia muito pelo engano. Mas ele temeu
que, como ele não saiba exatamente o que Spencer queria dizer por
“moléculas vitalizadas”, uma carga de plágio poderia ser atribuída
a ele se não desse o devido crédito a Spencer. Mas outros pareciam
achar tão difícil entender o que Darwin queria dizer por “gêmulas”
O transcurso da evolução

e com a maravilhosa “afinidade” mútua de umas para com as outras


quanto aquilo que disse que Spencer queria dizer por “moléculas
vitalizadas”. Bates escreveu-lhe que após ler o capítulo duas vezes
não conseguiu compreendê-lo; e Sir H. Holland decretou que seu
pensamento era “muito difícil”, ao passo que Hooker e Huxley
pensavam que a linguagem era mera tautologia, e ambos não con­
seguiram “ter uma idéia distinta” dela (Letters ofDarwin [Cartas de
Darwin], vol. ii, p. 262).
Na verdade, a evolução minuciosa não tem tanta aceitação
universal como freqüentemente se julga que ela tenha. Poucos
naturalistas desejam projetar a teoria além dos limites estreitos
de sua própria província. Esses naturalistas, como Asa Gray e
Alfred Russel Wallace, que em geral aceitam as principais pro­
visões do darwinismo, insistiram que a seleção natural atingiria
seu fim somente se seguissem os desígnios do Criador. Agassiz,
Owen, Mivart, Sir William Dawson e Weissmann ou rejeitaram
a hipótese totalmente ou então a modificaram para que tivesse
alguma semelhança com o original. O Professor Shaler declarou,
pouco antes de sua morte, “que a hipótese darwiniana ainda não
foi comprovada”. O dr. Etheride, do Museu Britânico, disse que
“em todo este grande museu não há uma partícula de evidência
da transmutação das espécies”. Professor Virchow, de Berlim,
declarou que “a tentativa de encontrar a transição do animal para o
homem terminou em fracasso total”. A lista poderia ser estendida
indefinidamente. Haeckel, na verdade, tem, a partir de sua própria
imaginação, fornecido o elo perdido entre o homem e os macacos,
chamando-o Pitecantropo. No entanto, alguns anos depois, Du Bois
descobriu em depósitos vulcânicos recentes, em Java, um pequeno
crânio incompleto em um lugar, e bem próximo dele um fêmur do­
ente (osso da coxa), e não muito longe dois dentes molares. Esses
achados foram saudados como remanescentes do elo perdido, que,
em seguida, foi apelidado de Pitecantropo Erectus. O crânio era, na
verdade, pequeno, tendo apenas dois terços do tamanho do de um
homem comum. Mas o Professor Cope, um dos mais competentes
anatomistas comparativos, concluiu que como o “fêmur era de um
homem, esse, em hipótese alguma, poderia ser um elo de ligação”.
A forma ereta trás consigo todas as características anatômicas de
um homem perfeito (Primary Factors [Fatores Primários], 1896, pt.
1, cap. vi.).

617
Os fundamentos

Os próprios darwinianos, porém, têm compartilhado suas


hipóteses errôneas dos fatos e das conclusões ilógicas. Bastará,
para nosso presente propósito, nos referirmos a alguns dessas
hipóteses.
O próprio Darwin cometeu dois grandes erros, que aos olhos
dos estudantes perspicazes, comprometem toda sua teoria.
1. Q u anto a o T e m p o G e o l ó g ic o . O estabelecimento da teoria de
Darwin, da forma como ele originalmente a propôs, envolvia a
existência da terra substancialmente em sua condição presente
por um período de tempo indefinido, para não dizer infinito.
Em um de seus cálculos, na primeira edição de A Origem das
Espécies, ele chegou à conclusão surpreendente que 306.662.400
anos não passam de “uma mera ninharia” em termos de tempo
geológico. Porém, não demorou muito para que seu filho, Sir
George H. Darwin, demonstrasse, para satisfação geral dos físi­
cos e astrônomos, que a vida não poderia ter começado na terra
há mais de 100 milhões de anos atrás e, provavelmente, não mais
que cinqüenta milhões; e o Lord Kelvin reduziria o período a
menos de trinta milhões de anos, o qual Alfred Russel Wallace
afirma que é tempo suficiente para o depósito de todos os es­
tratos geológicos. Evolucionistas estão agora em duro combate
e lutando contra a grande probabilidade de ter sido necessário
mais de cem milhões de anos para o desenvolvimento do atual
drama da vida sobre a terra.
A diferença entre 306.662.400 anos, considerada como “uma
mera ninharia”, e 24.000.000, ou mesmo 100.000.000 anos, como
constituindo a soma total, é tremenda. Pois é preciso uma rapidez
no desenvolvimento das espécies que devem ser admitidas como
saltos e limites e, desse modo, isso estaria bem de acordo com a
teoria da criação por meio da intervenção divina especial.
Se um crítico do darwinismo tivesse cometido um erro tão
notório como este que Darwin introduziu no próprio fundamento
de sua teoria, ele teria sido objeto de um imenso escárnio. A única
desculpa que Darwin poderia ter dado era de que ninguém naquela
época conhecia nada melhor. Mas essa desculpa mostra a loucura
de qualquer tentativa de construir uma teoria grandiosa sobre um
fundamento desconhecido.
2 . Q uanto à e x a t id ã o das Va r ia ç õ e s B e n é f ic a s . O tempo geoló­
gico ilimitado, requerido pela teoria original de Darwin, está em

618
O transcurso da evolução

estrita relação com seu ponto de vista da exatidão dos passos


através dos quais os progressos foram feitos. As palavras que
ele constantemente usa, quando fala das variações, são “suave”,
“pequena”, “extremamente gradual” “e gradações insensíveis”.
Mas logo no começo dessa discussão, Mivart mostrou que “as
diminutas variações incipientes em qualquer direção especial”
seriam sem valor; visto que para ter vantagem em qualquer um
dos casos, elas deveriam aparecer em quantia considerável. E,
mais ainda, para ter vantagem permanente, a variação de um
órgão deveria ser acompanhada de numerosas outras variações
nas outras partes do organismo.
O absurdo dessa suposição sobre a aquisição de qualidades van­
tajosas pelas variações de oportunidades é mostrado no exemplo
pertinente aduzido por Herbert Spencer, a partir da anatomia do
gato. Para dar ao gato o poder de saltar qualquer altura vantajosa,
deveria haver uma variação simultânea em todos os ossos, tendões
e músculos das extremidades posteriores; e, ao mesmo tempo, im­
pedir que o gato se acidentasse quando descesse de uma elevação,
deveria haver variação, de um caráter totalmente diferente, em
todos os ossos e tendões e músculos dos membros anteriores. Para
aprender o caráter dessas mudanças, é preciso apenas “contrastar
os membros posteriores de um gato com seus membros anteriores,
quase retos, ou contrastar o silêncio do salto para cima sobre uma
mesa com o baque que as patas dianteiras sofrem quando ele salta
de cima da mesa para o chão”. Tão numerosas são as mudanças
simultâneas necessárias para assegurar qualquer vantagem aqui,
que as probabilidades de que o aparecimento fortuito ocorra são
diminutas, se não quase impossíveis; de maneira que elas estão
além de qualquer reconhecimento racional.

A origem do homem
O fracasso da evolução para explicar o aparecimento do homem
é conspícuo. No princípio da discussão darwiniana, Alfred Russel
Wallace, o mais destacado cooperador de Darwin, exemplificou
várias peculiaridades no homem que não teriam se originado
apenas por intermédio da seleção natural, mas que necessitariam
da interferência de um poder diretor superior.
Entre estas estão:
(a) a ausência de qualquer cobertura de proteção natural no

619
Os fundamentos

homem. A nudez do homem, que o expõe à inclemência do tem­


po, jamais poderia em si mesma ter sido uma vantagem para a
idéia da seleção natural. Teria sido útil somente quando sua inte­
ligência já estivesse tão desenvolvida que ele pudesse construir
ferramentas para despelar os animais, assim como para tecer e
coser artigos de vestuário. E isso praticamente envolve todos os
atributos humanos essenciais.
(b) O tamanho do cérebro humano. O cérebro humano está fora de
proporção, quanto às necessidades mentais do mais elevado dos
animais abaixo dele. Sem a inteligência do homem, um cérebro
desse tamanho seria mais um estorvo do que uma vantagem.
O peso do maior cérebro de um gorila é bem menor do que a
metade do de homem comum, e somente um terço dos cérebros
mais desenvolvidos da raça humana.
(c) Esse aumento no tamanho do cérebro está relacionado tam­
bém com uma infinidade de outras adaptações especiais da
estrutura corporal aos desejos da mente humana. Por exemplo,
o dedo polegar do membro posterior de um macaco torna-se
o dedão do pé no homem, que é um membro mais importante
para um ser que anda em uma posição vertical, mas uma
desvantagem para quem caminha com as quatro patas. Os
membros anteriores de um macaco são mais curtos do que os
braços de um homem, para se adaptarem à sua posição vertical
e aos vários usos que são vantajosos a essa posição. Além
disso, para tornar possível a manutenção da posição ereta de
um homem é preciso haver uma construção especial na rótula
e juntas nos ossos da bacia e no ajuste de todas as vértebras da
espinha e do pescoço. Todas esses aspectos seriam desvantajo­
sos para uma criatura semelhante a um macaco desprovido da
inteligência do homem.
(d) a capacidade intelectual do homem pertence a uma ordem
diferente da dos animais inferiores. Os naturalistas, na verdade,
classificam os homens e os macacos no mesmo gênero anatô­
mico. Mas, para denotar a espécie humana, eles acrescentam a
palavra sapiens. Quer dizer, eles devem admitir sua inteligência
como uma característica específica. Os animais inferiores, na
verdade, possuem muitos instintos comuns ao homem e, em
muitos casos, seus instintos são bem superiores aos do homem.
Mas, em seu poder de raciocínio, o homem está aparentemente
O transcurso da evolução

separado dos animais inferiores, de todos eles, por um abismo


intransponível.
Romanes, depois de coletar as manifestações do raciocínio
inteligente de cada espécie conhecida dos animais inferiores,
descobriu que eles só se igualavam, completamente, à inteligência
de uma criança de quinze meses. Ele não pôde encontrar rastros
de inteligência nos animais inferiores como há no homem. Como
qualquer um pode ver, seria absurdo tentar ensinar geologia a um
elefante, astronomia a uma águia, ou teologia a um cão. No entanto,
não há raça de seres humanos que não tenham capacidade de
compreender estas ciências.
Novamente, às vezes, o homem é, e não impropriamente,
definido como um “animal que usa instrumentos”. Nenhum animal
jamais utiliza, muito menos produz, uma ferramenta. Mas as
raças humanas mais inferiores mostram grande ingenuidade na
produção de ferramentas, ao passo que até mesmo as mais rudes
pederneiras implementam indubitável evidência de um poder de
adaptar os meios aos fins que colocam seu fabricante em uma
categoria à parte.
Mais uma vez, às vezes, o homem é, e apropriadamente, definido
como um “animal que utiliza o fogo”. Nenhum animal jamais produ­
ziu fogo. Macacos, na verdade, se ajuntam ao redor do fogo quando
este é produzido. Mas produzi-lo está completamente além de sua
capacidade. O homem, no entanto, mesmo em seus estágios mais
primitivos sabe como fazer o fogo quando quer. Tão grande é essa
façanha, que não é de admirar que os gregos tenham olhado para
ela como uma dádiva direta do céu.
Mais uma vez, o homem pode apropriadamente ser descrito
como “um animal que fala”. Nenhum outro animal usa a linguagem
articulada. Contudo, o homem não a utiliza apenas na fala, mas
também na escrita. Quão absurdo seria tentar ensinar um porco a
traduzir e a compreender as inscrições cuneiformes desenterradas
das montanhas desertas da Babilônia!
Finalmente, o homem pode apropriadamente ser descrito
como um “animal religioso”, mas quem pensaria em aprimorar a
natureza dos animais inferiores, fazendo sermões ou distribuindo
Bíblias para eles? Contudo, a Bíblia — um Livro composto de todas
as espécies de literatura, que contém os vôos mais altos da poesia
e da eloqüência jamais escritas, assim como apresenta as mais

621
Os fundamentos

sublimes concepções de Deus e da vida futura sempre considerada


— foi traduzida para todo idioma debaixo do céu, e nessas línguas
encontrou as expressões e as figuras de linguagem apropriadas
para apresentar efetivamente suas idéias.

O argumento cumulativo
Agora, todas essas peculiaridades do homem, tanto no corpo
quanto na mente, para ser vantajosas, devem ter, ao mesmo tempo,
acontecido simultaneamente e em em quantidades consideráveis.
Supor que tudo isso ocorreu sem a intervenção da suprema mente
artificiosa é cometer um “suicídio” lógico. Essa oportunidade de
combinações está além de toda possibilidade da crença racional.
E justo acrescentar, no entanto, que Darwin jamais supôs que o
homem descendesse de qualquer espécie de macacos existentes;
mas ele sempre falou de nosso suposto ancestral como “seme­
lhante ao macaco”, uma forma, da qual os macacos, conforme se
supunha, teriam se desenvolvido em uma direção diversa da do
homem. Todos os esforços, no entanto, de encontrar os vestígios
desses elos de ligação, como supõe essa teoria, fracassaram. O
crânio de Neanderthal era, de acordo com Huxley, capaz o bastante
de sustentar o cérebro de um filósofo. O Pitecantropo Erectus, de
Du Bois, tinha, como já salientamos, a forma ereta de um homem;
e, de fato, era um homem. Os esqueletos do homem pré-histórico
já descobertos não se diferem mais dos das raças atuais de homens
do que as diferenças existentes entre as raças e os indivíduos.
Em suma, tudo aponta para a unidade da raça humana e para o
fato de que, embora construído no padrão geral dos animais mais
elevados associados com ele nas últimas eras geológicas, ele se di­
fere deles em muitos particularidades importantes, que, portanto,
se torna necessário supor que ele veio à existência como a Bíblia
relatou, pela criação especial de um único par, de quem todas as
variedades da raça derivaram.
E importante observar, além disso, em relação a esse assunto,
que o progresso da raça humana não foi uniformemente superior.
De fato, a degeneração das raças tem sido mais conspícua do que seu
avanço; apesar de o avanço ter sido principalmente por intermédio
da influência de forças externas. As primeiras artes da Babilônia
e do Egito foram melhores do que as posteriores. As concepções
religiosas das primeiras dinastias do Egito foram mais altas do

622
O transcurso da evolução

que as últimas. Todas as últimas formas de civilização brilham


principalmente por meio da luz emprestada de outras culturas.
Nossa própria era supera, na verdade, em avanço material. Mas,
quanto à arte e à literatura, estamos bem abaixo do passado, e, para
nossa melhor religião, ainda voltamos aos cantores dos salmos e
profetas da Judéia, assim como às palavras Daquele que falou como
“jamais alguém falou” (Jo 7.46). A democracia não guia quem ousa
confiar implicitamente. Temos muita razão em temer que aqueles
que estamos seguindo sejam guias cegos levando a um fim que não
é bom contemplar, e do qual só poderemos nos libertar pela vinda
do Filho do Homem.

Conclusão
O título desta dissertação talvez não seja apropriado. Pois, sem
dúvida, o transcurso da atual fase da evolução não é final. Teorias
da evolução têm perseguido umas às outras em relação à rápida su­
cessão ocorrida em milhares de anos. A evolução não é uma coisa
nova na filosofia, e a fragilidade da natureza humana é tamanha
que não é provável que desapareça de repente entre os homens.
A loucura da última metade do século 19 é pouco mais do que a
recrudescência de uma filosofia que dividiu a opinião dos homens
desde os primeiros tempos. Tanto na mitologia do Egito quanto na
mitologia indiana Oriental, o mundo e todas as coisas que foram
desenvolvidas nele a partir de um ovo; e o mesmo acontece com os
mitos polinésios. Mas os polinésios tinham de ter um pássaro para
botar esse ovo, e os egípcios e os brâmanes tinham de ter algum
tipo de divindade para criar os seus. Os filósofos gregos se esfor­
çaram para resolver o problema sem chegar a qualquer conclusão
mais satisfatória. Anaximandro, como o Professor Huxley, atribuiu
o início a um “infinito”, que se transformava gradualmente em um
tipo de “lama” prístina (alguma coisa como a explosão bathybius,
de Huxley), de onde tudo mais evoluiu; Tales de Mileto procurou
pensar na água como a mãe de todas as coisas, e Anaxímenes pra­
ticamente deificava o ar. Diógenes imaginou uma “mente material”
(alguma coisa como os biophoros, de Weissmann, as “gêmulas de
Darwin, que tinham de afinidade umas com as outras”, e as “molé­
culas vitalizadas” de Spencer) que agia como se tivesse inteligência;
Heráclito pensava que o fogo era o único elemento puro suficiente
para produzir a alma do homem. Essas especulações culminaram

623
Os fundamentos

no grande poema de Lucrécio, intitulado De Rerum Natura, escrito


pouco antes do início da era cristã. Sua teoria atômica era algo
como a que prevalece hoje entre os físicos. Em meio ao movimento
incessante destes átomos, há algo parecido, de acordo com ele, às
formas ordenadas e aos processos vivos da natureza.
As especulações evolutivas modernas não fizeram um progres­
so real sobre aquelas dos antigos. Como já apontamos, elas são, em
suas formas mais corajosas, ateístas; ao passo que, em suas formas
mais moderadas, elas são “deístas” — admitindo, realmente, a
atuação de Deus no princípio, mas apenas no início. A tentativa, no
entanto, de dar à doutrina estatura por meio da teoria de Darwin,
conforme exposta na origem das espécies por meio da seleção
natural não teve êxito; com muito esforço, a teoria pode melhorar
apenas um pouco nossa compreensão da adequação de forças
residentes para produzir e conservar variações de espécies, mas
não pode, nem de longe, banir a idéia do plano do processo.
Portanto, é impossível obter qualquer prova da evolução de
modo a modificar seriamente nossa concepção do cristianismo. O
mecanismo do universo é tão complicado que nenhum homem pode
dizer que o universo está imune à interferência divina. Em especial,
esse é o caso, visto que sabemos que a livre vontade do homem não
perfura as juntas da couraça da natureza e apenas pode interferir
em sua ordem até certo ponto. O homem, pelo cultivo, faz as frutas
e as flores crescerem onde, caso contrário, ervas daninhas cobri­
riam o solo. O homem faz dez mil combinações de forças naturais
que não acorreriam sem sua ação. O curso regular da natureza é
interferido cada vez que um selvagem faz uma ferramenta de pedra
ou constrói uma canoa, ou, pela fricção, produz fogo. Não podemos
banir Deus do universo sem primeiro nos estultificar a nós mesmos
e reduzir a livre vontade do homem a uma mera força mecânica.
Mas o homem é mais do que isto; e isto todos nós sabemos.
O campo está agora livre como jamais esteve para aqueles que
estão contentes em agir sobre a evidência positiva da verdade do
cristianismo como agradou ao Criador proporcionar. A evidência
para a evolução, mesmo em sua forma mais modesta, não nunca
será tão forte quanto a revelação de Deus nas Escrituras.

624
625

O valor apologético
das epístolas de Paulo

Rev. E. J. S to b o , J r., B.A., S.T.D.


Smith’s Falls, Ontario, Canadá,
Revisado e editado por James H. Christian, Th.D.

Nesta dissertação, trataremos apenas de quatro epístolas que


são reconhecidas pela crítica bíblica de todas as escolas como indu­
bitavelmente genuínas; a saber, Gálatas, 1 e 2 Coríntios e Romanos.
As quatro epístolas em questão possuem a vantagem de ser mais
ou menos controvertidas em sua natureza. O debate leva à clareza
da declaração, e temos a vantagem de ouvir as palavras de Paulo,
como também entender os pontos de vista daqueles com quem ele
debate. A controvérsia nessas epístolas é importante à natureza e
ao destino do cristianismo, e, conseqüentemente, podemos esperar
aprender o que Paulo acreditava como central e essencial à fé
cristã. Há cristologia suficiente nessas epístolas para nos mostrar o
que Paulo pensava a respeito do grande Fundador do cristianismo.

EDWARD JO H N STOBO (1867-1922) foi filho de um Pastor Batista


Escocês que emigrou para o Canadá, em 1872. O jovem Stobo
recebeu sua graduação pela Universidade McMaster (B.Th.; B.D.), pela
Universidade Western (B.A), e pela Universidade Temple (D.S.T.). Depois
de sua ordenação como ministro batista, ele esteve atrás do púlpito de
igrejas em Ontário e Manitoba. The Glory of His Robe [A Glória de Seu
Manto] foi publicado em 1922, ano em que o autor morreu.
Os fundamentos

Além disso, há, nestes escritos, referências à solene experiência da


crise em sua história espiritual, e estas têm sustentação nas cartas
à Teófilo, que são popularmente conhecidas como o evangelho de
Lucas e os Atos dos apóstolos. Com essas indicações para seguir,
seremos capazes de argumentar pela credibilidade dos documen­
tos do Novo Testamento, como também pela a precisão do retrato
pintado de sua figura central, o Senhor Jesus Cristo.
Nosso primeiro argumento tem de ver com o valor apologético
das referências nas epístolas de Paulo para sua experiência cristã.
Sua teologia supera em crescimento sua experiência. Se lembra­
mos o intenso e trágico esforço moral por trás da teologia de Paulo,
há um interesse imortal em palavras como lei, justiça, justificação,
adoração, carne, espírito.
As passagens nessas quatro epístolas que exibem de forma
mais conspícua o caráter autobiográfico ocorrem no primeiro
capítulo da epístola aos Gálatas e no sétimo capítulo da epístola
aos Romanos. Com a primeira, aprendemos que ele pertencia a
uma classe que era completamente contrária a Jesus. Sua religião
era o judaísmo. Ele era um entusiasta dessa religião. Ele diz: “E,
na minha nação, quanto ao judaísmo, avantajava-me a muitos da
minha idade, sendo extremamente zeloso das tradições de meus
pais” (G11.14). Em outras palavras, ele era um fariseu do tipo mais
radical. Seu grande objetivo na vida era tornar-se legalmente justo
e, assim, era muito mais fortemente opostos à nova doutrina devido
a todos seus preconceitos. No sétimo capítulo de Romanos, apren­
demos que Paulo fez uma grande descoberta com o tempo. Um dos
mandamentos, o décimo, proíbe a cobiça; e assim ele aprendeu que
um mero sentimento, um estado do coração, é condenado como
pecado. Nesse momento, seu farisaísmo foi condenado. “Outrora,
sem a lei, eu vivia; mas, sobrevindo o preceito, reviveu o pecado,
e eu morri” (Rm 7.9). Ele descobriu um mundo de pecado com o
qual ele não havia sonhado, e a justiça legal parecia inatingível. Ele
procurara satisfazer a fome de sua alma com ordenanças legais;
porém descobriu que eram palha, não trigo, e assim ele procurou
pela verdadeira nutrição. Por fim, ele se converteu ao cristianismo.
A conversão de Paulo é um dos problemas mais difíceis para
aqueles que tentam dar uma solução puramente naturalista a
respeito da origem do cristianismo. Todos os que tentam explicá-la,
sem admitir a mão de Deus nela, se tornarão fúteis. Ele mesmo diz

626
O valor apologético das epístolas de Paulo

piamente: “Quando, porém, ao que me separou antes de eu nascer


e me chamou pela sua graça, aprouve revelar seu Filho em mim”
(G1 1.15,16). Esse argumento afirma que o cristianismo é uma
religião sobrenatural.
Quando uma crise religiosa alcança um homem do tipo de Paulo,
ela possui um significado profundo. Para ele o tornar-se cristão é
tudo. Ele percebeu que o judaísmo e sua justiça legal tinham acaba­
do, que a lei fora abolida como um modo de salvação. Ele admitiu
que a salvação deve vir ao homem por meio da graça de Deus, e
que a salvação pode vir por meio daquele canal a todos os homens
igualmente, e que, portanto, a prerrogativa judaica chegara ao fim.
Essas conseqüências são todas confirmadas na nota biográfica no
primeiro capítulo de Gálatas.
Pode-se ver facilmente que se os relatos da conversão de Paulo,
contidos nas epístolas, forem aceitos, eles apóiam e valorizam os
relatos em Atos dos apóstolos. As conseqüências dessa conversão,
como previamente indicadas, estão em completa harmonia com o
ensino da última parte de Atos dos apóstolos, e assim podemos
chegar à conclusão de que os conteúdos desse livro são dignos
de confiança, independentemente de Lucas ser ou não o autor. E
visto que Atos dos apóstolos propõe-se a ser uma continuação do
evangelho de Lucas, somos levados a concluir que este evangelho
deve ser digno de confiança também, e que todos os sinóticos
apresentam fatos reais. Essa conclusão relaciona-se à historicidade
de Jesus Cristo.
Nosso segundo argumento está relacionado com o valor apolo­
gético das referências nas epístolas de Paulo à pessoa de Cristo.
A conversão de Paulo leva-nos gradualmente de volta à Cristo.
Mas que tipo de Cristo? O leitor ficará espantado com o fato de
que, nessas epístolas, a vida terrena de Cristo é representada tão
singularmente livre do miraculoso. Ele nasceu de uma mulher,
nasceu debaixo da lei (G1 4.4). Ele provém de Israel e é, segundo
a carne, da tribo de Judá, a semente de David (Rm 9.5; 1.3). Ele é
desconhecido dos príncipes do mundo (2Co 2.8). E pobre, odiado,
perseguido, crucificado (2Cor. 8.9; G1 6.14; ICo 1.23-25; 2.2). Ele
é traído na noite logo após ter instituído a Ceia (ICo 15.23). Morre
na cruz, à qual fora preso com pregos, e é enterrado (ICo 15.3, 4).
Esse relato concorda com o dos sinóticos, com a exceção de que
não ouvimos nada a respeito de um nascimento sobrenatural, nem

627
Os fundamentos

há qualquer ênfase posta em suas obras sobrenaturais. Em suas li­


nhas principais, o retrato do homem Jesus concorda perfeitamente
com a dos evangelhos sinóticos, assim como fornece credencial à
sua história.
Por outro lado, Cristo é representado como um ser de majestade
ideal. A doutrina da pessoa de Cristo, como encontrada nessas
quatro grandes epístolas, não é mera especulação teológica. E
a superação do desenvolvimento da experiência religiosa. Jesus,
para Paulo, foi o Senhor, pois Ele era o Salvador. Quatro verdades
principais com referência à Cristo possuem proeminência em seus
escritos:
1. R elaçã o co m o t e m p o . Ele é o Filho de Deus “o qual, segundo
a carne, veio da descendência de Davi” (Rm 1.3). Em sua
humanidade, nosso Senhor nasceu (Rm 1.2). Essa natureza
começa apenas assim. Ele é possuído de uma outra natureza
que data muito antes da encarnação. Ele é, em um sentido
particular, o “próprio Filho” de Deus (Rm 8.32). Sua existência
eterna é afirmada em 2Coríntios 8.9: “Pois conheceis a graça
de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por
amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos”,
e encontra plena expressão na epístola aos Filipenses (2.5-9).
A alusão espalhada nessas quatro grandes epístolas confirma o
ensinamento da carta aos Filipenses e, acima de tudo, a clássica
declaração do quarto evangelho: “No princípio era o Verbo”.
2 . R elaçã o co m o h o m e m . Paulo diz que Cristo era alguém
“nascido de mulher” (G1 4.4), e que foi enviado ao mundo “em
semelhança de carne pecaminosa” (Rm 8.3); isto é, Ele veio ao
mundo por nascimento e tinha o aspecto de um homem comum.
Mas, embora Cristo tenha sido enviado em semelhança de carne
pecaminosa, Ele não era pecador. Ele “não conheceu pecado”
(2Co 5.21). A mente que estava Nele antes veio a reger sua vida
após Ele ter vindo. No entanto, Paulo admite que a ressurreição
constituiu-se em uma crise importante na experiência de Cristo.
Daí o fato de Ele ser declarado o Filho de Deus com poder
(Rm 1.4), “o homem do céu” (ICo 15.47). Ainda, para Paulo,
Jesus é um homem real, um judeu com sangue hebreu em suas
veias, um descendente de Davi. O retrato pintado dessa maneira
concorda perfeitamente com aquele dos evangelistas que O
descrevem como um homem real, mas, de alguma maneira
estranha, diferente dos outros homens.

