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Bíblia e Exegese
Uma proposta de abordagem hermenêutica para a compreensão do uso do
Antigo Testamento no Novo Testamento¹ - parte 3
21/08/2015 09:07:22
O artigo prossegue mostrando que é fundamental reconhecer o caráter de revelação tanto do AT como do
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NT, vendo o impacto que o primeiro testamento teve sobre o segundo e compreendendo o NT como a
consumação do AT mediante o evento-Cristo.7 O método do “cumprimento análogo” reconhece tanto as
semelhanças quanto as diferenças de objetos, eventos e ideias do AT e seus devidos correspondentes no
NT. As analogias na hermenêutica e no cumprimento envolvem uma âncora objetiva e um elemento
subjetivo. A âncora objetiva deve estar em algum sentido na intenção ou no entendimento do profeta do
AT, caso contrário o cumprimento seria equívoco ou alegórico. Weir trabalha com os conceitos de
equivocidade e univocidade, mostrando que as metodologias dos autores neotestamentários se
encontravam, geralmente, no meio termo destes dois conceitos. Quando o cumprimento no NT era literal,
então a interpretação era unívoca, mas em todos os outros quatro métodos, ela era análoga, contendo um
elemento de subjetividade fundamentado em conceitos teológicos ou eventos históricos que proviam a
semelhança objetiva.8 Todavia, até o cumprimento literal de passagens do AT no NT não é completamente
unívoco, por serem compreendidas em um novo contexto de espaço e tempo diferentes.9
A abordagem do cumprimento análogo tem o mérito de tentar propor uma metodologia que seja a mais
ampla possível e abranja os vários tipos de interação que os escritores do NT tiveram com o texto do AT.
Certamente, não há completa uniformidade no modo que os autores do NT citaram o AT, e o exegeta
precisará olhar com cuidado para as contribuições positivas de cada abordagem hermenêutica do uso do
AT no NT.
Outra fraqueza da proposta do “cumprimento análogo” é a defesa de que a analogia (equivocidade versus
univocidade) explica o uso literal de passagens do AT no NT, visto que tal uso implica tempo e espaço
diferentes.12 Weir parece confundir o tempo e espaço em que a profecia é proferida com o tempo e espaço
do cumprimento dela. Por exemplo, o cumprimento de Isaías 7.14 na concepção virginal de Maria do
menino Jesus, em Mateus 1.22-23, é literal,13 pois os dois textos se referem ao mesmo tempo e espaço de
cumprimento, ainda que cada um veja o cumprimento de um ponto distinto da história, antes e depois de
sua concretização.
Por fim, a preocupação em validar a exegese histórico-crítica ao lado da busca em defender o AT como
revelação divina apontam para um inconsistência substancial na abordagem de Weir,14 pois o método
histórico-crítico tem sua ênfase na “razão em detrimento da revelação”,15 “relegando a um papel
secundário o ... caráter divino” da Bíblia.16 O método histórico crítico “frequentemente exclui ... a função da
Bíblia como testemunha ou testemunho apontando, além de si mesma, para uma realidade divina externa
ao texto”.17 Se Weir entende o método histórico-crítico como sinônimo de método histórico-gramatical não
fica claro em seu ensaio, o que leva o leitor a considerar a expressão como tradicionalmente entendida e
definida.
Apesar de tais alertas quanto à abordagem de Weir, sua proposta do uso análogo que os autores do NT
fizeram do AT contribui para a percepção de que a relação intratestamentária experimenta tanto
descontinuidade quanto continuidade e, mesmo em passagens em que há certa subjetividade no modo
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que os apóstolos lidaram com o AT, sempre há uma âncora objetiva que explica as ligações canônicas
feitas por eles enquanto olhavam para o “sim” das promessas de Deus no evento-Cristo (2Co 1.20; cf. Mt
5.17).