628
O valor apologético das epístolas de Paulo

0 Filho de Davi foi, para Paulo, além disso, “o segundo homem”


(ICo 15.47). Este título aponta Cristo como alguém que tem,
por vocação, desfazer o prejuízo causado pela transgressão do
primeiro homem. Por isso, Ele é invocado em nítido contraste
com o primeiro homem, Adão, pois Jesus é “espírito vivificante”
(ICo 15.45). Enquanto o primeiro trouxe a morte ao mundo, o outro
traz a vida (ICo 15.22). Essa doutrina concorda com a declaração
dos sinóticos: “Porque o Filho do Homem veio salvar o que estava
perdido” (Mt 18.11), e, “E lhe porás o nome de Jesus, porque ele
salvará o seu povo dos pecados deles” (Mt 1.21).
3 . R elaçã o c o m o u n iv e r s o . Ele é representado na epístola aos Co-
lossenses como o primogênito de toda criação, como a origem
da criação assim como sua causa final, todas as coisas no céu
e na terra, visíveis e invisíveis, incluindo os anjos, foram feitas
por Ele e para Ele (Cl 1.15,16). Isso vai além de qualquer coisa
encontrada nas quatro grandes epístolas, contudo, podemos
encontrar rudimentos de uma doutrina cósmica mesmo nessas
cartas. Para Paulo, há um axioma, de que o universo tenha seu
objetivo final em Cristo, seu Rei (ver ICo 8.6).
4 . R elaçã o c o m D e u s . Paulo aplica dois títulos a Cristo, “o filho
de Deus” e “Senhor”. Paulo encontrou na ressurreição a prova
mais convincente da divindade de Cristo. Ele é “e foi designado
Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela
ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor”
(Rm 1.4). Escrevendo aos Coríntios ele diz: “E, se Cristo não
ressuscitou, é vã a nossa pregação, [...] é vã a vossa fé, e ainda
permaneceis nos vossos pecados” (ICo 15.14-17). Ele lhes sub­
mete a prova de seu apostolado no fato de que viu “Jesus nosso,
Senhor” (ICo 9.1). Ele conta aos Gálatas que seu evangelho veio
“mediante revelação de Jesus Cristo” (G11.12). O evangelho, de
acordo com ICoríntios 15.3-8, contém cinco fatos elementares:
(1) Cristo morreu por nossos pecados; (2) Ele foi sepultado;
(3) ressuscitou no terceiro dia; (4) apareceu a muitos discípulos;
e (5) apareceu ao próprio Paulo. Essas são as coisas que são
vitais na pregação de Paulo. Quando lembramos que, como fari­
seu, seus preconceitos eram todos contra o evangelho, devemos
chegar à conclusão de que o testemunho de Paulo argumenta
mais fortemente pela historicidade da ressurreição e das verda­
des envolvidas nela.

629
Os fundamentos

Aqui, podemos reiterar o que já foi declarado com respeito ao


uso, por Paulo, da expressão “seu próprio Filho”, em Romanos 8.3.
Essa passagem trata da fraternidade dos filhos. Jesus, em meio às
multidões que tinham o direito de chamar a si próprias de filhos
de Deus, é uma figura única, que eleva-se acima de todos. Em
2Coríntios 4.4 declara-se que Cristo é a imagem de Deus, e em
Romanos 8.29 se diz que o destino do crente é ser conformados
à imagem do Filho de Deus. Para os cristãos, o ideal é carregar a
imagem de Cristo, porque está reservado a Cristo a honra de ser
a imagem de Deus. Isso lança uma luz adicional sobre a idéia da
filiação de Cristo.
Ele é representado como o único Senhor por meio de quem
todas as coisas são (ICo 8.6). Jesus, o Criador de todas as coisas.
Isso concorda com o evangelho de João, quando ele ensina sobre a
criação realizada pelo Verbo (Jo 1.3).
Em ICoríntios 8.5,6, o termo “Senhor” tem o mesmo significado
que “Filho.” Em vista do politeísmo pagão, o apóstolo coloca o Deus
real acima e contra os muitos deuses, conforme a denominação do
paganismo, e um Senhor real acima e contra os muitos senhores
desse paganismo. Essa posição indica que o apóstolo igualou Cristo
a Deus. A famosa bênção, no encerramento da Segunda epístola
aos Coríntios, implica, além disso, uma alta concepção da pessoa e
posição de Cristo. Dificilmente, seria possível acreditar que Paulo
usaria frases como “a graça do Senhor Jesus”, “o amor de Deus” e
“a comunhão do Espírito Santo”, a não ser que ele cresse que Cristo
fosse Deus. Agora tudo isto dá força ao prólogo de João: “No princí­
pio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e Verbo era Deus”.
As quatro grandes epístolas de paulinas concordam, nos
detalhes mais importantes, com o quadro de Jesus que nos é
dado nos evangelhos. A concepção da pessoa de Cristo, como já
demonstramos, não era natural para Paulo. Ele era um oponente
amargo do cristianismo. Não era o resultado de convicções que
mudam gradualmente com respeito às afirmações de Jesus Cristo;
todo o testemunho que dá sobre o assunto implica o contrário. Não
foi devido ao extremo misticismo, porque os escritos de Paulo nos
impressionam como notavelmente saudáveis e lógicos. Nenhum
empenho, que dá conta das bases meramente naturais, é satisfatório,
e assim devemos aceitar sua própria declaração do caso. A verdade
a respeito do messiado de Jesus foi uma questão de revelação

630
O valor apologético das epístolas de Paulo

na experiência de sua conversão, e se aceitamos isto, devemos


necessariamente aceitar tudo que ela envolve. Os evangelhos e as
epístolas não se contradizem, mas apenas suplementam esse qua­
dro. Os evangelhos acrescentam linhas de beleza ao perfil desigual
pintado por Paulo e são inextricavelmente relacionados com as
quatro grandes epístolas. Ao aceitar essas cartas como genuínas e
a explicação de Paulo de sua doutrina como verdadeira, devemos a
aceitar todos os documentos do Novo Testamento como críveis, e o
quadro de Cristo como aquele da pessoa real — Filho do homem e
Filho de Deus, o Deus-Homem.

631
633

A eficácia divina da oração

A rthur T. P ie r s o n , D .D .
Pastor do Tabernáculo de Spurgeon, Londres

Todas as grandes necessidades, tanto as da igreja quanto as do


mundo, podem ser incluídas em apenas uma: a necessidade de um
padrão superior de piedade; e o segredo, todo abrangente, de uma
vida verdadeiramente piedosa é estar perto e em constante contato
com o Deus invisível; este contato é aprendido e praticado, como
em nenhum outro lugar, no local secreto de súplica e intercessão.
A primeira lição de nosso Senhor na escola de oração era, e
ainda é: “entra em teu quarto” (Mt 6.6; grifo do autor). O “quarto”
é o lugar fechado, onde ficamos encerrados a sós com Deus, onde
o espírito humano aguarda pela Presença invisível, aprende a
reconhecer que Ele é um Espírito e cultiva seu reconhecimento,
comunhão e amizade.
Tudo mais, portanto, depende da oração. A alma que ora ali, tor­
na-se possível a fé que é a compreensão do espírito humano sobre

ARTHCIR TAPPAN PIERSON (1837-1911) teve a nada invejável tarefa de


substituir a C. H. Spurgeon no púlpito do Metropolitan Tabernacle, em
Londres, quando este ficou doente. Antes de suceder Spurgeon, Pierson,
de 1860 a 1911, servia às igrejas Congregacionais e Presbiterianas em
New York e Pensilvânia. Foi um dos editores da Scofield Reference Bible.
Entre seus livros de destaque encontramos: Crisis of Missions [Crise
das Missões], The Corning of the Lord [A Vinda do Senhor] e Miracle of
Missions [O Milagre das Missões]. Além de sua obra teológica, Pierson
fundou o First Penny Sauing Bank da Filadélfia.
Os fundamentos

as realidades e as verdades do mundo invisível. À alma que ora


ali, torna-se possível a paciência, que é o hábito de aguardar pelos
resultados não vistos, os esperados, mas ainda não realizados. A
alma que ora ali, torna-se possível o amor que, como uma inunda­
ção celestial, abafa os maus humores e as disposições odiosas e
nos introduz em um novo mundo de estruturas gentis e generosas.
A alma que ora ali, torna-se possível a crescente e real santidade,
que é a conformidade pessoal à imagem divina, invisível e ideal, e o
segredo interno de uma bem-aventurança celestial.
Aqueles que anseiam por reavivamentos naturalmente colocam
mais ênfase sobre a pregação. Mas o que é a pregação sem a
oração? Os sermões são apenas desempenhos de púlpito, ensaios
decorados, orações retóricas, palestras populares, ou podem ser
arengas políticas, até que Deus dê, em resposta à oração séria, a
preparação do coração e a resposta da língua. Somente aquele que
ora pode verdadeiramente pregar. Muitos sermões que não mostra­
ram nenhum labor intelectual e violaram todas as regras e padrões
homiléticos têm tido força espiritual dinâmica, porque, de alguma
maneira, moveram os homens, os derreteram, os modelaram. O
homem cujos lábios são tocados pela brasa viva de Deus pode
até gaguejar, mas seus ouvintes logo descobrem que ele está em
chamas, ardendo de paixão consumidora para salvar almas.
Necessitamos de santos nos bancos como também no púlpito, e
a santidade em toda parte é alimentada e nutrida pela oração. O
homem de negócios que ora, aprende a habitar em sua vocação
com Deus; suas tarefas e transações seculares se tornam sagradas,
pois são trazidas ao holofote da presença de Deus. Seus próprios
negócios se tornam negócios de seu Pai. Ele não pisoteia as ordens
de Deus para fazer dinheiro, nem conduz seu comércio além dos
limites sagrados do Dia do Senhor, ou defrauda seus consumidores,
“quebrando a lei de Deus por um dividendo”.
Os santos prevalecentes são as almas que oram. Esses que
caminham mais longe na escola de oração e aprendem mais de
seus segredos ocultos, freqüentemente, desenvolvem um tipo de
presciência que chega perto do espírito profético, o Espírito Santo
lhes mostra “coisas por vir”. Como Savonarola, eles parecem saber
algo sobre o propósito de Deus, para antecipar seus planos e prever
a história de seu próprio tempo. Os grandes suplicantes também
foram videntes.

634
A eficácia divina da oração

Não há nenhuma virtude mais alta na igreja do que a de ser


uma igreja de oração, pois é a oração que faz as realidades eternas
não só proeminentes, mas também dominantes. Uma igreja e um
pastor podem ter qualquer um dos tipos atuais e populares de vida
“religiosa”, e as almas podem não ser salvas; mas, como o falecido
dr. Skinner, de New York, costumava dizer: “Se o tipo peculiar de
piedade é aquele que é inspirado pelo sentido de poderes do mundo
futuro, os pecadores serão salvos, e os santos, edificados”. Mesmo
o mundo de hoje sentirá o poder de tal devoção.
Orar alimenta as missões internas e estrangeiras. Promove a
doação. A parcimônia é abafada na atmosfera da presença de
Deus. Os dons se multiplicam e são exaltados quando o doador é
consagrado. Quando os discípulos começam a orar pelas almas,
eles começam a ansiar por elas e a ficar dispostos a fazer sacrifí­
cios para a salvação delas. A chave que pode abrir os tesouros das
promessas de Deus tem um poder maravilhoso também para abrir
os tesouros da riqueza acumulada, e faz, até mesmo, a extrema e
profunda pobreza abundar em riquezas de liberalidade até que o
mito da viúva desça das mãos do Senhor mais freqüentemente até
mesmo do que os milhões de príncipes mercantis. Nenhum homem
pode inspirar livremente na atmosfera da oração, enquanto abafar
os impulsos benevolentes. A doação de dinheiro prepara a doação
do ego, e assim a oração traz os obreiros missionários, assim como
os doadores e sustentadores dos missionários.
Poucos, mesmo entre os mais devotos, já sentiram plenamente
o quanto os obreiros “na mina do paganismo” dependem daqueles
que “seguram as cordas”. James Gilmour, cujo espírito raro e bri­
lhante impressionou os rudes mongóis, dizia que, se não orassem
por ele, ele se sentiria como um mergulhador no fundo do rio sem
ar para respirar, ou como um bombeiro em um edifício em chamas
sem água na mangueira vazia.
Não se de pensar que a oração é menor porque somos tão fre­
qüentemente levados ao trono da graça como um último recurso. E
parte da filosofia da oração que ela revele sua plena eficácia somente
quando e onde tudo mais fracassa. Aqui, como em tudo, é somente
com o fim do ego e todas as suas invenções, que descobrimos o
começo de Deus com todas suas interposições.
Um coração que ora é a uma coisa que o diabo não pode falsificar
facilmente. E bastante fácil imitar lábios que oram, de maneira que

635
Os fundamentos

hipócritas e fariseus fingem devoção. Mas somente Deus pode


abrir, nas profundezas do coração, essas primaveras de súplica que
freqüentemente não encontram nenhum canal na linguagem, mas
fluem em gemidos inexprimíveis.
Não vale a pena desperdiçar muito tempo defendendo a oração.
A experiência faz o argumento desnecessário. Esta não é uma
ciência a ser dominada por meio de estudo como uma arte a ser
aprendida por meio da prática. Como as Escrituras, a oração é auto-
evidente. E uma união misteriosa de elementos divinos e humanos
cuja explicação não é fácil; mas para aquele que ora e coloca Deus à
prova ao longo das linhas dos seus próprios preceitos e promessas,
o Senhor prova quão real é a força da oração em seu universo moral.
O melhor modo para sustentar a oração é praticá-la.
O pivô da devoção, portanto, é a oração. Um pivô tem uma dupla
utilidade: age como um prendedor e como um centro; sustenta
outras partes no lugar e é o eixo da revolução. A oração, igualmen­
te, mantém uma firmeza na fé e ajuda todas as atividades santas.
Conseqüentemente, tão seguramente quanto Deus está elevando
Seu povo a um patamar mais alto de espiritualidade e os está
movendo a um serviço mais desinteressado e abnegado, haverá
nova ênfase posta por eles sobre a súplica e, especialmente, sobre
a intercessão.
O reavivamento do espírito de oração não somente é o primeiro
na ordem do desenvolvimento, mas é o primeiro na ordem de
importância, porque sem ele não há avanço. Geralmente, se não
uniformemente, a oração é tanto o ponto de partida quanto o
objetivo para cada movimento nos quais os elementos estão em
progresso permanente. Sempre que a indolência da igreja surge, e
a impiedade embarga o mundo, alguém tem de orar. Se a história
secreta de todo avanço espiritual verdadeiro pudesse ser escrita
e lida, descobrir-se-ia alguns intercessores que, como Jô, Samuel,
Daniel, Elias, Paulo e Tiago; ou como Jonathan Edward, William
Carey, George Miller e Hudson Taylor foram levados a se fechar
em um lugar secreto com Deus e trabalhar fervorosamente em
oração. E como o ponto de partida é encontrado na súplica e na
intercessão, assim o resultado final deve ser que o povo de Deus
terá aprendido a orar; de outro modo, haverá uma rápida reação e
uma recaída desastrosa em que as condições melhores e seguras
serão perdidas.

636
A eficácia divina da oração

A oração coloca os homens


em contato com Deus
Há uma filosofia divina por trás desse fato. A maior necessi­
dade é manter-se em íntimo contato com Deus; o grande risco
é a perda do sentido do divino. Em um mundo onde todo apelo
é feito aos sentidos físicos e por meio deles, a realidade está
em direta proporção ao poder e à liberdade do contato. Não
podemos duvidar do que vemos, ouvimos, provamos, tocamos
ou cheiramos — do que é material e sensível. O presente e o
material absorvem nossa atenção e parecem coisas reais, sólidas
e substanciais; mas o futuro, o imaterial, o invisível, o espiritual,
parecem vagos, distantes, ilusórios, imaginários. Praticamente,
o invisível tem pouca ou nenhuma realidade e influência com a
vasta maioria da humanidade. Até mesmo o próprio Deus invisí­
vel é, para a maior parte dos homens, uma verdade menor do que
os objetos mais comuns à visão; para muitos, Ele, a mais alta ver­
dade, é na realidade vaidade, ao passo que as vaidades do mundo
são praticamente as mais altas verdades. O grande corretivo de
Deus para essa desastrosa inversão e perversão da verdadeira
relação das coisas é a oração. “Entra em teu quarto. Ali tudo é
silêncio, segredo, solidão, reclusão. Dentro desse Santo dos san­
tos, o discípulo é deixado a sós — todos os outros lá fora, para
que o suplicante possa ficar ali dentro — com Deus. O silêncio é
para ouvir a quietude, a pequena voz que é submergida no clamor
mundano e que, até mesmo, uma voz humana pode causar que
ela deixe de ser ouvida ou torne-se indistinta. O segredo é para
um encontro com Aquele que vê em segredo e é melhor visto em
segredo. A solidão é para a finalidade de ficar a sós com o Único
que pode apenas impressionar plenamente com Sua presença
somente quando não há outra presença para desviar o pensa­
mento. O lugar de reclusão com Deus é a única escola em que
aprendemos quem Ele é: Ele é o recompensador daqueles que
diligentemente O procuram. O quarto “não é somente o oratório,
é o observatório", não para orar somente, mas para o prospecto
— o amplo alcance, o ver claramente, o panorama do eterno!
O declínio da oração é, portanto, a decadência da devoção; e,
deixar de orar totalmente, seria a morte espiritual, porque ela é,
para cada filho de Deus, como a respiração da vida.

637
Os fundamentos

Não podemos deixar de enfatizar muito fortemente esse fato,


de que manter-se em íntimo contato com Deus na câmara secreta de
sua presença é o grande propósito fundamental subjacente da oração.
Falar com Deus é um privilégio inestimável; mas o que será dito e
ouvido é importante para nós! Não podemos contar-lhe nada que
Ele não saiba; mas Ele pode nos contar o que ainda não sabemos,
não imaginamos, não concebemos e nenhuma pesquisa jamais
desvelou. O mais alto de todos os possíveis alcances é o conheci­
mento de Deus, e isto é o modo prático da revelação de Si mesmo.
Mesmo Sua santa Palavra necessita ser lida à luz de Sua presença
para ser realmente compreendida. A alma que ora, ouve Deus falar.
“Quando entrava Moisés na tenda da congregação para falar com o
S en hor , então, ouvia a voz que lhe falava de cima do propiciatório,
que está sobre a arca do testemunho entre os dois querubins;
assim lhe falava” (Nm 7.89; grifo do autor).
Quando há esse íntimo contato com Deus, e essa clara compre­
ensão de seu nome que é Sua natureza, e de sua Palavra que é Sua
vontade revelada, haverá um novo poder para andar com Ele em
santidade e agir com Ele no serviço. “Manifestou os seus caminhos
a Moisés e os seus feitos aos filhos de Israel” (SI 103.7). A massa
do povo ficava distante e via seus atos, como a destruição dos
exércitos do faraó no mar Vermelho; mas Moisés se aproximou-se
da densa escuridão onde Deus estava e, naquela densa escuridão,
ele encontrou uma luz como jamais brilhou em outro lugar, e nessa
luz Ele leu os planos e os propósitos secretos de Deus e interpretou
Seus admiráveis modos de operar.
Todo poder prático sobre o pecado e sobre os homens depende da
manutenção dessa secreta comunhão. Elias foi convidado, primeira­
mente, “Retira-te daqui [...] e esconde-te” (lRs 17.3; grifo do autor),
e, em seguida, “Vai apresenta-te" (18.1; grifo do autor). Aqueles que
habitam em lugar secreto com Deus saem para mostrar-se pode­
rosamente para conquistar o mal e são fortes para agir e esperar
por Deus. A eles é permitido ler os segredos de Sua aliança; eles
conhecem Sua vontade; são os mansos a quem Ele conduz em juízo
e ensina-lhes Seu caminho. Eles são Seus profetas que falam Dele
para outros; pois eles vêem os sinais dos tempos, discernem Seus
símbolos e lêem Seus sinais. As vezes, consideramos como místi­
cos aqueles que, como Savonarola e Catarina de Siena, afirmavam
ter comunicação com Deus; ter revelações de um plano definido
A eficácia divina da oração

de Deus para a igreja e para si mesmos como indivíduos, como o


reformador de Erfurt, o fundador dos orfanatos de Bristol, ou o lí­
der da Missão do Interior da China. Mas será que o tropeçar nessas
experiências não é resultante de não as termos? E não é verdade
que muitos desses homens e mulheres têm posteriormente provado
por suas vidas que não estavam enganados, e que Deus os conduziu
por um caminho que nenhum outro olho poderia traçar?

A oração distribui o poder de Deus


Há outra razão a favor do contato íntimo com o Deus vivo da
oração, que surge talvez para um nível ainda mais alto. A oração
não somente nos coloca em contato com Deus, permitindo que
venhamos conhecer a Ele e a seu caminho, mas distribui para
nós Seu poder. E o contato com Ele que libera a virtude Dele. E a
mão sobre o pólo da bateria celestial que nos carrega com Sua vida
secreta, Sua energia e Sua eficiência. As coisas que são impossíveis
ao homem são possíveis a Deus, e ao homem em quem Deus habita.
A oração é o segredo do poder distribuído de Deus, e nada mais
pode substitui-la. Fragilidade absoluta é conseqüência da negligên­
cia da comunhão secreta com Deus — e essa fragilidade é a mais
deplorável, porque é freqüentemente inconsciente e insuspeita,
especialmente quando alguém nunca teve conhecimento do que é
este verdadeiro poder.
Vemos os homens de oração silenciosamente alcançando
resultados os mais surpreendentes. Eles têm a calma de Deus, sem
pressa, sem medo, sem lágrimas; nenhuma ansiedade, nenhum
cuidado, nenhuma excitação ou pressa ou alvoroço — eles fazem
grandes coisas por Deus, e, como João Batista, são grandes a Seus
olhos, ainda que se achem pequenos e insignificantes; eles supor­
tam grandes cargas, mas nunca estão cansados ou com preguiça;
eles enfrentam grandes crises, contudo, não ficam preocupados. E
aqueles que não conhecem os tesouros de sabedoria, força, cora­
gem e poder que estão ocultos no admirável pavilhão de Deus ima­
ginam como seria tudo isso. Eles talvez tentem achar que isso seja
devido às características peculiares desse homem — talento, tato,
métodos originais ou circunstâncias favoráveis. Talvez eles tentem
evitar essa carreira assegurando um patronato rico e poderoso, ou
pela dependência de alguma organização, ou energia carnal — ou o
que os homens chamam de “determinação para o sucesso” — eles

639
Os fundamentos

se atarefam, trabalham incessantemente, apelam para o dinheiro


e a cooperação, para exibir um sucesso aparente, contudo, esse
poder de Deus não pode ser imitado por nada. Eles se cercam de
faíscas, mas não há nenhum fogo de Deus; eles constroem uma
grande estrutura, mas é de madeira, palha e restolho; eles fazem
grande ruído, mas Deus não está no clamor.
Nada é tão especial e tão respeitável como o caminho no qual
apenas poucos homens de Deus têm vivido. O fato é que, na vida
dos discípulos, a lei fundamental é: “Já não sou eu quem vive, mas
Cristo vive em mim” (G12.20). Em um sentido, grandemente verda­
deiro, há apenas um Obreiro, um Agente, e Ele é divino; e todos os
outros chamados de “obreiros” são instrumentos, e apenas meros
instrumentos, em Suas mãos.
A primeira qualidade de um verdadeiro instrumento é a passivi­
dade. Um instrumento ativo destruiria seu próprio propósito; toda
sua atividade deve ser dependente daquele que o utiliza. As vezes,
uma máquina torna-se incontrolável, e então não somente torna-se
inútil, mas torna-se perigosa, e pode causar danos e desastres.
O que um homem faria com um avião, uma faca, um machado,
uma serra, um arco que tivessem alguma vontade própria e se
movessem por si mesmos? Será que não quer dizer alguma coisa o
fato de que, na Palavra de Deus, encontramos tão freqüentemente
os símbolos de um serviço passivo — a vara, o cajado, a serra, o
martelo, a espada, a lança; e, no Novo Testamento, o vaso? Será que
não significa que o homem que é teimoso não pode ser usado por
Deus; que a primeira condição do serviço é que a vontade humana
deve ser perdida na vontade de Deus, de maneira que não apresente
nenhuma resistência, nenhuma persistência além, ou aparte, da
Dele, e até se aventure a não oferecer nenhuma ajuda à sua von­
tade? George Müller ensinava que devemos esperar saber se uma
determinada obra é de Deus; em seguida, se é nossa, ou seja, se foi
conferida a nós; mas, mesmo assim, precisamos esperar pelo modo
de Deus e pelo tempo de Deus para fazer sua própria obra, de outro
modo nos apressaremos precipitadamente para aquilo que Ele nos
destina a fazer, mas que somente podemos fazer ao seu sinal; ou tal­
vez, continuemos a fazer, mesmo quando Ele nos pede para parar.
Muitos servos verdadeiros de Deus têm, como Moisés, começado
antes que seu Mestre estivesse pronto, ou continuaram a trabalhar,
mesmo quando o tempo de seu Mestre já havia passado.