Essa metodologia de compreensão do uso do AT pelo NT, denominada “Aplicação Inspirada do Sensus
Plenior” (AISP) por Robert Thomas, atribui dois sentidos às passagens do AT que são aplicadas
subjetivamente pelo NT: “Que a passagem tem dois sentidos é óbvio, mas apenas um desses sentidos
deriva da interpretação histórico-gramatical do próprio AT. O outro sentido vem da análise histórico-
gramatical da passagem do NT que a cita”.21 Ele prossegue dizendo: “A autoridade para o segundo
sentido do AT não é o AT, mas sim, o NT. O AT produz apenas o sentido literal. O sentido do sensus plenior
surge apenas depois que uma AISP das palavras do AT é feita para uma nova situação”.22
Nós não almejamos reproduzir a hermenêutica dos autores do NT porque eles, em virtude da
inspiração, conferiram autoridade a si por meios não disponíveis a nós. Buscamos apenas
proclamar o que o texto, em sua autoridade, já tem revelado.23
Ou seja, o intérprete cristão da Escritura Sagrada não deve seguir a prática hermenêutica dos escritores do
NT, pois eles possuíam dons de apostolado e de profecia que lhes possibilitavam transmitir a revelação
segura da parte de Deus, capacidade esta que o intérprete contemporâneo não tem.24
A convicção cristã era que o sentido do texto do AT apontava para o ápice do plano redentor de Deus em
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Cristo e para a nova era escatológica que se iniciava. Como destacou Gerhard Hasel: “É difícil aceitar a
ideia escriturística de uma referência arbitrária somente com a finalidade de obter material para
ilustrações”.28
Nesse aspecto, a “abordagem do cumprimento análogo” rebate a ênfase na subjetividade dos autores do
NT contida na AISP, mostrando que “o escritor do NT não era completamente livre para improvisar, pois
estava limitado pelos pontos de correspondência, equivalência e semelhança entre o AT e o cumprimento
proclamado”.29 A abordagem do AISP é superficial, pois deixa de perceber que a história é uma “unidade
inter-relacionada e que Deus designa as primeiras partes para corresponderem às partes posteriores e
apontarem para elas, especialmente para aqueles eventos que ocorreram na era do cumprimento
escatológico em Cristo”.30
Conclusão
O estudo das abordagens hermenêuticas evangélicas na compreensão do uso do AT pelo NT esclareceu
os principais prismas sob os quais esta questão interpretativa complexa tem sido analisada. O exame de
cada uma das escolas revelou que não há uma panaceia metodológica que lide com todos os problemas
envolvidos na questão, exigindo, portanto, uma abordagem múltipla.31 Há da parte deste autor uma
preferência ou ênfase na abordagem do referentiae plenior, com sua distinção entre significado e
referente/significância e a percepção do conceito de cumprimento no NT como indicador da concretização
plena da significância de certas passagens das Escrituras. As abordagens “canônica”, do “cumprimento
análogo” e da “hermenêutica judaica” também oferecem insights importantes para o entendimento da
reflexão cristã sobre o AT no primeiro século e para a compreensão da ampliação dos temas e da teologia
canônica.
As palavras dos escritores do Antigo Testamento eram necessárias para transmitir todas as
implicações que eles podiam perceber em seu estágio da história da revelação e que desejavam
comunicar a seu(s) público/leitores tendo o assunto principal em mente. Todavia, elas eram
suficientes em seu campo semântico para compreender não apenas tudo o que o Autor [divino]
desejava comunicar para a geração do escritor, como também o que ele havia determinado
manter reservado para os escritores do Novo Testamento, várias gerações depois.32
Afirma-se assim que cada texto do AT possui apenas um sentido, o qual pode conter mais de um referente
ou uma significância. “Em muitos casos, o Novo Testamento faz uma aplicação particular de princípios
declarados no Antigo, cujo cumprimento é concretizado em mais do que um único evento”.33 Por isso, nem
sempre os autores do AT estavam plenamente conscientes de todas as implicações contidas em seus
textos, as quais só foram percebidas “mediante uma dose de revelação concedida posteriormente”.34
Além disso, deve-se reconhecer a leitura cristológica dos escritores neotestamentários: “o Novo