640
A eficácia divina da oração

Intercessão
Há um aspecto da oração ao qual particular atenção necessita
ser evocada, por ser fortemente enfatizado na Palavra e ser menos
usado em nossa vida diária, a saber, a intercessão.
Essa palavra, com o que a subjaz, tem um uso e significado
único nas Escrituras, pois difere da súplica, primeiramente nisto,
de que a súplica faz principalmente referência ao suplicante e à
sua própria provisão; e, novamente, porque a intercessão não
somente se importa com os outros, mas implica a necessidade
total de interposição divina direta. Há muitas orações que, em
suas respostas, permitem nossa cooperação e implicam nossa
atividade. Quandooramos: “Dai-nos hoje nosso pão de cada dia”,
vamos trabalhar para ganhar o pão pelo qual oramos. Essa é a
lei de Deus. Quando pedimos a Deus para nos livrar do mau,
esperamos estar sóbrios e vigilantes e resistir ao adversário. Isso
é certo; mas nossa atividade em muitas outras questões impedem
a plena exibição do poder de Deus e, conseqüentemente, também
nossa impressão a respeito de Sua obra. As convicções mais
profundas da resposta à oração a Deus são, portanto, forjadas nos
casos em que, devido à natureza das coisas, somos impedidos de
toda atividade para promover o resultado.
A Palavra de Deus nos ensina que a intercessão com Deus é mais
necessária nos casos em que o homem é mais impotente. Elias nos
é apresentado como um grande intercessor, e, para exemplificar
isso, há o relato de sua oração pedindo por chuva. Contudo, nesse
caso, ele só poderia orar, não havia nada mais que ele pudesse fazer
para abrir os céus depois de três anos e meio de seca. E não há
um toque de poesia divina na forma pela qual veio a resposta? A
nuvem que se levantou do mar tomou a forma da “palma da mão
do homem” (lRs 18.44), como para assegurar ao profeta que Deus
viu e atendeu à mão suplicante, elevada a Ele em oração! Daniel
era impotente para demover o rei ou reverter seu decreto; tudo que
ele podia fazer era pedir “misericórdia ao Deus do céu sobre este
mistério” (Dn 2.18); e foi porque ele não podia fazer nada mais, não
podia nem mesmo supor a interpretação, já que ele nem mesmo
conhecia o sonho — que ficou absolutamente claro, quando tanto o
sonho quanto seu significado se tornaram conhecidos, de que Deus
tinha se interposto, e, assim, até o próprio rei pagão viu, sentiu e
confessou.

641
Os fundamentos

Por toda a história, certas crises surgiram quando o auxílio do


homem era completamente inútil. Para o cristão formal, o discípulo
carnal, a alma descrente, esse fato de que não havia nada que o
homem pudesse fazer, faz a oração parecer quase uma loucura,
talvez uma farsa, um desperdício de respiração. Mas para aqueles
que conhecem melhor a Deus, o impossível para o homem é a
oportunidade de Deus, e o desespero humano não se torna uma
razão para o silenciar do desespero, mas o argumento para orar na
fé. Invariavelmente, aqueles cuja fé na oração é sobrenaturalmente
forte são os que mais têm provado que Deus opera, pelo cessar
consciente e compulsório de todos seus próprios esforços, pois
aprende que estes são vãos e desesperados.
George Müller teve a intenção de provar para uma igreja de pouca
fé e um mundo descrente que Deus responde diretamente à oração;
e, para fazer isso, ele propositalmente se absteve de todos os métodos
legítimos comuns de apelo, ou de esforço ativo para assegurar a
habitação, a vestimenta e o alimento de milhares de órfãos. Hudson
Taylor empreendeu a tarefa de colocar missionários no interior da
China e, para isso dependeu somente de Deus, não pedindo coletas
e até as recusando em encontros públicos, para que esses encontros
não fossem considerados como apelos por ajuda. Ele e seus obreiros
acostumaram-se a pôr todos os desejos que tinham diante do Senhor
e a esperar pela resposta, e a resposta sempre veio e ainda vem. O es­
tudo da história missionária revela o fato de que, nas ocasiões quando
o desespero absoluto por qualquer ajuda, que pode vir apenas de Deus,
em que houve oração fiel, a interposição de Deus foi mais claramente
vista — como seria mais conspícua a não ser em tais condições?
Toda a igreja deve ser um círculo de oração; mas isto não acon­
tecerá enquanto esperarmos por toda a igreja, como um corpo, a
mover-se junta. A maior parte de cristãos professos tem confiado
muito pouco em Deus para entrar cordialmente em um acordo
santo como esse. A todo aquele que anseia por um reavivamento
do espírito de oração, sugerimos que, em cada congregação, um
círculo de oração seja formado, sem se levar em conta o número. Que
algum pastor se una com algum homem ou mulher em quem ele
discerne as marcas de vida e de poder espiritual particular, e sem
publicidade ou qualquer esforço direto para aumentar a pequena
companhia, comece assim a colocar diante de Deus qualquer
questão que exija liderança e ajuda divina especial. Sem qualquer

642
A eficácia divina da oração

convite público que possa levar as pessoas não preparadas a uma


associação formal — se descobrirá que o Espírito Santo aumentará
o círculo, enquanto capacita outros, ou encontra outros capazes,
para entrar nesse círculo — e, assim, silenciosamente e sem
observação, a pequena companhia de almas que ora crescerá tão
rápido quanto Deus achar necessário. Que um relato seja guardado
de cada petição definida que for colocada diante de Deus — pois
esse círculo de oração será feito apenas para questões bastante
definidas — e quando Deus interpuser e responder, deve-se fazer
o relato de sua interposição e guardá-lo cuidadosamente para que
possa se tornar uma nova inspiração tanto para orar quanto para
louvar. Sabemos que esse recurso à intercessão unida transforma
toda uma igreja, remove as dissensões, retifica os erros, assegura
a harmonia e a unidade, e promove a administração do Espírito
Santo e da vida espiritual e um crescimento além de todo outro
meio possível. Se em alguma igreja o pastor, infelizmente, não é
um homem que poderia ou deveria guiar esse movimento, que dois
ou três discípulos que sentem a necessidade e têm fé se encontrem
e comecem, talvez, a orar por ele. Nessa questão, não se deveria
esperar por mais ninguém; se há apenas um crente que tem o poder
de Deus, que este comece a oração intercessora. Deus trará para o
lado desse intercessor, a seu próprio tempo e modo, outros que Ele
já fez agir como suplicantes.
Não faz muito tempo, em uma igreja na Escócia, um ministro
começou repentinamente a pregar com poder sem precedente.
Toda a congregação foi avivada, e os pecadores foram maravilho­
samente salvos. Ele mesmo não entendia a nova dádiva. Em um
sonho, à noite, estranhamente lhe foi sugerido que toda a bênção
foi planejada por uma velhinha pobre que era completamente surda,
mas que vinha regularmente à igreja e como era incapaz de ouvir
uma palavra sequer, passava todo o tempo em oração pelo pregador
e por certos ouvintes. Na biografia de Charles G. Finney, fatos
semelhantes são relatados sobre “Pai Nash”, Abel Cleary e outros.
Os exemplos poderiam ser multiplicados indefinidamente. Mas
a única coisa que poderíamos tornar proeminente é isso: Deus
está chamando seu povo a orar. Ele quer que “os varões orem em
todo lugar, levantando mãos santas, sem ira e sem animosidade”
(lTm 2.8); que, em primeiro lugar, súplicas, orações, intercessões
e ações de graça sejam feitas por todos os homens. Se isto foi feito
Os fundamentos

em primeiro lugar, resultados abençoados serão a conseqüência.


Deus espera pelo pedido. Nele estão todas as fontes de bênção, e Ele
coloca toda Sua abundância à disposição de todos os Seus santos
que oram; eles, são, portanto, fontes seladas contra a impiedade
e a descrença. Há uma chave que sempre abre os portões do céu;
um segredo que coloca em relação aquelas fontes eternas e nós
mesmos. Essa chave, esse segredo, é a oração prevalecente.
Deus não tem maior controvérsia com seu povo hoje do que
esta, que com promessas ilimitadas para as orações de fé, há
poucas pessoas que, na verdade, se doam para a intercessão. Isso é
representado como uma questão de insatisfação divina:
“Já ninguém há que invoque o teu nome, que se desperte e te
detenha” (Is 64.7).
O próprio fato de que muitos discípulos, e em muitas partes
do mundo, estão formando círculos de oração e reuniões é em si
mesmo um grande incentivo para a oração crescente e unida.

A verdadeira oração
Nosso Senhor ensinou uma grande lição em Mateus 18:19. Ele
disse: “Em verdade também vos digo que, se dois dentre vós, sobre
a terra, concordarem a respeito de qualquer coisa que, porventura,
pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai, que está nos céus”. O
acordo ao qual se refere não é de um mero pacto humano, nem
mesmo solidariedade; é sinfonia.
Sinfonia é a combinação de sons em um acorde musical e
depende das leis fixas da harmonia. Não pode ser assegurada
por qualquer arranjo arbitrário. Ninguém que toque seus dedos
acidentalmente ou descuidadamente sobre as cordas de um ins­
trumento musical produz a sinfonia de sons. Tal toque acidental só
pode evocar desacordo intolerável, pois o toque só será agradável
quando regulado pelo conhecimento dos princípios da harmonia.
Na verdade, há uma necessidade mais profunda, isto é, de que as
teclas tocadas devam estar afinadas com o instrumento inteiro. Duas
condições, portanto, são necessárias; primeiro, que uma mão hábil
afine todo o instrumento; e, depois, uma mão igualmente habilido­
sa toque os acordes que são capazes de produzir o que é chamado
de um “verdadeiro acorde”.
Esta linguagem evidencia o desígnio divino. Ele está ensinando
uma grande lição sobre o mistério da oração, que igualmente exige

644
A eficácia divina da oração

duas grandes condições: primeiro, que a alma que ora esteja em


harmonia com o próprio Deus; e depois que aqueles que se unem em
oração devem, graças a essa unidade com Ele, estar em harmonia
entre si. Deve haver, portanto, atrás de toda súplica prevalecente e
intercessão Um que, com habilidade infinita, sintonize os acordes
de acordo com seu próprio ouvido; e depois os toque, como um
mestre, de forma que eles respondam à sua vontade e apresente o
acorde que está em sua mente.
Não há nenhuma verdadeira filosofia a respeito da oração que
não inclua essas condições. Muitos têm falsas concepções do que
é a oração. Para eles é simplesmente pedir algo que se deseja. Mas
isto está muito longe do padrão de Deus, pois carece da essência
primeira da oração. E possível que se peça algo para se consumir
com seus próprios desejos. Devemos pedir “em nome” de Cristo.
Mas isso não significa simplesmente usar Seu nome na oração. O
nome é a natureza; expressa o caráter e é equivalente à pessoa. Pe­
dir em nome de Cristo é vir a Deus, como alguém que se identifica
com a própria pessoa de Cristo. Uma esposa faz uma compra em
nome de seu marido. Ela diz, “Eu sou a sra. X”, que significa, “Sou
a esposa dele, identificada com a personalidade, caráter, riqueza,
crédito comercial e posição empresarial dele”. Ir a Deus em nome
de Cristo é reivindicar identidade com Cristo, como um membro de
Seu corpo, um com Ele diante do Pai, e tendo Nele direito aos dons
do Pai, um direito de utilizar os recursos infinitos do Pai.
Novamente, foi-nos dito que, se pedirmos algo “de acordo com
Sua vontade”, Ele nos ouve. Mas pedir de acordo com Sua vontade,
não significa apenas deixar de pedir de acordo com nossa própria
vontade egoísta? Aqui o impulso não é humano, mas essencialmen­
te divino. Implica conhecimento de Sua vontade, compreensão de
Sua mente e apoio a Seu propósito. Não seria isso apenas possível,
se, pelo Espírito Santo, formos levados a esta comunhão com Deus,
enquanto Ele nos guia no julgamento e no anseio e nos ensina Seu
caminho? Ele é, na verdade, “poderoso para fazer infinitamente
mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos”, mas apenas
“conforme o seu poder que opera em nós” (Ef 3.20). Se esse poder
não opera em nós primeiro, como pode operar por nós na oração
respondida?
Para obter resultados maiores, operados para a igreja ou para o
mundo, em resposta à súplica, deve haver primeiro resultados mais

645
Os fundamentos

profundos operados no crente pelo Espírito Santo. Em outras pa­


lavras, deve haver um tipo mais alto de santidade pessoal, se aí deve
existir uma medida mais elevada de poder na oração. A mente carnal
não entra em harmonia com Deus, nem mesmo vê e percebe Sua
mente, e conseqüentemente o discípulo de mente carnal não pode
discernir a vontade de Deus na oração, pois fica continuamente
impedido e confundido, ao pensar que suas petições são orações
divinamente inspiradas, confundindo o que sua vontade própria
almeja com o que é espiritualmente necessário e garantido pelas
Escrituras.
Deus está chamando seu povo para um reavivamento de fé na
eficácia divina da oração.
Nosso Senhor nos ensina que a oração de fé tem o poder de um
decreto divino. Deus disse de forma sublime: “Haja luz!”, e houve
luz. O Senhor Jesus Cristo diz: “Se tiverdes fé como um grão de
mostarda” — que, embora pequeno, contém a possibilidade e a
potência da vida — “direis a este monte: Passa daqui para acolá,
e ele passará; [...] [ou] direis a esta amoreira: Arranca-te e trans­
planta-te no mar; e ela vos obedecerá” (Mt 17.20; 17.6). Esta não é
a linguagem de petição, mas de decreto, pois está, de algum modo,
apoiando-se na Onipotência, de maneira que nada é impossível para
a alma que ora.
Quando alcançamos essas alturas do ensino e as comparamos
com o baixo nível de nossa vida, ficamos perplexos e assombrados,
primeiramente com as espantosas possibilidades da fé, como
colocadas diante de nós e, em seguida, com as impossibilidades
igualmente espantosas que a descrença substitui pela onipotência
oferecida pela súplica. Quando pensamos nas possíveis alturas
da intercessão, parece-nos que ouvimos novamente o religioso
McCheyne clamando: “Fazei tudo com seriedade! Se vale a pena
fazer, então faça-o com toda sua força. Acima de tudo, mantenha-
se na presença de Deus; jamais veja a face do homem até que
tenha visto a face de Deus”. Esta é a preparação da oração, que
prevalecendo primeiramente com Deus acaba por nos capacitar a
prevalecer com o homem. Jacobi deve ter pensado ao longo dessas
linhas quando disse: “Minha palavra de ordem e a minha razão de
viver não sou eu, mas Um que é mais e melhor do que eu; Um que
é completamente diferente do que eu sou —quero dizer Deus. E
eu não sou, nem me preocupo em ser, se Ele não é !”. E a oração

646
A eficácia divina da oração

que torna Deus real — a mais alta realidade e verdade; e que nos
envia de volta ao mundo com a convicção e a consciência de que Ele
está em nós e é poderoso para operar em nós, e por intermédio de
nós, os instrumentos Dele, de maneira que nada será impossível ao
instrumento, porque o operador do instrumento sustenta e maneja
a arma.
O poder dessa oração desafia toda a competição ou imitação
pelas formas mais perfeitas de liturgia. Quem pode copiar ou pin­
tar, com um mero pincel e pigmentos, a chama aprisionada de uma
pedra preciosa inestimável. Ou quem pode falsificar a fotosfera do
sol com giz amarelo! Há uma chama de Deus que ilumina a oração
por dentro; há brilho e luz e calor na vida que pode ser acesa apenas
pela brasa do altar dourado que está diante do trono. São poucos os
que encontram seu caminho até lá e conhecem o poder flamejante;
mas, àqueles poucos, a igreja e o mundo devem a transformação e
as efusões poderosas (Ap 8).
O galvanismo químico possui essa peculiaridade, de que um
aumento de seus poderes não pode ser obtido pelo aumento das
dimensões das células da bateria, mas é possível alcançar esse
efeito se o número de células for aumentado.
Necessitamos de mais intercessores, se tivermos de aumentar
nosso poder. O número de células deve ser aumentado. Mais
pessoas de Deus devem aprender a orar. Os inimigos são muitos
para que poucos contendam com eles, mas os intercessores são
fortalecidos por Deus. A variedade do desejo e da aflição humanos,
os milhões de não salvos que estão espalhados, o amplo território a
ser coberto pela intercessão — todas essas e outras considerações
semelhantes exigem forças multiplicadas. Cada ser humano tem
apenas um conhecimento muito limitado da necessidade humana.
Nosso círculo individual de pessoas é, comparativamente, muito
estreito, e, portanto, até mesmo o espírito mais poderoso na oração
não pode inspecionar todo o campo. Mas quando, em todas as
partes do território destituído, se multiplicam os suplicantes, até
mesmo esses círculos estreitos, colocados lado a lado e grande­
mente sobrepostos, cobrem o amplo campo da necessidade. Nosso
próprio conhecimento pessoal, e limitado, e a gama de compreensão
inteligente se encontram e se tocam com almas semelhantes e
solidárias, de maneira que o que não vemos, nem sentimos, ou
até mesmo os motivos de oração, chamam a atenção de outros de

647
Os fundamentos

nossos co-discípulos; e assim, na proporção em que os intercesso-


res se multiplicam, todo interesse da humanidade encontra seus
representantes em um lugar secreto e no trono.
Não podemos deixar de orar por causa do excesso do trabalho. De
fato, trabalhar sem orar é um tipo de prática ateísta, porque deixa
Deus de fora. E a oração que prepara para a obra, que nos arma
para a guerra e que nos adapta para a atividade. E proveitoso para
nós estudar intensamente as promessas da oração, para falar ao
Senhor: “Esta é tua palavra, e viverei daqui em diante como um
homem de oração e reivindicarei meu privilégio e usarei meu poder
como intercessor”.
Esta é a mais alta identificação com o Filho de Deus, como
também admite-se que é um tipo de comunhão com sua obra de
mediação! Nesta dispensação, sua obra é principalmente a interces-
são. Ele nos chama para tomar uma parte subordinada nesse ofício
sagrado, para permanecer, como Finéias, entre os vivos e os mortos
para deter a pestilência; como Elias, para permanecer entre o céu
e a terra para abrir as comportas do céu de bênção e ordenar que
o fogo e a inundação de Deus caiam sobre a terra! Será que isso é
verdade? Então, o que pode ser mais terrível e augusto do que essa
dignidade e majestade de ter o privilégio de Inácio, que recebeu o
leão da Numídia na arena, dizendo: “Eu sou grão de Deus; e devo
ser moído entre os dentes dos leões para fazer o pão para o povo de
Deus”. Ele sentiu, na hora do martírio, o privilégio de unir-se ao seu
Senhor em um sacrifício, que Bushnell chamaria de “vicário”.
Quem se unirá ao Senhor ressurrecto em um culto de inter-
cessão? A maior dificuldade no caminho da conversão prática
dos homens pode não ser, aos olhos de Deus, tanto a barreira de
impiedade entre os pagãos como a barreira de descrença entre
Seus próprios discípulos!
O século dezesseis produziu grandes pintores, o dezessete, fi­
lósofos, o dezoito, escritores, o dezenove, pregadores e inventores;
que Deus permita que os próximos séculos possam ser historica­
mente memoráveis como os séculos dos intercessores.

648
649

O ensino de nosso Senhor a


respeito do dinheiro

A rthur T. P ie r s o n , D .D .
Pastor do Tabernáculo de Spurgeon, Londres
Revisado e editado porArnold D. Ehlert, Th. D.

Os ensinos de nosso Senhor quanto às dádivas do dinheiro,


se obedecidos, baniriam para sempre todas as limitações da
obra da igreja e tudo que diz respeito a seus suprimentos. Esses
ensinamentos são radicais e revolucionários. Estão tão longe da
prática aceita que, embora perfeitamente explícitos, eles parecem
mais com uma linguagem morta que saiu de uso do que com uma
língua viva que milhões conhecem e falam. Contudo, quando esses
princípios e preceitos de nosso Senhor sobre doação são confron­
tados e comparados, descobrem-se que contém os materiais de
um sistema ético completo sobre o dinheiro, sua natureza, valor,
relação e uso verdadeiros. Fossem esses ensinamentos sublimes e
únicos incorporados em nosso viver, o efeito não somente sobre a

ARTHCJR TAPPAN PIERSON (1837-1911) teve a nada invejável tarefa de


substituir a C. H. Spurgeon no púlpito do Metropolitan Tabernacle, em
Londres, quando este ficou doente. Antes de suceder Spurgeon, Pierson,
de 1860 a 1911, servia às igrejas Congregacionais e Presbiterianas em
New York e Pensilvânia. Foi um dos editores da Scofield Reference Bible.
Entre seus livros de destaque encontramos: Crisis of Missions [Crise
das Missões], The Corning of the Lord [A Vinda do Senhor] e Miracle of
Missions [O Milagre das Missões]. Além de sua obra teológica, Pierson
fundou o First Penny Saving B ank da Filadélfia.
Os fundamentos

obra benevolente, mas sobre nosso caráter espiritual inteiro, seria


incalculável. A brevidade nos compele a ficar contentes com um
simples esboço desse corpo de ensino, disseminado por meio das
quatro narrativas do evangelho, mas reunidos e metodicamente
apresentados por Paulo naquela exaustiva discussão da doação
cristã em 2Coríntios 8 e 9.

O princípio da administração
A base do ensino de Cristo sobre dinheiro é a concepção funda­
mental da administração (Lc 12.42; 16.1-8). Não somente o dinheiro,
mas todo dom de Deus, é recebido em confiança para uso Dele. O
homem não é dono, mas fiduciário, pois apenas administra os bens e
as propriedades de outro, de Deus, que é o único proprietário original
e inalienável de tudo. As duas coisas requeridas dos administradores
são que eles sejam “fiéis e sábios”, que eles se apliquem ao empregar
os dons de Deus com fidelidade e sagacidade — fidelidade para que a
confiança de Deus não seja pervertida pela auto-indulgência; sagacida­
de, para que eles sejam convertidos em ganhos, os maiores possíveis.
Esse é um princípio básico perfeitamente plano e simples,
contudo não é o fundamento aceito de nossa fabricação e uso do
dinheiro. A grande maioria, mesmo de discípulos, praticamente
deixa Deus de fora de suas idéias, quando eles se ocupam de
finanças. Os homens se consideram donos; eles “fazem dinheiro”
por seu trabalho, economia e astúcia; portanto, consideram que
esse dinheiro é deles para fazer o que desejam com ele. Há pouco
ou nenhum sentido de administração ou de obrigação. Se eles dão,
isto é um ato, não de dever, mas de generosidade; esse ato não
está debaixo da lei, mas debaixo da graça. Conseqüentemente,
não há inconsistência no acumular ou gastar vastas somas para
fins mundanos, reservando uma fração insignificante para os
propósitos benevolentes. Esses métodos e noções seriam virados
completamente de cabeça para baixo, se os homens pudessem
pensar em si mesmos como administradores, responsáveis, para
com o Mestre, por terem desperdiçado seus bens. O grande dia
do acerto de contas trará uma conta terrível, não somente para os
esbanjadores, mas para os acumuladores; porque até mesmo os
servos infiéis devolvem o talento ao seu senhor, mas sem lucro, e a
condenação foi por não ter usado esse dinheiro para aumentar os
bens que lhe foram confiados.

650
O ensino de nosso Senhor a respeito do dinheiro

O princípio do investimento
Nos ensinos de nosso Senhor, encontramos esse princípio de
investimento: “Cumpria, portanto, que entregasses o meu dinheiro
aos banqueiros, e eu, ao voltar, receberia com juros o que é meu”
(Mt 25.27). Trocar dinheiro e investir são transações antigas. Os
“banqueiros”, como Lucas traduz, são os antigos trapezitae7, que
recebiam dinheiro em depósito e pagavam por seu uso, como
algumas instituições modernas de poupança. O argumento de
nosso Senhor refuta o servo infiel em sua própria declaração, pois
sua atitude não serviu como desculpa, mas pretexto. Não é verdade
que ele não ousou arriscar negociar por sua própria conta; por
que a ausência desse risco, ao não emprestar aos comerciantes
profissionais, demonstrou uma falta moderada de interesse por seu
Mestre? Não foi medo, mas a indolência que esta por trás de sua
infidelidade e sua inutilidade.
Portanto, isso nos ensina indiretamente uma lição valiosa, a
saber, que almas tímidas, não preparadas para o serviço ousado
e independente em favor do Reino, podem associar essa incapaci­
dade à capacidade e sagacidade de outros que usam seus dons e
possessões para servir o Mestre e Sua Igreja.
James Watt, em 1773, fez uma parceria com Matthew Boulton, de
Soho, para a manufatura de máquinas a vapor — Watt, entrou com a
idéia, e Boulton, com o dinheiro. Isso exemplifica o ensino de nosso
Senhor. O administrador tem dinheiro, assim como pode ter outros
dons, dos quais pode fazer uso, mas carece de fé e previsão, energia
e sabedoria prática. Os “cambistas” do Senhor podem mostrar-lhe
como ganhar para o Mestre. Os administradores da igreja são os
banqueiros de Deus. Eles são compostos de homens práticos, que es­
tudam como e onde colocar o dinheiro para os melhores resultados
e os maiores rendimentos, e quando eles são o que eles devem ser,
eles multiplicam o dinheiro muitas vezes com resultados gloriosos. A
igreja existe, em parte, para que a força de um membro possa ajudar
a fraqueza do outro e para que, pela cooperação de todos, o poder do
menor e do mais fraco possa ser aumentado.

A subordinação do dinheiro
Um outro princípio muito importante é a subordinação do
dinheiro, como ensinado e ilustrado, de forma enfática, com a

651
Os fundamentos

história do jovem rico (Mt 19.16-26). Essa narrativa, corretamente


considerada, não apresenta nenhum enigma. Apesar de todas suas
características atraentes, esse homem era um escravo. O dinheiro
não era seu servo, mas seu mestre; e, como somente Deus deve ser
supremo, nosso Senhor não tinha alternativa. Ele deveria demolir
esse ídolo para esse homem e, quando Ele menciona seu dinheiro, a
idolatria torna-se aparente, e o escravo da ganância sai entristecido,
agarrando-se a seu ídolo. Ele não estava errado devido às muitas
posses, mas porque suas posses o dominavam; elas o possuíam e
o controlavam. Ele era de tal forma escravo do dinheiro que não
podia e nem poderia aceitar a liberdade, a saber, a de romper suas
correntes. Sua “confiança” estava nas riquezas — como poderia
estar em Deus? Por trás de todo o disfarce de respeitabilidade e
refinamento, Deus vê o quanto um homem é um escravo miserável,
uma vítima presa pelos limites do amor ao dinheiro; mas a cobiça é
idolatria, e nenhum idolatra entrará no reino de Deus.

A lei da recompensa
Ascenderemos um passo a mais e consideraremos o ensino de
nosso Senhor quanto à lei da recompensa. “Dai, e dar-se-vos-á”
(Lc 6.38). Somos ensinados que adquirir é para dar e, por
conseguinte, que dar é o caminho real para adquirir. Deus é um
economista. Ele confia seus dons maiores àqueles que usam bem
os menores. Talvez uma razão para nossa pobreza é que somos
escravos da parcimônia. O futuro pode revelar que Deus não nos
tem dado, porque não damos a Ele.
Qualquer estudante cuidadoso do Novo Testamento dificilmente
pode dizer que nosso Senhor encoraja Seus discípulos a procurar
a riqueza terrena ou a pedir por ela. Contudo, é igualmente certo
que centenas de almas devotas, que escolheram voluntariamente a
pobreza para sua segurança, receberam imensas somas para sua
obra. George Müller conduziu, por mais de sessenta anos, iniciati­
vas que exigiam pelo menos cento e vinte e cinco mil dólares por
ano. Note-se também as experiências de William Quarrier e Hud-
son Taylor, assim como D. L. Moody e dr. Barnardo. Esses servos
de Deus sustentaram tudo que faziam para Deus, gastando pouco
ou nada com eles próprios e, desse modo, acabaram por receber
e usar milhões para Deus; e, em alguns casos, como o de Müller,
sem qualquer apelo aos homens, olhando apenas para Deus. Este

652
O ensino de nosso Senhor a respeito do dinheiro

grande santo de Bristol descobriu em sua vida, de quase um século,


que era seguro dar, em qualquer momento, até o último centavo aos
propósitos de Deus, pois ele tinha a segurança perfeita de que mais
viria antes que outra necessidade surgisse. E, por setenta anos,
nunca faltou nada!

Bem-aventurança superior
Agregada a essa lei de recompensa está a lei da bem-aventurança
superior. “Mais bem-aventurado é dar que receber” (At 20.35). Paulo
cita isto como um dizer de nosso Senhor, mas isto não é encontrado
em nenhuma narrativa dos evangelhos. Se ele queria apenas
indicar o que é substancial no ensino de nosso Senhor, ou estava
preservando algumas palavras preciosas de nosso Grande Mestre,
que não foram, de outro modo, registradas, isso não é importante.
Basta que esse dizer tenha a autoridade de Cristo. Qualquer que seja
a bem-aventurança a receber, a de dar pertence a um plano mais alto.
Qualquer que seja a quantia que eu ganhe, e qualquer bem que me
seja entregue, somente eu sou beneficiado; mas o que dou, leva o
bem a outros — a muitos, não a um. Mas, por um decreto singular
de Deus, o que retenho para mim mesmo pelo amor de outros, volta
para mim em bênção maior. E como a umidade que a primavera
concede para riachos, que evapora, mas retorna em forma de chuvas
para prover os mesmos riachos que alimentam a própria primavera.

Cálculo pela comparação


Damos um passo a mais ao considerar a lei do cálculo de Deus.
Como ele calcula os dons? Nosso Senhor ensina-nos que é pela
comparação. Nenhuma narrativa fala mais sobre esse tema do que
aquela da pobre viúva, que deu seu tesouro de duas pequenas moe­
das. O Senhor Jesus, que estava perto, via as ofertas lançadas no te­
souro. Ali estavam ricos doadores, que ofereciam grandes quantias.
Havia uma pobre mulher, viúva, que lançou duas pequenas moedas,
e ele declarou que essa oferta era maior do que a de qualquer um
dos demais, pois, enquanto eles deram do que sobrava, ela deu do
que lhe faltava — eles doaram parte de sua abundância, ela, parte
de sua pobreza. Ela que lançou suas duas pequenas moedas no
tesouro sagrado, ao fazer isso, tornou-se rica nas boas obras e no
louvor ao Senhor. Se ela tivesse retido as duas pequenas moedas,
ela ainda assim continuaria apenas a mesma viúva pobre.

653
Os fundamentos

Aqui, Ele nos conta como realmente estima as dádivas de dinheiro


— não pelo que damos, mas pelo que guardamos — não pela
quantidade de nossas contribuições, mas pelo seu custo em nossa
auto-negação. Toda a oferta dessa viúva, financeiramente falando,
era de apenas um pouco mais que dois quintos de um centavo. O que
poderia ser mais insignificante? Mas as duas pequenas moedas consti­
tuíam todo seu meio de subsistência. Os outros reservavam o que eles
necessitavam ou queriam para si, para depois dar do que sobrava. O
contraste é enfático; ela “de sua carência”, eles “de sua fartura”.
Nem todo que dá tem uma rica recompensa. Em muitos casos, à
vista de Deus, o guardar oculta o doar. O acúmulo e o desperdício
auto-indulgente esparramam um banquete; as migalhas que caem
da mesa e devem ser recolhidas e rotuladas como “caridade”. Mas
quando a única posse, a que é mais querida, a última fonte confiável,
é rendida a Deus, então vem a visão do tesouro que está no céu.

Desinteresse na doação
Ainda daremos mais um passo no tocante à lei do desinteresse
na doação. “Fazei o bem e emprestai, sem esperar nenhuma paga”
(Lc 6.35). Muito do que é dado não é dado, mas apenas emprestado
ou trocado. Aquele que dá a outro, de quem ele espera receber no­
vamente, está comercializando. Ele está procurando ganhar, é um
egoísta. O que ele esta promovendo não é a melhoria do outro, mas
sua própria vantagem. Convidar à mesa aqueles que o convidarão
novamente é simplesmente como se fosse feito um trato baseado na
coragem de pedir um favor semelhante quando for preciso. Isso é
reciprocidade, e pode ser que signifique até mesmo um cálculo.
A doação verdadeira tem apenas um objetivo em vista, o bem,
e conseqüentemente empresta para aqueles que não podem e não
reembolsarão, aqueles que são destituídos do poder de reembolsar
e também muito degradados, talvez, para apreciar o que é feito para
eles. Essa é a doação proporcionada pelo amor.
Portanto, a pergunta: “Valerá a pena?”, trai o espírito egoísta.
O doador mais nobre e mais verdadeiro é aquele que pensa apenas
na bênção que pode levar a outro corpo e alma. Ele lança seu pão
sobre as águas. Ele ouve o clamor do desejo e da aflição, mas se
importa apenas em suprir o desejo e em suavizar a aflição. Este
tipo de doação mostra a bondade de Deus e, por ela, alcançamos a
perfeição da benevolência.

654
O ensino de nosso Senhor a respeito do dinheiro

Doação santificada
Nosso Senhor anuncia também uma lei de santificação. “0 altar
que santifica a oferta” — a associação concede dignidade a uma
oferta (Mt 23.19). Se a causa para a qual contribuímos é exaltada,
ela enobrece e exalta a oferta a seu próprio plano. Dois objetos não
podem ou não devem apelar a nós com força equivalente, a menos
que eles sejam equivalentes em valor moral e dignidade, e um
doador de discernimento responderá melhor ao que se mostrar
mais merecedor. 0 altar de Deus era para o judeu o foco central de
todo dom; era associado a seu culto, e todo o calendário de jejuns
e festas se movia ao seu redor. 0 dom colocado sobre ele adquiria
uma nova dignidade, apenas por ser depositada sobre ele. Temos
a liberdade de pôr de lado alguns objetos que apelam por dádivas,
pois eles não são sagrados. Podemos dar ou não como julgarmos
melhor, porque eles dependem da iniciativa e dos esquemas huma­
nos, os quais podemos não aprovar completamente. Mas alguns
casos têm sanção divina, e isso os consagra; a doação, quando tem
relação com o altar, se torna um ato de cultuar.

Transmutação
Uma outra lei da doação verdadeira é a da transmutação. “E eu
vos recomendo: das riquezas de origem iníqua fazei amigos; para
que, quando aquelas vos faltarem, esses amigos vos recebam nos
tabernáculos eternos” (Lc 16.9). Esta parábola, embora considerada
por muitos um tanto obscura, contém uma das maiores sugestões
sobre as dádivas de dinheiro que nosso Senhor já deu.
As riquezas, aqui, são o equivalente para dinheiro, que é
praticamente adorado. Ele nos lembra do bezerro de dourado que
foi feito com os brincos e as jóias da multidão. Agora, nosso Senhor
se refere a uma segunda transmutação. 0 bezerro de ouro pode,
por sua vez, ser derretido e cunhado em Bíblias, igrejas, livros,
folhetos e, até mesmo, em almas de homens. Assim, o que era
material e temporal torna-se imaterial e espiritual, como também
eterno. Aqui está um homem que possui cem dólares. Ele pode
gastá-lo em um banquete, em uma festa da qual, no dia seguinte,
nada restará para mostrar. Ele assegurou uma gratificação tempo­
rária do apetite — isso é tudo. Por outro lado, ele pode investir em
Bíblias, a dez centavos cada uma, e comprar mil cópias da Palavra

655
Os fundamentos

de Deus. Essas ele, judiciosamente, semeia como sementes do


Reino, e dessas sementes brotam uma colheita, não de Bíblias,
mas de almas. Com as riquezas injustas, ele fez amigos imortais,
que, quando ele precisar, o receberam nas moradas eternas. Será
que isso realmente não significa riquezas verdadeiras — o tesouro
colocado no céu, no bem imperecível?
Jamais a obra das missões, ou qualquer outra forma de serviço a
Deus e ao homem, receberá a ajuda que deve até que haja uma nova
consciência e uma nova consagração quanto à questão do dinheiro.
A influência do mundo e do espírito mundano estão enfraquecendo
a doação altruísta. A auto-indulgência é exaltada, quer em sua
forma grosseira quer refinada. Leva ao acúmulo cobiçoso ou ao
gasto esbanjador. Cega-nos ao fato da obrigação, alegando pretextos
franzinos para desviar o dinheiro do Senhor para finalidades
carnais. Os poucos que aprendem a viver segundo os princípios
bíblicos, aprendem também a amar a doação. Esses dons tornam-
se abundantes e sistemáticos e abnegados. Acorrente de benefícios
flui perpetuamente — não há período de seca.
Certa vez, foi necessário proclamar ao povo de Deus que o
que eles traziam “era mais do que suficiente, e “assim, o povo foi
proibido de trazer mais” (Ex 36.6). Até onde se sabe, esse é o único
exemplo histórico de excesso de generosidade. Mas não deveria
ser sempre assim? Não é uma vergonha e uma desgraça que sem­
pre haja falta de carne na casa de Deus? Quando sua obra apela por
ajuda, será que sempre haverá certa relutância em responder ou
distribuir uma mera ninharia? Certamente, seu dom inexprimível
fará com que todo o que dá a Ele uma oferta espontânea de amor,
traga, como Maria, seu frasco de bálsamo precioso para derramar
seus tesouros sobre Seus pés e encher a casa com o aroma do auto-
sacrifício!

656
657

“As escrituras”

R ev. A . C. D ixon, D .D .
Pastor da Igreja Metropolitan Tabernacle, Londres
Revisado e editado por Gerald B. Stanton, Th.D.

Quando nosso Senhor disse: “Examinais as Escrituras” (Jo 5.39),


todo judeu a quem ele falou sabia o que Ele queria dizer. Haviam
outros escritos em hebraico, grego e latim, mas as Escrituras
eram um corpo de escritos destacados de todos os outros devido
à sacralização e à autoridade como a Palavra de Deus. Sua história
pode ser traçada dos tempos de Moisés até Cristo. Em Êxodo 17.14
lemos: “Então, disse o S e n h o r a Moisés: Escreve isto para memória
num livro e repete-o a Josué” (Ex 17.14) Não sabemos o material
de escrita que Moisés usava, mas sabemos que as plantas papiros
do Egito, tecidos de linho e algodão, peles de animais e pedra eram
usados para fazer livros de vários tipos. Os Dez Mandamentos
foram escritos em tábuas de pedra, e junto com as múmias do Egito

AMZ1 CLARENCE DIXON (1854-1925) trabalhou ao lado de R.A.


Torrey na edição de Os Fundamentos. Dixon nasceu na Carolina do
Norte e recebeu sua educação superior na Faculdade Wake Forest e no
Seminário Teológico Batista do Sul. Em seu ministério como pastor,
ele ministrou em duas igrejas muito importantes: A Moody Church, em
Chicago (1906-11), e na Metropolitan Tabernacle, em Londres (1911-19).
Aqui está uma lista parcial dos livros que Dixon escreveu: Destrucüue
Criticism vs. Christianity [Crítica Destrutiva versus Cristianimo] (1912)
e The Birth of Christ: The Incarnation of God [O Nascimento de Cristo: a
Encarnação de Deus] (1919).
Os fundamentos

temos preservado até hoje tecidos de algodão e de linho que eram


freqüentemente utilizados para a escrita.
Em Deuteronômio 31.9, temos o relato histórico de que
Moisés obedeceu a ordem de Deus: “Esta lei, escreveu-a
Moisés e a deu aos sacerdotes, filhos de Levi, que levavam a
arca da Aliança do S e n h o r , e a todos os anciãos de Israel”. E
nos versículos 24 a 26: “Tendo Moisés acabado de escrever,
integralmente, as palavras desta lei num livro, deu ordem
aos levitas que levavam a arca da Aliança do S e n h o r , dizendo:
Tomai este Livro da Lei e ponde-o ao lado da arca da Aliança do
S e n h o r , v o s s o Deus, para que ali esteja por testemunha contra
ti”. O livro foi terminado e colocado ao lado da Arca para ser
mantido em segurança.
Em Josué 1.8, lemos: “Não cesses de falar deste Livro da Lei;
antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer
segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu
caminho e serás bem-sucedido”. Agora que a coluna de fogo e a
nuvem, que ficavam sobre o tabernáculo, tinham acabado, o livro
devia ser o guia de Israel, e a religião desse povo deveria ser uma
ampla extensão da religião do Livro. Deus está falando a eles do
“Livro da Lei”.
E provável que o livro que Josué leu fosse um manuscrito idên­
tico ao que Moisés escreveu no deserto. Lá podem ter feito cópias
feitas do livro escrito por Moisés, mas não temos nenhum registro
do fato. Nos livros das Escrituras há freqüente menção a esse fato.
O mesmo livro, ou uma cópia dele, aparece novamente mil anos
depois no reinado de Josias, como aprendemos de 2Reis22.8:
“Então, disse o sumo sacerdote Hilquias ao escrivão Safã: Achei o
Livro da Lei na Casa do S en h or . Hilquias entregou o livro a Safã, e
este o leu”.
Em Esdras, encontramos esse livro novamente nas mãos do
profeta, no púlpito de madeira ao ar livre, que o lia e explicava seu
sentido para o povo. Nessas e em outras passagens, três conclusões
razoáveis podem ser tiradas dessas inferências:
1. As Escrituras são literaturas escritas pela ordem de Deus. Ele
certamente ordenou Moisés a escrever o Livro da Lei. Para João,
na ilha de Patmos, a grande voz como de trombeta diz: “O que
vês escreve em livro e manda às sete igrejas (Ap 1.11)”. E antes
que a visão desaparecesse lhe foi ordenado: “ Escreve, pois, as

658
“As escrituras”

coisas que viste, e as que são, e as que hão de acontecer depois


destas. (1.19)”. Ele devia escrever a história, os eventos atuais
e as predições; e muito do conteúdo das “Escrituras” pode ser
classificado nestes três tópicos.
2. As Escrituras são literatura escrita pela ordem de Deus e com a
orientação de Deus. Em 2Pedro 1.21, lemos: “Porque nunca ja­
mais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto,
homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito
Santo”. A supervisão do Espírito é claramente ensinada.
3. As Escrituras são literatura escrita pela ordem de Deus, sob
a orientação de Deus e preservada pelo cuidado providencial
de Deus. Moisés ordenou que o Livro da Lei fosse colocado ao
lado da Arca. Não se poderia encontrar nenhum outro lugar
mais seguro, e quanto mais estudo a história das Escrituras
mais profundamente me convenço que Deus guardou Seu
livro ao lado de alguma Arca ao longo das épocas. Como
a igreja tem estado sobre Seu cuidado e proteção, assim
também o livro.
Não é difícil crer que o manuscrito que Hilquias encontrou no
Templo era o livro idêntico ao que Moisés escreveu no deserto,
e que este mesmo manuscrito esteve nas mãos de Esdras sobre
o púlpito de madeira, quando ele pregou ao ar livre. Há apenas
mil anos entre Josué e Josias, e somente cento e setenta e cinco
anos entre Josias e Esdras. Há agora em nossas bibliotecas
muitos manuscritos que sabemos ter mais de mil anos de idade,
dois ou três que foram certamente preservados mais de mil e
quatrocentos anos, e outros por períodos até mais longos. Com
o agradável clima oriental e o cuidado, que a reverência judaica
pelo livro naturalmente os levava a ter, não é de todo improvável
que o manuscrito de Moisés tivesse sido preservado por mais de
mil anos. E a história das Escrituras, desde o tempo de Cristo até
hoje, confirma a proposição de que foi preservado pelo cuidado
providencial de Deus.
Olhemos agora para “as Escrituras” em sua própria luz. Em
João 5.39, Jesus diz: “Examinais as Escrituras, porque julgais ter
nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim”. Em
2Timóteo 3.16, lemos, “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil
para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação
na justiça”. Nas Escrituras há quatro coisas:

659
Os fundamentos

Uma definição bíblica da bíblia


A frase, “as Escrituras”, sugere uma definição sintética da
Bíblia. Havia outros escritos, mas estes eram as Escrituras. Elas
estavam na língua hebraica e havia também a tradução grega, a LXX
[Septuaginta], feita cerca de uns trezentos anos antes de Cristo.
Tomemos nosso segundo texto para completar esta definição da
Bíblia — “Toda Escritura nos foi dada por inspiração de Deus”
(BV). Um erudito percebeu e teve muita dificuldade em juntar os
textos do Novo Testamento em que essa frase grega ocorre, e ele
declara que a versão da Bíblia Viva, e não a da Almeida Revisada,
é a tradução correta, e vários estudiosos eminentes do Comitê de
Revisão concordaram com ele. “Toda a Escritura nos foi dada por
inspiração de Deus”, é evidentemente o que o Espírito Santo quis
dizer quando isso foi escrito. Naturalmente, os escritores escreve­
ram sob a influência direta do Espírito. “Irmãos, convinha que se
cumprisse a Escritura que o Espírito Santo proferiu anteriormente
por boca de Davi, acerca de Judas, que foi o guia daqueles que pren­
deram Jesus” (At 1.16). “Veio expressamente a palavra do Senhor
a Ezequiel” (Ez 1.3). Mas os escritos, mais do que os escritores,
foram inspirados, pois “toda a Escritura é inspirada por Deus”, pois
o Deus que “Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra
e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser
alma vivente” (Gn 2.7), também soprou em Seu livro o fôlego de
vida, de forma que “fostes regenerados não de semente corruptível,
mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é
permanente” (lPe 1.23)”.
Há muitos escritores, mas apenas um Autor. Esses escritores
não eram autômatos. Cada um deles mostra seu próprio estilo e
personalidade, que são usados pelo Espírito Santo.

O uso bíblico da bíblia


Este uso é quádruplo: “Toda a Escritura é [...] útil para o ensino,
para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça”
(2Tm 3.16). “Ensino”, não do homem, quando ele expressa sua
opinião em uma conversa social, mas do embaixador que traz con­
sigo o peso da autoridade de seu governo. Na Bíblia encontramos
a proclamação oficial de Deus que nos fala de amor, perdão, pureza,
justiça e paz.

660
“As escrituras”

A palavra “repreensão” vem depois de ensino, pois diz respeito


ao caráter que o ensino cria. A Bíblia é proveitosa não somente pelo
ensino que dela extraímos, mas por ser o padrão pelo qual pomos
em prática nossos ensinamentos. Ela aprova e reprova. E o prumo
que usamos para saber se nosso caminhar está reto. E a régua pela
qual medimos todos os credos.
A palavra “correção” significa restauração, pois dá uma idéia de
algo mais além da doutrina e da reprovação. Traz em si a idéia de
tornar correto o que foi achado errado. O prumo pode mostrar que
nosso caminhar não está reto, mas não pode corrigi-lo. A régua pode
revelar que a vestimenta é muito curta, mas não pode alongá-la. A
Bíblia, no entanto, não somente nos mostra onde estamos errados,
mas nos corrige. Quando Canova viu um pedaço de mármore que,
a muito custo, tinha reservado para uma estátua célebre, seu olho
prático descobriu uma pequena mancha negra que o atravessava, e
ele a rejeitou. Ele podia descobrir o negro, mas não podia tornar o
negro branco. A Bíblia descobre o negro e o torna branco.
A quarta palavra, “educação”, significa literalmente “cultivar
uma criança”, e significa tudo que os pais precisam para o cresci­
mento, desenvolvimento e amadurecimento da criança. A Bíblia é
uma escola de preparo para a justiça. Outros livros preparam para
a música, a retórica, a oratória, mas a especialidade da Bíblia é
preparar para a justiça.

O método bíblico para estudar a bíblia


O método é sugerido pelas duas palavras “examinais” e “útil”. O
que quer que seja útil só pode ser alcançado por meio do trabalho
esforçado. Podemos conseguir a inutilidade sem esforço. Conse­
qüentemente, a força da frase, “Examinais as Escrituras”, significa
olhar tudo detalhada e completamente. Essa é a palavra usada nas
Escrituras: “Porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até
mesmo as profundezas de Deus” (ICo 2.10). Como Deus procura
nosso coração, assim devemos procurar a Bíblia.
A Bíblia não pesquisada é o mesmo que uma mina sem valor, a
diferença entre o rio Kleondyke de anos atrás e o Kleondyke que
enriquece seus industriosos proprietários de hoje. Para aprender a
Palavra de Deus é preciso pesquisar de forma diligente e persisten­
te. Um homem que, muitos anos atrás, morreu em um asilo inglês,
deu a seus parentes um pedaço de terra improdutiva, tão sem valor

661
Os fundamentos

que ele morreu sem pagar os impostos. Os parentes buscaram


conhecer bem o pedaço de terra e, como resultado, tornaram-se
milionários. O pobre era rico sem saber disso, e ele ignorava o fato,
porque não pesquisou suas posses.
Todo cristão com a Bíblia em mão é rico, quer ele saiba quer não.
Ele precisa pesquisar e encontrar os tesouros escondidos. Essa
busca implica visão e luz. Há necessidade de discernimento espi­
ritual. “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de
Deus, porque [...] elas se discernem espiritualmente” (ICo 2.14). E,
conseqüentemente, existe a necessidade de inspiração que vem da
confiança no Espírito Santo como o revelador da verdade. Quando
Galileu virou seu pequeno telescópio para os céus, ele descobriu
que realmente tinha um novo par de olhos. Ele podia agora ver
as montanhas da lua, os satélites de Netuno, os anéis ao redor de
Saturno. Assim, devemos ler a Bíblia à luz da Bíblia, e quanto mais
luz vem, melhor é a visão; por outro lado, quanto mais visão, mais
luz é revelada.
Um cristão com discernimento espiritual pode se propor a
examinar as Escrituras tendo apenas o Espírito Santo como seu
guia. Os comentários são bons, mas não bons substitutos da pes­
quisa independente. Quando Alexandre, o Grande, ficou diante de
Diógenes, quando este estava em sua banheira, o general perguntou
ao filósofo o que ele podia fazer por ele. A resposta bastante severa
foi: “Simplesmente que saia da frente de minha luz”. E qualquer
pesquisador tem o direito de dizer: “Saia da frente de minha luz”, a
qualquer um cuja sombra se lance entre ele e a verdade.
Qualquer método de pesquisa é bom, embora alguns possam ser
melhores do que outros. O “método gafanhoto”, pelo qual tomamos
uma palavra ou assunto e saltamos de um lugar para o outro,
reunindo os textos que contêm essa palavra ou assunto, não deve
ser desprezado. Deus abalou o mundo por intermédio de Dwight L.
Moody, que era aficionado por esse método. Aprendi a amar o que,
por falta de palavra melhor, chamo de o método seccional, pelo qual
se começa em um certo lugar e lê-se o parágrafo, o capítulo ou o
livro, juntando e classificando todos os pensamentos contidos ali.
Lembre-se do dizer do sr. Spurgeon, que foi inspirado pela Bíblia
carcomida que encontrou em uma mesa de uma hospedaria à beira
da estrada escocesa. Segurando uma luz por cima, ele notou ape­
nas um único buraco pelo qual a luz passava. Uma traça, assim lhe

662
“As escrituras”

pareceu, começou em Gênesis e comeu até Apocalipse, e Spurgeon


orou, “Senhor, faça de mim uma traça de livro como essa”. Essa tra­
ça de livro nunca se torna uma minhoca, pois em breve terá asas.
Mas qualquer que seja seu método, não deixe de ler a Bíblia livro
a livro. Leia Gênesis ao se sentar. Você pode fazê-lo em menos de
três horas. A seguir, Êxodo; em seguida, Levítico, e assim através
de toda a biblioteca de sessenta e seis volumes. O astrônomo deve­
ria olhar para o céu como um todo antes de tomar seu telescópio. O
botânico deveria olhar para os campos e jardins antes de tomar seu
microscópio. Se você não lê as Escrituras, um livro por vez, você
deve admitir que não sabe nada a respeito de sua Bíblia.
Um estudo das palavras fornece uma rica colheita de conheci­
mento e bênção.
Lutero disse que estudava a Bíblia como colhia maçãs. Primei­
ramente, ele olhava a árvore inteira, para que as mais maduras
pudessem cair. Depois, subia na árvore e balançava cada ramo,
mas, quando ele balançava cada ramo, balançava cada galho, e
depois de cada ramo cada brotinho e, em seguida, olhava debaixo
de cada folha. Pesquisemos a Bíblia como um todo; balancemos a
árvore toda; leia-a tão rapidamente quanto você lê qualquer outro
livro; depois balance cada galho, estudando-a livro após livro. A
seguir, balance cada galho, dando atenção aos capítulos para que
você não perca o sentido. Em seguida, balance cada broto com o
estudo cuidadoso dos parágrafos e das sentenças e, se você olhar
debaixo de cada folha, procurando o significado das palavras, será
recompensado.