Testamento vê o Antigo Testamento como uma coleção de livros que, em cada uma de suas partes bem
como em seu todo, era de alguma forma ‘incompleta’ até ‘ser completa’ por meio do advento de Cristo e da
inauguração da era da salvação”.35 Pois, Jesus “‘cumpre’ a Lei de Israel (Mt 5.17), sua história (Mt 2.15) e
sua profecia (At 3.18)”.36 Na pessoa e obra de Jesus Cristo, as Escrituras se cumprem na verdadeira
intenção de suas profecias e no objetivo de sua história de salvação.37 Como bem observou Longenecker:
O que o NT nos diz é que em Jesus de Nazaré os primeiros cristãos viram a culminação ou o
cumprimento dos propósitos redentores de Deus para a humanidade [...] Assim eles eram
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capazes de olhar para trás, para o padrão dos relacionamentos pessoais de Deus no passado —
particularmente aqueles com Israel, o seu povo da aliança — e ver todos esses relacionamentos
atingirem a sua finalidade na vida, ministério, morte e ressurreição de Jesus.38
Por fim, uma análise adequada do uso que o NT faz do AT precisa observar os objetivos tencionados pelos
escritores do primeiro século ao citarem um texto da Bíblia Hebraica. Bernard Ramm e Roy B. Zuck dão
alguns exemplos de objetivos, como (a) confirmar uma proposição (cf. Mt 22.32; Mc 10.8; Jo 6.45); (b)
ilustrar uma verdade do Novo Testamento (cf. Rm 10.16, 18; 1Co 1.18-19); (c) explicar uma proposição do
AT (cf. At 2.16-21; Hb 12.19-20); (d) mostrar o cumprimento de uma predição do AT (cf. Mt 1.22-23; 2.5-6);
(e) traçar um paralelo com um acontecimento do AT (Rm 11.4-5).39 Outros objetivos podem ser verificados
na citação do AT em passagens do NT,40 e a compreensão deles em cada caso é importantíssima para
alcançar a interpretação adequada da passagem em análise.
Uma análise exegética do uso que o autor do NT faz de alusões e citações de trechos do AT deve levar em
conta, portanto, os seguintes aspectos: (1) o único sentido do texto do AT com um ou mais referentes; (2) o
Sitz im Leben original da passagem; (3) a significância cristológica/escatológica da passagem do AT para o
autor neotestamentário e o objetivo pelo qual ele a cita; e (4) a metodologia hermenêutica do escritor
neotestamentário em comparação com os métodos hermenêuticos judaicos de sua época. Antes de lidar
com tais questões hermenêuticas, porém, é imprescindível que o intérprete examine o tipo de texto usado
pelo autor neotestamentário em comparação com os textos do TM, da LXX e dos Targuns das passagens
que ele cita ou às quais faz alusão.
Para uma aplicação e verificação deste método à uma passagem do NT (citações e alusões do AT em Hb
12.14-29), veja a exegese completa que este autor desenvolveu, usando o método proposto, em sua
dissertação no link: https://goo.gl/Vud58h
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1Este é o terceiro texto da série de três artigos adaptados do Capítulo 1 da dissertação do autor: O uso do
Tanakh no discurso parenético-escatológico de Hebreus: um estudo de caso das alusões e citações de
Deuteronômio e de Ageu em Hebreus 12.14-29. Atibaia: SBPV, 2012.
2Jack WEIR, “Analogous fulfillment: the use of the Old Testament in the New Testament”, p. 65-76; John
GOLDINGAY, “The Old Testament and Christian faith: Jesus and the Old Testament in Matthew 1 – 5, Part
1”, p. 4-10; Idem, “The Old Testament and Christian faith: Jesus and the Old Testament in Matthew 1 – 5,
Part 2”, p. 5-12; Norman R. ERICSON, “The NT use of the OT: a kerygmatic approach”, p. 337-342; Walter
R. ROEHRS, “The typological use of the Old Testament in the New Testament”, p. 204-216. Por questão de
espaço e foco, apenas duas dessas abordagens serão avaliadas na presente dissertação. A proposta de
Goldingay merece maior atenção por parte de estudiosos, especialmente por combinar a abordagem
canônica e a do referentiae plenior com uma separação radical na análise das intenções divino-humana do
texto bíblico. Surpreendentemente, seus dois artigos no Themelios receberam pouquíssima atenção, ou
nenhuma, por parte de estudiosos desta área, pois eles nem sequer constam nas bibliografias finais de
livros e textos de referência.
3John WALTON, “Inspired subjectivity and hermeneutical objectivity”, p. 65-77; Robert L. THOMAS, “The
New Testament use of the Old Testament”, p. 79-98.