Os motivos bíblicos para o estudo da Bíblia


Há um motivo duplo:
1. Temos o direito de pensar sobre a vida eterna. “Porque julgais
ter nelas a vida eterna” (Jo 5.39). Em Cristo temos vida eterna,
mas nas Escrituras está nossa possibilidade de ponderar sobre
ela. Temos a bem-aventurança do homem cujo “prazer está na lei
do S en h or , e na sua lei medita de dia e de noite” (SI 1.2). Minha
arca de salvação está apoiada em dois pilares. O primeiro pilar
é o que Cristo fez por mim, este é sempre do mesmo tamanho.
Passou-se o tempo quando o segundo pilar era a segurança de
salvação por intermédio de meus sentimentos. Se me sentia bem
e feliz, esse pilar era do tamanho certo e parecia bastante sólido,

663
Os fundamentos

mas quando vinham os sentimentos deprimentes, o pilar parecia


mais curto e ameaçava a arca. Um dia, no entanto, li ljoão 5.13:
“Estas coisas vos escrevi, a fim de saberdes que tendes a vida
eterna, a vós outros que credes em o nome do Filho de Deus”. Vi
que Deus espera que eu confie nas Escrituras, e não em meus
sentimentos. A partir daquele dia, o pilar de segurança está,
o tempo todo, do mesmo tamanho, porque a Palavra de Deus
jamais muda. Os sentimentos podem vir e ir, mas continuo acre­
ditando na promessa. Sei que tenho a vida eterna, não porque
sinto desse ou daquele jeito, mas porque Deus diz isso. Agora
o pilar do mérito de Cristo e o pilar de Sua promessa são do
mesmo tamanho, e a arca da salvação não é mais ameaçada pela
mudança de sentimento.
2. Podemos aprender com Jesus: “E são elas mesmas que testificam
de mim” (Jo 5.39). Poucas coisas são mais interessantes, e ne­
nhuma mais proveitosa, do que traçar a idéia messiânica através
das Escrituras. Começa com a maldição sobre a serpente, em
Gênesis, e se encerra com “um Cordeiro como tendo sido morto”
(5.6), em Apocalipse. No caráter cristão, a imagem de Cristo
é arruinada pelas imperfeições, mas nas Escrituras o retrato
é perfeito. Um amigo descreveu-me um quadro que estava na
parede da casa onde passara a infância. Quando você o via pela
primeira vez, era uma bela paisagem com árvores, correntes de
águas, casas e pessoas, mas, enquanto contemplava tudo isto,
todas estas belas coisas começaram a formar um rosto humano.
Em uma inspeção mais próxima, percebia-se que todo o quadro
tinha a intenção de oferecer a face de Cristo. O estudante
devoto das Escrituras está constantemente tendo experiências
como essa. Ele vê na Bíblia árvores de fidelidade, correntes de
verdade, paisagens de encantamento, nos atos e no caráter, mas
eles estão todos dispostos conforme sua relação com Cristo de
modo a trazer as características desua natureza e de seu caráter.
Quando o vemos desse modo, como Ele é, tornamo-nos cada vez
mais parecidos com Ele, até que em pouco tempo deveremos ver
sua face desvelada e seremos completamente transformados à
sua semelhança. “Examinais as Escrituras” para uma visão do
Senhor Jesus Cristo.

664
665

O que a Bíblia possui


para o crente

R ev. G eorge F. P entecost, D .D .


Darien, Connecticut
Editado por Charles L Feinberg, Th.D., Ph.D.

A Bíblia é o único livro


que pode nos dar sabedoria para salvação
A Bíblia não é um livro para ser estudado, como estudamos
geologia e astronomia, simplesmente para descobrir algo sobre a
formação da terra ou sobre a estrutura do universo; mas é um livro
que revela a verdade, desenhado para nos trazer a união viva com
Deus. Podemos estudar as ciências físicas e obter um conhecimen­
to justo dos fatos e dos fenômenos do universo material. Mas que
diferença faz para nós, seres espirituais, se a teoria coperniciana

GEORGE FREDERICK PENTECOST (1842-1920) foi um clérigo presbiteriano


que atuou como capelão durante a Guerra Civil e, posteriormente,
pastoreou igrejas em Indiana, Kentucky, New York, Massachusetts,
Pennsylvania e Londres, na Inglaterra. Ele, trabalhando com D. L.
Moody, conduziu com êxito encontros evangelistas na Escócia e
tam bém na índia. Visitou obras missionárias na China, Ja p ão e Coréia
como representante oficial do Comitê Americano de Comissários para
Missões Estrangeiras. Ele foi autor de muitos livros, incluindo dez
volumes de estudos sobre a Bíblia.
Os fundamentos

ou a ptolemaica do universo é verdadeira? Por outro lado, as coisas


eternas da Palavra de Deus são realmente importantes para nós.
O conhecimento científico, e as palavras pelas quais este conhe­
cimento é transmitido, não tem poder de mudar nossa natureza,
de nos tornar melhores, ou de nos dar uma esperança viva de uma
imortalidade abençoada. Mas a Palavra de Deus tem em si um
poder vital; ela é “viva e eficaz” — viva e cheia de energia divina
(Hb 4.12) — e quando recebida com mansidão em nossa compre­
ensão e coração é capaz de salvar nossas almas (Tg 1.18, 21). E o
instrumento pelo qual o Espírito Santo realiza em nós a regenera­
ção do caráter. A Palavra de Deus é uma semente viva que contém,
dentro de si mesma, a própria vida de Deus que, quando recebida
em nosso coração, brota dentro de nós e nos dá “fruto segundo
a sua espécie” (Gn 1.11), pois Jesus Cristo, a Palavra eterna de
Deus, é o gérmen vivo e oculto em sua Palavra escrita. Por isso,
está escrito, “as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são
vida” (Jo 6.63), e assim é que quem “ouve a minha palavra” — isto
é, as recebe com coração bom e honesto — que ouve a Palavra e a
compreende, “tem a vida eterna” (Jo 5.24). De nenhum outro livro
poderia se dizer coisas como estas. Conseqüentemente, dizemos
que a Palavra de Deus é o instrumento em Sua mão para operar a
regeneração e a salvação em nós e por nós (Tg 1.18, 21).
Isso leva-nos a dizer que nos relacionamos com Deus e com
as verdades eternas reveladas neste livro, não por intermédio da
apreensão e da demonstração intelectual, mas pela fé. Não pelo ra­
ciocínio, mas pela simples fé, apoiamo-nos nessas verdades, pondo
nossa fé em Deus, que está por trás e dentro de cada fato que salva
neste livro (Ver lPe 1.21). Parece-me, portanto, ser uma grande
tolice para o homem estar sempre especulando sobre essas coisas
espirituais e reveladas; no entanto, encontramos, constantemente,
até mesmo pessoas boas que estão tratando a Palavra de Deus
dessa forma. Em primeiro lugar, elas tratam a revelação como se
fosse apenas uma opinião expressa a respeito das coisas reveladas
e, desse modo, sentem-se livres para divergir dela ou recebê-la
com modificações, tratando-a como tratam as generalizações e
conclusões, mais ou menos precisas, dos cientistas e as teorias,
mais ou menos verdadeiras, dos filósofos. Se a Palavra se ajusta ao
juízo deles, eles a aceitam; desse modo, acabam por fazer um juízo
ou critério de verdade, em vez de submeter suas opiniões à Palavra

666
O que a Bíblia possui para o crente

infalível de Deus. Não é raro ouvirmos uma pessoa dizer que crê
que a Palavra de Deus é verdadeira; mas, mesmo assim, no instante
seguinte, quando pressionada por alguma afirmação ou declaração
daquela Palavra ela diz, “Ah! Mas acredito assim e assim” — algo
inteiramente diferente do que Deus declarou. E, novamente, mui­
tas pessoas que professam crer na Palavra de Deus parecem nunca
pensar em se colocar em uma relação prática e para a salvação com
ela. Elas acreditam que Jesus Cristo é o Salvador do mundo, mas
nunca crêem Nele; em outras palavras, que Ele o Salvador delas.
O livro de Deus está cheio de doutrinas e promessas. Nós as
declaramos, e alguém diz: “Você tem que provar que esta doutrina
ou que esta promessa é verdadeira”. O único modo de provar uma
doutrina como verdadeira é por meio da experiência pessoal por
intermédio da fé em Jesus Cristo. Jesus Cristo diz: “Importa-vos
nascer de novo” (Jo 3.7). Poderíamos tentar dominar o significado
e o poder dessa doutrina pela mera especulação, mas você se colo­
caria hoje na posição de Nicodemos e diria, “Como pode suceder
isso?”. Em vez de fazer isso, suponha que você atenda ao que foi
dito, a saber, “todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido
de Deus” (ljo 5.1; Jo 1.12,13). Em obediência a este ensinamento
divino, sem saber como isso deve ser feito em nós, recebemos essa
Palavra e nos rendemos a Jesus Cristo; e veja! Aí amanhece e surge
em nós uma experiência que lança luz sobre tudo aquilo que antes
era um mistério. Não experimentamos nenhum choque físico, mas
uma grande mudança é operada em nós, especialmente em nossa
relação com Deus (2Co 5.17). Assim, chegamos a um entendimento
experimental da doutrina do novo nascimento. Assim, qualquer
outra doutrina que pertence à vida espiritual pela graça de Deus
é transmudada em experiência. Pois, como uma palavra está para
uma idéia ou pensamento, as doutrinas de Deus estão para as
experiências; mas a doutrina deve ser recebida antes que se tenha
a experiência. E, além disso, devemos receber todas as doutrinas,
toda a verdade, por meio da fé Nele, porque Cristo e sua Palavra
são inseparáveis, assim como a reputação de um homem só é atual
e válida, porque o homem é bom.
Mas há algumas coisas reveladas na Palavra de Deus que cre­
mos mesmo sem ter a experiência. Por exemplo, cremos que este
“corpo de humilhação” (Fp 3.21), desonrado pelo pecado e sobre
o qual a morte logo colocará seus pés, no dia de seu aparecimento

667
Os fundamentos

e reino (2Tm 4.1; lTs 4.15) será mudado e moldado segundo seu
corpo glorioso (Fp 3.21). Como você sabe que podemos estar
certos ao crer nestas coisas? Respondemos apenas isso: “Porque
Deus provou para nós muitas coisas de Sua palavra, de modo que,
quando Ele anuncia algo que ainda será verdadeiro, com base na
experiência passada, aceitamos como verdadeira a promessa das
coisas futuras. Na verdade, Ele já tornou esse fato verdadeiro em
nosso coração, porque a “fé é a certeza de coisas que se esperam, a
convicção de fatos que se não vêem” (Hb 11.1). Porque aqui temos
uma experiência espiritual presente que culminará no futuro; pois
já ressuscitamos com Cristo (Cl 2.13; 3.1; Ef 2.5, 6; Rm 8.11).

A Bíblia contém em si a absoluta garantia


de nossa herança em Cristo
Suponha que, algum dia, cheguemos a você e coloquemos em
questão a propriedade de sua casa, exigindo que você a abandone,
uma casa herdada de seu pai. Quando estiver contra a parede, você
nos leva ao tribunal e mostra-nos o testamento de seu pai, devida­
mente escrito, assinado, selado e registrado. Isso pode servir para
ilustrar esse ponto. Muitos cristãos se perdem, pois não sabem
onde e como fundamentar seus títulos. Não é possível se fundamen­
tar no fato de que você é um descendente de um pai religioso, filho
de pais crentes, pois, como o velho Matthew Henry diz, “Graça não
corre no sangue”; e nem é algo que você ganha por ser membro de
uma igreja visível de Cristo; e tampouco deve ser encontrada em
estruturas encantadoras ou em sentimentos — em uma palavra,
nem mesmo uma experiência cristã genuína pode se constituir em
seu título de compra. Onde, então, estão os fundamentos de nossa
esperança?
Por que só na Palavra nua de Deus (Jo 5.24)? Vamos diretamen­
te para o registro que usamos para um teste final quanto a nossa
posse em Deus (ljo 5.11, 12). Nossa fé está no Filho de Deus, em
quem temos redenção (Ef 1.7) por meio da Palavra registrada da
promessa, porque este registro foi “para que creiais que Jesus é o
Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu
nome” (Jo 20.31). As Escrituras são os pactos, o antigo e o novo,
em que Deus garantiu isso para nós, pela Sua palavra e juramento
(Hb 6.17, 18), selando esse juramento com o sangue de Jesus
Cristo (Mt 26.28), a herança dos santos. Não enfatizamos esse

668
O que a Bíblia possui para o crente

ponto para subestimar de qualquer maneira a experiência cristã


(porque ela é abençoada e verdadeira), ou subestimar a bênção de
pais crentes, ou da igreja e de suas ordenações, mas somente para
chamar a atenção para a certeza da palavra de profecia (2Pe 1.19)
que é melhor para a confirmação do que visões e vozes, estruturas
e sentimentos, bênçãos parentais e sacramentos de igrejas.

A palavra de Deus é o meio designado


para a cultura de nossa vida cristã
Tiago nos relata (1.18) que a palavra da verdade é o instrumento
de nossa regeneração, e Jesus nos diz que a verdade não somente
nos liberta, mas ora ao Pai para que possamos ser santificados por
intermédio da verdade (Jo 6.32-36; 17.17-19). E Paulo nos diz, com
as palavras que Espírito Santo ensina, que os maridos devem amar
sua mulher, “como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se
entregou por ela [...] para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa,
sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem
defeito” (Ef 5.25, 27). “Pois esta é a vontade de Deus: a vossa santi­
ficação” (lTs 4.3), porque Deus não nos chamou para a impureza,
mas para a santidade (lTs 4.7). Após a regeneração, nada pode ser
mais importante do que isto. A Bíblia nos diz e acreditamos nela,
que, em breve, estaremos em outro estado de existência, no céu,
na presença do amado e glorificado Jesus; que veremos sua face, e
seu nome estará em nossas frontes (Ap 22.4), que estaremos com
os anjos, uma companhia inumerável, e com os espíritos dos justos
feitos perfeitos, os santos de todas as épocas (Hb 12.23), que os
conheceremos e estaremos em sua comunhão (Mt 17.3; ICo 13.12),
que seremos absolutamente imaculados, tão gloriosos como a luz
não criada de Deus (Ap 21.4, 27; Mt 13.45). Este sendo o lugar e
a companhia para a qual estamos sendo levados tão rapidamente,
queremos estar preparados tanto para o lugar quanto para a socie­
dade.
Você está ansioso para ser cultivado para este mundo e sua
melhor sociedade, quanto a seu conhecimento, quanto a seus cos­
tumes e quanto a seus modos. Sim, você esbanja tempo e dinheiro
para si e seus filhos, para que eles possam ser providos com as
realizações e a cultura deste mundo. Você diz quando aparece em
boa companhia, que quer estar à vontade, ser um semelhante entre
os mais realizados e que deseja o mesmo para seus filhos. Se você

669
Os fundamentos

fosse convidado agora para ficar seis meses como residente na


corte de St. James, como o convidado da realeza da Inglaterra, você
saquearia todos os livros que tratassem de etiqueta e das maneiras
da corte; revisaria a história inglesa, de maneira que não fosse
considerado ignorante em seu conhecimento das tarefas do país,
ou do cerimonial da corte. Contudo, estamos indo para a corte do
Rei imortal, eterno, para o reino de glória. Não sabemos o dia, nem
a hora, em que o Senhor virá, ou nos chamará para lá; e queremos
estar prontos, tanto quanto à pureza de caráter como com relação à
cultura da corte da cidade celestial. Queremos ficar familiarizados
com a história da redenção, e com os mistérios do reino. Não quere­
mos aparecer como um estranho desajeitado na casa de nosso Pai
de luz. Só podemos obter esta santificação de caráter e de cultura
de vida e de maneiras pela constante familiaridade e comunhão
com Deus e com os santos por meio da palavra.
Os homens do mundo ficam ansiosos para que eles e seus filhos
apareçam bem na sociedade deste mundo. Para isto, devotam-se a
eles mesmos e a seus filhos, às escolas do mundo e às suas modas.
Os crentes, também, estão ansiosos para que seus filhos sejam cul­
tivados e realizados em cada caminho digno para que sejam filhos
ou filhas do Rei, que são pela graça. Mas não devem pensar em
procurar para eles a entrada do que, neste mundo, é considerado o
melhor da sociedade para alcançar essa finalidade. Se eles podem
ter o coração cheio com o grande amor de Deus e a doce graça de
Cristo; se eles penduram nas paredes dos quartos de suas almas
quadros como: “Tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável,
tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o
que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe,
seja isso o que ocupe o vosso pensamento” (Fp 4.8); se eles viajam
por este mundo em sua companhia; se o Espírito Santo os guia
por meio da Palavra e lhes mostra coisas maravilhosas e belas em
sua lei; se o fruto do Espírito — que “é: amor, alegria, paz, longa-
nimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio
próprio” (G1 5.22, 23), adorna sua vida e caráter — os cristãos
não ficarão receosos de que seus filhos correrão um pouco atrás
das pessoas na vanguarda da sociedade e na terra, em questão de
cultura, de pensamento e coração, e haverá graça nos gestos deles.
Há uma cultura divina e uma graça divina de gestos que, de longe,
transcendem qualquer coisa encontrada nas escolas deste mundo.

670
O que a Bíblia possui para o crente

Só um cristão poderia pensar em dizer o que Paulo disse diante de


seu juiz: “Exceto estas cadeias” (At 26.29).
John Bunyan, preso por doze anos na prisão de Bedford, com
sua Bíblia e concordância como suas constantes companhias,
produziu e apresentou ao mundo seu sonho imortal, escritos cuja
beleza de estilo, assim como a maneira casta e simples de escrever,
foram incluídos entre os clássicos da literatura inglesa. Tão sem
igual era a cultura intelectual e espiritual desse funileiro indouto
de Elstow, que o estudioso John Owen testemunhou diante do Rei:
“Sua Majestade, se pudesse escrever como esse funileiro que está
na prisão de Bedford, ficaria contente em deixar de lado todo meu
aprendizado”. Onde John Bunyan adquiriu sua cultura? Na gloriosa
companhia de Moisés, na Lei, com Davi, nos Salmos, com Isaías
e os profetas e os santos de Deus, que escreveram movidos pelo
Espírito Santo; com Mateus, Marcos, Lucas e João; com Paulo,
Pedro e todos os demais que escreveram e falaram não os pensa­
mentos, nem nas palavras, de sabedoria de homem, mas os pensa­
mentos de Deus, e nas palavras que Espírito Santo lhes concedeu.
Leia Homero e Milton, Shakespeare e Dante; leia Bacon, Macaulay,
Addison e Carlyle; passe por toda a melhor literatura de todos os
tempos, e será infinitamente menor em pureza, beleza e grandeza
de pensamento, assim como a maneira de expressar-se que só são
encontrados na Palavra de Deus.
Goethe, que disse que não era cristão, declarou a respeito dos
evangelhos canônicos: “A mente humana, não importa quanto
possa avançar na cultura intelectual, e na extensão e profundidade
do conhecimento da natureza, mas nunca transcenderá a alta cul­
tura moral do cristianismo como ele brilha e reluz nos evangelhos
canônicos”. Renan, o autor francês, infiel, conclui sua vida de Jesus
com estas palavras notáveis: “Qualquer que possa ser a surpresa
do futuro, Jesus jamais será ultrapassado; sua adoração crescerá
sem cessar; sua lenda estimulará lágrimas sem fim; seu sofrimento
derreterá os corações mais nobres; todas as eras proclamarão que
entre os filhos dos homens não há nenhum nascido maior do que
Jesus”. E Strauss, o autor alemão, racionalista, diz na Vida de Jesus:
“Jesus se apresenta dentro da esfera da religião como o ponto
culminante, além do qual a posteridade jamais poderá ir; sim, ela
não pode nem mesmo se igualar a Ele, pois Ele permanece o mais
alto modelo de religião dentro do alcance de nosso pensamento, e

671
Os fundamentos

nenhuma piedade perfeita é possível sem sua presença no coração”.


Assim, o poder do livro e da Pessoa, para a mais alta cultura da
mais alta natureza do homem, é afirmado por aqueles que não
admitem a origem divina das Escrituras, ou a deidade daquele de
quem elas são, do princípio ao fim, testemunhas. Se, portanto, você
quer saber como servir Deus, fazendo Sua vontade na terra, e estar
inteiramente preparado e cultivado para o céu daqui em diante,
receba sua Palavra para que esta se torne a regra e a companhia
de sua vida.

A Bíblia é o arsenal do cristão


O chamando cristão no mundo é o de um soldado. Ele deve
combater o bom combate da fé (lTm 6.12; 2Tm 4.7). Os pecadores
devem ser ganhos do poder do diabo para Deus. Sua inteligência,
suas vontades e suas afeições devem ser fulminadas e levadas para
Ele; elas devem ser desviadas do poder da escuridão para a luz.
Suas prisões do pecado devem ser quebradas; suas correntes soltas
e os cativos libertados (At 26.16-18). Em nossa própria vida e pere­
grinação cristãs também devemos nos salvaguardar dos poderes
da escuridão e dos dardos de fogo do diabo. Dúvidas, infidelidades,
tentações, imaginações malignas, impurezas, profanações e pen­
samentos vãos nos assaltam, são derramados sobre nossas almas
por Satanás, e os desejos da carne devem ser lançados no fogo do
inferno, se por esse meio o filho de Deus pode ser pego em uma
falta ou subjugado pelo pecado. Mas essa guerra não é carnal, ou
segundo a carne (2Co 10.3-5). Como Josué subiu contra Jericó e
tomou sua fortaleza e torres altas, lançando-as abaixo e tornando
cativa a cidade, não com armas carnais, mas com trombetas de chi­
fre de carneiros (Js 6), assim nós, procedendo contra as fortalezas,
imaginações e argumentos infiéis dos homens, devemos tomar a
trombeta do evangelho. Devemos brandir a espada que é a Palavra
de Deus, a espada do Espírito (Ef 6.17), que torna invencível aquele
que a utiliza. A própria Bíblia deve ser tomada, não somente como a
melhor defesa contra todas as agressões da infidelidade das torres
altas dos raciocínios humanos, mas também como a arma poderosa
para subjugar e levar os inimigos de Deus ao cativeiro de Cristo
(Ap 12.11; Ef 6.13-17). Só precisamos lembrar como nosso Senhor
derrotou o diabo com a arma que prevalece sobre tudo, “está
escrito”, para que possamos recorrer ao segredo da batalha que foi

672
O que a Bíblia possui para o crente

bem sucedida para Ele. Muitos cristãos, jovens e velhos, vêm, com
freqüência, a nós, perguntando e dizendo, “Você não poderia vir
para falar com meu amigo?”
E respondemos:
— Por que você mesmo não fala com ele (ou ela)?
— Porque não sei o que dizer para ele, e, além disso, você sabe
muito mais sobre a Bíblia.
— Bem, e porque você não sabe mais sobre a Bíblia? — pergunto
surpreso.
A isso, várias respostas são dadas. De qualquer maneira,
encontramos aqui um grave equívoco. Uma ignorância a respeito
da Bíblia, que não somente nos investe com suas armas espirituais,
“a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habi­
litado para toda boa obra” (2Tm 3.17), leva muitos cristãos sérios
ao uso duvidoso de sua própria argumentação para tratar com os
seus ou com outras almas. E uma tarefa inútil tentar demolir as
fortalezas das mentes e dos corações não regenerados com alguma
coisa menor do que esse arsenal divino. Contudo, todos podem
se equipar com esse grande arsenal. A Bíblia contém idéias que
nenhuma filosofia ou teoria humana podem fornecer, e, portanto,
coloca-nos em posse de armas que o inimigo não pode resistir,
quando duramente atacado por elas, pois elas são reforçadas pela
poderosa presença do Espírito Santo, que nos torna inconquistáveis
às investidas do adversário. O caso de Estêvão e de outros discípulos
primitivos, cujas palavras, quando proferidas conforme as Escritu­
ras, os judeus não puderam resistir, são um exemplo esplêndido
desse poderoso poder da Palavra e do Espírito de Deus. Jamais
encontramos um infiel ou ateu cujos argumentos não pudéssemos
contornar, quando dependemos apenas da Palavra de Deus. Na
verdade, jamais encontramos alguém em nossos gabinetes que foi
capaz de resistir à Palavra de Deus e aos fatos poderosos da Bíblia,
quando, em humilde dependência de Deus, os apresentamos a Ele.
Se você conhece os pensamentos de Deus e procura ser guiado pelo
Espírito Santo, Ele dirá por meio de nossa boca a palavra correta
no momento correto, tanto para repelir uma agressão quanto para
lançar um sopro revelador para a verdade. E, em meio a toda essa
guerra, a luz e o amor e a bondade de Jesus Cristo brilharão em seu
procedimento e suas maneiras para que eles sejam convencidos de
sua sinceridade, e Deus lhe dará vitória.

673
Os fundamentos

A Bíblia é um mapa perfeito


para o cristão em sua peregrinação pelo mundo
Com a Palavra de Deus em mãos e no coração, você pode
percorrer seu caminho com perfeita segurança e confiança através
de todos os labirintos deste mundo. 0 caminho reto e estreito é
tão claro e nitidamente marcado, que aquele que o percorre pode
facilmente ler as indicações. E uma estrada na qual um viajante,
embora tolo, não precisa errar (Is 35.8), porque ele está demarcado
em todas as partes por seus mandamentos. Mais do que isso, temos
um Guia invisível, o Espírito da verdade, que nos conduz, e nos fala
quando estamos com dúvidas ou incertezas, “Este é o caminho,
andai por ele” (Is 30.21). Assim, um peregrino e um estrangeiro
podem prosseguir pelo caminho para a cidade de Deus em segu­
rança e confiança, seguindo pela luz da Palavra que é “lâmpada
para os meus pés é a tua palavra e, luz para os meus caminhos”
(SI 119.105), o caminho que ninguém conhece a não ser aquele
que o conduz. Sim, e você descobrirá que o caminho, acima das
colinas e através dos vales, brilha cada vez mais para o dia perfeito
(Pv 4.18). A Palavra de Deus é um quadro que marca todas as
pedras e recifes no mar da vida; se atendemos a ela e navegamos
com nosso frágil barco por esse mar, chegaremos em segurança
ao porto do descanso. Mas se somos descuidados, orgulhosos e
auto-suficientes em nossos próprios conceitos, naufragaremos em
nossa fé. Muitos cristãos naufragam devido ao conceito desatento
ou negligente de seu mapa infalível. O Espírito Santo pode nos
inclinar a estudar diligentemente nosso mapa divino para que
naveguemos perto Dele!

A Bíblia revela coisas futuras


Ela contém não somente a história do passado, das relações de
Deus com as nações, mas também contém muita profecia ainda
não cumprida. O Apocalipse é um livro devotado às coisas que
devem em breve acontecer. A profecia foi chamada de a história
não representada, e história é apenas a profecia cumprida. E um
engano supor que a mão de Deus na história limitava-se àquelas
nações mencionadas nas Escrituras. Se pudéssemos ter a história
de Deus na história, ver-se-ia que Sua providência tem estado nela
e sobre todos os grandes e pequenos acontecimentos de todas as

674
O que a Bíblia possui para o crente

nações. Daniel, em sua grande profecia, deu um rápido e vivido es­


boço do curso da história desde o Império Babilônico dourado até
o fim dos tempos (Dn 2.44; 7.13-27). Entretanto, Deus derrubará,
derrubará e derrubará as nações até que venha aquele às quais elas
pertencem por direito (Ez 21.27). O Livro do Apocalipse é uma
exposição detalhada do segundo e do sétimo capítulos de Daniel, e
os dois livros devem ser lidos juntos.
Os líderes estão rapidamente fazendo acontecer as coisas que
Deus marcou na profecia tempos atrás. Mas eles não sabem o que
eles fazem (Lc 21.25-27). Nenhum homem sabe o dia e a hora,
quando os céus flamejantes revelarão a aparição de nosso Senhor
Jesus Cristo e Seu Reino (2Tm 4.1); mas Deus disse aos homens
para esperar e ficar prontos, para que não sejam surpreendidos pelo
grande e terrível dia do Senhor. As Escrituras foram escritas para
esta finalidade, para que o estudante amoroso da Bíblia possa viver
de antemão a história e não ser tomado por nenhum acontecimento
desfavorável. Se Sua Palavra profética habita ricamente em nosso
coração e mente, não haverá grande surpresa para nós quando
esse tempo se cumprir. Discerniremos por meio do telescópio
profético, vagamente talvez, a aproximação daquelas coisas das
quais a história é feita. Sabemos que há uma disposição da parte
de muitos cristãos de trazer à luz todo estudo profético; mas nosso
Senhor ressuscitado, em sua última revelação a João, com respeito
às coisas futuras, o fez escrever de modo diferente (Ap 22.6, 7).
O Espírito de Deus pode nos conceder uma mente para estudar
Sua Palavra de modo reverente e crente com um coração preparado,
como fez Esdras (7.10), à luz do Espírito Santo e sob a orientação
Dele. Assim, Ele nos mostrará as coisas futuras (Jo 16.13).

675
677

A esperança da igreja

Rev. John McNichoi., BA., B.D.


Diretor da Escola de preparação Bíblica de Toronto
Editado por Charles L Feinberg, Th.D., Ph.D.

Há muitas indicações de um reavivamento em relação ao


interesse do estudo da escatologia. O último ataque sobre a fé
cristã está sendo dirigido contra o ensino escatológico do Novo
Testamento. A igreja cristã foi fundada com a promessa de um
rápido retorno de Cristo para estabelecer seu Reino no mundo, mas

JO H N McNICHOL (1869-1956) teve seus sonhos de missão estrangeira


frustrados, quando foi rejeitado para o serviço de além mar. Contudo,
sua influência nos campos de missões, assim como seu impacto
sobre os estudantes que ensinava — mais do que compensou por seu
desapontamento. McNichoi foi educado na Universidade de Toronto,
onde recebeu seu B.A com honra na área de Clássicas. Mais tarde,
obteve um B.D. na Faculdade de Knox. Em 1896, McNichoi tornou-se
ministro da igreja presbiteriana em Aylmer, Quebec. Logo, no entanto,
retornou à educação, agora como professor na Escola de Preparação
Bíblica de Toronto (posteriormente Faculdade de Toronto). Foi nomeado
diretor da escola em 1906, um a posição que sustentou até 1946. Durante
aqueles anos, ele tam bém serviu nos conselhos da Missão no Interior da
China e da Missão no Interior do Sudão — cumprindo, desse modo, seu
primeiro desejo de contribuir com a obra missionária. Seu comentário
sobre Lucas fez parte do New Bible Commentary [Novo Comentário
sobre a Bíblia], mas seu mais notável reconhecimento foi por Thinking
Through the Bible [Pensando por meio da Bíblia], republicado em 1976,
como McNichoFs Bible Suruey [McNichoi, sua Pesquisa sobre a Bíblia],
pela Kregel Publications.
Os fundamentos

sua história tomou um curso inteiramente diferente. A expectativa


dos primeiros cristãos não foi cumprida. O ensino dos apóstolos
foi cumprido. Esse argumento é usado em alguns círculos para
desacreditar os fundadores do cristianismo. Isso tem compelido os
estudiosos cristãos a dar uma atenção renovada ao ensino do Novo
Testamento, em especial sobre a Segunda Vinda do Senhor, o que,
indubitavelmente, levará a um exame, mais sério e completo, de
todo o panorama de Cristo e de seus apóstolos sobre o futuro.
Admite-se que a escatologia do Novo Testamento não é a esca-
tologia da igreja hoje. A esperança dos primeiros cristãos não é a
esperança do cristão comum agora. Tornou-se nosso hábito pensar
na mudança que vem com a morte, em nossa entrada no céu, como
o ponto crescente na vida dos crentes, o objeto apropriado de nossa
esperança. Contudo, os apóstolos jamais falaram da morte como
algo que o cristão deveria ter diante dos olhos ou preparar-se para
ela. Eles não ignoram completamente a morte, nem lançam uma
auréola sobre ela. Ela é sempre um inimigo, o último inimigo a ser
destruído. Mas eles não a levam em conta no esquema das coisas
que abordaremos agora.
Tampouco o céu é apresentado como a esperança cristã. O Novo
Testamento representa a igreja já no céu. Fomos ressuscitados com
Cristo e assentados com Ele nos lugares celestiais (Ef. 2.6). Nossa
guerra é empreendida contra as hostes espirituais da impiedade
nos lugares celestiais (Ef 6.12). Nossa cidadania está lá (Fp 3.20).
Nem a morte nem o céu, portanto, podem ser a esperança da igreja,
pois, em sua relação essencial com a vida cristã, a morte jaz no
passado, e o céu, no presente.
A conversão do mundo não é o objeto da esperança da igreja. E
bem verdade que essa gloriosa consumação está no futuro, porque
“a terra se encherá do conhecimento do S e n h or , como as águas
cobrem o mar” (Is 11.9), mas a tarefa de fazer isso acontecer não
foi comissionada à igreja. Por outro lado, as descrições do Novo
Testamento evitam o pensamento em relação aos últimos dias
da igreja sobre a terra. Eles são descritos em cores obscuras
(2Tm 3.1-5; 2Pe 3.1-4). A história da pregação do evangelho no
mundo deveria ser suficiente para mostrar que esse não pode ser o
objeto colocado diante de nós, pois, embora nações inteiras tenham
sido evangelizadas, nem uma única comunidade jamais converteu-
se completamente. E um fato notável que os apóstolos não tinham

678
A esperança da igreja

nada a dizer sobre a conversão do mundo. Enquanto estavam


pregando o evangelho no mundo, eles não deram nenhuma indica­
ção de que esperavam que essa obra resultasse na transformação
do mundo. Eles não estavam buscando uma mudança no mundo,
mas a presença pessoal de seu Senhor. O próprio Jesus Cristo era
a esperança deles, e Seu aparecimento era por eles intensamente
amado e desejado.
A atitude da igreja do Novo Testamento é representada com as
palavras finais do apóstolo João em Apocalipse. As visões da glória
celestial e da paz milenar passavam diante dele.
Ele tinha visto o novo céu e a nova a terra, onde habita a justiça.
Mas, no fim de tudo, o desejo de um apóstolo idoso não é pelas
coisas futuras. Maior do que todas essas glórias, mais querido do
que todas essas coisas queridas, é o próprio Mestre, e a oração que
surge em seu coração, quando ele encerra seu livro maravilhoso,
diz simplesmente: “Vem, Senhor Jesus”.
A esperança da Igreja, portanto, é o retorno pessoal de seu Se­
nhor. Vejamos como esta esperança está nas páginas da revelação
do Novo Testamento e como ela influenciou a vida da igreja do Novo
Testamento.
1. Cristo ensinou seus discípulos a esperar por seu retorno. Esse
foi o último dos estágios através do qual seu ensino sobre Si
mesmo avançou. Ele parece ter mantido sua personalidade
em segundo plano na primeira parte de seu ministério; pois
proibia aqueles a quem curava de falar sobre Ele. Então, chegou
um tempo quando Ele perguntou a seus discípulos: “Quem
dizem os homens que sou eu?” (Mc 8.27), o que os levou a
pensar em sua origem divina. Depois, Ele começou a instrui-los
sobre a aproximação de sua morte e ressurreição (Lc 9.31). Nos
últimos dias de seu ministério, seu retorno ao mundo ocupava
sobremaneira seus pensamentos, e Ele manteve o assunto, de
forma proeminente, diante de seus discípulos. Em sua última
jornada para Jerusalém, Ele pressagiou sua própria história na
parábola de um nobre que vai a um país distante receber um
reino e retorna, pois deixou seus servos para trás com a ordem,
“Negociai até que eu volte” (Lc 19.12, 13). Uma tarde, durante
a última semana, Ele se assentou no Monte das Oliveiras,
olhando, sem dúvida, para a grandiosa construção do templo,
cuja destruição total Ele já tinha previsto. Os discípulos reunidos

679
Os fundamentos

ao seu redor pediram: “Dize-nos quando sucederão estas coisas


e que sinal haverá da tua vinda e da consumação do século”
(Mt 24.3). E evidente, pela forma dessa pergunta, que sua
vinda não era novidade no pensamento deles, pois já ocupava
as mentes dos apóstolos. Eles sabiam que Ele viria novamente e
queriam saber como reconhecer a aproximação daquele evento.
Em resposta à questão, o Senhor desdobrou um panorama da
história interveniente e enfatizou a necessidade da vigilância,
pois o tempo de Sua vinda era incerto. Ele reforçou esse ensino
com duas ilustrações notáveis com o duplo tipo de preparação
necessária da parte dos discípulos, a preparação interna da vida
espiritual apresentada na parábola das virgens, e a preparação
externa do serviço diligente, na parábola dos talentos. Então,
Ele encerrou seu discurso com um quadro vivido das mudanças
das condições, nas quais Ele apareceria quando viesse a segun­
da vez como o Filho do Homem assentado sobre o trono de sua
glória.
Nas horas tristes e obscuras da última noite, seu pensamento
estava ocupado com seu retorno. No cenáculo, quando o grupo
pouco fiel estava reunido ao seu redor, triste pela partida que todos
sentiam vagamente se aproximar, Ele começou seu adeus confor­
tando-os e dando-lhes segurança (Jo 14.1-3). Poucas horas depois,
Ele estava no meio das cenas vergonhosas de seu julgamento. Anote
sua resposta ao sumo sacerdote, quando ele calmamente reconhe­
ceu a afirmação de ser o Cristo, o Filho de Deus. (Mt 24.64). Ele,
naquele momento, quando estava ali com as mãos amarradas diante
de seus acusadores, não se parecia com o Messias, sua aparência
parecia desmentir suas palavras. Mas chegaria a ocasião quando
eles veriam que sua afirmação era verdadeira. Isso era o que estava
em sua mente. Por toda a vergonha daquelas horas terríveis, a visão
de seu retorno em glória ao mundo que agora O estava rejeitando,
reluzia como um farol sobre sua alma (Hb 12.1,2).
Em sua ascensão, a mesma verdade foi trazida novamente às
mentes dos discípulos. Quando eles estavam reunidos, contem­
plando maravilhados o lugar onde o Senhor desaparecera de seus
olhos, dois anjos foram enviados para os lembrar de seu retorno (At
1.11). Foi esse pensamento que levou os discípulos de volta a Jeru­
salém, com a alegria que Lucas descreve nos versículos finais de
seu evangelho. Fica muito claro, portanto, que quando Jesus partiu

680
A esperança da Igreja

deste mundo após sua primeira vinda, Ele deixou seus discípulos
radiantes com a garantia jovial de sua nova vinda.
2. Os apóstolos ensinaram os convertidos a esperar pela vinda
do Senhor. Todas as igrejas do Novo Testamento tinham essa
atitude de expectativa. Não importa em que parte do mundo
ou em qual estágio do desenvolvimento elas se encontravam,
elas tinham essa característica em comum. A conversão dos
Tessalonicenses é descrita da seguinte maneira: “Deixando os
ídolos, vos convertestes a Deus, para servirdes o Deus vivo e ver­
dadeiro e para aguardardes dos céus o seu Filho” (lTs 1.9,10).
Aos Coríntios foi dito: “De maneira que não vos falte nenhum
dom, aguardando vós a revelação de nosso Senhor Jesus Cristo”
(ICo 1.7). Para os Gálatas, Paulo escreve: “Porque nós, pelo
Espírito, aguardamos a esperança da justiça que provém da fé”
(G15.5); e aos Filipenses: “Pois a nossa pátria está nos céus, de
onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo,”
(Fp 3.20). Na epístola aos Hebreus, encontramos a mesma atitu­
de (Hb 9.28). E evidente que os primeiros cristãos não somente
olhavam para trás, para o Salvador que tinha morrido por eles,
mas também para frente, para o Salvador que estava por vir.
Havia dois pólos na conversão deles, pois a fé estava ancorada
tanto no passado, na morte e na ressurreição do Senhor, como
também no futuro, na esperança assegurada de seu retorno.
Portanto, fica claro por que a Segunda Vinda do Salvador ocupou
um lugar de destaque no evangelho que os apóstolos pregavam,
e que os cristãos recebiam.
3. Toda a vida e obra da igreja do Novo Testamento têm a vinda do
Senhor em vista. Todas as linhas de sua atividade e experiência
levam a esse evento. A santificação do discípulo é uma prepara­
ção para a vinda do Senhor (lTs 5.23; ljo 2.28). O culto cristão
obtém seu encorajamento na mesma afirmação inspiradora
(lTm 6.14; lPe 5.2,4). A paciência dos primeiros cristãos quan­
do sofriam e eram julgados está relacionada ao mesmo evento
(Tg 5.7, 8;Fp 4.5). A vida de comunhão e amor fraterno deles al­
cança sua santa consumação no retorno do Senhor (lTs 3.12,13).
seus atos de adoração, como, por exemplo, a observação da Ceia
do Senhor, tem o mesmo fim em vista (ICo 11.26). Assim,
qualquer que seja o aspecto da vida e da obra da igreja que con­
sideremos, descobrimos que é uma corrente que leva na direção

681
Os fundamentos

de um futuro glorioso. 0 aparecimento do próprio Senhor Jesus


preenche todo o horizonte.
4. A graça da esperança do Novo Testamento repousa sobre a
vinda do Senhor. Hoje, essa palavra foi esvaziada de boa parte
do significado que tinha entre os primeiros cristãos. Ela passou
a ser uma coisa vaga e nebulosa, devido ao hábito geral de
esperar que as coisas, de alguma maneira, devem acabar bem.
sua esperança não era um otimismo superficial. Era a luz que
reluzia daquele único e feliz evento, lançando seu sagrado calor
sobre as vidas deles todos. Paulo resume a verdadeira atitude
cristã (Tt 2.11-13).
A palavra “esperança” estava freqüentemente nos lábios dos
apóstolos. Nas epístolas é usada diversas vezes em relação direta
com a vinda do Senhor. Não é improvável que, mesmo quando usa­
da sozinha sem qualquer frase qualificativa, como nas expressões,
“Porque, na esperança, fomos salvos” (Rm 8.24); “regozijai-vos na
esperança” (Rm 12.12), tenha a mesma referência específica. A
epístola aos Hebreus faz uso freqüente da palavra nesse sentido.
Havia uma razão especial para isto. Os cristãos hebreus eram uma
comunidade pequena e desprezada, vivendo sob a contínua influ­
ência daquele majestoso ritual que ainda continuava no templo, em
Jerusalém. O retorno de Cristo era demorado e havia uma forte
tendência para voltar ao antigo sistema cerimonial, sua paciência e
esperança tinham necessidade de todo encorajamento. O escritor
da epístola volta seus olhos repetidamente das sombras do passado
para as realidades que se apresentam diante deles. O Messias
deles tinha, na verdade, vindo tirar o pecado por intermédio de seu
sacrifício, mas Ele viria uma segunda vez, em glória, com uma sal­
vação final e completa. Esta era a esperança colocada diante deles,
a razão pela qual eles tinham fugido para o refúgio (Hb 6.18). Era
preciso que eles mantivessem a coragem e a glorificação da firme
esperança que tinham até o fim (Hb 3.6).
Em uma bela passagem em sua primeira epístola, o apóstolo
João aponta o valor prático dessa graça cristã, em sua relação es­
sencial quanto à vinda do Senhor como a esperança de purificação
(ljo 3.2,3).
5. A redenção não está completa até a Segunda Vinda do Senhor.
Os apóstolos pensam na salvação de três maneiras diferentes; às
vezes com referência ao passado, como um fato já assegurado,

682
A esperança da Igreja

no momento em que aceitam o Senhor Jesus Cristo como


Salvador; às vezes com referência ao presente, como um
processo ainda em andamento; e às vezes com referência ao
futuro, como um ato ainda a ser realizado. Neste último sentido,
Paulo usa a palavra em Romanos 13.11; e Pedro também, em
lPedro 1.5. Nosso Senhor se refere à mesma coisa quando, após
contar aos discípulos sobre os sinais de sua vinda, Ele os exorta
a olhar para a redenção esperada (Lc 21.28).
Pense no que este ato de coroação da redenção significará para
o próprio Redentor, quando, assistido com glória celestial, Ele se
prepara para descer ao mesmo mundo que testemunhou seu sofri­
mento, tristeza e vergonha. O que significará para Ele, quando as
multidões de redimidos estiverem ao seu redor, poder finalmente
ver o trabalho de sua alma e ficar satisfeito? Não é razoável que
deveria haver uma manifestação assim do Redentor ao mundo?
Não é razoável que o Homem de Nazaré desprezado deva ser a
única visão que o mundo deve ter daquele que deve ser o herdeiro
de todas as coisas? Será que seria provável que Deus permitisse a
retirada de seu Filho do mundo em derrota aparente sem qualquer
justificação subseqüente? Se a visão profética do Servo sofredor
teve um real cumprimento pessoal, certamente a visão profética
do Rei conquistador também terá um cumprimento pessoal. Como
o mundo ficou surpreso com Ele quando veio pela primeira vez,
assim ficará surpreso quando ele vier uma segunda vez (Is 63.1).
E o que significará para o redimido? Haverá, naturalmente, a
união feliz de todos os santos quando os mortos forem ressuscitados
e os vivos transformados, porque, quando o Senhor descer do céu
com um alarido, “os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; de­
pois, nós, os vivos, os que ficarmos, seremos arrebatados juntamente
com eles, entre nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e, assim,
estaremos para sempre com o Senhor” (lTs 4.16,17). Mas por mais
gloriosas que essas coisas sejam, não passam de passos preliminares
para uma felicidade mais alta e mais santa. O ápice da redenção será a
união manifestada da Igreja com seu Senhor nas bodas do Cordeiro.
Pois o Noivo virá reivindicar sua Noiva e a tomará para compartilhar
sua glória e seu trono. Então, a Igreja que Cristo amou e adquiriu lhe
será apresentada como uma igreja gloriosa, não tendo nem máculas,
nem mancha, nem qualquer outra coisa. Depois, o mundo estupefato,
contemplando sua transformação, clamará, “Quem é esta que sobe
Os fundamentos

do deserto e vem encostada ao seu amado?” (Ct 8.5). Pense no que


significará isso: a Igreja, depois de compartilhar a humilhação de
Cristo em um mundo incrédulo e que a ridicularizou, é redimida
e exaltada ao seu lado, e, como a cônjuge do Rei dos reis e Senhor
dos senhores, presencia “todo o êxtase pela visão mais santa” de
Deus. Nada menos do que isto é o destino que aguarda a Igreja de
Jesus Cristo.
Se o Senhor confiasse a seus discípulos a promessa de seu retor­
no pessoal, e se Ele ocupasse um lugar muito grande na vida dos
primeiros cristãos, certamente seria injusto banir essa promessa
da Igreja hoje. E injusto para com o mundo, porque essa verdade
é parte do evangelho que seria entregue ao mundo. E injusto para
com a igreja, porque priva o povo de Cristo de um dos mais pode­
rosos motivos para a vida e o culto espirituais. E injusto para com
o próprio Cristo, porque obscurece a realidade de sua presença
pessoal dentro do véu divino e o substitui pelo ar rarefeito de uma
mera influência espiritual.
A esperança da Segunda Vinda de nosso Senhor tem uma carga
importante sobre a vida e a doutrina cristã. Tem uma relação espe­
cialmente vital com alguns pontos de nossa fé que são atacados ou
obscurecidos pelas tendências sutis do pensamento moderno.
1. Está limitada pela crença na autoridade suprema e infalível das
Sagradas Escrituras. Nunca seria adotada em bases racionalis-
tas. Aqueles que a recebem colocam sua crença completamente
na autoridade das Escrituras, crendo que nelas Deus falou de
um modo a inspirar nossa confiança. Eles aceitam a Bíblia como
o relato da revelação de Deus ao homem e crêem que, na pro­
fecia, Ele desvelou seu propósito para com o futuro do mundo.
E um protesto contra a tendência, dentro da igreja, de exaltar a
razão humana acima da Palavra de Deus, reduzindo a profecia
inspirada à previsão meramente humana.
2. Dá testemunho da presença de Deus na história humana. A
tendência de nosso tempo é explicar o elemento sobrenatural
na história quer no passado, quer no presente, quer no futuro.
Aqueles que aceitam a doutrina da Segunda Vinda recusam-se
a se render a essa tendência. A história do mundo é controlada
por Deus; sua mão está sobre as tarefas dos homens. Ele já
interveio sobrenaturalmente na história humana por intermédio
da pessoa de Jesus Cristo. Crê-se, na autoridade de sua Palavra,