4A validade da proposta ao final do artigo foi verificada em um estudo de caso em Hebreus 12.14-29
desenvolvido pelo autor em sua dissertação de mestrado. Para os dados bibliográficos da dissertação, veja
nota 1.
5Jack WEIR, “Analogous fulfillment: the use of the Old Testament in the New Testament”, p. 65-66.
6Idem, p. 67-70.
7Idem, p. 71-72.
8Idem, p.72-74.
9Jack WEIR, “Analogous fulfillment: the use of the Old Testament in the New Testament”, p.75.
10Idem, p. 67-68 (itálico acrescentado).
11Richard LONGENECKER, Biblical exegesis in the apostolic age, p. 39. Ver também F. F. BRUCE, Biblical
exegesis in the Qumran texts, p. 16ss.; Augustus Nicodemus LOPES, A Bíblia e seus intérpretes, p. 73-74,
81
12Jack WEIR, Op. cit., p. 75.
13Robert L. THOMAS, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 80.
14Jack WEIR, Op. cit., p. 66. Ver também: “... se a Bíblia deve ter uma autoridade objetiva, ela só pode tê-la
se a teologia é produto da exegese histórico-crítica. Sem esta base objetiva, toda a teologia será
especulação subjetiva ou misticismo. [...] O Antigo Testamento pode funcionar como revelação apenas se
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sua exegese histórico-crítica for estabelecida sem ser manipulada pelos moldes do Novo Testamento”
(Idem, p. 70-71).
15Augustus Nicodemus LOPES, “O dilema do método histórico-crítico na interpretação bíblica”, p. 115.
16Idem, p. 118. Ver também Gleason ARCHER Jr., A survey of Old Testament Introduction, p. 577.
17Ensaio de Dennis OLSON em The Princeton Seminary Bulletin XIV, no. 3, 1993, p. 297, citado em
Gleason ARCHER Jr., Op. cit., p. 574.
18Robert L. THOMAS, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 79-80, 82-83.
19John WALTON, “Inspired subjectivity and hermeneutical objectivity”, p. 69-70.
20Idem, p. 70.
21Robert L. THOMAS, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 87.
22Idem, Ibidem.
23John WALTON, “Inspired subjectivity and hermeneutical objectivity”, p. 76.
24Robert L. THOMAS, Op. cit., p. 86.
25Ver John WALTON, Op. cit., p. 77.
26Donald CARSON, “Matthew”. In: EBC, v. 8, p. 92.
27Roger NICOLE, “The New Testament use of the Old Testament”, p. 138-141.
28Gerhard F. HASEL, Teologia do Antigo e Novo Testamento: questões fundamentais no debate atual, p.
440.
29Jack WEIR, “Analogous fulfillment: the use of the Old Testament in the New Testament”, p. 72.
30G. K. BEALE, “Did Jesus and the apostles preach the right doctrines from the wrong texts?: an
examination of the presuppositions of Jesus’ and the apostles’ exegetical method”, p. 92.
31Gerhard F. HASEL, Op. cit., p. 455; cf. Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior, p. 209-211.
32Carlos Osvaldo PINTO, The Contribution of the Isaiah quotations to Paul’s argument in Romans 9 - 11, p.
28-29 (itálico original).
33Roger NICOLE, “The New Testament use of the Old Testament”. p. 149-150.
34Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 314; ver Elliot E. JOHNSON, “Dual authorship and the single
meaning of Scripture”, p. 221-223.
35Douglas J. MOO, “The problem of sensus plenior”, p. 205.
36Idem. Ibidem.
37E. Earle ELLIS, “How Jesus interpreted his Bible”, p. 345-346.
38Richard N. LONGENECKER, “‘Who is the prophet talking about?’: some reflections on the New
Testament’s use of the Old”, p. 5.
39Bernard RAMM, Protestant biblical interpretation, p. 262; Roy B. ZUCK, A interpretação bíblica, p. 300-
312.Ver também Walter C. KAISER, The uses of the Old Testament in the New, p. 225-235; Norman R.
ERICSON, “The NT use of the OT: a kerygmatic approach”, p. 339; R. H. GUNDRY, “Quotations in the NT”.
In: Merril C. TENNEY, The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible, v. 5, p. 9-10.
40Veja os dez objetivos destacados por Zuck na obra citada na nota anterior.
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