684
A esperança da Igreja

que Ele intervirá sobrenaturalmente de novo. A primeira vinda


de Cristo foi uma descida de Deus à vida da raça humana. As
Escrituras nos ensinam a esperar uma outra descida divina, não
para trazer um fim à história, mas para introduzir novas forças e
inaugurar uma nova dispensação.
3. Essa profecia exalta a pessoa e a obra divina do Filho de Deus
encarnado. Está em direta oposição às tendências unitaristas
que permeiam tão grande parte do pensamento religioso
moderno. Ela sustenta a verdade da existência continuada do
Senhor em um corpo glorificado e admite este fato como algo de
importância primordial e de significância profética. A existência
pessoal do Filho do Homem ressurrecto não deve ser dissolvida
em uma mera presença espiritual geral. O Redentor ressurrecto
e assunto existe hoje no céu, na realidade verdadeira de sua
humanidade glorificada; e este mesmo Jesus será revelado um
dia em sua personalidade gloriosa por detrás do véu invisível,
para levar a redenção do mundo à sua plena conclusão.
4. Ela leva em consideração a Queda da raça humana. A tendência
hoje é de grandemente exaltar o homem e ignorar a Queda.
O grande avanço, que está sendo feito em todos as áreas do
conhecimento e das atividades humanas, predispõe os homens
a formar as mais altas concepções da possibilidade da raça.
A teoria da evolução, que domina o pensamento moderno,
leva os homens a esperar por um aperfeiçoamento gradual da
raça sob as leis de seu próprio ser, que, por fim, brotará com
a benevolente ajuda de cristianismo, em um estado perfeito
de sociedade humana e da redenção da raça como um todo.
Mas o pecado humano está muito profundamente arraigado
e muito disseminado para que o homem atinja este fim na
presente ordem de coisas, mesmo com o auxílio das ações
espirituais existentes. Mesmo com o auxílio da graça divina,
reconhece-se que o ensino das Escrituras é este: que o triunfo
do reino de Deus no indivíduo não estará completo na ordem
atual, mas somente em sua tradução para uma ordem mais
elevada, na ressurreição. Parece que essa analogia deve ser
sustentada com respeito à raça, a saber, que o triunfo do Reino
na raça como uma unidade orgânica só será trazido por uma
intervenção sobrenatural do poder divino e da introdução da
humanidade em uma nova ordem de coisas.
Os fundamentos

5. Ela apresenta um ponto de vista sublime do grande propósito de


Deus em sua criação. Situa a redenção de todo o mundo, a res­
tauração de todas as coisas, na mesma vanguarda do propósito
divino que considera o homem decaído. Tudo foi disposto e pré-
ordenado por Deus para este fim. Este é o divino acontecimento
para o qual toda a criação se move. Aquele que tem esta espe­
rança tem uma visão ampla, uma visão não limitada em relação
aos dias atuais e às suas tarefas. Ele vê a vontade de Deus que se
move através da história das eras. A era atual é apenas prepara­
tória. Uma era maior será introduzida pelo advento do Redentor
vitorioso, uma era na qual o homem chegará a seu próprio fim, e
a criação será restaurada à sua harmonia, sob o comando de seu
verdadeiro líder, o Filho do Homem glorificado.
6. Ela fornece o motivo mais inspirador para a vida e o culto cristão.
E uma esperança sumamente prática. As repetidas instruções do
Senhor e de seus apóstolos devem preparar para seu retorno e
indicar a força que essa doutrina teve, como uma razão de viver,
nas vidas dos primeiros cristãos. Os grandes líderes que deixa­
ram sua impressão na história da Igreja não descartaram essa
doutrina, mas tornaram-na uma esperança real em suas próprias
vidas. Martin Lutero, no meio da agonia da Reforma, escreveu:
“Espero ardentemente que, em meio destas dissensões internas
na terra, Jesus Cristo acelerará o dia de sua vinda”. O perspicaz
e instruído Calvino viu que esta era a verdadeira esperança da
igreja. “Devemos ter fome de Cristo”, disse ele, “até que chegue
a aurora daquele grande dia quando nosso Senhor manifestar
completamente a glória de seu Reino. Toda a família do crente
manterá em vista aquele dia”. A alma intrépida de John Knox
estava agitada por esta esperança. Em uma carta a seus amigos
na Inglaterra ele escreveu: “O Senhor Jesus, apesar da malícia
de Satanás, não tem levado nossa carne para o céu? E Ele não
deve retornar? Sabemos que ele retornará, e esta volta será em
breve”. John Wesley acreditava nessa mesma verdade, como seu
comentário sobre os últimos versículos do Apocalipse evidencia:
“O espírito de adoção da noiva no coração de todo verdadeiro
crente diz, com desejo e expectativa: ‘Venha e realize todas as
palavras desta profecia’.” Ela formou o fardo da sublime súplica
de Milton: “Saia para fora de Tua câmara real, Oh, Príncipe de
todos os reis da terra; vista as vestes visíveis de Tua majestade

686
A esperança da Igreja

imperial; tome aquele cetro ilimitado que Teu Pai Todo-Poderoso


passou a Ti. Pois agora a voz de Tua noiva Te chama, e todas as
criaturas suspiram para ser renovadas”. Foi o ardente desejo do
seráfico Rutherford: “Oh, que Cristo remova a cobertura, ponha
de lado as cortinas do tempo e desça. Oh, que as sombras e a
noite se dissipem”. Esta foi a oração de Richard Baxter no Sainfs
EverlastingRest [O Repouso Eterno dos Santos}'. “Apressa-te, Oh,
meu Salvador, o tempo de Tua volta. Envia Teus anjos e faça soar
aquela trombeta jovial e terrível. Tua Noiva desolada diz: ‘Vem’.
Toda a criação diz: ‘Vem’. Mesmo assim, venha, Senhor Jesus”.
E se seguíssemos nos passos desses homens, retornaríamos ao
tipo de experiência simples e inconfundível do Novo Testamen­
to, e com as faces elevadas para o véu dentro do qual o Senhor
da glória aguarda, e, com os corações incandescentes com um
amor pessoal por Ele, continuaremos a fazer essa mesma oração
apostólica por toda nossa vida e culto.
689

63 A vinda de Cristo

R. E r d m a n , D.D.
P r o f. C h a r le s
Seminário Teológico de Princeton
Revisado e editado por Gerald B. Stanton, Th.D.

O retorno de Cristo é uma doutrina fundamental da fé Cristã.


Está estampada em hinos de esperança; forma o ápice dos credos;
é o motivo sublime para a atividade evangelista e missionária; e,
diariamente, é evocada na oração inspirada: “Mesmo assim, vem,
Senhor Jesus”.
E uma doutrina escriturai peculiar. Não é, por um lado, um sonho
de fanáticos ignorantes, nem, por outro lado, a criação de teólogos
especulativos; mas é uma verdade divinamente revelada e relatada
na Bíblia com marcada clareza, ênfase e proeminência.
Como as outras grandes verdades da revelação, é uma doutrina
controvertida. O fato essencial é sustentado universalmente por to­
dos aqueles que admitem a autoridade das Escrituras; mas quanto
a certos elementos incidentais do ensino, embora importantes,
há divergência de opinião até mesmo entre os estudantes mais

CHARLES ROSENBÜRY ERDMAN (1866-1960) graduou-se pelo


Seminário Teológico de Princeton antes de ser ordenado em 1891.
Depois de ter sido pastor na Pensilvânia, entre 1890 e 1905, ele voltou
a Princeton para lecionar teologia prática no seminário. Pastoreou,
concomitantemente, a Primeira Igreja Presbiteriana em Princeton.
Erdman foi autor de trinta e cinco livros, muitos dos quais foram
traduzidos para outros idiomas, e foi um pregador e expositor popular
no movimento da conferência das Escrituras.
Os fundamentos

cuidadosos e reverentes. Qualquer consideração do tema exige,


portanto, modéstia, humildade e caridade abundante. De acordo
com o ponto de vista familiar, conforme esboçado nesta disser­
tação, as Escrituras descrevem a Segunda Vinda de Cristo como
pessoal, gloriosa e iminente.

Sua vinda será pessoal


Por pessoal, queremos dizer tudo que é sugerido pelas palavras
visível, corporal, local; e tudo que pode ser contrastado com aquilo
que é espiritual, providencial, figurativo. Naturalmente, a presença
espiritual de Cristo é uma realidade santificada. Uma das verdades
mais reconfortantes e inspiradoras é o ensino de que Cristo vem
a todo crente, pelo seu Espírito Santo, e habita nele e o autoriza
a trabalhar, sofrer e crescer na graça. Contudo, isso deve ser
mantido em harmonia com a outra verdade santificada, a saber, de
que Cristo, algum dia, literalmente aparecerá novamente em forma
corporal, e “quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele,
porque haveremos de vê-lo como ele é” (ljo 3.2).
Nem aquela manifestação especial do Espírito Santo no Pentecostes
cumpriu a promessa do retorno de Cristo. Após o Pentecostes,
Pedro incitou os judeus a se arrepender para que Jesus, que por um
tempo “foi recebido nos céus”, possa ser “enviado novamente”. Ele
escreveu suas epístolas de conforto baseadas na esperança de um
Senhor que retorna, e Paulo e outros apóstolos, muito tempo depois
do Pentecostes, enfatizaram a vinda de Cristo como o incentivo
mais elevado para vida e o culto.
De acordo com a interpretação dos outros, diz-se que Cristo
“vem” em vários eventos providenciais da história, como na destruição
de Jerusalém. Essa tragédia da história é tida por muitos como o
cumprimento das profecias proferidas por Cristo em seu grande
discurso no Monte das Oliveiras, relatado em Mateus 24, Marcos 13
e Lucas 21. Quando combinamos essas predições, torna-se evi­
dente que a captura da cidade santa por Tito foi real, mas apenas
um cumprimento parcial das palavras de Cristo. Como no caso de
muitas profecias do Antigo Testamento, a proximidade dos eventos
proporcionava as cores nas quais as cenas e as ocorrências eram
descritas, mas essas profecias pertenciam a um futuro distante, e
neste caso ao “fim dos tempos”. Quando Jerusalém caiu, o povo
de Deus não foi liberto, nem os inimigos de Deus punidos, nem

690
A vinda de Cristo

apareceu “o sinal do Filho do Homem” nos céus, como foi predito


acerca do tempo, quando Ele viria novamente. Além disso, muito
tempo depois da queda da cidade, João escreveu em seu evangelho
e em Apocalipse sobre a vinda do Rei.
A vinda de Cristo não deve ser confundida com sua morte. E
verdade que este mensageiro obscuro nos acompanha em uma
experiência que é, para o crente, uma grande bem-aventurança.
Partir é “estar com Cristo, o que é muito melhor”, e “estar ausente
do corpo” é “estar em casa com o Senhor”. Mas a morte é para
nós inseparável da dor e da perda e da tristeza e das lágrimas e da
angústia; e mesmo aqueles que estão agora com seu Senhor, na ale­
gria celestial, estão aguardando por seus corpos de glória e pelas
recompensas e reuniões que farão com os seus no aparecimento de
Cristo.
Mais maravilhosas do que as cenas do Pentecostes, mais sur­
preendente do que a queda de Jerusalém, mais abençoado do que
o habitar do Espírito ou a partida para estar com o Senhor, será
retorno literal, visível e corporal de Cristo. Nenhum evento pode
parecer menos provável à razão humana; nenhum evento é mais
certo à luz das Escrituras inspiradas. “Esse Jesus que dentre vós
foi assunto ao céu virá do modo como o vistes subir” (At 1.11; grifo
do autor). “Eis que vem com as nuvens, e todo olho o verá” (Ap 1.7;
grifo do autor).

Sua vinda será gloriosa


Esta vinda de Cristo deve ser gloriosa, não somente em suas
circunstâncias concomitantes, mas também em seus efeitos sobre
a igreja e sobre o mundo. Nosso Senhor predisse que ele retornaria
“na sua glória e na do Pai e dos santos anjos” (Lc 9.26). Ele, então,
será revelado em sua divina majestade. Certa vez, durante seu mi­
nistério terreno, no monte da transfiguração, havia dado aos seus
seguidores um relance do esplendor real, que Ele tinha deixado de
lado por um tempo, e no qual ele novamente aparecerá.
Como no grande dia da expiação, o sumo sacerdote tirava suas
roupas habituais “para a glória e para a beleza” e aparecia vestido
em branco imaculado, quando oferecia os sacrifícios pelo pecado e
entrava no lugar santo, para interceder pelo povo que aguardava.
Do mesmo modo, nosso Grande Sumo Sacerdote colocou de lado
as roupas de sua majestade imperial, quando se inclinou do céu e

691
Os fundamentos

assumiu sua vestimenta de carne sem pecado. Ele, então, ofereceu


a si mesmo como sacrifício perfeito e entrou no lugar santo não feito
por mãos humanas para aparecer na presença de Deus por nós.
Mas como o sumo sacerdote novamente assumia suas vestimentas
de escarlate, azul, púrpura e dourada, quando vinha completar
sua obra na presença do povo, assim Cristo, quando retorna para
abençoar e receber a homenagem do mundo, será manifesto em
sua glória divina (Hb 9.24-28). Como ele apareceu para Isaías em
sua visão, aos discípulos no monte santo, a Saulo no caminho de
Damasco, a João em Patmos, assim o Filho do Homem aparecerá
quando, conforme Ele prometeu, será visto “assentado à direita do
Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu” (Mt 26.64).
Nada poderia ser mais natural do que tal retorno triunfante do
Senhor ressuscitado e assunto. Que quadro patético Cristo apre­
sentaria na história da raça, se, depois de todas suas afirmações
e promessas, o mundo O visse, depois de tudo, dependurado em
uma cruz, como um malfeitor, ou sem vida em uma tumba! “Era
desprezado e o mais rejeitado entre os homens” (Is 53.3), mas Ele
voltará novamente “com poder e grande glória” (Lc 21.27), assisti­
do por milhares da hoste celeste. Como a epístola aos hebreus diz
de forma notável: “E, novamente, ao introduzir o Primogênito no
mundo, diz: E todos os anjos de Deus o adorem” (Hb 1.6).
Tu estás vindo, Oh meu Salvador,
Tu estás vindo, Oh meu Rei,
Em tua beleza resplandecente;
Em tua glória transcendente;
Possamos nos regozijar e cantar:
Venha! Na abertura do Leste
Anuncie o brilho lentamente;
Venha! Oh meu glorioso Sacerdote,
Ouçamos teus sinos dourados.
Então Cristo reinará em glória sobre o mundo. E verdade que
agora “todo o poder” foi lhe dado “no céu e na terra”, mas este
poder não foi completamente manifesto; “porém, ainda não vemos
todas as coisas a ele sujeitas” (Hb 2.8). Ele “assentou-se à destra de
Deus”, mas Ele está “daí em diante, até que os seus inimigos sejam
postos por estrado dos seus pés”. Ele agora está reinando, assen­
tado no trono do Pai; mas este mundo ainda é, na realidade, uma
província revoltada, e Cristo ainda está assentado em seu próprio

692
A vinda de Cristo

trono. Assim, “para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos
céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus
Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai” (Hb 10.12,13;Fp 2.10,11).
Estas expressões necessitam ser interpretadas a fim de insistir
que Cristo regerá de forma visível em alguma localidade terrena,
“estabelecendo em Jerusalém uma corte oriental”. Mas elas signifi­
cam, pelo menos, que a vinda de Cristo será seguida pelo reino uni­
versal de Cristo. “Quando vier o Filho do Homem na sua majestade
e todos os anjos com ele, então, se assentará no trono da sua glória”
(Mt 25.31). Ele determinará quem pode entrar e quem deve ser
excluído de seu reino. Ele então dirá: “Vinde, benditos de meu Pai!
Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação
do mundo” (Mt 25.34). Então, será cumprida sua predição: “Nem
todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas
aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos,
naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não
temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos
demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então,
lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim,
os que praticais a iniqüidade” (Mt 7.21-23). Ele será o Juiz supremo,
mas Ele também se manifestará como o Regente universal em seu
reino aperfeiçoado. Então, vozes serão ouvidas proclamando: “O
reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele
reinará pelos séculos dos séculos” (Ap 11.15).
Nesta glória de Cristo, seus seguidores terão parte. A ressurreição
dos mortos acontecerá quando ele voltar; “Porque, assim como,
em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados
em Cristo. Cada um, porém, por sua própria ordem: Cristo, as
primícias; depois, os que são de Cristo, na sua vinda”. O corpo do
crente deve ser assim ressuscitado em glória. “Semeia-se o corpo
na corrupção, ressuscita na incorrupção. Semeia-se em desonra,
ressuscita em glória. Semeia-se em fraqueza, ressuscita em poder”.
Quanto a se os espíritos agora com Cristo devem ser unidos com
seus corpos na ressurreição, a Bíblia silencia totalmente a esse
respeito; mas sabemos que isto acontecerá na vinda do Senhor
(ICo 15.22,23, 42,43).
Em seguida, também, os corpos dos crentes que vivem serão glo-
rificados e tornados imortais como o corpo do seu Senhor divino.
“Pois a nossa pátria está nos céus, de onde também aguardamos o
Os fundamentos

Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual transformará o nosso corpo


de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a
eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas”
(Fp 3.20,21). As vezes, dizemos de forma descuidada que “nada é
tão certo quanto a morte”. Uma coisa é mais certa; a saber, alguns
cristãos jamais morrerão. Uma geração de crentes estará viva
quando Cristo voltar, e eles serão trasladados sem ter a experiência
da morte. O que “é mortal será engolido pela vida”. Eles jamais
serão despidos, mas “revestidos” com a glória da imortalidade
(ICo 15.51,52; 2Co 5.4).
Então, haverá a bendita reunião na glória dos ressuscitados, os
seguidores de Cristo transfigurados. “Ora, ainda vos declaramos,
por palavra do Senhor, isto: nós, os vivos, os que ficarmos até à
vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que dormem.
Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida a
voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e
os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois, nós, os vivos,
os que ficarmos, seremos arrebatados juntamente com eles, entre
nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e, assim, estaremos
para sempre com o Senhor” (lTs 4.13-18).
Alguns da terra, outros, da glória,
Separados apenas ‘Até que Ele Venha’.
O tempo da volta do Senhor será, além disso, o tempo da recom­
pensa de seus servos. O Filho do Homem é semelhante a um nobre
que “partiu para uma terra distante, com o fim de tomar posse de
um reino e voltar” (Lc 19.12). Ele confiou vários talentos a seus
servos com a ordem de usá-los sabiamente, até seu retorno. Quan­
do ele “voltou, depois de haver tomado posse do reino”, então ele
“mandou chamar os servos a quem dera o dinheiro, a fim de saber
que negócio cada um teria conseguido” (Lc 19.15). Popularmente,
diz-se, e de certo modo é verdade, que quando nossos amados vão
para Cristo “eles vão para sua recompensa”; mas, falando mais
estritamente, a plena recompensa da bênção aguarda a vinda de
Cristo. O que quer que possa significar ser “colocado sobre muitas
coisas”, ou ter “autoridade sobre dez cidades”, a recompensa
completa do crente está “na ressurreição do justo” (Mt 25.14-23;
Lc 19.11-27; Lc 14.14).
Paulo sugeriu, de forma notável, que o dia da coroação real
do cristão não é a morte, mas “na aparição de Cristo”, quando,

694
A vinda de Cristo

admitindo que ele devia morrer antes que o Senhor retornasse,


ele despediu-se de forma triunfante de Timóteo: “Combati o bom
combate, completei a carreira, guardei a fé. Já agora a coroa da jus­
tiça me está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele
Dia; e não somente a mim, mas também a todos quantos amam a
sua vinda” (2Tm 4.7,8; grifo do autor). Assim, Pedro encoraja os
pastores a ser fiéis, com uma promessa familiar: “Ora, logo que o
Supremo Pastor se manifestar, recebereis a imarcescível coroa da
glória” (lPe 5.1-4). Em grande medida, essa recompensa consistirá
em ser mudado para uma semelhança moral à de Cristo. Esta é, de
longe, mais maravilhosa do que a transfiguração de nossos corpos,
mas não menos real. Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda
não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando
ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de
vê-lo como ele é” (ljo 3.1-3).
O governo de Cristo e de seu povo, que reina com Ele, deve asse­
gurar bem-aventurança sem igual para o mundo. “O fim do mundo”
não significa, na profecia, o fim da terra e a destruição de seus
habitantes, mas o fim da “era presente”, que deve ser seguida por
uma era de glória. A própria natureza se tornará mais bela e jovial.
“Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por
causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação
será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória
dos filhos de Deus” (Rm 8.20,21). Apesar do pecado e dos fracassos
humanos, não devemos olhar para a destruição deste planeta, mas
para uma era quando a verdadeira vida plena da humanidade será
realizada, quando todos, do menor ao maior, conhecerão o Senhor,
quando toda arte e ciência e instituições sociais serão cristãs,
quando “Ele julgará entre os povos e corrigirá muitas nações; estas
converterão as suas espadas em relhas de arados e suas lanças, em
podadeiras; uma nação não levantará a espada contra outra nação,
nem aprenderão mais a guerra” (Is 2.1-4). Tal tempo, conforme
os poetas cantaram e os filósofos sonharam, tal tempo, como os
salmistas, profetas e apóstolos prometeram, resplandecerá na
vinda do Rei.

Sua vinda é iminente


As Escrituras descrevem a vinda de Cristo como iminente. E
um evento que pode acontecer a qualquer momento. Quaisquer

695
Os fundamentos

que sejam as dificuldades que o fato envolve, não há dúvida de


que todos os escritores bíblicos e seus companheiros cristãos
acreditavam que Cristo pudesse retornar em sua própria geração.
Esta tem sido a atitude normal da igreja desde sempre. Paulo des­
creve os crentes como homens que se converteram a Deus de seus
ídolos e que esperam pelo Filho do céu. Os cristãos também são
descritos como aqueles que esperam por Ele, e como aqueles que
amam sua vinda. Eles são, em todo o Novo Testamento, exortados
a “vigiar” e a estar prontos para o retorno de seu Senhor, sua vinda
é seu encorajamento, inspiração e esperança constantes (lTs 4.10;
2Pe 4.8; Mt 24.42; Mcl3.35,37; Lc 21.36;Fp4. 5).
No entanto, “iminente” não significa “de imediato". A confusão
dessas idéias levou alguns escritores a afirmar que “Paulo e os
primeiros cristãos estavam equivocados em seus ponto de vista
quanto ao retorno do Senhor”. Mas, quando Paulo usa a frase como
“nós, os vivos, os que ficarmos até à vinda do Senhor” (lTs 4.15), ele
quer dizer simplesmente que se identifica com seus companheiros
cristãos, e sugere que, se Ele viver até que Cristo venha, a bendita
experiência deles também será a sua. Ele não poderia ter dito,
“Vocês que estão vivos e ficarem”; isso teria indicado que Paulo mor­
reria primeiro. Ele não sabia nada sobre sua morte, quando fez essa
afirmação. Ele acreditava que o Senhor poderia retornar durante o
período de sua vida; mas nunca afirmou que Ele retornaria.
“Iminência”, relacionada ao retorno do Senhor, indica incerteza
quanto ao tempo, mas possibilidade de proximidade. “Estai de
sobreaviso, vigiai e orai', porque não sabeis quando será o tempo”
(Mc 13.33). Estas declarações reprovam aqueles que têm levado a
doutrina à infâmia ao anunciar datas para “o fim do mundo”, e ao fixar
tempos para a vinda de Cristo. Assim, também, elas sugerem cautela
quanto àqueles que afirmam que a nossa era está agora chegando ao
fim; pode ser, mas não há nenhuma certeza quanto a isso.
Estas exortações bíblicas para vigiar parecem contradizer,
também, aqueles que ensinam que um “milênio”, mil anos ou
um período determinado de justiça, deve intervir entre o tempo
presente e o advento de Cristo. Os que sustentam este último
ponto de vista são em geral chamados de “Pós-Milenaristas”, para
distingui-los dos “Pré-Milenaristas, que sustentam que uma era de
bem-aventurança universal precederá e acompanhará o retorno de
Cristo.

696
A vinda de Cristo

Há várias afirmações nas Escrituras que apontam que o milênio


segue a vinda de Cristo.
De acordo com Daniel, é após a vinda do Filho do Homem nas
nuvens do céu que lhe é dado “o reino, e o domínio, e a majestade
dos reinos debaixo de todo o céu serão dados ao povo dos santos
do Altíssimo; o seu reino será reino eterno, e todos os domínios
o servirão e lhe obedecerão” (Dn 7.13, 14, 27). De acordo com os
Salmos, o aparecimento do Senhor, em fogo flamejante sobre seus
adversários, prepara o caminho para o estabelecimento de seu
reino glorioso, quando Ele vier “julgar a terra; julgará o mundo com
justiça e os povos, consoante a sua fidelidade” (SI 96.13, etc.). De
acordo com Paulo (em 2Ts 1 e 2), o advento descrito por Daniel não
é para uma terra que desfruta de paz milenar, mas é, “em fogo cha-
mejante”, para destruir um “Homem do Pecado” que existe, e cuja
carreira é a culminação da ilegitimidade já manifesta e que continu­
ará até a vinda pessoal de Cristo. De acordo com nosso Senhor, seu
retorno é para trazer “a regeneração”, não a destruição do mundo
(Mt 19.28; Lc 22.28-30). Mas esta regra de bem-aventurança é pre­
cedida por julgamentos que vêm como um laço sobre toda a terra
(Lc 21.29-36). De acordo com Pedro, “tempos de refrigério” e “os
tempos de restauração de todas as coisas”, nenhuma aniquilação do
planeta acontecerá com o retorno de Cristo (At 3.19-21). De acordo
com João, a vinda de Cristo precede (Ap 19) o milênio (Ap 20).
Apesar da aparente grande divergência de perspectivas entre os
estudiosos da profecia, as muitas divergências de opinião entre os
representantes das duas escolas que foram mencionadas de passa­
gem, os pontos de acordo são muito mais importantes. A diferença
principal é mais quanto à ordem, do que quanto à realidade dos
eventos.
O grande corpo dos crentes está unido na expectativa tanto
de uma era de glória quanto de um retorno pessoal de Cristo.
Quanto aos muitos eventos relatados eles diferem; mas quanto à
única grande condição precedente daquela era vindoura ou daquele
retorno prometido do Senhor há absoluta harmonia de convicção: o
evangelho deve primeiro ser pregado a todas as nações (Mt 24.14). A
igreja deve continuar a fazer “discípulos de todas as nações [...] até
a consumação dos séculos” (Mt 28.19,20).
Este é, portanto, um tempo, não para a crítica indelicada de cris­
tãos, mas para conferência amigável; não para a disputa de pontos

697
Os fundamentos

de vista divergentes, mas para a ação unida; não para a afirmação


dogmática de programas proféticos, mas para o reconhecimento
humilde de que conhecemos “em parte”; não para os sonhos
ineficientes, mas para a tarefa imediata de evangelizar um mundo
perdido.
Para tal esforço, nenhuma verdade é mais inspiradora do que
a do retorno de Cristo. Nenhuma outra pode nos fazer esperar, de
forma mais leve, pelas coisas do tempo, nenhuma outra é mais fami­
liar como o motivo bíblico para a pureza, a santidade, a paciência, a
vigilância, o amor. Fortalecidos por esta esperança santificada nos
adiantemos com zelo apaixonado para a tarefa que nos espera:
Para resgatar nossa natureza
O Cordeiro, pelos pecadores, morreu,
O Redentor, o Rei, o Criador,
Retorna em glória para reinar!

698
699

O testemunho
64 da experiência cristã

P r e s . E . Y. M ullins , D .D ., L L .D ..
Louisville, Kentucky
Editado e Revisado por James H. Christian, Th.D.

A experiência humana é um dado de toda a filosofia e de toda


ciência. A experiência do indivíduo e da raça é o malte que é
derramado em todos os moinhos científicos e filosóficos. Conse­
qüentemente, a experiência cristã, como uma forma distinta da
experiência humana, deve receber mais atenção do que jamais
recebeu antes.

EDGAR YOÜNG MULLINS (1860-1928) foi presidente da Convenção


Batista do Sul de 1921 a 1924. A subida ao topo começou com uma
carreira educacional diversificada, que incluiu algum tempo no Texas
A & IA, Seminário Teológico Batista do Sul, e na Universidade Johns
Hopkins. Mullins, devido à saúde debilitada, teve de deixar de lado seu
sonho de ser missionário no estrangeiro. Em vez disso, ele pastoreou
igrejas em Kentucky, Massachusetts e Maryland. Em 1899, voltou
ao Seminário Batista do Sul como professor e, logo, tornou-se seu
presidente. Mullins, teologicamente conservador, gostava mais da área
de apologética. Alguns de seus livros incluem, Why Is Christianty True?
[Por Que o Cristianismo é Verdade?], A New Interpretation ofthe Baptista
Faith [Uma Nova Interpretação da Fé Batista], e The Life of Christ [A Vida
de Cristo].
Os fundamentos

A experiência cristã — a experiência da regeneração e da con­


versão, da transformação moral por meio das ações cristãs — tem
o valor de evidência em várias direções.

Experiência e filosofia
A experiência cristã é o elo suplementar para completar a filoso­
fia. A filosofia é o homem que busca alcançar a Deus. A experiência
cristã é o efeito de Deus que busca alcançar o homem.
A Filosofia parece estar sempre a ponto de descobrir o segredo
do universo, mas nunca consegue alcançar seu intento. Bem, por
que a filosofia parece gastar tanto tempo por nada? Para mim, fica
claro que a razão do porquê trabalhar tanto tempo sem resultados
satisfatórios é que ela se recusa a considerar toda experiência hu­
mana, inclusive a religiosa. Ela divide a experiência em pequenas
partículas e procura entre essas partículas algum princípio abstrato
único que explicará todo o restante. E como se alguém fosse tentar
explicar o oceano, seu conteúdo, sua variedade e sua maravilhosa
abundância de vida e tomasse apenas uma escama de peixe e sobre
essa escama construísse o fundamento de sua teoria sobre o ocea­
no e seus conteúdos. Quão preciso você supõe que esse relato seria?
Isso é análogo ao que os filósofos fizeram. Spinoza extraiu do mundo
da experiência e do ser a idéia da substância e construiu um siste­
ma panteísta a partir dessa partícula. Hegel extraiu a concepção
da razão ou da idéia e criou um vasto sistema idealista sobre ela.
Schopenhauer extraiu a concepção da vontade e criou seu sistema
pessimista de filosofia sobre ela. Haeckel extraiu a concepção da
matéria e construiu seu sistema materialista sobre ela.
O resultado do processo é que os filósofos deixam de lado a vida
e a experiência humana. Eles fixam seu olhar em uma fotografia
de uma imagem obscura e distante da realidade e ficam absorvidos
em demasia pela observação das estrelas, escalando o precipício
metafísico e soprando bolhas de sabão transcendental. Eles são
como o prestidigitador indiano que pôs sua escada no ar rarefeito
e sem tocar o chão abaixo dela, sobe nela, sai fora da visão, puxa a
escada para si e desaparece nas nuvens.
Tudo isso não deve desacreditar a filosofia, mas dar-lhe uma li­
ção. Os homens fracassam em sua tentativa de descobrir o segredo
do mundo até que Deus e as relações de Deus com os homens são
levadas em consideração. O dr. Ashmore fala de alguns homens

700
O testemunho da experiência cristã

que descem o rio Mississippi em uma balsa e que pararam para


jantar uma noite. No entanto, seu bote continuou e retornou depois
ao mesmo lugar. Eles fizeram isso muitas vezes até que descobri­
ram que estavam em um redemoinho de enorme dimensão, em
que eram arrastados em círculo, sempre voltando ao ponto de
partida. O mesmo acontece com a filosofia que tem se movido em
círculos. Existem muitas estações ao longo da rota, mas a filosofia
nunca foi capaz de escapar do movimento circular do pensamento
humano. Há um caminho para a filosofia escapar de sua situação
e encontrar a corrente no fundo do rio do pensamento que a levará
a seu destino. Essa corrente é a experiência religiosa, em que o
pensamento elevado do homem vai ao encontro da revelação e do
amor de Deus, que se inclina para o homem. Uma vez que essa
corrente de pensamento for alcançada, um novo dia amanhecerá
para a filosofia, e, em pouco tempo, os filósofos verão o vislumbre
nos portões de pérola e o brilho dos muros de jaspe da cidade de
Deus, dentro da qual eles encontrarão o caminho.
A experiência Cristã toma as abstrações da filosofia e as combi­
nam de novas maneiras para nos dar a concepção da paternidade
de Deus. A única substância do monismo volta como a única pessoa
além do mundo. A idéia única de Hegel volta como o pensamento e
o plano do amor eterno. A energia única daqueles que glorificam a
força e a mudança volta como a vontade benevolente do Pai santo e
amoroso. O plano e o progresso da natureza e a moral contínua do
mundo volta como o desígnio infinito e eterno do santo e amoroso
Pai. Assim, quando nosso coração puder dizer, “Abba, Pai”, e saber
o que isso significa, temos em nossas mãos a chave para todas
as filosofias que permanecem em estado de equilíbrio instável
até que encontremos essa chave. Toda a filosofia, desse modo, é
sumarizada nas palavras do dr. Fairbairn: “Deus é o Pai, eterno em
seu amor. O amor foi a finalidade para a qual ele fez o mundo, para
a qual ele fez cada alma humana, sua glória é difundir a felicidade,
preencher os lugares silenciosos do universo com vozes que saem
de corações alegres. Como Ele fez o homem para amar, Ele não
pode deixar o homem se perder. Mais do que ver o perdido, ele
sofrerá o sacrifício. No lugar que chamamos inferno, o amor é tão
real como no lugar que chamamos céu, embora em um lugar seja
a complacência do prazer no santo e na felicidade que se parece
ao brilho da aurora perpétua ou à música alegre das ondas que
Os fundamentos

quebram em um contentamento perene; mas, no outro, é a com­


paixão de piedade pelo mau e pelo miserável que parece ter o rosto
obscurecido com o pesar eterno ou o lamentar amortecido de uma
tristeza muito profunda para ser ouvido. Este grande pensamento
de um Deus que é o Pai eterno, quanto mais real e soberano Ele
for, mais Ele será absolutamente o Pai que não pode jamais deixar
de tocar o coração do homem que compreende isso, quer seja ele
um selvagem quer seja ele um sábio”. Além disso, podemos ainda
acrescentar, isso não deixa de se tornar a única generalização gran­
de e ampla o bastante para incluir os dados da vida, da história, da
ciência e da filosofia.

Reivindicações únicas do cristianismo


Em segundo lugar, a experiência cristã lança luz sobre toda as
afirmações únicas do cristianismo.
Os observadores científicos aceitam que a experiência
religiosa seja um testemunho do sobrenatural. Eles recusam,
no entanto, admitir que Cristo seja seu autor e não aceitam as
outras afirmações cristãs, que são únicas. A tentativa é encontrar
um denominador comum, por assim dizer, entre o cristianismo e
as outras religiões, para mostrar que todas são essencialmente
semelhantes e que as idéias cristãs distintivas são crenças
exageradas. Mas estes homens não têm pensado no problema da
experiência cristã. Em particular, eles são tímidos para confron­
tar a afirmação sobre o Cristo real e sua relação para com tudo
mais que existe. No entanto, o lugar de Cristo com a experiência
cristã é a questão suprema. Todas as outras afirmações cristãs
combinam-se com esta.
Bem, o homem espiritualmente regenerado e moralmente
transformado prova a divindade de Cristo e prova sua presença na
experiência religiosa pelas seguintes razões:
P r i m e i r o , nenhum homem tem recurso moral para se transformar.
A lei da gravidade moral na vida de um homem não se reverte
repentinamente, assim como a lei da gravidade física também
não se reverte por si só. Não se pode burlar os elementos imorais
de uma natureza pecaminosa nos elementos morais de um santo
qualquer, assim como você não pode combinar o ácido de um
limão, de uma maçã e de uma uva ainda não maduros e saborear
como se fosse um caramelo.

702
O testemunho da experiência cristã

S egundo, a vida moralmente transformada também prova a divin­


dade de Cristo, porque quando o pecador se converte a Cristo ele
obtém a resposta. Cristo o convida, e ele responde. Ele chama,
e Cristo responde. Ele chama Maomé, e Maomé não vem; ele
chama Confúcio, e Confúcio não vem; ele chama Buda, e Buda
não vem; ele chama Cristo, e Cristo vem. Todo o processo é tão
simples. Em sua vida exterior, uma nova força também começa a
operar um novo desígnio, uma nova obra operando para um fim.
Mas, em especial, há em seu interior um Outro, Um com quem
há comunhão, de quem ele se torna apaixonadamente devoto,
cuja presença traz felicidade e cuja ausência traz tristeza. Esse
homem pode cantar com pleno significado: “Quão tediosas e
insípidas são as horas, quando não vejo mais Jesus, etc.”
0 homem espiritualmente regenerado descobre que as dificulda­
des intelectuais terminam à luz dessa experiência. Os mistérios não
são todos resolvidos, mas as dificuldades deixam de ser relevantes.
Os milagres não o perturbam agora, porque ele tem um exemplo
do poder de operar milagres em sua própria alma. O argumento
de Hume, de que os milagres não podem ser verdadeiros, pois são
contrários à experiência, é exatamente revertido, e o cristão diz
que os milagres são verdadeiros, porque eles são comprovados por
sua experiência.
Em particular, ele tem reforço moral. Será que esse é o teste
final de qualquer religião, o que ela pode fazer com um homem
perverso? Nenhuma delas pode competir com Cristo nesse aspec­
to. Olhe para Pedro, Saulo de Tarso, Agostinho, e John Bunyan,
assim como para milhares de outros. Um sentido de poder moral
vem com a experiência cristã. Não há uma graça ou virtude que
Cristo não possa e não tenha produzido no caráter humano, não
todas ao mesmo tempo ou na mesma pessoa, mas todas tem sido
produzidas.
Desse modo, Cristo se torna final para o homem, final para sua
razão, final para sua consciência, final para sua vontade, final para
seu intelecto e, acima de tudo, final para sua fé, sua aspiração, sua
esperança e seu amor.
Ele agora compreende porque Cristo é o centro de todos os cre­
dos da cristandade. Ele torna-se um juiz e crítico de qualquer siste­
ma religioso, pois o cristão discerne que sua inoperacionalidade se
deve a sua falta de Cristo. Ele compreende o poder perene e notável

703
Os fundamentos

das Escrituras sobre o coração humano como o poder de Cristo.


Ao seu redor, dez mil outras testemunhas e reconhecedores, uma
longa fila deles, correm para Cristo para confirmar sua experiência
e assim criar uma comunidade espiritual cujas partes se apóiam
mutuamente.

Pragmatismo cristão
Em terceiro lugar, a experiência cristã transfere todo o problema
das evidências cristãs para a esfera de vida prática.
Bem, todo o método cristão é o método prático de responder à
seguinte questão: “O que devo fazer para ser salvo?”. A resposta
está na experiência cristã. Ela diz a cada homem: “Você pode
provar a realidade e o poder de Cristo na prática”. Ela diz a cada
homem: “Você tem um foco de visão em sua alma, que Deus lhe
dá e que o leva a reconhecer o Cristo, se você se submeter a Ele.
Aliás, como a filosofia nos diz, todos nós temos um foco cego e que,
mesmo quando focado corretamente, não podemos ver uma marca
preta em uma folha branca, nem com os olhos abertos e com essa
folha bem em frente de nossos olhos. O cristianismo não diz que
precisamos renunciar à razão, mas apenas que devemos renunciar
às dificuldades especulativas no interesse de nosso bem-estar
moral.
O evangelho é prático em seus métodos. O homem que nasceu
cego não tem de aceitar uma teoria qualquer a respeito de Cristo,
de Deus ou do universo, nem monismo ou idealismo, tampouco
qualquer forma especial de teísmo. Somente uma coisa é exigida.
Diz Cristo, “Deixe-me ungir seus olhos com barro e vá lavá-los no
poço de Siloé”. O cego assim fez. sua fé operou. Cresceu por inter­
médio do exercício. Eles o assediaram com perguntas e ele disse:
“Um homem chamado Jesus me curou”. Posteriormente, “Ele era
um homem bom”. Depois, “Ele é um profeta”. E finalmente, esse
homem O adorou. Ele caminhou de fé em fé sob a orientação e
inspiração de Cristo, e essa é a experiência de todo aquele que
coloca sua confiança Nele.

704
<*

índice remissivo

A divindade da, 195; primeiras nar­


rativas da, 81; uso evangelístico
da, 468, 465s; imortalidade da,
Alta Crítica: 191; indestrutibilidade da, 222;
concordância com a história infalibilidade da, 68; inspiração
judaica da, 51; certeza dos resul­
da, 31, 47,141,165; a visão de Je­
tados da, 52; caráter da, 15; 17; sus sobre a, 57, 63; o caráter vivo
compatibilidade com a revelação,
da, 217; a unidade orgânica da,
53, 57; posição da — em relação
199; pregação da, 459s; relação
ao livro de Daniel, 97; posição da com a ciência, 129; estrutura da,
— em relação ao livro de Isaías,
41; estudo da, 665s; revelação
89; significado da, 15,17; obje- sobrenatural da, 45,193, 209; uso
ções ao uso da, 50; origem da, 16; da, 660, 669.
base filosófica da, 54; relação da
— com a arqueologia, 56
Bishop, George, 6,191
Anderson, Sir Robert, 361 Boston, Thomas, 425
Antigo Testamento (veja Burrell, David James, 591
também Bíblia; Daniel; Isaías;
Pentateuco) 63, 67. c ____________________________
Apologética, 625 Caven, William, 63
Arqueologia, 121 Ciência, 131,136,138
Arrependimento (veja Consagração, 521s
Conversão)
Conversão:
condições da, 607; natureza da,
B_____________________ 435; necessidade de, 455; resulta­
Bíblia: dos da, 608; ciência da, 601.
(veja também Arqueologia; Da­
niel; Gênesis; Inspiração; Isaías; Cristianismo:
Antigo Testamento; Pentateuco); adaptabilidade do, 334s; compara­
autoridade da, 37,192; autoria da, ção do, 502s; defesa do, 625; efeito
18, 23; conteúdo da, 665; crítica da Segunda Vinda no, 686; expe­
da, 23, 31, 50; definição de, 659; riência do, 699; relação do — com
o romanismo, 531s, relação do Diabo, 568s
— com a ciência, 129; sucesso do,
334; veracidade do, 327s; necessi­ Dinheiro, 651s
dade do — no mundo, 500s.
Divindade de Cristo (veja
Cristo; também Cristo):
o testemunho dos evangelhos em
compaixão de, 516; cruz de, 367;
relação à, 73s, 265s; a afirmação
morte de, 389s; divindade de, 73s,
de Jesus quanto a sua própria,
184s, 263s, 281s; no evangelho,
281s; a convicção humana da,
retratos de, 185; humanidade de,
268s.
73s, 177s; encarnação de, 559s;
a mediação de, 538s; pessoa de,
627s; profecias de, 211s; relacio­ E____________________________
namento com o Pai, 251s, 595s;
relacionamento com a filosofia, Encarnação, 389s, 559s, 596s
579; ressurreição de, 297s, 455;
Segunda Vinda de, 571s, 678s, Erdman, Charles R., 689
695s; pureza de, 182s, 278; subs­
tituto para os pecadores, 377s;
Erdman, W. J., 319
ensinamentos de, 57s, 63s, 281s, Escatologia, 678s
532s, 633s, 649s, 678s; nascimen­
to virginal de, 271s; ganhando Escola Dominical, 477s
homens para, 467s.
Escrituras (veja Bíblia)
Crítica (veja Alta Crítica) Esperança (veja Segunda
Crosby, Howard, 459 Vinda)
Espírito Santo;
D_______________________ personalidade do, 313s; relação
com o povo de Deus, 319s; resis­
Daniel: tência ao, 316s; andando no, 407s;
imprecisões alegadas do livro de, trabalho do, 315s, 321s, 428, 468s,
lOls; a visão crítica de, 97s. 605s.

Depravação, 363s Evangelismo (veja também


Deus (veja também Cristo, Missões):
Espírito Santo); a Bíblia em, 470s; condições de,
atributos de, 109; Cristo, 451s; Cristo no, 467s; responsabi­
revelação de, 596s; negação da lidades do, 496s; o Espírito Santo
existência de, 242s; paternidade no, 468s; mensagem do, 452s;
de, 251s; graça de, 399s; santida­ métodos de, 472s; oração no, 471s,
de de, 387s; julgamento de, 365s, 487s.
369s; conhecimento de, 591s; à
semelhança de, 428s; amor de, Evolução, 245s, 611s
383s; natureza de, 495s; necessi­
dade de, 246s; oração para, 633s; Expiação:
incognoscibilidade de, 243s. adequação da substituta, 383s;
argumento contra a substituta,
378s; modo de, 387s; teoria da Homem;
influência moral da, 377-378; tes­ um fracasso, 362s; caráter do,
temunhas do Novo Testamento, 363; depravação, 363; dignidade
389s; testemunhas do Antigo de Jesus como, 179s; concessão
Testamento, 388s da vida ao, 229s; julgamento do,
365s; notícias do, 498-499; origem
do, 112s, 619s; raças do, 113;
F_____________________ pureza de Jesus como, 182s, 278;
Fé: sustentação do, 232s; transforma­
justificação pela, 439s; natureza ção do, 235-236; sem desculpa,
da fé, 443s; necessidade da, 450s; 363; Palavra de Deus no, 227s.
salvação pela, 418s.
Humanidade de Cristo (veja
Filosofia: também Cristo):
definição de, 577; relação com a caráter representativo da, 178-179;
experiência cristã, 705s; relação pureza da, 182s; a verdadeira, 73ss,
com a revelação, 579s; escolas da, 177s; os aspectos virtuosos da, 179s.
581s.
I_____________________________
Foster, J. M., 543
Igreja:
Frost, Henry W., 513 esperança da, 677s; natureza da,
553s; propósito da, 498-499
G_____________________
Gaebelein, Arno C., 209 Inferno (veja Retribuição)
Gênesis: Inspiração:
relato da criação em, 113s; funda­ definição de, 142s; extensão da,
mentos doutrinais em, 115s; cor- 145s; significado da, 165s; obje-
roboração eterna de, 84s; caráter ções à, 157s; prova da, 147s, 177s,
de revelação de, 106s; estilo das 199; — verbal, 168s
primeiras narrativas de, 81s.
Isaías, 89s
Graça:
definição de, 400; relação com a J____________________________
lei, 401s; salvação pela, 414s.
Johnson, Franklin, 377
Gray, James M., 141 Juízo, 365s
H_____________________ Justificação:
definição de, 441s; modo de, 401s,
Hague, Dyson, 15,105, 387 415s, 439s, 537s.

Heagle, David, 31
K
Kyle, M. G., 121
L P
Lasher, George W., 431 Paternidade de Deus:
a revelação de Jesus sobre a, 253s;
Lei: implicações práticas da, 256s;
relacionamento com a graça, relação com a vida de oração,
401s; relacionamento com o peca­ 259s.
do, 306, 356s.
Pecado:
M___________________________ concepção bíblica de, 339s; con­
quista do, 360s; conseqüências
Mauro, Philip, 217, 575 do, 358s, 452s; culpabilidade do,
344s; fato na história humana,
McNichol, John, 677 350s; natureza do, 340s, 354s,
453; origem do, 342s, 352s, 363;
Medhurst, T. W., 531 testemunho de Paulo sobre o,
Milênio, o, 697s 349s; persistência do, 359; relação
da carne com o, 357s; relação do
Missões (veja também juízo com o, 361s; relação da lei
Evangelismo), 495, 496s, 513s. com o, 356s; remoção do, 346s,
565s
Moorehead, Wm. G., 177
Morgan, G. Campbell, 559 Pentateuco (veja também
Antigo Testamento):
Morte, 358 análise literária do, 24s; má-com-
preensão dos sistemas sacrificiais
Moule, H. C. G., 439 do, 26s; autoria mosaica do, 27s.
Mullins, E. Y., 699
Pentecost, George F., 665s
Munhall, L. W., 165, 449
Pentecostes, 319s
N___________________________ Pierson, Arthur T., 199, 633,
Nascimento virginal: 649
necessidade do, 272s; objeções
ao, 277s; evidências das Escritu­ Pregação, 452, 459s
ras para o,273s Procter, Wm. C., 369
Profecia:
O___________________________ classes de, 209s; cumprimento
da, 211s; messiânica, 211s.
Oração:
eficácia da, 633s; no evangelismo,
471s, 487s; objetos da, 492s. Propiciação (veja também
Expiação), 387s
Orr, James, 37, 81,129, 271

708
709
R W
Reconciliação (veja também Warfield, Benjamin, 263
Expiação), 367 Whitelaw, Thomas, 241, 327,
Reforma, 436s 339
Regeneração: Williams, Charles, B., 349
natureza da, 425s, 432; necessidade
de, 455; relação com a reforma, 436s Wilson, Joseph, 97
Wright, George Frederick,
Ressurreição: 23,121, 611
provas da — do corpo de Cristo,
298s; sujeitos à, 693; tempo da,
693

Retribuição, 369s
Revelação, 579s, 594-595
Robinson, George L., 89
Romanismo, 531s, 543s
s_____________
Santificação, 522s
Scofield, C. I., 399
Segunda Vinda (veja
também Cristo; Escatologia),
572s, 689s, 695s
Speer, Robert E., 251, 495
Stock, John, 281
Stone, John Timothy, 467
T_____________________
Thomas, W. H. Griffith, 49
Torrey, R. A., 297, 313, 487
Troop, G. Osborne, 73
V
Vida, 229s, 232s, 236s
Notas

* [NE]: Baseado na Melhores Textos Grego e Hebraico. No original em


inglês: 281 vezes. Na RA, 241; 269, na NVI.
1As vezes, outros termos são utilizados: “sobreviventes” (1.9); “os
desterrados e os dispersos” (11.12)
2 O nome de um veleiro, considerado o mais veloz da época.
3John Scopes, professor de biologia, que foi perseguido por ter ensinado a
teoria da evolução de Darwin, em um estado americano que se opunha
a essa teoria, pois esse governo estadual preferia ensinar a história da
criação, conforme o relato bíblico. Esse julgamento levantou questões
sobre a separação da religião do Estado. Esse professor foi defendido por
Clarence Darrow.
4Apresentado por Fausto Sozzini, 1539-1604, e por seu tio, Lélio Sozzini,
1525-1562.
5Referente à teologia cristã liberal de Albrecht Ritschl, 1822-89, a qual
afirma que a fé religiosa é fundamentada em julgamento de valores.
* [NE]: No sentido da existência de um único Deus para todos os cristãos
do mundo.
6John Scopes, professor de biologia, que foi perseguido por ter ensinado a
teoria da evolução de Darwin, em um estado americano que se opunha
a essa teoria, pois esse governo estadual preferia ensinar a história da
criação, conforme o relato bíblico. Esse julgamento levantou questões
sobre a separação da religião do Estado. Esse professor foi defendido por
Clarence Darrow.
7Nome que os gregos davam aos banqueiros, pois estes se sentavam às
mesas no mercado, o centro de todas as transações comerciais, (v. hhttp:
//yamaguchy.netfirms.com/astle/astle.07.html)

710
A FAMOSA COLETÂNEA DE TEXTOS DAS
VERDADES BÍBLICAS FUNDAMENTAIS

FUNDAMENTOS
Nestes dias de comunhões fragmentadas e doutrinas
diluídas, a igreja deve descobrir novamente a ampla base que
os "Pais Fundamentalistas" construíram e da qual eles
ministraram. Nossa moderna sociedade pluralista faz com que
seja fácil para nós ser tão tolerantes, que quase deixamos de ter
convicções, ou tão intolerantes, que pensamos que nosso
grupo particular é o único guardião da verdade. É bom ter Os
Fundamentos novamente impresso, e acredito que a nova
geração de estudiosos da Bíblia se identificará com esta plêiade
de grandes líderes e aprenderá com eles os elementos
fundamentais da doutrina e da prática.

Warren W. Wiersbe

Que o respeito pela Palavra de Deus, e o equilíbrio entre razão e espiritualidade

de R. A. Torrey e a fértil terra cada vez mais de "Nosso Senhor" permitam que

esta obra seja uma bênção para todos que dela utilizarem

Luiz Sayão

Você também pode gostar